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Tradução de

ALVES CALADO
Para minha mãe, Thelma Somper, que está sempre
em busca de um bom livro. Espero que este esteja à altura!
Com amor e agradecimento por todo o seu apoio.
PRÓLOGO

O surfista noturno

Crepúsculo. Uma baía deserta. As ondas se estendem famintas


para a areia, que muda de tom, do branco para o mel, dourado e
um âmbar feroz à medida que o sol se cansa e mergulha nas á-
guas negras. As ondas famintas engolem depressa a bola de luz.
Agora é um mundo de sombra sobre sombra. Nenhum o-
lhar humano pode discernir as emendas entre terra e água ou
entre água e céu. Nenhum olhar humano pode identificar a agi-
tação e as batidas do oceano. Porque essa não é a escuridão
desbotada das cidades e metrópoles. É a escuridão real — pro-
funda, intensa e feita de veludo negro.
Onde está a lua? É como se tivesse optado por não sair es-
sa noite, relutante em testemunhar os acontecimentos das pró-
ximas horas. Onde estão as estrelas? Também parecem ter deci-
dido manter uma discreta distância. Sem lua. Sem estrelas. Numa
noite assim alguém pode ser perdoado por achar que o mundo
está no fim. E, para um de vocês, isso pode ser verdade.

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Porque as ondas escuras protegem um segredo. Um ho-
mem — pelo menos algo que parece um homem — surfando
numa prancha. Não é um passeio tranquilo. As ondas negras são
altas e ferozes, testando o surfista até os limites da força e da
resistência. Ele jamais perde o equilíbrio, apesar das ondulações,
apesar da falta de luz para guiar o caminho. Seu corpo musculo-
so se vira e se retorce, grudado à prancha. Ele trava uma batalha
pelo respeito com as ondas que adoram zombar. E está se dando
bem.
Por fim as ondas parecem se cansar do esporte e recom-
pensam a determinação do surfista levando-o para a parte rasa.
Mesmo assim ele se move com grande velocidade, a prancha
afiada como faca raspando a fina película de água opalina.
Ele salta da prancha, os pés tocando o fundo arenoso. A
água faz uma última tentativa brincalhona de segurar a prancha,
mas o surfista enfia as mãos na espuma e a arranca das garras
das ondas. Com a prancha embaixo do braço, caminha pela areia
seca.
Não pára nem por um instante, apesar do peso da prancha.
Nem o ar noturno o faz sentir frio. E, estranhamente, mesmo
tendo saído das profundezas da água, sua pele e o cabelo já estão
secos. As roupas também estão secas como ossos. Não usa neo-
prene, apenas roupas comuns — calça e camisa, as mangas ar-
rancadas nos ombros para permitir o máximo de movimento aos
braços. Os pés estão descalços.
Chega à base de um penhasco e encosta a prancha na pedra,
deixando-a para trás enquanto começa a subir. Parece haver um

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caminho, mas, à medida que a rocha fica mais alta, ele precisa
estender as mãos para se alçar, usando os pés com igual destreza.
Agora, seu aspecto é menos de um homem que de animal selva-
gem. Na verdade, é um pouco dos dois. E um pouco além disso.
Chega ao topo do penhasco e pára um instante, olhando
para trás com satisfação, vendo a rocha íngreme que acabou de
subir, olhando para além da areia, para o mar violento através do
qual chegou. Nenhum olhar humano pode perceber os limites
entre terra e água. Mas seus olhos absorvem tudo. Seus olhos
estão à vontade na escuridão.
Ele não perde mais tempo se parabenizando, e se vira para
a frente. Há uma cerca alta mas, depois de todos os obstáculos
por que passou, este é fácil. Os pés pousam na grama macia. Ele
olha adiante, bem adiante, para a casa à distância — janelas ilu-
minadas, mesmo a essa hora tardia. Ela está quase pegando fogo,
de tanta luz. Isso provoca um estalo de dor como um relâmpago
nos olhos, mas ele supera a dor e continua andando.
Seus passos longos percorrem com facilidade o terreno, de
tão grandes que são. Passa por um campo onde há cavalos cor-
rendo. Por um momento pára e olha para eles. Não parecem
vê-lo, mas sentem, imobilizando-se por um momento. Estão
com medo do estranho, e é bom mesmo que estejam. Mas essa
noite não precisam temer. Ele vai em frente.
Há uma enorme piscina e, sempre espalhafatoso, ele não
resiste em dar um mergulho e nadar com braçadas poderosas de
uma borda à outra. Sai de novo, e outra vez suas roupas estão
totalmente secas.

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Mais adiante há um emaranhado de árvores, um pomar.
Enquanto o atravessa, roçando nos galhos, frutas maduras caem
no chão. Descuidadamente ele esmaga pêssegos e romãs com as
ásperas solas dos pés.
Do outro lado do pomar há outro trecho gramado, este
mais macio ainda do que o último. Ele raspa as frutas das solas
dos pés à medida que prossegue. Agora está quase na casa. Tudo
que há entre ela e ele é um roseiral — uma profusão de galhos
entrelaçados, espinhos afiados e flores densas aveludadas. E no
centro das flores há uma mulher. Ele sabia que ela estaria ali.
Agora fica imóvel para observar a curiosa visão.
É uma mulher de meia-idade, corpo arredondado por uma
vida fácil demais. Vestida com um quimono de seda cor-de-rosa,
tem um cesto pendurado num braço e, firme nos dedos gordu-
chos, uma tesoura de poda. Na cabeça usa uma faixa com uma
pequena lanterna na frente. Parece absolutamente ridícula, mas
está sorrindo, feliz consigo mesma, enquanto segura as rosas e
corta as hastes, antes de cheirar as flores e colocá-las carinhosa-
mente no cesto.
Por um tempo ela não percebe nada. Então o pé dele, meio
intencionalmente, esmaga um graveto caído.
— O que foi isso? Quem está aí?
Ela gira, com a luz da testa dardejando como um vagalume.
Mesmo assim não o vê. Depois da pequena pausa, ela re-
torna à sua doce labuta, cantarolando sozinha. Parece um be-
sourão demente. Ele decide se divertir e quebra outro graveto

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com o pé. Dá certo. Ela dá um pulo alto — bem, o mais alto
que seu corpo gorducho permite.
Ele sai das sombras, entrando diretamente sob a luz.
Agora ela o vê. Ergue os olhos para captar todo o seu ta-
manho. Mesmo assim, verdade seja dita, ela não fica tão apavo-
rada quanto ele poderia esperar. Em vez disso, fica eriçada de
raiva.
— Quem é você? — pergunta. — O que está fazendo a-
qui?
Ele a encara.
— Quem é você? — repete ela.
— Quem é você? — pergunta ele.
— Sou Loretta Busby, claro. E este é o meu roseiral. E vo-
cê não tem nada que fazer aqui.
Ele dá um passo na direção da mulher e sorri, estendendo a
mão para o cesto e pegando uma rosa. Levanta-a até o nariz. O
cheiro é doentio — exageradamente doce. Ele esmaga a flor e a
joga longe.
— Como ousa, seu grosseiro! — grita ela. — Sabe quem eu
sou? Sabe quem é meu marido?
— Busby — diz ele. Será que ela o acha um idiota? Ele não
é idiota.
— Isso mesmo. Lachlan Busby — diretor do Banco Coo-
perativo Baía Quarto Crescente, presidente da Câmara de Co-
mércio da Região Nordeste, presbítero da Igreja Progressiva de
Baía Quarto Crescente e o homem mais poderoso de toda a área.
Ela o encara com um clarão, literalmente, quando sua lanterna o

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acerta nos olhos. — Você entrou no jardim errado esta noite,
seu débil mental.
Então, ele se sente insultado. Insultado e irritado. A luz es-
tá se cravando em seus olhos e o cheiro de rosas é doce e xaro-
poso. Ele baixa os olhos para a mulher, que continua latindo
como um cachorrinho irritante. Por fim não suporta mais.
Estende os braços musculosos e a levanta, até que o rosto
dela fica no mesmo nível do seu. Chocada, as pernas da mulher
se sacodem no ar como se ela ainda achasse possível fugir dele.
Encara-o indignada, mas agora, pela primeira vez, vê direito os
olhos dele. Ou melhor, os buracos onde os olhos deveriam estar.
Porque são apenas poços de fogo — poços fundos de chamas
que cospem. Não há mais palavras, porque sua voz sumiu. Suas
pernas interrompem o movimento inútil. A lanterna escorrega
para baixo e a última coisa que ela vê são os dentes. Dois dentes
dourados, como adagas, vindo em sua direção.
O sangue dela é bom — ainda que um pouco refinado de-
mais para seu gosto. Ele bebe profunda e rapidamente, com
pressa. Depois a deita no centro do roseiral. Um sopro de vento
súbito arranca algumas pétalas mais fracas das flores, que rede-
moinham como confetes, antes de descer para cobrir o cadáver.
O assunto dele aqui está terminado. Afasta-se de volta pelo
gramado impecável, retorna pela piscina e pelo pasto dos cavalos,
de volta à borda da rocha escura. Como se para recebê-lo, a lua
finalmente empurra de lado as nuvens escuras. A luz prateada
chove sobre seu corpo enorme. Ele sorri, sentindo-se renascido
enquanto o sangue novo pulsa em seu corpo. Então, com um

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rugido, salta da borda do penhasco dando uma cambalhota no ar
suave da noite.
O jorro de adrenalina é enorme. Isso é a liberdade, pensa ele.
É um mistério pensar em como suportou tanto tempo a bordo
daquele navio. Como conseguiu suportar aquele capitão — com
suas regras e regulamentos... Para mim, chega, pensa ele quando
os pés batem de novo na areia. Chega de regras para Sidório. De
agora em diante, faço meu caminho no mundo. Sem limites.
Bem no alto, no centro de seu amado roseiral, a lanterna de
Loretta Busby pisca brevemente e se apaga. A bateria está tão
morta quanto a mulher.

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CAPÍTULO 1

Os três bucaneiros

Cate Alfanje caminhava pelo convés do Diablo examinando sua


força de ataque de elite. O ataque começaria em menos de uma
hora e os piratas escolhidos já ocupavam todos os espaços no
convés, preparando-se mental e fisicamente para o desafio. Cate
andava lentamente pelo centro do convés, monitorando todos
enquanto treinavam, fazendo anotações mentais para repassar
aos indivíduos e equipes. Ainda era estranho, mas empolgante,
pensar em si mesma como subcapitã. Muita coisa havia mudado
a bordo do Diablo nos últimos meses. Cheng Li havia deixado o
navio — imagine só, para dar aulas! —, deixando com isso vago
o cargo de subcapitã, que Cate aceitou sem precisar de muito
convencimento. O velho humor do capitão Molucco Wrathe
havia retornado agora que Cheng Li havia partido. Ela sempre

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havia sido uma espécie de pedra em seu sapato. Ele parecia
muito mais feliz tendo Cate como imediata. Os dois nem sempre
concordavam quanto à estratégia, mas mantinham um amigável
respeito e, em questões de planejamento de ataque, geralmente
ele a deixava dar a palavra final. Mas, dentre todas as mudanças
acontecidas nos últimos meses, para Cate a mais importante fora
a chegada dos gêmeos Tormenta a bordo.
O surgimento dos dois havia acontecido nas circunstâncias
mais trágicas. Connor apareceu primeiro, cerca de uma semana
antes da irmã gêmea, Grace. Nos dias seguintes à morte do pai
dos dois, eles haviam fugido de sua cidade — Baía Quarto
Crescente — no antigo veleiro de madeira da família. Mas, como
um infortúnio nunca vem sozinho, o barco foi apanhado na
mais feroz das tempestades. Os gêmeos quase haviam se afoga-
do, porém o destino os levou à segurança, mas os manteve se-
parados por um tempo. Cate sabia como essa separação havia
sido um tempo de testes para Connor mas, a bem da verdade,
ele havia se lançado à vida a bordo do Diablo com cada fibra de
seu ser. Ela podia vê-lo agora, no fim do convés, treinando luta
de espada com seus dois melhores amigos — Bartholomew
“Bart” Pearce e Jez Stukeley. Apressou o passo na direção deles.
Bart e Jez eram membros da tripulação havia vários anos e eram
dois dos piratas mais populares a bordo. Ambos tinham 20 e
poucos anos, mas haviam assinado o contrato ainda adolescen-
tes. Mesmo quando era adolescente, Bart fora um dos homens
mais fortes a bordo. Sob orientação dela, adquiriu habilidade
com a espada para complementar os músculos. Jez era menor e

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mais magro, mas, para dizer a verdade, era um espadachim mais
completo. Enquanto Bart usava o montante, uma espada grande
e de folha larga, e frequentemente liderava a força de ataque, Jez
— como Cate — era um lutador de precisão que, com suas ha-
bilidades no uso do sabre, podia determinar o sucesso do dia.
E ali estava Connor Tormenta — ainda com apenas 14 a-
nos. Pouco mais de três meses a bordo e não tinha treinamento
anterior como pirata. Cate o havia apresentado ao sabre e ficou
deliciada com sua habilidade natural e a vontade de treinar. A-
gora, enquanto Cate observava os três jovens piratas executando
as manobras, havia pouca coisa que os separasse em termos de
talento. Cate estava gostando especialmente porque Jez havia
posto Connor sob suas asas. Esperava que todo o seu gênio com
o sabre passasse para o jovem aprendiz.
— E como vão os Três Bucaneiros neste belo dia? — per-
guntou ela com um sorriso. Havia bolado o apelido, que acabou
pegando. Os três piratas eram inseparáveis. Cada um cuidava
dos colegas, nos ataques e fora deles.
Os três ergueram os olhos sorrindo enquanto saudavam a
subcapitã.
— Vamos bem, obrigado, senhora — disse Bart rindo. Ele
e Cate andavam flertando, coisa de que ela gostava secretamente,
mas não encorajava quando estava à ponto de um ataque.
— À vontade, rapazes — disse, chegando perto. Mesmo
lhes dando permissão para relaxar, a ordem também servia para
demonstrar a autoridade sobre eles.
Bart captou a deixa.

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— Então — pediu —, conte mais sobre esse navio que es-
tamos perseguindo.
— É um porta-contêineres. Estamos atrás dele desde o iní-
cio da manhã. O capitão Wrathe recebeu uma dica ontem de
manhã, de uma das nossas fontes mais confiáveis. Parece que
está cheio de carga e com poucas defesas. Melhor ainda, está na
nossa rota marítima.
— Deve ser uma vitória fácil, então — disse Jez Stukeley.
— Nunca conte com isso — respondeu Cate. — As chan-
ces estão a nosso favor, mas não devemos ser presunçosos.
— Não, senhor! — exclamou Jez.
— Não senhor? — ecoou Bart. Ele e Connor riram do es-
corregão do colega.
Jez deu de ombros, ficando vermelho.
— Desculpe, senhora. Não sei o que...
— Tudo bem — disse Cate, achando engraçado, mas fa-
zendo questão de não demonstrar. Virou os olhos na direção de
Connor. — E como o jovem sr. Tormenta está se sentindo ho-
je?
Connor encarou-a.
— A postos e pronto para o ataque!
— Excelente! E como está Grace?
Connor deu de ombros.
— Bem, acho. Não a vejo desde o café-da-manhã. Acho
que estava trabalhando na manutenção de espadas.
— Ela também está fazendo bom progresso como espa-
dachim — disse Cate. E notou que Connor se retesou imedia-

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tamente, como sempre fazia quando o assunto envolvendo
Grace e espadas era abordado. Sem dúvida não devia estar pre-
ocupado com a hipótese de ela rivalizar com ele, não é? Por
melhor que Grace fosse, e ela demonstrava um talento natural
para o ataque, simplesmente não se dedicava tanto ao treina-
mento quanto Connor. Era uma pena, pensou Cate. Por que os
garotos deveriam ficar com toda a glória? Ela precisaria trocar
mais uma palavrinha com Grace e convencê-la a levar as coisas
um pouco mais a sério. Talvez um pouco de treino direto com
outra mulher pirata... quem sabe Johnna?... fosse o melhor ca-
minho.
— Você não vai chamá-la para atacar, por enquanto, vai?
— perguntou Connor.
— Não — respondeu Cate, balançando a cabeça. — Não,
ela não está pronta. — Viu os ombros de Connor relaxarem
imediatamente. Agora achou que entendia. Ele era simplesmente
um irmão, e estava sendo superprotetor. Connor não gostava de
pensar que Grace iria correr perigo. Mas não havia passagem
grátis num navio pirata e, além disso, Grace mostrara-se capaz
de enfrentar perigos significativos. Afinal de contas, fora “resga-
tada” por um navio de vampiros, ou melhor, de Vampiratas... e
sobrevivera para contar a história. Apesar da insistência dos co-
legas de tripulação, Grace havia contado muito pouco sobre o
que passou a bordo daquele navio. Havia confidenciado apenas
a Connor e, mesmo que ele tivesse guardado com firmeza os
segredos da irmã, tinha sugerido que ela enfrentara algumas si-

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tuações terríveis a bordo. Era compreensível que quisesse pro-
tegê-la de mais traumas.
— Você não deve se preocupar com ela — disse Cate a
Connor. — Grace é forte como o couro da bainha da minha
espada.
Connor sorriu, mas apenas de leve.
— Ela é minha irmã, Cate. É tudo que tenho no mundo.
— Na-na-não, meu chapa — disse Bart pondo a mão no
ombro de Connor. — E nós?
— É — acrescentou Jez, dando uma cutucada nas costelas
de Connor. — E os Três Bucaneiros?
— Um por todos e todos por um! — acrescentou Bart.
— Muito original — disse Cate, suspirando.
Mas as palhaçadas haviam dado certo. Connor estava sor-
rindo de novo.
— Certo, rapazes — disse Cate. — Vou fazer os últimos
preparativos para o ataque.
— Sim, senhor! — disse Bart prestando continência.
Cate tentou franzir a testa, mas não conseguiu conter o riso
que vinha chegando.
— Chega de brincadeiras, sr. Pearce. Mais uma gracinha e
vai ser posto para limpar as privadas esta noite enquanto o resto
de nós vai à taverna de madame Chaleira. — Ela se virou e foi
andando, antes que outra onda de gargalhadas rompesse sua
postura séria.
— Aaah, eu adoro quando ela fica toda metida a besta —
disse Bart aos colegas.

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Connor revirou os olhos para Jez.
— Anda, Connor — disse Jez —, vamos deixar o sr. Pear-
ce aqui com suas fantasias amorosas enquanto fazemos algumas
manobras sérias com o sabre.
— Falou e disse — concordou Connor.

Depois de passar a manhã limpando espadas, Grace Tormenta


também precisava de uma boa lavada. Esfregou as mãos e os
braços mas, mesmo que desse para se livrar da maior parte da
sujeira, não conseguiu extinguir o cheiro de óleo e metal. Ah,
bem, teria de deixar que o cheiro sumisse, concluiu. Despedin-
do-se dos colegas, voltou à sua cabine para um merecido des-
canso. Enquanto andava pelo corredor, pôde ouvir os piratas no
convés de cima se preparando para o ataque. Connor estaria en-
tre eles. Sentiu uma instintiva onda de nervosismo. Depois de
três meses, ainda era estranho pensar no irmão gêmeo como um
prodígio da pirataria.
Algumas vezes ficava pensando em como as coisas haviam
acontecido. Depois da morte do pai, não havia restado nada para
os dois em Baía Quarto Crescente — nada além de uma vida de
trabalho enfadonho no orfanato ou ser adotada pelo maluco ge-
rente do banco, Lachlan Busby, e sua mulher demente, Loretta.
E assim eles haviam partido para o oceano em seu velho barco,
o Dama da Louisiana, sem saber para onde iam, mas certos de que
qualquer lugar seria melhor do que o que estavam deixando para
trás.

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Mas nenhum dos dois poderia ter imaginado o que havia
adiante, pensou Grace abrindo a porta da cabine. Seu irmão fora
resgatado por este navio pirata. E, quanto a ela, bem, ela fora
levada aos Vampiratas — criaturas das quais somente ouvira
falar na estranha cantiga que seu pai cantava para os gêmeos.

— Vou contar a história dos Vampiratas,


História antiga e verídica.
Sim, vou contar sobre um velho navio
Com tripulação maligna e fatídica.
Sim, vou contar sobre um velho navio,
Que veleja no oceano azul...
Que assombra o oceano azul.

Por mais que tivessem escutado a cantiga, nunca haviam pensa-


do que o navio pudesse existir de verdade. Mas existia! E ela fora
parar a bordo, ficando cara a cara — ou melhor, cara a máscara
— com seu enigmático capitão.

Dizem que o capitão usa um véu


Para nosso temor aplacar
De sua palidez mortal
E de seus olhos sem vida,
E dos dentes afiados como a noite sombria.
Ah, dizem que o capitão usa um véu
E seus olhos nunca vêem a luz do dia.

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O capitão não usava um véu, e sim uma máscara. Esse era apenas
um dos pontos em que a realidade do navio Vampirata contras-
tava com as palavras da cantiga. O navio era tão misterioso
quanto Grace poderia imaginar. Mas certamente não era o local
de terror absoluto que todo mundo esperava. Pelo menos não
havia sido para ela.
“Não era um lugar terrível?”, perguntava um ou outro pirata
todos os dias. “Qual foi a pior coisa por que você passou?”, era
outra pergunta recorrente. E: “Como eram aqueles demônios?”
Diante dessas perguntas, Grace decidiu que a melhor es-
tratégia era dizer: “Prefiro não falar nisso, se você não se impor-
ta”. Em geral, a saída estratégica funcionava. Pobre Grace, pen-
savam eles. Claro, ela não queria atrair as lembranças daquele
lugar medonho.
Isso era muito mais fácil do que tentar convencê-los de que
na verdade ela fora bem tratada a bordo do navio. O capitão
mascarado parecia uma criatura bondosa, interessado no melhor
para Grace. E ainda que os Vampiratas — claro — bebessem
sangue, faziam isso de modo comedido num Festim semanal. E
o sangue era fornecido por doadores, que eram bem tratados em
troca da doação. Ela havia contado a Connor, mas até ele tinha
dificuldade para entender como ela poderia aceitar tudo isso. A
simples idéia de tomar sangue — ou de “compartilhar”, como
diziam os Vampiratas — o enchia de horror. Grace sorriu. Por
mais que Connor pudesse parecer durão para seus amigos pira-
tas, só pensar em beber sangue o deixava enjoado. Era uma coi-

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sa boa que ela tivesse ido parar no navio Vampirata, refletiu
Grace, e ele na embarcação pirata, e não o contrário!
Por mais estranho que parecesse, Grace havia feito bons
amigos no navio Vampirata. Bom, até as roupas que estava u-
sando haviam sido dadas por Darcy Flotsam — que durante o
dia era a figura de proa do navio e, em suas próprias palavras, a
“figura de diversão à noite”.
Sentada na cama estreita, Grace puxou a cortina fina sobre
a escotilha. Lá fora o oceano era de um azul ofuscante. Fazia
com que ela pensasse — como acontecia frequentemente — em
Lorcan Furey. Ele era o “jovem” Vampirata que a havia salvado
do afogamento. Lorcan a escondera a bordo do navio e, quando
os piratas a encontraram, protegeu-a uma última vez. Grace
deixou o navio muito mais rápido do que gostaria. Nem teve a
chance de se despedir direito de Lorcan. Tinha-o perdido de
vista depois da chegada de Connor. A chegada do irmão fora
uma tremenda surpresa!
Claro, Lorcan devia ter entrado no navio enquanto a luz do
dia chegava. Mas, quando Grace foi à sua cabine se despedir, ele
não estava lá. Ela fizera Connor esperar enquanto revistava o
resto do navio à sua procura, mas não o encontrou. Nem mes-
mo o capitão Vampirata conseguiu dizer onde Lorcan estaria.
Por fim não pôde mais fazer Connor esperar. Despediu-se do
capitão Vampirata e retornou pela última vez à sua cabine. Pe-
gou uma pequena caixa com seus pertences — inclusive os ca-
dernos e algumas das roupas dadas por Darcy — e voltou ao
convés para ir embora.

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Quando abriu a caixa, em sua cabine no Diablo, descobriu
um pequeno baú de madeira que não se lembrava de ter posto
ali. Dentro havia um pequeno embrulho de pano. Quando o de-
senrolou, um pequeno cartão caiu. Escritas com uma letra fami-
liar, comprida e fina — ainda mais torta do que o normal —,
estavam as palavras:

Querida Grace,
algo para e se lembrar de mim.
Viaje em segurança!
Seu amigo de verdade,
Lorcan Furey.

O coração de Grace batia acelerado quando ela pegou o cartão.


A simples visão da assinatura rabiscada de Lorcan bastou para
comovê-la. Mas, dobrado dentro do pano, havia um choque a-
inda maior. Ali estava o anel Claddagh de Lorcan. Ela se lem-
brou da primeira vez em que o tinha visto, enquanto ele afastava
alguns fios de cabelo de sua testa molhada, depois de salvá-la do
afogamento.
Olhou o anel — a estranha imagem das mãos segurando
um crânio, uma pequena coroa na cabeça do crânio. Pegou-o.
Era um presente grande demais, pensou. Era quase uma parte de
Lorcan. Mas talvez fosse esse o objetivo, pensou com um arre-
pio. Ele queria que ela ficasse com uma parte sua. Teria de de-
volvê-lo um dia, concluiu. Enquanto isso seria seu talismã —

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uma lembrança do tempo que havia passado no navio Vampirata
e o presságio de que um dia, no futuro, iria retornar.
Por enquanto abriu o cordão que Connor lhe dera e passou
por dentro do anel, de modo a deixá-lo junto ao medalhão de
Connor. Eram seus dois pertences mais preciosos.
Agora levantou os dedos para tocar o anel. Algumas vezes,
quando o tocava, fechava os olhos e tinha uma visão claríssima
do navio Vampirata, era como se pudesse vê-lo realmente. Se ao
menos fosse verdade!
Como estariam todos: o capitão, Darcy e Lorcan?, pensou.
Onde estariam agora? De novo desejou ter tido mais tempo para
se despedir. Fora impossível argumentar com Connor quando
ele dissera que Grace precisava viver com ele no Diablo. Jamais
poderia convencê-lo de que os dois deveriam ficar no navio
Vampirata. Seria loucura, não? Optar por viver em meio a uma
tripulação de vampiros? Lembrou-se de uma coisa que seu pai
lhe havia dito. “Algumas vezes a loucura é sabedoria, Gracie.” Grace
tinha a sensação de que seu pai teria entendido.
Deixou a mão se afastar do anel de Lorcan. Teria escolhido
ficar com eles se tivesse uma chance verdadeira. Só um tripulan-
te a havia ameaçado. Como sempre, estremeceu quando a ima-
gem do tenente Sidório lhe veio ao pensamento — os olhos pa-
recendo poços de fogo, os incisivos dourados afiados como a-
dagas.
Sidório — que havia matado seu doador e mantido Grace
como refém em sua cabine até que o capitão a havia resgatado.

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Sidório — que lhe dissera ter sido morto pelo próprio Júlio
César antes de fazer a travessia.
Sidório — que fora banido do navio e mandado para o exí-
lio.
Ele havia sido o único realmente perigoso a bordo daquele
navio, pensou Grace olhando para o oceano translúcido. Mas
Sidório havia partido. O perigo passara. Sem dúvida seria seguro
retornar agora, se ela pudesse descobrir um modo.

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CAPÍTULO 2

Vitória fácil

— Disparem o canhão! — gritou Cate. O ataque estava come-


çando.
Agora o Diablo estava ao lado do navio-alvo. O tiro de ca-
nhão anunciou o início do ataque, e o som de metal rangendo
sinalizou que as grades que os piratas chamavam de “Três De-
sejos” haviam descido do alto para formar pontes levando ao
porta-contêineres. Connor ainda não havia curado o medo de
altura, e seu coração deu uma cambalhota familiar ao ouvi-las
baixando, prevendo a corrida iminente por cima das Desejos,
bem no alto sobre a água. Por sorte, tudo aconteceu depressa, e
hoje houve mais compensação com a calma relativa do oceano.
— Quatros: vão!

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No instante em que as Desejos estavam quase na horizon-
tal, as equipes de quatro homens correram pisando forte por elas.
Eram as equipes de músculos — na maioria homens adultos,
inclusive Bart — que começavam o ataque girando seus mon-
tantes e provocando o medo e o caos aparente no outro convés.
— Primeiros oito: entrando!
O grito de Cate sinalizou o movimento de três equipes de
oito homens com floretes e sabres pelas grades de metal. Ainda
que os montantes parecessem mais temíveis, eram os primeiros
grupos de oito que representavam maior ameaça. Como Cate
havia dito um dia a Connor, usar o florete era como “lutar com
uma agulha”. Se aquela agulha furasse um alvo humano no lugar
certo, perfuraria um órgão vital e provocaria uma morte lenta e
dolorosa de dentro para fora. Jez era o último dos primeiros oito,
à frente de Connor.
— Vejo você do outro lado! — gritou para Connor en-
quanto pulava na Desejo.
A formação 4-8-8 em que os piratas do Diablo lançaram o
ataque contra o porta-contêineres era uma das manobras predi-
letas de Cate, e das mais bem-sucedidas. Era seu modo preferido
de atacar uma embarcação de tamanho médio como o alvo atual,
e envolvia sessenta piratas divididos em três equipes que se sub-
dividiam em 4-8-8. Cada pirata da segunda equipe era empare-
lhado com um do primeiro — o segundo agindo como apoio ao
lutador mais experiente e hábil. Hoje Connor seria o apoio de
Jez. Os dois vinham trabalhando em par durante cada ataque nas

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últimas oito semanas, e Connor estava aprendendo um bocado
com seu bom amigo e mentor.
— Segundos oito!
O chefe da equipe de Connor deu o grito, e agora as equi-
pes dos segundos oito correram pelas Desejos, juntando-se à
batalha. Connor foi o último de sua equipe. De novo pensou em
seu primeiro ataque, quando Cheng Li o havia cutucado para
avançar. Agora Cheng Li estava longe e havia apenas sua própria
vontade para empurrá-lo. Respirando fundo, saltou na Desejo e
correu para a refrega. Agora tudo era instinto, noção de tempo e
precisão. Agora Connor Tormenta habitava não somente as
roupas de pirata, mas também a pele e a alma. Enquanto soltava
um grito e tirava o sabre da bainha, sentiu o sangue bombear
pelas veias. Sentia-se realmente vivo.
Enquanto corria em meio à confusão a bordo do por-
ta-contêineres, viu que Jez estava fazendo círculos ao redor de
dois tripulantes. Eles se vestiam de preto da cabeça aos pés e
brandiam espadas curvas com bordas externas afiadas, que
Connor reconheceu como cimitarras. Para estarem brandindo
aquelas armas, ele percebeu que a carga do porta-contêineres
devia ser realmente preciosa. Os riscos da batalha de hoje seriam
altos.
— Bem-vindo a bordo! — disse Jez, recebendo Connor
com um sorriso tranquilo. —Venha conhecer meus novos ami-
gos!

1 26 1 
 
Ao ver Connor avançando com o sabre na mão, os dois
tripulantes se renderam imediatamente, largando as cimitarras no
convés.
— Excelente decisão, amigos — disse Jez, rindo de orelha
a orelha. — Connor, fique de guarda aqui. Volto num instante.
— Sem problema — respondeu Connor, a postos, com o
sabre cobrindo os dois homens. Esse não era o fim da batalha.
Ele já fora apanhado antes e sabia que qualquer distração no
meio do combate provocaria um resultado muito diferente no
fim da luta.
Mas se permitiu um rápido olhar pelo convés. O ataque
parecia a favor dos piratas. Ainda que a tripulação de defesa es-
tivesse bem armada, parecia ter pouca habilidade nas técnicas de
luta, e os piratas do Diablo os mantinham na defensiva, com a
manobra de Jez sendo repetida por todo o convés. Os tripulan-
tes do porta-contêineres foram levados ao centro do convés,
com as cimitarras caindo como agulhas de pinheiro sobre as tá-
buas. Connor sentiu um jorro de orgulho. O Diablo, sob as ins-
truções de sua nova subcapitã, Cate, era de fato uma máquina de
luta de elite.
Connor olhou nos olhos dos cativos.
“Sempre olhe nos olhos de seu oponente”, dissera Bart um
dia. “A espada pode mentir, mas os olhos, não.” Em ataques
anteriores, ele havia se acostumado a ler o medo nos olhos dos
prisioneiros. Essa era a parte da operação que ele achava mais
difícil. Bart e Jez haviam dito que, com o tempo, isso mudaria.

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‘Não há nada de errado”, dissera Jez. ‘É bom lembrar que
seu prisioneiro não passa de outro cara, como você e eu, outro
cara com amigos, família e sonhos de glória. Só começa a virar
problema se você baixar a guarda por um instante e permitir que
ele volte para a luta.” Connor já era um pirata com experiência
suficiente para saber que isso não aconteceria aqui.
Tendo o cuidado de não deixar seus prisioneiros fora da
vista, olhou rapidamente de novo o convés ao redor. A batalha
parecia estar terminando. Podia ver Cate e o capitão Wrathe
circulando o núcleo de prisioneiros, todos agrupados ao redor
do mastro no centro do navio. Mais adiante viu Bart e sua equi-
pe com os montantes, guardando a periferia. Tudo estava sob
controle. Agora restava apenas uma manobra importante: a ren-
dição do capitão derrotado. Mas onde estava o capitão? Quem
era ele — ou ela? Todos os prisioneiros se vestiam de modo i-
dêntico, sem marca ou distinção de posto. Bom, o próprio
Connor podia estar mantendo o capitão como cativo.
Connor olhou o rosto dos prisioneiros enquanto ouvia
Molucco Wrathe gritar:
— Capitão, mostre-se. Seu navio foi abordado e eu, Mo-
lucco Wrathe, do Diablo, reivindico sua carga.
Não houve resposta. As palavras do capitão Wrathe paira-
ram no ar como o resíduo de disparos de canhão.
Jez se juntou de novo a Connor. Connor se virou para ele,
esperando ver o colega sorrir, mas o rosto de Jez estava sério.
— Não gosto disso — sussurrou ele. — Não gosto nem
um pouco. Foi fácil demais.

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— Fácil é bom, não é? — perguntou Connor.
Jez balançou a cabeça.
— Existe o fácil e existe o fácil demais. Tem alguma coisa
errada.
Connor tremeu ouvindo as palavras.
O capitão Wrathe gritou de novo.
— Venha e mostre-se, capitão. Não faremos mais mal se
pudermos concordar rapidamente com os termos. E encher
nosso porão com seus tesouros!
Dessa vez houve uma resposta. Chegou com o som de um
sino. O sino do navio. Enquanto o estranho som soava três,
quatro e depois cinco vezes, os piratas do Diablo olharam uns
para os outros, imaginando o que estaria acontecendo. Connor
só conseguia vislumbrar o rosto de Cate a distância. Dava para
ver que ela estava tão perturbada quanto o resto deles.
Agora ele estava realmente preocupado. Olhou de novo para
o rosto dos prisioneiros. Um deles sorria. Então o sujeito co-
meçou a gargalhar. O colega o acompanhou. Connor se virou
para Jez, confuso, enquanto a onda de gargalhadas se espalhava
de um prisioneiro ao outro, até que um crescendo de risos to-
mou conta do convés.
De repente Connor percebeu que seus colegas de tripula-
ção não formavam mais a periferia externa do convés. Agora
estavam rodeados por um círculo de piratas, vestidos da cabeça
aos pés como os prisioneiros, brandindo as mesmas cimitarras
mortais. Como os cativos haviam conseguido isso? Agora o

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convés estava cheio deles. Os piratas do Diablo se encontravam
em número muitíssimo menor.
— Eles nos enganaram — disse Jez. — Olhe lá!
Connor seguiu o olhar dele até o lugar onde uma fileira de
figuras vestidas de preto saía de dois buracos no convés. Alça-
pões!
— E olhe atrás de você!
Connor girou a cabeça. Mais tripulantes saíam de outros
dois alçapões à estibordo do navio. A tripulação de defesa havia
atraído os piratas do Diablo para uma falsa sensação de vitória
deixando apenas uma equipe frágil para a luta inicial. Era um
movimento ousado — porque como saberiam que os piratas
não partiriam direto para a matança? Mas o arriscado estratage-
ma dera certo e agora um número quatro vezes maior de tripu-
lantes vestidos de preto se espalhava pelo convés, com cimitar-
ras estendidas.
— O que vamos fazer? — perguntou Connor a Jez.
Jez deu de ombros, parecendo derrotado.
— Sabe alguma oração boa, companheiro?
Connor nunca vira Jez tão arrasado. Olhou do rosto pálido
de Jez para o dos prisioneiros sorridentes diante dele — ou, pelo
menos, dos homens que havia pensado serem prisioneiros. De
repente se sentiu muito, muito enjoado.
— Baixem as armas, escória de atacantes!
A voz do capitão finalmente ressoou pelo convés. Mesmo
assim Connor segurou com força seu sabre erguido. Nenhum
pirata do Diablo poderia baixar a arma sem instrução direta do

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oficial-comandante. Era uma das cláusulas do contrato assinado
por Connor quando entrou sob o comando do capitão Molucco
Wrathe.
Mas agora, para sua surpresa, Connor ouviu Cate gritar:
— Larguem as armas, companheiros.
Ele mal podia acreditar nos próprios ouvidos. Nos três
meses em que estava no navio, houvera algumas dificuldades,
mas nada comparado a isso. Ao redor, armas bateram no chão.
Virou-se com ar interrogativo para Jez, que assentiu, triste. Jun-
tos os dois largaram os sabres. Ao fazerem isso, num movimen-
to obviamente bem ensaiado, os ex-prisioneiros levantaram suas
cimitarras. Agora os tripulantes do Diablo estavam mantidos sob
espadas pelos dois lados. Não tinham chance de escapar. Mas
onde estava o capitão inimigo?
— Que o envergonhado capitão se anuncie! — Era a
mesma voz que havia ordenado que largassem as armas. Uma
voz que falava sem piedade de violência. Connor e os outros
olharam o convés ao redor. Mas não estava claro quem falava.
— Que o envergonhado capitão se anuncie! — repetiu a voz.
— Já deixei clara minha presença — gritou Molucco Wra-
the em resposta. — O que é mais do que pode ser dito com re-
lação ao senhor.
Connor olhou para o capitão Wrathe. Mesmo agora, diante
do desastre, Molucco não havia perdido nada de sua grandeza.
Ele era — e sempre seria — um personagem imortal.
De repente houve um ruído no alto. Connor olhou para o
cesto de gávea. Havia um homem ali — com as mesmas roupas

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de sua tripulação, pretas da cabeça aos pés. Os outros piratas
também começaram a olhar para cima.
Então, para espanto de Connor, o capitão pulou do cesto.
Mergulhou no convés, passou voando pelas velas e cordames
arrastando um cabo atrás. Enquanto ele se aproximava do con-
vés — e da morte certa —, a corda o prendeu, como um equi-
pamento de bungee-jump. Ele balançou por um momento e depois
ficou pendurado de cabeça para baixo — perfeitamente imóvel
— como um morcego adormecido. Por fim desembainhou sua
cimitarra e cortou a corda. Enquanto se soltava, executou uma
cambalhota perfeita no ar, caindo no convés a poucos metros de
Molucco Wrathe.
O misterioso capitão caminhou até Molucco. Sua cimitarra
luzia ao sol como um diamante lapidado. Ele a passou a poucos
milímetros do pescoço do capitão Wrathe. Ainda assim Molucco
não se mexeu.
O capitão ergueu a outra mão e tirou a cobertura preta de
cima do rosto. O pano negro se desenrolou como fitas que voa-
ram para longe na brisa.
Só então o capitão Wrathe empalideceu e pareceu diminuir
de tamanho. E pareceu não ter palavras, tentando engolir o ar.
Até que, finalmente, conseguiu abrir a boca e falar.
— Você! Mas não pode ser... pode?
Connor se virou para Jez, imaginando se ele saberia o que
estava acontecendo. Mas, pela primeira vez na vida, Jez Stukeley
estava absolutamente em silêncio.

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CAPÍTULO 3

O diabo e o albatroz

Os capitães estavam parados cara a cara. Bem, o mais próximo


possível, dado que o capitão do porta-contêineres era uma ca-
beça mais alto do que Molucco Wrathe. Seu rosto era bronzeado,
anguloso e liso como pedra-sabão, a não ser por uma funda ci-
catriz que dissecava a bochecha como um rio púrpura.
— Narcisos Drakoulis — exclamou o capitão Wrathe,
cheio de espanto. — Achei que nunca mais iria vê-lo.
— Tenho certeza de que sim, Wrathe. — O capitão Dra-
koulis sorriu sem nenhum traço de cordialidade. — Muitos in-
vernos vieram e se foram desde Ítaca.
Connor olhou de um capitão para o outro, imaginando que
história tenebrosa haveria entre eles.

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— Sua tripulação se amotinou. Tomou seu navio. Você foi
abandonado no mar. Como conseguiu? Tudo isso... — A voz do
capitão Wrathe ficou no ar enquanto ele observava o convés,
abarcando as hordas de guerreiros de Drakoulis com as cimitar-
ras luzindo como fogo ao sol.
Drakoulis sorriu de novo entre os lábios apertados.
— Sempre tenha um plano B, Wrathe. É a primeira regra
para qualquer capitão, não é? — Ele ergueu a cimitarra, insti-
gando a tripulação a repetir o gesto, de modo que as armas ro-
deavam os piratas do Diablo como uma cerca mortal.
— Mantenham as armas imóveis — ordenou Drakoulis —
por enquanto.
Connor estremeceu, esperando para ver a reação de Jez,
mas não conseguia afastar os olhos do capitão Drakoulis. Havia
um perigo grande demais nos olhos frios e na voz chapada do
capitão. Connor percebeu que o ataque daquele dia estivera
condenado ao fracasso. Xingou-se por ser tão impetuoso. Agora
talvez nunca mais visse Grace. Depois do que custara encon-
trá-la, tudo poderia terminar neste convés — nas mãos de um
dos homens de Drakoulis.
— Houve um equívoco, Drakoulis — disse Molucco Wra-
the. — Você sabe que eu jamais ordenaria um ataque contra o
navio de outro capitão pirata.
Drakoulis balançou a cabeça.
— Não sei nada disso.
Molucco foi em frente, sem se perturbar com o tom gelado
do inimigo.

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— Achávamos que este era um porta-contêineres. Fomos
mal informados...
— Sim — disse Drakoulis, sorrindo de novo. — Você foi
mal informado. — Ele parou, como se avaliasse cuidadosamente
as palavras. — É curioso como essas... confusões ocorrem.
Connor olhou para Jez e o descobriu franzindo a testa.
— Nós fomos enganados — sussurrou Jez. — Era uma
armadilha.
— Está na hora de pagar por seus erros — continuou
Drakoulis. — Há um Código Pirata, Wrathe, que você parece ter
convenientemente esquecido. Ou então acha que está acima dele.
Você tem alguma idéia fantasiosa, talvez, sobre o nome Wrathe.
Você e seus irmãos. Vocês vivem entrando nas rotas marítimas
de outros capitães, sitiando aqui, saqueando ali. Ah, tudo isso é
esporte para você e seus... companheiros de jogo, não é?
Connor já ouvira outros piratas reclamarem do capitão
Wrathe. Pensou na primeira visita que fizera à taverna de Ma-
dame Chaleira, quando uma dúzia de outros capitães havia sol-
tado a raiva contra o capitão Wrathe. Aquilo fora apavorante,
mas essa era uma situação muitíssimo mais perigosa. Os outros
piratas só queriam botar a raiva para fora. O capitão Drakoulis
havia planejado e executado uma missão a sangue frio para pôr o
capitão Wrathe e sua tripulação numa cilada. Connor sentiu que
Drakoulis estava buscando vingança por algum agravo antigo. O
que Molucco teria feito com ele? Connor espiou com novos o-
lhos o capitão a quem havia jurado aliança.

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— O que você quer, Drakoulis? — A pergunta do capitão
Wrathe trouxe Connor com violência para a situação presente. E
difícil.
— Já disse, Wrathe. Chegou a hora de pagar por seus atos.
— Então vamos combinar os termos, homem, e ambos
seguiremos nosso caminho. — O capitão Wrathe parecia tão
seguro de si como sempre.
Drakoulis voltou a falar com sua voz fria:
— Há um preço a ser pago por seus delitos.
— Diga o preço — respondeu Molucco. — E, lembre-me,
é ouro ou prata que faz cócegas em seus desejos?
Drakoulis olhou para Molucco enojado, balançando a ca-
beça devagar. Enquanto ele fazia isso, Connor notou que, em
contraste com o capitão Wrathe — praticamente coberto de
prata e safiras —, o capitão Drakoulis não usava jóias. Seu uni-
forme era igual ao do resto de sua tripulação: simples, preto e
sem enfeites. Quando falou de novo, sua voz saiu cheia de des-
dém.
— É típico de sua parte achar que eu desejaria as mesmas
recompensas efêmeras de que você gosta, Wrathe. O preço de
suas transgressões não será pago em metal, capitão. Será pago na
única moeda que importa: o sangue.
Ao ouvir as palavras do capitão, a tripulação voltou a er-
guer as cimitarras. Era um movimento perfeito, coordenado.
Drakoulis os havia ensaiado bem demais. Connor nem conse-
guia pensar no novo horror que teria início agora. Mas sabia que
os piratas de Drakoulis estariam perfeitamente preparados, ao

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passo que ele e seus companheiros de tripulação seriam deixados
à deriva. Sentiu um clarão de raiva contra o capitão Wrathe por
fazer ele e outros passarem por essa situação. Mas a raiva logo se
dissipou. Molucco Wrathe o havia recebido a bordo do navio
como um pai. Dera abrigo em sua hora mais sombria — lhe res-
tituído a esperança. Molucco poderia ser um bandido desregrado,
mas não era um homem mau. Em contraste nítido, tudo levava a
crer, com o capitão Narcisos Drakoulis.
— Um duelo — anunciou Drakoulis. — A questão será
resolvida num duelo. Até a morte.
Molucco se encolheu. Não era segredo que seus melhores
anos como lutador já haviam passado. Ele ainda podia ser visto
como uma força, mas já havia delegado a parte da luta propria-
mente dita aos membros mais novos da tripulação. Connor o-
lhou de Molucco Wrathe para Narciso Drakoulis. À luz nítida e
branca do sol, o contraste era óbvio demais. O capitão Wrathe
parecia gordo e preguiçoso enquanto, por baixo das vestes pre-
tas e justas, Narciso Drakoulis era magro, rijo, e estava pronto
para lutar. Não era uma disputa. Se a situação ficasse por conta
das espadas, Connor e seus colegas retornariam ao Diablo sem o
capitão.
Mas Drakoulis sorriu de novo para Molucco.
— Claro, não estou sugerindo que você e eu travemos um
combate direto. Bom, nem valeria a pena lubrificar esta cimitarra
para um esporte assim. Não, Wrathe, você vai apresentar seu
melhor espadachim e eu farei o mesmo. — Os olhos escuros de

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Drakoulis se estreitaram. — É melhor decidir depressa quem
será.
Molucco franziu a testa. Procurou Cate na multidão. Con-
nor prendeu o fôlego. Será que o capitão Wrathe iria escolhê-la
para o duelo? Cate devia ser uma das melhores lutadoras do na-
vio, certamente a que tinha mais conhecimentos. Mas arriscar-se
a perdê-la seria uma aposta terrível. E, como amigo e protegido
dela, Connor sentiu uma onda de pavor com a idéia.
— Certo — anunciou Drakoulis —, enquanto você pensa,
permita-me apresentá-lo ao meu combatente. Gidaki Sarakakino,
adiante-se!
Houve gritos uníssonos de comemoração da parte da tri-
pulação de Drakoulis, quando um homem começou a marchar
lentamente para o centro do convés. Connor sentiu um jorro de
medo enquanto ouvia os passos pesados se aproximando. O
homem passou esbarrando nele, e o peso de seus músculos ten-
sos provocou uma dor lancinante no ombro de Connor. Ele se
virou e viu um hematoma escuro já se formando na carne. Ao
erguer os olhos de novo, viu Drakoulis sorrir e estender a mão
para o espadachim que havia escolhido. Sarakakino apertou-a e
se virou para saudar seus colegas de tripulação. Connor sentiu o
coração se encolher. Poucos piratas do Diablo poderiam enfren-
tar um oponente como aquele.
Molucco estava numa conversa concentrada com Cate. O
capitão Drakoulis balançou a cabeça.
— Não é surpresa que você demore tanto para tomar uma
decisão sozinho.

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Pela primeira vez Molucco cedeu à raiva.
— Meu navio é uma democracia — rosnou ele —, e terei a
opinião de minha imediata neste assunto.
Drakoulis lançou um olhar de desprezo para Molucco, mas
por instantes não disse mais nada.
Era uma agonia olhar o capitão Wrathe e Cate discutindo a
difícil situação. Connor sabia como seria doloroso para eles es-
colher um pirata para lutar sozinho, assim. A vida no Diablo se
baseava no trabalho de equipe, e havia uma verdadeira amizade
entre os tripulantes, atravessando a hierarquia sem enfraquecê-la.
Não havia no Diablo o sentimento de que um só pirata seria dis-
pensável.
Por fim o capitão Wrathe deu as costas para Cate e falou
com Narcisos Drakoulis:
— Nossa decisão está tomada.
Junto com o resto de sua tripulação, Connor esperou o ve-
redicto.
— Não submeteremos nenhum integrante de nossa tripu-
lação a um duelo.
Por um momento Drakoulis ficou quieto. Em seguida se
virou para Sarakakino. Os dois começaram a gargalhar. Drakou-
lis se recompôs e se virou de novo para Molucco.
— Você age como se tivesse escolha — disse ele. — Isso
não é um jogo, capitão. Eu lhe disse: é hora de pagar o preço.
Molucco se adiantou até o capitão Drakoulis, cheio de uma
nova energia.

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— Você falou sobre regras, antes, capitão. No entanto, dá
sua ordem como uma espécie de semideus.
— Semideus? — zombou Drakoulis. — Bom, cada navio
não é seu próprio universo e cada capitão pirata, o deus de todos
que ele examina?
Connor sentiu o sangue nas veias virar gelo. Havia loucura
em Drakoulis. Aliada à sua violência, quem poderia dizer qual a
extensão do perigo que ele representava?
— Informarei à Federação dos Piratas — disse Molucco.
Drakoulis balançou a cabeça.
— Acho que não, Wrathe. Agora você está no Albatroz, o
meu navio.
Albatroz, pensou Connor, sério. Era um nome curioso para
um navio. A ave marinha de asas longas era um portento de mau
agouro para os marinheiros. E havia se mostrado isso para a tri-
pulação do Diablo. Sem dúvida hoje o diabo não era páreo para o
albatroz.
— Você está fora de sua via marítima — anunciou Dra-
koulis com frieza.
— Esta não é sua via também.
— Não importa — respondeu Drakoulis. — A Federação
dos Piratas o está abandonando, Wrathe. Eles se cansaram de
suas transgressões. Deus sabe que eles tentaram ao máximo cor-
rigi-lo. Até mandaram um espião para a sua tripulação...
— Um espião?
Molucco parou, pasmo.

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— Sim: um espião! — Drakoulis imitou a confusão arrega-
lada de Molucco. — A filha de Chang Ko. Você achava que ela
estava treinando para ser capitã, mas o tempo todo estava espi-
onando e informando à Federação.
Isso era uma novidade não somente para o capitão Wrathe.
Connor viu a perturbadora acusação ricochetear pelos seus co-
legas. Acertou-o com força também. Ele havia experimentado
de perto as frustrações de Cheng Li com o capitão Wrathe, mas
jamais pensara nela como espiã. Enquanto sua mente rebobinava
freneticamente as conversas entre os dois, percebeu que tudo se
encaixava. Se ao menos ela estivesse ali para se explicar! Mas ele
não a via fazia quase três meses.
O capitão Wrathe balançou a cabeça.
— Isso é mais loucura sua, Drakoulis. A srta. Li estava
terminando o treino da academia. E a Federação escolheu o Di-
ablo para o estágio.
— Então onde ela está agora? — perguntou Drakoulis com
um risinho de desprezo.
— Voltou à academia, para dar aulas.
— Ah, isso mesmo, não é? Ela se demitiu de seu comando
devido a uma oferta excepcional da Federação. Ou seria porque
fracassou na missão de colocá-lo na linha?
— Não! — gritou Molucco.
— Por que não pergunta pessoalmente na próxima vez em
que encontrá-la na Madame Chaleira? Creio que você vai encon-
trar a srta. Li cheia de histórias interessantes. Isso, claro, se ela se
dignar a falar com você.

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Molucco parecia totalmente abalado. Connor sentiu-se i-
gualmente perplexo. Sabia pouca coisa sobre a Federação dos
Piratas. Seria verdade que a Federação estava espionando Mo-
lucco Wrathe e seus piratas? Será que Narcisos Drakoulis estaria
agindo de forma independente ou teria sido contratado como
assassino? Será que Cheng Li havia realmente tentado — sem
conseguir — conter os desvios de Molucco? Parecia que dessa
vez todos os problemas de Molucco haviam se reunido.
— Já falamos bastante — cuspiu Drakoulis. — É hora de
resolver o assunto. Qual será o seu tripulante que vai duelar com
Sarakakino?
Enquanto ele falava, o combatente escolhido tirava a cami-
sa, revelando o peito e o braço com músculos retesados, cheios
de veias grossas. Quando a camisa de Sarakakino caiu no convés,
ele se virou e retesou os bíceps. Na pele bronzeada das costas
havia uma enorme tatuagem de pássaro com as asas compridas
se esticando sobre as escápulas. Outro albatroz, percebeu Con-
nor. Se algum dia já houve um mau agouro portentoso, era a-
quela tatuagem de pássaro.
— Já falei — disse Molucco. — Não designarei nenhum
pirata meu para lutar.
— E eu falei — respondeu Drakoulis explodindo de fúria
— para escolher um homem, caso contrário soltarei o inferno
sobre sua tripulação.
Por todo o convés as cimitarras curvas foram levantadas.
Os dois capitães ficaram parados, cara a cara, olhares tra-
vados.

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Então, para sua surpresa — e horror —, Connor ouviu
uma voz familiar gritando:
— Eu luto com ele, capitão Wrathe. Deixe-me lutar com
ele!

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CAPÍTULO 4

A visita

Grace estava deitada em sua cabine. Acima, o convés do Diablo


estava silencioso. Isso significava que eles haviam saído — todos
os piratas envolvidos no ataque. Agora os que tinham ficado
para trás só poderiam esperar. Essa era a hora que ela odiava.
Conseguia suportar a idéia de Connor indo para a batalha —
não podia fazer muita coisa para impedir isso — enquanto não
tivesse muito tempo para pensar nisso. Quando ele estava longe,
ela gostava de ficar ocupada. Sempre que possível usava esse
tempo para fazer suas tarefas, mas hoje estivera no turno da
manhã e agora tinha umas duas horas de folga. Sempre poderia
se oferecer para ajudar fazendo mais trabalho, mas o tempo de
folga a bordo do Diablo era um luxo que não devia ser desperdi-

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çado. Além disso, havia dormido mal naquela noite, o que —
combinado com o trabalho cedo — a deixou totalmente exausta.
Olhou a pequena cabine ao redor. Era decididamente mais
espartana do que a cabine grandiosa que havia ocupado a bordo
do navio Vampirata. Lá ela dormia como uma princesa de con-
tos de fada numa cama vasta, cheia de travesseiros e cercada por
tapeçarias penduradas. Agora deitava num catre simples com um
travesseiro que já vira dias melhores. Mas não estava reclamando.
Até gostava da nova moradia. Era bastante confortável, e certa-
mente era bom ter a luz do dia entrando, mesmo que fosse por
uma escotilha um tanto suja. Além disso era melhor ter uma ca-
bine do que ficar — como Connor — num dormitório onde os
roncos, chiados, tosses e peidos dos outros piratas faziam uma
estranha sinfonia durante a noite.
Além da cama havia pouca mobília no cômodo — uma
pequena cadeira que ela usava principalmente para pendurar as
roupas à noite, um armário pequeno e algumas prateleiras. Mas
era espaço mais do que suficiente para alguém que tinha tão
poucos pertences quanto Grace. Desenrolando-se lentamente,
saiu da cama e se ajoelhou no chão. Enfiou a mão embaixo do
catre, afastando uma caixa de corda velha e um cobertor que
estavam ali simplesmente para esconder a caixinha que ela guar-
dava.
Pegou-a e voltou a subir na cama. Darcy Flotsam lhe dera a
caixa. “Porque toda jovem precisa de um lugar para suas coisas
secretas,” dissera ela. Era típico de Darcy — o gesto gentil, a
racionalização e a caixa propriamente dita. Para falar a verdade,

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era uma frasqueira. Couro vermelho do lado de fora e forro al-
mofadado de seda rosa-shocking por dentro. Destinava-se a
guardar pentes e escovas, pó-de-arroz, batom e coisas do tipo.
Grace não tinha nada disso e não desejava ter. Mas, com seus
compartimentos escondidos e, mais útil, com a pequena fecha-
dura e a chave, a caixa era o lugar ideal para guardar suas coisas
secretas.
Virou a pequena chave e levantou a tampa, sorrindo en-
quanto examinava o conteúdo. Ali estavam os cadernos e as ca-
netas que havia trazido — por insistência do capitão Vampirata.
Enfiou a mão e pegou o pequeno caderno encadernado em
couro onde havia começado a escrever as “histórias de travessia”
da tripulação Vampirata — relatos de como havia sido a vida
deles quando eram mortais e como tinham passado daquele
mundo para este. Até agora poucas páginas haviam sido usadas.
Tinha apenas a história de Darcy Flotsam — escrita com sua
melhor letra — e a narrativa muito mais sombria de Sidório, ra-
biscada depressa em circunstâncias um tanto diferentes.
Seus olhos passaram sobre essas últimas palavras. Para
Grace, a história dele era tão empolgante quanto horrenda. O
tenente Sidório revelara que, muitos séculos antes, havia seques-
trado Júlio César, e mais tarde tinha sido morto por vingança.
Apesar do medo cru que Sidório provocava em Grace, ela gos-
tou de conhecer sua história e de tê-la escrito nesse caderno.
Havia colhido um segredo sombrio que poucas pessoas nesse
mundo conheciam, e para Grace isso era uma empolgação tão

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inebriante quanto se tivesse pressionado a mais rara orquídea
entre as páginas de seu caderno.
Quando chegou à última página escrita, suspirou. Adoraria
acrescentar histórias ao caderno. A bordo do navio Vampirata,
havia bolado um plano para relatar as narrativas de travessia de
cada membro da tripulação. Essa idéia ainda lhe provocava um
tremor empolgado, mas sabia que tinha pouca esperança de fa-
zê-la acontecer.
Os olhos de Grace estavam ficando tão cansados quanto o
resto do corpo. Fechou o diário e o pôs ao lado, na cama. Dei-
tou-se nos lençóis e fechou os olhos. Levou a mão ao pescoço,
acompanhando a corrente pendurada. Enquanto o indicador
seguia o caminho do cordão sob a blusa, encontrou o medalhão
em forma de coração que Connor lhe dera. Seus dedos o em-
purraram para um dos lados e fez contato com o anel Claddagh
de Lorcan. Quando o tocou, houve um momento de eletricidade
— real ou imaginado — enquanto ela se recordava do presente
de Lorcan ao deixar o navio.
Agora era o anel, acima de tudo, que lhe dava esperança.
Ele o fazia se lembrar das palavras de Lorcan, seu sotaque suave,
o modo como ele a encarava como se houvesse sentimentos tão
profundos que ainda não conseguia verbalizar. O anel era o se-
gredo mais bem guardado de Grace, pendurado onde ninguém
poderia ver, oculto embaixo do medalhão. Algumas vezes, só
algumas vezes, enquanto o aro de metal fazia pressão contra a
clavícula, Grace sentia uma coisa estranha — como se Lorcan
estivesse falando com ela, garantindo que tudo daria certo e que

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os dois ficariam juntos de novo. Sem dúvida era a voz dele que
lhe falava suavemente agora, puxando-a para longe do navio pi-
rata, para as águas azuis e brilhantes de seus sonhos.

— Grace! Grace, acorde!


— O quê?
Ela estava flutuando num sonho delicioso. Sentia-se total-
mente descansada e tranqüila.
— Grace! —A voz retornou. Mais alta. Reconheceu-a, mas
não conseguiu situar. Resistiu.
— Grace Tormenta! Por favor, acorde!
Enquanto a voz martelava direto em seus ouvidos, Grace
abriu os olhos. Conhecia aquela voz — aquele estranho sotaque
cockney, guinchado.
— Darcy! — exclamou, torcendo a cabeça no travesseiro.
— Darcy Flotsam.
Realmente, Darcy estava sentada ao lado da cama. Tinha a
testa franzida.
— Bom, devo dizer que você tem o sono pesadíssimo para
uma senhorita. — A testa franzida logo deu lugar a um sorriso.
Grace sorriu de volta, sentando-se e girando os pés na di-
reção de Darcy.
— Darcy! Nem acredito que é você! Como chegou aqui?
— É uma longa história. Escute, não sei quanto tempo
posso ficar. Mas precisava ver você.

1 48 1 
 
Grace estava rindo de orelha a orelha. Não poderia ter de-
sejado um despertar melhor. Lá estivera, num sonho com o na-
vio Vampirata, e agora uma amiga havia aparecido — não so-
mente no navio, mas em sua própria cabine! Empolgada, levan-
tou-se abrindo os braços para abraçar Darcy. Darcy ficou de pé
e deu um passo adiante.
Mas, quando Grace passou os braços em volta da cintura
de Darcy, esta deve ter se movido depressa, ou então foi o navio,
porque os braços de Grace passaram pelo ar. Ela abriu os braços
de novo e os estendeu para Darcy. Dessa vez, as duas estavam
cara a cara. Darcy a espiava estranhamente. Grace ficou olhan-
do... enquanto seus braços passavam diretos através de Darcy.
Era como se ela fosse feita de ar. Grace levantou a mão até o
rosto da amiga, estendendo um dos dedos em direção a seu nariz
arrebitado. Passou direto pelo nariz de Darcy, chegando ao nada.
Grace se encolheu, olhando-a com curiosidade.
— O que está acontecendo? — perguntou.
Darcy estava séria, cruzando os braços no peito.
— Veja bem, eu estou aqui, mas não estou aqui, Grace.
— Não entendo. Você consegue me ver?
— Claro que consigo — disse ela, avançando. — E posso
ver que você estragou totalmente essa linda blusa que lhe dei.
Grace olhou para baixo, cheia de culpa. Era verdade — a
blusa estava manchada de óleo do trabalho anterior, limpando
espadas.
— Desculpe. Tive de levantar muito cedo para trabalhar, e
foi a primeira coisa que vesti. Nem pensei.

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— Quieta! — disse Darcy levantando um dedo na direção
dos lábios de Grace, mas sem tocá-los. — Temos coisas mais
importantes a conversar, além de manchas e derramamentos.
— Sim. Claro. — Grace ainda não entendia direito como
Darcy havia chegado ali, mas pela expressão ansiosa da amiga
podia ver que ela viera por algum motivo. — Vamos nos sentar.
Grace se sentou na cama e Darcy se sentou ao lado. Só que
não sentou exatamente, notou Grace, mas simplesmente pairou
acima do colchão. Era muito curioso.
— Como está todo mundo? — perguntou Grace. — Co-
mo vai o capitão? E Lorcan?
A cabeça de Darcy baixou por um instante. Quando se er-
gueu de novo, havia gotas de lágrimas nos olhos.
— É exatamente isso — disse ela. — Foi por isso que eu
vim. Desde que você foi embora, tudo está horrível, simples-
mente horrível.
O coração de Grace se encolheu.
— Como assim? O que houve?
Por um momento Darcy não conseguiu falar enquanto as
lágrimas caíam de seus olhos, misturando-se com o rímel e ca-
indo como pétalas escuras na pele fina.
— Só um momento — ela conseguiu fungar, enfiando a
mão no bolso. — Acho que tenho um lenço em algum lugar por
aqui —, mas a mão voltou vazia.
Grace enfiou a mão em seu bolso e instintivamente ofere-
ceu seu lenço a Darcy. As duas se entreolharam por um mo-
mento. Então Grace deixou o lenço cair. As duas olharam o

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pequeno quadrado de pano flutuar direto através do fantasma de
Darcy e chegar ao piso da cabine. De algum modo isso as fez
sorrir. Darcy fungou e levou as costas da mão ao rosto, enxu-
gando as lágrimas e depois limpando a mão no vestido. Era um
gesto pouco característico para alguém que se importava tanto
com a própria aparência. Darcy deu de ombros.
— Como eu disse, Grace, manchas e derramamentos.
Grace assentiu, dando um sorriso tranquilizador.
— Darcy, você precisa dizer o que há de errado. Talvez eu
possa ajudar. Vocês todos foram tão bons comigo... bem, quase
todos. Eu faria todo o possível para ajudar. Você não sabe
quantas vezes sonhei em voltar ao navio. Bom, logo antes de
você me acordar...
Uma expressão sombria atravessou o rosto de Darcy.
— Você não pode voltar!
Grace ficou confusa.
— Por quê?
— Não é mais um lugar seguro. Você nem deve pensar em
voltar.
— Não é mais seguro? Mas eu estava lá quando o capitão
baniu Sidório. E ele era o único Vampirata rebelde, não era?
Darcy balançou a cabeça.
— Não era o único, era o primeiro.
— O primeiro?
Darcy assentiu.
— Sidório era o único rebelde, mas desde que foi banido,
desde que você foi embora, há outros que questionam a autori-

1 51 1 
 
dade do capitão todo dia e toda noite. Não querem aceitar sim-
plesmente tomar sangue no Festim. Querem mais sangue, mais
Festins... — Ela parou, com lágrimas nos olhos de novo.
— E o que o capitão diz?
— Diz que não. Diz que esses são os costumes do navio.
Sempre foram. Sempre serão.
— Bem, então o capitão vai manter o controle. Ele sempre
mantém.
Darcy balançou a cabeça.
— Nunca foi assim antes. Desde que entrei para o navio,
sempre houve... sempre houve respeito pelo capitão. Mas, de-
pois que ele mandou Sidório embora, alguma coisa mudou.
Ninguém havia sido mandado embora antes.
Grace lembrou-se de ter pensado, na época, que poderia
ser perigoso mandar Sidório embora. Mas o capitão estava deci-
dido. Porém Grace estava mais preocupada com os males som-
brios que Sidório poderia causar no mundo do lado de fora do
que com o que aconteceria no navio depois de ele ter partido.
— Eu gostaria de poder ajudar vocês. Gostaria de poder
voltar e falar com o capitão.
Darcy balançou a cabeça.
— Não, Grace. Não, você deve ficar aqui, com Connor,
onde está em segurança.
Grace sorriu.
— É um navio pirata, Darcy. Não é nem um pouco seguro.
Agora mesmo Connor foi fazer um ataque.

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— Vocês dois têm jeito para se meter em encrenca. —
disse Darcy
— Saindo da frigideira para o fogo — concordou Grace,
lamentando.
As duas sorriram uma para a outra. Grace estendeu a mão
como se fosse segurar a de Darcy.
— Não podemos nos tocar — lembrou Darcy.
— Eu sei — disse Grace, mantendo a mão estendida. —
Sei que não podemos, mas vamos fingir que podemos.
Darcy confirmou com a cabeça, estendendo a mão até que
sua palma fantasma ficou quase encostada na de carne e osso, de
Grace. Era bastante perto.
— Então — disse Grace. — Fale sobre o Lorcan.
Mas quando abriu a boca para responder, Darcy começou a
se dissipar.
— Espere! — gritou Grace. — O que aconteceu com Lor-
can?
Darcy balançou a cabeça, com lágrimas enchendo os olhos
de novo. Então se dissolveu no ar e Grace ficou sozinha de no-
vo.

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CAPÍTULO 5

O duelo

— Eu luto com ele, capitão — gritou Jez Stukeley de novo.


Connor se virou para o amigo, chocado, mas Jez já estava
abrindo caminho através da turba. Mais adiante, Connor se virou
na direção de Bart. Ele estava claramente tão chocado quanto
Connor. Isso não podia estar acontecendo com os Três Buca-
neiros!
Alguns capangas de Drakoulis barraram o caminho de Jez,
mas o próprio capitão Drakoulis falou com eles:
— Abram caminho para ele. Deixem que ele se mostre.
As fileiras de guerreiros vestidos de preto se abriram e Jez
Stukeley passou bravamente por eles, parando diante dos dois
capitães piratas e da montanha de músculos que era Gidaki Sa-
rakakino. Este baixou os olhos para Jez e deu um risinho de

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desprezo. Não era preciso ser leitor de mentes para adivinhar o
que estava pensando.
— Sr. Stukeley — disse Molucco Wrathe, pondo a mão no
ombro do jovem pirata. — O senhor é um homem corajoso e
honrado, mas não posso deixar que corra esse perigo.
Jez balançou a cabeça.
— É o meu dever, capitão Wrathe. Quando assinei o con-
trato, concordei em defender o Diablo, meu capitão e meus
companheiros tripulantes. Não há como sair deste navio até que
um de nós concorde com o duelo.
— Ele está certo — interveio Narcisos Drakoulis. — Só
exijo que um dos seus piratas trave um duelo com Sarakakino.
Se não se submeter a isso, nem você nem o resto de sua tripula-
ção jamais verão o Diablo outra vez.
Connor tremeu diante da ameaça de Drakoulis, tornada
ainda mais tangível pela visão das cimitarras a postos em todo o
convés. Contrapôs isso a sua amizade com Jez. Tinha de haver
outro modo. Não era responsabilidade do capitão Wrathe afastar
o perigo? Não poderia ser do Jez. Simplesmente não poderia.
Molucco balançou a cabeça.
— Nunca gostei de você, Drakoulis, mas antigamente você
tinha moral, pelo menos algum tipo de moral. Não sei onde an-
dou apodrecendo todo esse tempo, mas seus anos no ermo o
transformaram num vilão pútrido. Seus atos hoje não podem ter
sido endossados pela Federação dos Piratas. Você age a partir de
seus desejos deturpados e de alguma noção deturpada de vin-
gança por um ressentimento pequeno e antigo.

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Apesar desse ataque verbal, Drakoulis não disse nada du-
rante um,tempo. Seu rosto era uma máscara que não traía ne-
nhuma emoção. Por fim, disse:
— Caso seu sermão tenha acabado, Wrathe, vamos ao que
interessa. O duelo começará ao quinto toque do sino do navio.
— Ele se virou para seus tripulantes. — Liberem o centro do
convés.
Ao ouvir isso, os piratas de Drakoulis recuaram, abrindo
uma área de luta no centro do convés, mais ou menos do tama-
nho de um ringue de boxe. E, como no preâmbulo de uma luta
de boxe, Drakoulis foi para um dos lados conspirar com Gidaki
Sarakakino, que estava enrolando tiras de pano escuro nas mãos.
“Não!”, queria gritar Connor. Isso era loucura. Por que Jez
havia se oferecido para a matança? E por que ninguém o havia
impedido?
Jez foi se juntar a Molucco e Cate do outro lado. Connor
aproveitou o movimento da multidão para chegar mais perto da
área de luta. Encontrou Bart e se enfiou ao lado dele.
— Ei, companheiro. — Bart lançou um sorriso débil para
Connor, mas não conseguiu manter o fingimento de tranquili-
dade por mais de um segundo. Virou-se e olhou para Jez, com
os olhos pesados de preocupação.
— Ele tem alguma chance? — sussurrou Connor para o
colega.
— Ele vai partir com tudo — disse Bart —, mas olhe só o
tal de Sarakakino. Ele faz com que eu pareça um pirralho.

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Connor se perguntou se Bart estaria tentado a trocar de lu-
gar com Jez no duelo. Mas lembrou-se de que, ainda que Bart
tivesse mais corpo, Jez era o espadachim mais hábil. Era bastan-
te forte, e o que não tinha em tamanho era mais do que com-
pensado em técnica e agilidade. Connor pensou no lema de Mo-
lucco Wrathe: “bom treinamento e boa sorte”. Nos minutos se-
guintes, Jez Stukeley precisaria sugar até a última gota das duas
coisas.
O sino do Albatroz tocou uma vez, e todos os olhos se vi-
raram para os dois homens. Para Connor, os instantes seguintes
pareceram se esticar, como em câmera lenta.
Um segundo toque. Sarakakino enfiou as mãos num balde
de pó de giz, presumivelmente para dar mais firmeza ao segurar
a espada. Enquanto ele se inclinava adiante, os músculos nas
costas e nos ombros ficaram ainda mais nítidos — a tatuagem
do albatroz se esticou como se fosse voar.
Um terceiro toque. Um dos homens de Drakoulis ofereceu
o balde de giz a Jez. Dando as costas para Molucco e Cate, Jez
avançou e esfregou o giz nas mãos, sacudindo o excesso. Em
seguida envolveu o punho esquerdo com força no cabo de seu
florete e olhou para o céu, talvez mandando uma rápida oração
através das fitas rosadas de nuvens.
Um quarto toque. Sarakakino estava imóvel, de costas para
o oponente — preparando-se, talvez, também com uma prece.
Jez esperou, o corpo equilibrado e pronto para voar em qualquer
direção.
O quinto e último toque.

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E, então, o inferno se abriu.
Sarakakino se virou e encarou o oponente, a cimitarra cor-
tando o ar num alerta do que faria caso encontrasse a carne de
Jez. Sem se abalar, Jez moveu-se de um lado para o outro, man-
tendo a espada em posição. Até Connor sabia que os movimen-
tos de Sarakakino com a espada eram pura guerra de nervos.
Cate treinava seus piratas para ficarem cegos a esse tipo de bra-
vata. Connor se lembrava muito bem de quando ela e Bart
mandavam olhar nos olhos do adversário — ainda mais do que
para a ponta de sua espada.
A espada de Sarakakino ficou imóvel. Ele encarou Jez co-
mo se o interrogasse. Quer mesmo fazer isso? Acha mesmo que pode
lutar contra mim? Em resposta Jez olhou de volta com frieza mas,
ao fazer isso, estocou com o florete, que riscou o antebraço
musculoso de Sarakakino e cortou sua pele. O primeiro sangue
fora para Stukeley e o Diablo. Connor olhou as gotas vermelhas
do sangue de Sarakakino pingarem nas tábuas do convés.
— Diabo — sussurrou Bart. — Por essa eu não esperava!
Connor riu.
Sarakakino ficou obviamente surpreso, e Jez não perdeu
tempo para capitalizar isso, movendo-se habilmente ao redor do
grandalhão e partindo para um segundo ataque. Mas agora Sara-
kakino estava preparado e, como um monstro que despertava,
deu um rugido e avançou com a cimitarra contra o florete de Jez.
Aço contra aço, e Connor pôde ver Jez lutar para manter a arma
na mão enquanto toda a força do adversário se transferia pela
espada como um choque elétrico.

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As lâminas dos dois oponentes estavam grudadas como
ímãs. Quem se afastasse primeiro e ousasse atacar se arriscaria
ao expor-se por um instante — um instante fugaz, mas potenci-
almente decisivo.
Os olhos dos dois estavam travados com tanta força quan-
to as espadas. Como Connor havia aprendido, o combate era
tanto uma batalha de vontades quanto de força. Jez estava se
saindo realmente bem. O ferimento no braço de Sarakakino era
raso, mas dera um alerta ao lutador presunçoso e sem dúvida o
fizera reavaliar o oponente.
E agora, de novo, foi Jez quem avançou o jogo. Levantou o
sabre, fazendo Sarakakino e sua espada recuarem por um mo-
mento. Jez saltou para cima e para a frente, dando uma estocada
na direção do peito de Sarakakino. Mas o oponente se recuperou
depressa e girou a cimitarra para bloquear o ataque. Não fazia
mal, pensou Connor. De novo, Jez é que fizera o ataque. De
novo o grandalhão de Drakoulis estava na defensiva. Seu amigo
tinha uma verdadeira chance de vitória.
Connor olhou para Narcisos Drakoulis, esperando ver al-
gum sinal de medo em seus olhos, mas o rosto do capitão nada
revelava. Em contraste, Connor viu que Molucco sorria ligeira-
mente, desejando que Jez mantivesse o ímpeto do ataque. Ao
seu lado, Cate também olhava a luta com atenção. Connor sabia
que ela estaria examinando cada movimento de Jez. Para ela,
tudo tinha a ver com tática — como um jogo de xadrez. Cate
podia estar na periferia, mas, em sua mente, ela se encontrava

1 59 1 
 
junto com Jez, manobrando a lâmina. Connor imaginou como
ela estaria avaliando Jez.
Um estalo agudo de metal atraiu o olhar de Connor de
volta aos duelistas. As espadas estavam altas, dando a Sarakakino
a vantagem em altura. Sarakakino manteve a posição, sabendo
que, quanto mais tempo fizesse isso, mais do ímpeto de Jez iria
se esvair. Jez teria de fazer alguma coisa espantosa — e depressa
— para recuperar a vantagem. Mas será que poderia correr o
risco de soltar seu sabre?
No fim, foi Sarakakino quem se separou antes, como se es-
tivesse entediado com o impasse. Recuou a espada e saltou para
longe do alcance de Jez. Era sinal de que, mesmo maior, ele
também era ágil. Os dois estavam se avaliando e descobrindo a
cada movimento que, na verdade, eram bem equiparados. E,
com esse conhecimento, a luta prosseguiu com mais fluência.
Em vez de se posicionar, Sarakakino deixava a cimitarra fazer a
maior parte do trabalho. Jez também percebeu que não podia
contar que teria mais agilidade nos pés do que o musculoso o-
ponente.
Connor ficou olhando as espadas que giravam no ar, coli-
dindo e se afastando de novo. Era a demonstração mais brilhan-
te de técnicas de luta que já vira. Sua adrenalina bombeava, e boa
parte dele sentia coceiras de vontade de pegar sua espada e testar
alguns dos movimentos estonteantes que estava testemunhando.
Entre todos os esportes que aprendera, havia algo insuperável na
luta de espadas. Mas existia nisso algo mais do que um mero es-
porte, lembrou-se.

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Jez aparou os golpes de Sarakakino por todo o trecho de
convés aberto para os dois. Pararam bem na frente do capitão
Drakoulis, com Jez sustentando a vantagem. Então Sarakakino
se soltou e foi aparando a espada de Jez, seguindo pelas tábuas
do convés até onde Molucco e Cate e encontravam. A multidão
fascinada permanecia em silêncio absoluto. Os únicos sons eram
os dos duelistas. O esforço para respirar. As batidas surdas das
botas. O eco infinito de aço contra aço.
Jez e Sarakakino eram como duas feras selvagens, no en-
tanto havia tanta pose e tanto sincronismo nos movimentos
como se os dois estivessem dançando. Mesmo sendo adversários,
eram parceiros naquela dança estranha. Era uma coisa linda de
se ver, cheia de habilidade e graça. Connor marcava cada movi-
mento, hipnotizado. Um dia travaria uma luta assim.
Um novo barulho.
Um grito.
Jez Stukeley está sangrando — profusamente, no peito.
Cambaleia em câmera lenta, recuando pelas tábuas do convés.
As tábuas parecem se dobrar para encontrar seu corpo, que
despenca, braços e pernas se abrindo. Aconteceu tão depressa
que só agora Connor vê a lâmina de Sarakakino recuar mancha-
da do sangue de Jez. A dança está acabando. A beleza impalpá-
vel se foi. É como uma dança da morte. Connor e os outros o-
lham para Jez Stukeley, cujo corpo se sacode como um peixe no
anzol — a vida escorrendo para fora num rio escuro e pulsante
por todo o convés.

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CAPÍTULO 6

A morte de um bucaneiro

Connor não conseguia acreditar em seus olhos. A luta havia


mudado depressa demais. Alguns minutos antes ele estava per-
dido em admiração pela habilidade de Jez. Agora, o amigo estava
caído no convés, ferido fatalmente. Era a mais terrível das visões.
O choque e a adrenalina contida subiram por dentro dele e por
um momento o garoto achou que iria vomitar. Sentiu a bile su-
bindo na garganta, mas de algum modo conseguiu se controlar.
Connor se virou para Bart, a tempo de vê-lo correr adiante.
Dois homens de Drakoulis levantaram as espadas para impedir
os passos de Bart, mas Drakoulis sinalizou para baixarem as ar-
mas e o deixarem passar.
Bart se aproximou do amigo agonizante, ajoelhando-se e
segurando a mão de Jez. A mão do amigo já estava branca — a

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vida se esvaía numa velocidade terrível. Então Connor percebeu:
as mãos de Jez estavam sujas de pó de giz. Foi um alívio mo-
mentâneo.
— Você lutou bem, companheiro — ouviu Bart dizer en-
quanto tentava conter o jorro de sangue do peito do amigo u-
sando um lenço. — Você é um verdadeiro herói.
Connor se virou para olhar Gidaki Sarakakino. Queria odi-
ar o matador, mas descobriu que não podia. A luta poderia ter
pendido para o outro lado, e Sarakakino estaria caído no chão
numa poça de sangue. O vitorioso não estava cantando vanta-
gem. Só fizera aquilo a pedido de seu capitão, como qualquer
pirata. Agora, lentamente, desenrolou os panos do punho e
limpou a espada. Parecia ter se recolhido mentalmente, encon-
trando talvez seu próprio modo de justificar seus atos e as con-
sequências.
Portanto, foi para Narcisos Drakoulis que Connor olhou
agora, lavado de ódio. O sangue de Jez estava nas mãos dele,
ainda que pudessem parecer perfeitamente limpas e lisas à luz
rosada e pálida do crepúsculo.
— Seu preço foi pago, Wrathe — disse Drakoulis, a voz
desprovida de emoção. — Você e sua tripulação estão livres pa-
ra ir embora.
Molucco Wrathe estava numa fúria incandescente e não
tinha medo de demonstrá-la.
— Esse garoto deu a vida em vão, Drakoulis.
— Não — reagiu Drakoulis rispidamente. — Ele deu a vi-
da para lembrar a você que a pirataria não é um mero esporte.

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— Não venha com sermões sobre o que significa ser pirata
— rugiu Molucco. — Ninguém aqui sabe mais sobre o que sig-
nifica ser pirata do que eu.
Drakoulis permaneceu calmo apesar da explosão de Mo-
lucco. Sua voz, enquanto ele prosseguia, era desapaixonada, ro-
bótica:
— Seus atos, suas transgressões, têm consequências, Wra-
the. Que isso seja um alerta. Permaneça em suas vias marítimas.
Obedeça às regras da Federação. Da próxima vez, poderá ser o
seu sangue fedorento no convés. Agora, junte sua tripulação e
saia do Albatroz.
— Capitão! — Connor ouviu Bart gritar.
Molucco e Drakoulis se viraram imediatamente.
— Capitão Wrathe — esclareceu Bart. — Jez ainda não
está morto. A pulsação está fraca, mas acho que há uma chance
de ele ser salvo se pudermos levá-lo de volta ao Diablo e cuidar
bem dos ferimentos.
Molucco abriu um sorriso, mas Drakoulis entrou na frente
dele, o corpo bloqueando o sol poente de modo que pareceu
formar um halo de luz em volta de sua figura sombria.
— Partam agora, sem o derrotado.
Molucco não acreditava no que ouvia.
— Você me deu uma bela lição hoje, Drakoulis. E seu ca-
panga quase trucidou esse garoto. Você é realmente tão detur-
pado que prefere vê-lo morrer em seu convés a deixar que o
carreguemos de volta ao seu navio e fazer com que ele aproveite
a chance?

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O rapaz travou um duelo e perdeu. Ele deveria agradecer
porque a morte está chegando para lavar seu fracasso. Molucco
ficou momentaneamente sem fala. Connor estava pasmo. Justo
quando pensava que havia baixado até as profundezas vis da es-
curidão de Drakoulis, caía mais e mais fundo no poço.
Bart assumiu a defesa do amigo
— Por favor, capitão Drakoulis. O senhor provou seu ar-
gumento. Não creio que ele viverá muito, de qualquer modo.
Pelo menos deixe que o levemos para lhe dar uma... despedida
decente.
Drakoulis não se abalou. Olhou direto para Molucco.
— Por favor, lembre aos seus subordinados que não de-
vem se dirigir diretamente a mim. — Os dois capitães se encara-
ram com fúria. Drakoulis deu um riso de desprezo. — Leve o
derrotado se quiser, Wrathe. Simplesmente saia do Albatroz. Es-
tou cansado de você e de sua tripulação infame. — Em seguida
se virou e foi andando, dando ordens para seus homens. A tri-
pulação vestida de preto começou a arrebanhar os piratas do
Diablo em filas para desembarcar.
Connor se adiantou para juntar-se a Bart e ao capitão Wra-
the ao lado de Jez. Molucco pôs a mão no ombro de Bart e se
inclinou para olhar Jez. O capitão Wrathe havia tirado o chapéu,
e Scrimshaw — a cobra de estimação que vivia em seu cabelo —
se esticou para ver o que acontecia. A cobra se estendeu acima
de Jez. O rosto do rapaz estava tão pálido quanto as mãos co-
bertas de giz, e, apesar dos esforços de Bart, ele ia perdendo
sangue demais, de modo que sua dor não duraria muito tempo.

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— O senhor fez um belo trabalho para nós hoje, sr. Stuke-
ley — disse Molucco. — Um belo trabalho, ouviu? Vamos dis-
parar o canhão em sua homenagem. E cada um dos seus colegas
vai beber um copo de rum pelo senhor na taverna de madame
Chaleira. Como nos velhos tempos, hein? — Havia lágrimas nos
olhos do capitão Wrathe enquanto ele forçava as palavras a sair.
— E, sempre que tivermos uma chance, vamos falar de Jez Stu-
keley como sendo a própria matéria de que são feitos os piratas.
Ouviu?
— Ouvi, capitão — conseguiu ofegar Jez. Em seguida o-
lhou para Bart e Connor, e um leve sorriso tremulou em seus
lábios roxos.
— Hora de este bucaneiro se despedir.
E fechou os olhos. Sua cabeça rolou devagar para o lado.
Scrimshaw se encolheu diante da visão, enfiando-se de
novo na segurança dos dreadlocks do dono.
— Ele se foi — disse Molucco baixinho, pondo a mão no
ombro de Bart.
Connor se virou para o outro lado, incrédulo. Seus colegas
já estavam saindo do convés, voltando pelas Três Desejos até o
Diablo. Não havia sinal de Drakoulis. Mas Gidaki Sarakakino se
adiantou, com as botas batendo pesadas no convés.
— Ele lutou bem — disse numa voz surpreendentemente
suave. — Ele não leva vergonha.
As palavras não tinham lhe vindo com facilidade, pensou
Connor. Talvez até mesmo esse breve discurso pudesse ser con-

1 66 1 
 
siderado um desrespeito ao seu capitão. Sarakakino assentiu
brevemente e se afastou.
— Deixe-me ajudar a carregá-lo — disse Connor a Bart.
— Obrigado, companheiro — respondeu Bart, contendo
as lágrimas. — Ande, Stukeley, ajeite essa perna. Está na hora de
levar você de volta para casa, companheiro.

Grace ouviu o barulho no convés acima. Os piratas estavam de


volta. Mal podia esperar para ver Connor. Precisava contar tudo
sobre a visita do fantasma de Darcy à sua cabine. Abriu a porta e
disparou pelo corredor, subindo para o convés de cima.
Quando saiu ao ar livre, sentiu imediatamente que havia
alguma coisa errada. O convés estava apinhado com os piratas
que retornavam, e a tripulação que havia ficado para trás. Mas,
pelo silêncio a bordo, Grace podia ver que o ataque não fora um
sucesso. Seu coração afundou como uma âncora mergulhando
no piso do oceano. Onde estava Connor? Precisava ver Connor.
Começou a abrir caminho em meio à horda de piratas, ten-
tando conter o pânico crescente. Onde ele estava? Por fim viu
alguns piratas que haviam liderado o ataque. Eles pareciam bem.
Tinham alguns cortes e hematomas, mas ela havia se acostuma-
do a ver isso em seu tempo no Diablo. Cortes e hematomas fa-
ziam parte do trabalho dos piratas.
— Onde está o Connor? — perguntou. — Os piratas pare-
ciam atordoados. — Onde está o Connor? — repetiu. — Ele
está bem?

1 67 1 
 
Por fim um dos piratas ficou de lado e ela viu Connor pa-
rado atrás dele.
— Connor!
A camisa do irmão estava manchada de sangue. Mas nin-
guém cuidava dele. Alguém precisava cuidar dele...
— Grace!
Ele deu um sorriso débil e abriu os braços. Grace correu,
não se importando com a sujeira que o sangue dele pudesse
causar. Os dois se abraçaram. Ele a apertou com força. Ela po-
dia sentir a força dos braços e o coração do irmão batendo.
Soube instintivamente que ele estava bem.
— Estou bem — sussurrou ele em seu ouvido. — Estou
bem.
Depois de alguns instantes ele afrouxou o abraço, mas con-
tinuou a segurá-la. Ela olhou para a camisa ensanguentada.
— Achei que você estava... — Ela não conseguiu se obri-
gar a dizer as palavras. A simples idéia era perturbadora demais.
Havia tentado parecer tranqüila, despreocupada em relação ao
fato de ele ter ido para a batalha. Mas não estava tranquila. Ja-
mais queria vê-lo ir para a batalha de novo.
— Estou bem, Grace — disse Connor. — Mas perdemos
um homem hoje.
Grace assentiu. Não era Connor. Só isso importava.
Então Connor recuou e ela viu, atrás dele, Bart — ajoe-
lhado no convés, também coberto de sangue. Lamentou instan-
taneamente o pensamento anterior. Mas Bart a encarou com
tristeza e baixou o rosto de novo. Ela olhou para o convés e viu

1 68 1 
 
o corpo imóvel e trucidado de Jez Stukeley. Os olhos dele esta-
vam fechados. Agora entendia.
Chegou mais perto.
— Jez — disse. Seu olhar foi de Connor até Bart, e de vol-
ta ao colega tombado. Sabia o quanto cada um dos três signifi-
cava para o outro. — Ah, não — disse. — Que pena, que pena!
Bart olhou-a com tristeza. Ainda segurava a mão de Jez.
Connor abraçou-a de novo.
— Nunca me deixe — disse ele. — Você não vai, não é?
Nunca vai me deixar.
— Não — respondeu ela. Mas uma imagem de Darcy re-
lampejou na sua cabeça. Depois, uma imagem de Lorcan. De-
pois, do navio Vampirata.
Connor puxou-a mais para perto. Eia sentiu que ele estava
tremendo.
— Não — disse Grace afastando todas as imagens. — Não,
Connor, prometo que nunca vou embora. E você também pre-
cisa me fazer uma promessa.
Ele assentiu.
— Não quero que você lute de novo. Chega de ataques.
Chega de lutas.
Ele não disse nada, mas puxou-a mais para perto, dando
um beijo suave no topo de sua cabeça.

Naquela noite — a noite depois da morte de Jez Stukeley, a noi-


te anterior ao seu funeral —, Connor ficou com Grace na cabine.

1 69 1 
 
Depois de tudo que havia acontecido, eles precisavam estar jun-
tos.
O catre de Grace era apertado, mas não importava. Era
como se fossem crianças de novo. Algumas vezes, quando um
ou outro tinha um pesadelo, os dois dormiam na mesma cama
no farol. Com o pai lá em cima, cuidando da lâmpada, eles ha-
viam aprendido a buscar consolo um no outro.
Enquanto a vela ao lado da cama ardia numa chama baixa,
Connor contou a Grace tudo sobre o ataque e como os piratas
do Diablo haviam sido enganados pelo maligno Narcisos Dra-
koulis. Grace escutava com terror crescente. Como o capitão
Wrathe e sua imediata Cate podiam ter sido enganados com
tanta facilidade? Será que haveria outras tripulações por aí pla-
nejando ataques semelhantes? Aonde isso iria parar? Grace não
pôde evitar uma sensação de que o próprio Molucco tinha pelo
menos alguma responsabilidade pela morte de Jez — ele havia
recebido mais de um alerta sobre se aventurar nas rotas maríti-
mas dos outros capitães. Mas Grace não verbalizou os pensa-
mentos. Haveria tempo para dividir as preocupações. Nessa
noite Connor precisava de conforto, e não de confronto.
— Ele foi corajoso demais — disse Connor.
— Jez?
— É.
— Connor. — Ela estendeu a mão e puxou o rosto de
Connor. — Se algum dia isso acontecer de novo, não seja o co-
rajoso.

1 70 1 
 
CAPÍTULO 7

O anel Claddagh

A manhã chegou cedo demais. Grace abriu os olhos. Havia


dormido apenas um pouco, a mente borbulhando. Connor esta-
va parado junto dela com os olhos remelentos.
— É melhor eu ir — disse ele. — Quero ver se tudo está
pronto para o funeral.
Grace confirmou com a cabeça.
— Vejo você lá, não demoro. — Ela se levantou do catre e
o abraçou de novo.
Quando a porta se fechou, Grace sentou-se outra vez. A
falta de sono e todas as ansiedades que lhe passaram pela cabeça
a haviam deixado com uma sensação de enjôo.
Preparou-se o suficiente para olhar pela escotilha. Havia
pouca coisa para ver lá fora, além das ondas batendo, do céu e

1 71 1 
 
do mar cinzentos, na maior parte indistinguíveis um do outro.
Era um tempo adequadamente triste para o funeral de Jez.
De repente sentiu uma dor lancinante nos olhos. Era tão
aguda que a afastou da janela e a fez recuar para a cama. Ficou
ali deitada, recuperando o fôlego, a mão cobrindo instintiva-
mente os olhos. O que havia acontecido? Abriu os olhos de no-
vo mas, ao fazer isso, sentiu outra pontada de dor. Fechou-os de
novo, tentando não entrar em pânico. Não entendia o quê estava
acontecendo.
Por instinto, levou a mão ao anel Claddagh, de Lorcan.
Quando o polegar e o indicador se fecharam ao redor dele, sen-
tiu-se no mesmo instante mais calma. Seria sua imaginação ou o
anel estava ligeiramente quente ao toque? Apertou-o e, ao fazer
isso, o calor do metal aumentou.
Nesse momento, começou a ouvir barulhos na cabeça.
Ouviu o som de passos e vozes distantes. De algum modo, sem
abrir os olhos, sabia que os ruídos não eram do Diablo. Ela esta-
va tendo uma “visão” — se é que poderia chamar assim, quando
não podia ver nada além de uma escuridão opaca e nevoenta.
O anel ficou ainda mais quente em sua mão. Tinha a sen-
sação de estar se movendo. Seus passos eram muito mais ruido-
sos do que qualquer um que já tivesse dado. Era como se usasse
botas pesadas, batendo irregularmente em tábuas de convés.
Sentiu a mão se estender e empurrar alguma coisa. Uma porta.
Sua mão se estendeu. A porta devia estar se abrindo. Pôde ouvir
o ranger de uma dobradiça antiga. E então uma voz.
— Lorcan.

1 72 1 
 
O nome a eletrizou.
Prestou atenção, tentando reconhecer quem falava.
— Lorcan — repetiu a voz. Era a voz de uma garota, mas
Grace não conseguia situá-la. — O que está fazendo aqui? É
manhã. Hora de descansar. — Havia cautela na voz da garota,
até mesmo medo.
Agora o anel estava quase quente demais para ser tocado.
Mas Grace sentiu um desespero para não soltá-lo, percebendo
que, se fizesse isso, a visão desapareceria.
— Desculpe. — Reconheceu imediatamente o sotaque de
Lorcan. Era mágico ouvi-lo de novo, em qualquer circunstância.
— Você perdeu o caminho? — Era a garota de novo. O
medo dera lugar à pena. Grace podia ouvi-la na mudança de tom.
Perdeu o caminho? Como assim?
Se ao menos Grace pudesse ver o navio, além de escutar.
Apertou o anel no polegar e no indicador, com mais força ainda.
Agora ele a estava queimando. Mesmo assim não viu nada além
da névoa mas, enquanto o metal parecia cortar sua pele, ouviu
com mais clareza ainda os sons do navio Vampirata.
— Desculpe. — Lorcan outra vez.
— Não — respondeu a garota. — Tudo bem, Lorcan.
Tudo bem. Me dê sua mão. Vou levá-lo de volta à sua cabine.
— Posso encontrar o caminho de volta — disse ele, a voz
com um orgulho e uma raiva pouco característicos.
— Espere!
Mas agora a voz da garota estava mais fraca. Grace teve de
novo a, sensação de movimento. Movimento irregular. Mãos se

1 73 1 
 
estendendo. E então um tropeço. Sentiu enjôo quando a sensa-
ção de queda tomou conta de seu corpo. O anel estava quente
demais para segurar. Ofegou e soltou-o. Seus olhos se abriram.
Ficou deitada na cama da pequena cabine no navio pirata,
com a respiração acelerada. O polegar e o indicador pareciam
feridos e doloridos onde o anel Claddagh havia queimado. No
entanto, quando levantou a mão, não existia marca. Nenhuma
marca. Não conseguiu entender.
Sabia que tinha feito uma viagem ao navio Vampirata. Não
uma viagem como a que Darcy fizera ao Diablo. Era mais como
uma visão — como a primeira vez em que encontrara o capitão
do navio Vampirata e sua cabeça se encheu com a imagem súbi-
ta de carne se rasgando e sangue vermelho sobre a pele escura.
Mas essa nova visão era mais constante do que aquela, mais line-
ar. Era como se tivesse entrado na cabeça de Lorcan. Pôde ouvir
sua conversa. Sentira os movimentos dos braços e dos pés dele.
Havia sentido — agora percebia — algo da dor dele. Tinha algo
a ver com os olhos. Como se... por favor, não... como se ele não
conseguisse enxergar direito.
Sentiu um pânico gelado se espalhar pelas veias do corpo
enquanto as lembranças fluíam de volta, como a maré retor-
nando. Na manhã em que Connor abordou o navio Vampirata,
Lorcan havia permanecido no convés para protegê-la. Tinha fi-
cado mesmo depois de Darcy soar o Toque do Amanhecer —
quando todos os Vampiratas são chamados para dentro, para
longe da luz. A luz era perigosa para eles — extremamente pe-
rigosa. Só o capitão Vampirata podia se aventurar na luz. Mas

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Lorcan havia permanecido fora, por causa dela. Seria possível
que, ao fazer isso, ele tivesse machucado os olhos? Será que fi-
cara cego?
O que dizia o bilhete de Lorcan? Algo para se lembrar de mim.
Viaje em segurança! Viaje em segurança! Será que Lorcan podia
estar lhe mandando uma mensagem através do anel? Precisava
retornar ao navio Vampirata. Mas como?
Nesse momento soou um tiro de canhão. Grace deu um
pulo. O tiro de canhão era o sinal para subir ao convés. O fune-
ral de Jez estava para começar. Ela estava atrasada!

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CAPÍTULO 8

Enterro no mar

A primeira coisa que Cate notou ao sair no convés foi como tu-
do estava silencioso. Isso era ainda mais incomum, já que toda a
tripulação do Diablo se encontrava ali. Fechou a porta com cui-
dado e se juntou à multidão. Os piratas abriram as fileiras para
ela passar. Agradecida, a garota avançou até conseguir uma visão
clara dos procedimentos.
Na popa do navio estavam o capitão Wrathe e Cate. Esta-
vam à direita do caixão de Jez, que fora coberto com a bandeira
do crânio com os ossos cruzados. À esquerda do caixão estavam
os carregadores, dentre os quais Bart e Connor. Grace olhou
para eles, imaginando como Connor estaria se sentindo. O últi-
mo funeral a que haviam comparecido fora o do pai. Já parecia
fazer tempo demais. Na época os dois ficaram juntos, na frente

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das pessoas, apoiados um no outro. Examinou o rosto de Con-
nor, mas ele parecia distante. A perda de Jez estava gravada em
suas feições.
O canhão soou de novo, e agora o capitão Wrathe, vestido
com veludo preto com acabamentos em prata, para o funeral,
virou-se para falar à tripulação.
— Piratas do Diablo, esta é uma manhã sombria. Mas a es-
curidão no céu e na água só espelha o negrume no nosso cora-
ção. Porque hoje temos de nos despedir de um dos nossos me-
lhores homens, Jez Stukeley.
“Jez veio a nós ainda garoto, há oito anos, e desde o início
nos divertiu com sua inteligência afiada e seu amor por uma boa
história.” Molucco sorriu. Houve um bom número de confir-
mações com a cabeça e risinhos silenciosos nas fileiras de pira-
tas.
— Era um dos tripulantes mais companheiros. Nunca es-
tava ocupado demais para ajudar outro colega necessitado, fosse
com uma tarefa a bordo ou no campo de batalha...
Grace se encolheu diante da expressão. Campo de batalha.
Ele fazia aquilo parecer tão nobre! Não era.
— E foi aí que Jez Stukeley se destacou, repetidamente,
como um dos nossos homens mais capazes, corajosos e eficien-
tes. — Molucco olhou para Cate, que assentia solenemente. —
Ontem, por infelicidade, meus atos nos puseram a todos diante
de um perigo mortal...
As orelhas de Grace se eriçaram. Não esperava essa fran-
queza da parte do capitão, mas talvez o houvesse subestimado.

1 77 1 
 
— Lamento isso profundamente. Deixem-me garantir a
cada um de vocês que estive revirando a alma e que continuarei
a examiná-la quando os acontecimentos deste dia terminarem.
Mas, sejam quais forem as circunstâncias, o corajoso e honrado
sr. Stukeley veio em nossa ajuda. Lançou-se na fogueira para que
pudéssemos nos salvar. Travou uma bela luta, cheia de talento e
determinação. Poderia muito bem ter vencido. — De novo Cate
assentiu. — Mas o destino tirou o sr. Stukeley de nosso conví-
vio...
Grace ficou pensando nisso. Onde seria possível riscar o
limite entre o destino e nossas ações? Seria simplesmente o des-
tino de Jez morrer naquele outro convés ou teriam sido as ações
de Molucco que o levaram até lá?
— Estamos sofrendo uma perda terrível, sabendo que não
poderemos mais nos divertir com suas piadas e não contaremos
mais com um dos nossos homens mais capazes. — Molucco
levou um grande lenço aos olhos e enxugou as lágrimas que es-
tavam crescendo ali. — Corajosos e queridos camaradas, sei que
todos vocês têm suas lembranças do sr. Stukeley. E agora eu pe-
diria que passassem um ou dois minutos se lembrando dele co-
mo desejarem.
O silêncio caiu de novo sobre o convés. Os únicos sons
eram da água borbulhando embaixo e os estalos das velas ao
vento. Grace olhou para o cesto de gávea, pensando no mo-
mento em que conhecera Jez.
Foi um dia depois de ter chegado ao navio. Por mais que
estivesse empolgada em encontrar Connor, sentira-se desorien-

1 78 1 
 
tada por deixar o navio Vampirata — e seus amigos de lá — de
modo tão brusco. Havia subido ao convés do Diablo, como fazia
algumas vezes no navio Vampirata. Ficou perto da amurada so-
zinha — até que Jez se juntou a ela, trazendo duas canecas de
chá. Os dois ficaram sentados batendo papo — ou melhor, ele
havia falado com ela sem parar. Grace não conseguia lembrar
exatamente o que ele dissera, mas foi gentil, caloroso e divertido.
Como sempre. Lembrou-se de como, naquele momento, havia
percebido que poderia se sentir em casa no Diablo.
Essa lembrança trouxe lágrimas aos seus olhos. Enfiou a
mão no bolso do casaco e encontrou um lenço de renda. Enxu-
gando os olhos, espiou Connor. Ele lhe sorriu de volta debil-
mente. Estava tentando ser forte, ela sabia. Mas viu que havia
lágrimas nos olhos dele também. Como sempre sem um lenço,
Connor simplesmente levantou a mão e afastou as lágrimas.
— Bem, então — disse Molucco baixinho, interrompendo
o feitiço do silêncio. — Chegamos à segunda parte. O velho co-
lega e grande amigo de Jez, Bartholomew Pearce, fará agora a
Oração do Pirata. Bartholomew...
Molucco se virou. Bart avançou lentamente, segurando um
pedaço de papel. Ergueu os olhos para a tripulação reunida e
começou a falar.

— Mãe Oceano, pai Céu,


Levem este pirata para descansar.
Ele era um dos melhores...
Liberte seu espírito para voar.

1 79 1 
 
Irmão Sol e irmã Lua,
Banhem-no em sua luz fugaz.
Ele não precisa mais lutar...
Vocês o chamaram depressa demais.

Raio, trovão, vento e chuva,


Deixem enferrujar sua espada,
E seu corpo virar poeira...
Livre de toda dor suportada.

Maré de primavera, maré morta, manhã, noite,


Todas as coisas que cercam nossa jornada,
Façam para ele um lugar de descanso...
Onde todas as suas preocupações sejam nada.

Riacho e porto, golfo e recife,


Águas rasas, águas de navegar,
Dêem-lhe sono eterno...
E ancorem a nós, e ao nosso pesar.

Bart não tivera de olhar nenhuma vez para o pedaço de papel


em sua mão. Grace achou que era um poema antigo, mas, pelo
modo como Bart falava, cada palavra parecia nova e poderosa.
Houve até mesmo uma interrupção temporária no vento, como
se os próprios elementos estivessem prestando atenção aos pe-
didos do pirata em favor do companheiro morto.
Então Bart se virou e sinalizou para Connor e os outros
quatro piratas ao lado. Os seis, todos com faixas pretas nos bra-

1 80 1 
 
ços, se dispuseram ao redor do caixão de Jez. Numa contagem
silenciosa, ergueram-no como se fossem um só e caminharam de
modo lento e solene até a proa do navio. A bandeira do crânio
com as tíbias cruzadas balançava na brisa.
Seguraram o caixão no alto por um momento e depois o
largaram na água. Ele bateu com um som oco e terrível. O cora-
ção de Grace se encolheu ao ouvir aquilo. Mas logo o ruído foi
suplantado por uma salva de tiros de canhão, durante a qual Bart,
Connor e os colegas retomaram suas posições.
Ao fim dos disparos, Molucco Wrathe se virou para a tri-
pulação.
— Este foi um dia triste, amigos, mas há duas partes
quando se lamenta uma morte: primeiro a tristeza e depois a ce-
lebração de uma boa vida. Esta noite vamos à taverna de mada-
me Chaleira fazer um ou dois brindes ao Sr. Stukeley.
Houve sons de aprovação pelo convés — e, ainda que es-
tivessem mais silenciosos que o usual, o barulho foi sinal de que
logo as coisas se normalizariam no Diablo. Isso pareceu terrivel-
mente súbito para Grace, mas talvez fosse apenas o modo como
as coisas aconteciam a bordo de um navio pirata.
— E agora — disse o capitão — vão cuidar de suas tarefas.
Que ninguém diga que o Diablo não é o melhor navio pirata de
todos os mares.
Connor estava parado, com Bart de um dos lados e Grace
do outro. Precisava deles agora, mais do que nunca. Sempre
soubera que a vida de pirata poderia ser breve. Em sua primeira
noite a bordo do navio, Bart dissera: “Terei sorte se chegar aos

1 81 1 
 
30 anos”. Connor havia registrado as palavras, mas só agora en-
tendia de fato como eram verdadeiras. Os Três Bucaneiros de-
veriam ser invencíveis. Jez tinha apenas 23 anos — jovem de-
mais para morrer. Mas, pensou Connor, quando você assina o
contrato para ser pirata, aceita que nunca é jovem demais para
morrer. Tinha apenas 14 anos, mas podia perder a vida com a
mesma facilidade na próxima batalha. Não podia arriscar-se a
deixar Grace sozinha no mundo. Teria de cair na real e parar de
sonhar acordado. E precisaria observar o capitão Wrathe com
um pouco mais de atenção, também. Não conseguia afastar o
sentimento de que, apesar do belo discurso do capitão, Jez Stu-
keley havia morrido desnecessariamente.

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CAPÍTULO 9

O presente

Crepúsculo. Depois de um dia de tempo ruim, com vendavais, o


mar está bom esta noite. O surfista solitário está lá fora de novo,
lançando-se contra as ondas. A cada noite fica mais forte — a
cada noite fica mais eficiente. E a cada noite, mesmo contra a
vontade, mais solitário. É, agora ele pode admitir isso. Não foi
feito para ficar sozinho. Foi a vida — e a morte — que trama-
ram para separá-lo dos outros. Mas ele não admite ser guiado
pelo destino. Neste momento pode depender do fluxo e refluxo
da maré, mas logo começará a dirigir o rumo dos acontecimen-
tos. Dessa vez a espera vai acabar.
A lua está subindo, lançando dardos dourados sobre a água es-
cura. Ele tem o cuidado de evitar a luz, guiando a prancha na
direção dos lugares escuros no meio. Agora luta tanto contra o

1 83 1 
 
puxão da maré quanto contra as setas chamejantes da lua, mas,
musculoso como é, sustenta-se contra os dois. Seus pés estão
firmes enquanto vira a prancha da esquerda para a direita, sen-
tindo a energia das ondas embaixo, impelindo-o em direção a
outra enseada vazia.
Enquanto penetra na água rasa, há rochas a evitar. Ele pula
da prancha, agora com a água um pouco acima dos tornozelos.
Tira a prancha da água antes que ela se despedace nas rochas
que esperam, e caminha os últimos metros até a terra seca. Co-
mo sempre, no momento em que sai da água, suas roupas e sua
pele estão totalmente secas.
A enseada é tão rochosa acima d’água quanto embaixo. Ele
encosta a prancha de leve contra um pedregulho pontudo e sobe
até uma laje. Ali, envolto confortavelmente pela escuridão, pode
examinar o local com calma.
Um navio entra em seu campo de visão, à distância. Isso o
deixa cheio de desejos, pensando nos navios que deixou para
trás. Mas haverá outros navios em seu futuro. E dessa vez ele
será o capitão. Este é o seu destino — disso tem certeza.
O navio atravessa sua linha de visão com tochas flame-
jando no convés. Elas iluminam a bandeira com o crânio e as
tíbias cruzadas. Um navio pirata — o que não é incomum nessas
águas. No entanto, o navio lhe parece familiar. Ele fecha os o-
lhos, afastando a luz para pensar com mais clareza. Na escuridão
vê a garota. A estranha garota que lhe escapou. Grace. Esse era
o nome dela. Por que a está vendo? — uma garota insignificante
a quem contou uma vez sua história? Esmaga a imagem mental

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dela — como se fosse um inseto que ousou pousar na palma de
sua mão, e abre os olhos.
O navio passou, mas agora algo muito mais perto atraiu sua
atenção. Algo que bate contra as rochas na água rasa embaixo.
Algo que é sacudido pela espuma das ondas, entrando e saindo
dos raios de luar. Ele se inclina adiante. Sua visão atravessa as
sombras escuras e ele vê a caixa de madeira que lhe foi trazida
pela maré. Decide olhar mais de perto o presente que o oceano
lhe entregou.
Salta da laje de pedra e volta para a água, os pés evitando
habilmente as rochas pontudas embaixo. Agora a caixa está a seu
alcance. Presa entre duas pedras, como uma bola de futebol
chutada de uma para a outra. Suas grandes mãos encontram as
bordas. É maior do que parecia de cima, do tamanho de um
homem. Para outros seria impossível soltá-la, mas, para ele, a
caixa é manobrável. Liberta-a das pedras que duelam e ergue o
caixão — é isso que é — da água, e o carrega sem esforço até o
abrigo do pequeno trecho de praia.
Ele o põe na areia e, em dúvida quanto ao próximo passo,
procura algo em que possa sentar e pensar. Então percebe que o
próprio caixão será o banco perfeito, por isso se acomoda sobre
ele e olha de novo para o mar. Sob seu peso, a madeira fraca
começa a estalar e rachar. Rapidamente fica de pé, examinando o
dano que causou.
O caixão não está em boas condições. De onde quer que
tenha vindo, sua viagem pela água não foi tranquila. Mais de
uma pedra se chocou contra ele, a julgar pelas marcas nas laterais.

1 85 1 
 
Num canto há um buraco, e o surfista encosta o olho ali, espi-
ando a escuridão lá dentro.
É difícil enxergar grande coisa. Um pouco de água do mar
entrou — não o suficiente para afundá-lo, mas o bastante para
confundir a visão. Ele se afasta de novo, contemplativamente
quebrando mais um pedaço de madeira. Plec. A tábua se parte
como uma barra de chocolate em seus dedos, e agora ele tem
visão clara do que há dentro. Seus olhos ficam diante de uma
bota. É uma bota de marinheiro, ainda com o nó apertado. De-
pois de espiar durante cinco minutos, não é a visão mais interes-
sante do mundo.
Se ao menos a outra ponta do caixão estivesse quebrada,
pensa ele, erguendo a cabeça. Mas a outra extremidade continua
intacta. Depois de mais um minuto na água, a madeira certa-
mente teria se partido ali também. Porque na verdade, se você
encostasse o dedo e apertasse com alguma força, poderia rachar
essa madeira, sem nem mesmo tentar, e...
Plec. A frágil madeira se partiu em suas mãos grossas e um
prego se entortou. Ele se inclina adiante. Agora está olhando
para um pedaço de rosto — um olho bem fechado, cílios com-
pridos e molhados repousando no travesseiro branco de uma
bochecha.
Claro, ele quer ver mais, e como a madeira já está quebrada
mesmo, não há problema em soltá-la para ver o rosto inteiro.
Agora pode ver que é um rapaz com as feições totalmente des-
cansadas. A boca se ergue num pequeno sorriso congelado, co-
mo se ele estivesse sonhando. Com quê poderia estar sonhando?

1 86 1 
 
Se ele ao menos pudesse falar de novo, seria possível fazer essa
pergunta — e mais algumas outras.
Os pensamentos disparam, rápidos e furiosos como a maré.
Sua mão se estende e arrebenta o resto da tampa, até que lascas
de madeira se empilham na areia como cascas de laranja aban-
donadas. Agora o caixão está aberto às forças da natureza. E ali
jaz o jovem marinheiro, refrescado de novo pelo ar noturno,
como já estivera em vida.
Isso não é só um presente. É um sinal. Um sinal de que a
maré está virando a seu favor — que seu plano é o correto. Ele
sorri, revelando de novo os dentes de ouro.
Há coisas que o surfista sabe — coisas que de algum modo
lhe foram contadas, se ao menos puder se lembrar. Coisas às
quais agora desejaria ter prestado mais atenção. Gestos e encan-
tamentos que — se ele ao menos puder se concentrar e espre-
mê-los de volta à linha de frente da memória — poderiam dar
resultado. Olha para o homem à sua frente. Só pela roupa dava
para dizer que havia sido um pirata, mesmo que as mãos não
estivessem envolvendo um alfanje e mesmo que a bandeira com
o crânio e as tíbias não estivesse enrolada em seu pulso.
Se ao menos conseguisse lembrar os procedimentos certos!
Coça a cabeça raspada. Precisa tentar. Agora deve isso a esse
pirata. Agora que invadiu o descanso dele, deve-lhe uma tentati-
va. Fecha os olhos, afastando todas as distrações enquanto exa-
mina as passagens escuras da memória em busca das palavras
corretas.

1 87 1 
 
É transportado de volta a um antro sombrio e cheio de
fumaça, onde um dia o incenso permeou seus sentidos. Agora
está de volta àquela escuridão. De novo o cedro e o sândalo a-
traem sua mente. Vê de novo aquele outro rosto através da se-
miescuridão, ensinando o ritual. As palavras estão retornando.
Ele não fala, apenas ouve, deixando que o outro lhe diga agora
como lhe disse antes.
Sente uma pressão crescente na mão. Ainda não pode abrir
os olhos porque o ritual não está completo. Mas a pele de sua
mão está sendo comprimida por todos os lados. Como se... não...
como se... sim — como se outra mão estivesse agarrando a sua.
Por fim abre os olhos. E, sim, sua mão está dentro do cai-
xão e, sem dúvida, outra mão saiu do escuro e pegou a sua,
muito mais carnuda. E agora elas pulsam juntas como se tives-
sem os batimentos cardíacos comuns.
Olha a figura dentro do caixão, em busca de outros sinais
de vida. Acha que vê algo se remexer por baixo da máscara do
rosto adormecido, mas não tem certeza de que não é simples-
mente sua imaginação. Acha que sente vida — ou alguma coisa
desse tipo — começando a fluir nos músculos do pirata morto.
Imagina a vida — ou sua alternativa — tomando conta dos ór-
gãos adormecidos engaiolados no peito dele. E continua sentin-
do cheiro de cedro e sândalo, e sente que o ritual ainda não está
completo.
Por fim ouve um suspiro. A princípio fraco como as ondas
batendo nas rochas à distância. E então vem de novo, mais alto.
Com a boca aberta de curiosidade, vê os cílios tremerem e se

1 88 1 
 
separarem. Globos oculares brancos aparecem como pérolas
brilhantes numa ostra escura.
Então os lábios de um roxo pálido se abrem também. Eles
tossem para expelir um pouco de ar e água do mar. E uma voz
vem em seguida, surpreendentemente clara e forte.
— Já é hora de acordar? Eu estava tendo um sonho ótimo!

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CAPÍTULO 10

O tenente Stukeley

— Você está bem, companheiro? Parece que viu um fantasma!


Sidório olha para o caixão do pirata, morto há apenas al-
guns instantes, agora se remexendo, se espreguiçando e rindo
como se ele fosse um amigo perdido há muito.
— Estou todo molhado — diz o sujeito. Há uma fina ca-
mada de água no caixão, que encharcou suas roupas. Ele tem
cheiro de mar.
— Aqui. — Sidório estende a mão de novo. O pirata segu-
ra-a e Sidório o puxa para que fique de pé.
O pirata fica parado um momento, então suas pernas
bambeiam e ele cambaleia. Sidório precisa agir depressa para
impedir que ele despenque de volta e se machuque nas bordas
afiadas do caixão quebrado.

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— Obrigado, companheiro — diz o pirata, ainda seguran-
do com força. — Estou me sentindo meio esquisito. Como se
tivesse tomado rum demais!
Sidório o sustenta até que ele pareça se aguentar nas pró-
prias pernas.
— Ah, está bem melhor. Pronto. Vamos lá!
Mas, quando Sidório afasta a mão, de novo as pernas do
marinheiro se dobram e ele cai feito uma trouxa na areia.
— Acho que vou ficar sentado aqui um pouquinho e me
orientar.
— Boa idéia.
Sidório se afasta e olha o pirata, ainda pasmo com seu pró-
prio feito. Trouxe-o de volta dos litorais das trevas. Ele, Sidório,
realizou o ritual. É sinal de que seus poderes estão crescendo. A
maré está começando a virar.
— Você é um cara grande, hein? — diz o pirata, olhan-
do-o.
Sidório encolhe os ombros.
— Qual é o seu nome?
— Meu nome é Sidório, mas você deve me chamar de ca-
pitão.
— Tudo certo, capitão. Sou Stukeley, Jez Stukeley. Pode
me chamar de Jez.
— Daqui em diante você será conhecido como Stukeley —
diz Sidório. — Serei seu capitão e você será meu tenente.
— Tenente? Que bela promoção! — Ele parece satisfeito.

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Sidório hesita. O pirata parece não se abalar com o que lhe
aconteceu. Ele se lembrou do ritual, mas não dessa parte. O que
deveria ser dito aos que retornam? Até que ponto são frágeis?
Agora que Stukeley está se acostumando a respirar de novo, não
parece nem um pouco frágil. Está mais empertigado e suas rou-
pas molhadas secaram. Agora ele começa a desabotoar a camisa.
— Só quero ver — diz ele. — Antes não tive chance.
— O que ele está falando? Sidório fica olhando enquanto
Stukeley abre os primeiros botões da camisa e revela a pele do
peito, pálida como mármore a não ser por um profundo talho
azul-índigo.
— Então é isso — diz Stukeley, assentindo. — Este é o fe-
rimento fatal. Preciso confessar que estou meio desapontado.
Esperava uma coisa mais impressionante.
Sidório se agacha perto dele.
— Então você sabe... sabe que foi morto?
Stukeley o encara com os olhos brilhando ao luar.
— Eu... morto? Não, eu... O que você está falando, com-
panheiro?
Sidório está perdido em confusão até que Stukeley começa
a gargalhar.
— Claro que sei que morri, companheiro. Não costumo
ficar em caixões só de brincadeira. Não sou nenhum vampiro,
você sabe.
— Bem... — começa Sidório.

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— Não! — exclama Stukeley. — Você está brincando co-
migo! Eu, um vampiro? Impossível. Sério? Tenho dentes com-
pridos e coisa e tal?
— Ainda não, mas terá. Se tudo der certo.
— Sinistro! Acho que você não tem espelho, tem?
— Vá se olhar na água, se quiser.
Stukeley pára um momento, depois fica de pé e cambaleia
até a beira do oceano. Sidório o observa enquanto ele se curva
tentando captar um reflexo claro nas águas agitadas. O pirata se
vira, chocado.
— Não consigo ver meu reflexo.
Sidório assente, sorrindo.
— Isso mesmo. Você mudou. Certo?
— Sim, capitão. — Agora a voz está diferente: cheia de
respeito e espanto.
Sidório fica pensando em seus atos. Tudo está acontecendo
depressa demais. Há apenas uma hora estava pensando em co-
mo as coisas poderiam mudar, como poderia ter companhia.
Agora tem um tenente, mas a empolgação com seu próprio po-
der deu lugar a um sentimento do fardo da responsabilidade.
Stukeley dá as costas para a água e corre para ele, sorrindo.
— Não acredito que voltei! Obrigado — diz sorrindo. —
Obrigado por me trazer de volta.
— Como foi, lá?
— O senhor também já esteve lá, não esteve? Deve saber.
— É diferente para todo mundo.
Stukeley dá de ombros.

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— Honestamente, não lembro grande coisa. Só que perdi o
duelo, o que foi bastante injusto, caso queira saber. E que fiquei
caído no convés, como se fosse puxado para longe dos meus
companheiros, as vozes deles ficando cada vez mais fracas. Mas,
depois disso, não sei. É tudo um vazio. — Ele se vira e olha para
os restos do caixão. Sorri de novo. — Devem ter feito um en-
terro decente no mar. Nem todo mundo recebe um desses,
companheiro. Fico morrendo de satisfação com isso. Ah, e me
lembro de que o capitão disse que eles iam fazer uma festa para
mim na taverna de madame Chaleira.
— Que capitão? — pergunta Sidório. — Que navio?
— O navio do capitão Wrathe. O Diablo.
— Diablo, hein? — Sidório ri de novo. — Meu tipo de na-
vio.
Uma expressão curiosa atravessa o rosto de Sidório.
— Quanto tempo fiquei de fora?
Sidório balança a cabeça.
— Não sei. Mas acho que seu caixão não duraria muito
tempo mais.
— Que dia é hoje?
— Não tenho nenhum interesse pela passagem dos dias.
— O senhor diz umas coisas estranhas, companheiro. Só
estou tentando deduzir há quanto tempo eu me fui.
— Eu acho que você não... se foi... há muito tempo. Mas
que interesse tem isso?
— Conhece um lugar chamado taverna de madame Cha-
leira?

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Sidório pensa um momento.
— Sim, já estive lá.
— Bem, acho que há toda a possibilidade de que meu veló-
rio esteja acontecendo lá, esta noite mesmo.
Sidório sorri.
— E você gostaria de ir?
Stukeley ri de volta.
— Parece uma grosseria faltar, não acha?
Sidório faz uma pausa.
— Se formos, ninguém deve ver você. Nada deve ameaçar
meus planos. Nossos planos.
— Quais são exatamente nossos planos?
— Tudo a seu tempo, tenente. Tudo a seu tempo.
— Como quiser, grandão.
— Como quiser, capitão.
Stukeley confirma com a cabeça.
— Como quiser, capitão.
— Este é o início, esta é a virada da maré. Estive esperan-
do por tempo demais. Antes que eu acabe, o oceano ficará ver-
melho de sangue. Agora, finalmente, tem início a maré de terror!

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CAPÍTULO 11

Reunião na Taverna
de Madame Chaleira

Grace estava junto de Connor enquanto o Diablo ia na direção


de um afloramento rochoso.
— Lá está! — disse Connor.
Uma luz de neon surgiu, piscando de modo irregular atra-
vés da escuridão.
— Taverna de Madame Chaleira — leu Grace.
— Espero que você esteja preparada para isso — disse Ca-
te, que estava do outro lado dela.
— Alguém, algum dia, pode estar preparado para o boteco
da Madame? — perguntou Bart, com um sorriso.

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Depois das tristezas do funeral de Bart, os piratas já pare-
ciam mais animados. Grace ainda achava difícil pôr de lado a
tristeza, mas talvez o capitão Wrathe estivesse certo ao dizer que
havia duas partes quando se lamentava uma morte — o adeus
doloroso e a celebração da vida. Só que era insuportavelmente
triste que a vida em questão tivesse sido apagada tão cedo.
Quando o navio atracou, a tripulação empolgada avançou
até a frente do convés para desembarcar, e Grace teve de con-
centrar toda a atenção para ficar junto de Connor e dos outros.
Por um tempo estivera de cabeça baixa, lutando para encontrar
espaço para os pés em meio à turba. Connor estendeu a mão e
puxou-a em meio à tripulação para se juntar a ele na frente.
Quando ela olhou para cima de novo, a taverna de madame
Chaleira estava bem à frente — com a gigantesca roda-d’água
iluminada pela lua. Acima, uma bandeira com o crânio e as tíbias
cruzadas balançava a meio mastro.
— Por respeito a Jez — disse Bart com orgulho. Grace as-
sentiu, apertando o braço dele para confortá-lo.
Subiram a escada até a primeira plataforma.
— Observe bem onde pisa, Grace — disse Connor.
Ela olhou para baixo e viu as fendas traiçoeiras no piso de
madeira, abertas para o oceano abaixo. Agora a água escura es-
tava plácida e ela podia ver o rosto refletido, como se houvesse
outra Grace presa sob a superfície, esperando para ser resgatada.
A miragem tinha força suficiente para levá-la até mesmo a mer-
gulhar a mão na água para verificar, mas os outros prosseguiam
e ela não quis ser deixada para trás.

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A tripulação avançou mais para dentro da taverna, em di-
reção a uma área isolada por cordas, onde suas mesas os espera-
vam.
— Olhe — disse Connor apontando para a placa de ma-
deira onde estava escrito Diablo, marcando o território deles. —
Só os capitães VIPs têm isso. — E riu para Grace de orelha a
orelha. Ela sorriu de volta, levemente. Este mundo parecia fazer
sentido com muita facilidade para seu irmão. Ele aceitava as re-
gras com muita tranquilidade.
Os piratas se ajeitaram ao redor das mesas, e o volume de
conversas aumentou enquanto começavam a cantar vantagem
uns para os outros e para as outras tripulações nas mesas vizi-
nhas.
Um homem de aparência distinta, com bela barba e bigode
brancos, apareceu ao lado do capitão Wrathe.
— Lamentei ao saber o que houve, Molucco — disse ele.
— Bom, obrigado, Gresham.
— Aquele Drakoulis é um sujeitinho nojento. Achei que
nunca mais iríamos vê-lo.
— Eu também — respondeu Molucco balançando a cabe-
ça. — Eu também.
— Deixe-me pagar uma rodada de rum para sua tripulação
— disse o capitão Gresham. Em seguida se virou e gritou: —
Alguém pode servir aqui? Eu disse: alguém pode...
— Que bagunça é essa?

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Uma mulher apareceu entre os dois capitães. Usava um
vasto vestido de tecido preto com estampas de crânios e tíbias
brancas. Connor cutucou Grace.
— Esta é...
Mas Grace não precisava de apresentação. Soube imedia-
tamente que era madame Chaleira. Hoje a madame usava um
véu de renda preta, que ergueu, para oferecer primeiro uma bo-
checha, e depois a outra, ao capitão Wrathe.
— Lamento tanto, Sortudo — disse ela. — Estes são tem-
pos sombrios.
— Sombrios mesmo, Gatinha — respondeu Molucco, a-
braçando madame Chaleira com força. E madame Chaleira se
virou para o resto da tripulação.
— Esta noite as bebidas são por conta da casa, garotos e
garotas. Sinal de meu amor e respeito por Jez e todos vocês. —
Houve aplausos trovejantes e madame Chaleira jogou um beijo
para a tripulação que aprovava. Antes que ela terminasse de falar,
as garçonetes haviam enfileirado doses de rum ao longo de cada
mesa. Grace olhou para o copo que fora posto à sua frente.
Nunca havia bebido rum. Mas não olhou por muito tempo.
Madame Chaleira era intrigante demais para que ela afastasse os
olhos.
— Bartholomew — dizia ela agora, apertando Bart contra
seu peito amplo. — Este deve ser um golpe especial para você.
Os dois eram como irmãos, eu sei.
Bart assentiu.

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— Para todos nós, madame. Mas em especial para mim e
para o Connor.
A Madame assentiu triste, voltando o olhar para Connor.
— Olá de novo, sr. Tormenta. Bem, que diferença alguns
meses fazem! Olhe para você, Pirata! E tenho ouvido muitas
coisas a seu respeito. Dizem que é um superastro em formação!
Connor ficou da cor de um tomate maduro demais. Grace
imaginou se madame Chaleira iria abraçá-lo também — sabendo
que Connor morreria de embaraço —, mas em vez disso a ma-
dame simplesmente estendeu a mão e pôs no ombro do garoto.
— Não tenho dúvida de que você está sentindo um caldei-
rão de emoções — disse ela. — É terrível quando perdemos um
colega íntimo, um amigo. Terrível demais.
Connor assentiu. Mas a madame ainda não havia terminado
com ele.
— Agora a madame vai lhe dar um conselho grátis, que
você tem liberdade para aceitar ou não, meu doce. Primeiro: a
morte. Ela nunca é fácil. Quer a gente tenha 14 anos como você
ou... bem, quer seja velha como os recifes de coral, como eu,
perder alguém próximo sempre será um golpe muito amargo.
Segundo: não guarde as emoções. Você tem de soltá-las. Este é
um motivo pelo qual fazemos uma festa. — Ela girou a mão
indicando o panorama da taverna. — Quando um bom pirata
como o Jez é perdido, devemos celebrar sua vida. Devemos be-
ber, ficar alegres e contar histórias do tempo que passamos jun-
tos. Alguns acham que isso é de mau gosto. Prefeririam que ficás-
semos em silêncio, andando de preto da cabeça aos pés dia e

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noite. Mas temos de celebrar a vida, sabe? A vida! É o tesouro
mais maravilhoso, meu doce. E Jez Stukeley podia ter apenas 23
anos, mas deixou sua marca. Deixou pessoas que o amam, que
vão se lembrar dele. No fim, isso é o máximo que qualquer um
de nós pode esperar. Não concorda, Sortudo?
Molucco se levantou atrás dela e segurou sua mão, beijan-
do-a com ternura.
— Você sempre foi muito eloquente, Gatinha. Nem eu
poderia ter falado palavras mais verdadeiras.
A Madame sorriu para Connor.
— Desejo-lhe uma vida longa, Connor Tormenta. Porém,
mais importante do que isso, desejo uma vida de amor e risos,
amizade e aventura, e nem um minuto de tédio. — Ela beijou a
própria mão e passou no rosto dele. — Uma velha tradição pi-
rata — disse sorrindo.
Em seguida se virou para Grace.
— E quem é esta jovem beldade? — Agora foi a vez de
Grace ficar vermelha.
— Esta é a irmã gêmea do sr. Tormenta, Grace — res-
pondeu Molucco.
— Sim — disse madame Chaleira, chegando mais perto —,
agora vejo a semelhança. Que jovem linda você é. — Ela esten-
deu a mão e passou um dedo pelo rosto de Grace. — Que pele
maravilhosa! Lisa como seda. E pensar que já tive uma pele as-
sim. E agora olhem para mim, um velho monstro do mar en-
carquilhado.

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Imediatamente toda a atenção retornou a madame Chaleira,
quando Molucco, Bart e os outros a cobriram de elogios. Grace
ficou olhando, fascinada com aquela mulher extraordinária.
— Pronto, pronto, rapazes, parem de se preocupar com
um velho destroço de naufrágio como eu. Agora chega de con-
versa fiada. Por que não ficam à vontade? As garotas e eu mon-
tamos uma pequena diversão para vocês, para afastar as tristezas.
— Ela se virou e chamou, ou melhor, berrou, por cima do om-
bro: — Docinho de Coco, está preparada?
— Estou sim, Madame! — respondeu uma voz muito mais
suave.
— Então venham. Sentem-se todos. Isso mesmo. Sortudo,
você ao meu lado. — Madame Chaleira ajeitou as saias vastas
enquanto as luzes da taverna diminuíam subitamente e a escuri-
dão baixava ao redor.
Então houve um som de acordeão e de repente um poço
de luz surgiu num palco, revelando a frente de um navio com a
linda figura de proa. Aquela devia ser Docinho de Coco. Usava
um chapéu de capitão pirata e olhava para a platéia através de
uma luneta. Grace não conseguiu evitar pensar em Darcy Flot-
sam, em especial quando a figura de proa guardou a luneta e
piscou para a platéia.
Mais dois poços de luz apareceram de cada lado, revelando
mais duas figuras de proa. Cada uma jogou um beijo para a pla-
téia e as duas foram recompensadas por gritos de aprovação.
Agora outros instrumentos se juntaram ao acordeão enquanto as
três figuras de proa se soltavam dos navios e escorregavam atra-

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vés de fitas azuis e brancas até pousar no deque embaixo. For-
mas de ondas haviam sido postas entre as pranchas de madeira.
Era um cenário bastante elaborado. Parecia que estavam num
teatro de verdade, e não numa taverna rústica, pensou Grace.
A multidão irrompeu em aplausos. A figura de proa central,
ainda usando chapéu de capitão, pôs um dedo nos lábios. Ime-
diatamente houve silêncio.
— Aquela é Docinho de Coco — sussurrou Connor a
Grace, com expressão sonhadora.
— Ah, verdade? — respondeu Grace, sorrindo para o ir-
mão. — E quem poderia ser?
— Só... — começou Connor, mas ficou sem palavras.
— Uma velha amiga — disse Bart.
Grace sorriu, confirmando com a cabeça e curtindo o em-
baraço de Connor.
E agora Docinho havia posto as mãos nos quadris e co-
meçou a cantar.

— Fiquei meio cansada de navegar no oceano.


Para mim o oceano não traz mais vantagens.
Prometeram saques e muito metal, mas me dei mal.
E agora questiono meus sonhos de viagens.

Disseram que o mar era o lugar certo para ação...

Nesse ponto ela piscou.

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— Grandes aventuras, no peito e na raça.
Dia e noite viajei, o capitão certo procurei,
Mas só vi baías e recifes sem graça.

Fiz tudo que meu oficial ordenou:


Alfanje brilhante e pronto a atacar.
Mas uma garota não pode ficar esperando!
Assim abro as velas e vou navegar.

Houve gritos da platéia.

— Sonhava em capturar um bom capitão


que me levaria a bordo de sua banheira.
Navegaria os sete mares, saquearia navios e lares
E partilharia seus tesouros comigo a vida inteira!

Sonhava em me casar com um capitão


E ser sua melhor oficial.
A tripulação me respeitaria sem mágoa — ou eu jogaria todos na
água!
Mas seria justa, ainda que firme, com minha horda de piratas sem
igual.

Nesse ponto madame Chaleira gritou:


— É isso aí, garota!

— Mas meus sonhos de amor deram em nada.

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Parece que nenhum capitão pirata quer casar.
Então vou pular deste navio, da vida de pirata me extravio.
É, estou cheia da vida no mar!

Tinha sonhos de viajar no oceano


Mas tudo isso não passa de engano.
E, estou cheia da vida no mar!
Totalmente cheia da vida no mar!

Cantando isso, Docinho de Coco tirou da cabeça o chapéu de


capitão, sacudiu o cabelo louro e comprido e riu para a platéia.
Grace sorriu, mesmo contra a vontade. Ela e Docinho de
Coco tinham algo em comum, pensou secamente. Se fosse tão
fácil assim abandonar a vida de pirataria!

A pouca distância dali, um bote chega ao cais.


Há três pessoas dentro: o barqueiro e dois passageiros.
— Este é o lugar — anuncia o barqueiro.
— Excelente — diz o passageiro mais alto. — Stukeley,
saia enquanto pago a passagem.
Stukeley não precisa ser instigado.
— Taverna de Madame Chaleira — diz com espanto en-
quanto os pés pisam no cais. — Nunca pensei que iria ver você
de novo.
— Não vá muito na frente! — grita o outro passageiro. —
Precisamos ter cuidado.

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— Não, capitão. Vou esperar o senhor aqui.
— Bom, tenente — diz o outro, voltando a atenção para o
barqueiro. — Este ouro compra o seu silêncio. Mas será que
você é de confiança?
O barqueiro assente ansioso, a mão se estendendo para o
pagamento. Mas o punho do outro se fecha subitamente sobre o
ouro.
— Acho que minhas dúvidas com relação à confiança ven-
ceram de novo — diz ele com um suspiro.
O barqueiro olha-o surpreso. Há algo errado aqui. Logo a
surpresa vira indignação, depois puro terror.
Stukeley está perdido em pensamentos enquanto olha a
gloriosa roda-d’água girando à distância e ouve o conhecido
chacoalhar da água. Mas logo há um som mais alto, de algo ca-
indo no mar, ali perto. Vira-se e vê o capitão Sidório vindo em
sua direção.
— Que barulho foi aquele? — pergunta Stukeley.
Sidório dá de ombros.
— Que barulho?
— Aquele não é o bote em que viemos? Onde está o bar-
queiro?
Sidório se vira.
— Ah, sim. Parece que o barqueiro sumiu. É realmente es-
tranho — diz ele enxugando a boca e palitando algo entre os
dentes. Virando-se de volta, bate firme no ombro de Stukeley.
— Venha, tenente. Não vamos nos demorar aqui para não per-
der sua festa.

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Stukeley tem uma sensação incômoda. Mas sabe que Sidó-
rio não gosta de ser questionado. E, afinal de contas, foi Sidório
que o trouxe de volta. Sidório é seu capitão. E é certo que ele
cumpra as ordens do capitão — quaisquer que sejam. Esta é
uma segunda chance. E Stukeley pretende ser o próprio modelo
de tenente bom e confiável.

Os piratas deram vivas e aplaudiram entusiasticamente Docinho


de Coco, mas ela ergueu um dedo junto aos lábios para silenci-
á-los. Segurou o chapéu no alto, pronta para jogá-lo.
— Quem pegar isso ganha um beijo de Docinho de Coco!
Ela mandou o chapéu num arco alto pelo ar, acima dos pi-
ratas que gritavam com os braços e as mãos balançando como
juncos para pegá-lo. O chapéu escapou da maioria, indo em di-
reção às mesas dos piratas do Diablo. Todos os olhares se vira-
ram quando o chapéu finalmente desceu. Foi caindo na direção
de Connor e Bart, cujas mãos se estenderam para ele. Grace se
inclinou para trás, dando mais espaço aos dois. Bart tinha a van-
tagem do tamanho e pegou o chapéu antes que Connor conse-
guisse.
— Mais sorte na próxima, companheiro — riu Bart, pondo
o chapéu de capitão na cabeça e empurrando Connor de lado
enquanto ia reivindicar o prêmio.
— Tão perto e ao mesmo tempo tão longe — disse Grace,
cutucando as costelas de Connor. Agora ela estava se divertindo.
Sentiu um jorro de culpa ao pensar em Jez. Mas então se lem-

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brou das palavras de madame Chaleira. Eles estavam ali para
celebrar a vida de Jez. E em sua mente não havia dúvida de que
era isso que Jez teria desejado. Bom, se ele estivesse aqui, estaria
lutando com Bart e Connor pelas atenções de Docinho de Coco!
O show terminou, as luzes se acenderam e Grace viu que
uma nova rodada de bebidas havia sido enfileirada na mesa. Um
gole de rum era mais do que o bastante para ela, mas os outros
piratas levantaram os copos, alegres, e jogaram o líquido incan-
descente pela goela abaixo.
— Vou tomar um pouco de ar — disse ela a Connor.
— Certo. — Ele apertou sua mão. — Se precisar de mim, é
só gritar.
Ela concordou com a cabeça, afastando-se da mesa.
Quando olhou de volta, viu que uma das moças que dançavam
com Docinho de Coco tinha ido até a mesa, e Connor, junto
com os outros, pareciam absolutamente fascinados. Balançando
a cabeça, divertida, Grace se virou e foi andando.
Retornou à entrada da taverna, tendo o cuidado de evitar as
fendas no piso. Mais uma vez olhou para a água abaixo. Ali es-
tava ela de novo, olhando para si mesma. Como se estivesse se
afogando outra vez. Lorcan a havia resgatado.
Lorcan. Instintivamente levou os dedos até o cordão no
pescoço, encontrando o anel Claddagh. A princípio o metal es-
tava frio ao toque. Mas, enquanto o polegar e o indicador se
demoravam, começou a ficar mais quente. Será que teria outra
visão? Sentiu um arrepio de empolgação, mas também de medo.

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Mais do que qualquer coisa, queria saber como ele estava e o que
lhe havia acontecido. Mas tinha medo do que poderia descobrir.
Enquanto o anel continuava a esquentar, ela sentou no de-
que e fechou os olhos, esperando a onda de náusea que havia
experimentado da outra vez. Mas, ainda que o anel ficasse cada
vez mais quente, não houve dor ou sensação de enjôo. Além
disso, não escutava nada e não havia uma névoa opaca na cabeça.
Que tipo de visão seria esta? Estaria fazendo alguma coisa erra-
da? Perplexa, abriu os olhos.
Ao fazer isso, ofegou. Lá na água, embaixo do deque, viu
Lorcan. Ele estava cambaleando pelo corredor do navio Vampi-
rata, as mãos estendidas para se firmar. Grace ofegou. Era como
se experimentasse a mesma cena de antes, mas dessa vez como
observadora externa. Era doloroso ver Lorcan lutar daquele jeito.
Queria demais estender a mão e ajudá-lo. Instintivamente baixou
uma das mãos para a superfície da água. Continuava segurando
com força o anel, que se tornava cada vez mais quente. Era uma
manobra desajeitada, para dizer o mínimo, entretanto ela se sen-
tia dominada por uma ânsia gigantesca de tocar a água.
Mas, no instante em que seus dedos roçaram a superfície
escura, a visão de Lorcan desapareceu. As águas se tornaram um
espelho de novo, refletindo seu rosto perturbado e as luzes da
taverna atrás. Franziu a testa.
Então as águas escureceram de novo. Ela se inclinou che-
gando mais perto, esperando que a visão de Lorcan retornasse.
Mas, em vez disso, viu outro rosto. Estremeceu. Era Sidório. Ele
a estava olhando diretamente — assim como havia feito no

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convés do navio Vampirata naquela noite fatídica. E agora, co-
mo na outra ocasião, subitamente seus olhos ficaram vazios,
depois cheios de fogo. Ele abriu a boca num sorriso terrível,
com os incisivos iguais a adagas parecendo subir, saindo da água.
— Não! — gritou Grace.
Agora o anel Claddagh queimava seus dedos. Queria sol-
tá-lo, mas de algum modo não conseguia. De repente sua mão
saltou adiante. O anel havia se soltado do cordão. Ela continua-
va a segurá-lo entre o polegar e o indicador, mas não sabia
quanto tempo conseguiria mantê-lo. A qualquer momento o ca-
lor a obrigaria a soltá-lo na água. Não! Por mais doloroso que
fosse, não poderia perdê-lo. O anel era sua última ligação com o
navio Vampirata, com Lorcan. Se o soltasse, talvez nunca pu-
desse retornar, nunca pudesse ajudar o amigo. Foi esse pensa-
mento que, apesar da dor, permitiu que ela continuasse segu-
rando o anel, mesmo com o calor insuportável rasgando os de-
dos.
Na água abaixo, Sidório a olhava. Estava rindo para ela. O
que isso significava? Seria outra visão? Será que ele estava perto?
Estaria voltando para pegá-la?
De repente sentiu uma mão no pescoço. A mão a puxou
com firmeza para trás. Nesse momento ela sentiu a temperatura
do anel finalmente esfriar. Deixou-se cair de costas no deque,
ofegando de alívio e fraqueza. E puro medo.

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CAPÍTULO 12

Confissão

— Ora, ora, ora. O que temos aqui?


Grace abriu os olhos e espiou um rosto familiar.
— Cheng Li! — exclamou ela.
— Olá, Grace — assentiu Cheng Li, agachando-se ao lado
dela. — Que prazer encontrar você, ainda que em circunstâncias
um tanto curiosas. Se está pretendendo praticar acrobacia, con-
sigo pensar em lugares melhores.
Grace a olhou. Cheng Li parecia mais afável do que ela re-
cordava. Mas haviam se conhecido apenas brevemente no Diablo,
e sua memória talvez tivesse sido manchada pelas palavras áspe-
ras de Molucco Wrathe sobre sua ex-subcapitã.
— Eu não estava praticando acrobacia.

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— Não achei que estivesse. Mas, o que quer que estivesse
fazendo, você está bem pálida. Acho melhor pegar alguma coisa
para você beber.
— Será que servem bebidas não-alcoólicas neste lugar? —
perguntou Grace. — Tomei um gole de rum e estou meio tonta.
— Humm, talvez você descubra que é isso que acontece
quando a gente se pendura de cabeça para baixo sobre água es-
tagnada! O que, exatamente, estava fazendo ali embaixo?
Grace sorriu.
— É uma longa história.
— Meu tipo predileto. — Cheng Li sorriu para Grace e es-
tendeu o braço, firme mas gentil. — Venha, querida. Vamos di-
vidir um bule de chá de Lírios do Mar. Isso, como dizem, deve
trazer um pouco de cor de volta ao seu rosto.
Cheng Li guiou Grace de volta para dentro da taverna.
Mais adiante, na seção VIP, os piratas do Diablo ficavam mais
espalhafatosos a cada minuto. Grace viu Connor ali no meio,
mas ele evidentemente estava envolvido demais para notá-la.
Cheng Li pegou a mão de Grace e levou-a até uma escada escura
num dos lados da taverna. Subiram a escada estreita, saindo nu-
ma galeria superior. Era cheia de reservados. Painéis de madeira
com intricados relevos de navios e ondas separavam cada reser-
vado do outro.
O reservado onde entraram fez Grace se lembrar de um
confessionário de igreja. Ficava acima do bar, mas havia uma
cortina de veludo vermelho que podia ser fechada para manter

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longe os olhares curiosos e abafar parte do burburinho de baixo.
Cheng Li fez isso, com um puxão forte.
— Pronto — disse ela. — Agora podemos ter privacidade.
Estava escuro dentro do cubículo, e o rosto de Cheng Li
era iluminado por uma única vela que tremeluzia num lampião
de vidro no centro da mesa. A luz fraca suavizava as feições de
Cheng Li, fazendo Grace lembrar que, apesar da aura e do posto,
sua acompanhante era apenas alguns anos mais velha que ela.
Cheng Li estava bem diferente de como Grace recordava.
Seu cabelo preto e brilhante havia crescido nos meses que se
passaram, e ela fizera um corte um pouco menos sério. Então
Grace notou que Cheng Li não estava carregando as duas kata-
nas às costas. Agora, que era professora na Academia dos Piratas,
teria abandonado as armas?
— O que é preciso para ser servida aqui? — perguntou
Cheng Li, estendendo a mão para fora do reservado e estalando
os dedos. Grace viu as katanas deitadas sobre o banco. Então
não estavam abandonadas, apenas descansando.
Um empregado de madame Chaleira veio ao reservado.
Grace ficou surpresa ao ver que era um garoto. Ele fez uma re-
verência.
— Em que posso ajudar?
— Traga um bule de chá de Lírios do Mar — disse Cheng
Li.
— Agora mesmo, srta. Li! — Ele saiu correndo.
Cheng Li sorriu para Grace.

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— É realmente uma bela surpresa encontrá-la. Andei pen-
sando muito em você.
Grace ficou ruborizada.
— É bom ver você também — disse, meio sem graça.
O garçom voltou rapidamente com uma bandeja cheia de
jarros, copos e caixinhas de vários tamanhos. Será que tudo a-
quilo seria somente para as duas? Sem dúvida havia um tremen-
do ritual nesse negócio de tomar chá.
Grace pôde sentir o olhar de Cheng Li sobre ela enquanto
observava o garoto servindo. Ele colocou sobre a mesa dois
copos de chá com uma bela pintura. Depois pôs um m bule alto
de vidro no centro. Estava vazio, notou Grace. Fazendo uma
reverência, o garoto abriu uma pequena caixinha de ônix. Estava
cheia de botões de flores. Pegando uma pinça de prata, ele lar-
gou cuidadosamente dois botões no bule de vidro. Fechou a cai-
xinha, pegou um elegante pote de prata e derramou água quente
num arco alto sobre as flores, até que o bule estivesse quase
cheio.
— Agora sejam pacientes! — sorriu ele, retirando a caixi-
nha e a bandeja. — Ah, quase esqueci, há um pouco de mel. —
Ele pousou um pequeno frasco preto com uma colher minúscu-
la se projetando da tampa.
Cheng Li pôs uma moeda na bandeja.
— Feche a cortina depois de sair — disse ela.
Ele sorriu e fez outra reverência, depois desapareceu, pu-
xando a cortina ao redor do reservado. As duas jovens estavam
totalmente isoladas.

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— Agora veja — disse Cheng Li, indicando o bule de vi-
dro.
Grace acompanhou seu olhar. A água límpida havia se
transformado num tom de rosa-claro — com uma mancha de
cor mais intensa se espiralando pelo líquido como se um pincel
usado tivesse sido mergulhado dentro. Então, muito lentamente,
os botões começaram a se abrir. Pétalas se projetaram em leque,
gradualmente, de cada botão, como braços se estendendo gen-
tilmente depois de uma noite de sono. À medida que as pétalas
se espalhavam, as duas flores se tocavam. O tempo todo a água
ia ficando num tom de rosa cada vez mais profundo — como o
sol durante o crepúsculo.
Agora as flores estavam totalmente abertas e começaram a
subir para o topo do bule — até flutuarem juntas na superfície
de um oceano rosa-jóia.
— Uau — exclamou Grace, intrigada por aquele pequeno
teatro.
— Agora está pronto para beber — disse Cheng Li, pe-
gando o bule e derramando o chá quente no copo de Grace. O
vapor subiu em espiral até as narinas de Grace. O perfume do
chá era muito incomum e inebriante.
— Alguns gostam de pôr uma colher de mel — observou
Cheng Li, assentindo para o pequeno frasco sobre a mesa —,
mas prefiro o meu puro.
Grace decidiu acompanhar Cheng Li e levou seu copo aos
lábios.

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— Espere — disse Cheng Li. Grace fez uma pausa, imagi-
nando o que mais haveria naquele ritual.
— Um brinde — continuou Cheng Li, levando seu copo
para perto do de Grace. — Às novas amigas!
— Novas amigas! — repetiu Grace.
Bateram delicadamente os frágeis copos. Então Grace to-
mou um gole do chá de Lírios do Mar.
— E então? — perguntou Cheng Li, com os olhos turvos
piscando para Grace. — Qual é o veredicto?
— Acho que é a bebida mais deliciosa que já tomei.
Cheng Li assentiu e deu um sorriso.
— Achei que você gostaria. Os Lírios do Mar são uma i-
guaria rara, cheia de coisas boas. São difíceis de encontrar. Mas
Matilda Chaleira é muito bem relacionada.
— Matilda? — Grace ficou surpresa. — Todo mundo só a
chama de “madame”.
Cheng Li balançou a cabeça.
— Mas o nome dela é Matilda.
— E antes Molucco a chamou de Gatinha.
— As pessoas a chamam de muitos nomes, mas o ver-
dadeiro é Matilda.
Grace percebeu que Cheng Li sabia muitos, muitos segre-
dos. Tomou outro gole de chá, sentindo o doce calor fluir pelo
corpo. Era como se toda a tensão que estava carregando tivesse
se esvaído. Será que apenas alguns goles do chá delicadamente
perfumado pudessem provocar um efeito tão imediato e forte?
— Agora — disse Cheng Li. — Conte-me tudo.

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Por onde ela deveria começar? Havia muita coisa que po-
deria dizer. Muitas idéias e experiências que de repente sentia
ânsia de pôr para fora do peito. E muitas perguntas também.
Mas será que poderia confiar em Cheng Li? Sabia da repu-
tação dela — a bordo do Diablo, falava-se da ex-subcapitã com
uma mistura de medo e desdém. Mas Connor havia falado bem
dela — descrevendo-a como dura, porém justa —, e a opinião
dele importava muito mais que a do capitão Wrathe ou de seus
subordinados, muito facilmente influenciáveis. Mas uma coisa
que Connor havia dito lhe dava um verdadeiro motivo de preo-
cupação. Ele havia falado da insinuação feita pelo capitão Dra-
koulis de que Cheng Li estivera espionando Molucco — este era
o motivo para sua chegada ao Diablo e para sua partida súbita.
— O que você gostaria de saber? — perguntou Grace fi-
nalmente, decidindo deixar que a companheira determinasse o
rumo da conversa. Seguiria com cautela e tomaria as decisões
segundo a confiabilidade de Cheng Li.
Cheng Li deu de ombros.
— Bem, para começar, o que está achando da vida a bordo
do Diablo?
— Gosto bastante.
Cheng Li observou Grace com seus grandes olhos amen-
doados. Sem dúvida, esperava ouvir mais. Grace decidiu arris-
car-se.
— Não sei se quero ficar lá para sempre.

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— Verdade? — Cheng Li ergueu uma sobrancelha interro-
gativamente. — Desculpe se estou errada, mas Connor já não
assinou o contrato?
Grace assentiu.
— Já — respondeu em voz baixa.
Cheng Li tomou um gole de chá.
— Isso representa um pequeno problema.
Grace não precisava ser lembrada. As cláusulas do contrato
eram um espinho constante em seu pé.
— Em geral, o contrato é considerado um elo por toda a
vida — disse Cheng Li. Em seguida olhou para Grace. — Mas
sempre há um modo de passar ao largo dos probleminhas.
O coração de Grace se animou. Será que Cheng Li iria lhe
jogar um salva-vidas?
— Diga: como Connor está se saindo no navio?
— Bastante bem.
Cheng Li sorriu.
— Só bastante bem? O que se diz nos noticiários náuticos é
que ele é um prodígio entre os piratas!
— Ele está se saindo muito bem. Ficou abalado com a
morte do Jez. Todos ficamos. Mas Jez e Connor... e Bart... eram
especialmente íntimos.
— É. — Cheng Li bebericou o chá, ruminando pensa-
mentos. — Claro, os Três Bucaneiros e coisa e tal.
Grace confirmou com a cabeça.
— Connor vai se recuperar. Ele se sente bem feliz com a
vida de pirata.

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— Mas não parece que você se sinta feliz.
— Gosto bastante.
— Você já usou essa expressão, Grace. Por que está tão
cautelosa? Não confia em mim?
Uau! Isso é que é ir direto ao ponto.
— Você não confia em mim — continuou ela. — Dá para
ver. Tudo bem, Grace. Estou acostumada a ser o “policial mau”
do Diablo.
Grace ficou impressionada com a franqueza da outra. E era
ótimo poder falar com alguém sobre todas as suas preocupações.
Apesar das dúvidas com relação à confiabilidade de Cheng Li, já
sentia uma espécie de ligação com a garota mais velha. Também
sentia que Cheng Li talvez pudesse ajudá-la.
— É só que... — começou Grace. Era melhor ir ao ponto.
— É só que o capitão Drakoulis fez uma acusação contra você.
— Sei. O quê, exatamente, Narcisos Drakoulis disse? E a
quem?
— Ele disse ao capitão Wrathe... bem, na verdade a todos
os piratas, que você era uma espiã disfarçada no Diablo... enviada
pela Federação dos Piratas para vigiar o capitão Wrathe. Que o
capitão Wrathe achava que você estava fazendo um estágio
normal como subcapitã, mas que o tempo todo você atuava
como agente da Federação.
Cheng Li assentiu, enchendo de novo o copo de Grace.
— Por favor, continue, querida.

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— Sua função era pôr o capitão Wrathe na linha, mas a
missão fracassou. E por isso você foi chamada de volta de re-
pente. Para a Academia dos Piratas.
Cheng Li olhou atentamente para Grace. Grace ficou ner-
vosa. Teria falado demais?
— É tudo verdade — respondeu Cheng Li.
Grace não podia acreditar nos próprios ouvidos.
— Estou dizendo isso porque acho que você vai entender.
Eu trabalho mesmo para a Federação dos Piratas. Eles me re-
crutaram há alguns anos na Academia dos Piratas e desde então
trabalho para eles.
— O quê, exatamente, é a Federação?
— Já chego lá. A Federação existe para apoiar a causa da
pirataria em todo o mundo, para consolidar o poder que temos
nos oceanos e desenvolver uma rede global de frotas piratas,
trabalhando em cooperação pacífica.
Parecia um negócio admirável, pensou Grace.
— Para a Federação, Molucco Wrathe é uma dor de cabeça
que não passa — continuou Cheng Li. — Ele é um homem do
passado, mas só que não quer sair de campo discretamente. A-
pesar de nossa insistência, ele não entra na linha. Na verdade,
age isolado por pura obstinação. Não respeita as rotas marítimas
dos outros capitães. É motivado apenas pela atração do dinheiro
rápido e de uma aventura espalhafatosa para inchar o ego ainda
mais. — Ela fez uma pausa. — Isso pode parecer exagero para
você, Grace, mas acho que o desrespeito de Wrathe pela Fede-
ração foi o gatilho que resultou na morte de Jez Stukeley.

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Grace confirmou com a cabeça. Havia chegado à mesma
conclusão sozinha, ainda que — até agora — sem a vantagem de
conhecer o quadro geral.
— Narcisos Drakoulis é outro desgarrado — continuou
Cheng Li. — Se eu fosse dada a uma linguagem mais drástica,
diria que ele é “psicótico”. Certamente ele também não repre-
senta uma boa imagem para a Federação. Mas tinha motivos le-
gítimos para discutir com Molucco Wrathe. Wrathe deixou
muitos outros capitães piratas com raiva, devido ao seu com-
portamento leviano. Havia duas diferenças aqui. Primeiro, Dra-
koulis e Wrathe têm uma história antiga, uma disputa por causa
de um tesouro na Grécia, que levou Wrathe a afundar o navio de
Drakoulis. Segundo, Drakoulis decidiu fazer alguma coisa com
relação aos delitos recentes de Wrathe. Não me entenda mal.
Certamente não endosso o que Drakoulis fez. Nem a Federação.
Mas o capitão Wrathe atraiu esse ataque. Se não viesse da parte
do Drakoulis, cedo ou tarde viria de uma das centenas de outros
capitães piratas que ele prejudicou. E, não se engane, se ele não
tomar jeito, isso vai acontecer de novo. — Cheng Li olhou in-
tensamente para Grace outra vez. — E na próxima vez em que
acontecer, Connor pode se machucar.
Grace sabia que Cheng Li estava falando a verdade.
— Eu sei — disse ela. — Acredite, eu sei. Mas o que posso
fazer? Connor está decidido a seguir a carreira de pirata.
Cheng Li balançou a cabeça.
— O problema não é Connor querer ser pirata. O pro-
blema é quem ele escolheu como capitão.

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Cheng Li fora muito direta com Grace e havia confiado
nela ao dar todas essas informações. Mais importante, estava
claro que poderia ajudar. O tempo era essencial. Grace concluiu
que também precisava confiar nela. Respirou fundo.
— Há algum modo de livrarmos Connor do contrato com o
capitão Wrathe? Há algum modo de nós dois sairmos do Diablo?
— Claro — respondeu Cheng Li em tom casual. — Eu já
ia chegar lá.

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CAPÍTULO 13

Decisões

— Academia dos Piratas? — repetiu Connor. — Você quer que


a gente abandone o navio e vá para a Academia dos Piratas?
— Não é uma questão de abandonar o navio — respondeu
Grace. — Seria tudo legal. E só por uma semana. O capitão
Wrathe assinaria nossa liberação...
Connor olhou incrédulo para a irmã, por cima do bule a-
gora vazio de chá de Lírios do Mar. Cheng Li desaparecera, indo
em direção ao bar, e Grace havia chamado Connor para o re-
servado.
— Mas Academia dos Piratas, Gracie? Você sabe que eu e a
escola... não formamos uma combinação boa.
Grace deu um sorriso.

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— Sei, Connor. Mas não estamos falando da escola secun-
dária de Baía Quarto Crescente. Estamos falando da Academia
dos Piratas. Esqueça as provas chatas e as listas de leitura obri-
gatória. Estamos falando de aulas de combate, navegação, co-
municações, SME...
— O que é SME?
Grace sorriu.
— Sobrevivência Marítima Extrema! — anunciou com or-
gulho.
Connor gargalhou.
— Uau! Cheng Li fez um bom trabalho de vendas com
você. — Ele parou. — E isso é outra coisa. Suponha que eu re-
almente achasse que é uma boa idéia, e não estou dizendo que
acho, mas suponha... Como, diabos, vamos fazer o capitão Wra-
the concordar, sabendo que Cheng Li nos convidou e que ela
estaria cuidando de nós lá?
Grace assentiu.
— Já pensei nisso. Não podemos fingir que Cheng Li não
está envolvida. O capitão Wrathe não é idiota. Mas vamos di-
minuir a importância do envolvimento dela. Só vamos dizer que
gostaríamos da chance de ver como é a Academia; e de trazer
algumas novidades para o Diablo. Quem sabe até mesmo um ou
dois novos recrutas?
— Não sei se ele vai topar isso. — Connor balançou a ca-
beça.
— Você o conhece melhor do que eu, mas só estamos pe-
dindo uma semana longe... inicialmente.

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— Inicialmente? Como assim, “inicialmente”?
Grace respirou fundo.
— Connor, eu queria falar com você há um tempo. — Ela
pôde ver uma onda de cautela passar pelo rosto do irmão, mas
trincou os dentes e prosseguiu: — É sobre o seu contrato.
— O que é que tem?
— Eu só queria... Bem, só queria que você não tivesse as-
sinado com Molucco Wrathe tão depressa.
— Ele salvou minha vida, Gracie.
— E agora a está pondo em perigo.
— Como assim?
Ela não queria dizer a coisa de modo tão direto. Mas agora
não existia mais volta, portanto era melhor ser franca.
— Cheng Li me disse que é apenas questão de tempo até
que outro dos capitães se volte contra Molucco...
— Drakoulis é um doido, Grace, um pirado, um psicopata.
Nós tivemos azar...
— Jez teve um pouco mais do que azar. — Grace viu o
rosto de Connor desmoronando. — Desculpe, Connor, mas
estou preocupada com você. Estou preocupada conosco. Acho
que estaremos correndo perigo sério se ficarmos a bordo do Di-
ablo.
Connor riu para ela.
— Ei, garota. Nós dois rendemos bem diante do perigo.
Ela não conseguiu devolver o sorriso.
— Por favor, Connor. Você tem de me levar a sério. Não
tenho nada contra Molucco Wrathe pessoalmente. Sou grata. Ele

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lhe deu um lar e agora me ofereceu um, também. Mas Cheng Li
diz que é apenas questão de tempo até que outro navio pirata
ataque o Diablo. Com você na linha de ataque, fico preocupada,
preocupada de verdade, com a possibilidade de você ser morto.
Connor estendeu a mão para a dela.
— Entendo como você se sente. E, só para constar, andei
tendo os mesmos pensamentos desde que Jez foi morto. Mo-
lucco não é um sujeito mau, mas o modo como se comporta
atrai encrenca. Eu nunca diria isso a mais ninguém, mas acho
que Jez morreu desnecessariamente.
Grace segurou a mão de Connor com força. Não esperava
que ele dissesse aquilo. Depois da separação dos dois, e de tudo
que havia acontecido com eles em seguida, algumas vezes era
fácil demais esquecer a profunda ligação mútua. Era bom saber
que ela continuava ali.
— Então, vai pedir ao Molucco? — arriscou ela.
— Licença de uma semana para visitar a Academia dos Pi-
ratas?
Grace confirmou com a cabeça.
— Vou pedir. Mas não sou muito otimista quanto à aceita-
ção dele.
— Obrigada, Connor. Antes de mais nada, vai ser ótimo a
gente se afastar do navio só por um tempo. Podemos conversar
direito sobre o futuro. Sobre aonde queremos ir, o que quere-
mos fazer.

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— Gracie, vou pedir que o capitão Wrathe nos dê uma se-
mana de licença, mas quando isso acabar terei de voltar ao Dia-
blo.
— E eu terei de voltar com você. — Ela não conseguiu
impedir que as palavras saíssem.
Connor franziu a testa.
— O que isso significa?
— Você assinou o contrato. Eu, não.
— Ainda não. Mas vai assinar, não é? A única coisa que
importa não é ficarmos juntos?
Grace soltou a mão dele.
— Nós não ficaremos juntos se você for morto num ataque,
Connor. E você me conhece o bastante para saber que não vou
ficar parada esperando isso acontecer.
— O que vai fazer, então? Aonde você vai? — ele a enca-
rou.
Grace não podia dizer, mas não foi rápida o bastante para
disfarçar os pensamentos.
— Ah, não, Grace. Não! Você não está pensando em re-
tornar ao navio Vampirata!
Ela suspirou.
— Há pessoas que precisam de mim, lá.
— Não são pessoas — disse ele balançando a cabeça. —
São vampiros. Monstros. Demônios.
— Você pode pensar o que quiser — respondeu ela em
voz baixa.
Agora Connor estava com raiva.

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— Você me faz um sermão sobre segurança, e o tempo
todo está planejando pegar outra carona num navio onde todos
dormem o dia inteiro e bebem sangue a noite inteira.
— Você não sabe o que está falando. — Agora ela também
estava ficando com raiva. Connor não sabia praticamente nada
sobre o navio Vampirata. Se ao menos seu irmão entendesse a
dor de Lorcan, o quanto ele precisava dela!
— Grace, não acredito. Nem acredito que estamos tendo
essa conversa.
— Olhe — disse ela, com a voz cortante —, não quero
brigar com você, Connor. Você é a pessoa mais importante do
mundo para mim, e sabe disso. E está certo, nós deveríamos
ficar juntos. Mas há coisas das quais não falamos, coisas que não
tivemos tempo de falar, com tudo que anda acontecendo. Se você
pudesse convencer o Molucco a nos liberar do navio durante
uma semana, teríamos a chance.
Connor fez que sim com a cabeça, resignado. De algum
modo ela sempre conseguia argumentar e fazer suas idéias pre-
valecerem.
— Certo — disse ele. — Certo, vou pedir. Mas não espere
milagres.
Connor puxou a cortina que separava o reservado do bal-
cão. Inclinando-se na balaustrada, viu Molucco sentado com
madame Chaleira e dando tira-gostos do bar a Scrimshaw.
— Capitão Wrathe! — gritou Connor. — Capitão Wrathe!
Posso trocar uma palavrinha com o senhor?
— Claro, meu garoto. Desça aqui!

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No reservado ao lado, Sidório e Stukeley ouvem o grito de


Connor.
Stukeley se empertiga totalmente.
— É o Connor — diz ele — e Molucco. — Instintiva-
mente estende a mão para a cortina que os separa do bar em-
baixo.
Sidório segura seu pulso.
— Eu já disse. Não.
— Certo, certo. Ai, o senhor está me machucando.
— Desculpe — murmura Sidório, soltando-o mas puxando
sua mão de volta para a mesa. — Deixe essa cortina aí.
— Bom, isso não é divertido. Nem um pouco divertido.
— Não? — Sidório examina o tenente outra vez.
— Bom, eu não posso beber nada — diz batendo em sua
caneca, que ainda está quase cheia de cerveja, e o resto foi cus-
pido e derramado na mesa. — Não consigo engolir.
— As coisas estão mudando dentro de você — diz Sidório.
— Seja paciente.
Stukeley franze a testa e levanta a caneca outra vez.
— Não! — exclama Sidório enfurecido.
Em desafio, Stukeley toma um gole de cerveja. Sidório ba-
lança a cabeça, frustrado, enquanto Stukeley começa a engasgar
de novo. Ele se inclina e bate nas costas do companheiro.
— Ai! Pare de me atacar!

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— PARE de tentar beber. Você não consegue.
— Mas por quê?
Sidório dá um suspiro pesado.
— Seja paciente.
— Seja paciente! Seja paciente! Não olhe para ninguém. Não fale
com ninguém. Deixe a cerveja para lá. Capitão, o senhor está pare-
cendo um bocado com minha mãe.
Sidório balança a cabeça. Será que é hora de cortar o barato
desse idiota? Mas não. É o início para o rapaz. Faz tanto tempo
que ele passou pela metamorfose que não pode prever o que
virá em seguida. Se puder simplesmente esperar, tratar isso co-
mo uma experiência, certamente as coisas serão mais fáceis com
o próximo que trouxer de volta. E o próximo. E o próximo. O
exército de Sidório. A tripulação de Sidório. Essas são palavras
reconfortantes. Exatamente do que ele precisa para se animar.
— Esqueça a cerveja. Vamos embora.
Com ar decidido, Sidório fica de pé.
— Por quê? Por que estamos indo? Que emoções o senhor
ainda tem para mim?
Sidório gargalha.
— Emoções? Vou lhe dar emoções! Sei do que você preci-
sa.
Ele sai intempestivamente do reservado. Stukeley pega o
casaco e segue seu novo comandante.
— O que o senhor está falando? Aonde vamos? Do quê eu
preciso?

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Sidório chegou à escada. Imobiliza-se por um momento e
se vira para encarar seu cansativo tenente.
— Sangue, Stukeley. Você precisa é de sangue.

— Bem — disse Connor, juntando-se de novo a Grace. — Está


tudo decidido.
— Ele concordou?
— Sim! — estrondeou Molucco Wrathe, aparecendo ao
lado de Connor. — O capitão concordou.
Grace ficou vermelha, sem graça.
— Desculpe, capitão Wrathe. Não vi o senhor aí. Mas o-
brigada... por nos deixar ir. É uma ótima notícia.
O capitão desconsiderou os agradecimentos.
— Os últimos dias a bordo do navio têm sido difíceis —
disse ele. — Tenho certeza de que uma pausa vai fazer bem aos
dois.
Grace mal podia acreditar que ele estivesse tão tranquilo
com relação ao pedido.
— Bom, devo dizer — disse Cheng Li, retornando do bar
— que é um pensamento animador de sua parte.
— Srta. Li — respondeu o capitão Wrathe. — Que des-
prazer inesperado!
— Ha! Ha! Ha! Ha! — gargalhou Cheng Li, sarcástica. —
É bom saber que os acontecimentos recentes não estragaram sua
inteligência afiada como um sabre.
Molucco a encarou.

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— O homem que não consegue rir, srta. Li, é um homem
muito pobre.
Juntaram-se a ele Cate, de um lado, e madame Chaleira, do
outro. Mais piratas começaram a se virar na direção deles, levan-
tar-se e se aproximar. Todo mundo percebia que aquele era o
primeiro encontro entre o capitão e sua ex-imediata desde que
Drakoulis fizera a acusação de espionagem.
Sem se intimidar, Cheng Li ignorou a turba e dirigiu-se di-
retamente ao capitão Wrathe e Cate.
— Lamentei muito quando soube o que aconteceu com Jez
Stukeley — disse ela. — Ele era um ótimo pirata. — Em seguida
fixou o olhar turvo em Cate. — Parabéns, por sinal, pelo cargo
de subcapitã. Espero que as responsabilidades adicionais não
estejam sendo onerosas demais para você.
As duas se entreolharam — a ex-subcapitã e sua sucessora.
Grace havia notado que Cate estava crescendo no novo papel,
demonstrando mais confiança e autoridade a cada dia. Mas agora,
cara a cara com a predecessora, pareceu um pouco insegura.
Molucco pôs o braço ao redor dos ombros de Cate.
— Cate é uma ótima imediata. Pelo menos tenho ao lado
alguém em quem posso confiar.
Cheng Li sorriu.
— O senhor sempre pôde confiar em mim, capitão.
— É — gargalhou Molucco. — Sempre pude confiar em
que você teria alguma objeção aos meus planos, que poria obs-
táculos no meu caminho, que questionaria meus motivos e mi-

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nha autoridade. Em questões assim, você era cem por cento
confiável.
— Ah, capitão — sorriu Cheng Li. — De novo seu bom
humor me vence. Mas agora preciso pedir licença. Há prepara-
tivos a serem feitos para a chegada de Grace e Connor à Aca-
demia dos Piratas. Isto é... desde que o senhor tenha certeza de
que pode confiá-los a mim.
O que Cheng Li estava dizendo? Grace ficou alarmada. Era
o mesmo que levantar um pano vermelho diante de um touro!
Porém Molucco permaneceu numa compostura pouco comum.
— Não confio nem no seu cheiro — disse ele. — Mas
confio implicitamente em Connor e Grace. Eles querem visitar a
Academia e não vejo motivo para recusar o pedido.
— Temos idéias muito diferentes sobre pirataria — retru-
cou Cheng Li. — Você não se preocupa com a possibilidade de
eu corromper as mentes jovens dos dois?
— Metais vagabundos como você, srta. Li, são corrom-
pidos com mais facilidade do que ouro puro, como estes gêmeos.
— Ele tirou o braço dos ombros de Cate e estendeu as mãos,
pousando uma nos ombros de Grace e outra nos de Connor. —
Vão se divertir, meus amigos. Vocês são jovens. Merecem. Há
algumas pessoas boas na Academia. Mantenham a mente aberta
ao que elas ensinarem. — E apertou os ombros dos dois. — Em
seguida voltem ao Diablo e continuaremos com a tarefa de ser-
mos piratas.
O capitão Wrathe segurou a mão de madame Chaleira e
começou a se afastar. Então parou e se virou.

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— Eles são meus tripulantes, srta. Li, mas não são meus
escravos. Eu encorajo o pensamento individual e a liberdade de
expressão no meu navio. Você, seu precioso diretor Kuo e os
outros podem dizer o mesmo? — Ele a encarou, depois segurou
de novo o braço da Madame.
— Bem — disse Cheng Li —, veremos, não é? Ah, capitão
Wrathe, quase esqueci. A capitã Quivers pediu que eu mandasse
lembranças.
— Lisabeth Quivers — disse ele, com o rosto se ilumi-
nando imediatamente. — Este é um nome que não ouço há uma
ou duas luas cheias! — E se virou para os gêmeos. — Lisabeth
Quivers! Não havia melhor capitã em seu tempo.
Madame Chaleira deu um risinho.
— Não havia melhor capitã nem maior destruidora de corações.
Com aqueles olhos e os cabelos vermelho-fogo. Ah, Sortudo, ela
certamente mantinha você e seus irmãos na linha! Não era fan-
tástica? Como a gente se divertia naquela época!
— É — respondeu Molucco, a voz tingida de tristeza. — É,
aqueles foram tempos fantásticos. — Em seguida se virou para
Cheng Li. — Por favor, dê minhas melhores lembranças à capitã
Quivers.
— Melhores lembranças! — exclamou madame Chaleira.
— Bobagem! Mande a ela o nosso amor! E diga para ela dar uma
passadinha e tomar uma bebida uma noite dessas. — A Madame
passou o braço pelo de Molucco e o levou para longe.

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Os piratas começaram a se dispersar, percebendo que os
fogos de artifício haviam acabado. Cate segurou Connor e foi
procurar Bart. Grace se virou para encarar Cheng Li.
— Por que você o provocou daquele jeito?
— Olhe e aprenda — respondeu Cheng Li com uma pis-
cadela. — Ele disse que você podia ir, não disse? Bem, quem
imaginaria que isso iria acontecer? — Ela sorriu para Grace. —
Venho pegar você e Connor às nove da manhã em ponto. Cada
um prepare uma bagagem leve e estejam prontos no convés.
Apesar da severidade na voz de Cheng Li, Grace não con-
seguiu evitar um sorriso.
— Vamos mesmo fazer isso, não é?
Cheng li assentiu.
— É, Grace. A esta hora, amanhã, você e Connor estarão
livres do Diablo e se acomodando para a primeira noite na Aca-
demia dos Piratas.

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CAPÍTULO 14

Academia dos piratas

O porto da academia era cercado por uma muralha de cais, com


a entrada definida por um alto arco de pedra que se erguia da
água. Enquanto o pequeno barco de Cheng Li se aproximava, os
gêmeos viram que o arco tinha uma inscrição. Grace leu.

Fartura e Saciedade
Prazer e Conforto
Liberdade e Poder

— É o lema da Academia — disse Cheng Li com grande senti-


mento de orgulho. — As palavras são de um famoso capitão dos
velhos tempos.
— O que significa “saciedade”? — perguntou Connor.

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Cheng Li sorriu.
— Tomar tudo que você quer, e depois todo o resto. —
Os olhos de Connor se iluminaram, mas Grace não conseguiu
evitar a testa franzida, pensando na sede implacável de Molucco
por tesouros. — Claro que hoje em dia a pirataria é um negócio
muito mais complexo e sutil. — Grace manteve os olhos fixos
nela, esperando mais explicação. — Vocês verão o que quero
dizer depois de alguns dias na Academia. — Cheng Li se virou e
se ocupou com as velas.
Enquanto ela guiava o barquinho pelo arco, entrando no
porto, Grace e Connor ficaram boquiabertos ao ver o ambiente
ao redor. A Academia era um oásis colorido — uma enorme
massa de prédios antigos pintados em amarelo, rosa e laranja
luminosos, situados em meio a jardins luxuriantes que vinham
até o cais. À medida que se aproximavam do cais, uma flotilha
de pequenos barcos à vela passou por eles, cheios de crianças —
com uma exceção.
— Capitão Avery! — gritou Cheng Li. O velho se emper-
tigou e levantou os olhos, depois sorriu e ergueu o quepe para
acenar. — Ele está levando os mais jovens para a aula de vela —
explicou aos gêmeos. Agora os jovens alunos notaram Cheng Li
e começaram a acenar. Quando fizeram isso, alguns barcos co-
meçaram a sair da linha.
— Concentração! — gritou o capitão Avery, exasperado,
para os alunos. — Agora vamos prestar menos atenção à srta. Li e
um pouco mais à nossa navegação, certo? Ande, sr. McLay, va-
mos acordar! E você, srta. Conescu, puxe o pano agora. Isso. Ah,

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sim, srta. Weber, bela recuperação. Melhorou muito! Melhorou
muitíssimo!
Grace e Connor ficaram olhando enquanto os aprendizes
de pirata tentavam — com variados graus de sucesso — trazer
os barcos de volta à fila. Enquanto isso, Cheng Li colocava sua
embarcação no atracadouro certo. Já ia pular para prender as
amarras quando um homem surgiu no cais, estendeu as mãos e
disse:
— Aqui, deixe comigo.
— Obrigada, comodoro Kuo — disse Cheng Li, jogando o
cabo na direção dele. O homem pegou a corda numa das mãos e
habilmente a enrolou no pino de amarração. Em seguida esten-
deu a mão para ajudar Cheng Li a sair do barco.
O comodoro Kuo estava vestido com elegância, com cal-
ções de algodão enfiados em altas botas de couro preto que pa-
reciam brilhar ao sol. Usava uma camisa branca impecável —
aberta para revelar o início de um peito forte e bronzeado — e
um colete de seda vermelha. No pescoço havia um cordão com
quatro penduricalhos. Usava o cabelo cinza-prateado comprido
até os ombros, como Molucco, mas — em contraste com o ca-
pitão Wrathe — o cabelo era liso, bem cuidado e notavelmente
livre de répteis. O rosto bonito era bronzeado e os olhos casta-
nho-escuros luziam brilhantes como o sol na água.
Parada junto dele no cais, Cheng Li se dirigiu aos gêmeos.
— Grace, Connor, tenho o enorme prazer de apresentá-los
ao comodoro John Kuo, diretor da Academia dos Piratas.
Connor saltou do barco para o cais.

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— Bem-vindo, sr. Tormenta — disse o comodoro Kuo,
apertando sua mão com firmeza. — Connor, já ouvi falar muito
de você, através da srta. Li e por outros. É um prazer absoluto
tê-lo aqui.
E o comodoro Kuo estendeu a mão para ajudar Grace a
descer à terra.
— Srta. Tormenta, bem-vinda à Academia dos Piratas.
Enquanto o diretor se inclinava adiante, Grace viu mais de
perto o cordão em seu pescoço. Suspensos no fino fio de ouro
havia quatro pequenos objetos: uma espada, uma bússola, uma
âncora e uma pérola. O diretor a surpreendeu olhando.
— Vejo que notou meu cordão — disse ele, passando um
dedo pelos objetos pendurados. — Cada objeto desses tem um
significado importante. Simbolizam os quatro principais talentos
exigidos para ser um pirata de sucesso. A espada representa a
capacidade de lutar e foi moldada a partir da minha própria Lâ-
mina de Toledo. A bússola representa a capacidade de navegar.
A âncora reconhece que devemos nos firmar na história da pira-
taria. E a pérola... bem, a pérola talvez seja o mais importante.
Marca a capacidade de pegar as situações mais sombrias e pouco
atraentes e parti-las para encontrar o tesouro que há dentro.
Grace sentiu que sabia alguma coisa sobre o que o diretor
estava falando.
— Bem — disse o diretor, pondo a mão de leve nos om-
bros dos gêmeos e os empurrando para a frente. — O que es-
tamos esperando? Vamos entrar!

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Os quatro seguiram pelo caminho sinuoso através do ter-
reno da Academia. Os perfumes do jardim eram maravilhosos.
Depois de respirar pouco mais do que o ar marítimo durante
semanas, o cheiro do alto pé de jacarandá perto do cais era ine-
briante a ponto de nocautear. Os galhos eram baixos, sob o peso
dos cachos de flores azuis. Ao redor da árvore havia um banco
circular, onde dois garotos estavam sentados, ambos concentra-
dos no mesmo livro.
Enquanto eles passavam, os garotos levantaram os olhos e
empertigaram a postura.
— Sebastian, Ivan — disse o comodoro Kuo. — Apro-
veitando um pouco de leitura?
— Sim, senhor! — disse o primeiro garoto, levantando a
capa do livro.
— Ah, O livro dos cinco alfanjes — disse o comodoro Kuo. —
Um clássico da pirataria!
— A srta. Li o recomendou — respondeu o garoto, em-
polgado.
— Foi mesmo — disse Cheng Li. — Sebastian teve um
progresso excelente na Oficina de Combate, e achei que ele con-
sideraria a biografia do capitão Makahazi um tema interessante.
— Leitura ambiciosa, e violenta, para um garoto de 10 anos
— exclamou o diretor. — Mas parece ter interessado ao Sebas-
tian, e ao que tudo indica o jovem Ivan está igualmente fascina-
do.
— Sim, senhor — exclamou o outro garoto.

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— Muito bom — disse o comodoro Kuo, sorrindo. —
Bem, não vamos atrapalhá-los mais, jovens piratas.
Os garotos riram de orelha a orelha ao ouvir a palavra e
retornaram aos estudos sob a copa azul. Poderia haver um lugar
mais perfeito para ficar sentada?, pensou Grace — à sombra dos
galhos, imersa no perfume, olhando o porto luminoso.
— Andem logo, seus molengas — gritou Cheng Li, já bem
à frente, parada diante de uma fonte maravilhosa, feita de vidro
colorido e conchas do mar.
Grace correu para alcançá-la.
— É tudo tão bonito! — disse, com um suspiro.
— Então está satisfeita por ter vindo?
— Ah, estou — respondeu Grace, os olhos arregalados de
espanto e prazer.
— Agora vocês estão bem longe do Diablo — disse Cheng
Li, pegando o braço de Grace. Caminharam lado a lado, pas-
sando pela fonte onde os borrifos de água fria bateram no rosto
de Grace. A sensação era deliciosa em sua pele bronzeada, aque-
cida pelo sol da manhã. Pela primeira vez em séculos ela se pe-
gou começando a relaxar de verdade.
Connor e o comodoro Kuo haviam andado mais depressa
e agora conversavam animadamente junto à entrada de um alto
prédio cor de cerâmica, coberto por uma cúpula. Grace podia
ver que Connor e o diretor já se davam muito bem. Sentiu um
enorme otimismo. Esse era um novo início. Com a ajuda de
Cheng Li, tinha certeza de que havia resgatado Connor da morte
certa como pirata sob o comando do capitão Wrathe.

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Cheng Li e Grace se juntaram a Connor e ao comodoro
Kuo perto da entrada do prédio — duas enormes portas de ma-
deira elaboradamente esculpida.
— Estas portas foram saqueadas por um dos nossos capi-
tães fundadores — disse Cheng Li aos gêmeos — depois de um
ataque especialmente bem-sucedido no litoral do Rajastão. —
Ela encostou a mão nos relevos intricados. — Sempre que vejo
estas portas, sinto que estou chegando em casa.
— A Academia é de fato um lar para todos os nossos alu-
nos, antigos e novos — disse o comodoro Kuo, empurrando as
portas. — E, aonde quer que vocês viajem neste mundo, nossas
portas sempre estarão abertas para recebê-los de volta de suas
aventuras.
Quando terminou de falar, ele recuou, e Grace e Connor se
viram na entrada de uma enorme sala circular, banhados numa
fria luz azul.
— Esta é a Rotunda — disse o comodoro Kuo —, mas o
apelido afetuoso dado por nossos alunos é “o Polvo”, por causa
de todos os tentáculos. — Ele sorriu, indicando os vários cor-
redores que partiam do centro.
A atenção de Grace foi atraída para o alto. O teto em cú-
pula da Rotunda era cravejado de painéis de vidro em todos os
tons de azul — desde o turquesa pálido até um brilhante lá-
pis-lazúli e um índigo profundo. A luz do sol atravessava os fil-
tros de vidro, encharcando o Polvo e quem estava dentro em
azuis aquosos. O efeito era estonteante, como andar no fundo
do oceano.

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Seguindo o olhar de Grace, Connor também virou a cabeça
para cima. Mas seus olhos foram atraídos por outra coisa.
Penduradas em cabos de aço presos ao topo da Rotunda
havia caixas de vidro que formavam um gigantesco móbile. As
caixas chegavam uns dois metros acima da cabeça deles e, en-
quanto examinava, Connor viu que cada caixa continha uma es-
pada. Era estranho — e um bocado desconcertante — olhar
para todas aquelas armas nadando no oceano de luz azul como
um cardume de peixes lindos mas absolutamente mortais.
— Uau — disse Connor. — Qual é o negócio de todas es-
sas espadas?
— Impressionantes, não são? — perguntou o comodoro
Kuo. — Na Academia, temos a felicidade de possuir espadas
pertencentes a alguns dos mais célebres capitães piratas de nosso
tempo. A maioria das espadas nos são doadas quando o capitão
se aposenta, mas, em algumas situações, é a espada que se apo-
senta primeiro! Aquela ali, por exemplo, já foi usada por seu
amigo, o capitão Molucco Wrathe. Está vendo?
O comodoro apontou para três espadas penduradas juntas,
em grupo.
— Qual delas? — perguntou Connor.
— Ah, bem, é verdade que são quase idênticas. Veja bem,
aquelas três espadas já pertenceram aos três irmãos Wrathe:
Molucco, Barbarro e Porfírio. Mas aquele sabre ali, do meio, já
foi de Molucco. Se você olhar atentamente, verá a safira no pu-
nho.

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Connor ficou meio surpreso ao saber que Molucco havia
doado uma espada à Academia, pensando na pouca considera-
ção com que ele falava sobre o lugar. Mas conhecia o capitão o
bastante para saber que ele era um homem imprevisível. Além
disso Bart lhe havia dito, quando se conheceram, que Molucco e
seus irmãos faziam parte da realeza pirata — de modo que, claro,
as espadas dos Wrathe eram bem-vindas na Academia.
— E esta espada? — perguntou Connor, os olhos subita-
mente atraídos por uma espada mais simples, comprida, cujo
punho era coberto de couro e brilhava ligeiramente.
— Você preparou nossos convidados, srta. Li? — pergun-
tou o comodoro Kuo com um sorriso.
Cheng Li devolveu o sorriso, balançando a cabeça.
— Como assim? — perguntou Connor.
— Aquela é a minha antiga espada — respondeu o como-
doro Kuo. — Minha Lâmina de Toledo. Foi minha aliada em
muitos conflitos. É uma arma bastante incomum. — Ele parou
ao lado de Connor, os dois com os olhares fixos na espada que
pairava no alto.
— Foi forjada do modo mais excepcional — explicou o
comodoro Kuo. — Os ferreiros ibéricos são mestres em sua arte
e se superaram com esta espada. A lâmina de aço tem um núcleo
de ferro, o que a torna extraordinariamente dura. Por isso o
próprio Aníbal escolheu uma espada de Toledo, além de outros
grandes reis e líderes por toda a história. — O comodoro Kuo
olhou para Cheng Li. — Até os samurais japoneses viajavam a

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Toledo para que suas katanas e wakizashi fossem forjadas lá. E
foi o que eu fiz.
A mão do comodoro Kuo pousou no ombro de Connor.
— A criação da arma é um processo complexo. Os ferrei-
ros devem forjar aço duro e macio simultaneamente, a tempera-
turas altíssimas. Então a espada é esfriada com água ou óleo para
soldar a emenda. O mestre ferreiro que forjou esta espada so-
prou sobre a lâmina 20 mil vezes para alcançar a consistência
perfeita. Imagine só! Ele só faz três lâminas por ano. E está
vendo o punho? É amarrado com pele de arraia-lixa — excep-
cionalmente dura e à prova d’água. Minhas botas são feitas do
mesmo material.
Grace olhou para as botas dele, percebendo que não eram
feitas — como havia pensado de início — de couro. Lem-
brou-se de seu erro semelhante com a capa do capitão Vampira-
ta e as misteriosas velas do navio. Ainda que as botas do como-
doro Kuo brilhassem à luz, ela não esperava que tivessem veias
como a capa do capitão Vampirata ou as velas de seu navio.
Mesmo assim, a Academia era semelhante ao navio Vampirata
pelo menos em um aspecto: parecia ter muitos segredos empol-
gantes a descobrir.
Connor não conseguia afastar o olhar da Lâmina de Toledo.
Era incrível. Um pensamento lhe passou pela mente.
— Comodoro Kuo, será que eu poderia experimentá-la?
— Infelizmente não — respondeu o diretor em tom defi-
nitivo, ainda que sua voz continuasse suave e macia. — As es-
padas só são retiradas das caixas uma vez por ano, no Dia das

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Espadas. É quando comemoramos a fundação da Academia e os
feitos de nossos alunos. Os que mais brilharam durante o ano
são recompensados com a honra de lutas de exibição com estas
espadas. — Ele se virou para Connor. — Mas, infelizmente, esta
é uma oportunidade que só abrimos aos alunos de nossa Acade-
mia, e não aos convidados.
Connor sentiu um desapontamento e uma frustração. Nes-
se momento daria tudo para segurar aquela espada, mesmo que
isso significasse assinar o contrato para passar um ano na Aca-
demia.
— A Academia tem muitos tesouros diferentes, que atraem
todos os gostos — prosseguiu o comodoro Kuo, a voz ecoando
pela Rotunda. — Nos próximos dias vocês devem se sentir li-
vres para explorar qualquer coisa que atraia seu interesse e sua
paixão. Peçam qualquer coisa de que precisarem e, sempre que
possível — ele olhou para a Lâmina de Toledo —, ela será sua.
A srta. Li será sua guia, e a porta da minha sala está sempre a-
berta para vocês. Mas agora, infelizmente, devo ir finalizar as
revisões de nosso currículo de navegação. Srta. Li, posso deixá-la
para mostrar os alojamentos de Grace e Connor?
— Sim, diretor.
O comodoro Kuo começou a se afastar por um dos cor-
redores. Então, aparentemente tomado por um novo pensa-
mento, deu meia-volta — os olhos chamejando de paixão.
— Já fui capitão de uma tripulação de mil homens. Agora
sou capitão das mais brilhantes futuras estrelas do mundo da
pirataria. Se, depois de alguns dias aqui, vocês sentirem que po-

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dem querer se juntar a nós, bem, tenho certeza de que podería-
mos descobrir um modo de resolver isso. Não acha, srta. Li?
— Sim. Sim, claro, senhor diretor.
O comodoro Kuo se virou e dessa vez desapareceu num
dos tentáculos sinuosos do Polvo, com as botas de arraia-lixa
ressoando nos ladrilhos axadrezados.
Connor olhou para o alto, para as espadas de uma centena
ou mais de capitães piratas. Cada espada vira muita ação e aven-
tura. Se elas pudessem contar suas histórias!
Enquanto os olhos de Connor captavam, empolgados, os
detalhes das diferentes espadas, as caixas começaram a se mover.
Todo o gigantesco móbile girava lentamente como um carrossel
mortal, as espadas subindo e descendo como cavalos de parque
de diversão, ganhando ritmo. O olhar do garoto bebia sedento
as marcas identificadoras dos diferentes capitães — uma jóia
preciosa num punho aqui, uma gravação misteriosa na lâmina ali.
Mas logo as espadas giravam depressa demais para que os deta-
lhes pudessem ser captados. Aquilo estava fora de controle. As
espadas giravam cada vez mais depressa até que as caixas de vi-
dro em que estavam se despedaçaram e cacos de vidro choveram
sobre Connor. No entanto ele continuava ali parado, no coração
da chuva de meteoros, fascinado demais para sentir alguma dor.
E então, enquanto olhava para cima, viu e ouviu o coração de
uma batalha. Viu o clarão do sol em lâminas de aço; velas bran-
cas se enfunando; a madeira dos conveses e dos mastros. Ouviu
espadas se entrechocando; cordame sendo arrebentado; canhões

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disparando e os gritos de piratas entrando e saindo da refrega.
Ouviu os gritos com mais atenção.
— Capitão — ouviu ele. — Capitão Tormenta.
Não. Não podia ser.
— Venha. Capitão Tormenta.
De novo, claro como o dia.
— Venha. Capitão Tormenta. Ele está ferido. Ele precisa...
Connor tentou entender o que via, mas sua visão havia fi-
cado turva. Os gritos iam sumindo. Então viu de novo as espa-
das no alto, retornando às posições originais e parando — cada
uma ainda dentro da caixa de vidro. Afastou o olhar, virando-se
para o piso da Rotunda. Estava perfeitamente limpo. Nenhum
caco havia caído sobre ele.
— Venha, capitão Tormenta.
Connor levantou os olhos e viu Cheng Li fixando-o com
um sorriso. Piscou. Ela havia dito “Capitão”?
— Você vai ficar tonto, olhando essas espadas — conti-
nuou ela —, e Deus sabe o dano que pode estar causando ao seu
pescoço. Vamos almoçar alguma coisa.
Connor viu que ela estava falando, mas as palavras faziam
pouco sentido. Sentia-se confuso com a visão que tivera através
das espadas acima. Será que havia simplesmente imaginado ou
seria um vislumbre de seu futuro? Será que se tornaria um capi-
tão pirata?
— Almoço, Connor — disse Cheng Li, com apenas uma le-
ve exasperação. — Até os piratas prodígios precisam comer de

1 148 1 
 
vez em quando. E o cozinheiro chefe da Academia prepara os
bolinhos mais deliciosos que já provou na vida.

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CAPÍTULO 15

Não é uma escola comum

— Bom — disse Cheng Li, erguendo a xícara de chá de jasmim.


— Bem-vindos de novo à Academia dos Piratas. — Connor e
Grace levantaram suas xícaras e bateram contra a de Cheng Li.
Estavam almoçando no terraço da Academia, rodeados
pelos outros alunos e professores, ao calor agradável do sol do
meio-dia. Enquanto Grace batia papo animadamente com
Cheng Li, Connor examinava o ambiente ao redor. Aquela não
era uma escola parecida com nenhuma outra que ele já vira. Se
bem que, para ser justo, a única escola que ele já vira era a de
Baía Quarto Crescente — e era preciso andar muito para encon-
trar uma instituição pior, mais sem graça e tacanha.
— Quantos alunos estudam aqui? — ouviu Grace pergun-
tar a Cheng Li.

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— Cento e cinquenta — respondeu Cheng Li —, desde
crianças de 7 anos até jovens de 17. Há apenas 15 alunos em
cada uma das dez turmas. Com a alta relação alunos/professores
na Academia, cada aprendiz de pirata recebe a melhor oportuni-
dade de progredir. Nesse sentido — e em muitos outros —, a
Academia dos Piratas não é uma escola comum.
— De onde vêm os alunos? — perguntou Grace.
— Boa pergunta. Nossos alunos vêm das melhores famílias
de piratas. E, acredite, não é fácil garantir uma vaga na Academia
dos Piratas. Temos rigorosos exames de admissão e entrevistas.
Não é possível comprar a entrada simplesmente doando um
novo barco de treinamento ou uma caixa de alfanjes. Cada aluno
tem de passar pela porta através de seus próprios méritos.
— Mas parece que é preciso ser rico — disse Connor.
Cheng Li deu de ombros.
— Por definição, as famílias de piratas mais bem-sucedidas
são ricas. Você não seria um bom pirata se não ganhasse o sufi-
ciente para educar os filhos, não é? Claro que em casos raros
como o de vocês, por exemplo, há bolsas disponíveis.
Connor encolheu os ombros.
— Bem, nós só estamos de visita, de qualquer modo.
Cheng Li assentiu.
— Isso mesmo. Por um momento esqueci! — Mas havia
algo na voz de Cheng Li que indicou a Grace que ela não havia
esquecido. Nem por um segundo.

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— E os piratas realmente preferem que os filhos venham
para cá, em vez de treiná-los a bordo de seus navios? — per-
guntou Grace.
— Pense bem — respondeu Cheng Li. — Pense em como
é difícil a vida a bordo de um navio como o Diablo. Não há
tempo real para um pirata ativo educar os filhos. Claro, todos os
navios devem treinar seus jovens piratas no uso de espada, mas
simplesmente não há oportunidade para a formação mais ampla
que damos aqui: em história, navegação, estratégia e capacidade
de comando. Nossa proposta aos piratas é a seguinte: dê-nos
seus filhos durante dez anos e vamos devolvê-los não somente
prontos para ser membros integrais da tripulação, mas também
para assumir o papel de comando.
— Faz sentido — disse Grace. — Não acha, Connor?
Connor não respondeu. Estava absorto em pensamentos.
Pensava na visão que tivera na Rotunda — a visão de se tornar
capitão.
— Não acha, Connor? — repetiu Grace.
— O quê? Ah, é... é, sem dúvida. — Ele não sabia muito
bem o que Grace havia perguntado, mas ela pareceu bem satis-
feita com a resposta. .
— Vejam só — disse Cheng Li —, eu trouxe para vocês
um quadro de horários da Academia. — Ela entregou um cartão
dobrado a cada um dos gêmeos. — É a programação das aulas
que vocês teriam se fossem alunos do oitavo ano aqui — junto
com os outros de 14 anos. Marquei as matérias que imagino que
vocês acharão mais interessantes, mas a decisão é totalmente sua.

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Vocês são meus convidados. Estão aqui para sentir o gosto do
lugar, de modo que podem se sentir livres para comparecer às
aulas que quiserem.
Grace desdobrou seu horário, mas Connor já havia desli-
gado a voz de Cheng Li e estava examinando empolgado a pro-
gramação de aulas. Não havia matérias chatas! Desde História
dos Piratas numa manhã de segunda-feira até a Oficina de
Combate na tarde de sexta, cada dia parecia atulhado de coisas
interessantes. Certo, talvez ele pudesse pensar duas vezes antes
de encarar uma dose dupla de Biologia Marítima nas manhãs de
terça-feira, mas as três aulas seguidas de Pirataria Prática e Na-
vegação Oceânica pareciam fantásticas, e ele mal podia esperar
para ir à aula de Sobrevivência Marítima Extrema. Connor riu de
orelha a orelha para Grace — tinha de admitir que ela estava
certa na sugestão de virem para cá. Ela sorriu de volta.
A única coisa incômoda no horário era a duração de cada
dia de aulas. Toda manhã começava às sete horas com algo
chamado “Força, Energia e Motivação” e o dia na Academia só
terminava às oito da noite — se bem que a última hora depois
do jantar era separada para estudos particulares, clubes ou acon-
tecimentos sociais. Também havia aulas nas manhãs de sábado e
até mesmo uma — uma aula de Meditação, dada por Cheng Li
— no fim da tarde de domingo. Mesmo assim, pensou Connor,
se os alunos aqui estavam se preparando para a vida a bordo de
um navio pirata como o Diablo, fazia sentido que se acostu-
massem a dias bem longos. Ele nunca fora uma “pessoa ma-
tinal” quando estava em Baía Quarto Crescente, mas, desde que

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havia assinado o contrato no navio de Molucco Wrathe e passa-
ra a, cumprir suas rotas de tarefas, desenvolvera uma intimidade
bastante razoável com o nascer do sol.
Connor comeu um último bocado de tira-gosto chinês —
aproveitando os sabores deliciosos de gengibre e capim-limão —,
depois colocou os pauzinhos de comer sobre o suporte de louça.
Cheng Li estava certa. A comida ali era deliciosa — e as porções
eram generosas. Levantou a xícara de chá de jasmim aos lábios e
sentiu um bem-estar inebriante. Por um momento seus pensa-
mentos saltaram de volta ao Diablo, mas o navio já estava exer-
cendo uma atração menor sobre suas emoções. Ele voltaria em
pouco tempo, e enquanto isso havia muita coisa para distraí-lo
aqui — desde a comida deliciosa e farta até as aulas extrema-
mente legais.
— Não acha, Connor...? Connor!
Ele ergueu os olhos e descobriu sua irmã e Cheng Li o en-
carando. Estivera tão envolvido em seus pensamentos que havia
se desligado completamente.
Cheng Li sorriu.
— Eu estava dizendo que não precisam ir a nenhuma aula
esta tarde. Em vez disso, vou lhes mostrar tudo e vamos aco-
modá-los em seus quartos. Esta noite vão acompanhar todos os
professores num jantar especial. Todos são ex-capitães, cada um
é uma lenda da pirataria, e todos estão muito ansiosos para co-
nhecer os dois.
Connor riu de orelha a orelha.

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— Posso ficar mal-acostumado com esse tratamento VIP
— disse, esticando os braços num bocejo contente.
Grace e Cheng Li balançaram a cabeça. Secretamente,
Grace estava adorando ver Connor tão entusiasmado com a
Academia. E sentia-se grata por todos os preparativos feitos por
Cheng Li num tempo tão curto. O jantar com os capitães piratas
era um toque especial. Grace conhecia o funcionamento da
mente do irmão, e, quanto mais ele sentisse que fazia parte da
Academia dos Piratas, melhor a chance de ela convencê-lo a
prolongar a estada e nunca mais voltar ao Diablo. Sentiu-se um
pouco culpada ao pensar nos amigos a bordo do navio — em
especial Cate e Bart —, mas só estava pensando na segurança do
irmão. Não estava preparada para vê-lo sofrer o mesmo destino
de Jez Stukeley. Todo mundo acabaria entendendo.

Os gêmeos deixaram as malas em seus quartos e os dois volta-


ram a se encontrar com Cheng Li para um passeio completo pe-
la Academia.
— Então, o que acharam dos alojamentos? — perguntou
Cheng Li. — Espero que sejam satisfatórios.
— Ah, são — respondeu Grace. Ela jamais esperaria rece-
ber um quarto tão grande e bem-arrumado. Tinha até uma va-
randa própria, dando para o porto. O de Connor era igualmente
generoso, mas ficava do outro lado do prédio, dando para o
“círculo interno” — um pátio cercado, com gramado impecável,
onde uma turma de alunos treinava artes marciais.

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Por mais que o terreno da Academia tivesse parecido
grande, visto do terraço, quando os gêmeos e Cheng Li saíram
caminhando eles pareceram se abrir ainda mais.
Árvores e arbustos que, de cima, pareciam formar os limi-
tes da Academia, na verdade escondiam novas partes da escola
— cada uma pintada com os mesmos tons suaves e ensolarados
do conjunto de prédios principais.
Cheng Li apontou para os vários prédios — desde dormi-
tórios de alunos e alojamentos de professores até a oficina de
combate, desde o arquivo até os anfiteatros de palestras e salas
de aula. A Academia era um mundo em si, e era muita coisa para
se ver, em especial ao calor sonolento do início de tarde. Grace
descobriu que alguns detalhes do monólogo empolgado de
Cheng Li passavam despercebidos, mas ficou impressionada
com o profundo orgulho que ela sentia pela Academia. Connor
também notou. Esta era uma Cheng Li muito diferente da que
ele havia conhecido a bordo do Diablo. Parecia mais calma —
como se aquele fosse o seu lugar.
— Uau! — exclamou Connor. Havia corrido um pouco
adiante, mas se virou e esperou Grace e Cheng Li. — O que é
aquilo?
Quando as garotas o alcançaram, Grace viu que ele estava
apontando para um grande anfiteatro um pouco afastado do
porto, mas era um anfiteatro com uma diferença. Em lugar de
palco havia uma piscina brilhante. E, no centro, havia um navio
— um galeão não muito diferente do Diablo ou até mesmo do
navio Vampirata.

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— Aquilo — disse Cheng Li, os olhos brilhando tanto
quanto a água — é a lagoa da perdição! — Ela riu. — Bem, pelo
menos é assim que os alunos chamam. Usamos o navio para
treinos de ataque e demonstrações de combate. É um dos meus
lugares prediletos na Academia!
Connor olhou para o convés. Agora estava vazio, como um
navio-fantasma. Mas era fácil demais imaginar piratas correndo
pelas tábuas. Pensou de novo em sua visão na Rotunda. O con-
vés que tinha visto se parecia um bocado com este. Talvez ali,
naquele convés — na “lagoa da perdição” —, ele aprendesse a
se tornar um capitão pirata.
— Hora de um refresco — anunciou Cheng Li, parando
junto à densa folhagem de um pé de romã. Em seguida estendeu
a mão e arrancou dois frutos do galho, pondo-os nas mãos dos
gêmeos. A fruta ainda estava quente do sol quando os dedos de
Grace a envolveram.
Cheng Li tirou outra romã. Levantou uma de suas katanas,
jogou a fruta no ar, partiu-a e pegou as metades na mão. Com
um sorriso, fez a mesma operação hábil para Grace e depois pa-
ra Connor. As sementes expostas brilhavam ao sol, como jóias.
Os três sentaram na grama para saborear. Grace sentiu a fruta
explodir em sua língua, surpreendentemente fresca e matando a
sede no calor. Virou o olhar para os barcos no porto abaixo. O
capitão Avery se preparava para velejar com outra turma. A
perspectiva, notou Grace, não parecia o deixar muito satisfeito.
— Não, não, não, sr. Webb! — ouviu-o gritar para um dos
jovens alunos.

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Mais perto deles, um grupo de alunos mais velhos cami-
nhava objetivamente pelo caminho do porto até um prédio cor
de ouro pálido.
— Aquele é o principal teatro de palestras — explicou
Cheng Li. — E esta é a turma do décimo ano, os alunos que vão
se formar, indo para uma palestra do capitão Larsen, se não es-
tou enganada.
— Boa-tarde, srta. Li — gritou educadamente um aluno.
Outros se viraram e assentiram com respeito na direção dela.
— Sr. Blunt — gritou Cheng Li. — Sr. Blunt, venha cá um
momento.
Um garoto alto e bonito, de bochechas vermelhas e cabelo
claro cor de palha, virou-se na direção deles, as sobrancelhas
erguidas interrogativamente. Caminhava imerso em conversas
com alguns amigos, mas então se separou e atravessou a rua para
falar com Cheng Li.
— Andou roubando romãs de novo? — perguntou ele a
Cheng Li, com um sorriso. — Que moça levada! Mas prometo
que não vou denunciar aos jardineiros.
— Quero apresentá-lo a Connor e Grace Tormenta —
disse Cheng Li, ignorando a provocação dele. — Lembra-se de
que falei sobre nossos convidados?
— Ah, sim, claro! — respondeu o garoto, estendendo a
mão para Connor. — Olá, Connor, sou Jacoby Blunt. — Ele
sorriu. — A srta. Li disse que você é um espadachim brilhante.

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— Jacoby talvez seja o melhor lutador da Academia —
disse Cheng Li. — Acho que vocês dois seriam um bom páreo
em combate.
Connor encarou os olhos azul-acinzentados de Jacoby
Blunt. Pareceram frios e vítreos por um momento. Connor sen-
tiu o coração se encolher: Cheng Li os havia estabelecido como
rivais desde o primeiro instante. Sabia, por experiência, em quê
isso iria dar. Era como a escola de Baía Quarto Crescente de
novo! Mas então, para sua surpresa, Jacoby Blunt abriu um largo
sorriso.
— Seria realmente fantástico ter alguma oposição decente,
para variar — disse ele.
Cheng li deu uma gargalhada satisfeita.
— Bem, Jacoby, tenho certeza de que você e Connor terão
uma chance de testar isso. Connor ficará aqui a semana inteira e,
como mencionei antes, eu gostaria que você cuidasse dele e da
irmã, Grace.
Cheng Li indicou Grace, e Jacoby se inclinou e apertou a
mão dela.
— Certamente não será trabalhoso cuidar de você, Grace
— sorriu ele. Grace ficou vermelha diante das palavras e do sor-
riso bonito.
— Bem, vá para a sua palestra — disse Cheng Li a Jacoby.
— Mas lembre-se de que está convidado a jantar esta noite com
Grace, Connor e os capitães. O comodoro Kuo achou que tal-
vez você pudesse pegar os gêmeos e levá-los ao escritório dele às
sete e meia, em ponto.

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— Sem problema — respondeu Jacoby com um sorriso
tranquilo. — Curtam a tarde, gêmeos Tormenta... vou pegá-los
pouco antes das sete e meia! Vistam-se nos trinques!
Rindo, ele foi correndo alcançar os colegas.
— Venham, então — disse Cheng Li, ficando de pé. —
Acabou a folga! Vamos continuar com o passeio. Vocês têm de
ver a piscina de água doce!
— Com certeza! — Connor levantou num salto e começou
a seguir Cheng Li. Já estavam a alguma distância pelo caminho
quando percebeu que Grace não vinha junto.
— Grace? — chamou Connor.
— Grace! — gritou Cheng Li. — Onde você está?
Pararam e se viraram. Ela continuava parada na colina co-
berta de grama, olhando para o porto. Mal movia um músculo.
A única coisa a indicar que era uma pessoa e não uma estátua
eram os fios do cabelo comprido, subindo e descendo à brisa do
porto.
— Grace! — gritou Connor, cada vez mais impaciente. A
irmã nem se virou.
De repente o corpo de Grace ficou frouxo e ela caiu na
grama.
— Grace! — gritaram Connor e Cheng Li ao mesmo tem-
po. Voltaram correndo pela grama para ver o que, afinal, havia
de errado.

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CAPÍTULO 16

Jornada

— Estou bem. Estou bem — disse Grace, abrindo os olhos para


encontrar Connor e Cheng Li a encarando fixamente.
— O que aconteceu? — perguntou Connor. — Num mi-
nuto você estava aí parada, olhando o porto. No outro, estava
caindo.
— Não sei — respondeu Grace, balançando a cabeça de-
vagar. A queda a havia pegado de surpresa. Tinha sido precedida
por um jorro de sensações; algumas familiares, outras novas.
Mas não estava preparada para contar aos outros.
— Deixe-me sentir sua cabeça — disse Cheng Li. — De-
veríamos levá-la à enfermaria.

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— Estou bem, verdade — insistiu Grace enquanto os de-
dos de Cheng Li sondavam sua nuca. — Acho que só preciso
ficar sentada um pouquinho.
— Não parece haver nenhum calombo — disse Cheng Li —,
mesmo assim eu ficaria mais feliz se a enfermeira Carmichael
desse uma olhada em você.
— Não se preocupem comigo, já vou recuperar o fôlego.
Continuem com o passeio pela Academia. Sei que Connor está
doido para ver a piscina de água doce.
— Não importa — reagiu Connor depressa. — Posso ver
mais tarde. — Mas não fez um trabalho muito bom ao esconder
a frustração na voz.
— Não, não. Vão agora. Está tudo bem. — Logo à frente
deles viu o pé de jacarandá com o banco em círculo. Teve uma
idéia. — Se me ajudarem a ir até lá, posso ficar sentada à sombra
um pouquinho.
— Está bem, sem problema — respondeu Connor. Em
seguida estendeu a mão para ela. — Cheng Li, pode me dar uma
mãozinha?
Os dois ajudaram Grace a ficar de pé. Com os braços ao
redor dos ombros deles, caminhou até o jacarandá.
— Estou meio envergonhada — disse Grace.
— Não se preocupe. — Cheng Li balançou a cabeça. — O
dia está quente. Isso poderia ter acontecido com qualquer um de
nós.

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Acomodaram-na no banco. Grace se sentiu instantanea-
mente melhor, sentada sob a suave sombra azul da copa, fora da
claridade do sol.
— Aqui — disse Cheng Li, enfiando a mão na mochila e
pegando uma garrafa d’água. — Tome uns goles.
— Obrigada — respondeu Grace, pegando a garrafa com
ar agradecido. Os outros a observaram atentamente enquanto ela
tomava um gole. A água fresca estava boa. — Agora me sinto
ótima — disse ela. — Só vou ficar aqui sentada um pouco. Po-
dem ir.
Cheng Li pôs a palma da mão na testa de Grace.
— Você ainda parece meio quente. Vou com Connor, mas
em menos de uma hora voltamos para ver como você está.
Grace confirmou com a cabeça, irritada pela intensidade do
olhar de Cheng Li. Verdade, ela só precisava de um pouco de
paz e silêncio.
Depois que Cheng Li foi embora, Grace se recostou, a-
profundando-se mais entre os galhos do jacarandá, os braços
roçando as flores em forma de trombeta e liberando mais per-
fume doce. Sentia-se abrigada, olhando para o porto onde o ca-
pitão Avery finalmente havia conseguido guiar os alunos para
fora dos atracadouros em direção à muralha do porto. O olhar
de Grace pousou na água brilhante. Era como se estivesse afun-
dando. Havia experimentado a mesma sensação logo antes de
cair. Dessa vez não lutou, simplesmente se entregou à sensação.
Fechou os olhos e sentiu o corpo se afrouxar de novo.
Dessa vez pôde aliviar a queda deitando-se no banco antes que a

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consciência a abandonasse. Logo era como se estivesse flutuan-
do numa superfície mais maleável do que o banco de madeira —
talvez o próprio oceano.
Seus olhos permaneciam fechados, no entanto podia ver
que viajava pelo ar numa velocidade furiosa — passando sobre o
cais e o porto, sobre a muralha do porto e pelo arco da Acade-
mia, indo para o oceano aberto.
A velocidade era ao mesmo tempo empolgante quanto i-
nebriante. O litoral pedregoso passou rapidamente num borrão,
o tempo mudando de sol para nuvens e chuva, e depois, com
igual velocidade, retornando ao sol. Continuou a respirar pro-
fundamente, deixando essa estranha maré carregá-la aonde qui-
sesse. Não sabia se deveria temer ou se empolgar com a viagem.
Chegou a um ponto em que perdeu toda a sensação de ve-
locidade e sentiu-se banhada numa suave névoa branca, através
da qual nada era visível. A sensação de tontura deu lugar a uma
profunda calma. Sentia-se em segurança. Sentia que estava sendo
cuidada, segura e guiada por mãos invisíveis. Esperou.
Aos poucos a névoa se dissipou e ela se encontrava exata-
mente onde esperava — no convés do navio Vampirata. Estava
de pé, no entanto não conseguia sentir as tábuas do convés nem
o balanço do navio. Isso a fez entender que não se encontrava
de fato ali, não estava totalmente ali — não em algum sentido
normal. Pensou na visita de Darcy à sua cabine no Diablo. De
algum modo conseguira fazer seu próprio espírito viajar! Como
conseguira? Com iria voltar? Deixou as perguntas de lado por
um momento, simplesmente empolgada por estar ali.

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Era dia e o convés estava deserto, como ela imaginava nu-
ma hora dessas. Ficou parada por um momento sob as velas es-
curas, parecidas com asas. Havia uma brisa soprando e as velas
se enfunavam no alto. Grace estendeu a mão para o estranho
material parecido com couro. Não conseguiu tocá-lo — assim
como as mãos de Darcy não podiam tocar nada durante a visita
feita ao Diablo. Os dedos de Grace passaram através da vela,
como se aquilo fosse um holograma. Mesmo assim, enquanto
passavam, uma fagulha de luz saltou através das veias daquele
material. Grace viu a luz subir e brilhar como um fogo de artifí-
cio. Isso a encheu de espanto e prazer. Era tão bom estar de
volta!
Caminhou pelas familiares tábuas vermelhas do convés até
a frente do navio. Abaixo dela, Darcy — em sua encarnação di-
urna como a linda figura de proa do navio, feita de madeira —
estendia-se sobre as águas, olhando o horizonte com seus largos
olhos pintados. Grace se inclinou sobre a amurada, mas havia ali
um anteparo invisível, que a impedia de encostar na amurada
propriamente dita. A brisa era forte e fios de seu cabelo batiam
nos olhos. Afastou-os, olhando para o cabelo pintado, perfeito,
da figura de proa do navio.
— Olá, Darcy — gritou ela, sem saber se a amiga poderia
ouvi-la acima do rugido da brisa e dos estalos das velas do navio.
— Grace! — ouviu o sotaque londrino de Darcy e seu co-
ração deu um salto. — Grace, você voltou. Não deveria! Eu lhe
disse para não... mas fico feliz por você ter vindo!

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— Eu também — respondeu Grace, a voz subitamente
embargada de emoção. — Como você está? Como está todo
mundo?
Houve uma pausa. E então talvez um soluço — ou poderia
ter sido a água chacoalhando abaixo.
— As coisas estão cada vez piores, Grace.
— Por quê? O que aconteceu, Darcy?
— Não é... não sou eu que posso dizer, Grace. Além disso,
mal consigo ouvi-la agora. Minha cabeça fica cheia do som das
ondas durante o dia. Meus ouvidos e minha boca são apenas de
madeira até o escurecer. Não é fácil falar antes da noite. E mais,
o capitão ficou furioso quando descobriu que fui visitá-la.
— Furioso? Por quê?
— Ele diz que devemos deixá-la em paz. Este navio é para
criaturas como nós, não para garotas como você. Diz que de-
vemos deixá-la livre para continuar com a vida.
— Mas como posso? Como posso continuar quando sei
que vocês estão sofrendo... que Lorcan está sofrendo?
— Foi o que eu disse a ele, Grace, mas ele ficou cada vez
mais furioso, até que me expulsou de sua cabine e disse que eu
era... encrenqueira. Que eu não passava de um... — soluçou ela
— de um destroço encrenqueiro!
Grace ficou chocada. Nunca poderia esperar que o capitão
falasse palavras tão cruéis. Imaginou, com um tremor, o que ele
diria quando descobrisse que ela havia retornado ao navio. Tal-
vez já soubesse. Pouca coisa acontecia no navio sem que ele
percebesse. Quanto tempo ela ainda teria ali?

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— Darcy, vou procurar o Lorcan.
— Certo, Grace. Mas tenha cuidado!
— Com o quê?
— Só tenha cuidado, Grace.
Grace teve um profundo mau presságio. Mas de que adi-
antaria vir até ali se não visse Lorcan?
— Vejo você mais tarde, Darcy — disse ela, retornando
pelo convés.
A porta da cabine do capitão estava fechada, notou ela.
Passou em frente e abriu a porta que dava no corredor principal-
As luzes estavam acesas — ainda que fracas — e ela seguiu até a
cabine de Lorcan. Quando virou a esquina viu dois rostos des-
conhecidos — um negro alto e forte, com cabelos curtos prate-
ados, e um sujeito mais magro, amarelado, com a cabeça coberta
por um capuz. Identificou-os rapidamente como vampiros, não
doadores. Estavam entretidos em conversa e pareceram não no-
tar quando ela passou por eles seguindo pelo corredor estreito.
Que estranho!
Parou diante da cabine de Lorcan, subitamente nervosa.
Juntando todas as forças, levantou a mão para bater. Não con-
seguiu fazer contato com a madeira, mas, mesmo assim, a porta
se abriu. Ela entrou na escuridão mais absoluta.
— Olá? — disse, com os olhos lutando para se ajustar à
escuridão.
Houve uma pausa e então uma voz familiar disse:
— Olá, estranha.

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— Lorcan! — respondeu ela, sentindo um forte jorro de
emoção mas tentando lutar contra. — É tão bom escutar sua
voz!
— A sua também — respondeu ele. — A sua também.
Como você está?
— Bem. Só sinto saudade de você, de todos vocês. Muita
saudade.
— Sentimos saudade de você também, Grace.
A voz dele se esvaiu.
Os olhos de Grace estavam se acostumando com a escuri-
dão, mas ainda assim ela só conseguia perceber a silhueta da ca-
beça e do corpo de Lorcan. A cama dele era de dossel, o que
tornava difícil enxergar dentro. Andou ao redor mas, de qual-
quer ângulo que olhasse, era como se ele não quisesse que ela o
visse. Hesitando, Grace sentou-se na beira da cama. Como
quando Darcy havia se sentado na cama de sua cabine, ela se
surpreendeu pairando — ainda que confortavelmente cerca de
um centímetro acima da superfície.
— Darcy disse que as coisas andam difíceis desde que fui
embora.
— Algumas vezes Darcy deveria pensar mais e falar menos.
— As palavras de Lorcan estavam subitamente despidas do tom
ensolarado que ele havia adotado antes.
— Não, Lorcan. Se há alguma coisa errada, eu quero saber.
Quero ajudar.

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— Você é muito gentil, Grace. — Agora a voz dele estava
cansada. — Mas acho que dessa vez você não pode ajudar. Até
mesmo os poderes do capitão estão sendo testados como nunca.
— Como assim? Tem a ver com os Vampiratas rebeldes?
— O que você sabe sobre eles?
— Darcy me contou que Sidório não foi o único Vampira-
ta a se rebelar contra o capitão. Que foi apenas o primeiro. Que
agora outros desafiam a autoridade dele. Querem mais sangue.
Querem mais Festins.
— Grace, você não deve se meter nesses assuntos. Nem
deve pensar neles.
Se ao menos ele se virasse na sua direção, ou pelo menos
acendesse uma vela!
— Mas quero ajudar — disse ela. — Vocês foram tão bons
comigo! Todos... mas especialmente você e o capitão.
— É melhor nos deixar em nosso caminho. — A voz de
Lorcan estava pesada com a derrota. — Você foi apenas uma
visitante. Sabe muito pouco sobre nosso mundo.
— É, mas quero saber mais.
— É perigoso demais. Você chegou mais perto do que
qualquer outro mortal. Nem sei como conseguiu voltar... assim.
Grace respirou fundo. Será que havia retornado por causa
da vontade?
— Acho que viajei de volta aqui porque me importo. —
Sua voz se embargou de emoção.
Lorcan suspirou.

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— Então precisa parar de se importar, Grace. Deve nos
deixar em paz.
— Como? Como posso fazer isso? Será que devo simples-
mente apagar qualquer sentimento que tenha e esquecer tudo
sobre vocês?
— Deve. — A voz dele ia ficando mais fraca a cada vez
que falava. A ânsia de ver o rosto dele era irresistível.
— Lorcan, você tem uma lamparina? Está escuro demais
aqui. Se pudesse acender uma vela...
— Não, Grace — respondeu ele com ferocidade súbita —
Nada de velas. Esta é a diferença entre nós. Eu preciso da escu-
ridão, não da luz.
— Lorcan, por favor, não fale assim. Achei que você ficaria
feliz em me ver.
A única resposta foi outro suspiro. As palavras agora pare-
ciam ser um esforço grande demais para ele.
— Lorcan, não está nem um pouco feliz em me ver?
Ainda não houve resposta.
De repente o aposento se encheu de fumaça. Não, era fria
demais para ser fumaça. Era a névoa outra vez. E, por mais que
ela lutasse contra, a névoa só foi ficando cada vez mais densa.
Cheia de frustração, Grace balançou os braços, tentando cortar a
cortina que a separava do amigo querido.
Mas não adiantava. Ela era apenas uma visitante e, a des-
peito do modo como havia chegado, a permanência não estava
sob seu controle. A névoa a dominou, enchendo os olhos, os
ouvidos e as narinas. E então estava viajando de novo, dessa vez

1 170 1 
 
para trás. Partindo do convés do navio, leve como uma pena de
gaivota — puxada sobre o oceano, de modo que as rochas, os
recifes e as lagunas passavam correndo num borrão que fazia sua
cabeça girar. Até que finalmente houve escuridão e imobilidade
de novo, e um cheiro inebriante que, mesmo familiar, ela não
conseguiu situar de imediato.
Grace abriu os olhos e se viu olhando para o azul. Isso a
levou de volta à primeira chegada ao navio Vampirata, quando
olhou pela primeira vez para o azul intenso dos olhos de Lorcan
Furey. Mas esse azul era diferente. Enquanto seu olhar se firma-
va, viu a cor se separar em flores com forma de trombeta. Agora
lembrava. Estava deitada no banco sob o jacarandá. Sentou-se
soltando o ar, pensando na estranha jornada. Teria mesmo es-
tado no navio ou apenas imaginado? Tudo havia parecido real
demais.
— Grace.
A voz era suave, mas estava próxima. Grace girou a cabeça.
Cheng Li estava sentada ao lado, segurando um pequeno
saco acima de sua testa.
— Trouxe esta bolsa de gelo — disse ela. — A enfermeira
Carmichael achou que poderia lhe fazer bem. Ela recomendou
que eu a levasse de volta ao quarto para descansar um pouco.
Acha que pode andar até lá, com minha ajuda?
Grace ficou de pé. Na verdade, não se sentia muito mal, só
um pouco chocada e confusa, a cabeça nadando com perguntas
sem resposta.
— Estou bem, consigo andar — anunciou.

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— Bom — respondeu Cheng Li segurando sua mão. —
Venha, então. — As duas ficaram cara a cara por um momento.
— E, no caminho, pode me contar exatamente o que está acon-
tecendo.
— Como assim? — perguntou Grace, olhando chocada
para Cheng Li.
— Você não está sofrendo de insolação, Grace. Há uma
coisa muito mais complicada acontecendo. Você vai se sentir
melhor se puser para fora. Os segredos acabam comendo a gen-
te por dentro.
Grace estremeceu ao pensar nisso, imaginando todos os
segredos do tempo passado no navio Vampirata — segredos que
só havia compartilhado com Connor — comendo-a com vora-
cidade por dentro. A sensação era verdadeira demais. E também
havia os segredos mais novos, que nem Connor conhecia: que
ela era capaz de se comunicar com o navio Vampirata e viajar
até ele, pelo menos na mente.
Cheng Li deu um sorriso suave e passou o braço pelo de
Grace.
— Não fique tão ansiosa, querida. Não vou forçá-la. Tudo
bem, se você não quiser contar, se ainda não acha que pode confi-
ar em mim. — Os olhos nevoentos de Cheng Li se cravavam
diretamente nos de Grace. — Acho que você deveria saber,
Grace, que sou uma excelente ouvinte, ainda que seja eu que
esteja dizendo. Se, e quando, você decidir falar, não seria mal
que falasse comigo.

1 172 1 
 
Será que ela poderia confiar em Cheng Li? Seria um alívio
enorme dividir seus segredos. E até agora a garota mais velha
havia demonstrado apenas gentileza.
— Obrigada — disse Grace enquanto começavam a andar.
— Não vou me esquecer disso.
Subiram o morro em silêncio. Grace ainda se sentia exausta
mas empolgada com a primeira jornada de retorno ao navio
Vampirata. Também estava empolgada com a possibilidade de
dividir o fardo dos segredos com Cheng Li. Precisava muito de
alguém com quem falar — nem que isso servisse apenas como
uma caixa de ressonância para suas perguntas. Mas os pensa-
mentos ficavam circulando e voltando, como um cardume de
tubarões, para uma pergunta muito grande. Será que podia con-
fiar em Cheng Li?
Quando chegaram à porta de Grace, Cheng Li se despediu.
— Descanse um pouco, Grace. Sem dúvida você passou
por algum tipo de dificuldade hoje, mas vai querer estar em óti-
ma forma para estar com os capitães esta noite. — Ela deu um
tapinha no ombro de Grace, depois se virou e foi andando.
— Espere! — disse Grace. A palavra saiu com mais força
do que ela pretendia. Cheng Li se virou, uma sobrancelha ergui-
da com surpresa. Grace respirou fundo. — Por que não entra?
Há de fato algumas coisas que eu gostaria de conversar com vo-
cê.
Cheng Li assentiu, parecendo subitamente muito séria.

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— Considero sua confiança um grande presente — disse a
Grace. — E, claro, não preciso dizer, mas direi mesmo assim:
tudo que você falar ficará em sigilo absoluto. Só entre nós duas.

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CAPÍTULO 17

A boa ouvinte

Assim que começou a falar, Grace achou incrivelmente fácil


conversar com Cheng Li sobre os Vampiratas. Para falar a ver-
dade, era um alívio gigantesco falar com qualquer pessoa que
não fosse Connor, que era protetor demais e sempre pronto a
condenar os Vampiratas — absolutamente todos —, sem nem
mesmo tentar entender seus motivos.
Ao contrário de Connor, Cheng Li não interrompeu Grace
com seus julgamentos. Em vez disso, ouviu com atenção, só in-
terrompendo muito ocasionalmente para pedir esclarecimento
sobre uma coisa ou outra. Na maior parte do tempo Grace falou
e Cheng Li escutou, assentindo para dar apoio e encorajando
Grace a dividir mais suas experiências.

1 175 1 
 
Olhando o relógio ao lado da cama, Grace percebeu que
estivera falando sem interrupção por mais de uma hora e meia.
Ainda havia muita coisa a dizer. De início havia pretendido cen-
surar as coisas mais extremas que haviam acontecido na época,
mas concluiu que, se iria confiar em Cheng Li e pedir sua ajuda,
precisava contar toda a história. Ou a gente confiava cem por
cento em alguém ou não confiava nem um pouco.
Assim Grace se pegou narrando tudo, desde a chegada ao
navio até a descoberta de que Lorcan, o querido Lorcan, não era
um garoto de 17 anos e sim um vampiro de 709 anos! Contou a
Cheng Li sobre quando saiu da cabine e foi enfrentar o próprio
capitão Vampirata — e descobriu que ele nem de longe era o
monstro imaginado. E então contou a Cheng Li toda a história
do Festim, dos doadores e do horrendo encontro com Sidório.
— Ele parece fascinante! — disse Cheng Li. — Ater-
rorizante, mas ao mesmo tempo fascinante. Onde estará agora?
— Morro de medo só de pensar. Eu esperava que, quando
o capitão o banisse, ele simplesmente desaparecesse. Mas tenho
a sensação de que isso não aconteceu. E agora há outros rebel-
des a bordo do navio. Eu só gostaria de poder ajudar.
— Mas, Grace, o que você pode fazer?
Era uma pergunta que valia a pena ser feita. Grace pensou
intensamente.
— Não sei. Não sei. Mas só tenho a sensação, bem no
fundo, de que eu poderia ajudá-los. Realmente quero. Veja só,
acho que, em muitos sentidos, eu sou responsável pelo que está
acontecendo.

1 176 1 
 
— Como?
— Bom, Sidório foi expulso porque me atacou. Se eu não
estivesse a bordo do navio, talvez ele continuasse lá.
Cheng Li balançou a cabeça.
— Não, Grace. Você está sendo injusta consigo mesma.
Sidório não foi banido somente porque a manteve como refém e
a ameaçou. Ele matou o doador, lembra? Esse foi seu desafio
explícito à autoridade do capitão. Pelo que você me disse, o ca-
pitão o teria exilado por isso, quer você estivesse a bordo ou
não.
Grace sentiu um alívio com as palavras de Cheng Li, mas
então o peso retornou.
— Pode ser verdade... mas e o Lorcan?
Contou a Cheng Li sobre como Lorcan a havia protegido
quando Connor e os piratas voltaram para pegá-la, como ele ha-
via ficado do lado de fora depois do Toque do Amanhecer. E
agora contou sobre as duas misteriosas visões envolvendo Lor-
can e o modo como ele havia agido durante sua viagem em espí-
rito ao navio.
— Bem, sei que não é isso que você quer ouvir, mas con-
cordo — disse Cheng Li. — Parece que Lorcan de fato prejudi-
cou a visão ao ficar sob a luz do sol.
— Se isso aconteceu, a culpa foi minha.
— Você está sendo dura demais consigo mesma. Ele tinha
consciência dos perigos, Grace. Devia conhecer. Ele fez uma
escolha...
— Para me proteger!

1 177 1 
 
— Mesmo assim, a escolha foi dele.
Ficaram sentadas em silêncio por um tempo, cada uma
pensando nas palavras da outra. Então Cheng Li falou de novo.
— Como você achou que os olhos dele estavam quando
fez a jornada ao navio?
Grace balançou a cabeça.
— Era difícil enxergar. A cabine estava escura e ele manti-
nha a cabeça virada para longe de mim, escondida sob o dossel
da cama. — Ela deu um sorriso triste. — Era como se eu tivesse
um problema de visão.
— Grace — disse Cheng Li depois de um tempo —, acho
que sua jornada ao navio a pegou de surpresa, e não é para me-
nos. Você fez bem em ir até lá. Mas, para sua própria tranquili-
dade, na próxima vez em que for de novo, deve fazer mais per-
guntas. Descubra a verdade sobre a visão de Lorcan. Descubra
se pode ajudar. Talvez ele saiba de um modo. Talvez por isso
eles a estejam chamando de volta, assim.
Grace olhou curiosamente para Cheng Li.
— Acha mesmo que eles estão me chamando de volta?
— Acho, claro. Você, não? Primeiro Darcy faz uma viagem
em espírito para contatá-la. Então você tem as duas visões com
o Lorcan...
— Mas elas vieram através do anel — lembrou Grace. —
Eu toquei o anel Claddagh, ele ficou quente e foi então que tive
as visões. Na verdade, o anel ficou quente antes de Darcy apa-
recer, também. Eu me senti muito enjoada. E, quando abri os
olhos, ela estava lá.

1 178 1 
 
Cheng Li pensou por um momento.
— Então, o primeiro contato que você fez depois de sair
do navio foi através do anel de Lorcan. Quando tocou o anel,
parece que, de algum modo, provocou uma reação de seus ami-
gos a bordo do navio.
Grace confirmou com a cabeça.
— Tenho certeza de que eles planejaram isso — disse
Cheng Li. — Tenho certeza de que foi por isso que Lorcan lhe
deu o anel.
— Ele me deixou um bilhete. Disse que era uma coisa para
me lembrar dele. Disse... disse para eu “viajar em segurança”.
— Bom, aí está, Grace — respondeu Cheng Li em triunfo.
— Ele praticamente lhe disse o que esperar. Foi seu modo, o
modo dos Vampiratas, de ajudá-la a viajar de volta ao navio. —
Ela fez uma pausa, deixando uma nova idéia chegar e florescer
na mente. — Quando você fez sua jornada ao navio, podemos
dizer uma jornada em espírito, ou uma viagem astral, você tocou
o anel para iniciar isso? Ele esquentou como antes?
Grace balançou a cabeça.
— Acho que dessa vez não teve nada a ver com o anel.
— Fascinante. Certo. Então parece que sua conexão está
ficando mais forte. É como se eles tivessem usado o anel só para
atrair sua atenção, para prepará-la, por assim dizer. E agora...
— Agora o quê? — Grace estava ansiosa para ouvir as i-
déias de Cheng Li.
— Agora parece que eles estão preparados para chamá-la
de volta com mais força.

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Então agora só preciso esperar que eles me chamem novo?
Cheng Li pensou um momento.
— Vamos tentar uma experiência, certo? Tente tocar o anel
agora.
Grace levantou o polegar e o indicador até o anel.
— Está frio — disse ela.
— Continue segurando. Avise no momento em que a
temperatura começar a mudar.
Grace continuou segurando o anel Claddagh, como fizera
tantas vezes. Cheng Li ficou sentada, olhando. Por fim, depois
de alguns minutos, perguntou:
— Alguma coisa?
Grace balançou a cabeça.
— Então é certo — disse Cheng Li. — Acho que o anel já
é passado. Agora você tem de esperar até que a chamem. Mas
esteja preparada. Isso pode acontecer a qualquer momento.
— Mas como posso voltar ao navio de verdade?
— Não pergunte a mim — respondeu Cheng Li com um
sorriso. — Pergunte a eles! Na próxima vez em que se vir naque-
le navio, é a primeira pergunta que deve fazer.
Grace confirmou com a cabeça. Fazia sentido.
— Está ficando tarde — disse Cheng Li. — Isso foi fasci-
nante, Grace, mas acho que você deveria descansar um pouco
antes do jantar. Falaremos mais sobre isso. Vou ficar pensando.
Sempre que quiser conversar comigo de novo, é só dizer.
— Obrigada. Obrigada por ouvir.

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— Não, Grace. Obrigada a você por confiar em mim Isso
significa muito. — Ela sorriu enquanto ia para a porta, então se
virou. — Acho que seria bom falar muito pouco aos outros ca-
pitães sobre isso. Sem dúvida eles vão querer saber do seu pas-
sado. Quando perguntarem, eu não contaria nada sobre os
Vampiratas. Nem todo mundo tem a mente tão aberta quanto
eu.
Grace assentiu. Cheng Li ficou parada junto à porta, ob-
servando-a com ar curioso.
— O que foi? — perguntou Grace. — O que está pensan-
do?
— Estou pensando que a parte mais fascinante de tudo is-
so é a conexão que você sentiu, que ainda sente, com eles. Ou-
tras pessoas agradeceriam por ter escapado daquele navio com
vida. Mas você... você retornaria por vontade própria.
— Claro! Você não?
Cheng Li pensou na pergunta.
— Quer a resposta honesta? Não sei. Sou uma sobrevi-
vente, Grace. Como você, sou curiosa com relação ao mundo e
seus mistérios. Mas me lançar voluntariamente no perigo... real-
mente não sei se faria isso. — Ela fez uma pausa. — Lembro
que uma vez perguntei ao seu irmão sobre você. E, pelo modo
como ele falou, fez você parecer a pessoa mais extraordinária.
Grace ficou ruborizada de surpresa e prazer.
— E, agora que a conheço, Grace Tormenta, vejo que é
verdade.

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Com essas palavras Cheng Li finalmente saiu, sorrindo,
para o corredor. Grace estava exausta — da viagem, de falar
tanto e do alívio de dividir os segredos. Quando a porta se fe-
chou com um estalo, deitou-se na cama, a cabeça procurando os
travesseiros macios, e caiu imediatamente no sono.

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CAPÍTULO 18

A mesa dos capitães

Às sete e meia em ponto, Jacoby Blunt bateu à porta do como-


doro Kuo.
— Entre — gritou o diretor.
Jacoby empurrou a porta, deixando Grace e Connor entra-
rem no escritório do diretor, antes de acompanhá-los.
— Boa-noite a todos — disse o comodoro Kuo, erguendo
o olhar de cima da mesa, onde ainda parecia estar trabalhando
intensamente. Vestia a mesma roupa de antes, mas com o acrés-
cimo de um pequeno par de óculos.
— Estarei com vocês num instante — disse, baixando os
olhos para um documento. Aparentemente satisfeito, rabiscou a
assinatura com um floreio de tinta turquesa e pôs o documento

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na bandeja de saída. Depois tampou a caneta de novo, tirou os
óculos e os pôs sobre a escrivaninha.
— O trabalho de diretor jamais termina — disse, levan-
tando-se, empurrando a cadeira para trás e se afastando da mesa
imaculadamente arrumada. — Depressa, vamos escapar antes
que brote mais alguma coisa que exija minha assinatura.
Vestindo um blazer sobre o colete, lançou um sorriso para
Grace e Connor.
— Espero que tenham gostado da primeira tarde na Aca-
demia.
— Gostamos! — respondeu Connor. — Demos uma boa
olhada em tudo. Fiz uma longa caminhada pelo porto e vimos a
“lagoa da perdição” com o navio de treinamento. Depois fui
nadar na piscina. Foi incrível.
— Excelente — disse o comodoro Kuo. — E você, Gra-
ce?
Grace ficou vermelha, lembrando-se do conselho de Cheng
Li.
— Ah, sim, é tudo maravilhoso — respondeu, esperando
se livrar mantendo um jeito relaxado. Aparentemente, nessa oca-
sião, conseguiu.
— Ótimo — disse o comodoro Kuo, levando-os até a
porta dupla, no fundo do escritório. — Achei que poderíamos
jantar no terraço, já que a noite está tão bonita. — Ele abriu a
porta e todos ouviram imediatamente o zumbido de conversas.
— Agora não há como recuar — sussurrou Jacoby atrás
dos gêmeos.

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O comodoro Kuo saiu ao terraço. Grace, Connor e Jacoby
foram atrás. Uma mesa comprida havia sido arrumada ali, com
fileiras de velas e cheia de comida — desde montanhas de ca-
marões gigantes até pratos de caranguejo com molho, lagostas e,
borbulhando em fogareiros portáteis, tigelas com ensopados de
cheiro inimaginavelmente agradável, arroz e macarrão.
Os outros professores já estavam apinhados ao redor da
mesa, tomando vinho e beliscando canapés. Connor notou que
havia apenas quatro lugares vazios — dois à cabeceira e dois ao
pé da mesa. Apenas o bastante para o diretor, Jacoby, ele e Gra-
ce.
— Agora, Jacoby — disse o comodoro Kuo —, por que
não ocupa este lugar aqui, enquanto eu apresento Connor e
Grace a todo mundo?
Jacoby obedeceu, sentando-se. Ao mesmo tempo, o co-
modoro Kuo batia palmas.
— Pessoal, posso ter sua atenção?
Os homens e mulheres se viraram. A maioria ficou em si-
lêncio, olhando os gêmeos com interesse. Uma das mulheres
ainda estava terminando uma conversa.
— ...certamente não no meu tempo. É um absurdo com-
pleto, se você quer saber.
O comodoro Kuo sorriu para ela.
— Capitã Quivers, estou muito ansioso para saber do que a
senhora está falando.
— Tenho certeza de que sim.

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— Bom, talvez possamos retornar a isso mais tarde, mas
primeiro permita-me apresentar a todos vocês Grace e Connor
Tormenta.
Houve vários cumprimentos de cabeça e sorrisos dos dois
lados da mesa. E então o comodoro Kuo juntou as mãos e co-
meçou a aplaudir. Os aplausos foram acompanhados pelos pro-
fessores sentados, mas não uniformemente. Grace notou que a
capitã Quivers foi a última a participar e não demorou muito.
Desejou que os outros também tivessem sido tão pouco entusi-
ásticos. Isso realmente estava ficando embaraçoso! Notou que
Connor parecia muito menos sem graça. Na verdade, ele estava
adorando a atenção.
— Bom — prosseguiu o comodoro Kuo —, como vocês
sabem, os gêmeos Tormenta são nossos convidados na Acade-
mia durante esta semana. A srta. Li fez o convite em nosso no-
me e Connor e Grace concordaram em tirar uma folga de seus
valiosos serviços a bordo do Diablo para verem o que fazemos.
E tenho certeza de que todos nos sentimos muito agradecidos a
Molucco Wrathe por concordar com a licença destes jovens pi-
ratas.
— Ao Molucco! — gritou loucamente a capitã Quivers, le-
vantando sua taça de vinho e derramando um pouco do líquido
na toalha branquíssima. — Epa!
— Sim — disse com afabilidade o comodoro Kuo. — Ao
Molucco. — Ele ergueu sua taça, deu um risinho e prosseguiu
rapidamente.

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— Bom, acho que está na hora de cairmos neste festim
tentador. Mas antes, claro, eu gostaria de fazer algumas apresen-
tações pessoais.
Ele pôs as mãos nos ombros dos gêmeos e começou a a-
presentar cada um dos capitães enfileirados ao longo da mesa.
— Grace, Connor... este é o capitão René Grammont
ex-comandante do Troubadour...
— Bonsoir, Monsieur et Mademoiselle Tormenta. — O capitão
Grammont assentiu formalmente na direção dos gêmeos.
— Ao lado do René; o capitão Francisco Moscardo,
ex-comandante do Santa Ana e do Inferno...
— Buenas noces, gêmeos Tormenta.
— Em seguida — continuou o comodoro Kuo —, temos a
capitã Lisabeth Quivers, ex-comandante do Flor de Maracujá.
— Olá, Grace. Olá, Connor. É um grande praz...
— E ao seu lado o capitão Pavel Platonov, do Moscovita.
— Dos svadanya — disse o capitão Platonov, levantando-se
e fazendo uma reverência exagerada. Grace notou que a capitã
Quivers deu um risinho diante daquilo.
— Espero que vocês estejam acompanhando — riu o co-
modoro Kuo. — Em seguida temos o capitão Apostolos Solo-
mos, do Seferis.
— Kalispera, Connor e Grace. — O capitão Solomos deu
um sorriso largo.
— E em seguida a srta. Li, que dispensa apresentações. —
Cheng Li assentiu formalmente para os dois. Era como se ela e
Grace jamais tivessem tido a recente conversa de coração aberto.

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Grace ficou satisfeita: Cheng Li estava cumprindo sua parte para
que ninguém suspeitasse. — Bom, a srta. Li ainda não coman-
dou um navio, claro, mas sabemos que seu futuro será tão ilustre
quanto o de qualquer um de nós que está sentado aqui hoje. De
fato, devo dizer que ela pode muito bem eclipsar uma reputação
ou duas.
— Aqui, aqui! — gritou a mulher sentada ao lado de Cheng
Li.
— Quero apresentar a capitã Kristin Larsen, do Krönborg
Slot.
A capitã Larsen tinha o cabelo mais branco que Grace já
vira, intensificado por um bronzeado intenso e olhos azuis como
uma fonte de montanha. A capitã Larsen ergueu uma taça para
os gêmeos, depois a esvaziou num gole.
— Em seguida temos o capitão Floris van Amstel, do
Koh-i-Noor.
— Boa-noite.
— E o capitão Shivaji Singh, do Nataraj.
O capitão Singh fez uma reverência. Grace ficou tentada a
repetir o gesto, mas sentiu-se inibida demais, por isso apenas
inclinou a cabeça em resposta. Olhou para Connor. Ele estava
sorrindo de orelha a orelha. Dava para ver o quanto o garoto
gostava de conhecer aqueles capitães que, segundo Cheng Li,
estavam entre os piratas mais bem-sucedidos do mundo. Melhor
ainda, eles pareciam ansiosos para conhecer Connor e Grace!
— E, por fim, o capitão Wilfred Avery, do Corsário Bárbaro.

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Claro. Eles tinham visto de longe o capitão Avery por vá-
rias vezes desde que haviam chegado à Academia, mas agora ele
estava do outro lado da mesa, diante deles, o rosto bronzeado
coberto com fiapos brancos de bigode e barba.
— Vamos testar se vocês recordam todos os nossos nomes
antes da sobremesa — riu ele para os gêmeos. Grace sentiu uma
simpatia instantânea pelo capitão Avery. Sorriu de volta.
— Agora sente aqui, Grace — disse o comodoro Kuo pu-
xando uma cadeira para ela entre Cheng Li e o capitão Solomos.
Então o diretor foi até a outra extremidade da mesa e indicou
que Connor ocupasse a cadeira entre ele e o capitão Grammont.
Jacoby já estava sentado do outro lado e havia começado a me-
xer na comida.
— Connor, posso servi-lo um pouco deste molho verde?
— disse o capitão Avery. — É muito bom.
— Sim, por favor — respondeu Connor.
— Que tal uma crevette? — perguntou o capitão Grammont,
em seguida.
Uma crevette? Do que ele estava falando?
O capitão estendeu uma grande palito de madeira com um
gorducho camarão gigante na direção de Connor.
— Uma crevette — repetiu ele.
— Ah, ótimo, sim. Obrigado.
Aos poucos o prato de Grace também foi se enchendo, e
ela se juntou aos capitães no farto banquete. Perguntou-se se
comeriam assim todas as noites. Mais tarde perguntaria a Jacoby.
Imaginou que os outros alunos, que haviam comido cerca de

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uma hora antes, teriam recebido uma refeição um tanto mais
simples.
— Então fale-nos de você, Connor — disse o capitão
Grammont. — Sabemos pouco, a não ser o início impressio-
nante que teve a bordo do Diablo.
— É mesmo, conte — acrescentou o vizinho de Gram-
mont, o capitão Moscardo. — Você sempre quis ser pirata?
— O que ele realmente quer saber — exclamou o capitão
Avery — é se você leu tudo sobre nossos feitos e sonhou em ser
um de nós.
Connor balançou a cabeça.
— Não, na verdade não.
O capitão Moscardo pareceu desapontado, mas o como-
doro Kuo riu da resposta de Connor.
— Continue, Connor, conte a eles de onde você vem.
— Bom, nós nascemos em Baía Quarto Crescente...
Houve um coro de suspiros amigáveis.
— Vocês conhecem?
— Connor, é nosso negócio conhecer cada baía, recife e
riacho do mapa — disse baixinho o capitão Avery.
— Ah, claro. Bem, meu pai era o faroleiro de lá. Mas mor-
reu e nós não tínhamos mais ninguém, por isso Grace e eu...
— E a mãe de vocês? — disse a capitã Quivers, direcio-
nando a pergunta a Grace.
— Não chegamos a conhecer nossa mãe — respondeu
Grace com tristeza. — Ela morreu... ao nos dar à luz.
— Que terrível... para todos vocês.

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— Então — disse o capitão Moscardo —, vocês dois não
tinham mais nada naquela baía abandonada por Deus.
— Não — respondeu Grace. — Por isso pegamos o velei-
ro do nosso pai e fomos embora.
— Mas iam para onde? — perguntou o capitão Grammont.
— Na época não sabíamos — respondeu Connor. — Só
sabíamos que precisávamos ir embora. Pensamos em navegar
descendo o litoral e ver aonde poderíamos chegar.
Os olhos do capitão Avery piscaram para ele.
— O primeiro sinal de que vocês têm sangue pirata nas
veias.
— E onde foram parar? — insistiu o capitão Moscardo.
— Fomos colhidos por uma tempestade — respondeu
Connor. — Nosso veleiro foi destruído e pensamos que íamos
morrer afogados.
— Ah! — exclamou a capitã Quivers. — Coitadinhas, cri-
anças coitadinhas.
— Mas — prosseguiu Connor — eu fui resgatado pela srta.
Li e levado a bordo do Diablo.
— E você, Grace? — perguntou o capitão Larsen, virando
os olhos azuis cristalinos para Grace.
Sem olhar, Grace pôde sentir que Cheng Li a estava obser-
vando atentamente. Agora os outros capitães também a encara-
vam. Ela respirou fundo, depois falou:
— Fui resgatada por outro navio.
— Qual? — pressionou o capitão Larsen. — Conhecemos
praticamente todos os navios piratas destas águas.

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— Não era um navio pirata — respondeu Grace.
— Então o que era? Uma embarcação particular?
— Algo assim — disse Grace, rezando para que Cheng Li
viesse salvá-la. Mas a ajuda veio de um lado totalmente diferente.
— Detalhes, detalhes — disse o capitão Avery com um
sorriso. — O importante é que os dois foram resgatados. E fo-
ram parar a bordo do Diablo. E quais foram suas primeiras im-
pressões sobre o capitão Wrathe?
Connor sabia que precisava pisar com cuidado, sem saber o
que os outros achavam do capitão do Diablo. Molucco não era
grande fã da academia, de modo que talvez os professores pode-
riam também não gostar muito dele. Por outro lado, a antiga
espada de Molucco estava num lugar de honra na Rotunda.
— O capitão Wrathe foi muito bom comigo... conosco —
respondeu.
— Ele sempre teve bom olho para jovens talentos — disse
a capitã Quivers.
— Connor — pressionou Moscardo outra vez —, você
não ficou com medo tendo de aprender a lutar com espadas?
Grace sentiu que a atenção retornava ao irmão. Parte dela
ficou um pouco ressentida, mas no geral se sentiu aliviada.
Quanto menos perguntas fizessem, melhor, suspeitava. Apro-
veitou a oportunidade para trocar um breve sorriso com Cheng
Li.
Cheng Li piscou para ela, dando apoio, depois lhe ofereceu
o prato de lula com sal e pimenta.

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— Não. — Connor balançou a cabeça. — Eu queria a-
prender. Foi minha recompensa.
— Recompensa?
— Por ter ajudado o capitão Wrathe num ataque.
— Os senhores se lembram, capitães — exclamou o co-
modoro Kuo. — Wrathe pilhou a casa do governador Acharo,
em Port Hazzard. E os dois filhos de Acharo montaram um a-
taque de vingança contra o Diablo.
— Ah, sim. — O capitão Grammont assentiu. — Lembro.
— E Connor defendeu o capitão Wrathe — acrescentou o
comodoro Kuo. — Salvou a vida dele, segundo todos os relatos.
— Que pena — murmurou o capitão Singh. Connor fez
uma anotação mental de que ali havia pelo menos um capitão
definitivamente contrário a Molucco.
O comodoro Kuo captou a expressão de Connor e foi rá-
pido em responder.
— Você ouvirá algumas opiniões conflitantes sobre o ca-
pitão Wrathe, mas tenho certeza de que já viu esse tipo de coisa.
Connor precisava admitir que era verdade.
— Para falar a verdade — continuou o comodoro Kuo
com um sorriso —, o capitão Wrathe sempre atraiu opiniões
conflitantes. Como acontece com qualquer personagem tão
grande. Vocês devem saber da Federação dos Piratas e da regra
das rotas marítimas, não é?
— Sim — assentiu Connor. — Claro.

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Grace prestava muita atenção e observava com cuidado as
expressões de Connor. Queria ver se a afinidade dele com o ca-
pitão Wrathe continuaria de pé ou se ele poderia estar hesitando.
— Bem, a Academia trabalha intimamente ligada com a
Federação — prosseguiu o comodoro Kuo. — De fato, muitos
de nós, aqui, estamos envolvidos na hierarquia da Federação. E
temos idéias comuns e as ensinamos, como o respeito inequí-
voco pelas rotas marítimas de nossos capitães.
— Além disso — acrescentou o capitão Grammont —, lu-
tamos para construir e desenvolver relacionamentos produtivos
com as autoridades terrestres, como o governador Acharo, que
sempre foi tolerante conosco. Foi um grande... bem, digamos
que foi um grande inconveniente o capitão Wrathe atacá-lo assim.
Desde o ataque, Acharo mudou consideravelmente de atitude e
de política com relação a nós. E isso não causa problema apenas
ao longo do litoral de seu território, ele tem aliados poderosos
também no norte. De modo que esse ato aleatório por parte do
capitão de vocês provocou reações que chegaram até aquelas
águas.
Connor entendia o que eles estavam dizendo, mas não trai-
ria o capitão Wrathe, principalmente depois de tudo que Mo-
lucco havia feito por ele. No entanto os outros capitães estavam
gostando do tema.
— Quanto mais o capitão Wrathe age como um desgarrado
— disse o capitão Singh —, mais expõe a si e as outras tripula-
ções piratas ao perigo. Ora, veja o que aconteceu há apenas al-
guns dias com o capitão Drakoulis.

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Connor baixou a cabeça com tristeza.
— Eu estava lá — disse ele. Grace podia ver que o irmão
pensava em Jez. Claro que sim.
— Que terrível! — comentou, triste, o capitão Avery.
— Eu estava lá — repetiu Connor —, e vi meu colega,
meu bom amigo... ser morto.
— É um marco na vida de qualquer jovem pirata assentiu
com tristeza o capitão Avery.
— Estes são tempos de mudança — observou o comodoro
Kuo, enquanto empurrava um prato vazio. — O mundo está
progredindo rapidamente e a pirataria está mudando e crescendo
a cada virada da maré.
— O sol de Wrathe está se pondo — anunciou o capitão
Singh. — O futuro não reside em ataques individuais, e sim em
coordenação, alianças e estratégia de verdade.
Connor ouvia as palavras de Singh. Era uma tensão que ele
havia percebido desde a chegada ao Diablo, quando Bart lhe fa-
lou sobre as diferentes filosofias do capitão Wrathe e da srta. Li.
Agora via até que ponto os ventos estavam a favor de Cheng Li
e dos capitães reunidos — e, mais importante, contra Molucco.
Isso o fez temer pelo capitão Wrathe e sua tripulação — e o fez
questionar o próprio futuro. Mas havia assinado o contrato com
o Diablo. Não havia como escapar disso. Havia ligado seu dever,
sua própria vida, a Molucco. Uma decisão que — como Grace
havia dito — agora começava, talvez, a parecer um pouquinho
apressada.
De repente o comodoro Kuo bateu palmas.

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— Chega desta conversa, pessoal. Acho que estamos dei-
xando o Connor numa situação difícil com nossas... observações
sobre o capitão Wrathe.
Connor deu de ombros.
— Não é nada que eu não tenha ouvido antes. Na taverna
de madame Chaleira.
A capitã Larsen deu um riso seco.
— Há alguma diferença entre o papo furado que você cap-
ta numa taverna e as opiniões que recebe aqui nesta augusta
companhia.
Certo, pensou Connor, ela é outra com quem não devo me embolar.
Estou aprendendo.
— Ora, ora, Kristin — disse o diretor. — Não vamos jogar
nossos ressentimentos em cima do jovem Connor. Queremos
que ele goste da estada na Academia dos Piratas, não é?
— É — responderam em coro a capitã Quivers e o capitão
Avery. Outros ao redor da mesa confirmaram com a cabeça.
— E — acrescentou o comodoro Kuo —, quando sua es-
tada chegar ao fim, Connor, veremos como você se sente com
relação ao futuro.
Grace mordeu o lábio. Não esperava que o diretor fizesse
uma oferta tão explícita. Como Connor reagiria? Ficou olhando,
mas o irmão apenas sorriu, sem dizer nada.
— E agora um brinde — disse o diretor. — A Connor e a
Grace. Por favor, encham as taças, pessoal.
Uma jarra de líquido preto como nanquim foi passada ra-
pidamente ao redor da mesa. As taças foram enchidas.

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— Todo mundo pegou a aguardente de siba? — O como-
doro Kuo verificou. — Excelente. Bom, por favor, ergam os
copos para Grace e Connor Tormenta, que triunfaram sobre as
circunstâncias mais sombrias para entrar no mundo dos piratas.
Grace e Connor, agradecemos por Se juntarem a nós aqui na
Academia durante esta semana. Brindo a uma estada agradável,
esclarecedora e, nas palavras de um capitão pirata muito maior
do que eu: Fartura e Saciedade, Prazer e Conforto, Liberdade e
Poder para vocês dois.
Os outros capitães se juntaram ao brinde. Connor e Grace
reconheceram as palavras como sendo o lema da Academia. Fi-
caram observando enquanto os piratas esvaziavam os copos de
aguardente. A aparência e o cheiro eram nojentos. Grace ficou
feliz por não ter recebido uma taça daquilo.
Depois do brinde, Connor e Grace ficaram fora da berlinda
e os capitães começaram a conversar sobre o dia na Academia,
como qualquer outro grupo de professores — ainda que aqueles
tivessem alfanjes na cintura.
Por fim o comodoro Kuo olhou para o relógio.
— Está ficando tarde — disse ele. — É melhor que os jo-
vens durmam um pouco.
— Em especial se estiverem planejando se juntar a mim na
aula de FEM amanhã de manhã — disse o capitão Platonov
com um sorriso.
— FEM? — perguntou Grace.
— Força, Energia e Motivação — explicou o capitão russo.

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— É a primeira aula nas manhãs da Academia — acres-
centou Cheng Li. — Todos os capitães se revezam como pro-
fessores, de modo que varia desde formas de ioga até discursos
inspiradores e...
— Uma rápida corridinha de dez quilômetros! — exclamou
o capitão Platonov. — Partimos do terraço às sete em ponto.
— Parece maneiro! — disse Connor. Jacoby riu.
Grace sorriu também, mas percebeu que talvez começasse
seu dia na Academia de modo mais tranquilo.
— Vou para a cama — anunciou, levantando-se. — Obri-
gada pelo jantar. Foi maravilhoso conhecer os senhores.
— Você também, querida — disse a capitã Quivers. Os
outros capitães assentiram.
Connor ficou de pé.
— Em nome de minha irmã e em meu nome, quero agra-
decer a todos por nos convidarem à Academia dos piratas.
Grace sorriu. Não estava acostumada a ouvi-lo falar de
modo tão formal.
— O prazer é todo nosso, Connor — disse o comodoro
Kuo. — E, por favor, não se deixem abalar por nossas brigui-
nhas com o capitão Wrathe. Sabemos como ele tem sido bom
para você e sua irmã. E admiramos sua lealdade a ele.
Connor conseguiu sorrir, mas sua expressão mascarava os
pensamentos cada vez mais complexos que nadavam na cabeça.
Estava ansioso para chegar ao quarto, onde poderia pensar em
tudo que ouvira naquela noite. Começava a experimentar uma
verdadeira ansiedade com relação ao contrato que o ligava ao

1 198 1 
 
capitão Wrathe. De repente os medos de Grace faziam todo
sentido. Olhou ao longo da mesa. Reunidos ali estavam os pira-
tas mais influentes de seu tempo, e todos pareciam achar que o
sol de Molucco Wrathe estava se pondo. Também pareciam a-
char que ele, Connor, era alguma coisa muito especial. Connor
se lembrou da visão que tivera, de se tornar um capitão. No fu-
turo, talvez tivesse de escolher seus aliados e mentores com
muito mais cuidado.
— Venha — disse Grace, aparecendo junto dele. — Va-
mos voltar aos quartos.
— O quê? Ah, sim. É, claro. Jacoby, você vem também?
— Na verdade — disse o comodoro Kuo —, preciso tro-
car uma palavrinha com o sr. Blunt.
Jacoby assentiu para o diretor. Grace e Connor se despedi-
ram do novo amigo. Depois partiram pelo terraço em direção ao
prédio onde estavam instalados. Os gêmeos não trocaram nem
uma palavra enquanto caminhavam ao luar, cada um trancado
em seu próprio mundo de pensamentos secretos.

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CAPÍTULO 19

O riacho da Pólvora

A lua está alta, cheia, e ilumina o pequeno bote, que segue firme
pelo riacho.
— Vejo terra, capitão — diz Stukeley. — É este o lugar?
— Sim — responde Sidório. — Por quê? Está com fome?
— Estou, capitão. Com muita fome.
Um riso maroto.
— Bom.
Sidório rema o bote até a parte rasa, depois pula na água,
puxa o barco, com Stukeley dentro, para a pequena praia de pe-
drinhas. Agora Stukeley pula também.
— Que lugar é este, capitão?
— Riacho da Pólvora.

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— Mas que diabo, capitão: o senhor conhece todo lugar
neste litoral. — Stukeley está impressionado.
Nesse momento Sidório avança. Atrás dele há uma placa
de madeira balançando na brisa.
BEM-VINDO AO RIACHO DA PÓLVORA — “DEIXE SO-
MENTE PEGADAS, LEVE APENAS LEMBRANÇAS”.
— Venha — diz Sidório bruscamente. — Não vamos per-
der tempo. — Ele começa a andar pela praia. Parece saber aon-
de vai. Stukeley vai atrás, lutando para acompanhar os passos
largos do capitão. Algo atraiu o interesse do capitão, e Stukeley
já aprendeu que, nesses casos, é melhor acompanhar como for
possível e esperar outras instruções.
Até agora — pensando bem —, as coisas não foram tão
ruins. Ainda que houvesse muito papo sobre um futuro glorioso,
um exército de homens e uma frota de navios, parece haver a-
penas um bote roubado, duas pranchas de surfe e os dois.
Mesmo assim, era necessário começar em algum lugar, supõe
Stukeley. Pelo menos o capitão tem sonhos. Sonhos grandes.
Sidório está imóvel. Será que espera que Stukeley o alcan-
ce? É decente da parte dele, pensa Stukeley. Em geral ele não
exibe esse tipo de cortesia. Corre até o capitão — e sente água
entre os dedos dos pés, pensando que suas velhas botas já viram
dias melhores.
Quando chega perto de Sidório, vê que o capitão está fa-
lando com alguém — na verdade com duas pessoas. Duas jo-
vens. Quando Stukeley chega, uma delas olha e ri.
— Ah, é? Então quem são estes: o pequeno e o grande?

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— Este é o meu tenente — diz Sidório. — Seu nome e
Stukeley.
— Como vão? — cumprimenta Stukeley, fazendo uma
pequena reverência.
— Bem, vocês são uma dupla curiosa, sem dúvida — res-
ponde a garota, cutucando a amiga, que começa a dar um risi-
nho.
— Tudo certo? — diz Stukeley, rindo. — O que as duas
garotas lindas estão fazendo aqui a esta hora?
— Não é óbvio? — respondeu a primeira, com voz ente-
diada. — Estamos esperando nosso navio chegar.
Sidório sorri e aponta por cima do ombro, em direção ao
oceano.
— Talvez o seu navio tenha chegado.
Stukeley vê alguma coisa naquele sorriso. A garota não
percebe. Claro que não. Mas Stukeley já viu antes. É um sinal. O
jogo começou.
— Não vejo navio nenhum — diz a garota, não perceben-
do o que está para acontecer. — Só um barquinho a remo va-
gabundo.
— Vagabundo? — diz Sidório, sempre rápido em sentir rai-
va. Stukeley é que terá de fornecer o charme. Sempre é Stukeley
que fornece o charme.
— Tem tamanho suficiente para levar duas damas lindas
numa viagem ao luar — diz ele. — Bem, assim que a gente tirar
as pranchas de surfe.

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— Vocês surfam? — pergunta a primeira garota, com o
interesse subitamente estimulado.
— Surfamos — confirma Stukeley com orgulho, já que
somente há pouco tempo aprendeu isso.
— Vamos ver os dois em ação, então. — Ela gosta dele.
Dá para ver. As damas costumam gostar dele.
— Não — diz Sidório, balançando a cabeça. — Nada de
surfar.
— O que o capitão quer dizer — intervém Stukeley — é
que preferiríamos levar vocês numa viagem primeiro. Enquanto
a água está tão calma.
— Está mesmo, não é? — diz a garota, indo na direção de
Stukeley.
— O barco é pequeno — observa ele —, mas tem tama-
nho suficiente se você se espremer bem.
— Assim todos ficamos bem quentinhos, não é? — per-
gunta a garota, segurando o braço de Stukeley. Ele treme. No
passado estaria sentindo uma centena de outros desejos nesse
ponto, mas agora há apenas um.
— Venha, Lily — diz a garota olhando para trás por cima
do ombro. — Eu pego o Davi e você fica com o Golias, e va-
mos dar um giro no rio.
Sua amiga, Lily, dá um risinho e vai na direção de Sidório.
Ele sorri, a boca se abrindo para revelar os dois dentes de ouro.
Lily arfa, sentindo subitamente o perigo ao qual sua amiga esteve
cega. Lançada no silêncio pelo medo, Lily permite que Sidório a
empurre na direção do bote.

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Stukeley chega primeiro, tira as pranchas de surfe e as joga
na praia de cascalho. A outra garota o olha, sem perceber o a-
larme de Lily.
— Eu sou Pérola — diz — e esta é minha prima Lily. De
onde vocês vêm?
— Do inferno — diz Sidório, levando a aterrorizada Lily
para o bote.
— Seu colega é um piadista, não é? — diz Pérola a Stukeley
enquanto ele a põe no barco e o empurra para a água.
— Ah, sim — responde Stukeley. — O capitão é um tre-
mendo gozador.

O som de dois corpos frouxos caindo na água não chama aten-


ção num riacho escuro e deserto, nas profundezas da noite. Uma
hora dá para vê-los, outra, não, enquanto as águas mansas os
sugam para seu local de descanso. Lá embaixo, onde é melhor
que elas fiquem. Não vale a pena pensar muito nisso.
De volta à superfície, o bote flutua ao luar.
— Correu tudo bem — diz Stukeley, lambendo os lábios
para sugar a última gota de sangue.
— Você aprende depressa.
— Percebo que formamos uma dupla ótima.
— Talvez — responde Sidório.
— E como eu poderia ficar solitário junto de alguém tão
espirituoso e que gosta tanto de conversar?

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A ironia de Stukeley não é percebida por Sidório. Prova-
velmente é melhor assim, pensa o tenente. Agora Sidório está
calmo. Logo irá dormir.
Ficam deitados, de cada lado do bote, balançando suave-
mente nas águas oleosas do Riacho da Pólvora. Outra noite, ou-
tra pequena aventura. Stukeley ergue o braço, pousando a cabeça
na mão. Olha para a lua, observando enquanto o globo de luz é
encoberto pelas nuvens. Agora não há luz para rasgar a escuri-
dão da noite. Tentando não ouvir os roncos de Sidório, ele fecha
os olhos e cai num sono feliz.

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CAPÍTULO 20

Participando

Connor fechou o zíper de seu agasalho de ginástica preto e dou-


rado da Academia e olhou o relógio da mesinha-de-cabeceira.
Dez para as sete. Já estava acordado fazia vinte minutos. Nunca
teria saltado da cama às seis e meia para um dia na escola de Baía
Quarto Crescente. Mas aqui na Academia, mesmo depois de ter
ido dormir tarde, acordou com muita disposição. Exatamente
como no Diablo. Talvez, pensou com uma ligeira pontada de
culpa, mais ainda do que no Diablo. Será que só fazia dois dias
que havia deixado o navio? Já parecia a um mundo de distância.
Agora se sentia ainda mais desleal. Mas, lembrou-se, o capitão
Wrathe havia concordado com a ida à Academia.
Talvez tivesse sido melhor se não tivesse vindo. Então tu-
do que conheceria do mundo dos piratas seria o Diablo. Mas as

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idéias de Connor sobre pirataria estavam mudando depressa.
Agora percebia o que Cheng Li lhe havia falado repetidamente.
Havia um grande mundo da pirataria lá fora. E agora esse mun-
do estava se abrindo para recebê-lo. Se ele tivesse coragem de
entrar.
Uma batida na porta o arrancou dos pensamentos. Abriu-a
e encontrou Jacoby vestindo o mesmo tipo de roupa esportiva.
Tinha o brasão da Academia — com a adaga, a bússola, a âncora
e a pérola, como os penduricalhos no cordão que o comodoro
Kuo usava no pescoço.
— Manhã excelente! — disse Jacoby. — Espero que esteja
pronto para o sofrimento.
— Sempre — respondeu Connor com um sorriso.
— Vamos pegar Grace? — perguntou Jacoby, enquanto
iam pelo corredor.
Connor balançou a cabeça.
— Minha irmã não é grande fã de exercícios de manhã ce-
do.
Jacoby assentiu.
— Bem, nesse caso certamente não vai gostar do que Pla-
tonov tem para nós.
Enquanto seguia Jacoby para fora, Connor viu que Plato-
nov e um grupo de outros alunos estavam reunidos no terraço,
todos vestidos do mesmo modo, com roupas de corrida — fa-
zendo alongamento e aquecimento. Uma garota bonita sorriu e
acenou para os dois.

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— Oi, Jasmine — disse Jacoby dando um sorriso pateta.
— Este é Connor Tormenta. Connor, esta é Jasmine Pavão. —
E acrescentou num sussurro: — A maior gata da Academia dos
Piratas.
Jasmine sorriu para Connor. Ele ficou fascinado pelos o-
lhos verdes e pelo cabelo preto e sedoso. Lutou para encontrar
algo para dizer e esconder a falta de jeito.
— Tempo perfeito para uma corrida, hein?
Era débil, mas pelo menos eram palavras.
Ela sorriu, depois dobrou o corpo e sorriu de novo por en-
tre as pernas esticadas. Connor ficou vermelho. Jasmine pôde
ver que ele não conseguia afastar os olhos, mas não pareceu se
incomodar. O embaraço de Connor foi aliviado pelo capitão
Platonov, que soprava o apito e batia palmas. Depois o capitão
partiu numa corrida rápida pelos gramados da Academia e os
alunos se enfileiraram atrás. Jacoby estava logo atrás de Connor,
perto o bastante para sussurrar em seu ouvido.
— Ela quer você, Tormenta! O Pavão chama por você.
Connor balançou a cabeça e aumentou a velocidade. Co-
meçaram a corrida ao redor dos jardins da Academia. Como es-
tava previsto, Platonov estabeleceu um ritmo desafiante. Connor
sentiu as pernas acordando e o coração bombeando. Havia
poucas maneiras melhores de começar o dia do que uma corrida.
Enquanto desciam a colina em direção ao porto, ele olhou
para trás, para a varanda do quarto de Grace. As cortinas da
porta dupla estavam fechadas. Riu sozinho. Grace devia estar
dormindo a sono solto. Preguiçosa!

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111

Cinquenta minutos depois, os corredores de Platonov estavam


chegando ao final. O capitão os havia reunido de modo que eles
corriam num grupo bem organizado, três em cada fila. Connor
tinha Jacoby à esquerda e Jasmine à direita, os passos perfeita-
mente entrosados. O fim da linha estava à vista. Connor podia
sentir-se no limite, mas sabia que conseguiria ir em frente. Era
apenas uma questão de força de vontade
— Agora vamos cantar — disse o capitão Platonov.
Era exatamente a distração de que Connor precisava. Ou-
viu o capitão e seus colegas alunos começando a cantar enquan-
to corriam:
— Capitães piratas dominam o mar — começou Platonov.
— Capitães piratas dominam o mar — cantaram de volta os
alunos.
— Um navio pra você e um pra mim!
— Um navio pra você e um pra mim!
— Minha espada pronta para atacar.
— Minha espada pronta para atacar.
— Ninguém consegue me dar fim.
— Ninguém consegue me dar fim.
Connor ria de orelha a orelha enquanto começava a parti-
cipar da cantoria.
— Nossa bandeira balançou.
— Nossa bandeira balançou.

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— Pra você saber que o fim chegou.
— Pra você saber que o fim chegou.
— Não se meta com minha tripulação.
— Não se meta com minha tripulação.
— Ou cortamos você com nosso facão!
— Ou cortamos você com nosso facão!
Connor olhou primeiro para Jacoby, depois para Jasmine.
Era ótimo correr fazendo parte do grupo.
— Nós dominamos todo o mar.
— Nós dominamos todo o mar.
— Nosso poder não vai acabar.
— Nosso poder não vai acabar.
— Botamos pra quebrar durante todo o ano.
— Botamos pra quebrar durante todo o ano.
— A hora é nossa em nosso oceano.
— A hora é nossa em nosso oceano.
Agora os outros ficaram quietos mas o capitão Platonov
gritou:
— Quem são os terríveis?
Sem hesitar, os alunos gritaram de volta:
— Nós somos os terríveis!
O capitão Platonov continuou:
— Quem são os maus?
Connor se juntou aos outros, cantando:
— Nós somos os maus!
Platonov gritou de novo:
— Quem manda no oceano?

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Connor, Jacoby, Jasmine e seus colegas berraram de volta:
— Nós mandamos no oceano!
Nesse momento Connor se sentiu poderoso, impossível de
ser contido. Eles eram o futuro da pirataria. Nos próximos anos,
se tudo corresse de acordo com o plano, cada um teria uma fro-
ta de navios e milhares de piratas sob seu comando. O oceano
seria deles — e boa parte da terra também. Era um pensamento
inebriante.
Platonov se virou.
— Certo, turma. Foi uma boa corrida. Agora cuidem de
voltar à calma. Depois o banho e em seguida o café-da-manhã.
E não se atrasem para a primeira aula do dia!

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CAPÍTULO 21

O ferimento

Grace abriu os olhos e foi lançada numa confusão terrível. Havia


dormido um sono pesado, mas durante quanto tempo? Que ho-
ras seriam? E onde estava?
O quarto onde se viu era grande e desconhecido. Uma vas-
tidão de ladrilhos de mármore preto e branco se estendia na di-
reção de uma porta dupla, aberta, com cortinas transparentes
balançando à brisa fraca que vinha da varanda do outro lado.
Onde estava? Seria possível que nem tivesse acordado direito e
estivesse presa num daqueles estranhos sonhos que se abriam
como uma boneca russa — fazendo a gente pensar que havia
acordado quando de fato ainda estava bem aninhada no sono?
Apoiou-se numa grande pilha de travesseiros para ver me-
lhor o ambiente. Ao fazer isso, sua cabeça pareceu pesada. Por

1 212 1 
 
mais tempo que tivesse dormido, o sono não a havia revigorado.
Sentia-se grogue. Havia uma jarra d’água ao lado da cama e ela
encheu um copo. A água estava deliciosamente fresca na língua.
Tomou todo o conteúdo do copo em alguns goles e encheu de
novo. Enquanto bebia outra vez, olhou o quarto ao redor.
Era claro e arejado. Havia um armário alto cor de marfim,
com espelhos na frente refletindo uma cômoda que combinava.
Do outro lado do quarto havia uma penteadeira feita totalmente
de vidro espelhado, onde a luz ricocheteava de volta para o cen-
tro do cômodo. Um armário alto estava cheio de livros, mas ti-
nha a frente de vidro, também banhado de luz, o que tornava os
vidros opacos e impedia que Grace lesse os títulos nas lombadas.
Nas paredes havia mapas de navegação e pinturas de belos navi-
os antigos. Acima da cômoda pendia uma gravura em madeira,
particularmente imponente, de um navio.
Grace empurrou as cobertas para olhar mais de perto. Sua
cabeça continuava pesada, mas ela havia se recuperado o bas-
tante para perceber que se encontrava no quarto da Academia
dos Piratas.
Levantou-se olhando o navio, com uma lembrança antiga
se agitando por dentro. Ao pé da imagem estava a palavra Pequod.
Claro! Grace o reconheceu como o baleeiro do Moby Dick. Era
um dos livros prediletos de seu pai, e ele o lera várias vezes para
os gêmeos. Seu pai tinha uma maravilhosa edição antiga, com
gravuras como esta. Talvez houvesse um exemplar no armário
de livros. Foi até lá, com o piso de mármore frio sob os pés. As
portas de vidro do armário estavam fechadas e havia uma pe-

1 213 1 
 
quena chave na fechadura. Ela a girou e a tranca se abriu. Mes-
mo assim a madeira havia empenado um pouco e Grace teve de
puxar a porta com força.
As prateleiras estavam atulhadas de livros, alguns familiares
— inclusive o Moby Dick, numa edição que parecia a mesma de
seu pai —, mas outros eram menos conhecidos. Seu olhar foi
atraído para um antigo volume chamado Vida dos piratas mais
notórios. O livro era encadernado em tecido azul-marinho com a
silhueta dourada de um crânio com tíbias cruzadas e um navio
no mar, decorando a lombada. Enfiou a mão na estante e pegou
o livro, descobrindo que ele estava numa caixa de três lados.
Devia ser antigo e valioso, pensou. Delicadamente o retirou da
caixa e abriu com cuidado as páginas amareladas.
Então houve um barulho súbito, como passos. Grace vi-
rou-se, num susto, e encontrou uma garota do outro lado do
quarto. A garota pareceu igualmente surpresa ao ver Grace ali.
Por um momento as duas ficaram imóveis e em silêncio, avali-
ando-se. Lentamente Grace percebeu que estava apenas olhando
seu reflexo na porta espelhada do armário. Sentiu-se uma tre-
menda idiota. Ainda devia estar meio dormindo. Chegou mais
perto do espelho, examinando o próprio reflexo. Estava horrível
— os olhos vermelhos e o cabelo espetado em cem direções di-
ferentes. Ainda segurando o livro, levantou a outra mão e tentou
pôr os fios de cabelo em algum tipo de ordem.
Mas era um trabalho para as duas mãos, de modo que pôs
o livro cuidadosamente no chão e voltou ao espelho. Continuou
a repuxar o cabelo até ficar satisfeita. Não estaria bom o bastante

1 214 1 
 
para Darcy, pensou com um sorriso. “Uma jovem dama deve
realmente dar cem escovadas no cabelo a cada noite”, dissera ela
a Grace uma vez. Grace havia aceitado o conselho, mas ficou
chateada, perdeu a conta e sentiu-se incrivelmente sonolenta.
Como agora.
Mesmo depois de estar de pé durante alguns minutos, sen-
tia-se tão cansada quanto antes. Era como nos primeiros dias ao
navio Vampirata. De fato, se não pudesse ver, para além das
cortinas transparentes, a varanda e a paisagem do porto mais
adiante, poderia ter se imaginado de volta ao navio. Seus olhos
bebiam sedentos a água turquesa do porto, brilhando tentadora
ao sol. Percebeu, pela direção do sol, que era manhã.
Sentindo-se tonta de novo, percebeu que teria de sentar-se
ou deitar-se de novo. Bom, talvez pelo menos pudesse ler, em
vez de simplesmente se deixar levar de novo pelo sono. Abai-
xou-se em direção ao livro e, depois de pegá-lo, cambaleou de
volta para a cama. Quando jogou o corpo sobre a coberta e fe-
chou os olhos, sentiu como se estivesse em movimento. A cama
em si parecia se mover.
Enquanto estava ali deitada, os membros ainda pesados
como pedras, o movimento da cama aumentou. Era uma sensa-
ção ao mesmo tempo familiar e nova. Percebeu, com empolga-
ção, que estava sendo levada de novo ao navio Vampirata. Mas
dessa vez parecia que a cama iria carregá-la!
Para seu espanto, a cama de ferro se levantou do piso de
mármore, pairou alguns centímetros acima da superfície e então,
ganhando velocidade, voou na direção da varanda. Não seria

1 215 1 
 
larga demais para a passagem estreita? Prendeu o fôlego e fe-
chou os olhos, esperando o impacto, mas a cama se estreitou ou
a porta se expandiu, porque logo ela estava vendo a varanda pelo
outro lado, enquanto a cama subia mais alto e continuava seu
voo sobre o terraço da Academia, lá embaixo. Sentou-se na ca-
ma, sentindo-se mais firme do que quando ela ainda estava enra-
izada no piso. Sua energia pareceu restaurar-se de modo seme-
lhante e Grace pôde desfrutar o sopro da brisa no rosto e da
visão espantosa dos jardins da Academia. Lá estava o pé de ja-
carandá e o teatro de palestras junto ao porto. E lá, correndo
junto ao cais, estava um grupo de alunos. Grace lembrou-se do
capitão Platonov falando sobre a corrida matinal. Procurou
Connor no grupo, mas todos os alunos se vestiam do mesmo
modo e ela estava muito no alto para identificá-lo. Imaginou o
que os alunos pensariam se olhassem para o alto e a vissem.
Parte dela esperava que não fizessem isso, mas outra parte a fez
desejar que Connor olhasse para o céu e testemunhasse sua via-
gem extraordinária.
Dentro de segundos, sem ser notada, a cama voou para
além da borda da terra e estava acelerando sobre o porto, saindo
para além do alto arco de pedra, em direção ao oceano aberto. A
velocidade da viagem aumentou. A paisagem passava correndo,
como havia acontecido na sua última jornada. O oceano se fun-
dia com rocha e céu num único fluxo contínuo de luz.
Então a névoa a engolfou, nítida e densa como neve re-
cém-caída. Era fresca, e ela cruzou os braços sobre o peito ins-
tintivamente. Mas não ficou fria demais. Grace se deleitou na

1 216 1 
 
névoa, deixando seus braços macios a envolverem. A névoa co-
meçou a se dissipar rápido demais. Grace descobriu que estava
de novo num recinto fechado, ainda numa cama, mas não to-
talmente deitada — pairando alguns centímetros acima. Quando
olhou para o alto, havia um tecido de seda pendurado sobre sua
cabeça. Percebeu que não estava mais na cama da Academia, e
sim em sua cama na cabine do navio Vampirata. Como se jamais
tivesse ido embora.
Só que as velas não estavam acesas. Pelo menos não todas.
Quando Grace ocupou a cabine, ficava rodeada por velas acesas
todas as horas do dia e da noite. Agora apenas uma vela alta es-
tava acesa. Queimava dentro de um vidro posto na mesi-
nha-de-cabeceira. Isso a fez pensar. As velas sempre haviam sido
um mistério. Nunca pareciam se gastar e, mesmo quando pen-
sava que as havia apagado, elas se acendiam de novo. Havia
percebido que elas não estavam sob seu controle. Mas o que
poderia significar o fato de que agora — agora que deixara o
navio — apenas uma permanecia acesa?
Desceu da cama, ansiosa para retomar o contato com o
resto do aposento. Ali estava a pequena escrivaninha. Havia ti-
rado várias canetas e cadernos dela, e os que restavam estavam
desarrumados. As canetas estavam espalhadas sobre a escriva-
ninha e ao redor, e o vidro em que haviam sido guardadas, caído
no chão. Instintivamente Grace se abaixou para pegá-lo. Mas,
como antes, não conseguia tocar nada no navio. A bagunça
permaneceu.

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Havia mais desarrumação do outro lado da cabine, onde a
escova e outros itens haviam caído da penteadeira. O navio de-
via ter passado por águas revoltas para provocar todo esse caos.
Almofadas haviam sido jogadas da cama no chão. Grace esten-
deu as mãos de novo, numa última tentativa de arrumar a ba-
gunça. Mas, em vez de pegar almofadas, suas mãos se fecharam
no ar.
Seu olhar pousou no gramofone, com a pilha de discos an-
tigos ao lado. De fato, um disco estava girando agora, mas de
algum modo ela não havia registrado o som antes, Uma voz de
mulher — estranhamente familiar — cantava acima de um fun-
do de violinos e dos estalos da gravação antiga:

Gostaria de esquecer você, gostaria, sim,


Mas esquecê-lo seria como esquecer meu próprio nome...

Como não tinha ouvido isso ao chegar à cabine? Talvez a névoa


não somente atrapalhasse sua visão, mas também a audição,
deixando-a num estado suspenso enquanto tecia sua curiosa ma-
gia ao redor. Mas agora a canção e a cantora enchiam sua cabeça.
A voz da mulher era aguda e suspirada.

Mas esquecê-lo seria esquecer como sorrir


Não lembrar como falar...

Chegou mais perto do gramofone, vendo o disco preto girar e


tentando ler o que estava escrito no rótulo. Não estava muito

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certa, mas pensou ter reconhecido o nome ali. Sentou-se na bei-
ra da cama, esperando que a canção terminasse.

... Sim, esquecer você


seria pior, bem pior do que não o ter conhecido.

Por fim o disco ficou mais lento e acabou parando de girar.


Grace olhou o rótulo e viu que estava certa.

Srta. Darcy Flotsam, acompanhada pela Orquestra Palmeira Real,


canta Canções de Amor.

Grace sorriu. Então Darcy Flotsam já havia gravado um disco.


Era estranho ouvir a amiga cantar no disco antiquíssimo. O dis-
co de vinil tinha mais de quinhentos anos! Sem dúvida era um
espanto ter sobrevivido. Imaginou o quanto a gravação teria
distorcido a voz de Darcy, e percebeu que ainda não havia escu-
tado a amiga cantar de verdade. Teria de pedir na próxima vez
em que a visse.
Nesse momento notou, pela primeira vez, que não estava
sozinha na cabine. Dessa vez seus olhos não a enganaram —
não havia espelhos ali. Estava totalmente alerta, talvez até num
estado de sensações ampliadas. E ali, clara como o dia, estava a
poltrona e, sentado nela, Lorcan. Parecia estar dormindo, enro-
lado num cobertor que ela reconheceu como tendo sido retirado
da cama. Ele não parecia nem um pouco confortável, um dos

1 219 1 
 
braços pendendo ao lado da poltrona, o outro cobrindo os olhos
e a testa.
Grace chegou mais perto. A respiração de Lorcan era irre-
gular, saindo em espasmos como se ele estivesse nas garras de
um sonho sinistro. Será que deveria acordá-lo? Ele parecia pro-
fundamente adormecido, apesar de sua chegada e da música de
Darcy. Olhou-o, esperando que ele acordasse sozinho. Como
desejava ver de novo seus olhos azuis! — sempre haviam sido
um conforto para ela. Mas, quando visitara o navio pela última
vez, o rosto dele permaneceu de lado e nas sombras. Agora
Grace também ficou frustrada porque o braço estava sobre os
olhos. Ah, se ao menos ele acordasse!, pensou.
Deu um passo atrás, sentando-se na beira da cama, olhando
Lorcan como, em outra época, sabia que ele a havia olhado. Era
estranho espiar alguém dormindo. Parecia uma intromissão,
como se a gente pegasse a pessoa numa situação indefesa. E,
enquanto a gente olha a pessoa imóvel, não consegue deixar de
imaginar — nem que só por um momento — que ela pode ter
morrido, e procura furiosamente sinais de vida.
A voz de Cheng Li encheu a cabeça de Grace, lembrando-a
das perguntas que deveria fazer a Lorcan. Sentada com Cheng Li
em seu quarto na Academia, parecera totalmente lógico fazer a
Lorcan e aos outros algumas perguntas muito minuciosas. Mas,
agora que estava aqui, a importância das perguntas diminuía. Só
queria vê-lo abrir os olhos.
De repente Lorcan deu um gemido profundo e todo o seu
corpo se retorceu. Teria acordado? Não, simplesmente havia

1 220 1 
 
alcançado algum novo estágio do sono, porque assumiu outra
posição na poltrona — mas depois se imobilizou tão rápido
como se estivesse brincando de estátua. Sua mão havia caído do
rosto e agora pendia do outro lado poltrona. Uma sombra escu-
ra caiu sobre seu rosto. Grace se inclinou mais perto, perceben-
do com um choque que na verdade não era uma sombra. Havia
um hematoma arroxeado se espalhando ao redor dos olhos de
Lorcan, roxo nas bordas porém mais escuro, quase preto, perto
do centro. Suas pálpebras estavam chamuscadas e — Grace sen-
tiu um enjôo ao ver —, sobre as pálpebras e a testa, a pele clara
de Lorcan estava com bolhas, queimada. Parecia uma coisa in-
crivelmente dolorosa.
Sentiu um aperto no coração, lembrando-se de que, na úl-
tima vez, ele havia tentado impedi-la de ver essa devastação. Era
por isso que, mesmo tendo permitido que ela entrasse em sua
cabine, ele permanecera no escuro, mantendo o rosto escondido.
Ele a protegera, como sempre fazia.
Grace mal podia olhar para aquela terrível desfiguração.
Olhou rapidamente de novo, mas era demais. Virou-se de costas
com um soluço. Ao fazer isso, uma mão se estendeu para seu
ombro.
— Grace?
— Ah, Lorcan — disse ela, virando-se lentamente de volta
para ele.
Havia esperado que os olhos se abrissem mas, mesmo ele
estando acordado, permaneceram fechados com força.
— Grace, o que está fazendo de novo aqui?

1 221 1 
 
Ela ficou confusa. Então ele não a havia chamado de volta?
— Não se preocupe comigo — respondeu. — E você?
Grace não conseguia conter as lágrimas que cresciam nos
olhos. Mas precisava lutar contra isso. Precisava ser forte para
ele. Procurou palavras que a distraíssem, que distraíssem os dois.
— O que está fazendo na minha cabine? — perguntou,
tentando sorrir.
Ele deu um sorriso débil, a boca subindo dos dois lados,
mas os olhos permanecendo bem fechados.
— Nossa, como você é possessiva! Venho aqui algumas
vezes... pensar em... coisas.
— E ouvir discos antigos? — perguntou Grace, o coração
ainda fraco de tristeza.
— Darcy tem uma voz ótima, não é?
— É. Tem sim.
— Você deveria ouvi-la cantando de verdade.
— Lorcan... — Ela não conseguia mais adiar. — Lorcan, o
que aconteceu com seus olhos?
Ele não disse nada. Apenas deu de ombros.
— Conte — pediu ela.
— Não é tão mau assim. Com o tempo vou ficar bem.
Grace se obrigou a olhá-lo de novo.
— Seu rosto parece tão queimado! Não consegue abrir os
olhos ao menos um pouquinho?
— Ainda dói um pouco. Mas não vale a pena você se pre-
ocupar com isso.

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— Há quanto tempo eles estão assim? — perguntou ela,
mesmo tendo certeza de que sabia a verdade. — O que aconte-
ceu? — Como se precisasse perguntar.
Ele não falou, apenas ergueu a mão de novo por cima do
ferimento. Grace não sabia se Lorcan estava fazendo isso para
poupá-la da perturbação ou porque até mesmo a luz fraca de
uma vela era demais para que ele suportasse.
— Foi há três meses, não foi? — Ela não conseguia se
conter mais. — Aconteceu na manhã em que Connor chegou ao
navio. Darcy soou o Toque do Amanhecer mas você ficou no
convés, mesmo com o dia clareando. Você ficou do lado de fo-
ra... para me proteger. — Grace estava à beira das lágrimas. — A
culpa é minha.
— Não, Grace. Não é culpa de ninguém.
— É, sim. Você não pode ficar na luz. Só o capitão conse-
gue. Mas você saiu e ficou lá fora. Para me proteger.
— Você precisava de mim.
Ela balançou a cabeça. Lorcan era um homem muito hon-
rado. Só que, lembrou-se, ele não era um homem. Era um imor-
tal. Os vampiros viviam para sempre, não era? E, graças a ela,
talvez ele estivesse cego para toda a eternidade. Então outro
pensamento sombrio a dominou. O que acontecia se um vam-
piro tivesse um ferimento tão ruim como aquele? Será que Lor-
can poderia morrer pela segunda vez?
Seu coração estava disparado e a cabeça girava. Precisava
ver o capitão agora. Ele teria a resposta. Mas, se tivesse, como
poderia deixar que Lorcan sofresse assim? Quando ela visitara o

1 223 1 
 
navio pela última vez, Lorcan disse que os poderes do capitão
estavam sendo testados. Será que isso significava que nem
mesmo ele poderia ajudar Lorcan? Isso era terrível, terrível de-
mais.
Olhou de novo para Lorcan, mas a névoa já havia come-
çado a separá-los. Mesmo que ele não pudesse ver, devia ter sen-
tido, porque suas mãos se estenderam para as dela. Mas os dedos
dos dois não podiam se tocar. Uma cortina invisível ainda os
mantinha separados. A névoa começou a baixar mais densa-
mente.
— Não! — gritou ela. — Ainda não. Não posso ir agora.
Mas agora a névoa era tão densa que ela nem conseguia
mais vê-lo. Mesmo assim estendeu as mãos para as dele, ainda
que soubesse, no coração, que isso era inútil. Então o movi-
mento começou e ela foi jogada para trás, arrancada para longe
dele. Sentiu-se disparando para longe, dessa vez sem a cama,
como se estivesse pegando jacaré no maremoto mais inoportu-
no.
Mas por quê?, pensou. Por que sou arrancada justo quando
preciso ficar?
Os pensamentos ainda giravam em sua mente quando ela
abriu os olhos e se viu de novo no quarto da Academia. Estava
esparramada na cama, em cima dos travesseiros e da colcha.
Houve uma batida na porta e, pelo barulho e pela urgência,
ela sentiu que a pessoa estaria batendo havia um tempo.
— Entre — gritou, obrigando-se a ficar sentada.

1 224 1 
 
— Grace! — Connor entrou intempestivamente no quarto,
passando direto por ela e abrindo a cortina da varanda. — Grace,
o que ainda está fazendo na cama? A manhã está gloriosa. Eu fui
correr e...
Finalmente Connor olhou de volta para a irmã.
— Grace, você está péssima. Qual é o problema?
Grace suspirou, sentando-se.
— Dormi demais. Deve ter sido... deve ter sido toda aquela
comida no jantar de ontem.
Connor riu.
— Bem, vá tomar uma chuveirada. Depressa! Fomos con-
vidados a assistir à aula de nós, da capitã Quivers, depois do ca-
fé-da-manhã. É para os mais novos, mas deve ser divertida. Ve-
nha, Grace. Ande logo! Não queremos perder o café!
Grace olhou para o irmão. Connor não fazia absolutamente
nenhuma idéia das coisas pelas quais ela estava passando. Ela
morria de vontade de contar, mas não podia. Ainda não. Ele não
entenderia. Era muito melhor concentrar todas as energias de
Connor na Academia. Uma batalha de cada vez, disse a si mes-
ma. Assim que tivesse certeza de que ele não retornaria ao Diablo,
então — e somente então — tentaria contar sobre suas aventu-
ras.

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CAPÍTULO 22

Nós

Jacoby, Jasmine e dois outros alunos se juntaram a eles no ter-


raço para um café-da-manhã rápido. O dia já estava luminoso e
quente, e Grace se sentiu grata porque teve a idéia de pegar seus
óculos escuros enquanto Connor a empurrava em alta velocida-
de para fora do quarto.
Jacoby batia papo com Grace em tom amigável, e ela fazia
todos os ruídos certos em resposta mas, claro, sua mente ainda
estava longe da Academia. Isso não pareceu incomodar Jacoby
nem um pouco. Ele era uma companhia extremamente fácil.
Grace ficou brincando com um bolinho e um pequeno copo de
suco de laranja enquanto os garotos ao redor trucidavam pan-
quecas, ovos, bacon, salsichas e frutas.

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— É melhor irmos andando — anunciou Jacoby, enquanto
o sino da escola começava a tocar. Grace não conseguiu evitar
um pensamento no Toque do Amanhecer a bordo do navio
Vampirata — o toque de sino que manda os vampiros para den-
tro. O toque de sino que Lorcan havia ignorado para salvá-la.
Sentia-se culpada por estar usando óculos escuros, pensando na
segurança em que se encontrava, comparada ao amigo. O amigo
a quem causara tanta dor.
— Onde você disse que era seu primeiro porto de parada,
Connor? — A voz luminosa de Jacoby atravessou os pensa-
mentos sombrios de Grace. Era solitário sentir-se tão triste junto
de pessoas tão radiantes.
— A aula de nós da capitã Quivers — respondeu Connor.
Jacoby riu.
— Vejo que estão fazendo vocês começarem pelo básico.
Certo, vou mostrar a vocês onde é. Venha, Grace. Por sinal,
como é o seu lais de guia?
Grace olhou interrogativamente para Jacoby, através dos
óculos escuros.
Ele riu.
— Humm, não sei se você tomou café suficiente para isso.
Alguns minutos depois Jacoby levou Grace e Connor atra-
vés de um dos afluentes do Polvo até uma sala pequena e ilumi-
nada, cheia de carteiras e crianças pequenas, agitadas, fazendo o
tipo de barulho agudo que as crianças fazem numa manhã de sol.
Grace percebeu que provavelmente deveria tirar os óculos em
ambiente fechado. Ao fazer isso, seus olhos foram atacados pe-

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las cores fortes que saltavam de cada superfície da sala — desde
as pinturas e colagens das crianças que cobriam as paredes até os
modelos de criaturas marinhas expostas orgulhosamente nas es-
tantes. Ao levantar os olhos viu que os alunos até mesmo havi-
am feito seu próprio móbile de espadas, imitando as caixas de
vidro da Rotunda. Cada um havia pintado sua espada de imagi-
nação e pintado o nome com orgulho ao lado. Capitã Samara
Pescudo, do Meltemi, leu Grace com um sorriso.
Na frente da turma, a capitã Quivers entregava pequenos
cestos com cordas coloridas a crianças que teriam entre 6 e 7
anos, supôs Grace. Ao lado da professora, um dos jovens alunos
entregou a cada um dos colegas algo parecido com um pequeno
rolo de pastel. Cada coleguinha correu de volta às carteiras com
um daqueles pinos e um cesto de corda.
Nesse momento a capitã Quivers olhou para os dois e sor-
riu.
— Bom-dia, Grace e Connor. Como vão, neste lindo dia?
— Muito bem — respondeu Grace, dando um sorriso lu-
minoso apesar de tudo. Gostava da capitã Quivers. — Obrigada
por deixar a gente assistir à sua aula.
— Pois é — disse a capitã Quivers. — Quinze crianças
pequenas e esta quantidade de corda! Espero que vocês sejam
bons em desfazer nós! — Ela deu um risinho. — Arranjem uma
carteira vazia, queridos. — Em seguida se virou de novo para a
turma. — Assim que tiverem seus pinos de nós, por favor,
prendam nas carteiras. Andem, vocês já são capazes de fazer isso

1 228 1 
 
sozinhos. Vamos tentar mostrar aos nossos convidados como
somos todos espertos e auto-suficientes.
Os gêmeos ficaram olhando as crianças prenderem os pi-
nos em posição, nas carteiras. Cada pino virava uma pequena
barra se projetando na frente. Agora as crianças mais organiza-
das estavam enfileirando pedaços de cordas de cores diferentes
sobre a carteira. Grace podia sentir um espírito competitivo sur-
gindo entre alguns dos futuros piratas. Ela e Connor riram um
para o outro enquanto ocupavam seus lugares. Grace já come-
çava a se sentir de volta à vida, à Academia.
— Certo, então — disse a capitã Quivers. — Todo mundo
já se arrumou? Ótimo. Então, peguem uma corda azul e me fa-
çam um nó de escota.
Imediatamente mãos minúsculas entraram em ação, pe-
gando os pequenos pedaços de corda e amarrando-os habilmen-
te ao redor da barra na frente das carteiras.
— Belo trabalho. Agora peguem uma corda vermelha e fa-
çam um nó de trempe.
De novo as mãos pegaram a corda e habilmente a enrola-
ram no pedaço de madeira. A capitã Quivers olhou ao redor,
assentindo e encorajando.
— Lembrem-se, bem apertado, Nile — disse sorrindo para
um dos meninos mais novos. Ele assentiu, sério, puxando a
corda com mais força.
— E agora — continuou a capitã Quivers, parando para
olhar ao redor. As crianças estavam em silêncio, prendendo o
fôlego, empolgadas, esperando para saber que cor de corda e

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que tipos de nó seriam pedidos em seguida. Grace conteve um
risinho. Era maravilhoso ver aquela exuberância infantil — de
repente se sentiu muito velha. Só tenho 14 anos, pensou. Não
faz muito tempo eu era uma criança numa sala de aula assim.
Mas agora... agora era como se fosse tão velha quanto a capitã
Quivers, havia um enorme abismo de experiência entre ela e a-
quelas crianças de olhos brilhantes.
— ...peguem uma corda verde e façam um nó de aboço.
Imediatamente o ar estava cheio de cordas verdes, girando
e se retorcendo enquanto dedos minúsculos cumpriam com faci-
lidade o último desafio da capitã Quivers.
— Lindo, lindo, lindo! — disse a capitã Quivers. — Agora,
turma, temos dois visitantes especiais no dia de hoje. Todo
mundo diga olá a Grace e Connor Tormenta. Grace e Connor
vêm do famoso navio pirata Diablo. É, isso mesmo. Do Diablo.
Quem pode dizer quem é o capitão desse navio?
No mesmo instante mãos se levantaram, com algumas cri-
anças perigosamente perto de distender os membros com o es-
forço.
— Sim, Mika?
— O capitão Molucco Wrathe — anunciou a garota, com
dicção perfeita.
— Isso mesmo, Mika. Muito bem. Baixem as mãos de no-
vo, todo mundo.
Houve um zumbido de conversas empolgadas enquanto as
crianças observavam Grace e Connor pela primeira vez.

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— Agora, como temos Grace e Connor conosco hoje, a-
chei que vocês poderiam dar uma pausa no trabalho com as
cordas e fazer algumas perguntas sobre a vida num verdadeiro
navio pirata. Tudo bem para vocês? — Enquanto ela se virava
para Grace e Connor, as mãos das crianças já estavam erguidas e
se esticando.
— Como é o capitão Wrathe? — perguntou um menino
pequeno com cabelos vermelhos, na frente da sala.
— Boa pergunta, Luc — disse a capitã Quivers.
— É um homem incrível — respondeu Connor. — Ima-
gine todas as histórias empolgantes que você já ouviu sobre ele e
aumente mais ainda!
— É verdade que ele tem uma cobra de estimação? —
perguntou uma garota no centro da sala.
— É isso mesmo — assentiu Connor. — O nome dela é
Scrimshaw, e ela mora no cabelo do capitão Wrathe.
Houve um suspiro de espanto geral na sala, e um sibilo al-
to:
— Eu disse a você!
A capitã Quivers assentiu para a outra garota.
— Sim, Samara. Quer fazer uma pergunta?
— Quero perguntar a Grace. Você sempre quis ser pirata?
Grace balançou a cabeça.
— Na verdade, não. Tudo aconteceu por acaso.
A garota ficou desapontada.
— E você, sempre quis ser pirata? — perguntou Grace a ela.

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— Ah, sim. — Samara assentiu muito rapidamente. Meu
nome é Samara Pescudo e um dia serei uma capitão pirata, como
minha mãe e meu pai. — Outros ao redor dela concordaram
com a cabeça. Eles já haviam sido bem treinados, pensou Grace.
— Você já lutou muito? — perguntou um dos meninos a
Connor.
— Já — respondeu Connor. — A gente precisa estar a
postos para se defender e atacar o tempo todo, no navio.
— Que tipo de espadas você usa? — perguntou outro ga-
roto, empolgado demais para se lembrar de erguer a mão.
— Uso um sabre — respondeu ele.
— Só um sabre? — insistiu o garoto.
Connor assentiu.
— Só um sabre.
— Em geral ensinamos o combate com duas espadas, aqui
— explicou a capitã Quivers. — Você verá esse grupinho em
ação mais tarde.
Grace ficou pasma. Aquelas crianças não eram pequenas
demais para usar espadas?
— Esta tarde temos Oficina de Combate — disse um dos
meninos a Connor. — Vocês vão ver a gente?
Connor deu de ombros.
— Não sei. Vocês gostariam?
— Gostaríamos! — gritou o menino, rindo de orelha a o-
relha. Os outros se juntaram em coro.

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— Hoje é uma Oficina de Combate muito especial — disse
a capitã Quivers a Connor e Grace. —Vale a pena ir. Temos
uma pequena surpresa para nossos jovens piratas.
— Que surpresa, capitã Quivers? — Era a pequena Samara
outra vez.
— Bem, se eu contasse, não seria surpresa, não é?
— Vamos receber nossas espadas hoje!
— É uma boa suposição, Luc, mas não vou dizer nada.
Meus lábios estão lacrados. — A capitã Quivers fingiu fechar a
boca com um zíper.
— Ou vamos receber nossas espadas ou então o sr. Tor-
menta vai fazer uma demonstração, ou alguma coisa assim.
— Bem — disse a capitã Quivers. — Vocês terão de espe-
rar para ver, não é? Agora, temos alguma outra pergunta para
Connor e Grace ou devemos retornar aos nossos nós?
Uma mãozinha subiu de novo.
— Sim, Mika?
— Por favor, Connor, que nós você usa no Diablo.
— Para ser honesto — disse Connor com um sorriso —,
só sei alguns básicos: um nó de trempe, um nó direito... e um nó
de escota. Vocês provavelmente seriam capazes de me amarrar
inteiro.
As crianças riram.
— Bem — disse a capitã Quivers —, vamos testar isso,
certo? — Sorrindo, ela entregou a Connor um cesto e um pino.
— Aí está um pouco de corda, Connor. E um pouco para você,
Grace, querida. — Ela entregou outro conjunto a Grace. — E

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vou mostrar a todos um novo nó, muito útil. Chama-se lais de
guia...
Havia coisas piores numa manhã ensolarada do que estar
numa sala com crianças espertas, brincando com cordas colori-
das, pensou Grace. Era um grupo animado e divertido, e Mika,
com quem ela estava sentada, era deleite — com apenas 7 anos
já era uma professora nata mostrando pacientemente a Grace
como dar cada nó que a capitã Quivers anunciava — o lais de
guia, a volta de fateixa, o nó de laço.
Grace não sabia muito bem se era o fato de estar aninhada
na sala quente, a atmosfera amigável criada pela capitã Quivers
ou simplesmente a energia irreprimível das crianças, mas perce-
beu que estava se divertindo para valer — pela primeira vez em
muito tempo. O desafio dos nós lhe permitia esquecer por um
momento os grandes dilemas que enfrentava. Talvez fosse a
simplicidade de pegar cordas coloridas e torcê-las fazendo nós.
Algumas vezes dava para pegar de primeira; algumas vezes, não.
Mas mesmo assim não havia problema — era só desfazer o tra-
balho e tentar de novo. Ah, se sua vida fosse sempre tão simples
assim!
Teve um enorme sentimento de proteção com relação a
Mika e seus jovens colegas de turma. Olhou a sala ao redor,
vendo os ansiosos aprendizes de piratas, as cabeças cheias de
sonhos de oceanos ensolarados e aventuras fáceis. Tudo parecia
seguro demais ali — fazendo nós coloridos, criando modelos de
argila de polvos, móbiles de espadas ou mesmo andando de
barco com o capitão Avery no porto. Mas, para além das mura-

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lhas do porto, outro mundo os esperava — um mundo que
Grace nem poderia ter imaginado quando era da idade deles.
Aquele mundo iria mudá-los, assim como havia mudado Grace e
Connor.
Olhou para Connor, achando divertido vê-lo remexer nas
cordas coloridas. Ele parecia ter se embolado totalmente, e esta-
va sendo ajudado por dois alunos da capitã Quivers. Talvez es-
tivesse apenas dando trela para as crianças. Era bom vê-lo rir e
brincar com elas, numa sala onde as espadas só eram feitas de
papelão e, na pior das hipóteses, provocariam um corte de papel.
De repente Grace percebeu que não estava cheia de tristeza pelo
que aconteceria com as crianças da sala. Era por duas outras
crianças que lamentava — duas crianças que, pela força das cir-
cunstâncias, haviam precisado crescer depressa demais.

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CAPÍTULO 23

Pombinhos

Enquanto o sino tocava chamando para as aulas da tarde, Jacoby


levou Grace e Connor através do terreno ensolarado até o com-
plexo do ginásio. Dentro do ginásio luminoso, de teto alto, en-
contraram Cheng Li, que havia trocado as roupas usuais e estava
toda vestida de branco, com os pés descalços. Como sempre,
não levantou os olhos para cumprimentá-los quando entraram
na sala. Seu rosto estava abaixado sobre uma tigela de incenso.
Nas mãos havia um pequeno livro encadernado em couro.
— Por favor, ocupem um assento na lateral — disse ela,
sem levantar a cabeça.
Jacoby tirou os sapatos e encorajou Grace e Connor a fazer
o mesmo. Então os três foram até uma fileira de assentos na la-
teral.

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Cheng Li andou com cuidado pelo piso forrado de tatame.∗
Acendeu uma segunda tigela de incenso e esperou que a fumaça
subisse.
O sino da escola tocou de novo. Pouco depois, a porta do
ginásio se abriu e entraram as 15 crianças da turma dos peque-
nos, todas vestidas de branco como a professora, pareciam tão
doces — como pombinhos, pensou Grace, enquanto elas ocu-
pavam as posições, espalhadas sobre os tatames, mas as asas às
suas costas eram apenas dois pequenos pedaços de bambu pre-
sos por tiras. Enquanto as crianças se posicionavam em silêncio,
Cheng Li se virou para elas e começou a falar baixinho.
— Primeiro verifiquem a cabeça. Não está inclinada para
cima nem para baixo. Não tomba para o lado nem está torta.
Flutua perfeitamente, como a esfera da lua cheia. — Ela fez uma
pausa. — Seus olhos não olham para a esquerda nem para a di-
reita, permanecem no centro. Sua visão se estende do centro
para os dois lados, sem que os olhos se movam. Atrás de seus
olhos que observam, atrás das pálpebras, há um olho que vê
mais profundamente em todas as situações que vocês encontram.
Usem agora esse olho que tudo vê.
As crianças pareciam estátuas de pé enquanto a professora
as examinava friamente, movendo-se entre elas como uma brisa
por entre as flores.

                                                            
∗ Piso tradicional japonês. O tatame tradicional é feito de palha de arroz
prensada revestida com esteira de junco e faixa preta lateral. (N. da
digitalizadora – by Say)

1 237 1 
 
— Agora, deixem a atenção baixar para o pescoço e os
ombros... — Cheng Li foi guiando os jovens alunos através de
mantras semelhantes até que os corpos estivessem totalmente
concentrados. De vez em quando parava para virar suavemente
um pescoço ou corrigir a postura de uma coluna. Grace estava
pasma com o controle dos pequenos alunos. Ou tinham talento
natural ou já haviam sido rigorosamente treinados. De qualquer
modo, era sem dúvida impressionante, mas ao mesmo tempo
meio assustador Na aula de nós da capitã Quivers, elas ainda
pareciam crianças. Aqui era como se Cheng Li estivesse mol-
dando pequenos guerreiros de barro.
— Agora baixem os dois ombros, mantenham as costas
retas. Não projetem o traseiro. E ponham a força desde os joe-
lhos até a frente dos pés. Estendam a barriga para que os quadris
não se dobrem.
De novo os jovens piratas fizeram os ajustes infinitesimais
na postura para satisfazer Cheng Li. Assentindo, ela voltou à
frente da turma.
— Estou impressionada. Todos aprenderam bem as lições.
Estabeleceram os alicerces para não se tornarem apenas piratas,
mas também guerreiros.
Ela se virou e pegou o livro de couro que estava segurando
antes.
— E agora — anunciou — vamos trabalhar numa nova
estratégia de ataque. Dividam-se em seus grupos de combate...
Com essas palavras, as crianças se organizaram habilmente
nos tatames, e Cheng Li começou a dar as instruções.

1 238 1 
 
— Hoje começaremos a ver outra técnica de desviar a es-
pada de um inimigo. Vou mostrar como fazer um corte diagonal
para baixo.
Houve um zumbido de empolgação enquanto Cheng Li
continuava a instruir.
Grace se inclinou para Jacoby.
— Essas crianças não são meio pequenas para aprender
sobre cortes diagonais? — perguntou.
Jacoby sorriu, mas balançou a cabeça.
— Essa é uma coisa fundamental. Quando essas crianças
voltarem aos navios dos pais, terão de ser capazes de se defen-
der.
— Bem, sim. Entendo isso. Mas essas crianças têm so-
mente... o quê, 7, 8 anos? Não deveriam ter direito a apenas
brincar, como crianças normais?
Jacoby balançou a cabeça de novo.
— Elas não são crianças normais, Grace. Essas crianças fo-
ram escolhidas para ser os futuros líderes dos oceanos. Um dia
cada uma delas controlará uma frota! Elas têm de começar ainda
pequenos. Além disso, elas parecem que não estão gostando?
Longe disso! E talvez fosse o que mais incomodasse Grace.
Diante de seus olhos, Mika, Samara, Nile, Luc e todos os outros
haviam se transformado das alegres crianças da aula da manhã
em minúsculas máquinas de matar. Enquanto giravam os peda-
ços de bambu para cima e para baixo, pareciam brinquedinhos
de corda letais.

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— O que você acha de tudo isso, Connor? — perguntou
Jacoby.
Connor não respondeu. Estava olhando atentamente as
crianças, usando as mãos para imitar as manobras que Cheng Li
demonstrava com suas katanas.
Jacoby sorriu, mas Grace franziu a testa. Recostou-se em
sua cadeira, continuando a olhar a aula em silêncio. Enquanto
fazia isso, refletia sobre seus próprios atos. Havia trazido Con-
nor à Academia para resgatá-lo da morte certa a bordo do Diablo.
Queria que ele ficasse enfeitiçado pela Academia, e ele estava
dando todos os sinais disso. Mas, pensou com um tremor, será
que o havia tirado da frigideira para o fogo? Será que não haveria
como escapar da morte diante de outra espada?
Não era a luta de espadas em si que ela via como problema.
Havia trazido Connor para cá porque a Academia treinava seus
piratas para agir de modo estratégico, coordenado. Se Connor
permanecesse aqui e abraçasse os ensinamentos da Academia, se
tornaria um pirata mais consciente. Era quase certo que retorna-
ria aos oceanos como capitão, e não como um mero lutador
com sabre. Mas, mesmo assim, Grace sentia pouco alívio com
esse pensamento. Quer Connor ficasse a bordo do Diablo ou
viesse morar na Academia dos Piratas, o mesmo destino o espe-
rava. Ele estaria usando espada diariamente e sua vida correria
perigo com a mesma frequência. A única chance de salvá-lo era
dissuadi-lo de ser pirata. Mas agora esta parecia uma possibili-
dade remota.

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— Não é incrível? — disse ele, subitamente se virando para
ela. — A Academia é um lugar maneiro demais. Muito obrigado
por me ter feito vir até aqui. Isso realmente abriu meus olhos.
Grace sorriu, porém se sentia enjoada. Mas coisa pior ainda
estava por vir.
— Excelente trabalho — disse Cheng Li diante dos alunos.
— Aprenderam bem os ensinamentos. Mas nem por um mo-
mento fiquem vaidosos. Vocês são como pássaros jovens inici-
ando uma longa jornada. Ainda que o dia de hoje leve vocês um
passo adiante de seu destino, ainda há muito a voar.
Com essas palavras, as portas do ginásio se abriram de no-
vo e o comodoro Kuo entrou, vestindo um elaborado roupão de
seda vermelha com o brasão da Academia, em que apareciam a
adaga, o compasso, a âncora e a pérola. Atrás dele vinham dois
alunos da turma avançada, empurrando um grande baú de laca
sobre rodas.
As crianças nos tatames se viraram empolgadas. Houve um
zumbido de conversas, mas Cheng Li as silenciou com um olhar.
— Comodoro Kuo — disse ela. — Acabamos de ver um
trabalho exemplar da turma de iniciantes.
— É um enorme prazer ouvir isso — respondeu o como-
doro Kuo, sorrindo. Em seguida avançou para falar com os jo-
vens alunos, mas não antes de cumprimentar Grace e Connor
com um gesto amigável de cabeça.
— Agora, meus jovens guerreiros — disse ele para as cri-
anças nos tatames —, chegou a hora de passarem ao próximo
nível de aprendizado. Os monitores vão passar entre vocês tra-

1 241 1 
 
zendo faixas de seda. Elas devem ser amarradas com força sobre
seus olhos.
Enquanto ele falava, os dois alunos mais velhos que haviam
chegado juntos andaram por entre os tatames, levantando cada
criança e a vendando. Todos os pequenos alunos foram venda-
dos com faixas de seda vermelha, do tom exato do roupão do
diretor.
— Agora se lembrem do que eu disse antes — alertou
Cheng Li. — Existe observar e existe ver. As pálpebras dos seus
olhos não precisam estar abertas para vocês verem. Vocês de-
vem sentir a espada do inimigo mesmo quando não podem ob-
servá-la.
Enquanto ela dizia as palavras, o diretor pegou uma chave
e abriu o baú de laca que fora trazido. Os dois monitores o aju-
daram a levantar a tampa, que se virou, revelando fileiras de es-
padas brilhantes.
— Agora — disse Cheng Li —, usando seus olhos que tu-
do vêem, e sem fazer nenhum som, preparem-se.
Connor se virou para Jacoby.
— Uau! — disse ele. — O que está acontecendo?
Jacoby simplesmente sorriu.
— Olhe e aprenda, amigo. Olhe e aprenda! — Com essas
palavras, um tremor desceu disparado pela coluna de Grace. Ela
sentiu um mau presságio intenso. Apesar disso, não conseguia
afastar o olhar do comodoro Kuo.
O diretor chamou Connor. Instintivamente Connor se le-
vantou e foi até ele. Grace ficou olhando enquanto o diretor

1 242 1 
 
sussurrava algo no ouvido de Connor. Connor assentiu e o co-
modoro Kuo tirou um par de pequenas espadas de dentro do
baú de laca. Connor levou as espadas até uma das crianças nos
tatames, estendendo-as pelo punho.
Depois de um momento, as mãozinhas dispararam para a
frente, cada uma segurando uma espada pelo punho. Connor as
soltou. Agora a criança segurava uma daisho∗ em cada mão, com
um sorriso no rosto.
Os garotos mais velhos e os adultos deram o mesmo pre-
sente para cada criança. Por fim todas estavam em fila, ainda
vendadas, com as mãozinhas segurando os punhos das lâminas
de aço afiado. Grace podia vê-las lutando para conter os sorrisos
empolgados.
Os monitores fecharam o baú de laca. Connor sentou-se ao
lado de Grace. O comodoro Kuo permaneceu diante dos dimi-
nutos guerreiros enquanto Cheng Li passava rapidamente atrás
deles, tirando as vendas. Os olhos das crianças brilhavam como
jóias ao ver pela primeira vez as daisho nas mãos.
— Que estas espadas sejam seus pertences mais preciosos
— disse o comodoro Kuo. — Elas representam nossa confiança
em vocês e a crença de que vocês são o futuro da pirataria. U-
sem estas armas não durante um ataque de raiva nem para ganho
                                                            

Daisho: literalmente “grande e pequeno”, é o conjunto formado por
duas espadas (katana e wakizashi) utilizado na Era Edo. Sendo a katana, cuja
lâmina possui mais de 60,6 cm, utilizado no combate em lugares abertos, e o
wakizashi, cuja lâmina possui de 30 a 60 cm, utilizado no combate em lugares
fechados que restringem os movimentos. (N. da digitalizadora – by Say) 

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rápido, mas com precisão e honra, como seus professores ensi-
naram. Estas lâminas em suas mãos agora os conectam pelo
tempo à nobre linhagem de piratas que vieram antes de vocês.
Conectam vocês com o futuro, com a linhagem de piratas que
virão. Porém, mais importante, suas daisho conectam cada um de
vocês com os outros — com seus colegas da Academia e da Fe-
deração dos Piratas.
Ele fez uma reverência para as crianças, depois foi até
Connor e Grace.
— Fico feliz porque estão aqui para ver isto — disse ele.
— É um dos momentos mais empolgantes no ano da Academia.
Grace assentiu, incapaz de falar, por medo de dizer a coisa
errada.
Diante dela os monitores estavam enfileirando as crianças
de novo.
— O que vai acontecer agora? — perguntou ela.
— Ah, bem — respondeu o comodoro Kuo. — Agora elas
vão ser levadas ao depósito de espadas. Nessa idade, as crianças
não ficam com as espadas. Não queremos nenhum acidente!
Tendo feito seu trabalho, Cheng Li veio pelo tatame até e-
les.
— Eu estava falando como me sinto feliz porque Grace e
Connor puderam estar aqui para testemunhar isto — disse o
diretor.
— É, de fato — concordou Cheng Li.
— Bom — disse o comodoro Kuo —, parece que foi on-
tem que uma menina de 7 anos, especialmente talentosa, estava

1 244 1 
 
naquele tatame estendendo as mãos para pegar suas daisho. —
Ele sorriu. — E agora olhe para você, Cheng Li.
Ela sorriu como fazia quando estava só um pouco sem
graça.
Agora o comodoro Kuo se virou para os gêmeos.
— E então, Connor e Grace? Talvez vocês não tenham
vindo para cá a tempo de receber todo o treinamento que po-
demos oferecer, mas ainda há muita coisa a compartilhar com os
dois, caso queiram ficar.
Grace olhou para Connor. O que ele estaria pensando? Ela
não sabia mais para onde desejava que o irmão pulasse. Talvez
fosse hora de parar de interferir e deixar que ele decidisse sozi-
nho. Lembrou-se de ter pensado que ele fizera besteira ao assi-
nar o contrato com o capitão Wrathe. E que ela havia acreditado
que, dos dois, era quem tomava melhores decisões. E aonde isso
os trouxera? A uma Academia que criava máquinas de matar a
partir de crianças de 7 anos. E havia a pequena questão de seu
negócio inacabado com o “navio de demônios”. Ah, sim, pensou.
É, realmente sou abençoada com grande capacidade de decisão.
— Grace, você está meio pálida — disse Cheng Li.
Ela se virou e viu Cheng Li sorrindo.
— Gostaria de dar um passeio? — perguntou Cheng Li.
Grace pensou um momento. Sabia que Cheng Li estava
oferecendo mais do que um passeio. As duas teriam chance de
conversar e ela poderia contar a Cheng Li a última viagem ao
navio Vampirata. Era uma oferta tentadora, mas de repente
Grace ansiava por ficar sozinha.

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— Obrigada — respondeu. — Na verdade pensei em ir
nadar um pouco, antes do jantar.
— Nadar? — perguntou Cheng Li, achando divertido.
— É. Eu perdi a corrida do capitão Platonov hoje cedo e
seria bom fazer um pouco de exercício.
— Grande idéia! — disse Connor. — Vamos com você,
não é, Jacoby?
— Claro — respondeu Jacoby. — Podemos pedir a Jasmi-
ne para ir junto. — Em seguida sussurrou para Connor. —
Nunca deixo escapar a chance de vê-la de biquíni.
O comodoro Kuo deu um largo sorriso para os três
— Excelente — disse ele. — Excelente. Divirtam-se pes-
soal.
Eles se viraram e saíram do ginásio. Enquanto a porta se
fechava atrás, o comodoro Kuo se virou para Cheng Li.
— É bom ver Connor e Grace fazendo novos amigos não
é?
— Ah, sim, diretor — respondeu Cheng Li sorrindo. — É
mesmo, não é?
— Será que posso desafiar você para uma luta de espadas
antes do jantar? Em nome dos velhos tempos?
— Eu faria picadinho de você, John — respondeu ela sor-
rindo.
O comodoro Kuo gargalhou.
— Pelo menos eu morreria feliz.

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— Morte é morte, John. Quer você morra sorrindo ou
com lágrimas nos olhos, é a mesma coisa. Um enorme monte de
coisa nenhuma.

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CAPÍTULO 24

Exílio

Grace nadou mecanicamente e, mais tarde, jantou mecanica-


mente com Connor, Jacoby e Jasmine. Não foi um jantar tão
elaborado como o da véspera com os capitães, mas foi mais re-
laxado e a comida da Academia ainda era deliciosa. No entanto,
Grace não estava ali — não de verdade. Sentia que estava se a-
fastando da Academia e deixando todos os pensamentos voarem
até o navio Vampirata. Talvez, se fizesse as coisas certas lá, po-
deria se acomodar direito aqui. Não era assim que o carma fun-
cionava?
Depois do jantar, Jacoby sugeriu um torneio de sinuca.
Connor concordou e Jasmine disse que iria se juntar a eles mais
tarde, depois de terminar algumas leituras para as aulas do dia
seguinte.

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— Tem cérebro, além de beleza, veja só — disse Jacoby a
Connor enquanto Jasmine ia para seu quarto. — E você, Grace?
Vai jogar um pouco de sinuca com a gente, não vai?
Grace sorriu, mas balançou a cabeça.
— Estou exausta. Acho que vou dormir cedo.
Jacoby ficou um pouco desapontado.
— Então somos só nós — disse a Connor. Grace se des-
pediu dos dois. Enquanto ia para o alojamento, ouviu Jacoby
dizendo a Connor: — Vamos tornar isso mais interessante com
uma aposta...
Ela sorriu. Os dois eram incorrigíveis.
Enquanto atravessava o terraço, Grace viu uma silhueta
familiar ali parada, olhando para o porto.
— Cheng Li.
Cheng Li se virou para ela.
— Olá, Grace. Já vai para a cama?
— É. Foi um longo dia.
Cheng Li balançou a cabeça.
— Você não está falando com o diretor, Grace. Não pre-
cisa tentar me esconder nada. Nós dividimos tudo, lembra? —
Em seguida estendeu a mão e segurou o ombro de Grace. —
Venha, um passeio rápido pelo jardim da Academia não vai ma-
tar você. Pode pôr para fora o que a está incomodando. E o ar
puro vai garantir uma ótima noite de sono. Venha.

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— Cheng Li, não sei se eu me encaixo neste lugar. Connor se
encaixa, mas acho que eu não. E estou preocupada com o Con-
nor. Pensei que, se o tirasse do Diablo, ele estaria em segurança.
Mas, desde que estamos aqui, ele parece cada vez mais decidido
a ser pirata. Não estamos mais seguros aqui do que com o capi-
tão Wrathe!
— Nós duas trouxemos o Connor para cá porque sabemos
que isso é o melhor para ele. Ele terá um futuro glorioso se ficar
na Academia dos Piratas. Dentro de alguns anos voltará ao mar
como subcapitão, como aconteceu comigo.
— Mas ele estará em segurança? — insistiu Grace.
Cheng Li parou, sorrindo.
— Cada um de vocês dois têm um desejo admirável de
proteger o outro. É compreensível, depois de tudo por que pas-
saram. Mas você não vê, Grace, que não existe isso de segurança
neste mundo, o nosso mundo?
— Você quer dizer o mundo dos piratas. Mas nós não nas-
cemos neste mundo. Talvez ele não seja para nós.
— E o que mais? Diga que outro plano você tem. Preferi-
ria que você e Connor retornassem a uma vida de trabalho sem
graça em Baía Quarto Crescente? É isso? É disso que você gos-
taria? Porque, se for isso, eu posso pegar um barco da Academia
e levá-la pelo litoral amanhã de manhã. Podemos deixá-la no
orfanato na hora do jantar.
Grace olhou intensamente para Cheng Li.
— Não — respondeu depois de uma pausa longa.

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— O quê, Grace? Eu tenho um pouco de dificuldade para
ouvir.
— Eu disse que NÃO — repetiu Grace. — Não é isso que
eu quero.
— Claro que não é! Vocês podem não ter nascido no
mundo dos piratas, mas ele os chamou... bom, pelo menos
chamou o Connor. Ainda temos de deduzir exatamente onde
você se encaixa. Mas deduziremos. Deduziremos.
Grace suspirou. As palavras de Cheng Li eram revigorantes,
além de tranquilizadoras.
— Vá dormir um pouco — disse Cheng Li. — Foi um
longo dia e amanhã não será diferente. A vida na Academia não
é um passeio grátis. Quem sabe amanhã você queira fazer um
pouco de treinamento de combate comigo? Ouvi uns boatos de
que você é bem talentosa nessa área, e isso pode ajudá-la a di-
minuir um pouco a tensão.
Grace sorriu.
— Pode ser divertido — concordou.
— Certo. Bem, veremos como você se sente de manhã.
Agora vá. E prometa que vai parar de se preocupar com o Con-
nor. Tudo vai prosseguir como eu planejei.
— Como nós planejamos — corrigiu Grace.
— É, claro, foi isso que eu disse.

Em seu quarto, Grace tentou dormir mas, por mais cansada que
estivesse, no minuto em que pôs a camisola e se deitou, sentiu-se

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totalmente desperta. Fechou os olhos, forçando a mente a des-
cansar, mas não adiantava. Instintivamente pegou o anel Clad-
dagh, de Lorcan. Ele a havia ajudado a se acalmar, antes. Antes
que as visões começassem. Mas agora, enquanto o apertava en-
tre o polegar e o indicador, nada mudou. A temperatura perma-
neceu constante. Não houve nenhum tipo de visão. Parecia que
Cheng Li estava certa. O anel havia servido ao seu propósito.
Mesmo assim, tocá-lo a trazia mais para perto de Lorcan, em sua
mente, e isso, concluiu ela, só podia ser uma coisa boa.
Lembrou-se de alguém ter dito que, se a gente não conse-
gue dormir, a pior coisa a fazer era ficar na cama. Por isso em-
purrou as cobertas e foi até a varanda. Abriu os postigos e saiu
ao ar frio da noite, levantando o rosto para a brisa e depois o-
lhando o porto, para além dos gramados. A Academia era linda à
noite. Alguns alunos haviam levado instrumentos musicais para
o terraço e estavam tocando. Na verdade eram bastante bons —
a música persistente, rítmica, quase tribal, era calmante e combi-
nava totalmente com a noite quente. Grace olhou-os tocar, de-
pois fechou os olhos, deixando a música fluir pelos sentidos e
deixar transparecer suas próprias imagens.
De repente sua cabeça estava cheia de uma música diferen-
te mas similar — a música que escutara a bordo do navio Vam-
pirata como abertura para o Festim. Ficou totalmente imóvel,
reconhecendo o início de outra visão. A cada vez parecia que a
visão chegava de modo um pouco diferente.
Agora sua visão interna estava cheia dos vampiros e doa-
dores indo para o salão de banquetes, vários conveses abaixo do

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nível do mar, vestidos com suas melhores roupas. Esta não pa-
recia ser uma visão nova, e sim uma lembrança. Lembrou-se do
elaborado sentido de cerimônia e etiqueta. Lembrou-se das lou-
ças finas, dos cristais, das toalhas e guardanapos, e da estranha
falta de simetria de uma mesa posta apenas de um dos lados. E
das centenas de rostos que nunca vira antes — os pares de vam-
piros e doadores conversando baixinho e saindo do banquete
para ir às suas cabines, onde começariam a “compartilhar”.
Connor ficara pasmo com a idéia de “compartilhar”. Seria de
fato tão repulsiva? Os vampiros simplesmente tinham uma ne-
cessidade que precisava ser satisfeita, e o capitão, em sua infinita
sabedoria, havia pensado num modo humano de isso acontecer.
Uma gargalhada atraiu sua atenção de volta aos garotos no
terraço embaixo. Estavam conversando entre uma música e ou-
tra. Então, de novo, sua cabeça se encheu com a estranha músi-
ca ritmada, e os pensamentos retornaram ao navio Vampirata.
Seria possível, pensou, que estivesse acontecendo um Festim
nesta mesma noite?
Sentiu um tremor súbito. Seu corpo saltou adiante, batendo
na balaustrada. Usando o corrimão para se firmar, levantou-se
de novo. Ao fazer isso percebeu que agora estava pairando no ar,
acima do terraço, olhando para os músicos abaixo. Um deles
olhou para cima e sorriu, mas não parecia tê-la notado. Ela se
agarrou com força ao corrimão enquanto a varanda começava a
voar, indo em direção ao porto e atravessando a noite.
Dessa vez teve mais um sentimento de empolgação que de
movimento. Na verdade estava gostando da viagem. O vento

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corria por entre os cabelos e era como se estivesse disparando
numa carruagem pelo espaço e o tempo. O céu estava no cre-
púsculo e ao redor havia tons laranja e rosa quentes da luz ago-
nizante, como se a terra e o mar estivessem pegando fogo e ela
viajasse entre as chamas — fazendo parte delas, mas ao mesmo
tempo desconectada.
Por fim as chamas deram lugar a uma escuridão de veludo
e ela perdeu o sentido de movimento rápido enquanto era en-
volvida num cobertor de negrume. Então, de modo igualmente
súbito, o céu se encheu de estrelas e a varanda continuou em
frente, seus olhos ofuscados pela luz das estrelas e da lua. Era o
jorro de adrenalina mais incrível que já tivera. Como tinha sorte,
pensou, em poder experimentar o mundo desse modo. Quantas
outras pessoas teriam uma chance assim?
Então as estrelas começaram a se desbotar enquanto a va-
randa entrava na névoa inevitável. Grace ficou um pouco triste
ao deixar o céu noturno para trás, mas sabia que era apenas um
posto intermediário na viagem. Por isso se submeteu à névoa,
sabendo que era como a ante-sala do navio Vampirata. Em
questão de segundos estaria lá outra vez. Suspirou, ansiosa por
ver Lorcan. Dessa vez, decidiu, iria falar com o capitão. Dessa
vez descobriria mais sobre o ferimento de Lorcan e o que pode-
ria fazer para ajudar.
Enquanto a névoa se dissipava, descobriu-se de novo no
convés do navio. Como antes, não podia sentir os pés nas tábuas
— como se estivesse pairando logo acima. Era noite e Darcy
havia acendido todas as lâmpadas. Havia música tocando. Músi-

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ca familiar, percussiva. Grace sentiu um frisson. Estava certa. Esta
era a noite do Festim.
O convés estava apinhado de vampiros fazendo a passagiata
— um longo passeio pelo convés com suas melhores roupas —
antes do início do Festim. Um grupo deles vinha em sua direção,
como se não a vissem. Ela saltou de lado bem a tempo. Um ins-
tante a mais e eles a teriam derrubado. Virou-se e olhou-os pas-
sando. Eles pareciam não percebê-la de modo algum — sem
dúvida possuídos apenas pela fome que viera crescendo por
dentro e que, dentro de algumas horas, estaria saciada.
Olhou outro grupo caminhar pelo convés. Um dos inte-
grantes a olhou de modo estranho enquanto passava, a cabeça
quase girando no eixo. Grace estremeceu. Lembrou-se de tê-lo
visto no Festim que havia testemunhado. Não sabia seu nome,
mas o rosto dele a irritou na ocasião, assim como agora. Mas,
felizmente, num instante ele se foi e outro grupo passou por ela,
sem sequer olhar na sua direção.
Encostou-se do modo mais confortável possível junto à
amurada, ainda sentindo que havia uma barreira invisível entre a
amurada e seu corpo. Mas estava feliz por ter voltado. E dessa
vez teria algumas respostas.
— Ora, veja só quem está aí!
Grace foi tirada do devaneio pelo familiar sotaque londri-
no.
— Darcy!

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Ali, diante dela, estava Darcy Flotsam, resplandecente num
vestido de chiffon azul-celeste com acabamento de lantejoulas
douradas.
— Figura de proa de dia, figura divertida à noite! — ex-
clamou Darcy, estendendo os braços para envolver Grace. Eles
passaram direto por ela.
— Ah! — suspirou Darcy. — Esperava que dessa vez você
tivesse voltado de verdade!
Grace balançou a cabeça.
— Eu gostaria, Darcy. Mas não sei como fazer isso acon-
tecer. Você sabe?
Darcy balançou a cabeça.
— Você teria de perguntar ao capitão. Só sei que, quando
você está numa visita, como agora, como eu fui àquele seu navio
pirata, bem, as únicas pessoas que podem vê-la e ouvi-la são a-
quelas com quem você tem alguma ligação. Isso o capitão me
explicou.
Grace confirmou com a cabeça. Agora entendia por que
alguns moradores do navio pareciam olhar direto através dela,
enquanto para outros — como Darcy e Lorcan — ela parecia
tão real quanto as tábuas do convés.
— Ah, Darcy. Depois que vi você na última vez, fiz o que
você disse. Fui ver Lorcan.
Darcy confirmou com tristeza.
— Ele está péssimo.
— Eu sei, Darcy, e a culpa é minha.
Darcy balançou a cabeça.

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— Não, Grace. Ele sabe que você acha isso. Mas não é sua
culpa.
— É, sim — insistiu Grace. — Tenho certeza. Mas vou
ajudá-lo. Vou descobrir um modo de voltar aqui de verdade e en-
contrar um tratamento.
Darcy olhou para Grace com tristeza.
— O que é? Aconteceu mais alguma coisa?
— A visão dele não dá sinais de melhora. Mas é pior do
que isso. Ele se recusa a tomar sangue. Está enfraquecendo. Foi
levado para a cama. Ah, Grace, não sei quanto tempo sobrevi-
verá. Esta noite é o Festim, mas Lorcan nem quer sair da cabine
para tomar sangue. É como se tivesse desistido.
Grace ficou enregelada com essa última novidade. Tinha de
fazer, algo para ajudar. Mas o quê? Não sabia quanto tempo
conseguiria permanecer dessa vez, e não conseguir tocar nada
nem ninguém estava se tornando cada vez mais frustrante.
— Preciso ir — disse Darcy. — Gostaria de ficar par con-
versar, mas tenho de ocupar meu lugar à mesa.
— Claro. Vá. Você precisa. Vou esperar aqui enquanto
puder. Mais tarde venha me procurar.
Darcy confirmou com a cabeça. Seu rosto estava molhado
de lágrimas.
— Vestido fabuloso! — gritou Grace para ela.
A estranha música do Festim foi crescendo e Grace viu o
convés se esvaziar totalmente. Imaginou as duas filas, de vam-
piros e doadores, chegando ao salão de banquete e ocupando
seus lugares. Sentiu-se tentada a ir olhar, mas algo a manteve no

1 257 1 
 
lugar ali em cima — algum poder que ela não conseguia explicar
direito.
Sentiu os olhos baixando de cansaço. Não. Tentou lutar
contra, não querendo ser levada para longe do navio — princi-
palmente depois de uma visita tão breve. Mas as pálpebras esta-
vam pesadas e não havia o que fazer. Seus olhos se fecharam e
ela caiu num estado de relaxamento profundo, como se estivesse
flutuando de novo nas águas escuras. Não lutou contra a sensa-
ção, sabendo que ela iria levá-la aonde quisesse.
A próxima coisa que ouviu foi um grito, ou melhor, um ru-
gido. Seus olhos se abriram e ela descobriu, para sua surpresa,
que ainda estava no convés do navio Vampirata. Não fora levada
a outro lugar — simplesmente caíra no sono. Não sabia quanto
tempo se teria passado, mas agora a música havia diminuído, por
isso sentiu que o Festim terminara e os vampiros e doadores
estariam em suas cabines, onde acontecia o compartilhamento.
— Pare!
Reconheceu a voz imediatamente. Como poderia não re-
conhecer? Era forte e firme, mas não se erguia acima do ruído
de um sussurro.
— Eu mandei parar!
Ela se virou e viu que o capitão não se dirigia a um vam-
piro, e sim a três. Eles viraram o rosto de volta para o capitão.
Grace se encolheu. Os olhos dos vampiros estavam em chamas.
Ela vira Sidório assim antes, mas testemunhar um grupo nesse
estado de frenesi era ainda mais aterrorizante. Reconheceu dois

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deles. Ela os tinha visto conversando — conspirando, percebeu
agora — em sua jornada anterior ao navio.
Quando falaram, suas palavras eram como chamas, lam-
bendo o convés na direção do capitão.
— Precisamos de mais sangue. Precisamos de mais...
— Não — respondeu o capitão. — Vocês tomaram sua
cota. Mais do que a cota.
— Precisamos de mais...
Agora, quando eles viraram em sua direção, Grace viu que
o grupo de vampiros segurava três doadores com firmeza. Os
doadores pareciam aterrorizados.
— Parem — disse o capitão outra vez. — Soltem os doa-
dores. Retornem às suas cabines.
Em resposta, os vampiros soltaram um chiado conjunto, as
palavras agora ininteligíveis. Grace estremeceu, feliz por estar
oculta. Não achava que aqueles vampiros pudessem vê-la, mas
mesmo assim não queria correr riscos.
— Vou dizer mais uma vez — alertou o capitão. Soltem os
doadores.
— Ou então o quê? — veio a resposta esganiçada.
— Não há alternativa — respondeu o capitão friamente.
— Vocês só têm uma opção. Soltem-nos.
— O caminho do capitão não é o único caminho — re-
tornou o chiado.
— O capitão não é o único capitão — grasnou outro.
— O navio não é o único navio — acrescentou o terceiro.

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— Chega! Soltem-nos! — disse o capitão. Diante dessas
palavras o convés foi cercado por um súbito clarão de luz. Os
vampiros saltaram fora do caminho da claridade, levantando os
braços para se proteger. Ao mesmo tempo os doadores se lan-
çaram na direção da luz.
— Entrem — disse-lhes o capitão, com calma porém in-
sistente. Por mais fracos que estivessem, não precisaram que a
ordem fosse repetida.
Os vampiros haviam se jogado juntos no convés e o capi-
tão se aproximou deles outra vez. Com a escuridão restaurada,
as criaturas se levantaram de novo, os olhos brilhantes, mas o
fogo que havia ardido agora estava opaco.
— Eu tenho sido paciente — disse o capitão —, mas agora
minha paciência se esgotou.
Os vampiros o espiaram com olhos que agora estavam
cheios de medo e arrependimento. Em instantes, pensou Grace,
haviam se transformado de monstros em crianças cheias de cul-
pa. Mas era fácil demais lembrar o horror que vira antes.
Um deles se dirigiu ao capitão.
— Algumas vezes essa necessidade foge ao controle, capi-
tão — gemeu ele.
— Não somos tão disciplinados quanto o senhor.
— Algumas vezes nossos desejos parecem se alimentar de
si mesmos — falou o terceiro.
— Sei de tudo isso — respondeu o capitão, ainda em seu
sussurro contido.
— Então nos ajude — sibilou o primeiro.

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— Você rejeitou minha ajuda, Lumar — disse o capitão
com tristeza. — Não há mais nada que eu possa fazer. Está na
hora de deixar este navio.
— Não, capitão. Não diga isso. — Lumar se encolheu di-
ante do capitão.
— Se Lumar for embora, teremos de ir também — disse
um de seus companheiros. Parte da malignidade anterior dos
vampiros estava retornando às vozes, as asas da ameaça se a-
brindo como as de uma mariposa.
— De fato — respondeu o capitão sem se abalar. — Não
pode ser de outro modo.
— Mas para onde iremos? — perguntou o terceiro vampi-
ro, que era uma garota.
— Encontrar Sidório — disse o companheiro, com a co-
biça se derramando da voz. — Sidório vai nos ajudar a atender
às nossas necessidades.
Grace estremeceu. Então eles sabiam — ou pelo menos
suspeitavam — que Sidório estava em algum lugar lá fora, na
noite, esperando-os. Seria sensato, da parte do capitão, deixar
que outros se juntassem ao primeiro exilado? Não estaria sim-
plesmente aumentando o risco de ver uma força inimiga crescer?
— Então vão embora — disse o capitão. — Vão encontrar
outro caminho.
Sua voz estava pesada de desapontamento, pensou Grace.
Ele se virou e foi em direção à sua cabine.
Os três vampiros exilados ainda se agarravam à amurada,
como se fossem conspirar ainda mais.

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— Eu mandei irem embora! — O capitão se virou de re-
pente e correu na direção deles. Ao fazer isso, a capa que ele es-
tava usando relampejou com veias de luz. Acima, as velas do
navio luziram e começaram a balançar. Raios de fogo saltaram
pelas tábuas do convés.
Grace teve de fechar os olhos para protegê-los da claridade.
Quando finalmente os abriu, os vampiros haviam desaparecido.
O capitão ficou parado junto à amurada, a cabeça nas
mãos.
Grace saiu de seu abrigo e foi até ele.
Ele pareceu não percebê-la até que ela estivesse ao seu lado,
estendendo a mão para o estranho material de sua capa. Mesmo
isso, pensou ela frustrada, estava fora do alcance de seu toque.
— Grace — sussurrou ele. — Grace. O que está fazendo
aqui?
O capitão não pareceu satisfeito ao vê-la.
— Voltei para ajudar. Sei que as coisas estão erradas. Só
queria ajudar.
— Você não pode ajudar. — Os sussurros encheram a ca-
beça de Grace. — Deve partir imediatamente e nem pensar em
voltar.
— Mas, capitão...
— É como deve ser, Grace. — Ele não se virou para ela,
com a máscara olhando direto para o oceano.
— Mas capitão — disse ela outra vez, com lágrimas nos
olhos. — Lorcan está muito ferido. E é tudo minha culpa...

1 262 1 
 
— Sim — disse o capitão, virando-se finalmente. — Sim,
então agora você sabe qual foi o resultado de sua vinda ao navio.
E é por isso que deve ficar longe.
Agora as lágrimas desciam pelo rosto de Grace, mas ela
não queria desistir. Pelo menos por enquanto.
— Por favor, capitão. Se eu voltar de verdade, talvez possa
ajudar.
— Acha que pode curar a cegueira de Lorcan? Como pro-
põe fazer isso? Diga!
A voz dele continuava sendo um sussurro, mas mesmo as-
sim ela podia escutar a raiva que existia dentro.
— Fale, criança!
— Não sei, capitão. Não sei como poderia ajudar. Nem
mesmo se poderia.
— É muito simples, Grace. Só há um modo de ajudar. Vá
embora. E fique longe.
Grace não podia acreditar em seus ouvidos. Era assim que
tudo acabava? Aqui, neste convés? Lorcan estaria destinado a
permanecer cego? E, agora que ele se recusava a tomar sangue,
como seria? Não suportava deixar as coisas assim — sem saber
o destino dele. Mas o capitão havia falado e não tinha mais pala-
vras para ela. Virou-se e foi andando lentamente pelo convés.
Grace ficou parada, na beira do convés, lágrimas caindo de
novo. Ainda estavam caindo quando a névoa a envolveu e ela foi
levada para longe do navio Vampirata — para jamais retornar.

1 263 1 
 
CAPÍTULO 25

Zanshin

— Grace! Grace, é o Connor!


— O que você quer?
— Posso entrar?
— Tudo bem.
Connor e Jacoby esperaram do lado de fora.
A porta se abriu e Grace enfiou a cabeça pela abertura.
— Bom-dia, dorminhoca! — disse Connor, estendendo a
mão para desgrenhar o cabelo dela.
— Pare! — reagiu Grace. — Você sabe que eu odeio isso!
— Você está toda eriçada, mana. O que houve?
— Dormi mal, certo? Que horas são?
— Dez para as sete. Jacoby e eu vamos à aula de FEM.
Hoje é Tai Chi com o capitão Solomos. Está a fim?

1 264 1 
 
Grace balançou a cabeça.
— Encontro vocês depois — respondeu, fechando a porta.
Connor deu de ombros e sorriu para Jacoby.
— Eu disse que ela realmente não é boa de manhã!

Connor bateu de novo à porta de Grace. Esperou.


— O que é? — O grito soou fraco.
— Grace, sou eu!
Ele ouviu passos. A porta se abriu de novo.
— Eu já disse que não vou à FEM...
— Grace, nós já fizemos a FEM. São quase oito e meia. Em
que planeta você está?
— Só estou cansada de verdade, certo?
— Você parece mal.
— Estou mal porque você me acordou às dez para as sete!
E agora de novo! Só preciso descansar. É um problema tão
grande assim?
— Mas está na hora do café-da-manhã. E depois o como-
doro Kuo vai dar uma palestra maneira sobre uso de espadas. É
para os alunos do último ano, mas ele convidou a gente.
— Acho que não vou assistir a nenhuma aula hoje. Pelo
menos de manhã.
— Mas, Grace, é o diretor...
— Bom proveito! — disse ela, fechando a porta na cara de
Connor.

1 265 1 
 
Connor franziu a testa. Era uma verdadeira honra ser con-
vidado àquela aula do comodoro Kuo. Mas sabia, por experiên-
cia própria, que, assim que decidia uma coisa, Grace era impla-
cável. Bom, que fosse dormir! Ele não iria deixar que ela pusesse
uma nuvem em cima do seu dia. Virou-se e foi procurar Jacoby.
Do outro lado da porta, Grace desmoronou no chão e pôs
a cabeça entre as mãos. Não conseguia parar de pensar no navio
Vampirata — na piora de Lorcan e nas palavras cruéis do capi-
tão. Era como se ele tivesse cravado uma espada em seu peito.

O comodoro Kuo assentiu para Connor e Jacoby quando eles


entraram no teatro de palestras.
— Ah, sr. Tormenta e sr. Blunt. Bom-dia, amigos. Sen-
tem-se.
Connor se perguntou se deveria explicar a ausência de
Grace, mas o diretor não pareceu abalado, de modo que talvez
fosse melhor não dizer nada.
O comodoro Kuo estava parado junto a um pódio, sobre o
qual pusera alguns papéis e um pequeno livro encadernado em
couro. O teatro de palestras tinha lugares suficientes para aco-
modar todos os alunos da Academia, mas, para a palestra da-
quela manhã, um semicírculo de 16 cadeiras fora arrumado na
frente, perto do pódio. Havia dois lugares vagos no centro, que
Connor e Jacoby ocuparam. Mais adiante, Jasmine Pavão acenou
para eles discretamente. Connor cumprimentou de volta, sor-
rindo.

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O diretor foi para a frente do pódio e olhou a platéia. Os
rostos de 16 adolescentes ansiosos o encararam de volta.
— Hoje — começou ele — vamos examinar o conceito de
zanshin∗... Mas antes disso, para qualquer um de vocês que ainda
não o conheça, deixe-me apresentar nosso convidado, Connor
Tormenta.
Os alunos do décimo ano se viraram para Connor e o ga-
roto ficou sem graça, como se um refletor tivesse sido aceso em
cima dele.
— Connor e sua irmã Grace — continuou o comodoro
Kuo, aparentemente sem perceber o incômodo dele — passa-
ram três meses a bordo do Diablo, sob o comando do capitão
Molucco Wrathe.
Pelas reações abafadas e pelos movimentos de cabeça, fi-
cou claro que Connor havia subido subitamente no conceito dos
outros. Ele riu para si mesmo. Evidentemente, qualquer dúvida
que os professores tivessem sobre o tipo de pirataria de Moluc-
co não havia passado para os estudantes. Para os colegas de
Connor, Molucco Wrathe era simplesmente um pirata celebri-
dade, cuja fama agora passava para o próprio Connor. Todos os
outros alunos tinham dois anos ou mais do que ele — mas, num
aspecto significativo, Connor estava à frente, já tendo vivido a
vida de pirata na realidade.

                                                            

Zanshin é em resumo, um estado de atenção extrema a tudo que nos rodeia,
relacionado não só à ação presente, mas no antes, durante e o depois das mes-
mas. (N. da digitalizadora – by Say)

1 267 1 
 
— E chego a afirmar que nesses três meses Connor teve
motivos para aperfeiçoar sua habilidade com a espada. Estou
certo em pensar isso, Connor?
Connor assentiu, esperando com toda a força de vontade
que o diretor não pedisse uma demonstração.
— Posso pedir sua espada emprestada? — pediu o como-
doro Kuo.
Connor ficou surpreso, mas confirmou com a cabeça. Le-
vantou-se e tirou o sabre da bainha. Então, como Cate havia
ensinado, segurou a espada na base do punho com a mão es-
querda e a estendeu na direção do diretor, com a ponta da lâmi-
na virada para longe dele.
O comodoro Kuo estendeu a mão direita e a deixou acima
da de Connor, sobre o punho da arma. Quando Connor soltou a
mão esquerda, o diretor assentiu e pôs sua mão no punho.
Connor se afastou e sentou-se.
— Seu treinamento foi bom — disse o comodoro Kuo
com um sorriso. Connor assentiu. Cate lhe havia ensinado mui-
tos rituais envolvendo espadas. Lembrava-se de ela ter explicado
que, em algumas culturas, oferecer a espada com a mão direita
era considerado algo grosseiro ou agressivo. Portanto era sempre
melhor, nas raras ocasiões em que a espada era oferecida a outra
pessoa, fazer isso com a mão esquerda.
E o comodoro Kuo tirou a própria mão esquerda do sabre
e enfiou no bolso, pegando um quadrado de seda. Pousou a lâ-
mina na palma esquerda, com o pequeno tecido de seda impedia
sua pele de tocar o metal. Isso ia além dos ensinamentos de Cate,

1 268 1 
 
mas Connor imaginou que era outra parte do infinito — e in-
terminavelmente fascinante — ritual das espadas.
— Há uma diferença entre o sr. Tormenta e o resto de vo-
cês — disse o comodoro Kuo, erguendo o olhar da lâmina. — E
a diferença é a seguinte. Estamos ensinando técnicas de luta com
espadas a vocês desde que chegaram à Academia, quando pu-
semos aqueles pedaços de bambu em suas mãos.
Connor notou os alunos sorrindo da lembrança.
— E então os fizemos progredir de Combate Básico até o
dia em que tiveram uma espada de verdade nas mãos pela pri-
meira vez, um dia que espero que todos recordem pelo resto da
vida.
De novo Connor viu o rápido reconhecimento dos alunos.
Lembrou-se dos rostos empolgados da turma de iniciantes no
dia anterior, quando seguraram as daisho pela primeira vez.
— Vocês são a nata — continuou o diretor. — Estão no
último ano aqui e temos grandes expectativas. Criamos esta A-
cademia para educar os capitães piratas de amanhã, os melhores
dos melhores, e aqui estão vocês. Dentro de alguns meses parti-
rão para assumir seus cargos de aprendizado em verdadeiros na-
vios piratas.
— Pode apostar! — exclamou Jacoby, incapaz de conter a
empolgação diante da perspectiva.
— Isso mesmo, sr. Blunt — disse o comodoro Kuo, vi-
rando-se para encará-lo. — Sem dúvida o senhor será um ótimo
subcapitão e, em não muito tempo, também será capitão.

1 269 1 
 
Connor pensou de novo na visão que tivera — daquela
cena curiosamente familiar num convés, quando ele era capitão e
sua tripulação o chamava porque alguém estava ferido.
— Vocês aprenderam muito desde que chegaram aqui à
Academia — prosseguiu o comodoro Kuo —, mas as maiores
lições ainda estão no futuro. E uma dessas lições virá no dia em
que usarem sua espada, não em treinamentos, não na Oficina de
Combate, e sim de verdade, para defender a vida.
A luz do sol penetrou na sala e ricocheteou na lâmina do
sabre de Connor, batendo no rosto do capitão.
Quando a luz entrou nos olhos de Connor, a voz do co-
modoro Kuo recuou para longe e Connor se viu de novo na-
quele convés, como antes.
Ali estava, no centro da batalha. As espadas se chocavam
umas contra as outras. Via cordames sendo cortados e ouvia ti-
ros de canhão e gritos de piratas entrando e saindo da refrega.
Então vieram os gritos.
— Capitão — ouviu ele. — Capitão Tormenta.
Connor sorriu ao ser chamado de novo de “capitão”. Pare-
cia fantástico. Parecia certo. Mas então a visão mudou.
— Venha. — Ouviu uma voz perturbada. — Capitão
Tormenta... Venha... Capitão Tormenta. Ele está ferido... ele
precisa...
Eram exatamente as mesmas palavras que havia escutado
antes, mas dessa vez a visão era mais clara. Na primeira vez ha-
via pensado que se referiam a um tripulante ferido. Agora viu
que era ele que estava ferido.

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Escutou a voz de novo, entrecortada de soluços.
— O capitão Tormenta foi ferido. Por favor, venha... por
favor venha... é sangue demais... não sei quanto tempo ele po-
derá suportar...
Connor sentiu um frio o inundando. A visão era clara de-
mais, exata demais. Seria um presságio de sua própria morte?
Não podia acreditar.
— Senhor Tormenta. Connor... Connor!
Connor voltou à realidade e viu que o diretor falava com
ele.
— Desculpe, senhor diretor.
— Tem alguém perdido por aí? — O comodoro Kuo sor-
riu para ele.
— Desculpe — repetiu Connor. — A luz bateu nos meus
olhos e...
— Eu só estava perguntando — a voz do comodoro Kuo
interrompeu a sua — se nesses três meses você teve de usar a
espada para defender sua vida.
Enquanto falava, ele ofereceu a espada de volta a Connor,
revertendo os gestos anteriores dos dois, de modo que agora o
diretor segurava o sabre na mão esquerda e o estendia pelo pu-
nho.
— Sim — respondeu Connor, enquanto sua mão segurava
o punho acima da do comodoro Kuo. — Tive, sim. — Sua mão
tremia, talvez reagindo à visão. Fez o melhor possível para fir-
má-la. Podia ver que o comodoro Kuo havia notado seu braço
trêmulo. Firmou-o com a outra mão e enfiou o sabre na bainha.

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O comodoro Kuo pôs a mão no ombro de Connor. A solidez
do toque ajudou Connor a se acalmar.
— Antes de se sentar de novo, poderia nos contar como é
a sensação de usar seu sabre desse modo?
Connor pensou em seu primeiro ataque com os piratas do
Diablo e nos outros, até a aventura malfadada no Albatroz.
— É uma mistura de sentimentos — respondeu.
— Continue — encorajou o comodoro Kuo.
— É empolgante. Depois do treinamento a gente quer usar
a espada do melhor modo possível. É um desafio, como qual-
quer esporte.
— Pode crer! — exclamou Jacoby de novo, com as mãos
imitando um golpe de espada.
— Mas — prosseguiu Connor, a mão tocando o punho do
sabre —, na primeira vez em que você segura uma espada, per-
cebe que não é um esporte como qualquer outro. Isso aqui não é
um brinquedo. A gente tem um poder e uma responsabilidade
incríveis na mão. É preciso respeitar a espada e honrar os opo-
nentes.
— Certo — disse o comodoro Kuo. — E você teve todas
essas preocupações no meio do ataque?
— Não. — Connor balançou a cabeça. — Antes. Essas são
as preocupações que passam pela minha mente antes. Cate Al-
fanje, a treinadora de armas do Diablo, ensina a gente a esvaziar a
mente antes do ataque propriamente dito.
— Excelente — disse o comodoro Kuo. — Certo, Connor,
por favor sente-se de novo.

1 272 1 
 
Connor obedeceu sem precisar de mais ordens, feliz por
sair da berlinda. Ainda estava abalado pela premonição, se é que
era isso. Mas talvez não fosse nada do tipo. Talvez aquilo não
significasse nada.
Quando ele se sentou, Jacoby se inclinou e deu um sussur-
ro:
— Você pareceu meio pirado ali. O que aconteceu? Jasmi-
ne sorriu para você?
Connor balançou a cabeça.
— Não foi nada. — Era nisso que tinha de acreditar. Mas
suas mãos ainda tremiam um pouco.
Quando ergueu os olhos de novo, Connor percebeu que o
comodoro Kuo havia escrito uma palavra no quadro azul à
frente da turma. Era a palavra estranha que ele havia falado al-
gumas vezes antes.

Zanshin

O comodoro Kuo examinou a turma através dos óculos.


— Connor nos disse que foi treinado para esvaziar a mente
antes de entrar num ataque. Este é um dos modos de se ver o
conceito de zanshin. Bom, como vocês sabem, aqui na Academia
aproveitamos algumas tradições guerreiras muito antigas, e essa
noção de zanshin remonta ao antigo florescimento das artes mar-
ciais japonesas, ou bujutsu. — Ele escreveu bujutsu, no quadro
com sua letra imaculada. — Bom, alguém se lembra, a partir de

1 273 1 
 
nossas antigas discussões, da palavra japonesa que significa en-
trar em combate?
Seus olhos examinaram a turma, assim como os de Connor.
Ele notou que várias mãos estavam levantadas.
O diretor assentiu.
— Sim, Aamir?
— Kamae — respondeu o garoto, confiante.
— Isso mesmo — disse o comodoro Kuo, acrescentando
kamae à lista de palavras no quadro.
— Bom, zanshin é o estado mental que cada combatente
bem-sucedido deve empregar antes de entrar no kamae, ou
combate. Significa um estado excepcionalmente alto de alerta em
que vocês estarão prontos para se defender e atacar em todas as
direções, 360 graus ao redor do corpo. Vocês não terão nenhu-
ma área de fragilidade. — Ele deu um sorriso tranquilo. — En-
tão o zanshin vai se combinar com sua técnica de combate indu-
bitavelmente impecável para resultar em ação perfeita e conse-
qüências bem-sucedidas. — Ele se virou para escrever mais al-
gumas palavras no quadro.
— Agora — disse ele, ficando de lado e batendo no quadro
—, quem pode falar sobre o conceito de “vitória em um só gol-
pe”?
Connor sentiu vontade de poder responder à pergunta, mas,
ainda que as sensações descritas pelo diretor lhe fossem absolu-
tamente familiares, a linguagem era nova. Ficou olhando en-
quanto os bem-formados alunos do último ano levantavam as
mãos.

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— Sim, Jasmine — disse o comodoro Kuo.
— A vitória em um só golpe é outro conceito que data do
florescimento do bujutsu — respondeu Jasmine. — E, mais es-
pecificamente, da técnica do iai-jutsu ou — ela sorriu para Con-
nor — o desembainhar imediato da espada. — Virando-se de
novo para o comodoro Kuo, ela continuou: — A verdadeira arte
do iai-jutsu está em derrubar o adversário com um único golpe da
espada. A necessidade de qualquer golpe adicional constitui uma
falha na arte verdadeira.
Diante das palavras de Jasmine, Connor pensou no modo
como vira Cheng Li atuar em batalha. Havia notado de imediato
como os atos dela eram mínimos. Enquanto outros piratas, in-
clusive Bart, dançavam pelo convés, golpeando com as espadas
de um lado e do outro, numa piscada a gente poderia perder a
ação de Cheng Li com suas duas katanas. No entanto, quando
ela as usava, segundo a visão de Cate, era a espadachim mais efi-
ciente. Sem dúvida, isso era um legado do rigoroso treinamento
de Cheng Li na Academia. Connor sentia-se como uma esponja,
ansioso para aprender mais daquelas técnicas. Mas só ficaria na
Academia poucos dias. Como poderia ter esperanças de juntar o
conhecimento que Cheng Li acumulara em dez anos? De repen-
te, apesar do conhecimento prático da pirataria, sentia-se em
falta. Se ao menos pudesse ficar mais tempo!
— Muito bem, Jasmine — disse o comodoro Kuo. — Sim,
a vitória num só golpe foi muito importante para nossos ances-
trais e, se você olhá-la em termos de zanshin, pode entender o
motivo. O zanshin nos põe num estado de alerta completo. Nes-

1 275 1 
 
se estado, com a percepção de 360 graus de que falei antes, vo-
cês devem ser totalmente capazes de executar a vitória num só
golpe. A incapacidade de fazer isso significa que desperdiçaram
esse zansbin. Bom, cada golpe a mais que vocês derem será um
desperdício ainda maior de zanshin. E, a cada golpe, estarão se
expondo a mais riscos e reduzirão a chance de sobrevivência.
De novo Connor reconheceu as sensações que o como-
doro Kuo estava descrevendo. A luta de espadas não era total-
mente como um esporte. Por mais energia que a gente desen-
volvesse — e Connor sabia que tinha mais energia do que a
maior parte dos seres humanos —, lutar consumia muito mais
profundamente as reservas do que qualquer outro esporte. E,
frequentemente, depois do longo processo de preparação mental,
a batalha terminava muito depressa. Podia durar apenas alguns
segundos. Era o modo como a gente capitalizava a energia — ou
o zanshin — naqueles segundos que determinava nosso destino.
— Bom, não pensem que o conceito de zanshin está reser-
vado apenas para aquele momento no convés de batalha — dis-
se o comodoro Kuo. — O pirata bem-sucedido precisa manter
o zanshin mesmo longe da arena óbvia de combate, 24 horas por
dia, sete dias por semana...
Enquanto o comodoro Kuo prosseguia com o discurso,
Connor ouvia atentamente; percebendo, mais do que nunca, que
tinha muito a aprender.

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Connor mal podia acreditar na rapidez com que o período duplo
de palestra sobre uso de espadas havia passado. Quando o co-
modoro Kuo terminou a discussão, Connor olhou o relógio e
viu que havia se passado uma hora e vinte minutos. Balançou a
cabeça. Na escola da Baía Quarto Crescente seu cérebro ficaria
totalmente entorpecido depois de uma dose dupla de física ou
geografia. Mas, por mais que a lição do comodoro Kuo fosse
desafiadora, ele poderia ter ouvido por mais uma hora, ou mais
ainda.
— Você pareceu meio em choque quando o chamei —
disse o comodoro Kuo, aparecendo à sua frente. — Esperto que
eu não o tenha deixado sem graça.
Alguns outros garotos estavam começando a sair do teatro
de palestras, sem dúvida indo para a próxima aula. Jacoby espe-
rou ao lado de Connor.
— Não — respondeu Connor. — É muita coisa para ab-
sorver, só isso.
— Mas você sabia do que eu estava falando. Dava para
sentir. Venha, vamos caminhar e conversar.
Connor assentiu e começou a andar com o comodoro Kuo
de um lado e Jacoby do outro.
— É, muita coisa que o senhor disse parecia familiar. Mas
todas aquelas palavras eram novas para mim. Não somente zan-
shin, mas kamae, bujutsu e iai-jutsu...
— Bem, é claro — disse o comodoro Kuo enquanto saíam
ao jardim ensolarado. —Você não teve o treinamento da Aca-
demia, como esses garotos. Esses garotos têm... o quê, dois anos

1 277 1 
 
mais do que você? Além disso, tiveram quase dez anos de estu-
dos aqui na Academia. Mas você sabe mais do que pensa — veja
o modo como ofereceu a espada para eu inspecionar. Aquele
modo também remonta aos guerreiros japoneses clássicos.
Connor ficou surpreso.
— Sua treinadora, Cate Alfanje, instilou um notável nível
de conhecimento em você, durante seu tempo a bordo do Diablo.
De fato, tem muito do que se orgulhar, sr. Tormenta.
Connor ficou vermelho de prazer.
— Como está sua irmã hoje?
A pergunta pegou Connor de surpresa.
— Está bem... quero dizer, acho que está. Ela não andou se
sentindo muito bem hoje cedo, mas...
O comodoro Kuo sorriu.
— Bem, está fazendo um dia lindo. Tenho certeza de que
Grace vai se animar. Certo, tenho de dar uma aula sobre capaci-
dade de comando à turma do sexto ano. Aproveite o resto do
dia.
Ele começou a subir a colina. Depois se virou e olhou para
Connor com curiosidade. O que estaria pensando?, imaginou
Connor. Era desconcertante.
— Eu estava pensando — disse o diretor —, estava só ima-
ginando, se poderíamos convencê-lo a ficar um pouquinho mais
na Academia. Acho que poderíamos lhe ensinar muito mais so-
bre pirataria. E você também poderia nos ensinar. Você tem
muito para ensinar, Connor Tormenta.

1 278 1 
 
— Obrigado — respondeu Connor, sem saber exatamente
o que mais dizer.
— Bem, olhe. Sei que é uma idéia meio louca. E sei que
Molucco deve estar ansioso para tê-lo de volta. Mas você... você
poderia ao menos pensar um pouco nisso?
Connor assentiu. Nesse momento não havia nada que ele
mais quisesse do que ficar. Mas será que poderia? Depois de tu-
do que havia acontecido, será que poderia deixar o capitão Wra-
the e o Diablo para trás?
Pensou de novo em sua visão. Ela o arrepiava até o âmago.
Mas iria lutar contra ela. Se a morte o estivesse espreitando, ele
lhe daria um duelo para ser lembrado. Ele se prepararia para ser
o melhor pirata que poderia ser. Não somente um pirata, mas
um guerreiro. Não somente um guerreiro, mas um capitão.
Mesmo que um dia, pensou, num futuro muito distante, eu seja
morto no convés de meu navio... morrerei como uma lenda da
pirataria.

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CAPÍTULO 26

A semente

— Grace!
— Connor! De novo, não!
— Não. Não é o Connor.
— Cheng Li!
Grace pulou da cama e abriu a porta do quarto. Cheng Li
estava parada, vestida para o combate e segurando uma espada
de reserva. Sorriu para Grace e passou por ela, entrando no
quarto.
— Achei que faríamos um pouco de treinamento de com-
bate hoje, Grace, mas não vi você o dia inteiro. Ora, você ainda
nem se vestiu. É quase hora do jantar, Grace! Há alguma coisa
errada?

1 280 1 
 
— Há — respondeu Grace, incapaz de conter a emoção.
— Alguma coisa está muito errada.
Imediatamente Cheng Li largou a espada na cama e envol-
veu Grace num abraço. Era um gesto pouco característico, mas
exatamente o que Grace necessitava.
— Qual é o problema? — perguntou Cheng Li, abraçando
Grace. — Diga. Você sabe que podemos dividir tudo.

Grace contou toda a triste história de sua última — a última —


jornada ao navio Vampirata. Mais uma vez Cheng Li escutou
com atenção até as últimas palavras.
— Não sei o que fazer — disse Grace. — Tudo mudou.
Cheng Li balançou a cabeça.
— Nada mudou.
Grace não conseguia acreditar nos próprios ouvidos.
— Mudou! O capitão disse que não quer que eu volte. Que
devo ficar longe.
— Concordo. Mas você tem amigos a bordo daquele navio.
Em suas próprias palavras, você tem “assuntos pendentes”. Não
importa mais o que o capitão pensa. O que importa é como você
vai encontrar a paz de espírito.
Grace balançou a cabeça.
— Não posso ir contra a vontade do capitão. Não posso.
— E Lorcan? Ele precisa de você. O capitão praticamente
desistiu dele. Você, não!

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— Mas, se o próprio capitão não pode salvá-lo, o que pos-
so fazer?
— Bem, não saberemos, Grace, até que a levemos de volta
ao navio.
Grace espiou os olhos nevoentos de Cheng Li. Seu coração
estava disparando. Será que ela de fato poderia fazer isso?
— Olhe — disse Cheng Li. — Darcy Flotsam veio encon-
trá-la, pedir sua ajuda, não foi?
Grace confirmou com a cabeça.
— E Lorcan lhe deu o anel Claddagh e mandou visões de-
le...
— É — assentiu Grace. — É, ele fez isso!
— Visões que podem muito bem ser pedidos de ajuda.
Grace, você tem assuntos pendentes com aquele navio. Acho
que o capitão está preocupado com aqueles Vampiratas rebeldes,
Sidório e os outros. Suas idéias não estão muito claras. Certa-
mente não está pensando no pobre Lorcan. Como você diz, se
Lorcan não está tomando sangue, quem sabe quanto tempo lhe
resta? Quando o capitão voltar a atenção para o sofrimento dele,
pode ser tarde demais.
Como sempre, Cheng Li havia lançado um salva-vidas a
Grace.
— Certo — disse Grace, cheia de um novo sentimento
objetivo. — Certo. Vamos fazer isso. Mas como vou retornar ao
navio?

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— Diga de novo, Grace, como você acha que encontrou o navio
Vampirata na primeira vez?
Grace suspirou. Já haviam falado sobre isso um monte de
vezes.
— Eu estava na água, lutando pela vida. E perdendo a ba-
talha. O Connor também. Vocês o encontraram. E, do mesmo
modo, Lorcan deve ter me encontrado.
— Eu encontrei Connor de dia — disse Cheng Li. — A luz
já ia morrendo, mas ainda era dia. Nunca poderia tê-lo visto no
escuro.
— Então Lorcan também deve ter me encontrado de dia.
— Mas não pode, não é? Por tudo que sabemos agora,
Lorcan não poderia ter saído para a luz.
— É, você está certa. Mas havia a névoa...
— É, a névoa em que você se viu quando chegou ao navi-
o...
— A mesma névoa que baixou quando Connor e eu nos
juntamos no convés.
— É como se os Vampiratas gerassem a névoa — disse
Cheng Li, pensativamente. — Será possível?
— É possível — respondeu Grace, sentando-se, empolga-
da. — Agora me lembro de uma coisa. Lembro que, quando
cheguei ao navio, o capitão disse algo a Lorcan sobre me levar
para dentro antes que a névoa se dissipasse.
— Não é uma prova conclusiva — disse Cheng Li —, mas
não estamos lidando com fatos. Acredito que os Vampiratas,

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bem, pelo menos o capitão, podem criar uma névoa para servir
como proteção para os que normalmente não podem sair du-
rante o dia. Mas eles não conseguem controlar o tempo que ela
dura. Espere...
— O que é? — perguntou Grace, cheia de empolgação.
Cheng Li ficou deitada com os olhos fechados.
— Está perto, Grace. Estamos perto de alguma coisa, mas
ela logo fica fora do alcance. — E abriu os olhos de novo. —
Será possível que você tenha encontrado o navio, em vez de ele a
resgatar? Talvez você estivesse destinada a salvá-lo.
— Mas ele me encontrou. Eu estava me afogando no oce-
ano. Não há como negar isso.
— Há, sim — respondeu Cheng Li, sentando-se de repente,
ereta. — Tudo depende de como a gente organize a história, não
é? Ponha-se do lado de fora, Grace.
Grace nunca tinha visto Cheng Li falar com tanta intensi-
dade.
— Imagine-se de volta à Baía Quarto Crescente, antes da
tempestade. Imagine-se de volta à sala no topo do farol.
Enquanto ouvia as palavras de Cheng Li, Grace fechou os
olhos e se visualizou de novo na sala da lâmpada, examinando a
baía embaixo.
— E agora? — perguntou.
— Imagine-se de volta. Seu pai morreu. O farol foi reto-
mado pelo banco. Você está ficando sem opções naquela cidade
terrível. E então...
— E então?

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— E então você olha para o oceano e manda um sinal para
a noite, para virem resgatá-la.
— Que tipo de sinal?
— Não sabemos. Mas um sinal que, de algum modo, você
sabia fazer e que os Vampiratas reconheceram.
Grace ofegou.
— O que foi? — perguntou Cheng Li. — O que foi?
— Acho que estamos perto de alguma coisa — disse Grace,
empolgada. — Acabo de me lembrar de uma coisa que o capitão
me disse. Foi na primeira vez em que me encontrei com ele.
— O que ele disse?
— Eu perguntei o que ele esperava de mim. E ele disse...
ele disse...
Ela pôde escutar o sussurro outra vez...
— O que eu quero de você? Grace, foi você que me procurou, não foi?
Grace abriu os olhos de novo e encontrou Cheng Li os
encarando intensamente.
— Achei que ele só estava falando daquela noite, Cheng Li.
Pensei que ele queria dizer que eu tinha ido encontrá-lo no navio.
Mas, e se ele quis dizer mais do que isso? E se ele quis dizer que
eu procurei o próprio navio?
Cheng Li assentiu, tão empolgada com a descoberta quanto
Grace.
— Você esteve fazendo a pergunta errada, Grace. É um
erro muito fácil de se cometer. A pergunta não é como você
pode voltar ao navio, é o que você quer daquele navio. O que liga
você aos Vampiratas?

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— Mas não posso descobrir isso enquanto não voltar lá. E
parece que não estamos mais perto de deduzir isso do que está-
vamos há horas.
— Estamos, sim — disse Cheng Li, rindo de orelha a ore-
lha. Em seguida saiu da cama, foi andando pelo quarto e abriu
os postigos. A brisa soprou nas duas garotas, trazendo um chei-
ro de jasmim.
— É só uma idéia — disse Cheng Li, sorrindo para Grace
—, mas por que você simplesmente não espera outra tempesta-
de? Talvez, quando as condições forem as mesmas, a história se
repita.

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CAPÍTULO 27

A tripulação

Stukeley está ficando bom em surfar. Bom mesmo. Bem, reflete


enquanto rema com os braços, certamente teve tempo para trei-
nar. Na maioria das noites, ele e o capitão vão parar em alguma
praia ao longo do litoral. Ali se abrigam durante um ou dois dias
e vão para algum lugar novo. Sempre ficam perto do litoral. O
capitão afirma que tem um plano, mas Stukeley não tem mais
certeza disso. A cada dia o capitão fala menos — e na verdade
ele nunca foi de bater papo. Sidório só se torna de fato vivo
quando está caçando. Então ele é um homem diferente — uma
criatura totalmente diferente. Depois fica cheio de brincadeiras
sombrias e histórias estranhas. Mas em pouco tempo a energia
se esvai, como a maré recuando pela areia ondulada.

1 287 1 
 
Algumas vezes Stukeley fica solitário e pensa em Bart,
Connor e seus outros velhos companheiros. Mas não pode per-
manecer naquelas lembranças — é doloroso demais. Além disso,
a cada dia, sua memória vai ficando mais fraca. Ele deixando de
ser uma coisa mas ainda não se tornou outra. Apanhado nesse
limbo, pega a prancha e corre para a água, olhando as ondas e
esperando. Quando está lá fora, surfando, pode se esquecer de
tudo, menos das ondas se quebrando e da energia intricada da
água em si. Assim como agora sente a maré mudando e senta-se
na prancha, guiando-a com as mãos para otimizar a posição.
Ele está mudando — de uma maneira sutil e profunda ao
mesmo tempo. A cada noite sua capacidade de enxergar na es-
curidão fica mais nítida. Agora consegue surfar com ou sem lua,
vendo com clareza a forma das ondas distantes, a despeito da
luz.
As águas escuras começam a subir, e de novo ele comprime
o corpo contra a prancha, esperando que a onda chegue.
Quando isso acontece, num movimento perfeito, ele salta
de pé sobre a prancha e começa a jornada de volta à costa. Esta
é boa. Ele a apanhou do modo exato. Pode sentir a força da on-
da o empurrando para a praia. Que está deserta, a não ser por
uma figura solitária no centro, fazendo uma fogueira.
As ondas o levam até a parte rasa. Ele pula, empolgado, e
tira a prancha da água. Coloca-a sob o braço e corre para a fo-
gueira, ainda perplexo ao ver a rapidez com que o ar seca sua
pele e as roupas.

1 288 1 
 
— Você me viu lá, capitão? Viu quando peguei aquela onda
perfeita?
Sidório não ergue o olhar da fogueira que está fazendo na
areia.
— Não.
O capitão põe no centro da fogueira outro galho de ma-
deira trazido pela água. Stukeley crava a prancha na areia e se
agacha, ajudando a atiçar o fogo.
— Não — repete Sidório, empurrando a mão de Stukeley
bruscamente.
— O que há de errado, capitão?
— Nada.
— Não quer pegar uma onda? Elas estão incríveis hoje.
Sidório não diz nada e continua pondo gravetos na foguei-
ra.
Stukeley olha de volta para a água, pensando em retornar
para pegar outra onda. Fica olhando o movimento tentador da
água. Enquanto faz isso, de repente enxerga um pequeno barco
erguido pelas ondas.
— Olhe, capitão!
— O que é, agora? — dessa vez Sidório levanta os olhos.
Parece furioso pela nova interrupção, mas Stukeley não se in-
comoda. Isso é importante.
— Olhe aquele barco. Está vindo para a terra.
— Onde?
De repente a fogueira se acende. Sidório fica de pé e a-
companha o olhar de Stukeley. Lá está o barco e um número

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indeterminado de figuras agarradas enquanto ele rola por cima
de uma onda que se quebra e é impelido na direção do barco.
Stukeley se vira para o capitão, esperando alguma ordem.
Uma decisão terá de ser tomada, e é prerrogativa do capitão to-
má-la. Quando o barco e seus ocupantes chegarem à terra, ha-
verá apenas dois modos de a coisa acontecer. Ou eles vão dar
um jeito de se livrar dos viajantes ou farão uma nova matança. O
que será?
Os dois já se refestelaram esta noite, mas Stukeley sabe que
isso nem sempre é decisivo.
— O apetite jamais se sacia — dissera Sidório. — Pegue o
quanto quiser.
Stukeley olha de novo para o capitão, esperando algum si-
nal. Mas o capitão está grudado no mesmo lugar, os olhos vazios
enquanto observa as figuras descendo do barquinho e empur-
rando-o pela água rasa até a praia de cascalho. Então as figuras
olham e uma delas acena. Agora não há como escapar. Sem dú-
vida eles foram notados.
— O que faremos, capitão?
Ainda não há resposta.
Com o barco encalhado em segurança, três figuras vêm pe-
la praia na direção deles. As formas começam a se definir —
dois homens e uma mulher, um dos homens é alto e quase tão
largo quanto o capitão. Caminha com o mesmo sentimento de
objetividade e agora acena de novo e abre a boca.
— Sidório! Ei, Sidório!

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Stukeley se vira. Seus ouvidos devem estar enganados. O
capitão está sorrindo. Stukeley se vira de novo e vê o homem
alto avançando, começando a correr.
— Sidório! É você, mesmo!
— Lumar.
Agora o capitão caminha para encontrar o estranho. Stuke-
ley vai atrás, a pouca distância. Está intrigado, mas nervoso. Vê
o capitão e o primeiro estranho se abraçarem. Será que tudo isso
faz parte do plano do capitão?
Enquanto vê o capitão cumprimentar os outros dois via-
jantes, Stukeley fica menos nervoso. Sidório não disse sempre
que haveria outros? Além disso, agora ele não estaria mais tão
sozinho com o capitão e seus humores sombrios, silenciosos.
No todo, devia ser uma coisa boa, não é?
— Stukeley! — O capitão o está chamando. O ansioso te-
nente corre para perto do capitão.
— Este é Stukeley — diz o capitão, numa voz que faz Stu-
keley inflar de orgulho. — Meu tenente.
Ele chega mais perto.
— Este é Lumar — diz Sidório. — Um velho amigo.
O primeiro estranho se adianta e estende a mão. O homem
tem um corpo parecido com o de Sidório, mas sua pele é negra e
os cabelos cortados curtos, brancos e brilhantes como pele de
tubarão ao luar. Além disso, veste-se de modo um tanto pareci-
do com Sidório, usando roupas que lembrem exército e mar.

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— É um prazer, Stukeley — diz Lumar, com algo que se
parece com um sorriso. Sua voz é intensa e sinistra como um
velho sino de igreja.
O aperto de mão é firme, mas, como as de Stukeley, as
mãos são geladas.
— Este é Olin. — O segundo homem se adianta e olha
não tanto para Stukeley quanto através dele. As mãos dos dois se
encontram brevemente. Olin é alto e magro, veste uma capa
comprida com um capuz cobrindo a cabeça. O rosto é fino e
anguloso dentro do capuz, os ossos quase atravessam a pele pá-
lida. Quando sua mão toca a de Stukeley, é como ter um peixe
molhado passando pelos dedos. Stukeley fica satisfeito quando
Olin recua e permite que o terceiro viajante se apresente.
— E esta é Mistral — diz Sidório.
Uma mulher se adianta. Como Olin, está usando um capuz,
mas o tira e ele vê um belo cabelo louro se desenrolar. Stukeley
congela. Mistral é a mulher mais linda que ele já viu — tão linda
que a visão apaga as lembranças de todas as garotas de seu pas-
sado. Ela sorri suavemente para Stukeley e ele sente o coração
dar uma cambalhota enquanto Mistral estende a mão pálida e
macia na sua direção. Ele a segura como se fosse uma flor frágil
e se curva para beijar os dedos. Mistral está usando vários pe-
quenos anéis e os lábios dele roçam o metal frio.
Stukeley ergue os olhos e a vê sorrindo.
— Que charmoso! — diz ela, antes de recuar outra vez, en-
fileirada com os dois companheiros de viagem.
Sidório se vira para Stukeley.

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— Eu disse que eles viriam. Não disse? — Os olhos dele
têm um brilho enlouquecido.
Lumar se dirige ao capitão:
— Tivemos de ir embora. Não restava nada para nós na-
quele navio.
— As regras — chia a voz de Olin —, as regras não faziam
mais sentido para nós.
— O método do capitão está ultrapassado — diz Mistral,
passando as mãos pelo peito, talvez por causa do frio. — Temos
de encontrar novos caminhos.
— Nós sabíamos — entoou Lumar. — Sabíamos que você
nos levaria por novos caminhos, Sidório.
Sidório confirma com a cabeça. Parece possuído por uma
nova energia, pensa Stukeley. Talvez a espera tenha se mostrado
um fardo muito grande para ele. Agora que mais tripulantes
chegaram, talvez seu trabalho de verdade — seja qual for —
possa começar.
— Tenho planos fantásticos — anuncia Sidório ao grupo.
Os outros sorriem e assentem. — Mas venham, viajantes. Ve-
nham se esquentar na minha fogueira.
Ele estende a mão e todos começam a andar para a foguei-
ra, que agora está tão luminosa como se Sidório tivesse prendido
a própria lua e colocado no meio da praia.
Stukeley observa atentamente enquanto Lumar põe a mão
no ombro de Sidório.
— É bom ver você de novo — diz ele.

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— É mesmo — concorda Sidório. — Mas como me en-
contraram?
— Os semelhantes se encontram — diz Lumar com um
sorriso sombrio. — Haverá outros. É só o início.

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CAPÍTULO 28

Um futuro glorioso

— Então, o que está incomodando nosso prodígio da pirataria?


— perguntou Jacoby, enquanto eles partiam para o café-da-
manhã no terraço ensolarado.
Connor suspirou.
— É tão óbvio assim?
— Acho que é — respondeu Jacoby. — Você estava bem
feliz durante o Krav Magá, mas praticamente não disse uma pa-
lavra desde então. E fica balançando os joelhos embaixo da me-
sa. Ó criatura tensa! O que está acontecendo?
— Andei pensando um bocado.
— Epa! — disse Jacoby, fisgando uma tira de bacon. —
Pensando. Isso é um negócio perigoso! — E mastigou o bacon.

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Connor empurrou o prato para longe, mesmo ainda estan-
do pela metade.
— Agora estou realmente preocupado — disse Jacoby. —
Em geral você deixa seu prato tão limpo como se nem tivesse
sido usado. É melhor começar a falar, Connor Tormenta. O que
o está incomodando?
— Você sabe que só vou ficar aqui uma semana, certo?
— Claro, sei.
— Bem, já se passaram cinco dias. Só tenho mais dois.
— É verdade, o tempo voou — sorriu Jacoby. — Mas al-
gumas vezes parece que você está aqui há uma eternidade. —
Connor ficou sombrio. — ...no bom sentido acrescentou Jacoby.
Connor assentiu.
— O negócio é que... acho que não estarei pronto para ir
embora no domingo.
Jacoby mastigou outra tira de bacon.
— Então fique.
— Não é tão simples assim. Você está esquecendo que as-
sinei contrato com o capitão Wrathe. Meu dever é retornar ao
Diablo.
— Bem, claro, algum dia. Mas tenho certeza de que o capi-
tão Wrathe pode sobreviver mais uma semana sem seu Garoto
Prodígio. E tenho certeza de que o comodoro Kuo ficará satis-
feito em prolongar sua estadia.
— É, acho que o comodoro Kuo ficaria bastante feliz, mas
não sei com relação ao capitão Wrathe. Ele não é um grande fã
da Academia.

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— Não! — disse Jacoby, despedaçando um bolinho de
fruta. — Por quê?
— Um monte de motivos. Para começar, ele não acha pos-
sível estudar para ser pirata. Acha que ou você tem isso nas veias
ou não tem.
Jacoby deu de ombros.
— Talvez haja alguma verdade nisso.
— Talvez, mas aprendi muita coisa desde que vim para cá.
E, se ficasse, poderia aprender muito mais. — Ele estava sur-
preso com a maré de desejo em sua própria voz.
— Então vá falar com Kuo e deixe que ele resolva a situa-
ção com Wrathe.
Connor franziu a testa. Não conseguia imaginar os dois ca-
pitães sentando para discutir isso amigavelmente. De repente
Jacoby riu.
— Tenho uma idéia. Que tal você ficar aqui e eu voltar ao
Diablo como seu substituto? Eu adoraria ir para o mar de verda-
de.
— É mesmo incrível — disse Connor, lembrando-se do
sentimento de liberdade que sempre havia experimentado
quando o Diablo navegava pelo mar aberto. De repente ficou
cheio de lembranças calorosas do navio e de seus colegas tripu-
lantes.
— Eu quero muito voltar — disse —, só que não agora.
— Então beba seu suco de romã e vá falar com o como-
doro Kuo.
— Falar o quê com o comodoro Kuo?

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Jacoby e Connor levantaram a cabeça e viram Cheng Li in-
clinada sobre a mesa. Ela havia chegado em silêncio. Nenhum
dos dois sabia havia quanto tempo ela estava ali.
— Eu estava dizendo... — disse Connor —, isto é... eu só
estava imaginando...
Cheng Li deu-lhe um olhar de lado, com uma sobrancelha
erguida com ar divertido.
— Ele quer saber se pode prolongar a estada — disse Ja-
coby, com um sorriso largo.
— Sei — respondeu Cheng Li.
— Ele está preocupado com a reação do capitão Wrathe
mas acho que o comodoro Kuo pode cuidar disso.
— Ah, acha mesmo? — disse Cheng Li, olhando o relógio
da academia. — Jacoby, não está na hora de sua aula de biologia
marinha?
Jacoby acompanhou o olhar dela até o mostrador do reló-
gio pendurado sobre o terraço, cercado de buganvílias.
— Ah, é. Connor, é melhor a gente ir andando, para não
perder a aula.
— Tudo bem — disse Cheng Li. — Vá você e diga ao ca-
pitão Solomos que eu peguei o sr. Tormenta emprestado para
um negócio importante da Academia.
— É muito cruel de sua parte me cortar da conversa exa-
tamente quando as coisas estão ficando interessantes — riu Ja-
coby. — Mas tudo bem, srta. Li. Se isso ajudar a causa do Ga-
roto Prodígio, quem sou eu para reclamar?
Ele pulou da cadeira e piscou para Connor.

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— Até mais tarde, companheiro. — Os dois bateram os
punhos enquanto Cheng Li ocupava a cadeira deixada por Ja-
coby.
— Bem — disse Cheng Li, enquanto Jacoby descia cor-
rendo a colina até o laboratório de biologia. — Devo dizer,
Connor, que você se estabeleceu aqui na Academia mais rápido
ainda do que eu havia previsto.
Connor deu de ombros.
— Eu só queria não me sentir tão dividido. Sei que meu
dever é para com o capitão Wrathe e meus colegas tripulantes
do Diablo. Mas realmente gosto daqui. E estou aprendendo
muito.
Cheng Li riu de orelha a orelha.
— Eu sabia que você iria gostar. Nós dois somos feitos da
mesma matéria. Por mais que sejamos talentosos naturalmente,
ainda sentimos fome de mais conhecimento.
Connor estava tão acostumado à arrogância de Cheng Li
que ela mal se registrou agora, mas talvez a jovem estivesse cor-
rendo o perigo de superestimá-lo. Ele jamais sentira fome de
conhecimento antes. Pelo menos do tipo de conhecimento que
era empurrado em sua direção na escola de Baía Quarto Cres-
cente. Mas certamente era verdade que, no quesito pirataria,
queria saber tudo. Suas ambições cresciam a cada dia.
— O que está pensando? — perguntou ela.
— Ah, não adianta. Só queria que o comodoro Kuo dei-
xasse eu ficar mais uma semana, mais ou menos. Mas que dife-

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rença isso faria? Você passou dez anos aqui. Jacoby está há qua-
se esse tempo. Nunca vou poder alcançar os outros.
— Bem, não em uma semana. Claro que não. Mas, com o
risco de fazer essa sua cabeça inflar, você tem um talento prodi-
gioso, Connor. Não há nenhum aluno da Academia, além de
Jacoby, que se rivalize com sua habilidade no uso da espada. E
sei que falo pelo resto dos professores quando digo como fica-
mos impressionados com sua capacidade de acompanhar as au-
las aqui. E frequentemente com garotos mais velhos.
Connor ficou vermelho. Ser elogiado por um professor era
uma experiência totalmente nova.
— É estranho, não é? — disse ele. — Há alguns meses eu
estava lá, preso numa cidade de fim de mundo, durante todos
aqueles anos. Então meu pai morreu e quase o acompanhei à
sepultura. Mas sobrevivi, você me resgatou e... bem, é como se
todo aquele tempo eu estivesse esperando. Todos aqueles anos.
Esperando que a pirataria me chamasse. Como se fosse o meu
destino, como se isso estivesse no meu sangue o tempo todo.
Cheng Li assentia furiosamente.
— É exatamente o que eu penso. Você pode ser filho de
um faroleiro, Connor, mas nasceu para ser pirata.
— Nasci para ser capitão? — perguntou Connor, pensando
de novo em sua visão do futuro.
— Capitão, e mais ainda. Talvez, um dia, comodoro, o ca-
pitão dos capitães. Há um futuro glorioso para você — disse
Cheng Li, sorrindo. Então sua expressão mudou, como se um

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vento gélido tivesse soprado no terraço. — Mas temos de resol-
ver algumas circunstâncias infelizes que surgiram.
Connor a olhou com curiosidade.
— Temos de liberá-lo do contrato com o capitão Wrathe
— explicou ela.
— Mas o contrato vale... por toda a vida. Eu assinei com
meu próprio sangue.
Cheng Li sorriu de novo.
— Que bobagem! Sempre há um jeito. Em especial com
um homem como Wrathe. É só uma questão do que ele exigir
em troca. Você sabe como ele é. Agora, não se ofenda, garoto,
mas você provavelmente poderia comprar sua liberdade de volta
com um medalhão de safira.
Connor se frustrou de novo. Será que Molucco de fato o
trocaria com tanta facilidade? E, mesmo que fosse o caso, como
ele conseguiria pôr as mãos numa safira? Não tinha nada de seu,
além de uma pequena quantidade de butim que adquirira depois
dos ataques. Certamente não havia nada em seu poder que pu-
desse tentar um homem com as vastas riquezas de Molucco.
— Ah, coitadinho — disse Cheng Li, recostando-se na ca-
deira. — Acha que eu quis dizer que você teria de comprar a li-
berdade? Claro que não! Você não está mais sozinho, Connor.
Você tem apoiadores com poder e influência consideráveis. John
Kuo não é simplesmente diretor da Academia. É um dos agentes
mais poderosos da Federação dos Piratas.
— O que, exatamente, é a Federação dos Piratas?

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— Acho que você deveria fazer esta pergunta ao comodo-
ro Kuo. Vou marcar uma reunião para vocês mais tarde. Por que
não continua com suas aulas enquanto eu falo com o diretor?
Connor se levantou da mesa e pendurou a mochila no om-
bro.
— Obrigado por tudo — disse ele.
— Não agradeça, ainda, só se lembre de que você me de-
ve... e que um dia vou cobrar a dívida. — Ela estava sorrindo,
mas Connor sentiu um estranho arrepio. Não tinha dúvida de
que Cheng Li falava absolutamente a sério.
Começou a se afastar, a cabeça pesada com todos os pen-
samentos sombrios que borbulhavam por dentro. De repente se
virou. Cheng Li estava de pé e caminhava pelo terraço. Ele pre-
cisou correr para alcançá-la. Ela se virou, ao ouvir seus passos.
— O que foi?
— Não quero trair o capitão Wrathe. Ele fez muito por
mim.
Cheng Li assentiu e pousou a mão em seu ombro.
— Entendo, Connor — suspirou ela. — Mas foi um gesto
apressado você se ligar à tripulação dele perpetuamente. Há o-
portunidades maiores e melhores para você. Não pense que ele
não sabe disso. Não pense nem por um momento que ele não
sabia o que estava fazendo quando o levou a assinar aquele con-
trato.
Ao passar pela porta, ela deixou Connor do lado de fora,
avaliando suas palavras. Seria verdade? Será que Molucco havia
se aproveitado da sua ingenuidade para prendê-lo no serviço an-

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tes que ele descobrisse a existência de outras opções? Era uma
acusação dura. Mas, se Cheng Li estivesse certa e Molucco ti-
vesse agido rápido, talvez fosse hora de se afastar. A despeito do
custo.
Enquanto ziguezagueava morro abaixo, Connor olhou por
cima do ombro, na direção da janela de Grace. Os postigos con-
tinuavam fechados. Era mais de dez horas e não havia sinal de
vida lá em cima. Teve vontade de perguntar sobre Grace a
Cheng Li, mas estava preocupado demais com seu próprio dile-
ma. Bem, poderia dar uma olhada em Grace durante o recreio
— ou, se não pudesse, na hora do almoço. Não era como se ela
tivesse ido a algum outro lugar, pensou.

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CAPÍTULO 29

A tempestade
que se aproxima

Por acaso Connor não conseguiu ver Grace durante o recreio.


Em vez disso, se deixou levar pela preguiça sob um pé de romã
com Jacoby e Jasmine — abrigando-se do sol, comendo a fruta
madura e falando de bobagens agradáveis até a hora da aula de
espadas do capitão Larsen. Eram dois tempos de aula, conduzi-
dos em ritmo rápido pelo formidável capitão dinamarquês.
Em seguida veio uma aula de comando e montagem de
tripulação. Segundo o horário, Cheng Li deveria dar a aula, mas
na verdade foi o comodoro Kuo que entrou na sala de seminá-
rios, para surpresa dos alunos que esperavam.

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— Sei que estavam esperando a srta. Li, mas hoje vocês
deram azar — disse ele com um sorriso.
Ninguém foi contra. O diretor era um dos professores mais
populares da Academia e os alunos consideravam cada tempo
extra com ele como sendo um bônus, e não uma tarefa. Co-
mando e montagem de tripulação havia se tornado rapidamente
uma das aulas prediletas de Connor, e o modo como o como-
doro Kuo ensinava era muito menos didático que o de Cheng Li.
Em vez de dizer como fazer as coisas, o comodoro Kuo era
mais inclinado a montar uma situação e depois pedir sugestões
diferentes.
— Lembrem-se de que, quando cada um de vocês tiver o
posto de capitão, na maioria das situações não haverá um senti-
do claro de certo ou errado. Haverá centenas de soluções possí-
veis, e será sua responsabilidade escolher a correta para vocês e
suas tripulações — disse ele.
A aula de quarenta minutos passou rapidamente, com Ja-
coby e Jasmine discordando violentamente sobre como enfren-
tar uma disputa entre membros da tripulação e Connor e Aamir
oferecendo idéias sobre como enfrentar a falta de suprimentos a
bordo. Em cada caso o diretor atraía habilmente os alunos a de-
fender as opções que eles haviam escolhido e depois se recusava
a julgar uma das soluções como sendo melhor que as outras —
em vez disso pedia aos outros alunos para apresentar seus pon-
tos de vista. A turma endossou amplamente a abordagem mais
refletida de Jasmine para resolver o conflito, e pareceu impres-

1 305 1 
 
sionada com as idéias pragmáticas de Connor sobre a imposição
de racionamento em situações extremas.
Quando o sino do almoço tocou, os alunos ainda estavam
profundamente envolvidos na discussão. Por fim, o comodoro
Kuo teve de expulsá-los para a luz do sol.
— Sr. Tormenta — chamou ele baixinho enquanto Connor
recolhia seus papéis. — Podemos trocar uma palavrinha?
Connor se virou. Estava com o coração disparado. Sem
dúvida o comodoro Kuo sabia sobre seu pedido. O que se pas-
sasse nos próximos minutos decidiria todo o seu futuro.
— Vamos andar e conversar — disse o diretor, indicando
para Connor ir na frente. Os dois começaram a subir para o ter-
raço, a uma distância segura de ouvidos curiosos.
— A srta. Li me contou sobre a conversa de vocês — disse
o diretor. — E, bem, claro, acho ótimo você estar querendo
prolongar a estada aqui. — Ele parou antes de ir em frente. —
Quanto tempo, exatamente, você estava pensando que gostaria
de ficar?
Connor pigarreou enquanto juntava coragem.
— Talvez... talvez mais uma semana?
— Só uma semana? — O comodoro Kuo achou divertido.
— E acha que em mais uma semana irá sugar até a última gota
dos conhecimentos que temos para oferecer?
— Não, não. Claro que não — respondeu Connor, sen-
tindo-se idiota. — Mas tenho minhas obrigações.
— Sei, sei. Você tem suas obrigações com o capitão Wra-
the e a tripulação. É muito elogiável que pense assim, Connor.

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Mas vamos supor, só por um instante, que eu tivesse uma vari-
nha mágica e pudesse resolver para que você ficasse aqui por
quanto tempo quisesse, a despeito dos compromissos atuais.
Nesse caso você gostaria de ficar somente mais uma semana?
— Não, eu...
— Um mês, quem sabe?
— Bem, talvez...
— Até o fim do ano?
Connor sentiu um jorro de empolgação com aquelas pala-
vras. O caminho diante deles começava a subir a íngreme colina.
À direita as águas brilhavam no porto.
Os olhos escuros do comodoro Kuo refletiam o sol sobre
o oceano.
— Suponha que eu pudesse dar um jeito para você se tor-
nar um aluno em tempo integral aqui — disse ele. — Que me-
xesse no currículo de modo que você tivesse aulas particulares
além das aulas em grupo, para acelerá-lo, por assim dizer. O que
acharia?
Connor suspirou.
— Seria ótimo. Ótimo mesmo.
— É disso que você gostaria? Bem, nesse caso é melhor
tentarmos pensar nas possibilidades. Deixe por minha conta,
Connor. — Ele bateu de leve na cabeça. — Dê a essas velhas
células cinzentas a chance de pensar na situação. — E sorriu. —
Falo com você mais tarde. Enquanto isso, aproveite o almoço.
Com um tapinha no ombro, ele deixou Connor no terraço.
Enquanto o diretor se afastava, Connor viu Jacoby acenando

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para ele. Estava sentado a uma mesa com Jasmine, Aamir e al-
guns outros da turma. Tinham guardado um lugar para ele. Sor-
rindo, Connor foi encontrá-los.

Durante a aula de três tempos sobre estratégia de ataque náutico,


depois do almoço, o céu se abriu. Numa sala de aula no fim de
um dos corredores sinuosos que partiam da Rotunda, o capitão
Solomos e seus alunos pararam com s estudos para olhar o céu
escurecendo e as nuvens densas expelindo jatos de chuva sobre
o terreno da Academia. Depois retomaram o debate, só sendo
interrompidos por um chicote de raio.
— Uma tempestade — disse o capitão Solomos, os olhos
se iluminando com dramaticidade característica. — Faz um
tempo que não tínhamos uma tempestade tão violenta. — Ele
fechou o livro didático. — Turma, vamos interromper a discus-
são. Em vez disso, vamos pensar em como poderíamos usar um
tempo como esse para montar um ataque inspirado.

Enquanto Connor juntava os livros no fim da aula de EAN, o


capitão Solomos o chamou.
— O comodoro Kuo pediu para você ir ao escritório dele
— disse a Connor com um sorriso —, para continuar a conversa
de antes.
Connor entrou na sala forrada de lambris, encontrando o
diretor atrás de sua mesa imaculada, lendo alguns papéis.

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— Ah, sr. Tormenta. Por favor, sente-se. Quer um pouco
de chá?
Connor aceitou a pequena xícara de chá perfumado.
— Estive pensando em nossas conversas anteriores —
disse o diretor. — E tenho uma proposta.
Connor assentiu. Tomou um gole do chá.
— O que você sabe sobre a Federação dos Piratas? —
perguntou o comodoro Kuo.
— Quase nada — admitiu Connor.
— Excelente. — O diretor piscou um olho. — Gostamos
de manter a coisa assim, com relação a quem está do lado de
fora. Mas é uma coisa muito diferente com os de dentro.
Connor se inclinou adiante. Agora o diretor tinha toda a
sua atenção.
— Deve ser claro para você — continuou o comodoro
Kuo — que a pirataria está num processo de mudança significa-
tiva e rápida neste momento. Isso se deve ao trabalho da Fede-
ração em todo o planeta. — Ele se levantou da mesa e indicou
um globo de vidro ao lado de Connor. — Dê um giro nele.
Connor estendeu a mão e girou o globo. Enquanto o vidro
rodava, sua superfície ficou preta e centenas de luzes começaram
a piscar para ele, como estrelas no céu noturno.
— Está vendo estas luzes? Cada uma representa uma célula
da Federação dos Piratas. Em todo o mundo. Outras estão sur-
gindo o tempo todo.
Connor ficou impressionado.

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— Há um enorme abismo, que cresce cada vez mais, entre
os piratas que atuam dentro da Federação — explicou o como-
doro Kuo — e os que, como Molucco Wrathe, estão de fora. Os
que sabem das coisas estão formando alianças, não somente nos
oceanos, mas também em terra. Em pouco tempo nossa influ-
ência será impossível de ser impedida. E, em vez de trabalhar
como tripulações dispersas, frequentemente entrando em con-
flito umas com as outras, você verá a formação de vastas frotas
de navios piratas unidos numa causa única.
Era uma conversa inebriante. O comodoro Kuo chegou à
frente da mesa e sentou-se nela, virado para Connor.
— Uma organização assim precisa de líderes, e um dos
meus trabalhos na Federação é recrutar os líderes do futuro.
Seu olhar se cravou em Connor, que pensou de novo na
visão que tivera, de se tornar um capitão pirata. Mas será que ele
iria — será que poderia — se tornar um capitão dentro da Fede-
ração?
— Vou lhe dizer uma coisa agora, Connor, algo que deve
permanecer dentro das paredes desta sala. Entende?
— Sim, senhor.
— Excelente. Primeiro... mais chá?
Connor balançou a cabeça. Estava intrigado demais para se
distrair, de qualquer modo. O diretor juntou as mãos.
— Fui eu que recrutei a srta. Li para a Federação. Soube,
desde o tempo dela na Academia, que seria muito valiosa. E es-
tava certo.

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Lá fora houve o estalo de um trovão. O diretor olhou por
cima do ombro.
— Adoro tempestades. Você não?
— Na verdade, não muito — respondeu Connor, já que o
trovão era uma lembrança do pior momento de sua vida.
— Ah, claro que não. Desculpe. Que insensibilidade, a
minha.
— Tenho uma pergunta — disse Connor, recusando-se a
deixar que a tempestade o distraísse.
— Vá em frente.
— A srta. Li estava espionando o capitão Wrathe? O capi-
tão Drakoulis disse que esse era o motivo para ela estar no Dia-
blo. Que havia sido mandada pela Federação.
O rosto do comodoro Kuo era uma máscara. Ele se incli-
nou para trás e calmamente se serviu de um pouco de chá. To-
mou um gole e em seguida aninhou a xícara nas mãos.
— Tenho certeza de que você entenderá que alguns assun-
tos da Federação devem permanecer confidenciais. Mas o prin-
cipal motivo para a srta. Li entrar para o Diablo foi terminar seu
aprendizado como subcapitã. Nossa política é acelerar o pro-
cesso para nossos recrutas se tornarem capitães.
O diretor encarou Connor de novo e o garoto achou que,
apesar de toda a diplomacia, Kuo estava respondendo afirmati-
vamente. Cheng Li fora mandada para espionar Molucco. Ele
não tinha certeza do que achava disso.
— Mas, se o capitão Wrathe atua fora da Federação, por
que a srta. Li deveria servir ao lado dele?

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— Boa pergunta, Connor, mas a verdade é a seguinte: ne-
nhum navio fica realmente fora do domínio da Federação. Só
que alguns capitães ficam cegos para esse fato.
Então será que o capitão Wrathe representava um risco tão
grande para a Federação? O comodoro Kuo falava do poder que
a Federação buscava. Mas quais seriam exatamente seus objeti-
vos? E será que eram tão diferentes dos de Molucco?
— Há uma grande diferença entre os ganhos imediatos —
disse o diretor, como se lesse os pensamentos de Connor — e as
recompensas mais frutíferas da gratificação prolongada. Um sa-
quezinho rápido aqui e ali não se compara ao verdadeiro tesouro
do poder, um poder conservado a longo prazo. Esse é um objetivo
pelo qual vale a pena esperar, planejar. Não acha?
Connor não tinha certeza. Tinha outra pergunta; uma das
grandes.
— O capitão Narcisos Drakoulis faz parte da Federação?
— E respirou fundo. — O ataque dele contra o Diablo foi pla-
nejado pela Federação? — Havia uma terceira pergunta que ele
queria, mas não ousava, fazer. Será que a Federação era respon-
sável pela morte de Jez Stukeley? Enquanto esperava a resposta
de Kuo, tomou uma decisão. Se a resposta fosse sim, Connor
jamais trabalharia para a Federação, de modo nenhum.
— Como falei antes — disse Kuo —, alguns assuntos da
Federação precisam ser mantidos como confidenciais...
O sangue de Connor gelou nas veias. Não conseguia acre-
ditar nos próprios ouvidos. Era como se o comodoro tivesse
confessado sua responsabilidade direta.

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— ...mas direi que Drakoulis é tão louco e destrambelhado
em suas ações quanto Wrathe. Talvez mais ainda. Não se pode
confiar em nenhum dos dois para executar uma missão da Fe-
deração.
Então agora ele negava. Mas estava longe de ser uma nega-
tiva clara. Connor ficou imaginando para que lado deveria se
virar. Sentia-se à deriva no oceano, sem saber quem era seu a-
migo e quem era inimigo. Imagens do capitão Wrathe e de Nar-
cisos Drakoulis nadavam em sua mente Então os dois sumiram
e ele se viu de novo olhando diretamente os olhos do comodoro
Kuo. Eram olhos gentis, Olhos dignos de confiança. Não o tipo
de olhos que mandavam um jovem pirata como Jez Stukeley
para a morte.
— Você pode pensar — prosseguiu o comodoro Kuo com
um sorriso — que é incomum recrutar alguém tão jovem como
você, mas entenda que estou querendo reforçar a Federação até
o mais longe possível, no futuro. — Ele fez uma pausa. — De
fato há outros jovens colegas seus, aqui na Academia, que já es-
tão trabalhando para nós.
Connor pensou nisso por um momento. Jacoby! Ele era
um aluno brilhante. O diretor devia estar falando de Jacoby. Te-
ria de perguntar isso ao amigo quando o visse da próxima vez.
— Lembre-se do que falei sobre essa conversa permanecer
dentro das paredes deste escritório — disse o diretor. — Lem-
bre-se também de que todos os membros da Federação fazem
juramento de segredo... sob pena de morte.

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Certo, pensou Connor. Talvez não fosse fazer essa pergunta
ao Jacoby por enquanto.
— Chega de preâmbulos — disse o comodoro Kuo. — O
fato é que estivemos observando você atentamente, Connor; os
outros professores e eu. Durante esta semana que você passou
conosco na Academia e, confesso, já há um tempo, antes. E
chegamos à conclusão unânime de que gostaríamos que você
entrasse para a Federação. Achamos que você seria um dos
nossos recrutas mais brilhantes. E, sem querer extrapolar meu
argumento, acho que poderíamos lhe oferecer um mundo de
oportunidades que você nem imagina.
Connor se sentiu empolgado e intrigado com a oferta. Era
lisonjeiro perceber que tinham tanta consideração por ele, ainda
que fosse um tanto desconcertante saber que tinha sido obser-
vado. Estava ficando claro para ele que a Federação tinha olhos
em toda parte.
— Você não precisa decidir imediatamente, claro — disse
o comodoro Kuo —, mas seria bom se tivéssemos uma resposta
antes do retorno do capitão Wrathe no fim de semana. Preciso
preparar o terreno, por assim dizer. E não preciso falar que, para
ingressar na Federação, você deve primeiro se comprometer
com os estudos aqui na Academia.
Connor assentiu. Sua cabeça estava disparando com as no-
vas informações.
— Diga — pediu o diretor —, qual a sua intenção inicial?
Connor pigarreou.

1 314 1 
 
— Minha intenção é... — ele respirou fundo, sentindo que
estava para mergulhar de uma grande altura — ...sim, quero en-
trar para a Federação...
— É uma notícia maravilhosa.
— ... mas não sei como posso fazer isso sem chatear o ca-
pitão Wrathe. E ele tem sido bom para mim.
— Entendo sua preocupação — disse o diretor, levantan-
do-se e indo até um retrato seu, de quando era mais jovem — e
isso conta totalmente a seu favor. — Ele empurrou a pintura
para o lado. Atrás dela havia o botão de um cofre, que Kuo co-
meçou a girar para um lado e para outro. Por fim a porta do co-
fre se abriu e o comodoro Kuo enfiou a mão e pegou uma saco-
la de veludo. Em seguida voltou à cadeira e começou a desa-
marrar o cordão da sacola.
— Só precisamos falar com Molucco em sua linguagem
predileta — disse o diretor, sorrindo. Em seguida abriu a sacola
e sacudiu-a. Um monte de safiras perfeitas se derramou sobre a
mesa.
Connor ofegou. O diretor sorriu, estendendo a mão para as
jóias.
— Agora, quantas você acha que bastariam para adoçar o
Molucco? Uma pedra ou duas?

Grace estava na varanda, olhando a tempestade. Não ouviu a


batida na porta.

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Virou-se e viu Cheng Li entrando no quarto com uma
bandeja de comida.
— Trouxe seu jantar — disse Cheng Li, arrumando a mesa.
— Achei que você ia preferir comer sozinha.
Grace confirmou com a cabeça, relutando em se afastar da
tempestade. Virou-se de novo para o jardim. Cheng Li veio se
juntar a ela na varanda.
— Está virando uma tremenda tempestade — disse Cheng
Li.
— É. Traz lembranças de volta.
Cheng Li ia falar, mas hesitou.
Grace assentiu.
— Acho que está na hora.
— Tem certeza? Quero dizer, podemos estar erradas. Po-
demos estar loucas.
Grace deu de ombros.
— Uma tempestade dessas só acontece raramente. Seria
uma pena desperdiçar.
— Se for assim, então venha e vamos comer alguma coisa.
Esta noite você vai passar por uma tremenda dificuldade. É me-
lhor ganhar forças.

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CAPÍTULO 30

Agora somos cinco

Desde a chegada dos “outros”, Sidório perdeu todo o interesse


em surfar. Agora apenas Stukeley surfa enquanto o capitão passa
o tempo em conversas intensas com a tripulação. A cada noite
eles armam uma fogueira e os quatro sentam em círculo, como
velhos amigos — falando em voz baixa, tramando. Stukeley sur-
fa sozinho. Sou jovem demais para passar todo o tempo sentado
e tramando, pensa. Em verdade, não sabe mais se é jovem ou
velho. A idade perdeu todo o significado para ele.
Desde a chegada do resto da tripulação, Sidório mal disse
duas palavras com Stukeley — com seu tenente! É desorientador.
Por mais que seja uma criatura estranha, Sidório se tornou o
centro do mundo de Stukeley. Foi ele que o trouxe de volta. Isso

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Stukeley jamais esquecerá. Sidório é seu capitão e seu pai. É um
laço inquebrável. Mas agora Sidório o ignora.
Por um tempo ele se perde no surfe. Uma tempestade está
se formando e as ondas são fortes — ele gosta da força delas. A
chuva cai e os raios estouram ao redor, o que só aumenta a di-
versão. Agora ele é um surfista incrível. Está feliz como uma
criança, enquanto os “adultos” conversam na areia. Sente-se feliz
longe deles. O que se chama Lumar arenga incessantemente,
como se ele fosse o capitão. Stukeley não entende por que Sidó-
rio não o põe no devido lugar. O que se chama Olin fala pouco,
mas o modo como observa a gente é irritante. Seus olhos se fi-
xam e não se afastam. Se você os encara, seus olhos começam a
queimar sob a intensidade do olhar dele.
A única de quem Stukeley gosta é a garota — Mistral. Ela
sempre sorri para ele e abre espaço para ele junto à fogueira.
Stukeley gostaria que Mistral tivesse aparecido sem os outros
dois. Ela é um bom acréscimo à tripulação. Seria bom se os ou-
tros fossem embora! Mas ficam grudados como cracas ao capi-
tão.
Por fim Stukeley se cansa de surfar e cavalga a última onda
em direção à praia. Seus pés batem na areia e, como sempre, as
roupas e a pele ficam secas — mesmo sob a chuva forte. Ele
corre pela tempestade em direção à fogueira. A princípio imagi-
na como eles a mantêm acesa no meio da tempestade e como se
ouvem conversando acima do rugido dos trovões e da batida do
mar nos penhascos. Mas, ao chegar à fogueira, percebe que o
ruído da tempestade diminui. Além disso, a areia está perfeita-

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mente seca ali. É como se estivessem protegidos da tempestade
por um globo invisível.
Mistral se vira e sorri para ele. A luz de seu olhar é mais
brilhante do que a própria fogueira.
Ele joga a prancha no chão e se junta ao círculo.
— E então — diz, decidindo que tentará ser amistoso —, o
que vocês estão falando?
— Ah, tenente Stukeley — diz Lumar, levantando os olhos
e sorrindo sem nenhum traço de cordialidade. — Falamos de
muitas coisas.
— Muitas coisas, tenente Stukeley — repete Sidório.
Stukeley sente os olhos famintos de Olin sobre ele. Recu-
sa-se a retornar o olhar, em vez disso espia as chamas. E sente
uma mão macia no ombro.
— Estamos planejando o próximo estágio — diz Mistral.
Stukeley se vira para ela. Mistral estende os dedos para sua
testa e empurra para trás uma mecha de cabelos revoltos. Ele
estremece ao toque. Ela sorri de novo.
— O barco em que viemos é pequeno demais para todos
nós — diz Lumar. Algumas vezes a voz dele é suave demais.
Stukeley mal consegue ouvir as palavras. Mas Lumar sempre
senta ao lado de Sidório e o capitão sempre ouve suas palavras,
como se elas derramassem mel em seus ouvidos.
— O nosso bote também é pequeno demais — anuncia
Sidório.
Cinco pares de olhos se viraram para os dois pequenos
cascos amarrados ali perto. Eles balançam na água agitada — o

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oceano é como um cavalo tentando derrubar os cavaleiros, mas
os barquinhos aguentam. Stukeley olha com carinho para o bote.
Ele serviu muito bem aos objetivos quando eram apenas o capi-
tão, Stukeley e as pranchas de surfe- Há quanto tempo foi isso?
Parece uma eternidade.
— Precisamos de um navio — diz Lumar baixinho.
— Precisamos de um navio — estrondeia Sidório.
— É — diz Lumar, assentindo, como se a idéia fosse nova.
— É, precisamos de um navio.
— Um navio. — São as primeiras palavras que Olin falou
na presença de Stukeley durante toda a noite.
— O nosso plano é o seguinte — diz Mistral, sorrindo para
Stukeley. Ele está preparado para concordar com qualquer plano
que ela sugira.
Sidório se levanta. Sem dizer nada, afasta-se do círculo, in-
do para os barquinhos.
— Venham — diz Lumar aos outros. — Esta noite vamos
viajar ao longo do litoral. Veremos que navios estão nestas águas
e vamos pensar mais sobre isso.
— É uma boa idéia? — pergunta Stukeley, esquecendo, por
um momento, seu ódio por Lumar. — Não vamos ter problema
nesta tempestade?
Lumar sorri, dessa vez um sorriso inteiro, de verdade. É o
sorriso mais maligno que Stukeley já viu.
— O tempo não precisa mais incomodar você, tenente.
Não há mais tempestade para nós.

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111

As palavras de Lumar se mostram verdadeiras. Por mais que o


tempo fique violento ao redor, de algum modo o pequeno bote
se move com firmeza pelas águas, como se elas estivessem cal-
mas. E a chuva não encharca os cinco passageiros. De novo
Stukeley imagina que eles estão protegidos por um pequeno
globo.
Mesmo assim, pensa ele, o bote, ainda que maior do que o
barco em que os outros chegaram, é realmente pequeno demais.
Um navio seria melhor. Num navio ele poderia ficar longe de
Lumar e Olin sempre que quisesse. Um tenente teria seu próprio
alojamento. E, num navio, ele poderia ficar a sós com Mistral.
Quanto mais pensa nisso, mais vê as possibilidades. Quer um
navio. Quer agora. É assim que seu apetite funciona ultimamen-
te.
Mas, enquanto o bote se mantém junto à costa, eles não
passam por nenhum navio. O mar está abandonado — porque
nenhum navio acha bom enfrentar aquelas águas.
— Paciência! — diz Lumar, sorrindo de novo. — Precisa-
mos ter paciência. Todos os nossos desejos se realizarão. Se não
esta noite, logo.
Stukeley detesta o modo como Lumar fala. Palavras gran-
diosas. Que não dizem nada. Ele parece ter necessidade de ocu-
par todo o espaço. Melhor ficar quieto. Quieto como o capitão.
O capitão, que o trouxe de volta do outro lugar.

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Continuam navegando, rodeando a ponta do litoral. Stuke-
ley vê a chuva golpear os penhascos escuros — gotas d’água i-
luminadas pelo luar suave. Arbustos esparsos parecem esticar-se
da borda do penhasco. Alguns são arrancados pelo vento e caem
nas águas negras. O bote continua, imperturbável. Eles viram a
ponta do penhasco e, ao fazer isso, vêem luzes à distância. Luzes
num morro.
— O que é isso? — pergunta Lumar.
Todos levantam os olhos quando um grande arco aparece.
As luzes e o arco provocam um leve reconhecimento em
Stukeley.
— É um porto? — pergunta Mistral.
— Atrás desse arco? — diz Lumar. — É, acredito que sim!
— Vamos olhar mais de perto? — pergunta ela.
Lumar se vira.
— O que acha, capitão?
Todos olham para Sidório.
Ele está de pé, olhando na direção do grande arco e através
dele. Há uma expressão estranha em seu rosto.
— O senhor parece perturbado, capitão — diz Lumar. —
O que o está perturbando?
Sidório não responde imediatamente. Seus olhos espiam
através do arco, por sobre a água, até o cais, e depois o morro
acima.
— A garota — diz ele finalmente.
— A garota? — repete Lumar.
— Que garota? — pergunta Mistral.

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Sidório balança a cabeça devagar.
— A garota do livro. — Fala ao mesmo tempo para si
mesmo e para os outros.
— Acho que não estou acompanhando, capitão — diz
Lumar. Dessa vez a frustração em sua voz é evidente.
O bote chegou ao arco. Agora o arco está protegido, como
o barco, da chuva e dos raios. Sidório continua de pé, olhando à
distância. Stukeley levanta-se, juntando-se a ele.
— Cuidado, idiota! — diz Lumar. —Vai desequilibrar o
barco.
— Certamente nada pode desequilibrar este barco, não é?
— diz Stukeley com um sorriso.
Lumar o encara irritado.
— Olhem — diz Mistral, apontando para as letras gravadas.
— É uma academia.
Academia. A palavra provoca um eco em algum lugar da
mente de Stukeley. Assim como o arco e as luzes no morro. Ele
sabe o bastante para perceber que já esteve aqui antes.
— Devemos passar pelo arco? — pergunta ele a Sidório.
— A garota e o livro — repete Sidório. — Ela conhece a
minha história.
Stukeley assente, encorajando.
— Gostaria que a gente passasse pelo arco, capitão?
Mas não há resposta. Agora os olhos de Sidório estão va-
zios. Todos vêem isso. No lugar dos seus olhos há poços de fo-
go. A fome o está dominando. E é contagiosa. Cada um começa
a sentir a mesma fome premente, subindo por dentro. Até que

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cinco pares de olhos estão em chamas, como faróis na noite es-
cura.

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CAPÍTULO 31

Entrando no fogo

Grace empurrou os postigos do quarto e saiu à varanda. Mesmo


úmida, a noite escura estava quente e abafada, e a chuva não di-
minuía o calor. Se fosse possível enchente e fogo ao mesmo
tempo, a sensação seria essa.
A tempestade se apoderara da Academia e agora assolava
os jardins como uma matilha de feras selvagens. As árvores es-
tavam sendo sacudidas por mãos invisíveis que as curvavam
como ossinhos da sorte, prontos para se partir. Os canais de á-
gua, geralmente plácidos, borbulhavam como corredeiras, des-
cendo do terraço para o cais. E lá embaixo, lá no porto, os bar-
cos da Academia eram sacudidos violentamente pelas águas es-
curas e turbulentas que esta noite viam ser negado seu sono pa-
cífico.

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Grace olhava tudo aquilo, enquanto a chuva quente en-
charcava sua pele, o cabelo e as roupas. Olhava tudo e pensava
na noite, havia cerca de três meses, em que testemunhara pela
última vez uma tempestade assim — não do abrigo relativo de
uma varanda, e sim nas próprias águas escuras. Olhava tudo a-
quilo e pensava nos Vampiratas. Era o tempo perfeito para se
reunir a eles.
Sentiu um ombro roçar no seu e se virou, vendo que
Cheng Li havia se juntado a ela na varanda. Grace sorriu, cheia
de objetividade.
— Tem certeza absoluta disso? — perguntou Cheng Li.
Grace confirmou com a cabeça.
— Tenho.
Cheng Li pousou a mão no ombro de Grace por um ins-
tante. Juntas, olharam o tumulto da tempestade.
— Você sabe o risco que está correndo?
As palavras quase se perderam no súbito rugido do trovão.
Grace esperou que ele passasse, antes de responder.
— Vale o risco. — Pensou em Lorcan e sentiu a adrenalina
jorrar no corpo. — Venha, vamos fazer isso agora, antes que eu
perca a coragem.
Retornou ao quarto. Cheng Li foi atrás, fechando os pos-
tigos.
— Você deveria deixar um bilhete para Connor.
— Achei que você poderia contar a ele.
Cheng Li pensou por um momento.
— Um bilhete seria melhor.

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— Certo — disse Grace, não querendo perder mais tempo.
Não querendo desperdiçar essa tempestade. Mas o tempo ruim
duraria a noite toda. Mais alguns minutos não seriam decisivos.
Grace abriu cuidadosamente a caixinha que Darcy lhe dera
e pegou uma caneta e um dos cadernos. Relutante em estragar
os cadernos, que haviam assumido um significado especial, tirou
uma página dupla do centro. Alisou a folha e pensou no que es-
creveria. A inspiração veio rapidamente. Rabiscou as palavras,
depois soprou a tinta para secar mais depressa. Ao fazer isso,
algumas gotas de água da chuva caíram de seu cabelo molhado
sobre a folha. A água encontrou a tinta não totalmente seca e
borrou a escrita. Estava uma sujeira, mas ainda era legível, e ela
não queria perder mais tempo recomeçando.
Depois de esperar um momento, dobrou o papel e então
— com cuidado para manter o cabelo molhado longe — acres-
centou um “C” do lado de fora, e o deixou sobre a mesi-
nha-de-cabeceira.
Guardou a caneta e o caderno de volta na caixa e a trancou
de novo. Incomodava-a deixá-la para trás, mas pelo menos po-
deria levar a chave, e ninguém a abriria. Era uma bobagem,
pensou, toda essa confusão por causa de alguns cadernos secre-
tos. Mas, afinal, ela possuía muito pouca coisa ultimamente, a-
lém daqueles segredos.
— Pronta? — perguntou Cheng Li, que estava de costas
para Grace, olhando a tempestade.
Grace confirmou com a cabeça.
— Vamos.

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Cheng Li manteve a porta aberta para ela e as duas saíram
para o corredor escuro, andando rapidamente e em silêncio ao
longo da fileira de portas fechadas, descendo a escada e indo
para o jardim da Academia.
— Tenha cuidado — disse Cheng Li, gritando acima do
vento uivante, enquanto chegavam à grama golpeada pela chuva.
— Você não vai querer escorregar.
Grace assentiu. De jeito nenhum iria escorregar agora. Es-
tava mais convencida do que nunca. Esse era o único caminho.
As duas estavam encharcadas pela tempestade enquanto
desciam o morro. Nenhuma outra alma havia se aventurado ao
ar livre e, ao olhar para trás, Grace viu que todos os postigos da
Academia estavam muito bem fechados. Ninguém testemunhava
os movimentos das duas.
Por fim chegaram ao cais. Grace parou para recuperar o
fôlego. As águas do porto pareciam uma sopa que tivesse fervi-
do demais, o líquido grosso pulando e espirrando sobre as bor-
das de pedra. Felizmente a lua — e os clarões intermitentes dos
raios — traziam luz à escuridão quente.
Cheng Li disse alguma coisa, mas suas palavras foram aba-
fadas pelo trovão. Grace notou que o pé de jacarandá fora tão
sacudido que o banco e o caminho do porto estavam cobertos
de flores azuis. Depois da tempestade, a árvore que um dia fora
linda estaria quase nua. Era uma visão triste, mas Grace não po-
dia se dar ao luxo de ficar pensando nisso.
Cheng Li veio para mais perto.
— Vamos até o fim da muralha do porto.

1 328 1 
 
Grace ergueu os olhos. À sua frente, o quebra-mar serpen-
teava, entrando na água. De cada lado as ondas subiam contra
ele, deixando uma trilha de espuma nas pedras lisas. Ir de uma
ponta à outra seria um desafio. Mas Cheng Li estava certa.
Quanto mais longe ela entrasse na água, maior a chance de que o
navio Vampirata chegasse depressa para pegá-la, antes que as
águas negras a arrastassem para além até mesmo do alcance de
um vampiro.
As roupas molhadas já a puxavam como uma correnteza
submarina. Grace subiu os degraus até o topo da muralha.
Cheng Li foi atrás. Seguravam-se uma à outra para apoio en-
quanto avançavam. De cada lado as águas eram agitadas e im-
previsíveis. As duas foram obrigadas a parar um momento
quando uma onda desgarrada saltou sobre as laterais do que-
bra-mar. Assim que a água se afastou, elas foram em frente.
Grace estava gelada até os ossos, apesar do calor da chuva.
O fim do quebra-mar mergulhava em direção às águas es-
curas e agitadas. As duas ficaram lado a lado à beira d’água —
aliadas contra a tempestade. Então Grace avançou e Cheng Li
recuou. Tinham chegado o mais longe que podiam juntas. Agora
a situação estava por conta de Grace. Ela olhou para o arco da
Academia, mais adiante na água, marcando a separação entre a
muralha e o oceano adiante. Através dele, uma turva névoa
obscurecia o horizonte. Será que o navio já poderia estar lá —
pairando do outro lado do arco, envolto em névoa — esperando
por ela? Seu coração quase se partiu de tanta saudade. Tomara
que ele estivesse lá. Tomara que fosse verdade.

1 329 1 
 
Grace se virou e Cheng Li estava tremendo.
— Vá para dentro — disse. — Vai dar tudo certo.
— Mas e se eles não vierem? — perguntou Cheng Li. As
duas estavam gritando acima do barulho da tempestade.
— Eles virão — gritou Grace.
— Mesmo assim... — disse Cheng Li, enraizada no mesmo
lugar.
Grace balançou a cabeça.
— Isso não é um jogo, Cheng Li. Eles precisam achar que
estou correndo perigo de verdade. Preciso estar correndo perigo
de verdade. Foi por isso que me procuraram da última vez. Se
souberem que você está aqui, talvez não venham. Tenho de fa-
zer isso sozinha. — Agora tudo era claro demais para ela.
Cheng Li olhou para Grace com uma intensidade que a a-
travessava. Adiantou-se como se fosse abraçá-la, mas então se
conteve.
— Eu sempre soube que você era extraordinária — disse
ela. — Boa sorte, Grace.
Com isso ela se virou e voltou cambaleando pelo quebra-
mar. Grace ficou olhando, pensando em como a srta. Li parecia
subitamente pequena e frágil, emoldurada pelo poder da tem-
pestade. Até as duas katanas às costas pareciam inúteis agora —
pouco mais do que agulhas de tricô diante das forças da natureza.
Pensou de repente no jogo infantil — pedra, papel ou tesoura. Era
estranho como cada opção se tornava inútil, dependendo do que
a gente enfrentava.

1 330 1 
 
Enquanto Cheng Li sumia na noite, Grace se virou de no-
vo para a água. Para além do arco, a névoa estava ficando mais
densa. Porém, acima dela, a lua escorregou para fora da cober-
tura de nuvens e um raio de luz brilhou no rosto de Grace. Ela
teve uma súbita sensação de calma. Esse era o seu momento. Foi
até a borda, como se estivesse no trampolim da piscina munici-
pal de Baía Quarto Crescente. Como se essa fosse apenas outra
aula de natação na tarde de sexta-feira.
— Saindo da frigideira para o fogo — gritou. Em seguida
pulou da beira do quebra-mar para a água.
Foi um choque gelado. Mergulhou abaixo da superfície. De
repente ficou isolada do barulho da furiosa tempestade acima.
Aqui era uma escuridão de breu e totalmente calmo. Prendeu o
fôlego, estendendo os membros e flutuando abaixo do furor por
um momento. Enquanto o fôlego começava a se esgotar, em-
purrou os braços para baixo e nadou de volta à superfície. Em-
purrando a cabeça para cima e para fora da água, ficou chocada
com o ar gelado da noite e o ruído da tempestade. Agora ela pa-
recia mais barulhenta — mas não dava para saber se era por
causa do contraste com a calma embaixo ou porque o tempo
havia piorado.
Olhou ao redor, esperando algum sinal do navio. Não exis-
tia. Era cedo demais. Olhou de novo para o porto. Cheng Li de-
saparecera, como ela havia mandado. Grace foi tomada por um
pânico momentâneo. O que, afinal, tinha pensado — jogar-se
nas ondas violentas no meio da tempestade? Era loucura! Nesse

1 331 1 
 
momento teve uma visão súbita do pai, de pé no quebra-mar,
olhando para ela com um sorriso.
— Algumas vezes loucura é sabedoria, Grade.
Sorriu de volta para ele. Então uma onda golpeou o que-
bra-mar e ele desapareceu. As águas subiam ao redor e ela soube
que estava sozinha — absolutamente, definitivamente sozinha.
Lutou contra as ondas com coragem, sentindo-se carregada
cada vez mais para longe da borda do quebra-mar, em direção
ao arco. O mar era mais frio aqui e sua energia estava se esgo-
tando. Certamente já era hora de o navio aparecer através do
arco, não? Sem dúvida eles não esperariam que ela lutasse mais
ainda, não é?
Perdeu toda a noção de tempo. Talvez tivesse se passado
uma hora ou apenas alguns segundos. Imagens relampejavam
em sua cabeça como um filme repassando as cenas de sua vida.
Estava de volta a Baía Quarto Crescente, durante o enterro do
pai; partindo com Connor no barco; acordando no navio Vam-
pirata; esgueirando-se para a cabine do capitão; encarando Sidó-
rio; comparecendo ao Festim... as cenas passavam cada vez mais
devagar, como se o rolo de filme tivesse embolado e se partido.
E então as imagens pararam totalmente. E havia apenas a escu-
ridão de breu, penetrando através de sua cabeça, das mãos e dos
pés. Estava chegando ao fim de alguma coisa. Se eles não vies-
sem agora, seria o fim.
Mergulhou de novo e sentiu as ondas a engolirem inteira.
Estava começando a afundar, como uma pedra, através das ca-

1 332 1 
 
madas de água. Mesmo assim se sentia estranhamente calma.
Havia arriscado tudo. Estava errada. Agora, o que lhe restaria?
Houve um momento de vazio absoluto. Talvez o primeiro
de muitos momentos assim.
E então sentiu o choque de duas mãos envolvendo seus
ombros e a puxando. Puxando-a de volta para cima, através da
água. Lorcan. Tinha de ser Lorcan! Ele havia demorado. Mas
tinha vindo pegá-la, como ela sabia que iria acontecer. Não pôde
evitar um sorriso quando seu corpo ficou frouxo.

1 333 1 
 
CAPÍTULO 32

Alma perturbada

— Lorcan, Lorcan, você veio. Eu sabia.


De novo estava encarando os olhos azuis. O ferimento es-
tava totalmente limpo, como se o ato de salvá-la o tivesse salva-
do também, de algum modo. Claro. Como se ela precisasse de
mais algum sinal de que o destino dos dois estava ligado.
— Grace!
Ela sorriu para ele, em êxtase — perdendo-se de novo no
azul.
— Grace!
Agora sua visão estava turva. Ela o estava perdendo. Teve
uma súbita sensação de pânico.
— Grace!
Não era a voz dele. Era...

1 334 1 
 
— Connor!
Seus olhos se abriram e ela se viu olhando os olhos do ir-
mão. Não conseguiu se situar. Era como se alguém tivesse sim-
plesmente puxado a cabeça de Lorcan para longe e revelado a do
irmão por trás. Connor deu um suspiro de alívio mas havia uma
raiva e uma dor terríveis em seus olhos verdes
— Onde está Lorcan? — perguntou ela.
Ele balançou a cabeça.
A cabeça de Grace estava apoiada num travesseiro. Ela o-
lhou para além de Connor. Estava numa cama. Num quarto e-
norme, mal iluminado e cheio de outras camas — vazias. O que
era este lugar? Nunca estivera ali antes.
— Onde estou?
— Na enfermaria, Grace.
Os lábios de Connor não tinham se mexido.
Grace virou a cabeça para o lado.
Um rosto de mulher olhava para ela. O olhar era mais in-
terrogativo do que solidário.
— Sou a enfermeira Carmichael — disse ela. — Cuido da
enfermaria aqui da Academia, senhorita. Você está sob meus cui-
dados agora.
Grace sentiu um súbito tremor. Sua missão havia fracassa-
do. O navio Vampirata não viera pegá-la. Lorcan não a havia
resgatado. Então quem fizera isso?
Uma gota d’água caiu em sua testa. Olhou para cima. O
cabelo de Connor estava molhado. Assim como o rosto, o pes-
coço e, pelo que dava para ver, as roupas.

1 335 1 
 
— É um milagre você ter chegado até ela a tempo — ouviu
a enfermeira Carmichael dizer. Seu sotaque, ironicamente, não
era muito diferente do de Lorcan.
— Eu a vi da janela do quarto dela — explicou Connor,
com a respiração curta. — A lua saiu de trás das nuvens e eu a vi
parada no quebra-mar. E pulando. Corri até lá... nunca corri
tanto na vida.
Grace olhou para Connor de novo. Ele estava chorando,
lutava para continuar falando.
— Por que fez isso, Grace?
— Para encontrar os Vampiratas de novo. — Não era ób-
vio?
— Mas... se matando?
— Não. — Ela balançou a cabeça. — Claro que não.
Suas palavras foram interrompidas pela enfermeira Carmi-
chael.
— Sua irmã é uma alma muito perturbada, acho.
Alma perturbada? O que ela estava falando?
— Encontrei seu bilhete — disse Connor.
Grace ergueu os olhos. Nas mãos dele, desdobrado, estava
o bilhete que ela havia rabiscado às pressas. Suas palavras eram
claras, apesar das manchas.

Connor,
Por favor não fique com raiva de mim.
Precisei fazer isso.
Você tem sua viagem e eu tenho a minha.

1 336 1 
 
Estaremos juntos de novo em breve.
Até lá, com amor, Grace.

— Que bilhete terrível para um irmão encontrar — disse a en-


fermeira Carmichael. — Que modo terrível de dizer adeus.
O que ela estava falando? Não era um bilhete de despedida.
Bem, não era esse tipo de bilhete de despedida. Eles estavam
entendendo tudo errado. Grace ficou cheia de frustração, e não
só porque, apesar de todos os pensamentos que corriam por
dentro, sua capacidade de falar estava muito prejudicada. Como
se ainda estivesse flutuando sob a superfície da água. Lutou para
romper a dificuldade enquanto ouvia um jorro de palavras passar
de Connor para a enfermeira Carmichael e de volta.
— Pergunte a Cheng Li — conseguiu empurrar as palavras
para fora.
— O quê? — perguntou Connor.
— Pergunte a Cheng Li. Ela vai contar. Ela sabia do plano.
— Grace inspirou e expirou de novo. — Ela me ajudou.
— Que absurdo! — disse a enfermeira Carmichael. — Que
calúnia! A srta. Li está dormindo. Isso é mais loucura dela, eu
acho.
Loucura. A palavra serpenteou pela cabeça de Grace. De
novo viu seu pai parado à beira do quebra-mar.
Algumas vezes loucura é sabedoria, Grace.
— É melhor ir dormir um pouco, meu rapaz — disse a
enfermeira Carmichael.

1 337 1 
 
— Eu não deveria ficar com ela? — Grace pôde ouvir a
tristeza na voz de Connor. Como poderia tranquilizá-lo garan-
tindo que estava bem? Seu plano podia ter fracassado, mas não
era o plano que ele imaginava.
— Não há sentido nisso — disse a enfermeira. — Vou fa-
zê-la dormir num instante. Ela vai apagar rapidinho. É o melhor
para ela.
Fazê-la dormir? Como? Grace levantou a mão para a de
Connor, com uma súbita premonição.
Tarde demais. A picada da agulha não foi mais funda do
que uma picada de mosquito, mas num segundo a deixou ator-
doada e ela afundou ainda mais no vazio.
A última coisa que ouviu foi a enfermeira, cujo sotaque era
uma distorção maligna do de Lorcan, dizendo:
— Pronto. Agora está em segurança.

1 338 1 
 
CAPÍTULO 33

Um plano simples

É um plano simples: tomar um navio. Não importa que navio. E,


com relação ao quando, bem, quanto antes, melhor. Mas, se não
for esta noite, amanhã ou depois de amanhã estará bem. Essas
coisas valem ser pensadas por um instante ou dois, dependendo
do quanto os acontecimentos desta noite forem decisivos.
Tomar um navio marcará o início da segunda fase. Há cin-
co deles agora, e logo, se desse para acreditar em Sidório e Lu-
mar, haveria mais, muito mais. Eles não podem simplesmente ir
de baía em baía numa confusão de botes a remo, como ciganos
da água. Claro que não! Precisam de um navio para começar — e
planejar mais. Isso não apenas faz sentido prático como passa
uma mensagem clara. Eles terão de ser vistos como uma força!

1 339 1 
 
Não haverá mais perambulações sem objetivo, percebe
Stukeley com uma leve tristeza — nada de entrar numa nova
baía a cada noite e montar acampamento. As coisas começaram
a mudar no momento em que os três estranhos chegaram. Sidó-
rio despertou para um novo propósito. Lumar, especificamente,
parece ter o efeito de impeli-lo adiante em pensamento e ação.
Sua presença funciona como uma espécie de alquimia em Sidó-
rio — transformando o metal básico de suas idéias primais e
confusas em aço limpo e resoluto. A princípio Stukeley suspei-
tou que Lumar simplesmente fosse tomar o controle, mas ele
parece bastante contente com a permanência de Sidório como
capitão. Pelo menos por enquanto. Há em Lumar algo de que
Stukeley não gosta, ou em que não confia.
O plano, em si, os levou a vigiar navios nas últimas noites a
partir de um farol deserto onde montaram uma base improvisa-
da. Como muitas outras coisas na construção meio em ruínas, a
lâmpada estava quebrada, mas Lumar e Olin decidem consertá-la.
Agora o farol voltou a funcionar, lançando uma luz nas águas
escuras da baía cheia de pedras. Os observadores na sala da
lâmpada não precisam da luz para ver qualquer navio que entre
na baía. Esse não é o objetivo — o objetivo é atrair o navio até
eles, atraí-lo para perto do litoral rochoso, uma mosca apanhada
em sua teia coberta de mel.
Na noite da tempestade, os cinco estão reunidos na sala da
lâmpada. Stukeley odeia ficar lá em cima. Não há espaço para os
cinco e a intimidade forçada apenas o deixa mais consciente de
que é um estranho em meio a antigos aliados. Num lugar tão

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confinado, o calor da lâmpada é insuportável. A brilhante bola
de luz o amedronta, o faz lembrar o sol, e ele tem consciência
demais do dano que o sol pode lhe causar agora — em parte por
instinto, em parte pelas lições que Sidório inculcou nele. Lumar
vê seu medo e ri.
— Não se preocupe, Stukeley, ainda vamos transformar
você num vampiro! Você vai ver!
E Stukeley fica quieto, mas quer dizer: “Já sou um. Está-
vamos indo muito bem antes de vocês saírem da noite. E ainda
sou tenente.” Mas não diz nada e se preocupa com o fato de que
Sidório já não o chama de tenente há vários dias. Agora todos o
chamam de Stukeley, o velho e simples Stukeley. Como se o ti-
vessem rebaixado sem nem mesmo se incomodar em lhe dizer.
Ele precisa fazer algo para lembrar ao capitão o seu valor. Mas o
quê?
Não precisa esperar muito pela resposta. A tempestade traz
um navio na direção deles. Houve outros navios em outras noi-
tes, mas, com o tempo ameno, não precisaram de abrigo dentro
da baía. Prosseguiam velejando e passavam, sem sequer um a-
ceno de agradecimento, para a sala da lâmpada.
Este navio, esta noite, é diferente. A tempestade é elétrica.
Stukeley adora olhá-la desse poleiro. É como se estivesse senta-
do acima da tempestade. Como se lançasse dardos de trovão e
lanças de raio contra a lamentável embarcação lá embaixo.
— Capitão, olhe só!
Lumar gira a lâmpada por sobre a água. Sidório e os outros
vão rapidamente até as janelas, localizando o navio. Este batalha

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bravamente contra as forças da natureza que atacam de todos os
lados.
— Então está certo, vamos — diz Lumar.
Sidório tosse. Só ele pode dar ordens.
— Isto é, devemos ir, não é, capitão? Essa é a oportunida-
de que estávamos esperando, não é?
— É — estrondeia Sidório. — Venham, venham todos. O
navio será nosso.
Ele sai ao parapeito. Stukeley o acompanha para a tempes-
tade, olhando para cima enquanto uma torrente de água vem em
sua direção. Stukeley volta rapidamente para dentro, mas Sidório
gargalha. Fica ali parado, na mureta, examinando a paisagem de
terra e mar como se fosse o imperador daquilo tudo. Então, com
um grito, mergulha na escuridão, dando um salto mortal no ar.
— O capitão está animado — diz Lumar aos outros, com
os olhos luminosos. — Venha, Mistral; venha, Olin, vamos nos
juntar a ele. Stukeley, fique aqui e mantenha a lâmpada acesa até
darmos o sinal.
Quando isso foi decidido? Isso é algum ardil do Lumar.
Os três começam a descer enquanto Stukeley fica sozinho
— preso com a bola de luz que passou a detestar. Direciona o
facho para as velas do navio, transformando aquilo num jogo.
Observa o navio achar o caminho para fora das piores corrente-
zas entrando no abrigo mais calmo da baía, até perto da rocha ao
pé do farol.
Stukeley sobe com a luz pelas velas do navio, até o cesto de
gávea. Faz com que ela brinque na bandeira — o crânio com as

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tíbias cruzadas. É um navio pirata, percebe. Ele próprio já não
foi pirata? Ou teria imaginado isso? Está ficando muito confuso
— incapaz de separar os sonhos das lembranças. É tudo uma
confusão na cabeça. Algumas vezes é mais fácil não pensar com
muita intensidade — só fazer o que mandam e viver o momen-
to.
Volta com a luz por sobre o navio. Algo se registra em sua
memória — como uma pedra jogada na água, lançando peque-
nas ondulações. Mas a ondulação basta para fazê-lo parar, obri-
ga-o a pensar, ainda que pensar seja difícil. Há de fato algo fami-
liar neste navio.
Embaixo, o capitão e os três cúmplices estão partindo para
o navio em seu pequeno bote. Stukeley vê o bote entrar na água.
Quando saem da costa, são rapidamente impelidos para o navio.
Stukeley direciona a luz para eles até que, para sua perplexidade,
vê Lumar sinalizando freneticamente em sua direção, os braços
se cruzando para trás e para a frente com velocidade cada vez
maior. Stukeley entende o que ele está dizendo — não é idiota
—, mas mesmo assim espera um momento antes de mover a
claridade da luz para longe, para o convés do navio.
O convés. Olha para baixo. Piratas, do tamanho de formi-
gas, estão correndo de um lado para o outro, escorregando na
superfície molhada. De novo uma leve lembrança se agita. Ele já
esteve naquele convés.
O pequeno bote chegou ao lado do navio e agora os quatro
colegas começam a subir. Essa será a parte mais desafiadora.
Sidório é mais ágil do que os outros. Vai primeiro. Depois Olin,

1 343 1 
 
em seguida Mistral, levando um cesto coberto. Lumar é o quarto.
Stukeley olha enquanto eles chegam ao convés. Vê um dos pira-
tas parar subitamente e notar os recém-chegados. E é então que
vê um rosto familiar. Fascinado, pasmo, olha para baixo. Sente
um frio se espalhando como se um buraco tivesse sido aberto
em sua nele. Abre a boca e grita.
— Nããããããããáãããããããããããããããããããããããããoooooooo!

— Leve-nos ao seu capitão — grita Sidório ao pirata.


— Viemos do farol — acrescenta Lumar — com informa-
ções sobre esse trecho de litoral e — ele aponta para Mistral —
com suprimentos.
O pirata os olha de cima a baixo e grita para um dos cole-
gas. Mas não há tempo para deliberar. Há uma calmaria na tem-
pestade que talvez não dure muito. O pirata sinaliza para eles
avançarem.
— Venham atrás de mim! — diz ele.
E eles vão: Sidório na frente, seguido de perto por Lumar,
depois Mistral e finalmente Olin. Seguem, pela estreita passagem,
para dentro do navio.
— O capitão está em sua cabine, com o subcapitão — a-
nuncia o pirata. Em seguida bate na porta.
— Quem é? Entre! — grita alguém lá dentro.
A porta é aberta.
— Capitão Wrathe, estes são quatro visitantes do farol. Vi-
eram com informações e suprimentos.

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Há uma pausa e em seguida a voz estrondeia de novo.
— Entrem, então. Entrem. Não é hora para se ficar aí nas
sombras.
— De fato — diz Lumar, avançando. — Capitão Wrathe, é?
É um prazer conhecê-lo. Meu nome é Lumar.
Os quatro entram na cabine do capitão. Olin fecha porta.

Lá em cima no farol, Stukeley examina o convés freneticamente.


Onde estão eles? Para onde foram? Mas sua lâmpada já sabe a
resposta. Conseguiram entrar. O plano simples está dando certo.
Eles não podem ser impedidos.
Mas conclui que pelo menos vale a pena tentar. Solta a
lâmpada e desce correndo a escada em espiral. Voa — dois, três,
quatro degraus de cada vez. Parece uma eternidade de degraus.
Quem sabe que maldade terá sido feita enquanto ele demora
para descer?
Sai correndo da construção para a umidade da noite. As
ondas fazem um barulho maligno. Vê o bote, vazio, preso à la-
teral do navio. Vê o outro barquinho amarrado às pedras. Pode-
ria levá-lo até o navio, mas, no fundo, sabe que é tarde demais.
Pode sentir.
E, como se precisasse de confirmação, ouve o primeiro
grito. Não demora muito até que soem outros. Mesmo acima do
rugido da tempestade, os gritos de homens e mulheres são fáceis
de discernir e distinguir.

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Vê piratas correndo de um lado para o outro no convés.
Vê-os caídos — os que não conseguiram escapar ao contato
com os quatro estranhos. Vê os outros — que tiveram mais sor-
te, mas que agora se jogam do navio para ficar livres. Eles pulam
nas águas revoltas que — mesmo não muito longe de terra —
são fundas e imprevisíveis. Deveriam economizar os gritos —
não podem se dar ao luxo de perder o fôlego.
Devia haver mais de 150 tripulantes no navio. Mas fi-
nalmente não há mais gritos. E, por mais que o som de sua ago-
nia fosse alarmante, a ausência o arrepia ainda mais. Os quatro
estranhos puseram o navio em silêncio. Stukeley testemunha
tudo. Vê os corpos caídos escorregando de um lado para o outro
no convés, agora escorregadios de sangue, além de espuma. Vê
os outros corpos lutando para sobreviver nas águas ao redor.
Sobrevivem corajosamente, mas não por muito tempo. Talvez
um ou dois — no máximo um punhado — cheguem à terra.
Resta saber se seu medo lhes permitirá sobreviver à noite.
Por fim vê uma figura familiar subir ao convés. É Sidório.
Seu peito está estufado. Sorri.
Quando os piratas saíram correndo, pareciam formigas, ri-
gorosamente diminuídos pelo sofrimento. Em contraste, Sidório
parece um gigante. Caminha até o centro do convés, equilibran-
do-se com habilidade — como se houvesse apenas trocado a
prancha de surfe comum por esta de tamanho gigante.
Sem parar um momento, ele olha para cima e encara Stu-
keley através da distância e da escuridão.

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— Tenente Stukeley! — estrondeia Sidório. — Junte-se a
nós! Há sangue para você aqui. Muito sangue. — Ele ri- — Te-
mos nosso navio! Temos nosso navio!
Suas palavras voam pelo ar e trazem um sorriso ao rosto de
Stukeley. Pronto, pensa, tendo esquecido as preocupações com a
tripulação de piratas. Ele me chamou de tenente. Ainda sou seu
tenente!
— Estou indo, capitão! — grita de volta, já correndo para
se juntar a ele.
— Temos nosso navio! — grita Sidório outra vez.
Stukeley desamarra o barquinho. Mal consegue esperar pa-
ra chegar lá.
Acima deles, a lâmpada do farol gira loucamente, ilumi-
nando o caos. O plano simples deu certo.

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CAPÍTULO 34

Depois da tempestade

Connor dormiu um sono agitado e, quando Jacoby bateu à sua


porta de manhã, ainda estava de pijama, com a cabeça pesada
como chumbo.
— Uau! Você está péssimo! — disse Jacoby, entrando no
quarto, cheio de energia e com a roupa de corrida da Academia.
— É melhor ir andando, cara. Já são 6h45.
— Acho que não posso fazer FEM hoje — disse Connor.
— Por quê? Está se sentindo mal?
Connor balançou a cabeça.
— É a Grace. Ela tentou tirar a própria vida ontem.
O queixo de Jacoby caiu.
— Não! Por quê? Como?

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— É uma longa história. Mas acabou com ela se jogando
da muralha do porto.
Jacoby balançou a cabeça. Não podia acreditar naquilo.
— Eu vi. Estava no quarto dela. Eu... eu vi quando ela pu-
lou. E corri...
Ele estava tremendo diante da lembrança. Jacoby pôs a
mão no ombro de Connor.
— Você fez bem, companheiro. Fez muito bem.
Demorou um momento até Connor controlar a respiração.
Estava decidido a não chorar na frente de Jacoby.
— Ela deixou isto — disse, entregando o bilhete de Grace
ao amigo.
Jacoby examinou as palavras.
— Uau, isso é pesado, cara. E olhe como a escrita está toda
manchada. Parece que ela estava chorando quando escreveu.
Connor assentiu. Também havia notado isso, claro.
— Não entendo — disse Jacoby. — Sei que Grace não es-
tava passando uma temporada fenomenal aqui. E sei que ela
andou meio doente. Mas por que iria querer uma coisa dessas?
— Como eu disse, é uma longa história. E é hora de você
sair para correr.
Jacoby balançou a cabeça.
— Não vou a lugar nenhum, moço. Não vou deixar você
assim. Então agora você tem tempo suficiente para contar exa-
tamente o que está acontecendo.
Connor olhou o rosto do amigo. Seria um alívio contar so-
bre a obsessão de Grace com os Vampiratas. Mesmo que fosse

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uma traição à confiança dela. Afinal, ela o havia traído do pior
modo possível na noite anterior. Agora era cada um por si.

Jacoby foi com Connor até a enfermaria. Empurraram a pesada


porta e entraram na sala comprida, cheia de camas de ferro ru-
dimentares. Só uma, no centro da fileira, estava ocupada. En-
quanto começavam a ir para lá, uma figura saiu rapidamente das
sombras.
— Ah, olá — disse Connor.
— Bom-dia — respondeu a enfermeira Carmichael, sem
sorrir. — Como dormiu?
— Não muito bem.
— Não fico surpresa. — A enfermeira balançou a cabeça.
— Que noite!
— Como ela está?
— Ainda dormindo. — A enfermeira alisou o uniforme
impecável. — É o melhor para ela.
— Vamos vê-la — disse Jacoby.
— Não há muito que ver — respondeu a enfermeira.
— Mesmo assim. — Jacoby cutucou Connor. Passaram
pela enfermeira e foram à cama onde Grace estava enfiada sob
as colchas brancas.
— Ela está pálida — disse Jacoby.
Estava mesmo. Connor olhou para a irmã. Pelo menos a-
gora ela estava serena, com o cabelo espalhado sobre o traves-
seiro, as mãos cruzadas no peito como uma antiga estátua de

1 350 1 
 
cemitério. Connor não conseguiu se conter e verificou a respira-
ção da irmã. Saía como uma brisa distante.
— Como eu disse, não há muito que ver. — A enfermeira
Carmichael apareceu junto à cama.
— Quando ela vai acordar? — perguntou Jacoby. — Tem
certeza de que ela está bem?
A enfermeira o encarou com olhos irados.
— Está questionando minha capacidade, Jacoby Blunt?
Ele balançou a cabeça.
— Eu só...
— Porque não faz muito tempo que eu esfregava hamamé-
lis em seus joelhos ralados, rapazinho. Acho que sou um pouco
mais bem qualificada para avaliar a situação, não concorda?
Jacoby levantou as mãos, derrotado, e se afastou da cama.
— Vai me avisar quando ela acordar? — perguntou Con-
nor.
— Claro — respondeu a enfermeira, num tom mais gentil.
— Mando avisar imediatamente. Mas pode demorar um tempo,
ainda. É melhor você cuidar de suas tarefas. Mente ocupada não
pensa bobagem.
Connor assentiu. Deu uma última olhada para o rosto en-
ganosamente plácido da irmã, depois se virou.
— É melhor irmos para as aulas — disse a Jacoby.
Os dois voltaram à porta.
— Bem, pelo menos isso resolve uma coisa — disse Ja-
coby.
Connor se virou para ele, interrogativamente.

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— Você não pode deixar a Academia enquanto ela não es-
tiver melhor, não é? Não importa o que o capitão Wrathe pense
a respeito.
Connor não havia pensado nisso.
— Acho que não.
Jacoby sorriu.
— Não vou dizer que há males que vêm para bem. Mas
pelo menos ela está sendo cuidada. E isso vai lhe dar mais tem-
po para pensar.
Connor assentiu. Enquanto saíam ao sol, ele sentiu o cora-
ção mais leve.
Atrás dele as pesadas portas da enfermaria se fecharam.
Nesse momento os saltos dos sapatos de dois outros visi-
tantes — que haviam entrado pela porta do lado oposto — es-
talaram no piso de mármore, indo em direção à cama de Grace.
— Diretor, srta. Li — disse a enfermeira Carmichael, as-
sentindo.
— Como vai nossa paciente? — perguntou o comodoro
Kuo.
— Como era de se esperar. O corpo continua em choque.
Eu lhe dei algo para acabar com a dor.
— Muito bom — respondeu o comodoro. Ele e Cheng Li
olharam para Grace. A enfermeira Carmichael se inclinou mais
para perto. Por algum tempo os três não disseram nada, obser-
vando a respiração da garota.
Então a enfermeira Carmichael lançou um olhar de lado
Para Cheng Li.

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— A garota falou algo antes de dormir — disse ela.
— É mesmo? — Cheng Li encarou o olhar da enfermeira
Carmichael. Não seria intimidada pela enfermeira.
— Disse que a senhorita sabia tudo sobre isso, sobre o pla-
no dela.
— Ela disse isso à senhora? — perguntou Cheng Li.
A enfermeira Carmichael se certificou de ter toda atenção
dos visitantes.
— Não a mim, especificamente. Estava falando com o ir-
mão.
— Sei — assentiu Cheng Li. A enfermeira Carmichael
pensou ter visto um olhar inquieto ser trocado entre a srta. Li e
o diretor. Fez com que seu rosto se tornasse uma máscara
— Eu disse a eles, claro, que isso era um absurdo. Que a
senhorita estava dormindo...
O diretor e Cheng Li ainda estavam com os olhares trava-
dos um no outro.
— Eu estava certa, não é? A senhorita estava dormindo, não
é?
Cheng Li abriu a boca para responder, mas foi a voz suave
do comodoro Kuo que encheu o ar.
— Não creio que a srta. Li e eu tenhamos necessidade de
nos explicar à senhora ou a qualquer pessoa — disse ele. — Es-
se foi um incidente perturbador, mas agora Grace está em segu-
rança. — Ele virou todo o facho de seu olhar para a enfermeira
Carmichael. — O melhor seria que todos cuidássemos dela e
criássemos o mínimo de confusão.

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— Ah, sim — respondeu a enfermeira, com o olhar se a-
fastando rapidamente. — Concordo. Nada de confusão.
— Então todos nos entendemos — disse o comodoro Kuo.
— E agora, se nos der licença, temos de dar aula. Vamos dei-
xá-la com seu... gentil tratamento.
Ele lhe fez uma reverência formal e levou Cheng Li rapi-
damente até a porta.
A enfermeira Carmichael olhou-os se afastar. Pensamentos
saltavam em sua mente como fogos de artifício. Olhou para a
garota adormecida. Que segredos ela poderia contar?, imaginou.
Que segredos haveria sob aquela máscara lisa e inconsciente?

Mente ocupada não pensa bobagem. As palavras da enfermeira se


mostraram verdadeiras. Assim que as aulas do dia começaram,
Connor sentiu que começava a recuperar a sensação de norma-
lidade. O tempo retornou a um calmo brilho do sol e, para a aula
de pirataria prática e navegação, do capitão Grammont, os alu-
nos foram até os barcos no porto praticar manobras. Connor
sentiu um aperto no coração ao ver o quebra-mar à luz do dia.
Jacoby apertou o ombro do amigo. E, quando Connor levantou
os olhos, a muralha do cais estava totalmente seca e as águas
permaneciam baixas dos dois lados, como espelhos refletindo o
sol luminoso. Era como se a noite anterior não tivesse acon-
tecido — como se tudo tivesse sido apenas um pesadelo.
— Venha — disse Jacoby. — Grammont está dividindo a
turma em grupos de três... Jasmine! Jasmine, espere!

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111

A manhã passou correndo e, agora que o tempo bom havia re-


tornado, eles puderam almoçar de novo no terraço.
— Alguma notícia de Grace? — perguntou Jacoby a Con-
nor.
Connor balançou a cabeça.
— Mas vou dar uma olhada antes das aulas da tarde.
— Legal. Vou com você — disse Jacoby.
— Eu também — completou Jasmine.
Connor assentiu e sorriu. Era bom saber que tinha amigos
por perto numa hora assim.
Enquanto terminava a sobremesa, Connor viu o comodoro
Kuo se aproximar, vindo do fim do terraço. Olhou para cima,
esperando que o diretor parasse e falasse com ele. Os dois não
se viam desde a tarde anterior. Kuo devia saber sobre Grace, e
Connor tinha certeza de que ele teria algo a dizer a respeito.
Mas o diretor não pareceu notá-lo, passando pela mesa a
passo rápido e entrando em seu escritório pela porta do terraço.
A porta bateu forte atrás dele.
Connor levantou os olhos e viu que Jacoby e Jasmine tam-
bém tinham observado.
— O que está incomodando Kuo? — perguntou Jacoby.
Connor deu de ombros.

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— Não faço a menor idéia — disse Jasmine, terminando o
último bocado de pudim de chocolate. — Humm, estava deli-
cioso. Vou passar a tarde inteira na energia desse açúcar!
— Eu também — concordou Jacoby. — A oficina de
combate vai ser divertida hoje! — Em seguida se virou para
Connor. — Vamos dar uma olhada na sua irmã?
Connor estava perdido em pensamentos.
— Chamando o sr. Tormenta! Terra para o sr. Tormenta!
— O que foi?
— Eu disse: que tal a gente dar um pulo até a enfermaria
para ver como Grace está? A gente pode até levar um bolo para
ela. Tenho certeza de que a enfermeira Carmichael só vai estar
dando líquidos nojentos.
— Parece bom — respondeu Connor. — Mas primeiro
acho que vou trocar uma rápida palavrinha com o comodoro
Kuo.
— Tem certeza de que é uma boa idéia? — perguntou
Jasmine. — Ele não parece com humor para bater papo.
— É exatamente isso. Acho que o humor dele pode ter al-
guma coisa a ver comigo e Grace. Se eu falar com ele, talvez
possa resolver a situação.
Pela expressão dos dois, dava para ver que não achavam
boa idéia. Mas Connor sabia. Além disso, os colegas não tinham
idéia das conversas entre ele e o comodoro Kuo. Sabia que o
diretor teria opiniões sobre o que acontecera com Grace, e que-
ria ouvi-las. Levantou-se e empurrou a cadeira sob a mesa.
— Vão ser apenas cinco minutos — disse ele.

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— Tudo bem — respondeu Jacoby. — Acho que vou ter
de suportar cinco minutos sozinho com a srta. Pavão. — Ele
fingiu tédio. Enquanto Jacoby bocejava, Jasmine jogou uma
framboesa nele. Acertou no nariz, deixando uma mancha ver-
melho-sangue.
Connor riu e caminhou pelo terraço. Havia planejado ir até
a porta do diretor passando pela Rotunda, mas, ao passar diante
do escritório, viu que a porta de vidro que dava no terraço esta-
va aberta. Devia ter voltado a se abrir depois de ser batida por
Kuo. Enquanto se dirigia para lá, Connor escutou a voz do di-
retor.
— As coisas estão fugindo ao controle.
Nunca ouvira aquele aço na voz do comodoro. Isso o fez
parar imediatamente.
— Achei que era isso que você queria.
Era Cheng Li. Agora Connor se imobilizou.
— É uma situação muito delicada — ouviu Kuo dizer. —
Nós estávamos com ele exatamente onde queríamos mas é uma
linha tênue.
Estariam falando sobre ele? Deviam estar. Ou seria apenas
arrogância pensar isso?
— De fato não sei o que mudou — disse Cheng Li. — No
mínimo estamos mais perto do resultado que queremos.
Connor sentiu a cabeça começar a latejar. Se estavam fa-
lando dele, o que isso significava? Será que tinha algo a ver com
o que havia acontecido com Grace? Lembrou-se, num clarão, de
Grace dizendo que Cheng Li conhecia seu plano. A enfermeira

1 357 1 
 
Carmichael havia descartado isso como loucura, mas Grace e
Cheng Li vinham passando muito tempo juntas. Era como se
estivesse montando um quebra-cabeça mas ainda não tivesse
todas as peças.
— Connor...
Era a voz de Kuo. Então estavam mesmo falando sobre ele.
— Connor!
Não, não estavam falando sobre ele. Estavam falando com ele.
A porta do escritório de Kuo se abriu, o diretor se inclinou para
fora e o olhou com expressão curiosa.
Connor estava preso e exposto.
— Acho melhor você entrar — disse o comodoro Kuo,
chamando-o do terraço luminoso para a escuridão.

1 358 1 
 
CAPÍTULO 35

Deixando ir

O coração de Connor batia loucamente enquanto o comodoro


Kuo fechava a porta depois que ele entrou. Seus amigos estavam
a apenas alguns metros de distância, no terraço — dava para ver
as costas deles através da porta de vidro —, no entanto sentia
um perigo extremo, como se estivesse entrando voluntariamente
numa jaula do zoológico.
— Sente-se — disse Kuo.
Connor sentou-se na cadeira diante da mesa do comodoro
Kuo. Kuo sentou-se, mas Cheng Li permaneceu de pé, a mão
pousada no globo.
— Não preciso dizer — começou Kuo — que estamos ex-
tremamente chocados e perturbados com o que aconteceu on-

1 359 1 
 
tem à noite. E não posso nem imaginar como você está se sen-
tindo.
Connor ouviu as palavras e esperou. O diretor não diria
nada sobre o fato de tê-lo apanhado do lado de fora, ouvindo a
conversa? Não tentaria explicar as palavras que devia saber que
Connor havia escutado?
— Lamento terrivelmente por não ter ido falar com você
antes — disse Kuo —, mas estava envolvido com assuntos da
Federação. Isso não serve como desculpa, mas acho que devo
pedir, mesmo assim.
— Obrigado — respondeu Connor.
Cheng Li atravessou a sala, indo para o lado do diretor.
— Estamos vindo da enfermaria, Connor. Grace parece
estável agora.
Connor assentiu.
O diretor deu um sorriso.
— Como você está, Connor?
Connor deu de ombros.
— Bem, acho. Foi um choque enorme.
O comodoro assentiu.
— Quero dizer, em primeiro lugar, achar o bilhete.
— O bilhete?
Sem dúvida, o comodoro não tinha ouvido essa parte.
Connor enfiou a mão no paletó e pegou o bilhete dobrado. O
comodoro Kuo pôs os óculos e leu a letra manchada de Grace.

1 360 1 
 
— Posso? — perguntou a Connor antes de oferecê-lo a
Cheng Li. Connor assentiu. O que importava? Que todos lessem.
Que todos vissem o frágil estado mental de sua irmã.
— Então você encontrou esse bilhete e... — O comodoro
Kuo levantou as sobrancelhas, convidando Connor a prosseguir.
— Eu tinha ido ao quarto dela, conversar. Os postigos ti-
nham ficado fechados o dia inteiro. Acho que eu queria fazer
com que ela recuperasse o bom senso. Tentar fazê-la participar
da vida na Academia. Por isso fui ao quarto, mas ninguém aten-
deu. Sabia que Grace tinha de estar lá dentro, aonde mais teria
ido? Como ela não respondeu, entrei em pânico. A porta não
estava trancada, por isso entrei e vi o bilhete. A tempestade es-
tava tão ruim que a tranca da janela havia se quebrado. Os pos-
tigos balançavam no vendaval. A lua estava clara no porto, os
postigos se abriram e eu vi uma silhueta na muralha do porto.
Soube que era ela. E soube o que ela ia fazer...
Ele estava tremendo de novo. O comodoro Kuo se levan-
tou e foi rapidamente para o lado de Connor, pondo as mãos
nos ombros dele para dar apoio.
— Tudo bem — disse ele —, não precisa falar mais.
Houve silêncio no escritório enquanto Connor lutava para
recuperar a compostura.
— Mas — disse Cheng Li — por que você acha que ela fez
isso?
Connor pôde sentir um olhar sendo trocado entre o diretor
e Cheng Li, por cima de sua cabeça.

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— Você tem mais possibilidade de saber isso do que eu —
disse ele, as palavras jorrando antes que ele tivesse tempo de
censurá-las. — Você passou muito mais tempo com ela do que
eu desde que chegamos.
Cheng Li assentiu.
— É verdade. E, confesso, me sinto parcialmente culpada
pelo que aconteceu.
Connor ficou surpreso. Uma admissão daquelas era pouco
característica. Levantou a cabeça, ansioso para que Cheng Li
continuasse.
— Como você sabe, Grace ficou profundamente afetada
pelo que aconteceu no navio Vampirata — disse Cheng Li. —
Ela sente um profundo elo com a tripulação dele.
Isso não era exatamente uma grande novidade.
— Não é bom para ela — disse Connor. — Veja aonde is-
so a levou.
Cheng Li assentiu.
— Concordo. Não é bom para ela, mas é bastante natural.
O comodoro Kuo saiu do lado de Connor e voltou ao seu
lugar. Assim que sentou, dirigiu-se a Connor:
— Talvez você já tenha ouvido falar sobre a Síndrome de
Estocolmo.
Connor balançou a cabeça. O diretor escorregou os óculos
nariz abaixo e segurou as hastes.
— Em termos simples, a Síndrome de Estocolmo se refere
à forte ligação emocional que podemos formar com pessoas que
ameaçam nossa vida. É um mecanismo de sobrevivência, um

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modo de suportar a terrível violência. São necessários apenas
três ou quatro dias para que ela ocorra. E se precipita quando
somos expostos, como aconteceu com Grace, a uma situação de
ameaça de morte que é removida logo depois. Então a vítima se
inunda com um sentimento de alívio e passa a ver os captores
como os “mocinhos”, como pessoas que não a ameaçaram, mas
que na verdade a salvaram. — Fez uma pausa. — Achamos que
é disso que Grace está sofrendo.
— Desde a chegada aqui — disse Cheng Li —, deixei que
ela falasse das experiências naquele navio. Encorajei-a fazer isso.
Sei que você se sentia constrangido ouvindo essas coisas, e quem
poderia culpá-lo? Mas achei que era importante que Grace ti-
vesse alguém a quem contar.
— Pôr para fora era o primeiro passo para curá-la — disse
o comodoro Kuo.
— Mas — continuou Cheng Li — as coisas tiveram uma
reviravolta ontem à noite. O estado mental de Grace era obvia-
mente mais frágil do que eu percebia. E, como disse, acho que,
ao encorajá-la a falar sobre os Vampiratas, posso involuntaria-
mente tê-la levado a uma ação extrema.
Connor assentiu.
— Quer dizer, tentando se matar?
O diretor e Cheng Li ficaram obviamente surpresos com a
dureza de suas palavras. Mas depois assentiram.
Ele balançou a cabeça.
— Não acho que ela estivesse de fato tentando se matar.
O comodoro Kuo se inclinou adiante, fascinado.

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— A princípio achei que era a explicação óbvia — prosse-
guiu Connor. — Mas estive pensando. Não é uma coisa em que
Grace sequer pensaria. Sei o quanto minha irmã queria retornar
ao navio Vampirata. Estive tentando não pensar nisso, mas sei
que é verdade. Talvez vocês estejam certos e seja a síndrome que
o senhor mencionou. De qualquer modo, ela sente que tem al-
guma coisa inacabada por lá. Acho que, ontem à noite, estava
simplesmente tentando voltar ao navio.
Cheng Li e o comodoro Kuo olharam-no com curiosidade.
— Pulando do porto no meio de uma tempestade? —
perguntou o diretor depois de uma pausa.
Connor assentiu.
— Claro. Foi assim que ela foi parar no navio da primeira
vez. Éramos náufragos no meio de uma tempestade e um dos
Vampiratas, um sujeito chamado Lorcan, a pescou da água. A-
cho que Grace esperava que a história se repetisse.
— Isso me parece meio absurdo — disse o comodoro.
Connor sentiu que Cheng Li estava em silêncio. Ela havia
passado um tempo com Grace. Ela sabia que isso não era ab-
surdo, dava para sentir.
— Quando ela voltou a si, depois que a resgatei — pros-
seguiu Connor —, estava chamando por Lorcan. — Ele sorriu.
— Grace não estava tentando acabar com a própria vida. Como
escreveu neste bilhete, só tentava continuar sua viagem.
O comodoro Kuo balançou a cabeça devagar.
— Você é feito de matéria mais forte do que eu imaginava,
Connor. Você está de fato bem, diante de tudo isso?

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Connor assentiu, sorrindo. Era como se, enquanto falava,
algo houvesse se encaixado em seu cérebro. Ele não estava satis-
feito com aquilo, de jeito nenhum. Desde o momento em que
ele e Grace haviam se reunido no convés do navio Vampirata,
tentava apagar todos os pensamentos sobre o que acontecera
com ela. Tinha evitado ouvi-la falar a respeito, negado a chance
de pôr para fora. E, durante todo o tempo em que ela ficara
trancada com Cheng Li, ele simplesmente havia mantido a ca-
beça baixa e se ocupado com a estada na Academia. Mas agora,
de repente, via a situação como era. Desde o naufrágio, os dois
haviam embarcado em viagens. E, assim como ele não podia
voltar o relógio e se afastar da pirataria, agora entendia que a
viagem dela era igualmente impossível de ser parada. Não quise-
ra deixar Grace ir embora. Mas agora, finalmente, podia fazer
isso.
— Então onde isso nos deixa? — perguntou o comodoro
Kuo. — Ainda quer que eu faça um acordo com o capitão Wra-
the para livrá-lo do contrato e você poder ficar aqui? E começar
seu treinamento na Academia e na Federação?
Connor assentiu.
— Nada mudou.
— Claro que ele deve ficar aqui — disse Cheng Li. — Ele
não pode deixar Grace agora.
— Isso não tem nada a ver com Grace — disse Connor,
surpreso com sua própria força. — Claro, vou fazer todo o pos-
sível para ajudá-la a se recuperar. Mas temos de começar a tomar
nossas próprias decisões. Queremos coisas diferentes na vida.

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Estamos em caminhos diferentes. Ela pode ficar aqui comigo ou
pode voltar ao Diablo. Pode até voltar ao navio Vampirata, se
conseguir encontrá-lo. A decisão é dela.
Lá fora um sino começou a tocar. Através da janela Con-
nor pôde ver Jacoby e Jasmine se preparando para retornar à
aula.
— Aula da tarde — disse Cheng Li.
Connor se levantou, sentindo-se estranhamente poderoso.
— É melhor alcançar os outros.
O diretor assentiu, mastigando a haste dos óculos.
Connor pediu licença e saiu pela porta do terraço, fechan-
do-a em seguida. Depois que ele foi embora, o diretor e Cheng
Li se entreolharam.
— Devo confessar que ele me surpreendeu — disse Cheng
Li.
O comodoro Kuo sorriu.
— Você tem de aprender a confiar na maré, srta. Li. Algu-
mas vezes só é preciso sentar e esperar.

A última aula do dia para Connor foi oficina de combate. Às


quatro horas ele e Jacoby chegaram ao ginásio vestidos com
roupas de ginástica, junto com o resto da turma. O capitão Pla-
tonov esperava, mas não sozinho. Ao seu lado estava Cheng Li.
Enquanto os alunos se reuniam, Platonov bateu palmas.

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— Atenção, todo mundo. Atenção. Em um instante reto-
maremos nossa prática usual. Mas hoje devemos nos virar sem o
sr. Blunt e o sr. Tormenta.
Connor e Jacoby se viraram um para o outro, perplexos.
Seus colegas ficaram igualmente surpresos.
— Sr. Blunt, sr. Tormenta, poderiam ir com a srta. Li?
Dando de ombros, Jacoby e Connor foram para a frente da
turma. Cheng Li sorriu e levou-os pela porta do ginásio. Atrás
deles, Connor ouviu Platonov rosnando ordens para Jasmine e
os outros.
— O que há? — perguntou Jacoby a Cheng Li. — Aonde
está nos levando, srta. Li? Há alguma masmorra secreta na Aca-
demia, de que não temos notícia?
Havia um riso largo no rosto dele. Nada parecia abalá-lo,
pensou Connor.
Cheng Li parecia achar igualmente divertido.
— Que imaginação febril, Jacoby! Talvez um dia você es-
creva um livro, não é? Não, não há masmorras, pelo menos que
eu saiba.
Na verdade ela os estava levando para cima, não para baixo.
Saíram em outro corredor e então Cheng Li empurrou uma por-
ta, e eles se viram num segundo ginásio, menor.
Connor ficou perplexo. Ali dentro estava escuro. Então,
quando Cheng Li acendeu as luzes, ele viu, no centro da sala,
dois suportes de espadas e, em cada um, uma caixa de vidro.

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Os três foram caminhando sobre os tatames, até os supor-
tes. Enquanto faziam isso, Jacoby ofegou e Connor sentiu o co-
ração começando a disparar.
— É a Lâmina de Toledo — disse ele. — A Lâmina de
Toledo do comodoro Kuo.
Cheng Li sorriu.
— E o Sabre Safira de Molucco Wrathe — disse Jacoby.
— É ainda mais lindo de perto.
Connor ficou confuso
— Mas o diretor disse que essas espadas só saíam das cai-
xas no Dia.das Espadas.
Cheng Li assentiu, enquanto tirava duas chaves de um cor-
dão pendurado ao pescoço e abria as duas caixas.
— Correto, normalmente. Mas estes dias não têm sido
normais, não é? O diretor queria dar um presente a vocês
— A espada? — Connor mal podia falar enquanto Cheng
Li abria a caixa, revelando a espada em toda a sua magnificência.
— Não, não a espada em si. Mas a chance de usá-la uma
vez.
Jacoby e Connor se concentraram em cada movimento de
Cheng Li enquanto ela tirava as duas espadas das caixas e as co-
locava num suporte coberto de veludo numa mesa próxima.
— Amanhã à noite haverá outro jantar em sua honra. Ele
deveria marcar o fim de sua estada, mas agora marcará o início
de sua temporada como aluno integral aqui.

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Isso, claro, era novidade para Jacoby. Ele soltou um grito
de alegria e deu um tapa nas costas de Connor. Mas Cheng Li
não esperou para continuar.
— Todos os capitães vão comparecer. E, antes do jantar,
todo o corpo discente irá se juntar para assistir a você e ao sr.
Blunt realizarem uma exibição de luta usando estas espadas. Isso
acontecerá no convés de treino... da “lagoa da perdição”.
— Sinistro! — gritou Jacoby. — Reivindico a Lâmina de
Toledo!
Mas Connor e Cheng Li o encararam.
— Estou brincando, estou brincando! Fico com o sabre de
Molucco.
— Já chega de palhaçadas — disse Cheng Li. — Temos
menos de 24 horas para vocês se apresentarem diante de toda a
Academia. Fui encarregada de coreografar a luta. E tenho de
mostrar alguns movimentos bem complicados. — Ela calçou as
luvas. — Connor, você optou por entrar para a Academia como
aluno integral? Bom, é aqui que seu verdadeiro treinamento a-
cadêmico se inicia!

— Acho que depois disso vou dormir durante uma semana —


disse Connor, saindo do chuveiro depois de treinar com Jacoby
durante duas horas seguidas.
— Não há descanso para os malignos — respondeu Jacoby,
enxugando vigorosamente o cabelo. — Não ouviu a srta. Li? Ela

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quer que a gente volte ao ginásio às sete da manhã em ponto.
Sabe o que isso significa?
— Nada de preguiça na manhã de sábado?
— Pior, companheiro. Nada de aula de natação: logo, sem
chance de ver Jasmine de biquíni.
Connor riu. Jacoby Blunt era incorrigível.

Depois do longo exercício com espadas, Connor estava morto


de cansado. Quando terminou de jantar, estava pronto para a
cama. Incrivelmente, Jacoby ficou animado de novo depois de
comer e sugeriu um torneio de sinuca. Connor não poderia a-
guentar aquilo, e ficou grato quando Aamir e dois outros colegas
aceitaram o desafio. Todos lhe deram boa-noite e foram para a
sala de jogos, deixando-o no terraço.
Connor olhou para o porto. O lugar estava totalmente
tranquilo naquela noite — era incrível a diferença que 24 horas
podiam fazer. Bocejou e esticou as pernas. Estavam pesadas
como chumbo. Poderia cair no sono ali mesmo na hora — só
que havia uma última coisa a fazer antes de ir para a cama. Le-
vantando-se, caminhou pelo terraço e desceu a escada que atra-
vessava o jardim.

A luz estava acesa na porta da enfermaria. Connor bateu, mas


não houve resposta, por isso a empurrou.

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Estava escuro lá dentro. O dormitório era tão grande que
as luzes penduradas no teto eram insuficientes para iluminá-lo
direito, mesmo se as lâmpadas fossem da potência adequada.
Havia um único abajur aceso junto a uma cama, no centro do
cômodo. Foi em direção à luz, consciente do barulho que fazia
no chão frio de mármore.
Num instante estava ao lado de Grace. Ela continuava
dormindo, mas parecia muito mais bem acomodada do que na
última vez em que a vira. Antes, as mãos estavam cruzadas de-
sajeitadamente, como uma estátua. Agora, uma estava enrolada
sob a cabeça no travesseiro e a outra repousava sobre o lençol.
Connor sentou-se na beira da cama e olhou o rosto da irmã.
Agora ela parecia contente. Ele ficou satisfeito por ter chegado
ao ponto em que podia se sentir tranquilo simplesmente por es-
tar com ela de novo. Por um tempo ficou apenas sentado, o-
lhando os movimentos da respiração. Era profunda e regular.
Parecia haver pouca chance de que ela acordasse, mas a cor ti-
nha retornado a suas bochechas e lábios, e seu mergulho no o-
ceano, cerca de 24 horas antes, parecia não ter deixado nenhum
dano permanente. Ficou feliz. Ficou mais do que feliz.
— Você está certa — disse a ela. — Cada um de nós tem
sua jornada a fazer. Lamento não ter percebido isso antes. La-
mento ter tentado impedi-la. Nunca mais farei isso.
Estendeu a mão para a dela. Mas, por mais que tentasse
tocá-la, sua mão a atravessava, encontrando as roupas de cama.
Confuso, estendeu a mão de novo, mas de novo seus dedos
passaram através dos dela, como se Grace fosse feita apenas de

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ar. Devia estar realmente cansado, pensou, firmando-se e, pela
terceira vez, tentou pegar a mão dela. Juntou toda a capacidade
de concentração. Mas, de novo, suas mãos passaram direto pelas
dela.
Sentiu um pânico gelado espalhando-se no corpo. Recuou
e olhou-a, vendo de novo sua respiração, vendo de novo a ex-
pressão do rosto. Ela não estava apenas contente. Parecia sorrir
para ele, das profundezas do sono. Algo estalou na cabeça de
Connor. Resolveu tentar outra coisa. O cabelo dela estava caído
sobre os olhos. Estendeu a mão para afastá-lo, mas seus dedos
atravessaram direto a cabeça de Grace. Na próxima vez, nem
tentou fingir. Simplesmente passou a mão direto pelo ouvido
dela e enterrou-a no travesseiro. Grace sorriu, de olhos fechados,
como se ele estivesse fazendo cócegas. Connor recuou, agora
também sorrindo.
— Eles voltaram para pegar você — sussurrou. — Vieram
pegar você, Grace, não foi? Não sei como fizeram isso, mas é
para lá que você foi.
E nesse momento soube que era assim que deveria ser. Era
isso que ela queria, era disso que precisava. O diretor e Cheng Li
poderiam discursar para sempre falando de alguma síndrome
que Grace poderia ter ou não. Tanto fazia; agora sua irmã per-
tencia ao navio Vampirata. Ele era seu lar.
— Que agitação é essa?
A enfermeira Carmichael veio marchando pelo centro da
enfermaria. Connor riu. Seus sussurros dificilmente poderiam

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ser qualificados como agitação. Para a enfermeira, era tudo ou
nada.
— Ah, é você — disse ela. — Veio ver sua irmã dormindo
de novo?
Connor assentiu.
— Só vim dar boa-noite.
— Bem, já deu, então pode sair. Não queremos acordá-la
no meio da noite, não é?
Connor balançou a cabeça.
— Não. Não queremos. Mas eu não me preocuparia, en-
fermeira Carmichael. Acho que Grace não vai acordar tão cedo.
A enfermeira encarou-o irritada. Connor olhou uma última
vez para o fantasma da irmã, depois sorriu para a enfermeira e
lhe deu um tapinha no ombro, antes de passar por ela e ir até a
porta da enfermaria. A enfermeira Carmichael se encolheu. Es-
panou o uniforme como se um pássaro tivesse feito cocô em
seus ombros e voltou em direção ao seu cubículo.

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CAPÍTULO 36

Combatentes

O dia seguinte de Connor na Academia estava destinado a ser


longo. Às sete horas ele e Jacoby retornaram ao ginásio, onde
Cheng Li os esperava. Connor ainda se sentia cansado, mas logo
seu corpo voltou à vida quando Cheng Li os orientou durante
alguns exercícios preparatórios, depois os fez repassar com mais
detalhes os movimentos para a exibição.
Passaram o resto da manhã os aperfeiçoando. Havia muita
coisa em que se concentrar. A Lâmina de Toledo era mais pesa-
da do que o sabre usual de Connor, mas era boa de segurar. O
punho era enrolado num couro estranho, áspero. Pelo menos ele
achou que era couro. Quando perguntou a Cheng Li, ela lem-
brou que, como as botas do comodoro Kuo, aquilo era feito de
pele de arraia-lixa — muito mais dura e impermeável do que o

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couro comum. Ele olhou o punho da espada e viu que os mi-
núsculos calombos eram, na verdade, escamas. Mesmo depois
de tanto uso, as escamas ainda brilhavam, como se o cabo fosse
incrustado com minúsculas jóias parecidas com estrelas
Mas não havia nada que se comparasse à pesada safira in-
crustada no punho do antigo sabre de Molucco, que Jacoby pas-
sara a usar como se tivesse sido feito especialmente para ele.
Enquanto a arma se movia de um lado para o outro à frente de
Connor — Jacoby manobrando-a habilmente num golpe depois
do outro —, Connor viu que a safira não servia apenas como
decoração, mas tinha um objetivo prático. Era tão polida em
suas múltiplas faces que, quando captava a luz num certo ângulo,
ofuscava o oponente, como se o sol brilhasse diretamente nos
olhos dele. Era preciso apertar as pálpebras, o que o fazia perder
o foco e o núcleo da concentração.
A coisa mais difícil na luta, concordaram Connor e Jacoby
— durante uma pausa de dez minutos nos degraus do ginásio
encharcados pelo sol —, seria não machucar um ao outro. Ape-
sar de terem sido retiradas do combate regular, as espadas eram
mantidas afiadas e lubrificadas, prontas para o uso — e ambas
eram como navalhas. Jacoby estava mais acostumado com as
lutas de exibição do que Connor — que fora lançado mais rapi-
damente em ataques da vida real —, mas ambos concordavam
que era como se as duas espadas ansiassem por acertar um cor-
po. Como se tivessem mente própria e se ressentissem por estar
fora de ação por tanto tempo. Era como se as próprias lâminas
tivessem um desejo de batalha e sede de sangue.

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Na hora do almoço os dois estavam com a luta totalmente
ensaiada. Cheng Li pegou as espadas de volta e as trancou nas
caixas. Os dois combatentes não iriam vê-las de novo até entra-
ram na “lagoa da perdição” naquela noite, diante da platéia: to-
dos os alunos e professores da Academia dos Piratas.
— Está nervoso? — perguntou Connor a Jacoby quando
se sentaram para almoçar.
— Nervoso? Está brincando? Estou petrificado. Posso
machucar você.
— Engraçado — disse Connor. — Muito engraçado.
— É bom ver que o fato de estar petrificado não estragou
seu apetite — observou Jasmine, sorrindo enquanto indicava o
prato cheio de Jacoby.
Jacoby olhou para os dois.
— Ei, a treinadora Li disse para a gente se encher de car-
boidratos. É o que estou fazendo.
— Ah, é isso que você está fazendo, é? — gargalhou Con-
nor. E continuou com sua refeição mais modesta. Sentia-se en-
joado demais com o excesso de adrenalina para comer muito.
Teria de compensar no festim pós-luta.

A luta deveria começar quando o relógio da Academia marcasse


as seis horas, mas às cinco e meia a atmosfera no anfiteatro jun-
to ao porto era elétrica. Os alunos começaram a ocupar seus lu-
gares, dispostos segundo as turmas, com os professores se jun-
tando a eles no final das fileiras. Tochas acesas iluminavam as

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íngremes escadas de pedra, a frente da lagoa e o pequeno píer
que atravessava as águas turquesas até o navio de treinamento.
Na lagoa propriamente dita, o navio fora baixado e trazido
para a frente, de modo que o convés virou um palco, visível a
toda a platéia.
Nesse momento o convés estava ocupado por alguns ga-
rotos mais velhos, que formavam uma banda de rock. Eles ti-
nham a função de esquentar o pessoal.
— Essa música está fazendo com que eu me sinta muito
velho, de fato — disse o comodoro Kuo a Cheng Li, os dois
sentados na primeira fila.
— Você é muito velho, John — respondeu ela com um
sorriso. — Só que prefere esquecer esse fato durante boa parte
do tempo.
Ele lhe lançou um olhar ferido, depois abriu um sorriso.
— Como estão nossos garotos?
— Muito bem — respondeu ela. — Finalmente a Lâmina
de Toledo está nas mãos de um guerreiro de verdade.
— Touché — disse o comodoro Kuo. — Você sabe como
acertar um golpe.

Connor e Jacoby esperavam em seus lugares, perto do píer.


Connor olhou para a platéia, atrás, sentindo-se prestes a ser jo-
gado aos leões.
— Ei — disse Jacoby —, não esquenta, Connor. É só um
showzinho para pôr a Academia no pique numa noite de sábado.

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Esse é um dos motivos para eles terem feito um palco aqui. Isso
acontece o tempo todo.
Connor assentiu. Sabia disso. Havia competido vezes de-
mais em eventos esportivos para deixar que os nervos o domi-
nassem. Mas isso era meio diferente. Era mais uma apresentação
do que uma competição. Ele precisava equilibrar a execução dos
movimentos perfeitos; sem ferir Jacoby. A última coisa que de-
sejava era magoar seu novo melhor amigo.
Por fim o rock foi diminuindo e seguiram-se os gritos e
aplausos da platéia. Os garotos tiraram os instrumentos do palco
e começaram a atravessar o píer na direção do comodoro Kuo,
que havia subido para cumprimentá-los. Agora os recebia de
volta em terra firme e se virava para a multidão.
— Obrigado aos... é... Vagabundos da... Morte — disse ele.
— Em geral sou mais chegado a um jazz tradicional, mas na
verdade isso foi muito... impressionante. Revigorante. — Ele
olhou para Cheng Li que murmurou “velho” para ele.
Quando as palmas começaram a diminuir, o comodoro
Kuo se virou para a platéia.
— Esta noite temos um espetáculo especial para vocês...
para todos nós. Como sabem, é nosso costume na Academia dos
Piratas ter um Dia Anual das Espadas. Nesse dia, o último dia
do ano escolar, todas as espadas que ficam penduradas na Ro-
tunda são trazidas para baixo, e nossos alunos mais hábeis po-
dem usá-las em lutas de exibição, o que honra seus ilustres ante-
passados, os capitães que um dia usaram de verdade aquelas es-
padas.

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Ele pousou o olhar na fila de professores e em seguida nos
alunos.
— Algumas vezes penso nessas espadas como o tesouro da
Academia. Não porque sejam feitas dos metais mais finos, fre-
quentemente enriquecidas com jóias, pelos melhores artesãos do
mundo. Não, penso nessas espadas como tesouro porque cada
uma tem muitas histórias a contar. Cada uma dessas lâminas lu-
tou uma centena de batalhas, ou mais. Ah, se pudessem falar, se
pudessem dividir suas experiências conosco! Mas, sabem de uma
coisa? De certa forma elas podem. Quando uma espada antiga
chega às mãos de um jovem pirata, fico convencido de que o-
corre uma carga elétrica entre a energia do jovem combatente e a
energia existente na lâmina.
Ele parou, dando à platéia um momento para refletir sobre
suas palavras.
— Mas o verdadeiro tesouro da Academia não são as espadas
antigas que ficam penduradas acima de nós. O verdadeiro te-
souro são vocês. Cada um de vocês. As espadas representam
nosso passado, mas vocês... vocês são nosso futuro. Cada um de
vocês está destinado à grandeza. Cada um continuará as belas e
nobres tradições da pirataria. Alguns de vocês já se distinguiram
como hábeis navegadores. Outros estão se mostrando ótimos
líderes e estrategistas. E há aqueles de vocês que são combaten-
tes fascinantes.
Houve alguns gritos da platéia. Sabiam que a luta estava
para começar.

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— Esta noite passei por cima da regra de que nossas anti-
gas espadas são tiradas de suas caixas apenas no Dia das Espadas.
Esta noite decidi comemorar o talento de luta aqui na Academia.
Esta noite dois de nossos melhores combatentes subirão ao
palco e mostrarão alguns movimentos incríveis, ensinados pelos
professores e, em particular, pela srta. Li.
Isso foi recebido com aplausos e, assentindo, o comodoro
Kuo estendeu a mão para Cheng Li. Ruborizando, ela finalmen-
te se levantou e agradeceu a ovação.
— Sim — disse o diretor. — A srta. Li só está ensinando
aqui há três meses, mas já causou um impacto enorme na vida
da Academia. E, por falar nisso, temos alguém que está aqui há
apenas uma semana mas que, tenho o prazer de dizer, agora en-
trará para a Academia como aluno em tempo integral. Sinto um
enorme prazer porque esta noite ele estará lutando com minha
Lâmina de Toledo... Batam palmas e dêem as estimulantes bo-
as-vindas a Connor Tormenta!
Connor e Jacoby trocaram um aperto de mão que haviam
desenvolvido nos últimos dias. Em seguida Connor foi se juntar
ao comodoro Kuo. Quando chegou ao lado do diretor, este es-
tendeu a mão e a apertou de modo mais convencional.
— Connor demonstrou uma habilidade excepcional em si-
tuações de combate — disse o comodoro Kuo —, por isso ti-
vemos de procurar o melhor aluno da Academia para enfrentá-lo.
Vocês sabem, claro, de quem estou falando. — A platéia aplau-
diu e alguns alunos gritaram seu nome. — Isso — continuou o
diretor. — Todos sabem de quem estou falando. O que nem

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todos sabem é como este garoto se saiu em sua primeira aula de
combate. Mas eu estava lá assim como o capitão Avery e o capi-
tão Singh. Nós nos lembramos da habilidade que esse garoto,
então com apenas 6 anos, demonstrou com aqueles pequenos
pedaços de bambu. Bem, alguns anos se passaram desde então, e
esta noite ele usará o Sabre Safira de Molucco Wrathe. Seu nome
pode significar “ferramenta cega”, mas não existe ninguém mais
afiado... vamos receber Jacoby Blunt!
Jacoby respirou fundo e foi correndo juntar-se a Connor e
ao diretor. Ele também apertou a mão do diretor.
— Já falei muito — concluiu o comodoro Kuo. — Só resta
dizer que, quer sejam lutadores bem-dotados ou não, quero que
assistam a esta batalha e apreciem a pura habilidade que estes
dois demonstram. E lembrem-se, a despeito de seu talento, lu-
tem para ser o melhor que puderem. É só isso que pedimos aqui
na Academia dos Piratas. E agora, senhores, deixem-me apre-
sentar suas espadas.
As espadas em questão estavam sobre suportes erguidos na
frente do píer. Connor e Jacoby se abaixaram sobre um dos joe-
lhos diante do suporte onde estava sua espada. O diretor ergueu
primeiro o Sabre Safira. Segurou-o com a mão esquerda, esten-
dendo-o para Jacoby.
— Use esta espada com sabedoria e precisão — disse ao
garoto. — Honre seus antepassados e deixe sua marca na histó-
ria.

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— Deixarei — disse Jacoby, recebendo a espada com a
mão esquerda e permanecendo ajoelhado enquanto o diretor ia
até o segundo suporte.
Kuo enxugou a mão cerimoniosamente com um pano de
seda que estava ali para isso. Era uma limpeza simbólica, de
modo que as mesmas mãos não tivessem tocado as duas espadas.
Pousando o tecido, pegou a Lâmina de Toledo com a mão es-
querda, parando um momento enquanto segurava a antiga alia-
da.
Houve uma explosão de aplausos espontâneos celebrando
a carreira longa e ilustre do comodoro John Kuo. Ele esperou
que os aplausos terminassem, sorrindo suavemente.
— Use esta espada com sabedoria e precisão — disse a
Connor. — Honre seus antepassados e deixe sua marca na his-
tória.
— Deixarei — disse Connor. Em seguida segurou a espada
com a mão esquerda, o punho cobrindo a atadura de pele de
arraia-lixa do cabo. Pensou na longa história daquela espada.
A um sinal do diretor, quatro alunos avançaram e tiraram
da arena os suportes das espadas.
— Senhores, tomem suas posições iniciais — disse o co-
modoro Kuo antes de retornar à sua cadeira.
Connor e Jacoby foram juntos pelo píer até o convés de
treinamento. Tinham sido bem ensaiados. Assumiram posições
no centro do convés, cada um de costas para o outro.
O relógio da Academia começou a marcar as seis horas. O
sexto toque era o sinal para começar. Connor esperou, deixando

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a respiração entrar e sair junto com as batidas do relógio. Um...
dois... três... quatro... cinco...

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CAPÍTULO 37

A lagoa da perdição

Seis!
Connor girou e se lançou contra Jacoby com a Lâmina de
Toledo. Jacoby estendeu o Sabre Safira. As espadas fizeram o
primeiro contato e cada combatente sentiu a conexão elétrica
entre as lâminas. Agora os amigos não estavam mais sorrindo
um para o outro. Havia muita coisa em que se concentrar, en-
quanto começavam a se mover através da primeira das sequên-
cias desafiadoras de Cheng Li.
Connor afastou rapidamente todo o nervosismo. Ainda que
esta fosse uma luta de exibição, ele tinha aquele sentimento de
percepção ampliada que o diretor havia chamado de zanshin du-
rante a palestra. Quando sua espada bateu na de Jacoby, o baru-
lho na cabeça foi mais alto do que o sino da escola. Quando Ja-

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coby girou o sabre em sua direção, Connor viu a safira, mais azul
do que as águas da lagoa. Cada ruído e cada cor, cada sentido,
era intensificado. Concentrou um foco e uma energia mais pro-
fundos. Isso lhe permitiu saltar mais alto, girar a espada para trás
e para a frente numa fração do tempo que geralmente seria ne-
cessário. Estava absoluta e completamente situado. Ao mesmo
tempo que aproveitava o calmo poço de energia que havia em
seu centro, tinha perfeita consciência de que aquilo estava indo
bem. Percebeu os gritos da platéia quando a primeira sequência
chegou ao fim, com sua aparente superioridade em relação a Ja-
coby. Mas era tudo coreografia — cada qual teria seus momen-
tos de glória à medida que a apresentação continuasse.
— Trabalho espantoso — sussurrou o comodoro Kuo no
ouvido de Cheng Li. — Connor tem uma tremenda habilidade
natural.
Ela assentiu.
— Só espero que Jacoby se lembre de todas as instruções.
Kuo assentiu, depois recuou, concentrando-se de novo nos
dois jovens lutadores que partiam para a segunda sequência. Es-
ta era mais complexa do que a primeira — Cheng Li sabia tra-
balhar a platéia. A sequência começou com golpes sendo apara-
dos com deslocamentos para um lado e para o outro pelo con-
vés. Então Jacoby levou a melhor, obrigando Connor a se abai-
xar e aparentemente ficar indefeso. Era nesse ponto que Connor
precisava juntar todas as forças e seu atletismo para não somente
empurrar Jacoby, mas assumir o domínio na luta.

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Mais uma vez teve o sentimento de zanshin — aquela, per-
cepção de 360 graus ao redor do corpo. Podia ver Jacoby e o
sabre estendido. Podia ver a estreita faixa que tinha para mano-
brar. Podia ver a platéia, olhando com a respiração presa e, na
frente dele, como os dois olhos de uma fera gigantesca —
Cheng Li e Kuo, os rostos se cravando nele. Via tudo isso sem
jamais perder o núcleo de foco nos olhos de Jacoby. Isso o le-
vou de volta aos primeiros dias de treinamento, não aqui na A-
cademia, mas no Diablo. Quando Bart lhe dissera: “Sempre olhe
nos olhos do oponente. A espada pode mentir, mas os olhos,
não”. Connor olhou os olhos de Jacoby. E viu algo errado ali —
uma mentira, por trás dos olhos familiares do novo amigo. Re-
gistrou isso, mas lutou com força para não dar a entender. Por
mais perturbado que estivesse, manteve o foco e executou a
complexa virada, empurrando Jacoby de volta e assumindo o
controle.
De novo a multidão rugiu, aprovando. Cheng Li e o co-
modoro Kuo se juntaram nos aplausos.
— De tirar o fôlego — disse Kuo.
Cheng Li inclinou a cabeça para ele.
— Você ainda não viu nada.
Quando começaram a terceira sequência de golpes, Connor
jamais afastou a atenção dos olhos de Jacoby. Tinha certeza de
que não estava enganado. Jacoby estava mentindo. Connor con-
tinuou fazendo os movimentos, usando a Lâmina de Toledo
com mais habilidade e destreza do que jamais usara seu sabre.
Decidiu prender-se a cada nuança dos movimentos que haviam

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coreografado, cada vez mais certo de que Jacoby começaria a se
desviar deles. Não havia tempo para ficar chocado com a traição
ou para pensar através das camadas dos outros que deviam tê-lo
traído. Isso não salvaria sua vida. O zanshin salvaria.
Aconteceu no meio da sequência. Connor manteve as
marcas com perfeição mas, enquanto Jacoby lançava o próximo
ataque, a lâmina de seu sabre chegou muito mais perto do que os
dois haviam ensaiado. Ele pôde sentir o aço quente junto à ore-
lha. Então percebeu que não era a lâmina que estava quente. O
aço havia cortado a pele da orelha. Ela estava sangrando.
Jacoby parecia em pânico. Olhou para a platéia, por cima
do ombro de Connor. Talvez quisesse ferir Connor, mas não tão
cedo. Connor não se distraiu nem por um instante. Manteve o
estado de alerta, sem demonstrar pânico ou medo. Se a luta fos-
se interrompida agora, ele saberia que estivera equivocado —
que nada estava errado e que aquilo havia sido um simples en-
gano. Mas, se ninguém interviesse, ele teria uma resposta muito
diferente.
Ninguém interveio.
Sem se abalar, Connor continuou concentrado em Jacoby,
olho no olho. Nenhum dos dois falava. Não havia necessidade
de falas convencionais. Connor deixou Jacoby saber que ele sa-
bia. Jacoby reconheceu o fato. Mas Jacoby parecia muito mais
abalado do que Connor. Havia outro segredo enterrado fundo
nos olhos de Jacoby, que Connor ainda não conseguia escavar.
Agora Connor precisava tomar uma decisão rápida como
um relâmpago. Será que deveria se ater aos movimentos marca-

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dos e se defender apenas quando Jacoby atacasse ou deveria a-
bandonar a rotina e simplesmente tratar aquela luta como qual-
quer outra? Decidiu optar pela primeira abordagem. Jacoby ob-
viamente fora treinado em outra coreografia, mas estava tendo
problema para lembrar ou era simplesmente incapaz de imple-
mentá-la. Em qualquer caso, ele parecia em desvantagem em seu
papel de agressor. Connor decidiu deixá-lo fazer os ataques e co-
meter os erros. Tinha mais experiência de combate real do que
Jacoby. Um pouco de sangue não iria enfraquecê-lo.
Passaram para a quarta sequência que haviam ensaiado.
Esta deveria ser dominada no fim por Jacoby. Enquanto o opo-
nente iniciava o novo ataque, Connor pôde ver que havia algo
errado. Toda a segurança de Jacoby estava se esvaindo. Ainda
que os movimentos físicos demonstrassem toda a força de sem-
pre, para Connor ficou claro que o espírito de luta do oponente
havia se esvaído.
De novo Connor teve de fazer uma avaliação rapidíssima
da situação e decidir qual seria sua tática. Mas isso era complexo.
Se fosse qualquer outro adversário, ele poderia tomar a vitória
de modo decisivo. Mas, apesar da traição de Jacoby, ele não es-
tava pronto para infligir um dano sério contra ele. Fora mais fá-
cil se defender quando tinha apenas de enfrentar o ataque de
Jacoby. Agora enfrentava a situação infinitamente mais comple-
xa de um inimigo que parecia ter perdido a coragem. Claro, tudo
poderia ser um blefe elaborado. Mas, olhos nos olhos de Jacoby,
Connor sabia que não era.

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Precisava manter-se alerta. E assim, nos próximos movi-
mentos, se concentrou totalmente nisso, levando-se de volta ao
completo estado de zanshin. Continuou concentrado nos olhos
de Jacoby e na lâmina do sabre. Percebia a atenção fascinada da
platéia, separada dele pela estreita faixa de água. Viu as expres-
sões que pareciam máscaras no rosto de Cheng Li e do como-
doro Kuo. Os dois também deviam saber que ele havia sentido a
traição. Mas eram mestres. Não revelavam coisa alguma.
Connor mantinha todas essas visões e esses pensamentos
na cabeça, então ouviu um som desgarrado vindo da direção do
porto. Foi atraído de volta para o combate com Jacoby — uma
sequência atlética e desafiadora que os levou de um lado do
convés ao outro. Podia escutar mais sons vindos do cais, mas
não poderia se dar ao luxo de perder um instante de concentra-
ção. Seria aquilo uma nova parte do plano se desdobrando? Pre-
cisava fazer alguma coisa, e depressa. Tomou uma decisão rápi-
da.
Enquanto davam e aparavam golpes indo até a direita do
palco, Connor conseguiu um golpe extra, que tirou o sabre do
alinhamento. Jacoby cambaleou para continuar segurando-o e,
quando fez isso, Connor avançou com a Lâmina de Toledo para
o pescoço de Jacoby. No pânico, Jacoby largou o sabre. A pla-
téia ficou boquiaberta. Connor manteve a lâmina junto ao pes-
coço de Jacoby, a apenas um centímetro da pele.
— Comece a falar — disse Connor. — E fale depressa!
Jacoby não perdeu tempo.

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— Eu não queria fazer isso, Connor. Eles me obrigaram.
Queriam abalar você, ver até que ponto você era realmente um
bom lutador.
— Eles iam fazer você me matar.
— Não — respondeu Jacoby. — Acredite, não era isso. Só
abalar você. Eu não queria. Olha, você viu como eu estraguei
tudo.
Connor hesitou. Um impulso incorreto agora poderia ser
decisivo. Examinou os olhos de Jacoby. Viu uma verdadeira i-
magem de confusão e arrependimento. Não viu mais nada que
sugerisse um assassino.
Afastou a ponta da Lâmina de Toledo, permanecendo aler-
ta para algum ataque surpresa. Enquanto recuava, pegou o Sabre
Safira na mão esquerda e em seguida estendeu as duas armas
para a platéia — cansado, sangrando, mas vitorioso.
A platéia começou a aplaudir, mais alto do que antes.
O comodoro Kuo ficou de pé e chamou os dois para a
frente do píer.
Mas nenhum dos combatentes se mexeu — ambos pasmos
com os acontecimentos.
— Venham, piratas! — gritou o comodoro Kuo, com mais
força.
Connor olhou-o com desdém. Eles poderiam simplesmen-
te desafiar o diretor e continuar no convés de treinamento. Mas
precisava confrontá-lo. Caminhou pelo píer, deixando o opo-
nente para trás.

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— Muito boa luta — disse Kuo a Connor, quando se en-
contraram.
Connor o encarou irritado e incrédulo.
— Não venha me embromar.
— O quê? — o comodoro Kuo estava perplexo.
— Vocês tramaram contra mim. O senhor e Cheng Li.
Puseram-me contra meu melhor amigo.
Kuo balançou a cabeça, rindo para a platéia que rugia.
— Eu queria ver de que matéria você era realmente feito,
Connor. As lutas de exibição são boas, mas eu precisava ver o
que você poderia tirar do bolso numa verdadeira situação de
conflito. E você foi aprovado. Com honras. Agora seu lugar na
Federação dos Piratas está garantido.
— Sabe o que o senhor pode fazer com sua Federação? —
disse Connor, estendendo com raiva as duas espadas na direção
do diretor. Um novo rugido da multidão abafou suas palavras. O
diretor saltou sobre o píer. Connor manteve as armas apontadas
contra ele. O diretor olhou para Connor do outro lado das lâ-
minas.
— Connor, acho melhor você olhar para trás.
Connor fez uma pausa. Seria isso o melhor que Kuo pode-
ria fazer? Era pouco mais do que um truque de teatro.
— Connor, atrás de você!
Dessa vez não foi o diretor que falou. Era uma voz muito
mais bem-vinda.
— Molucco!

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Connor se virou. Nunca se sentira mais feliz em ver o ve-
lho aliado, que estava diante dele com todas as suas melhores
vestes.
— Para você é capitão Wrathe!
— Capitão Wrathe! — Connor se adiantou. Estava tão feliz
em ver Molucco que poderia abraçá-lo, se não fosse pelas duas
espadas que estava segurando.
— Esse é... não pode ser! É o meu velho sabre? — per-
guntou Molucco.
— É. — Connor estendeu o punho da arma para ele. O
capitão a pegou e a examinou. Pareceu triste por um momento.
— O que está fazendo aqui? — perguntou Connor. — O
senhor só deveria chegar amanhã. — E sorriu, acrescentando
depressa: — Não que eu não esteja feliz em vê-lo.
— Aconteceu uma coisa terrível — disse Molucco. Em
seguida tirou o chapéu e Scrimshaw surgiu, estendendo-se para
cumprimentar Connor.
— O que foi? — perguntou Connor. — O que há de er-
rado?
— Meu irmão — respondeu Molucco. — Meu querido ir-
mão... O capitão Porfírio Wrathe. — Ele parou quando um
grande diamante de lágrima rolou por sua bochecha.
— O que aconteceu com o Porfírio? — perguntou o co-
modoro Kuo, chegando ao lado de Connor.
— Foi assassinado do modo mais selvagem — respondeu
Molucco. — E com ele a tripulação... só restaram alguns.
Connor estremeceu.

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— O que houve?
O capitão Wrathe balançou a cabeça.
— Há um momento para contar histórias e um momento
para a ação, garoto. Agora vá pegar suas coisas. Preciso de você
no Diablo. Cada pirata em sua luta. Não vou esperar que isso es-
frie antes de me vingar.
Connor assentiu.
— Serei rápido.
— Acho que você está esquecendo uma coisa — disse o
comodoro Kuo. — Acho que deveríamos ir ao meu escritório e
conversar em particular.
Connor balançou a cabeça.
— Não será necessário. Não há nada para discutirmos.
— Mas Connor... — começou o comodoro.
Balançando a cabeça, Connor passou pelo homem que já
lhe havia inspirado tanto respeito.
Cheng Li se levantou e foi para a passarela.
— Connor, controle-se.
— Não venha falar comigo.
A traição dela doía ainda mais fundo.
— Escute — disse ela. — Você pode não gostar muito de
mim neste momento, mas há coisas que você não entende.
— Você sempre diz que há coisas que não entendo. Mas o
fato é que há um monte de coisas que são perfeitamente claras
para mim.
Ele passou por ela e subiu pela escada iluminada pelas to-
chas. Estava decidido a ir ao quarto pegar suas coisas. Os alunos

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da Academia — sem saber da verdade da luta — deram tapinhas
nas costas de Connor, elogiando-o.
— Você não pode ir — disse Cheng Li. Suas palavras o fi-
zeram parar. Ele se virou.
— Por quê?
— Porque não pode deixar Grace aqui — respondeu
Cheng Li, sorrindo, segura no conhecimento de que estava um
passo à frente dele.
Mas não desta vez.
— Grace não está aqui — disse Connor. — já foi embora.
Ver a expressão aparvalhada no rosto de Cheng Li foi
muito satisfatório. Ele não perdeu mais tempo e começou a su-
bir correndo até o topo do anfiteatro e o morro mais além.

Juntou rapidamente suas coisas e desceu pela última vez o mor-


ro da Academia. Sua cabeça estava quente e dolorida por causa
de tudo que havia passado, e o ferimento na orelha precisava de
algum tratamento — mas certamente não da enfermeira Carmi-
chael. Não queria mais nada daquele lugar e das pessoas dali.
Um churrasco fora preparado no terraço, e os alunos esta-
vam ocupados enchendo os pratos e devorando a comida. Não
foi fácil passar por eles sem ser percebido, mas felizmente a
maioria estava preocupada demais com a comida para incomo-
dá-lo. Connor esperava sinceramente que o comodoro Kuo e
Cheng Li ficassem fora de seu caminho. A última coisa de que
precisava era outro confronto com eles. Os dois o haviam ma-

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goado profundamente e nada havia de proveitoso em ouvir suas
desculpas e racionalizações. Seus olhos examinaram o terraço.
Uma mesa fora arrumada para os professores numa das extre-
midades. Claro! Connor deveria jantar com eles. Bom, esqueça.
Haveria um lugar vazio esta noite.
Desceu até o cais. Uma figura se afastou das árvores na la-
teral do caminho. Connor recuou. Era a capitã Lisabeth Quivers.
O que ela queria?
— Connor, eu só queria dizer que lamento muito.
Ele parou, olhando-a atentamente. Havia um sofrimento
genuíno na voz da capitã.
— Lamento que sua visita à Academia tenha acabado assim.
Algumas vezes o diretor leva as coisas um pouco longe demais.
Esse era o maior eufemismo do ano.
— Ele quase me fez ser morto.
— Não posso desculpar as ações dele e esta não é minha
intenção. Não quero atrasar você, sei que tem assuntos urgentes
com Molucco. Só queria dizer que nem todos somos iguais, na
Academia ou na Federação. Se algum dia você mudar de idéia,
eu ficaria honrada caso você achasse que poderia me contatar.
Era um pedido honesto de uma mulher decente. Ele apre-
ciou o gesto.
— Obrigado — disse apertando a mão dela. — Agora pre-
ciso ir.
Ela assentiu e deu um sorriso. Em seguida cada um partiu
numa direção.

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O Diablo esperava no porto, e era uma visão capaz de alivi-
ar olhos doloridos. Connor mal podia esperar para subir a bordo
e ir embora da Academia. Mas, antes disso, outra pessoa atra-
vessou seu caminho. Jacoby.
— Desculpe. Acho que não nos falamos mais — disse
Connor, e continuou andando.
— Eu mereço — respondeu Jacoby, acompanhando-o —
E você não precisa dizer nada. Mas realmente lamento muito,
Connor. De verdade. Sou seu amigo...
Connor parou e se virou.
— Sua definição de “amigo” é meio deturpada.
— Eles me obrigaram, mas eu deveria ter recusado.
— É. Deveria.
Continuou andando. Agora estava junto ao cais.
— Não vou pedir perdão — disse Jacoby. — Seria boba-
gem e você só iria recusar, do modo como se sente agora. Mas
sou seu amigo, Connor. Pelo menos quero ser. Errei, mas vou
achar um jeito de me redimir com você. Pode demorar um
tempo, mas vou fazer isso.
— Adeus — disse Connor, estendendo a mão para a esca-
da que pendia na lateral do navio.
Sem se virar para trás, olhou para o topo da escada de cor-
da. Lá no alto estava Bart, acenando e sorrindo para ele.
— Ei, companheiro — gritou Bart —, bem-vindo!
Connor sorriu e começou a subir a escada em direção ao
seu amigo de verdade.

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CAPÍTULO 38

O retorno

Grace estava de pé sob as velas do navio Vampirata. Seu coração


batia forte. Estaria realmente de volta? Podia sentir as tábuas do
tombadilho sob as solas dos pés. Não havia nenhuma barreira
invisível a mantendo afastada. Estendeu a mão, que tocou no
mastro. Ao fazer isso, uma veia de luz subiu da base das velas,
iluminando-as de modo que, por um momento, pareceram vas-
tas asas de bronze.
Ouviu uma porta se abrir com um rangido. Olhando pelo
convés, viu que era a porta da cabine do capitão. Ficou ali, imo-
bilizada. Pensou em sua falta de medo na primeira vez em que
havia procurado o capitão do Vampirata. Agora estava tão cheia
de temor quanto de outras emoções. Sabia muito mais do que na
época, sentia muito mais.

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— Venha, Grace. — O sussurro dele encheu sua cabeça.
Como sempre, era desprovido de qualquer emoção.
Será que ainda estaria com raiva dela? Grace franziu a testa.
A despeito do que ele pudesse sentir, ela ainda estava com raiva
do capitão. Caminhou pelo convés em direção à cabine dele.
Enquanto transpunha a porta, seus olhos procuravam a
familiar figura com capa e máscara. Não havia sinal. Adentrou
ainda mais a cabine. A porta se fechou atrás dela. Continuou
andando pela escuridão, vislumbrando luz à distância. Por fim
viu a silhueta dele através dos postigos fechados. Ele estava jun-
to ao timão do navio.
— Voltei mesmo desta vez? Voltei de verdade?
O capitão se virou para ela. Grace se pegou enfurecida com
aquela máscara. Por que ele tinha tanto medo de revelar alguma
emoção? Só ficou ali parado, como uma estátua, sem dizer nada
durante um tempo. Agora ela estava totalmente cheia de raiva.
— É, você voltou. — Por fim o sussurro encheu sua cabe-
ça. — E estou feliz.
A máscara se franziu ligeiramente. Ela reconheceu que ele
estava sorrindo. Ficou satisfeita, mas ainda tinha negócios ina-
cabados com ele.
— Está feliz? Mas você mandou que eu ficasse longe.
O capitão deu as costas para o timão. De novo. Grace fi-
cou olhando enquanto o timão girava de um lado para o outro,
livre do toque do comandante. O capitão foi até ela e estendeu
as mãos enluvadas.

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— Sei que magoei você, Grace. E lamento. Havia muitas
coisas na minha mente, muitos desafios que eu precisava enfren-
tar...
Grace sentiu lágrimas ardendo nos olhos.
— Mesmo assim — disse ela. — Não se deve afastar os
amigos. Não se deve mandá-los embora. Deve-se deixar que eles
fiquem e ajudem.
De novo ele não disse nada e ela se perguntou se teria pas-
sado do ponto com aquela explosão. Mas as mãos dele pousa-
ram em seus ombros e ele baixou a cabeça.
— Peço desculpas, criança. Você está certa. Eu me perdi
durante um tempo. Havia novas ameaças, novos perigos que eu
precisava enfrentar. Mas isso não é desculpa para minha... cruel-
dade com você.
Grace estava pasma. Não podia acreditar que o capitão do
navio Vampirata estivesse lhe pedindo desculpas. Mas, por mais
que isso fosse gratificante num determinado nível, ficou pertur-
bada ao ouvir as palavras. De repente, era como se ele a estives-
se procurando em busca de apoio. Queria ajudar, desejava que
eles lhe permitissem ajudar durante muito tempo, mas sentiu um
súbito fardo de responsabilidade.
O capitão levou Grace para a cabine e indicou que ela se
sentasse à mesa com ele. Como sempre, a mesa estava coberta
de mapas mas, dessa vez, também com numerosos livros antigos.
Aquilo fez Grace recordar o momento em que estava no meio
do dever de casa, procurando desesperadamente respostas onde
quer que estivessem.

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— Como você sabe, as coisas andaram difíceis por aqui
desde que você foi embora — continuou o capitão. — Eu não
queria envolvê-la nessas situações perigosas. Este navio não era
um lugar seguro para você.
— A Academia dos Piratas também não era segura.
— Eu vi. Por isso fui pegá-la, no final.
— Não antes de eu quase me afogar!
Ele balançou a cabeça.
— Isso era desnecessário, Grace. E foi bobagem.
— Agora percebo — respondeu ela, sem graça. — Mas
não sabia o que mais fazer. Estava tão desesperada para vir até
aqui! Achei que se me pusesse no mesmo lugar...
— Sei por que você fez isso — sussurrou ele. — E admiro
sua coragem. Mas às vezes você precisa aprender a esperar. Seu
pai tinha um ditado: confie na maré. — Ele parou. Grace queria
perguntar como ele sabia sobre seu pai e os ditados dele, mas,
antes que pudesse dizer isso, o capitão prosseguiu:
— Na noite em que você se jogou no porto, eu também
estava afundando em águas sombrias. Não pude ir até você. Mas
sabia que Connor poderia ir. Seu irmão é corajoso. Corajoso e
fiel.
— É. — De repente ela se sentiu muito idiota e ignorante.
— Eu também lamento — disse baixando a cabeça. — Verdade.
— Não fique tão triste. Você é corajosa e sábia, Grace.
Tem grandes poderes, mas acho que ainda não entende exata-
mente até que ponto eles vão. Ou o melhor modo de usá-los.
— Que tipo de poderes?

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Seu ânimo estava renovado, e ela ansiava por ouvir mais.
Porém o capitão não podia ser apressado.
— Veja o modo como conseguiu se comunicar com seus
amigos neste navio. E pôde viajar até aqui várias vezes...
Grace estava confusa.
— Eu achei que eles estavam me chamando. Primeiro,
Darcy foi me ver. Então tive aquelas visões de Lorcan. Depois
comecei a fazer viagens espirituais até aqui. Achei que vocês esta-
vam me chamando de volta.
— Darcy fez sua própria viagem espiritual até você — dis-
se o capitão. — Na ocasião, fiquei com raiva dela, não queria
que você fosse arrastada de volta para o perigo, mas não conse-
gui permanecer com raiva. Você tocou Darcy, por isso pôde se
comunicar tão intensamente com ela. Você tocou Lorcan... e
outros também. — Ele baixou a cabeça outra vez. — Mas,
quando você veio aqui, Grace, não foi devido a algo que tenha-
mos feito. Não. Foi você que optou por embarcar nessas via-
gens.
Ela? Seria verdade?
A vez embaixo do pé de jacarandá...
Depois em sua cama na Academia...
E finalmente na varanda...
Será que ela própria havia provocado aquelas viagens? Era
difícil avaliar. E certamente não fora uma decisão consciente,
por mais que ela quisesse ajudar.
— Sim, Grace. Você optou por vir até nós, como da pri-
meira vez.

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Como da primeira vez? Como assim?
— Na primeira vez, fui simplesmente apanhada numa
tempestade — disse Grace. — Estava me afogando. Lorcan me
salvou.
Por um momento o capitão não disse nada. Ela sabia que
seu silencio era apenas um véu sobre pensamentos que ele ainda
não estava preparado para verbalizar.
— Como está Lorcan? — perguntou ela, ansiosa para saber
das últimas novidades.
— Uma coisa de cada vez — respondeu o capitão. — Vo-
cê deve aprender a ser paciente, criança.
Grace suspirou. Por mais que gostasse do capitão, ele podia
ser muito irritante. Ela havia se esquecido dessa característica
durante a ausência.
De repente ele se levantou de novo e foi em direção à la-
reira. Seu manto longo se arrastou atrás. A luz brilhava ao longo
da rede de veias.
— Há alguém que eu gostaria que você conhecesse — dis-
se ele.
— Quem? Por quê? — Ela esperava que ele não lhe desse
uma bronca de novo por causa dessas perguntas.
— O nome dele é Mosh Zu Kamal. É um velho amigo
meu. Você pode dizer que é o meu guru.
Guru? Grace sabia que a palavra significava líder ou pro-
fessor. Ficou surpresa ao descobrir que havia alguém de posto
superior ao do capitão. Mas então se lembrou de como o capitão

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parecera vulnerável antes. Era tranquilizador saber que ele tinha
alguém a quem procurar nos momentos de crise.
— Foi ele que teve a idéia do navio — prosseguiu o capi-
tão. — Foi ele que, no início, quando eu estava muito perdido,
me mostrou o caminho.
Grace ficou intrigada demais ao pensar numa pessoa assim;
não que o termo “pessoa” parecesse muito adequado para des-
crever o guru dos Vampiratas.
— Onde está ele? Ele viaja no navio? Por que ainda não o
conheci?
O capitão sorriu. Dessa vez pareceu achar divertida sua
torrente de perguntas.
— Ele não viaja neste navio, mas de vez em quando nos
visita. Mas nesta ocasião nós vamos visitá-lo. Na verdade, vamos
viajar para lá agora.
— Para onde?
— Ele mora num local chamado Santuário. Fica no topo
de uma grande montanha.
Grace olhou para o mapa aberto na mesa do capitão.
O capitão balançou a cabeça de novo.
— Acho que você não vai encontrar o santuário em ne-
nhum mapa, criança.
Grace ficou perplexa, mas empolgada. Se não estava num
mapa, como o capitão podia navegar até lá? Como iriam encon-
trá-lo? Agora ela realmente sabia que havia retornado ao navio
Vampirata! Agora sabia por que precisara retornar. Este lugar

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tinha muitos mistérios — e ela só estava roçando a superfície de
toda a sua magia.
— Estamos indo para lá agora? — perguntou, decidindo
concentrar-se em coisas mais tangíveis. Seria longe?, pensou. E
estariam viajando até lá só por causa dela?
O capitão sorriu de novo.
— Na verdade, há várias coisas sobre as quais devo con-
sultar com Mosh Zu. Primeiro, acho que ele poderá ajudar Lor-
can...
— Quer dizer, curar a cegueira?
— Só quero dizer o que digo, Grace. Mosh Zu vai ajudar
Lorcan.
Grace franziu a testa. Será que o capitão estava dizendo
que Lorcan permaneceria cego? Que esse seu guru só iria aju-
dá-lo a se adaptar ao estado atual? Não bastava! Lorcan tinha de
recuperar a visão! Ela ainda se sentia muito responsável pelo que
havia acontecido.
— Não é sua culpa — disse o capitão, de novo adivi-
nhando seus pensamentos. — Eu estava errado, antes, ao dizer
que era...
— Mas é minha culpa — respondeu ela, pesarosa. — Claro
que é. Ele não teria ido para a luz se não estivesse tentando me
ajudar.
— Essa parte pode ser verdadeira. Mas Lorcan não está
ajudando a si mesmo a se curar.
Grace concordou com a cabeça. Lembrava-se muito niti-
damente da última viagem espiritual ao navio. A noite do Festim.

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Lembrava-se de Darcy dizendo que Lorcan não queria tomar
mais sangue de sua doadora.
— Não há nada que eu possa fazer para ajudar Lorcan? —
perguntou, desanimando.
— Há — respondeu o capitão, para sua surpresa. — Há,
claro. E você sabe o que é.
— Sei?
— Procure a resposta. Ela está dentro de você.
Ele pareceu subitamente perturbado de novo. Tinha aquela
expressão que ela já vira, a que sinalizava que era hora de ficar
sozinho.
— O senhor quer que eu vá agora, não é?
— Não é uma questão de querer. Há coisas que preciso
fazer, questões em que preciso pensar.
— Sobre Lorcan?
Ele balançou a cabeça.
— Há outras questões urgentes para as quais preciso voltar
minha atenção.
— Posso ajudar? O senhor sabe que eu faria tudo que esti-
vesse ao meu alcance.
O capitão pousou a mão enluvada em seu ombro.
— Você já está ajudando, Grace — sussurrou ele. — Mais
do que imagina.

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CAPÍTULO 39

Um novo tipo de inimigo

Foi a uma Taverna de Madame Chaleira muito diferente que


Connor e seus colegas tripulantes chegaram naquela noite. A
taverna não estava menos apinhada do que o normal, mas o es-
tado de espírito era sombrio. Normalmente era preciso lutar pa-
ra ouvir a própria voz acima do barulho de conversas e música,
brincadeiras e brigas bobas. Mas nessa noite as vozes eram bai-
xas e abafadas. Todo mundo tinha ouvido falar do que aconte-
cera com Porfírio Wrathe e sua tripulação. Ninguém podia acre-
ditar.
— Como vai, Sortudo? — disse madame Chaleira, aper-
tando a mão de Molucco. Connor notou que ela se vestia de
modo mais simples e conservador do que o normal. Docinho de
Coco estava ao lado dela, segurando uma bandeja de bebidas.

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Também estava vestida e maquiada com mais simplicidade. Sem
maquiagem ela parecia mais linda do que nunca, pensou Connor.
Docinho deu um sorriso para ele. Connor desviou o olhar, sem
graça.
— Todo mundo está esperando por você — disse madame
Chaleira a Molucco. — Todos vieram. Eu sabia que viriam. Vai
falar com eles agora ou gostaria de algo para reforçar, antes?
Molucco a olhou com tristeza e encolheu os ombros. A de-
cisão mais simples parecia uma tortura, em seu sofrimento.
— Aqui — disse madame Chaleira, passando os copos da
bandeja de Docinho de Coco. Cada copo continha uma dose de
líquido vermelho translúcido. — Conhaque de coral — disse a
madame. — O gosto é mais ou menos, mas o efeito é um soco!
Dizem que deixa a gente forte como os recifes de coral. Um pa-
ra você também, sr. Tormenta. E você, Bartholomew.
A Madame e Docinho ficaram com os dois últimos copos.
— Ao Porfírio — disse a Madame, levantando seu copo.
Todos juntaram os copos e depois tomaram o conhaque. Con-
nor se encolheu. Sem dúvida era a bebida mais horrível que já
havia tomado na vida. Mas, assim que o gosto podre recuou, ele
sentiu um estranho calor se espalhando por todo o corpo.
— Vamos, então — disse a Madame, segurando de novo a
mão de Molucco.
Guiou o capitão Wrathe até o palco no centro da taverna.
Connor e Bart ficaram de lado, olhando os grupos de tripulações
piratas que enchiam o bar.

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— Eles vieram de todos os cantos — disse Bart —, de-
monstrar o apoio ao capitão Wrathe.
Connor olhou de novo para Molucco enquanto o capitão ia
até a frente do palco.
— Ele está realmente abalado, não é? — perguntou.
— Cara, você precisa ver como ele fica quando está sozi-
nho. Mal consegue se manter de pé.
— Não posso dizer que o culpo — disse Cate, chegando
ao lado dos dois. — O que aconteceu com Porfírio foi horren-
do.
Connor assentiu. Ainda tentava absorver tudo aquilo.
— Amigos — disse Molucco, o olhar percorrendo as filei-
ras irregulares. — Agradeço a todos por terem vindo aqui esta
noite. Seu apoio significa muito para mim neste momento. —
Fez uma pausa. — Perder um irmão querido deixa o ferimento
mais profundo. Mas perdê-lo de modo tão monstruoso, bem,
corta o coração da gente. — Outra pausa. — Esta notícia partiu
meu velho coração grisalho. — Uma nova lágrima escorreu pelo
rosto de Molucco. Madame Chaleira avançou e apertou um len-
ço na mão dele. Ele o segurou, mas deixou que a lágrima escor-
resse livremente. A multidão esperou com paciência que ele con-
tinuasse.
— Perdoem — disse Molucco. — Não estou aqui para im-
plorar solidariedade.
— O senhor já tem nossa solidariedade! — gritou um dos
piratas na platéia.

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— Obrigado. O senhor é muito gentil mas, realmente, não
estou aqui para pedir solidariedade. — Ele respirou fundo. —
Estou aqui para exigir ação.
— É só dizer! — gritou um dos piratas na frente de Con-
nor.
— É — acrescentou outro. — Estamos ao seu lado.
— Isso! — gritaram vários outros piratas. Os pêlos da nuca
de Connor se eriçaram. Ele nunca vira tanta gente unida por
uma causa.
Mas houve uma voz desgarrada. Veio das sombras.
— Deixe isso com a Federação. A Federação dos Piratas
deveria cuidar desses assuntos. — A voz parecia familiar, pensou
Connor, mas ele não podia ver quem falava.
Molucco balançou a cabeça.
— Que necessidade tenho da Federação, quando tenho
amigos? Vamos nos juntar e derrotar o inimigo.
A multidão aplaudiu os sentimentos de Molucco.
— Acho que a maioria de vocês sabe do horror que acon-
teceu há duas noites — disse Molucco. — O navio de meu ir-
mão estava navegando sob uma terrível tempestade e procurou
abrigo numa baía não longe daqui, perto de um farol. Porfírio e
sua corajosa tripulação estavam lutando contra as forças da na-
tureza e pediram ajuda ao pessoal do farol. — Sua voz ficou
mais forte à medida que ele continuava. — Mas a equipe do fa-
rol não trouxe ajuda. Trouxe morte.
Quando Molucco parou de novo, era possível escutar um
alfinete caindo nas tábuas sujas da taverna.

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— Não sabemos exatamente o que aconteceu — disse
Molucco. — De uma tripulação de 150 pessoas, apenas 17 ho-
mens e mulheres sobreviveram naquela noite. Conversei com
eles, e só alguns ainda têm a mente no lugar. Disseram que a
selvageria cometida pela equipe do farol estava além de qualquer
coisa que já tivessem testemunhado em todo o tempo que pas-
saram no mar. — Molucco foi até a frente do palco e estendeu a
mão. — Amigos, vamos ser muito claros. Este é um novo tipo
de inimigo. Um inimigo velado. Eles não buscam ouro. Não
buscam vantagens sobre o oceano. Só querem sangue.
As palavras de Molucco fizeram Connor gelar. Assim como
gelaram cada pirata — homem ou mulher, jovem ou velho —
reunido na taverna de madame Chaleira naquela noite. Mas arre-
piaram Connor mais profundamente quando ele pensou que
Grace havia retornado ao navio Vampirata. Um retorno permitido
por Connor. Não que ele tivesse muita chance de impedir a irmã,
pensou, lamentando. Grace era inflexível ao dizer que, na maio-
ria, os Vampiratas amavam a paz. Esperava de todo o coração
que ela estivesse certa. Que apenas alguns renegados se ajusta-
vam à descrição aterrorizante de Molucco.
— O navio de Porfírio não está longe daqui — continuou
Molucco. — Esses monstros o levaram e estão navegando ao
longo da costa. Mas não ficarão com ele. — O capitão ergueu a
voz e gritou para a platéia: — Eles não velejarão no navio do
meu irmão.
— Vamos alcançá-los! — gritou um capitão-pirata.

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— É — disse Molucco. — Alcançar o navio pirata não será
difícil. Mas, assim que o abordarmos, o que vamos fazer?
— Molucco! — gritou uma voz na lateral do palco.
— Sim, capitão Gresham.
— Molucco, pelo que sabemos, há apenas cinco desses...
demônios.
— Sim — respondeu Molucco. — A bordo do navio, sim.
Parece incrível, mas é verdade: os sobreviventes disseram que
todas as mortes e a devastação foram causadas apenas por cinco.
— Então não podemos ser presunçosos — disse o outro
capitão.
— Não — concordou Molucco, balançando a cabeça. —
Cinco pode parecer nada diante de uma multidão como a nossa,
mas esses cinco não são comuns. Não lutam com espadas. Nem
são detidos por elas.
— Precisamos de uma arma diferente — disse o capitão.
Molucco assentiu.
— Um novo tipo de arma para um novo tipo de inimigo.
Mas o quê?
A taverna estava silenciosa, então um barulho começou a
crescer como uma onda se quebrando, enquanto os piratas reu-
nidos debatiam que arma escolheriam. Connor ficou olhando a
multidão. Em seu centro viu um estranho alto, vestido com uma
capa escura, parecida com couro, e uma máscara. Apesar da
máscara, Connor podia ver que o estranho olhava diretamente
para ele — e só para ele. E, quando o estranho fez isso, uma voz
dentro da cabeça de Connor sussurrou:

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— Fogo.
Connor pensou que seus olhos e seus ouvidos o estariam
enganando — um efeito retardado do conhaque de coral, talvez.
Mas o estranho mascarado continuou a encará-lo e a cabeça de
Connor se encheu mais uma vez com o sussurro curioso.
— Diga a eles, Connor. Fogo.
Instintivamente Connor abriu a boca e gritou:
— Fogo!
A multidão ficou subitamente em silêncio. Mil cabeças se
viraram para ele.
— Não aqui — disse Connor. — A nossa arma. Vamos
levar o fogo até eles.
— Isso! — gritou Molucco. — É isso! Simples, eficaz, bri-
lhante. Sim, sr. Tormenta. Nossa arma será o fogo. — De re-
pente ele estava totalmente objetivo outra vez. — Agora, será
que posso pedir a todos os capitães e subcapitães aqui que se
juntem comigo para estabelecermos as táticas...
Connor olhou de novo para a multidão, que começava a se
dispersar. O estranho mascarado devolveu seu olhar e assentiu.
— Connor, vamos pegar uma cadeira, companheiro —
disse Bart.
— Claro — respondeu Connor, virando-se para o amigo.
— Claro, encontro você em um minuto. Preciso falar com al-
guém.
— Com quem?
— Aquele homem ali, o de máscara.
— Máscara? Não estou vendo ninguém com máscara.

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— Bem ali no meio do bar.
— Acho que alguém andou tomando conhaque demais...
Mas Connor havia saído de perto dele e caminhava pelo
bar em direção ao estranho mascarado. Ele chamou Connor pa-
ra a lateral do salão e subiu a escada. Connor foi atrás, na direção
da galeria de reservados.
O estranho entrou no primeiro reservado e Connor o se-
guiu, fechando a cortina de veludo. Seu coração estava dispara-
do.
— Connor. — As palavras entraram na cabeça de Connor
como gelo derretido. O estranho estendeu a mão enluvada.
Connor a apertou.
— O senhor é o capitão, não é? — perguntou Connor. —
O capitão do navio Vampirata.
O capitão assentiu.
— É bom conhecê-lo finalmente, Connor Tormenta.
De novo a cabeça de Connor se encheu com o sussurro.
— O senhor também.
— Achei que você talvez estivesse com raiva de mim.
— Com raiva, senhor? Por quê?
O capitão sentou-se.
— Porque Grace voltou ao meu navio. Porque ela não
consegue ficar longe.
— A princípio fiquei com raiva, bem... fiquei frustrado —
disse Connor, sentando-se. — Achei que, depois de tudo que
havia acontecido, deveríamos ficar juntos. Mas agora sei que ela
precisa estar lá. Eu fui egoísta, achei que poderia continuar sen-

1 413 1 
 
do pirata e simplesmente esperar que ela me acompanhasse. Mas,
no fim, percebi que tínhamos de seguir caminhos diferentes.
Pelo menos por enquanto.
O capitão assentiu.
— Então você é sábio, Connor Tormenta. Sábio, além de
forte.
— Ela está em segurança lá, não está? É um lugar seguro?
O capitão fez uma pausa.
— Existe algum lugar seguro?
Não era a resposta que Connor havia esperado.
— Não fique tão preocupado, Connor. Farei o máximo
possível para proteger Grace, e ela tem outros amigos a bordo,
que sentem o mesmo que eu. Além disso, Grace é muito forte.
— Eu sei. Ela é a mais forte de nós dois. Sempre foi.
O capitão pareceu surpreso com essa declaração. E Connor
havia surpreendido a si mesmo ao admitir o fato.
— Preciso retornar agora — disse o capitão.
— Tão cedo? — De repente, Connor tinha uma centena de
perguntas para o capitão.
— Você sempre pode vir nos visitar, e sabe disso. Você é
bem-vindo.
— Mas como vou encontrá-los? Até Grace teve dificuldade
para encontrar o caminho de volta ao navio.
O capitão balançou a cabeça.
— Na verdade, não. Não é muito difícil encontrar.
Ele se levantou e começou a sair do reservado.
— Espere! — disse Connor.

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O capitão se virou.
— O senhor me disse para mandar que eles usassem fogo.
— Sim.
— Mas... as pessoas que assassinaram Porfírio são... são
Vampiratas também, não é?
Connor ficou surpreso ao ver quanta emoção o capitão
podia exprimir através da estranha máscara. Ele pareceu triste e
exausto.
— São exilados. Eu lhes dei abrigo por um tempo. Mas
não mais.
— Então quer que eles morram, tanto quanto os piratas?
Eles podem sofrer uma segunda morte?
O capitão pensou no assunto.
— Não desejo o sofrimento nem a morte para nenhuma
criatura viva. Mas, nesse caso, temo a alternativa. — Ele fez uma
pausa. — Mais uma coisa, Connor. Uma coisa importante.
— Sim? O que é?
— Dentre os exilados, talvez você veja alguém que pareça
conhecido. Mas não se engane. Ele não é o que aparenta, é ape-
nas um eco. Você deve ser muito forte, Connor. Deve mostrar o
caminho. Não deixe que ele impeça você e seus colegas de faze-
rem o que devem.
O que ele queria dizer? Connor franziu a testa. Por que o
capitão falava em forma de charada?
Como se tivesse ouvido os pensamentos de Connor, o ca-
pitão sorriu.

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— Porque você saberá, Connor. Quando chegar a hora,
entenderá e agirá. Você não precisa de tanta ajuda quanto ima-
gina. Seu destino não é seguir, e sim liderar. — Ele estendeu a
mão de novo. — Até a próxima vez, Connor Tormenta.
Connor apertou a mão enluvada do capitão. Ao fazer isso,
sentiu uma onda de força e determinação penetrar nele. Era uma
sensação estranhíssima — como se viesse diretamente das veias
do capitão para as dele. E havia mais um mistério. Enquanto
Connor segurava com força a mão do capitão, teve uma sensa-
ção muito estranha. Não havia explicação lógica — mas tinha
certeza de que era uma mão que ele já havia segurado.

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CAPÍTULO 40

Doadora

Grace estava perturbada demais para dormir. Puxou a cortina de


sua escotilha. Estava claro lá fora. No navio Vampirata aquelas
horas de luz do dia eram as horas de descanso, mas ela ainda não
havia ajustado seu ritmo circadiano.
Desceu da cama e, vestindo de novo o casaco de Darcy,
saiu da cabine e foi pelo corredor. Abriu a porta para o convés e,
sentindo o súbito sopro de ar frio, saiu.
Era um dia de tempo agitado, mas ela achou a brisa um
tanto reconfortante. Desarrumava seu cabelo e ajudava a dor de
cabeça a diminuir. O som do vento e as águas inquietas lá em-
baixo ajudavam a abafar o barulho constante dentro da cabeça.
Desenrolou as mangas do casaco sobre as mãos para mantê-las
quentes e foi até a amurada na beira do convés.

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Ao redor, o mar estava cinzento e revolto. Até onde podia
ver, não havia sinal de nenhum outro navio. E nenhum sinal de
terra — de Santuário, fosse qual fosse sua aparência. Imaginou
em que ponto da viagem estariam. Seria esse o oceano normal
ou já teriam passado para águas não mapeadas?
Seus pensamentos foram interrompidos por um leve toque
no pescoço. A princípio achou que seria a brisa levantando a
gola do suéter. Mas então aquilo aconteceu de novo e ela perce-
beu que era a mão de outro viajante. Ninguém deveria estar aqui
em cima nas horas de claridade. Ninguém a não ser o capitão —
e as mãos dele estavam sempre enluvadas. Dava para perceber
que era uma mão nua. Sentindo um medo súbito, Grace se virou
lentamente.
— Olá — disse uma mulher pequena e delicada. Parecia
familiar.
— Olá — respondeu Grace, tentando situá-la. Era peque-
nina e muito bonita, mas também muito pálida.
— Sou Shanti — disse a mulher. — A doadora de Lorcan.
Claro! Agora a reconhecia. Grace a vira com Lorcan na
noite do primeiro Festim. Naquela noite Grace havia invejado
Shanti — não somente por sua beleza mas pela fácil intimidade
que ela demonstrava ter com Lorcan. Agora Shanti parecia mais
velha e mais frágil. Sua testa estava cheia de rugas de preocupa-
ção.
— Você é Grace — disse Shanti, adiantando-se e juntan-
do-se a Grace junto à amurada. — Lorcan fala muito de você.

1 418 1 
 
Grace ficou satisfeita com a informação. Mas sentiu-se sem
jeito. Nunca havia falado com um doador antes e, ainda que o
capitão tivesse explicado algo do relacionamento entre vampiro
e doador, ela continuava com muitas perguntas sem resposta.
— Quando você voltou? — perguntou Shanti, voltando os
olhos para o mar cinzento.
— Ontem.
— E dessa vez vai ficar? — Havia uma tensão na voz de
Shanti. Será que estava com ciúme de Grace? Parecia que sim,
mas sem dúvida ela não tinha motivos para sentir ciúme. Mesmo
assim, concluiu Grace, era melhor pisar em ovos.
— Não sei quanto tempo poderei ficar — respondeu, sin-
cera. — A decisão não é minha.
— Não entendo — disse Shanti, enquanto o vento brinca-
va com seu cabelo comprido e escuro.
— Nem eu — respondeu Grace, sorrindo enquanto se vi-
rava para a companheira. — Tudo é um mistério para mim.
Shanti continuou olhando à distância.
— O quê é mistério?
— Este navio. Os Vampiratas. Os doadores. Realmente sei
muito pouco. Nem sabia que os doadores podiam subir a este
convés.
— Temos permissão de vir aqui durante o dia. Mas não
depois do Toque do Anoitecer. — Ela estremeceu. — É para
nossa própria proteção. Além disso, precisamos de uma boa
noite de sono. O sono nos mantém fortes. O sono torna nosso
sangue puro.

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Grace assentiu. As coisas estavam começando a fazer sen-
tido.
— Não que isso importe muito agora.
— Por quê? — perguntou Grace.
Shanti deu de ombros, ainda se recusando a encarar Grace.
— De que serve o sangue de um doador quando o vampiro
se recusa a alimentar-se?
Agora ela parecia muito magoada. Claro, Lorcan havia pa-
rado de tomar sangue desde que se ferira. Isso poderia ter sido
um alívio para a doadora, pensou Grace. Mas, olhando a garota,
viu que nada poderia estar mais distante da verdade.
— Sinto muito — disse Grace.
— De que adianta sentir? — Havia lágrimas nos olhos de
Shanti.
Grace estendeu a mão para o ombro dela, mas Shanti re-
cusou o toque.
— Me deixe em paz! — disse ela. — Não preciso da sua
solidariedade.
— É que eu me sinto responsável. Lorcan não estaria desse
jeito se não fosse por minha causa.
Por fim Shanti se virou para ela, com lágrimas descendo
pelo rosto.
— Sei perfeitamente desse fato — disse ela.
— Você gosta de Lorcan. — Claro que gostava. Como
poderia não gostar dele?
Mas Shanti balançou a cabeça.

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— Não estou chorando por ele. Sou eu. Eu tinha um bom
motivo para estar neste navio. Se ele não quer mais tomar meu
sangue, não resta nada para mim aqui. Terei de ir embora.
Grace ficou perplexa.
— Aonde você iria?
— Essa é a questão, não é? Não posso voltar para os luga-
res de onde vim. Eles não existem mais. Pelo menos desde as
enchentes. Não tenho lar, não tenho família, nem... nem nada.
Este navio era minha última chance.
— O apetite de Lorcan vai retornar — disse Grace. — Eu
sei que vai. E, mesmo que não retorne, bem, sem dúvida o capi-
tão vai deixar que você fique.
Shanti balançou a cabeça.
— Você não entende. Você mesma disse. Tudo é um mis-
tério para você. Bem, para mim é óbvio como o dia e a noite. Eu
fiz um trato, veja bem. Todo doador faz o mesmo trato. En-
quanto a gente estiver fornecendo sangue, tudo bem. Mas, caso
ocorra alguma coisa que impeça isso, bem, eles não terão neces-
sidade de você. É adeus e boa sorte.
Grace ficou chocada com as palavras de Shanti. Não podia
acreditar que o capitão fizesse as coisas desse modo. Ele sempre
fora tão gentil, tão cuidadoso com ela!
— Você não pode entender — disse Shanti, cada palavra
pingando dor e amargura. — O que você sabe sobre não ter na-
da neste mundo? Sobre não ter aonde ir?
Grace ia responder à pergunta, mas percebeu que a outra
não queria resposta.

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— Não, você não pode imaginar. Quando as enchentes vi-
eram, perdi tudo que tinha no mundo, tudo menos meus ossos e
meu sangue. E fiz um trato com o diabo para mantê-los. Era a
última chance. A chance final. Mas tinha seu lado positivo. —
Ela parou, as palavras haviam saído numa torrente tão grande
que precisou recuperar o fôlego. — Eles todos são imortais, cla-
ro. Isso é fácil para eles, quando atravessam. Mas nós, bem, para
nós não é a mesma coisa. Só somos imortais enquanto estiver-
mos com eles, alimentando-os. Quando eles param de se ali-
mentar, a idade nos alcança.
Então era por isso que ela parecia tão mais velha do que
quando Grace a vira no Festim. Quantos anos teria?, Grace fi-
cou pensando. Quanto tempo ainda teria Shanti? Não era de
espantar que estivesse com tanta raiva de Lorcan. E de Grace.
— Shanti, lamento muito o que aconteceu. De verdade.
Mas estou aqui para ajudar Lorcan a ficar melhor. Sei que ele vai
melhorar.
Shanti fungou, afastando as mãos da amurada.
— Talvez ele melhore. E talvez não. Não me importa mais.
Porque, mesmo que ele decida tomar sangue de novo, não é
meu sangue que ele quer mais, não é?
A mulher encarou Grace, furiosa, depois começou a andar
pelo convés. Grace se virou e foi atrás.
— Como assim? Se ele não quer seu sangue, quer o de
quem?
— Ah, jura mesmo que não sabe! Eu achei que você era
inteligente!

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Com isso, ela se virou e apertou o corpo frágil e pequeno
contra a porta. Num instante havia desaparecido de novo.
Suas palavras ressoaram na cabeça de Grace. O que ela es-
tava dizendo? Que Lorcan queria o seu sangue? Será que o único
modo de curar Lorcan era se tornar sua doadora?
Grace pensou no que o capitão havia dito quando ela per-
guntou como poderia ajudar.
Procure a resposta. Ela está dentro de você.
Começou a tremer, de repente ciente do sangue que bom-
beava em cada veia do corpo. Seria disso que Lorcan precisava?
Se ela realmente quisesse salvá-lo, era esse o preço que teria de
pagar?

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CAPÍTULO 41

Fogo

Era um plano simples que Molucco e os 11 outros capitães pira-


tas haviam estabelecido. Rodear o navio e começar a lançar fogo
de todos os lados. Tanto fogo que seria preciso um oceano para
aplacar o calor. Deixar os ocupantes assassinos sem chance pos-
sível de escapar. Molucco sabia que isso significava que o navio
do irmão — junto com o corpo do irmão e dos tripulantes —
seria transformado em cinzas. Mas, com Porfírio morto, con-
cluiu que esse era o final certo.
— Como os piratas de antigamente — anunciou com sole-
nidade —, seu navio será sua pira funerária.
E assim, naquela noite, 12 navios partiram pelo litoral. O
Diablo, claro, ia à frente da flotilha. No convés de cada navio,
uma fogueira controlada fora preparada — pronta para o mo-

1 424 1 
 
mento em que cada força pirata acenderia suas tochas e se pre-
pararia para o ataque simultâneo. Olhando os preparativos,
Connor ficava pensando no que o capitão Vampirata lhe havia
dito.
“Dentre os exilados, talvez você veja alguém que parece ser conhecido.
Mas não se engane. Ele não é o que aparenta, é apenas um eco.”
O que ele quisera dizer com “um eco”? E de quem o capi-
tão estaria falando?
“Você deve ser muito forte, Connor. Deve mostrar o caminho. Não
deixe que ele impeça você e seus companheiros de fazerem o que devem.”
O capitão parecia muito confiante de que Connor podia
controlar os outros, mas ele ainda era novo para a tripulação.
Certo, Molucco o ouvia, mas ele não tinha nem um pouco de
certeza de que pudesse comandar o resto dos companheiros no
calor da batalha.
“Quando chegar a hora, entenderá e agirá. Você não precisa de tanta
ajuda quanto imagina. Seu destino não é seguir, e sim liderar.”
Seria verdade? Connor pensou de novo em sua visão de se
tornar um capitão-pirata. Talvez hoje fosse seu primeiro teste
em direção a esse objetivo.
O canhão do navio rugiu. Era o sinal. O navio roubado fo-
ra avistado. O Diablo ajustou o rumo. Connor olhou para trás e
teve a incrível visão de 11 navios se movendo em formação, ca-
da um levando círculos perfeitos de fogo — como pequenos
planetas — através da noite.

111

1 425 1 
 
Os navios se viraram para o alvo, reunindo-se ao redor como
abelhas numa colméia. O navio de Porfírio estava à deriva, as
velas enroladas. Os piratas não conseguiam ver nenhum sinal de
vida a bordo — mas o convés vazio tinha a terrível e sangrenta
prova da chacina. Uma nova sirene soou. Em cada navio, os pi-
ratas se armaram com tochas acesas. Uma segunda sirene. E a-
gora os piratas começaram a atirar tochas de todos os lados
contra o convés do navio. Em pouco tempo o convés estava
cercado de chamas.
— Isto é por Porfírio — gritou Molucco, atirando uma
tocha flamejante em direção ao mastro.
Os piratas do Diablo gritaram em comemoração quando as
velas começaram a pegar fogo. Os gritos foram acompanhados
pelos homens dos outros navios até que havia uma parede de
som ao redor do círculo de fogo.
De repente surgiram figuras no convés do navio. Connor
olhou com mais atenção. Eram quatro — três homens e uma
mulher —, e vinham encolhidos em meio ao fogo. Os olhos de
Connor os examinaram — aqueles monstros! Havia um homem
alto e negro, com o cabelo prateado refletindo as chamas. De-
pois um mais alto, mais magro e mais jovem. E uma garota, uma
garota linda, mas mesmo assim um monstro. E então... e então
surgiu o quarto vampiro. Connor se encolheu. Era Jez!
Connor olhou para Jez, lembrando-se da última vez em que
o vira, deitado na cabine de Molucco depois de terem trazido
seu corpo de volta através da desejo. Lembrou-se do momento,

1 426 1 
 
no convés do Albatroz, em que a vida de Jez finalmente o havia
abandonado. Enquanto vivesse, Connor jamais esqueceria aque-
le momento. De súbito entendeu as palavras do capitão Vampi-
rata. “Dentre os exilados, talvez você veja alguém que pareça conhecido.
Mas não se engane. Ele não é o que aparenta, é apenas um eco”. Não era
Jez.
Ao lado de Connor, Bart empalideceu de horror. Connor
se virou para o amigo, que apontava perplexo para Jez — ou
para a coisa em que Jez havia se transformado.
— Não é ele — disse Connor. — Parece, mas não é Jez.
O rosto de Bart era pura confusão agonizada.
— Não entendo. Olhe para ele...
— É complicado — disse Connor, subitamente compre-
endendo as palavras do capitão Vampirata. — Depois de Jez ter
morrido, depois de fazermos o sepultamento, ele foi trazido de
volta à vida. Bem, trazido de volta a alguma coisa...
Bart balançou a cabeça.
— Está dizendo que meu velho camarada é um vampiro?
— É um Vampirata — disse Connor.
— A tripulação que salvou Grace?
Bart estava — compreensivelmente — lutando para aceitar.
Mas agora Connor viu que outros membros da tripulação havi-
am notado “Jez” e estavam contendo o fogo. Precisava fazer
alguma coisa. Se interrompessem o ataque, quem sabia que pe-
rigo poderia brotar daquilo?
— Não é ele! — gritou. — Não é o Jez! — E subiu mais
alto no convés. — Confiem em mim, não é o Jez!

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Os piratas olharam de volta para Connor, todos em confu-
são desenfreada. Eles também tinham visto Jez morrer. Tinham
visto seu caixão ser lançado ao mar.
No outro navio, Stukeley olhava inseguro para eles através
das chamas que saltavam — os olhos traindo uma mistura de
medo, surpresa e confusão. E então viu Bart. E algo rompeu a
confusão.
— Bart! — gritou ele. — Connor! Os três bucaneiros! — Era
reconhecivelmente a voz de Jez.
— Sem dúvida parece com ele — disse Bart, o rosto retor-
cido de dor.
— Você o viu morrer — disse Connor, ansioso. — Lem-
bre-se disso. Juntos nós jogamos o caixão no mar. — Connor se
virou para o resto da tripulação. — É um truque! Todos vimos
Jez morrer. Estávamos todos lá quando ele foi sepultado no mar.
Isso é um truque, garanto, o tipo de truque mais cruel. Mas esta
é a tripulação que assassinou Porfírio Wrathe e seus tripulantes.
Devemos continuar o ataque!
Houve um momento em que Connor pensou que havia
fracassado, mas então, de súbito, os tripulantes começaram a
levantar as tochas de novo. Eles hesitaram, olhando para Bart. O
significado era claro. Bart havia sido o melhor amigo de Jez. Que
ele tomasse a decisão final.
— Sim — gritou Bart. — Connor está certo. É um truque.
Eu abracei meu amigo quando ele morreu. Isto aí não é ele! Jo-
guem as tochas!

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Connor sabia que aquele era um momento terrível para
Bart. Era o fim dos Três Bucaneiros. Enquanto os piratas ao
redor renovavam o ataque com mais vigor, Connor e Bart fe-
charam os olhos. Quando os abriram de novo, instantes depois,
não podiam mais ver nem ouvir Jez através das chamas.
Aos poucos, os gritos dos três companheiros de Jez tam-
bém cessaram.
Era como olhar um navio totalmente feito de fogo — da
proa à popa, do mastro às velas e ao cordame. Toda a estrutura
estava começando a se desmontar, desfazendo-se e caindo nas
águas escuras.
Uma sirene soou. O trabalho dos piratas fora feito. O na-
vio estava destruído e, com ele, sua tripulação assassina. A vin-
gança, pensou Connor, era uma coisa dolorosa. Não deixava sa-
tisfação real, em vez disso ficava um sentimento de repulsa, cul-
pa e sujeira. Desejou que o Diablo pudesse ir para longe agora
mesmo, considerando o serviço feito.
Mas, de repente, ouviu um rugido e viu uma enorme figura
emergir do centro das chamas. Os olhos de Connor saltaram.
Era César — o estranho que havia conhecido a tripulação do
Diablo na taverna de madame Chaleira e os guiou ao navio Vam-
pirata para resgatar Grace. César, que havia misteriosamente de-
saparecido do navio. Agora Connor pensou que entendia o mo-
tivo. Mas precisava de confirmação. Subiu no cordame para es-
tar no mesmo nível dos olhos do monstro.
— César! — gritou. — César!

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Os outros piratas olharam para Connor e depois para o na-
vio em chamas. Os que haviam conhecido “César” começaram a
assentir. Mas agora a compreensão começava a se espalhar. Ha-
via algo seriamente deturpado naquele outro navio — sua tripu-
lação não era o que parecia. Afinal de contas, eram demônios.
Agora, o último vampiro sobrevivente se virou para Con-
nor. Era como olhar o rosto do diabo — os olhos ardendo com
o mesmo fogo que devorava, faminto, seu navio. Connor tentou
desviar o olhar, mas a visão, ainda que medonha, era irresistível.
— Meu nome não é César, idiota! Meu nome é... Sidório!
Claro! Agora tudo fazia sentido. Este era o vampiro que
havia tentado atacar Grace. Era o que o capitão Vampirata havia
exilado. Ele levara os piratas até o navio Vampirata não para res-
gatar Grace, e sim para destruir os Vampiratas...
— Dêem-me uma tocha! — gritou Connor para um dos
piratas abaixo. — Depressa, dêem-me uma tocha! — Uma tocha
foi passada a ele. De repente Connor se sentia como um oficial
superior.
— Isto é por Grace! — gritou, atirando a tocha diretamen-
te contra Sidório. O fogo acertou o convés bem na frente dele.
— E outra! — gritou Connor para os piratas embaixo. Ra-
pidamente outra tocha foi passada.
— Isto é por Jez! — gritou Connor, lançando a tocha pelo
ar. Ela acertou na lateral do corpo de Sidório. Uma chama terrí-
vel subiu de sua carne, ou do que quer que ele fosse feito. Fu-
maça negra começou a subir acima dele.

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— Fogo! — rugiu a voz de Sidório. — O fogo só me deixa
mais forte.
— Outra! — gritou Connor. — Passem-me outra e juntem
todas as tochas que restam. Vamos jogar juntos.
Os piratas passaram outra tocha para Connor, depois pe-
garam as suas. Connor olhou para os piratas do Diablo. Por um
momento, era a sua tripulação. Bart, Cate... até Molucco estava
olhando para ele.
— E isto — gritou Connor, olhando por cima da água e do
fogo, para o gigante em chamas. — Isto é por Porfírio! — Em
seguida atirou sua tocha pelo céu noturno. Ela voou num arco
longo, encontrando as centenas de outras tochas lançadas pela
tripulação. Elas fizeram chover fogo no convés do antigo navio
de Porfírio. Nada, ninguém, era visível através das chamas. O
único barulho eram os estalos devoradores. O único cheiro era
da fedorenta fumaça enquanto o navio se incendiava até virar
nada.
Então, acima dos estalos das chamas, veio um rugido mais
alto.
— O fogo só me deixa mais forte. — Mas a voz havia mudado,
de algum modo. Sidório era uma criatura vaidosa, pensou Con-
nor. Afirmaria seu poder até o fim, mas não poderia sobreviver a
esse último ataque.
Mas, para espanto de Connor, as chamas começaram a se
moldar na forma do monstro, até ele estar com cinco, dez, vinte,
quarenta metros de altura. O gigante pairou furioso acima deles.

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— A morte não pode me levar — rugiu ele. — A morte não pode
levar os mortos de volta.
Quando suas palavras terminaram, o fogo se apagou subi-
tamente. A terrível imagem de Sidório desapareceu. E, de súbito,
mesmo com o coração batendo violentamente, tudo que Connor
enxergava era um navio se queimando. Uma pira funerária para
Porfírio Wrathe e sua tripulação. E, de algum modo, pensou
Connor, para Jez também.
Por longo tempo ficou ali pendurado no cordame, olhando
o navio se queimar, tornando-se uno com as águas que o haviam
sustentado. Será que agora os oceanos estavam de novo em se-
gurança? Será que a maré de terror de Sidório havia terminado?
Por fim olhou para baixo e viu que Cate, Bart e Molucco
haviam se reunido abaixo dele, no convés.
— Desça! — gritou Molucco. — Agora acabou!
Connor desceu do cordame, subitamente atordoado com
tudo que havia acontecido, com frio e tremendo de emoção e-
xaurida.
Quando chegou ao convés, Cate e Bart se adiantaram e o
abraçaram. Era exatamente disso que ele precisava.
— Você é incrível — disse Bart.
— Um verdadeiro herói! — acrescentou Cate.
O capitão Wrathe assentiu, estendendo os braços para
Connor.
— Você salvou a pátria, sr. Tormenta. Se não fosse você...
se não fosse você...
Connor balançou a cabeça.

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— Só fiz o que qualquer pirata teria feito por seu capitão,
por seus amigos.
Quando Connor se viu abraçado pelo capitão, pensou na
pergunta que o capitão Vampirata lhe havia feito.
“Existe algum lugar realmente seguro?”
Um tremor atravessou seu corpo inteiro. Uma batalha ha-
via terminado, mas outra não estaria muito distante. Eles eram
piratas. Era isso que significava ser pirata.
Por cima do ombro de Molucco, Connor viu a frota de na-
vios partir para a noite. Sou parte de tudo isso, pensou, escolhi
isso e escolheria de novo e de novo, sejam quais forem os peri-
gos.

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CAPÍTULO 42

Um milhão de mistérios

Grace estava esperando no convés enquanto a luz do dia se


desbotava no crepúsculo. Tinham viajado pelo oceano e o céu
cinzentos, entrando em águas mais escuras, mas ainda não fazia
idéia se o Santuário estaria perto ou longe. Não vira o capitão
para perguntar. Ele estava ocupado com seus planos — e agora
ela também tinha planos.
Quando o sol caiu nas águas de obsidiana, Grace olhou
para a figura de proa do navio, esperando que Darcy Flotsam
acordasse. Isso aconteceu apenas alguns instantes depois de o
sol finalmente ser engolido pelas ondas. Grace ouviu um estalo e
viu o primeiro sinal de movimento abaixo. O pescoço de Darcy
se levantou ligeiramente, causando outro pequeno estalo. Então
seu cabelo bem arrumado balançou de um lado para o outro.

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Crac-chhh. Crac-chhh. Em seguida seus braços se movimentaram
bruscamente — criii-ac — e logo as pernas também. Ela devia
saber que estava sendo observada, porque virou o rosto na dire-
ção de Grace e piscou antes de se virar de novo e mergulhar na
água.
Desapareceu embaixo d’água com um som delicado e sur-
giu de novo a alguns metros dali, empurrando o cabelo liso para
trás e olhando ao redor com espanto, como se visse o mundo
pela primeira vez. Boiou um pouquinho, depois nadou ao redor
do navio para subir a escada e se juntar a Grace no convés.
— Boa-noite, Grace — disse ela, pingando nas tábuas
vermelhas. — Voltou de vez?
— Voltei, Darcy. Pelo menos, espero que sim.
— Então o que há de errado? Posso ler você como se fosse
um livro, Grace Tormenta. Na verdade, muito melhor do que
um livro. E dá para ver que está num daqueles estados de espí-
rito agitados.
Grace sorriu. De algum modo, não importa o que estivesse
acontecendo no navio, Darcy — com seu jeito estranho e suas
palavras estranhas — sempre a fazia sentir-se melhor.
— Darcy, preciso pedir um favor.
— Um favor, é? Bom, peça, e certamente vou pensar no
seu pedido com muito cuidado e dar uma resposta toute-suite.
Enquanto falava, ela foi em direção ao sino do navio.
— Espere! — gritou Grace.
Darcy parou e se virou.

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— Por favor, seja paciente, Grace. Você sabe que é meu
dever tocar o sino. É minha responsabilidade acordar a tripula-
ção.
— É, eu sei. Esse é o favor que preciso pedir.
Darcy franziu o nariz e a testa.
— Estou meio confusa.
— Darcy, por favor, pode esperar um pouco para dar o
Toque do Anoitecer? Quero trazer Lorcan aqui em cima, e achei
que seria mais fácil se tivéssemos o convés só para nós.
— Ah, Grace. — O rosto de Darcy ficou frustrado. —
Mas eu achava que você sabia. Lorcan não sobe mais ao convés.
Está apavorado demais, depois do que aconteceu. Ele vive com
medo da luz.
Grace confirmou com a cabeça.
— Eu sei, mas não vou desistir. Com sua ajuda, esta noite
ele vai subir ao convés. Não vou aceitar um “não” como respos-
ta.
Darcy deu um sorriso. Havia lágrimas em seus olhos. Ela
entendia o que Grace queria fazer.
— Você é uma pessoa maravilhosa, Grace Tormenta. Uma
amiga maravilhosa.
Uma amiga maravilhosa, pensou Grace. O que ela iria ofe-
recer a Lorcan esta noite excedia até mesmo a oferta de um a-
migo. Olhou de novo e encontrou Darcy sorrindo.
— Claro que farei o que você pede. Só vou acender as
lâmpadas, de modo que todas estejam prontas para mais tarde.

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Em seguida vou pôr um vestido bonito e seco, refazer o cabelo
e a maquiagem. Meia hora seria tempo suficiente?
Grace assentiu.
— Seria. Obrigada, Darcy. Muito obrigada.
— De nada. Agora vá arrancar o tenente Furey da escuri-
dão de sua cabine.
Grace confirmou com a cabeça, sorrindo, e voltou corren-
do pelo navio. Seguiu com objetividade mas em silêncio pelo
corredor e desceu a escada até a cabine de Lorcan. Bateu à porta
e, sem esperar resposta, empurrou-a.
Ele estava deitado nas sombras, com uma vela acesa de-
bilmente ao lado da cama.
— Quem é? — perguntou Lorcan, a voz cansada, frágil e
entrecortada.
— Sou eu, Grace.
— Ah — disse ele, a voz desprovida de emoção. — Veio
fazer outra visita?
— Não — respondeu ela, aproximando-se da cama. —
Não é uma visita. Dessa vez voltei mesmo.
As palavras atraíram a atenção dele e sua cabeça girou. O
ferimento recebera um curativo novo e o tecido branco estava
bem amarrado na nuca. A pele tinha uma palidez quase igual.
— Você disse que voltou de vez?
— Disse. — Ela estendeu a mão e tocou o braço dele.
Lorcan tremeu ao toque, mas ela soube que a mensagem havia
sido transmitida.
— Venha — disse. — É hora de levantar.

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Ele balançou a cabeça.
— Estou cansado.
— Claro que está, Lorcan. Você não está se cuidando. Não
quer sair da cabine. Parou de tomar sangue. Não é de espantar
que não tenha energia. Venha, saia da cama! Vou levá-lo ao
convés.
Ele se imobilizou.
— Não, Grace.
— Vai dar tudo certo. Sei que está com medo, mas vou fi-
car junto; em cada passo do caminho. A lua ainda nem saiu.
— Como pode estar escuro? Darcy não soou o Toque do
Anoitecer. A não ser que eu tenha dormido na hora.
— Não. Ela ainda não tocou o sino porque eu pedi. Achei
que seria mais fácil para você se o convés estivesse vazio.
Ele se ergueu um pouco, com algum esforço.
— Grace, você é muito gentil, mas não vou ao convés.
— Vai, sim — disse ela, parecendo muito mais decidida do
que se sentia. E puxou as cobertas. — Venha! — disse com sua
voz mais firme. Podia ver que agora ele estava pensando a res-
peito.
— Vai estar frio lá em cima — disse Lorcan.
— Por isso você vai usar sua capa. Agora ande, sente-se e
vou ajudá-lo com os sapatos.
Sem se sentir abertamente otimista, ela deu as costas para
ele por um momento e foi pegar as botas de Lorcan do outro
lado da cabine. Quando encontrou as duas, virou-se de novo e o
achou sentado, esperando. Seu coração disparou de felicidade.

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Queria chorar, mas precisava se manter forte e concentrada. Ha-
via muita coisa a fazer em pouco tempo.
— Aí está — disse ela, pondo as botas no chão e se ajoe-
lhando diante dele. Enfiou seu pé direito na bota e começou a
apertar o cordão. Quando acabou, repetiu a operação com o es-
querdo. Depois se levantou diante dele.
— Pronto. Agora você precisa se levantar.
Lorcan fez uma pausa, respirando fundo. Grace percebeu
que ele estava mais fraco do que ela imaginava.
— Posso ajudar? — perguntou.
Ele assentiu lentamente. Grace ficou feliz em fazer aquilo,
mas sentiu-se perturbada ao ver que ele estava muito mais fraco
do que percebera. Fosse pela falta de sangue ou de exercício,
Lorcan perderá toda a vitalidade anterior. Imaginou se ele con-
seguiria recuperá-la.
— Quando eu contar até três — disse, estendendo as mãos
para ele. Segurou-as e sentiu seu toque mais gelado do que nun-
ca.
— Um... dois... três!
Ele balançou para cima e se apoiou nos pés. Os dois cam-
balearam, inseguros, por um instante ou dois, e em seguida ele
estava de pé. Devidamente de pé.
— Muito bem — disse ela, ajeitando a camisa de Lorcan.
— E agora vamos pôr sua capa.
Grace pegou a pesada capa na cadeira e pôs sobre os om-
bros dele. Começou a juntar os dois cordões para amarrá-los,
mas ele balançou a cabeça.

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— Deixe que eu faço.
— Está bem, claro. — Ela pôs os cordões nas mãos dele e
recuou.
Os dedos de Lorcan lutaram com os cordões e, na primeira
tentativa de dar um nó, falharam por completo. A capa escorre-
gou dos ombros até o chão. Grace ficou de joelhos e pegou-a de
novo, recolocando-a nos ombros dele.
— Obrigado — disse Lorcan, claramente embaraçado e
frustrado.
Grace recuou de novo, morrendo de vontade de fazer o nó
para ele, mas sabendo como era importante que ele fizesse so-
zinho aquela coisa pequena.
Foi uma tortura observá-lo com tanta dificuldade em a-
marrar os cordões pela quarta, quinta e sexta vez, mas Grace se
recusou a desistir. A cada vez sussurrava palavras de encoraja-
mento, puxava a capa para cima e devolvia os cordões. Ele não
teria ganhado notas altas na aula de nós da capitã Quivers, pen-
sou Grace, mas o laço acabou prendendo a capa no pescoço, e
era isso que importava.
— Acho que você está pronto — disse Grace, abrindo a
porta.
— Vamos devagar. Estou com os pés meio bambos ulti-
mamente.
— Claro. — Grace passou o braço pelo dele. — É só se
apoiar em mim.
E assim foram, muito devagar a princípio, pelo corredor e
subindo a escada. A velocidade foi aumentando à medida que

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seguiam pelo segundo corredor, mas Lorcan se apoiou nela por
todo o caminho, o corpo frágil e precisando de apoio.
— Estamos junto à porta do convés — disse ela, sentin-
do-o ficar tenso imediatamente. — Tudo bem, Lorcan. Verdade.
Você vai ficar ótimo.
— Está mesmo escuro lá fora, não está?
— Está.
— Verifique de novo, para mim.
— Certo. — Ela abriu uma minúscula fresta na porta. Es-
tava totalmente preto lá fora, a não ser pelas estrelas e a fina lua
crescente.
— Está escuro — disse ela. — Ah, Lorcan, é uma linda
noite escura. Por favor, venha para fora. — Grace manteve a por-
ta aberta e esperou. — Se não quer fazer isso por você mesmo,
faça por mim.
Ele assentiu e, estendendo a mão para se apoiar de novo,
saiu para o ar noturno.
— Pronto — disse ela. — Você está do lado de fora. Qual
é a sensação?
— É boa — respondeu ele, respirando fundo. — É boa.
Ela o levou até a amurada. Instintivamente Lorcan esten-
deu a mão para o metal. Segurou-se nele e se inclinou adiante,
como fizera tantas vezes, erguendo o rosto para sentir a brisa do
oceano.
— Senti falta disso.
— Eu voltei — disse Grace. — E agora você precisa voltar
também.

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— Como assim?
Ela suspirou. Era agora ou nunca.
— Você precisa começar a tomar sangue de novo. — A-
gora o coração de Grace estava martelando. Mas seu destino
estava selado. Fora selado havia muito. Sem chance de retorno.
— Estive com Shanti hoje cedo.
— Shanti — repetiu ele, como se o nome provocasse ape-
nas uma lembrança remota.
— Sua doadora. Eu a vi e ela contou que você parou de
compartilhar com ela.
Lorcan ficou quieto, o rosto com a atadura apertada levan-
tado para o ar. Ultimamente ele era mais difícil de ser decifrado
do que o capitão e sua máscara.
— Você deve tomar sangue de novo. Se não for o de
Shanti, então... então deve tomar o meu.
Lorcan se virou para ela. Ainda que boa parte de sua ex-
pressão estivesse bloqueada pela bandagem, Grace pôde ver que
ele ficou chocado.
— Grace, eu nunca tomaria o seu sangue. Shanti é minha
doadora...
Grace confirmou com a cabeça. Lágrimas desciam pelo seu
rosto, mas não sabia se era de dor, júbilo ou alívio.
— Mas Shanti pensou que você não queria mais o sangue
dela. Pensou que você talvez tomasse o meu. Que eu poderia me
tornar sua nova doadora.

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— E você teria feito isso por mim? — perguntou ele. Sua
mão escorregou um pouco pela amurada. Encontrou a dela, as
laterais dos dedos mindinhos pressionando um contra o outro.
— Você me salvou, Lorcan. Você me salvou, cuidou de
mim e me protegeu. E, claro, eu faria o que fosse necessário pa-
ra salvar você.
Ele baixou a cabeça.
— Fui tão idiota! — disse ele.
— Por quê? Como assim?
— Não achei que você fosse voltar. E senti sua falta. Senti
muita falta.
As palavras a deixaram enregelada. Claro que sim. Mas ao
mesmo tempo ela teve um enorme sentimento de responsabili-
dade. Será que ele de fato havia parado de tomar sangue não por
desespero com a cegueira, e sim porque sentia falta dela? Grace
jamais havia sido tão importante para alguém, além de Connor.
Seus sentimentos eram uma mistura desconhecida de deleite e
medo.
— Olhe para o oceano — disse ele. — O que você vê?
Ela olhou à distância.
— Vejo muito pouco, a não ser... a não ser as águas escuras
continuando para sempre.
Ele assentiu.
— É assim, para mim. Mas não é apenas o oceano que se
estende para sempre. É o tempo. Imagine se todo o oceano fos-
se uma colcha de retalhos de dias, noites, horas e minutos. Es-

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tendendo-se continuamente no tempo, sem fim. Imagine se você
tivesse de enfrentar tudo isso sozinho.
— Mas você não está sozinho.
— Agora, não — respondeu ele, com a lateral do dedo
pressionando o dela.
Ficaram ali por um tempo, sem falar nada. Lágrimas es-
corriam pelo rosto de Grace, mas ela deixou o vento secá-las.
— Estou com frio — disse, tremendo.
— Aqui. — Ele levantou os braços. — Venha para dentro
da minha capa.
Ela chegou mais perto, encostando o corpo no dele en-
quanto Lorcan puxava a capa quente ao redor dos dois.
— Encoste-se em mim agora — disse ele, puxando-a mais
para perto.
Ela sorriu.
— Vamos encontrar uma cura para você — disse Grace.
— É para onde estamos viajando agora, você sabe. A um lugar
chamado Santuário. Para encontrar um amigo do capitão, um
homem chamado Mosh Zu Kamal.
Lorcan respirou fundo.
— É verdade? É verdade?
— O próprio capitão me disse. Ele não vai desistir de você,
nem eu.
Lorcan sorriu.
— Bem-vinda de volta ao Noturno, Grace.
Ela girou a cabeça, perplexa.
— Noturno? O que é isso.

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— Ora, o nome do navio, claro.
— Verdade? Eu nem sabia que ele tinha nome.
— Ah, bem, Grace. Há um milhão de mistérios a bordo
deste navio, e você só começou a roçar a superfície deles. Acho
melhor ficar mais um tempo, se quiser descobrir mais alguns.
Ela sorriu e se enfiou ainda mais no calor da capa.
— Sim, acho que vou fazer exatamente isso.

Fim

Digitalização/Revisão:
SAYURI

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