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Lethycia Dias, 2019

Mesmo que eu vá embora


Revisão crítica e ortográfica: Nina Spim
Leitura sensível: Nina Spim
Capa: Alice Gonçalves

Mesmo que eu vá embora | Lethycia Dias – Goiânia-GO, 2019


I. Contos. II. Literatura brasileira.
Índice

Mesmo que eu vá embora


Agradecimentos
Sobre a autora
Playlist do conto
Mesmo que eu vá embora

Restam cinco dias

No primeiro dia, Helena me levou a um passeio pela cidade. Eu havia


chegado perto da hora do almoço, depois de passar a noite inteira no ônibus
de viagem. Ela havia me recebido na rodoviária, alegre e ansiosa diante da
minha preocupação em olhar para todos os lados. Eu, atrapalhada, puxava a
mala com uma mão e tinha minha pequena mochila pendurada em um dos
ombros, com meu travesseiro enfiado embaixo do braço. Claro que tentei
cumprimentá-la com a outra mão, aquela que segurava uma sacola com o lixo
de tudo o que consumi dentro do ônibus. Helena, mais desinibida, me puxou
para um abraço apertado.
Ela me acompanhou na corrida de Uber até o hotel onde reservei um
quarto pelos próximos cinco dias por um valor promocional, e logo depois de
deixar minhas malas e vestir uma roupa mais confortável, partimos para um
restaurante a algumas quadras dali, onde ela jurava que serviam um purê de
batatas maravilhoso.
Era uma cidade de tamanho médio aquela em que Helena vivia e
onde, por coincidência, eu tinha um artigo para apresentar em um evento
acadêmico. Outros colegas de curso haviam tentado se inscrever, mas não
tiveram seus trabalhos aprovados na primeira seleção, de forma que eu estava
sozinha. Se não fosse por Helena, eu não teria nenhuma companhia. E, de
qualquer forma, estávamos aproveitando para nos encontrar pessoalmente
pela primeira vez. Mas as coisas não estavam acontecendo como eu
imaginava.
Que tínhamos gostos em comum e muito a compartilhar, os nossos
quatro anos de amizade virtual deixavam óbvio. Acompanhávamos uma à
outra virtualmente desde que caí por acaso numa lista de filmes dirigidos por
mulheres; e ela, retribuindo o comentário que deixei, comentou, no meu blog,
a minha resenha de um filme adolescente sobre dois garotos do mesmo
colégio que iniciavam um relacionamento. Helena tinha me visto abandonar
meu curso de graduação anterior e iniciar um novo, e eu a tinha visto se
formar e iniciar sua carreira com marketing. Sem falar nas infinitas dicas de
filmes e músicas que trocamos.
Mas... Vendo Helena jogar para o lado uma mecha do cabelo de
cachos volumosos com mechas loiras, vendo Helena rir com gosto por ouvir
minhas histórias dos dias que antecederam a viagem, vendo seu reflexo no
espelho de uma das paredes do restaurante quando ela voltava do banheiro...
Eu percebi que sinto mais do que amizade por ela. E isso me assusta mais do
que alegra.

✽✽✽

Estivemos em uma praça no centro histórico da cidade, onde prédios e


casas com mais de cem anos ainda são preservados, e andamos por uma
alameda de ipês amarelos floridos, que criavam um lindo arco amarelo acima
de nós, onde tiramos várias fotos uma da outra e pedimos para que outras
pessoas fotografassem nós duas juntas. Então, fomos à única locadora que
ainda existia na cidade em tempos de download na internet e serviços de
streaming. Era um lugar incrível, decorado com cores alegres e cartazes de
filmes icônicos, que, além de alugar filmes, vendia ícones para coleção, como
canecas, camisetas, garrafas, bottons e chaveiros.
— Eu quero te dar um presente — disse Helena, enquanto eu
observava uma caixa cheia de pequenos quadros temáticos que podiam ser
colados com fita dupla-face.
— Não — eu disse, olhando para a direção de onde tinha ouvido a
voz dela. — Eu não aceito. Não precisa.
— Tem certeza? — disse ela, mostrando entre os dedos um pequeno
objeto, que precisei me aproximar para ver: um botton do filme adolescente
cuja resenha ela comentou no meu blog anos atrás!
— Não acredito! — respondi, muito surpresa. — Retiro o que eu
disse! Mas só se você me deixar te presentear também.
E assim, saímos daquela locadora sem alugar nenhum filme — não
que a seleção fosse ruim, apenas achávamos que não teríamos tempo para
assistir nenhum —, mas eu levava, pregado na minha camiseta, o botton que
Helena me deu; e ela, em seu vestido, um botton com o rosto de Gal Gadot
como Mulher Maravilha, porque, apesar de não gostar de filmes de heróis, ela
adorava aquele filme.
Passamos o fim da tarde em um parque, comendo pipoca e vendo
crianças brincarem, um fotógrafo com sua cliente fazendo um ensaio pré-
quinze anos com balões de gás hélio dourados e muitos casais por perto para
que eu conseguisse evitar o pensamento de que estava apaixonada.

✽✽✽

Restam quatro dias


No segundo dia, o mundo acadêmico me engoliu. Eu tinha viajado
numa noite de sábado e chegado no domingo com tempo de sobra para que
pudesse me distrair e descansar antes do congresso, que começava na
segunda-feira e tinha atraído centenas de estudantes de ensino superior para
uma cidade de tamanho médio no Sul no Brasil.
Eu primeiro lugar, precisei comparecer ao credenciamento, onde,
além de um crachá com meu nome escrito, uma caneta de péssima qualidade
e um folheto com um mapa da instituição de ensino onde o evento acontecia
(muito útil, aliás), ganhei uma ecobag e um livro de artigos escritos por
estudantes da universidade local.
Permaneci o dia inteiro circulando nas dependências do evento,
carregando aquela bolsa de pano pendurada no ombro até começar a sentir a
alça me machucar mesmo por cima do casaco fino e da blusa, e estive em
uma palestra e uma oficina muito entediantes que lamentei muito por ter me
inscrito. Estar na Universidade às vezes é assim: você paga a inscrição de um
evento para apresentar um trabalho feito com todo o seu esforço e é obrigada
a estar em atividades que não te interessam de verdade, para receber o
certificado de participação com as horas complementares.
A condição de estudante de graduação vinda de outro Estado me dava
direito ao almoço gratuito durante todos o tempo de duração do congresso, e
eu fiquei grata porque o dinheiro que podia gastar era pouco para uma
viagem de uma semana. Tentei me enturmar com o grupo que esteve na
mesma mesa que eu durante o almoço, mas as três garotas e dois garotos com
sotaques que eu não reconhecia pareciam tão cheios de histórias próprias que
não quis mais me intrometer.
Durante todo o dia, pensei em Helena. Haveria uma apresentação
teatral com entrada gratuita, oferecida pela universidade que sediava o
evento, e eu a tinha convidado para ir comigo. Ela estaria o dia inteiro
trabalhando e precisava acordar cedo no dia seguinte, mas mesmo assim...
Que horas é mesmo a apresentação que você falou?
Foi a mensagem que ela me enviou às três horas da tarde,
provavelmente enquanto aproveitava o lanche vespertino da agência em que
ela trabalhava, que é supermoderna e a favor do bem-estar e conforto dos
funcionários. Respondi imediatamente:
Às 21h.
A resposta dela, denunciada pelo meu alerta de notificações de
aplicativos, gerou alguns olhares de irritação na sala em que um voluntário
tentava ensinar técnicas para o uso de formulários on-line como ferramentas
de pesquisa confiáveis, mas me deixou feliz:
Estarei lá às 20h45. Até mais tarde! <3
E isso me fez sair meia hora antes de aquela oficina chata acabar para
ir ao meu hotel tomar um banho, vestir uma roupa mais bonita e comer
alguma coisa na lanchonete da esquina. Minha ansiedade era tão grande que
às 20h30 eu já estava andando de um lado para o outro na entrada do teatro
alugado pela Comissão Organizadora, esbarrando em pessoas que seguravam
seus crachás de participantes ou seus bilhetes de convidados. Numa mão, eu
tinha o bilhete que garantia a entrada de Helena; na outra, o celular que eu
olhava a cada 3 minutos aproximadamente, na espera de uma mensagem dela
avisando que estava chegando, ou que já estava ali mesmo e ainda não tinha
me visto.
Helena apareceu exatamente na hora que tinha prometido, apenas
mostrando que a minha preocupação com o horário era inútil. Hoje ela estava
com o cabelo preso num coque no alto da cabeça e amarrado com um laço
azul muito bonito, que combinava com a jaqueta dela. Azul, aliás, combinava
muito bem com a pele negra dela.
— Demorei? — ela perguntou, sorrindo. Ela sabia que não! O jeito
divertido dela me fazia ficar ainda mais feliz por ela ter aceitado estar ali.
— Chegou na hora certa — respondi, sem saber dizer o quanto a
presença dela era importante para mim. Quando notei que ela esperava que eu
dissesse mais alguma coisa, acrescentei, apressada: — Ah, aqui está o seu
convite! É só irmos na direção da entrada — e é claro que eu me atrapalhei
toda me virando para apontar a porta aberta diante da qual dois monitores
com camisetas do congresso recebiam o público e apontando, na verdade,
para a direção contrária.
— Você quer dizer do outro lado? — ela riu.
— Foi isso mesmo que eu disse! — respondi, tentando parecer
irritada, mas rindo da minha própria confusão.
Boa parte dos lugares ainda estava vazia quando entramos, então
escolhemos duas cadeiras no centro da sala, onde poderíamos ter uma boa
visão. Talvez o fato de ser uma apresentação organizada por um grupo
externo ao teatro, e para um número limitado de pessoas, explicasse a falta de
lugares marcados. Aos poucos o local foi se enchendo, até as luzes se
apagarem e restar apenas uma luz amarelada que mantinha o palco na
penumbra. Isso foi o suficiente para colocar fim em todas as conversas e
cochichos e fazer com que as últimas selfies fossem tiradas. A iluminação
então mudou para algo azulado, houve música, e pelos próximos 45 minutos
acompanhamos sessões alternadas de dança e interpretação de poesia. No
meio de um monólogo apresentado por um rapaz alto e muito magro todo
vestido de preto, um celular tocou.
— Ah, não! — Helena reclamou. — Quem foi que esqueceu de
desligar o celular?
E só quando eu percebi as movimentações de rostos e cochichos ao
meu redor, foi que percebi que era o meu celular, e para o meu desespero, o
toque só ficou mais alto quando eu o tirei da bolsa.
— É o seu?
— Ah, nossa, eu preciso desligar isso!
Mas de repente eu não podia desligar, porque era a minha mãe
ligando e bem, quando a sua mãe liga, você não pode deixar de atender, não
importa onde esteja. Então, no meio daquele monte de gente que olhava para
ver quem era a pessoa inconveniente que tinha esquecido de deixar o celular
no silencioso, eu atendi e, mais do que depressa, corri para fora da sala,
voltando ao saguão.
Depois de cinco minutos em que minha mãe perguntava se estava
tudo bem comigo, como era o meu quarto de hotel, se eu não tinha comido
maionese em nenhum lugar porque havia o risco de estar estragada e se já
tinha apresentado o meu artigo, voltei para a sala enquanto a plateia aplaudia
o coitado do garoto magrelo cuja apresentação eu tinha interrompido.
Quando todo o espetáculo, por fim, terminou, eu e Helena saímos da
sala em meio a todas as outras pessoas, comentando animadas a experiência
cultural que tivemos. No meio das pessoas e passam pela gente, param para
conversar umas com as outras, tirar mais fotos, fazer ligações e chamar suas
corridas de carro para onde quer que estejam indo, nós duas paramos em
silêncio. Eu digo a coisa mais ridícula que poderia:
— Eu tô tão feliz.
— A apresentação foi tão boa assim? — Helena ri, mas parece
genuinamente interessada na resposta.
— Não. Tô feliz porque você está aqui.
— Eu também estou feliz. Não é todo dia que eu posso sair com uma
amiga que só conhecia pela internet.

✽✽✽

Restam três dias


Acordei depois das 8 horas no dia seguinte depois de ter apagado na
cama do hotel com as mesmas roupas que eu tinha usado na noite anterior. Eu
estava morrendo de fome e, o que era pior, precisava treinar minha
apresentação para aquela tarde. Meus slides já estavam prontos desde a
semana anterior, mas eu tinha ficado tão ocupada preparando a minha mala e
pensando na minha melhor amiga virtual por quem eu estava apaixonada, que
tinha me esquecido de me preparar.
Só quando voltei do refeitório do hotel depois de comer várias fatias
de bolo mesclado e tomar um copo de leite bem quente, foi que vi a
mensagem de Helena no meu celular jogado em cima da cama:
É hoje a sua apresentação, não é? Eu sei que você vai fazer o melhor
que pode! Estou aqui torcendo pelo sucesso do seu trabalho e que seja
aprovado para publicação!
Com a mão direita tremendo, digitei a seguinte resposta:
Obrigada! Você é maravilhosa! <3
Então, liguei meu notebook à tomada, abri o arquivo da minha
apresentação de slides e, na frente do grande espelho do meu quarto de hotel,
treinei todas as minhas falas. Depois de um incentivo como aquele, eu não
tinha como me sair mal.
*
Helena, você não vai acreditar!
O que aconteceu, Camila? Me fala!
Eu acho que fui bem!
Ah, eu sabia! Como foi?
Fui aplaudida por todos na sala!
Estou orgulhosa! Não tinha motivo pra se preocupar!
Foi a sua mensagem hoje cedo que me deu ânimo para ensaiar.

Por 10 minutos, não houve mais nenhuma mensagem de Camila. Eu


tinha dito alguma coisa errada? De repente, a notificação fez a tela voltar a
brilhar:
Quer ir a um lugar especial hoje?
Por quê? — eu perguntei e, um segundo depois, estava xingando a
mim mesma por não ter apenas dito “sim”.
Porque você foi um sucesso e estou feliz por você, linda!
Eu respondi, com letras maiúsculas, que queria.

✽✽✽

Era uma lanchonete em estilo vintage, com mesas entre bancos


estofados e próximas às vidraças laterais e um balcão com cadeiras altas, nas
quais uma pessoa podia se sentar para uma bebida ou lanche mais rápido.
Uma música pop dançante tocava quando entrei e o lugar estava bem
movimentado. Helena acenou para mim de uma mesa no fundo. Ela bebia o
que parecia um café com bastante creme.
— Quem é a autora de um trabalho acadêmico bem-sucedido? Quem
é? — perguntou assim que me sentei, deixando para lá os cumprimentos.
— Ah, para! Eu fico sem jeito.
— Por quê? Você é inteligente, fez a sua pesquisa e expôs o seu
resultado. Eu me orgulho de você.
Por um momento fiquei em silêncio. Fazia muito tempo que um
elogio não me deixava tão feliz.
— Isso é muito importante pra mim.
E antes que ela pudesse responder, uma garçonete trouxe um
cardápio, perguntando o que iríamos pedir. Escolhi um sanduíche
vegetariano, batatas fritas e refrigerante. Helena preferiu um hambúrguer de
frango e, no fim, estávamos sentadas uma do lado da outra dividindo o
milkshake dela, que veio numa taça tão grande que ela não dava conta de
beber inteiro. A essa altura, só uma coincidência muito grande podia explicar
a caixa de som tocando Taylor Swift, com uma música romantiquinha sobre
um amor que faz com que alguém acabe voltando para a outra pessoa, mesmo
depois de ter ido embora[1].
— Você ainda tem quantos dias de evento? — Helena perguntou de
repente.
— Dois dias e vou embora na sexta — respondi. Apenas mais três
dias perto dela.
— Só mais três dias aqui — o meu coração bateu mais forte.
— Eu queria ficar mais. — respondi, sentindo as minhas mãos
tremerem. Eu queria escondê-las por baixo da mesa, mas notei a mão de
Helena se aproximando da minha.
— Eu também queria isso.
E de repente, estávamos nos beijando. O momento que eu mais
esperei nos últimos dias. Parece acontecer uma tempestade dentro de mim,
com vento, raios e trovões. É melhor do que eu imaginei. A mistura de
ansiedade e medo se transforma numa alegria enorme, porque nada parece
mais certo do que isso.
Helena se afasta só o suficiente para ficarmos olhando nos olhos uma
da outra e eu ficar sorrindo feito boba.
— Eu tive medo de isso não acontecer —, ela disse.
— Eu também tive. Mas era o que eu mais queria.
Não precisamos falar mais nada. Isso não é um primeiro encontro.
Não temos que impressionar. Já nos conhecemos muito bem e parece que era
inevitável sentirmos afeto e atração uma pela outra. Nos beijamos de novo. E
eu queria que aquela noite não acabasse nunca.

✽✽✽

Restam dois dias


— Você não vai perder a chance de assistir junto comigo a um filme
que eu adoro e reconsiderar a sua opinião, não é?
— Mas tinha que ser La La Land? Podíamos ver qualquer outra coisa
que você gostou e eu não...
— Então, podemos ver Um lugar silencioso — Helena sugere, com
um sorriso enorme, porque sabe qual vai ser a minha resposta.
— De jeito nenhum! Esse filme me dá agonia!
— Então, você aceita assistir um musical comigo?
— Aceito! Boba! — respondi, jogando uma almofada na direção dela.
Era o quarto dia. Na noite anterior, tínhamos saído da lanchonete
combinando uma noite para assistir a um filme juntas, porque concordávamos
que duas pessoas que se conheceram pela internet por gostos em comum
sobre filmes não podiam perder a oportunidade de assistir a um filme juntas.
Acontece que, mesmo tendo gostos parecidos, ainda tínhamos opiniões muito
particulares. Helena consegue gostar de ver esse tipo de filme em que uma
multidão começa a dançar na rua do nada e desses filmes com monstros
apocalípticos que podem destruir a humanidade. E ela parece sempre torcer
pelos monstros. Confesso que prefiro dramas humanos, comédias românticas,
super-heróis e ficção científica. Então, escolhi a opção menos difícil.
Helena corre para a cozinha para preparar uma bacia de pipoca de
micro-ondas e, enquanto isso, respondo mensagens de horas atrás no meu
celular. Ela mora sozinha em um apartamento de um quarto, com muitas
plantas e uma prateleira com os DVDs dos filmes que ela mais gosta. Eu não
conheço ninguém além dela que ainda que ainda compre DVDs. As caixas de
La La Land e Um lugar silencioso e outros filmes que ela gosta e eu não,
formam uma pequena pilha em cima do aparelho de DVD, na estante da sala
e eu tenho até medo de conferir os outros títulos.
Helena mora sozinha desde que veio fazer faculdade. Embora essa
seja uma cidade de tamanho médio e de interior, os pais dela vivem sozinhos
numa cidade menor ainda e bem mais no interior e, talvez por isso, ela seja
tão independente. Pelo que sei, no início, eles a sustentavam, até que ela foi
efetivada no seu emprego já no fim da faculdade e passou a ganhar o
suficiente para viver por conta própria. Enquanto isso, eu ainda dependo da
minha mãe.
Quando ela volta com pipoca quentinha e cheirosa, me deixa fazer as
honras e colocar o disco no aparelho, e ficamos sentadas no meio das
almofadas do sofá dela com a bacia entre nós duas. Vendo o filme pela
segunda vez, é até divertido. Eu gostaria muito de frequentar o bar de jazz do
Sebastian. E é engraçadinho que ele e a Mia tentem se convencer de que não
se interessam um pelo outro. Pelo visto, assistir a esse filme estando
apaixonada é o segredo para uma nova perspectiva. Depois de um tempo,
quando a pipoca já acabou e a bacia já foi jogada no tapete e eu Camila já nos
deitamos abraçadinhas, de repente estamos cantando juntas as músicas do
filme. É, ela me convenceu.
Quando o filme acaba, colocamos City of stars[2] para tocar —
Helena tem essa música no celular e eu acho que não consigo me surpreender
com mais nada que tenha a ver com as coisas que ela gosta. A casa está
silenciosa, a televisão desligada e só a luz da rua entra pela janela, que não
está completamente coberta pela cortina. Nós dançamos juntas a nossa
própria dança atrapalhada, retomando o mesmo clima da noite anterior. A
gente se beija devagar e sorri, e eu solto o cabelo de Helena. Ela apoia a
cabeça no meu ombro, sente o cheiro do meu cabelo. Eu sinto um arrepio.
Então, ela me olha, e a gente se beija mais uma vez. E a gente não para.

✽✽✽

Resta um dia
Agora estou na cozinha de Helena, olhando mais para a minha xícara
de café e para o pão com manteiga do que para ela. É o quinto dia. E amanhã
eu vou embora. E o que vivemos vai acabar. Helena sabe que as coisas não
estão nem um pouco bem. Mesmo que tenhamos dormido e acordado
juntinhas e que isso seja tudo o que eu queria que acontecesse. Foi quando
olhei no meu celular que horas eram e, sem querer, vi a data de hoje, que me
dei conta de tudo.
— Você quer conversar? — ela me pergunta.
— Acho que erramos. Nós moramos muito longe uma da outra, eu
vou embora amanhã, nós somos amigas...
— Se esse é o seu medo, Camila, não vamos deixar de ser amigas —
ela responde. — Você tem que ir, e eu pensei nisso a semana inteira. E não
posso exigir nada de você. Mas nós duas juntas é uma coisa muito legal. Eu
nunca diria que foi um erro.
E só porque ela aperta a minha mão por cima da mesa, que eu me
permito ficar até ela estar pronta para o trabalho. Então, eu pego o caminho
para o meu congresso e passo o resto do dia assistido aos últimos debates e
apresentações chatos.
É claro que durante todo esse tempo eu só consigo pensar em Helena.
Em todo o tempo que nos conhecemos e quanto demorou para nos vermos
pela primeira vez. Em todos os filmes que indicamos uma para a outra, nas
postagens e fotos uma da outra que comentamos, nas conversas que tivemos
por todas as redes sociais. E de como tudo parecia tão certo durante os quatro
últimos dias.
No fim, acho que somente eu estou errada. Minha passagem está
marcada para às seis horas da tarde de amanhã. Mil quilômetros vão me
separar de Helena. A única coisa que parece errada aqui é que eu queira me
afastar dela nas últimas vinte e quatro horas que nos restam.
Então, eu pego meu celular e digito:
Qual filme você diria que duas pessoas apaixonadas uma pela outra
não podem deixar de ver juntas?

✽✽✽

Último dia
Às 17h45, o ônibus para na plataforma 25 da rodoviária e, no banco
de madeira que dividimos juntas, Helena aperta a minha mão. Chegou a hora
de nos despedirmos, mas de forma nenhuma é uma despedida triste.
Uma pequena fila de passageiros já começa a se formar diante da
porta do ônibus de viagem com dois pavimentos, e Helena segura a minha
mochila enquanto o assistente do motorista e um funcionário da rodoviária
pregam etiquetas de identificação na minha mala e a depositam no bagageiro.
Então, estou de frente para Helena de novo, com a minha identidade e
passagem na mão e o meu travesseiro debaixo do braço. A gente se abraça.
— Me avisa quando chegar! — ela pede.
— É claro que aviso! — eu respondo. — A gente vai conversar todos
os dias.
— Claro que vai! E enviar mensagens de áudio. E fazer
videochamadas.
— E enviar fotos uma para a outra — eu completo.
— E postar as fotos que tiramos juntas?
— Com emoji de arco-íris na legenda.
— Sabe, eu posso tirar férias em fevereiro — Helena conta. — Você
já conhece a minha cidade, mas eu não conheço a sua...
— Vou esperar ansiosa até lá!
— Já estou com saudades!
— Também estou. Eu te amo!
— Também te amo!
E, então, eu me lembro. Pego a minha mochila das mãos de Helena,
mas ao invés de colocá-la num dos ombros, desprego dela o botton que
Helena me deu de presente e o prendo na minha jaqueta. E porque vejo os
últimos passageiros entrando no ônibus, eu beijo Helena sem me preocupar
com o que qualquer pessoa no pátio de uma rodoviária poderia pensar. E vou
em direção ao ônibus, acenando para ela.
Quando o ônibus faz a curva para sair da plataforma de embarque, eu
a vejo pela janela, e ela une as duas mãos formando um coração. Mesmo que
eu vá embora, ainda vamos voltar a nos ver.
Agradecimentos
Se você leu essa história até aqui, já tenho muito pelo que agradecer.
Camila e Helena são duas personagens que apareceram na minha mente de
forma muito repentina; e, diferente de outras histórias que já escrevi, desde
que pensei nelas pela primeira vez, eu já sabia quem elas eram, como eram, o
que desejavam, o que as unia e como iriam se encontrar. Por isso, tenho
muito carinho por elas.
Agradeço a Nina Spim pela revisão, pela leitura sensível e pelos
comentários que me fizeram sorrir para a tela do computador. Agradeço
também a Alice Gonçalves, pela capa linda que torna essa história ainda mais
especial.
Agradeço, especialmente, a todas as pessoas que escrevem e
recomendam histórias com protagonismo LGBTQIA+. Por muito tempo,
lésbicas, gays, bissexuais, pessoas transgênero, queer, interssexuais e
assexuais, entre outras denominações, não estiveram presentes na literatura;
ou estiveram presentes apenas de forma estereotipada, como alívios cômicos
ou como figuras sem relevância. Mas a literatura, ao refletir sobre a vida,
deve considerar a diversidade. Por isso, agradeço a todas pessoas que criam e
recomendam histórias diversas. Graças a elas, eu pude passar a perceber o
mundo de outra forma.
Sobre a autora
Lethycia Dias nasceu em Brasília em 1997 e desde 2011 vive em Goiânia
– GO. É formada em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade
Federal de Goiás (UFG) e é apaixonada por literatura. Escreve desde a
infância, mas só recentemente vem tentando profissionalizar a própria escrita.
Tem um poema publicado na antologia Asas, Eixos e Versos, uma crônica na
antologia Brasília é uma festa, um conto na edição 9 da Revista Avessa, e um
conto na coletânea Sereias: Encantos & Perigos, da Delirium Editora, além
de outros textos distribuídos entre suas contas no Wattpad e no Medium.
Mesmo que eu vá embora é sua primeira história publicada pelo Kindle
Direct Publishing (KDP). Além de livros, Lethycia ama gatos e ipês.
Onde me encontrar
Twitter | Instagram | Medium | Wattpad | Skoob
Playlist do conto
O conto tem uma playlist no Spotify com 30 músicas que Camila e
Helena ouviram pela caixa de som da lanchonete, ou que poderiam embalar
essa história de amor. Para encontrá-la, digite Mesmo que eu vá embora no
campo de pesquisa ou clique neste link. Confira abaixo as músicas:

Shape of You – Ed Sheeran


Know Your Name – Mary Lambert
Amarillo – Shakira
The Only Exception – Paramore
Girl Crush – Little Big Town
Havana – Camila Cabello fet. Young Thug
Apenas mais uma de amor – Lulu Santos
Do I Wanna Know? – Arctic Monkeys
Preciso Dizer Que Te Amo – Cássia Eller
Pretty Girl – Hayley Kiyoko
No One – Alicie Keys
Me Enamoré – Shakira
This Love – Taylor Swift
Tempo Pra Amar – Mahmundi
Tua – Liniker e os Caramelows
Todo Amor Que Houver Nessa Vida – Cássia Eller
Na Menina dos Meus Olhos – Márcia Castro feat. Mayra Andrade
Segredo – Almério
Tudo e Mais Um Pouco – Ana Carolina
Acaso – Gê de Lima e Hadsui
Wanna Be Missed – Hayley Kiyoko
Todo Dia – Ana Sucha
Sou Desse Jeito – Silva
Só Sei Dançar Com Você – Tulipa Ruiz
we fell in love in october – girl in red
Me Leva pra Casa – Ana Muller
Uma Mulher Feliz – Ana Sucha
Sem Nome, Mas Com Endereço – Liniker e os Caramelows
Aonde Quer Que Eu Vá – Os Paralamas Do Sucesso
City Of Stars – Ryan Goslling e Emma Stone

[1] A música citada é This Love, do álbum 1989.


[2] Da trilha sonora do filme La La Land.

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