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Contra Capa

epois de ter sido pega com o namorado da melhor amiga numa


festa,

Annabel Green começa o ano letivo sendo ignorada pelo resto da


escola. Mas o querealmente aconteceu naquela noite ainda é
segredo, que ela não se arrisca a contar para ninguém.

Os problemas de Annabel são explicitados pela recusa da família


em admitiros próprios problemas: a fissura da mãe para que as
filhas virem modelos famosas e Whitney, a irmã do meio, que sofre
de anorexia.

Uma amizade com Owen, o DJ da rádio comunitária, que


tentaconstantemente ampliar os gostos musicais de Annabel, fará a
tímida jovem a aprender a falar a verdade, doa em quem doer.

Ele tem uma missão quase impossível: fazer com que Annabel "Não
pense nem julgue. Apenas ouça".

"Don't think or judge. Just listen."


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Aba da Frente

Annabel Green aparentemente tem tudo. - amigos legais, uma


família acolhedora,boas notas e uma carreira de modelo de
sucesso. Mas tudo de repente vem abaixo.Ela agora é encarada por
todos na escola, a última coisa que ela quer é falar sobre seu novo
segredo.

A família agora parece frágil também. Ela se pergunta o que causou


o rigoroso silêncio entre suas irmãs mais velhas e por que ninguém
na família comenta sobre odistúrbio alimentar da irmã do meio. E,
para piorar, Annabel possui o mau hábito deevitar confrontos, nem
que para isso ela precise mentir ou omitir alguma coisa.

Entre proteger a família e encarar a experiência devastadora de


revelar seu segredo,Annabel encontra conforto na improvável
amizade com um solitário estudante, DJ eex-presidiário que
aprendeu a controlar a própria raiva e que auxilia Annabel a ouvir o
próprio coração e se arriscar a falar honestamente.
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Às Vezes é preciso saber ouvir a si mesmo.


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Um

Gravei o comercial em abril do ano passado, antes de tudo


acontecer e logo me esquecidele. Há algumas semanas, ele
começou a passar na televisão e, de repente, eu estavaem todo
lugar.

Nas televisões penduradas na parede da academia. Naquela


televisão naagência do correio que serve para fazer você esquecer
que está na fila há muitotempo. E agora aqui, na TV do meu quarto,
enquanto estou sentada na beira da cama,estalando meus dedos,
tentando me levantar e sair.

"Chegou àquela época do ano, de novo..."

Olhei fixamente para minha imagem na tela, a imagem de como eu


era cincomeses atrás. Tentava encontrar alguma prova visível do
que havia acontecidocomigo e estranhei ao me ver através de algo
que não fosse um espelho ou uma foto.Eu nunca me acostumei,
mesmo depois de todo esse tempo.

"Jogos de futebol americano", eu dizia na tela. Usava um uniforme


de líderde torcida azul-bebê, o cabelo bem preso em um rabo de
cavalo e segurava um megafone daqueles que ninguém usa mais,
onde estava pintada a letra K.

"Sala de estudos." Corte para outra cena em que eu estava com um


ar muitosério, vestindo uma saia pregueada e um bolero marrom.
Lembrei que aquela roupapinicava e não combinava nada com o
tempo, que estava finalmente esquentando.
"E, é claro, vida social." Eu me inclinei para frente olhando fixamente
paramim mesma na tela, vestindo um jeans e uma camiseta
brilhante, sentada em umabancada, me preparando para falar
enquanto um grupo de meninas conversava atrás de mim.

O diretor, que tinha rosto de bebê e cara de quem tinha acabado de


terminar a faculdade de cinema, me explicou o conceito da sua
criação.

— A garota que tem tudo — ele dizia movimentando as mãos de


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firme e circular, como se apenas aquilo bastasse para entender algo


tão amplo, paranão dizer vago. Era claro que isso queria dizer ter
um megafone, dois neurônios eum grande grupo de amigos. Foquei
pensando na ironia implícita dessa última parte, mas minha versão
da tela já estava seguindo em frente.

"Tudo acontece neste ano", eu disse. Agora eu usava um vestido


cor-de-rosa,com uma faixa de miss que dizia RAINHA DO BAILE,
quando um rapaz desmoking se aproximou de mim e me ofereceu o
braço. Eu aceitei dando um largosorriso. O garoto estudava na
universidade da cidade e ficou na dele durante toda afilmagem.
Porém, depois, pediu meu telefone quando eu estava indo embora.
Como eu poderia ter esquecido isso?

"Os melhores momentos", dizia eu na tela. "As melhores


lembranças. Você encontrará a roupa perfeita para cada ocasião na
Loja de Departamentos Koft."

A câmera se aproxima cada vez mais e as outras coisas sumiam até


serpossível enxergar apenas o meu rosto. Isso foi antes daquela
noite, antes de tudo oque aconteceu com Sophie, antes do longo e
solitário verão cheio de segredos esilêncio. Eu estava péssima, mas
essa garota na TV? Ah, ela estava bem. Dava paraperceber pelo
jeito que ela olhava para mim e para o mundo, cheia de confiança
ao abrir a boca para falar novamente.

"Faça seu Ano Novo ser melhor ainda", ela disse, e eu respirei
fundoantecipadamente, a próxima frase foi dita, a última frase,
aquela que era verdade. "Está na hora de voltar para a escola".
A cena congelou, o logo da Kopf apareceu abaixo do meu rosto. Em
poucotempo, a imagem da tela mudaria para um comercial de waffle
ou previsão dotempo, um novo assunto a cada quinze segundos,
ininterruptamente, mas nãoesperei. Peguei o controle remoto,
desliguei minha imagem na TV e fui para a porta.

Tive três meses para me preparar para ver Sophie. Porém, na hora,
percebique ainda não estava pronta.

Eu estava no estacionamento antes de o sinal tocar, tentando reunir


forçaspara sair do carro e deixar o ano começar oficialmente.
Enquanto as pessoaspassavam por mim em direção ao pátio,
conversando e rindo, eu repassava todos os"talvez": talvez ela já
tenha superado tudo. Talvez outra coisa tenha acontecidodurante o
verão para substituir nosso pequeno drama. Talvez não tenha sido
tãoruim quanto eu pensava. Sei que eram possibilidades remotas,
mas ainda erampossibilidades.
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Fiquei sentada lá até o último momento e finalmente tirei as chaves


daignição. Ao me virar para a janela para abrir a porta do carro, dei
de cara comSophie.

Ficamos nos olhando por um segundo e imediatamente percebi


algumasmudanças: seu cabelo enrolado e escuro estava mais curto,
seus brincos eram novos.Ela estava mais magra, se é que isso era
possível, e tinha parado de usar delineadorforte nos olhos como
fazia no verão anterior. Pelo jeito estava curtindo um estilomais
natural, com tons de rosa e bronze. Ao ver Sophie me olhando,
fiquei meperguntando se eu tinha mudado também. Enquanto eu
pensava, Sophie abriu suaboca bem desenhada, apertou os olhos e
proferiu o veredicto pelo qual esperei durante todo o verão:

— Vadia.

O vidro que estava entre nós não abafou o som nem a reação das
pessoas quepassavam. Vi uma garota que foi da minha classe no
ano passado me olhar comódio, enquanto outra que eu não
conhecia estava morrendo de rir.

Sophie, no entanto, não esboçou nenhum tipo de expressão ao me


dar ascostas, colocando sua mochila sobre um ombro e andando
em direção ao pátio.Senti meu rosto queimar e percebi que as
pessoas me olhavam. Eu não estavapreparada para isso e
provavelmente nunca estaria; afinal de contas, o começodaquele
ano, entre outras coisas, não podia mais ser adiado. Não tive outra
escolha anão ser sair do carro sob os olhares de todos e começar o
ano séria e sozinha. E foiexatamente o que fiz.
Conheci Sophie quatro anos antes, no começo do verão depois da
sexta série.Eu estava na piscina comunitária do bairro, parada na
fila da lanchonete com duasnotas dobradas para comprar uma
Coca-Cola, quando percebi que alguém parouatrás de mim. Virei
para trás e lá estava uma garota que eu não conhecia. Ela usavaum
biquíni laranja bem pequeno e sandálias de plataforma combinando.
Era morenae seu cabelo, escuro e enrolado bem preso em um rabo
de cavalo. No rosto, óculosescuros e uma expressão de tédio e
impaciência. Como em nossa vizinhança todos seconhecem,
parecia que ela tinha caído do céu. Eu não queria ficar encarando a
menina.Mas parece que foi exatamente isso o que fiz.

— O que foi? — ela perguntou. Eu me vi refletida na lente dos seus


óculos, pequena e fora de perspectiva. — O que você está olhando?

Senti meu rosto ficar vermelho, como acontecia toda vez que
alguémlevantava a voz para mim. Eu era muito sensível a tons de
voz, tanto que até aqueles
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programas de TV sobre tribunais e julgamentos me deixavam


nervosa. Sempre tinhaque mudar de canal quando o juiz levantava a
voz para alguém.

— Nada — respondi e dei as costas para ela.

Logo depois, o menino do Ensino Médio que trabalhava na


lanchoneteavisou, com um olhar cansado, que era a minha vez.
Enquanto ele servia a minhabebida eu podia sentir a garota atrás de
mim. A presença dela era como um pesoenquanto eu esticava as
duas notas em cima do balcão de vidro, me concentrando emalisar
cada nota. Depois de pagar, saí de lá, olhando para o cimento
esburacado, em direção ao local onde minha melhor amiga, Clarice
Reynolds, me esperava.

— A Whitney pediu para eu te dizer que ela foi pra casa — disse
Clarke,assoando o nariz enquanto eu colocava a Coca-Cola com
todo o cuidado ao lado daminha cadeira. — Eu disse a ela que a
gente podia voltar a pé.

— Beleza — respondi. Minha irmã Whitney tinha acabado de tirar a


carteira demotorista, o que queria dizer que ela tinha que me dar
carona para todo lugar. Noentanto, voltar para casa continuava
sendo problema meu, não importava se era dapiscina, que nem era
tão longe, ou do shopping, que ficava em outra cidade.

Whitney era do tipo solitária, mesmo nessas ocasiões. Qualquer


área que arodeava era seu espaço pessoal e qualquer pessoa se
tornava um invasor apenas pelo fato de existir.
Só depois de me sentar é que me permiti olhar novamente para a
garota dobiquíni laranja. Ela tinha saído da lanchonete e estava de
pé no outro lado dapiscina, de toalha no ombro, uma bebida na
mão, observando a disposição dosbancos e cadeiras de praia.

— Aqui, ó — disse Clarke, me estendendo o baralho. — Você dá as


cartas.

Clarke é minha melhor amiga desde que tínhamos seis anos. Havia
muitascrianças na vizinhança, mas por alguma razão a maioria
delas era adolescente, como asminhas irmãs, ou tinham menos de
quatro anos, resultado de um baby-boom de algunsanos antes.
Quando a família de Clarke se mudou de Washington, nossas mães
seconheceram em uma reunião da associação de moradores. Assim
que ficaramsabendo que nós éramos da mesma idade, elas nos
juntaram, e assim ficamos desdeentão.

Clarke nasceu na China e os Reynolds a adotaram quando ela tinha


seis mesesde idade. Nós éramos da mesma altura, mas era só isso
que tínhamos em comum. Eu
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tenho olhos azuis e sou loira, uma típica Greene, enquanto os


cabelos dela são os maispretos e brilhantes que já vi, e seus olhos
são de um castanho quase preto. Enquanto euera tímida e sempre
queria agradar, Clarke era mais séria; o seu jeito de falar, a
suapersonalidade e aparência, tudo era bem pensado e medido. Eu
fazia trabalhos comomodelo desde pequena, assim como as minhas
irmãs mais velhas; Clarke era umamoleca, a melhor jogadora de
futebol da nossa quadra, sem falar de ser um ás nascartas,
especialmente em gin rummy 1 no qual ela passou o verão inteiro
ganhando demim.

— Posso dar um gole na sua Coca? — ela me perguntou. E


espirrou. — Está tão calor aqui!

Concordei, estendendo o braço para pegar o copo. Clarke sofria


com alergiasdurante o ano todo, mas no verão piorava. Ela estava
sempre com o nariz entupido ouescorrendo de abril a outubro, e
nem enormes quantidades de injeções ou remédiofuncionavam. Há
muito tempo tinha me acostumado com sua voz um pouco
fanha,assim como a presença onipresente da caixa de lenços no
seu bolso ou na sua mão.

Havia uma hierarquia organizada para se sentar ao redor da nossa


piscina: ossalva-vidas tinham as mesas de piquenique próximas à
lanchonete, enquanto as mãese crianças pequenas ficavam na
parte rasa e na piscina dos bebês (ou do xixi). Clarkee eu
preferíamos a área que tinha um pouco de sombra atrás dos
escorregadores,enquanto os caras mais populares da escola —
como Chris Pennington, três anos maisvelho do que eu e sem
dúvida o cara mais lindo do bairro e, eu pensava na
época,provavelmente do mundo inteiro — ficavam perto do
trampolim. O melhor lugar eraa fileira de cadeiras que ficava entre a
lanchonete e a piscina olímpica, ocupadonormalmente pelas
meninas mais populares. Era lá onde a minha irmã mais
velha,Kirsten, estava deitada em uma espreguiçadeira, usando um
biquíni cor-de-rosa e seabanando com uma revista Glamour.

Assim que dei as cartas, me surpreendi ao ver que a garota de


laranja andavaem direção a onde Kirsten estava levando uma
cadeira. Molly Clayton, melhor amigade Kirsten, que estava do outro
lado, apontou a garota para ela e depois balançou acabeça como
quem não estava acreditando naquilo; Kirsten olhou para cima, deu
deombros e se deitou novamente, colocando o braço sobre a
cabeça.

— Annabel? — Clarke já tinha pegado suas cartas e estava


impaciente para

Jogo de cartas cujo objetivo é fazer o maior número de


combinações de cartas o maisrapidamente possível. As
combinações consistem de grupos de três ou mais cartas de mesmo
valorou seqüências de três ou mais cartas do mesmo naipe.

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começar a ganhar de mim. — É a sua vez.

— Ah — eu disse, me virando para ela. — É verdade.

Na tarde seguinte, a garota voltou dessa vez usando um maiô


prateado.Quando cheguei, ela já estava instalada na mesma cadeira
que minha irmã ocupava nodia anterior, toalha esticada, garrafa de
água ao lado, revista no colo. Clarke estava naaula de tênis, então
eu estava só quando Kirsten e as amigas dela chegaram, mais
oumenos uma hora depois. Elas chegaram fazendo muito barulho,
como de costume,batendo os saltos das sandálias no cimento.
Quando chegaram ao local de costume eviram a garota sentada lá,
as meninas começaram a andar mais devagar e depois seolharam.
Molly Clayton parecia irritada, mas Kirsten simplesmente se sentou
a umasquatro cadeiras de distância.

Nos dias que se seguiram, observei as tentativas teimosas da


menina novapara se infiltrar no grupo da minha irmã. Tudo tinha
começado com uma simplescadeira, mas, no terceiro dia, a garota
já estava seguindo as meninas até alanchonete. Na tarde seguinte,
ela entrou na água poucos segundos depois delas eficou perto
enquanto o grupo conversava e espirrava água umas nas outras. No
fim desemana, ela estava sempre atrás das meninas, uma
verdadeira sombra viva.

Aquilo com certeza era irritante. Vi Molly fuzilando a garota com uns
olharesde poucos amigos, até Kirsten tinha pedido a ela para se
afastar um pouco, porfavor, quando a menina tinha chegado muito
perto. Mas a garota parecia não seimportar. Ao contrário, se
esforçava mais, como se não importasse o que minha irmã e suas
amigas falassem desde que fosse com ela e ponto final.

— Então — disse a minha mãe uma noite durante o jantar —


fiqueisabendo que uma família nova se mudou para a casa que era
dos Daughtry,em Sycamore.

— Os Daughtry se mudaram? - perguntou meu pai. Minha mãe


balançou a cabeça, concordando.

— Em junho. Foram para Toledo. Você se lembra? Meu paipensou


um pouco.

— É claro — disse finalmente, fazendo que sim com a cabeça. —


Toledo.

—Também fiquei sabendo — continuou minha mãe, passando a


tigela demacarrão para Whitney, que imediatamente a passou para
mim — que eles têm umafilha da sua idade, Annabel. Acho que a vi
um dia desses quando fui à casa da
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Margie.

— Ah, é? — eu disse.

Ela balançou a cabeça positivamente.

— Ela tem o cabelo preto, é um pouco mais alta que você. Talvez
você jáa tenha visto por aí.

Pensei um pouco e respondi:

— Não sei...

— Então é ela! — disse Kirsten, de repente, jogando o garfo na


mesa dequalquer jeito. — É a louca que persegue a gente na
piscina. Eu sabia que ela sópodia ser mais nova que a gente.

— Como? — Agora era meu pai quem prestava atenção. — Tem


uma loucaperseguindo vocês na piscina?

— Eu espero que não — disse minha mãe em um tom preocupado.

— Ela não é louca de verdade — disse Kirsten. — E só uma garota


que ficasempre perto da gente. Dá até arrepio. Por exemplo, ela
senta perto da gente, seguea gente para todo lado e não fala nada.
E está sempre tentando ouvir nossasconversas. Eu já disse pra ela
não encher, mas a menina simplesmente me ignora.Não acredito
que ela tenha só doze anos. Isso piora tudo.

— Que drama! — resmungou Whitney, pegando uma folha de alface


com seu
garfo.

Whitney estava certa, é claro. Kirsten era a nossa rainha do drama.


Suasemoções estavam sempre à flor da pele, e sua boca, a todo
vapor. Kirsten nuncaparava de falar, mesmo quando percebia que
ninguém estava prestando atenção.Whitney, por outro lado, era
quieta, o que significava que as poucas palavras dela sempre
tinham muito mais significado.

— Kirsten — disse minha mãe — seja gentil.

— Mãe, eu já tentei. Se você visse a menina, me entenderia. É


estranha.Minha mãe tomou um pequeno gole de vinho.

— Mudar para um lugar novo é difícil, você sabe. Talvez ela não
saiba comofazer amigos...
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— Isso é óbvio — respondeu Kirsten.

— O que quer dizer que talvez você tenha que fazer um esforço
também —concluiu minha mãe.

— Ela tem doze anos — disse Kirsten, como fosse equivalente a ter
umadoença contagiosa ou algo assim.

— A sua irmã também tem — observou meu pai. Kirstenpegou o


garfo e apontou para mim.

— Exatamente — ela disse.

Whitney bufou ao meu lado. Mas eu já era o novo alvo da atenção


da minha

mãe.

— Bem, Annabel — ela disse — talvez você devesse fazer um


pequenoesforço e pelo menos cumprimentar essa menina.

Eu não contei à minha mãe que já tinha conhecido essa garota,


princi-palmente porque ela teria ficado horrorizada com a grosseria
da menina. Não queisso mudasse as expectativas da minha mãe
com relação ao meu comportamento.Minha mãe era extremamente
gentil e educada, e esperava o mesmo de nós emqualquer
circunstância. Diplomacia e ética deveriam estar sempre presentes
emnossas vidas.

— Tá certo — eu disse. — Vou ver.

— Boa menina — disse ela. E eu esperava que tudo parasse por ali.
No entanto, na tarde seguinte, quando Clarke e eu chegamos à
piscina,Kirsten já estava lá, deitada com Molly de um lado e a garota
nova do outro. Eu tenteiignorar a situação enquanto nos
arrumávamos no nosso canto, mas de vez emquando dava uma
olhada para ver se Kirsten me observava. Logo depois, ela
levantou,me olhou e andou até a lanchonete. A garota nova foi atrás
imediatamente e eu sabia oque tinha que fazer.

— Já volto — eu disse para Clarke, que lia um livro de Stephen King


eassoava o nariz.

— Beleza — ela disse.

Eu me levantei e passei pelo trampolim, cruzando os braços ao ver


ChrisPennington. Ele estava deitado na cadeira de praia com uma
toalha cobrindo o rosto,
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enquanto dois amigos dele lutavam no deck da piscina. Mas agora,


em vez de lançaruns olhares para ele — uma das minhas principais
atividades cerebrais na piscinaaquele verão, além de nadar e perder
no baralho — provavelmente eu seria maltratadade novo, tudo
porque minha mãe insistia em criar a gente como boas samaritanas
do bairro. Que ótimo.

Eu poderia ter contado a Kirsten sobre o meu primeiro contato com


essagarota, mas achei melhor não. Diferentemente de mim, ela não
fugia de confrontos— ao contrário, gostava de enfrentar os outros e
sempre ganhava. Ela era o paviocurto da família e eu já tinha
perdido a conta de quantas vezes ficara em um cantoencolhida e
morrendo de vergonha enquanto ela dizia com todas as letras o que
nãotinha gostado para vendedores de loja, motoristas ou ex-
namorados. Eu a amava, masela me deixava muito nervosa.

Whitney, por outro lado, era de uma fúria silenciosa. Ela nunca dizia
queestava brava, mas dava para saber pela expressão do seu rosto,
do seu olharfulminante, além daqueles suspiros profundos, que
podiam ser tão agressivos quanto as palavras e que faziam
qualquer um preferir que ela falasse de uma vez.

Quando ela e Kirsten brigavam — e isso sempre acontecia, afinal


elas sótinham dois anos de diferença — a primeira impressão que
se tinha era de umadiscussão de uma pessoa só, pois tudo o que se
ouvia era Kirsten e sua lista sem fimde acusações e ofensas. Mas
era só prestar um pouco mais de atenção para percebero silêncio
pesado de Whitney, assim como suas poucas respostas que eram
muitomais mal-educadas e diretas do que o turbilhão de
comentários redundantes daKirsten.
Uma aberta, outra fechada. Não é à toa que a primeira imagem que
me vinhaà cabeça quando eu pensava nas minhas irmãs era a de
uma porta. Kirsten era a portada frente, pela qual ela vivia entrando
e saindo, falando pelos cotovelos, seguida desuas amigas
barulhentas. Whitney era a porta do quarto, que ela preferia
mantersempre fechada entre ela e todo mundo.

Eu? Eu me sentia um meio-termo entre minhas irmãs e suas


personalidadesfortes, a personificação de uma área grande e
nebulosa que as separava. Não eravalente nem dizia tudo o que
pensava, mas também não era silenciosa e calculista.Não fazia a
menor idéia de como alguém me descreveria ou o que pensaria ao
ouvirmeu nome. Eu era só a Annabel.

―Minha mãe, que não gostava nem um pouco de conflitos,‖ odiava


verminhas irmãs brigarem.
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"Por que vocês não conseguem ser gentis?", ela pedia. E minhas
irmãssomente reviravam os olhos, mas eu levei a sério a
mensagem: que ser gentil era oideal, a única atitude que fazia com
que as pessoas não falassem tão alto e nemfossem tão silenciosas
a ponto de assustarem as outras. Bastava ser bom e gentilpara não
precisar se preocupar com discussões. Mas ser gentil não é tão fácil
quantoparece, principalmente quando o resto do mundo pode ser
muito mau.

Quando cheguei à lanchonete, Kirsten tinha desaparecido (é claro),


mas agarota ainda estava lá, esperando que o cara atrás do balcão
lhe desse uma barra dechocolate. "Vamos lá", pensei ao andar em
sua direção. "Isso não vai dar em nadamesmo."

— Oi — eu disse. Ela apenas me olhou com uma expressão


indecifrável.— Bom... Meu nome é Annabel. Você acabou de se
mudar para cá, não é?

A garota não disse nada por um tempo que parecia não ter mais fim.
ViKirsten saindo do banheiro feminino e parar ao ver a gente
conversando.

— Eu — continuei ainda mais sem graça. — Eu, hã, acho que


estamosno mesmo ano na escola.

A garota baixou os óculos de sol até a ponta do nariz.

— E? — ela perguntou com a mesma voz aguda e irônica de


quando faloucomigo pela primeira vez.
— Eu só pensei — disse — você sabe, como a gente tem a mesma
idade, quetalvez pudéssemos fazer alguma coisa juntas. Sei lá.

Outra pausa. Até a garota dizer como se tentasse entender tudo


muitodireitinho:

— Você quer que a gente saia junto. Eu e você. Certo?

Ela fez isso parecer tão ridículo que eu imediatamente comecei a


mudar de

idéia.

— Quer dizer, você não precisa se não quiser — eu lhe disse. — Eu


só...

— Não — ela me cortou. Depois Jogou a cabeça para trás e ainda


deurisada. — De jeito nenhum.

Acontece que tudo teria ficado por isso mesmo se eu fosse a única
pessoa ali.Eu teria dado meia-volta, morrendo de vergonha, e ido
encontrar a Clarke, ponto
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final. Mas eu não estava sozinha.

— Espera aí — disse Kirsten em voz alta. — O que você acabou de


dizer?A garota se virou. Quando ela viu a minha irmã, arregalou os
olhos.

— O que foi? — ela perguntou, e eu não pude deixar de perceber


que essafrase, por coincidência a primeira frase que ela tinha me
dito, soava diferente agora.

— Eu perguntei — repetiu Kirsten com sua voz cortante — o que


vocêacabou de falar para ela?

"Droga!", pensei.

— Nada — respondeu a garota. — Eu só...

— Ela é minha irmã — disse Kirsten, apontando para mim — e você


acaboude ser uma verdadeira vadia com ela.

Eu já estava completamente sem graça e vermelha de vergonha.


Kirsten, poroutro lado, já colocou a mão na cintura, o que queria
dizer que ela só estavacomeçando.

— Eu não fui uma vadia — disse a garota, tirando os óculos de sol.


— Eu

só...

— Você foi e sabe disso — disse Kirsten, cortando a menina. —


Então, podeparar de negar. E também pare de ficar me seguindo
por aí, entendeu? Você me dáarrepios. Vem, Annabel.
Eu congelei só de olhar para a cara da garota. Sem os óculos de sol
e comaquela expressão de chocada, ela de repente pareceu mesmo
ter doze anos, e ficouencarando a gente quando a Kirsten me pegou
pelo pulso e me arrastou de volta paraonde ela e as amigas
estavam sentadas.

— Inacreditável — ela não parava de repetir, e, quando olhei para o


outro ladoda piscina, vi Clarke me olhando com uma cara de ponto
de interrogação, quandoKirsten me fez sentar na cadeira dela. Molly
se levantou, apertando os olhos porcausa do sol e amarrando o seu
biquíni.

— O que aconteceu? — ela perguntou, e, enquanto Kirsten


começou acontar o acontecido, olhei para a lanchonete, mas a
garota tinha ido embora. Então a viatravés da cerca atrás de mim,
atravessando o estacionamento, descalça ecabisbaixa/ela tinha
deixado todas as suas coisas na cadeira ao meu lado: uma
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toalha, as sandálias, uma sacola com uma revista, uma carteira e


uma escova decabelo cor-de-rosa. Fiquei esperando ela se dar
conta disso e voltar, o que nãoaconteceu.

As coisas dela ficaram lá a tarde toda. Depois, voltei a me sentar


com Clarkee contei tudo para ela. Mais tarde, jogamos várias
partidas de baralho e nadamos aténossos dedos ficarem enrugados.
Depois, Kirsten e Molly foram embora e outraspessoas sentaram
nas suas cadeiras, até que o salva-vidas finalmente
apitouanunciando que era hora de fechar. Clarke e eu pegamos
nossas coisas e andamospela borda da piscina, queimadas de sol,
com fome e prontas para ir para casa.

Eu sabia que qualquer coisa que tivesse a ver com aquela garota
não eraproblema meu. Afinal, ela tinha sido mal-educada comigo
duas vezes e, portanto,não merecia minha pena, nem minha ajuda.
Mas ao passarmos pela cadeira, Clarkeparou.

— Não podemos deixar as coisas dela aí — ela disse, inclinando-se


parapegar as sandálias e as outras coisas e colocá-las na sacola. —
E ela mora no nosso caminho para casa.

Eu poderia ter discordado, mas pensei de novo na menina


atravessando oestacionamento descalça e sozinha. Então, peguei a
toalha da cadeira e a coloqueijunto da minha.

— É — eu disse. — Tá bom.

Mesmo assim, ao chegarmos à antiga casa dos Daughtry, fiquei


muitoaliviada ao ver que todas as janelas estavam fechadas e que
não tinha nenhum carrona entrada. Isso queria dizer que
poderíamos apenas deixar as coisas da garota ali eacabar com
aquilo. Mas quando Clarke se inclinou para colocar a sacola na
porta da frente, a porta se abriu, e lá estava ela.

A garota usava um short desfiado e uma camiseta vermelha, o


cabelo presoem um rabo de cavalo. Sem óculos de sol. Sem
sandálias de plataforma. Ao ver agente, ela ficou vermelha de
vergonha.

— Oi — disse Clarke, depois de um silêncio bastante


constrangedor. Então, ela espirrou antes de acrescentar: — Nós
trouxemos as suas coisas.

A garota ficou olhando por um segundo, como se não entendesse o


que eladizia. O que era bem possível, com o nariz sempre entupido
da Clarke. Eu meinclinei para pegar a sacola e a estendi para a
menina.
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— Você esqueceu suas coisas — eu disse.

Ela olhou para a sacola, depois para mim com uma cara
desconfiada.

— Ah — ela disse, pegando tudo. — Valeu.

Atrás de nós vários moleques passaram de bicicleta falando muito


alto.Depois, o silêncio voltou.

— Querida? — eu escutei uma voz vindo do final do corredor escuro


atrásdela. — Tem alguém aí?

— Está tudo bem — ela disse, virando a cabeça para o lado.


Depois, deu umpasso à frente, fechando a porta atrás de si, e saiu
para a varanda. Ela tentoudisfarçar, mas pude ver seus olhos
vermelhos e inchados — ela tinha chorado. E, derepente, como
muitas outras vezes, ouvi na minha cabeça a voz da minha mãe:
Édifícil se mudar para um lugar novo. Talvez ela não saiba fazer
amizade.

— Olha — eu disse — sobre o que aconteceu. Minha irmã...

— Tá tudo bem — ela disse, me interrompendo. — Eu estou bem —


mas, aodizer isso, sua voz engasgou um pouco e ela virou de
costas para nós, colocando amão sobre a boca. Eu fiquei lá sem ter
a menor idéia do que fazer, mas, ao olharpara Clarke, vi que ela já
estava procurando no bolso do short seu inseparável pacotede
lenços. Então, tirou um deles e ofereceu para a garota. Um segundo
depois, elapegou o lenço em silêncio e secou o rosto.
— Meu nome é Clarke — disse ela. — E essa é Annabel.

Nos anos que seguiram, era desse momento que eu sempre me


lembrava. Noverão depois do sexto ano, eu e Clarke paradas
olhando para as costas daquela garota.Talvez tudo tivesse sido
diferente para mim, para todas nós, se alguma outra coisativesse
acontecido exatamente naquele momento que, na época, parecia
ser igual atodos os outros, fugaz e insignificante. A garota deu meia-
volta, sem chorar — e incrivelmente recuperada — e encarou a nós
duas.

— Oi — ela disse. — Meu nome é Sophie.


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Dois

— Sophie!

Finalmente era hora do almoço, o que significava que faltava meio


dia para oprimeiro dia de aula terminar. Ao meu redor, o corredor
estava lotado e barulhento,mas, mesmo com muitas portas de
armários batendo e o zumbido de vários avisos noalto-falante, ainda
dava para ouvir claramente a voz de Emily Shuster.

Olhei pelo corredor até a escadaria principal e percebi que ela vinha
na minhadireção - vi o seu cabelo vermelho balançando na multidão.
Quando ela finalmenteapareceu, a meio metro de onde eu estava,
nossos olhares se encontraram por uminstante. Depois continuou
andando pelo corredor até onde Sophie esperava por ela.

Como Emily tinha sido minha melhor amiga, pensei que talvez,
apenastalvez, ela quisesse continuar nossa amizade. Mas, pelo
jeito, não. Elas já tinham traçado os limites — e eu tinha ficado de
fora.

Eu tinha outros amigos, é claro. Colegas de classe, pessoas que


conheci naagência de modelos Lakerview por causa dos trabalhos
que fiz. No entanto, estava nacara que meu auto-isolamento durante
o verão tinha surtido mais efeito do que eupensava. Depois de tudo
o que tinha acontecido, eu me excluí completamente,imaginando
que seria mais seguro do que correr o risco de ser julgada pelas
pessoas.Não atendi ao telefone e evitei cumprimentar as pessoas
no shopping ou no cinema.Como não queria falar sobre o que tinha
acontecido, achei melhor não falar nada.No entanto, o resultado era
que agora, toda manhã, quando eu parava paracumprimentar
garotas que conhecia ou me juntava a um grupinho conversando,
sentiaum momento de frieza e distância que durava até eu dar uma
desculpa e me afastar.Em maio, tudo o que eu queria era ficar
sozinha. Agora meu desejo tinha sido realizado.

Minha ligação com Sophie não ajudava, é claro. Ser amiga dela
tinha metransformado em cúmplice de todos os seus crimes sociais
— que eram muitos — ede tudo que ela tinha aprontado. Portanto, a
maioria dos alunos não estava exatamente
20

morrendo de vontade de me dar um abraço. Para as garotas que


Sophie xingava ouignorava, enquanto eu assistia a tudo sem fazer
nada, provar desse veneno foi maisdo que merecido. Se Sophie não
podia ser deixada de lado, eu era a segunda opção.

Fui até o saguão principal e parei em frente à longa fileira de portas


de vidroque davam vista para o pátio. Do lado de fora, as várias
panelinhas — atletas, opessoal da arte, os do movimento estudantil,
os maloqueiros — estavam espalhadaspelo pátio da escola. Todos
tinham um lugar, e por um tempo eu sabia bem o meu: ogrande
banco de madeira à direita da entrada principal, onde Sophie e
Emily estavamsentadas. E agora aqui estava eu, me perguntando
se não seria melhor ficar aquidentro.

— Chegou àquela época do ano de novo — alguém atrás de mim


falou altocom uma voz esganiçada. Houve uma explosão de
gargalhadas e, quando me virei, vium grupo de jogadores de futebol
americano parados na frente da secretaria. O carinhaalto de dread
imitava o jeito com que ofereci meu braço ao garoto do
comercial,enquanto os outros riam. Eu sabia que eles estavam só
fazendo palhaçada. Talvez emalgum outro momento eu não tivesse
me importado, mas senti meu rosto ficar vermelho e logo fui lá para
fora.

À minha direita havia um muro enorme, então andei em direção a


ele,procurando um lugar, qualquer lugar, para sentar. Havia
somente duas pessoassentadas no muro e, entre elas, uma
distância que era suficiente para deixar claro quenão estavam
juntas. Uma pessoa era Clarke Reynolds. A outra era Owen
Armstrong.Como eu não tinha muita escolha de lugar nem de
companhia, me sentei entre eles.

Senti os tijolos quentes nas minhas coxas enquanto tirava do


saquinho oalmoço que minha mãe tinha preparado para mim
naquela manhã: um sanduíche depeito de peru, água e uma
nectarina. Abri a garrafa de água e dei um grande goleantes de ter
coragem de olhar em volta. Assim que avistei o banco, percebi
queSophie estava me observando. Quando nossos olhares se
encontraram, ela me olhoucom ar sério, balançando a cabeça, e
depois virou para o outro lado.

"Patética", eu a ouvi dizer em minha cabeça e logo afastei esse


pensamento.E não era uma questão de eu querer me sentar com
ela. Bem, mas também nuncaesperei me ver em companhia de
Clarke, de um lado, e do garoto mais bravo daescola, do outro.

Pelo menos eu conhecia Clarke, ou já tinha conhecido. Mas tudo o


que eu sabiasobre Owen Armstrong me foi contado por outras
pessoas: que ele era alto, musculoso,com ombros largos e bíceps
grandes. E ele sempre usava botas de solado grosso de
21

borracha que o deixavam ainda mais alto e seus passos ainda mais
pesados. Seucabelo era escuro e curto, e nunca o vi sem seu iPod e
fones de ouvido, que ele usavadentro e fora da classe, com ou sem
aula. E embora eu soubesse que ele devia teramigos, nunca o vi
falar com ninguém.

E teve também a briga. Aconteceu em janeiro passado, no


estacionamento,antes do primeiro sinal. Eu tinha acabado de sair do
meu carro quando Owen, demochila no ombro e fones de ouvido,
como sempre, andava em direção ao prédioprincipal. No caminho,
passou por Ronnie Waterman, que estava encostado em seucarro
conversando com os amigos. Toda escola tem um cara igual ao
Ronnie — umbabaca, famoso por fazer pessoas tropeçarem no
corredor, o tipo de cara que grita"Que bunda!" quando você passa
perto dele. Seu irmão mais velho, Luke, era ooposto dele. Capitão
do time de futebol americano e presidente do conselhoestudantil, ele
era um cara muito legal e querido, e era só por causa disso que
aspessoas aguentavam seu insuportável irmão mais novo. Mas
Luke tinha se formado noano anterior e agora Ronnie estava
sozinho na escola.

Owen estava andando numa boa quando Ronnie gritou algo para
ele. Owennão respondeu e Ronnie pegou o carro e parou na frente
dele, bloqueando suapassagem. Eu estava longe, mas percebi que
era uma péssima idéia; Ronnie não erapequeno, mas ficava
minúsculo perto de Owen Armstrong, que era bem mais alto e com
as costas largas.

Mas parece que Ronnie ainda não tinha percebido. Ele disse algo
paraOwen, que apenas o olhou e desviou. Quando ele começou a
andar de novo, Ronniedeu um soco no queixo dele!

Owen cambaleou, mas só um pouco. Depois, jogou sua mochila no


chão edeu um soco bem no meio do rosto do Ronnie. De onde eu
estava, deu para ouvir obarulho de punho batendo contra osso.

Ronnie caiu em segundos — o corpo primeiro, joelhos dobrando,


depois osombros, seguidos da cabeça que balançou um pouco
antes de bater no chão. EntãoOwen abaixou a mão, passou por
cima dele com toda a calma do mundo, pegou suamochila e
continuou andando. As pessoas que tinham se juntado para assistir
à brigacomeçaram a se dispersar rapidamente para dar passagem
para ele. Os amigos deRonnie já estavam em volta dele e alguém
chamava o guarda do estacionamento.Mas do que mais me lembro
é ver Owen se distanciando — no mesmo passo emesmo ritmo de
antes, como se nunca tivesse parado. Como se nada
tivesseacontecido.
22

Na época, Owen estava na escola fazia somente um mês e, como


resultadodo incidente, ficou suspenso por outro mês. Quando voltou
para as aulas, todosestavam falando sobre ele. Diziam que ele tinha
cumprido pena em umreformatório, sido expulso das escolas que
freqüentara antes e que fazia parte deuma gangue. Era tanto boato
que, poucos meses depois, ouvi dizer que ele tinha sidopreso por
arranjar briga em uma balada no fim de semana, mas achei que
fossementira. Porém, ele simplesmente sumiu e nunca mais tinha
aparecido na escola. Até hoje.

Apesar de tudo, bem de perto, Owen não parecia um monstro. Ele


só estavasentado, de óculos escuros, camiseta vermelha e
batucando no joelho enquantoouvia música. Mesmo assim, imaginei
que seria melhor ele não perceber que eu oobservava. Então,
depois de desembrulhar meu sanduíche e dar uma mordida, respirei
fundo e olhei para o meu lado direito, para Clarke.

Ela estava sentada na ponta do muro com um caderno aberto no


colo,comendo uma maçã e escrevendo algo com a outra mão. Seu
cabelo estava preso emum rabo de cavalo e ela usava uma
camiseta branca, calça camuflada e chinelo. Naponta do nariz, os
óculos que ela tinha começado a usar um ano antes, pequenos ede
armação estilo tartaruga. Um pouco depois, ela olhou para cima e
então para mim.

Com certeza ela ficou sabendo do que tinha acontecido em maio


passado.Todos ficaram. Os segundos se passavam e ela não virava
o rosto. Então, fiquei meperguntando se ela finalmente tinha me
perdoado e achando que talvez, já que umproblema tinha aparecido,
eu poderia resolver um mais antigo. Seria bom, pois, jáque nós duas
havíamos sido deixadas de lado por Sophie, voltaríamos a ter algo
emcomum.

E ela ainda estava me olhando. Eu abaixei meu sanduíche e respirei


fundo.Tudo o que eu precisava fazer agora era lhe dizer algo, algo
incrível, algo que talvez...

Mas, de repente, ela virou o rosto. Colocou o caderno de qualquer


jeito namochila e fechou o zíper. Sua linguagem corporal era dura,
seu cotovelo apontava emminha direção. Então, ela pulou do muro,
colocou a mochila nos ombros e foiembora.

Eu olhei para o meu sanduíche semi comido e senti um nó na


garganta. O queera ridículo, porque eu sabia que Clarke sempre
tinha me odiado. Pelo menos isso não era novidade.

Durante o resto do almoço, fiquei sentada lá fazendo questão de


não olhar
23

para ninguém. Quando olhei no relógio e vi que faltavam apenas


cinco minutos,imaginei que o pior tinha passado. Mas estava errada.

Eu estava colocando minha garrafa de água na mochila, quando


ouvi um carrofazendo a volta no retorno que ficava perto do final do
muro. Olhei e vi um jipevermelho fazendo a curva. A porta do
passageiro se abriu e um cara de cabelo escurodesceu, colocando
um cigarro atrás da orelha enquanto se inclinava para falar com
apessoa que estava ao volante. Quando ele bateu a porta e
começou a se afastar docarro, vi quem era o motorista. Will Cash.

Senti um frio no estômago, como se estivesse em queda livre. Tudo


escureceu,os sons ao meu redor começaram a sumir, enquanto as
palmas das minhas mãos suavam muito e meu coração batia mais
alto, tum-tum-tum.

Eu não consegui parar de olhar para ele sentado lá, com a mão no
volante,esperando pelo carro à sua frente — uma station wagon de
onde uma garota tirava umvioloncelo ou algum outro instrumento
grande — para sair dali. Depois de um segundoele balançou a
cabeça, irritado.

Shhh, Annabel. Sou só eu.

Um milhão de jipes vermelhos passou diante dos meus olhos nos


últimos mesese, apesar da minha vontade, eu olhava para dentro de
cada um para ver aquele rosto— o rosto dele. A diferença é que
agora, ali, era ele de verdade. E, enquanto eudizia a mim mesma
que em plena luz do dia eu poderia ser forte e não ter medo,
mesenti tão impotente quanto naquela noite, como se, mesmo em
um lugar público edurante o dia, eu continuasse correndo perigo.

A garota finalmente tirou sua caixa da station wagon e se despediu


domotorista ao fechar a porta. No momento em que o carro partiu,
fiquei vendo osolhos de Will em movimento, olhando para as
pessoas no pátio sem prestar atençãoem ninguém. Porém ele me
viu.

Fiquei encarando Will, com o coração acelerado. Durou apenas um


segundo,e não percebi nenhum sinal de reconhecimento, nenhuma
expressão em seu rosto,como se ele fosse um estranho, uma
pessoa qualquer. Depois, ele saiu com o carro, quese tornou
apenas um borrão vermelho, e foi isso.

De repente, voltei a perceber o barulho e a agitação ao meu redor: o


pessoalapressado para chegar à próxima aula e chamando os
amigos. Ainda assim, meu olharse manteve no jipe, observando-o
enquanto subia a rua que levava à avenida principal,se afastando de
mim pouco a pouco. Até que, em meio a todo aquele barulho, vozes,
24

movimento e mudança, virei a cabeça, tentei cobrir a boca com as


mãos, mas nãoconsegui: vomitei na grama atrás de mim.

Quando me virei novamente, alguns momentos depois, o pátio


estava quasevazio. Os atletas tinham saído do outro muro, a grama
sob as árvores estava vazia,Emily e Sophie tinham saído do banco.
Só depois de limpar minha boca e olhar parao outro lado, vi que
Owen Armstrong ainda estava lá, me olhando. Seus olhos
eramescuros e intensos, e fiquei tão assustada que desviei
rapidamente o olhar. Quando me virei de novo, ele tinha ido embora.

Sophie me odiava. Clarke me odiava. Todos me odiavam. Bom,


acho que nem

todos.

— O pessoal da Mooshka adorou as suas fotos — disse minha mãe.


Sua vozcontente contrastava com os sentimentos que me afligiam
enquanto eu me sentava nocarro, em meio ao maior trânsito.
Estávamos presas em uma fila enorme para sair doestacionamento,
depois da sétima aula. — Lindy disse que eles ligaram e
estavammuito animados.

— Sério? — eu disse, colocando o telefone na outra orelha. — Que


ótimo!

Tentei parecer feliz, mas a verdade era que eu tinha esquecido com-
pletamente que, alguns dias antes, minha mãe havia dito que Lindy,
a minha agente,ia mandar minhas fotos para uma marca de biquínis
chamada Mooshka Surfwear,que estava contratando para um novo
anúncio. Posso dizer que meu trabalho comomodelo não era a
minha maior preocupação nos últimos tempos.

— Mas tem uma coisa — ela continuou. — Lindy disse que eles
querem teconhecer pessoalmente.

— Ah — eu disse, enquanto a fila andava alguns milímetros. —


Certo.Quando?

— Bem — ela respondeu. — Na verdade... Hoje.

— Hoje? — eu disse, enquanto percebi que Amanda Cheeker me


ignoroucompletamente, sem nem olhar na minha cara ao sair com o
seu carro, que mais parecia uma BMW.

— Sim. Parece que um dos gerentes de publicidade está na cidade,


mas ficasó até esta noite.

— Mãe... — O carro andou mais alguns milímetros. Coloquei a


cabeça para
25

fora do veículo, tentando ver quem estava provocando o


engarrafamento. — Eu nãoposso. Estou tendo um dia péssimo e...

— Eu sei, querida — ela falou, como se realmente soubesse de


algo, o quenão era o caso. Depois de criar três filhas, minha mãe
era muito bem versada napolítica das meninas, o que facilitou a
explicação que tive que lhe dar sobre odesaparecimento repentino
de Sophie com o clássico "Ela anda meio estranha" e "Eunão faço a
menor idéia do que pode ter acontecido". Ela só sabe que Sophie e
eu nosdistanciamos. Nem consigo imaginar o que ela pensaria se
eu lhe contasse a verdadeirahistória. Na verdade, eu consigo
imaginar sim. E é exatamente por isso que eu não tinhaa menor
intenção de contar. — Mas a Lindy disse que eles estão
interessados mesmo em você.

Bati o olho no retrovisor e fiquei examinando meu rosto


avermelhado, ocabelo escorrido e manchinhas de rímel em volta
dos olhos, resultado de chorarescondida no banheiro depois da
sexta aula. A minha aparência realmente refletiacomo eu estava por
dentro.

—Você não entende — eu disse ao andar um pouco mais com o


carro. — Eunão dormi bem essa noite, estou com o rosto cansado,
toda suada...

— Oh, Annabel — ela disse. Senti um nó na garganta, resposta


imediata aoseu tom de voz tão doce e compreensivo, e muito bem-
vindo depois desse dia longo eterrível. — Eu sei, querida. Mas é só
uma coisinha e depois você estará livre.
— Mãe... — O sol batia nos meus olhos e só consegui pensar em
como euestava exausta. — Eu só...

— Escute — ela disse. — Que tal fazermos o seguinte: você vem


para casa,toma uma ducha, eu preparo um sanduíche e faço sua
maquiagem. Depois te levo, agente resolve e você não precisa mais
pensar nisso de novo. Certo?

Era isso o que minha mãe fazia. Sempre tinha um "Que tal fazermos
oseguinte", que significava algum acordo proposto por ela, mesmo
não sendo nadadiferente da idéia inicial ao menos soava mais
agradável. Antes, recusar era a minha prerrogativa. Depois disso,
continuar recusando me faria parecer cabeça-dura.

— Tudo bem — eu disse enquanto o trânsito finalmente começava


amelhorar. Mais à frente, pude ver o segurança indicando para as
pessoaspassarem por uma Toyota azul com o pára-choque traseiro
amassado. — Aque horas é essa reunião?
26

— Às quatro.

Olhei para o relógio.

— Mãe, já são três e meia e eu nem saí do estacionamento. Onde é


oescritório?

— É no... — ela disse. Eu ouvi barulho de papel. — Mayor's Village.

Levava uns bons vinte minutos para chegar lá. Já seria muita sorte
não meatrasar, o que só aconteceria se eu pegasse muitos faróis
verdes.

— Ótimo — eu disse. — Não tem jeito mesmo.

Eu sabia que estava sendo teimosa, além de petulante. E também


sabia queiria à reunião e daria o meu melhor sorriso, pois tinha
plena consciência que,tratando-se de minha mãe, ser teimosa e
petulante era o pior que eu podia ser. Afinalde contas, eu era a
boazinha,

— Bem — ela disse. — Se você quiser, eu posso ligar para Lindy e


dizer quevocê não pode. Não tem problema.

— Não — eu disse ao finalmente chegar à saída do


estacionamento, ligandoa seta. — Tudo bem. Eu vou.

Trabalho como modelo desde criança. Na verdade, até antes disso.


Minhaprimeira sessão de fotos foi aos nove meses de idade, usando
um body para umjornalzinho de ofertas da SmartMart, trabalho que
consegui quando minha mãe teveque me levar junto em um teste da
minha irmã Whitney porque a babá faltou. Amulher responsável pela
seleção perguntou se eu estava disponível, minha mãe disseque
sim, e foi assim que tudo começou.

Mas essa coisa de trabalhar como modelo começou com a Kirsten.


Ela tinhaoito anos quando, após uma apresentação de balé, um
caça-talentos foi conversarcom meus pais no estacionamento e lhes
deu um cartão. Meu pai deu risada achandoque fosse golpe, mas
minha mãe ficou tão curiosa que levou Kirsten ao escritório docara.
O agente imediatamente arrumou um teste para um comercial de
umaconcessionária de carros, no qual ela não passou, e para um
anúncio sobre aprogramação de Páscoa do Shopping Lakerview,
que ela acabou fazendo. Minhacarreira de modelo começou com
body de bebê, mas Kirsten tinha começado comcoelhinhos, ou
melhor, um grande coelho da Páscoa se inclinando para colocar
umovo brilhante em sua cesta enquanto ela, de vestido branco,
sorria para a câmera.
27

Como Kirsten começou a ter muitos trabalhos, Whitney quis tentar


também elogo as duas estavam fazendo testes, inclusive para os
mesmos trabalhos, o quecontribuiu mais para o atrito entre elas.
Elas não tinham nada a ver uma com a outra,tanto no
temperamento quando na aparência física. Whitney era linda, com
umaestrutura óssea perfeita e um olhar cativante, enquanto Kirsten
de alguma formaconseguia transmitir sua personalidade alegre e
esperta com apenas um olhar.Whitney era melhor em anúncios
impressos, mas Kirsten brilhava nas telas.

Por causa disso, quando comecei a trabalhar como modelo, minha


família jáera muito conhecida no circuito local, que consistia
principalmente em anúnciosimpressos para lojas de departamento e
de desconto, além de comerciais regionais.Enquanto meu pai
preferiu ficar de fora do nosso trabalho — como ele sempre
faziacom qualquer "assunto de menina", de Tampax a corações
partidos — minha mãeadorava. Ela amava nos levar para fazer os
trabalhos, tratar de negócios com Lindyao telefone e reunir fotos
para atualizar nossos books. Mas quando lhe perguntavamsobre o
assunto, ela sempre ressaltava que essa era uma escolha nossa e
não dela."Eu ficaria muito feliz em ver as meninas brincando de
fazer tortas de lama no quintalde casa." Eu a ouvi dizer isso ao
telefone milhões de vezes. "Mas isso é o que elasquerem fazer".

No entanto, a verdade era que minha mãe também adorava nosso


trabalho demodelo, mesmo não querendo admitir. Porém, acredito
que era mais do que isso, pois,de certa forma, isso tinha salvado a
vida dela.
Não em um primeiro momento, é claro. No começo, nosso trabalho
comomodelo era um hobby divertido para ela, algo que fazia quando
não precisavatrabalhar no escritório do meu pai. A gente dizia
brincando que lá era o local maisfértil do planeta, pois as secretárias
estavam sempre ficando grávidas, deixando paraminha mãe a tarefa
de atender telefones enquanto meu pai não encontrava
umasubstituta. Mas no ano em que fiz nove anos, minha avó morreu
e algo mudou emminha mãe.

As lembranças que tenho da minha avó são distantes, silenciosas e


baseadasmais em fotografias do que em acontecimentos de
verdade. Minha mãe era filhaúnica e muito apegada à mãe e,
apesar de morarem em lados opostos do país e severem poucas
vezes por ano, elas conversavam ao telefone quase todas as
manhãsenquanto minha mãe tomava sua xícara de café. Como um
relógio, se você entrassena cozinha por volta das dez e meia a veria
sentada na cadeira olhando pela janela,mexendo o café com a
colher, segurando o telefone apoiado no ombro.

Para mim, aquela conversa sempre pareceu a mais chata do


mundo, pois os
28

assuntos eram a vida de pessoas que eu nunca conheci, a comida


que minha mãetinha preparado na noite anterior ou até a minha
própria vida, o que me pareciamuito bobo também. Para minha mãe,
no entanto, era diferente. Era fundamental.Mas a gente só se deu
conta da importância dessas conversas quando minha avófaleceu.

Minha mãe nunca foi um pilar de força. Ela era uma mulher quieta,
de falamansa e com o rosto cheio de bondade — o tipo de pessoa
pela qual você procurariase estivesse em um lugar público e algo
muito ruim acontecesse, pois lhe dariaconforto instantâneo. Sempre
pensei que minha mãe nunca mudaria o seu jeito e foipor isso que a
mudança que ela sofreu nas semanas depois do funeral da minha
avóera tão estranha. Ela ficou... Mais calada. De repente seu rosto
ganhou um arassustado e cansado e era tão óbvio que até eu, aos
nove anos, percebi. Primeiro, meupai nos garantiu que isso fazia
parte do luto, que minha mãe estava cansada e queficaria bem.
Porém, ela começou a se levantar cada vez mais tarde e depois
haviadias em que ela nem saía da cama. Quando ela estava
acordada, eu às vezes ia paracozinha de manhã e a via sentada na
mesma cadeira, com uma xícara vazia na mão, olhando pela janela

— Mãe — eu dizia e ela não respondia. Então, eu a chamava de


novo. Às vezes,só depois de chamar três vezes é que ela começava
a virar lentamente a cabeça. Masentão eu ficava com medo, como
se não quisesse ver seu rosto. E tinha medo que elamudasse de
novo e se tornasse uma pessoa que eu não conhecia, como
naquela época.Minhas irmãs se lembram melhor do que eu, pois
eram mais velhas e tinham maisinformações. E, como sempre, cada
uma tinha seu jeito de lidar com aquilo. Kirstencomeçou a cuidar da
casa quando minha mãe não saía da cama: limpava e fazia
oalmoço, como se tudo estivesse normal. Quanto a Whitney, foram
muitas as vezes emque a vi à espreita na porta semi aberta do
quarto da minha mãe e, ao perceber que euestava olhando, saía
sem me olhar nos olhos. Sendo a filha caçula, e não sabendocomo
reagir, eu tentava evitar criar confusão e fazer perguntas demais.

Cada vez mais, nossas vidas passaram a ser guiadas pelo estado
em que minhamãe estava. Era o barômetro pelo qual medíamos
tudo. Em minha cabeça, a situaçãopodia ser percebida logo pela
manhã: quando eu via que ela tinha se levantado emum horário
razoável e preparava o café da manhã, estava tudo bem. Porém,
quandono lugar dela encontrava meu pai se esforçando para servir
cereal e fazer torradasou, ainda pior, quando nenhum deles estava
por ali, eu sabia que o dia não seria bom.Talvez fosse um sistema
rudimentar, mas funcionava, mais ou menos. Além disso, eunão
tinha mais nada em que me basear.

— Sua mãe não está se sentindo bem — era só o que meu pai dizia
quando
29

perguntávamos por ela quando seu lugar estava vazio na mesa de


jantar, ou quandoela passava o dia sem sair do quarto e a única
visão que tínhamos dela era ummontinho debaixo das cobertas, e
que ficava quase imperceptível na penumbra doquarto. — Nós todos
temos que nos esforçar para facilitar as coisas até que elamelhore,
certo?

Eu me lembro de fazer que sim com a cabeça, concordando, e de


ver minhasirmãs fazerem o mesmo. Porém, como fazer isso era
outra questão. Para começar, eunão tinha a mínima idéia do que
fazer para facilitar as coisas, nem se eu tinha feitoalgo para piorar
tudo. O que eu entendia era que a tarefa principal era proteger a
minhamãe de qualquer coisa que pudesse chateá-la, mesmo sem
saber quais eram essascoisas. Logo também aprendi uma tática.
Em caso de dúvida, era melhor deixar oassunto de fora — fora do
campo de audição, fora da casa — mesmo se isso na
verdadesignificasse guardá-lo dentro de mim.

A depressão, ou o ''episódio" da minha mãe — nunca consegui


definirexatamente — durou cerca de três meses até que meu pai a
convenceu a ir aoterapeuta. Em um primeiro momento, ela foi
relutante e acabou deixando de ladodepois de algumas sessões,
mas logo depois voltou a fazer terapia e, dessa vez, deucerto e
durou um ano. Mesmo assim, não houve nenhuma mudança brusca
— comose um belo dia, ao entrar na cozinha às dez e meia, eu a
fosse ver alegre e disposta,como se estivesse me esperando. Ao
contrário, o processo foi lento e as melhoriaseram pequenas como
caminhar meio milímetro por dia — e o progresso fossenotado
somente depois de certa distância percorrida. Primeiro, ela parou de
dormir odia todo e, depois, começou a acordar no meio da manhã,
até que, finalmente, voltoua preparar o café da manhã de vez em
quando. Seus silêncios, tão perceptíveis namesa de jantar e em
todo o lugar, foram diminuindo com uma pequena conversa aquie
um comentário ali.

No final das contas, foi o trabalho como modelo que me fez


perceber queestávamos passando por maus momentos. Como era
minha mãe que conseguia ostrabalhos para a gente e combinava os
testes com a Lindy, nós todas passamos atrabalhar bem menos no
tempo em que ela esteve doente. Meu pai levou Whitney paraalguns
trabalhos e eu consegui ir a uma sessão de fotos programada com
muitaantecedência, mas o ritmo diminuiu, sem dúvida — até que um
dia Lindy nos ligouna hora do jantar para propor um teste, e já
esperando um não.

— Provavelmente é melhor assim — disse meu pai, olhando para


nós,sentadas à mesa, antes de levar o telefone para a cozinha. —
Eu só achoque agora não é um bom momento.
30

Kirsten, que estava mastigando um pedaço de pão, disse:

— Bom momento para o quê?

— Um trabalho — Whitney respondeu secamente. — Por que então


a Lindyligaria aqui em casa na hora do jantar?

Meu pai agora estava revirando a gaveta próxima ao telefone e,


finalmente, encontrou um lápis.

— Bom, está bem — ele disse, pegando um bloco de notas. — Eu


vou só anotar as informações, mas é mais provável... Certo. Qual o
endereço mesmo?

Minhas irmãs ficaram de olho enquanto ele escrevia. Elas


provavelmente seperguntavam qual seria o trabalho e para quem.
Mas eu observava minha mãe, que nãodesgrudou os olhos do meu
pai mesmo ao tirar o guardanapo do colo, encostando-olevemente
nos cantos da boca. Quando ele voltou, sentou-se na cadeira e
pegou ogarfo, eu esperei que minhas irmãs perguntassem os
detalhes. Mas minha mãe falouantes.

— Então, o que ela queria?

Meu pai olhou para ela.

— Ah — ele disse — é só um teste amanhã. Lindy achou que talvez


nósestivéssemos interessados.

— Nós? — disse Kirsten.


— Você — respondeu meu pai, pegando um pouco de feijão com o
garfo. —Eu disse que esse provavelmente não era um bom
momento. É de manhã e eu tenho que ir para o escritório...

— Ele parou de falar, sem se preocupar em terminar a frase — e


não que eletivesse que acabar de explicar. Meu pai era arquiteto e
muito ocupado com seu própriotrabalho, além de tomar conta da
minha mãe e cuidar da casa, e não tinha tempo paranos levar para
cima e para baixo. Kirsten sabia disso, mas estava
visivelmentedesapontada. Até que, no meio do silêncio depois que
todos voltamos a comer, ouviminha mãe tomar fôlego.

— Eu posso levá-la — ela disse. Nós todos olhamos para ela. —


Quero dizer,se ela quiser ir.

— Sério? — perguntou Kirsten. — Porque isso seria...


31

— Grace — disse meu pai com uma voz preocupada. Kirsten voltou
a sentar-se, em silêncio. — Você não precisa fazer isso.

— Eu sei. — Minha mãe sorriu um sorriso abatido, mas mesmo


assim era umsorriso. — Mas é só um dia, só uma coisa. Eu estou
com vontade.

Então, no dia seguinte, minha mãe estava de pé para o café da


manhã —disso eu me lembro muito bem — e, enquanto Whitney e
eu fomos para aescola, ela e Kirsten foram para o teste de um
comercial de boliche. Kirstenconseguiu o trabalho. Não foi seu
primeiro comercial e nem o maior. Mastoda vez que passava na
televisão, eu a via fazendo aquele strike perfeito(claro que editado,
pois ela jogava boliche muito mal, era a rainha da cana-leta) e me
lembrava daquela noite à mesa e de que tudo finalmente voltariaao
normal.

E voltou mesmo — ou mais ou menos. Minha mãe voltou a nos levar


para ostestes, mas era perceptível que ela nem sempre estava
animada e contente. Mas,pensando bem, talvez ela nunca tivesse
sido assim e talvez eu tenha apenas imaginadoou acreditado que
era daquele jeito, assim como fiz com muitas outras coisas. E
mesmocom o passar do tempo eu tinha dificuldade em acreditar que
as coisas melhoravam deverdade. Por mais que eu quisesse ter
esperança, a verdade era que estava sempreansiosa e certa de que
aquilo não duraria muito. E mesmo vendo as coisas em
casavoltarem a se restabelecer, o fato de as mudanças em minha
mãe terem sido tão repen-tinas, sem um começo e nem um fim
definidos, me dava a impressão de que tudo aquilopoderia começar
de novo a qualquer momento. Naquela época, eu tinha a sensação
deque qualquer acontecimento ruim ou uma decepção seria o
suficiente para ela nos deixar novamente. Talvez eu ainda sinta
isso.

Essa era uma das razões por que eu ainda não tinha contado para a
minhamãe que não queria mais trabalhar como modelo. A verdade
era que, durante todo overão, eu me senti estranha e fiquei nervosa
nos testes de um jeito que nunca tinhame sentido antes. Eu não
gostava da idéia de ser examinada minuciosamente, de terque
andar na frente de estranhos que me observavam. Em junho, em
um teste paracomercial de biquíni, eu me esquivava toda vez que a
produtora tentava ajustar omeu biquíni e sentia um nó na garganta
mesmo quando pedia desculpas e dizia queestava bem.

Quase contei isso para a minha mãe várias vezes, mas sempre
aconteciaalguma coisa e eu acabava desistindo. Eu era a única filha
que continuavatrabalhando como modelo. Além disso, se já é difícil
tirar de uma pessoa algo que afaz feliz, tudo fica muito pior quando
se trata da sua única fonte de felicidade.
32

Por isso, ao chegar ao Mayor's Village quinze minutos depois, não


mesurpreendi ao ver minha mãe me esperando. Como sempre,
fiquei perplexa em vercomo ela era pequena. Mas minha
perspectiva era um tanto distorcida, afinal decontas, eu, a mais
baixa das irmãs, tinha 1,70 metro, enquanto Kirsten era
umcentímetro mais alta do que eu e Whitney media 1,78 metro. Meu
pai se destacavacom seus 1,58 metro, fazendo minha mãe sempre
destoar quando estávamos todosjuntos, como naqueles testes de
múltipla escolha em que você tem que eliminar aresposta diferente.

Quando parei ao lado do carro dela, vi Whitney de braços cruzados


sentada nobanco do passageiro. Ela parecia irritada, o que não era
nenhuma novidade, entãonem liguei. Peguei a minha nécessaire de
maquiagem da bolsa e fui ao encontro daminha mãe, que estava
parada perto do pára-choque e com o porta-malas aberto.

— Você não precisava ter vindo — eu disse.

— Eu sei — ela respondeu sem me olhar e me dando um


tupperware comum garfo em cima. — Salada de frutas. Não tive
tempo de preparar um sanduíche.Sente-se.

Eu me sentei, abri o pote e logo dei uma garfada. Percebi que


estavafaminta, é claro, pois vomitara o pouco que tinha conseguido
comer no almoço.Meu Deus, que dia péssimo.

Minha mãe tirou a nécessaire de maquiagem da minha mão e


começou avasculhá-la, depois pegou uma sombra compacta e meu
pó de arroz.
— Whitney — ela chamou —, me dê as roupas que estão aí, por
favor.Whitney bufou e depois se virou para pegar as blusas que
estavam no cabidependurado atrás dela.

— Pronto — ela disse secamente e quase jogando tudo no banco


traseiro.Minha mãe tentou pegá-las, mas estava um pouco longe, e
então tomei a iniciativa.Enquanto eu me esticava para pegar os
cabides e puxá-los paramais perto, Whitney ficou segurando tudo
por cerca de um segundo a mais,e fiquei surpresa com sua força
quando nossos olhares se cruzaram. Depoisde um tempo, ela soltou
os cabides de repente e voltou a me dar as costas.

Eu procurava ter paciência com a minha irmã. Em momentos como


esse,tentava lembrar que não era com ela que eu estava chateada,
mas com o seudistúrbio alimentar. Mas era muito difícil diferenciar
uma coisa da outra, pois esse tipode atitude sempre foi típico dela.
33

— Beba um pouco d'água — disse minha mãe ao me dar uma


garrafa aberta,ao mesmo tempo em que pegava as blusas da minha
mão. — E venha aqui.

Dei um gole e fiquei parada enquanto ela passava o pó no meu


rosto.Quando ela começou a passar sombra e delineador, fechei os
olhos e fiquei ouvindoos carros passando na estrada. Em seguida,
ela começou a procurar uma blusa,fazendo barulho com os cabides.
Abri os olhos e a vi segurando uma blusinha decamurça cor-de-
rosa.

Shhh, Annabel. Sou só eu.

— Não — eu disse. Falei em um tom mais bravo do que era a


minhaintenção, e minha voz soou mal-educada. Tomei fôlego, me
forçando a falarde um jeito mais normal. — Essa não...

Ela me olhou surpresa, depois olhou para a blusa e para mim


novamente. —Tem certeza? Ela fica ótima em você. Achei que você
adorasse essa blusinha!

Fiz que sim com a cabeça e logo mudei a direção do meu olhar para
umaminivan que passava e tinha um daqueles adesivos MEU
FILHO É NOTA 10 no vidrotraseiro.

— Não — eu disse de novo. Ela continuava me olhando, e então


completei:— Acho que fico meio estranha nela.

— Ah — eu a ouvi dizendo. Como segunda opção, ela me ofereceu


uma blusaazul de decote quadrado. — Aqui — ela disse ao olhar a
blusa mais de perto e veruma etiqueta nela. — Vamos lá, rápido! Já
são dez para as quatro.

Concordei e depois fui até a porta traseira. Entrei no carro, me


abaixei paratirar minha blusa e congelei.

— Mãe! — eu disse.

— Sim?

— Estou sem sutiã.

Ouvi o barulho do seu sapato de salto na calçada enquanto ela


vinha ao meuencontro.

— Sem?

Eu confirmei acenando com a cabeça e tentando ficar abaixada.


34

— Eu estava de regata e ela já vem com um sutiã embutido.


Minhamãe pensou por um segundo.

— Whitney — ela disse. — Me dá... Whitney fez quenão com a


cabeça e disse:

— De jeito nenhum.

Agora foi minha mãe quem respirou fundo.

— Querida, por favor — ela disse. — Ajude a gente, vai?

Então, fizemos o que estávamos fazendo havia cerca de nove


meses: tivemosque esperar e nos preocupar com Whitney. Após um
longo silêncio, ela finalmentecolocou os braços para dentro da
camiseta e de forma desajeitada tirou o sutiã begepela gola,
jogando-o para trás. Peguei o sutiã do chão (não usávamos
exatamente omesmo número, mas era melhor que nada) e o
coloquei, arrumando a blusa.

— Obrigada — eu disse. Mas ela me ignorou, é claro.

— Três e cinquenta e dois — disse minha mãe. — Vamos, querida.

Eu me levantei e fui até onde minha mãe estava sentada, me


esperando esegurando minha bolsa, que ela me deu enquanto
examinava meu rosto para ver oresultado de seu trabalho.

— Feche os olhos — ela disse, inclinando-se para tirar um excesso


de rímel dos meus cílios. Quando os abri de novo, ela sorriu para
mim. — Você está linda.
— Até parece — eu disse, mas ela me deu um olhar desaprovador,
e entãoacrescentei: — Obrigada.

Ela deu uma batidinha no relógio.

— Vai lá. Nós te esperamos.

— Vocês não precisam ficar aqui. Vou ficar bem.

Whitney tinha ligado o carro. Ela baixou o vidro, esticando o braço


para fora.Whitney estava usando mangas compridas, como sempre,
mas dava para ver umpouco do seu pulso, pálido e muito magro,
enquanto ela tamborilava os dedos do lado de fora do carro. Minha
mãe olhou para ela e depois para mim.

— Bem, pelo menos espero você entrar — ela disse. — Certo?


35

Fiz que sim com a cabeça e me inclinei para lhe dar um beijo bem
pertinho dabochecha e sem manchá-la de batom.

— Certo.

Ao chegar à porta do prédio, olhei para trás. Vi minha mãe acenar


para mim,e, quando acenei de volta, pude enxergar o rosto de
Whitney pelo retrovisor. Elatambém me olhava, mas seu rosto não
tinha expressão alguma. Nesse momento, sentimeu estômago
revirar, algo que estava ficando bastante frequente.

— Boa sorte — disse minha mãe. Eu balancei a cabeça e olhei


nova-mente para Whitney. Mas ela tinha deslizado no banco e eu só
pude ver oretrovisor. Nenhum reflexo.
36

Três

Whitney sempre foi magra. Kirsten era mais cheinha e curvilínea,


enquanto eu sempretive porte mais atlético, mas minha irmã do
meio nasceu com um corpo de modelo:alta e longilínea, Eu e Kirsten
sempre ouvimos os fotógrafos dizerem que, apesar dosnossos
rostos bonitos, nós éramos, respectivamente, gordinhas ou baixas
demais paraseguir carreira de modelo. E logo ficou claro que
Whitney tinha potencial de verdade.

Então, ficou decidido que, ao terminar o Ensino Médio, Whitney iria


morar emNova York para tentar a carreira de modelo. Kirsten fez
exatamente a mesma coisadois anos antes, quando ela implorou
aos meus pais que a deixassem ir morar comduas amigas da
agência de modelos. Eles concordaram, mas sob a condição de
queela se matriculasse em alguns cursos na faculdade. Apesar de
conseguir manter certoequilíbrio no começo, Kirsten acabou
deixando os estudos completamente de ladodepois de conseguir ser
escalada para alguns comerciais e anúncios impressos.Apesar de
fazer alguns trabalhos, a maior parte do seu dinheiro vinha de
trabalhoscomo hostess e garçonete.

Não que isso a incomodasse muito. Desde o Ensino Médio, quando


Kirstendescobriu os meninos e a cerveja — não necessariamente
nessa ordem — seu interessepela carreira de modelo diminuiu
consideravelmente. Enquanto Whitney sempre sepreocupava em ir
dormir cedo na véspera dos trabalhos e era sempre pontual,Kirsten
sempre chegava atrasada, de ressaca e com aquela cara de quem
acabou deacordar. Uma vez ela chegou para uma sessão de fotos
de um comercial de vestidos debaile da Kopf com um chupão tão
forte no pescoço que nem maquiagem conseguiuescondê-lo
completamente. Quando os anúncios começaram a circular,
algumas sema-nas depois, ela caiu na gargalhada ao me mostrar
um círculo marrom que mal davapara ver sob uma tira do vestido
que parecia de princesa.

Minha mãe tinha mais expectativas com relação à Whitney, e, duas


semanasdepois de terminar o Ensino Médio, ela se mudou para o
apartamento onde Kirstenestava morando sozinha. Em minha
opinião, a idéia de as duas morarem juntas estavaerrada desde o
começo, mas meus pais já haviam resolvido: Whitney tinha
apenasdezoito anos e precisava de alguém da família por perto, e já
que meus pais ajudavam
37

Kirsten a pagar o aluguel, ela não tinha muito motivo para reclamar.
(Mas reclamou, éclaro.) Além disso, de acordo com minha mãe, elas
estavam mais maduras agora e os conflitos antigos tinham ficado no
passado.

Logo que Whitney se mudou, minha mãe ficou lá um tempo para


que ela seinstalasse, e também para matriculá-la em alguns cursos
e acompanhá-la em suasprimeiras visitas a agências. Toda noite,
ela ligava depois do jantar para contar a meupai e a mim como as
coisas iam e parecia mais feliz do que nunca quando falava
dascelebridades que tinha visto, das reuniões nas agências e do
ritmo caótico e aceleradode Nova York. Uma semana depois,
Whitney foi para seu primeiro teste e conseguiuseu primeiro trabalho
em seguida. Quando minha mãe voltou para casa, um mês
depois,Whitney estava trabalhando muito mais do que Kirsten. Tudo
estava correndoexatamente como planejado... E de repente não
estava mais.

Minhas irmãs estavam morando fazia uns quatro meses quando


Kirstencomeçou a ligar para minha mãe para contar que Whitney
estava se comportando deforma estranha, que tinha emagrecido e
parecia não estar comendo, e, além disso,toda vez que Kirsten
tentava tocar em qualquer um desses assuntos, ela ficavairritada.
No começo, não parecia ser motivo para preocupação, pois Whitney
semprefoi temperamental e nem meus pais esperavam que a
convivência entre as duas fosseum mar de rosas. Minha mãe
chegou à conclusão de que o mais provável era queKirsten
estivesse fazendo drama, pois se Whitney tivesse perdido um pouco
de peso,deveria ser pelo fato de ela realmente trabalhar em um
mercado muito competitivo, oque significaria uma exigência maior
em relação à sua aparência. Conforme elaganhasse confiança em si
mesma, tudo ficaria mais equilibrado.

No entanto, foi só olhar para Whitney para percebermos as


mudanças muitobem. Antes, ela era elegante, leve; agora estava
esquelética e sua cabeça pareciagrande demais para o corpo e
pesada sobre o pescoço. Ela e Kirsten tinham vindojuntas para
passar o feriado de Ação de Graças e, quando fomos pegá-las
noaeroporto, o contraste era enorme. Lá estava Kirsten usando um
suéter cor-de-rosa,de bochechas rosadas, olhos azuis e pele quente
ao me dar um abraço,choramingando que sentia muitas saudades
nossas. Ao seu lado, Whitney, usandouma calça de moletom, uma
blusa preta de gola alta e mangas compridas, semmaquiagem e
pálida. Foi um choque, mas ninguém disse nada naquele
momento,apenas nos cumprimentamos, nos abraçamos e
perguntamos como tinha sido aviagem. Mas ao andarmos em
direção à esteira para pegar as bagagens, minha mãenão aguentou
e perguntou:

— Whitney, querida — disse minha mãe. — Você parece exausta.


Ainda é porcausa daquela gripe?
38

— Eu estou bem — disse Whitney.

— Não, ela não está — informou Kirsten de forma direta, pegando


sua mala.— Ela não come. Nunca. Ela está se matando.

Meus pais se entreolharam.

— Ah não, ela só esteve doente — minha mãe disse. Ela olhou para
Whitneyque, por sua vez, encarava Kirsten com muita raiva. — Não
é, querida?

— Errado — Kirsten respondeu. Para Whitney, ela disse: — Como


con-versamos no avião: ou você conta ou conto eu.

— Cale a boca — disse Whitney, por entre os dentes.

— Calma — disse meu pai. — Vamos pegar as malas.

Essa atitude era a cara do meu pai, o homem solitário em nosso


ambientefamiliar carregado de estrógeno. Sua forma de lidar com
qualquer tipo de problemaemocional ou conflito era fazendo algo
concreto e específico: conversas sobre cólicase fluxo menstrual
durante o café da manhã? Ele se levantava para trocar o óleo de
umdos carros. Chegar em casa ao prantos por razões sobre as
quais você não querconversar? Ele preparava um misto quente —
que ele mesmo acabaria comendo. Iníciode uma crise familiar em
um lugar público? Malas. Era hora de pegar as malas.

Minha mãe ainda observava Whitney com ar preocupado.


— Querida? — ela disse em um tom macio, enquanto meu pai
arrancava outra mala da esteira. — É verdade? O que está
acontecendo?

— Eu estou bem — disse Whitney novamente. — Ela só está com


invejaporque estou conseguindo muitos trabalhos.

— Ah, por favor — disse Kirsten. — Eu estou pouco me lixando e


você sabe

disso.

Minha mãe arregalou os olhos e, mais uma vez, pensei nela entre
nós, tãopequena e frágil.

— Que linguajar é esse? — meu pai perguntou a Kirsten.

— Pai, você não entende — ela respondeu. — Isso é sério. Whitney


tem umdistúrbio alimentar. Se ninguém ajudá-la, ela vai...

— Cale essa boca! — Whitney gritou descontrolada e com a voz


esganiçada.
39

— Cale essa sua boca!

Ficamos tão surpresos com o escândalo — afinal, estávamos


acostumados sócom os chiliques da Kirsten — que ficamos parados
durante um segundo, pensandose aquilo realmente tinha
acontecido. Até que percebi as pessoas nos olhando,deixando óbvio
que sim. Eu vi o rosto da minha mãe ficar vermelho; ela
estavaenvergonhada.

— Andrew — ela disse, aproximando-se do meu pai. — Eu não...

— Vamos para o carro — falou meu pai ao pegar a mala de


Whitney. —

Agora.

Nós fomos. Em silêncio, meus pais andavam na frente, o braço do


meu paisobre os ombros da minha mãe, Whitney ia atrás deles, de
cabeça baixa, e Kirsten e euéramos as últimas. Enquanto
andávamos, ela deslizou a mão para segurar a minha.Sua palma
era a única coisa quente naquele frio.

— Eles têm que saber — ela disse. Porém, quando virei meu rosto
na suadireção, Kirsten olhava para frente e fiquei na dúvida se era
comigo mesmoque ela estava falando. — É a coisa certa a fazer. Eu
preciso fazer isso.

Quando chegamos ao carro, ninguém falou uma palavra. Nem


quando saímosdo estacionamento e nem quando chegamos à
rodovia. No banco de trás, sentada entreas minhas duas irmãs, eu
sentia Kirsten respirar fundo, como se fosse dizer algo,mas ela não
deu um pio. Do outro lado, Whitney estava encostada na
janela,olhando para fora, com as mãos no colo. Fiquei observando
seus pulsos, queestavam magros, ossudos e pálidos em contraste
com o preto da sua calça demoletom. No banco dianteiro, meus pais
olhavam para frente e, de vez em quando,eu percebia o ombro do
meu pai se mexendo e sabia que ele fazia carinho na mão daminha
mãe, para consolá-la.

Assim que paramos na garagem, Whitney abriu sua porta. Em


poucossegundos ela chegou à porta da cozinha e entrou na casa,
batendo a porta com força.Ao meu lado, Kirsten suspirou.

— Bem — ela disse calmamente enquanto meu pai desligava o


carro. —Nós precisamos conversar.

Eles conversaram, mas não pude participar. Eles deixaram bem


claro("Annabel, que tal ir fazer a lição de casa?") que eu não deveria
entrar nessaconversa. Então, fiquei no meu quarto, com um livro de
matemática aberto no colo,
40

me esforçando para entender o que estava sendo dito lá


embaixo.Pude ouvir os tons graves do meu pai e os tons mais
agudos de minha mãe, emudanças ocasionais para o tom de
Kirsten. Na outra parede, o silêncio de Whitneyem seu quarto.

Finalmente, minha mãe subiu as escadas e passou em frente ao


meu quartopara bater na porta do quarto de Whitney. Quando não
teve resposta, ela disse:

— Whitney, querida, me deixe entrar. — E nada. Ela ficou lá durante


um ou dois minutos antes de eu ouvir a porta se abrir e depois
fechar novamente.

Desci as escadas e vi Kirsten e meu pai sentados à mesa da


cozinha olhando para um queijo quente.

— Olha, pai — ela disse enquanto eu abria a porta do armário para


pegarum copo — ela explica tudo de forma bem convincente. Ela vai
fazer uma lavagemcerebral em mamãe em três segundos.

— Tenho certeza de que não é assim — disse meu pai a ela. — Dê


umpouco de crédito para sua mãe.

Kirsten fez que não com a cabeça.

— Ela está doente, pai. Ela quase nunca come, e quando come, é
estranho.Não come nem meia maçã no café da manhã e só três
bolachas salgadas no almoço.E malha o tempo todo. A academia
que fica na esquina de casa é 24 horas, e, às vezes, eu me levanto
e ela não está em casa. Sei que ela está na academia.
— Talvez ela não esteja — disse meu pai.

— Eu já segui a Whitney, pai. Algumas vezes. Ela fica horas


correndo naesteira. Olha, assim que cheguei naquela cidade, fiz
uma amiga, e a moça com quemela dividia o apartamento estava
exatamente desse jeito. Ela chegou a pesar quarentaquilos ou algo
assim: ela foi parar no hospital. Isso é muito sério.

Meu pai não se manifestou durante um segundo.

— Vamos ouvir o lado dela — ele disse. — E aí poderemos ver em


que pé estamos. Annabel?

— Sim.

— Que tal ir terminar de fazer sua lição de casa?


41

— Está bem — eu disse. Terminei meu copo de água, o coloquei na


lava-louças e subi novamente. Ao mesmo tempo em que me
esforçava para prestaratenção nos paralelogramas, podia ouvir
minha mãe conversando com Whitney noquarto ao lado, sua voz
macia e suave. Eu estava quase terminando a lição de casa quando
a porta se abriu.

— Eu sei — dizia minha mãe. — Faça o seguinte: tome um banho,


durma um pouco e eu te acordo na hora do jantar, tá? Vai dar tudo
certo.

Ouvi um suspiro e concluí que era Whitney concordando, e logo


minha mãepassou novamente em frente ao meu quarto. Dessa vez,
ela me olhou.

— Está tudo bem — ela disse. — Não se preocupe.

Relembrando de tudo, eu não tenho a menor dúvida de que minha


mãerealmente acreditava no que estava falando. Mais tarde, fiquei
sabendo que Whitneytinha tranquilizado minha mãe, dizendo que
estava apenas trabalhando demais emuito cansada, e que
realmente estava malhando mais e comendo menos, pois
haviadescoberto que era um pouco mais cheinha do que as garotas
com as quais faziatestes, mas não era nada exagerado. E continuou
dizendo que, se Kirsten pensava queela não estava comendo, era
porque elas tinham horários completamente diferentes,já que
Kirsten trabalhava à noite e Whitney de dia. E que ela achava que
isso eramais do que preocupação, pois, desde que chegou a Nova
York, Whitney logoconseguiu muito mais trabalhos do que Kirsten, e
talvez ela não estivesse lidandobem com isso. Talvez ela estivesse
com inveja.

— Eu não estou com inveja! — ouvi Kirsten dizer toda cheia de


raiva,poucos minutos depois de minha mãe ter descido. — Vocês
não conseguem ver? Elaenganou vocês. Acordem!

Mais coisas foram ditas, é claro, mas não consegui ouvir. E uma
horadepois, quando me chamaram para jantar, o que quer que
tenha acontecido já tinhaterminado e estávamos de volta à boa e
velha configuração da família Greene,fingindo estar tudo bem. E eu
tinha certeza de que assim parecia — ao menos paraquem olhava
de fora.

Foi meu pai quem projetou nossa casa, que, na época, era a mais
moderna davizinhança. Todos a chamavam de "A Casa de Vidro",
apesar de ela não serrealmente toda feita de vidro, apenas a sua
frente. Do lado de fora, dava para vertodo o térreo: a sala de estar,
dividida por uma lareira de pedra enorme, além dacozinha e da
piscina que ficava atrás, no quintal. Também era possível ver
asescadas e parte do segundo andar: o corredor do meu quarto e
do quarto da Whitney,
42

e a plataforma da escada entre eles, dividida pela chaminé. Então,


tinha-se aimpressão de que dava para ver tudo, mas na verdade,
não dava.

Porém, a sala de jantar ficava bem na frente da casa, então


ficávamossempre expostos durante o jantar. Do meu lugar à mesa,
eu podia ver os carrospassando na rua, e eles sempre diminuíam
um pouco a velocidade para nos observarnesse recorte do
cotidiano: uma família feliz em volta de uma mesa farta. Mas
todossabem que as aparências enganam.

Naquela noite, Whitney comeu normalmente. Kirsten tomou vinho


demais, eminha mãe ficou dizendo como era maravilhoso o fato de
estarem todos reunidos,finalmente. E ela repetiu isso pelos três dias
que se seguiram.

Na manhã em que elas foram embora, minha mãe fez as duas se


sentarem àmesa da cozinha e pediu para que fizessem uma
promessa. Ela queria que Whitneycuidasse melhor de si mesma,
dormisse mais e mantivesse uma alimentaçãosaudável. Pediu para
Kirsten prestar atenção em Whitney e tentar ser mais solidária,pois
a irmã estava sob muita pressão morando em Nova York e
trabalhando muito.

— Certo? — ela disse, olhando para uma e para outra.

— Certo — disse Whitney. — Eu prometo. Kirsten, noentanto,


apenas balançou a cabeça.

— O problema não sou eu — ela disse a minha mãe, afastando a


cadeira e selevantando. — Eu avisei. Só digo isso. Eu avisei e
vocês escolheram não me ouvir.Só quero que todos tenham isso em
mente.

— Kirsten — disse minha mãe, mas ela já tinha saído da cozinha e


ido para agaragem, onde estava meu pai, colocando as malas no
carro.

— Não se preocupe — disse Whitney, levantando-se e dando um


beijo nabochecha da minha mãe. — Está tudo bem.

Por um tempo, tudo pareceu estar bem mesmo. Whitney continuava


fazendovários trabalhos, inclusive uma sessão de fotos para a
revista Nova York, o maisimportante de sua carreira até então.
Kirsten conseguiu um novo trabalho de hostess em um restaurante
famoso e fez um comercial de TV a cabo. Se elas não estavam
sedando bem, nós não ficamos sabendo, pois, em vez de ligarem
juntas para casa umavez por semana, elas ligavam em dias
diferentes. Kirsten normalmente ligava no fim damanhã e Whitney, à
noite. Até que, uma semana antes de elas virem para casa passar
oNatal, recebemos uma ligação durante o jantar.
43

— Desculpe-me, o quê? — disse minha mãe segurando o telefone e


de péentre a cozinha e a sala de jantar. Meu pai a observou
enquanto ela levantoua mão, colocando-a contra a outra orelha para
ouvir melhor. — O que é?

— Gracie? — Meu pai se levantou. — O que é? Minha mãebalançou


a cabeça.

— Eu não sei — ela disse passando o telefone para ele. — Eu não...

— Alô? — disse meu pai. — Quem fala?... Ah... Entendo... Certo...


Bom,isso é um engano, tenho certeza... Um momento, vou procurar
a informaçãocorreta.

Quando ele colocou o telefone de lado, minha mãe disse:

— Eu não consegui entender essa mulher. O que ela estava


dizendo?

— Há um problema com o cartão do convênio médico de Whitney —


ele respondeu. — Parece que ela foi ao hospital hoje.

— Ao hospital?—A voz da minha mãe foi adquirindo aquele tom


assustadorque sempre fez meu coração acelerar em um segundo.
— Ela está bem? O queaconteceu?

—Eu não sei — respondeu meu pai. — Ela já recebeu alta, há


apenas umproblema com a cobrança. Preciso achar o cartão novo
dela...
Enquanto meu pai subia para o escritório para procurar o cartão,
minha mãepegou o telefone novamente e tentou obter alguma
informação da mulher que tinhaligado. No entanto, por questões de
privacidade, ela não disse muita coisa, apenasinformou que Whitney
tinha chegado de ambulância poucas horas antes. Assim
queresolveu a questão do pagamento, ele ligou para o apartamento
de Kirsten e Whitney.Kirsten atendeu.

— Eu tentei contar para vocês — era tudo o que ela dizia. Pude
ouvir asua voz de onde eu estava. — Eu tentei.

— Passe o telefone para a sua irmã — disse meu pai. —


Agora.Whitney pegou o telefone e eu podia ouvi-la falar com meus
pais. Sua voz era alta ealegre. Mais tarde, fiquei sabendo a história
que ela contou para eles: que não eranada demais, pois só estava
muito desidratada - resultado de uma sinusite — e
acaboudesmaiando durante a aula. Parecia ter sido mais grave do
que realmente foi e aambulância foi chamada por alguém que
entrou em pânico. Ela não tinha nos
44

contado porque não queria deixar minha mãe preocupada, pois não
era nada demais.Mesmo.

— Talvez eu deva passar um tempo aí — disse minha mãe. — Só


para garantir.

Whitney disse que não, não era necessário, pois elas viriam para
casa em duassemanas para o Natal e era disso que ela estava
precisando: uma pausa para dormirmelhor. E ela ficaria bem
novamente.

— Você tem certeza? — perguntou minha mãe.Sim, ela tinha


certeza absoluta.

Antes de desligar, meu pai pediu para falar com Kirsten novamente.

— Sua irmã está bem? — ele perguntou.

— Não — Kirsten respondeu. — Ela não está bem.

Mesmo assim, minha mãe não viajou para lá. Esse foi o maior erro
de todos eaté hoje é a única coisa que não consigo entender. Por
algum motivo, ela acreditou naWhitney. E foi um erro.

Quando Whitney chegou sozinha para o Natal, pois Kirsten precisou


ficar maistempo em Nova York por causa do trabalho, meu pai foi
pegá-la no aeroporto,enquanto eu e minha mãe ficamos em casa
preparando o jantar. Quando eles chegaram, ao olhar para a minha
irmã, não acreditei no que vi.
Ela estava magra demais! Esquelética. Era claramente perceptível,
mesmoque ela usasse roupas mais largas do que na última vez que
a vi. Seus olhos pareciamafundar no rosto e dava para ver os
tendões do seu pescoço se movimentando comofios de marionetes
toda vez que ela virava a cabeça. Não consegui fazer mais
nadaalém de ficar encarando minha irmã.

— Annabel — ela disse, incomodada. — Vem aqui me dar um


abraço.Eu larguei o descascador de legumes que estava segurando
e atravessei a cozinhadevagar. Ao colocar meus braços em volta da
minha irmã, senti como se ela fossequebrar a qualquer momento,
pois parecia muito frágil. Meu pai estava parado atrásdela
segurando a sua mala e, quando olhei para o seu rosto, percebi que
ele também estava chocado com a mudança que Whitney tinha
sofrido em apenas um mês.

Minha mãe não se deu conta de nada disso, ou pelo menos não se
ma-nifestou. Ao contrário, quando me afastei de Whitney, ela deu
um passo à frente,
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sorrindo, e a trouxe para perto de si.

— Ah, querida — ela disse. — Você está trabalhando tanto!

Ao se inclinar para frente e repousar a cabeça sobre o ombro da


minha mãe,Whitney fechou os olhos. Suas pálpebras pareciam
quase translúcidas, o que medeixou com muito medo.

— Você vai se sentir melhor, pode deixar — disse minha mãe — e


começando agora mesmo. Vá lavar o rosto. O jantar está pronto.

— Ah, mas não estou com fome — disse Whitney. — Eu comi no


aeroportoantes de embarcar.

— Comeu? — Minha mãe pareceu chateada. Ela tinha passado o


dia inteirocozinhando. — Bem, mas com certeza consegue tomar
um pouquinho de sopa delegumes. Fiz especialmente para você,
afinal não é disso que está precisando paraacordar o seu sistema
imunológico?

— Na boa, eu só quero dormir — disse Whitney. — Eu estou


muitocansada.

Minha mãe olhou para meu pai que, por sua vez, continuava muito
sérioobservando Whitney.

— Está bem, então, vá se deitar um pouco. Você pode comer


quandoacordar, não é mesmo?

Mas Whitney não comeu naquela noite, pois dormiu até o outro dia e
não semanifestou em nenhuma das vezes que minha mãe subiu
com uma bandeja, nem namanhã seguinte: ela disse ter se
levantado bem cedinho e já ter tomado café da manhãquando meu
pai, o madrugador da casa, desceu para fazer café. Na hora do
almoço,ela dormiu novamente. E, finalmente, no jantar, minha mãe
a fez sentar-se à mesaconosco.

Whitney estava sentada ao meu lado e, logo que meu pai começou
a nosservir o jantar, cortando o rosbife e colocando as fatias nos
pratos, eu fiqueitotalmente atenta ao fato de Whitney não conseguir
ficar parada, se contorcendo todanervosa, puxando o punho da
manga do seu moletom largo. Elacruzou e descruzou as pernas,
depois tomou um gole de água e puxou amanga do moletom de
novo. Eu podia sentir o estresse que emanava dela,era perceptível.
E quando meu pai colocou na frente dela um prato cheio decarne,
batatas, ervilhas e um bom pedaço do famoso pão de alho da minha
46

mãe, ela perdeu o controle.

— Eu não estou com fome mesmo — ela disse rapidamente,


afastando o prato.— Não estou.

— Whitney — meu pai disse. — Coma.

— Eu não quero — ela disse com raiva. E do outro lado da mesa


estavaminha mãe, com um ar tão chateado que partia o meu
coração. — Isso é por causa daKirsten, não é? Foi ela quem falou
para vocês fazerem isso.

— Não — disse minha mãe — isso é por sua causa, querida. Você
precisa ficar

bem.

— Não estou doente — disse Whitney. — Eu estou bem. Só estou


cansada, enão vou comer se não estou com fome. Não vou. Vocês
não podem me obrigar.

Nós ficamos lá, sentados, observando-a puxar novamente a manga


domoletom, com os olhos fixos na mesa.

— Whitney — disse meu pai — você está magra demais. Você


precisa...

— Não me venha dizer o que eu preciso — ela disse, arrastando a


cadeira paratrás e se levantando. — Você não tem a menor idéia do
que eu preciso. Se tivesse, nósnem estaríamos tendo esta
conversa.
— Querida, nós queremos te ajudar — disse minha mãe com sua
voz doce.— Nós queremos...

— Então, me deixem em paz! — Ela bateu a cadeira com força na


mesa,fazendo os pratos pularem, e saiu batendo os pés. Um
segundo depois, eu ouvi aporta da frente abrir e fechar. Ela saiu.

O que aconteceu em seguida: depois de se esforçar para acalmar


minha mãe,meu pai pegou o carro e saiu para procurar Whitney.
Minha mãe se acomodou emuma cadeira do hall de entrada, e eu
terminei rapidamente meu jantar, depois cobrios pratos deles com
filme plástico e lavei a louça. Eu estava terminando quando vi o
carro do meu pai na entrada.

Quando ele e Whitney entraram em casa, ela não olhava para


ninguém. Emvez disso, ficou de cabeça baixa e olhando para o chão
enquanto meu pai explicavaque ela comeria um pouco e depois
voltaria a dormir, na esperança de que as coisasmelhorassem
amanhã. Não houve uma discussão sobre esse acordo e nem como
os
47

dois tinham chegado a ele. Já estava decidido.

Naquele momento, minha mãe me pediu para subir, então não


cheguei a verWhitney jantando, nem se houve alguma outra briga
por causa disso. Porém, maistarde, quando a casa ficou silenciosa e
tive certeza de que todos estavam dormindo, eudesci. Havia apenas
um prato dos três que eu tinha embalado e, apesar de ele parecerter
sido remexido, ainda havia muita comida.

Peguei algo para beliscar e fui para a sala de TV, onde assisti à
reprise de um reality show sobre transformações e um noticiário
local. Quando finalmente subi denovo, era aquela hora da noite
quando através do vidro se pode ver a lua brilhando eiluminando
tudo. Ver tanta luz dentro de casa era algo que sempre me
pareceuestranho e, ao passar pela claridade, cobri os olhos.

O corredor do meu quarto e do quarto da Whitney estava iluminado


tambéme apenas o meio estava no escuro por causa da sombra da
chaminé.

Quando pisei naquela parte escura, pensei ter sentido o ar úmido,


como

vapor.

Só o que sei é que de repente tive a sensação de todo o ar ter


mudado,ficando mais pesado. Por um segundo, fiquei parada,
inalando aquilo. O banheiroficava do outro lado do corredor, e dava
para ver que a luz estava apagada pela frestaembaixo da porta,
mas, conforme eu seguia em frente, o vapor ficava mais pesado
epungente, e eu podia ouvir o barulho da água caindo. Era tudo
muito estranho. Eupodia entender que alguém tivesse esquecido a
torneira ligada, mas o chuveiro? Bem,Whitney estava agindo de
modo estranho desde que chegou, então, tudo era
possível.Finalmente cheguei à porta entreaberta, e a empurrei.

A porta logo bateu em algo e voltou em minha direção. Eu a abri


novamente,senti o vapor direto em meu rosto, já grudando na minha
pele. Eu não enxergavanada, e só consegui ouvir a água, então
tateei a parede à minha direita até finalmenteencontrar o interruptor.

Whitney estava no chão, aos meus pés. Foi no ombro dela que a
porta bateuquando tentei abri-la pela primeira vez. Ela estava
deitada com os joelhos próximosao peito e envolta em uma toalha,
sua bochecha contra o piso. Como eu haviasuspeitado, o chuveiro
estava no máximo e uma poça de água já estava se formando,pois
a quantidade de água era grande demais para escoar pelo ralo.

— Whitney? — eu disse, me agachando ao lado dela. Eu não tinha


idéiado que ela estaria fazendo ali no escuro, sozinha e àquela hora
da noite. —
48

Você está...

Foi nesse momento que vi o vaso sanitário. A tampa estava


levantada e dentrohavia uma mistura amarela com um tom de
vermelho, e logo percebi de alguma formaque era sangue.

— Whitney. — Coloquei minha mão sobre seu rosto. Sua pele


estavaquente e suas pálpebras palpitavam. Eu a peguei pelo ombro
e a sacudi. —Whitney, acorda.

Ela não acordou, mas se moveu o suficiente para a toalha se abrir.


E, então, eu finalmente vi o que minha irmã tinha feito consigo
mesma.

Ela era puro osso. Foi a primeira coisa que pensei. Ossos e
calombos, cadanozinho da sua coluna vertebral era protuberante e
visível. Os ossos do quadrilsaltados, seus joelhos magros e pálidos.
Era impossível que ela conseguisse ser tãomagra e ainda estar viva,
e mais impossível ainda que ela tenha conseguido esconderisso. E
quando ela se mexeu novamente, eu vi a única coisa que me
lembraria parasempre: suas duas escápulas pontudas e saltadas
iguais às asas dos filhotes depassarinhos mortos, sem pele e
recém-nascidos que encontrei uma vez no nossoquintal.

— Pai! — gritei. Minha voz era extremamente alta naquele cômodo


tãopequeno. — Pai!

Lembro-me pouco do resto daquela noite. Meu pai atrapalhado


colocandoseus óculos enquanto corria pelo corredor de pijama.
Minha mãe atrás dele, parada eiluminada por aquele único feixe de
luz do outro lado do corredor, suas mãos no rostoao me afastar do
local e, depois, se abaixando ao lado de Whitney e colocando a
orelhasobre seu peito. A ambulância, suas luzes que giravam e
faziam a casa parecer umcaleidoscópio. E depois o silêncio quando
ela partiu, levando Whitney e minha mãe.Meu pai a seguindo de
carro. Disseram-me para ficar onde eu estava e esperarnotícias.

Eu não sabia o que fazer. Então, voltei para o banheiro e limpei


tudo. Deidescarga sem olhar para o conteúdo do vaso, depois
sequei a água que tinhatransbordado no chão, levei para a
lavanderia as toalhas que eu tinha usadoe coloquei-as na máquina.
Em seguida, me sentei na sala de estar, sob o luar,e esperei.

Foi meu pai quem finalmente ligou, horas depois. O barulho do


telefone mefez pular do sofá, e, quando atendi, percebi que o sol já
nascia na frente da casa e o
49

céu estava cor-de-rosa e vermelho.

— Sua irmã vai ficar bem — ele disse. — Quando chegarmos em


casa,vamos explicar o que está acontecendo.

Depois de desligar o telefone, voltei para meu quarto, me deitei e


dormi pormais duas horas até ouvir a porta da garagem se abrindo e
perceber que eles tinhamchegado. Quando desci para a cozinha,
minha mãe fazia café, de costas para mim. Elausava a mesma
roupa da noite anterior e seu cabelo estava despenteado.

— Mãe — eu disse.

Quando ela se virou, vi seu rosto e senti um aperto no coração.


Suaaparência era igual àquela de anos atrás: o rosto muito
cansado, os olhos inchadosde tanto chorar e uma expressão
assombrada. Senti um pânico de repente e fiquei comvontade de
me enrolar em volta dela, de ficar entre ela e o mundo, protegendo-a
de tudo que pudesse fazer mal a ela, a mim e a qualquer um de nós.

E, então, aconteceu. Minha mãe começou a chorar. Com os olhos


cheios delágrimas, ela olhou para suas mãos, que tremiam, e em
seguida começou a soluçar altona cozinha silenciosa. Dei um passo
à frente, sem saber o que fazer naquela situação.Por sorte, não
precisei fazer nada.

— Grace — disse meu pai, que estava parado entre o seu escritório
e ocorredor. — Querida. Está tudo bem.

Os ombros de minha mãe tremiam enquanto ela respirava fundo.


— Ai, meu Deus, Andrew. O que nós...

Meu pai atravessou o corredor em direção a ela e a abraçou,


envolvendo-a comseu corpo grande. Ela enterrou o rosto em seu
peito, entre soluços abafados. Eu meretirei com o intuito de ficar fora
de seu campo de visão e me sentei na sala de jantar.Ainda podia
ouvi-la chorando e era terrível. Mas vê-la era muito pior.

Depois, meu pai acalmou minha mãe e lhe disse para subir, tomar
um banhoe tentar descansar. Ele, então, desceu novamente e se
sentou na minha frente.

— Sua irmã está muito doente - ele disse. — Ela emagreceu demais
e pareceque não come normalmente há meses. Seu organismo
apagou ontem à noite.

— Ela vai ficar bem? — perguntei.

Ele passou a mão no rosto, respondendo depois de um tempo:


50

—Os médicos acreditam — ele disse — que ela precisa ir


imediatamente parauma clínica de tratamento. Sua mãe e eu... —
ele disse mais devagar, olhando para apiscina atrás de mim. — Nós
queremos o bem da Whitney.

— Ela não vai voltar?

— Não agora. — ele me disse. — É um processo. Nós temos que


ver comoas coisas vão andar.

Eu olhei para as minhas mãos, estendidas na mesa, sentindo a


madeira frescaem minhas palmas.

— Ontem à noite — eu disse — quando a vi a primeira vez, eu...

— Eu sei. — Ele afastou a cadeira e se levantou. — Mas ela vai


receberajuda. Está bem assim?

Fiz que sim com a cabeça. Era claro que meu pai não estava a fim
de discutiro impacto emocional do que tinha acontecido. Ele me
informou dos fatos, doprognóstico, e era isso o máximo que eu
conseguiria dele.

Depois de dois dias no hospital, Whitney foi transferida para um


centro detratamento. E ela odiou o lugar de tal forma que, no
começo, se recusava a falar commeus pais quando eles iam visitá-
la. De qualquer forma, ela estava recebendo ajuda,pois começou a
engordar pouco a pouco, dia após dia. Kirsten chegou na noite
deNatal e encontrou meus pais cansados e estressados e um clima
que não dava a menorchance para festas de final de ano. Quanto a
mim, eu apenas tentava não atrapalhar.No entanto, isso não a
impediu de dar a sua própria notícia bombástica.

— Eu tomei uma decisão — ela anunciou naquela noite durante o


jantar.— Vou parar de trabalhar como modelo.

Minha mãe, na cabeceira, colocou o garfo sobre a mesa.

— O quê?

— É que não estou mais a fim de fazer isso — disse Kirsten,


tomando umgole de vinho. — Verdade seja dita: não é a minha já
faz algum tempo. Além do mais,não tenho conseguido muitos
trabalhos. Mas agora resolvi oficializar a decisão.

Eu olhei para minha mãe. Ela estava extremamente cansada e triste


e,obviamente, isso não a estava ajudando. Meu pai também a
observava. Ele disse:

— Não tome nenhuma decisão precipitada, Kirsten.


51

— Não estou tomando. Já pensei muito sobre isso. — Ela era a


única na mesaque continuava comendo e pegou uma garfada de
purê de batata ao dizer: — Olha,na real: eu nunca vou pesar
cinquenta quilos e muito menos ter um metro e oitenta dealtura.

— Mas você consegue muitos trabalhos do jeito que é — disse


minha mãe.

— Alguns trabalhos — Kirsten a corrigiu. — Está longe de ser


suficiente parame sustentar. Eu trabalho com isso desde os oito
anos. Agora tenho vinte e dois.Quero fazer outra coisa.

— Por exemplo? — perguntou meu pai.Kirsten deu de ombros.

— Eu ainda não sei. Trabalho como hostess no restaurante e uma


amigaminha é dona de um salão de beleza e me ofereceu um
trabalho comorecepcionista. Então, as contas eu vou conseguir
pagar. Estou pensando emme matricular em algumas aulas ou algo
assim.

Meu pai ergueu as sobrancelhas.

— Voltar a estudar — ele disse.

— O que é essa cara de surpresa? — retrucou Kirsten. Porém, devo


admitir quetambém me surpreendi, pois, mesmo antes de largar a
faculdade em Nova York,Kirsten nunca foi muito de estudar. No
Ensino Médio, quando ela não faltava porcausa do trabalho de
modelo, geralmente matava aula para ficar com algumnamorado
largado que tinha na época. — A maioria das garotas da minha
idade já seformou e tem uma carreira. Sinto que já perdi muito
tempo, sabe? Quero ter um diploma.

— Você pode ir para a aula e continuar trabalhando como modelo —


disseminha mãe. — Não há necessidade de escolher entre uma ou
outra.

— Há sim — Kirsten respondeu. — Para mim, é necessário.

Em outras circunstâncias, talvez meus pais tentassem conversar


mais sobre oassunto. Porém, eles estavam cansados e Kirsten,
além de ser conhecida por ser umapessoa muito direta, era também
muito teimosa De qualquer maneira, a notícia nãodeveria ter sido
uma grande surpresa, pois ela não se dedicava ao trabalho de
modelohavia alguns anos. O negócio é que o fato de a notícia ter
sido dada logo depois dodesmaio da Whitney a tornava mais
significativa. Principalmente para mim, apesar denão ter me dado
conta na época.
52

Whitney ficou no centro de tratamento por trinta dias, durante os


quaisganhou cinco quilos. Ela queria voltar à Nova York assim que
tivesse alta, mas meuspais insistiram que voltasse a morar em casa,
pois, segundo os médicos, a volta àrotina de modelo poderia
comprometer sua recuperação. Isso foi em janeiro, e, desdeentão,
começou a fazer parte de um programa para pacientes externos e ir
à terapiaduas vezes por semana. Além disso, ela andava mal-
humorada pela casa. Quanto àKirsten, continuava em Nova York,
manteve sua palavra e se matriculou em algumasaulas na
faculdade, e tinha dois trabalhos. Por causa da sua experiência no
EnsinoMédio, foi surpreendente o fato de ela adorar a faculdade e
ligar para casa toda feliz eanimada nos fins de semana para falar
das aulas e do que estava estudando. Mais umavez, minhas irmãs
estavam em dois momentos extremos, porém parecidos: as
duasestavam recomeçando. Porém, apenas uma delas estava
nessa por vontade própria.

Em algumas semanas, parecia que Whitney começava a melhorar,


e ganharpeso no seu ritmo. Mas em outras, ela se recusava a tomar
café da manhã ou eraflagrada em seu quarto de madrugada
fazendo abdominais, o que era proibido, e aúnica coisa que a
colocava na linha novamente era a ameaça de ter que voltar
aohospital e ser forçada a comer. Durante esse tempo, uma coisa
continuava a mesma:ela não falava com Kirsten.

Nem quando ela ligava, nem quando veio passar uns fins de
semana em casadurante a primavera. No começo, Kirsten ficou
magoada, depois com raiva e, maistarde, passou a revidar com seu
próprio silêncio. O resto de nós ficava no meio,preenchendo os
silêncios desagradáveis com assuntos que nunca davam certo.
Desdeentão, meus pais passaram a viajar várias vezes para visitá-la
e ela, por sua vez, fezquestão de não voltar para casa.

Era estranho. Quando criança, eu odiava quando as minhas irmãs


brigavam,mas o fato de elas não se falarem era pior. A falta de
qualquer tipo de comunicaçãoentre as duas era assustadora, pois
essa situação já durava cerca de nove meses eparecia que nunca
chegaria ao fim.

As mudanças pelas quais minhas irmãs passaram no último ano


eramevidentes até para os sentidos: uma era rapidamente
percebida pelo olhar, enquanto aoutra podia ser ouvida à distância
mesmo se você não quisesse. Quanto a mim, eu meencontrava
onde sempre estive: em algum lugar entre elas.

Mas mudei também, mesmo sendo a única a perceber isso. Eu


estavadiferente. Tão diferente quanto minha família naquela noite
em que tudo começou.Nós cinco éramos diferentes do que
parecíamos para alguém que passava de carro,olhava para dentro
da casa e via uma família feliz com todos sentados em volta da
53

mesa de jantar na nossa casa de vidro.


54

Quatro

Na primeira semana de aula, Sophie me ignorou completamente.


Isso foidifícil. Mas quando ela finalmente começou a falar comigo,
logo percebi que preferia osilêncio.

— Vadia.

Era apenas uma palavra. Uma palavra, claramente pronunciada


com um ódioque era suficiente para machucar. Às vezes, vinha por
trás de mim, por cima de meuombro quando eu menos esperava, e
em outras eu a via se aproximando e a palavrame vinha diretamente
na cara. A única coisa que não mudava era que ela sempresabia
quando agir. No momento em que eu começava a me sentir um
pouco melhor oua achar que teria um momento decente em um dia
razoável, ela aparecia para garantirque não durasse.

Dessa vez, ela estava passando enquanto eu me encontrava


sentada em cimado muro na hora do almoço. Emily estava com ela
— Emily estava sempre com elanesses dias. Não olhei para elas e
mantive os olhos sobre meu caderno, que seguravano colo,
preocupada com o trabalho de história por fazer. Eu tinha acabado
deescrever a palavra profissão e não tirei a caneta do papel,
acalcando o "o", que ficavacada vez mais escuro, até Emily e
Sophie sumirem de uma vez.

Havia algo de cármico nisso tudo, embora eu não gostasse de


pensar arespeito. A verdade era que, até pouco tempo antes, eu era
a pessoa que andava aolado de Sophie enquanto ela fazia seu
trabalho sujo, e, por mais que não participasseda sujeira, eu
também não fazia nada para impedi-la. Como aconteceu com
Clarke.

Pensando nisso, levantei o olhar, observei o pátio e a vi com


algumas amigasem uma das mesas de piquenique. Ela estava na
ponta do banco com um cadernoaberto à sua frente, prestando um
pouco de atenção na conversa das garotas ao seulado e folheando
as páginas. Era óbvio que foi ela quem quis ficar sozinha
naqueleprimeiro dia, pois, desde então, não se aproximou mais do
muro nem de mim.

Mas Owen Armstrong continuava lá. Às vezes outras pessoas se


sentavam no
55

muro, em grupo ou sozinhas, porém só eu e ele estávamos lá todos


os dias. Haviasempre uma distância de cerca de dois metros entre
nós que era sempre respeitadapor qualquer um que chegasse
depois. Outras coisas também sempre aconteciam.Ele nunca comia,
pelo menos não que eu tenha visto. Eu sempre trazia
almoço,cortesia de minha mãe. Ele parecia ser completamente
alheio e não dar importância aoque os outros estavam fazendo,
enquanto eu passava o almoço convencida de quetodos estavam
me olhando e falando de mim. Eu fazia a lição de casa e ele
ouviamúsica. E nós nunca, nunca nos falávamos.

Talvez por eu ficar tanto tempo sozinha ou por me sobrar tempo


demais nahora do almoço para fazer lição de casa, seja qual for o
motivo, Owen Armstrongcomeçou a me fascinar. Todos os dias eu
fazia questão de lhe dar umas olhadas de rabode olho com o intuito
de coletar mais informações sobre sua aparência e seushábitos. Até
o momento, eu tinha juntado uma quantidade considerável de
dados.

Por exemplo, os fones de ouvido. Aparentemente, ele nunca os


tirava. Eraóbvio que ele gostava de música, e o iPod estava sempre
no seu bolso, na sua mão ouao seu lado no muro. Também percebi
que suas reações ao ouvir música eramvariadas. Ele quase sempre
ficava sentado e apenas balançava a cabeça devagar,quase
imperceptivelmente. Às vezes, batia os seus dedos no joelho, como
se tocassebateria, e, muito raramente, ele cantarolava a música
com os lábios fechados e numvolume tão baixo que eu mal podia
ouvir, mas sempre quando não havia ninguém porperto. Nesses
momentos eu ficava mais curiosa para saber o que ele estava
ouvindo,apesar de imaginar a música exatamente como ele: raivosa,
sombria e alta.

Também tinha a sua aparência. É claro que o tamanho era o que


mais chamavaa atenção: a altura, os pulsos grandes, a força de sua
mera presença.

Mas havia pequenos detalhes também, como os olhos escuros que


deviam serverdes ou castanhos, e os dois anéis idênticos — sem
adornos, largos e prateados —que ele usava no dedo do meio de
cada mão.

Agora, enquanto eu o observava, ele estava sentado com as pernas


esticadas, ocorpo inclinado para trás e apoiado nas palmas das
mãos. Um feixe de luz iluminava-lhe o rosto, ele usava fones de
ouvido, sua cabeça balançando discretamente, os olhosfechados.
Uma garota segurando um pôster passou por mim, desacelerou o
passo aose aproximar de Owen, e fiquei observando-a passar
cuidadosamente por cima do pédele, como o João de "João e o Pé-
de-Feijão", arrastando-se ao passar pelo giganteadormecido. Owen
não se mexeu e ela voltou a acelerar o passo.

Eu também sentia a mesma coisa em relação a Owen, é claro.


Todos sentiam.
56

Mas algo na nossa proximidade diária me fez relaxar ou, pelo


menos, não ficar commedo toda vez que ele olhava na minha
direção. Ultimamente as minhas maiorespreocupações eram
Sophie, uma ameaça real, ou até mesmo Clarke, que haviadeixado
claro que ainda me odiava.

Estranho pensar que era mais seguro ficar perto de Owen


Armstrong do quedas duas únicas melhores amigas que tive na
vida. Eu estava começando a perceber quenão se deveria ter medo
apenas do desconhecido. As pessoas que mais conhecem
vocêpodem ser mais ameaçadoras, pois o que elas dizem e pensam
a seu respeito podenão ser apenas assustador, mas também
verdadeiro.

Eu não tinha uma história com Owen. Com Sophie e Clarke era
diferente.Havia um padrão nisso, alguma conexão, mesmo que eu
não quisesse enxergá-la.Não parecia justo nem correto, mas eu
sempre imaginava que talvez não estivessenessa situação por
acaso e que ela talvez fosse exatamente o que eu merecia.

Depois daquela noite, quando eu e Clarke fomos à casa de Sophie


edevolvemos as suas coisas, ela começou a andar conosco. Não
precisou de nenhumconvite específico; simplesmente começou a
fazer parte do nosso grupinho. Derepente, havia uma terceira
cadeira de praia, outra mão dando as cartas nos jogos debaralho e
uma Coca-Cola a mais para carregar na sua vez de buscar bebidas.
Clarke eeu éramos amigas havia tanto tempo que estava sendo até
legal ter coisas novas, enão havia dúvida de que Sophie trazia isso
com seus biquínis e maquiagem, além desuas muitas histórias
sobre garotos que ela tinha namorado em Dallas. Ela era
muitodiferente de nós.

Sophie chamava a atenção e era segura de si, não tinha o menor


medo deconversar com os garotos, nem de usar a roupa que lhe
desse vontade ou dizer o quelhe viesse à cabeça. Ela não era
diferente de Kirsten nesse ponto. Porém, enquanto afranqueza das
minhas irmãs me deixava insegura, com Sophie era diferente.
Eugostava daquilo, e até sentia certa inveja. Eu não era capaz de
dizer o que queria, maspodia contar com ela para falar por mim.
Além disso, as coisas que ela sugeria para agente fazer — sempre
um pouco arriscadas, pelo menos para mim, mas ao mesmotempo
muito divertidas — eram aquelas que eu nunca teria feito por conta
própria.

Mesmo assim, eu me sentia insegura perto de Sophie em alguns


momentos,apesar de não saber muito bem o porquê. Por mais que
andássemos juntas e elativesse se tornado parte do meu dia a dia,
eu não conseguia esquecer como ela tinhasido maldosa comigo na
lanchonete naquele dia. Às vezes, eu apenas olhava paraSophie
enquanto ela contava uma história ou pintava as unhas deitada na
beira daminha cama, e me perguntava por que ela tinha feito aquilo.
E, em seguida, me
57

perguntava se ela não seria capaz de fazer tudo de novo.

Apesar de toda aquela pose, eu sabia que Sophie tinha seus


problemas

Seus pais tinham acabado de se divorciar, e, ao mesmo tempo em


que elanão parava de falar dos presentes caros que seu pai lhe
dava quando ela morava noTexas — roupas, jóias, tudo que ela
queria — uma vez ouvi minha mãe e uma amigaconversarem sobre
o divórcio, que aparentemente tinha sido bem complicado. O paide
Sophie saiu de casa para ficar com uma mulher muito mais nova e
havia umapequena batalha judicial pela casa deles em Dallas.
Parece que o Sr. Rawlins nãomantinha nenhum contato com Sophie
nem com a mãe dela. Mas Sophie nunca falousobre isso, e eu
nunca perguntei nada. Imaginei que, se ela quisesse dizer
algo,falaria de uma vez.

Entretanto, ela nunca se intimidava com nada. Por exemplo, ela


semprechamava a mim e Clarke de imaturas. Aparentemente, tudo
em nós estava errado:nossas roupas (muito infantis), nossas
atividades (chatas) e nossas experiências(inexistentes). E ao
mesmo tempo em que Sophie era interessada em meu
trabalhocomo modelo e parecia fascinada por minhas irmãs — que
basicamente a ignoravam,assim como a mim — ela implicava com
Clarke.

— Você parece um menino — ela disse um dia quando fomos ao


shopping.— Você podia ficar bem bonita se tentasse. Por que você
não usa maquiagem, ousei lá?
— Meus pais não deixam — Clarke disse, assoando o nariz.

— Ai, por favor — disse Sophie. — Os seus pais não precisam


saber. Passea maquiagem depois de sair de casa e tire antes de
voltar.

Mas Clarke não era assim e eu sabia disso. Ela se dava bem com
seus pais.Porém, Sophie não dava sossego. Se ela não implicava
com o fato de Clarke não semaquiar, o problema eram suas roupas,
seus espirros constantes ou o fato de ela terque voltar para casa
uma hora mais cedo do que nós duas — o que queria dizer
quequalquer coisa que a gente fizesse juntas tinha que durar menos
para garantir que elachegasse em casa no horário certo.

Se eu tivesse prestado mais atenção, talvez percebesse o que


estava acon-tecendo. Porém, só achei que estávamos nos
acostumando umas com as outras eimaginei que tudo se acertaria
com o tempo — foi o que pensei até aquela noite nocomeço de
julho.
58

Era um sábado, e todas íamos dormir na casa da Clarke. Os pais


dela tinhamsaído para assistir a algum concerto; então a casa era
toda nossa para uma noite depizza congelada e filmes. Era apenas
um sábado comum. Tínhamos pré aquecido oforno e Clarke estava
vendo os filmes no pay-per-view quando Sophie chegou,usando
uma minissaia de sarja, um top de alcinha que ressaltava seu
bronzeado esandálias brancas de salto.

— Uau! — eu disse quando ela entrou, com o salto fazendo barulho


no chão.— Como você está bonita!

— Obrigada — ela disse, enquanto eu a seguia em direção à


cozinha.

— Você está bem-arrumada para comer pizza — disse Clarke,


espirrando logo

depois.

Sophie sorriu.

— Não é para comer pizza — ela respondeu.

Clarke e eu nos olhamos. Eu perguntei:

— É para quê, então?

— Garotos — ela respondeu.

— Garotos? — repetiu Clarke.


— É. — Sophie pulou em cima do balcão da cozinha, cruzando as
pernas. —Eu conheci uns carinhas hoje, voltando para casa depois
da piscina. Disseram queestariam por lá hoje à noite e que era pra
gente ir se encontrar com eles.

— A piscina fica fechada à noite — Clarke disse, colocando a pizza


em umaassadeira.

— E daí? — retrucou Sophie. — Todos vão para lá. Não é nada


demais.

Naquele exato momento eu soube que Clarke não iria querer


participardaquilo. Primeiro, porque os pais dela iriam matá-la se
descobrissem. Segundo,porque ela sempre obedecia às regras,
mesmo aquelas que todo mundo ignorava,como tomar uma ducha
antes de entrar na piscina e sempre sair rápido dela assimque o
salva-vidas anunciava que só adultos podiam permanecer ali.

— Eu não sei — eu disse, ao pensar em tudo aquilo. — Melhor não.

— Ah, Annabel, vamos! — disse Sophie. — Não seja medrosa.


Além do
59

mais, um dos caras perguntou especificamente de você. Ele nos viu


juntas eperguntou se você iria.

— Eu? — perguntei.

Ela fez que sim com a cabeça.

— É. E ele é bonito. O nome dele é Chris Pen alguma coisa.


Penner? Penning?

— Pennington — respondi. Eu senti Clarke me olhando; ela era a


únicapessoa que sabia que eu era a fim dele. — Chris Pennington.

— Isso mesmo — disse Sophie. — Você conhece esse cara?

Dei uma olhada para Clarke, que fez questão de se concentrar na


preparaçãoda pizza, colocando-a no forno e ajustando a assadeira.

— A gente sabe quem ele é — eu respondi. — Não é, Clarke?

— Ele é uma graça — comentou Sophie. — Eles disseram que


estariam lápor volta das oito horas e que iam levar umas cervejas.

— Cerveja? — perguntei.

— Nossa, fique calma — ela disse, rindo. — Você não tem que
beber senão quiser.

Clarke fechou o forno com um estrondo e falou:

— Eu não posso sair.


— Ah, você pode vir também, sim — disse Sophie. — Seus pais
nem vão ficarsabendo.

— Eu não quero ir — resolveu Clarke. — Vou ficar aqui.

Apenas olhei para ela, sabendo que deveria dizer a mesma coisa,
mas, poralgum motivo, as palavras não saíram. Provavelmente
porque eu só conseguiapensar que Chris Pennington, o garoto para
quem olhei muitas tardes na piscina,tinha perguntado sobre mim.

— Bem — eu me forcei a dizer —, talvez...

— Então, eu e Annabel vamos — disse Sophie pulando para o chão


no-
60

vamente.

— Não é nada demais, não é, Annabel?

Naquele momento, Clarke me olhou. Ela virou a cabeça e percebi


seus olhosnegros fixados em mim. De repente, senti aquela falta de
equilíbrio de estar no meio detrês pessoas e, ter que escolher para
onde ir. De um lado estava Clarke, minha melhoramiga e toda a
nossa rotina, tudo o que sempre fizemos e conhecíamos. Do outro,
alémde Sophie e Chris Pennington, havia um mundo completamente
novo, aberto edisponível — mesmo que por pouco tempo, por
apenas uma noite. Eu queria ir.

— Clarke — eu disse, dando um passo em sua direção. — Vamos


só umpouquinho, a gente fica lá só meia hora. Depois a gente volta,
come pizza,assiste ao filme e faz tudo o que tinha combinado. Que
tal?

Clarke não era o tipo de pessoa que se deixava levar pelos


sentimentos. Erauma estóica por natureza, extremamente lógica.
Ela lidava com as questões da vidaresolvendo os problemas, dando
soluções e seguindo em frente. Mas, ao terminar defalar, percebi em
seu rosto algo raro: uma expressão de surpresa e, logo em
seguida,de mágoa. Foi tão inesperado que nem dava para saber se
eu tinha mesmo vistoaquilo.

— Não — ela respondeu. — Eu não vou. — Dito isso, saiu da


cozinha emdireção ao sofá, sentou-se e pegou o controle remoto.
Um segundo depois, ela estavazapeando os canais. As imagens e
cores mudavam rapidamente na tela.
— Então tá bom — disse Sophie, dando de ombros. Ela
simplesmente sevirou para mim e falou: — Vamos.

Sophie começou a andar em direção à porta da frente e, por um


segundo, nãome mexi. Tudo naquela noite na casa dos Reynolds
me era muito familiar: o cheirode pizza no forno, a garrafa de dois
litros de Coca-Cola no balcão da cozinha,Clarke sentada no sofá e o
meu lugar vago, ao seu lado, me esperando. Olhei para ocorredor e
para Sophie, parada ao lado da porta aberta. Atrás dela, não
estavatotalmente escuro e as luzes da rua estavam acesas, e, antes
de poder mudar de idéia,andei em sua direção e saímos.

Mesmo depois de tantos anos, eu me lembro muito bem daquela


noite e doque senti depois de passar pelo buraco na cerca da
piscina e atravessar oestacionamento escuro em direção a Chris
Pennington, que sorriu para mim e dissemeu nome em voz alta. E
do gosto suave e efervescente que experimentei ao dar oprimeiro
gole na cerveja que ele me trouxe. E mais tarde, depois de andar
com ele
61

até a parte de trás da piscina, de como foi beijá-lo, dos seus lábios
quentes contra osmeus e as minhas costas pressionadas contra a
parede gelada Ou de ouvir de longe arisada de Sophie, sua voz
vinda de algum lugar onde ela estava com o melhor amigodele, um
cara chamado Bill, que se mudou da cidade quando o verão acabou.
Todasessas coisas ficaram registradas, mas há uma imagem, um
momento que é maisimportante do que todos os outros. Aconteceu
mais tarde, quando olhei para a cercada piscina e vi alguém parado
do outro lado da rua, sob a luz de um poste. Umagarota pequena de
cabelos negros, usando shorts e sem maquiagem, que ouvia as
vozes, mas não podia nos ver.

— Annabel! — ela gritou. — Vem, está tarde.

Nós todos paramos de conversar. Eu vi Chris olhando em direção


ao escuro,procurando.

— O que foi isso?

— Shhh! — disse Bill. — Tem alguém lá fora.

— Não é "alguém". — disse Sophie, revirando os olhos. — É a


Clarke.

— Cia...O quê? — perguntou Bill, rindo.

Sophie tapou o nariz com os dedos e repetiu.

— Clãããrke!
Sua voz saiu tão parecida com a da Clarke, entupida e fanhosa, que
tomei umsusto. Senti um golpe no peito quando todos começaram a
rir e olhei para Clarkenovamente, sabendo que ela ouvia tudo. Ela
ainda estava lá, do outro lado da rua sob aluz, mas eu sabia que
não se aproximaria, e que eu tinha que levantar e ir até ela.

— É melhor... — eu falei, dando um passo à frente.

— Annabel. — Sophie me encarou e arregalou os olhos. Na época,


isso eranovo, mas depois passei a reconhecer aquela expressão,
uma mistura de aborrecimentoe impaciência. Era o olhar que ela me
dava milhões de vezes ao ano, toda vez que eunão estava fazendo
o que ela queria. — O que você está fazendo?

Chris e Bill estavam nos olhando.

— É que — eu comecei a falar e parei. — É melhor eu ir.

— Não — disse Sophie. — É melhor você ficar.


62

Eu devia ter simplesmente saído de lá, para longe de Sophie e de


tudoaquilo, e feito a coisa certa. Mas não fiz. Mais tarde, fiquei
repetindo a mim mesmaque tinha sido porque Chris Pennington
estava com a mão nas minhas costas, eraverão e, antes, quando
nossos lábios estavam juntos e sua mão acariciava meucabelo, ele
sussurrou que eu era linda. Mas, na verdade, o que me impediu
naquelemomento foi Sophie, e o medo do que poderia acontecer se
eu a contrariasse. Algo deque senti vergonha nos anos seguintes.

Então, eu fiquei onde estava e Clarke voltou para casa. Mais tarde,
quandofui para a casa dela, as luzes estavam apagadas e a porta,
trancada. Mesmo assim, bati.Porém, diferentemente daquela vez
em que fomos à casa da Sophie, a porta não seabriu. Clarke me
deixou esperando, assim como eu fiz com ela, e acabei indo
paraminha casa.

Eu sabia que ela estava com muita raiva de mim, mas imaginei que
tudo ficariabem. Foi apenas uma noite — eu errei; ela ia me
desculpar. Porém, no dia seguinte,quando fui falar com Clarke na
piscina, ela nem me olhou e ignorou os vários "ois" quefalei, virando
as costas toda vez que me sentava na cadeira ao seu lado.

— Poxa — eu disse. Nenhuma resposta — Foi burrice minha ter


ido.Desculpa, está bem?

Mas era óbvio que não estava nada bem, pois ela não olhava para
mim e seurosto continuava de perfil. Ela estava com tanta raiva e eu
me senti tão impotente quenão agüentei mais ficar lá. Então, me
levantei e fui embora.
— E daí? — disse Sophie quando fui até a casa dela contar o que
tinhaacontecido. — Por que você se importa que ela esteja com
raiva?

— Clarke é minha melhor amiga — respondi. — E agora ela me


odeia.

— Ela é só uma criança — retrucou Sophie. Sentada em sua cama,


euolhava para ela, que estava de frente para o espelho da
penteadeira. Ela pegou umaescova e a passou pelo cabelo. — E,
para falar a verdade, ela é meio nerd, Annabel.Tipo, você realmente
quer passar o verão assim? Jogando baralho e a ouvindofungar
daquele jeito? Poupe-me. Você ficou com Chris Pennington ontem à
noite.Você devia estar feliz.

— Eu estou — respondi, apesar de não acreditar que aquilo fosse


verdade.

— Ótimo — ela deixou de lado a escova e virou a cabeça para me


olhar. —Agora vamos. Vamos para o shopping, sei lá.
63

E foi assim que anos de amizade, todos aqueles jogos de baralho,


as noitescomendo pizza e dormindo uma na casa da outra
terminaram em menos de vinte equatro horas. Ao me lembrar disso
tudo, imagino que talvez, se eu tivesse ido falar comClarke mais
uma vez, nós teríamos resolvido a situação. Mas não fui. E, com o
passardo tempo, foi como se meu sentimento de culpa e a minha
vergonha abrissem umabismo entre nós, que só crescia. Durante
um tempo eu talvez ainda conseguissetranspô-lo, mas depois ficou
tão grande que não era mais possível enxergar o outrolado, e muito
menos tentar chegar nele.

Clarke e eu nos encontramos outras vezes, é claro, pois morávamos


nomesmo bairro, pegávamos o mesmo ônibus e frequentávamos a
mesma escola.Porém, nunca mais nos falamos, e Sophie acabou se
tornando minha melhor amiga.Nada mais aconteceu com Chris
Pennington, que, apesar do que me disse naquelanoite no escuro,
nunca mais falou comigo. Quanto à Clarke, ela fez novos amigos
notime de futebol; começou a jogar no outono. Nós éramos tão
diferentes e estávamostomando rumos tão distintos que ficava difícil
acreditar que um dia tínhamos sido tãopróximas uma da outra. No
entanto, no meu álbum de fotos tem páginas e páginas deprovas —
nós duas em almoços ao ar livre, andando de bicicleta, fazendo
pose nafrente da casa dela, e o pacote de lenços sempre presente
entre nós.

Antes de Sophie, as pessoas sabiam quem eu era por causa das


minhas irmãse do meu trabalho como modelo, mas bastou eu ficar
amiga dela para me tornarpopular. E havia uma diferença. O estilo
destemido de Sophie era perfeito para lidarcom as panelinhas e os
vários dramas do Ensino Fundamental e Médio. As
garotasmandonas e os cochichos que sempre me deixaram nervosa
não me incomodavammais. Além disso, era muito mais fácil
ultrapassar as muitas barreiras sociais depoisque Sophie as rompia
para mim. De repente, tudo o que eu sempre observei àdistância e
queria participar — as pessoas, as festas e, principalmente, os
garotos —não estava apenas mais próximo; na verdade, era
possível. Tudo graças à Sophie. E issofez as outras coisas que tive
que agüentar, como as variações de humor e o queaconteceu com
Clarke, quase valerem a pena. Quase.

De qualquer maneira, toda essa história entre mim, Clarke e Sophie


tinhaacontecido havia anos. Mas, no último verão, pensei muito em
Clarke, principalmentequando eu ficava sozinha na piscina. Muita
coisa teria sido diferente se naquela noiteeu tivesse ficado na casa
dela, me sentado ao seu lado no sofá e deixado Sophie irsozinha.
No entanto, fiz a minha escolha e não podia voltar atrás. Às vezes,
porém,nos finais de tarde, quando fechava os olhos, meu
pensamento viajava e eu ficavaescutando as crianças brincando na
água, o apito dos salva-vidas. Era quase como senada tivesse
mudado. Pelo menos até mais tarde, quando eu acordava de
repente e
64

me via na sombra, com uma brisa fresca batendo no rosto, e


percebia que já tinha passado da hora de ir para casa.

Quando cheguei em casa depois da escola, a casa estava vazia e a


luz da secretária eletrônica piscava. Peguei uma maçã da geladeira
e dei uma lustrada nelacom minha blusa enquanto ia em direção à
secretária eletrônica para ouvir asmensagens. A primeira era da
Lindy, minha agente.

"Oi, Grace, sou eu. Estou retornando sua ligação. Desculpe a


demora, minhaassistente pediu demissão e estou com uma
assistente temporária inútil atendendo ostelefonemas, um desastre.
De qualquer maneira, ainda não há notícias, mas recebiuma ligação
do escritório da Mooshka, então espero que tenhamos novidades
logo.Mantenho você informada, espero que tudo esteja bem. Beijos
na Annabel. Tchau!"

Bip. Eu já nem me lembrava do teste da Mooshka, mas minha mãe


comcerteza não tinha esquecido. Eu também não queria pensar
nisso agora. Então, passeipara a mensagem seguinte, que era da
Kirsten. Suas mensagens eram sempre longase repetitivas, e quase
sempre ela tinha que ligar de novo para continuar falandoquando a
secretária a interrompia. Então, assim que ouvi a voz dela, sentei-
me emuma cadeira.

" Sou eu", ela começou, "só estou ligando para dar um oi, ver como
estão ascoisas. Neste exato momento, estou indo para a aula; o dia
está lindo aqui... Não seise contei a vocês, mas me matriculei em
uma aula de comunicação este semestre,muito bem recomendada
por uma amiga, e estou adorando. Ela tem uma
abordagempsicológica e estou aprendendo muito... E o professor
assistente que cuida dosseminários é simplesmente brilhante. Quer
dizer, muitas vezes nas aulas eu me pegopensando em outras
coisas, mesmo quando a matéria me interessa, mas o Brian, eleé
simplesmente incrível. Sério. Eu até estou pensando em seguir a
área dacomunicação, pois estou aproveitando muito as aulas... Mas
também tem a minha aulade cinema, que também me interessa
muito, então, eu realmente não sei. De qualquerforma, estou quase
na sala de aula, espero que todos estejam bem. Saudades.
Amovocês. Tchau!"

Kirsten estava tão acostumada a ser cortada que sempre falava


mais rápidono final das mensagens, para terminar antes do bip.
Apertei o botão salvar e a casaficou silenciosa novamente.

Então me levantei, peguei a maçã e atravessei a sala de jantar.


Quandocheguei ao hall de entrada, parei como de costume para
olhar a foto em preto ebranco pendurada perto da porta. Era uma
foto de minha mãe com as três filhas.
65

Estamos de pé no quebra-mar perto da casa de veraneio do meu


tio. Todas debranco: Kirsten de jeans branco e uma camiseta lisa de
gola em "v", minha mãe comum vestido leve, Whitney com a parte
de cima do biquíni e uma calça de tecido leve,eu de top e saia
longa. Todas bronzeadas e com o mar às nossas costas.

A foto fora tirada três anos antes, durante uma de nossas viagens
de família àpraia; o fotógrafo era um amigo de um amigo do meu
pai. Na época, pareceu espontâneo,pois ele sugeriu de forma casual
que tirássemos a foto. Mas, na verdade, meu paitinha tudo
planejado havia semanas para dá-la de presente de Natal à minha
mãe.Ainda lembro que seguimos o fotógrafo, um homem alto e
magro cujo nome esqueci,pela areia, até chegarmos ao quebra-mar.
Kirsten foi a primeira e estendeu a mão paraajudar minha mãe,
seguida por Whitney e eu. Era difícil andar pelas pedras e eu
melembro de Kirsten guiar minha mãe pelas bordas cheias de
pedras até chegarmos a um local plano, onde posamos.

Na foto, estamos abraçadas: os dedos de Kirsten entrelaçados com


os deminha mãe, Whitney com os braços em volta dela e eu estou
na frente, também umpouco apoiada em minha mãe, com meu
braço em torno de sua cintura. Minha mãe eKirsten estão sorrindo, e
Whitney, apenas olhando fixamente para a câmera, linda detirar o
fôlego como sempre. Apesar de me lembrar de ter sorrido todas as
vezes queo flash disparava, não reconheço minha expressão no
resultado final, que ficou entre osorriso largo de Kirsten e a
seriedade deslumbrante de Whitney.

Mas a foto era linda e sua composição, perfeita. As pessoas sempre


faziamalgum comentário sobre ela, já que era a primeira coisa que
se via ao entrar na casa.Nos últimos meses, porém, ela começou a
ter um ar lúgubre. Eu não conseguia maisver somente o belo
contraste preto e branco ou a forma como as nossas feições
serepetiam de formas diferentes, mas sempre parecidas. Agora eu
via outras coisas aoobservá-la: a proximidade entre Whitney e
Kirsten e como não havia espaço entre elas,o meu próprio rosto e
como ele tinha uma expressão diferente e mais relaxada. E
comominha mãe parecia pequena rodeada por nós três, inclinadas
sobre ela, abraçando-a eprotegendo-a com nossos corpos como se
ela pudesse ser levada pelo vento caso nãoestivéssemos lá para
segurá-la.

Peguei a maçã novamente e dei uma mordida no exato momento


em que ocarro de minha mãe parou na garagem. Em seguida, ouvi
portas batendo e vozes enquanto ela e Whitney entravam em casa.

— Olá — disse minha mãe, colocando no balcão da cozinha a


sacola decompras que carregava. — Como foi na escola?
66

— Bem — eu disse, dando um passo para trás quando Whitney


passouapressadamente, sem me notar, e subiu as escadas. Era
quarta-feira e isso queriadizer que ela tinha acabado de voltar da
terapia, o que sempre a deixava de mauhumor. Sempre pensei que
terapia fosse algo que fazia as pessoas se sentiremmelhor, e não
pior, mas aparentemente era bem mais complicado que isso.
Porém,tudo era bem mais complicado para Whitney.

— Lindy deixou uma mensagem — disse à minha mãe.

— O que ela disse?

— O pessoal da Mooshka ainda não ligou.

Minha mãe pareceu decepcionada, mas apenas por um momento.

— Ah, bom. Tenho certeza de que vão ligar — disse. Ela andou em
direção àpia, abriu a torneira e passou sabonete líquido nas mãos,
olhando paraa piscina através da janela. Essa luz de final de tarde a
fazia parecer cansada — além disso, quarta-feira era um dia
cansativo para ela.

— E Kirsten ligou. Ela deixou uma mensagem bem comprida — eu


disse.Ela sorriu.

— Não me diga. É bom ouvir isso — ela disse, secando as mãos em


umpano de prato. Em seguida, ela o dobrou, o pôs novamente perto
da pia eveio se sentar ao meu lado. — Então. Conte algo que
aconteceu hoje com você. Algo bom.
Algo bom. Pensei por um segundo naquela situação com Sophie,
nas minhasobservações diárias de Owen Armstrong e no fato de
Clarke ainda me odiar. Nenhumadessas coisas podia ser
classificada com o adjetivo "bom", e nem algo parecido. Como
passar dos segundos, percebi que começava a entrar em pânico,
desesperada paralhe contar algo que pudesse compensar o fato de
o pessoal da Mooshka não ter ligado,pelo mau humor da Whitney e
por tudo. Ela continuava esperando.

— Tem um garoto na minha aula de Educação Física — eu disse,


finalmente.— Ele é bonitinho e falou comigo hoje.

— Ah é? — ela disse sorrindo. Ponto para mim. — Qual o nome


dele?

— Peter Matchinsky — eu disse. — Ele está no último ano.

Não foi uma mentira. Peter Matchinsky realmente fazia aula de


Educação Física
67

comigo, era bonitinho e estava no último ano. E ele tinha, sim,


falado comigo naqueledia, mas apenas para perguntar o que o
treinador Erlenbach tinha dito sobre a prova denatação que estava
próxima. Nunca tive o hábito de aumentar histórias para minhamãe,
mas nos últimos meses aprendi a me perdoar por essas pequenas
transgressõesporque ela ficava muito feliz. Diferentemente da
verdade, que seria a última coisa queela iria querer ouvir.

— Um garoto bonito do último ano — ela disse, voltando a sentar na


suacadeira. — Bom, me conte mais.

E eu contava. Mesmo não sendo muita coisa. Se fosse necessário,


euflorearia mais a história, colocaria mais recheio com o objetivo de
torná-lasubstancial o suficiente para saciar a necessidade de que,
pelo menos, a minha vidafosse normal. O pior é que havia muitas
coisas que eu realmente queria contar para ela,mas nenhuma delas
seria facilmente digerida. Ela já tinha passado por tanta coisa comas
minhas irmãs — eu não queria lhe dar mais um fardo. Então, me
esforçava para sero ponto de equilíbrio, pouco a pouco, de palavra
em palavra, de história em história— mesmo que não fosse
verdade.

***

Na maioria das manhãs antes da escola, só eu e minha mãe


tomávamos caféjuntas. Meu pai juntava-se a nós apenas quando
podia chegar mais tarde noescritório. Whitney nunca se levantava
antes das onze. Até que, havia algumassemanas, eu desci e a vi de
banho tomado, vestida para sair e sentada à mesa com aschaves
do meu carro à sua frente. Percebi que algo estava acontecendo. E
eu estavacerta.

— Sua irmã vai te levar para a escola hoje — disse minha mãe. —
Edepois ela vai ficar com o seu carro para fazer umas compras, ir ao
cinemae depois te pega à tarde. Tudo bem?

Eu olhei para Whitney, que me observava, séria.

— Claro — eu disse.

Minha mãe sorriu, depois olhou para minha irmã, para mim e para
minha irmãde novo.

— Ótimo — ela disse. — Tudo se acerta.

Ao dizer isso, percebi que ela se esforçou para parecer


despreocupada, mas
68

seu tom de voz denunciava o contrário. Desde que Whitney tinha


saído do hospital,minha mãe preferia mantê-la ocupada e sob seu
nariz. Por isso, minha irmã sempreficava encarregada de tarefas e
era arrastada para os compromissos da minha mãe.Whitney sempre
reclamava por mais liberdade, mas minha mãe temia que ela
fosseexagerar, tomar laxante, fazer exercício ou qualquer outra
coisa que fosse proibida.Estava claro que algo havia mudado;
porém, eu não consegui saber o que e nem qual omotivo.

Quando andamos em direção ao carro, eu automaticamente fui para


o ladodo motorista e depois parei ao ver Whitney fazer a mesma
coisa. Durante umsegundo, nós duas ficamos lá. Depois, ela disse:

— Eu dirijo.

— Ok — respondi. — Tudo bem.

O trajeto foi estranho. Apenas quando chegamos à rodovia, me dei


conta quenão ficava sozinha com Whitney havia muito tempo. Não
fazia idéia do que dizer aela. Eu podia perguntar sobre as compras,
mas isso poderia lembrar assuntosrelacionados ao corpo, então
tentei pensar em outras coisas para falar. Ir ao cinema? O trânsito?
Eu não tinha a menor idéia. Então, fiquei lá, sentada em silêncio.

Whitney também não falou. Pude perceber que ela não dirigia havia
algumtempo. Ela estava sendo muito cuidadosa, freando antes do
necessário ao se aproximardos semáforos, deixando outros carros
passarem. Quando estávamos paradas em umsinal vermelho, olhei
para o outro lado e vi dois executivos em uma SUV olhando paraela.
Os dois usavam terno — um tinha cerca de vinte anos e o outro, a
idade do meupai — e instantaneamente fiquei na defensiva,
querendo protegê-la, mesmo sabendoque ela teria odiado isso se
soubesse. No entanto, percebi logo depois que eles nãoestavam
olhando por causa da sua magreza, mas porque Whitney chamava
atenção.Eu havia me esquecido que minha irmã já tinha sido a
garota mais bonita que vi navida. O mundo, ou pelo menos uma
parte dele, ainda parecia vê-la da mesma forma.

Estávamos a pouco mais de um quilômetro da escola quando


finalmenteresolvi tentar dizer algo.

— Então — eu falei — você está empolgada para o dia de hoje?

Ela me deu uma olhada rápida e depois voltou a prestar atenção no


trânsito.

— Empolgada? — ela repetiu. — Por que eu estaria empolgada?

— Não sei — falei enquanto entrávamos no estacionamento da


escola. —
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Talvez porque, sabe, você tem um dia inteiro só para você.

Por um segundo, ela não respondeu, preocupada em parar o carro.

— É só um dia — ela finalmente disse. — Antes eu tinha uma vida


inteira.Eu não sabia o que responder.

— Bom, até mais tarde! — pareceu bem tosco, se não


completamenteinadequado. Então, apenas abri a porta e me
estiquei para pegar a mochila no bancode trás.

— Vejo-te às três e meia — ela disse.

— Certo — respondi.

Ela deu a seta, olhando para ver se vinha algum carro. Eu fechei a
porta e elasaiu dirigindo.

Não pensei mais em Whitney durante o resto do dia, pois eu tinha


uma provade literatura à tarde e estava muito nervosa. E tinha razão
para estar, ao final dascontas, pois, apesar de ter estudado bastante
na noite anterior, além de ter ido àsaulas de revisão da professora
Gingher no horário do almoço, não conseguiresponder algumas
questões. Eu não podia fazer mais nada além de ficar lá
olhandopara a prova, e me sentindo uma completa idiota, até ela
anunciar que era hora deentregar os testes.

Ao descer as escadarias em direção à entrada do prédio principal


paraencontrar Whitney, peguei minhas anotações e comecei a lê-
las, tentando entender porque não tinha ido tão bem. Havia uma
multidão passando e eu estava tão concentradaque só vi o jipe
vermelho estacionado quando passei bem na frente dele.

Eu estava apenas lendo as minhas anotações sobre literatura,


tentandoencontrar uma citação da qual tinha me esquecido
completamente, e, de repente, nominuto seguinte, eu estava na
frente de Will Cash. Dessa vez, ele tinha me vistoprimeiro. E não
tirava os olhos de mim.

Olhei para o outro lado, bem rápido, andando mais depressa ao


passar nafrente do pára-choque do seu carro. Estava quase
chegando na calçada quando eleme chamou.

— Annabel — ele disse.

Eu sabia que deveria tê-lo ignorado. Porém, minha cabeça já tinha


virado,
70

instintivamente. Ele estava sentado, usando uma camisa xadrez,


barba por fazer eóculos escuros pendurados na testa, os quais
davam a impressão de que iriam cair aqualquer momento.

— Ei! — ele disse. Eu estava agora tão perto do carro que podia
sentir o ar-condicionado soprando para fora da janela aberta.

— Oi — emiti apenas uma palavra. Mas ela saiu distorcida, lacerada


comose estivesse presa na garganta.

Ele aparentemente não se deu conta do meu nervosismo e colocou


ocotovelo para fora da janela, olhando para o pátio atrás de mim.

— Não te vejo mais nas festas — ele disse. — Você ainda está
saindo?Naquele momento, bateu uma brisa que fez minhas
anotações flutuarem, fazendo um som igual ao do bater de asas. Eu
segurei os papéis com mais força.

— Não — consegui dizer. — Não muito.

Senti um calafrio subir pelo meu pescoço e fiquei com medo de


desmaiar. Eunão podia olhar para ele, então mantive os olhos
baixos. Mas, pelo rabo do olho, visua mão parada sobre a janela
aberta e não conseguia parar de olhar para ela, observando aqueles
dedos longos batendo na porta do jipe.

Shhh, Annabel. Sou só eu.

Eu balancei a cabeça e, finalmente, me virei e saí andando. Respirei


fundo,tentando me lembrar de que estava cercada de gente, e a
salvo. Até que meu estômagocomeçou a revirar, algo que eu não
podia controlar. "Ah, meu Deus", pensei,guardando rapidamente
meus papéis dentro da mochila, que eu pus no ombro semfechar, e
comecei a andar em direção ao prédio mais próximo, torcendo
paraconseguir me segurar até o banheiro. Ou, pelo menos, até um
lugar onde nãopudessem me ver. Mas eu não andei por muito
tempo.

— O que foi aquilo?

Era Sophie. Ela estava logo atrás de mim. Eu parei de andar, mas a
bilecontinuava subindo. Depois de tantas vezes a ouvindo emitir
apenas uma palavra,ouvir essas quatro era demais para mim. E ela
não parou.

— Que diabos você está fazendo, Annabel? — ela disse.

Duas garotas mais novas passaram por mim apressadas e com os


olhos
71

arregalados. Eu segurei a alça da minha mochila com mais força,


engolindo de novo.

— Aquela noite não foi suficiente? Você precisa de mais ou algo


assim?Eu não sei como, mas continuei andando. "Não passe mal,
não olhe para trás, não façanada", eu repetia para mim mesma, mas
minha garganta tinha um gosto amargo e minha cabeça parecia
mais leve.

— Não me ignore — disse Sophie. — Vira e olha pra mim, sua


vadia.Tudo que eu queria — tudo o que eu sempre quis — era me
afastar. Estar em algumlugar pequeno onde eu pudesse entrar e me
sentir segura, entre quatro paredesestreitas protegendo meu corpo,
ninguém olhando, ninguém apontando ou gritando.Mas ali estava eu
em um local aberto, à vista de todos. Talvez eu devesse terdesistido
e a deixado fazer o que quisesse, já que estava sendo assim havia
semanas,mas algo aconteceu. Ela esticou o braço e agarrou o meu
ombro.

Nesse momento, alguma coisa forte e poderosa tomou conta de


mim. E, antesque eu pudesse me dar conta, virei o rosto e a
encarei, esticando mãos que eu nemtinha certeza se eram as
minhas para afastá-la. Senti minhas palmas batendo contraseu
peito, empurrando-a e fazendo-a cambalear. Isso foi um
acontecimento inédito eúnico, surpreendente para nós duas, mas
principalmente para mim.

Sophie perdeu o equilíbrio, arregalou os olhos, mas se recompôs


rapidamentee tornou a vir em minha direção. Ela usava uma saia
preta e uma blusa justa amarelae brilhante, seus braços eram
bronzeados e definidos, seu cabelo estava solto naaltura dos
ombros.

— Ah, meu Deus — ela disse em voz baixa, e eu de alguma


maneiraconsegui recuar, com os pés firmes. — É melhor você...

Uma multidão à nossa volta estava se aproximando. Mais do que o


movimento,eu ouvi o barulho do carrinho do segurança se
aproximando.

— Parem! — ele gritou. — Vão para o estacionamento ou para a


área do

ônibus.

Sophie se aproximou de mim.

— Você é uma vagabunda — ela disse em voz baixa, e eu ouvi um


oooh vindo de algum lugar, seguido do segundo aviso do
segurança.

— Fique longe do meu namorado — ela continuou, ainda em voz


baixa.— Você está entendendo?
72

Eu fiquei lá, parada. Ainda sentia a pressão do peito dela contra a


minha mão ea sensação de empurrá-la.

— Sophie... — eu disse.

Ela balançou a cabeça, deu um passo à frente, passando bem perto


de mim.Seu ombro bateu no meu com força e eu me desequilibrei,
batendo em alguém queestava atrás de mim antes de me
estabilizar. Todos estavam nos olhando e uma névoade rostos
flutuava e mudava de lugar enquanto Sophie passava entre eles.
Até quetodos os olhos se voltaram para mim.

Abri caminho entre as pessoas que estavam perto de mim com uma
mão naboca. Eu ouvia as pessoas falando e rindo, enquanto a
multidão se desfazia pouco apouco, até que finalmente cheguei ao
outro lado. O prédio principal estava bem naminha frente e em volta
dele tinha uma fileira de arbustos altos. Eu corri naqueladireção e
senti as folhas me pinicando enquanto passava entre eles. Não
consegui irmuito longe, e fiquei torcendo para que ninguém me visse
enquanto eu me inclinavapara a frente, com uma mão apertando o
estômago, para vomitar na grama, tossindo ecuspindo, aquele
barulho nos meus ouvidos.

Quando terminei, minha pele estava úmida e eu tinha lágrimas nos


olhos. Foihorrível e vergonhoso. Era um daqueles momentos em
que você só quer ficar só.Principalmente quando, de repente, você
percebe que não está.

Não ouvi os passos. Nem vi a sombra. Do lugar onde eu estava


agachada nochão, onde só conseguia enxergar o verde da grama, a
primeira coisa que vi forammãos, um anel prateado no dedo do meio
de cada uma delas. Uma estava segurando asminhas anotações. A
outra vinha na minha direção.
73

Cinco

Owen Armstrong parecia um gigante com sua mão enorme se


aproximando de mim. Ainda não sei como, quando me dei conta, já
estava me apoiando nele, e, emseguida, ele pegou minha mão para
me ajudar a levantar. Fiquei de pé durante cercade um segundo, até
sentir minha cabeça leve novamente, ficar tonta e cambalear.

— Opa — ele disse, inclinando-se para me segurar. — Calma. É


melhorvocê se sentar.

Ele apoiou minhas costas na parede do prédio e senti os tijolos frios


contra aminha pele. Deslizei vagarosamente pela parede até me
sentar na grama. Dessa novaperspectiva, ele parecia ainda maior.

De repente, Owen tirou a mochila do ombro e ela fez barulho ao


bater no chão.Em seguida, ele se agachou ao lado dela e começou
a revirá-la à procura de algo. Ouviobjetos batendo uns nos outros
enquanto eram movidos e redistribuídos, e pensei quetalvez eu
devesse ficar esperta. Finalmente, sua mão parou de procurar e ele
se sentoucalmamente. De tão tensa, nem me mexi quando ele tirou
a mão da mochila devagar,segurando... um pacote de lenços,
daqueles pequenos, todo amassado, e o pressionoucontra seu peito
— que, minha nossa, era enorme —, para desamassá-los antes
depegar um e me dar. Eu peguei o lencinho do mesmo jeito com
que antes segurei a suamão — sem acreditar no que estava
acontecendo e com muito cuidado.

— Você pode ficar com o pacote — ele disse. — Se quiser.


— Está tudo bem—falei, com a voz rouca. — Um já está bom. —
Pressionei olenço contra a minha boca, suspirando. Ele colocou o
pacote ao meu lado mesmoassim.

— Muito obrigada — eu disse.

— Não foi nada.

Ele se sentou na grama ao lado da mochila. Como fui à aula de


revisão, euainda não o tinha visto naquele dia, mas ele estava igual:
jeans, camiseta desfiada na
74

bainha, botas pretas de solado grosso, fones de ouvido. De perto —


ou mais de perto— pude ver que ele tinha algumas sardas e que
seus olhos eram verdes, e nãocastanhos. Ouvi vozes que
chegavam do pátio; elas pareciam flutuar sobre nossascabeças.

— Então, num... — ele disse — você está bem? Eubalancei a


cabeça rapidamente.

— Sim — respondi. — Eu passei mal de repente, não sei...

— Eu vi o que aconteceu — ele disse.

— Ah — falei. Senti meu rosto ficar vermelho. — É. Foi... Horrível.


Eleergueu os ombros.

— Podia ter sido pior.

— Você acha?

— Claro que sim. — Sua voz não era estrondosa como eu


imaginava, massim, baixa e calma. Quase macia. — Você podia ter
dado um soco nela.

Eu concordei, fazendo que sim com a cabeça.

— É — falei. — Acho que você tem razão.

— Mas foi bom você não ter feito isso. Não teria valido a pena.

— Não? — eu disse, apesar de nem ter pensado em fazer isso.


— Não. Nem mesmo se a sensação fosse boa naquele momento —
ele disse.— Acredite em mim.

O mais estranho de tudo era que eu acreditava, e confiava nele.


Olhei para opacote de lencinhos que ele tinha me dado, estiquei
meu braço e peguei mais um.Naquele exato momento ouvi algo
vibrar na minha mochila. Era o meu celular.

Eu o peguei, vi que era minha mãe e fiquei na dúvida se atendia ou


não, pois jáera estranho o suficiente estar sentada naquele lugar
com Owen sem envolver aminha mãe. Porém, eu já não tinha muita
coisa a perder mesmo; afinal de contas, elejá tinha me visto vomitar
— duas vezes — e perder o controle na frente de metade daescola.
Não precisávamos mais de formalidades. Atendi.

— Alô?
75

— Oi, querida! — A voz dela era tão alta no telefone que imaginei
que talvezOwen pudesse ouvi-la. Então, apertei o celular contra a
minha orelha. — Como foi seudia?

Nesse momento eu já tinha percebido o tom agudo e nervoso que


sua vozadquiria quando ela estava preocupada e fingia não estar.

— Foi bom — eu disse. — Está tudo bem. O que foi?

— Bem — ela disse. — A Whitney ainda está no shopping. Ela


achou umaspromoções ótimas, mas perdeu o horário do cinema, e
como ela quer muito ver essefilme, ligou dizendo que ficaria fora até
mais tarde.

Eu coloquei o telefone na outra orelha, porque muita gente começou


a falaralto perto de nós. Owen olhou para eles, que logo depois
saíram de lá.

— Então, ela não vem me pegar?

— Bem, pelo visto não — ela respondeu. É claro que Whitney ia


tentaraproveitar ao máximo o seu primeiro dia de liberdade. E é
óbvio que minha mãe diriaclaro, fique até mais tarde e está tudo
bem, mas depois ficaria apavorada. — Mas euposso te pegar — ela
disse — ou talvez você possa pegar carona com algum de
seusamigos.

Algum de meus amigos. Até parece. Eu balancei a cabeça e passei


a mão nosmeus cabelos.
— Mãe — falei, tentando soar calma. — É que já está meio tarde,
e...

— Ah, tudo bem! Eu saio para te pegar já! — ela disse. — Chego
em quinzeminutos.

Ela não queria me pegar e nós duas sabíamos disso. Talvez a


Whitney ligasseou aparecesse. Ou pior, talvez ela não aparecesse.
E, não pela primeira vez, eu gostariaque a gente dissesse o que
realmente queria dizer. Mas isso, assim como tantas outrascoisas,
era impossível.

— Pode deixar — eu lhe disse. — Eu pego uma carona.

— Tem certeza? — ela perguntou, porém, eu logo percebi que ela


tinharelaxado, pensando que esse problema, pelo menos, estava
resolvido.

— Sim. Eu ligo se não conseguir.


76

— Isso mesmo — ela concordou. E então, no momento em que eu


já estavacomeçando a ficar com raiva, ouvi: — Obrigada, Annabel.

Logo após desligar, fiquei parada com o telefone na mão. Mais uma
vez, tudogirava em torno da Whitney. Para ela, isso pode ter sido
apenas um dia, mas para mim,foi um dia horrível. E, agora, eu tinha
que voltar para casa a pé.

Olhei novamente para Owen. Enquanto eu tinha mais esse


problema pararesolver, ele pegou o iPod e estava mexendo nele.

— Então você precisa de uma carona — ele disse, sem me olhar.

— Ah, não — respondi rapidamente, fazendo que não com a


cabeça. — É sóa minha irmã que... Está sendo chata.

— Parece a história da minha vida — ele disse. Owen apertou mais


um botão,depois colocou o iPod de volta no bolso e se levantou,
limpando a calça jeans. Emseguida, ele se abaixou para pegar a
mochila e a colocou em cima do ombro. —Vamos.

Eu tive que agüentar muita gente me olhando e me examinando


desde ocomeço do ano. Mas nada comparável aos olhares
direcionados a mim e a Owenenquanto andávamos rumo ao
estacionamento. Cada pessoa por quem passávamosgrudava os
olhos em nós, a maioria sem se preocupar em disfarçar, e algumas
vezescom alguns comentários — "Caraca, você viu isso?". Owen,
no entanto, parecia nãoperceber nada disso enquanto andava em
direção a uma Land Cruiser azul e antiga comuns vinte CDs no
banco do passageiro. Ele sentou-se ao volante, tirou os CDs e abriu
a porta para mim.
Entrei no carro e estiquei o braço para pegar o cinto de segurança.
Quandoeu já estava quase prendendo o cinto, ele disse:

— Espera. Ele está meio zoado. — E fez um gesto para eu lhe dar a
fivela.Então ele passou o cinto em mim (percebi que suas mãos
estavam a umadistância decente da minha barriga), depois levantou
a fivela e fechou ocinto. Em seguida, tirou do porta-treco da porta do
motorista um pequenomartelo:

Eu devo ter feito uma cara de susto — garota - de-17-anos-


encontrada-morta-no-estacionamento-do-colégio— porque ele me
olhou e disse:

— É só assim que ele funciona. — E deu três marteladas leves no


fechoantes de puxá-lo para ver se estava bem encaixado. Ao
perceber que sim,
77

colocou o martelo de volta no porta-treco e deu partida no carro.

—Uau! — eu disse, colocando a mão no fecho e dando uma


mexidinha. O fecho não se movia. — Como eu saio?

— É só apertar o botão — ele respondeu. — Essa parte é


fácil.Quando o carro começou a se movimentar pelo
estacionamento, Owen abriu a janelae apoiou o braço nela, e eu dei
uma olhada no interior do carro. O painel era todoquebrado e o
couro dos bancos estava rasgado. Além disso, tinha um cheiro
decigarro tão forte que dava até enjôo. No entanto, o único cinzeiro
ali estava meioaberto, limpo e cheio de moedas no lugar de bitucas.
Vi uns fones de ouvido no bancode trás, juntamente com um par de
coturnos de couro avermelhado do Dr. Martins evárias revistas.

Porém, o que mais vi foi CDs, muitos CDs. Não apenas os que ele
tinhatirado do banco da frente e jogado atrás para eu me sentar,
mas pilhas e pilhas deoutros, alguns comprados em lojas e outros
claramente gravados em casa, amontoadosem uma bagunça no
banco e no chão do carro. Olhei novamente para o painel à
rainhafrente. Apesar de o carro ser antigo, o som parecia
praticamente novo, sem falar deavançado, pois tinha várias luzes
piscando.

No exato momento em que eu pensava sobre isso, nós chegamos


aosemáforo que fica no topo do estacionamento, e Owen ligou a
seta, olhando para osdois lados. Depois, esticou a mão para ligar o
som do carro, girando o botão de volumecom o polegar antes de
virar à direita.
Mesmo depois de tantos almoços examinando-o e de todos os
detalhes que eutinha conseguido observar até o momento, uma
coisa ainda permaneciadesconhecida: a música. Porém, eu tinha
algumas idéias e pensei em punk rock,thrash metal, algo rápido e
alto.

No entanto, depois de um pouco de interferência, o que ouvi foi... cri


cri cri....Aquele barulho parecia um coro de grilos. Depois, surgiu
uma voz que cantava em umalíngua que eu não entendia. O cri cri
ficou mais alto, mais alto, e a voz também, eparecia que eles
chamavam uns aos outros. Ao meu lado, Owen dirigia, balançando
acabeça de leve.

Depois de um minuto e meio, minha curiosidade foi maior.

— Então — falei — o que é isso?

Ele me olhou.
78

— Cantos espirituais maias — respondeu.

— O quê? — perguntei novamente, falando mais alto para ser


ouvida em meioaos cri cris, que agora estavam com tudo.

— Cantos espirituais maias — ele repetiu. — Eles são passados de


geraçãopara geração, como tradições orais.

— Ah — eu disse. A canção agora era tão alta que estava no limite


doagudo. — Onde você arrumou isso?

Ele esticou o braço e abaixou um pouco o volume.

— Na biblioteca da universidade — ele disse. — Eu peguei na


coleção desom e cultura que tem lá.

— Ah — falei. Então Owen Armstrong era espiritual. Quem diria!


Mas,também, quem imaginaria que um dia eu fosse estar sentada
no carro dele ouvindocantos com ele? Eu, nunca. Nem ninguém. E,
mesmo assim, ali estávamos nós.

— Então você deve gostar mesmo de música — comentei, olhando


para aspilhas de CDs.

— E você não? — ele respondeu, trocando de faixa.

— É claro — respondi. — Quero dizer, todo mundo gosta, não é?

— Não — ele disse secamente.

— Ah, não?
Ele balançou negativamente cabeça.

— Algumas pessoas pensam que gostam de música, mas não têm


idéiado que ela realmente é. Elas estão se enganando. Há também
pessoas quegostam muito de música, mas que não estão ouvindo a
coisa certa. Elas sãomal orientadas. E há pessoas como eu.

Por um segundo, eu fiquei parada, observando. Ele ainda estava


com ocotovelo apoiado na janela, praticamente deitado no banco e
com a cabeça quasetocando o teto do carro. De perto, eu ainda o
achava um pouco intimidador, mas poroutros motivos. Um deles era
sem dúvida o seu tamanho, mas ainda havia outrascoisas, como
aqueles olhos escuros e braços fortes, além do olhar atento e
penetrante,que ele agora voltava para mim antes de tornar a prestar
atenção no trânsito.
79

— Pessoas como você — eu disse. — Que tipo de pessoas são


essas?Ele deu a seta novamente e desacelerou. À frente, vi minha
antiga escola e um ônibusescolar amarelo parado no
estacionamento.

— Do tipo que vivem para a música e estão constantemente


procurandomúsica em todo lugar. Que não conseguem imaginar a
vida sem música. Sãoiluminados.

— Ah — eu disse, como se isso realmente fizesse sentido para mim.

— Assim, quando você realmente pensa sobre ela — ele continuou


— amúsica é a grande unificadora. Uma força inacreditável. Algo
que pessoas que sãodiferentes em tudo podem ter em comum.

Eu balancei a cabeça, sem saber o que responder.

— E há o fato — ele continuou, deixando claro que não precisava da


minharesposta — de que a música é uma constante. É por isso que
nós temosuma conexão visceral com ela, sabe? Porque uma música
pode instantâneamentetransportar você para um momento, um lugar
ou até uma pessoa. Nãoimporta que tudo tenha mudado no seu
mundo, aquela música específicacontinua a mesma, assim como
aquele momento. E isso é impressionante,se você pára pra pensar
de verdade a respeito.

Realmente, era bem impressionante. Essa conversa também era


impres-sionante, tão especial e diferente de tudo que eu pudesse
imaginar.

— Sim — eu disse lentamente. — É sim.


Ficamos um tempo em silêncio. Mas o canto continuava

— O que eu quero dizer — ele falou — é que, sim, eu gosto de


música.

— Eu entendi — respondi.

— E agora — ele disse ao entrarmos no estacionamento da escola


— eu peçodesculpas antecipadamente.

— Desculpas? Por quê?

Ele reduziu a velocidade e parou na calçada.

— Minha irmã.

Havia várias garotas paradas na entrada principal da escola


Lakeview
80

Middle e eu olhei com atenção o rosto de cada uma tentando


adivinhar quem seria airmã do Owen. A garota de tranças ao lado
de um case de instrumento e encostada naparede do prédio com
um livro aberto na mão? A loira alta com uma mochila grandeda
Nike, um bastão de hóquei e tomando uma Coca-Cola? Ou a mais
provável: agarota com cabelo escuro e de corte curto e desfiado,
toda de preto, sentada em umbanco próximo, de braços cruzados e
olhando para o céu?

Porém, naquele momento, ouvi alguém batendo na minha janela


Quando mevirei, vi uma garota pequena, magra e de cabelo escuro,
toda vestida de cor-de-rosa:um rabo de cavalo preso com uma fita
rosa, gloss rosa brilhante, uma camiseta rosa-shocking, jeans e uma
sandália de plataforma cor-de-rosa. Ela soltou um gritinhoestridente
quando me viu.

— Ai, meu Deus! — ela estava quase sem fôlego e ouvi sua voz
abafadapela janela entre nós. — É você!

Abri a minha boca para dizer algo, mas, antes disso, ela
desapareceu dajanela. Um segundo depois, a porta traseira se abriu
e ela entrou.

— Owen, ai, meu Deus — ela disse com sua voz ainda animada e a
todoo volume. — Você não me disse que era amigo da Annabel
Greene!

Owen olhou para ela pelo retrovisor.

— Mallory — ele disse —, segura a onda.


Eu comecei a me virar para dar um oi, mas ela já estava inclinada
para frente,colocando a cabeça entre o meu banco e o de Owen, e
ficou tão perto de mim que pudesentir o hálito de chiclete.

— Isso é inacreditável — ela disse. — É, é você.

— Oi — eu disse.

— Oi — ela respondeu com a voz estridente e deu alguns pulinhos


no bancotraseiro. — Ai, meu Deus, eu adoro o seu trabalho, gosto
muito mesmo.

— Trabalho? — Owen perguntou.

—É ela, mesmo! Eu não acredito! Estou louca para contar para a


Shelley e aCourtney, meu Deus! — Mallory pegou sua mochila,
abriu-a e pegou o celular. — Ah!Talvez você possa dar um oi para
elas, isso seria tão legal, e...

Owen virou para o banco de trás:


81

— Mallory.

— Um segundinho — ela disse, apertando botões. — Eu só quero...

— Mallory — a voz dele ficou mais baixa e ríspida.

— Espera só um pouquinho, tá bom, Owen?

Owen esticou o braço e tirou o telefone da mão dela. Ela


acompanhou ocelular sair de sua mão com os olhos arregalados, e
o encarou.

— Ah, vai! Só queria que ela desse um oi pra Courtney.

— Não — ele disse, colocando o telefone no console que ficava


entre nós.

— Owen!

— Coloca o cinto — Owen falou para ela ao sair com o carro. — E


respire

fundo.

Depois de uma curta pausa, Mallory fez as duas coisas que ele
disse, e com omaior barulho. Quando olhei para trás de novo, ela
estava sentada, com cara debrava, braços cruzados, mas se
animou rapidinho quando percebeu que olhei para ela.

— Esse suéter é da Lanoler?

— Da o quê?
Ela se inclinou para frente, passando de leve os dedos no cardigã
amareloque eu tinha colocado de manhã.

— Essa blusa. É linda. É da Lanoler?

— Bem, é que... — eu disse. — Eu não...

A mão dela foi parar no meu colarinho, que ela puxou um pouco
para ver aetiqueta,

— É sim! Eu sabia, Ah, meu Deus. Eu quero tanto um suéter


Lanoler, desdesempre eu...

— Mallory — disse Owen — não seja uma dessas peruas loucas


que sóquerem saber de marcas.

Mallory abaixou as mãos.


82

— Owen — ela disse — R e R.

Owen olhou para ela pelo retrovisor. Ele, então, deu um suspiro alto.

— O que eu quis dizer, Mallory — ele disse com ar contrariado — é


que aimportância excessiva que você dá a marcas e bens materiais
me deixa preocupado.

— Obrigada — ela respondeu. — E eu entendo e agradeço sua


preocupação.Mas, como você bem sabe, a moda é a minha vida.

Eu olhei para Owen:

— ReR?

— Reformular e Redirecionar — Mallory me disse. — Faz parte


doGerenciamento de Raiva. Se ele falar algo agressivo, você pode
dizer que aquilo feriuseus sentimentos e que ele tem que falar de
outro jeito.

Owen estava olhando para ela pelo retrovisor com uma expressão
séria.

— Obrigada, Mallory — ele disse.

— De nada — ela respondeu. Depois, me deu um sorrisão e sentou-


se nobanco novamente.

Durante um segundo, nós ficamos em silêncio, o que seria minha


opor-tunidade para tentar me acostumar — ou pelo menos tentar —
com todas essas novasdescobertas sobre a vida pessoal de Owen
Armstrong. Até o momento, a única coisaque não me surpreendeu
foi o fato de ele estar em um programa de Gerenciamento deRaiva.
Agora, Mallory, a música e, é claro, o fato de eu saber dessas duas
coisas eramum super choque. Por outro lado, não sabia muito bem
o que eu estava esperando,pois é claro que ele tinha que ter uma
família e uma vida. Eu apenas nunca tinhapensado nisso antes. É
como quando a gente é criança e encontra a professora ou
abibliotecária no supermercado ou no Wal-Mart, e leva um susto
porque nuncapassou pela nossa cabeça que essas pessoas
existissem fora da escola.

— Muito obrigada, de verdade, pela carona — eu disse a Owen. —


Eu nãosei mesmo como teria chegado em casa.

— Sem problemas — ele disse. — Eu só tenho que...

Esse pensamento foi, no entanto, interrompido pelo barulho que


Mallory fez aorespirar fundo.
83

— Ai, meu Deus - ela disse. — Eu vou ver a sua casa.

— Não — disse Owen.

— Mas nós vamos levá-la para casa! Eu estou aqui!

— Nós vamos te deixar primeiro — ele retrucou.

— Por quê? — ela perguntou.

— Porque — Owen lhe respondeu enquanto atravessávamos um


cruzamentosaindo da rodovia principal — eu tenho que passar na
rádio. Então nossa mãe pediupara eu levar você para a loja.

Mallory suspirou contrariada.

— Mas Owen...

— Nada de "mas" — ele disse. — Já está decidido.

Outro barulho foi ouvido quando Mallory se jogou, de forma


dramática edesanimada, no banco de trás.

— Não é justo — ela disse um segundo depois.

— A vida não é justa — Owen lhe disse. — Vá se acostumando.

— R e R — ela falou.

— Não — ele respondeu, e esticou o braço, aumentando o volume


damúsica e o cri cri recomeçou.
Ficamos ouvindo os cantos maias apenas durante alguns minutos, o
suficientepara eu começar a me acostumar com a música, até que,
de repente, senti um arzinhono meu ouvido.

— Quando fez aquele comercial — Mallory perguntou — você ficou


com asroupas?

— Mallory! — disse Owen.

— O quê?

— Por que você não relaxa e escuta a música?

— Isso não é música! São grilos e gente gritando. Para mim — ela
disse —
84

Owen é um nazista da música. Ele não me deixa ouvir nada além


dessa coisa estranhaque ele toca no programa de rádio dele.

— Você tem um programa de rádio? — perguntei para Owen.

— É só um programa local — ele respondeu.

— É a vida dele — disse Mallory, dramática. — Ele fica a semana


inteira sepreparando, se preocupando, mesmo o programa sendo
em um horário que pessoasnormais ainda nem estão acordadas.

— Eu não escolho músicas para pessoas normais — disse Owen.


— Colocomúsicas para pessoas que são...

— Iluminadas, nós sabemos — disse Mallory, revirando os olhos. —


Bem, eugosto de ouvir a 104Z. Eles tocam as top quarenta, muita
música legal para dançar.Eu gosto de Bitsy Bonds. É a minha
cantora favorita. Eu fui ao show dela no verãopassado com todas as
minhas amigas. Foi tão legal. Você conhece aquela músicadela,
a.Pyramid?

— Hum — eu disse. — Não conheço.

Mallory se ajeitou no banco e jogou o cabelo para trás.

— "Vamos lá, cante mais alto, cante bem alto, o Sol no espaço
queimapor nós, então me beije agora, que eu me desfaço em...
pirâmide"!

Owen fez uma careta.


— Bitsy Bonds não é uma cantora, Mallory. Ela é um produto. É
falsa. Elanão tem alma; não representa nada.

— E daí?

— E daí — ele disse — ela é mais famosa pela barriga do que pela
música.

— Bom — disse Mallory — realmente, a barriga de tanquinho dela


éincrível.

Owen apenas balançou a cabeça, visivelmente incomodado,


enquantosaíamos da rodovia principal para entrar em um pequeno
estacionamento. Àesquerda, havia várias lojas, uma ao lado da
outra, e ele parou na frente de uma emcuja vitrine via-se um
manequim de poncho e calça boca de sino marrom. Estavaescrito
ARTESANAIS na placa pendurada na porta.
85

— Pronto — ele disse. — Chegamos.

Mallory fez cara de contrariada.

— Que ótimo — ela disse em tom sarcástico. — Mais uma tarde na


loja.

— Os seus pais são donos dessa loja? — perguntei.

— Sim — Mallory respondeu por entre dentes, enquanto Owen


pegou otelefone celular do console e lhe devolveu. — É tão injusto.
Aqui estou eu, obcecadapor roupas, e minha mãe tem uma loja de
roupas. Só que são do tipo que eu nuncausaria. Nem morta.

— Se estivesse morta — Owen lhe disse — você teria problemas


maiores do que as roupas que usa.

Mallory, então, olhou para mim com um ar muito sério.

— Annabel, é sério. Só tem tecidos naturais e fibras, sabe? Batiques


tibetanos, sapatos sintéticos.

— Sapatos sintéticos? — perguntei.

— Eles são horrendos — ela sussurrou. — Horrendos. Os bicos


nem sãopontudos.

— Mallory — disse Owen. — Por favor, saia do carro.

— Tô indo, tô indo. — Mas ela ainda demorou um tempo arrumando


suascoisas, tirando o cinto de segurança e destrancando a porta. —
Foi um grande prazerte conhecer — ela me disse.
— O prazer foi meu — respondi.

Ela desceu do carro, fechou a porta e andou em direção à loja.


Antes deentrar, ela se virou e acenou para mim, toda animada.
Acenei de volta, Owen deupartida no carro e seguimos em direção à
rodovia principal. Sem Mallory, o carroparecia menor, além de mais
silencioso.

— Mais uma vez — ele disse ao desacelerar por causa do


semáforo. —Desculpe.

— Não precisa se desculpar — eu lhe disse. — Ela é fofa.

— Você não convive com ela. Nem tem que ouvir a música que ela
ouve.
86

— 104Z — falei. — Todos os hits na ponta da língua.

— Você ouve essa rádio?

— Costumava ouvir — respondi. — Principalmente quando tinha a


idade

dela.

Ele balançou a cabeça.

— Seria diferente se ela não tivesse acesso à música de qualidade.


Se ela nãotivesse acesso à cultura. Mas já gravei muitos CDs para
ela. Ela não ouve nenhum.Prefere encher a cabeça com esse lixo
pop, ouvindo uma rádio que, basicamente,toca músicas entre os
comerciais.

— Então, no seu programa — eu disse. — é diferente?

— Bem, é sim. — Ele me olhou, trocando de marcha ao entrarmos


narodovia principal. — Quero dizer, é uma rádio comunitária, então
não tem comercial.Mas eu acho que a gente é responsável por
aquilo que coloca para as pessoasouvirem. Se você pode escolher
entre poluição e arte, por que não escolher arte?

Apenas olhei para ele. Ficou claro que eu tinha julgado mal
OwenArmstrong. Não estava muito segura de quem eu imaginava
que ele fosse, mas comcerteza não era aquela pessoa sentada ao
meu lado.
— Então, onde você mora? — ele me perguntou, mudando de faixa
ao nosaproximarmos do semáforo.

— Em Arbors — eu disse. — Fica alguns quilômetros depois do


shopping. Você

pode...

— Eu sei o caminho — ele disse. — A rádio fica apenas a algumas


quadras delá. Preciso parar lá, se estiver tudo bem pra você.

— É claro — eu disse. — Tudo bem.

A rádio comunitária ficava em um prédio quadrado que já tinha sido


umbanco. Ao lado, havia uma torre de metal, além de um banner
meio caídopendurado na entrada principal. Nele estava escrito em
letras pretas grandes: WRU. ANOSSA RÁDIO. Havia um janelão na
frente por onde dava para ver um homemsentado em uma cabine,
usando fones de ouvido e falando ao microfone. Em umletreiro
luminoso aceso no canto da janela lia-se O AR: aparentemente, o N
estavaqueimado.
87

Owen parou bem na frente do prédio, desligou o carro e se virou em


direçãoao banco de trás para pegar alguns CDs no chão. Depois de
juntar alguns, ele abriu aporta e disse:

— Volto já.

Eu acenei a cabeça e disse:

— Ok.

Quando ele entrou, comecei a ver alguns dos nomes escritos à mão
nascaixinhas de CD e eu não conhecia nenhum deles: THE
HANDYWACKS (varia-das), JEREMIAH REEVES (ANTIGAS) E
TRUTH SQUAD (OPUS). De repente,ouvi uma buzina, me virei e vi
um Honda Civic parando na vaga ao lado. Isso nãoseria nada
demais se o motorista não estivesse usando um capacete vermelho
ebrilhante.

Não era exatamente um capacete daqueles iguais aos de jogadores


de futebolamericano, era maior e com mais estofamento. O cara
parecia ter a minha idade evestia suéter preto e calça jeans. Ele
acenou para mim, eu retribuí e ele abriu ajanela do carro.

— Oi — ele disse. — O Owen está lá dentro?

— Tá sim — respondi lentamente. Seus olhos eram azuis, ele tinha


cíliosgrandes, e o cabelo comprido, um pouco abaixo dos ombros,
estava preso em umrabo de cavalo que saía pela parte de baixo do
capacete. — Ele disse que voltarialogo.

Ele balançou a cabeça.


— Legal — disse. Eu tentei não ficar olhando para ele, mas era um
poucodifícil. — Ah, meu nome é Rolly — ele falou.

— Ah. Oi, eu sou a Annabel.

— Prazer em te conhecer. — Ele pegou um copo descartável com


canudinhoe deu um gole. Estava colocando-o de volta quando
Owen saiu do prédio.

— Ei — Rolly o chamou. — Eu tava passando e vi seu carro. Achei


quevocê fosse trabalhar hoje.

— Seis horas — Owen lhe disse.


88

— Ah, beleza — disse Rolly, erguendo os ombros e encostando-se


no bancodo carro. — Talvez eu dê uma passada lá ou algo assim.

— Isso — Owen disse. — E... Rolly?

— O quê?

— Você sabe que ainda está com o capacete, né?

Rolly arregalou os olhos e levantou as mãos, passando a mão na


cabeça comcuidado. Então, ele ficou vermelho, quase tão vermelho
quanto o capacete.

— Ah — ele disse, tirando o capacete. Seu cabelo estava amassado


e a testa,marcada. — Ah é, valeu.

— Falou! Até mais tarde.

— Beleza. — Rolly colocou o capacete no banco do passageiro e


passou a mãona cabeça enquanto Owen voltava para trás do
volante. Quando o carro deu ré, euacenei mais uma vez para o
rapaz e ele balançou a cabeça, sorrindo, com o rostoainda
levemente cor-de-rosa.

De volta à rodovia principal, rodamos um pouco até que Owen falou:

— Ele usa no trabalho, só para você saber.

— O capacete? — eu perguntei.

— É. Ele trabalha em um local que ensina defesa pessoal. Ele é o


atacante.
— Atacante?

— Com quem as pessoas praticam — ele me disse. — Sabe,


quando aspessoas aprendem a técnica. É por isso que ele usa
acolchoamento.

— Ah — eu disse. — Então... Vocês trabalham juntos?

— Não. Eu entrego pizza. É aqui, não é? — ele perguntou ao nos


aproxi-marmos da entrada do meu bairro. Eu acenei positivamente a
cabeça, ele deu seta eentrou. — Ele faz o programa de rádio
comigo.

— Ele estuda na Jackson?

— Não. Na Fountain.

A Fountain era um "local de aprendizado alternativo", também


conhecida
89

como a Escola Hippie. Tinha poucos alunos e dava ênfase à


expressão individual. Eoferecia disciplinas optativas como batique e
frisbee avançado. Kirsten já teve váriosnamorados ripongos de lá,
nos velhos tempos.

— Esquerda ou direita? — Owen perguntou ao nos aproximarmos


de umsemáforo.

— Reto, mais um pouco — respondi.

Conforme entrávamos mais no meu bairro, sem falar, tive a mesma


sensação que senti de manhã com Whitney — a de que eu devesse,
pelo menos, tentar conversar.

— Então — eu disse — como você conseguiu ter um programa de


rádio?

— É algo que sempre me interessou — respondeu Owen. — E logo


depois deeu me mudar para cá, ouvi falar de um curso que é dado
na rádio, onde eles ensinamo básico. Depois que você faz o curso,
pode apresentar uma proposta de programa.Se eles a aprovam,
você faz um teste e, se eles gostarem, te dão um horário. Eu eRolly
conseguimos nosso horário no inverno passado, mas aí fui preso.
Isso nosatrasou um pouco.

Ele disse isso de um jeito tão despreocupado, como se estivesse


falando deférias na praia ou de um casamento.

— Você foi preso? — perguntei.


— É. — Ele desacelerou para parar no semáforo. — Eu me meti
numa brigaem uma balada. Com um cara no estacionamento.

— Ah — eu disse. — Tá.

— Você ouviu falar disso?

— Talvez tenha ouvido algo — respondi.

— Então, por que pergunta?

Senti meu rosto esquentar. Se você faz uma pergunta atrevida, é


melhor estarpreparada para responder outra.

— Eu não sei — eu disse. — Você acredita em tudo o que ouve?

— Não — ele respondeu. E ficou me olhando por um momento,


antes de virara cabeça novamente para a rua. — Não acredito.
90

Até parece, pensei. Falou. Então, pelo visto eu não era a única que
tinhaouvido boatos. Isso me parecia justo. Aqui estava eu, cheia de
suposições sobre Owenbaseadas em coisas que falavam dele, mas
não me tinha ocorrido que havia históriassobre mim por aí também.
Pelo menos uma.

Ficamos em silêncio por mais dois semáforos, até que eu,


finalmente,respirei fundo e disse:

— Não é verdade, se é isso o que você está se perguntando.

Ele estava diminuindo a marcha e o motor fez um barulho quando


ele pisouno freio para fazer a curva.

— O que não é? — perguntou.

— O que você ouviu a meu respeito.

— Eu não ouvi nada a seu respeito.

— Até parece — falei.

— Não ouvi — reafirmou Owen. — Eu contaria se tivesse ouvido.

— Sério?

— É — ele respondeu. Eu devo ter feito cara de quem não estava


acredi-tando, porque ele acrescentou: — Eu não minto.

— Você não mente? — repeti.

— Foi o que eu disse.


— Nunca?

— É.

"É claro que não", pensei.

— Bem, esse é um bom princípio, se você é capaz de mantê-lo.

— Eu não tenho escolha — ele repetiu. — Segurar coisas dentro de


mimnão dá certo. E o aprendizado não foi fácil.

Eu me lembrei rapidamente do Ronnie Waterman andando no


estaciona-mento, da cabeça dele no chão.
91

— Então você é sempre sincero — falei.

— Você não é?

— Não — respondi. A resposta saiu da minha boca tão facilmente,


tãorapidamente que eu deveria ter me surpreendido. Mas, por algum
motivo, isso nãoaconteceu. — Não sou.

— Bom — ele disse enquanto nos aproximávamos de outro


semáforo — ébom saber disso.

— Eu não estou dizendo que sou mentirosa — falei. Ele ergueu as


so-brancelhas. — Não foi isso o que eu quis dizer.

— O que você quis dizer, então?

Eu estava cavando a minha própria cova e sabia disso. Mas, mesmo


assim,tentei me explicar.

— É que... Nem sempre eu digo o que sinto.

— Por que não?

— Porque a verdade dói às vezes — respondi.

— É — ele disse. — Mas as mentiras também.

— Eu não... — continuei, e depois disse, com a voz mais calma: —


É que eunão quero magoar as pessoas. Ou deixá-las chateadas.
Então, às vezes, não digoexatamente o que eu penso para poupá-
las. — O mais irônico era que, ao falar isso,me dei conta que estava
sendo honesta de um jeito que havia muito tempo não era.Ou talvez
nunca tenha sido.

— Mas ainda assim é uma mentira — ele disse. — Mesmo se as


intenções são boas.

— Sabe — falei. — É difícil para mim acreditar que você é sempre


sincero.

— Acredite. É verdade.

Eu virei a cabeça para encará-lo.

— Então, se eu perguntasse para você se essa roupa me deixa


gorda — eudisse — e você achasse que sim, você me diria?
92

— Sim — ele respondeu.

— Não diria, não.

— Eu diria sim. Talvez não exatamente dessa forma, mas se eu


achasse quevocê não ficasse bem...

— Duvido — retruquei.

—... E você perguntasse — ele continuou — eu diria. Mas eu não


falaria àtoa. Não sou uma má pessoa. Mas se você pedisse a minha
opinião, eu daria.

Balancei a cabeça, sem acreditar nele.

— Olha — ele completou — como eu disse antes, não me faz bem


não dizero que eu sinto. Então, eu não faço isso. Pense assim.
Posso dizer que você é gorda,mas pelo menos não estou te dando
um soco.

— Essas são as duas únicas opções? — perguntei.

— Nem sempre — ele respondeu. — Só às vezes. E é bom saber


quais sãoas opções que a gente tem, né?

Eu percebi que estava quase rindo, e isso era tão estranho que virei
o rostoquando nos aproximamos de outro semáforo. Havia um carro
parado na rua dafrente, virado na nossa direção. Um segundo
depois, percebi que era o meu.

— Continuo reto? — perguntou Owen.


— Hum, não — respondi, me aproximando da janela. Com certeza,
eraWhitney que estava ao volante. Ela estava com a mão
espalmada sobre o rosto eseus dedos cobriam os olhos.

— E agora? Direita? Esquerda? — Owen perguntou. Ele tirou uma


das mãosdo volante. — O que foi?

Eu olhei para Whitney novamente, me perguntando o que ela estaria


fazendocom o carro parado perto de casa.

— Aquela é a minha irmã — eu disse, apontando para o carro.


Owense inclinou para frente, olhando para ela.

— Ela... Ela está bem?

— Não — respondi. Talvez não mentir seja contagioso; essa


resposta saiu
93

automaticamente, antes de eu conseguir achar outras palavras para


explicar.— Não está,

— Ah — ele disse. E ficou calado por um segundo. — Bem, você


quer... Fiz que não com a cabeça.

— Não — respondi. — Pode virar à direita.

Foi o que ele fez, e deslizei um pouco no banco para me esconder.


Aopassarmos por Whitney, ficou claro que ela estava chorando.
Seus ombros magrostremendo, sua mão ainda sobre o rosto. Senti
um nó na garganta; continuamos emfrente e a deixamos para trás.

Pude sentir Owen me olhando quando chegamos ao semáforo


seguinte.

— Ela está doente — falei. — Já faz um tempo.

— Sinto muito — ele disse.

Espera-se que você diga isso. É o que qualquer pessoa diria. O


estranho é que,depois de tudo o que ele tinha me dito, eu sabia que
Owen realmente estava sendosincero.

— Qual é sua casa? — ele perguntou ao entrarmos na minha rua.

— A de vidro — respondi.

— De vidro... — ele começou a falar, mas parou ao ver a casa —


Ah, tá. Eraaquela hora do dia em que a luz do sol bate no vidro e o
campo de golfe é refletidoquase perfeitamente no segundo andar.
No térreo, pude ver minha mãe parada nobalcão da cozinha. Ela
começou a andar em direção à porta quando paramos, masnão
continuou ao perceber que era eu e não Whitney que chegava.
Pensei emminha irmã, sentada no carro a duas quadras, em minha
mãe preocupada aqui emcasa, e senti aquela conhecida revirada no
estômago, uma mistura de tristeza eobrigação.

— Cara — Owen falou, olhando para a casa. — É uma casa e tanto.

— Pessoas em casa de vidro — eu disse. Olhei novamente para


minha mãe,que ainda estava no balcão, nos olhando. Fiquei
pensando se ela estava curiosa parasaber quem era Owen, ou
distraída demais para perceber que eu estava em um
carrodesconhecido, ainda por cima com um garoto. Talvez ela
pensasse que fosse PeterMatchinsky, o rapaz bonzinho do último
ano que fazia Educação Física comigo.
94

— Bem — falei, pegando a minha mochila. — Muito obrigada pela


carona. Epor tudo.

— Sem problemas — ele respondeu.

Ouvi um carro se aproximando atrás de nós e, um segundo depois,


Whitneyestava parada na entrada. Ela só viu Owen e a mim depois
que tinha estacionado e saídodo carro. Levantei a mão para
cumprimentá-la, mas ela me ignorou.

Eu já sabia o que iria acontecer quando entrasse. Whitney estaria


batendo ospés pela casa, ignorando as perguntas animadas da
minha mãe e logo se cansaria eiria para o seu quarto, batendo a
porta com força. Então, minha mãe ficaria chateada,mas fingiria não
estar. Mesmo assim, eu ficaria preocupada com ela até a hora que
meu pai chegasse, quando todos se sentariam para jantar, fingindo
que tudo ia bem.

Pensando nisso, olhei para Owen.

— Então, quando é? — perguntei. — O seu programa de rádio.

— Domingo — ele respondeu. — Às sete horas — acrescentou.

— Eu vou escutar — disse a ele.

— Da manhã — ele completou.

— Sete da manhã'? — perguntei. — Sério?

— É — ele respondeu, pegando no volante. — Não é o horário


ideal, mas nãopodíamos recusar. Pelo menos quem tem insônia
ouve.

— Insones iluminados — falei.

Ele ficou me olhando durante um segundo, como se tivesse ficado


surpreso com o que eu disse.

— É — ele disse, e sorriu. — Exatamente.

"Imagine só", pensei. "Owen Armstrong sorrindo." Em um dia tão


estranho,isso foi o mais surpreendente.

— Bem — disse. — É melhor eu ir.

— Certo. Te vejo por aí.

Eu concordei, acenando a cabeça e tirando o cinto de segurança. E


como ele
95

disse, bastou um clique e eu estava livre. Diferentemente de muita


coisa, era maisdifícil entrar do que sair.

Ao fechar a porta, Owen engatou a marcha e buzinou quando saiu


dirigindo.Quando me virei para ver minha casa, Whitney já estava
subindo as escadas e minhamãe ainda permanecia na cozinha,
olhando para a porta dos fundos.

Eu não minto, disse Owen, com a mesma segurança que qualquer


outrapessoa diria que não come carne ou que não sabe dirigir. Eu
não tinha certeza se eracapaz de compreender isso. Mesmo assim,
tinha inveja de Owen e sua franqueza, suahabilidade de se abrir
para o mundo em vez de se fechar em si mesmo.
Principalmenteagora ao entrar em casa, onde minha mãe me
esperava.
96

Seis

— Garotas, silêncio. Atenção, por favor! Estamos começando, então


presteatenção no seu nome.

Trabalho na Lakerview Models desde os quinze anos. Todo verão,


elesfazem testes para escolher três modelos para pequenas
campanhas, como posar comescoteiros mirins no evento de
Pinewood Derby, ou distribuir balões no festival dozoológico. Essas
modelos também aparecem em anúncios impressos, desfiles esaem
no calendário anual do Shopping Lakerview, entregue todo ano com
a listatelefônica. Era essa sessão de fotos que estávamos fazendo
então. Deveríamos terterminado no dia anterior, mas o fotógrafo era
lento, então fomos chamadas novamente, no domingo à tarde, para
terminar.

Eu bocejei e depois me encostei ao lado da planta localizada atrás


de mim, efiquei observando a sala. As garotas mais novas
encontravam-se todas juntas em umcanto, falando alto, enquanto
outras pessoas que eu conhecia de outros trabalhosestavam
fofocando sobre alguma festa. As duas únicas veteranas
permaneciamsentadas sozinhas, uma com a cabeça para trás e os
olhos fechados, enquanto a outrafolheava um livro de cursinho para
o vestibular. Finalmente, do outro lado da sala, etambém sozinha,
estava Emily Shuster.

Conheci Emily na sessão de fotos para o calendário passado. Ela


era um anomais nova que eu, tinha acabado de se mudar para cá, e
não conhecia ninguém.Enquanto todas nós esperávamos na sala,
ela se sentou ao meu lado, começamos aconversar e rapidamente
nos tornamos amigas.

Resumindo Emily em uma palavra: doce. Seu cabelo era ruivo e


curto e seurosto tinha forma de coração, e, quando a convidei para
sair comigo e com Sophienaquela noite depois da sessão, ela ficou
super contente. Quando cheguei à sua casa,ela já estava do lado de
fora esperando, com as bochechas vermelhas de frio — o
queindicava que ela já estava lá havia algum tempo.

Sophie estava menos interessada. Para falar a verdade, ela tinha


problemas em
97

lidar com outras garotas, principalmente as bonitas, mesmo sendo


linda. Toda vez queeu tinha algum compromisso da Lakerview
Models ou conseguia um trabalho grande,ela ficava um pouco mal-
humorada. Algumas coisas nela também me incomodavam,como,
por exemplo, quando ela me dava patada e me tratava como se eu
fosse burra; eo fato de ela só ser legal com as pessoas quando
rolava algum interesse, e às vezes nemassim. A verdade era que
minha amizade com Sophie era complicada e várias vezesme
perguntei por que ela era minha melhor amiga. Afinal de contas, eu
estava semprepisando em ovos perto dela ou sendo obrigada a
ignorar comentários grosseiros aquie ali. Mas, então, me lembrava
do quanto minha vida tinha mudado depois quecomeçamos a andar
juntas — desde aquela noite com Chris Pennington, tanta coisatinha
acontecido, e eu vivi coisas que nunca teria experimentado se não
fosse por ela.Além disso, na verdade, eu não tinha mais ninguém. E
Sophie fazia questão de quecontinuasse assim.

Na noite em que conheci Emily, nós íamos para uma festa na A-


Frame, umarepública nos arredores da cidade onde moravam uns
ex-alunos da Perkins Day, umaescola particular. Os carinhas tinham
uma banda chamada Day After e, depois queterminaram o Ensino
Médio, ficaram por ali fazendo shows em baladas e tentandogravar
um álbum. Enquanto isso, quase todo fim de semana eles davam
festas quebombavam com alunos do Ensino Médio e gente dos
arredores.

Assim que nós três entramos naquela festa, percebi que as pessoas
olhavampara Emily. Ela era uma garota bonita, mas o fato de estar
com a gente —especialmente com Sophie, que era conhecida tanto
em nossa escola quanto naPerkins Day — era algo que a fazia ser
notada. Nós não estávamos nem na metade docaminho para pegar
bebida quando Greg Nichols, um garoto insuportável doprimeiro
ano, foi correndo falar com a gente.

— E aí, garotas. — ele disse. — Tudo bem?

— Sai pra lá, Greg — Sophie falou. — Não estamos interessadas.

— Fale por você — ele disse totalmente decidido. — Quem é a sua


amiga?

Sophie respirou fundo, fazendo que não com a cabeça. Eu disse:

— Hum, essa é a Emily.

— Oi — disse Emily, roxa de vergonha.

— Opa! — respondeu Greg. — Posso pegar uma cerveja pra você?

— Tá bom — ela respondeu. Depois que ele saiu de perto, virando-


se para
98

trás para olhar para ela, Emily me olhou com os olhos arregalados.
— Ai, meu Deus— ela disse. — Ele é uma graça!

— Não — Sophie disse a ela. — Ele não é. E ele só veio falar com
vocêporque já deu em cima de todo mundo aqui.

Emily desanimou.

— Ah — ela disse.

— Sophie — falei. — Na boa.

— O que foi? — ela disse enquanto catava alguns fiapos do suéter


eexaminava a multidão. — É verdade.

E provavelmente deveria ser verdade. Mas isso não era motivo para
ela terfalado daquele jeito. Porém, aquilo era a cara da Sophie. Ela
acreditava que cada umtinha o seu lugar e o dever dela era garantir
que cada um soubesse o seu. Ela fez issocom Clarke. Ela fez isso
comigo. E, agora, era a vez de Emily. Mas, dessa vez, em vezde
ficar apenas observando, como eu tinha feito em todos os outros
anos, senti quedeveria fazer alguma coisa; afinal de contas, eu é
que tinha convidado Emily.

— Vem cá — eu disse para Emily. — Vamos pegar uma cerveja.


Sophie, vocêquer uma?

— Não — ela respondeu secamente e me deu as costas.

Quando peguei a minha bebida e fui procurar por Sophie, ela tinha
desa-parecido. "Então ela está brava", pensei. "Isso não é nenhuma
novidade, eu dou umjeito nisso em um segundo." Mas então Greg
Nichols reapareceu, e eu não queriadeixar Emily sozinha com ele.
Levou uns vinte minutos até conseguirmos nos livrardo cara. Então,
deixei Emily conversando com umas garotas que ela conhecia
e,finalmente, fui procurar Sophie. Eu a encontrei sentada na
varanda da casa, fumandosozinha.

— Oi — eu disse, mas ela me ignorou. Tomei um gole de cerveja,


olhando paraa piscina que estava vazia, coberta de folhas e com
uma cadeira no fundo.

— Cadê a sua amiga? — ela perguntou.

— Sophie — eu disse. — Pare com isso.

— O que foi? É só uma pergunta.


99

— Está lá dentro — respondi. — E ela é sua amiga também.

— Não — ela disse em um tom bravo. — Ela não é.

— Por que você não gosta dela?

— Ela é do primeiro ano, Annabel. E ela é... — Sophie parou e deu


outro tragono cigarro. — Olha aqui, se você quiser andar com ela,
vá lá. Eu não quero.

— Por que não?

— Porque não. — Ela olhou para mim. — O quê? Não temos que
ficargrudadas o tempo todo, sabe. Você não tem que fazer tudo o
que eu faço.

— Eu sei — respondi.

— Sabe mesmo? — Ela soltou fumaça entre nós duas. — Porque,


naverdade, você nunca faz nada sem mim. Desde que nos
conhecemos, fui eu queconsegui todos os caras, fiquei sabendo de
todas as festas. Antes de me conhecer,você só ficava sentada
dando lencinhos de papel para a Clãrke Rebbolds.

Tomei mais um gole. Eu odiava quando Sophie era malvada e


agressivadaquele jeito. E odiava ainda mais ao pensar que era tudo
culpa minha, e não haviacomo negar.

— Olha — eu disse a ela — eu só convidei a Emily para a festa


porque elanão conhece ninguém.
— Ela conhece você — retrucou Sophie. — E agora o Greg
Nicholstambém.

— Engraçadinha.

— Não estou sendo engraçadinha — ela disse. — Só estou falando


averdade. Eu não gosto dela. Se você quiser andar com ela, vá em
frente. Eu não quero.— E jogou o cigarro no chão, apagando-o com
a bota, me deu as costas e entrou nacasa.

Fiquei apreensiva ao vê-la se afastar tão nervosa. Talvez ela


estivesse certa,e que sem ela eu realmente não era ninguém. Uma
parte de mim sabia que isso nãoera verdade, mas havia essa
pequena nuvem de dúvida que pairava. As coisas comSophie eram
sempre no "tudo ou nada". Ou você estava com ela —
maisespecificamente, sempre atrás dela — ou contra ela. Não tinha
meio-termo. Então,por mais que não fosse fácil ser sua amiga, ser
considerada inimiga era ainda pior.
100

Olhei para o meu relógio e vi que Emily tinha que voltar logo para
casa.Então, fui procurá-la pela festa, até que a vi conversando com
uma garota quetambém trabalhava como modelo. Fiquei um tempo
conversando com elas eesperando Sophie se acalmar. Quando
chegou a hora de ir embora, imaginei que o mau humor dela tivesse
passado.

Porém, quando fui procurá-la, vi que Sophie tinha sumido mais uma
vez. Elanão estava lá fora e nem na cozinha. Até que, finalmente,
olhei para o final de umcorredor e a vi abrindo uma porta. Ela me
viu, me deu as costas e entrou. Eu respirei fundo e fui falar com ela.
Bati na porta duas vezes.

— Sophie - chamei. — Está na hora de ir embora.

Nenhuma resposta. Eu suspirei, cruzando os braços, e me


aproximei da

porta.

— Tá certo - eu disse — sei que você está brava, mas vamos


embora. Conversamos sobre isso depois. Pode ser?

Nada. Olhei novamente a hora. Se nós não saíssemos logo, Emily


chegariatarde em casa.

— Sophie - chamei de novo, pegando na maçaneta. A porta não


estavatrancada, então a abri... — Vamos...

Parei e não disse mais nada. Fiquei lá, com a porta semi aberta,
olhando paraSophie, que estava espremida entre a parede e um
garoto. Uma das mãos dele estavadebaixo da blusa dela e a outra,
na sua coxa. Não dava para ver o rosto do garoto,pois ele estava
beijando o pescoço de Sophie. Quando tentei sair sem ser notada,
elese virou e olhou para mim. Era Will Cash.

— Estamos ocupados — ele disse em voz baixa. Os olhos dele


estavamvermelhos e os lábios, próximos do ombro dela.

— Eu... — falei —... Desculpa.

— Vá para casa, Annabel — Sophie me disse, passando a mão no


cabelodele, seus dedos brincando com os fios, bem perto do
pescoço. — Vá para casa.

Dei um passo para trás, fechando a porta, e fiquei lá, parada no


corredor. WillCash era um dos caras da Perkins Day. Ele tocava
guitarra na banda e estava noúltimo ano. Ao mesmo tempo em que
era bonito — muito bonito, o tipo do cara queé impossível deixar de
notar — ele tinha fama de ser um idiota, além de muito
101

mulherengo. Ele estava sempre com uma menina diferente e nunca


ficava com amesma por muito tempo. Sophie, por sua vez, preferia
o tipo mauricinho e odiavaqualquer um que tivesse um estilo
minimamente alternativo. Porém, estava claro que ela tinha aberto
uma exceção. Pelo menos naquele momento.

Naquela noite, tentei ligar para ela várias vezes, mas Sophie não
atendeu. Nodia seguinte, por volta do meio-dia, quando ela
finalmente me ligou, nem tocou no nomeda Emily, e nem falou do
que tinha acontecido entre nós. Ela só queria falar do Will Cash.

— Ele é incrível — ela me disse. Ela me contou algumas coisas e


logo disseque estava vindo para a minha casa, como se esse
assunto fosse tão importante quenão pudesse ser discutido pelo
telefone. Agora, ela estava sentada na minha cama,folheando uma
Vogue antiga. — Ele conhece todo mundo, é um ótimo guitarrista e
émuito, muito inteligente. Além de sexy. Poderia beijá-lo a noite
toda.

— Você parecia feliz — eu disse.

— Estava. Estou — ela falou virando a página e se inclinando para


ver umanúncio de sapato. — Ele é tudo de que eu precisava agora.

— Então — eu disse sem me esquecer da péssima reputação de


Will — você vai encontrar com ele de novo?

— É claro — ela disse, como se eu tivesse feito uma pergunta


idiota. — Hojeà noite. A banda dele vai tocar no Bendo.

— Bendo?
Ela suspirou, jogando o cabelo para trás.

— É uma balada na Rua Finley — ela respondeu. — Ai, Annabel,


nãoacredito que você nunca ouviu falar do Bendo.

— Ah — eu disse, apesar de não ter ouvido falar de lá. — Ouvi, sim.

—Eles vão pra lá às dez horas — ela falou, virando outra página. —
Vocêpoder ir junto, se quiser.

Ela não me olhou ao dizer isso e sua voz não tinha entonação
nenhuma.

— Não — respondi. — Amanhã tenho que acordar bem cedo.

—Você é quem sabe — ela disse.


102

Então, naquela noite, eu fiquei em casa e Sophie foi para o Bendo


ver oshow, depois do qual, fiquei sabendo mais tarde, ela voltou
para a A-Frame edormiu com Will. Apesar de ela ficar falando e se
gabando, aquela foi sua primeiravez e, daquele momento em diante,
Sophie passou a se importar só com ele.

Mas, para mim, era difícil enxergar essas qualidades no Will. Por
mais queSophie afirmasse que Will era doce, engraçado, gostoso e
inteligente (além demilhões de outros elogios), nenhuma dessas
coisas me vinha à mente quando meencontrava com ele frente a
frente. Will era mesmo bem bonito e extremamentepopular. Mas
também era estranho, não era uma pessoa agradável. Ao contrário,
seucomportamento era distante e intimidador, e toda vez que me
encontrava na situaçãode ter de conversar com ele — no carro,
quando Sophie saía para pagar a gasolinaou em festas, quando
estávamos os dois procurando por ela — eu ficava tensa,
poispercebia claramente que ele ficava me olhando ou que fazia
questão de deixarlongos silêncios.

E pior, era como se Will soubesse que aquilo me deixava perturbada


e ele gostasse disso. Eu tentava disfarçar minha insegurança
falando muito ou mais alto,ou os dois. E quando fazia isso, Will
apenas ficava me olhando sem nenhumaexpressão, enquanto eu
falava pelos cotovelos até o assunto acabar. Eu tinha certezade que
ele me achava burra, uma garotinha se esforçando para
impressionar. Dequalquer maneira, eu fazia de tudo para evitá-lo,
mas nem sempre era possível.

Outras garotas, no entanto, não pareciam ter esse problema e, por


causadisso, namorar Will se tornou uma função em tempo integral,
mesmo para umagarota tão esforçada quanto Sophie. Desde o
começo havia muitos boatos, e pareciaque em todo lugar que eles
iam Will conhecia alguém, geralmente do sexo feminino.E ainda
tinha o agravante de eles estudarem em escolas diferentes, o que
fazia ashistórias sobre seus olhos e — se é que os boatos eram
dignos de confiança — mãosdistraídas ficarem mais difíceis de
serem confirmadas. E ainda tinha o fator "fazerparte de uma banda".
A verdade era que Sophie tinha muito trabalho a fazer e
orelacionamento deles logo se resumiu ao seguinte ciclo: Will tem
qualquer tipo deinteração com uma garota, surgem boatos, Sophie
procura a suposta garota, depoisprocura Will, eles brigam,
terminam, voltam a ficar juntos. E assim por diante.

— Eu só não entendo como você agüenta isso — eu disse a ela


certa noiteenquanto dirigíamos em alta velocidade por determinado
bairro, procurando a casa deuma garota que ela ouvira dizer que
estava paquerando Will em uma festa.

— É claro que não — ela respondeu cheia de grosseria,


atravessando um farolvermelho e entrando à esquerda em alta
velocidade. — Você nunca foi apaixonada por
103

alguém, Annabel.

Eu não respondi, pois era verdade. Cheguei a namorar alguns


garotos, masnada sério. E me perguntei, enquanto fazíamos outra
curva fechada, Sophie com orosto vermelho e inclinada em cima de
mim para observar outra casa, se o amor erasempre tão ruim
daquele jeito.

— Will poderia ficar com qualquer garota que quisesse — ela disse,
freando umpouco ao nos aproximarmos de outro bloco de casas à
esquerda. — Mas ele meescolheu. Ele está comigo. E vou ficar
possessa se deixar alguma piranha decidir quevai mudar isso.

— Mas eles só estavam conversando — eu disse. — Não é? Isso


pode nãoquerer dizer nada.

— Só conversando, sozinhos, em uma festa, dentro de um quarto


onde nãotem mais ninguém não é só uma conversa — ela retrucou.
— Se você sabe que umcara tem namorada (e especialmente se a
namorada for eu), não tem nenhum motivopara fazer nada com ele
que seja entendido de maneira errada. É uma escolha,Annabel. E
se você faz a escolha errada, você só pode culpar a si mesma pelas
conseqüências.

Encostei no banco, calada, enquanto ela parava na frente de uma


casapequena e branca. A luz do portão da varanda da entrada
estava acesa e havia umJetta vermelho parado na entrada da
garagem, com um adesivo da Perkins Day nopára-choque traseiro.
Se eu fosse mais corajosa — ou apenas muito burra — teria ditoque
não era possível que todas as garotas da cidade estivessem a fim
de acabar com orelacionamento da Sophie, e que Will também
deveria ter sua parcela de culpa comrelação aos boatos. Mas olhei
para ela e algo em sua expressão me lembrou daqueledia na
piscina havia muitos anos, logo quando ela chegou e ficou tentando
ser amigada Kirsten. Não importava o fato de minha irmã a ignorar
ou ser grossa com ela.Quando Sophie decidia que queria algo, ela
queria. E apesar de todo o drama,namorar Will a fez ser mais
invejada ainda. Ela não precisava mais seguir a garotamais popular,
ela era a mais popular. Por causa disso, fiquei pensando que talvez,
nofinal das contas, ela visse Will da mesma forma que eu a via; ficar
com ele podia serdifícil, mas não tê-lo seria muito pior.

Então, fiquei sentada no carro enquanto ela saiu, desviando da luz


davaranda ao andar pela entrada dos carros, em direção ao Jetta.
Eu queria olhar emoutra direção quando ela pegou a chave que
tinha na mão e a arrastou na latariavermelha e bonita, soletrando o
que aquela garota agora era para ela. Mas não desviei
104

o olhar. Fiquei observando, como sempre fiz, e só olhei para o outro


lado quando elaveio andando em minha direção; quando eu já era
cúmplice do crime.

A ironia era que, mesmo depois de ter visto o drama de Will e


Sophie tantasvezes para saber tudo de cor, não pude deixar de me
surpreender quando me vifazendo parte dele. Um movimento errado
em uma noite e, quando me dei conta, erade mim que ela estava
atrás — a vadia, a piranha agora era eu — e eu estava fora, não
somente da vida dela, mas da minha também.

***

— Annabel — a Sra. McMurty, diretora da agência, disse ao passar


por mim— você é a próxima, certo?

Fiz que sim com a cabeça, já me arrumando. No outro lado da sala,


vi umadas garotas, uma morena alta, posando meio sem jeito com
uma grande bandeja azulda loja de utensílios para cozinha. A
sessão de fotos do calendário era sempre meioestranha. Cada
garota posava para um mês e tinha que fazer a foto com produtos
dealguma loja do shopping. No ano anterior, eu tive o azar de ser
sorteada para aRochelle Pneus e tive que posar com calotas e
pneus.

— Segure como se você estivesse oferecendo algo — disse o


fotógrafo,e a garota colocou os braços para frente, esticando o
pescoço. — Aí foi umpouco demais — ele disse, e ela ficou
vermelha e recuou um pouco.
Comecei a andar em direção ao fotógrafo, passando por algumas
garotas queestavam encostadas na parede. Eu já estava quase
chegando quando Hillary Prescottparou na minha frente,
bloqueando minha passagem.

— Oi, Annabel.

Hillary e eu começamos a trabalhar na agência juntas. Depois de


termos sido amigas no começo, logo aprendi a ser mais reservada,
pois ela era muito fofoqueira.

Ela também gostava de provocar; não contente em causar o fogo,


ela tinhaque pôr mais lenha na fogueira.

— Oi, Hillary — eu disse. Ela estava abrindo um pacotinho de


chiclete, emseguida colocou-o na boca, e depois me ofereceu. Eu
não aceitei. — E aí?
105

— Nada demais. — Ela ergueu o braço e ficou enrolando uma


mecha decabelo em volta do dedo, me olhando. — Como foi o seu
verão?

Se fosse qualquer outra pessoa, eu teria dado a minha resposta-


padrão — Bom— sem vacilar. Mas como se tratava de Hillary, eu
estava alerta.

— Bom — respondi, mantendo um tom sério. — Como foi o seu?

— Um tédio completo — ela respondeu, suspirando. Ela mascava o


chiclete:eu podia vê-lo, rosa e brilhante, revirar na boca dela. —
Então, o que é que há entrevocê e a Emily?

— Nada — falei. — Por quê?Ela deu de ombros.

— É só que vocês duas estavam sempre juntas. E agora não estão


nemse falando. Meio estranho.

Olhei para Emily, que estava examinando suas unhas.

— Não sei — eu disse. — Bom, acho que é porque as coisas


mudam.

Sentia que ela estava me olhando e, apesar de suas perguntas, eu


tinhacerteza de que ela sabia exatamente o que tinha acontecido,
ou boa parte. Mesmoassim, estaria para sempre em maus lençóis
se preenchesse as lacunas.

— Melhor eu ir — falei. — Sou a próxima.


— Certo — ela respondeu e me olhou com raiva quando passei. —
Te vejomais tarde.

Encostei-me na parede para esperar mais, bocejando. Eram duas


da tarde,mas eu estava exausta. E era tudo culpa de Owen
Armstrong.

Naquela manhã, acordei e logo tive a sensação de que era cedo


demais. Aoolhar o relógio vi que eram 6h57 da manhã. Decidi voltar
a dormir e, enquanto mepreparava para deitar novamente, me
lembrei do programa de Owen. Pensei muitonele durante o fim de
semana, pois prestei atenção em cada mentirinha que contei,desde
o "tudo bem" que respondi quando meu pai me perguntou como
tinha sido aescola na sexta-feira até o "sim" que falei quando minha
mãe me perguntou se euestava empolgada em voltar para a
Lakerview Models. Era muita desonestidadecontabilizada no final,
então queria cumprir a minha palavra sempre que possível. Eutinha
dito a Owen que escutaria o seu programa. E foi o que fiz.
106

Assim que liguei o rádio, às sete horas em ponto, só consegui ouvir


inter-ferência. Inclinei-me, colocando a orelha perto do rádio no
exato momento em quehouve uma repentina explosão na música:
um som de guitarra irrompeu ainterferência, acompanhado do tilintar
de címbalos, seguido de um grito. Pulei,assustada, e meu braço
bateu no rádio, que caiu no chão, mas continuou ligado, sóque
agora a todo volume.

Whitney começou a bater na parede do seu quarto, e eu me


apressei parapegar o rádio e diminuir o volume o mais rápido
possível. Quando finalmente ocoloquei perto da orelha novamente
— dessa vez com mais cuidado —, a músicaainda tocava e a letra
dela era indecifrável. Eu nunca tinha ouvido uma música assim,se é
que aquilo era realmente música.

Finalmente, com uma explosão de címbalos, ela terminou. Porém, a


próximamúsica não era nada melhor. Em vez de guitarras, era uma
música meio eletrônicaque consistia de vários bips e bips ao fundo e
um homem falando, recitando o que meparecia ser uma lista de
compras. E isso continuou durante cinco minutos e meio.Soube
disso porque olhei para o relógio o tempo todo, torcendo para que
terminasse.Quando finalmente acabou, Owen entrou no ar.

— Você acabou de ouvir Misanthrope com "Descartes Dream" —


eledisse. — Antes, foi Iipo com "Jennifer". Você está ouvindo
Gerenciamento de Raiva,aqui na WRUS, a estação da rádio
comunitária. E agora, Nuptial.

Entrou mais uma música eletrônica longa, seguida de algo que


parecia servelhos recitando poemas sobre barcos baleeiros, as
vozes eram roucas e tremidas,depois das quais vinham dois
minutos de um som meloso de harpa. Era uma bagunçatão grande
que nem tentei me acostumar com ela. Mesmo assim, fiquei lá
duranteuma hora, sentada e ouvindo uma música atrás da outra,
esperando por alguma queeu realmente pudesse: a) entender ou b)
gostar. Não foi o caso. Estava claro que eunão seria uma iluminada,
apenas uma exausta.

— Annabel — chamou a Sra. McMurty, me trazendo para o


presente. —Estamos te esperando.

Acenei a cabeça positivamente e dei um passo para ficar na frente


docenário, que agora estava decorado com várias plantas: uma
trepadeira, algumassamambaias e uma grande palmeira em um
vaso com rodinhas. Era óbvio que esse anoeu tinha ficado com a
Laurel Flores. Pelo menos era melhor do que pneus.

Aquele fotógrafo eu ainda não conhecia e ele não disse "oi" quando
parei nafrente dele. Estava ocupado demais mexendo na câmera
enquanto o produtor puxava
107

o vaso rolante para perto de mim. Uma folha da palmeira roçou na


minha bochecha.

Então o fotógrafo olhou para mim.

— Precisamos de mais plantas — ele disse para a Sra. McMurty,


que estava ao seu lado. — Ou então eu terei que tirar as fotos bem
de perto.

— Mas será que temos mais plantas? — a Sra. McMurty perguntou


aoprodutor.

Ele olhou para a sala vizinha.

— Dois cactos — respondeu. — E um fícus. Mas ele parece meio


doente.

Ouvi um "pop" quando o fotômetro foi acionado. Eu tentei tirar a


folha depalmeira do meu rosto.

— Bom — disse o fotógrafo, aproximando-se e depois se afastando.


Eu podiaver as outras garotas, que estavam atrás dele, me olhando:
as novas, as veteranas,Emily. E apesar de ultimamente ficar
incomodada com pessoas me olhando, nesseambiente isso era
conhecido e era assim que funcionava. Se pelo menos por
algunsminutos eu conseguisse parar de pensar em tudo o que
acontecia dentro de mim e meconcentrar somente na superfície:
olhar para um lado, olhar para o outro, olhar.Aquele olhar.

— Bom — disse o fotógrafo. De rabo de olho, vi um cacto se


movendo, mascontinuei olhando para ele que se deslocava ao meu
redor, disparando o flash e medizendo repetidamente para mudar de
pose.

Naquela noite, depois que minha mãe foi dormir e Whitney estava
trancadaem seu quarto, desci as escadas para tomar um copo de
água. Ele estava sentado nasala de estar assistindo televisão com
os pés no pufe. Quando acendi a luz, ele sevirou.

— Você — ele disse — chegou bem na hora! Vai passar um ótimo


docu-mentário sobre Cristóvão Colombo.

— Sério? — respondi, tirando um copo do armário.

— E fascinante — ele falou. — Quer assistir comigo? Você pode


aprender

algo.

Meu pai adorava o History Channel. "É a história do mundo!", ele


sempredizia quando reclamávamos por ter que assistir a mais um
programa sobre o Terceiro
108

Reich, a queda do Muro de Berlim ou as Grandes Pirâmides. Ele


nunca cediarapidamente e propunha uma votação, mesmo sabendo
que seria derrotado e obrigado aassistir a Style Network, a HGTV ou
um reality show atrás do outro. Mas quando já eratarde da noite e
ele ficava só, a TV era dele e de mais ninguém. Mesmo assim,
semprequeria companhia, como se a história ficasse melhor ainda
quando se tem alguém paracompartilhar.

Geralmente, esse alguém era eu. Como minha mãe dormia cedo,
Whitney ficavaentediada e Kirsten sempre falava demais durante
qualquer programa, meu pai e euéramos parceiros em frente à TV à
noite, os dois sentados vendo a história sedesenrolar diante de
nossos olhos. Ele agia com interesse mesmo quando se tratavade
um programa que eu sabia que ele já tinha visto, balançando a
cabeça e dizendo"Humm" e "É mesmo?", como se o narrador
pudesse ouvi-lo e precisasse de sua interação para continuar.

Mas eu tinha parado de assistir à televisão nos últimos meses. Eu


não sabiamuito bem o motivo, mas, toda vez que ele perguntava, eu
me sentia cansada, cansadademais para agüentar eventos
mundiais, mesmo os que já tinham acontecido. Ou nãopodia
agüentar o peso da história, do passado. Acho que não tinha
vontade de olharpara trás.

— Não, obrigada — respondi. — O dia foi longo. Eu estou bem


cansada.

—Tudo bem — ele falou, sentando-se e pegando o controle remoto.


— Ficapra próxima.
— Sim, com certeza.

Peguei meu copo de água e fui até a poltrona dele, e ele me


estendeu suabochecha para eu lhe dar boa-noite. Depois, sorriu e
apertou o botão do volume.Conforme me distanciava da sala, a voz
do narrador ficava mais alta.

— No século quinze, exploradores buscavam...

Na metade do caminho, parei para tomar um gole de água e depois


me virei eolhei para ele. O controle remoto agora estava sobre a sua
barriga, a luz da TVbrilhando no seu rosto. Eu tentei me imaginar
refazendo os meus passos, voltando parasentar-me no sofá, mas
não consegui. Então, deixei-o lá sozinho vendo a história serepetir,
os mesmos eventos recontados várias vezes.
109

Sete

Durante todo o fim de semana fiquei pensando no que podia esperar


quando visse Owen na escola. Se as coisas mudariam depois do
que tinha acontecido nasexta-feira, ou se nós voltaríamos a
compartilhar do silêncio e da distância, como se nada tivesse
acontecido. Alguns minutos depois de se sentar, ele fez a escolha.

Então. Você ouviu?

Deixei de lado o meu sanduíche, virando o rosto em sua direção.


Ele estavano lugar onde sempre ficava e estava usando calça jeans
e uma camiseta preta. SeuiPod também estava fora da mochila e o
fone de ouvido pendurado no pescoço.

— O seu programa? — falei.

— Sim.

Fiz que sim com a cabeça.

— Ouvi sim.

— E...?

Apesar de ter ficado boa parte do fim de semana prestando atenção


emquantas vezes eu menti apenas para manter a paz, o meu
primeiro ímpeto naquelemomento foi de fazer exatamente isso.
Honestidade na teoria era uma coisa. Nafrente de uma pessoa, era
outra.
— Bom — comecei. — Foi... Interessante.

— Interessante — ele repetiu.

— É — confirmei. — Eu, é, nunca tinha ouvido aquelas músicas


antes.

Ele ficou me olhando, estudando meu rosto durante um tempo que


mepareceu bem longo. Depois me assustei quando ele se levantou
e deu três passos
110

largos, diminuindo rapidamente a distância entre nós, se sentando


ao meu lado.

— Certo — ele disse. — Você ouviu de verdade?

— Sim — respondi, tentando não gaguejar. — Ouvi.

— Eu não sei se você se lembra — ele falou — mas você me disse


que

mente.

— Eu não disse isso. — Ele ergueu uma sobrancelha. — Eu disse


quemuitas vezes escondia a verdade. Mas não é o que estou
fazendo agora. Escutei oprograma inteiro.

Era óbvio, porém nada surpreendente, que ele continuou não


acreditando emmim. Eu respirei fundo.

— "Jennifer", do Lipo, "Descartes Dream", do Misanthrope. Uma


músicacom muito som de bip...

— Você ouviu mesmo. — Ele se encostou, balançando a cabeça. —


Então, tá certo. Agora me diga o que você achou de verdade.

— Eu disse. Foi interessante.

— Interessante — ele falou — não é uma palavra.

— Desde quando?
— É um marcador de posição. Algo que você usa quando não quer
dizeroutra coisa. — Ele se inclinou para mais perto de mim. — Olha,
se você estápreocupada com os meus sentimentos, não fique. Você
pode dizer o que quiser. Eunão vou ficar ofendido.

— Já falei. Gostei.

— Diga a verdade. Diga algo. Qualquer coisa. Bota pra fora.

— Eu... — comecei e depois parei. Talvez fosse o fato de ele ser tão
diretocomigo. Ou minha repentina consciência de como raramente
eu era sincera. Dequalquer maneira, eu falei. — Eu... Eu não gostei
— disse.

Ele deu um tapa na própria perna.

— Eu sabia! Sabe, para alguém que mente muito, você não é muito
boa

nisso.
111

Isso era bom ou não? Eu não sabia ao certo.

— Eu não sou mentirosa.

— Certo. Você é boazinha — ele disse.

— E qual é o problema?

— Nenhum. Com exceção de que implica não dizer a verdade — ele


respondeu. — Agora, diga-me o que realmente achou.

O que eu realmente achava era que me sentia insegura como se, de


alguma forma, Owen tivesse me compreendido e eu nem tivesse
percebido.

— Eu gostei do formato do show — eu disse — mas as músicas


eram

meio...

— Meio o quê? — Ele começou a mexer os dedos na minha frente.


— Use alguns adjetivos. Além de interessante.

— Barulhentas — falei. — Bizarras.

— Certo — ele balançou a cabeça. — O que mais?

Eu olhei para o seu rosto, procurando sinais de ofensa ou


perturbação. Como não havia nenhum sinal, continuei.

— Bem, a primeira música era... Difícil de ouvir. E a segunda, a do


Misanthrope...
— "Descartes Dream".

— Ela me fez dormir. Literalmente.

— Isso acontece — ele disse. — Continue.

Ele disse isso com tanta tranqüilidade, como se não estivesse


incomodado. Então falei:

— A música da harpa parecia o tipo de música que se houve em


funeral.

— Ah — ele disse. — Ok. Muito bom.

— E eu odiei a música eletrônica.

— Toda?
112

— Sim.

Ele sacudiu positivamente a cabeça.

— Bem, tá certo então. É um feedback muito bom. Obrigado.

E foi isso. Ele pegou o seu iPod e começou a apertar os botões.


Nada de raiva, nada de sentimentos feridos, nada de ofensa.

— Então... Você está chateado com o que eu disse? — perguntei.

— Que você não gostou do programa? — ele respondeu sem olhar


para

mim.

— Sim.

Ele deu de ombros.

— Claro. Quero dizer, teria sido legal se você tivesse gostado. Mas
amaioria das pessoas não gosta, então não me surpreende.

— E isso não te incomoda? — perguntei.

— Não. Quero dizer, no começo, ficava um pouco decepcionado.


Mas as pessoas se recuperam de decepções. Caso contrário, todos
nós nos mataríamos. Certo?

— O quê?
— Ei, e a música sobre o mar? — ele perguntou. Eu olhei para ele.
— Oshomens cantando sobre navegar a céu aberto. O que você
achou dessa?

— Estranha — respondi. — Bem estranha.

— Estranha — ele repetiu. — Hum, certo.

Naquele exato momento, comecei a ouvir vozes e passos, e me virei


bem atempo de ver Sophie atravessando o pátio com Emily. Fiquei
tão distraída com osacontecimentos na companhia de Owen sexta-
feira passada que esqueci o confrontoque tinha rolado antes.
Porém, naquela manhã, indo para a escola, o medo se
instaurouquando comecei a imaginar o que aconteceria. Mas até
aquele momento, só tinhacruzado com Sophie uma vez e, quando
ela passou por mim, me olhou e me chamou de vadia, bem
baixinho. O de sempre.

Mas agora, ela me olhava fixamente e arregalou os olhos,


cutucando a Emily.Depois, as duas ficaram me observando, e eu
senti que fiquei vermelha e desviei o
113

olhar em direção à minha mochila e meu pé.

Owen, por sua vez, não tinha percebido isso, pois colocou o iPod no
chão epassou a mão no cabelo.

— Então, você não gostou nada da música eletrônica? —


perguntou. —De nenhum aspecto?

Eu balancei a cabeça.

— Não — respondi. — Desculpe.

— Não se desculpe, é a sua opinião. Não há certo e errado em


música, sabe?Só o que há no meio.

O sinal tocou e eu fiquei surpresa, pois estava acostumada com a


hora doalmoço ser interminável e essa passou voando. Peguei o
que tinha sobrado do meusanduíche enquanto Owen saltava do
muro, colocando o iPod no bolso e arrumandoseu fone de ouvido.

— Bom — eu disse — a gente se vê por aí.

— É. — Ele começou a colocar o fone de ouvido enquanto eu


pegava minha mochila, escorregando pelo muro. — Te vejo mais
tarde.

Ao me afastar, dei mais uma olhada em direção ao banco. É claro


queSophie e Emily ainda estavam me olhando. Vi que Sophie disse
alguma coisa eEmily sorriu, balançando a cabeça. Fiquei
imaginando as coisas que elas iriam dizere as histórias que iriam
inventar sobre nós. Nenhuma delas poderia ser mais estranha do
que a verdade: que Owen Armstrong e eu éramos apenas amigos.

Ao pensar isso, olhei para o lado e o vi no meio da multidão. Ele


tinhacolocado o fone de ouvido e estava andando em direção ao
prédio de artes com amochila no ombro. Elas o observavam
também, mas ele nem tinha notado. E eraisso o que eu mais
invejava nele, mais ainda do que sua sinceridade, objetividade etodo
o resto.

Eu não consegui o trabalho da Mooshka. Isso não era


decepcionante nemsurpreendente — pelo menos não para mim,
mas minha mãe parecia bem chateada.Pessoalmente, eu estava
aliviada por tudo aquilo ter terminado e pronta para seguirem frente.
Mas no dia seguinte, quando peguei meu almoço, um bilhete saiu
juntocom ele.
114

Annabel,

Eu só queria que você soubesse que sinto muito orgulho de você


por tudoo que já conseguiu. Gostaria que você não desanimasse
por causa da campanhada Mooshka. Era muito competitiva. Lindy
disse isso, e eles gostam muito do seutrabalho. Eu e ela marcamos
de conversar hoje sobre outras coisas em que elaestá pensando.
Elas me parecem muito animadoras. Conto tudo para você hoje
ànoite. Tenha um ótimo dia.

— Más notícias?

Eu tomei um susto, depois olhei para cima e vi Owen parado na


minha

frente.

— O quê?

— Você parece estressada — ele disse, apontando para o bilhete


em minhamão. — Algo errado?

— Não — respondi, dobrando o bilhete e colocando-o ao meu lado.


— Estátudo bem.

Ele se aproximou do muro, sentando-se não ao meu lado como


tinha feito nodia anterior, mas também não tão longe como antes.
Eu observei enquanto ele tirouo iPod do bolso e depois apoiou as
palmas das mãos na grama.
Em meio a tudo isso, eu sabia que não tinha sido sincera na minha
últimaresposta. É claro que ele nunca saberia disso. E
provavelmente não se importaria.Mesmo assim, por alguma razão,
senti necessidade de Reformular e Redirecionar. E foi o que fiz.

— É só uma coisa com a minha mãe — eu disse.

Ele virou a cabeça e eu fiquei imaginando se ele me achava louca


ou nãotinha a menor idéia do que eu estava falando.

— Coisa — ele repetiu. — Só para você ficar sabendo, esse é um


marcador de posição grave.

"Claro que é", pensei. Ainda assim, esclareci.

— Tem a ver com o meu trabalho como modelo.

— Modelo? — ele pareceu confuso. — Ah, tá. Aquele negócio sobre


o qual
115

a Mallory estava falando. Você participou de um comercial ou algo


assim?

— Eu trabalho como modelo desde criança. Minhas duas irmãs


também.Mas ando com vontade de parar.

Pronto. Falei para Owen Armstrong, justo para ele, algo que antes
só tinhaadmitido para mim mesma. Esse foi um passo tão grande
para mim que euprovavelmente poderia ter parado de falar. Mas,
por algum motivo, continuei.

— E, bom — eu disse — , é complicado porque minha mãe


realmente gostae se dedica e, se eu parar, ela vai ficar chateada.

— Mas você não quer mais — ele falou. — Certo?

— É.

— Então você deveria contar pra ela.

— Você fala como se fosse fácil — eu disse.

— E não é?

— Não. Houve uma explosão de risadas vinda da porta à nossa


esquerda eum grupo de alunos do primeiro ano saiu, falando muito
alto. Owen olhou para eles, e para mim novamente.

— Por que não? — ele perguntou.

— Porque eu não provoco conflitos.


Ele olhou para Sophie, que estava sentada no banco de sempre
com Emily, evagarosamente direcionou o olhar para mim.

— Bem — acrescentei. — Eu não sou boa em confrontos.

— O que aconteceu entre você duas, afinal?

— Sophie e eu? — perguntei, mesmo sabendo o que ele queria


dizer. Ele fezque sim com a cabeça. — É só que... Nós tivemos um
desentendimento no verão.

Ele não disse nada. Eu sabia que ele estava esperando mais
detalhes.

— Ela acha que eu dormi com o namorado dela — acrescentei.

— Você dormiu?
116

É claro que ele perguntaria isso sem rodeios. Mas, mesmo assim,
senti quefiquei vermelha.

— Não — eu disse. — Não dormi.

— Talvez você deva falar isso pra ela — ele falou.

— Não é tão simples assim.

— Hum — ele disse. — Pode me chamar de louco, mas sinto que


há umaquestão aqui.

Abaixei o olhar em direção às minhas mãos, pensando mais uma


vez que eudeveria ser extremamente simples para ele conseguir
deduzir tanta coisa sobre mim em menos de uma semana.

— Então, se você fosse eu — eu disse — você iria...

— ... Apenas ser sincero — ele terminou. — Nos dois casos.

— Você fala como se fosse fácil também — eu disse a ele.

— Não é. Mas você consegue fazer. Só precisa praticar.

— Praticar?

— No Gerenciamento de Raiva — ele respondeu — nós tínhamos


que fazertipo um jogo teatral. Sabe, para se acostumar a lidar com
as coisas de um jeitomenos volátil.

— Você participava desse jogo? — eu perguntei, tentando imaginar


a cena.
— Eu tive que participar, pois foi decidido no tribunal — ele
suspirou. —Mas tenho que admitir que me ajudou, sabe? Caso algo
parecido aconteça, você temuma espécie de mapa para lidar com a
situação.

— Ah — eu disse. — Bem, acho que isso faz sentido.

— Então, tá. — Ele veio para perto de mim. — Então, vamos dizer
que euseja a sua mãe.

— O quê? — eu disse.

— Eu sou a sua mãe — ele repetiu. — Agora me diga que você não
quermais trabalhar como modelo.
117

Senti que estava ficando vermelha de novo.

— Eu não consigo fazer isso — falei.

—Por que não? — ele perguntou. — É assim tão difícil de acreditar?


Vocêacha que eu não interpreto bem?

—Não — eu disse. — É só que...

—Porque eu sou bom. Todos no grupo queriam que eu fizesse o


papel da

mãe.

Eu olhei para ele.

— Eu só... É estranho.

— Não, é difícil. Mas não é impossível. Tenta.

Uma semana antes, eu nem sabia qual era cor dos olhos dele.
Agora, éramosuma família, pelo menos temporariamente. Eu
respirei fundo.

— Tá bom — eu disse. — Então...

— Mãe — ele disse.

— O quê?

— Quanto mais preciso for o exercício, mais eficiente — ele


explicou. — É tudo ou nada.
— Tá — eu disse de novo. — Mãe.

— Sim?

"Isso é tão estranho", pensei. Em voz alta, eu disse:

— Quero falar uma coisa: eu sei que o trabalho como modelo é


muitoimportante para...

Ele fez com a mão sinal para eu parar.

— R e R. Reformule e Redirecione isso.

— Por quê?

— Coisa. Como eu disse antes, um grande marcador de posição e


super
118

vago. Em confrontos, você tem que ser o mais específico possível


para evitar malentendidos. — Ele se inclinou para perto de mim. —
Olha, eu sei que é estranho —ele disse. — Mas funciona. Eu
garanto.

Mas isso não me ajudou muito, pois tinha acabado de deixar de me


sentirapenas desconfortável para passar a quase humilhada.

— Eu sei que meu trabalho como modelo é muito importante para


você— eu disse — e que você gosta muito.

Owen acenou com cabeça e fez sinal para eu continuar.

— Mas sendo sincera... — Levantei minha mão e coloquei uma


mecha decabelo para trás da orelha. — É que tenho pensado muito
sobre isso ultimamente esinto que...

Acontece que eu sabia que aquilo era apenas um jogo. Um treino,


não erareal. Mas, mesmo assim, senti algo travando dentro de mim,
como um motorparando. Eu tinha muita coisa em jogo ali —
fracassar não iria somente revelarminha dificuldade em lidar com
confrontos, mas também me deixar envergonhadana frente dele.

Ele continuava esperando.

— Eu não consigo — eu disse e olhei para o outro lado.

— Mas você estava indo super bem! — ele disse, batendo na


parede com a palma da mão. — Você estava ótima.
— Desculpe — falei, pegando meu sanduíche novamente. Eu
engasguei aodizer: — Eu só... Não consigo.

Ele ficou me olhando por um momento. Depois, deu de ombros.

— Tudo bem — ele disse. — Não é nada demais.

Nós ficamos sentados em silêncio por um segundo. Eu não fazia


idéia doque tinha acabado de acontecer, mas de repente me
pareceu ser algo importante.Então, ouvi Owen tomar fôlego para
falar.

— Olha — ele disse. — Eu vou só dizer uma coisa: não pode ser
bom,sabe? Guardar algo assim dentro de si. Andando por aí todos
os dias com tanta coisaque você quer dizer e sem fazer isso. É algo
que pode deixar alguém louco. Certo?
119

Eu sábia que ele estava falando sobre meu trabalho como modelo.
Mas, aoouvir isso, pensei em outra coisa, a coisa que nunca
conseguiria admitir, o maiorsegredo de todos. Aquele que eu nunca
poderia contar, porque se apenas umapontinha fosse revelada, eu
nunca poderia esconder novamente.

— É melhor eu ir — eu disse, colocando meu sanduíche de volta


namochila. — Eu... Eu tenho que conversar com a minha professora
de inglês sobreum projeto.

— Ah — ele disse. Eu sentia que ele estava me olhando e fiz um


esforçoenorme para não olhar de volta. — Claro.

Eu me levantei, pegando minha mochila.

— Então, até mais tarde.

— Certo. — Ele pegou o iPod. — A gente se vê por aí.

Eu concordei, acenando com a cabeça, e logo já estava me


afastando edeixando-o para trás. Esperei até a entrada principal
para me virar.

Ele estava lá, sentado, de cabeça baixa e ouvindo música como se


nadativesse acontecido. Eu me lembrei da primeira impressão que
tive dele — de que eleera perigoso, uma ameaça Agora eu sabia
que ele não era nada daquilo, pelo menosnão do jeito que eu
pensava. Mas havia algo em Owen Armstrong que dava medo:ele
era sincero e esperava o mesmo de todo mundo. E aquilo me
deixava apavorada.
Logo que me afastei de Owen, senti um alívio. Mas não por muito
tempo.

Percebi ao longo do dia que a verdade era que, apesar de mal


conhecerOwen, eu tinha sido mais sincera com ele do que com
qualquer outra pessoa emmuito tempo. Ele sabia o que tinha
acontecido entre Sophie e eu, sabia sobre adoença da Whitney e
que eu odiava trabalhar como modelo. Isso parecia muitacoisa para
revelar a uma pessoa de quem, na verdade, eu não poderia nem
arriscar aficar amiga. Mas eu não tinha certeza disso, até ver Clarke.

Foi no corredor depois do sétimo horário. Ela estava abrindo o seu


armário,tinha o cabelo preso em duas trancas e usava calça jeans,
blusa preta e sapato-boneca brilhante. Fiquei observando uma
garota que eu não conhecia passar por trásdela, chamá-la pelo
nome e Clarke se virar, sorrindo, e lhe dizer oi. Tudo normal,afinal
era apenas mais um momento em mais um dia, mas algo
naqueleacontecimento mexeu comigo e me fez voltar para aquela
noite na piscina. Outra vez
120

em que fiquei com medo do conflito, com medo de ser sincera, com
medo até de falar.Eu perdi uma amiga naquele dia. A melhor amiga
que já tive.

Era tarde demais para tentar mudar o que tinha acontecido entre
Clarke emim, mas ainda havia tempo para mudar outra coisa.
Talvez a mim mesma. Então, fuiprocurar Owen.

Em uma escola que tem mais de dois mil alunos, era fácil se perder
e perderoutra pessoa, mas Owen realmente se destacava na
multidão. Então, quando nãoconsegui encontrá-lo e nem a sua Land
Cruiser, achei que o tinha perdido deverdade. Porém, quando entrei
no carro e saí pela rodovia principal, eu o vi. Eleestava a pé,
andando na calçada com a mochila nas costas e fone de ouvido.

Quando já andava com o carro em sua direção, me ocorreu que


talvez issopudesse ser um erro. Mas a gente não tem muitas
oportunidades na vida para refazeras coisas, nem muitas chances
de alterar o futuro, já que não se pode mudar opassado. Então,
diminuí a velocidade e abri a janela.

— Ei — chamei, mas ele não me ouviu. — Owen! — Ainda assim,


nenhumaresposta. Coloquei a minha mão no centro do volante e
buzinei com força. Finalmente,ele virou a cabeça.

— Ei — ele disse, enquanto alguém atrás de mim buzinou com raiva


antesde me ultrapassar rapidamente. — E aí?

— O que aconteceu com o seu carro? — perguntei.


Ele parou de andar, levantou o braço para tirar o fone do ouvido
esquerdo.

— Problemas de transporte — ele disse.

É agora, eu disse a mim mesma. Diga alguma coisa. Qualquer


coisa. Só

fale.

— Parece a história da minha vida — eu disse a ele. E me estiquei


paraabrir a porta do passageiro. — Entra aí.
121

Oito

A primeira coisa que Owen fez ao entrar no meu carro foi bater a
cabeça no teto, que era muito baixo — algo de que eu não tinha me
dado conta até aquelemomento.

— Opa! — ele disse passando a mão na testa, exatamente ao


mesmo tempoem que um dos seus joelhos batia no painel. —
Nossa. Este carro é pequeno.

— É? — eu disse. — Nunca tinha reparado, tenho um metro e


setenta.

— Isso é alto?

— Eu pensava que sim — respondi, olhando para ele.

— Bem, eu tenho um metro e noventa e cinco — ele falou, tentando


afastaro banco que já estava no limite mais longe do painel. Depois,
ele mexeu o braço,tentando colocá-lo para fora da janela, mas ele
era grande demais, então mudou deposição, cruzando os braços,
antes de finalmente colocá-los ao lado do corpo. —Então, acho que
tudo é relativo.

— Você está bem? — perguntei.

— Sim — ele disse, sem parecer preocupado e com um ar de que já


estavaacostumado com esse tipo de coisa. — Ah, obrigado pela
carona.

— Sem problemas — eu disse. — E só me dizer para onde você vai.


— Para casa. — Ele movimentou novamente o braço, ainda
tentando seajeitar no banco. — Pode seguir reto. Você não vai
precisar entrar em nenhuma ruapor um tempo.

Nós ficamos calados por alguns minutos. Eu sabia que era hora de
dizer o queestava se passando na minha cabeça e me explicar. Eu
respirei fundo, me preparando.

— Como você agüenta isso? — ele perguntou. Eu pisquei.— Quê?


122

— Quero dizer — ele continuou — , está tão silencioso. Vazio.

— O quê?

— Isso — ele disse, apontando o carro. — Dirigir em silêncio.


Semmúsica.

— Bem — respondi devagar. — Na verdade, eu nem percebi.


Eleencostou-se no banco, sua cabeça batendo no apoio.

— É que para mim, é imediato. O silêncio é extremamente alto.

Isso me pareceu muito profundo ou profundamente antagônico. Eu


não tinhacerteza de qual dos dois.

— Bem — eu disse —, meus CDs estão no console do meio, se


você...Mas ele já estava abrindo a tampa e tirando uma pilha de
CDs. Quando começou a verquais CDs eu tinha, fiquei nervosa de
repente.

— Esses não são os meus favoritos — eu disse. — Eles são apenas


os queestão no carro no momento.

— Hum — ele disse sem erguer os olhos. Eu voltei a olhar para


frente,ouvindo as caixas dos CDs batendo enquanto ele as estudava
— Drake Peyton,Drake Peyton... Então você gosta dessa coisa meio
rock-hippie de universitário?

— Acho que sim — respondi. Isso não era bom, pensei. — Eu vi um


show deleno verão retrasado.
— Hum — ele disse novamente. — Mais Drake Peyton... E
Alamance. Isso é alt-country, não é?

— É.

— Interessante — ele disse. — Como eu iria imaginar que você


fosse fã do...Tiny? É o álbum mais recente dele, não é?

— Eu comprei nas férias — eu disse, diminuindo a velocidade para


parar nofarol vermelho.

— Então, é esse. — Ele balançou a cabeça. — Sabe, eu tenho que


admitir queestou surpreso. Nunca imaginaria que você fosse fã do
Tiny. Ou de qualquer tipo de rap.

— Por que não?


123

Ele deu de ombros.

— Não sei. Não devo ser muito bom em especulações, eu acho.


Quemgravou esse aqui pra você?

Dei uma olhada rápida para o disco e imediatamente reconheci a


letra.

— Minha irmã Kirsten.

— Ela gosta de classic rock — ele disse.

— Desde o Ensino Médio — falei. — Ela teve durante anos um


pôster doJimmy Page na parede do quarto dela.

— Ah. — Ele olhou a lista de músicas. — Mas ela tem bom gosto.
Quero dizer,tem Led Zeppelin aqui, mas pelo menos não é
"Stairway to Heaven". Na verdade —ele disse, parecendo estar
impressionado — "Thank you" é a minha música preferidado Led
Zeppelin.

— Sério?

— Sério. Tem uma coisa de balada romântica brega. Meio irônica,


masverdadeira. Posso colocar?

— Claro — respondi. — Obrigada por perguntar.

— Você tem que perguntar — ele disse, colocando o CD no


aparelho. — Sóum verdadeiro babaca toma liberdades com o som
do carro de outra pessoa. Isso ésério.
O aparelho fez alguns "cliques" e então eu ouvi a música, bem
baixo. Owenesticou a mão até o botão do volume e me olhou.
Quando sacudi a cabeçapositivamente, ele aumentou o som. Ao
ouvir os primeiros acordes, senti saudades daKirsten, que durante o
seu último ano cheio de rebeldia tinha desenvolvido umapaixão pelo
guitar rock dos anos 1970 e ouvia nesse mesmo volume o Dark Side
of theMoon do Pink Floyd repetidamente, e por semanas seguidas.

Ao me lembrar disso, olhei novamente para Owen, que estava


batendo os dedosno joelho como se tocasse bateria. Kirsten, é
claro, nunca hesitaria em dizer o quepassava pela cabeça dela.
Então, ouvindo a música dela, eu decidi seguir o seuexemplo. Ou
pelo menos tentar.

— Então, sobre hoje — eu disse. Ele me olhou. — Me desculpe pelo


queaconteceu.
124

— O que aconteceu?

Eu fixei os olhos na rua à minha frente, sentindo meu rosto ficar


vermelho.

— Quando estávamos fazendo aquele teatrinho, eu surtei e fui


embora.Eu estava esperando ouvir um "Tudo bem" ou talvez um
"Não se preocupe". Em vez disso, ele falou:

— Aquilo foi um surto?

— Bem — respondi. — Acho que sim.

— Hum — ele disse. — Tudo bem.

— Eu não queria ter ficado tão chateada — expliquei. — Como eu


disse,não sou boa em situações de conflito. Bom, o que deve ter
ficado óbvio. Então...Desculpe.

— Tudo bem. — Ele tentou mudar de posição no banco e seu


cotovelobateu na porta. — Na verdade...

Eu esperei que concluísse o pensamento. Quando vi que ele não


falava nada,perguntei:

— O quê?

— É que, para mim, aquilo não pareceu um surto — ele respondeu.

— Não?

Ele acenou negativamente a cabeça.


— Para mim, surtar é aumentar o tom de voz. Gritar. Veias saltando.
Baterem pessoas no estacionamento. Esse tipo de coisa.

— Eu não faço isso — retruquei.

— Eu não estou dizendo que você deveria fazer isso. — Ele


levantou a mão,passando-a pelo cabelo; ao fazer isso, o anel no seu
dedo do meio refletiu a luz,brilhando por um segundo. — É apenas
uma questão semântica, eu acho. Podeentrar na próxima à direita.

Eu entrei em uma rua larga. Todas as casas eram grandes, com


grandesentradas. Nós passamos por um grupo de crianças em uma
rua sem saída jogandohóquei de patins, depois por mães com
carrinhos de bebê reunidas em uma esquina.
125

— Chegamos. É aquela ali — ele me disse. — A cinza.

Eu freei, depois parei na calçada. A casa era linda, a varanda na


entrada eragrande e tinha um balanço, além de vasos com flores
cor-de-rosa e brilhantes nosdegraus. Um gato amarelo estava
deitado na entrada, esticado ao sol.

— Uau! — falei. — Que casa incrível!

— Bom, não é de vidro — ele disse. — Mas é bacana.

Ficamos lá, sentados, por um segundo. Então a situação era ao


contrário daúltima vez, pois agora era eu quem esperava ele entrar.

— Sabe — eu disse, finalmente —, eu só queria te dizer que você


estavacerto sobre o que disse antes. É difícil ficar guardando tudo
dentro da gente. Maspara mim... Às vezes é ainda mais difícil pôr
para fora.

Eu não sabia ao certo por que tive vontade de falar sobre esse
assunto denovo. Talvez para me explicar. Para ele ou para mim
mesma.

— É — ele disse. — Mas você tem que colocar as coisas para fora.
Casocontrário, a coisa vai aumentando e uma hora você explode.

— Tá vendo, é exatamente com essa parte que eu não consigo lidar


— falei.— Eu não agüento ver as pessoas com raiva.

— Raiva não é algo ruim — ele disse. — É humano. E, além disso,


o fato deuma pessoa estar chateada não quer dizer que ela ficará
assim para sempre.

Fiquei olhando para o volante do carro.

— Eu não sei — disse. — Minha experiência é que, quando as


pessoas quesão próximas a mim ficam chateadas comigo, é isso e
ponto final. É para sempre.Tudo muda.

Owen ficou calado durante um segundo. Eu pude ouvir um cão


latindo emoutra casa.

— Bem — ele disse —, talvez você não fosse tão próxima quanto
pensava.

— O que isso quer dizer?

— Quer dizer que, se alguém é realmente uma pessoa próxima, é


normalvocê ficar chateada ou a pessoa ficar chateada e as pessoas
não mudam por causadisso. Isso apenas faz parte do
relacionamento. Acontece. E você lida com isso.
126

— Você lida com isso — eu disse. — Eu nem saberia o que fazer.

— Bem, isso faz sentido — ele disse. — Considerando que você


nuncadeixa isso acontecer.

O CD ainda estava tocando, agora uma música do Rush, e uma van


passoupor nós, espalhando algumas folhas. Eu não tinha a menor
idéia de quantos minutostinham se passado desde que paramos o
carro. Parecia bastante tempo.

— Você com certeza tem muitas respostas — falei.

— Não tenho — ele retrucou, girando no dedo um de seus anéis. —


Eu sóestou fazendo o melhor que posso, de acordo com as
circunstâncias.

— E como você está se saindo? — perguntei. Ele meolhou


brevemente.

— Bem, você sabe — ele respondeu. — É um dia de cada vez. Eu

sorri.

— Gostei dos seus anéis — disse a ele, acenando com a cabeça


em direçãoàs mãos dele. — Eles são exatamente iguais?

— Mais ou menos. E não exatamente. — Ele abaixou a mão direita,


tirou oanel da mão esquerda e me deu. — Eles são algo para
representar o "antes edepois". Foi o Rolly quem fez pra mim. O pai
dele é joalheiro.

Senti o anel pesado na palma da minha mão, ele era grosso.


— Ele fez o anel?

— Não o anel — ele disse. — A gravação. Na parte de dentro.

— Ah. — Eu inclinei um pouco o anel, olhando seu interior. Lá, em


letrasmaiúsculas, com uma fonte formal e muito elegante, estava
escrito FODA - SE . — Bemgentil — eu disse.

— Classudo, hein? — ele falou. E fez uma careta. — Isso foi antes
daprisão. Eu era um pouco...

— Bravo?

— Pode-se dizer que sim. Este aqui ele fez quando eu terminei o
curso deGerenciamento de Raiva. — Ele tirou o anel do dedo do
meio e o colocou na minhafrente. Com a mesma fonte, mesmo
tamanho, estava escrito OU NÃO.
127

Eu ri.

— Bem — disse, devolvendo o anel a ele. — É sempre bom saber


quais sãoas nossas opções.

— Exatamente. — Então, ele sorriu para mim, e mais uma vez eu


senti orosto ficar vermelho, mas não por estar envergonhada, nem
ansiosa. Era umasensação totalmente diferente. Algo que nunca
imaginei que iria sentir perto deOwen Armstrong. Nunca. O
momento foi interrompido por uma voz.

— Annabel!

Eu olhei para a direita — era a Mallory. Não sei quando, mas ela
apareceuna janela do Owen, onde agora acenava com um sorriso
largo. — Oi!

— Oi — respondi.

Ela fez sinal para Owen abaixar o vidro da janela, o que ele fez, mas
bemdevagar e claramente a contragosto. Assim que a janela abriu,
ela colocou a cabeçapara dentro.

— Ai, meu Deus, adorei a sua blusa! É da Tosca? – Eu olhei


rapidamentepara a blusa.

— Talvez — eu disse. — Foi minha mãe quem me deu.

— Você é tão sortuda! Eu adoro a Tosca. É a minha loja preferida


no mundointeiro. Você vai entrar?

— Entrar? — perguntei.
— Em casa. Você vai jantar com a gente? Ah, você tem muito que
ficar parao jantar.

— Mallory — Owen disse, passando mão na testa. — Por favor,


pare de

gritar.

Ela o ignorou, colocando a cabeça mais para dentro.

— Você poderia ver meu quarto — ela disse com os olhos animados
earregalados. — E o meu closet, eu poderia mostrar...

— Mallory — Owen falou de novo. — Afaste-se do carro.

— Você gostou da minha roupa? — ela me perguntou. Depois deu


um passo
128

para trás para eu poder vê-la: uma camiseta branca e lisa, uma
jaqueta curta, calçajeans com a barra virada, e botas brilhantes com
solado grosso. Depois de dar umaviradinha, ela colocou novamente
a cabeça na janela. — É inspirada na NichollsLake; ela é minha
cantora favorita no momento, sabe? Ela é punk.

Owen encostou-se ao banco, sua cabeça contra o descanso.

— Nicholls Lake — ele disse em voz baixa — não é punk.

— É sim — Mallory retrucou. — E hoje eu também sou, viu?

— Mallory, nós já conversamos sobre isso. Lembra? Nós já não


discutimosa verdadeira definição de punk? — Owen disse. — Você
nem deve ter escutado oCD do Black Flag que eu te dei, não é?

— Aquilo era muito barulhento — ela respondeu. — E, além disso,


nem dápara cantar junto. Nicholls Lake é melhor.

Owen respirou profundamente.

— Mallory — ele disse. — Se você apenas... — Naquele momento,


umamulher alta de cabelos pretos — a mãe de Owen, deduzi —
apareceu na entrada da casa, chamando-a. Mallory lhe deu um
olhar irritado.

— Eu tenho que entrar — ela anunciou e depois colocou a cabeça


aindamais para dentro do carro, e seu rosto ficou muito próximo do
rosto de Owen. —Mas você vai voltar outra não vez, não vai?

— Claro — respondi.
— Tchau, Annabel.

— Tchau.

Ela sorriu, ficou de pé e acenou para mim. Eu acenei de volta, e


Owen e eu aobservamos subir as escadas e andar em direção à
porta de entrada, virando para nos olhar a cada um ou dois passos.

— Uau — eu disse. — Então ela é punk?

Owen não respondeu. Em vez disso, só o que eu ouvia era ele


inspirando oar, bem alto, várias vezes seguidas.

— Isso é você surtando? — perguntei.Ele expirou.


129

— Não. Isso sou eu irritado. Não sei o que acontece com ela. Irmãs
parecemter o dom de irritar até você ficar maluco.

— Parece a história da minha vida — eu disse.

Mais um silêncio. Cada vez que ficávamos em silêncio, eu


imaginava se essaseria a hora em que ele iria se levantar, ir embora
e esse momento acabaria. E cadavez menos eu queria que
chegasse ao fim.

Owen falou:

— Você diz isso muito, sabia?

— O quê?

— Parece a história da minha vida.

— Foi você quem disse primeiro.

— Eu disse?

Fiz que sim com a cabeça.

— Aquele dia, atrás da escola.

— Ah. — Ele ficou calado por um momento. — Sabe, se você pára


prapensar, isso é meio estranho. Quero dizer, a intenção é de ser
solidário,certo? Mas por um lado não é. É como se você dissesse
para a outra pessoaque não há nada de original no que ela está
dizendo.
Eu pensei sobre isso enquanto algumas crianças de patins e
bastões de hóquei no ombro passaram voando.

— É — eu disse, finalmente — , mas você também pode enxergar


isso deoutra maneira. Como se você dissesse que não importa
como as coisas andam ruinspro seu lado, eu ainda consigo me
identificar.

— Ah — ele disse. — Então você está dizendo que você se


identificacomigo?

— Não. De maneira nenhuma.

— Legal — ele riu, virando a cabeça para olhar pela janela. Vi seu
perfil muitorapidamente e lembrei-me de todos aqueles dias que
passei observando-o a distância.
130

— Tá bom — eu disse. — Talvez um pouco.

Ele virou o rosto em minha direção e eu senti aquilo novamente.


Mais umapausa, longa o suficiente para eu me perguntar o que
exatamente estava acontecendo.Em seguida, ele abriu a porta e
disse:

— Então, mais uma vez, obrigado pela carona.

— Sem problemas. Estava te devendo uma.

— Não — ele disse — não devia — Ele conseguiu sair do banco. —


Te vejoamanhã, ou sei lá.

— Sim, até amanhã.

Ele saiu do carro, fechando a porta, pegou sua mochila e começou a


subir aescada. Eu fiquei olhando até ele entrar.

Ao sair da calçada, toda aquela tarde me pareceu estranha, surreal.


Tanta coisase passava pela minha cabeça que eu estava longe de
conseguir entender o que sepassava. Mas, enquanto dirigia, me dei
conta de que alguma outra coisa meincomodava: o CD tinha
acabado e não havia música. Antes, eu provavelmente
nemperceberia, mas agora que tinha me dado conta, o silêncio, se
não era ensurdecedor,era perturbador. Eu não sabia ao certo o que
isso significava, mas estiquei o braço eliguei o rádio mesmo assim.
131

Nove

A Bela e a Fera. Um Estranho Casal. Shrek e Fiona. É claro que


fomos alvo de fofocas: nas semanas que se seguiram, inventaram
muitos nomes para mim eOwen, e o que quer que estivéssemos
fazendo todos os dias no muro durante a horado almoço. Para mim,
era mais difícil definir. Nós não estávamos juntos de
maneiranenhuma, mas não éramos estranhos. Estávamos no meio,
assim como muitas outrascoisas na vida.

Em todo caso, algumas coisas já estavam subentendidas. Primeiro,


quesentaríamos juntos. Segundo, que eu sempre chamava a
atenção dele por ele nãocomer nada — ele me confessou que
gastava todo o dinheiro do almoço em música,sempre — antes de
dividirmos o que eu tinha levado. E terceiro, que nósdiscutiríamos.
Não no sentido de brigar. Discutir.

No começo, era apenas sobre música, o assunto favorito de Owen e


sobre oqual ele tinha fortes opiniões. Quando concordava com ele,
eu era brilhante eiluminada. Quando não, eu tinha o Pior Gosto do
Mundo para Música. As conversasmais animadas costumavam ser
as do começo da semana, pois discutíamos oprograma de rádio
dele, o qual eu agora ouvia todo domingo de manhã. Era
difícilacreditar que antes eu ficava muito nervosa quando tinha que
dizer a ele o que eupensava, pois agora era algo natural.

— Você está brincando! — ele disse uma segunda-feira, balançando


acabeça. — Você não gostou daquela música do Baby Bejesuses?

— Uma que era só barulho de tecla de telefone?


— Não era só barulho de tecla de telefone — ele disse, indignado.
— Havia outras coisas também.

— Como o quê?

Por um segundo, ele só me olhou, metade do meu sanduíche de


peito de peruestava na mão.
132

— Como — ele disse, dando depois uma mordida, o que queria


dizer que eleestava enrolando. Depois de mastigar e engolir sem
pressa, ele continuou: — OsBaby Bejesuses são inovadores no
gênero.

— Então eles deveriam ser capazes de fazer uma música usando


mais coisas do que o teclado de um telefone.

— Isso — ele disse, apontando para mim com o sanduíche — é


Linguagem-I. Tome cuidado.

Linguagem-I queria dizer Linguagem Inflamada. E, assim como


EeEe,marcadores de posição, tinha começado a fazer parte do meu
vocabulário cotidiano.Ande com Owen bastante tempo e você
ganhará aula particular e gratuita deGerenciamento de Raiva.

— Olha — eu disse —, você sabe que eu não gosto de música


eletrônica.Então, talvez, sabe, você devesse parar de pedir minha
opinião sobre esse tipo demúsica

— Isso é uma generalização! — ele respondeu. — Como você pode


julgar umgênero inteiro? Você está se precipitando.

— Não, não estou — retruquei.

— Do que você chama isso, então?

— Ser sincero.

Ele ficou me olhando por um tempo. Depois, com um suspiro, deu


outramordida no sanduíche.
— Tá bom — ele disse, mastigando. — Vamos continuar. Que tal
aquelamúsica thrash metal dos Lipswitches?

— Muito barulhenta.

— Mas ela é para ser barulhenta! É thrash metall.

— Eu não me importaria com o barulho, se ela tivesse outras


qualidades que aredimissem — falei. — É apenas alguém gemendo
muito alto.

Ele colocou o pouco que faltava do sanduíche na boca.

— Então, nem música eletrônica nem thrash metal — ele disse. —


O que

sobra?
133

— Todo o resto. — falei.

— Todo o resto — ele repetiu vagarosamente, ainda não


convencido. — Tá bom. E a última música que eu coloquei? Aquela
com carrilhão?

— O carrilhão?

— É. Da Aimeé Decker. Havia um contrabaixo, e um falsete no


começo, edepois...

— Falsete? — eu disse. — É isso o que era?

— O quê? Você também não sabe o que é falsete?

E assim por diante. Algumas vezes eu ficava nervosinha, mas nunca


aoponto de não dar conta da situação. A verdade era que eu
esperava por essesalmoços com Owen muito mais do que poderia
admitir.

Em meio às nossas conversas sobre punk, big band e swing, além


dasquestionáveis qualidades que redimiam a música eletrônica, eu
aprendia cada vezmais sobre ele. Agora eu sabia que Owen sempre
fora apaixonado por música e quedesde que seus pais se
divorciaram, um ano e meio atrás, ele tinha se tornado,usando suas
próprias palavras, obcecado. Parece que a separação foi bem
tensa, comacusações de todo lado. A música, ele me disse, foi um
refúgio. Tudo ao redorestava se acabando e mudando, mas música
era esse recurso vasto e infindável.
— Basicamente — ele disse uma vez —, quando eles não se
falavam mais,eu ficava no meio, fazendo a ponte. E é claro que um
acusava o outro de ser terrívele não estar nem aí. Se eu
concordava, estava ferrado, pois alguém sempre seofendia. Mas se
discordasse, eu também estava tomando partido. Não tinha
comoganhar.

— Deve ter sido muito difícil — falei.

— Foi um saco. Foi aí que comecei a me interessar mais ainda por


música, aprocurar um lance mais obscuro. Se ninguém ouvia,
ninguém poderia me dizer oque eu deveria pensar sobre aquele tipo
de música. Não havia certo nem errado. —Ele se encostou,
espantando uma abelha que nos rodeava. — Além disso,
naquelaépoca, havia uma estação de rádio universitária em Phoenix
e eu comecei a ouvi-la,era a KXPC. Havia um cara que apresentava
um programa tarde da noite nos fins desemana... Ele tocava umas
músicas muito, muito desconhecidas. Como músicatribal ou punk
muito underground, ou cinco minutos inteiros de uma
torneirapingando na pia. Coisas assim.
134

— Uma torneira pingando? — eu perguntei. Ele fez que sim com a


cabeça. — Isso é música?

— Obviamente, não para todo mundo — ele respondeu, me


olhando. Eusorri. — Mas esse era o objetivo. Era como se fosse um
território nunca antesexplorado. Eu comecei a anotar as coisas que
ele tocava no programa e a procurá-lasna internet. Pude me
concentrar em outra coisa além do que estava acontecendo
emminha casa. E era ótimo para abafar a gritaria no andar de baixo.

— Sério? Gritaria?Ele ergueu os ombros.

— Não era o tempo todo assim. Mas com certeza havia surtos dos
doislados. Honestamente, o silêncio era pior.

— Pior que a gritaria?

—Bem pior — ele disse, balançando a cabeça. — Quer dizer, pelo


menosquando há briga, é possível saber o que está acontecendo.
Ou ter uma idéia. Silêncioé... Pode ser qualquer coisa. É que é...

— Ensurdecedor — eu concluí por ele. Eleapontou o dedo para


mim.

— Exatamente.

Então, Owen detestava silêncio. Também constava na sua lista de


coisas de queele não gostava: manteiga de amendoim (muito seca),
mentirosos (dispensaexplicações), e pessoas que não davam
gorjetas (aparentemente, entregar pizzas nãopagava muito bem). E
estes eram apenas os que eu sabia até o momento. Talvezfosse por
causa do tempo em que ele ficou no Gerenciamento de Raiva, mas
Owen eramuito aberto com relação às coisas que o irritavam.

— Você não é? — ele me perguntou um dia, quando fiz essa


observação.

— Não — respondi. — Quero dizer, acho que sou com relação a


algumas

coisas.

— O que te deixa com raiva?

Instintivamente, eu olhei para Sophie, que estava sentada no banco


desempre e falando ao telefone. Em voz alta, eu disse:

— Música eletrônica.
135

— Rá-rá — ele disse. — Fala sério.

— Eu não sei. — Peguei o final do meu sanduíche. — Minhas irmãs,


eu acho.Às vezes.

— O que mais?

— Não consigo pensar em mais nada — respondi.

— Por favor! Você está realmente dizendo que a única coisa que te
incomoda são suas irmãs e um gênero musical? Fala sério. Você
não é humana, por acaso?

— Talvez — eu disse — não seja tão brava quanto você.

— Ninguém é tão bravo quanto eu — ele respondeu, sem parecer


seimportar. — Isso é um fato. Mas até você tem que ter algo que
realmente a deixamuito irritada.

— Provavelmente sim. É que... Eu não consigo pensar em nada


agora. — Elerevirou os olhos. — Além disso, o que você quer dizer
com ninguém é tão bravo quanto você? E o Gerenciamento de
Raiva?

— O que é que tem?

— Bem — eu disse —, o objetivo não era você não sentir mais


raiva?

— O objetivo do Gerenciamento de Raiva não é impedir que você


sinta mais
raiva.

— Não?

Ele fez que não com cabeça.

— Não. A raiva é inevitável. O Gerenciamento de Raiva é isso


mesmo o que onome diz: o objetivo é fazer você aprender a lidar
com ela. Expressada de umamaneira mais produtiva do que bater
nas pessoas em estacionamentos.

Minha primeira reação seria duvidar disso, mas agora não mais:
Owen erasempre assim, sincero. Faça uma pergunta, você terá a
resposta. Eu o testei por umtempo, pedindo a opinião dele em vários
assuntos, como as minhas roupas ("não é otom que fica melhor em
você", ele me falou sobre uma blusa nova cor de pêssego),sua
primeira impressão sobre mim ("perfeita demais e completamente
inatingível), eo estado de sua vida amorosa ("atualmente
inexistente").

— Existe algo que você nunca contaria a ninguém? — finalmente


lhe
136

perguntei um dia, logo depois de ele ter me dito, que apesar de ter
gostado do meunovo corte de cabelo, ele o preferia mais comprido.
— De jeito nenhum?

— Você acabou de perguntar o que eu achava — ele disse,


pegando umpretzel de dentro de um saco que estava entre nós. —
Por que me pergunta, se vocênão quer que eu seja sincero?

— Eu não estou falando do meu cabelo. Estou falando em geral —


Ele medeu um olhar desconfiado, colocando o pretzel na boca. — É
sério, você nunca pensouque talvez não devesse contar algo? Que
talvez não fosse a coisa certa a fazer?

Ele pensou nisso durante um segundo.

— Não — ele finalmente disse. — Eu já disse. Não gosto de gente


mentirosa.

— Mas não é mentir. É só não contar.

— Você está dizendo que há uma diferença?

— Há sim — eu disse. — Um é enganar ativamente. O outro é


apenas não

contar.

— Sim, mas — ele respondeu, pegando outro pretzel —, mesmo


assim vocêestá participando de uma enganação. A menos que seja
apenas para você mesmo.Certo?

Eu só olhei para ele, pensando nisso.


— Eu não sei — disse, devagar.

— Na verdade — ele continuou — isso é pior do que mentir, se você


pensarbem. Quero dizer, você tem que pelo menos dizer a verdade
a si mesmo. Se você nãopode confiar em si mesmo, em quem você
pode confiar? Entende?

Eu nunca conseguiria dizer isso a ele, mas Owen me inspirou. As


pequenasmentiras inocentes que eu contava diariamente e as
coisas que eu guardava paramim cada vez que não era
completamente sincera — agora eu tinha plena consciênciade cada
uma delas. Agora eu também sabia como é bom dizer para alguém
o que eurealmente pensava. Mesmo se fosse só sobre música. Ou
não.

Um dia, durante, o almoço, Owen encostou a mochila no muro,


abriu-a epegou uma pilha de CDs.

— Aqui — ele disse, entregando-os para mim. — Para você.


137

— Para mim? — eu disse. — O que é?

— Um panorama — ele explicou. — Queria fazer mais, mas meu


gravadorde CD estava meio temperamental. Então só consegui
gravar alguns.

Para Owen, "alguns" significavam dez, pelo que contei. Ao olhar


para osprimeiros da pilha, vi que cada um tinha um título — o
VERDADEIRO HIPHOP,CANTOS E CÂNTICOS (VÁRIOS), JAZZ
SUPORTÁVEL, CANTORES DEVERDADE CANTANDO DE
VERDADE — com as faixas listadas com uma letrabonita. Tive a
impressão de que provavelmente foi resultado de uma discussão
quetivemos no dia anterior sobre stoner rock, quando Owen decidiu
que talvez meuconhecimento sobre música fosse muito "atrofiado e
carente" (palavras dele) porcausa da falta de exposição. Então, esta
era a solução dada por ele: um manualbásico e pessoal, dividido em
capítulos.

— Se você gostar mesmo de algum desses — ele continuou —, aí


eu tedou mais. Quando, sabe, você estiver preparada para ir mais
fundo.

Eu peguei a pilha e olhei os outros títulos. Havia um para música


country, Invasão Britânica, músicas folk. Mas quando cheguei ao
último, vi que a capa estavaquase toda em branco, com apenas
duas palavras: JUST LISTEN . Apenas ouça.

Logo, fiquei desconfiada.

— Isso é música eletrônica? — perguntei.


— Eu não acredito que foi só nisso que você pensou — ele disse
ofendido.— Puts!

— Owen — eu disse.

— Não é música eletrônica.

Eu fiquei olhando para ele.

— É o seguinte — ele disse enquanto eu acenava a cabeça —,


todos osoutros são set-lists, sets-concept. Uma educação, se você
preferir. Você deve ouviresses primeiro. E depois, quando você
terminar e achar que está pronta, realmentepronta, ouça esse. É um
pouco mais... Inovador.

— Está bem — eu disse. — Agora eu estou oficialmente mais


nervosa.

— Você vai odiar todas elas — ele admitiu. — Ou não. Talvez seja
aresposta para todas as questões da sua vida. É justamente essa a
beleza do negócio.
138

Sabe?

Olhei para os CDs novamente, observando a capa. "Just Listen", eu


disse.

— Sim. Não pense nem julgue. Apenas ouça.

— E depois o quê?

— E depois — ele disse — você pode se decidir. Justo, não?

E me pareceu justo mesmo. Seja uma música, uma pessoa, ou uma


história,não há como saber de algo quando se conhece apenas um
trecho, quando se deu umarápida olhada ou se ouviu parte de um
refrão.

— Sim — eu disse, colocando-o de volta embaixo da pilha. — Ok.

— Grace — disse meu pai, olhando para o seu relógio de novo. — É


hora de

irmos.

— Andrew, eu sei. Já estou quase pronta. — Minha mãe passou


apressadapela cozinha, pegando sua bolsa e colocando-a sobre o
ombro. — Agora, Annabel,estou deixando um dinheiro para vocês
pedirem uma pizza esta noite, e amanhã vocêspodem fazer o que
quiserem. Acabei de fazer compras, então tem bastante comida
Certo?

Fiz sinal positivo com a cabeça, enquanto meu pai se dirigia à porta.
— E agora — disse minha mãe —, o que você fez com as minhas
chaves?

— Você não precisa das suas chaves — meu pai disse a ela. — Sou
eu quemvai dirigir.

— E eu ficarei em Charleston amanhã o dia todo e metade de


segunda-feiraenquanto você estará em reuniões — ela respondeu,
tirando a bolsa do ombro ecomeçando a mexer dentro dela. —
Talvez eu queira sair um pouco do hotel.

Meu pai, pelos meus cálculos, já devia estar ao lado da porta da


garagem porvinte minutos, encostado e bufando. Era sábado de
manhã e meus pais já deveriam terviajado para Carolina do Sul no
fim de semana prolongado para algumas conferências de
arquitetura.

— Nesse caso você pode usar a minha — ele lhe disse, mas ela o
ignorou ecomeçou a tirar coisas da bolsa, colocando a carteira, um
pacote de lenços
139

e o celular no balcão. — Grace, vamos. — Ela não se mexeu.

Quando meu pai propôs a viagem pela primeira vez, disse que seria
comouma "fuga" para uma das suas cidades favoritas. Enquanto ele
estivesse emreuniões, ela poderia fazer compras e passear, e à
noite eles jantariam nos melhoresrestaurantes e passariam algum
tempo juntos, só os dois. Para mim parecia umaidéia ótima, mas
minha mãe hesitou, pois não tinha certeza se queria deixar a mim
eWhitney sozinhas. Especialmente porque o humor de Whitney
estava pior do quenunca desde que ela tinha começado uma nova
terapia em grupo uma semana antes,contra a sua vontade e
conduzida por, segundo ela própria, uma "louca".

— Whitney, por favor — disse minha mãe certa noite durante o


jantar,quando o assunto surgiu pela primeira vez. — A doutora
Hammond acha que essegrupo pode realmente te ajudar.

— A doutora Hammond é uma idiota — respondeu Whitney. Meu pai


lhelançou um olhar bravo, mas ela, se viu, o ignorou
completamente. — Eu conheço pessoas que trabalharam com essa
mulher, mãe. Ela é louca de pedra.

— É difícil acreditar nisso — disse meu pai.

— Pois eu acredito. Ela nem é psiquiatra de verdade. Muitos


médicos queestão no meu programa acham que ela não bate bem.
Seus métodos sãoextremamente ortodoxos.

— Em que sentido? — ele perguntou.


— A doutora Hammond — disse minha mãe, enquanto Whitney
revirava osolhos — disse que essa mulher, essa tal de Moira Bell,
obteve ótimos resultadoscom muitos dos seus pacientes porque ela
tem uma abordagem diferente.

— Eu ainda não entendo o que há de tão diferente nessa mulher —


disse meu pai.

— Ela faz muitos exercícios "práticos" — minha mãe explicou. —


Não éapenas sentar e falar.

— Você quer um exemplo? — Whitney colocou o garfo na mesa —


A Janet,uma garota que eu conheço do hospital. Quando ela estava
no grupo da Moira Bell,teve que aprender a fazer fogo.

Minha mãe olhou, parecendo confusa.


140

— Fazer fogo?

— É. A Moira lhe deu dois gravetos e a sua tarefa era esfregar um


no outro até fazer fogo. Até que ela conseguisse fazer fogo toda vez
que tentasse.

— E qual era exatamente — disse meu pai — o objetivo desse


exercício?Whitney deu de ombros, pegando novamente seu garfo.

— Janet disse que tinha algo a ver com ser auto-suficiente. Ela
tambémdisse que Moira Bell era louca.

— Isso realmente parece ser bem diferente — disse minha mãe. Ela
pareciapreocupada, como se estivesse imaginando Whitney
colocando fogo na casa.

— Eu só estou dizendo — disse Whitney — que será uma perda de


tempo.

— Pelo menos tente — meu pai lhe disse. — Depois você decide.

Porém, a decisão dela já estava tomada, pelo menos levando em


consi-deração o comportamento dela durante o resto da noite —
todas aquelas batidastípicas de porta, bufadas e caras amarradas
estavam a todo vapor. No dia seguinte,depois do grupo, conforme o
programado, ela voltou no pior dos humores. Agora jáera a segunda
sessão dela e, mesmo Whitney ainda não tendo posto fogo na
casa,minha mãe ainda estava nervosa. Eu também estava uma
pouco nervosa; afinal, eraeu que ia ficar com ela.
Meu pai, por outro lado, achava que estava na hora de confiar em
Whitney elhe dar mais responsabilidade. Ela nunca seria
independente se minha mãe estivesseo tempo todo perto dela, ele
disse, e eles só ficariam fora por dois dias. Ele inclusiveligou para a
Dra. Hammond, que concordou. Mesmo assim, minha mãe não
estavaconvencida e era por isso que ela agora estava enrolando,
mexendo novamente nabolsa enquanto meu pai checava o relógio
mais uma vez.

— Eu não entendo — ela disse, abrindo mais a bolsa. — Elas


estavamcomigo na noite passada e não consigo imaginar onde
foram parar...

Naquele exato momento, ouvi a porta da frente bater. Logo depois,


Whitneyapareceu usando calças de ioga, camiseta e tênis, de
cabelo preso em um rabo decavalo. Em uma mão, ela segurava
uma sacola da Home & Garden. Na outra, aschaves da minha mãe.

— Ah — disse meu pai, andando em direção a minha mãe. —


Mistériodesvendado. — Ele pegou a bolsa, colocando tudo que
estava no balcão
141

para dentro dela. — É melhor irmos antes que outra coisa suma.

Eles foram, finalmente, e eu fiquei na mesa da cozinha olhando


enquantoeles davam ré para sair. Vi minha mãe se virando para
olhar a casa quando eles seafastaram.

Assim que eles se foram, me levantei da mesa e depois olhei para


Whitney,que estava mexendo com alguma coisa que ela tinha
comprado na Home & Garden. Sua testa estava enrugada enquanto
ela revirava o conteúdo da sacola.

— Então — eu disse. — Agora somos só nós duas.

— O quê? — ela disse, sem olhar para mim.

Ao meu redor, a casa estava vazia, Silenciosa. O fim de semana


seria longo.

— Nada — eu disse a ela. — Deixa pra lá.

Por sorte, eu tinha outras coisas para fazer além de ser ignorada
pela minhairmã. Na verdade, somente uma coisa.

O Desfile de Outono do Shopping Lakerview seria no próximo fim de


semanae naquela tarde eu tinha que ir até lá me informar sobre o
horário do ensaio. Como eraum sábado, quando cheguei à Kopfs vi
que a loja estava caótica como sempre e, paracompletar, havia a
presença de uma cantora pop chamada Jenny Reef que
estavapromovendo justamente a Mooshka Surfwear. O
departamento infantil estava cheio degarotas, com uma fila que se
estendia até o departamento de roupa íntima, ao som deuma
música pop que tocava repetidamente.

— Annabel!

Eu me virei e lá estava Mallory Armstrong. Ela estava com aquele


sorrisão norosto e vinha rapidamente em minha direção, um pouco
atrapalhada com um pôster,um CD e uma câmera nas mãos. Depois
dela, em um ritmo mais tranqüilo, vinha suamãe, que eu reconheci
daquele dia que deixei Owen na casa dele.

— Oi! — disse Mallory. — Eu não acredito! Você também é fã da


Jenny

Reef?

— Hum — eu disse enquanto mais um monte de meninas passava


por nóspara entrar na fila —, na verdade, não. Tive que vir para uma
reunião...

— De modelos?
142

— É — eu disse. — Nós temos um desfile no fim de semana que


vem.

— O Desfile de Outono. Eu sei! Estou tão animada, eu venho com


certeza — eladisse. — Você consegue acreditar que Jenny Reef
está, assim, mesmo aqui? Ela assinou o meu pôster!

Ela abriu o pôster para me mostrar. E lá estava Jenny Reef com um


visual bemsurfista e californiano fazendo pose na praia. Ela tinha
uma guitarra de pé na areia deum lado e uma prancha de surf do
outro. Embaixo, estava escrito: PARAMALLORY. DE MEIA NA
AREIA COM MOOSHKA SURFWEAR. COM AMOR,JENNY.

— Uau! — eu disse enquanto sua mãe se aproximava. — Que legal!

— E ganhei um CD grátis e uma foto! — disse Mallory, pulando


levemente.— Eu também queria uma camiseta da Mooshka, mas...

—... Mas você já tem milhares de camisetas — a mãe terminou a


frase porela. Ao olhar para a mãe de Mallory, pude ver a quem
Owen puxou sua altura: ela eramais alta do que eu, tinha o cabelo
escuro preso na altura do pescoço e usava calçajeans e um pulôver
de tricô. Olhei rapidamente para os seus sapatos, reparando quenão
eram de bico fino, e me perguntei se eles seriam sintéticos.

— Oi — ela me disse. — Meu nome é Teresa Armstrong. E você?

— Mãe! — Mallory balançou negativamente a cabeça. — Essa é a


Annabel Greene, não acredito que você não sabe quem ela é.

— Desculpe — disse a Sra. Armstrong. — Eu deveria saber?


— Não — eu disse.

— Sim, — falou Mallory, virando-se para a mãe. — Annabel faz


aquele comercial da Kopf, aquele que eu, assim, amo, sabe?

— Ah — disse a mãe dela, sorrindo educadamente. — Certo.

— E ela é amiga do Owen. Muito amiga.

— Sério? — disse a Sra. Armstrong com ar surpreso. Ela sorriu para


mim. —Isso é bom.

— Annabel vai participar do desfile que eu estava te falando. Aquele


dasemana que vem — explicou Mallory. Para mim, ela disse: —
Minha mãe não é
143

muito ligada em moda. Mas estou tentando educá-la.

— E eu — disse a Sra. Armstrong com um suspiro — estou


tentando fazerMallory se interessar mais por assuntos sérios, e
menos por celebridades e roupas.

— Tarefa difícil — eu disse.

— Quase impossível. — Ela endireitou a bolsa no ombro. — Mas


estou meesforçando.

Olá, clientes da Kopf!, uma voz surgiu repentinamente das caixas de


som. Obrigada por virem hoje ao nosso dia especial que conta com
a presença de JennyReef, patrocinada pela Mooshka Surfwear. Por
favor, venham ao Kopfs Café dentrode alguns minutos, pois à uma
da tarde Jenny irá cantar o seu novo single"Becalmed". O Kopfs
Café fica próximo ao departamento masculino. Vemos vocêslá!

— Você ouviu isso? Ela vai se apresentar! — Mallory agarrou a mão


da mãe.— Nós temos que ficar.

— Não podemos — respondeu a Sra. Armstrong. — À uma da tarde


temos que estar no centro de mulheres para o nosso grupo.

— Mãe — reclamou Mallory. — Hoje não, por favor, por favor?

— Nós temos um grupo de discussão entre mães e filhas — a


Sra.Armstrong me explicou. — Uma vez por semana, nós nos
encontramos. Seis mães eseis filhas, e discutimos assuntos
pertinentes para nosso crescimento pessoal. Ogrupo é conduzido
por uma maravilhosa professora de Estudos da Mulher
dauniversidade, a Boo Connel, sabe? É muito...

—... Muito chato — Mallory concluiu por ela. — Na semana


passada, euacabei dormindo.

— O que foi muito infeliz, porque o assunto foi menstruação — disse


a Sra.Armstrong. — É uma manifestação que traz muitas mudanças
e começos paramulheres... A discussão foi extremamente
interessante.

Mallory teve um sobressalto.

— Mãe! Não acredito que você está falando sobre menstruação com
aAnnabel Greene!

— Não há por que ficar com vergonha de falar sobre menstruação,


querida —
144

disse a Sra. Armstrong enquanto Mallory ficava cada vez mais


vermelha. — Comcerteza até as modelos ficam menstruadas.

Mallory colocou as mãos sobre o rosto.

— Ai, meu Deus — ela disse e fechou os olhos, como se quisesse


desaparecerou talvez já fingindo desaparecer.

— Eu preciso ir — falei enquanto a voz saía novamente das caixas


de som.— Foi, assim, um prazer conhecê-la.

— Igualmente — disse a Sra. Armstrong.

Eu sorri para a Mallory, que ainda estava parada com ar aborrecido.

— Até mais — eu disse.

Ela acenou positivamente a cabeça.

— Tá! Tchau, Annabel.

Voltei a andar em direção à sala de reunião. Dei apenas alguns


passosquando ouvi Mallory sussurrar:

— Mãe, eu não acredito que você fez isso comigo.

— Fiz o quê?

— Você me humilhou daquele jeito — continuou Mallory. — Você


me devedesculpas.
— Querida — disse a Sra. Armstrong, suspirando. — Eu ainda não
entendiqual é o problema. Talvez se você...

Não cheguei a ouvir o resto, pois entrei no departamento de


cosméticos, ondeuma multidão de mulheres fazia alguns "antes e
depois", e suas vozes abafavam tudo.Mas quando cheguei à sala de
reunião, me virei para ver se Mallory e sua mãe aindapermaneciam
lá. A Sra. Armstrong estava agachada frente da filha ouvindo,
acenandoa cabeça ocasionalmente, enquanto Mallory falava.

Eu ouvi a Sra. McMurty pedir, dentro da sala de reunião, que todos


ficassemem silêncio, pois era hora de começar. Mesmo assim, fiquei
do lado de fora mais umpouco, observando a Sra. Armstrong
finalmente se levantar depois se dirigir à saídacom Mallory, que não
parecia muito contente, mas depois de um tempo, quando suamãe
abaixou o braço para pegar sua mão, ela não a afastou. Ao
contrário, envolveu
145

sua mão na dela, apertando o passo, e saíram juntas pela porta.

Naquela mesma tarde, quando cheguei em casa, Whitney estava na


entrada. Havia uma fila de quatro pequenos vasos de flores na
frente dela, um saco de terra ao seu lado, e ela estava sentada com
uma pequena pá na mão e uma expressão irritada.

— Oi — eu disse ao me aproximar dela. — O que você está


fazendo?

Ela não me respondeu de imediato, apenas abriu o saco de terra e


colocou apá dentro. Mas depois, quando eu ia passando por ela em
direção à porta, ela disse:

— Tenho que plantar ervas.

Eu parei de andar.

— Ervas?

— É. — Ela pegou um pouco de terra com a pá, em seguida jogou-a


com mávontade em um dos potes pequenos, derramando um pouco
de terra nos lados. — Paraaquela terapia em grupo idiota.

— Por que ervas?

— Vai saber? — Ela encheu outro vasinho, fazendo a mesma


sujeira, e depoisergueu a mão, passando-a pelo rosto. — É para
isso que mamãe e papai estãopagando à Moira Bell cinqüenta por
hora: para me mandar cultivar uma porcaria dealecrim. — Ela pegou
alguns pacotes de semente que estavam ao lado do seu pé
ecomeçou a mexer neles. — E manjericão. E orégano. E tomilho.
Dinheiro bem gasto,não?

— Realmente parece um pouco estranho — respondi.

— Porque é — ela falou, pegando mais terra para o terceiro vaso. —


Étambém idiota e uma perda de tempo, pois não vai funcionar. Já
estamos quase noinverno. Nada cresce no inverno.

— Você disse isso a ela?

— Tentei, mas ela não se importa. Ela não se importa com nada a
não sergarantir que você se sinta uma imbecil. — Ela colocou terra
no último vaso, elebalançou, mas não chegou a tombar. — "Você
pode cultivá-los dentro de casa — eladisse em um tom ironicamente
animado — é só achar uma janela onde bata sol".Falou, então. Vou
matar essas coisas em poucos dias. E mesmo se eu não matar,
oque diabos eu vou fazer com um monte de ervas?
146

Observei-a pegar o pacote com sementes de manjericão, abrir e


colocaralgumas sementes na palma da mão.

— Bem — eu disse —, você pode usar o manjericão para cozinhar,


sei lá.Ela estava quase plantando as sementes, mas parou para me
olhar, séria, sem expressão.

— Cozinhar — ela repetiu. — Até parece.

Senti meu rosto ficar vermelho. Mais uma vez, eu consegui dizer
algo errado,mesmo quando pensei em não dizer absolutamente
nada. Ainda bem que o telefone decasa começou a tocar e fui
atendê-lo, feliz por ter um motivo para sair dali.

Quando cheguei à cozinha, a ligação já tinha caído na secretária


eletrônica.Ouvi o bip e depois a voz da Kirsten.

— Alô? — ela disse, falando alto como sempre. — Alguém aí? Sou
eu,atendam se... Meu, cadê todo mundo? E eu tinha boas notícias
pra dar...

Eu atendi.

— Que boa notícia?

— Annabel! Oi! — a voz dela ficou ainda mais alta, um contraste


marcantecom o tom da Whitney. Eu me sentei para ficar confortável,
pois se as mensagens daKirsten eram longas, conversar com ela
poderia levar uma tarde inteira — Que bomque você está em casa.
Como você está?
— Bem — eu disse, empurrando a minha cadeira um pouco para a
direita.Ao olhar em direção à sala de jantar, podia ver Whitney
colocando as sementes nos vasos, a testa franzida, pois estava
concentrada — E você, como vai?

— Maravilhosamente bem. — É claro que sim. — Sabe a aula de


cinema te contei? Aquela que estou fazendo este semestre?

— Sei — respondi.

— Bem — ela continuou —, nós tivemos que fazer um curta-


metragemcinco minutos como avaliação de meio de semestre,
certo? Eles só escolheram doispara apresentar em um... Uma
apresentação a que muita gente participa. E o meu foi escolhido!

— Isso é ótimo! — eu disse. — Parabéns!


147

—Obrigada — ela riu. — Eu precisava te contar, eu sei que é


apenas umacoisa da faculdade, mas estou super animada. Essa
aula e a aula de comunicação queestou assistindo... Quero dizer,
elas realmente mudaram o meu jeito de ver as coisas.Como diz o
Brian, estou aprendendo a contar e também a mostrar. E eu...

— Espera — eu disse. — Quem é Brian?

— O professor assistente da minha aula de comunicação. Ele ajuda


oprofessor com a aula e conduz um grupinho de discussão do qual
eu participo àssextas-feiras. Ele é incrível, muito inteligente. Nossa!
De qualquer maneira, estoumuito orgulhosa com o curta-metragem
que fiz, mas agora tenho que apresentá-lo nopróximo fim de
semana na frente de todo mundo. Estou tão nervosa que nem dá
para contar.

— Nervosa? — De todos os adjetivos, esse eu nunca usaria para


descrever aminha irmã. — Você?

— É sim — ela disse. — Annabel, eu tenho que falar sobre meu


filme nafrente de todo mundo, na frente de estranhos.

— Você costumava se levantar e desfilar na frente de estranhos —


eu disse.— Até de biquíni.

— Ah, mas isso é diferente — ela disse.

— Em que sentido?

— Porque é... — ela parou de falar, suspirando. — É pessoal. Real.


Sabe?
— Sim — eu disse, apesar de não ter certeza se tinha entendido de
verdade.— Acho que sim.

— De qualquer maneira, é daqui a uma semana. Então, manda


pensamentospositivos para mim, ok?

— Claro — eu disse. — Então... Sobre o que é?

— O meu curta?

— É.

— Bem, é um pouco difícil de explicar... — ela disse no começo, é


claro, jácomeçando a explicar tudo. — Mas é basicamente sobre
mim. E Whitney.

Só olhei para Whitney, que estava do lado de fora abrindo outro


pacote de
148

sementes, imaginando qual seria a reação dela quando soubesse


disso.

— Sério? — falei.

— Quero dizer. É ficção, claro — ela disse. — Mas é baseado


naquela vez,quando éramos crianças. Nós estávamos andando de
bicicleta e ela quebrouo braço, lembra? Eu a levei pra casa no meu
guidão.

Eu pensei por um segundo.

— Sim — eu disse. — Não era...

— O seu aniversário — ela disse. — Era o seu aniversário de nove


anos. Papaiperdeu a festa para levá-la ao hospital. Ela voltou
engessada bem na hora do bolo.

— Certo — eu estava me lembrando. — Eu me lembro disso.

—Bem, é basicamente sobre isso. Mas diferente. É difícil explicar.


Eu possomandar pra você por e-mail, se quiser. Quero dizer, ainda
estou fazendo umas modificações, mas dá pra você pegar a idéia
geral.

— Eu adoraria — respondi.

— Mas você tem que me contar se for péssimo.

— Eu tenho certeza de que não é.


— Acho que só vou descobrir isso no sábado — ela suspirou. —
Bom,preciso ir. Só queria contar as novidades pra vocês. Está tudo
bem aí?

Olhei para Whitney novamente. Ela tinha colocado outra camada de


terra nosvasos e agora estava com uma mangueira na mão
regando-os. Seus olhos contraídosenquanto as gotas respingavam.

— Sim — eu disse. — Está tudo bem.

Assim que desliguei, ouvi a porta se abrindo. Logo depois, quando


andei nadireção ao corredor de entrada, Whitney estava colocando
seus vasos janela da salade jantar. Fiquei parada observando-a
arrumar os vasos soleira, um ao lado do outro,e limpando as bordas
com os dedos. Ao acabar, ela se levantou, colocando as mãosno
quadril.

— Bem — ela disse. — Taí uma coisa que não vai dar em nada.
149

— Talvez dê — eu disse. Ela me olhou e me perguntei se ela seria


grossa ou faria uma de suas observações sarcásticas.

— É o que veremos — ela disse, e tirou as mãos do quadril,


andando em à cozinha.

Quando ela abriu a torneira e começou a lavar as mãos, andei até lá


fora paraver os vasos. A terra que estava neles era negra,
perfumada e com marcas defertilizante, e pude ver pingos d'água
aqui e ali, brilhando sob a luz do sol. Talvezfosse um exercício bobo
e não era possível cultivar nada no inverno. Mas havia algoque me
agradou nessa idéia de sementes enterradas no fundo do vaso, e
que tinhampelo menos uma chance de emergir. Mesmo que não
fosse possível ver, moléculascomeçavam a se ligar e a energia
estava lentamente sendo consumida, como algo que estivesse se
esforçando muito para crescer só.
150

Dez

Até aquela tarde, minha mãe já tinha deixado duas mensagens: uma
nos informando que eles tinham chegado ao hotel, e a outra
lembrando onde ela tinhadeixado dinheiro para a pizza, um jeito sutil
de garantir que nós (Whitney, sendomais específica) jantássemos.
"Mensagem recebida", pensei enquanto ia para acozinha. O dinheiro
estava no balcão com uma lista de vários lugares queentregavam.
Minha mãe estava sempre muito bem preparada.

— Whitney? — eu a chamei do pé da escada. Nenhuma resposta.


Isso'não queria dizer que ela não estava lá, apenas que não tinha
vontade deresponder. — Vou pedir pizza. Pode ser de mozzarella.

Silêncio. "Tá bom", pensei. "De mozzarella." Escolhi um número


qualquer edisquei.

Depois de pedir a pizza, fui para o meu quarto escutar os CDs que o
Owentinha me dado, começando com um chamado CANÇÕES DE
PROTESTO ( ACÚSTICO EWORLD). Eu ouvi três faixas sobre
sindicato, capotei e só acordei quando ouvi acampainha.

Eu me levantei ao mesmo tempo que Whitney passou pelo meu


quarto edesceu as escadas para atender a porta. Depois de escovar
os dentes, desci também.Quando cheguei ao corredor, ela estava
parada na porta, que encontrava-se aberta,bloqueando minha visão
tanto dela quanto da pessoa outro lado. Mesmo assim,consegui
ouvir as vozes.

—... Não muito das músicas novas, mas dos primeiros álbuns — ela
estavadizendo. — Eu tenho alguns importados que comprei de um
amigo, são ótimos.

— Sério? — respondeu uma voz masculina. — Na Importados UK


ou emalgum outro lugar?

— Acho que na UK, eu teria que verificar.

Talvez pelo fato de eu ter acabado de acordar, percebi algo de


familiar nessa
151

conversa, mas não consegui identificar exatamente o que era.

— Quanto é mesmo? — Whitney perguntou.

— Onze e oitenta e sete — respondeu o cara.

— Aqui tem uma nota de vinte. Só me devolva cinco.

— Obrigada. — Eu dei um passo à frente. Agora eu tinha certeza


queconhecia aquela voz. — O lance do Ebb Tide — a voz continuou
— é que o gosto poreles é algo que vem com o tempo.

— Total — respondeu Whitney.

— Quero dizer, a maioria das pessoas nem...

Dei um passo e fiquei ao lado da porta. Com certeza era Owen.


Parado nafrente da minha casa, fones de ouvido pendurados no
pescoço, contando o dinheiro edando o troco para minha irmã.
Whitney estava concordando enquanto ele falava eolhava de um
jeito muito mais simpático do que ela me olhava havia cerca de
umano. Quando ele me viu, deu um sorriso.

— Veja — ele disse para Whitney —, eis um caso. Annabel não é fã


doEbb Tide. Ela odeia música eletrônica, na verdade.

Whitney olhou para mim e para Owen, claramente confusa.

— Ela odeia?

— Sim. Apesar dos meus maiores esforços para convencê-la do


contrário —ele disse. — Ela é muito teimosa quando tem uma
opinião formada. Totalmentesincera e cheia de opinião. Mas
imagino que você já saiba disso.

Whitney me olhou quando ele falou isso e eu sabia o que ela


estavapensando: que aquela não era eu, nem de longe. Eu também
não achei que aqueladescrição parecia comigo, mas, por alguma
razão, a descrença dela me incomodou.

— Bem, então — ele disse, e se abaixou em direção à mochila


térmicaque estava no chão e abriu o zíper para tirar a pizza. — Aí
está. Bom apetite.

Whitney acenou positivamente a cabeça, ainda me olhando, e


pegou a pizza.

— Obrigada — ela disse. — Boa noite.

— Para você também — respondeu Owen enquanto Whitney virou-


se,
152

passando pela sala de jantar em direção à cozinha.

Dei um passo à frente, vendo Owen colocar no bolso o bolo de


dinheiro queestava na sua mão e depois pegar a mochila. Ele
estava usando calça jeans e umacamiseta onde se lia SLICE O '
CHEESE ! De todos os telefones de lugares que entregampizza que
minha mãe deixou, liguei justamente para esse. Quem diria? Mas eu
tinhaque admitir que estava feliz em vê-lo.

— A sua irmã — ele me disse — é fã do Ebb Tide. Ela tem CDs


importados.

— E isso é bom?

— Muito bom — ele respondeu. — É quase iluminado. Importados


de- mandam esforço.

— Você conversa sobre música com todo mundo que encontra?

— Não — ele disse. Eu olhei para ele. Atrás de mim, ouvi Whitney
ligar atelevisão. — Bem, nem sempre. Nesse caso, eu estava com
meu fone de ouvido e elame perguntou o que eu estava escutando.

— E, por coincidência, você estava ouvindo uma banda que ela


conhece egosta muito.

— Isso é a universalidade da música — ele disse animado,


pendurando amochila no outro ombro. — É algo que une as
pessoas. Amigos e inimigos. Velho ejovem. Eu e a sua irmã. E...

— Eu e a sua irmã — concluí a frase por ele. — Eu e sua mãe.


— Minha mãe? — ele perguntou.

— Eu a conheci hoje, no shopping. No negócio da Jenny Reef. A


caradele caiu.

— Você foi ver a Jenny Reef?

— Eu adoro a Jenny Reef — falei, e ele tomou um susto. — Ela é


muitomelhor que Ebb Tide.

— Isso — ele disse — não é nem um pouco engraçado.

— O que há de errado com a Jenny Reef? — perguntei.

— Tudo está errado com a Jenny Reef! — ele respondeu. "Agora


vai
153

começar", pensei. — Você chegou a ver o pôster que ela autografou


e deu à Mallory?Com o nome do produto nele? Tipo, é tão nojento o
fato de que qualquer um pode seconsiderar um artista e depois se
vender completamente para a máquina corporativa, em nome de...

— Tá, tá, pode se acalmar — eu disse, percebendo que deveria


falarverdade antes que uma veia saltasse do seu pescoço. — Não
fui ver a Jenny Reef. Eu tinha uma reunião de modelos na Kopfs.

Ele respirou fundo, balançando a cabeça.

— Graças a Deus. Você me deixou bem preocupado.

— O que aconteceu com não existir certo ou errado em música? —


eu lheperguntei. — Ou isso não se aplica a estrelas pop
adolescentes?

— Sim, se aplica — ele disse seriamente. — Você tem o direito de


ter suaopinião sobre a Jenny Reef. É que eu ficaria chocado se você
realmente fosse fã dela.

— Mas você chegou a dar uma chance a ela? Lembre-se — eu


disse com amão erguida —, não pense, nem julgue, JUST LISTEN .
Apenas ouça.

Ele fez uma careta para mim.

— Eu já ouvi Jenny Reef. Não por livre e espontânea vontade, mas


ouvi. E aminha opinião é que ela é uma prostituta da indústria do
entretenimento, que permitiuque sua música, se é que se pode
chamar aquilo de música, fosse adulterada e comprometida em
nome do materialismo e dos negócios.

— Bom — eu disse. — Desde que você não se desgaste por causa


disso.De repente, ouvi algo vibrando e ele pegou seu celular do
bolso de trás da calça e olhou na tela.

— Opa, preciso ir — ele disse, colocando a mochila debaixo do


braço. —Sabe, por mais que você queira, eu não posso ficar aqui a
noite toda discutindo com você sobre música.

— Não? — falei.

— Não. — Ele deu um passo para trás, se distanciando da porta. —


Mas sevocê quiser continuar essa discussão outra hora, eu ficaria
mais do que contente.

— Por exemplo, na terça-feira?


154

— Ahã, pra mim tá bom. — Ele começou a descer a escada. — Vejo


você naterça, então, certo?

Fiz que sim com a cabeça.

— Tchau, Owen.

— E não se esqueça do programa amanhã! — ele gritou ao entrar


no carro.— Vai rolar só música eletrônica. Uma hora inteira de
torneiras pingando.

— Você tá brincando?

— Talvez. Mas você vai ter que ouvir o programa para saber.

Eu sorri, e fiquei lá parada, olhando-o entrar na Land Cruiser. Ele


primeiroligou o som e depois engatou a marcha, é claro.

Quando cheguei à sala de estar, Whitney estava sentada no sofá


bebendo umagarrafa de água. A pizza estava no balcão. Ela não
disse nada, seus olhos estavamconcentrados na televisão — onde
passava algo sobre uma atriz de seriado viciadaem cocaína —,
enquanto eu pegava um prato e um pedaço de pizza e sentava-me
à mesa da cozinha.

— Você não... — eu comecei a falar e depois parei. — Você não


estácom fome?

Ela não tirou os olhos da televisão e disse:

— Vou comer já, já.


"Tá bom", pensei. Minha mãe não ia gostar disso nem um pouco,
mas elanão estava aqui. E eu estava faminta. E quando me
preparava para dar a primeiramordida, Whitney abaixou o volume da
TV e perguntou:

— Então, de onde você conhece aquele cara?

— Ele estuda na minha escola — respondi, engolindo depois. Ela


estava meolhando, então eu completei. — Somos amigos.

— Amigos — ela repetiu.Eu me lembrei do sorriso surpreso da Sra.


Armstrong após ouvir essa mesmapalavra, algumas horas antes.

— É — eu disse —, a gente conversa na hora do almoço.


Elaacenou com a cabeça.
155

— Ele é amigo da Sophie também?

—Não — eu disse. Eu não sei o motivo, mas automaticamente


levantei guardae fiquei imaginando por que ela estaria me
perguntando aquilo.

Na verdade, por que estávamos conversando já que era ela quem


estavaresistente às minhas tentativas de conversa durante todo o
dia? Mas aí me lembrei dorosto dela quando Owen me descreveu
como sendo sincera, como ficou claro que elatinha ficado surpresa,
então acrescentei: — Não sou mais muito amiga da Sophie.

— Não é?

— Não.

— O que aconteceu?

Por que você está interessada? Foi o que eu tive vontade de


responder. Emvez disso, falei:

— Nós brigamos há alguns meses. A coisa ficou meio feia... Não


nosfalamos mais.

— Ah — ela disse.

Eu voltei a olhar para o meu prato, me perguntando por que de


repenteresolvi falar disso justamente com Whitney. Senti como se
tivesse cometido umerro, e fiquei lá sentada, esperando que ela
fizesse algum comentário irritado ouruim, mas Whitney apenas ligou
novamente a televisão e, um segundo depois,percebi que ela tinha
aumentado o volume.

Na tela, a atriz estava contando sua história e secando os olhos com


umlenço. Eu olhei para ela e depois para Whitney, que havia
sentado na poltrona domeu pai. Quem diria que ela era fã do Ebb
Tide, que tinha alguns CDs importados,que possivelmente era, pelo
menos de acordo com Owen, uma iluminada? Por outrolado, ela
também não sabia muita coisa sobre mim. Talvez nós pudéssemos
terconsertado isso nesse fim de semana, mas isso não aconteceu.
Ao contrário, ficamoslá sentadas juntas, porém separadas,
assistindo a um programa sobre uma estranha etodos os seus
segredos, enquanto guardávamos os nossos. Como sempre.

Na manhã seguinte, Owen abriu o seu programa com uma música


eletrônicaque durou, sem brincadeira, oito minutos e meio. E passei
esse tempo todo dizendoa mim mesma que eu tinha todo o direito
de voltar a dormir, mas, por algum motivo,
156

não consegui pregar o olho de novo.

— Esse foi Prickle com "Velveteen" — ele disse quando a música


final-mente terminou. — Do seu segundo disco, The Burning,
provavelmente um dosmelhores discos de música eletrônica já
lançados. É difícil acreditar que algumaspessoas não gostam desse
tipo de música, não é? Você está ouvindo Gerenciamentode Raiva.
Quer pedir uma música? Ligue pra gente no 555-WRUS.
Agora,Snakeplant.

Eu revirei os olhos, mas não me enrolei nas cobertas. Ao contrário,


ouvi oprograma inteiro, pois já era um hábito, enquanto Owen
tocava uns roc-kabillys, alguns cantos gregorianos e uma música
em espanhol que ele descreveu como"parecida com Astrud Gilberto,
mas não exatamente". Seja lá o que isso queria dizer.Finalmente,
um pouco antes das oito horas, ouvi o começo de uma música que
me pareceu familiar. Mas não tive certeza do que era até ele voltar a
falar.

— Esse foi Gerenciamento de Raiva, na nossa estação de rádio


comunitária,a WRUS, 89,9. Vamos terminar o programa de hoje
com algo dedicado a uma ouvinteassídua, para quem nós queremos
dizer: olha, não tenha vergonha da música quevocê gosta. Mesmo
se, na nossa humilde opinião, não seja música de verdade.
Nóssabemos o motivo pelo qual você foi ao shopping ontem. Vejo
vocês semana quevem!

Foi só aí que eu me toquei: era a música da Jenny Reef, aquela que


no diaanterior ficou tocando repetidamente no shopping. Quando a
música começou, eume levantei para pegar o telefone.
— WRUS, Rádio Comunitária.

— Eu não fui ao shopping para ver a Jenny Reef — falei. — Eu te


disse isso

ontem.

— Você não está gostando da música?

— Na verdade... — eu disse — estou. É melhor do que praticamente


tudo o quevocê toca.

— Engraçadinha.

— Eu não estou brincando.

— Tenho certeza que não — ele disse. — O que, francamente, é


muito.
157

— Quase tão triste quanto você tocando Jenny Reef no seu


programa. Ow, éisso? Todos os hits na ponta da língua?

— É para ser irônico! Eu sorri, colocando uma mecha de


cabeloatrás da orelha.

— Fique repetindo isso para você mesmo. Ele bufou alto e eu pude
ouvir osom no alto-falante.

— Chega de Jenny Reef. Responda-me o seguinte: o que você


acha de

bacon?

— Bacon — eu repeti. — Qual música foi essa?

— Não é uma música É a comida. Sabe, bacon? Feito de porco?


Pedaços emuma frigideira?

De verdade, eu afastei o telefone da minha orelha, olhei para ele e


ocoloquei no ouvido de novo.

— O que você me diz. Tá a fim?

— A fim do quê?

— Café da manhã.

— Agora? — eu disse, vendo a hora.

— Por quê? Você já tem planos?


— Bem, não, mas...

— Legal. Te pego em vinte minutos.

Ele desligou. Coloquei o telefone de volta na base e me virei para


me olharno espelho. "Vinte minutos", pensei. "Beleza."

Em dezenove minutos e meio consegui tomar banho, colocar roupa


e sair naporta de casa, onde eu já estava esperando quando Owen
parou na calçada. Whitneyainda estava dormindo, portanto eu não
precisei dar explicações, o que foi uma mãona roda já que eu não
teria uma boa justificativa para dar. Enquanto eu andava emdireção
ao carro, Rolly, que estava no banco da frente, abriu a porta e saiu,
deixando-a aberta para mim.

— Você se lembra do Rolly, não é?


158

— É— eu disse. — Mas você não precisa mudar de lugar. Posso


sentar atrás.

— Sem problemas — ele me disse, sentando no banco traseiro. —


Alémdisso, preciso ter certeza se estou com todo o meu
equipamento para mais tarde.

— Equipamento? — eu perguntei, entrando no carro e fechando a


porta.Owen fez sinal para eu colocar o cinto de segurança, o que fiz,
deixando-o usar o martelo para prender o cinto.

— Para trabalhar. Tenho uma aula hoje — explicou Rolly. Ao me


virar, vique ele estava segurando o mesmo capacete vermelho que
usava quando o vi pelaprimeira vez. Além disso, havia várias
almofadas finas de todos os tamanhos nobanco do carro: uma
grande, parecida com aquelas que árbitros usam, outras
comformato de tubo e um par de luvas bem grossas. — É nível
intermediário. Tenho queme proteger bem.

— Certo — eu disse, enquanto Owen engatava a ré, saindo da


entrada daminha casa. — Mas, como você conseguiu um trabalho
assim?

— Da mesma forma que a maioria dos trabalhos — ele respondeu


co-locando a almofada no banco. — Respondi a um anúncio. No
começo, eu atendia aotelefone e matriculava as pessoas nas aulas.
Mas aí, um cara se machucou feio e saiude lá, então fui promovido
à atacante.

— Ou rebaixado — disse Owen. — Depende do ponto de vista.


— Ah, não — Rolly lhe disse, acenando a cabeça. Percebi que ele
tinha umjeito muito doce. Enquanto Owen era alto e largo, mais o
estilo atacante, Rolly eramenor e mais magro, e tinha olhos azuis
brilhantes. — Atacar é bem melhor do quetrabalho no escritório.

— Ah é? — perguntei.

—Claro. Assim, pra começar, é emocionante — ele disse. — Além


disso, dápara conhecer as pessoas de verdade. Há uma conexão
verdadeira quando alguémestá te enchendo de porrada.

Eu olhei para Owen, que estava mudando de marcha com uma mão
eajustando o som com a outra.

— Você pode me olhar o quanto quiser — ele disse sem desviar o


olhar darua. — Não vou fazer nenhum comentário sobre isso.
159

— A luta une as pessoas — disse Rolly. — Várias mulheres que


participamdas minhas aulas me abraçam depois que elas terminam.
As pessoas se conectamcomigo. Já aconteceram várias vezes.

— Mas só uma vez — acrescentou Owen — foi realmente


importante. Rolly deu um suspiro.

— É verdade — ele disse. — A pura verdade.

— Isso quer dizer o quê?

— Rolly está apaixonado por uma garota que deu um soco no rosto
dele.

— Não no rosto — Rolly o corrigiu. — No pescoço.

— Aparentemente — Owen me disse — ela tem um gancho de


direitapoderoso.

— Foi impressionante — concordou Rolly. — Foi em uma


exposiçãoem que trabalhei lá no shopping, sabe? Nós tínhamos
uma mesa e as pessoas podiamse inscrever para ter uma aula
grátis e me dar um golpe por diversão.

Owen deu a seta para fazer a curva, balançando a cabeça.

— Enfim — Rolly continuou — ela aparece com algumas amigas e


Delores,a minha chefe, começa a falar com ela sobre as aulas, e a
convida para me dar umsoco. As amigas dela não quiseram, mas
ela deu um passo à frente na hora. Ela meolhou no olho. E pou!
Bem na clavícula.
— Mas você estava com almofadas, não é? — perguntei.

— Claro! — ele respondeu. — Eu sou um profissional. Mas mesmo


usandoas almofadas dá para saber quando alguém manda bem na
pancada. E a garota mandou.Além disso, ela era linda. Uma
combinação letal. Mas antes de eu conseguir falar algo,ela sorriu
para mim, agradeceu e foi embora. Sumiu. Assim, rápido. Eu nem
sei onome dela.

Estávamos entrando na rodovia agora, acelerando.

— Uau! — eu disse. — É uma história e tanto!

— É — ele concordou, sacudindo a cabeça, com uma expressão


séria. E bemdevagar Colocou a mão no capacete que estava no seu
colo. — Eu sei.
160

Owen abriu sua janela, para o ar entrar. Depois, respirou.

— Ah, sim — ele disse. — Já estamos quase lá.

Eu me virei para frente e só via a estrada.

— Onde?

— Duas palavras — Owen disse. — Bacon duplo.

Cinco minutos depois, estávamos parando no estacionamento do


Mundo dosWaffes, um local bem na saída da interestadual que
servia café da manhã vinte equatro horas. "Então eles gostam de
café da manhã", pensei. Nesse momento, o ventomudou de direção
e eu, de repente, comecei a sentir o cheiro: bacon. O cheiro
eraforte, penetrante e implacável.

— Ai, meu Deus — eu disse ao nos dirigirmos para a entrada. Owen


e Rollyestavam respirando fundo ao meu lado. — Isso é...

— Incrível, eu sei — Owen disse. — Antes não era assim. Quer


dizer, elesserviam bacon, mas não era tão bom. Mas abriu um lugar
novo do outro lado darodovia...

— O Café de Todo Dia — disse Rolly, mexendo o nariz —, muito


ruim. Aspanquecas são conhecidas por serem meio molhadas.

— ... Eles tinham que entrar na competição. Então agora, todo dia é
o Dia doBacon Duplo. — Ele se dirigiu à entrada, abriu a porta para
mim. — Maravilhoso, nãoé?
Eu concordei e entrei. A primeira coisa que notei era que o cheiro
estava aindamais forte, se é que isso era possível. A segunda era
que o salão, pequeno e cheio demesas, estava congelando.

— Ah — Owen disse assim que me viu com os braços cruzados. —


Esquecide te avisar sobre o frio. Tome. — Ele tirou a jaqueta que
estava usando e me deu.Eu comecei a protestar, mas ele disse: —
Eles mantêm essa temperatura para aspessoas não ficarem aqui
por muito tempo. Acredite em mim, se você está com frioagora, em
dez minutos estará congelando. Veste aí.

E foi o que eu fiz. É claro que a jaqueta ficou enorme em mim,


minhas mãosficaram cobertas pelas mangas. Fechei mais a jaqueta
enquanto seguíamos umagarçonete alta e magra, cujo nome
DEANN estava escrito no crachá, até uma mesa
161

perto da janela. Atrás de nós, uma mulher estava silenciosamente


cuidando de umbebê, com a cabeça abaixada. Do outro lado, um
casal da nossa idade comia waffles,ambos com roupa de ginástica.
A garota era loira e tinha um elástico preso no pulso,enquanto o
cara era mais alto e mais moreno e uma parte da sua tatuagem
estava visível sob a manga da camiseta.

— Eu recomendo a panqueca com gotas de chocolate — Rolly me


dissedepois que Deann trouxe o café e nos deixou para olharmos o
cardápio. — Commuita manteiga e calda. E bacon.

— Argh — disse Owen. — Eu sou básico: ovos, bacon e pãozinho.


Pronto.

Parecia que carne de porco era um item indispensável, então,


quando Deannvoltou, eu pedi waffles e, é claro, bacon. Apesar de
não ter certeza se queria, pois com aquele cheiro senti como se já
tivesse comido.

— Então, vocês fazem isso toda semana? — perguntei, tomando


um golede água.

— É — disse Owen. — Desde o primeiro programa. É uma tradição.


E Rollysempre paga.

— Isso não é tradição — Rolly disse. — É porque eu perdi uma


aposta.

— Por quanto tempo você vai ter que pagar?


— Para sempre — Rolly me disse. — Eu tive a minha chance e
estraguei,agora estou pagando por isso. Literalmente.

— Não é para sempre, na verdade — disse Owen, batendo a colher


no seucopo de água. — Só até você falar com ela.

— E quando isso vai acontecer? — Rolly perguntou.

— Da próxima vez que você a vir.

— É — ele disse em tom de piedade. — Da próxima vez.

Eu olhei para Owen.

— A garota com o gancho de direita — ele explicou. — Em julho,


nós avimos em uma balada. Nunca a tínhamos visto antes. E Rolly
fala sobre ela semparar...
162

Rolly ficou vermelho.

— Não é sem parar.

— ...ele teve uma chance — Owen concluiu. — Mas não conseguiu


agir.

— É o seguinte — disse Rolly —, eu realmente acredito no


momentoperfeito. Eles não aparecem com freqüência.

Esse pensamento profundo foi pausado — ou interrompido,


dependendo doponto de vista — por Deann, que trazia nossa
comida. Eu nunca tinha visto tantobacon na minha vida; estava
cheio até a borda dos waffles, literalmente caindo doprato.

— Então, lá estou eu — Rolly prosseguiu, começando a passar


manteiga napanqueca — tentando arrumar um jeito de puxar
assunto, e o suéter dela cai doencosto da cadeira. Como se fosse
predestinado, sabe? Mas eu congelo. Não consigo.

Do meu lado, Owen já tinha colocado um pedaço de bacon na boca


e estavamastigando enquanto salpicava pimenta nos ovos.

— O lance é — disse Rolly —, o fato de você ter finalmente a


chance de fazer aquilo que quer e precisa fazer é muito importante.
Isso pode deixar você apavorado.

Ele empurrou a calda na minha direção, e coloquei um pouco no


meu waffle.

— Imagino — falei.
— Foi por isso que — disse Owen — eu disse: se ele pegasse o
suéter efalasse com ela, eu pagaria o café da manhã para sempre.
E se ele não fizesse isso,ele tinha que pagar a conta.

Rolly comeu mais um pedaço da panqueca.

— Eu cheguei a me levantar e começar a andar na direção dela.


Mas aí ela sevirou e eu...

— Ele engasgou — disse Owen.

— Entrei em pânico. Ela me viu e eu fiquei todo atrapalhado e


continueiandando. Agora tenho que pagar o café da manhã para
toda a eternidade. Ou até eurealmente conseguir cobrir a aposta, o
que é improvável porque nunca mais a vi.

— Uau! — falei. — Que história!


163

Ele concordou fazendo que sim com a cabeça com um ar muito


sério, comotinha feito antes no carro.

— É — ele disse. — Eu sei.

Fomos embora de lá uma hora depois; eu estava tão satisfeita que


achei quefosse explodir. De volta ao carro, peguei o cinto de
segurança, puxei-o em volta demim, parando perto do fecho para
que Owen o colocasse com o martelo. Enquanto elemartelava o
cinto, suas mãos se posicionaram bem na minha cintura e sua
cabeçaestava baixa na altura do meu ombro. Fiquei olhando o seu
cabelo preto, algumassardas perto da sua orelha e seus cílios
longos, mas ele logo terminou e deu partida nocarro.

Durante todo o caminho até a cidade, observei pelo retrovisor Rolly


colocarsuas almofadas de trabalho: primeiro, a almofada grande
para o peito, depois os tubosem seus braços e pernas; ele ia ficando
cada vez maior e menos reconhecível perantemeus olhos. Rolly
colocou o capacete bem na hora em que paramos em frente
aopequeno shopping onde ficava a Combat!

— Obrigado pela carona — ele disse, abrindo a porta e saindo


devagar. Asalmofadas nas suas pernas eram tão grossas que ele
era obrigado a dar passoscurtinhos. — Te ligo mais tarde.

— Tá bom — respondeu Owen.

— No caminho de volta para casa, fiquei observando a paisagem


que passavae pensei naquele primeiro dia, e em como tinha sido
estranho estar na companhiadele. Agora era quase normal. Do lado
de fora, o bairro estava tranquilo e haviapoucas pessoas na rua. Ao
ver um homem de roupão saindo de casa para pegar ojornal, me
lembrei do que Rolly tinha dito sobre o momento perfeito. Esse
parecia umdesses momentos, a hora exata para dizer algo a Owen.
Talvez agradecê-lo ou apenasdizer como essa amizade estava
sendo importante para mim. Mas quando eu estavaquase tomando
coragem para dizer algo, ele passou na minha frente.

— Então, você já ouviu algum dos CDs que eu gravei pra você?

— Sim — respondi, enquanto entrávamos na minha rua. — Na


verdade, eucomecei a ouvir as canções de protesto ontem.

— E?

— Dormi — falei. Ele pareceu surpreso. — Mas eu estava muito


cansada. Vououvir novamente, aí te conto.
164

— Sem pressa — ele disse ao estacionar na frente da minha casa.


— Essas coisas levam tempo.

— Nem me fale. Você me deu muita coisa para escutar.

— Dez CDs — ele respondeu — não é muito. É quase nada.

— Owen. São cerca de cento e quarenta músicas. No mínimo.

— Se você quer uma educação de verdade — ele continuou,


ignorando o queeu tinha acabado de falar — não adianta ficar
sentada, esperando a música chegar.Você tem que ir até ela.

— Você está sugerindo uma espécie de peregrinação?

Eu estava brincando. Mas pela expressão no seu rosto, ele estava


falando

sério.

— Você pode chamar assim, se quiser — ele disse.

— Sei — eu disse, me encostando ao banco. — Do que você


chamaria?

— Assistir ao show de uma banda — ele respondeu. — Uma banda


boa. Aovivo. No próximo fim de semana.

A primeira coisa que me veio à mente foi uma pergunta: Você está
mechamando para sair? A segunda, que veio logo em seguida, foi
que, se eu realmentelhe perguntasse isso, ele iria responder a
verdade e eu não tinha certeza se era issoque eu queria. Se ele
dissesse que sim, seria... O quê?

Ótimo. E eu ficaria apavorada. Se ele dissesse que não, me sentiria


uma

idiota.

Em vez de perguntar, apenas repeti:

— Uma banda boa. Boa de acordo com quem?

— Comigo, claro.

— Ah.

Ele ergueu uma sobrancelha.

— E com outras pessoas também — completou. — É a banda do


primo do

Rolly.
165

— A banda é de...

— Não. Não é música eletrônica — ele logo respondeu. — O estilo


deles émais pro rock descontraído e as músicas originais, um pouco
engraçadas, mas bemalternativas.

— Uau — eu disse. — Gostei da descrição.

— A descrição não quer dizer nada. É a música que conta — ele


falou. — E damúsica você vai gostar. Confie em mim.

— Veremos — eu disse, e ele sorriu. — Então, quando essa banda


de rockdescontraído, músicas originais um pouco engraçadas, mas
bem alternativas, vaitocar?

— No sábado à noite — ele respondeu. — É um show para todas as


idades noBendo. Outra banda vai abrir para eles, então, eles devem
começar a tocar por voltadas nove.

— Ok.

— Ok, quer dizer que você vai?

— Sim.

— Legal.

Eu sorri e vi atrás dele, dentro de casa, Whitney aparecer no topo da


escada.Ela estava de pijama e bocejava com uma mão na frente da
boca e andava emdireção ao hall de entrada, deixando sua sombra
na parede. Ao descer a escada, foiaté a sala de jantar e se inclinou
para ver os vasos de flores que estavam na janela dafrente. Logo
depois esticou a mão, arrumou a terra em um deles e virou outro
para queo lado oposto do vaso ficasse sobre a luz. Depois, ficou de
joelhos com as mãos nocolo, observando-os.

Eu olhei para Owen, que também a observava, e fiquei imaginando


o que eleachava daquilo. De fora, certamente tudo parecia diferente
do que realmente era. Sevocê observar outra casa irá ver outra
coisa, para cada olhar há outra história. Essahistória nem era minha,
mas por alguma razão me senti querendo contá-la mesmoassim.

— São ervas — eu disse para Owen. — Ela as plantou ontem. São,


hum, paraa terapia dela.
166

Ele balançou levemente a cabeça.

— Você me disse que ela estava doente. O que ela tem? Se não se
importar em responder, claro.

— Ela tem um distúrbio alimentar — contei.

— Ah.

— Ela está bem melhor do que antes — acrescentei. E isso era


verdade. Eu avi comendo dois pedaços de pizza na noite anterior.
Muito tempo depois de eu tercomido e somente após separar
qualquer coisa que lhe parecesse gordura, e cortar ospedaços em
micro pedacinhos. Mas ela os comeu e isso era significativo. —
Querodizer, quando descobrimos, ela estava muito mal. Ano
passado ela ficou um tempo nohospital.

Nós dois ficamos olhando Whitney se levantar enquanto tirava uma


mecha decabelo do rosto. Fiquei pensando se Owen a achava
diferente agora, como se essainformação talvez mudasse a maneira
como ele a via. Eu estudei o seu rosto, masnão consegui chegar a
nenhuma conclusão.

— Isso deve ter sido difícil — ele disse ao mesmo tempo que ela se
virou ecomeçou a andar em direção à mesa de jantar. — Ver sua
irmã passar por tudo aquilo.

Depois de passar pela sala de jantar em direção à cozinha, ela


desapareceu.Um segundo depois, eu a vi novamente passando na
frente da ilha da cozinha. Essaera uma coisa sobre a nossa casa da
qual eu sempre me esquecia: como se tinha aimpressão de que era
possível ver tudo, mas na verdade algumas coisas ficavam
escondidas, veladas.

— É — eu disse. — Foi. Foi horrível. Eu fiquei com muito


medo.Dessa vez, não pensei mais no fato de eu estar falando a
verdade, e nem tive aquelemomento no qual me peguei ousando em
ser sincera. Dessa vez, apenas aconteceu.Owen se virou, me olhou
e eu engoli seco. Então, como eu fazia todas as vezes que ele
estava prestando atenção em mim, continuei.

— O que acontece com a Whitney — eu disse — é que ela sempre


foi muitoreservada. Então, nunca dava para saber se ela estava
bem ou não. A minha irmã maisvelha, Kirsten, é totalmente o
oposto, é o tipo de pessoa que sempre dá informação demais.
Então, por exemplo, quando Kirsten estava triste, você ficava
sabendo,mesmo se não quisesse. Já com a Whitney, era preciso
arrancar informações dela. Oudescobrir de algum outro jeito.
167

Owen olhou para a casa novamente, mas Whitney tinha


desaparecido maisuma vez.

— E você? — ele perguntou.

— O que é que tem?

— Como eles sabem quando você não está bem?

"Eles nunca sabem", pensei, mas não disse isso. Eu não podia dizer
isso.

— Eu não sei — disse. — Acho que você teria que perguntar para
eles.Uma SUV enorme passou voando por nós naquele momento,
espalhando um monte defolhas que estavam amontoadas na
calçada. Enquanto elas flutuavam na frente dopára-brisa, eu olhei
novamente para minha casa e vi Whitney subindo as escadas
comuma garrafa de água na mão. Dessa vez, ela olhou para o lado
de fora. Ao nos ver,subiu um pouco mais devagar até o topo.

— É melhor eu entrar — falei, abaixando o braço em direção ao


fecho do cintode segurança. — Mais uma vez, muito obrigada pelo
café da manhã.

— Sem problemas — disse Owen. — Não se esqueça da


peregrinação, certo?Sábado. Nove horas.

—Perfeito. — Abri a porta e saí do carro. Quando passei na frente


do pára-choque dianteiro, ele ligou o motor e me deu tchau com a
mão. Ao chegar perto daentrada de casa, percebi que ainda estava
usando a jaqueta dele. Eu me vireirapidamente, mas o vi já virando
a esquina como um borrão azul, e desapareceu. Tarde demais.

Abri a porta da frente, entrei em casa e tirei a jaqueta, dobrando-a


no meubraço. Senti algo estranho no bolso de fora. Coloquei a mão
no bolso e apalpei umobjeto sólido. Mesmo antes de tirá-lo, eu sabia
o que era: o iPod do Owen. Estavacompletamente detonado, todo
arranhado e com uma rachadura na tela, os fones deouvido
enrolados em volta dele. E apesar do gelo que estava no Mundo dos
Waffles, oaparelho ainda estava quente.

— Annabel?

Eu tomei um susto e ergui o olhar. Whitney estava no topo da


escada, meolhando.

— Oi — respondi.
168

— Você levantou cedo.

— É — falei. — Eu, hum, saí para tomar café da manhã.


Elaestreitou os olhos.

— Quando você saiu?

— Um tempinho atrás — eu disse, começando a subir a escada.


Quandocheguei ao topo, ela deu um passo para o lado, mas não
desviou muito, então eu tiveque passar apertada entre ela e a
parede. Eu a ouvi cheirar uma vez. Depois, duas."Bacon", pensei.

— É melhor eu começar a fazer meu dever de casa — eu disse,


andando em direção ao meu quarto.

— Ok — ela disse lentamente, sem se mexer, e continuou me


olhando até euentrar e fechar a porta do meu quarto.

Como eu nunca tinha visto Owen sem o iPod, imaginei que ele logo
sentiriaa sua falta. Então, quando o telefone tocou naquela tarde,
atendi esperando ouvir asua voz, já desesperado por estar sem
música. Mas não era Owen e sim, a minhamãe.

— Annabel! Oi!

Quando minha mãe estava nervosa, o seu quociente de alegria


ficava nasalturas. A linha parecia estar com interferência por causa
da animação forçada.

— Oi — falei. — Como está indo a viagem?


— Muito bem — ela respondeu. — Agora seu pai está jogando golfe
e euacabei de fazer as unhas. Nós estamos tão ocupados, mas
achei melhor ligar para sabercomo vão as coisas. Como vocês
estão?

Na verdade, essa era a terceira vez que ela ligava em trinta e seis
horas. Mas eu fingi não ter percebido.

— Bem — falei. — Sem nenhuma novidade.

— Como está a Whitney?

— Bem.

— Ela está aí?


169

— Eu não sei — respondi. Eu me levantei e saí da cama, andando


emdireção à porta do meu quarto e abrindo-a. — Vou ver...

— Ela saiu?

— Não sei ao certo — respondi. "Nossa", pensei. — Espere. — Fui


até ocorredor e coloquei o telefone contra o peito, para ver se ouvia
algo. Não ouvibarulho da TV e lá embaixo estava silencioso, então,
segui em direção ao quarto de Whitney, cuja porta estava semi
fechada. Eu bati na porta, de leve.

— Sim?

Quando abri a porta, ela estava sentada na cama de pernas


cruzadas eescrevendo em um caderno apoiado no colo.

— É a mamãe no telefone — eu disse.

Ela respirou fundo, estendeu a mão e eu dei um passo a frente para


lheentregar o telefone.

— Alô?... Oi... Sim, estou aqui... Estou bem... Está tudo bem. Você
nãoprecisa ficar ligando, sabe?

Minha mãe disse alguma coisa e Whitney se encostou à cabeceira


da cama.Enquanto ela ouvia e respondia com uma série de ahãs, eu
olhei pela janela. Apesarde os nossos quartos ficarem lado a lado, a
vista que ela tinha do campo de golfe meparecia completamente
diferente, como se fosse outro lugar.
— É, tá — ela disse, levantando o braço para passar a mão no
cabelo.Olhando-a, pensei mais uma vez em como ela era bonita —
mesmo de calça jeans ecamiseta, sem maquiagem, sua beleza era
de tirar o fôlego. Tanto que era difícilacreditar que ela pôde um dia
ter se olhado e visto alguma outra coisa. — Eu digopara ela... Tá...
Tchau.

Ela tirou o telefone da orelha, apertando o botão para desligar.

— Mamãe disse que vem amanhã — ela falou. — Eles estarão de


volta nahora do jantar.

— Ah — eu disse enquanto ela me devolvia o telefone. — Tá bom.

— E nós podemos comer espaguete no jantar ou comer fora. — Ela


seencostou, encolhendo as pernas, e me olhou. — O que você quer
fazer? Eu hesitei,imaginando se essa pergunta seria traiçoeira.
170

— Pra mim tanto faz — respondi. — Espaguete está bom.

— Então, tá. Eu faço daqui a pouco.

— Tá bom. Posso te ajudar se você quiser.

— Tanto faz — ela respondeu. — A gente vê depois. — Ela se


inclinou parafrente, pegou uma caneta que estava ao lado do seu pé
e tirou a tampa. Eu vi quetinha algo escrito no topo da página do
caderno no colo dela. Fiquei imaginandosobre o que ela escrevia.
Logo depois, ela me olhou. — O que foi?

— Nada — respondi, me dando conta de que ainda estava lá


parada,olhando para ela. — Até daqui a pouquinho.

Voltei para meu quarto, sentei na cama e peguei o iPod do Owen.


Pareciaestranho e um pouco errado eu estar com ele no meu
quarto, sem falar nas minhasmãos. Mesmo assim, me vi pegando o
fone de ouvido e apertando o botão para ligar oaparelho. Depois de
um segundo, a tela ligou. Quando o menu apareceu, apertei em
MÚSICAS .

Havia 9.987 músicas para escolher. "Caramba", pensei, enquanto


passava osdedos no sensor para explorar a lista. Lembrei-me do
que ele dissera sobre abafar ascoisas. Foi o que ele fez durante o
divórcio, mas também me dei conta de que todosos dias, quando ele
andava para todo lugar com os fones de ouvido, dez mil
músicaspodiam preencher muito silêncio.

Cliquei novamente no menu e escolhi as PLAYLISTS . Outra lista


enormeapareceu: PROGRAMA 12/08, PROGRAMA 19/08,
CANTOS ( IMPORTADO ). E então:ANNABEL.

Eu tirei meu dedo do botão. "Devem ser aqueles CDs que ele
gravou paramim", pensei. Mesmo assim, hesitei assim como tinha
feito anteriormente no carrodele, querendo saber, mas ao mesmo
tampo não querendo. Mas dessa vez, eu cedi.

Quando apertei o botão, a imagem na tela mudou e uma lista de


músicasapareceu. A primeira era "Jennifer", de uma banda
chamada Lipo, cujo nome nãome era estranho. Também familiar foi
a segunda música, "Descartes Dream", daMisanthrope, que acabei
ouvindo. Rapidamente, eu reconheci essa como sendo umadas
músicas tocadas no primeiro programa do Owen que eu ouvi, das
quais nãogostei, mas ouvi. E discuti com ele depois.

Estavam todas lá. Cada música sobre a qual conversamos ou


discutimos,listadas com cuidado. Os cantos maias, da primeira vez
que ele me deu carona.
171

"Thank you" do Led Zeppelin, de quando eu dei carona para ele.


Tinha muita músicaeletrônica e música thrash metal. Até Jenny
Reef. Ao ouvir um pouco de cadamúsica, pensei em todas as vezes
que vi Owen com fone de ouvido e fiqueiimaginando o que ele
estaria escutando, em vez de em que ele estava pensando.
Quemimaginaria que talvez pudesse ser em mim?

Eu olhei para o relógio — eram 16h55. Com certeza, Owen já


deveria tersentido falta dele. Nada demais. Eu iria até a casa dele e
deixaria o Ipod lá. Simples.

Mas, descendo as escadas, ouvi um barulho, seguido de um


abafado"merda!". Quando coloquei a cabeça na cozinha, Whitney
estava colocando umapanela de volta no armário.

— Tá tudo bem? — perguntei.

— Tá. — Ela se ergueu e tirou o cabelo do rosto. Na ilha na frente


dela, haviaum pote de molho para macarrão, uma caixa de
espaguete, uma tábua de cortar compimentão e pepino e um saco
de alface. — Você vai sair ou algo assim?

— Hum — eu disse. — Eu ia... Bem rapidinho. A não ser que você


queira que

eu...

— Não, tá tudo bem. — Ela pegou uma caixa de espaguete e


estreitou os olhospara ler a caixa.

— Ah. Tá bom — eu disse. — Bem, eu volto em...


— É só que... — Ela colocou a caixa no balcão. — Eu não sei direito
qualpanela usar para cozinhar macarrão.

Eu coloquei a jaqueta do Owen na mesa e fui para perto do fogão.

— Esta aqui — disse a ela, colocando uma panela grande e o


escorredor queencaixava nela. — É mais fácil escorrer o macarrão
assim.

— Ah — ela disse. — É isso aí.

Levei a panela para a pia, enchi de água e a coloquei no fogão.


Senti que elame observava quando liguei o fogo.

— Vai demorar um pouco — eu lhe disse. — Se você tampar a


panela, émais rápido.

Ela acenou com a cabeça.


172

— Ok.

Voltei para a cadeira onde tinha deixado o casaco do Owen e fiquei


lá,parada, observando-a pegar no armário uma panela pequena e
colocá-la no fogão.Depois, ela pegou o molho, abriu e colocou na
panela. Tudo isso ela fezvagarosamente e com cuidado, como se
estivesse repartindo átomos. O que não era desurpreender porque
Whitney quase nunca cozinhava. Minha mãe monitorava todas
asrefeições dela, preparava lanches e sanduíches, até o cereal que
ela comia no café damanhã; me dei conta de que aquela cena era
estranha e que ela deveria pensar omesmo, principalmente estando
sozinha.

— Você quer ajuda? — perguntei enquanto ela pegava uma colher


da gavetaao lado do fogão e colocava no molho de tomate,
mexendo com insegurança. — Por mim, tudo bem.

Por um minuto, ela não disse nada e eu fiquei pensando que talvez
a tivesseofendido. Mas, aí, sem se virar, ela disse:

— Claro. Quer dizer, se você quiser.

Então, naquela noite, pela primeira vez que eu me lembre, fiz o


jantar com aminha irmã. Nós não conversamos muito além das
perguntas ocasionais feitas porela (colocar o forno em qual
temperatura para o pão de alho, ou fazer quantoespaguete) e eu
respondendo (350°C, o pacote inteiro). Arrumei a mesa enquanto
elapreparava a salada do seu jeito lento e metódico, cortando as
verduras e legumes commuito cuidado, e os organizando de acordo
com a cor sobre a tábua. Quando tudoficou pronto, Whitney e eu
fomos juntas para a sala de jantar, só nós duas. Ao mesentar na
cadeira, olhei para os vasinhos na janela.

— Eles ficaram bonitos lá — eu disse, enquanto ela se sentava.

— Acho que sim — ela respondeu pegando o guardanapo. O prato


dela tinhamuita salada e só um pouquinho de macarrão, mas eu não
disse nada, porque sabiaque minha mãe diria. — Agora eles só
precisam crescer.

Enrolei macarrão no meu garfo e comi um pouco.

— Está muito bom — eu lhe disse. — Perfeito.

— É macarrão — ela disse dando de ombros. — É fácil.

— Nem sempre — eu lhe disse. — Se você não cozinha o


suficiente, fica durono meio. E se cozinha demais, fica empapado. É
uma linha tênue.
173

— Sério? — ela disse.

Fiz que sim com a cabeça. Ficamos um tempo em silêncio, só


comendo. Euolhei novamente para as panelas, para o campo de
golfe do lado de fora, tão verde que parecia de mentira.

— Obrigada — Whitney disse.

Eu não entendi direito se era por causa do elogio que fiz à comida,
ou àsalada, ou apenas por ficar por ali. E também não me
importava. Fiquei contente em ouvir aquilo, seja lá por qual motivo.

— De nada — eu disse, e ela balançou levemente a cabeça. Do


lado de fora,um carro que passava desacelerou e o motorista olhou
para nós antes de continuar.
174

Onze

— É a Annabel!

Eu nem tinha tirado o dedo da campainha da casa do Owen e, não


sei como,a Mallory já estava do outro lado. Logo depois, a maçaneta
girou e a porta se abriu.

Quase não a reconheci no primeiro momento, pois ela estava


usando ma-quiagem demais: base, delineador e sombra, muito
blush e cílios postiços, queestavam mal colocados e grudados na
sua sobrancelha. Ela também usava umvestido tomara que caia
justo e preto, além de sandálias de salto bem alto que afaziam
balançar ao abrir a porta.

Amontoadas em volta dela e me olhando estavam quatro outras


meninasigualmente maquiadas e vestidas: uma garota baixa, de
cabelo escuro e óculos,usando um vestido preto e salto anabela,
duas ruivas idênticas de olhos verdes esardinhas, ambas de calça
jeans e blusinhas curtas, e uma loira cheinha com umvestido que
parecia de baile. Na porta, o cheiro de laquê era muito forte.

— Annabel! — gritou Mallory, pulando. Seu cabelo, preso bem alto


fazendouma espécie de falso moicano, não se mexeu. — Oi!

— Oi! — eu disse. — O que você...

Antes de eu conseguir terminar, ela esticou o braço, pegou a minha


mão e mepuxou para dentro.
— Gente — ela disse enquanto as outras garotas deram um passo
para trás,ainda me olhando — , ai, meu Deus, esta é a Annabel
Greene, vocês acreditam?

A loira de vestido de baile me estudou de cima a baixo, franzindo


seus lábioscor-de-rosa, e disse:

— Você fez aquele comercial.

— Dã! — disse Mallory. Ela levantou a mão e finalmente arrumou os


cílios
175

postiços. — É a garota da Kopf. E uma modelo da Lakerview.

— O que você está fazendo aqui? — uma das ruivas perguntou.

— Bem — eu disse — , eu estava aqui perto e ...

— Ela é amiga do meu irmão. E minha. — Mallory apertou


novamente minhamão e senti sua palma quente contra a minha.
Para mim ela disse: — Você chegou nahora para a sessão de fotos.
Pode nos ajudar com as poses.

— Na verdade, eu não posso ficar — eu disse. — Só estou fazendo


umaparada rápida.

E foi o que eu disse a Whitney depois do jantar. Que eu tinha que


entregaralgo na casa de um amigo e que voltaria em uma hora. Ela
balançou levemente acabeça, concordando, mas me olhou de um
jeito meio estranho, como se estivesseimaginando se eu voltaria
para casa com cheiro de bacon novamente.

— Você gostou da minha roupa? — Mallory perguntou, fazendo uma


pose:uma mão atrás do pescoço e olhos em direção ao teto. Ela
ficou parada naquelaposição e um pouco depois voltou para sua
posição normal. — Nós estamos fazendovários books diferentes. Eu
sou Noite Elegante.

— Nós somos Manhã Informal — me contou uma das ruivas,


colocando umamão no quadril. A irmã, que era mais sardenta,
concordou muito séria e acenandocom a cabeça.

Eu olhei para a garota de óculos e cabelo preto.


— Trabalho e Classe — ela murmurou, arrumando o vestido preto.

— E eu — a loira anunciou, girando para o vestido armar — sou


Noivado dosSonhos.

— Não, não é — disse Mallory. — Você é Noite de Gala.

— Noivado dos Sonhos — a loira insistiu, girando novamente. Para


mim, elaacrescentou: — Este vestido custou...

— Quatrocentos dólares, a gente já sabe, já sabe! — disse Mallory,


irritada.— Ela acha que isso é importante só porque a irmã dela foi
debutante.

— Nós vamos tirar as fotos? — perguntou uma das ruivas. — Estou


cansadade ser Manhã Informal. Eu quero usar um vestido.
176

— Daqui a pouco! — disse Mallory, irritada. — Primeiro, a Annabel


tem quever o meu quarto. Depois ela pode nos ajudar com nosso
visual.

Ela começou a me puxar em direção à escada, as outras meninas


atrás denós, fazendo barulho com seus sapatos de salto.

— O Owen está? — perguntei.

— Em algum lugar — ela disse enquanto começamos a subir a


escada. Agarota do cabelo preto estava agora do meu lado me
examinando com uma expressãomuito séria, enquanto as outras
três cochichavam atrás de mim.

— Você deveria ver as fotos que tiramos na casa da Michelle,


ficaram muitoboas! Eu usei uma roupa que chamei de Elegância
Européia. Ficou um arraso.

— Elegância Européia? — perguntei.Ela acenou positivamente a


cabeça.

— Eu usei uma boina e uma saia plissada e posei com uma


baguete. Ficouincrível.

— Eu quero ser Elegância Européia — a garota de preto disse. —


Essevestido é chato. E por que você sempre é Noite Elegante?

— Espere um segundo! — Mallory disse quando chegamos diante


de uma portafechada onde ela parou, cruzando os braços. — Certo
— ela disse. Os cílios postiçostinham ficado frouxos novamente. —
Preparem-se para a experiência maisincrivelmente incrível do
mundo das modelos.

Isso não me pareceu muito promissor. Olhei para trás e as outras


garotascontinuavam me olhando. Eu me virei para Mallory.

— Tá bom — eu disse lentamente. Ela girou amaçaneta e abriu a


porta.

— Aqui está — ela disse. — Vocês acreditam?

Eu não acreditava. As paredes em minha frente e ao lado estavam


cobertas dochão ao teto com figuras de revistas. Modelo após
modelo, anúncio após anúncio,celebridade após celebridade. Havia
loiras, morenas, ruivas. Alta-costura, moda baile,moda passeio,
moda do showbiz. Vários rostos bonitos com maçãs do
rostoprotuberantes, fazendo pose de um jeito, de outro, de todos os
jeitos possíveis.Havia tantas fotos que não dava nem para ver a
parede atrás delas.
177

— E aí? — Mallory disse. — O que você acha?

Verdade seja dita, tudo aquilo era muito forte, mesmo antes de ela
me puxarpara a frente, apontando para um rosto em especial. Só
depois de chegar bem pertopercebi que era eu.

— Viu? — ela perguntou. — Esta é do calendário da Lakerview


Models doano passado, quando você foi o mês de abril e posou com
os pneus. Lembra?

Fiz que sim com a cabeça e logo ela estava me puxando um pouco
para adireita, apontando novamente. Enquanto isso, as outras
garotas tinham se espalhado:as ruivas pularam em cima da cama
onde ficaram folheando uma pilha de revistas,enquanto a loira e a
garota de cabelos escuros disputavam para sentar na cadeira que
ficava de frente para a penteadeira.

— E este — disse Mallory, seu dedo muito próximo à parede — é o


anúncioda Boca Tan que estava no programa de um jogo de
basquete a que eu fui ano passado, na universidade. O seu cabelo
está mais loiro na foto, não é?

— É — eu disse. Eu também estava meio laranja. Tão estranho. Eu


já tinhaesquecido completamente disso. — Com certeza.

Mais um puxão e as fotos passavam na minha frente como um


borrão enquantoavançávamos, mas dessa vez na direção oposta,
parando na parede à direita.

— Mas esta aqui — ela disse — é minha favorita. É por isso que ela
está aolado da minha cama.
Eu me abaixei para ver mais de perto. Era uma colagem de fotos
docomercial de volta às aulas da Kopf: eu de uniforme de líder de
torcida, sentada nobanco com as garotas atrás de mim, sentada em
uma carteira, nos braços de umgaroto bonito de smoking.

— Onde você conseguiu essas fotos? — eu perguntei a ela.

— Eu congelei as imagens — ela disse cheia de orgulho. — Eu


gravei ocomercial em DVD, depois fiz o upload e salvei as imagens
no meu computador.Legal, né?

Eu me inclinei para olhar ainda mais de perto, me lembrando, como


em todasas vezes que vi o comercial, daquele dia de abril quando o
filmei. Eu era muitodiferente naquela época, tudo era diferente
naquela época.
178

Mallory largou minha mão e se inclinou ao meu lado.

— Eu adoro esse comercial! — ela disse. — Primeiro gostei dele por


causado uniforme de líder de torcida, porque na época eu fiquei
muito interessada nisso,era verão e tal, sabe? Mas depois vi que
gostava de tudo, das roupas, da história... Éincrível!

— A história — eu disse.

— É. — Ela se virou para me olhar. — Sabe, que você é essa


garota e estávoltando para a escola depois de umas férias
maravilhosas.

— Ah — eu disse. — Pois é.

— Primeiro é, ahn, são todas as coisas que acontecem logo no


começo dasaulas. Como ser líder de torcida em um grande jogo. E
estudando para provas econversando com os amigos no pátio.

"Conversando com os amigos no pátio", pensei. "Até parece."

— E depois — ela disse — termina com o primeiro baile, quando


você ficacom o cara, bonitão, o que significa que o resto do ano vai
ser ainda melhor — elasuspirou. — É como se você tivesse essa
vida maravilhosa, cheia de coisas legais.Todas as coisas que
deveriam fazer parte do colégio.Você é...

Eu olhei para ela novamente. Seu rosto estava bem próximo das
fotos e elacontinuava olhando para elas.
— A garota que tem tudo — eu disse, me lembrando das palavras
do diretor.

Ela virou o rosto em minha direção e disse:

— Exatamente.

Eu queria dizer para ela naquele exato momento que isso não era
verdade.Que eu estava longe de ser a garota que tem tudo. Que
nem era mais aquela garotanas fotos, se é que algum dia eu fui. A
vida de ninguém é daquele jeito, feita apenasde momentos
gloriosos, principalmente a minha. Uma seqüência de fotos da
minhavolta às aulas seria algo completamente diferente: a linda
boca de Sophie emitindo umpalavrão, Will Cash sorrindo para mim,
eu sozinha atrás do prédio vomitando nagrama. Essa era a verdade
sobre a minha volta à escola. E a história da minha vida.Ouvi
passos pesados no corredor e depois um suspiro alto.
179

— Mallory, eu já disse, se você quiser que eu tire as fotos, vamos


logo comisso. Eu tenho um programa para preparar e não...

Eu me levantei. Owen estava parado em frente à porta aberta.


Quando eleme viu, arregalou os olhos.

—... Tenho a noite toda — ele terminou. — Ei. O que você está
fazendo

aqui?

— Ela veio para a minha festa — Mallory lhe disse. Owenestreitou


os olhos.

— Você veio para isso?

— Você está ajudando na sessão de fotos? — respondi.

— Não — ele disse. — Eu só...

— Nós precisávamos de um fotógrafo — Mallory me explicou. —


Para as fotosdo grupo. E agora nós temos uma estilista também!
Está perfeito — ela bateu palmas.— Beleza! Gente, todo mundo
descendo e em suas posições. Nós vamos fazer as fotosdo grupo
primeiro e depois faremos as individuais. Quem está com a lista
para asfotos?

A garota de cabelos escuros se levantou da cadeira ao lado do


espelho,colocou a mão no bolso e tirou uma folha dobrada.

— Aqui — ela disse.


— Tá - Owen disse enquanto Mallory pegou a folha da mão da
garota —, agorame diga de verdade por que você está aqui.

— Moda é minha vida — eu disse a ele. — Você sabe disso.Mallory


pigarreou.

— Primeiro o Manhã Informal — ela disse apontando para as ruivas


—,depois Trabalho e Classe, Noite Elegante e Noite de Gala.

— Noivado dos Sonhos — a loira a corrigiu.

— Todo mundo descendo! — Mallory disse. — Vamos!

As ruivas desceram da cama em direção à porta, e a garota de


cabelosescuros e vestido preto as seguiu. Já a loira não se
apressou e me olhou seriamenteao passar.
180

— Oi, Owen — ela disse ao passar por ele com a cauda do seu
vestido searrastando no carpete.

Owen a cumprimentou com uma expressão séria.

— Olá, Elinor - ele disse. Ao ouvir seu nome, seu rosto ficou
vermelho e ela seapressou até a porta e pelo corredor, onde foi
recebida com risadinhas das amigas.

Mallory seguiu as amigas, depois parou na porta e se virou para


nós.

— Owen — ela disse —, vou precisar de você lá embaixo em cinco


minutospronto para tirar as fotos. Annabel, você cuida do estilo e
supervisiona tudo.

— Olha como você fala, Mallory — Owen lhe disse. — Ou vocês só


vãoacabar tirando auto-retratos.

— Cinco minutos! — ela disse. E saiu fazendo barulho com o sapato


desalto e descendo as escadas. Sua voz ia ficando mais alta
conforme ela continuavadando ordens para as amigas.

— Uau! — eu disse para Owen. — É uma produção e tanto!

— Nem me fale — concordou, sentando-se na ponta da cama. — E


lembre-sedo que eu vou dizer: vai terminar em lágrimas. Sempre
termina. Essas garotas não têma menor noção de pensamento
direcionado ao meio.

— Pensamento direcionado ao quê?


— Ao meio — ele repetiu enquanto eu me sentava ao seu lado. — É
um termodo Gerenciamento de Raiva. Quer dizer não pensar
somente nos extremos. Sabe, ou setem o que quer ou não se tem.
Ou estou certo ou errado.

— Ou sou Noivado dos Sonhos ou Noite de Gala — eu acrescentei.

— Isso. É perigoso pensar assim, porque as coisas não são tão bem
definidas— ele disse. — A não ser, pelo visto, que você tenha treze
anos.

— A Miss Noivado dos Sonhos tem certo ar de diva.

— A Elinor? — ele respirou fundo. — Ela é uma figura.

— Ela parece gostar bastante de você.

— Nem começa — ele disse, me dando um olhar bravo.


181

— Isso é Linguagem-I pura.

— Você sabe de toda essa história que há entre fotógrafos e


modelos ficandojuntos — eu disse, cutucando-o com meu joelho. —
É quase um requisito.

— Por que você veio aqui mesmo?

— Só vim deixar isto aqui. — Mostrei a jaqueta dele. — Esqueci de


devolver hoje de manhã.

— Ah — ele disse. — Obrigado, mas você poderia ter esperado até


terça-feirase quisesse.

— Eu teria esperado — eu disse, colocando a mão no bolso e


tirando o iPod—, mas então achei isto.

Ele arregalou os olhos.

— Nossa — ele disse, pegando o aparelhinho. — Disso eu teria


sentido

falta.

— Imaginei que você já tivesse sentido.

— Ainda não — ele disse. — Mas vou preparar o programa da


semana quevem daqui a pouco, então logo sentiria falta. Obrigado.

— De nada.
De repente, ouvimos muito barulho vindo do andar de baixo e
parecia quealguém estava gritando de alegria ou choramingando.

— Tá vendo? — disse Owen, apontando para a porta aberta. —


Lágrimas.Garantidas. Não há meio-termo.

— Talvez nós devêssemos ficar escondidos por aqui — eu disse. —


Talvez seja mais seguro.

— Eu não sei — ele disse, olhando para as paredes a nossa volta,


— Todas essas fotos me dão arrepios.

— Pelo menos você não está em nenhuma delas.

— Você está? Tem fotos suas aqui?

Eu apontei para as fotos do comercial. Ele se levantou e andou em


direção a
182

elas para vê-las de perto.

— Não é nada demais — eu disse. — De verdade.

Ele ficou estudando as fotos tempo suficiente para eu me


arrepender de tê-lasmostrado.

— É estranho — ele disse.

— Nossa — eu disse. — Muito obrigada.

— Não, quero dizer, você não parece ser você, sei lá, — Ele ficou
emsilêncio e se aproximou mais ainda. — É. Quero dizer, se parece
com você, mas não éa mesma pessoa de jeito nenhum.

Por um momento, fiquei lá sentada, estranhando aquilo porque na


verdadeera assim que eu me sentia quando olhava para os antigos
anúncios que tinha feito,principalmente o comercial da Kopf. Aquela
garota era de fato diferente de quem euera naquele momento,
menos machucada e menos magoada do que aquela que eu viano
espelho ultimamente. É que eu pensei ser a única que percebia
isso.

— Sem querer ofender — disse Owen. Eu balanceia cabeça e disse:

— Tudo bem!

— Quero dizer, é uma boa foto — ele falou, olhando-a novamente.


— Sóacho que você está mais bonita agora.

Em um primeiro momento, eu tive a impressão de ter ouvido errado.


— Agora? — repeti.

— É — ele olhou para mim. — O que você pensou que eu queria


dizer?

— Eu não... — comecei a falar, depois parei. — Deixa pra lá.

— Você acha que eu ia te dizer que você era mais bonita na foto?

— Bem — eu disse —, você é sincero.

— Mas não sou um babaca — ele respondeu. — Você está bonita


na foto. Éque você não parece você. Você está... Diferente.

— Diferente de ruim? — perguntei.


183

— Diferente de diferente.

— Isso foi super vago — eu observei. — É um marcador de posição,


na verdade um marcador de posição duplo.

— Você está certa — ele disse. — O que eu quero dizer é que ao


olhar para afoto, eu penso, "Hum, essa não é a Annabel. Não se
parece nem um pouco com ela".

— Como eu sou, então?

— Assim — ele disse, apontando para mim com a cabeça. — É o


seguinte: eunão te vejo como uma pessoa que tira fotos usando
uniforme de líder de torcida. Nemcomo modelo, ponto. Você não é
essa pessoa para mim.

Queria pedir para ele explicar um pouco mais, para me dizer como
ele me viaexatamente. Mas, então, percebi que talvez ele tivesse
acabado de fazer isso. Eu jásabia que ele me via como uma pessoa
sincera, honesta, direta e até engraçada —coisas que nunca pensei
que eu fosse. Alguém que sabia o que mais eu poderia ser,que tipo
de potencial existia entre aquela garota da foto e a que ele via
agora. Muitaspossibilidades.

— Owen — gritou Mallory. — Estamos prontas!

Owen revirou os olhos. Depois, ele veio em minha direção


oferecendo a mãopara me ajudar a levantar.

— Beleza — ele disse. — Vamos lá.


Observando-o, eu percebi que isso também fazia parte da minha
volta às aulas:apesar de Sophie e Will e de todas as coisas
horríveis, havia Owen me dando a mão. Eagora, ao pegar na mão
dele e apertar meus dedos contra os seus, eu estava mais
agradecida do que nunca por finalmente ter um apoio.

Owen estava certo sobre as lágrimas. Uma hora depois, o choro


começou.

— Não é justo — disse a garota de cabelos escuros, cujo nome


agora eu sabia ser Ângela, com a voz trêmula.

— Você está bonita — disse Mallory enquanto ajustava o boá. —


Qual é oproblema?

Eu sabia qual era. Na verdade, era meio óbvio. Enquanto Mallory e


asdemais estavam se alternando entre Noite Elegante e Noite de
Gala (ou, dependendo
184

do ponto de vista, Noivado dos Sonhos), Ângela ficou sempre com o


Trabalho eClasse, que era claramente o visual do qual elas menos
gostavam. Agora, ela estavaolhando para sua saia e blusa pretas e
as sapatilhas.

— Eu quero fazer o Noite Elegante — ela protestou. — Quando é a


minha

vez?

— Owen! — disse Elinor, a loira, repuxando uma blusa tomara que


caia justa.— Você está pronto para a minha vez?

— Não — murmurou Owen enquanto ela andava em sua direção,


jogando ocabelo e colocando a mão no quadril. — Estou longe
disso.

A sessão de fotos tinha toda uma produção. Além de terem afastado


todos osmóveis da sala de estar e colocado um lençol branco sobre
o consolo da lareira parafazer um fundo, as garotas também
arrumaram uma área para maquiagem e troca deroupa no lavabo e
colocaram música de fundo (com artistas como Jenny Reef,
BitsyBonds e Z104); a oferta que Owen fez de preparar um remix foi
rejeitadaunanimemente.

— Ângela, a sua vez vai chegar — disse Mallory, que agora usava a
partede cima de um biquíni dourado, um sarongue e um boá sobre
os ombros. — Mas o Trabalho e Classe é muito importante. Alguém
tem que fazer.

— E por que você não faz?


Mallory suspirou, assoprando as plumas.

— Porque minha aparência combina mais com noite — ela


explicou,enquanto as ruivas, já de roupa de banho, praticavam para
as fotos de praiajogando uma bola de vôlei uma para a outra. —
Como você usa óculos, ficamelhor com o visual sério de empresa.

Eu olhei para Ângela, cujo lábio superior começava a tremer de


leve.

— Sabe — eu disse — , talvez ela possa tirar os óculos.

— Estou pronta! — Elinor disse para Owen. — Vai! Tira as fotos!

Owen, que estava parado na frente do sofá, tomou um susto e


levantou acâmera em direção aos olhos. De acordo com a minha
experiência, as modelosnunca ficam mandando nos fotógrafos, mas
esse não era o caso ali, obviamente.Owen apenas mantinha seu
dedo no botão, quase sem parar, enquanto as garotas se
185

arrumavam. Agora, Elinor mandava um beijo para a câmera, e para


ele, que ficousem jeito.

Como estilista, me informaram que minha função era ficar no lavabo


parasupervisionar o guarda-roupa, que consistia em pilhas de
roupas e sapatosespalhados em cima de balcões, no chão e
degraus da escada. Depois que minhasprimeiras sugestões —
menos decote e menos maquiagem para começar —
foramcompletamente ignoradas, passei a maior parte do tempo
observando Owen etentando não rir.

— Sabe — ele disse, quando Elinor se deitou no chão e começou a


secontorcer na frente dele com seus cotovelos batendo no chão de
madeira. —, achoque está quase na hora de acabar.

— Mas nós ainda nem tiramos as fotos em grupo? — disse Mallory.

— Então é melhor começar — ele retrucou. — Sua estilista e seu


fotógrafosão pagos por hora e vocês não têm mais dinheiro para
bancar a gente.

— Tá bom, tá bom — resmungou Mallory, jogando o boá sobre o


ombro.— Todas juntas na frente do cenário, agora!

As ruivas pegaram suas bolas e se encaminharam para lá, enquanto


Elinorficou de pé, ajeitando novamente seu tomara que caia. Olhei
para Ângela, queestava parada de braços cruzados na arcada da
sala de estar e cujo lábio superiortremia muito. Três poderia ser
gente demais, pensei. Mas cinco também.
— Ei — eu disse, e ela se virou para me olhar. — Vem cá. Venha
colocar uma outra roupa.

Eu ouvi Mallory dizer a todas como elas deveriam posar enquanto


Ângela meseguiu de volta ao vestiário, onde lhe mostrei as opções.

— Este é bonito — eu disse, pegando uma saia vermelha. — O que


você acha?E talvez nós possamos combiná-la com... — Dei uma
olhada ao redor, depois peguei uma blusa preta de alcinha. — Isto.
E sapatos de salto bem altos.

Ela concordou, pegando a saia.

— Ok — ela disse, andando pelo corredor em direção ao quarto. —


Vou me

trocar.

— Isso — eu concordei. — Eu vou procurar o sapato.


186

— Ângela! — gritou Mallory. — Precisamos de você aqui!

— Só um segundinho — gritei, me abaixando e remexendo na pilha


desapatos. Peguei uma sandália de tirinhas e estava procurando
pelo outro ladoquando senti que alguém me observava. Quando
olhei, Owen estava parado lá,segurando a câmera.

— Um segundinho — eu disse. — Nós estamos trocando o visual.

— Eu ouvi. — Ele entrou no vestiário, encostou-se à porta e ficou


meobservando. Eu finalmente achei a sandália, que estava debaixo
de uma parkafelpuda. — Foi muito legal você ajudar a menina.

— Bom — eu disse —, o trabalho de modelo pode ser um negócio


bem

sujo.

— Ah, é?

Fiz que sim com a cabeça ao me levantar, olhando para o corredor


para ver seÂngela aparecia, e depois me encostei ao lado oposto da
porta, de frente para ele ecom o sapato pendurado na mão. Em
seguida, ele ergueu a câmera até o olho.

— Não — eu disse, colocando a mão na frente do rosto.

— Por que não?

— Eu odeio que tirem foto minha.

— Mas você é modelo.


— Por isso mesmo — eu lhe disse. — Já tiram demais.

— Ah, vai — ele disse. — Só uma.

Eu abaixei minha mão, mas não sorri, enquanto a mão dele


apertava o botãopara tirar a foto. Fiquei apenas olhando para ele,
através da lente, quando o flashdisparou.

— Bom — ele disse.

— É?

Ele acenou positivamente a cabeça, virando a câmera para eu


poder olhar atela. Dei um passo à frente e vi a foto. E lá estava eu,
com o contorno da portaaparecendo atrás de mim. Meu cabelo
parecia despenteado, alguns fios soltos no meu
187

rosto, eu estava sem maquiagem e não era o meu melhor ângulo.


Mas a foto até que ficou boa, eu me aproximei mais, estudando meu
rosto, a luz fraca no fundo.

— Está vendo? — Owen disse. Eu sentia seu ombro contra o meu e


seurosto a apenas alguns centímetros, enquanto nós dois
olhávamos para aimagem. — É assim que você é.

Eu virei a cabeça para responder ao comentário — o que,


exatamente, eu nãotinha a menor idéia — e sua bochecha estava
muito próxima. Eu ergui meu olhar emsua direção, e então, antes de
me dar conta do que estava acontecendo, ele virou umpouco a
cabeça, inclinando-a na minha direção. Eu fechei os olhos e logo
senti seuslábios macios contra os meus e me aproximei mais,
pressionando meu corpo contra...

— Só falta eu colocar os sapatos.

Nós dois demos um pulo, assustados; Owen bateu a cabeça no


batente da

porta.

— Merda — ele disse.

Com meu coração batendo forte, eu olhei para Ângela, que nos
observava comuma expressão séria.

— Sapatos — eu disse, entregando-os. — Pronto.

Owen passava a mão na cabeça e estava com os olhos fechados.


— Meu — ele disse. — Isso dói.

— Você está bem? — perguntei. Ele fez sinal positivo com a cabeça
eeu estiquei o braço, tocando na sua têmpora, e mantive meus
dedos lá umpouco, sentindo sua pele quente, macia, antes de tirar
minha mão.

— Owen! — gritou Mallory da sala de estar. — Estamos prontas!


Vamos!Owen se desencostou do batente da porta e andou em
direção à sala de estar,enquanto Ângela, já de sandálias, começou
a segui-lo vagarosamente. Fiquei paradapor um tempo, depois me
olhei no banheiro do lavabo, espantada com o que tinhaacabado de
acontecer. Estudei meu reflexo durante um segundo, depois me
afasteidele.

Quando cheguei à sala de estar, todo o drama tinha sido esquecido


e as fotosem grupo estavam a todo vapor. As cinco garotas faziam
várias poses enquanto
188

Owen se movia concentrado ao redor delas. Encostei-me ao arco da


porta,observando a sessão enquanto cada uma das garotas fazia
poses à sua maneira: umajogada de quadril, uma virada de
pescoço, cílios esvoaçantes.

A música de fundo era exatamente o tipo que Owen odiava: muito


pop,batidas dançantes e a voz perfeitamente arquitetada deslizando
sem esforço na frentedos instrumentos. Mallory esticou o braço até
o CD player que estava ao seu lado nochão, aumentando o volume,
e as garotas começaram a dar gritinhos e a dançar comas mãos
para cima. Owen saiu de perto enquanto elas se balançavam e
giravam,virando a câmera na minha direção, e ficou lá, parado,
quando as garotas passaramentre nós. Eu não sabia direito o que
ele estava vendo, tinha apenas uma idéia.Então, dessa vez, eu
sorri.

Naquela mesma noite, quando estacionei o carro, todas as luzes de


casaestavam apagadas, menos a do quarto da Whitney. Eu pude
vê-la sentada com aspernas cruzadas sobre a cadeira em frente à
janela. Ela tinha o mesmo cadernoaberto em seu colo e estava
escrevendo, sua mão se movia lentamente de um ladopara o outro
da página. Por algum tempo, fiquei parada olhando para ela, a
únicacoisa que eu podia distinguir no escuro.

Eu saí da casa de Owen bem na hora. Elinor, Ângela e as gêmeas,


já cansadastanto da sessão de fotos quanto do autoritarismo da
Mallory, caíram em uma espéciede silêncio fashion. A casa estava
uma bagunça e a mãe de Owen — que, pelo queentendi, era um
pouco maníaca por limpeza — deveria chegar a qualquer
momento.Eu me ofereci para ficar e ajudar a limpar a casa, ou fazer
o papel de pacificadora,mas ele recusou.

— Eu dou conta — ele disse, quando estávamos nos degraus da


entrada dacasa. — Se eu fosse você, iria embora enquanto
pudesse. Só vai piorar daqui parafrente.

— Que otimista — eu disse.

— Não — ele respondeu quando ouvimos um gritinho de


indignação,seguido de uma porta batendo com força. Ele virou a
cabeça para olhar para a porta edepois olhou para mim novamente.
— Apenas realista.

Eu sorri, depois desci um degrau, tirando as chaves do meu bolso.

— Então vejo você na escola. — Nenhum de nós se mexeu e me


perguntei seele me beijaria novamente. — Ok — eu disse, sentindo
meu estômago revirar. — Eu...É... Vou indo.
189

— Certo. — Ele deu um passo para frente, ficando mais perto da


borda dodegrau, e eu fiz a mesma coisa, encontrando-o no meio do
caminho. Enquanto ele seinclinava para baixo em minha direção e
eu fechava os olhos, ouvi um barulho, um toe toe toe, que ficava
cada vez mais alto e mais próximo. A maçaneta da porta fezum
ruído, e demos um pulo quando Mallory, que usava um sapato de
salto grosso, ummacacão preto bem colado no corpo e um boá
verde, apareceu apressada na varandada frente.

— Espere! — ela disse, dando passos barulhentos em minha


direção com amão esticada. — Tome. São para você.

Ela me deu uma pilha de fotos recém-saídas da impressora e tão


fresquinhasque eu ainda podia sentir o cheiro da tinta. A primeira
delas era uma foto da própriaMallory, usando biquíni dourado. A foto
foi tirada de perto e as plumas do boáenvolviam seu rosto. Eu olhei
algumas das fotos, que incluíam algumas fotos emgrupo, Elinor
fazendo pose no chão e, finalmente, Ângela usando a roupa que
euescolhi para ela.

— Uau! — eu disse. — Estão ótimas!

— Elas são para você colocar na sua parede — ela disse. — Aí


você pode olharpara mim de vez em quando.

— Obrigada — eu lhe disse.

— De nada. — Ela se virou para Owen. — Mamãe acabou de ligar


do carro;Ela chega em dez minutos.
— Certo — Owen disse, suspirando. Para mim, ele disse: — Te vejo
depois.

Fiz sinal positivo com a cabeça, e eles andaram em direção à casa.


Pude ouviras outras garotas discutindo. Mallory me deu tchau mais
uma vez antes de fechar aporta. Logo depois, Owen disse algo e as
garotas ficaram em silêncio, bem rápido.Quando voltei a descer os
degraus, não ouvi mais nada.

Agora, estava descendo do carro e andando com as fotos da


Mallory na mão.Durante toda a volta para casa só consegui pensar
no rosto de Owen se aproximandodo meu, no que senti quando ele
me beijou. Foi tão pouco tempo e mesmo assiminesquecível. Senti
meu rosto ficar vermelho quando abri a porta, depois comecei asubir
a escada.

— Annabel? — Whitney chamou, quando cheguei ao topo. — É


você?
190

— Sim — eu disse. — Voltei.

Quando estiquei o braço para abrir a porta do meu quarto, a do


quarto delase abriu e ela apareceu.

— Mamãe ligou de novo — ela disse. — Eu disse a ela que você


estava nacasa de algum amigo. Ela perguntou de quem, mas eu
disse que não sabia.

Ficamos apenas nos olhando por um tempo e fiquei me


perguntando se eutinha que lhe dar mais explicações.

— Obrigada — eu disse finalmente ao abrir a porta do quarto e


acender a luz.Coloquei as fotos na cômoda, depois tirei meu casaco
e o coloquei em cima da cadeirada minha escrivaninha. Quando me
virei novamente, ela estava na porta.

— Eu disse a ela que talvez você ligasse quando chegasse — ela


falou. — Mas provavelmente não precisa.

— Tá legal — eu disse.

Ela se mexeu um pouco e encostou-se à parede. Ao fazer isso, viu


as fotos.

— O que é isso? — ela perguntou.

— Ah, nada — eu disse. — É só... Bobagem.

Ela pegou as fotos e começou a vê-las uma a uma. Sua expressão


foimudando de indiferente para curiosa e para um pouco
horrorizada, ao ver a foto deElinor deitada no chão.
— A irmã mais nova do meu amigo estava dando uma festa do
pijama demodelo — falei, andando em sua direção e parando ao
seu lado, enquanto ela olhavaas fotos. Havia as ruivas uma ao lado
da outra fazendo uma pose imitando umespelho, e Ângela em seu
vestido preto, o odiado Trabalho e Classe. Havia maisalgumas fotos
da Mallory de vários jeitos: pensativa, sonhadora e, talvez por
causade algo que Owen tenha dito, irritada. — Elas se arrumam e
tiram fotos umas dasoutras.

Whitney parou para estudar uma foto da Elinor usando um vestido


branco ecom ar pensativo.

— Uau! — ela exclamou. — Esse look é bem legal!

— O nome é Noivado dos Sonhos.


191

— Hum — ela disse, trocando de foto, que era novamente de Elinor,


só que,dessa vez, deitada no chão com a boca semi aberta. — Qual
é o nome deste?

— Eu acho que esse não tem nome — respondi.

Ela não fez nenhum comentário, apenas passou para a próxima


foto, que eraa Mallory de blusa vermelha olhando para a câmera.
Seus lábios estavam franzidose seus cílios, enormes.

— Ela é bonitinha — ela disse, inclinando um pouco a foto. — Uns


olhos bonitos.

— Nossa — eu disse, balançando a cabeça. — Ela iria enlouquecer


seouvisse você dizer isso.

— Sério?

Fiz que sim com a cabeça.

— Ela é obcecada por modelos. Você deveria ver o quarto dela. É


cobertode fotos de revistas por todo lugar.

— Então, ela deve ter ficado muito animada de você estar lá — ela
disse. —Uma modelo de verdade, ao vivo e em cores.

— Acho que sim — eu disse, enquanto ela continuava vendo as


fotos, queagora eram do grupo: um rosto ao lado do outro, depois
cada uma olhando em umadireção, como se esperando por cinco
ônibus diferentes. — Foi meio estranho paramim, na verdade.

Whitney ficou em silêncio por algum tempo. Depois falou:


— É. Eu sei o que você quer dizer.

No meio de tantas coisas que tinham acontecido naquele fim de


semana, agoraeu me encontrava nesse surpreendente momento
com a minha irmã. Finalmente, eudisse:

— Quero dizer, nós nunca fizemos isso, sabe? Quando éramos


crianças?

— Nós não precisávamos — ela disse quando surgiu a foto da


Ângela comseus olhos escuros muito sérios, a pele pálida no flash
da câmera. — Nós vivíamosaquilo de verdade.

— É — eu falei. — Mas isso talvez tivesse sido mais divertido. A


pressão teria
192

sido menor.

Senti que ela me olhou rapidamente quando eu disse isso, e


somente maistarde demais percebi que ela pensava que eu estava
falando sobre ela. Esperei que elafosse ser grossa ou dizer algo
maldoso, mas Whitney não falou nada e apenas medevolveu as
fotos.

— Bom — ela disse. — Acho que a gente nunca vai saber.

Quando ela se dirigiu para o corredor, olhei para as fotos e aquela


daMallory de boá estava de volta ao topo da pilha.

— Durma bem — eu disse.

— É. — Ela me olhou e a luz atrás dela me fez ficar impressionada


com aperfeição da sua maçã do rosto e dos seus lábios, tão
impressionante e acidental aomesmo tempo.

— Boa noite, Annabel.

Mais tarde, quando fui para a cama, peguei as fotos novamente e


me deiteienquanto olhava uma a uma. Depois de ver todas duas
vezes, me levantei, fui até aescrivaninha e comecei a mexer na
primeira gaveta até encontrar algumas tachinhas.Em seguida,
pendurei as fotos, em fileiras de três, na parede logo acima do
meurádio. Para você olhar para mim às vezes, disse Mallory, e foi o
que fiz ao apagar aluz. A luz da lua que entrava pelo quarto
iluminava as fotos, fazendo-as brilhar, e eumantive meu olhar sobre
elas o quanto pude. Depois de um tempo, percebi queestava quase
dormindo e tive que virar para o outo lado, para o escuro
novamente.
193

Doze

Minha mãe voltou das suas primeiras férias em mais de um ano


descansada,com as unhas feitas, e rejuvenescida. O que teria sido
ótimo, se a sua energiarenovada não tivesse sido toda direcionada
para a coisa em que eu menos queriapensar, mas não podia evitar:
o DESFILE DE OUTONO DA LAKERVIEW MODELS.

— Então, você tem ir para a Kopf hoje para provar roupas e amanhã
para oensaio — ela avisou enquanto eu beliscava meu café da
manhã antes de ir para aescola. — E o ensaio final é na sexta-feira.
Você está marcada para fazer o cabelona quinta-feira e as unhas no
sábado de manhã, bem cedo.Tudo bem?

Depois de um fim de semana inteiro só para mim, sem falar dos


últimosmeses com poucos compromissos, não, isso não estava
bem. Era um saco. Mas eunão disse nada. Por mais que estivesse
odiando a semana e o desfile, pelo menos eu tinha algo pelo qual
estava ansiosa para fazer: ir ao Bendo com Owen.

— Sabe, me dei conta de uma coisa semana passada — disse


minha mãe. —O pessoal da Kopf deve estar quase para começar a
fazer a seleção para a campanhada primavera. Então, essa é uma
ótima oportunidade para eles te verempessoalmente, você não
acha?

Ao ouvir isso, senti uma pontada de medo, sabendo que deveria


contar a elaque eu queria parar de trabalhar como modelo. Mas me
lembrei de quando eu eOwen simulamos essa situação e que,
mesmo sabendo que aquilo não era real, nãotinha conseguido nem
emitir as palavras. Na minha frente, minha mãe estava dandoum
gole do seu café e eu sabia que esse, agora, era o momento
perfeito. Ela tinhadeixado cair o suéter e eu poderia pegá-lo. Mas,
assim como Rolly, congelei. E fiqueiem silêncio. Depois, eu disse a
mim mesma: depois do desfile.

Ao mesmo tempo em que eu estaria andando em uma passarela no


shoppingcom roupas de inverno, minha irmã Kirsten também estaria
na frente de umamultidão, mas por outro motivo. No dia anterior, ela
finalmente tinha me enviado o e-
194

mail com o curta-metragem, como tinha prometido. Por estar muito


acostumada a verKirsten explicando — ou explicando demais —
tudo o que fizesse parte da vida dela,a mensagem que ela me
mandou junto com o filme realmente me surpreendeu.

Oi, Annabel, aqui está. Diga depois o que achou. Com amor, K.

Minha primeira reação foi procurar pelo resto da mensagem — se


minha irmãfalava muito ao telefone, seus e-mails eram igualmente
verborrágicos. Mas não haviamais nada escrito.

Eu apertei o botão FAZER DOWNLOAD , e vi os quadrados azuis


encherem a tela.Quando terminou, apertei o PLAY .

A primeira tomada era da grama, verde, bonita, igual à grama do


campo degolfe do outro lado da rua, ou seja, cheia de química. Ela
preenchia a tela de umlado ao outro. Depois, a câmera se afastou
até mostrar que se tratava do quintal deuma casa branca com
batentes de um azul bonito, e duas figuras de bicicleta passando
rapidamente.

A câmera cortou e de repente estávamos vendo duas garotas


andando debicicleta em nossa direção. Uma era loira e parecia ter
uns treze anos e a outra,morena, era mais magra e mais esguia, e
vinha um pouco atrás.

De repente, a garota que estava na frente olhou para a outra, que


estava atrás,e começou a pedalar cada vez mais rápido, afastando-
se dela. Quando ela fez isso, acâmera se revezou entre cortar para
a imagem da menina pedalando com o cabelo aovento e para
imagens bonitas da vizinhança: um cachorro dormindo na calçada,
umhomem pegando o jornal, o céu azul, um irrigador jorrando água
em um arco sobreum canteiro de flores. Conforme ela continuava e
aumentava a velocidade, asimagens passavam mais rápido, se
repetindo até a câmera cortar para uma tomada darua à frente da
menina, onde aparecia um cruzamento. Ela derrapou para frear e
sevirou para trás. Atrás dela, longe, era possível ver uma bicicleta
caída no meio da rua, uma das rodas girando, a garotinha mais
nova sentada ao lado, segurando seu braço.

A tomada seguinte foi da garota loira parando ao lado dela.

— O que aconteceu? — ela perguntou.

A garota mais nova balançou a cabeça.

— Eu não sei — respondeu.

A loira se inclinou para frente, mais perto.


195

— Pronto — ela disse. — Sobe aqui.

Na cena seguinte, a menor estava sentada no guidão, ainda


segurando umdos braços, enquanto a loira pedalava pela rua.
Novamente, a câmera se revezouentre imagens das duas e da
vizinhança, mas agora ambas eram diferentes: o cachorroestava
agitado e latindo quando elas passaram, o homem tropeçou quando
foi pegaro jornal, o céu estava cinza, o irrigador fazia muito barulho
enquanto a água caía emcima de um carro estacionado. Era o
mesmo cenário, porém muito diferente, equando a casa surgiu, de
longe, estava diferente também. A loirinha pedalou até aentrada,
enquanto a câmera se afastava, e depois parou para a menina
menor sair decima do guidão, sempre segurando o braço. Elas
deixaram a bicicleta na grama eandaram em direção à casa.
Subiram os degraus de entrada. A porta se abriu paraelas, mas não
dava para ver quem estava do outro lado. Quando elas
desapareceramdentro da casa, a câmera foi baixando até só
aparecer grama na tela, de um lado aoutro, assustadoramente verde
e brilhante e artificial. E terminou.

Fiquei sentada sem me mexer por um tempo, olhando para a tela.


Então,apertei o PLAY e o assisti novamente. E ainda uma terceira
vez. Eu ainda não sabiadireito o que pensar, mesmo quando peguei
o telefone e liguei para Kirsten. Noentanto, quando ela atendeu e lhe
contei que gostei, mas não entendi, ela não ficouchateada. Ao
contrário, ela disse que era esse o objetivo.

— Qual, me deixar confusa? — perguntei.


— Não — ela disse —, que o significado não seja óbvio. É para
você fazer suaprópria interpretação.

— Sim, mas você sabe qual o significado — falei —, certo?

— Claro.

— Que é...?

Ela suspirou e respondeu:

— Eu sei o que ele significa para mim. Para você, será diferente.
Olha, filmeé uma coisa pessoal. Não há mensagem certa ou errada.
Depende de como você o vê.

Eu olhei de novo para a tela, que estava pausada na última cena, a


da grama

verde.

— Ah — eu disse. — Certo.
196

Isso era muito estranho. Aqui estava a minha irmã, a rainha da


superex-posição, resistindo em contar algo. Escondendo algo. Eu
estava acostumada a ter queadivinhar coisas de algumas pessoas,
mas esse nunca foi o caso da Kirsten, e eu nãotinha certeza se
tinha gostado da idéia. Ela, por outro lado, estava com a voz
animadade um jeito que eu não ouvia fazia meses.

— Estou tão feliz por você ter gostado do filme. E teve uma reação
tão forte!— Ela riu. — Agora eu só preciso que todas as pessoas
que vejam o filme sábado sesintam do mesmo jeito, e tudo vai dar
certo.

"Certo pra você", pensei, alguns minutos depois de termos


desligado.Quanto a mim, eu ainda estava confusa. E não podia
deixar de admitir que tambémestava encafifada. Pelo menos o
suficiente para ver o filme mais duas vezes,estudando-o quadro a
quadro.

Agora, enquanto meu pai entrava apressado na cozinha e minha


mãeconversava com ele na maior afobação, levei meu prato para a
pia e joguei um poucode água nele. Pela janela, pude ver Whitney
sentada em uma chaise ao lado dapiscina, com uma xícara de café.
Geralmente, ela ainda estava dormindo a essa hora,mas nos últimos
tempos tinha começado a acordar cedo. Essa era apenas uma
dasmudanças ocorridas recentemente.

A princípio, elas eram pequenas, mas mesmo assim perceptíveis.


Ela derepente ficou mais sociável — alguns dias antes tinha saído
para tomar café comalgumas pessoas do grupo da Moira Bell — e
também começou a trabalhar algumasmanhãs no escritório do meu
pai atendendo ao telefone, substituindo mais umasecretária grávida.
Em casa, ela começou a passar mais tempo fora do quarto.
Issoaconteceu em etapas: primeiro, a porta que ficava sempre
fechada passou a ficarentreaberta, depois ela a deixava aberta de
vez em quando. Mais tarde, percebi queela começou a circular pela
sala de estar em vez de ficar trancada lá em cima. E, nodia anterior,
eu voltei para casa depois da escola e a vi sentada à mesa de
jantar, rodeada por pilhas de livros, escrevendo em um bloco de
fichário.

Fui ignorada por tanto tempo que ainda hesitava antes de me dirigir
aWhitney. Porém, dessa vez, foi ela quem veio falar comigo.

— Ei — ela disse, sem levantar o olhar. — Mamãe está por aí


resolvendo umascoisas. Ela disse para você não se esquecer do
ensaio às quatro e meia.

— Tá legal — eu disse. Seu braço estava dobrado em cima do bloco


e acaneta fazia barulho ao se movimentar sobre o papel. Na janela,
os vasos com ervasestavam sob a luz do sol, mas ainda não tinham
demonstrado nenhum sinal de que
197

iriam brotar. — O que você está fazendo?

— Eu tenho que escrever uma história.

— Uma história? — repeti. — Sobre o quê?

— Bem, na verdade, são duas histórias. — Ela deixou a caneta de


lado ealongou os dedos. — Uma sobre a minha vida. E outra sobre
meu distúrbio alimentar.

Ouvi-la dizer isso me pareceu estranho e depois de um segundo eu


percebiqual era o motivo. Apesar de o problema da Whitney ter
dominado a nossa dinâmicafamiliar havia quase um ano, eu nunca a
tinha ouvido admiti-lo em voz alta. Assimcomo acontecia com muitas
outras coisas, todos sabiam sobre ele, mas ninguémdiscutia; ele
estava presente, mas não era considerado oficialmente. Porém, pelo
jeitocorriqueiro com o qual ela falou aquilo, me pareceu que pelo
menos ela estavaacostumada

— Então, são duas coisas separadas? — perguntei.

— Parece que sim. Pelo menos de acordo com a Moira — Ela


respiroufundo, mas dessa vez, ao mencionar o nome da sua
terapeuta, parecia mais cansada doque irritada.

— A idéia é a de que existe uma separação, mesmo que não seja o


quepareça. E de que nós tínhamos uma vida antes do distúrbio.

Eu me aproximei da mesa, olhando para os livros empilhados.


Faminta poratenção: distúrbios alimentares e adolescentes era o
título de um; havia um menorchamado A fome dói.
— Então, você tem que ler todos esses livros?

— Não é que eu tenho que ler. — Ela pegou a caneta novamente.


— Elesservem apenas para trazer mais informações aos fatos, caso
eu precise. Mas a históriapessoal se trata apenas das minhas
lembranças. Nós temos que escrever um ano decada vez. — Ela
apontou com a cabeça para o bloco à frente dela, e eu vi que ela
tinhaescrito ONZE (11). O resto da página estava em branco.

— Deve ser um pouco estranho — falei. — Lembrar de ano após


ano.

— É difícil. Mais difícil do que eu pensava. — Ela abriu um livro ao


lado doseu cotovelo e começou a folheá-lo, depois o fechou. — Eu
não me lembro muito,não sei por quê.
198

Olhei novamente para os vasos e vi a luz do sol batendo neles. Pela


janela e dooutro lado da rua, o campo de golfe estava verde e
brilhante.

— Você quebrou o braço — eu disse.

— O quê?

— Quando você tinha onze anos — continuei. — Você quebrou o


braço. Você caiu da bicicleta. Lembra?

Por um tempo, ela ficou calada.

— Isso mesmo — ela finalmente disse, balançando a cabeça. —


Nossa. Nãofoi logo depois do seu aniversário?

— Foi no dia do meu aniversário — falei. — Você voltou engessada


bem nahora do bolo.

— Eu não acredito que tinha me esquecido disso — ela comentou


balançando acabeça novamente e olhando para o papel antes de
pegar a caneta. Depois, elacomeçou a escrever e vi sua letra
preenchendo a primeira linha. Eu comecei a falarsobre o filme da
Kirsten e como ele me lembrou disso, mas parei. Ela já tinha
escritotrês linhas e continuava a escrever. Não quis interrompê-la.
Então, saí dali e a deixei só.Quando passei por lá novamente, uma
hora depois, ela continuava escrevendo, e dessavez não ergueu o
olhar.

Ao me afastar da pia, olhei para minha mãe, imaginando do que ela


selembraria se eu lhe perguntasse o que aconteceu naquele dia do
meu nonoaniversário, cerca de um ou dois meses antes de a mãe
dela morrer. Da grama verde,como Kirsten. Ou, como Whitney, de
absolutamente nada, pelo menos em um primeiromomento. Tantas
versões de apenas uma lembrança, e, mesmo assim, nenhuma
delasestava certa ou errada. Ao contrário, todas faziam parte. Como
peças que somentedepois de encaixadas poderiam começar a
contar toda a história.

— Entra.

Eu olhei para Owen levantando uma sobrancelha. Um minuto antes,


euestava atravessando o estacionamento da Kopf em direção ao
meu carro depois demais um ensaio para o desfile, quando um
veículo parou ao meu lado. Eu virei orosto, apavorada, esperando
ver uma van branca de sequestrador. Em vez disso, era Owen na
sua Land Cruiser, já esticando o braço para abrir a porta do
passageiro.

— Isso é um sequestro? — perguntei.


199

Ele balançou a cabeça fazendo um sinal impaciente com uma mão


para euentrar no carro, enquanto arrumava o som com a outra.

— É sério — ele falou, enquanto eu me sentava no banco. — Você


tem que ouvir isso.

— Owen — falei, vendo-o continuar a apertar botões no painel —,


comovocê sabia que eu estava aqui?

— Eu não sabia — ele respondeu. — Eu estava parado naquele


farol, voltando para casa, quando te vi. Escuta só.

Ele esticou a mão em direção ao botão do volume, aumentou o som,


e umbarulho chiado entrou pelos meus ouvidos, seguido de algo
que parecia ser umviolino, mas em alta velocidade, como se
eletrocutado O resultado era um barulhoque poderia ser perturbador
em um volume normal. Mas alto do jeito que estava, fezeu sentir
meus cabelos no pescoço ficarem de pé.

— Demais, né? — disse Owen, falando alto. Ele balançava a


cabeça a cadaacorde. Na minha mente, eu imaginei uma daquelas
máquinas que monitoram afrequência cardíaca, pois cada som fazia
meu coração sentir uma pontada.

Fiquei encolhida ao dizer (ou gritar):

— O que é isso?

— O nome é Melisma — ele gritou em resposta bem na hora em


que umbaixo entrou alto o suficiente para fazer meu banco tremer.
No carro ao lado, umamulher que colocava um bebê na cadeirinha,
nos olhou. — É um projeto musical.Esses instrumentos de cordas e
sintetizadores misturados com vários ritmosmundiais, influenciados
por...

Ele disse mais alguma coisa, que foi abafada por uma repentina
explosão detambores. Observei seus lábios se moverem até
conseguir novamente escutar o queele dizia.

—... uma coisa realmente colaborativa, esse novo tipo de iniciativa


musical. Inacreditável, não é?

Antes de eu responder, címbalos tilintaram seguidos de um barulho


efer-vescente. Pode ter sido reflexo, auto preservação ou apenas
senso comum, mas nãoconsegui evitar: coloquei as mãos sobre
meus ouvidos.
200

Owen arregalou os olhos e eu percebi o que tinha feito. E a música


terminourepentinamente no exato momento em que abaixei minhas
mãos e pude sentir o sominacreditavelmente alto dos instrumentos
batendo forte dos meus dois lados.Principalmente comparado com o
silêncio que se seguiu.

— Você não — Owen finalmente disse em voz baixa — acabou de


tapar osouvidos, não é?

— Foi um acidente — eu disse. — Eu só...

— Isso é muito sério. — Ele esticou a mão, balançando a cabeça, e


abaixouo volume. — Quero dizer, uma coisa é ouvir e
respeitosamente discordar. Mas vocêtapou os ouvidos e nem deu
chance...

— Eu dei chance! — eu disse.

— Você chama aquilo de chance? — ele perguntou. — Aquilo foi


cincosegundos.

— Foi o suficiente para eu formar uma opinião — eu disse.

— Que foi?

— Eu tapei meus ouvidos — disse a ele. — O que você acha?

Ele começou a dizer algo, depois parou, balançando a cabeça. Ao


nosso lado,a mulher na minivan estava dando ré. Eu a olhei passar
por nós.
— Melisma — disse Owen um pouco depois — é inovador e
texturizado.

— Se por texturizado você quer dizer insuportável—falei


calmamente —, entãoeu concordo.

— Linguagem-I — ele disse, apontando para mim. Dei de ombros.


— Eu nãoacredito que você está dizendo isso! Trata-se do perfeito
casamento entreinstrumento e tecnologia! É diferente de tudo o que
já foi feito! É incrível!

— Talvez dentro de um lava-rápido — murmurei.

Ele tomou fôlego para continuar o falatório, mas, ao expirar, fez um


barulho,e virou a cabeça para me olhar.

— O que você acabou de dizer?

Assim como tinha acontecido quando tapei os ouvidos, eu tinha


falado sem
201

pensar e sem me dar conta. Havia algum tempo, eu tinha plena e


total consciênciade tudo o que eu fazia ou dizia perto do Owen. O
fato de isso não acontecer maispoderia ser bom ou muito ruim. A
julgar pela expressão no rosto dele — umamistura de horrorizado e
ofendido — , eu comecei a achar que seria a segundaopção. Pelo
menos naquele momento.

— Eu disse... — limpei a garganta. — Eu disse que talvez seja


incríveldentro de um lava-rápido.

Eu senti que ele me olhava fixamente, então me mantive ocupada


cutucandoa borda do meu banco. Até que ele disse:

— Isso quer dizer o quê?

— Você sabe o que isso quer dizer — respondi.

— Realmente, não. Ilumine minhas idéias.É claro que ele me faria


explicar.

— Bem — falei lentamente — , sabe, o som de tudo melhora


quando vocêestá dentro do lava-rápido. É um fato, certo?

Ele não disse nada, ficou só me olhando.

— Eu quero dizer — continuei esclarecendo — que não é o tipo de


som deque eu gosto. Desculpe. Eu não deveria ter tapado os
ouvidos, foi grosseria minha.Mas eu só...

— Qual lava-rápido?

— O quê?
— Qual é a estação mágica para os ouvidos depois da qual todo o
valormusical é determinado?

Eu só olhei para ele.

— Owen.

— É sério. Eu quero saber.

— Não é um lava-rápido específico — eu disse. — É o fenômeno


lava-rápido. Você não sabe mesmo do que eu estou falando?

— Não — ele disse. Então, engatou a marcha à ré. — Mas vou


descobrir. E
202

agora.

Cinco minutos depois, estávamos parando no 123SUDS, o lava-


rápidoautomático que ficava perto do meu bairro desde que eu
conseguia me lembrar.Cresci indo lá sempre, principalmente porque
minha mãe adorava. Meu pai dizia que aúnica maneira de ter carro
limpo de verdade era lavá-lo a mão — como ele fazia naentrada de
casa, nos dias quentes —, que ir ao 123SUDS era perda de tempo e
dinheiro. Mas minha mãe não ligava.

Não é pela lavagem — ela dizia, — É pela experiência.

Nossas visitas nunca eram planejadas. Ao contrário, às vezes


passávamos porlá e ela simplesmente entrava, pedindo que eu e
minhas irmãs procurássemosmoedas no chão ou no console entre
os bancos para colocar na máquina. Nós sempreescolhíamos a
lavagem básica, dispensando a cera, e às vezes acrescentávamos
oopcional Proteção Total nos pneus. Vidros fechados, a gente se
recostava nos bancos e entrava.

Havia algo de interessante naquilo. Entrar naquele local escuro e


então verágua repentinamente por todos os lados em nossa direção,
como se fosse a maiortempestade de todos os tempos. Ela batia no
capo e porta-malas e se derramavasobre nossas janelas, lavando
toda a poeira, e, se você fechasse os olhos, era comose estivesse
flutuando com ela. Era ao mesmo tempo assustador e incrível, e, ao
falarqualquer coisa sempre saía um sussurro, mesmo se você não
soubesse o motivo.Porém, do que eu mais me lembro é a música.
Minha mãe adorava música clássica — era só o que ela colocava
para tocarno carro, o que enlouquecia a mim e minhas irmãs. Nós
implorávamos para ouvirrádio ou qualquer coisa que fosse deste
século, mas ela era teimosa.

"Quando vocês começarem a dirigir, vão poder ouvir tudo que


quiserem", eladizia, e depois colocava Brahms e Beethoven no
último volume para abafar nossosresmungos irritados.

Mas, dentro do lava-rápido, a música da minha mãe ficava diferente.


Linda.Era só naquele momento que eu fechava meus olhos, gostava
dela e entendia o queminha mãe ouvia.

Quando finalmente tirei minha carteira de motorista, colocava para


tocar tudo oque eu queria e era ótimo. Mesmo assim, quando entrei
sozinha no123SUDS pelaprimeira vez, procurei as estações de
rádio para encontrar música clássica e melembrar dos velhos
tempos. Mas tão logo comecei a entrar, a estação de rádio
203

perdeu o sinal e mudou para outra em que estava tocando uma


musica countryhorrível, ou seja, outra coisa que eu não teria
escolhido. Mas foi estranho. Sentada lá,com as escovas enormes
passando pelo carro, a água espirrando na minha janela, atéa
música que estava tocando — algo sobre dirigir um Ford antigo sob
a lua cheia —soou perfeita. Como se não importasse o que
estivesse tocando, mas com quantaatenção eu estava ouvindo, lá
no escuro.

Eu contei tudo isso a Owen no caminho, explicando como, desde


então, euestava convencida de que qualquer música ficava boa
dentro do lava-rápido. Porém,ele pareceu duvidar e, enquanto
colocávamos as moedas na máquina, fiquei meperguntando se a
minha teoria seria derrubada.

— E agora? — ele perguntou quando a máquina imprimiu um recibo


e a luzvermelha ao lado dela ficou verde. — É só a gente entrar ali
com o carro?

— Você nunca fez isso? — perguntei a ele.

— Não sou muito do tipo que gosta de limpar o carro apenas pelo
lado defora, por razões estéticas — ele disse. — Além disso, acho
que tem um buraco noteto do carro.

Fiz sinal para ele seguir em frente e foi o que ele fez, passando pela
pequenalombada até a linha amarela, já apagada pelo tempo, onde
se lia PARE AQUI . Depois,ele desligou o motor.

— Beleza — ele disse. — Estou pronto para me surpreender.Eu


olhei para ele.
— Sabe — eu disse —, essa é a sua primeira vez. E então, para
que oimpacto seja completo, você precisa reclinar o banco.

— Reclinar.

— A experiência fica melhor — disse a ele. — Confie em mim.

Nós dois abaixamos nossos bancos, nos acomodando. Seu braço


estava aolado do meu e me lembrei de quando fui à casa dele
naquela noite e de como fiqueitão perto de beijá-lo, duas vezes.
Quando a máquina começou a fazer barulho atrás denós, estiquei o
braço e coloquei novamente o CD para tocar.

— Bom — eu disse quando os jatos começaram. — Vamos lá.

Primeiro só se ouvia o tilintar da água, depois ela começou a descer


pelo vidro
204

na nossa frente, como uma onda. Owen mudou um pouco de lugar


no seu bancoquando um pingo caiu do teto bem em cima da sua
camiseta.

— Que ótimo — ele disse. — Tem mesmo um buraco no teto.

Em seguida ficamos quietos, pois a próxima faixa do CD começou


com ummurmúrio suave, seguido de dedilhados de corda. Havia
também um zumbido, mascom a água caindo sobre nós e o interior
do carro parecendo cada vez menor, foicomo se ele se dissipasse e
sumisse lá atrás. Eu podia ouvir o barulho das escovas aose
aproximarem do carro misturado ao triste e transbordante som do
violino. Eu jásentia o que estava acontecendo: o tempo passava
mais devagar, tudo tinha paradopara esse único momento, aqui e
agora.

Virei minha cabeça para olhar para Owen. Ele estava deitado
olhandofixamente as escovas, que ficavam maiores, e os círculos de
espuma se formando nopára-brisa. Ouvindo. Fechei os olhos para
fazer a mesma coisa. Mas tudo o que eusentia era que toda a minha
vida tinha mudado — novamente — nessas poucassemanas desde
que tinha conhecido Owen, e, não pela primeira vez, tive vontade
delhe dizer isso, de encontrar as palavras certas e organizá-las,
sabendo que essa seria amelhor chance que elas teriam de soar
perfeitamente.

Virei meu rosto novamente em sua direção, pensando nisso, e abri


meusolhos. Ele estava me olhando.
— Você estava certa — ele disse em voz baixa. — Isso é
impressionante.

Sério.

— É — concordei. — É sim.

E então ele mudou de posição, se aproximando de mim, e eu senti


seu braçocontra o meu, sua pele quente. E, finalmente, Owen me
beijou — me beijou deverdade — e eu não ouvia mais nada: nem a
água, nem a música e nem meu própriocoração que deveria estar
batendo acelerado. Tudo era silêncio, o melhor silêncio detodos,
durando para sempre ou apenas por um momento, até que
terminou.

De repente, o lava-rápido estava silencioso e a música tinha


acabado. Em cimade mim, pude ver um pingo grande, pendendo
sobre nossas cabeças.

Fiquei de olho nele até que caísse no meu ombro, ao mesmo tempo
em que,atrás de nós, uma buzina soou.

— Opa — disse Owen, quando nós dois levantamos. Ele ligou o


motor, olheipara trás e vi que um cara dentro de um Mustang estava
esperando, com as janelas
205

já fechadas, na entrada. — Espera aí.

Quando saímos de lá, o sol brilhava sobre os montinhos de água


que sedesfaziam, escorrendo pelo capo. Depois do beijo e do
escuro, eu ainda me sentia soba água e aquele brilho
surpreendente.

— Nossa — Owen falou, piscando enquanto parou o carro no meio-


fio. —Foi uma experiência e tanto.

— Eu disse a você. Tudo soa melhor no lava-rápido.

— Tudo é?

Ao dizer isso, ele estava me olhando e eu rapidamente me lembrei


do seurosto momentos antes, olhando para o pára-brisa e ouvindo
com muita atenção.Talvez um dia eu consiga dizer a ele tudo o que
pensei naquele momento. E atémais.

— Será que — ele perguntou, passando a mão no cabelo — isso


funciona commúsica eletrônica?

— Não — eu disse sem pestanejar.

— Tem certeza?

— Ah, sim — balancei a cabeça. — Absoluta,Ele levantou uma


sobrancelha.

— Tá certo — ele disse saindo com o carro do meio-fio e


começando a dar avolta novamente. — Veremos.
— Você ficou sabendo?

Eram seis horas da tarde no sábado do desfile, e eu estava sentada


novestiário da Kopf, esperando. Durante todas as horas que fiquei
lá, enquanto meucabelo e maquiagem eram arrumados, e minhas
roupas ajustadas, tentei ignorar ofalatório ao meu redor. E me
concentrei para que esse desfile terminasse logo e eupudesse fazer
algo que realmente me importava: ir para o Bendo com Owen. E
estavadando tudo certo. Até agora.

Olhei para a esquerda, onde Hillary Prescott tinha acabado de se


sentar aolado de uma garota chamada Marnie. Assim como eu,
seus cabelos e maquiagemestavam prontos, o que significava que
elas não tinham mais nada para fazer além detomar água, olhar
para si mesmas no espelho e fofocar.
206

— Fiquei sabendo do quê? — Marnie perguntou. Ela era magra, de


rostocomprido e maçãs do rosto altas. Quando a vi pela primeira
vez, achei-a levementeparecida com Whitney, porém, ela estava
mais para bonitinha que para linda.

Hillary olhou para trás, de um lado e do outro, para ter certeza de


que nãotinha ninguém muito próximo.

— O que aconteceu ontem à noite na festa da Becca Durnham —


ela disse.

— Não — respondeu Marnie, passando o dedo sobre o gloss em


seus lábios.— O que foi?

Hillary se inclinou para aproximar-se dela.

— Bem — ela começou —, pelo que ouvi dizer, foi um drama total.
Louiseme contou que na metade da festa...

Ela parou de falar de repente, olhando fixamente para o espelho,


enquantoEmily Shuster entrava. Ela estava com os braços
cruzados, cabeça baixa, eacompanhada da mãe. Eu olhei
rapidamente, mas era só o que precisava para verque Emily parecia
muito mal: seu rosto estava inchado, os olhos vermelhos e
escurosao redor.

Hillary, Marnie e eu vimos quando ela e sua mãe passaram na


direção da Sra.McMurty, que estava do outro lado do vestiário.
Depois, Hillary disse:

— Eu não acredito que ela teve coragem de aparecer aqui.


— Por quê? — Marnie perguntou. — O que aconteceu?

"Não tenho nada a ver com isso", pensei, prestando novamente


atenção nocaderno de história que tinha trazido para estudar.
Enquanto fazia isso, senti umamecha do meu cabelo grudar na
minha bochecha. Olhei para o espelho para tirá-labem na hora em
que Hillary se inclinou mais para frente.

— Ela ficou com Mil Cash noite passada — ela falou em voz baixa,
mas nãotão baixa assim. — No carro dele. E Sophie pegou os dois.

— Não! — disse Marnie com os olhos arregalados. — Você está


falando

sério?

Como estava olhando para a minha imagem no espelho, eu pude


realmenteobservar como meu rosto reagiu quando ouvi isso. Vi
meus olhos piscarem, minhaboca abrir um pouco antes de eu fechá-
la, rapidamente, e olhei para o outro lado.
207

— Louise estava do lado de dentro — Hillary continuou —, então ela


só ficousabendo da história. Mas parece que Will deu carona para a
Emily e alguém os viu.Quando Sophie ficou sabendo, ela surtou.

Marnie olhou para Emily, que agora estava de costas para nós
enquanto suamãe conversava com a Sra. McMurty.

— Ah, meu Deus — ela exclamou. — O que o Will fez?

— Eu não sei. Mas Louise disse que Sophie estava desconfiada de


alguma coisa.Achando que Emily já estava paquerando ele, sempre
ficando com cara de bobaquando ele estava por perto.

Boba, eu pensei. Ou nervosa. Eu me lembrei do olhar intenso e


direto deWill, de como o tempo passava devagar quando estávamos
no carro esperando porSophie. Atrás de mim, as pessoas passavam
e conversavam fazendo o mesmo barulhode sempre, mas tudo o
que eu ouvia eram essas duas vozes e a batida do meucoração.

— Nossa — Marnie disse. — Coitada da Sophie.

— Nem me fala. Elas eram melhores amigas — disse Hillary


suspirando. —Acho que a gente não pode confiar em ninguém
mesmo.

Virei a cabeça. Com certeza as duas estavam me olhando. Olhei


para elastambém, e Marnie ficou vermelha e desviou o olhar. Mas
Hillary ficou me encarandopor um bom tempo antes de se levantar,
jogar o cabelo e sair da lá. Depois de mexerna sua garrafa de água
por algum tempo, Marnie se levantou e a seguiu.
Por um tempo, eu fiquei parada, tentando digerir o que tinha
acabado de ouvir.Olhei para Emily, que agora estava sentada em
uma cadeira do outro lado do vestiário.Sua mãe, ao seu lado, dizia
algo, sua expressão era séria, e a Sra. McMurty, por suavez,
balançava a cabeça. A mão da Sra. Shuster estava sobre o ombro
da filha e, devez em quando, eu via pelo movimento do tecido que
ela o apertava de leve.

Eu fechei os olhos, engolindo o nó que deu em minha garganta. Ela


ficoucom Will Cash noite passada. A Sophie surtou. Elas eram
melhores amigas. Achoque a gente não pode confiar em ninguém
mesmo.

Não, pensei, não pode. Lembrei dos últimos meses, do meu verão
recluso, dasolitária volta às aulas, daquele dia horrível no pátio
quando empurrei Sophie.Talvez eu não pudesse ter mudado nada
disso. Porém, tarde demais, me dei conta deque talvez eu pudesse
ter mudado algo. Ou alguma coisa.
208

Eu tentei estudar, procurei pensar em Owen e no que viria depois.


Mas todavez que me distraía, mesmo que fosse por um segundo, eu
me via olhando para ooutro lado do vestiário, onde Emily estava
sentada na frente de um espelho. Elachegara tão atrasada que
estavam fazendo sua maquiagem e cabelo ao mesmo tempo,o
maquiador e o cabeleireiro trabalhando em um ritmo frenético.

Entre nós, as pessoas continuavam passando de um lado para o


outro efalando alto conforme a hora do desfile se aproximava, mas
Emily mantinha o olhar fixo no espelho, em si mesma e mais
ninguém.

Quando nos chamaram para sair do vestiário, Emily não saiu de lá


com asoutras modelos, e só depois que estávamos todas em
nossas posições ela apareceupara ocupar seu lugar de segunda na
fila, três pessoas à minha frente. Havia umrelógio digital próximo à
administração do shopping que marcava 18h55. A algunsestados e
quilômetros de distância, Kirsten estava quase apresentando seu
curta-metragem, e eu me lembrei da grama tão verde, que de
repente não parecia mais tãoperfeita.

Geralmente, esse era o momento que me deixava mais nervosa,


esses últimosminutos antes de entrar na passarela. Na minha frente,
Julia Reinhart estavaarrumando a bainha da sua blusa e, atrás de
mim, pude ouvir uma das modelos maisjovens reclamando que seus
sapatos estavam muito apertados. Emily não disse umapalavra e
mantinha os olhos na fenda da cortina.

A música começou — estava alta e era muito pop, bem o estilo da


rádio Z104— e a Sra. McMurty apareceu no canto, com um ar
cansado e uma prancheta namão.

— Um minuto! — ela disse, e a garota da primeira fileira, uma das


maisvelhas, jogou o cabelo, arrumando os quadris.

Eu estiquei meus dedos, respirando fundo. Agora, no shopping, tudo


pareciamais aberto e brilhante. Tudo o que eu tinha que fazer era
terminar logo com isso, sairde lá e encontrar Owen, indo em direção
ao que eu queria ser e não ao que eu tinhasido.

A música parou por um momento, depois recomeçou. Pronto. A


Sra.McMurty subiu as escadas para ficar ao lado da cortina, depois
a puxou para o lado efez sinal para a primeira garota entrar. Quando
ela fez isso, dei uma olhada na multidão— havia muita gente
sentada nas cadeiras dos dois lados da passarela, e mais
genteainda de pé depois delas.
209

Quando chegou a vez da Emily, ela pisou na passarela com a


cabeça erguida,costas muito eretas, e, enquanto olhava para ela, eu
desejava ser como todas asoutras pessoas que estavam vendo uma
bela garota usando belas roupas, nada maisnem menos. Outra
garota entrou na passarela, depois Julia. Nesse ponto, Emily
jáestava saindo do outro lado do palco em direção ao vestiário. E,
então, era a minhavez.

Logo no primeiro momento em que a cortina se abriu, só conseguia


ver alonga passarela a minha frente e um borrão de rostos dos dois
lados. A músicapalpitava nos meus ouvidos quando comecei a
andar, tentando manter meu olharsempre à frente, mas, mesmo
assim, vi rapidamente meus pais do lado esquerdo, minhamãe me
olhando orgulhosa e meu pai com os braços em volta dela. Mallory
Armstrongestava sentada ao lado das gêmeas ruivas que eu
conhecera na festa dela, do outrolado e algumas fileiras para trás.
Por um segundo, nossos olhos se cruzaram, elaacenou para mim
animada e pulando na cadeira. Continuei seguindo em frente
napassarela. Quando cheguei à ponta, vi Whitney.

Ela estava encostada em um canteiro na frente da loja de


suplementosalimentares, a uns bons quinze metros depois da
multidão que olhava o desfile. Eunem sabia que ela viria. Mas o que
mais me surpreendeu foi a sua expressão, que eratão triste que eu
quase me perdi. Quando nossos olhos se encontraram, ela deu
umpasso à frente, colocando a mão no bolso, e, por um momento,
fiquei olhando paraela, sentindo um aperto no peito. E, então, tive
que dar a volta.
Senti um nó na garganta ao andar em direção à cortina. Já tinha
sido demaispara mim. Eu não queria pensar em nada do que estava
acontecendo nem no que tinhaacontecido com Emily ou comigo. Eu
só queria ficar no muro com Owen falandosobre música e ser a
garota que ele via em mim, que era diferente de um jeito bom.De
todos os jeitos bons.

Estava no meio da passarela agora e faltava metade para chegar lá.


Maisquatro trocas de roupa, mais quatro idas à passarela, um
grandfinale e isso estariaterminado. De qualquer maneira, não era o
meu dever salvar ninguém. Principalmente por eu não ter
conseguido nem salvar a mim mesma.

— Annabel! — ouvi uma voz chamando, olhei levemente para a


minha direitae vi Mallory, com um sorriso largo ao erguer a câmera
na frente do rosto e colocar seudedo no disparador. As ruivas
acenavam, todos estavam olhando, mas, quando o flashdisparou,
eu só conseguia pensar naquela noite com Owen no quarto dela,
olhandopara todos aqueles rostos na parede e sem nem reconhecer
o meu.
210

Eu me virei e continuei olhando para frente até que Emily surgiu de


trás dacortina. Ao vê-la, a voz de Kirsten me veio à cabeça me
explicando por que ela estavacom medo de mostrar o seu filme: É
pessoal, ela disse. Real. Por mais que nãopudesse ser notado logo
de cara, esse momento também era pessoal. Era falso noexterior,
mas muito verdadeiro no interior. Bastava olhar, mas olhar de
verdade, paraperceber.

O estranho era que, desde o começo das aulas, em todos os


lugares em quenos encontrávamos, seja na escola ou nos ensaios,
todas as vezes que noscruzávamos, ela não me olhava. Mas dessa
vez, ao nos aproximarmos uma da outra,eu pude sentir que ela me
olhava, querendo que eu virasse a cabeça, puxando meuolhar em
sua direção. Relutei o máximo que pude. Mas quando ela passou
por mim,eu me rendi.

Ela sabia. Eu percebi com um olhar e por um rápido instante. Eram


seusolhos. Apesar da maquiagem pesada, eles ainda estavam
inchados, assustados etristes. Mas mais do que tudo, eles me eram
familiares. O fato de estarmos diante decentenas de estranhos não
mudava absolutamente nada. Eu passei o verão inteirocom aqueles
mesmos olhos — amedrontados, perdidos e confusos — olhando
paramim, e eu os reconheceria em qualquer lugar.
211

Treze

— Sophie!

Era a festa de final de ano, junho passado, e eu estava atrasada. A


voz daEmily dizendo isso foi a primeira coisa que ouvi quando entrei
na casa.

Na hora eu não consegui vê-la — o hall estava cheio de gente, a


escadaigualmente lotada —, mas, então, no momento seguinte, ela
apareceu, segurandouma cerveja em cada mão. E sorriu ao me ver.

— Ah, você chegou! — ela disse. — Por que demorou tanto?

Lembrei-me da expressão no rosto da minha mãe uma hora antes e


comoseus olhos se arregalaram quando Whitney afastou a cadeira e
depois a bateu comforça contra a mesa, fazendo todos os pratos
pularem. Dessa vez, o problema tinhasido o frango, especificamente
a metade do peito de frango que meu pai tinhacolocado no prato da
Whitney. Depois de cortá-lo em pedaços de um quarto, umoitavo e
finalmente em impossíveis um dezesseis avos, ela afastou o frango
em seuprato antes de começar a comer a salada, mastigando cada
pedaço de alface durantemuito tempo. Meus pais e eu agimos como
se não estivéssemos vendo isso, como senão estivéssemos
prestando atenção, e continuamos a conversar sobre o
tempo.Mesmo assim, alguns minutos depois, quando Whitney
colocou o guardanapo sobreseu prato, eu o vi caindo e envolvendo
o frango como o lenço de um mágicoenquanto ela desejava que ele
desaparecesse. Não deu certo. Meu pai lhe disse paracomer toda a
comida, e então ela explodiu.
Nós já devíamos estar todos acostumados com o melodrama que
era a horado jantar — ela tinha saído do hospital havia vários
meses, tempo no qual eles setornaram uma rotina —, mas, às
vezes, o volume e a grosseria de seus rompantesainda nos
pegavam de surpresa. Principalmente minha mãe, que sempre
pareciatomar qualquer silaba mais alta, qualquer batida de porta e
até os inúmerosresmungos sarcásticos como ataques pessoais. E
foi por isso que fiquei mais tempoem casa depois do jantar, parada
na cozinha enquanto minha mãe lavava a louça.
212

Podia ver seu rosto refletido no vidro da janela em cima da pia, e


observei-aatentamente, como sempre fazia toda vez que ela ficava
chateada, com medo de que eutalvez visse algo que eu
reconhecesse e que não fossem seus traços.

— Fiquei presa em casa — disse a Emily. — O que eu perdi?

— Nada demais — ela disse. — Você viu a Sophie?

Olhei em volta, para trás do monte de pessoas ao nosso lado e para


dentro da sala de estar, onde eu a vi sentada no sofá perto da
janela, com cara de saco cheio.

— Vem por aqui — disse para Emily, pegando uma das cervejas
que estavana mão dela enquanto eu passava no meio do
amontoado de gente, em direção aosofá.

— Ei — chamei Sophie que estava perto da barulheira e da TV. —


O que

foi?

— Nada — ela respondeu, com uma voz amuada. Ela fez sinal com
a cabeça apontando para a cerveja. — É para mim?

— Talvez — eu disse. Ela fez uma careta para mim, eu lhe dei a
cerveja edepois me sentei enquanto ela dava um gole. Seu batom
ficou marcado na borda dagarrafa.

— Nossa, adorei a sua blusa, Annabel — disse Emily. — É nova?


— É. Bem novinha. — Eu levantei a mão, passando-a sobre a blusa
decamurça rosa que minha mãe e eu havíamos comprado na
Tosca, no dia anterior. Elatinha sido bem cara, mas imaginamos que
o fato de que ela seria usada durante todo overão compensaria o
preço. — Comprei esta semana.

Sophie bufou, balançando a cabeça.

— Essa — ela anunciou — é oficialmente a pior festa de último dia


de aulade todos os tempos.

— Ainda são oito e meia—eu disse a ela, olhando ao redor da sala.


Tinha umcasal se beijando em uma poltrona próxima e vi um grupo
de pessoas sentadas emvolta da mesa de jantar jogando baralho.
Eu podia ouvir música vinda de algum lugar,provavelmente dos
fundos da casa, o chão tremia ao som do baixo. — As coisaspodem
melhorar. Ela tomou mais um gole de cerveja.

— Eu duvido. E se isso é algum indicador, esse verão vai ser ainda


pior.
213

— Você acha? — Emily disse, parecendo surpresa. — Lá fora tinha


unsgarotos bem bonitos e que estão na faculdade.

— E você quer namorar um cara que está na faculdade e vai em


balada doEnsino Médio? — disse Sophie.

— Bom — Emily respondeu. — Não sei...

— Como eu te disse — Sophie falou. — Uma droga.

De repente, começamos a ouvir muito barulho vindo da nossa


esquerda. Eume virei e vi um grupo de pessoas entrando no hall.
Reconheci uma garota que faziaEducação Física comigo, dois caras
que eu não conhecia e, por último, Will Cash.

— Viu? Tudo já está ficando mais animado — eu disse para Sophie.


Mas,em vez de parecer contente, ela estreitou os olhos. Eles tinham
discutidoalgumas horas antes, mas eu achei que já estivesse tudo
resolvido da mesmaforma que sempre acontecia entre eles.
Aparentemente não. Will apenasacenou com a cabeça para Sophie
antes de seguir as pessoas com quem eletinha chegado pelo
corredor, em direção à cozinha.

Assim que ele sumiu, ela se encostou de braços cruzados ao sofá.

— Está horrível aqui — ela anunciou, e dessa vez tive outra idéia
em vezde discordar.

Eu me levantei, estendendo minha mão para ela

— Vem — eu disse. — Vamos dar uma volta.


— Não — ela respondeu. Emily, que tinha começado a se levantar,
sentou-se novamente.

— Sophie.

Ela fez sinal negativo com a cabeça.

— Vão vocês duas. Divirtam-se muito.

— Então, você quer é ficar aqui amuada?

— Eu não estou amuada — ela disse friamente. — Estou apenas


sentada.

— Está bem — eu disse. — Eu vou pegar outra cerveja. Você quer


alguma

coisa?
214

— Não — ela respondeu, mantendo os olhos fixos na sala de jantar,


ondeWill estava conversando com o cara na cabeceira da mesa que
dava as cartas.

— Você quer vir comigo?—perguntei a Emily. Ela concordou,


colocando suacerveja na mesa de centro e me seguindo pelo
corredor.

— Ela está bem? — Emily me perguntou assim que nos afastamos


de

Sophie.

— Está sim — respondi.

— Ela parece estar chateada — ela continuou. — Antes de você


chegar, elamal falava comigo.

— Depois ela melhora — eu disse a ela. — Você sabe como ela é.

Nós andamos pela cozinha, entramos na varanda em direção ao


barril dechope, que estava cercado por uns carinhas mais velhos.

— Ei — um deles me disse. Era um cara alto, magro e de cigarro na


mão. —Deixa eu pegar uma cerveja pra você.

— Não precisa — respondi, dando um meio sorriso enquanto


pegava umacaneca para eu mesma encher.

— Vocês duas estudam na Jackson? — o outro perguntou para


Emily, queestava do lado de fora da roda com os braços cruzados.
Ela balançou a cabeçapositivamente.
— Nossa, essas garotas do primeiro ano são cada vez mais bonitas.

—Não somos do primeiro ano — falei ao me afastar do barril. Um


cara decabelo encaracolado estava parado bem na minha frente,
bloqueando a minhapassagem. — Com licença.

Ele ficou me olhando, até eu desviar dele.

— Garota difícil, né? — ele comentou quando passei. — Eu gosto


disso. Eu voltei para a cozinha, Emily me seguiu e fechou a porta
atrás de nós.

— Não era deles que eu estava falando antes — ela disse


calmamente.

— Eu sei — disse a ela — Esses caras estão em todas as festas.

Nós estávamos indo encontrar Sophie novamente, mas um monte


de gente
215

tinha acabado de entrar e o corredor estava lotado e muito


barulhento. Tentei passar,mas fiquei parada no meio do caminho,
rodeada de pessoas por todos os lados. Virei-me para procurar
Emily, mas ela fora parada por uma garota que falava muito
alto,chamada Helena, uma conhecida nossa da Lakerview Models
que, pelo visto, estavagritando no ouvido dela.

— Com licença — alguma garota que eu não conhecia falou ao me


empurrarbatendo seu cotovelo no meu para abrir espaço. Eu senti
algo derramando em mim,olhei para baixo e vi que era cerveja (não
dava para saber se era minha ou dela) eescorria pela minha perna.
De repente, o corredor parecia menor e mais quente.Então, quando
um espaço abriu do meu lado esquerdo, eu me acomodei lá e fiquei
emum lugarzinho debaixo da escada, onde finalmente consegui
respirar.

Eu me inclinei para trás, me encostando à parede, e tomei um gole


decerveja enquanto as pessoas continuavam se empurrando.
Estava quase mepreparando para voltar para a multidão quando Will
Cash passou, parando ao me ver.

— Ei — ele disse. Dois caras passaram por ele indo para a direção
oposta. Umdeles ergueu a mão, bagunçou o cabelo dele e Will fez
uma careta. — O que você estáfazendo?

— Nada — respondi. — Eu só...

Ele se virou e se abaixou para ficar onde eu estava. Quase não


havia espaçopara nós dois naquele local — era um local feito para
ter uma mesinha ou talvez umaobra de arte —, mas, mesmo assim,
tentei me deslocar um pouco para a esquerda edeixar um pouco de
espaço entre nós.

— Tá se escondendo, é? — ele perguntou. Ele não riu ao dizer isso,


apesarde eu ter certeza de que era uma brincadeira. Com Will era
assim. Nunca dava parasaber.

— É que... Ficou muito confuso aí — eu disse. — Você já, não,


encontrou comSophie?

Ele não parava de olhar para mim, um olhar seco, e eu me senti


ficarvermelha de novo.

— Ainda não — ele falou. — Há quanto tempo vocês chegaram?

— Ah, eu não vim com elas - respondi. Nesse momento, Hillary


Prescottpassou e, ao nos ver, andou mais devagar, olhando para
nós por um tempo antes decontinuar. — Eu acabei de chegar...
Fiquei presa em casa.
216

Will não disse nada, apenas continuou me olhando.

— Sabe como é — eu disse tomando mais um gole de cerveja


enquanto ummonte de garotas passou, rindo alto. — Drama familiar
e aquela coisa toda.

Eu não sabia por que estava falando isso para ele, assim como não
fazia amenor idéia do que fazer perto de Will Cash. Algo nele me
perturbava tanto ao pontode não me sentir à vontade, e eu tentava,
por alguma razão, compensar sendo abertademais.

— Sério — ele falou, sem mudar o tom de voz. Senti meurosto ficar
vermelho mais uma vez.

— É melhor eu ir ver a Sophie — falei. — Eu, hum, te vejo por aí,


acho. Ele concordou com a cabeça.

— É — ele disse. — Até mais.

Eu nem esperei que começasse a passar menos gente para tentar


andar.Acabei dando de encontro com um jogador de futebol
americano que estava passandoe aproveitei para segui-lo até a
cozinha, onde encontrei Emily encostada na ilha como celular na
orelha.

— Onde você foi? — ela perguntou, desligando o celular e


colocando-o devolta no bolso.

— Lugar nenhum — respondi. — Vamos.


Quando voltamos para a sala de estar, Sophie ainda estava no sofá,
mas nãomais sozinha. Will juntara-se a ela e, pelo que parecia, eles
estavam discutindo.Sophie dizia algo e tinha uma expressão tensa,
enquanto Will parecia ouvir mais oumenos, olhando em volta
enquanto ela falava.

— É melhor não perturbá-los agora—eu disse a Emily. — Depois a


gente volta.Além disso, eu preciso fazer xixi. Sabe onde é o
banheiro?

— Acho que vi um bem ali — ela apontou para um corredor próximo.

— Vem.

Lá havia um banheiro, mas também uma fila. Então decidimos tentar


a sorteno segundo andar. Estávamos andando no corredor quando
ouvi alguém me chamar.

Parei e dei alguns passos para trás até uma porta aberta pela qual
tínhamos
217

acabado de passar, e vi Michael Kitchens e Nick Lester, dois


carinhas do último anoque estavam na minha turma de história da
arte e me atormentavam o tempo todo,jogando sinuca.

— Está vendo? — disse Nick. — Eu disse pra você que tinha visto
aAnnabel.

— Que coisa... — exclamou Michael, que estava inclinado sobre a


mesa quasedando uma tacada. — E eu aqui achando que você
estava alucinando.

Nick virou e colocou a mão sobre o coração quando me viu.

— Não. É a Annabel — ele falou. — Annabel, Annabel, Annabel


Greene.

— Você prometeu que, quando o ano terminasse, pararia com isso


— eu dissea ele. Ele fez um projeto de pesquisa de último ano sobre
Edgard Allan Poe. E desdeentão ficava me enchendo com essa fala
sem parar. — Lembra?

— Não — ele respondeu, tirando sarro.

Michael deu a tacada, as bolas se espalharam sobre a mesa.

— Nick está bêbado — ele nos informou. — Vocês já estão


avisadas.

— Eu não estou bêbado — Nick disse. — Só estou animado.

— Tem algum banheiro por aqui? — eu perguntei. — Estamos


procurando
um.

— Bem ali — Michael apontou com a cabeça para o outro lado do


quarto.

— Vem — eu disse para Emily e ela entrou no quarto comigo. —


Esses aquisão Nick e Michael — informei-a, entregando-lhe a minha
cerveja. — E essa é Emily.Volto já, ok?

Ela concordou, parecendo um pouco nervosa.

— Você joga? — Michael perguntou a ela, apontando para a mesa.

— Um pouco — ela respondeu.

Ele andou até a parede e pegou um taco.

— Sei, sei — ele disse. — Você diz isso e depois ganha de mim em
dezsegundos.
218

— Ela tem mesmo cara de ás da sinuca — Nick comentou. Emily


riu,balançando a cabeça. — As quietinhas são sempre assim.

— Não pegue pesado comigo — Michael disse a ela. — É só o que


peço.Quando eu saí do banheiro, dois minutos depois, Emily estava
à vontade.

Ela também tinha entrado no "modo flerte" com Michael, que parecia
mais doque feliz em retribuir, e Nick acabou sobrando para mim. Ele
sentara-se perto de mim em uma poltrona próxima, e anunciou que
tinha algo a dizer.

Sabe — ele começou enquanto tomava um gole de cerveja —,


como o colégioacabou e tudo mais, acho apenas que você deve
saber que eu sei o que você sente pormim.

— O que eu sinto por você... — repeti.

— Meu — disse Michael do outro lado da mesa. — É melhor você


parar antesque diga algo de que vai se arrepender depois.

— Shhh — Nick respondeu. Ele se virou para a minha direção. —


Annabel— ele disse seriamente —, não tem problema nenhum você
ser afim de mim.

— Ai, não — Michael disse. — Nossa, estou sentindo vergonha por


você nestemomento.

— Quero dizer, faz total sentido — disse Nick enrolando um pouco a


línguaenquanto eu tentava não rir. — Eu estou no último ano. Sou
um homem mais velho.Faz sentido você me admirar, mas... — ele
fez uma pausa para mais um gole de cerveja— é que não daria
certo entre nós.

— Ah — exclamei. — Bem, é melhor saber logo, eu acho.Nick


afagou a minha mão, balançando a cabeça.

— Eu fico realmente lisonjeado, mas não importa o quanto você me


ama. Eunão consigo sentir a mesma coisa por você.

— Péssimo — Michael disse e Emily riu.

— Eu entendo — eu disse a Nick.

— Você entende?

— Sim, completamente.

Ele ainda afagava a minha mão, mas acho que nem estava se
dando conta
219

disso.

— Que bom. Porque realmente ficaria contente se continuássemos


sendoamigos.

— Eu também — falei.

Nick se encostou à poltrona, levando a garrafa de cerveja à boca.


Depois,abaixou a mão e colocou a garrafa de cabeça para baixo.
Um pingo caiu.

— Vazia — ele anunciou. — Preciso de mais uma.

— Na verdade você não precisa — Michael disse e depois fez cara


desurpreso ao ver Emily dar uma tacada e encaçapar duas bolas.

— Que tal uma água? — perguntei ao Nick. — Eu já estava indo


pegar umapara mim.

— Água — ele repetiu devagar, como se estivesse falando um


idioma estrangeiro. — Certo. Vai à frente.

— A gente já volta — eu disse para Emily ao me levantar, seguida


de Nick,que fez a mesma coisa, só que com mais dificuldade. —
Você quer alguma coisa?

Ela fez sinal que não e se inclinou para outra tacada.

— Estou bem — ela disse.

— Bem demais — falou Michael ao ver mais duas bolas


desaparecerem.
— Joga mais ou menos coisa nenhuma.

Nick e eu descemos até a metade da escada e ele anunciou que


tinha mudadode idéia.

— Estou muito cansado — falou, parando ao lado da porta de um


quarto. — Preciso descansar.

— Você está bem? — perguntei.

— Ótimo — ele respondeu. — Você só precisa me trazer aquela,


aquela...

— Água — eu disse.

— Água... E eu te encontro aqui. Certo? — Ele encostou-se à


parede. — Bem

aqui.
220

Concordei com a cabeça e continuei descendo as escadas. No


caminho, pareipara dar uma olhada na sala de estar, que estava
agora bem mais cheia. Sophie nãoestava mais no sofá e Will
também não, então pensei que isso poderia ser um bomou um
péssimo sinal.

Lá embaixo, peguei duas garrafas de água e parei para conversar


com algumaspessoas. Quando voltei para o corredor, Nick não
estava lá. Imaginei que ele tivessevoltado para a sala de jogos e
estava indo para lá, quando ouvi uma voz.

— Annabel.

A voz era suave e irreconhecível. Eu me virei. Tinha um quarto à


minha direitae a porta estava entreaberta. O que era bom se você
estivesse cambaleando ou, pior,vomitando. "Coitado do Nick",
pensei. Coloquei uma garrafa de água no bolso de trás,depois abri a
porta e entrei no quarto.

— Ei — eu disse. — Você se perdeu?

Quando entrei naquele quarto escuro, tive a sensação de que algo


estavaerrado. Aquele quarto me passou uma sensação esquisita,
como se todo aqueleespaço não fosse seguro. Dei um passo para
trás, procurando a maçaneta, mas nãoconsegui achar, meus dedos
só sentiam a parede.

— Nick? — chamei.

Até que, de repente, senti algo dar de encontro comigo à esquerda.


Não eraum móvel nem um objeto, era algo vivo. Alguém. "É o Nick",
disse a mim mesma. "Eleestá bêbado." Mas, ao mesmo tempo,
comecei a tatear a parede com mais rapidezprocurando o interruptor
ou a maçaneta. Finalmente, achei a maçaneta. Mas no momento em
que comecei a virá-la, senti dedos segurando o meu pulso.

— Ei — eu disse, e, apesar de me esforçar para agir tranqüilamente,


minhavoz denunciava o meu medo. — O que...?

— Shhh, Annabel — uma voz disse, e então os dedos subiram pelo


meu braço,sobre a minha pele, e eu senti outra mão sobre meu
ombro direito. — Sou só eu.

Não era o Nick. Essa voz era mais grave e não estava mole, cada
sílaba eraemitida perfeitamente. Assim que me dei conta disso,
fiquei apavorada, minha mãosegurava com mais força a garrafa de
água. A tampa da garrafa se abriu e senti a águagelada molhar a
minha blusa e minha pele.

— Não — eu falei.
221

— Shhh — disse novamente a voz, mas a mão não me tocava mais


e umsegundo depois estava tampando os meus olhos.

Dei um impulso para frente, tentando sair. A garrafa de água, que


agora estavaquase vazia, caiu no carpete fazendo barulho, e duas
mãos me seguraram pelo ombro,com força. Continuei me
contorcendo, tentando me soltar e me virar em direção àporta, mas
minhas mãos se mexiam vazias no ar. Parecia que as paredes
tinham seafastado, fora do meu alcance. Não havia nada em que
me apoiar.

Eu podia ouvir minha respiração ofegante e comecei a perder o


fôlegoquando ele encaixou seu cotovelo no meu pescoço, me
puxando para mais perto dele.Minhas pernas saíram do chão e eu
comecei a chutar, tentando atingir a porta, econsegui uma vez —
pou! — antes de ele me arrastar para trás, dando alguns
passos.Depois, senti seu outro braço passando pela minha barriga,
levantando a minha blusae empurrando para baixo minha calça
jeans.

— Para — eu disse, mas então seu braço (quente e com cheiro de


suor) tapouminha boca, impedindo a saída do som. Seus dedos
eram ágeis ao afastarem a minhacalcinha e eu sentia sua
respiração mais intensa e forte, como pequenas explosões dear na
minha orelha. Eu ainda estava tentando me livrar dele, me
contorcendo, mesmoquando seus dedos continuaram explorando,
até eles ficarem dentro de mim.

Eu mordi o seu braço. Ele ganiu, depois puxou o braço da minha


boca, meempurrando para frente. Assim que senti meus pés
novamente, procurei pela parede natentativa de recuperar algum
apoio, meus dedos tocaram levemente uma superfíciesólida antes
de ele pegar no cós da minha calça e me colocar de frente para
ele.Instintivamente, coloquei minhas mãos na frente, me
protegendo, mas ele asempurrou bruscamente e eu caí.

Em um segundo — não entendia como ele conseguia se mover tão


rápido — eleestava em cima de mim com seus dedos tateando e
abrindo o fecho da minha calça.Eu sentia o carpete embaixo de
mim, pinicando as minhas costas, enquanto eutentava empurrá-lo
para longe. O cheiro de camurça molhada penetrava as
minhasnarinas quando ele pôs uma das mãos sobre meu peito, e
senti sua mão aberta contraa minha pele, para que eu não me
mexesse, e então começou a tirar minha calçacom a outra. Eu
estava cavando o chão com meus cotovelos, usando toda a minha
força para tentar levantar, mas não conseguia me mover.

Eu o ouvi abrir o zíper e, em seguida, ele estava novamente em


cima de mim.Tentei empurrar seus ombros com minhas mãos,
depositando todo o meu peso contraele, mas ele era muito pesado e
se pressionava contra mim ao mesmo tempo em que
222

levantava uma das minhas pernas — isso realmente estava


acontecendo —, até que,no momento em que o senti contra a minha
perna e me contorci uma última edesesperada vez, eu vi algo: um
minúsculo feixe de luz entre nós.

Era como uma linha no meio do escuro e, por causa dela, eu vi um


poucodas suas costas sardentas, do cabelo loiro no braço que
estava em cima de mim, bempouquinho da camurça cor-de-rosa
escura e, antes de ele se afastar de mim, vi seusolhos azuis, e suas
pupilas aumentaram e diminuíram, e aumentaram e diminuírammais
uma vez conforme o feixe de luz aumentava. E, então, ele levantou.

Eu me sentei, meu coração batendo forte, e subi minhas calças.


Não seicomo, mas me lembrei de fechar o zíper, como se fosse a
coisa mais importante domundo naquele momento. Tinha acabado
de fechá-lo quando o interruptor fez umclique e lá, bem na minha
frente, estava Sophie.

Ela me viu antes. Depois virou o rosto e olhou para Will Cash, que
estavasentado na cama atrás de mim.

— Will? — ela perguntou. Sua voz era alta e apreensiva. — O que


está acontecendo?

"Will", pensei. Eu tive uma rápida lembrança do seu braço tapando a


minhaboca, das suas mãos cobrindo meus olhos e, depois, em um
momento um poucoantes, de ele parado muito perto de mim
debaixo da escada. "É o Will."

— Eu não sei. — Ele deu de ombros, depois passou a mão pelo


cabelo. — Ela só...
Sophie ficou olhando para ele por um tempo. Do corredor, atrás
dela, ouvi risadas e me lembrei de Emily e Michael jogando sinuca.
Ainda esperando por mim.

Sophie olhou para mim.

— Annabel? — ela disse, e entrou no quarto com a mão ainda na


maçaneta. — O que você está fazendo?

Eu me senti quebrada, como se tudo o que tinha acabado de


acontecer fosseum fragmento e não fizesse parte do mundo real. Eu
me levantei, arrumando aminha blusa sobre a barriga.

— Nada — eu disse, a palavra engasgando na minha garganta. Eu


tenteiengolir. — Eu...
223

Sophie olhou novamente para Will e, apesar de não ter me


interrompido,parei de falar. Ele olhou para ela diretamente.
Nenhuma hesitação. Nenhuma.

— É melhor alguém aqui — ela disse — começar a me explicar o


que é isso.

Agora.

Mas ninguém disse nada. Mais tarde me dei conta, um tanto


surpresa que euestava realmente esperando que alguém definisse
aquilo, como se não tivesse estado lá e não soubesse que nome dar
para aquilo.

— Olha — ele falou. — Eu estava te esperando, e então ela veio


aqui... ele parou de falar, balançando a cabeça, mas sem deixar de
olhar para ela.

— Eu não sei.

Sophie voltou sua atenção para mim e, por um momento, nós


ficamos nosolhando. Ela tinha que perceber que algo estava errado.
Eu não precisava contar paraela. Eu não era qualquer garota, como
aquela que procuramos de carro naquela noite.Nós éramos
melhores amigas. Eu realmente acreditava nisso. Naquela época.

Ela franziu a boca. Eu observei os lábios se mexendo.

— Sua vagabunda — ela disse.


Depois, percebi que foi ingenuidade minha. Mas a verdade é que eu
realmente,sinceramente, pensei ter ouvido errado.

— O quê? — perguntei.

— Você é uma puta — ela estava falando mais alto agora, sua voz
ainda eratrêmula, mas estava ganhando força. — Eu não acredito
que você fez isso.

— Sophie — eu disse. — Espere. Eu não...

— Você não o quê? — ela exclamou. Atrás dela, vi sombras se


aproximandono outro lado do corredor. As pessoas estão vindo,
pensei. As pessoas estavamouvindo isso. As pessoas iriam saber.
— Você achava que poderia transar com o meunamorado em uma
festa sem que eu soubesse?

Senti minha boca se abrir, mas as palavras não vieram. Só fiquei lá


parada,olhando para ela, e, então, Emily apareceu atrás dela na
porta com os olhosarregalados.

— Annabel? — ela perguntou. — O que está acontecendo?


224

— Sua amiga é uma vagabunda, é isso o que está acontecendo —


Sophie disse

a ela.

— Não — eu disse. — Não é assim.

— Eu sei o que vi! — ela gritou. Emily, atrás dela, deu um passo
para trás.Sophie apontou o dedo para mim. — Você sempre quis ter
o que eu tenho!—ela disse.— Você sempre teve inveja de mim!

Eu me senti recuar. Sua voz era tão alta que meus ossos pareciam
cha-coalhar. Eu estava tão confusa e com medo, e mesmo depois
de tudo isso eu nãotinha chorado — como eu não chorei? — agora
eu sentia um nó subindo pelagarganta.

Sophie entrou no quarto, dando dois passos largos até ficar bem na
minhafrente, e o quarto pareceu ficar muito pequeno: Will, Emily,
todos desapareceram daminha visão periférica, até eu só ver seus
olhos estreitos, seus dedos tremendo detanta raiva e fúria.

— Você já era — ela disse. Sua voz era trêmula. — Acabou pra
você.

— Sophie. — Eu balancei a cabeça. — Por favor. Só...

— Sai da minha frente! — ela disse. — Sai!

E, então, minha visão voltou tão rápido quanto tinha sumido e eu vi


tudo. Amultidão de rostos amontoada no corredor. Na minha lateral,
Will Cash ainda estavasentado na cama. O carpete verde debaixo
dos meus pés e o brilho amarelo da luzsobre minha cabeça. Era
difícil acreditar que apenas alguns momentos antes tudo issoestava
tão escondido sob a escuridão que eu não conseguiria reconhecer
nada. Mas agora, assim como eu, eles estavam expostos.

Sophie ainda estava parada na minha frente. Tudo estava em


silêncio em nossavolta. Eu sabia que poderia ter quebrado aquele
silêncio, que poderia ter falado. Era apenas a minha palavra contra
a dele, e agora contra a dela. Mas não foi o que eu fiz.

Em vez disso, saí daquele quarto sob os olhares de todos. Senti


seus olhossobre mim quando desviei de Sophie, depois abri
caminho até o corredor em direçãoà escada. Passei pelo hall, fui até
a porta, abrindo-a, saí e atravessei a grama parachegar até meu
carro. Fiz tudo isso com muita atenção e segurança, como se
tercontrole sobre essas ações poderia de alguma maneira
compensar o que tinhaacontecido.
225

No caminho para casa, a única coisa que não fiz foi me olhar. Em
nenhum dosretrovisores. Em cada farol vermelho, toda vez que
diminuía a marcha, eu escolhiaum ponto fixo à frente — o pára-
choque do carro da frente, algum prédio, até asfaixas amarelas na
rua — para ficar olhando. Eu não queria me ver assim.

Quando cheguei em casa, meu pai estava sozinho me esperando.


Eu vi a luz da televisão, pálida e piscando, assim que entrei.

— Annabel? — ele chamou, enquanto o volume da TV diminuía


pouco apouco, até sumir. — É você?

Eu fiquei parada um tempo no hall sabendo que, se eu não


aparecesse, elesuspeitaria de alguma coisa. Levantei a mão e
arrumei o cabelo com os dedos,depois respirei fundo e entrei na
sala de estar.

— Sim — eu disse. — Sou eu.

Ele virou sua poltrona para me ver.

— A noite foi boa? — perguntou.

— Foi normal — eu disse.

— Tem um ótimo programa passando — ele falou, apontando com a


cabeçapara a televisão. — É sobre o New Deall. Interessada?

Qualquer outra noite, eu assistiria ao programa com ele. Era uma


tradição,mesmo que eu me sentasse por apenas alguns minutos.
Mas, dessa vez, eusimplesmente não podia.
— Não, obrigada — respondi. — Estou meio cansada. Acho que vou

dormir.

— Está bem — ele disse, se virando novamente para a TV. — Boa


noite,Annabel.

— Boa noite.

Ele pegou o controle remoto e eu dei as costas, voltando para o hall,


onde aluz da lua entrava pela janela próxima à porta, iluminando a
foto de mim, de minhamãe, minhas irmãs e eu que estava
pendurada na parede oposta. Sob aquela luzbrilhante, era possível
ver cada detalhe: as ondas distantes, um tom acinzentado
bemdiscreto no céu. Fiquei algum tempo parada diante da foto,
estudando cada uma denós: o sorriso de Kirsten, o olhar assustado
de Whitney e o jeito que minha mãe
226

inclinou sua cabeça levemente para o lado. Quando cheguei ao meu


próprio rosto,olhei-o fixamente, e estava tão brilhante, envolto pelo
escuro, como se eu não oreconhecesse. Como uma palavra escrita
numa página que você já imprimiu e leuum milhão de vezes e que,
de repente, lhe parece estranha ou errada, estrangeira, evocê fica
com medo por um segundo como se tivesse perdido algo, mesmo
sem tercerteza do quê.

No dia seguinte, tentei ligar para Sophie, mas ela não me atendia.
Eu sabiaque devia ir à casa dela e me explicar pessoalmente, mas,
cada vez que pensava nisso,eu me lembrava daquela mão na minha
boca e do barulho que meu pé fez ao baterna porta, e eu
simplesmente não consegui ir até lá. Na verdade, toda vez que
melembrava do que tinha acontecido, meu estômago revirava e eu
sentia a bile subindopela minha garganta. Como se alguma parte de
mim tentasse empurrar aquilo paracima e para fora, limpando
completamente o meu corpo de um jeito que eu nãoconseguiria
fazer sozinha.

A outra opção também não era boa, é claro. Eu já tinha sido taxada
devagabunda e vai saber o quanto essa história já tinha sido
espalhada desde então. Maso que realmente aconteceu foi pior do
que qualquer coisa que Sophie pudesseinventar e contar para as
pessoas.

Mas eu sabia, lá no fundo, que não tinha feito nada de errado. Que
não tinhasido minha culpa e que, em um mundo perfeito, eu poderia
contar às pessoas o quetinha acontecido e não sentir vergonha.
Porém, na vida real, isso era mais difícil. Euestava acostumada a ter
pessoas me olhando —fazia parte de mim, de quem eu soudesde
que me entendo por gente. Mas assim que as pessoas ficassem
sabendo do quetinha acontecido, eu estava certa de que seria vista
de um jeito diferente. Que, a cadaolhar, as pessoas não veriam mais
Annabel, mas o que tinha acontecido comigo, algotão brutal,
vergonhoso e particular, virado do avesso e, de repente, observado.
Eu nãoseria a garota que tem tudo, mas a garota que foi atacada,
tão desamparada. Acheimais seguro guardar aquilo dentro de mim,
onde a única pessoa que podia julgar eraeu.

Ainda assim, algumas vezes me perguntei se tinha tomado a


decisão certa.Porém, com os passar dos dias e das semanas, tive a
impressão de que agora era tardepara contar a minha história,
mesmo se eu pudesse. Como se quanto mais tempo sepassasse,
menos as pessoas acreditariam nela.

Então, não fiz nada. Mas, algumas semanas depois, eu estava na


farmácia com aminha mãe vendo algumas revistas, pegando
algumas coisas, quando ela disse:
227

— Aquela não é a Sophie?

Era. Ela estava na outra ponta do corredor, olhando algumas


revistas. Eu a vivirar uma página, fazendo careta para algo que tinha
visto lá.

— É — eu respondi. — Acho que sim.

— Então, vai lá falar com ela. Eu pego isso — ela disse, tirando a
lista daminha mão. — Encontre-me ali na frente, ok? — E ela saiu
de perto, levantando asua cesta na altura do braço e nos deixando a
sós.

Eu devia tê-la seguido. Mas, não sei por que, me vi andando em


direção aSophie, para aparecer por trás dela bem no momento em
que ela colocava a revista— cuja capa era inteira dedicada ao
término do último relacionamento de alguma celebridade — de volta
na estante.

— Oi — eu disse.

Ela deu um pulo, assustada, e se virou. Quando me viu, estreitou os


olhos.

— Eu só queria... — Eu não tinha planejado o que iria dizer, mas


mesmo setivesse esse momento seria difícil. — Olhe — eu disse,
observando o corredor aolado, onde minha mãe estava olhando
alguma propaganda de aspirina —, eu sóqueria...

— Não fale comigo — ela disse. A voz dela era tão alta, muito mais
alta quea minha. — Eu não tenho nada para dizer a você.
— Sophie — eu disse, quase sussurrando. — Não foi o que você
pensa.

— Ah, então agora, além de vagabunda, você é vidente?

Senti meu rosto ficar vermelho ao ouvir essa palavra e


instintivamente fiteiminha mãe, me perguntando se ela tinha ouvido.
Ela ergueu o olhar, sorriu para nóse foi para o outro corredor.

— O que foi? Algum problema, Annabel? — Sophie disse. — Deixe-


meadivinhar. Apenas o drama familiar de sempre?

Eu olhei para ela, confusa. Então me lembrei: foi isso que eu tinha
dito aWill quando estávamos debaixo da escada naquela noite. O
motivo de ter ditoaquilo eu ainda não sei. É claro que ele diria isso a
ela e usaria essa confissão idiotacontra mim. Podia até imaginar
como ele inverteu a situação, eu lhe fazendoconfidências e depois
indo atrás dele no andar de cima. "Eu não sei", Will disse
228

aquela noite enquanto ela esperava sua explicação. "Ela só..."

"Se você sabe que um cara tem namorada, principalmente se essa


namoradafor eu, não há razão para você fazer qualquer coisa com
ele que possa ser malinterpretada", Sophie me dissera, havia vários
meses. "É uma escolha, Annabel. E sevocê faz a escolha errada,
você é a única culpada quando há consequências."

Na cabeça dela era simples. Eu sabia que isso não era verdade,
mas senti umaponta de dúvida e medo quando as peças se
juntaram, e contra mim. Meu maiormedo tinha virado verdade. O
que eu ia fazer se tivesse contado, ou contasse, eninguém
acreditasse em mim? Ou pior, colocassem a culpa em mim?

Meu estômago revirou e senti aquele gosto conhecido subindo para


a boca.

Sophie olhou para minha mãe e observou-a por um segundo, e eu


tive umalembrança dela naquela noite, quando ela ficou assustada
na hora do jantar depoisque Whitney bateu a cadeira contra a mesa.
Fiquei tão preocupada com ela naquelanoite, assim como em tantas
outras noites, que não poderia imaginar o que passariapela sua
cabeça se ela ficasse sabendo.

— Sophie — eu disse novamente. — É só...

— Sai de perto de mim — ela disse. — Eu nunca mais quero te ver.


Então, eladesviou de mim, balançando a cabeça, e foi embora. Eu
não sei como, mas conseguime virar e andar pelo corredor, vendo
as prateleiras passando rapidamente. Vi tambémuma mulher com
uma criança no colo, um senhor empurrando um andador,
algumgerente observando uma pistola de colocar preço e,
finalmente, minha mãe, parada aolado de uma propaganda de
protetor solar, procurando por mim.

— Aí está você — ela disse enquanto eu me aproximava. — Como


vai aSophie?

Suspirei, e com muito esforço respondi:

— Ela está bem.

Esta foi a primeira mentira que contei para a minha mãe sobre
Sophie e,certamente, não foi a última. Naquela época eu ainda
achava que tudo o que sentia porcausa daquela noite — a vergonha
e o medo — iria passar com o tempo e sarar,como um único golpe
que resulta em uma cicatriz quase imperceptível. Mas isso
nãoaconteceu. Ao contrário, as coisas das quais eu me lembrava,
os pequenos detalhes,pareciam ficar mais fortes, ao ponto de eu
conseguir sentir o peso deles no meu peito.Mas nada ficou mais
marcado em minha memória do que a lembrança de entrar naquele
229

quarto escuro e do que eu encontrei lá, e de como, depois, a luz


transformou aquelepesadelo em realidade.

Era o seguinte: antes, a diferença entre luz e escuridão era muito


simples. Umaera boa e outra má. Porém, de repente, isso deixou de
ser tão óbvio. A escuridãoainda era um mistério, algo escondido,
algo do qual se tinha medo. Porém, eu passeia sentir medo da luz
também. De olhos fechados, eu só via o breu, o que me
lembravadesta única coisa: o meu segredo mais profundo. De olhos
abertos, havia somente o mundo que não sabia de nada, brilhante,
inescapável e, de alguma maneira, ainda lá.
230

Catorze

— Oi — Owen disse sorrindo, ao virar-se para mim. — Você


conseguiu.

Sim, consegui. Eu estava lá, no Bendo, parada na frente do palco.


Eu só nãosabia muito bem como. Na verdade, desde que eu e Emily
ficamos cara a cara, tudo ficou meio confuso.

De alguma maneira eu consegui terminar o desfile com mais três


roupas ebater palmas quando a Sra. McMurty fingia estar tímida e
muito surpresa de serrecebida com flores no palco, como acontecia
todos os anos. Depois fui para ocamarim, onde meus pais me
esperavam.

Assim que me viu, minha mãe veio me dar um abraço, e senti suas
mãosmacias nas minhas costas.

— Você foi fantástica — ela disse. — Absolutamente maravilhosa.

— Apesar de esse vestido ser um tanto decotado — acrescentou


meu pai,apontando com os olhos o vestido justo que usei para o
estilo formal, o último desfile.— Você não acha?

— Não — disse minha mãe, me dando tapinhas nas costas ao


terminar oabraço. — É perfeito. Você estava perfeita.

Consegui sorrir, mas minha cabeça ainda estava em um turbilhão.


Havia muitagente nos bastidores, muito barulho e tumulto, mas eu
só conseguia pensar na Emily."Ela sabia", pensei enquanto minha
mãe falava algo sobre encontrar a Sra. McMurty."Ela sabia."
Levantei a mão para colocar uma mecha de cabelo atrás da orelha.
Eu mesentia nervosa e agitada, e o barulho da multidão e o calor de
todos aqueles corpos não ajudavam, e agora minha mãe estava
falando de novo.

— ...simplesmente maravilhoso, mas é melhor irmos para casa. A


Whitneyestá preparando o jantar e eu disse a ela que estaríamos lá
dez minutos atrás.
231

— Whitney? — eu disse enquanto meu pai cumprimentava com a


cabeça umhomem de terno que passava por ali. — Ela não veio?

Minha mãe apertou meu ombro.

— Ah, querida, tenho certeza de que ela gostaria de vir, mas acho
que aindaé difícil para ela... Ela quis ficar em casa. Mas nós
adoramos. De verdade.

Com tudo o que tinha acontecido com Emily, eu estava atordoada,


mas umacoisa eu sabia: que era a minha irmã que estava me
olhando de longe quando chegueià ponta da passarela. Eu podia
apostar a minha vida.

Senti uma mão no meu braço, me virei e vi a Sra. McMurty e, ao


lado dela, umhomem alto de terno e com os cabelos grisalhos.

— Annabel — ela disse, sorrindo —, gostaria de lhe apresentar o


senhorDriscoll. Ele é o diretor de marketing da Kopf e queria
cumprimentar você.

— Oi — eu disse. — É um prazer conhecê-lo.

— O prazer é meu — ele respondeu, esticando a mão cuja palma


era seca e fria.— Nós todos somos grandes fãs seus. Adoramos
você no comercial de volta às aulas.

— Obrigada — eu disse.

— Ótimo desfile. — Ele sorriu, cumprimentando minha mãe e meu


pai com acabeça e, depois, continuou andando pela multidão com a
Sra. McMurty. Minha mãeos observou ao se afastarem, com o rosto
até vermelho.

— Ah, Annabel — ela disse, e apertou meu braço novamente, sem


dizer nada,mas eu entendi a mensagem. Claramente.

Naquele momento, por cima da cabeça da minha mãe, eu vi a Sra.


Shusterparada na saída do palco, segurando um casaco dobrado no
braço. Ela olhou para orelógio, depois olhou em volta com ar
preocupado. Um segundo depois, suaexpressão relaxou e eu vi
Emily andando em direção a ela. Emily ainda estavamaquiada e
com o cabelo arrumado, mas de roupa trocada, e não falou com
ninguémenquanto passava pela multidão.

— Hum, é melhor eu me trocar — eu disse aos meus pais. — Esses


sapatosestão me matando.

Minha mãe balançou a cabeça e se inclinou para me dar outro beijo.


232

— É claro — ela disse. O Sr. Driscoll passou por nós novamente,


mas dessavez sem a Sra. McMurty. Minha mãe o acompanhou com
o olhar e depois falou: —Vou preparar o seu prato, está bem?

— Na verdade — eu disse —, é, umas meninas vão sair pra comer


uma pizza.Sabe, para comemorar o final do desfile, essas coisas.

— Ah — minha mãe disse. — Bem, eu sei que você deve estar


exausta,então, não demore muito. Certo?

Eu balancei a cabeça sem deixar de observar a Sra. Shuster, que


esticou a mãopara Emily, estendendo-lhe o casaco, e esperou a
menina colocá-lo com umaexpressão triste. Depois, ela passou a
mão no braço da filha, acariciando-o de leve, eelas saíram em
direção à saída do shopping. Voltei a prestar atenção na minha
mãe,rapidamente.

— Não vou chegar tarde — disse.

— No máximo às onze horas — disse meu pai ao se inclinar para


me dar umabraço. — Certo?

— Certo — eu respondi.

Durante todo o tempo em que troquei de roupa, depois andando em


direçãoao meu carro e dirigindo pela cidade, eu repetia a mim
mesma que deveria tirar dacabeça o que tinha acontecido com
Emily. Eu estava ansiosa para ir ao Bendo edeterminada a me
divertir. Ou a tentar me divertir.

A partir de agora.
— Então — eu disse, enquanto Owen voltava a olhar o palco —, o
que eu

perdi?

— Nada demais — ele respondeu ao mesmo tempo em que alguém


esbarrouem mim por trás. Quando caí para frente, ele agarrou meu
braço e me segurou. —Opa — ele disse. — Cuidado, este lugar
pode ficar igual a um hospício. — Houveum ruído estrondoso de
interferência vindo do palco à nossa frente, e um grupo depessoas à
nossa esquerda começou a vaiar muito alto. Owen abaixou a
cabeça paraperto da minha orelha. — Como foi o desfile?

Eu não queria mentir para ele. Mas, ao mesmo tempo, sabia que
não podiacontar o que tinha acontecido de verdade — não ali, não
aquela noite. Talvez nunca.
233

— Acabou — respondi, o que era tecnicamente verdade.

— Isso é bom, não é? — ele disse, e uma garota alta usando uma
blusaenfeitada com pedras passou por nós derrubando um pouco
da bebida.

Eu sorri.

— Com certeza.

— Bem, não se preocupe. Quando a banda começar, sua noite vai


melhorar.

— Você acha?

— Eu tenho certeza — ele respondeu, no momento em que um cara


decasaco preto falando ao celular esbarrou nele. Owen olhou para
ele, que deu deombros, não parecendo muito preocupado, e
continuou andando. — Pois é. Hora deprocurar mais espaço. Vem.

Ele se virou e começou a andar no meio da multidão, e eu me


esforcei parasegui-lo até uma mesa próxima à parede.

— Vamos sentar aqui — ele disse, fazendo sinal para a cadeira. —


A vistanão é boa, mas pelo menos ninguém está dando cotovelada
no seu baço.

Eu ouvi algo que me pareceu alguém afinando um instrumento,


seguido demais ruído de interferência.

— É a Banda que vai abrir — disse Owen, apontando com a cabeça


para opalco. — Era para eles terem começado há meia hora, mas...
Esse pensamento foi interrompido por Rolly, que apareceu do nada
e sesentou ao lado de Owen, fazendo o banco dar um tranco.

— Eu — ele disse, sem fôlego — não acredito.

— Finalmente — Owen disse, olhando para ele. — Onde você


estava, cara?Eu já estava começando a pensar que você tinha sido
sequestrado, sei lá.

— Não — respondeu Rolly. — Você não vai acreditar no que


acabou deacontecer.

— Ele foi pegar uma bebida faz uma meia hora — Owen explicou
para mim.— Quero dizer, você sabe que tem muita gente, mas isso
é demais. E cadê a minhaágua?
234

Rolly balançou a cabeça.

— Meu. Ela está aqui.

— O quê?

Rolly respirou fundo e colocou as mãos na mesa com as palmas


para cima.

— Ela está aqui — ele repetiu. Depois pausou, para entendermos a


situaçãoantes de acrescentar. — Ela está aqui e sorriu para mim.

— Durante meia hora? — Owen perguntou.

— Não. Só um momento.

— É a menina que te deu o soco? — eu perguntei, esclarecendo.

— É.

— Eu não acredito que você não pegou a minha água — Owen


disse.

— Você poderia deixar isso pra lá só por um segundo? — Rolly


passou a mãono cabelo. — Acho que você não está entendendo a
importância dessa situação.

— Então você falou com ela? — Owen perguntou.

— Não. O que aconteceu foi o seguinte — Rolly respirou fundo. —


Eu estavaindo para o bar e então, de repente, lá estava ela. Bum!
Surgiu do nada bem na minhafrente, como uma aparição ou algo
assim. Mas no momento em que eu estava indofalar com ela,
alguém parou entre nós. E quando me dei conta, ela tinha
saídoandando com algumas pessoas. Então desde aquela hora eu
fiquei perto dela,esperando o momento perfeito para me apresentar.
Quero dizer, tem que serperfeito.

— Por que você não vai lá e se oferece para pegar uma água pra
ela? — sugeriu Owen. — Você pode pegar uma pra mim também.

Rolly apenas olhou para ele.

— O que é que há com você e esse lance de água?

— Estou com sede — Owen lhe disse. — E eu estava indo pegar


uma, masvocê se ofereceu. Insistiu, devo acrescentar.

— Eu vou pegar água pra você! — Rolly disse. — Mas antes, se


você não se
235

importar, eu gostaria de encontrar meu destino da forma mais


perfeita possível.

Mais um ruído de interferência vindo do palco. Owen suspirou.

— Olha — ele disse — , talvez você deva esquecer esse momento


ideal.

Rolly apenas olhou para ele.

— Eu não estou entendendo — ele disse.

— Demorou muito tempo para você encontrá-la de novo, certo? —


disseOwen. — E só Deus sabe quanto tempo mais vai demorar até
o momento perfeitoaparecer. Talvez você deva ir falar com ela e
pronto. Assim...

Rolly arregalou os olhos, de repente.

— Ai, merda — ele disse. — Olha lá ela. Owen selevantou um


pouco para olhar.

— Onde?

— Não olhe! — Rolly disse, puxando Owen para trás.

Owen olhou para a manga da camisa, que estava sendo apertada


por Rolly, eeste tirou a mão.

— Certo — ele falou em voz baixa. — Ela está parada ao lado da


porta.Devermelho.
Fiquei vendo Owen se levantar de novo, dar uma olhada e depois se
sentarnovamente.

— Sim, é ela — ele disse. — E agora?

— É exatamente isso que estou pensando — Rolly disse. — Eu


preciso deuma entrada triunfal.

Tenho que admitir que aquela altura tal suspense estava me


deixando mortade curiosidade.

— Eu só vou dar uma olhada geral no local — eu disse para Rolly.


— Tudo

bem?

Rolly concordou e Owen olhou feio para ele.

— Ela é menina — Rolly explicou. — Elas conseguem olhar sem


olhar.
236

De primeira, só consegui ver um cara enorme com uma camiseta do


Metálica. Masao mover meu olhar com mais calma, vi que realmente
havia uma garota atrás demim. Ela tinha cabelos pretos brilhantes e
estava usando uns óculos estilo retro, umsuéter vermelho e calça
jeans, e segurando uma bolsa cheia de contas. Mas eu nem
precisava prestar atenção em tudo isso, pois soube de primeira.

— Espere — eu disse, me virando para Rolly. — A menina... É a


Clarke?

Por um segundo, Rolly ficou apenas me olhando. Depois ele se


debruçousobre a mesa tão rapidamente que eu me inclinei para
trás, assustada, batendo minhacabeça.

—Esse é o nome dela? — ele perguntou. O rosto agora estava a


poucoscentímetros do meu. — Clarke?

Fiz que sim com a cabeça.

— Hum... É.

Depois de fixar o olhar em mim por mais um segundo, ele recuou


vaga-rosamente, até voltar a sua posição normal.

—Ela tem um nome. E é Clarke. Clarke... — Ele parou de falar e me


olhoude novo.

— Reynolds — eu disse.

— Reynolds — ele repetiu. — Uau! — Ele parecia estar em transe.


Então, derepente, ele arregalou os olhos e estalou os dedos. — É
isso! Essa é a minhaentrada. Você.

— Eu?

Ele balançou a cabeça rapidamente.

— Você a conhece.

— Não — eu disse logo. — Não conheço.

— Você sabia o nome dela — ele disse.

— Nós éramos amigas. Foi...

— Você é amiga dela? — ele perguntou. — Isso é perfeito!


237

— Na verdade, não é... — eu disse balançando negativamente a


cabeça.

— Você vai lá e fala com ela e, então, eu passo e você me


apresenta. Énatural. É ideal!

— Rolly, sério — eu disse. — Eu não sou a pessoa certa para se


aproximar da

Clarke.

— Annabel — ele se inclinou sobre a mesa novamente, deslizando


sua mãoaté a minha. — Annabel, Annabel, Annabel Greene.

Shhh, Annabel. Sou só eu. Senti um arrepio.

— Por favor — Rolly disse. — Só me escuta.

Eu olhei para Owen, que balançou a cabeça. Quando levei minha


mãodireita para frente, Rolly segurou-a.

— Essa garota — ele disse todo sério, a palma da sua mão estava
quente — émeu destino.

— Pronto — Owen disse — , agora você a está assustando de


verdade.

— Rolly — eu disse. — Isso é...

— Por favor, Annabel — ele disse. Ele colocou a outra mão sobre a
minha emeus dedos ficaram todos cobertos. — Por favor, só me
apresenta pra ela. É só o que eu peço. Uma tentativa. Uma chance.
Por favor.

Eu sabia que deveria lhe contar a verdadeira razão pela qual ele
não iria quererque eu fosse o cupido dele, ou que eu fizesse parte
de qualquer coisa que acontecesse,ou não, entre ele e Clarke. Não
apenas porque ele merecia saber disso, mas tambémporque até o
momento eu vinha falando a verdade para Owen — e tudo
relacionado aOwen — e não contar isso significaria que, pela
segunda vez naquela noite, eu nãoestava sendo a garota sincera
que ele pensava que eu era. Se é que alguma vez eufui.

Ao mesmo tempo, olhando para o rosto esperançoso de Rolly,


fiqueihesitante. Em uma noite na qual o que eu fiz, ou não fiz,
tomava proporções grandes,isso parecia um jeito pequeno de
compensar, de alguma forma. Eu não poderia arrumaro passado
nem mudar o que aconteceu com Emily. Mas, com isso, talvez eu
conseguisse mudar o futuro de alguém.

— Está bem — eu disse. — Mas estou avisando: talvez não dê


certo.
238

Os olhos de Rolly brilharam e ele rapidamente fez sinal para Owen


selevantar da mesa para ele sair.

— Vou ficar no bar — ele disse — e esperar você falar com ela.
Depois, vouaparecer de repente e você apresenta a gente. Beleza?

Concordei. Mas já estava me arrependendo do trato, o que Rolly


deve terpercebido, pois ele saiu de lá rapidinho, para não me dar
tempo de mudar de idéia.

— Você tem certeza de que quer fazer isso? — Owen perguntou


quando melevantei.

— Não. — Eu olhei para Clarke, que agora estava sentada com


algumaspessoas em uma mesa. — Volto em um segundo.

Ao me virar, senti a mão dele no meu braço.

— Ei — ele disse. — Tá tudo bem?

— O quê? — eu perguntei. — Por quê?

— Eu não sei — ele abaixou a mão, depois me olhou. — Você


parece... Eunão sei. Você não parece você mesma ou algo assim.
Tá tudo bem?

E eu ali achando que estava disfarçando bem. Porém, assim como


adiferença existente entre o meu rosto no retrato na parede da
Mallory e na foto queele tirou, o contraste — entre quem eu fui e
quem eu estava novamente me tornandoa cada passo que dava, ou
era obrigada a dar, para trás — era óbvio. Para nós dois.E foi por
isso que não hesitei ou tentei ser sincera, e apenas segui o que
saiunaturalmente.

— Estou bem — respondi, mas pude sentir que ele me observava


enquantoeu me afastava.

Clarke estava conversando com uma garota loira que usava


delineadordemais no olho e não me viu até eu ficar bem ao seu
lado. Ela olhou ainda sorrindo,provavelmente por causa de algo que
a sua amiga tinha acabado de dizer. Quandome viu, imediatamente
voltou à sua expressão estóica, séria. Mas agora eu não podiamais
desistir. Então, continuei.

— Oi — eu disse.

Primeiro, ela não disse nada. O silêncio durou o suficiente para eu


achar queela viraria o rosto e me ignoraria completamente. Mas
quando aquela pausa estava
239

se tornando insuportável, ela disse:

— Olá.

Alguém que estava na mesa disse algo para a loira e ela virou para
o outrolado, nos deixando a sós. Clarke continuava me olhando com
uma expressão séria,Eu me lembrei de nós na piscina, muitos anos
atrás, uma fileira de cartas abertasentre seu polegar e o indicador.

— Olha — eu falei rapidamente —, eu sei que você me odeia, tá


bom? Mas

é que...

— É isso o que você acha?

Eu parei ao recuperar o fôlego.

— O quê?

— Você acha que eu te odeio? — ela perguntou. Percebi de repente


que avoz dela não era mais fanhosa e que ela não deu nenhuma
fungada. — Você achaque esse é o problema?

— Eu não sei — respondi. — Quero dizer, eu só pensei...

— Você não sabe — ela repetiu. Sua voz era severa. — De


verdade.

Naquele momento, senti uma mão batendo no meu ombro com


tanta forçaque quase caí em cima da mesa.
— Annabel. Olá!!

Era Rolly. Quando eu me virei, ele estava parado com uma cara de
"nossa, quesurpresa", como se fôssemos amigos de longa data e
não nos víssemos havia séculos.Ao mesmo tempo, senti sua mão
úmida no meu ombro.

— Oi — eu disse, tentando parecer casual.

— Oi! — ele respondeu, não muito melhor que eu. — Eu estou indo
ao barpegar umas águas. Quer vir?

Clarke nos olhava, estreitando os olhos. "Melhor eu ir direto ao


assunto",

pensei.

— Claro — eu disse. — Obrigada. Ah... é... Rolly, essa é a Clarke.


Clarke, esseé o Rolly.
240

Rolly estendeu rapidamente a mão.

— Oi — ele disse enquanto Clarke, mais devagar, estendeu a dela.


— Prazerem conhecê-la.

— Prazer — ela disse secamente, e olhou de novo para mim. —


Você estava dizendo?

— Então, você veio ver o Truth Squad, certo? — Rolly disse,


olhando demim para Clarke, e imediatamente para Clarke
novamente. — Eles são muito bons,você já os viu tocando antes?

— Hum — Clarke respondeu. — Não, não vi.

— Ah, eles são demais — Rolly disse todo empolgado. Dei um


passo para olado, e ele imediatamente foi para o lugar onde eu
estava, perto dela. — Já vi esses caras tocando várias vezes.

— É... É melhor eu ver se Owen quer uma bebida — falei. Clarke


me fuziloucom os olhos; agora ela estava realmente muito brava. —
Eu... hum... Volto em umminuto. Ou dois.

E então saí de lá rapidinho. Quando encontrei Owen, ele estava


falando comum carinha de cabelo preto e curto e olhar intenso.

— ... Bagunça total — o cara de cabelo preto estava dizendo


quando mesentei. — Era melhor quando nós fazíamos a nossa
própria agenda. Pelo menos agente podia dar nossa opinião sobre
datas e lugares. Agora estamos nas mãos deles, noseu joguinho
corporativo doentio.
— Isso é péssimo — Owen disse.

— É mesmo — o cara balançou a cabeça. — Pelo menos os nossos


singles tocam em rádios do país inteiro. Quer dizer, isso é o que
eles dizem. Vai saber se éverdade ou não.

Eu olhei para a mesa da Clarke. Rolly ainda estava de pé, falando


todoanimado, enquanto Clarke parecia bem menos animada em
ouvi-lo.

— Annabel — Owen disse — , este é o Ted. Ted, Annabel.

— Oi — Ted respondeu, mal olhando para mim.

— Oi.
241

Do palco, veio um estampido alto enquanto alguém testava o


microfone.

— Ei — a voz disse. — Isso aqui está ligado? — A resposta veio de


alguémna multidão vaiando.

Ted suspirou.

— Está vendo? — ele disse — É disso que eu estou falando. Era


para essespalhaços fazerem um show curto, e eles ainda nem
começaram.

— Quem são eles? — Owen perguntou.

— Nem sei — Ted disse, claramente revoltado. — A banda que ia


abrirapareceu com um tipo de gripe, então eles colocaram esses
caras para substituir.

— Deveriam ter deixado vocês começarem mais cedo — Owen


disse. —Afinal, é um show para todas as idades. Além disso, todos
estão aqui para ver vocês.

— Exatamente o que eu acho — Ted respondeu. — Além disso, se


tivéssemosum show mais longo, poderíamos tocar umas músicas
novas. Nosso som estámudando muito.

— Sério?

Ted balançou a cabeça positivamente, parecendo mais animado.

— Quer dizer, não é tão diferente do nosso som de sempre. É um


pouco maislento e com mais toques técnicos. Reverberação. E tudo
mais.

— Técnico? — Owen disse. — Ou eletrônico?

— É difícil dizer — Ted respondeu. — É meio que uma coisa nova.


Talvez agente consiga tocar umas dessas músicas novas na
segunda parte do show. Depois mefala o que achou, valeu? É... Não
muito convencional, mas ainda assim acessível.

Owen me olhou.

— Sabe, se é essa opinião que quer, você deveria perguntar para


Annabel o queela acha — ele disse. — Ela odeia música eletrônica.

Os dois me olharam.

— Bem — eu disse. — Na verdade...

— Então, se ela gostar — Owen disse —, não é experimental


demais. Mas
242

se ela odiar, não será tão bem aceito entre as massas.

— E ela diria se odiasse? — Ted perguntou.

— Sim — Owen balançou a cabeça. — Ela é super sincera. Não


esconde.Quando ele falou isso, senti uma parte de mim desabar
porque queria muito queaquilo fosse verdade, tanto que, por um
tempo, eu realmente acreditei que fosse. Masagora, sentada lá,
percebendo que os dois me olhavam, me senti a maior mentirosa
domundo.

Do palco, começou a vir um som de guitarra, seguido de bateria.


Finalmente,a banda de abertura começava. Ted fez uma careta,
depois se levantou.

— Eu não agüento ficar ouvindo essa merda. Vou voltar. Vocês


querem vircomigo?

— Claro — Owen disse. Ouvi alguém berrar e mais interferência.


Para mimele disse: — Vamos.

Segui Owen e Ted pela multidão, passando pela mesa de Clarke.


Rolly aindaestava lá, falando, animado, e gesticulando. Clarke
estava ouvindo, então, aquilodeve ter servido para alguma coisa.

Ted nos levou até uma porta ao lado do bar, e depois o seguimos
por umcorredor tão escuro que eu nem conseguia ver os banheiros
quando passamos poreles. Quando ele abriu uma porta que tinha
um sinal onde estava escrito RESERVADO , uma luz brilhante
surgiu de repente e me fez ficar piscando.
Lá dentro, a primeira coisa que vi foi um cara de cabelo preto e de
quatro nochão, procurando algo debaixo de um sofá. Quando nos
viu, ele se levantou e abriuum sorriso largo.

— Owen! E aí, cara?

— Tudo bem — Owen disse ao apertarem as mãos. — E você?

— Tudo, velho. Tudo. — O cara mostrou um celular e a bateria. —


Acabeide quebrar meu celular. De novo.

— Esta é a Annabel — Owen disse.

— Dexter — ele disse, estendendo a mão. Para Ted ele perguntou:


—Novidades?
243

— A banda de abertura acabou de entrar — Ted respondeu ao


andar nadireção de um frigobar e pegar uma cerveja. — Tá tudo
pronto aí?

Havia dois caras em uma mesa próxima, jogando baralho. Um


deles, umruivo, respondeu:

— Não parece, não?

— Não.

— Bem, quem vê cara não vê coração. Porque tá tudo certo.

O outro cara que estava na mesa riu, descartando uma carta, e Ted
o fuziloucom os olhos, e depois se deitou no sofá, colocando seus
pés em cima de uma mesaà frente.

—Então — Dexter disse, sentando do outro lado do sofá. Ele


colocou ocelular no joelho, depois pegou a bateria, estudando-a. —
O que tá rolando de novona música dessa cidade?

— Nada sobre a qual vale a pena falar — Owen disse a ele.

— É sério — Ted disse. — Você devia ver a banda cover de rock


univer-sitário que está tocando agora. Total imitação de Spinnerbait.

— Spinnerbait? — eu disse.

— É uma banda — Owen falou.

— Odeio Spinnerbait! — disse o ruivo, batendo uma carta na mesa.


— Calma, calma — Dexter disse, colocando cuidadosamente a
bateria devolta em seu celular. Mas quando tirou a mão, ela caiu
novamente no chão, fazendobarulho, e ele se abaixou para pegá-la.
— É disso que eu gosto nesta cidade — eledisse, tentando colocar
mais uma vez a bateria. — Tem um monte de bandas paraescolher.

— Isso não quer dizer que alguma delas saiba tocar — falou Ted.

— Verdade. Mas variedade é sempre bom — Dexter disse enquanto


abateria caía de novo. Ele virou o telefone, tentando colocá-la de
outro jeito: nada. —Em alguns lugares — ele disse — você quase
não tem escolha e isso — a bateriacaiu novamente — é péssimo.

— Dexter. — Eu me virei e vi uma garota loira sentada em uma


cadeira no
244

canto da sala. Ela estava segurando um marcador amarelo e tinha


um livro aberto sobre o colo. Eu nem a tinha visto. — Você precisa
de ajuda? — ela perguntou.

— Nem. Estou bem. Mas obrigado.

Ela se levantou, colocando a caneta no livro e o livro debaixo do


braço, e foi

até ele.

— Dá para mim.

— Não precisa — Dexter disse, virando o telefone novamente. — Eu


achoque agora quebrou de vez. Acho que deu pau em alguma
coisa.

Ela esticou a mão.

— Deixa eu tentar.

Ele entregou a ela o celular. Então, sob os olhares de todos nós, ela
estudouo aparelho por um segundo, colocou a bateria e a empurrou
para baixo. Houve umclique e depois ouvimos uma musiquinha
quando o telefone ligou. Ela o devolveupara ele e voltou ao sofá.

— Ah — ele disse, olhando para o telefone. — Obrigado, querida.

— De nada. — Ela abriu seu livro — Estatísticas aplicadas a


negócios, estava escrito na lombada — e sorriu para nós. — Meu
nome é Remy — ela disse.
— Ai! Desculpa! — disse Dexter. Ele abaixou a mão, fazendo
carinho nocabelo dela. — Estes aqui são o Owen e a Annabel. Esta
é a Remy.

— Oi — cumprimentei, e ela respondeu com um aceno de cabeça,


jápegando o marcador novamente.

— Remy está passando as férias com os plebeus, nos


acompanhando naturnê — Dexter explicou. — Ela estuda em
Stanford. É muito inteligente.

— Então por que ela está com você? — gritou o ruivo sentado à
mesa.

— Eu não faço a menor idéia — Dexter respondeu enquanto Remy


reviravaos olhos —, mas deve ser porque eu beijo bem. — Ele se
inclinou, dando uma sériede beijinhos estalados bem altos na
bochecha dela. Ela se inclinou para trás,tentando empurrá-lo, mas
ele caiu no colo dela, suas pernas compridas seestendendo
desajeitadamente no sofá.

— Para — ela disse rindo. — Credo.


245

De repente começamos a ouvir mais interferência vinda do lado de


fora, emais vaias.

— Espero que eles encurtem o show — disse Ted. — Será que


mais alguémaqui gostaria de, talvez, se aprontar para o nosso
show?

— Não — disse o ruivo.

— De jeito nenhum — acrescentou o outro cara.

Ted olhou furiosamente os dois. Depois, colocou sua cerveja na


mesafazendo o maior barulhão, andou até a porta e a abriu. Assim
que saiu para ocorredor, bateu a porta com força. Muita força.

O ruivo abaixou as cartas.

— Gin! — ele exclamou, erguendo as mãos sobre a cabeça em


umacomemoração de vitória. — Finalmente!

— Ah, meu! — disse o outro cara. — Eu quase ganhei...

— Sai — Remy disse, e Dexter saiu de cima do seu colo e ficou de


pé. Aofazer isso, deixou cair seu celular novamente, mas dessa vez
a bateria não saiu.

— O Ted tem razão — ele disse, porém o Ted já tinha saído. —


Nósdevíamos nos organizar. Owen, vocês vão ficar por aqui depois?

Owen olhou para mim.

— Claro — ele disse.


— Legal. A gente se vê depois, então, está bem?

— Beleza.

Então, todo mundo começou a se movimentar: Dexter colocou o


celular nobolso, o ruivo se levantou enquanto o outro cara recolhia
as cartas. Segui Owen emdireção ao corredor, onde passamos pelo
Ted, que estava encostado na parede aindacom uma cara de
irritado. Owen lhe desejou um bom show ao passarmos e
elemurmurou alguma coisa de volta, mas eu não consegui entender
o que disse.

Ao voltarmos para a nossa mesa, eu olhei para a mesa da Clarke.


Ela aindaestava lá, mas Rolly tinha saído. "Bom", pensei, "pelo
menos eu tentei."

— Agora sim — Owen disse ao sentarmos. Eu ouvi a banda de


abertura
246

terminando o show. — Agora começa música de verdade. Você vai


gostar.

Fiz que sim com a cabeça e coloquei uma mecha de cabelo para
trás daorelha. Quando virei o rosto na direção de Owen, vi que ele
me observava.

— O que foi? — eu disse.

— Bom — ele falou. — Alguma coisa está acontecendo com você.


O que é?

Eu congelei. Ali estava a pergunta direta. Talvez eu pudesse


responder. Dizeralguma coisa, botar finalmente para fora Talvez...

— Quero dizer — ele disse —, quando você vai simplesmente


assumirque gosta do que eu gosto? Essa banda pode ser o Ebb
Tide Dois. Você está com febre ou algo assim?

Ele sorria ao dizer isso e eu tentei sorrir para ele também. Mas bem
lá nofundo, de repente, comecei a sentir o peso das minhas tantas
mentiras e omissões.

— Tá tudo bem — respondi enquanto alguém começava a tocar


algunsacordes de guitarra. — Mas pare de me distrair. Preciso me
concentrar na música.

Agora a multidão era muito maior do que no show da banda anterior


e logosó o que eu conseguia ver eram costas e ombros. Owen se
levantou.
— Você deveria se levantar — ele disse.

— Eu estou bem aqui — falei.

— Parte da graça de ver o show de uma banda é realmente ver a


banda — eledisse. E depois me estendeu a mão.

Desde que saí do shopping tenho tentado esquecer o que


aconteceu entre Emilye mim na passarela. Mas agora, olhando para
Owen, tudo voltou. Não apenas o dia queresultou nisso, mas todas
as vezes desde que ele fez isso pela primeira vez,oferecendo não
apenas a sua mão, mas uma amizade que me salvou. Eu estava
tãosozinha e com medo e, sim, com raiva, e de alguma maneira
Owen enxergou isso,mesmo quando todas as outras pessoas
preferiram desviar o olhar e fingir que nadaestava acontecendo.
Exatamente o que eu fiz, e estava fazendo, com Emily naquelanoite.

Sua mão ainda estava estendida, esperando.

— Preciso ir ao banheiro — eu disse, me desencostando da parede


e saindo
247

da mesa — Volto em um segundo.

— Espera — ele falou, abaixando a mão. E olhou para o palco. — A


bandaestá entrando...

— Eu sei. Já volto.

Então, comecei a andar antes que ele pudesse dizer qualquer outra
coisa.Principalmente porque não suportaria ter que mentir de novo.
Mas também foi porcausa daquele gosto amargo subindo até a
minha boca. Eu tinha que sair de lá.

Estava mais difícil passar pela multidão agora e eu teria que me


esforçar paraconseguir chegar à porta. Enquanto isso, a Truth
Squad abriu o show com umamúsica que, a julgar pelo número de
pessoas que imediatamente começou a cantarjunto, era bem
conhecida pela galera; as letras tinham alguma coisa a ver com
batatas.

Eu continuei me esforçando para sair, abrindo caminho em meio a


um montede pessoas que olhava para frente. Era um perfil atrás do
outro e alguns viravamlevemente o rosto, irritados, quando eu
passava. Finalmente, a quantidade de pessoascomeçou a diminuir.
Eu estava quase na porta quando alguém me segurou pelobraço.

— Annabel! — Era Rolly. Ele estava com um sorriso enorme e


carregavavárias garrafas de água. — Consegui!

Eu olhei para ele ao mesmo tempo que, de repente, aplausos e


gritos vinhamda multidão.
— O quê?

— Consegui — ele disse, segurando uma garrafa de água. — Eu fui


pegar umaágua para ela. Está dando certo! Finalmente, está dando
certo mesmo! Você acredita?

Ele estava tão feliz que o rosto ficou vermelho.

— Mas que ótimo! — eu consegui dizer. — Na verdade, eu estava...

— Tome — ele disse, me cortando, e colocou uma das águas no


bolso dacamisa, outra debaixo do braço e me deu as outras duas.
— Pra você e pro Owen. Dizpra ele que eu disse que ele estava
certo. Sobre tudo. Ok?

Eu concordei, acenando a cabeça, ele me fez um sinal de "jóia" e foi


embora.Ao vê-lo desaparecer na multidão, me dei conta de que
gostaria de ter mandado por ele
248

uma mensagem para Owen também. Olhei para aquele tanto de


gente, sabendo queele estava em algum lugar do outro lado, me
esperando. Mas agora a distânciaparecia vasta e impossível, havia
muita coisa no meio. Então, sentindo um gostoamargo na garganta
e com as mãos úmidas, andei em direção à porta.

Lá fora, o ar frio era cortante e eu sentia pedregulhos sobre meus


pés ao deixara balada. Eu já conhecia essa efervescência dentro de
mim, a minha gargantaqueimando e a falta de tempo para conseguir
me afastar. Mal consegui chegar ao meucarro, perto do qual eu caí
de joelhos. As águas foram parar no chão, enquanto minhasmãos
seguravam meu cabelo para trás. Mas dessa vez, apesar de sentir
meu estômagorevirar e de vomitar, nada saiu. Eu só ouvia o barulho
da minha respiração, o meu coração batendo forte e a música quase
inaudível.
249

Quinze

— Certo — minha mãe disse, pegando um carrinho de compras ao


lado daporta automática. Ela colocou a bolsa na frente, depois
pegou a lista e a desdobrou.— Vamos lá.

Era a segunda semana de dezembro e nós estávamos no


supermercadoMayor, pois eu tinha sido a companhia escolhida para
fazer as compras para o jantar deboas-vindas de Kirsten. Eu não
estava muito animada com isso, ao contrário da minhamãe, feliz em
ritmo de férias. Mesmo assim, ao vê-la empurrando o carrinho
esorrindo para mim, fiz o melhor que pude para sorrir para ela
também. Ultimamente,tudo era na base da tentativa.

O último mês e meio foi muito confuso. A única coisa da qual eu


tinha totalconsciência era de como as coisas voltaram a ser
completamente iguais ao começo doano letivo. Parecia que o tempo
que passei com Owen não tinha nem acontecido.Novamente, eu
estava só na escola, trabalhando como modelo a contragosto
ecompletamente incapaz de fazer qualquer coisa para mudar isso.

No domingo seguinte àquela noite no Bendo, eu acordei às sete


horas em ponto,bem na hora do programa do Owen. Só quando abri
os olhos é que me lembrei queessa manhã era diferente e virei de
costas para o relógio, tentando voltar a dormir.Mas senti que uma
teimosa dentro de mim insistia em ficar acordada, pouco a pouco,
etudo voltou como uma avalanche.

Ele deveria estar furioso comigo, afinal de contas, eu simplesmente


fuiembora, sem explicação nem nada. O pior era que eu sabia que
estava errada,mesmo sob as circunstâncias em que tudo estava
acontecendo, mas mesmo assim nãofiz nada a respeito. A única
maneira de consertar isso seria explicar aberta ehonestamente por
que eu tinha ido embora, e eu não podia fazer isso. Nem mesmopor
ele.

Porém, no final das contas, discutir ou não sobre aquela noite não
dependia sóde mim. No dia seguinte, de volta à escola, Owen tomou
a decisão por nós.
250

Eu estava dentro do meu carro, pois tinha acabado de estacionar,


quando eleapareceu do nada na janela. Anunciou sua presença
batendo no vidro, forte: tum,tum, tum. Eu pulei e virei o rosto. Assim
que percebeu que eu estava prestandoatenção, ele abaixou a mão e
deu a volta no carro em direção ao banco do passageiro.Quando ele
abriu aporta, eu respirei fundo, exatamente como dizem que se deve
fazercaso o seu carro esteja imerso em água, o último fôlego. E
Owen estava dentro docarro.

— O que aconteceu com você?

Como eu esperava, ele não disse nem oi. Nenhum silêncio profundo
para eupreencher. Apenas a única frase que ficou na cabeça dele
por... hum... trinta e seishoras mais ou menos. E o pior, ele me
olhava com tanta atenção — e raiva — que sóconsegui olhar para
ele rapidamente, durante cerca de um segundo. Seus lábiosestavam
sérios, seu rosto, vermelho, sua presença inquieta preenchendo o
pequenoespaço ao nosso redor.

— Desculpe — eu disse, e senti minha voz vacilar quando as


palavrassaíram. — Eu só...

Esse é o problema em lidar com alguém que é um verdadeiro bom


ouvinte.Eles não interrompem você no meio de frases, impedindo,
ou melhor, salvando você deter que terminá-las. E nem falam antes
de você, permitindo que o que você quer dizer seperca ou se altere
no caminho. Em vez disso, eles esperam. Então você tem
quecontinuar.
— Eu não sei o que dizer — eu consegui falar, finalmente. — Eu
só... Nãoconsigo.

Ele ficou em silêncio por um tempo que me pareceu longo. "Isso é


tortura",pensei. Então ele disse:

— Se você não queria ir lá no sábado, era só ter me dito.

Mordi meu lábio, olhando para as minhas mãos enquanto dois


carinhaspassavam pela minha janela gritando algo sobre o treino de
futebol.

— Eu queria estar lá — falei.

— Então, o que aconteceu? — ele perguntou. — Por que você


simplesmente foi embora? Eu não sabia o que estava acontecendo.
Fiquei te esperando.

Algo nessas poucas e últimas palavras me fez desmoronar. Fiquei


te
251

esperando. É claro que sim. E é claro que ele me diria isso porque,
diferentemente demim, Owen não guardava segredos. Com ele,
tudo era um livro aberto.

— Desculpe — eu disse de novo, mas até para mim aquilo soou tão
ruim efraco, sem significado. — Eu só... Muita coisa tinha
acontecido.

— Como o quê?

Eu balancei a cabeça. Era isso que eu não podia fazer: ficar contra
a parede enão ter saída a não ser contar a verdade.

— É que foi muita coisa — eu disse.

— Coisa — ele repetiu, e eu pensei, Marcador de Posição. Mas ele


não disseisso em voz alta.

Em vez disso, ele espirrou, virando a cabeça para a janela. Só então


eu mepermiti olhar para ele, observando tudo o que me era familiar:
o traço forte da suamandíbula, os anéis nos dedos e os fones de
ouvido em volta do seu pescoço. Bemde longe, eu ouvi música
saindo deles e me perguntei, por hábito, o que ele estariaouvindo.

— Eu só não entendo — ele disse. — Quero dizer, tem que ter uma
razão, evocê simplesmente não quer contar. E isso não... — ele
parou, balançando a cabeça.— Isso não parece você.

Durante um momento, o silêncio foi absoluto. Ninguém andava,


nenhum carro passava atrás de nós. E eu disse:
— Mas é.

Owen me olhou, colocando a mochila em cima do outro joelho.

— O quê?

— Isso se parece comigo — eu disse. Minha voz era tão baixa que
eu malpodia me ouvir. — Isso é tipicamente meu.

— Annabel. — Ele ainda parecia perturbado, como se isso nunca


pudesse ser verdade. Ele estava errado. — Pare com isso.

Abaixei o olhar em direção às minhas mãos novamente.

— Eu queria ser diferente — eu disse a ele. — Mas sou assim.


252

Tentei dizer isso a ele naquele primeiro dia. Eu disse que nem
sempre falavaa verdade, que eu não sabia lidar bem com conflitos,
que raiva me dava medo e queestava acostumada às pessoas
simplesmente desaparecerem quando estavam comraiva. Nosso
erro foi ambos acreditarmos que eu fosse capaz de mudar. Que eu
tinha mudado. Mas no final das contas, essa era a maior mentira de
todas.

O primeiro sinal tocou alto e longo. Owen mudou de posição no


banco,depois colocou a mão na maçaneta da porta.

— Seja lá o que for — ele disse —, você poderia ter me contado.


Você sabedisso, não é?

Vendo Owen sentado lá, com uma mão na porta, eu sabia que ele
estavaesperando que eu fosse a garota corajosa que ele pensava e
contasse a ele. Eleesperou mais tempo que imaginei, até que abriu
a porta e saiu.

E, assim, ele se foi, atravessando o estacionamento com a mochila


no ombroe já colocando os fones de ouvido. Quase um ano antes,
eu o vi desse mesmo jeito logodepois de ele ter dado um soco em
Ronnie Waterman. Naquele dia, fiquei espantadae com um pouco
de medo. Eu me sentia do mesmo jeito agora, ao me dar conta
doque meu silêncio e medo me custaram, mais uma vez.

Esperei até o segundo sinal, quando o pátio estava quase vazio,


para sair docarro e ir para a aula. Não queria ver Owen, não queria
ver ninguém. Durante toda amanhã, andei pelos corredores como se
envolta por uma névoa, bloqueandodeliberadamente as vozes ao
meu redor. No almoço, fui para a biblioteca e me senteiem uma
mesa individual perto da seção de História Americana com
livrosespalhados na minha frente, mas sem ler uma palavra.

Ao chegar o final do período, recolhi minhas coisas e fui ao


banheiro. Estavavazio, com exceção de duas garotas que eu não
conhecia, paradas perto das pias, quecomeçaram a falar assim que
entrei em uma cabine.

— O que estou dizendo — uma disse enquanto a torneira foi ligada


e a águacomeçou a cair — é que eu não acho que ela esteja
mentindo.

— Ah, fala sério — a outra garota falava alto e a voz era mais nasal.
— Elepoderia sair com a garota que quisesse. Então, por que ele
faria uma coisa dessas?

— Você realmente acha que ela iria à polícia se não tivesse


acontecido?

— Talvez ela só queira chamar a atenção.


253

— De jeito nenhum. — A torneira parou e ouvi papéis-toalha


serempuxados.

— Ela e Sophie eram melhores amigas. E agora todo mundo sabe!


Por quepassar por tudo isso por causa de uma mentira?

Congelei. Elas estavam falando sobre Emily.

— E ele foi preso acusado do quê? — a primeira garota perguntou.

— Agressão sexual. Ou estupro em segundo grau, eu não sei qual.

— Não acredito que ele foi preso de verdade — a outra garota


disse.

— Na república em que ele mora, a A-Frame! — a amiga


respondeu. —Megan disse que, quando a polícia estacionou na
frente, era gente correndo para todosos lados. Todos achavam que
era uma batida pra procurarem bebida na casa.

— Não exatamente. — Ouvi o zíper de uma mochila. — Você viu a


Sophie?

— Não. Eu acho que ela não veio hoje — disse a outra garota. —
Quemerda. Você viria?

Elas saíram, fazendo barulho no chão com os saltos, então não


cheguei aouvir a resposta. Em vez disso, fiquei na cabine com uma
mão na parede ao meu lado,onde alguém tinha escrito EU ODEIO
ESTE LUGAR em caneta azul. Abaixei a mão,depois tampei o vaso
sanitário e me sentei, tentando organizar mentalmente o quetinha
acabado de ouvir.

Emily foi à polícia. Emily prestou queixa. Emily contou.

Essa descoberta foi tão impactante que fiquei lá, sentada, com as
mãos nascoxas e atordoada. Will tinha sido preso. As pessoas
estavam sabendo disso. Desdesábado à noite, eu deduzi que Emily,
assim como eu, tivesse ficado em silêncio, commedo, e guardado
para si a história e a deixado lá. Mas não foi isso que ela fez.

Com o passar da tarde, comecei a ouvir as pessoas ao meu redor e


peguei o restoda história. Ouvi que Emily ia pegar uma carona da A-
Frame até uma festa comSophie, mas ela se atrasou, então Will se
ofereceu para levá-la. Que ele estacionou narua e, então,
dependendo de quem acredita em quem, ele pulou nela ou ficou
surpresoquando ela tomou a iniciativa. Que uma mulher passeando
com o cachorro viu algoacontecendo e ameaçou chamar a polícia
caso eles não saíssem de lá. Foi assim queEmily saiu do carro e,
depois de pegar uma carona para casa, contou tudo para sua
254

mãe. Parece que ela tinha passado a manhã inteira do sábado na


polícia, dandoqueixa. Que, quando a polícia foi prender Will no
sábado à noite, ele chorou ao seralgemado. Que o pai do Will pagou
a fiança em poucas horas e contratou o melhoradvogado da cidade
para ele. E que Sophie estava contando para todo mundo queEmily
sempre tinha sido a fim do Will e que, quando ele disse que não
estavainteressado, ela falou ter sido estuprada E enquanto Sophie
não tinha ido à escolahoje, Emily estava lá.

Não a vi até depois do último sinal. Eu estava pegando um caderno


no meuarmário quando percebi as vozes sumindo de repente, o que
era muito estranho para abagunça de final de dia. Não chegou a
ficar um silêncio absoluto, mas maissilencioso. Quando me virei, eu
a vi andando no corredor em minha direção. Ela nãoestava
encolhida nem sozinha. Estava acompanhada de duas garotas, uma
de cadalado; as duas eram suas amigas antes de Sophie. Eu
simplesmente deduzi que nãoteria ninguém ao meu lado depois do
que tinha acontecido, e que todos simplesmenteaceitariam a versão
da Sophie. Nem passou pela minha cabeça que alguém fosse acre-
ditar na minha.

O assunto dos dias que se seguiram continuou sendo o que


aconteceu entreEmily e Will, mas eu me esforçava para não prestar
atenção. Mas às vezes isso eraimpossível, como no dia em que eu
estava na aula de inglês, lendo um pouco maisda matéria na última
hora, e Jessica Norfolk e Tabitha Johnson, que estavamsentadas
atrás de mim, começaram a falar sobre Will.

— Eu ouvi dizer — disse Jessica, que era tesoureira do primeiro ano


e não fazia, pelo menos era o que eu pensava, o estilo fofoqueira —
que ele fez isso antes.

— Sério? — respondeu Tabitha. Ela sentou-se atrás de mim durante


todo o anoe ficava sempre fazendo clic clic com a caneta, o que me
deixava louca. E estavafazendo isso agora.

— É. Parece que rolavam uns boatos quando ele estudava na


Perkins Day. Sabe, umas meninas disseram que algo parecido
aconteceu com elas.

— Mas ninguém o fez ser preso.

— Bem, não — Jessica disse. — Mas isso quer dizer que poderia
ser... Um

padrão.

Tabitha, ainda fazendo clic clic com a caneta, suspirou


profundamente.

— Nossa — ela exclamou. — Coitada da Sophie.


255

— Eu sei. Imagina você namorar alguém e acontecer isso?

Em muitas dessas conversas que ouvi, o nome da Sophie aparecia,


o que nãoera de se surpreender. Ela e Will eram um desses casais
conhecidos com a frequenteexposição dos seus dramas. Então, me
pareceu estranho ela não ter ido à escolanaquele primeiro dia.
Fiquei surpresa com Emily, mas com Sophie também. Nãoapenas
pelo fato de não ter ido à escola, mas pelo seu comportamento
depois, quandoela finalmente voltou às aulas.

Ela não ficou no pátio para deixar claro que não tinha ficado abatida
peloque aconteceu. Nem confrontou Emily na frente das pessoas,
como fez comigo. Naverdade, a primeira vez que a vi, ela estava só,
andando no corredor e falando aocelular. No almoço, quando olhei
pela janela da biblioteca, ela não estava sentadano seu banco —
que estava cheio de garotas mais novas que eu nem conhecia
—,mas na calçada próxima ao retorno, esperando uma carona. Já
Emily estava sentadaem uma mesa de piquenique, tomando água e
comendo batatinhas, cercada depessoas.

Então, Sophie estava só. Eu estava só. E Owen estava só, pelo
menos foi o quededuzi. Às vezes, antes ou depois da escola, eu o
olhava de relance. Ele sempre sedestacando no meio de todos ao
andar no pátio ou entrar em algum prédio. Às vezes,ao vê-lo, tudo o
que eu queria era contar tudo a ele. Essa vontade me vinha como
umaonda, repentina e inesperada. Mas, no momento seguinte, eu já
dizia a mim mesmaque agora ele provavelmente nem queria saber
de nada. Ao vê-lo atravessando opátio sem nenhuma expressão no
rosto, usando fones de ouvido, era como se eleretrocedesse e
voltasse a ser para mim a pessoa que era antes de tudo isso.
Apenasum mistério, um garoto que eu não conhecia, apenas mais
um rosto na multidão. Sea escola me estressava, em casa não era
diferente. Mas apenas eu me sentia assim,pois tudo estava ótimo
para todos os outros membros da minha família. Minha mãe,ao meu
lado, estava nesse exato momento empurrando o carrinho de
compras pelosetor de frutas do supermercado, toda feliz que a
família estaria finalmente reunidade novo depois de Kirsten ter
falado em vir no feriado de Ação de Graças e, maistarde, ter
resolvido ficar em Nova York para trabalhar algumas horas extras
eestudar. Porém, ela mencionou ter passado o jantar de Ação de
Graças com Brian, oprofessor assistente, mas não deu maiores
detalhes, o que não era muito o "estiloKirsten de ser". Agora ela
finalmente viria nos visitar no Natal, e minha mãe estavamuito
empolgada.

—Vamos fazer dois tipos de batata — minha mãe disse, fazendo


sinal paraeu pegar algumas sacolas plásticas. — Vou fazer a minha
batata ensopada de fornoe Whitney fará uma batata assada com
azeite de oliva.
256

— Ah, é? — eu perguntei, lhe estendendo as sacolas.

— É uma receita que Moira passou pra ela — ela disse. — Não é
ótimo?E era. Deixando meus problemas de lado, tenho que admitir
que fiqueiimpressionada com a recente melhora da Whitney. Há um
ano tudo aquilo começoue agora, por mais que ela ainda não
estivesse curada, as mudanças eram evidentes e muito boas.

Primeiro, ela começou a cozinhar. Não muito e nem com muita


frequência.Foi bem devagar, logo depois do macarrão que ela fez
para mim. Parece que MoiraBell gostava de alimentação natural e
cozinha orgânica, e quando Whitney lhecontou que tinha feito
espaguete, ela lhe emprestou alguns livros de receita. Asrefeições
da minha mãe eram mais cremosas e substanciosas: muito
ensopado deforno com base de creme de cogumelo, molhos
pesados, carne e maisena. Whitneytomou um rumo diferente, o que
era de se esperar. Começou fazendo salada para ojantar de vez em
quando e, depois, passou a ir à quitanda comprar verduras
elegumes que ela ficava séculos fatiando. Seus molhos para a
salada eram vinagretes,misturas com ervas, e, se você tentasse
pegar o molho ranch ou tártaro, ela olhavaatravessado. No fim de
semana do desfile, ela fez salmão grelhado com molho delimão,
seguido de ervilhas no vapor com limão fresco para substituir o
encorpadoensopado de forno com cobertura de cebola frita que
normalmente comíamos no Diade Ação de Graças. Minha mãe era
uma ótima cozinheira, do tipo que não precisava dereceitas, nem
medidas, pois trabalhava somente com pitadas e salpicadas.
QuandoWhitney cozinhava, era com muita exatidão, e sempre com
seu jeito mandão —fosse sobre o molho para salada ou ao dizer
que sim, nós poderíamos viver semcolocar manteiga em todos os
acompanhamentos —; era tudo parte do processo.Mas mesmo
quando irritava, ainda era uma melhora e nós todos estávamos
comendode maneira mais saudável. Querendo ou não.

Ela também estava escrevendo e terminou sua história oficial no


final deoutubro, mas não parou de trabalhar nela, sentando-se com
frequência à mesa dejantar ou enrolada perto da lareira, mordendo
o lápis. Até agora ela não me pediu paraler nada do que escreveu,
mas eu também não pedi para ver. Mesmo assim, daspoucas vezes
que vi seu caderno na escada ou na mesa da cozinha, fiquei tentada
aabri-lo apenas para ver o que diziam aquelas linhas escritas com
tanto cuidado. Masnão fiz. Afinal de contas, eu era uma especialista
em guardar as coisas para mim.

Porém, as ervas foram o que mais me impressionou. Depois de ficar


na janelasem fazer nada durante uns dois meses, o alecrim
finalmente germinou um poucoantes do Halloween. Era apenas um
pontinho verde, mas logo outros o seguiram.Whitney verificava
como eles estavam todos os dias, testando a umidade do solo com
257

os dedos e virando-os de leve para onde tinha mais luz. Antes, eu


pensava em minhairmã do meio como uma porta fechada, mas
ultimamente eu a via de outra forma:suas mãos segurando uma
faca, ou uma caneta, ou um regador se movendo sobre as plantas e
as ajudando a crescer.

Enquanto isso, Kirsten não só tinha sobrevivido à exibição do seu


filme paraseus professores e colegas de classe, mas foi vitoriosa
ganhando o primeiro lugar nacompetição. Esperei que ela nos
ligasse para nos presentear com um dos seus extensosmonólogos
cheios de detalhes, mas, em vez disso, ela deixou uma mensagem
— noscontando que tinha ganhado e que estava muito contente —
que durou menos de doisminutos, um recorde para ela. Era tão
estranho que todos nós tínhamos certeza deque algo deveria estar
errado, mas, quando retornei a ligação, ela falou exatamente o
contrário.

— Está tudo ótimo — ela me disse. — Simplesmente ótimo.

— Tem certeza? — perguntei. — Você deixou uma mensagem


muito curta.

— Foi?

— Primeiro pensei que a secretária tivesse cortado — eu disse.


Elasuspirou.

— Bem, isso não é totalmente surpreendente, eu acho. Tenho feito


muitosexercícios para me comunicar melhor.

— É mesmo? — perguntei.
— Sim, claro — ela suspirou novamente, um suspiro feliz. — Fico
im-pressionada com o tanto que aprendi este semestre. Quero dizer,
entre o trabalhocomo diretora de cinema e a aula de Brian, eu estou
aprendendo muito sobre overdadeiro significado da comunicação.
Realmente abriu meus olhos.

Fiquei esperando que ela continuasse, que explicasse.


Especialmente sobreo Brian. Mas não foi o que ela fez. Em vez
disso, ela disse que me amava, que tinha que ir e que me veria logo.
E nós desligamos. Em menos de quatro minutos.

Kirsten pode ter aprendido a arte da verdadeira comunicação, mas


eu estavatristemente reprovando nessa matéria. Não apenas com
Owen, mas também comminha mãe, pois, de alguma maneira, no
meio de tudo aquilo que estava acontecendo,concordei em fazer
outro comercial para a Kopf.

Foi na mesma semana em que fiquei sabendo que Emily deu


queixa. Quando
258

cheguei da escola naquela sexta-feira, minha mãe me esperava na


porta.

— Adivinha! — ela disse, antes de eu entrar em casa. — Acabei de


receber umtelefonema de Lindy. O pessoal da Kopf entrou em
contato com ela ontem pelamanhã. Eles querem você no novo
comercial de primavera.

— O quê? — eu perguntei.

— Parece que eles gostaram muito dos resultados da campanha


passada. E, eutenho que dizer, ter conhecido aquele homem do
marketing não fez mal algum. Elesvão filmar em janeiro, mas
querem te ver em dezembro para a prova de roupas. Não éótimo?

"Ótimo", pensei. A verdade é que isso seria algo que eu consideraria


muitomais importante alguns meses atrás. Cerca de duas semanas
antes, eu talvezconseguisse impedir tudo aquilo. Mas agora, eu
simplesmente fiquei parada e malconsegui balançar a cabeça,
concordando.

— Disse a Lindy que ligaria para ela assim que contasse a você —
ela falouandando em direção à cozinha e pegando o telefone.
Enquanto discava, elaacrescentou: — Pelo que Lindy disse, o
anúncio foi muito bem aceito entre as garotase foi disso que o
pessoal da Kopf realmente gostou. Você é um modelo, um
exemplo,Annabel! Isso não é incrível?

Pensei no quarto da Mallory, as tomadas das cenas enfileiradas na


parede. Edepois em seu rosto olhando para a câmera, as plumas do
boá flutuando.
— Eu não sou modelo para ninguém.

— É claro que é — ela respondeu com uma facilidade incrível. Ela


virou acabeça para me olhar, sorrindo novamente ao mudar o
telefone para a outra orelha. —Você tem muito do que se orgulhar,
querida. Tem mesmo. Quero dizer... Lindy?... Oi!É a Grace. Estou
tentando falar... A sua recepcionista ainda não voltou?...
Ainda?...Que péssimo... Sim, eu acabei de conversar com a
Annabel e ela estáanimadíssima...

"Animadíssima", pensei. Não muito. E nem um modelo, também.


Não que issoimportasse. Contanto que alguém pense que eu sou
todas essas coisas, é isso o queimporta.

De repente, outubro virou novembro, e novembro virou dezembro,


sem queeu notasse os dias ficando mais curtos e mais frios, e as
musiquinhas de Nataltocando nas rádios. Ia para a escola, estudava
e voltava para casa. Mesmo quando as
259

pessoas tentavam falar comigo na escola, eu mal respondia, tão


acostumada ao meuisolamento que até preferia ficar assim. Logo
nos primeiros fins de semana, meus paispareciam intrigados com o
fato de eu não sair mais e nem fazer planos. Mas depois dejustificar
dizendo que eu estava muito cansada por causa do meu trabalho
comomodelo e da escola, e que precisava fazer dever de casa, eles
pararam de perguntar.

Mesmo assim, eu tinha consciência do que estava acontecendo ao


meu redor.Sabia pelas fofocas que o julgamento do Will se
aproximava e que garotas daPerkins Day se apresentariam para
contar histórias parecidas com a de Emily. Quantoa Emily, ela
parecia estar indo bem. Ela com certeza não estava se escondendo.
Naverdade, eu a via em todos os lugares — nos corredores, no
pátio, conversando noestacionamento — sempre com um monte de
garotas em volta dela. Mais ou menosuma semana atrás, no
corredor, eu a vi parada perto do seu armário e ela ria de
algumacoisa. Suas bochechas estavam vermelhas, a mão sobre a
boca. Foi apenas ummomento, uma coisa, mas que por algum
motivo ficou na minha cabeça o dia inteiro.

Sophie não estava indo tão bem. Das vezes que a vi, ela estava
sozinha e agorasaía da escola no horário de almoço todos os dias
em um carro preto que parava parapegá-la. Não era Will, e eu me
perguntava se eles ainda estariam juntos, mas, já quenão ouvi dizer
o contrário, imaginei que ainda estivessem.

Parecia que tinha passado um milhão de anos desde que as aulas


começaram,quando eu tinha medo dela. Agora, ao ver Sophie, eu
simplesmente ficava triste pornós duas. Sentia um pouco de solidão
quando via Owen. Mas apesar de não nosfalarmos, continuava
escutando, à minha própria maneira.

Não o programa de rádio, embora ainda acordasse pontualmente às


sete damanhã aos domingos, um mau hábito que por alguma razão
eu não perdia. Mais difícil de esquecer era a música. Não apenas a
música dele, mas qualquer música.

Não sei exatamente quando começou, mas de repente eu prestava


atenção aosilêncio. Em todo lugar que ia, eu precisava de algum
tipo de barulho. Quando estava nocarro, ligava o som sem pensar;
no meu quarto, desligava a luz antes de desligar o toca-CD. Até na
aula ou sentada à mesa com meus pais, sempre tinha uma música
serepetindo na minha cabeça. Lembrava de Owen me contando
como a música osalvou quando ele morava em Phoenix, pois ela
abafava tudo, e eu sentia a mesmacoisa agora. Desde que tivesse
algo para ouvir, eu podia disfarçar as coisas sobre asquais não
queria pensar, ou até bloqueá-las completamente.

Mas eu precisei de muita música para fazer isso e depois de


algumassemanas já tinha ouvido várias vezes todos os meus CDs.
E foi por isso que, numa
260

noite de sábado, não aguentei e peguei a pilha de CDs que Owen


tinha gravado paramim. "Momento de Desespero", pensei ao abrir o
CD de MÚSICAS DE PROTESTO novamente e ouvi-lo.

Eu continuei não adorando. Algumas músicas eram estranhas e


outras eu nãoentendia. Porém, achei que fosse ser estranho ouvir
as músicas de Owen, mas, naverdade (e para a minha surpresa), foi
muito reconfortante. Eu gostava de imaginá-loescolhendo as
músicas para mim, organizando tudo com cuidado, esperando que
eume tornasse uma iluminada. De qualquer maneira, era prova de
que um dia nóstínhamos sido amigos.

Nas últimas semanas, venho ouvindo os CDs, música por música,


prestandoatenção em cada faixa até saber de cor. Cada vez que
terminava um deles, me sentiatriste por saber que faltava pouco
para essa experiência terminar também. Assim, euplanejava não
ouvir o CD onde estava escrito Just LISTEN . Era um mistério para
mim,assim como Owen tinha sido, e às vezes eu pensava que seria
melhor deixá-lo semsolução. Mesmo assim, eu o pegava de vez em
quando, apenas para tocá-lo, e depois ocolocava de volta junto com
os outros.

Quando minha mãe e eu finalmente estávamos indo para o


estacionamentodo supermercado, fiquei surpresa ao ver que estava
nevando. Os flocos eramgrandes, do tipo rechonchudos e bonitos
demais para acreditar, mas nós duasficamos paradas por um tempo,
observando-os cair. Quando chegamos ao carro esaímos do
estacionamento, eles já estavam diminuindo, alguns deles eram
pegos pelovento e voavam em círculos. Minha mãe ligou o limpador
de pára-brisas ao pararmosem um semáforo, olhando os flocos
caírem sobre o carro.

— É lindo, não é? — ela disse. — Há algo na neve que faz tudo


parecer tão fresco e novo. Você não acha?

Fiz que sim com a cabeça. O semáforo demorava e, apesar de ser


apenas cincohoras da tarde, já estava escurecendo. Minha mãe me
olhou sorrindo e estendeu a mãopara ligar o som. Quando ela
aumentou o volume, enchendo o carro de música clássica,virei meu
rosto para o lado de fora. Senti a janela fria contra a minha
bochecha, e fiquei olhando aqueles flocos bonitos caindo até fechar
os olhos.
261

Dezesseis

A mesa de estudos individuais da biblioteca, onde eu agora passava


a hora do almoço, ficava bem no canto direito, escondida e longe de
qualquer movimento. Eunão estava acostumada a ter companhia e,
por isso, quando Emily entrou lá no últimodia antes das férias de
Natal, eu a vi primeiro.

Em um primeiro momento, ela era apenas um borrão vermelho que


vi decanto do olho e passou uma, depois, duas vezes. Eu ergui o
olhar e logo voltei para asanotações de inglês que estavam
espalhadas na minha frente, pois estava estudandopara uma prova;
depois, olhei novamente ao meu redor: nada. As mesmas
estantessilenciosas e as mesmas fileiras de livros. Porém, em
seguida, ouvi passos. Quandome virei, ela estava atrás de mim, em
uma estante próxima.

— Ah — ela disse. Sua voz era baixa, mas audível. — Você está aí.

Ela falou como se eu tivesse sido perdida, ou extraviada, e agora


aparecesse,como uma meia que você encontra muito tempo depois
de achar que ela tinha sumidona máquina de lavar. Eu não disse
nada, de tão preocupada com o pânico que estavacomeçando a
sentir. Escolhi ficar naquele lugar justamente por ser isolado, de
frentepara a parede e longe de tudo, os mesmos motivos pelos
quais esse era o pior lugarpara ficar encurralada.

Emily começou a vir em minha direção e eu, sem nem me dar conta,
meinclinei para trás e bati na mesa seguinte. Ela parou de braços
cruzados.
— Olha — ela disse. — Eu sei que as coisas ficaram estranhas
entre nós nesseano. Mas eu... Eu preciso falar com você.

Ouvi vozes vindas de algum lugar próximo, uma voz feminina e


outramasculina, conversando ao andar por entre as estantes. Emily
as ouviu também evirou a cabeça na direção de onde vinha aquele
som até ele sumir. Depois, pegou umacadeira próxima, arrastou-a
para perto de mim e se sentou. Sua voz era quase umsussurro,
quando ela disse:
262

— Eu sei que você ficou sabendo do que aconteceu. Do que Will


fezcomigo.

Ela estava tão perto de mim que eu sentia o cheiro do seu perfume,
umamistura de floral e frutas.

— Depois — ela continuou, sem tirar aqueles olhos verdes de mim


— eucomecei a pensar em você. E naquela noite na festa, nas
férias do ano passado.

Eu podia ouvir a minha respiração, o que queria dizer que


provavelmente elatambém podia. Atrás dela, dava para ver pela
janela as árvores se mexendolevemente, e um raio de luz se abria
sobre as prateleiras de livros e a poeira.

— Você não precisa conversar sobre isso comigo — ela continuou.


— Querodizer, eu sei que você me odeia e tudo mais.

Eu me lembrei da Clarke, olhando para mim no Bendo. "É isso o


que vocêacha?", ela respondeu quando eu disse essa mesma coisa
a ela.

— Mas acontece que — Emily disse — se algo aconteceu... Algo


parecido com oque aconteceu comigo, você poderia ajudar. Assim
ele nunca mais vai poder fazer isso.Nunca mais.

Eu ainda não tinha dito nenhuma palavra Não consegui dizer nada.
Só fiquei lá, imóvel, vendo-a colocar a mão no bolso da calça e tirar
um cartãozinho branco.
— Esse é o nome da mulher que está cuidando do meu caso — ela
disse,estendendo o cartão para mim. Como eu não o peguei
imediatamente, ela colocou ocartão em cima da mesa, do lado do
meu cotovelo e com a frente para cima. O nomeestava em fonte
preta e tinha um logotipo no canto superior esquerdo. —
Ojulgamento começa na segunda-feira, mas eles ainda querem falar
com algumaspessoas. Você poderia apenas ligar para ela
encontrar... O que você quiser. Ela é muito bacana.

A única coisa que eu mais temia, a razão pela qual não fui sincera
com Owensobre o que realmente estava acontecendo naquela noite
no Bendo, ela fez parecer tãofácil. Se não consegui contar para ele,
a única pessoa que eu realmente achava queagüentaria, como
conseguiria me abrir com uma estranha? De jeito nenhum, nem
seeu quisesse. E eu não queria.

— Só pense sobre o assunto — ela me disse. Depois, tomou fôlego,


comose fosse falar mais alguma coisa, mas não disse e se levantou.
— Aí a gente se vê, tá?
263

Ela colocou a cadeira de volta no local onde estava e começou a


andar nadireção da prateleira mais próxima. Porém, depois de dar
dois passos, ela se viroupara me encarar.

— E Annabel? — ela perguntou. — Desculpa.

Por um momento, essa palavra ficou suspensa no ar entre nós até


que elavoltou a andar e desapareceu ao passar pela última mesa de
estudo. Desculpa. Era amesma coisa que eu queria dizer a ela
desde aquela noite de sábado, no desfile. Porque ela estava me
pedindo desculpa?

Mas mesmo enquanto minha mente se debatia para tentar entender


a lógicadisso tudo, tive uma reação visceral ao que tinha acabado
de acontecer, ao fato de elater chegado mais perto da verdade do
que qualquer outra pessoa. Da minha verdade.E, de repente, senti
algo subindo dentro de mim. Olhei em volta, me perguntando
ondeeu poderia encontrar um lugar para passar mal discretamente e
em silêncio. Porém,algo diferente aconteceu: eu comecei a chorar.

Chorar. Chorar de verdade, de um jeito que eu não chorava havia


anos, o tipode choro que faz você soluçar e bate feito uma onda,
derrubando. As lágrimasapareceram de repente e senti soluços
subindo pela minha garganta e meus ombrostremendo. Tentando
me esconder, me virei desajeitada e bati o ombro na mesa,fazendo
cair o cartão de visitas, que flutuou até pousar sobre o meu pé.
Apoiei acabeça nas mãos, pressionando as palmas contra meus
olhos para ficar no escuro. Euchorei e chorei lá mesmo, escondida
em um canto da biblioteca, até me sentir vaziapor dentro.
Fiquei com muito medo de alguém me ver, mas ninguém apareceu.
Ninguémouviu. Porém, aos meus próprios ouvidos, meus soluços
pareciam altos e assustadores,algo que eu simplesmente desligaria
se pudesse. Mas a única coisa que podia fazerera deixá-lo sair até
ele — e eu — acabar com isso.

Quando isso aconteceu, abaixei as mãos e olhei ao meu redor.


Nada tinhamudado. Os livros ainda estavam lá, a poeira dançava no
feixe de luz e o cartãocontinuava no meu pé. Então, me abaixei para
pegá-lo, sem ler nem olhar para ele.Mas coloquei-o no meu bolso no
exato momento em que o sinal tocou e a hora doalmoço tinha
acabado.

***

O clima de final de ano ficou no ar durante o resto do dia, e se podia


sentir aanimação por causa das férias, com todo mundo fazendo
contagem regressiva.
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Ao terminar tarde o meu teste, fui para meu armário e depois para
obanheiro, onde só tinha uma menina se olhando no espelho,
passando delineadorazul. Logo depois que entrei na cabine, eu a
ouvi indo embora. Porém, ao sair, vi Clarke Reynolds, de calça
jeans e uma camiseta do TRUTH SQUAD , encostada na pia.

— Oi — ela disse.

Minha primeira reação foi olhar atrás de mim, o que era maluquice,
além deburrice, pois dava para ver pelo espelho que não havia mais
ninguém lá.

— Oi — respondi.

Dei um passo para o lado e abri a torneira da pia seguinte. Senti que
ela meolhava lavar as mãos e apertei o recipiente de sabonete
líquido, vazio como sempre.

— Então — ela falou, e eu, mais uma vez, notei que sua voz não
estava maisfanhosa. — Tá tudo bem?

Desliguei a torneira.

— O quê?

Ela levantou a mão, endireitando os óculos.

— Não sou só eu que estou perguntando — ela disse. — Quer


dizer,obviamente sou eu. Mas o Owen também está querendo
saber.
Foi tão estranho ouvi-la dizer o nome do Owen que demorei um
pouco paraentender.

— O Owen? — perguntei.

Ela fez que sim com a cabeça.

— Ele está só... — ela hesitou. — Preocupado, acho que é a


palavra.

— Comigo — eu disse, esclarecendo.

— É.

Algo estava errado ali.

— E ele pediu para você vir falar comigo?

— Ah, não — ela respondeu, fazendo que não com a cabeça. — Ele
só co-mentou comigo algumas vezes, então eu também fiquei me
perguntando e... Depois
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vi você hoje logo depois do almoço. Você estava saindo da


biblioteca e pareciamuito triste.

Talvez fosse porque ela falou no Owen. Ou porque, a essa altura,


eu nãotinha muito a perder. Seja lá por qual motivo, eu
simplesmente decidi ser sincera.

— Que surpresa! — falei. — Não achei que você se importaria se eu


estivesse triste.

Clarke mordeu o lábio inferior por um segundo, e de repente me


lembrei queera algo que ela fazia milhares de vezes quando éramos
mais novas. Isso queriadizer que ela não esperava por isso.

— É isso o que você acha mesmo? — ela perguntou. — Que eu não


gostode você?

— Você não gosta — eu disse. — Você não gosta desde aquele


verão com a

Sophie.

— Annabel, por favor. Foi você que me ignorou, lembra?

— É, mas...

— É, mas nada. É você quem não gosta de mim, Annabel — sua


voz erauniforme. — É assim desde aquele verão.

Fiquei olhando para ela.


— Mas você nem olha para a minha cara no corredor — eu disse. —
Nuncame olhou. E naquele primeiro dia, no muro...

— Você me magoou — ela falou. — Nossa, Annabel. Nós éramos


melhoresamigas e você me deixou completamente de lado. Como
você queria que eu mesentisse?

— Eu tentei falar com você — eu disse. — Aquele dia na piscina.

— E aquela — ela respondeu, apontando para mim — foi a única


vez. É,eu estava brava. Tinha acabado de acontecer! Mas depois
você não apareceumais, você nunca mais ligou. Você simplesmente
sumiu.

Foi igual a Emily me pedindo desculpas, uma completa inversão de


como eu viaas coisas, o que me parecia maluco e impossível de
digerir.

— E por que agora? — perguntei. — Por que falar comigo agora?


266

Ela suspirou.

— Bom — ela respondeu devagar. — Vou ser honesta. Em boa


parte, é por causa do Rolly.

"O Rolly", eu pensei. Em seguida, me lembrei daquela noite e de


elesegurando as garrafas de água. "Fala pro Owen que ele estava
certo sobre tudo", eledisse muito empolgado.

— Você e o Rolly? — perguntei.

Clarke enrubesceu, mas apenas por um segundo. — Nós estamos


nosconhecendo — ela disse, abaixando as mãos para arrumar a
camiseta do TRUTHSQUAD que, só então percebi, parecia muito
usada para alguém que tinha visto a bandapela primeira vez havia
um mês e meio. — De qualquer maneira, naquela noite noshow,
quando ele te convenceu a me apresentar para ele, você disse que
eu te odiava.Isso me fez pensar sobre tudo o que aconteceu entre a
gente há muitos anos. E comoOwen fala de você... Tenho pensado
muito em você. Então, quando hoje vi que vocêestava...

— Como? — perguntei. — O Owen fala de mim?

— Ele não falou muita coisa — ela contou. — Só que vocês eram
amigos e,então, alguma coisa aconteceu e agora não são mais.
Desculpe contar, mas isso mepareceu, sei lá, um pouco familiar,
entende?

Senti meu rosto ficar vermelho, imaginando Clarke e Owen falando


sobre mime meu comportamento anti-social. Que vergonha!
— Não falamos sobre isso — ela acrescentou, como se eu tivesse
falado emvoz alta. Outra coisa que me lembrei da Clarke: ela
sempre lia minha mente.

Clarke estava preocupada comigo. Emily me pediu desculpas.


Aquele diaestava muito estranho.

— Então, você está? — Clarke me perguntou, quando um grupo de


garotas jáde cigarro na mão entrou no banheiro e vi seus rostos
desanimarem ao nos verem lá.Elas resmungaram e depois saíram,
com certeza para esperar que fôssemos embora.— Bem, eu quero
dizer.

Fiquei parada, sem saber o que responder. Então me dei conta que,
nasúltimas semanas, além de sentir falta do Owen, eu também tinha
saudades de umaparte de mim que conseguia ser sincera com ele.
Talvez eu não pudesse fazer isso
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ali. Mas eu não precisava mentir. Então, fui para aquela posição em
que sempre mecolocava: para o meio.

— Eu não sei — respondi.

Clarke ficou me olhando por um tempo.

— Bom — ela disse —, você quer conversar?

Eu tive muitas chances. Ela, Owen, Emily. Durante muito tempo,


pensei quetudo de que eu precisava era alguém que me ouvisse,
mas isso não era verdade. Euera o problema. Eu tinha feito aquilo.
E agora, estava fazendo novamente.

— Não — respondi. — Mas, de qualquer maneira, obrigada.

Ela balançou a cabeça, se afastou da pia e eu saí do banheiro logo


atrás dela.No corredor, quando estávamos nos preparando para
seguir nossos caminhosopostos, ela abriu sua mochila e pegou um
pedaço de papel e uma caneta.

— Toma — ela disse ao mesmo tempo que escrevia no papel, que


depoisestendeu para mim. — Esse é o meu celular. Caso você
mude de idéia.

O nome dela estava escrito embaixo do número de telefone e com a


letra queeu ainda reconhecia — nítida, bem definida, a pequena
voltinha do E no final.

— Obrigada — eu disse.
Ao nos afastarmos uma da outra, eu sabia que provavelmente não
ligaria paraela. Mesmo assim, abri minha mochila e coloquei o papel
juntamente ao cartão queEmily me deu. Mesmo que nunca os
usasse, era bom saber que estavam lá.

Mais um feriado, mais uma ida ao aeroporto. Assim como no ano


anterior, mesentei no banco de trás e meus pais nos bancos da
frente. Ao andarmos pela rodovia,um avião apareceu de um lado a
outro do para brisa, enquanto pegávamos a saída.Whitney ficou em
casa fazendo o jantar. Então, éramos apenas nós três
esperandoKirsten aparecer no desembarque.

— Lá está ela! — minha mãe falou, acenando com a mão quando


minha irmãapareceu, usando um casaco vermelho brilhante e com o
cabelo preso em um rabo decavalo. Kirsten sorriu, acenando de
volta e andando em nossa direção, as rodinhasda sua mala fazendo
barulho no chão.

— Olá! — ela disse, levantando as mãos imediatamente para


abraçar meu
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pai e depois minha mãe, que já estava com os olhos cheios de


lágrimas como sempreficava em chegadas e partidas. Quando
chegou a minha vez, ela me deu um abraçoforte, e eu fechei os
olhos, sentindo o cheiro dela: sabonete, o ar gelado e a hortelãdo
seu xampu, também muito conhecido. — Estou tão contente em ver
vocês!

— Como foi a viagem? — minha mãe perguntou enquanto meu pai


pegava amala dela, e começamos a sair do terminal. — Algum
problema?

— Nenhum — Kirsten respondeu cruzando o braço no meu. — Foi


tudo

bem.

Eu esperei que ela continuasse, mas, em vez disso, ela


simplesmente sorriu paramim, depois me deu a mão, apertando-a
quando saímos e sentimos o frio.

Durante a volta para casa, meus pais encheram Kirsten de


perguntas sobre aescola, as quais ela respondeu, e sobre Brian, das
quais ela se esquivou com alegria,ficando vermelha de vez em
quando. A nova Kirsten, cuja presença eu já tinhapercebido ao
telefone, agora se mostrava. Suas respostas não eram curtas, mas
erammais breves do que qualquer um de nós estava acostumado,
tanto que caíamos emsilêncios estranhos quando ela terminava de
falar, pois esperávamos que elarecomeçasse. Em vez disso, ela
suspirava ou olhava pela janela ou apertava a minhamão, que ela
continuou segurando durante todo o trajeto para casa.
— Eu tenho que dizer — falou minha mãe no momento em que meu
paientrava na vizinhança — você está diferente, querida.

— Sério? — Kirsten perguntou.

— Não sei dizer muito bem o que é... — disse minha mãe, com o
arpensativo. — Mas eu acho...

— ...que ela está deixando o mundo falar um pouco? — meu pai


terminou afrase por ela, olhando para Kirsten pelo retrovisor. Ele
estava sorrindo. E estava certo.

— Ah, pai — Kirsten disse. — Eu não falava tanto assim, falava?

— É claro que não! — minha mãe disse a ela. — Nós sempre


adoramos ouviro que você tinha para falar.

Kirsten suspirou.

— É que eu aprendi muito sobre ser mais concisa. Assim como me


esforçarpara ouvir o que está sendo dito para mim. Quero dizer,
vocês já se deram conta de
269

como pouquíssimas pessoas realmente escutam as outras hoje em


dia?

Eu tinha me dado conta. Inclusive, passei o tempo entre a escola e


a ida aoaeroporto terminando de ouvir as últimas faixas do CD de
PUNK OLD SCHOOL / SKA do Owen, o último de todos que ele
tinha me dado. Depois desse, faltava apenas o JUST LISTEN , O
que me deixou triste. Estava acostumada a passar algumas horas
do diaou da noite ouvindo algumas faixas aqui e ali. Era uma
espécie de ritual, um tipoestranho de consolo constante, mesmo
quando a música não era confortante.

Sempre que ouvia esses CDs, eu ficava deitada em minha cama


com os olhosfechados, tentando me deixar levar pelo que estava
ouvindo. Mas hoje, quando o CDcomeçou com batidas de uma
música estilo reggae, peguei minha mochila e tirei ocartão que Emily
me deu e o telefone da Clarke e os coloquei sobre a cama, naminha
frente. Enquanto a música tocava, examinei cada um deles, como
que paradeixá-los na memória: o nome da advogada, ANDREA
THOMLINSON , e o número docelular da Clarke. Disse a mim
mesma que não precisava fazer nada com nenhumdeles. Eram
apenas opções. Como os dois anéis do Owen, eram duas
mensagens. E ésempre bom saber quais opções temos.

Quando chegamos em casa, já estava escuro, mas as luzes


estavam acesas eeu vi Whitney na cozinha, preparando alguma
coisa no fogão. Ao pararmos, Kirstenapertou a minha mão. Fiquei
imaginando se ela estaria nervosa. Mas ela não dissenada.
Lá dentro, a casa estava quente e me dei conta de que estava
morrendo defome. Kirsten respirou fundo, fechando os olhos.

— Nossa — ela exclamou, enquanto meu pai entrava —, que


cheirogostoso!

— É a Whitney cozinhando — minha mãe disse.

— A Whitney cozinha? — ela perguntou.

Olhei para frente e vi Whitney parada diante da ilha da cozinha. Ela


estavasegurando um pano de prato.

— A Whitney cozinha — ela mesma respondeu. — Mais uns cinco


minutos eestá pronto.

— Prepare-se para experimentar uma comida deliciosa! — minha


mãe dissepara Kirsten, e sua voz saiu um pouco alta demais. —
Whitney é uma cozinheira demão cheia!
270

— Uau! — disse Kirsten. Mais uma vez, caímos no silêncio. Então,


ela dissepara Whitney: — Aliás, você está ótima!

— Obrigada — Whitney respondeu. — Você também.

Até aqui, tudo bem. Ao meu lado, minha mãe sorria.

— Vou levar suas malas lá pra cima — meu pai disse a Kirsten, que
concordou acenando com a cabeça

— E eu vou montar a salada — falou minha mãe. — E depois todos


nóspodemos nos sentar e colocar o papo em dia. Enquanto isso,
vocês garotas podem subir e lavar as mãos. O que vocês acham?

— Ótimo — Kirsten disse, olhando novamente para Whitney. Meu


pai se viroupara a escada com as malas. — Está ótimo.

No andar de cima, fiquei no meu quarto, ouvindo os barulhos ao


meu redor.O quarto de Kirsten estava praticamente intocado desde
que ela se mudou, então eraestranho ouvir movimento vindo de lá
— gavetas sendo abertas e fechadas e obarulho de móveis sendo
mudados de lugar — isso de um lado do quarto. Na outraparede,
havia os barulhos da Whitney aos quais eu estava acostumada: a
camarangendo e o volume baixo do rádio. Quando minha mãe nos
chamou dizendo queestava tudo pronto, nós todas fomos para o
corredor ao mesmo tempo.

Kirsten tinha trocado de blusa e soltado o cabelo. Ela olhou para


mim,depois para Whitney, que estava atrás de mim ainda colocando
um suéter.
— Prontas? — ela perguntou, como se fôssemos para um local mais
longedo que a mesa de jantar. Eu concordei e ela começou a descer
as escadas.

Quando chegamos à sala de jantar, a comida já estava servida: uma


grandetravessa com um prato todo colorido, uma tigela de arroz
integral, a salada da minhamãe cujo molho foi preparado de acordo
com as especificações da Whitney. Ocheiro estava uma delícia, e
meu pai ficou de pé à cabeceira da mesa enquanto todasnós nos
sentamos em nossos respectivos lugares.

Assim que nos acomodamos, minha mãe serviu um copo de vinho


paraKirsten, e meu pai, uma pessoa acostumada à carne e batatas,
pediu que Whitneyexplicasse, se pudesse, exatamente o que nós
comeríamos.

— Tempeh e legumes no vapor — ela disse. — E molho de hoisin


deamendoim.
271

— Tempeh? O que é isso?

— É gostoso, pai — Kirsten disse a ele. — É tudo o que você


precisa

saber.

— Você não precisa comer se não quiser — disse Whitney. — Mas


achoque é a coisa mais gostosa que já fiz.

— Coloque um pouco no prato dele — disse minha mãe. — Ele vai


gostar.Meu pai parecia um pouco desconfiado ao ver Whitney
pegando uma colher ecolocando um pouco no seu prato. Enquanto
ela servia os acompanhamentos, olheipara a minha família ao redor
da mesa, tão diferente de um ano atrás. Era muitoprovável que nós
nunca voltássemos a ser como éramos, mas pelo menos estávamos
juntos.

Ao pensar nisso, percebi que luzes se aproximavam. Com certeza


era umcarro que passava debaixo da janela e atrás da fileira de
arbustos. Quando omotorista desacelerou, olhando para nós, pensei
mais uma vez que era impossívelsaber o que se está vendo com
uma olhada rápida e em movimento. Bom ou mau, certo ou errado.
Sempre havia muito mais.

A regra na nossa casa era: quem não cozinha, arruma as coisas


depois.Então, após o jantar, Kirsten, meu pai e eu ficamos juntos na
cozinha lavando alouça.

— Aquilo — disse Kirsten ao me dar uma panela ensaboada para


enxaguar— estava delicioso. O molho estava uma loucura de tão
bom.

— Não estava mesmo? — concordou minha mãe, sentada à mesa


da cozinhatomando café, mas bocejando mesmo assim. — E o seu
pai repetiu duas vezes. Esperoque Whitney tenha reparado. Esse é
o melhor elogio que se pode fazer a um cozinheiro.

— Eu nunca cozinho — disse Kirsten. — A não ser que pedir


comida portelefone conte.

— Conta sim — meu pai disse a ela. Ele deveria estar ajudando,
mas até agorasó tinha levado o lixo para fora e demorado muito
para trocar o saco plástico. —Pedir comida por telefone é a minha
receita favorita.

Minha mãe fez uma careta para ele quando Whitney, que tinha
desaparecidologo após o jantar, reapareceu usando sua jaqueta e
com suas chaves na mão.
272

— Vou sair um pouquinho — ela disse. — Não vou chegar tarde.


Kirsten,ainda com as mãos na água, se virou para ela.

— Aonde você vai?

— Só encontrar um pessoal para tomar um café — Whitney


respondeu.

— Ah — Kirsten disse, fazendo que sim com a cabeça. E voltou a


ficar defrente para a pia.

— Você... — Whitney fez uma pausa. — Você quer vir?

— Eu não quero ser intrometida — Kirsten disse a ela. — Não se


preocupe.

— Você pode vir comigo — ouvi Whitney falar. — Quer dizer, se


você nãose importar de ficar lá por um tempo.

Novamente, eu senti a trégua ainda incerta e cuidadosa entre


minhas irmãs— não exatamente frágil, mas também não forte como
pedra. Meus pais trocaramolhares.

— Annabel, você quer vir? — Kirsten perguntou. — Eu te pago um


mocha.

Senti os olhos de Kirsten sobre mim quando ela me perguntou isso


e melembrei dela apertando a minha mão algumas horas antes,
sinal de que talvezestivesse mais nervosa do que parecia.

— Claro — eu disse. — Vou, sim.


— Que maravilha! — minha mãe exclamou. — Divirtam-se! Eu e seu
paiterminamos de arrumar tudo aqui.

— Tem certeza? — perguntei. — Estamos só na metade...

— Tudo bem. — Ela se levantou e se aproximou, fazendo sinal para


eu eKirsten sairmos da frente enquanto ela arregaçava as mangas.
Olhei para Whitney,parada na entrada da cozinha. Eu não tinha
certeza de como tinha entrado naquela.Mas ali estava eu. — Vão,
vão.

— Olá e bem-vindos à noite do sarau aqui no Café Jump Java. Meu


nome éEsther e sou a mestre de cerimônias esta noite. Se você já
veio aqui antes, sabe asregras: faça sua inscrição lá nos fundos,
fale baixo quando alguém estiver lendo e, omais importante, não se
esqueça da gorjeta do moço do bar. Obrigada!
273

Quando chegamos, imaginei que tinha sido uma coincidência Mas


quando osamigos do grupo da Whitney acenaram para nós, ficou
claro que não era o caso.

— Então, você está pronta? — uma garota chamada Jane, que era
alta emuito magra, de suéter vermelho e com um maço de cigarros
no bolso da frente,perguntou para Whitney depois de escolhermos
nossos cafés e sermos apresentadas. — E o mais importante, você
está nervosa?

— A Whitney não fica nervosa — disse Heather, outra garota. Ela


parecia ter aminha idade e seu cabelo era escuro, curto e espetado;
ela tinha um monte depiercings no nariz e lábios — Você sabe
disso.

Kirsten e eu nos olhamos.

— Por que você estaria nervosa? — ela perguntou para Whitney,


que estava sentada ao meu lado, mexendo na bolsa sobre seu colo.

— Por causa da leitura — Jane disse a ela, tomando um gole da


caneca queestava à sua frente. — Ela se inscreveu para hoje à
noite.

— Ela tinha que se inscrever — completou Heather. — É um


Imperativo

Moira.

— Imperativo Moira? — perguntei.


— É uma coisa do nosso grupo — Whitney explicou, pegando
alguns papéisdobrados da bolsa e colocando-os à sua frente, em
cima da mesa. — Sabe, como uma tarefa. A Moira é uma das
minhas médicas.

— Ah — disse Kirsten. — Entendi.

— Então, você vai ler algo que escreveu? — eu perguntei. — Como


uma parteda sua história, por exemplo?

Whitney fez que sim com a cabeça:

— Alguma coisa parecida.

— Muito bem, estamos prontos para começar — disse Esther. — E


oprimeiro é o Jacob. Bem-vindo, Jacob!

Todos começaram a aplaudir quando um cara alto e magro usando


um gorropreto de crochê andou entre as mesas e subiu no palco.
Ele abriu um caderninho deespiral e pigarreou.
274

— O texto se chama "Sem título" — ele disse enquanto a máquina


de caféexpresso fazia barulho atrás de nós. — É sobre a minha ex-
namorada.

O poema começava com imagens sobre a luz do dia e sonhos e


depoiscomeçou a crescer rapidamente até se tornar uma lista de
palavras que elesimplesmente pronunciava, uma atrás da outra.

— Metal, Frio, Traição, Sem fim! — ele dizia quando um cuspe


ocasionalpousou no microfone. Eu olhei para Whitney, que estava
mordendo os lábios, depoispara Kirsten, que parecia completamente
fascinada.

— O que é isso? — perguntei.

— Shhh — ela disse.

O poema do Jacob continuou durante o que me pareceu muito


tempo, antes determinar com uma série de suspiros penosos e
convulsivos. Quando ele terminou,ficamos todos parados por um
segundo antes de decidirmos que era hora de aplaudir.

— Uau! — eu disse para Heather. — Isso foi forte!

— Ah, você não viu nada — ela falou. — Você devia ter vindo aqui
nasemana passada. Ele recitou um de dez minutos sobre castração.

— Foi nojento — Jane acrescentou. — Arrebatador, mas nojento.

— A próxima! — Esther anunciou. — Hoje temos uma estreante.


Então,todos, vamos receber calorosamente a Whitney.
Jane e Heather imediatamente começaram a aplaudir com
muitaempolgação, e Kirsten e eu fizemos a mesma coisa. Conforme
Whitney avançavaem direção ao microfone, eu observei a reação da
platéia: cabeças virando, absortaspela beleza dela.

— Vou ler um texto curto — ela disse, a voz baixa demais. Ela
seaproximou do microfone. — Um texto curto — ela repetiu — sobre
as minhas irmãs.

Eu pisquei, surpresa, e olhei para Kirsten. Eu queria dizer algo, mas


fiquei

quieta.

Whitney engoliu, depois olhou para os papéis cujas pontas, eu pude


ver, semexiam levemente. Parecia que ela estava com medo e de
repente tudo ficou emcompleto silêncio. Mas então, ela começou.
275

— Eu sou a irmã do meio — ela disse. — Aquela que fica entre duas
outras.Não a mais velha, nem a mais nova, não a mais atrevida, não
a mais gentil. Eu sou otom de cinza, o copo meio cheio ou meio
vazio, dependendo do seu ponto de vista.Na minha vida, fiz poucas
coisas primeiro, ou melhor, do que aquela que meprecedeu ou
quem veio depois de mim. Porém, de todas nós, eu fui a única que
se quebrou.

Eu ouvi o barulho da porta, me virei e vi uma mulher mais velha de


cabeloscompridos e encaracolados entrar e ficar parada nos fundos.
Quando ela viuWhitney ao microfone, sorriu e começou a tirar sua
echarpe do pescoço.

— Aconteceu no dia da festa de nove anos da minha irmã mais


nova —Whitney continuou — eu tinha passado o dia inteiro andando
pela casa amuada, mesentindo ignorada, e mal-humorada, que na
verdade era o modo no qual eu nasciprogramada, já aos onze anos
de idade.

Kirsten arregalou os olhos quando, na mesa próxima à nossa, um


homem riualto, e ouvi algumas outras risadas também. Whitney
ficou vermelha e sorriu.

— Minha irmã mais velha, a mais social de todas, ia andar de


bicicleta até apiscina do bairro para se encontrar com algumas
amigas e me chamou para ir junto.Se a minha irmã mais velha era
simpática e a mais nova era doce, eu era aescuridão. Ninguém
entendia a minha dor. Muito menos eu.
Houve outra risada, dessa vez de alguém do outro lado do salão, e
ela sorriu.Então Whitney também podia ser engraçada. Quem diria.

— Minha irmã mais velha subiu na bicicleta e pedalou em direção à


piscinae eu comecei a segui-la. Eu sempre a seguia, e enquanto
estávamos andando debicicleta, comecei a ficar brava. Eu estava
cansada de ser sempre a segunda.

Eu olhei para Kirsten novamente: ela estava com o olhar vidrado


emWhitney de um modo tão intenso que parecia que ninguém mais
estava lá.

— Então, virei para o outro lado. E de repente, a rua estava vazia na


minhafrente e eu tinha essa vista nova e toda para mim. E comecei
a pedalar o mais rápidoque pude.

Ouvi a colher da Heather batendo na caneca quando ela colocou


mais um pacote de açúcar no café. Continuei sentada em silêncio e
imóvel.

— Era ótimo. Liberdade, mesmo quando imaginada, é liberdade.


Masquando eu me afastei mais, comecei a não reconhecer o que
estava na minha frente
276

e me dei conta do quanto tinha andado. Eu ainda estava pedalando


rápido, longe de casa, quando minha roda dianteira de repente
quebrou e eu voei.

Ao meu lado, Kirsten mudou de posição na cadeira e aproximei


minhacadeira da dela.

— Foi uma sensação engraçada estar de repente no ar — Whitney


disse.

— Quando você se dá conta, já acabou e você está caindo. Quando


eu caí noasfalto, ouvi meu osso do braço quebrar. Nos momentos
seguintes, ouvi a roda daminha bicicleta fazer craques ao girar. Eu
só conseguia pensar no que semprepensava: que aquilo não era
justo. Sentir o gosto da liberdade apenas para, noinstante seguinte,
ser punida.

Olhei para a mulher perto da porta. Ela observava Whitney com


totalatenção.

— Tudo doía. Fechei meus olhos, pressionei minha bochecha contra


oasfalto e esperei. O quê, eu não sei. Ser resgatada. Ou
encontrada. Mas ninguémveio. Eu sempre achei que tudo o que
queria era ser deixada em paz, sozinha. Atéisso acontecer de
verdade.

Ao ouvir isso, eu engoli em seco, e depois olhei para a minha


caneca de café edeslizei meus dedos por ela.

— Eu não sei quanto tempo fiquei lá antes de a minha irmã vir me


procurar. Eume lembro de ficar olhando para o céu, de ver as
nuvens passando e depois de ouvi-la chamando por mim. Quando
ela parou ao meu lado, era a última pessoa que euqueria ver. E, no
entanto, a única pessoa que eu tinha, assim como muitas
outrasvezes antes e desde então.

Whitney fez uma pausa e respirou fundo.

— Ela me levantou e me colocou sobre o guidão da sua bicicleta. Eu


sabiaque deveria estar agradecida, mas durante todo o caminho
para casa eu estava comraiva. De mim, por ter caído, e dela, por
estar lá para ver. Ao chegarmos em casa,minha irmã mais nova, a
aniversariante, veio rapidamente. Quando me viu e olhoumeu braço,
saiu correndo, chamando minha mãe. Esse era o seu papel,
sempre. Já queera a mais nova, era ela quem contava.

Eu me lembro disso. A primeira coisa que pensei foi que algo de


muito erradodevia estar acontecendo por elas estarem tão perto
uma da outra. E isso nuncaacontecia.
277

— Meu pai me levou para o pronto-socorro, onde o osso foi


recolocado.Quando chegamos em casa, a festa já estava quase no
final: presentes abertos, bolosendo servido. Nas fotos tiradas aquele
dia, eu estou segurando meu braçoengessado, como se não
confiasse no gesso para me manter emum pedaço só. Minha irmã
mais velha está de um lado, a heroína, e a mais nova,
aaniversariante, do outro.

Eu conhecia aquela foto. Nela, eu estou de biquíni e com um


pedaço de bolona mão, e Kirsten está com um sorriso largo e uma
mão no quadril, que está para olado.

— Durante anos, ao olhar para aquela foto, a única coisa que eu via
era omeu braço quebrado. Só recentemente é que comecei a me
dar conta de outrascoisas. Por exemplo, que as minhas duas irmãs
estão sorrindo e inclinadas na minhadireção, enquanto eu estou,
como sempre, entre elas.

Ela respirou fundo, olhando para as folhas de papel.

— Essa não foi a última vez que tentei fugir das minhas irmãs. Nem
a últimavez que preferi ficar sozinha. Eu ainda sou a irmã do meio.
Mas agora vejo isso de umjeito diferente. Tem que haver um meio.
Sem ele, nada é realmente completo.Porque não é apenas o espaço
que há entre, mas é também o que une as coisas.Obrigada.

Eu fiquei lá sentada, sentindo um nó na garganta quando os


aplausoscomeçaram ao meu redor, primeiro aqui e ali e logo depois
em todo o salão,preenchendo-o. Whitney ficou vermelha,
pressionando uma das mãos contra o peito,depois sorriu ao se
afastar do microfone. Ao meu lado, Kirsten estava com os
olhoscheios de lágrimas.

Ao andar em direção à nossa mesa, Whitney recebia cumprimentos


daspessoas, que acenavam com a cabeça para ela. Eu estava tão
orgulhosa dela, porqueficava imaginando como deve ter sido difícil
ler aquilo em voz alta. Não só paraestranhos, mas para nós
também. Mas ela conseguiu. Sentada e vendo a minha irmã,eu
fiquei imaginando o que seria mais difícil no final das contas. O ato
de contar oupara quem contar. Ou talvez se, depois de ter colocado
tudo para fora, o que realmenteimportava era a história.
278

Dezessete

O relógio ao lado da minha cama indicava, com uma luz vermelha,


que eram12h15. Isso queria dizer que eu estava tentando dormir
havia três horas e oitominutos.

Desde a leitura de Whitney na noite anterior, todas as coisas que


tentavaafastar de mim — meu desentendimento com Owen, Emily
me dando o telefone daadvogada, Clarke voltando a falar comigo —
estavam me assombrando. A casa agoraestava cheia e animada,
meus pais pareciam relaxados de um jeito que não via faziameses e
minhas irmãs não estavam apenas se falando como se dando bem
de verdade. Essa harmonia repentina era tão inesperada que me fez
sentir muito mais deslocada.

Na noite anterior, ao voltar para casa depois do café, Kirsten contou


paraWhitney sobre o seu filme e como ele era parecido com o que
ela tinha acabado deler. Whitney quis assistir. Então hoje, antes do
jantar, Kirsten colocou seu laptop namesa de centro e nós todos nos
juntamos para assistir.

Meus pais se sentaram no sofá e Whitney acomodou-se no braço do


sofá aolado deles. Kirsten se sentou em uma posição boa, e me
ofereceu o lugar, mas eusimplesmente disse que não precisava e
fiquei mais atrás.

— Eu já vi — disse a ela. — Senta você aí.

— Eu já vi milhares de vezes — ela respondeu, mas se sentou no


local dequalquer maneira.
— Isso é tão emocionante! — minha mãe disse, olhando para todos
nós, e eunão entendi se ela estava falando sobre estarmos todos
juntos ou sobre o filme.

Kirsten respirou fundo, e esticou a mão para apertar um botão.

— Pronto — ela disse. — Aí vai.

Quando começou a primeira cena daquela grama muito verde, eu


tenteimanter meus olhos nela, mas, aos poucos, me peguei olhando
para a minha família.
279

Meu pai estava sério, estudando a tela; minha mãe, ao lado dele,
com as mãos nocolo. Whitney, do outro lado, tinha encolhido a
perna junto ao peito, e eu olhava oreflexo da luz piscando no rosto
dela com o passar do filme.

— Mas, Whitney — minha mãe disse enquanto, no filme, as garotas


pe-dalavam na rua — , o filme é um pouco parecido com o ensaio
que você nos deupara ler um tempo atrás, não é?

— É, sim — Kirsten respondeu baixinho. — Engraçado, não é? Nós


sódescobrimos isso ontem à noite.

Whitney não disse nada, seus olhos estavam fixos na tela que
mostrava, delonge, a garota menor fora da bicicleta e a roda
girando. E depois, começaram asimagens assustadoras da
vizinhança: o cachorro bravo, o homem pegando o jornal.Quando o
filme terminou com a última tomada de cor verde, todos ficamos
quietospor um tempo.

— Kirsten, meu Deus! — minha mãe disse, finalmente. — Isso foi


incrível.

— Está longe de ser incrível — Kirsten respondeu, colocando uma


media de cabelo atrás da orelha. Mas ela parecia contente. — É só
o começo.

— Quem diria que você tem um olho tão bom — meu pai disse,
esticando obraço para apertar a sua perna. — Toda aquela televisão
a que você assistiu não foià toa.
Kirsten sorriu para ele, mas sua atenção estava de verdade voltada
paraWhitney, que ainda não tinha dito nada.

— Então — ela perguntou —, o que você achou?

— Eu gostei — Whitney disse a ela. — Mas nunca iria imaginar que


vocêtinha me deixado para trás de propósito.

— E eu nunca teria imaginado que você começou a pedalar na


direçãooposta — Kirsten respondeu. — Que engraçado.

— Whitney concordou, acenando a cabeça, sem dizer nada. Então,


minha mãe suspirou e disse:

— Bem, e eu nunca me dei conta que aquele dia significasse tanto


para

vocês!

— O quê, você não lembra da Whitney ter quebrado o braço? —


Kirsten
280

perguntou.

— A memória da mãe de vocês é seletiva — meu pai respondeu. —


Mas eume lembro instintivamente do trauma coletivo.

— É claro que eu me lembro — disse minha mãe. — Eu só... Não


faziaidéia de que tinha marcado tanto vocês duas. — Ela se virou,
olhando ao redor atéme ver. — E você, Annabel? O que você se
lembra desse dia?

— Fazer nove anos — disse meu pai —, certo?

Eu balancei a cabeça positivamente porque estavam todos me


olhando, masa verdade era que eu não tinha mais certeza do que
me lembrava daquele dia, poisele foi contado novamente agora, sob
outros pontos de vista. Era meu aniversário,tinha um bolo. Eu corri
para avisar minha mãe que Whitney estava machucada. Mas do
resto eu não tinha certeza.

Fiquei observando minha família durante todo o jantar Kirsten


contandohistórias dos colegas da aula de direção de cinema,
Whitney explicando os detalhesdo sushi que ela preparou durante
toda a tarde, e as bochechas rosadas da minhamãe quando ela ria.
Até meu pai estava relaxado, claramente contente em ver
todosjuntos e em circunstâncias bem melhores. Era uma coisa boa,
mas, mesmo assim, eume sentia estranhamente desconectada.
Como se estivesse agora dentro de um carrodo lado de fora,
diminuindo a velocidade para olhar, sem nada em comum além de
proximidade, que nem era tanta assim.
Tirei as cobertas de cima de mim, me levantei e andei até aporta,
abrindo-a devagar. O corredor estava silencioso e escuro, mas,
como eu suspeitava, havia umaluz acesa. Meu pai ainda estava
acordado.

Assim que me viu passar pela sala de estar, ele diminuiu o volume
datelevisão.

— Ei, mocinha — ele disse. — Não consegue dormir?

Fiz sinal negativo com a cabeça. Na televisão, eu podia ver


imagensgranuladas e em preto e branco de uma reportagem antiga
de televisão: dois homensapertando as mãos à mesa. Atrás deles,
uma multidão batia palmas.

— Bem — ele disse —, você chegou bem na hora de me ajudar a


decidir.Estou entre um programa fascinante sobre o começo da
Primeira GuerraMundial, ou algo no A&E sobre o Dust Bowl. O que
você acha?
281

Olhei para a televisão, que tinha mudado de canal. Na tela havia


umapaisagem descampada e um carro atravessando-a lentamente.

— Não sei — eu disse. — Os dois me parecem irresistíveis.

— Ei — ele disse. — Não zombe da História. Isso é muito


importante. Eu sorri, andando em direção ao sofá e me sentando.

— Eu sei — falei. — É que é difícil se empolgar. Pelo menos para


mim.

— Como você consegue não ficar empolgada com isso? —


perguntou. — Éreal. Não é uma história boba que alguém inventou.
São coisas que aconteceram deverdade.

— Há muito tempo — eu acrescentei.

— Exatamente! — Ele disse fazendo que sim com a cabeça. — É


isso queeu quero dizer. É por isso que não conseguimos esquecer.
Não importa quanto tempotenha passado, essas coisas ainda nos
afetam e afetam o mundo em que vivemos. Sevocê não prestar
atenção no passado, nunca entenderá o futuro. Está tudo
ligado.Entende o que eu estou dizendo?

Em um primeiro momento, não entendi. Mas depois, olhei


novamente para atela, aquelas imagens se movendo, e me dei
conta de que ele estava certo. O passadoafetava o presente e o
futuro tanto de formas perceptíveis quanto de milhares de outrasque
não se podia ver. Tempo não era algo que se podia dividir
facilmente; não haviameio, começo, nem fim definidos. Eu poderia
fingir deixar o passado para trás, mas opassado não iria me deixar.
Sentada lá, me senti ficar mais ansiosa de repente. Minha mente
estava emalta velocidade, tão rápida que eu nem conseguia pensar
direito, e, depois de algunsminutos, voltei para a cama.

"Isso é loucura", pensei quando, de novo, me vi olhando fixamente


para o teto.Minhas irmãs em silêncio nos seus quartos, dos dois
lados. Fechei os olhos e osfragmentos dos eventos ocorridos nos
últimos dias passavam rapidamente por minhacabeça. Meu coração
batia forte. Algo estava acontecendo e eu não conseguiaentender.
Então me levantei, jogando as cobertas para longe. Eu precisava de
algopara me acalmar ou pelo menos para espantar esses
pensamentos por algum tempo.Estiquei o braço até a gaveta do
criado-mudo, peguei meus fones de ouvido e osconectei ao meu
aparelho de CD. Depois fui até a minha escrivaninha. Na
últimagaveta, depois de procurar no meio de todos os CDs que
Owen tinha gravado para
282

mim, finalmente o achei: o CD amarelo onde estava escritoouça.

JUST LISTEN .

Apenas

Talvez você odeie completamente, Owen tinha me dito. Ou não.


Pode serexatamente o que você precisa. Essa é a beleza. Sabe?

Quando apertei o botão do PLAY , eu só ouvi estática e me


acomodei,fechando os olhos e esperando pelo começo da primeira
música. Não começou.Nem nos momentos seguintes, nem nunca. E
então, me dei conta: o CD estava embranco.

Talvez fosse para ser uma piada. Ou algo profundo. Mas ao ficar
deitada,parecia que o silêncio preenchia os meus ouvidos. Só que
era ensurdecedor.

Era a coisa mais estranha e tão diferente de música. O som era


nada, vazio,mas ao mesmo tempo, empurrava tudo para fora, me
acalmando o suficiente para euconseguir entender algo que estava
longe e difícil de ouvir. Mas mesmo assimestava lá, mesmo que
levemente, vindo de algum lugar escuro que eu nunca tinhavisto,
mas conhecia muito bem.

Shhh, Annabel. Sou só eu.

Mas essas palavras eram apenas o meio da história. Havia também


ocomeço. E eu soube que se ficasse onde estava, em todo aquele
silêncio, e nãofugisse dele, eu poderia ouvi-lo. Eu teria que voltar
para aquela noite na festaquando ouvi Emily chamar Sophie, mas
tudo bem. Era o único jeito de, finalmente,chegar ao final.

Tudo o que eu sempre quis foi esquecer, mas mesmo quando


pensei teresquecido, fragmentos continuavam surgindo como
pedaços de madeira flutuandopara a superfície e que indicam o
naufrágio de um navio logo além. Uma blusa cor-de-rosa, uma rima
com meu nome, uma mão no meu pescoço. Porque é isso o
queacontece quando se tenta fugir do passado. Ele não só nos
alcança: ele nosultrapassa, manchando o futuro, a paisagem, o
próprio céu, até que não haja outrocaminho a não ser o que passa
por ele, o único que pode fazer você voltar para casa.

Agora eu conseguia entender. Essa voz que estava tentando


conseguir minhaatenção durante todo esse tempo, me chamando,
implorando para que eu a ouvisse— não era a voz do Will. Era a
minha.
283

Dezoito

— Aqui é a rádio WRUS, a sua estação de rádio comunitária. São


sete ecinquenta e oito, e você está ouvindo Gerenciamento de
Raiva. Agora, a nossaúltima música.

Houve um zumbido, seguido de uma explosão de interferência. Algo


ex-perimental, diferente e não exatamente agradável de ouvir.
Apenas mais um domingono programa do Owen.

Mas para mim não era apenas mais um domingo. Em algum


momento entrecolocar meus fones de ouvido na noite passada e
agora, alguma coisa tinha mudado.Depois de ficar deitada por muito
tempo refazendo os passos daquela noite na festa,eu saí daquele
silêncio e a voz dentro de mim finalmente se manifestou.
Quandoacordei às sete da manhã, ainda com os fones de ouvido,
eu ouvia meu coração. Entãome levantei, tirando os fones, e o
silêncio ao meu redor dessa vez não me pareceuvazio e enorme.
Pela primeira vez em muito tempo, ele me pareceu cheio.

Quando liguei o rádio, o programa tinha acabado de começar com


umaexplosão de metal tradicional, com guitarras pesadas. Seguido
de algo que parecia seruma música pop russa, e Owen finalmente
começou a falar.

— Esse foi Leningrado — ele disse — e você está ouvindo


Gerenciamento deRaiva. Eu sou Owen. São sete e seis, obrigado
por nos ouvir. Tem um pedido? Umasugestão? Problemas? Ligue
para a gente no 555-WRUS. Agora, Dominic Waverly.
A música que seguiu era eletrônica e começava com umas batidas
dançantesaparentemente fora de sincronia, mas que depois ficavam
uniformes.

Naqueles outros domingos, ouvi tão intensamente o programa,


querendogostar ou pelo menos entender o que eu estava ouvindo.
Quando não conseguia,nunca hesitava em contar para Owen. Se eu
ao menos tivesse conseguido contar a eletodas as outras coisas
também. Mas nem sempre se pode ter o momento perfeito.
Àsvezes, só nos resta fazer o melhor que podemos de acordo com
as circunstâncias.
284

E era por isso que eu estava agora no meu carro, saindo do meu
bairro, indoem direção à WRUS. Eram 8h02 quando entrei no
estacionamento. O Receitas eErvas, programa que entrava no ar
logo após o dele, estava começando. Estacioneientre o carro de
Rolly e o de Owen. Peguei o CD no banco do passageiro e entrei.

A estação estava em silêncio, uma voz murmurava algo sobre ginko


bi-loba quando atravessei a recepção. À minha direita, no final do
corredor, vi uma cabinede vidro. Ao me aproximar, a primeira coisa
que vi foi Rolly na mesa de áudio emuma sala pequena. Ele usava
uma camiseta verde e um boné de beisebol com a abapara trás, e
fones de ouvido sob ele. Clarke estava ao lado dele, tomando café
em umcopo de plástico e com as palavras cruzadas do jornal de
domingo na frente dela. Elesestavam conversando e nenhum deles
percebeu minha chegada. Mas quando me vireipara a cabine
principal, Owen estava me olhando.

Ele estava sentado e tinha o microfone à sua frente, juntamente com


uma pilhade CDs espalhados, e pela expressão em seu rosto não
estava feliz em me ver, pois erapior do que naquele dia do
estacionamento, fazendo com que fosse imprescindívelque eu
abrisse a porta e entrasse. E foi o que fiz.

— Oi — eu disse.

Por um momento, ele ficou apenas me olhando.

— Oi — ele respondeu, finalmente, em um tom seco.

Houve um zumbido e, então, a voz do Rolly surgiu por cima da


minha
cabeça.

— Annabel! — ele disse, seu tom animado fazia um belo contraste


com o tom impaciente do Owen. — E aí! Beleza?

Olhei para ele, levantando a minha mão para dar um oi. Ele acenou
de volta,e Clarke também. Ele estava se inclinando ao microfone
para me dizer algo quandoolhou para Owen — que o fuzilava com
os olhos — e lentamente recuou, nãodizendo mais nada. Pude ouvir
um clique e o microfone estava novamentedesligado.

— O que você está fazendo aqui? — Owen perguntou. É claroque


ele iria logo fazer essa pergunta.

— Eu preciso falar com você — respondi.

De canto de olho, percebi um movimento repentino na outra sala.


Olhei, e vi
285

Clarke enfiando com pressa o jornal na mochila dela, enquanto Rolly


tirava seus fonesde ouvido e ficava de pé. "Agora vamos ver quem
não gosta de conflitos", eu pensei, aovê-la sair a jato da sala,
seguida por Rolly, que apagou as luzes com força.

— Nós... vamos pro bacon — ele disse para Owen quando


passaram atrás dele.— A gente se vê lá?

Owen acenou positivamente a cabeça, e Rolly me deu novamente


um sorrisoantes de sair. Clarke ficou mais um pouco segurando a
porta aberta.

— Tá tudo bem? — ela perguntou.

— Sim — eu respondi. — Estou bem.

Ela colocou a mochila no ombro, lançando a Owen um olhar que


não conseguientender. Depois, foi atrás de Rolly, e eles
desapareceram ao entrarem no saguão.

Quando olhei para Owen, ele estava arrumando suas coisas


também,enrolando os fios do seu fone de ouvido.

— Eu não tenho muito tempo — ele disse, sem me olhar. — Então,


se vocêtem algo a dizer, é melhor dizer logo.

— Tá bom — eu disse. — É que... — Meu coração batia acelerado e


fiqueienjoada. Geralmente, era nesse momento que eu parava,
ficava com medo, e desistia.— É sobre isso — eu disse, segurando
o CD na mão. Minha voz estava trêmula, entãopigarreei. — Ele
deveria me afetar intensamente. Lembra?
Ele olhou para o CD novamente, com um ar desconfiado.

— Vagamente — ele respondeu.

— Eu o ouvi ontem à noite — continuei. — Mas eu queria... Ter


certeza seentendi. Quero dizer, a sua intenção.

— Minha intenção? — ele repetiu.

— Bem, sabe — eu disse. — Há muito para se interpretar — minha


voz agoraestava mais firme, finalmente. — É o poder da música,
com certeza. Então, eu queriater certeza se entendi, sabe.

Ficamos apenas nos olhando por um tempo, e era o que eu


precisava fazerpara não desviar o olhar. E consegui. Então, depois
de um tempo, ele pegou o CD.

Ele olhou para a caixinha, depois a virou.


286

— Não tem a lista de músicas aqui — ele disse.

— Você não lembra o que gravou?

— Foi há muito tempo. — Ele me olhou de forma intensa. — E eu


graveimuitos CDs para você.

— Dez — eu disse a ele. — E eu ouvi todos.

— Sério?

Fiz que sim com a cabeça.

— É. Você me disse que queria que eu ouvisse todos antes de ouvir


esse.

— Ah — ele disse. — Então agora você se importa com o que eu


quero.Eu vi Rolly e Clarke do lado de fora, saindo do
estacionamento no carro de Rolly. Ele dizia alguma coisa e ela
estava rindo, sacudindo a cabeça.

— Eu sempre me importei com isso — falei para Owen.

— Sério? Ficou meio difícil de perceber, já que você está me


evitando há doismeses. — Ele esticou o braço em direção ao painel
à frente e apertou um botão. Umcompartimento se abriu e ele
colocou o CD.

— Eu imaginei que fosse isso que você quisesse — eu disse.

— Por quê? — ele falou e abaixou o braço para virar um botão


embaixo doCD player.
Eu engoli seco.

— Foi você quem saiu do carro no estacionamento e foi embora


naquele dia —eu disse a ele. — Você estava de saco cheio de mim.

— Você me largou sozinho em um show e nem me disse o motivo


— elerespondeu, com o tom de voz mais alto. Ele virou o botão um
pouco mais. — Euestava com raiva, Annabel.

— Exatamente — eu disse, e agora eu ouvia estática. — Você


estava com raiva.Eu te decepcionei. Eu não era quem você queria
que eu fosse e...

— ...então você simplesmente pulou fora—ele terminou a frase,


girandonovamente o botão. A estática aumentou. — Desapareceu.
Uma briga e você pula fora.
287

— O que você queria que eu fizesse? — perguntei.

— Me contasse o que estava acontecendo, para começar — ele


respondeu. —Meu Deus, que você me dissesse alguma coisa. É
como eu disse. Eu saberia lidar como que quer que fosse.

— Assim como você estava lidando com o fato de eu não ter dito
nada? Vocêficou furioso comigo.

— E daí? Eu tinha o direito de estar — ele respondeu, e olhou


novamentepara o CD player. — As pessoas ficam bravas, Annabel.
Não é o fim do mundo.

— Então, eu deveria ter me explicado, e deixado você ficar com


raiva de mime depois, talvez, você tivesse superado...

— Eu teria superado.

— ...ou não — eu disse, olhando para ele intensamente. — Talvez


tivessemudado tudo.

— Isso aconteceu de qualquer maneira! — ele retrucou. — Olhe


para a genteagora. Se pelo menos você tivesse me contado o que
estava acontecendo, nósteríamos lidado com a situação. Do jeito
que as coisas aconteceram, você deixou tudono ar, sem solução.
Era isso o que você queria? Que eu fosse embora para sempre, em
vez de ficar bravo por um tempinho?

Enquanto ele falava isso, eu fiquei parada, ouvindo.

— Eu não — eu falei. — Eu não sabia que essa era uma opção.


— É claro que era — ele disse, olhando para o alto-falante em cima;
aestática estava ainda mais alta. — Seja lá o motivo, não poderia ter
sido tão ruim. Vocêsó precisava ser sincera. Dizer o que realmente
tinha acontecido.

— Não é tão fácil assim.

— E isso é? Ficamos nos ignorando e nos evitando, agindo como se


nuncativéssemos sido amigos? Talvez para você. Para mim foi
muito ruim. Eu não gosto de joguinhos.

Quando ele falou isso, senti uma coisa no estômago. Não era
aquele enjôo aoqual eu estava acostumada. Era mais parecido com
uma efervescência leve.

— Eu também não gosto disso — falei. — Mas...


288

— Se for algo tão sério que valha a pena tudo isso — ele disse,
fazendo sinalcom as mãos para incluir o estúdio, a estática e nós no
meio de tudo aquilo —, todaessa merda e mal-estar que tem
acontecido desde então é também grande demais para guardar
dentro de você. Você sabe disso.

— Não — eu disse —, você sabe disso, Owen. Porque você não


temproblemas com a sua raiva, nem com a de ninguém. Você
simplesmente usa as suasfrases e tudo o que aprendeu, e é sempre
sincero e nunca se arrepende de nada quediz ou faz...

— Sim, eu me arrependo.

— ...mas eu não sou assim — concluí. — Eu não sou.

— Então como você é, Annabel? — ele perguntou. — Uma


mentirosa, comovocê me disse no primeiro dia? Por favor. Essa foi a
maior mentira de todas.

Só consegui olhar para ele. Minhas mãos tremiam.

— Se fosse mentirosa, você teria simplesmente mentido para mim


— ele disse,olhando mais uma vez para o painel quando a estática
ficou mais alta. — Você teria agido como se tudo estivesse bem,
mas você não fez isso.

— Não — eu disse, balançando a cabeça.

— E não me diga que isso é fácil para mim, porque não é. Esses
dois últimosmeses têm sido uma bosta por não saber o que se
passa com você. O que é, Annabel?O que é tão ruim que você não
pode nem me contar?

Eu senti meu coração batendo forte, meu sangue pulsando. Owen


se virounovamente para o painel, aumentando mais ainda o volume
do CD, e quando o sompreencheu meus ouvidos, eu me dei conta
do que estava sentindo. Eu estava comraiva.

Com muita raiva. Raiva dele por ter me atacado. Raiva de mim por
terdemorado tanto para lutar. De cada chance que não aproveitei.
Durante todos essesmeses, eu vinha tendo essa mesma reação,
mas culpei meus nervos, ou medo. E nãoera.

— Você não entende — eu disse a Owen.

— Conte pra mim, talvez eu entenda — ele respondeu, empurrando


na minhadireção uma cadeira vazia que estava ao seu lado. — E o
que — ele falou alto —
289

acontece com esse CD? Onde está a música? Por que não dá pra
ouvir nada?

— O quê? — eu disse.

Ele apertou alguns botões, falando bem baixo alguns palavrões.

— Não tem nada nele — ele disse. — Está em branco.

— Não era esse o objetivo?

— O quê? — ele disse. — Que objetivo?

"Meu Deus", eu pensei. Peguei a cadeira que ele empurrou na


minha direçãoe me sentei nela. "Eu, aqui, achando que esse gesto
tinha sido tão profundo e, naverdade, foi apenas... Um erro. Um
problema no CD." Eu estava errada,completamente errada

Ou não.

De repente, tudo ficou muito alto. A voz dele, meu coração e a


estáticapreenchendo a sala. Fechei os olhos, me levando de volta
para a noite anterior,quando eu consegui ouvir as coisas que
mantive em silêncio por tanto tempo.

Shhh, Annabel, eu ouvi a voz dizendo, mas dessa vez ela me soou
diferente.Conhecida. Sou só eu.

Owen começou a diminuir o volume e a estática diminuía pouco a


pouco.Em toda vida, chega um momento em que o mundo fica em
silêncio e só o quesobra é o seu próprio coração. Então, é melhor
você saber qual o som dele. Casocontrário, você nunca entenderá o
que ele diz.

— Annabel? — Owen perguntou. Sua voz agora estava mais baixa.


Maispróxima. Owen parecia preocupado. — O que é?

Owen já tinha me dado muita coisa, mas agora eu me inclinei para


pertodele, pedindo uma última coisa. Algo que ele fazia melhor do
que ninguém.

— Não pense, nem julgue — eu disse. — Apenas ouça.

— Annabel? Nós já vamos colocar o filme... — A voz da minha mãe


erasuave. Ela pensava que eu estava dormindo. — Você está
pronta?

— Quase — respondi.

No dia anterior, não contei para Owen apenas o que tinha


acontecido
290

comigo na festa. Contei tudo: as coisas com Sophie na escola, a


recuperação daWhitney, o filme da Kirsten, eu ter aceitado fazer
outro comercial, minha conversasobre história com meu pai e ouvir
o CD em branco na noite anterior. Ele ficououvindo cada palavra. E
quando finalmente terminei, ele disse as duas palavras
quenormalmente não significam nada, mas que naquele momento
disseram tudo.

— Sinto muito, Annabel. Sinto muito que isso tenha acontecido com

você.

Talvez fosse isso que eu quisesse ouvir esse tempo todo. Não um
pedido dedesculpas — e certamente não de Owen —, mas um
reconhecimento. Porém o quemais importou foi que eu passei por
tudo novamente — começo, meio e fim. Masisso, é claro, não queria
dizer que tudo tinha terminado.

— Então, o que você vai fazer? — ele me perguntou mais tarde,


quandoestávamos parados ao lado da Land Cruiser, pois tivemos
que sair da cabine para ooutro programa entrar. — Você vai ligar
para aquela mulher? Sobre o julgamento?

— Eu não sei — respondi.

Sei que, sob qualquer outra circunstância, ele me diria exatamente


qual erasua opinião sobre o assunto, mas dessa vez não falou nada.
Durante cerca de umminuto.

— É o seguinte — ele disse —, não há muitas oportunidades na


vida em quese pode fazer a diferença de verdade. E essa é uma
delas.

— Fácil para você dizer — eu falei. — Você sempre faz a coisa


certa.

— Não, não faço — ele respondeu, balançando a cabeça. — Eu só


faço omelhor que posso...

— ...de acordo com as circunstâncias, eu sei — terminei a frase por


ele. —Mas estou com medo, não sei se consigo fazer isso.

— É claro que consegue — ele disse.

— Como você pode ter certeza?

— Porque você acabou de fazer — ele respondeu. — Vir aqui e me


contar isso?É um passo enorme. A maioria das pessoas não
conseguiria. Mas você conseguiu.

— Eu tive que fazer isso — falei. — Eu tinha que me explicar.


291

— E você pode fazer novamente — ele respondeu. — É só ligar


para aquelamulher e contar a ela o que você me contou.

Levantei o braço, passando a mão pelo cabelo.

— Há mais coisa envolvida — eu disse. — E se ela quiser que eu


testemunheou algo assim? Eu teria que contar aos meus pais,
minha mãe... Eu não sei se ela agüenta isso.

— Ela agüenta.

— Mas você nem a conhece — falei.

— E nem preciso — ele respondeu. — Olha, isso é importante e


você sabedisso. Então, faça o que tem que fazer. Talvez sua mãe
surpreenda você.

Senti um nó na garganta. Eu realmente queria acreditar que aquilo


fosseverdade, e talvez fosse mesmo.

Owen colocou a mochila no chão, depois se agachou ao lado dela


procurandoalgo. Lembrei dele naquele dia atrás da escola fazendo
exatamente a mesma coisa, ecomo eu não fazia a menor idéia do
que ele estava fazendo, o que Owen Armstrong tinha para me
oferecer. Depois de um tempo, ele tirou de lá uma foto.

— Tome — ele disse, entregando-a para mim. — Para te inspirar.

Foi a foto que ele tirou de mim naquela noite da sessão de fotos da
Mallory.Eu estava parada perto da porta do lavabo, sem
maquiagem, com meu rosto relaxado,o brilho amarelo da luz atrás
de mim. Veja, ele disse na ocasião, é assim que você é, e, ao olhar
para ele, vi que era finalmente uma prova de que eu não era a
garota naparede de Mallory ou do comercial da Kopf, nem daquela
festa em uma noite de maio.Que algo em mim tinha mudado
naquele outono, por causa de Owen, mesmo que eu sóconseguisse
perceber agora.

— Mallory me disse para dar para você — ele disse. — Mas...

— Mas? — perguntei.

— Eu não dei — ele terminou.

Eu sei que talvez eu não devesse perguntar, mas perguntei mesmo


assim.

— Por que não?

— Eu gostei da foto — ele disse, erguendo os ombros. — Queria


ficar com
292

ela.

Era essa foto que eu estava segurando quando tive coragem de


ligar paraAndréa Thomlinson, a mulher cujo cartão Emily me deu.
Deixei uma mensagem nacaixa postal dela e ela me retornou em
dez minutos. Emily estava certa: ela era legal.Nós conversamos
durante quarenta e cinco minutos. E quando ela perguntou se euiria
ao tribunal no dia seguinte, caso eles precisassem de mim, eu
concordei, mesmosabendo o que aquilo significava. Assim que
desligamos, liguei para Owen.

— Que bom — ele disse quando contei a ele o que tinha feito. Sua
voz eraamável, satisfeita, e eu apertei o telefone contra a minha
orelha para que ela enchessemeus ouvidos. — Você fez a coisa
certa.

— É — concordei. — Eu sei. Mas agora tenho que me levantar na


frente daspessoas...

— Você consegue — ele falou, e, quando eu suspirei, sem ter muita


certeza,Owen continuou. — Você consegue. Olha, se você estiver
nervosa por causa de amanhã...

— Se? — eu disse.

— ...então, eu vou com você. Se você quiser.

— Você faria isso? — perguntei.

— Claro — ele respondeu. Muito facilmente, sem perguntas. — Só


me digaonde e quando.
Combinamos de nos encontrar no chafariz que fica em frente ao
tribunal, umpouco antes das nove. Eu sei que, mesmo sem ele, não
estaria sozinha. Mas era bomter opções.

Então, dei mais uma olhada na foto, depois a coloquei na gaveta do


meucriado-mudo.

No caminho para a sala de estar, onde minha família estava


reunida, pareipara ver a foto no hall de entrada. Como sempre,
meus olhos caíram primeiro sobremeu próprio rosto, depois os de
minhas irmãs, e finalmente o de minha mãe, queparecia tão
pequena entre nós. Mas eu agora via o retrato de outra forma.

Quando essa foto foi tirada, nós estávamos todas juntas em volta de
minhamãe, protegendo-a. Mas isso foi apenas um dia, uma foto.
Desde então, essa
293

composição já tinha mudado várias vezes. Nós nos juntamos em


volta de Whitney,mesmo quando ela não queria, e Kirsten e eu
ficamos mais próximas quando ela nosafastou. E nós ainda
estávamos em movimento, como ficou claro naquela noitequando vi
minha mãe e irmãs juntas novamente. Naquele momento, eu
estavaconvencida de que não fazia parte, mas, na verdade, sempre
estive próxima. Só oque eu precisava fazer era pedir e também
seria facilmente trazida de volta, cercadae imersa, a salvo entre
elas.

Atravessei a sala de estar; minha família estava reunida na frente da


TV.Assim que cheguei, ninguém me viu; fiquei parada lá por um
tempo, olhando paraeles reunidos. Finalmente, minha mãe virou a
cabeça e eu respirei fundo, sabendoque, apesar do que eu visse em
seu rosto, seria capaz de fazer isso. Eu tinha quefazer isso.

— Annabel — ela disse. Depois, sorriu, abrindo espaço para eu me


sentar aolado dela. — Venha se sentar com a gente.

Hesitei por um momento, mas então olhei para Whitney. Ela estava
meolhando, sua expressão era séria, e eu me lembrei daquela noite
um ano atrás,quando abri a porta e apertei o interruptor, expondo-a
à luz. O que aconteceu comela me deixou com muito medo, mas ela
sobreviveu. Então, fixei meus olhos nelaao andar e sentar-me no
sofá.

Minha mãe sorriu para mim novamente e senti uma onda de tristeza
e medome atingir, pois eu sabia o que estava para fazer. "Você está
quase pronta?", ela meperguntou mais cedo e, naquele momento,
eu não estava. Talvez nunca estivesse.Mas agora não tinha mais
jeito. Então, ao me preparar para contar mais uma vez aminha
história, fiz o que Owen fez por mim tantas vezes: estendi a mão
para minha mãe e minha família. E, dessa vez, eu os trouxe comigo.
294

Dezenove

Assim que cheguei ao tribunal, só vi Will Cash de relance. A parte


de trás da sua cabeça aqui, a manga do seu paletó ali e o seu perfil,
bem rapidamente. Primeirofiquei frustrada e ainda mais nervosa,
mas, conforme se aproximava a hora de eu serchamada, comecei a
ver isso como algo bom. Pedaços e partes eram mais fáceis deser
processados. O retrato inteiro, a história completa, era uma coisa
completamentediferente. Mas não dava para saber. Às vezes, as
pessoas nos surpreendem.

Contar para a minha família foi mais difícil do que contar para Owen.
Mas euconsegui. Mesmo nos momentos mais difíceis, mesmo
quando ouvi minha mãerecuperar o fôlego, quando vi meu pai
estreitando os olhos e senti Kirsten tremendoao meu lado, eu
continuei. E quando senti que estava hesitando de verdade, olhei
paraWhitney, que em nenhum momento recuou. Ela era a mais forte
de todos nós e eumantive meus olhos nela até o final.

Minha mãe foi quem mais me surpreendeu. Ela não teve um ataque
nervoso,nem se desesperou, embora eu soubesse que ouvir o que
tinha acontecido comigo nãotenha sido fácil para ela. Em vez disso,
enquanto Kirsten chorava e Whitney ajudavameu pai a achar o
cartão da Andréa Thomlinson no meu quarto para que ele
pudesseligar para saber mais detalhes, minha mãe ficou sentada ao
meu lado com os braçosem volta de mim, afagando a minha
cabeça.

Naquela manhã, no caminho para o tribunal, sentei no banco de trás


entre asminhas irmãs, e fiquei observando meus pais. De vez em
quando o ombro da minhamãe se movia e eu sabia que ela estava
acariciando a mão do meu pai, como ele fezcom ela em outra
ocasião no carro, após segredos serem revelados, não muitotempo
atrás.

Então me dei conta que em minha vida toda tinha visto meus pais
de uma sómaneira, como se fosse a única que eles pudessem ser.
Um fraco, um forte. Ummedroso. O outro corajoso. Mas eu
começava a entender que não existia essa coisade absolutos, nem
na vida, nem nas pessoas. Assim como Owen disse, era dia a
dia,talvez momento a momento. Só o que você podia fazer era
aguentar o máximo de
295

peso possível. E se você tiver sorte, há alguma outra pessoa perto o


suficiente paralhe dar apoio.

Quando chegamos ao tribunal, eram quase oito e quarenta e cinco e


eu olheia multidão que estava em volta do chafariz, procurando por
Owen. Ele não estava lá.Nem naquele momento, nem quando
minha mãe e eu encontramos AndréaThomlinson em um escritório
próximo para relatarmos a história novamente. Nemquando o
tribunal abriu as portas e nós entramos e nos sentamos na fileira
seguinte àde Emily e sua mãe. Eu continuei procurando por ele,
imaginando que Owenchegaria na última hora, mas ele não veio.
Isso não parecia uma atitude dele e fiqueipreocupada.

Uma hora e meia depois, o promotor chamou meu nome. Eu me


levantei,minha palma deslizou pelo banco à minha frente e andei até
o fim da fileira. Então,pisei no corredor e estava sozinha.

Ao andar, finalmente consegui ver tudo claramente — a multidão, o


juiz, opromotor e o advogado de defesa — e resolvi olhar somente
para o oficial dejustiça, que me esperava ao lado do assento da
testemunha Eu me sentei, sentindomeu coração bater forte ao
responder às perguntas e ver o juiz olhando para mim ebalançando
a cabeça. Foi só depois que o promotor se levantou e começou a
andarna minha direção que eu finalmente me permiti olhar para Will
Cash.

O terno chique que ele usava não foi a primeira coisa que percebi.
Nem onovo corte de cabelo, curto e arrumado, cuja provável
intenção era de fazê-loparecer mais novo e inocente. A expressão
— olhos estreitos e lábios contraídos —também não combinavam.
Na verdade, a única coisa que eu via era o círculo roxoem volta do
olho e a vermelhidão da bochecha logo abaixo. Alguém tinha
tentadodisfarçar com maquiagem, mas ainda estava lá. Claro como
o dia.

— Diga seu nome para registro — pediu o promotor.

— Annabel Greene — eu disse. Minha voz estava trêmula.

— Você conhece William Cash, Annabel?

— Sim.

— Você poderia apontá-lo para mim, por favor?

Depois de ficar em silêncio por tanto tempo, senti que tinha falado
muito nasúltimas vinte e quatro horas. Mas, com sorte, essa seria a
última vez por um tempo.Talvez por isso não tenha sido tão difícil
respirar fundo e começar.
296

— Ali — eu disse, levantando meu dedo e apontando para ele. —


Ele está

ali.

***

Quando finalmente terminou, saímos do saguão escuro do tribunal e


sentimoso sol do meio-dia, tão brilhante que meus olhos demoraram
um pouco para se adaptar.Quando isso aconteceu, logo vi Owen.

Ele estava sentado na borda do chafariz, usava calça jeans, uma


camisetabranca e uma jaqueta, seus fones de ouvido estavam
pendurados no pescoço. Erahora do almoço e a praça estava cheia
de gente andando para todos os lados:executivos com pastas,
universitários, um monte de crianças da pré-escola andando
demãos dadas em fileira. Quando me viu, Owen se levantou.

— Eu acho — minha mãe dizia, ao passar a mão em meu braço —


que nósdeveríamos comer alguma coisa. O que você acha,
Annabel? Você está com fome?

Eu olhei para Owen, que também me olhava e agora estava com as


mãos no

bolso.

— Sim — eu disse a ela — Só me dê um segundo.

Ao começar a descer a escada, ouvi meu pai perguntando onde eu


estava indo eminha mãe respondendo que não fazia a menor idéia.
Eu tinha certeza de que elesestavam me olhando, mas não olhei
para trás ao atravessar a praça, andar até Owen,que estava com
uma expressão estranha, que eu nunca tinha visto antes. Ele ficava
mudando de posição, claramente desconfortável.

— Ei — ele disse, assim que teve certeza que eu podia ouvir.

— Oi.

Ele respirou fundo, quase falou, depois parou, passando a mão no


rosto.

— Olha — ele começou. — Eu sei que você deve estar bem brava
comigo.

O mais estranho era que eu não estava. No começo, fiquei


surpresa, depoispreocupada com o fato de ele não ter aparecido,
mas a experiência foi tão forte — etambém catártica — que eu meio
que me esqueci disso ao me sentar no banco dastestemunhas. Abri
minha boca para dizer isso a ele, mas ele já estava
falandonovamente.
297

— O fato é que eu deveria estar aqui. Eu não tenho desculpa. Não


hádesculpa, — Ele olhou para o chão, arrastando o sapato no
asfalto. — Quero dizer, háuma razão. Mas não é uma desculpa.

— Owen — eu disse. — Está...

— Aconteceu uma coisa — ele suspirou, balançando a cabeça


negativamente.Seu rosto estava vermelho e ele continuava
irrequieto. — Uma coisa burra. Eu cometium erro, e...

Só naquele momento eu juntei as peças. A sua ausência. Essa


vergonhairrequieta. E o olho roxo de Will Cash. "Ai, meu Deus",
pensei.

— Owen — eu disse em voz baixa. — Ai, não.

— Foi uma má escolha — ele disse rapidamente. — E uma coisa da


qual eume arrependo.

— Uma coisa?

— Sim.

Um executivo passou por nós falando alto ao celular. Algo sobre


uma fusão.

— Marcador de posição — eu disse a ele.

— Eu imaginei que você talvez dissesse isso.

— Fala sério — eu disse —, você sabia que eu iria dizer isso.


— Tá, tá. — Ele passou a mão pelo cabelo. — Eu estava tendo
umadiscussão profunda com a minha mãe. Uma da qual não
consegui escapar comfacilidade.

— Uma discussão — eu repeti — sobre o quê?

Novamente, ele recuou. Ele estava muito mal por causa daquilo.
Depois deestar do outro lado da verdade por tanto tempo, percebi
que estava gostando de fazer as perguntas.

— Bem — ele disse, depois tossiu. — Resumindo, eu estou sendo


punidono momento. Na verdade, até um futuro próximo. Então, tive
que negociar umadispensa. E levou mais tempo do que eu pensava.

— Você está de castigo — afirmei, esclarecendo.


298

— Sim.

— Por quê?

Ele hesitou, depois balançou a cabeça negativamente, olhando para


a fonte.Quem iria adivinhar que a verdade pudesse ser tão difícil
para Owen Armstrong, ogaroto mais sincero do mundo. Mas se eu
perguntasse, ele diria. Isso era certeza.

— Owen — eu disse, vendo-o extremamente chateado e com seus


ombrosse remexendo — o que você fez?

Ele ficou olhando para mim durante um minuto e depois suspirou.

— Eu dei um soco na cara de Will Cash.

— Mas o que você estava pensando?

—Bem, claramente, eu não estava. — Ele ficou vermelho feito um


pi-mentão. — Não era a minha intenção.

— Você deu um soco nele sem querer?

— Não. — Ele me olhou com ar sério. — Tá bom, você quer mesmo


saber?

— Eu estou perguntando, não estou?

— Então — Owen disse. — A verdade é que ontem, depois que


você foiembora, eu estava muito bravo. Quero dizer, eu sou
humano, certo?
— Você é — eu concordei.

— Eu só queria olhar para a cara dele. Era só isso. E eu sabia que


às vezesele toca com aquela bosta de banda, a Perkins Day, e que
tinha show deles noBendo ontem à noite. Então, imaginei que ele
talvez estivesse lá. E ele estava. Oque é realmente desprezível,
quando você para pra pensar. Que tipo de pessoa vaipara um lugar,
ver uma banda de bosta, na noite anterior ao seu julgamento? É...

— Owen — eu disse.

— Estou falando sério! Você sabe o quanto eles são péssimos?


Sério, atépara uma banda cover. Eles são patéticos. Quero dizer, se
você vai aparecer e dizerque não consegue compor suas próprias
músicas, pelo menos toque bem a músicaalheia...

Eu só olhei para ele.


299

— Certo — ele confirmou. E passou a mão no cabelo novamente. —


Então... ele estava lá, eu olhei bem para a cara dele. Ponto final.

— Está na cara — eu disse, brava — que esse não é o final da


história.Owen continuou, contrariado.

— Eu vi o show deles que, como eu disse, foi péssimo. Saí para


tomar um are ele estava lá fora fumando um cigarro. Aí, ele começa
a falar comigo. Como senós nos conhecêssemos. Como se ele não
fosse a escória do mundo, um bosta de umimbecil.

— Owen — eu disse suavemente.

— Eu fui ficando cada vez mais e mais bravo — ele hesitou um


pouco. —Eu sabia que deveria respirar e sair andando e tudo mais,
mas não fiz isso. E então,ele terminou de fumar o cigarro, deu um
tapinha no meu ombro e se virou para entrar novamente. E
simplesmente...

Eu dei um passo à frente para me aproximar dele.

— ...me deu um estalo — ele terminou. — Perdi a cabeça.

— Tudo bem — eu disse.

— Mesmo quando eu estava fazendo aquilo, eu sabia que iria me


arrepender— ele disse —, que aquilo não valia a pena. Mas aí, já
estava acontecendo. Estoucom muita raiva de mim, se você quer
saber a verdade.

— Eu sei.
— Foi só um soco — ele resmungou, acrescentando rapidamente
—, o quenão quer dizer que tudo bem. E eu tive muita sorte de o
segurança ter nos separadoe nos mandado embora de lá sem
chamar a polícia. Se ele tivesse... — ele ficouquieto. — É que foi
muita burrice.

— Mas você contou para a sua mãe de qualquer maneira — eu


disse.

— Quando cheguei em casa, ela percebeu que eu estava muito


bravo. Então,perguntou o que tinha acontecido, e tive que contar
para ela...

— Porque você fala a verdade — eu disse, dando mais um passo à


frente.

— Bem, é — falou, olhando para mim. — Ela ficou, no mínimo,


furiosa. Eme deu essa punição pesada, totalmente merecida. Mas
hoje, quando eu tentei sair
300

para vir, as coisas ficaram um pouco pesadas.

— Tudo bem — eu disse novamente.

— Mas não está. — Atrás dele, o chafariz estava jorrando e a luz do


solbrilhava sobre a água. — Porque eu não sou assim. Mais. Eu
simplesmente... Surtei.

Ergui minha mão e tirei seu cabelo do rosto.

— Hum — murmurei. — Sério?

— O quê?

— Eu não sei. — Ergui os ombros. — É que para mim isso não é


surtar.

— Não é? — ele perguntou. Depois ficou me olhando por um


momento. —Ah — ele finalmente falou. — Certo.

— Quero dizer, para mim — ao falar isso, eu me aproximava dele —


surtaré diferente. É mais parecido com algo do tipo fugir de casa,
não dizer a ninguém oque está errado, deixar algo fervendo
lentamente até você explodir ou algo assim.

— Ah — ele disse. — Bom, então, acho que é apenas uma questão


desemântica.

— Acho que sim.

Ao nosso redor, as pessoas continuavam andando para lá e para


cá,preenchendo o seu horário de almoço do melhor jeito que podiam
antes de o restodo dia começar. Eu sabia que, em algum lugar atrás
de mim, minha família estavame esperando, mas mesmo assim
abaixei a mão para segurar a dele.

— Sabe — Owen disse, quando seus dedos encontraram os meus


— parecemesmo que você tem todas as respostas.

— Não — falei. — Só estou tentando fazer o melhor que posso de


acordocom as circunstâncias.

— E como você está se saindo? — ele perguntou.

Não havia uma resposta curta para isso, assim como para muitas
outrascoisas, era uma longa história. Mas o que realmente torna
qualquer históriaverdadeira é saber que alguém irá ouvi-la. E
entendê-la.

— Bem, você sabe — respondi —, é algo que se constrói dia após


dia.
301

Ele me deu um sorriso e eu sorri de volta, e dei mais um passo para


meaproximar, virando meu rosto para ficar perto do dele. Quando
ele se inclinou parame beijar, eu fechei os olhos e não vi apenas
escuridão, vi outra coisa: algo brilhante,parecido com uma luz,
brilhando pouco, mas de maneira firme. Mais do que suficiente para
esperar uma parte de mim ir para cima e para fora até, finalmente,
encontrá-la.
302

Vinte

Coloquei meus fones de ouvido, depois olhei para Rolly. Quando ele
me deuum sinal de "ok", me inclinei na direção do microfone.

— São sete e cinquenta e você está ouvindo nossa estação de rádio


co-munitária, a WRUS. Se você está esperando pelo programa
Gerenciamento deRaiva, ele voltará ao ar em — olhei para meu
bloco de anotações onde, em cima daminha bem organizada lista de
músicas, havia um número doisescrito bem grande, seguido de um
ponto de exclamação — duas semanas.Enquanto isso, eu sou
Annabel, e você está ouvindo História da Minha Vida. Agora,The
Clash.

Continuei com meus fones de ouvido, olhando Rolly até que os


primeirosacordes de "Rebel Waltz" começassem. Então, finalmente
expirei o ar que eu tinhaa sensação de estar segurando para
sempre, no momento em que o alto-falante foiligado e ouvi a voz de
Clarke.

— Bom — ela disse — , você nem parece mais tão nervosa.

— Isto é, ainda estou nervosa — falei.

— Você está indo muito bem — Rolly elogiou. — E eu não sei por
que vocêfica tão nervosa. Você não está andando de biquíni na
frente das pessoas. — Clarkese virou para ele, com um olhar de
reprovação. — O que foi? É verdade!

— Isso é mais difícil — eu disse, tirando meus fones de ouvido —,


bemmais difícil.
— Por quê? — ele perguntou.Eu dei de ombros.

— Não sei — respondi —, é mais real. Pessoal.

E realmente era. Na verdade, eu fiquei apavorada quando Owen me


pediupara substituí-lo quando sua mãe decidiu que tirar dele
temporariamente o programa
303

de rádio era uma boa punição por ele ter batido em Will Cash. Mas
quando Owenme convenceu que Rolly (e Clarke) estaria lá para me
ajudar com as coisas técnicase garantir que eu cumprisse a hora
toda semana, aceitei tentar pelo menos uma vez.Isso tinha sido
quatro semanas e agora, por mais que eu continuasse nervosa,
estavame divertindo. Tanto que Rolly já estava no meu pé tentando
me convencer a fazero curso preparatório da rádio comunitária e
tentar conseguir um horário para mim,mas eu ainda não estava
pronta para isso. Mas nunca diga nunca.

É claro que Owen ainda estava envolvido com o programa. Assim


que eucomecei a substituí-lo, ele insistiu que eu tocasse as músicas
escolhidas por ele,mesmo que isso significasse eu ter que colocar
no ar músicas que odiava. Porém,depois da primeira semana (e
assim que ele percebeu que não poderia me impedir),ele cedeu e eu
comecei a colocar algumas das minhas músicas. Era ótima
essasensação de poder mostrar alguma coisa para o mundo — uma
música, umaintrodução, a minha voz — e deixar as pessoas
entenderem da maneira quequiserem. Eu não precisava me
importar com a minha aparência nem se a imagemque as pessoas
tinham de mim era realmente eu. A música falava por si mesma e
pormim e, depois de tanto tempo sendo observada e estudada,
descobri que gostavadisso. E muito.

Rolly bateu no vidro que ficava entre nós e fez sinal para eu
preparar apróxima música. Era um single da Jenny Reef,
especialmente para Mallory —minha primeira fã de verdade —, que
toda semana colocava o rádio-relógio paratocar e ligava para fazer
um pedido. Deixei a música no ponto, esperei a música doThe Clash
se aproximar do fim antes de apertar o botão para deixar as
batidasdançantes rolarem (uma passagem que eu sabia que irritaria
Owen, que por muitasrazões insistia em ouvir a transmissão do
programa sozinho em seu carro). Depoisque a música começou,
mudei de posição na cadeira, olhando para a fileira de fotospróxima
ao meu painel. Logo que comecei, fiquei tão nervosa que imaginei
queseria uma boa idéia ter o máximo de inspiração possível. Então,
trouxe a foto daMallory com o boá de penas ao redor do rosto para
me lembrar que pelo menos umapessoa estava ouvindo. A foto que
Owen tirou de mim para eu me lembrar que nãotinha problema se
ela fosse a única. E mais uma.

A foto tirada de mim, minha mãe e irmãs no Ano-novo.


Diferentementedaquela foto que está no vestíbulo, ela não foi tirada
por um profissional e não tinhauma vista dramática atrás de nós. Em
vez disso, estávamos todas em volta da ilha dacozinha.
Conversávamos sobre algo que não me lembro e, então, o
namorado daKirsten, Brian — como as aulas tinham acabado, eles
já podiam assumirpublicamente seu relacionamento —, disse para
nós olharmos para ele, e o flash
304

disparou. A foto não ficou ótima em termos técnicos. Dá para ver o


flash na janelaatrás de nós, minha mãe está de boca aberta e
Whitney está rindo. Mas eu adorei afoto porque ela parecia com a
gente. E o melhor de tudo, dessa vez ninguém estavano meio.

Toda vez que olhava para ela, me lembrava do quanto eu gostava


dessa novavida, sem um segredo a esconder. Era um recomeço e
agora eu não precisava maisser a garota que tinha tudo, ou nada,
mas uma garota completamente nova. Talvez até a garota que
contou a verdade.

— Dois minutos para a próxima pausa — disse Rolly, e fiz que sim
com acabeça, colocando os fones de ouvido de volta. Quando ele
afastou sua cabeça domicrofone, Clarke esticou o braço e arrepiou
o seu cabelo. Ele lhe deu um sorriso efez uma careta quando ela
voltou para as palavras cruzadas do jornal de domingo,que fazia
questão de tentar completar até o final do programa. Clarke
eracompetitiva, mesmo consigo mesma. Essa era uma das muitas
coisas sobre ela queeu tinha esquecido, mas que agora me voltava
à memória — como ela sempregostava de cantar junto com o rádio,
se recusava assistir a filmes de terror econseguia me fazer rir
descontroladamente com as coisas mais bobas —
conformeretomávamos nossa amizade, pouco a pouco. Não era a
mesma coisa de antes, masnenhuma de nós queria isso. Nós
estávamos felizes por estarmos andando juntas. O resto era um dia
de cada vez.

Essa era a forma como eu estava lidando com tudo e com todos ulti-
mamente, aceitando as coisas boas e más quando apareciam,
sabendo que ambaspassariam com o tempo. Minhas irmãs estavam
se falando e também brigando devez em quando. Kirsten estava
fazendo sua segunda aula de direção e trabalhandoem um novo
filme que era sobre, por mais estranho que seja, o trabalho de
modelo,que ela prometia que iria virar nosso mundo de cabeça para
baixo (seja lá o que issoquisesse dizer). Em janeiro, Whitney se
matriculou na universidade da cidade, onde,juntamente com
algumas exigências, ela estava assistindo a uma aula de registro
dememória e outra de ficção. Na primavera, com a aprovação da
sua terapeuta, ela iria semudar para o próprio apartamento, um local
onde ela fez questão que fosse muitoiluminado por causa das
plantas. Enquanto isso, as ervas ainda estavam na janela,onde,
sempre que podia, eu parava para passar a mão nas folhas,
deixando um bomaroma no ar.

Quanto à minha mãe, ela aceitou todas essas mudanças


derramando algumaslágrimas, é claro, além de demonstrar uma
força que continuava a me surpreender. Eufinalmente lhe contei que
não queria mais trabalhar como modelo e ela compensousua
dificuldade em se desapegar dessa parte da minha vida trabalhando
meio período
305

com a Lindy, que ainda precisava desesperadamente de uma


recepcionista. Foi umacombinação perfeita. Agora ela organizava
testes para outras garotas e lidava comclientes, mantendo um pé no
mundo em que ela, mais do que todas nós, se sentia muito
confortável.

Mesmo assim, eu sabia que seria difícil para ela ver o comercial da
Kopf, quecomeçaria a passar em algumas semanas. Pelo que fiquei
sabendo, eles mantiveram amesma idéia daquele que fiz, focando
na Garota Ideal, dos esportes ao baile deformatura. Ele
provavelmente teria me incomodado pelos mesmos motivos do
outro senão fosse pela garota que escolheram para me substituir:
Emily. Afinal de contas, sealguém pudesse ser um exemplo para
todas, só poderia ser ela.

Quanto às coisas entre Emily e mim, não éramos exatamente


amigas. Mas ofato de ambas sabermos pelo que passamos nos
ligaria para sempre, gostássemosdaquilo ou não. Agora, sempre
que nos cruzávamos no corredor, fazíamos questão denos
cumprimentar, mesmo que não passasse disso. Isso era mais do
que eu podia dizerpara Sophie, que ignorava a nós duas. Depois de
Will ter sido condenado por estuproem segundo grau — ele pegou
seis anos, apesar de ter grandes chances de sair antes—, ela ficou
na dela por um tempo, obviamente constrangida por ser assunto
detantas discussões. Eu a vi, algumas vezes, sozinha nos
corredores, ou no almoço, epensei que em um mundo ideal eu iria
falar com ela, tentar acabar com esse mal- estar e fazer por ela o
que ela nunca fez por mim.

Ou não.
Ao pensar isso, olhei para meu polegar, tirando o anel de prata para
ler essasmesmas palavras. O anel era muito grande para os meus
dedos, então tive quepassar um durex para que se ajustasse
melhor, mas estava perfeito enquanto euainda pensava em algo
para colocar no anel que Rolly prometeu me dar. Até lá,Owen disse
que eu poderia ficar com o dele apenas para me lembrar que é
semprebom saber quais são as opções que temos.

— Trinta segundos — ouvi Rolly dizendo no fone de ouvido.

Fiz que sim com a cabeça, aproximando minha cadeira do


microfone. Com opassar dos segundos, olhei pela janela do lado
esquerdo e vi uma Land Cruiser azul entrando no estacionamento.
Bem na hora.

— E... — Rolly disse — você está no ar.

— Você acabou de ouvir Jenny Reef, com "Whatever" — comecei.


— Eagora chega ao fim o nosso História da Minha Vida, aqui na
WRUS. Eu sou
306

Annabel. Fique agora com Receitas e Ervas. Obrigada por nos


ouvir. Fique comnossa última música.

Os primeiros acordes de "Thank You" do Led Zeppelin começaram e


afasteiminha cadeira. Depois, fechei os olhos para ouvi-la, como eu
fazia toda vez queescutava essa música; era meu pequeno ritual.
Assim que o refrão começou, ouvi a porta se abrir e, um segundo
depois, senti uma mão em meu ombro.

— Por favor, me diga — Owen disse, sentando-se dramaticamente


nacadeira ao meu lado — que eu não acabei de ouvir Jenny Reef no
meu programa.

— Foi um pedido — falei. — Além disso, você disse que eu poderia


tocar qualquer coisa que quisesse desde que desse outro nome ao
programa.

— Mas com noção — ele respondeu —, quero dizer, você só


precisa selembrar que meus ouvintes vão ficar confusos. Eles ainda
ligam o rádio e esperamqualidade. Se possível, iluminação. Sem
essa porcaria comercial feita para asmassas e cantada por uma
adolescente totalmente controlada pelo marketingcorporativo.

— Owen.

— Quero dizer, é claro que há espaço para a ironia, mas é uma


linha tênue eprecisa de equilíbrio. Se você pender mais para um dos
lados, perde credibilidade. Oque significa que...

— Você está pelo menos ouvindo o que eu estou tocando agora? —


per-
guntei.

Ele parou no meio do discurso, depois olhou para o alto-falante em


cima,ouvindo por um segundo.

— Ah — ele disse. — É isso o que eu estou dizendo, essa música é


aminha...

— Música favorita do Led Zepellin — eu terminei por ele. — Eu


sei.Na cabine, Clarke revirou os olhos.

— Está bem — Owen concordou, aproximando sua cadeira da


minha. —Então, você só tocou um pouquinho de Jenny Reef. Eu
gostei muito do resto doprograma. Mas tenho as minhas dúvidas
quando à justaposição que você feznaquela...
307

— Owen.

— O quê?

Eu me inclinei e coloquei meus lábios perto da sua orelha e disse:

— Shhh.

Ele começou a dizer alguma outra coisa — é claro —, mas parou


quandocoloquei minha mão perto da dele, envolvendo os seus
dedos nos meus. Não tinhaacabado. Eventualmente, ele falaria tudo
o que pensava ou pelo menos insistiria.Mas, por enquanto, os
acordes tocavam e o refrão se aproximava. Então, chegueimais
perto dele, apoiando minha cabeça no seu ombro para ouvir a
música, eficamos parados recebendo a luz do sol pela janela atrás
de nós. Ela era brilhante equente, refletindo-se no anel em meu
polegar. Owen esticou a mão, girando-o bemdevagar, enquanto a
música tocava.

Fim..
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Aba de Trás

SARAH DESSEN nasceu em Illinois e hoje em dia vive em Chapel


Hill, Carolina doNorte. Seus pais eram professores na Universidade
da Carolina do Norte, onde Sarahse graduou. Sempre foi uma
devoradora de livros e logo na infância se encantoucom a arte de
escrever. Seus dois primeiros livros publicados foram adaptados
parao cinema com o filme Meu novo amor, que revelou a sensação
teen Mandy Moore. Just Listen está na lista dos livros mais vendidos
do The New York Times, além deganhar os prêmios Book-sense
Top Ten Pie, Ala Best Book for Young Adults eVRISR Teen's Top
Ten.
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