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ELEMENTOS E

FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Autoria: Maria Gisele Canário de Souza

Welder Lancieri Marchini

UNIASSELVI-PÓS
Programa de Pós-Graduação EAD
CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI
Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito
Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC
Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090

Reitor: Prof. Hermínio Kloch

Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol

Coordenador da Pós-Graduação EAD: Prof. Ivan Tesck

Equipe Multidisciplinar da
Pós-Graduação EAD: Prof.ª Bárbara Pricila Franz
Prof.a Tathyane Lucas Simão
Prof. Ivan Tesck

Revisão de Conteúdo: Neivor Schuck


Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais

Diagramação e Capa:
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Copyright © UNIASSELVI 2017


Ficha catalográfica elaborado pela editora do grupo
UNIASSELVI – Indaial.

220.07
S719E Souza, Maria Gisele Canário de

Elementos e fundamentos bíblicos / Maria Gisele Canário de


Souza; Welder Lancieri Marchini. Indaial: UNIASSELVI, 2017.
153 p. : il.
ISBN 978-85-69910-76-3

1.Bíblia – Estudo e Ensino. I. Centro Universitário


Leonardo Da Vinci.
Maria Gisele Canário de Souza

Mestre em Teologia com ênfase em exegese


bíblica (Antigo Testamento) pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Especialista em Antigo e Novo Testamento pelo
centro Bíblico Verbo. Possui graduação em Teologia
pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores
(ITESP). É graduanda em geografia pela
Universidade Cruzeiro do Sul - SP. Atualmente é
assessora do Centro Bíblico Verbo e Tutora do
curso de Bíblia online. É membra do grupo
de pesquisa Tradução e Interpretação do
Antigo Testamento (TIAT).

Welder Lancieri Marchini

Doutorando em Ciência da Religião (PUC-SP)


onde pesquisa a recepção do Concílio Vaticano II
pela Igreja no Brasil, mestre pela mesma instituição,
com pesquisa sobre os impactos da metrópole em
ambiente urbano. Pós-graduado em teologia pastoral,
com ênfase na teologia da missão (ITESP), bacharel em
Filosofia (PUC-Campinas) e em Teologia (ITESP).

É professor convidado na Graduação em Teologia


do ITF (Petrópolis), na pós-graduação em Ciência da
Religião da PUC (São Paulo) e na pós-graduação
Religião e Cultura na UNIFAI (São Paulo). Trabalha
como editor teológico na Editora Vozes.

É autor do livro “Paróquias urbanas:


entender para participar” pela Editora
santuário (2017) e do livro de catequese com
adolescentes “Perseverando com Jesus”
pela Editora Vozes (2015).
Sumário

APRESENTAÇÃO.....................................................................01

CAPÍTULO 1
Estudo da Bíblia........................................................................9

CAPÍTULO 2
O Antigo Testamento e sua História....................................21

CAPÍTULO 3
O Exílio, e a Volta do Exílio Decretada pelo
Império Persa..........................................................................63

CAPÍTULO 4
Segundo Testamento...........................................................109
APRESENTAÇÃO
O estudo do livro mais vendido do mundo, cerca de seis bilhões de cópias, a
Bíblia, passou por uma série de transformações e descobertas ao longo da história.
Podemos imaginar que esse processo de leitura e conhecimento não é tão simples,
pois existem inúmeras formas de interpretá-la. Com essa disciplina, Elementos
e Fundamentos Bíblicos, almejamos que você seja introduzido nesse processo de
leitura e aprendizado.

No primeiro capítulo apresentamos alguns conceitos que desmistificam formas


de leituras usuais e muito conhecidas no universo religioso cristão. Com isso
surgem algumas ferramentas que são utilizadas no estudo da exegese que poderão
sistematicamente nos apresentar algumas técnicas para a leitura da Bíblia.

Com os conceitos apresentados no primeiro capítulo, à guisa de introdução da


disciplina, no segundo capítulo iremos conhecer brevemente o contexto histórico,
político e ideológico, que nortearam as narrativas bíblicas, que foram escritas por
muitos autores. Para isso é fundamental conhecermos um pouco mais sobre a história
de Israel. Teremos uma breve apresentação que nos introduz à leitura dos principais
livros do Primeiro Testamento.

Nessa mesma perspectiva seguimos com o conhecimento da história de


Israel, no terceiro capítulo, porém, iremos perceber com isso, que os relatos na
Bíblia não são escritos de maneira cronológica, metaforicamente podemos dizer
que se trata de uma colcha de retalhos, haja vista que não se trata de um livro só,
mas de muitos livros.

Feito o estudo do Primeiro Testamento chegamos a algumas ferramentas que


nos ajudarão na leitura da coletânea de livros que compõe o Segundo Testamento.
Essa parte dos estudos muito interessa aos cristãos, pois são livros que narram a
história de Jesus e dos seus seguidores, sob a ótica da segunda geração dos
seus discípulos. Nesse último capítulo teremos conhecimento dos evangelhos
sinóticos, bem como suas similaridades e diferenças e o porquê de tantas possíveis
arbitrariedades. Consequentemente a isso conheceremos um pouco mais sobre a
vida do Apóstolo Paulo, o responsável pela propagação da vida de Jesus aos confins
do Império Romano. Pessoas que não fizeram parte do convívio de Jesus escutaram
falar sobre ele a partir dos relatos de Paulo, seja pessoalmente ou por meio de cartas.
Esperamos que esse estudo ajude você a buscar outras ferramentas que
possam ser úteis na leitura da Bíblia. Um livro em que suas narrativas jamais podem
fundamentar ou legitimar realidades para a qual não foram escritas. Não podemos
esquecer que os personagens das narrativas bíblicas não sabiam que esse livro seria
lido por nós, hoje, após mais de dois mil anos e que, portanto, uma leitura fora de
contexto pode ser um grande equívoco.

Os autores.
C APÍTULO 1
Estudo da Bíblia

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

 Compreender as diversas formas de leituras da Bíblia,


bem como suas perspectivas teológicas.
 Conhecer os principais métodos de estudos da
Bíblia e saber utilizá-los na leitura bíblica.
 Analisar os livros bíblicos em perspectiva literária e narrativa, a partir
da memória e da religiosidade, superando leituras fundamentalistas.
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

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Capítulo 1 ESTUDO DA BÍBLIA

Como Lemos a Bíblia?


Você sabia que existem muitas maneiras de ler a Bíblia? Pois é! Você pode
se perguntar como isso é possível, se a Bíblia é uma só e se ela foi inspirada e
escrita pelo próprio Deus. Comecemos nos atentando para alguns pontos impor-
tantes para compreendermos esses fundamentos, que podem nos ajudar na hora
da leitura.
Qualquer
No entanto, há tantas formas de leituras e interpretações que interpretação da
Bíblia que fizermos
chegam a confundir os cristãos leitores, que em muitas narrativas até trará consequências
param a leitura e se perguntam: Mas, então, como é que se lê a Bíblia? diretas na relação
Qualquer interpretação da Bíblia que fizermos trará consequências di- que temos com
Deus e com todas
retas na relação que temos com Deus e com todas as pessoas. as pessoas.

Continuemos! Você já deve ter percebido que existem diferentes maneiras


de ler a Bíblia e que, de acordo com essa leitura, conceberá diferentes imagens
de Deus no seu pensamento. Algumas pessoas descobrem na Bíblia um Deus
valente, ameaçador, bravo, justiceiro; outros acham um Deus que perdoa, amo-
roso, amigo e que propõe um projeto de vida a ser seguido; alguns se revoltam
contra o Deus da Bíblia, outros se apaixonam e se comprometem com ele.

Há, no entanto, pessoas que leem a Bíblia e se tornam rancorosas, juízes


de todo mundo, usando a palavra de Deus como arma de acusação; outras ficam
esperando que Deus resolva todos os seus problemas por meio de um milagre
imediato; existem ainda aqueles que se desligam da vida concreta, achando que
quanto mais distante do mundo, mais perto estarão de Deus. Dessa forma, todos
eles usam a Bíblia para justificar suas próprias opiniões, muitas vezes aplicando
o texto da forma como o entendem. Às vezes, nem percebem que a sua forma de
ler e interpretar a Bíblia está produzindo uma ideia de Deus muito esquisita ou até
contrária à caridade.

A Bíblia – Palavra de Deus – chega até nós, nas nossas igrejas e/ Os leitores da Bíblia
ou comunidades, às pessoas de fé, em forma de literatura. É importante se veem desafiados
a identificar a
percebermos que na Bíblia Deus faz uso da linguagem humana para ser Palavra de Deus,
compreendido. Nesse sentido, os leitores da Bíblia se veem desafiados a revestida com
identificar a Palavra de Deus, revestida com palavras humanas. palavras humanas.

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ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Para aprofundar-se mais nos vários métodos de leitura bíblica,


de cunho mais pastoral, deixamos algumas dicas de leitura:

1- Equipe nacional da dimensão bíblico-catequética.Como


nossa Igreja lê a Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1995.
2- Serviço de animação bíblica. Iniciação à leitura da Bíblia.
São Paulo: Paulinas, 2007.
3- PULGA, Rosana. Beabá da Bíblia. São Paulo: Paulinas,1998.
4- ANTONIZI, Alberto, et al. ABC da Bíblia. São Paulo: Paulus,
1982.

Um dos grandes desafios enfrentados pelas igrejas e/ou comunidades


cristãs consiste em captar a mensagem da salvação nas entrelinhas de um
texto. Essa tarefa é, ao mesmo tempo, fácil, mas complexa. Fácil porque, por
meio de traduções confiáveis, podemos ter acesso aos textos bíblicos também
confiáveis. Difícil e complexo, por se tratar de um texto escrito num horizonte
cultural e linguístico muito distinto da nossa realidade atual. Para entendê-lo são
necessárias ferramentas que possibilitem o acesso à mensagem veiculada. Em
outras palavras, só é possível chegar ao sentido aproximado do texto num intenso
processo de interpretação. As narrativas bíblicas foram escritas para serem lidas
e, por conseguinte, interpretadas.

Ler é interpretar! Interpretar é ler! Quem se aventura a ler a


Ler é interpretar!
Interpretar é ler! Bíblia sem interpretá-la não entenderá o que lê. Nesse sentido, quem
interpreta produz um tipo de leitura que poderá assumir variadas
roupagens, dependendo do intérprete e seus contextos.

A cada leitura feita surgem diversas fontes de sentidos. É claro que sem
leitores e leitoras intérpretes, pessoas, comunidades-igrejas, as narrativas bíblicas
permaneceriam letra morta. São os leitores que dão vida ao texto e fazem com que
a narrativa se torne Palavra de Deus. Textos lidos sem o esforço da interpretação
tornam-se materialidade da letra, é a fragilidade das leituras fundamentalistas e
historicistas.

12
Capítulo 1 ESTUDO DA BÍBLIA

“A palavra de Deus é muito mais que o texto escrito. Ela é, antes


de tudo, o texto vivenciado” (RODRIGUES, 2004, p. 13).

Entenda por fundamentalismo a “leitura ao pé da letra”, ou seja,


a verdade corresponde ao conteúdo das palavras. Já historicista é a
leitura que considera “histórico” tudo o que a Bíblia relata, como se
tratasse de um livro de crônicas. Por exemplo, o relato da criação
Gn 1-2 se tem na conta de descrição científica do que aconteceu no
começo de tudo. Resulta nas inúteis discordâncias entre fé-ciência
promovidas por certos defensores da Bíblia.

A leitura fundamentalista da Bíblia carrega uma pobreza, por ser incapaz


de adentrar no mundo do texto. Antes, os leitores fundamentalistas dão-se
satisfeitos por transitarem na superfície dos textos bíblicos. Os fundamentalistas
e os historicistas se enganam ao se autodenominarem conhecedores fiéis da
Palavra de Deus, quando, de fato, movem-se em um universo bíblico fruto de
dogmatismos e fanatismos, sem qualquer relação com o que a literatura bíblica
pretende ser, desde as mais remotas origens de sua redação.

Por causa desses motivos é que vamos aprender a ler a Bíblia de forma
diferente. E para isso existem alguns métodos científicos: sincrônico e diacrônico
– bem como suas especificidades – e leituras que podem nos ajudar. Veja no
próximo item, após a atividade proposta, os métodos mais utilizados pelos
exegetas atuais.

Uma das maneiras de desconstruir a leitura fundamentalista é


perceber que os textos bíblicos são repletos de metáforas. A metáfora
requer uma interpretação, pois vai além do sentido literal.

Leia o texto de Mt 18,9 e busque perceber que Jesus não está


falando de maneira literal, mas metafórica.

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ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Métodos DiacrÔnicos e SincrÔnicos


Entende-se por método um conjunto de procedimentos utilizados para
examinar, com a maior objetividade possível, um dado. O método se distingue de
abordagem, porque esta está mais inclinada ao ponto de vista a partir do qual é
feita a leitura e interpretação de um texto. (LIMA, 2014). No fundo, as diferentes
abordagens escolhem um método, sendo caracterizadas pela perspectiva e
escopo que assumem.

Os chamados métodos diacrônicos oferecem maior atenção ao crescimento


dos textos e ao contexto em que o texto foi escrito, já os sincrônicos priorizam a
forma final do texto. Os métodos diacrônicos são reunidos no método histórico
crítico, composto por diversas etapas, cada qual com princípio e procedimentos
próprios. Integradas, estas etapas visam esclarecer o texto no momento de sua
produção artística (LIMA, 2014).

Veja o que a exegeta Maria de Lourdes Lima fala a respeito do


método histórico crítico:

A multiplicidade, por vezes contraditória, dos resultados


das análises diacrônicas, o caráter hipotético de suas
reconstruções, a aridez de sua argumentação e resultados,
bem como a dificuldade de falar para a época contemporânea,
que motivaram, em grande parte, o descrédito para com o
método histórico crítico, conduziram a repensar a metodologia
exegética. Estas se concretizaram, por parte de algumas
correntes, no abandono completo da diacronia, com a
consequente opção por uma leitura exclusivamente sincrônica
(LIMA, 2014, p. 65).

No caso do método sincrônico, os mais divulgados são a análise retórica


(valoriza a forma do texto), a análise narrativa (o papel do leitor na compreensão do
significado do texto), a análise semiótica (valorização das estruturas linguísticas)
e, nas últimas décadas, a pragmático-linguística (o texto como elemento de
comunicação). Cada qual dessas análises possui uma metodologia própria, que
visa esclarecer o texto em sua visão canônica (ZAPELLA, 2014).

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Capítulo 1 ESTUDO DA BÍBLIA

Em um ou outro método existem limitações, muitos dos exegetas atuais se


utilizam dos dois métodos, reciprocamente, para fazer as suas análises. Dessa
forma, os dois tipos de metodologias não se contrapõem, mas se complementam.
A exegese não pode se limitar em falar do passado do texto, inclusive em
suas possíveis etapas redacionais, mas deve chegar até sua forma canônica,
valorizando-a como Palavra de Deus que quer comunicar, sem pretender que
o mais antigo seja o melhor, ou o mais autêntico. Por outro lado, um estudo
estritamente sincrônico perderia a dimensão temporal, histórica, e cairia no perigo
do fundamentalismo.

O que é exegese? De acordo com o autor Patrick


Dondelinger (1998, p. 698), a exegese:

É um conjunto de procedimentos destinados a estabelecer


o sentido de um texto. Têm-se necessidade dela cada vez
que um texto suscita um interesse durável [...]. O texto não
necessita dela no momento de sua composição: os autores ou
redatores trabalham para serem perfeitamente compreendidos.
Não é tampouco um assunto privado entre o texto e um leitor
individual, permitindo uma interpretação sem limites. É o
produto das necessidades de uma comunidade para a qual
o texto é útil ou precioso. Tem particular importância numa
comunidade religiosa que funda suas doutrinas, suas normas
morais, sua espiritualidade em textos que crê inspirados. Essa
comunidade terá ao mesmo tempo o cuidado de elaborar
procedimentos que permitam descobrir no texto insuspeitados
sentidos e aplicações, e controlar os tipos de exegese capazes
de influenciar as crenças e a conduta de seus membros.

Estudos de história dos estilos literários têm mostrado (RODRIGUES, 2004)


que muita coisa na Bíblia não é exatamente o que estávamos acostumados a
pensar que fosse (mostram que muita coisa não aconteceu de fato daquele jeito
como está escrito). Quando esses estudos começaram, muita gente se assustou,
pensando que ia acabar com a sua fé. No entanto, as pesquisas históricas
mostram que os fatos referentes à origem do povo de Deus foram escritos muitos
séculos depois; descobriu-se que há textos formados com pedaços de outros
textos, escritos por gente de ideias e épocas diferentes: isso explica por que o
mesmo fato, às vezes, é contado duas vezes, com detalhes que divergem.

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ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Para entender mais sobre a leitura bíblica a partir do universo


metafórico, leia: MENDONÇA, José Tolentino. A leitura infinita. A
Bíblia e a sua interpretação. Universidade Católica de Pernambuco;
Paulinas: Recife; São Paulo, 2015.

O estudo dos diversos estilos literários nos ajuda a entender que certos
textos são poéticos e não podem ser interpretados como uma verdade científica.
Isso, por exemplo, aparece no poema dos seis dias da criação (Gn 1,1-2,4), que
é escrito, possivelmente, num contexto de forte sofrimento no período exílico, se
trata de um convite para louvar a Deus, mas não obriga ninguém a crer que o
mundo foi feito em seis dias.

A Bíblia e o mundo humano não se separam, pois a Palavra de Deus veste


as roupas do jeito humano de falar; é comunicada por intermédio do povo e
dos sentimentos humanos de quem tinha a tinta nas mãos e escrevia o texto
bíblico. O fato de o Espírito Santo inspirar a escrita, essa realidade não apaga
a intencionalidade do autor, que vive os conflitos humanos, os quais podem
influenciar diretamente os seus escritos, tanto positiva como negativamente.

O povo sabia ler a presença de Deus nos fatos corriqueiros da sua história
de vida. Por isso, a Bíblia, essa coleção de livros, não contém só orações, bons
conselhos, frases edificantes. Nela estão presentes fatos da vida, com tudo que
sabemos que tem a vida: heroísmo e violência, generosidade e pecado, sangue,
guerra, casos de família, machismo, preconceitos, lealdade e traição, interesses
econômicos e políticos e tantas outras situações. A Bíblia nos revela que Deus
é a verdade! Mas ela também revela quem somos nós: humanos! Propensos ao
amor, às dores, virtudes e fraquezas.

Duas atitudes podem A Bíblia pode ser entendida como um espelho, que reflete a nós
nos levar a uma mesmos, com isso ela nos ajuda a discernir sobre nossas deficiências
falsa ideia de Deus
e da encarnação: e capacidades. E nos aponta para um mundo cheio de esperança,
dar valor absoluto com possibilidades de transformações inimagináveis. Duas atitudes
a tudo o que está
escrito literariamente podem nos levar a uma falsa ideia de Deus e da encarnação: dar
e ignorar os valor absoluto a tudo o que está escrito literariamente e ignorar os
condicionamentos condicionamentos humanos e literários do texto.
humanos e literários
do texto.

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Capítulo 1 ESTUDO DA BÍBLIA

Você já deve ter se deparado com alguma situação em que pessoas se


dirigem até você querendo provar ou impor alguma atitude com a citação de um
versículo isolado. E se você questionar essa forma de leitura, imediatamente será
acusado de não possuir fé, e não respeitar a Palavra de Deus. E afirmam: “Não
tem de interpretar nada! É Palavra de Deus! Tem que ser aceita como está! Em
coisa sagrada não se mexe!” Infelizmente, existem pessoas que pensam que
por se tratar da Palavra de Deus, cada parte da Bíblia tem que ser aceita como
verdade absoluta, e não exige possibilidade nenhuma de argumentação.

Contudo, é importante saber, você que é apaixonado pelos escritos bíblicos,


que a Palavra de Deus é o reflexo daquilo que o povo sabia, sentia e vivia naquela
época. Um exemplo: No livro de Levítico, o morcego – que é mamífero – é
classificado como uma ave; na visão do povo da Bíblia, a Terra era o centro e
o Sol é que girava em volta do planeta. Nesse sentido, ninguém é obrigado a
discutir com os cientistas, só porque essas coisas estão escritas na Bíblia. Deus é
tão magnífico que permitiu que o povo se expressasse de acordo com as teorias
do momento histórico em que viviam. Deus nunca permitiu que o seu povo desse
um passo maior do que as próprias pernas.

Em muitas situações, o povo atribui a Deus seus próprios sentimentos: que


podem conter raiva, alegria, tristeza, indignação. Por exemplo, há vários textos
que falam de violência, com muito sangue, e o povo dizendo que a morte dos
inimigos é a vitória de Deus. Vivendo numa cultura violenta, o povo achava que
Deus queria isso. Compreendiam Deus por meio dos sentimentos que estavam
acostumados no dia a dia. Aliás, nós também vivemos numa sociedade violenta,
não?! Sentimos que Deus queira a destruição dos seus filhos? Por outro lado,
há situações que caberiam em determinadas épocas, mas que hoje não se
aplicam mais. Por exemplo, no tempo da Bíblia (Ex 22, 18-26) não se contestava
a escravidão, no máximo se recomendava um tratamento mais humano, existiam
até leis que os protegessem; isso, é claro, não pode justificar que um religioso
cristão, nos dias atuais, fique indiferente diante de situações de escravidão ou de
falta de respeito ao direito de quem trabalha.

O teólogo que se propõe a estudar a Bíblia deve ser fiel à Igreja, trabalhando
com competência, para ajudar a própria Igreja a aprofundar sua compreensão da
Palavra de Deus. É necessário também dar aos fiéis e às lideranças comunitárias
ferramentas que os ajudem a ler a Bíblia com o olhar na realidade e no período
bíblico, e não o contrário, o que poderia gerar equívocos desastrosos. A Palavra
de Deus correria o risco de ser descaracterizada! E aquele desejo de fazer valer a
vontade de Deus poderia surtir um efeito contrário.

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ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

As Igrejas cristãs são gratas pelo trabalho dos especialistas que ajudaram e
ajudam a entender o texto bíblico de uma forma diferente, ajudando a superar a
leitura literal e adentrando a leitura que expresse o sentido que estava presente
no período em que o texto foi escrito. Ser repetitivo, e querer que o texto fale à
nossa vida, sem levar em conta o motivo pelo qual o texto foi escrito, pode incorrer
numa infidelidade ao texto, e consequentemente, ao projeto de Deus.

A Bíblia deve ser entendida dentro do seu contexto e só depois de estudada


poderá iluminar a história de nosso tempo. Sabemos que o mundo em que foram
escritos os livros bíblicos é muito diferente do nosso, afinal já se passou um
período de mais ou menos 4.000 anos e foram redigidos em etapas diferentes
e distantes uma da outra. Um exemplo: se você olhar os costumes, a moral, a
sociedade do tempo dos seus avós, verá que questões que eram fundamentais
no tempo da juventude deles, hoje já não fazem mais tanta diferença, ou mesmo
inexistem. E estamos falando de um mesmo país, estado e cidade. Imagine, você,
essa realidade num país do Oriente Antigo, com uma religião, cultura totalmente
diferente da nossa e um período de 4.000 anos nos separando.

São muitos elementos a se considerar para a leitura da Bíblia, não acha?


Reflita sobre essa realidade e tire suas próprias conclusões. O texto bíblico deve
nos permitir fazer um caminho diferente que nos leve ao aprendizado de forma
autônoma e segura e não nos tornando repetidores de pregações ou homilias. O
texto bíblico não muda, já foi escrito, mas certamente pode e deve mudar nossa
maneira de entender o que lá está escrito. Isso não pode ser motivo de escândalo,
mas de sabedoria! (MESTERS, 2012).

A comunicação de Deus também se atualiza para que homens e mulheres


possam crer sem ter de contrariar seus conhecimentos científicos e sua
compreensão do mundo e da história da humanidade. Contudo, espera-se, é
claro, que os especialistas, para além do seu saber científico, sejam capazes de
perceber nos textos a Palavra de Deus e nela alimentem a sua fé.

Nós, que somos aprendizes, temos de fazer progressos na nossa maneira


de entender e ler a Bíblia, e não tendo medo de aproveitarmos os estudos mais
sérios e modernos. E é justamente isso que iremos fazer a partir de agora! Bons
estudos!

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Capítulo 1 ESTUDO DA BÍBLIA

Atividade de Estudos:

1) Leia o texto bíblico da Parábola do rico insensato em Lc 12, 16-


21, veja quais as dificuldades que surgem, se a leitura do texto for
feita de forma literal. A vida do rico é pedida de volta, porque optou
pelas riquezas, ou seja, juntou tesouros para si e não para Deus. Se
a narrativa for lida ao pé da letra, poderá ser compreendida de forma
trágica, aponte os caminhos de leitura para que isso não ocorra.
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Algumas ConsideraÇÕes
Nesse primeiro capítulo buscamos introduzi-lo, caro aluno, ligeiramente na
leitura da Bíblia, de maneira mais acadêmica, mas também pastoral. Acreditamos
que uma realidade contempla a outra. Para isso, fizemos uso dos métodos
propostos pela exegese bíblica, citamos apenas os mais utilizados, que são o
método sincrônico e o anacrônico. Sabendo interpretá-los, seremos favorecidos
por uma compreensão mais ampla da Bíblia. A Bíblia pode ser um local que inspira
a rezar/orar, mas não de forma ingênua, não relativizando a fé, mas verificando as
várias imagens de Deus construídas ao longo da história.

Ler a Bíblia é uma tarefa exigente, de acordo com o que vimos ao longo desse
capítulo, no entanto, se soubermos utilizar as ferramentas de leituras propostas
pelos mais variados métodos de leituras exegéticas, pode se tornar algo tranquilo.

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ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Ao longo da nossa vida fomos acostumados a ler a Bíblia com muito medo,
receio que acabou por gerar um bloqueio na hora da leitura. Tentando enxergar
as narrativas como muito belas, “algo do céu”, mesmo aquelas que retratam
situações de violência, tentávamos reinterpretá-las a ponto de se tornarem lindas
aos nossos olhos.

Dessa forma, ficou difícil vermos a Bíblia como uma biblioteca de livros
literários, escritos em um período muito distante e diferente dos costumes que
vivenciamos na sociedade hodierna. Optamos por ver a Bíblia como algo sagrado,
muito sagrado, intocável e distante de nós!

As ferramentas de leituras não podem ser vistas como algo que vai nos
tirar a fé. Para quem é religioso, isso é muito importante, porém sabemos que a
Bíblia não é lida apenas por religiosos, mas por cientistas, ateus e curiosos em
geral. Isso significa que os crentes possuem uma responsabilidade muito grande,
faz-se necessário um diálogo de igual para igual, e não apenas repetir de forma
fundamentalista o que pastores, padres, pregadores e lideranças em geral fazem.
Não veja isso como algo intolerante, mas veja como um sinal de ressignificar nos
dias atuais a Palavra de Deus, que para nós se faz necessária! Se posicione e
lembre que o conhecimento é um processo de aprofundamento da fé e da própria
existência. Pense nisso e reflita!

ReFerÊncias
ANTONIZI, Alberto, et al. ABC da Bíblia. São Paulo: Paulus, 1982.

EQUIPE NACIONAL DA DIMENSÃO BÍBLICO-CATEQUÉTICA. Como nossa


Igreja lê a Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1995.

LIMA, Maria de Lourdes Corrêa. Exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 2014.

MENDONÇA, José Tolentino. A leitura infinita. A Bíblia e a sua interpretação.


Universidade Católica de Pernambuco; Paulinas: Recife; São Paulo, 2015.

MESTERS, Carlos. Por trás das palavras. Petrópolis: Vozes, 2012.

PULGA, Rosana. Beabá da Bíblia. São Paulo: Paulinas,1998.

RODRIGUES, Maria Paula (Org.). Palavra de Deus, palavra de gente. As for-


mas literárias da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2004.

SERVIÇO de animação bíblica. Iniciação à leitura da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2007.

ZAPELLA. L. Manuale de analisi narrativa bíblica. Torino: Claudiana, 2014.


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C APÍTULO 2
O Antigo Testamento e sua História

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

 Compreender a formação do Antigo Testamento e os principais profetas


que contribuíram para formar a identidade do povo de Israel.
 Analisar os principais momentos históricos que foram fundamentais
para a construção dos livros do Antigo Testamento.
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

22
Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

ContextualiZaÇÃo
A Bíblia, como bem sabemos, é um livro diferente de todos os outros livros
que conhecemos, pois não se trata de um livro, mas de uma coleção de pequenos
livros (livretos, cartilhas). A palavra Bíblia se origina do grego, que significa,
literalmente, “livrinhos”, pois indica o plural da palavra biblion, que é o diminutivo
de “biblos”.

Os livros bíblicos foram escritos em três línguas diferentes, no entanto, a


maior parte dela foi escrita em hebraico, outra parte em grego e a menor parte em
aramaico. Os livros bíblicos, podemos chamar assim, foram escritos em muitos
lugares diferentes, grande parte foi escrita na Palestina, mas outras partes foram
escritas na Babilônia, no Egito, na Ásia Menor, em Roma, e em muitas outras
localidades, difíceis de serem atestadas (KONINGS, 1998).

A literatura bíblica foi redigida, provavelmente, a partir do ano 1.000 a.C. e


só foi finalizada por volta do ano 200 d.C., ou seja, mais ou menos 1.200 anos
foram necessários até alcançar a forma que temos hoje. Foram muitos os autores
responsáveis pela escrita dessa coleção, não se tem uma quantidade exata, mas
foram mais de uma centena (KONINGS, 1998).

De acordo com o que afirmamos no início desse item, a Bíblia é um livro


diferente, porque se trata de uma obra considerada pelos sagrada cristãos. A
parte que chamamos de Antigo Testamento contém livros sagrados dos judeus.
O conjunto do Antigo e do Novo Testamento é o que é considerado sagrado para
os cristãos. Partes do Antigo Testamento também são considerados para os
islâmicos.

Contudo, se faz necessário entender que, por se tratar de livros sagrados,


não estão fora da história, e nem caíram diretamente do céu. Pelo contrário, a
Bíblia tem esse caráter sagrado porque revela o rosto de Deus da vida, que se
manifesta na história, nas lutas em favor da vida com dignidade e justiça para
todos, principalmente para as pessoas empobrecidas e marginalizadas. É na
defesa e promoção da vida que a Bíblia ganha caráter sagrado e se torna Palavra
de Deus.

23
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

A história da Bíblia pode ser comparada à história de uma casa, que começou
pequenina e pobre, com poucos cômodos, mas ao longo dos anos foi passando
por reformas, recebendo acréscimos, novos cômodos, até tornar-se um enorme
casarão. Conforme dito anteriormente, a Bíblia levou mais de mil anos para
ser compilada. Ao ser iniciada, foi a partir de pequenas histórias de libertação
que foram contadas a partir da oralidade, posteriormente sendo registradas por
escrito, celebradas, recontadas, atualizadas em novos acontecimentos e sofrendo
acréscimos com novas histórias, memórias, cânticos, provérbios, leis e orações,
tudo passando por inúmeras revisões, até formar o livro que temos hoje em mãos.

Leia “A Parábola da porta”, do autor Carlos Mesters (2012,


p.13-19), na tentativa de ilustrar a porta de entrada no mundo da
Bíblia. Disponível em: <https://nflemos.wordpress.com/2005/01/22/a-
parabola-da-porta/>.

Esta parábola descreve a história da explicação da Bíblia


ao povo, faz ver como nasceu e onde estão as suas fontes de
informação. Nasceu de noite, no meio da alegria do povo. Nasceu de
dia, no meio da rua deserta e triste. Nasceu de dia e de noite, junto
aos livros e às máquinas complicadas, num canto escuro da Casa do
Povo.

Dando continuidade na comparação da casinha que se tornou


casarão, o que se percebe ao final é um enorme casarão pronto,
isto é o resultado da última revisão. O que pode complicar aos seus
leitores é que essas reformas não são identificadas nos escritos,
isso é a Bíblia. O seu todo apresenta hoje o resultado das últimas
grandes reformas pelas quais passou: o Antigo Testamento revela
predominantemente as formas que recebeu no período do pós-exílio
(cerca de 400 a.C. até 200 d.C.) ao longo do processo em que se
constituía o judaísmo.

24
Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

Situando o Antigo Testamento


Para compreendermos o nascimento da Bíblia, devemos voltar ao ano
1.300 a.C., na terra de Canãa. Nessa época, grande parte da população vivia
nas planícies férteis em torno de centros urbanos – pequenas cidades-estados,
cercadas por muralhas –, e estava submetida ao domínio dos reis cananeus e do
Faraó do Egito. Entretanto, havia um contingente menor de pessoas habitando
nas regiões montanhosas de Canaã (Hebron, Betel e Siquém) e no deserto ao
Sul (Bersabeia). Eram pequenas aldeias camponesas que possivelmente tiveram
suas origens em assentamentos de famílias de pastores que se fixavam nessas
regiões, fora do controle dos centros urbanos. Em cada uma delas havia o costume
de se venerar a memória do seu patriarca fundador, por exemplo: se venerava
Sara e Abraão em Hebron; Isac e Rebeca em Bersabeia; Israel e Raquel em Betel
e Jacó em Siquem. É nessas pequenas aldeias que se dá início à história de
Israel. Tente visualizar as cidades acima citadas, no mapa:

Figura 1 - Mapa do mundo antigo

Fonte: Disponível em: <http://www.biblesociety.org/>. Acesso em: 6 out. 2017.

25
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

“Já os grupos urbanos e as aldeias camponesas das montanhas do Sul


de Judá possuíam mais ou menos a mesma cultura: eram cananeus, e os
seus deuses e deusas eram as divindades do panteão cananeu: El, Elohim,
Aserá, Baal, Astarte, Anat, entre outros” (GERSTENBERGER, 2007, p. 169).
Contudo, a vertente urbana da religião estava associada ao sistema de poder, e
funcionava como religião oficial. Ensinava que as deusas e os deuses apoiavam
e abençoavam o Faraó e os reis, se comunicando diretamente com eles. Estas
divindades não estavam interessadas na vida das pessoas que trabalhavam, das
pessoas pobres, marginalizadas ou escravizadas. Somente os reis e faraós eram
considerados filhos de Deus (Sl 82,6-7).

As outras pessoas deviam reverenciar e obedecer ao faraó e aos reis como


se eles fossem os representes oficiais dos deuses na Terra, ou os próprios deuses
em pessoa. Eram cultuados em grandes celebrações nos templos oficiais, e todas
as pessoas deviam trazer-lhes oferendas, tributos, e submeter-se a trabalhar nas
construções dos seus palácios e templos. Dentro das muralhas, na religião oficial,
as divindades do panteão cananeu eram postas a serviço da legitimação do poder,
da coleta de tributos e do acúmulo de riquezas e poder.

Entre as aldeias camponesas nas montanhas, o culto aos deuses e às


deusas estava vinculado aos diversos aspectos fundamentais da vida, como ter
filhos, fertilidade dos campos e dos animais, saúde, amor, proteção, veneração
aos antepassados etc. Eram os anciãos, pais, mães, quem realizavam o culto, e
as oferendas eram praticamente simbólicas e raramente alguém ficava mais rico
ou mais pobre na vertente da religião camponesa. Era uma religião geralmente
centrada na defesa e na promoção da vida, da identidade e das instituições que
possibilitavam a vida nas condições ambientais das aldeias.

Toda essa realidade se dava num contexto de uma sociedade patriarcal. Na


política e na religião as mulheres tinham alguns espaços importantes, tanto nas
cidades como nas vilas camponesas. No entanto, esses espaços e as próprias
mulheres estavam subordinados ao controle dos homens.

A crise dos grandes centros urbanos a partir de 1.200 a.C., causada por vários
fatores, entre os quais a chamada “invasão dos povos do mar”, e o processo de
resistência ao sistema de dominação das cidades-estado, fazem com que grupos
de pastores, camponeses e gente marginalizada (hapirus) de Canaã, e pessoas
escravizadas no Egito, encontrem nessas aldeias a possibilidade de viver longe
da dura opressão imposta a eles pelos reis cananeus e pelo faraó. Essas pessoas
vão aumentar as populações de Hebron, Bersabeia, Betel e Siquém.

26
Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

Conheça um pouco mais sobre os hapirus:

Entre os camponeses havia também os chamados hapirus,


fugitivos que, para escapar aos tributos – impostos – e à corveia
– trabalho forçado -, exigidos pelos reis e pelos faraós, iam para
as montanhas, onde viviam da pilhagem – saque – ou então
alugavam-se como soldados mercenários dos exércitos dos
reis. Encontravam-se, sobretudo, no sul da Mesopotâmia. Eles
apareciam como bandos inimigos, que ameaçavam as cidades
por suas invasões. Em outros lugares, eram gente que se
vendia voluntariamente para ser escrava. Sua situação no Egito
apresentava muita semelhança com a dos hebreus, que deles
herdaram até o nome (VILLAC; SCARDELAI, 2007, p. 14).

Os hapirus eram originários de Canãa e pessoas escravizadas no Egito.


Buscavam encontrar nas aldeias a possibilidade de viver longe da dura opressão
imposta a eles pelos reis cananeus e pelo faraó. Essas pessoas são fundamentais
para o aumento da população de Hebron, Bersabeia, Betel e Siquém.
Provavelmente, a partir de Betel e Siquém formam-se as tribos de Benjamim,
Efraim e Manassés, e a partir de Hebron origina-se a tribo de Judá, que mais
tarde englobará a Bersabeia. Este é o núcleo inicial de Israel, que se forma nas
montanhas centrais da Palestina.

Nesse processo, algum povo pode ter trazido o culto a Javé para dentro das
aldeias e tribos de Israel. Javé parece ser uma divindade que veio de fora de Canaã
(Ex 2,16;3,1-2; Dt 33,2; Jz 5,4; Hab 3,3). Javé é integrado ao panteão das tribos e
aldeias camponesas, possivelmente como o Deus dos guerreiros e da guerra (cf.
Ex 15,2-3; 14,14.24-25.27; Jz 4,14-15; 1Sm 17,47). Contudo, nas tribos e aldeias,
estes guerreiros travam apenas guerras defensivas contra saqueadores. Seu culto
acontecia no momento em que os camponeses necessitavam transformar seus
instrumentos de trabalho em armas (1Sm 17,40-43) e formar linhas de guerreiros
para defender a vida de suas famílias, suas colheitas, suas terras e sua liberdade.

27
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

O Sistema Tribal
O longo período pré-histórico da humanidade foi, possivelmente, uma época
marcada por grupos menores e por bandos. Eram caçadores e coletores. Somente
a partir do 10º milênio a.C. se conhecem, no antigo Oriente, processos de transição
para a agricultura. Segundo Gerstenberger (2007, p. 29), “o tamanho ideal de
grupos errantes na busca por alimentos era em torno de dez e trinta pessoas.
Se considerar um grupo consanguíneo, logo se chega a um número desses, em
analogia a grupos de primatas”.

A partir dessas hordas humanas é que surgem no antigo Oriente famílias


ampliadas, com uma estrutura de cunho patriarcal rigidamente genealógica.
De acordo com o que sabemos, essas famílias se caracterizavam por serem
econômica, jurídica e religiosamente autônomas. Suas casas, segundo os
arqueólogos, nas cidades de Israel, não eram muito grandes. Havia um espaço
para umas cincos até dez pessoas, não sendo possível abrigar uma família
ampliada de até 30 ou 50 pessoas, como talvez fosse mais comum no interior.

Por se tratar de um grupo limitado, preocupado em conseguir alimentos


comunitariamente, um grupo que partilhava todos os bens adquiridos, a comunidade
clâmica desenvolveu ideias teológicas específicas, relacionadas ao respeito, à
sobrevivência do grupo e de seus integrantes, à sua saúde, sorte e procriação.
Expressão típica da religiosidade desses grupos menores eram, por exemplo, os
lamentos individuais no Antigo Testamento hebraico e no entorno de Israel.

O sistema tribal marca a sociedade das montanhas nos séculos XII e XI a.C.
Durante este período, as planícies ainda continuavam sob o controle dos reis
cananeus e sob o jugo das cidades-estado. Foi um período antimonárquico.

Dessa forma, no decorrer dos séculos XII e XI a.C. coexistiam na Palestina


dois modelos sociais: na planície, as cidades-estado e suas monarquias; nas
montanhas, o tribalismo camponês. Este último carregava a experiência dolorosa de
séculos de espoliação por reis e faraós, que, por meio de suas expedições, muitas
vezes anuais, arrasavam aldeias e plantações. Levavam o senso e a prática da
contestação contra as cidades-estado da planície (VILLAC; SCARDELAI, 2007).

28
Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

O vídeo indicado nos ajuda a adentrarmos na caminhada do


povo de Israel, de uma maneira popular, relacionando a história de
hoje com a do povo antigo.

Primeira parte:
<https://www.youtube.com/watch?v=sdEm2K5Ue4E& feature
=youtu.be>.

Segunda parte:
<https://www.youtube.com/ watch?v=Z9Uux51qDes&feature
=youtu.be>.

O PoVo Que CaminHa: de Moisés a


Josué
O projeto exodal expõe tensões vividas pelo povo de Israel durante a
travessia do deserto. Além da realidade humana, o deserto na Bíblia simboliza
o começo de um longo e penoso processo de libertação, que terá seu desfecho
na entrada do povo na Terra Prometida. O caminho do Êxodo tem um sentido
profundamente pedagógico (VILLAC; SCARDELAI, 2007), ou seja, sua história
quer ensinar e manter viva na memória do povo uma grande lição de vida.

No projeto do êxodo está implícita uma busca contínua por libertação, que
após ser contada oralmente é redigida por escritores que tinham interesse em
preservar sua memória no meio popular da sociedade de Israel. É um projeto que
vai se realizando aos poucos, mediante gestos concretos assumidos pelo povo,
quando decidem não mais ser escravos. Recusam servir ao faraó e ao Egito, e
daí um grupo de escravos (hebreus) decide traçar seu próprio destino. Esse povo
vive uma experiência profunda ao caminhar pelo deserto com o seu Deus. O Deus
que caminha com o seu povo é peregrino, habita em cabanas junto aos seus, e
faz aliança com eles.

29
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Do ponto de vista histórico, a saída do Egito e a entrada em Canaã estão


notoriamente entre as narrativas mais complexas de todo o corpus de tradições
que confluíram no Antigo Testamento (MCDONALD, 2013). Há muito existe um
substancial acordo em considerar que o percurso do êxodo e a ambientação
topográfica da entrega da Lei sejam elementos muito tardios (do período pós-
exílico) inseridos na narrativa com o fim de realizar uma ligação lógica entre
os dois elementos da promessa: saída do Egito e tomada de posse da terra.
(LIVERANI, 2008).

A imagem do deserto, no conjunto Êxodo-Números, não é de tipo pastoril,


em que as tribos vivem à vontade; é, porém, do tipo “zona de refúgio” ou “terra de
exílio”, numa perspectiva citadina de profundo mal-estar.

O caminho é muito complicado e perigoso, conforme Dt 8,15: “Deserto grande


e terrível, povoado de serpentes abrasadoras e de escorpiões, terra de sede, onde
não se encontra água”. Essa passagem é semelhante às preocupações logísticas
para a travessia do deserto por parte dos exércitos assírios, como na expedição
de Esarhaddon em Baza: um distrito remoto, uma extensão desértica e de terra
salina, uma região de sede, com serpentes e escorpiões que cobrem a terra como
formigas (LIVERANI, 2008).

Também os exércitos da monarquia de Judá tinham atravessado o deserto,


por exemplo, na expedição contra Mo’ab e à procura de água por parte de Moisés,
que a faz brotar da rocha (Ex 17,1-6), corresponde à procura da água por parte
dos “profetas” juntados ao exército naquela ocasião: “Cavai um grande número
de fossos neste vale! Assim fala o Senhor: Não vereis vento nem chuva, todavia
este vale se encherá de água e bebereis vós, vossos rebanhos e vossos animais
de carga!” (2Rs 3,16-17). O milagre de Moisés, que purifica a água salobra (Ex
15,22-25), corresponde ao análogo milagre de Eliseu (2Rs 2,19-22).

As enormes dificuldades encontradas na travessia do deserto centram-se no


motivo das murmurações sediciosas do povo contra Moisés (Ex 15,24;16,2;17,3;
Nm 11,4-5;14,2-3;20,2-3). E de modo semelhante, as dúvidas sobre a possibilidade
de ocupar Canaã concentram-se no motivo dos exploradores que em geral (salvo
Josué e Caleb) dão informações não muito animadoras (Nm 13). Em ambas as
situações, o povo se pergunta se não teria sido um grande erro dar ouvidos a
Moisés (igual aos sacerdotes), abandonar o Egito (igual a Babilônia), para
procurar por uma terra mais difícil, habitada por populações hostis e violentas.
Os dois motivos, da sedição e dos exploradores, refletem debates que devem ter
acontecido entre quem propugnava o retorno e quem manifestava perplexidade
ou sem dúvida preferia ficar numa terra de exílio que se mostrava habitável e
próspera (LIVERANI, 2008).

30
Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

Quando se descreve a travessia como uma realidade estranha e


substancialmente desconhecida, foram utilizadas rotas de itinerários que deviam
ser de uso de rotas militares ou comerciais, ou, em parte, talvez de percursos
de peregrinação a lugares santos do deserto. Esses percursos não podiam
deixar de utilizar velhas direções de transumância pastoril, levando em conta
o condicionamento viário que no deserto é ditado pela presença de poços, de
passagens montanhosas, de vaus (local raso no mar ou no rio, em que seja
possível fazer a passagem a pé).

Contudo, os estudos dos itinerários do êxodo são difíceis de serem atestados,


pois a maior parte dos topônimos – designação de um lugar, de uma região
geográfica –, não aparece em outro lugar, e até a localização do Sinai é debatida.
Alguns traçados fundamentais parecem reconhecíveis: a via sul-norte, do golfo
de Aqaba à planície de Moab, através do deserto de Edom e o deserto de Moab,
estão localizadas nas margens do deserto não tanto porque moabitas e edomitas
neguem a passagem quanto porque ali passava a grande via das caravanas,
onde o planalto não é mais cortado (como acontece mais a oeste) por profundos
vales de difícil travessia (LIVERANI, 2008).

O livro de Josué retrata com intensa vivacidade a realização de uma primeira


etapa da promessa de Deus: entrar na terra prometida. Além de ser o sexto livro
da Bíblia, Josué é o primeiro dos livros que a Bíblia hebraica identifica como
profetas anteriores. A Josué se juntam Jz, 1-2Sm e 1-2Rs, para formar o conjunto
da historiografia deuteronômica.

A narrativa de Josué fala de acontecimentos ocorridos entre os séculos


XIII e XI a.C. Provavelmente essa conquista ocorreu de forma lenta e gradual,
compreendendo um processo que incluía guerras violentas, porém intercaladas
por momentos de relativa paz e estabilidade. Essa fase chegou ao fim durante
um período de transição política, que corresponde às primeiras tentativas de
instalação da monarquia, com Saul. A história das tribos forma o conteúdo básico
do livro de Josué, o qual pode ser dividido em três partes:

a) Js 1-12, que corresponde às narrativas sobre os acontecimentos da


conquista propriamente dita, e traz como pano de fundo religioso o
santuário de Guilgal;
b) Js 13-21, fala da distribuição, partilha e ocupação da terra entre as tribos;
c) Js 22-24, é dedicada ao personagem Josué até sua morte.

31
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

A ideia de sincronizar a história das 12 tribos faz parte de um programa do


escritor, visando preparar um esquema que irá desaguar na confederação político-
nacional de Israel. Por isso, a história das tribos antecipa uma nova ordem social,
um novo modelo baseado na partilha igualitária das propriedades. Dessa forma,
o sistema tribal procura mostrar o estágio político que antecipa a monarquia,
planejando um entrelaçamento entre as tribos e monarquia, ambos envolvem o
contexto social, político e religioso da Aliança (VILLAC; SCARDELAI, 2007).

A narrativa bíblica da conquista fundante é notoriamente, de acordo com


Liverani (2008, p. 347):

Uma construção artificial, com a intenção de enfatizar a unidade


de ação de todas as doze tribos. São evidentes numerosas
contradições internas, devidas à inábil utilização de diferentes
tradições estratificadas no tempo. Algumas tradições de raio
nitidamente local (por exemplo, a tradição sobre os calebitas
em Js 15,13-19) tinham por trás uma respeitabilidade que
tornava impossível eliminá-las. Essas tradições relacionadas
com percursos de transumância entre Negev e planaltos
centrais podiam configurar muito melhor um ingresso na
Palestina pelo sul (segundo a via “normal” para quem vem do
Egito), o qual, porém, foi eliminado em favor de um ingresso de
todo o povo pelo leste.

A narrativa que forma Js 6-8 se refere à conquista somente do território de


Benjamim e de Efraim, depois de passado o Jordão. As narrativas da vitória sobre
os reis dos amorreus do Sul são nitidamente separadas (Js 10) da vitória sobre
Hasor no norte (Js 11). Essa justaposição de três vagas diferentes serve para
conferir um sentido de conquista total. A distribuição dos territórios que é feita
por sorteio (Nm 33,50-34,15) é totalmente artificial e não pode corresponder a
nenhum processo de assentamento que seja historicamente plausível (pode,
quando muito, servir de modelo operativo para os sobreviventes do período
persa). A própria descrição dos territórios tribais (Js 13-19), diferente entre sul e
norte, não pode ser compreendida senão à luz de eventos posteriores à época à
qual pretende se referir.

São tantas as incongruências e as estilizações que a narrativa do livro de


Josué não pode, senão, ser lida em relação às intenções de um redator (de
tradição deuteronomista) que tinha em mente os problemas de sua época e
substancialmente o problema de retomada de posse da terra de Canaã por parte
dos sobreviventes do exílio babilônio. Esse redator decidiu narrar a conquista-
modelo segundo os caracteres da unidade de ação e do forte conflito em relação
aos residentes.

32
Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

Essas escolhas de fundo não eram nada esperadas: os sobreviventes da


Babilônia eram (Esd 1,5) e não podiam deixar de ser de Judá e de Benjamim,
ou seja, do núcleo final do ex-reino de Judá conquistado por Nabucodonosor,
portanto, duas tribos em doze. E o país hospedava uma pluralidade de povos
nem todos igualmente estranhos, pois havia inclusive israelitas (javistas) não
deportados, seja no Sul, seja no Norte, com os quais uma política de compromisso
podia ser razoavelmente perseguida. O fato é que a narrativa parece refletir uma
política extremista, que era uma das opções (mas não a única possível) para os
grupos dirigentes que pretendiam reconstruir um novo Israel.

Para entender o que é a obra deuteronomista:

Para o Deuteronômio, mais que para qualquer outro livro bíblico,


a interpretação depende do contexto hermenêutico que se supõe. De
fato, esse escrito pode ser lido quer no contexto do pentateuco (os
primeiros cinco livros da Bíblia), como o último livro da Torá, quer
como a abertura programática da historiografia deuteronomista.

Figura 2 - Os livros que fazem parte da historiografia deuteronomista

Fonte: Adaptado de Römer (2010, p. 260).

O paradigma adotado no livro de Josué é o da guerra santa, de clara matriz


deuteronomista, mas dotada de profundas raízes na ideologia siro-palestina
desde os séculos da pressão assíria. A historiografia deuteronomista o aplicou
retrospectivamente a toda a história das relações entre Israel e os outros povos,
não apenas na época da conquista, mas também na época dos juízes e depois no
primeiro período monárquico.

Os princípios fundamentais da guerra santa: Deus está conosco, combate


ao nosso lado e garante a vitória; os inimigos, embora aparentemente mais
fortes, não podem contar com igual apoio e estão destinados à derrota; as ações
bélicas, porém, devem ser procedidas por adequada preparação votivo-cultural;
todo erro ou falta nesse sentido seria punido com o insucesso; o fruto da vitória

33
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

deve ser atribuído a Deus (que é seu artífice) e, portanto, deve ser ritualmente
destruído sem dele tirar vantagem material. Como conclusão, se o povo for fiel a
Deus, seguramente vencerá. E, ao contrário, se for derrotado, deverá procurar as
causas do insucesso numa infidelidade sua (LIVERANI, 2008, p. 349).

Os povos estranhos serão substituídos pelo povo eleito, que pode tomar
posse de um território já preparado – com cidades, casas e campos – desde que
elimine sem piedade os habitantes anteriores e garanta a total devoção a Yahweh
de todos os membros da nova comunidade que se pretende construir:

Depois, vocês atravessaram o Jordão e chegaram a Jericó,


mas a classe poderosa de Jericó fez guerra contra vocês: os
amorreus, os fereseus, os cananeus, os heteus, os gergeseus,
os heveus e os jebuseus, mas eu os entreguei em suas mãos.
Eu enviei grandes vespas diante de vocês, o que tirou de sua
frente os dois reis amorreus; não foi com a espada de vocês,
nem com seu arco. Dei para vocês uma terra pela qual vocês
não se esforçaram, cidades que vocês não construíram, e nas
quais vocês habitam; vinhas e olivais que vocês não plantaram,
e dos quais vocês comem. (Js 24,11-13).

Na versão sacerdotal, a ideia de uma terra já preparada na qual se implanta


prévia eliminação dos habitantes anteriores está analogamente presente, embora
a ênfase seja posta na purificação cultual:

Quando vocês atravessarem o rio Jordão e entrarem na terra de


Canaã, expulsem todos os habitantes da terra da presença de
vocês. Façam desaparecer todas as suas imagens esculpidas.
Façam desaparecer todas as suas imagens fundidas, e
eliminem todos os seus lugares altos. Tomem posse da terra
e habitem nela, pois eu lhes dei essa terra, para que vocês a
possuam (Nm 33,51-53).

No fundo, a ideia da conquista como total substituição de uma população


anterior – exterminada – por uma que fosse importada, com o intuito de substituí-
la, não pode ter sido concebida antes que difundissem as deportações imperiais.
Mas nos termos em que essa ideia foi formulada, ela se torna uma visão
totalmente utópica, em sua implacável rigidez, e nem pode pertencer nem à época
da primeira etnogenia, nem à do regresso do exílio: põe-se no plano do projeto
ideal mais que da prática realização, fornece informações sobre a ideologia de
quem o tinha formulado, mais que sobre os acontecimentos que se produziram.

34
Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

A Fim de Compreender (Gn 1-11)


De acordo com a formação do Antigo Testamento, a história de Israel não
começa com a criação ou com o chamado de Abraão. Dessa forma, embora o livro
de Gênesis apareça no início da Bíblia, suas narrativas foram elaboradas muito
tempo depois, já na terra de Israel. E provavelmente só por volta do ano 400 a.C.
é que o Gênesis alcançará a forma como encontramos na Bíblia atualmente. Da
mesma maneira como nós contamos a história do nosso país de forma diferente
da que era contada 20 ou 30 anos atrás, também o povo de Israel, a cada nova
etapa da vida, alterava a forma de contar a própria história.

Muitas narrativas presentes no livro de Gênesis apresentam histórias de


famílias, clãs, santuários ou instituições. Ora, as tribos se organizavam de forma
autônoma e independente entre si, consequentemente, suas histórias também.
Lentamente, no conjunto de Israel, essas “historietas” particulares iam sendo
reelaboradas e agrupadas tanto em tradições orais como escritas. Dessa forma,
após três ou quatro séculos de monarquia, após muitas releituras na separação
dos reinos (cerca de 930 a.C.) e nas tentativas de reunificação de Ezequias (por
700 a.C.) e de Josias (mais ou menos 620 a.C.), essas tradições serão integradas
em escritos maiores como a história de um só povo. E tudo indica que o processo
terá fim com ampliações e releituras, somente quando o povo de Judá for levado
para o exílio (598-530 a.C.), e quando os descendentes dos exilados retornarem
e reconstituírem Judá (cerca de 400 a.C.). As duplicações e contradições são
testemunhas do que encontramos no livro de Gênesis:

- Duas narrativas da criação (1,1-2,4a e 2,4b-24);


- Duas genealogias de Caim (4,17-26 e 5,12-31);
- Duas genealogias de Sem (10,21-25 e 11,1-17);
- Duas narrativas do dilúvio combinadas (6,5-9,17);
- Duas narrativas da aliança entre Deus e Abraão (15-17);
- Duas expulsões de Agar (16-21);
- Três narrativas sobre os patriarcas e suas mulheres no estrangeiro (12,10-
20; 20; 26,1-11);
- Duas histórias combinadas de José (37-50).

35
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

As duplicações de uma mesma narrativa demonstram que foram


escritas e/ou contadas em lugares e contextos diferentes. Por isso
o estilo e o gênero literário não são os mesmos. Cada povo, no seu
lugar de origem, possui um estilo próprio de contar e narrar as suas
histórias. Por este motivo, não podemos analisar os textos duplicados
de forma fundamentalista, pois perderiam a sua originalidade, e até
incorreria em duvidarmos de sua autenticidade literária.
Fonte: Rodrigues (2004, p. 45).

O livro de Gênesis é dividido em duas grandes partes: Na primeira, Gn 1-11,


onde estão as narrativas sobre a origem do mundo, da vida e dos diversos povos;
na segunda, Gn 12-50, onde encontramos as narrativas sobre os patriarcas e
matriarcas das tribos de Israel; Abraão, Sara e Agar (12, 1-25,18); Isaac e Rebeca;
e principalmente Jacó, com a filha e os 12 filhos de Lia, Zaquel, Bala e Zelfa
(25,19-36,43); por fim, a história de José (37,1-50,26).

Ao abrirmos o livro do Gênesis encontramos os famosos relatos da Criação,


a história de Adão e Eva, da serpente, de Caim e Abel, do Dilúvio e da Torre de
Babel. Essas histórias nasceram ao longo da história do próprio povo de Israel
influenciadas pela cultura dos povos do Antigo Oriente Próximo, especialmente da
Mesopotâmia, do Egito e de Canaã, com os quais Israel conviveu.

De acordo com a concepção de mundo dos povos do Antigo Oriente Próximo,


a terra tinha a forma de um disco plano, rodeada por águas e sustentada por
colunas. As águas de baixo eram chamadas de águas inferiores, onde ficavam o
abismo e o xeol, a morada dos mortos. Sobre a terra se estendia o firmamento,
numa espécie de arco ou uma tigela virada para baixo. Nesse firmamento estavam
pendurados o Sol, a Lua e as estrelas. Acima do firmamento ficavam as águas
superiores, que saíam através das comportas, e mais acima estava a morada de
Deus. Veja a figura a seguir:

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Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

Figura 3 – A concepção de mundo dos povos do antigo oriente próximo

Fonte: Disponível em: <http://leituraorante.comunidades.net/65279-2-aula-o-povo-de-isra-


el-e-a-criacao-do-mundo3>. Acesso em: 6 out. 2017.

Essa visão de mundo influenciou os autores de Gênesis 1 a 11. Além da


cultura daquela época, é importante lembrar os principais acontecimentos da
história de Israel, nos quais surgiram as páginas iniciais do livro do Gênesis.
Vamos fazer esse percurso juntos?

a) Os principais acontecimentos históricos

A partir das diferentes redações apresentadas, fica claro que o relato de


Gênesis 1-11 é fruto de um longo processo histórico e recolhe histórias de várias
gerações. A redação final do livro de Gênesis aconteceu por volta dos anos 400
a.C. As histórias narradas nesse livro passaram por um longo processo, foram
contadas, escritas, reescritas e relidas durante as diferentes etapas da história de
Israel. Vamos recordar os vários períodos dessa história?

• O período tribal: O período entre os anos 1250 e 1030 a.C. é conhecido


como o período das aldeias comunitárias. O período das tribos. Nesse
tempo em que não havia rei, o poder era descentralizado e as decisões
eram tomadas em assembleias. A maioria da terra era propriedade coletiva.
Nos primeiros tempos, o trabalho e seu fruto eram partilhados entre todos.

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ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Um tempo marcado pela igualdade e solidariedade. Algumas memórias


desse período, por exemplo, a integração com a terra, foram preservadas
em Gênesis 2.

• A monarquia: A monarquia em Israel ocorreu entre os anos 1030 a 586


a.C. Apesar dos protestos de vários grupos do interior, surge a monarquia
em Israel. O povo é governado por um rei, existe uma corte, e um templo.
Aumentam a opressão, o endividamento e a escravidão, essa realidade
está refletida em Gênesis 3. Em 586 a.C. os babilônios dão fim à
monarquia de Israel e algumas lideranças são exiladas para a Babilônia
(VASCONCELOS; SILVA, 2003).

• O exílio da Babilônia: O exílio da Babilônia ocorreu provavelmente entre


os anos 586 a 539 a.C. O povo de Israel vivia um momento de profunda
crise de identidade. Nesse período, a história de Israel e suas tradições,
que já haviam sido escritas, são revistas e reelaboradas. Tanto em
Jerusalém, como nos arredores da cidade e na Babilônia surgiram muitos
escritos que hoje fazem parte da Bíblia. Por exemplo, na Babilônia surge o
conhecido poema da Criação (1,1–2,4a) e a tradição da torre de Babel (Gn
11,1-9). (VASCONCELOS; SILVA, 2003).

• O período persa: O domínio persa ocorreu entre os anos de 539 a 333


a.C. O império persa favorece a reorganização dos povos dominados a
partir da religião, exigindo em troca submissão política e pesados tributos.
Alguns grupos de judeus exilados voltam para Jerusalém e reorganizam
o povo a partir do Templo e da Lei, sob o governo de sacerdotes oficiais.
Nesse período, conhecido como teocracia, multiplicam-se os sacrifícios
e as exigências da Lei, especialmente das leis referentes à pureza e ao
sábado (8,20-21) (KONINGS, 1997).

A redação final dos livros de Gn, Ex, Lv, Nm e Dt, e a reunião dos livros que
formam a Torah, conforme a tradição judaica, e Pentateuco, conforme a tradição
cristã, são concluídas por volta do ano 400 a.C.

A partir de sua história e de sua cultura, os autores de Gênesis 1 a 11 deram


suas respostas às necessidades de sua época, em contextos e lugares diferentes,
porém essa história é tecida com a sabedoria acumulada de geração em geração.
É preciso ler, deixar se envolver por essas narrativas e descobrir a riqueza dessa
história.

38
Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

b) Em busca da mensagem de Gênesis 1-11

Os relatos de Gênesis 1 a 11 procuram nos ajudar a entender mais


sobre as origens da vida, a partir da religiosidade do povo de Israel, da sua
crença no Deus único e criador de todas as coisas. Na tentativa de auxiliar o
seu aprendizado, apresentamos algumas chaves para você ler as páginas iniciais
desse livro:

• Você deve saber que os relatos sobre a criação do mundo e da


humanidade não são exclusividades de Israel, do Egito e do Oriente
Próximo. Também povos mais distantes, como Índia, China e África,
produziram suas histórias sobre a origem do universo. Todas as culturas
antigas produziram relatos da criação, inclusive no Brasil há vários contos
indígenas da criação (MARQUES; NAKANOSE, 2007).

• As narrativas de Gênesis 1-11 afirmam que o Deus de Israel é o criador.


Na região da Mesopotâmia, Canaã e Egito havia a crença na existência de
divindades criadoras. Os relatos de Gênesis 1 a 11, mesmo de épocas
diferentes e utilizando diversos nomes para Deus, atestam que o Deus de
Israel é o criador do céu e da terra (Gn 1; Sl 121,2; 124,8; 134,3).

• Um Deus humano e próximo. Algumas narrativas do livro do Gênesis


apresentam a imagem de um Deus presente na vida do ser humano. Um
Deus oleiro: ele modela o 'adam e os animais a partir do solo; exerce
também a função de construtor: da costela de Adão, ele constrói a mulher
(Gn 2,21-22). Ele é agricultor: planta um jardim (2,7-8.19). Deus faz justiça
aos oprimidos e não abandona o pecador à sua própria sorte (4,10.15).
Um Deus libertador que não compactua com o projeto opressor (11,1-9).

• A petulância do ser humano. No jardim, mulher e o homem possuem


liberdade e se relacionam com Deus e com todos os seres criados. A única
proibição é não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. A
serpente não convida à desobediência, mas sua argumentação atinge o ponto
central do ser humano: "vós sereis como deuses, versados no bem e no mal"
(3,5). A petulância do ser humano, especialmente dos reis e dos governantes
que se colocam no lugar de Deus, provoca a destruição do paraíso.

• A agressividade interrompe a fraternidade. A história de Caim e Abel


é a primeira de uma série de histórias que apresentam conflitos entre
irmãos. Caim é apresentado como agricultor e Abel como pastor. Essa
história retrata os conflitos existentes entre agricultores e pastores. E
nesse conflito, Deus opta pelo mais fraco. A história exemplifica a ruptura
da fraternidade como a raiz da violência.

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ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

• A realidade de injustiça provoca a aniquilação da natureza. A crescente


realidade de injustiça e a concentração de poder provocam a destruição
de toda a natureza: o Dilúvio. Na Babilônia, os judeus exilados entram
em contato com histórias de inundações próprias da região. Os autores
de Gênesis 6-7 fazem uma releitura dessas histórias, apresentando uma
explicação para a sua realidade de destruição, com a intenção de provocar
mudanças de comportamento na sociedade.

• Graciosidade de Deus. À medida que aumentam a violência e a maldade


do ser humano, cresce a graça de Deus. A pessoa se distancia, mas Deus
continua se aproximando e cuidando amorosamente de sua criação. A
opção do Senhor é pela vida. Ele faz uma aliança com Noé e, por meio
dele, com toda a humanidade: "Não haverá mais dilúvio para devastar a
terra". (9,11).

• A identidade do clã e a compaixão/misericórdia entre todos os povos.


As histórias que estão em Gênesis 1-11 nasceram em lugares e épocas
diferentes, mas foram unidas umas às outras por meio das genealogias.
A intenção teológica dessas listas genealógicas é garantir a identidade
do povo de Israel e a importância de desenvolver relações solidárias com
todos os povos, uma vez que todos descendem de um único tronco.

• Dissipação e heterogeneidade: No episódio da Torre de Babel (Gn


11,1-9), a dispersão e a diversidade de línguas impedem o projeto dos
dominadores. Portanto, é castigo de Deus para os opressores, mas para
os pobres e exilados é libertação. É a realização da bênção recebida em
Gênesis 1,28 e renovada em Gn 9,1: "Sede fecundos, multiplicai-vos,
enchei a terra".

• Prefácio à história de Israel. A lista dos descendentes de Sem nos faz


chegar até Taré e seus filhos, entre os quais está Abraão. Dessa forma, a
lista faz a passagem da história das origens para o tempo dos patriarcas.
A bênção, renovada com Noé (9,1), terá continuidade com Abraão (12,1-
3). Deus lhe faz a promessa de que, por meio dele, todas as nações serão
abençoadas.

• Transgressão, admoestação e Nova Aliança. Nos relatos de Gênesis 1-11


é possível perceber o esquema teológico de pecado, castigo e salvação. A
situação de pecado provoca o castigo: o dilúvio e a morte, mas a partir de
um resto, representado por Noé e seus descendentes, Deus renova a sua
aliança e recria nova humanidade (9,9-10). Essa aliança será renovada com
o povo de Israel e, a partir de Jesus, chegará a todos os povos.

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Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

Atividade de Estudos:

1) A harmonia acaba e aparecem as ambiguidades da vida. A narrativa


de Gn 3, 1-24 está ligada a 2,4b-25, esta é uma das narrativas
criadas na história de Israel para tentar explicar a origem do mal, da
morte e do sofrimento. Apresenta comportamentos e instituições que
auxiliam os povos a se organizarem, a fim de viverem, superando o
mal e a morte.

Leia Gn 3, 1-24 a partir da compreensão das características de Gn


1-11 acima mencionadas, e procure identificar as instituições que
perpassam a narrativa e o possível contexto e simbologia em que
essa narrativa foi escrita.
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c) Localizando o texto: Na tribulação nasce outra vez a esperança

O exílio da Babilônia é um marco na história de Israel. Os exilados ficaram


sem terra, sem rei e sem templo. Eles perdem suas principais referências. A partir
dessa situação de crise e perda de identidade, nasce a preocupação de explicar
as razões da derrota e do exílio. Os sacerdotes, profetas e sábios procuravam dar
uma resposta para aquele momento de profunda intranquilidade. As lideranças
religiosas retomaram a história do povo, fazendo uma releitura e apontando novas
possibilidades. Vamos relembrar outros fatos da história de Israel ocorridos um
pouco antes do exílio.

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ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Em 609 a.C. o faraó do Egito colocou Joaquim no trono de Judá e em troca


exigiu pesados tributos. Em 605 a.C. o exército de Nabucodonosor, da Babilônia,
derrotou o Egito, se apoderou da Síria e da Palestina. O rei Joaquim, em 602 a.C.,
deixou de pagar tributos para a Babilônia, e por causa disso provocou um grave
conflito (2Rs 24,1). O exército babilônico marchou contra Judá e cercou a cidade
de Jerusalém (VASCONCELOS; SILVA, 2003).

Em 597 a.C. Jerusalém é invadida e a elite foi deportada para a Babilônia.


O rei, a nobreza e os sacerdotes oficiais, entre eles o profeta Ezequiel, foram
exilados. No lugar do rei Joaquim, os babilônios colocaram Sedecias. Alguns
anos depois, o novo rei, movido por sua ambição, deixou de pagar tributos
para a Babilônia. Desta vez a repressão é muito pior. Em 587 a.C. a cidade de
Jerusalém foi invadida e destruída. A família do rei foi executada, sendo que o rei
foi preso, torturado e levado para a Babilônia (2Rs 25,6-7; Jr 52,9-11). O templo
foi saqueado e incendiado (Lm 2).

A tomada de uma cidade e a deportação são realidades acompanhadas de


gestos brutais. Em geral, as mulheres foram violentadas, muitas crianças atiradas
contra as pedras, os guerreiros tiveram suas cabeças cortadas ou esfolados vivos
(Lm 5). São cenas que não se apagam da memória daqueles que as vivenciaram.
A segunda deportação atingiu pessoas ligadas à corte, grupos de cantores do
templo, artesãos, comerciantes, agricultores e viticultores (2Rs 25,11-12).

Na Babilônia, esse grupo é tratado como escravo, utilizado como mão de obra
nas construções públicas, nas lavouras, na reconstrução de cidades destruídas e
em outros trabalhos forçados: "Este povo foi despojado e saqueado, todos eles
estão presos em cavernas, estão retidos em calabouços. Foram submetidos ao
saque e não há quem os liberte; foram levados como despojo, e não há quem
reclame a sua devolução" (Is 42,22). Muitos não enxergavam mais sentido na vida
nem perspectivas quanto ao futuro.

Em terra estrangeira, sem provisões ou condições de sustento, o povo entra


em contato com a religião do império e se sentiu confuso em sua crença. Na
Babilônia havia muitas divindades, Marduk, representado pelo Sol, era a mais
importante, pois ele era considerado o criador do mundo e do ser humano.
Segundo a crença oficial, essa divindade garantiria a vitória aos exércitos de
Nabucodonosor. Entre as práticas religiosas mais populares na Babilônia,
se destacava o culto à deusa Sin, representada pela Lua, e à deusa-planeta
Ishtar. Muitas pessoas exiladas assumiram as divindades do império invasor.
(VASCONCELOS; SILVA, 2003).

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Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

Por conta de todo o sofrimento experienciado, o povo exilado na Babilônia


começa a questionar: Onde está o nosso Deus, Javé? Por que ele está nos
castigando? A crise de fé e de identidade exige uma resposta. Nesse momento de
muita dor e sofrimento, surgiram salmos, poesias, narrativas e outros escritos que
recordavam as maravilhas que Deus realizou na vida do povo de Israel, desde as
suas origens. As orações renovam a fé em Javé como o único criador de todas
as coisas. Assim reza o povo: "Quão numerosas são tuas obras, Javé, e todas
fizeste com sabedoria! A terra está repleta das suas criaturas" (Sl 104,24).

Um dos textos mais conhecidos no exílio da Babilônia é o poema litúrgico


de Gênesis 1,1–2,4a, provavelmente escrito por sacerdotes exilados. Eles
estruturaram o poema da criação com o refrão: "E Deus viu que era bom" (Gn 1,4;
10.12.18.20.24). E depois de ter criado o ser humano, numa visão panorâmica de
sua obra, dizem: "Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom" (1,31).

Numa realidade desordenada e devastada pela violência, os autores


recordavam que o mundo criado por Deus é belo, ordenado, perfeito e bom. Os
autores recordavam ao povo exilado que a sua condição não era a de escravo,
mas de pessoas criadas à imagem e semelhança de Deus. Gênesis 1,1-2,4a
é um convite aos exilados, de ontem e hoje, para rezar e renovar sua fé e sua
esperança em Deus criador.

d) Interpretando o texto: Gn 1,1 a 2,4a

Atividade de Estudos:

1) Leia Gn 1,1 a 2,4a e escreva o que é criado em cada dia. Essa


atividade será importante para você ter uma ideia de como cada
elemento da criação se estrutura dentro da narrativa, bem como a
descoberta do estilo literário. Boa sorte!
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ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

No início do poema da criação há um título: "No princípio,


Os autores insistem Deus criou o céu e a terra". Esta frase é uma síntese de todo o
que o verdadeiro
Deus não é Marduk, bloco e apresenta o tema principal: Deus cria o mundo. No Primeiro
nem a deusa Sin, Testamento, tradicionalmente chamado de Antigo Testamento, o verbo
mas o Deus de Israel. criar, bara' em hebraico, é usado somente para a ação criativa de
Ele é o criador da
terra e do céu, que Deus. O nome de Deus aparece por 35 vezes apenas nesse poema, a
significa a totalidade terra e o firmamento aparecem por 21 vezes. Os autores insistem que
do universo (Sl
89,11). o verdadeiro Deus não é Marduk, nem a deusa Sin, mas o Deus de
Israel. Ele é o criador da terra e do céu, que significa a totalidade do
universo (Sl 89,11).

O versículo 2 informa o que existia antes da criação: terra


A desordem e o vazia e vaga, trevas, abismo e águas. No princípio era o caos. É a
caos representam a partir do caos que Deus fará surgir a criação. A desordem e o caos
situação do povo no
exílio da Babilônia. representam a situação do povo no exílio da Babilônia. De acordo
com o poema babilônico, no princípio da criação só existiam as águas
primordiais: o caos. O povo de Israel assimila a visão de mundo dos babilônios,
porém, adaptando-a à sua realidade, declara a sua fé em Deus: o caos não surge
de Deus, mas ele coloca ordem. Em Gênesis 1, o sopro de Deus paira sobre
as águas. Não se trata de um vento destruidor, mas de um sopro que prepara e
anuncia a palavra criadora de Deus: a vida (Sl 33,6).

"Deus disse: 'Haja luz', e houve luz" (Gn 1, 14). No primeiro dia, Deus cria a
luz e a separa das trevas. O tema da separação dos elementos opostos aparece
em várias narrativas de povos vizinhos. No Gênesis, os três primeiros dias são
dias de separação. No relato bíblico, a separação não acontece por meio de um
combate entre as divindades, conforme o relato da Babilônia, mas é um gesto de
Deus. Após esse gesto, Deus dá nome à sua criação, confirmando sua relação e
responsabilidade com ela.

À luz ele chama dia, e à treva, noite (Gn 1,3-5). No relato babilônico, a luz
vem em primeiro lugar e pertence à divindade. Para os autores de Gênesis, a luz
não é mais propriedade dos deuses. O abismo e a luz não são sagrados, são
apenas criaturas de Deus.

No segundo dia, Deus faz o firmamento (Gn 1,6-8). A ideia de que o céu
separa as águas de cima e as de baixo está presente em outras culturas. O céu
é pensado como uma placa de metal, que Deus pode abrir e fazer cair a chuva:
"abriram-se as comportas do céu" (Gn 7,11; Jó 37,18). Dizer que Deus faz não se
trata simplesmente de um chamado à existência, mas de uma fabricação. Ele não
avalia esta obra.

44
Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

No terceiro dia, cria a terra firme (Gn 1,9-13). As águas são recolhidas e
aparece a terra firme. Está no coração e na boca do povo: "O céu foi feito com a
palavra de Javé, e seu exército com o sopro de sua boca. Ele represa num dique
as águas do mar, coloca os oceanos em reservatórios" (Sl 33,6-7). Os babilônios
acreditam que Marduk mora no meio do oceano. No poema bíblico, o mar e a terra
são criados pela palavra de Deus e pertencem a ele. Esta é a segunda criação
avaliada como boa: "E Deus viu que era bom" (Gn 1,10).

A obra do terceiro dia ainda não está completa. É necessário que a terra
produza vegetação e árvores. A origem está na palavra de Deus. Ele ordena que a
terra produza seus frutos. Para Israel, a terra é criatura de Deus. A sua fertilidade
não depende de uma divindade, mas ela produz naturalmente, segundo o que
Deus ordena. E no final, pela segunda vez nesse dia, temos a avaliação: "Deus
viu que isso era bom" (Gn 1,12).

No quarto dia, ocorre a criação de luzeiros no céu para separar o dia e a noite
(Gn 1,14-19). A palavra de Deus chama à existência o Sol, a Lua, as estrelas.
Os nomes sol e Lua não aparecem. Esses astros são divinizados pelos povos
vizinhos de Israel, porém, no relato bíblico, eles são simplesmente luzeiros, cuja
função é iluminar a terra e comandar o dia e a noite, os meses e as estações. Na
Babilônia, acredita-se que o Sol, a Lua e as estrelas possuem o poder de controlar
o destino das pessoas. Essa crença é desacreditada pelos autores de Gênesis 1,
que evidenciam que os astros são criaturas de Deus.

No quinto dia, são criados animais pequenos e grandes (Gn 1,20-23). A


vida dos seres vivos começa nas águas. No pensamento mítico, as águas do
caos representam o lugar no qual brotou toda a vida. Pela segunda vez, o texto
utiliza o verbo bara', criar. A primeira vez se refere à criação da luz e agora aos
seres vivos. Os primeiros seres vivos criados são os monstros marinhos. No mito
babilônico, o monstro marinho é criado pelo abismo, uma força obscura do caos.
Novamente, Israel afirma que esses monstros são criaturas de Deus. Os seres
vivos são abençoados por Deus e recebem a ordem de crescer e multiplicar-se
(Gn 1,23).

No sexto dia, Deus cria a humanidade (Gn 1,24-31). No terceiro dia, a terra
produz a vegetação e as árvores frutíferas; no sexto dia, a terra é chamada a
produzir os animais terrestres. Todos são chamados a produzir e a se multiplicar
"segundo a sua espécie", esse estribilho aparece no terceiro, quinto e sexto dia
(Gn 1,12.21.25). Depois de tudo criado, Deus cria o 'adam – a humanidade – "à
imagem de Deus ele o criou, homem e mulher os criou" (Gn 1,27). É a última das
criaturas. Todo o cenário está preparado para recebê-lo.

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ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

O ser humano não foi criado, como relatam algumas narrativas, para ser
escravo das divindades, mas como sua criação, como ser com quem Deus
se relaciona e dialoga. O ser humano é para ser a imagem e semelhança de
Deus: mulher e homem são chamados à vida. Como o Criador, o ser humano
é chamado a trabalhar para que triunfe a luz, para realizar, construir e procriar,
dando continuidade à obra de Deus.

Deus dá a sua bênção para a humanidade: "Sede fecundos, multiplicai-vos,


enchei a terra" (1,28). Conforme o ambiente cultural de Israel, a fecundidade das
plantas, dos animais e do ser humano dependia das divindades. Em Gênesis 1
esse poder é dado a todos os seres vivos como fruto da bênção de Deus (v.22 e
28). No contexto do exílio, esta bênção é fonte de esperança para a sobrevivência
do povo.

A segunda parte da bênção afirma o seguinte: "submetei a terra, dominai


sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a
terra" (Gn 1,28b). O verbo submeter, em hebraico kabash, tem como foco principal
a terra e o seu cultivo. O verbo dominar é tradução do hebraico radah, que possui
o sentido de cultivar, organizar e cuidar. Esse também era o ideal sonhado para
os dirigentes de Israel (Sl 72,8-14; Is 11,1-9). É uma crítica contra a tirania dos
reis injustos de Israel e os imperadores babilônicos (Ez 34,1-4).

A partir da bênção, a continuidade da vida depende da humanidade, cuja


missão é cuidar e proteger. Por fim, temos a ordem: “o ser humano e todos
os seres vivos recebem como alimento ervas e verduras” (Gn 1,29). Não há
agressividade ou violência entre animais e seres humanos. Um não tem ao outro
como alimento. E na avaliação final, numa espécie de contemplação geral de toda
a sua obra, ouvimos: "Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom" (Gn 1,31).

Leia o livro de SCHWANTES, Milton. Projetos de esperança.


Meditações sobre Gênesis 1-11. São Paulo: Paulinas, 2002. Esse
livro é de fácil leitura e ajuda não apenas na compreensão da leitura
de Gn 1-11, mas dá excelente dica de leitura para todo o Antigo
Testamento! Boa leitura!

46
Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

Gênesis 1 é um convite à esperança. Deus nos dá esse mundo Gênesis 1 é um


para que possamos viver em harmonia e em paz. E no sétimo dia: convite à esperança.
Deus conclui a sua criação. Ele abençoa e santifica o sétimo dia! (Gn Deus nos dá esse
mundo para que
2,1-4a). "Em seis dias Javé fez os céus e a terra; no sétimo descansou possamos viver em
e tomou alento" (Ex 31,17). No livro do Êxodo, que talvez contenha harmonia e em paz.
dados mais antigos, transparece a necessidade do descanso físico.
No exílio, o dia do sábado ganhou um sentido especial: passou a ser um dia de
culto, no qual o povo anuncia a fé no seu Deus e rejeita outras divindades.

Por isso, da mesma forma que Deus abençoa os animais e o ser humano,
ele também abençoa o sábado e o santifica. O sábado tem que ser um dia para
as pessoas resgatarem a sua consciência, sua identidade e a sua fé. Elas não
devem estar submetidas ao trabalho escravo. É um tempo de encontro para fazer
memória de suas tradições. É tempo de celebrar e de refazer as energias! Este
primeiro relato termina com uma breve conclusão: "Esta é a história do céu e da
terra, quando foram criados" (Gn 2,4a).

e) Compreendendo mais: a criação do mundo na Babilônia e Gênesis


1,1-2,4a.

A Mesopotâmia estava localizada nas planícies férteis, banhadas pelos rios


Tigre e Eufrates. Antigamente, esses rios estavam ligados por canais e serviam
para a irrigação e a navegação. Apesar de ser bem menor que o rio Eufrates, o
rio Tigre provocava enchentes arrasadoras. As enchentes se tornavam enormes
dilúvios. Nessas regiões, as invasões de povos nômades eram muito regulares
(MARQUES, NAKANOSE, 2007, p. 55).

A geografia e a realidade da região influenciaram no comportamento e


modo de pensar de seus habitantes. As inundações eram consideradas como um
capricho das divindades ou consequência das lutas entre elas. As pessoas viviam
com medo, fazendo tudo para agradar as divindades e escapar da ira divina. As
pessoas acreditavam que os seres humanos tinham sido criados para servir às
divindades. Na Epopeia de Gilgamesh (Rei sumério e fundador da cidade de Uruk,
governou a região em torno do ano 2.700 a.C. Esta epopeia foi descoberta numa
placa de argila e foi escrita em caracteres cuneiformes) há uma narrativa sobre a
criação do mundo. Na visão dos babilônios, o mundo foi criado da seguinte forma:

No princípio só havia Apsu, as águas doces, e Tiamat, as águas


salgadas do mar. Eles criam os outros deuses, mas depois se
arrependem e planejam destruí-los. Os deuses se defendem
matando Apsu e atacando Tiamat. Esta prepara um exército de
monstros. As divindades buscam um herói que possa combater
Tiamat. Todos têm medo, exceto Marduk, um jovem guerreiro,

47
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

filho do deus Ea. Marduk resolve atacar Tiamat, mas impõe uma
condição: se ele vencer será nomeado rei dos deuses. Eles
aceitam as condições de Marduk, que parte para o combate.
Marduk envolve a sua rival em sua rede e lança no rosto dela
o Vento Maligno. E enquanto os ventos atacavam o estômago
dela, seu corpo foi distendido e sua boca se abriu totalmente.
Nesse momento, com a flecha, Marduk corta o estômago, as
entranhas e o coração de Tiamat, eliminando a sua vida e a
dos deuses que a seguiam. Em seguida, ele toma o corpo de
Tiamat e o divide como uma concha, em duas partes: com a
metade, ele estabelece o céu, cerca com um portão e coloca
guardas para impedir que as águas escapem.
Marduk constrói estações para os deuses, fixando seus
semblantes como constelações. Ele determina o ano
designando zonas: ele estabelece três constelações para cada
um dos doze meses.
Quando Marduk ouve as palavras dos deuses, seu coração o
leva a realizar obras engenhosas.
Abrindo sua boca, ele disse a Ea, deus das águas: "Acumularei
o sangue e farei que surjam os ossos. Estabelecerei um
selvagem, 'homem' será o seu nome; criarei um homem
deveras selvagem. Ele será encarregado de servir aos deuses
para que eles possam ter tranquilidade!"
Kingu contribui para a revolta, levando Tiamat a se rebelar, e
entrar em combate. Eles prendem Kingu, segurando-o diante
de Ea. Por ser considerado culpado, eles cortam suas artérias.
Do seu sangue é criada a humanidade. Ea impõe o serviço e
libera os deuses. Depois de Ea, os sábios criam a humanidade,
impondo-lhe o serviço aos deuses (BIERLEIN, 2003, p. 85-87).

A realidade da guerra e da tirania imposta pelo império babilônico está por


trás da construção do mito babilônico. A morte da líder, Tiamat, abriu caminho
para a vitória. O seu bando foge, mas é aprisionado e morre. O céu é criado com
a metade do corpo de Tiamat. Por ter vencido o combate, Marduk consegue o
título de divindade suprema no panteão dos deuses. Ele é celebrado como deus
criador na Babilônia e em toda a região da Mesopotâmia. Era o que acontecia
na vitória de uma batalha. Os tiranos da Babilônia, legitimados e protegidos por
Marduk, sujeitam todas as nações e escravizam todos os seres vivos da terra.

Vivendo como escravos na Babilônia, em contato com outras divindades, os


israelitas sentiam a necessidade de repensar sua religião e sua fé. Conhecendo
o mito da criação segundo os babilônios, os judeus escreveram a sua própria
versão. Vejamos o que é próprio do povo de Israel:

• Para os babilônios, o universo surge da luta entre as divindades; em


Gênesis 1, não há batalha entre divindades, Deus é único e cria, de
maneira ordenada, a partir de sua palavra.

48
Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

• O vento no mito babilônico é denominado de maligno e sua ação é destruidora.


Ao contrário, o sopro de Deus em Gênesis 1 é anúncio de sua intervenção
criadora no mundo. É um vento que traz vida, não contém ameaças, nem
provoca medo; ao contrário, anuncia a abertura do primeiro dia.

• No relato bíblico, a luz e as trevas não são divindades, como se acreditava


na Babilônia, mas simplesmente criaturas de Deus. Para surgir a terra, em
Gênesis, Deus separa as águas de cima e as de baixo, colocando diques
ou barreiras entre elas. No relato babilônio, Marduk corta o corpo de Tiamat
em duas partes; com uma delas faz o firmamento, colocando guardas para
impedir que as águas escapem.

• Na Babilônia, o solo é formado do ventre de Tiamat, a deusa das águas


amargas. O Sol é identificado com Marduk. O relato bíblico nem sequer
chama os astros de Sol e Lua, mas simplesmente de luzeiros do dia e da
noite. Dessa forma, elimina qualquer possibilidade de serem confundidos
com as divindades. Eles foram criados e nomeados pelo Deus de Israel.

• O simbolismo da água como lugar de onde brota a vida é muito forte


em várias culturas, por exemplo, no Egito, na Babilônia, Índia e China.
Conforme o mito babilônico, o abismo cria o monstro marinho. Trava-
se uma luta entre as divindades e Marduk; vencendo-as, ele se torna a
divindade principal. Na tradição do povo judeu, há textos que falam do
monstro marinho como criação de Deus. No Salmo 104,25-26 lemos: "Eis
o vasto mar, com braços imensos, onde se movem, inumeráveis, animais
pequenos e grandes; ali circulam os navios de Leviatã, que formaste para
com ele brincar". Em contrapartida, o grupo do Segundo Isaías acredita
que foi Javé que destruiu o monstro marinho: "Por acaso não és tu aquele
que despedaçou Raab, que trespassou o dragão? Não és tu aquele que
secou o mar, as águas do Grande Abismo?" (Is 51,9-10).

• No relato babilônico, o homem é criado para servir às divindades,


justificando a divisão da sociedade em classes e a escravidão. De acordo
com Gênesis 1,27, Deus criou a humanidade à sua imagem e semelhança
para ser livre e senhora da história.

• De acordo com Gênesis 1, a obra da criação dura seis dias e o sétimo


é para o descanso. Na cultura judaica, o número sete indica perfeição,
totalidade, plenitude. Numa linguagem simbólica, os autores afirmam que a
criação de Deus é perfeita.

49
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

• A leitura dos relatos da criação segundo Gênesis 1,1 até 2,4a e segundo
o mito babilônico nos possibilita perceber diferentes tentativas do ser
humano de responder às perguntas sobre as origens da Vida. Perguntas
sobre as quais teólogos e cientistas continuam se debruçando, perguntas
que são repetidas a cada geração. De onde vem a vida? Numa dimensão
de fé, acreditamos que a origem da vida está em Deus. E nossa atitude
é de reverência diante do mistério do universo, que nos convoca a um
cuidado permanente para que a vida continue existindo. Sempre.

A MonarQuia de Israel (DaVi e


SalomÃo)
Nos cem anos seguintes, entre 1050-950 a.C., com o aumento da produção
camponesa, propiciado pelo aumento da população, pela introdução do ferro e
do boi na agricultura, os donos de bois, líderes políticos, guerreiros e sacerdotes,
seduzidos pelo comércio, serão levados a esboçarem tentativas de acumular
riquezas e poder (Jz 8,24-26;9,1-4;10,3-4; 1Sm 2,12-16). O desenvolvimento
dessas contradições internas, somado aos ataques de inimigos externos (1Sm
11,1-2; 13,19-21), enfraqueceram os fundamentos solidários da sociedade tribal
israelita. Desse modo, criam-se as condições para a transformação de algumas
ideias camponesas com núcleos urbanos e o surgimento de uma elite que
concentra poder econômico, político e militar e institui a monarquia (1Sm 9,1;
11,5-7; 25,2).

A monarquia nasce em Israel como uma imposição mais política do que


religiosa. Não chegou a ser instituída a partir de um caráter religioso natural, como
no Egito e na Mesopotâmia. A monarquia não fazia parte da tradição israelita, mas
se deu pela vontade do povo, de acordo com os escritos bíblicos: “Disseram a
Samuel: ‘Veja: você já está idoso e seus filhos não seguem seu exemplo. Por isso,
escolha para nós um rei que nos governe, como acontece em todas as nações”
(1Sm 8,5). Apesar disso, a monarquia não se desvencilhou da religião israelita. O
conceito de sagrado é mais eficaz após a instituição da monarquia.

Com a monarquia se configura uma sociedade, em que alguns poucos


possuem muito mais poder e riqueza do que a maioria da população, e o
patriarcalismo e o antropocentrismo são reforçados. A monarquia constitui
um grupo social dominante que controla o exército e se mantém explorando o
trabalho e se apropriando de grande parte da produção das famílias camponesas,
direcionando-a para a rede do comércio internacional. As famílias camponesas
são obrigadas a entregar parte de sua produção e também devem entregar seus
filhos e filhas para trabalhar nas obras e guerras decididas pelo rei e seus aliados

50
Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

(1Sm 8,11-17). Um pequeno grupo se torna muito rico e poderoso, enquanto


a maioria da população não possui terra e nem casa (1Sm 22,2; 25,10). Esse
processo começou timidamente com Saul (cerca de 1050 a.C.) e consolidou-se
com Davi e Salomão (entre 1000 e 930 a. C.).

Essas enormes modificações na sociedade exigem uma justificação,


uma legitimação. Isso será feito através da elaboração de uma religião oficial,
isto é, uma teologia, uma espiritualidade e uma liturgia que favoreça o rei e a
hierarquia social. A religião oficial se concretiza por intermédio da construção de
um templo, que se tornou exclusividade da monarquia, uma vez que as aldeias
e tribos possuíam seus locais de culto e pequenos santuários que eram de sua
propriedade. Dessa forma, a monarquia de Davi se apropria do Javé das tribos
e o coloca como patrocinador do rei e do seu exército (2Sm 6,1-19), e depois,
na antiga cidade-estado Cananeia de Jerusalém, Salomão constrói o templo
celebrado como a “casa de Javé” (1Rs 8,12-13; Sl 132,5-7.13-14; 134,1; 135,1.21).

No período da monarquia, o Templo fazia parte de um con-


junto que incluía o palácio do rei e suas dependências. Era
considerado um anexo do palácio. Os reis faziam-lhe doações,
como também lançavam mão de seus tesouros (1Rs 15,15.18;
2Rs 12,19; 16,8). Quando houve a divisão do reino, em torno
de 931 a.C., Jeroboão I, o primeiro rei do Norte, aproveitou a
existência de dois antigos santuários, um em Betel e outro em
Dã, e os transformou em templos reais, colocando neles a ima-
gem do bezerro de ouro (1 Reis 12,28-33), entre 931 e 910 a.C.
O objetivo era impedir a ida do povo ao Templo de Jerusalém
(1Rs 12,26-33). Este, como o de Betel, era um santuário real,
forte instrumento para consolidar a política centralizadora dos
reis. Com o fortalecimento da monarquia, o culto no Templo
de Jerusalém se tornou o elemento essencial da religião. Isso
se reflete, por exemplo, nas orações do período monárquico,
como podemos ver no Salmo 63,2-3.10-12: “Ó Deus, tu és o
meu Deus, eu te procuro. Minha alma tem sede de ti, minha
carne te deseja com ardor como terra árida, esgotada, sem
água” (NAKANOSE, 2010, p. 21).

Embora em Jerusalém Javé ocupe espaço central por ser o Deus do rei e da
religião oficial (Sl 2; 89), todas as outras divindades do povo de Israel, ou oriundas
de alianças ou imposições políticas e econômicas, também serão cultuadas ali
(2Rs 23,4-14), integradas na vertente religiosa de legitimação de poder e da
riqueza.

Os reis Ezequias e Josias empreenderam reformas


administrativas com o objetivo de centralizar tudo em torno do
Templo de Jerusalém. Eles procuraram controlar o povo em
torno de um só Deus, Javé oficial, e de uma dinastia, a casa
de Davi. Por volta de 622 a.C., Josias iniciou sua reforma,
eliminando os outros cultos existentes no Templo; mandou que

51
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

os guardas retirassem do santuário de Javé todos os objetos


de culto que tinham sido feitos para Baal, para Aserá e para
todo o exército do céu; queimou-os fora de Jerusalém, nos
campos do Cedron, e levou as cinzas para Betel. Destituiu os
falsos sacerdotes que os reis de Judá haviam estabelecido e
ofereciam sacrifícios nos lugares altos, nas cidades de Judá e
nos arredores de Jerusalém, e os que ofereciam sacrifícios a
Baal, ao Sol, à Lua, às constelações e a todo o exército do céu
(2Rs 23,4b-7) (NAKANOSE, 2010, p. 21)

Para compreender a Bíblia, é fundamental saber que a


monarquia, apesar de ser sinal efetivo da subjugação das aldeias
camponesas pelos “centros urbanos” e inspirar-se no sistema
fenício-cananeu (1Rs 5,15-32) e egípcio (1Rs 3,1), será instituída em
nome de Javé, o Deus libertador dos escravos e camponeses. E os
sacerdotes e escribas da religião oficial vão apresentar a monarquia
como algo desejado por Javé (1Sm 10,1-2; 16,1; 1Rs 3,7), e o rei
como o filho escolhido e abençoado de Javé e a dinastia de Davi em
Jerusalém (2Sm 7,8-16; Sl 89). Enquanto nas tribos as mediações
para a realização da vontade de Javé eram as leis de solidariedade
e ajuda mútua, na monarquia a vontade de Javé se realizará através
do rei e do próprio sistema monárquico.

Reino do Norte e Seus ProFetas


No item anterior estudamos o período da monarquia em Israel com Saul,
bem como a sua ampliação e estruturação com Davi e a consolidação do reino
com Salomão. As consequências geradas pela política desses reis para o povo
de Israel foram muitas. A monarquia trouxe benefícios, mas também muitas
dificuldades a serem enfrentadas pelo povo. A centralização do culto no Templo
de Jerusalém trouxe muitos problemas para as pessoas que moravam nas regiões
mais distantes da capital.

Após a morte de Salomão, em 931 a.C., o Reino do Norte proclama sua


independência em relação ao Sul, e o reino se subdivide: reino do Norte e reino
do Sul. É um período cheio de perplexidades, mas com uma relevância para o
universo bíblico, pois nos seus dois séculos de existência, o Reino de Israel foi
lugar de muitos acontecimentos e de personagens bíblicos: os profetas e os reis.

52
Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

Após a morte do rei Salomão, Roboão sucedeu seu pai no trono. Os nortistas
não aceitaram facilmente essa realidade. Contudo, exigiram que Roboão se
apresentasse numa assembleia na cidade de Siquém, dessa forma exigiram as
condições para que o rei fosse admitido: acabar com os conflitos e a opressão. O
povo teria voz ativa como no tempo da confederação das doze tribos (1Rs 12,1-5).

A partir do ano 931 a.C. a ilusão de um reino unido se despedaçava, como no


gesto simbólico realizado pelo profeta Aís de Silo, era um profeta do Norte (1Rs
11,29-31). Os dez pedaços entregues a Jeroboão significavam as dez tribos do
Norte a separar-se do Sul. O profeta incentivava a divisão do Reino do Norte e
oferecia o seu apoio ao lado da revolta, e Jeroboão se tornou uma ameaça para a
estabilidade do Reino de Salomão.

É possível afirmar que a monarquia e a profecia surgem juntas e se


desenvolvem lado a lado. Reis e profetas são figuras complementares, mas
contrastantes. No Reino do Norte, os profetas que atuaram foram os seguintes:
Elias, Eliseu, Amos e Oseias. Todos eles declaram “guerra santa” contra os reis
de Israel (IRs 18; 2Rs 10). A partir de agora iremos apresentar de forma sucinta
cada um deles.

a) Elias

Para que os governantes no período em que atuou o profeta Elias tivessem


sucesso era necessário, antes, destruir a religião de Javé, seu principal rival. Esta
religião mantinha o povo obediente às leis e à aliança, às tradições de cunho tribal
e aos costumes do tempo dos juízes. Isso impedia a centralização do poder nas
mãos do rei. Com o intuito de acabar com a religião de Baal, os reis vão incentivar
e promover o culto idolátrico a Baal, deus cananeu da chuva e da fertilidade do
solo, o protetor das cidades. No período em que reinou Acab, a religião de Baal
se tornou oficial (1Rs 16,32-33). Acab foi influenciado por sua esposa Jesabel,
substitui o culto a Javé pela adoração a Baal (1Rs 16,31-33), Elias avisou o rei
a repentina falta de chuva (1Rs 17,1), e, portanto, um período longo de seca. O
rei achava que Elias era o culpado pela falta de chuvas. Elias não se intimidou,
pois a palavra de Javé veio a ele (1Sm 17, 1s) pedindo que fosse até Serepta, lá
ele encontrou uma mulher pobre, viúva, estrangeira que, com o seu filho órfão,
também vive as dificuldades provocadas pela seca. Elias pede água e pão. A
mulher partilha com ele o que lhe resta. A partilha e a solidariedade colaboraram
para enfrentarem juntos a falta de alimentos.

53
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

b) Eliseu

Eliseu foi sucessor de Elias e era um homem bastante particular dentre os


profetas. O conjunto de narrativas que falam a seu respeito está presente no livro
de 2Reis. Eliseu é considerado um especialista em “milagres aquáticos” (2Rs
2,14; 2,21; 5,10; 6,6; 2,23-24; 4,1-7.9-44; 13,21). Também era envolvido nos
eventos políticos que marcaram a primeira metade do séc. IX a.C. (2Rs 6,8-23,
8,7-15; 13,14-20). Esse movimento confirma a característica do profetismo como
um movimento político a partir da ótica dos mais pobres.

c) Amós

Jeroboão II, por volta do séc. VIII, foi o décimo terceiro rei do Reino do Norte.
Seu reinado aconteceu em uma época de enriquecimento, mas na qual o luxo dos
mais ricos contrastava com a pobreza da maior parte da população.

No reinado de Jeroboão II surgiu o profeta Amós, um pastor de Técua,


rude e incisivo (Am 7,14). Era um profeta escritor. Em relação aos profetas não
escritores como Elias e Eliseu, há em comum a defesa ferrenha da crença em
Javé. Contudo, existia uma falsa prosperidade, a exploração, a injustiça e o
suborno possibilitavam que alguns poucos adormecessem em divãs de marfim
e se regalassem em festas intermináveis (Am 6,1-7), enquanto a maior parte do
povo permanecia cada vez mais pobre e impossibilitada de condições mínimas
para a sobrevivência.

O povo nem sempre percebia as benesses da monarquia, e continuava a


acreditar no discurso das autoridades governamentais, deixava-se convencer pela
pregação espiritualista dos líderes religiosos, que legitimavam a situação, fazendo
perigosas concessões ao baalismo. Por conta disso, Amós se torna o porta-voz
dos camponeses (Am 1,2). A partir do profeta Amós, os profetas questionarão
o sistema monárquico de Israel e Judá, decretando a falência de modelo de
sociedade baseado nesse esquema de opressão.

d) Oseias

O profeta Oseias, com o mesmo vigor de Amós, faz fortes denúncias aos
opressores políticos e religiosos de sua época. Mas os pecados de Israel, dessa
vez, são identificados como a “prostituição” do povo, que abandonou o projeto de
Javé para servir a Baal (Os 4,2.4-10; 6,7-10; 10,4; 12,2.8-9). Essa ótica é reforçada
pela experiência pessoal de sua esposa que, segundo os textos, o abandonou e
entregou-se à “prostituição sagrada” nos ritos balísticos de fecundidade. Mas ele
a perdoou quando decidiu voltar para casa (Os 1,2-3,5).

54
Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

Sua experiência pessoal o fez repensar a relação entre Javé e seu povo.
Oseias percebe que a causa principal de toda a situação complicada do povo
seria sanada, caso se convertessem a Javé, que perdoaria, pois o seu amor
prevaleceria. Daí a denúncia ao culto idolátrico torna-se a sua principal temática.

O Reino do Norte teve o seu fim em 722 a.C. com a destruição da Samaria,
sua capital, para não se erguer jamais. O Reino do Sul, apesar de ser bem menor
e mais pobre, continuou existindo por mais algum tempo, mesmo pagando o preço
da vassalagem, como veremos no próximo item.

Reino do Sul e Seus ProFetas


O Reino de Judá tinha Jerusalém como sua capital. Após Reboão, filho de
Salomão, possuiu 19 reis, dos quais boa parte foi morta. O Reino de Judá não
tinha a mesma prosperidade econômica do seu vizinho do Norte, mas não se
incomodava com essa realidade, pois acreditava na firmeza das suas instituições,
que faltavam a Israel, que era a promessa divina da eleição, estabilidade e
permanência para sempre, pois Javé escolhera Jerusalém para morar (1Rs 11,36;
14,21; Sl 48). O Reino do Sul teve 19 reis, conforme dito anteriormente, e durou
345 anos.

Desde o início da monarquia com Saul, surgiram também os profetas como


reação aos desmandos da monarquia. Inicialmente eles se relacionavam mais de
perto apenas com os reis, pois conviviam com eles no palácio. Mas nem por isso
podem ser considerados profetas apenas da corte, quase como funcionários do
Estado. Durante o período da monarquia dividida, os profetas floresceram mais no
Norte, onde as tradições javistas do tribalismo, forma mais conservada e também
onde as realidades política, social e religiosa exigiam intervenções severas
desses “homens de Deus”. Então, os profetas acabaram por se distanciar do rei e
do palácio e a se identificarem com as dificuldades da maioria do povo, os pobres
e excluídos.

Durante o reinado de Salomão, os profetas têm sua atuação enfraquecida,


e isso até a segunda metade do séc. VIII a.C., quando surgiu o eloquente Isaías,
no tempo do rei Ozias (740) e de seus sucessores. Pode ser que esse sumiço
dos profetas se deva à teologia davídica, elaborada na corte, e a relativa paz em
que vivia o reino de Judá, durante pouco mais de cem anos. Inibiam o surgimento
desses grandes críticos da sociedade, os profetas.

55
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

a) Isaías

Isaías foi o responsável pela reaparição da profecia em Judá, silêncio de


mais de um século. Ainda jovem, recebeu a vocação profética, em período anterior
à morte de Ozias, em 740 a.C. (Is 6, 1-8). Exerceu o ministério profético por
aproximadamente 40 anos. A sua profecia demonstra ser o profeta um conhecedor
da vida da cidade, de sua política, da corte e das atividades do Templo. Ele ainda
demonstra muita sensibilidade pelos pobres e excluídos daquela sociedade: as
viúvas, órfãos, os sem-teto (Is 1,17.23; 9,16; 10,2).

O profeta demonstra possuir um profundo conhecimento da realidade à sua


volta, no cenário internacional. Suas intervenções e palavras eram tão significativas
que se solidificaram para além de seu tempo. Dessa forma foi interpretada a
profecia do nascimento de um libertador que ele chamou de Emanuel – Deus
conosco –, (Is 7,14), do rebento de Jessé (Is 11,1s) e da cegueira e surdez do
povo (Is 29,18-19).

No campo político, suas intervenções mais significativas foram duas: a


primeira no período de Acaz (cerca de 732 a.C.) e a segunda no tempo de
Ezequias. Isaías foi o primeiro profeta cujas palavras foram registradas em um
livro que leva o seu nome. Apesar do seu livro possuir 66 capítulos, somente os
primeiros 39, excetuando-se os 24-27 e 34-35, contém as palavras do profeta
do séc. VIII. Os demais capítulos – inseridos posteriormente na sua obra –
demonstram que o profeta fez escola, isto é, sua mensagem encontrou respaldo
na pregação de outros profetas que lhe seguiram os passos, mesmo após a sua
morte.

b) Miqueias

O profeta Miqueias, possivelmente, nasceu no ano 725-701 a.C. (cf. Jr


26,18). É um camponês com origens de Morasti-Gat (Mq 1,1-14), aldeia de Judá,
situada acerca de 33 km a sudoeste da capital Jerusalém. O profeta Miqueias é do
ambiente campesino e por isso está no meio dos problemas do homem do campo.
Por ser um caminho de passagem para Jerusalém, Morasti-Gat encontra-se
rodeada de fortalezas. Em um círculo de 10 km, a pequena cidade está rodeada
pelas cidades Azeca, Soco, Odolam, Maresa e Laquis (Mq 1,8-15).

Miqueias é contemporâneo do profeta Isaías de Jerusalém. O ambiente em


que os dois profetas estão inseridos é relevante para entender a realidade do
tempo de Miqueias sob a ótica do campo (Miqueias) e da cidade (Isaías).

56
Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

O profeta Miqueias vive um dos períodos mais conturbados do reino de Judá.


Isso se dá porque Israel e Síria movem guerra contra a Assíria e Judá (guerra
siro-efraimita em 735-734; cf. 2Rs 16,5-16; Is 7,1-9; 8,1-10), além de pagamentos
de altos impostos, para a Assíria, da destruição do reino do Norte e de grande
fluxo de refugiados para o sul em 722 a.C.

Nesse período, Ezequias, que era rei de Judá (716-687 a.C.), faz a reforma
atacando os santuários e lugares altos do interior (cf. 2Rs 18,3-6). O mesmo rei
lidera o movimento antiassírio e faz guerra contra as cidades filisteias (705-701;
2Rs 18,8).

E como consequência da atitude de Ezequias, Senaqueribe invade Judá e


toma 46 cidades da planície, causando grande mortandade, deportando cerca de
2.000 pessoas, destruindo sua infraestrutura. Só não tomou Jerusalém porque
Ezequias arrependeu-se de sua própria revolta e acabou aceitando novamente
ser submisso à Assíria. Mas o rei de Jerusalém segue obrigado a pagar tributos
ao Império Assírio, porém, desta vez, ainda mais pesados (cf. 2Rs 18,13s), tudo
sob o conselho de Isaías, o profeta de Jerusalém contemporâneo de Miqueias (cf.
2Rs 19, bem como outros textos do livro de Isaías).

Mediante todas essas injustiças, Miqueias é o defensor dos pobres que são
violentados por essa elite dominante. Ele grita contra os ricos e poderosos de
Jerusalém: “Vocês são gente que devora a carne do meu povo” (Mq 3,3; cf.3,10).
Miqueias é um camponês que vive espoliado, exprime sua dor e ira em linguajar
duro e forte, muito parecido com a profecia de Amós, que era também do interior
comprometido com as causas das pessoas pobres subjugadas pelo sistema
governamental.

c) Sofonias

A atividade do profeta Sofonias pode localizar-se no período da menoridade


do rei Josias (640-620 a.C.). O povo estava sofrendo muito com a dominação do
Império Assírio, e internamente com as elites dirigentes, uma em aliança com a
Assíria, a outra com o Egito. Toda essa disputa acabou por provocar o assassinato
do rei Amon, que conseguiu se manter no trono por apenas dois anos, de 642 a
640 a.C. Em lugar dele o povo da terra colocou o filho Josias (642 a 609 a.C.) com
oito ano de idade, apenas (2Rs 21,24; 22,1), mantendo o país sob o domínio da
Assíria, refletido nos seus cultos astrais em Jerusalém (1,5; cf. 2Rs 21,5).

57
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Mas quem era mesmo esse povo da terra? Era o grupo defensor da dinastia
de Davi, formado por grandes donos de terra, que com outros dirigentes de
Jerusalém oprimiam e exploravam o povo (Ez 22,29). A população camponesa
era obrigada a fornecer alimento para manter o comércio e sustentar o luxo e
mordomia da corte israelita (1,8). O profeta denuncia com vigor a concentração
de riqueza em Jerusalém, a centralização do excedente agrícola, o controle
do comércio e as práticas religiosas. A principal característica dos oráculos de
denúncia é o “dia de Javé” (cf. Am 5,18-20) contra os opressores (1,7.14-18; 2,2).
Sofonias é o grito profético do povo explorado. Os pobres da terra, como sujeito
histórico, são a única esperança de uma sociedade baseada na justiça e na
pobreza, na partilha e solidariedade (2,3): eles são amados e protegidos por Javé.

O nome de Sofonias significa “Deus protege” ou “esconde”, o que em muito


ajuda a entender sua profecia. A profecia atribuída a Sofonias foi lida e relida no
exílio e no pós-exílio. Para os redatores, “o resto da casa de Judá”, “o resto do
meu povo”, “um povo pobre e fraco”, “o resto de Israel” (2,7.9; 3,12), é sinal de
esperança nos tempos difíceis de calamidade nacional; a destruição de Jerusalém,
o exílio e a dominação dos babilônios, pois Deus ama e protege o povo pobre e
está no meio dele (3,5.15.17).

d) Hulda

Hulda é a única mulher citada na Bíblia que exerceu o ministério profético,


cujas palavras foram registradas por escrito, num livro que não levou o seu nome.
Ela exerceu sua profecia no tempo de Josias, para confirmar a autenticidade das
palavras presentes no livro da lei encontrado no templo e dar seu parecer favorável
à reforma religiosa pretendida pelo rei. As palavras claras e contundentes de Hulda
(2Rs 22,15-20) foram acolhidas pelo rei como a expressão própria da vontade de
Deus, pois como profetisa, foi procurada pelos funcionários do rei para consultar
o Senhor (2Rs 22,13).

e) Jeremias

O profeta Jeremias nasceu por volta do ano 650 a.C., em Anatot, pequena
aldeia levita da tribo de Benjamim (Jr 1,1), cerca de 6km ao nordeste de
Jerusalém. É provável que seja descendente de família sacerdotal ligada às
tradições dos levitas do Norte. Este grupo se caracteriza pela fé no Deus da vida,
em oposição ao Javé oficial do Templo, e também por defender os interesses da
população camponesa contra as injustiças da monarquia (26, 11-18). A linguagem
de Jeremias utiliza imagens do campo (2,20-27; 14,4-5) e sua profecia brota da
preocupação com o sofrimento dos camponeses (10,17-25).

58
Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

O profeta Jeremias exerceu sua profecia no período 627 e 582 a.C.,


acompanhando o reinado de cinco reis: Josias, Joacaz, Joaquim, Joaquin e
Sedecias (Jr 1,1-3). Período de grandes complicações em Judá. O profeta paga
um preço muito alto por combater as injustiças: “ai de mim, minha mãe, pois a
senhora me gerou” (Jr 15,10; cf. as cinco confissões: Jr 11,18-12,6; 15,10-21;
17,14-18; 18,18-23; 20,7-18).

f) Naum

Naum é o sétimo dos profetas menores, natural de Elcós, provavelmente


aldeia do interior de Judá. Seu nome significa “aquele que consola”. Seu oráculo
é contra Nínive, capital do Império assírio (2,9; 3,1.7). A descrição detalhada e
a extraordinária vivacidade nas cenas da conquista de Nínive (2,4-2,19 levam a
situar a atividade do profeta imediatamente após a queda dessa grande cidade,
em 612 a.C.

Naum dava asas ao sentimento de alegria do povo ao ver a derrota do seu


opressor, a Assíria, cuja capital, Nínive, havia sido tomada pelos babilônios em
612 a.C. Apesar de pouco ortodoxa, porque parece dizer “bem feito” a quem está
pagando pelo mal que fez, o profeta ensina que todo opressor terá o seu dia e
renova a esperança do povo não com sentimento de vingança, mas como certeza
do juízo de Deus sobre a história.

g) Habacuc

A visão do profeta Habacuc mostra a crueldade da Caldeia ou Babilônia e a


violência do seu exército (1,5-11). Sabemos que Judá foi vítima das opressões
imperialistas dessa nação. Por isso, deve ter sido Judá o lugar e o período
histórico da atuação de Habacuc, entre a queda de Nínive, capital do Império
assírio, em 612 a.C., e a tomada de Jerusalém durante o reinado do rei Joaquim
(608-598 a.C.), mais precisamente em 598-597 a.C.

Na sua origem, a profecia de Habacuc se resumia na denúncia contra a


violência da elite de Judá, em tempos do rei Joaquim, e no anúncio da invasão
babilônica. Durante o exílio se fez uma releitura, estendendo a violência ao
exército da Babilônia. Após o exílio, foi acrescentado o salmo do Capítulo 3, que
muda sistematicamente o tom rebelde do profeta.

59
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Algumas ConsideraÇÕes
Ao longo desse capítulo pudemos nos aproximar um pouco mais da história
de Israel, verificando mais de perto algumas das suas inúmeras narrativas.
Buscou-se dar a você, aluno, algumas ferramentas de leitura. O conteúdo mais
aprofundado, dependendo do seu interesse, poderá encontrar de maneira mais
ampla na bibliografia indicada. Você, num primeiro momento, pode achar muito
complicado estudar a história de Israel, de fato, essa dificuldade ocorre porque os
escritos bíblicos não são narrados de forma linear, pois não se trata de um livro
apenas, mas de muitos, escritos ao longo de vários séculos, o que colabora para
identificar o contexto em que surgiram as narrativas.

Por outro lado, é claro que essa tarefa exige um pouco de esforço, não
diferente da missão que tiveram muitos dos profetas do antigo Israel, de acordo
com o que vimos no conteúdo. A profecia é fundamental para explicar o contexto
social, político e ideológico do Israel antigo. No Antigo Testamento transparecem
nas narrativas nitidamente duas maneiras de fazer e viver a profecia: os profetas
da corte e os profetas camponeses. Cada um se identificando com um projeto
distinto. Ao ler o texto bíblico, você pode verificar de qual profeta a narrativa trata,
quais os seus interesses, e por quem ele se identifica e sofre/clama por justiça.

ReFerÊncias
ANTONIZI, Alberto, et al. ABC da Bíblia. São Paulo: Paulus, 1982.

BIERLEIN, J. F. Mitos paralelos: uma introdução aos mitos no mundo moderno


e as impressionantes semelhanças entre heróis e deuses de diferentes culturas.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p. 85-87.

EQUIPE NACIONAL DA DIMENSÃO BÍBLICO-CATEQUÉTICA. Como nossa


Igreja lê a Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1995.

KONINGS, Johan. A Bíblia nas suas origens e hoje. Petrópolis: Vozes, 1998.

LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de Teologia. In: Exegese. DON-


DELINGER, Patrick. São Paulo: Paulinas e Loyola, 1998.

LIMA, Maria de Lourdes Corrêa. Exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 2014.

MARQUES, Maria Antônia; NAKANOSE, Shigeyuki. Deus viu que tudo era mui-
to bom. Entendendo o livro de Gênesis 1-11. São Paulo: Paulus, 2007.

60
Capítulo 2 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA

MCDONALD, Lee Martin. A origem da Bíblia. Um guia para os perplexos. São


Paulo: Paulus, 2013.

MENDONÇA, José Tolentino. A leitura infinita. A Bíblia e a sua interpretação.


Universidade Católica de Pernambuco; Paulinas: Recife; São Paulo, 2015.

MESTERS, Carlos. Por trás das palavras. Petrópolis: Vozes, 2012.

PULGA, Rosana. Beabá da Bíblia. São Paulo: Paulinas,1998.

RODRIGUES, Maria Paula (Org.). Palavra de Deus, palavra de gente. As for-


mas literárias da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2004.

RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe. Antigo Testamen-


to, história, escritura e teologia. São Paulo: Loyola, 2010.

SCHWANTES, Milton. Projetos de esperança. Meditações sobre Gênesis 1-11.


São Paulo: Paulinas, 2002.

SERVIÇO DE ANIMAÇÃO BÍBLICA. Iniciação à leitura da Bíblia. São Paulo:


Paulinas, 2007.

SHIGEYUKI NAKANOSE. (Jn 2,5): Uma leitura de Jonas 2,1- Continuo a con-
templar o teu santo Templo 11. Revista Vida Pastoral – setembro-outubro 2010
– ano 51 – n. 27 p. 21.

ZAPELLA, L. Manuale de analisi narrativa bíblica. Torino: Claudiana, 2014.

61
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

62
C APÍTULO 3
O Exílio, e a Volta do Exílio Decreta-
da pelo Império Persa

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

 Conhecer as principais características do exílio da Babilônia.


 Compreender como ocorreu o exílio da Babilônia, seus personagens
principais, e os livros que nascem nesse contexto.
 Conhecer o retorno do exílio e a reconstrução de
Jerusalém financiada pelo Império Persa.
 Ler e interpretar a literatura bíblica em cada etapa da história de Israel.
 Identificar os diferentes contextos em que está inserido
o exílio da Babilônia nos textos bíblicos.
 Distinguir as diversas etapas da história de Israel.
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

64
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

ContextualiZaÇÃo
Neste terceiro capítulo temos como objetivo principal a compreensão de
uma etapa muito importante da história de Israel, que é o exílio da Babilônia e
o possível retorno da antiga elite de Judá para Jerusalém. Nessa perspectiva,
iremos descobrir que a literatura bíblica depende, e muito, desses eventos, pois
boa parte dos seus escritos foi reelaborada a partir da experiência do exílio e do
pós-exílio.

O Que é o Exílio?
Muito se fala em exílio na Bíblia, mas o que foi esse acontecimento tão
relevante nas narrativas bíblicas? Na verdade, não aconteceu apenas um exílio
na história de Israel, foram muitos, mas só um deles se tornou o mais conhecido.
Nesse capítulo iremos caminhar com os exilados da Babilônia e fazer o retorno
com eles, e, com isso, conhecer um pouco mais da literatura que foi escrita nesse
período. Vamos lá?

O exílio da Babilônia é o mais conhecido entre todos os exílios, ele ocorreu


no VI séc. a.C., mais ou menos entre os anos 597 até 538 a.C. Foram 59 anos de
um período que modificou radicalmente a história dos israelitas.

No VIII séc. a. C. ocorreram três exílios. Neste período a Assíria era a grande
potência mundial e subjugara todo o mundo então conhecido. A deportação de
seus povos dominados, em especial da elite que governava, era parte do plano,
com práticas de guerra e de subjugação.

Em 732 a.C. os assírios deportaram mais ou menos 20 mil pessoas do


norte de Israel: “No tempo em Faceia era rei de Israel o rei da Assíria Teglat-
Falasartomou Aion, Abel-Bet-Maaca, Janoe, Cedes, Hasor, Galaad, Galileia e
toda a região de Neftali e deportou seus habitantes para a Assíria” (2Rs 15,29).
Já em 722 a.C. foi a vez dos assírios levarem para o cativeiro os habitantes da
Samaria, capital de Israel, no reino do Norte. Não há dados de quantas pessoas
foram atingidas por este banimento, certamente foram muitas. Isso se justifica,
porque os assírios tiveram que trazer imigrantes de outras partes do Império para
habitarem no lugar dos deportados:

No décimo segundo ano do reinado de Acaz, rei de Judá,


Oseias, filho de Ela, tornou-se rei de Israel. Reinou nove anos
em Samaria. Fez o que é mau aos olhos de Javé, mas nem
tanto como os reis de Israel que vieram antes dele. Salmanasar,
rei da Assíria, atacou Oseias, que teve de se submeter e pagar

65
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

tributo. Mas o rei da Assíria descobriu que Oseias o traía, pois


havia mandado embaixadores a Sô, rei do Egito, e deixou de
pagar ao rei da Assíria o tributo anual. O rei da Assíria mandou
prendê-lo e deixá-lo acorrentado na prisão. Em seguida, o rei
da Assíria subiu contra toda a terra, atacou Samaria e o sitiou
por três anos. Ao nono ano do reinado de Oseias, o rei da
Assíria tomou Samaria e deportou os israelitas para a Assíria.
Os israelitas foram levados para Hala, às margens do rio Habor
em Gozã, e também para cidades da Média (2Rs 17,1-6; cf.
também 18,9-12).

No ano de 701 houve outra deportação. Os atingidos eram da população de


Judá, reino do Sul, os exércitos assírios os tomaram de assalto (2Rs 18-20). As
narrativas bíblicas não mencionam números, mas muitas pessoas foram atingidas.
Um general assírio relatou que havia deportado cerca de 200 mil pessoas. De
acordo com Milton Schwants (2009, p. 11), esse dado pode ser um exagero:
“Digamos, pois, que este general se ‘enganou’ e que só tenha deportado 20 mil
pessoas. E, ainda assim, o número é alto”.

Certamente, além dessas deportações, também aconteceram outras,


contudo nem todos os exílios foram registrados. No entanto, aparecem algumas
referências: no livro de Amós 1,6, há um registro de um desterro de povos inteiros,
provavelmente pertencentes a Judá. Em Jeremias 51,12-30 são citadas diversas
deportações ao redor de 587. Estes registros demonstram que o povo de Israel foi
vítima de muitos exílios.

Portanto, o exílio babilônico é o mais conhecido, mas não o único, por conta
disso iremos aprofundá-lo um pouco mais. Vamos lá!

Este exílio permaneceu na memória, foi superado, mas não foi esquecido,
como aconteceu com os demais, inclusive do século VIII, que chegou a atingir
milhares de pessoas. No entanto, seu destino não chegou a ser resgatado porque
não puderam regressar. Enfim, caíram no esquecimento, ainda que o profeta
Jeremias, em torno de 630 a.C., deles se lembrasse:

Palavra que veio a Jeremias da parte de Javé: Assim diz Javé,


o Deus de Israel: Escreva num livro tudo o que eu vou lhe dizer:
pois virão dias – oráculo de Javé – em que mudarei a sorte de
meu povo, Israel e Judá, diz Javé. Farei com que voltem à terra
que eu dei a seus pais e que tomem posse dela (Jr 30-31).

66
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

Não dá para desconsiderar o sofrimento que as pessoas que são submetidas


a um processo de deportação enfrentam. São obrigadas a deixar tudo para
trás, uma vida boa, como é o caso da elite de Judá. A experiência desses povos
deportados ao longo do séc. VIII contribuiu para que os exilados de 597 a.C. não
fossem esquecidos pelas narrativas bíblicas, e fossem vitoriosos. A vitória dos
exilados do tempo babilônico resgata derrotas anteriores. O retorno vitorioso dos
exilados de 597 a.C. é, pois, um resgate de gerações de exilados, de milhares de
deportados. Justamente por conta disso, é relevante voltar a atenção para o olhar
babilônico.

É PossíVel Exílio em Terra com


Dono?
As deportações foram promovidas pelos exércitos assírio e babilônico. Mas o
exílio não se reduz a apenas esses. Imagine você, numa situação em que milhares
de pessoas são deportadas, na linguagem de hoje poderíamos usar o “tráfico
humano”, ou mesmo escravidão. Essas pessoas enfrentavam um conflito muito
grande, pois passavam a viver em um lugar dominado por reis opressores. Para
o povo exilado isso era algo terrível, uma grande desgraça. Contudo, igualmente
horrível era viver exilado e oprimido na própria terra.

A terra de Canaã, para os hebreus, era solo ocupado. Essa ausência


de liberdade não se devia tanto ao fato de nela viverem cananeus, pois estes
cananeus até mesmo puderam tornar-se aliados dos hebreus vindos do Egito.
Mostra-o a história de Raab (Js 2). A prostituta Raab, mulher oprimida e
marginalizada em Jericó, passou para o lado dos israelitas que eram pobres como
ela. Dessa forma, se verifica que o problema não eram os cananeus, em geral.

A grande problemática estava relacionada aos reis cananeus, pois


controlavam a terra. Exigiam, de quem nela trabalhasse, altíssimos impostos e
saqueavam os camponeses. Ao tomarem a terra, os hebreus vindos do Egito
libertam a terra da opressão e ocupação dos monarcas cananeus. Para o povo
exilado, a retirada da terra, relatada nos primeiros capítulos de Josué, foi a
libertação do chão.

Durante muitas gerações as tribos israelitas viveram em terra liberta. No


entanto, se implantou depois a monarquia. Davi, Saul e Salomão, cada vez mais,
foram tomando feitios cananeus. A terra foi colocada sob seu controle. Os próprios
reis israelitas passaram a explorar o povo e ocuparam a terra.

67
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

É neste momento que entram em cena os profetas (conhecemos um pouco


deles, de suas lutas e conquistas no capítulo anterior, lembram?). Os profetas
estavam muito interessados no resgate da terra para aqueles que a perderam.
Denunciaram fortemente a exploração provocada pelos reis: “São vocês os
inimigos do meu povo: de cima da túnica, arrancam o manto de quem vive
tranquilo ao voltar da guerra. Vocês expulsam da casa as mulheres do meu povo,
e tiram dos seus filhos a dignidade que eu lhes tinha dado para sempre” (Mq 2,8-
9). O profeta responde apresentando as provas concretas da realidade do povo
oprimido pelos governantes: o direito dos pobres é violado (cf. Dt 24,10-13; Am
2,8); as mulheres são expulsas; as crianças têm seu direito à herança negado.

No Primeiro Testamento, exílio não é só expatriação ou fuga forçada para


uma terra estranha, também a opressão e vida desumana acontecendo na própria
terra, no seu lugar de origem. Nesse caso, se os profetas não tivessem tido a
coragem de denunciar os opressores que queriam ocupar a terra que pertencia
ao povo da aliança, possivelmente os exilados não teriam tido forças para sonhar
que uma vida nova poderia ser brevemente possível.

O primeiro Isaías denunciou aqueles que desejavam: "terra a terra” (Is 5,8).
Já o segundo Isaías convocou os exilados na Babilônia: “saí daí!”. Dessa forma
fica evidente que as denúncias do primeiro Isaías são uma espécie de preparação
para a conclamação para o segundo Isaías. Ter que superar a expatriação e
superar os diversos tipos de opressões na própria terra são dois lados de uma
mesma moeda. Resgate de exilados e da liberdade são quase como alma gêmea.

Agora que conhecemos um pouco mais do significado do exílio, iremos


aprofundar os principais acontecimentos que foram relevantes para que essa
realidade fosse possível na história de Israel.

Acontecimentos Históricos
Historicamente não dá para negar que o século VI a.C., século em que
ocorreu o exílio da Babilônia, foi um período de reviravolta, não somente para
Israel, mas para grande parte do mundo antigo. Esse período é chamado pelos
historiadores de “período axial”, registrado por inúmeras inovações.

[...] (símbolos personificados de tendências gerais nas


respectivas comunidades): na China, Confúcio (550-480); na
Índia, Buda (560-480); no Irã, Zoroastro (fim do século VII);
na Grécia, os filósofos e os “cientistas” jônicos, que abrem o
caminho para a grande filosofia, a tragédia, a historiografia;
em Israel, os grandes profetas “éticos” (como Ezequiel e o
Deutero-Isaías) do período do exílio (LIVERANI, ANO, p. 253).

68
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

O exílio da Babilônia ocorreu no séc. VI a.C., contudo, para que possamos


compreendê-lo melhor, é necessário fazer um recuo na história, voltando ao
século VIII a.C. Nesse período, os assírios retomam seu projeto de dominação
internacional. Eles eram originários da Mesopotâmia e viviam na parte norte,
uma fértil região. Seus objetivos são justamente avançar rumo ao Mediterrâneo
e chegar a ocupar cidades portuárias importantes da região. Após a ocupação,
seguem rumo ao sul. Foi então que em 732 a.C. anexaram a Samaria. No
ano 701 a.C. destruíram Judá e por pouco não conquistaram definitivamente
Jerusalém. Após conseguirem controlar a Palestina, seguem em direção ao
Egito. Foi então que no início do séc. VII a.C. (700 até 650) ocorreu o cume do
domínio internacional dos assírios. Por conta dos seus exércitos serem terríveis
no massacre, eram fortemente temidos.

No entanto, toda essa opressão não demorou por muito tempo, os egípcios
reagiram, fizeram uso da sua tradição milenar e seus férteis vales junto ao rio Nilo.
A partir disso, começaram a buscar por sua mais rápida autonomia e começaram
por expulsar os assírios de suas terras. Além de afugentar os invasores, seguem
perseguindo-os. A hegemonia da Assíria na Palestina é muito contestada.
Dessa forma, o império egípcio alcança o grande rio Eufrates na Mesopotâmia,
no período da agonia assíria. Essa influência egípcia na Palestina, na segunda
metade do séc. VII a.C. e no próprio VI séc. a.C., é importante e decisiva para a
compreensão da expatriação de Judá.

Não foram apenas os egípcios que não aceitaram a supremacia assíria, os


babilônios também não aceitaram essa predominância toda. Estes ocupavam as
regiões ao sul da Mesopotâmia, área muito fértil entre os rios Eufrates e Tigres.
Passo a passo foram corroendo a dominação assíria desde o Sul, de sorte que
estes se vissem entre duas frentes. De um lado estavam os egípcios e, de outro,
os babilônios. Os assírios sucumbiram a esta dupla contestação. Em 612, Nínive,
sua última capital, foi tomada e feita em ruínas.

Os egípcios e babilônios foram fortes aliados na decadência dos assírios.


Porém isso não aconteceu da mesma forma quando se tratou de definir a
sucessão dos assírios no cenário internacional. Ambos se candidataram. Ambos
trataram de pôr sob seu controle os territórios que, anteriormente, tinham estado
sob a repressão assíria. Contudo, para a Palestina, esta disputa pela hegemonia
teve fortes consequências, e decisivas. Isso porque estava justamente entre as
duas potências em disputa.

Mas, enfim, os babilônios fizeram-se impor e conseguiram isso na Palestina,


mas não conquistaram o Egito, este permaneceu autônomo. Perdurou como uma
constante ameaça à vista.

69
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Para Judá, esse impasse que ocorreu entre os babilônios e egípcios foi fatal.
Isso aconteceu por conta da posição estratégica ocupada por seu território.

Para os impérios egípcios era fundamental ter Judá como aliada. Afinal, era
uma área para o abastecimento de suas tropas. A rigor, para quem vem do Egito,
Judá se constitui no primeiro lugar onde os exércitos podem reabastecer-se. Após
centenas de quilômetros por terrenos áridos e inóspitos, a região de Judá fornece
água e comida. Contudo, para as estratégias militares daqueles tempos, um tal
território era decisivo. Os faraós egípcios da época trataram logo de manter boa
vizinhança com os reis de Jerusalém.

Para os generais assírios, o pequeno e em si insignificante território judaísta


impunha-se como importante. Necessitavam-no tanto para uma possível invasão
do Egito, quanto para impedir contra-ataques egípcios. Esta posição estratégica
de Judá é, possivelmente, a causa de sua destruição e de sua deportação. Judá
como que foi triturado pelo entrechoque das duas grandes potências do VI séc.
a.C.: a Babilônia e o Egito.

Em resumo, veremos algumas questões internas de Judá:

A soberania, ora do Egito, ora da Babilônia, se reflete na situação interna.


Tanto uma quanto a outra superpotência chegam a entronizar soberanos em
Jerusalém.

Após a reforma josiânica de 622 a.C., Jerusalém é o centro religioso,


cúltico e simbólico. No entanto, nem de longe todos os setores da sociedade
judaísta concordavam com esta centralização. O profeta Jeremias contestou-a
veementemente: “Assim diz Javé dos exércitos, o Deus de Israel: endireitem seus
caminhos e sua maneira de agir, e eu morarei com vocês neste lugar, não se
iludam com palavras mentirosas, dizendo: Este é o templo de Javé, templo de
Javé!” (Jr 7, 3-4; cf. também Jr 26).

O povo da terra são os camponeses, representam uma política real, e passam


a interferir de maneira revolucionária. Dão sustentação à política de Josias e de
Jeocaz, e acabaram por permitir e impelir a política de emancipação nacional dos
últimos soberanos.

70
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

Quem Foram os Exilados


Neste item vamos conhecer um pouco mais sobre os deportados no exílio da
Babilônia. Quem foram eles? Eram os camponeses? Era a elite governamental?
Toda a população foi expatriada? Ou foram alguns poucos escolhidos? A partir
dessas perguntas, vamos compreender um pouco mais de como ocorreu o exílio
da Babilônia. A deportação de 587 a.C. privilegiou uma parte da população, de
acordo com o que vemos na figura a seguir:

Figura 4 - O rei e sua corte

Corte real
Militares
Funcionários
do Estado
Famílias de
políticos

Fonte: Adaptação de Vasconcelos e Silva (2003, p. 144).

De acordo com o que vimos na figura acima, os deportados do exílio da


Babilônia foram somente a elite de Judá. Os historiadores estimam uma população
de mais ou menos 15 mil pessoas (VASCONCELOS; SILVA, 2003). A elite se
tornou uma espécie de refém. Para a Babilônia muito interessava a expatriação
das pessoas que fossem influentes política e militarmente. Isso porque a elite
constituía uma espécie de ameaça ao seu poderio. Por isso a escolha de levar
apenas o governo, ou seja, todo o povo que de alguma forma estava ligado ao
palácio e ao templo, bem como o exército, isto é, os artesãos ou fabricantes de
armas e também sacerdotes como Ezequiel, que era um cantor do templo (2Is
40-55). Dessa forma, realizaram uma verdadeira cassação política. No fundo, os
expatriados constituíam uma parte pequena da população, mas representavam
toda a classe dominante.

71
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

O agrupamento maior de expatriados foi reassentado na Babilônia. O profeta


Ezequiel menciona dois lugares: junto ao rio Quebar e em Tel Aviv (cf. Ez 1,3;
3,15). O nome Tel Aviv parece indicar para um lugar abandonado. De acordo com
Sl 137, 1 parecem ter sido assentados junto aos canais de água, numa região
sem povoamento.

Possivelmente, os expatriados de 587 a.C. foram juntados aos de 597 a.C.


Em todo caso, não parecem ter sido muitos, de acordo com o que já afirmamos
acima, isso porque muitos dos moradores de Jerusalém morreram no combate,
muitos outros foram exterminados pela fome e pela peste ou degolados pelos
vencedores. Para o desterro sobraram poucas pessoas, de acordo com Jr 52,15:

Nabuzardã, chefe da guarda, mandou para o exílio os pobres


da terra e o resto que sobrou do povo na cidade, os que
tinham passado para o lado do rei da Babilônia e o resto da
multidão. Só deixou ficar uma parte dos pobres da terra como
trabalhadores das vinhas e pequenos lavradores.

Após 587, de acordo com Jr 52,30, parece ter ocorrido uma outra deportação,
no entanto só sabemos dela por meio de Jeremias, cujo versículo nos deixa muitas
dúvidas (SCHWANTES, 2009). Em todo caso, de acordo com esta nota, houve
outra leva de deportados em 582. Não teria chegado à casa das mil pessoas.

Enfim, estima-se que em 597, em 587 e em 582 foram levados para a


Babilônia e aí representadas umas 15 mil pessoas, oriundas basicamente da
população de Jerusalém. De Judá, poucas foram atingidas. O exílio babilônio é,
no entanto, um exílio dos cidadãos da capital.

Como ViViam os Exilados


Agora que já conhecemos um pouco mais sobre quem eram os exilados, vamos
saber um pouco mais como eles viviam, como se organizaram para sobreviver às
duras penas diante de um império que teria feito deles verdadeiros escravos.

Os exilados permaneceram juntos, agrupados, e isso com certeza foi


fundamental para que pudessem sobreviver. Unidos somavam força!

Por permanecerem juntos, era mais fácil preservar a sua identidade


originária, língua, ritos, costumes e religião. A sua crença em Javé continuava
viva. O desejo de preservar a fé em Javé foi a força aglutinadora para esse povo
agora degredado. Em terra estranha não seria possível fazer sacrifícios, tiveram

72
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

que se readaptar, religiosamente falando. E com isso surgiu o culto da Palavra


por meio da profecia e do canto. Surgiram novos ritos que o identificavam, como o
respeito ao sábado – o dia de descanso –, e a circuncisão. Contudo, os exilados
não apenas mantiveram a sua fé, como se obrigaram a readaptar sua crença de
acordo com as circunstâncias que lhes eram viáveis.

É muito provável que trabalhassem no campo, na produção de cereais.


Dessa forma, passaram à produção primária. Essa foi uma mudança radical em
suas vidas, pois não estavam acostumados com trabalhos mais duros, afinal
haviam sido parte de uma elite com todas as mordomias próprias de alguém
que fazia parte da classe social mais elevada da capital (sacerdotes, generais,
ferreiros etc.). Passaram a exercer um trabalho que antes era feito apenas por
seus súditos. Em outras palavras, poderíamos afirmar que houve uma inversão
de funções.

Dá para identificar os expatriados como escravos? Essa é uma pergunta


que requer uma verificação um pouco mais cuidadosa. Isso porque escravidão
naquela época não pode ser compreendida a partir do conceito que temos na
sociedade hodierna, onde as pessoas submetidas ao jugo são vendidas como
mercadoria. O livro de Is 42, 1 afirma o seguinte: “Vejam meu servo, a quem eu
sustento”. Num sentido mais abrangente, todos aqueles que são exilados tornam-
se escravos, pois foram levados à força para uma terra desconhecida, estão
reféns, e vivem numa prisão. Nesta perspectiva são escravos, sim. Mas, como
já dissemos, não dá para compreender a escravidão nos moldes da sociedade
moderna. Para esses escravos do exílio lhes era permitida a livre circulação
dentro dos acampamentos. Podiam viver de acordo com seus costumes, língua
e religião. É provável que produzissem de maneira autônoma, dentro de uma
segmentação de tempo e tarefa por eles escolhida.

Produziam alimentos para a sua própria sobrevivência, uma prática de


produção que se beneficiasse do trabalho escravo, para eles, não era conhecida.
Os babilônios estipulavam uma quota para a entrega dos produtos. Era-lhes
exigido um tributo especial. A opressão na qual os exilados estavam submetidos
era impedimento de circulação para além de seus núcleos de
assentamento. Vivia na Babilônia
uma população
de mais ou menos
Vivia na Babilônia uma população de mais ou menos 15 mil 15 mil habitantes.
habitantes. Trata-se de um número expressivo. Representa em torno Trata-se de um
de 10% da população de Jerusalém e Judá antes de 597. número expressivo.
Representa em torno
Tudo bem, até aqui ficamos sabendo que a elite de Judá foi de 10% da população
de Jerusalém e Judá
deportada para a Babilônia, mas, e o restante da população, os
antes de 597.
chamados remanescentes?

73
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

A PopulaÇÃo Que nÃo Foi Expatriada


De acordo com o que já vimos até aqui, já nos é possível saber que a maioria
da população permaneceu na sua terra, em Judá. Não foram expatriados para
Judá, pois os “escolhidos” foram apenas a elite. Estima-se que tenha permanecido
em Judá uma população de 100 mil pessoas. Em tempos pré-exílicos é possível
que Judá e Jerusalém pudessem comportar uma população de 200 mil. É óbvio
que as inúmeras guerras que ocorreram de resistência à Babilônia exterminaram
a vida de muitas pessoas, de modo especial em 587 a.C. As deportações
afugentaram um número expressivo, muitos fugiram para regiões vizinhas, até
mesmo para o Egito. De acordo com Jr 40,11-12:

Também os judeus que estavam em Moab, entre os amonitas,


em Edom e outras regiões, ouviram falar que o rei da Babilônia
tinha deixado um resto em Judá e que havia colocado Godolias,
filho de Aicam, neto de Safã, como governador deles. Então
começaram a voltar judeus de todos os lugares por onde havia
espalhados. Entraram em Judá, junto a Godolias, em Masfa, e
fizeram uma colheita muito abundante de vinho e frutas.

Jeremias menciona retirantes que se haviam evadido para povos vizinhos por
ocasião da destruição de Jerusalém. Há informações a respeito de emigrantes
ao Egito (Jr 41-42). Por conta de todos esses conflitos, a sociedade de Judá
foi reduzida pela metade. Mesmo diante disso, ainda compunha um número
expressivo. Era em Judá, durante o período exílico, que havia o maior contingente
populacional do povo de Deus.

Os remanescentes eram uma população camponesa que plantava para a sua


sobrevivência, era o chamado povo da terra, aquela população que, por séculos
afins, estava instalada nos arredores das cidades e que por elas haviam sido
esbulhados. Essas pessoas de origem muito simples eram a atual população de
Judá. O livro de 2Rs 25,12 confirma essa realidade: “O chefe da guarda deixou
uma parte do povo pobre da terra, para trabalhar nas vinhas e nos campos”. De
certa forma, os babilônios promoveram certos benefícios à população pobre da
terra: “Os mais pobres do povo, os que não possuíam nada, Nabuzardã os deixou
na terra de Judá e deu-lhes vinhas e terra para cultivar” (Jr 39,10).

Jeremias dá a mesma informação que 2 Reis, apenas acrescenta alguns


pormenores. Na narrativa de 2 Reis tem-se a impressão de que os pobres tivessem
se tornado uma espécie de agregados ou parceiros dos babilônios. As terras lhes
teriam sido cedidas. O texto de Jeremias dá um passo a mais. Para ele, as terras
foram dadas aos pobres, houve uma divisão entre os mais pobres.

74
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

Interessante notar que tudo isso é ação dos babilônios, gente


que tem suas próprias divindades e não acredita em Javé! Estes
conseguiram fazer coisas que os reis davídicos não foram capazes
de fazer! Surpreendente, não?! Faça a sua própria reflexão! Como
reinterpretar o amor e a justiça a partir dos que possuem religião
diferente da nossa e são capazes de promover o bem comum?
Aprofunde mais essa ideia lendo: RÖMER, Thomas. A origem de
Javé. O Deus de Israel e seu nome. São Paulo: Paulus, 2016.

A história de Israel apresenta uma pluralidade de divindades e


isso não significa que um deus seja melhor do que o outro e não
seja capaz de promover o amor e a justiça. Cada um fundamenta
a sua crença em Deus da forma como lhe foi repassado pela sua
cultura e antepassados. Há em Israel uma luta muito grande entre as
divindades.

Em Judá também permanecem muitos grupos proféticos. Pudemos conhecer


um pouco mais sobre eles no capítulo anterior, retome o tópico sobre os profetas
e você entenderá um pouco mais da opção que eles fizeram em suas respectivas
profecias.

Sabe-se que o profeta Jeremias queria permanecer, mas o levaram à força


para o Egito. É ele que vai representar todo um grupo de profetas para os quais a
história do povo dá continuidade em terras palestinas, não no desterro. Imagina-
se que Obadias tenha pertencido a ele.

Entre as pessoas que permaneceram em Judá estavam também os


sobreviventes de Jerusalém, pessoas que haviam dado conta de escapar da
catástrofe de 587 a.C. Essas pessoas eram os liturgos do povo, os cantores.
Junto às ruínas do templo se tinha o costume de realizar as celebrações cúlticas
de penitência e lamento. Veja o que Jeremias 41, 4-7 fala a esse respeito:

No dia seguinte ao assassinato de Godolias, ninguém ainda


sabia. Foram então uns oitenta homens de Siquém, de Silo
e de Samaria, com a barba raspada, roupas rasgadas e
ferimentos no corpo. Levavam ofertas e incenso para a casa
de Javé. Ismael filho de Matanias saiu de Masfa ao encontro
deles, fora da cidade, andando e chorando. Ao encontrá-los,
disse: ‘venham até onde está Godolias, filho de Aicam’. Logo,

75
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

porém, que eles chegaram ao centro da cidade, Ismael, filho de


Natanias, junto com seus homens, estrangulou-os e mandou
jogar os corpos dentro de uma cisterna.

As cerimônias eram coordenadas por cantores. O lamento estava entre suas


especialidades. Até mesmo conhecemos uma parte do cancioneiro comunitário
composto para tais ocasiões. Nos referimos ao livro das Lamentações. Vejamos o
trecho de Lm 5:

Lembra-te, Javé, do que aconteceu! Olha bem para ver a


vergonha que passamos! Nossa herança passou a estranhos,
e nossas casas a estrangeiros. Agora somos todos órfãos, pois
perdemos nosso pai; nossas mães ficaram viúvas. Temos de
comprar a água que bebemos e pagar a lenha que usamos.
Com o jugo no pescoço somos empurrados; estamos exaustos,
pois eles não dão folga. Ao Egito já estendemos nossas mãos
pedindo ajuda, já suplicamos à Assíria que nos desse de
comer. Nossos pais pecaram e já morreram, e nós pagamos
por suas culpas. Escravos dominam sobre nós; não há quem
possa libertar-nos de sua mão. Arriscamos a própria vida pelo
pão, enfrentando em campo aberto a espada inimiga. Nossa
pele queima como forno, torturada pela fome. Violentaram as
mulheres em Sião e as virgens nas cidades de Judá. Com suas
mãos esganaram os chefes e não aceitaram e não respeitaram
os anciãos. Forçaram os jovens a girar o moinho, os rapazes
sucumbiram sob o peso da lenha. Os anciãos já não participam
do Conselho e os jovens deixaram seus instrumentos de corda.
Acabou a alegria que nos enchia o coração, nossa dança se
mudou em luto. Caiu a coroa da nossa cabeça. Ai de nós,
porque pecamos! Por isso nosso coração está doente e nossos
olhos embaçados. Por que o monte Sião está devastado e por
ele passeiam as raposas. Mas tu, Javé, permaneces para
sempre; teu trono permanece de geração em geração. Então,
por que haverias de esquecer-nos para sempre, e deixar-
nos abandonados por tanto tempo? Faze que voltemos para
ti, Javé, e voltaremos; renova os tempos passados. Ou será
que nos rejeitaste de uma vez? Será que tua cólera não tem
limites?

O livro das Lamentações é um exemplo típico de como as pessoas exiladas


se sentiam em relação ao exílio que estavam vivendo. Esse livro reúne cantos
que falam sobre a tomada de Jerusalém, a destruição do templo e das outras
cidades de Judá, em 587 a.C., por Nabucodonosor, o atual Imperador da
Babilônia. No fundo, se tratam de cantigas que descrevem a catástrofe nacional e
suas consequências trágicas: saques, incêndios, matanças, deportação, violência
física e sexual, fome, sede etc., bem como a situação de Jerusalém, arruinada
pela invasão inimiga (Lm 5,18).

76
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

Para além de apenas narrar a tragédia, as lamentações demonstram, de modo


doloroso, mas poético, o sentimento dos sobreviventes de Jerusalém: lamento,
humilhação, angústia, abandono, revolta, vingança, dúvida, arrependimento,
pedido de perdão e esperança. Os sentimentos seguem num ritmo de desespero,
mas ao mesmo tempo cheio de confiança em Javé, buscando recuperar as suas
promessas e aliança que foi feita a seus antepassados. O sofrimento físico é
profundamente existencial. No entanto, o povo não perde a força de gritar a sua
dor. Gritos que ecoam por todo o livro. As lamentações mostram também o clamor
pela vida de todo ser humano: “vocês todos que passam pelo caminho, olhem e
prestem atenção: haverá dor semelhante à minha dor?” (Lm 1,12).

É possível que em Judá permaneceram muitos daqueles sacerdotes e levitas


que foram desalojados dos santuários fechados e demolidos por Josias em 622
a.C. Não existem maiores provas, mas faz muito sentido supô-las (SCHWANTES,
2009, p. 27).

No fundo, quem ficou em Judá é chamado de povo da terra, ou seja, o


campesinato judaísta e outros grupos que representam o patrimônio cultural e
intelectual. Entre estes grupos, alguns estão mais próximos ao mundo camponês.
Outros se encontram na herança do templo jerusalemita. Estão vinculados às
tradições do Sião.

A Babilônia não se mantinha presente. O território não foi ocupado pelos


militares. Inicialmente foi nomeado uma espécie de governador, um representante
dos interesses babilônicos na área. O primeiro a exercer essa função foi Gedalias,
que foi assassinado (2Rs 25,22-25). E, pelo que consta, não foi substituído. Nesse
sentido, Judá ficou entregue a seu próprio destino, sem um governo oficial.

O que se observa é que a Babilônia, definitivamente, abandonou Judá.


Foi desmilitarizada e também desurbanizada. As terras que antes eram da elite
expatriada agora os mais pobres passaram a dominá-la. De que forma era
possível ter o controle disso tudo? Na época, os impérios efetivavam a exploração
de outros povos através da dominação de seus centros urbanos. Mas, na terra
de Israel já não existiam mais cidades, por que foram todas demolidas. Dessa
forma, era inviável a espoliação dos camponeses. O Estado babilônico não estava
aparelhado para cobrar qualquer tipo de tributo ou taxa das famílias camponesas
de maneira individualizada. Contudo, nessa falta de cidades em Judá, a Babilônia,
muito provavelmente, se retirou de cena. Dessa forma se chega à conclusão
de que após a desmilitarização e desurbanização, Judá teria sofrido uma forma
de retribalização. Isso porque os camponeses passaram a viver dentro de uma
estrutura baseada nos costumes e padrões clânico-tribais.

77
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

A Literatura no Período Exílico


No período exílico foi muito fértil a literatura. Por conta de todo o sofrimento
experienciado, surgiu uma vasta literatura. A seguir iremos conhecer um pouco
mais a forma como foram organizados esses escritos.

Os livros bíblicos de Deuteronômio, Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2


Reis constituem uma grande unidade literária. Podem ser considerados apenas
uma obra. Estão reunidos nessa vasta obra. Nela estão contidas diversas
coleções menores, que já existiam quando de seu surgimento. É necessário ter a
compreensão de que os autores desta obra não são considerados escritores, mas
colecionadores e compiladores de textos e pequenas coleções. É evidente que
existem várias características e critérios e observações detalhadas que fornecem
fundamentos para essa afirmativa. Vejamos algumas delas:

- O principal objetivo desta grande coleção é o de descrever a história;


- A trajetória de Israel e Judá está na base de seu interesse;
- Os livros de Samuel e Reis tematizam o surgimento, auge e declínio das
monarquias;
- Os livros anteriores funcionam como uma espécie de introdução ou
contrapontos a estes que tematizam os estados de Israel e Judá, portanto,
essa coleção pratica, quase na sua totalidade, historiografia de Estado.

A pesquisa bíblica afirma que essa obra historiográfica foi compilada mais
ou menos no ano 550 a.C., no período exílico, em Judá. Os autores desta obra
são definidos como deuteronômicos, isso porque a sua linguagem se assemelha
e estão comprometidos com a adoração exclusiva a Javé. Se tem a impressão
de que seriam os mais afetados pela tentação da idolatria (veja caps. 12-13). E
aos reis são impostas tamanhas restrições em Deuteronômio 17,14-20 que seu
governo, a rigor, é inviabilizado. O que resta são os profetas! E, de fato, este é,
para o Deuteronômio, o mediador e cumpridor predileto do projeto da unicidade
de Javé, do lugar sagrado e do povo (Dt 18, 9-22). Um profeta ideal, Moisés, é a
grande esperança!

No fundo, o livro de Deuteronômio fornece as principais lentes para se


compreender a trajetória do Estado, pois estabelece critérios para que isso ocorra.
O Estado é avaliado à luz dessa orientação/lei.

78
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

Na obra deuteronômica e a história do Estado que começa em 1 Samuel, os


compiladores impuseram os livros de Josué e Juízes. Certamente, o fizeram por
motivos específicos. Nesses livros é narrada a história de um povo que não possui
um Estado. E nisso reside, certamente, o principal interesse dos compiladores.
Se trata de testar seus critérios junto a uma experiência que não é monárquica
ou, como se costuma dizer, pré-estatal. A seguir iremos analisar a experiência do
povo de Deus nos livros de Josué e Juízes.

a) Josué

A principal temática que envolve o livro de Josué é justamente o esforço


empreendido pelas tribos israelitas na conquista e ocupação das terras. Até ter
o livro compilado da maneira como o conhecemos hoje, foi sendo construído
no ambiente familiar, trabalhadores de origem camponesa, sábios que atuavam
na corte do rei, juntamente com os sacerdotes em seus diversos santuários. As
narrativas que compõem o livro de Josué sofreram inúmeras revisões no seu
processo de contar e recontar, escrever e reescrever acontecimentos da história
de Israel e dos povos circunvizinhos.

A primeira tentativa de reunir essas tradições históricas antigas, a maioria


provinda do reino do Norte – destruído pela guerra de 722 a.C. –, aconteceu
durante a reforma empreendida pelo rei Josias (640-609 a.C.). Baseado na
promulgação do livro do Deuteronômio (12-26), na época visto como o livro da
Lei e encontrado na casa de Javé: “O sumo sacerdote Helcias disse ao secretário
Safã: ‘achei um livro da Lei na casa de Javé!’ Entregou o livro a Safã, que o leu”
(2 Rs 22,8).

Essa reforma consistiu, segundo a visão dos grupos dirigentes e proprietários


de terras instalados na cidade de Jerusalém, em buscar realizar os desejos de um
Deus chamado Javé, venerado por Israel. Tal reforma acabou por desencadear
mudanças na vida religiosa e social, entre elas a centralização do culto em
Jerusalém, a destruição dos santuários em lugares altos, a perseguição e morte
dos sacerdotes ligados a divindades estrangeiras, e a proibição de imagens e de
culto aos deuses familiares, destacando-se a oficialização da Páscoa como festa
nacional celebrada na capital Jerusalém (2 Rs 23,4-25).

As constantes guerras que são narradas no livro de Josué devem ser


entendidas somente por meio do projeto de Josias, que mantinha o desejo de
integrar o reino do Sul e o território do antigo reino do Norte numa unidade política
– Israel – em torno de uma única divindade – Javé – e sob um só comandante
– descendente davídico –, tudo isso com o objetivo de legitimar essas novas

79
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

fronteiras. À primeira vista, as guerras de Javé assustam. Isso porque não existe
ação bélica invasora alguma, conquistadora e destruidora que seja aprovada
por Deus. Os leitores deparam, isto sim, com relatos fictícios que visam animar,
integrar e determinar as ações expansionistas e controladoras da reforma
deuteronomista realizada por Josias.

Um bom exemplo dessa história narrada para exaltar Javé, o Deus de Israel,
e o povo residente em Judá, pode ser verificado na época em que os hebreus
começam a ocupar as terras da região. Em meados do séc. XII a.C., as grandes
cidades-estados cananeias já não existem. Jericó, outrora pertencente aos
cananeus, por exemplo, não passava de um monte de ruínas. Seu esplendor
tinha desaparecido fazia mais de dois séculos (Js 6).

As vitórias surpreendentes diante do forte inimigo, que se vê incapaz de


vencer um exército pequeno e despreparado que luta em nome de Javé, justificam
os esforços na ocupação e expansão das fronteiras durante o governo do rei
Josias. Israel não tem nada a temer, isso se dá porque Javé está em constante
luta a seu favor (Dt 7,21; Js 1,9). Eis os brados que encorajam e legitimam a
monarquia sediada em Jerusalém.

No fundo, toda a narrativa que compõe o livro de Josué só recebe sua forma
definitiva no período do exílio babilônio (597-536 a.C.). Por volta da metade do
ano 400 a.C., a época em que a sua redação foi finalizada, o controle exclusivo
do templo e da cidade de Jerusalém estava nas mãos dos sacerdotes. Estes, por
meio de um governo pautado pela teocracia, buscam sustentar os ideais de um
povo escolhido e protegido por Javé, agora compreendido como o único Deus (Dt
6,4-9). Na ocasião, impulsionados a seguir fielmente os estatutos apresentados
por Javé, esses sacerdotes recolhem e organizam tradições de sábios
deuteronomistas escritas na reconstrução do templo em meio a uma sociedade
que vive sob o sistema Templo-Estado.

O livro de Josué pode ser dividido da seguinte maneira:

I – Identificação do território e conquistas (1-12)


II – Distribuição das terras entre as tribos, segundo a necessidade de cada
uma (13-21)
III – Retorno das tribos e solidificação da aliança entre as 12 tribos (22)
IV – Discurso de despedida feito por Josué (23)
V – Assembleia de Siquém (24)

80
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

Em síntese, para os compiladores de nossa grande obra historiográfica, o


período em que se deu a atuação de Josué intenta realizar a “lei” mosaica do
Deuteronômio. O povo é um. É um porque todos possuem acesso à terra. E, além
de ser uma irmandade e fraternidade, é crente. Afasta de seu meio ídolos ou
falsos deuses. O tribalismo alcançou corresponder à Torah, às orientações da lei.

b) Juízes

Apresentar a consolidação dos clãs num período que é anterior ao surgimento


da monarquia é o principal objetivo do livro dos Juízes. Para que fosse possível
garantir estabilidade na posse da terra, Javé faz surgir, revestidos do seu espírito,
autênticos juízes e juízas, com a chance de conseguir estabelecer a justiça e
o direito, e saírem para combater as forças inimigas (3,10; 6,34; 11,29; 13,25;
14,6.19;15,14).

A garantia do triunfo sobre todos os inimigos, proclamada anteriormente no


livro de Josué (Js 21,43-45; 24,11-13), não é a realidade experimentada pelas
tribos neste livro dos Juízes. As cidades-estado instaladas em Hasor, Hebron,
Betel e Siquém se tornam perigosas e constante afronto para as tribos israelitas
(4,2;6,2-6;13,1). Os autores não apresentam a estabilidade final e total das 12
tribos unidas e instaladas, cada qual em seu pedaço de terra. Se percebe, isto
sim, o modo lento e gradual vivenciado por diferentes clãs na ocupação de seus
territórios. Em meio ao contexto exílico, situação de ruínas e descrédito, é que
surge a necessidade de avaliar e reler a história, no desejo de encontrar respostas
para a vexatória realidade que se abateu sobre o povo eleito de Javé (Ex 9,1; Dt
7,6;14,2). Foi preciso refletir e encontrar as causas de tanto sofrimento.

Na releitura histórica que foi feita pelos sábios deuteronomistas, a prática da


idolatria e o abandono da Torá são as causas originais dos males que assolaram
Israel e Judá. Os reis não foram capazes de assegurar a integridade diante da
proposta de Javé, e por isso os juízes são enviados na esperança de se retornar
aos caminhos de Javé (3,7-11; 3,12-15;4,1-3;6,1;8,27b.33-35;10,6-16;13,1). O
fato de suscitar tais líderes certifica essa releitura em pleno exílio babilônico.

81
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Recuperar antigas lendas e epopeias, cujo local exato de


origem não é possível identificar, foi a melhor resposta encontrada
na época da monarquia pelos sábios deuteronomistas, para criticar
as realezas que se afastaram do projeto de Javé. Essas “historietas”
selecionadas dos 12 juízes eram conhecidas em épocas anteriores ao
exílio babilônico. Lendas antigas foram relidas e revestidas com uma
mensagem legitimadora de Javé. O que antes era simples saga de
algum clã familiar, agora se torna ícone em defesa das tribos de Israel.

Ao longo da descrição de todos os Juízes existe a seguinte estrutura literária,


em forma de espiral:

Figura 5 – Estrutura literária em forma de espiral

Fonte: Adaptado de: <https://pt.wikipedia.org/wiki/espiral_de_arquimedes>. Acesso em: 9


out. 2017.

Essa dinâmica acontece no ciclo de 20, 40 e 80 anos, números esses que


acenam ao período de uma geração (3,11;5,31;8,28). A narrativa exalta a prática
de 12 juízes. São seis maiores: Otoniel, Aod, Débora-Barac, Gedeão, Jefté e
Sansão. Sobre esse grupo paira admiração por seus grandes feitos para livrar as
tribos de ameaças iminentes. Não lhes falta a coragem na luta contra cananeus,
madianitas, moabitas, amonitas e filisteus. Os seis juízes menores, Samgar,
Tola, Jair, Abesã, Elon e Abdon (3,31;10,1-5,12,8-15), esses são lembrados sem
detalhes de grandes façanhas ou atributos. Não exercem ato de heroísmo algum
em prol de alguma tribo.

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Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

Como se estrutura o livro de Juízes:

- Introdução: A difícil ocupação das tribos de Israel em terras ocupadas


pelos cananeus (1,1-2,5);
- Segunda introdução: Demonstra a alternância entre fidelidade e
infidelidade tribais, e como Deus intervém para corrigir o seu povo (2,6-
3,6);
- Segunda parte: De redação tardia, tem como objetivo principal explicar a
origem do Santuário instalado em Dã;
- Terceira parte: Narra a guerra de Galaad contra os benjaminitas e a
reconciliação final entre as duas tribos irmãs (19-21).

Uma vez que os capítulos finais do livro partem de tal premissa, não seria
de estranhar, se delineassem impasses insuperáveis. Ao assim não procederem,
testemunham que o tribalismo soube mais do que tudo superar as dificuldades
que iam surgindo. Aquele período foi muito difícil, no entanto, não faltaram
soluções e libertadores. Nela não está, pois, a razão para a criação do Estado,
ao contrário disso, nela encontramos um modelo social e teológico, o que faz com
que o Estado não seja necessário: “Gideão lhes disse: não dominarei sobre vós e
tampouco meu filho dominará sobre vós. Javé vos dominará” (Jz 8,23).

No fundo, as histórias a respeito dos juízes libertadores não preparam a


monarquia, na verdade a impedem, pois a contradizem e também a contestam!
Contudo, os juízes libertadores são um fenômeno tribal. Novamente podemos
constatar que a ordem tribal foi capaz de se aproximar e condizer às exigências
da lei deuteronômica: acabou por ser evitada a opressão do povo em meio às
múltiplas e terríveis ameaças. E foi afastada a tentação da idolatria, se bem que
esta estivesse rondando continuamente as portas das casas e das tribos.

Observamos que mesmo em meio a inúmeras dificuldades e problemas, o


tribalismo que foi narrado pelos livros de Josué e Juízes efetivamente buscou por
alcançar corresponder aos critérios estabelecidos para a vida do povo no livro de
Deuteronômio, nesta porta de entrada da grande obra historiográfica.

O apelo constante à proteção de Javé revela o desejo de manter-se fiel


a seus planos, bem como o incansável propósito de libertar e assegurar paz e
segurança para as tribos.

83
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

• Os juízes na perspectiva da lei

É possível notar, num primeiro momento, que a vida legal, ética e de


costumes do antigo Israel se inter-relacionam. Por causa dessa questão em
aberto, qualquer abordagem acerca do tema Juízes, seja ela antropológica,
sociológica ou histórica, é possível.

No antigo Israel, casos legais eram adjudicados – sentenciados – em corte


por juízes. Este fato é documentado de muitas formas e frequentemente. A
terminologia, a literatura legal, histórica e profética e até os salmos e a literatura
sapiencial mencionam juízes e suas atividades, e também narram ou retratam
disputas legais e processos em cortes.

A Bíblia Hebraica contém um número significativo de narrativas sobre


julgamentos e disputas legais e negociações. Mais proeminentes entre elas são
as histórias sobre Jacó e Labão (cf. Gn 31,25-54); Siquém e Diná (cf. Gn 34); Judá
e Tamar (cf. Gn 38); Moisés, Getro e os israelitas (cf. Ex 18,13-27); o israelita que
blasfemou (cf. Lv 24,10-23); as filhas de Salfaaf (cf. Nm 27,1-11); Acam (cf. Js 7);
a concubina de um levita (cf. Jz 19s); Boaz e Rute (cf. Rt 4); Saul e Jônatas (cf.
1Sm 13 et. seq); Saul e Samuel (cf. 1Sm 15); Saul e Davi (cf. 1Sm 24 e 26); Davi
e Natã (cf. 2Sm 12); Amom-Tamar e Davi-Absalão (cf. 2Sm 13 et. seq.); Salomão
e as duas mulheres (cf. 1Rs 3,16-28); Roboão e as tribos do Norte (cf. 1Rs 12); a
vinha de Nabot (cf. 1Rs 21); o julgamento de Jeremias (cf. Jr 26) e outras.

É certo que nenhuma dessas narrativas tenha sido escrita na forma de um


processo de protocolo de julgamentos e nem por causa de tal protocolo. No
fundo, foram escritas por causa de intenções diferentes e variadas. Refletem
os processos de corte apenas parcial e indiretamente. De qualquer forma,
pressupõem que seu escritor acreditasse na existência de tais processos jurídicos
e uma correspondente compreensão da parte de seus leitores.

O fórum mais comum era a família ou clã, no qual o pai era o senhor e chefe
legal dotado do direito e obrigação para adjudicar disputas e violações entre
familiares, inclusive a execução de punição, por exemplo, o castigo de um filho
desobediente (cf. Dt 21,18), e em tempos muitos antigos, a pena de morte, como
na história de Judá-Tamar (cf. Gn 38). Nesse sentido, Abraão restaurou a justiça
na ocasião quando Sara foi tratada com desprezo pela sua serva Agar e apelou
para o marido para retificar a injustiça contra ela (cf. Gn 16,1-6).

Outro ambiente de corte era o fórum da aldeia ou pequena cidade. Seu local
era a porta da cidade e o judiciário era formado pelos anciãos do lugar. Esses
anciãos funcionavam como testemunhas em negociações como no casamento de
Rute e Boaz. Arbitravam disputas entre litigantes, como se percebe por um dos
sentidos do vocábulo hebraico para julgar, a saber arbitrar e por outras evidências.

84
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

O sistema de tribunais locais trouxe uma extensão do envolvimento legal


em comparação com a lei tribal. Nos tribunais locais, todos os cidadãos e não
apenas os anciãos tinham o direito de participar ativamente no julgamento e no
veredicto. Nesse sentido, todos os cidadãos eram, por conseguinte, juridicamente
competentes. Não significa que todos os participantes em potencial tivessem
que estar ativamente envolvidos em qualquer caso particular. Do ponto de vista
prático, alguma aceleração era necessária para participar de tais ensaios, que
não era um fardo, mas um privilégio: “Que os anciãos haviam deixado suas
sessões no portão” (Lm 5,14). Todo este capítulo de Lm 5 descreve a dramática
situação em que estavam vivendo após a conquista e destruição de Jerusalém e
seus arredores em 587 a.C. É significativo que, neste contexto, quando se fala de
idosos, se deve mencionar a assembleia no portão. O direito supremo, no qual
se experimenta o orgulho e o valor de um homem saudável, maior de idade, pelo
fato de possuir sua própria propriedade, é reconhecido por seus companheiros,
e possui o direito de participar e de falar na Assembleia legal. É o ponto de
encontro dos que realmente são importantes, a elite. Foi uma das dificuldades
e desvantagens do estrangeiro não possuir esse privilégio. Mulheres, crianças e
escravos também foram excluídos de qualquer parte ativa em julgamentos legais.
Portanto, as Leis da Bíblia Hebraica enfatizam outra vez o dever de atribuir direitos
a essas pessoas. Cita-se o seguinte texto a título de exemplo: “Não privarás
estrangeiros e órfãos de justiça, nem tomar o manto de uma viúva em penhor” Dt
24,17 (BRENNER, 2003, p. 216).

O livro de Rute 4,1-2 apresenta uma imagem gráfica de como um fórum era
constituído no portão:

Booz subiu à porta da cidade e aí sentou-se. E quando passou


o protetor do qual tinha falado, Booz o chamou: ‘Ei, fulano,
venha sentar-se aqui’. O homem se aproximou e sentou-se.
Booz tomou consigo dez anciãos da cidade, e lhes disse:
‘sentem-se aqui’.

Eles se assentaram. O caso particular relatado em Rute 4 não interessa


tanto, mas o procedimento geral adotado, que para montar um fórum, o indivíduo
sentou-se no portão e chamou os transeuntes. Ele os chamou para sentarem-se
no portão, sem nenhuma causa à vista. Em Rute 4, dez anciãos são mencionados,
relatado por Booz que podem estar relacionados à função de juízes.

Com relação aos âmbitos sagrados dos santuários, certamente dois dos
templos de Jerusalém eram sujeitos às leis regulamentadas por uma supervisão,
execução e tratamento de casos de violação. Esta jurisdição estava nas mãos
dos sacerdotes, e posteriormente em casos de santuários reais, como Betel (cf.
Am 7,10-17) e no primeiro templo, nas mãos dos reis. A assim chamada reforma
cúltica de Josias (cf. 2Rs 23) é um exemplo marcante.

85
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

O papel dos sacerdotes de longe excedia sua autoridade jurisdicional sobre o


âmbito dos santuários. Penetrava profundamente na vida do povo. Decidiam sobre o
puro e o impuro, isto é, os âmbitos dos tabus na vida diária. Presidiam os julgamentos
concernentes ao adultério (cf. Nm 5) e presidiam, juntamente com outros, julgamentos
de queixas, ou seja, indivíduos que sob processo ou ameaça de vida tinham que
submeter seus casos à adjudicação cúltica. Ministravam as liturgias à entrada do
templo, que tratavam das adjudicações das condições éticas para a admissão ao
santuário (cf. Sl 15; 24). Adjudicavam litigações no santuário que de outra forma não
poderiam ser resolvidas (cf. Ex 22,9), desempenhavam um papel que julgava as
pessoas acusadas de qualquer tipo de crime. Essa lista parece não estar completa.
Apenas demonstra que a religião de Javé de Israel era, institucionalmente, uma parte
intrínseca e até controladora de intencionalidade teocrática da vida societária de
Israel. A autoridade jurisdicional dos santuários e dos sacerdotes, os quais estavam
primordialmente preocupados com os afazeres daquela religião, compusera um
elemento proeminente das instituições públicas em geral. Essa autoridade era uma
parte da Lei da terra e não uma administração religiosa, separada dela e sob a Lei da
terra. A Lei e a justiça não foram inventadas pelos profetas.

Agora, chegando aos processos jurídicos que não estavam relacionados ao


culto, é possível perceber a diferença entre os casos civis e criminais. Quando
nenhum ato criminoso envolvia decisão legal, era feita basicamente por meio
de acordo entre as partes envolvidas, às vezes, na presença de testemunhas,
como mostra a história do casamento de Rute. Um acordo direto não poderia ser
alcançado, ou seja, essa situação fazia que se recorresse à corte, daí entram a
figura do juiz, ou a corte dos anciãos, que arbitravam para propor uma solução que
não era executada legalmente, mas tinha que ser implementada pelas próprias
partes interessadas (VAUX, 2003, p. 186-189).

A questão da execução legal de julgamentos torna-se mais problemática


quando em casos, por exemplo, de roubo, desfalque, danos causados por
negligência, estupro, assassínio, não apenas compensação, como também multa
ou pena eram estipuladas. A execução de tais julgamentos era, grosso modo,
também deixada ao ganhador da causa, mas é pouco provável que a comunidade
não tivesse se interessado pelo cumprimento dos seus julgamentos ou não tivesse
acesso a protestos contra o não cumprimento.

Em casos de assassinato, era do vingador de sangue, em primeiro lugar,


apoiado pelos anciãos de uma cidade, a tarefa de punir o assassino (cf. Dt
19,11-13). Homicidas involuntários tinham a chance de serem protegidos em
cidade de refúgio. Em outros tipos de crimes capitais, pelo menos nas principais
comunidades locais, e possivelmente nos clãs que existiam antes delas, e sem
dúvida, as administrações reais executavam seus julgamentos por eles mesmos

86
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

(Dt 19,25-21). Este tipo de execução de julgamentos é provavelmente válido para


a expulsão de alguém da comunidade ou a expulsão da congregação cúltica, o
banimento, e, acima de tudo, para a pena de morte (cf. Lv 24,10-23; Js 7; 1Rs
2,13; 25,21; Dt 21,18-21).

Na história da pesquisa, essas legislações com as mesmas características


de Ex 21,22-25 têm criado um problema ao dizer que estas leis são decisões de
costume. De fato, elas são baseadas em decisões que refletem certo costume
jurídico. Esse fato, porém, não significa que são formuladas na forma verdadeira
de decisões pronunciadas ao final dos julgamentos. Fala-se de duas formas
diferentes de expressão legal. Ambas declaram ou, pelo menos, pressupõem a
correspondência de caso e consequência. Uma delas, porém, relata um caso que
já aconteceu e estipula a consequência a ser implementada no futuro, mesmo que
a sequência das duas declarações possa ser alternada. Diz, como no julgamento
contra Jeremias: “Este homem não merece a morte, pois ele falou de Javé nosso
Deus” (Jr 26,16). Esse tipo de expressão é falado depois de uma ação passada e
antes da consequência estipulada para o futuro (SCHULTZ, 1984).

Por contraste, outro tipo de expressão diz o seguinte: se você fizer isso, o
seguinte acontecerá. Esse tipo é – em formas variáveis – falado ou escrito não
apenas antes da consequência estipulada, mas também antes da ação descrita.
Esse tipo de expressão é claramente prescritiva, ou legislativa na sua natureza,
enquanto o outro é claramente adjudicatório na Bíblia Hebraica. Nesse sentido,
deve ficar claro que o caso de Lei não é legislativo, porque se apoia na adjudicação
de casos baseados em costume. Ambos os tipos de expressão, o adjudicatório e
o legislativo, são partes do caso de lei e, por sua vez, se alicerçam principalmente
em lei de costume.

Esta distinção significa que se deve examinar mais especificamente as leis


veterotestamentárias como legislação e os legisladores que estão por trás dela.
Essas leis frequentemente documentadas cobrem um largo leque de aspectos
substantivos. Em algumas situações também podem representar os trâmites
jurídicos, como em Dt 17,2-6 no caso de suspeita de apostasia. Aqui o boato
deveria ser investigado diligentemente, a verdade estabelecida claramente na
base de, ao menos, duas ou três testemunhas, e se a prova for estabelecida,
a pessoa condenada deveria ser levada à porta da cidade e, lá, executada por
apedrejamento, o qual deveria ser iniciado pelas próprias testemunhas. Em Nm 5
o autor apresenta trâmites jurídicos concernentes ao julgamento de uma mulher
suspeita de adultério. Devem-se considerar as prescrições para os trâmites dos
rituais de sacrifícios em Lv 1-7 como processos jurídicos pertencentes ao âmbito
do culto e tratando da eliminação de culpa compreendida do ponto de vista
forense, ou seja, desvendamento de crimes (SCHULTZ, 1984).

87
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Essas leis cobrem as áreas daquilo que se pode chamar de Lei primária
e reparadora. Na Lei primária a declaração do caso descreve relacionamento
legal, enquanto a declaração das consequências prescreve os termos desse
relacionamento, isto é, os direitos e deveres antes da violação. Por exemplo (Ex
21, 22), diz, “Quando homens brigarem” (relacionamento legal) “mas se houver
dano” (em termos daquele relacionamento). No caso da lei reparadora, a violação
hipoteticamente declarada é seguida por uma definição de reparação.

c) Rute

A narrativa de Rute vem seguida do livro de Juízes. Dessa forma procedeu a


tradução grega do Antigo Testamento. Na verdade, no texto em hebraico o livro de
Rute segue os Provérbios. No entanto, os tradutores gregos tiveram boa intuição
ao transladarem este livro como anexo ao de Juízes, pois também Rute celebra o
tribalismo e nele, em especial, a capacidade organizativa das mulheres. Os usos
e costumes tribais – se bem que também limitados – viabilizam a conquista do
pão e a continuidade da vida. Enquanto os estados não garantiam nem mesmo
um mínimo às viúvas, a vida clânica garante espaços até para uma estrangeira,
como é o caso de Rute.

A narrativa de Rute trata de uma novela em torno da emigração de uma


família de Belém para Moab e da volta para Belém. Eis os principais temas que
perpassam a novela de Rute:

- direito de respiga;
- resgate da terra;
- casamento misto
- Universalismos.

É possível que o episódio de Rute tenha sido escrito no período de Esdras e


Neemias, em torno dos anos 450-350 a.C.

No período em que os persas dão fim ao Império da Babilônia, em 538


a.C. A estratégia do novo dominador é permitir a liberdade religiosa às nações
subjugadas, garantindo para si a submissão política (cf. Esd 7,25-26). Os persas
incentivam a reconstrução do templo em Judá, que foi concluída em torno de 515
a.C., sob protesto de muitos grupos (cf. Esd 4,1-5). Alguns anos mais tarde, os
persas enviam Neemias e Esdras (450-350 a.C.), que empreendem importantes
reformas para manter a identidade e coesão do povo no pós-exílio, contudo, a
consolidação da teologia da retribuição:

88
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

Eu sou Javé, e não mudo. Vocês, ao contrário, filhos de Jacó,


vocês não se definem. Desde o tempo de seus pais, vocês
se afastam de meus estatutos e não guardam meus decretos.
Voltem para mim, que eu também voltarei para vocês! – Diz
Javé dos exércitos. Mas vocês perguntam: ‘Em que precisamos
voltar? Pode um homem enganar a Deus?’ Pois vocês me
enganaram! Vocês me perguntam: ‘Em que te enganamos?’
No dízimo e na contribuição. Vocês estão ameaçados de
maldição, e mesmo assim estão me enganando, vocês e
a nação inteira! Tragam o dízimo completo para o cofre do
Templo, para que haja alimento em meu Templo. Façam essa
experiência comigo – diz Javé dos Exércitos. Vocês hão de ver,
então, se não abro as comportas do céu, se não derramo sobre
vocês minhas bênçãos de fartura. Acabarei com as pragas da
plantação, para que elas não destruam os frutos da terra nem
devorem a vinha do campo – diz Javé dos exércitos. Todas as
nações chamarão vocês de felizes, porque vocês hão de ser
uma terra de delícias – diz Javé dos exércitos (Ml 3,6-21).

Tanto a teologia da retribuição, de acordo com o texto acima, e também a


lei da pureza (cf. Lv 12) provocam exclusões de diversos grupos considerados
impuros: estrangeiros (especialmente mulheres), doentes, pobres e portadores de
deficiência física. Nesse contexto é que surge o livro de Rute.

No livro se mostra que a pertença ao povo não seja restrita apenas à


nacionalidade judaica e propõe a solidariedade como valor fundamental na
reconstrução do país. Reivindica alguns direitos dos pobres: a lei da respiga, a
proteção da terra e o levirato. No fundo, se trata de um protesto contra a política
pós-exílica de isolamento social e a total eliminação dos estrangeiros, defendida
pela teocracia de Jerusalém. Ao colocar uma mulher moabita como ancestral de
Davi e modelo de solidariedade, o livro se opõe à proibição de matrimônios mistos
(Ml 2,10-16; Ne 13,23-27). A história de Rute se apresenta em quatro cenas
principais:

- O retorno de Noemi para Belém e a opção de Rute por Noemi (Cap. 1);
- Rute nos campos de Booz e seu encontro com ele (Cap. 2);
- Booz e Rute na eira (Cap. 3);
- O resgate em favor de Noemi em Belém (Cap. 4)

Enfim, no livro de Rute, a salvação se concretiza mediada pela solidariedade


e a aliança entre os grupos minoritários.

89
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

d) Samuel e Reis

No livro de 1Sm se dá início à temática do Estado. Ainda que o Estado não


seja o foco principal dos livros em questão, seu assunto se estende até 2Rs. Não se
pode negar que o Estado é um tema relevante da obra deuteronomística, superado
apenas pela profecia. Esta é a medida na sociedade, inclusive de reis e estado.

O Estado visto a partir da ótica profética não é visto de maneira positiva. Se


verifica em 1Sm 2, no cântico de Ana. Fala contra os fortes e poderosos. Anuncia
a derrota do arco, o mesmo que o exército:

Então Ana rezou esta oração: Meu coração se alegra com


Javé, em Deus me sinto cheia de força. Agora, que eu possa
responder aos meus inimigos, pois me sinto feliz com tua
salvação. Ninguém é santo como Javé, não existe rocha como
o nosso Deus. Não multipliquem palavras soberbas, nem saia
arrogância da boca de vocês, porque Javé é um Deus que sabe,
é ele quem pesa as ações. O arco dos poderosos é quebrado,
e os fracos são fortalecidos, enquanto os famintos engordam
despojos. A mulher estéril dá à luz sete filhos, a mãe de muitos
filhos se esgota. Javé faz morrer e faz viver, faz descer o
abismo e dele subir. Javé torna pobre e torna rico, ele humilha
e também levanta. Ele ergue da poeira o fraco e tira do lixo o
indigente, fazendo-os sentar-se com os príncipes e herdar um
trono glorioso; pois a Javé pertencem as colunas da terra, e
sobre elas ele assentou o mundo. Ele guarda o passo de seus
fiéis, enquanto os injustos perecem nas trevas, pois não é pela
força que o homem triunfa. Javé derrota seus adversários, o
altíssimo troveja lá do céu. Javé julga os confins da terra. Ele
dá força ao seu rei e aumenta o poder do seu ungido.

Ora, o Estado é a história dos fortes, poderosos, e dos arcos em suas vitórias
contra os fracos e em sua espoliação dos pobres. O direito do rei é, de acordo
com 1Sm 8,10-18, a exploração nua e crua de seus súditos, portanto, conta-se a
história do Estado para negar a validade da exploração.

No entanto, se guarda uma esperança. Já podemos constatá-la no mesmo


Cântico de Ana. O seu último versículo enaltece a utopia do Messias: “Javé julga
as extremidades da terra, dá força ao seu rei, e exalta o poder do seu
Conta-se, de uma
maneira profética, a ungido” (1Sm 2,10).
história do Estado,
seus trágicos Conta-se, de uma maneira profética, a história do Estado, seus
desmandos, para
fazer crescer a trágicos desmandos, para fazer crescer a esperança pelo Messias.
esperança pelo A superação messiânica do Estado – marca as pautas e estabelece
Messias. A superação
messiânica do Estado os trilhos. É uma projeção avaliativa do que lhe segue. Tem, por
– marca as pautas e conseguinte, função interpretativa e hermenêutica em relação ao todo
estabelece os trilhos. dos livros de Samuel e Reis.

90
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

Nesse sentido se questiona o porquê de a monarquia ser denunciada,


rejeitada, desde o seu princípio. A primeira e principal denúncia profética é que o
reinado promove outros deuses, isso se relaciona aos estados de Israel e Judá,
pois encorajaram para a idolatria que dizia respeito a outras divindades. Isso
contradiz a exigência central do Deuteronômio, que é a de justamente negar esta
possibilidade. De acordo com o autor Mario Liverani (2008, p. 184):

É provável, portanto, que Yahweh fosse o deus ‘nacional’ já


no século IX, mas que seu culto levasse em consideração
a presença de outras divindades (até oficialmente aceitas),
que se desenvolvesse em formas que o posterior rigorismo
julgará escandalosas e que tivesse com o culto e o sacerdócio
(profetas, inclusive) de Ba’al um conflito que será acentuado,
e muito, pelas releituras posteriores. É indicativo o fato de as
profecias do javista Amós sobre a ruína iminente de Israel
insistirem sobretudo nas culpas socioeconômicas e reservarem
um peso muito modesto às culpas de tipo religioso e cultual (o
culto materialista, feito de festas e sacrifícios, músicas e ídolos:
Am 5,21-27). Somente de passagem se citam os santuários de
Bet-El e Gilgal (3,14,4,4), ao passo que a Yahweh se reserva
um papel de restauração da prosperidade perdida, que é
evidentemente um acréscimo posterior” [...]. As divindades
mais conhecidas são Yahweh para Judá e para Israel, Kemosh
para Mo’ab, Qaus para Edom, Milkom para Amon, Hadad para
Damasco, Baal/Melqart para Tiro, todos em plena atuação nos
séculos IX e VIII, antes mesmo que, de modo predominante,
surja de fora a figura do deus nacional Assur. Naturalmente
subsiste a legitimidade de procurar as mais antigas origens
para cada um deles, e em particular para Yahweh, mas o papel
‘nacional’ só pode ter se tornado consistente numa época em
que a identificação entre Deus e Estado étnico era plenamente
operativa no plano político e militar.

O mal começa desde Saul, isso porque se atreve a oferecer holocaustos


(1Sm 13,8-15). Recorre a práticas cultuais proibidas em sua consulta à mulher de
Em-Dor (1Sm 28). Salomão introduz altares a outras divindades (1Rs 11), no que
é seguido pela maior parte de seus sucessores. Jeroboão I, o fundador do reino
de Israel/norte, fez da promoção da idolatria um projeto oficial (1Rs 12,26-33). Por
causa da destruição deste Israel, os autores anotam como motivo: “Tal sucedeu
porque os filhos de Israel pecaram contra Javé, seu Deus... e temeram a outros
deuses” (2 Rs 17,7).

A seguir vamos conhecer um pouco mais sobre uma divindade que foi muito
protestada pelo próprio Javé, Baal.

91
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Os autores bíblicos não tinham o interesse de ensinar a religião


Os autores bíblicos
não tinham o dos cananeus, por causa disso, se sabe muito mais a respeito do papel,
interesse de ensinar das consortes e do culto de Baal; a partir da literatura extrabíblica, no
a religião dos
cananeus, por causa entanto, a figura de Baal apresentada na Bíblia Hebraica corresponde
disso, se sabe muito aos textos extrabíblicos. O autor Thomas Entrich (s.d., p. 1) detalha
mais a respeito do ainda mais essa realidade:
papel, das consortes
e do culto de Baal;
a partir da literatura A ambiguidade entre uma assembleia politeísta de deuses e
extrabíblica um deus monoteísta sempre esteve no centro da religião do
Antigo Oriente Próximo e por muito tempo a Bíblia Hebraica
era a única fonte literária existente. Desde o início do Século
XX, escavações em Ugarit (Ras Shamra), Byblos, Hazor ou
Mari derramaram uma nova luz sobre as antigas religiões
orientais. A montagem de deuses nos mitos do povo semi-
norte-americano provou ser um sistema complexo de deuses
e deusas, tendo cada um deles seu respectivo lugar e função.
Este sistema foi baseado em um ciclo de fertilidade cósmica
em torno dos deuses 'El and Ba'al, as deusas' Atirat ('Ashera),
'Anat e Attart ('Astart) e outros deuses como Môt, Yam ou Kôtar.

Baal também foi chamado Haddu (=Hadade), um deus que está acima de
todo deus da tempestade que dá a chuva suave e que faz renascer a vegetação.
Nesse sentido, os anos de seca eram atribuídos ao seu cativeiro temporário ou
até mesmo a sua morte. No entanto, em sua reivindicação, campos, rebanhos e
famílias tornavam-se produtivos.

Para além disso, Baal era considerado um deus da guerra e uma divindade
ligada à fertilidade que se une a Anate, mais tarde igualada a Astarte. Por meio
de um recital mítico se trazia de volta a vida na festa de outono do ano novo e
também por intermédio do casamento sagrado, representado no culto pelo rei, a
rainha e uma sacerdotisa. Era por meio desses rituais que os semitas acreditavam
assegurar a fertilidade da terra. Esse ritual era comum na Babilônia, mas pouco
atestado, não de forma clara, em Canaã.

Durante o período dos juízes, Israel sucumbiu a este culto, visto como
contagioso (cf. Jz 2,11; 6,25), e tinha de sofrer o livramento de Javé, evitando
assim graves consequências. Foi na dinastia de Omri que o culto a Baal se tornou
a religião oficial do Reino do Norte (cf. 1Rs 16,31). Nesse sentido, pode ser que
os milagres de Israel feitos por Eliseu e Elias foram polêmicos a favor de Deus,
condenando os poderes atribuídos a Baal, divindade pagã da natureza, o fogo (cf.
1Rs 18,17; 2Rs 1,9-16), chuva (cf. 1Rs 17,1; 18,41-46), alimento (cf. 1Rs 17,1-6,
8-16; 2Rs 4,1), crianças (cf. 2Rs 4,14-17) e revivificação (1Rs 17,17-23; 2Rs 4,18-
37; 13,20-22). No entanto, o culto a Baal não foi suficiente para livrar a terra do
culto degradado e ainda ocorreu o cativeiro do Reino do Norte, que culminou em
muitas disputas políticas e destruições, como demonstra o livro de Oseias.

92
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

Oseias descreve Israel como aquele que recebeu as bênçãos provindas do


cereal e do óleo da parte de Javé:

Ela não reconheceu que era eu quem lhe dava o trigo, o vinho
e o azeite; quem lhe multiplicava a prata e o ouro, que eles
usavam para fazer um ba’al” Por isso, retomarei meu trigo e
meu vinho na época da safra. Retomarei minha lã e meu linho,
que cobriam sua nudez (Os 2,10-11).

Oseias se utiliza do termo Baal não apenas relacionado à divindade cananeia,


mas é usado no sentido figurado, de Deus como o marido de Israel. Israel chama
Deus de seu marido: “Acontecerá naquele dia – oráculo de Javé – que você me
chamará ‘meu marido’ e não mais ‘meu Baal’. Vou tirar de seus lábios o nome dos
baais e esses nomes nunca mais serão lembrados” (cf. Os 2,18-19).

Mas, diante de tanta informação, nem devemos buscar os alvos e as


esperanças mais expressivas dentro ou no final da obra deuteronomística. Mais
provável é que a devemos encontrar no começo da obra. Aliás, é no começo que,
pela Bíblia afora, se encontram as grandes esperanças.

É mencionado no início da obra deuteronomística, diz o alvo, bem como os


caminhos de Israel. O rei não é colocado como objetivo principal, pois os caminhos
de Israel não se fizeram por meio da monarquia, nem em seus começos mais
distantes, em Gn 1-11, e tampouco em seus séculos nas terras da promessa.

Na narrativa é possível reconhecer duas afirmações fundantes:


uma afirmação teológico-histórica: a terra é dádiva, é doação de
Deus (Js 1-12). Deus a deu aos mais empobrecidos, os que não
tinham a menor possibilidade de vencer os cananeus diante de seus
poderosos exércitos e suas enormes cidades. A terra, em que estão,
possui sua origem no próprio Javé. Por outro lado, a segunda metade
do livro de Josué (13-24) informa que a mediação de acesso à terra
são condições sociais clânicas. Se tem um lugar ao solo, sendo parte
de família e tribo. Eis a utopia de Israel juntamente com sua luta
cotidiana. Se possui terra é porque faz parte de um povo libertador.
Esta é a trajetória que Israel precisa retomar.

93
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Recapitulando:

Os livros de Deuteronômio, Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis


constituem um só conjunto literário: a obra historiográfica deuteronomística. Esta
obra foi composta por volta de 550, no âmbito do campesinato remanescente em
Judá, sob a coordenação de grupos levítico-proféticos.

Critério de sua historiografia é a lei do Deuteronômio: um só Deus, um só


lugar cúltico, um só povo. Os livros de Josué e Juízes correspondem a estas
exigências. A libertação da terra (Josué) e a defesa da liberdade do povo (juízes)
condizem com os critérios.

Por fim, verificamos que os conteúdos da literatura bíblica em questão se


ajustam, muito bem, às condições históricas do campesinato judaísta retribalizado
por ocasião da desmilitarização e desurbanização, promovidas pelos babilônios
na Palestina, em 597-587 a.C. E, além disso, as propostas da obra se encaixam
dentro do que conhecemos de o povo da terra do VI e VII séculos.

O Fim do Exílio

O exílio teve seu fim no ano de 539 a.C. Neste ano a Babilônia foi julgada
definitivamente pelo Império Persa. O rei persa era Ciro e foi triunfalmente recebido,
em especial na capital do Império Babilônico. Novos tempos iniciavam. Sob suas
condições vieram a se concretizar os projetos elaborados por remanescentes e
exilados. Alguns. Outros foram refutados. Outros, enfim, foram remodelados.

Nesse item não pretendemos esboçar de maneira mais detalhada a trajetória


histórica do pós-exílio, mas assinalar as alterações mais imediatas provocadas
pela grande vitória do Império Persa.

Vimos no item anterior que a maioria do povo de Javé permaneceu em Judá,


durante o exílio babilônico. A deportação não passava de uma minoria, e, no
entanto, há fortes indícios de que a maior parte desta minoria estava acostumada
com as exigências vividas na Mesopotâmia. O profeta Jeremias demonstra a
interação com a sociedade babilônica ao escrever sua carta aos exilados:

94
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

Assim diz Javé dos exércitos, o Deus de Israel, a todo o povo


que levei de Jerusalém para o exílio na Babilônia: construam
casas para vocês habitarem. Plantem pomares para comerem
de suas frutas. Casem-se, gerem filhos e filhas, arranjem
esposas para seus filhos e maridos para suas filhas, e que
eles também gerem filhos e filhas. Multipliquem-se aí, não
diminuam. Busquem a paz da cidade para onde eu os exilei
e rezem a Javé por ela, pois a paz desse lugar será a paz de
vocês. Assim diz Javé dos exércitos, o Deus de Israel: Não se
deixem enganar pelos profetas que existem no meio de vocês.
Não escutem os adivinhos nem os sonhos que eles dizem
que têm, pois eles profetizam mentiras em meu nome. Eu não
enviei nenhum deles, oráculo de Javé (Jr 29, 4-9).

Os que para Segundo Isaías são os desanimados (Is 40,27;49,14) hão de ser
os que se integraram ao mundo mesopotâmico. Não pensam em regressar. Aliás,
quando após 539 a.C. efetivamente houve possibilidades para o retorno, poucos
se utilizaram dessa liberdade dada pelo Império Persa. Pelo que nos conta –
mesmo com os relatos de Esdras (cf. Esd 7) – poucas pessoas retornaram à
Palestina. Portanto, além de serem uma minoria, os exilados não aderiram em
bloco às propostas de seus profetas Ezequiel e Deutero-Isaías.

Apesar dessas informações, os exilados é que fazem história! A interpretação


que se impôs segue na perspectiva dos deportados. As narrativas nos dão a
impressão de que toda a população de Judá teria sido levada à Babilônia e, após
539 a.C, a maioria dos exilados teria retornado. Quantitativamente, os deportados
teriam sido a totalidade, e ainda, eles também seriam qualitativamente a parcela
mais significativa. Dessa forma se entende como resto santo, purificado pelo
exílio babilônico. Essa é a visão do cronista (1 e 2 Crônicas, Esdras e Neemias). É
a que se impôs na historiografia!

95
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Atividade de Estudos:

1) Leia o artigo de SANTOS Michel. Junto aos Rios da Babilônia: Um


estudo acerca da história de Israel no exílio. Disponível em: <http://
www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2011/Relatorios/CTCH/TEO/
TEO-Michel%20Alves%20dos%20Santos.pdf>.

Aponte as principais características desse período, bem como


as influências históricas na literatura, que culminaram em muitas
narrativas bíblicas.
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A Lei e o Templo

A chamada reforma de Josias em 622 a.C. dera primazia ao Templo de Je-


rusalém. Tornou-se o símbolo central. Exilados e remanescentes haviam passado
pela experiência da reforma josiânica. Por isso não é nenhum acaso que o templo
jerusalemita ocupe um lugar central em seus propósitos. Alguns círculos dentre
os próprios remanescentes cultuavam o local sagrado, mesmo que estivesse em
ruínas, após 587 a.C. Lamentações e Abdias possuíam o seu lugar vivencial junto
a estas ruínas. Contudo, este grupo de remanescentes simpáticos ao Sião era
minoritário. Boa parte dos judaítas não tinha preocupação com o santuário. Os
seus símbolos eram a terra e um novo rei. Estes grupos criaram os textos mais
significativos em Judá: a grande obra historiográfica deuteronomística e os 52
capítulos do livro de Jeremias.

Em meio aos deportados a posição era bem mais favorável ao templo. A


narrativa de Ezequiel demonstra essa realidade. Ela também marca presença em
Segundo Isaías, ainda que aí não seja tão central. É bom reiterar que entre os
profetas exilados também existiam outras posições, como as que estão expressas
na visão do vale de ossos (cf. Ez 37) e nos cânticos do servo sofredor. Nem
mesmo entre os exilados está concentrado em Sião.

96
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

O papel dos sacerdotes de longe excedia sua autoridade jurisdicional sobre


o âmbito dos santuários. Penetrava profundamente na vida do povo. Decidiam
sobre o puro e o impuro, isto é, os âmbitos dos tabus na vida diária. Presidiam os
julgamentos concernentes ao adultério (cf. Nm 5) e presidiam, juntamente com
outros, julgamentos de queixas, ou seja, indivíduos que sob processo ou ameaça
de vida tinham que submeter seus casos à adjudicação cúltica. Ministravam as
liturgias à entrada do templo, que tratavam das adjudicações das condições éticas
para a admissão ao santuário (cf. Sl 15; 24). Adjudicavam litigações no santuário
que de outra forma não poderiam ser resolvidas (cf. Ex 22,9), desempenhavam
um papel que julgava as pessoas acusadas de qualquer tipo de crime. Essa lista
parece não estar completa. Apenas demonstra que a religião de Javé de Israel era,
institucionalmente, uma parte intrínseca e até controladora de intencionalidade
teocrática da vida societária de Israel. A autoridade jurisdicional dos santuários e
dos sacerdotes, os quais estavam primordialmente preocupados com os afazeres
daquela religião, constituiu um elemento proeminente das instituições públicas em
geral. Essa autoridade era uma parte da Lei da terra e não uma administração
religiosa, separada dela e sob a Lei da terra. A Lei e a justiça não foram inventadas
pelos profetas.

Agora, chegando aos processos jurídicos que não estavam relacionados ao


culto é possível perceber a diferença entre os casos civis e criminais. Quando
nenhum ato criminoso envolvia decisão legal, era feita basicamente por meio
de acordo entre as partes envolvidas, às vezes na presença de testemunhas,
como mostra a história do casamento de Rute. Um acordo direto não poderia ser
alcançado, ou seja, essa situação fazia que se recorresse à corte, daí entram a
figura do juiz, ou a corte dos anciãos, que arbitravam para propor uma solução que
não era executada legalmente, mas tinha que ser implementada pelas próprias
partes interessadas (SCHULTZ, 1984, p. 100).

A questão da execução legal de julgamentos torna-se mais problemática


quando em casos, por exemplo, de roubo, desfalque, danos causados por
negligência, estupro, assassínio, não apenas compensação, como também multa
ou pena eram estipuladas. A execução de tais julgamentos era, a grosso modo,
também deixada ao ganhador da causa, mas é pouco provável que a comunidade
não tivesse se interessado pelo cumprimento dos seus julgamentos ou não tivesse
acesso a protestos contra o não cumprimento.

Em casos de assassinato, era do vingador de sangue, em primeiro lugar,


apoiado pelos anciãos de uma cidade, a tarefa de punir o assassino (cf. Dt
19,11-13). Homicidas involuntários tinham a chance de serem protegidos em
cidade de refúgio. Em outros tipos de crimes capitais, pelo menos nas principais
comunidades locais e possivelmente nos clãs que existiam antes delas, e sem

97
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

dúvida, as administrações reais executavam seus julgamentos por eles mesmos


(Dt 19,25-21). Este tipo de execução de julgamentos é provavelmente válido para
a expulsão de alguém da comunidade ou a expulsão da congregação cúltica, o
banimento, e, acima de tudo, para a pena de morte (cf. Lv 24,10-23; Js 7; 1Rs
2,13; 25,21; Dt 21,18-21).

De acordo com Schultz, as legislações com as mesmas características


de Ex 21,22-25, criaram um problema ao dizer que estas leis são decisões de
costume. De fato, elas são baseadas em decisões que refletem certo costume
jurídico. Esse fato, porém, não significa que são formuladas na forma verdadeira
de decisões pronunciadas ao final dos julgamentos. Fala-se de duas formas
diferentes de expressão legal. Ambas declaram ou, pelo menos, pressupõem a
correspondência de caso e consequência. Uma delas, porém, relata um caso que
já aconteceu e estipula a consequência a ser implementada no futuro, mesmo que
a sequência das duas declarações possa ser alternada. Diz, como no julgamento
contra Jeremias: “Este homem não merece a morte, pois ele falou de Javé nosso
Deus” (Jr 26,16). Esse tipo de expressão é falado depois de uma ação passada e
antes da consequência estipulada para o futuro (SCHULTZ, 1984, p. 100).

Por contraste, outro tipo de expressão diz o seguinte: se você fizer isso, o
seguinte acontecerá. Esse tipo é – em formas variáveis – falado ou escrito não
apenas antes da consequência estipulada, mas também antes da ação descrita.
Esse tipo de expressão é claramente prescritiva, ou legislativa, em natureza,
enquanto o outro é claramente adjudicatório na Bíblia Hebraica. Nesse sentido,
deve ficar claro que o caso de Lei não é não legislativo porque se apoia na
adjudicação de casos baseados em costume. Ambos os tipos de expressão, o
adjudicatório e o legislativo, são partes do caso de Lei e, por sua vez, se alicerçam
principalmente em Lei de costume.

Esta distinção significa que se deve examinar mais especificamente as leis


veterotestamentárias como legislação e os legisladores que estão por trás dela.
Essas leis frequentemente documentadas cobrem um largo leque de aspectos
substantivos. Em algumas situações também podem representar os trâmites
jurídicos, como em Dt 17,2-6 no caso de suspeita de apostasia. Aqui o boato
deveria ser investigado diligentemente, a verdade estabelecida claramente na
base de, ao menos, duas ou três testemunhas, e se a prova for estabelecida,
a pessoa condenada deveria ser levada à porta da cidade e, lá, executada por
apedrejamento, o qual deveria ser iniciado pelas próprias testemunhas. Em Nm 5
o autor apresenta trâmites jurídicos concernentes ao julgamento de uma mulher
suspeita de adultério. Deve-se considerar as prescrições para os trâmites dos
rituais de sacrifícios em Lv 1-7 como processos jurídicos pertencentes ao âmbito
do culto e tratando da eliminação de culpa compreendida do ponto de vista
forense, ou seja, desvendamento de crimes.

98
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

Os ensinamentos da Aliança gravitam em torno de Deus e do povo de Israel,


situados numa vasta rede de relações. Ele mostra o povo de Deus à procura por
ter consciência, como eleito e amado por Deus. O israelita era convidado a praticar
a lei que mistura direito civil e direito sagrado. Isso porque em Israel não existia
diferença entre direito sagrado e direito civil. A vida em Israel é um serviço a Deus,
ou o mesmo que dizer a liturgia a Deus. O povo do Êxodo, livre da escravidão
egípcia pelo seu Deus, possui como único e verdadeiro soberano o seu Deus. A
infração de uma lei é sempre uma ofensa a Deus.

Israel valorizou muito a sua Lei – Torá. O cristão atual pode surpreender-se,
então é melhor recolocar a ideia no seu contexto histórico. Possuir as próprias
leis significa ser uma verdadeira nação. De acordo com Dt 4,8, o mais explícito no
mérito, de fato afirma: “E qual a grande nação que tenha estatutos e normas tão
justas como toda esta Lei que eu vos proponho hoje?” O objetivo do Pentateuco
não é o de dar a Israel uma Lei válida para cada lugar e cada tempo. A sua ideia,
se assim pode ser dita, é a de fornecer a Israel a prova de que ele é uma nação
que possui as suas próprias leis. No fundo, o Pentateuco possui o arquivo jurídico
de Israel.

Com um vocabulário mais atual, pode-se dizer que o Pentateuco não possui
o direito positivo de Israel. Trata-se de uma obra para ser consultada, mais do que
série de leis a serem aplicadas ou definitivamente outorgadas pelos juízes.

No fundo, na vida de cada dia, vigoravam o direito consuetudinário e


o princípio da jurisprudência. Somente nos livros de Esdras e Neemias são
encontrados textos nos quais pode ser aplicada uma lei como está escrita. O
estudo atento demonstra, porém, que cada um é interpretado, e que não se tem,
quase nunca, uma aplicação literal da lei.

Todos os acontecimentos que ao longo da história ancestral


provocavam espanto, impacto, admiração, temor, eram marcados por
uma espécie de aura misteriosa e por uma enorme reverência. Os
ancestrais certamente não conheciam a ciência genética e, portanto,
não conheciam a maneira que homem e mulher contribuiriam para
a geração de um novo ser humano. O mais pertinente para esse
povo era o mistério do nascimento de uma pessoa. E isso acontecia
somente pelo corpo da mulher. As pessoas sabiam que tinham
passado por um corpo de mulher. Essa maneira de compreender e
ser sensível à origem da vida colocava as mulheres como criadoras
da existência humana. O corpo das mulheres era o reflexo da vida
desse povo que se organizava no cotidiano dos diferentes grupos.

99
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

O segundo templo (veja a imagem a seguir). Algumas décadas depois da


destruição do templo de Salomão, os judeus voltaram da Babilônia e puderam
reconstruir o seu templo. Essa primeira construção terminou em 515 antes de
Cristo. Esse templo foi reformado por Judas Macabeu em 164 a.C. A imponência
e fama que teve o segundo templo se deu por conta da intervenção de Herodes, o
Grande, que ampliou de forma monumental aquilo que já existia. As obras iniciadas
com Herodes ocorreram por muitos anos, tendo terminado apenas em 64 d.C.

Figura 6 - Reconstrução do II templo

Fonte: Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Segundo_Templo>. Acesso e: 9 out.


2017.

Os exilados fizeram- Os exilados fizeram-se hegemônicos no povo. O templo se tornou


se hegemônicos no um projeto prioritário. Pode ser que essas características assumidas no
povo. O templo se
tornou um projeto pós-exílio possam estar relacionadas com as implantadas no mundo
prioritário. Pode dos persas. Com certeza, identifica melhor o projeto do Império Persa.
ser que essas
características
assumidas no pós-
exílio possam estar
relacionadas com
as implantadas no
mundo dos persas.
Com certeza,
identifica melhor o
projeto do Império
Persa.

100
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

O Império Persa
A ascensão persa surpreendia todo o mundo de então e foi extraordinariamente
rápida. Os persas nem figuravam entre as potências tradicionais da Mesopotâmia.
Vindos do Oriente, em poucos anos souberam adonar-se, inicialmente sob Ciro,
tanto da Mesopotâmia quanto do Egito, tanto da Ásia Menor quanto da Síria/
Palestina.

O novo soberano, Ciro, iniciou uma política de expansão


territorial com o objetivo de formar um grande império, pois
desejava obter riquezas e resolver os problemas causados
pelo aumento populacional. Dessa forma, Ciro, o Grande,
conseguiu conquistar os territórios da Mesopotâmia, de toda
a Ásia Menor (atual Turquia) e de territórios a leste da Pérsia
(parte ocidental da Índia). Por todas essas conquistas, Ciro
foi considerado um dos grandes estrategistas militares da
Antiguidade. Em 530 a. C., o Império Persa se estendia do
Mar Mediterrâneo oriental até o Rio Indo (rio que corta a atual
China, Índia e Paquistão, na Ásia). Para demonstrar a extensão
territorial do Império Persa, observe que as conquistas de Ciro
compreenderam os seguintes países atuais: Irã, Iraque, Síria,
Líbano, Jordânia, Israel, Egito, Turquia, Kuwait, Afeganistão,
parte do Paquistão, parte da Grécia e da Líbia. O governo de
Ciro sempre tratou bem os povos dominados, possibilitando-
lhes a liberdade de ação, de emprego e de religião, porém
Ciro os obrigava a servir o exército persa e a pagar tributos.
Dessa maneira, ele fortaleceu seu exército e arrecadou tributos
para a manutenção dos seus soldados. Uma das grandes
características do imperador Ciro e dos persas era a força que
tinham como guerreiros (CARVALHO, s.d., s.p.).

Conheça mais sobre a história dos persas! Assista ao vídeo:


Construindo um Império: persas. Disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=cb6QPIGe2S0>.

101
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Com os persas são introduzidas diversas novidades, isso porque souberam


organizar administrativamente seu imenso império. Criaram uma eficiente
burocracia estatal, dotada inclusive de um excelente serviço de correio. Neste
sistema administrativo, as satrápias tinham um papel administrativo e de
subunidade burocrática. Este tipo de organização viabilizava uma regionalização
da administração e mantinha a unidade de conjunto. Através destes aparelhos
burocráticos é que eram arrecadados os tributos. O tributo se tornou um negócio
de Estado. Nisso, os templos deixaram de desempenhar papel central no
recolhimento do tributo.

Os persas não impuseram sua religião aos povos dominados, como


procediam assírios e babilônios. Não somente impingiram sua religião aos povos
conquistados, como até mesmo promoveram cultos em templos destes. Na
Babilônia, Ciro restaurou o culto a Marduque, duramente contestado pelo último
soberano babilônico, Nabonide, que não era adepto de Marduque. Da mesma
forma, os persas procederam em outros lugares. Ajudaram a construir templos
e facilitaram a aplicação das leis sagradas das diferentes divindades locais. Os
persas eram tolerantes em termos de prática religiosa, evidentemente enquanto
estas práticas não contestassem seu império mundial.

A restauração do culto sacrificial a Javé em Jerusalém e o regresso dos


exilados se situam neste âmbito de uma política religiosa “tolerante” da parte do
Império Persa.

O decreto de Ciro se tornou muito importante, aliás o cronista o reproduziu por


três vezes; 2Cr 36,22-23; Esd 1,1-5 e 6,3-5. Os textos não conferem exatamente.
Se tratam de edições bem diferentes. Por vários motivos, se considera o texto de
6,3-5 – transmitido em aramaico – como o mais autêntico:

Memorando. No primeiro ano de seu governo, o rei Ciro


promulgou o seguinte decreto: templo de Deus em Jerusalém.
O templo deverá ser reconstruído para ser um lugar onde se
ofereçam sacrifícios, e seus alicerces devem ser restaurados.
O templo deverá ter 30 metros de altura e 30 de largura.
Terá três fileiras de pedras talhadas e uma fileira de madeira.
A despesa ocorrerá por conta do palácio do rei. Também os
objetos de ouro e prata do templo de Deus, retirados do templo
de Deus por Nabucodonosor e trazidos para a Babilônia, serão
devolvidos. Desse modo, tudo voltará ao seu lugar no santuário
de Jerusalém, e será colocado no templo de Deus.

Este decreto dá ênfase apenas ao templo e determina a sua reconstrução


imediata, definindo a sua função, tamanho, financiamento e até a devolução dos
utensílios. Esta restauração é apresentada como um projeto persa. Os exilados

102
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

nem mesmo aparecem. Isso evidentemente não significa que não tivessem estado
por trás da edição da lei. Afinal, de outra maneira dificilmente se explica que Ciro,
já um ano após haver assumido o poder na Babilônia, tenha se importado com
a distante e destruída Jerusalém. Os exilados se mobilizaram para a obtenção
deste decreto. Dêutero-Isaías anos antes já havia aclamado Ciro como o ungido.
Com isso, por meio da administração persa e com seu total apoio, os exilados
definem o futuro do templo, de Jerusalém, de Judá. O mesmo se poderia formular
também de outra maneira: os persas se valem dos deportados, com pleno
consentimento para a concretização dos seus planos em Judá. E a Palestina,
sem dúvida, era interessante para os persas. Em 538, recém-haviam se adonado
da Mesopotâmia. Ainda não eram efetivos senhores da Palestina. Esta e, em
especial, o Egito figuravam nas futuras pretensões de Ciro. E para alcançar a
conquista do Egito, era relevante contar com o apoio de Judá e Jerusalém, esta
porta de entrada para as terras do Nilo. O decreto de Ciro de 538 tem a ver com a
pretendida invasão do Egito, definitivamente efetivada em 525 a.C.

Algo que surpreende é que o decreto não tenha falado sobre o regresso
dos exilados. Talvez não fosse a questão principal na ordem do dia. Afinal, Judá
estava povoada e lá viviam os remanescentes. É muito provável que os exilados
não estivessem interessados num retorno imediato. Enfim, também poderia se
conjeturar que deles se estaria tratando implicitamente ao falar do retorno dos
utensílios do templo. É o que atesta Esd 1. Em todo caso, nestes primeiros anos
após a vitória persa, a reedificação dos santuários em ruínas concentrava as
atenções. Para os autores de Esdras, o enfoque era outro bem diferente. Deram
destaque também ao retorno (Esd 1,3).

Foram muitas as razões para que no povo de Deus predominassem em


tempos pós-exílicos certas linhas teológicas e não outras. Não tem como reduzir
a preponderância destas ou daquelas facetas. As questões são complexas e, a
rigor, já fogem dos propósitos deste nosso estudo.

Além disso, não se poderá deixar de contar com a dinâmica própria e peculiar
trazida à tona sob as novas contingências pós-exílicas. O pós-exílio não é apenas
a continuação dos projetos teológicos formulados sob as condições do exílio. É um
momento novo, próprio. Por exemplo, Ageu sem dúvida é favorável à restauração
do santuário. Nesse sentido está sua profecia. Contudo, para ele, este novo
templo – tão apoiado pelos persas – inauguraria o aniquilamento da dominação
persa! Dessa forma percebemos como eram a dinamicidade e a inovação que
foram as propostas pós-exílicas, não se esgotam em ser prolongamentos de
correntes de tempos exílicos.

103
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Atividade de Estudos:

1) Quem foram os exilados para a Babilônia? Qual foi o principal


objetivo do império dominador?
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2) O que aconteceu com a população que ficou em Judá e quais


foram as influências na literatura bíblica?
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3) De acordo com o conteúdo, comente os principais acontecimentos


do pós-exílio.
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Algumas ConsideraÇÕes
Ao longo desse capítulo pudemos perceber os percursos vividos pelo povo
de Israel ao longo da sua trajetória exílica e pós-exílica. Por séculos o povo
experienciou um período de constantes incertezas. Por conta disso, conhecer
um pouco desses caminhos é fundamental para compreendermos as narrativas
bíblicas que foram sendo construídas, reconstruídas ou readaptadas durante um
tempo de sofrimento, mas que nunca perderam a esperança!

104
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

Percebemos também que a história de Israel não é narrada de uma maneira


linear com começo, meio e fim. Mas é construída em diversos momentos. As
narrativas são recontadas e podem ganhar uma nova versão, a partir do momento
ou situação em que estavam vivendo. Pode ser que uma história antiga seja
recontada com o intuito de incentivar o povo a não desistir nunca de vencer a
escravidão à qual foi submetido pelo Império Babilônio.

Diante de enormes e infinitas dificuldades, tanto para quem foi exilado,


quanto para quem continuou na terra, tiveram que se submeter às suas crenças
religiosas para continuarem tendo forças, e que era possível vencer a experiência
de opressão que estavam vivendo. O povo exilado não esquece, jamais, as
promessas de Javé, é estimulado por meio da profecia, de cânticos, salmodias, a
continuar crente numa libertação próxima.

Concluindo o Antigo Testamento


Vimos no primeiro capítulo desse nosso estudo que a Bíblia, por se tratar
de um livro sagrado, não caiu pronta do céu, fora da realidade histórica. Ao
contrário disso tudo, a Bíblia possui essa característica sagrada justamente
porque revela em sua vasta obra literária o rosto e a imagem do Deus da vida,
que inevitavelmente se manifesta na história, nas lutas em favor da vida com
dignidade e justiça para todos, principalmente para as pessoas empobrecidas e
marginalizadas. É na defesa da vida que a Bíblia ganha caráter sagrado e torna-
se Palavra de Deus.

Ao ler a Bíblia podemos ter a impressão de que o povo de Israel era monoteísta
desde o começo, ou que adorava somente a Javé e não possuía imagens divinas.
Entretanto, as evidências de que dispomos indicam que o monoteísmo foi adotado
em Judá somente no período pós-exílico, em uma das reformas mais recentes
pelas quais passou a fé de Israel. A arqueologia e os próprios textos bíblicos nos
mostram que o povo de Israel levou muitos séculos até tornar-se monoteísta e
banir de seu meio o culto e as imagens dessas diversas divindades.

Tanto a invasão da Assíria (732 a.C.) como a destruição da Samaria,


capital de Israel (722 a.C.), quanto a destruição de Jerusalém, capital de Judá
(598-587 a.C.), respectivos centros de poder de Israel e de Judá, provocaram
a desarticulação das classes dominantes e possibilitaram o afloramento de
teologias marginalizadas pela teologia oficial. A teologia e a ética das aldeias
camponesas, de tempos em tempos ecoavam nas cidades na voz dos profetas,
mas esta teologia não recebia destaque nos textos oficiais.

105
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Ao longo do nosso estudo sobre o Antigo Testamento, buscamos dar a você,


aluno, algumas chaves de leitura, ajudando-o na sua leitura da Bíblia. É claro que
nem de longe aprofundamos a vasta literatura que compõe essa primeira parte da
Bíblia, que pode ser chamada de Bíblia hebraica ou judaíta. A Bíblia só pode ser
compreendida como sagrada quando é capaz de promover a solidariedade, e é
capaz de tornar os seres humanos mais amorosos e bons!

É importante que saibamos ler a Bíblia de tal maneira que nos ajude a viver
as experiências de libertação e resgate da dignidade. Experiências essas que
podem ser como aquelas vividas pelos escravos do Egito, pelos camponeses e
pastores cananeus no ambiente do êxodo, pelas tribos de Israel, e também pelas
pessoas que foram acolhidas por Jesus e integradas nas comunidades cristãs
primitivas. Seremos fiéis a este espírito que habita o núcleo mais sagrado da
Bíblia, quando as pessoas empobrecidas, injustiçadas, oprimidas, ou que têm
suas vidas ameaçadas e que ainda não conheceram ou experimentaram “vida em
abundância”, reconhecerem no uso da Bíblia uma Boa-Nova!

No próximo capítulo iremos adentrar na segunda parte da Bíblia, o chamado


Segundo ou Novo Testamento. Até lá! Bons estudos!

ReFerÊncias
BRENNER, Athalya. Ester, Judite e Susana: a partir de uma leitura de gênero.
São Paulo, Paulinas, 2003.

CARVALHO, Leandro. Ciro e o Império Persa. Brasil Escola. Disponível em:


<http://brasilescola.uol.com.br/historiag/ciro-imperio-persa.htm>. Acesso em: 13
ago. 2017.

CONSTRUINDO UM IMPÉRIO: persas. Disponível em: <https://www.youtube.


com/watch?v=cb6QPIGe2S0>. Acesso em: 13 ago. 2017.

ENTRICH, Thomas. The Fertility Pair Ba‘al and ‘Anatin the Ugaritic Texts.
Disponível em: <http://www.academia.edu/480859/The_Fertility_Pair_Ba_al_and_
Anat_in_the_Ugaritic_Texts>. Acesso em: 1 jan. 2017.

RÖMER, Thomas. A origem de Javé. O Deus de Israel e seu nome. São Paulo:
Paulus, 2016.

106
Capítulo 3 O EXÍLIO, E A VOLTA DO EXÍLIO DECRETADA PELO
IMPÉRIO PERSA

SANTOS Michel. Junto aos rios da Babilônia: um estudo acerca da história de


Israel no exílio Disponível em: <http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2011/
Relatorios/CTCH/TEO/TEO-Michel%20Alves%20dos%20Santos.pdf>. Acesso
em: 13 ago. 2017.

SCHULTZ, Samuel J. A história de Israel no Antigo Testamento. São Paulo:


Vida Nova, 1984.

SCHWANTES, Milton. Sofrimento e esperança no exílio. História e teologia do


povo de Deus no século VI a.C. São Leopoldo: Oikos, 2009.

VAUX, Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo:


Paulus, 2003.

107
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

108
C APÍTULO 4
Segundo Testamento
A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes
objetivos de aprendizagem:

 Apresentar possíveis características que levam ao conhecimento


do Jesus histórico e seu projeto, em vista do reino de Deus.
 Esclarecer como os Evangelhos sinóticos estão organizados, a
partir da sua história e contexto em que foram escritos.
 Identificar o motivo pelo qual o Evangelho de João
não está entre os Evangelhos sinóticos.
 Localizar eventuais características de Paulo que o tornaram apóstolo
de Jesus, e de sua influência nas primeiras comunidades cristãs.
 Examinar as diferenças que transparecem em cada um dos escritos
do Segundo Testamento, dentro do contexto em que foi escrito.
 Interpretar e diferenciar o estilo literário em que foram
escritos os textos do Segundo Testamento.
 Definir as origens de Jesus e o legado que deixou
para os seus primeiros seguidores.
 Conhecer os motivos pelos quais foram escritas as Cartas
Paulinas e identificar o apóstolo Paulo como aquele que
estava preocupado com as futuras comunidades.
 Esclarecer o movimento apocalíptico como um
recurso literário de forte resistência.
 Discutir os motivos que levaram Jesus a prometer a seus seguidores
que mesmo após a sua morte continuaria com eles.
 Constituir uma reflexão tal que se chegue à compreensão
de Jesus, dentro da sua realidade e do seu contexto.
 Aplicar a mensagem de Jesus interpretando-a a partir da análise narrativa,
considerando os diferentes métodos exegéticos como possibilidades de leitura.
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

110
Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

ContextualiZaÇÃo
Já se passaram mais de vinte séculos desde que nasceu o cristianismo.
Os cristãos precisam retornar a Jesus para enraizar sua fé com mais verdade e
descobrir de fato quem é Jesus, bem como o seu projeto. Com isso não estamos
pensando em pesquisar com mais detalhes a biografia de Jesus, até porque isso
não seria possível, uma vez que os escritos que temos não são biografias, mas
retratos de comunidades da segunda geração de seguidores que procuravam,
assim como nós, conhecer e experienciar concretamente os ensinamentos de
Jesus instigados pelos seus primeiros discípulos.

No prólogo do livro de Rafael Luciani, escrito por Pagola (2013, p. 4), o autor
propõe que para retornar a Jesus exige-se de nós três tarefas fundamentais: num
primeiro momento seria aceitar a humanidade histórica de Jesus como paradigma
de nosso modo de ser humano, o que se revela em Jesus não é um conteúdo
doutrinal, mas o modo de viver mais humano e humanizador que possa existir,
pois responde fielmente à vontade de um Deus que não só quer seguidores,
mas busca um mundo mais humano. Em um segundo momento, colocar em
prática essa práxis concreta de Jesus como realidade última e definitiva. No
fundo, retornar a Jesus significa um comprometimento com ele, não com uma
religião convencional, mas a causa do reino de Deus, com o Pai que é bom e
compassivo. Esse comprometimento vai se tornando firme de acordo com as
condições históricas que vão obstaculizando seu reinado de paz e justiça, e no
desenvolvimento de uma prática fraterna a serviço de todas as vítimas.

Só é possível retornar a Jesus se conseguirmos recuperar a sua memória


histórica, procurando seguir os mesmos caminhos que as primeiras comunidades
cristãs. É em Nazaré que Jesus revela publicamente seu ministério, seu projeto,
reconhecendo o fracasso de todas as expectativas existentes no século I.
Um projeto muito querido por Deus deveria passar pela cura dos corações
destroçados. Algo assim só podia ser realizado pela humanidade de um servo
sofredor ao estilo do anunciado pelo profeta Isaías (Is 61,1-11). Também alguém
que fosse justo, inspirado nas palavras do livro da sabedoria (Sb 2,12-20). Neste
texto o justo se atreve a tratar a Deus como Pai, e por isso mesmo a consequência
de seu próprio estilo de vida colocado à prova pela rejeição dos senhores, sábios
e infiéis deste mundo.

Por fim, sabemos que as narrativas que constituem o Segundo


Testamento foram escritas na metade do primeiro século da era cristã, ou seja,
no período que vai de mais ou menos 50 a 100 d. C. ou talvez um pouco posterior
a isso. Possivelmente os primeiros livros escritos foram as cartas do apóstolo

111
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Paulo, a começar por Tessalonicenses e o último o de Apocalipse. Essas cartas


e outros escritos eram recebidos e preservados. Não tardou muito para que
esses “livretos” ou “cartilhas” circulassem entre as primeiras comunidades que se
identificavam com o projeto de Jesus (Cl 4.16), passando então a ser copiados
e difundidos nas comunidades cristãs dos primeiros séculos depois de Jesus. A
necessidade de ensinar novos convertidos e o desejo de relatar o testemunho
dos primeiros discípulos sobre a vida e os ensinamentos de Jesus resultaram na
escrita dos Evangelhos. Também estes foram copiados e distribuídos à medida
que a comunidade crescia.

Agora conheceremos um pouco da realidade histórica em que esses textos


foram escritos, experienciados e desejados pela segunda geração dos discípulos
de Jesus.

O Sistema Político e Social do


Império Romano no Tempo de Jesus
Não temos dúvidas de que o cristianismo foi um produto do império. É claro
que, numa das grandes ironias da história, o que se tornou a religião estabelecida
pelo império começou como um movimento anti-imperial. Há quem veja Jesus como
um inócuo mestre religioso, com isso se torna cada vez mais claro que o movimento
de Jesus catalisou uma grande reforma na história de Israel. Esse movimento foi
tanto contra o regime romano como contra a aristocracia sacerdotal de Jerusalém.

Chegamos ao estudo do Segundo Testamento, tão esperado por muitos de


nós, não é mesmo? Aliás, carregamos na nossa tradição um certo preconceito
em relação ao Primeiro Testamento, achando mais difícil e muitas vezes até o
colocando em segundo plano, como se não fosse tão importante para o universo dos
cristãos, aliás, é Jesus quem salva! Mas não é bem assim, o Segundo Testamento
retoma o primeiro, e quando o lemos, não conseguimos fazer um rompimento,
pois a Torá é utilizada nos ensinamentos de Jesus e consequentemente se tornou
uma chave para a compreensão do Segundo Testamento.

Costumamos afirmar que Jesus veio justamente para marcar um novo


período na história de Israel e dos novos adeptos da sua proposta de vida. Pois
bem, não é saudável quando fazemos essa ruptura, conforme dito anteriormente,
entre o Primeiro e o Segundo Testamento, isso porque acabamos por legitimar
uma realidade que não foi aceita por Jesus, pois permaneceu judeu até a sua
morte. Quem o revelou “cristão” foram os seus seguidores num período bem
posterior, quando o cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano no
século IV a.C.

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Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

Fica evidente que para os cristãos aquele que viria a ser chamado o Filho
de Deus não se fez homem, em geral, se fez um tal homem particular, judeu,
galileu, num determinado momento da história do mundo. Como um homem,
evidentemente, foi marcado pela geografia e pela história de seu país, por sua
cultura e esteve sujeito às leis econômicas, entrou nos conflitos políticos e
partilhou das esperanças de seu povo.

Neste primeiro momento do nosso conteúdo, quase não falaremos de Jesus


e nem de textos bíblicos. No entanto, essa parte do estudo se faz importante – e
exige muito de nós – porque apresentamos as condições sociais, econômicas e
políticas que fizeram do personagem Jesus o homem que ele foi. Não há dúvidas
de que o homem não se explica somente por essas diferentes condições e, com
certeza, Jesus menos que qualquer outro, mas é por meio do conhecimento que
se vê surgir com mais claridade e originalidade a relevância da sua mensagem e
também da sua pessoa.

Alguns Aspectos do Império Romano


Não há como deslocar a história da Palestina com a de Roma no século I
a.C. Para melhor compreendê-la é necessário conhecermos um pouco do Império
Romano, descrevendo rapidamente sobre a situação política, geográfica, social-
econômica e religiosa.

a) Situação política

Foi no século I a.C. que Roma passou pela maior revolução da sua história e
a posteriori se tornou a maior potência econômica do Mediterrâneo. Contudo isso
não foi tão simples, pois estava desprovida de uma infraestrutura administrativa,
e a velha cidade, que é Roma, assumiu com muita dificuldade a governança
daquele imenso império. Os governadores nomeados nem sempre são aqueles
gananciosos denunciados pela imaginação tradicional, mas é certo que as
províncias estavam sujeitas, muitas vezes, a uma governabilidade egoísta, por
falta de uma verdadeira política de fusão. Contudo, essa ruptura entre Roma e
o seu império territorial reforça o poderio dos chefes militares, de sorte que o
Senado não controlava, de certo imperfeitamente, a política externa, pela qual
teoricamente ele seria o responsável. No nível interno, as instituições de cunho
mais tradicionais pareciam incapazes de resolver os conflitos entre os homens
e as facções. As guerras civis que irromperam em 49 a.C. e que dilaceraram o
mundo romano por mais de 15 anos seriam o resultado desta violência, que pode
ser chamada de endêmica.

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ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

b) Situação geográfica

Quando o imperador Augusto morreu, o Império Romano quase atingiu sua


maior extensão, compreendia, no extremo oeste, as duas províncias da Espanha
às quais se soma a Lusitânia (substancialmente, a Portugal atual). Os romanos
chegaram à Península Ibérica na época da guerra de Aníbal (218-201 a.C.)
e a conquistaram lentamente, a luta pela pacificação nem sempre foi fácil, foi
concluída apenas no começo do governo de Augusto.

c) Situação social

No momento em que o Império Romano atingiu um enorme território, este


era vigiado pelo exército, que era composto por cerca de 30 legiões, outras tropas
auxiliares, sendo uma população de homens composta por 350 a 400 mil.

A população do Império Romano ficava em torno de 50 milhões de pessoas.


As cidades mais habitadas tinham uma população em torno de 700 mil a um
milhão de habitantes. Alexandria era habitada por volta de 700 mil e Antioquia, 300
mil. Como percebemos, para os padrões da época eram cidades muito grandes
em termos de habitantes. Mesmo diante de todas as unidades, mantidas pelo
poder central, que existiam entre as cidades, bem como da política externa e de
certos valores culturais, isso não eliminava as particularidades existentes em cada
uma. O império não era um bloco monolítico, pois existiam os limites territoriais
e os direitos dos povos geralmente não coincidiam. Com efeito, os súditos do
imperador pertenciam a etnias ou cidades diferentes, além disso, os habitantes de
uma mesma cidade ou de uma mesma região poderiam ser de direito diferente,
dessa forma, entre os homens livres se distinguiam os cidadãos romanos e as
pessoas de direito peregrino.

Quem era considerado cidadão romano? De acordo com o Portal da


Educação:

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Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

Como na Grécia, em Roma o exercício de cidadania estava ligado


com a capacidade de exercer direitos políticos e civis. A cidadania
romana era atribuída somente aos homens livres (nem todos os
homens livres eram considerados cidadãos). Os cidadãos tinham
o Direito: a ser sujeito de Direito privado (jus civile); ao acesso aos
cargos públicos e às magistraturas; à participação nas assembleias
políticas; e às vantagens fiscais. Na sociedade romana as pessoas
eram diferenciadas entre livres e escravos. Os cidadãos não eram
considerados todos iguais e livres, e se dividiam em categorias de
classes. A participação nas atividades político-administrativas era
restrita a uma parcela mínima, aos cidadãos ativos; além do que,
nem todos podiam ocupar cargos políticos e administrativos.

Fonte: Disponível em: <https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/


educacao/cidadania-em-roma/18797>. Acesso em: 25 ago. 2017.

Como vimos, a cidadania romana era um privilégio para um grupo restrito


às atividades políticas. As mulheres não são mencionadas, ou seja, estão fora
da projeção política do Império Romano. Eram excluídas tanto pelo governo civil
como pela religião judaica. De acordo com Jeremias (1983, p. 396):

A comprovação da pureza de origem de uma família graças


a tradições e notas genealógicas não tinha somente valor
teórico; ela garantia à família em questão os direitos cívicos
que os cidadãos israelitas possuíam. O privilégio mais
importante exprimia-se na designação dos israelitas legítimos
como aqueles “que [podem] casar [suas filhas] com sacerdotes
[...] Somente mães israelitas de origem pura podiam dar à luz
filhos dignos de exercerem o serviço do altar em Jerusalém
[...]. Vemos, de novo, o elo íntimo entre a estratificação social e
a religião. Só faziam parte do Israel verdadeiro as famílias que
conservassem a pureza de origem do povo, querida por Deus,
tal qual Esdras restabelecera pela sua reforma.

Eram muitos os escravos e possuíam poucos direitos, por influência das


reflexões filosóficas, no entanto, os juristas reconheciam que os escravos eram
homens. A condição de servo não era uniforme, pois os que trabalhavam nas
minas levavam uma vida particularmente difícil. A sorte dos que lutavam no campo
nem sempre era invejável. Ao contrário disso, os escravos que tinham certa
especialização, como os cozinheiros, médicos, secretários etc., possuíam valor

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ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

comercial, eram bem tratados e facilmente conseguiam a liberdade. A concepção


de escravidão era bem diferente da que temos conhecimento nos dias atuais, por
exemplo, o escravo artesão que trabalhava numa oficina pagando uma taxa pequena
a seu senhor, quase não se diferenciava das condições econômicas do pequeno
artesão livre. A legislação do império procurou atenuar a sorte dos escravos,
sobretudo controlando o direito de vida e de morte do patrão e privando do direito
de propriedade quem abandonasse um escravo idoso ou doente. Em suma, se trata
de um grupo importante, cuja definição jurídica não nos deve confundir – pois as
situações particulares variam muito – e que não se pode considerar globalmente
como verdadeira classe social (SAULNIER; ROLLAND, 1979).

d) Situação econômica

Com relação à economia, temos poucas informações a respeito.


Conseguimos apontar apenas algumas características gerais. A economia estava
baseada na agricultura, cujos principais produtos eram: cereais, legumes; vinha e
oliveiras nas regiões mediterrâneas; a pecuária para o corte, ou conserva por meio
do salgamento das carnes; animais que serviam para o transporte; a tecelagem,
o artesanato, os metais e os trabalhos de arquitetura. O meio de transporte mais
utilizado era o marítimo, por ser mais barato.

A forma mais típica de atividade profissional era o artesanato, isso porque


tal empreendimento contava com meios necessários. Quando o artesão fabricava
suas peças e as vendia, sem nenhuma forma de transição, a seus consumidores
e clientes.

No judaísmo, ensinar uma profissão a seu filho era fundamental, desrespeitar


essa regra moral seria o mesmo que entregar seus filhos ao banditismo.

Por outro lado, existiam profissões que eram consideradas inferiores e


até mesmo desprezíveis, como é o caso da profissão de tecelão. Por que esse
desprezo? Isso se dava porque era considerada como suja, baseada notoriamente
na fraude, reservada às mulheres.

Afinal, quais seriam os recursos que financiavam todo esse comércio? Em


primeiro lugar, eram as receitas do templo o maior investidor. São compostas
por donativos previstos em lei sob forma do imposto da didracma, do comércio
das vítimas, do cumprimento dos votos, da entrega da lenha etc., além dos
investimentos de seus imóveis. Contudo, as despesas eram incomensuráveis, de
modo especial no tocante aos trabalhos da construção do templo.

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Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

Outra forma de investimento a todo esse comércio eram os estrangeiros


por ocasião das peregrinações durante as festas. Todo israelita piedoso deveria
gastar na cidade de Jerusalém uma décima parte de todo o rendimento da sua
terra. Essa prática era denominada de segundo dízimo.

Por fim, precisamos nos recordar que Jerusalém era um grande centro de
negócios e atraía negociantes, coletores de impostos, judeus da diáspora que se
tornaram muito ricos.

Todos esses rendimentos bastavam para assegurar a enorme quantidade de


importações. A própria cidade de Jerusalém também fabricava artigos de luxo,
como unguento e mercadorias semelhantes. Por exemplo, o frasco de alabastro
contendo um nardo de alto valor, mencionado por ocasião da unção de Jesus em
Betânia (Mc 14,3), continha, sem dúvida, um produto típico da cidade.

Para além da importância política, sem dúvida o que prevalecia era a religião.
Jerusalém era centro de poder político e religioso e isso o caracterizava como a
cidade fortaleza do Império Romano. Jerusalém era a cidade do templo. O fato de
residir em uma cidade considerada santa impunha certas obrigações. Observa-
se rigorosamente as prescrições relacionadas à observância do sábado, que
excluía qualquer trabalho. Em Jerusalém as prescrições da pureza legal, que
acarretavam muitos inconvenientes para a vida diária, representavam um papel
diferente daquele das cidades onde residiam muitos pagãos.

O certo é que o templo era muito importante para todo o povo que vivia
em Jerusalém. Trazia algumas vantagens, pois com a arrecadação monetária
que o templo proporcionava se conseguia pagar a manutenção dos edifícios da
cidade, os cuidados com sua limpeza, a pavimentação das ruas e talvez também
o serviço de água. Contudo, a desigualdade social era um grande problema a ser
enfrentado.

e) Situação religiosa

Em se tratando do contexto religioso em que Jesus viveu, havia duas


instituições religiosas fundamentais: o Templo e a Sinagoga.

A sinagoga é uma palavra do grego (συναγωγÞ) que significa reunião. Era


um local onde normalmente os letrados, quase todos fariseus, se encontravam
para ensinar ao povo as leis e as tradições de Israel.

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ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Pelos anos 750 a.C. o Reino de Israel, formado por Salomão, foi
dividido entre Norte e Sul. O Reino do Norte em 722 a.C. foi arrasado
pelos assírios, seus vizinhos do Norte. O Sul, por sua vez, sofreu a
mesma sorte e foi conquistado pelos babilônios, que destruíram o
Templo e deportaram a população como escravos para a Babilônia.
Agora o Povo de Deus não tem mais terra e nem Templo. Somente
depois do regresso do exílio da Babilônia a religião judaica começa
a tomar a forma atual. Surge nesta época a Sinagoga, o culto
passa a centralizar-se surgindo a figura do rabino, geralmente um
fariseu conhecedor da lei judaica. Este hábito já teve seu início na
Babilônia, onde o povo judeu não possuía mais seu Templo. Assim,
a Sinagoga passa a ocupar lugar central na religião judaica, sendo
um ponto de encontro dos judeus para as orações e para a leitura
das Sagradas Escrituras. Na época de Jesus existia o Templo de
Jerusalém, que centralizava o culto judaico e as peregrinações, mas
já existia a Sinagoga, que servia de encontro nos sábados e servia
de escola para os filhos dos judeus se iniciarem na leitura da Torá.
Jesus frequentou o Templo e a Sinagoga. Sabemos que os Romanos
no ano 70 d.C. destruíram o Templo de Jerusalém. Daí por diante a
Sinagoga adquire forças e passa a ser o lugar do culto.

Fonte: Casonatto (2011, s.p.).

Toda comunidade judaica possuía a sua sinagoga, normalmente eram


construídas próximas a um rio para que fosse possível a todos o rito das abluções
– se trata de um rito de purificação presente também em outras religiões, como
o islamismo e o próprio cristianismo. Para esse rito se utilizavam símbolos em
preparação para o sacrifício. Eram feitas com água, ramos, areia ou sangue, por
isso as sinagogas costumavam ficar próximas ao mar ou rio, fora da cidade, para
facilitar os rituais de purificação. A sinagoga era utilizada, após o sábado, como
uma forma de escola para o aprendizado das crianças e jovens. A sinagoga era
um local de estudo e orações das escrituras, mas não somente, pois o momento
também era aproveitado para discussão de assuntos da comunidade, que após
discutidos eram julgados pelo conselho de anciãos, ou seja, funcionava também
como uma forma de tribunal. Contudo era muito comum que no tempo de Jesus a
sinagoga representasse um espaço de reunião da comunidade e não tanto uma
construção específica.

118
Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

Com relação ao Templo, era esplendoroso no tempo de Jesus. A sua


reconstrução havia começado no ano 20 a.C., por ordem de Herodes, e durou até
cerca de 64 d.C. Para os judeus, o Templo era o lugar de importância máxima,
pois lá era o local da morada de Deus. Nesse ambiente era celebrado o culto
todos os dias com o sacrifício público de dois animais, um pela manhã e outro pela
tarde, além dos sacrifícios privados. Nas grandes festas – Páscoa, Pentecostes,
Tendas, Tabernáculos –, o culto no Templo chegava ao seu auge, isso se dava
porque todo judeu que completasse 13 anos devia peregrinar até ele e participar
das festas. Aqueles que eram maiores de 20 anos e que não moravam em Israel
eram obrigados a pagar para o Templo um imposto anual, equivalente a dois dias
de trabalho, o mesmo que dois denários (Mt 17,24).

O tesouro do Templo funcionava como o maior banco do período, isso porque


guardava todo o dinheiro arrecadado pelos impostos e da elite de Jerusalém, que
depositava o valor das propriedades urbanas e rurais. Os sacerdotes, além de
serem os responsáveis pelo centro da política interna de Israel, eram também os
administradores de uma grande empresa econômica, que controlava diretamente
a vida dos judeus, servindo aos interesses da dominação romana e aos próprios.
Talvez seja por isso a atitude de Jesus, que mantinha certa crítica em relação ao
Templo de Jerusalém, que de casa de oração havia se transformado em abrigo de
ladrões (Mc 11, 15-18).

Para finalizar esse prévio conhecimento sobre o local em que Jesus viveu,
é necessário considerar que havia muitos israelitas que viviam fora do seu local
de origem, espalhados por várias regiões. Viviam na diáspora, ou seja, dispersos.
Havia muito tempo que esses grupos estavam diretamente em contato com
outras culturas, de forma especial a grega, que era manifestada de várias formas,
como a língua e costumes. Já vinha de muito tempo a simpatia que a vivência
da fé provocava em pessoas e grupos das cidades onde os filhos de Israel se
encontravam inseridos, a ponto de tais simpatizantes serem conhecidos como
tementes a Deus, embora sem aderir plenamente à religião judaica celebrada na
sinagoga, reconheciam e valorizavam o culto ao Deus único e os apelos à justiça
e à solidariedade surgidos da lei mosaica.

Para entender mais sobre a cidade de Jerusalém no tempo


de Jesus, assista ao documentário: Jerusalém na época de Cristo.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=20lxBJkDfc0>.
Acesso em: 27 ago. 2017.

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ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Jesus e o seu MoVimento


Até aqui conhecemos um pouco da sociedade palestinense, lugar em que
Jesus nasceu e viveu durante toda a sua vida. Para entender mais sobre a
literatura bíblica, se faz necessário entender o período histórico em que Jesus
viveu, isso faz toda diferença na compreensão e entendimento das narrativas
bíblicas!

O lugar geográfico em que Jesus viveu se tratava de uma pequena faixa de


aproximadamente 20 mil quilômetros quadrados, com 240 de comprimento por
35 de largura. Para você ter uma ideia, se tratava de um lugar bem pequeno que,
se comparado ao Estado do Rio de Janeiro, chegaria a apenas a sua metade.
A população era densa, com cerca de 600 mil habitantes distribuídos em três
regiões:

• A Judeia, na região Sul, onde se criavam ovelhas e cabras, o cultivo da


oliveira.
• Jerusalém era a capital de Israel; cidade com aproximadamente 30 mil
habitantes, contudo, nas grandes festas a cidade chegava a receber 180
mil peregrinos.
• A Galileia ficava ao Norte; possuía terras férteis para a agricultura dos
galileus. Esse lugar era visto pelos judeus como terra de ignorantes. Foi
nesse ambiente que Jesus viveu a maior parte da sua vida.

Entre a Galileia e a Judeia situava-se a Samaria, onde viviam os samaritanos,


que os judeus, sobretudo do Sul, consideravam como impuros, para isso
justificavam que eles haviam se misturado com outros povos e assimilado as
tradições culturais e religiosas.

Quem foi Jesus? O que ele escreveu? Na verdade, não há indícios de que
Jesus tenha escrito nenhuma narrativa. No fundo, os escritos que se tornaram
canônicos, ou seja, foram reconhecidos pelos religiosos como escrituras, se
tratavam de releituras feitas pelos seguidores dos seguidores de Jesus, ou seja,
já haviam decorrido mais de 30 ou 40 anos após a sua morte e ressurreição.

O que sabemos é que mesmo Jesus tendo uma vida curta – não tão curta
para a expectativa de vida da época –, sua trajetória impactou a vida de grupos de
pessoas que se convenceram da relevância das suas palavras, da gratuidade dos
seus gestos, sobretudo em favor dos mais excluídos da sociedade, como era o
caso das viúvas-mulheres, órfãos, crianças, estrangeiros, doentes, endemoniados
etc.

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Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

Dessas e tantas outras experiências que Jesus viveu com os adeptos do seu
movimento, emergiram ao longo dos tempos alguns registros escritos, indicando
e fortalecendo as dificuldades que esses grupos periféricos e excluídos da
sociedade do seu tempo enfrentavam. Dentre as dificuldades, uma era importante:
não possuíam a identidade romana, pois se tratavam de grupos de pessoas
excluídas (mulheres, órfãos, estrangeiros, impuros) tanto pelo Império Romano
como pelo judaísmo, isso porque mantinham um perfil que os colocava fora da
sociedade. Muitos dos seguidores de Jesus não possuíam a cidadania romana,
e isso era muito grave, pois não possuíam o direito de pensar em sociedade
e muito menos de se organizarem a partir de uma proposta de vida de cunho
revolucionária, como a incentivada e vivida por Jesus, pois lutavam por um mundo
justo para todos criado por Deus. Para os judeus, essa era a maior de todas as
blasfêmias, pois eles achavam que mantinham o controle sobre Deus. A forma
como os judeus acreditavam em Deus (distante, poderoso, cheio de poder) se
destoava e muito daquela pregada e vivida por Jesus (próximo, humano, amante
dos mais fracos, pecadores e marginalizados da sociedade).

O Segundo Testamento, ou nova aliança, se trata de um conjunto de textos,


escolhidos entre tantos que circulavam em meio às primeiras comunidades
adeptas do movimento de Jesus. Dessa forma, ao abrirmos as páginas do
Segundo Testamento estamos diante de testemunhos a respeito de como
pessoas ou grupos, ao tomarem contato com a pessoa de Jesus, e depois com as
memórias de suas palavras e ações, o reconheceram como o definitivo enviado
de Deus e se comprometeram com ele, bem como com o caminho de vida e
libertação que as suas práticas apontavam.

Não temos dúvidas de que Paulo foi o grande responsável por propagar as
ideias do cristianismo nascente. Foram muitas as cartas escritas por Paulo ou
atribuídas a ele. Essas cartas foram escritas em torno do ano 50 d.C., ou seja,
20 ou 30 anos após a morte de Jesus. As cartas foram importantes no trabalho
missionário de Paulo, pois era através delas que ele se comunicava com as
comunidades mais distantes, dando orientações e até com o intuito de superar as
desavenças.

No caso dos Evangelhos, começaram a ser escritos um pouco mais tarde


que as Cartas Paulinas, em torno do ano 65 ou 70 d.C. Apesar de possuírem
toda uma estrutura narrativa, não têm a ver com a biografia de Jesus. Se tratam
de quatro apresentações que as comunidades se inspiravam para definir a sua
trajetória com o intuito de vencer os desafios que a realidade lhes ia apresentando.
Cada um dos quatro Evangelhos narra a boa notícia de Jesus, sua vida e missão,
a partir das histórias que as comunidades recordavam da vida do mestre e iam
transmitindo aos seus.

121
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

O objetivo não era mostrar os fatos como realmente haviam acontecido, e sim,
manter viva, também para o futuro, a lembrança das ações e palavras de Jesus,
de modo que a vida continuasse sendo iluminada por elas. Cada Evangelho foi
escrito em vista de determinado público, em tempo e espaço diversificados. É por
esse motivo que encontramos nos Evangelhos muitas diferenças, mesmo quando
narrado um mesmo episódio, mas também certas semelhanças. Os três primeiros
Evangelhos, por serem tão parecidos, são considerados Evangelhos sinóticos.

Os exegetas passaram a chamar os Evangelhos de Mateus,


Marcos e Lucas de sinópticos desde as descobertas exegéticas
sobre o texto que começaram a ser aplicadas à Bíblia no século
XVIII. Os estudiosos perceberam que, dos quatro Evangelhos, os
três primeiros - Mateus Marcos e Lucas - apresentavam grandes
semelhanças em si, de tal forma que podiam ser colocados em três
colunas paralelas, e descobertas as semelhanças e diferenças do
texto entre eles. Deste estudo surgiu o nome sinóptico, do grego συν,
"syn" («junto») e οψις, "opsis" («ver»), e os assuntos apresentavam
correspondência entre eles. Os maiores estudiosos desta área foram
os exegetas alemães, que concluíram que os textos provinham de
uma mesma fonte e passaram a chamar desta fonte que deu origem
aos textos de fonte Q, abreviatura de Quelle, que significa ”fonte”
na língua alemã. A partir desta perspectiva se pode conferir o que
existe de igual ou diferente. Já se fizeram muitos estudos sinóticos
dos Evangelhos. Destes estudos podemos concluir o que é próprio
de Mateus ou de Marcos ou de Lucas. O que é semelhante entre
os três. O que se refere ao autor que escreveu, ou o que se refere à
Comunidade a que é dirigido.

Fonte: Casonatto (2011, s.p.).

Observe na figura o percentual de conteúdo utilizado pelos autores dos


Evangelhos sinóticos:

122
Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

Figura 7 – Percentual de conteúdo dos Evangelhos sinóticos

Fonte: Disponível em: <http://www.abiblia.org/ver.php?id=8220>. Acesso em: 9 nov. 2017.

Fica evidente que nos quatro Evangelhos a proposta possui a mesma


motivação, que é ser uma proposta ou uma direção para as comunidades
envolvidas. Os cristãos das primeiras comunidades sentiam-se, antes de mais
nada, seguidores de Jesus. De acordo com a Carta aos Hebreus 10,20 se trata de
um “caminho novo e vivo”.

Os quatro Evangelhos constituem uma obra de muita importância para


aqueles que estavam dispostos a seguir Jesus. De acordo com Pagola (2013b,
p. 8), não se trata de livros didáticos que apresentam a vida acadêmica de Jesus
e muitos menos biografias redigidas para informar detalhamente sobre sua
trajetória histórica. Os relatos presentes nos Evangelhos possuem a função única
e exclusiva de nos aproximar de Jesus da forma como ele foi recordado pela
primeira ou segunda geração de seguidores.

Por isso é preciso enxergar os Evangelhos como um convite para adentrar


num processo de mudança e de identificação com o projeto de Jesus. Tratam-se
de relatos de conversão, lidos, pregados, meditados e guardados no coração de
cada crente e no seio de cada comunidade cristã. A experiência da escuta atenta
dos Evangelhos tranforma-se numa força extraordinária de tranformação. A partir
de agora conheceremos um pouco mais das particularidades de cada Evangelho.

123
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

O EVangelHo de Marcos
“Mas ide dizer aos seus discípulos e
a Pedro que ele vos precede na Galileia.
Lá o vereis como vos tinha dito” (Mc 16,7).

O Evangelho de Marcos pode ser considerado uma pequena cartilha, pois são
apenas 16 capítulos, o menor de todos os Evangelhos. Por causa disso sempre
foi usado em segundo plano ao longo da história do cristianismo. Contudo, nos
dias atuais se tornou uma fonte de inspiração até mesmo para a leitura dos outros
Evangelhos, isso porque pode ter sido o Evangelho que foi escrito por primeiro.
Além do mais, há indícios de que os Evangelhos de Mateus e Lucas tenham o
assumido como base para os seus escritos.

Quem foi o autor que escreveu essa pequena obra? Nada sabemos com
certeza. Pagola (2013a, p. 11) afirma que pode ter sido João Marcos, que
acompanhou Paulo e Barnabé em sua primeira viagem missionária. Provavelmente
foi escrito no ano 70 d.C., possivelmente em alguma região da Síria, próxima da
Palestina. Quando os escritos chegaram a Roma, é provável que tenha sido feita
uma segunda edição que se espalhou ligeiramente por entre as comunidades
cristãs que iam surgindo pelo império afora.

No momento em que o Evangelho de Marcos foi escrito, Israel estava vivendo


uma das suas maiores guerras contra a dominação romana. Os membros das
comunidades cristãs acreditavam que Jesus logo iria voltar como um rei triunfante
(Mc 10,37). Contudo não é essa a perspectiva do Evangelho e sim de acentuar
que a verdadeira espera da vinda de Jesus se dá pelo testemunho, ou seja, na
continuação do projeto de Jesus através da sua própria vida.

É por causa disso que o Evangelho se apresenta apenas como um princípio


e ao final da narrativa convoca os discípulos para que voltem à Galileia, lugar
onde tudo começou, a fim de refazer o itinerário de Jesus, com seus conflitos, até
Jerusalém, o centro do poder.

O Evangelho de Marcos começa da seguinte maneira: “Princípio do Evangelho


de Jesus Cristo, filho de Deus”. O relato de Marcos tem como fundamento básico
apresentar para a comunidade quem é Jesus. Nesse caso, Jesus é revelado como
o Messias, o filho de Deus, aquele que é esperado por toda Israel. Por isso Jesus
constitui fundamentalmente a Boa Notícia de Deus e deseja que os seguidores
levem essa informação a todos os cantos do mundo. O relato se inicia com a
pregação de João Batista, o batismo de Jesus e as tentações. O escritor resume a
mensagem de Jesus no Evangelho de Marcos da seguinte forma: “Completou-se
o tempo, o reino de Deus está próximo: convertei-vos e crede na Boa Notícia”.

124
Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

Para entender mais sobre o Evangelho de Marcos, leia: No


caminho de Jesus. Uma leitura do Evangelho de Marcos: <https://
www.paulus.com.br/portal/wp-content/uploads/2012/08/Vida-
Pastoral-2012-Set-Out.pdf>.

Leia também: PAGOLA, José Antonio. O caminho aberto por


Jesus. Petrópolis: Vozes, 2013.

De acordo com as narrativas de Marcos, os seguidores de Jesus organizaram


a sua missão nos mesmos moldes do movimento de Jesus. Saíam pelas aldeias
em equipes missionárias, curando os doentes, expulsando os demônios, ou seja,
procurando eliminar todas as forças que fossem contrárias à proposta do reino de
Deus (Mc 6,7.13). Anunciavam a conversão e a crença no Evangelho (Mc 6,12).
Como Jesus, eram missionários itinerantes e viviam com muita simplicidade e
desapego (Mc 6,8-9).

Para além de um movimento urbano, continuava sendo uma experiência


majoritariamente rural (GASS, 2005).

No fundo, ao longo da narrativa vamos descobrindo que Jesus inaugura


um novo tempo. Deus não nos deixou sozinhos diante dos nossos problemas
e desafios. Ele deseja contruir conosco uma vida melhor e mais humana. Para
seguir essa Boa Notícia é preciso acreditar e conhecê-la evitando deturpações
e interpretações que não estão de acordo com a proposta de Jesus escrita nos
Evangelhos.

125
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

De acordo com as narrativas de Marcos, os seguidores de


Jesus organizaram a sua missão nos mesmos moldes do movimento
de Jesus. Saíam pelas aldeias em equipes missionárias, curando
os doentes, expulsando os demônios, ou seja, procurando eliminar
todas as forças que fossem contrárias à proposta do reino de Deus
(Mc 6,7.13). Anunciavam a conversão e a crença no Evangelho (Mc
6,12). Como Jesus, eram missionários itinerantes e viviam com muita
simplicidade e desapego (Mc 6,8-9).

Para além de um movimento urbano, continuava sendo uma


experiência majoritariamente rural (GASS, 2005).

No fundo, ao longo da narrativa vamos descobrindo que Jesus


inaugura um novo tempo. Deus não nos deixou sozinhos diante
dos nossos problemas e desafios. Ele deseja contruir conosco uma
vida melhor e mais humana. Para seguir essa Boa Notícia é preciso
acreditar e conhecê-la evitando deturpações e interpretações que não
estão de acordo com a proposta de Jesus escrita nos Evangelhos.

O EVangelHo de Mateus
Livro da origem de Jesus Cristo,
filho de Davi,
filho de Abraão (Mt 1,1).

A comunidade de Mateus é constituída na sua maioria por judeu-cristãos,


pessoas empobrecidas, e em muitos momentos e situações se apossa de
referências do Primeiro Testamento para mostrar que a vida e a missão de Jesus
têm profundas raízes no chamado povo eleito.

As elites da época esperavam por um messias que reunisse traços de


nacionalismo, legalismo, dominação sobre os outros povos e triunfalismo.
Anunciavam uma divindade, portanto, violenta e castigadora. A justiça que era
ensinada pelas lideranças, entre as quais se incluíam os fariseus, consistia em
uma observância mecânica da lei. Para isso se utilizava do rigoroso pagamento de
taxas e impostos ao Templo; práticas ritualistas que se resumiam às aparências;
a lei do puro e do impuro; a teologia da retribuição à luz da qual as pessoas ricas

126
Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

e saudáveis eram vistas como justas e recompensadas por Deus e as pessoas


pobres eram consideradas como culpadas por suas desgraças. Com isso, a
maioria das pessoas, que era muito empobrecida, não tinha condições para estar
de acordo com as exigências religiosas.

Jesus faz uma interpretação da lei bem diferente e acusa escribas e fariseus
de transformá-la em mandamentos humanos a serviço dos grupos dirigentes.
Ele afirma que não veio mudar a lei, mas dar-lhe pleno cumprimento, e que a
justiça a ser praticada precisaria superar a noção de justiça dos doutores da lei
(Mt 5,17-20). Ele não enfatiza os detalhes, o legalismo e as aparências, mas diz
que é necessária a misericórdia (23,23); seu critério fundamental para a justiça
é a solidariedade com os pobres, como mostra a cena do Juízo Final (25,31-
46). Ele fez uma inversão no que os escribas pregavam e proclamou os pobres,
então considerados "malditos", como bem-aventurados. Jesus também ultrapassa
as expectativas messiânicas reféns da forma distorcida de interpretação das
promessas do Antigo Testamento. Por essas razões, foi condenado à cruz.

A narrativa de Mateus tem sido, ao longo da história, o Evangelho mais citado


e lido. Sempre foi prestigiado e ocupou o primeiro lugar em todas as listas dos
evangelistas. Possui 28 capítulos, o mais longo dos Evangelhos, por causa disso
foi chamado de “longo Evangelho” (PAGOLA, 2013b, p. 11).

Assim como os outros Evangelhos, a narrativa de Mateus é fruto de um


longo processo redacional. A comunidade teve a função de juntar, organizar, e até
mesmo acrescentar as várias tradições orais e escritas das palavras e da prática
de Jesus para responder aos seus questionamentos e animar a fé em Jesus.

É provável que o Evangelho de Mateus tenha sido escrito por volta do ano 85
d.C., o que pode ser comprovado a partir dos seguintes fatos:

• Mateus usou como fonte o Evangelho de Marcos, composto por volta do


ano 70. Mateus relê e reescreve Marcos, abreviando ou acrescentando out-
ros escritos (Mc 6,30-44; Mt 14,13-21).
• Em 21,41; 22,7; 27,25; Mateus alude a pormenores concretos da destruição
de Jerusalém, a cidade santa, acontecida no ano 70, pelo exército romano.
• No decorrer dos anos, a partir da experiência e da vivência da comunidade,
o Evangelho de Mateus reflete, desenvolve e interpreta o desastre nacional
como castigo de Deus, causado pelos governantes por rejeitar Jesus como
filho de Deus (Mt 24,1-31).
• O capítulo 23 do Evangelho de Mateus evidencia o conflito dessa comu-
nidade com os judeus fariseus (Mt 5,11-12; 10,17-23; 24,9-14), mas o
Evangelho não chega a mencionar a expulsão dos judeus cristãos da sina-
goga, que pode ter ocorrido por volta do ano 85 (Lc 6,22; Jo 9).

127
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Foi ao final do século I que surgiu a narrativa de Mateus. Nesse período o


judaísmo sinagogal começou a fortificar sua perseguição contra os grupos de
judeus que possuíam tradições e tendências diferentes, em especial os grupos
da diáspora. Os destinatários da narrativa de Mateus possivelmente tenham sido
pessoas que viviam na Síria, em Antioquia. A seguir mostraremos alguns motivos
que podem justificar essa realidade:

• Na narrativa de Mateus 4,24, o autor faz uma releitura de Mc 1,28.39 e cor-


rige “por toda a Síria” ao invés de “por toda a Galileia”.
• As citações de alguns textos exclusivos de Mateus se encontram nos escri-
tos oriundos da Síria. Por exemplo, Inácio, bispo de Antioquia martirizado
por volta do ano 107 d.C., cita os textos de Mateus em suas cartas (cf. a
carta a Policarpo: 2,2 e Mt 10,16b).
• Ainda não existem provas da existência de sinagogas na Galileia no primeiro
século e nem antes desse período. As sinagogas surgiram na diáspora.
• A narrativa de Mateus delega um papel relevante a Pedro (Mt 14,28-31;
15,15; 16,22-23; 17,24-27; 18,21; 19,27), que trabalhou na igreja de Antio-
quia (Gl 2,11-14).

A narrativa de Mateus abre o Segundo Testamento. Ele não é o primeiro


livro do Segundo Testamento a ser escrito, mas anuncia que Jesus é a realização
das promessas do Primeiro Testamento. Esse Evangelho constitui a base das
comunidades cristãs até o fim do século II.

No movimento de Jesus existia um discípulo chamado Mateus. Esse


nome significa “dom de Javé” em hebraico: “Indo adiante, viu Jesus um homem
chamado Mateus, sentado na coletoria de impostos, e disse-lhe: ‘Segue-me’.
Este levantando-se, o seguiu” (9,9; cf. 10,3). Papia, bispo de Gerápole, na Frígia,
afirma que foi esse discípulo que escreveu o Evangelho que leva o seu nome.

A questão do autor não é o fato mais importante, isso porque, antes da sua
redação final, os Evangelhos eram ensinamentos catequéticos, orais ou escritos,
sobre palavras e atos de Jesus, com o intuito de apresentá-lo de maneira mais
próxima à comunidade. A maneira como o Evangelho chegou até nós é obra de um
redator que organizou os documentos que com certeza já existiam anteriormente.

O Evangelho foi escrito para a comunidade em que vivia o autor,


provavelmente em Antioquia da Síria, no fim do século I. Para entender melhor os
antecedentes desta comunidade, é importante relembrar alguns fatos históricos
desse período.

128
Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

Por volta do ano 70 d.C., na Guerra Judaica, os romanos devastaram a


cidade de Jerusalém junto com o Templo. Os grupos judaicos foram massacrados
e torturados. Os judeus que restaram tiveram que ir embora como fugitivos. As
poucas comunidades cristãs foram para Pela, no lado oriental do rio Jordão, outras
migraram para a Fenícia, as regiões da Síria, chegando até Antioquia. Nesses
locais as comunidades foram se ajeitando e se constituíram como os judeus da
diáspora, ou seja, um pequeno grupo de gentios convertidos. Foi em Antioquia da
Síria que os seguidores do movimento de Jesus foram chamados, pela primeira
vez, de cristãos (At 11,26).

Nesse momento surgiu o Evangelho de Mateus para animar essas


comunidades que desde a Palestina seguiam Jesus.

Por volta do ano 66 d.C., os romanos tentaram tomar posse das riquezas
que havia no Templo de Jerusalém. Os vários grupos de judeus, mesmo com
ideais diferentes, uniram-se para lutar contra o Império. Essa revolta foi chamada
de Guerra Judaica (66-73 d.C.). As consequências foram desastrosas: o Templo e
a cidade de Jerusalém foram destruídos; saduceus, zelotas, sicários e herodianos,
grupos influentes na vida das pessoas, desapareceram. Dois grupos de judeus não
assumiram a guerra até o fim e sobreviveram: os judeus fariseus e os judeus cristãos.

Nesse momento de crise profunda, o judaísmo necessitava se organizar


para sobreviver. Liderados pelo rabi Johanan ben Zakai, os judeus fariseus se
empenharam na reorganização dos valores e da crença do judaísmo, aderindo
como instituição central a Sinagoga. Esse grupo conseguiu o apoio do Império
Romano, que estava interessado na organização dos judeus fariseus, sua lei e
suas sinagogas para controlar o povo judeu. Após a morte de Johanan ben Zakai,
as autoridades farisaicas se enrijeceram em torno da lei e os grupos que não
aceitaram a linha oficial foram perseguidos e finalmente expulsos da Sinagoga,
por volta do ano 85.

Nesse período pairava uma série de dúvidas e divisão. De um lado,


estavam os judeus fariseus que se consideravam o verdadeiro Israel e os
intérpretes legítimos da lei. De outro, o grupo dos judeus cristãos que também
se consideravam o verdadeiro Israel. O grupo de judeus fariseus exercia suas
atividades nas sinagogas, de onde controlava o cotidiano do povo, através da
função de explicar, interpretar e impor a lei.

O grupo de judeus fariseus acreditava que a libertação do povo só


aconteceria com a estrita observância da lei do puro e impuro (Lv 11-15).
As pessoas que não tinham as mínimas condições de cumprir com todas as
exigências da lei eram consideradas impuras e malditas. O número de pessoas
excluídas e marginalizadas – doentes, pobres, estrangeiros, deficientes – era
desproporcionalmente alarmante.

129
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

O movimento que está por trás da narrativa de Mateus faz a sua opção
de interpretar de forma diferente a lei: “Ide, pois, e aprendei o que significa:
‘Misericórdia quero, e não o sacrifício” (Mt 9,13; cf. 12,7). Essa narrativa é a única
que cita o profeta Oseias 6,6 duas vezes. Jesus é apresentado como o mestre
de uma lei baseada na misericórdia. É necessário entendermos que a palavra
misericórdia, para a comunidade de Mateus, tem a ver com compaixão, ou seja,
os seguidores do movimento de Jesus sentem a dor do outro e com isso buscam
ajudá-los a sair desta situação de sofrimento.

Esses grupos judaicos estavam buscando definir e garantir sua


identidade. Nesse contexto, algumas perguntas pairavam na cabeça de muitos
judeus: Quem estava falando verdadeiramente pelo Deus de Israel? Quem de fato
compreendia e interpretava com mais exatidão a Torá? Quem estava capacitado
para interpretar o passado e conduzir o povo de Deus ao futuro?

Foi então por meio desses questionamentos que as comunidades que


inspiraram a narrativa de Mateus acolheram e reinterpretaram os principais
fatos e palavras de Jesus a partir de seu contexto e produziram suas próprias
reflexões para reanimar seus membros a perseverarem no seguimento de Jesus.
O momento era muito delicado, pois o movimento de Jesus atravessava uma forte
crise, pois estava em via de separação do judaísmo. Era um grupo minoritário,
frágil, oprimido pelo Império e pelas autoridades judaicas.

As inúmeras brigas externas com os judeus fariseus, apoiados pelo Império


Romano, não eram o único obstáculo que as comunidades que inspiraram a
narrativa de Mateus enfrentavam. Existiam também os conflitos internos. Eles
eram constituídos em sua maioria por judeus cristãos, apegados à lei e às
tradições judaicas. Nas comunidades havia também os “gentios” e judeus cristãos
helenistas, ou seja, os judeus que tinham forte influência da cultura grega e
não eram apegados à lei judaica. Na vida comunitária do dia a dia, os conflitos
eram quase inevitáveis. Ao interpretar e seguir as palavras e a prática de Jesus
surgiram as divergências: a observância rigorosa da lei e a tradição judaica, a
adaptação ao modo de vida dos “gentios”, a superioridade dos judeus cristãos
em relação aos gentios convertidos, a disputa pela liderança (18,1-11) etc. Nas
intrigas com os judeus fariseus e com o Império Romano, as comunidades que
inspiraram a narrativa de Mateus tiveram de fortalecer sua identidade e unidade,
enfrentando as divergências internas e entrando em diálogo abrangente e fraterno.
Nessa realidade, o Evangelho de Mateus foi escrito como um ponto de referência
em forma de catequese para suas comunidades. De modo especial, os textos
exclusivos do Evangelho de Mateus são uma resposta a essa realidade.

130
Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

O EVangelHo de Lucas
“Visto que muitos já tentaram compor
uma narração dos fatos que se
cumpriram entre nós – conforme nos
transmitiram os que, desde o princípio,
foram testemunhas oculares e ministros
da Palavra – a mim também pareceu
conveniente, após acurada investigação
de tudo desde o princípio, escrever-te
de modo ordenado, ilustre Teófilo,
para que verifiques a solidez dos
ensinamentos que recebeste” (Lc 1,1-4).

Sem dúvidas, a narrativa de Lucas é muito atraente. Talvez seja o Evangelho


que pode nos motivar ao conhecimento de Jesus como uma mensagem que
demonstra um Deus compassivo, defensor dos pobres, curador dos doentes e
amigo de pecadores.

É provável que o Evangelho de Lucas tenha surgido por volta dos anos 85
a 90, em alguma cidade grande da Ásia Menor, dominada pelo Império Romano.
Pode ter sido Antioquia, Éfeso, ou mesmo numa cidade da Grécia. Estas cidades
eram, em sua maioria, cidades portuárias, onde circulavam muitas pessoas
vindas de diversas regiões, com culturas e religiões diferentes. Nestas cidades
vigorava o helenismo, um sistema que os romanos herdaram dos gregos e que
se caracterizava essencialmente pelo estímulo à competição comercial e à busca
desenfreada do lucro.

O helenismo gerava uma sociedade com fortes contrastes sociais, cerca de


um terço da população era constituída de escravos. Para a mentalidade greco-
romana, a desigualdade social era considerada normal. Ser pobre ou ser rico era
o desígnio dos deuses, diziam os romanos.

Em contraposição, na comunidade cristã, composta em sua maioria de


pobres, com alguns ricos, se aguardava a chegada do Reino de Deus. Um reino
de fraternidade e partilha, sem injustiças sociais, mas com a demora da volta de
Jesus, começa um relaxamento dos cristãos, e o ambiente externo das diferenças
sociais vai invadindo a comunidade. É preocupado com essa situação que o autor
do Evangelho de Lucas faz uma releitura da vida e do ensinamento de Jesus
acentuando o compromisso com os marginalizados e a prática da misericórdia.

131
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Já sabemos que cada Evangelho surgiu numa comunidade específica que


sabia quem era seu autor ou seus autores. Os nomes dos autores não apareciam
no texto porque para aquela realidade não fazia sentido. Assim, circularam de
forma anônima mais ou menos até o ano 150 d.C., quando se começava a definir
a lista dos livros considerados inspirados do Segundo Testamento. É nesse
momento que lhes foram atribuídos os nomes de Marcos, Mateus, Lucas e João.
O nome Lucas é citado na carta de Paulo a Filêmon (v. 24), e aparece mais
duas vezes: uma em Cl 4,14 e outra em 2Tm 4,11, que são cartas escritas por
discípulos de Paulo. De acordo com Pagola (2013b, p.12):

Lucas é o primeiro escritor cristão a narrar uma espécie de


“história da salvação” seguindo certa ordem. Lucas compõe sua
obra em duas partes. A primeira é constituída pelo Evangelho e
está centrada em Jesus; depois da infância de Jesus narra-se
a trajetória desde a Galileia até Jerusalém, onde culmina com
sua crucificação, sua ressurreição e a cena da Ascensão. A
segunda parte chama-se Atos dos Apóstolos e está centrada
na primeira Igreja. Neste escrito observa-se uma direção
inversa ao Evangelho: começa em Jerusalém com a ascensão
e depois narram-se os primeiros passos dos discípulos de
Jesus, que serão suas testemunhas ‘em Jerusalém, em toda a
Judeia, na Samaria e até os confins da terra’.

No entanto, ao compararmos as narrativas de Atos e Lucas com as Cartas


de Paulo, encontraremos diferenças importantes, que nos levam a crer que o
Evangelho e os Atos não foram escritos por esse Lucas que foi companheiro de
Paulo. Em Atos dos Apóstolos, Paulo é descrito como um missionário que tem
poder de curar os doentes, de expulsar demônios e ressuscitar mortos (At 14,3.8-
10; 16,16-18.25-34; 20,4), mas não é considerado um apóstolo. Nas cartas, como
em 2Cor 12,5-10, o próprio Paulo se apresenta como uma pessoa frágil, sem
poder algum, mas se apresenta como apóstolo, chamado e enviado por Jesus,
que por amor a Cristo crucificado se faz solidário com os mais sofridos da história.
Além disso, em Atos dos Apóstolos, Paulo é muito semelhante a Pedro, é mais
inclinado a se adaptar diante das exigências dos judeus, e se apresenta como
cidadão romano, o que não acontece nas Cartas Paulinas.

O autor de Lucas e Atos deve ter sido outra pessoa, possivelmente um


admirador de Paulo, talvez um membro de uma das comunidades de origem
paulina. Ele não era da Palestina, pois atrapalha-se ao falar da geografia da região.
Possivelmente um prosélito, alguém que entrou em contato com a religião judaica,
estudou a fundo as Escrituras e mais tarde aderiu ao Evangelho de Jesus Cristo.

O Evangelho de Lucas é considerado o Evangelho da alegria, isso porque ao


longo de sua narrativa os seguidores de Jesus são convidados a acolher Jesus de
maneira alegre e com prazer.

132
Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

Entendendo um Pouco Sobre Atos


dos Apóstolos
Os acontecimentos narrados no livro dos Atos dos Apóstolos, assim como
os Evangelhos, têm como objetivo principal apresentar a vida das primeiras
comunidades entre os anos 30 e 60. O autor inicia situando a comunidade dos
seguidores e seguidoras de Jesus em Jerusalém (1,4) e termina com Paulo
chegando em Roma (28,14.31). O caminho começa em Jerusalém, na periferia do
Império Romano, atinge toda a Judeia, Samaria, Ásia Menor, Grécia e Europa. É
o caminho que vai da periferia para o centro, ou seja, de Jerusalém para Roma.
Mais do que fazer uma crônica histórica, o autor se preocupa em mostrar a ação
do Espírito Santo agindo na comunidade. O grupo dos Doze, inspirado pelo
Espírito Santo, dirige a comunidade. Esse grupo institui uma nova liderança e
mantém a direção das comunidades dentro e fora da Palestina.

De acordo com a tradição, a narrativa de Atos foi escrita por Lucas, o


companheiro de Paulo (Cl 4,14; Fm 24; 2Tm 4.11). Em algumas passagens o autor
narra como se ele estivesse presente nas viagens missionárias de Paulo. Será
que essa informação procede? Vejamos então: o livro dos Atos dos Apóstolos
apresenta um Paulo conciliador, agindo de acordo com as leis judaicas: frequenta
o Templo, faz peregrinações a Jerusalém, cumpre votos, faz rituais de purificação
e etc. Uma imagem de Paulo bem diferente das cartas (9,20;13,14;16,1-3;
20,16;21,15;24,11.17-18).

Outros afirmam que o livro dos Atos foi escrito por pessoas que viviam em
comunidades fundadas por Paulo, ou seja, aqueles cristãos da segunda geração
(70-100), entre os anos 80 e 90. Afinal, esse livro foi escrito onde?

Provavelmente foi escrito na cidade de Antioquia, ou em Éfeso, ou mesmo numa


cidade da Grécia. O importante é saber que eram comunidades fundadas por Paulo,
compostas por estrangeiros/as e judeu-cristãos, ricos e pobres, que enfrentavam
problemas por causa desta multiculturalidade. Atos foi escrito para comunidades que
precisavam de uma confirmação quanto aos ensinamentos recebidos.

Com o intuito de legitimar os ensinamentos transmitidos às comunidades, o


autor faz questão de afirmar – e faz muitas vezes – que essa instrução é guiada
pela ação do Espírito, e o grupo dos Doze exerce um papel fundamental: é a
garantia de que o caminho traçado por Jesus continua por meio dos apóstolos e
dos outros enviados pelos Doze. Quando Atos foi escrito, Pedro, com os Onze,
Paulo, Tiago etc., os fundadores das primeiras comunidades, já haviam morrido. E
falsos mestres, segundo a narrativa, estavam aparecendo (At 20,25-31).

133
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

A narrativa dos Atos dos Apóstolos se trata de uma pequena cartilha da


comunidade, pensada com o intuito de instruir a comunidade com relação aos
seus problemas concretos. Se trata de um pequeno reforço para os missionários
continuarem o anúncio da Boa Nova. Na comunidade o que mais afetava o dia
a dia era a convivência entre judeus e estrangeiros. Foi difícil para os judeus,
ainda apegados às tradições judaicas, acolher os estrangeiros, sentar com eles à
mesma mesa (10,28; Lc 14,15-24), partilhar do mesmo modo de vida, comungar
dos mesmos ideais. Sem dúvida, foi um longo processo.

Se existiam inúmeros problemas de ordem interna, também em nível externo


essas comunidades eram questionadas pelos judeus fariseus que não admitiam
essa pluralidade e mistura. Para reafirmar a autoridade de Paulo, o livro dos
Atos o apresenta como alguém reconhecido pelos apóstolos (9,26-28) e como
um verdadeiro judeu (22,1-3). Além do conflito com as autoridades judaicas, as
comunidades cristãs também precisavam conquistar o direito de cidadania. Era
questão de sobrevivência não criar caso com o Império Romano. Por isso, o autor
procura mostrar que era possível ser romano e, ao mesmo tempo, cristão. Para
comprovar isso ele apresenta o exemplo de Cornélio, um centurião romano (10,1-
2) que acolhe a Boa Nova. Também insiste em mostrar que as autoridades das
cidades greco-romanas colaboram com os cristãos (21,31-40).

Os grupos que estão por trás dos Atos dos Apóstolos enfrentaram muitas
dificuldades e conflitos internos e externos. O livro dos Atos expressa a tentativa
da comunidade de fazer uma revisão, de voltar às origens e encontrar motivações
para resistir.

O EVangelHo de JoÃo
É possível que a narrativa joanina tenha levado mais ou menos 60 anos para
ser escrita. Provavelmente, foi sendo elaborada em várias regiões: no Norte da
Galileia, na Síria e na Ásia Menor. A última redação do livro teria acontecido em
Éfeso, na Ásia Menor, por volta do ano 95, com alguns acréscimos posteriores.
É um escrito que deve ser lido como interpretação e vivência das comunidades,
com o objetivo claro de aprofundar a fé em Jesus, Messias e Filho de Deus. Na
tentativa de entender melhor esse texto, vamos olhar a história e a vida dessas
comunidades.

Após a dominação dos gregos (333 a.C.), a situação de vida na Palestina se


tornara muito difícil. O povo estava sendo dominado, explorado e escravizado.
Contudo, existiam grupos de populares que resistiram à dominação e buscaram
uma forma alternativa de viver.

134
Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

No período de Jesus e um pouco depois, as revoltas e os descontentamentos


com a opressão dos romanos atingiram o auge. Em 66 d.C., quando os romanos
saquearam o Templo de Jerusalém, os vários grupos, mesmo tendo posições
diferentes, se uniram para lutar contra os dominadores. Esse movimento ficou
conhecido como a Guerra Judaica (66–73 d.C.).

Nessa guerra, o povo judeu foi derrotado pelos romanos. Jerusalém, a


cidade santa, e o Templo foram destruídos. O Templo era uma instituição central
na vida do povo, controlava a sua vida em todos os aspectos. Os principais
grupos que participaram da guerra, os saduceus, os essênios, os zelotas e os
sicários, foram desarticulados e quase desapareceram. A guerra desestruturou a
vida dos habitantes da região da Judeia. Os judeus cristãos e os judeus fariseus
não assumiram a luta até o fim, por isso conseguiram sobreviver. Após a guerra,
esses grupos começaram a reorganizar a vida do povo.

Os fariseus e os escribas, menos dependentes do Templo, desenvolveram


uma estrutura alternativa. Fazia tempo que eles exerciam suas atividades nas
sinagogas, através da função de explicar e interpretar a lei. No contexto de
destruição das instituições judaicas, como o Templo e o Sinédrio – conselho
supremo dos judeus –, o povo buscou refúgio e segurança no movimento dos
fariseus e escribas. Aos poucos, os judeus fariseus foram se fortalecendo, a
Sinagoga passou a ser uma forte instituição para garantir, proteger e controlar
a vida do povo. Assim, os romanos perceberam que seria vantajoso se aliar aos
judeus fariseus.

A aliança com os romanos favoreceu o desenvolvimento dos grupos de linha


farisaica. Surgiram muitos grupos, entre eles a Academia de Jâmnia, fundada pelo
rabino Johanan ben-Zakai. O chefe desse grupo, o Patriarca, era reconhecido pelo
Império Romano como representante do povo judeu. Como aliado dos romanos,
eles tinham o direito de interpretar e aplicar a lei, utilizando-a também para cobrar
tributos dos judeus. Isso interessava aos romanos.

A lei principal era a do Sábado, que nasceu para manter viva a memória
da libertação e assegurar o descanso da comunidade, mas que com o tempo se
tornou uma lei opressora. O cumprimento da lei foi colocado acima da pessoa.
Outra lei igualmente importante era a da pureza. Essa lei dividia as pessoas e as
coisas em puro e impuro.

135
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

A lei do puro e do impuro era muito complexa, pois definia quem estava mais
perto e quem estava mais longe de Deus. Uma pessoa doente ou com alguma
deficiência física era considerada impura por causa de algum pecado, uma vez
que a doença era vista como castigo de Deus. O simples contato com pessoas ou
coisas impuras já causava impureza. Estar impuro significava não poder participar
do culto e, consequentemente, da salvação.

Por conta das regras impostas que determinavam quem estava impuro, e
em que condições, muitas pessoas viviam em situações quase permanentes de
impureza. As autoridades judaicas, através da lei, tinham a pretensão de dominar
o corpo da mulher e do homem. Essa situação de opressão possuía maior peso
para a mulher, que ficava impura por causa da menstruação (Lv 15,19), das
relações sexuais (Lv 15,18) e do dar à luz (Lv 12,2-5). Para se purificarem, as
pessoas deviam levar ofertas e pagar o tributo religioso em dia. Isso custava
muito caro, dificultando para os pobres o cumprimento da lei. No fundo, essa lei
era mais severa para as pessoas que fossem mais pobres.

Os judeus fariseus acreditavam que a exigência severa do cumprimento


da lei era uma exigência do próprio Deus. Esse modo de crer, ligado à crença
na ressurreição dos mortos e na teologia da retribuição, com prêmios e castigos
para esta vida e a outra, era usada para manter o povo na obediência rigorosa
às normas impostas pelos dirigentes fariseus. A teologia da retribuição estava
ligada à ideia de troca: se a pessoa cumprisse a lei, seria abençoada com terra,
descendência e vida longa. Se não cumprisse, receberia o castigo: pobreza,
esterilidade e vida breve (Dt 30,15-20).

A lei era ensinada primordialmente na sinagoga. Em torno do ano 85, as


sinagogas estavam espalhadas pela Ásia Menor. Nessa região, a comunidade
judaica vivia de forma independente, como uma cidade dentro da cidade. A
aliança com os romanos possibilitou que a religião judaica, organizada pelos
judeus fariseus, fosse considerada como Religião Lícita – ou seja, religião
autorizada pela lei do Império Romano. Nesse sentido, os judeus agregados à
sinagoga conquistaram o direito de se reunir, de manter uma caixa comum e de
possuir propriedades. Eram até dispensados de prestar culto às divindades do
Império Romano, tinham o direito de observar o sábado, de praticar seu culto
e a sua lei e participavam, quando necessário, do exército só de judeus. Cada
comunidade local tinha suas leis administrativas, estabelecia locais para estudo,
culto e sepultamentos; oferecia ajuda aos indigentes e mantinha tribunais para
julgar disputas entre judeus.

136
Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

Os judeus fariseus, com o intuito de manter a sua identidade enquanto grupo


e manter seus interesses, começaram a exigir uma observância rigorosa da lei. Se
tratavam de 613 regras para serem cumpridas e observadas. A opressão era muito
grande. No interior da sinagoga surgiram alguns grupos, entre eles os dos cristãos,
que começaram a relativizar a importância da lei, pondo em primeiro lugar a vida
humana. Isso culminou em vários conflitos. Quem não cumpria a lei inevitavelmente
era perseguido, torturado e até expulso da sinagoga, consequentemente estava
sujeito à perseguição do Império Romano. No final do período do imperador
Domiciano (81-96), a perseguição contra os cristãos foi intensificada e generalizada,
atingindo especialmente os grupos cristãos da Ásia Menor.

Um desses grupos era justamente a comunidade joanina. Comunidade essa


que surgiu entre os judeus que acreditaram que Jesus era o Messias esperado
por eles. A guerra dos judeus contra os romanos (66 d.C.) provocou a dispersão
das comunidades cristãs. Essas comunidades foram para o Norte da Palestina e
chegaram até a Síria. Em torno de 70 d.C. emigraram para Éfeso.

A narrativa joanina demonstra que a comunidade era composta por pessoas


pobres e marginalizadas que começaram a viver de um jeito novo. Irmãos e irmãs,
unidos não pela lei, mas pelo amor. Essas pessoas, provavelmente, viviam sob a
opressão da lei. Elas conseguiram ver na proposta cristã um caminho alternativo.
Vivenciaram o amor mútuo e a certeza de que a presença do Verbo Encarnado,
em cada mulher e homem, era a base que sustentava e animava sua vida. Se
tratava de um grupo plural e misto, com uma população proveniente de vários
grupos e religiões.

O Tema da RessurreiÇÃo
Num primeiro momento as comunidades cristãs primitivas experimentaram
a morte de Jesus como um enorme fracasso, como se tivesse chegado ao fim
qualquer forma de esperança (Lc 24, 13-24).

Pouco a pouco os seguidores de Jesus vão percebendo que a sua presença


continua mais viva do que nunca na vida da comunidade que acolhe os forasteiros
em sua casa e partilha com eles o pão sobre a mesa (Lc 24,25-32). É a partir
dessa experiência com Jesus vivo presente em seu meio que se encontram, pois
haviam se dispersado (Lc 24,33-35).

137
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Mesmo após o assassinato de Jesus, nem o poder da religião nem o poder do


império conseguiram matar o seu projeto. Jesus continuou vivo nas comunidades
que levaram a sua mensagem adiante e divulgando o reino de Deus. Jesus
continuou vivo por intermédio do seu espírito, da força de sua mensagem que
já havia incutido nos seus seguidores um desejo enorme de experienciar aquela
mensagem de libertação e transformação.

Interessante notar que foram as mulheres as primeiras a testemunhar


a ressurreição de Jesus (Mt 28,1-8; Mc 16,1-8; Lc 24,1-8; Jo 20,11-18). Isso
demonstra que as mulheres eram seguidoras de Jesus e muito comprometidas
com o seu projeto. Elas foram testemunhas fiéis a Jesus até o fim, junto à cruz
(Mt 27,55-56; Mc 15,40-41; Lc 23,49; Jo 19,25). Não hesitaram em permanecer
com ele até o fim, e acima de tudo, não se acovardaram. Foram as mulheres
que por primeiro perceberam que ele estava vivo e que seu Espírito continuava
animando a vida da comunidade, e por isso não poderiam desanimar em promover
ativamente os ideais do reino de Deus. Foi por causa das discípulas, testemunhas
da ressurreição, que o projeto de Jesus não morreu aos pés da cruz. Tiveram
a coragem de denunciar todas as forças que destroem a vida. A cruz de Jesus
significou a vida e a libertação.

As Cartas Paulinas
Paulo, o apóstolo de Jesus, é um personagem apaixonante para os cristãos.
Esse personagem pode ser conhecido pela narrativa do Atos dos Apóstolos e,
sobretudo, pelas suas próprias cartas ou que foram atribuídas a ele. O conjunto
das cartas paulinas soma um total de 13 cartas, divididas da seguinte forma:

• Cartas maiores: Romanos 1 e 2; Coríntios; Gálatas; Tessalonicenses.


• Escritos da prisão: Efésios; Filipenses; Colossenses e Filêmon.
• Escritos pastorais: 1 e 2 Timóteo e Tito.

Antes de aprofundarmos um pouco mais sobre as cartas de Paulo,


conheceremos a vida desse personagem, figura ímpar no cristianismo e o principal
propagador do Evangelho de Jesus.

138
Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

Quem Foi Paulo?


A narrativa de Atos nos informa que Paulo nasceu em Tarso, região da Cilícia,
Ásia Menor, atual Turquia (At 9,11; 21,39; 22,3; 9,30; 11,25). Se trata de uma
cidade grande, onde havia uma população de mais ou menos 300 mil habitantes.
Tarso era um local que possuía um centro importante de cultura e de comércio. A
estrada romana que ligava o Oriente e o Ocidente passava por lá.

Uma pergunta nos questiona: Como é que Paulo, que era judeu, nasceu tão
distante, numa cidade grega da Ásia Menor? Desde o sexto século a.C. havia um
grande sistema de migração de judeus para fora da Palestina. Em praticamente
todas as cidades do Império Romano existiam bairros judeus e cada um com sua
própria sinagoga e organização comunitária. Eles formavam a assim chamada
diáspora. De acordo com Mesters (2008, p. 15):

Havia uma comunicação muito intensa entre Jerusalém e a


diáspora; romarias, visitas, promessas, estudo... Jerusalém
era o centro espiritual de todos os judeus. Assim se entende
como Paulo, nascido em Tarso, foi criado em Jerusalém (At
22,3; 26,4-5; cf. 23,16). Ele mesmo dizia: ‘Todos os judeus
sabem como foi minha vida desde minha juventude e como,
desde o início, vivi no meio do povo e em Jerusalém’ (At 26,4).

Paulo nasceu no seio de uma família judaica, consequentemente foi educado


dentro dos padrões das leis de Deus e das “tradições paternas” (Gl 1,14). Os
judeus que se encontram na diáspora viviam com empenho a religião judaica.
Fazia parte de suas preocupações diárias a observância da lei de Deus. Por
esse motivo, não aceitavam qualquer costume imposto pelo Império Romano que
dificultasse a observância dos mandamentos de Deus.

O apóstolo Paulo viveu num bairro judeu que era muito rigoroso e exigente
com relação às práticas da lei. Era de lá que podia perceber o ambiente aberto
que pairava sobre a cidade grega. Foram justamente esses dois locais que
influenciaram diretamente a sua vida. Interessante, porque Paulo procurara
se adaptar dependendo do local em que estivesse, por exemplo, possuía dois
nomes, um para cada ambiente: Saulo era o seu nome judaico (At 7,58), e Paulo
o nome grego (At 13,9). Contudo, ele prefere e assina Paulo, mas Deus o chama
de Saulo (At 9,4).

Como todos os garotos judeus de sua época, Paulo foi ensinado na casa dos
pais e na sinagoga do bairro, a escola estava ligada à sinagoga. Para a formação
básica era previsto: aprender a ler e escrever, conhecer e aprender a lei de Deus
e a história do povo; assimilar as tradições religiosas; aprender as orações, em
especial os salmos. O método era simples: pergunta e resposta, ou seja, repetir e
decorar, e também a disciplina e a convivência.

139
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Paulo também teve uma formação de nível superior. Isso aconteceu em


Jerusalém, aos pés de Gamalieu (At 22,3). Esse estudo era composto dos
seguintes ensinamentos: o estudo da lei ou da Torá; a tradição dos antigos; a
halaká que ensinava a viver a vida de acordo com a lei de Deus; a Hagadá que
ensinava a ler a vida de acordo com as leis de Deus; e o estudo da midrash, que
era a interpretação da Bíblia hebraica.

Sem dúvida, a leitura da Torá era a centralidade da formação de qualquer


garoto judeu. Com isso a piedade do povo era marcada profundamente. “Desde
criança” (2Tm 3,15), os judeus aprendiam sobre a importância da Torá nas suas
vidas. A mãe era a primeira a transmitir esses ensinamentos aos filhos (2Tm 1,5 e
3,14). Paulo desde criança aprendeu que a Torá era inspirada por Deus e útil para
instruir, refutar, corrigir, educar na justiça (2Tm 3,16-17; Rm 15,4; 1Cor 10,6.11).

Ao mesmo tempo que Paulo teve toda essa oportunidade de estudo entre
os sábios de Jerusalém, vivia na Galileia um homem chamado Jesus, pobre,
carpinteiro e que não teve condições de estudar em Jerusalém. Ao que tudo
indica, Paulo e Jesus nunca se encontraram em vida (2Cor 5,16). Jesus era mais
velho que Paulo, em torno de cinco ou oito anos. Contudo, os dois devem ter tido
formação básica em casa, na sinagoga e na escola ligada à sinagoga. Mesters
(2008, p. 18) faz uma breve comparação entre Jesus e Paulo:

Paulo é da cidade. Jesus era do campo, do interior. As


comparações de Jesus são quase todas do mundo rural:
semente, campo, flores... As comparações de Paulo vêm do
ambiente da grande cidade que marcou sua vida. Paulo pode
não ter entendido muito de roça e de plantas, mas entendia
de jogos urbanos. Uma cidade do tamanho de Tarso tinha seu
estádio de esportes onde, a cada quatro anos, se organizavam
jogos de atletismo: corridas, lutas, lançamento de disco, acertar
no alvo etc. Quando jovem, Paulo deve ter gostado dos jogos
no estádio. Pois, como adulto, deles ainda se lembra e os usa
para comparar as exigências do Evangelho: ganhar a coroa
(1Cor 9,25), perseguir o alvo (Fl 3,12-14), alcançar o prêmio
(1Cor 9,26), correr na direção certa (1Cor 9,26; cf Gl 2,2; 5,7;
Fl 2,16). Ele fala em combate (2Tm 4,7) e pugilato (1Cor 9,26).
Conhece o esforço e a disciplina dos atletas (1Cor 9,25).

Paulo tinha uma profissão, era fabricante de tendas (At 18,3). Pode ser que
tenha herdado esta profissão do próprio pai, pois era esse o costume da época. O
aprendizado começava por volta dos 13 anos e durava de dois a três anos.

140
Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

Paulo fazia questão de dizer que tinha cidadania romana (At 16,37; 22,25)
e que possuía esse direito desde o seu nascimento (At 22,29), ou seja, herdou
do seu pai. Se a família de Paulo possuía cidadania romana, significava que
tinha uma boa fortuna (At 22,28). É muito provável que Paulo tenha aprendido
a profissão do pai não tanto para sobreviver disso como trabalhador, mas para
administrar a oficina do pai como proprietário.

Agora que já conhecemos um pouco de Paulo, vamos conhecer as cartas


que ele escreveu ou que foram atribuídas a ele.

Para entender mais sobre Paulo, bem como as pesquisas


recentes a seu respeito, leia: HORSLEY, Richard A. Paulo e o
Império. Religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo:
Paulus, 2011.

Carta aos Romanos


As cartas escritas por Paulo mostram o empenho missionário em levar a Boa
Nova para além da cultura judaica. Paulo foi o grande evangelizador do mundo
gentio, e as comunidades que receberam sua influência estavam espalhadas
em diferentes regiões da Ásia Menor e Europa: Filipos, Tessalônica, Corinto,
Galácia. Essas comunidades possuíam características próprias, fruto da realidade
local de cada uma, mas também apresentavam pontos em comum, uma vez que
estavam inseridas na cultura greco-romana. Destacamos três semelhanças entre
elas. Primeira: as comunidades são formadas, basicamente, por cristãs/os de
origem greco-romana. Segunda: seus membros sofrem pressão dos judaizantes,
que querem obrigar os cristãos gentios à prática da lei mosaica, em especial os
ritos de purificação e a circuncisão (3, 1-19; Gl 3, 1-29). Terceira: os membros
das comunidades têm dificuldade em deixar para trás os costumes trazidos da
sua cultura de origem, o que gera conflitos (1Cor 5,1-13; 6,1-20; 7,12-16); têm
problemas de relacionamento na vida comunitária (2, 6-7;1Cor 12,1-14,25); e têm
problemas com as autoridades locais (1Cor 6, 1-11).

A carta de Paulo aos Romanos é a primeira carta do chamado cânon paulino.


Se trata da carta mais longa e também a que possui uma teologia bastante
elaborada. Essa carta pode ter sido escrita em Corinto mais ou menos em 57 ou
58 d.C.

141
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

A população da época era em torno de um milhão de habitantes, a maioria se


tratava de plebeus libertos. Nero era o grande imperador e o povo estava marcado
por uma grande massa de escravos.

Paulo não conhece essa comunidade e por esse motivo escreve para
preparar uma possível visita. Mesmo em meio a sua complexidade teológica,
mantém o objetivo pastoral em todas as cartas.

As comunidades cristãs de Roma cresceram muito, isso por conta do


ingresso de gentios (1,5-6.13; 11,13). Essa situação gerava muitos conflitos, por
exemplo, entre judeu-cristão e étnico-cristão, talvez esse seja um dos motivos por
que o imperador Cláudio expulsou os judeus de Roma e com ele muitos cristãos,
como o casal Priscila e Áquila, conhecido por Paulo na comunidade de Corinto (At
18,1-3).

De acordo com o que está escrito na carta de Paulo aos Romanos, a


situação do povo é crítica e deprimente. Isso porque os cristãos se encontram
subordinados à ideologia imperial chamada de “pax romana”, no sistema da
escravidão, e a lista de pecados é assustadora (Rm 1,28-32). Por outro lado, os
judeus estão submetidos à ideologia da lei Mosaica, no sistema da circuncisão, e
a lista de pecados também é muito grande (Rm 2,17-24). As soluções para todos
esses conflitos só podem ser resolvidas por meio da graça, dom gratuito e dado
por Deus (Rm 3,21-28).

Carta aos Coríntios


Assim como a Carta aos Romanos, a Carta aos Coríntios demonstra que
existem muitos conflitos na comunidade. Contudo, a comunidade é formada na
sua maioria de pessoas pobres e desvalidas. Foi Paulo mesmo quem fundou esta
comunidade. No momento em que escreve a carta, por volta do ano 67 ou 57
d.C., está em Éfeso, essa seria a segunda carta, a primeira possivelmente tenha
se perdido de acordo com o que está escrito em 1Cor 5,9. Provavelmente esta
segunda carta seria a união de várias outras.

Paulo chegou a Corinto após o discurso filosófico feito em Atenas, que aliás
foi um grande fracasso. Em um ano e meio, Paulo descobriu que a opção pelos
mais pobres era a mensagem culminante da cruz de Cristo (At 18,11). Foi acolhido
pelo casal Priscila e Áquila e se inseriu na vida da cidade através de trabalhos
manuais como fabricante de tendas.

142
Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

Carta aos Gálatas


A Carta aos Gálatas pode ter sido escrita após o ano 53 e não mais que 57
d.C. O tema principal que Paulo trata nesta carta é o da justificação através da fé
e pela liberdade dada por Cristo. Esta carta se tornou uma forma de circular pela
região da Galácia e demonstra o caráter forte e apaixonado de Paulo, além de
suas intensas convicções teológicas.

Paulo passou pela Galácia por ocasião da sua segunda viagem missionária
(At 16,6). E aí fundou comunidades que voltaria a visitá-las na sua terceira viagem
missionária (At 18,23). Éfeso representou uma espécie de posto missionário, a
partir do qual Paulo mantinha contato com as comunidades. Foi aí que chegaram
para ele notícias da Galácia.

Os povos da Galácia viviam sob condições rurais, mais do que em realidades


urbanas. A região era muito distante e totalmente esquecida pelas autoridades
romanas. Por conta da sua origem estrangeira, tinham direitos limitados, por
exemplo, não podiam adquirir propriedade. Por conta disso, viviam como
peregrinos e viajantes. Nesse sentido, Paulo fala a essa comunidade sobre a
liberdade em Cristo. Escravidão e liberdade percorrem todo o texto.

Carta aos EFésios, Filipenses,


Colossenses e FilÊmon
Existe certa relação entre essas cartas. É provável que tenham sido escritas
na prisão. Não se sabe ao certo de qual prisão Paulo se refere, uma vez que
esteve preso em Éfeso, Cesareia, Filipos e Roma.

O interessante é que entre essas quatro cartas existem muitas similaridades,


principalmente em relação à doutrina. Contudo, Efésios e Colossenses
apresentam um conteúdo mais aproximado, parece que a primeira retoma e
amplia a segunda.

Do ponto de vista doutrinário e teológico, Efésios apresenta maior relevância


porque reapresenta para a nova geração de cristãos toda a mensagem de
Paulo. Possivelmente foi escrita em torno do ano 90 d.C., por isso é considerada
deuteropaulina, ou seja, pós-paulina. O autor teria sido um seguidor de Paulo,
muito ligado a seu mestre e que morava no vale do rio Lico, região de Éfeso.
A carta apresenta uma forma de ver o projeto do reino de Deus para toda a
humanidade por meio de Jesus Cristo.

143
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Filipenses tem como conteúdo principal a palavra “Evangelho” e toda


trabalhada na arte da alegria e do afeto, por esse motivo se distingue de todas as
outras cartas. Trata-se da igreja primogênita de Paulo na Europa. Também como
a igreja que começou com um pequeno grupo de mulheres à beira de um rio.
Paulo aceitou se hospedar na casa de uma mulher, Lídia, e aceitou contribuições
da comunidade para as suas despesas.

Colossenses é uma comunidade onde existem muitos pagãos convertidos


ao cristianismo, e por conta disso, muitas dificuldades em acreditar em Jesus
Cristo como o filho de Deus, por isso Paulo insiste que Jesus Cristo é o senhor do
universo e a cabeça da Igreja.

Filêmon, no fundo se trata muito mais de um bilhete do que propriamente


uma carta, pois é a mais curta de todas. É um bilhete escrito de próprio punho
para recomendar um escravo fugitivo. O bilhete é extremamente afetuoso, mas
persuasivo, junta vários argumentos para que consiga convencer o destinatário,
aos poucos, sem dar ordem autoritária.

Carta aos Tessalonicenses


Tessalonicenses é uma carta que possui um caráter bem sentimental para o
cristianismo, pois é o primeiro texto escrito do Segundo Testamento. Essa carta foi
escrita antes dos Evangelhos, por volta do ano 51 ou 52 d.C. e abre a coleção de
textos aceitos como a Bíblia cristã.

É uma carta que possui muita originalidade, bem como as preocupações


pastorais de Paulo. O texto é bastante revolucionário e inovador, pois anunciava
que Jesus, morto na cruz, era o Cristo ressuscitado e portador de salvação. Para
uma população que vivia na periferia, até acostumada ao sofrimento provocado
pela escravidão, era muito difícil compreender a proposta de Paulo, que enaltecia
o trabalho braçal. Contudo, essa proposta era extremamente provocadora,
porque colocava em risco o sistema escravocrata. Por conta disso, Paulo e seus
seguidores foram perseguidos pelos governantes. Como consequência disso, a
comunidade esperava ansiosamente pela vinda de Jesus ressuscitado, que os
livraria de todo o sofrimento que há tempo padeciam.

A pregação cristã oferecia elementos que correspondiam a todos esses


anseios, como a possibilidade de reunir-se como assembleia de irmãos com o
intuito de reivindicar direitos e aprofundar a fé.

144
Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

Carta a Timóteo
A carta de Timóteo deve ter sido escrita na Macedônia por volta dos anos 64
ou 65 d.C. Busca prevenir a liderança da comunidade de Éfeso contra os falsos
doutores (1Tm 1,3-20; 4,1-11; 6,3-10). O ambiente cosmopolita possibilitava a
inserção de novas ideias e concepções religiosas.

A carta de Timóteo e também a de Tito são consideradas cartas pastorais,


isso porque são de cunho orientativo para pastores e/ou líderes de comunidades.
Contudo é bom sabermos que todas as cartas paulinas possuem caráter pastoral,
porque orientam e motivam o desenvolvimento das comunidades cristãs.

No entanto, Timóteo se diferencia de todas as outras porque possui uma


linguagem mais formal, apresenta um plano menos organizado e mais livre, possui
muitas repetições e apresenta uma visão teológica bem diferente das outras.
Nesta visão a comunidade possui uma organização interna mais delimitada e é
mais importante do que a missão, as lideranças devem possuir dons especiais, a
fé é vista como a sã doutrina, a piedade é expressão da fé e as falsas doutrinas
devem ser combatidas.

Apocalipse de JoÃo
A revelação pode ser vista de vários pontos de vista, sob diferentes luzes. É
assim que vemos o livro do Apocalipse e ao mesmo tempo somos convidados a
lê-lo sem resignação ou terror diante dos acontecimentos narrados. No fundo, ele
situa a realidade atual e futura do mundo à luz de Deus e do cordeiro, visão de
justiça e misericórdia. O Apocalipse de João só tem sentido se visto a partir da sua
revelação última e simbólica e a certeza de que tudo pode acabar, exceto a vida.
Veja o que o autor francês Leloup (2014, p. 13-14) fala a respeito da revelação:

Diante dessas diversas mortes anunciadas pelos religiosos,


os cientistas e um determinado número de indivíduos que
pretendem ter uma “revelação”, podemos reagir de diferentes
maneiras: pelo fascínio ou pelo desprezo, pelo medo, a
angústia ou a fobia [...]. Esta não é a função de um apocalipse
e particularmente do Apocalipse de São João. Seu papel
não é o de alimentar nossas fobias, sequer de despertar um
medo ou uma angústia que poderia mostrar-se salutar diante
da situação em si; é, antes, a revelação de uma saída, o
exercício de uma lucidez não desesperada. Alguns dirão
que todas essas advertências são preparativos eficientes

145
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

para um “parto” (tradução igualmente possível da palavra


“apocalipse”): antecipar a dor permite que possamos enfrentá-
la de uma maneira melhor. Quando aprendemos a relaxar e
nos entregamos de coração à experiência devastadora, isso
permite que a atravessemos, não “sem dor”, mas, ao menos,
de modo menos doloroso.

Revelação é o sentido principal do livro do Apocalipse, ou seja, são


comunicações dadas a um profeta chamado João e por ele transmitidas a sete
comunidades da Ásia Menor, região anteriormente evangelizada por Paulo.
Possivelmente o profeta está na prisão numa ilha ao final do primeiro século d.C.
A ideia desse profeta é animar as comunidades que viviam perseguidas, por isso
tanto insistia que resistissem a toda essa perseguição na esperança de que dias
melhores estavam por vir. De que esperança o profeta estava falando? No projeto
de Jesus e acreditando firmemente que o mal e a injustiça não teriam a última
palavra.

No período em que essa narrativa circulava pelas comunidades, o Império


Romano obrigava todos os subordinados a cultuarem o imperador como a
divindade suprema. Para o autor dessa revelação apocalíptica, o sistema político
e econômico perverso do império não poderia ser aceito ou admitido pelos
seguidores de Jesus. Uma proposta extremamente perigosa e radical, diferente
de muitos outros grupos religiosos que acabavam por aderir à proposta imperial e
à de Jesus, concomitantemente. Se trata do mesmo sistema que crucificou Jesus
e a consequência disso é muito clara: não é possível servir a dois senhores.

Com o intuito de animar as comunidades na esperança, a mensagem


comunicada oferece em riqueza de detalhes a visão do céu e do trono de Deus,
com a liturgia que aí se celebra ao juiz três vezes justo e santo. Ao mesmo tempo,
expõe critérios, através de imagens, figuras, sinais, a maioria deles já conhecida
das escrituras judaicas. Isso porque as comunidades podiam captar a dinâmica da
história e convencer-se de que elas estão nas mãos de Deus e do seu Messias, e
que o domínio do Império, bem como das forças do mal que ele representa, não
seja capaz de iludir a nenhum membro da comunidade.

As comunidades do Apocalipse se desenvolvem em meio à sociedade


helenista, escravagista. O Imperador é chamado o Senhor = κυριος, o (Kyrios).
Ele está no topo da pirâmide e controla tudo. A maioria dos que frequentam
as comunidades são escravos. O grande imperador desse período é Nero.
Ele persegue com bastante empenho as comunidades de Jesus, porque elas
apresentam um projeto bem diferente do império: escravagismo X projeto
comunitário.

146
Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

Os grupos formados pelas comunidades não possuem o controle da história.


Nessa perspectiva, as elites se divertem levando os cristãos para os leões
devorarem. A sociedade é desumana. A vida das pessoas é mercadoria: (cf.
Ap 18,13). Deus não é somente o Senhor de Israel, mas um Deus dos puros
e impuros (Is 56,3-7). Na mesma ideia estão os autores do livro do Apocalipse.
Deus está ao lado daqueles que buscam o seu reino. No Apocalipse impera a
ideia da inclusão, de somar forças no desejo de incluir todos na proposta do reino
de Deus. As comunidades não podem manipular para si as ações de Deus no
mundo. Javé, o Deus libertador, não é prioridade de nenhuma comunidade. Ele
ama quem o busca e procura a justiça nesse mundo. De acordo com Comblin
(1998, p. 44-52):

O apocalipse de João pretende ser a palavra final da Bíblia


dos judeus. É uma releitura de todo o Antigo Testamento. João
nunca cita os autores que usa, mas o seu texto é feito sempre
de citações implícitas da Bíblia. Isto quer dizer que pretende
dar a interpretação oficial, certa, de toda a Bíblia. Ele faz da
Bíblia a leitura cristã. Seu livro é como uma visão global de
todo o Antigo Testamento. Pois na visão dele, todo o Antigo
Testamento culmina no anúncio do Messias e na espera do fim
do mundo, com o advento do reino de Deus. João organiza o
Antigo Testamento em função desta interpretação. Visivelmente
é um autor cristão que toma posse da Bíblia de Israel.

Os judeus cristãos, além do sistema escravagista do império, estavam sem a


proteção das sinagogas, e por isso mesmo expostos a todo tipo de perseguição.
Assim, o primeiro livrinho do Apocalipse 4-11, ou seja, o roteiro do Novo Êxodo,
não era mais suficiente, por isso foi necessário que a comunidade elaborasse um
segundo livrinho: Ap 12-22, em que descreve o roteiro do julgamento final: Novo
Céu e Nova Terra X o sistema opressor. Aqui temos:

• O sistema do império, escravagismo, perseguição – é a grande Besta.


• A perseguição dos judeus fariseus: as Bestinhas. Essas são piores, porque
estão presentes no cotidiano, na intimidade das comunidades. A perse-
guição ficou mais forte e se espalhou por todo o império. Era preciso “au-
mentar a bateria”. O livro do Êxodo não era suficiente. A comunidade retoma
a imagem da “nova criação” – todo o universo está dividido entre o bem e
o mal. Vejamos o exemplo de Ap 12,1-4: a mulher representa o bem X o
dragão que representa o mal.

147
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Essa luta começou no céu, no mundo de cima. Agora essa mesma


luta acontece na vida das comunidades. A mulher, grávida, dando à luz, é a
comunidade cristã, na sua fragilidade para gerar vida. Se trata da nova Eva (cf.
Gn 3,20). É um símbolo novo que surge no interior da história. Ela representa um
mundo novo em gestação, considerando a ressurreição de Jesus.

A nova Eva traz consigo os sinais do novo: sol, lua, estrelas (Lc 21,35). O
dragão é a antiga serpente (cf. Ap 12,9) que cresceu e virou um bicho forte, feio e
feroz. Símbolo do mal e da morte, do sistema político e econômico que oprime a
vida dos pequenos. A serpente antiga (Ap 12,9) representa a raiz do mal que age
na história e se encarna nas práticas do Império Romano: totalitário e enganador.
Traz sinais de poderes absolutos e ilimitados.

A luta é desigual: mulher x dragão. A vida parece perder para a morte. Deus
opta pela vida e defende a mulher. É interessante notar que o dragão nunca
ganha.

12,4-5: Deus tira a mulher do perigo do dragão. O dragão não consegue


devorar o filho. Um filho que foi arrebatado para junto do Pai. Eis uma nítida
referência à ascensão de Jesus.

A citação do Salmo 2,7-9 não deixa dúvida da referência ao Cristo (cf. Ap


19,11). Ele governará com cetro de ferro. Senhor definitivo da história. A mulher
segue para o deserto num período de 1260 dias e é alimentada por Deus. Tempo
de dura perseguição (Ap 11,2-3), isto é, três anos e meio, metade de sete (Dn
7,25).

12,7-8: Miguel derrota o dragão. Ele é o protetor do resto de Israel. Ele


vence as batalhas e traz um novo tempo messiânico (cf. Dn 10). O dragão recebe
títulos que indicam a gravidade da ameaça junto aos homens e mulheres: diabo
e Satanás, sedutor de todo o mundo (v. 7-9). A imagem do grande julgamento
é central no livro do Apocalipse. Este juiz é visto como o Deus Goêl – um deus
vingador semelhante ao defensor declarado de Jó (19,25). Um Deus que se
revela no mundo de baixo junto aos oprimidos. O texto enaltece o testemunho dos
cristãos:

Seu testemunho é de luta contra os poderes do mal, que se


manifestam nas garras do Império. A força do testemunho
vem do próprio sangue do Cordeiro, que morreu na cruz mas
triunfou sobre a morte. O testemunho está na fidelidade à
Palavra de Deus, a qual leva a preferir a morte à própria vida
(GORGULHO; ANDERSON, 1978, p. 133).

148
Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

12,11: aquele que luta e testemunha derrota o dragão. O povo celebra a


vitória, provavelmente citando o livro do Êxodo 19,4. O dragão/o mal continua a
agir no mundo. Os poderes desse mundo devem ser enfrentados no interior da
história, com coragem e certeza da vitória já garantida. O dragão não pode mais
atingir o Cristo, por isso persegue os seus seguidores. O dragão vomitará contra
as comunidades rios da perseguição (v. 15-16), mas isso não trará o fim.

12,16: a terra mãe ajuda a mulher. O vômito do império (cf. Is 8,7-9), ao


comparar a invasão assíria, simboliza que a perseguição não triunfará e será
engolida pela história. O capítulo 12 termina no ano 95, ano da deflagração
imposta durante o governo de Domiciano (81-91 d. C.) contra os seguidores
de Cristo. Cristo venceu os poderes do mundo (Cl 1,13) para nos dar a plena
liberdade (Gl 5,1. 14-16). A vitória de Cristo deve ser continuamente atualizada na
vida dos cristãos (1Cor 15, 25.28).

Essa posição radical do livro do Apocalipse é uma chave de leitura importante,


para animar as comunidades cristãs de todos os tempos que são constantemente
desafiadas pelas seduções e armadilhas dos impérios que teimam em se
reproduzir na história.

Vivemos em um mundo submerso a perturbações e complexidades, seja


por previsão de anúncios ou previsões apocalípticas, que fazem parte dessa
sede humana por descobrir o futuro de maneira quase que mágica, talvez com
o intuito de diminuir a angústia humana mediante a busca de sentido para a
própria existência. Contudo, o mais célebre e temido Apocalipse, o de João, que
os profetas que veneram a desgraça e o caos adoram invocar, tem como objetivo
continuar alimentando esse medo e angústia?

A viagem que fizemos por algumas comunidades cristãs primitivas apontam


para um cristianismo que é plural em sua origem. Essa constatação é importante.
Hoje, como ontem, nossas comunidades precisam valorizar as diferentes formas
de entender e colocar em prática a Boa Nova de Jesus. Os conflitos que podem
surgir dessa diversidade não devem nos dividir, mas ser estímulo para que nossas
comunidades e cada um de seus membros testemunhem que a diversidade e a
pluralidade são fatores de crescimento individual e comunitário. Em um mundo
globalizado, deparamo-nos cotidianamente com essa realidade. Acolher a
diversidade e conviver com ela faz parte da nossa identidade cristã.

Lastimavelmente, da forma como o cristianismo é vivido por muitos de nós,


não suscita seguidores, mas apenas adeptos de uma religião. Não é capaz de
suscitar discípulos que estejam identificados com o seu projeto, com o intuito de
abrir caminhos para o reino de Deus, mas apenas membros de uma instituição
que cumpre bem ou mal suas obrigações religiosas. Disso pode resultar que
nunca descubramos de fato a experiência cristã originária e apaixonante.

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ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Assista a esse vídeo e faça memória do pouco que


conhecemos sobre o livro de Apocalipse: <https://www.youtube.com/
watch?v=CvgZku3SUkY&t=73s>.

Para aprofundar mais a sua reflexão sobre o livro do Apocalipse


e desconstruir muito do que aprendeu por meio dos “mitos” populares,
indicamos que você leia: LELOUP, Jean-Yves. O Apocalipse de João.
Petrópolis: Vozes, 2014.

Atividade de Estudos:

1) De acordo com o que estudamos nesse capítulo sobre o Segundo


Testamento, o que você aponta como novidade na reflexão? Faça
uma lista de cinco tópicos que chamaram a sua atenção e que
você gostaria de aprofundar. Em seguida argumente, em forma de
texto, contendo esses tópicos, ao menos uma página, sobre as suas
inquietações e que revelações novas você propõe, enquanto teólogo,
para a atualização dessas narrativas bíblicas que atravessam mais
de dois mil anos de história.
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Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

2) Leia o texto de Paulo Mendes Pinto - Jesus, o perfeito supremacista


branco e o eunuco etíope. Disponível em: <https://www.publico.
pt/2017/08/26/mundo/noticia/jesus-o-perfeito-supremacista-branco-
e-o-eunuco-etiope-1783247>. Em seguida dê sua opinião a respeito
da questão: A pluralidade estava intrinsecamente no movimento de
Jesus, como reagimos a essa diversidade?
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Algumas ConsideraÇÕes
Ao longo desse capítulo pudemos verificar algumas informações ou chaves
de leitura que nos ajudam a ler e entender melhor as narrativas do Segundo
Testamento. Pudemos perceber que os textos bíblicos não são autobiografia e/
ou biografia de Jesus, e que os manuscritos foram compilados e entendidos como
sagrados muito tempo depois da morte e ressurreição de Jesus.

Por esse motivo, precisamos ter bem claro que se tratam de textos escritos
por simpatizantes ou seguidores, posteriores aos primeiros discípulos, que se
identificavam com o projeto de Jesus, como é o caso do apóstolo Paulo, que foi
uma figura fundamental para que o cristianismo se espalhasse pelos confins do
Império Romano e, consequentemente, chegasse até nós hoje.

Vimos também que as narrativas foram escritas entre os séculos I e II d.C.,


em meio à civilização greco-romana. Essas narrativas do Segundo Testamento
aparecem na língua falada dessa civilização, o chamado grego koiné, e giram
em torno da mensagem de Jesus. Quando esses escritos foram compilados, os
Evangelhos se tornaram o fundamento de todos os outros livros do Segundo

151
ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS

Testamento que, por sua vez, os explicitam e aplicam à vida prática. Não podemos
compreender suficientemente a mensagem de Jesus nem os escritos que a
explicitam, sem conhecermos as circunstâncias históricas em que nasceram,
por isso pudemos conhecer um pouco mais sobre a organização política,
socioeconômica e ideológica da Palestina no período em que Jesus viveu, bem
como os seus primeiros seguidores.

Jesus anunciou a Boa Nova da salvação de forma oral, em aramaico, a língua


falada na Palestina. Os seus discípulos também não escreveram, estavam muito
mais preocupados com o anúncio oral dos ensinamentos de Jesus. A atitude de
Jesus e dos seus discípulos faz do Cristianismo, não uma religião da escrita, mas
a religião que se centra na pessoa de Jesus. Depois de terem ouvido a mensagem
oral, durante a primeira geração cristã, é que os discípulos da segunda geração
registraram por escrito as palavras e os fatos da vida de Jesus para incutir nos
cristãos maior fidelidade à mensagem e os conduzir à fé e à salvação em Cristo.

Para que a mensagem de Jesus fosse divulgada e para a formação destas


coleções de livros a que temos acesso nos dias de hoje, muito contribuiu a
autoridade dos apóstolos, em nome dos quais esses textos foram escritos.
Grande parte dos livros da Bíblia é atribuída a pseudônimos, ou seja, são obras
atribuídas a um personagem famoso ou importante, para que fosse melhor aceito
pelas comunidades. Nessa época não existiam direitos autorais, por exemplo, no
caso do Apocalipse, de um profeta chamado João, que foi associado ao apóstolo
João. De outra forma, este livro teria tido ainda maiores dificuldades em entrar no
Cânon dos livros inspirados.

Para concluirmos essa disciplina, devemos ainda considerar que os


textos bíblicos que temos em mãos passaram por muitas traduções. Isso pode
comprometer a mensagem original dos escritos bíblicos, por isso, para que
cheguemos a uma maior proximidade da mensagem em que os textos bíblicos
foram escritos, se faz necessário o conhecimento do idioma em que foi escrito,
para que não corramos o risco de afirmar ou negar informações que seus autores
não tinham intenção nenhuma de fazer. Nesse sentido, ganharemos autonomia
na reflexão e, sobretudo, respeito à mensagem escrita pelos seguidores de Jesus.

À frente, temos o grande desafio de fazer Jesus ser conhecido não a partir
daquilo que nos é pregado, mas a partir da nossa busca por conhecer Jesus na
sua fonte originária! Bons estudos!

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Capítulo 4 SEGUNDO TESTAMENTO

ReFerÊncias
CASONATTO, Odalberto Domingos. Quando surgiu a Sinagoga? 2011. Dispo-
nível em: <http://www.abiblia.org/ver.php?id=1817>. Acesso em: 27 ago. 2017.

COMBLIN, José. O Apocalipse de João e o fim do mundo. Estudos Bíblicos.


Petrópolis: Vozes, p. 44-52, 1998.

GASS, Ildo Bohn. Uma introdução à Bíblia. As comunidades cristãs da primeira


geração. São Paulo: Paulus; Cebi, 2005.

GORGULHO, G. S.; ANDERSON, Flora. Não tenham medo: Apocalipse. São


Paulo: Paulinas, 1978.

HORSLEY, Richard A. Paulo e o Império. Religião e poder na sociedade imperial


romana. São Paulo: Paulus, 2011.

JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no tempo de Jesus. São Paulo: Paulus, 1983.

LELOUP, Jean-Yves. O Apocalipse de João. Petrópolis: Vozes, 2014.

PAGOLA, José Antonio. O caminho aberto por Jesus. Marcos. Petrópolis: Vo-
zes, 2013a.

______. O caminho aberto por Jesus. Mateus. Petrópolis: Vozes, 2013b.

PORTAL DA EDUCAÇÃO. Cidadania em Roma. Disponível em: <https://www.


portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/iniciacao-profissional/cidadania-em-ro-
ma/1879>. Acesso em: 25 ago. 2017.

ROSA, Luiz da. Por que os evangelhos de Lucas, Marcos, João e Mateus
são chamados de sinóticos? 2015. Disponível em: <http://www.abiblia.org/ver.
php?id=8220>. Acesso em: 29 ago. 2017.

SAULNIER, Christiane; ROLLAND, Bernard. A Palestina no tempo de Jesus.


São Paulo: Paulinas, 1979.

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