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CAPA

SÉRGIO DE SOUZA
CASO DANIELA PEREZ
O CRIME DA NOVELA DAS OITO
SCRITTA EDITORIAL

CONTRACAPA
Um caso trágico, mas também inédito: a crônica policial, no mundo, não
registra outro igual. Trágico e inédito, mas também explosivo: mexe com
as pessoas comuns, aprofunda como nunca antes a discussão sobre o
papel da televisão, provoca reações no governo do Rio de Janeiro, no
Congresso e na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, leva a
imprensa a abrir um debate sobre a adoção da pena de morte,
envolvendo até o Ministério da Justiça e o presidente da República. Um
caso como esse merecia virar livro.

ORELHAS DO LIVRO
O autor
Sérgio de Souza, jornalista desde 1958, fundou e editou revistas e
tablóides como Realidade, O Bondinho, TênisEsporte, Globo Rural, Ex-,
Aqui São Paulo. Foi diretor de jornalismo das redes Tupi e Bandeirantes
de televisão e diretor do Fantástico, da Rede Globo, em São Paulo. Co-
autor do Guia de Cuba e do livro Samuel Wainer – Minha Razão de Viver,
hoje é sócio-diretor da Eco-Equipe de Comunicação, empresa de
prestação de serviços editoriais.
Reportagem e Pesquisa
Os trabalhos de campo para a feitura deste livro foram realizados pelos
jornalistas:
Marina Amaral e Roberto Benevides, de São Paulo; Cláudia Silva e
Alexandre Campbell Penna, do Rio de Janeiro; e Ricardo Campos, de Belo
Horizonte.
Participaram da coleta de informações também os jornalistas José Trajano
e Ricardo Vespucci, sócios-diretores da Eco-Equipe de Comunicação.

O CRIME DA NOVELA DAS OITO


1993 © Sérgio de Souza

1ª edição: fevereiro de 1993


© EDITORA PÁGINA ABERTA LTDA.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por:


EDITORA PÁGINA ABERTA LTDA.
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sob qualquer forma,
sem prévia autorização dos editores.

ISBN 85-85328-31-2

EDITORA PÁGINA ABERTA LTDA.


Rua Germaine Burchard, 286
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O CRIME DA NOVELA DAS OITO

SÉRGIO DE SOUZA

1
Scritta Editorial

UM

EMBORA ENTRE O NATAL E O ANO Novo e à véspera de um dos


maiores acontecimentos da história política do país, aquela última
segunda-feira do ano aparecia como um dia comum no cronograma de
trabalho dos estúdios Tycoon, onde se gravam as cenas de mais uma
novela de televisão.
Misturam-se às conversas de sempre alguns comentários sobre a
votação pelo Senado do impeachment do Presidente da República,
marcada para ter inicio às nove horas da manha seguinte, e lembranças
dos "condenáveis" excessos gastronômicos e etílicos a que todos somos
"submetidos" nas festas de fim de ano. Mas a grande preocupação, que
ninguém pode esconder, é com o script da novela. Nada pode dar errado
e por isso se estabelece um clima de permanente expectativa, um
inevitável nervosismo que assalta principalmente os atores, particular-
mente os menos experientes, e que todos procuram dissimular.
Nesse dia, porém, a jovem atriz Daniela Perez, de 22 anos, e cujo
papel na novela vem ganhando cada vez mais projeção, mostra-se
especialmente inquieta.
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DOIS

NOITE QUENTE DE VERAO CARIOCA, 33 graus. O advogado


aposentado Hugo da Silveira, de 60 anos, vem guiando sua Parati pela
deserta rua Cândido Portinari, Barra da Tijuca, pensando em como
estarão andando as coisas com a pousada de 18 apartamentos que possui
em Podo Seguro, na Bahia, e que ele deixou por uns dias para vir passar
o Natal com a filha, no Rio, na casa onde ela mora, logo ali adiante, no
condomínio RioMar, avenida das Américas esquina com a Cândido
Portinari. Em seus pensamentos, jamais poderia supor que a pousada que
comprou há sete anos, a Aconchego, viesse um dia a aparecer nas
páginas dos principais jornais do país, e muito menos que ele próprio se
transformaria numa personagem pública que, além de fotos nos jornais e
revistas, exibindo um juvenil rabo-de-cavalo, freqüentaria o horário nobre
de todas as estações de televisão, em rede nacional. Simplesmente em
razão de uma incurável mania.
A mania de Hugo era anotar placas de carros que visse em alta
velocidade ou em situação "suspeita".
E bem ali, naquele momento e naquele trecho ainda mais escuro da
rua sem iluminação pública, ele avista dois carros
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próximos um do outro, parados junto ao meio-fio e sem ninguém dentro


ou por perto.
Hugo trazia na Parati sua segunda mulher e dois netos, de nove e
onze anos, filhos da filha que o hospedava. Vinham do aniversário da
primeira mulher dele, a avó dos meninos. Deixaram a festinha às nove da
noite a fim de poder alcançar em casa o início do filme Karatê Kid III, na
TV, programado para depois da novela. Os quatro vinham do bairro do
Leblon, onde mora a avo.

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A rua Cândido Portinari faz uma espécie de U, com um canteiro no
meio, de mato ralo, uma área mais comprida do que larga, parte do
espaço onde brevemente começam a ser erguidos seis edifícios de
apartamentos. Hugo viu os dois carros do lado do canteiro e, com a
escuridão da noite sem luar, só conseguiu identificar a marca de um
deles, o Escort. Eram quase nove e meia.
Fiel à sua mania, seguiu caminho já decidido a voltar. Entrou na
casa da filha para deixar a mulher e os netos na hora em que a televisão
exibia os velozes créditos finais da novela das oito. Chamou o caseiro da
filha, Jamilton Ribeiro Lima, e foram ambos na Parati para a rua Cândido
Portinari. Hugo pediu ao caseiro que fosse guiando, para poder
concentrar-se melhor.
Os canos permaneciam no mesmo lugar; ele passou por trás dos
dois, voltados para a avenida das Américas, e anotou a placa do Santana.
Seguiu em frente, virou a esquina à esquerda, fez o retomo e veio de
frente para os dois carros. Nestes poucos segundos anotou a placa do
Escort e viu que agora o Santana tinha os faróis baixos acesos, a porta do
motorista aberta e um casal no banco da frente. O motor estava
desligado.
O principal, no entanto, ele já fizera, que era cumprir a sua mania.
As placas dos dois carros estavam anotadas. A do
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Escort era WI-4055 e a do Santana, UM, LM ou OM 1115. Ambas com o


prefixo RJ, Rio de Janeiro.
A excitação detetivesca de Hugo estava parcialmente debilitada
quando ele chegou de volta à casa da filha. Encontrando alguns vizinhos
conversando à porta da casa, teve de fazer um comentário: "Podem ficar
tranqüilos, era só um casal namorando". Alguém estranhou, porque
nunca se via alguém namorando por ali, mas a filha de Hugo lembrou que
após a inauguração há um mês de um bar não muito longe dali, o
Country Pub, talvez os casais viessem esticar o namoro por aqueles lados.
Mas tudo voltará à tona cinco minutos depois, quando chega o carro
do Ministério Público trazendo o genro de Hugo, que é procurador de
Justiça, e Hugo pergunta ao motorista Wanderley se havia visto os carros
na Cândido Portinari. O motorista respondeu que só um Escort,
aparentemente abandonado. Agora todos estranham o casal ter ido
embora um, num carro e deixado o outro. É melhor ligar para a policia.
Um dos vizinhos, Antonio Carlos Curado, também procurador de Justiça,
se dispõe a fazer a ligação. Apanha com Hugo os números das chapas e
disca 190, o telefone do serviço de emergência da Polícia Militar. São dez
horas.
Nessa noite, o bom Hugo foi dormir gratificado. Mal sabendo que
havia interrompido uma trama diabólica. E não podia sonhar que ia
provocar um terremoto na imprensa.
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TRÊS

O BARRASHOPPING, COM SEUS 120 mil metros quadrados de área,


340 lojas em dois quilômetros de vitrines, três cinemas e 4.386 vagas de
estacionamento, na tarde da segunda-feira era quase uma ilha de
sossego se o movimento fosse comparado ao da semana anterior, quando
um formigueiro de gente diligenciava em busca dos presentes de Natal.
O McDonald's, no andar térreo, não era exceção. Não estava vazio,
mas o número de hambúrgueres vendidos seria um tanto menor do que o

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alcançado na outra semana. Então, por que o pequeno rebuliço, às três
horas da tarde, junto ao balcão em que a clientela, sempre
majoritariamente adolescente, faz o pedido e o pagamento dos lanches? A
causa era um jovem casal, ele de 23 anos, ela de 19, Guilherme de Pádua
Thomaz e Paula Nogueira de Almeida Thomaz, que acabava de entrar na
lanchonete. Ator da novela do horário mais nobre e caro da maior rede de
televisão da América Latina, a presença de Guilherme era um
acontecimento. Um contato pessoal com ele, que logo mais estaria
vivendo um papel no capitulo 128 da novela das oito, era um privilégio. E
tanto as mocinhas que estavam ali para comer um hambúrguer quanto as
que os serviam,
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queriam selar o precioso momento com um autógrafo de Guilherme.


Assim foi feito.
Seriam seus últimos autógrafos como ator de novela, e ele talvez
soubesse disso.
A segurança do shopping center registrou o horário de entrada e de
saída do carro guiado por Guilherme. O carro de chapa LM 1115 entrou às
14:19 e saiu às 15:22.
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QUATRO

TUDO CORRIA ROTINEIRAMENTE NA 16ª DP na segunda-feira após


o Natal. Como a maioria das delegacias de polícia das grandes cidades
brasileiras, a 16ª acusava superlotação de presos. Atendendo à região da
Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes, nesse dia a delegacia
abrigava 67 presos em suas cinco celas cuja capacidade foi prevista para
abrigar 50. E, por mais que as brisas do mar possam refrescar a região
litorânea, é dentro de uma cela que o calor se torna mais insuportável.
O delegado-titular da 16ª DP, Mauro Fernando Magalhães, mais de
trinta anos de carreira policial, não é o que se possa chamar de um
profissional discreto. Camisa entreaberta no peito, cordão dourado no
pescoço, relógio e pulseira também dourados no pulso esquerdo, unhas
evidentemente tratadas, uma calva simpática que se prolonga sem
cerimônia testa acima e muitas vezes serve de apoio a um pomposo par
de óculos escuros, nariz adunco, olhar vivo sob sobrancelhas que se
arqueiam conforme o franzir da testa, o delegado-titular faz lembrar um
comediante italiano, já falecido, que fez muito sucesso na televisão
brasileira na década de 70, Otelo Zeloni. Ele não gosta de revelar a idade,
mas quem lhe der 58 anos não estará longe da verdade.
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Mauro Magalhães trabalha com três delegados auxiliares: Cidade de


Oliveira Fontes Filho, Antonio Maria Serrano e Newton Moreira Lopes. O
primeiro, Cidade de Oliveira, tem Si anos e uma calva que compete em
audácia com a do delegado-titular, embora menos vistosa. Todo ele é
menos vistoso, o que se acentua com a sua natural discrição e baixa
estatura.
Antonio Maria Serrano, cujo prenome já foi título de novela de
televisão mas que é tratado pelo sobrenome, Serrano, é aparentemente o
mais tranqüilo. Tem 42 anos, é magro, alto, barba e cabelos grisalhos e
pele queimada de sol. Participou de vários casos de repercussão nos vinte
anos de carreira, nenhum, sem dúvida, como o que está prestes a viver
daqui a algumas horas.

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O terceiro delegado auxiliar, Newton Moreira Lopes, 50 anos, o que
menos aparece, não se sabe se propositalmente, completa o quarteto
responsável por todos os atos que possam se desenrolar nos dois andares
deste prédio da rua Coronel Ivan Raposo, número 496, uma pequena
construção erguida há 22 anos especialmente para sediar a delegacia. A
fachada e o interior, surpreendentemente não são desagradáveis e
ásperos como costumam ser as delegacias de polícia das grandes cidades
brasileiras. E o próprio atendimento é habitualmente camarada,
descontraído, à moda carioca, muito diferente da paulista, por exemplo,
em que o clima é estudada-mente pesado, carrancudo, a postura das
pessoas intimidativa e até as instalações parecem intencionalmente
maltratadas de forma a inibir tanto delinqüentes quanto vítimas.
O andar térreo da 16ª tem logo à entrada a sala do delegado de
plantão, uma sala com janela, porta sempre aberta, a escrivaninha e um
cabideiro ostentando vários paletós e gravatas para eventuais
emergências que obriguem seu uso. Na frente da sala, um banco para se
sentar quem chega e do outro lado o balcão de atendimento, as mesas e
máquinas de escrever dos
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escrivãos e os telefones. Ao lado, a sala dos investigadores, de portas


permanentemente fechadas.
Caminhando delegacia adentro e antes de chegar à estreita
escadinha que leva ao andar superior, há um corredor com acesso para
dois lados. Á direita, passando por uma grade de ferro, chega-se à sala
do carcereiro, separada das celas da carceragem por outra grade. À
esquerda vai-se para a cantina da delegacia, que serve refrigerantes,
salgadinhos e doces e estende-se até o pequeno pátio que dá nos fundos
do prédio, onde sob um puxado há uma grande mesa em que são
servidas refeições a quem dos 80 funcionários, 52 deles policiais, se
candidatar. E a escadinha estreita leva à sala do delegado-titular, uma
sala grande, de uns trinta metros quadrados, com duas janelas, uma para
a rua e outra para os fundos. Não falta na sala o icone nacional, um
aparelho de TV, devidamente acoplado a um videocassete. Completando
o conforto, um impecável aparelho de som.
A 16ª DP está prestes a atingir a marca de 6.529 ocorrências em
um ano. Apesar do número, impressionante para uma região de 150 mil
habitantes, como é a Barra, ela é a décima colocada no ranking das
delegacias cariocas. As campeãs são a de Jacarepaguá, com 8.793
ocorrências em 1992, e a de Campo Grande, com 8.485.
Até a meia-noite do dia 28 de dezembro, segunda-feira, a 16ª DP
registraria os dezenove boletins, do número 4662 ao 4680.
Às 2:50, furto de moto.
5:25, tumulto em discoteca com um ferido.
11:00, furto em interior de residência.
11:30, furto de bolsa em cinema.
11:50, furto de auto.
12:40, furto em interior de residência.
13:50, furto de bolsa em WC de shopping center.
15:00, furto de auto.
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15:20, lesão corporal por atropelamento.


15:30, lesão corporal por queda de ônibus.
16:25, furto em loja.
17:00, prisão de bicheiro.
17:30, ameaça de morte em edifício de apartamentos.

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18:20, agressão com lesão corporal.
18:30, extorsão com ameaça de morte.
20:00, furto de auto.
21:00, agressão com lesão corporal.
23:00, furto de bolsa em supermercado.
23:5 0, furto de um CD, em interior de apartamento
O primeiro boletim do dia seguinte, 29 de dezembro, o número
4681, será o de uma ocorrência registrada à 0:50. "Homicídio em via
pública com arma branca". Na rua Cândido Portinari, s/nº.
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CINCO

SÃO DEZ HORAS DA NOITE DE segunda-feira e o ator e dançarino


Raul Gazolla está preocupado, depois de chegar em casa — um flat no
sofisticado hotel-residência BarraLeme. Sua mulher, Daniela, com quem
está casado há três anos e que costuma avisá-lo de onde se encontra,
mandou um recado às nove e pouco e ainda não chegou. Ela havia
telefonado da portaria dos estúdios da Tycoon para Marcela, misto de
amiga e secretária do casal, que anota os recados fazendo uma espécie
de ponte entre os dois, porque a maior parte do tempo é complicado um
conseguir chamar o outro por telefone nos respectivos estúdios. Raul está
no elenco de outra novela, de outro horário, gravada nos estúdios da
Herbert Richers, no bairro da Tijuca. As várias novelas são gravadas em
cinco estúdios diferentes.
Na verdade, Raul passou na Tycoon antes de ir para casa. É no
caminho. Mas já eram nove e quarenta e tinham ido todos embora.
Conforme passam os minutos, a preocupação de Raul vai
aumentando, até que às dez e meia ele não agüenta mais e desce do
apartamento, no terceiro andar, apanha a moto e sai. O recado de
Daniela dizia que ela ia atrasar um pouco, mas que passaria em casa
antes do ensaio que os dois, ela e Raul, fazem
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todos os dias na Academia Enid Sauer, no bairro da Gávea. São os


ensaios do musical Dança Comigo, espetáculo que Raul está produzindo e
com estréia marcada para 31 de janeiro de 1993, em Manaus. Depois o
espetáculo percorreria o Brasil. Ele e ela dançando, músicas de todos os
ritmos, samba, bolero, tango.
Mas a cabeça dele agora está longe do espetáculo, ele presta
atenção no trajeto que vai fazendo, cada trecho do percurso inverso até
os estúdios da Tycoon. Talvez o Escort de Daniela tenha sofrido uma pane
no caminho de casa e ela esteja no meio da rua, ansiando por socorro.
Nada. Então ela já terá ido direto para a Gávea, para os ensaios na
academia, marcados para as dez e meia. Ele faz a volta e ruma para a
Gávea.
Não encontrando Daniela, pensa em procurar na casa de alguns
amigos e da mãe da atriz, Glória Perez. A essa altura passa das onze e
uma sombra de preocupação começa a se justificar.
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SEIS

CERCA DE DEZ DIAS ANTES DA NOITE em que o corpo de Daniela


Perez foi encontrado sem vida, com doze punhaladas no peito e quatro no

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pescoço, Paula Nogueira de Almeida Thomaz, grávida de três meses, saía
com o marido Guilherme de Pádua Thomaz do ateliê do tatuador
profissional Hélio Tattoo, na avenida Nossa Senhora de Copacabana, 386,
sobreloja.
O casal terminara de se submeter a uma marcação indelével na pele
a que raríssimas pessoas se submetem nos ateliês de tatuagem do Brasil
ou de qualquer outro lugar no mundo.
A moça pediu que lhe fosse gravado na virilha esquerda o nome
"Guilherme", o mais próximo possível dos lábios vaginais e nas cores
azul, vermelho e amarelo. E ele o nome "Paula", ao longo da pele do
pênis, nas mesmas cores, cada letra com três linhas, cada linha uma cor.
Além dessas, mais dolorosas, cada um dos dois saía com outra
tatuagem, nos tornozelos. Com as figuras de quatro signos zodiacais
entrelaçados, Áries, Capricórnio, Escorpião e Câncer, circundando as
palavras "pai", "mãe", "bem". E as letras F e Z nas laterais. Aqui as cores
escolhidas foram azul, laranja e verde.
O trabalho, que começou dia 11 de dezembro, teve de ser
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feito em várias sessões, em dias diferentes. A última tinha de ser num


determinado dia daquele mês, que o tatuador não revelou mas que para o
casal seria uma data inadiável. Talvez em razão de uma "conjunção
astral" profundamente importante para eles. Segredos da profissão. Ou
segredo de um misterioso pacto, termo que a imprensa utilizou diversas
vezes nos primeiros dias após o crime, e que alguns acreditam possa
encerrar a chave do mistério sobre os motivos do crime.
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SETE

O DIA 28 DE DEZEMBRO ESTÁ RISCADO no cronograma de trabalho


dos estúdios da Tycoon. Chegam ao fim as gravações da segunda-feira.
Os artistas estão de saída. O pessoal que cuida da infra-estrutura
está executando os atos finais de mais um dia de trabalho.
O auxiliar de câmera, ou caboman, homem que cuida dos fios das
câmeras, está educadamente estático, apenas segurando um dos longos
cabos negros que não pode puxar porque está sob os pés distraídos da
atriz Marilu Bueno, que conversa com Daniela Perez, alguns metros
adiante. As duas, mais o ator Stênio Garcia, haviam gravado as últimas
cenas do dia. A conversa de ambas é interrompida com a chegada de
Guilherme de Pádua. O ator está ali meio fora de hora, pois havia
terminado de gravar à tarde, até sete e meia mais ou menos. Quando,
aliás, fizera uma cena extra. Tivera uma crise de choro cheia de lágrimas,
sentado no chão e encostado num cenário, crise que os outros atribuíram,
apesar do inusitado, à decepção ocorrida com a personagem que ele vivia
na novela — um motorista de ônibus que em uma cena gravada nesse dia
leva o fora da namorada, interpretada por
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Daniela. Agora à noite está recomposto, não deixa transparecer qualquer


problema.
Lá fora, Marilu diz adeus, se afasta, e Daniela e Guilherme
aproximam-se do portão principal, onde fica a guarita de entrada, a
fronteira entre o mundo da televisão e o mundo externo. Daniela se dirige
ao telefone da guarita, acompanhada por Guilherme. Os dois estão sendo
atentamente observados por um grupinho de quatro adolescentes, duas

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meninas e dois meninos, que foram levados até ali por um motorista
particular, que fica aguardando-os no carro. A mais desembaraçada do
grupo pede a um vigilante do estúdio que interceda a seu favor: quer um
troféu de novela, uma foto dos atores junto com ela e o grupo. O homem
atende, transmitindo o pedido a Guilherme, que deixa Daniela ao telefone
e vem posar. Depois é a vez de Daniela, que termina o telefonema e
também vem posar, enquanto Guilherme aguarda, encostado a uma
árvore próxima. Nas fotos, ele aparece com as meninas e ela com os
meninos, ela de blusa preta, ele de camiseta vermelha.
Terminado o inocente ritual de adoração, os vigilantes pedem que o
grupo de adolescentes se retire. Eles vão ver mais uma pessoa saindo lá
dos estúdios, mas não chegam a confundir Gilmar Lima Marinho com
algum astro da novela das oito. O caboman Gilmar tem vinte e seis anos
e o apelido de "Baiano", nascido que é em Salvador, capital da Bahia. Um
dos últimos a deixar os estúdios, será a última pessoa da equipe a ver
Daniela viva. Ele caminha em direção ao seu Fiat, dentro do
estacionamento da Tycoon. São pouco mais de nove horas da noite,
quando neta Daniela em conversa com Guilherme depois de tirarem as
fotos com os adolescentes. A conversa dos dois dura alguns minutos,
enquanto ele, Gilmar, espera o motor do Fiat aquecer. Então Guilherme
entra no Santana e sai, Daniela sai pouco depois no Escort. A folha de
controle do esta-
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cionamento da Tycoon, que registra horário de chegada e saída de todos
os carros, diz que o Escort de Daniela entrou às 15:20 e saiu às 2 1:10. O
Santana, 16:59 a entrada e 19:35 a saída. A folha não registra a segunda
vinda de Guilherme.
O caboman notou mais uma coisa. No banco de trás do Santana
havia um pano envolvendo um volume mais ou menos do comprimento
do banco.
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OITO

DANIELA PEREZ TEM A GRAÇA E A sensualidade das dançarinas que


fizeram fama no cinema. Dançando, faz lembrar as estrelas dos antigos
musicais de Hollywood. Como nelas, percebe-se em Daniela o prazer da
dança na expressão não só do rosto, mas de todo o corpo.
Foi dançando que ela apareceu a primeira vez na televisão. Era uma
outra novela, ela era pouco mais que figurante e era um tango, El Dia que
me Quieras, que dançava toda de preto com um par todo de branco.
O cinema era um de seus muitos sonhos, todos realizáveis. Porque
tinha um brilho que abria caminhos cada vez mais rápido, desde essa
primeira aparição na televisão. Em três anos, dos dezenove aos vinte e
dois, já estava prestes a se tornar a estrela da novela das oito, a quarta
da veloz carreira, depois da figuração na do tango, de uma ponta numa
segunda e de um papel um pouco mais expressivo numa terceira.
Era o brilho e era o empenho. Desde menina. Aos cinco anos já se
mostrava uma compenetrada aprendiz de balé na escola em que foi
matriculada pela mãe. E desde criança foi tida como a mais bonita da
família, sem parecer muito com
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ninguém, como diziam os parentes. O avô materno, hoje ministro


aposentado do Tribunal Federal de Recursos, era apaixonado pela neta e
queria que ela seguisse, como ele, a carreira de advogada. Mas ela ia

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mostrar que acima de tudo queria dançar, sem deixar de cumprir a
promessa que um dia fizera ao avô de entrar na Faculdade de Direito.
Entrou, aos dezoito anos, freqüentou um semestre e trancou a matrícula.
O Direito podia até ser bonito, mas a dança era muito mais.
Já na pré-adolescência, Daniela havia trocado o balé pela dança,
mudando para outra escola, onde passaria a ensaiar coreografias durante
horas. Quando, poucos anos depois, foi convidada a fazer parte da
companhia profissional de dança Vacilou, Dançou, formada pelos
melhores alunos da escola, viu abrir-se a carreira à sua frente. Mas no
caminho haveria as novelas de televisão, das quais talvez não pudesse
mesmo fugir já que sua mãe conseguiria ser incluída no seleto grupo de
autores da novela das oito e alimentava o desejo, aberto, de transformar
a filha em estrela do horário.
Quando trancou a matrícula na faculdade, Daniela achou que para
fazer o que queria na vida tinha de ganhar seu próprio dinheiro. Estava
com dezoito anos e, embora pudesse conseguir tudo do avô, da mãe e do
pai, chegara a hora de voar sozinha. O primeiro trabalho remunerado foi
para uma revista feminina. A mãe era amiga da diretora da revista e
indicou Daniela como modelo fotográfico. Daniela posou para uma
matéria sobre ginástica, alongamento. Aprovou, o trabalho saiu publicado
e logo a revista a chamava para mais um, este sobre moda infanto-
juvenil. Foi publicado também.
Então vieram as novelas de televisão, no ano seguinte, 1989. E viria
também o casamento, do amor nascido durante as gravações da primeira
novela, com o próprio ator e dançarino que fazia par com ela no tango,
Raul Gazolla, quinze anos
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mais velho. Junto com ele, ultimava agora a realização de mais um


sonho, cultivado há dois anos. Iam encenar um musical com doze
coreografias que vinham ensaiando há quatro meses, com estréia
marcada para janeiro, e que prometia uma carreira de muito sucesso.
Começariam pela capital do Amazonas e depois percorreriam uma série
de cidades antes de se apresentar no Rio de Janeiro, uma estratégia
empregada por empresários teatrais e que o casal ia adotar, ou melhor,
Gazolla, que entrara na pele de empresário investindo suas economias na
produção do espetáculo, que incluía outro ator e dançarino, Duda Ribeiro,
ex-namorado e depois grande amigo de Daniela.
Nascida em 11 de agosto de 1970, no Rio de Janeiro, Daniela era
filha de Glória Perez e Luiz Carlos Saupiquet Perez, engenheiro. Os pais se
separaram quando ela estava com catorze anos, o irmão Rodrigo com
treze e o mais novo, Rafael, com sete.
A inquietação de Daniela, nesta última segunda-feira do ano, talvez
esteja ligada aos bilhetes que lhe passou o ator que faz o papel de seu
namorado na novela, Guilherme de Pádua. Foram três bilhetes, cujo
conteúdo era segredo apenas dos dois. No dia seguinte, passariam a ser
segredo só dele, se Daniela os jogou fora ainda no estúdio.
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NOVE

GUILHERME DE PÁDUA TEM UMA curta carreira de ator, mas uma


história que se tornaria longa, ou melhor, a mais pesquisada de quantos
atores tenham passado pela novela das oito. A história pessoal,
principalmente, levantada com todas as minúcias alcançáveis, tanto pelos
repórteres de todos os meios de comunicação quanto pela polícia e pela

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própria mãe de Daniela, que empenhou-se a fundo para chegar a um
dossiê completo sobre a vida do ator e da mulher, Paula, para servir à
acusação.
A vida profissional de Guilherme, antes do ponto mais ambicionado,
que foi chegar à novela das oito, começa num programa infantil na
televisão e teria ido até um espetáculo proibido para menores e de uma
ousadia própria dos tempos do liberalismo pleno, um espetáculo em que
um grupo de rapazes fisicamente privilegiados sobe ao palco com
máscaras, tanga e pulseiras imitando pele de leopardo e faz um strip-
tease da já ínfima vestimenta, para mostrar à platéia o pênis ereto. Ele
negou ter participado desse show, mas não pode esconder que participou
de um filme pornô alemão perto do qual a encenação dos leopardos é um
inocente espetáculo naturalista.
Entre o programa infantil e a novela das oito, Guilherme fez
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teatro. Uma série de papéis pesados, a começar da primeira peça, em


que interpretou Pelosi, o jovem italiano que assassina o diretor de cinema
Pier Paolo Pasolini, crime acontecido na vida real e que na época, 1975,
horrorizou o mundo pela forma perversa como o diretor foi morto, com
vinte punhaladas e depois a cabeça esmagada pela roda de um carro. A
peça teatral, Pasolini — Vida e Morte, que primeiramente foi levada em
Belo Horizonte, capital de Minas Gerais e terra natal de Guilherme, viajou
para algumas outras cidades e por fim conseguiu ir para o Festival
Internacional de Teatro e Expressão Ibérica, em Portugal, na cidade do
Porto. Com ela Guilherme ganharia o primeiro e último prêmio da
carreira, o de ator-revelação de 1988, concedido pela Associação Mineira
de Críticos de Teatro.
Vai para o Rio de Janeiro, então, em busca do sucesso. Com a
credencial do prêmio ganho em Minas, é convidado para o papel de mais
um assassino, na peça Querelle, adaptação de um conto de Jean Genet.
Participou ainda de A Mandrágora, de Maquiavel, mas a melhor
oportunidade chegaria com Blue Jeans, em 1991, de Zeno Wilde e
Wanderley Bragança, que faz uma abordagem do homossexualismo a
partir de um grupo de garotos de programa. Então ele vai contracenar
com atores que fazem novela, além da peça, cujo diretor, aliás, também
é do meio da televisão. Guilherme acaba por conseguir um papel, de
mínima expressão, numa das novelas, e outro, pouco mais importante, no
teatro. É convidado pelo mesmo diretor de Blue Jeans para ser o
protagonista do musical infantil Ali Babá e os 40 Ladrões, onde mais uma
vez usa o punhal, como chefe dos ladrões, para assassinar, na história,
um de seus subordinados.
A ponte para quem desejava chegar à novela das oito estava feita.
E o ano de 1992 lhe reserva o grande salto: é escolhido para a próxima,
que estrearia em julho.
Pág 32

Guilherme de Pádua Thomaz nasceu em 2 de novembro de 1969,


filho de Leda Maria de Oliveira Thomaz, dona-de-casa, e José Antonio
Thomaz, engenheiro.
Começou os primeiros estudos num colégio de padres jesuítas,
freqüentado pela classe média alta de Belo Horizonte, passando depois
por outro colégio, também conceituado, mas abandonou os estudos sem
terminar o segundo grau. Queria ser artista.
Guilherme é o caçula de duas irmãs, ambas engenheiras, e um
irmão, modelo e fotógrafo de colunas sociais, o mais velho. Os pais
moram no elegante bairro de Anchieta e deram aos quatro filhos um

10
apartamento, em um ponto valorizado da cidade.
Não se pode dizer que seja artista quem desfila em passarela, mas
foi por aí que se iniciou a carreira de Guilherme, aos dezesseis anos, ao
ser convidado para trabalhar numa agência de modelos em Belo
Horizonte mesmo.
Até o dia em que ele deixou a cidade para ir buscar o estrelato no
Rio de Janeiro, com dezenove anos de idade, a polícia mineira não
registrava nos arquivos qualquer passagem de Guilherme de Pádua
Thomaz. A busca nos arquivos fora pedida pela polícia carioca pouco
depois do assassinato de Daniela Perez.
No Rio, sim, Guilherme figurava numa ocorrência policial. Nebulosa.
Ele e um amigo, também ator de novela, Maurício Ferrazza, teriam sido
vítimas de uma tentativa de seqüestro, ou de roubo de carro, e no
episódio, em que houve uma troca de tiros entre os supostos assaltantes
e a ronda policial que chegava ao Parque do Flamengo no momento,
Guilherme foi atingido no ombro por um disparo. Aconteceu na
madrugada do dia 30 de junho de 1991 e depois disso Guilherme só
entraria de novo numa delegacia de polícia em
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29 de dezembro de 1992, a 16ª DP, na Barra da Tijuca, por duas vezes. A


primeira, para encenar um gesto de solidariedade ao marido e à mãe de
Daniela, que lá estavam logo depois de encontrado o corpo da atriz. A
segunda, quatro horas depois, para confessar, em um interrogatório que
durou seis horas, ter sido o autor do assassinato. E dar suas razões.
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DEZ

PAULA NOGUEIRA DE ALMEIDA Thomaz nasceu no Rio de Janeiro


em 7 de julho de 1973, filha única do casal Maria Aparecida Nogueira de
Almeida, fiscal aposentada do INSS, Instituto Nacional de Seguro Social,
e Paulo Alves de Almeida, jornalista, também aposentado.
Morou desde sempre com os pais na rua Júlio de Castilhos, num
edifício que tem uma segunda entrada pela avenida Atlântica, a uma
quadra de distância da Galeria Alaska, lugar que hoje é mais leve e no
entanto ficou célebre pelas noites picantes promovidas por seus
freqüentadores e que vai figurar na acusação contra ela, depois do crime,
como um de seus programas favoritos antes do casamento.
Paula é uma jovem comum, que também não seguiu os estudos, lia
Sidney Sheldon e revistas de horóscopo, tinha algumas amigas, simples
como ela, e dos pais ganhava tudo. Inclusive um Fiat.
Casar com um ator da novela das oito certamente é o sonho de um
incalculável número de jovens em todos os cantos do Brasil. Paula
conseguiu.
Conheceu Guilherme em Copacabana, começaram a na-
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morar e ela a freqüentar o Teatro Galeria, no Flamengo, onde ele fazia a


peça Blue Jeans.
Depois o namoro teve uma interrupção, mas continuaram amigos
enquanto Paula chegou a namorar outros dois atores que faziam Blue
Jeans. Com o tempo, ficou conhecida do elenco todo, que a tratava por
"irmãzinha". Então reatou o namoro com Guilherme e se casaram, em
maio de 1992, só em cerimônia civil, e foram morar no apartamento dos
pais dela provisoriamente, enquanto se reformava outro apartamento,

11
vizinho de parede, presente dos pais de Paula aos noivos.
É ali, no oitavo andar, que estão batendo à porta agora dois
policiais. Valdir de Oliveira Andrade e Nelson Peixoto dos Santos,
investigadores da 16ª DP, receberam ordem de procurar Paula, no dia
seguinte ao crime.
Pág 36

ONZE

A TERÇA-FEIRA, 29 DE DEZEMBRO, vai ser o dia mais efervescente


dos vinte e dois anos de existência da 16ª DP do Rio de Janeiro.
Quem está de plantão é o delegado Cidade de Oliveira, que daqui a
pouco, à meia-noite e vinte, verá entrar esbaforido em sua sala o cabo da
Polícia Militar Euclides Nuenes Alves, que vem fazer pessoalmente o
anúncio de que um carro encontrado abandonado na rua Cândido
Portinari pertence a um famoso ator de novela. O habitual seria o cabo
passar a ocorrência via rádio, de seu carro patrulha, o 54-0013, mas ele
achou melhor fazer a coisa pessoalmente, enquanto deixava de guarda
junto ao Escort, e de metralhadora em punho, o soldado Geraldo, como
ele pertencente ao 18º Batalhão da Policia Militar. Então contou que,
acionados pelo serviço de emergência da PM às 22:30, em meio a uma
ocorrência, o que os atrasou, ele e o soldado só conseguiram chegar à
Cândido Portinari por volta de meia-noite. Encontraram o Escort com o
vidro do lado direito aberto, faróis apagados e as portas fechadas mas
sem travar. Em busca de algo que identificasse o proprietário, teriam feito
uma rápida inspeção no interior do carro, que estava sem
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as chaves no contato (mais tarde as encontrariam no chão da rua).


Abriram o porta-luvas e mexeram na posição dos bancos em busca de
coisas no chão do carro, quando então teriam encontrado uma nota fiscal
em nome de Raul de Oliveira Gazolla. Terminado o relato, o cabo disse
saber onde morava o ator, naquele edifício mais alto da praia da Barra, e
recebeu ordens do delegado Cidade de correr para lá.
Nesse meio tempo, ao procurar se ocultar atrás da arvorezinha em
frente ao Escort, a única árvore de todo o canteiro de mato baixo comido
pela queimada, o soldado Geraldo, apesar de empunhando a
metralhadora, saltou de susto e medo ao tropeçar em algo estranho e
imóvel. Correu ao Escort acender os faróis e, naquela escuridão, o pouco
de luz que se espalhou em volta deu para ver que ele tropeçara num
corpo de mulher, sem vida.
Assim que o cabo saiu da delegacia em busca de Raul Gazolla, o
delegado Cidade de Oliveira voltou-se ansioso para o investigador Nélio
Machado, com quem estava conversando ao serem interrompidos pela
chegada do cabo e que já estava pronto para ir para casa, de pastinha na
mão... "Nélio, é melhor a gente ir até lá, o cara é da Globo, pode dar
confusão". Na saída, topam com o delegado Antonio Maria Serrano, que
mora na Barra e resolveu dar uma passadinha na delegacia para ver se
estava tudo bem. Cidade brincou, "soldado que passa em quartel está
querendo serviço", e contou o que estava acontecendo.
Serrano quis ir também e os três embarcaram em seu carro.
Chegando na Cândido Portinari, Serrano estacionou o carro de
forma a bater os faróis bem de frente sobre o corpo e os três
reconheceram a moça da novela das oito, Daniela Perez.
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12
DOZE

UM IMENSO APARATO DE COMUNICAÇÃO está recebendo os últimos


retoques para entrar em ação na terça-feira logo de manhã. Os grandes
jornais escalaram suas equipes; o rádio, que é mais nervoso e rápido,
tem seus homens e microfones estrategicamente programados; e a
televisão tem os olhos das câmeras prontos para levar ao país inteiro as
imagens diretas do espetáculo que vai marcar para sempre na História o
antepenúltimo dia do ano de 1992. As nove horas da manhã vai começar
no Senado o julgamento político que afastará do poder o Presidente da
República.
Quem foi dormir na hora de dormir, como a maior parcela da
população, não ficou sabendo da chocante notícia divulgada no meio da
madrugada. Uma das principais atrizes da novela das oito fora
brutalmente assassinada, havendo mistério em torno da autoria do crime.
Nem os jornais dariam a notícia na terça-feira; já estavam rodados e
sendo distribuídos nas bancas e endereços dos assinantes.
O julgamento do Presidente no Senado começou com um pequeno
atraso e foi atravessando a manhã, a hora do almoço, a tarde, a noite e
enveredando pela madrugada da quarta-feira,
Pág 39

dia 30. Enquanto cresciam a apreensão e emoção no Senado, de outro


lado armava-se um vendaval de comoção a partir da notícia dada na hora
do almoço. O assassino da atriz Daniela Perez era um ator também e, na
novela das oito, fazia o papel de namorado dela.
Os jornais da quarta-feira, 30, deram em manchete a renúncia do
Presidente da República, apenas parte do que ocorrera no Senado. A
outra parte, inabilitação para exercer qualquer cargo público por oito
anos, decidida pelos senadores às quatro horas da madrugada do dia 30,
pegou de novo os jornais já devidamente distribuídos e a população
quase toda no segundo sono. Mas eles não puderam se furtar a dar na
primeira página, com destaque, ao lado da notícia da renúncia, o crime
que também entraria para a história da polícia e da televisão. Um fato
inédito, e de tamanha carga emotiva junto à média da população, que
nos dias seguintes acabaria por superar, de longe, em todos os meios de
comunicação, as repercussões sobre o afastamento do Presidente.
Estava começando um doloroso processo que alguns analistas
classificaram apenas de histeria coletiva, mas que, além do público que
vê novelas e lê jornais e revistas, iria sensibilizar figuras e instituições as
mais influentes do país, que acabariam se manifestando publicamente.
Como dom Luciano Mendes de Almeida, presidente da CNBB,
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o mais influente órgão político
da Igreja católica. Em meio à emoção geral estimulada pela TV e os
outros meios, ele fez criticas que não iam direto ao alvo e que podiam ser
consideradas pouco cristãs, ao dizer que quem escreveu o papel para a
filha morrer foi a própria mãe.
Pág 40

TREZE

O REPÓRTER JORGE MARTINS, de 41 anos e larga experiência


profissional, desde 1986 é responsável pela cobertura da madrugada do
jornal O Globo, o maior do Rio de Janeiro e um dos mais importantes do
país. Ele está na redação nesta madrugada de segunda para terça-feira e

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antes de olhar o relógio recebe pelo telefone a informação que está
correndo as redações cariocas: "Uma mulher foi encontrada morta num
matagal na Barra da Tijuca". Jorge liga para o 18º Batalhão da Polícia
Militar, que cuida da segurança daquela área, e o policial de plantão, além
de confirmar a informação, pergunta se ele sabe o nome do marido da
atriz que faz o papel de Yasmin na novela das oito. Jorge não é um dos
cinqüenta e dois milhões de brasileiros que todas as noites, de segunda a
sábado, acompanham fielmente, muitos quase como partícipes, os lances
do dramalhão da novela das oito, e por isso consulta um colega. "Raul
Gazolla", é a resposta. Ao passar o nome para o policial, este lhe diz
então que acha que a moça foi encontrada morta, pois é muito parecida
com a da novela e os policiais encontraram uma nota fiscal com o nome
do ator.
A imprensa brasileira, o rádio e a televisão do dia seguinte em
diante iam investir pesado no caso. Outros muitos crimes
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violentíssimos e muitos escândalos continuariam a ser noticiados, mas


nem mesmo a queda do Presidente da República, substituído pelo vice e
causada por crime de responsabilidade, ocuparia tanto espaço e tempo
nos veículos de comunicação. A correspondente no Rio da rede de TV CNN
terminou seu despacho no dia 29 dizendo que "nada, nos últimos tempos,
atingiu os brasileiros como o assassinato de Daniela Perez". Na verdade,
nunca um crime teria tanto espaço na mídia. No correr dos dias toda a
munição necessária seria posta à disposição do caso. Os grandes jornais
iam dar páginas diárias, uma, duas, três páginas inteiras, suplementos
dominicais a mesma coisa, ou mais. Colunas assinadas por nomes de
grande expressão aparecem também em todos os jornais, e os próprios
editoriais, espaços mais nobres conforme a tradição da imprensa, pois é
neles que se expõe, com solenidade, a opinião do jornal, acabariam por
se ocupar do caso.
As revistas semanais que tratam exclusivamente do universo da
televisão multiplicariam suas vendas. E viveriam uma situação
inesperada. É que, ao longo dos anos, ao perceber que as personagens
das novelas foram cada vez se tornando mais próximas da audiência do
que os próprios atores que as representavam, acabaram instituindo o
original fenômeno jornalístico de usar os nomes das personagens e das
situações ficcionais que viviam na novela em seus títulos e chamadas de
capa, como se fossem reais, e agora defrontavam-se com a contradição
absoluta. A tal ponto chegara essa intimidade entre novela e público que
até mesmo grandes jornais haviam sucumbido ao fenômeno, dando em
seus títulos sobre determinado fato, real, envolvendo um ator, o nome da
personagem da novela e não o do próprio ator, apenas cuidando de
brindá-lo com aspas.
A principal revista semanal de informação do país não teria também
como escapar da cobertura do caso, dedicando-lhe a ca-
Pág 42

pa da edição que circulou duas semanas após o crime. E a mais


tradicional revista semanal ilustrada não só levou o assunto para a capa,
mais de uma vez, como esgotou sua proposta jornalística com todas as
fotos possíveis de todos os ângulos, atos e personagens reais e fictícios
envolvidos. Chegou a dar um poster, com chamada de capa. "Grátis. Um
poster-recordação de Daniela Perez." Uma outra publicação da mesma
editora pôs nas bancas uma fotonovela da história apenas substituindo os
nomes das personagens (que assim ganhavam uma terceira identidade).
As rádios se debruçariam também sobre o assunto, mas a televisão

14
é que iria promover a grande comoção nacional, como era de se esperar.
Os principais atores da novela das oito entrariam no cenário jornalístico
com toda a dramaticidade que o episódio encerrava e então a osmose
realidade-ficção deu-se por completo. O telejornal recordista de audiência
precede a novela das oito. Ela é posta no ar imediatamente após o
término do jornal, e os atores saíam de um para entrar na outra. O
assassino e a vítima continuaram aparecendo nas cenas já gravadas, na
própria noite da terça-feira, com todo o pais sabendo, por meio dos
noticiosos, que a moça estava morta e o rapaz preso, por tê-la
assassinado; eram namorados na novela. Ele apareceu ainda mais duas
noites, nos capítulos da quarta e da quinta-feira. Ela seria mantida
durante mais dezenove capítulos. Todas as cenas em que não
contracenava com ele foram aproveitadas. A autora da novela, mãe da
moça na vida real, prosseguiria escrevendo a novela. E o marido da atriz,
que tinha um papel importante em outra novela, voltou a gravar três dias
após a tragédia.
A mesma estação da novela das oito e do telejornal recordista de
audiência preparou uma reportagem especial sobre o caso, exibida na
semana seguinte, e que conseguiu audiência notável, maior que a do
jornal e a da novela. Começa com o apresentador na rua Cândido
Portinari, no ponto do terreno
Pág 43

baldio onde foi encontrado o corpo de Daniela Perez. De dia. Mais adiante
aparecerá à noite, falando primeiro ao lado da arvorezinha solitária, no
mesmo ponto do terreno, dirigindo-se em seguida a um Santana
estacionado a poucos metros, para mostrar como Guilherme de Pádua
teria agido naquela noite de segunda-feira. Há um toque de dramaturgia
em todo o programa, que produziu uma cena para mostrar a sua versão
do momento e da autoria do crime, com duas figuras que representavam
Guilherme e Paula cravando, cada uma várias vezes, uma tesoura num
corpo caído. São ouvidas várias pessoas: o diretor-geral da Polícia Técnica
do Rio, sobre as dezesseis perfurações encontradas no corpo de Daniela;
o advogado aposentado Hugo, o que anotou as placas e declarou depois
ter reconhecido o rosto de Paula no local do crime; o marido e a mãe da
atriz, Raul Gazolla e Glória Perez; atores da novela das oito que
contracenavam com Daniela; são mostrados o início e a evolução das
carreiras de Daniela e de Guilherme, enfatizando os papéis de criminoso
que ele representou em teatro; a repercussão do caso no exterior; os
advogados de acusação e defesa; o pai da atriz e amigas dela; e cenas da
novela, inclusive aquela que deveria ser a última cena em que ela
apareceria, dia 19 de janeiro.
Mas, para alimentar o mistério sobre os motivos do crime, de tudo o
que foi mostrado salientava-se um depoimento, o da atriz Marilu Bueno.
Ela conta que brincavam muito ela e Daniela durante os trabalhos de
gravação, nos cenários que reproduziam o interior de uma casa de
subúrbio, e quando a jovem fez a última troca de roupa para as cenas
daquele dia, repetiu uma piada que costumava fazer a respeito da curta
bainha das saias que Daniela usava na novela. Daniela estava de preto.
"Está de luto? Mâmi vai subir sua bainha..." E Daniela disse uma frase
sintomática. "Eu sabia que você ia dizer isso; ah, só você pra me fazer rir
hoje."
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CATORZE

15
QUANDO RAUL GAZOLLA DEIXOU a casa de Glória Perez, um
apartamento no bairro do Jardim Botânico, dizendo que Daniela ligara às
nove e pouco mandando o recado de que não demoraria muito a ir para
casa e que ele agora estava achando que alguma coisa havia acontecido
com ela, a mãe de Daniela não disse nada mas também tinha certeza de
que algo acontecera.
Foi ao telefone e ligou para Fábio Sabag, um dos diretores da
novela das oito. Não estava em casa. Ligou então para o assistente de
direção Caco Coelho, que contou ter visto Daniela, Marilu Bueno e
Guilherme no estacionamento dos estúdios Tycoon ao final das gravações.
Na seqüência, ligou para Guilherme. "Caco disse que você estava no
estacionamento com Daniela..." Guilherme, que atendera ao telefone com
naturalidade, diz que talvez Daniela tenha ido fazer uma visita. "Ela falou
que ia fazer uma visita?" Ele responde que não, mas pode ser que tenha
ido. A resposta é esquisita, mais tarde pode até receber uma
interpretação, mas Glória a considera cretina naquela hora e faz uma
pergunta direta. "O que você viu?" Então Guilherme diz que deixara
Daniela junto com Marilu Bueno, tirando umas fotos com um grupo de
fãs.
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Glória Perez desliga o telefone.


Pouco depois, toca. E Gazolla. Ele dera uma passada em casa e
encontrara recado para ir à 16ª DP. É dali da delegacia que está falando.
Diz que Daniela deve ter sido seqüestrada (a idéia de seqüestro faz parte
do cotidiano dos cariocas já há alguns anos).
Glória troca de roupa às pressas, já quase em desespero, mas
quando vai saindo, tem a lembrança. Seqüestro? Encontraram o carro? O
grupo de lãs mencionado por Guilherme... Liga de novo para ele. "Ela saiu
sozinha, fiquei lá e vi quando ela saiu sozinha."
Glória estranha, mas como não quer ficar insistindo, vai pedir
depois que outra pessoa ligue para Guilherme. Uma das pesquisadoras
que trabalham para os roteiros de sua novela faz a ligação e conta que
quem atendeu foi Paula, mulher do ator, dizendo que ele descera um
instante para comprar remédios para a gravidez dela.
Logo depois de haver telefonado para Glória, Gazolla fica sabendo
que haviam encontrado o corpo de Daniela. Sai escoltado por um carro da
delegacia e em companhia de Marilu Bueno. Chega e cai de joelhos, em
prantos, ao lado do corpo, amparado por Marilu, que também chora
convulsivamente.
Os policiais que estão na Cândido Portinari ficam sabendo que
Daniela havia saído da Tycoon e um deles pergunta se é possível verificar
a hora em que ela saíra. Outros atores da novela já estão ali também. Um
deles lembra que há uma prancheta em que se anotam os horários de
entrada e saída de todas as pessoas. O delegado Cidade de Oliveira e o
investigador Nélio Machado deixaram ficar o delegado Serrano e foram
para a Tycoon, enquanto alguns moradores mais notívagos do condomínio
RioMar começavam a se aproximar do terreno baldio seduzidos pela
movimentação e pela presença de carros da polícia.
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Dentre os que se aproximaram está o procurador Antonio Carlos


Curado, que conta a Serrano ter sido ele a pessoa que ligou para o 190
avisando do Escort abandonado. E acrescenta que o pai de sua vizinha,
que viera passar o fim do ano no Rio e estava hospedado na casa dela,
anotara a chapa de outro carro visto perto do Escort.
Enquanto o delegado Serrano se encaminha para a casa da filha do

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ex-advogado Hugo da Silveira, para apanhar o número da tal chapa,
estão chegando mais atores da novela das oito e os carros de
reportagem. Glória Perez chega também. A polícia não lembra de isolar o
lugar e se estabelece a confusão de microfones, flashes, perguntas e até
a briga de um ator de novela com um fotógrafo de jornal, em volta do
corpo da moça estendido no chão.
Glória Perez pede que cerrem as pálpebras da filha, que estão semi-
abertas, mas os policiais explicam que o corpo precisa passar por uma
perícia como está e já será embarcado no rabecão, que está acabando de
chegar. São duas e vinte da madrugada de terça-feira e todos seguem
para a 16ª DP. O corpo de Daniela será levado para o IML, Instituto
Médico Legal, para os obrigatórios laudos técnicos.
A delegacia vai sendo invadida pela imprensa e pelos atores.
Guilherme de Pádua chega com a mulher, Paula, diz ter sido avisado da
tragédia por alguém da novela e ambos apresentam condolências a Raul
Gazolla e a Glória Perez, que já se prepara para acompanhar o corpo da
filha ao IML.
Os policiais Cidade de Oliveira e Nélio Machado estão de volta da
Tycoon e encontram Serrano já na delegacia. Ele conta aos outros dois
que checara as três possibilidades das letras de identificação dadas pelo
advogado aposentado Hugo da Silveira, OM, UM ou LM, e que a Cepol,
Central de Polícia, informara que das três a única que pertencia a um
Santana era a LM,
Pág 47

e o proprietário era Paulo Alves de Almeida, residente na avenida


Atlântica 3958, apartamento 803.
Cidade de Oliveira e Nélio Machado tinham acabado de ver na folha
de controle do estacionamento da Tycoon o mesmo número, mas o carro
estava em nome de Guilherme de Pádua...
Os três conseguiram ficar quietos, e trataram de obter na hora os
telefones do pessoal da novela. No meio deles, estava o de Guilherme.
Glória e os atores saíram para o IML, no bairro da Lapa, a uns 30
km da Barra. Serrano e Nélio iriam um pouco depois, ver se encontravam
Guilherme por lá. Cidade de Oliveira ficou na delegacia.
A revelação era bombástica, dava para imaginar a repercussão.
Cidade de Oliveira não se conteve e tentou falar logo com o delegado-
titular. Acabou encontrando-o e contou a história das placas pelo telefone.
Magalhães disse que então ia de volta à 1 6ª. Já eram quase três e meia
da madrugada.
Nem bem ele chega, telefonam Serrano e Nélio, dizendo não ter
encontrado Guilherme no IML, mas que estavam querendo ir até a casa
dele, já haviam conseguido o endereço. Era o mesmo do proprietário do
Santana, Paulo Alves de Almeida, que constava do registro da Cepol na
avenida Atlântica. Magalhães lembra que é preciso um mandado de
busca, assinado por um juiz, melhor esperar o amanhecer para não criar
problemas na Justiça.
A Constituição impõe que seja assim.
Os dois, Serrano e Nélio, voltam para a 16ª, convocam mais dois
investigadores e seguem para o endereço. Vão fazer o que a polícia
chama de "campana", isto é, ficar observando os passos de uma pessoa
sem que ela possa desconfiar disso.
Os quatro chegam por volta de quatro horas da madrugada ao
edifício da avenida Atlântica, um enorme conjunto de apar-
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tamentos que chega a ocupar quase um quarteirão do bairro de

17
Copacabana. Quem mora ali pode dar dois endereços, pois há uma
segunda entrada, pela rua Júlio de Castilhos nº 8.
Serrano e Nélio conseguem chegar à garagem do edifício e a
primeira coisa que vêem é o Santana azul. Destacam um dos dois
homens que levaram para ficar na garagem, cuidando que Guilherme não
fuja no carro. O outro vai para a saída dos fundos do edifício. Nélio sobe
até o oitavo andar e fica na porta do apartamento 803, enquanto Serrano
ficará na portaria.
O porteiro do edifício não está entendendo muito bem o que ocorre
quando ao amanhecer, cinco e meia, recebe de Serrano o pedido de ligar,
pelo interfone, para o apartamento de Guilherme. O porteiro informa que
o interfone está com defeito. Então Serrano vai até o telefone público à
frente do edifício e faz a ligação. Ouvido colado à porta do apartamento
803, o investigador Nélio procura escutar o que acontece lá dentro.
O telefone toca.
Mais tarde Serrano relataria como foi o telefonema. "No terceiro
toque, atendeu uma voz feminina. Pedi para falar com o Guilherme,
dizendo que era o delegado Serrano, da 16ª. Guilherme veio ao telefone,
expliquei que estávamos chamando todos os colegas de Daniela para
depor. Ele perguntou a que horas teria de comparecer à delegacia. Eu
disse que o melhor era nos acompanhar naquele momento. Ele perguntou
se havia necessidade de toda essa pressa, que estava sem dormir porque
fora falar com Gazolla na delegacia e não pegara mais no sono. Insisti,
dizendo que todos os atores estavam indo depor, ele me pediu que
subisse para conversar."
Assim que Guilherme desligou o telefone, abriu a porta de entrada
do apartamento e deu de frente com o investigador Nélio Machado.
Empalideceu. "O senhor me assustou, pensei que vocês estivessem lá
embaixo."
Pág 49

Nélio então entra, para esperar Guilherme, que estava de bermuda


de veludo cotelê verde e peito nu. Ele pede para ir se vestir.
Enquanto isso, chegava também Serrano e apareciam na sala os
outros três habitantes do apartamento. Paula, de camisola e com um
gatinho no colo, o pai e a mãe dela, vestidos. Paula pede para ir junto
com Guilherme, o pai diz que é melhor que fique com a mãe, ele irá com
Guilherme, que acaba de reaparecer de camiseta cinza, chinelo de
plástico e a mesma bermuda verde.
O pai de Paula tem a chave do Santana na mão. Ele vai guiar, com
Serrano ao seu lado e Guilherme de Pádua no banco de trás.
Os outros três policiais vão em outro carro.
Pág 50

QUINZE

As AGÊNCIAS DE PROPAGANDA E OS anunciantes mais fortes


sabem que o mais caro na televisão brasileira são o noticioso Jornal
Nacional e a novela das oito, que vem logo em seguida na mesma
estação. O preço do comercial de trinta segundos é de mais de trinta e
oito mil dólares no primeiro e mais de trinta e cinco mil dólares na novela.
São a menina dos olhos da estação.
Aparentemente é complicado o mecanismo de uma novela, mas ao
longo dos vinte e seis anos desde que a primeira foi feita na estação,
estudaram-se tão a fundo todos os truques de concepção, feitura e lucros
que ela pode permitir, que hoje os "homens de televisão" olham-na como

18
a coisa mais simples e linear de executar.
Na rede de televisão que conquistou o monopólio de audiência das
novelas, principalmente a das oito, o mecanismo tomou-se simples a
ponto de banalizar-se. E para os telespectadores tornou-se um hábito,
como o de ir à missa dominical antigamente.
A estação tem uma lista de autores, que mal passa de seis nomes,
para a novela das oito. São aqueles que ela classifica, à moda da
hierarquia militar, "com divisa" para assumir o horário.
Esse autor está no pico da pirâmide de um complexo profissional
chamado de "o núcleo das oito", que envolve de qui-
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nhentas a seiscentas pessoas trabalhando sem parar. Ele ganha de vinte


a trinta mil dólares mensais e descansa de seis meses a um ano cada vez
que termina de escrever uma novela. Bem antes de ele terminar, já está
sendo escolhida a próxima.
O grupo de autores "com divisa", menos esse que irá descansar,
apresenta cada um sua sugestão de história. Aprovada uma, após a
discussão que envolve todos os diretores do núcleo mas cabendo a
palavra final ao vice-presidente da estação, vai-se pensar no elenco.
Primeiro, os cinco principais papéis. O diretor-geral do núcleo indica
os atores que estão na "geladeira", os grandes nomes — aqueles que são
contratados fixos da estação não importa se haja ou não papel para eles
numa das três novelas que vão ao ar o ano inteiro, a das seis, a das sete
e a das oito da noite. São pouco mais de uma dúzia esses grandes nomes
e ganham de oito a dez mil dólares mensais cada um, com um adicional
quando estão atuando.
O autor escolhe os seus preferidos. Pode ser escolhido também
algum ator de outra estação que esteja brilhando no momento. Contratá-
lo, é uma forma de "limpar" a concorrente. Foi o caso desta novela das
oito. O principal papel feminino é da atriz que faz a irmã de Daniela Perez
e vinha de grande sucesso numa novela de outra estação.
Escolhidos os cinco atores principais, é hora de escalar o supporting
cast. Assim mesmo, em inglês, é chamado o time de atores que vai
preencher os papéis secundários, que são muitos. Conforme as leis da
novela, imutáveis, cada uma precisa ter cinqüenta personagens. Fora
pontas e figurantes.
Então o autor se prepara para viver um pequeno inferno. Os atores
começam a procurá-lo para "entrar na novela" e, como o número de
personagens é tão grande, o batalhão de candidatos se multiplica. Os
diretores também são assediados de todas as formas. Há autores que
começam a trabalhar altas ho-
Pág 52

ras da noite e dormem de dia, para fugir à perseguição dos candidatos a


um papel.
Aí vem o terceiro time, os aspirantes ao estrelato, garotas e rapazes
de cara bonita, para fazer a "vitrine" da novela, como se usa dizer na TV.
E o que era um inferno para o autor e diretores é um pequeno paraíso
para quem vai escolher esse time, geralmente recrutado entre modelos
capazes de quase tudo para conseguir um lugarzinho no elenco. Mesmo
porque isso significa não só a chance ao estrelato, mas a oportunidade de
ganhar um bom dinheiro fora da novela. Esses novos atores ou modelos
recebem convites permanentemente para animar bailes de debutantes,
fazer rápida aparição em casas noturnas ou participar de festas
milionárias. São tantos os convites, que desde cedo eles já são obrigados
a contratar empresário especializado no assunto. E acabam ganhando

19
nisso muito mais do que o salário da novela, bem baixo no caso deles,
menos de mil dólares por mês, em média.
Guilherme de Pádua estava no terceiro time. Na segunda-feira do
crime, aliás, chegava de manhã cedo ao Rio, vindo de São Paulo, onde
fizera duas apresentações em casas noturnas da periferia. Seu cachê ia
de 200 a 1.500 dólares, conforme o tempo que fosse obrigado a
permanecer no lugar que o contratava.
Até o dia da estréia, a novela já viveu um longo processo, que
começa na gravação de seis a dez capítulos experimentais, feita logo após
a exaustiva discussão sobre a escolha da história e do elenco. Esses
capítulos servem de "laboratório" e tudo pode ser mudado a partir de seu
estudo, até o ator principal. Menos a história. Esta não muda.
Feitas todas as mudanças e obtida a aprovação final, sempre do
vice-presidente da estação, começam as gravações definitivamente. Com
uma grande antecipação. Ao estrear, a novela já está com os trinta
primeiros capítulos prontos.
O autor tem de entregar dez capítulos por semana. Cada ca-
Pág 53

pítulo tem trinta laudas, aproximadamente, que serão xerocadas para


quinhentas e tantas pessoas, o exército que trabalha na novela. Uma
cópia para cada uma, do diretor-geral do núcleo, que comanda outros
diretores de cena e supervisiona tudo, até os camareiros, escolhidos pelo
figurinista da novela para cuidar das roupas de cada personagem, que
devem estar sempre prontas e separadas no lugar certo.
Consome-se muito dinheiro numa novela. Somando o que é gasto
na produção e o pagamento das pessoas, cada capítulo custa por volta de
trinta mil dólares. Em média são 180 capítulos e a novela fica cerca de
oito meses no ar. Fora os anunciantes que compram espaço no horário, a
novela criou outras ricas fontes de renda. Uma são as músicas utilizadas,
que sairão em disco. A outra, de tão rica, precisa ser controlada por um
departamento especializado. E atingiu tamanha proporção, que o próprio
autor da novela, quando está criando a história está pensando no
merchandising. Quanto mais a história der oportunidade para esse tipo de
propaganda ser inserido no cenário, nos diálogos, na ação ou mesmo no
corpo das personagens, mais o autor terá chance de ser o escolhido para
a próxima novela.
Além da estação, três pessoas recebem o dinheiro da venda do
merchandising. O autor, o ator que aparece utilizando ou consumindo o
produto, e um diretor da cena, um profissional que só cuida disso na
novela. O autor ganha dez por cento da receita obtida e o ator recebe
"unidades por participação". Cada unidade tem determinado valor e se ele
tomar, por exemplo, dez copos daquela cerveja em dez cenas diferentes,
recebe dez unidades.
Para tomar o copo de cerveja, porém, ele tem de ser bonzinho. Ator
que desempenha papel de mau não tem chance. Ao merchandising só
interessa mocinho, bandido não entra. Por essa razão, às vezes, ao longo
da novela, o autor muda o caráter de uma personagem.
Pág 54

DEZESSEIS

O SANTANA AZUL GUIADO POR Paulo Alves de Almeida e levando


Serrano e Guilherme chega à 16ª DP.
Guilherme parece muito calmo, posa para os fotógrafos e sobe à
sala do delegado Mauro Magalhães, que está com o subsecretário de

20
Segurança do Estado, Joel Vieira. Sobem com Guilherme o delegado
Serrano e o investigador Nélio Machado.
O pai de Paula fica lá embaixo. São quase sete horas da manhã. A
primeira pergunta de Mauro Magalhães é a que horas Guilherme deixou a
Tycoon a noite passada.
Guilherme diz que saíra às nove horas. O delegado pergunta o que
ele foi fazer em seguida e Guilherme responde que fora apanhar a
mulher, Paula, no Barrashopping.
Estava começando um interrogatório policial com as características
a que estão todos acostumados. O delegado-titular e o subsecretário de
Segurança farão o papel de bonzinhos, e os outros dois policiais, de
maus.
Nélio Machado pergunta de sopetão por que Guilherme está com a
testa ferida e o ator responde que se machucou na obra do apartamento
que está sendo reformado, o apartamento vizinho ao dos sogros, para
onde vai se mudar com a um-
Pág 55

lher. Serrano intervém dizendo que aquela marca parece unhada e


Guilherme ri, dizendo que bem podia ser das fãs que tentaram agarrá-lo
no McDonald's a tarde anterior. Em tom brincalhão, Mauro Magalhães
pede que ele escolha uma das duas versões e ele diz que não se lembra
bem. O delegado-titular deixa passar e pergunta sobre Daniela, se o ator
a teria visto na hora de sair dos estúdios de gravação. Ele responde que
sim, que os dois até tinham posado para umas fotos com fãs. Nélio volta
à carga. Diz que os dois tinham sido vistos saindo juntos. Guilherme
observa que foi apenas uma coincidência de horários mas o outro insiste
e diz que o porteiro dos estúdios vira os dois saindo juntos. Guilherme
fica nervoso e Mauro Magalhães pede ao investigador que não pressione o
rapaz, que está abatido com o crime. Guilherme acalma-se e diz que
realmente saiu na mesma hora que Daniela mas não viu para onde ela
foi. Nélio então pergunta pelo ticket de estacionamento do Barrashopping,
que todos os clientes recebem ao sair. Guilherme diz que não pegou o
ticket porque parou só um pouquinho, apenas o tempo de apanhar a
mulher, e pergunta se estão desconfiando dele, que ele jamais faria uma
coisa dessa. A voz já está meio embargada de choro.
Mauro Magalhães pede que tragam café e água para o rapaz. E
depois pergunta, todo compreensivo, se havia alguma coisa entre ele e
Daniela, que os atores que tinham estado na delegacia haviam
comentado alguma coisa a respeito. Guilherme nega enfaticamente,
acrescentando que sua mulher está grávida e que está apaixonado por
ela. Todo maldoso, Nélio comenta que "esse negócio de fidelidade não é o
forte de homem, principalmente de artista". Guilherme reage repetindo
que no seu caso não é assim e que nunca falava com Daniela fora dos
estúdios.
Nélio deixa a sala, estrategicamente, e Serrano assume seu
Pág 56

papel. Pergunta a Guilherme onde estão as roupas que usava no dia


anterior. "Em casa", responde o ator.
De acordo com o script, é hora de Mauro Magalhães elevar a
temperatura do interrogatório, indo direto ao assunto. Diz a Guilherme,
sempre com todo o tato premeditado, que uma testemunha vira o carro
dele no local do crime, que por isso ele era o principal suspeito. E que
assim sendo não poderiam deixar de ir à casa dele buscar as roupas que
usavam na véspera. Guilherme pede para telefonar e disca o número de
casa. Usando um expediente a que estão acostumados, também, o

21
inspetor Nélio fica ouvindo na extensão, fora da sala. Quem atende é
Paula, e Guilherme diz que os policiais estão indo lá apanhar "as roupas
que estão lavando". Paula responde que as roupas não estão sendo
lavadas e Guilherme, achando que apenas os presentes na sala estão
ouvindo, pede que ela as entregue "molhadas mesmo". Ela então diz que
porá as roupas na máquina de lavar e que a mãe vai mandar um
advogado para a delegacia.
O advogado Antonio Carlos Barandier é procurado pela mãe de
Paula, Maria Aparecida Nogueira de Almeida. Ela diz que o genro está na
delegacia desde cedo e que está preocupada, acha melhor um advogado
ir ver o que está acontecendo. Barandier se prontifica a ir logo em
seguida.
O pai de Guilherme, assim que é avisado, trata de fazer a mesma
coisa, ligando de Belo Horizonte para contratar outro advogado do Rio,
Luiz Guilherme Vieira.
O interrogatório continua na sala do delegado-titular. Aliás, após
quase três horas, já está chegando ao clímax, quando Mauro Magalhães
revela que o Santana de Guilherme havia sido visto ao lado do Escort de
Daniela no local do crime. Então Guilherme começa a ceder, confirmando
ter ido com ela até o lugar. Mas procura justificar, dizendo que ela queria
fumar
Pág 57

maconha e pedira que fosse junto. E ele teria ido para não deixá-la
sozinha naquele lugar deserto, esperou enquanto ela fumava e quando
ela disse que ia para casa ele não a esperou sair com o carro por estar
preocupado com a mulher, que o aguardava no Barrashopping. Nélio, que
está de volta à sala, ensaia um ataque final. Diz que a história estava
estranha, cada vez era uma coisa diferente, que conversara com gente
que lhe contara haver um caso entre ele, Guilherme, e Daniela, e arrisca
outro dado falso que muitas vezes surte efeito: "A perícia encontrou suas
impressões digitais no corpo dela".
Guilherme vai cair na armadilha e ceder de vez. Pede ao delegado-
titular que convide os outros a sair, quer ficar a sós com ele. Depois de
ouvir Mauro Magalhães paternalmente dizer que não havia saída, que
todo o mundo sabia que ele era o culpado, Guilherme começa a chorar e
repete "Fui eu! "Fui eu! Fui eu, delegado, mas foi para proteger minha
mulher e a criança que ela esta esperando!"
E deu suas razões. Disse que Daniela o assediava e que diante de
sua inabalável resistência ela teria até ameaçado matar sua mulher Paula,
e mandaria que o corpo fosse esquartejado em seis pedaços a ser
enterrados em seis lugares diferentes para que a alma se perdesse...
Continuou falando sobre o assédio e as ameaças durante bom tempo; as
queixas domésticas que Daniela teria feito; o convite para irem ao local
onde acabaria acontecendo o crime; que ele a seguiu com seu carro e
chegando ao lugar ela desembarcou e veio para o carro dele e começou a
se insinuar com mais insistência; ele não aceitando, recebeu novas
ameaças, inclusive de tirá-lo da novela, com a influência que possuía; e
como ela chorasse muito, ele apanhou lenços de papel no porta-luvas,
onde ela teria visto uma tesoura, pegou-a e foi para cima dele. Aí houve
luta e daí a explicação para as marcas que tem na testa e nos braços;
estas seriam
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resultado da violência com que ela o atacou, a ponto de feri-lo apesar de


estar com um casaco de napa. Até que ele, como se estivesse vivendo um
pesadelo, atracou-se com Daniela, não podendo descrever de forma

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precisa como a atingiu, pois estava em transe, só conseguindo pensar na
mulher e no filho que ela estava esperando. E saiu dali transtornado e foi
buscar a mulher no Barrashopping, jogando antes a tesoura na praia e
antes ainda adulterou a placa do Santana, de LM para OM, com uma tira
de fita isolante que, assim como a tesoura, o sogro costumava levar no
carro.
O rádio do táxi que o advogado Barandier tomou para ir à 16ª DP
está falando do caso Daniela Perez, como praticamente todos os rádios de
todos os táxis, e então ele ouve que Guilherme acabara de confessar o
crime. No inevitável raciocínio de defensor de réus, ele pensa: "Puxa, por
que não esperou ao menos o advogado chegar?".
Quando Barandier vai chegando à sala do delegado-titular,
Guilherme está acabando de repetir a mesma história que repetiria dali
em diante. Que nunca havia dado um único beijo em Daniela a não ser na
novela e que, como prova de fidelidade à mulher, tinha até mandado
tatuar o nome "Paula" no pênis, que podia mostrar ali agora para o
delegado. Mauro Magalhães diz que não precisa mostrar e nessa hora
entra Barandier. São onze e meia da terça-feira.
Chega também o outro advogado, Luiz Guilherme Vieira, que fora
chamado pelo pai de Guilherme.
Os dois advogados conversam com o ator, informando-o ao final
que a confissão tem de ser formal e que não precisa falar nada se não
quiser. Mas Guilherme quer. Antes, telefona para Paula dizendo que havia
confessado, que os policiais iriam de novo lá para apanhar mais coisas e
que ela não falasse nada.
Em seguida, ao meio-dia, faz a confissão formal, assistida pe-
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los dois advogados, o delegado Mauro Magalhães, o delegado Cidade de


Oliveira, o delegado Antonio Maria Serrano, o delegado Newton Moreira e
o inspetor Nélio Machado.
Dias depois, Mauro Magalhães contaria a uma repórter que durante
o interrogatório de Guilherme, na parte inicial, Glória Perez esteve na
delegacia após ficar sabendo que o ator estava ali como suspeito, e que
se mostrou indignada, xingando os policiais e dizendo que eles estavam
querendo acabar com a imagem dos artistas de televisão.
Pág 60

DEZESSETE

UM SEGUNDO ESPANTO ABALOU OS artistas e a autora da novela


quando velavam o corpo de Daniela Perez na capela 1 do cemitério São
João Batista, no bairro de Botafogo. Ninguém quer acreditar na notícia de
que agora há pouco, ao meio-dia, Guilherme de Pádua se confessara o
autor do assassinato. O marido da atriz, Raul Gazolla, sofre uma crise
nervosa e os atores que contracenavam com Daniela e Guilherme reagem
com a incredulidade de quem está ouvindo um boato inadmissível.
O caso ganha dimensões de ineditismo e cores de ficção, tanto que
chega a confundir as pessoas, como aquele autor de novelas da mesma
estação de televisão, que na ocasião estava no Caribe e nem percebeu do
que se tratava quando viu na TV imagens dos dois jovens atores
protagonistas da tragédia. Pensou tratar-se de uma reportagem sobre a
novela das oito e só mais tarde foi saber que se falava do crime.
É pólvora pura a carga jornalística contida no episódio. Uma jovem
atriz de 22 anos, em ascensão, é assassinada pelo ator de 23 anos que
faz o papel de seu namorado na novela das oito, o programa de maior

23
audiência da quarta rede de televisão do mundo, e a autora da novela é a
mãe da atriz. Tão
Pág 61

forte a carga, que no exterior o caso vai receber destaque até no New
York Times e na NBC, uma das três grandes redes de TV americanas.
As cenas do velório pela manhã e do enterro à tarde, no cemitério
São João Batista, vão se assemelhar às de um espetáculo. Com centenas
de figurantes, principalmente femininas, procurando se aproximar dos
mitos de novela. Os cálculos dos jornais variaram entre 1,5 e 5 mil
pessoas. Não importa a diferença enorme de cálculo, qualquer número
que tenha sido elas vão deixar um pequeno rastro de destruição no
cemitério. O caixão desce à cova coberto com a bandeira de uma escola
de samba em que Daniela iria desfilar no carnaval de 1993.
Nos dias seguintes a comoção vai crescer, acirrada pela enorme
cobertura da televisão, jornais e rádio e pelas inúmeras interrogações
colocadas pela própria imprensa, em razão dos muitos pontos obscuros
que cercam não só o motivo que teria levado o assassino a tamanha
violência, mas também o desaparecimento da arma do crime (faca,
punhal, adaga, tesoura?), o desaparecimento da bolsa que a atriz levava
consigo e que conteria seis mi] dólares, o lençol e o travesseiro com os
quais o casal foi visto saindo de casa no dia do crime, a falsificação da
placa e a lavagem do Santana azul. E, acima de todos os pontos
obscuros, a possível participação da mulher do ator, Paula de Almeida
Thomaz.
Outros ingredientes seriam adicionados ao prato, como a suposição
levantada pelo advogado contratado pela mãe da atriz para auxiliar a
promotoria, Arthur Lavigne, sogro do compositor e cantor Caetano
Veloso. Lavigne diz acreditar que Daniela tenha sido sacrificada num ritual
de magia negra.
As hipóteses vão se avolumar.
Pág 62

DEZOITO

NA PRÓPRIA TERÇA-FEIRA, DIA 29, à tarde, enquanto chegava ao


fim a tumultuada cerimônia de sepultamento de Daniela Perez, os dois
investigadores da 16ª DP, Valdir de Oliveira Andrade e Nelson Peixoto dos
Santos, estão entrando na casa de Guilherme, para ouvir a mulher do
ator.
No Termo de Declarações que cada um assinou nesse mesmo dia na
delegacia, quem fala mais é Valdir. A linguagem particular utilizada
nesses documentos policiais que reproduzem testemunhos de pessoas de
todos os níveis faz parecer que são escritos sempre às pressas.
Como todos, o termo de Valdir começa com a expressão "Inquirido,
disse", e segue.

"Que nesta data, cumprindo determinação da autoridade que a este


preside, compareci à rua Júlio de Castilhos nº 8, residência de
GUILHERME DE PADUA THOMAZ, onde se encontrava a esposa dele de
nome PAULA, a genitora da mesma, um homem que disse ser PASTOR,
uma outra mulher que disse ser amiga do pastor, o qual disse estar
naquele local para confortar a família; que o declarante fazia-se
Pág 63

acompanhar do detetive Nelson Peixoto, lotado nesta DP; que a genitora

24
de PAULA franqueou a entrada do declarante na referida residência,
esclarecendo o declarante que fora atendido pelas pessoas acima citadas
e em seguida é que apareceu a genitora de PAULA, para quem o
declarante explicou a razão de sua estada naquele local, ou seja, que
recebera determinação da autoridade que a este preside para que fosse
ao local conversar com PAULA a respeito dos fatos ocorridos e saber dela
da possibilidade de localização da tesoura usada no crime, momento em
que foi interpelado pelo homem que se disse PASTOR, com as seguintes
características físicas: trata-se de UM HOMEM DE COR ESCURA,
ESTATURA BAIXA, DE COMPLEIÇÃO FORTE, APARENTANDO CERCA DE 35
A 40 ANOS DE IDADE E DE ASPECTO NORDESTINO, CABELOS
CARAPINHADOS, dizendo ser Pastor da Igreja Mística e falou que não
poderia acordar PAULA, tendo em vista que ele havia feito ela DORMIR,
através de rezas; que ainda conversando com o Pastor, este relatou que
no entender dele, o casamento do casal, PAULA e GUILHERME, não
duraria seis meses, tendo em vista que o local era um centro de espíritos
maus, havendo inclusive no quarto dele, GUILHERME, uma imagem de
UM PRETO VELHO que ele Pastor repudiava, pois se tratava de COISAS
DO DEMÔNIO; que o declarante insistiu para que acordasse PAULA,
momento em que a genitora ia acordar PAULA, e foi impedida, melhor
dizendo, foi desaconselhada pelo PASTOR, porque ele a teria feito
adormecer e se deveria aguardar mais algum tempo para que ela
acordasse por si só; que no entanto, tendo em vista a movimentação na
casa naquele momento, PAULA acordou, segundo sua genitora, sendo que
perguntou ao declarante e ao detetive Nelson se eles queriam ingressar
no quarto de PAULA para conver-
Pág 64

sar com ela; que então entraram no quarto o declarante, o detetive


Nelson e a genitora, sendo que PAULA estava deitada na cama,
sonolenta; que o declarante então disse para Paula "Tudo bem, Paula,
você se lembra de mim, estive aqui hoje de manhã, apanhando roupas,
porque eu sou o policial da 16ª DP", sendo que PAULA respondeu "Me
lembro sim, o senhor está bem?"; que o declarante então,
desprentenciosamente, perguntou a ela: "Ô Paula, porque vocês fizeram
isso"; que então ela teve um acesso de choro e disse que ELA NÃO TINHA
FEITO NADA, apenas estava DENTRO DO AUTOMÓVEL, DEITADA NO
BANCO TRASEIRO, NO MOMENTO EM QUE ELE FEZ AQUILO; que o
declarante confirmou que ela se referia ao GUILHERME e perguntou:
"AQUILO O QUE? O QUE VOCE ASSISTIU?"; ela respondeu que ASSISTIU
O MOMENTO EM QUE SEU MARIDO GUILHERME MATOU A DANIELA; que
tendo em vista aquelas declarações, o declarante solicitou a PAULA que o
acompanhasse a esta DP, para prestar declarações; que aqui chegando,
tendo em vista ainda a imensidão de fotógrafos acumulados ou agrupados
à porta da delegacia, o declarante resolveu deixar a PAULA, que estava
acompanhada de sua genitora e de mais uma amiga, no interior do
veículo, afastado da delegacia, vindo então chamar a autoridade de
plantão, DR. NEWTON MOREIRA; que, no entanto, neste momento,
PAULA alegou estar passando mal, inclusive com possibilidade de
ABORTAR UM FILHO, de aproximadamente quatro meses de gestação;
que o dr. Newton então achou por bem, e em defesa da integridade da
PAULA, e receoso ainda com o tumulto que ocorria na delegacia, resolveu
dispensá-la, combinando até com o progenitor de PAULA, que já estava
presente, para que deixasse os telefones e assim que a situação se
acalmasse faria
Pág 65

25
contato para que aqui retornassem a fim de prestar as declarações
necessárias concernentes aos fatos. E mais nada. Nada mais havendo,
mandou a autoridade encerrar o presente, que lido e achado conforme,
assina com o declarante. Eu (uma rubrica), escrivão, o datilografei."

Vêm a seguir as assinaturas da autoridade e do declarante. As


frases em letras maiúsculas devem ter atendido a um pedido de Valdir,
pois usualmente só os nomes próprios são escritos assim.
O termo assinado pelo outro investigador, Nelson Peixoto, confirma,
em poucas linhas, a revelação de Paula de que teria visto Guilherme
matar Daniela. Não entra em qualquer outro detalhe e a única coisa que
diz a mais é o horário em que foram à casa de Guilherme, 17:00.
Há outros dois termos com a mesma data, 29 de dezembro. O do
delegado Newton Moreira Lopes e o do investigador Nélio Machado. Este,
no cabeçalho do documento em que são escritos os dados pessoais do
Declarante, aparece como "funcionário público" e não "detetive" ou
"delegado", como os outros. O termo do delegado é mais evasivo, mas
ele diz que em "diálogo informal" com Paula, no estacionamento da parte
dos fundos da delegacia, estacionamento que na verdade é um terreno da
repartição de limpeza pública da cidade, ela confirmou ter estado no local
do crime. O segundo termo, de Nélio Machado, é o mais enfático dos
quatro e também se baseia no que Paula teria dito no estacionamento, as
mesmas coisas que teria dito antes em casa.
Mas Paula vai negar tudo, mais tarde, invocando o testemunho da
mãe e de uma amiga, Maria Rita Meio Braga, que teria estado ao lado de
Paula desde o momento em que saíram do apartamento até o momento
em que foi dispensada pelo dele-
Pág 66

gado Newton Moreira Lopes por estar "tendo desmaios", como ele próprio
afirmou em seu Termo de Declarações do dia 29.
No dia 3 de janeiro a suspeita se agrava. Hugo da Silveira, a
testemunha-chave, que voltara no próprio dia 29 para Porto Seguro, diz
por telefone a um jornal carioca, de sua pousada, que a figura feminina
que vira junto com o motorista do Santana na noite do crime devia ser
Paula. Chegara a essa conclusão logo que viu na imprensa pela primeira
vez a foto da mulher de Guilherme.
No dia 6, ele é chamado à 16ª DP para fazer o seu Termo de
Declarações, em que repete o que falara à polícia no dia 29, só que com
mais detalhes, como a descrição da mulher que teria visto no Santana,
"de rosto redondo, branco, e cabelos escuros parecendo ondulados na
parte de cima e lhe parecendo jovem". E podia afirmar não ser Daniela
Perez, pelas muitas imagens que viu da atriz nos dias seguintes.
Pág 67

DEZENOVE

OS LANCES FOLHETINESCOS QUE passaram a envolver o caso não


parariam tão cedo, e nas praias cariocas, nos bares, escritórios, nas
favelas, na zona sul e na zona norte, não se fala de outra coisa. Parece
que os cinco milhões e meio de habitantes da cidade do Rio de Janeiro
esqueceram o futebol do Flamengo, o carnaval, que está chegando, a
inflação de quase um por cento ao dia.
Na tarde seguinte ao dia da prisão, Guilherme é solto e
desaparecerá.
Os advogados Antonio Carlos Barandier e Luiz Guilherme Vieira

26
haviam tratado de pedir sua soltura, levando à juíza Márcia Alvarenga
uma petição alegando que a prisão de Guilherme, apesar da confissão
formal, fora indevidamente caracterizada como prisão em flagrante pois,
dizia a petição, não se enquadrava em nenhum dos quatro itens do
Código Penal que caracterizam o flagrante. Isto é, quando o criminoso é
apanhado praticando o crime; quando o criminoso é apanhado acabando
de praticar o crime; quando o criminoso é encontrado logo depois com a
arma do crime; ou quando o criminoso é perseguido imediatamente após
o crime, por qualquer pessoa e de maneira ininterrupta.
Pág 69

Além de dizer que Guilherme fora preso quando estava em casa, em


nenhuma das quatro circunstâncias de flagrante, a petição acrescentava
que era réu primário, tinha bons antecedentes, residência fixa e estava
sendo "vítima de publicidade opressiva". A juíza aceitou os argumentos e
assinou um despacho determinando a soltura do ator. Os dois advogados
chegaram à delegacia com o despacho da juíza às quatro e meia da tarde
do dia 30 e foram conversar com o delegado Mauro Magalhães, que ao ler
o papel diz que aquilo é como uma paulada na nuca
O táxi que levara os dois advogados ficou esperando no
estacionamento da delegacia e quando eles iam saindo com Guilherme,
meia hora depois, às cinco horas, foram descobertos pelo pessoal de
imprensa, de plantão na delegacia, e mais uma pequena multidão que se
revezava nas imediações tanto para xingar o assassino de Daniela Perez
quanto para ver de perto os artistas de televisão que naqueles primeiros
dias transformaram a frente da 16ª DP numa calçada da fama.
Atropeladas com fotógrafos e repórteres, aquelas duas ou três centenas
de pessoas cercaram o táxi aos gritos. "Pega! Assassino! Assassino!",
chutando e socando o Tempra que o motorista assustado fez arrancar
Levando os dois advogados e o ator apavorados, escondendo-se como
podiam no banco de trás. Ficaram rodando pela Barra enquanto o
motorista recebia dos advogados a promessa de que pagariam os
prejuízos da lataria amassada e finalmente levaram o ator para a casa de
uma irmã de Luiz Guilherme Vieira. Que fica a uma quadra da delegacia...
Mais tarde alguém da família foi buscar Guilherme, depois de ficar
acertado que ele se comunicaria com os advogados para saber o que
fazer. Mas o delegado Mauro Magalhães queria recuperar logo seu preso
famoso e desencadeou uma rápida
Pág 70

operação jurídica que começou pelo subsecretário de Segurança, Joel


Vieira, passou pelo procurador-geral da Justiça do Estado do Rio, Antonio
Carlos Biscaia, depois pelo promotor Luís Otávio de Freitas, e terminou no
desembargador Paulo Roberto de Azevedo Freitas, que às nove e meia da
noite assinava um despacho cancelando o da juíza, dado cinco horas
atrás.
Vitorioso, Mauro Magalhães volta à delegacia às dez e meia e
anuncia à imprensa que dará caça ao criminoso até o fim do mundo! Dois
carros da policia vão até a casa de Guilherme, em Copacabana, e não
encontram ninguém. Toda a polícia do Rio é informada da caçada, os
jornais trarão de manhã a novidade na primeira página, com a hipótese
de que o assassino teria fugido para Minas Gerais ou Goiás. A policia dos
dois estados é acionada. E a madrugada de 30 para 31 consagra a
calçada da fama. Os atores de novela Maurício Mattar, Fábio Assumpção,
Alexandre Frota, Cristiana de Oliveira, Victor Fasano, Guilherme Karan,
Eri Johnson e Marilu Bueno farão uma vigília na porta da delegacia,
exigindo a prisão do criminoso.

27
Depois de toda a expectativa da manhã, Guilherme se apresenta à
tarde, no Rio de Janeiro, no Tribunal de Alçada Criminal. De calção,
branco como a camiseta, chinelos e óculos escuros. Eram três e meia da
tarde. Quinze minutos depois, Mauro Magalhães é informado de que pode
interromper as buscas, o criminoso será levado de volta à 16ª DP. O
delegado-titular desliga o telefone, chama Cidade de Oliveira e ambos vão
dar entrevistas à platéia cativa de jornalistas. O resultado é que em
minutos o Rio inteiro fica sabendo que Guilherme está indo para lá. Um
carro da 16ª, levando os dois delegados triunfantes, vai até o centro da
cidade buscar Guilherme no Tribunal de Alçada.
Juntou gente na porta da 16ª e quando os delegados chegam de
volta, com Guilherme, são cercados pelos artistas que faziam
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vigília e pelo ajuntamento de pessoas que gritam e atiram ovos, tomates


e outras coisas, entre elas uma meia casca de coco verde que atinge a
reluzente calva do delegado-titular, e e]e parte de murros sobre os
manifestantes. Guilherme entra quase ajoelhado na delegacia, protegido
por uma couraça humana formada por seis policiais. Do lado de fora os
mais exaltados propõem a invasão da delegacia. São quase oito horas da
noite. Maurício Mattar e Alexandre Frota, dois dos maiores galãs de
novela, sobem à mureta junto à entrada da delegacia e pedem calma a
todos. Mattar arrisca um pequeno discurso pedindo a colaboração de
todos com a polícia e também que se faça justiça. É aplaudido e ouve-se
um coro feminino gritando "gostoso!".
Pág 72

VINTE

MINUTOS DEPOIS DE GUILHERME se apresentar no Fórum, às três


e meia, o delegado Mauro Magalhães, antes de ir buscá-lo, anunciava que
ia pedir à promotoria para entrar com o pedido de prisão temporária de
Paula. Não por coincidência, às quatro da tarde o médico de Paula,
famoso obstetra do Rio, que há 19 anos assistira o nascimento da própria
Paula, telefona para o diretor da Clínica São Marcelo avisando que iria
interná-la.
O diretor concorda mas prefere avisar a 14ª DP, no bairro do
Leblon, onde fica a clínica freqüentada pela classe média alta do Rio.
Somente a diária, com dois acompanhantes, custa 130 dólares. Paula foi
internada às 16:30, acompanhada do pai, da mãe e do obstetra, que fez
constar da ficha de entrada que sua paciente estava sofrendo de forte
hemorragia, com riscos para a gestação.
Paula e os pais ficam no quarto 405, com ar condicionado e
televisão. As enfermeiras estão proibidas de entrar, a não ser
acompanhando o médico, e a mãe de Paula apanha e devolve as bandejas
das refeições apenas entreabrindo a porta. Pelas oito horas da noite, o
promotor Luís Otávio de Freitas consegue que o juiz Roberto de Almeida
Ribeiro decrete a prisão tempo-
Pág 73

rária de Paula. A prisão temporária é decretada quando o delegado


responsável pelo inquérito necessita da presença do suspeito para
prosseguir nas investigações e é válida por cinco dias. Depois disso pode
ser prorrogada por mais cinco dias.
Mauro Magalhães vai para a clínica com o promotor Luís Otávio e o
advogado Arthur Lavigne, que está auxiliando na acusação. Antes,

28
Magalhães pede à 14ª DP que ponha dois guardas da Polícia Militar
vigiando o quarto de Paula e um policial civil vigiando a recepção do
pequeno hospital. Os três chegam à Clínica São Marcelo às nove horas.
São recebidos pelo pai de Paula. Ele pede que esperem o advogado da
filha, Carlos Eduardo Machado. O advogado vem com um atestado do
obstetra Fernando Pedrosa dizendo que Paula só teria condições de falar
após receber alta. O delegado e seus dois acompanhantes vão embora.
Ficamos policiais da 14ª encarregados de vigiar Paula. É noite de
réveillon, e na praia de Copacabana repete-se o encantador espetáculo de
fogos de artifício que virou tradição na última meia-noite do ano.
No dia seguinte, 1º de janeiro, todos já sabem que Paula está na
clínica. Um grupo de pessoas, mulheres na maioria, vai para a porta
gritar: "Assassina! Assassina!" e os telefones da clínica não param mais
de tocar, com insultos e ameaças anônimas.
Os pacientes reclamam, os funcionários e médicos sentem medo, e
Paula recebe alta no fim da tarde. Mas os advogados e a polícia acham
mais aconselhável retirá-la de madrugada, para evitar problemas. As
3:10 do dia 2, ela sai num carro de polícia que a levará para a 7ª DP, em
Santa Teresa. A saída da clínica não foi o tumulto que teria sido de dia,
mas também não deixou de ser um espetáculo, principalmente de luzes,
com o estouro ininterrupto de flashes enquanto Paula, o pai e os policiais
caminhavam da porta da clínica até a porta do carro de policia.
Pág 74

VINTE E UM

COM EXCEÇÃO DAS ÚLTIMAS cidadezinhas sossegadas do interior


mais remoto, as cadeias públicas e penitenciárias brasileiras ficaram
pequenas para um número sempre maior de crimes. Daí que se lançou
mão dos xadrezes das delegacias de polícia, mas eles também se
mostrariam insuficientes.
Por isso, quando o delegado da 7ª DP alojou Paula numa cela
isolada e removeu as presas que estavam ali para outras celas,
apertando-as ainda mais, a reclamação foi geral. O xingamento e as
ameaças a Paula foram ainda mais intensos, e ela não chegou a passar 24
horas na 7ª DP. Às 16:30 do mesmo dia 2, sábado, é transferida para a
cadeia da Polinter, Divisão de Polícia Interestadual, em Niterói, a 35 km
do Rio, do outro lado da baía de Guanabara.
A cadeia feminina da Polinter tem três celas, cozinha e a sala dos
carcereiros. As presas tomam banho de sol uma hora por dia às
segundas, quartas e sextas, num pequeno pátio que está com todas as
lâmpadas queimadas. O prédio é quente, no verão um forno, por isso em
cada cela há vários circuladores de ar, levados pelas famílias das
prisioneiras. Da mesma forma, as três celas conseguiram um aparelho de
televisão cada uma e cada uma tem
Pág 75

quatro beliches de três andares. A décima-terceira que chegar dorme no


chão.
É uma cadeia para presas primárias, isto é, que cometeram um
primeiro crime e que mostram bom comportamento atrás das grades. Daí
a Justiça achar que não haveria problema em alojar Paula numa cela com
outras prisioneiras. Mas esteve bem longe de carinhosa a recepção a
Paula. Uma delas chegou a pregar-lhe um tapa no rosto, embora dentro
do clima hostil inicial surgissem algumas aliadas. Sandra, de 29 anos,
acusada de participação no seqüestro de um menino em Visconde de

29
Mauá e condenada a vinte e um anos de prisão, foi quem impediu que o
tapa da outra presa se transformasse numa surra. Outra protetora a se
manifestar logo nos primeiros momentos é Viviane, condenada a cinco
anos por tráfico de drogas. E duas outras se mostrariam solidárias nos
dias seguintes. Ana Cecília, condenada a três anos também por tráfico de
drogas, e Suely Gonçalves Bezerra, a personagem principal da cadeia.
Advogada, Suely é conhecida por ter defendido na Justiça grandes
bandidos que pertenceriam a uma temida organização criminosa, o
Comando Vermelho, chamado assim mesmo pela imprensa, como se o
Rio estivesse vivendo um período de guerra ou de guerrilha urbana. Mas,
principalmente, Suely é acusada de quatro homicídios. Ela tem direito a
cela especial, por possuir curso superior, e como ela há duas outras
mulheres em cela especial. Uma jornalista, presa por tráfico de drogas, e
uma psicóloga, por estelionato.
Quando Paula chegou, a carceragem da Polinter contava trinta
presas nas três celas. A 1 está com as três presas especiais; na 2 estão
catorze mulheres; e Paula reparte a 3 com mais doze, uma vai dormir no
chão. Os diálogos do dia-a-dia são de pesados a escabrosos. Os temas,
invariavelmente, são assassinatos, prisões, espancamentos, tráfico de
drogas.
As presas também têm novelas para ver. Paula não quer ver
Pág 76

novelas nem noticiários e não lê jornais, mas não pode deixar de escutar.
No dia 19 de janeiro, dia do último capitulo com participação de Daniela
Perez, Paula ficou de costas para o aparelho de televisão, mas ouviu tudo.
E se continuasse presa na Polinter, ficaria sabendo que esse não tinha
sido o último capítulo com Daniela, que apareceria em dois outros antes
do capítulo final da trama, marcado para ir ao ar dia 5 de março com
mais uma aparição de Daniela, conforme acordo de todos os responsáveis
pela novela das oito.
Desde o começo as presas fizeram pressão para ela falar, mas Paula
sempre fugiu do assunto, repetindo que não havia participado do
assassinato de Daniela. A hipótese sobre um pacto envolvendo magia
negra também interessou profundamente as mulheres, e ela negava a
devoção à estatueta de Preto Velho que tinha em casa, no quarto de
casal, e que na verdade eram duas, um preto e uma preta, espécie de
anjos protetores. (As imagens apareceram espatifadas no dia seguinte ao
do crime e com isso mais uma interrogação ficaria bailando na mente dos
partidários da hipótese de um pacto místico. Mais ainda na daqueles que
leram, no meio de uma entrevista dada por Guilherme poucos dias antes
do crime, um estranho trecho: "Tenho um templo dentro de casa e um
guia, Francisco, senhor muito velho, muito vivido, que me ensina, que
fala coisas para mim. Mora aqui no Rio, perto. Vou lá com Paula. Tenho
coisas escritas por ele que são maravilhosas. É o meu grande amigo".)
Mas Paula dizia-se católica e para provar participava das orações que
duas vezes por dia são feitas na cadeia. Incoerentemente, porém, ouvia
no rádio os programas da Igreja Universal do Reino de Deus,
patrocinados por um homem que se autodenomina "bispo" e enfrenta
vários processos criminais — principalmente por exploração da fé
popular—, Edir Macedo, que conseguiu ser proprietário de uma estação de
televisão em São Paulo. É sua a TV Record.
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Com o passar do tempo, aqueles agitados primeiros dias, algumas


presas começaram a criticar mais fortemente a presença de Paula na
Polinter, até ali uma pacata cadeia em que elas podiam receber visitas

30
fora de hora e outras regalias. Agora, com o plantão permanente da
imprensa do lado de fora, nos pontos mais estratégicos, tentando colher
uma foto ou uma entrevista eventual, porque é proibida a entrada, as
regalias ficavam automaticamente prejudicadas. Até que no dia 7 de
janeiro um grupo de presas aparece com uma máquina fotográfica no
pátio da cadeia, na hora de tomar sol. A alguns jornalistas que estão
"acampados" num ponto externo que dá vistas para um pedaço do pátio,
o grupo de presas se oferece para tirar fotos de Paula, ao preço de dois
mil dólares.
O episódio vai parar nos ouvidos do diretor da Polinter, Heraldo
Gomes, que escala um policial graduado para fazer uma vistoria nas
celas. E encontrada uma máquina fotográfica entre as coisas da presa
Suely Bezerra. O caso provoca a destituição do chefe da carceragem,
Sérgio Soares, e uma crise nervosa em Suely Bezerra, que precisa ser
levada a um hospital.
A troca de chefes não agrada às prisioneiras, que além de tudo vão
ver reduzido o número de visitantes e o tempo da visita semanal a que
estavam habituadas. O contra-ataque veio em seguida. Dois dias depois
um jornal carioca publica duas fotos de Paula dentro de sua cela. A
investigação não precisa ser profunda. Perguntada, Paula diz que foram
as carcereiras Adriana e Rita. A façanha, embora tenha rendido
quinhentos dólares pagos pelo jornal, custou à dupla uma suspensão por
quinze dias e transferência para outra carceragem, possivelmente menos
pacata. E menos liberal. As presas, principalmente, não querem nem
pensar numa transferência, menos ainda para o único presídio feminino
do Rio, o Talavera Bruce, em Bangu, que consideram um castigo em
dobro. Aqui em Niterói, entre
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outras vantagens, elas conseguem até um contato corporal com os


prisioneiros do setor masculino, separado apenas por um muro nada
inexpugnável; tem até um buraco que dá ocasião a beijinhos e, com uma
certa ginástica, contatos mais íntimos, além de servir para passagem de
drogas.
Tudo isso foi prejudicado com a vinda de Paula. E o caso Daniela
Perez mexeria não apenas com a estrutura da carceragem da Polinter,
mas com a da polícia carioca.
No dia 18 de janeiro, 21 dias após o crime, o próprio delegado
Mauro Magalhães teria de deixar a 16ª DP para ocupar a direção da
Polinter, cujo diretor iria para a Academia de Policia. Junto com
Magalhães vão Cidade de Oliveira e Nélio Machado. Coincidentemente
com a saída dos três, e a entrada do novo delegado-titular, Afonso Alves
da Costa, Guilherme de Pádua perderia também a regalia de ficar sozinho
numa ante-sala da carceragem da 16ª DP e iria para uma cela comum
com mais seis presos.
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VINTE E DOIS

PARA RECEBER GUILHERME DE PÁDUA de novo em sua delegacia,


naquele venturoso dia 31 de dezembro, o delegado Mauro Magalhães
transferiu três presos já condenados para o presídio Bangu 1, uma cadeia
de histórias violentíssimas. A 16ª DP ficou com 64 presos em cinco celas
e o delegado titular pretendia botar Guilherme na 3, com mais dez outros.
Mas ficou preocupado. Os presos, que na primeira vez receberam
Guilherme com deboches, agora faziam pesadas ameaças, falando de

31
estupro e até morte. Por isso Guilherme voltou para a ante-sala da
carceragem, que com seus vinte e oito metros quadrados tem o apelido
de "Maracanã". Para tomar banho ou ir ao banheiro, tinha de passar pelos
presos, por isso era sempre acompanhado pelo carcereiro.
Nesse primeiro dia, vomitou duas vezes e não quis comer nada
além da laranja que completava a refeição. A comida vem numa
embalagem de alumínio, fornecida por uma empresa especializada, e
certos carcereiros estranham que os presos tenham de comer com a mão.
No terceiro dia Guilherme resolveu comer. Arroz, feijão, carne-de-
sol e batata. Começaram a chegar cartas e livros, que não
Pág 81

lia. Ficava deitado num papelão sobre o chão cimentado da cela e olhava
as páginas de uma Bíblia, não se sabe por quem levada a todas as prisões
de todos os lugares. Paula também já estava com a dela na cadeia de
Niterói. As cartas de fãs que Guilherme não lia, mas os delegados sim,
chegaram a quase duzentas nesses primeiros dias, a maioria dizendo
acreditar em sua inocência e culpando Paula. Os estudiosos dizem ser
comum essa manifestação, que chamam de mitomania e sempre ocorrem
em casos parecidos. No de Guilherme chegou a lembrar filme de cinema.
Seu advogado, Antonio Carlos Barandier, recebeu o telefonema de uma
mulher que se ofereceu a confessar o assassinato de Daniela e ir para a
cadeia no lugar do ator.
Na primeira semana, além dos advogados, Guilherme recebeu
visitas do pai e da mãe, que vieram de Belo Horizonte, e de uma irmã. E
do oitavo dia em diante já conversava e jogava baralho com os presos,
através das grades.
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VINTE E TRÊS

SE A MITOMANIA SE MANIFESTOU em relação à figura de


Guilherme de Pádua, no caso de Daniela se manifestaria com muito mais
força. A sepultura 14276, na quadra 1 do cemitério São João Batista,
onde ela foi enterrada, passou a receber visitantes anônimos que iam
depositar flores, bilhetes e objetos pessoais. Entre esses visitantes talvez
estivessem alguns dos que haviam pisoteado e quebrado lápides no dia
do enterro — inclusive trincando a tampa de granito do túmulo da atriz —
, menos, certamente, aquele que roubou a lápide de mármore em que
havia a inscrição "Adeus Daniela".
O local do crime, na rua Cândido Portinari, também se transformou,
nos primeiros dias, em ponto de visitação. Durante o dia sempre havia
alguém olhando para o chão no ponto do terreno em que o corpo foi
encontrado. Alguém enterrou uma cruz de madeira no lugar, um fotógrafo
de jornal depositou um maço de velas e um homem de uns trinta anos,
que não conseguia esconder traços mais evidentes de maníaco, era visto
diariamente ao lado da cruz, como o guardião de um posto sagrado.
E nas ruas centrais do Rio e de São Paulo, artistas de calçada
vendiam seus desenhos reproduzindo a figura de Daniela Perez.
A missa de sétimo dia na igreja Nossa Senhora do Carmo, no
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centro do Rio, foi tão concorrida como o enterro, com a desvantagem do


espaço oferecido. Mais de duas mil pessoas ficaram do lado de fora.
Lotação esgotada, mil e quinhentas pessoas de pé, ombro a ombro,
espremendo-se principalmente diante do altar, onde estavam os artistas,

32
para vê-los bem de perto, como acontece nos shows de rock.
O amontoado de fãs à frente do altar impedia o. padre de ter uma
visão da igreja. Ele celebrou uma missa de vinte e oito minutos e, quando
proferiu o derradeiro "amém", a pequena multidão fez um sinal da cruz
rápido e foi para cima dos artistas, agora querendo não só ver bem de
perto, mas se possível tocá-los. Eles correram e conseguiram alcançar a
sacristia, onde ficaram a salvo mas tiveram de aguardar mais de quarenta
minutos para sair.
Antes, durante e no final da missa, a outra pequena multidão que
não conseguiu entrar gritava na rua, em tom de comício: "Justiça!
Justiça!". A certa altura gritaram "cadeira elétrica!". Era efeito já da
discussão que se tentou estabelecer sobre a pena de morte, a partir do
caso Daniela Perez e de outro, ainda mais doloroso, se é que se pode
comparar dor, de uma menina de cinco anos, em Minas Gerais.
Seqüestrada, a menina foi morta por asfixia, com um travesseiro
apertado contra o rosto. Os assassinos disseram que ela chorava muito. E
que depois queimaram o corpo.
O jornal O Globo, do Rio, fez então um editorial, propondo a pena
de morte, que não existe na legislação brasileira, justificando com esse
caso e com o de Daniela Perez. A proposta chegou a ser comentada pelo
Ministro da Justiça e pelo novo Presidente da República, que acabava de
substituir o Presidente afastado; todos os meios de comunicação se
manifestaram; a revista semanal ilustrada mais importante chegou a
encartar numa de suas edições uma cédula em que o leitor votaria pela
pena ou não, mas nenhum tema conseguia desviar a atenção do
assassinato de Daniela Perez.
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VINTE E QUATRO

DIANTE DE UM CRIME, A POLÍCIA tem de fazer duas coisas. A


primeira, mais simples, é o boletim de ocorrência, que é o registro do que
aconteceu e qual o tipo de crime. A segunda é o inquérito policial, uma
coisa bem mais delicada. Nesta fase são ouvidas as testemunhas e os
suspeitos e são feitas as perícias, isto é, os exames e laudos técnicos e
científicos. Ao final do inquérito, que tem prazo de dez dias, prorrogáveis
por mais dez, o delegado-titular responsável pela área da cidade onde
ocorreu o crime decide se indicia ou não os suspeitos, isto é, se os acusa
ou não.
No caso Daniela Perez a policia não quis a prorrogação e o suspeito,
Guilherme, estava indiciado desde o momento em que confessou o crime.
A 16ª Delegacia de Polícia anotou quarenta e oito Termos de
Declarações, ou depoimentos, de testemunhas famosas e de testemunhas
desconhecidas.
A polícia técnica e científica fez todas as pendas. No corpo da
vítima, no corpo dos dois suspeitos, nos carros, nas roupas de Daniela e
de Guilherme, nos objetos que estavam nos carros ou na casa dos
suspeitos e no local do crime. Inclusive o cálculo cronométrico do tempo
que leva um carro da Tycoon até a rua
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Cândido Portinari e das três passagens do advogado aposentado Hugo da


Silveira diante do Santana e do Escort. No caso das roupas de Guilherme,
ia surgir bem mais tarde uma polêmica em relação ao casaco apreendido
em sua casa e que na confissão à polícia ele dissera estar usando na hora
do crime. Seu novo advogado, Paulo Ramalho, ia dizer que as marcas

33
encontradas no casaco podiam ter sido feitas pela mesma arma do crime,
o que provaria que Guilherme fora atacado por Daniela antes de tê-la
matado. Com isso, poderia alegar "violenta emoção", o que tornaria o
crime "homicídio simples", com pena de seis a vinte anos, e não
"qualificado", proposto na denúncia e cuja pena é de doze a trinta anos.
Uma coisa ninguém lembrou de discutir. Guilherme estava de camiseta
vermelha na foto tirada pelos adolescentes na noite do crime; e a
camiseta apreendida em sua casa depois, e que foi incluída na lista das
roupas para perícia, era azul. Foram feitos também exames para saber se
Guilherme tomara drogas e se Daniela tomara bebida alcoólica, ambos
com resultado negativo. Só a arma do crime não foi encontrada, mas o
exame no Santana mostrou que ela estava sob o tapete de borracha do
chão do passageiro da frente. Havia sangue sob o tapete, mas como
alguém jogou água, anulou a possibilidade de exame pericial.
O primeiro depoimento, ainda na madrugada do crime, foi o mais
importante de todos, o do advogado Hugo da Silveira, que levou a polícia
a prender o criminoso em poucas horas e em outras tantas conseguir sua
confissão.
Tudo estaria resolvido de forma simples, do ponto de vista frio dos
documentos policiais, mas dois depoimentos no dia 4 de janeiro
acrescentariam informações que iam trazer para o centro da cena a
mulher do ator, Paula. O depoimento do caboman que viu o lençol branco
no Santana, na saída da Tycoon na noite do dia 28, e o depoimento do
garagista do edifício onde morava o casal, Cesarino Manuel do
Nascimento.
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O garagista disse à polícia que viu Guilherme e Paula saírem com o


carro aquela noite por volta das vinte horas, após terem colocado no
porta-malas um lençol claro e um travesseiro. Estranhou, porque eles
costumavam levar aquilo quando viajavam e não falaram nada de
viagem. E só viu o carro voltando às duas da madrugada, molhado
embora não tivesse chovido. E viu o casal retirando do porta-malas o
lençol e o travesseiro. Contou ainda que de novo o casal saiu, desta vez
com os pais de Paula, perto das três horas da madrugada, e todos
voltaram quinze minutos depois.
O garagista diz que não dorme em serviço, mas deve ter cochilado,
pois Guilherme e Paula atenderam aos telefonemas do pessoal da novela
perguntando por Daniela três vezes e depois mais uma avisando da
tragédia, entre onze e meia da noite e uma da madrugada.
O lençol, porém, era coisa certa. E segundo a versão cogitada a
partir de seu aparecimento no inquérito, teria servido para cobrir Paula
deitada no banco de trás do Santana até os estúdios da Tycoon e na
seqüência até a rua Cândido Portinari, conforme plano feito com
Guilherme para ouvir, escondida, a conversa dele com Daniela e se
certificar da fidelidade do marido; descoberta por Daniela, as duas teriam
entrado em luta, Paula teria apanhado a tesoura enquanto Guilherme
imobilizava Daniela com uma "gravata"; Daniela desmaiara e os dois a
mataram no chão, fugindo com a bolsa da atriz para que parecesse
latrocínio.
A verdade é que, baseada nos depoimentos, inclusive dos quatro
policiais para os quais Paula teria confessado que estivera no local no
crime, a 16ª Delegacia de Polícia pede sua prisão temporária, aceita pela
Justiça. E Paula sai da clínica para a cadeia.
A prisão temporária foi criada por uma lei nova, de 1989, e serve
para garantir que o suspeito esteja à mão enquanto o de-
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34
legado estiver investigando o crime. Pode durar no máximo dez dias. No
décimo dia, se não for decretada a prisão preventiva, o suspeito deve ser
solto. E a prisão preventiva só pode ser aplicada em determinados casos:
quando há possibilidade de fuga; quando há grande comoção social e a
sociedade exige uma "satisfação"; e quando o suspeito corre perigo de
vida.
Em relação a Paula, a prisão preventiva cabia nos três itens, e ela
fica na cadeia da Polinter.
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VINTE E CINCO

"DAVA PARA VER O CORAÇÃO EXPOSTO." A frase dita por Raphael


Luiz Pessoa Pardellas, diretor do Instituto Médico Legal do Rio, referia-se
à violência das punhaladas no peito de Daniela Perez, e parece resumir
um sentimento, o que contrastaria com a objetividade rude do "auto de
exame cadavérico" que ele próprio é obrigado a assumir por dever de
ofício.
O auto precisa responder a quatro quesitos. Primeiro, "se houve
morte"; segundo, "qual a causa da morte"; terceiro, "qual o instrumento
ou meio que produziu a morte"; e quarto, "se foi produzida por meio de
veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura, ou por outro meio insidioso ou
cruel".
Há um intróito, transcrevendo a guia da polícia: "Deu entrada neste
Instituto, às 4:10 do dia 29.12.92, um cadáver acompanhado da guia
policial nº 0248/92 da 16ª DP na qual consta: Cadáver de Daniela Perez
Gazolla, feminino, branca, cabelos lisos castanhos, 22 anos, brasileira;
crime: arma branca, nas circunstâncias seguintes: homicídio via pública,
residência avenida Sernambetiba nº 600/304, B. Tijuca, removido da rua
Cândido Portinari s/nº — condomínio Rio Mar, km 11 da avenida das
Américas. Terminada a transcrição da guia poli-
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cial, iniciou-se o auto do exame cadavérico". E a seguir vem uma


aterradoramente minuciosa descrição de um corpo sem vida,
incondicionalmente exposto. Até chegar à necessária conclusão, que
responde aos quatro quesitos. "Ao 1º Sim; Ao 2º Ferimentos penetrantes
de pescoço e tórax com transfixações de traquéia, pulmão esquerdo e
coração determinando hemorragia interna e anemia aguda; Ao 3º
Instrumento pérfuro cortante; Ao 4º Prejudicado."
Acompanha o auto um desenho esquemático do corpo humano de
pé e de frente, dividido em quarenta e nove partes por linhas pontilhadas,
cada parte com o número correspondente ao seu nome, começando com
o frontal, número 1, até o peito do pé, número 49.
Outros dois autos estão no inquérito policial, "autos de corpo de
delito", isto é, de lesão corporal. O de Guilherme e o de Paula, feitos nas
cadeias da 16ª DP e da Polinter.
O de Paula fala das tatuagens "na região crural" e nos tornozelos, e
de pequenas lesões que "não podem ser vinculadas à luta corporal"; e o
de Guilherme conclui que as pequenas lesões encontradas são resultado
de "ação contundente de pequena intensidade".
Abstraindo a crueza do episódio e dos episódios criminosos, o
trabalho da policia técnico-científica é fascinante, pela objetividade. Uma
objetividade que muitas vezes acaba por revelar o subjetivo. Há um
exame que se chama "exame de local de morte violenta" e, entre

35
parênteses, "homicídio". É menos minucioso que o dos corpos das
pessoas. Começa com um histórico, dizendo que às 2:15 de 29 de
dezembro de 1992 a 16ª DP solicitou o exame no local do homicídio, "a
equipe pericial foi designada" e lá compareceu. Então passa a descrever
os detalhes do local; do corpo; da posição em que foi encontrado; como
estava vestido, inclusive as marcas comerciais e desenhos
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das roupas e calçados, provando nos pormenores sobre o tênis que o


corpo foi arrastado pelo asfalto; e, finalmente, dos ferimentos visíveis.
Assim também o exame dos carros, ou "veículos", com todas as
características do Santana e do Escort, ambos ano 89, não faltando a
constatação de que estavam "em boas condições de tráfego", e
detalhando por quê; em que posição foram encontrados; o que foi
encontrado no interior deles, e aqui entram até os invólucros de chicletes,
balas e chocolates no Escort de Daniela, prova objetiva de que ela
adorava chocolate.
No Santana, detalham-se os objetos que havia no porta-malas; o
piso do carpete do banco do passageiro da frente bastante molhado, os
outros "setores" do piso secos, "assim como os bancos e as laterais"; as
placas da frente e de trás, "próximo à letra L", guardavam vestígios de
material colante, característicos de fita isolante com o L fora transformado
em O; "retiradas amostras do carpete molhado, estas foram submetidas à
pesquisa genérica para vestígios de sangue, cujo resultado foi positivo".
Vem então o item que trata "de outros elementos". Quando fala das
"perfurações na blusa da vítima", diz que "não coincidem com os
ferimentos observados, indicando que esta blusa foi manipulada antes dos
exames". A seguir diz que os policiais da PM alteraram a posição dos
bancos do Escort e fecharam a porta do motorista, que estaria aberta; e
que "o elevado número de pessoas (repórteres, curiosos e outros), aliado
à precariedade da iluminação, prejudicaram a continuação dos exames
naquele momento, levando a equipe da perícia a voltar de manhã (11:00)
para complementar os exames". Ainda no item "outros elementos", diz
que não foram encontrados documentos pessoais, valores em espécie ou
jóias.
Ao falar da "dinâmica do evento", o laudo diz que "a vítima foi, ao
que tudo indica, imobilizada, ocasião em que, pela ação
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violenta que sofreu, perdeu os sentidos, deixando cair o molho de chaves


do carro no local fixado na foto de número 30. Em seguida, o agente,
segurando a vítima por trás, em posição inclinada (corpo da vítima)
arrastou-a até próximo ao arbusto colocando-a em posição de decúbito
dorsal sobre a vegetação rasteira (capim) ali existente. Finalmente, a
vítima sofreu diversos e sucessivos golpes de instrumento pérfuro-
cortante na região torácica esquerda, próximo ao mamilo, ficando o
cadáver na posição em que foi encontrado (vide fotos de números 03 a
05)".
Por fim, o laudo discrimina as trinta e sete fotos que o
acompanham, que são do local, do corpo, das perfurações na blusa, do
tênis, dos ferimentos, do Escort por fora e por dentro, do material que
levava, do local onde foram encontradas as chaves do Escort, do "aspecto
geral" do Santana, do detalhe do carpete do piso do banco dianteiro
direito, do material encontrado no porta-malas e dos detalhes dos
vestígios de adulteração das placas dianteira e traseira.
Outros laudos de exame de material referem-se a uma tesoura
encontrada na casa de Guilherme, que estava manchada mas não era

36
sangue, e "que pode ser utilizada na prática de crime com instrumento
pérfuro-cortante"; aos fragmentos das imagens de Preto Velho, dando
para identificar apenas duas mãos esquerdas segurando um cachimbo; e
aos dois grampos de cabelo encontrados no Santana, mais um
pedregulho, que não revelaram nada. O que era revelador para os que
defendiam a tese de crime premeditado eram as placas do Santana
adulteradas.
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VINTE E SEIS

O DIA DO INTERROGATORIO DE Guilherme e Paula no Fórum do


Rio, uma sexta-feira, 15 de janeiro, dezoito dias depois do crime, será
provavelmente a última seqüência do caso a contar com uma
superprodução da vida real. Depois deste, a menos que surjam dados
novos, originais, os grandes lances dramáticos deverão acontecer
somente por ocasião do júri, daqui a muitos meses.
As câmeras de televisão e as máquinas fotográficas estavam
cobrindo impecavelmente cada lado do triângulo Fórum-16ª DP-Polinter.
Para evitar manifestações e problemas diante do Fórum, Guilherme e
Paula deviam chegar bem cedo. Mesmo assim foram destacados mais de
cinqüenta policiais para proteger o edifício, sem contar os muitos que
vinham acompanhando o casal, separadamente. Desde o início da
madrugada havia jornalistas de plantão nos três pontos.
O percurso de Guilherme e Paula foi seguido por um cortejo de
carros de reportagem, nervosos, que emparelhavam com os da polícia,
ultrapassavam e voltavam a ficar ao lado ou atrás, numa perseguição
cinematográfica.
A chegada ao Fórum não encontrou manifestações, era ce-
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do; mas o tumulto foi garantido por fotógrafos, câmeras e repórteres que
se trombavam, uma múltipla colisão de corpos e máquinas cujo resultado
foram várias escoriações, leves, um par de óculos quebrado e um vestido
rasgado.
Guilherme chegou às cinco para as sete e Paula quatro minutos
depois. Ambos algemados. Ele num furgão de janelas gradeadas, ela no
banco de trás de um Opala, com um policial sentado de cada lado.
Sempre protegidos, atravessaram a barreira jornalística e entraram no
Fórum, o Palácio da Justiça.
A sala do 2º Tribunal do Júri também lembrava um cenário de
cinema. Os figurantes lotavam a platéia, sessenta e dois privilegiados que
conseguiram o disputado convite entre quinhentos candidatos, numa
seleção feita pelo próprio juiz e por promotores e advogados do caso.
Entrada livre, só para juIzes e desembargadores. E para os trinta e cinco
jornalistas credenciados.
A Justiça do Rio permite a presença dos meios de comunicação na
sala do Júri e a TV gravou cada cena importante do esperado
interrogatório, desde a entrada de uma das duas personagens principais,
Guilherme, que é desalgemado por um policial diante de todos antes de
ocupar a mesinha de frente para o juiz, sentado no centro de uma
imponente mesa, com a cadeira de espaldar mais alto, um grande
crucifixo na parede às suas costas, à direita os três promotores e o
advogado que os auxilia na acusação, afastado um pouco, e ~ esquerda o
escrivão e auxiliares. Ainda à esquerda do juiz, mais à frente, sentados,
os dois policiais que guardam Guilherme. E logo atrás, o defensor de

37
Guilherme e os dois advogados de Paula. Em frente à mesa do juiz, do
outro lado da sala, a platéia, fechando o quadrilátero em torno do réu. A
segunda personagem principal, Paula, aguarda numa das outras
dependências do Palácio. O juiz quer ouvir os dois separadamente.
Pág 94

VINTE E SETE

A JUSTIÇA BRASILEIRA VEM FICANDO, com o tempo, em mãos


cada vez mais jovens. Diferente de antigamente e de outros países, onde
tradicionalmente a carreira de juiz é reservada a advogados com longos
anos de experiência.
A Constituição brasileira fixa limite de idade apenas para os juizes
do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, que
precisam ter "mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de
idade". Aos demais só exige que entrem na carreira por meio de concurso
e comecem pelo cargo de juiz-substituto.
No Rio de Janeiro concurso público é uma grande perspectiva diante
da estreita faixa do mercado de trabalho. Principalmente para o jovem
que está saindo da faculdade com as lições ainda fresquinhas na cabeça,
vantagem que se traduz nos resultados dos concursos para juiz ou
promotor. Então, nada mais natural que agora, na sala do 2º Tribunal do
Júri, estejam sentados o juiz-substituto Gilmar Augusto Teixeira, de 30
anos, e os promotores Maurício Assayag, de 33 anos, José Muiños Piñeiro
Filho, de 36, e o coordenador da Central de Inquéritos, promotor Luís
Otávio de Freitas,
Pág 95

que denunciaram Guilherme e Paula por homicídio duplamente


qualificado.
O juiz Gilmar Augusto Teixeira preside o processo desde o inicio,
mas logo sairá de cena, em 1~ de fevereiro, quando volta o titular, juiz
Índio Brasileiro Rocha. Os promotores também estão desde o começo e
continuam. Do outro lado da balança está um jovem defensor público,
Paulo Alves Ramalho, de 35 anos, que pegou a causa de Guilherme no dia
7 de janeiro, após a desistência "por motivos profissionais" dos três
advogados inicialmente chamados pela família do ator, Antonio Carlos
Barandier, Luiz Guilherme Vieira e George Tavares.
O defensor público é chamado nesses casos em que o réu fica sem
advogado, e Ramalho então foi escalado pela Defensoria Pública, um
órgão do governo do Estado e não do Poder Judiciário, para defender
Guilherme. Ramalho vai aparecer bastante nos jornais e na TV, com seu
bigode de dois dedos do tipo escova. Logo no começo já mostra a todos a
caixa que diz conter uma fita de vídeo que irá revolucionar o processo,
mas que ele exibirá somente no dia do julgamento.
Os advogados contratados pela família de Paula são uma dupla de
pai e filho, Ronaldo Machado e Carlos Eduardo Machado. O processo
começa na Justiça assim que o juiz recebe o inquérito policial. O juiz
então envia-o para o Ministério Público, isto é, para os promotores. Estes
decidem se "oferecem denúncia" contra os indiciados pela polícia. Em
caso positivo, juntam à denúncia a lista de testemunhas de acusação,
oito, no máximo. O juiz dirá se aceita ou não a denúncia. Aceitando-a,
marca o interrogatório dos réus.
É o que está acontecendo neste momento em que Guilherme está
se sentando na mesinha diante do juiz Gilmar.
Depois do interrogatório, os advogados de defesa têm três dias para

38
apresentar ao juiz a "defesa prévia"; no caso do defen-
Pág 96

sor público, o prazo é dobrado, seis dias, porque normalmente ele tem
muito trabalho e poucos recursos para realizá-lo. Na defesa prévia, os
advogados juntam também a lista de testemunhas, oito para cada réu.
Vem em seguida a audiência das testemunhas de acusação e depois a das
testemunhas de defesa. Tudo isso feito, o juiz vai escolher entre quatro
opções. Pode desclassificar a acusação, isto é, passá-la para outro artigo
do Código Penal, que não exija o júri e que será julgada por outro juiz.
Pode absolver, por absoluta falta de provas, quando é obrigado a recorrer
da própria sentença, de forma a que não exerça um poder que seria
absoluto. Pode impronunciar, que significa estarem faltando provas no
processo, que é trancado até o surgimento de uma nova prova. E pode
pronunciar, como neste caso, que é mandar o réu ou réus a júri.
É depois da pronúncia que a defesa pode recorrer a uma série de
ferramentas legais para prolongar a data do julgamento, uma artimanha
que lhe interessa nos casos de muita repercussão, para evitar a pressão
da opinião pública sobre a decisão dos jurados e o veredicto do juiz.
Finalmente, vem o julgamento. O juiz marca a data e, terminadas
acusação e defesa, sete jurados vão responder a uma série de quesitos
sobre a autoria do crime e as atenuantes e os agravantes invocados por
acusação e defesa, decidindo se o réu, ou réus, são culpados ou
inocentes. E o juiz determina a pena.
Cabem depois recursos a tribunais superiores, mas é esse o
itinerário normal de um processo de homicídio, do boletim de ocorrência
ao julgamento. No caso Daniela Perez, um itinerário que a cada avanço,
parada obrigatória ou acidente de percurso, é acompanhado com uma
atenção que nenhum outro caso policial despertou até hoje.
Pág 97

VINTE E OITO

"ISTO NÃO É UM ESPETÁCULO. Está em jogo a liberdade de duas


pessoas, que devemos respeitar, assim como a vítima. Se houver
manifestações isoladas, os responsáveis serão retirados do recinto. Se
forem manifestações coletivas, o plenário será esvaziado."
Guilherme não ouvira a advertência do juiz aos presentes, feita
antes que ele entrasse na sala do júri, de calça jeans, camiseta de malha
cinza, sapatos pretos, e sentasse à mesinha indicada pelo policial que o
levou até ali e ficará de guarda, com outro, numa pequena bancada ao
seu lado direito, perto dele e do juiz.
O juiz começa perguntando pelos dados pessoais. O ator vai
respondendo com voz embargada e cabeça baixa, chora ao dizer o nome
da mãe, dona Leda, e ouve o juiz ler a denúncia dos promotores contra
ele e a mulher e depois explicar que não é obrigado a responder às
perguntas que lhe fará.
A primeira pergunta é como foi sua infância em Belo Horizonte. Ele
não responde, prefere dizer um curto texto. "Excelência, somente queria
dizer que eu matei a Daniela, que minha esposa Paula nada tem a ver
com isso e não estava no local. E vou repetir, com todo o respeito, para
que não mais colo-
Pág 99

quem nada na minha boca. Minha esposa Paula não tem nada a ver com
isso. Nem ao menos estava no local."

39
O juiz pergunta se não gostaria mesmo de responder a mais
algumas questões e ele responde com outro texto, também curto e em
meio a choros. "Excelência, gostaria de dizer apenas que a criança que
está dentro de minha esposa ninguém pode acusar, nem vai. Gostaria de
pedir a Vossa Excelência um ato de humanidade para que essa criança
inocente possa ser desenvolvida no período de gestação com os devidos
cuidados." Chora novamente, o juiz pergunta se quer se retirar, ele diz
"Se Vossa Excelência assim o desejar", o juiz pergunta se ele "vai ou não"
e ele diz "sim, com todo o respeito". Os policiais voltam a colocar as
algemas em seus punhos e o levam embora. Sua aparição durou vinte e
três minutos.
Paula é trazida em seguida, sem algemas. São nove e meia da
manhã e o seu interrogatório vai até as onze e meia, terá duas horas de
duração. O cenário não muda, apenas os dois policiais que guardavam
Guilherme são substituídos por duas policiais que guardam Paula.
Ela está com a aparência serena, diferente da que mostrara até
pouco tempo atrás, quando desembarcava do carro de policia na porta do
Fórum e parecia não ter controle sobre o choro. Vai responder com
clareza e firmeza a todas as perguntas do juiz, menos a que se refere às
tatuagens, que diz tratar-se de assunto íntimo do casal.
O dado crucial do inquérito, ao lado do testemunho de Hugo da
Silveira de que a teria visto na rua Cândido Portinari na noite de 28 de
dezembro, são as afirmações categóricas dos quatro policiais da 16ª DP,
que deram depoimento dizendo que ela lhes contara estar presente na
hora em que Daniela foi assassinada. Os termos de declaração são todos
do dia 29, a terça-feira em que dois deles foram buscá-la em casa e lá a
ouvi-
Pág 100

ram, e outros dois que a ouviram próximo da delegacia. Mais tarde uns
seriam menos enfáticos do que outros quanto a terem ouvido uma
"confissão" detalhada, mas no ponto vital foram unânimes. Ela dissera ter
estado na cena do crime.
Diante do juiz e da pergunta, Paula desmente todos os pontos. Sua
versão é de que acordou com os dois policiais querendo conversar com
ela a sós no quarto, mas a mãe ficou. Disseram-lhe então que Guilherme
confessara e pediram que fosse com eles à delegacia para ajudar o
marido. Perguntaram se ela sabia alguma coisa e ela disse que não.
Foram para a delegacia junto com ela, a mãe e uma vizinha amiga, Maria
Rita de Meio Braga. Os policiais ligaram a sirene do carro e andaram em
contramão, subiram em calçada e frearam bruscamente. Ela começou a
passar mal e a ficar tonta. Chegaram a um pátio aberto e mandaram que
ela sentasse numa cadeira. Ficou nervosa e vomitou. Um policial sentou
ao seu lado e falou que Guilherme tinha dito que ela estava junto na hora
do crime e que poderia ajudá-lo se falasse. Ela negou e passou mal de
novo. Aí a botaram em outro carro e disseram que iam levá-la para a
delegacia da Gávea. A mãe pediu a presença do advogado de Guilherme e
eles disseram que ela, Paula, não poderia falar com o advogado antes de
depor. Então a levaram de volta à 16ª. Diz que foi uma covardia o que
fizeram com ela e que em nenhum momento confessou nada.
Durante o interrogatório Paula entrou em contradição em relação ao
que Guilherme dissera durante a confissão na 16ª DP. Aqui, diante do
juiz, ela desmente que soubesse do assédio de Daniela a seu marido e lá,
para o delegado, Guilherme afirmara que não só contara a Paula, mas
também à mãe dela, em casa, que era perseguido pela atriz.
A platéia na sala do 2º Tribunal do Júri ouvira atenta todas as
respostas de Paula ao juiz.

40
Pág 101

Sobre o lençol e o travesseiro, respondeu que levaram o lençol para


cobrir o rádio-toca-fitas de Guilherme e não atrair ladrões quando o carro
estivesse em estacionamento; e o travesseiro era para apoiar as costas.
O fato de que teria estado no Barrashopping desde a hora em que
Guilherme a deixou, por volta das três e meia, até as dez da noite quando
voltaria para apanhá-la, e durante esse longo período de tempo não
tivesse comprado nada era porque ele não queria que comprasse nada.
Mas que esteve nas lojas C&A e Baby Dreams olhando coisas de bebê.
Nas respostas, ela não diz em nenhum momento que Guilherme lhe
tenha contado o crime. Diz que quando ele.a apanhou no Barrashopping,
às dez da noite, estava quieto e ela perguntou o que era mas ele
respondeu apenas que era um problema e mais nada. Então chegaram
em casa, estava cansada e foi tomar um banho. Quando ela saiu do
banheiro, ele começou a chorar. Perguntou-lhe o que estava acontecendo
e ele disse que depois contava. Então, como já vira o marido chorando
outras vezes, foi dormir. No meio do sono, não lembra a hora, foi
acordada por ele, que disse que ia descer para tomar um remédio e pediu
que ela ficasse atenta porque já haviam ligado duas vezes da casa de
Daniela e parecia que ela não tinha chegado em casa. Logo depois
ligaram, e ela disse à pessoa que Guilherme descera para ir à farmácia.
Voltou a dormir e quando acordou a mãe já sabia da notícia e estava
muito nervosa. Disse que conhecia a Daniela só de vista, mas foi à
delegacia de madrugada com Guilherme, espontaneamente, ficaram uma
meia hora e voltaram para casa. Foi para a cama dormir de novo e
quando acordou de manhã os policiais já estavam lá para buscar
Guilherme. Mais tarde, ainda de manhã, ele telefonou da delegacia
dizendo estar sendo pressionado pelos policiais e que ela lavasse a roupa
dele. Lo-
Pág 102

go depois as rádios estavam dizendo que Guilherme havia confessado o


crime. Muitas pessoas começaram a ligar para a casa dela e ela dizia que
não era possível porque ele fora buscá-la no Barrashopping. Aí chegou o
pastor Antonio, deram um calmante para ela e ela dormiu. Quando
acordou os dois policiais já estavam entrando no quarto.
Pág 103

VINTE E NOVE

TERMINADO O INTERROGATÓRIO, Guilherme e Paula se encontram,


sem a imprensa ficar sabendo, numa sala do Fórum. Não se dizem nada,
apenas choram, cercados por uma porção de policiais. Poucos minutos.
São levados de novo embora, cada um para sua cadeia, e a saída tem as
mesmas cenas de cinema da chegada, com a reprise da perseguição de
carros de reportagem aos carros que voltam para a 16ª DP, o dele, e para
a Polinter, o dela.
Exatamente um mês depois do crime, dia 28 de janeiro de 1993,
são ouvidas pelo juiz as testemunhas de acusação. As principais
confirmam o que já haviam dito na 16ª DP. A testemunha-chave, Hugo da
Silveira, o delegado Newton Moreira Lopes, o investigador de polícia
Valdir de Oliveira, o garagista Cesarino Manuel do Nascimento e o
caboman Gilmar Lima Marinho.
O diretor da Polícia Técnica e Científica, Talvane de Moraes, também
foi ouvido e disse acreditar que a arma do crime tenha sido um punhal ou

41
uma faca e não uma tesoura.
Paula esteve presente durante todos os depoimentos, feitos ao juiz
Gilmar Augusto Teixeira, de novo na sala do Tribunal do Júri. Ela
permaneceu impassível durante as mais de
Pág 105

dez horas da sessão, que se chama "sumário de culpa" em termos


jurídicos.
Não houve espetáculo dentro da sala, como gosta o juiz Gilmar.
Nem nos corredores do Fórum, como no dia do interrogatório. Lá fora, na
rua, nenhuma cena digna de figurar num script. Apenas alguns cartazes
pedindo justiça, que de manha um grupo de moças, amigas de Daniela,
afixaram nas paredes externas do Fórum, o Palácio da Justiça.
Daí para a frente, a luta será lá dentro, acusação e defesa se
engalfinhando educadamente em defesa de suas teses, até que chegue o
dia do júri, daqui a muitos meses, como costuma acontecer. Então todo o
elenco será novamente chamado, das personagens centrais ao supporting
cast, pontas e figurantes.
A menos que, antes, Guilherme e Paula resolvam dizer a verdade
total.
Senão, restarão as hipóteses. Que não são muitas. Na verdade, são
apenas duas. Guilherme matou sozinho. Ou Guilherme e Paula estavam
juntos.

Não sei se é mania de brasileiro o torcer para aquele ou aqueles que


aparecem mais enfraquecidos em determinadas circunstâncias, mas
desde que comecei a olhar esta história real e via em volta uma tendência
de torcida que pudesse inverter os pólos da tragédia, trocando as
responsabilidades das três personagens envolvidas, me acudia
imediatamente da imagem da moça estendida no chão.
São Paulo, 3/2/93
Sérgio de Souza
Pág 106

O CRIME COMENTADO

As reações ao assassinato de Daniela Perez num resumo de 32


artigos, editoriais e crônicas em jornais e revistas do Brasil:
Pág. 107

MARCELO LEITE
Yasmin (Folha de S. Paulo, 31/12/92)
Diz que "é difícil decidir o que vem a ser mais revoltante, se o
assassinato covarde da atriz ou a apropriação folhetinesca do caso policial
pela mídia, em particular pela própria TV". Reconhece que se trata de
matéria de "óbvia relevância jornalística" e afirma que vivemos num
mundo que revela "crescente incapacidade para o recato, o luto, o
decoro".

EDITORIAL DE PRIMEIRA PÁGINA


A indignação que falta (O Globo, 6/1/93)
Adverte que os culpados pela morte de Daniela Perez, mesmo que
recebam a pena máxima, dificilmente passarão na cadeia um dia além de
cinco anos, porque a lei brasileira permite ao condenado primário de bom
comportamento cumprir só um sexto da pena em reclusão. Defende uma
legislação mais severa e afirma que "falta-nos mais indignação, e

42
continuada, em face de outro crime: a absurda fragilidade das defesas da
sociedade contra a ação dos criminosos entre nós".

EDITORIAL
Ilusão e realidade (O Estado de S. Paulo, 6/1/93)
"A banalização do artificial ambiente carioca erigido como padrão —
este é o mal que a televisão faz à sociedade brasileira. Glorificou-se,
durante muito tempo, o mal, a delinqüência, a trampolinagem a pretexto
de denunciar as mazelas políticas e sociais deste país. Não se faz mais do
que admitir como rotina normal a existência e a convivência com tais
desvios."
Pág 109

MARCELO COELHO
Caso Daniela leva ficção ao mundo real (Folha de S. Paulo, 8/1/9 3)
Comenta a forma como os noticiários da Globo exploram o crime e
afirma: "(...) a Rede Globo se torna uma entidade ainda mais
fantasmagórica e maligna. Pois 'fatura', como se diz, com o episódio. (...)
É claro que os índices de audiência da novela e os do Jornal Nacional
crescem, pois o interesse do público é naturalmente maior. Mas sempre
fica a imagem de uma empresa, de uma máquina de lucros, de uma
instituição de poder que é capaz de absorver tudo, de transformar
tragédias reais em boas notícias para o seu departamento de
contabilidade".

ARMINDO BLANCO
Guilherme de Pádua é um ator (O Dia, 8/1/93)
Critica aqueles que, como Walter Clark, ex-diretor da Rede Globo,
investem contra Guilherme de Pádua taxando-o de "despreparado que
subiu na vida através da sua atividade sexual", ou "garoto de michê". Diz
que não está comprovado que Guilherme chegou a se prostituir e que,
embora Alexandre Frota e Maurício Mattar, também atores da Globo,
tenham trabalhado ao lado de Guilherme na peça Blue Jeans, de temática
homossexual, não tiveram a vida particular confundida com a de seus
personagens, como acontece com o acusado da morte de Daniela Perez.

EDITORIAL
Limites da dor (Jornal do Brasil, 8/1/9 3)
Aponta o contraste entre a intensa movimentação dos policiais
encarregados do caso diante das câmeras de TV e os fracos resultados
das investigações. Afirma que a policia brasileira só sabe extrair
confissões, mas carece de técnica investigativa. Acusa a televisão de
Pág 110

se nutrir da violência não para refleti-la, mas para conquistar audiência.


Diz também que os colegas da atriz morta confundem caso de policia com
show eletrônico e que a indignação da classe artística vem sendo
exacerbada por jornais e revistas. A audiência, segundo o editorial, vem
sendo explorada até o limite da dor.

LUÍZ CARLOS LISBOA


O show da morte (O Estado de S. Paulo, 9/1/93)
Palavras do autor: "A morte violenta de uma atriz de novelas (...)
revelou mais coisas sobre o crescimento doentio dessa grande máquina

43
de espetáculos (a TV) do que seus donos e beneficiários gostariam que
revelasse. Apesar da exibição inesperada de suas entranhas, a poderosa
rede que manipula as emoções de uma grande massa de espectadores viu
no crime que envolveu atores seus uma oportunidade de aumentar seu
índice de audiência e de transformar uma soap opera sem sal numa
novela de sucesso (...) passando a idéia de grande consternação com o
drama que a atingiu". O artigo diz também que o conteúdo das
telenovelas contém "os esporos da violência, da esperteza desonesta, do
desrespeito pelo outro".

MÁRIO VITOR SANTOS


Novela e jornalismo (Folha de S. Paulo, 10/1/93)
"Até aqui cabia aos jornais, por sua independência, credibilidade e
agressividade, levantar as informações que viriam a resultar em
mudanças para o pais. As televisões, a Globo em especial, apesar da
magnitude de sua audiência, funcionavam como fatores de resistência, e
acabavam tendo de ir a reboque (...) No caso Daniela Perez, entretanto,
aconteceu o inverso. O estilo da emissora impregnou a todos. O apelo
ficcional era irresistível, imediato, fácil. Mas ceder a esse apelo foi o
mesmo que ceder terreno ao antijornalismo (...) O noticiário foi
essencialmente baseado em opiniões de policiais des-
Pág 111

norteados, versões incriminadoras sem apoio em provas e 'confissões'


feitas a agentes e obtidas de maneira no mínimo duvidosas."

RACHEL DE QUEIROZ
As causas e os frutos da violência (O Estado de S. Paulo, 10/1/93)
"Apesar da sua onipresença, a TV, boa ou má, não gera monstros e
santos, belas e feras (...) Mas, exibindo-os, ela os exorciza (...) Assim,
não vamos iniciar uma caça às bruxas, afiar os dentes da censura, porque
um rapaz doente assassinou uma rapariga linda (...) Castiguemos os
culpados, choremos os mortos inocentes, mas nada de pregar um
recomeço de repressão, essa sim, uma outra forma de violência, e das
mais abomináveis."

LAURO LISBOA GARCIA


O circo trágico de Daniela Perez na cova dos canastrões (O Estado de S.
Paulo, 10/1/93)
Critica o passionalismo e o "delírio" dos programas jornalísticos de
todas as emissoras de televisão no Brasil ao tratar do caso Daniela Perez.
Deplora o "sadismo" das cenas que mostram exaustivamente o pranto
dos parentes e amigos da atriz no enterro e na missa de sétimo dia.
Afirma: "Nunca a televisão brasileira reuniu tantos canastrões num
mesmo circo".

WALTER CENEVIVA
Morte da atriz põe Estado em débito com o povo (Folha de S. Paulo,
10/1/93)
Diz que, enquanto o clamor popular exige uma justiça do tipo
"errou, pagou", o devido processo legal tem de ser obrigatoriamente
moroso, para dar todas as chances de defesa ao acusado. Em
Pág 112

44
relação à morte de Daniela Perez, "os fatos se passarão na polícia e em
juízo durante meses, talvez anos. A demora é um mal, mas não pode
servir como desculpa para o sacrifício do direito de defesa, a condenação
do inocente ou a punição mais grave que a merecida na forma da lei".
Para que o sistema judicial pudesse acelerar a prestação da justiça, seria
necessário, antes de tudo, remover preconceitos e barreiras que desviam
o foco das discussões jurídicas, como, por exemplo, o sexo dos envolvidos
(a mulher sempre acaba difamada) e a situação econômica (rico não vai
para a cadeia). Enquanto isso, o Estado, permanece em dívida com a
sociedade, em termos de prestação de justiça, devendo procurar suprir
suas deficiências pela atuação, com igual qualidade, nos dois pólos: o da
assistência e o da punição.

SÉRGIO AUGUSTO
Sede de sangue (Folha de S. Paulo, 10/1/93)
Ao comentar a exploração pela Rede Globo do caso Daniela Perez,
diz que o Jornal Nacional "anda obsceno na sua desesperada busca por
notícias de grande impacto popular. O tempo que nele se gasta com
crimes, assaltos, seqüestros e outros atos de violência atingiu níveis
insuportáveis nas últimas semanas. Reflexo da brutal realidade que nos
cerca? Isto é o que os seus editores alegam. A opção do Jornal Nacional
pela sordidez humana tem mais a ver com a guerra de audiência do que
com a guerra por todos nós vivida cotidianamente. Só mesmo uma
perversa vontade de alimentar a morbidez popular pode explicar a sede
de sangue do telejornalismo global".

LEONEL BRIZOLA
O ovo da serpente (Jornal do Brasil, 10/1/93)
Registra duas manifestações contra o "papel corrosivo que o
monopólio da Rede Globo está desempenhando em nosso país": a pri-
Pág 113

meira, um editorial do Jornal do Brasil que revela que a Globo "exibe,


apenas numa única semana, mais de mil cenas de violência" e que,
assim, "acaba impondo influência deletéria, em tudo contrária ao papel
cultural que deveria exercer"; a segunda manifestação, as afirmações de
Walter Clark, "fundador e diretor da Globo por mais de uma década", de
que "a Globo, apelando para fórmulas fáceis, está acabando com a TV
brasileira" e que "a sociedade, que já está violenta, acaba tendo no seu
registro mais forte de comunicação, que é a TV, só violência". O autor diz
que a indignação contra isso vem crescendo "nas consciências mais
lúcidas e esclarecidas".

GEPARDO MELLO MOURÃO


Pavana para uma infanta defunta (Folha de S. Paulo, 11/1/93)

"Quem matou Daniela Perez? (...) No fundo, todos nós temos


alguma culpa no cartório. (...) À medida que silenciamos diante da mídia
grosseira que forma e informa essa sociedade, especialmente a televisão,
com suas novelas abomináveis, somos cúmplices dessa miséria."

JOSIAS DE SOUZA
Realidade fictícia (Folha de S. Paulo, 11/1/93)

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Comenta a brutal "irrealidade" dos assassinatos da menina Miriam
Brandão, em Minas Gerais, e o de Daniela Perez, no Rio, para explicar a
tendência do cidadão comum a apegar-se à lei de talião e,
inconscientemente, a desejar a adoção da pena de morte. Contrário à
pena capital, usa vários argumentos para repudiá-la mas também
ressalta: "É inconcebível que autor de crime hediondo possa sofrer
condenação máxima de 30 anos de cadeia. É inaceitável que, com bom
comportamento, possa voltar às ruas após seis anos de castigo. São
detalhes que fazem da realidade brasileira uma ficção ainda mais
detestável".
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EDITORIAL
Tragédia amplificada (Folha de S. Paulo, 11/1/93)
Assinala "a sobrecarga de emoção" que o caso recebeu, "para
prejuízo do andamento de uma investigação policial já suficientemente
conturbada pela circunstância de envolver celebridades" e adverte que,
"do frio ponto de vista criminal, se trata de um delito a mais entre os
inúmeros e selvagens que se cometem cotidianamente neste
convulsionado país". Afirma que atores e atrizes, "compreensivelmente
transtornados", revezam-se no vídeo para oferecer ao público, ainda que
involuntariamente, "a imagem oposta da objetividade e do equilíbrio sem
os quais, por mais justas que sejam as intenções, dificilmente se faz
justiça". E que o processo deverá seguir, sem pressa, todos os passos
determinados na lei, para que não haja "afronta à idéia de Direito".

DANUZA LEÃO
Reflexões sobre uma tragédia (Contigo!, 12/1/93)
"Outra coisa que me tem chamado a atenção é a defesa da honra
de Daniela Perez. A impressão que se tem é que por ter sido pura,
honesta e vivendo um casamento feliz (e mais por isso do que por
qualquer outra razão), Daniela não poderia ter sido assassinada. (...) E se
não fosse? Um homem teria o direito de matar Madonna, por exemplo,
por ela ter feito vídeos eróticos e o livro que fez? Quer dizer que se
alguém matar uma mulher "impura" o crime estará justificado e o
assassino, automaticamente absolvido?"

DOM LUCAS MOREIRA NEVES


J'accuse! (Jornal do Brasil, 13/1/93)
Trata-se de um manifesto contra a televisão comercial brasileira.
Diz o autor: "Acuso-a de descumprir sistematicamente as
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funções em vista das quais obteve do governo uma concessão: informar,


educar, cultivar, formar a consciência e divertir. Em vez disso, ávida
somente de pontos no Ibope e de faturamento, ela não hesita em apelar
aos instintos mais baixos do homem. (...) Abusando dos seus recursos
técnicos, do seu poder de persuasão e de penetração nos lares do país
inteiro, ela destrói o que outras instâncias pedagógicas e educativas, a
duras penas, procuram construir. (...) Acuso a TV brasileira de ser
corruptora de menores, em virtude de programas de mais baixa categoria
moral. (...) Acuso a TV brasileira de destilar em sua programação e
instilar nos telespectadores, inclusive jovens e adolescentes, uma
concepção totalmente a ética da vida: triunfo da esperteza, do furto, do
ganho fácil, do estelionato. (...) Quando foi que, pela última vez, uma
novela brasileira abordou temas como os meninos de rua, os sem-teto, os
sem-trabalho, os marginalizados em geral? (...) Em lugar disso, as

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telenovelas oferecem à população empobrecida, como modelo e ideal, as
aventuras de uma burguesia em decomposição, mas de algum modo
atraente. Acuso, enfim, a televisão brasileira de instigar a violência. (...)
Quem matou, há dias, uma jovem atriz? Seria ingenuidade não indicar e
não mandar para o banco dos réus uma co-autora do assassinato: a TV
brasileira. A novela das 8. E — sinto ter que dizê-lo — a própria novela De
Corpo e Alma".

EDITORIAL
Sangue e lágrimas (Jornal do Brasil, 13/1/93)
"O caso Daniela Perez ensejou finalmente à televisão oportunidade
de refletir sobre si mesma, nesta época tumultuada de decadência de
valores. (...) A televisão, que, num primeiro momento, deveria refletir a
realidade brasileira, precária e violenta sob todos os aspectos, banalizou a
violência no momento em que perdeu o senso crítico e se rendeu aos
apelos de baixo nível. (...) Cada povo tem a televisão que merece —
dizem. Não é verdade. O Brasil terá,
Pág 116

se quiser, televisão inteligente, capacitada culturalmente (...) Mas o mal


brasileiro dos últimos tempos é a falta de exemplos, de cima e dos canais
de televisão. Há um paralelismo entre a violência que eclodiu nos
bastidores e o crime político que começou com o tráfico de influência e
acabou em deposição do presidente."

AUGUSTO MARZAGÃO
Que Deus nos acuda de corpo e alma (Folha de S. Paulo, 14/1/93)
"Desde delegados, a policiais, promotores, advogados, amigos e
companheiros de trabalho da morta e de seu matador, até os mais
proximamente situados em relação ao caso, poucos ou quase nenhum
deles se livrou da sedução das luzes da telinha. A comoção que o fato
deflagrou levou a um paroxismo de reações as mais imprevistas, tendo o
veículo televisão como o grande aumentador e difusor desse descontrole
(...)"

JOSÉ NÊUMANNE
Lama e sangue (Jornal da Tarde, 14/1/93)
Entrando na discussão sobre a adoção da pena de morte no Brasil, o
autor diz que "quem acompanhou o desempenho da polícia fluminense no
episódio Daniela Perez tem motivos de sobra para se preocupar com a
freqüência eventual de erros judiciários com réus sentenciados à morte".
Relembra a "facilidade" com que o delegado Mauro Magalhães aceitou a
"estapafúrdia" versão de que Guilherme matara Daniela porque ela "o
assediava"; o ridículo fato de a polícia periciar o local do encontro do
corpo uma semana depois do crime e de o lugar ter sido vasculhado por
repórteres e fás em romaria; e outras trapalhadas e deficiências na
investigação policial. Entre suas conclusões, o autor afirma: "Na verdade,
é mais fácil debater a pena de morte do que equipar a polícia e cobrar
dela eficiência".
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LUÍZ CAVERSAN
Morte sem pena (Folha de S. Paulo, 14/1/93)
Diz que "num período de 17 meses, encerrado em dezembro
passado, aproximadamente mil mulheres foram assassinadas por motivos
supostamente passionais. Ou seja, o caso Daniela Perez se repetiu mil

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vezes, sem que houvesse o estardalhaço compreensível no caso da
estrelinha da novela das 20 h. A maioria dos assassinatos nem sequer foi
noticiada e eles só podem ser referidos aqui porque constam de relatórios
da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara Federal que investiga a
violência contra as mulheres". Esses números, segundo o autor, mostram
que "não existe hoje uma 'onda de violência' a ser contida por uma
penalidade intimidadora" — como querem os defensores da pena.de
morte — mas sim que "a violência sempre existiu e sempre esteve aí para
os que quisessem vê-la".

JORGE LOBO
O direito da vítima (O Globo, 15/1/93)
Analisa as disposições da Constituição brasileira que tratam dos
direitos e garantias fundamentais do cidadão e constata:
"Dos 77 incisos dedicados aos 'direitos fundamentais', 30 tratam
dos direitos e garantias da pessoa suspeita ou acusada da prática de
ilícito penal, com especial ênfase para 'a plenitude da defesa' (...)".
Afirma que os meios legais de que dispõem os defensores do suspeito ou
acusado favorecem a chicana, que perpetua os processos sem trazer luz
alguma para a elucidação dos casos. E reclama, citando o jurista Vicente
Azevedo: "Para o delinqüente, todas as atenções, todos os cuidados... E
as vítimas, o que se faz em prol das vitimas?"
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DOM EUGÊNIO DE ARAUJO SALES


Reflexões no dia do padroeiro (Jornal do Brasil, 16/1/93)
"Sob o falso argumento de que somente levam ao público a
realidade já existente, os programas televisivos transformam-se em
eficazes instrumentos da dissolução dos valores morais, elemento
indispensável ao sadio ambiente doméstico. Ao transmitir desvios,
deslizes, dão-lhes um respaldo, coonestam o mal e estimulam sua
propagação. (...) Os aspectos educativos são esquecidos, postos de lado,
pois seria uma calúnia dizer que a família carioca se identifica com os
modelos difundidos nessas e em outras programações da mídia. (...) Os
meios de comunicação social difundem comportamentos que (...) induzem
os assistentes a aceitar como normais verdadeiras deformações."

JOSÉ SARNEY
Ciúme: a inveja do amor (O Globo, 17/1/93)
Diz que o caso Daniela Perez aguça a imaginação do ficcionista
"porque dá margem a especulações até onde esse Guilherme matou
Daniela, ou o personagem Yasmin". Continua: "Guilherme pode imitar
Rira e até vivê-lo na realidade. Ele não podia matar a namorada na
novela, porque era novela, mas matou-a, sem ser namorada, na
crueldade da vida real". E conclui: "Esse Guilherme pensou que matava
Yasmin e matou Daniela; e Paula (...), possuída dos infernos do ódio e do
ciúme, que é a inveja do outro amor, pensava que estava matando
Daniela e matou Yasmin".

MARIA ESTER MARTINHO


Embaralhar folhetim e notícias dá Ibope (Folha de S. Paulo, 17/1/93)
Chama de "efeito Daniela" o fenômeno que vem aproximando cada
vez mais a telenovela e o telejornalismo, "num processo de
Pág 119

gradual simbiose": a novela procura "realismo" e os telejornais


descobrem o poder do folhetim. "Se a telenovela surrupia do noticiário

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personagens e situações, o noticiário surrupia da novela a embalagem",
diz a autora.

LUCIANO TRIGO
Collor, Yasmin e Bira (O Globo, 17/1/93)
Constata que a derrocada e a cassação política do ex-presidente
Fernando Collor perdeu de longe, em termos de repercussão, para o
assassinato de Daniela Perez. Percebe a distância entre o Brasil oficial (do
presidente, dos três poderes, das empresas legalmente constituídas) e o
Brasil alternativo (da economia informal, da sonegação fiscal, da
abstenção eleitoral). Collor pertence ao Brasil oficial, que é uma entidade
abstrata para o brasileiro comum. Daniela pertence ao Brasil real, que
fala de perto ao cidadão.

MARCOS SÁCORREA
Programa de auditório (Veja, 20/1/93)
"Como um relógio parado, que fica certo duas vezes por dia, o
governador Leonel Brizola nunca esteve tão perto quanto esta semana de
ver materializada sua profecia de estimação: o Brasil, nas malhas da Rede
Globo, virando uma grande telenovela. No ar, estava a pena de morte.
Estrelando, nada menos do que o presidente Itamar Franco. E, no
controle do script, aquele que, segundo Brizola, é o dono da opinião
pública no país, o empresário Roberto Marinho. Tudo por causa de um
editorial publicado em O Globo, propondo que a sociedade contrate um
carrasco para defendê-la de crimes pavorosos. O jornal citava, apenas, o
caso de Minam Brandão, a menina de 5 anos queimada pelo
seqüestrador, e o 'olhar ausente e gelado' que seu assassino, William
Gontijo Ferrei-
Pág 120

ra, teria mostrado na televisão, ao ser exibido pela policia de Belo


Horizonte. Mas todo mundo acabou lendo no texto também o nome da
atriz Daniela Perez."

CARLOS HEITOR CONY


Não matarás! ("Manchete", 23/1/93)
Para o autor este é um caso claro: há uma vítima e um réu
confesso. Estranha-se que, apesar da clareza, a polícia, a Justiça e a mi-
dia se envolvam em minúcias que complicam o caso, explorando as
fofocas que cercam cada ato humano, por mais inofensivo que seja. Abre-
se, desta forma, espaço para explicações e justificações que levem à
gradação da culpa e da sentença, ou seja, à parcialização da justiça.
Corre-se o risco de partir para o exercício da vitimologia, em que os
advogados de defesa procuram manchar a reputação da vítima e, a partir
daí, "justificar" o crime e abrandar a pena do acusado.

AGUINALDO SILVA
Criminosos sem perdão (Jornal do Brasil, 24/1/93)
Diz que, no caso Daniela Perez, as cartas "vêm sendo
embaralhadas" desde o início e cada vez mais — "e não mais pela polícia
ou pelos advogados de defesa, mas, sim, pelos amigos e colegas da
atriz", que na tentativa de ajudar, "com seus depoimentos, entrevistas e
declarações, acabam armando uma verdadeira babel em torno do
criminoso, o que só vai ajudar aos seus defensores". E termina:
"Assassinato é assassinato. Um crime para o qual não pode haver
atenuante nem perdão. Se todo mundo se concentrar apenas nisso, talvez
se chegue ao que todos desejam para os criminosos: o pior castigo".

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Pág 121

ARTUR XEXÉO
Cara-pintada vendendo tempero de cozinha? (Jornal do Brasil, 24/1/93)
É um artigo dividido em partes. Ao se referir ao caso Daniela Perez,
o autor pergunta: "Será que continuar trabalhando em Corpo e Alma é
tão constrangedor para os artistas da Globo quanto é para os
espectadores continuar assistindo à novela?". Afirma que tirar de De
Corpo e Alma do ar acarretaria problemas extras: "Além de contratos de
merchandising, a novela está sendo exibida, simultaneamente, em
Portugal. A decisão de tirá-la do ar envolveria mais gente". A alternativa
seria abreviá-la: "Ô, Globo, não dá pra acabar logo com essa novela,
não?"

ARNALDO JABOR
Crimes reais não cabem no horário nobre (Folha de S. Paulo, 26/1/93)
"A Globo criou o brazilian way of living, com seu brilho barato e
consumista. Criou esta 'vida nacional' com duas margens: a dos pobres
que sofrem no Globo Repórter e a dos limpos que têm encontros
amorosos nas novelas. Acontece que um lado contamina o outro" e é
quando "o criminoso limpo nos põe em contato com o outro lado do
sanduíche da morte. (...) Guilherme expõe nossa doença. Daí o horror
que o criminoso limpo provoca nos colegas-atores. Tirou deles a proteção
de habitarem a ficção. Guilherme traiu a confiança da Globo. Por uma
falha do Departamento Pessoal, invadiu com seu passado 'sujo' o elenco
dos 'limpos'. Mais que criminoso, foi um impostor. (...) Guilherme e Paula
demonstram que a morte não é apenas uma endemia rural dos
miseráveis. A morte está até mesmo debaixo do padrão Globo de
qualidade, como um escorpião que tem de morrer para ninguém ver.
Tudo vai bem na Globo, tudo sempre foi bem na Globo. Na pior ditadura,
a Globo ia bem; na pior recessão, a Globo vai bem. É nosso olimpo.
Quando a realidade invade a ficção, é necessário extirpa-la. A Globo é
nossa reserva ecológica de felicidade."
Pág 122

O CRIME DA NOVELA DAS OITO

CAPA
Joca Pereira
Este livro foi composto, paginado e fotolitado pela Divisão de Produção da
Scritta Oficina Editorial Ltda, nas fontes Stone Serif e Stone Sans. Os
filmes da primeira edição foram entregues a Companhia Lythographica
Ypiranga, às oito horas do dia dezoito de fevereiro de 1993, para uma
tiragem de trinta e cinco mil exemplares.

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