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Jogada de Mestre

V. S. Vilela
Copyright © 2022 V. S. Vilela

Todos os direitos reservados, incluindo os direitos de reprodução completa ou parcial


em qualquer formato.

CAPA Jaqueline Santos da Silva Gomes


ILUSTRAÇÃO DE CAPA Arinne Maria Lobato de Souza
ILUSTRAÇÃO DO MIOLO Beatriz dos Santos Amaral
REVISÃO Bruno Felipe Barbosa

[2022]
Todos os direitos desta edição reservados à
V. S. Vilela
@autoravsvilela
Para todos os meus leitores que me acompanham e me apoiam desde 2016,
quando eu não imaginava que meu sonho de compartilhar meus textos e ser lida
poderia se tornar realidade.

Para todos aqueles que sempre acreditaram no meu trabalho e que, tanto quanto eu,
se apaixonaram por Liam e Eric.

Para o meu noivo, pois, sem a ajuda dele, essa publicação seria mais difícil de
acontecer.
Patolino

Dez anos atrás

Eric

Era uma manhã fresca de outono, quando eu com meus carrinhos,


em um pequeno parquinho, que ficava no jardim da casa dos meus
padrinhos. Aquele dia era o aniversário de sete anos da Molly e o
local estava abarrotado de crianças que corriam de um lado para o
outro.
Enquanto segurava o brinquedo entre meus dedos e
deslizava as rodinhas pela grama, eu me sentia completamente
imerso naquele passatempo e me divertia, principalmente, por poder
estar com outras crianças. No entanto, apenas uma coisa
suplantava o meu divertimento: aquela pequena e odiosa vozinha
que Liam usava quando queria tirar minha atenção de algo.
— Ei, tampinha! — gritou da varanda, fazendo-me virar o
rosto e encarar seu típico porte soberbo e superior que carregava
consigo desde criança. Ele era insuportável, o que me levava a
questionar o porquê de tentar ser seu amigo. — A mamãe tá
chamando! Hora de cortar o bolo da Molly! Vem logo, mané!
Oh não, ele havia me chamado de tampinha e eu tinha uma
completa aversão por quem falava assim comigo. Por que aquele
idiota insistia em me chamar de tampinha? Uma tremenda injustiça,
já que eu era somente alguns centímetros menor que ele. Eu odiava
ser chamado de tampinha.
— Já vou, Patolino! — gritei de volta, revirando os olhos,
levantando-me da grama e batendo a poeira da minha bermuda.
Meu rosto não escondia o desconforto que sentia por terem pedido
que ele me chamasse para se juntar ao bolo no momento dos
parabéns. Afinal, quanto menos tivéssemos contato, melhor era
para mim.
Ergui o rosto e comecei a caminhar indo em direção ao local
onde haviam organizado uma mesa com os doces, os salgados, os
enfeites e o bolo. No entanto, à medida em que eu ia me
aproximando, pude perceber o exato instante em que Liam moveu
seus lábios, pronto para soltar mais um insulto, não fosse por Tia
Claire, que apareceu e tocou em seu ombro.
— Pateta. — Não ouvi sua voz, mas pude fazer uma leitura
labial daquilo que teria proferido, caso sua mãe não houvesse
surgido. Obviamente, o idiota ficou com medo de levar um sermão,
acompanhado de um belo puxão de orelha, pois minha madrinha
sempre me defendia, o que causa nele ainda mais revolta para
comigo.
Nós tínhamos o costume de nos chamar assim, Pateta e
Patolino, apelidos tão imbecis quanto nós mesmos, graças à um
episódio que ocorreu em sua residência nos costumeiros finais de
semana em que meus pais me deixavam brincar com sua irmã.
Disputávamos até por qual desenho veríamos na televisão e, por
conta de uma corriqueira briguinha, findamos por nos intitular assim.
Liam era o pior menino que eu havia conhecido em toda a
minha vida de curtos oito anos de idade. Por que minha mãe tinha
de ser melhor amiga da mãe dele? Por que ela a escolheu para ser
minha madrinha? Eu adorava a tia Claire, mas o filho dela era um
estúpido. Nunca brincava comigo, nunca me emprestava seus
carrinhos, nunca me deixava usar seu videogame, nunca jogava
bola comigo.
— Eric, querido, Molly está só esperando por você! — Tia
Claire, mãe do Liam e da Molly, bem como minha madrinha,
chamou-me com habitual tom gentil e simpático, estampando um
lindo e branquinho sorriso em seu rosto. Ela era tão encantadora
quanto a minha mãe.
— Estou indo, madrinha! — respondi, apressando o passo e
quase correndo pelo jardim, deixando para trás meus carrinhos no
parquinho e alcançando a área onde todos já estavam reunidos para
cantar os parabéns. Era uma casa imensa, mas, ainda assim, farta
de pessoas.
Ao chegar à parte do jardim onde estava acontecendo o
aniversário, logo ouvi uma voz doce e sutil, chamando-me
incansavelmente. Não era preciso ao menos me virar para saber
quem era a dona daquele adorável timbre, pois já a conhecia bem
demais: Molly.
— Eric! Eric! — dizia com entusiasmo, dando breves pulinhos
infantis para que eu ficasse ao seu lado no momento em que
cantassem os parabéns. Seus grandes olhos azuis brilhavam em
minha direção, assim como seus longos cabelos escuros. — Vem
pra cá!
Molly era a menina mais legal que eu havia conhecido, tão
educada e agradável comigo, diferente do seu irmão repugnante, é
claro. Na verdade, todas as garotas costumavam ser legais comigo,
eu tinha sorte pra caramba, mas ela era a mais bacana de todas.
Sempre brincava e conversava comigo.
Parei de bom grado ao seu lado, exatamente no espaço em
que havia reservado para mim. Isso fazia eu me sentir bastante
especial. Todos cantaram os parabéns e, com a ajuda da tia Claire,
Molly partiu seu bolo de sete anos de idade, que era rosa com
detalhes em dourados da Bela Adormecida. Sim, ela era um ano
mais nova que eu e o repulsivo irmão dela.
— Para quem vai ser o primeiro pedaço, querida? — tia
Claire perguntou, fazendo com que todos aqueles que estavam em
volta à mesa olhassem com ainda mais atenção para a pequena
garotinha que erguia as mãos para pegar um pratinho e uma
colherzinha.
Molly segurou a fatia e virou-se para mim, hesitando em um
primeiro instante, mas, logo em seguida, elevando o pedaço de bolo
em meu rumo e dando-me um pequeno sorrisinho tímido. Eu a
achava fofa ao extremo, principalmente quando me olhava de
maneira encabulada, por isso retribui o sorriso e agradeci da melhor
maneira que pude. — Muito obrigado, Molly.
— Meu filho é tão educado! — ouvi mamãe, que estava na
lateral da mesa próxima ao papai, se pronunciando e me
observando com um semblante de satisfação. Afinal, ela sempre
prezou muito pela maneira como eu tratava as pessoas. No entanto,
minha atenção logo foi desviada ao ouvir uma canção ecoar pelo
jardim.
— Com quem será?! Com quem será?! Com quem será que
a Molly vai casar?! — Suas amiguinhas, que também eram crianças
com idades próximas a nossa, entoaram tal música, arrancando
diversas risadas dos adultos e nos deixando envergonhados — Vai
depender! Vai depender! Vai depender se o Eric vai querer!
Ao final da cantiga, todos caíram novamente em uma risada
de contentamento, aproximaram-me ainda mais da garotinha e
tiraram diversas fotos nossas na mesa do bolo. Contudo, quando
volvi meu rosto para fugir de um dos flashes, meu olhar recaiu sobre
Liam e, mesmo de relance, pude notá-lo revirando os olhos.

Dez anos depois

Eric

Certa noite, com a rua escurecida e poucas pessoas


transitando, estacionei de maneira silenciosa meu Porsche em
frente à casa da minha madrinha. Naquela época, eu já havia
completado dezoito anos e podia dirigir, assim como meus pais
tinham boas condições financeira para me comprar um carro
bacaninha.
Minha intenção era ver a Molly, afinal, depois de alguns anos,
quando nós já éramos crescidos e jovens adolescentes, a relação
que tínhamos na infância se transformou em algo bem maior do que
somente uma simples amizade.
Não quis tocar a campainha, porque o que pretendia fazer
necessitava de privacidade e, sem sombra de dúvidas, eu não teria
privacidade alguma se minha madrinha, meu padrinho ou,
principalmente, o Patolino aparecesse na porta.
Assim, atravessei o jardim, juntei algumas pedrinhas,
coloquei-as na mão e comecei a jogá-las na janela do quarto dela. A
luz do local estava acesa, o que sinalizava para mim que Molly
estava ali. Uma, duas, três... Na quarta pedrinha a princesinha
apareceu na janela.
Seus grandes olhos azuis, como sempre, brilharam para mim
e o imenso sorriso no rosto também se fez presente. Suas feições
não mudaram muito de dez anos atrás para cá, pois ela ainda
possuía o mesmo jeito infantil da época. No entanto, somado à
maneira, de certa forma, imatura, agora ela tinha a sensualidade de
uma mulher.
Molly saiu de fininho pela janela, andou pelo telhado e
aproveitou um caminho, já muito bem conhecido, pois, quando
queríamos nos encontrar às escondidas, tal ato era praticado
habitualmente por mim ou por ela, para chegar ao jardim. Tantas
vezes fizemos isso.
— Estava com saudade! — se jogou em meus braços sem
cerimônia, entrelaçando as pernas em minha cintura e me beijando
de maneira totalmente entregue e provocante. Nós tínhamos
intimidade o bastante para sermos assim um com o outro, afinal
praticávamos a famigerada “amizade colorida”.
Não demorei dois segundos para caminhar com ela em meu
colo e encostá-la a uma das árvores que ficava no lado menos
iluminado do jardim. Suas pernas escorregaram pela minha lateral,
mas, antes que chegassem ao chão, segurei uma delas pela dobra
do joelho e fiz pressão contra sua pélvis. Provavelmente, ela já
devia estar notando o modo como eu estava por baixo da calça
jeans.
— Ah, Eric... — parou o beijo, buscando por fôlego e
espalmando suas mãos em meu peito, a fim de se afastar. Por um
instante me perguntei o que havia acontecido, pois ela sempre
estava disposta quando eu a encontrava e, até dois segundos atrás,
me parecia bastante feliz com a minha presença.
— O que foi, princesinha? — segurei-a levemente pelo braço,
trazendo-a de volta para os meus lábios. — Sinto sua falta. Você
não disse que estava com saudade? — por fim, beijei-a novamente.
De início, pensei não fosse algo demais, porque eu a conhecia bem
o suficiente para saber que adorava fazer um charme e, assim, me
ter correndo atrás dela feito um cachorrinho.
— Isso não está certo — separou mais uma vez sua boca da
minha e me fitou fixamente nos olhos. Eu não queria dar o braço a
torcer de que algo realmente estivesse acontecendo. Afinal, nunca
tivemos problemas no que dizia respeito à nossa relação, pois
sempre ficávamos sem compromisso e eu acreditava que ela não se
importava com isso.
— O que não está certo? — de maneira estúpida, tentei,
outra vez, não dar importância, levando meus lábios ao seu pescoço
e trilhando ali um caminho de beijos. Eu queria curtir e beijar, não
conversar. Talvez “canalha” fosse uma palavra apropriada para me
intitular em determinados momentos. — Me explique melhor... —
pedi ironicamente, enquanto colocava uma das minhas mãos por
dentro de sua blusa.
— Tudo... — suspirou até encontrar forças para, de fato,
bater de frente. — Tudo, Eric! — sua mão, alcançando a minha,
interrompeu a trajetória que fazia por baixo de sua roupa. — Chega.
Eu não quero mais — afastou-se de mim e começou a caminhar
pelo jardim, indo em direção à janela.
Okay, naquele instante, ao vê-la se distanciando de mim,
finalmente criei vergonha na cara para lhe dar a atenção necessária.
Não tinha como não se preocupar, aquilo não era o charme que eu
estava acostumado a presenciar. Alguma coisa séria devia estar
acontecendo.
— Tudo bem, princesa. Espera — apressei meu passo até
conseguir alcançá-la e segurá-la pelo braço. — O que houve? —
dessa vez, olhei-a atentamente, esperando por uma explicação. Na
realidade, eu tinha ido ali para fazer outras coisas, mas, já que ela
queria conversar, o que eu poderia fazer?
— Você mudou muito Eric. Muito! — falou como se soubesse
de algo que eu não sabia que ela sabia. Afinal, aonde estava
querendo chegar com isso? Em que pontos eu tinha mudado? Oh
sim, eu não era mais aquela criança boba que ela conheceu, porque
eu havia crescido e estava com dezoito anos, quase entrando na
fase adulta. — Está igualzinho ao meu irmão!
— Quê?! — arregalei meus olhos de imediato, sem ao menos
dar tempo o suficiente para que meu cérebro pensasse e digerisse a
frase que eu tinha ouvido. Isso era uma barbaridade, um absurdo!
Era impossível eu estar igual àquele babaca, porque nós dois não
tínhamos absolutamente nada a ver!
— É isso mesmo o que você ouviu, Eric — replicou, olhando-
me de maneira séria. — Eu sei muito bem dos boatos do seu
colégio. Não é porque eu não estudo lá, que eu deixo de saber. Sei
que você já transou com todas as líderes de torcida do time, igual ao
meu irmão no colégio dele. Sei que vem para cá, mas depois vai
para as festas, igual ao que o meu irmão faz com as garotas. Eu sou
só mais uma — e virou-se com um semblante de tristeza, ficando de
costas para mim.
Ah não.
— Molly... — aproximei-me aos poucos, levando minhas
mãos aos seus ombros com cautela. — Você não é só mais uma —
tentei soar convincente, mas, droga, eu era muito cafajeste e sabia
que tudo o que ela havia dito era verdade. De fato, eu agia como um
moleque, mesmo sem ter noção disso, mas, embora eu tivesse uma
índole suspeita e houvessem outras garotas na lista, ela estava no
topo, sem dúvidas.
— Como não, Eric? — virou-se, voltando a ficar de frente
para mim e fazendo com que minhas mãos soltassem seus ombros.
— Minhas amigas que estudam no seu colégio me contam tudo —
Amigas fofoqueira, ela queria dizer, não é? — Olha, eu gosto muito
de você, mas... — por fim, deixou a frase solta e incompleta no ar.
— Mas? — franzi o cenho, aguardando para que ela
completasse sua fala. O que ela queria dizer com esse “mas”?
Estava me dando um fora? Não, eu não podia estar levando um fora
de alguém, porque eu nunca era dispensado.
— Mas acho melhor pararmos com isso — enfim, falou. — Eu
gosto muito de você, mas não quero me machucar. Não quero ser
só mais uma.
Eu estava mesmo sendo dispensado e não podia acreditar
nisso. Além do mais, eu gostava mesmo da Molly, nós tínhamos
uma história juntos desde a infância, nós éramos amigos. Não
poderia me considerar um apaixonado, claro que não, afinal paixão
era algo muito utópico para mim, mas eu tinha apreço por ela,
embora fosse um patife.
— Molly, eu já disse que você não é só mais um. — tentei
falar com o máximo de franqueza. Afinal, eu poderia ser um
cafajeste, mas não era justo fazê-la se sentir inferior por causa das
minhas péssimas atitudes. Ela não era inferior. — Você é especial,
sério.
— Especial como? — cruzou os braços, erguendo uma das
sobrancelhas e encarando-me com seriedade. — Especial o
suficiente para que você venha aqui e depois vá para uma festa,
assim como fez ontem? — Ela era impossível e não tinha papas na
língua quando estava chateada.
Especial, porque ela estava no topo de uma lista infinita e era
minha amiga. Ora essa, ela queria ser mais especial do que isso?
Okay, beleza. Eu não iria dizer isso, porque corria o risco de ser
enxotado com tapas até chegar em casa. Sem contar com o fato de
que era sacanagem demais até para mim.
— Ora, Molly, especial. — limitei-me apenas a dizer isso.
Afinal, quanto mais eu falasse, mais eu poderia me comprometer, e,
definitivamente, não queria estar mais ferrado com uma amiga do
que eu já estava. Uma amiga colorida, mas, ainda assim, era uma
amiga.
Sagaz como era, apenas deu uma pequena risada sarcástica
e continuou de braços cruzados.
— Então, me prove que eu sou mesmo especial — pediu com
um tom desafiador e um semblante provocativo. De fato, ela estava
em pé de guerra.
— Provar? — ergui as sobrancelhas e arregalei levemente os
olhos. Até então, eu ainda não estava entendendo aonde ela queria
chegar com isso, porque, para mim, Molly sempre esteve de acordo
com a nossa relação aberta. O que ela queria de mim, afinal?
— Sim, Eric. Provar — retrucou de modo incitador. — Se eu
sou especial desse jeito, você deve ter uma maneira de me provar
isso. E, olha, eu acho que não é muito difícil de saber que maneira é
essa. — por fim, ergueu uma das sobrancelhas novamente.
E, no exato instante em que analisei a frase “eu acho que não
é muito difícil de saber que maneira é essa”, me dei conta de aonde
ela estava querendo chegar. Agora sim eu sabia o que ela queria.
Sabia muito bem, inclusive. Dessa forma, pigarreei a garganta, sem
acreditar no que estava a ponto de fazer, e perguntei:
— Então... — ainda hesitei um pouco, mas logo tomei
coragem. — O que você acha de um fica sério?
— Eric! — replicou de imediato, encarando-me com certa
exasperação. — A gente fica desde os quatorze anos! Se isso não
for um fica sério, eu não sei o que é! — ela ficou, de fato, indignada,
porque, por mais que eu não quisesse admitir isso, estava certa. Era
ponto para ela naquele jogo, de novo, infelizmente.
Assim, dei um breve suspiro, permanecendo calado. Eu não
sabia o que falar, muito menos propor. Se já tínhamos um fica sério,
eu não fazia ideia do que pudessem resolver a tal situação. Na
verdade, até tinha, mas eu não queria dar o braço a torcer para essa
possibilidade. Eu não iria namorar.
— Viu só? Mais uma prova de que, de fato, sou só mais
uma... — olhou-me com tristeza, diante de meu silêncio. — A gente
fica há tanto tempo, mas você nunca tentou algo mais sério e... —
Ainda desapontada comigo, sequer conseguiu completar a frase.
Quando absorvi a frase “a gente fica há tanto tempo, mas
você nunca tentou algo mais sério”, tive ainda mais certeza do que
ela queria. Não, ela não era só mais uma, até porque, se fosse, não
estaria ficando com ela há tanto tempo. O problema era que eu não
compartilhava da mesma vontade. Assim, permaneci calado.
— Okay, Eric, já entendi — pronunciou-se novamente, ainda
diante de meu silêncio, virou-se e começou a caminhar de volta para
a janela. — Acabou o que quer que seja que nós já tivemos. —
finalizou, virando-se de relance para me dar um último olhar, e
continuou andando.
Ah, mano, a Molly era tão... Tão legal! E eu era um filho da
mãe mesmo! Além de estar decepcionando uma pessoa com quem
eu ficava, estava, principalmente, decepcionando uma amiga que eu
tinha desde a infância. Então, frustrado comigo mesmo, corri até ela
e segurei em seu braço, fazendo-a se virar para mim.
— O que é, Eric? — Perguntou com certa impaciência. Seu
rosto, dando leves indícios de que iria chorar tão logo entrasse de
volta em seu quarto, me fez ficar com ainda mais peso na
consciência. Infelizmente, eu não poderia deixar as coisas como
estavam, por mais cafajeste que eu fosse.
— Vem aqui — puxei-a gentil e calmamente pelo braço,
porque, naquele momento, ela merecia o mínimo de carinho, e levei-
a de volta à grande e reservada árvore onde nós estávamos. Aquele
era o grande momento e, por mais que não estivesse tão certo da
decisão que iria tomar, era o necessário a se fazer.
— O que você quer, Eric? — questionou ainda inquieta,
fazendo-me dar um breve suspiro e não acreditar no que estava a
ponto de dizer. Definitivamente, não era de meu gosto fazer aquilo,
mas, já eram anos enrolando a garota, mesmo que eu pensasse
que, para ela, estava tudo bem em não termos algo sério.
— Molly, você quer namorar comigo? — Mesmo incerto e
inseguro, libertei tal proposta, ganhando, quase que de imediato, um
olhar surpreso e confuso dela. Aos poucos, apesar do espanto, uma
alegria notadamente começou a preenchê-la, deixando-me um
pouco mais tranquilo por vê-la melhorando.
— Você está me pedindo em namoro mesmo? — perguntou
com um sorriso que parecia não querer sair de seu rosto. Ela era
garota mais fofa do planeta, especialmente quando ficava feliz
assim. Então, mesmo que namorar não estivesse em meus planos,
eu sentia que devia isso a ela.
— Estou — respondi, tentando ser a pessoa mais agradável
possível. Já estava mais do que na hora de eu tomar um rumo na
vida, quando se tratava de relacionamentos. Ela era minha amiga e
filha dos meus padrinhos, eu merecia tratá-la com respeito. — Você
aceita?
Molly não tirava o largo e imenso sorriso do rosto. Ela parecia
não acreditar no que estava acontecendo ali. Na verdade, nem eu
estava acreditando.
— Você vai ficar só comigo? — questionou. — Vai parar de
transar com a líderes de torcida?
Bom, o custo-benefício era um pouco alto, mas estava na
hora de ser um pouco fiel. Eu já tinha aproveitado demais as
regalias de uma vida na solteirice. Então, aquele era o momento de
ter novas experiências.
— Vou — respondi.
— Vai deixar de ir para as festas? — perguntou, ficando
ainda mais próxima de mim. Mesmo incrédula, ela parecia estar se
entusiasmando ainda mais com aquela situação. Depois de anos, eu
estava propondo algo realmente sério.
No entanto, “deixar de ir” era algo tão forte, não era? Eu já
estava prometendo fidelidade, mas também não deixaria de viver.
— Não, mas você vai comigo — falei, segurando sua mão,
como um gesto de que iria ficar somente com ela.
— Eric, eu tenho dezessete anos — replicou em tom um
tanto quanto desapontado. Que ela não voltasse a ficar triste era
tudo o que eu pedia, pois já tínhamos caminhado muitas casas até
ali. — Não posso ir às festas para maiores de dezoito que você vai.
E ela tinha razão, mas, apesar de estar jurando fidelidade a
uma garota, isso não me eximia de usar meus métodos um tanto
quanto sórdidos de lidar com outras questões da vida.
— Nada que uma identidade falsa não resolva — falei. —
Então, aceita o pedido?
Um pequeno sorriso esboçou-se novamente em seu rosto e
foi tomando proporções maiores até ficar largo, imenso e lindo.
— Aceito! — respondeu com convicção e entusiasmo, bem
como pulou em meu colo, passando os braços pelo meu pescoço e
me beijando.
Cara, eu nem acreditava que estava namorando, mas, se fiz
a proposta, só me restava encarar as novas experiências que aquilo
iria me proporcionar. Assim, encostei-a ainda mais contra a árvore,
retribuindo ao seu beijo como se não houvesse amanhã. Mãos
bobas percorreram o corpo esguio da princesinha, até que luzes de
faróis, de repente, surgiram em nossa direção.
— Molly! Para de se esfregar com lixo! — Uma conhecida voz
desprezível, ordinária e miserável ecoou pela rua. Não poderia ser
de nada mais, nada menos, que o Liam. Aquele sujeitinho
asqueroso que, por uma infelicidade da vida, era irmão dela.
Sua exclamação, então, nos fez parar o beijo e olhar para o
lado. Tive a certeza de que era ele quando minha visão mirou em
cabelos pretos e olhos azuis iguais aos da Molly. Antes que
pudéssemos responder qualquer coisa, apagou os faróis, saiu do
carro e caminhou em nossa direção.
Sério, cara, ninguém tinha o chamado ali. Então, ele já
poderia fazer o favor de sair.
— E aí, tampinha — aproximou-se, olhando para mim com
seu típico ar soberbo e superior, como se eu fosse pior que uma
barata. — Para de ser aproveitar da minha irmã, porque ela não é
uma das galinhas que você pega no seu colégio.
Por que aquele filho de uma mãe boa continuava me
chamando de tampinha? Já éramos praticamente adultos, cresci,
fiquei alto e tínhamos o mesmo tamanho. Eu odiava que ele ainda
me tratasse como uma criança. Além do mais, ele falava como se
não se aproveitasse da minha irmã também.
— Cala a boca, Liam! — Já impaciente com seu irmão, Molly
replicou com exasperação. Eles não tinham mesmo uma boa
relação. — Você não sabe da missa a metade. — finalizou com um
tom audacioso e desafiador.
— Ah, é? — olhou para ela com sarcasmo e cruzou os
braços. — E o quê que eu não sei?
Oh não, eu não sabia se seria uma boa ideia contar a ele o
que tinha acabado de acontecer, ainda mais sendo algo tão recente.
— Que eu e o Eric estamos namorando agora — respondeu
de súbito, sorrindo e me abraçando de maneira afetuosa e apertada.
Deus, ela tinha feito mesmo a revelação e eu só esperava que isso
não tivesse sido uma atitude precipitada.
— Namorando?! — Liam praticamente berrou, arregalando os
olhos de maneira que os faziam quase saltar do rosto. Se eu ainda
tinha dúvidas, ali eu tive certeza de que contar a ele foi,
definitivamente, um ato impensado.
Ser amigo do Eric? Não dá!

Liam

Mas o que aquilo significava? A minha irmã, por algum acaso, tinha
enlouquecido de vez? Ou tinha se drogado? Ou tinha participado de
algum ritual de magia que fizesse com que seu juízo fosse pelos
ares?
Eu realmente não podia acreditar no que meus ouvidos
estavam escutando.
— Sim, namorando — respondeu despretensiosamente,
como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo, e sorriu,
abraçando, mais uma vez, aquele desgraçado que seduziu minha
pobre irmã ingênua desde a infância.
Tudo bem, okay. Eu estava aumentando a história. Na
verdade, ele não tinha a seduzido, assim como ela não era ingênua.
O problema era que eu não suportava vê-los juntos, porque não
combinavam em nenhum aspecto e isso me dava nos nervos.
— Por acaso, você está drogada, Molly? — perguntei com o
cenho franzido, tentando entender aquela situação deplorável que
se formava diante dos meus olhos. Eu não podia permitir que aquele
mulherengo de uma figa a namorasse.
— Para de ser otário, Liam — Eric resmungou, oferecendo-
me um semblante de tédio que em nada ajudava a me acalmar.
Muito pelo contrário, apenas me fazia ficar ainda mais revoltado com
a ousadia daquele idiota que insistia em ser da família, como se já
não bastasse ser afilhado dos meus pais.
— Otário?! — Inevitavelmente, me exaltei. Eu não podia
aturar o jeitinho atrevido que ele tinha. Quem aquele perna de pau
pensava que era? Tudo bem que ele não era perna de pau coisa
alguma. Na verdade, Eric jogava bola bem demais, mas eu jamais
admitiria isso. — Você não é homem para a minha irmã!
— Chega, Liam! — A voz se Molly se sobrepôs à minha,
fazendo eu me calar, mas não fazendo a raiva desaparecer. Eu já
não aprovava que eles ficassem juntos desde sei lá quando, mas
um relacionamento sério era algo ainda mais inconcebível. Ela
precisava de alguém à altura.
— Você também não é homem para a minha irmã, seu
imbecil! — Eric revidou, fazendo-me lembrar de que eu também
ficava com sua irmã, mas sem compromisso algum. A diferença era
que Stefany sempre foi uma garota descolada e desinibida, que não
se prendia a relacionamentos, algo totalmente oposto à Molly.
— Você tá ferrado! — apontei meu dedo atrevido em sua
direção de maneira ameaçadora, praticamente em cima de seu
rosto, e me virei, caminhando à passos pesados rumo à porta de
casa e deixando para trás os dois pombinhos do inferno.
— Liam! — Ainda ouvi a voz de Molly chamando-me de um
modo aturdido, provavelmente com medo do que eu fosse fazer
diante do que havia acontecido, mas, dando de ombros para o seu
temor, apenas me aproximei da porta e entrei em casa.
Ao colocar meus pés na sala de estar, logo vi meus pais
sentados no sofá, assistindo a um filme, aparentemente estavam
calmos e tranquilos. Aquele era o momento perfeito para executar o
meu plano, ou seja, dedurar minha doce e linda irmã. Afinal, quem o
tal babaca pensava que era para namorá-la? Eu estava realmente
furioso.
— Papai. Mamãe — pronunciei-me sem cerimônia, pois tudo
o que eu mais queria era ver a cara eles que eles fariam ao saber
daquela quase tragédia que havia se abatido sobre nossa família. —
Os senhores já estão sabendo da novidade? — perguntei, com uma
pontinha de sarcasmo, ao cruzar os braços.
— Não, querido — mamãe ajeitou-se no sofá, erguendo o
rosto para mim, enquanto papai continuou vidrado no filme. — O
que houve? — franziu levemente o cenho, provavelmente achando
estranha a maneira como eu estava e demonstrando que sua
atenção era minha.
— A sua filhinha está namorando! — despejei as palavras
com toda a raiva estava sentindo. Na verdade, eu estava indignado,
porque era mais do que claro que aquele conquistador de meia
tigela não tinha o menor direito de namorar uma garota como ela.
— Namorando?! — Antes que mamãe pudesse falar qualquer
coisa, papai, que, há poucos segundos, estava quase que sem
piscar os olhos ao assistir ao filme, praticamente pulou do sofá e se
levantou com o semblante bastante surpreso. Isso estava tão
melhor do que eu havia imaginado, que até senti uma súbita
vontade de sorrir. Molly e Eric estavam ferrados.
— Namorando quem, querido? — mamãe, ainda com o
cenho franzido, perguntou. Ela não parecia tão preocupada quanto o
papai, mas também não demonstrava estar completamente à
vontade com aquela informação. A reação deles só me deixava
ainda mais feliz.
— Com o Pate... — Por pouco não falei o nome do apelido de
mau gosto pelo qual eu adorava o chamar. De súbito, lembrei-me
que minha mãe detestava quando eu falava aquilo, além de
defendê-lo e me passar sermão. Por isso, optei por me conter, já
que eu queria que todas as atenções estivessem voltadas para o
mais novo casal do momento. — Digo, o Eric.
— Ah sim — De imediato, como se tivesse ouvido algo
normal, natural e esperado, ou pior, como se nada tivesse
acontecido, papai deu de ombros e sentou-se novamente no sofá,
voltando sua atenção ao filme e pouco se importou com o que eu
havido falado.
O que estava acontecendo ali? Eles não falariam
absolutamente nada sobre aquele absurdo?
— Mas que notícia maravilhosa! — mamãe exclamou. Era
falou a pior resposta que poderia ter pronunciado. Minha felicidade,
por achar que finalmente os veria se ferrando, foi por água abaixo.
O sorriso que tentava aparecer em meu rosto, pelo gosto da
delação, logo se escondeu, dando lugar a ainda mais indignação.
— O que disse, mãe? — encarei-a com meu melhor
semblante confuso, fingindo, por um instante, que não tinha ouvido
o que havia dito. Eu não podia acreditar que eles gostaram de saber
que a filha “santinha” estava namorando, e mais: que não fariam
algo diante disso, se não apoiar. Só podia ser um pesadelo.
— Eu faço muito gosto desse namoro — papai pronunciou-se
com seu típico tom imponente e peito estufado. De fato, isso não
podia ser real. Eu estava em um pesadelo horrível e insano no qual
meus pais aprovavam o namoro da Molly com um mulherengo que
não a merecia.
— Ah, eu também, querido! — mamãe quase bateu
pequenas palmas de entusiasmo. — Eric é tão viril, sarado, atlético!
Um ótimo partido! — Oh não, eu não podia estar ouvindo isso ou ia
vomitar! Viril, sarado, atlético? Que Deus me arrebatasse era tudo o
que eu pedia!
— Claire, esses atributos não importam — papai resmungou
do sofá, sem tirar os olhos do filme. — O importante é que ele é
nosso afilhado, é de uma ótima família, é estudioso e tem um futuro
brilhante no futebol. Eric é um menino de ouro e é isso o que
importa.
Estudioso? Futuro brilhante no futebol? Menino ouro? Ah,
meu Deus, eles precisavam poupar os meus ouvidos, porque não
estava fácil escutar todos esses absurdos.
— Vocês só podem estar enlouquecendo — disse de maneira
incisiva, com os olhos quase saindo da caixa craniana. — O Eric vai
passar o maior chifre na Molly! Ele é o cara mais galinha do Colégio
Liverpool!
— Igual a você, não é, querido? — mamãe não perdeu tempo
em me alfinetar, o que era um absurdo, porque eu, definitivamente,
não era tão galinha quanto o Eric. Claro que não. Nunca. Okay, tudo
bem, só um pouco. Certo, um pouco demais. Muito, na verdade.
Muito mais que o Eric. Eu era canalha a níveis tão absurdos que
não chegava aos pés daquele loiro azedo.
— Mamãe! — falei em quase um tom de repreensão, porque,
mesmo sabendo que eu era um pilantra com as garotas, ouvir isso
dos meus pais sempre foi estranho. Além do mais, a culpa de ser
assim não era exclusivamente minha. Ora, todas elas abriam as
pernas para mim, então, como um bom moço que não era mal-
educado a ponto de negar presentes, estava dentro. Literalmente.
— Querido, sinceramente, eu não sei o motivo dessa rixa
com o Eric. — pronunciou-se novamente, levantando-se do sofá e
vindo em minha direção. — Ele é um menino tão bom! Vocês
cresceram juntos. Era para vocês serem amigos — Eu? Amigo do
Eric? Isso só poderia ser uma piada.
— Ele é capitão do time adversário — repliquei de imediato.
— O principal adversário do meu time. O principal adversário do
time do Colégio Regent. Inimigos de anos — referi-me aos dois
times serem inimigos de anos, mas, na verdade, isso também se
aplicava a mim e a ele.
— Isso não é motivo, Liam. — ouvi papai, que ainda estava
sentado no sofá. Ora essa, não era para ele estar prestando
atenção no filme? Na hora que era para ficar calado e assistir o que
estava passando na televisão, ele falava.
— É verdade — mamãe assentiu. — Não é porque você é
capitão do time de futebol do Colégio Regent e ele é capitão do time
de futebol do Colégio Liverpool que vocês devem ser
obrigatoriamente inimigos — Ah não, eu estava mesmo sozinho
naquela casa. Ninguém ficava do meu lado, nem concordava
comigo. — Aliás, vocês são assim desde criança, antes mesmo de
serem capitães de qualquer coisa.
— Não somos inimigos, mãe — retruquei a contragosto.
Primeiro, porque não consentia com aquele julgamento por não
sermos amigos. Segundo, porque eu sabia que não estava falando
a verdade, já que, no fundo, eu o considerava mesmo como um
inimigo. — Só não gosto dele — tentei amenizar a situação, mesmo
que de maneira falha.
— Eu sei que você sempre nega, meu filho — aproximou-se
ainda mais de mim. — Mas, eu tenho a impressão de que isso não é
verdade e, principalmente, de que vocês não são amigos por sua
causa. Acho que, pelo Eric, vocês seriam amigos.
Ah, claro, pelo Golden Boy nós seríamos amigos, afinal ele
era, ao pé da letra, um menino de ouro mesmo, não era? O fato era
que, mesmo negando, eu sabia que éramos inimigos, porque
amigos não conseguiríamos ser, por mais esforço que eu fizesse. E
eu odiava amizade forçada.
Não tinha como ser amigo de um cara como o Eric. Não dava
por mais que eu tentasse. Primeiro, se eu não tomasse cuidado e
não me apressasse, o cara “quebrava a minha firma” com todas as
garotas das festas, porque ficava com as mais gatas. Talvez o
namoro com minha irmã tivesse até um ponto positivo, se eu
pensasse que iriam sobrar mais meninas para mim.
Segundo, aquele demônio não pegava em um livro sequer,
mas tirava as melhores notas da turma, talvez do colégio. Não
estudávamos juntos na mesma escola, mas eu sabia disso porque,
simplesmente, todos sabiam disso. Enquanto isso, eu precisava
passar o dia inteiro com a bunda colada na cadeira, se quisesse
alguma nota decente.
Terceiro e mais importante, aquele capeta parecia ter prazer
em tirar todas as bolas do meu ataque, quando estava na zaga. Ele
me marcava em todos os jogos contra o meu time e eu odiava
aquilo, porque era o único jogador, dentre todos os outros dos times
dos campeonatos, que conseguia fazer isso. Eu precisava suar a
camisa para fazer um mísero gol nos jogos contra o time dele.
— Não dá, mãe — resmunguei. — Sem condições — E ali eu
estava falando sério mesmo, já que não tinha a menor chance,
possibilidade ou disposição para iniciar um bom e agradável
relacionamento com uma pessoa que tentava ser perfeitinha em
todos os aspectos da vida, assim como ele fazia. De toda forma, eu
sabia que, apesar de tudo, ele não era um completo menino de ouro
como todos falavam.
— Que besteira, filho — passou a mão em meu rosto. —
Agora que o Eric e Molly assumiram um namoro, você e Stefany, a
irmã do Eric, deveriam assumir também. Já pensou? — sorriu como
se estivesse sonhando acordada. — Não seria perfeito, querido? —
E finalizou em um tom mais alto, indicando que estava perguntando
ao meu pai.
— Eu concordo! — respondeu ainda do sofá e, sem ao
menos se dar ao trabalho de virar seu rosto para me olhar,
continuou. — Leve a garota para um jantar e a peça em namoro de
uma maneira decente. Está na hora de assumir um relacionamento
sério.
Ah não, eles falavam como se ela fizesse mesmo questão de
assumir um relacionamento assim. No entanto, ela não era o tipo de
garota como a Molly, por exemplo, que prezava por um namoro.
Stefany era livre, leve e solta. Loira de olhos castanhos, linda e
sensacional, mas, por mais que eu ficasse com ela em uma
frequência considerável, namorar não estava em meus planos, nem
nos dela.
— Vocês estão viajando — revirei os olhos, como um claro
gesto de que eu já estava entediado com aquele assunto. Contudo,
antes que eu pudesse mudar o foco da conversa, de súbito, a porta
da sala se abriu e Molly entrou.
Olhou de maneira um tanto quanto acanhada para todos,
parecendo estar apreensiva e provavelmente preocupada. Talvez
pensasse que eu tivesse a dedurado e que nossos que nossos pais
estivessem como uma fera. Mera inocência, tanto minha quanto
dela, por acharmos que eles iriam ficar chateados com isso. Até
parecia que não sabíamos que nossos pais eram loucos.
— Oi, mãe. Oi, pai — cumprimentou-os de maneira contida,
abaixando levemente o rosto e não apresentando sequer uma
mínima animação em sua fala. Nem ao menos olhou em meus
olhos, pois devia estar chateada o bastante pelo que eu havia feito
minutos atrás na entrada de casa.
— Querida! — mamãe apressou o passo em sua direção e,
com seu típico tom de voz afável, abraçou-a carinhosamente,
causando em Molly um semblante de quem não estava entendendo
absolutamente nada. — Seu irmão nos contou o que aconteceu.
Estamos tão felizes!
— É, filha, estamos felizes — papai também se pronunciou,
finalmente desviando sua atenção do filme e olhando para ela. —
Só tenha juízo, porque vocês ainda são muito jovens. Nada de
transar sem camisinha. Ainda não quero netos. — Ah não, eu não
podia ter ouvido isso! Eu não podia ao menos imaginar a minha irmã
fazendo esse tipo de coisa com aquele babaca.
Como um sinal de surpresa para com a situação, Molly,
pasma, abriu a boca e logo não conseguiu se conter ao soltar um
largo e imenso sorriso. Ela não acreditava no que estava
acontecendo, assim como eu também não. Era uma típica ceninha
de família feliz, que eu não podia aguentar, nem aturar. Tudo porque
Molly estava namorando um otário.
— Ai, vocês estão falando sério? — perguntou quase dando
pulinhos de felicidade. Molly, de fato, estava eufórica, afinal,
finalmente, tinha conseguido tudo o que queria: namorar o Eric e ter
o apoio dos pais. Mas, meu apoio com relação a isso, ela jamais
teria.
— Claro, querida! — mamãe respondeu, abraçando-a
novamente. E, não demorou muito até o papai, que estava tão
atento ao seu filme, se levantar do sofá para ir até onde estavam.
— Vocês são os melhores pais do mundo! — Não
conseguindo conter a felicidade, pulou em um entusiasmado
crescente e abraçou os dois.
Sério, eu não aguentava isso. Era algo que me dava nos
nervos. Será que eles não enxergavam a loucura que estavam
cometendo em permitir que a Molly namorasse o pilantra do Eric?
Em menos de um dia de relacionamento, ele, com certeza, iria traí-
la com a metade do Colégio Liverpool. Será que eu era o único a se
preocupar com minha irmã?
Antes que a ceninhas de família alegre e feliz me enojasse
ainda mais e eu corresse o risco de vomitar ali mesmo, subi as
escadas, deixando para trás aqueles que mais pareciam estar em
uma propaganda de margarina. Era melhor entrar em meu quarto
antes que eu perdesse ainda mais a paciência. E foi exatamente
isso que eu fiz, alcançando a minha porta e batendo-a sem dó, nem
piedade, para fechá-la.
Cansado por tudo o que havia acontecido, tirei meus coturnos
e minha jaqueta, peguei o celular e me deitei na cama. Aquele era
meu momento de finalmente relaxar e tentar imaginar uma vida na
Universidade, longe de todo mundo que me tirasse do sério,
especialmente daquele canalha que agora intitulava-se como
namorado da minha irmã. Uma verdadeira piada.
Eu tinha a certeza de que ele havia decidido namorá-la
somente para me infernizar, somente para ter o pretexto de ficar
ainda mais próximo à minha família, porque se tinha algo que ele
sabia fazer de melhor era me infernizar. E não, eu não me sentia o
centro do seu mundo, mas já estava acostumado o suficiente com
suas artimanhas, fosse nas festas com os amigos, fosse nas festas
em família ou fosse nos jogos.
Porém, eu precisava parar de pensar tanto nele, porque era
aquela história: quanto mais se pensa no demônio, mais corre o
risco dele atentar. Por isso, como forma de tentar me desvencilhar
de todas as perturbações que rondavam minha cabeça e de
esquecer as artimanhas que a vida fazia questão de jogar na minha
cara, abri o aplicativo de mensagens do celular e comecei a ler.
Jessica, Beatriz, Anna, Rachel e Stefany foram os cinco
primeiros nomes que logo apareceram. Logo abaixo vinha uma
mensagem do Robert, meu melhor amigo e goleiro do time, um dos
caras que mais mandava bem nos jogos. Contudo, optei por
responder primeiro a mensagem da Stefany, com muito mais gosto
do que eu comumente respondia. Afinal, diante daquela situação, eu
fazia ainda mais questão de manter nossos contatos.
“Ei, gatinho, amanhã vou ao seu colégio. A gente se vê por lá?
Quero um gol pra mim, tá? Um beijo!”
Ora, não era que em apenas uma mensagem eu já tinha uma
transa garantida para o dia seguinte? A vida, pelo menos uma vez,
dava uma dentro do gol, marcando ponto para o meu time. Assim,
respondi com todo carinho sua mensagem, dizendo que com
certeza poderíamos nos ver, tanto antes quanto depois do jogo.
Posteriormente, abri a mensagem do Robert e... Não, eu não podia
estar lendo aquilo.
“Ei, seu gay, o técnico passou os horários de amanhã. Ele quer
fazer um treino de manhã. Eu sei que é um vacilo fazer um treino
assim perto do jogo, mas ele falou que, como vamos jogar contra o
Colégio Liverpool, precisamos estar preparados para não fazer feio.
Adversário de anos, se liga? É o último amistoso antes do início do
campeonato.”
Droga, depois de tudo o que havia acontecido, minha cabeça
se desligou completamente o fato de que, no dia seguinte, eu iria
jogar contra o time daquele otário. Eu falei, não falei? Eu disse:
“quanto mais se pensa no demônio, mais corre o risco dele atentar”.
Simplesmente, não via a hora do ano acabar e eu poder ir para uma
Universidade. Infelizmente, parecia que o tempo se arrastava.
Homem que paga de machão, Eva e
Adão

Liam

Check-list das atividades matutinas: me masturbar, porque a


ereção matinal sempre estava presente; tomar um banho, porque ir
fedendo ao colégio não era legal; escovar os dentes, porque a
saúde bucal estava acima de tudo; fazer a barba, porque eu
precisava cuidar do meu fabuloso rostinho; vestir uma roupa, porque
andar nu me levaria a cadeia; e descer para o café da manhã,
porque, ah, já estava farto de porquês.
Na verdade, eu não estava descendo, eu estava correndo
pelas escadas de casa com um atraso colossal em minhas costas.
Havia acordado depois do horário, mesmo tendo ido dormir
relativamente cedo. Esse tipo de situação me fazia querer ainda
mais que o colegial acabasse e que eu me visse livre de todas
aquelas regras infantis. Felizmente, eu estava no último ano e logo
chegaria o momento de ir para universidade e de fazer meus
próprios horários.
Cheguei, quase vacilando sobre os meus pés, à mesa onde
estavam meus pais e minha irmã, tendo em vista a velocidade com
qual eu agia diante de meu atraso. Não perdi tempo em me sentar à
uma das cadeiras, nem ao menos em dar bom dia, apenas enchi um
copo com suco de laranja e bebi tudo em um só gole. Eu estava tão
apressado, que quase não notei minha família me olhando como se
eu fosse um extraterrestre.
Não liguei para o semblante que me ofereciam e, dando meia
volta, rumei para a saída da cozinha, caminhando à passos largos e
rápidos, até que, no entanto, ouvi a voz de minha mãe ecoar pelo
espaço, impedindo-me de continuar meu percurso. Oh não, eu
precisava sair dali o mais rápido possível ou perderia o horário do
treino e, consequentemente, o Sr. Jones, técnico do time, ficaria
furioso comigo.
— Aonde vai com tanta pressa? — perguntou-me com ares
de sondagem. Mamãe era assim mesmo: se reparasse que eu
estava praticando algo minimamente fora do comum, já questionava
de imediato o que estava acontecendo. — Nem lanchou direito. —
Ah, aquela típica frase maternal, que não era nem um pouco nova
para mim.
— Tenho treino e aula agora de manhã — respondi de súbito,
pois a hora corria muito mais rápido que eu e, se não saísse dali o
quanto antes, estaria seriamente ferrado. Na verdade, estava
preocupado, de fato, com o treino em detrimento à aula, porque
futebol era o que eu mais aspirava na vida. Pouco me importava
com os estudos, mas com o time eu tinha uma tremenda
responsabilidade, afinal eu era o capitão. — Vou lá! — virei-me
novamente com a intenção de ir embora, mas mamãe interrompeu-
me de novo. Droga.
— Você não vai levar sua irmã hoje? — indagou mais uma
vez, fazendo-me lembrar da existência de minha adorável irmãzinha
e, principalmente, do que havia acontecido no dia anterior. Aquele
não era um momento apropriado para discutir sobre o tal o ocorrido
que poderia ser quase considerado como uma tragédia grega de
nossa família, mas, somente de recordar-me sobre quem era o seu
atual namorado, poderia sentir leves picos de ira.
— Só se ela apressar o passo — repliquei, encarando-a de
relance, e não perdi tempo em dar uma pequena alfinetada. — Vem
logo, corninha — tentei apressá-la de um jeitinho bem gentil e
amigável, chamando-a pelo nome que ela seria intitulada dali em
diante, porque era nisso o que dava namorar um baita mulherengo.
— Idiota — resmungou, revirando os olhos para mim e saindo
da mesa para pegar sua mochila. Seu semblante não era dos
melhores, provavelmente pelo que eu havia acabado de dizer. Mas,
falar a verdade tinha se tornado crime, afinal? Então, que me
prendessem pela infração de ser sincero demais, porque eu apenas
estava sendo honesto. Ele iria mesmo traí-la uma hora ou outra.

❖❖❖

— Eu estou cansada de ouvir que o Eric não é homem para


mim! — bradou ao sair do carro, após estacionarmos no colégio.
Essa atitude não era para menos, já que aproveitei o percurso para
encher seus ouvidos de caraminholas sobre o tal namoro. De
maneira alguma eu me conformava com aquilo. Era um completo
disparate. — Da minha vida cuido eu, beleza?! — por fim, bateu a
porta do carro com toda força.
Ai, meu carro. Doeu no coração.
— Beleza — respondi de maneira firme, ainda tentando me
reestabelecer após aquele baque no meu filho. — Só não arranca a
porta da minha Lamborghini, valeu? — e travei-o quase amaciando
a lataria, pois o coitadinho devia estar chorando com dores, após o
ataque de fúria contra sua integridade física. Tão lindo e
maravilhoso. Não merecia ser maltratado desse jeito.
Dando-me um olhar de tédio, virou as costas para mim,
caminhando pelo estacionamento, enquanto eu pensava comigo
mesmo que, na verdade, nada estava “beleza”, como havia dito. Na
realidade, eu passei o caminho inteiro dizendo que não deveria se
envolver com o Eric, porque isso poderia ser pior para ela. Contudo,
a garota não me escutava de forma alguma, então só me restava
zombar de sua cara por ser uma completa idiota.
— A minha irmãzinha é chifrudinha! Lalalalala! — Cantarolei
pelo espaço, enquanto a via caminhando e distanciando-se de mim.
Eu não poderia deixar de, pelo menos, fazer uma brincadeirinha de
mau gosto, já que não conseguiria enfiar juízo a força na cabeça
dela. De qualquer jeito, eu só esperava que um dia me desse razão
pelo que eu havia aconselhado.
— Você é um nojo! — disparou ao virar-se de súbito,
enquanto ainda caminhava, oferecendo-me um olhar mortal.
Definitivamente, não tínhamos uma boa relação, em especial após o
ocorrido com o Eric. Até nisso aquele demônio me atrapalhava.
Perturbava-me até quando não estava por perto.
— Você é um nojo... — imitei sua voz com desdém em um
tom ligeiramente afeminado, repetindo o seu insulto para comigo,
somente com o intuito de tirá-la do sério. Bom, incomodá-la ainda
era de graça e eu tinha certo prazer em fazer isso, sobretudo
quando não me dava ouvidos.
Quando me calei, notei apenas suas costas subindo e
descendo, em um claro gesto de quem estava respirando fundo
para não sair da razão logo de uma vez. Contudo, apesar das
brincadeiras e infâmias, o que eu falava era sério. Aquele imbecil
não era, e nunca foi, homem para namorar minha irmã.
Mas, tentando seguir em frente, caminhei pelo
estacionamento, rumo à entrada do colégio, até que, conforme de
costume, dezenas de cumprimentos começaram a vir em minha
direção. Eram pessoas de todos os tipos, desde as mais quietas até
as mais extrovertidas, passando pelas menos conhecidas até as
mais populares. Eu era idolatrado por aquelas bandas e, dentre
todos os admirados e queridos, eu estava em primeiro lugar. O
colégio era o meu reino.
— E aí, Liam! — O primeiro a tocar em minha mão foi o filho
do diretor. O cara era dos meus, por isso alimentei uma amizade
com ele. Gente importante.
— Fala, capitão! — Logo em seguida, outro também me
cumprimentou, enquanto eu caminhava. Era o filho do maior
empresário da região, ou seja, eu tinha que escolher as amizades
certas.
— Oi, Liam... — Aquela foi a vez da Jennifer, que acenou
com a mão de uma maneira levemente oferecida e provocativa. Ela
não era filha do diretor, nem do maior empresário da região, mas
tinha um corpo sensacional.
— Bom dia, meu capitão... — Outra também me
cumprimentou com um sorriso faceiro, mas dessa eu não me
lembrava o nome. A única recordação que vinha em minha mente
era de que, talvez, tivéssemos transado na semana anterior.
Continuei caminhando, até que, de repente, alguns metros à
frente, tive a visão do paraíso na entrada da escola. Era ela, era a
minha Stefany, com seus longos cabelos loiros, lindos olhos
castanhos e um corpo muito mais que sensacional dentre todos os
outros corpos sensacionais. Foi uma surpresa para mim, porque,
mesmo que tivéssemos combinado de nos ver, eu não sabia que ela
iria tão cedo. De toda forma, eu não estava reclamando, muito pelo
contrário, estava agradecendo.
— Bom dia, meu amor — aproximou-se de mim com um largo
sorriso, envolvendo meu pescoço com os braços e beijando-me de
maneira carinhosa. Era a única que tinha a liberdade para me
chamar de “amor”, assim como era a única que me beijava sem
quaisquer empecilhos na frente de todos, por mais que eu não
ficasse apenas com ela.
— Bom, gatinha — retribui o sorriso, encaixando meus
braços em sua cintura. — Veio cedo hoje. Não vai para o seu
colégio? — Stefany era única em muitos aspectos, inclusive no fato
de ser a exclusiva garota com quem eu, além de beijar, também
conversava. Afinal, ela não era qualquer uma, ela era uma amiga de
infância e nós crescemos juntos.
— Não gostou da minha surpresa? — perguntou com um
fingido semblante de desapontamento, embora eu soubesse que
tudo não passava de charme. Ela era esperta o suficiente para
saber que, nem de longe, eu não tinha gostado. Eu queria, inclusive,
que pudéssemos estudar no mesmo colégio, mas, infelizmente,
nunca tivemos essa oportunidade.
— É claro que gostei — respondi com uma franqueza que
não usava com todas as garotas, somente com a Stefany, porque
ele era especial. — Mas, foi realmente uma surpresa, porque, sei lá,
você estuda pela manhã. Pensei que só viesse na hora do jogo.
— Bom, já estava com um tempinho que não nos víamos.
Então, decidi vim cedo para ficar mais tempo com você. Quem sabe
passar o dia juntos depois da aula. O que acha? — questionou com
seu lindo rostinho de princesa. Uma princesa um tanto quanto sagaz
em determinados momentos, mas, ainda assim, uma princesa.
Era claro que eu tinha adorado a ideia, porque ela era a única
menina com quem eu nunca me cansava de estar. Ela não me
enchia a paciência, era esperta, tinha uma conversa bacana e tinha
gostos parecidos com os meus. Ou seja, uma ótima companhia. A
garota era completa.
— Ótimo, eu acho ótimo — assenti dando-a um pequeno
beijo. — Só tem um probleminha. Estou atrasado para o treino e
para a aula. Não vou ter como te dar muita atenção — confessei,
cansado somente de imaginar todos os afazeres que teria de
executar até poder, finalmente, ficar com ela. Com a Stefany eu me
preocupava em dar atenção, com as outras não.
— Não tem problema — sorriu de modo gentil para mim. —
Fico bem só de te acompanhar.
Ela era perfeita e, por causa disso, muitas vezes não
conseguia acreditar que era irmã do Pateta. Dois grandes opostos,
porque, claramente, Stefany era gente boa, muita boa na verdade,
diferente do Eric, que era insuportável. Era a minha ficante mais
desencanada, um dos motivos por ser minha preferida. As outras
pareciam neuróticas com meros envolvimentos sem compromissos,
imaginava que seria, então, muito pior caso as namorasse.
— Beleza, gatinha — respondi ao passar meu braço por sua
cintura, mantendo-a próximo a mim. — Então, vamos lá — e
começamos a caminhar pelo corredor principal do colégio. Os
alunos que estavam por ali, logo nos observavam, cochichando pela
provável garota sortuda que eu exibia comigo. No entanto, eu sabia
que o motivo do falatório não era somente por causa da sorte que
ela tinha, mas também porque eu me envolvia com a irmã de meu
pior inimigo. E todos sabiam quem ele era.
— Já sabe da novidade, capitão? — perguntou em um tom
de voz sarcástico e levemente irônico, tirando a minha atenção
daqueles que estavam pelos corredores. Era claro que eu sabia
muito bem ao que estava se referindo e, somente em me lembrar, já
podia sentir um desconforto subindo pela minha espinha. O inferno
estava posto em minha vida pelo mais novo membro da família. Não
que ele já não fosse, pois era afilhado de meus pais, mas, naquele
instante, ele ocupava um lugar de maior destaque: era o genro.
— Se for sobre o idiota do seu irmão estar namorando a
minha irmã, eu já sei — repliquei com um semblante fechado que
logo aparecia em apenas me recordar do acontecido, arrancando,
assim, gargalhadas de Stefany. Ela sempre sabia se divertir em
cima de minha desgraça, especialmente quando se dizia respeito à
infelicidade que seu irmão causava em mim.
— Você é hilário, Liam! Sabia que ficaria assim! — falou em
meio à risos, demonstrando o quanto estava se deleitando com
minha completa falta de sorte por ter um quase cunhado como
aquele. Ela era uma ótima companhia, mas adorava zombar de mim
quando o assunto era o Eric. — Não sei por que esse ódio todo com
o meu irmão.
Ah, não sabia? Eu sempre fui muito transparente com relação
a isso!
— Eu preciso enumerar todos os motivos, Stefany? —
indaguei com certa perplexidade, pois não podia acreditar que,
depois de tantos anos, ela ainda tivesse alguma dúvida sobre as
motivações para eu nunca ter alimentado uma amizade com ele. —
Acho que tudo já está bem claro. — finalizei com o típico tom de
superioridade que sempre usava ao me referir àquele imbecil.
— É, está bem claro sim. — deu uma pequena risada com
seu costumeiro timbre irônico. Esse era um de seus poucos
defeitos: ser irônica em demasia comigo. Contudo, ela era tão
especial que a concedia essa liberdade. Não era todo mundo que
conseguia isso comigo, exceto pelo seu infeliz irmão, que mesmo
sem o dar liberdade, sempre foi sarcástico a níveis elevadíssimos.
— Acho que você é apaixonado pelo meu irmão.
— Quê?! — arregalei os olhos de imediato com tamanho
absurdo que havia sido pronunciado. Se antes eu pensava que era
minha irmã quem tinha enlouquecido, se drogado ou participado de
um ritual de magia para perder seu completo juízo, naquele
momento eu achava que, na verdade, era a Stefany. — Tá me
estranhando?! — Ela devia estar mesmo me estranhando, porque,
para eu ser apaixonado por um homem, somente em uma grande
piada.
— Não... — continuou rindo de meu semblante
completamente aturdido. — Mas, sei lá, isso tudo deve ser tensão
sexual — disse como se tivesse certeza do que estava falando. —
Das grandes. Só acho — e finalizou de maneira enfática aquela
monstruosa incoerência. Ela só podia estar endoidando!
— Tá pirando, Stefany?! — Com a exasperação que estava
sentindo, balancei veemente um não com a cabeça, recusando-me
a acreditar no que ouvia, porque só poderia ser uma piada de muito
mau gosto. Na verdade, isso era uma afronta contra minha
digníssima heterossexualidade! Logo eu, que eu sempre fui um cara
viril. — Você sabe que toda semana eu te provo o quanto sou
homem!
— Olha... — pronunciou-se novamente. — É como dizem:
quem paga de machão é...
— Eva e Adão! — e, antes que pudesse concluir a frase, ouvi
Robert e William falando atrás de nós, aos risos.
— E aí, seus gays — cumprimentei-os com os costumeiros
toques de mãos. Eles eram os meus dois melhores amigos. Robert,
alto, forte e de lisos cabelos pretos, era o goleiro do time, uma
verdadeira muralha que não deixava uma bola sequer entrar no gol.
Já William, negro e tão esbelto quanto o outro, era o lateral direito e
sempre me auxiliava no meio de campo ou na hora do ataque.
— E aí, Ste — Logo depois de falarem comigo, abraçaram-na
como os verdadeiros aproveitadores que eram. Ambos não perdiam
tempo ao ver uma mulher bonita, mesmo que a tal mulher fosse de
algum amigo, no caso eu. Contudo, não tinham tanta audácia para
fazer algo a mais.
— Sem querer interromper o casalzinho... — Robert
pronunciou-se. — Mas, o treinador está soltando fumaça pelo nariz
atrás de você, Liam. — Droga, o treino! Eu já estava perdendo
tempo demais ali, então era mais do que compreensível a raiva do
Sr. Jones.
— Caramba, vou correr para o vestiário e trocar de roupa —
disse rapidamente, já imaginando a maratona dos trezentos
quilômetros que teria de driblar para chegar o quanto antes à
concentração — A gente se vê depois do treino, Stefany.
— Está bem, capitão — respondeu com seu típico jeitinho
bem-humorado, fazendo um leve sinal irônico de um soldado do
exército que bate continência.
— Pode deixar que eu cuido da Ste — William sorriu com
suaves pontadas de malícia. Um exímio aproveitador, mas eu, como
não era bobo, nem algo desse tipo, sempre tratava de colocá-lo em
seu devido lugar, por mais que soubesse que essas ousadias eram
todas de brincadeira.
— Sai fora, seu merda — puxei-o pelo braço, deixando-o bem
distante de Stefany, porque sabia muito bem o que ele queria fazer,
por mais que ela nunca tivesse me dado garantias de fidelidade,
muito menos eu a ela. Éramos livres para nos relacionar com quem
quiséssemos, mas ela não precisava ficar com o William. Credo. —
Você vai participar do treino também. Vamos.
Arrastei os dois pelos braços, fazendo-os se despedirem
também de Stefany, com a certeza de que ela iria procurar por suas
amigas que estudavam ali e as faria matar aula até o horário do
treino acabar, porque ela era exatamente assim: sempre sabia como
convencer alguém a fazer algo. Além de gata, a garota era
perspicaz.
Não demorei muito tempo até conseguir entrar no vestiário e
trocar de roupa às pressas. O local já estava vazio, porque,
provavelmente, o time inteiro já estava reunido com o treinador, o
que fazia com que eu me apressasse ainda mais. Antes de sair,
olhei-me no espelho para ter a certeza de que estava tudo nos
conformes. O uniforme devidamente vestido, as chuteiras
corretamente calçadas e, principalmente, eu estava
apropriadamente bonito.
Dirigi-me à passos rápidos e largos em direção à sala da
concentração onde o time já estava todo à postos e, antes mesmo
de entrar, pude notar que o treinador já havia começado a dar as
orientações para o jogo de mais tarde, contra o time daquele
imbecil, o time do Colégio Liverpool. Droga, eu precisava cruzar a
porta de fininho ou Sr. Jones iria...
— Liam! — sua voz bradou pelo espaço. Ah não! Não
adiantou de absolutamente nada entrar aos poucos na sala, porque,
por mais malabarismos que eu fizesse, jamais iria conseguir
escapar de suas vistas. E exatamente foi isso o que aconteceu. Eu
quase tive a certeza de que ele iria me escalpelar pelo atraso.
— Sr. Jones. — Abaixei levemente a cabeça, como um sinal
respeito, pois, primeiro, eu sabia que estava errado; e segundo, ele
era uma das poucas pessoas na face da Terra com quem eu me
dava ao trabalho de respeitar, e, por isso, esse coroa deveria se
sentir honrado.
— Não vou perguntar o motivo do seu atraso, mas você,
como capitão deste time, sabe que deve chegar antes de todos os
outros, não sabe? — questionou com altivez, fazendo-me engolir em
seco, o que era um milagre, pois nem todo mundo despertava esse
tipo de atitude em mim. — É assim ou você perde seu posto. Quer
perder o posto de capitão?
Droga, era a primeira, em dois anos como capitão, que eu
havia chegado atrasado, mas o treinador já queria arrancar o meu
couro. Ali era assim: se você fizesse algo de bom, raramente
ganhava um elogio, mas, se fizesse algo errado, caía matando. No
entanto, logo o respondi.
— Não, Sr. Jones. Isso não vai se repetir.
— Ótimo — replicou de imediato, mas, a despeito do que
tinha acabado de proferir, seu semblante não mostrava que estava
tudo ótimo assim. — Agora sente-se — encarou-me, ainda de
maneira fria, e aguardou até que eu me sentasse em uma das
cadeiras, para assim continuar as orientações. — Bom, como eu
estava falando, antes de ser interrompido. — fuzilou-me os com os
olhos, mas logo depois voltou sua atenção para os outros. — Hoje,
como vocês sabem, vamos jogar contra o nosso principal adversário
e precisamos ter bastante atenção nesse jogo por três motivos.
Daí em diante, iniciou um discurso sobre as justificativas para
que déssemos o nosso máximo naquele torneio. O primeiro motivo,
obviamente, era porque não queríamos perder para nosso principal
adversário. O segundo dizia respeito a ser o último amistoso antes
do início do campeonato entre os colégios. Então, não podíamos
fazer feio ou entraríamos com desvantagem no campeonato. E
terceiro, porque alguns eram concludentes, como eu, e os olheiros,
com certeza, apareceriam nos jogos para escolher os possíveis
bolsistas das universidades.
E esse era o meu sonho: ser um bolsista da universidade por
conta do futebol. Não que os meus pais não tivessem condições
financeiras para pagar uma boa universidade para mim. No entanto,
ganhar uma bolsa me possibilitaria a tão sonhada independência, ou
seja, dali em diante, com uma bolsa custeada pelos olheiros, eu
viveria por si próprio após terminar o colegial.
Contudo, em meio às minhas divagações sobre meu futuro, o
técnico iniciou o pronunciamento sobre a escalação do time para o
jogo daquele dia, convocando todos os titulares, incluindo a mim, é
claro, e continuou a dar instruções.
— O Colégio Liverpool é nosso principal adversário há anos.
Isso todos sabem — prosseguiu, encarando a todos nós como um
general. — Mas, não podemos fechar os olhos para a realidade. O
time do Colégio Liverpool ainda é melhor que o nosso. Enquanto
eles são tetracampeões, nós somos bicampeões. Sei que a cada
ano estamos nos esforçando mais, mas devemos abrir os olhos
para nossa situação. E nossa situação é de um time que precisa
treinar arduamente e ter atenção. O time deles é conhecido pela
tática. Portanto, atentem para nossas jogadas ensaiadas. Inclusive,
daqui a pouco, vamos treinar todas elas. Peter e Ethan prestem
atenção no meio de campo, correto? Se os laterais passarem a
bola, eu não quero ver o meio de campo vazio ou bagunçado. Tem
que ter gente pra receber a bola. Entendido?
— Sim, senhor — Peter e Ethan responderam de imediato,
balançando veemente um sim com a cabeça e demonstrando
estarem decididos a encarar a responsabilidade de fazer um bom e
decente para jogo, para, assim, trazer a vitória.
— Ótimo — Sr. Jones replicou, logo mirando suas vistas em
dois outros jogadores. — William e Gregory, vocês que são laterais,
atentem para as jogadas ensaiadas com o meio de campo.
Empurrar a bola para escanteio, só se for para favorecer o nosso
lado. E, por fim, por todo o amor que vocês têm por esse time e
pelos gols a serem marcados, não deixem, sob hipótese alguma,
que o Eric, o capitão e zagueiro do time adversário, marque o Liam
durante o jogo inteiro, assim como aconteceu na vez passada. — E
finalizou de maneira enfática.
Eu tinha certeza de que o treinador iria comentar sobre esse
ocorrido em algum momento do treino, porque aquele idiota do Eric
passava os jogos inteiros, os noventa minutos completos, me
marcando de modo que eu não conseguia dar dois passos com
bola. Parecia que ele tinha prazer em fazer isso comigo.
— Deem cobertura ao Liam! — bradou ao caminhar por entre
nós na sala da concentração. — O Liam é o atacante, se a bola
bater no pé dele, ele tem que finalizar no gol sempre! Mas, isso não
vai acontecer se vocês não derem cobertura e deixarem o Eric
marcar o passo durante o jogo inteiro. Então, repetindo, Liam é o
artilheiro do time, não permitam a merda dessa marcação nele!
Entendido?
— Entendido, Sr. Jones — Como se estivéssemos em um
quartel onde ele era o chefe, todos responderam de modo intenso e
decidido, a fim de trazer a vitória para o Colégio Regent.
Talvez com essa cobertura, aquele sujeitinho nojento me
marcasse menos no jogo daquele dia, porque, bem, se em todos os
outros torneios eu fazia gols sem maiores dificuldades, quando
jogava com ele, precisava, e muito, suar a camisa. Eu tinha a
impressão de que ele fazia isso não somente por causa de sua
posição de zagueiro, mas, principalmente, porque gostava de me
infernizar.
— Agora que já passei as principais instruções, quero todos
de pé, fazendo um círculo — Voltando a falar, Sr. Jones requisitou,
encarando-me logo em seguida. — Puxa o grito de guerra, Liam.
Ah, mas isso eu fazia com muito gosto! Era a minha
especialidade e uma das melhores partes em ser o capitão do time.
A cada frase que eu soltava, sentia-me o centro daqueles jogadores,
o dono daquele universo, e isso me revigorava. Portanto, sem
quaisquer delongas fui de peito cheio para o centro do círculo, o
lugar onde pessoas como eu sempre deveriam estar, e puxei o grito
de guerra.
— Eu tenho uma mania que já é tradição! — gritei.
— De nunca se entregar e cair no chão! — o time inteiro
respondeu.
— Se é ‘pra ganhar! — gritei.
— Se é ‘pra ganhar! — eles repetiram.
— Se é ‘pra perder! — continuei.
— Se é ‘pra perder! — eles também continuaram.
— O Regent vai mostrar sua força, garra e determinação! —
gritei novamente. — Quem vai dar o sangue?! Quem?!
— Eu! — o time, em uníssono, respondeu.
— Quem vai dar o sangue?! Quem?! — repeti.
— Uh! Uh! Uh! — Todos os jogadores, então, passaram os
braços por cima dos ombros uns dos outros e começam a pular,
aquecendo os motores para mais tarde.
O colégio era o meu reino e o time era a minha propriedade.
Eu amava isso.
Dar ou estudar? Eis a questão

Liam

Depois que o treino acabou tive de seguir em direção à sala de


física, porque, bem, infelizmente, eu ainda era obrigado a estudar e
a seguir infantis regras escolares. No entanto, pela Santa Graça de
Thor, a aula finalmente estava acabando, e, mesmo que eu
quisesse que não somente ela passasse voando, como também o
ano escolar, já ficava feliz apenas em me livrar de uma dentre as
infinitas que eu ainda teria.
Eu adorava o colégio e todas as regalias que lá eu tinha.
Afinal, para eu ser rei daquele local, faltava-me apenas a coroa.
Todos me admiravam e me enalteciam pelo cara popular e jogador
de futebol que eu era. No entanto, almejava, acima de tudo, livrar-
me de todas as normas e, principalmente, de todas as matérias de
exatas, física e química, pelas quais eu não fazia ideia de onde
estava com a cabeça, quando decidi escolhê-las no momento da
matrícula.
— Próxima aula teremos um teste, valendo um ponto na
prova — Teste? Ah não, eu não tinha estudado absolutamente nada
para esse teste e, pior, eu não poderia me ferrar logo no último ano.
— Até a próxima aula, pessoal — concluiu no exato instante em que
o sinal tocou, indicando que o horário de aulas estava finalizado.
De semblante fechado, pois já imaginava meu possível zero
no teste, levantei-me da cadeira, enquanto recolhia meu pouco
material escolar que levava para o colégio, o qual se resumia a
somente um caderno e uma caneta. Para que eu precisaria de algo
mais? Então, quando fechei o zíper da mochila, logo notei Robert e
William aproximando-se de mim.
— E aí, Liam, vai fazer o que até a hora do jogo? — Robert
perguntou, tocando em meu ombro de modo displicente e relaxado
como sempre fazia. — O que acha de umas partidas de Fifa? —
Vídeo game? Eu tinha algo muito melhor do que jogar Fifa para
fazer. Algo que iria tirar-me todas as tensões que a pressão de ser
concludente me trazia.
— Vou transar — respondi de supetão, curto e seco, fazendo
ambos rirem de mim. Ora essa, por acaso eu havia me tornado
motivo de piada? Eu estava falando sério. Muito sério, por sinal. Já
poderia até sentir o cheiro do perfume de uma Stefany que me
aguardava ansiosa no corredor da sala de aula.
— Vai se desgastar para o jogo, capitão — William
pronunciou-se em tom brincalhão e levemente irônico. Esses otários
adoravam fazer piada com a minha cara, como se não me
conhecessem e não soubessem o vigor que meu corpo fabuloso de
dezoito anos possuía.
— Que porra de desgaste... — dei de ombros, dando pouca
importância para o que tinham dito. — Até parece que vocês não me
conhecem — balancei a cabeça. — Enfim, vou almoçar em casa e a
Stefany vai ser a sobremesa — sorri maliciosamente, fazendo
ambos soltarem pequenas risadas, e olhei para a porta, onde ela já
estava me esperando.

❖❖❖

— Liam... Eu não vou transar dentro de um carro em plena


luz do dia... — Stefany disse ofegante, enquanto a beijava e tentava
sorrateiramente colocar a minha mão por baixo de seu vestido. —
Ainda mais na frente da sua casa.
— Só relaxa, gatinha — respondi, não podendo conter o
sorriso arteiro que se formava entre beijos que oferecia aos seus
lábios. Eu não queria esperar, entrar em casa, almoçar e subir para
o quarto, porque todo o meu corpo pedia para que acontecesse ali
mesmo.
— Liam! — Dessa vez, chamou-me de maneira mais incisiva,
segurando minha mão com firmeza e ímpeto, e fazendo-me parar de
imediato, bem como dar-me conta de que seu corpo tinha limites. —
Aqui não. A gente almoça e depois sobre para o seu quarto.
Okay, respirei fundo, conformando-me de que deveria
aguardar mais alguns minutos. Afinal, eu não tinha o direito de
obrigá-la a nada. Por mais cafajeste que eu fosse, sabia que o
consentimento deveria partir dos dois lados. Portanto, não hesitei
em respondê-la da melhor maneira que pude.
— Beleza. Então, vamos.
Abri a porta do carro e Stefany me acompanhou, caminhando
comigo em direção a minha casa. Quando entramos, tudo estava
costumeiramente calmo, já que meus pais trabalhavam durante o
dia e o local ficava inteiramente ao meu dispor até o horário em que
saíam da empresa.
Portanto, fechei a porta e caminhei displicentemente pela
casa, indo em direção à cozinha para ver o que poderíamos fazer
para o almoço. No entanto, quando passei pela entrada da sala de
refeições, ah não! Eu não podia acreditar no que estava vendo!
— Mas o que é... — sibilei de olhos arregalados, sem ao
menos conseguir completar a frase. — Eu estou tendo um pesadelo
e ninguém me acorda! — Sem cerimônia alguma, pronunciei em alto
e bom tom todas as palavras, enquanto encarava, pasmo, a mesa
de refeições, onde estavam, simplesmente, meus pais, a Molly e...
O Pateta!
— Liam Wyman Tremblay Terceiro — mamãe, com um tom
de voz cortante, falou meu nome completo, fazendo-me ter a
certeza de que bombas estavam por vir. Sempre que ela agia assim,
eu já sabia o que esperar. — Isso não são modos de tratar as
visitas! — e referiu-se claramente ao Eric, porque já tinha
conhecimento da nossa completa falta de afinidade. — Não foi
assim que lhe eduquei.
— É verdade, madrinha — Agindo da maneira mais
sarcástica possível e mostrando uma carinha de anjo que eu sabia
que ele não era, abriu a boca para falar o que não devia. — É muito
feio tratar as visitas assim — e balançou negativamente a cabeça,
franzindo o cenho e dando-me um fingido olhar de reprovação. Eu
tinha a certeza de que aquele idiota estava rindo por dentro.
— Viu só? — Mamãe sorriu para ele, mostrando o orgulho
que carregava em ser sua madrinha. — Você deveria seguir o
exemplo do Eric. Um menino tão bom! — e passou a mão em sua
cabeça, fazendo um carinho como se fosse uma criança. — É
sempre a simpatia em pessoa!
Ah, não! Eu não podia estar ouvindo isso, porque era demais
para mim. Ele poderia ser a simpatia em pessoa, mas também era o
sarcasmo em pessoa, a ironia em pessoa e, principalmente, o
cinismo em pessoa. Nunca vi alguém mais fingido que ele.
— Desculpa por destruir a maravilhosa ilusão de vocês, mas
o Eric não é esse anjo que vocês pensam — falei ao encará-lo com
meu melhor semblante soberbo. Se ele sabia ser cínico, eu tinha
prática em ser arrogante. — É um verdadeiro capeta!
Olhando-me com uma sobrancelha erguida e digna de quem
tinha se surpreendido, não hesitou em falar.
— Madrinha, o Liam está me caluniando — finalizou,
esforçando-se para apresentar fingidas feições de mágoas. Eu não
estava errado quando dizia que ele era um debochado.
— Ok! — papai logo interviu, antes que eu pudesse
responder qualquer coisa. — Chega dessa briga boba de vocês.
Isso era para ser um almoço em família — balançou a cabeça em
desapontamento. — Sente-se, Liam — apontou para uma das
cadeiras. — Sente-se também, Stefany, por favor.
Respirei fundo, tentando controlar a raiva e a vontade de
soltar mais injúrias, e caminhei até a cadeira que meu pai havia
indicado. Bobo como eu era, ainda olhei de relance para ele e notei
o semblante sarcástico, com o qual me olhava, e o pequeno sorriso
de canto de boca que me dava. Hipócrita. Ele queria se fingir de
rapaz direito e decente para os meus pais, mas não era nada disso.
— Stefany, querida, me perdoe pela situação... — Com seu
melhor gentil e afável, como era costumeiro de se utilizar, mamãe
pronunciou-se. — Mas, você já sabe como seu irmão e o Liam se
comportam quando estão juntos — e concluiu com uma pequena
risadinha sem jeito.
— Ah, tia Claire, sem problemas — respondeu, sorrindo de
volta. Eu sabia que Stefany falava sério quando dizia que não havia
problemas, porque ela, de fato, já estava mais do que acostumada
com o nosso jeitinho peculiar de tratar um ao outro.
— Mas, que coincidência maravilhosa, não é? — Após seu
retorno, mamãe continuou a falar, observando a todos que estavam
ali com satisfação. — Não sabia que Stefany viria, mas, agora que
veio, nosso almoço está sendo ainda mais em família. Eu e meu
marido. Molly e Eric. Stefany e Liam. Perfeito!
Seu entusiasmo com a tal situação era tão palpável que me
deixava verdadeiramente enojado e com a certeza de que aquela
era uma excelente hora para o fim do mundo acontecer. Eu não me
alegrava nem um pouco em saber que ele estava se tornando ainda
mais da família.
— E, então, ansiosos para o jogo de mais tarde? — papai
perguntou, tentando quebrar um pouco do clima pesado que eu e
Eric fomos responsáveis por criar. Tentativa falha, já que falar sobre
o jogo em que nós seríamos rivais não era um dos assuntos mais
sensatos a se tratar.
— Estou louca para te ver jogando, meu capitão — Molly não
perdeu tempo em sorrir e bajular o tal imbecil. Um capitão desses de
meia tigela, já que estava mais do que claro que eu era muito
melhor que ele. Eric não merecia esse lisonjeio todo.
— Já eu, estou louca para ver esse capitão fazendo gol —
Sendo enfática na palavra “esse”, Stefany passou uma das mãos
em minhas costas e piscou para mim. Isso sim estava certo. Eu
quem era verdadeiramente um capitão de respeito, não ele.
— Se eu deixá-lo fazer algum gol — Provocativo como
sempre era, replicou sem esconder o escárnio. Ele era mesmo um
imbecil e nunca perdia a oportunidade de me desafiar ou incitar.
Esse era apenas um dos muitos motivos pelos quais eu nunca achei
que fosse um menino ouro, como meus pais diziam.
— É claro que vou fazer gol — retruquei de cara fechada,
sem ao menos dar-me ao trabalho de encará-lo, porque olhar para o
seu rosto de demônio, que se fazia de santo e inocente, me dava
náuseas. Eu me achava um excelente atacante e não me intimidava
com suas provocações.
— Veremos — afirmou com a presunção de quem não
acreditava em uma só palavra que eu dizia, nem em meu potencial.
E eu tinha muito potencial, por mais que ele sempre se julgasse no
direito de me marcar durante os noventa minutos.
— Tá tirando uma com a minha cara? — Dessa vez, foi
impossível não cravar meus olhos nele com seriedade. Afinal, quem
ele pensava que era para me desafiar desse jeito? — Sou o maior
artilheiro que o time do Colégio Regent já viu.
— E eu sou o maior zagueiro que o time do Colégio Liverpool
já viu — replicou de imediato, dando uma piscadela irônica para
mim. Eric parecia ter prazer em me incitar e esse seu tipo de atitude,
definitivamente, me tirava do sério.
Quando o assunto era convencimento e orgulho de si próprio,
se eu fosse parar para comparar, às vezes, ele me superava. Na
verdade, eu não era convencido, apenas tinha noção do quanto era
melhor do que qualquer outra pessoa. Isso era presunção, por
acaso? Que fosse, não me importava. Contudo, eu podia ser
convencido. Ele não.
— Meninos, será que não vamos conseguir concluir
civilizadamente esse almoço? — mamãe pronunciou-se diante de
mais uma típica e mera discussão nossa. Já tínhamos pós-
doutorado em não nos comportamos bem diante um do outro.
— Me desculpa, madrinha — Eric respondeu de modo
bastante educado, causando-me ainda mais repulsa, pois até
quando tentava ser agradável, era irritante, especialmente nos
momentos em procurava ser um bom garoto frente à minha família.
— Como estão os estudos, Eric? — papai perguntou,
obviamente tentando mudar de assunto e dissipar o tal clima pesado
que sempre nos acompanhava em qualquer local em que eu e o
Golden Boy estivéssemos juntos.
— Melhor impossível, padrinho — Com um sorriso
começando a surgir, Eric replicou. Claro, falar de seus maravilhosos
feitos deveria lhe causar felicidade mesmo. Um verdadeiro saco
para mim. — Até porque me matriculei nas minhas matérias
preferidas. Física, química e matemática — Esse cara só podia ser
louco, porque quem, em sã consciência, iria preferir matérias de
exatas?
— Muito bem! — papai todo garboso, sorriu de volta,
parecendo estar ouvindo aquilo de seu próprio filho, no caso, eu.
Contudo, ele jamais me ouviria falar algo assim, porque eu e
estudos não éramos sinônimos. Só pedia aos céus que esse almoço
acabasse o quanto antes, já que eu não aguentava toda essa
simpatia que dedicavam a ele. — Muitos prêmios de melhor aluno
esse ano?
— Padrinho... — deu aquela típica breve risadinha de quem
ficou sem jeito, mas que no fundo está morrendo de convencimento.
— O segundo semestre do ano começou agora, mas tenho alguns
prêmios da primeira metade do ano. — Ah claro, porque não
bastava jogar bola, ser o capitão do time, ser popular, ser simpático,
gostar de exatas e tirar notas boas, ele também tinha que receber
prêmio por ser um bom aluno. Eu não merecia ouvir isso.
— Além de tudo, é um ótimo jogador — Para completar,
mamãe ainda perfez a bajulação, porque era lógico que ela não
podia ficar calada e poupar os meus ouvidos, não é mesmo? —
Com certeza os olheiros das universidades vão lhe oferecer bolsas
de estudos.
— É o que eu espero, madrinha! — respondeu de modo
convicto, como quem almejava muito isso. Natural, já que até eu
mesmo almejava tal bolsa, talvez pelos mesmos motivos: ganhar
independência e caminhar com os próprios pés após terminar o
colegial.
— Está vendo, Liam? — mamãe mirou seus olhos
exatamente sobre mim. Nossa, era só o que me faltava! Eu tinha
quase certeza que bastava começar a falar sobre o sucesso do Eric
para a conversa cair automaticamente na minha pessoa. Já tinha
consciência disso, assim como já sabia que sempre sobrava para
mim. — Você deveria seguir o exemplo do Eric, que, além de ser um
ótimo jogador, é estudioso.
Estudioso? Na verdade, ele tinha sorte, porque nunca pegava
em um livro sequer, mas só tirava notas boas. Sinceramente, estava
cansado disso: “Ah, o Eric é tão simpático, você deveria ser assim.
Ah, o Eric é tão educado, você deveria ser assim. Ah, o Eric é tão
gentil, você deveria ser assim. Ah, o Eric é tão estudioso, você
deveria ser assim. Ah, o Eric é isso, o Eric é aquilo, o Eric é aquilo
outro”. Eu não queria saber disso!
— Hum — Com uma cara de poucos amigos, esse foi o
máximo de som que consegui emitir, enquanto mexia de um lado
para o outro a comida do prato. A minha paciência, para todas as
comparações que faziam entre nós, já estava no limite.
— Com certeza o Eric vai passar para Oxford, a universidade
que ele quer. — continuou com o início daquilo que eu sabia que
seria um sermão. — Mas, e você, Liam? — Ah, claro! Eu estava só
esperando! — Vai para onde? Você disse que quer Harvard. Querer
é uma coisa, conseguir é outra.
Que saco! Como se não bastasse a pressão que fazia sobre
mim mesmo, por conta de tudo o que aquele resto de ano me
acarretaria, ainda tinha que aguentar a pressão dos meus pais?
Eles pareciam não ter noção do que isso me causava.
— Terminei meu almoço. — Com um tom totalmente sério,
levantei-me de supetão da cadeira, porque eu não queria ouvir mais
nada sobre aquilo. — Terminou seu almoço também, Stefany? —
olhei para o seu prato e vi que ainda estava pela metade. No
entanto, ela era inteligente e eu sabia que entenderia que eu queria
fugir do assunto, bem como levá-la comigo.
— Terminei — respondeu de imediato, passando o
guardanapo de leve em sua boca e levantando-se do local onde
estava. Boa menina. Eu nunca me enganava com sua esperteza,
por isso que era a minha garota, a despeito de todas as outras.
— Aonde vocês vão? — Com um tom de voz desconfiado,
papai perguntou ao erguer uma das sobrancelhas para mim. Ah
não, que droga! Com certeza meus pais não me deixariam subir
para o quarto com a Stefany. Apesar de serem liberais em vários
pontos, em outros eram um tanto conservadores.
— Nós... É... — tentei balbuciar algo, buscando por qualquer
desculpa, mas nada vinha. — Nós vamos... Nós vamos para o
quarto. Jogar um pouco de conversa fora. — Ah, claro, eu iria
chamá-la para o meu quarto somente para conversar. Meu Zeus, às
vezes eu era péssimo com invenções.
— Jogar conversa fora? — Dessa vez, foi mamãe quem
questionou, utilizando-se do mesmo tom desconfiado do meu pai.
Por melhor que fossem as mentiras que eu dissesse, sentia que não
iam acreditar em mim. Eles nunca acreditavam em mim.
— Sim — respondi como quem não queria nada, totalmente
despretensioso. Pelo menos eu era bom em fingir caras e bocas,
enquanto por dentro a realidade era bem diferente. O que eu mais
queria era subir para o meu quarto com a Stefany e poder fazer tudo
o que tivéssemos direito para nos tirar o estresse, especialmente o
meu.
— Eu conheço muito bem o filho que tenho... — Com um
pequeno sorrisinho de quem já havia entendido tudo, ela disse. — E
por mais que eu aprove o relacionamento de vocês, não querer que
certas coisinhas aconteçam aqui dentro.
Tão ingênua! Falava como se a gente não já estivesse
transado em cada canto da casa, incluindo o quarto deles, enquanto
estavam trabalhando. A exceção estava sendo somente naquele
dia, porque demos azar de eles terem decidido almoçar em casa,
para a minha completa infelicidade.
— Mamãe! — encarei-a com uma fingida cara de espanto e
um tom de voz totalmente teatral. Eu era mesmo um cafajeste. —
Não vai acontecer nada do que a senhora está pensando. — Uma
bela mentira, porque, se duvidasse, iria acontecer até mais!
— Não nasci ontem, Liam — estreitou os olhos para mim,
fazendo com que até mesmo o sorrisinho desaparecesse. —
Joguem conversa fora aqui embaixo mesmo. — concluiu com ares
de quem havia dado a melhor solução do século.
Que vida mais infeliz a minha! Não se podia mais nem
transar!
— É... Mamãe... — A voz de Molly ondulou pelo espaço,
seguida de um breve pigarreio. — Eu sei que a senhora não gosta
que a gente vá para o quarto, mas o Eric prometeu que iria me
ensinar física. Eu estou com dificuldade nessa disciplina e a senhora
sabe o quanto ele é inteligente. Será que... Podemos subir e estudar
no quarto? Lá é um local calmo.
E, então, jogando na lata do lixo tudo aquilo que havia
acabado de dizer sobre a política de não subir para os quartos,
mamãe deu a resposta mais injusta possível.
— É claro, meu amor — Eu não podia acreditar no que ouvia.
— Eric é um menino responsável. Podem ir — disse, finalizando
com um sorriso orgulhoso.
— Mamãe! — disparei diante de tal absurdo, a ponto dos
meus olhos dobrarem de tamanho. — Como a senhora vai permitir
isso?! — Eu estava injuriado, porque sabia muito bem que Eric e
Molly não iriam somente estudar. Se eu não podia subir com a
Stefany, que eles não pudessem também! Eu queria justiça!
— Ora, querido, eles vão para estudar — replicou com a
maior naturalidade, levando-me a perguntar para mim mesmo como
ela podia ser tão inocente. — Você não ia subir para estudar com a
Stefany, Liam. — Ah, que saco, se eu soubesse, teria usado a
desculpa dos estudos também! O problema era que isso não ia colar
comigo, porque estudos e eu não tínhamos nada a ver. Até nisso o
imbecil tinha sorte!
— Mas, mãe! — Ainda de olhos arregalados, não pude conter
a minha indignação, porque eles poderiam muito bem estudar, mas,
com certeza, não seria a única “atividade”. Enquanto isso, eu, o alvo
de todas as injustiças da casa, permaneceria de braços cruzados,
conversando feito uma criancinha, que eu não era, com a Stefany
na sala de estar.
— Podem ir, queridos — dando de ombros para mim e agindo
como se eu nem existisse na droga daquela casa, mamãe deu total
autorização para que iniciassem os seus “decentes estudos”,
seguindo os costumes e a boa moral, claro. Isso na cabeça dela.
Como bom predador que era, Eric passou o braço pela
cintura de Molly, olhando-me com um sorriso cínico e cheio de
maldade, e seguiu em direção às escadas, como se estivesse
carregando um prêmio. Droga, eles foram mais inteligentes que eu,
usando a desculpa dos estudos.
— Bom, queridos... — Após subirem para o andar dos
quartos, mamãe voltou-se para mim e para a Stefany. — Podem
ficar à vontade. Eu e seu pai vamos continuar trabalhando, Liam,
mas no escritório daqui mesmo. Podem ficar conversando na sala.
— Ficar à vontade? Conversar? Se isso não fosse o paraíso na
Terra, eu não sabia mais o que era. Ironia, okay?
— Tudo bem, tia Claire — Educada como sempre foi, Stefany
respondeu com um sorrisinho, enquanto eu permanecia de
semblante fechado, afinal, só de imaginar que eles dois já
pudessem estar de amassos no quarto, me dava crises de raiva.
Assim, sem que eu desse uma palavra sequer, meus pais
saíram da sala de refeições e seguiram em direção ao escritório da
casa, deixando-nos à sós. Foi somente o tempo para que ela se
virasse para mim e percebesse como eu estava.
— Ei, capitão, não fica com essa cara... — passou a mão em
meus cabelos, beijando meu rosto. — A gente aproveita depois.
— Eu queria aproveitar agora — resmunguei de súbito,
demonstrando meu total desalento. Meus pais poderiam até aprovar
meu relacionamento com a Stefany, mas Eric e Molly,
definitivamente, eram os queridinhos. — O idiota do teu irmão
atrapalha até nisso.

❖❖❖

Depois do episódio do almoço, Stefany ainda passou


algumas horas em minha casa, conversando comigo, claro, já que
não deu para fazer outra coisa. Após as conversas, ela foi para casa
e ficou de me encontrar somente no jogo. Enquanto isso, o Pateta
passou a tarde no quarto com a Molly, “estudando”. Muito entre
aspas esse “estudando”. Saiu apenas na hora de ir para o colégio, o
que levava a crer que ele havia passado todas aquelas horas
fazendo com a Molly o que eu queria ter feito com a irmã dele. Teria
sido melhor se eu tivesse ido jogar Fifa com o Robert e o William
mesmo.
Coincidentemente, o imbecil saiu do quarto na mesma hora
em que eu também estava de saída para o colégio. Na verdade, não
foi tanta coincidência assim, porque os jogadores de ambos os
times tinham que chegar à concentração na mesma hora, ou seja,
com alguns minutos de antecedência ao jogo. Provavelmente, ele
saiu da minha casa com intuito de ir para a concentração do time
dele. Saímos, cada um no seu respectivo carro, e não trocamos
palavra alguma. Afinal, o que eu ia falar com um infeliz desses?
Era preciso confessar que, durante todo o percurso, senti
vontade de jogar meu carro por cima do Porsche dele, mas meu
amor por minha bebê, também chamada de Lamborghini, falou mais
alto. Sorte a dele, porque, em qualquer outro carro, eu teria acabado
com seu Porsche-Amarelo-Cor-De-Vômito-De-Criança.
Não demorei muito até estacionar no Colégio Regent, meu
reino, alguns metros depois de onde o idiota também estacionava
seu carro. Descemos ao mesmo tempo e, mesmo que eu não
quisesse, foi impossível não olhar para cena patética que aconteceu
após ele colocar seu primeiro pezinho no chão escola.
— Eric! — Um grupo formado por meia dúzia das meninas
mais bonitas foi até ele. — Estávamos te esperando — As mesmas
garotas que faltavam abrir as pernas quando eu passava pelos
corredores do colégio, naquele instante, estavam ali, o bajulando,
um cara que nem estudava lá. Por acaso, ele tinha algum mel ou
coisa parecida?
— E aí, capitão! — Outro grupo, mas, dessa vez, formado por
homens, também foi até ele. Curiosamente esses mesmos caras,
que faltavam erguer um tapete vermelho para mim, não foram falar
comigo, porque todas as atenções estavam voltadas para ele. Eram
um bando de traidores. E “capitão”? Não, eu não podia estar
ouvindo isso. Eu quem era o capitão daquele local!
— É, parece que, quando ele chega, o colégio só tem olhos
para o capitão do Liverpool... — Uma sarcástica voz tão conhecida
falou aos meus ouvidos de modo que eu não precisava, ao menos,
me virar para saber que se tratava do Robert. — Sorte a sua que
Eric não estuda aqui, senão sua popularidade cairia drasticamente
— e, como se não bastasse, ainda soltou uma pequena risadinha.
Que droga. O que ele tinha de demais, afinal? O que ele tinha
que eu não tinha? Só porque ele era alto? Eu também era alto. Na
verdade, tínhamos a mesma altura. Só porque ele tinha um corpo
legal? Eu também tinha um corpo legal, talvez melhor que o dele.
Só porque tinha um cabelo estilosinho e castanho claro? Eu também
tinha cabelos estilosos e muito mais bonitos que os dele. Só porque
ele tinha os olhos castanhos? Eu tinha olhos azuis! Azuis! Um
marco!
Só porque ele era bonito? Eu também era bonito, talvez mais
que ele. Eric era bonito, tinha um corpo legal, mas... Ah não! Eu
estava mesmo achando um cara bonito? Que tipo de boiolagem era
essa? E logo com o Eric? Ainda bem que isso estava somente no
mundo dos pensamentos, porque, se eu tivesse falado em voz alta,
provavelmente pularia de uma ponte. Eu devia estar ficando louco.
Toda a história do namoro com a minha irmã devia estar me
enlouquecendo. Sim, devia ser isso.
Cara ou coroa?

Liam

— Ei, oi, alô! — Robert estalou os dedos frente aos meus olhos,
segurando-me pelos ombros, logo em seguida, e chacoalhando-me,
como se estivesse há muito tempo falando sem que eu lhe desse
atenção. — Vai ficar aí secando o Eric mesmo? — Não se conteve
em soltar uma pequena risadinha.
— Han? Oi? — pisquei os olhos repetidas vezes, franzindo o
cenho, como se estivesse acordando de um sonho. Robert estava
falando algo? Eu realmente não saberia responder a essa pergunta,
porque simplesmente passei os últimos dois minutos encarando o
Eric e a sua completa simpatia com todos os que lhe recepcionaram
no colégio.
— Vai ficar aí secando o Eric por mais quanto tempo? —
tornou a questionar, mas, dessa vez, com muito mais sarcasmo. Ele
só podia estar de brincadeira comigo, porque, quem ele pensava
que eu era para estar olhando assim outro homem? Eu não era gay,
apenas fiquei observando seu jeitinho insuportavelmente simpático.
— Tô secando ninguém — resmunguei com um semblante
fechado e de poucos amigos, dando as costas para ele e
começando a caminhar. Eu não era do que tipo que admitia míseras
e mínimas brincadeiras com minha orientação sexual,
especialmente quando a chacota envolvia o Eric.
— Ei, brother — senti seus passos rápidos vindo atrás de
mim, tentando me acompanhar. — Precisa ficar com raiva não, foi
só uma brincadeira — Só uma brincadeira? Talvez ele não soubesse
que brincadeiras tinham limites.
— Não tô com raiva — menti, engolindo o mal-estar que
aquela pequena insinuação me causou. Por mais que o Robert
fosse um desagradável em noventa por cento do tempo, ele era
meu amigo e eu não queria criar um clima ruim entre nós.
— Sei — replicou como se soubesse que eu estava omitindo
a verdade, no entanto logo mudou de assunto, provavelmente
percebendo que eu não queria continuar naquele. — Mas, e aí,
como tá essa força? — perguntou, tocando em meu ombro. — A
sobremesa foi boa?
— Meus pais estavam em casa — confessei com desgosto e
desânimo, porque preferia nem me lembrar do acontecido. Eu só
podia ser muito azarado ou algo parecido com isso, já que não tinha
a sorte nem para aproveitar alguns prazeres da vida.
Soltando uma pequena risada pelo nariz, Robert expressou
aquilo que eu já sabia.
— Nossa, irmão, que azar. — Sim, era muito azar mesmo.
Pelo menos isso não acontecia sempre, porque, caso contrário, eu
já teria procurado outro lugar para ficar com ela.
— Nem me fale — balancei a cabeça, tentando dissipar o
desapontamento por ter passado uma tarde inteira apenas
conversando. — Eu tô subindo pelas paredes aqui. — Por fim,
revelei o que, com certeza, já era de seu conhecimento.
— Stefany vem para o jogo? — perguntou, enquanto
dobrávamos pelo corredor principal, indo em direção ao vestiário,
para nos prepararmos para a partida de logo mais. O colégio já
estava abarrotado de alunos entusiasmado com o grande momento
que logo iria começar.
— Vem — Isso era uma das poucas felicidades para aquela
noite, já que, mesmo tendo passado a tarde inteira comigo, sua
companhia nunca era demais, principalmente se fosse levar em
consideração as raivas que eu ainda iria passar em poucos minutos
ao ter que dividir o campo com o tal idiota.
— A galera vai para um pub depois do jogo — contou algo
que eu tinha ouvido falar, já que notei uma movimentação dos caras
mais cedo, combinando de sair depois da partida. Além do mais,
isso era algo bem costumeiro. — Leva ela.
— Boa ideia — repliquei sem ao menos precisar pensar. —
Além de transar, eu tô precisando beber. — Stefany era uma ótima
companhia para bebida. Na verdade, ela era uma boa companhia
para tudo: conversar, transar, beber. Tudo.
Continuamos caminhando pelo corredor do colégio, seguindo
rumo ao vestiário, até que as primeiras pessoas começaram a surgir
para me cumprimentar. O que havia acontecido, afinal? Não iriam
continuar dando atenção ao menino de ouro? Todos eram uns
traidores.
— Ei, capitão, faz um gol pra mim... — Uma garota falou ao
passar por mim e, se eu não estivesse enganado, fazia parte do
mesmo grupinho daquelas que foram receber o Eric. Não me dei ao
trabalho nem de responder de volta.
— Grande jogo hoje, heim... — Dessa vez, foi um cara que
tocou em meu ombro, enquanto caminhava, e, se eu também não
estivesse enganado, fazia parte do mesmo grupo de garotos que
foram cumprimentar o Golden Boy. Eu tinha uma memória
fotográfica ótima e sabia que eram todos falsos.
— Liam... — Quando já estava quase me desiludindo com o
fato de que cruzaria com uma pessoa de bem por ali, uma voz
feminina falou atrás de mim. Uma voz conhecida e de alguém que
eu sabia que podia confiar. Então, virei-me e vi Stefany, a irmã do
traste.
— E aí, gatinha — Com ela, eu com certeza me dava ao
trabalho de ser atencioso. Bom, não era como se eu fizesse isso
com todo mundo, porque poucas pessoas na face da Terra recebiam
a minha atenção. E, não, eu não era convencido. Talvez só um
pouco.
— Vai para a concentração? — perguntou aproximando-se
ainda mais de mim e arrancando olhares curiosos de quem passava
por perto. Eu não sabia o porquê, mas parecia que a minha vida
particular e as pessoas com quem eu me envolvia eram alvos de
falatório e de intromissão. Ser popular tinha suas desvantagens.
— Vou passar no vestiário antes — respondi, erguendo uma
de minhas mãos ao seu cabelo para fazer um leve e gentil carinho.
— Preciso trocar de roupa e vestir o uniforme do time — Usar o
uniforme era uma das melhores partes em jogar futebol.
— Está sabendo do pub depois do jogo? — questionou
novamente, mesmo que eu tivesse a certeza de que ela já soubesse
que eu sabia sobre isso. Afinal, nada naquele colégio, muito menos
entre os companheiros de time, me passava em branco. Eu era os
olhos e os ouvidos dali.
— Robert acabou de me falar — disse como se eu não
tivesse visto e ouvido as movimentações de mais cedo sobre a
organização do tal passeio. — Ia te chamar. — Claro que ia. Quanto
mais tempo eu passasse perto de pessoas agradáveis, melhor.
— Leu minha mente, então, porque eu vou — sorriu com
satisfação para mim, porque ela adorava esse tipo de coisa. Era
uma das garotas que eu mais gostava de sair e que era totalmente
livre para fazer isso. — Bom jogo, capitão. Vou para a arquibancada
— Por fim, beijou-me e se despediu, afastando-se dali.
Quando voltei a caminhar com Robert seguindo ao meu lado,
logo não perdeu tempo em puxar um assunto que meus ouvidos já
estavam cansados de escutar.
— Stefany é a típica mulher 3g. Gata, gostosa e gente boa.
Não sei por que não a namora.
E a resposta para isso era mais simples do que qualquer
outra.
— Não quero namorar — falei curto e seco uma das maiores
verdades da minha vida. Por mais legal que ela fosse, eu não queria
relacionamento sério com alguém e tinha a certeza de que ela
também não queria. Stefany sempre foi muito autossuficiente.
— A menina é o sonho de qualquer cara — balançou a
cabeça em negativo, como se estivesse recriminando a minha
decisão de não querer namorar. Isso era um verdadeiro absurdo,
porque ninguém deveria ser criticado por não querer assumir um
relacionamento com alguém. — Você só pode ser gay.
Definitivamente, Robert estava minando minha paciência que
já era curta. Ou as pessoas estavam com algum problema ou
tinham reservado aquele dia para me encher o saco, porque, mais
cedo, tinha sido a Stefany dizendo que eu era apaixonado pelo seu
irmão (sentia asco só de pensar nisso) e, agora, era o Robert me
acusando de ser gay.
— Eu não sou gay — suspirei, tentando reunir forças para
não responder de um modo totalmente mal-educado, o que, na
verdade, era o que eu mais queria. — Só não quero namorar. Só
não tenho vontade. Será que é difícil de entender?
— Com qualquer outra garota eu entenderia, mas com a
Stefany não. Com ela é difícil de entender, porque a garota é muito
perfeita — soltou uma pequena risadinha, mas não prosseguiu com
o falatório, fazendo me dar graças a Zeus por isso.
Apenas dei de ombros e continuei a caminhar, não
demorando muito até ao vestiário. Quando adentrei, logo dei de cara
com vinte e um jogadores, fora eu, se vestindo para o jogo, sendo
onze titulares e onze reservas. Como sempre, a algazarra estava
posta ali, pois nunca conseguiam ficar quietos quando se juntavam.
Fui até o meu armário e retirei o uniforme, bem como a
chuteira. Logo me despi dos coturnos, da calça jeans, da jaqueta e
da camiseta, ficando somente de cueca. Todos se trocavam e
tomavam banho na frente uns dos outros, isso era mais do que
normal e comum. No entanto, apesar de ser natural, os banhos
compartilhados, definitivamente, não eram um dos melhores
momentos para mim.
Como eu era os olhos e ouvidos daquele lugar, enquanto
estava me vestindo, não pude deixar de notar a conversa de alguns
caras próximos a mim.
— Tá sabendo que o time do Colégio Liverpool tá passando
por poucas e boas? — Um deles perguntou em tom sugestivo ao
outro.
— Tô sabendo não. — O outro respondeu, franzindo o cenho.
— O que tá pegando? — questionou enquanto colocava o meião e
calçava as chuteiras.
— Boatos sobre problemas financeiros — replicou. — Parece
que o colégio está com dificuldade de manter o time, por melhor que
seja.
Ah, então, o grande time do Colégio Liverpool estava
passando por problemas financeiros? Muito bom saber disso. Na
verdade, ótimo, porque o que eu mais queria era que o Eric e todo o
seu time se...
— Concentração agora! — A voz imponente do técnico
bradou pelo vestiário, interrompendo de imediato meus
pensamentos. Sempre que ele surgia, todos mudavam de postura
em um piscar de olhos, demonstrando respeito e, até mesmo, um
pouquinho de medo.
Assim, o time seguiu para a concentração, porque, quando o
Sr. Jones falava, a ordem tinha que ser que cumprida na mesma
hora, ainda mais se levássemos em consideração o fato de que ele
não era uma das pessoas mais simpáticas.
Durante a pequena reunião, ele relembrou tudo o que
havíamos combinado nos treinos: passes, táticas, jogadas
ensaiadas e...
— Cobertura! Essa é a palavra do jogo — disse. — Por favor,
eu digo e repito, não deixem o Eric fazer marcação no Liam o jogo
inteiro! Entendido?
— Entendido, Sr. Jones — Todos os jogadores responderam
em uníssono, afinal, ninguém era louco de não cumprir as
instruções e as orientações que ele passava. Era isso ou estaríamos
fora do time, dando adeus à possibilidade de ganhar uma bolsa da
universidade.
Eu sentia que realmente teria um batalhão em minha volta
naquele jogo, já que ninguém deixaria o tal idiota me marcar, assim
como aconteceu da última vez. Eu não podia negar que adorava
essa atenção que me davam, porque, enfim, eu era o artilheiro e
precisava de todos esses cuidados mesmo.
— Agora, formem uma fila atrás do Liam, para entrar em
campo — ordenou ao finalizar os procedimentos da concentração,
fazendo com que todos de súbito se posicionassem às minhas
costas. O capitão sempre conduzia o time durante a partida, era a
cabeça pensante ou, pelo menos, em teoria.
Desse modo, saímos da concentração em fila e nos
dispomos no corredor na mesma hora em que o adversário se
posicionou ao nosso lado, para entrarmos juntos. Eric, assim como
eu, também estava à frente de seu time, mas, enquanto os
jogadores dos dois lados se falavam e se cumprimentavam, nós não
demos uma palavra sequer. Afinal, eu não tinha nada para
conversar com esse completo imbecil.
A organização do jogo deu um sinal para que ambos os times
adentrassem em campo e assim o fizemos. Observei em volta e
pude notar que as arquibancadas estavam lotadas de alunos
eufóricos, carregando bandeiras e cartazes dos respectivos times.
Aqueles que estavam de vermelho eram os torcedores do meu time,
já os que estavam com a cor azul representavam o adversário. Uma
das vantagens de se estudar no Colégio Regent era o imenso
campo de futebol, praticamente do tamanho de um estádio de
verdade e isso era demais.
Os dois times se posicionaram lado a lado no campo,
aguardando o sorteio de qual time ficaria com a bola. Com um sinal
através do apito, o juiz gesticulou para que eu e Eric fôssemos em
sua direção, porque os capitães eram sempre responsáveis por
representar o time na hora do sorteio. Tão logo chegamos,
cumprimentamos o juiz e os árbitros, em sinal de respeito. No
entanto, a educação ia somente até aí.
— Boa noite — o juiz se pronunciou. — Podem se
cumprimentar.
Eric ainda ergueu uma das mãos em minha direção, mas eu
era muito orgulhoso e soberbo para retribuir, por isso, apenas olhei
e não o cumprimentei de volta. Nunca apertávamos as mãos antes
dos jogos, nem depois, nem em momento algum, por mais que os
juízes pedissem. Então, naquele dia não seria diferente e Eric
deveria saber disso.
— Ok — olhou para nós dois com um semblante que já
demonstrava saber que não daríamos as mãos e, então, prosseguiu
com o sorteio, fazendo com que eu desse graças a Zeus. Eu
considerava todos esses cumprimentos desnecessários e
descartáveis. — Cara ou coroa? — encarou-nos ao mesmo tempo.
— Você primeiro — Eric, com certo ar de superioridade
somado ao seu típico tom educado, disse. Esse jeitinho dele me
dava nos nervos, porque, primeiro, eu sabia que nas entrelinhas
estava me provocando, e, segundo, mesmo me provocando, ele
ainda fazia isso de um jeito educado.
— Claro. Eu primeiro — e, então, repliquei à altura, fazendo-o
revirar os olhos para mim. Eu não poderia perder a oportunidade de
retribuir a hostilidade, afinal, quando estávamos juntos e perto um
do outro era assim que funcionava. — Cara.
— Coroa — respondeu.
Jogando a moeda para cima e segurando-a em seu pulso, o
juiz demonstrou para nós, logo em seguida, que havia dado cara, ou
seja, era eu e meu time em primeiro, assim como devia ser sempre,
porque éramos os melhores. Modéstia não fazia parte do meu
vocabulário.
Entregou-me a bola, dando o aval para que eu fosse para o
centro do campo, e assim o fiz. Enquanto a arquibancada
continuava eufórica e entoava gritos de guerra, meu time se
posicionou do lado esquerdo, enquanto o time do Pateta ficou do
lado direito. E, então, com o apito, o juiz autorizou o jogo, fazendo-
me rolar a bola.
Cinco, dez, quinze minutos de jogo já haviam de passado,
mas foi tempo o suficiente para que meu time fizesse pressão e
para que as orientações do Sr. Jones, pelo menos por ora, fossem
seguidas, já que estavam me dando cobertura sempre que a bola
tocava em meu pé. Por conta disso, realizei várias finalizações em
direção ao gol e, mesmo que ainda sem marcar pontuação, já era
um bom começo.
Além das finalizações, a cobertura causou outros efeitos em
campo como, por exemplo, a hilária inquietação do Eric por querer
me marcar, mas não conseguir. Se eu estava gostando disso? Não.
Na verdade, eu estava adorando e rindo por dentro com o
desassossego dele. Como eu amava isso e meu time!
No entanto, o time do Colégio Liverpool atacou, fazendo com
que a maior parte dos jogadores ficasse do lado do meu time no
campo e com que Robert fosse mais rápido, chutando a bola para
mim, que estava mais afastado da área onde o ataque aconteceu.
Beleza! Aquela era minha hora de brilhar no jogo. Aproveitei que o
time estava todo recuado e contra-ataquei.
Recebi a bola que Robert chutou para mim, dominei-a e, em
questão de segundos, aproveitei a parte do campo livre para correr
em direção ao gol do adversário. Avancei o mais rápido que pude, já
notando os adversários se aproximando, assim como meus
companheiros também, e, então, quando estava chegando ao gol,
próximo da região da grande área, senti um carrinho nos meus pés,
fazendo a bola desviar para a lateral e me fazendo cair no chão.
E quem deu um carrinho na bola e, consequentemente, nos
meus pés? Sim, aquele demônio que o Eric era. Eu estava tão perto
de fazer um gol, mas, naquele instante, em menos de dois
segundos, estava caído no meio do campo, com uma tremenda dor
no tornozelo direito, resultado do seu infeliz bloqueio. Que dor
horrível estava sentindo e a raiva causada somente aumentava a
proporção do sentimento. Ele havia aproveitado a sobra da
cobertura para me marcar.
— Desculpa, cara... — ouvi a voz do infeliz, meio sem jeito,
aproximando de mim. — Não queria machucar teu tornozelo — Não
pude vê-lo, porque, de olhos fechados, tentava reprimir a dor. Eu
não precisava de desculpas, eu só precisava parar de sentir aquilo.
— Sai daqui, seu idiota — Mesmo com a dor, ainda consegui
falar e repreendê-lo para não chegar ainda mais perto de mim. Eu o
queria longe e o mais distante possível, pois não precisava de sua
voz irritantemente preocupada falando em meus ouvidos.
— Sério, cara, desculpa — tornou a falar, mesmo sabendo
que eu não o queria por perto. — Era pra ter pegado só na bola —
E, então, como se não bastasse toda a irritação sobre mim por
causa da situação, senti sua mão segurando meu braço e tentando
me ajudar a levantar.
Droga, será que ele não entendia que eu não queria a sua
ajuda? Aquilo já era demais para mim, por isso seu toque foi o
suficiente para que uma força descomunal viesse de minhas
entranhas e me fizesse levantar, mesmo ainda sentindo dor.
— Não preciso de ajuda, imbecil! — disparei, enquanto me
levantava e puxava, de supetão, meu braço de sua mão. Eu não
queria qualquer mínimo contato com ele, então, sentir suas mãos
em mim, me despertava o pior.
No entanto, como se não se importasse com o que eu havia
dito, segurou-me novamente, despertando-me ainda mais fúria.
— Eu já disse que não quero ajuda! — empurrei-o com as
duas mãos, pouco me importando com quão estúpido eu estava
sendo.
Desequilibrando-se um pouco, passou as mãos em seu rosto
no exato instante que em o apito do juiz soou, provavelmente
sinalizando para que parássemos com aquilo.
— Cara, desculpa — aproximou-se de novo. — Melhor
chamar a enfermeira para passar um spray no teu tornozelo.
Ah, então, o capeta estava querendo dar uma de anjo? Só
podia ser piada. E piada maior ainda era ele não se cansar de ser
impertinente e insistir em ficar próximo a mim. Eu, que já não
aguentava mais, exclamei:
— Sai de perto, infeliz!
E, então, dessa vez, após insultá-lo, Eric respirou fundo e
permitiu que seus olhos se transformassem em duas pedras de
gelo, totalmente diferente do olhar preocupado que me deu
segundos atrás.
— Se eu não sair de perto, você vai fazer o quê? — inclinou
de leve a cabeça para um lado. — Acertar o meu punho com seu
rosto? — e finalizou com sarcasmo.
Ah, ele, definitivamente, estava brincando com fogo! E o fogo
era eu.
— Quer saber o que eu vou fazer, idiota? — Com feições de
leão, agarrei sua camisa, com toda força, entre meus dedos,
fazendo com que ficássemos cara a cara.
— Quero — fechou o semblante, encarando-me com frieza e
seriedade.
E, então, nesse exato instante, o juiz e os árbitros chegaram,
assim como os jogadores também se aproximaram, para tentar
apaziguar a situação. O problema era que eu queria acabar com ele
e estava pouco me importando com as consequências que isso me
traria. Eu queria socar seu rosto. Eu queria colocá-lo em seu devido
lugar. Eu queria... Eu... Oh não, eu acabei me dando conta de que
nossos corpos estavam próximos demais, assim como nossos
rostos também.
Nossa, nós estávamos muito perto mesmo.
Talvez, eu nunca tivesse ficado tão bem dele quanto daquele
jeito. Apenas poucos milímetros nos separavam. Parecia até coisa
de gay: testa com testa, nariz com nariz, tão perto que eu achava
que, a qualquer momento, podia sentir sua respiração. E eu não
estava enganado, eu realmente senti sua respiração quente e
pesada em meu rosto. Isso me causou uma sensação estranha.
Algo que eu nunca havia sentido.
Meu Zeus.
O que era isso que eu estava acontecendo comigo? Algo
parecia fervilhar em minha virilha e eu não fazia ideia do que era.
Então, como se também estivesse sentindo o mesmo que eu, Eric
afastou seu rosto do meu, franzindo o cenho. Parecia tão assustado
e confuso quanto eu. Ele... Ele estava sentindo o mesmo que eu?
Deus, Buda, Poseidon, o que estava acontecendo com a gente?
Cara estranho

Eric

Mas que diabos estava acontecendo? Por que eu senti um


formigamento lá embaixo? Alguém poderia me explicar?
Inevitavelmente afastei meu rosto, com o cenho franzido.
Liam parecia estar tão assustado quanto eu, a ponto de soltar minha
camisa que estava firmemente segura entre seus dedos, quando, há
poucos minutos, ele queria me bater. Será que estava sentindo a
mesma coisa que eu? Por que ele sentiu esse negócio também?
Meu Deus, quantas perguntas.
Liam estava tão espantado, que nem piscava os olhos. Eu
nunca o vi com tal semblante. Ele sentiu ou não? Acreditava que
sim, porque conseguia ver em suas feições que havia sido algo
mútuo e compartilhado por nós dois. Era como se fosse uma
assombração, na verdade, pior que assombração, era um
verdadeiro pesadelo.
Afastei-me ainda mais dele, fazendo de tudo para não sentir
aquilo novamente, até porque, sempre que eu sentia algo parecido
com isso era quando eu estava com... Mulher. Com mulher! Como
algo assim podia ter acontecido entre mim e um cara? E pior, não
era qualquer garoto, era o Liam: um moleque atrevido que cresceu
alimentando um tremendo ódio por mim.
— Parece que os ânimos de vocês já se acalmaram — ouvi a
voz do juiz, mas não o vi, porque, por mais que eu tivesse me
afastado do Liam, não conseguia parar de olhá-lo, assim como ele
também não tirava os olhos de mim, tão intimidado quanto eu. — Eu
vou ter que a marcar a falta e te dar cartão amarelo. Você atingiu o
tornozelo do adversário — prosseguiu enquanto eu permanecia
calado, sem conseguir dar uma palavra sequer. — Ei... — tocou em
meu ombro, fazendo-me finalmente acordar e desviar meu olhar do
Liam para ele. — Cartão amarelo.
— T-Tá... — gaguejei, sentindo-me meio desorientado e
totalmente perdido, ao ponto de não conseguir nem argumentar algo
contra o cartão amarelo e dizer que não cometi falta. Se fosse em
qualquer outra ocasião, eu, com certeza, teria alegado qualquer
coisa para impedir a marcação, mas, naquele instante, não tinha a
capacidade de fazer algo, se não organizar meus pensamentos para
tentar entender o que tinha acontecido ali.
— Quem vai bater a falta? — o juiz perguntou ao Liam, mas
ele continuou me olhando e não deu a mínima atenção. Parecia
imerso e absorto em pensamentos que o impediam de se concentrar
em qualquer outra coisa. — Ei... — Dessa vez, seu ombro foi
tocado, fazendo-o finalmente olhar para o lado. — Quem vai bater a
falta? — questionou outra vez.
— Que-Quem vai bater... A falta? — Liam gaguejou tão
desnorteado quanto eu, como se estivesse em outro plano, um
universo paralelo. E, por mais, que eu não pudesse ler sua mente,
curiosamente sabia o que ele estava se passando em seu interior.
Ele estava afetado pela situação de segundos atrás.
— Sim. — Um dos árbitros replicou com inquietude, porque,
provavelmente, já estávamos perdendo muito tempo, com nossas
caras de bobos um para o outro, sem tomar uma atitude definitiva
que desse continuidade ao jogo.
— O técnico mandou você bater a falta, Liam. — William, o
amigo do Liam, apareceu na parte do campo onde nos
encontrávamos.
Liam olhou para o William, para mim e para o juiz,
exatamente nessa ordem, deixando-me curioso sobre o que estava
pensando. Então, em questão de segundos, tornou a me encarar,
respirando fundo e fazendo com que seu típico semblante surgisse:
seguro de si, confiante e convencido. Começou a agir como se nada
tivesse acontecido.
— Beleza — retrucou com firmeza. Seu habitual porte altivo e
estupidamente nojento apareceu, destoando completamente do
rosto pasmo e aturdido de pouco tempo atrás. Parecia que nem era
a mesma pessoa ali. — Pode deixar. Vou bater a falta.
— Posicione a barreira do seu time — o juiz requisitou,
olhando para mim e fazendo com que eu acenasse um breve sim
com a cabeça para sua ordem.
Caminhei até o meu time, falei com os jogadores já
previamente escolhidos pelo técnico e posicionei a barreira a
poucos metros de onde ele iria tocar a bola. Se ele queria agir como
se nada tivesse acontecido, tudo bem, era melhor assim, até porque
aquilo foi bastante louco e sem sentido.
Liam se afastou, ficando alguns metros antes da barreira, e,
sendo um bom marcador de pontos de falta (devia admitir isso,
infelizmente), todo cuidado era pouco. Na verdade, ele era um bom
jogador de maneira geral, mas, obviamente, eu jamais admitiria isso
em voz alta, apesar de nem acreditar que estava falando isso
somente em pensamento.
Posicionei-me também na barreira, ao lado dos meus demais
companheiros, e vi o momento em que ele se afastou da bola,
tomando uma boa distância para chutar e olhando para gol que
estava atrás da barreira. Quando parou, segundos antes de bater a
falta, desviou seu olhar da trave para mim, encarando-me de
maneira suspeita e deixando-me, de certo modo, confuso. Ele
estava muito estranho.
Com o som do apito, o juiz autorizou, fazendo com que Liam
corresse em direção à bola. Quando chegou próximo o suficiente,
diminuiu um pouco o passo e deu o chute. Já era de conhecimento
de todos que, sempre que ele fazia essa espécie de “paradinha”
antes de chutar a bola, tinha noventa por cento de chances de
marcar gol. Tínhamos noção de algumas artimanhas que ele usava.
Com as mãos para proteger os respectivos sacos, é claro,
afinal, nunca se sabia onde a bola poderia bater, a barreira inteira
subiu para defender. Senti o exato instante em que minha cabeça
passou de raspão na bola, mas, sem sucesso, não consegui
defendê-la. Assim que me virei, para, enfim, tentar impedir o gol, tive
a pior visão que meus olhos poderiam visualizar.
Droga! A rede já balançava com o que havia acabado de
acontecer, pois a bola passou por cima da barreira e caiu tão no
canto superior direito da trave que o goleiro não conseguiu pegar.
Liam corria pelo campo, comemorando o gol marcado, enquanto os
outros caras do seu time chegavam para abraçá-lo e para pular
nele.
No momento em que me olhou e sorriu sarcasticamente,
como se estivesse querendo passar por cima da carne seca, na
verdade minha carne seca, tive a certeza de que esse era o Liam
que eu conhecia desde criança, e não aquele que me causou
algumas sensações confusas. Desde o episódio esquisito, estranho
e tosco de minutos atrás, essa era a primeira vez que o notava mais
leve e relaxado.
A arquibancada comemorava junto com eles, enquanto meu
time encarava uns aos outros com semblantes totalmente
desapontados, o que fazia com que eu, na posição de capitão,
tivesse o dever de motivá-los, já que não adiantava ficar assim,
principalmente levando em consideração de que ainda tinha o
segundo tempo inteiro. Assim, confiante, aproximei-me deles,
porque confiança era tudo e mais um pouco.
— Vamo lá! Vamo lá, galera! — disse ao caminhar entre eles,
tocando nos ombros de cada um. — Não desanimem! Ainda temos
o segundo tempo inteiro para marcar! — O capitão não existia
somente para enfeite, ele era responsável pela organização e o
equilíbrio do time dentro de campo. O braço direito do técnico.
Então, poucos minutos depois do gol, o juiz apitou,
sinalizando o fim do primeiro tempo e indicando que os times
fossem para seus respectivos vestiários. Assim o fizemos e, durante
a pausa de quinze minutos, na nossa concentração, o técnico
passou todas as orientações que deveríamos seguir no segundo
tempo.
— Eric, marcação! Marcação! — bradou aos meus ouvidos.
— Da metade para o fim do primeiro tempo você vacilou na
marcação do Liam e o deixou muito solto, por pouco não fez outro
gol. Marcação no segundo tempo. Entendido?
Sinceramente, eu fiquei distante porque não estava a fim de
sentir aquele negócio estranho de novo. Imaginei que se eu me
aproximasse, provavelmente, tudo poderia voltar. Por isso, preferi
não arriscar, já que não era uma sensação boa de experimentar
com um homem.
— Eric! — o técnico estalou os dedos frente ao meu rosto. —
Acorda! — pisquei os olhos repetidas vezes, como se estivesse
acordando de um sonho. Droga, eu saía da órbita somente de
relembrar o que havia acontecido. — Marcação no segundo tempo.
Entendido?
— Si-Sim, treinador — respondi meio sem jeito, primeiro,
porque era realmente embaraçoso pensar no Liam daquela maneira,
e, segundo, porque eu não queria o marcar novamente, mas, já que
o treinador estava pedindo, eu encarava como uma ordem.
Após a finalização do intervalo, com as instruções
repassadas e as suadas camisas trocadas por outras limpas, todos
voltaram para o campo, no qual os times logo se posicionaram para
iniciar os minutos finais do jogo. Com o som apito, o juiz indicou o
começo do segundo tempo, autorizando, assim, que a bola rolasse
novamente.
Alguns minutos se passaram e eu já conseguia ouvir a voz do
treinado, lá no banco, gritando por mim insistentemente. Nem ao
menos precisei pensar por muito tempo qual era a motivação para
isso, já que eu sabia muito bem o que ele queria, e isso era nada
mais, nada menos, que marcação no Liam. Ah não, eu não tinha
outra alternativa, se não cumprir a ordem. Era o jeito.
Liam tinha quase total domínio da bola, quando ela caía em
seu pé, por isso não era tão fácil marcá-lo e desviá-lo diante de toda
sua desenvoltura, por mais que, em sua frente, eu sempre tentasse
demonstrar que fazia isso com facilidade, claro. Ele não precisava
saber que era bom jogando, principalmente se dependesse de mim,
senão ficaria ainda mais convencido.
Em um dado momento da partida, a bola foi parar em seu pé
e o meu treinador, lógico, não perdeu tempo em gritar por mim, o
que fazia com que eu me sentisse ainda mais pressionado. Eu
realmente não queria marcá-lo, apesar de sempre ter prazer em
fazer isso, mas, naquela situação em específico, depois do que
havia acontecido no primeiro tempo, quanto mais distância
tivéssemos um do outro, melhor.
No entanto, do jeito que o treinador estava furioso, era melhor
obedecer, por isso corri em direção ao Liam e comecei a fazer
pressão ao seu lado, para que ele deixasse a bola escapar.
Inevitavelmente aproximei meu corpo do seu, até porque não tinha
como tirar a bola de um indivíduo, se eu não me aproximasse do tal
indivíduo. Isso era um saco.
Em questão de poucos segundos, pude começar a notar que
ele já estava, “para variar”, ficando com certa agonia da minha
pressão. Por isso, tocou a bola para um outro membro do time, a fim
de despistar minha defesa. Eu já conhecia essa sua tática e era por
isso que sabia que a bola sempre voltava para o seu pé, e voltou.
— Sai de perto, idiota! — disparou com certa raiva, já inquieto
por me ter ao seu lado. No entanto, seu resmungo foi o suficiente
para que ele se desconcentrasse e eu conseguisse aquilo que o
técnico tanto queria.
— Só cumpro ordens! — de supetão, encostei o pé na bola e
a arrastei em minha direção, acertando na marcação e tirando-a de
perto dele. Sim, eu consegui! Aproveitei a sobra para correr,
enquanto o restante do time se preparava para colocar em prática
mais uma jogada ensaiada.
Passei a bola para um de meus companheiros, enquanto ia
sendo repassada a outros até voltar para mim. Toda essa
movimentação demonstrava o domínio de bola que nosso time
estava precisando pôr em prática para, enfim, fazer um gol.
Então, quando a posse da bola estava comigo novamente,
senti alguns jogadores do time adversário fazendo pressão para eu
não prosseguir, mas eu já estava tão perto do gol, que tive a certeza
de que iria dar certo. Assim, o atacante também se aproximou do
gol, esperando somente que eu repassasse a bola.
Chutei para ele, que recebeu, logo em seguida, dominando-a,
mirando no gol e chutando-a. E, então, quando meus olhos
cravaram lá, a rede balançou e a bola foi para o fundo do gol. Foi
gol! Foi gol! Minha lista de participação em jogadas decisivas
somente aumentava.
O atacante do meu time correu pelo campo, comemorando, e
eu, então, corri em sua direção, pulando em seus ombros, enquanto
os membros do time também chegavam para comemorar. Olhei
para o Liam e, dessa vez, fui eu quem dei um sorriso sarcástico a
ele, retribuindo aquele que havia me dado no primeiro tempo. Um
pequeno troco.
Após a breve comemoração, voltamos para o jogo com um
Liam, definitivamente, mais irritado do que ele já era normalmente.
Na verdade, eu nunca tinha visto pessoa mais mal-humorada,
então, com o gol que marcamos, esse aborrecimento triplicava.
Mas, ainda precisávamos buscar o desempate, já que a partida
estava se aproximando fim.
E o meu time, com a energia que ganhou nos últimos
minutos, estava realmente correndo atrás do desempate, enquanto
a posse de bola do time adversário estava baixíssima, porque,
primeiro, estávamos fazendo pressão, mesmo cansados depois
jogar por quase noventa minutos, e, segundo, porque era notória a
desmotivação deles.
Estava próximo ao final do gol, quando, de repente, o lateral
do meu time roubou a bola de um cara adversário, fazendo com que
eu rapidamente lembrasse de uma jogada ensaiada na qual eu
marcava o gol e, como eu estava próximo à trave, talvez pudesse
tentar. Mesmo sendo zagueiro, o técnico tinha espécie de
superstição, então sempre me treinava para fazer gols.
Na prática estava acontecendo exatamente o que tínhamos
ensaiado, que era justamente quando o lateral me passava a bola
no treino e eu finalizava no gol. Provavelmente ele deve ter se
lembrado disso, porque não demorou muito até chutar a bola. Afinal,
não tinha como esquecer com o treinador gritando lá no banco, a
todo instante, para passar a bola para mim.
Recebi a bola e a dominei quando os caras do time
adversário começaram a se aproximar, ficando ao meu redor.
Obviamente, eles queriam fazer pressão, mas eu não me intimidava
com isso, porque, em geral, era eu quem fazia esse tipo de coisa
nos outros. Como eu estava próximo ao gol, corri apenas alguns
centímetros e chutei, mirando exatamente no cantinho da trave, bem
próximo ao travessão. Com essa altura não tinha como o Robert
defender.
E, então, como se o mundo estivesse em câmera lenta, vi
quando entrou certinho e balançou a rede. Foi gol! Mais um gol! Eu
estava tão feliz! A expressão “nos quarenta e cinco do segundo
tempo” nunca tinha feito tanto sentido para mim, como naquele
momento. Marquei uma pontuação no final da partida como
zagueiro, nem mesmo era atacante ou centroavante.
Corri pelo gramado, comemorando, e ouvi quando o apito do
juiz soou, indicando o fim do segundo tempo. A partida havia sido
encerrada e o meu time era o vencedor contra nosso principal
adversário, isso não podia ser melhor! Na verdade, apenas algo era
melhor que aquilo: a cara de tacho que o Liam provavelmente
estaria fazendo. O grande capitão daquele colégio!
Todos os jogadores pularam em mim, nos meus ombros,
falando os típicos palavrões que éramos acostumados a dizer
quando estávamos felizes, e não demoraram até me erguer em
seus braços. O campo do Colégio Regent era mesmo o reino do
Liam? Bom, era o que todos falavam, mas, naquele instante, estava
mais para meu reino. Ele tinha perdido em casa.
Por isso, não hesitei em olhá-lo, enquanto meus parceiros me
colocavam de volta no chão, tendo a certeza de que ele estava
enfurecido à níveis estratosféricos, porque, primeiro, ele tinha
perdido em seu reino, e, segundo, foi vencido por seu time
adversário, e, terceiro, quem estava comemorando era seu pior
inimigo, ou seja, eu.
Estava tão aborrecido que, enquanto todos se
cumprimentavam pelo fim do jogo, mesmo tendo perdido, ele não
trocava palavra alguma com ninguém. Liam realmente era uma
menininha mimada que não sabia perder. Por isso, aproximando-me
dele, não perdi meu tempo em provocá-lo. Se existia algo que eu
tinha prazer em fazer, esse algo era deixá-lo com ainda mais raiva.
— Chora mais, bonequinha! — falei em meio a risos,
enquanto corria em círculos a sua volta.
— Vai se ferrar — resmungou de cara fechada, sem me olhar
nos olhos.
— Quack, quack, quack! — brinquei com o som que os patos
emitiam, porque, bem, se ele era infantil, eu também podia me dar
um pouquinho a esse luxo. — Patolino!
E, então, quando me calei, ele me encarou com um olhar de
quem queria me assassinar. Fez menção, logo em seguida, de tirar
a camisa, mas não completou o ato. Todos os jogadores tinham o
costume de tirar a camisa depois do jogo, mas não sabia por qual
motivo preferiu ficar com a dele. Assim, aproveitando a deixa, tirei a
minha, porque o calor estava infernal. Meu corpo suado somente
piorava a situação.
No entanto, quando retirei a camisa, aquele semblante de
quem queria me assassinar mudou para um... Estranho... Muito
estranho! Só podia ser impressão minha, mas Liam estava olhando
para o meu abdômen? Que diabos estava acontecendo? Ele nunca
tinha feito algo assim, mesmo já tendo me visto sem camisa em
muitos outros jogos. Naquele dia em específico, no entanto, ele
estava especialmente estranho.
Babá de bêbado

Eric

Com o cenho levemente franzido, eu ainda encarava Liam que me


olhava com aquele semblante estranho. Era a primeira vez que o via
desse jeito. Bom, a primeira vez que eu percebia. Se ele já tivesse
me olhado assim em algum outro momento, confesso que nunca
havia percebido. Porém, em questão de segundos, algo tirou minha
atenção.
— Grande jogo, cara! Parabéns! — Robert, melhor amigo do
Liam, se aproximou de mim e ergueu a mão em minha direção. Foi
nesse exato que notei o Patolino automaticamente tirando os olhos
do meu abdômen.
— Valeu, meu irmão! — Também desviando meu olhar do
moreno, apertei a mão do outro e o cumprimentei de um jeito bem
amistoso. Apesar do Robert ser um dos melhores amigos do Liam e
de ser do time adversário, nós sempre tivemos uma boa relação. Na
verdade, eu era colega de todos os jogadores do time do Colégio
Regent, exceto daquele lá, porque era meio impossível estabelecer
qualquer relação de amizade com ele.
— E aí, pub agora? — Robert sugeriu, já me convidando e
olhando para nós dois.
— Na hora, cara! — Sem pensar duas vezes, respondi.
Afinal, nada melhor que comemorar a vitória, bebendo. A prova de
que tínhamos uma amizade era que não havia nada de estranho em
comemorar com o time adversário. — Vou só ao vestiário para
tomar um banho e trocar de roupa. Mas é coisa rápida — finalizei.
No mesmo instante em que falei, porém, percebi Liam
fechando o semblante. Eu sabia que ele já queria ficar com raiva por
eu ter aceitado o convite, mas, sinceramente, eu estava nem aí se
ele gostava ou não da minha presença no pub com os seus amigos.
O local era público, qualquer pessoa poderia ir lá, e eu também
tinha o direito de curtir e comemorar o jogo.
— Show! — entusiasmado, Robert disse. — E você, Liam, vai
também, não vai?
— Vou não — Em um resmungo, o moreno respondeu de
supetão, enquanto me encarava com aquele mesmo semblante
fechado, que não me assustava em nada. Sério, às vezes o Liam
parecia aqueles velhos ranzinzas, porque nunca estava satisfeito
com nada, especialmente quando algo me envolvia.
Graças à resposta do mané e à maneira como ele me
observava, Robert olhou para nós dois ao mesmo tempo,
provavelmente já entendendo o motivo do Liam ter recusado a festa.
Nada mais óbvio. Ele decidiu não ir porque eu ia.
— Qual é, cara? — deu um toque no ombro dele. — Deixa a
rivalidade de lado por, pelo menos, algumas horas... — tentou
encorajá-lo. — Vamos curtir um pouco. Tenho certeza que você vai
achar massa!
— Não estou a fim — Tão somente em um resmungou, o
velho ranzinza respondeu outra vez, com uma cara de poucos
amigos. Definitivamente, eu não tinha paciência pra essas atitudes
de “garotinho” mimado.
No exato segundo que ele se calou, porém, outros membros
do time apareceram e se aproximaram de nós, passando os braços
de um jeito bem despojado pelos nossos ombros.
— Ei, capitães, curtir de leve um pub agora! — Dessa vez,
nem convidaram, do jeito que Robert tinha feito. Afirmaram, como se
já fosse certeza nós irmos. Bom, eu, pelo menos, tinha certeza
absoluta de que ia.
— Liam está dando uma de mocinha e não quer ir. — Com
sarcasmo, Robert falou, e isso foi o suficiente para que o moreno
balbuciasse algo como “vai se foder”. Eu, no entanto, não entendia o
motivo da raiva. Robert falou apenas verdades. Ele parecia uma
mocinha mesmo.
— Ei, velho, vamo! Vamo! — Mesmo contra sua vontade, um
dos caras arrastou Liam pelo braço, pouco se importando com a
decisão dele de não ir.
— É, irmão! Ajeita essa cara aí! — Outro o empurrou,
fazendo com que ele começasse a caminhar mesmo que de
maneira forçada.
Inevitavelmente, dei uma risadinha com a cena, porque os
caras eram hilários. Eles faziam por mim o trabalho de tirar onda
com a cara do Liam. Isso era como um colírio para os meus olhos.
E, pelo que pude perceber, à medida que eles se distanciavam e
caminhavam em direção ao vestiário, parecia que, mesmo à
contragosto, ele iria ao pub.
Não que o Liam fosse uma pessoa normal ou que, ao menos,
se parecesse com uma, porque não, ele não era nem se parecia.
Porém, naquele dia, estava muito mais estranho do que comumente
era. Ele jamais recusaria ir a um pub só porque eu também ia,
principalmente porque em quase todas as festas que eu marcava
presença, ele também estava lá. Então, eu não sabia o motivo
dessa birra de hoje.
Apesar de tudo, dei de ombros. Não ia ficar me preocupando
com as besteiras do Liam, não é? Então, aproveitando que todos já
estavam indo tomar banho, caminhei até o vestiário destinado ao
meu time e, quando cheguei, já vi todos os caras se arrumando.
Alguns vestindo a roupa, outros ainda tomando banho nos chuveiros
compartilhados.
Tirei o uniforme, o meião, a chuteira, e segui para o banho.
Lá tudo, de fato, era compartilhado, até, vejam só, o sabonete. Não
podia dizer que tomar banho com um bando de macho era algo
bom, mas, depois de anos jogando futebol, consegui lidar com
indiferença diante desse fato. Estava tão acostumado que era como
se eles e nada fossem a mesma coisa.
Quando terminei o banho e me vesti, fui atrás do meu amigo
Adam, que era o meia do time, e da minha namorada (ainda achava
estranho esse termo) Molly. Assim que saí do vestiário, no entanto,
vi o cara pegando uma garota no corredor do colégio. Ele era bem
esperto para mulher, devo admitir. E, bom, eu não ia atrapalhar o
lance do cara. Era melhor deixá-lo curtir.
Sem chamá-lo, até porque ele estava muito entretido, mandei
uma mensagem para a Molly, que respondeu dizendo estar me
esperando no estacionamento do colégio com algumas amigas.
Caminhei rápido até lá e não demorei muito a avistar a princesinha
de olhos azuis encostada ao meu Porsche. Confesso que não tinha
muita certeza sobre os meus sentimentos para estar namorando-a,
mas uma coisa era certa: Molly era muito gata.
Assim que me viu, parou de conversar com suas amigas e
não esperou nem eu me aproximar, correu para os meus braços.
Porém, antes que ela chegasse até mim, desviei meu olhar
brevemente e acabei vendo o Liam no maior amasso com minha
irmã, encostado ao seu carro. Meu sangue fervia só de ver essa
cena, porque eu sabia que ele não era um cara apropriado para a
Stefany. O problema era que eu não podia mandar, nem tentar
mandar nela. A loira tinha o gênio muito forte e só fazia o que
queria.
— Meu amor! — Molly pulou nos meus braços, entrelaçando
as pernas na minha cintura e me fazendo desviar o olhar dos dois.
Segurou meu rosto com as duas mãos e me deu um pequeno
beijinho.
— Oi, princesa — sorri e lhe beijei de verdade, não somente
com um selinho como aquele que tinha me dado. — Tudo bem?
— Melhor agora — respondeu com um sorriso de orelha a
orelha e me abraçou. — Não sei o que é mais gostoso. Se é a sua
boca ou te ver jogando — completou, entre um beijo e outro.
— Pois eu sei o que é mais gostoso... — com um sorriso
sacana, respondi.
— É? — ergueu uma das sobrancelhas e me deu um olhar
travesso ao perguntar. Não sabia como isso era possível, mas ela
conseguia ficar ainda mais linda fazendo essa cara. — O que é,
então? — e mordeu o lábio inferior ao finalizar.
Não resisti e a beijei outra vez. Essa era a minha resposta,
embora eu tivesse vontade de deixá-la mais completa. Uma pena
que estávamos no estacionamento do colégio e não podíamos fazer
outras coisas além disso. Talvez mais tarde.
— Ei! — Enquanto a beijava, porém, ouvi uma voz irritante.
Meu cérebro automaticamente gritou um forte e intenso “cacete!”. —
Que pouca vergonha é essa?! — Era impossível não sabem quem
estava falando isso.
Paramos o beijo e olhamos para o lado. Molly quase
revirando os olhos.
— O que é, seu idiota? — Com certa impaciência e antes que
eu pudesse falar qualquer coisa, ela logo respondeu, assim que viu
seu “querido” irmãozinho se aproximando de nós. Percebi Stefany
vindo logo atrás dele, provavelmente já prevendo a briga que seria.
— Vocês não têm vergonha na cara?! — ele disparou. Seu
rosto estava vermelho de raiva. Meu Deus do Céu, como o Liam era
insuportável! — Estão quase transando no meio do estacionamento
do colégio! — parecia que chamas sairiam a qualquer momento dos
seus olhos.
— É o sujo falando do mal lavado, então? — com sarcasmo,
perguntei, tentando provocá-lo. — Porque você estava praticamente
transando com a minha irmã em cima do seu carro! Ou seja, você
não tem moral pra exigir nada!
Assim que me calei, seu típico olhar de quem queria me
assassinar apareceu. Ele, no entanto, não respondeu diretamente a
isso. Apenas segurou forte o braço da sua irmã, querendo puxá-la
para se afastar de mim. Idiota.
— Anda, Molly! — tentou forçá-la. — Eu vou pub, mas antes
te deixo em casa.
— O quê?! — a garota exclamou, arregalando os olhos e
puxando bruscamente seu braço daquela mão nojenta que a
segurava. — Eu também vou para o pub! Para de encher o meu
saco! — e escondeu parcialmente seu corpo atrás de mim.
— Tá ficando doida?! — ergueu as sobrancelhas. — Você
tem dezessete anos e não pode entrar lá! — exclamou. A essa
altura do campeonato, todos do estacionamento do colégio já
observavam a confusão. — Principalmente com esse otário. Aí que
você não vai mesmo. — deu-me um olhar de desprezo.
— Eu não só posso como vou! — com um tom bem decidido,
Molly também exclamou. Apesar de ser mais nova que o Liam, ela
era muito arredia. Na verdade, talvez ela fosse arredia justamente
por ser mais nova. A relação de irmãos que eles tinham era
realmente péssima — Você não manda em mim!
Percebi o moreno encará-la como se estivesse achando-a
audaciosa.
Bom, ela realmente estava sendo.
— Ah, é? — Quando falou isso, seu olhar foi se
transformando em irônico. Se eu não aguentava o Liam, imagina ela
que precisava conviver com ele sob o mesmo teto. Coitada. —
Posso saber como você vai conseguir entrar?
Molly ergueu uma das sobrancelhas e, com um sorriso
astuto, virou o rosto pra mim.
— Eric vai dar o jeito dele — disse tão somente.
Eita porra.
Isso foi o suficiente para que Liam arregalasse ainda mais os
olhos e me encarasse como se estivesse querendo me fuzilar. Deus
do céu, o cara parecia que iria explodir a qualquer momento. Eu
quase que sussurrava para a Molly: “se segura, porque a gente vai
rodar”.
— Então, tu tá dando identidade falsa pra minha irmã,
imbecil?! — gritou e quis dar um passo em minha direção,
demonstrando já procura por uma briga, não fosse Stefany que o
segurou firme pelo braço, impedindo o pior.
— Liam, deixa isso pra lá — parecendo já cansada com toda
aquela cena, minha irmã tentou intervir na situação. — Vem...
Vamos... — Puxou seu braço, querendo afastá-lo dali. Ir embora era
o melhor que ele podia fazer mesmo. Essa confusão já deu o que
tinha que dar.
Ele, no entanto, não parecia se dar por satisfeito com todo o
barraco que já tinha armado. Queria mais. O cara era insuportável,
de fato. Juro que não sabia como a minha irmã aguentava. Acho
que ela devia estar fazendo alguma caridade, ou algo do tipo.
— Pra você é muito fácil falar, Stefany! — disparou
novamente. — Você tem dezenove anos, mas minha irmã só tem
dezessete. Não pode entrar lá! — falou como se o problema fosse a
idade, mas eu sabia que o ponto central da questão ia muito além
disso.
O problema era que eu estava com a Molly e o imbecil não
gostava de mim.
Simples assim.
— Liam, para com isso... — Stefany tentou novamente,
falando compassadamente, embora eu percebesse no seu olhar que
a sua paciência já estava acabando. — Para com isso por pelo
menos essa noite.
— É, Liam, vai cuidar da sua vida e me deixa em paz. —
Molly também se pronunciou e me puxou pelo braço, fazendo com
que caminhássemos para longe dali. Obviamente, eu não fiz
nenhum esforço para seguir seus passos até o meu carro.
Tudo o que eu mais queria era sair de perto daquele doido.
— Molly, você vai ver! — Mesmo de longe, ainda o ouvimos
gritar em um tom supostamente ameaçador. Inevitavelmente, rolei
os olhos. Sujeitinho mais nojento. — Quando mamãe souber, você
estará ferrada!
A morena, no entanto, apenas apontou o dedo do meio em
direção a ele e continuou caminhando comigo, dando às costas ao
seu “querido” irmãozinho. Apesar dos pesares, não consegui me
conter e acabei dando uma risadinha pra cena. Às vezes parecia
que a Molly estava se tornando uma Stefany, por fazer só o que
queria. Não tinha rédeas e não queria mais ser mandada por
ninguém.
— Não aguento mais meu irmão — resmungou.
E com razão né?
— Quem que aguenta? Só a minha irmã mesmo. Talvez ela
seja uma “santa imaculada” por causa disso — com sarcasmo, soltei
uma risadinha. — Mas relaxa, princesinha. Acho que essa noite ele
não vai mais nos perturbar.
— Assim eu espero — respondeu.
Eu e Molly, então, entramos no meu carro. O percurso não
durou muito, apenas alguns minutos. Na verdade, o que mais
demorou foi a transa que a gente deu no carro antes de sair do
estacionamento do pub. Era como um mecanismo pra gente relaxar
depois de todo o estresse com o Liam, sabe? E, bom, eu tinha que
aproveitar, né? Se a mulher queria foder e eu queria comer, qual era
o problema nisso?
Isso mesmo. Nenhum.
Quando terminamos aquilo que era nossa prioridade,
entramos no bar. Confesso que não foi esforço algum fazer a Molly
entrar. Primeiro, eu dei uma identidade falsa a ela, o que era algo
bem comum de se fazer. Que o jovem que nunca tivesse feito isso,
jogasse a primeira pedra. Segundo, eu era amigo do carinha que
fiscalizava a entrada das pessoas. Então, foi só o filé. Corremos pro
abraço e entramos no pub sem grandes dificuldades.
Assim que coloquei meus pés no local, já notei o quanto
estava lotado. Jogadores de ambos os times estavam curtindo,
bebendo, dançando. Isso deixava o ambiente ainda mais cheio do
que normalmente era. Eu só não estava vendo meu amigo Adam.
Provavelmente devia estar com a garota do colégio em algum lugar
melhor que o pub.
— Quer beber alguma coisa? — sugeri a Molly, no momento
que entramos. — Vou pegar uma dose de Uísque pra mim.
— Cerveja — ela respondeu.
Passamos pela pista de dança lotada e caminhamos em
direção ao balcão de bebidas. Quando nos aproximamos o
bastante, vi Stefany, Liam e seus amigos Robert e William. O garoto
já estava bebendo todas as garrafas possíveis e impossíveis de
Vodca. Isso porque nem queria ir à festa, imagina se quisesse!
Cruzamos eles rapidamente e isso foi o suficiente para que eu
sentisse Liam me fuzilando com os olhos. Não liguei, dei de ombros.
Eu queria curtir à noite, ele que se fodesse.
— Ei, cara! — chamei o barman. — Me vê uma cerveja e
uma dose de Uísque.
— Na hora — ele respondeu.
Enquanto eu e Molly aguardávamos as bebidas, foi
impossível não ouvir a conversa deles, pois estavam relativamente
próximos a nós. Era cada assunto desastroso que meu Deus do
céu. Definitivamente, eu não sabia como a minha irmã aguentava.
— Ei, velho, olha só! — Robert falou com Liam, apontando
com o queixo em direção a algum lugar. Ainda não tinha me dado
conta exatamente do que estavam falando. — Aquele nerdzinho da
nossa turma, que fica olhando o tempo todo pra você, tá aqui.
— O nerd gayzinho da turma sai para as festas? — Dessa
vez, foi William que falou, dando uma risadinha. — Provavelmente
deve estar te stalkeando Liam. Toma cuidado, porque eu acho que
ele é apaixonado por ti — alertou.
— Porra, irmão! — Liam riu de um jeito bem zombeteiro e
virou o olhar em direção ao garoto. Sutilmente também olhei para
ele, coitado. Percebi que tinha ficado tão nervoso e vermelho por
estar sendo o centro das piadas dos caras.
— Ele tá disfarçando, mas, vez ou outra, olha pra ti, Liam —
Robert riu, dando duas batidinhas irônicas nos ombros do amigo. —
Vai que é tua. Aproveita! — ironizou, fazendo com que William
também risse.
— Deve tá doido levar uma rola! — Liam zoou, bem nojento
como sempre foi. Revirei os olhos com os comentários. — Mas eu
gosto é de buceta — encheu a boca pra falar isso. Macho escroto
da porra.
— Como vocês são idiotas — ouvi Stefany falar.
Ah, finalmente alguém pra falar o que eu estava pensando!
Vi o barman colocando as bebidas em cima do balcão, mas
continuei ouvindo a conversa deles, porque queria saber até onde
esse besteirol ia. Era incrível como o Liam conseguia ser a junção
de tudo o que não prestava em uma pessoa só!
— Qual é, gatinha? — o ouvi respondendo a minha irmã. — A
gente só gosta de tirar onda um pouquinho... Quê que tem? Olha
só... — percebi quando bebeu um generoso gole diretamente da
boca da garrafa de Vodca e... — Ei, meu amor! — gritou em direção
ao garoto de quem eles estavam falando, piscou um olho e
ironicamente jogou um beijinho.
Caralho, coitado do garoto. Percebi quando ele encarou Liam
com os olhos bem envergonhados e baixou o semblante. Meu Deus,
que cara idiota. Olhei para Molly e a vi revirando os olhos para as
atitudes do irmão. Ela também tinha ouvido tudo.
— Para de ser otário, Liam! — Stefany exclamou. — Você
não tem o direito de brincar com a orientação sexual do garoto!
Deixe-o em paz!
Nossa, finalmente. Eu ainda me perguntava como a minha
irmã aguentava esse cara. O sexo devia ser muito bom. Só podia
ser isso para segurar ela, porque de resto... O cara era um grande
saco de bosta.
Percebi quando revirou os olhos para o sermão dela e bebeu
mais Vodca.
— E você para de ser chata, Stefany — respondeu, fazendo
com que seus amigos rissem. Tudo era motivo de chacota para eles.
Até que eu ainda tinha certa amizade com Robert e William, mas
certas coisas eu não tolerava.
— Vou dançar, porque é o melhor que eu faço, em vez de
ficar olhando para a cara nojenta de três preconceituosos — a loira
disse e caiu fora. Minha irmã sempre correta. Só vi quando passou
por nós e foi curtir a festa sem a presença daquela corja.
— Amor... — Molly tocou no meu ombro, me chamando. —
Acho melhor a gente sair daqui de perto também, antes que o Liam
perceba — meio temerosa, disse.
Ela tinha razão. Já bastava de confusões por aquela noite.
— É, princesinha... Bora dançar um pouco? Que acha? —
sugeri.
— Aceito! — com um sorrisinho entusiasmado, respondeu e
logo me puxou pela mão para que fôssemos à pista de dança.
Não demorou muito pra nós entrarmos no clima da festa.
Dançamos, nos divertimos. Molly parecia estar super feliz por ter
ido. Eu também estava curtindo bastante, porque ela era uma ótima
companhia. Apesar de eu não ter certeza se gostava dela o
suficiente para estar namorando, uma das maiores certeza que eu
tinha era de que ela era uma das garotas mais legais que eu
conhecia.
Nós ficamos tão entretidos bebendo, dançando e se
divertindo que eu já nem sabia mais quanto tempo estávamos na
pista de dança. Talvez fosse muito tempo, porque estávamos
completamente suados. No entanto, o suor não importava. O que
importava era que a gente tava curtindo e desopilando ao ponto de
nem perceber quem estava ao nosso redor. Porém...
— Eric! — senti alguém me puxando pelo ombro. Assim que
olhei para trás, vi Stefany com as sobrancelhas bem arqueadas e a
respiração um tanto ofegante.
— O que aconteceu, Stefany? — Já sentindo certa
preocupação querendo surgir em mim, por vê-la nesse estado,
perguntei.
— O Liam... O Liam... — meio atordoada e ainda ofegante,
respondeu. Porém, no mesmo instante que ele falou, por pouco não
revirei os olhos. Só podia mesmo! Metido em alguma confusão,
provavelmente, como já era de costume. — Tá completamente
bêbado e caído no balcão. Não sei o que deu nele, sério. Eu saí pra
dançar e, quando voltei, vi ele desse jeito. Já procurei em toda parte
os amigos dele, mas não vi ninguém. Vocês precisam me ajudar! —
olhou para mim e para a Molly.
— Sinceramente... O Liam não tem jeito! — Molly bufou de
raiva.
E ele não tinha jeito mesmo! Quando não estava envolvido
em alguma confusão, sempre fazia uma besteira qualquer nas
festas. Dessa vez, foi se embebedar demais. Ninguém mais tinha
paciência pra lidar com esse cara. Eu, na verdade, nunca tive.
Porém, também não podia deixar minha irmã na mão. Eu ajudaria
somente, única e exclusivamente, por ela.
— O que você quer que a gente faça? — perguntei.
— Que vocês me ajudem a levá-lo pra casa — replicou de
imediato. — Eu vou dirigindo o carro dele, mas preciso que você me
ajude a levá-lo até o carro e que também me dê carona da casa
dele pra nossa.
Okay... Suspirei um pouco inconformado, porque eu pensava
que, depois de dar um “chega pra lá” nele lá no estacionamento do
colégio, o Liam não iria mais me incomodar naquela noite. Porém,
parecia que até quando ele estava inconsciente, me perturbava.
— Ele bebe e eu tenho que ser babá de bêbado... —
resmunguei. Ainda mais, babá de um bêbado otário como o Liam.
Fosse ao menos uma pessoa mais amigável, eu ainda relevava por
estragar o final da minha noite.
— Maninho... — Ste também suspirou, passando a mão no
meu ombro em forma de carinho. — Eu sei que você é uma pessoa
boa... Vem... Me ajuda... Faz isso por mim, não pelo Liam. Sim? — e
deu um sorrisinho.
— É, é só por ti mesmo que eu vou fazer isso — Apesar de
ainda me sentir um pouco inconformado, respondi.
— Ótimo! — Me deu um sorriso ainda maior. — Vamos lá!
Stefany, então, nos levou até o infeliz. E, bom, ele realmente
não estava na melhor de suas condições. Sentado em banco,
completamente debruçado no balcão, com os olhos fechados,
estava praticamente desacordado. Agarrado a uma garrafa de
Vodca que havia deixado posicionada exatamente debaixo do seu
braço, sua cara era de um completo bêbado.
Assim que nos aproximamos dele, percebi minha irmã ainda
mais preocupada.
— Nossa, parece que a cada minuto ele fica pior — encarou-
o com espanto. E eu não podia negar que ela tinha razão. O cara
estava mesmo derrubado. — Ele estava menos ruim quando fui falar
com vocês — completou.
Eu só podia acreditar. Stefany não era do tipo que aumentava
as coisas.
— Por onde a gente começa? — perguntei, ainda encarando-
o um pouco afastado.
— Bom... — suspirou, analisando-o minuciosamente com o
olhar. E só pelo seu semblante, eu sabia que a conclusão da análise
não era muito boa. — Acho que você vai ter que ajudá-lo a caminhar
até o carro.
Cacete... Revirei os olhos. Até quando o Liam não queria, ele
me perturbava.
Respirei fundo, tentando controlar minha raiva, embora isso
fosse quase impossível, e me aproximei ainda mais dele. Comecei
tentando tirá-lo do banco, mas seu corpo estava pesado, duro.
Parecia morto, credo. Tentei, então, tirar a garrafa de Vodca que
estava debaixo do seu braço e foi aí que ele acordou. Meio grogue,
mas acordou.
— Quê... Quê que... Quê que é? — como um completo
bêbado falando, perguntou com os olhos entreabertos. Até quando o
cara estava quase morrendo, ainda era insuportável. — Quem é? —
arrogante, questionou.
— É o Eric, cara — tentando manter a calma, respondi. —
Vem — Dessa vez, consegui puxar a garrafa por completo.
Isso, no entanto, foi o suficiente para ele se ouriçar.
— Deixa... Deixa a minha bebida, filho da... — resmungou e
caiu de novo sobre o balcão.
Ai, por Deus! Além de ajudar, ainda tinha que aguentar um
cara que me dava esporro até quando estava bêbado. Olha,
sinceramente, eu merecia o céu! Eu ia para o céu, com certeza!
— Liam, a gente tá te ajudando... — Stefany falou bem
próximo ao seu ouvido, tentando manter a calma também. Até
porque, assim como eu, a loira não tolerava muita ignorância. —
Então, garoto, colabora — finalizou.
— É, Liam, fica na tua — Molly também se pronunciou.
Procurando não ligar para o grande traste que ele era e tentar
acabar logo com isso para eu me ver livre, peguei seu braço e
passei por cima do meu ombro, levantando-o do banco. Todavia, ele
não conseguia ficar de pé nem com a ajuda de uma pessoa.
— Preciso que alguém fique dando apoio do outro lado —
falei.
Stefany, então, rapidamente se prontificou e passou o outro
braço dele por cima do seu ombro. Agora sim. Agora ele estava
relativamente de pé. De um jeito meio humilhante, mas estava. Pelo
amor de Deus, isso que era gostar de passar vergonha em público,
porque sair carregado de um bar era o cúmulo.
— Podemos caminhar agora? — perguntei a minha irmã,
para saber se já estava pronta.
— Podemos — ela respondeu.
Assim, a passos bem lentos, começamos a caminhar. Liam
foi andando como podia, mesmo que quase não tivesse força
alguma nas pernas. Algumas pessoas do pub ainda olhavam aquela
cena deplorável, levemente preocupadas. Outras cochichavam. Era
como eu disse, o garoto só podia gostar de passar vergonha.
Caminhamos até a saída, onde ficava o estacionamento,
Molly foi nos acompanhando logo atrás. Liam, até então, estava
calado, naturalmente meio desacordado, ou mesmo sem forças para
falar. Porém, quando nos aproximamos do carro dele, o percebi
tentando dizer alguma coisa.
— Eu... — balbuciou. — Eu... Vou... Tô... — Sua cara não
estava nada boa. Mas, isso não era de agora. Ela já não estava boa
lá dentro do pub.
— O que foi, Liam? — Molly perguntou.
— Eu vou... — e se inclinou.
Eita. Só por essa inclinada, eu já soube o que estava por vir.
— Acho que ele vai vomitar. Solta ele, Stefany — falei
rapidamente.
Foi apenas por questão de segundos: minha irmã o soltou, eu
o segurei pela cintura para ajudá-lo a se inclinar sem cair e o vômito
veio. Eita porra. Toda a Vodca saindo em forma de vômito no chão
do estacionamento. Pela quantidade, arregalei os olhos.
— Meu Deus, ele tá péssimo! — boquiaberta, Stefany se
pronunciou.
— Caralho, Liam... — Encarando-o com certo espanto, disse.
— Tem mais?
O moreno, no entanto, balançou levemente um não com a
cabeça, indicando que tinha acabado. Apesar disso, ele estava todo
sujo. Pois é, foi tenso. Com umas das mãos, continuei o segurando
pela a cintura, para que ele não caísse. Com outra a outra,
vasculhei os bolsos da calça jeans, tentando achar um lenço que
sempre carregava comigo.
No finalzinho do bolso direito, consegui alcançá-lo.
— Pega — ergui em direção a ele.
Liam, porém, olhou para o lenço, como se quisesse pegá-lo,
mas não conseguisse. Nossa, ele estava sem forças até para erguer
a mão? O negócio estava feio mesmo. Suspirei, tentando me
conformar com meus atos de caridade para com quem não merecia.
Mas, eu não era antipático e preconceituoso, como ele. Conseguiria
limpar o rosto de um cara normalmente.
Passei o lenço em sua boca, em seu rosto, em cada
centímetro que estava sujo de vômito. Enquanto isso, ele não deu
uma palavra. Quando já estava finalizando, percebi ele virar
levemente o rosto em minha direção, tentando me encarar com os
olhos entreabertos. Apesar de tudo e por mais incrível que isso
pudesse parecer, senti que ele queria dizer “obrigado”.
Franzi o cenho brevemente. Liam só podia estar muito
bêbado mesmo, para querer me agradecer por alguma coisa. Isso
não era comum. Nunca foi.
— Ok, cara. Voltando a caminhar agora — disse a ele.
Com isso, Stefany logo voltou ao seu posto do outro lado do
Liam, passando o braço dele por seu ombro. Caminhamos até o seu
carro e o ajudei a sentar no banco do passageiro, enquanto minha
irmã ia para o banco do motorista.
— Maninho, te encontro lá na casa do Liam — a loira falou e
ligou o carro.
— Beleza. A Molly vai comigo.
Dirigi o tempo todo atrás do carro dele, acompanhando minha
irmã. Mesmo que o Liam fosse um completo idiota, ele tinha uma
puta sorte de ter pessoas que realmente se importavam com ele,
como a Stefany e a Molly. Apesar de sempre pegar no pé da irmã,
eu conseguia perceber o quanto ela estava preocupada.
Após alguns minutos, chegamos à casa dele. Apenas o
jardim estava iluminado, enquanto as luzes de todo o resto da casa
estavam apagadas. Parecia que meus padrinhos já tinham ido
dormir. Como se estivesse lendo meus pensamentos, a primeira
coisa que Molly disse ao descer do carro foi exatamente isso.
— Ainda bem que nossos pais já tão dormindo. Senão, Liam
estaria ferrado.
Não que eu não quisesse vê-lo se ferrar, porque, bem, ele
merecia. Porém, ele já estava fodido demais naquela noite e eu
também não estava mais a fim de presenciar confusões. Então, era
melhor que todos colaborassem para que eles não acordassem.
— Vamos tentar não fazer muito barulho, beleza? — falei.
Caminhamos até o carro do Liam, que já estava estacionado
em casa e com a porta do passageiro aberta. Assim que cheguei, já
percebi logo o olhar de preocupação da Stefany para mim. Suspirei,
já imaginando que ela queria alguma coisa. Quando ela me
encarava assim, eu podia esperar porque ela ia pedir alguma coisa.
O que seria dessa vez, meu Deus?
— Eric... — falou um tanto sem jeito. — Eu tentei mantê-lo
acordado, mas ele acabou pegando no sono. Já fiz de tudo, para ele
acordar, mas parece que tá dormindo pesado — torceu o nariz.
— E agora? — Molly cruzou os braços. — Como ele vai
subir?
Stefany encarou Molly ainda sem jeito e, logo depois, virou
seu rosto para mim de um jeito mais hesitante ainda. Apesar de
calada, aquela carinha já me dizia que tinha a solução tudo. No
entanto, essa solução não me agradava nem um pouco.
— Acho que você vai ter que carregá-lo, Eric — respondeu.
Ah não, cara... Não, não, não.
Minha cota de bondade já estava extrapolando naquele dia.
— Não me diga isso... — resmunguei com um revirar de
olhos.
— Por favor, Eric... — a loira praticamente suplicou. — Nem
eu nem a Molly aguentamos carregá-lo. O cara é pesado. Não tá
vendo esse tanto de músculo?
Olhei para o céu, perguntando a Deus o que eu tinha feito
para merecer isso. Não era possível que eu teria de carregar nos
braços, até o andar superior daquela casa, um cara de um metro e
oitenta e de aproximadamente setenta e três quilos de músculo.
Puta merda.
— Eric, se você não fizer isso, ele vai passar a noite nesse
carro — alertou.
— Até que não é uma má ideia — repliquei de imediato, com
pouca compaixão. — Quem sabe assim ele aprenda a não sair por
aí fazendo merda. Coisa que ele sempre faz, por sinal.
— Como se o Liam aprendesse alguma lição nessa vida... —
Molly deu uma pequena risadinha irônica. No fundo, ela tinha razão.
O cara era um caso perdido. — Eu sei que ele é um traste, mas faz
isso, amor. Por favor.
Cacete... Eu não tinha escolha. Elas ficariam ali insistindo até
que o dia amanhecesse, se fosse preciso. Deus já podia reservar
um lugarzinho pra mim no céu, porque era o que eu merecia depois
de tanta caridade numa noite só.
Dei um breve suspiro de derrota e me inclinei para tirá-lo do
banco. Com cuidado, para não bater sua cabeça em canto nenhum,
coloquei-o nos meus braços. Encarei-o por alguns segundos e vi
que ainda estava dormindo. Repentinamente, senti aquela sensação
estranha do jogo de futebol querendo voltar.
Sem saber que merda era essa, balancei a cabeça, tentando
dissipar os pensamentos, e, enfim, comecei a caminhar. Se eu
parasse de refletir sobre isso, com certeza essa sensação estranha
ia desaparecer. Como um mantra mental, tentei me concentrar
firmemente apenas no que eu tinha para fazer, que era levá-lo até o
quarto.
Molly abriu a porta de casa e nós subimos as escadas,
tomando o maior cuidado para não acordar ninguém. Como passos
lentos e comedidos, tentamos ficar em silêncio. Ao chegarmos no
andar superior, Stefany abriu a porta do quarto dele e eu fui direto
colocá-lo na cama, deitando-o com cuidado.
Porém, no mesmo instante em que o deitei, percebi ele
abrindo os olhos aos poucos. Ainda estava grogue, muito grogue,
bêbado e com sono, mas parecia me observar querendo alguma. Eu
só não sabia o que era. Inevitavelmente, franzi o cenho sem
entender.
— Cara, você já tá em casa e no seu quarto. Pode dormir
agora — disse.
Quando me calei, Liam mexeu as mãos e ergueu um pouco
os braços em minha direção, mesmo que não conseguissem ficar
levantados por mais que dois segundos.
— É... É... — balbuciou com aquela voz típica de bêbado.
— Ele tá querendo o quê? — em tom de estranhamento,
Molly perguntou.
— Não faço ideia — tão desconfiado quanto ela, respondi.
— É... Ri... É... Ri... — tentou falar novamente e ergueu a
mão. Como eu estava ao seu lado, ele acabou me alcançando e
tocando meu braço. Parecia querer segurá-lo, mas não tinha forças
pra isso. — É... Ri... Qui…
Não, espera.
Ele estava me chamando? Por que ele estava me
chamando? Desde que eu me entendia por gente, Liam nunca me
chamou pelo meu nome. Ele sempre me mencionava por meio de
apelidos maldosos ou palavrões. Por que raios, dessa vez, ele
decidiu me chamar de Eric?
— O que você quer, cara? — perguntei.
— É... Ri... Qui... — Com os olhos fechados, já não
aguentando mais de tanto sono, ergueu as mãos outra vez e
segurou meu braço, tentando, mesmo com pouca força, me puxar
para baixo. — É... Ri... Qui... — tentou me puxar para si novamente.
Porém, dessa vez, me soltou e abriu levemente os braços.
Não, calma. O que estava acontecendo? Que porra era é
essa? Ele me queria...? Não, não. Me queria não. Ele queria um
abraço meu? Sei lá. Dava no mesmo. Eu não sabia o que era pior.
Liam devia estar muito, mas muito bêbado. Certeza o álcool estava
consumindo a sua sanidade mental.
Olhei para Molly e Stefany, e percebi que elas estavam tão
confusas quanto eu. Suas testas enrugadas de estranhamento
demonstravam isso.
— É... Ri... Qui... — tentou segurar meu braço outra vez e me
puxar para baixo.
Eu nem conseguia pensar direito ou formar uma frase para
tentar deixar aquilo o menos estranho possível, se é que isso fosse
possível realmente. Tudo o que eu consegui dizer, mesmo que meio
sem jeito, foi:
— E-Eu acho que o Liam tá delirando de tão bêbado...
Encarei as meninas e percebi quando se entreolharam.
— É... Deve ser isso... — responderam ao mesmo tempo.
Liam bêbado carente

Eric

— Bom... — tentando mudar de assunto, porque esse jeito do


Liam comigo estava meio constrangedor, falei. — Stefany, acho
melhor você tirar essas roupas do Liam que estão sujas de vômito.
Acho que você tem... Tem prática em tirar a roupa dele. — disse um
pouco sem jeito. — Enquanto isso, eu vou lá no carro pegar alguns
comprimidos de Advil que sempre tenho comigo, pra ele tomar
assim que acordar. — Confesso que ainda não sabia de onde
estava vindo todo esse meu cuidado com ele. Cada vez mais eu
tinha certeza de que ia para o céu.
— Tudo bem, Eric. Vou trocar a roupa dele — Stefany
respondeu.
— Eu vou com você, amor — Molly também falou.
Porém, no instante em que fiz menção de sair do lado do
Liam e dei o primeiro passo, o senti tocar meu braço outra vez.
Suspirei. Meu Deus, o que ele queria agora? Mais constrangimento?
Tudo o que eu pedia aos céus era para que ninguém mais desse
bebidas alcoólicas ao Liam, quando eu estivesse por perto.
Olhei para baixo e o vi com os típicos olhos entreabertos.
— É... Ri... Qui... — balbuciou outra vez, ainda com certa
dificuldade de falar. — Não... — e continuou tentando segurar meu
braço, como se não quisesse que eu saísse de perto. Sinceramente,
isso estava começando a me assustar.
— Não o quê, irmão? — perguntei já me sentindo meio
impaciente com essa ceninha. — Stefany vai ficar aqui contigo. —
Por um momento, eu parecia estar falando com uma criança.
Tentei sair novamente, mas, dessa vez, mesmo com pouca
força, o moreno puxou meu braço para baixo. Ah, não. Lá vamos
nós de novo! Esse garoto estava precisando de um sério e intensivo
tratamento contra o álcool.
— O que você quer, Liam? — fui mais assertivo ao perguntar.
— Aqui... — Com aquela típica voz de bêbado e os olhos
praticamente fechados, respondeu e se afastou brevemente,
deixando certo espaço na cama. Inevitavelmente, ergui minhas duas
sobrancelhas. Era inacreditável.
Tinha algum tipo de droga ilícita na Vodca do Liam?
— Liam, eu vou descer. Stefany vai ficar aqui — tentei falar
outra vez.
Porém...
— Não... Aqui... — balbuciou e passou a mão no lado que
tinha deixado vazio na cama, como se quisesse eu me deitasse lá,
ao seu lado. Não pude evitar de arregalar ainda mais os olhos.
Que porra era essa? Liam estava me confundindo com
alguém? Porque só podia ser isso. Essa era a única explicação
plausível que minha cabeça conseguia formular. Ou então, ele
realmente tinha tomado alguma droga ilícita.
— Stefany vai te fazer companhia — tornei a dizer.
Não satisfeito e aparentemente fazendo um tremendo
esforço, segurou meu braço novamente com mais força e me puxou
para baixo. Automaticamente, olhei para Stefany e Molly, que
estavam tão confusas quanto eu. O semblante delas não mentia.
— Eu não o sei o que deu nele... — falei meio sem jeito e me
sentei na cama, ficando ao lado de onde ele estava deitado.
Procurei ficar bem na pontinha, para não chegar muito perto. Eu
estava realmente assustado.
— Também não sei o que deu nele — Dessa vez, Stefany
respondeu com certo ar de desconfiança. Virei meu rosto para ela e
percebi uma de suas sobrancelhas erguidas, como se estivesse
imaginando alguma coisa.
— Amor, fica aí. — Molly se pronunciou, provavelmente
percebendo que o Liam não ia mesmo me deixar sair dali — Eu vou
no seu carro e pego os comprimidos de Advil. Pode deixar.
Suspirei, porque, bem, eu não sabia se realmente queria ficar
ali, naquela situação com o Liam. Era esquisito demais. Algo assim
nunca tinha acontecido. Porém, se eu, pelo menos, mexesse um
dedinho pra fora da cama, com certeza ele faria tudo de novo.
— Tá... Tudo bem, princesa — me dando por vencido, tirei a
chave do bolso e entreguei a ela. — Tá no porta luvas.
No momento em que Molly saiu do quarto, notei Liam se
aproximando de mim. Franzi o cenho de automático. Quando
chegou perto o bastante, segurou minha mão e fechou os olhos.
Engoli a seco. Era muito estranho. Talvez eu nunca tivesse vivido
momentos tão constrangedores.
— Você quer tirar a roupa dele ou quer que eu mesma tire?
— a loira perguntou com certo tom de brincadeira.
Cerrei os olhos e a encarei, sem saber o motivo da piadinha
inapropriada.
— Você — respondi de maneira séria.
— Então, tira a mão da princesinha de cima da sua. Senão,
não vou conseguir — Novamente, em uma mistura de brincadeira
com ironia, ela falou, fazendo-me sentir ainda mais desconforto. Eu
só me perguntava o que irmã estava querendo insinuar com esses
sarcasmos. Preferia nem cogitar as inúmeras possibilidades que
deviam estar passando por mente fértil.
Tentando ser paciente, tirei minha mão que estava segura
debaixo da dele. No entanto... Caramba... Liam entreabriu os olhos,
emburrou a cara e me abraçou pela cintura, como se não quisesse
que eu saísse de perto. Que porra era essa?
— Parece que temos alguém carente por você, maninho... —
a loira soltou uma pequena risadinha.
Carente por mim?
— Nem brinca com isso — balancei a cabeça com certa
exasperação e depois baixei meu olhar em direção a ele. — Espera
aí, cara... — fui tentando fazer com ele me soltasse. — A Stefany
precisa tirar tua roupa — Porém, foi uma tentativa em vão, pois
Liam, como uma criança mimada, tornou a me abraçar pela cintura.
Quando, em toda a minha existência, eu poderia imaginar o Liam
me abraçando? Ele nunca nem apertou minha mão! Devia ser efeito
do álcool ou de alguma outra droga. Só podia ser. Não existia outra
explicação. — É só... Só por enquanto, Liam. Eu vou ficar aqui —
tentei afastá-lo de mim outra vez e, agora, ainda mais envolvido pelo
sono, se deu por vencido e me soltou, permanecendo de olhos
fechados.
Aproveitando a deixa, Stefany, então, começou a tirar sua
roupa vomitada. Primeiro o coturno, depois a jaqueta. Aos poucos
foi o despindo, enquanto eu tentava desviar meu olhar. No entanto...
Que porra estava acontecendo comigo? Não consegui olhar para
outros pontos do quarto, quando minha irmã tirou sua blusa e sua
calça, deixando-o somente de cueca. Tentei disfarçar, mas não
dava. Até dormindo, praticamente em coma alcoólico, e todo
vomitado, o Liam o conseguia ser bonito. Que merda. Eu estava
olhando para um cara? Não, não podia ser. Eu era um homem.
Nada contra gays, mas eu era um homem hétero. Liam também era
hétero. Todo mundo ali era hétero.
Suspirei, tentando me acalmar e olhar para outros lugares.
Sim, eu era hétero.
Mas... Apesar disso... Foi mais forte que eu. Voltei a observá-
lo. Droga. Até que ele era bonito mesmo. Tinha um corpo parecido
com o meu. Não era extremamente forte, mas também não era
magro. Tinha tudo na medida certa. Claro, ele era jogador de futebol
e tinha que ser assim. Eu também era assim. Porém, eu era mais
bonito. Lógico, com certeza eu era mais bonito. Tudo bem que a
mala que ele carregava entre as pernas tinha um volume até atrativo
e... Quê? Eu estava pensando isso? Atrativo para as mulheres! Para
as mulheres! Pra mim não! Ok? Ok! Aliás, por que eu estava
fazendo todas essas considerações sobre o corpo da porcaria do
Liam? Que droga. Ele se embebedava e eu que ficava doido?
De repente, mesmo tentando pensar em outras coisas,
aquela sensação estranha do jogo quis voltar. Puta merda. Não,
não, não! Eu devia estar ficando doido mesmo. Talvez eu precisasse
transar com mulheres. Sim. Isso era falta de transar com um monte
de mulher. Só podia ser. Meu corpo não estava condicionado a ter
relações sexuais com uma garota só, como vinha acontecendo
ultimamente. Não tinha o perigo de estar me sentindo assim por
causa do Patolino. Inclusive, eu já podia parar de refletir sobre
essas coisas. Assim, a sensação estranha ia embora, do mesmo
jeito que foi embora quando eu estava o carregando até o seu
quarto.
Tentando me concentrar em outras coisas, observei Stefany.
Vi quando ela foi até o seu guarda e tirou um short de tecido fino. O
vestiu, deixando-o nu apenas da cintura para cima. Também pegou
o edredom e lhe cobriu. Olhei para o rosto dele, a fim de saber se
estava seguro para eu sair daquela cama, e vi que continuava
dormindo. Bom, podia ser agora ele não percebesse eu me
levantando. Quando tentei sair, no entanto, Liam entreabriu os olhos
e me abraçou pela cintura novamente, recostando a cabeça no meu
abdômen.
Caralho, eu não ia conseguir sair dali ainda naquela noite?
— É, maninho, parece que alguém não quer que você saia de
perto — com uma pequena risadinha, Stefany disse, parecendo ter
lido meus pensamentos. — Quem diria heim? Ver o Liam todo
abraçadinho assim em ti... — brincou.
Realmente, era inacreditável e muito, muito, assustador. Para
minha completa infelicidade, eu já estava quase me dando por
derrotado. Era meio evidente que ele não me deixaria escapar tão
fácil. Respirei fundo em puro desânimo, porque tudo o que queria
era desencostar dali.
— Eu preciso ir pra casa, Liam — tentei falar.
O moreno, no entanto, continuou com os olhos bem
fechados, abraçando-me igualmente firme pela cintura e apoiando
sua cabeça no meu abdômen. A cada segundo que passava, eu
tinha mais certeza de que jamais pude me imaginar numa situação
como essa com ele. E, claro, eu nunca mais chegaria perto do Liam
quando ele estivesse bêbado!
— Acho que você vai ter que passar noite aqui, porque o
Liam-Bêbado-Carente Wyman Tremblay Terceiro não vai deixar
você sair — a loira riu de novo. — Pode ir se acomodando bem na
cama viu?
Ah não.
— Cacete — resmunguei. — Vou ficar aqui só por alguns
minutos, até que ele realmente durma. E você vai ficar aqui também,
tá me ouvindo? — virei o rosto para ela e ergui uma das
sobrancelhas. — Nem pense em sair desse quarto.
Stefany gargalhou.
— Por que? — ergueu uma sobrancelha também. — Tá com
medo que ele te ataque é? Cuidado — e abafou mais riso que
estava prestes a sair.
Inevitavelmente, revirei os olhos.
Naquela noite, Stefany estava muito engraçadinha para o
meu gosto.
— Não — encarei-a com exasperação. — Só quero que fique
aqui. Além do mais, você não tem como voltar pra casa se não for
comigo — com certa raiva, falei. — Então, fica de biquinho calado,
porque não tô mais a fim de ouvir suas brincadeiras.
— Ui ui ui — Toda engraçadinha, como sempre, ergueu as
mãos ironicamente. — Tudo bem, maninho. Relaxa. Não tá mais
aqui quem falou — sorriu e se sentou em uma das poltronas do
quarto.
Melhor assim. Quieta e calada.
Desviei brevemente meu olhar para ele e, por um segundo,
uma rápida hipótese passou pela minha cabeça. Porra, será que o
Liam estava me confundido com a minha irmã? Tudo bem que nós
éramos parecidos, mas não a ponto de sermos confundidos desse
jeito. Entretanto, era melhor pensar nisso do que em outras
possibilidades que não gostava nem de imaginar. Credo.
Como eu estava derrotado na missão de ir logo pra casa,
coloquei minhas pernas em cima da cama e apoiei minhas costas e
minha cabeça na cabeceira, enquanto Liam continuava do mesmo
jeito que estava. Quando assim o fiz, Molly, de repente, entrou no
quarto, com um copo de água numa mão e os comprimidos de Advil
em outra. Assim que nos viu deitados, franziu o cenho.
— Vou deixar o remédio aqui pra ele tomar quando acordar.
Você vai dormir aqui? — perguntou e me entregou a chave do carro,
ao colocar o copo de água e os comprimidos na cômoda ao lado da
cama.
Definitivamente, não era o que eu queria, mas...
— Aparentemente, a bebida causou um lapso mental no seu
irmão e ele não quer me deixar ir embora — falei com certo
desânimo. — Senta na outra poltrona, princesa. Stefany também vai
ficar aqui.
— Hum... — olhando para mim e para o Liam com certa
desconfiança, uma desconfiança muito semelhante àquela que eu vi
no rosto da Stefany, Molly respondeu e se sentou na outra poltrona
que estava vazia. — Tudo bem, então.
Recostei ainda mais minhas costas e minha cabeça nos
travesseiros da cama, olhei para o Liam adormecido nos meus
braços, ainda me perguntando porque diabos eu estava me
permitindo fazer isso, e, sem que eu percebesse, o sono veio ao
meu encontro.
Sai de cima da minha cama!

Eric

Meus olhos se abriram lentamente quando o sol entrou pela fresta


da janela e o reflexo atingiu meu rosto. A primeira coisa que eu vi
foram cortinas. Sim, cortinas. Mas... Franzi o cenho. Essas
cortinas... Essas cortinas não eram as mesmas do meu quarto...
Repentinamente, o coração acelerou. Onde eu estava, porra? Eu
dormi com uma garota? Eu traí a Molly? Puta merda!
No mesmo instante, notei certo peso sobre o meu corpo.
Baixei minha visão e o que apareceu na minha frente foi ninguém
mais, ninguém menos, que a porcaria do Liam dormindo
praticamente em cima de mim. Como um raio, as lembranças da
noite passada vieram à minha mente. Liam bêbado, eu o ajudando e
ele não me deixando ir embora. Cacete!
O mais estranho de tudo era que, quando vim para essa
droga de cama, fiquei sentado com as costas apoiadas na
cabeceira, mas, agora, eu estava completamente deitado, com as
pernas do Liam entrelaçadas nas minhas e sua cabeça no meu
peito. Que um raio me acertasse por estar protagonizando uma
cena tão gay!
Espera aí!
Arqueei ainda mais as sobrancelhas quando definitivamente
me dei conta de que eu não estava somente deitado com o Liam,
mas como também tinha passado a noite inteira lá.
Que horas são?!
Rapidamente, olhei para o lado e vi um relógio em cima de
uma cômoda. Seis horas da manhã. Engoli a seco e o gosto era
amargo. Merda, merda, merda. Não era para ter passado a noite ali!
Era para eu ter ficado somente o tempo suficiente para que o Liam
pegasse no sono. Que saco!
Como eu ia conseguir me levantar com aquele traste
praticamente em cima de mim?
Queria nem imaginar o que ele faria se acordasse e nos visse
naquela situação.
Definitivamente, nunca mais chegaria perto do Liam quando
estivesse bêbado!
Virei meu rosto em direção às poltronas e vi que Molly e
Stefany também pegaram no sono lá. Todos nós dormimos juntos no
mesmo quarto. Por um segundo, senti certo alívio. Pelo menos, eu
não estava lá sozinho com o filhote de cruz-credo. Porém, era para
eu ter colocado um despertador ali e ido embora ainda de
madrugada.
Não, mas... Se eu tivesse colocado um despertador, ele
poderia acordar e talvez acontecesse aquela cena toda de novo.
Deus, eu não tinha escolha. Porém, eu precisava sair dali naquele
exato momento. Não poderia esperar mais nem um segundo. Ainda
tinha que passar em casa para tomar banho, trocar de roupa e ir
para o colégio.
Assim, com todo o cuidado do mundo, para que o bostinha
não acordasse, fui tentando me levantar da cama. Comecei a
afastar minhas pernas que estavam entrelaçadas nas dele, quando,
de repente, Liam se mexeu. Meu coração acelerou um pouco, em
puro estado de alerta. Prendi a respiração.
Droga. Ele acordou?! Ele ia acordar?!
Fiquei estático por alguns instantes, para ter certeza que ele
não estava acordando. E aí, com mais cuidado ainda, voltei a tentar
sair da cama. Ok, vamos lá. O primeiro pé já estava no chão. A
segunda perna foi saindo à medida que, aos poucos, eu ia me
deslocando para o lado e fazendo com que a cabeça dele saísse de
cima do meu peito.
Eu estava conseguindo... Estava conseguindo... Estava
conseguindo...
No entanto... Liam, de repente, abriu os olhos. Merda! Eu não
estava conseguindo!
Engoli a seco e mal pisquei os olhos. Já ele, piscou repetidas
vezes, como se não estivesse acreditando que aquilo era real.
Olhou para baixo, nos viu na tal situação, franziu o cenho e...
— Caralho! — falou em alto e bom tom, arregalando os olhos.
Caralho mesmo, filho. — Você... Eu... Eu... Você... O quê?! Como
assim?! — sentou na cama, procurando uma explicação, e,
instantaneamente, colocou as mãos na cabeça, espremendo os
olhos, como se estivesse sentindo muita dor.
— Liam... Irmão... — tentei buscar, lá no fundo da minha
alma, as palavras certas para lidar com aquela espécie de
Neandertal.
Porém...
— Sai daqui, seu gay! Sai de cima da minha cama! — ele
disparou.
— Com muito prazer — de pronto, respondi e me levantei,
enquanto ele continuava com as mãos na cabeça. A ressaca devia
estar grande. — Aproveita e toma esse comprimido, porque tua
ressaca deve tá matando — apontei para o remédio em cima da
cômoda, enquanto ajeitava minha roupa.
— Eu não quero sua ajuda! — disparou outra vez.
Levantando-se da cama, segurou na parede. Provavelmente estava
tonto. — Eu já disse para sair da porra desse quarto! Sai! Cai fora!
— gesticulou com uma das mãos.
Suspirei, tentando manter minha linda e bela paz de espírito.
Liam não merecia nem meu estresse.
Onde eu estava com a cabeça quando decidi fazer a vontade
de um bêbado? Era para eu ter dado as costas a ele ontem à noite.
Era para eu ter o deixado morrer no pub. Era para eu ter ido
embora, quando ele me pediu para ficar. Aliás, não sabia nem o que
tinha dado em mim quando decidi me dirigir até a porra daquela
cama.
Era nisso que dava ajudar quem não prestava.
Mas, eu aprendia. Com isso, eu aprendia a não ser trouxa.
Calado, para não lhe dar mais a atenção que ele não
merecia, me virei em direção à porta, para definitivamente ir
embora. No meio do caminho, entretanto, ouvi a voz meio sonolenta
de Stefany.
— Que merda de confusão é essa? — a loira perguntou,
levantando-se da poltrona.
— Eu tô indo pra casa, Stefany — resmunguei, tocando na
maçaneta da porta. — Vamos. — chamei-a sem nem me virar de
volta, pois não queria ter o azar de encarar aquele infeliz outra vez.
— Espera aí — com o tom de voz verdadeiramente
indignado, ela respondeu e virou-se para o babaca. — Quem você
pensa que é para gritar assim com o Eric? — Stefany parecia estar
com muita raiva. Ela nunca se intimidou em rebater as asneiras do
Liam.
— Eu simplesmente acordei com esse gay dormindo comigo!
— ele exclamou, contrariado. — Quer o quê? Que eu ache isso uma
maravilha?! — esfregou as mãos no rosto e na cabeça,
demonstrando sua dor mais uma vez.
— Deixa de ser hipócrita, Liam! — com exasperação, Stefany
rebateu. — Foi você quem pediu para ele ficar na cama! — apontou
bem no meio das suas fuças. Ela estava bufando. Minha irmã nunca
gostou de injustiças.
— Eu?! — o cínico arregou os olhos. — Nem se eu nascesse
de novo, pediria algo parecido! — garantiu.
— Gente... — Molly, ainda muito sonolenta, abriu os olhos e
disse. — Briga a essa hora da manhã? — bocejou como se ainda
estivesse tentando se reconectar com o mundo após acordar.
— Você, seu imbecil! — a loira exclamou outra vez, pouco se
importando com o que outra tinha acabado de dizer. Ela parecia tão
puta da vida. — Você pediu! Você puxou ele! Você abraçou ele! —
jogou tudo em sua cara. — Enfim, foi você quem fez tudo! Não
coloque a culpa no Eric! — defendeu-me.
Instantaneamente, Liam puxou algumas mechas de seus
cabelos, em uma mistura de confusão mental consigo mesmo e dor
de cabeça da ressaca. Sentou-se na cama verdadeiramente
contrariado. O cara não lembrava de absolutamente nada. Que
bebida alcoólica poderosa.
— Cara, toma o comprimido — Ainda tentei insistir, mesmo
sem saber o porquê de continuar preocupado com aquele mal
agradecido. Ele não merecia compaixão alguma.
— Não vou tomar porcaria nenhuma de comprimido! —
disparou.
Calmamente, ergui uma das sobrancelhas, e...
— Beleza. — Respondi, dando de ombros. — Vamos,
Stefany — chamei minha irmã e me dirigi até onde Molly estava. —
Depois a gente se fala, princesa — dei-lhe um pequeno beijo e me
afastei, já pronto para abrir a porta e ir embora.
— Vê se cresce, Liam — a loira cuspiu para ele e me
acompanhou.
Aparentemente, mesmo com a confusão, os meus padrinhos
ainda estavam dormindo. Graças a Deus. Não queria que eles
presenciassem uma droga daquela. Enquanto Stefany e eu
descíamos as escadas, para nossa sorte, não havia sinal de
ninguém.
— Liam precisa aprender a ser gente — ela resmungou.
— Esquece isso, Stefany — respondi de pronto.
— Como eu vou esquecer Eric? O Liam é extremamente
estúpido contigo!
Fiquei calado. Não por não saber o que responder ou por
estar com raiva daquele filho da puta, mas, sim, porque eu estava
zangado comigo mesmo. Zangado por tê-lo ajudado, quando eu
deveria ter o deixado se acabar no pub de tão bêbado que estava. E
zangado, principalmente, por ter feito sua vontade de ficar na cama,
quando eu deveria ter dado as costas e ido embora.
Onde eu estava com a cabeça quando decidi ficar naquela
cama?
— Fala alguma coisa, Eric! — impaciente, Stefany exclamou
ao cruzarmos a porta da casa. Ela era assim, quando estava com
muita raiva, não conseguia se conter de jeito nenhum, precisava
colocar para fora toda sua indignação.
— O Liam bebeu muito e não se lembra de nada — Quase
sem mexer meus lábios, respondi. — Dá um desconto pra ele —
falei mesmo sabendo que, se ele lembrasse de tudo, com certeza
agiria do mesmo jeito ou pior.
— E agora vai passar a mão na cabeça dele?! — arregalou
seus olhos, enquanto abria a porta do carro.
— Que porra de passar a mão na cabeça... — resmunguei.
— Só acho que essa conversa já deu.
— Só acho que o Liam é um mal agradecido — replicou em
tom de quem estava encerrando a conversa, logo depois de sentar-
se no banco.
A conversa realmente se encerrou, porque durante todo o
percurso nós permanecemos calados. Agora que estávamos
chegando em casa, eu esperava não cruzar com nossos pais.
Senão, seriam perguntas e mais perguntas sobre o que eu fiz, onde
eu dormi, com quem eu dormi e a porra toda. Como sempre. Nunca
tive muito problema em responder. Porém, sobre a noite passada,
eu não estava com o menor saco para conversar.
Estacionei meu carro na garagem e, logo depois, eu e minha
irmã caminhamos até a porta. Quando entramos, não vi sinal algum
dos meus pais: amém! Stefany foi para o seu quarto e eu fui para o
meu. Tomei um banho revigorante, que até me fez esquecer um
pouco das minhas raivas, e vesti uma roupa. Saí de fininho para a
cozinha, pedindo a todas as divindades para não cruzar com meus
pais.
Entrei na cozinha e... Merda. Dei de cara com a minha mãe
bebendo um suco de laranja. Ela não precisou fazer pergunta
alguma com sua boca, porque eu já estava vendo tudo estampado
em seus olhos. Entretanto, para tentar adiar o máximo possível a
inquisição que eu enfrentaria, preferi não tocar nos assuntos que
logo viriam.
— Bom dia, querido — ela falou.
— Bom dia, dona Cynthia.
— Querido, eu sou sua mãe — suspirou. — Já disse para
parar de me chamar assim e de chamar seu pai de seu George.
Somos seus pais.
Não dei a mínima. Era o mesmo discurso de sempre. Quanto
a ela, eu a chamava de dona Cynthia só para pegar no seu pé
mesmo. Eu sabia que ela não gostava. Já quanto ao coroa, eu o
chamava de seu George, porque há muito tempo não conseguia
falar a palavra “pai”.
— Por falar no seu George, onde ele está? — perguntei.
Senti seu leve olhar de repreensão sobre mim. Um pequeno
sorriso quis surgir no cantinho da minha boca, ao ver sua
expressão.
— Já foi para o escritório — respondeu.
Ah, claro.
Como eu poderia não ter lembrado? Quando foi a última vez
que vi aquele coroa? Até no final de semana era difícil vê-lo, porque
ele sempre estava no escritório. Era como sua primeira casa,
enquanto a segunda era o local onde nós morávamos. E olha que
nós tínhamos uma excelente condição de vida. Ele não precisava
trabalha tanto assim.
Como sua resposta já era muito previsível, não respondi e
segui calado em direção à geladeira.
— Onde você passou a noite? — ela tornou a falar.
E lá vamos nós.
A sessão de perguntas tinha começado.
Fiz um esforço para não revirar os olhos.
— Na casa da tia Claire — respondi e enchi um copo com
suco de laranja.
— Com a Molly? — perguntou.
Não exatamente. Tinha sido, na verdade, com alguém muito
parecido com ela. Cabelos, olhos. É, seu irmão de merda. Mas, eu
não precisava entrar em detalhes, até porque eu preferia não
comentar, nem lembrar, sobre as besteiras que eu tinha feito na
noite passada.
— Sim — respondi ao beber um gole do suco.
— E vocês fizeram o quê? — questionou.
Deus...
Comi ela a noite inteira. Não. Mentira. Antes fosse.
— Dormimos.
Ela, no entanto, estreitou os olhos em minha direção, quando
um pequeno sorriso de desconfiança surgiu em seus lábios.
— Você passou a noite na casa da Claire e só dormiu com a
Molly? — perguntou com seu tom insinuador, um tom muito parecido
com o que a Stefany costumava usar quando queria insinuar alguma
coisa também. Deu uma leve ênfase em “só” e se aproximou.
— Sim... — respondi com naturalidade.
Dessa vez, ela alargou o sorriso.
— Eu conheço muito bem o filho que tenho — fez um breve
carinho no meu rosto. — Mas, querido, você sabe que eu faço muito
gosto desse namoro. Desde que vocês eram crianças, eu e Claire
sempre sonhávamos com o dia de vocês terem idade suficiente para
namorar um com o outro. E esse dia chegou — sorriu ainda mais. —
Agora, eu torço para que vocês tenham idade suficiente para casar!
— Quê?! Casar?! Engoli a seco. — Não vejo a hora desse dia
chegar! Já pensou, querido? Você e Molly casados e com filhos! —
Cacete. Eu já estava quase sentindo falta de ar com esse assunto.
— Nenéns com uma mistura do seu cabelo castanho com os olhos
azuis dela! Ai meu Deus, vou ser avó mais feliz do mundo!
Tomando um imenso e rápido gole do suco, bebi o copo
inteiro. Primeiro, para tentar descer por suco abaixo aquele nó na
minha garganta que já estava subindo. Segundo, porque precisava
fugir daquela conversa. Só de pensar em casamento, eu já me
coçava todo.
— Mãe, estou indo para o colégio — disse rapidamente e dei
meia volta, seguindo em direção à porta da cozinha. Tentei não
fazer comentário algum sobre o assunto.
— Já, querido? — franziu o cenho. — Vamos terminar a
conversa... E você nem lanchou direito — Um tanto preocupada,
disse.
— Estou atrasado, mãe. Até mais — respondi e saí ligeiro da
cozinha.
Peguei minha mochila e, em um pulo, saí de casa.
Não era a primeira vez que minha mãe falava dos seus
planos para comigo e a Molly. Mas, casar?! Eu queria distância
disso. Namorar já estava de bom tamanho. Às vezes, eu tinha a
impressão de que todos torciam muito mais por mim e a Molly do
que pelo Liam e a Stefany. Talvez fosse porque sabiam que Liam
não era homem para minha irmã.
Ele pensava que eu não era homem para a Molly, mas, na
verdade, ele que não era homem para a Stefany. Ela merecia uma
coisa melhor.
Dirigi até o colégio e, dentro de alguns minutos, cheguei ao
meu reino. Esse, sim, era o meu reino. Melhor lugar para estudar
não poderia existir. Estacionei e desci do carro. A galera já
começava a me cumprimentar, como sempre. Garotas e garotos de
todas as séries. Eu não tinha problema em falar com quem quer que
fosse. Quanto mais amigos, melhor. Também diria que quanto mais
mulher, melhor, se eu não estivesse namorando. Mas, enfim, esse
relacionamento era só um pequeno detalhe.
Eu disse que esse era o meu reino, não é?
Certamente, sentiria muita falta quando fosse para a
universidade no ano que vem.
Entrei no corredor principal do colégio, até que comecei a
notar alguns olhares estranhos direcionados a mim. Franzi o cenho.
O que estava acontecendo? Esses olhares eram de ninguém mais,
ninguém menos, que os próprios jogadores do time. Eu tinha feito
alguma coisa? Me olhavam com tristeza.
Cumprimentei-os, mas ninguém me falava o que estava
acontecendo, afinal. Era para todos estarem felizes, já que tínhamos
vencido o jogo da noite anterior, mas, ao contrário, todos pareciam
muito tristes. Comecei a me preocupar e caminhei um pouco mais,
até que, no instante em que cruzei a porta da sala de aula, vi meu
amigo Adam se aproximar.
— Cara, bom dia — demos um toque de mão. — Estava te
procurando. O técnico quer falar com a gente — Meio sério, disse.
— O que tá pegando? — questionei.
— Não sei, irmão — balançou a cabeça negativamente. —
Acabei de chegar e recebi um comunicado de que ele quer falar
com a gente.
— Beleza — dei um breve suspiro. — Vamos lá.
Eu e ele, então, seguimos em direção à sala do técnico do
time. Não demorou muito para chegarmos, batermos na porta e
entrarmos. A primeira impressão que tive ao ver o treinador, não foi
das melhores. Ele parecia tão preocupado quanto o restante dos
caras.
— Bom dia, Sr. Miller — Adam e eu falamos.
— Bom dia — introspectivo, respondeu. — Sentem-se —
apontou para duas cadeiras. — Eu não costumo enrolar muito,
quando vou dar uma notícia, e vocês me conhecem. Como já devem
saber, o Colégio Liverpool vinha apresentando dificuldades
financeiras para manter o time. Ocorre que a situação está
insustentável. Hoje cedo tive uma reunião com o diretor do colégio e
ele decidiu que o melhor a ser feito, por ora, é suspender o time.
Suspender o time? S-u-s-p-e-n-d-e-r? Suspender?!
Meu queixo inevitavelmente caiu.
— O quê? — Adam e eu dissemos ao mesmo tempo com os
olhos arregalados.
— É isso mesmo o que vocês ouviram — nada feliz, ele
replicou. — Infelizmente nosso time está suspenso até que a
situação financeira se regularize. Portanto, nosso time está fora do
campeonato entre os colégios que vai começar daqui a algumas
semanas. Os jogadores já foram comunicados.
Isso só podia ser brincadeira. Isso não podia estar
acontecendo. Quer dizer... Agora eu entendia o motivo dos olhares
quando cheguei. Sim, agora fazia sentido. Agora tudo fazia sentido.
Mas... Meu time estava suspenso?! Eu não era mais capitão?! E
como eu ia concorrer a uma bolsa na universidade sem estar
jogando?! Minha cabeça quis explodir!
— Sr. Miller... — encarei-o, atordoado. — Como... — Eu nem
sabia o que falar ou como falar. Minha cabeça estava uma completa
confusão. — Como... — olhei para Adam, que estava tão em
choque quanto eu. — Eu... Eu estou no último ano escolar e preciso
estar jogando para concorrer a uma bolsa na universidade. Como os
olheiros vão me ver? — questionei com o coração a mil.
— É, Sr. Miller... — Com a preocupação se exalando em seu
tom de voz, Adam se pronunciou. — Eu também estou no último
ano escolar e também preciso estar jogando para concorrer a uma
bolsa.
O técnico suspirou.
— É por isso que eu chamei vocês dois aqui, para uma
conversa em particular — explicou. — Na reunião que eu tive hoje
com o diretor, nós entramos em contato com vários colégios. Olha...
— Parecia meio hesitante com o que estava por falar, o que me
deixou ainda mais nervoso. Porém, ele continuou. — Eu sei seria
uma mudança drástica, muito drástica. Mas, apesar de ser nosso
principal rival, o Colégio Regent se ofereceu para acolhê-los no
time.
Quê?!
O Colégio Regent? Não, não podia ser. Tudo, menos o
Colégio Regent!
— Sr. Miller... — encarei-o, pasmo. — O senhor está
sugerindo, então, que a gente se transfira de colégio? — incrédulo,
perguntei. Isso não podia estar acontecendo. Não fosse o azar de
ter o time suspenso, eu ainda teria que mudar de colégio, caso
quisesse continuar jogando para concorrer a uma bolsa.
— Sim... — com pesar, ele confirmou. — Infelizmente é a
única solução para vocês dois continuarem jogando. Vocês são os
únicos concludentes do time, por isso estou tendo essa conversa
com vocês. Os demais jogadores estão no penúltimo ano escolar.
Então, ainda podem esperar um pouco para concorrer às bolsas de
estudos das universidades.
Sentia meu peito apertar ainda mais. Era como um pesadelo.
Um terrível pesadelo.
— Ma-Mas, Sr. Miller... — balbuciei, extremamente
preocupado. — Não tem outra solução? Outro colégio? Outra coisa
que se possa fazer? — perguntei em praticamente uma súplica, me
sentindo a ponto de pular da Tower Bridge.
— Não, Eric — balançou a cabeça negativamente. — O
Colégio Regent é o único disposto a recebê-los no time. Os outros
colégios, ou não tem vagas ou estão passando por problemas
financeiros também ou simplesmente não querem receber.
Ah não... Eu só podia ser muito azarado mesmo!
— Não sei quanto ao Eric, mas eu topo, Sr. Miller — Adam
falou. — Já que é a única opção que temos.
— E você, Eric? — o técnico direcionou toda a sua atenção
para mim. — Se você não fizer isso, não vai ter como concorrer às
bolsas das universidades.
Puta que merda. Era o meu fim! Definitivamente, era o meu
fim. Por que isso tinha que acontecer logo agora? Logo no último
ano do colegial? Eu teria que sair do meu reino? Eu teria que ir para
o reino do... Filhote de cruz-credo? Teria que deixar de ser capitão?
Teria que me subordinar ao Liam, que era o capitão do time? Teria
que jogar com ele? Não, não, não.
— Sr. Miller... — respirei fundo. — Tem certeza que não
temos outra opção?
— Absoluta — sem pestanejar, ele respondeu. — Essa é a
única opção. Tudo o que estava ao meu alcance, eu já fiz por vocês.
O Colégio Regent é o único que os aceitou — parou por alguns
instantes e me encarou. — E, então, você vai aceitar ou não?
Sem saber o que responder, fiquei calado, me perguntando o
que era melhor: pular da Tower Bridge ou me jogar da London Eye?
— Estou esperando, Eric — tornou a falar.
Cacete. Eu não tinha o que fazer, eu não tinha o que decidir,
eu não tinha o que aceitar. Era isso ou isso. Não existiam opções.
Não sabia nem porque ele estava me perguntando. Se eu tivesse
alternativas, a pergunta teria mais sentido.
— Eric — o técnico me chamou outra vez.
E eu...
— Tudo bem, Sr. Miller — engolindo a seco e quase me
tremendo de raiva, finalmente respondi. — Aceito a transferência.
Vou com o Adam para o Colégio Regent.
Seja o que Deus quiser.
Quem ia odiar: Liam.
Quem ia adorar: Molly.
Quem queria se matar: eu.
— Ótimo — com um sorriso que não chegava aos seus olhos,
o técnico respondeu. — Então, vou comunicar ao Colégio Regent a
transferência de vocês.
Ótimo?
Eu não estava vendo nada de ótimo ali. A mudança não seria
drástica, ela seria incrivelmente drástica. Mas... Tudo pelo meu
futuro. Sem futebol, sem bolsa. Pelo menos, o ano escolar não
estava longe de acabar. Só alguns meses e eu me livraria daquele
colégio, do time deles e, principalmente, do Liam.
Deem boas-vindas aos novos
jogadores

Liam

Um dia. Um dia, cara! Um dia inteiro já tinha se passado e eu ainda


sentia os efeitos da porcaria da ressaca. Eu não tinha ido nem ao
colégio no dia anterior. Depois que o idiota do Eric e a Stefany foram
embora, eu simplesmente hibernei como se não houvesse amanhã.
Dor de cabeça, dor no corpo, sensação de que tinha sido atropelado
por um caminhão
Tudo isso me fez, mesmo a contragosto, tomar o comprimido
que aquele imprestável havia deixado em meu quarto. Eu não ia
tomar, mas tomei... Sim, tomei o comprimido que ele deixou sobre a
cômoda ao lado da minha cama. Na verdade, ingeri a caixa inteira.
Indiretamente, fiz o que ele pediu. Mas, ele não precisava saber
disso, ok? Ok!
Eu não sabia o que me dava mais raiva: se era o motivo pelo
qual bebi tanto, se era por ter acordado com um imbecil dormindo
comigo, ou se era aquela ressaca absurda. Ah, calma! Eu sabia sim!
O que me dava mais raiva era o Eric! Por quê? Porque foi ele quem
causou as três coisas! Ele sabia disso? Não, ele não sabia disso,
exceto ter dormido comigo.
Mas, eu não me importava se ele sabia ou não que era o
responsável por tudo.
O que importava era que ele era motivo de toda a merda e
ponto final.
Sério, eu não fazia ideia do que tinha dado em mim no pub.
Já tinha visto o Eric várias outras vezes com a minha irmã, o que
definitivamente, não era uma coisa boa, mas, no pub, o sentimento
ruim foi elevado à potência dez. Primeiro, Stefany me deixou e foi
para a pista de dança. Depois, Robert e William me deixaram para ir
atrás de algumas garotas.
E eu fiquei como? Bebendo uns goles de Vodca no balcão de
bebidas.
Mas, foi só mirar meu olhar no Eric e na Molly, enquanto
dançavam juntos, para uma espécie de fúria baixar sobre mim. Eu
estava tranquilo, até então, bebendo minha Vodca, mas, depois de
vê-los, eu fiquei tão... Puto! Um sentimento incrivelmente ruim se
apoderou de mim por completo. E isso foi irreversível.
Tudo bem que eu já não estava com o melhor dos meus
humores, devido aos acontecimentos do jogo, mas, sei lá, eu estava
tentando esquecer aquilo tudo. Porém, foi só olhar para os dois se
divertindo e se beijando, para que eu perdesse toda a paciência que
tentava conquistar a muito custo naquela noite.
Eu podia ter dado de ombros? Podia. Eu podia ter armado a
maior confusão no meio do pub? Podia. Mas, o que fiz? Bebi. Bebi
todos os goles possíveis e impossíveis de Vodca por causa do Eric
e de todo o péssimo sentimento que ele me causava quando estava
com minha irmã. Não suportava vê-los juntos.
Por que tantos sorrisos? Por que tantos abraços? Por que
tantos beijos? Eles não podiam ficar a certa distância naquela
porcaria de pista de dança? Tinha que ser tão colado daquele jeito?
Eles estavam quase fundindo o corpo de um no outro. Praticamente
se engoliam no meio de todo mundo. E não, eles não estavam nem
um pouco preocupados.
A raiva subia só de vê-lo daquela maneira com a Molly. Eu
não sabia porque tinha que ser assim, ou porque todos gostavam
dele, ou porque ele era simpático com todos, ou porque era querido
por todos e educado com todas as pessoas da face da Terra. Eu
não sabia porque minha irmã tinha que gostar. Ele não era homem
para ela.
E como se isso não bastasse, eu fiquei tão bêbado que perdi
a sanidade. Ainda me recusava a acreditar que fiz tudo o que a
Stefany disse. Eu não me lembrava de absolutamente nada, mas
era impossível que eu tivesse chegado ao ponto de abraçá-lo ou de
pedir para que ele ficasse na minha cama.
Não, eu não fiz isso. Eu nunca faria isso. Nunca!
Esse tipo de coisa era típico de gays e eu podia ser tudo,
menos gay. Não era. Não chegava nem perto disso. Eu era homem,
macho, hétero. Aliás, acordar e dar de cara com o Eric debaixo de
mim foi... Estranho. Muito estranho. Tão estranho quanto as
sensações que tive durante o jogo. Me sentia como se o mundo
estivesse de ponta cabeça.
Nunca dormi na mesma cama que um cara. Só com garotas.
Apenas.
Passar a noite com o Eric tinha sido, no mínimo, muito errado
para as minhas regras.
Para fechar com chave de ouro, acordei com uma incrível
ressaca. Me sentia praticamente como um vegetal, sem forças para
nada, e, por isso, me entupi com todos os comprimidos possíveis de
Advil. Talvez, por pouco eu não tive overdose. A coisa estava feia,
bem feia, para mim.
Hoje, ainda sentia alguns efeitos da bebedeira, mas
definitivamente estava melhor que ontem. Muito melhor. Prova disso
era que estava quase pronto para o colégio. Decidi que iria para a
aula, até porque não fazia mal ser responsável ao menos uma vez
na vida. Quando terminei de me vestir, parei em frente ao espelho.
Roupa no lugar, cabelo no estilo e... De repente, lembrei que
Eric era tão estiloso quanto eu. Que saco. Por que aquele idiota
invadia meus pensamentos assim, do nada, sem nem pedir com
licença? Bufei de exasperação comigo mesmo e dei graças a Zeus
por, pelo menos, não estudarmos no mesmo colégio.
Claro que eu não tinha medo da concorrência, eu era mais
estiloso, mais bonito. Em geral, eu era melhor que ele. Só não
suportaria vê-lo desfilando pelos corredores com aquele jeito
“educadinho” e “simpaticozinho” para todo mundo. A própria miss
simpatia. Me enojava só de imaginar isso.
Balancei a cabeça em negativo e decidido a não mais pensar
nele, peguei a mochila, segui em direção à porta do quarto e desci
as escadas. Quando cheguei à cozinha, meus pais já estavam
tomando o café da manhã. Ponderei logo que não ia comer muita
coisa, porque meu estômago ainda não estava suficientemente
decente.
— Bom dia, querido! — mamãe sorriu assim que entrei.
— Bom dia — sem muito entusiasmo, respondi. Se eu já não
tinha o melhor dos humores em quaisquer outros horários do dia,
pela manhã eu ficava ainda pior. Preferia o silêncio, até que eu me
sentisse realmente acordado.
— Melhorou da ressaca? — papai perguntou, enquanto
tomava um gole de suco.
— Quase cem por cento — respondi, enquanto procurava a
fruta mais próxima, para forrar minha barriga e voar dali rapidinho.
— Então, sente-se para o café da manhã, querido — mamãe
apontou para uma cadeira ao seu lado.
— Ai, como o dia está lindo hoje! — De repente, antes que eu
pudesse responder a mamãe, ouvi minha irmã falando bem atrás de
mim, no instante em que ela chegou toda arrumada e perfumada à
cozinha.
Foi quase impossível não virar para ela e encará-la com certa
desconfiança. Assim eu o fiz. Não era normal ver Molly tão animada
assim nas primeiras horas da manhã. A morena geralmente tinha
um temperamento dos infernos quando eu estava por perto. Não
entendia o motivo da empolgação.
— O que aconteceu, filha? — papai questionou.
Aparentemente, não tinha sido só eu quem percebeu seu estado de
estranho entusiasmo. Isso era de se admirar. Ou melhor, de se
assustar. Molly não dava um ponto sem nó.
— Ah pai, só acordei bem — respondeu simplesmente, mas
olhou para mim, que nem tinha dito nada, e sorriu.
Agora sim tudo estava ainda mais estranho. Fiquei de orelha
em pé, porque alguma coisa definitivamente estava acontecendo. O
sorriso que ela me deu não foi natural, tinha algo por trás dele. Algo
que eu ainda não sabia, mas que, talvez, tivesse a ver comigo.
— Então, sentem-se, vocês dois. Vamos tomar o café da
manhã — mamãe pediu novamente.
— Mãe, não estou com muita fome — tentando dar de
ombros para aquele enigma que se formava em minha cabeça, por
causa do comportamento atípico da minha irmã, respondi. — Vou
pegar só uma maçã e estou voando para o colégio.
— Ah, eu também vou pegar só uma maçã — Molly se
pronunciou logo em seguida. — Estou com pressa para chegar ao
colégio — sorriu e eu vi novamente aquele estranho entusiasmo
estampado em seu rosto.
Se Molly estava com pressa de chegar ao colégio, era porque
definitivamente alguma coisa estava acontecendo. Nunca a vi tão
empolgada para assistir aulas. Algo mais aconteceria, eu só não
sabia o quê. De todo modo, tentei abstrair. Uma hora ou outra, ela
acabaria me dizendo algo.
— Então vamos, chifrudinha — tentei provocá-la.
Queria ver até onde esse bom humor ia.
— Quer saber, Liam? — pegou a mochila e me olhou. — Hoje
você não vai conseguir me fazer raiva, nem me tirar do sério —
sorriu de um jeito bem vitorioso e passou por mim, indo em direção
à porta da sala.
Franzi o cenho.
O que tinha acontecido com a minha irmã?

❖❖❖

Durante todo percurso de casa até o colégio, tentei descobrir


o que estava acontecendo, mas Molly não me falou nada. Colocou
os fones de ouvido e passou o caminho inteiro cantando feito uma
retardada. Ainda não eram nem oito horas da manhã, por isso eu
me recusava a acreditar que ela já tivesse transado tão cedo,
embora fosse a única justificativa plausível que passasse pela
minha cabeça para ela estar tão feliz assim.
Estacionei o carro em uma das garagens do colégio e vi
quando a morena saiu rapidamente do carro, ainda com fones de
ouvido e sem me dar uma palavra sequer. Com certeza ela estava
aprontando alguma coisa. Tentando agir naturalmente, caminhei
pelo pátio do colégio, até que sumisse das minhas vistas. Segui em
direção à entrada, esperando que falassem comigo, porque isso já
era meu hábito.
Eu não era como o Eric que saía falando com todo mundo.
Eles que falassem comigo. E as minhas expectativas, como sempre,
corresponderam exatamente à realidade. Eu não estava errado.
Quando vi, já tinham várias pessoas ao meu redor, falando comigo e
me cumprimentando. Ser popular era algo muito maravilhoso,
porque me deixava em uma zona de conforto da qual eu nunca
precisaria sair.
As pessoas sempre puxariam conversa comigo sem eu fazer
o menor esforço.
Continuei caminhando até entrar no corredor principal do
colégio. Segui em direção ao meu armário, quando, de repente,
parei tudo o que eu estava fazendo. Vi uma garota muito parecida
com a Stefany conversando de maneira animada com um grupo de
meninas. Franzi o cenho absurdamente, porque não esperava que
ela fosse aparecer ali naquele dia. Bom, ela não tinha me avisado
que iria me visitar.
Aproximei-me e...
— Stefany? — toquei no ombro da garota, expectante. A loira
era uma das poucas pessoas que tinha minha total e completa
atenção. Sempre foi assim, sempre tive ela em grande estima. E eu
tinha a impressão de que isso nunca mudaria.
Quando se virou, tive certeza absoluta de que era ela.
— Oi, Liam — de maneira fria e totalmente ríspida, ela
respondeu. Aquele sorriso que habitava seu rosto, enquanto
conversava com as meninas, sumiu completamente ao me ver. Não
tive dúvidas de que não estava nem um pouco feliz com a minha
presença.
— O que você está fazendo aqui? — Ainda com o cenho bem
franzido e me sentindo totalmente confuso, perguntei. Quanto mais
eu a encarava, mais ela parecia uma miragem. Não era muito
comum vê-la em meu colégio, exceto quando ela ia me visitar ou
quando tinha algum jogo para assistir.
— Aparentemente, as pessoas vão ao colégio para estudar
— de pronto, respondeu como se fosse a coisa mais óbvia do
mundo. Sim, era óbvio que as pessoas fossem ao colégio para
estudar, mas não era óbvio que agora ela estivesse estudando em
meu colégio.
— Você está estudando aqui agora? — Materializando minha
completa dúvida, perguntei. Cada vez que ela dizia ou cada olhar
que ela me dava, fazia com que eu me sentisse ainda mais confuso.
Nada naquele dia estava normal.
Alguma coisa estava acontecendo. E eu confesso que temia
em saber o que era.
— Liam... — em um suspiro de total impaciência com a minha
pessoa, ela disse. Por pouco não rolou os olhos para mim. — Se
não se importa, preciso ir para a minha sala — começou a caminhar,
deixando-me para trás.
Eu, no entanto, não estava nem um pouco satisfeito com
aquelas respostas que me deu. Elas não foram nada
esclarecedoras. Muito pelo contrário, me deixaram com ainda mais
dúvidas. Além disso, eu não gostava quando Stefany me tratava
mal. Qualquer pessoa no mundo poderia ficar com raiva de mim,
porque eu não me importava. Mas com ela era diferente. Eu me
preocupava.
Por isso, corri para acompanhá-la, enquanto ela caminhava.
— Você está com raiva de mim? — Quando finalmente
consegui alcançá-la, perguntei.
— O que você acha? — com o sarcasmo escorrendo por
suas palavras, ela perguntou, fazendo-me rolar os olhos
brevemente. Stefany estava afiada naquele dia. Ela ficava
impossível quando estava uma fera comigo.
— É por causa do que aconteceu ontem de manhã no meu
quarto? — Um pouco hesitante, questionei novamente. Sendo
sincero, eu não queria mesmo tocar nesse assunto, mas, vendo o
jeito como ela me tratava, foi necessário.
Foi aí que a loira parou de caminhar e me encarou.
— É claro que é, Liam! — disparou, como se estivesse com
dez pedras em cada mão. Bom, graças a Zeus, ela não estava,
senão sobraria para mim. — Eu sei que você e meu irmão não se
dão bem, mas você foi um mal agradecido! Tratou o Eric super mal
e ele só te ajudou! Você é um imbecil, um idiota, um estúpido! Eu
não sei porque as pessoas ainda gostam de você, Liam! Você não
pres...
— Ste! — segurei firme em seus ombros, tentando
interrompê-la. Se eu não fizesse isso, ela não pararia de falar. —
Desculpa, tá? Desculpa mesmo — Em uma última tentativa de
apaziguar minha situação com ela, apelei para aquelas palavras que
eu dificilmente usava na vida. Ainda não acreditava que estava
pedindo desculpa a alguém, porque, não, eu não fazia isso. Não era
do meu feitio. Mas com a Stefany era diferente, então eu ia tentar
relevar essa exceção.
Percebi quando ela subitamente parou, após minhas
palavras, e um traço de sorriso quis surgir nos cantinhos da sua
boca. Porém, não era um sorriso normal, inocente. Era um sorriso
de deboche.
— Então, o playboyzinho está me pedindo desculpa? — riu.
Suspirei, tentando não revirar os olhos com isso. Stefany
estava tirando onda com a minha cara e eu não permitia que
ninguém fizesse comigo. Mas, como eu já disse, com ela as coisas
funcionavam de uma maneira diferente.
— Estou — com segurança, respondi. — Desculpa, gatinha.
Foi aí que ela conteve os risos e...
— Você não tem que pedir desculpa a mim. Tem que pedir
desculpa ao Eric. — respondeu com seriedade, como se nem
estivesse rindo há dois segundos. E isso desceu pela minha
garganta de um jeito muito amargo. Eu até podia me desculpar com
ela, mas, fazer isso com o Eric, ultrapassava todos os meus limites.
— Liam... — Antes que pudesse falar qualquer coisa, no
entanto, senti alguém tocando o meu ombro e fazendo com que eu
me desconcentrasse, de algum modo, daquele momento que eu
estava tendo com a loira. Quando me virei, vi Robert bem na minha
frente.
— E aí, cara — cumprimentei-o com um breve toque de
mãos.
— Irmão, o técnico vai fazer uma reunião agora com o time,
lá na sala da concentração. O Sr. Jones está solicitando acima de
tudo a sua presença. Parece que é alguma coisa importante —
disse.
— Agora? — franzi o cenho, porque eu não estava
esperando por nenhuma reunião do time naquele dia. Geralmente, o
técnico e os auxiliares avisavam com muita antecedência, para que
a gente pudesse se programar.
— É, eu sei que é estranho uma reunião de última hora —
replicou tão confuso quanto eu. Estranho. Sim, estranho. Essa era a
palavra que descrevia aquele dia. As coisas não estavam normais
desde a hora que eu acordei.
— O que tá pegando? — perguntei, curioso. Não queria ter
surpresas desagradáveis.
— Ouvi boatos de que dois novos jogadores estão entrando
no time, mas não tenho certeza se isso é verdade — de pronto, ele
respondeu, fazendo com que eu enrugasse ainda mais a testa.
Jogadores novos? Como poderiam existir jogadores novos, se não
houve seleção alguma? Isso estava cada mais esquisito.
— Gatinha... — inquieto com aquelas novas informações,
virei-me para a Stefany. — A gente termina nossa conversa mais
tarde — Curioso para saber de uma vez por todas o que estava
acontecendo, tentei me despedir logo dela.
— Ok — sorriu com leve sarcasmo, como se já soubesse a
resposta para todas as minhas dúvidas. — Aproveita bem a reunião,
gatinho — deu ênfase em “bem” e o “gatinho” foi tão irônico quanto
todo o resto. Por fim, virou-se e foi embora.
Eu definitivamente não entendia porque tudo tinha decidido
ficar esquisito naquele dia. Primeiro, Molly com um atípico bom
humor. Depois, Stefany estudando no mesmo colégio que eu. E
agora, essa história de jogadores novos sem ao menos ter
acontecido seleção. Me senti ainda mais inquieto. Eu precisava sair
dali o quanto antes, para saber o que realmente estava
acontecendo.
— Vamos, Robert — toquei em seu ombro, indicando que
podíamos ir.
Ele e eu não demoramos muito para chegar à sala da
concentração. Dentro de poucos minutos, já estávamos lá, com o
time todo reunido, esperando pelo técnico. Sentei-me em uma das
cadeiras e Robert fez o mesmo. Alguns instantes se passaram, até
que o técnico finalmente surgiu, cruzando a porta.
— Bom dia a todos — Sr. Jones nos cumprimentou assim
que assumiu seu posto à frente de todos. — Não vou tomar muito o
tempo de aula de vocês. Essa reunião é apenas para informá-los de
que temos dois jogadores novos no time e para recebê-los.
Um burburinho instantâneo tomou conta de toda a sala,
naquele exato momento. Então, tínhamos mesmo jogadores novos
sem ter acontecido processo seletivo? Eu ponderei e não era o
único a pensar dessa maneira. Todos os outros estavam tão
surpresos quanto eu.
— Eu posso continuar ou vocês vão continuar com esse
falatório impertinente e sem fim? — já irritado, o técnico questionou
fazendo com que todos se calassem rapidamente e o encarassem
como uma autoridade que ele, de fato, era. — Bom... — deu um
breve suspiro e continuou. — Vamos recebê-los logo e depois eu
explico o que aconteceu — Foi aí que mirou seu olhar exatamente
em mim e... — Liam, por favor, venha até aqui na frente. Você, como
capitão do time, vai entregar os uniformes aos novos jogadores.
Apenas o obedecendo, mas ainda sem entender direito tudo
aquilo, me levantei e me posicionei ao seu lado, ficando de frente
para todos da sala. Vi quando o técnico foi até a porta e, dentro de
poucos segundos, voltou acompanhado de um carinha que não me
era estranho. Eu já tinha o visto em algum lugar. Talvez fosse do
time do Pate... Puta que... Aquele atrás do carinha era o... Era o...
Era o Eric? O Eric?!
O que aquele filho de uma porca estava fazendo ali?
De cabeça baixa, ele entrou, mas, assim que levantou o
rosto, mirou exatamente em minha direção. Cacete, era ele mesmo.
Um súbito frio na espinha me atingiu repentinamente, quando meu
subconsciente sussurrou em meus ouvidos: ele é um dos novos
jogadores do Colégio Regent. Meu queixo caiu. Como assim? Tudo
aquilo só podia fazer parte de um imenso e terrível pesadelo.
Sem reação, apenas observei quando o técnico, o Eric e o
outro cara se posicionaram próximo a mim.
— Pessoal, esses são os novos jogadores do time. Eric e
Adam. Eles vieram transferidos do time do Colégio Liverpool. Deem
boas-vindas! — Sr. Jones disse e, com um tapinha orgulhoso nas
costas de cada um deles, os cumprimentou.
Senti como se o chão estivesse se abrindo sob os meus pés,
ou como se o ar faltasse em meus pulmões. Não, não, não. Tudo
isso só podia ser brincadeira. Uma absurda brincadeira de mal
gosto. Não podia ser verdade. Eu me recusava a acreditar que
aquilo era verdade.
Menino prodígio

Liam

Bastou o técnico fechar a boca, depois de dizer que Eric e Adam


eram os novos jogadores, para que o time inteiro avançasse neles.
Abraços, toques de mãos, risadas, sorrisos. Até o Eric, que parecia
meio tenso ao entrar na sala, agora estava relaxado. Minha vontade
era de gritar um “foda-se” bem alto. Eu não entendia porque todo
mundo tinha que gostar do Eric. Ele era tão... Tão merda.
— Eric, irmão, você era o cara que faltava nesse time! — um
dos caras disse, dando tapinhas em suas costas. — Seja bem-vindo
também, Adam!
— Valeu, cara... Valeu! — todo simpático, Eric respondeu.
— Agora ninguém segura nosso time no campeonato! A
gente vai detonar! — outro falou, fazendo o loiro rir.
Por que o Eric tinha que ser assim, tão “simpaticozinho” com
todo mundo? E por que todo mundo tinha que babar o ovo dele?
Sério, eu não teria que aguentar essa bajulação toda para o lado
dele, não né, produção?
Dai-me paciência, Zeus!
Eu que não ia me dar ao trabalho de cumprimentar esses
dois, principalmente aquele babaca. Definitivamente, eu não era
trouxa para ficar bajulando quem não merecia. Já bastavam esses
manés do time, que, por sinal, estavam me matando de vergonha
com essa recepção toda. Aliás, já bastava ter que aguentá-lo no
time!
Sendo sincero, eu ainda não estava acreditando que isso
pudesse ser verdade.
Por que, Buda? Por que, Poseidon? Isso era brincadeira, não
era?
— Certo, pessoal... Acho que o Eric e o Adam já foram bem
recebidos — o técnico voltou a falar, tentando dispersar toda aquela
aglomeração na frente da sala. — Por favor, voltem aos seus
lugares. Preciso informá-los sobre o que aconteceu.
Ah, era bom mesmo!
Precisava ser uma explicação bem plausível para essa quase
catástrofe da natureza estar acontecendo. Inconscientemente,
cruzei os braços e ergui uma das sobrancelhas, como se
demonstrasse em silêncio que estava esperando mesmo uma
explicação.
— Bom... — o técnico aguardou todos sentarem e, então,
instantes depois recomeçou. — Não sei se vocês têm conhecimento
da situação pela qual o Colégio Liverpool está passando. O fato é
que eles estão apresentando dificuldades financeiras e isso afetou
diretamente o time. Eles decidiram, infelizmente, suspender o time
do colégio, porque ainda não estão conseguindo cobrir todas as
despesas. Por conta disso, Eric e Adam, que são concludentes,
iriam perder a oportunidade de concorrer a bolsas de estudos nas
universidades, se continuassem estudando lá. Então, nosso colégio
se prontificou a acolhê-los e fazer um tipo de boa ação. Além do
mais, Eric e Adam são dois excelentes alunos e jogadores. Acho
que o colégio e o time só têm a ganhar com eles aqui.
O quê?!
O pesadelo só piorava! Além de tudo, o Eric ainda iria ser
meu concorrente para conseguir bolsas nas universidades? Era só o
que me faltava. Agora que eu não ia conseguir mesmo a porcaria de
uma bolsa! O idiota era bom no futebol e nos estudos. Fodeu.
O capeta tinha decidido brincar mesmo com a minha vida.
— Liam... — de repente, o técnico virou-se para mim, tirando-
me dos meus pensamentos. — Por favor, vá até o armário e pegue
os uniformes deles.
Cara... Eu já estava cogitando seriamente a possibilidade de
terem feito um bonequinho vodu meu e estarem enfiando agulhas
no meu rabo! Sério que eu teria de receber o Eric? Entregar o
uniforme a ele? Apertar a mão dele? Ser “educado”, ao menos uma
vez na vida, com ele? Fazer aquelas baboseiras de formalidade?
Era nessas horas que eu queria deixar de ser capitão.
— Tá esperando o quê, Liam? — Sr. Jones, mais uma vez,
me acordou dos meus devaneios. Naquela manhã, eles estavam se
tornando cada vez mais frequentes.
— Desculpe, treinador — respondi rapidamente e me dirigi
até o armário.
Respirei fundo, prevendo que isso não ia prestar. Ponderei
enquanto pegava os uniformes e voltava até eles. Não ia prestar
mesmo! Nunca fui supersticioso, mas eu estava com péssimos
pressentimentos diante dessa transferência de colégio do Eric.
Isso ia dar mer...
— Seja bem-vindo. — Antes de completar o pensamento,
falei ao Eric a contragosto. Meu semblante totalmente fechado não
esboçava nenhum sorrisinho. Como se não bastasse, ainda dei um
aperto de mãos rápido, algo que não fazíamos nem nos jogos, e
entreguei o uniforme.
— Valeu, irmão — respondeu, dando-me um sorrisinho que
eu sabia que era sarcástico. Filho da mãe.
— Seja bem-vindo, Adam — Virei-me para ele e também
entreguei um uniforme.
— Obrigado — respondeu de volta.
— Bom, agora que as boas-vindas já foram dadas e os
informes também foram entregues, vocês estão liberados para a
aula — o treinador se pronunciou. — Não se esqueçam que depois
de amanhã temos o nosso primeiro treino preparatório para o início
do campeonato entre os colégios. Principalmente os concludentes
devem estar atentos ao desempenho nos jogos, porque esse
campeonato é o que vai dar ou não bolsa a vocês nas
universidades. Ok?
— Ok, Sr. Jones — o time respondeu.
— Tudo bem. Podem ir para a aula.

❖❖❖
O ditado “nada é tão ruim que não possa piorar” fazia total e
completo sentido! Descobri da pior forma possível que, além de
tudo, o imbecil do Eric também estava matriculado em praticamente
todas as disciplinas que eu fazia. E como eu descobri? Depois da
reunião com o técnico, eu fui para a sala de aula de química, e
quem apareceu logo depois que eu entrei? Isso mesmo. O filho de
uma porca.
O professor pediu para que ele se apresentasse e foi aí que
ele contou a merda toda. Revelou em quais disciplinas estava
matriculado. Química, física, matemática e inglês. Praticamente as
mesmas que eu! Metade das aulas eu teria que dar de cara com ele,
porque eu estava matriculado em química, física, literatura inglesa e
história. Isso ia ser um saco!
Eu juro que até agora eu não sabia onde estava com a
cabeça quando me matriculei em química e física. Eu odiava exatas!
Eu não era de exatas, eu era humanas. Literatura inglesa e história,
tudo bem. Mas, química e física, não. Pelo menos eu fui inteligente
o bastante para não me matricular em matemática. Se estivesse
nessa disciplina, poderia realmente me considerar um completo
fodido.
Obviamente o alecrim dourado se matricularia em todas as
matérias possíveis de exatas. Desde criança ele sempre foi o
“menino prodígio” dos cálculos. Sempre tirou as melhores notas da
turma, do colégio, do diabo a quatro, e, para completar, nunca se
esforçou muito para isso. Era como se ele tivesse nascido sabendo
de tudo. As pessoas costumavam dizer que ele era bom em tudo o
que fazia.
Tinha como eu ter mais repulsa do Eric? Ah, tinha sim!
Especialmente nesse exato momento em que...
— Pessoal, um átomo, cujo número atômico é 18, está
classificado na tabela periódica como? — ouvi o professor
perguntar.
— Metal alcalino, professor — uma garota respondeu.
— Hum... Metal alcalino? — ele replicou. — Tem certeza?
— Professor... — o exibido do Eric levantou a mão. Quase
revirei os olhos. Quase. — Acredito que seja gás nobre. Se fizer a
distribuição eletrônica no Diagrama de Pauling, dá para ver que se
trata especificamente de gás argônio.
É o quê? Gás nobre? Diagrama de Pauling? Gás argônio?
Que porra era essa?
Eu odiava química!
— Muito bem! — o professor olhou para Eric com admiração.
— É exatamente isso!
Vi quando o idiota sorriu, parecendo satisfeito consigo
mesmo. Eu me perguntava como uma pessoa conseguia ser
popular, descolada e nerd ao mesmo tempo. Sinceramente, ele era
um caso que precisava ser estudado por cientistas!
Quer dizer, descolado e nerd ele até podia ser, mas popular
era algo que ele jamais seria naquele colégio. Jamais. Esse título
era apenas meu. Eric não iria tomá-lo de mim de jeito nenhum. Ele
podia ser popular no Colégio Liverpool, mas no Colégio Regent não.
Definitivamente não.
— Agora, última pergunta para fechar a aula de hoje sobre
tabela periódica! — ouvi o professor falar outra vez. — Na
classificação periódica, os elementos Cálcio, Bromo e Enxofre são
de quais famílias respectivamente?
Quando ele se calou, a sala inteira ficou em um súbito
silêncio. Pelo menos eu não sabia dessa porra. Então, ficaria
paradinho aqui na minha. Senti também que ninguém da turma
sabia, porque ninguém soltava nem um piu.
— Ninguém vai me responder? — tornou a perguntar.
— Professor... — Ah não... Essa voz irritante de novo! Dessa
vez, eu tive que revirar os olhos. Era impossível me segurar. — As
famílias respectivamente são metais alcalinoterrosos, halogênios e
calcogênios.
— Muito bem, Eric! — o professor sorriu. — É Eric, não é?
Acho que você vai acabar se tornando o monitor da disciplina! —
soltou uma pequena risadinha.
Ah, cara, que ânsia de vômito. O professor olhava para o Eric
com satisfação, as meninas olhavam para o Eric com interesse, a
sala inteira olhava para o Eric como se ele fosse um deus. Até um
dia atrás, eu era o alvo desses olhares!
Faça-me o favor, não é, destino?!
Vamos brincar com a minha cara, mas não vamos brincar
tanto assim!
— Pessoal, antes do sinal tocar, quero sortear as duplas para
o laboratório de química — o professor voltou a se pronunciar. —
Nós vamos começar as aulas práticas amanhã e vocês precisam ter
parceiros para fazer as atividades. Temos quarenta pessoas na
turma. Os vinte do lado direito vão retirar os papeizinhos dessa
caixa e vão falar em voz alta o nome do parceiro.
Eu estava do lado esquerdo da sala e esperava
ansiosamente para que nenhum fracassado tirasse o meu nome.
Queria fazer dupla com alguém que fosse nerd, porque eu não sabia
de merda alguma de química. Então, de burro já bastava eu.
O professor foi passando a caixa com os papeizinhos, e as
pessoas foram tirando e falando os nomes. Cerca de dez alunos já
tinham dito os nomes das suas duplas, mas o meu não saía. Umas
três garotas nerds já estavam com dupla, enquanto eu seguia
ficando para trás.
Droga! Eu ia me foder. Ia pegar algum fracassado, certeza.
Décima primeira pessoa, décima segunda, décima terceira...
Eric. Porra, era a vez dele. Eric era inteligente e, por mais que eu
não gostasse de admitir isso, ele não era nem um pouco
fracassado. Porém, Zeus, Buda e Poseidon que me livrassem de
fazer dupla com ele.
Preferia ficar com um zé mané do que com ele.
Vi o momento em que ele retirou o papel da caixa, desdobrou
e simplesmente... Travou. Sim, seu rosto ficou repentinamente
pálido. Isso não era um bom sinal. Não era mesmo. Piscou os olhos
algumas vezes e pareceu engolir a seco.
Eu nem sabia porque meu subconsciente tinha sinalizado
isso, mas, quando dei por mim, eu já estava fazendo uma prece
silenciosa: “espero que não seja eu, espero que não seja eu, espero
que não seja eu”.
— Então, Eric, quem é o seu parceiro ou parceira? — o
professor perguntou.
E minha prece silenciosa continuava...
Espero que não seja eu, espero que não seja eu, espero
que...
— Liam — ele respondeu.
Puta que... Meu irmão, Era muito azar para uma pessoa só! E
olha que eu sempre me considerei sortudo! Será que alguém tinha
feito mesmo uma macumba pra mim? De verdade, eu já estava
começando a considerar essa hipótese, porque, não, não podia ser.
Dentre vinte pessoas, vinte, o Pateta tirou logo o meu nome!
Certeza que tinham feito um bonequinho vodu meu e estavam
enfiando agulhas no meu rabo.
Mas, isso não ficaria assim.
Eu iria, agora mesmo, exigir trocar de dupla!
Apaga esse fogo!

Liam

Eu tentei, eu juro que tentei trocar de dupla para o laboratório de


química, mas o professor negou veemente, dizendo que todas as
duplas estavam formadas, que não tinha sobrado ninguém, que isso
ia ser bom para a interação entre os alunos e blábláblá. Porra! Que
azar!
Antes de sair da sala, Eric ainda passou por mim e disse:
“relaxa, bonequinha, é só uma dupla de laboratório”. Relaxar?!
Como eu poderia relaxar tendo que aguentar ver a sua cara tão
próxima à minha até o fim das aulas? E ainda me chamou de
bonequinha, para completar!
Bonequinha é caralho!
Eu teria dado uma resposta bem malcriada a ele, se o
professor não estivesse lá.
Se o Pateta não tivesse cuidado, eu juro por Zeus que jogaria
ácido na porcaria daquele rostinho, enquanto estivéssemos no
laboratório. Até porque, ontem, passei o dia inteiro pensando em
como ia ser tudo isso. Eu sei que não deveria pensar nele, porque,
droga, não tinha coisa pior do que pensar nele.
Na verdade, eu não estava pensando nele.
Eu estava pensando na situação que ele estava envolvido.
E isso era bem diferente. Eu não passaria o dia pensando no
Eric, ora.
Ele disse para eu relaxar, mas eu tinha certeza de que nem
ele estava relaxado. Eu vi muito bem a cara que ele fez quando leu
meu nome no papel. Travou total. Provavelmente devia ter pensado
que eu ia me aproveitar dele e não ia fazer nada, deixando todo o
trabalho nas suas costas. Isso não era um equívoco da sua parte,
porque eu ainda não sabia nada de química. Mas, ontem, sentei a
bunda na cadeira e, milagrosamente, passei a tarde estudando.
Não queria parecer um completo tapado no laboratório. Até
porque estava cansado de ter passado a vida toda ouvindo meus
pais, meus amigos e todas as pessoas da face da Terra dizendo que
o Eric era esperto, o Eric era inteligente, o Eric era isso, o Eric era
aquilo, e que eu deveria seguir o exemplo dele. Saco! Isso me
lembrava um dia em que meu pai faltou arrancar o meu couro,
quando eu tinha uns dez anos, porque tinha tirado nota baixa.

...

Naquela manhã, acordei cedinho, para aproveitar meus


poucos minutos de paz, antes que o Eric abrisse os olhos. Ele tinha
ido passar o sábado e o domingo na minha casa, para brincar com a
Molly. Os piores finais de semana eram quando ele estava aqui. Eu
não tinha paz, sério. Ele ia para ficar com a Molly, mas ficava o
tempo inteiro me perguntando: “Liam, vamos brincar? Liam, vamos
apostar corrida? Liam, vamos jogar um pouco no seu videogame?
Liam, eu trouxe meus carrinhos, vamos brincar? Liam, vamos jogar
bola?”
Não, não, não e não.
Por alguns momentos, eu até cheguei a pensar que ele
tivesse probleminhas mentais, porque parecia que não entendia que
eu não queria brincar com ele. Não queria! Isso era difícil de
entender ou eu precisava desenhar? Era um saco. Por isso, acordei
cedo e liguei, de fininho, meu videogame. De fininho mesmo, porque
mamãe insistiu em colocá-lo para dormir no meu quarto, em uma
cama ao lado da minha. Nem privacidade uma criança de dez anos
poderia ter. Eu heim.
Olhei para o lado e vi que, graças a Deus, ele estava
dormindo mesmo. Assim, mais relaxado, liguei o videogame, deixei
a televisão no mudo, me sentei para começar a jogar e...
— Liam Wyman Tremblay Terceiro! Desça aqui agora! — ouvi
a voz raivosa do meu pai me chamando. No mesmo instante, senti
um calafrio percorrer toda a minha espinha.
Meu Deus, o que eu tinha feito? Senti meu coração
começando a bater mais acelerado, porque, quando meus pais me
chamavam pelo nome completo, boa coisa não devia ter acontecido.
Em um nanosegundo, tentei me lembrar de todas as besteiras que
eu já tinha feito em toda a minha vida de dez anos de idade.
— Liam! — gritou novamente.
De supetão, levantei-me da cama, onde estava tão bem
acomodado para jogar, saí do quarto correndo e desci as escadas
aos tropeços.
Quando fui me aproximando da sala, vi meu pai e minha mãe
com semblantes de raiva que botava medo em qualquer um. Olhei
para as mãos do papai e vi um papel meio sujo de lama. Ah não.
Minha respiração parou e meu corpo gelou. A imagem daquele
mesmo papel, só que limpinho, atingiu minha memória.
Ele estava limpinho antes de eu enterrá-lo no jardim, para
esconder dos meus pais o F em matemática que eu tinha recebido.
Já havia usado todos os outros cantos da casa. Precisava escolher
um novo esconderijo para as provas com notas baixas. O
esconderijo da vez foi o jardim. Eu juro que não sabia como eles
tinham achado, porque estava tão bem enterradinho!
— Liam, o que isso significa?! — papai balançou a prova toda
melecada de lama. — Você tirou um F em matemática e ainda
escondeu a prova no jardim?!
Engoli a seco e fiquei paralisado. Eu não sabia como reagir.
— Liam, estamos esperando por uma explicação — mamãe
se pronunciou.
— Desculpa... — respondi totalmente encabulado e baixei o
rosto. Estava com vergonha até de olhar para eles, assim como
também não fazia ideia de outra coisa coerente que pudesse ser
dita. Nada seria capaz de limpar minha barra. Eu me sentia tão sujo
quanto aquela prova.
— Liam, você só estuda, não faz outra coisa vida, então é
inadmissível que tire notas baixas! — papai tornou a falar. Ele
estava soltando fumaça pelo nariz. — Você está crescendo e
precisa começar a ter responsabilidade!
Sentia meu coração tão, mas tão acelerado. Odiava receber
broncas dos meus pais, odiava quando eles falavam assim comigo.
E eu odiava, principalmente, ter que admitir a eles que eu não era
bom o bastante. Por isso, eu escondia as provas.
— Desculpa, papai... — em quase um sussurro, falei, ainda
de cabeça baixa.
— Liam, eu não quero ouvir desculpas, eu quero que você
mude! — ele parecia cada vez mais exaltado. — Porque você não é
igual ao Eric, heim? Como eu queria ter um filho igual ao Eric! O Eric
é um ótimo menino! Inteligente, primeiro lugar no colégio, estudioso,
responsável, esperto, gentil, educado... E ele tem a mesma idade
que você! Não tem nem a desculpa de ser mais velho!
Respirei fundo, ainda resignado. Eu achava isso um saco. Eu
achava tudo isso um grande saco! Não entendia porque, a cada
sermão que me davam, eles tinham que me apresentar uma
infindável lista das qualidades do Eric. Isso só fazia com que eu me
sentisse ainda pior. Nunca seria bom o bastante para eles. Nunca
seria bom como o Eric.
— Você deveria seguir o exemplo do Eric! — papai continuou
seu discurso, enquanto eu permanecia de cabeça baixa, sem
conseguir encará-lo. — O Eric com certeza terá um futuro brilhante,
porque é estudioso e inteligente. Mas, e você, Liam? Vai ser o quê?
Vai fazer o quê? Vender limonada no meio da rua, como faz nas
férias? O tempo passa rápido, Liam, e, se você não ficar atento, não
terá nada e não será ninguém!
Não será ninguém...
Essas palavras ressoaram na minha mente, martelaram na
minha cabeça e fizeram com que um nó subisse pela minha
garganta. Instantaneamente, meus olhos encheram d’água.
— Tudo bem, querido... — ouvi mamãe falando com certa
compaixão. Provavelmente, achou que meu pai já estava pegando
muito pesado. — Acho que Liam já entendeu o recado — ela
completou.
— Tudo bem nada, Claire! — disparou, pouco se importando
com o que ela tinha acabado de dizer. Ele estava transtornado de
raiva. — Heim, Liam? Me diga! O que você vai ser, tirando notas
baixas? Ninguém?
No momento em que ouvi a palavra “ninguém” outra vez, um
soluço de choro inevitavelmente escapou da minha garganta.
Lágrimas começaram a descer feito cachoeira pelos meus olhos.
Sem saber direi o que falar ou fazer, caminhei rapidamente até a
porta da sala, e saí correndo e chorando rumo ao jardim.
— Liam! — papai gritou. — Onde pensa que vai?! Você está
de castigo!
Continuei correndo até o jardim, não por desobediência, mas
porque queria ficar sozinha. Acabei escorregando e caindo de
joelhos na grama, o que só fez aumentar meu choro. Passei a mão
no rosto de qualquer jeito e pensei: “Eric é melhor que eu? Eu não
vou ser ninguém quando crescer?”

...

Naquele dia, as palavras do meu pai foram piores do que se


eu tivesse levado uma boa surra por ter tirado nota baixa e
escondido a prova. Hoje em dia, até que a situação lá em casa tinha
melhorado um pouco. Meu pai estava relativamente mais maleável.
No entanto, algo que não mudava era a infindável lista de
qualidades do Eric que todos falavam para mim. Por essas e outras,
estudei ontem. Não queria parecer um completo idiota no
laboratório, enquanto ele fazia tudo e eu ficava com cara de
bobalhão.
Para completar a odisséia da minha vida, no dia anterior,
depois da aula e depois que eu cheguei em casa, tentei falar com a
Stefany, mas ela estava me evitando. Sim, estava me evitando o
tempo inteiro! Provavelmente ainda devia estar chateada por eu ter
enxotado seu irmão do meu quarto, na manhã seguinte após o pub.
Acontece que eu não me lembrava do que fiz. Então, levei um susto
fenomenal ao ver o imbecil do Eric deitado debaixo de mim. Eu
odiava ficar “brigado” com a Stefany.
Ela não era só minha ficante, era minha amiga também.
Uma das pessoas que eu mais confiava.
Para fechar com chave de ouro a saga do menino popular
que estava virando um fracassado, eu me encontrava sozinho na
porcaria daquele colégio. Sim, isso mesmo, sozinho! Quando, em
toda a minha vida, eu poderia imaginar que ficaria sozinho durante o
intervalo das aulas? Bastou um dia, somente um dia, para todo o
colégio ficar lambendo o chão por onde o Eric passava. Engraçado
que quem estava fazendo isso eram exatamente as mesmas
pessoas que, até um dia atrás, se jogavam no chão para eu
caminhar sem sujar o tênis.
Falsos. Traidores.
Em resumo: Eric virou a novidade do colégio e todos estavam
atrás dele; Stefany não estava falando comigo, mesmo eu tendo
corrido atrás dela como quem corria a Maratona Internacional de
São Silvestre; e meus melhores amigos, Robert e William,
inventaram de faltar a aula. Meus melhores amigos inventaram de
faltar logo naquele dia! Péssimo dia para isso acontecer. Péssimo
dia.
Então, cá estava eu, sentado na porra de uma mesa do pátio,
olhando para o tempo, sozinho, esperando a hora da aula começar.
Eu disse: sozinho! Onde já se viu o capitão do time de futebol ficar
sozinho? Esse colégio estava perdido mesmo.
De relance, olhei para o lado e vi ninguém mais, ninguém
menos, que o Eric acompanhado da Molly, de vários caras do time e
de várias outras pessoas descoladas do colégio também. A mesma
galera que sempre fazia questão de me acompanhar onde quer que
eu fosse. Falsos, falsos, falsos!
Eric era só sorrisos e risadas. Eu juro que não entendia como
ele conseguia ser assim com todo mundo. Eu, por exemplo, não
tinha vocação para ser simpático com todas as pessoas. Não
mesmo. Em uma das risadas que ele deu, acabou olhando para o
lado e me vendo. No mesmo instante, ele sorriu para mim, acenou
de leve com a cabeça e piscou o olho.
Virei o rosto, de cara fechada, e não dei a mínima atenção.
— Viu só como meu irmão é legal? — de repente, ouvi uma
voz falando atrás de mim. — Ele acenou pra ti. Retribui o aceno
também. Vai.
Virei-me para ver quem era e dei de cara com Stefany. No
mesmo instante, meu rosto se iluminou por completo. Era como se
eu estivesse vendo um pote de ouro bem na minha frente. Sorri de
orelha a orelha.
— Stefany! — levantei-me rapidamente e a abracei forte,
pegando-a de surpresa.
— O que foi? — soltou uma pequena risada para o meu
entusiasmo por vê-la. — Tá querendo transar, não é? — estreitou o
olhar, como se já estivesse entendendo tudo.
— Não... — separei-me do abraço e franzi um pouco o
cenho. — Quer dizer... Eu sempre quero transar, mas não é isso.
Ela ergueu as duas sobrancelhas, cruzou os braços e
maneou a cabeça com um “sim”. Seu olhar, agora, foi de quem, de
fato, tinha entendido o que estava realmente acontecendo. A loira
era esperta, assim como também não precisava pensar muito para
chegar a uma conclusão.
— Já sei. Está se sentindo o menino solitário aí, porque seus
amigos faltaram e o colégio só dá bola para o Eric agora. —
simplesmente respondeu.
Eu, no entanto, fechei o semblante que, há poucos segundos,
apresentava um largo sorriso. Odiava ter que admitir que estava
sendo passado para trás por causa daquele idiota do seu irmão. Já
era demais ter que aturá-lo no colégio e no time, agora eu tinha que
aturar a fama dele.
— Não — repliquei sem querer dar o braço a torcer. No
entanto, menos de meio segundo depois, respirei fundo e rolei os
olhos. — Quer dizer... Mais ou menos isso.
— Então, o que é? — ergueu uma das sobrancelhas,
perguntando.
Tudo bem que uma parte de mim se sentia para baixo por
causa daquele populismo exacerbado do Eric, mas outro também
sentia muito pela distância que a loira tinha colocado entre nós,
depois a manhã pós-pub.
— Estava sentindo falta de ti. Pensei que nunca mais fosse
falar comigo. — respondi com sinceridade.
— Ah, Liam, quando você quer, você consegue ser fofo! —
com um sorriso meigo, fez carinho no meu rosto. — Eu até pensei
mesmo em nunca mais falar contigo, mas te vi aí sozinho e fiquei
até com pena, sabe... — senti a ironia em seu tom de voz.
— Engraçadinha... — com um pequeno sorriso, revirei os
olhos.
— Mas, agora é sério, Liam — me encarou com mais
atenção, deixando de lado a brincadeira. — Eu realmente fiquei
chateada contigo. Você foi bem babaca com o Eric e ele só te
ajudou. Na verdade, você sempre é babaca com o Eric.
Suspirei, resignado.
— Eu só não esperava acordar com ele bem na minha cara,
Stefany — tentei me explicar, até porque isso fazia sentido, se ela
parasse um pouquinho para entender o meu lado da história. — Eu
não lembrava e continuo sem lembrar do que fiz.
— Já pediu desculpas a ele? — A loira perguntou.
Suspirei outra vez. Eu poderia fazer tudo, menos pedir
desculpas ao Eric. Eu não me desculpava com ninguém,
principalmente com ele.
— Vamos virar essa página? — tentei desconversar. — Por
favor.
— Só se você for legal com ele — rebateu no mesmo
instante, dando-me um sorriso vitorioso.
Revirei os olhos brevemente. Muito breve mesmo. Não queria
abrir margem para mais desentendimentos com a Stefany. Já
bastava. Só queria ficar com ela.
— Eu e ele estamos jogando no mesmo time e seremos uma
dupla no laboratório de química até o fim das aulas. Matar ele eu já
não posso mais — falei.
Isso foi o suficiente para a loira soltar uma risada. De
brincadeirinha, bagunçou meu cabelo, divertindo-se com o que eu
tinha dito.
— Você não tem jeito mesmo, Liam — sorriu e me abraçou.
— Também senti tua falta, bobão.
— A gente tá de boa agora? — perguntei, me sentindo
totalmente satisfeito em seus braços. Era bom ter um momentinho
de paz e alívio depois de receber tanta bomba.
— Sim — respondeu, separando-nos brevemente do abraço.
— Agora me fala com sinceridade. Você tá bem alone, não é? —
tocou minha bochecha em um carinho.
Infelizmente sim, embora eu odiasse ter que admitir isso.
— Esse colégio só tem traidores — resmunguei.
— Acho que as pessoas só gostaram do jeito do Eric —
respondeu simplesmente.
Fiz uma leve cara de nojo.
— Não vejo nada demais no jeito dele.
Mentira. Eu via sim, embora odiasse ter que admitir isso
também. O idiota era bem sociável com todo mundo,
completamente diferente de mim. As pessoas falavam comigo não
porque eu era simpático, mas, sim, porque eu era popular, bonito e
capitão do time. Já o Eric era tudo isso com mais o fato de legal com
todos.
— Liam... — Stefany me deu um sorrisinho. — Veja bem.
Você e o Eric têm algumas poucas coisas em comum, sabe? Vocês
são bonitos, jogam no time do colégio e são capitães, ou pelo
menos já foram, como no caso do Eric. Três coisas que dão
bastante visibilidade. Porém... O Eric é simpático, gentil, educado e
brincalhão com todo mundo. Ele não exclui ninguém por se achar
melhor. E você não é nada disso. Você é convencido, arrogante e se
acha o dono do mundo. Sendo assim, você acha que as pessoas
vão preferir quem?
Ela falou exatamente o que no fundo, bem no fundo, eu
pensava, mesmo sem querer.
— Não, Stefany, por favor... — suspirei, cansado desse
discurso, e revirei os olhos. — Não venha ser mais uma das
pessoas que me falam da infindável lista de qualidades do Eric. Já
basta. Eu tenho decorado tudo isso na cabeça, graças ao tanto de
vezes que já ouvi.
— Eu só estou abrindo teu olho, Liam. Se não quer mesmo
perder o posto de garoto popular para o Eric, embora na minha
opinião isso seja muito fútil, acho melhor você mudar um pouquinho
a conduta. No fundo, eu sei que você é uma pessoa muito boa. Só
precisa transparecer isso — sorriu. No momento em que se calou,
entretanto, o sinal do colégio tocou, indicando o final do intervalo. —
Vou pra aula. Depois a gente termina essa conversa — piscou o
olho para mim e se virou para ir embora.
— Ah, não vejo a hora de ouvir um pouco mais das
infindáveis qualidades do Eric — repliquei com ironia, enquanto ela
se distanciava. Antes de entrar no corredor principal, vi quando ela
virou brevemente rosto e sorriu outra vez, divertindo-se com a
situação.
Após isso, caminhei até o laboratório de química e comecei a
me preparar psicologicamente para minha aula tendo como
“companheiro” o Eric. Era um inferno mesmo. Quando entrei na
sala, em meio aos alunos, vi o Eric já sentado, lendo para variar.
Como ele conseguia ser tão rápido para assistir aula?
Há menos de dois minutos ele estava cercado de gente lá
fora e agora já estava aqui.
Aproximei-me dele, unindo forças para a quase sessão de
tortura que seria essa aula, e, quando cheguei perto o suficiente,
notei seu olhar desviar do livro para mim. Ele sorriu. Parecia um
sorriso genuíno, afinal.
— E aí, bonequinha! Beleza? — Toda a genuidade do seu
sorriso foi por água abaixo somente com essa fala carregada de
sarcasmo e ironia. O cara não dava uma dentro para manter minha
paz de espírito e evitar que meu punho acertasse sua cara.
— Bonequinha é o caralho — resmunguei e me sentei ao
lado dele. — E, por favor, vamos falar só o necessário — finalizei,
direcionando meu olhar para um ponto qualquer da sala que não
fosse ele.
— Ah, desculpa, por um momento esqueci que garotas ficam
de tpm — provocando, ele ironizou outra vez, mantendo seu sorriso
idiota no rosto. Sério, ia ser impossível não brigar com ele até o fim
das aulas. — Acho até que você vive em uma eterna tpm.
— Vai se foder — repliquei tão somente, tentando manter
minha calma para não quebrar a cara dele, e me virei, dando as
costas.
No mesmo instante, vi o professor entrar no laboratório.
— Bom dia, turma! Estão todos ansiosos para nossa primeira
aula prática? Eu estou demais! — sorriu.
Ah, por favor, professor, eu estou animadíssimo!
Por que professores sempre eram tão entusiasmados com
coisas que alunos não gostavam?
— Pessoal... — o professor colocou seus pertences em sua
mesa e, logo depois, continuou a falar, voltando sua atenção para
nós. — Nossa aula prática de hoje será, na verdade, um teste
surpresa valendo um ponto na prova. — Ah, que droga! Eu odiava
testes surpresas! Só de pensar me dava preguiça. — Bom, na
nossa aula de ontem, nós estudamos sobre a tabela periódica e as
reações de alguns dos elementos. Como eu sei que vocês
estudaram muito em casa... — disse com certa ironia. — O teste
surpresa será fazer na prática, pelo menos, três das reações
químicas que ensinei na aula de ontem. Sem o uso do livro, claro.
Todos os materiais que vocês precisam já estão na bancada.
Cara... Eu tinha estudado isso ontem à tarde, não era
possível que eu não soubesse fazer. Eu não era tão burro. Eric
obviamente devia saber fazer as três reações, mas eu não queria
pagar de tapado. Devia mostrar que sabia tanto quanto ele.
— Podem começar — o professor concluiu.
— Bonequinha... — senti um leve toque no meu braço. — Já
tenho dois procedimentos de reações químicas aqui em mente.
Precisa só...
Revirei os olhos e...
— Você não vai parar de me chamar de bonequinha, idiota?
— disparei, interrompendo-o de repente e já sentindo-me ao ponto
de realmente jogar um ácido daqueles na cara do imbecil.
— Desculpa, velho... — deu uma pequena risada. Balancei a
cabeça em negativo. Isso era inacreditável. Depois o babaca da
história era eu. — Voltando para o que eu estava falando, tenho
duas reações aqui em mente. No primeiro procedimento, a gente
coloca em cada proveta a mesma quantidade de uma mistura de
água oxigenada e detergente. Depois, em cada proveta, coloca
gotas de anilina de diferentes cores. Por fim, com a espátula, coloca
um pouco de iodeto de potássio.
Eric explicava, explicava, explicava... E eu ficava só olhando
com uma fingida cara de quem estava entendendo tudo, ao mesmo
tempo em que, repentinamente, começava a notar alguns detalhes.
Por exemplo, seus olhos castanhos que, com a luz do sol,
ganhavam uma tonalidade mais para o mel. Também comecei a
perceber sua boca e a maneira como ela se curvava em alguns
sorrisinhos à medida que ele falava. Além da sua língua, que, vez
ou outra, aparecia de leve quando ele pronunciava algumas
palavras.
Talvez Eric fosse... Digamos... Atra... Atraen... Atraente.
Atraente enquanto explicava com bastante propriedade e
conhecimento.
Espera! O quê?
Eu tinha pensado nisso mesmo? Meu Zeus! Eu só podia
estar ficando louco. Não, não. Era só um pequeno e repentino lapso
de loucura. Nada mais que isso. Apenas um pequeno e rápido lapso
de loucura. Me remexi meio inquieto na cadeira, quando acordei
daquele transe. Ele só parecia confiante enquanto explicava sobre
as estúpidas reações químicas. Sim, só isso mesmo: confiante.
Nada de atraente. Nada.
— Tá tudo bem contigo, cara? — o loiro franziu o cenho.
Droga. Talvez tivesse ficado um pouco na cara a maneira como eu
me assustei com meus próprios pensamentos. — Se mexeu de um
jeito meio estranho... — completou.
Trinquei os dentes, travando a mandíbula.
— Tá, tá tudo bem sim — resmunguei, sem dar muita
confiança a ele. — Continua essa porra aí.
— Ok — deu uma pequena risadinha e voltou a explicar. —
No segundo procedimento, a gente coloca 5 ml de ácido clorídrico
no tubo de ensaio, junto com um pedaço de magnésio de uns 5 cm.
Esse é mais simples, mas funciona. E aí? O que você acha?
Pensou em algum procedimento para ser o terceiro?
Caramba, o cara manjava mesmo de química, enquanto eu
parecia estar só vegetando ali. Uma verdadeira planta. Mas, eu não
podia permitir que ele percebesse isso, não podia ficar para trás.
Precisava mostrar que também sabia fazer as coisas.
— É... Eu estava pensando nesses dois procedimentos
mesmo... — menti, dando a entender que realmente estava por
dentro do assunto. Claro que aquele filho de uma porca não poderia
perceber que eu era um dos mais perdidos daquela sala. — Vai
fazendo aí que eu vou pensando no terceiro.
— Beleza — replicou e já foi logo colocando em prática o que
havia me explicado.
Enquanto isso, eu, em silêncio, só pedia a Zeus, Buda,
Poseidon e todas as divindades que existissem, para que me
dessem uma luz, um sinal de fumaça. Qualquer coisa. Qualquer
ajuda já seria bem-vinda para eu pensar em um procedimento
decente. Eu não podia ficar para trás. Não podia! Eu tinha que
mostrar que também sabia.
E não, não era possível que eu não conseguisse lembrar de
nada. Passei a tarde inteira ontem estudando essa porcaria! Pensa,
Liam, pensa! Eu travava uma luta mental comigo mesmo, tentando
espremer até a última gota do pouco conhecimento de química que
eu tinha, quando, de repente, uma luz divina baixou sobre a minha
cabeça.
Tive uma brilhante ideia! Sim, brilhante!
Como eu não tinha pensado nisso antes? Estudei isso ontem
e já estava esquecendo!
Eu sou um gênio! Palmas para mim. Sou um gênio.
Peguei um becker e enchi de água até a metade, quando, de
repente, notei Eric virar o rosto para o meu lado, enquanto
preparava alguma substância e erguia um pouco a sobrancelha para
mim.
— O que você vai fazer? — perguntou, desconfiado.
— O terceiro procedimento né, idiota? — de pronto, repliquei.
— E qual vai ser o procedimento? — ainda mais desconfiado,
perguntou outra vez.
— Veja e aprenda com o mestre — respondi com ar de
sabichão.
Na verdade, eu não tinha somente o ar de sabichão, eu era o
próprio sabichão. Sabia exatamente o que estava fazendo e, por
essa, nem o perna de pau ali do meu lado esperava. Eu iria
surpreender!
Posicionei o becker no balcão e, com uma pinça, peguei um
pedaço de potássio.
— Cara... — com nítida preocupação em seu olhar, Eric me
encarou. — Você não tá pensando em colocar esse potássio dentro
da água, tá?
— Ora, qual é o problema? Eu estudei ontem mané — com
desdém, dei de ombros para ele. — Vi esse procedimento. Sei o
que tô fazendo — finalizei e levei o potássio até bem próximo ao
becker.
— Cara, não faz isso! — o loiro arregalou os olhos. — Vai
explodir!
Ao mesmo tempo em que Eric falou “vai explodir”, soltei o
potássio dentro da água. Foi tão ao mesmo tempo que não tive
como segurá-lo. Quando vi, ele já tinha tocado na água e... Caralho!
Foi instantâneo. Explodiu becker com potássio, com água, com a
porra toda! Começou a pegar fogo em tudo na bancada!
— Apaga esse fogo! — gritei em um completo desespero
para o Eric.
Nesse momento, toda a galera já estava gritando e correndo
por todos os lados, tentando sair do laboratório. Quase um “salve-se
quem puder”. Seria cômico, se não fosse trágico. Ou era cômico e
trágico ao mesmo tempo.
Pior que, se jogasse água, ia pegar mais fogo ainda! Caralho,
cacete! Eu estava muito fodido! Onde estava o Eric para fazer
alguma coisa naquela porra? Desesperado, olhei de um lado para o
outro, procurando por ele em meio à fumaça.
Porém, quando menos esperei, vi um jato branco e forte
vindo em minha direção e na direção da bancada também. Comecei
a tossir forte com isso, assim que atingiu minha garganta, ao mesmo
tempo em que abanei com as mãos.
No momento em que fui recobrando minha respiração
normal, olhei para o lado e vi um Eric vermelho, segurando um
extintor de incêndio. E não, ele não estava vermelho por causa do
fogo que acabou de apagar, nem por tossir com a fumaça. Ele
estava vermelho de tanto rir.
O filho de uma porca não parava de rir!
E cada vez que ele me olhava, ele ria mais. Gargalhava.
— Para de rir da desgraça alheia, imbecil! — gritei.
No entanto, o parido de meretriz simplesmente não parava de
rir da minha cara. Inferno! Bufei com ainda mais raiva, enquanto
olhava para os lados, notando que a sala estava completamente
vazia. Todos os alunos já tinham corrido para fora. Restava apenas
eu e ele.
De repente, vi o professor se aproximar de nós com uma cara
nada boa.
Instantaneamente, Eric parou de rir.
Ah, vai parar agora, filho duma mãe?
— Meninos... — completamente chocado com o acontecido,
o professor falou quase em um sussurro, enquanto olhava
boquiaberto para os lados. — Vocês destruíram o laboratório.
Engoli a seco.
— Foi só um pequeno acidente, professor — meio sem jeito,
respondi.
Ele, entretanto, franziu o cenho para mim.
— Pequeno? — replicou ainda em quase um sussurro de
choque. — Isso foi uma catástrofe da natureza! — finalmente
disparou, atordoado. — Vou ter que mandar vocês dois para a sala
do diretor.
Fodeu. Eu estava completa e absurdamente fodido.

❖❖❖

— Então, vamos lá ver os estragos — o diretor disse ao abrir


uma pasta de ocorrências. Essa era a famosa pasta onde
guardavam tudo sobre os alunos. Nela havia todas as traquinagens
que cada um já tinha feito ali.
O diretor Dawson estava sentado em sua mesa de escritório,
enquanto eu e Eric estávamos em cadeiras de frente para ele. O
loiro permanecia com uma mão discretamente em frente à boca e,
vez ou outra, eu conseguia notá-lo tentando segurar o riso ou o
sorriso.
Idiota.
— Metade das bancadas pegaram fogo — Sr. Dawson
começou a ler. — Equipamentos também pegaram fogo — olhei
para o lado, tendo a certeza de que, mais do que nunca, Eric
parecia estar se segurando para não rir. Esse cara só podia ter
problemas mentais, sério. — Metade do laboratório vai precisar de
reforma. E... Liam... Pelo que vejo aqui, é a sua décima ocorrência
só esse ano. Colar na prova, discutir com o professor, brigar com
colegas... É uma lista um tanto vasta. Já a lista do Eric está vazia.
Essa é a primeira ocorrência, considerando até mesmo o histórico
do colégio anterior.
Então, a lista das qualidades do Eric estava cheia, mas a lista
das putarias estava vazia?
Ah, vai se foder! Odeio o mundo!
— Estou vendo aqui também que você quer se candidatar a
uma vaga em Harvard, Liam. Bom, seu comportamento não parece
dos melhores para quem quer uma vaga em Harvard, nem as notas.
Já o Eric, tem um currículo acadêmico excepcional, pelo que vejo
aqui no histórico.
Ah, cara, então, além de todas as pessoas que já faziam
comparações entre Eric e eu, agora era a vez do diretor do colégio
também? Sério, eu podia estar pagando por todos os meus
pecados!
— Liam, isso é mais que um conselho de um diretor para um
aluno: tome mais cuidado com o seu comportamento acadêmico.
Você está no último ano e precisa que as universidades te aceitem
como aluno.
Ótimo. Além da pressão que eu fazia sobre mim mesmo e da
pressão dos meus pais, agora eu também tinha a pressão do diretor.
— Eric, meu jovem, espero não lhe encontrar nessa sala
novamente por causa de ocorrências. Continue com as boas notas e
com seu comportamento exemplar, que a Universidade de Oxford
irá te aceitar — sorriu.
Por que todo mundo tinha que gostar do Eric?
— Agora, eu vou ter que mandá-los para a sala da detenção.
Ficarão lá até o fim do turno da manhã.
Ah não, detenção? Detenção de novo não! Detenção pela
décima vez!
Fica comigo

Eric

Detenção?
Eu nunca tinha ido para uma detenção em toda a minha vida.
— Mas, Sr. Dawson, foi só um acidente... — Liam, tentando
argumentar, praticamente suplicou.
Um acidente bem hilário, por sinal.
Só de pensar na cara de desespero do Liam já dava vontade
de rir.
— Um acidente que vai custar caro ao colégio, Liam — o
diretor replicou. — Pode ser que com essa décima detenção você
aprenda. Aliás, pelo mau comportamento e pelas notas baixas, você
sabe que está por um triz de perder a sua vaga no time do colégio,
não é?
Caramba, a situação dele estava tão crítica assim? Liam
podia ser um imbecil, mas eu não conseguia imaginar o time do
colégio sem ele. O cara simplesmente era a base de tudo, uma
referência para todo mundo.
Percebi quando ele baixou a cabeça e fechou o semblante.
— Eu vou procurar melhorar, Sr. Dawson — resmungou. —
Eu não vou sair do time — e finalizou com convicção.
— Ótimo — em um tom levemente desafiador, o diretor
respondeu. — Siga o exemplo do Eric. Seja como ele. Essa é a
primeira vez que ele se envolve em problemas acadêmicos, além de
sempre tirar notas excelentes. Talvez Eric tenha muito a lhe ensinar.
Ah não... Essa história de “seja como o Eric” de novo não!
Quem aguentava isso? Se eu mesmo, que era a pessoa elogiada,
não aguentava, eu ficava me perguntando como seria para o Liam,
que era a pessoa que sofria com as comparações extremas.
Uma merda, provavelmente.
Não entendia por que as pessoas ficavam insistindo em dizer
que ele deveria seguir o meu exemplo. Que porra de seguir o meu
exemplo... Eu só era eu e pronto. Todos agiam como se o que eu
fazia fosse algo extraordinário. Eu não via nada demais.
Apenas fazia coisas que tinha a ver comigo, coisas que eu
gostava.
Cada um deveria fazer o que quisesse e como quisesse. Eu
era eu. Liam era Liam. Apesar dele ser um otário, não tinha lógica
querer forçá-lo a mudar para ser “parecido comigo”. Se ele tivesse
que mudar, que fosse por si próprio e não para ser igual a outra
pessoa.
Virei meu rosto em sua direção, enquanto ele permanecia
calado diante das orientações do diretor. Notei, entretanto, seu
maxilar rígido e tensionado, como se estivesse se segurando para
não soltar os cachorros em cima do coroa. Eu sabia que ele não
gostava de ser comparado a mim. E com razão. Eu também não
gostava. Achava tudo isso muito sem sentido.
— Bom... — Sr. Dawson continuou a falar, quando percebeu
que Liam não iria abrir o bico diante de nenhuma de suas
recomendações para se tornar um Eric Segundo. — Podem ir para a
sala da detenção. Vocês devem estudar até o fim do turno da
manhã. Lá tem um funcionário para fiscalizá-los.
— Tudo bem, diretor — falei.
Por mais que eu nunca tivesse ido a uma detenção, eu não
iria criar caso por causa disso. Nós tínhamos errado mesmo e
precisávamos pagar por isso. Na verdade, o Liam tinha errado, eu
não havia dito que ele deveria misturar potássio com água, mas
também não ia ficar passando isso na sua cara. Nós já tínhamos
problemas demais. Preferi ficar calado.
Assim, Liam e eu nos levantamos e seguimos rumo àquela
sala. O moreno também permaneceu calado o tempo todo.
Confesso que, apesar dos pesares, eu ainda precisei controlar
minha vontade de rir algumas vezes. Afinal, a lembrança do
semblante desesperado do Liam era hilária. Nunca tinha o visto
assim, oras. Ele sempre estava com uma postura tão fodidamente
arrogante, que vê-lo daquele jeito foi bem engraçado.
Ao chegarmos à infame sala da detenção, logo notei que a
orientação do diretor sobre estudar até o fim do turno manhã estava
um pouco equivocada. Na verdade, muito equivocada, ela acontecia
somente na teoria. Havia em torno de uns onze alunos e todos
estavam fazendo qualquer porra, menos estudar. O fiscal também
não parecia muito preocupado com isso. Aparentemente, ele estava
mais empenhado em mexer no celular do que em fiscalizar os
alunos.
Liam, ainda calado e de semblante fechado, seguiu para o
final da sala e se sentou em uma das últimas carteiras, longe de
todo mundo. Eu me encaminhei para o sentido oposto e sentei na
outra ponta. Peguei meu material de estudo e comecei a folhear um
livro de física. Tentei estudar, mas a galera não colaborava. Todos,
eu disse todos, estavam conversando. E não era baixinho, era alto!
O fiscal também não fazia porcaria alguma para evitar. Ele parecia
pior que os alunos.
Portanto, eu também não ia estudar merda alguma. Ninguém
estava estudando mesmo. Estavam conversando, jogando, fazendo
o escambau. Quer dizer... Nem todo mundo. Por incrível que isso
pudesse parecer, Liam estava quieto no fundo da sala. Sentado na
carteira e encostado na janela, ele olhava para fora. Parecia perdido
em meio aos pensamentos. Seu semblante também não era dos
melhores, e eu não precisei de muito tempo para perceber que ele
realmente não estava bem.
Será que eu deveria ir até a bonequinha e perguntar o que
estava acontecendo? Provavelmente, se eu chegasse lá, seria
enxotado para sair de perto. Como sempre. Mas, sei lá, eu não
estava fazendo nada mesmo e, se ele me expulsasse, não seria
uma novidade. Eu já estava acostumado com esse tipo de coisa.
Uma patada a mais ou menos do Liam, para o meu lado, já não
fazia tanta diferença.
Assim, levantei-me da carteira, e, caminhando pela sala, fui
me aproximando dele aos poucos. Eu ainda não sabia se ele já
estava notando a minha presença iminente, mas o fato era que ele
permanecia do mesmo jeito: sentado, calado, encostado na janela,
olhando para fora e com uma cara péssima.
— O que tá pegando? — puxei uma carteira para perto dele e
me sentei.
Automaticamente, como se eu tivesse alguma doença
contagiosa, Liam franziu o cenho, sem me olhar, e se afastou para
ainda mais perto da janela, ganhando alguma distância entre nós.
— Calma, cara, vou te morder não — dei uma risadinha e me
aproximei dele outra vez. Sim, eu era corajoso, porque mexer com
Liam era quase como manusear explosivos altamente perigosos. —
O que tá pegando?
— Não interessa — ainda sem me olhar, respondeu em um
resmungo.
Suspirei. Definitivamente, não era fácil ter qualquer diálogo
com ele.
— Qual é? — ri baixinho novamente. — Você tá parecendo
uma menininha triste.
No mesmo momento em que me calei, o moreno virou seu
rosto e me fuzilou com os olhos. Definitivamente, ele não gostou de
ser comparado com uma “menininha” e, Deus, como era engraçado
tirá-lo do sério! Bom, não que ele estivesse, de fato, parecendo uma
menininha, mas eu precisava chamar sua atenção de algum jeito, e
eu só conhecia essa forma.
— Sabia que se eu socar tua cara agora, eu não sairia no
prejuízo? — cerrando os dentes, ele replicou. Labaredas de fogos
saindo pelas suas orbes. — Já tô fodido mesmo na detenção — deu
de ombros. — Não faz diferença nenhuma pra mim.
— Calma, cara... — sorri e ergui as mãos, como se estivesse
rendido. — Eu vim em missão de paz. Prometo — cruzei os dedos,
enquanto ele ainda me analisava com repúdio.
Porém...
— Sai daqui — curto e grosso, Liam replicou e voltou a olhar
para a janela.
Okay. Ele não era fácil e eu precisava de muita paz de
espírito para conseguir lidar com esse mané. Muita mesmo. Sorte
dele que eu sempre fui uma pessoa muito paciente.
— Sério, irmão... Agora é sério — substituí rapidamente meu
semblante de brincadeira por um mais preocupado. — O que tá
pegando? Mesmo que nós não sejamos amigos, eu sei quando você
não tá bem. Precisa de alguma coisa? Alguma ajuda?
O moreno, por sua vez, passou as mãos pelo rosto,
empertigado, e as escorregou pelo cabelo. Droga, ele estava se
irritando. Mas, quando era que o Liam não estava irritado? Eu
realmente não conseguia me lembrar.
— Eu preciso que você saia daqui. Volte para o lugar onde
você estava — sério e nem um pouco simpático, ele respondeu sem
me olhar. — Cai fora.
Revirei os olhos. Eu tinha certeza que isso ia acontecer. Tão
previsível.
— Beleza. Eu só queria ajudar, mas já que você é imbecil
demais pra isso, tudo bem — resignado e sem dizer mais nada, me
levantei da carteira. No entanto, quando dei o primeiro passo, algo
me chamou atenção.
— Espera — Liam falou.
De automático, meu corpo retesou e eu parei exatamente
onde estava. Ouvir aquilo não parecia real. Nunca, em mil anos,
Liam me pedia para esperar ou ficar. Eu já estava até cogitando a
possibilidade de ter escutado errado.
— Oi? — virei-me para ele, confuso.
Um leve traço de rubor cruzou seu rosto. Ele ficou
envergonhado. E, olha, isso também foi surpreendente, porque Liam
jamais sentia vergonha de qualquer coisa. Sempre parecia tão auto
suficiente com tudo.
— É... Hum... Q-Quer dizer... — gaguejou, inquieto. — Sai
daqui.
O vinco que surgiu em minha testa foi ainda maior. Porra,
Liam era muito confuso e, às vezes, muito indeciso também. Odiava
ficar nesse “chove e não molha”.
— Você quer que eu saia ou que eu fique? — Meio
impaciente, perguntei.
O moreno, no entanto, se remexeu na cadeira e, um pouco
exasperado, esfregou as mãos no rosto. Foi aí que eu percebi que
ele estava travando alguma luta interna consigo mesmo, ou sei lá.
Isso era por minha causa? Estranho, muito estranho.
— Fica — resignado, depois de algum tempo, ele falou.
E isso foi ainda mais estranho. Digo, muito mais que
estranho: foi inesperado. Entretanto, por mais surpreso que eu
estivesse, tentei manter a naturalidade e me sentei ao seu lado
outra vez.
— Então, cara... — suspirei. — O que tá acontecendo? —
inclinando-me em sua direção, perguntei.
Liam, no entanto, com o cenho franzido, graças a nossa
repentina proximidade, se afastou um pouco.
— Não pense que vamos ficar amiguinhos por causa disso —
resmungou e ergueu uma das sobrancelhas, como se estivesse me
avisando indiretamente para baixar a bola. — Eu só... Eu só preciso
conversar.
Soltei uma risadinha leve pelo nariz. Liam não tinha jeito
mesmo. Sempre arredio.
— Beleza, cara — dei de ombro. — Relaxa e me fala porque
você tá assim.
O moreno soltou um breve suspiro e ficou em silêncio por
alguns instantes, como se estivesse buscando as palavras certas,
até que...
— Tô preocupado com esse último ano de colégio.
Ah, então, era isso?
— Irmão, essa preocupação é normal, todo mundo fica
assim. Eu fico assim. Mas no final sempre dá tudo certo — respondi.
— Harvard não vai me aceitar — tornou a falar, enquanto
passava as mãos nos rosto. Realmente parecia preocupado. — Não
sou tão bom quanto você. Não sou tão inteligente quanto você. Não
tiro notas boas como você. Não tenho um bom comportamento
escolar como você. Eu não vou conseguir mudar para me parecer
com você, como as pessoas querem. E você ainda tá no time, pra
completar. Os olheiros com certeza vão te querer. Eles não vão nem
reparar em mim. Eu não vou ganhar bolsa.
Droga. Talvez as comparações que as pessoas faziam entre
nós já estivessem contaminando bastante a mente do Liam. E isso
não era bom. Não era bom mesmo. Ele não deveria se rebaixar
tanto assim. Eu tinha certeza absoluta de que ele poderia ser tão
bom quanto qualquer pessoa.
— Liam, não queira se comparar a mim — complacente,
repliquei. — Já bastam as pessoas que fazem isso. Seja apenas
você. Você vai conseguir passar em uma universidade por si próprio
e não porque teve que mudar para se parecer comigo. Acredito no
seu potencial.
Tive um vislumbre de um pequeno sorriso seu no momento
em que falei “acredito do seu potencial”, mas ele logo o abafou e
voltou a fechar o semblante.
— Só que é isso o que todo mundo quer — resmungou. —
Todos querem que eu seja você. Isso é um saco.
Suspirei. Eu entendia o lado dele, porque eu também achava
um saco esses comentários.
— Você não precisa fazer o que todo mundo quer — falei. —
Foda-se todo mundo. Você tem que fazer o que achar que é melhor
pra si.
Foi aí que ele finalmente virou o rosto pra mim e me olhou
nos olhos. Parecia perdido, sem rumo. Eu só esperava que não
fosse em relação ao seu futuro ou ao que iria fazer da vida.
— E se eu não souber o que é melhor pra mim? —
questionou, confuso. — Eu não quero Harvard.
— Não? — de automático, respondi e franzi o cenho. Fui
pego de surpresa, já que eu tinha perdido as contas de quantas
vezes o Liam se gabava por falar que queria estudar em Harvard.
— Não — balançou a cabeça negativamente. — Eu quero
qualquer universidade que me aceite. Se alguma me aceitar, eu já
fico satisfeito, porque eu não sei se tenho capacidade de ser
aprovado nem na pior delas. Eu digo que quero Harvard só para
impressionar meus pais.
— Ah, Liam... — dei um breve suspiro, agora entendendo
realmente sua situação. — Você não tem que fazer nada para
impressionar os outros, nem tentar ser outra pessoa. Você só
precisa fazer o que te faz bem.
O moreno, no entanto, desviou novamente o olhar do meu,
mirando em algum ponto qualquer da sala. Distante, e eu diria que
triste também.
— Talvez eu nem mesmo consiga fazer o que me faz bem.
— Por que não? — confuso, perguntei.
— Porque eu já estou bastante fodido — respondeu mesmo
parecendo não querer admitir isso para mim. — Não sei se ainda dá
para recuperar o tempo perdido. O ano acaba daqui a pouco. Não
sei se vou conseguir recuperar minhas notas. Talvez nem a pior
universidade me aceite.
Ah meu Deus, o cara estava tão perdido em um mar de
pensamentos negativos, que, mesmo que nós nunca tivéssemos
construído uma amizade ou mesmo que ele sempre tivesse agido
comigo como um verdadeiro babaca, eu me senti sensibilizado pela
sua situação. Não, não era pena. Eu só estava com vontade de
fazer algo.
— Liam, cara, você quer ajuda? — soltei de repente, sem
nem medir minhas palavras. — Eu posso te ajudar.
Foi aí que, após eu me calar, de maneira também repentina,
eu também acabei me lembrando de um episódio, quando nós
tínhamos uns dez anos de idade. Fui passar o final de semana na
casa da tia Claire, para brincar com a Molly, e acordei ouvindo uma
confusão entre meus padrinhos e o Liam, por causa de um F que
ele tirou em matemática.

...

“Você deveria seguir o exemplo do Eric, Liam! O Eric com


certeza terá um futuro brilhante, porque é estudioso e inteligente.
Mas, e você, Liam? Vai ser o quê...?”. Eric? Quem estava falando?
Ouvi meu nome sendo falado, na verdade gritado, lá do andar de
baixo. Quer dizer, não estava ouvindo somente o meu nome. Eu
estava ouvindo uma confusão. Parecia que o tio Liam estava
brigando com o Patolino.
Abri os olhos, ainda escutando a briga que acontecia, e virei
meu rosto em direção à cama do Liam. Vazia. Então, a confusão era
com ele mesmo, embora eu não estivesse ouvindo a sua voz. Me
sentei e vi o videogame ligado. Ele estava jogando? Não ouvi. Devia
ter acordado cedo para que eu não pedisse para jogar com ele.
Tática conhecida. Eu só queria brincar, mas ele nunca brincava
comigo.
Levantei-me da cama, quando, de repente, escutei meu
padrinho gritando ainda mais alto “Liam! Onde você pensa que vai?!
Você está de castigo!”. De automático, senti meu corpo em alerta.
Uma pura curiosidade. Liam saiu de casa? Para onde ele tinha ido?
Rapidamente me levantei da cama e fui até a janela. Tirei as
cortinas do meio e abri. Me inclinei um pouco e vi Liam sentado e
chorando no parquinho do jardim de casa.
Ele podia ser um chato, mas eu não gostava de vê-lo chorar.
Precisava fazer alguma coisa, precisava ir até lá. Talvez eu pudesse
ajudar, talvez ele não fosse chato comigo dessa vez.
De pronto, tirei o pijama, escovei os dentes e vesti uma
roupa. Desci as escadas de fininho, para que meus padrinhos não
me vissem, e abri a porta da sala. Tive sorte por eles estarem na
cozinha. Então, não me viram.
Pulei para fora e andei em direção ao parquinho do jardim.
Não demorei muito até avistar Liam. Ele estava encolhido e de
cabeça baixa, mas, mesmo assim, eu ainda conseguia perceber que
ele continuava chorando.
— Liam... — me aproximei com jeitinho. — Não chora...
— Eu não tô chorando — resmungou, arredio e durão como
sempre. Passou as mãos no rosto bruscamente, para que eu não o
percebesse enxugando o rosto, mas, mesmo assim, ainda consegui
ver as lágrimas descendo.
Sentei ao seu lado, mas ele, claro, se afastou alguns
centímetros. Nesse momento, vi seu joelho machucado. Meu
coração acelerou com ainda mais preocupação.
— Seu joelho tá sangrando... — arqueei as sobrancelhas.
Lançou um breve olhar em direção ao ferimento e deu de
ombros. Sempre tão durão.
— Deixa pra lá.
Foi tudo o que respondeu. Voltando a baixar a cabeça, ficou
em silêncio. Eu, no entanto, continuava preocupado e curioso.
Queria entender o que estava acontecendo e o motivo daquela
confusão que me fez acordar.
— Você tá chorando por causa do joelho ou por causa da
briga? — perguntei.
— Não é da sua conta — arisco como sempre, de pronto, ele
respondeu e fechou ainda mais o semblante. Era difícil conseguir
alguma abertura com o Liam.
— Pode me contar, não vou rir você — com jeitinho, falei.
Alguns instantes de silêncio se passaram, como se ele
estivesse avaliando o que eu havia acabado de dizer. Vi, no entanto,
quando ele, de repente, levantou o rosto e me encarou. Seu olhar
impetuoso, mas, ao mesmo tempo, tão triste.
— Tirei um F em matemática, mas você não sabe o que é
isso, porque você é o nerd, o inteligente, o garoto que nunca tira
nota baixa, o menino que vai ser alguém quando crescer — com
desdém, ele disse e baixou a cabeça outra vez.
Suspirei. Liam tinha acabado de despejar todas as suas
amarguras e, claro, elas tinham a ver comigo, porque era o que
todos ridiculamente diziam para ele. Liam já tinha internalizado
essas bobagens. Era isso o que as pessoas sempre fizeram, desde
que nós tínhamos nascido: nos colocar um contra o outro, mesmo
sem querer.
— Você também é muito inteligente, Liam — com
sinceridade, repliquei. — Eu tenho certeza de que, se você quiser,
você consegue ser o melhor da turma — dei um pequeno sorrisinho
encorajador.
Ele, entretanto, resmungou:
— Cala a boca.
E o meu sorriso desapareceu. A preocupação voltou. Passei
um tempinho pensando no que fazer. Queria tanto vê-lo bem. Por
mais que a gente não fosse amigos, eu odiava quando ele estava
chorando. Foi aí que, repentinamente, uma ideia me veio à cabeça.
Minha animação voltou de automático e eu, todo empolgado, virei
para ele.
— Você quer que eu te ajude?! — sorri largo. — Posso te
ensinar matemática! Você vai ver como é fácil. E vai ser tão legal!
Eu tenho vários...
— Eu quero que você saia daqui, Pateta — interrompeu-me
antes que eu pudesse concluir a frase.
Meu olhar vidrou nele.
— Mas... — Rapidamente a empolgação esmoreceu. — Eu
vou adorar te ajudar, Liam — Fui tão sincero.
— Só sai daqui — e virou-se, me dando as costas.

...

Seria um verdadeiro milagre se o Liam aceitasse minha ajuda


agora.
— Me ajudar? — questionou quase como se estivesse
testando a pronúncia das palavras.
— É, Liam, eu posso te ajudar. Você faz química e física
comigo. Posso te ensinar essas duas disciplinas, irmão. Isso não vai
ser um problema pra mim. O que você acha? — sugeri, quase com
expectativa. Eu não era mais nenhuma criança querendo um
amiguinho, mas, ainda assim, sentia alguma ansiedade por sua
resposta.
Vi quando ele ergueu um pouco a cabeça para cima, como se
estivesse pensando na possibilidade. O silêncio reinou por alguns
instantes. Se ele aceitasse, seria o dia mais louco da minha vida.
— E aí, cara, posso te ajudar? — passei inconscientemente a
mão no seu braço.
Entretanto, algo estranho aconteceu. No momento em que
me dei conta do que tinha feito, senti-o estremecer sob o meu toque.
O que foi isso? Ele tomou um susto ou algo do tipo? Vi quando ele
olhou para minha mão, piscou algumas vezes e franziu um pouco o
cenho.
— Não precisa me ajudar — resmungou e se afastou,
fazendo com que minha mão saísse de cima do seu braço.
— Tem certeza, irmão? — perguntei, dando-lhe a chance de
voltar na decisão. Eu ainda estava disponível para ele. — Pra mim,
não vai ser problema algum te ajudar.
Ainda olhando de um jeito bem esquisito para a minha mão,
embora ela já não estivesse mais em seu braço, ele fechou o
semblante e disse:
— Tenho. E nós não somos irmãos. Pode ir. A conversa já
acabou.
Droga.
— Li... — ainda tentei falar.
Porém, ele me impediu outra vez:
— A conversa já acabou.
Sai daqui!

Liam

Novo dia. Nova manhã. Novas oportunidades. Eu não sabia o


porquê, mas estava sentindo que aquele dia seria incrivelmente
bom. Eu tinha quase certeza! Afinal, pensamentos positivos sempre
atraíam coisas positivas. Não era esse o ditado?
No dia anterior, eu havia tido um pequeno momento de
fraqueza, quando decidi conversar com o idiota do Pateta. Zeus,
como eu fui me abrir daquele jeito com o Eric? Eu só podia estar em
um momento de fraqueza muito grande mesmo!
Ao menos, ele saiu quando eu disse que a conversa já tinha
acabado. Depois de tudo, avaliei a besteira que eu tinha feito ao
pedir para que ele ficasse e conversasse comigo. Que cabeça de
vento a minha! Um momento de fraqueza da minha parte, claro.
Isso ia se repetir? Não, claro que não ia se repetir. Eu só
estava meio... Preocupado. Sim, preocupado com tudo o que vinha
acontecendo comigo. Aquela pressão do colégio estava me
deixando louco. O Pateta até que tinha um papo legal, mas, uma
conversinha assim entre nós, jamais aconteceria novamente.
Entretanto, isso não tinha que vir ao caso agora. Já era
passado. Como eu disse, tinha certeza que aquele dia seria bom!
Exceto pelo fato de que seria o primeiro treino com o Eric no time.
Mas, de resto, o dia seria ótimo! Robert e William não iriam faltar,
Stefany tinha voltado a falar comigo e toda aquela galinhagem das
pessoas para o lado do Eric iria passar.
É claro que iria passar. Naquele mesmo dia eu já voltaria a
ser o centro das atenções daquele colégio. A galera só atrás dele
porque era uma novidade. Aquelas pessoas eram tão previsíveis
quanto crianças que nunca pisaram em parque de diversões e
queriam muito brincar. Depois que deixasse de ser novidade, tudo
voltaria ao normal.
Inclusive, aquele dia já tinha começado com o pé direito
somente pelo fato da minha irmã ter ficado em casa. Ou seja, pelo
menos por um dia, Molly e Eric não ficariam se esfregando no meio
do colégio. Minha irmã deveria criar vergonha na cara. Onde já se
viu uma garota como ela namorar com um cara como o Eric?
Sabe aquele ditado “se melhorar demais estraga”?
Pois é, Eric tinha tantas qualidades que estragou. Ou seja,
não era homem para minha irmã.
Mas, enfim, por ora, o que importava era que ela não iria para
o colégio e que estava sã e salva da boca dele por algum tempo.
Aquela boca nojenta dele... Boca de quem já beijou meio mundo.
Tudo bem que eu também já tinha beijado meio mundo. Só que... A
boca dele era nojenta. Muito nojenta. Diferente da minha, que era
maravilhosa.
A boca dele era tipo pequena e fina, talvez nem fosse boa de
beijar. Ou talvez... É... Talvez até fosse boa, porque daí não parecia
que ele estava querendo engolir a pessoa no momento do beijo, já
que a boca era pequena e... Espera aí! Eu estava realmente
imaginando a boca e beijo daquele imbecil? Não, cara. Não. Eu
devia estar com sérios, seríssimos, problemas mentais.
Era melhor eu estacionar logo o carro e ir para o treino, antes
que os meus pensamentos me traíssem novamente.
Assim, fazendo o melhor que eu podia, estacionei o carro em
uma das vagas do colégio e saí em direção ao corredor principal.
Enquanto caminhava, as pessoas se aproximavam para me
cumprimentar. Nada de novo sob o sol. Era mais que claro que a
galinhagem toda para o lado do Eric era somente pelo fato dele ser
novidade. Ali estava a prova de que eu estava voltando a ser o
centro das atenções.
Esse era o meu reino e não deixaria o Eric tirá-lo de mim.
Caminhei mais alguns metros e adentrei no corredor. Não
demorei muito até avistar meus amigos Robert e William. Graças a
Zeus, esses idiotas não faltaram. Aproximei-me deles e...
— E aí, seus putos. — cumprimentei-os com toques de mão.
— Que cara é essa? — William questionou, sorrindo.
— Cara de quem quer dar uma boa surra em vocês —
respondi de pronto.
— Por que, irmão? — rindo, Robert perguntou
— Acho melhor guardar essa raiva. A gente precisa ir pro
treino agora. — me arrastando pelo braço, William replicou.
Voltamos a caminhar pelo corredor.
— Por que vocês faltaram ontem? - E me deixaram sozinhos
na merda desse colégio! — Omiti essa última parte da frase, claro.
— Por acaso, deram o rabo a noite toda e não conseguiram levantar
da cama?
— Me respeita, gay — dando um soquinho no meu ombro,
Robert falou.
— Felizmente, não somos você, que fica sendo secado pelos
gays do colégio — rindo, William olhou para o lado. — Tá vendo não
aquele nerd gayzinho e solitário que fica o tempo todo olhando pra
ti?
Olhando na mesma direção, mirei no garoto que eles
caçoavam. Mas, porra, pior que era tudo verdade. O garoto
realmente olhava para mim o tempo inteiro. Eu, claro, nunca gostei
essa ideia e até me irritava bastante com isso. Porém, eu
extravasava a raiva curtindo com a cara dele, porque sabia que ele
era tímido e que qualquer coisa o faria ter vontade de afundar a
cabeça em algum buraco.
Ele era só mais um dos fracassados daquele colégio.
— Porra, cara... — soltei uma pequena risada de desdém.
— Ele é apaixonado por ti, Liam. Certeza que é — Robert
brincou.
— Vai fazer nada não? — com sarcasmo, William perguntou.
— Ah, vou sim — com um sorriso irônico, desviei o caminho
que eu estava fazendo no corredor, para passar justamente bem
próximo a ele. Podia sentir sua respiração travar, quando me viu se
aproximar. Robert e William me acompanharam. — Bom dia, meu
amor — Sorri para ele, pisquei um olho e continuei andando.
O garoto se encolheu todo, enquanto meus amigos caíram
em uma risada alta e incontrolável. Isso fez com que o menino
ficasse ainda mais encabulado. O problema era que essa timidez
dele não ajudava em nada. Só nos fazia rir ainda mais. Eu ainda
quis sentir um traço de pena, mas logo desencanei disso e continuei
rindo.
— Cuidado com essas brincadeiras, Liam — se recuperando
das risadas, Robert falou, quando já estávamos quase entrando no
campo de futebol para o treino. — Senão, ele pode pensar que é
verdade e se declarar pra ti igual ao Luke.
Caramba... Luke? Há quantos mil anos eu não pensava no
Luke?

...

25 de novembro, véspera do meu aniversário de dezesseis


anos. Eu ia curtir com a galera naquele dia, porque minha mãe tinha
inventado de preparar uma festa de aniversário para mim no dia
seguinte. Então, aquele era o dia de curtir com meus amigos e o dia
seguinte era a (que saco) festa de aniversário com a minha família.
Luke, Robert, William e o resto do pessoal já deviam estar
chegando. Íamos para uma casa noturna em Londres, por mais que
fossemos menores de idade. Isso não importava, a gente sempre
conseguia entrar com identidades falsas ou ajuda de amigos mais
velhos.
Quando estava quase terminando de calçar meu coturno,
ouvi batidas na porta do meu quarto.
— Entra.
Era minha mãe.
— Querido, seu amigo Luke está aqui.
— Só ele que veio? — franzi o cenho.
— Sim, só ele está aqui.
Balancei um sim com a cabeça, mesmo achando estranho.
Era para os outros estarem ali também.
— Deixa ele entrar, mãe. Já estou terminando de me arrumar.
Poucos segundos depois de mamãe sair, Luke entrou em
meu quarto.
— E aí, irmão — cumprimentei-o com um toque de mãos. —
Cadê os outros?
— Não sei — mordeu o lábio de leve. Parecia um pouco
tenso. Estava estranho. Eu o conhecia o suficiente para saber que
ele estava estranho. — Devem estar chegando.
— Hum — tentei pensar que era só impressão minha. —
Senta aí — apontei para minha cama e cuidei em terminar de
amarrar meus cadarços.
— Cara... — meio sem jeito, ele falou. Agora, não era mais
impressão minha. Luke estava mesmo estranho. — Na verdade...
Eu cheguei mais cedo que os outros porque quero falar um lance
contigo.
— Que lance? — questionei.
— A gente pode ir para o jardim? Te conto lá.
No mesmo instante, minha cabeça já criou uma série de
teorias. Luke não costumava me chamar para conversar desse jeito,
e, quando chamava, era porque alguma merda tinha acontecido. Eu
já estava pensando nas hipóteses e não eram boas.
— Ah não, cara... — balancei a cara em negativo. — Ah não!
Já sei porque você tá assim! Você ficou com a Stefany! Você ficou
com a gostosa da Stefany! Ela é minha! Como que você faz isso
comigo? — com exasperação, passei as mãos no rosto.
— Calma, calma... — arregalando um pouco os olhos, Luke
levantou as mãos, tentando se explicar. — Não é isso. É outra coisa.
Automaticamente, parei. Mesmo ainda ofegante, me
controlei.
— Outra coisa? — franzi o cenho, confuso. — Então, o que
é?
— Podemos ir para o jardim?
Suspirei, quase sem paciência. Luke, definitivamente, estava
muito estranho. Ele tinha aprontado alguma, com certeza absoluta,
e estava com medo de me dizer. Eu só não fazia ideia do que era.
Mesmo com certa desconfiança, acabei aceitando.
— Beleza. Vou só pegar minha jaqueta.
Descemos as escadas e não demoramos muito até chegar ao
bendito jardim. De fato, eu não tinha noção do que ele queria falar
ali que não podia ser dito no meu quarto. Talvez tivesse engravidado
alguma menina, no mínimo, e não queria que meus pais ouvissem a
polêmica.
— Fala logo — impaciente, disse, ao sentarmos em um dos
bancos.
— Liam... — meio sem jeito e sem me olhar, suspirou. —
Cara...
Pelo amor de Zeus...
— Fala! Deixa de besteira e fala logo — exigi.
Paciência, certamente, era uma qualidade que eu nunca tive.
E, olha, eu tinha muitas qualidades, mas, infelizmente, paciência
não era uma delas.
Luke passou as mãos no rosto, como se tentasse tomar
coragem, suspirou e virou o rosto para mim, olhando-me nos olhos.
— Estão acontecendo umas coisas comigo...
— Coisas? — confuso, enruguei a testa mais uma vez. —
Que coisas?
O moleque tinha mesmo engravidado uma menina e estava
com medo de me dizer? Ele tinha que ter medo de dizer para o pai
dela, não para mim. Estava começando a acreditar que, de fato,
fosse isso.
— É... Eu... E-Eu... — gaguejou, mas logo respirou fundo,
para tentar se recompor. A coisa devia ser séria mesmo, para o cara
estar assim. — Eu... Eu ando beijando garotos.
Be... Be-Beijando... Garotos?!
A frase se repetiu em um looping quase eterno, e de maneira
confusa, na minha cabeça. Era como se eu não conhecesse
nenhuma dessas palavras no meu vocabulário, ou como se eu me
recusasse a entender.
— O quê?! — arregalei os olhos. Coração acelerado. — Você
anda beijando... Garotos?! — boquiaberto, perguntei. Era como se
eu precisasse de uma confirmação, pois a primeira informação
ainda estava embaralhada para mim.
— Sim... — fechando os olhos e colocando as mãos no rosto,
respondeu encabulado. — Mas não é só isso...
— Não é só isso?! — arqueei ainda mais as sobrancelhas.
Não podia ter mais do que isso. Já era informação demais para a
minha cabeça. — Não venha me dizer que, além de beijar, você
também está... Está... Transan... Ah meu Deus!
— Nã-Não é exatamente isso... — gaguejando outra vez, ele
replicou.
— Então, o que é, porra? — questionei, mesmo sem ter
certeza se eu realmente queria saber mais alguma coisa sobre isso.
Era muita informação para uma noite só. Logo na comemoração do
meu aniversário!
— Beijar garotos me fez confirmar uma coisa...
— Que você gosta de garotas, não é?! — de automático,
questionei em um tom de voz que quase o exigia a responder que
sim. Era a única resposta plausível para aquele completo absurdo.
Ele estremeceu, mas, mesmo assim continuou.
— Não... — Balançou a cabeça em negativo e engoliu a
seco. Meu coração, de automático, apertou. Não viria coisa boa por
aí. — Me fez confirmar que eu gosto de um garoto em específico.
— Ah meu Deus! — coloquei as mãos no rosto, esfregando-
o. Não sabia se queria continuar ouvindo ou se seria melhor correr
para bem longe dali.
Eu tinha um amigo gay?! Como assim? O Luke nunca me
pareceu ser gay. Nunquinha! Ele ficava com tantas garotas quanto
eu e tinha maior jeito de homem. Eu nunca poderia imaginar que
esse diálogo fosse acontecer um dia.
— Eu gosto de você, Liam.
Oi? Oi?!
Instantaneamente tirei as mãos do rosto e, pasmo, encarei-o.
Eu podia não ter ouvido direito.
— Gosta de mim? — perguntei quase em um sussurro.
— Sim... — um pequeno sorriso de esperança surgiu em seu
rosto, em meio aos olhos marejados. Levou cautelosamente uma
das mãos ao meu rosto e acariciou. Eu estava inerte demais para
me dar conta do grau de homossexualidade desse carinho.
— Ma-Mas... — gaguejando, tentei entender. — Vo-Você
gosta como amigo ou tipo pra bei... bei... — me sentia tão em
choque que fui incapaz de completar a frase. Só pedia aos céus que
não fosse a segunda opção.
— Os dois... — ainda com traço de esperança em seu rosto,
ele respondeu. — Como amigo e para beijar.
Ah meu Zeus! O meu mundo foi abaixo em questão de
segundos.
Isso... Isso não estava certo! Não estava nem um pouco
certo! O Luke era homem. Eu era homem. Homens ficavam com
mulheres. Homens namoravam mulheres. Homens se casavam com
mulheres. Homens deveriam ficar com mulheres!
Em um piscar de olhos, me levantei do banco.
— Sai daqui — com frieza, falei.
Seu sorriso, juntamente com o filete de esperança,
desapareceu na mesma velocidade que eu me afastei dele.
— Você... Você quer que eu vá embora? Está me
expulsando? — dessa vez, era ele quem estava pasmo.
— Não só quero como também exijo. Sai daqui!
— Mas... — Luke parecia desnorteado. — Nós somos
melhores amigos! Eu não esperava que você fosse querer algo
comigo, mas eu esperava que você fosse, pelo menos, me
entender.
Esperou errado. Errado!
— Eu não sou amigo de gay! — disparei. — Sai daqui. Agora!
— apontei para a rua.
— Liam...
— Eu já disse para cair fora! — falei antes que ele pudesse
continuar.
— Li... — ainda tentou falar.
— Vai embora! — Mas eu não deixei.
Com lágrimas nos olhos e sem me dar mais palavra alguma,
Luke se levantou do banco e seguiu em direção à rua.

...
Desde então, eu não o vi mais. Há dois anos, eu não o via.
Paramos de nos falar, ele saiu do Colégio Regent e foi morar em
outra cidade da Inglaterra, por causa de uma proposta de emprego
do pai dele.
— Ei, Liam! Acorda! — senti William me chacoalhar,
enquanto ainda caminhávamos rumo ao campo de futebol, para o
treino.
— É só falar no Luke que o Liam já sonha acordado! — rindo,
Robert replicou com sarcasmo.
Balancei a cabeça em negativo.
— Nem brinca com isso, porra.
— Vocês nunca mais se falaram? — William perguntou.
— Claro que não — dei de ombros e olhei de relance para o
campo. — Não sou amigo de ga...
Interrompi a mim mesmo quando notei que Eric estava no
campo, brincando com a bola e se divertindo com alguns caras do
time. Fazia vários malabarismos com a bola, enquanto os outros o
acompanhavam. Estava tão... Leve... Descolado... Ele mandava
bem... Ele... Atra... Atraen...
— Liam... Você tá muito estranho hoje... Tá sonhando
acordado o tempo todo — de longe, ouvi a voz do William, como se
eu estivesse entrando mesmo em um sonho.
Eu sabia que meu amigo estava bem perto de mim. Porém,
eu estava... Abismado... Ou... Merda, como o Eric era bom com
essa bola! Eu também sabia fazer esses passes com a bola, mas o
Eric... O Eric parecia ter um dom... Ele parecia tão... Bonito.
— Liam! Acordo! Olha a bola! — de repente, ouvi o grito do
Robert.
Foi a dor que me trouxe de volta para a realidade.
Merda! Porra! A bola atingiu em cheio o meu saco!
— Cacete! — coloquei as mãos bem em cima dos meus
países baixos e pressionei, tentando amenizar o impacto. Porém,
era mais forte do que eu, caí no chão sem equilíbrio. — Que dor no
meu ovo!
Brincando com fogo

Liam

Era a maior certeza da minha vida: eu tinha ficado estéril!


Ainda permanecia caído no chão do gramado, de olhos
fechados e segurando o meu saco com toda força, na tentativa de
que a dor aliviasse de alguma forma. Tudo parecia meio turvo. Ouvi,
com certa dificuldade, as vozes dos caras dizendo coisas como
“porra, Liam, isso doeu em mim” e “vou pedir gelo pra colocar aí”.
Eu não ligava para nada, não prestava atenção em nada.
Tudo o que eu sentia era uma dor incrivelmente grande. Porém...
— Liam, cara... — ouvi Eric aparentemente preocupado. —
Desculpa. Sério. Eu não vi que você estava aqui.
Ah não viu?
Apesar da imensa dor que eu estava sentindo e de não
conseguir prestar atenção em nada, além do meu saco dolorido, a
única coisa que me fazia suplantar meu estado de completa
rendição era a raiva que eu sentia do Eric, principalmente agora, e o
nojo da voz cinicamente preocupada.
Tinha que ser ele. Tinha que ser aquele imbecil para chutar
uma bola de qualquer jeito e acertar o meu saco! Ele precisava ser
tão lesado ao ponto de não olhar para onde estava chutando a
bola? Tudo bem que eu tive um pequeno lapso mental ao entrar no
campo e vê-lo fazer aqueles dribles idiotas, mas... Droga! Ele tinha
que ser tão lerdo assim?
Juntando toda a raiva que sempre senti do Eric, com o ódio
daquele quase atentado terrorista à minha vida e o nojo daquela voz
irritante, cuspi todas as palavras com voracidade, mesmo ainda no
chão e de olhos fechados:
— Sai daqui, seu imbecil lesado!
Ele, no entanto, pareceu não se importar com minha fúria.
— Vem... — segurando meu braço, falou. — Deixa eu te
ajudar.
Sabe quando um só toque é o suficiente para que a
indignação se torne tão grande a ponto de esquecer a dor? Pois
bem.
Foi exatamente isso o que aconteceu. Sentir a mão dele
segurar o meu braço e tentar me levantar, foi o suficiente para que a
minha raiva se elevasse à potência máxima. Levantei-me de
supetão, ignorando a dor, e praticamente avancei em cima dele.
— Eu não quero a sua ajuda! — empurrei-o com as duas
mãos, fazendo-o se desequilibrar um pouco. Eric, no entanto, não
caiu. — Sabe o que eu quero? Partir tua cara no meio. Coisa que eu
tenho vontade de fazer há muito tempo!
— Calma, cara... — erguendo um pouco as mãos, em sinal
de paz, Eric tentou me acalmar. — Eu não te vi. Juro que não tive a
intenção de machucar teu saco.
Meu saco? Ele falou “meu saco”? Tipo, se referiu ao lindo e
maravilhoso membro genital com aquela boca suja e nojenta? Não,
não. O saco era muito perfeito para ser mencionado assim pela
boca de um “zé ninguém”.
Quando me dei conta disso, a raiva se manifestou de maneira
ainda mais forte dentro de mim. E, como um raio, minha mente
trouxe à tona todas as fodidas coisas que me faziam sentir completa
aversão ao Eric. Todas as cobranças, todas as pressões, todas as
comparações.
“Eric é mais inteligente, Eric é mais simpático, Eric vai ser
alguém na vida”.
As vozes de todas as pessoas que me diziam isso, de
repente, soaram na minha memória.
— Vai se foder! — empurrei-o novamente, dando vazão a
todo aquele sentimento negativo dentro de mim. Eric, todavia, outra
vez não caiu. Isso me deixou ainda mais possesso. Eu queria que
ele caísse. Queria que ele sentisse tanta dor quanto me fez me
sentir.
— Ei, Liam! — ouvi um dos meus amigos me chamar. — Vai
com calma, cara. Não é pra tanto. Para com isso antes que o
treinador chegue.
— Me foder? — Pouco se importando com meu ódio, a
confusão que estávamos fazendo e o risco que corríamos de irmos
para a detenção de novo, um sorriso irônico se desenhou no rosto
de Eric, poucos segundos antes dele proferir esse absurdo
questionamento em tom levemente afeminado. Típico de quem
estava querendo tirar onda. — Só se for com você.
Bufei. O ódio me consumindo. Além de tudo, esse imbecil
ainda queria curtir com a minha cara. Ele não sabia onde estava se
metendo. Eric queria brincar com fogo! E, de fato, conseguiu. Sem
pensar duas vezes, avancei nele, pegando-o de surpresa com
empurrões e socos.
— Liam! — Eric tentou se proteger dos socos, mas foi em
vão. Continuei batendo, tanto para extravasar minha raiva quanto
para atiçá-lo. Eu queria que ele revidasse. Eu queria que ele
também me batesse para que eu tivesse uma desculpa e pudesse
continuar.
Em questão de segundos, ele realmente começou a revidar.
Não aguentou por muito tempo apenas se proteger.
— Ei, vocês! — de repente, os caras do time se aproximaram
para tentar nos separar.
Tentativa em vão. Eric e eu continuamos a briga e, cara,
como era bom fazer tudo o que eu queria ter feito desde criança.
Não que nunca tivéssemos nos envolvido em outras brigas, mas já
estava com um tempinho que eu não lhe dava uns bons socos. Era
quase terapêutico para mim, por mais estranho que isso pudesse
parecer e por mais que ele também estivesse me dando socos.
Os caras do time ainda continuaram tentando nos separar,
mas, em poucos segundos, a briga findou por se tornar
generalizada. Já não era apenas Eric e eu. Agora, todos do time
estavam em um emaranhado de braços, pernas, punhos e mãos.
Uma verdadeira confusão.
— Porra, Liam! — Eric gritou. — Para! — e me empurrou tão
forte que tanto eu quanto ele acabamos nos desequilibrando e
caindo no gramado.
Continuamos nos socando no gramado mesmo, por um longo
minuto, até que eu, enfim, notei a posição que nos encontrávamos.
Eu estava deitado com as costas na grama, enquanto Eric se
mantinha “montado” sobre mim, com uma perna de cada lado. Foi
nesse ponto que eu percebi que ele estava sentado exatamente em
cima do meu... Do meu... De repente, senti minha virilha formigar.
Ah não... Ah não! Isso de novo não!
Instantaneamente, parei de socá-lo e encarei-o com cenho
bem franzido, tentando entender que diabos estava acontecendo
comigo afinal. Eric também parou de me atingir com seu punho e
me retribuiu o mesmo semblante. Observamo-nos por alguns
ligeiros segundos. Percebi seu olhar passear pelo meu corpo
deitado, ao mesmo tempo que o meu passeava pelo dele.
— S-Se... — gaguejei mesmo que sem querer, mas logo
pigarrei a garganta, tentando falar grosso. Em nada parecia com o
Liam de poucos segundos que estava furioso. Esse negócio
estranho me desmontava por completo. — Se não se importa... —
acenei brevemente com o queixo, para que ele se afastasse. — Sai
de cima de mim.
Talvez Eric também tivesse percebido algo incomum, pois
notei ele engolir a seco. Vi quando passou uma das pernas para o
lado e saiu de cima de mim, sentando no gramado. Também me
sentei e olhei para os caras do time. Eles haviam parado a confusão
no mesmo momento que Eric e eu.
— Será que as mocinhas pararam de brigar? — virei o rosto
na mesma direção que ouvi a voz. Era o técnico se aproximando.
Droga. — Ou eu vou ter que mandar todo mundo aqui para a
detenção?
Detenção? Não! Minha cota de detenção, para aquele ano, já
tinha sido extrapolada. Gelei. Se eu fosse novamente para a
detenção, o diretor Dawson poderia me expulsar de vez do colégio e
eu poderia dar adeus ao meu sonho do futebol na universidade.
— De-Detenção? — nervoso, perguntei. — Não, Sr. Jones,
nós estávamos apenas treinando uns golpes e tal. Nada demais.
Nenhuma situação de crise — dei a pior desculpa do universo que
eu poderia inventar.
Olhei para os caras do time e notei que eles estavam se
segurando para não rir da minha resposta. Enquanto isso, Eric
estava impassível. Era bom mesmo que ele se mantivesse
caladinho e não me delatasse. Já bastava tudo o que ele tinha me
feito passar.
— Treinando golpes? — erguendo uma sobrancelha, o
técnico questionou, visivelmente desconfiado. — Pensei que vocês
fossem jogadores de futebol e não lutadores de MMA.
— É, treinador, mas os golpes já acabaram — com o
semblante sério e bem diferente dos demais que estavam se
segurando para rir, Eric levantou-se. — Podemos começar o treino
de futebol agora.
— Acho bom — tão sério quanto Eric, Sr. Jones respondeu.
— Todo mundo pra sala da concentração — apontou com o dedo. —
Agora.
Levantei-me do gramado e segui para a concentração. Vi
quando Eric passou por mim. Estava massageando seus
machucados no rosto. Isso foi o suficiente para que meu coração
apertasse de preocupação: será que meu magnífico rosto também
tinha ficado machucado?
Óbvio que eu não estava preocupado com o Eric. Estava
preocupado comigo.
Parei em frente a uma das vidraças do colégio e observei
meu lindo reflexo. O cabelo estava bagunçado, de fato, mas isso eu
conseguia ajeitar facilmente e... Merda! Próximo à sobrancelha
estava sangrando um pouco. Aquele imbecil tinha machucado meu
rosto perfeito.
— Teu nariz tá torto aqui, capitão — ouvi Robert falar próximo
a mim.
— Torto? — arregalei os olhos. — Onde?! — Bolinhas de
suor surgiram na minha testa enquanto eu buscava meu nariz no
reflexo.
— Aqui — rindo, Robert deu um soquinho de leve na minha
bochecha. — Eu tô brincando.
— Ah, seu idiota... — resmunguei e balancei a cabeça em
negativo, enquanto entrava na sala. Meu nariz perfeito não poderia
estar torto. Se estivesse, faria questão de entortar com minhas
próprias mãos o nariz do Eric.
Boa parte do time já estava acomodado nas cadeiras,
inclusive o Pateta. O cabelo dele estava tão assanhado quanto o
meu e sua camisa tão suja quanto a minha. Mesmo assim, ele
continuava bonito.
Ah não!
Não, eu não tinha pensado isso! Não mesmo!
— Liam, por favor, se sente — Sr. Jones falou, tirando-me
dos meus devaneios.
Rapidamente, me sentei em uma das cadeiras, tentando
ignorar qualquer pensamento estranho e confuso em relação ao
Eric.
— Bom, agora que os lutadores de MMA definitivamente
acalmaram os ânimos, posso dar minhas primeiras orientações
antes do treino. É algo breve — o treinador se pronunciou. — Como
vocês sabem, estamos a poucos dias do início do campeonato de
futebol intercolegial. Teremos diversas partidas até a grande final.
Precisamos nos empenhar e treinar arduamente para vencer todos
os jogos até lá. Para os concludentes, a atenção é redobrada,
porque os olheiros das universidades estarão atentos a cada passo
de vocês. Por ora, eu quero comunicá-los que nesse sábado será a
cerimônia de abertura dos jogos. A cerimônia acontecerá na cidade
de Oxford. Então, essa será a nossa primeira viagem pelo
campeonato. Vamos no sábado pela manhã e voltaremos no
domingo à tarde. As reservas no hotel já foram feitas. O calendário
dos jogos será divulgado na cerimônia, mas quero que o empenho
de vocês no treino de hoje seja como se fôssemos jogar amanhã.
Ok?
— Ok, Sr. Jones — o time respondeu.
— Ótimo — Sr. Jones replicou. — Podem ir para o campo.
Vamos começar o treino.

❖❖❖
O treino foi bem proveitoso, tirando o fato de que, algumas
vezes, tive que fazer dupla com o Eric, a pedidos do treinador.
Parecia que ele estava fazendo isso de propósito, porque nos viu se
pegar no campo. Se pegar no sentido de brigar. Não no sentido de...
Claro. Óbvio.
Eric agiu cordialmente, como sempre. Será que o cara não
cansava de ser certinho? Só existia um momento em que ele não
agia com tanta cordialidade assim, mais especificamente quando
resolvia tirar onda com a minha. Odiava isso. Ah! E quando ele
ficava com as meninas mais gatas das festas. Também odiava isso.
Era para eu pegá-las, não ele.
Em certos momentos do treino, alguns dos seus movimentos
parecia que até significavam uma espécie de pedido de desculpas
pelo que fez. Não sabia o porquê dele ser sempre preocupadinho
em pedir desculpas por tudo. Se fez, já estava feito. Não tinha que
ficar pedindo desculpas, não tinha como reverter a situação. Por
isso, eu dificilmente pedia desculpas por alguma coisa.
— Ok, pessoal! — Sr. Jones nos chamou, após uma hora e
meia de troca de passes, chutes e jogadas ensaiadas. — O tempo
do treino está esgotado. Podem ir tomar banho. Menos você, Liam.
Acabei de receber um comunicado do diretor. Ele quer falar com
você.
O Sr. Dawson queria falar comigo?
Meu Zeus do Céu.
Eu já podia esperar o pior. Certamente, ele tinha descoberto
algo sobre a minha briga com o Eric. Certamente.
— Tudo bem, Sr. Jones — resignado, respondi e segui em
direção à sala do diretor.
A secretária do Sr. Dawson, que já me conhecia muito bem,
devido às inúmeras vezes que tive que ir até aquela sala, permitiu
minha entrada de imediato. Em poucos minutos, eu já estava cara a
cara com o velho de cabeça branca, pela milésima vez no ano.
— Bom dia, Sr. Dawson.
— Bom dia, Liam. Por favor, sente-se — Apontou para uma
das cadeiras. — Eu te chamei para tratar de um assunto importante.
Inclusive, acho que você já sabe. Liam, ontem, antes de você ir para
a detenção, nós falamos sobre algo parecido com o que vou lhe
dizer agora. Nós, que trabalhamos na gestão do colégio, estamos
fazendo uma avaliação do desempenho dos alunos, inclusive o seu.
Como jogador, você é excelente. Um exímio atleta. Não poderia ser
diferente, já que é o capitão do time. No entanto, como estudante,
você está deixando muito a desejar, Liam. Somente esse ano, você
já foi para a detenção dez vezes. Mas, principalmente, suas notas
deixam a desejar. Você não está atingindo notas satisfatórias nas
disciplinas, e você sabe que as universidades avaliam tudo. Notas,
comportamentos, atividades extracurriculares.
Ah, Zeus, essa conversa de novo?
Que eu estava ferrado, isso eu já sabia. Não precisava o
diretor ficar refrescando sempre a minha memória.
— Eu estou tendo essa conversa com todos os concludentes
que estão com baixo desempenho, dando dicas, conselhos,
sugestões — continuou. — Então, o que eu sugiro a você, de
imediato, é que tenha aulas particulares. Aulas de reforço.
Aulas de reforço?
Por acaso, eu tinha voltado a ser uma criancinha de cinco
anos?
— Como assim, Sr. Dawson? — franzi o cenho.
— Aulas de reforço, Liam — repetiu. — É um método muito
eficiente para recuperar as notas. Inclusive, vou entrar em contato
com seus pais para falar sobre isso.
O quê?!
Ele ia envolver meus pais nisso?
— Não, Sr. Dawson... Co-Como assim? — continuei com a
testa enrugada, já me sentindo levemente nervoso com esses
planos absurdos do diretor. — Vai entrar em contato com meus pais
pra quê?
— Eles precisam ter conhecimento da sua situação, Liam.
Preciso conversar com eles sobre as aulas de reforço.
Como se meus pais não soubessem que têm um filho burro!
Pelo amor de todos os deuses existentes.
— Sr. Dawson — soltei uma pequena risadinha de nervoso.
— Olha, isso não é necessário. Pode deixar que eu mesmo falo com
eles.
Claro que meus pais sabiam que tinham um filho burro e
muito ferrado. Eles só não precisavam saber o quanto eu estava
ferrado. Isso tornaria minha vida um inferno maior ainda, e eu não
estava preparado para perder o pouco da paz que eu ainda tinha.
— Liam, esse é o meu trabalho — incisivo, replicou. — Além
do mais, você não é a pessoa mais indicada para eu confiar essa
tarefa — soltou uma pequena risadinha. — Mas, fique tranquilo. Isso
é para o seu bem. Pense que, se fizer tudo corretamente, logo
estará na universidade.
Porém, se ele contar tudo ao meus pais, meu caminho até a
universidade será muito mais doloroso do que já seria.
— Mas, Sr. Dawson — quase choraminguei como uma
criança, tentando convencê-lo a não seguir em frente com a ideia.
Ele, no entanto, me interrompeu.
— Liam, pode ir para o vestiário, tomar banho e assistir aula.
Isso era tudo o que eu tinha para conversar — com certa
austeridade, falou. Estava determinado a tirar totalmente a minha
paz de espírito.
— Sr. Dawson... — ainda tentei mais uma vez.
— Liam... — Praticamente me repreendeu apenas com o tom
de voz. Levantou-se e abriu a porta. — Nos falamos depois.
Me expulsou!
Merda. Ele realmente estava me expulsando daquela sala
sem me dar nem o direito de falar mais alguma coisa, para tentar
reverter a situação. Meus pais teriam a real consciência da minha
situação e eu já poderia me considerar muito mais ferrado. Dei um
suspiro de derrota e cruzei a porta.
— Boa aula, Liam — disse.
Boa? Que boa?
O que tinha de bom naquela porcaria?
— Valeu.
Caminhei em direção ao vestiário, ainda pensando no quanto
estava ferrado, e, quando cruzei a porta do local, vi Eric saindo.
Banhado, vestido e... Cheiroso.
Quer dizer...
Não, cheiroso não. Claro que não. Podre. Estava saindo
podre de lá.
Não me dei nem ao trabalho de olhar para sua cara. Entrei
logo no vestiário, como se ele e nada fossem a mesma coisa. Aliás,
era isso mesmo. Eric era insignificante para mim.
Logo percebi que a maioria dos caras ainda estava no banho,
ou melhor, enrolando para matar um pouco da aula. Constatei que
Eric tinha que ser certinho, até mesmo, na hora do banho. Com
certeza, ele tomou banho mais rápido que todo mundo só para sair
correndo para a aula. Pelo menos, não precisei dar de cara com ele
pelado, dentro do banho coletivo.
Seria a visão do inferno, certamente.
Talvez esse jeito certinho dele tivesse suas vantagens.
Tirei o uniforme do time e fui para debaixo do chuveiro. Após
alguns minutos limpando meu magnífico corpo, terminei o banho e
me vesti. Encarei-me no espelho. Barba feita, cabelo no estilo, até
que o corte próximo à sobrancelha não estava tão feio, e... Bom, eu
era lindo. Ficava impressionado comigo mesmo. Impressionado com
a minha capacidade de ter nascido só uma vez e, mesmo assim,
nascer tão bonito.
Pisquei para mim no espelho, peguei minha mochila e fui
para aula. Quando entrei na sala, o professor já tinha começado a
aula. Eric estava sentado em uma das primeiras carteiras do lado
direito, prestando tanta atenção, que quase nem piscava. Segui
para a outra ponta e me sentei do lado esquerdo da sala.
— Meus caros... — o professor se pronunciou. — Conforme
eu avisei no fim da aula passada, hoje teremos um teste surpresa,
valendo um ponto na prova. É um ponto que pode ajudar aqueles
que estão com notas baixas. Então, se esforcem!
Que droga!
Eu tinha me esquecido totalmente de que naquele dia
aconteceria esse bendito teste. Eu não tinha estudado porcaria
nenhuma e não sabia como iria conseguir responder às questões. A
física nunca quis fazer amizade comigo.
— Guardem todo o material — orientou. — Em cima das
carteiras devem estar apenas lápis, caneta e borracha.
Por Zeus, que uma luz divina caísse sobre a minha cabeça
na hora de responder!
Era tudo o que eu pedia.
Logo o professor começou a distribuir os testes. Não
demorou muito até chegar a minha vez. Respirei fundo, rezando
para todos os deuses, em menos de dois segundos, e comecei a ler
as questões. Pelo que vi, o teste era composto por apenas duas
questões. Duas horríveis questões.
A primeira questão. Quatro esferas condutoras iguais têm,
respectivamente, cargas elétricas Q/2, Q, 2Q e X (desconhecida).
Pondo-se todas em contato e depois separando-as, cada uma ficou
com uma carga elétrica igual a 7Q/8. Supondo que as esferas
tenham trocado cargas elétricas entre si, a carga elétrica de X, da
quarta esfera, é igual a quanto?
Apenas um pensamento habitou a minha cabeça: Eu não sei!
Estava ferrado! Completamente ferrado!
Poseidon, me dá uma mãozinha aqui!
Respirei fundo, tentando me concentrar. Em vez de ficar
nervoso, eu tinha que pensar que eu era maior do que essa prova.
Sim, eu era maior do que essa prova.
Com essa positividade, li a segunda questão. Um aluno tem
esferas idênticas, pequenas e condutoras (A, B, C e D), carregadas
com cargas respectivamente iguais a -2Q, 4Q, 3Q e 6Q. A esfera A
é colocada em contato com a esfera B e a seguir com as esferas C
e D. Ao final do processo, a esfera A estará carregada com carga
equivalente a quanto?
Não, não, não.
Toda a positividade foi por água abaixo em questão de
segundos. Eu queria me matar! Também não sabia essa! Droga! O
que eu ia fazer? Será que dava para colar? Ergui meu rosto e
percebi que o professor estava olhando diretamente para mim.
Porra. Eu já era conhecido por colar. Com certeza, ele estava de
olho por causa disso. Não tinha nem como dar, sequer, uma
olhadinha no celular.
Virei o rosto para o lado e vi alguns alunos perdidos, olhando
para o tempo, enquanto outros tentavam resolver. Logo mais à
frente, o Eric resolvia o teste de um jeito muito empenhado. Senti
inveja. Sim, eu senti, por mais que não quisesse admitir isso.
Será que dava pra fazer um transplante de cérebro?
A única coisa do Eric que eu queria era a inteligência.
Suspirei, resignado. Voltei a atenção para o meu teste,
rabisquei algumas coisas, mas nada decente saiu. Eu não
conseguia responder coisa alguma. Como se não bastasse o quanto
eu já estava ferrado nas notas e na vida, esse teste tinha chegado
para acabar com tudo de vez. Talvez eu não fosse ser ninguém
mesmo, assim como meu pai dizia quando eu era pequeno.
Ferrado

Liam

Ferrado e fodido eram os adjetivos mais adequados para descrever


a minha situação. No dia anterior, durante o teste, quando vi que
não dava para colar, tentei comover o professor com uma falsa
situação. Falei que tinha ficado doente e que, por isso, não estudei o
suficiente. Por fim, pedi para ele me dar a chance de fazer o teste
novamente.
Ele acreditou? Ele aceitou?
Lógico que não.
Rabisquei algumas coisas totalmente sem sentido e entreguei
a folha ao professor. Tudo bem que era um teste só para ponto
extra, não era uma prova mesmo, mas, minha incapacidade de
responder, apenas me mostrava o quanto eu era imprestável. Logo
eu, o cara mais bonito do colégio, o artilheiro do time, o garoto mais
popular (sim, porque Eric não tiraria o meu posto), o talento do
futebol! Logo eu!
Mas, ok, tudo bem. Era até compreensível. Eu tinha tantas
qualidades que pedir para nascer inteligente seria abusar muito da
boa vontade de quem tinha me feito.
Ninguém podia ser bom em tudo, não é?
É. Quero dizer... Ninguém podia ser bom em tudo, exceto o
Eric! Por que esse cara tinha que existir? Um raio poderia cair em
cima de sua cabeça. Não faria a menor falta. Não para mim, porque
pessoas perfeitas demais me davam tédio.
Inclusive, Eric estava logo ali, nas primeiras carteiras da sala,
conversando de maneira entusiasmada com várias pessoas,
enquanto o professor não chegava. Só de ver toda essa simpatia,
eu ficava bocejando. Robert e William também não colaboravam em
me fazer companhia. Desde que entraram na sala, estavam de
cabeça baixa, dormindo.
Enquanto isso, eu estava sentado na minha carteira, com o
coração na mão de tanto nervosismo, esperando o professor chegar
com os resultados do teste. Eu tinha plena convicção de que estava
completamente ferrado, mas, mesmo assim, ainda ficava nervoso,
porque não gostava de receber resultados. Podia ser um resultado
bom ou ruim. Eu sempre ficava nervoso.
Então, como quem leu meus pensamentos, o professor de
física cruzou a porta poucos segundos depois. Imediatamente, todos
os alunos se sentaram e pararam de conversar. Meu coração quis
saltar pela boca. Eu estava ferrado. Sim, estava. Eu sabia. Pelo
menos, ao que tudo indicava, o diretor Dawson ainda não tinha
ligado para os meus pais, porque, até agora, nem meu pai, nem
minha mãe, quiseram arrancar meu couro. Então, supus que ele
ainda não tinha ligado.
— Bom dia, pessoal! Como vocês estão? — perguntou o
professor. Mal? Péssimo? Respondi mentalmente. — Vou continuar
o assunto de cargas elétricas e eletrização por indução. No final da
aula, eu entrego a vocês o resultado do teste.
Ah não, irmão. Eu ia ter mesmo que esperar, durante uma
hora e meia, para saber o raio da minha nota? Agora meu
nervosismo já se misturava com ansiedade.

❖❖❖

Após quase duas horas de muito blábláblá, a aula,


finalmente, estava se aproximando do fim. Eu, que comumente já
não prestava atenção na aula, naquele dia, então, não tinha mesmo
ouvido nada do que aquele professor falou. Não consegui me
concentrar sabendo que, daqui a poucos minutos, iria receber o
resultado do maldito teste.
— Meus caros, estamos chegando aos minutos finais da
aula. Então, vou lhes entregar o resultado do teste. Infelizmente, de
40 alunos, nós só tivemos cinco notas máximas. O restante foi
formado por apenas notas medianas e baixas. Isso serve de alerta
para vocês estudarem mais, pessoal. As provas vão chegar e vocês
estão concluindo o colegial. Então, precisam estar atentos aos
estudos. Vou passar nas carteiras, entregando os resultados. Após
receberem, vocês estão liberados da aula.
Meu Zeus, a hora tinha chegado. Eu já sabia que estava
ferrado, mas era tão ruim a sensação de receber esse resultado!
Não queria ver. O professor, entretanto, foi passando de carteira em
carteira, distribuindo os testes corrigidos. Observei cada passo seu,
até o momento em que ele parou ao lado do Eric e lhe entregou o
resultado.
— Parabéns, Eric — consegui ouvir, mesmo estando a certa
distância. — Você acabou de chegar nesse colégio e já está
atingindo notas excelentes. Continue assim! — sorrindo para ele,
continuou a distribuir os outros testes.
Eric olhou para o seu resultado e, todo abobalhado, sorriu de
volta para o professor. Dai-me paciência, Thor! Era esse tipo de
ceninha idiota que eu tinha que presenciar, para completar meu total
fracasso. Para variar, aquele imbecil tinha tirado um A. Que
novidade!
Ao contrário do que tinha acabado de acontecer, quando o
professor colocou o teste sobre minha mesa, não me deu uma
palavra sequer. Mesmo com o coração aos pulos, olhei para o
maldito papel e... F. Merda! Eu tinha tirado um maldito F. Mais um
para minha incrível coleção, inclusive.
— Tirou quanto? Tirou quanto? — curiosos, Robert e William
perguntaram e logo avançaram sobre mim, tentando puxar o papel.
— Não interessa — resmunguei, fechando a prova
rapidamente, para que eles não pudessem ver, ao mesmo tempo
que ouvi o sinal do colégio tocar, indicando que o horário de aulas
realmente tinha acabado.
— Qual é, capitão? — franzindo o cenho, Robert questionou.
— A gente sempre mostra as notas. Eu e o William tiramos B.
Estava me sentindo tão cansado de receber tantas notas
baixas, que não tinha a menor vontade de compartilhar minha nota
com ninguém, muito menos com meus amigos. E... Droga! Eu tinha
acabado de me dar conta de que, até Robert e William, tinham
tirado notas maiores que a minha.
Assim, sem querer dar satisfação para qualquer um deles,
resmunguei, enquanto me levantava da carteira:
— Problema de vocês.
— Otário — balançando a cabeça de leve e rindo um
pouquinho, William falou.
— Ei... — apontando com o queixo em direção à porta da
sala de aula, Robert tentou chamar minha atenção outra vez. — Os
caras do time estão ali. Querem falar alguma coisa com a gente.
Estava pouco me importando.
— Vão lá. Chego já — cabisbaixo, respondi tão somente.
Robert e William saíram em direção à porta, onde boa parte
do time estava, por algum motivo que eu não fazia ideia. Comecei a
recolher meu material para ir embora. Estava enfiando, de qualquer
jeito, livro, teste e caneta dentro da mochila, quando, de repente, um
caderno apareceu bem na frente das minhas fuças.
Franzi o cenho e levantei o rosto.
O que significava isso?
Ah não, cara... Era o imbecil do Eric. O que ele estava
fazendo ali? Tentando tirar minha paz outra vez? Como se não
bastasse ter que aguentá-lo diariamente no time e na sala de aula,
ele ainda tinha que ser inconveniente o bastante para ir atrás de
mim e atazanar minha vida.
— Pra você — balançou o caderno.
Pra que diabos eu ia querer esse maldito caderno?
Sem dar uma palavra sequer, fechei o zíper da mochila e
comecei a caminhar em direção à porta. Se Eric queria arranjar
qualquer desculpa para ganhar minha atenção, ele não conseguiria.
Eu tinha mais o que fazer.
— Ei, bonequinha! — apressou o passo atrás de mim,
novamente. Era real: o demônio realmente tinha decidido brincar
com a vida. — Espera aí. — e me puxou pelo ombro, fazendo-me
parar.
— Porra! O que é, cara? — sem um pingo de paciência, virei-
me bruscamente para ele, passando as mãos no rosto em
exasperação. Se eu normalmente já não tinha muita paciência, com
o Eric eu não tinha mesmo.
— Nossa... A bonequinha ainda está de tpm? Que tpm
duradoura! — sarcasticamente, replicou.
Ele, de fato, estava disposto a tirar o pouco de sossego que
ainda me restava.
— Teu rabo — com impaciência, resmunguei. Eu não tinha
tempo para ficar ali. — Fala logo o que você quer.
— Eu já disse — respondeu simplesmente. — Quero te dar
esse caderno.
Revirei os olhos e, logo depois, o encarei com uma bela cara
de tédio. Só podia ser brincadeira.
— O que te faz pensar que eu vou querer isso?
— Bom... Você não quis aceitar as aulas, então estou te
doando a minha “bíblia” — fez sinal de aspas com os dedos. — Aqui
tem anotações de todos os meus estudos de química e física,
durante o ensino médio. Ou seja, aqui tem tudo o que você precisa
para tirar notas boas.
Respirei fundo, levemente enojado. Boas ações não eram do
meu feitio. Eu não acreditava que as pessoas quisessem ajudar
outras de bom grado. Sempre existiam segundas intenções por trás.
Só me restava descobrir quais as intenções do Eric com isso.
— Por que tá fazendo isso? — ergui uma das sobrancelhas,
desconfiado. — Por acaso, a consciência pesou por ter me socado
no campo ontem? — com uma pontinha de ironia, questionei.
— Não... Na verdade, eu gostei de ter te socado ontem —
sorriu. Eu odiava esse sorriso! — Mas, eu não preciso deste
caderno. Então, quero doar pra quem realmente está precisando.
O que ele pensava que eu era, afinal? Um imbecil
mendigando por ajuda?
— Não preciso disso. Não preciso da sua ajuda —
resmungando e dando-lhe as costas, virei-me e voltei a caminhar.
— Precisa sim — replicou sem se intimidar e o senti tocar
novamente o meu ombro.
— Para de encher! — empertigando-me, estanquei no meio
do caminho.
Ele suspirou.
— Tudo bem... — dando de ombros, falou. — Se quer
continuar tirando F em tudo e correndo o risco de sair do time e do
colégio, é escolha sua. Você que sabe o melhor pra ti.
Que saco! Ele sabia da minha situação tanto quanto eu, mas
custava não tocar no assunto relacionado a minha coleção de notas
F? Fechei os olhos e respirei fundo, tentando controlar minha súbita
vontade de socá-lo outra vez.
O que me dava ainda mais raiva era de saber que, além de
toda essa perturbação, ele realmente estava certo. Por mais que eu
não quisesse admitir, Eric tinha razão. De todos os elogios que
faziam a ele, talvez os únicos verdadeiros fossem aqueles sobre sua
inteligência. Talvez a porcaria desse caderno me ajudasse, de fato.
Se eu aceitasse o caderno, isso não abriria precedente para
sermos amigos, abriria?
Não, claro que não. Era só um caderno.
Abri os olhos, após um generoso suspiro que controlou
parcialmente a minha impaciência, puxei o caderno de sua mão e,
sem dar mais uma palavra, voltei a caminhar em direção a porta da
sala.
— De nada! — Ainda o ouvi falar.
Só que eu não tinha dito “obrigado”, Pateta.
Pouco me importando com ele, cruzei a porta quando, de
repente, Robert e William passaram os braços sobre meus ombros,
fazendo-me virar e caminhar de volta para onde Eric estava.
Enruguei a testa. O que estava acontecendo, afinal? Eu não
merecia.
— Capitão... — Quando já estávamos próximos o bastante do
idiota, Robert se pronunciou. — O time inteiro está indo jogar
boliche. Você não está a fim de ir? Vai ser bem legal. Bom pra tirar
essa cara de desânimo.
Eu curtia bastante jogar boliche, mas eles não estavam
pensando em convidar o Eric, estavam?
— Vamos ao boliche, Eric? — concretizando meus
pesadelos, William falou. Droga, eles estavam mesmo o
convidando? Nem na minha tentativa de desopilar, eu me veria livre
da cara do Eric? Era isso mesmo? — O time inteiro vai.
— Na hora, cara! — sorrindo, Eric aceitou sem ao menos tirar
um segundo sequer para pensar. Ele era um pé no saco.
Os idiotas dos meus amigos também eram muito burros de
convidá-lo.
— O time inteiro não — de pronto, falei, enquanto tirava o
braço do Robert que estava sobre meus ombros. — Eu não vou.
— Qual é, Liam? — contrariado, Robert replicou. — Eu sei
que você gosta de jogar boliche.
De boliche eu gostava. O que eu não gostava era da
companhia do Eric. E, aparentemente, essa companhia estava se
tornando mais frequente do que eu queria.
— Aproveita pra desopilar lá, bonequinha. Tá precisando
heim... — Como se não bastasse tudo o que já estava
acontecendo, Eric ainda deu trela ao Robert. Seu sorriso enjoativo e
sarcástico não saía do rosto. — Vamos? — apontou com o queixo
em direção à saída.
Bonequinha era o meu saco escrotal. Sinceramente, eu não
lembrava quando a minha raiva do Eric tinha começado, até porque
eu, praticamente, o conhecia desde o dia do meu nascimento, mas
me lembrava perfeitamente de um dia em estávamos no aniversário
do tio George, pai do Eric, e eu prometi a mim mesmo que não
deixaria mais ninguém, em toda a minha vida, me fazer passar
vergonha, assim como também não mais aceitaria qualquer convite
do Eric, nem me aproximaria dele. Tínhamos uns sete anos de
idade na época.

...

A casa do Eric era muito boa e grande para brincar. Eu


estava morrendo de vontade de brincar, mas... Brincar com o Eric?
Não. Eu não ia brincar com o Eric. Eu nunca brincava com ele.
Embora ele ficasse perto de mim o tempo todo, tentando conversar
ou puxar alguma brincadeira, eu não dava bola. Pelo menos, já fazia
alguns minutinhos que ele tinha saído de perto de mim. Agora, eu
não estava vendo-o em parte alguma do aniversário do tio.
Para completar, eu estava de castigo. Tinha tirado notas
baixas e os meus pais tinham me proibido de brincar e de fazer
qualquer coisa que eu pudesse me divertir. Então, mesmo que eu
quisesse, eu não poderia brincar com o Eric, nem com ninguém.
Estava ali sentado, praticamente plantado e criando raízes,
enquanto as outras crianças brincavam e corriam de um lado para o
outro do jardim.
Minha irmã estava com suas amiguinhas, enquanto meus
pais estavam com os amigos deles. Eric não estava em lugar algum,
pelo menos não de modo que eu pudesse ver, graças a Deus. Até a
Stefany, minha fiel companheira, tinha me deixado sozinho para ir
brincar também. Assim como as pessoas falavam, eu estava só
“olhando para o tempo”.
— Liam! Liam! — volvi meu rosto na direção de onde a voz
vinha. Era o Eric acompanhado de vários garotos. Ah meu Deus.
Esse garoto nunca esquecia da minha existência? O que ele queria
dessa vez? — Liam, eu e os meninos vamos jogar no campo do
outro lado da rua. Vem com a gente? — E balançou a bola bem na
minha frente.
Ah não. Ele não devia balançar essa bola bem nas minhas
fuças. Eu adorava tanto futebol que poderia cair em tentação e sair
chutando com ela para bem longe dali. Meus pais me matariam.
— Não — respondi, tentando ser firme e obediente.
— Vamos, Liam. Vai ser legal! — entusiasmado e balançando
a bola de novo, Eric insistiu.
Um convite para jogar bola era um golpe muito baixo para
mim, que não gostava do Eric e não queria brincar com ele. Tudo
bem que também tinha os outros meninos, mas Eric estaria lá. Além
do mais, não que eu fosse um exemplo de filho, mas eu não podia
fazer nada, precisava obedecer aos meus pais, pelo menos um
pouquinho.
— Não dá. Estou de castigo — de cabeça baixa e um pouco
envergonhado por admitir isso, respondi quase em um sussurro.
— De castigo? — levemente surpreso, Eric quis confirmar.
Eu não queria repetir isso, mas...
— Sim — repliquei, mesmo assim.
— Besteira, Liam — ouvi um dos garotos falar. — Ninguém
vai saber.
— É. Ninguém vai saber. A gente joga só um pouquinho —
outro apoiou.
Enquanto isso, Eric permaneceu calado. Diferente de
segundos atrás, quando estava super entusiasmado para que eu me
juntasse a eles no futebol, naquele momento, depois de descobrir
sobre o meu castigo, ele já não falava mais nada.
— Vem, Liam! Vem! — os garotos começaram a me puxar,
para que eu me levantasse da cadeira, menos o Eric.
De tanto eles insistirem, eu acabei me rendendo. Até porque
não era difícil que me convencessem a jogar futebol. Eu era viciado.
Iria jogar só um pouquinho e bem escondido dos meus pais. Além
do mais, eu não estava brincando só com o Eric, tinham os outros
meninos também.
Caminhamos até o campo que ficava do outro lado da rua e
iniciamos o jogo. Eric não deu mais uma palavra sequer. Ele apenas
estava jogando bola como os outros, mas não me incentivava mais.
Para ser sincero, ele parecia estar até meio preocupado.
Jogamos, brincamos e corremos por tanto tempo, que eu já
tinha me esquecido de qualquer coisa sobre castigo e obediente.
Tudo estava tão legal, que eu nem sabia há quantas horas
estávamos ali, nem mesmo lembrava da existência dos meus pais.
Nunca tinha imaginado que pudesse me divertir dessa maneira,
brincando com o Eric.
— Liam Wyman Tremblay Terceiro! — A voz raivosa do meu
pai, de repente, bradou por todos os lados, como um trovão, e me
trouxe de volta para a realidade.
Meu Deus, meu coração faltou sair pela boca.
Eu já poderia dar adeus a minha vida.
— Pai? — assustado e com a voz já trêmula, olhei para o
lado.
— Venha já para casa! — ele gritou novamente comigo. Na
frente de todo mundo. — Esqueceu que está de castigo?
Nossa, eu já estava morrendo de vergonha e muito, muito,
triste. Queria sumir ou enterrar minha cabeça em algum lugar.
— Desculpa, pai. Eric me chamou para jogar bola — tentei
me explicar, enquanto saía do campo e ia em sua direção. Já podia
sentir meu couro esquentar, porque papai estava realmente furioso.
— Mas o Eric só tira notas boas e pode brincar. Você só tira
notas baixas, não pode brincar! Seu castigo agora vai aumentar! —
me puxando pelo braço e ainda gritando na frente de todo mundo,
meu pai me arrastou.
Olhei de relance para trás, enquanto era carregado, e vi os
garotos rindo de mim, menos o Eric. Seus olhos estavam
arregalados. Imbecil. Não fosse por ele e a idiota ideia de me
chamar para jogar bola, eu não estaria passando vergonha na frente
de todo mundo. Eric idiota, Eric imbecil! Nunca mais brincaria com
ele. Nunca mais! Nunca mais ninguém me faria passar vergonha.
Dei-lhe um olhar raivoso e, ao mesmo tempo, sentido,
juntamente com uma cara bem feia. Virei meu rosto e continuei
deixando-me ser levado por meu pai. Nunca mais aceitaria qualquer
convite do Eric. Nunca mais chegaria perto dele. Aquilo tudo só
tinha me feito passar vergonha. Para completar, meu castigo ainda
iria aumentar.

...

— Não vou — com o semblante bem fechado e sério,


respondi, deixando para trás Eric e meus amigos.
Ora essa, lógico que eu não ia à boliche nenhum com o Eric.
Quanto mais distância dele eu tivesse, melhor. Já bastava ter que
aguentá-lo diariamente no time e nas aulas. Já bastava ter aceitado
o estúpido caderno, que, por sinal, esperava que servisse de
alguma coisa.
Saí do colégio e segui em direção ao meu carro. Joguei a
mochila e o caderno no banco de passageiro que ficava ao lado do
banco do motorista. Durante todo o percurso, a cada parada em
semáforos, meu olhar mirava no caderno do Pateta. Eu ainda não
entendia o motivo real de ter me emprestado.
Por que a boa ação? Ele poderia muito bem ter deixado eu
me ferrar mais ainda nas notas. Minha situação precária não iria
interferir em nada na exemplar situação acadêmica dele. Aliás, caso
eu continuasse tirando notas baixas e saísse do time, o caminho
estaria totalmente livre para ele ganhar uma bolsa, jogar na
universidade e viver um sonho que era meu.
Por que a ajuda? Por que a preocupação?
Eu poderia chamar isso de preocupação?
Idiota. Eu só esperava que esse caderno me ajudasse
mesmo.
Após alguns minutos, estacionei o carro na garagem da
minha casa. Desci e caminhei em direção à porta. Entrei na sala e
bum! Uma bomba tinha estourado, tipo uma daquelas que eram
feitas pelos Russos, capazes de destruir o planeta em um piscar de
olhos. Minha mãe estava parada em frente a porta e de braços bem
cruzados. Sua cara não estava nada boa. Eu sentia que a maldita
ligação do Sr. Dawson tinha acontecido.
— O-Oi, mãe — Já me sentindo meio nervoso, dei-lhe um
sorriso amarelo e fechei a porta.
— Sente no sofá, Liam — com um tom de voz sério, ela
pediu.
Eu estava realmente ferrado. De verdade.
Sentei-me, com o coração na mão, pela milésima vez no dia,
enquanto ela também se acomodava ao meu lado.
— Liam, o diretor do seu colégio me ligou hoje de manhã —
Sim, conforme já imaginava, eu estava mesmo ferrado. — Liam,
como é que você não me fala da sua situação? Eu tenho mesmo
que saber disso através do diretor? Liam, você precisa ter mais
responsabilidade com os seus estudos! Você é concludente! Acha
mesmo que alguma universidade vai te aceitar desse jeito?
Sabe aquele momento em que todas as palavras fogem da
sua mente e você não faz ideia do que responder?
Pois bem, foi exatamente isso o que aconteceu. Eu não sabia
o que falar.
— O seu diretor sugeriu aulas particulares para você —
continuou. — Ele pediu que eu providenciasse essas aulas e é isso
que eu vou fazer. Você não pode continuar assim, Liam. Eu não falei
nem com seu pai sobre isso, porque, se ele souber, você vai estar
ainda mais em maus lençóis.
Pelo menos isso, Zeus! Pelo menos o meu pai não sabia.
— Tudo bem, mãe. Eu faço essas aulas — resignado e ciente
da minha péssima situação, foi tudo o que consegui responder.
— Eu liguei para a Cynthia e nós combinamos algumas
coisas.
Oi? Cynthia?
Eu não me lembrava da mãe do Eric ter alguma coisa a ver
com as minhas notas.
— Como assim, mãe? — com a testa já bem enrugada,
questionei.
Isso não estava me cheirando bem.
— Cynthia me deu a ideia do Eric ministrar essas aulas
particulares para você. — O quê?! — Eric agora estuda no Colégio
Regent, é seu colega de turma em Química e Física, além de já ter
dado aulas para outros alunos com dificuldades nas disciplinas,
naquela época que ele estudava no Liverpool. Um menino tão bom,
tão inteligente, tão estudioso! — Visivelmente empolgada, falou. Eu,
ao contrário, queria vomitar. — Vai ser ótimo para você, Liam!
Cynthia me falou hoje mesmo que vai pedir para o Eric lhe dar
essas aulas.
Eu não conseguia pensar em nada, a não ser negar, até a
morte, esse completo absurdo.
— Mãe! — com os bem arregalados, exclamei. — Existem
oito bilhões de pessoas no mundo! Por que logo o Eric tem que me
dar essas aulas?! Ele nem é um professor mesmo! Ele é... É... —
Tentei pensar em um nome que não queimasse meu filme por xingá-
lo. — Ele é um aluno como qualquer outro!
Quis ter falado coisa pior, mas não era o momento.
— Eu já disse os motivos, Liam. — impaciente, respondeu. —
Eric é seu colega de turma, ele está estudando as mesmas coisas
que você. Além disso, ele já deu aulas para outros alunos, então já
tem experiência com isso. Isso vai ser bom para vocês dois. Quem
sabe, com essas aulas, vocês até se tornem amigos.
Amigos?! Quem disse que eu queria ser amigo do Eric?
Isso só podia ser obra do capeta.
— Mãe, não é porque a senhora é melhor amiga da mãe do
Eric, que eu tenho que ser amigo dele também! — disparei,
indignado.
Ela, por sua vez, suspirou, fazendo pouco caso de mim.
— Já está decidido, Liam — replicou de maneira incisiva.
— Eu não vou ter aulas com o Eric! — de pronto, disparei e
me levantei do sofá. Não queria ouvir mais nem uma palavra sobre
essa completa loucura. Minha mãe estava precisando de um
tratamento psicológico.
— É isso ou você está fora do time.
Oi?!
— Que história é essa, mãe? — senti meu estresse atingir
níveis máximos e meu lanche do colégio se revirar no meu
estômago.
— É isso mesmo que você ouviu — replicou, tranquilamente.
Claro, não era ela a vítima de tudo. — Sem aulas, sem time. O
diretor me falou que se você não começar a tirar notas boas, vai ser
cortado do time. Então, caso queira continuar jogando, acho bom
aceitar as aulas.
Pelo amor de Thor!
A parte sobre eu ser cortado do time era novidade. O diretor
não tinha me falado isso!
— Mãe, é brincadeira, não é? — perguntei, querendo rir de
nervoso, como um louco. — Onde estão as câmeras escondidas? É
uma daquelas pegadinhas da televisão!
Mamãe, no entanto, me observou com puro tédio.
— Claro que não. Isso aqui é a vida real, Liam — seriamente
falou. — Você acha mesmo que eu ia brincar com algo assim? —
erguendo uma das sobrancelhas, questionou. — Por favor, não é?
Mas que merda...!
— Então... Então... — ofegante, com uma quase falta de ar
de ansiedade, tentei ir por outro caminho. Eu não sabia nem o que
falar direito. Mas, tentei. — Escolhe outra pessoa pra me dar essas
aulas, mãe.
Ela, todavia, desconsiderou, até mesmo, a possibilidade de
pensar nessa alternativa por meio segundo. Respondeu sem
pestanejar:
— Não tem outra pessoa, Liam. Será o Eric e ponto final. Já
está decidido.
Uma tentação chamada Eric

Liam

Que saco! Desde o dia anterior, eu não conseguia parar de pensar


que o idiota do Eric iria me dar aulas. Isso era, no mínimo, hilário.
No mínimo mesmo, porque eu costumava pensar que, na verdade,
era uma grande merda. Por qual razão o universo, de repente, tinha
decidido conspirar de forma contrária a mim? Eu não conseguia
entender.
Eu estava tão bem, longe o bastante do Eric. Mas, começou
com a mudança do colégio, depois o time, depois fazer duas
disciplinas comigo, depois sermos dupla no laboratório e, agora,
para completar, eu o tinha como meu professor. Era como se Eric
estivesse, propositalmente, se apossando da minha vida.
Esse último ano escolar precisava acabar o mais rápido
possível. Eu não conseguia nem imaginar como iria aguentar
passar, sei lá, uma hora e meia dividindo o mesmo espaço com o
Eric e tão próximo a ele. Uma hora e meia com aquele idiota dentro
do meu quarto, do meu universo particular, do meu ambiente.
Isso me lembrava de uma época, quando nós éramos
crianças, em que o Eric passava alguns fins de semana na minha
casa, para brincar com a Molly, e dormia no meu quarto. Eu odiava
isso. Mas, mamãe sempre tinha a brilhante ideia de colocá-lo em
uma cama ao lado da minha. Uma verdadeira estupidez, por assim
dizer.
O destino, não se dando por satisfeito, inventou de colocá-lo
para me dar aulas particulares, enquanto existiam milhares de
outras pessoas aptas no mundo para fazer isso. Pelo menos, minha
mãe ainda não tinha comentado nada sobre quando esse pesadelo
iria começar. Sinceramente, eu esperava que demorasse uma vida
inteira. Quanto mais demorasse, melhor.
Já bastava ter que aguentar as ironias que a Molly tinha
decidido soltar para tentar me atingir com essa história de “professor
Eric”.
— Então, quer dizer que você, o cara que mais odeia o meu
namorado no mundo inteiro, vai ter aulas com ele? — questionou,
enquanto soltava uma risadinha sarcástica. Estava ao meu lado, no
banco de passageiro, com seus típicos fones de ouvido. Eu só
queria arrancar aqueles fones e jogá-los pela janela, para acabar
com esse sorrisinho dela. — A vida é bela!
Apesar da vontade de cometer um atentado terrorista contra
minha própria irmã, tentei permanecer calado. Bufando e dirigindo.
Molly conseguia ser insuportável quando queria.
— Sério, maninho, vai ser a cena mais engraçada que eu vou
ver em toda a minha vida — continuou. — Já pensou? Vocês dois?
Você e o Eric juntos? Vai ser daquelas cenas dignas de filmar e
postar no Youtube! — riu novamente.
E eu não aguentei ficar mais tempo calado, diante de tanta
idiotice.
— Cala a boca, Molly! — disparei. — E desce do carro —
Concluí ao estacionar no colégio. Só queria me ver longe dela.
Talvez Eric e Molly, no fundo, se merecessem mesmo. Dois idiotas.
— Quer que eu dê algum recadinho ao seu professor? Ou um
presentinho? — perguntou com um sorriso cínico. — Quem sabe
uma maçã? Os alunos costumam dar maçãs aos professores.
Só se fosse a maçã do pecado para levá-lo direto para o
inferno.
— Vai se ferrar, Molly — sem paciência, repliquei. — E desce
logo desse carro — abri minha porta na tentativa de me ver logo
livre dela.
— Vou dizer ao Eric que você está ansiosíssimo pelas aulas
— sorrindo, saiu do carro e caminhou em direção ao corredor
principal do colégio. Revirei os olhos ao vê-la se distanciar.
Santa Vodca do Céu, dai-me paciência.
Por falar em Vodca, eu estava precisando de uns goles, já
que a minha vida ia de mal a pior. Tudo bem que a última vez que
eu tinha me embebedado não foi das melhores situações, pelo que
ouvi da boca da Stefany. Até aquele momento, eu não me lembrava
que raios fiz naquela noite do pub.
Mas, enfim, eu precisava beber e transar. Já estava com um
tempinho que eu não fazia essas duas coisas. Duas das minhas
coisas mais preferidas no mundo. Talvez fosse por isso que o
universo estivesse conspirando contra mim.
Caminhei em direção ao corredor principal do colégio e,
logicamente, as pessoas começaram a vir em minha direção, para
me cumprimentar. Como sempre. Eu não precisava fazer esforço
algum para que isso acontecesse. Era uma das vantagens de ser
popular. A única coisa estranha era que parecia que o número de
pessoas a fazer isso tinha diminuído.
O que estava acontecendo? Onde estavam os outros?
Entrei no corredor principal do colégio e logo tive a resposta
para meus questionamentos internos. O imbecil do Eric estava
rodeado de pessoas. Eu também tinha muitas pessoas ao meu
redor, mas ele tinha tantos alunos, por perto, quanto eu. Eram os
mesmos que antes costumavam beijar o chão por onde eu passava.
Falsos. Traidores.
— É... Parece que o colégio está dividido mesmo, capitão.
Ouvi uma voz familiar falar em meu ouvido.
— Stefany! — virei-me de súbito e sorri ao abraçá-la. Ela era
uma das poucas pessoas que eu realmente gostava da companhia.
Minha fiel companheira desde sempre. Uma mulher, de fato,
maravilhosa. — Faz tempo que não te vejo.
— E faz tempo que você não me beija também — de pronto,
me respondeu com um sorrisinho esperto naquele rosto lindo.
— Não seja por isso — sorrindo de volta a beijei. E o beijo se
prolongou por um tempo muito satisfatório para mim, até que, o
barulho de um apito soou em nossos ouvidos. Era um dos fiscais do
colégio, indicando que deveríamos nos separar. Sua cara dizia para
mim “aqui não é lugar para isso, meu rapaz!”.
— Fiscais... — revirando os olhos, Stefany falou.
— Pois é... — balancei a cabeça em negativo, meio irritado,
mas logo dei de ombros. Fiscais sempre acabavam com nossas
diversões mesmo. Era típico. — Enfim, o que você tinha me falado
mesmo quando chegou?
— Que o colégio está dividido — replicou. — Não vê? — e
apontou com o queixo. — Parece até coisa de filme. De um lado, os
alunos que estão com você. Do outro, os alunos que estão com o
Eric. Você não é o único popular no colégio agora.
Oi? De onde ela tinha tirado isso?
— Claro que sou o único, Stefany! — disparei. — O Eric é só
novidade — com desdém, continuei. — Depois que ele deixar de ser
novidade, as pessoas vão esquecê-lo.
Ela, no entanto, não se convenceu.
— Se eu fosse você, não me confiaria muito nisso — tentou
me alertar. Como eu já conhecia Stefany, no fundo, ela queria me
dizer que eu estava errado. Entretanto, não liguei para isso. Eu
estava certo sim. — Enfim, fiquei sabendo que você vai ter aulas
com o Eric agora. Tá preparando psicologicamente? — sorrindo,
perguntou.
Nem precisei passar mais que meio segundo pensando na
resposta.
— Não — de pronto, lhe respondi com uma bela cara de
tédio. — Nem me lembre dessa merda.
Stefany riu. Porém, com certa compaixão. Diferente da Molly.
— Tinha certeza que essa seria sua resposta — divertida,
falou. — Coisas de dona Cynthia e dona Claire — balançou a
cabeça. — De toda forma, meu irmão é muito legal e inteligente. Ele
vai saber te ajudar.
Ah me poupe.
Eu não precisava ouvir mais um pouco da infinita lista de
qualidades do Eric.
— Não ligo pra...
Tentei responder, mas repentinamente fui interrompido.
— E aí, querido aluno! — senti alguém passar o braço pelo
meu ombro. E aquela voz... Aquela voz era mais familiar do que eu
gostaria. Uma voz nojentamente familiar. Quando volvi meu rosto,
dei de cara com o imbecil do Eric.
A única coisa que eu me perguntava era: eu te dei essa
intimidade?! O cara estava literalmente colado em mim. Tinha
passado o braço pelo meu ombro e, analisando rapidamente seu
semblante, ele não parecia nem um pouco desconfortável com isso.
Eric, definitivamente, não tinha medo do perigo.
— Sai fora, idiota — instantaneamente me afastei e tirei a
porcaria de seu braço do meu magnífico ombro.
O que ele estava pensando? Tinha bebido ou ficado doido?
— Qual é? — dando uma pequena risadinha, questionou
tranquilamente. Eu sabia que ele estava curtindo com a minha cara,
como sempre. — Agora eu sou seu professor. Temos que ter uma
boa relação.
Gay.
Fingi que não ouvi o que ele disse, tentando demonstrar o
tamanho da sua insignificância para mim, e me virei para Stefany.
Eu apenas a via em minha frente. Eric era invisível.
— Stefany, vou para o vestiário trocar de roupa. Tenho treino
agora — dei-lhe um beijo e rapidamente me afastei, deixando
ambos para trás. Eu gostava da companhia da loira, mas, quando
Eric estava por perto, tudo ficava ruim.
Eric obviamente já estava de uniforme. Ele tinha que ser o
primeiro em tudo, até nisso. Enquanto caminhava, eu pensava
nisso, assim como também me questionava sobre suas atitudes.
Que intimidade foi aquela? Eu tinha o dado essa intimidade? Que eu
me lembrasse, ainda não tinha batido minha cabeça contra uma
pedra a ponto de perder a sanidade.
Quando cheguei ao vestiário, vesti rapidamente o uniforme
do time e fui direto para o campo. Todos os já estavam reunidos,
inclusive o Pateta estava no meio. Claro.
O técnico, no entanto, ainda não tinha chegado.
— Cadê o Sr. Jones? — perguntei a Robert e William.
— Que bom que você chegou, cara — responderam assim
que eu me aproximei. — Estávamos só esperando por ti. O técnico
pediu pra você iniciar o treino, porque ele vai se atrasar um pouco
hoje.
Hum. Eu iniciar o treinamento?
Sim, eu, claro. Quem mais seria? Eu era o capitão do time,
não era?
Então, quando o técnico não estivesse presente, meu papel
era liderar o grupo.
— Tudo bem. — Já convencido, respondi e, de peito cheio,
voltei-me para o time. Afinal, o comandante ali era eu. — Vamos
começar com aquecimento. Trinta flexões, quarenta abdominais e
cinquenta voltas pelo campo.
De repente, no entanto, um burburinho se formou entre os
caras do time.
Ora essa. Eu não estava entendendo.
O que foi?
Achei que tivesse sido bastante claro.
— Liam, esse aquecimento não tá certo — Eric se
pronunciou. Claro. Ele tinha que abrir a boca para falar besteira.
Certamente, se ele não estivesse ali, todos iriam me obedecer sem
contestar. Eric sempre estragava tudo. — Diminui um pouco o
aquecimento, senão não vamos ter condições de treinar os passes.
— É verdade, Liam — um dos caras concordou.
— Cinquenta voltas no campo é um absurdo — outro falou.
Que saco. Eric tinha que se meter onde não era chamado.
Ele tinha me colocado contra meu próprio time. Ainda olhei para
Robert e William, na esperança de que eles fossem me apoiar e me
ajudar a convencer, de uma vez por todas o time, mas eles
permaneceram calados. Aqueles imprestáveis.
— Ah é? — Já com raiva, encarei Eric com certo sarcasmo.
— Está achando errado o aquecimento? Muito bem, vamos
melhorar isso. Quarenta flexões, cinquenta abdominais e sessenta
voltas pelo campo.
— Tá de brincadeira, não é, Liam? — Eric replicou de
imediato.
Por que esse cara não sumia de uma vez por todas?
Instantaneamente, o burburinho retornou ao grupo do time.
Merda. Eu não podia nem fazer o meu trabalho em paz, porque o
Eric tinha que abrir a boca para atrapalhar. Se ele não quisesse
ajudar, que, ao menos, não atrapalhasse.
— O que está acontecendo aqui? — A voz do técnico, de
repente, chegou.
Droga, ele já tinha chegado?
Não pude nem aproveitar muito tempo.
— Liam passou um aquecimento louco pra gente fazer — um
dos caras respondeu.
— Aquecimento louco? — franzindo o cenho, o técnico
questionou. — Dois anos como capitão e você não sabe passar um
simples aquecimento? — olhou para mim, balançando a cabeça em
reprovação, e, depois, voltou-se para o time. — Vamos fazer o
treinamento do jeito certo agora. Podem se posicionar.
Seguindo as orientações do técnico, o time se preparou para
iniciar os exercícios. Eric, no entanto, antes de assumir seu posto,
encarou-me com um sorriso extremamente sarcástico.
Aparentemente, tinha sido uma pequena vitória sobre mim, e ele
adorava isso. Adorava me tirar do sério. O idiota só não sabia que
tudo estava apenas começando. O que era dele estava guardado.

❖❖❖

Após uma hora e meia de treino, o técnico, enfim, nos liberou


para o banho. Entretanto, enquanto o time seguia para o vestiário,
ele me chamou para uma conversa reservada.
— Liam, o que quero falar não é nada demais. Só gostaria de
lhe lembrar que no sábado, antes de seguirmos viagem para a
abertura do campeonato em Oxford, você deve chegar antes de
todos para me auxiliar na coordenação do time. Tudo bem?
O técnico era uma das poucas pessoas que eu tinha o prazer
de obedecer. Além do mais, esse também era um dos meus papéis
como capitão: auxiliar na coordenação do time, onde quer que
fôssemos.
— Sim, Sr. Jones, como quiser.
— Ótimo — dando dois toques de leve no meu ombro, me
liberou. — Pode ir para o seu banho.
Enquanto caminhava, eu pensava em como esse final de
semana seria louco. Na verdade, não somente o final de semana,
mas toda a temporada do campeonato. Os times ficariam a mil, os
colégios ficariam mobilizados para receber os jogos, os treinos
seriam mais pesados. Enfim, seria uma loucura. Mas, uma loucura
boa.
Quando cheguei ao vestiário, logo tratei de tirar minha roupa,
para seguir em direção a área dos chuveiros coletivos, onde o time
já tomava banho. Todavia, quando baixei meu short... Santa Vodca
do Céu. Meu olhar, displicentemente, recaiu sobre o Eric, por mais
que houvesse outras pessoas em volta.
Ele estava completamente nu. Inteirinho. Não havia uma
parte coberta. Nenhuma. Claro que todos os outros também
estavam assim e que eu era infinitamente acostumado com isso,
mas... O Eric tinha... Bom, eu já o vi nu quando éramos crianças.
Ele ia para minha casa, e minha mãe o ajudava no banho, mas, na
época, ele não tinha esse corpo e esse... Deus, como era grande.
Automaticamente, outro pensamento invadiu minha mente:
Liam, tira o olho do pênis do Eric! Isso é estranho!
Só que mais estranho ainda foi o que eu senti segundos
depois. Eu senti meu próprio pênis começar a endurecer. Sério. Ele
estava querendo, de fato, endurecer. Entrei em pânico. Puro pânico.
Que pesadelo era esse? Não, não podia ser. Eu não podia ficar duro
ali, eu não podia ficar duro por ver o Eric!
Aliás, isso nunca tinha acontecido comigo. Nunca!
Eu era homem, macho, hetero. Não tinha cabimento o que
estava acontecendo.
Entretanto, meu constrangimento, em seguida, aumentou,
quando Eric virou o rosto em minha direção e me notou paralisado.
De fato, eu estava como uma estátua.
Thor, me ajuda a sair daqui!
Meus pés pareciam fincados no chão e meus olhos grudados
na visão à minha frente.
Merda!
— O que foi? — franzindo o cenho, Eric questionou. No
mesmo instante, meus olhos finalmente se lembraram como fazia
para parar de mirar em seu pênis e se fixaram diretamente em seu
rosto. — Tá me achando gostoso? Eu sei que sou gostoso, mas...
Só pra te avisar, eu sou difícil viu? — brincou e curtiu com a minha
cara, aproveitando meu momento de invalidez. — Não adianta ficar
me olhando com essa cara. Tem que saber conquistar. — Ainda
debaixo do chuveiro, um sorriso irônico estampou seu semblante.
Romance gay

Liam

Assim que Eric calou a boca, notei que todos os caras do time
estavam olhando para nós. E como eu percebi isso? Ora como!
Com a estúpida risada que todos soltaram ao mesmo tempo, em
alto e bom som. Todas as gargalhadas me fizeram sair daquela
espécie de transe, que eu me encontrava há poucos segundos, e
encarar, com os olhos cheios de raiva, o imbecil do Eric. A
brincadeira que ele tinha feito era a prova cabal de que era um
grande imbecil.
Virei-me de lado rapidamente, para que, tanto Eric quanto os
caras, não pudessem ver meu pênis semi-endurecido. Aliás, que
raios tinha dado na porcaria desse pênis para querer ficar duro?
Logicamente, isso não tinha acontecido por causa do Eric. Claro que
não! Eu me recusava a acreditar que isso tinha acontecido porque
estava vendo o Eric nu, com sua barriga definida, seu corpo todo
molhado e... Quê? Definitivamente, eu precisava parar de pensar
nessas coisas.
Foco, Liam! Foco!
— Como assim “o que foi?”, seu imbecil? — cuspi todas as
palavras e franzi o cenho, me fazendo de desentendido. — Tá me
estranhando? — E, enfim, dei-lhe as costas, indo rapidamente em
direção aos armários do vestiário, que ficavam em um ambiente
separado dos chuveiros. Sumi da vista de todos.
Além da raiva que o Eric tinha me feito passar, por causa da
piadinha sem graça, eu ainda estava furioso porque não tinha
conseguido tomar banho. Pois é, nem a porcaria de um mísero
banho eu conseguia tomar em paz! Ia ter que ficar podre e todo
suado do treino, porque o meu querido pênis decidiu ficar duro na
hora mais inapropriada possível. Aliás, ele já podia voltar ao normal!
Meu pênis precisava ficar de castigo. Quer dizer... Existia
castigo maior do que ficar duro por ter visto o idiota do Eric sem
roupa? Não! Eu não podia pensar dessa forma! Eu não tinha ficado
duro porque vi o Eric sem roupa, e ponto final! Isso devia ter
acontecido por qualquer outro motivo, certamente.
Ah sim, claro! Fazia tempo que eu não transava. Era por isso.
Com certeza, era por isso.
Vesti de qualquer jeito as minhas roupas. Estava
completamente sem paciência de “me alisar muito”, como eu
sempre fazia quando me arrumava. Afinal, eu estava podre. Merda!
A vida só podia estar brincando com a minha cara. Ou o capeta
tinha realmente decidido acabar comigo. O universo conspirava
contra mim e aquele último ano do colegial estava um verdadeiro
saco.
Levantei meus braços, para cheirar minhas axilas. Senti
vontade de vomitar. Inferno. Peguei um perfume qualquer que vi em
um dos armários e tomei praticamente um banho. Talvez isso
servisse de alguma coisa. Eu realmente esperava. Peguei minha
mochila e saí em um pulo do vestiário. Abri a porta e vi um mundo
de gente circulando pelos corredores do colégio. Estava no intervalo
entre as aulas.
Com o semblante bem sério e muito fechado, caminhei por
entre as pessoas pouco me importando com quem estava tocando
em meu ombro e me cumprimentando. Eu me sentia com tanta raiva
de tudo, que era como se eu não enxergasse um palmo à minha
frente. Só queria chegar o mais rápido possível à sala da minha
próxima aula, porque estava chateado, fedido e sem saco para
aproveitar o intervalo. Ao menos, a disciplina era literatura inglesa.
Então, eu não precisaria olhar para a cara do Eric, pela milésima
vez no dia, porque o “menino das exatas” não cursava esse tipo de
matéria.
Ainda imerso em pensamentos e praticamente sem olhar
para onde eu estava indo, de repente, esbarrei em algo enquanto
andava.
— Porra! — disparei, quando percebi que quase tinha caído
por cima de um garoto que estava agachado, amarrando os
cadarços do tênis. — Isso é lugar pra você amarrar essa droga de
tênis?! — Com ainda mais raiva do que já estava, questionei,
enquanto retomava meu equilíbrio.
Quem era o imbecil que tinha de amarrar os cadarços bem no
meio do corredor?
Lentamente, o garoto levantou seu rosto em minha direção.
Foi quando minhas perguntas se responderam automaticamente.
Claro, não podia ser outra pessoa a não ser o nerd gayzinho e
fracassado do colégio.
— De-Desculpa. — Ainda agachado, gaguejou, olhando
envergonhado para todos os lados, menos para mim. Era a primeira
que ouvia a voz daquela criatura.
— Desculpa?! — disparei outra vez, com os olhos bem
arregalados. Talvez ele estivesse testando minha paciência. Eu não
suportava ouvir a palavra “desculpa”, e, saindo da boca dele, se
tornava ainda mais intragável para mim. — Presta mais atenção nos
lugares onde você decide ficar! Ninguém é obrigado a esbarrar em
fracassado! — dei-lhe as costas ferozmente e voltei a caminhar
muito mais furioso que antes.
Dia de cão!
Enquanto fazia meu caminho até a sala, ou pelo menos
tentava fazer, porque, ultimamente, tinham muitos fracassados se
pondo como obstáculo no meu caminho, senti meu celular vibrar.
Era minha mãe. O dia só piorava.
Atendo ou não?
Por mais que eu não quisesse, era melhor atender. Senão,
ela iria pensar que morri, que tinha sido sequestrado ou mesmo
abduzido por extraterrestres, e ainda faria um verdadeiro escândalo
quando eu chegasse em casa.
— Oi, mãe — Com um leve tom de tédio, falei.
— Oi, querido. Tudo bem?
Não.
— Sim — menti.
— Estou lhe ligando para avisar que acabei de falar com a
Cynthia. Ela já pediu ao Eric para dar aulas particulares a vocês —
Sim, disso, eu, infelizmente, já sabia. Não podia conseguir esquecer
do imbecil me chamando de “querido aluno”. — As suas aulas
começam amanhã.
Quê?
Dessa parte eu não sabia!
— Amanhã?! — incrédulo, questionei uma nota acima.
— Sim, Liam, amanhã — comedida, replicou.
Já?!
Eu não podia acreditar que aquele pesadelo já estava tão
perto. Queria tanto que demorasse, tipo assim, uma eternidade até
chegar o bendito dia dessas aulas. Ou melhor, seria um verdadeiro
sonho se a minha mãe esquecesse esse completo absurdo e o dia
nunca chegasse.
— Mas... — quase choraminguei.
— Sem “mas”, Liam — ela, no entanto, me interrompeu. — Já
está decidido. Não vou mudar de ideia. É o melhor para você.
Melhor?!
Se isso era o melhor, eu não queria nem imaginar o pior.
— Mãe... — tentei ir por outro caminho. Talvez assim eu
pudesse prolongar por mais um tempinho essa tortura. — Não pode
começar, sei lá, na segunda? — sugeri, torcendo para que, pelo
menos isso, ela aceitasse.
— Não — mamãe respondeu sem precisar de meio segundo
para pensar. — Se eu deixar que comece na segunda, quando
chegar lá, você vai pedir para adiar para a próxima segunda. Eu já
te conheço, Liam. Te conheço há exatos 18 anos — Droga. O pior
que era verdade. — Agora preciso desligar. Telefonei somente para
avisar.
Saco.
Eu não tinha saída
— Ok, mãe — Mesmo querendo morrer, concordei.
— Até mais tarde, querido.
— Até.
Inferno de vida.
Eu não era dramático, era? Minha vida realmente tinha se
tornado uma verdadeira bagunça. E quem causou essa bagunça?
Ele mesmo. Eric Barriga de Tanquinho Hastings!
Ah meu Deus. Eu tinha falado isso em pensamento mesmo?
Droga.
Além de tudo, eu estava precisando de um bom tratamento
psicológico.
Guardei meu celular, tentando esquecer qualquer tipo de
pensamento confuso a respeito do Eric e, quando voltei a caminhar,
senti dois braços passarem pelo meu pescoço, um de cada lado.
— E aí, capitão! — eram Robert e William. — O que foi aquilo
no vestiário, heim? — rindo, Robert perguntou. William o
acompanhou nas risadas.
Apertei os olhos e respirei fundo, tentando me controlar. Eu
ainda ia matar alguém naquele dia. Certeza.
— O que teve no vestiário, idiota? — Totalmente sem
paciência, perguntei, enquanto tirava os braços dos dois do meu
pescoço com nenhuma delicadeza.
Obviamente, eu não ia admitir coisa alguma sobre o que tinha
acontecido no vestiário. Aliás, não tinha nada, mesmo, para eu
admitir. Foi apenas um acaso do destino o meu pênis ter ficado
semi-endurecido ali. Não tinha absolutamente nada a ver com o
Eric.
— Você olhando todo bobo e apaixonado para o Eric —
William respondeu no lugar de Robert e ambos riram novamente. —
Gostou de ver o cara pelado?
Só podia ser brincadeira.
— Vão se foder vocês dois! — disparei.
Eles não paravam de rir. Que merda.
— Vai dizer que você não gostou de ver o Eric pelado? —
Dessa vez, foi Robert que insinuou. Sua pergunta estava cheia de
sarcasmo, assim como seu grande sorriso estampado no rosto. — A
gente viu a cara que você fez.
— Não mente, irmão — William continuou aquela patifaria. —
Confessa logo. Você é gay, não é? — Gargalhando, ele perguntou.
— A gente sempre soube, irmão. A gente sempre soube —
balançou a cabeça, se divertindo.
Ah, eu não podia ficar nem mais um minuto ali, ouvindo essas
asneiras. Todo o meu sangue subiu para a cabeça de tanta raiva.
Robert e William eram os piores amigos do mundo. Quem tinha
amigos assim, não precisava de inimigos.
— Vai perturbar o capeta! — me exaltei e, com toda a ira que
eu estava sentindo, deixei-os sozinhos no meio do corredor.
Demônios!
Eu já estava incrivelmente estressado e irritado com todas as
milhares de coisas que tinham acontecido até então, e ainda tinha
que ficar aguentando piadinhas. Eu não merecia isso! Talvez Zeus
estivesse me fazendo pagar por todos os meus pecados.
Caminhei de qualquer jeito pelo colégio, em qualquer direção,
tomado pela fúria dos últimos acontecimentos. Sinceramente, nem
cabeça para assistir aula eu tinha mais. Só queria algo que me
fizesse esquecer de tudo. Alguma coisa que me deixasse tranquilo.
Foi então quando olhei em certa direção e avistei Stefany
sentada em um banco numa área mais reservada do pátio. Que
milagre era esse? Ela nunca ficava sozinha. Sempre estava rodeada
de amigas. Talvez fosse o destino querendo se desculpar e se
retratar comigo. Eu tinha que aproveitar. Afinal, não tinha pessoa no
mundo que me mantesse relaxado da forma como a Stefany fazia.
Segui em direção à loira e não deixei de notar que ela parecia
muito entretida, lendo algo em seu celular. Fiquei curioso. O que ela
estava fazendo, afinal?
— Stefany... — sentei ao seu lado.
— Liam! — Ergueu o rosto, olhando-me com atenção. —
Nossa, que cara é essa? O que aconteceu contigo?
Na verdade, era melhor ela ter perguntado o que não tinha
acontecido comigo, porque, sinceramente, foram tantas coisas que
eu ainda estava tentando processar tudo. E a minha cara, de fato,
não conseguia esconder isso. Porém, eu queria saber dela primeiro.
— Não antes de você — repliquei, levando minha mão em
direção ao seu celular. — O que você tá vendo aí? — questionei.
Stefany, no entanto, bloqueou a tela, para que eu não pudesse ler o
que tinha ali. Isso foi suficiente para que eu entendesse que ela
queria esconder algo. Porém, eu sempre fui muito curioso. — Vai,
deixa de besteira. Mostra logo.
Revirando os olhos para mim, se deu por derrotada.
— Que seja... — em tom fraco respondeu. — Eu tô lendo um
romance... Gay.
Oi?
— Romance gay? — franzi o cenho.
Stefany, por sua vez, revirou os olhos de novo.
— É, ora, uma história, um romance como qualquer outro.
Normal. Só que são dois homens os protagonistas. Nada demais.
Nenhuma situação de crise.
Eu não conseguia entender.
Como alguém lia esse tipo de coisa?
— Não, mas é que... Romance gay? — enruguei a testa outra
vez, com uma expressão de repulsa, porque era exatamente isso
que eu sentiria se lesse algo assim: repulsa. — Não podia ser outro
tipo de romance?
Ela suspirou, dando-me um belo olhar de tédio.
— Eu gosto de romance gay, tá? Algum problema? — deu de
ombros. — Quer ler um pouco? — ofereceu, erguendo o celular em
minha direção. — Tá numa parte bem interessante. Talvez você
goste — e um breve sorrisinho quis estampar seu rosto.
Quê? Ela estava ficando louca?
— Não! — balancei veemente a cabeça. — Claro que não!
Sai pra lá com esse celular — afastei-me um pouco. — Quero nem
chegar perto disso. Seria traumatizante, com certeza.
— Ah, entendi! — Stefany soltou uma pequena risadinha. —
Você não lê porque tem medo de gostar. Entendi.
Hãn?
— Claro que não, Stefany! De onde você tirou isso? Tá
ficando doida? — franzi o cenho. — Por exemplo, se uma pessoa
não lê fantasia, não é porque ela tem medo de gostar de fantasia,
mas, sim, porque ela simplesmente não gosta. Questão de
preferência. Além do mais, deve ser broxante ler sobre um cara
enfiando um negócio em um lugar que foi feito pra sair e não para
entrar.
Essa última parte foi o suficiente para que a loira arqueasse
as sobrancelhas e abrisse a boca, como se estivesse em choque.
— Ah, nossa, seu hipócrita! — replicou. — Você fala como se
nunca tivesse querido comer uma bunda. Sempre quis. Eu que só
dei o da frente. Seu hipócrita! — balançou a cabeça em pura
reprovação. — Além disso, não tem como você saber que é
realmente broxante se você nunca leu. Romances gays também não
têm só isso. Tem uma história, um enredo, conflitos como em
qualquer outra história. O que você tem é medo de gostar. Confessa
logo!
Ah não. Eu esperava um pouco de tranquilidade, mas Stefany
estava me tirando do sério.
— Não tô com medo de gostar, porra! — disparei
— Tá sim!
— Não tô!
— Tá!
— Não!
— Pois então lê um pouquinho e me prova.
Que saco! Stefany sabia que eu não gostava de perder em
nada. Irritado, puxei bruscamente o celular de suas mãos e mirei
meu olhar na tela. Com uma cara de poucos amigos, encarei as
letras do ebook. Se Stefany achava que algo sobre minha opinião
iria mudar, depois de ler isso, ela estava redondamente enganada.
— Gostei de ver! — Com entusiasmo, ela falou, dando uma
pequena risadinha. — Lê a partir daqui — apontou para
determinada parte do texto. — Era aí onde eu tinha parado.
Respirando fundo, para controlar a raiva, tentei começar a
leitura.
“Quando finalmente consegui erguer meu rosto, após alguns
instantes de fôlego totalmente perdido, tive a oportunidade de
apreciá-lo com seus revoltos cabelos negros e seus lábios ainda
entreabertos. Aqueles lábios... A minha eterna perdição. Eram
cheios e rosados em um perfeito desenho, macios e tenros em uma
completa tentação para mim.
Não pude conter o gemido quando sua boca envolveu meu
pênis outra vez. Ele sabia o que fazia. E fazia tão bem. Sugou tudo
o quanto podia, fazendo com que minhas veias saltassem em puro
tesão. Senti todo o meu corpo retesar, inclusive meu baixo ventre.
Eu não conseguiria aguentar por muito tempo.
Foi quando o fiz parar e o coloquei sobre a cama. Tirando
seus lábios do meu pênis, encaixei-me entre suas pernas e o
penetrei. Forte, rápido, com vontade. Muita vontade. Senti o gozo
tocar meu abdômen quando atingimos o auge juntos, naquela
primeira vez que eu queria ter o prazer de repetir milhares de outras
vezes.
Talvez não houvesse palavras para descrever a sensação de
estar entre suas pernas, com meu rosto recostado à curva do seu
pescoço, vendo seu peito subir e descer em uma respiração
pesada. A despeito de tudo e de suas inúmeras tatuagens sobre os
dois braços que, em uma tentativa frustrada, almejavam transpassar
uma imagem um tanto quanto rebelde, ele ainda era aquele garoto
encantador e tranquilo que eu tinha conhecido anos atrás.”
E, então, mesmo sem querer, a imagem completa da cena
surgiu, de repente, em cheio na minha mente. Parecia tão clara
quanto as palavras que eu tinha acabado de ler. Era como se eu
visualizasse tudo. Os dois transando. O garoto sugando o outro. A
penetração. O orgasmo. A respiração pesada. Sim, eu comecei a
notar minha própria respiração também pesada. Era como se eu
estivesse vendo tudo presencialmente.
Em resposta, meu pênis latejou.
Pisquei os olhos repetidas vezes, quando percebi que algo lá
embaixo estava querendo endurecer pela segunda vez no dia.
Fiquei em pânico. Definitivamente, eu só podia estar
enlouquecendo. Embora eu quisesse disfarçar o meu estado, talvez
a tentativa fosse frustrada, porque Stefany era muito perspicaz.
Nada passava despercebido aos seus olhos.
— Não quero mais ler. Já foi o suficiente — De supetão, lhe
devolvi o celular e me levantei do banco, torcendo para que ela não
se desse conta.
Isso foi o bastante para que eu ouvisse sua gargalhada.
— Você gostou! — continuou rindo. — Dá pra ver na sua cara
e na sua calça! Gay!
Quê?
Dava mesmo pra ver que tinha ficado um pouco excitado?!
Droga!
Rapidamente, virei-me de lado, tentando evitar que ela visse
mais alguma coisa suspeita na minha calça.
— Vai se foder, Stefany! Tá doida? — nervoso, repliquei,
embora também estivesse tentando disfarçar o nervosismo. — Vou
pra aula — e dei-lhe as costas, caminhando ligeiro em direção à
classe.
O universo estava mesmo querendo brincar com a minha
vida.
Que fase! Que dia de cão!
Os opostos de atraem

Liam

Ouvi o sinal do colégio tocar, indicando que o horário de aulas


tinha acabado e que meu martírio iria começar. Isto porque, naquele
dia, minhas aulas particulares com o imbecil do Eric começariam.
Aliás, o martírio que eu estava vivendo já tinha começado há muito
tempo. O dia anterior, por exemplo, tinha sido a gota d’água. Eu
realmente cheguei à merda do fim do poço, e, se ainda não tivesse
chegado, estava muito próximo.
Eu ainda não entendia como tinha conseguido ficar com o
pênis semiduro no vestiário. Isso nunca, em hipótese alguma, tinha
acontecido. Já vi todos os imbecis do time, sem roupa, umas
quatrocentas mil vezes, e o meu pênis nunca deu nem um sinal de
vida sequer. Tudo bem que, a última vez que vi o Eric nu, nós
tínhamos... O quê? Uns nove anos de idade? Mas, enfim, pra quê
eu estava pensando nisso? Eu não tinha ficado duro por causa do
Eric!
Obviamente, tinha ficado assim porque estava há muito
tempo sem transar. Lógico que era isso. Inclusive, esse fato era
mais uma prova de que eu realmente estava no fundo do poço: eu
não transava há um século! Que merda. Nunca tinha passado tanto
tempo assim sem fazer nada. A maré de azar, para o meu lado,
realmente estava grande, e eu não fazia ideia de quando isso ia
acabar. Só queria um pouco de paz e que as coisas voltassem a dar
certo.
Para completar, ainda teve aquela estupidez de romance gay
que a Stefany me obrigou a ler. Era a segunda vez que meu pênis
semi-endureceu no mesmo dia, sem qualquer motivo plausível
aparente. Eu devia estar ficando louco. Esse tempo todo sem sexo
estava afetando o meu psicológico. Só podia ser isso.
E, agora, essas aulas particulares com Eric estavam aí para
acabar de vez com o restante da minha sanidade mental.
Pensando em tudo isso, me arrumei para ir embora do
colégio, após o fim das aulas daquele dia. Talvez fosse bom correr
para casa e aproveitar meus últimos minutos de paz e serenidade,
antes que o Pateta chegasse. Levantei-me da carteira, peguei meu
caderno e meu livro de literatura, e joguei tudo dentro da mochila.
Quando ia cruzar a porta da sala, ouvi a voz do Robert.
— Tá a fim de jogar Fifa?
Não seria nada mau jogar umas partidas de Fifa, mas...
— Não posso.
— Por que não? — William, que estava ao seu lado,
perguntou.
Droga. Ninguém, além da minha família e da família do Eric,
sabia que teria essas aulas com ele. Com certeza pegaria mal se eu
dissesse que o imbecil seria meu professor. Definitivamente, eu não
queria admitir isso para ninguém.
— Não interessa. Só não posso ir — falei tão somente.
Isso, no entanto, não os convenceu.
— Qual é, irmão? Conta aí — dando um toque no meu
ombro, Robert pediu.
Claro que não!
Robert conseguia ser muito insuportável quando queria.
— Não. Já disse que não posso ir — e me virei para ir
embora.
Entretanto, eles vieram atrás de mim, tentando insistir em
algo que eu, claramente, estava negando. Zeus, por que meus
amigos eram as piores pessoas do mundo? Eu ainda não sabia
como consegui ter tanta paciência com eles, ao longo de tantos
anos de amizade.
— Para de ser otário, Liam — William replicou. — Se você
não quer dizer o motivo, é porque não é nada demais. Então,
vamos. É só um pouco. Depois você pode ir embora — e me
segurou pelo braço.
Ah que saco! Eu já estava tão cheio de tudo, de todas as
coisas que estavam acontecendo nos últimos dias, das aulas com o
Eric, e, agora, dessa perturbação dos meus amigos, que não
consegui me conter. Eu não podia mais guardar isso só comigo.
— Vou ter aulas particulares com o Eric! — disparei. —
Começa hoje.
— O quê?! — Instantaneamente, Robert arregalou os olhos.
— Aulas com o Eric? — incrédulo, William também
perguntou. Notei, inclusive, o começo de um sorriso sarcástico
querendo aparecer em seu rosto. Eu não merecia isso. Não mesmo.
Já podia prever o início de uma tiração de sarro.
E, conforme previsto, não demorou dois segundos para que
ambos começassem a rir, de fato. Droga. Era como eu sempre
falava para mim mesmo: quem tinha amigos assim, não precisava
de inimigos.
— Você e o Eric estudando juntos? — Quase sem conseguir
falar, devido a tantas risadas, Robert perguntou. — Como assim
cara?
Revirei os olhos em pura impaciência. Além de todas as
merdas que estavam acontecendo comigo nos últimos dias, eu
ainda tinha que justificar essas merdas para eles, quando, na
verdade, tudo o que eu menos queria era tocar nesses assuntos.
— Estou fodido em física e química. O diretor ligou para a
minha mãe. Estou a ponto de sair do time por causa das notas.
Minha mãe achou por bem eu ter aulas com o Eric, porque... —
interrompi a mim mesmo, dando um breve suspiro e tentando reunir
forças para continuar. Eu odiava falar sobre isso. Eu odiava falar
sobre o Eric. — Porque o Eric é inteligente, o Eric é estudioso, o Eric
é legal, o Eric é gentil, o Eric é isso, o Eric é aquilo, o Eric... Foda-
se! — com desdém, falei.
Os idiotas não pararam as gargalhadas, enquanto eu estava
lá, com cara de tacho e muito irritado.
— Boa sorte nas aulas... — em meio aos risos, Robert falou.
— Só toma cuidado pra vocês não se matarem no meio dessas
aulas, porque isso tem uma grande chance de acontecer!
O pior era que ele tinha razão. Se Eric não tomasse cuidado,
eu o matava no meio das aulas. Principalmente considerando que já
estava muito fulo da vida e que Eric gostava muito de ser
engraçadinho.
— Agora que vocês já saber da merda que tá a minha vida,
preciso ir — falei já dando as costas. Apenas ouvi quando ambos se
despediram, dizendo coisas como “vai lá, irmão” ou “boa sorte,
cara”. Realmente, algo que estava em falta para mim, ultimamente,
era sorte.
Enquanto caminhava para ir embora, sentia como se minhas
pernas estivessem se movimentando mais por impulso do que por
vontade própria. Até porque, se fosse pela minha vontade, eu
estaria, naquele exato momento, jogando Fifa, transando com
alguma garota, bebendo ou fazendo qualquer outra coisa, menos
indo à minha casa para ter aulas particulares com o Eric.
Durante todo o percurso, tentei contar até um milhão, para
acalmar os ânimos, porque eu não estava me sentindo nem um
pouco preparado para dividir o mesmo espaço com o Pateta por
uma hora. Eu tinha ouvido falar que essas contagens ajudavam a
melhorar o estresse. Entretanto, constatei na prática que isso não
servia de nada. Continuava me sentindo muito irritado.
Quando estacionei em casa, meu relógio já marcava meio dia
e meia. Lembrei que Eric tinha marcado para chegar em minha casa
às duas horas da tarde. Isso era ligeiramente perfeito, já que ainda
teria algumas horas de paz, até encontrá-lo. Pelo menos isso. Iria
almoçar, tomar banho, descansar a mente, tentar me preparar
psicologicamente, e, só então, depois disso, eu teria que lidar com
ele.
Sentindo-me dois por cento mais tranquilo, por saber que eu
ainda teria mais um tempo de folga, saí do carro e abri a porta de
casa, quando, de repente, me deparei com minha mãe muito
entusiasmada. Em geral, isso não significava coisa boa. Senti meu
coração começar a bater de um jeito diferente.
— Querido! — exclamou. — Venha almoçar. Olha que
encontro mais agradável! Eu e seu pai decidimos almoçar em casa
e, como sabíamos que o Eric viria hoje para lhe dar aula, o
convidamos para almoçar aqui também.
Que droga! Em questão de segundos, meus dois por cento
de tranquilidade foram por água abaixo. Caminhei um pouco, até o
local onde ficava a mesa, e vi todos, inclusive o Eric, que, por sua
vez, me encarou com seu típico sorriso irritante. Sinceramente, eu
não sabia o que as pessoas viam de tão legal, gentil e educado no
Eric. Para mim, ele era irritante, ou pior do que isso. Sempre. Sem
exceções.
— Mãe, estou sem fome — menti. — Vou para o meu quarto,
tomar um banho.
Por mais que estivesse na hora do almoço e minha barriga
roncasse, pedindo comida, eu faria qualquer coisa para não ficar
próximo ao Eric mais do que eu já era obrigado.
— Liam, coma, pelo menos um pouco — Dessa vez, foi o
papai que falou.
— Não, pai. Tô completamente sem fome. Sério — repliquei
já saindo rapidamente em direção ao meu quarto, sem nem esperar
pela resposta de volta. Torcia para que ainda estivesse por lá o
restante da batata frita que eu tinha pedido no delivery, na noite
passada.
Subi para o meu quarto, entrei, fechei a porta e despenquei
na cama. Até nas pequenas coisas eu estava me ferrando. Por
exemplo, ficaria sem um almoço decente naquele dia. Era para eu
estar comendo na santa paz de Zeus, era para eu tomar banho e
dormir um pouco, e, principalmente, era para o imbecil do Eric
chegar às duas horas da tarde. Merda!
Tentando não explodir de vez, tirei minhas roupas e segui
para o banheiro. Passei alguns minutos buscando relaxar debaixo
do chuveiro. Em vão, obviamente. Não tinha como relaxar sabendo
que o meu “professor” já estava lá embaixo. Na porcaria do primeiro
andar. Saco!
Saí do banho, vesti uma roupa qualquer e... Quer saber de
uma coisa? Eu ia me deitar um pouco. A aula estava marcada para
às duas da tarde. Ainda era uma hora e eu não ia adiantar o horário
da maldita aula nem se chovesse no deserto. Dormir até às duas
horas era o melhor que eu podia fazer. Isso sim.
Ajeitei minha cama, mas, quando já estava pronto para
deitar...
— Liam! — ouvi minha mãe bater na porta. Ah não, cara. Ah
não! O que foi, dessa vez?! — Eu e seu pai vamos voltar para o
trabalho agora. Mas, Eric está lá embaixo com a Molly. Vocês já
podem começar a aula, tudo bem?
Quê?
Nem dormir eu podia mais! Não conseguia acreditar que essa
aula teria que começar com uma hora de antecedência. Era um
absurdo. Eu, com certeza absoluta, estava pagando por todos os
meus pecados.
— Tudo bem, mãe — Mesmo a contragosto, respondi e, em
vez de abrir a porta para ir atrás daquele imbecil, me joguei na
cama, completamente derrotado. As coisas, para o meu lado, não
melhoravam, apenas pioravam.
— Até mais tarde, querido! — a ouvir indo embora. — Depois
vou querer saber como foi a aula!
Onde aperta para desparecer?
O fato era que eu não tinha para onde fugir. Eu tinha que
encarar essa maldita aula. Inclusive, era melhor descer, para
chamá-lo, e começar o quanto antes. Assim, eu estaria livre logo.
Respirei fundo, reunindo forças, e me levantei da cama. Abri a porta
com pesar. Desci as escadas como se estivesse indo a um velório e,
quando cheguei ao andar inferior, na sala de estar...
— Que merda é essa?! — disparei com os olhos bem
arregalados.
Eric e Molly estavam dando um amasso gigante no sofá. Na
verdade, eles estavam praticamente transando. Fiquei atônito com
tamanho da pouca vergonha bem embaixo do meu teto.
Certamente, eles aproveitaram que meus pais tinham saído para o
trabalho.
Minha voz grave, no entanto, foi o suficiente para fazer com
que Molly se assustasse e saísse rapidamente de cima do Eric. Pelo
menos, eram só beijos, e não coisa pior. Se fosse, eu estaria
seriamente traumatizado por ver minha irmã fazendo algo assim, e o
Eric estaria realmente fodido. Eu iria acabar com ele.
— O Eric veio aqui para me dar aula, Molly! — enfatizei a
parte sobre ele estar ali por causa de mim, e não por causa dela. —
Ele não veio para ficar aqui se amassando com você! — despejei
com o todo o ódio que eu estava sentindo por tê-los visto em tal
situação.
— Calma, Liam... — Enquanto se ajeitava no sofá e colocava
sua roupa no lugar, Molly replicou com sarcasmo. Aparentemente,
ela tinha conseguido ficar ainda mais insuportável depois dessa
estupidez de se tornar namorada do Eric. — Não precisa ficar com
ciuminho...
Ci-Ciúme?! Que ciúme o quê?!
Molly estava nitidamente querendo testar a paciência de
alguém que já tinha perdido toda a tranquilidade. E isso não era a
coisa mais inteligente a se fazer.
— Não é questão de ciúmes, Molly — seriamente, respondi.
Será que eu era a única pessoa inteligente naquela casa? Nem
meus pais, nem a Molly, conseguiam reconhecer a péssima
influência que o Eric era para minha irmã? — Eu já disse e repito.
Eric não é homem para você.
Assim que calei, Eric soltou uma boa risada.
Eu ainda não sabia de onde tinham tirado que o Eric era um
cara educado. Ele era super desrespeitoso, isso sim. Tudo bem que
eu não era o poço de respeito para o lado dele, mas, mesmo assim,
sua pose de bom moço não me convencia.
— Essa história sobre eu não ser homem para a Molly já está
batida, Liam — falou, balançando a cara em negativo. Seu
semblante fazia pouco de mim. — Vamos logo estudar, antes que
você comece a falar mais besteira.
Soltei a respiração pelo nariz, forte.
— Imbecil... — resmunguei. — Sobe a escada. Vai ser lá no
meu quarto. — Mesmo com nenhuma vontade de fazer isso, falei. —
As regras não mudaram. Não toque em nada — adverti.
As regras não tinham mudado mesmo. Esperava que ele se
comportasse no meu quarto. Nunca gostei de tê-lo lá. Ele, ao
contrário, sempre gostou. Quer dizer, eu não sabia se ele ainda
continuava assim, anos mais tarde, mas, pelo menos quando
éramos crianças, ele gostava.

...
Aquele dia seria a primeira vez que o Eric iria dormir na
minha casa. Como se não bastasse passar o dia todo brincando
com a Molly, ele ainda ia dormir também. O pior: eu tinha certeza de
que aquela seria a primeira de muitas outras vezes. Se tornaria
frequente, infelizmente.
Para completar, mamãe teve a brilhante ideia de colocá-lo
para dormir no meu quarto. Isso era absurdo. Nem privacidade eu
tinha. Inclusive, eu nunca tinha deixado Eric entrar ali e, logo no
primeiro dia em que ele ia dormir na minha casa, eu teria que dividir
meu quarto com ele. Mamãe tinha, até mesmo, colocado uma cama
ao lado da minha.
Saco.
De repente, ouvi batidas na porta. Devia ser o Pateta,
infelizmente. Quando abri, dei de cara com ele, justamente Eric,
usando uma mochila maior que si próprio. Mesmo a contragosto,
abri caminho para ele passar. Afinal, se eu desobedecesse a
mamãe, meu couro ia esquentar.
— Sua cama é aquela do lado direito — sem vontade,
apontei.
Antes de se deitar, no entanto, Eric parou no meio quarto e
olhou em volta, abismado. Eu diria que, até mesmo, maravilhado.
Suas orbes brilhavam e sua boca estava levemente entreaberta. Era
como se ele tivesse descoberto um parque de diversões.
— Liam... Seu quarto é tão legal... — Ainda sem tirar os olhos
das minhas coisas, ele falou. Eric nem piscava. — Você tem tantos
carrinhos... Todos são lindos — e, sorrindo, se aproximou da minha
estante de brinquedos.
Epa! Ele não podia tocar em nada dali!
— É, eu sei que é tudo incrível — convencido, repliquei e
rapidamente fechei a porta, caminhando, logo depois, até ele, e
impedindo que ele pusesse suas mãos sobre qualquer coisa. —
Mas não toque em nada — continuei. — Em nenhum brinquedo. Em
nenhum carrinho. Não pode.
Seu sorriso, entretanto, desapareceu tão rápido quanto eu
me apressei para salvar meus pertences.
— Por quê? — apertou os olhos com tristeza. Era tão
aparente. — A gente podia brincar um pouquinho antes de dormir...
Seria tão legal... — suspirou. — Vamos brincar um pouquinho de
carrinho? Eu trouxe uns pra...
O quê? Quem ele pensava que eu era? Eu não precisava de
mais um amigo para brincar. Já tinha amigos o bastante. Além do
mais, se eu quisesse ser amigo de mais alguém, Eric seria a última
pessoa que eu escolheria.
— Não, Eric — o interrompi antes que ele conseguisse
terminar a frase. — Eu não quero brincar com você. Vou dormir.
Pode ir pra sua cama também.
Seu olhar se tornou ainda mais triste.
— Mas... — Ainda tentou falar mais alguma coisa.
— Não quero brincar — eu, no entanto, o interrompi. Além de
não querer brincar, não estava a fim de prolongar aquela conversa
por mais tempo. O melhor que podíamos fazer era dormir.
Eric, por sua vez, triste, baixou a cabeça e seguiu até sua
cama. Notei-o trocando de roupa e vestindo um pijama, enquanto eu
também ia para minha cama.
— Boa noite, Liam — cabisbaixo, falou.
Pouco me importando com ele, apenas respondi:
— Apaga a luz.
— Mas é você quem está em pé, Liam — replicou.
— Não estou mais — e, em um pulo, deitei em minha cama,
cobrindo-me com o edredom. Virei-me e dormi.

...

Ao entrarmos em meu quarto, Eric girou sobre os pés e


soltou um pequeno assobio irônico, ao observar envolta. Deu uma
boa olhada em tudo e liberou um pequeno riso pelo nariz. Ele era
realmente desagradável. Certamente, estava pensando em alguma
coisa para me tirar do sério.
— Vejo que você tem toda a coleção de carrinhos na
estante... Mas, calma! — arregalou os olhos, erguendo as mãos. —
Eu não vou tocar em nenhum. — Com sarcasmo, falou. — Será que
eu, pelo menos, posso puxar uma cadeira? Ou vou ter que passar
uma hora em pé porque não posso tocar em nada?
Seu estúpido sarcasmo estava gritante!
— Por mim, você poderia ficar em pé até não aguentar mais
— semicerrando os olhos para ele, repliquei. — Mas puxa aí uma
das cadeiras da escrivaninha — apontei com o queixo.
— Opa, então deixa eu me sentar logo, antes que você mude
de ideia. — Apressando sarcasticamente para pegar a cadeira,
sorriu. Ele era um idiota. Após isso, retirou alguns livros de sua
mochila e virou-se para mim. — Hoje a gente pode começar com
física. O que acha?
Acho que você deveria sumir.
— Tanto faz — dei de ombros.
— Beleza. Então, pega teu livro e teu caderno de física.
Mesmo sem vontade, abri uma das gavetas da escrivaninha,
e retirei meu material. Afinal, se eu não fizesse isso, além da minha
mãe tirar o meu couro, eu ainda poderia ser expulso do time. Por
mais ruim que fosse esse pesadelo de aulas com o Eric, eu não
tinha escolha. Assim, coloquei tudo na frente dele, que, logo depois,
pegou um lápis e começou a folhear o livro.
— Bom, acho melhor a gente iniciar pelo assunto de cargas
elétricas, que fala do princípio da atração e da repulsa e que
também foi o primeiro assunto que o professor explicou pra turma.
— Tanto faz. Começa aí — disse, meio sem paciência.
Quanto antes começasse, mais cedo iria acabar.
— Cara... — Eric começou a explicação. — Primeiro de tudo,
pra você entender o princípio da atração e da repulsão, é preciso
saber que um corpo pode ser eletricamente neutro, eletricamente
positivo e eletricamente negativo. Para ser neutro, o número de
prótons, que são partículas positivas, deve ser o mesmo que o de
elétrons, que são partículas negativas. Para ser positivo, o número
de prótons tem que ser maior que o número de elétrons. E, para ser
negativo, o número de elétrons tem que ser maior que o número de
prótons. Entendeu?
Mais ou menos...
— Então, em corpos neutros as partículas positivas e
negativas são iguais, em corpos positivos têm mais prótons e em
corpos negativos têm mais elétrons? — perguntei.
— Isso mesmo — sorrindo de entusiasmo, confirmou. — No
caso do princípio da atração e da repulsão, corpos de sinais iguais
se repelem e corpos de sinais diferentes se atraem. Por exemplo,
dois corpos positivos se repelem, dois corpos negativos também se
repelem, mas um corpo positivo e um corpo negativo se atraem.
E, então, um pouco “viajando” no assunto e, repentinamente,
de maneira quase displicente, falei algo mais pra mim do que para
ele:
— É que nem aquele ditado de que os opostos se atraem...
— É isso aí — replicou. — Esse ditado surgiu a partir desse
assunto da física.
Tentando voltar para a realidade, até porque eu nem sabia ao
certo no que estava pensando, falei:
— Entendi. Então, pode continuar aí.
Mesmo sem querer admitir isso para mim mesmo, comecei a
me dar contar de que o Eric explicava bem. Muito bem.
Claro. Será que tinha alguma coisa que esse cara não sabia
fazer?
— Bom, a gente pode resolver um exercício sobre isso, pra
fixar melhor o conhecimento — sugeriu. — Lê a primeira questão
das atividades propostas — e arrastou o livro em minha direção.
— Tá — concordando, aproximei mais o livro. — Um bastão
eletricamente carregado atrai uma bolinha condutora X, mas repele
uma bolinha condutora Y. As bolinhas X e Y se atraem, na ausência
do bastão. Sendo essas forças de atração e repulsão de origem
elétrica, o que se pode concluir? — Nossa, entendi tudo! Virei meu
rosto para Eric e observei com cara de tacho. — Eu entendi tua
explicação, mas não entendi merda dessa questão.
Um pequeno sorriso formou-se em sua boca.
— Calma... — e puxou o livro para si. — Eu resolvo contigo.
Só vou dar uma lida novamente.
Então, segurou um lápis e voltou sua atenção para a questão.
Seus olhos pareciam muito atentos e, toda essa atenção, também
me fez notar algumas coisas que, em outros momentos, poderiam
passar despercebidas. Por exemplo, Eric fazia um biquinho com a
boca, enquanto lia e pensava. Era engraçado, confesso. De fato, eu
nunca tinha reparado nisso. Cheguei até a me perguntar se eu
também fazia esse tipo de biquinho. Mas, não, claro. Se eu fizesse,
alguém já teria percebido. Para completar, o biquinho do Eric era
bem proeminente.
Vi quando deu um breve suspiro, enquanto alternava entre
rabiscar algumas coisas e parar. Parecia estar resolvendo a questão
primeiro, para depois me explicar. Em dado momento, ele mordeu
um pouco o lábio inferior, e, logo depois, foi soltando aos poucos.
Inexplicavelmente, senti algo estranho dentro de mim. Algo meio
doido.
Por que eu estava mesmo reparando tanto em sua boca
infeliz?
Como se não bastasse, além da mordida, ele também passou
a língua entre os lábios. Era como se eu estivesse vendo tudo em
câmera lenta. Eu nunca tinha percebido que os lábios de Eric eram
tão cheios e proeminentes de um jeito... Sexy. Na verdade,
pensando bem, eu nunca tinha visto alguém com uma boca tão
sexy.
Como eu nunca tinha reparado nisso?
Isso era porque eu nunca prestava atenção nele ou porque
estávamos perto demais?
Aliás, espera. Eu tinha realmente pensado sobre tudo isso
em relação ao Eric?!
Quando me dei conta, instantaneamente me remexi na
cadeira e cocei a nuca, desconfortável. Eric, por sua vez, percebeu
e desviou sua atenção do livro para mim.
— O que foi? — perguntou.
Eu apenas estava reparando demais na sua boca, imbecil.
— Na-nada — falei.
Assentindo de leve com a cabeça, mas ligeiramente confuso,
voltou sua atenção para o livro. E não demorou mais que meio
minuto para que sua boca voltasse a me atormentar. Agora, ele
tinha acabado de colocar o lápis entre os lábios.
Pelo amor de todo os deuses, o que estava acontecendo
comigo?
O fato era que sua boca estava realmente atrativa. O que
tinha começado com “achar engraçado o modo como os lábios
formavam um biquinho”, passou para atenção, depois admiração e,
agora, atração... Sim, atração. Que merda!
Talvez sua boca fosse realmente boa de beijar, como diziam
algumas pessoas.
Talvez eu... Estivesse curioso sobre isso.
Quê?
Meu Zeus, eu tinha mesmo pensado tudo isso a respeito do
Eric?! Senti um calor um calor subir, quando meu subconsciente,
contra a minha própria vontade, me respondeu um grande e
absurdo “sim”. Realmente um absurdo mesmo, porque eu não era
assim. O verdadeiro Liam era homem, macho, hétero, e não ficava
achando sexy a boca de outro cara!
O que estava acontecendo comigo?
Eu precisava de ajuda!
De supetão, me levantei da cadeira, pegando Eric de
surpresa. Ele se assustou um pouco com a minha velocidade,
porque ainda estava muito concentrado no livro. Notei quando ele
olhou para mim, com o cenho franzido.
— O que aconteceu, Liam?
Caminhei pelo quarto, sem olhar para ele, e fui em direção à
janela. Eu precisava de ar puro.
— Tá calor aqui, né? — falei, esgarçando um pouco a gola da
camisa.
— Calor? — confuso, questionou. — Tô achando não... Tá
normal.
Óbvio, não era ele quem tinha ficado admirando a boca de
outro cara.
— É, mas eu tô achando quente — abri a janela e respirei
fundo.
— Liga o ar-condicionado. É melhor do que deixar a janela
aberta — prático, Eric sugeriu.
Claro que não!
A janela ainda me dava uma boa distância dele, até porque,
além de ar, eu também precisava de espaço, antes que eu fizesse
ou pensasse mais alguma besteira.
— Me-Melhor a janela — meio desnorteado, repliquei.
Não se dando por convencido, Eric, com o cenho franzido, se
levantou da cadeira e tentou se aproximar de mim, para o meu
completo desespero.
— Cara, você tá bem?
Claro que não! Eu passei minutos obcecado por sua boca e
ainda fiquei seriamente curioso sobre seu beijo! Claro que eu não
estava bem!
Entretanto, obviamente não respondi nada disso. Fiquei
calado, tentando lhe oferecer um semblante quase impassível. Eu
até o deixaria perceber que algo estava acontecendo comigo, mas
jamais o deixaria saber que ele era o problema.
— Tá precisando de alguma? — tornou a perguntar, quando
ficou sem resposta, e se aproximou mais um pouco.
Cara, não chega perto! É perigoso!
Automaticamente, me desviei dele. De fato, eu não era uma
das pessoas mais equilibradas em situações assim. Uma das
minhas maiores características era a impulsividade. Quando eu
queria algo ou desejava algo, eu fazia ou ia atrás. Então, somando
isso, com todas aquelas ponderações que eu estava fazendo sobre
a boca do Eric, o resultado não disso poderia não ser bom.
— Cara, eu tô me sentindo mal — falei. — Quero que você vá
embora agora.
Eric, porém, ainda não estava se dando por satisfeito. Ele
queria saber o que estava acontecendo, enquanto eu já estava
ficando louco com isso.
— Se sentindo mal? — arregalou os olhos com uma
estampada preocupação. — O que você está sentindo? — e, então,
se aproximou tão rápido de mim, que eu não tive tempo nem de me
desviar.
Suspirei, quando o senti tão perto de mim. Minhas forças
pareciam ter se esvaído.
— Sai de perto, Eric — pedi em um tom que nunca usei com
ele. Quase um sussurro.
Ele, por sua vez, enrugou ainda mais a testa e segurou meu
braço, olhando bem para os meus olhos, como se fosse um médico
tentando diagnosticar um paciente.
— Você deve tá mal mesmo, até me chamou de Eric — Sim,
ele já devia estar acostumado com idiota, imbecil, pateta e tantos
outros adjetivos nada carinhosos. — O que você tem? Quer água?
Quer algum remédio?
Ah não. Não, não, não. Ele precisava sair de perto dele.
Eu só queria ter forças para empurrá-lo.
Por que estava tão difícil afastá-lo? Eu sempre consegui fazer
isso.
— Eric... — Ainda abalado, falei. — Só sai do quarto.
— Por quê? — confuso, enrugou o cenho mais uma vez. —
Eu não vou te deixar sozinho, se você está se sentindo mal.
Porque eu acho que quero beijar você, seu idiota.
Eu tô virando mulher?

Liam

— Sério, Liam, me fala o que tá acontecendo contigo — Eric


continuou segurando meu braço. — Eu não vou sair desse quarto.
Eu quero te ajudar. Você estava bem e de repente... — interrompeu
a si mesmo, fazendo uma cara de quem estava tentando entender o
que estava acontecendo.
Apesar do meu estranho estado de completa inércia e
fraqueza, por tê-lo tão perto de mim, algo se remexeu de maneira
mais forte dentro de mim, quando baixei o olhar para sua boca outra
vez. Um sinal veio claro em minha mente: ele precisava sair de
perto de mim. Esse idiota precisava sair do meu quarto.
— Seu imbecil... — puxei meu braço, de supetão, fazendo
com que ele me soltasse. — Eu não estou me sentindo bem e quero
ficar sozinho. Ou seja, não quero a sua companhia. — Porque vou
ficar louco se baixar meu olhar pra sua boca mais uma vez. — Será
que dá pra entender?
Eric suspirou em derrota. Ele já me conhecia e sabia que eu
sempre fui cabeça dura.
— Eu vou chamar a Molly. Pode ser que a ajuda dela você
aceite — virou-se e caminhou em direção à porta. Quando tocou na
maçaneta, entretanto, ainda volveu o rosto para mim e... — Tem
certeza que não quer minha ajuda?
O que eu queria, na verdade, era parar de olhar para a sua
boca.
— Não. Vai embora — foi tudo o que respondi.
Há muito tempo, eu não via esse semblante em seu rosto,
por algo que eu tenha feito para machucá-lo. Talvez, a última vez
tenha sido ainda na infância. Mas, consegui enxergar um leve traço
de tristeza em seu olhar, misturado com preocupação
— Fica bem, Liam — em um quase tom de sussurro, ele falou
e saiu.
Por alguns instantes, ainda observei a porta fechada,
refletindo sobre o que tinha acontecido. Era tudo um absurdo. Meus
pensamentos, definitivamente estavam me traindo. Eu, jamais,
poderia imaginar que, um dia, chegaria ao fundo do poço dessa
forma.
Decepcionado comigo mesmo, me joguei na cama.
Eu devia estar ficando louco. Definitivamente, era isso.
Estava me sentindo tão mal, mas tão mal, que cheguei à conclusão
de que, talvez, a única coisa que conseguiria me reerguer seria uma
boa e velha bebida alcoólica, mais especificamente Vodca.
Sim, eu precisava beber! Sairia, naquele mesmo instante,
para um pub, o primeiro que eu visse aberto. Ainda estava de tarde,
mas, certamente, algum deveria estar aberto. Decidido, levantei-me
da cama e, quando comecei a trocar de roupa, ouvi meu celular
chamar.
Visualizei o registro. Era o treinador, Sr. Jones. Merda. Para
ele me ligar, alguma coisa devia ter acontecido. Eu só esperava que
não fosse nada que atrapalhasse os meus planos de beber. Eu já
estava fodido demais. Não precisava de mais uma desgraça na
vida.
— Sr. Jones — atendi.
— Olá, Liam. Tudo bem?
Não.
— Sim, Tudo bem, Sr. Jones — menti. — Aconteceu algo?
— Estou te ligando apenas para lembrar o horário que você
deve chegar ao colégio amanhã para me ajudar — advertiu. — O
ônibus vai partir rumo à Oxford às nove horas da manhã. Então,
você deve chegar às oito.
Ah sim, claro, droga!
Minha confusão mental estava tão grande, que eu já tinha me
esquecido de que no dia seguinte seria a viagem para a abertura do
campeonato, e que, por isso, eu precisava chegar cedo ao colégio.
— Claro, Sr. Jones. Estarei lá às oito.
— Ótimo, Liam. Então, até amanhã — e desligou.
Merda.
Eu não tinha a mínima condição de ir beber. Se eu fosse ao
pub, do jeito que estava doido para encher a cara de álcool, iria ficar
de ressaca e não conseguiria acordar cedo, no outro dia. Até nisso,
a vida estava brincando com a minha cara.
Um completo cara sem sorte.
Me joguei na cama outra vez e me enterrei ainda mais na
merda que a minha vida tinha se tornado. Nem beber, para
esquecer o que tinha acontecido, eu podia. Queria transar, queria
beber, queria assassinar o Eric. Eu estava enlouquecendo.
Soquei o travesseiro uma, duas, três vezes, até que, de
repente, ouvi batidas na porta.
— Liam? — era a Molly. — A porta tá trancada. Abre.
Pressionei meu rosto contra o travesseiro, sentindo minha
raiva aumentar. Eu não queria ver ninguém e não queria falar com
ninguém. Odiava saber que Eric tinha contado a minha irmã o que
havia acontecido. Não queria dar satisfações. Nenhuma pessoa
poderia saber o real motivo, muito menos ela.
— Sai daqui, Molly! — disparei.
— O Eric me disse que você está se sentindo mal —
continuou, mesmo sabendo que não era bem-vinda ali. — O que tá
acontecendo? Abre a porta!
Ah meu Deus, por culpa do Eric isso tinha se tornado um
evento. Aquele idiota.
— Eu vou ficar bem. Vai embora! — Ainda deitado na cama,
respondi.
Molly, no entanto, não se deu por satisfeita.
— Liam, abre essa porta!
— Quero ficar sozinho! Que saco! — repliquei.
— Então, morre aí, seu imbecil — irritada, finalizou. Ouvi
seus passos se distanciando.
Graças a Poseidon, ela tinha ido embora. Tudo o que eu mais
queria era ficar sozinho. Se não podia encher a cara de tanto beber,
então que me deixassem sozinho. Até porque, em hipótese alguma,
eu contaria a alguém o que tinha acontecido. Era demais pra mim.

❖❖❖

Depois do ocorrido, passei o resto do dia no quarto. Fiquei


tanto tempo olhando para o teto, que acabei dormindo até o outro
dia. Meus pais ainda bateram na porta do quarto e quiseram
conversar comigo, mas eu simplesmente não os atendi.
Quando acordei, preparei tudo para a viagem e desci para o
café da manhã. Minha mãe quase saltou em cima de mim,
perguntando se eu realmente estava vivo, enquanto meu pai
perguntou se eu queria ir ao médico. Molly quase me bateu por eu
ter trancado a porta. Obviamente, inventei uma desculpa para eles.
Falei que tinha sentido muita dor de cabeça e que não
consegui continuar estudando. Eles, por incrível que pareça,
acreditaram. Milagres podem acontecer. Aliás, Zeus devia isso a
mim, por permitir que tanto azar estivesse acontecendo na vida de
uma só pessoa.
Eu nunca, em toda a minha vida, tinha me sentido daquele
jeito.
Eu estava virando mulher?
Que merda. Não, eu era homem, macho, hetero.
No final do café da manhã, eu só precisei dizer que já estava
melhor e que tinha pegado alguns comprimidos de Advil, para a dor
de cabeça passar. Disse também para não se preocuparem, porque
eu não ia jogar naquele dia. Apenas teria que participar da
cerimônia de abertura do campeonato.
Meu pai ainda me deu uma carona até o colégio, para que eu
pudesse chegar mais cedo e ajudar o técnico na organização de
tudo. Permaneci o caminho inteiro calado, enquanto ainda refletia
sobre tudo. Calado entrei, calado fiquei, calado saí. Talvez eu
tivesse adquirido um trauma depois daquela aula particular.
Mas, aquele era um novo dia, uma nova história. Eu nunca
mais, nunca mais, sentiria o mesmo do dia anterior. Nunca mais
ficaria fazendo ponderações sobre a estúpida boca de um estúpido
cara. Tudo não passou de um pequeno deslize que não iria se
repetir. Não mesmo! Ou eu não me chamava Liam Wyman Tremblay
Terceiro!
— Tá melhor, irmão? — ouvi uma voz falar atrás de mim,
enquanto colocava algumas malas no bagageiro do ônibus,
conforme o técnico tinha pedido.
Quando me virei, dei de cara, justamente, com ele, Eric. Ah,
Thor! Estava de tênis, camiseta sem manga, o que deixava seus
definidos músculos totalmente evidentes, além de uma bermuda
jeans, que deixava sua bunda estupidamente gostosa. Eric estava
meio de lado, então, eu conseguia ver perfeitamente bem.
Quê?
Por Deus! Eu tinha acabado de pensar isso mesmo?
Que merda estava acontecendo comigo? Eu estava virando
uma mulher mesmo?
Aquele dia era para ser diferente, não pior que ontem. Talvez,
se eu pulasse da Tower Bridge, eu pudesse me ver livre desses
pensamentos totalmente absurdos e inconvenientes.
— Liam? — Com o cenho franzido, Eric estalou os dedos na
minha cara, como um sinal para que eu “acordasse”. Sim, eu já
estava em transe, de novo, ao observá-lo. Uma verdadeira luta
interna.
Pisquei os olhos repetidas vezes, tentando recobrar a
consciência, e...
— Quê... Quê... — pigarreei a garganta, retomando a
postura. — O que você quer, porra?
Ele suspirou, dando-me uma bela cara de tédio.
— Já disse... Saber como você está.
Como eu estava? Como eu estava?! Cada vez mais afogado
na merda? Sim!
— Tô bem, tô bem... — tentando não lhe dar trela e olhando
para todos os lugares possíveis, menos para ele, respondi
rapidamente. A tentativa era válida. Talvez, quanto mais eu o
tratasse com indiferença, menos aqueles pensamentos esquisitos
iriam retornar à minha mente, provavelmente.
Entretanto...
— Ah, que bom! — Eric sorriu. Ele sorriu! E foi impossível
não olhar para sua boca bonita e seus dentes perfeitos. Que boca
era aquela, meu Deus? Era impossível não lembrar sobre os boatos
que diziam que ele beijava bem. — Eu fiquei preocupado. A Molly
me falou que você passou o resto do dia no quarto. O que
aconteceu, afinal?
O que aconteceu? O maior pesadelo da minha vida, filho!
Admirei sua boca, fiz ponderações sobre ela e fiquei
imaginando, na prática, os boatos sobre os seus beijos. E isso tinha
passado? Não, não tinha! Eu continuava assim, naquele exato
momento, seu imbecil.
Zeus, Poseidon, Hórus, Buda, Thor, por que isso não
passava?
Eu não queria sentir isso!
— Não é da sua conta — tentando manter minha
compostura, repliquei com frieza e indiferença. — Agora cai fora
daqui, porque preciso terminar de ajeitar essas malas.
Levando quase tudo na esportiva, como ele, quase sempre,
fazia, soltou um risinho pelo nariz, balançando a cabeça.
— Tá bom, mocinha da tpm eterna — Com seu típico e
estúpido sarcasmo, falou. — Só toma cuidado pra não morrer com
teu próprio veneno, boneca.
Imbecil!
— Vai se foder! — falei.
Eric apenas me lançou seu “melhor” sorriso irônico, deu-me
às costas e caminhou em direção aonde alguns caras do time
estavam. Idiota, imbecil. Até de costas ele era bonito. Eu precisava
de tratamento psicológico urgentemente!
Com exasperação, virei-me de volta para o bagageiro e
retomei o meu trabalho de arrumar as malas. Eric tinha se
aproximado apenas para acabar com minha paciência, que já era
muito pequena. Quer dizer... Além de ter tirado meu resto de
paciência, ele também deixou sua mala ali.
Peguei-a e joguei de qualquer jeito dentro do bagageiro. Se
eu pudesse, a deixava no meio da rua mesmo. Seria hilário vê-lo
sem mala em Oxford. Ele ficaria bem ferrado. Talvez não fosse uma
má ideia. Talvez eu realmente devesse fazer isso. Afinal, eu não me
importava mesmo com ele. Seria merecido por tudo o que estava
me fazendo passar e sentir.
Assim, levei minha mão em direção à sua mala, que já estava
dentro do bagageiro. Entretanto, no instante em que ia pegá-la para
deixá-la no meio da rua, ouvi a voz do treinador.
Estremeci.
— Liam, você já terminou de organizar as malas, não é?
Agora pode organizar o time dentro do ônibus.
Que droga! Por que a vida não me ajudava nem nos meus
planos maléficos?
O Pateta foi salvo pelo gongo.
— Ok, Sr. Jones. Vou agora mesmo — respondi.
Caminhei a contragosto, em direção ao time, porque, na
verdade, o que eu queria mesmo era ter deixado a mala do Eric no
meio da rua. Tentando ser obediente ao treinador, afinal ele era uma
parte do meu passaporte ao futebol da universidade, comecei a dar
as primeiras orientações, quando cheguei próximo o bastante dos
caras.
— Ei, atenção — Com o semblante de poucos amigos, que já
era meu quase que naturalmente, disse. — Hora de entrar no
ônibus. Tem dois andares. No andar de cima...
— Nossa, que mau humor, heim? — De repente, a voz
sarcástica do Eric soou em meio aos outros, interrompendo-me.
Todos riram com esse péssimo comentário dele, que poderia muito
bem ser evitado.
Por que ele não sabia ficar quieto? Eu já estava com tão
pouca paciência.
Otário.
— Cala a boca, Eric — resmunguei e, logo depois, voltei às
instruções. — No andar de cima vai o time. No andar de baixo vai a
coordenação do time. Façam uma fila para entrar no ônibus. Vou
dizer o lugar de cada um.
Rapidamente, o time se organizou em fila, enquanto eu
indicava os assentos de todos. Eric mal podia esperar pelo que
estava por vir. Eu tinha que me vingar de tudo, de alguma forma.
Assim, depois que todos os jogadores já estavam acomodados, foi a
vez do Pateta.
— Última poltrona do ônibus, ao lado do banheiro — indiquei.
Um pequeno sorriso sarcástico se formou em seus nojentos
lábios. Ele sussurrou em meu ouvido:
— Me colocou na pior poltrona, não é, meu amor? —
escorrendo deboche pelos cantos de sua boca, ele me deu dois
tapinhas de leve no rosto e entrou no ônibus.
Idiota!
Se o técnico não estivesse presente, com certeza absoluta,
Eric teria o que merecia, e seria muito mais do sentar em uma
poltrona ao lado do banheiro. Era muito atrevimento mesmo de sua
parte. O episódio no campo, na última semana, não foi o suficiente
para acabar com a minha vontade de socar seu rosto.
— Liam, pode ir para o seu lugar — ouvi o técnico falar. — O
resto é comigo.
Ainda irritado, segui para o meu assento. Não demorou muito
para que o ônibus saísse rumo à Oxford. Ao meu lado estava o
William. Enquanto ele lia um livro qualquer, eu tirei meu celular do
bolso e coloquei os fones de ouvido. Escolhi uma música e encostei
minha cabeça na poltrona. Em poucos segundos, eu já estava
dormindo.

❖❖❖

— Ei, bela adormecida, acorda! — senti alguém me


chacoalhar. Assim que abri os olhos, com o cenho franzido, e, meio
desorientado, devido ao sono, vi o William. Só podia ser. — A gente
já chegou ao hotel de Oxford.
Nossa, já?
De Londres para lá, demorava umas duas horas de ônibus.
Eu tinha dormido isso tudo?
Rapidamente, me levantei da poltrona e segui o fluxo que
descia do ônibus.
Ao pisar “em terra firme”, ergui meu olhar em direção ao
hotel. Era relativamente alto, devia ter uns dez andares. Mas, sem
dúvidas, era muito luxuoso. Uma das vantagens de se estudar no
Colégio Regent era isso: eles tinham grana, muita grana para
bancar o time.
— Caros, peguem as malas de vocês no bagageiro e sigam
para o saguão. Lá eu vou dar as orientações sobre os quartos — o
técnico se pronunciou.
Caminhei em direção ao bagageiro, retirei minha mala, assim
como os outros estavam fazendo, e segui rumo ao saguão do hotel.
Ao longo do caminho, os funcionários nos cumprimentavam, dando
bom dia e sorrindo. Eu ignorei todos. Se eu já não era uma das
pessoas mais simpáticas do mundo, naquele dia eu não estava
conseguindo ser nem um pouquinho.
Entretanto, quando olhei de relance para o meu lado, lá
estava o Eric, cumprimentando todos, eu disse todos, os
funcionários. Que nojo. Eu tinha verdadeira repulsa a toda essa
simpatia dele. Não sabia nem mesmo como ele aguentava a si
próprio. Eu não duvidava que tudo não passasse de puro
fingimento. Ninguém conseguia ser tão simpático e educado assim.
Era cansativo.
— Pessoal, se aproximem de mim mais um pouco — o
técnico acenou com as mãos. — Nós vamos ocupar os dois últimos
andares do hotel. Em cada quarto, ficarão dois jogadores. O critério
de divisão dos quartos, desta vez, foi pelo número da camisa.
Portanto, camisas 1 e 2 no quarto 101, camisas 3 e 4 no quarto 102,
camisas 5 e 6 no quarto 103, camisas 7 e 8 no quarto 104, camisas
9 e 10 no quarto 105, e assim por diante. Para quem quiser, estou
em mãos com a divisão dos quartos — balançou um papel. —
Podem vir olhar.
Ok, eu era o camisa 10, mas, quem era mesmo o camisa 9?
Camisa 9... Camisa 9... Espera! O camisa 9 não era o...
— E aí, bonequinha! Vamos subir para o quarto? — Uma voz
extremamente conhecida falou ao meu lado.
Quando volvi o rosto, era Eric.
Posso te ajudar no banho?

Liam

Bonequinha? Subir? Quarto? O quê?!


Não, não, calminha aí! Eu tinha perdido alguma coisa? Talvez
o meu juízo? Isso era algum tipo de brincadeira? Isso era algum tipo
de... Merda? Onde estavam as câmeras da pegadinha da televisão?
Sem pensar duas vezes, não me dei nem ao trabalho de
responder o imbecil, apenas segui obstinadamente em direção ao
local onde o técnico estava, determinado a não aceitar, sob hipótese
alguma, aquela situação.
— Sr. Jones, eu posso ver o papel com a divisão dos
quartos? — pedi.
Quando ele me entregou, passei meu olhar atentamente em
cada letra. Fiz a contagem dos quartos e fiz a contagem dos
jogadores, tentando encontrar alguma brecha que me impedisse de
dividir o mesmo quarto com o idiota do Eric. Entretanto, nada
colaborava. Como sempre.
Será que tudo isso era castigo por eu não ser uma das
melhores pessoas para se conviver, Zeus?
— Sr. Jones, não há a possibilidade de eu dormir em outro
quarto? — Quase em tom de súplica, perguntei, enquanto o devolvia
o papel. Era uma maré de azar muito grande. Ao menos o técnico
deveria me ajudar.
— Não, Liam — ele logo respondeu. — Os quartos foram
reservados sob medida, de acordo com a quantidade de pessoas.
Merda. Não podia ser assim. Tinha que haver alguma saída!
— E se eu trocasse de quarto com algum jogador? — Com
grande expectativa nos olhos, sugeri, como se fosse a melhor
alternativa. Tinha que dar certo. Era minha última carta na manga.
O técnico, entretanto, logo franziu o cenho para mim. Isso
não era um bom sinal.
Droga.
— Liam, qual o seu problema hoje? — questionou. — Você
nunca se opôs às divisões de quartos. Você sabe que a divisão é
previamente feita e que os quartos são reservados e preparados de
acordo com essa divisão. Trocas não são cabíveis.
Mas que inferno!
— Sr. Jones... Tem certeza? Talvez se eu... — tentei insistir.
O técnico, no entanto, me interrompeu de pronto.
— Liam, o problema é o Eric?
Claro! O Eric sempre era o problema!
— Não exatamente... — Ainda tentei disfarçar.
— Eu sei que o problema é ele, Liam — me interrompeu mais
uma vez. — Mas, você precisa entender que o Eric é um membro do
time agora. Ele não é mais seu adversário. Ele não é mais do time
oposto. Essa rixa entre vocês precisa parar. Ele é seu companheiro
de time. Então, vá para o quarto, porque eu tenho outros jogadores
para atender.
Isso só podia ser obra do capeta.
Será que as coisas tinham como ficar piores?
Inconformado, mas sem ter como fazer nada, a não ser
obedecer, dei meia volta e segui, a contragosto, em direção ao
elevador. Todos pareciam animados por termos chegado para a
abertura do campeonato, menos eu. Eu não conseguia me animar.
Aproveitei que um dos elevadores estava abrindo e entrei.
Segundos depois, para minha completa infelicidade, o demônio
apareceu. Eric se acomodou no lado oposto. Parecia até
perseguição. Não aguentava mais isso.
Irritado, não dei uma palavra. Para minha sorte, mais
algumas pessoas também entraram antes das portas do elevador se
fecharem. Já bastavam as horas que iríamos passar juntos e
sozinhos no quarto.
Entretanto, notei quando ele se aproximou.
Ah não, cara. Não chegue perto!
— Tentou trocar de quarto né, bonequinha? — Com
sarcasmo, perguntou. Eu permaneci calado, fazendo de tudo para
não criar uma confusão ali mesmo. Quanto menos contato entre
nós, melhor. — Eu juro que não vou te morder. Principalmente à
noite — dando uma pequena risadinha, continuou.
Eu não ia aguentar!
— Vai se foder. — Em alto e bom tom, falei. Prova disso foi
que, instantaneamente, todos que estavam no elevador viraram
para nós, com suas testas enrugadas. Inclusive algumas senhoras
de idade mais avançada. Droga.
Meio envergonhado, me recolhi ao fundo do elevador,
enquanto o imbecil do Eric se segurava para não rir da minha cara.
Otário. O silêncio reinou entre todos, até que, poucos instantes
depois, chegamos ao décimo andar. O andar do meu purgatório.
Caminhei alguns passos à frente do Eric, evitando ao máximo
que ficássemos próximos sem necessidade. Minha vontade mesmo
era voltar para Londres e não dividir coisa alguma com ele, nem
mesmo um quarto.
Eric, por sua vez, estava, aparentemente, tentando me
acompanhar. Eu não me importava com isso, não me importava em
esperá-lo. Nós não éramos amigos e eu não queria contato,
principalmente naquele momento, depois de ter começado a sentir
algumas vontades estranhas em relação a ele. Quanto menos
contato, melhor. Eu iria repetir isso mentalmente até o infinito.
Parei em frente à porta do quarto, quando, de repente, minha
mente deu um estalo.
— Merda! Esqueci de pegar o cartão de acesso na recepção
— falei comigo mesmo. Eu tinha ficado tão concentrado no fato de
dividir o quarto com o Eric, que acabei me esquecendo desse
detalhe.
Entretanto, quando ia dar meia volta, vi Eric se aproximar
com seu sorriso presunçoso.
— Não se preocupe. Eu peguei o cartão.
Ah sim, claro. Claro que pegou o cartão.
A pessoa perfeita não poderia esquecer algo tão ínfimo
assim.
Quando Eric se aproximou da porta, eu me afastei. O vi
passar o cartão e fazer um sinal para que eu entrasse.
— Primeiro as damas — falou.
Dama? Dama é o cacete!
Queria saber se ele continuaria me achando uma dama
depois de ver o que eu carregava entre as pernas. Balancei a
cabeça em exasperação e passei em sua frente. Joguei a mala em
um canto qualquer do quarto, enquanto Eric, com todo o cuidado,
colocou a sua em um armário próximo ao banheiro. Organizadinho.
Revirei os olhos com uma bela cara de tédio.
Passei minhas vistas ao redor do quarto e mirei diretamente
nas duas camas. Obviamente, eu ficaria com a melhor cama. Eric
poderia ficar com a outra. E a melhor era justamente a que estava
mais próxima ao aquecedor. Com o frio que estava fazendo em
Oxford, com certeza essa seria a melhor cama.
— Vou ficar com a cama da esquerda — disse, enquanto o
via tirar alguma coisa de sua bolsa.
Eric virou o rosto para mim e...
— Por causa do aquecedor, não é, bonequinha?
Que irritante! “Dama, bonequinha, mocinha…” eram todos os
nomes pelos quais ele me chamava, sendo que o gay da história era
ele, e não eu.
— Meu nome é Liam. Não é bonequinha — Praticamente
rosnando, entre dentes, repliquei. — E, sim, é por causa do
aquecedor.
Sorrindo, Eric balançou a cabeça levemente, como se
estivesse dando ombros ou não se importasse em ficar na outra
cama. Deu um breve suspiro e... Tirou a camiseta. Na minha frente.
Na. Minha. Frente. Por Zeus. Se antes a camisa mal cobria seu
peito, agora nada realmente estava o cobrindo
— Eu vou tomar banho antes de ir para o almoço —
naturalmente, falou, enquanto eu morria por dentro sem saber o
motivo dele estar me afetando tanto. Por que isso estava
acontecendo comigo, meu Zeus? — Você vai tomar banho também
ou eu posso ir primeiro?
Minha mente simplesmente entrou em um estado no qual ela
pensava tudo o que queria por vontade própria, sem passar pelo
filtro do meu bom senso.
Por exemplo: cara, que abdômen era esse? E esses braços?
Por que eu estava pensando isso, meu Zeus? Por quê?! Isso
era gay, muito gay, e eu era homem, muito hetero. Não estava certo.
Isso tudo não estava certo! Eu nunca tinha pensado em um cara
dessa forma.
— Se... Se... — Ainda imerso em pensamentos, pigarreei a
garganta e engrossei o tom de voz, tentando retomar minha
compostura. — Se eu vou tomar banho primeiro? Não. Pode ir. Vou
depois — e lhe dei às costas na mesma velocidade com a qual eu
queria que aqueles pensamentos sumissem. Fui em direção à
varanda do quarto, buscando ar fresco.
— Tudo bem, então — Ainda o ouvi falar.
Encostei-me à sacada, respirei fundo e observei Oxford, dez
andares abaixo de mim. Merda, como isso começou? Eu não
entendia. Eu não fazia ideia. Como surgiu esse negócio estranho
que eu estava sentindo? Eu não me lembrava de ter sentido algo
assim por ele antes, nem por nenhum outro homem.
Por que agora? Por quê?!
Merda. Eu precisava fazer com que isso parasse de
acontecer. Não estava certo! Eu não podia sentir uma espécie de
atração (se é que eu podia chamar assim), por um cara, ainda mais
quando esse cara era a porcaria do Eric. Que saco. Eu tinha que dar
um jeito na minha vida. Se eu continuasse assim, iria enlouquecer
definitivamente.
Para começar, era melhor eu sair daquele quarto, antes que
eu entrasse naquele banheiro e fizesse ou pensasse mais alguma
besteira. Caminhei a passos largos para fora de lá e entrei no
primeiro elevador disponível que eu vi. Fui direito para saguão,
tentando espairecer e tirar de todas formas, possíveis e impossíveis,
da minha cabeça, aqueles estúpidos pensamentos.
Quando isso começou, Buda? E por que começou,
Poseidon? Saco!
Bufei comigo mesmo.
Não importava, não interessava, eu já estava decidido: iria
parar de pensar nisso e me concentraria em outras coisas para
esquecer. No momento que eu conversasse com meus amigos
sobre qualquer besteira, eu iria esquecer, tudo iria passar e Eric
continuaria sendo um Pateta idiota.
Quando a porta do elevador abriu e eu caminhei pelo saguão,
não demorou muito tempo até avistar alguns membros do time.
Todos estavam conversando de maneira animada. Mas... Onde
estavam Robert e William? Aqueles filhos de uma mãe. Eu deveria
dividir o quarto com algum dos dois, e não com o Eric.
— E aí, capitão! — senti alguém passar o braço pelos meus
ombros.
Quando volvi o rosto, era Robert. Sim, claro. Tinha que ser
ele.
— Gostou do quarto? — perguntando, William chegou pelo
outro lado. — Gostou do companheiro de quarto também? — e riu.
Imbecil. Que pergunta mais idiota. Eu nem ia me dar ao
trabalho de responder.
— O almoço já vai começar? — Enquanto tirava o braço do
Robert de cima dos ombros, de maneira nada delicada, mudei de
assunto. Não ia dar trela para as tentativas deles de curtição com a
minha cara.
— Vai sim — William respondeu.
— Inclusive, já estávamos indo para lá — Robert também
falou. — Vamos?
Apenas acenei um sim com a cabeça e segui em direção ao
espaço de refeições do hotel. O local era amplo e climatizado. Esse
hotel realmente era muito bom. Comigo só funcionava se as coisas
fossem de qualidade. Observei em volta, o refeitório estava cheio.
Do lado esquerdo havia uma grande mesa onde toda a coordenação
do time já estava almoçando.
Em cada canto do espaço haviam mesas médias espalhadas
para os jogadores. Alguns já estavam almoçando, enquanto outros
faziam filas para se servir. Robert, William e eu seguimos para a tal
fila. Não demorou muito para que a nossa vez chegasse. Me servi e,
quando me virei, para pegar um lugar, olhei de relance e o vi.
Droga. Eric estava logo ali, conversando com Adam, um dos
caras do time. Estava tão... Bonito. Ainda mais bonito que antes do
banho. Santa Vodca do Céu! Eu não tinha mais forças para lutar
contra esses pensamentos. Quando isso tinha começado?
Quando?! Sério, eu não me lembrava de ter me sentido assim pelo
Eric antes, nem por cara algum.
Mas, isso não importava. Saber quando tinha começado não
importava. O que, de fato, interessava era que eu precisava negar
até o fim qualquer vontade ou pensamento esquisito. Precisava
mentalizar apenas minhas características mais verdadeiras: eu
ficava com mulheres, eu gostava de mulheres, eu era homem, eu
era hetero.

❖❖❖

Depois do almoço, o técnico nos liberou para descansar até a


hora do evento. Não tivemos treino, porque não íamos jogar. Assim,
ficamos assistindo ao clássico Manchester versus Chelsea. Um
grande jogão! E, teria sido ainda melhor, se o imbecil do Eric não
tivesse sentado bem ao meu lado.
Por Zeus! Parecia que quanto mais distância eu queria, mais
ele chegava perto. Será que ele estava lendo meus pensamentos e
fazendo isso de propósito, só para me infernizar? Tudo bem que
time inteiro estava assistindo ao jogo na sala de multimídia do hotel
e que a única cadeira vazia era a que estava ao meu lado, mas...
Porra! Tinha que ser assim?
Eu quase não consegui me concentrar no jogo. O cheiro do
seu perfume de quinta categoria estava o tempo inteiro chegando ao
meu nariz, cada vez que ele se mexia na cadeira, enquanto seu tom
de voz irritante chegava ao meu ouvido e me fazia imaginar se os
boatos sobre seu beijo eram verdadeiros, cada vez que ele
comentava sobre algo do jogo.
Infelizmente, eu me sentia cada vez mais louco! Sim, isso
tudo era uma completa loucura. Eu não podia sentir essas coisas
pelo idiota do namorado da minha irmã!
Eu tive que, pelo menos tentar, manter distância. E mantive.
O jogo acabou e o Eric subiu para o quarto. Ainda o ouvi comentar,
com alguns caras do time, que iria dormir até o horário de se
arrumar para a cerimônia. Se ele não estivesse lá, eu também
dormiria. Entretanto, optei por não fazer isso. Já bastava ter que
dividir o quarto à noite.
Quanto mais distância, melhor.
Fiquei jogando conversa fora com Robert e William até pouco
antes do horário que deveríamos começar a nos arrumar para a
cerimônia de abertura do campeonato. Com a noite caindo,
entretanto, decidimos que era a hora de iniciar os preparativos. Eu
realmente esperava que o Pateta já tivesse acordado, porque eu
mesmo não iria me dar ao trabalho de chamá-lo. Por mim, ele podia
ficar dormindo pelos próximos vinte anos.
Quando passei o cartão pela porta, para abri-la, logo dei de
cara com ele, devidamente vestido (amém). Ao menos, não tive a
infelicidade de ver aquele abdômen outra vez. Notei o momento em
que ele me lançou um pequeno sorriso. Foi no mesmo instante em
que o cheiro do seu perfume, novamente, adentrou minhas narinas.
Aquele perfume de quinta categoria podre e... Excitante.
Droga, eu estava completamente louco mesmo.
— Se eu fosse você, iria tomar banho e se arrumar logo —
falou. — A gente vai sair do hotel daqui a meia hora.
Revirei os olhos, dando-lhe uma bela cara de tédio. Ele falava
como se eu não tivesse noção das coisas.
— Eu sei, Pateta — respondi. — Entrei no quarto justamente
para fazer isso.
Ele, por sua vez, sorriu. Meu Zeus, aquele sorriso... Eu
adorava.
O quê? Eu tinha pensado nisso mesmo?!
Estava tudo ficando cada vez pior. Muito pior.
— Nossa... — seu tom sarcástico surgiu. — A mocinha
continua com o mau humor eterno. Existe alguma coisa que faça
esse mau humor sumir? Quem sabe se... — começou a se
aproximar. — Quem sabe se... — e estava ficando muito, muito,
próximo. Senti meu coração acelerar e a respiração travar. Queria
correr, mas meus pés pareciam estar fincados no chão. — Quem
sabe, se eu te ajudar no banho, esse seu mau humor não melhore...
— ergueu a mão devagar e tocou meu rosto. Ele tocou o meu rosto!
Que atrevimento! Mas... Eu não podia negar que, algo dentro de
mim, tinha gostado. Isso foi muito estranho e embaraçoso. — Acho
que melhora... O que você acha? — estava tão próximo que ficamos
cara a cara, na mesma altura. — Heim? Posso te ajudar no banho?
— e seu polegar acariciou levemente o meu rosto.
Cacete! Eu não fazia ideia do que estava acontecendo
comigo. Eu não entendia nada, nem sobre mim, nem sobre ele.
Esse era eu, gostando da sua mão no meu rosto? Esse era ele,
falando essas coisas para mim? Não fazia sentido, nada fazia
sentido. E o pior: meus pensamentos não conseguiram se segurar.
Logo, minha memória revisitou os boatos sobre sua desenvoltura
nos beijos. A curiosidade me aplacou. Sua boca era bonita e talvez
fosse, de fato, boa para beijar. E, então, como se um raio caísse
sobre a minha cabeça, meus pensamentos se clarearam e
indicaram algo a mim: a admiração pela boca do Eric não era
somente uma simples admiração, ao passo que a curiosidade sobre
seu beijo não era somente mera curiosidade. Eu estava, de fato e
assustadoramente, querendo... Provar.
Entre tapas e beijos

Liam

Sentia-me cada vez envolvido por aquele quase momento de


epifania que tive ao constatar que eu queria provar o seu beijo. Não
era apenas curiosidade, era como se o meu corpo quisesse
constatar se os boatos eram verdadeiros. E tudo isso era um
completo pesadelo. Eric precisava se afastar e eu também. Mas, por
que eu não conseguia? Por que eu não conseguia mover os meus
pés?
Para completar o meu fracasso, Eric olhou-me no fundo dos
olhos e acariciou meu rosto, mais uma vez, com o polegar. Foi
quase automático. Eu não sabia o porquê de ter feito isso, mas,
inevitavelmente, minhas pálpebras se fecharam com o toque, e,
então, como se ele estivesse me arrancando bruscamente de um
sonho... Ouvi a maior gargalhada que Eric já deu próximo a mim.
Atordoado, abri os olhos e me dei conta do que tinha
acontecido. Merda! Eu me odeio! Claro que tudo isso não passou de
uma brincadeira de muito, muito, mau gosto. Fiquei possesso de
raiva. Quanta humilhação!
— Ah meu Deus! — Em meio aos risos, Eric tentou falar e,
fraco de tantas gargalhadas, se jogou na cama. — Eu não vou parar
de rir nunca mais! Você é apaixonado por mim, né? Confessa logo!
— continuou rindo.
Não aguentei. Simplesmente explodi.
— Seu gay, filho da mãe! Vai se foder! — avancei para cima
dele, na cama, e comecei a socá-lo. Eu estava cego de raiva. A
única que eu queria era acabar com ele.
— Ei! — Ainda rindo, ele tentava se desvencilhar dos meus
socos. — Você que é o gay da história! Você fechou os olhos
quando toquei no seu rosto! — ele não parava de rir. — Confessa
logo que esse ódio é amor por mim! — tentava segurar minhas
mãos, enquanto ainda gargalhava.
— Eu quero que você morra, seu desgraçado! — disparei,
ainda o socando.
O detalhe era que o imbecil e eu tínhamos não somente a
mesma altura, mas também praticamente a mesma força. Então,
não era fácil matá-lo da maneira como eu queria. Porém, em meio a
nossa luta, como num golpe de sorte, consegui imobilizá-lo e
segurar suas duas mãos acima de sua cabeça.
Perfeito! Agora eu poderia acabar com sua cara do jeito como
eu queria.
— Me larga, Liam! Sai de cima de mim! — A essa altura do
campeonato, como eu estava em vantagem, seu riso já tinha
desaparecido, dando lugar a um semblante de raiva, o que, por
sinal, não me intimidava nem um pouco.
Eu não ia largar coisíssima nenhuma! Aliás, como, há poucos
minutos, eu estava admirando e querendo beijá-lo? Eu só podia
estar em estado de loucura profunda mesmo, porque, ali, a vontade
tinha passado completamente e tudo o que eu conseguia sentir
eram verdadeiras aversão e repulsa.
Assim, me preparei para desferir o soco mais forte que já
tinha dado em toda minha vida, quando, de repente, alguém bateu
na porta do nosso quarto.
— Liam? Eric? — era a voz do treinador.
Merda!
Imediatamente coloquei uma das mãos em cima da boca do
Eric, impedindo-o de gritar, enquanto a outra ainda o segurava,
— Sim, Sr. Jones! — em voz alta, falei. — Estamos aqui! —
Estando aqui nos matando. Pensei, mas não disse. Claro.
— Dentro de quinze minutos o ônibus vai sair, ok?
Já? Droga!
— Ok, Sr. Jones! Já estamos prontos! — Mentira. Só o
imbecil do Eric estava pronto. Eu ainda precisava tomar um banho.
— Ótimo! Então, vão para o saguão. Imediatamente —
deixou em evidência a última palavra e saiu.
Foi então que olhei para baixo e vi Eric com os olhos quase
saltando do rosto, de tanta raiva. Tirei a mão de sua boca e...
— Tá ficando doido, Liam?! — disparou, empurrando-me com
toda força, para me afastar. Logo se levantou, enquanto eu caía
para o lado esquerdo da cama. — Cara, foi só uma brincadeira!
Você passou a vida inteira brincando com a minha cara. Não posso
brincar um pouco com a sua não?! — Deu meia volta, caminhou a
passos largos e fortes até a porta, e, com uma estrondosa batida,
saiu do quarto.
O silêncio, de repente, reinou. Olhei de um lado para o outro.
Eu estava sozinho. Pensativo e levemente desconfortável, passei as
mãos no rosto e cocei a nuca. Caramba, ele tinha ficado com muita
raiva. Eu nunca o vi daquele jeito.
Brinquei, confesso. Já brinquei muito com a cara dele.
Mesmo. Mas, e daí? Isso não lhe dava o direito de brincar com a
minha cara também, principalmente depois que... Eu comecei a
sentir essas coisas assustadoramente estranhas.
Essa vontade... Ah, que saco! Eu não gostava nem de me
lembrar daquela minha confusão interna. Precisava esquecer todo
aquele absurdo e seguir em frente. Sim, eu precisava fazer isso. Era
o melhor que eu podia fazer.

❖❖❖

Eric não olhou na minha cara uma vez sequer, depois do


ocorrido no quarto. Tomei banho, me arrumei, desci para o saguão,
encontrei todos do time, entramos no ônibus, seguimos para o
Colégio de Oxford, local da cerimônia, e Eric não me olhou uma
única vez. Ele estava realmente chateado.
E eu me importava com isso? Claro que não.
Claro que não importava com Eric e seus olhos castanhos,
horrorosos e... Lindos.
Ah que inferno!
O fato era que estávamos, naquele exato momento, no
campo de futebol do Colégio de Oxford. O local estava cheio e
repleto de times de todos os colégios que iriam participar do
campeonato. Cadeiras foram colocadas no campo, para que os
jogadores pudessem sentar, enquanto que, nas arquibancadas,
estavam os convidados.
Na ponta de uma fileira eu estava sentado, enquanto Eric
estava na ponta oposta. Havia o time inteiro entre nós. Não
estávamos nem um pouco perto, como sempre fomos, como sempre
ficamos. Nada de novo sob o sol. Ainda mais depois da situação de
mais cedo.
Vez ou outra, por acaso, nossos olhares se encontravam.
Entretanto, apesar de estar conversando de maneira animada com
os outros, seu semblante mudava completamente quando nos
olhávamos de relance. Ele se fechava, mas eu não me importava,
nem me incomodava. Era ele quem tinha começado com a
brincadeira de mau gosto.
Não me importava se ele estava ali conversando de maneira
animada com os outros e não me olhava uma vez sequer. Não me
importava se, quando nossos olhares se cruzavam, ele deixava de
sorrir. Aquele sorriso maldito. Sorriso de quem fazia questão de
mostrar para todos, menos para mim.
— Ei, capitão, para de secar o Eric e presta atenção na
cerimônia — ouvi William falar ao meu lado, soltando uma pequena
risada.
Secar? Quem disse que eu estava secando o imbecil do
Eric?
Sou homem!
— Tá me estranhando, imbecil? — Entre dentes, repliquei.
— Falem mais baixo, antes que a gente tome uma
advertência por atrapalhar a cerimônia — Ao meu outro lado, Robert
advertiu e me deu uma leve cotovelada na costela.
Saco.
Além de tudo o que estava acontecendo, eu ainda tinha que
aguentar as piadinhas do William e as advertências do Robert. Que
Zeus me desse muita paciência até o final daquele último ano de
colegial, porque eu ia precisar.

❖❖❖

A cerimônia durou em torno de uma hora e meia e exibiu


apresentações artísticas, músicas, discursos e juramentos para que
os jogos acontecessem com tranquilidade entre os adversários.
Naquele momento, o presidente do comitê de organização da
competição estava finalizando sua fala.
— Que os jogadores sejam competidores leais, respeitando e
cumprindo todas as regras e regulamentos que regem o verdadeiro
espírito esportivo, respeitando também seus adversários, seus
companheiros de equipe, a organização do campeonato e os
dirigentes, para a glória do esporte e honra do nosso país. Declaro,
para todos os fins, aberto o XXXV Campeonato Intercolegial de
Futebol. Podem se cumprimentar — e fez um sinal de cordialidade,
indicando que a cerimônia tinha se encerrado.
Todos, então, se levantaram para apertar as mãos uns dos
outros. Esse era um dos poucos momentos da vida em que eu
cumprimentava e falava deliberadamente com pessoas que eu não
conhecia. Em outras ocasiões, eram eles que deveriam falar
comigo, porque eu mesmo não me daria ao trabalho.
Assim, fui seguindo o fluxo, falando com os caras tanto do
meu time, quanto de outros também, enquanto ainda estávamos
dentro do campo.
— Olá — ergui a mão quase automaticamente. — Bom
campeonato — Quando olhei para a pessoa, entretanto, me
sobressaltei.
Era o Eric. Droga. Se eu tivesse prestado mais atenção, não
teria... Ah, que saco!
Ele, por sua vez, me observou com indiferença.
No fundo, eu achava isso... Ruim. Eu poderia olhá-lo com
indiferença, mas ele não.
— Igualmente — me deu um breve aperto de mão e se
afastou, indo em direção a outros jogadores.
Fiquei parado com cara tacho, enquanto o via rindo, sorrindo
e se divertindo com outras pessoas. Idiota. Eu não sabia o porquê
de me sentir mal com isso. Era um verdadeiro saco. Sempre o tratei
com indiferença, mas, no momento em que eu era tratado, achava...
Ruim.

❖❖❖

— Eu tenho uma mania que já é tradição! — Eric puxou o


grito de guerra dentro do ônibus, enquanto estávamos voltando para
o hotel.
Quem esse imbecil pensava que era? Só quem podia puxar o
grito de guerra do time era o capitão, não uma pessoa qualquer,
como ele. O capitão ali era eu, não ele! Todavia, Eric se aproveitou
do fato de estarmos distantes, até mesmo dentro do ônibus, para
fazer isso com mais, digamos, liberdade.
Virei imediatamente meu rosto, quando ouvi essa palhaçada.
Enquanto eu estava na parte da frente do ônibus, ele estava no
famoso “fundão”, rindo e brincando com os caras do time, e, para
completar, fazendo coisas que não eram da sua competência, tipo
puxar o grito de guerra do time. Meu sangue quis subir para a
cabeça.
— De nunca se entregar e cair no chão! — o time inteiro
respondeu ao Eric, menos eu.
— Se é pra ganhar! — ele gritou.
— Se é pra ganhar! — o time respondeu
Pelo amor de Zeus, eu ia vomitar.
— Se é pra perder!
— Se é pra perder!
— O Regente vai mostrar sua força, garra e determinação! —
Eric finalizou. — Quem vai dar o sangue? Quem?!
— Eu! — eles gritaram.
— Quem vai dar o sangue? Quem?! — o Pateta repetiu.
— Uh! Uh! Uh! — Todos se levantaram das poltronas e
começaram a pular.
Estúpido. Por que essa animação toda? Eu quem deveria ter
puxado esse grito de guerra! Irritado e enojado com o que tinha
acontecido, virei novamente meu rosto para frente e girei as orbes.
Decidi, então, colocar os fones de ouvido, antes que eu fizesse
alguma besteira dentro do ônibus.
Enquanto eu estava ouvindo música e tentando me
tranquilizar, senti alguém tocar meu ombro. Era o Robert, que
também estava lá no fundão. Se abaixou ao meu lado e tirou um
dos meus fones de ouvido.
— O que você quer? — sem paciência, perguntei.
— Cara, é o seguinte. Eric e os outros estão bolando um
plano pra todo mundo ir a um pub perto do hotel, depois que o
técnico entrar no quarto para dormir — replicou. — A ideia está
ótima. Vai dar tudo certo, com certeza.
Quê? Quando eu dizia que o Eric era um demônio disfarçado
ninguém acreditava!
— O que eu tenho a ver com isso? — revirando os olhos, em
puro desdém, perguntei.
— Ora, você vai também, né?
Em outras ocasiões, eu não pensaria duas vezes, mas o
idiota estaria lá agora.
— Lógico que não — de pronto, respondi.
— Por que? — arregalando os olhos, Robert questionou,
surpreso. Ele também sabia que eu não dispensava algo assim. —
É claro que você vai! — e, antes que eu pudesse falar qualquer
coisa, se ergueu e voltou para o fundo do ônibus.
É claro que eu não ia. Eric estaria lá. Eu não ia.

❖❖❖
— Mas que merda, Robert! — gritei, enquanto ele me
arrastava pelas ruas de Oxford. — Como é que você me tira a força
de dentro da porra do meu próprio quarto? Eu já tinha te dito que eu
não estava com vontade de ir!
— Você não seria o único cara do time a ficar no hotel, Liam!
Logo o capitão, dormindo feito uma mocinha, enquanto os outros
curtem no pub? Claro que não! — respondeu, enquanto ainda me
puxava pelo braço no meio da rua.
Não demorou meia hora, depois que chegamos ao hotel, para
baterem na porta do meu quarto e me arrastarem para a porcaria do
pub. Fizeram um plano, tudo comando pelo demônio do Eric, para
que, assim que tivessem a certeza de que técnico tinha dormido,
pudessem sair para o pub.
Eu não sabia ao certo como fizeram isso, porque eu não tinha
participado da elaboração desse plano maléfico. Talvez tivessem
deixado alguém vigiando o andar em que o técnico estava. Era um
plano bem a minha cara, confesso. Mas, dessa vez, não tinha dedo
meu ali.
O fato era que eu já estava me preparando para dormir,
quando me arrastaram porta afora e me tiraram a possibilidade de
ficar em paz. Então, naquele exato momento, ali na rua, Robert me
segurava pelo braço, como se eu fosse uma criança, para que eu
continuasse caminhando rumo ao pub e não tentasse correr de volta
ao hotel.
Nós estávamos indo um pouco atrás, enquanto os outros iam
mais na frente, como o William e o imbecil do Eric.
— Tá bom, velho! Tá bom! — com impaciência, falei. —
Agora solta me solta, porque eu não sou uma criança!
— Se eu soltar, você vai fugir — ponderou.
— Não vou, porra! — e puxei meu braço com toda a força,
fazendo com ele me soltasse de uma vez por todas. Finalmente, eu
estava livre para caminhar sozinho. — Tá vendo? Nem fugi, imbecil.
— Bom garoto! — dando uma pequena risadinha, respondeu.
Continuamos caminhando e, em poucos minutos, chegamos
ao infeliz pub. O time em peso estava lá. Era um local amplo e
climatizado. Tinha um balcão de bebidas, música boa, pista de
dança e mulheres bonitas.
— Lugar legalzinho, né? — sorrindo, Robert falou, enquanto
olhava em volta.
Tinha mulheres bonitas, então...
— É, parece interessante — respondi.
— Já imaginou você perdendo isso? — deu uma risadinha. —
Vamos pegar bebida?
Não que eu quisesse, de fato, estar ali, mas, já que estava...
— Na hora.

❖❖❖

O time inteiro estava espalhado pelo pub. Alguns dançavam,


outros estavam ficando com garotas, outros bebiam, enquanto eu
permanecia sentado no balcão do barman com minha fiel
companheira: uma garrafa de Vodca que, inclusive, já estava pela
metade. Robert, claro, me deixou sozinho, porque “cara, vou pra
pista de dança, tô de olho em uma ruivinha”.
Assim, lá estava eu, bebendo minha garrafa de Vodca, sem
paciência alguma para festa, e sozinho. Não tinha, nem ao menos,
me dado ao trabalho de investir em alguma garota que estivesse ali.
Apenas refletia sobre a vida e sobre o quanto aquela bebida estava
boa, completamente sozinho.
— Não curte um Scotch? — ouvi uma voz feminina falar ao
meu lado, de repente.
Quando volvi meu rosto, dei de cara com duas gêmeas loiras
e gostosas.
Como era bom ser cantado, sem que eu precisasse cantar.
— Scotch? — sorri para as duas, simpaticíssimo. — Scotch é
um Uísque, não é? Só bebo Vodca. Vocês aceitam? — ergui minha
garrafa e um copo em direção a elas.
Ambas sorriram de volta, e, logo depois, uma das duas pegou
somente a garrafa, bebeu diretamente no gargalo, de maneira muito
provocativa, e me devolveu. Algo quis se animar dentro da minha
calça. Ah, meu Zeus, que maravilha! Nem tudo estava perdido!
Mulheres continuavam causando efeito sobre mim.
— Obrigada — e sorriu ainda de maneira provocativa para
mim.
— Quer? — ofereci a garrafa para a outra.
— Quero... — faceira, respondeu, jogando seu farto busto
para bem perto do meu rosto. — Mas, não quero sentir o gosto da
Vodca daí... — apontou para a garrafa. — Quero sentir daqui — e
me beijou.
Meu Zeus, era exatamente disso que eu precisava! Eu
precisava de uma gostosa me beijando e se amassando comigo. Ela
beijava minha boca e meu pescoço, enquanto a temperatura subia
gradativamente. Em poucos segundos, meu consciente já sinalizava
que nós precisávamos sair dali e ir para um lugar mais reservado.
Abri os olhos de leve, somente durante o tempo suficiente
para que pudesse encontrar a boca da outra e lhe dar a devida
atenção também. Entretanto, a mínima brecha que se abriu no meu
olhar foi o bastante para eu mirasse, por acaso, diretamente na pista
de dança que estava a alguns metros de distância de nós.
Quê? Ali era o Eric? Ele... Estava dançando com quatro
garotas ao mesmo tempo?!
Bom, ele não estava beijando-as, mas elas dançavam à sua
volta de um jeito muito, muito, provocativo. Que filho de uma mãe!
Ele estava quase traindo a minha irmã. Pobre, Molly! Eu poderia
considerá-la uma débil mental por ter aceitado namorar o Eric, mas
jamais deixaria que qualquer pessoa a fizesse de boba.
— O que foi, gatinho? — perguntou, a gêmea que estava
beijando meu pescoço, e, logo depois, avançou em minha boca.
A loira me beijava, mas eu não conseguia fechar meus olhos
e curtir o momento. Eu estava totalmente concentrado na cena
deplorável à minha frente: Eric dançando com quatro garotas. O que
ele estava pensando? Aliás, quem ele pensava que era?! E a minha
irmã? E... E... Merda!
Não consegui continuar. Me afastei, parando o beijo e
deixando as duas gostosas confusas. Ambas estavam com seus
cenhos franzidos, mas eu não dei nenhuma explicação, apenas
peguei minha fiel companheira, a garrafa de Vodca, e segui em
direção ao filho da mãe. Não tive cabeça nem para me despedir das
garotas.
Eric estava tão sorridente para suas companhias, que me
enojava. Elas também não perdiam a oportunidade de se aproveitar
disso. Eu, no lugar dele, já teria ficado com todas. Mas, e ele? Já
ficou? Já traiu a minha irmã? Porra. Que safado. Eu ia acabar com a
festinha dele, custe o que custasse.
Me aproximei o bastante, mas ele ainda não tinha notado.
Claro. Com quatro pares de seios em cima dele, como ele notaria
alguma coisa? Cheguei ainda mais perto e chamei sua atenção de
um jeito nada amigável: dei-lhe um empurrão bem generoso. E esse
empurrão foi tão forte que, até mesmo, respingou um pouco da
minha Vodca em sua blusa.
Atordoado, Eric olhou para todos os lados, provavelmente
tentando saber o que estava acontecendo e tentando, também,
identificar quem tinha feito aquilo. Seu olhar cruzou com o meu e
seu semblante rapidamente se fechou em pura raiva. Sem pensar
duas vezes, Eric avançou em minha direção, me empurrando de
volta.
— Você tá cada vez mais doido, Liam! — disparou. —
Esquece que eu existo!
— Não dou a mínima importância pra sua existência, imbecil!
Mas, e a minha irmã?! Ela sabe que você tá assim com essas
quatro garotas?! — empurrei-o novamente, e, dessa vez, ele se
desequilibrou ainda mais. Porém, ainda não caiu.
— Eu não estou fazendo nada demais! Só estou dançando!
— e me empurrou forte, fazendo com que eu me desequilibrasse e
batesse minhas costas na parede. O impacto foi forte. Doeu. Eu não
iria partir para a violência tão rapidamente, mas Eric estava pedindo.
Avancei nele e, com a minha mão que estava livre da garrafa
de Vodca, dei um soco certeiro em seu rosto. Eric, rapidamente,
fechou os olhos, sentindo uma dor visível, e colocou sua mão
exatamente em cima do local do soco.
Todos os que estavam por perto, se afastaram e nos
observaram com preocupação. Para completar, abriram uma roda
no meio da pista de dança, onde o centro era Eric e eu. Eu não me
importava nem um pouco com seus olhares de preocupação. Se o
idiota bobeasse, eu o bateria mais. Era como extravasar não
somente a raiva pelas quatro garotas e pela minha irmã, mas
também por mim e por tudo o que ele estava me fazendo sentir.
Eric, então, levantou o olhar em minha direção e, por um
instante, tive a impressão de ver faíscas de fogo saírem de suas íris.
Em menos de dois segundos, ele avançou sobre mim. Socos na
barriga. Socos no rosto. Ao mesmo tempo em que eu tentava me
proteger, também tentava revidar. Minha raiva cresceu ainda mais,
se é que isso era possível, quando o filho da mãe acertou meu
perfeito nariz. Sangue escorreu.
Ainda continuamos nos socando por algum tempo, quando,
de repente, dois caras de mais de dois metros de altura, surgiram e
tentaram nos separar. Eram dois seguranças.
— Se vocês querem brigar, façam isso lá fora. Aqui dentro
não é o lugar — um deles falou.
Em um piscar de olhos, cada um nos segurou pela gola da
camisa e pelos braços, e nos arrastou dali. Como dois cachorros
vira-latas, eles nos jogaram do lado de fora do pub, fazendo com
que tanto eu, quanto o Eric, caíssemos no chão.
Olhei para a minha mão, entretanto, e vi que minha garrafa
de Vodca ainda estava segura. Eu tinha chegado ao fundo do poço,
por ser enxotado de um pub. Mas, pelo menos, ainda tinha minha
fiel companheira. Ela nunca falhava quando eu queria esquecer as
besteiras que eu fazia.
Tentei me levantar do chão, ao mesmo tempo em que Eric
também o fazia. Me sentia completamente quebrado. Aquele imbecil
devia estar querendo acabar comigo mesmo. Porém, para minha
completa satisfação, o estado dele era praticamente igual ou pior
que o meu. Seu nariz também estava sangrando.
— Satisfeito, idiota? — ironicamente, perguntou. —Viu só o
que você fez?
Olhei para os dois lados e percebi que não estávamos na
frente do pub. Nos expulsaram pelos fundos do local. Não tinha
ninguém ali. A rua estava deserta. Nós tínhamos sido enxotados
feito dois miseráveis.
— O que eu fiz? — arregalei os olhos, indignado. — Era você
quem estava dançando com quatro garotas e chifrando a minha
irmã! — e não pude deixar de empurrá-lo novamente.
— Cara, eu não quero mais brigar! — disparou. — Para com
isso! — e esfregou as mãos no rosto em pura exasperação.
Dei de ombros para o que ele disse e o empurrei novamente.
Eu não ligava se ele não queria brigar. Eu queria brigar e isso, para
mim, era o bastante. Minha vontade era de acabar com ele
completamente. Assim, fiz com que ele se desequilibrasse ao ponto
de quase cair no chão.
No entanto, quando retomou o equilíbrio, seu olhar estava
muito parecido com o que tinha me dado dentro do pub: labaredas
de fogo. Em questão de segundos, senti sua mão me segurar firme
pelo pescoço, empurrando-me forte contra a parede. Aproximou seu
rosto do meu, com olhos quase saltando da caixa craniana.
— Para. Com. Isso. — De maneira pausada e incisiva,
replicou, ao passo que me pressionava ainda mais contra a parede.
Porém, à medida que ele me pressionava contra a parede, seu rosto
se aproximava ao ponto de eu sentir sua respiração. À medida que
eu sentia sua respiração, meu coração acelerava ao ponto de estar
quase saindo pela boca. À medida que meu coração acelerava,
minha virilha formigava. À medida que minha virilha formigava, algo
aconteceu. Minha mente, em uma nova epifania, me sinalizou algo
forte, assustador e confuso: eu queria beijá-lo. Tudo isso em
questão de segundos. — Já disse que não quero mais brigar —
concluiu e me soltou.
Ei, idiota, não me solta. Continua aqui.
Espera, eu tinha pensado nisso mesmo? Meu Zeus.
Eric, todavia, ao me soltar, caminhou de um lado para o
outro, impaciente com algo.
— Qual é o seu problema comigo, heim?! — disparou,
virando-se para mim.
A essa altura do campeonato, eu não sabia mais de nada.
Minhas duas cabeças só queriam uma coisa: Eric. Que merda! Isso
só podia ser efeito da Vodca! Eu só podia estar muito bêbado!
— Me responde! — visivelmente alterado de raiva, exigiu. —
Por que você não me deixa em paz? Por que você nunca me deixou
em paz? Eu não estava fazendo nada demais no pub! Eu não
estava traindo a Molly! Eu só estava dançando!
E eu só estou com vontade de beijar você!
Merda! Eu não podia fazer isso! Eu tinha começado toda
essa confusão justamente porque pensei em uma possível traição
dele, junto com aquelas garotas, e, agora, era eu quem estava
querendo beijá-lo. Meu Zeus, era tudo muito confuso.
E a minha irmã? E eu? Eu era homem, não era?
— Liam, eu tô falando comigo! — chamou minha atenção.
Eu não sabia o que responder. Eu não sabia o que falar. Eu
só queria... Beijar.
— Vo-Você ia trair a Molly — gaguejei o resquício de lucidez
que ainda havia em minha mente.
— O quê?! — arregalou os olhos em pura indignação. — Eu
não ia trair ninguém! Eu só estava dançando! Por que você não
finge que eu não existo? Assim fica mais pra mim e pra você! Por
que você não faz isso, heim? — parou por alguns instantes, como
se estivesse pensando, mas logo voltou a falar. — Ah, já sei! Deve
ser porque eu não sou homem para a Molly! — com uma ponta de
sarcasmo, disse. — É, eu não sou homem para a Molly, segundo
você. Mas, por que não? Eu nunca fiz mal algum a ela!
Não me faça perguntas difíceis a essa hora da noite, seu
infeliz!
Principalmente depois de ter bebido mais da metade de uma
garrafa de Vodca e de estar querendo beijar a porcaria dessa boca.
— Me responde, Liam! — ele continuou. — Por que diabos
eu não sou homem para a Molly? Eu quero entender. Sério!
Droga! Quanto mais eu ouvia sua voz, mais eu queria beijá-
lo. Eu só podia estar muito bêbado ou muito doente. Talvez, até
mesmo os dois. Irritado comigo mesmo e impaciente com toda
aquela confusão interna de sentimentos, comecei a caminhar de um
lado para o outro, chutando o chão, a lixeira mais próxima, a grama,
tudo. Eu chutava tudo o que eu via pela frente.
— Você tá ficando ainda mais doido, por acaso? — Eric
disparou novamente. — Tá chutando a porra toda! Para com isso e
responde às minhas perguntas!
Entretanto, a única coisa que eu conseguia fazer, naquele
momento, era pensar: eu queria tanto te beijar!
Por Zeus, que vontade mais miserável!
Eu era homem, não era? Se eu beijasse outro cara, eu virava
automaticamente uma mulher? Talvez se eu... Talvez se eu tomasse
alguns generosos goles de Vodca, eu esquecesse de tudo, que nem
a última vez em que eu fui a um pub. Até aquele dia, eu não
lembrava do que tinha feito. Além do mais, a Vodca era realmente
famosa por ser a bebida do esquecimento. Era por isso que eu
gostava tanto dela.
Eu queria beijá-lo, mas, ao mesmo tempo, também queria
esquecer de toda essa merda, caso eu realmente o fizesse. Então,
respirando fundo, olhei para minha mão e encarei a garrafa de
Vodca. Eu percebi a garrafa de Vodca olhar de volta para mim, e ela
estava me chamando. Sim ela estava. Ela dizia “Liam, bebe e beija
o Eric, amanhã você vai esquecer de tudo”. Sim, era isso o que a
garrafa de Vodca estava dizendo para mim. Eu estava ouvindo.
Obstinado, tomei goles e mais goles de Vodca. Tudo no
gargalo.
— Nossa! Agora ele decidiu beber! — ouvi sua pequena
risada sarcástica. — Me responder, que é bom, nada. Tô
praticamente em um monólogo aqui. Enquanto você diz que não sou
homem para a Molly, é você que não é homem para a Stefany! Eu
sou homem para a Molly sim, e não venha me dizer o contrário.
Afinal, por que eu não seria homem pra ela?
No mesmo instante em que ele calou a boca, joguei a garrafa
de Vodca no chão, e caminhei a passos rápidos e firmes em sua
direção. Eric começou a franzir o cenho. Eu não me importei.
Apenas me aproximei o bastante, segurei seu rosto com as duas
mãos e o beijei.
Ele me beijou?

Eric

Mas que porra era essa?


A boca do Liam estava colada na minha? Ele estava me
beijando? Ele estava querendo passar a língua?!
Instantaneamente, o empurrei com as duas mãos, afastando-
o o máximo possível. Passei as mãos na minha boca e cuspi, como
se isso fosse limpar algo.
— Que merda foi essa, Liam?! Enlouqueceu de vez?! —
gritei, enquanto continuava cuspindo e passando as mãos na boca.
— Para com isso, seu imbecil... — Liam deu de ombros e
caminhou em minha direção novamente, sem parar de olhar para a
minha boca. Outra vez, colocou as duas mãos no meu rosto. Ele só
podia estar possuído! Sem pensar duas vezes, o empurrei de novo.
— Você é que tem que parar com isso! — com exasperação,
disparei.
Liam revirou os olhos, em puro desdém, segurando meu
braço e me puxando contra ele. Que merda!
— Qual é? Que beijo mais sem graça... Não era isso o que as
pessoas falavam... — Com uma voz totalmente embargada, de tão
bêbado que ele estava, falou, posicionando uma das mãos na minha
nuca. — Eu nem senti tua língua... Vem... Eu quero sentir tua
língua...
Quê?!
Esse era o Liam que há poucos minutos estava querendo me
bater?
Sem pensar duas vezes, o empurrei de novo, afastando-me o
máximo que podia.
— Que língua, cara?! — arregalei os olhos, confuso e em
choque. Me sentia incrédulo e, ao mesmo tempo, atônito com o que
estava acontecendo. — Para com isso! Você está me assustando!
Ele, por sua vez, revirando os olhos novamente, como um
perfeito bêbado, falou:
— Na hora que eu crio coragem pra beijar essa sua boca
nojenta, você fica evitando! Saco! Por que você não para de ser
imbecil, por pelo menos dois minutos, e deixa eu te beijar em paz?!
“Na hora que eu crio coragem pra beijar essa sua boca
nojenta”, tais palavras ressoaram e martelaram na minha cabeça,
fazendo-me delirar. Então, isso significava que ele queria me beijar
a mais tempo? Como assim?! Isso não fazia o menor sentido e eu
não estava entendendo nada. Era tudo extremamente confuso.
— Vem cá, idiota... — se aproximou de novo. Ah não, cara,
para! — Deixa eu te beijar... — e levou seu rosto para perto do meu,
fazendo com que, dessa vez, eu pudesse sentir, até mesmo sua
respiração e o seu hálito repleto de álcool.
Que saco! Dessa vez, não o empurrei para longe de mim.
Muito pelo contrário. Segurei-o firme pela gola da camisa e o
empurrei forte contra a parede mais próxima. Liam bateu com as
costas e franziu o cenho ao sentir o impacto.
— Isso doeu, filho de uma mãe — resmungou em tom
raivosa.
— Isso é pra ver se você acorda! — repliquei em
praticamente um rosnado. — Agora vou sair daqui e não venha
atrás de mim — adverti, soltando-o, e comecei a caminhar de volta
ao pub.
— Só um beijo... Vai... — Ainda o ouvi falar, em puro tom de
bêbado, enquanto me afastava dali. — Amanhã eu não vou lembrar
de nada mesmo!
Não vai se lembrar de nada? Ah, por favor!
— Mas eu vou me lembrar, idiota! — virei, olhando bem para
ele, já a alguns metros de distância. — E você deveria se lembrar
também de que eu sou homem, de que você é homem e... — parei
por alguns segundos, tomando fôlego. Era uma situação muito
inusitada e assustadora. — E de que eu sou namorado da Molly.
Sou namorado da Molly! Não era você mesmo quem estava
preocupado com uma possível traição? — com sarcasmo
questionei. — Eu. Sou. Namorado. Da. Molly — falei pausada e
incisivamente.
Assim que terminei de dizer “Eu. Sou. Namorado. Da. Molly.”,
no entanto, notei uma mudança repentina no semblante de Liam.
Piscou os olhos repetidas vezes, como se estivesse acordando de
um sonho ou mesmo levado um choque. Instantaneamente,
começou a andar de um lado para o outro sem parar. Nervoso,
irritado. Seu rosto estava aflito.
Será que estava com peso na consciência pelo que tinha
feito?
Eu não fazia ideia. Eu nunca tinha o visto com peso na
consciência por nada.
— Droga! Merda! Eu sou estúpido! — xingou e caminhou até
a garrafa de Vodca que deixou caída no chão. Olhou para o líquido
que ainda tinha e bebeu todo o resto. Idiota. Ele iria beber ainda
mais para realmente esquecer de tudo o que fez. Porém, eu não ia
ficar ali para ser “babá de bêbado” de novo, principalmente de um
bêbado que estava me assediando.
Dei meia volta e tornei a caminhar em direção ao pub.
— Ei, idiota, não quer um pouco de Vodca? — Ainda o ouvi
perguntar, de longe. — Ajuda a esquecer!
Palhaço. Como se eu conseguisse esquecer esse pesadelo.
— Não, imbecil! — repliquei sem encará-lo, enquanto
continuava caminhando. — Só bebo Uísque.
Em poucos instantes, eu já estava dentro do pub outra vez.
Entrei apenas com as pernas, porque minha cabeça, meus
pensamentos e todos os meus sentidos ainda estavam lá fora, onde,
provavelmente, o Liam ainda devia estar. Sentia-me tão fodidamente
desnorteado. Merda. Era uma sensação muito estranha.
Aquilo lá fora tinha acontecido mesmo? O Liam tinha me
beijado? Eu senti sua boca na minha? Meu Deus, isso só podia ser
loucura! Era um sonho. Ou melhor, um pesadelo! Dos grandes!
Nunca imaginei que algo assim pudesse acontecer. Nunca.
Em hipótese alguma.
Nunca... É... Quer dizer...

...

— Parabéns pra você! Nessa data querida! Muitas


felicidades! Muitos anos de vida! Liam, Liam, Liam! — Todos em
volta da mesa bateram palmas e comemoraram o aniversário de
treze anos do Liam. Ele, como sempre, estava com cara de quem
comeu e não gostou. Liam nunca gostava de comemorar o
aniversário com a família.
— Querido, sorria para a foto! — mamãe falou com
entusiasmo para Liam.
O idiota, por sua vez, revirou os olhos e deu de ombros. Mal-
educado.
— Filho, pode arrumar essa cara! — tia Claire o advertiu.
Dando um breve suspiro de desânimo, Liam ofereceu à
câmera o sorriso mais forçado que já existiu na face da terra.
Mamãe tirou sua foto e, logo depois, se virou para mim e para a
Stefany, que estava ao meu lado.
— Queridos, vão lá tirar uma foto com o Liam — mamãe nos
encorajou, simpática. — Daqui a pouco os outros convidados vão
tirar fotos com ele também.
Stefany sorriu para Liam, que, pela primeira vez na noite,
também esboçou um pequeno, mas genuíno sorriso. Eu observava
tudo e notava cada comportamento de todos, sobretudo do Liam,
que era o aniversariante. Ao contrário da maneira como ele agia
com minha mãe, Liam não olhou na minha cara uma vez sequer,
nem mesmo quando mamãe sugeriu a foto. Me ignorava, como
sempre.
— Vão lá, queridos — ela sussurrou com entusiasmo, para
minha irmã e eu, acenando com a mão para irmos até a mesa do
bolo, onde Liam estava.
Sinceramente, eu não fazia a menor questão de tirar fotos
com o imbecil do Liam. Nunca fiz. Mas, já que mamãe queria, era
melhor não contrariar. Assim, segui em direção ao enjoado,
enquanto Stefany se mantinha ao meu lado. Quando chegamos à
mesa do bolo, me posicionei do seu lado direito, enquanto minha
irmã ficou do seu lado esquerdo. Liam, no entanto, imediatamente
trocou de posição, deixando Stefany no meio de nós dois.
— Não, querido... — dando-lhe um sorriso amável, mamãe
orientou. — É para você ficar no meio. Você é o aniversariante.
— Prefiro ficar aqui, tia Cynthia — Liam respondeu.
— Liam Wyman... — Ao perceber o que estava acontecendo,
a tia Claire, mãe de Liam, se aproximou e chamou sua atenção de
maneira incisiva, em tom rígido. — Faça o que a Cynthia está
dizendo.
No mesmo instante, Liam fechou o semblante e bufou de
chateação. Todavia, não fez cena, percebi que ele tentou se
controlar e logo trocou de lugar com minha irmã, deixando-a do seu
lado esquerdo e eu do seu lado direito, assim como estávamos no
início.
— Sorriam! — mamãe pediu. Tentei sorrir, mesmo que sem
vontade. Stefany também fez o mesmo. E Liam, bem, dessa vez, ele
não sorriu, nem mesmo, de maneira falsa. — Prontinho! — falou ao
concluir.
Rapidamente, Liam saiu de perto de mim e puxou Stefany
para uma conversa. Olhei de um lado para o outro. Eu estava
sozinho, mesmo que a casa do Liam estivesse cheia. Haviam
crianças por toda parte brincando, mas, sem saber o motivo, eu não
estava com vontade de brincar. Aliás, eu já não era tão criança
assim. Já tinha treze anos, ora. Era um pré-adolescente, quase um
adulto.
Papai estava com o tio Liam, pai do Liam, enquanto mamãe
estava com a tia Claire. Stefany estava com o próprio Liam,
enquanto Molly brincava com algumas crianças. Talvez os treze
anos estivessem pesando mesmo na minha pouca vontade de
brincar, e eu estivesse começando a ter vontade de fazer outras
coisas.
Assim, sem ter o que fazer, peguei um copo de refrigerante,
sentei no sofá e fiquei observando as pessoas indo e vindo dentro
da casa, conversando e tirando fotos. Alguns poucos minutos se
passaram, enquanto eu permanecia ali, até que, de repente, vi uma
princesinha de olhos azuis se aproximar de mim.
— Oi, Eric — sorrindo de maneira tímida, se sentou ao meu
lado.
— Oi, Molly — sorri de volta.
— Por que você está tão quieto hoje? Por que não vem
brincar um pouco?
— Ah... Não sei, Molly... As crianças estão brincando com
bonequinhos. Eu gosto de brincar com bola — expliquei, embora
esse não fosse o motivo, de fato. Nem eu mesmo sabia o real
motivo. Só estava desanimado.
— Hum, entendi... — baixando levemente o rosto, Molly fez
uma cara de pensativa por alguns segundos e, logo depois, voltou a
falar. — Quer que eu brinque de bola com você? — sorriu como se
tivesse encontrado a melhor solução para eu brincar também e
soltou uma pequena risadinha. Meu Deus, como ela era fofa. Seu
temperamento em nada se parecia com o de seu irmão.
— Pode ficar tranquila, Molly. Eu estou bem. Pode... — No
entanto, antes que eu pudesse terminar a frase, ouvi a voz agitada
da minha irmã se aproximar.
— Gente, gente! — Stefany surgiu ao nosso lado. — Os
adolescentes vão brincar do jogo da garrafa agora lá no jardim! —
entusiasmada, informou. — Por que vocês não vêm também?
— Jogo da garrafa? — meio confusa, Molly questionou.
Se eu bem me lembrava, o jogo da garrafa era o jogo do...
— Sim, Molly! É o jogo do beijo! — dando uma pequena
risada, Stefany respondeu. — Venham! Vamos brincar também!
Quem sabe vocês não percam a “boca virgem” hoje — esperta,
falou. Minha irmã era um ano mais velha que eu e dois anos mais
velha que a Molly. Porém, apesar da diferença de idade não ser tão
grande entre a gente, Stefany sempre foi a mais “evoluída” de nós e
sempre pareceu ter uma mentalidade de alguém que era dez anos
mais velho que a gente. — Então, vocês vêm? — perguntou
novamente.
Parecendo envergonhada, Molly se encolheu um pouco onde
estava. Já quanto a mim... Bom... Confesso, que já fazia alguns dias
que estava com essa ideia de perder a “boca virgem” martelando na
minha cabeça. Afinal, eu tinha treze anos e não queria ficar para
trás. Todos os garotos da minha idade já tinham perdido, menos eu.
Porém, tanto eu, quanto Molly, permanecemos calados.
— Ah, gente! Meu poupe! — impaciente com nosso silêncio,
Stefany disse. — Vocês vão sim! — concluiu nos puxando pelos
braços e fazendo com que nós dois levantássemos do sofá.
Caminhamos meio desconfiados. Molly, vez ou outra, me
olhava meio assustada. Assim como eu, ela nunca tinha beijado
alguém. Quanto à Stefany, ouvi boatos de que já tinha ficado pela
primeira vez com um menino. Talvez Stefany fosse a mais
“experiente” dali.
Quando chegamos ao jardim, apenas os adolescentes se
encontravam sentados em um círculo na grama. Todos os adultos
estavam dentro de casa. Observei mais atentamente e notei que a
garrafa já estava posicionada no centro.
Stefany, Molly e eu nos aproximamos ainda mais do círculo.
Em seguida, nos sentamos junto aos outros. Olhei ao redor e vi o
Liam. Droga. Ele ia participar também? Não podia ser. Quando me
viu, ele também torceu o nariz e fechou o semblante.
— Não acredito que esse idiota vai participar da brincadeira
— ouvi Liam resmungar.
— Deixa de ser chato, Liam — com desdém, Stefany
replicou.
O bobão, por sua vez, cruzou os braços.
— Se ele participar, eu não brinco mais! — Como uma
criança mimada, ele falou. Liam era um pré-adolescente, mas,
muitas das vezes, tinha uma mentalidade imensamente infantil.
— Então, tchau, Liam — ironicamente, Stefany falou. De fato,
ela estava pouco se importando com a presença do Liam ali, por
mais que eles fossem muito amigos. Minha irmã sempre foi muito
prática e nunca gostou de certos comportamentos. — Porque o meu
irmão vai participar sim.
O moreno revirou os olhos. Insuportável.
— E a Molly vai participar também?! — incrédulo por ver a
irmã mais nova ali, perguntou. Por mais que implicasse com Molly,
no dia-a-dia, como irmãos sempre faziam, Liam tinha bastante
ciúme.
— Claro que sim — com naturalidade, Stefany respondeu. —
Agora fica quietinho aí, senão eu mesma te tiro da brincadeira —
Embora minha irmã ainda fosse um pouco mais nova que os
adolescentes presentes, ela sempre teve um espírito de liderança.
Liam revirou os olhos mais uma vez para a loira, deu um
breve suspiro de exasperação, mas, finalmente, se calou. Por mais
que ele não gostasse da minha presença, ele também não perderia
a oportunidade de brincar do jogo da garrafa. Assim, todos nós nos
acomodamos. Stefany estava à minha direita e Molly à minha
esquerda.
— Quem quer começar a brincadeira? — minha irmã
perguntou.
— Claro que eu! — intrometido e convencido, como sempre
foi, Liam logo se pronunciou.
— Eu! — outro garoto do círculo, todavia, falou ao mesmo
tempo.
— Tirem no par ou ímpar — Stefany indicou.
Ambos se aproximaram e...
— Par — Liam disse.
— Ímpar — o garoto também falou.
— Uma, duas, meia e já.
Ambos expuseram seus dedos e contaram.
— Deu par! — alegre e satisfeito, Liam disparou. — Sou eu
que começo — com seu típico ar de superioridade, ele completou.
Logo se acomodou em seu lugar no círculo e se posicionou para
girar a garrafa.
A garrafa começou a girar, girar e girar, até que foi parando,
parando e paran... Não! Não, não, não! A porcaria da ponta da
garrafa parou quase exatamente em minha direção. Estava em um
intermédio: a poucos centímetros de mim e a poucos centímetros da
Stefany também. Ou seja, o resultado estava entre nós.
— Eita! Vai ter que beijar o Eric! — um dos garotos disse,
fazendo com que todos do círculo soltassem uma bela e grande
risada, menos o Liam e eu, obviamente.
Droga! Não!
— Beija logo o Eric, Liam! — rindo, outro também se
pronunciou.
Não podia ser. Meu primeiro beijo seria logo com o Liam?
Que pesadelo!
— Quê?! — com os arregalados em pura tensão, Liam
disparou. — Claro que não! A garrafa tá apontando para a Stefany e
não para o Eric!
— É verdade! — tentando me safar dessa, também falei,
nervoso. — Tá apontando para a Stefany mesmo!
— Não! Tá apontando para você, Eric! — uma das garotas
mais velhas, gargalhando, também quis acusar.
Deus me livre! Seria muito castigo se o meu primeiro beijo
fosse com o Liam!
— Calma, gente! Calma! — minha irmã tentou apaziguar a
situação. Graças a Deus. Ela ia dar um jeito. — Ninguém aqui é
obrigado a beijar ninguém. A garrafa parou entre Eric e eu, mas eu
mesma posso beijar o Liam. Então, se acalmem.
Amém! Eu amava a minha irmã!
— Assim não tem graça! — Ainda rindo, alguns falaram.
— Parem com isso — revirando os olhos para as brincadeiras
infantis, Stefany se levantou. Era incrível o quanto a Stefany sempre
conseguia liderar todos. — Vem Liam, vem dar o seu primeiro
beijinho — com uma ponta de ironia e uma pequena risada, ela
falou.
— Primeiro beijinho? — franzindo o cenho, ele se levantou.
— Para a sua informação, eu já beijei antes, beleza?
— O travesseiro? Ou o seu braço? — rindo, Stefany se
aproximou dele.
Liam ainda tentou fazer uma pose de durão, de valentão, de
experiente que já tinha beijado umas trinta meninas, mas seu rosto,
quando viu Stefany se aproximar, mostrou totalmente o contrário.
Ele parecia estar nervoso. Bem nervoso.
Stefany chegou ainda mais perto, fazendo com que seus
rostos ficassem bem juntos. Liam inclinou um pouco sua cabeça
para baixo, porque, mesmo sendo um ano mais novo, ele ainda era
mais alto que ela. Notei-o engolir a seco, poucos segundos antes de
passar o braço cautelosamente pela cintura da minha irmã e beijá-
la.
De início, era apenas um selinho. Mas, logo, Stefany abriu
levemente seus lábios. Liam, com cuidado, também fez o mesmo.
Aos poucos, o beijo foi se tornando mais profundo e... Meu Deus, eu
não sabia o porquê disso, mas, à medida que eu via a cena,
comecei a sentir meu coração bater mais forte.
Se esse fosse mesmo o primeiro beijo do Liam, ele estava...
Ele estava se saindo muito bem. Seus lábios pareciam dançar. Isso
era... Mágico. E se... Se Stefany não tivesse ido no meu lugar? E
se... Se essa mágica estivesse acontecendo entre nós dois? Notei
meu coração acelerar ainda mais ao pensar nessa possibilidade.

...

Ah que se foda. O que eu senti no dia do primeiro beijo do


Liam não passou de uma confusão mental de um garotinho virgem
de treze anos, que ainda estava descobrindo o mundo. Apenas isso.
Totalmente diferente do que havia acontecido há poucos minutos,
que, por sinal, não foi nada mágico, mas, sim, muito assustador.
Pela primeira vez na vida, senti a boca de um cara na minha.
E esse cara era o Liam!
Meu Deus.
Esfreguei as mãos no rosto, ainda sem acreditar no que tinha
acontecido. Notei que o sangue ainda sujava meu rosto. O filho da
mãe quis acabar comigo e depois me beijar. Será que existia pessoa
mais confusa do que o Liam na face da Terra? Provavelmente não.
Talvez eu precisasse beber, para realmente esquecer, senão,
daqui a pouco, eu ficaria tão louco quanto Liam. E olha que eu nem
era de encher a cara. Parei no balcão de bebidas, tirei da carteira o
valor exato de uma garrafa de Uísque e pedi. Em poucos minutos, o
barman já colocava a bebida na minha frente, junto de um copo old
fashioned.
Não esperei dois segundos para virar o copo uma, duas, três,
quatro e cinco vezes, porque eu não parava de pensar... Aquelas
duas mãos no meu rosto... Droga! Virei mais uma vez. E depois na
minha nuca... Merda. Virei novamente. Seus lábios... Macios.
Chega! Dessa vez, esqueci o copo e bebi na própria boca da
garrafa.
Cansado da situação e ofegante devido a voracidade com a
qual bebi, coloquei os dois cotovelos sobre o balcão, apoiando meu
rosto entre as minhas mãos. Fechei os olhos. Respirei fundo,
tentando esquecer. Tentei uma, duas, três. Mas, não dava. Era
impossível apagar aquilo da memória.
Exausto de tentar lutar contra meus pensamentos, segurei a
garrafa outra vez, pronto para tomar mais alguns goles, quando, de
repente, senti uma tocar o meu ombro. Quando me virei, dei de cara
com... Liam. Ele parecia bem mais desnorteado que eu. Além do
rosto machucado pela briga, seu semblante estava acabado.
Parecia que tinha bebido ainda mais, depois do episódio nos fundos
do pub.
— Eric... — tentou falar. Sua voz, porém, estava tipicamente
embargada como a de um bêbado. — Eu vim aqui pra pedir pra
você esque... — e parou a frase na metade, franzindo o cenho e
fazendo uma cara de quem estava fortemente enjoado. Ah não.
Dois segundos depois, ele se inclinou para frente e vomitou.
— Liam, cacete! — arregalei os olhos com a situação.
Vi quando ele ergueu o rosto todo sujo de vômito, assim
como sua roupa, e...
— Eric... — tentou falar novamente. Porém, estava difícil. —
O mundo tá girando... Acho que eu vou... — e simplesmente caiu
em cima de mim, completamente apagado, sem conseguir terminar
a frase.
Meu Deus! Ele tinha desmaiado.
Por que Liam sempre bebia ao ponto de quase se matar?
Segurei-o e o apoiei em mim. Levei uma das minhas mãos ao
seu rosto, enquanto o outro braço segurava seu corpo contra o meu.
— Liam... — dei leves batidinhas na lateral da sua bochecha,
esperando que ele acordasse. Porém, foi em vão. Ele continuou
sem abrir os olhos. — Liam... — tentei mais uma vez. Novamente
sem resposta. Ele realmente tinha desmaiado. Droga.
E agora? O que eu ia fazer?
Olhei de um lado para o outro do pub, procurando por alguma
saída.
Eu tinha dinheiro na carteira? Sim, tinha.
Talvez fosse o caso de pegar um dos táxis que ficavam fora
do pub e voltar para o hotel. Liam não estava em condições de ficar
ali. Assim, mesmo com certa dificuldade, segurei-o no meu colo,
com os dois braços, e o carreguei.

❖❖❖

Após o táxi nos deixar, entrei no hotel com Liam em meus


braços. A recepção do local estava praticamente vazia. Por ser
tarde da noite, havia poucos funcionários e hóspedes transitando
por ali. Liam permaneceu desacordado o tempo todo.
Provavelmente, nem se caísse um asteróide, ele acordaria.
O fato era que, mais uma vez, eu estava sendo “babá de
bêbado”. Porém, dessa vez, eu não tinha a Stefany para me ajudar
a trocar a sua roupa suja de vômito, assim como eu também não
tinha a Molly para levar comprimidos de Advil a ele.
Molly... Só de pensar nela, eu já me sentia meio estranho...
Enfim, era melhor que eu me concentrasse no presente,
depois eu me iria me encarregar de pensar em como iria lidar com o
tudo o que havia acontecido no pub. Assim, deitei Liam na cama e o
observei por alguns breves segundos, decidindo se eu deveria
trocar ou não sua roupa. Cheguei mais perto dele e tentei sentir de
leve como estava a situação.
Meu Deus, ele estava podre!
Meu estômago quis embrulhar.
Mesmo que eu não quisesse, o mais viável era que eu
trocasse sua roupa toda vomitada por uma limpa, já que,
definitivamente, eu não iria banhá-lo. Era desumano deixá-lo dormir
assim, mesmo sabendo que ele não faria metade por mim e que ele
também queria me matar com socos algumas horas atrás.
Com raiva de mim mesmo por ser bobo, abri sua mala e
retirei uma calça de moletom. Segui em direção a sua cama e me
preparei psicologicamente para a pior parte: tirar a sua roupa. Ok,
não era tão difícil tirar a roupa de um imbecil. Mas, eu nunca tinha
me imaginado em uma situação assim. Na verdade, somente
naquela noite, já estavam acontecendo várias situações que eu
nunca havia imaginado.
Trabalhando praticamente no automático, tirei seus sapatos,
sua calça jeans e sua blusa, sujos de vômito. Tudo com o máximo
de rapidez possível. Vesti, em um piscar de olhos, a calça de
moletom. Todo esse processo, tentei fazer olhando para os lugares
do quarto, menos diretamente para ele.
No fim, constatei: não doeu, não foi tão complicado assim.
Agora, eu só precisava dar um jeito em seu rosto sujo de
vômito e machucado de sangue. Confesso que não queria ter batido
nele, mas ele me provocou demais. Me deu um soco gratuito e
atiçou toda a minha fúria no pub. Se não fosse a adrenalina
correndo nas minhas veias, eu não teria feito o que fiz. No fundo,
batê-lo fazia com que eu me sentisse... Mal.
Tudo bem que o Liam merecia uns bons socos às vezes, mas
eu não gostava de brigar. Tudo bem que o Liam não merecia que eu
limpasse seu rosto, mas, se eu já estava sendo bobo o suficiente
para ajudá-lo, não custava fazer mais um pouquinho. Assim, segui
rumo ao banheiro, enchi de água um recipiente que estava em cima
do lavatório e peguei uma toalha de rosto.
Quando voltei para o quarto e sentei na cama, comecei a
limpar seus ferimentos. Liam estava dormindo pesado e nem
percebeu meus movimentos. O mais estranho era que ele
conseguia ser bonito até com o rosto todo machucado. Sim, eu
pensei nisso mesmo. Estava tarde demais para eu ficar brigando
com meus próprios pensamentos.
Enquanto o limpava e passava o pano úmido sobre sua pele,
todavia, a cena do beijo se repetiu mil vezes na minha mente. Como
ele podia ter feito isso? Liam era hetero. Eu era hetero. Tudo o que
estava acontecendo não fazia o menor sentido.
Além do mais, e a Molly?
Não era o Liam que estava preocupado com uma possível
traição?
O que aconteceu foi algum tipo de traição?
Ah, meu Deus. Não, não podia ter sido. Traição era só
quando a gente queria trair, não era? Não fui eu quem pediu o beijo.
Que saco. Minha cabeça estava tão confusa. Parecia que
quanto mais tempo passava, mais confuso eu ficava.
Limpei sua testa, seus olhos e... Sua boca. Na hora do beijo,
eu nem tinha me dado conta, mas, depois, percebi o quanto era
macia. Tão macia quanto a sua língua passando nos meus lábios.
Ah meu Deus, eu não podia acreditar que eu estava pensando
nessas coisas.
E, levado por uma vontade e uma coragem que eu não sabia
de onde vinham, soltei o recipiente e a toalha no criado-mudo ao
lado de sua cama e, simplesmente, voltei com minha mão ao seu
rosto e passei levemente meu polegar sobre seus lábios.
Por Deus, eu tinha feito isso mesmo? Foi a segunda coisa
mais gay da minha vida. A primeira, sem dúvidas, foi o beijo.
Levantei-me rapidamente de sua cama e me joguei na minha.
Eu queria esquecer tudo, mas, quanto mais tempo passava, mais a
cena do beijo ficava clara na minha memória. Apesar dos pesares,
apesar de sua eterna babaquice, apesar da Molly, apesar de eu ser
hetero, apesar de tudo, eu sentia que... No fundo, bem no fundo...
Eu gostei.
Toda ação tem uma reação

Eric

— Hora de acordar! — ouvi a voz do Sr. Davis, auxiliar do


técnico, seguida de batidas estrondosas na porta do quarto. Meio
desnorteado, devido ao sono, abri os olhos com certa dificuldade.
Mirei de relance na cama ao lado da minha e vi Liam dormindo feito
um anjo. — Liam! Eric! — Mais batidas fortes da porta.
Droga. Desse jeito o Liam iria acordar igual a uma fera!
Antes que isso acontecesse, no entanto, eu me apressei. De
supetão, levantei-me da cama e corri para a porta.
— Bom dia, Sr. Davis. Eu e o Liam acabamos de acordar —
Mentira. Liam ainda estava no mundo dos sonhos. — Ele já foi para
o banho e eu estou esperando para ir também — Outra mentira. —
Daqui a pouco vamos sair do quarto.
Entretanto, o Sr. Davis franziu, estranhamente, o cenho para
mim, como se estivesse analisando algo em mim que não fazia
sentido, algo que não era para estar em meu rosto. No primeiro
instante, eu não me dei conta do que era.
— Ok. Podem ir para o café da manhã no refeitório, mas...
Que machucados são esses no seu rosto?
Meu coração instantaneamente parou. As marcas da briga de
ontem ainda estavam ali? Merda! Eu deveria ter sido mais
cuidadoso em relação a isso.
— Machucados? — fazendo-me de desentendido, coloquei
uma das mãos no rosto. — Não faço ideia, Sr. Davis. Agora, se não
se importa, preciso voltar a me arrumar — rapidamente, disse e
fechei a porta.
Droga!
E agora? Se o treinador visse aquilo, eu e Liam já podíamos
nos considerar mortos.
Segui rápido em direção ao espelho e encarei meu rosto.
Visualizei cada detalhe minuciosamente. Analisei, e, bom, até que
não estava tão ruim assim. Talvez, se eu colocasse meus óculos-
escuros, desse para disfarçar.
— Eric? — era a voz de Liam.
Nossa, ele tinha acordado.
Receoso por tudo o que tinha acontecido entre nós dois, virei
devagar rumo a sua cama. Eu não sabia como ele ia reagir. Não
sabia se ele iria lembrar do que tinha feito ou se, mesmo isso não
fazendo sentido, iria querer me bater novamente por ter me beijado.
Porra, ele tinha mesmo me beijado. Não foi sonho, nem
pesadelo. Foi real.
— O-Oi, Liam — gaguejei. Que bosta! Por que eu estava
gaguejando?! — Bo-Bom dia.
Vi quando ele franziu o cenho para mim, como se estivesse
achando estranha a maneira como eu tinha falado, e me observou
de cima abaixo, com seu típico olhar de desprezo. Eu não
conseguia identificar se ele lembrava ou não do que tinha feito no
dia anterior. Seu rosto não me dava respostas.
— Dor de cabeça... — passou a mão na testa, esfregando de
leve. Logo depois, baixou um pouco o rosto e olhou para si. — Que
roupa é essa que eu tô vestindo?
Bom, isso podia ser um sinal de que ele não lembrava.
— Essa calça de moletom é sua — falei.
— Eu sei, imbecil — resmungou, quase sem paciência para a
minha lerdeza. Eu sabia que não era exatamente essa a resposta
que ele queria, mas, ao mesmo tempo, eu não sabia se seria
adequado dar a resposta mais correta. Não sabia quais seriam as
consequências. — Só que eu não me lembro de ter vestido —
completou.
“Não me lembro de ter vestido”.
Então, ele não se lembrava de nada?
— Você não se lembra de nada do que aconteceu ontem? —
Com medo da resposta e, ao mesmo tempo, curioso para saber o
que, de fato, ele estava pensando, perguntei. O mais estranho era
que eu estava dividido: um lado meu queria que ele lembrasse, mas
o outro não. E eu não fazia ideia do porquê que um dos dois lados
queria que ele lembrasse daquilo.
— Como eu vesti essa calça? — Liam, todavia, me
respondeu com outra pergunta.
Sinceramente, eu não queria admitir que tinha tirado toda sua
roupa, porque estava suja de vômito, e colocado uma limpinha, para
que ele pudesse. Isso poderia desencadear uma grande briga, pelo
que eu já conhecia do Liam. Mas, era justamente porque eu o
conhecia, que eu também sabia que ele não aceitaria ficar sem essa
resposta.
Então, vamos lá para mais uma sessão de brigas.
— Eu tive que vestir você — em um quase tom de sussurro,
respondi. Ele ia brigar. Eu tinha certeza que ele ia brigar. — Você
estava praticamente em coma alcoólico e todo vomitado. Não tinha
condições de dormir com a roupa que estava usando.
Liam, por sua vez, ao ouvir aquilo, virou o rosto em direção à
varanda do quarto e ficou calado. Reagiu de uma maneira
totalmente diferente do que eu esperava.
Ele não ia brigar comigo? O que ele estava pensando? Ele
não me respondeu se lembrava ou não do que tinha acontecido. Eu
queria que ele lembrasse? Talvez fosse melhor que ele não
lembrasse. Meu Deus, minha cabeça girava em meio a um milhão
de pensamentos.
— Vou tomar um banho — Foi tudo o que ele falou, depois de
segundos de silêncio.
Levantou-se da cama, caminhando em direção ao banheiro,
mas parou quando passou em frente ao espelho. Encarou, por
alguns instantes, seu rosto ainda um pouco machucado. Observou
cada detalhe de um lado ao outro, como se estivesse se avaliando,
e, por fim, olhou-me através do reflexo. Seus olhos penetraram no
meu, em silêncio. Eu não conseguia decifrar o que se passava em
seus pensamentos. Entretanto, pouco depois, voltou a caminhar em
direção ao banheiro e fechou a porta. Calado. Introspectivo.
O que estava acontecendo com o Liam? Ele não brigou
comigo.
❖❖❖

Após Liam sair do banheiro, eu entrei. Após eu sair do


banheiro, Liam já tinha descido para o refeitório. Não nos falamos
mais, nem nos cruzamos. E pior: a cena do beijo continuava se
repetindo umas vinte mil vezes na minha memória. Durante todo o
banho, não consegui parar de pensar no que aconteceu.
Ele me beijou. Ele quis me beijar. Eu gostei. Meu Deus, eu
gostei.
Isso era tão errado. Eu era hetero e tinha uma namorada.
Como eu podia ter gostado do beijo de um cara? Ainda mais quando
esse cara era o Liam!
Saí do banho e não o vi no quarto. Continuei me perguntando
se lembrava ou não do que tinha acontecido. O olhar de desprezo
que ele tinha me dado de manhã, ele sempre me dava, não era uma
novidade. Portanto, eu não podia afirmar, somente com isso, que ele
se lembrava. Por outro lado, ele estava estranho. Não brigou comigo
por eu ter trocado sua roupa e não me respondeu sobre lembrar ou
não.
Porém, no fim das contas, talvez fosse melhor assim. Talvez
fosse melhor que ele não lembrasse. Eu nem deveria estar
preocupado com isso. Era melhor que eu fingisse que nada tinha
acontecido e seguisse com a vida. Sim, essa era a decisão mais
certa e mais adequada. Tudo não passou de um grande mal-
entendido.
Assim, terminei de vestir minha roupa, peguei meus óculos-
escuros, para disfarçar algumas marcas da briga de ontem, que
ainda permaneciam em meus olhos, e saí do quarto. Dentro de
poucos minutos, cheguei ao refeitório e logo visualizei uma cena,
muito, muito estranha. Todos os caras do time estavam em pé, lado
a lado, enquanto o técnico transitava em frente a eles, como se
fosse um general.
Os jogadores mantinham um semblante apreensivo no rosto,
especialmente o Liam, que segurava um óculos-escuro.
Aparentemente, ele teve a mesma ideia que eu para esconder os
machucados. Fui me aproximando aos poucos, enquanto tentava
escutar o que o técnico falava. Sua cara não estava nada boa.
— Então, quer dizer que, ontem, depois que eu entrei no
quarto para dormir, todos vocês foram a um pub?! — Merda. O
técnico tinha descoberto e estava seriamente irritado. — Certamente
a ideia disso tudo foi do Liam. Isso é típico do Liam. Até mesmo
arranjou uma briga no local!
— Mas, Sr. Jones, eu juro que, dessa vez, a ideia não foi
minha — com um semblante desnorteado de quem era acusado
injustamente, ele falou. — Na verdade, eu fui levado meio que à
força para lá. Estou falando a verdade — praticamente suplicou.
Então, dessa parte ele ainda lembrava?
— Você está me dizendo que foi levado à força para pub,
Liam? — dando uma pequena risada sarcástica, Sr. Jones
questionou. — Até parece que eu não te conheço. Esse plano,
quase diabólico de vocês, tem muita cara de ter sido arquitetado por
você.
— Sr. Jones, pelo amor de todos os deuses, não fui eu quem
teve a ideia — praticamente suplicou outra vez. — Eu juro. Sério.
Não convencido, o técnico continuou.
— Ah, não foi você... — De fato, ele não estava levando a
sério o que Liam falava. — Então, se não foi você, quem foi? — e
continuou transitando como um general na frente do time que
permanecia de pé e lado a lado.
Todos continuaram calados, diante do questionamento do Sr.
Jones. Ninguém assumia a responsabilidade, mas também não
dedurava. Ninguém abriu a boca para dizer quem tinha arquitetado
o plano: eu. O mais estranho, entretanto, era que nem mesmo o
Liam havia me dedurado. Se ele lembrava que foi levado à força ao
pub, ele também lembrava que eu tinha planejado tudo.
— Vamos lá, estou esperando uma resposta. Não tenho o dia
todo para resolver isso — o técnico se pronunciou mais uma vez, já
impaciente com o silêncio. — Quem bolou esse plano quase
diabólico?
Sem esperar por mais tempo, falei.
— Fui eu, Sr. Jones — e me aproximei o bastante, admitindo.
— Eu bolei todo o plano. — Isso era verdade. — A culpa é
inteiramente minha.
De repente, o treinador virou-se para mim, com um
semblante de quem não acreditava no que tinha ouvido. Suas
sobrancelhas arquearam e seus lábios entreabriram levemente.
Estava, de fato, surpreso.
— Você, Eric? — e franziu o cenho.
— Sim, Sr. Jones. Eu mesmo — sem medo, respondi.
Ele, no entanto, balançou a cabeça em negativo.
— Não pode ser — sorriu, incrédulo. — Você deve estar
acobertando alguém.
Será que era tão difícil acreditar que eu não era perfeito?
Porque não, eu não era perfeito. Nunca fui. Não sabia de onde as
pessoas tinham tirado essa imagem de mim. Talvez fosse pelas
minhas notas boas? Talvez. Eu não sabia ao certo. Mas, se fosse,
uma coisa não tinha nada a ver com a outra.
— Não, eu não estou. Estou falando a verdade. Fui eu —
reiterei.
Sr. Jones me encarou como se estivesse bastante
decepcionado e se aproximou de mim com um semblante ainda
mais fechado que há poucos minutos. Eu não me assustava com
isso. Preferia mil vezes contar uma verdade que ninguém gostasse
do que uma mentira que confortasse.
— Tire os óculos — com extrema seriedade, pediu.
Na verdade, ele não pediu. Ele ordenou.
Dei um breve suspiro por saber que uma confusão estava por
vir, quando todos vissem as marcas que estavam amostra em meu
rosto. Isso porque, facilmente, o técnico faria a ligação entre os
machucados do Liam e os meus. No entanto, fiz o que ele ordenou
e retirei os óculos. Instantaneamente, todos ficaram em choque, por
verem que, claramente, Liam e eu tínhamos brigado. O técnico, ao
contrário, em vez de chocado, ficou ainda mais irritado.
— Que decepção, Eric — balançou a cabeça. — Essas
marcas nos seus olhos estão diretamente relacionadas às do Liam,
não é? — perguntou, mesmo já sabendo a resposta.
Bom, de fato, eu sempre gostava de falar a verdade e de
admitir as coisas que eu fazia. Porém, nesse momento, ainda
ponderei por alguns segundos. Havia o Liam. O encarei e notei o
quanto estava apreensivo. Ele estava a um triz de ser expulso do
time e, quem sabe, até mesmo do colégio. Por mais que nós nunca
tivéssemos nos dado bem, algo dentro de mim não quis o deixar em
maus lençóis. Eu deveria o safar desta, mesmo que a briga não
tivesse sido iniciada por mim.
— Infelizmente sim — voltei minha atenção para o técnico e
respondi. — Mas, a culpa foi toda minha. A ida ao pub e a briga que
causou essas manchas. Tudo foi por culpa minha.
— Que decepção, Eric — o técnico falou novamente,
balançando a cabeça em negativo. Bem-vindo à realidade, Sr.
Jones. Tirava notas boas, respeitava as pessoas, mas, não, eu não
era perfeito. Aliás, quem no mundo é perfeito? — Liam não teve
nada a ver com isso mesmo?
— Nada — respondi tão somente.
— Estou realmente decepcionado, Eric — ele suspirou,
quase ofendido. — Pensei que, dentre todos, você fosse o mais
sensato. — Parou por alguns segundos, mas, logo depois,
continuou. — Você está suspenso do time titular no primeiro jogo do
campeonato. Vai para o banco reserva. E vou comunicar também à
diretoria que, amanhã, você não vai assistir aula. Você vai para a
detenção.
Era minha segunda detenção em menos de um mês
estudando no Colégio Regent. Que “maravilha”. Além disso, eu
também estava suspenso do primeiro jogo. No banco reserva, os
olheiros das universidades não me viam. Mas... Tudo bem, eu que
tive a “brilhante” ideia de ir ao pub. Já dizia a Terceira Lei de
Newton: “toda ação tem uma reação”.
— Agora, terminem o café da manhã — voltando-se
novamente para o restante, o técnico orientou. — Dentro de meia
hora nós vamos pegar a estrada de volta para Londres.

❖❖❖
Depois do ocorrido no refeitório do hotel, a volta para Londres
foi tranquila, até porque não tinha como ser diferente com cem por
cento do time de ressaca. Todos voltaram calados ou dormindo.
Liam, para variar, não olhou na minha cara. Mas, bom, eu não
estava esperando um “obrigado por livrar minha pele”, nem um “eu
sei que te beijei ontem”. Então, me sentia relativamente tranquilo,
apesar da detenção e do banco reserva.
Ao chegarmos em Londres, o ônibus foi direto para o colégio.
De lá, cada um seguiu seu caminho. Minha mãe já me aguardava na
entrada do Regent, com um sorriso imenso, como se eu tivesse
passado um ano fora. Lógico que eu tive que inventar uma desculpa
sobre os machucados no rosto, mas, ainda bem, ela acabou
acreditando.
— Não era para o George ter vindo me buscar? — perguntei
enquanto minha mãe dirigia de volta para casa. Eu tinha ouvido ele
comentar, mesmo que de longe, algo assim, pouco antes de eu
viajar.
— Seu pai teve que viajar a trabalho — mamãe deu ênfase
na palavra, como se indiretamente me advertisse a chamá-lo assim.
Ela não gostava que eu o chamasse pelo nome, principalmente na
frente de outras pessoas. — Mas acredito que ele volta amanhã —
concluiu.
“Para variar" meu pai estava viajando a trabalho. Era sempre
assim. Eu quase não via em casa. Geralmente, quando ele estava
em Londres, saía muito cedo de casa para a empresa, assim como
voltava muito tarde, quando eu já estava dormindo. Além disso, nos
fins de semana em que ele não trabalhava na construtora, sempre
fazia viagens de negócio. Ou seja, nós nos víamos muito pouco, e,
quando nos víamos, os encontros não eram, digamos, tão
amigáveis quanto deveriam ser.
— Entendi, Dona Cynthia — Dessa vez, falei o “Dona
Cynthia” por pura brincadeira mesmo, só para ver sua reação e rir.
Ela odiava isso. Mas, eu sempre a chamava de “mãe” normalmente.
Nossa relação era muito tranquila e saudável.
— Dona Cynthia, né? — cerrou os olhos em minha direção,
dando-me um puxão de orelha.
— Ei, mãe! — soltei uma risada, afastando-me, no banco de
passageiro ao lado do banco do motorista. — Isso doeu! — e
esfreguei minha orelha, tentando conter a sensação.
— É para doer mesmo! — ela também riu.
— Sabe que foi uma brincadeira, né? — sorri.
— É claro que eu sei, meu anjo. Você me ama? — e
perguntou algo que já era sua marca registrada. Ela sempre me
fazia perguntas desse tipo, para ouvir, satisfeita, que eu a amava.
— É lógico, Dona Cynthia! — abracei-a e a enchi de beijos
quando estacionamos.
Bom, eu não costumava chamar minha mãe de “Dona
Cynthia”. Nossa relação sempre foi muito boa para esse tipo de
coisa. Além do mais, eu gostava realmente de chamá-la pelo nome
que lhe era devido, “mãe”. A situação com meu pai, entretanto, era
diferente. Eu adquiri o hábito de chamá-lo somente de “George”
porque ele estava mais para um provável sócio do que para um pai
mesmo.

...

Hoje, eu finalmente conseguiria passar um dia inteirinho com


o papai. Não seria em um dos meus lugares favoritos, mas, pelo
menos, eu teria sua companhia. Geralmente, eu só conseguia
passar um dia completo com ele, quando me levava para a
construtora. Sim, papai era engenheiro civil e dono de uma
construtora. Por isso, trabalhava muito.
— Filho, você tem quantos anos? Treze, não é? —
perguntou, enquanto revisava alguns papéis em sua mesa de
trabalho.
— Onze papai — sentado em outra mesa, brincando de
colorir um livro, respondi. Como o escritório do papai era imenso, o
local onde eu estava era bem distante de sua mesa de trabalho.
— Ah, tudo bem, não importa. O que importa... — levantou-se
de seu trono, digo, de sua cadeira, e caminhou até onde eu estava.
— O que importa é que você já está grande o suficiente para
começar a fazer coisas de futuro para essa empresa que, um dia,
será sua — Enquanto fechava meu livro de pintura e tirava o lápis
de cor da minha mão, disse. — Vou pedir ao Jimmy, meu assistente,
para começar a te ensinar algumas coisas sobre projetos de
construção. Vou ligar para a sala dele agora.
Projetos de construção? Mas...
— Papai, eu queria continuar pintando o livro.
— Filho, você já nasceu muito bom na matemática. Você tem
que aproveitar essa facilidade com os números, para ajudar nos
negócios do papai. Meus amigos se orgulham de ver você ser uma
criança prodígio. Seus amiguinhos querem ser como você. Você tem
que continuar assim. Você tem que ser exemplo para os outros. Ou
você quer ser como o filho dos Tremblay? Liam é extremamente
problemático. Aposto que ele gostaria de ser como você.
O Liam era problemático?
— Papai, o Liam não é assim... — tentei argumentar. Afinal,
para mim, ele era um garoto muito esperto e inteligente. Mandava
bem no futebol e tinha vários amigos na sua rua e no seu colégio.
— Ok, não estamos aqui para falar dos problemas dos filhos
dos outros — meio impaciente, porque papai nunca se prolongava
por muito tempo em um único assunto, falou. — Estamos aqui para
falar sobre você. Você, filho, vai me ajudar nos negócios, a partir de
hoje, certo? Temos que começar isso desde cedo. Vou ligar para a
sala do Jimmy.
— Mas papai... Eu queria continuar pintando...
— Eric... — Dessa vez, ele me encarou de um jeito muito
mais sério e incisivo. Estava realmente determinado a levar adiante
aquela ideia. — Você vai para a sala do Jimmy agora e ele vai
começar a te ensinar coisas de futuro, ok? — Seu tom de voz se
tornou um tanto ameaçador.
Eu não tinha para onde correr. O jeito era aceitar.
— Tudo bem... — com desânimo, respondi.
— Quero ver como você vai se sair com os projetos de
construção, ok? — Seu tom ameaçador permanecia.
— Tudo bem, Seu George.

...

Desde esse dia, passei a chamar meu pai de “George”. Era


como uma resposta à maneira como ele me via: um futuro sócio a
quem ele poderia transferir a empresa quando já não pudesse mais
trabalhar. Desde esse dia, ele passou a me cobrar por trabalhos da
construtora. E, desde esse dia, ele foi se afastando mais de mim e
de casa.
Quando mamãe estacionou, subi as escadas e segui direto
para o meu quarto. Finalmente, minha cama. Que alívio! Coloquei a
mala em um local apropriado e me deitei. Fechei os olhos e
aproveitei alguns minutos de paz e silêncio. No entanto, quando eu
já estava quase cochilando, devido ao cansaço da viagem, ouvi meu
celular tocar. Droga.
Levantei da cama a contragosto e caminhei até a minha
mala, onde estava o celular. Quando olhei o registro de chamada,
me assustei. Liam era o nome que estava escrito. Meu coração quis
acelerar, por mais que automaticamente eu tivesse achado esse
nervosismo uma estupidez. Afinal, não era para eu me sentir assim
em relação ao Liam. Por outro lado, que milagre era esse? Ele
nunca me ligava.
Com o coração saltando pela garganta, ainda ponderei, por
alguns segundos, se atendia ou não. A chamada parecia eterna e
não caía. Droga. Será que ele se lembrava de tudo? Ainda me
perguntei por um instante. Droga. Quando saí do hotel, eu tinha
prometido a mim mesmo que iria esquecer. Mas, e se ele
lembrasse, o que iríamos fazer? Senti uma gota de suor escorrer
pela testa. Era tão miserável todo esse meu nervosismo. Eu
realmente gostaria de parar de me sentir assim.
Talvez, se eu encarasse o problema de frente, como um
homem, isso não me afetasse tanto. Então, decidido a enfrentar as
consequências do aceite da ligação, decidi atender.
Uma, duas, meia e...
— Alô? — tentei usar o tom de voz mais grosso que eu
conseguia.
Ele não respondeu. Ouvi apenas uma leve respiração do
outro da linha.
— Alô? — disse mais uma vez.
Alguns segundos se passaram até que...
— Oi... É... — pigarreou a garganta. — Oi.
— Oi, Liam — meio receoso, mas tentando disfarçar
respondi. — Aconteceu alguma coisa? — e eu nem sabia se, de
fato, deveria fazer essa pergunta. Talvez eu não estivesse
preparado para o que ele poderia falar.
— Bom, eu te liguei pra... Pra... Agra... Agrade...
— Agradecer? — franzindo seriamente o cenho, perguntei.
— É... Isso aí mesmo.
Que estranho. O que estava acontecendo o Liam, afinal? Ele
nunca, em hipótese alguma, me agradeceu por algo. Aliás, eu não
sabia se a palavra “obrigado” existia em seu vocabulário.
Será que as coisas estavam mudando?
— Agradecer pelo quê? — questionei, mesmo já tendo ideia
do que pudesse ser.
Liam permaneceu calado por alguns segundos. Será que ele
estava querendo desistir da ligação? Eu não duvidava. Não era do
seu feitio me ligar e, muito menos, agradecer por algo. A qualquer
momento ele poderia desligar.
— Você... — Entretanto, para minha completa surpresa, após
um tempo de silêncio, ele continuou. — Você livrou minha barra.
Acho que eu seria expulso do colégio, se eu fosse para a detenção
mais uma vez.
Nossa, milagres acontecem. Sim, senhores, milagres
acontecem!
Ele realmente estava me agradecendo. Eu mal podia
acreditar.
— Por nada... — Mesmo bastante surpreso, tentei soar o
mais casual possível, como se eu ouvisse esse tipo de coisa a cada
cinco minutos. — Precisando estamos aqui.
— É... Então... Então, é isso — disse, ao mesmo tempo em
que sentia que ele não tinha me ligado apenas para falar isso. Tinha
mais alguma coisa por trás. Alguma coisa que eu não tinha certeza
se, de fato, queria ouvir, por mais que eu estivesse curioso.
— É... É isso — também falei.
Eu não sabia o porquê de estar enrolando para desligar. O
que eu realmente deveria fazer era dizer “por nada, precisando
estamos aqui, até mais” e, simplesmente, desligar. Isso era o que eu
devia fazer, mas não era isso que meu corpo queria fazer. Eu só não
entendia o motivo.
— Então tá... — ele, claramente, também estava enrolando
para desligar. Eram palavras de despedida, mas eu sentia que ele
não queria terminar a conversa naquele ponto. Era como se tivesse
muito mais de onde aquele agradecimento saiu.
— Mais alguma coisa? — Guiado por uma coragem, ou
mesmo uma curiosidade, que eu não sabia de onde vinha,
perguntei. Talvez, fosse uma grande estupidez minha, mas, ainda
assim, indaguei.
— É... — ele sonorizou, como se estivesse hesitando em
falar. Por Deus, será que ele se lembrava? Será que ele ia falar
alguma coisa sobre o ocorrido no pub? Meu coração acelerou outra
vez. — Hum...
— Tem... — Oh Deus, certamente era uma estupidez insistir,
mas eu prossegui. — Tem mais alguma coisa que você queira me
falar?
Dar em cima da fiscal na cara de pau

Eric

— Se... Se eu tenho mais alguma coisa para falar. — notei seu


tom de voz, milagrosamente, encabulado. Era muito, muito difícil ver
Liam encabulado com qualquer coisa. Meu Deus, quantas coisas
estranhas nos últimos dias.
— Isso... — Mesmo ainda sem ter certeza se eu realmente
queria saber o que ele estava pensando ou querendo dizer,
respondi. Minha curiosidade falava mais alto que o medo ou o
nervosismo. Na verdade, eu nem deveria estar com medo ou
nervoso com qualquer coisa. Eu deveria agir de maneira impassível.
— Você tem mais alguma coisa para me falar?
Entretanto, Liam me deu mais um breve, que até parecia
longo, momento de silêncio. Eu ouvia apenas sua leve respiração, e,
assim como tantas outras vezes naquele fim de semana, eu nunca
havia me imaginado em uma situação dessa com ele.
— Liam?
Ele suspirou.
— É... Não... Vou desligar — apressada e bruscamente
desligou, como se tivesse desistido de tudo o que estava lutando
para falar. No final, ouvi apenas o sinal indicando que a ligação tinha
sido finalizada.
Quando me dei conta de que ele tinha desligado na minha
cara, enquanto, na verdade, eu nem deveria ter prolongado o
assunto, me senti decepcionado comigo mesmo. Não era para eu
ter insistido. Era para eu ter sido breve, bem breve. O que eu estava
pensando da vida, afinal?
Eric, volte a si!
Estava até parecendo aquelas mulheres que ficavam
esperando pela ligação do cara no dia seguinte ao encontro. Eu não
era assim. Eu, definitivamente, não era assim. O que eu estava
esperando? Que ele fosse lembrar que me beijou e que pediu por
mais? Porra. Eu estava parecendo um gay, coisa que
definitivamente eu não era. Nunca tive problemas com gays, mas eu
não era um.
Esquecer que aquele final de semana existiu era a melhor
coisa que eu podia fazer. Aliás, era algo que já deveria ter feito há
muito tempo. Estava mais do que na hora de colocar um ponto final
naquilo, em definitivo. Um novo dia estava por vir e, a partir dali, eu
começaria do zero. Tudo o que tinha acontecido cairia na minha
zona de esquecimento.

❖❖❖

— Bom dia, bom dia, bom dia! — acordei com a voz agitada
da minha irmã. Ela estava pulando em cima de mim. Em geral, era
desse jeito como ela falava todas as manhãs. — Que saudade! — e
me abraçou forte, deitando-se na cama comigo, mesmo que eu
ainda estivesse tentando me orientar após uma longa noite de sono.
Eu tinha chegado tão tarde, no dia anterior, que Stefany já
estava dormindo.
— Nossa... — bocejei coçando os olhos. — Você e sua mania
de me acordar desse jeito — resmunguei, sonolento. No fundo, eu
não achava ruim, até gostava. Era só charme meu para irritá-la um
pouquinho.
— Também te amo, irmãozinho — em tom de brincadeira, ela
respondeu e me abraçou, carinhosa. — Sabia que eu senti sua falta,
mesmo tendo sido só um final de semana? Viu como eu sou fofa?
— É, eu sei... Sou tão legal que as pessoas facilmente
sentem falta de mim — brinquei de leve, quando já me sentia mais
acordado. — E eu também amo você, engraçadinha — abracei-a de
volta e beijei seu rosto.
— Como foi o final de semana? — ela perguntou.
Uma merda?
— Ah, foi legal... — tentei responder com o máximo de
naturalidade possível. Obviamente, eu não ia lhe contar os detalhes
mais sórdidos, como a briga nos fundos do pub, entre Liam e eu, e o
nosso beijo.
— Sério? — me encarando com o cenho franzido e confuso,
Stefany questionou. — Ontem o Liam me ligou e não foi isso o que
ele disse...
Ah, meu Deus, Liam tinha ligado para a Stefany? Merda. Eu
esperava que ele não tivesse dado com a língua nos dentes, porque
eu ainda não estava preparado para admitir a todos que um cara
tinha me beijado.
— Foi? — tentei um tom casual, como se eu estivesse
ligeiramente desinteressado no assunto. No entanto, por dentro, eu
já estava gritando. — E o que ele falou?
— Bom... Ele me disse que vocês brigaram, para variar... —
soltou uma pequena risadinha. — Disse também que foram
escondidos a um pub e que, por isso, você tá suspenso do time
titular por um jogo e que você vai para a detenção hoje. Um fim de
semana e tanto! — brincou.
E bote “fim de semana e tanto” nisso!
Por dentro, eu suspirei de alívio. Aparentemente, ele só tinha
contado sobre a nossa briga e a minha suspensão. Com isso, eu
conseguiria lidar facilmente. Era o tipo de assunto que poderia
conversar, mesmo que não fosse tão bom.
— E ele só disse isso? — tentando comprovar que meus
pensamentos estavam certos, me utilizei novamente do meu tom
ligeiramente desinteressado, e questionei novamente. Eu precisava
saber.
— Foi... Por quê? Teve mais alguma coisa? — enrugou a
testa levemente. — Eu, particularmente, estou adorando ver esse
teu lado badboy mais aflorado. Inclusive, relaxa... Eu não vou contar
para a mamãe. Sabe que eu sempre encoberto as tuas coisas, né?
— riu um pouquinho.
Ufa, então ele não tinha mesmo entrado em muitos detalhes.
— Não. Foi só isso. Nossas grandes emoções foram a briga
e a minha suspensa. — dei um sorriso fingido, mas bastante
convincente. — E muito obrigado por não me dedurar para a nossa
mãe. Você sabe como ela é. Faria uma tempestade em copo d’água
por algo tão insignificativo — Essa parte era verdade. — E, ah, você
sabe que eu nunca fui perfeito — brinquei.
— Sei sim — ela riu. — Você não é perfeito, mas é discreto.
Então, nunca descobrem as coisas que você faz, ou, pelo menos,
quase nunca.
É isso aí. Stefany era uma das poucas pessoas que me
tratavam como um ser humano normal e com defeitos. Eu,
sinceramente, gostava disso.
— Exatamente, é por isso e por muitas outras coisas que eu
amo você — sorri. — Agora tá na hora de levantar e ir para o
colégio, porque eu tenho uma detenção para enfrentar durante todo
o turno da manhã — levantando da cama, revirei os olhos.
— Você sobrevive — brincando, ela riu.

❖❖❖

Após me arrumar e tomar o café da manhã, fui com Stefany


para o colégio. Não demorou dois segundos para que ela se
juntasse às suas amigas e eu aos meus. Confesso que eu tinha
ficado com receio de me mudar para o Colégio Regent. Primeiro,
por causa do Liam. Segundo, por causa dos outros alunos. Não
sabia como iriam me receber. Mas, felizmente, me acolheram muito
bem.
Já me sentia em casa naquele colégio, apesar de haver uma
estúpida divisão entre as pessoas que gostavam de mim e andavam
comigo, e as pessoas que gostavam do Liam e andavam com ele.
Eu não ligava para isso. Achava uma tremenda bobagem. Para
mim, quanto mais amigos eu tivesse, melhor. Portanto, falava com
todos e cumprimentava todo mundo.
— Bom dia, meu amor! — Enquanto eu caminhava pelos
corredores do colégio e conversava com as pessoas, Molly, de
repente, surgiu, jogando-se em meus braços, toda carinhosa.
— Ah, bom dia, princesa! — surpreso com a abordagem,
segurei-a no abraço.
— Um final de semana sem a gente se ver é tão ruim... — a
morena fez biquinho.
Achando engraçado, soltei uma pequena risadinha para o
seu rostinho mimado.
— Eu sei... — sorri e a beijei. — Mas, você tem que começar
a se acostumar. Com o campeonato, eu vou estar fora praticamente
todos os fins de semana. Vai ser assim até terminar esse último ano
do colegial, princesa.
— Infelizmente, né? — fez outro biquinho de leve. — Vamos
aproveitar o agora, porque você está aqui e eu quero matar a
saudade! Vem! Quero te contar tudo o que aconteceu no final de
semana! — e me puxou pelo braço, levando-me até o pátio da
escola.
Sentamos em um dos bancos mais reservados do local. Molly
posicionou suas pernas em cima de uma das minhas, deixando
nossos corpos bem próximos. Não demorou muito para que ela
começasse a me beijar. Era isso o que sempre fazíamos no pátio do
colégio, quando não estávamos conversando. Eu correspondi aos
seus beijos, mas, em dado momento, algo muito estranho
aconteceu.
Flashs do sábado à noite começaram a vir à tona na minha
cabeça. O pub, as brigas, o beijo. Meu Deus, o beijo que o Liam me
deu, surgiu de supetão na minha memória. Foi inevitável: eu
instantaneamente parei o beijo, com o susto.
— O que foi? — franzindo o cenho, deu-me um pequeno
sorriso desconcertado.
Lembrei que teu irmão me beijou. Só isso mesmo.
— Ah... Nada... — tentei responder de maneira confortável,
para ela não achar ainda mais estranho. Molly era perspicaz
demais. Eu não podia dar bobeira. — Me fala como foi seu final de
semana — procurei mudar de assunto.
Ela sorriu. Ah, graças a Deus. Passou batido.
— Não antes de você me contar sobre o seu. Quero saber de
tudo! — empolgada, disse.
Tudo? Acho que não.
— É... Então tá...
Contei para a Molly tudo o que tinha acontecido no meu final
de semana, assim como ela também me contou detalhes sobre o
seu. Falei sobre o pub, a detenção, e omiti algumas partes também,
claro. Porém, o fato era que quanto mais eu omitia, mais as imagens
do beijo apareciam na minha memória, mesmo que eu não
quisesse. E, quanto mais minha mente trazia essas lembranças,
mais eu queria vê-lo e falar com ele. Era loucura, eu sei.
Eu estava ficando louco. Não havia outra resposta para isso.
— Você está um pouquinho diferente... — Ao final da nossa
conversa sobre o fim de semana, Molly disse, dando-me um
pequeno sorriso, justamente com um semblante de quem estava me
avaliando um pouquinho.
— Estou mais bonito? — tentei fazer uma leve piadinha,
embora, no fundo, eu soubesse exatamente do que ela estava
falando. Por mais que eu fingisse muito bem, algum olhar ou outro,
um pouco mais estranho, passava sem querer.
Molly riu, mas ainda continuou com aquele rostinho
pensativo.
— Você já é bonito demais para conseguir ficar ainda mais
bonito — respondeu, levemente divertida. — Então, não, não é isso.
Você só tá... Diferente.
Meu Deus. Molly não podia desconfiar de nada.
— Ah, impressão sua... — tentei desconversar, agindo com
naturalidade e sorrindo. — Eu estou do mesmo jeito. Talvez só um
pouco cansado ainda do final de semana. Mas, logo eu recupero
minhas energias.
Assim que me calei, todavia, ouvi o sinal do colégio tocar,
indicando que o horário de aulas iria começar. Ou melhor, que o
meu horário de detenção iria começar. Eu tinha que enfrentar aquela
chatice.
— Preciso ir para a detenção, princesa.
Talvez o sinal até tivesse soado em um momento muito
apropriado. Eu poderia me livrar daquele pequeno interrogatório da
Molly, com isso.
— Você e a detenção não combinam... — ela brincou. —
Mas, boa sorte lá.
— Obrigado, princesa — lhe dei um pequeno beijo. — Nos
vemos depois.
Assim, me despedi e caminhei rumo a minha prisão, digo,
rumo a detenção. Durante o percurso, fiz algumas ponderações.
Passei a vida inteira estudando e aprontando no Colégio Liverpool,
mas nunca fui pegue. Daí, foi só passar a frequentar o Colégio
Regent que as coisas mudaram. Segunda detenção em menos de
um mês.
Quando cheguei à sala do meu purgatório, entretanto, me
surpreendi, assim como na primeira vez. Teoricamente, a detenção
era feita para estudar e refletir sobre as coisas erradas que foram
praticadas. No entanto, aparentemente, isso funcionava apenas em
teoria mesmo. Na vez passada, aprendi que os alunos que estavam
ali não faziam nem uma coisa, nem outra.
O dia mal tinha começado e o local já estava cheio. Tive a
impressão de que a galera saía de casa com o intuito não de
estudar, mas de foder o colégio. Parecia até piada, mas era a
verdade. Suspirando ao ver os alunos fazendo qualquer algazarra
ali, menos estudando, assinei meu nome na lista de presença e me
sentei em uma das últimas cadeiras vazias, bem no fundo da sala.
Assim que tomei meu lugar, observei a fiscal de sala. Ela
estava tão desconcentrada na fiscalização quanto o funcionário da
última vez. Será que naquele colégio não existia algum fiscal de
detenção decente? Prova da sua completa incompetência era que
ela estava cerrando as unhas, mascando chiclete e olhando para o
celular. Talvez tivesse uns vinte e poucos anos, e fosse uma aluna
de faculdade estagiando no Colégio Regent.
Se tivesse uma detenção para funcionários, certamente era o
local onde ela deveria estar... Como detenta.
Olhei para os alunos em volta e, claro, ninguém estava
mesmo estudando. Todos conversavam, mexiam no celular,
jogavam, comiam, brincavam, gritavam, faziam tudo, menos estudar.
Eu, no entanto, iria preferir ficar quieto. Ponderei que o melhor seria
pegar um livro de matemática e resolver algumas questões, para
que o tempo passasse mais rápido. Com a mente ocupada, com
certeza o tempo passaria mais rápido.
Assim, tirei o livro e meu caderno de matemática. Os abri e
comecei a folheá-los. Vamos lá... Equações de segundo grau ou
funções trigonométricas? Hum, talvez fosse mais interessante
começar pelas equações de segundo grau. Peguei caneta, lápis,
borracha e iniciei a resolução das questões.
Após alguns minutos, ouvi o som da porta da sala se abrindo.
Levantei meu pescoço e, instantaneamente, tomei um susto. Era o
Liam entrando. Franzi o cenho de automático, confuso. O que o
Liam estava fazendo ali? Segundos depois, notei seu olhar procurar
alguém. Quando ele mirou em mim, tive a certeza de que era eu
quem ele estava procurando. Mas, por que? Liam parecia estar
determinado a fazer.
Minha curiosidade se misturou com um pouco de nervosismo.
— O que diabos o Liam vai fazer? — sussurrei para mim
mesmo.
Ele, então, começou uma aparente... Na verdade, nem tão
aparente assim, era descaradamente mesmo. Liam começou uma
conversa descaradamente provocativa com a fiscal, fazendo com
ela virasse o rosto na direção contrária à sala e se desconcentrasse,
ainda mais, da sua função de fiscalizar. Em poucos minutos, a fiscal
já estava totalmente interessada no charme do Liam.
Ele estava dando em cima dela, mesmo? Assim, na cara de
pau?
Eu não podia acreditar.
Conversas, risos, sorrisos. Nunca tinha visto o Liam tão
simpático em toda a minha vida. Safado, dando em cima da fiscal na
maior cara de pau e na minha frente. De repente, senti uma irritação
inexplicável me tomar. Eu não sabia o porquê disso e me recusava a
acreditar que pudesse ter alguma relação com aquela cena que eu
estava vendo. Não podia ser por causa do Liam. Claro que não.
Agora, chateado comigo mesmo por estar irritado com sabe-
se lá o quê, baixei a cabeça e voltei a resolver as questões.
Entretanto, percebi Liam olhar para mim e mexer com os lábios a
palavra “janela”. Ele não sonorizou, mas eu consegui fazer uma
leitura labial. Automaticamente, franzi o cenho. O que ele estava
querendo, afinal? Na mesma hora, a fiscal percebeu brevemente e
fez menção de virar o rosto para mim. Liam, entretanto, a impediu,
fazendo um repentino carinho em seu rosto e em seu cabelo.
Foi então que uma luz recaiu sobre a minha cabeça. Uma
lâmpada acendeu e iluminou meus pensamentos. O que estava
acontecendo era, na verdade, o que eu estava pensar? Não, não
podia ser. O Liam estava dando em cima da fiscal porque ele queria
que eu...? “Vai pra janela”, ele mexeu os lábios novamente,
enquanto continuava fazendo carinho nos cabelos da moça,
impedindo que ela virasse o rosto para mim.
Meu Deus, meus pensamentos estavam se confirmando.
Liam voltou sua atenção para a fiscal, enquanto eu olhava
para a grande janela da sala da detenção, refletindo sobre o que
estava acontecendo. Ele estava dando em cima dela para que eu
pudesse fugir da detenção pela janela? Era isso mesmo? Tornei a
olhar para eles, enquanto questionava comigo mesmo. Liam
continuava conversando de maneira animada e empolgada com a
moça. Se fosse tudo fingimento para que eu pudesse fugir, ele era
um ótimo ator!
Em dado momento, Liam se inclinou para puxar uma cadeira
e se sentar ao lado dela. “Vai logo pra janela, porra”, mexeu
novamente os lábios, puxou a cadeira e continuou sua missão. Após
sentar-se, sorriu para ela e pegou novamente em uma mecha de
seu cabelo. Em seguida, deu-me um semblante de tédio com um
rápido revirar de olhos. Provavelmente, ele já estava ficando
impaciente por eu não ter saído ainda.
Será que isso ia dar certo? Será que não iria ser pior se eu
fugisse da detenção? Liam estava querendo me ajudar ou me ferrar
mais? Eram tantas perguntas que giravam em minha cabeça!
Olhei para a janela, olhei para ele. Olhei para a janela, olhei
para ele. Isso repetidas vezes, tentando me decidir. Em dado
momento, no entanto, nossos olhares se cruzaram. Liam revirou as
orbes novamente para mim. Ele estava, de fato, impaciente com
minha falta de proatividade. Apontou, por fim, com o queixo em
direção à janela.
Que saco. Bufei para mim mesmo. Eu, que também já estava
ficando irritado com minha indecisão, tomei a iniciativa e ponderei:
eu já estava ferrado mesmo, não faria tanta diferença me ferrar
ainda mais. Então, eu fugiria pela janela. Só esperava que o Liam
me desse uma cobertura decente, para que a fiscal não me visse
saindo pela janela. Finalmente, recolhi meu material e guardei tudo
na mochila. Olhei para Liam, tentando sinalizar meu aceite, que logo
percebeu.
Balancei um sim levemente com a cabeça, demonstrando
que entendi o plano e que estava pronto para fugir. Liam também
indicou que estava ciente e, no mesmo instante, para despistar
ainda mais, notei que ele falou algo engraçado para a moça,
fazendo com ela desse uma risada e fechasse brevemente os olhos.
Aproveitei a deixa para me levantar da carteira e começar a
caminhar de fininho até a janela. Pelo menos, o local onde eu tinha
me sentado era propício e estratégico, porque ficava bem próximo à
janela. Ou seja, talvez eu pudesse sair com certa facilidade.
Liam continuou entretendo a moça, para minha sorte.
Observei a sala, me certificando de que ninguém perceberia, caso
eu saísse, e me aliviei ao notar que todos continuavam
conversando, jogando, mexendo no celular, fazendo qualquer coisa,
menos estudando ou olhando para mim. Mais seguro, caminhei, aos
poucos, até a grande janela e me inclinei para subir. Passei a
primeira perna e dei mais uma olhada geral. Ninguém estava
prestando atenção em mim, graças a Deus. Passei a segunda perna
e, finalmente, pulei, já sentindo o gramado do pátio, sob os meus
pés.
Meu Deus, eu tinha mesmo fugido da detenção!
Isso... Isso era libertador! E, literalmente, muito engraçado.
Eu só não entendia o porquê do Liam ter feito isso. Não
entendia porque ele quis me ajudar dessa maneira. Será que eu
devia falar com ele? Sim, eu devia falar com ele. Precisava
perguntar o que tudo significava e, principalmente, se essa fuga não
daria em algum problema.
Será que ele já tinha saído da sala ou ainda estava lá dando
em cima da fiscal?
Bom, eu não sabia, mas o melhor era ir atrás dele.
Caminhei rapidamente em direção ao corredor principal do
colégio. Em seguida, dobrei a esquerda e entrei devagar no local
onde fica a sala da detenção. Parei próximo a alguns armários e não
demorou muito tempo para que eu visse Liam sair de lá. Ele estava
andando para o lado oposto ao meu, portanto, não me viu. Era
agora. Eu precisava saber o que tinha sido aquilo tudo. Me apressei
para alcançá-lo e toquei em seu ombro.
Liam virou-se e...
— O que você tá fazendo aqui, idiota?! — gritou em um
sussurro. Contraditório? Sim, mas, em geral, Liam era contraditório
mesmo.
— O que foi tudo isso? — franzi o cenho, mas, apesar de
confuso, ainda esbocei um pequeno sorrisinho. Por mais estranho
que aquilo tivesse sido, também foi... Legal. Jamais poderia ter
imaginado Liam me ajudando em qualquer coisa.
— Seu imbecil... — balançou a cabeça em exasperação e me
arrastou pela gola da camisa até o corredor ao lado, que estava
mais deserto. Afinal, as aulas ainda estavam acontecendo naquele
exato momento. — Você precisa sair daqui, ou vão te ver e meu
trabalho terá sido em vão!
“Meu trabalho”. Eu mal conseguia acreditar naquelas
palavras.
— Por que você fez isso? Por que me ajudou? — confuso,
perguntei.
Liam, no entanto, revirou os olhos.
— Isso não foi uma ajuda — replicou.
Ah tá bom.
— No meu vocabulário, isso significa ajuda sim — esbocei
um pequeno sorriso novamente. Como eu já deveria ter imaginado,
Liam não daria o braço a torcer, ele não admitiria ter me ajudado.
Era demais pra ele.
— Não foi uma ajuda, imbecil. Eu só... — parou de falar por
alguns segundos, esboçando um semblante de quem estava
tentando escolher as palavras certas, e, logo depois, voltou a falar.
— Ontem você livrou minha barra da detenção, hoje eu livrei a sua.
Agora, fim de papo. Vai pra casa antes que te vejam.
Por mais que ele falasse isso, eu sabia que era uma ajuda.
Algo surreal.
Liam nunca tinha me ajudado. Era a primeira vez.
— Obrigado — sorri para ele.
— Cai fora — de pronto, ele replicou.
Ainda não. Eu ainda precisava saber de outra coisa.
— Não vai ter problema? — perguntei. — Não estou mais
ferrado do que antes?
— Você assinou a lista de presença da detenção, não
assinou?
— Assinei. Assinei assim que entrei na sala.
E, então, Liam esboçou um pequeno sorriso com a minha
resposta. Isso era real? Liam sorrindo? Sorrindo para mim? Não,
isso não podia estar acontecendo. Todas as situações dos últimos
dias não podiam ser reais. Ou se fossem, apesar de muito
estranhas, me fizeram enxergar que Liam não era tão desprezível
quanto parecia.
Foi então que olhei inconsciente para os seus lábios e, de
automático, me lembrei do beijo, dos lábios, da língua... Merda! Eu
precisava esquecer isso!
— Ah, então, relaxa... Aquela fiscal é uma lesada — deu de
ombros. — Já escapei da detenção várias vezes quando ela estava
fiscalizando. Você assinou a lista, então, para todos os efeitos, você
esteve presente. Agora, porra, sai daqui. Vai pra casa. Cai fora
antes que te vejam.
Tentei parar de olhar para a boca dele, mas... Sabe... Eu
poderia retribuir o beijo que ele me deu...
— Eric? — franzindo o cenho, Liam me chamou.
Certamente, ele me daria um soco se eu o beijasse agora.
Certamente, ele nem lembrava mais do que fez. Certamente, ele me
beijou porque estava muito bêbado. A lucidez dele devia estar
afetada naquela noite no pub. Mas... Se eu retribuísse agora...
— Imbecil! Acorda pra vida! — me chacoalhou, fazendo com
que voltasse ao Planeta Terra.
Foi aí que finalmente me dei conta: cacete! Eu tinha pensado
tudo isso mesmo? Que merda! Eu era hetero e tinha uma
namorada, que, por sinal, era a irmã dele. Balancei a cabeça
levemente em exasperação comigo mesmo. Eu precisava de um
tratamento psicológico.
— O que foi? — confuso, perguntou.
Eu apenas cogitei a possibilidade de te beijar aqui e agora.
Apenas.
Eu só podia estar ficando louco mesmo!
— Nada... Nada — meio sem jeito, após aquele choque de
realidade, respondi. — Mas, obrigado pela ajuda — e ergui a mão
para um toque.
Liam a encarou e...
— Não somos amigos. Cai fora. Se manda. Vai pra casa.
Inevitavelmente, um pequeno sorriso escapou da minha
boca. Apesar dos pesares, aquele jeito ranzinza que ele tinha era
engraçado. Bom, Liam, em geral, era engraçado. Só, às vezes, meio
imbecil e irritante.
— Beleza... — continuei sorrindo, enquanto caminhava de
costas por alguns instantes e olhava para ele. — Até mais! — e me
virei, fazendo meu caminho até a saída.
Liam estava conseguindo me deixar cada vez mais confuso.
Uma parte de mim, uma parte estranha e irreconhecível de mim,
tinha a curiosidade de retribuir o beijo, enquanto a outra sabia que
levar isso adiante era errado, extremamente errado. Uma parte de
mim, queria acreditar que ele tinha esquecido o beijo, enquanto a
outra queria acreditar que não.
O fato era que estava meio diferente.
Ele continuava com o seu jeito áspero comigo? Continuava.
Mas, ele tinha me ligado para agradecer, no dia anterior, e me
ajudou bastante, naquele dia, a sair da detenção. Eu jamais poderia
imaginar algo assim. Algo estava mudando, eu só não sabia o que
era.
Liam Ranzinza Tremblay Terceiro estava me deixando cada
vez mais confuso.
Ele é bom de cama

Eric

Os últimos acontecimentos ainda estavam martelando na minha


cabeça.
No dia seguinte, após acordar, fiquei, a exatos quinze
minutos, segurando e encarando o meu celular. Estava me sentindo
tão trouxa, nos últimos dias. Se antes eu já não conseguia parar de
pensar no que aconteceu no final de semana, agora, depois do Liam
ter me livrado da detenção, eu não conseguia parar de pensar
mesmo.
Quando eu poderia imaginar que ele, algum dia, me
agradeceria por algo? Nunca. Quando eu poderia imaginar que ele,
algum dia, me ajudaria? Nunca. Definitivamente, nunca. Liam era
estranho. Sempre. Aquele cara nunca foi normal. Mas, desde o
episódio do pub, o considerava menos normal ainda. Suas atitudes
estavam tão confusas, que me deixavam confuso também.
Agradecimento e ajuda eram duas atitudes totalmente
incomuns para um cara que sempre foi desprezível, imbecil, idiota,
babaca, retarda... Nossa, poderia passar o resto do dia pensando
em “n” adjetivos para ele. Enfim, essas atitudes só me faziam
pensar em duas alternativas: ou ele se lembrava do beijo e estava
fazendo essas coisas por algum motivo desconhecido, ou ele não se
lembrava e apenas quis retribuir a ajuda que eu dei por não ter o
dedurado ao treinador sobre a briga.
Retribuir ajuda não era do feitio do Liam, mas... Beijar caras
também não era!
Droga, era tudo tão confuso.
Os modos dele permaneceram os mesmos. Ele continuava
me tratando daquela mesma forma rabugenta. Apenas algumas de
suas atitudes foram inesperadas, ou mesmo inesperadas ao
extremo, mas, embora tivessem sido poucas e pontuais, elas já
faziam com que eu me sentisse tão perdido quanto o garotinho
virgem de treze anos que já tinha sido um dia. Os pensamentos
giravam e se misturavam na minha cabeça de modo que eu não
conseguia decifrar se ele lembrava ou não do que fez.
Eu sabia que não deveria estar me importando com tudo isso.
Afinal, eu era hetero e tinha uma namorada. Bom, eu já tinha
tentado me esquecer, juro que tentei. Mas, era impossível quando o
imprestável do meu cérebro ficava o tempo inteiro disparando a
pergunta: o imbecil do Liam se lembrava ou não? Era por causa de
tudo isso que eu estava, a exatos quinze minutos, encarando a
porcaria do celular, indo e voltando na decisão de ligar para ele ou
não. Algo, no fundo, me dizia que talvez tudo se resolvesse, se eu
abrisse a boca para perguntar, mas... Porra, eu não conseguia!
E se eu ligasse e ele negasse até o fim, dizendo que não fez
e que não lembra? Iria pegar mal pra mim, não iria? Certamente, eu
seria tido como o gay da história, o “interessadinho” que correu atrás
do outro, até porque, quem não se importa, não vai atrás. E pior: se
eu ligasse e ele confessasse, dizendo que lembra que me beijou? O
que eu ia fazer? O clima entre nós ficaria pior! Com certeza seria
tipo: “é, eu te beijei, agora desliga e esquece que eu existo e que
tudo isso aconteceu”. Liam só diria mais do mesmo que eu já
falando para mim: “Eric, seu filho da mãe, esquece essa bosta!”.
Eis aí o dilema da minha vida.
Nunca tive problemas com gays e nunca achei errado alguém
ser gay, mas... Será que eu estava virando gay por causa do que
vinha acontecendo?
Ah meu Deus, gay talvez não, mas que essas atitudes
estavam sendo muito de mulherzinha, isso estavam. E era uma
merda! Saco. Droga. Vontade de sumir! Vontade de... Ah! Soltei o
celular, pegando um dos travesseiros para, logo em seguida,
afundá-lo contra o meu rosto com toda a força. Merda, até drama de
mulher eu estava tendo. Bufei.
Ok, Eric, se controle. Foco. Você é um homem. Um homem já
feito. Um macho. Quase um alfa da porra toda. Um cara que não
deveria se importar com essas coisas. Sim, eu era tudo isso e não
devia me importar com os últimos acontecimentos. Vamos lá, Eric,
esqueça que seu celular existe, esqueça que o Liam tem um celular.
Eric, você é um homem, hétero e macho. Lembre-se de todas as
meninas com quem você transou e... Olha só que maravilha! Foram
várias! É isso aí! Tentei mentalizar tudo isso. Eu podia ser qualquer
coisa, menos mulherzinha.
Ligar para o Liam seria um erro e esse erro eu não cometeria.
Se ele, por acaso, algum dia tocasse no assunto sobre o
acontecido, eu não iria negar, porque eu era homem o suficiente
para admitir as coisas. Eu tinha culhões para isso, oras. Mas, ir
atrás dele e tirar satisfação eram duas atitudes que eu,
definitivamente, não teria. O melhor que eu poderia fazer era
levantar da cama, me arrumar para ir ao colégio e viver minha
vidinha normalmente, como sempre fiz.

❖❖❖

Dentro de vinte minutos, eu já estava pronto. Enquanto


descia as escadas para tomar o café da manhã, comecei a ouvir a
voz agitada da minha e, também, o timbre de outra pessoa... Meu
pai. Quando cheguei à sala de refeições, meus pensamentos se
confirmaram. Ele estava mesmo ali. Milagrosamente, estava ali. Era
para ter ido me buscar no domingo, após eu chegar de viagem,
mas, por algum motivo desconhecido, disse que ficaria mais um dia
por lá, seja lá onde ele estivesse. Isso era típico, no entanto.
— Bom dia! — cumprimentei a todos, quando entrei na sala
de refeições. — Pensei que não te veria de novo, George — com
ponta de ironia, falei.
— Tive muitos contratempos na viagem — de maneira ríspida
e curta, ele replicou.
Se eu estivesse me referindo somente à viagem, era bom.
Mas, talvez, eu estivesse falando sobre os últimos dezoito anos. Já
fazia tanto tempo que esse tipo de coisa que nem me afetava mais.
Eu estava calejado das ausências dele.
— Mas, não vamos falar de problemas agora — mamãe se
pronunciou. — Antes de você chegar, filho, nós estávamos falando
do aniversário do seu pai, que vai ser na sexta. Estamos planejando
uma comemoração, como fazemos todos os anos. Vamos chamar
amigos e parentes. Acho que vai ser um momento muito bom — de
maneira amável, sorriu.
Sim, claro, eu já deveria estar atento a esse detalhe: naquela
semana haveria o aniversário do meu pai e, como de costume,
todos os anos, eu disse “todos”, a mamãe fazia questão de preparar
uma festa e convidar todos os agregados à família.
— Não vai ser só muito bom, mãe, vai ser ótimo! Sempre é
ótimo! — com seu costumeiro entusiasmo, Stefany falou. — Estou
louca para rever minhas primas, meus primos, a tia Samantha...
Mencionar o nome “Samantha” foi o suficiente para meu pai
torcer o nariz e interromper a Stefany.
— Essa mulher vem? — meio contrariado, perguntou.
— E por que não viria, querido? — mamãe perguntou. — Ela
é uma das minhas irmãs e, com certeza, vou convidá-la.
Era claro que não somente minha mãe, mas, todo mundo,
sabia que meu pai nunca gostou da tia Samantha, porque ela era
lésbica e tinha uma namorada de longa data. Isso era uma
tremenda besteira! Tiam Sam era a tia mais legal, mais simpática,
mais engraçada e mais divertida que eu tinha. Além disso,
venhamos e convenhamos, era também a tia mais gata, assim como
a namorada dela.
— Acho que, por ser meu aniversário, deveria ter apenas
pessoas que eu considero agradáveis — George argumentou.
— Mais agradável que a tia Sam? — Stefany arregalou os
olhos. Seu tom de voz tinha uma ponta de decepção. Minha irmã,
assim como eu e todos, sabia dos motivos pelos quais nosso pai
não gostava dela. Ele era extremamente preconceituoso. —
Impossível existir alguém mais agradável que a tia Sam!
Eu, entretanto, não aguentava mais ouvir aquela conversa.
Ou melhor, não aguentava mais ouvir o George. Provavelmente, ele
daria à Stefany uma resposta que me deixaria muito, muito irritado.
— Estou indo para o colégio — Imediatamente, falei ao
terminar de beber o copo de suco. Era melhor sair dali, antes que
meu pai começasse a falar que a tia Sam não era um bom exemplo
somente por ser lésbica. Era melhor eu ir embora, antes que eu
perdesse minha paciência com isso, assim como já tinha perdido
tantas vezes. — Quer carona, Ste? — perguntei, já me levantando
da cadeira.
— Quero sim — de pronto, respondeu. Provavelmente, ela
também não estava disposta a ouvir o discurso maçante do George.
— Então, nós já vamos — disse somente à mamãe. Não
tinha vontade nem me despedir do meu pai. — Até mais tarde, mãe
— e dei um beijo em seu rosto. Stefany fez o mesmo. — George —
Para meu pai, apenas ergui a mão brevemente em um aceno. Era o
nosso cumprimento de sempre.
Após cruzarmos a porta de casa, minha irmã comentou:
— Sério, às vezes o papai é meio insuportável — e balançou
a cabeça em exasperação.
— Às vezes? — fiz uma pergunta quase retórica.
— Tem razão — ela respondeu. — É sempre mesmo.

❖❖❖

— Amor, não vai dar pra eu ir ao colégio hoje... — Em um


tom de voz quase manhoso, Molly falou ao celular. Ela me ligou no
exato instante em que eu estava saindo do carro, após estacionar
no colégio. — Eu tenho uma prova amanhã e, simplesmente, não
sei de nada. Preciso ficar em casa para tentar estudar tudo até
amanhã.
— Poxa, princesa, você está precisando de alguma ajuda? —
sugeri, após travar o carro e começar a caminhar em direção ao
corredor principal do colégio. Stefany, àquela altura, já tinha sumido
pela escola. — Eu posso, sei lá, passar mais tarde aí e te ensinar
alguma coisa.
Molly, no entanto, liberou um breve suspiro.
— Amor, bem que eu gostaria, mas, se você viesse pra cá, a
gente faria algo que não seria estudar — soltou uma pequena
risadinha fraca. — Então, é melhor que você não venha, senão eu
não vou conseguir fazer minhas coisas.
Bom, eu não estava propondo isso com segundas intenções.
Na verdade, por mais estranho que isso pudesse parecer, eu não
estava com a mínima vontade de fazer coisa alguma com a Molly.
Inclusive, isso até me deixou levemente pensativo por meio
segundo, já que eu sempre tinha vontade. Eu não sabia o que
estava acontecendo comigo. Provavelmente, o que quer que fosse,
boa coisa não era.
— Olha, tudo bem, mas, qualquer coisa, pode me ligar —
falei.
E foi isso. Nos despedimos e desligamos a chamada.
Continuei caminhando, enquanto minha cabeça ainda me lançava
pensamentos esquisitos, mesmo que eu não quisesse. Talvez, se eu
me juntasse aos outros e conversasse com a galera, eu pudesse me
distrair. Era melhor que eu fizesse isso mesmo, principalmente
porque, naquele dia, eu tinha treino antes da aula.
Assim, quando cheguei ao vestiário, cumprimentei todos que
estavam lá. Dei bom dia e troquei algumas ideias rápidas com
alguns deles. Os marmanjos já estavam trocando de roupa e
colocando o uniforme do time. Seguindo o fluxo, afinal faltavam
poucos minutos para o treino, também comecei a trocar de roupa,
até que, de repente, a voz do técnico se espalhou pelo local.
— Bom dia, garotos! O treino de hoje é na academia do
colégio. Podem ir para lá.
Não demorou muito para que todos nós seguíssemos rumo
ao local. Inicialmente, o Sr. Jones passou vários exercícios para que
pudéssemos alongar os músculos do corpo, antes de treinarmos em
um ritmo mais pesado. Essas atividades demoraram cerca de
quinze minutos.
— Agora que já estão alongados, as séries de exercícios
para cada um de vocês estão afixadas na parede da academia —
com o típico trejeito de general, o técnico se pronunciou. — Essas
séries foram pensadas e planejadas, pela equipe que coordena o
time, conforme a estrutura corporal de vocês e as condições físicas
de cada um. Podem começar.
Assim que o técnico finalizou as instruções, todos nós,
jogadores, verificamos na parede o nosso treino. O meu indicava o
seguinte: 3 séries de 15 com o supino de 40kg de cada lado. Assim,
caminhei em direção à área da academia onde ficavam os supinos.
Escolhi os pesos, sendo dois de 20kg em cada lado da barra e me
posicionei.
Deitei-me de barriga para cima no banco do supino, segurei a
barra e, quando quis começar o exercício, algo me chamou a
atenção: Liam estava de costas, alguns metros à minha frente,
correndo na esteira. Ainda ouvi alguns caras, já contando suas
repetições, nos supinos que ficavam ao lado, mas eu só conseguia
olhar para um lugar: a bunda do Liam, enquanto ele corria na
esteira.
Porra.
Quando isso começou? Quando?! Eu nunca tinha reparado
assim na bunda de homem algum. Mas, essa daí, especificamente a
uns quatro metros de distância, estava tirando toda a minha
concentração. Merda, eu estava mesmo virando gay? Isso era tudo
culpa do Liam! Tudo começou com aquele... Aquele… Aquele
maldito de beijo! Se não fosse isso, eu estaria vivendo normalmente,
não me sentiria tão confuso assim, nem estaria olhando para a sua
bunda. Inferno!
— Eric, o que aconteceu? Está vendo o quê? — ouvi a voz
do técnico ao meu lado. — Por que ainda não começou o exercício?
De supetão, com o susto que levei e que me trouxe de volta
ao Planeta Terra, desviei meu olhar do Liam para o Sr. Jones. Será
que ele tinha percebido? Meu Deus, será que alguém tinha notado
que eu estava olhando para a bunda do Liam? Do fundo do coração,
eu esperava que não!
— O-Oi, Sr. Jones! — meio sem jeito, gaguejei. Talvez meu
rosto estivesse vermelho como uma pimenta, de tanta vergonha. —
E-Eu já ia começar. Ok? — dei-lhe um sorriso amarelo e comecei a
fazer o exercício.
— Melhor assim — resmungou, com seu ar autoritário. —
Quero ver todos focados nos exercícios. Sem distrações.

❖❖❖

Se eu estava ficando louco? Ah, com certeza, eu devia estar


ficando louco. O treino na academia durou uma hora e meia, mas,
durante todo esse tempo, os meus olhos não pararam de mirar no
Liam, enquanto ele fazia seus exercícios. Meu Deus, isso era tão
errado e tão estranho. Era estranho olhar para um cara, quando
você costumava olhar somente para mulheres. Com certeza, eu
estava ficando louco.
Porém, não era somente eu que olhava para o Liam. Ele
também olhava para mim. Só que, no momento em que eu percebia
isso, ele desviava seu rosto. Eu também desviava o meu, quando
ele notava. Nós ficamos nessa “brincadeira besta” até o final do
treino, o que só me levava a me questionar: “será que ele se
lembrava de sábado?”. A pergunta surgia clara em minha mente a
cada olhar trocado.
Depois do treino, o técnico nos liberou para o banho, o tão
maravilhoso banho. O problema era que, parte do banheiro do
vestiário, estava em manutenção naquele dia. Então, o Sr. Jones
teve que nos dividir em grupos. Eu fiquei no segundo. Ou seja, eu e
alguns outros caras tivemos que esperar, em torno de meia hora,
para que o primeiro grupo liberasse o espaço.
Liam estava no primeiro grupo. Portanto, ficamos ainda mais
sem contato. Não que eu estivesse preocupado com isso. Claro que
não. Afinal, por que eu estaria? Nós nunca fomos próximos mesmo.
Além do mais, talvez esse distanciamento provocado pelo acaso
fosse até bom para mim. Talvez, com o tempo e a distância, minha
mente voltasse ao normal. Por outro lado, como nos outros dias ele
me deu alguma atenção, e, naquele dia, apenas me olhava, os
meus pensamentos ainda ficavam martelando algumas bobagens e
coisas sem sentido.
Mas, enfim, como eu disse, eu não estava preocupado com
isso. Liam era tão estranho que eu não deveria ficar surpreso com
suas atitudes incomuns.
O fato era que, depois do treino, não nos cruzamos, nem nos
olhamos, e, muito menos, nos falamos. Quando saí do vestiário,
acompanhado de alguns amigos do time, aparentemente, o primeiro
grupo de jogadores já tinha ido para o refeitório ou para o pátio do
colégio. Afinal, o treino sempre acabava nos intervalos entre as
aulas.
Eu, Adam, Jordan e Max optamos por ir ao refeitório, a fim de
comer algo antes da aula começar. Ao entrarmos no local, logo
percebi a estúpida e comum divisão entre as pessoas que curtiam
sentar próximo a mim e as pessoas que gostavam de ficar perto do
Liam. Já disse que não gostava dessa divisão, não é? Pois bem, eu
não gostava mesmo, nem sabia porque isso existia e porque as
pessoas se comportavam dessa maneira. Eu falava com todos, sem
exceção.
— Cara... — Jordan soltou uma pequena risada e tocou em
meu ombro, enquanto nos aproximávamos de uma das mesas do
refeitório. — Com todo o respeito, mas a tua irmã é uma gostosa.
Olha só! — e apontou com o queixo.
Olhei exatamente na direção em que indicava e vi Stefany, na
ponta oposta do refeitório, aos beijos com o Liam. De pronto, uma
irritação fervilhou dentro de mim. Mas, que pouca vergonha! Eles
estavam praticamente transando na frente de todo mundo!
Liam, seu imbecil, larga a minha irmã!
E pior: apesar de ser muito próximo à minha irmã, eu não
tinha o direito de chegar lá e acabar com aquela ceninha à là
Redtube. Stefany nunca me ouviria e ainda ficaria um mal-estar
entre nós, e isso, definitivamente, não combinava com a gente.
Aliás, ele não se lembrava mesmo que tinha me beijado no
sábado?
Me beijava e depois ia atrás da minha irmã?!
Bufei.
Calma, Eric. Calma. Não era nem pra você estar olhando as
coisas por esse lado!
Deus precisava me ajudar a superar esses meus
pensamentos estranhos e confusos, porque sozinho,
provavelmente, eu não conseguiria. Pensar dessa forma não fazia o
menor sentido, até porque eu tinha uma namorada, que, por sinal,
era a irmã dele.
— Jordan tem razão! — Max também se pronunciou,
enquanto ele, Jordan e Adam se sentavam nas cadeiras de uma das
mesas do refeitório. Eu, por outro lado, não me sentei, ainda
permanecia de pé, olhando para a cena que estava acontecendo do
outro lado do refeitório. — Liam tem uma sorte da porra. Não sei por
que ele ainda não pediu a Stefany em namoro — continuou.
No mesmo instante em que ouvi a palavra “namoro”, toda a
minha recém tentativa de controlar meus pensamentos se esvaiu.
Desviei o rosto que ainda estava em direção ao casal e encarei o
Max.
— Namoro?! — disparei, arregalando os olhos. — Stefany
nunca namoraria um idiota como o Liam.
Bastou eu me calar para os três caírem em uma risada.
Eu tinha falado alguma piada, por acaso?
— Calma, zagueiro... — rindo, Adam replicou. — Não precisa
ficar com ciúme do Liam — brincou.
O quê? Do Liam?!
Esses filhos da mãe estavam mesmo curtindo com a minha
cara?
— Tá me achando um otário, Adam? — questionei. —
Apenas acho que a minha irmã pode conseguir alguém melhor —
balancei a cabeça em reprovação e, logo depois, dei de ombros
para qualquer pensamento que pudesse estar passando pela
cabeça deles. — Vou pegar um lanche — disse, por fim, tentando
mudar de assunto. — Vocês querem alguma coisa?
— Depois a gente vai lá — Jordan falou.
— É, depois a gente vai. Pode ir na frente — Max concordou.
— Beleza.
Virei-me e caminhei em direção ao balcão onde os alunos
faziam seus pedidos e se serviam. Tentei me concentrar na fila
gigante que eu teria de enfrentar, em vez de pensar no que estava
acontecendo do outro lado do refeitório, entre Liam e minha irmã.
Talvez a imensa fila do refeitório pudesse ser mais interessante do
que pensar no beijo deles.
Parei atrás de um grupo de três meninas que aguardavam
por sua vez. Tentei prestar atenção, até mesmo, em uma mosca que
voava, para não ter que virar o rosto e ver aquela cena outra vez. Eu
sabia que eles ainda estavam fazendo aquilo. Foi aí que, de
repente, comecei a ouvir a conversa delas.
— Meninas... — a loira olhou na direção onde estavam
Stefany e Liam, suspirando logo em seguida. — O que a Stefany
tem que eu não tenho? Porque, sério, o que ela faz pra ficar com o
Liam há tanto tempo? Queria ter esse poder.
Nossa... Mais uma admiradora do Liam. Que novidade.
— Sei lá... — a morena respondeu com desdém e deu
ombro. — Sinceramente, eu não sei o que vocês veem no Liam. Ele
é gato? Sim, ele é gato, mas é um pé no saco! Eu prefiro mil vezes
o Eric, que, além de lindo, é simpático.
Quê? Eu estava ouvindo isso mesmo?
— Quer saber? Por mim, eu pegava os dois! — rindo, a ruiva
replicou. — Os dois são muito gatos! Tudo bem que o Liam é super
convencido, enquanto o Eric é um amor, mas, mesmo assim, eu
ficaria com os dois.
Essas meninas não estavam percebendo que eu estava bem
atrás delas?
— Uma vez, ouvi boatos de que a Stefany só continua com o
Liam porque são amigos desde criança e porque... Ele é bom de
cama! — também rindo, a morena falou. — Sobre ser bom de cama,
a Lyla pode muito bem responder!
Lyla? Lyla era a loira? Ela e o Liam já tinham ficado?
— Ah, meninas... — a dita cuja suspirou. — Liam não é só
bom de cama, ele é ótimo! Foi simplesmente a melhor noite da
minha vida.
Bom de cama? Bom. De. Cama. Soletrei cada palavra
mentalmente. Uma curiosidade assustadora, absurda, mas
verdadeiramente instigante me atingiu. Ele era bom de cama
mesmo?
Falha técnica

Eric

— Liam... — ofegante, o chamei em um quase tom de sussurro.


Ele, que envolveu com seus lábios um de meus mamilos,
se moveu sobre o meu corpo, que já estava deitado na cama. Notei
quando me encarou firme, parecia tão determinado a fazer aquilo,
assim como aquele olhar também me envolvia de uma maneira
como sem igual, de uma forma como eu nunca tinha sentido.
— Cala a boca e aproveita o momento — Liam se limitou
apenas a dizer isso e, logo em seguida, me beijou, me provocando.
Iniciou uma trilha perigosa pelo meu corpo, usando sua boca e sua
língua, que iam e vinham pelo meu pescoço, meu peito, meu
abdômen, e, por fim, pararam em um local que me fez perder
completamente a lucidez.
— Liam... — Quando senti e vi o zíper da minha caça
sendo aberto, chamei-o novamente em um sussurro. Essa era a
minha última - e frustrada - tentativa de não seguir em frente. Tudo
dentro de mim, entretanto, queria ir até o final. O que ainda
permanecia era um resquício de bom senso.
— O que é, imbecil? — questionou, mas não parava de
abrir minha calça.
Dei um breve suspiro, antes de responder, tentando
recuperar o meu controle. Até isso estava difícil. Era mais do que
claro que a última coisa que eu conseguiria recuperar era o meu
controle. Ainda assim, encarei-o e falei:
— Se você fizer qualquer coisa aí embaixo, eu juro, por
tudo o que existe, que eu não vou me aguentar — alertei-o.
Ele, por sua vez, me deu um belo revirar de olhos, como se
não se importasse. Parecia loucura ver o Liam assim. Eu jamais
imaginei viver algo desse tipo. Apesar disso, noventa por cento de
mim não queria parar.
— Essa é a intenção — replicou e, determinado, baixou
minha calça completamente, livrando-se dela ao jogá-la em uma
parte qualquer do chão do quarto. Eu não podia acreditar.
Em menos de dois segundos, senti sua mão no meu pênis,
mesmo que por cima da cueca. Nossa, estava extremamente
gostoso. Ele não apresentava qualquer inibição em estimular o meu
membro, e foi exatamente por isso, que, o que eu mais temia,
aconteceu: Liam abaixou minha cueca e me tocou sem obstáculo
algum.
Notei-o olhar extasiado, admirado, eu diria até maravilhado.
Era como se eu sentisse o que ele, de fato, queria fazer. Não
demorou muito até efetivamente fazer. Sua língua percorreu toda a
extensão, fazendo com que, no mesmo instante, eu fechasse os
olhos e respirasse fundo. À medida que sua boca se fechava sobre
mim, a minha se abria em busca de ar. À medida que ele abria os
olhos para me encarar por debaixo dos cílios da maneira mais
sacana possível, os meus se fechavam querendo aproveitar cada
minuto daquela adorável tortura.
Como se eu tivesse perdido totalmente o juízo e a lucidez,
segurei-o pelos cabelos e guiei seu rosto para cima e para baixo,
indicando o movimento. Como se eu estivesse fora de mim e
desligado do mundo, comecei a movimentar meu quadril para cima
e para baixo, a fim de aprofundar ainda mais aquela sensação
maravilhosa que eu estava sentindo.
De repente, senti algo querer se contrair no meu baixo-
ventre. Estava mais do que claro, para mim, que eu não ia aguentar
por muito. Meu corpo queria liberar todo o prazer que eu estava
sentindo.
— Liam... — mesmo com dificuldade de falar, tentei. —
Liam... Eu tô perto... — ofegante, avisei. Ele, entretanto, não parava.
— Eu vou... Liam, eu vou gozar!
Praticamente pulando na cama, abri os olhos. Merda! O
que foi isso? Um sonho? Não tinha acontecido? Não era verdade?
Respirei fundo, tentando recuperar o fôlego, e passei as mãos no
rosto. Eu estava muito suado. Mas, isso não era a única coisa
molhada em meu corpo, também notei uma umidade entre as
minhas pernas.
Abaixei meu rosto, tirei o cobertor de cima de mim e... O
que era isso? Eu tinha acordado todo gozado. Que merda! Como se
não bastasse ter um sonho erótico com o Liam, eu ainda acordava
todo sujo de porra. Maravilha! Perfeito! Eric, bem-vindo de volta à
pré-adolescência e à polução noturna!
Definitivamente, eu tinha chegado ao fundo do poço. Não
conseguia acreditar que tive a capacidade sonhar dessa forma com
o Liam. Que merda... Ele estava fazendo sexo oral em mim e eu
estava gostando. Gostei tanto que acordei todo melado. Era loucura.
Sem dúvidas, era loucura! Eu precisava, já, de um tratamento
psicológico para parar com isso, porque, aparentemente, a cada dia
a situação só piorava.
Me sentia sujo, não somente no sentido mais óbvio, mas
também sujo de alma e de mentalidade. Minha alma estava suja,
minha mente estava poluída e meu corpo inteiro era um lixo
ambulante. Que sensação estranha e ruim! Há menos de um minuto
eu estava sentindo prazer, mesmo que em sonho, e agora, ao
contrário, me sentia completamente na merda.
Talvez fosse peso na consciência? Sim, com certeza era
peso na consciência. Afinal, eu não podia me sentir assim por um
cara, principalmente por eu ser uma pessoa comprometida, e, para
completar, com a irmã dele! Que raios estava dando na minha
cabeça? Eu era hetero e tinha namorada. Ah, já sei! Com certeza
isso foi resultado daquela estúpida conversa das meninas sobre o
Liam ser bom de cama. Isso, de alguma forma, tinha ficado no meu
subconsciente.
O fato era que eu precisava tirar da minha mente e do meu
subconsciente qualquer pensamento desse tipo. Isso precisava
parar já! Não era certo. Na verdade, era completamente errado. Eu
tinha que fazer algo que pudesse resolver a situação. Aliás, tudo
isso talvez fosse falta de sexo. Sim, claro, só podia ser isso. Já fazia
alguns dias que eu não transava. A última vez tinha sido antes da
viagem e de todo aquele pesadelo acontecer. Então, sim, tudo isso
devia ser falta de sexo.
Afinal de contas, eu não estava virando gay, não gostava
do Liam, não estava o desejando, e eu podia provar isso! Sim, eu
iria provar tudo isso naquele exato instante. Tudo não passava de
uma abstinência. Eu iria ligar para o Molly e nós iríamos transar.
Com certeza ela estava querendo tanto quanto eu. Ela sempre quis,
oras. Apesar de nós termos aula ainda naquela manhã e de eu
nunca ter sido o tipo de aluno que matava aula, situações críticas
mereciam medidas críticas.
Assim, levantei-me da cama e rapidamente me livrei da
cueca suja de gozo. Segui direto para o banheiro e tomei um banho
bem ligeiro, tão rápido que não tive tempo nem para avaliar o que
eu estava fazendo. Talvez eu estivesse ligado no automático, agindo
por impulso, mas eu só... Só precisava desfazer toda essa merda
que a minha vida tinha se tornado.
Determinado, saí do banheiro, vesti uma roupa e peguei
meu celular para entrar em contato com a Molly. Ainda era cedo, e,
talvez, ela estivesse se arrumando para ir ao colégio, mas era a
hora mais adequada para quem queria se livrar de um tremendo
peso na consciência. O celular chamou uma, duas, três vezes. Na
quarta, ela atendeu.
— Amor? — Sua voz demonstrava seu estranhamento por
receber uma ligação minha naquela hora. Realmente, não era algo
comum. — Aconteceu alguma coisa? — Já demonstrando
preocupação, ela perguntou.
— Oi, princesa. Bom dia! — respondi, tentando disfarçar
minha ansiedade e agir com naturalidade, para que ela não
desconfiasse de algo. — É que, sei lá, faz um tempinho que a gente
não se vê... Estou com saudade.
Molly, por sua vez, soltou uma pequena risadinha.
— Mas, só está com um dia que a gente não se vê —
falou.
— Pra mim, parece uma eternidade. — Eu sabia que
estava sendo muito cara de pau. E, sendo sincero, eu não tinha o
costume de ser assim com as meninas, mas, nessa situação, era
impossível não ser. Seria pior se eu disse: “ Molly, eu tô querendo
transar pra tirar o peso da consciência de ter sonhado com o teu
irmão fazendo um oral em mim e de ter acordado todo gozado”. Pois
é, essa sinceridade não era cabível. — Além do mais, eu tô sentindo
falta de algumas outras coisas, sabe?
— Hum — Somente por aquele som que saiu de sua boca,
aparentemente Molly já estava pensando em sacanagens. Ela já
sabia quando eu queria transar. — É? Que coisas? — Seu tom de
voz tinha certa malícia. Era a prova de que ela já estava entendendo
o que eu queria.
— Posso passar na sua casa antes de ir para o colégio? —
perguntei. — Qualquer coisa vamos juntos pra lá depois.
— Bom... — notei Molly baixar a voz, como se não
quisesse que alguém por perto ouvisse. — Meus pais estão saindo
para o trabalho agora e meu irmão também vai sair daqui a pouco
para o colégio. Posso dispensar a carona do Liam e dizer que vou
ao colégio mais tarde só para fazer a prova do segundo tempo. Se
você chegar aqui por volta de sete e meia, eu já vou estar sozinha.
Ótimo. A Molly era esperta. Ela tinha captado corretamente
a minha mensagem
— Então, combinado, princesa. Daqui a pouco chego aí.

❖❖❖

Tive que inventar uma desculpa qualquer aos meus pais,


para justificar o motivo de me atrasar para a aula, assim como
também tive que fazer a Stefany ir ao colégio de carona com a
mamãe. Por mais que eu gostasse de levar minha irmã, naquele dia,
realmente, não teria como.
O relógio marcava exatamente sete e vinte da manhã,
quando cheguei à rua da casa da Molly. Assim que passei em frente
à sua casa, logo notei que o carro dos pais dela já não estava mais
na garagem. Entretanto, o carro do Liam ainda estava lá. Por isso,
estacionei a alguns bons metros de distância e fiquei aguardando-o
sair.
Felizmente, não precisei esperar muito. Dentro de cinco
minutos, vi o seu carro saindo da garagem e dobrando a esquina da
rua. Se ele soubesse a maneira como o imaginei no sonho, não me
deixaria vivo mais um dia sequer. Pior que ele estava tão gos...
Merda. Concentração, Eric, concentração!
Aguardei uns dois minutos dentro do carro, para ter certeza
de que ninguém da casa voltaria, e, quando a barra estava
realmente limpa, saí do carro. Caminhei a passos rápidos e largos
rumo à casa da Molly. Ao chegar, toquei duas vezes na campainha.
Em poucos segundos, a porta se abriu.
Não sorri, não dei bom dia, apenas avancei nela, pegando-
a no colo e fazendo com que suas pernas se entrelaçassem ao
redor da minha cintura. Fechei a porta com o pé e a empurrei contra
a parede mais próxima. Molly retribuiu na mesma intensidade,
beijando minha boca e meu pescoço.
— Uau... — ofegante, ela interrompeu o beijo por um
instante. — Bom dia pra você também... Por que...?
Eu tinha certeza que ela ia me perguntar o motivo de eu
estar agindo daquela maneira. Contudo, não estava disposto a dar
muitas explicações, senão eu poderia acabar dando com a língua
nos dentes. Portanto, apenas a interrompi de falar, beijando-a
novamente.
— Só estava com saudade — respondi brevemente e voltei
para a missão.
Segurei-a, ainda mais, em volta da minha cintura e
comecei a subir as escadas. Meu destino era o seu quarto. Não
parei de beijá-la por nem um segundo. E tentei, eu juro que tentei
me concentrar no momento, mas tinha algo muito estranho
acontecendo: eu não estava conseguindo me excitar. Em ocasiões
anteriores, meu pênis já estaria dando sinal de vida.
Quando chegamos ao andar superior, coloquei-a no chão,
ao mesmo tempo em que a encostei contra uma das portas. No
entanto, quando dei por mim, percebi que estávamos bem na porta
do quarto do Liam. Foi inevitável: imediatamente flashes do sonho
passaram pela minha cabeça. Subitamente, parei de beijá-la.
— O que foi? — dando-me um meio sorriso confuso, Molly
perguntou.
Ah Deus, isso não podia estar acontecendo. Liam não
podia me atrapalhar de novo!
— Nada, princesa... Nada... — tentando me concentrar no
presente, voltei a beijá-la.
Levei-a até o seu quarto e a deitei sobre a cama. Comecei
a tirar sua roupa, enquanto ela fazia o mesmo com as minhas. O
ritmo era rápido, quase frenético. No entanto, o infeliz problema
persistia: a porcaria do meu pênis não estava colaborando. Eu não
estava conseguindo e não fazia a menor ideia do motivo.
Eu estava precisando de quê, afinal de contas? Viagra?
Beijei-a e toquei seus seios, tentando me excitar de alguma
forma, mas os estúpidos beijos do Liam no meu mamilo tomaram a
minha mente. Droga, tinha sido tão real. Me irritei, eu precisava me
concentrar. Foco, Eric! Foco na Molly! Virei-me na cama, trocando
as posições e deixando-a por cima, enquanto eu ficava por baixo.
Molly tirou a minha blusa e distribuiu beijos pelo meu peito
e meu abdômen. Cada um desses beijos, no entanto, me faziam
lembrar dos lábios do Liam naquele inferno de sonho. Merda. E pior:
eu não estava sentindo o menor prazer ali, naquela cama, com a
Molly. Eu precisava, já, fazer alguma coisa a respeito disso. Meu
pênis tinha que ficar duro.
Rapidamente, tirei minha calça jeans, que já tinha sido
aberta por ela. Segurei sua mão e a levei em direção ao meu
membro, mesmo que por cima da cueca. Não era possível que isso
não desse jeito. Era difícil admitir que, em outras ocasiões, nem
mesmo isso seria necessário, porque eu já estaria me segurando
para não gozar.
O que estava acontecendo comigo agora?
Molly, por sua vez, era esperta. Ao colocar sua mão lá, ela
já sabia o que fazer. Prova disso foi que começou a me estimular
mesmo que por cima da cueca. Entretanto, o meu pesadelo
continuava e ficava cada vez maior: eu só conseguia me lembrar do
rosto Liam lá embaixo, durante o sonho.
Que inferno!
Instantaneamente, parei de beijá-la, ofegante. Minha falta
de ar, porém, não era de prazer, era de irritação mesmo.
— O que tá acontecendo, Eric? — franzindo o cenho, Molly
encarou meu pênis mole e completamente inútil. Dessa vez, ela não
me deu um mísero sorrisinho. A irritação, aparentemente, não era
só minha. Droga. Com certeza, ela estava notando que eu não
conseguia me excitar, o que, de fato, era algo bem incomum para
mim.
— Eu... — suspirei, sem chão, e passei as mãos no rosto,
totalmente desnorteado. — É... — Não sabia nem o que falar. Na
verdade, será que tinha algo realmente convincente que eu pudesse
falar ali? — Isso nunca aconteceu...
A morena, por sua vez, saiu de cima de mim e sentou-se
na ponta da cama. Parecia estar tão desconfortável quanto eu, com
essa situação, e levemente chateada. Era como se fosse uma
afirmação escancarada de rejeição minha para com ela.
— Fala sério, Eric! Você me liga de manhã cedo, eu falto
aula, você chega aqui parecendo um louco e na hora “h” não...
Não... Poxa! — bufou. — Por acaso, não tá mais me achando
atraente ao ponto de não conseguir transar comigo? Eu tenho
notado que você anda meio diferente mesmo... Talvez seja por isso.
O quê? Não... Não! A Molly era linda e extremamente
atraente. O problema não era com ela, era... Comigo. Se nem eu
estava me entendendo e não fazia ideia do que acontecia comigo,
como eu poderia me explicar para ela?
— Nã-Não, princesa... — sentei-me na cama e me
aproximei dele, torcendo para que ela não ficasse realmente com
raiva de mim. — Não é isso. Definitivamente, não é isso. Eu... Só
não faço ideia do que tá acontecendo. Talvez... Talvez eu só esteja...
— Eu estava o quê mesmo? Tentei escolher as palavras certas. —
Cansado... — falei a primeira coisa que surgiu na minha mente.
— Cansado? — enrugou a testa outra vez, pouco
convencida. Santo Deus. — Você não dormiu a noite? —
questionou.
Dormi tanto que até sonhei com a porcaria do teu irmão!
— Sabe que não... — Nossa, que mentira mais deslavada.
Mas, era claro que eu não iria falar a verdade. Seria milhões de
vezes pior. — Bateu uma insônia que você não tem noção.
— E mesmo assim você quis vir aqui e tentar transar?
Mesmo cansado e com sono? — de pronto, replicou. Às vezes, eu
notava levemente os traços irritantes do Liam na personalidade de
Molly. Mas, felizmente era só um pouquinho.
Suspirei, tentando escolher as palavras corretas
novamente.
— É que eu tava com saudade, princesa... — levei uma
das minhas mãos ao seu cabelo e comecei a fazer carinho. Falei
com o maior jeitinho possível, enquanto procurava contornar a
situação. — Sabe como é, né? Passei o final de semana fora... E a
gente não se viu ontem.
Em poucos segundos, seu semblante irritado e desconfiado
suavizou. Ela aceitou o carinho e esboçou um pequeno sorriso.
Apesar de não ser tão boba, eu conhecia a garota desde criança e
sabia como lidar com ela. Amém!
— Bom... Então... — levantou-se da cama e se ajoelhou na
minha frente. De repente, um olhar malicioso surgiu em seu rosto.
— Talvez eu possa te ajudar a relaxar — faceira, falou e abaixou
minha cueca, encaixando entre minhas pernas. Não demorou dois
segundos para que ela começasse a me sugar.
Caramba... Talvez isso servisse para levantar aquele
imprestável. Eu tinha gostado dessa atitude de Molly. Tentando me
concentrar no que ela estava fazendo, fechei os olhos. Afinal, toda a
minha atenção era necessária para que aquilo desse certo. Caso
contrário, eu ficaria ainda mais assustado com a situação.
O problema era que... O problema era que eu estava
começando a imaginar outra pessoa ali, entre as minhas pernas,
com a boca no meu pênis. Cabelos tão pretos quanto os dela, olhos
tão azuis quanto os dela. No sonho era tão melhor que esse...
— Li... — Praticamente viajando em outra galáxia,
pronunciei essas duas letras, até que, de supetão, quando percebi,
travei total. Que diabos eu tinha acabado de falar?
Subitamente, Molly também parou e me olhou. Na verdade,
não foi um olhar qualquer. Chamas saíam de suas íris. Eu estava
ferrado!
— Li? — Nunca vi Molly com o cenho tão franzido. — Li?
— perguntou novamente e se levantou. — Você ia me chamar pelo
nome de outra garota?! — Seu tom de voz aumentou
gradativamente até chegar na palavra “garota”.
Que merda!
— Nã-não, Molly! Não! — levantei-me dali e rapidamente
vesti minha cueca. De automático, ela se afastou de mim. — Eu não
ia fazer uma loucura dessas! — Ou ia. Merda. Tentei me aproximar.
— Não é isso que você está pensando!
— Ia sim! Você ia! Quem é Li? Quem é?!
Santo Deus! Molly estava uma fera!
— Princesa... Calma... — compassadamente, tentei pedir.
— Eu não ia te chamar por outro nome... — Talvez o nome do seu
irmão. Meu Deus, eu estava ficando doido mesmo e isso já estava
selado e sacramentado. — Você acha mesmo que eu seria capaz
de fazer isso? — aproximei-me ainda mais dela, com naturalidade e
calma, totalmente diferente de como eu estava por dentro. — Eu
não ia te chamar por outro nome... — continuei falando com muito
jeito e tranquila. — Eu ia dizer... — Eu ia dizer o quê?! — Eu dizer...
Molly. Não é esse o seu nome? Molly?
Bingo! Salvo pelo gongo!
— Molly? — ergueu uma das sobrancelhas, ainda meio
desconfiada, apesar de, aparentemente, mais calma. — Tem
certeza que era Molly mesmo, Eric?
Não, mas isso não vem ao caso.
— É claro, princesa! — respondi, puxando-a lentamente
para um abraço, e, logo em seguida, fazendo carinho nas suas
costas e no seu cabelo. — Óbvio! Eu jamais te chamaria pelo nome
de outra pessoa.
— Hum — ela, no entanto, me soltou do abraço. Um olhar
levemente desconfiado ainda permanecia. — Tudo bem. Vou
acreditar. Agora veste a sua roupa, porque eu perdi a vontade — e
me deu as costas, caminhando em direção ao banheiro do seu
quarto. Entrou, fechou a porta e me deixou ali sozinho.
Encarei aquela porta fechada por alguns segundos e me
senti... Vulnerável? Ah, meu Deus! A única coisa que eu tinha
vontade de fazer era me jogar na cama e nunca mais sair dali. Não
hesitei em realmente fazer isso. Me atirei na cama, completamente
sem força. Parecia que eu tinha corrido uma maratona. Essa tinha
por pouco.
Que inferno. Eu queria que tudo isso parasse de acontecer. Eu
queria que a minha vida voltasse ao normal! Como eu pude não
conseguir transar? Como? Era tudo culpa do Liam! Tudo culpa dele
e daquele maldito beijo. Desde aquele dia, eu não fui mais o
mesmo.
Não quero brigar, quero beijar

Eric

Barulhos de furadeiras, martelos e toda sorte de materiais de


construção me fizeram acordar. Ah, meu Deus. Eram que horas?
Peguei o celular e... Seis horas da manhã? Que diabos estava
acontecendo naquela casa em plena seis horas da manhã? Pelas
minhas contas, eu tinha dormido apenas duas horas da noite
anterior para aquele dia, e, para completar, ainda estava sendo
acordado com o tal barulho infernal.
Eu praticamente não consegui pregar os olhos. Fiquei virando
de um lado para o outro da cama, pensando em tudo o que tinha
acontecido. Afinal, para quê dormir, se tudo o que estava vivendo já
era um verdadeiro pesadelo? Quando, em toda a minha vida, eu
poderia imaginar que um dia não iria conseguir transar com uma
mulher?
Eu não fazia ideia do que estava acontecendo comigo, mas,
certamente, devia ser algo muito sério, porque, em outras ocasiões,
meu pênis levantava só de pensar na possibilidade de transar. Será
que, no auge dos meus dezoito anos, eu já estava precisando de
Viagra? Não era possível! Eu me recusava a acreditar nisso, pois
estava em uma das melhores idades para se ter relações sexuais.
Ou seja, não era para eu ter problemas!
Molly estava estranha comigo desde o ocorrido. Não que ela
estivesse com raiva, mas estava estranha. O que se passava por
sua cabeça eu não sabia, mas, depois de tanto pensar, eu tinha
quase certeza de que não consegui fazer nada porque fiquei
traumatizado com o sonho. Só podia ser isso. Era a única
explicação plausível. Talvez eu também estivesse doido? Era uma
possibilidade. Mas, traumatizado, eu certamente deveria estar.
De repente, um novo barulho forte me tirou dos meus
pensamentos. Por Deus, deviam estar quebrando alguma coisa no
jardim, porque o barulho estava ficando cada vez maior! Eu
precisava ver o que estava acontecendo. Levantei-me da cama e
segui direto para a varanda do meu quarto. Ao chegar, olhei para o
jardim e... Ah! Como eu poderia ter me esquecido? Já estavam
começando a montar a estrutura para o aniversário do meu pai que
aconteceria na noite seguinte.
Inclusive, bastou eu pensar nele para vê-lo surgir no jardim.
Que milagre. Dificilmente, meu pai se juntava aos “empregados”.
Provavelmente, ele só estava ali para dar ordens aos senhores que
montavam a estrutura do evento. Prova disso era que o vi falando
com alguns deles, esbanjando o seu típico ar autoritário e
apontando para todas as direções do jardim com desdém, como se
estivesse exigindo algo.
Meu pai não tinha jeito mesmo. Isso me cansava.
Todavia, de tanto apontar e falar com desdém, ele acabou
olhando da direção do andar superior da casa, exatamente na
varanda do meu quarto, local onde eu estava. Foi aí que ele,
subitamente, parou de falar e me avaliou com o olhar. Ah não, eu
não deveria ter aparecido naquela janela. Ele ia encher o meu saco.
Certamente, ele iria querer que fizesse alguma coisa e eu já estava
imaginando o seria. Em poucos segundos, se aproximou e falou.
— Eric, venha aqui. Preciso falar algo.
Bom dia para você também.
— Vou só tomar um banho e vestir uma roupa. Desço daqui a
pouco.
Ele, entretanto, visivelmente não satisfeito com a minha
resposta, se aproximou ainda mais, ficando exatamente abaixo da
varanda, e me observou de maneira séria.
— Eu quis dizer para você descer aqui agora.
Suspirei, tentando não me estressar. Meu pai sendo meu pai.
Mas, tudo bem. Se eu passei a vida inteira cumprindo ordens,
descer as escadas agora era o de menos. Assim, resignado, saí da
varanda e, rapidamente, vesti uma blusa de moletom, já que tinha
dormido com a calça. Desci as escadas e segui direto para o jardim.
Stefany, aparentemente, ainda estava no quarto, enquanto a mamãe
acompanhava alguns funcionários.
— Pronto — disse ao chegar perto dele o suficiente.
— Eric, eu preciso que você ajude o Jimmy esse fim de
semana. Nós estamos com um grande projeto para a construção de
vários edifícios empresariais. Ele está precisando de ajuda na
avaliação desse projeto e você é a pessoa mais indicada para fazer
isso.
Pessoa mais indicada?
— A construtora é imensa — falei. — Com certeza deve ter
alguém melhor.
Ele, no entanto, não se convenceu, assim como também não
demorou mais de meio segundo para responder.
— Você é a pessoa mais adequada. Mesmo que, por ora, não
tenha formação, desde jovem, Jimmy te ensinou tudo sobre projetos
de engenharia civil. Vocês se dão muito bem e têm a mesma linha
de pensamento. Então, você é a pessoa mais adequada. Além do
mais, filho, você já está acostumado com esse tipo de trabalho.
Filho... Até então, eu não sabia se eu, de fato, era filho ou
sócio/empregado. Jimmy realmente tinha me ensinado, desde cedo,
tudo sobre projetos. Eu sabia de tudo a respeito da parte técnica da
engenharia civil, mesmo sem, ao menos, ter feito faculdade.
Contudo, eu me sentia farto de sempre fazer esse tipo de trabalho.
Desde os meus onze anos, meu pai não me deixava em paz com
relação à construtora.
— Eu realmente não posso — falei.
George, por sua vez, arqueou brevemente as sobrancelhas,
surpreso com a minha resposta e falta obediência. Ele sempre
esteve acostumado a ter suas ordens atendidas por mim, mas, nos
últimos tempos, eu estava começando a me opor. Segundos depois,
no entanto, retornou a sua postura natural de homem de negócios.
— É claro que vai — secamente respondeu, pouco se
importando com a minha opinião. George sempre considerava
apenas as suas próprias vontades. — Você deve ir à construtora no
sábado para ajudar o Jimmy. Vou avisá-lo hoje.
Não. Claro que não. Já estava na hora de parar de fazer
todas as vontades do meu pai. Eu estava lidando com isso desde os
onze anos. Não queria continuar assim. Além do mais, eu tinha que
viajar no sábado, mesmo que eu estivesse suspenso do primeiro
jogo do campeonato. Eu precisava estar no banco reserva. Eram as
normas do time.
— Não vou estar aqui no final de semana — repliquei. — Vou
viajar. Tenho jogo.
Instantaneamente, ele revirou os olhos.
— Esse time é só uma perda de tempo para você — cuspiu
todas essas palavras, pouco se importando se me faria bem ouvir
esse tipo de coisa ou não. — Mas, já que você tem esse tal jogo, vá
à construtora agora de manhã. Você vai ajudar o Jimmy hoje.
Perda de tempo? Se George pensava que o time era uma
perda de tempo, ele estava redondamente enganado. Estar no time
era o que me faria conseguir minha tão sonhada independência, se
eu ganhasse uma bolsa na universidade.
— Eu tenho aula daqui a pouco. Não tenho como ir à
construtora hoje.
Que saco.
De repente, no entanto, seu olhar se tornou ainda mais sério.
— Você vai hoje sim — autoritário, respondeu. — Não há mal
algum em faltar a primeira aula, você chegará para assistir o
segundo tempo. Além do mais, você é inteligente, uma aula a mais
ou menos não vai te prejudicar, assim como também é o herdeiro de
tudo o que eu tenho. Seu futuro já está garantido. Não precisa
estudar para ganhar dinheiro. Entendido? Espero que sim. Agora,
pode ir se arrumar para ir à construtora.
Merda. Meu pai sempre usa, em qualquer situação, as
desculpas de eu ser “inteligente” e “herdeiro”. Eu ainda tentei
argumentar, mas foi em vão. Não consegui. Dei um suspiro de
derrota e... Droga. Eu sempre acabava fazendo as suas vontades.

❖❖❖
Depois da conversa com o George, me arrumei rápido e,
praticamente sem mastigar, engoli o café da manhã. Quanto mais
ligeiro eu resolvesse isso que ele tinha pedido, ou melhor, exigido,
mais rápido eu sairia daquela construtora, que eu, particularmente,
odiava. Logo eu estaria a caminho do colégio.
Pensando nisso, naquele dia seria a primeira aula no
laboratório de química, depois que Liam e eu o incendiamos. Meu
Deus, apesar da situação, aquele dia tinha sido muito engraçado! O
desespero dele foi hilário. Talvez eu fosse para o inferno por rir da
situação, mas eu não consegui me conter.
Todavia, pensar em voltar ao laboratório me fazia pensar que
eu também voltaria a ser a dupla do Liam. Tanta coisa tinha
acontecido desde a última aula em que fomos parceiros no
laboratório de química. Liam... Por que ele não saía da minha
cabeça? Era tudo tão mais fácil quando eu só pensava em... Mulher.
Era tudo tão mais fácil quando eu não broxava! Inferno.
Era melhor eu tentar parar de pensar em tudo isso, pelo
menos por ora. Afinal, eu estava chegando na maldita empresa, e,
se o Jimmy notasse que eu estava estranho, ele com certeza me
perguntaria o que estava acontecendo e eu me sentiria tentado a
falar, porque ele era como um tio para mim. Eu o conhecia desde
criança e, especialmente a partir dos meus onze anos, nós
convivemos muito por causa dos ensinamentos que ele me
repassou. Jimmy se tornou alguém especial e de confiança para
mim.
Estacionei meu carro na garagem privativa da construtora,
desci e caminhei em direção à entrada do prédio. Cumprimentei os
funcionários, assim como eles também me desejaram “bom dia”.
Uma parte considerável deles eu conhecia desde criança. Apesar de
não gostar da empresa, eu gostava das pessoas que trabalhavam
lá. Todos sempre foram muito gentis, embora tivessem um patrão pé
no saco, vulgo meu pai.
Entrei no elevador e, em poucos instantes, cheguei ao último
andar do prédio. As salas desse piso pertenciam somente ao
dono/presidente da construtora, que era o meu pai, e ao vice-
presidente, o Jimmy. Sim, ele tinha começado como assistente do
meu pai e agora era vice-presidente da empresa. Durante todos os
últimos anos, ele foi subindo de cargo.
O estranho era que o Jimmy era um dos poucos funcionários
com quem meu pai construiu uma amizade. Por conta disso, depois
de alguns anos, ele se tornou o vice-presidente da empresa e o
braço direito do meu pai. De toda forma, eu considerei as suas
promoções como merecidas. Jimmy sempre suou a camisa por
aquela construtora.
Assim, caminhei até a sala do Jimmy, abri a porta e...
— Alex? — surpreso, sorri para o filho do Jimmy. — Que
legal te ver por aqui, cara! — aproximei-me dele, para cumprimentá-
lo. — Você está trabalhando aqui agora?
— E aí, Eric! — ele correspondeu. — Meu pai tinha mesmo
acabado de me avisar que você iria aparecer por aqui — sorriu. —
Na verdade, eu sou estagiário daqui agora, cara.
Se as pessoas me consideravam um “garoto prodígio”, eu
não sabia o que elas deveriam pensar a respeito do Alex, porque ele
era somente um pouquinho mais velho que eu e já estava na
faculdade. O cara era um verdadeiro talento.
No momento em que quis respondê-lo, para continuar a
conversa, no entanto, ouvi meu celular tocar. Com o dedo indicador,
pedi um segundinho de licença a ele, para que eu pudesse atender.
Quando olhei para a tela, visualizei o nome “Molly”. Nossa, o que
será que ela queria? Depois de tudo o que tinha acontecido eu não
sabia o que esperar.
— O-Oi, princesa! — tentando ser o mais natural e simpático
possível, atendi o celular. Nossos problemas precisavam acabar, de
uma vez por todas.
— Oi... Você... Você vem para o colégio hoje? — perguntou.
Notei que ela estava meio encabulada. — Estou precisando
conversar contigo.
Conversar? Meu Deus, conversar sobre o que? Será que ela
tinha descoberto alguma coisa? Será que ela sabia sobre sábado?
— Eu... — soltei um breve suspiro. Estava louco de
curiosidade e queria conversar já, mas não podia. — Eu vou chegar
um pouco atrasado, porque tive que dar uma passada na
construtora do meu pai, mas eu vou sim.
— Tudo bem... Então, te vejo mais tarde — e desligou.
Tirei o celular do ouvido e, meio reflexivo sobre a situação da
minha vida, encarei-o por alguns instantes. Quando fui guardá-lo no
bolso, entretanto, ouvi o Alex falar algo que chamou me atenção.
— Soube que você está namorando... Namorando a Molly.
— É... — erguendo o olhar para ele e tentando sorrir, porque
por dentro eu estava preocupado com aquela intimação do
“precisamos conversar”, respondi. — Nós estamos namorando há
um tempo.
— Com todo o respeito, mas você tem muita sorte por
namorá-la — Alex soltou uma pequena risadinha. — Molly sempre
foi uma menina doce, centrada, quieta. Eu espero que esteja
cuidando bem dela — sorrindo, concluiu.
Doce, centrada, quieta... Ele sempre enalteceu a Molly, desde
que éramos mais novos, e eu nunca consegui sentir ciúmes disso,
assim como também nunca consegui entender porque Molly nunca
quis dar uma chance a ele. Alex foi um dos meninos que cresceram
com a Molly, o Liam, a Stefany e eu.

...

— Aquelas meninas são tão chatas, Eric... — Enquanto


lágrimas e mais lágrimas rolavam por seu rostinho, Molly falava.
Naquele dia, a tia Cynthia, mãe do Liam e da Molly, estava
fazendo aniversário. Eles haviam convidado muitas pessoas para a
festa e, dentre elas, estavam os pais de algumas meninas que
viviam tirando sarro da Molly.
Como crianças de oito anos conseguiam ser tão más? Como
seus pais não as educavam direito?
— Calma, Molly... — passei carinhosamente a mão em suas
bochechas, limpando algumas lágrimas. — Vem cá, vamos sentar
ali... — e puxei-a levemente para outro lugar. Um cantinho mais
calmo.
Assim, caminhamos até uma árvore do grande jardim da casa
dela e sentamos na grama.
— O que aconteceu, Molly? — perguntei.
— Aquelas... Aquelas... — Molly soluçava, ainda chorando.
— As filhas dos McClary e dos Lopez me odeiam. Elas esperam
apenas meus pais e os pais delas saírem de perto para tirar sarro
da minha cara. É assim o tempo todo, principalmente no colégio.
— Você já falou isso para os seus pais? — Perguntei.
— Ah... — baixou o rosto com tristeza. — É o aniversário da
mamãe né? — e falou como se não quisesse incomodá-los, por
causa da festividade.
Era tão ruim ver a Molly triste e chorando... Ela era tão linda
sorrindo...
— Então, já que é o aniversário da tia Cynthia, tenta ficar
feliz, Molly... Não liga pra essas meninas. Com certeza elas têm
inveja de você — repliquei, tentando animá-la.
— Você acha? — Molly levantou o rosto para mim e ergueu
um pouco as sobrancelhas. Talvez meu tom motivador tivesse
algum efeito, afinal.
— Eu tenho certeza! — disse com convicção. — Você é mais
legal, mais simpática e mais bonita que elas. Isso com certeza é
inveja.
Molly esboçou um pequeno sorriso pra mim.
— Você é o melhor amigo que eu tenho, sabia?
— E eu vou ser seu amigo pra sempre — garanti com um
largo sorriso.
Se antes o sorriso da Molly era pequeno, agora ele estava
enorme.
— Você... Você promete que vai ser meu amigo pra sempre?
— perguntou com expectativa.
— Claro sim! Prometo de mindinho! — sorri ainda mais e
ergui meu dedo mindinho em direção a ela
Molly rapidamente limpou as lágrimas que ainda restavam em
seu rosto, sorriu para mim e entrelaçou o seu dedo mindinho no
meu.
— Amigos pra sempre! — falamos juntos e continuamos
sorrindo um para o outro, com os dedos mindinhos entrelaçados, até
que, de repente, uma mão segurando uma pequena florzinha
apareceu entre nós.
Olhei para o lado, assim como a Molly também, e vi o Alex,
filho do tio Jimmy. Tio Jimmy não era meu tio mesmo. Mas, eu o
considerava como se fosse, porque ele era amigo da minha família,
principalmente do meu pai.
— Alex? — Molly sorriu para ele e soltou meu mindinho.
— Eu trouxe pra você Molly — sorrindo, Alex entregou a
florzinha a ela.
— Pra mim? — envergonhada e, ao mesmo tempo, surpresa,
perguntou.
— Sim — respondeu. — Eu achei tão bonita quanto você.
Molly abriu um sorrisinho encabulado, segurou a florzinha e...
— Obrigada.
— Você quer brincar? — Alex perguntou. — Eu e os outros
vamos brincar de pique-esconde.
— Brincar? — desviou o olhar da florzinha para ele e
continuou sorrindo. — Eu quero! Mas... O Eric pode ir junto?
— Pode sim — sorrindo, replicou.
— Então, vamos? — levantando-se, Molly falou.
Começamos a caminhar em direção às outras crianças, para
brincarmos todos juntos. De repente, entretanto, notei Alex segurar
a mão da Molly. Instantes depois, Molly segurou a minha. E assim,
caminhamos os três de mãos dadas até o local da brincadeira.

...

O fato era que o Alex sempre gostou da Molly e, me


lembrando desse episódio da infância, talvez ela nunca tivesse o
dado uma chance por minha causa. Talvez. Bom, eu não sabia ao
certo, mas Molly sempre quis ser muito mais próxima a mim do que
a ele.
Dando-lhe um pequeno sorriso, falei:
— Eu tento dar o meu melhor.
Tenta dar o seu melhor, pensando no irmão dela? De pronto,
minha consciência sinalizou. Ah consciência filha da mãe! Senti
certa irritação surgir dentro de mim. Entretanto, algo tirou minha
atenção outra vez. Ouvi a porta da sala abrir, fazendo com que Alex
e eu virássemos. Jimmy, sorridente como sempre, entrou e
caminhou em minha direção.
— Eric! — me abraçou de um jeito forte e carinhoso, como
um pai. — Que prazer te ver aqui! É sempre muito bom quando
você vem dar o ar da graça aqui. Mas... Seu pai deve ter
praticamente te empurrado pra cá, não é? — e riu.
Jimmy já sabia como as coisas funcionavam. Ele sabia que
eu não gostava nem um pouco dos assuntos da construtora e que
um dos motivos de eu ter aturado isso, durante esse tempo todo,
era ele mesmo.
— Foi mais ou menos, Jimmy, mais ou menos isso... — soltei
uma pequena risadinha pelo nariz, embora, na hora em que meu pai
falou, a irritação que eu senti tivesse sido grande.
— Jimmy? — franziu o cenho, sorrindo divertido. — Essas
crianças crescem e esquecem de nos chamar de “tio”? — Seu tom
de voz era de pura brincadeira. Queria tanto que meu pai tivesse
uma personalidade assim.
— Tudo bem, tio Jimmy... — Repliquei, dando ênfase na
expressão “tio Jimmy” e soltando uma pequena risadinha pelo nariz,
enquanto balançava levemente a cabeça. Minha salvação para estar
naquela empresa era o tio Jimmy.
— Assim está bem melhor! — sorrindo para mim, ele falou. —
Eu sei que você não gosta, mas, mesmo sendo vice-presidente,
ainda preciso cumprir algumas ordens do seu pai. Então, venha aqui
até a minha mesa, para eu te mostrar nosso novo projeto. Já até
mostrei um pouco ao Alex.
Jimmy caminhou, enquanto eu o acompanhava. Todavia, ao
fazer o percurso, vi algo em uma das estantes que me deixou
curioso. Em cima de uma das prateleiras havia um porta-retrato,
com uma foto do tio Jimmy e do meu pai. Eu nunca tinha visto-a.
— Tio... — chamei-o após parar em frente ao porta-retrato. —
Onde vocês tiraram essa foto? Quando foi isso? — franzi o cenho
ao ver alguns detalhes da imagem. O motivo da minha curiosidade
não era outro, senão o semblante leve e tranquilo do meu pai, que
eu quase nunca via. Eles estavam em um campo de golpe, bem
próximos e sorrindo.
— Ah, essa foto... — notei Jimmy se aproximar. — Essa foto
foi da viagem de negócios que fizemos no fim de semana passado.
Após uma das reuniões, um grupo de parceiros da construtora nos
convidou para algumas partidas de golpe. Tiramos essa foto lá.
— Ah sim... Foto bacana — comentei, após desviar meu
olhar da foto para ele. Bacana, de fato era, mas estranho, sem
dúvidas, era muito mais. Não me lembrava da última vez em que vi
meu pai sorrir daquele jeito, especialmente nos últimos tempos. Em
casa, ele vivia sério e ranzinza.
— É sim, por isso que a coloquei aí — Jimmy sorriu. —
Agora, podemos começar os trabalhos? Prometo que, depois que
terminarmos, vai ter aquele chocolate quente que eu sei que você
adora. Já pedi para a cozinheira do refeitório preparar.
Dando uma pequena risadinha, acenei um sim com a cabeça.
— Tudo bem. Vamos.

❖❖❖

Fiz todo o trabalho necessário o mais rápido possível, para


chegar a tempo de assistir, pelo menos, a segunda aula. E
consegui. Já estava caminhando pelo corredor do colégio, indo em
direção ao laboratório de química. Enquanto isso, olhava de um lado
para o outro, procurando Molly. Mas, não a via em lugar algum.
Talvez ela já tivesse ido para a sua aula. Afinal, o sinal, indicando o
fim do intervalo, já tinha tocado.
Quando cheguei ao laboratório de química, logo percebi que
os alunos estavam naquela típica algazarra que se formava dentro
das salas, antes dos professores chegarem. Alguns sentados,
outros em pé. Alguns andando, outros conversando. Cada um fazia
algo diferente. Passei meu olhar de maneira geral pelo espaço,
procurando minha dupla: Liam.
Em meio aos alunos, o vi sentado em uma das bancadas do
laboratório, mexendo no celular. Aparentemente, ele ainda não tinha
me visto, mas eu estava o visualizando perfeitamente bem. De
automático, entretanto, minha memória me trouxe flashes de tudo o
que tínhamos vivido nos últimos dias. Era um saco.
Balancei levemente a cabeça, na esperança que isso, de
alguma forma, espantasse os pensamentos. Eu precisava superar
essas coisas e seguir em frente. Dei um breve suspiro e segui em
direção a ele. Fui me aproximando, até que, de repente, ele soltou o
celular em cima da bancada e levantou o rosto, dando de cara
comigo.
— Bom dia... — falei ao sentar do seu lado em um dos
bancos.
Liam, entretanto, não me respondeu de volta, apenas pegou
seu celular novamente e permaneceu em silêncio. Isso era típico.
Jamais poderia esperar algo diferente. Quando na vida eu receberia
um “bom dia” dele? Nunca? Sim, nunca.
Porém, nós éramos uma dupla, pelo menos ali no laboratório,
e, uma hora ou outra, ele acabaria tendo que interagir comigo. O
estranho era que o Liam parecia bipolar. Quer dizer, ele devia ser
“multipolar”, porque me... Me beijou no sábado, o que era difícil de
falar, até mesmo, em pensamento, me ligou no domingo para
agradecer, me ajudou na segunda, mas, desde então, não trocou
mais nem um “oi” comigo.
— O professor tá demorando um pouco para chegar, não é?
— comentei a primeira coisa que passou pela minha cabeça. Eu era
bobo. Liam permaneceu calado, mexendo no celular. — Será que
ele vai faltar? — tentei mais uma vez. Nossa, como eu era trouxa.
Aliás, por que diabos eu estava puxando assunto com ele?
Dessa vez, entretanto, Liam respirou fundo, como se
estivesse se controlando para não “soltar os cachorros em mim”,
largou o celular em cima da bancada e virou o rosto em direção ao
meu.
— Sabe... — compassadamente, falou. Seus olhos estavam
semicerrados para mim, assim como seu cenho estava franzido. —
Ontem, a minha irmã disse que chegaria um pouco mais tarde no
colégio e até dispensou a minha carona. Só que, coincidentemente,
eu vi que, ontem, você chegou aqui poucos minutos depois dela.
Estranho, não é? — percebi uma mistura de ironia e raiva em sua
voz.
Caramba, ele tinha reparado nisso?
Depois do que havia acontecido no dia anterior, eu dei carona
a Molly até o colégio. Acontece que fizemos um “esquema” para
que, principalmente, o Liam não notasse que tínhamos chegado
juntos. Do contrário, ele seria o primeiro a dizer para os pais que
sua irmã tinha faltado a primeira aula por minha causa.
Combinei, então, com a Molly de estacionar o carro em um
local um pouco mais afastado da entrada do colégio e pedi que ela
saísse na minha frente. Fiquei aguardando alguns minutos, até dar
uma boa margem de tempo para que eu entrasse no colégio. O
problema era que a principal pessoa tinha percebido!
Que saco. Liam, com certeza, devia ter desconfiado e ficou
esperando o momento de eu chegar ao colégio. Aquele traiçoeiro.
Eu precisava ser convincente na desculpa. Senão, ele sairia dali
direto para contar aos pais. No mínimo, falaria que eu estava
colocando a Molly no mau caminho, vulgo “matar aulas”.
— Realmente é uma baita coincidência! — falei como se
estivesse surpreso. — Porque ontem eu tive que ir de manhã à
construtora do meu pai, assim como tive que ir hoje. Inclusive,
cheguei há pouco tempo, no mesmo horário de ontem. — Até que
essa ida à construtora, naquele dia, tinha me beneficiado de alguma
forma.
— Você estava com a minha irmã ontem, não estava, idiota?
— Liam, não se dando por convencido, perguntou raivoso.
Mas que saco!
— Claro que não! — menti. — Eu estava na empresa do meu
pai, assim como também fui hoje. Aliás... — me dei conta de algo
muito importante. — Quer saber? Eu não preciso ficar dando
satisfação da minha vida pra você.
Ao me calar, tive a impressão de que Liam iria me engolir
com os olhos. Entretanto, quando ele estava prestes a abrir a boca
novamente, o professor entrou no laboratório, fazendo com que ele,
instantaneamente, recuasse. Com certeza, ele iria me insultar.
— Bom dia, turma! — o professor se pronunciou. — Os que
estão de pé, sentem-se, por favor — Em poucos instantes, todos
assim o fizeram. — Queridos, depois de um tempo sem termos aula
no laboratório, finalmente voltamos. A reforma do local foi cara.
Portanto, espero que não tenhamos mais acidentes — olhou
diretamente para mim e o Liam. Ouvi algumas risadinhas na sala. —
Vamos ficar atentos aos procedimentos, tudo bem? — todos
acenaram um sim com a cabeça para ele. — Ótimo! Então, antes de
começar a aula de hoje, tenho um aviso para dar. Vou só chamar
uma pessoa — e caminhou rapidamente em direção à porta. Dentro
de poucos instantes, ele voltou acompanhado de um garoto que não
me era estranho. Eu já tinha o visto em algum lugar. — Pessoal... —
o professor voltou a falar. — Este é o Noah, ele ganhou,
recentemente, uma bolsa de monitoria aqui no colégio e será o
monitor de química de vocês. Ele vai me auxiliar em tudo!
No mesmo instante em que o professor parou de falar,
todavia, notei o Liam se remexer na cadeira ao lado, como se
estivesse incomodado com alguma coisa. Virei meu rosto para ele e
o ouvi resmungar algo como: “não acredito que esse nerdzinho
esquisito vai ser monitor nessa disciplina”. Ah! Como eu não me
lembrei disso antes? Era o garoto que o Liam vivia tratando mal.
Coitado. Bem que eu deveria ter notado isso logo pela sua maneira
encabulada e deslocada ao entrar na sala e olhar para Liam meio
sem jeito.
— Eu vou precisar me ausentar da sala por alguns instantes
— disse o professor. — Mas, o Noah vai auxiliar vocês no que
precisar. Podem abrir os livros na página 52. Vocês vão ver o passo
a passo de alguns procedimentos nessa página. Eu quero que
vocês façam o primeiro procedimento. Todos os materiais
necessários estão naquele balcão — apontou. — Vocês podem
levantar e pegar. Com muito cuidado, por favor... — olhou para mim
e para o Liam novamente. Nós ficaríamos marcados para sempre
por termos incendiado o laboratório. — Até daqui a pouco — e
concluiu, encaminhando-se para a porta.
Noah, por sua vez, se posicionou próximo ao balcão de
materiais e começou a ajudar os alunos, organizando e levando os
materiais para cada dupla. Enquanto isso, as duplas abriam seus
livros para entender do que se tratava o procedimento.
— Liam, você pode pegar os materiais enquanto eu tento
entender o procedimento? — sugeri.
— E por que tem que ser eu a pegar o material? — lançou
um olhar de tédio, nada simpático. — Por que você mesmo não
pode levantar e pegar?
Liam era quase um imprestável.
— Ora, alguém precisa entender o procedimento e esse
alguém sou eu, porque eu duvido que você queira incendiar o
laboratório de novo — tentei provocá-lo um pouco, porque, apesar
de tudo, era engraçado tirá-lo do sério.
Ele praticamente revirou os olhos para mim e deu um breve
suspiro, como se estivesse se controlando para não voar no
pescoço. Contudo, logo se deu por vencido e se levantou para
buscar os materiais. Observei-o caminhar até o balcão, assim como
os outros alunos também faziam.
Com certeza, ele não conseguiria pegar tudo de uma vez,
porque eram muitos materiais e Liam não iria querer quebrar nem
um pequeno Baker do laboratório, depois de tudo o que tinha
acontecido desde a última vez que estivemos ali. De fato, ele estava
sendo cuidadoso demais, e, todo esse milagroso cuidado, que eu
raramente via, deixava-o bastante... Atraente. Talvez fosse a
excepcionalidade que provocasse isso em mim.
— Tá olhando pra mim assim por quê? — questionou, de
repente, tirando-me dos meus pensamentos, após deixar alguns
materiais sobre a nossa bancada. Droga. Eu não podia estar
olhando para ele feito um bobo. Que idiotice! Era para eu estar
lendo o procedimento.
— Olhando? — franzi o cenho, tentando ser convincente no
teatro de que ele e nada eram a mesma coisa para mim. Dei de
ombros, ou, pelo menos, fingi. — Estava só pensando no
procedimento, bonequinha. — Essa palavrinha era uma ótima
maneira de disfarçar e ainda o tirava do sério.
— Sabe o que você faz com esse nome “bonequinha”? Pega
ele e enfia no seu...
— Liam! — o interrompi na mesma hora, rindo.
Definitivamente, era muito engraçado tirá-lo do sério. Além do mais,
também era uma forma de quebrar o meu próprio gelo depois
daqueles acontecimentos estranhos entre nós. — Vai logo pegar o
resto do material.
O moreno, por sua vez, balançou a cabeça em reprovação.
— Idiota... — resmungou, enquanto caminhava de volta para
o balcão dos materiais. Dessa vez, aproveitei para baixar minha
cabeça e retornar minha atenção ao livro e ao procedimento.
Todavia, quando recomecei a ler, de repente, a voz Liam ecoou pelo
laboratório.
— Porra! — exclamou.
Meu Deus, o que tinha acontecido dessa vez?
Ergui meu rosto, olhando em direção ao Liam e vi a cena.
Sua camisa estava manchada e molhada, enquanto Noah segurava
um Baker vazio na mão. Liam o encarava como quisesse assassiná-
lo. Por Deus, o Noah tinha se atrapalhado e derramado aquele
líquido nele?
— Você anda com a cabeça aonde, lesado? No seu rabo?! —
o moreno disparou.
Caramba... Liam já não gostava do garoto, e, para completar,
ainda acontecia algo assim.
— Fo-Foi sem querer... — Noah gaguejou, visivelmente
nervoso. — De-Desculpa.
— Desculpa?! — Liam o arrastou pela gola da camisa,
segurando firme entre os seus dedos. — Você acabou de estragar
uma das minhas melhores camisas! Eu tenho certeza que essa
mancha não vai mais sair!
Droga... Por que o Liam tinha que arranjar briga com todo
mundo?
Rapidamente me levantei do banco, para tentar separá-los e
evitar que o pior acontecesse. Ele era muito inconsequente.
— Ei, Liam... — segurei-o pelo braço, tentando fazer com que
ele soltasse o garoto. — Calma. Não foi de propósito. Você tem
várias camisas e tem dinheiro também para comprar quantas quiser.
— Sai fora! — ele disparou, pouco se importando com tudo o
que eu tinha falado.
Nossa, como Liam era cabeça dura.
— Liam, solta o garoto... — tentei mais uma vez, segurando-o
ainda pelo braço.
No entanto, dessa vez, ele, em pura exasperação, soltou
Noah e partiu para cima de mim. Era só o que faltava. Notei a turma
inteira fazer um círculo à nossa volta, provavelmente esperando que
uma briga acontecesse a qualquer momento.
— Por que você não cuida um pouco da sua vida e me deixa
em paz? — exclamou, enquanto segurava forte a minha camisa
entre os seus dedos, fazendo nós dois ficarmos muito próximos.
Entretanto, eu, instantaneamente, o empurrei de maneira leve,
somente o suficiente para que ele me soltasse.
— Não quero brigar, Liam — repliquei. — Você também
deveria parar de arranjar briga com todo mundo. Você está a um
passo de ser expulso do time e do colégio por causa disso.
Isso, no entanto, foi o suficiente para que o semblante do
Liam ficasse ainda mais furioso. Parecia que o fato de eu ter
exposto a sua situação, e, principalmente, de não querer brigar, o
atiçava ainda mais. Assim, como em um piscar de olhos, Liam
avançou em minha direção mais uma vez.
Contudo, agora, fui mais rápido, e, antes que ele pudesse
fazer qualquer coisa, segurei firme sua camisa entre os meus
dedos, quase imobilizando-o. Estávamos um de frente para o outro.
Bem próximos. Quase com os rostos encostados.
— Liam... — encarei-o de maneira incisiva. Eu precisava
demonstrar domínio de alguma forma sobre ele. — Eu já disse que
não quero brigar. — Falei de maneira séria e compassada. — Fica
na sua, porque, dessa vez, eu não vou para a detenção no seu
lugar! — gritei em um sussurro. — Eu não quero brigar contigo... —
e, então, tentei dizer de uma maneira mais amena. — Eu só
quero...
Interrompi a mim mesmo quando notei Liam olhando
atentamente para a minha boca. Foi algo estranho, de fato. Ele
parecia estar perdido nela. E, não somente isso, ele parecia estar se
aproximando dela. Jesus... Ele queria me beijar ali, na frente de todo
mundo?
Meu Deus, segura essa minha boca!

Eric

Em questão de segundos, as imagens do fim de semana passaram


pela minha cabeça. O beijo. As mãos dele no meu rosto. O beijo. As
mãos dele na minha nuca. O beijo. A boca mais gostosa que eu já
tinha sentido. A boca que eu tinha vontade de... Calma, Eric, calma.
Olha a besteira que você está fazendo! Liam e eu éramos o centro
das atenções daquele laboratório. Então, se absolutamente nada
poderia acontecer entre nós a qualquer momento que fosse, ali, com
a sala inteira nos olhando, era que não poderia mesmo.
Rapidamente, soltei a sua camisa e me afastei alguns bons
centímetros de seu rosto. No mesmo instante, notei Liam parar de
olhar para a minha boca e retomar a sua compostura. O que será
que tinha acontecido com ele, na real? Por que estava olhando tanto
para a minha boca? Ele se deu conta do que estava acontecendo
entre nós? E pior: será que eu nunca mais conseguiria chegar perto
dele sem me lembrar do beijo? Que saco. Eu precisava, já, fazer
algo em relação a isso.
Para começar, eu tinha que me afastar ainda mais, antes que
a turma inteira percebesse um clima estranho entre nós. Isso não
era bom. Na verdade, era péssimo. Assim, pigarreei a garganta,
tentando retomar a minha compostura de cara hétero e
comprometido, que nunca soube o que era beijar um homem, e
voltei a falar.
— Acho melhor a gente começar a fazer o procedimento,
antes que o professor entre na sala — Em um tom de voz não tão
alto, mas o suficiente para que os alunos ouvissem e entendessem
que deveríamos retornar aos nossos lugares, disse. Contudo, logo
baixei a voz para falar algo especificamente ao Liam. — Cara, não
se mete em outra briga. Esquece essa camisa, depois você veste
outra. Sua situação não é boa pra ir à detenção novamente. Vamos
voltar a fazer o trabalho que o professor passou, ok?
Sem resposta verbalizada, Liam apenas desviou seu olhar de
mim para o Noah, observando-o como se ainda quisesse comê-lo
vivo, e tornou a caminhar em direção ao balcão para pegar o
restante dos materiais. Os outros alunos, então, começaram a se
dispersar pela sala e a voltar a executar o procedimento. Todos
tinham entendido que não haveria uma briga ali. Pelo menos não
naquele dia.

❖❖❖

Conseguimos terminar a aula no laboratório sem brigas e


sem incêndios. Amém. Aparentemente, o professor não tinha
desconfiado do desentendimento que aconteceu enquanto ele
estava fora da sala. Melhor assim. No final das contas, Liam e eu
conseguimos completar o trabalho que o professor havia pedido.
Ele, como sempre, continuou com sua cara de poucos amigos, mas
eu já estava acostumado com isso desde criança.
O fato era que a pior coisa ainda estava por vir: naquele dia,
eu que teria de dar aula para o Liam. Pela primeira vez, desde a
viagem, eu ficaria durante um bom tempo a sós com ele. No dia que
tivemos nossa primeira aula, eu estava tranquilo. Afinal, nada de
anormal tinha acontecido entre nós. Porém, dessa vez, era
diferente. As circunstâncias, para mim, eram diferentes, mesmo que
ele não se lembrasse de nada do que fizemos no fim de semana.
E, as expectativas ruins não paravam por aí. Eu estava
saindo da biblioteca, porque havia alugado uns livros para levar a
aula com o Liam, quando recebi uma mensagem da Molly no meu
celular. Ela queria me encontrar no pátio para conversar. Uma parte
de mim não queria acreditar que ela havia descoberto sobre o que
aconteceu na viagem, já a outra parte estava tirando a minha paz.
Portanto, era melhor encontrá-la logo.
Caminhei rapidamente pelo colégio, indo em direção ao local
onde havíamos combinado. Não demorei muito a vê-la, porque ela
já estava sentada em um banco mais reservado do pátio. Logo que
me avistou, eu me aproximei dela, que estava com o rosto tão sério
ao ponto de eu não saber o que esperar da tal conversa. Apenas me
sentei e a cumprimentei.
— Oi, princesa — tentei sorrir. — Está tudo bem? —
perguntei apenas por costume, porque eu tinha quase certeza que
as coisas não estavam tão bem assim.
— Oi, Eric — replicou. — Eu vou direto ao ponto. Meu Deus.
Gelei. — Eu pensei muito sobre o que aconteceu ontem, na minha
casa, entre você e eu. Eu não sou dura com ninguém, nunca fui, e
você sabe disso. Mas, eu acho que fui dura com você ontem, até
porque, antes de qualquer coisa, nós somos amigos. É justamente
por isso que eu quero saber: tá acontecendo alguma coisa, Eric?
Antes de sermos namorados, nós éramos amigos e, mesmo
namorando, nós continuamos amigos. Então, me fala. Está
acontecendo alguma coisa contigo?
Amigos. Meu Deus. Amigos. O que era pior: trair uma
namorada em pensamento ou trair uma amiga? Talvez eu estivesse
praticando, mesmo que em pensamento, algum tipo de traição
dobrada, porque eu estava enganando uma namorada e uma amiga
ao mesmo tempo. Eu era um canalha!
Não sabia se contava toda a verdade ou se continuava
fingindo. Entretanto, se eu fingisse que nada estava acontecendo e
continuasse a enganando, seria muito foda para ela. Por outro lado,
eu não fazia ideia de como Molly reagiria ou se sentiria ao saber de
tudo o que estava acontecendo entre seu irmão e eu. Que
encruzilhada.
— Eric? — Ao perceber meu silêncio, em decorrência
daquela luta interna pela qual eu estava passando, a morena tornou
a falar e segurou meu rosto com as duas mãos, olhando-me com
preocupação. — Me fala. O que está acontecendo?
Por Deus, o que eu faria? Será que contava? Ela ficaria muito
abalada. Eu tinha certeza absoluta disso. Molly não estava
preparada para ouvir o que eu tinha a falar. Não, eu não podia
revelar. Na verdade, era melhor eu tentar parar de pensar no Liam e
salvar o meu namoro do que contar a ela o que vinha acontecendo e
jogar tudo por água abaixo. Assim, resignado com minha decisão,
abracei-a. Primeiro, porque estava começando a me sentir frágil.
Segundo, porque eu não conseguiria pronunciar as próximas
palavras e olhar em seus olhos ao mesmo tempo.
— Tá acontecendo nada, princesa — tentei falar com a maior
naturalidade possível, embora isso fosse difícil. — Tá tudo bem. Eu
só pensei que eu estava no pique ontem, mas me enganei.
Molly, por sua vez, me prendeu ainda mais no abraço,
passando as mãos nas minhas costas. Ela continuava, de certa
forma, preocupada.
— Tem certeza? — perguntou.
Não.
— Sim — menti novamente, enquanto aquela teia de
mentiras se tornava ainda maior. Eu era um cafajeste mesmo. Não
queria ver o resultado disso. Na verdade, eu esperava que não
houvesse resultado algum.
Diante disso, a morena me soltou aos poucos do abraço, até
nos deixar cara a cara mais uma vez. Aproveitou o momento para
passar as mãos em meu rosto, como um gesto de carinho. Eu era
um patife, enquanto ela era um doce.
— Olha, se você está dizendo, eu não vou duvidar —
conformada, falou. — Vamos passar uma borracha no que
aconteceu. Mas, de toda forma, você sabe que pode confiar em mim
para dizer qualquer coisa, né?
Não sei se você aguentaria ouvir o que tenho guardado em
pensamentos.
— Tudo bem, princesa. Obrigado — tentei sorrir. Ela merecia
uma pessoa boa e eu deveria tentar ser essa pessoa para ela. Eu
só esperava que o universo colaborasse com isso e me deixasse
ficar em paz com meus pensamentos e sentimentos.

❖❖❖
Logo depois da nossa conversa, Molly e eu fomos para a sua
casa. Afinal, eu precisava dar aquela bendita aula. O problema era
que, a cada passo, meu coração acelerava mais. A cada passo,
meu cérebro me lembrava de que eu teria que passar uma hora e
meia com o Liam, no quarto dele. A cada passo, minha mente me
lembrava de que eu gostei do seu beijo, que quis beijá-lo de novo e
que eu tinha uma namorada. A soma de tudo isso me deixava
incrivelmente confuso.
Para a surpresa de Molly, tia Claire, sua mãe, estava em casa
quando nós chegamos. Aparentemente, ela devia estar no trabalho,
mas, como no dia seguinte seria o aniversário do meu pai, a minha
mãe pediu sua ajuda em alguns detalhes restantes. Para completar,
mamãe chegaria ali dentro de poucos minutos. Ou seja, além de eu
ter que dividir o mesmo espaço que o Liam, durante a próxima hora,
Molly, tia Claire e minha mãe também estariam juntas lá. Isso era
perfeito, para não dizer o contrário.
Depois que entramos e cumprimentamos a tia Claire, ela já
foi logo me passando sua intimação:
— Querido, o Liam já está no quarto dele. Se você quiser
subir, já pode começar a aula.
Ah, Deus. A hora tinha chegado e eu não podia fugir. Tentei
respirar fundo. Vamos lá, Eric, não pode ser tão difícil passar uma
hora e meia perto do Liam, quando você sabe que é necessário
manter distância. Que pesadelo!
— Tudo bem, tia — respondi e virei para a Molly, me
despedindo dela e lhe dando um beijo no rosto. — Vou lá, princesa.
Comecei a subir as escadas, me perguntando uma única
coisa: onde, diabos, eu estava com a minha cabeça, quando
concordei com a proposta de dar aulas para o Liam? Tudo bem que,
na época, eu nem sonhava que tudo o que aconteceu pudesse, de
fato, acontecer. Porém, agora eu estava em um beco sem saída e
devia seguir em frente com as aulas.
Eu precisava pensar positivo, ou aquilo não funcionaria. Eu
precisava tentar mentalizar que seria uma aula como qualquer outra.
Sim, eu repeti isso mil vezes na minha cabeça, enquanto percorria o
caminho. Sempre fui acostumado a ensinar os meus amigos. Além
do mais, eu já tinha dado a primeira aula a Liam. Ele estava
estranho no dia, mas nós não nos matamos, nem nos beijamos.
Amém. Então, a tendência era que aquela segunda aula seguisse o
mesmo ritmo.
Quando, enfim, cheguei à porta de seu quarto e vi que estava
fechada, ainda dei um breve suspiro, tentando manter a
tranquilidade e a naturalidade, e bati duas vezes, para chamá-lo.
Liam apareceu, alguns instantes depois. Seu rosto estava
impassível, enquanto sua boca não me deu uma única palavra. Ele
apenas, aparentemente a contragosto, abriu caminho para que eu
entrasse.
Ainda em silêncio, fechou a porta e seguiu em direção à sua
escrivaninha, sentando-se em uma das duas cadeiras disponíveis.
Eu, no entanto, permaneci em pé e parado. Nunca sabia como agir
dentro do quarto do Liam. Ele sempre foi muito possessivo com
todos os seus pertences.
— Vai ficar em pé aí, que nem um lesado? — Essas foram as
novas primeiras palavras amigáveis que Liam me deu.
— Fiquei com medo de dar um passo e acabar estragando o
piso de ouro do quarto da bonequinha — repliquei com o máximo de
ironia que eu conseguia. O moreno, por sua vez, cerrou os olhos
para mim, mas nada respondeu, enquanto eu seguia em direção à
cadeira vazia ao seu lado. — A gente estudou física na primeira
aula. Hoje pode ser química. O que acha? — perguntei ao me
sentar.
— Tanto faz... — dando de ombros, como se estivesse pouco
se importando, respondeu. — Só começa isso logo — e passou as
mãos no rosto, meio impaciente.
Com isso, dez, vinte, trinta e quarenta minutos se passaram.
O estranho era que Liam, milagrosamente, estava muito atento a
mim naquele dia. Eu realmente não sabia o que estava
acontecendo, mas, se comparado à aula anterior, ele estava ainda
mais diferente. Ainda me observava com seu típico olhar de
desprezo? Sim. Mas, no fundo, eu notava algo diferente. Ele estava
bastante concentrado em mim. Uma atenção que eu nunca tive por
parte dele. Liam, nem mesmo, tinha aberto a boca para me insultar
com qualquer coisa, pelo menos até o momento.
Prova disso era que não tínhamos nos matado até então, e já
estávamos a quase uma hora ali. Liam parecia realmente com
vontade de aprender, enquanto eu me esforçava ao máximo para
não me perder nas explicações, porque, mesmo que estivesse
falando sobre tabela periódica e reações químicas, meu olhar e
meus pensamentos sempre se voltavam, de uma maneira ou outra,
para o momento do nosso beijo, a sua boca, os seus olhos, o seu
rosto. Caramba, eu estava parecendo uma mulherzinha.
Enquanto isso, eu também pensava no fato de que a minha
namorada estava em alguma parte daquela casa, ao mesmo tempo
em que eu, assustadora e estranhamente, tinha curiosidade de
sentir, outra vez, o beijo de um cara que, por sinal, era o irmão dela.
Droga! Será que tinha como eu ser mais canalha? Eu já estava
ficando com vergonha de mim mesmo. No fim das contas, Liam
talvez tivesse alguma razão quando dizia que eu não era homem
para a Molly. Agora eu entendia o porquê. De fato, ela não merecia
que seu namorado ficasse pensando em seu próprio irmão.
Se o Liam, pelo menos, colaborasse e parasse de me olhar
tão atentamente assim, talvez as coisas pudessem se tornar um
pouco menos difíceis para o meu lado. Aliás, se ele não tivesse me
beijado, nada disso estaria acontecendo comigo. Inclusive, será que
aquele imbecil lembrava do que tinha feito? Será que eu tinha sido
mesmo trouxa por não ter aceito beber a Vodca até entrar em coma
alcoólico, que nem ele, e esquecer toda aquela merda? Essas
dúvidas passaram a semana inteira me corroendo.
Mas, enfim, era melhor que tentasse me desligar de tudo
isso. Eu era hetero e tinha uma namorada. Portanto, era ilógico ficar
pensando e confabulando coisas assim a respeito de um cara.
Concentração na aula, Eric, concentração! Afinal, quanto mais
rápido eu conseguisse explicar o conteúdo para ele, mais rápido eu
me livraria daquela aula e iria embora para casa. Pelo menos, a
hora já estava bem avançada e aquilo estava chegando ao fim.
Faltava apenas eu falar um pouco sobre substâncias químicas
alucinógenas.
— Cara, a aula tá acabando. Só falta falar um pouco sobre as
substâncias químicas alucinógenas. Lembra que no final da aula o
professor pediu pra gente pesquisar um pouco sobre isso? —
questionei. — Provavelmente, ele vai passar alguma atividade a
respeito, ou então vai cair uma questão desse assunto na próxima
prova.
— Lembro — respondeu curto e grosso, como sempre.
— Eu peguei um livro na biblioteca... — abri a mochila e o
retirei, colocando-o em cima da escrivaninha. — Pra gente dar uma
olhada nas substâncias. Você quer... — fiz um sinal com a cabeça,
para que ele afastasse a cadeira um pouco mais para perto de mim
e nós pudéssemos dividir o livro. Liam, no entanto, não se moveu
um centímetro. Ok, eu deveria ter esperado por isso. Assim, eu
mesmo arrastei a cadeira para perto dele, mas fiz isso de uma
maneira tão desajeitada que nossas pernas acabaram encostando
uma na outra. Notei Liam trepidar um pouco ao sentir. Se remexeu
um pouco na cadeira, mas não tirou a perna dali. — É... — abri o
livro, deixando-o no meio de nós dois, dando um breve suspiro, e,
por mais que o meu lado racional dissesse para desencostar a
perna, eu também não conseguia movimentá-la nem um centímetro
dali.
— Vai logo — Liam resmungou.
— Ok... — respondi, mas... Nossas pernas continuavam
unidas. Isso era real? — Bom... — pigarreei a garganta, tentando
retomar a compostura, e comecei a ler. — Existem duas substâncias
químicas alucinógenas muito conhecidas, o LSD e o Ecstasy. A
substância... — parei de falar ao sentir o Liam mexer a perna e,
consequentemente, roçar a minha. Isso foi sem querer? Engoli a
seco e tentei voltar a leitura. — A substância química do LSD é
chamada de dietilamida do ácido lisérgico. Alguns efeitos da
substância são alucinações visuais, sensação artificial de euforia,
redução da percepção... — senti novamente o Liam mexer sua
perna e roçar a minha. Merda... Ele estava fazendo isso de
propósito? Eu me recusava a acreditar. Não era possível que ele
estivesse fazendo isso de propósito. Ou será que... Será que
estava? Será que era proposital? Instantaneamente, minha memória
me trouxe lembranças de sábado. O beijo. Ah, meu Deus, eu sentia,
no fundo, que tinha gostado. Mas, eu não podia gostar! Eu não
podia ser gay! — Fora o LSD, o Ecstasy também... — tentei voltar a
falar, mas sua perna me tirou novamente a atenção. Deus, me
ajude, eu não posso cair em tentação. Era a prece silenciosa que eu
fazia. Por outro lado, eu não conseguia me conter. A minha
curiosidade e a minha vontade de saber se era proposital ou não
falavam mais alto.
Não aguentei. Eu precisava de uma prova. Mexi minha perna
de leve, roçando a dele, da mesma forma como fez comigo. Liam,
entretanto, baixou o olhar, mirando exatamente em sua perna e,
logo depois, ergueu, aos poucos, seu rosto impassível, encarando-
me de canto de olho. O que estava acontecendo, meu Deus? Seu
olhar me dizia tanto e, ao mesmo tempo, nada. Há poucos instantes
nós estudávamos e, de repente, agora, o clima do quarto tinha
mudado completamente.
Deus, as imagens de sábado continuavam atormentando a
minha mente. E o seu olhar, aquele que ele estava me dando nesse
exato momento, apenas fazia com que eu me perguntasse, ainda
mais, se ele lembrava do que tinha feito ou não. Eu tinha certeza
absoluta de que não deveria tocar nesse assunto com ele, mas a
curiosidade estava me matando, desde domingo. Talvez, se eu
perguntasse nas entrelinhas, não ficaria muito explícito o fato de eu
estar louco para saber a resposta.
— Liam... — tentei falar com naturalidade, assim como
também tentei esconder a ansiedade. — Além do LSD e do Ecstasy,
outra substância química que causa alguns efeitos colaterais para o
cérebro é o etanol, também chamado de álcool etílico, que é o
principal agente das bebidas alcoólicas. O álcool ingerido em
grandes quantidades pode causar a perda total ou parcial de
informações do cérebro. Em outras palavras, pode ocasionar
esquecimento... Isso é bastante comum... Conheço alguns casos...
— Ah, Deus, é agora. — Isso já aconteceu contigo? — soltei a
pergunta no ar, ao mesmo tempo em que sentia vontade de sair
correndo para bem longe dali.
Liam, por sua vez, ergueu uma das sobrancelhas para mim.
Por Deus, o que isso significava?
— Essa pergunta, por acaso, é de algum exercício do livro?
— notei um pequeno, quase imperceptível sarcasmo em seu tom de
voz.
Não, seu filho da mãe, claro que não é. Só me responda,
antes que eu fique louco!
— Eu só achei que, por ser um tremendo beberrão de Vodca,
você já tivesse passado por situações como essa que eu acabei de
falar — tentei retribuir o sarcasmo, mesmo que, por dentro, eu
estivesse nervoso.
Dessa vez, Liam ergueu as duas sobrancelhas para mim,
como se eu tivesse dito uma grande calúnia sobre ele.
— Qual é, imbecil? Olha quem fala! Você é o maior bebedor
de Uísque que eu já conheci! — disparou. — Aqui é tipo o sujo
falando do mal lavado.
Quê? Era eu quem estava sendo caluniado! Quer dizer, um
pouco caluniado. Tá, tudo bem, nem tanto. Ok! Eu não estava sendo
caluniado. O idiota tinha falado uma verdade. Eu podia até ser um
beberrão de Uísque, mas, pelo menos, eu nunca esquecia do que
fazia.
— E sábado, heim?! — ergui as duas sobrancelhas para ele,
como uma afronta, aproveitando o espaço para entrar no assunto
que eu queria. — Quem foi que voltou quase em coma alcoólico
para o quarto? Não fui eu!
— Cala a boca, imbecil! — Liam disparou.
— Quem foi que se embriagou de Vodca no pub, vomitou e
desmaiou? — continuei, tentando refrescar sua memória e pouco
me importando com o fato dele ter dito para eu parar. — Também
não fui eu. Então, acho que já temos o vencedor do título de
beberrão do ano!
Liam, por sua vez, se inquietou na cadeira e passou as mãos
no rosto, em pura exasperação. Ele estava ficando vermelho,
bastante vermelho. Isso era raiva do que eu estava falando? Franzi
o cenho, porque, apesar de tudo, eu estava falando a verdade e...
De repente, minha mente se iluminou. Eu me dei conta de que ele
não tinha me desmentido, nem mandado eu me calar. Então, isso
significava que ele se lembrava? Ele se lembrava do que tinha
acontecido? Ele se lembrava do... Beijo?
— Acho melhor a gente voltar pra química — ele resmungou,
com o semblante ainda mais fechado. — Se você não ficar na tua...
— disse em tom ameaçador.
— Vai fazer o quê? — As palavras saíram de repente da
minha boca.
— Não me provoca, imbecil... — olhou-me com muita
seriedade.
— Me diz o que você vai fazer — retribuí o mesmo olhar
sério. — Você vai... — Meu Deus, segura essa minha boca! — Vai...
— Eu não posso falar. Não posso! — Você vai fazer o mesmo que
fez comigo no sábado, depois que a gente brigou no pub? — e eu
não aguentei. Droga. As palavras simplesmente saíram.
Após isso, notei-o instantaneamente travar, como se tivesse
sentido um baque ou algo do tipo. Caramba, ele se lembrava! Ele se
lembrava sim! Pelo estado em que ele ficou, depois de eu tocar
claramente no assunto, não era possível que ele não lembrasse.
Entretanto, como se estivesse tentando disfarçar, ou mesmo mudar
o foco daquele diálogo, virou o rosto para frente, arrastando o livro
para si e começando a folheá-lo.
— Bora voltar pra química — Com seu típico semblante
fechado, ele falou. Eu sabia que ele tinha ficado seriamente
abalado. Era perceptível, por mais que ele tentasse disfarçar.
Eu sabia que era um grande erro continuar nisso e tentar ir
em frente no tal assunto. Eu também sabia que era um enorme erro
querer saber se ele lembrava ou não do que fez, assim como
também não era nem um pouco certo querer sentir seu beijo
novamente. Mas...
— Você não respondeu a minha pergunta — insisti.
Liam, irritado, passou a mão na nuca e continuou a folhear o
livro aleatoriamente.
— Eu não sei do que você tá falando, imbecil — resmungou
sem me encarar. Liam parecia evitar meus olhos deliberadamente.
O único lugar para onde ele mirava era o livro. — Anda. Vamos
continuar. Eu quero aprender química.
Ele se lembrava, eu sabia que ele se lembrava. Eu só
precisava ouvir isso de sua boca.
— Liam... — soltei um breve suspiro. — Você se lembra do
que aconteceu fora do pub, depois que nós brigamos e fomos
expulsos, não lembra? — Devido a tamanha adrenalina que eu
estava sentindo, as palavras saíram de repente da minha boca de
novo. Eu nem sabia como estava conseguindo falar tudo isso.
Talvez a vontade de ouvir a resposta verdadeira fosse maior que o
receio.
Essa pergunta foi o suficiente para que Liam desviasse o
olhar do livro para mim. Me assustei ao vê-lo como estava agora.
Deus... Os olhos do Liam estavam... Poucas vezes na vida eu tinha
o visto com um olhar tão frágil e vulnerável como esse que estava
em seu rosto. Aparentemente, além de tudo, ele também estava
marejado. Deus, ele lembrava.
— Para com isso, idiota — resmungou e levantou-se da
cadeira.
Acompanhei-o com o olhar e o vi caminhar em direção à
varanda do seu quarto. Pronto, agora era certeza que ele se
lembrava. Se Liam não lembrasse, ele não estaria literalmente
fugindo da situação. E, apesar de ainda ter consciência de que era
um erro seguir em frente com isso, eu continuei, porque precisava ir
até o fim e não aguentava mais ficar calado, assim como fiquei
desde o último domingo. Assim, também me levantei da cadeira e o
segui rumo à varanda.
— Liam...
— Sai daqui. Vai embora. A aula acabou. Não quero mais —
disse olhando para o horizonte à sua frente, na varanda.
— Liam... — me aproximei dele devagar. — Eu tô
enlouquecendo desde o dia em que você me beijou — confessei e...
Deus, as palavras pareciam que tinham vida própria, porque elas
simplesmente saltaram da minha boca. Eu mal podia acreditar que
tinha falado isso.
O moreno, por sua vez, instantaneamente, virou-se para mim.
Seus olhos arregalados, sua pele em puro estado de alerta. O
sangue do rosto parecia ter sido completamente drenado, porque,
em menos de meio segundo, ele ficou pálido.
— O quê?! — disparou. — Enlouquecendo?! Deve estar
mesmo, porque eu não sei de nada sobre o que você falou! Sai
daqui! Sai do meu quarto agora! — exclamou. Sua respiração
totalmente descompassada.
Apesar de ser um grande erro, eu ia até o fim. Ele tinha que
confessar. Essa negação só me instigava, ainda mais, a seguir em
frente. Eu precisava ouvir de sua boca toda a verdade. Liam não me
faria enlouquecer e não ficaria impune.
— Sabe sim, Liam. — Repliquei, determinado. — Eu não vou
sair daqui até que você me diga, com todas as letras, que você se
lembra.
O moreno ficou ainda mais louco.
— Seu imbecil, eu já disse que não sei de nada! — Disparou
mais uma vez. — Eu não sei! Sai daqui! Cai fora agora! Para de ser
maluco e de querer deixar os outros loucos também. Eu não quero
mais olhar pra sua cara.
Estava mais do que claro, para mim, que Liam sabia, que
Liam lembrava. Uma pessoa que não soubesse que eu estava
falando, não reagiria dessa forma, não ficaria com os nervos à flor
da pele. Ele só estava agindo assim, porque eu estava o
confrontando a dizer, ou melhor, admitir algo que não queria falar
nunca. Eu, no entanto, já estava prestes a explodir de tanta negação
e fingimento. Eu precisava de uma resposta verbalizada, de uma
vez por todas. Então, fiz algo, praticamente fora de mim e do meu
estado de lucidez. Algo que jamais poderia me imaginar fazendo.
— Seu imbecil, vai dizer que você não se lembra disso?! —
de supetão, aproximei-me dele o suficiente, segurei-o pela nuca e o
beijei. Deus, eu realmente estava fazendo isso? Que merda.
Em menos de dois segundos, Liam me empurrou contra a
parede mais próxima da varanda, fazendo com que eu batesse as
minhas costas.
— Tá ficando doido, idiota?! — Liam parecia que ia me
engolir com os olhos.
Caramba... Em poucos instantes, minha consciência bateu.
Que besteira monstruosa foi essa que eu fiz? Eu estava ficando
doido mesmo! Não deveria ter feito isso! Meu Deus, e agora? A
minha namorada devia estar no andar debaixo, enquanto eu tinha
acabado de beijar o seu irmão! Jesus. Eu deveria ter enterrado essa
história!
— Desculpa... — falei em um quase sussurro e baixei o rosto,
sem conseguir encará-lo, experimentando um misto de confusão
comigo mesmo e choque. O sentimento de culpa agora estava me
matando. — Desculpa... — sussurrei outra vez. — Eu... Eu só
queria... — e subitamente parei de falar, porque as palavras me
faltavam. Eu não sabia o que dizer, o que pensar ou como agir.
— Merda! Porra! — ouvi Liam com suas maledicências.
Levantei meu rosto devagar e me deparei com o moreno
caminhando de um lado para o outro da varanda, inquieto. —
Merda! Cacete! — e continuou praguejando aos quatro ventos, até
que, de repente... Deus, o que ele estava fazendo?!
Liam se aproximou rapidamente de mim, com os olhos cheios
em um misto de ira e determinação, e, simplesmente, me beijou.
Deus, ele me beijou? Isso estava mesmo acontecendo?
Respondendo às minhas perguntas internas e silenciosas, bem
como provando que tudo aquilo era real, me encostou ainda mais
contra a parede e me envolveu pela cintura com seus braços.
Senti sua boca puxar meu lábio inferior, em um claro sinal de
que ele queria aprofundar o beijo. Eu sabia disso, porque eu
também queria. Deus, eu também queria, e isso era tão errado, mas
eu só conseguia ter forças para continuar, e não para parar. Eu só
queria sentir mais. Segurei um lado do seu rosto com uma das
mãos, enquanto a outra foi na direção do seu pescoço, levando-o
para mais perto de mim, se é que isso era possível.
Ao contrário do nosso primeiro e último beijo, dessa vez eu,
finalmente, abri caminho e... Oh, merda. Senti sua língua na minha,
em um beijo que, nem de longe, era calmo. Na verdade, era como
se estivéssemos há uns dez anos sem beijar alguém, tamanha a
voracidade do ato. Difícil admitir isso, mas era o beijo mais gostoso
que já senti na vida. Liam moveu as mãos pela minha cintura, de
maneira que, aos poucos, comecei a senti-las passando por debaixo
da barra da minha camisa.
Em menos de meio segundo, essas mesmas mãos já
percorriam meu abdômen, ao passo que minha pele,
inevitavelmente, se arrepiava, e meu membro, entre as minhas
pernas, começava a dar sinal de vida. Era como se eu estivesse
vivendo o sonho, ou o sonho de um sonho. Muito bom para ser
verdade, até que, de repente, Liam parou o beijo. Ah não, filho da
mãe, continua. Sua testa encostou na minha, enquanto seus olhos
permaneciam fechados. Deu um breve suspiro e...
— Seu idiota... Eu lembro e... Merda... Eu me lembro de cada
detalhe daquela noite.
Ah meu Deus. Isso era assustador de verdade, mas essas
palavras só me fizeram ter ainda mais vontade de beijá-lo outra vez.
Eu já sentia que ele lembrava e, agora que eu tinha certeza, eu só
queria... Eu só queria beijar e beijar e beijar, por mais errado que
fosse.
Segurei seu rosto com as duas mãos, fechei os olhos e
comecei a fazer carinho na ponta do seu nariz com a ponta do meu.
Céus, isso era tão gay, mas era tão bom. Aos poucos, fui trocando
as nossas posições, de maneira que, dessa vez, era ele quem
estava com as costas na parede.
— O que você tá fazendo, idiota? — Liam sussurrou.
Eu realmente não sabia como estava me deixando levar pelo
momento, nem como Liam tinha me beijado, e, muito menos, como
eu estava permitindo que tudo isso acontecesse, mas... Devagar,
aproximei meus lábios dos seus, até ambos se tocarem. Dessa vez,
eu queria sentir sua boca de maneira lenta. Eu queria conhecê-la e
saber o que mais de bom ela tinha, além dos lábios extremamente
macios e da língua execravelmente gostosa.
Beijei-o, então, lentamente. Diferente do beijo de poucos
minutos atrás, esse estava bem devagar. Estávamos nos beijando
como dois adolescentes que descobriram o beijo pela primeira vez.
Era como se fosse uma mistura entre a ânsia de beijar e o medo de
não dar certo. Mesmo lento, continuava uma delícia.
Eu tinha noção do quanto isso era errado por vários motivos.
Mas, sentir seus lábios me fez esquecer que eu era hetero, que
tinha uma namorada e que ela era irmã dele. Me fez esquecer de
tudo, de quem eu era, do que eu planejava ser. Eu só conseguia
pensar em algo nesse exato momento: Liam. Ele tomou minha
mente por completo e fez morada lá. Tentando aproveitar ainda
mais, aos poucos desci minhas mãos pelo seu pescoço, seus
braços, até que...
— Liam? Querido? — ouvi a voz da tia Claire, seguida de
batidas na porta.
Instantaneamente, abri os olhos e parei o beijo. Liam fez o
mesmo. Um choque de realidade nos abateu. Ferrou! Era a tia
Claire, a mãe dele! Para completar, ouvi a porta do quarto sendo
aberta. Droga. Isso não podia estar acontecendo. Logo agora!
— Desencosta, lesado! — entredentes, Liam gritou em um
sussurro, me empurrando para longe dele.
Rapidamente, tentei me recompor e fingir uma cara de que
nada estava acontecendo. Respirei fundo e segui em direção à
porta de acesso, que ficava entre a varanda e o quarto. Liam estava
um pouco mais atrás. Quando passei o primeiro pé para dentro do
quarto, logo vi que a tia Claire não estava sozinha.
— Mãe? — falei.
Bem que a tia Claire tinha avisado que ela apareceria mesmo
ali. Ela disse assim que chegamos do colégio. Mas, depois do que
aconteceu, minutos atrás, minha memória parecia ter sofrido algum
tipo de trava ou falha.
— O que vocês estavam fazendo na varanda? — ela
perguntou.
— Acabamos de estudar, tia — Liam logo respondeu, sem
abrir espaço para que eu falasse nada. — A gente estava só
descansando um pouco.
Acabamos?
— Descansando? — surpresa e sorrindo, tia Claire
perguntou. — Ah, meu meninos estão começando a se dar bem!
Você está vendo, Cynthia? — virou-se para a mamãe e continuou.
— Estão até descansando juntos após os estudos.
É, tia, nós estávamos nos dando bem até demais.
— Eu sabia que essas aulas fariam bem aos dois! Não
somente nas notas, mas também na relação de vocês — mamãe
replicou, sorrindo satisfeita. Tanto ela, quanto a tia Claire, sempre
torceram para que eu e o Liam nos tornássemos amigos. O
problema era que essa amizade forçada nunca fez bem para nós. —
Eu e a Claire até decidimos subir para ver se vocês não estavam se
matando... — soltou uma pequena risadinha. — Mas vejo que estão
entrando no caminho certo da boa convivência.
Se matando não, nós estávamos nos beijando mesmo.
Caramba, a gente estava se beijando! Isso era surreal! Ainda
inacreditável.
— Agora que vocês já terminaram de estudar, que tal um
lanchinho? — entusiasmada, tia Claire sugeriu. — Vou pedir para a
Carmem preparar.
No entanto...
— Não, mãe — Liam instantaneamente se pronunciou. — O
Eric me falou que tem muito o que fazer em casa.
Oi? Falei? Mas, eu não tinha falado nada. Nós, nem mesmo,
tínhamos terminado o que estava programado para os estudos
daquele dia. Entretanto, isso só me dava uma certeza: Liam estava
claramente me dizendo para ir embora. E, se ele não me queria ali,
não era ali que eu iria ficar.
— É, tia Claire, eu tenho algumas coisas para fazer em casa
— menti. Apesar de tudo, talvez o mais correto mesmo fosse eu ir
para casa. Muitas coisas já tinham acontecido entre Liam e eu
naquele quarto. Muitas informações para digerir.
— Ah, querido, fique para o lanche... — tia Claire ainda
tentou insistir. — A Molly vai adorar!
Molly... Estremeci apenas com a menção de seu nome. Eu
era muito canalha mesmo e tinha plena consciência disso, mas
também sentia e sabia que a vontade de beijar Liam era mais forte
que eu. Tudo dentro de mim se transformava em um misto de
sentimentos e sensações. Uma verdadeira luta interna entre a razão
e a emoção, o certo e o errado, a culpa e o prazer. No fim das
contas, o remorso crescia dentro de mim, porque Molly, antes de
tudo, era minha amiga. Talvez, de fato, fosse melhor eu ir para casa,
antes que eu fizesse mais besteiras.
— Eu agradeço o convite, tia Claire, é muita gentileza da sua
parte, mas eu preciso mesmo ir para casa — falei. — Vai comigo,
mãe?
— Querido, eu ainda vou ficar mais um tempinho aqui. Pode
ir na minha frente, nos encontramos em casa.
— Tudo bem — respondi, seguindo em direção à
escrivaninha. Recolhi todo o meu material, guardei dentro da
mochila e coloquei-a sobre os meus ombros. A hora de fazer a coisa
certa, ir para casa, tinha chegado. — Bom, vou lá — olhei para
todos, menos para ele. Tia Claire e mamãe logo se prontificaram a
me acompanhar até a porta. — Até mais, Liam — foi tudo o que
consegui fazer, sem ao menos encará-lo.
Liam não me respondeu. Apenas dei as costas e caminhei
em direção às escadas. Mamãe e titia conversavam, entusiasmadas
atrás de mim, sobre um assunto que eu não conseguia prestar
atenção. Minha mente estava em alguém que eu havia deixado lá
em cima e, principalmente, no que eu e esse alguém fizemos.
Quando cheguei ao andar inferior da casa, vi a última pessoa
com quem queria dar de cara depois de tudo o que tinha acontecido
há poucos minutos: Molly. Ela estava próxima à porta de saída,
como se estivesse adivinhando que eu sairia de lá naquele
momento.
— Você já vai? — se aproximou, franzindo o cenho. — A aula
acabou?
— Acabou sim — tentei responder com naturalidade, fingindo
que nada aconteceu.
— Então, fica mais um pouco... — com jeitinho, ela pediu.
Soltei um breve suspiro, também tentando sorrir, para que ela
não desconfiasse de alguma coisa e não me fizesse perguntas. No
entanto, estava difícil fingir qualquer coisa naquele instante. Eu
devia ir logo para casa, antes que tudo se tornasse ainda mais
explícito.
— Princesa, eu adoraria ficar — menti. — Mas, preciso ir
para casa. Eu tenho que viajar no final de semana e preciso ajeitar
algumas coisas. Você sabe como é né? — busquei pela primeira
desculpa que minha mente conseguiu sinalizar.
— Ah, entendo. Tudo bem — deu-me um pequeno sorriso. —
Nos vemos amanhã, então.
— Isso, nos vemos amanhã — esforçando-me para sorrir,
virei-me em direção à porta, para, enfim, ir embora. Já estava mais
do que na hora.
Porém...
— Não está esquecendo-se de nada? — tocou no meu braço,
quando eu já estava quase cruzando a porta.
Sim, claro, o beijo. Eu estava tentando fugir disso, porque
ainda sentia o gosto do beijo do Liam na minha boca, e isso era um
terrível desrespeito com a Molly. Mas, como ela tinha pedido, eu não
poderia fazer outra coisa, a não ser beijá-la. Assim, esforçando-me
para lhe dar, pelo menos, um selinho, me despedi dela, da tia Claire
e da minha mãe. Saí porta afora e caminhei pelo jardim, seguindo
em direção ao meu carro.
Deus, o que foi tudo aquilo? Liam e eu nos beijamos mesmo?
Ele tinha aceitado o meu beijo? Eu aceitei o seu beijo? Onde foram
parar os dois caras que, desde criança, brigavam? Isso tudo era
muito surreal. Ninguém bebeu. Nós estávamos sóbrios e
conscientes do que estava acontecendo. Saí daquela casa com
meus pensamentos girando em minha cabeça.
A cena da varanda nunca mais sairia da minha memória.
Merda. A cena ficaria se repetindo umas vinte mil vezes na minha
mente. O beijo. As mãos dele passando por debaixo da minha
blusa. A varanda do quarto. E, pensando nela, um impulso repentino
me fez virar no meio do jardim e olhar em direção a ela.
Uma surpresa. Uma grande surpresa. Liam estava encostado
na sacada da varanda, olhando-me, como se estivesse esperando
eu passar por ali. Era isso mesmo? Ele estava esperando para me
ver? Seu olhar continuava a me dizer tanto e, ao mesmo tempo,
nada. Observamo-nos por alguns instantes. Senti meu coração
acelerar.
O que ele queria? Só me olhar?
Liam estava sério, eu não vi um traço de sorriso em seu
rosto, mas, de repente, notei quando ele me deu um breve aceno
com a cabeça, como se estivesse se despedindo. Lançou-me um
último olhar e entrou em seu quarto, deixando-me perdido no meio
do jardim. Liam, definitivamente, me deixaria louco. Ele estava me
fazendo perder a cabeça.
A receita perfeita para um Eric louco

Eric

— Bom dia, bom dia, bom dia! — ouvi a voz agitada e


entusiasmada da Stefany. Em seguida, pulou na cama, ao meu lado,
fazendo-me acordar. Ah, que sono! Eu mal tinha dormido! — Nossa,
Eric... — segurou meu queixo, virando meu rosto em sua direção.
Franziu o cenho ao analisar. — Que olheiras são essas?
Merda.
Calado, passei as mãos no rosto.
No mesmo instante, o motivo de eu estar com olheiras tomou
a minha mente: eu quase não consegui dormir à noite, pensando em
tudo o que tinha acontecido. Era inacreditável, inconcebível,
inimaginável e inverossímil saber que Liam e eu nos beijamos. Foi a
coisa mais errada que eu já tinha feito em toda a minha vida. Minha
consciência já estava pesando. A culpa já estava batendo. Talvez
não existissem palavras para definir exatamente como eu estava me
sentindo.
Depois de uma noite praticamente em claro, eu tinha
chegado à conclusão de que a pior coisa que eu fiz foi insistir para
que ele confessasse lembrar do beijo do pub. Era para eu ter
segurado a curiosidade. Era para eu ter segurado a vontade de
beijá-lo. Mas, não, o que eu fiz? Joguei toda a merda no ventilador e
o beijei. E pior: eu queria beijá-lo de novo. Socorro!
— O que aconteceu? — Stefany perguntou novamente.
Dei um breve suspiro e logo decidi internamente que o mais
adequado seria não entrar naquele assunto. Era mais do que lógico
que eu não deveria contar para ela o que aconteceu. Ninguém podia
ficar sabendo. Assim, tratei de mudar o foco da conversa.
— Você passou dias sem vir de manhã no meu quarto, pra
me acordar, já estava achando estranho — dei-lhe um pequeno
sorrisinho. Obviamente, forçado. Meu estado de espírito não
conseguiria produzir um sorriso verdadeiro.
— Eu sei que você sentiu minha falta — sorrindo com falso ar
de convencimento, falou. — Mas, não muda de assunto. O que
aconteceu? Aliás, ontem você chegou muito estranho em casa.
Entrou no quarto e não saiu mais. Aconteceu alguma coisa na tia
Claire?
Droga. A Stefany era impossível, perspicaz, e nunca se dava
por convencida, quando queria saber de alguma coisa. Será que eu
não conseguiria mudar o foco daquela conversa?
— Eu só estava cansado — virei levemente o rosto, tentando
impedir que ela continuasse analisando minhas olheiras. — Mas, e
você? Como tá? — e busquei mudar de assunto, outra vez.
— Cansado? — segurou o meu queixo e levou, novamente,
meu rosto em sua direção. Ah, meu Deus, por que eu tinha uma
irmã tão esperta e atenta? — Quem está cansado, dorme. Olheiras
são sinais de que a pessoa dormiu pouco ou nem mesmo dormiu.
Eu até tinha tentado dormir, mas, a cada vez que eu fechava
os olhos, a imagem do beijo surgia em minha mente. Era tão real
que eu, até mesmo, podia senti-lo me beijando, como se eu
fechasse os olhos e encontrasse o Liam na minha frente,
encostando os seus lábios nos meus.
— Ah, Ste, impressão sua — tentei me virar novamente, mas
ela segurou firme meu rosto.
— Nós somos irmãos, Eric, e você sempre me contou tudo —
observou-me com certa preocupação. — Eu sei quando você não tá
bem ou quando você tá diferente, mas... — parou por alguns
segundos, franzindo o cenho, e, logo depois, voltou a falar. —
Apesar das olheiras... — com o semblante relativamente confuso,
analisou meu novamente meu rosto. — Apesar das olheiras, o seu
olhar está com um brilho diferente. Nunca te vi com esse olhar. É
um brilho de quem, no fundo, apesar de tudo, está se sentindo muito
bem... — continuou me observando confusa. — Não consigo
entender.
Brilho diferente? Que história era essa de “brilho diferente”?
A Stefany só podia estar viajando.
— Viu só? Eu tô bem. Meu olhar não me deixa mentir —
aproveitei o espaço para me sair da situação, mesmo que eu não
acreditasse nesse tal brilho. — Agora eu preciso me arrumar para ir
ao colégio — de supetão, levantei-me da cama. — Relaxa tá?
E, então, deixei-a ali, mesmo que ainda muito curiosa. Não
era o momento de revelar aquilo para alguém, nem mesmo para a
minha irmã. Sendo sincero, talvez não houvesse momento
adequado para compartilhar o que tinha acontecido, nunca.

❖❖❖

Durante o café da manhã, foi complicado me desvencilhar


dos questionamentos da minha mãe, sobre a minha cara de quem
não tinha conseguido dormir. Stefany, pelo menos, não continuou e
não colaborou com as perguntas da mamãe. Graças a Deus, ela
sabia a hora de parar e os momentos em que deveria ou não abrir a
boca. A parte boa do lanche foi que, depois de comer, meu
semblante melhorou bastante, porque eu estava literalmente
destruído depois da noite que tive.
O fato era que eu não tinha dormido direito, que eu estava
morrendo de sono, que logo mais, à noite, seria a festa de
aniversário do meu pai e que, pior, eu não sabia como as coisas
ficariam dali pra frente. O que aconteceria? Como o Liam iria reagir?
Ele falaria comigo? Ele agiria de maneira ríspida comigo? Ele fingiria
que nada aconteceu? Ele olharia na minha cara? Ele conversaria
comigo? Ele diria para eu tentar esquecer tudo? Ele... Ele me
beijaria de novo? Meu Deus! Eu tinha que parar de pensar nessas
coisas sem cabimento!
Tudo não passou de um deslize. Claro. A gente cometeu um
pequeno - grande - deslize no dia anterior. Algo que não mais se
repetiria. Não mesmo. Estava decidido. Aquele beijo não poderia se
repetir. Liam provavelmente nem olharia na minha cara, e eu faria o
mesmo. Era isso.
Estacionei no colégio e saí do carro. Caminhei, indo em
direção ao corredor principal. As pessoas, por ali, já falavam
comigo, enquanto eu as cumprimentava de volta. Tentei ser o
mesmo Eric de sempre. Tentei ser eu. No entanto, minha mente me
trouxe um fato: daqui a pouco teria treino do time. Droga. Eu não
queria cruzar com o Liam naquele dia. Pelo menos, não até a hora
do aniversário do meu pai, porque ele e sua família, com certeza,
iriam. O treino, no entanto, me impedia de fugir dele por mais tempo.
Entrei no corredor principal do colégio e...
— Eric? — de supetão, Molly apareceu na minha frente.
Deus, era a ela. Minha namorada, minha amiga, a irmã do
cara que beijei no dia anterior. O que eu ia fazer? Cara de
paisagem? Nada aconteceu? Sim, nada.
— Oi, princesa! — sorrindo, dei-lhe um abraço apertado.
— Sabe... Depois que você saiu da minha casa ontem, eu
fiquei pensativa — me observou com um leve traço de preocupação.
— Você estava um pouco estranho. Aconteceu alguma coisa?
Que saco. Primeiro a Stefany, depois a minha mãe e agora a
Molly. Ou eu fingia que nada tinha acontecido ou estava ferrado.
Elas iriam me espremer até eu contar a verdade.
— Que é isso, princesa... — passei uma das mãos em seu
rosto, fazendo carinho. Sinceramente, eu deveria ganhar um prêmio
por ser tão ator. — Eu estava normal. De onde você tirou isso? —
franzi o cenho, me fazendo de desentendido, ou mesmo como se
estivesse surpreso.
Que canalha eu era.
No momento em que me calei, olhei de relance para a ponta
oposta do corredor e vi ninguém mais, ninguém menos, que o Liam
entrando ali, acompanhado do Robert e do William. Ao mesmo
tempo, ouvi a voz da Molly de longe, embora ela estivesse bem ao
meu lado. Depois de vê-lo, eu não entendia nem mesmo o que ela
falava.
A partir daí, tudo começou a ficar em câmera lenta. Eu não
queria olhar para a sua cara, mas eu também não conseguia desviar
o meu rosto. O pior era que Liam estava com um semblante muito
mais enjoado do que alguém que tinha comido algo e não gostou.
Apesar disso, ele continuava tão… Bonito.
— Eric? — Molly chacoalhou meu braço, fazendo com que
eu, finalmente, desviasse minha atenção do Liam para ela. — Você
ouviu o que eu estava dizendo? Você parecia estar distante... Tava
olhando pra onde? — e fez menção de se virar, provavelmente para
descobrir o que eu estava vendo. Meu Deus. No mesmo instante, eu
a segurei pelos dois ombros, impedindo-a. Ora essa. Seria muito
estranho se, ao menos, passasse pela sua cabeça que eu estava
olhando - todo bobo - para o seu irmão.
— Ah, princesa! — levemente desconsertado, falei em um
tom de voz um pouco mais alto, tentando chamar sua atenção para
mim e impedindo-a, de uma vez por todas, que ela virasse. Pela
graça de Deus, seus olhos cravaram somente em mim. — Não tava
olhando pra canto nenhum. É que... — tentei achar alguma desculpa
na mente. — Eu tô com sono... Quase não dormi direito à noite.
Acho que eu tava quase dormindo em pé aqui — e dei-lhe um
sorriso meio amarelo.
— Segunda insônia em menos de uma semana? — franziu o
cenho para mim.
Droga. Quando Molly queria, talvez ela conseguisse ser tão
perspicaz quanto a minha irmã. A diferença era que Stefany sabia a
hora de parar. Eu precisava começar a pensar em saídas melhores.
O pior era que, dessa vez, o que eu disse era uma meia verdade.
De fato, eu quase não consegui dormir mesmo.
— Estranho, não é? — franzi o cenho de volta para ela. —
Acho que vou acabar indo ao médico, se eu continuar assim —
Talvez não fosse uma má ideia ir ao psicólogo mesmo, se
continuasse com vontade de beijar o Liam. Jesus. — Mas, o que
você estava me dizendo, heim? — tentei voltar ao assunto anterior,
queeu nem lembrava qual era, porque, na minha cabeça, só tinha
um nome: Liam.
E lembrando dele...
— Ah, eu tava falando que... — Molly retomou o assunto,
mas foi só lembrar do Liam que meus pensamentos se voltaram
para aquele ser desprezível que estava a alguns metros à minha
frente.
A voz da morena se tornou distante novamente, porque eu só
conseguia reparar no rosto e no jeito do Liam. Inclusive, não era
difícil notar que, enquanto Robert e William estavam conversando
normalmente entre si, Liam parecia deslocado, como se estivesse
incomodado ou inquieto com alguma coisa. Seu semblante fechado
era extremamente perceptível. Obviamente, ele já não era uma
pessoa de bem com a vida, mas seu jeito rabugento,
aparentemente, tinha triplicado. Era como se aquele fosse o último
lugar onde ele gostaria de estar.
Por que ele estava assim? Será que tinha algo a ver com o
que aconteceu entre nós?
— Eric! — Molly chacoalhou meu braço mais uma vez.
Droga, de novo eu fiz isso, de novo eu fiquei perdido. Assustado,
instantaneamente olhei para ela. — Você estava olhando feito bobo
pra onde? — rapidamente se virou, olhando bem para o ponto exato
onde meu rosto mirava, e, logo depois, retornou para mim. Molly fez
o mesmo movimento cerca de duas vezes. Não parecia acreditar no
que estava vendo. Droga, merda. Ela tinha percebido. Eu estava
ferrado. Eu estava muito ferrado. — Eric... — enrugou a testa e me
deu um sorriso de quem estava muito confusa. — Você estava
olhando para o meu irmão? Por que você estava olhando feito bobo
para ele? — o sorriso confuso permanecia em seu rosto.
Que droga! Ela não podia ter notado isso! Onde eu estava
com a cabeça? Eu precisava parar com isso já. Talvez o psicólogo
fosse uma boa alternativa mesmo.
— Quê? — lhe devolvi um semblante ainda mais confuso, por
puro fingimento. Claro. Eu jamais poderia admitir qualquer coisa
relacionada ao que estava acontecendo entre Liam e eu. — Por que
eu estaria olhando para o idiota do seu irmão? — soltei uma
pequena risada de desdém. Obviamente, eu não poderia aparentar
que, por dentro, eu estava querendo pular de um penhasco.
— Mas... — Molly tentou se explicar.
— Princesa... — eu, no entanto, a interrompi. Não queria
mais escutar nada daquilo. Já era assustador ter que lidar sozinho
com tudo aquilo e seria ainda pior se alguém, como ela,
descobrisse. — Impressão sua... Olha... — ouvi o sinal do colégio
tocar. — Poxa, já tá na hora — Salvo pelo gongo! Salvo de dar mais
desculpas esfarrapadas. — Eu vou ter que ir para o treino, mas
depois a gente se fala tá? — disse rapidamente, dando-lhe um beijo
em sua testa e, logo em seguida, me afastando.
— Mas... — Molly ainda tentou falar.
— Preciso ir, princesa... — repliquei já caminhando de costas,
enquanto olhava para ela. — Mais tarde, tá? Mais tarde a gente se
fala — e me virei, continuando meu percurso, ligeiro. Eu não poderia
perder a oportunidade de me safar daquele interrogatório, pelo
menos por enquanto.

❖❖❖

Molly achou estranho. Achou tão estranho que não conseguiu


segurar o sorriso confuso. Meu Deus. Ainda bem que o sinal tocou e
eu consegui “fugir”. Porém, se eu não parasse logo com isso, Molly
acabaria desconfiando de algo. Aliás, se ela não já estivesse
desconfiando. O maior problema, entretanto, ainda não era esse.
Era que eu estava quase me dando por convencido de que não iria
conseguir esquecer o Liam facilmente, nem o que aconteceu entre
nós.
Prova disso era que eu estava, naquele exato momento, no
vestiário, a ponto de pular na cara do Liam para ver se ele me
notava. Mas, o imbecil sequer olhou na minha cara. Droga, eu
estava parecendo uma mulherzinha. Pior era que, antes de sair do
carro, eu tinha falado para mim mesmo que não iria mais me
importar com o Liam. Entretanto, parecia que existia um ímã entre
nós, atraindo-me para perto dele.
Pegue a atração que estava sentindo por ele, a minha fraca
força para lutar contra os meus desejos, o semblante fechado/lindo
do Liam, o seu jeito ranzinza que tinha triplicado, junte tudo isso,
adicione o fato dele não ter olhado na minha cara, e misture tudo.
Pronto. Essa era a receita perfeita para se ter um Eric
completamente louco. Que merda. Eu precisava esquecer o Liam.
Eu precisava focar na minha namorada. Eu precisava parar com
tudo isso.
Mas, como parar?
Eu simplesmente não fazia ideia. Já tinha tentando de todas
as formas, mas não conseguia. Liam, por outro lado, pareceu
conseguir esquecer com muita facilidade o que tinha acontecido
entre nós no dia anterior. Afinal, estava me ignorando mais que de
costume. Enquanto isso, eu me sentia cada vez mais na merda,
querendo, por uma razão inexplicável e desconhecida, que ele, pelo
menos, me olhasse. Sim, eu era muito imbecil mesmo. Muito idiota.
Bufei.
Era melhor o treino começar logo. Talvez assim minha
cabeça pudesse se ocupar com outra coisa.
— Bom dia, garotos! — ouvi a voz do treinador vindo da porta
do vestiário. — O treino de hoje vai começar na academia. Podem ir.
Lá eu darei as demais instruções.
Vi quando Liam saiu na frente de todos, aparentemente
estressado e carrancudo com alguma coisa. Sabe-se lá o que
aquele garoto tinha naquele dia, para seu humor estar pior do que
normalmente era. Ele nem mesmo esperou por seus fiéis
escudeiros, Robert e William. Definitivamente, Liam não queria estar
ali naquele dia. Era como se uma bomba estivesse prestes a
explodir dentro dele a qualquer momento.
Caminhei lado a lado com Adam, Max e Jordan. Eles
conversavam de maneira entusiasmada sobre algo que eu não
conseguia prestar atenção. Minha cabeça, infelizmente, ainda
estava concentrada em um certo carinha de nariz empinado que
caminhava alguns passos à frente de todo o restante do time.
Aparentemente, o capitão não queria se misturar naquele dia.
Dentro de poucos minutos, chegamos à academia do
colégio.
— Caros... — o técnico se pronunciou. — Nosso treino de
hoje será uma parte aqui na academia e outra parte no campo.
Faremos alguns exercícios e depois iremos para campo. Mas, antes
de começarem, quero lembrá-los de que esse jogo do final de
semana será o nosso primeiro pelo campeonato. Portanto,
precisaremos dar o nosso melhor, principalmente os concludentes
que esperam por bolsas de estudos nas universidades. Outro ponto
importante é que o nosso adversário de sábado é forte. Apesar do
nosso principal rival não estar competindo esse ano, que é o
Colégio Liverpool, vocês sabem que o Colégio Manchester é o
nosso segundo adversário mais forte. Somado a isso tem o fato de
que o Eric está suspenso neste primeiro jogo. Portanto, teremos um
titular no banco reserva. Estou dando todas essas informações
porque quero que vocês deem o melhor no treino de hoje. Quero
foco. Quero dedicação. Nós precisamos começar o campeonato
vencendo, apesar de todas as dificuldades. Estamos entendidos?
— Sim, Sr. Jones — o time respondeu em uníssono.
— Ótimo — ele replicou. — Os exercícios de cada um de
vocês estão apregoados na parede. Podem começar.
Assim, segui, juntamente com o restante do time, até o local
onde estavam afixados. Pelo que li, eu deveria fazer quinze minutos
de esteira. Portanto, caminhei até o local e me posicionei em uma
delas. Notei que os outros caras já tinham começado os exercícios,
assim como o técnico caminhava entre nós para avaliar o treino de
cada um.
Subi na esteira e passei alguns instantes correndo, até
visualizar Liam, alguns metros à minha frente, pedalando em uma
das bicicletas ergométricas. Cara fechada, corpo rígido, nenhum
olhar trocado comigo. Tão bonito, mas tão idiota ao mesmo tempo.
Para completar, ele estava praticamente se acabando na bicicleta.
Nunca o vi treinando dessa maneira. Estava pegando pesado,
pedalando muito rápido, como se quisesse descontar o estresse no
exercício.
— Eric — ouvi o técnico falar ao meu lado, fazendo com que
eu desviasse minha atenção do Liam para ele. — Se concentre no
seu treino — e olhou para mim e para o Liam duas vezes, passando
o recado somente com o semblante.
— Tudo bem, Sr. Jones — respondi e continuei correndo na
esteira.
— Liam está pegando muito pesado — escutei o Sr. Jones
resmungar, poucos instantes depois de sair de perto de mim e
caminhar o moreno.
Ainda vi o exato momento em que o técnico parou ao lado do
Liam, provavelmente pedindo para ele diminuir o ritmo ou, então,
morreria. Entretanto, assim como o Sr. Jones havia me advertido,
desviei minha atenção de volta para o meu próprio treino e continuei
correndo. Eu precisava me concentrar em mim. Liam que se
acabasse no seu treino medíocre.
Eu tinha certeza de que ele estava descontando seu estresse
no exercício, assim como também tinha certeza de que, mesmo com
a orientação do treinador, ele continuava pedalando de maneira
incorreta.
Quer ver como eu estava certo?
Olhei de relance e... Eu realmente estava certo! Liam era
muito cabeça dura. Ele continuava se matando em cima daquela
bicicleta. Que cara mais idiota. Será que ele não percebia que
acabaria tendo uma contusão se continuasse pedalando assim?
Todavia, voltei rapidamente a atenção para o meu exercício, senão
eu ganharia um novo puxão de orelha do treinador.
Exatamente no milésimo de segundo em que eu decidi parar
de observar aquilo, ouvi um grito forte vindo diretamente do local
onde Liam estava. Rapidamente, olhei na direção do barulho e vi o
moreno em uma situação nada boa. Ele se ferrou. Se não fosse um
moleque tão cabeça dura, teria ouvido o técnico.
Liam estava com a cabeça encostada no guidão da bicicleta
ergométrica, seus olhos fechados e espremidos, como se estivesse
sentindo dor, muita dor. Suas mãos seguravam e pressionavam a
coxa esquerda. Caramba, conforme previsto, ele tinha mesmo
lesionado a coxa, depois de todo aquele movimento visivelmente
errado.
Ligeiro, saí da esteira e fui até ele, ao mesmo tempo em que
os outros caras do time, curiosos, também paravam seus exercícios,
para ver o que estava acontecendo. Tentei passar na frente de todos
que já estavam mais próximos ao Liam e falei com ele.
— Cara, o que foi isso? — enquanto os outros caras
questionavam, eu também perguntei. Liam, no entanto, permaneceu
na mesma posição: cabeça encostada no guidão da bicicleta, olhos
fechados, semblante de dor e mãos na perna. Talvez aquilo tivesse
sido tão forte que ele não conseguia ter outra reação a não ser
essa. — Você lesionou a coxa, né?
— A porra... — Liam resmungou com os dentes cerrados e os
olhos ainda fechados. — A merda dessa coxa!
— Calma, cara. A gente vai te ajudar — respondi ao mesmo
tempo em que vi o Sr. Jones se aproximar.
— Liam, por que diabos você não me escuta? — raivoso, o
treinador perguntou. — Eu avisei que isso poderia acontecer, se
você continuasse naquele ritmo — balançou a cabeça em extrema
reprovação. — Agora, vocês saiam de perto... — e olhou para nós
que estávamos em volta. — Meus auxiliares vão levar o Liam para a
enfermaria.
— Eu posso ajudar, Sr. Jones — falei, sentindo uma estranha
preocupação.
Eu estava preocupado com o Liam? Aquilo era só uma
contusão, nada demais. E ainda tinha sido por culpa dele! Por que
eu estava me sentido assim?
— Você vai voltar para o treino, Eric — Foi tudo o que ele me
respondeu.
Em poucos instantes, os auxiliares do técnico surgiram e
tiraram Liam da academia. Com dificuldade, ele saiu. Se Liam não
fosse tão impulsivo e cabeça dura, isso não teria acontecido. Desde
cedo, eu percebi que ele não estava normal. A concretização dos
meus pensamentos aconteceu no treino. Ele, claramente, estava
tentando extravasar o estresse no exercício. Mas, por que esse
estresse? Eu não sabia. A única coisa que eu sabia era que eu
estava estranhamente preocupado com ele. Para completar, com
certeza ele não poderia mais jogar no fim de semana.

❖❖❖

Participei de todo o treino, mas minha cabeça, para variar,


estava no Liam e em como ele poderia estar se sentindo. O
treinador chamou minha atenção várias vezes, para que eu me
concentrasse mais nas atividades. No entanto, era impossível deixar
de pensar naquele idiota.
Como ele estava? Será que foi medicado? Ele ainda estava
na enfermaria?
Eu precisava saber.
Ouvi o som do apito do técnico ecoar pelo campo de futebol.
— Treino encerrado — em voz alta, Sr. Jones falou. — Hora
do banho.
Finalmente. Agora eu poderia escapar até a enfermaria.
— Ah, hora do banho! — ouvi Adam falar ao meu lado, com
satisfação. Apenas aproveitei aquela pequena liberdade e já fui logo
tratando de me distanciar, aos poucos, do grupo. Adam, no entanto,
percebeu. — Ei aonde você vai? — perguntou. — Não vai tomar
banho?
Por mais que o Liam fosse um imbecil, eu sentia a
necessidade de ir até a enfermaria. Precisava saber como ele
estava. Era um estranho misto de curiosidade com preocupação.
Porém, eu preferia não entrar em uma luta interna, novamente,
comigo mesmo, e apenas agir conforme as minhas vontades.
— É... Eu tô indo no estacionamento... — disse a primeira
desculpa que passou pela minha cabeça. — Esqueci algo
importante no carro. — Já caminhando de costas, enquanto olhava
para ele, finalizei. Logo depois, me virei e continuei meu percurso.
O treino já tinha acabado, então o Sr. Jones não poderia me
impedir de ir aonde eu quisesse. Saí rapidamente do campo e
caminhei pelos corredores do colégio, indo em busca da sala da
enfermaria. Não demorou muito para que eu, enfim, chegasse lá.
Abri a porta e falei com a recepcionista.
— Olá, bom dia. Eu sou do time de futebol do colégio e vim
ver um amigo. — Super amigo. — O nome dele é Liam. Ele está
aqui?
— Está sim — ela respondeu. — Como é o seu nome?
— Eric.
— Olha, Eric, as normas do colégio não permitem que os
alunos transitem por aqui em horário de aula.
Ah, cara, que droga. Eu tinha esperado o treino inteiro por
esse momento e agora não daria certo?
— Mas eu não estou em horário de aula... — rapidamente,
uma solução saiu pela minha boca. A recepcionista, por sua vez,
franziu o cenho para mim. Claro que ela acharia estranho. Se eu era
aluno, eu tinha que estar em horário de aula. — Quer dizer, estamos
em horário de aula, mas eu sou do time do colégio... Olha, você
pode ver pelo uniforme... — apontei para a minha camisa. — Eu
estava no treino e acabou agora. Ou seja, tecnicamente eu estou
livre.
A moça, então, avaliou meu rosto, como se tentasse
descobrir alguma possível mentira.
— Você está com algum papel onde o técnico autoriza sua
entrada aqui para falar com o aluno?
Merda.
Precisava disso?
— Olha... — soltei um breve suspiro, tentando pensar nas
palavras certas para convencê-la. Eu precisava ser ator, pela
milésima vez nos últimos dias. — Infelizmente não. Mas, Liam e eu
somos parceiros de time. Ele é muito, muito meu amigo. Somos
praticamente melhores amigos. — Nossa, demais! Somos tão
amigos que, por um triz, ele poderia me matar. — Eu estou bem
preocupado com ele. Então, será que a senhorita não poderia me
dar essa forcinha? Eu prometo que vai ser bem rapidinho... — Sabe
a carinha do gatinho do Shrek? Pois bem. Foi a mesma cara que eu
fiz.
Novamente, a moça avaliou meu rosto por alguns instantes,
até que, enfim, deu um breve suspiro de resignação e...
— Tudo bem... — meio que a contragosto, ela respondeu. —
Mas, tem que ser bem rápido mesmo. Meu chefe pode aparecer a
qualquer momento, e isso vai sobrar pra mim. A conversa tem que
ser ligeira, está bem?
Como se o Liam quisesse algum tipo de conversa comigo...
Eu era apenas um trouxa.
— Ah, tudo bem! Será rápido! Muito rápido! — garanti e
acenei um sim com a cabeça, tentando passar certa confiança a ela.
— Ok, então me acompanhe — falou.
Ela parou em frente a uma porta e abriu-a o suficiente para
que eu entrasse. Logo depois, fechou-a atrás de mim. Em poucos
segundos, estávamos sozinhos, na companhia de um silêncio
desconcertante. Olhei para o Liam, que me encarou de volta. Pela
primeira vez no dia, ele olhou em meus olhos. No entanto, isso
durou meros instantes. Logo ele volveu seu rosto para frente e
endureceu o semblante.
Me aproximei lentamente, porque, enfim, era a primeira vez
que estávamos a sós depois do que tinha acontecido e eu não sabia
como ele iria reagir. Na verdade, eu nem sabia, sinceramente, o que
tinha me levado até ali. Talvez a preocupação. Talvez eu só
quisesse um momento a sós com ele, mesmo que isso não fosse
certo. Talvez eu só fosse um trouxa mesmo. Como eu já disse,
parecia que um ímã estranho e complexo me atraía para o Liam.
— O que você tá fazendo aqui? — Resmungou sem me
olhar. Estava deitado em uma maca, com a perna esquerda
suspensa e uma compressa em cima do joelho. Seu olhar mirava o
teto e seu semblante continuava muito fechado.
— Eu só queria saber como tá a sua coxa e... Como você
tá... — meio receoso, respondi. Afinal, era possível sentir o estresse
Liam a quilômetros e quilômetros de distância.
— A coxa tá fodida e eu tô puto. Respondi? Agora vaza —
replicou seca e rapidamente, olhando ainda para o teto.
Engoli a seco. Será que o beijo tinha transformado o Liam em
alguém pior? Tipo, em vez de ter se transformado em príncipe,
tornou-se um sapo mais sapo? Quando eu era criança, diziam que
beijos transformavam sapos em príncipes, não o contrário. Apesar
de tudo, aproximei-me ainda mais, e parei exatamente ao seu lado.
Eu era um trouxa mesmo.
Alguém, por favor, poderia me dar um selo de completo
idiota?
— O que o médico do colégio falou? — perguntei.
Liam, no entanto, suspirou, como se estivesse inquieto.
— Por que você não sai daqui? — secamente, respondeu.
Aquele beijo que ele tinha me dado foi um sonho?
O Liam daquele momento em nada se parecia com o Liam
que tinha me beijado.
— Quando você me responder eu saio — repliquei, fazendo
com que ele automaticamente revirasse os olhos em pura
chateação. Sim, ele podia ser insuportável, mas eu também
conseguia ser, se eu quisesse.
— O médico falou que eu sofri uma distensão no músculo da
coxa. Não é grave, mas eu vou ter que passar cinco dias sem fazer
exercícios. Não vou poder jogar no fim de semana. E é isso —
parou por alguns segundos, e, logo depois, começou a praguejar. —
Droga... Merda... — Seu semblante se tornou ainda mais raivoso.
Meu Deus, eu não conseguia imaginar o time sem o Liam.
— Cara, não fica assim. Logo logo você volta... — comedido,
tomei uma pequena liberdade de passar levemente a mão em seu
braço, tentando confortá-lo.
Entretanto, no mesmo instante, o moreno desviou seu olhar,
que mirava o teto, para a minha mão. Notei sua testa enrugada
curiosamente suavizando. Isso, todavia, não durou muito tempo.
Logo afastou seu braço, fazendo com que minha mão saísse de
cima.
— Eu sou muito fodido mesmo... Não existe pessoa mais
azarada que eu. — Diferente de poucos minutos atrás, quando seu
tom de voz era de raiva, agora era de tristeza. — Eu queria tanto
jogar nessa primeira disputa pelo campeonato — e, a cada
segundo, ele se tornava mais triste, o que era um tanto
surpreendente para mim.
Liam sempre fazia de tudo para não deixar escapar sua pose
de durão. Poucas vezes na vida eu o vi assim, tão abatido. Tudo
bem que aquele incidente não foi por falta de aviso. O próprio
treinador foi até ele para adverti-lo de que deveria pegar mais leve
no exercício. Porém, eu não ficaria esfregando essa realidade em
sua cara. Isso seria muito errado da minha parte e só deixaria as
coisas piores.
Assim, me agachei ao seu lado, posicionando meu rosto na
mesma altura que o dele estava. Automaticamente, Liam me deu
um olhar um tanto confuso e surpreso, provavelmente devido a
minha proximidade. Ele não estava esperando por isso.
— Vai ficar tudo bem, Liam — falei baixinho, quase em um
sussurro, para somente nós dois. — Essa distensão não é nada na
sua frente. Você é mais forte que ela, sabia? — e as palavras
saíram da minha boca, sem freio e sem aviso prévio. Não programei
isso. Apenas transbordou o que estava cheio em meu coração. —
Em poucos dias, você vai voltar a jogar e essa perna ainda vai fazer
muitos gols no ataque.
Quando me calei, notei o olhar de Liam meio perdido em
minha direção. Eu não soube o porquê, talvez eu estivesse
querendo ajudá-lo a tomar rédeas do seu olhar ou talvez eu
somente quisesse algum contato, mas, inevitavelmente, segurei o
seu queixo. Consegui captar, entretanto, o exato momento em que
seu semblante mudou ao sentir o meu toque. Foi como se um
choque de realidade tivesse o atingido de uma só vez. Mas, essa
não era a minha intenção. Ele piscou os olhos repetidas vezes,
como se estivesse acordando de um sonho.
Se há poucos segundos seu olhar me observava com
vulnerabilidade, o meu toque em seu rosto fez com que toda a
suavidade desaparecesse e desse lugar a sua típica pose arrogante
e insuportável. Droga. Se eu soubesse que aconteceria isso, tinha
feito o esforço de me segurar para não o tocar.
— Acho melhor você ir — disse, enquanto se afastava de
mim, mesmo que ainda estivesse deitado na maca.
— Mas... — Ainda tentei falar alguma coisa para mudar a
situação, ou mesmo para entender o acontecido.
— Vai logo — ele, no entanto, me interrompeu. — Sai daqui.
Era duro admitir isso, mas eu queria ficar mais tempo ali,
perto dele, mesmo que eu não soubesse o motivo e que isso fosse
assustador e embaraçoso para mim. O problema era que o Liam
não estava colaborando, e eu o conhecia o bastante para saber que
o melhor que eu poderia fazer era não insistir.
— Ok — com uma leve decepção, respondi, e eu nem sabia
porquê estava me sentindo assim. Afinal, ser enxotado pelo Liam
era uma situação que eu tinha o costume de vivenciar desde a
infância. — Então, eu já vou... — dei-lhe um último olhar,
percebendo que, ao mesmo tempo em que sua boca me dizia para
ir embora, não era o mesmo que seu rosto me falava. — Fica bem,
Liam. Até mais.
Ele permaneceu calado, até que, quando me virei para sair
dali, senti meu braço sendo segurado.
— Espera, Eric. Fica — me volvi para ele, incrédulo com
essas palavras. Encarei o meu braço, sentindo sua mão escorregar
até a minha. Passou levemente o seu polegar nela. Isso era algum
tipo de carinho? Liam estava me deixando cada vez mais confuso.
— Sobre ontem eu queria...
Decifra-me ou te devoro

Eric

Meu Deus, ele iria mesmo tocar no assunto do dia anterior?


— Ontem? — Sem que eu percebesse, a palavra
simplesmente saiu da minha boca, interrompendo-o, de tão surpreso
que eu estava com essa iniciativa. Jamais poderia esperar que algo
assim partisse do próprio Liam.
Ele, então, soltou minha mão.
— É. Ontem. Eu queria te pedir pra... — pigarreou a
garganta, logo retomando a sua postura de durão. Esse garoto anda
me deixaria louco de verdade. — Na verdade, pedir não, mandar. Eu
quero que você... — Todavia, no instante em que ia finalizar a frase,
ouvimos a porta da sala abrir.
— Tempo esgotado — a moça da recepção falou.
Quê? Logo agora!
Virei-me rapidamente em sua direção, sentindo a curiosidade
despontar em mim.
— Mais cinco minutinhos? — pedi, quase choramingando.
— Agora — incisiva, ela replicou.
— Dois minutos — ouvi Liam sugerir.
Entretanto, a moça estava irredutível. Logo acenou um não
com a cabeça. Aparentemente, algumas pessoas tinham feito o
curso com o Professor Liam de como ser insuportável. Revirei os
olhos.
— Agora — disse mais uma vez. — Meu chefe pode chegar a
qualquer momento e vocês sabem das normas do colégio. Nem um
minuto a mais.
Merda. Eu não tinha escolha. Era preciso ir embora mesmo.
— Depois a gente se fala — resignado, virei-me para Liam e
me despedi.
Ele, por sua vez, não me respondeu, apenas se acomodou
na maca novamente e voltou seu olhar para o teto, ficando do
mesmo jeito que estava quando eu entrei ali.
Caminhei para fora da sala e me perguntei: que diabos Liam
queria me falar sobre ontem? Eu não conseguia entendê-lo. Ele
parecia vulnerável, ao mesmo tempo em que queria passar uma
imagem de durão. Ele aparentava estar seriamente abalado com o
que havia acontecido entre nós, ao mesmo tempo em que também
me dava a impressão de não se importar.
Liam era confuso e contraditório não somente com suas
palavras, mas também com suas atitudes. Eu não conseguia
decifrar sua mente. Se estivéssemos na Grécia Antiga, Liam
certamente seria a Esfinge de Tebas, com sua famosa frase
“decifra-me ou te devoro”. Eu queria decifrá-lo, mas, bem, se ele
quisesse me devorar, também não era de todo mal.
Caramba... Eu tinha pensado nisso mesmo?
Sim, eu pensei, e, definitivamente, estava desistindo de lutar
comigo mesmo.
Já podiam me dar meu atestado de loucura.

❖❖❖

O dia milagrosamente passou rápido, mesmo com a minha


cabeça ainda girando em pensamentos confusos. A noite já tinha
caído e, naquele momento, da varanda do meu quarto, eu
observava o jardim, enquanto terminava de vestir meu blazer. Não
que eu gostasse de usar roupas formais, mas, como a ocasião
pedia trajes assim, eu tive que vestir. De toda forma, escolhi o blazer
mais casual e menos formal possível.
Observei toda a estrutura montada no jardim, para o
aniversário do meu pai. O local era imenso, então todo o evento
seria realizado ali mesmo, sem que fosse preciso usar a parte
interna da casa. Mesas, cadeiras, palco para música ao vivo,
tablado para dança. Enfim, tudo já pronto para uma festa
desnecessária como aquela. Meus pais consideravam qualquer
mínima festividade como um grande evento. Sempre foi assim.
Aparentemente, os convidados já estavam começando a
chegar, pois meus pais já estavam lá embaixo, fazendo a recepção,
como bons anfitriões que eram. Talvez eu fosse o único que ainda
não tinha descido. Entretanto, dentre todas as pessoas que eu já
estava vendo, faltava os Tremblay. Será que eles realmente iriam?
Bom, eles nunca faltaram a nenhuma festividade da minha família,
assim como a minha também nunca faltou às comemorações deles.
Era como uma tradição.
Porém, as circunstâncias daquele dia não eram comuns.
Liam não estava bem, tinha sofrido uma lesão. Será que ele iria
mesmo assim? Será que ele estava melhor? Caramba, eu queria
notícias.
— Eric? — ouvi a voz da minha irmã, Stefany, tirando-me dos
meus pensamentos, ao mesmo tempo em que a porta do meu
quarto se abria. — Está pronto?
Saí da varanda e fui até ela. Pensei, no entanto, que Stefany
já tinha descido. Ledo engano. Stefany não era Stefany, se não
demorasse a se arrumar. Sempre passava mais minutos do que o
necessário em frente ao espelho.
— Tô sim, Ste — respondi, observando-a com grata
admiração. Ela estava maravilhosa, como sempre. O vestido que
usava a deixava com ainda mais cara de princesa. — Uau! Que
linda! — sorri.
A loira soltou uma pequena risadinha.
— Que feio! — com ironia, ela respondeu, mas, rindo, logo
refez a frase. — Brincando. Você está lindo, como sempre, maninho.
Vamos descer? E enfrentar mais um aniversário do papai com
aqueles coroas e músicas clássicas ao vivo? — completou.
— É. Não temos escolha — meio desanimado, repliquei. —
Todo ano é a mesma coisa.
Ela suspirou.
— Você sabe que eu adoro festas, né? — falou. — Eu até
fico animada nos dias que antecedem essas comemorações, mas,
quando chega o dia e eu vejo que vai ser a mesma coisa dos outros
anos, bate mesmo um desânimo.
— E o que a gente pode fazer? É o jeito participar —
resignado, dei de ombros.
— Quer saber, Eric? Hoje eu coloco nem que seja umas
músicas agitadas para tocar ou não me chamo Stefany! — sorrindo
determinada, ela falou. E, pelo nível de empolgação com essa ideia,
eu não duvidava nada que ela conseguisse esse feito.
— Está apoiada! — sorri de volta. — Agora, vamos?
— Sim, vamos! — e passou o braço pelo meu.
Assim, descemos de braços dados as escadas que davam
acesso ao piso inferior. Quando chegamos ao local, logo constatei
que eu não estava errado: a parte interna da casa estava vazia,
enquanto os convidados se acomodavam na parte de fora. Os
funcionários e garçons, provavelmente, estavam usando o deck de
festa, pois nem eles eu via transitando pela cozinha ou pela sala.
Ao cruzarmos a porta que dava acesso à festa, logo
avistamos nosso pai e nossa mãe, um pouco mais à frente,
próximos à entrada que seguia para a rua, recebendo e
conversando com alguns parentes e amigos. A cada minuto, o local
ficava ainda mais cheio. Entretanto, em nenhuma parte eu via a
família Tremblay.
— Para onde nós vamos, Eric? — em tom de voz baixo,
Stefany perguntou. — Para perto do papai e da mamãe?
Antes que eu pudesse falar algo, a resposta surgiu.
— Queridos! — mamãe acenou para nós. — Venham até
aqui!
— Acho que você já tem a resposta, Ste — sussurrei.
Caminhamos, então, até o local onde eles estavam. Vi
George conversando com alguns amigos, mas logo virou-se para
nós, ao nos aproximarmos, assim como mamãe também o fez.
— Como vocês estão lindos! — com admiração, mamãe
exclamou.
— Ao menos por uma hora, você estará livre daqueles
coturnos, jeans e jaquetas, não é, Eric? — George se pronunciou.
— Deveria se vestir assim mais vezes, filho. Fica melhor. Fica mais
alinhado — Ah, ele tinha que começar a noite falando alguma
besteira. — Aliás, aproveitando que você acabou de chegar, venha
aqui comigo. Quero que você conheça alguns amigos engenheiros
que, em breve, vão se juntar à nossa construtora.
Não, não, não. A festa mal tinha começado e ele já queria
falar de negócios?
— Depois eu vou — repliquei. — Prefiro ficar mais um pouco
aqui com a mamãe e a Stefany, recebendo os convidados — Na
verdade, eu não preferia nada. Quer dizer, preferia estar no meu
quarto, deitado na minha cama. Mas, entre receber os convidados e
falar sobre qualquer besteira relacionada à construtora, eu preferia
receber a galera.
— Depois você recebe os convidados. Venha — George
acenou com a cabeça, indicando que eu o acompanhasse. —
Estava só esperando você chegar aqui.
Merda. Eu não queria falar de negócios! Era difícil entender?
Já não bastava ter que aguentar isso desde os meus onze anos de
idade, agora eu tinha que aturar esses assuntos em um local que
era para estarmos comemorando um aniversário.
— Vai na minha frente. Depois eu... — tentei completar a
frase, mas...
— Eric... — com seu tom de voz mais incisivo, ele me
interrompeu.
Olhei para Stefany e mamãe que me voltaram um semblante
do tipo “é melhor você ir”. Droga.
— Tá — a contragosto, respondi.
George caminhou alguns passos à minha frente, enquanto eu
o acompanhava. Não demorou muito até chegarmos a uma mesa
com vários caras. Alguns mais velhos, outros mais novos. Alguns
com aparência de ter a idade do meu pai, outros com aparência de
serem só um pouco mais velhos que eu. Engenheiros.
— Caros, esse é meu filho — tocou rapidamente em meu
ombro. — O futuro dono da Construtora Hastings, como havia lhes
falado — Futuro dono? Era perceptível o orgulho dele em seu tom
de voz. No entanto, eu preferia ser dono de um trailer de cachorro
quente a ser dono da construtora. — Eric, esses são alguns
engenheiros que, em breve, vão se juntar a nós, porque estamos
com muitas demandas de projetos. Está faltando apenas um. Ele
mora com a família em Liverpool, mas, em breve, irá se mudar para
Londres e irá trabalhar conosco.
De automático, todos os caras da mesa se levantaram para
falar comigo e me cumprimentar, como se eu fosse alguém muito
importante, talvez o herdeiro do Bill Gates. Respondi a eles com
educação, afinal eu era assim com todo mundo, embora minha
vontade, naquele instante, fosse voltar para o meu quarto e
permanecer lá até o horário daquele aniversário acabar.
Conversa vai, conversa vem. Tudo sobre negócios, projetos,
construtoras. Assuntos que eu, sinceramente, não tinha o menor
interesse e nunca tive. Mas, meu pai me forçava a gostar e a falar.
Será que ele jamais entenderia que não era essa a vida que eu
queria pra mim?
— Então, Eric, seu pai nos falou que você está terminando os
estudos no colégio agora — um dos senhores se pronunciou. — Vai
mesmo cursar Engenharia Civil na universidade?
— Claro — Antes mesmo que eu pudesse falar qualquer
coisa, George logo respondeu. Ele nem mesmo me dava a liberdade
para dizer o que eu quisesse. — Eric deve seguir o legado da
família — completou.
— Na verdade, eu pretendo fazer Engenharia Mecatrônica.
Gosto de robótica, máquinas, automação, esse tipo de coisa —
comentei.
— Ah, que é isso... — George soltou uma pequena risada de
desdém. — Isso é coisa da cabeça dele. Jovens... Inventam cada
coisa... — riu novamente. — Claro que ele vai fazer Engenharia
Civil. Precisa cuidar dos negócios quando eu não estiver mais aqui.
Que saco. Sempre era a mesma ladainha, quando eu dizia
que não queria cursar Engenharia Civil. Ele sempre falava que isso
era apenas coisa da minha cabeça, que eu estava indeciso e que o
melhor que eu podia fazer seria seguir os seus passos, para cuidar
dos negócios da família. Uma verdadeira merda.
Dei um breve suspiro, tentando conter minha vontade de
bater boca com George na frente de todos. Ok, Eric, mantenha a
calma. O mais adequado, para aquele momento, era eu tentar me
abster desse assunto sobre o meu futuro. Senão, eu poderia causar
uma cena ali. Assim, olhei para todos os lados da festa, tentando
esfriar a cabeça e fingindo, para mim mesmo, que eu não estava
conversando com aqueles coroas.
Enquanto meu pai continuava cuspindo o seu besteirol aos
outros sobre o meu futuro, mirei de relance na entrada do jardim. Foi
no mesmo instante em que eu vi. Deus, a família do Liam estava
chegando. Tia Claire, tio Liam, Molly, que, por sinal, estava muito
linda, e Liam, que arrancava toda a minha atenção, apesar da
beleza de sua irmã. Mesmo que estivesse caminhando com certa
dificuldade, Jesus, estava tão bonito.
Automaticamente, a lembrança de mais cedo surgiu em
minha mente. Liam queria me falar algo sobre o dia anterior, mas
fomos interrompidos. A curiosidade estava me matando. O que ele
queria me falar? Essa pergunta martelava minha cabeça o tempo
todo. Tudo o que eu queria era apenas um momento a sós com ele.
Eu precisava de um esclarecimento, por mais que eu soubesse que
fosse perigoso ficar sozinho com Liam em algum lugar. Eu poderia
cair em tentação a qualquer momento.
Para ser sincero, eu queria poder ir até eles, mas estava ali,
praticamente encarcerado, em uma mesa cheia de engenheiros.
Mamãe e Stefany foram recebê-los. Vi minha irmã abraçar o
moreno. Eu também queria poder fazer isso. Merda, eu estava
ficando doido. Me sentia tão confuso, ao mesmo tempo em que
meus desejos mais obscuros pareciam estar se tornando cada vez
maiores que a razão.
Observei o momento em que eles se acomodaram em uma
das mesas. Mamãe e Stefany se sentaram com eles. Era incrível
como a minha família sempre esteve muito ligada aos Tremblay.
Não poderia ser diferente, já que nossas mães eram melhores
amigas e os do Liam eram meus padrinhos. Era nítido e notório que
eles recebiam uma atenção diferenciada em relação aos demais
convidados.
Mamãe parecia muito entusiasmada ao conversar com eles,
do mesmo modo que os Tremblay também estavam bastante
animados. Vi, entretanto, o momento em que ela saiu da mesa e
caminhou na direção que eu e George estávamos. Será que ela iria
nos chamar para falar com eles? Instantaneamente, voltei minha
atenção para o assunto.
— Ouvi falar que uma empreiteira do sul da Inglaterra está
com planos de parceria com a Construtora Hastings — um dos
senhores comentou. Pelo menos, tinham parado de falar sobre a
minha vida e o meu futuro. — Isso é verdade?
— Sim, de fato — George respondeu. — Eles entraram em
contato recentemente, mas ainda estamos avaliando essa parceria.
Nenhum acordo foi firmado.
— Querido, com licença — Ao chegar à mesa, mamãe falou.
— A Claire e o Liam acabaram de chegar. Você não gostaria de vir
falar com eles um pouco?
— Tudo bem — ele respondeu. — Se me derem licença — e
fez um gesto de quem ia se afastar.
— Venha também, querido — mamãe me chamou.
Acompanhei meus pais até a mesa onde estavam.
Provavelmente, minha cabeça estava mesmo virada, porque, a cada
passo que eu dava, meu coração acelerava. Tinha tanto para falar
com Liam. Tinha tanto para ouvir dele. Queria saber como estava e
o que iria falar para mim naquela manhã. O pior era que,
conhecendo o Liam como eu conhecia, eu sabia que ele não falaria
comigo direito.
Todos se levantaram para nos cumprimentar, mas, ao chegar
à mesa, a primeira coisa que ouvi foi...
— Meu amor — Molly se jogou em meus braços.
— Opa, princesa — ligeiramente surpreso com aquela atitude
meio repentina, respondi. Eu estava tão imerso em pensamentos
que não esperava por isso. Entretanto, logo tentei corresponder,
abraçando-a e dando-lhe um beijo na testa. — Como você está?
— Melhor agora, e você?
— Também — sorri.
Desviei meu olhar dela, para poder falar com os outros, mas
a primeira pessoa que vi foi Liam nos observando. Senti que ele
quis disfarçar, mas não conseguiu. Estava olhando para Molly e eu,
enquanto nos abraçávamos. Semblante fechado, como sempre. Só
Deus sabia o que passava por sua cabeça.
Meu pai e minha mãe falaram com todos, assim como eu
também cumprimentei a tia Claire e o tio Liam. Por fim...
— Oi, Liam — ergui minha mão em sua direção.
Liam a encarou. O típico semblante sério permanecia em seu
rosto. Eu tinha consciência de que apertar as mãos não era uma
prática comum entre nós, nem mesmo antes dos jogos, quando os
juízes nos pediam. Mas, bem, estávamos na frente das nossas
famílias. Talvez ele o fizesse, pelo menos, para passar uma falsa
imagem de educação. Não para mim, mas para os outros.
Minha mão ainda passou alguns instantes estendida, até que
Liam finalmente a apertou. Não me deu ao menos um “oi”, nem me
olhou direito na cara. Seu olhar mirava em qualquer parte da festa,
menos nos meus olhos.
— Tá tudo bem? — perguntei, tentando algum diálogo.
Ele, no entanto, não me respondeu. Típico. Apenas virou o
rosto e seguiu em direção à Stefany. Demônio. Eu sabia que deveria
ser um pouco menos trouxa, mas, sem um diálogo mais aberto,
como eu mataria minha curiosidade e conseguiria descobrir o que
ele queria me falar mais cedo?
— Querido, o que aconteceu com a sua perna? — ouvi a
mamãe perguntar, enquanto ele caminhava, com certa dificuldade,
até a minha irmã.
— Ah, tia, eu tive uma distensão na coxa durante o treino de
hoje — respondeu.
— O médico passou algum remédio para aliviar a dor? —
Stefany questionou.
— Passou um analgésico — replicou ao passar
carinhosamente o braço por sua cintura.
Por que ele fazia isso na minha frente, depois de tudo o que
tinha acontecido? Eu sabia que não deveria estar me importando,
porque eu tinha uma namorada, que por sinal era a irmã dele, mas,
sei lá, ele tinha me beijado, caramba. Me incomodava vê-lo assim
com minha irmã.
— Querido, eu sinto muito... — observando-o com
preocupação, mamãe falou. — Por favor, sente-se — puxou uma
cadeira para ele. — Não fique em pé, porque isso pode piorar. Aliás,
vamos todos nos sentar, melhor assim.
Molly logo segurou minha mão e me conduziu até uma das
cadeiras dispostas na mesa. Sentamos um ao lado do outro.
Stefany e Liam fizeram o mesmo, mas ficaram do lado oposto.
— Esse time de futebol sempre trazendo problemas, não é?
— George comentou, dando uma pequena risada. Ele tinha tentado
falar em tom de brincadeira, mas eu sabia que, no fundo, não era
brincadeira alguma. Ele nunca aprovou essa ideia de jogar futebol.
Para ele, era tudo uma grande perda de tempo.
— Ah, George, deixa o moleque — em tom relaxado, tio Liam
replicou, rindo também. — Isso daí logo sara e ele volta a aprontar
mais alguma. Não vejo problema em jogar futebol, desde que tire
notas boas.
— Tem razão — Talvez por educação, George concordou. —
Por falar em notas, como estão os estudos Liam? Está tirando notas
boas mesmo? O último ano escolar é decisivo. Ou faz bem feito ou
não entra na faculdade. O Eric aqui... — virou-se para mim. — Está
indo muito bem, como sempre. Vai ser mais um engenheiro civil na
família.
Tava demorando!
— Engenheiro mecatrônico — corrigi.
— Civil — De maneira incisiva, ele replicou.
Saco.
— É o que eu sempre digo para Liam — seu pai se
pronunciou. — Seja como o Eric, seja como o Eric. Às vezes parece
que o Liam não tem jeito. No último ano escolar, ele está cheio de
notas baixas, enquanto podia seguir o exemplo do Eric.
Ah, cara, que merda. As comparações já tinham começado
naquela hora da noite?
Bastava nossas famílias se reunirem para que comentários
imbecis começassem a surgir. Olhei para Liam e vi o quanto era
perceptível seu mal estar com os comentários do seu pai. Mesmo
calado, seu semblante dizia tudo. Eu sabia que ele queria sair dali e
daquela conversa, assim como eu também.
Essas comparações nunca fizeram bem para nós. Nunca.
Talvez esse fosse um dos motivos, quiçá o principal, por Liam e eu
nunca termos nos tornado amigos. Provavelmente, Liam me culpava
pelas comparações. Só que eu não tinha culpa de nada. Muito pelo
contrário. Sempre fiquei muito irritado com esses comentários
desnecessários, assim como estava naquele exato momento.
— É, querido — tia Claire se pronunciou. — Mas Liam está
tendo aulas particulares com o Eric. Acredito que essas aulas estão
sendo bastante produtivas. Eric, com certeza, está ensinando bem
os assuntos ao Liam.
Sim, bastante produtivas, tirando o beijo e a vontade de
continuar beijando-o.
— Sim, tia Claire, você tem razão — decidi intervir na
situação. — As aulas têm sido muito boas e é notório o avanço do
Liam. Ele realmente está aprendendo. E está aprendendo da
maneira dele, sem precisar ser igual à outra pessoa ou imitar
alguém — finalizei dando uma alfinetada nos comentários
anteriores.
No mesmo instante, percebi as sobrancelhas de Liam se
arqueando levemente. Seu rosto demonstrava surpresa por ter me
ouvido falar aquilo. Com certeza, ele não estava esperando por essa
minha resposta, mas chegava uma hora que era preciso se impor.
Não somente ele, mas eu também estava farto de ouvir essas
asneiras.
— Que ótimo, querido! — mamãe exclamou. — Fico tão feliz
por ver que vocês estão começando a se dar bem, mesmo que seja
através dessas aulas.
— Não acredito! — de repente, ouvi a voz agitada da Stefany.
Isso fez com que a atenção de todos se voltasse para ela. — A tia
Samantha chegou! — bateu de maneira leve, mas apressada, as
palmas das mãos e saiu da mesa.
Instantaneamente, notei George se inquietar na cadeira,
torcendo o nariz. Não era novidade alguma saber que ele não
gostava da presença da tia Samantha. Nunca gostou. Na verdade,
ela só era convidada para os eventos da nossa família e só nos
visitava porque era irmã da mamãe. Devido a isso, meu pai,
querendo ou não, tinha que aceitá-la ou, pelo menos, tolerá-la.
Não demorou muito para que Stefany retornasse à mesa
acompanhada da tia Sam e da namorada dela, a tia Lexie. Bom,
elas não eram casadas, mas estavam juntas desde que eu me
entendia por gente. Então, considerava sua namorada como minha
tia também.
Tia Samantha estava linda, como sempre. Alta, cabelos
loiros, olhos claros. O mesmo podia ser dito de sua namorada. A
única diferença era que a tia Lexie era morena.
— Samantha! Lexie! — mamãe foi a primeira a falar. — Que
bom que chegaram!
Ambas cumprimentaram mamãe.
— Obrigada, Cynthia! — tia Sam respondeu. — Só acho que
foi o seu marido carrancudo que não gostou — olhou para meu pai,
rindo.
Meu Deus, tia Samantha, como eu te amo! Ela sempre teve
muito bom humor e sabia tirar de letra o preconceito que meu pai
possuía com ela e sua namorada. George nem ao menos se
levantou para recebê-las. No entanto, tia Sam não se importava,
nem um pouco, com isso. E ela não seria ela se não provocasse,
pelo menos um pouquinho, o meu pai. Eu adorava isso.
— E você, George, está fazendo quantos mil anos de idade?
— se aproximou do meu pai, sorrindo. — Não vai levantar para me
receber?
— Samantha... — ouvi tia Lexie sussurrar em seu ouvido,
provavelmente como um alerta para que tia Sam se aquietasse.
Meu pai, por sua vez, se levantou explicitamente a
contragosto e claramente cumprimentou ambas apenas para não
fazer feio frente aos demais convidados.
— E onde está meu sobrinho preferido? — perguntou com
seu típico tom brincalhão.
— Sobrinho preferido, tia? Que é isso? — ciumenta, Stefany
logo requisitou.
— É brincadeira dela, Ste, liga não... — sorrindo, tia Lexie
falou.
— Sabe que eu falo isso só para ver sua reação, não é? —
soltou uma pequena risada.
— Sem graça... — De brincadeirinha, Stefany revirou os
olhos, sorrindo.
— Nossa, que ciúme! — Bem humorado, falei ao me levantar
da cadeira e me aproximar delas. — Estou aqui tia. Seu sobrinho
preferido!
— Convencido... — Ainda brincando, Stefany replicou.
— Meu amor! — tia Sam exclamou ao me abraçar. — Que
saudade eu estava de você! Nunca mais foi lá em casa!
— Eu também estava com muita saudade, tia. A escola e o
time estão me deixando sem tempo, mas eu prometo que, muito em
breve, apareço na sua casa — Ao final, também abracei Lexie. —
Estava com saudade de você também, tia Lexie.
— Eu também estava, meu anjo — respondeu.
— Cynthia, Liam... Que prazer em revê-los — ouvi minha tia
falar, enquanto eu me soltava do abraço de Lexie. — Ora ora,
vejamos aqui... — ela continuou. — Molly e Liam, a cada vez que os
vejo, vocês estão maiores! Soube que você e o Eric estão
namorando, Molly.
— Sim, estamos sim! — entusiasmada, a morena replicou, de
pronto.
— Oh, que maravilha! — ela respondeu de volta. — E você,
Liam, continua brigando com o Eric feito cão e gato? — Em tom de
brincadeira, perguntou, soltando uma pequena risadinha.
Notei que Liam franziu levemente o cenho, como se não
tivesse gostado desse comentário. Deus. Eu adorava o bom humor
da tia Sam, mas, às vezes, esse mesmo bom humor nos deixava
em saia justa, porque algumas pessoas não entendiam. No fim das
contas, ela era meio louquinha.
— Que nada, Samantha! — mamãe interviu na situação. —
Você sabia que, agora, Eric e Liam estão estudando juntos? Ao que
tudo indica, parece que estão começando a se dar bem! — e sorriu
com visível satisfação.
Céus.
— Estudando juntos? — tia Sam arregalou os olhos, deveras
surpresa com a informação. Um largo sorriso logo estampou o seu
rosto. — Mas que notícia maravilhosa!
Diferente das outras pessoas, tia Sam nunca forçou uma
amizade entre Liam e eu. No entanto, eu sabia que, no fundo, ela
também sempre quis que nós nos déssemos bem.
— Boa noite a todos! — Uma voz, de repente, falou ao nosso
lado.
Quando me virei, vi o tio Jimmy e o seu filho Alex.
— Jimmy! — Um largo sorriso apareceu rapidamente no rosto
do meu pai. Nem parecia que, há poucos minutos, ele estava irritado
com a presença da minha tia. — Que bom que você veio!
— Tia Sam e tia Lexie, sabia que esse é um ótimo momento
para irmos dançar um pouco? — Logo Stefany sugeriu, com um
genuíno entusiasmo, ao aproveitar aquele momento em que nosso
pai estava, de fato, entretido com a chegada do seu amigo.
— Dançar ao som de música clássica? — tia Sam perguntou
com certa ironia.
— Claro que não! — perspicaz, Stefany sorriu como se já
tivesse montado todo o plano em sua cabeça. E eu sabia que sim.
Ela, inclusive, tinha comentado isso comigo antes da festa começar.
— Venham! — e as puxou pelo braço.
Eu já sabia e entendia perfeitamente o que minha irmã iria
fazer, assim como ela e eu também tínhamos ciência do quanto
nosso pai ficava entretido quando o tio Jimmy aparecia. Era quase
um melhor amigo para ele, ou algo assim. Ele nem mesmo iria notar
se Stefany substituísse a música clássica por uma eletrônica. Isso
era bem estranho, sem dúvidas, mas não deixava de ser um fato.

❖❖❖

Minhas suspeitas foram confirmadas. Stefany, Samantha e


Lexie (na verdade, não somente elas, mas boa parte dos
convidados) estavam no tablado, há exatos quarenta minutos,
dançando ao som de músicas eletrônicas, e meu pai nem percebeu,
ou, se percebeu, não reclamou, o que era um verdadeiro milagre.
Parecia que, quando o tio Jimmy chegava, todas as atenções do
meu pai se voltavam a ele. Nesse meio tempo, eles tinham
conversado sobre tantos assuntos que eu até já tinha me perdido.
Alex, por sua vez, não parava de conversar com a Molly. Ela,
acreditem ou não, até tinha me “esquecido”. Sério. Juro. A morena
estava tão entretida, conversando, rindo e sorrindo com o Alex, que
eu, sinceramente, não tinha cara nem para interromper aquilo. Eles
se conheciam desde a infância, mas se encontravam basicamente
nessas festividades de família. Então, talvez fosse o tempo que eles
tivessem para colocar os assuntos em dias.
Mamãe e tia Claire, óbvio, também não paravam de
conversar. Isso não era novidade. As duas eram melhores amigas
desde a época da universidade e carregavam a amizade até então.
Não se desgrudaram. Tio Liam, vez ou outra, até entrava na
conversa delas, mas, sem dúvidas, a maior parte dos assuntos
provia das duas. O fato era que as pessoas estavam divididas em
grupos, seja em cada parte do jardim ou mesmo ali naquela mesa.
Enquanto isso, existiam apenas dois seres deslocados disso tudo:
Liam e eu.
O moreno estava calado, talvez reflexivo, pensando em
alguma coisa que eu não fazia ideia do que era. Apenas mexia no
celular, mas não falava com ninguém. Nem sua fiel escudeira,
Stefany, estava por perto. Entretanto, vez ou outra, Liam erguia o
rosto discretamente e nossos olhares se encontravam por alguns
segundos. O jardim estava agitado pelas músicas eletrônicas, assim
como as pessoas também estavam entretidas em meio às suas
conversas, mas entre Liam e eu havia apenas o silêncio.
Eu sabia que ele até tentava disfarçar os olhares que me
dava, mas ainda não conseguia completamente. Seu típico
semblante fechado não me enganava. Eu sabia que ele queria me
olhar, assim como também sabia que ele queria me falar alguma
coisa. Eu não conseguia esquecer do dia anterior, nem da manhã
daquele mesmo dia. E o pior: minha namorada estava bem ao meu
lado, enquanto eu lembrava do beijo que dei em seu irmão e sentia
vontade de beijá-lo novamente.
Isso era tão injusto, tão errado, mas eu não conseguia parar
os meus pensamentos e os meus desejos. Tudo isso era mais forte
que eu. E a culpa era de quem? Inteiramente daquele desgraçado
que me beijou primeiro. Se ele não tivesse me beijado no pub, nada
disso estaria acontecendo. Eu tinha certeza absoluta. Agora, porém,
ele estava bem ali, no lado oposto da mesa, lindo. E eu bem aqui,
do outro lado, sendo um bobo.
Os pensamentos me acometiam de maneira tão forte, que, a
cada olhar disfarçado que ele me dava, eu só me lembrava do
nosso beijo em seu quarto e do que ele queria me falar na
enfermaria. Ainda queria muito saber. Se aquela mulher não tivesse
chegado bem na hora, eu estaria sabendo agora. Céus, eu apenas
precisava de um momento a sós com ele, por mais que fosse errado
eu correr atrás disso e por mais que eu devesse enterrar essa
situação.
Então, como se Deus tivesse ouvido minhas preces
silenciosas, vi Liam, de repente, se levantar e caminhar até o local
da mesa onde nossas mães conversavam.
— Mãe, preciso do analgésico. Tá na hora de tomar — ouvi
ele falar.
Quando tia Claire abriu a bolsa para pegar o remédio, minha
mãe disse:
— Querido, eu vou chamar um garçom para trazer água a
você... — fez menção de se levantar. No entanto, segundos depois,
parou. — Ou melhor, eu vou te levar até a cozinha. A casa está mais
tranquila do que aqui. Mais rápido e mais fácil para você tomar o
remédio. Vamos lá — e, enfim, se levantou por completo.
Espera, espera, espera.
Naquele exato momento, uma luz divina caiu sobre a minha
cabeça. Essa, com certeza, seria uma ótima oportunidade para que
eu, finalmente, conseguisse ficar a sós com o Liam. Dentro de casa,
ele não teria escapatória, ele teria que me falar o que queria dizer
mais cedo.
— Espera, mãe — de supetão, intervi. — Pode continuar
conversando com a tia Claire. Eu levo o Liam.
Notei-o instantaneamente travar.
— Acho melhor a tia Cynthia me levar mesmo — replicou.
Cala a boca, Liam. Vai ser assim e fim de papo.
— Querido, pensando bem, o Eric pode te levar mesmo. Ele
é mais jovem que eu e está mais disposto a andar — soltou uma
pequena risadinha.
Ah, mãe, obrigado por ficar do meu lado.
— Isso — respondi, logo me levantando da cadeira. — Bora
lá.
Parei alguns centímetros à sua frente e acenei com a cabeça
para que ele me acompanhasse. Liam ainda tentou disfarçar, mas
eu sabia que ele queria me engolir com os olhos. Mesmo a
contragosto, para não fazer uma cena para nossas mães, pegou a
caixa de comprimidos e seguiu em minha direção.
Começamos a caminhar lado a lado. Em silêncio. Nenhuma
troca de olhares.
— Quer ajuda aí? — perguntei ao perceber que ele ainda
caminhava com certa dificuldade.
— Não — resmungou.
Logo conseguimos chegar à parte interna da casa. Tudo
estava vazio e silencioso, nem parecia que, a poucos metros dali,
estava tocando uma alta música eletrônica, graças à Stefany. Abri a
porta da cozinha, liberando o caminho para ele pudesse entrar. Em
seguida, a fechei atrás de nós. Mais silêncio, mais tensão. O clima
entre nós não era dos melhores. Liam parou próximo ao balcão,
enquanto eu segui em direção à geladeira.
É agora, Eric. Não vai dar pra trás diante de uma
oportunidade dessas!
Abre a boca!
— O que você queria me falar hoje de manhã? — perguntei
no automático, enquanto pegava uma garrafa d’água. Não o encarei
ao falar, assim como também não sabia se isso era por pouca
coragem. As palavras simplesmente saíram.
Silêncio. Alguns segundos se passaram. Mais silêncio.
Ele não iria me responder?
Peguei um copo limpo de vidro, que estava próximo à
geladeira, e, finalmente, me virei de frente para ele. Seu rosto
estava impassível. Aproximei-me do balcão e, consequentemente,
dele. Enchi o copo de água e o encarei.
— O que você queria me falar hoje de manhã quando aquela
moça interrompeu? — tornei a perguntar.
Liam deu um breve suspiro e...
— Para de encher o meu saco... — abriu a caixa de
comprimidos e tirou uma cartela.
Quê? Parar de encher o saco? Foi ele quem começou com
isso tudo!
— Eu deveria ter dito isso quando você me beijou no pub e
quando me beijou de volta ontem no seu quarto — repliquei,
sentindo a raiva começar a despontar em mim.
Liam me encarou com seus olhos também começando a
queimar de irritação. Respirou fundo, como se estivesse tentando se
controlar, e baixou o rosto para destacar rapidamente um
comprimido. Bebeu e deu um passo para se afastar do balcão.
Ele ia embora?
— Espera — segurei-o pelo braço.
— Me solta, imbecil — instantaneamente, puxou seu braço,
mas eu continuei o segurando firme.
— Me fala o que você queria dizer de manhã — pedi mais
uma vez.
Seu olhar se tornou ainda mais raivoso.
— Eu não tenho nada para falar! — disparou. — Me solta e
me deixa em paz! Vai viver tua vida!
Viver a minha vida? Ele queria que eu vivesse normalmente a
minha vida depois de tudo o que fez? Isso era sinal de que ele
realmente estava pouco se importando para tudo o que tinha
acontecido. Eu era mesmo um trouxe. Tinha passado dias e horas
pensando em alguém que não valia a pena. Que raiva de mim!
— Ok — respondi seco e soltei seu braço. Tentei manter o
controle, mas foi quase impossível. — Foda-se você e foda-se a sua
vida.
Instantaneamente, Liam ficou boquiaberto. Mas, eu não tive o
prazer de desfrutar do seu semblante de choque por muito tempo.
Logo decidi dar-lhe as costas. Eu não me importaria mais com nada
que tivesse a ver com ele. Caminhei apressadamente em direção à
porta da cozinha. No entanto, quando ergui a mão para tocar na
maçaneta, Liam se pôs no meio.
Que porra era essa?
Virei meu rosto para ele, tentando entender aquilo, mas, em
questão de milésimos, Liam avançou em minha boca. O quê? Uma
de suas mãos me envolveu pela cintura, levando meu corpo, com
toda a força, para perto dele, enquanto a outra me segurou pela
nuca, colando ainda os nossos lábios.
Que merda. Eu deveria parar isso agora mesmo! Sim, eu
deveria. Mas, era o que eu estava fazendo? Não, definitivamente.
Eu, imbecilmente, estava cedendo. Não tinha como eu ser mais
idiota.
— Você é doido? — Perguntei entre beijos. E foi tudo o que
eu consegui pronunciar.
— Cala a boca — Replicou e, pouco se importando, voltou a
me beijar.
Suas mãos desceram pelos meus braços e passaram para
dentro do blazer, querendo me sentir. O problema era que, dessa
vez, eu estava com uma blusa social de pano passado. Portanto, ele
não conseguiria se enfiar facilmente por ali. No entanto, Liam não se
deu por vencido. Me empurrou contra a parede mais próxima.
Confesso que... Eu gostei muito disso.
Ele queria me dominar, mas eu também conseguia dominá-lo.
Não perdi meu tempo. Logo era eu quem o empurrava contra o
balcão da cozinha. Algumas frutas e recipientes caíram no chão. O
copo de vidro, meu Deus! Rapidamente o afastei, para não causar
algum acidente. Fiz um movimento de que iria erguê-lo sobre o
balcão, mas...
— Cuidado, caramba. Minha perna — falou entre beijos.
Ah sim, a perna. Era melhor deixá-lo como estava mesmo: de
pé no chão.
Tornei a beijá-lo, com a mesma intensidade. Beijo forte,
gostoso. Fui descendo meus lábios pelo seu pescoço até que... Ouvi
a porta da cozinha sendo aberta. Ah não. Não, não, não. Merda.
Não podia ser!
Parei o beijo imediatamente.
— Eric? Liam?
Quando me virei, vi a tia Samantha pasma, quase sem cor.
Testosterona exalando

Eric

Rapidamente, Liam saiu de perto de mim.


— O que tá... — tia Sam até tentou perguntar, mas parou no
meio da frase. Ela parecia estar bem surpresa. Aliás, todos nós
estávamos, mesmo que não fosse pelo mesmo motivo. Que
situação.
Olhei para o Liam, que me encarou de volta. Seu semblante
estava tão assustado quanto o meu. E nós dois estávamos tão
pálidos quanto a tia Sam. Era o pior flagrante que poderíamos
imaginar acontecendo.
O que fazer em um momento como esse? Porque, tipo assim,
ferrou. Algo que não era para pessoa alguma ficar sabendo, agora
estava começando a ser descoberto. Isso não podia ser real. Era
um pesadelo. Com certeza, era. A culpa quis me atingir. Droga, era
para eu ter parado enquanto podia!
— Tia... É... — tentei balbuciar alguma coisa, mas não saiu
nada decente.
Volvi meu rosto para o Liam e notei que o seu olhar não
negava o quanto estava transtornado por ter sido exposto daquele
jeito. Encarou minha tia e eu, ofegante e perturbado, e, então, em
um piscar de olhos, simplesmente caminhou ligeiro pela cozinha e
saiu porta afora, por pouco não passou por cima da Sam.
Cacete, ferrou. Ferrou muito.
Virei-me de frente para o balcão, ficando de costas para ela,
porque não queria encará-la. Sentia um misto de vergonha e
insegurança. Fechei os punhos e os coloquei sobre o balcão, pondo
o peso do meu corpo e, principalmente, da minha consciência sobre
eles. Respirei fundo e conclui: eu não sabia o que fazer.
De repente, entretanto, ouvi seus passos vindo em minha
direção. O coração acelerou. Eu não conseguia imaginar o que se
passava por sua cabeça naquele momento.
— Vamos conversar? — a ouvi falar ao meu lado. Sua mão
pousou delicadamente sobre o meu ombro.
Conversar? Eu tinha tanto para falar, mas, ao mesmo tempo,
nada. De fato, não sabia se estava preparado para falar alguma
coisa sobre o assunto. Suspirei, tentando criar uma mínima coragem
para encará-la, e, lentamente, virei meu rosto para o lado. Sentia
medo, receio, vergonha e muitas outras coisas que não sabia nem
nomear.
— Não precisa ter vergonha, querido — falou com seu tom de
voz suave, como se estivesse lendo a minha mente. — Podemos
conversar um pouco?
Finalmente, volvi meu rosto por completo, olhando em seus
olhos. Ainda me sentia tão assustado, mas ela, diferente de minutos
atrás, cujo semblante estava surpreso, agora demonstrava carinho e
conforto, como se tentasse me passar segurança. Apesar disso, eu
ainda não sabia se devia conversar. Na verdade, eu não sabia nem
o que falar sobre isso.
— Tia... Eu... — balancei a cabeça, levemente, em negativo,
e baixei o olhar. — Eu não... — Sem conseguir formar uma frase
clara e coerente, parei de falar pelo meio do caminho. Meus
pensamentos estavam muito confusos.
— Meu anjo... — passou carinhosamente a mão em meu
rosto. — Olha, eu sei a confusão que deve estar nessa sua
cabecinha. Então, deixa a tia ajudar? Pode ser? Vamos fazer
assim... — Segurou meu queixo, fazendo com que eu olhasse bem
em seus olhos. — Nós começamos a conversar, mas você pode
parar o diálogo a qualquer momento. Quero que se sinta à vontade.
Tudo bem?
Mais uma vez, parecia que ela estava lendo a minha mente,
porque tudo estava tão confuso que eu começava a me sentir
perdido, sem rumo, sem saber o que fazer. No fundo, eu sabia que
se eu não falasse sobre isso com alguém, eu acabaria explodindo,
ou ficando verdadeiramente louco. Até porque, eu não tinha como
fingir, nem tinha para onde fugir. Ela viu o que estava acontecendo.
Isso era um fato que não dava para negar.
— Tia... Tá... — me dei por vencido.
Seja o que Deus quiser.
— Podemos conversar no seu quarto? — perguntou.
Acenei um breve sim para ela.

❖❖❖

— Querido, antes de tudo, eu quero que saiba que pode se


abrir tranquilamente comigo. Eu não vou te julgar. Não estou aqui
para fazer isso. Também não fique preocupado com o nosso sumiço
na festa. Qualquer coisa, a gente dá uma desculpa quando
voltarmos para o jardim. Tudo bem? — tia Sam perguntou.
Olhei para as minhas mãos e, depois, para alguns pontos
aleatórios do meu quarto, tentando manter a calma e mentalizar
algo construtivo: Eric, você precisa criar coragem para falar sobre
isso. É a sua tia Sam que está ali e ela seria a última pessoa da face
da terra a julgar você. Respirei fundo. Eu nunca tinha me imaginado
em uma situação como essa, mas era a hora encarar a realidade.
— Tudo bem — respondi.
— Ótimo — deu-me um pequeno sorriso. — Primeiro, devo
me explicar. Eu estava dançando com a Lexie e a louca da Stefany,
também conhecida como sua irmã... — soltou uma leve risadinha
pelo nariz, provavelmente tentando quebrar o meu gelo. — Até que
cansei e decidi voltar para a mesa. Quando cheguei, perguntei à sua
mãe onde você estava. Ela me respondeu que você tinha ido
acompanhar o Liam até a cozinha, para ele tomar um remédio.
Aproveitei, então, que vocês estavam na cozinha, para que eu
pudesse beber água também. Dançar durante quarenta minutos,
sem sentir sede, é complicado... — riu um pouquinho novamente. —
Ocorre que, quando eu cheguei à cozinha, me deparei com vocês
dois naquela situação. Confesso que eu não esperava. Por isso que,
no primeiro instante, me senti muito surpresa. Mas, depois que Liam
saiu praticamente correndo da cozinha, tive algumas lembranças.
Lembranças?
— Como assim, tia? — franzi o cenho.
Um pequeno sorriso surgiu em seu rosto.
— Lembranças, querido, lembranças... — Como se não
quisesse adentrar ainda a essa parte do assunto, falou. — Mas, o
que eu gostaria mesmo de saber é o que está acontecendo entre
vocês.
Essa era uma ótima pergunta. Nem eu sabia o que estava
acontecendo entre nós.
— Tia... — balancei a cabeça de leve e olhei para as minhas
mãos novamente, ainda meio encabulado. — Eu não sei, tia... Eu
não faço ideia. Eu me sinto... Perdido — Por fim, encarei-a mais
uma vez com a completa certeza de que meu semblante estava
bastante triste.
— Querido... — verdadeiramente tocada pela maneira como
eu estava, ela se aproximou de mim na cama e segurou minhas
mãos. Havia preocupação em sua voz. — Vamos tentar de outra
maneira, então. Como tudo isso começou?
Essa era outra excelente pergunta...
Como começou? Soletrei cada palavra da pergunta em minha
mente. Afinal, como isso tinha começado mesmo? Foi no pub, com
o repentino beijo que ele me deu? Ou alguma coisa já acontecia
entre nós antes disso? Eu nunca parei para pensar seriamente
nisso. Tentei buscar alguma lembrança em minha mente, algo que
pudesse ter acontecido antes do pub.
Bom, eu não podia negar que, no fundo, embora eu não
quisesse admitir para mim mesmo, eu notava que, nos últimos
tempos, Liam estava me olhando de um jeito diferente. Eu, até
mesmo, tinha chegado a brincar um pouco com ele, porque eu
imaginava que era apenas coisa da minha cabeça. Não cogitava,
assim também ainda era difícil cogitar, que ele pudesse estar me
olhando com outros olhos.
Aos poucos, algumas lembranças começaram a surgir.
Primeiro, em um dos últimos jogos em que participei competindo
contra o time do Colégio Regent, na época em que eu ainda era
capitão do time do Colégio Liverpool, senti algo estranho quando
Liam se aproximou de mim, querendo brigar no campo. Segundo,
nesse mesmo jogo, notei um olhar estranho dele, depois que tirei
minha camisa. Nunca tinha o visto me olhar daquele jeito.
Terceiro, ainda naquela noite, nós fomos a um pub. Meu
Deus, o pub. Liam ficou muito bêbado e eu até o ajudei a chegar em
casa. Ele quis dormir comigo naquela noite. Sim, ele quis. E nós
dormimos juntos. Jesus. Como eu pude ser tão bobo ao ponto de
não ter me lembrado disso? Como eu pude passar tanto tempo sem
ligar os pontos?
O quarto episódio foi o dia em que ele me encarou, enquanto
eu estava nu no vestiário. No mesmo momento, eu notei, mas, por
pensar que fosse somente impressão minha, eu brinquei. Claro que
iria brincar. Jamais poderia imaginar que aquele olhar fosse de
alguém que... Meu Deus.
Quinto, Liam ficou vulnerável após minha brincadeira no
quarto do hotel, no sábado. Eu brinquei, perguntando se podia
ajudá-lo no banho. Toquei em seu rosto e... Ele fechou os olhos! Ele.
Fechou. Os. Olhos. Como se estivesse, de fato, entregue aos meus
carinhos, num momento de pura fraqueza. Como eu pude ser tão
lesado ao ponto de não reparar de verdade nisso?
Por fim, o sexto episódio: o fatídico beijo no pub depois da
cerimônia de abertura do campeonato. Deus, isso tudo não tinha
começado entre nós no dia do pub. Começou antes, bem antes. Eu
só não tinha parado para pensar nisso.
— Querido? — tia Samantha tocou em meu ombro,
provavelmente achando estranho os longos minutos de silêncio,
enquanto eu refletia sobre tudo.
— Eu só estava tentando me lembrar de quando essa coisa
começou... — falei.
— E então? — atenta, perguntou. — O que me diz?
Dei um breve suspiro e comecei a liberar, em forma de
palavras, tudo o que eu havia refletido. Expus todos os sinais que o
Liam me deu e que, só agora, eu consegui captar. Disse tudo lenta e
compassadamente, como se estivesse me libertando de um peso.
Talvez desabafar fosse uma maneira realmente eficaz de renovar as
forças.
Assim, contei sobre cada acontecimento antes do pub em
Oxford, falei sobre tudo o que eu tinha sentido antes e depois, e
confessei as minhas confusões de pensamentos e sentimentos. Por
fim, mencionei o beijo que trocamos na varanda do seu quarto, no
dia anterior, e tive ainda mais certeza de que desabafar era um
ótimo remédio.
Tia Samantha estava ouvindo tudo atentamente. Seus olhos
mal piscavam diante de tudo o que eu estava contando. Vez ou
outra, seus lábios até esboçavam um pequeno sorriso, mesmo que
eu não entendesse, de fato, o motivo. Entretanto, no fundo, era
como se, tudo o que eu estava dizendo, ela já soubesse que tinha
acontecido ou que iria acontecer.
Sinceramente, eu não sabia o que estava se passando em
sua cabeça, mas o seu olhar e o seu leve sorriso não escondiam a
felicidade e a alegria que ela sentia por ouvir cada uma daquelas
palavras que eu pronunciava. Era estranho, mas também era como
se ela realmente soubesse que tudo era uma questão de tempo até
acontecer.
— Então, é isso, tia... — disse ao finalizar meus relatos. —
Acho que essa coisa não começou no sábado quando Liam me
beijou de surpresa no pub. Acho que começou desde o último jogo
em que fomos adversários.
Ela, por sua vez, me deu um pequeno sorriso novamente,
como se estivesse guardando algo dentro de si, e passou
carinhosamente uma de suas mãos em meu rosto.
— Querido... Você tem certeza que isso entre vocês começou
no dia desse último jogo em que foram adversários? Será que isso
não começou em tempos ainda mais antigos? — me levou a refletir.
— Nunca tinha parado para pensar nisso?
Tempos ainda mais antigos? O que isso significava?
— Tia... Eu não sei do que você tá falando... Eu... — passei
as mãos no rosto, me sentindo meio atordoado, mas tentando
organizar as ideias e pensar em algo que, de fato, fosse certo e
fizesse sentido. — Eu tenho uma namorada, tia... E essa namorada
é a irmã dele... A irmã dele, tia!
— Meu anjo... — segurou minhas mãos, como se estivesse
tentando me confortar, e fez carinho com os polegares. — Olha,
vamos fazer assim: primeiro, vamos tentar entender o que está
acontecendo entre você e o Liam, e, depois, entramos no assunto
da Molly. Tudo bem?
A essa altura do campeonato, eu já não fazia mais ideia de
nada. Por mim, ela podia começar pelo Liam e terminar com a Molly.
Ou começar com a Molly e terminar com o Liam. Eu já estava tão
ferrado mesmo, que não tinha para onde correr.
— Tudo bem — repliquei.
— Querido, quando eu disse que lembranças me vieram à
mente, quando eu os vi juntos na cozinha, é que eu me recordei de
um episódio bem marcante pra mim — ela se explicou. — Um
episódio da sua infância.
Como assim?
Minha tia estava tão cheia de mistérios naquele dia.
— Infância? — questionei.
— Sim, querido, infância.
Tia Samantha, então, começou a me contar sobre uma
situação vivida há anos. Situação essa que eu não me lembrava,
mas que, agora, depois que ela começou a liberar aquelas palavras,
percebi que, no fundo, ainda estava viva em minha memória. Como
eu pude passar tanto tempo sem me lembrar disso?

...

O aniversário do papai estava acontecendo lá fora, no jardim,


mas, sei lá, eu não estava me sentindo muito bem. Talvez fosse
melhor ficar um pouquinho dentro de casa. Eu permaneceria na sala
até o mal-estar passar. O estranho era que bastou eu ver Liam
chegando ao aniversário, para que eu me sentisse assim. Não era a
primeira vez que isso acontecia, mas era tão estranho quanto as
outras.
Após caminhar um pouco, cheguei à sala de estar.
Cabisbaixo e mal, notei que eu estava indo, não propositalmente,
em direção a um local onde a tia Samantha e a sua namorada, tia
Lexie, estavam conversando e rindo. Pensei que a parte interior da
casa estivesse vazia, já que o aniversário acontecia lá fora. Porém,
não me importei com isso, apenas passei, calado, por elas e me
sentei, encolhido e de cabeça baixa, no sofá.
Percebi que, repentinamente, as risadas e conversas delas
cessaram, ao mesmo tempo em que ouvi passos vindo em minha
direção. Levantei meu rosto e vi a tia Sam e a tia Lexie se
aproximarem de mim. O que aconteceu? O que elas queriam? Eu
deveria ter passado por elas com mais cuidado, para que não se
dessem conta de que eu estava por ali.
— Meu anjo, o que aconteceu? — levemente preocupada, tia
Sam se agachou em minha frente e ficou na mesma altura do meu
olhar, para me observar com mais atenção. Suas orbes me
avaliavam na tentativa de desvendar algo, antes mesmo que eu
abrisse a minha boca.
Eu estava me sentindo mal, mas...
— Nada, tia... — dei-lhe essa resposta, porque não queria
que ela se preocupasse ainda mais comigo, assim como também
não queria atrapalhar sua conversa com sua namorada. Por mim,
elas poderiam voltar ao que estavam fazendo, porque eu preferia
ficar sozinho mesmo.
— Ora... — Dessa vez, foi a tia Lexie que se pronunciou. Em
seguida, também se agachou, ficando ao lado da tia Sam e na
minha altura. — Alguma coisa deve ter acontecido pra você estar
com essa carinha triste.
— Conta pra gente, meu amor... — carinhosamente, como se
tentasse me confortar, tia Sam passou uma das mãos em meu rosto
e requisitou.
Suspirei. Tudo bem, tudo bem. Por mais que, em um primeiro
momento, eu quisesse ficar sozinho, aquilo não era nenhum
segredo de estado e talvez não fosse mal algum contá-las o que
estava acontecendo. Com sorte, eu até me sentiria melhor depois
de desabafar.
— Tia, eu acho que tô doente... — Ainda triste, repliquei e
baixei o rosto.
— Doente? — De pronto, tia Lexie questionou com sua voz
carregada de preocupação, antes mesmo que tia Sam pudesse falar
qualquer coisa. — Você está sentindo o que, querido? — e segurou
meu queixo, fazendo-me levantar o rosto novamente.
Ah, droga, eu não queria que elas se preocupassem, mas...
— Meu coração, tia... — enruguei a testa, sentindo algumas
lágrimas se formarem no cantinho dos meus olhos.
— O que tem seu coração, querido? — tia Sam perguntou.
— Eu sinto meu coração bater mais rápido e mais lento ao
mesmo tempo...
Ambas franziram a testa com minha resposta nada
convencional.
— Coração batendo mais rápido e mais lente? — tia Sam
tornou a questionar. — E como você sente isso, querido? Como
começa? Você está sentindo há quanto tempo? Você está sentindo
agora?
— Não... Agora tá melhor, tia. — falei, já me sentindo um
pouco menos ruim. — Faz uns dias que eu sinto. Sempre começa
quando vejo o Liam. O que ele tem a ver com isso, tia? Ele tá me
deixando doente? — Dessa vez, quem estava preocupado era eu.
Assim que me calei, no entanto, percebi tia Sam e tia Lexie
se entreolharem de maneira um pouco mais séria, como se
estivesse conversando em silêncio, por códigos oculares, mas
menos preocupadas, como se tivessem entendido tudo, talvez até
mais além do que aquilo que eu tinha explicado. Em seguida,
viraram o rosto para mim e me deram um pequeno sorriso
tranquilizador.
— Querido, você não está doente, você só está... — tia Sam
tentou prosseguir, mas parou no meio da frase e virou novamente o
rosto para a tia Lexie. As duas conversaram por olhares, mais uma
vez. Isso me deixou ainda mais confuso do que eu já estava.
O que era aquilo, afinal?
— Meu anjo... — tia Lexie, finalmente, voltou-se para mim e
tornou a explicação. — Você ainda é muito novinho para entender,
mas, no futuro, você vai saber o que isso significa. De todo modo,
fique tranquilo. Você não está doente, ok? — e fez carinho em meu
cabelo.
Como não? Eu não conseguia entender.
— Mas... — busquei esclarecimentos. — Mamãe me falou
uma vez que, quando a gente se sente mal, é porque estamos
doentes e... Piora quando ele não me dá atenção, como agora. Liam
chegou com meus padrinhos e nem, ao menos, me olhou, tia
Lexie... Por que ele não quer ser meu amigo? Eu queria tanto ser
amigo dele. Eu queria tanto brincar com ele.
Tia Sam me deu um pequeno sorriso complacente e
perguntou:
— Querido, por que você não o chama para brincar de bola?
Vocês gostam tanto de futebol, não é?
Entretanto, eu não sabia se era uma boa ideia...
— Tia, não é errado brincar quando a gente tá doente? —
questionei.
Lexie soltou um pequeno riso, mas logo se conteve.
— Você não está doente, meu amor. Isso se chama outra
coisa — falou. — Quando você estiver maiorzinho, você vai saber o
que é, mas, por ora, saiba que não é uma doença, tá? — sorriu. —
Agora, vai lá fora e chama o Liam para brincar com você.
O problema era que ele nunca aceitava...
— Tia... Ele nunca aceita brincar comigo — baixei a cabeça e
olhei para as minhas mãos, já prevendo aquele futuro tão próximo.
— Ele vai me ignorar, como sempre. Tô ficando até com vergonha
já.
Notei a tia Sam dar um breve suspiro.
— Então, por que você não convida seus outros amiguinhos
para irem também? — ela sugeriu. — Com outros coleguinhas, Liam
dificilmente vai negar. Além do mais, a vergonha diminui na
companhia de outras pessoas. O que acha? Vai chamá-lo para
brincar?
Pensativo, olhei para elas.
Será que estavam certas?
— Então, se eu for com meus amigos, ele vai aceitar mesmo
brincar?
— Tenho certeza que sim — Sam replicou. — E não custa
tentar, não é?

...

Depois disso, eu e meus amigos, de fato, fomos chamá-lo


para brincar. Liam, de início, não aceitou, até disse que estava
castigo e que não podia brincar. Foi aí que eu parei de insistir,
porque talvez fosse verdade. Não queria causar problemas, assim
como também não queria que seus pais brigassem com ele. Porém,
meus amigos insistiram e ele acabou cedendo. Brincamos e
jogamos bola juntos pela primeira vez na vida. Foi tão bom.
Só que a nossa alegria durou pouco. Logo o tio Liam
apareceu e brigou com ele na frente de todos. Meus amigos ficaram
rindo e deixaram Liam morrer de vergonha. Enquanto isso, eu... Eu
fiquei em choque, me sentindo extremamente culpado. Queria ter
feito algo para ajudá-lo, mas só consegui ficar de olhos bem
arregalados, vendo-o ser arrastado pelo pai.
Como eu tinha passado tanto tempo sem me lembrar desse
episódio? Depois de todas aquelas palavras da minha tia, eu,
finalmente, conseguia perceber que essa situação, apesar de tudo,
ainda estava viva em minha memória, e só precisava de um
pequeno empurrão para que viesse à tona. Mas... O que minha tia
estava querendo me dizer com isso? O que essa situação de mil
anos atrás tinha a ver com o meu atual momento?
Ela estava querendo dizer que... Que meu coração batia mais
rápido e mais forte, ao mesmo tempo, pelo Liam, porque eu... Eu
gos...? Não! Não podia ser. Isso não tinha o menor cabimento. Não
fazia sentido eu gostar do Liam. Eu nunca gostei dele! Isso que
acontecia agora, entre ele e eu, não passava de uma terrível ironia
do destino. Eu não gostava dele e nunca gostei. Talvez eu só
curtisse beijá-lo. Talvez... Ah, que saco, me sentia cada vez mais
confuso!
— Tia... — passei as mãos no rosto, meio atordoado. — Essa
história só me deixou ainda mais louco! Eu não posso gostar do
Liam! Eu não gosto dele! Talvez a explicação para isso tudo sejam
só os hormônios à flor da pele!
Tia Samantha riu um pouquinho, diante do meu estado.
Quê? Ela estava vendo o meu desespero, por acaso?!
— Meu amor... — passou as mãos no meu rosto, fazendo
carinho. — Você não somente gosta. Você sempre gostou. Liam foi
sua paixãozinha de infância. E, pelo que vi na cozinha, essa
paixãozinha de infância perdura até hoje. Talvez você só... Só tenha
enterrado isso ao longo do tempo. Primeiro, porque não tinha
conhecimento do que, de fato, estava sentindo. Segundo, porque,
se não tomarmos cuidado, o cotidiano acaba enterrando mesmo os
nossos amores. Terceiro, porque, bom, às vezes a sociedade,
infelizmente, nos impõe escolhas, que nem sempre são somente
nossas, se é que me entende.
Se é que me entende?
Mas eu não estava entendendo absolutamente nada!
Sempre gostei? Paixãozinha de infância? O que isso tudo
significava?
— Tia, sério, deve estar havendo um tremendo engano! Eu
não gosto do Liam! Ele é um imbecil! — Tudo bem que beijava bem,
beijava gostoso, mas isso não importava. Ele era um imbecil. — O
Liam é um cara da pior espécie. Não tem como gostar dele! Isso
tudo que está acontecendo é só hormônio. Testosterona pura, com
certeza!
— Ok, querido. Calma — ela suspirou, diante da minha total
inquietação. — Vamos tentar de outro jeito. — Sentou-se melhor na
cama, acomodando-se. — O que você sente quando está com o
Liam?
Aonde ela queria chegar com isso, meu Deus?
— Ah, é... É... Bom... — respondi meio sem jeito.
— Só bom? — ergueu uma das sobrancelhas.
Droga, ela iria me forçar a confessar o que eu queria
esconder.
— É... — tentei confirmar.
— Eu vi muito mais do que “bom” na cozinha...
Merda.
— Tá, tá, tá bom, tia! — me dei por vencido, suspirando e
despejando rapidamente todas as palavras que me atormentavam e
que estavam guardadas em mim. — É muito bom estar com ele. Eu
penso nele vinte e quatro horas por dia. Eu durmo e acordo
imaginando que ele possa estar pensando em mim. Eu sonho com
ele à noite. Eu o olho feito bobo. Eu desejo beijá-lo. É tudo mais
forte que eu, mais forte que a minha razão. Eu simplesmente perco
o juízo quando ele está perto de mim.
Assim que me calei e respirei fundo, como se tivesse corrido
uma grande maratona, ao admitir tudo isso, tia Sam me deu um
largo e satisfatório sorriso. Ela estava gostando disso?
— E se alguém te contasse tudo isso, você diria a essa
pessoa que tudo não passa de hormônios ou diria à tal pessoa que
ela está gostando da outra?
Oh não... Não, não, não...
— Hormônios — ligeiro, respondi.
Todavia, tia Sam balançou um pouco a cabeça em negativo e
ergueu uma das sobrancelhas para mim.
— Esse não é o sobrinho honesto, verdadeiro e corajoso que
eu sempre conheci... Tem certeza que daria essa resposta à tal
pessoa?
Droga… Droga! Era tão difícil assim admitir o óbvio, Eric?
— Que seja... — me dei por vencido outra vez e finalmente
baixei a guarda. — Na real, eu estou mesmo gostando dele e estou
cansado de negar isso — me inclinei, apoiando os cotovelos nas
coxas, e coloquei as mãos no rosto, como se isso fosse me fazer
sumir da face da Terra.
No segundo seguinte, senti a tia Sam me abraçando forte.
— Eu vou estar aqui pra te ajudar sempre, meu menino — e
fez carinho em minhas costas.
Ah, Deus...
— Tia... O que eu sou, tia? — me sentindo ainda bastante
perdido, questionei. — Quem eu sou? Eu não estou me
reconhecendo. O que eu sou? Gay? Hetero? Bi? O que eu sou, tia?
Nunca tive problemas com gays, mas nunca me imaginei sendo um.
Eu sou gay, tia? — atordoado, perguntei.
— Meu anjo... — em tom suave, ela replicou. — Na minha
adolescência, eu também passei por muitos questionamentos como
esses, quando comecei a me sentir atraída por garotas. Mas,
somente você poderá responder a essas perguntas, assim como
também só cabia a mim responder as minhas próprias perguntas.
Só você pode dizer o que você é.
Mas...
— Eu não sei o que responder, tia... — encarei-a com
tristeza.
— Não tenha pressa para responder, querido — afagou
minhas costas. — Aos poucos, você vai saber o que realmente é.
Mas, lembre-se, somente você poderá dizer isso.
Merda... Eu estava gostando do Liam. Sim, eu estava. Mas,
eu não sabia o que eu era. E pior: também não sabia o que seria da
Molly, diante de tudo isso.
— Tia... Como a Molly fica nessa história? — preocupado,
perguntei.
No mesmo instante em que me calei, ouvi batidas na porta do
meu quarto.
— Eric? Samantha? Vocês estão aí?
Era a minha mãe.
Droga... Logo agora!
Gay

Eric

No mesmo instante, tia Sam e eu nos entreolhamos como


cúmplices. Apesar do meu olhar pedir para que tudo ficasse
guardado em segredo, eu sabia que não precisava nem ao menos
pensar em pedir. Ela sabia que tudo o que conversamos deveria
ficar entre nós.
— Eric? Samantha? — ouvi novamente a voz da mamãe,
seguida de batidas na porta.
— O que a gente faz, tia? — em um sussurro um tanto
quanto aflito, perguntei.
— Deixa comigo — esperta, piscou um dos olhos para mim, e
se levantou da cama. — Vem, meu anjo, levanta — e me puxou pelo
braço para que, assim, o fizesse. Caminhamos até a porta do meu
quarto, enquanto eu me perguntava a todo instante: o que minha tia
vai fazer? Certamente, mamãe achou estranho o nosso sumiço na
festa. O pior era que ela acharia ainda mais estranho quando se
certificasse de que estávamos ali no meu quarto. Qual desculpa a
tia Sam lhe daria?
Abrimos a porta e...
— Ah, Cynthia... — ela se pronunciou antes que eu pudesse
pensar em qualquer saída. — Você sabe como eu sou uma tia
coruja, né? — soltou uma pequena risadinha. — Eu pedi para o Eric
me mostrar as últimas medalhas e troféus que ele ganhou por
melhores notas do Colégio Liverpool, antes de se transferir para o
Regent. Eu ainda não tinha visto. Aliás, uma colega minha de
trabalho me pediu referências sobre o Colégio Regente, porque quer
matricular a filha dela lá. Eu ia até falar com você sobre isso,
Cynthia, porque... — e saiu caminhando com minha mãe pelo
corredor de quartos, seguindo em direção às escadas.
Fiquei observando o entusiasmo na voz da tia Sam. Ela era
uma atriz completa. Como conseguia fingir tão bem uma situação?
Minha mãe simplesmente caiu em sua lábia e ficou totalmente
envolvida pela tal história do Colégio Regent que Samantha estava
contando. Já estava até planejando como passar as melhores
referências para a suposta colega de trabalho da minha tia.
Definitivamente, eu era fã daquela mulher. E o melhor: eu não
precisava ficar com medo dela dar com a língua nos dentes, porque
jamais falaria para alguém o que tínhamos conversado.
Fechei a porta do meu quarto e me apressei para alcançá-las
enquanto desciam as escadas. Em meio aos assuntos mirabolantes
da tia Sam e à sua típica empolgação para falar, que a faziam até
parecer a Stefany, mamãe conseguiu uma folguinha para dizer algo.
— Vocês acreditam que os Tremblay já foram embora? Não
puderam nem esperar pelos parabéns.
Quê? Já?
— Foi mesmo, Cynthia? — franzindo o cenho, tia Sam
perguntou. — Por quê?
— Bom, o Liam chegou atordoado à mesa, dizendo que a
perna estava doendo muito e que não aguentaria ficar mais tempo.
Disse que precisava ir para casa, colocar uma compressa na coxa e
deitar. Claire até insistiu, pedindo para que ele aguardasse o
remédio fazer efeito, mas ele continuou pedindo para ir embora. Por
fim, eles foram. Depois disso, decidi procurar vocês, já que Eric
estava com Liam e não apareceu quando ele voltou para a mesa.
Caramba. Isso não tinha nada a ver com a sua perna. Liam
foi embora por causa do que tinha acontecido na cozinha,
absolutamente. Ele fugiu. Sim, eu tinha completa certeza de que
isso tinha sido uma espécie de fuga. E, pelo que eu conhecia dele,
eu não tinha dúvidas de que ele estaria fumaçando pelo nariz até
aquele momento e de que me culparia por aquilo.
— Nossa, que pena, Cynthia — tia Sam respondeu e olhou
de maneira breve para mim, provavelmente pensando o mesmo que
eu: Liam fugiu.
— É uma pena mesmo — mamãe balançou a cabeça de
leve. Mas, espero que eles já estejam próximos de chegar em casa,
para cuidar da perna do Liam. Qualquer coisa, depois eu passo lá
para deixar uma parte do bolo de aniversário para eles.

❖❖❖

O relógio marcava meia noite e meia quando os últimos


convidados se retiraram do jardim. Eu já tinha me despedido de
todos, inclusive dos meus pais, e subi para o meu quarto. Depois de
tudo o que eu tinha vivido, precisava de uma boa noite de sono. Que
noite louca. Tia Sam, durante o jantar que aconteceu depois dos
parabéns, sentou-se ao meu lado e conversou discretamente
comigo, me tranquilizando. Ela disse, mais uma vez, que eu não
precisava me preocupar, porque não iria contar para pessoa alguma
o que viu na cozinha e o que tínhamos conversado, assim como
também me garantiu que tudo aquilo ficaria somente entre nós.
Se a minha preocupação fosse somente essa, seria uma
maravilha, porque, mesmo que minha tia não me falasse nada, eu
saberia que, de fato, tudo ficaria entre nós mesmo. Entretanto,
minha preocupação ia muito além disso e residia no problema de eu
estar verdadeiramente gostando do Liam, embora eu tivesse uma
namorada que era a sua irmã. Será que minha vida poderia ser
menos louca? Para completar, aquela história de que eu gostava do
Liam desde criança, meu Deus, martelou na minha cabeça durante
todo o jantar.
Eu realmente me lembrava de que, quando éramos crianças,
o que eu mais queria era me tornar amigo dele, ou, pelo menos, me
aproximar dele. Liam era o tipo de garoto que eu queria ser. Apesar
de ser muito chato comigo, eu o admirava, no fundo. As pessoas
queriam, e ainda continuavam querendo, que ele fosse como eu,
mas, na verdade, pensando bem agora, eu queria ser como o Liam.
Desde pequeno, ele sempre mandou bem no futebol, era habilidoso
e me inspirava demais. Eu queria mandar bem no futebol como ele
e ter a mesma habilidade com a bola.
Talvez, no fundo, durante a minha pré-adolescência, quando
eu ainda não fazia parte do time oficial do meu antigo colégio, eu já
treinasse me espelhando nele. Era algo que, até então estava
esquecido em alguma parte da minha memória, mas, após refletir
sobre tudo o que a minha tia me fez relembrar, algo ressurgiu
claramente em meus pensamentos: antes de treinar, eu fechava os
olhos e me imaginava jogando como o Liam e fazendo dribles tão
bem quanto ele. Eu me empenhei para isso e consegui. Me tornei
tão bom jogador como ele, assim como também conquistei o posto
de capitão do time do meu ex-colégio como ele.
Talvez, no fundo, eu nunca quis admitir isso, mas eu, de fato,
me espelhei nele, para o futebol, e, provavelmente, eu até deveria
ter contado isso a ele, só que ficamos mais velhos e a sua antipatia
se sobrepôs à simpatia. Como resultado, acabei enterrando tudo e
nós nos tornamos uma espécie de inimigos. Todavia, no fundo, bem
no fundo, eu ainda guardava aquela admiração por ele, ainda queria
tê-lo por perto e ainda... O queria pra mim. Deus, socorro. Era
surreal pensar que eu, de fato, sempre gostei do Liam.
Respirei fundo.
O melhor que eu poderia fazer naquele momento era cair na
cama, tentar parar de pensar no Liam e dormir. O meu dia tinha sido
cheio e eu merecia descanso. Depois, eu refletiria sobre tudo com
mais calma.
Assim, abri a porta do quarto, entrei e fechei. Tirei o blazer, a
gravata, e fui desabotoando a camisa social, descalçando os
sapatos, até que senti meu celular vibrar no bolso da calça. Quem
poderia estar me ligando naquela hora da noite? Porém, no instante
em que retirei o celular e verifiquei a tela, a resposta apareceu:
Liam. Caramba, certamente ele ainda estava inquieto e cuspindo
fogo por causa do flagrante na cozinha.
Atendo ou não? Entrei em um pequeno dilema. Eu já poderia
imaginar o que ele queria: discutir comigo. Isso era típico dele. Por
outro lado, eu não tinha como fugir. Uma hora ou outra ele me
encontraria para exigir alguma satisfação. E, sinceramente, por mais
que ele fosse um imbecil, eu deveria tentar tranquilizá-lo de alguma
forma, garantindo que minha tia não contaria nada a pessoa
alguma. Era melhor encarar a realidade e atender.
— Alô? Liam?
— Seu imbecil, idiota, lesado! — disparou. — Aquela mulher
intrometida viu a gente na cozinha!
Se ele estava incrivelmente irritado pelo flagra? Imagina. Eu
já esperava por isso
— Boa noite pra você também — repliquei. — Sim, ela viu.
Estava sem paciência para os insultos do Liam. Eu até
entendia que ele estivesse transtornado pelo acontecido, porque
não era de fato algo que estávamos planejando que acontecesse,
mas não precisava disso tudo.
— E você vai ficar tranquilo assim, idiota?! — disparou outra
vez.
Quem disse que eu estava tranquilo? Eu só não faria um
escândalo como aquele.
— Se te incomoda pensar que eu não me importei, para a
sua informação, eu também fiquei tão preocupado quanto você —
garanti. — Ela viu sim, Liam, mas pode ficar tranquilo, porque...
— Ficar tranquilo? Como eu posso ficar tranquilo?! — me
interrompeu, sem me dar a chance de concluir a frase. Era como se,
a qualquer momento, ele pudesse atravessar o celular e aparecer ali
no meu quarto, para me esganar.
Revirei os olhos.
— Caramba! — exclamei. — Se você não me deixar falar, eu
vou desligar essa porcaria de celular — Dessa vez, fui eu que não
aguentei. Depois de tudo aquilo, eu não merecia aguentar os
ataques do Liam praticamente de madrugada.
Ouvi-o bufar do outro lado da linha.
— Continua logo — e resmungou.
— Cara, ela viu — suspirei, tentando recuperar dez por cento
de paciência. — Mas, nós conversamos depois e ela me garantiu
que tudo o que aconteceu ficará somente entre nós. Ela é minha tia.
Uma pessoa da minha confiança. Então, relaxa, tá bom?
— Conversaram sobre o quê? — curioso, perguntou.
— Assuntos pessoais — brevemente, respondi. Eu não
entraria em detalhes sobre tudo. Liam iria ficar possesso se
soubesse dos meus sentimentos. — Só relaxa, porque ninguém vai
saber de nada. Se liga?
— Cara, se alguém souber disso, eu juro que dou um jeito de
você acabar morto em alguma esquina! — Seu tom de voz já estava
começando a se alterar novamente.
Revirei os olhos novamente.
— Relaxa, ninguém vai ficar sabendo de nada.
— Você tem certeza?! — requisitou.
Ah, eu não merecia aguentar isso.
— Absoluta — seriamente respondi. — Agora fica calmo ou
você vai acabar tendo uma hemorragia nasal — e finalizei com um
leve sarcasmo.
Ele bufou.
— Enfia essas suas gracinhas no rabo! E, olha aqui, isso
nunca mais vai acontecer, heim?! Nunca mais! — exclamou e
desligou a chamada.
Tirei o celular do ouvido, joguei-o na cama e respirei fundo.
Talvez não existisse pessoa mais estressada que o Liam. Por que,
de todos os caras da face da Terra, eu tinha que me interessar logo
por ele?! Eu ainda não sabia o que eu era e precisaria de um tempo
até me designar oficialmente como bi, hetero, ou qualquer outra
coisa, mas, se eu fosse gay mesmo, por que o meu lado gay foi
despertado logo com o Liam? Sério, não tinha como ser com um
cara mais gente boa, mais legalzinho e menos complicado? Porque
o Liam era muito, muito complicado!

❖❖❖

A brisa agradável e tranquila batia nas árvores e nas


folhagens, proporcionando um ambiente de muita calmaria. O sol da
manhã também estava agradável, e isso deixava o campo com um
aspecto ainda mais verde. Logo mais à frente havia uma grande e
bonita casa. Uma vaga lembrança me tomou e soprou em minha
mente que aquela residência era minha e do... Liam.
Liam...
Voltei meu olhar para o lado e o vi deitado na grama, assim
como eu também estava. Uma árvore imensa fazia sombra sobre
nós. Liam estava me observando com um olhar tão sereno,
enquanto uma de suas mãos tocou o meu rosto e fez carinho. Essa
mesma mão desceu até a minha cintura e me puxou, levando-me
para mais perto dele.
O moreno, então, me beijou. Um beijo tão calmo quanto o
seu olhar, tão sereno quanto a brisa que batia nas folhagens, tão
tranquilo quanto a nossa relação. Em seguida, Liam segurou uma
das minhas mãos e pousou sobre a sua cintura. Apertei sua pele,
sentindo a textura macia, enquanto os seus lábios permaneciam
colados nos meus. Entre um carinho e outro, ele gemeu baixinho
contra minha boca e disse...
— Eu te...
Abri os olhos de supetão e, atordoado, virei meu rosto de um
lado para o outro. Logo constatei que eu estava em meu quarto.
Rapidamente, me sentei na cama e, mais uma vez, olhei para todas
as partes. Merda, isso tinha sido um sonho? Eu sonhei de novo com
Liam? Eu ainda iria sonhar com ele mais quantas mil vezes? Isso
estava se tornando mais frequente do que eu gostaria.
Droga. O pior era que tinha sido um sonho tão bom e seria
ainda melhor se acontecesse na realidade. Inferno. Eu estava
gostando mesmo dele. Não dava para fugir, não dava para negar.
Eu estava gostando do imbecil do Liam. Ele despertou meu lado
gay, isso se eu realmente fosse gay. Ainda precisava de um tempo
para processar essa informação.
Nunca tive problema com gays, lésbicas, trans, enfim... O
problema era que eu nunca me imaginei sendo um. E pior: tinha que
ser logo com o Liam? Parecia que o destino gostava de pregar
peças. Quer dar uma de gay? Dá. Mas, tinha que ser logo com o
Liam? Bem que podia ser um cara melhor, um cara mais...
De repente, ouvi o som do meu celular, tirando-me dos meus
pensamentos e indicando que uma mensagem tinha chegado.
Estiquei-me um pouco, até alcançá-lo no criado mudo ao lado da
cama, e li o texto:
“Meu amor, quero te desejar uma ótima viagem e um ótimo
jogo. Te amo. Beijos. Molly.”
Joguei o celular de volta no criado mudo e passei as mãos no
rosto em pura exasperação. A Molly, cara, a Molly! Eu estava sendo
um tremendo canalha com ela! Não que eu estivesse esperando
algo do Liam, como um sentimento correspondido, mas, mesmo que
nada mais acontecesse entre nós, eu não podia continuar da
mesma maneira com a Molly.
Decididamente, eu não podia continuar enganando-a,
sobretudo porque eu não gostava dela “daquele jeito”. Aliás, eu nem
sabia porque tinha a pedido em namoro. Talvez, eu tivesse tomado
uma decisão de maneira brusca pelo fato de que ficávamos há
muito tempo. Era como se eu devesse um pedido de namoro a ela,
porque eu sentia que ela necessitava de algo mais sério. Porém,
querendo ou não, foi um erro. Eu fui imaturo e tinha consciência
disso.
Sempre gostei da Molly como amiga, embora nós tivéssemos
mais que uma amizade e fizéssemos coisas além de simples beijos.
Eu sempre a considerei somente como minha melhor amiga, e,
depois do que aconteceu entre Liam e eu, isso se confirmou ainda
mais. Agora, eu tinha completa certeza de que gostava da Molly
somente como amiga, porque o que eu sentia por ela era diferente
do que eu sentia quando pensava no Liam ou quando estava com
ele.
Mas, e agora? O que fazer diante disso tudo? Se a Molly
soubesse que eu estava gostando do seu irmão, ela ficaria uma
fera! Eu tinha certeza! Ela não aceitaria isso e eu ficaria muito
ferrado. Para completar, ontem, logo na hora em que eu e a tia Sam
íamos tocar no assunto da Molly, a minha mãe apareceu. Eu
precisava conversar com minha tia e saber o que ela tinha para me
dizer sobre isso. Eu precisava de uma luz.
Ainda naquele dia, eu precisaria viajar, mas não seria pela
manhã, seria à tarde, porque o jogo só aconteceria no dia seguinte.
Então, eu tinha aquelas primeiras horas livres para ir à casa da tia
Sam. Com certeza, ela me receberia de braços abertos.
❖❖❖

Após eu terminar de me arrumar, desci as escadas


rapidamente. Nem perderia tempo em tomar o café da manhã em
casa, visto que eu tinha acordado meio tarde, já passava das nove
horas. Qualquer coisa, eu lancharia algo na minha tia mesmo.
Porém, quando eu estava quase alcançando a porta, ouvi minha
mãe me chamar.
— Eric? Vai aonde com tanta pressa, querido?
Pensa rápido, Eric, pensa rápido.
— Vou na casa de um amigo, ajudar ele com... Com... Um
trabalho da escola — sorri meio amarelo. Era claro que eu não diria
que estava indo à casa da tia Sam. Se eu dissesse, ela logo
perguntaria o motivo e investigaria o que possivelmente estivesse
acontecendo.
— Ah, é? Falando em ajudar um amigo com um trabalho da
escola, ontem você levou o Liam até a cozinha, para ele tomar o
remédio, não é? O problema é que ele esqueceu a caixa aqui,
querido... Será que você pode aproveitar que vai sair para dar uma
passada nos Tremblay e entregar o remédio ao Liam? — sugeriu. —
Com certeza ele está precisando. Aquela perna dele ainda não ficou
boa.
Ah não, eu teria que lidar com o Liam de novo?
— C-Claro, mamãe. Posso sim — sorri por fora, enquanto
queria morrer por dentro. Entretanto, eu não podia negar isso a ela.
Caso contrário, ela acharia estranho e também investigaria o motivo.
— Ótimo, querido. Você é um amor — aproximou-se e fez
carinho no meu rosto. — Obrigada.
Saí de casa com a caixa do remédio em mãos. Felizmente, o
percurso até a minha tia não demorou, porque, além de tudo, eu não
poderia passar muito tempo lá. Teria de fazer o “delivery da
farmácia” nos Tremblay. Milagrosamente, o trânsito estava tranquilo.
Não liguei, avisando que iria, mas esperava que ela estivesse em
casa. Bom, era sábado, então, provavelmente, não tinha saído para
trabalhar.
Estacionei em frente à casa dela e da tia Lexie. Elas não
eram oficialmente casadas, mas moravam juntas há muito tempo.
Inclusive, algo me dizia que só existia uma pessoa para quem tia
Sam comentou sobre o que aconteceu na cozinha: tia Lexie. Eu
tinha quase certeza disso. Mas, tudo bem, Lexie era tão de
confiança quanto Samantha.
Assim, desci do carro e caminhei até à porta e toquei a
campainha. Não demorou muito para que eu fosse recebido.
— Eric! — feliz, tia Lexie exclamou ao me ver. Um largo
sorriso estampou seu rosto. — Que surpresa te ver por aqui!
— Bom dia, tia! Tudo bem? — dei-lhe um abraço e um beijo
em cada lado do seu rosto. — Me desculpa por aparecer assim de
repente, sem avisar.
— Ah, meu anjo, sem problemas... — balançou a cabeça,
como se não ligasse. — Venha, entre! — e liberou ainda mais o
caminho para que eu passasse.
Assim que entrei, logo vi tia Sam se aproximar.
— Querido! — abriu os braços e me envolveu em um grande
e aconchegante abraço. — Que bom ver você! Venha, sente-se! —
e me conduziu até uma das poltronas da sala. Em seguida, se
acomodou no sofá
— Vou deixar vocês a sós um pouquinho. — sorrindo
agradavelmente, tia Lexie fez menção de se virar para sair da sala.
Mas, por que? Ela ia sair mesmo?
— Não, tia, pode ficar — disse antes dela nos dar as costas.
— Mas... — olhou rapidamente, como cúmplice, para a tia
Sam.
Ora essa... Não era possível que ela não soubesse que
também tinha a minha confiança.
— Tia... Eu tenho certeza que a tia Sam já te contou sobre o
que aconteceu ontem. Tudo bem, não tem problema. Eu também
confio em você — repliquei fazendo com que Lexie desse um breve
suspiro de confirmação e se sentasse ao sofá.
— Eu acabei contando pra ela sim, querido. — dando-me um
sorrisinho meio sem graça, Samantha confessou. — Bom, ela é
minha mulher e também estava presente naquela situação de anos
atrás que eu te contei ontem... A gente sempre desconfiou de vocês
dois.
Sempre?
— Estava tão na cara assim? — confuso, franzi o cenho.
— Pior que sim, Eric... — Lexie respondeu, soltando uma
pequena risadinha pelo nariz. — A gente sabia que, uma hora ou
outra, ia acabar acontecendo algo assim entre vocês. Era só
questão de tempo.
Mas, gente... Isso era sério? Caramba, eu queria essa bola
de cristal!
— Sério mesmo? — Ainda confuso e surpreso, tornei a
questionar.
— Ora, querido, aconteceu algo muito parecido comigo e a
Lexie — tia Sam replicou. — A diferença é que não crescemos
juntas. Mas, nos odiávamos na faculdade. Cão e gato como você e
o Liam. Agora estamos assim — e segurou a mão da namorada,
fazendo carinho com o polegar.
Nossa... Tanto tempo juntas e eu não sabia dessa história.
— A Samantha era completamente louca. Na verdade, ela
ainda é — rindo um pouquinho, Lexie também se pronunciou. —
Enquanto eu era mais quieta, mais na minha, quase certinha. Vim
de uma família tradicional, religiosa, enfim, totalmente o contrário da
Samantha.
— Uau! — admirado com essas confissões, exclamei. —
Tanto tempo se passou e eu nunca tinha parado para perguntar a
vocês como o relacionamento começou.
— Pois é, querido. Foi algo muito parecido com o que está
acontecendo entre você e o Liam — Sam disse. — Nós discutíamos
muito, nos odiávamos e não queríamos nos aceitar como lésbicas.
Na verdade, eu aceitei melhor a situação. Mas, com a Lexie foi mais
complicado. Eu sempre fui muito livre e desinibida, enquanto Lexie
era mais contida. Então, com ela foi mais difícil.
Instantaneamente, lembrei-me do Liam. Ele não tinha vindo
de uma família tradicional ou religiosa, mas era um tremendo
preconceituoso. Ele também não era contido ou certinho, mas eu
sabia que não aceitaria a ideia de ser gay ou bissexual. Se para
mim estava sendo difícil e confuso, até porque eu ainda nem sabia
se podia me denominar como gay, para ele seria ainda mais.
— Liam nunca vai aceitar algo assim — As palavras
escaparam da minha boca.
— Ora... — tia Sam me deu um pequeno, mas confortante,
sorriso. — Ele pode até não aceitar facilmente, mas, se gostar de
verdade de você, uma hora ou outra, ele vai acabar cedendo.
Gostar de mim de verdade? Que piada! Liam gostando de
mim? Surreal. Tão surreal quanto os beijos que me deu.
— Tia... Melhor não falar sobre isso... — adverti. — Não
quero criar expectativas com algo que eu não tenho certeza. Eu sei
que estou começando a ter certeza de que gosto dele, mas não
estou esperando, ou pelo menos não quero esperar, algo em troca.
Liam é Liam. Idiota, imbecil, preconceituoso. Enfim, eu não vim aqui
para falar sobre isso. Eu vim aqui para falar sobre a Molly.
— O que exatamente, querido? — tia Lexie perguntou.
— Ontem, quando eu e a tia Sam íamos tocar no assunto
sobre a Molly, a mamãe apareceu no meu quarto e não pudemos
continuar. Por isso, eu vim aqui. Eu preciso de conselhos e não
existem pessoas melhores que vocês para conversar comigo sobre
isso.
— Ah, querido, será um prazer... — tia Sam sorriu
amavelmente. — Eu até já imagino sobre o que você quer falar a
respeito da Molly, mas me diga. Quero confirmar se é o que eu
estou pensando.
— Bom... Primeiro de tudo, eu não estou esperando que o
Liam queira algo comigo, porque...
— Como não, querido? — ainda sorrindo, tia Sam
questionou. — É claro que ele quer algo com você, mesmo que
ainda esteja relutante em admitir isso. Confie no que eu estou
dizendo, Eric.
— Tia... — passei as mãos no rosto, já me sentindo meio
inquieto. — Eu não quero criar expectativas com nada. O Liam é o
Liam. Eu o conheço desde criança. Sei como é a sua personalidade.
Liam nunca vai dar o braço a torcer com nada.
— Querido, para começar, se ele não quisesse nada, ele nem
teria te beijado — Dessa vez, foi Lexie quem se pronunciou. — Além
do mais, tome minha experiência e da Sam como um exemplo. Na
nossa adolescência, eu não aceitava nada que viesse dela e veja só
como estamos agora.
— Tia, olha, é melhor eu não criar caso com isso. Acho que
fará bem, para mim, não criar expectativas. Vou só seguir o fluxo da
vida e ver onde tudo isso vai dar. Mas, como eu disse, o motivo de
eu ter vindo aqui foi para falar sobre a Molly. Mesmo que eu não
esteja esperando nada do Liam, eu sei que não devo continuar com
a Molly. Essa situação toda com o Liam me fez enxergar que este
namorado não está certo. Não posso continuar assim. Eu estou
enganando-a, e percebo que o que sinto por ela é totalmente
diferente do que sinto pelo Liam. Eu gosto dela sim, mas como
amiga. Mesmo que a gente já tenha se beijado, transado, enfim, eu
sempre gostei dela como uma amiga e me precipitei em pedi-la em
namoro. O problema é que eu não sei o que fazer e, muito menos,
como fazer.
— Não sabe o que fazer? — franzindo um pouco o cenho,
Sam perguntou.
— Sim... — com desânimo, respondi. — Eu sei que do
mesmo jeito não dá para continuar. Mas, eu não sei o que fazer, não
sei como fazer... Eu termino o namoro? Eu conto o que está
acontecendo? O que eu faço? — senti a angústia se apoderar de
mim ao despejar todas essas interrogações.
— Querido... Calma... — tia Sam suspirou. — Eu acredito que
você mesmo já sabe a resposta para tudo isso.
E o pior era que, no fundo, eu sabia, mas era tão difícil
dizer...
— Diga a palavra que está passando em sua cabeça, querido
— tia Lexie pediu.
Era complicado, mas dei um suspiro e...
— Término — falei.
— Terminar é a atitude mais correta — ela concordou.
Mas, não era só isso...
— O problema não é terminar — expliquei. — O problema é
como fazer isso. Eu não tenho a menor ideia. Eu simplesmente
termino o relacionamento do nada? Sem dar explicações? Eu omito
a parte sobre estar gostando do seu irmão e digo apenas que a
considero como amiga? Molly vai ficar uma fera se souber que eu
estou gostando do irmão dela. Além do mais, corre o risco dela dizer
para os pais e, por ora, eu não estou a fim de que todos saibam
desse lance com o Liam. Eu realmente não sei como terminar. Estou
perdido.
— Querido... — enquanto falava, tia Sam levantou do sofá e
se sentou em uma poltrona ao meu lado. — A situação é um pouco
delicada. Mas, bem, como eu posso te dizer isso? É... Hum... —
parou por alguns segundos, como se estivesse tentando escolher as
melhores palavras. — Você tem que falar a verdade. Sabe por quê?
Algo me diz que esse “lance” entre vocês... — fez aspas com os
dedos. — Vai ficar cada vez mais sério, e será pior caso você
termine o relacionamento com ela e, logo depois, apareça
namorando o Liam.
Namorando o Liam? Quê?!
— Tia! — arregalei os olhos, meio atordoado. —
Namorando?! Não, tia, claro que não!
— Meu anjo... — sorrindo, ela balançou a cabeça. — Eu sei
como as coisas funcionam.
Isso não tinha lógica! Eu nunca iria namorar o Liam! Até
porque, Liam jamais iria querer algo sério comigo. A tia Sam estava
viajando!
— Que coisa mais sem cabimento, tia! — em choque,
repliquei. — Claro que eu e o Liam nunca vamos namorar —
garanti.
— Se você diz... — Ainda sorrindo, deu de ombros. — Mas, o
fato é que eu acho que você deve ser sincero com ela em todos os
aspectos.
Meu Deus... A Molly vai ficar possessa.
— Mas, tia, eu só iria omitir uma pequena parte... — quase
choraminguei. Não me imaginava admitindo qualquer tipo de
relacionamento com o Liam. — Talvez seja melhor que não saiba
sobre esse lance com ele.
— Sabe um efeito chamado de “bola de neve”? — tia Lexie
questionou. — As mentiras e omissões vão aumentando,
aumentando e aumentando, feito uma bola de neve, ao ponto de
você ser quase engolido por elas.
— Lexie tem razão, querido — Sam concordou. — É melhor
que você deixe tudo esclarecido. Senão, futuramente, pode ser pior.
Ah meu Deus, eu estava ferrado!
— E se ela contar para os seus pais? E, depois disso, contar
para os meus pais? E, depois, para Londres inteira?! — senti o
desespero despontar.
— Querido, acalme-se... — Sam segurou minhas mãos. —
Me diga uma coisa. Qual o seu nível de amizade com a Moly?
— Bom... Eu sempre a considerei como minha melhor amiga.
Desde que éramos crianças.
— E você confia nela? — tornou a perguntar.
— Sempre confiei muito. Ela sempre esteve comigo.
— Então, esse será o momento que ela terá para mostrar que
é sua amiga de verdade. Se ela for mesmo sua amiga, como está
dizendo, ela poderá até ficar um pouco abalada, mas logo vai
entender a situação e não vai contar para ninguém.
Suspirei.
— Tia, será mesmo que isso vai dar certo? Não acha que é
algo muito surreal? A Molly me ama. A garota é apaixonada por
mim, tia! Não gosto nem de pensar no que ela pode fazer, quando
souber.
— Querido, se ela te amar de verdade, por mais que doa no
início, ela não vai te fazer mal — resignada, tia Sam respondeu.
— Meu anjo... — Agora, foi a vez de Lexie. — Eu concordo
com a Samantha em vários pontos, mas acho que você deve ir aos
poucos com a Molly. O choque pode ser grande, se você contar tudo
de repente a ela. Por que você não vai se mostrando aos poucos?
Aos pouquinhos ela vai perceber o que está acontecendo. Daí,
quando você finalmente contar, o choque pode não ser tão grande.
Mas, você deve começar a agir logo.
Ah, Deus, será que isso daria certo? Será que não era melhor
fazer como quando se tira um band-aid? Tipo de uma vez?
— Será que funciona mesmo, tia? — questionei.
— Bom, pode ser melhor do que contar de uma vez e chocá-
la.
— Então, como eu posso contar aos poucos pra Molly o que
está acontecendo? — em uma mistura de curiosidade com receio,
perguntei.
— Querido, você pode fazer assim...
Então, tia Lexie começou a compartilhar comigo algumas
maneiras de contar, aos poucos, para a Molly, o que estava
acontecendo comigo. Eram dicas valiosas. No entanto, muito
arriscadas, porque, apesar de tudo, uma hora ou outra, eu teria que
abrir o jogo de vez. Mas, enquanto isso não acontecesse, tentaria
seguir os conselhos sobre ir devagar.

❖❖❖

A conversa na casa das minhas tias ainda durou mais alguns


minutos. Depois dos vários conselhos, agradeci e fui embora. Afinal,
não podia demorar muito. Eu ainda tinha que ir ao meu último
destino, antes de viajar para o jogo: a casa do Liam. Embora o
motivo principal fosse a devolução do remédio, no fundo, isso era
um ótimo pretexto para vê-lo.
Eu não podia ficar mentindo para mim mesmo, eu queria ver
o idiota do Liam, até porque tinha quase certeza de que ele não iria
viajar por causa da lesão na perna. Não fazia sentido ele ir, já que
ele não poderia ficar nem no banco reserva. Noventa por cento de
mim queria vê-lo, os outros dez por cento sabiam que isso era
errado, antes de me resolver com a Molly, principalmente se ele
estivesse sozinho. Inclusive, seria muito bom se ela estivesse em
casa, pois, assim, seria mais difícil de eu não cair em tentação.
Parei em frente à casa da família Tremblay. Estava tudo
muito calmo e tranquilo. Retirei a caixa de remédio do porta luvas e
saí do carro. Caminhei pelo grande jardim da casa dos Tremblay e,
quando toquei a campainha, a porta se abriu no mesmo instante.
— Eric! Querido! — tia Claire sorriu, surpresa. — Que
coincidência! Você chegou na mesma hora que eu estou de saída.
— Poxa, tia, desculpa chegar sem avisar! É que eu vim
devolver o remédio que o Liam esqueceu ontem lá em casa.
— Ah, Deus, Liam está sempre andando no mundo da lua! —
balançou a cabeça e sorriu. — Querido, eu preciso ir à empresa
agora. Meu marido acabou de me ligar, pedindo para eu ir. Molly
também não está em casa. Vai passar o dia na casa de uma amiga,
porque falou que você vai viajar hoje. Então, você pode subir e
entregar o remédio ao Liam. Ele está no quarto.
Quê? Ah não, ele estava sozinho. E eu ficaria sozinho com o
Liam debaixo do mesmo teto? Não, não, não. Muito tentação para
quem ainda estava namorando. Não dava. Eu não podia fazer isso.
Tia, será que você poderia entregar a ele? Eu estou tão
apressado... — e dei-lhe um pequeno sorriso sem jeito.
— Querido, eu estou muito mais apressada que você,
acredite. Trabalhar em pleno sábado deveria ser contraindicado
pelos médicos! — soltou uma pequena risada e começou a
caminhar rumo à garagem onde seu carro estava estacionado. —
Pode subir, filho!
Ah meu Deus! Maldita empresa de grife de roupas dos pais
do Liam!
— T-Tá bom, tia — meio nervoso, respondi. — Bo-Bom
trabalho!
Buscando alguma gota de coragem dentro de mim, entrei na
casa e fechei a porta atrás de mim. Silêncio. Eu não vi ninguém.
Liam realmente estava no quarto. Comecei a subir as escadas
cautelosamente, até que, finalmente, alcancei o andar superior,
onde ficavam os quartos.
Onde diabos eu estava com a cabeça quando decidi devolver
esse remédio?!
Andei pelo corredor até chegar à porta do Liam. Estava
fechava. Meu coração acelerou. Vamos lá, Eric, não pode ser tão
difícil. Você apenas deve devolver um maldito remédio e ir embora.
Se o Liam não fosse tão lesado, não teria esquecido esse infeliz em
cima do balcão da minha casa e eu não estaria, agora, sozinho com
ele debaixo do mesmo teto, correndo o risco de cair em tentação!
Respirei fundo.
Tudo bem, Eric, tudo bem. Não é hora de praguejar
mentalmente. Vamos encarar a realidade e tentar concluir essa
missão da melhor forma possível.
Então, dei três batidas na porta e esperei alguns instantes.
Nada. Sem resposta. Será que ele estava dormindo? Nossa, ele
ficaria uma fera se eu o acordasse. Entretanto, eu precisava
entregar o remédio. Então, dei mais três batidas na porta, até que...
— Mas que porra... — o ouvi resmungar segundos antes de
abrir.
Em menos de meio segundo, ficamos cara a cara. Seu
cabelo estava bagunçado, seu rosto estava marcado e seus olhos
estavam espremidos. Ele usava apenas uma calça de moletom.
Droga, a tia Claire não me avisou que ele ainda estava dormindo!
— Bom dia... — e dei um sorriso meio amarelo.
— Cacete, eu ainda tô no meio do pesadelo — e
simplesmente fechou a porta na minha cara.
Merda. Sem jeito, girei sob os meus pés no meio do corredor
e me perguntei: o que eu estava fazendo mesmo da minha vida?!
Eu só precisava entregar a porcaria do remédio e ir embora! Apenas
isso!
Então, bati novamente na porta de seu quarto.
— O que você quer? — ouvi-o falar de dentro do quarto. A
porta permanecia fechada.
— Eu vim devolver o remédio que um certo imbecil esqueceu
no balcão da minha casa ontem — respondi dando ênfase na
palavra “imbecil”.
— Minha mãe já comprou outro! — de pronto, ele replicou. —
Preciso desse não, idiota.
Ele era um demônio mesmo. E isso só fazia com que eu me
perguntasse: por que eu gosto desse infeliz, meu Deus? Por quê? O
que eu fiz para merecer esse castigo? Eu estou pagando pelos
meus pecados? Com certeza devia ser porque transei com todas as
líderes de torcida do Colégio Liverpool antes de me transferir. Bem
que o Adam me disse que não era pra eu fazer isso!
— Engraçado, porque eu cruzei com a tia agorinha, antes
dela sair, e ela não me falou nada sobre isso!
Silêncio. Alguns instantes se passaram. Mais silêncio.
Ele não ia mais me responder?
— Vou deixar o remédio na sua porta. Tô indo embora.
Me abaixei para colocar o remédio no chão, mas, quando ia
subir de volta, a porta se abriu.
— Ora ora... — levantei-me completamente. — A Bela
Adormecida decidiu me atender — Não pude evitar o sarcasmo,
fazia parte da minha personalidade quando eu estava perto do Liam.
— E já me arrependi — resmungou.
Peguei o remédio que estava no chão e ergui em sua
direção.
— Parece que você é minha Cinderela doentinha... — Mais
um sarcasmo, porque Liam era altamente “zoável”. — Em vez de
esquecer o sapatinho, esqueceu o remedinho — soltei uma
pequena risada.
— Vai se foder, idiota — e puxou o remédio da minha mão,
revirando os olhos.
Eu poderia foder você.
Quê?! Meus pensamentos estavam cada vez piores!
— Como tá perna? — perguntei no automático, como se isso
fizesse com que aqueles pensamentos sórdidos sumissem.
— Melhor — resmungou. — O que você ainda tá fazendo
aqui? Não tem que viajar?
— Só à tarde. Você nem vai a esse jogo, né?
— O que você acha? — deu-me um olhar de tédio,
demonstrando o quanto minha pergunta foi óbvia.
— Me ligo... — balancei a cabeça, assentindo. No fundo,
parecia que eu estava procurando algum assunto para continuar ali
e não ir embora. Entretanto, quando me dei conta disso, tratei logo
de corrigir o erro. Eu não poderia ficar ali por muito tempo, devido a
uma série de motivos. — Bom, vou indo — e fiz menção de me virar.
— Ei, idiota.
— Meu nome é Eric — disse ao parar no meio do caminho e
me virar de volta para ele.
— E o meu é Liam, para o caso de querer me chamar
novamente de Bela Adormecida, Cinderela, ou qualquer outra
merda — respondeu na mesma moeda.
— Me chamou pra quê? — tentei ir direto ao ponto.
— Aquela mulher... Tua tia... Tem certeza de que ela não vai
dar com a língua nos dentes? — Seu semblante ficou mais sério, ao
perguntar.
— Absoluta — me aproximei, sentindo meu semblante
também ficar tão sério quanto o dele. Era como se tivéssemos
falando sobre um assunto proibido ali, na sua casa. — Ela é uma
pessoa da minha total confiança.
— Assim espero — e me olhou com ar de superioridade,
como se tentasse me intimidar de alguma forma. Todavia, não era
exatamente assim que ele conseguia me intimidar. — Ou já sabe,
né? Dou um jeito de você acabar morto em alguma esquina.
— Tô sob aviso, então — com uma pontinha de sarcasmo,
repliquei. — Agora... Vou lá.
— Deve tá na tua hora, né? — puxou mais um pouco de
conversa.
— Tá mesmo.
— Do jeito que você é lesado, pode acabar se atrasando pra
viagem — disse.
Foi aí que eu percebi que era como se ele estivesse falando
essas coisas como desculpas para que eu permanecesse ali, nem
que fosse por mais alguns segundos. Era como se, no fundo,
mesmo que ele não admitisse, ele não quisesse que eu fosse
embora. No momento, o encarei mais atentamente. Ele estava sem
camisa e usava apenas uma calça de moletom. Eu precisava de um
pouco de sanidade para a minha vida, Deus.
— É possível — repliquei, já viajando, mas não para o local
do jogo, e, sim, para o corpo dele.
— Acho que tá na tua hora mesmo — falou no exato
momento em que percebi ele começar a me olhar de um jeito tão
estranho quanto aquele que eu também o olhava. Isso era algo
suspeito.
— Eu tenho certeza que tá — e reparei em seu abdômen
definido e nu.
Cristo, eu precisava de uma pomba da paz que trouxesse
não somente paz para minha vida, mas também um pouco de juízo,
porque eu estava prestes a perder o pouco que ainda me restava.
— Então, cai fora daqui — acenou com a cabeça.
— É, eu vou sim... Eu vou... Vou...
E, então, como em um piscar de olhos, avancei nele. Jesus,
eu estava fazendo isso mesmo?! Empurrei-o quarto adentro e beijei-
o sem o menor pudor. Percebi que ele estava cedendo. Deus, ele
estava mesmo cedendo? Era quase inacreditável.
Suas mãos tiraram a minha jaqueta e a jogaram no chão,
enquanto sua boca descia pelo meu pescoço. Minhas mãos
finalmente tocaram seu abdômen sem nenhum obstáculo de tecido.
Senti cada músculo, cada parte das suas costas, dos seus braços e
dos seus ombros, ao passo que sua respiração batia ofegante
contra a minha pele.
Eu deveria parar com isso, mas estava tão bom...
— Não acredito no que estamos fazemos — Liam disse entre
beijos. Sua respiração descompassada, seus olhos fechados e seus
lábios pedindo por mais.
— Eu também não acredito... — desci meus beijos pelo seu
pescoço, sugando. — Mas... É bom...
E, então, ele desceu as mãos pelo meu quadril, quase
chegando ao meu traseiro. O que ele queria aí?
— Gay... — sussurrou no meu ouvido.
Ah, então, é assim?
Chupei o lóbulo de sua orelha e...
— Se eu sou, você também é... — sussurrei de maneira
provocativa, também no seu ouvido.
Isso foi o suficiente para que ele, instantaneamente, parasse.
Seu corpo inteiro travou. Ah não, o que eu fiz?
— Como é que é? — fechou totalmente o semblante,
franzindo o cenho e piscando repetidas vezes os olhos, como se
não tivesse gostado, nem um pouco, do que ouviu. — Gay? Você
me chamou de gay?! — e me empurrou.
Eu e essa minha mania de provocar o Liam. Que saco!
— Você me chamou de gay primeiro! — repliquei.
— Porque eu só estou vendo um gay aqui, que, no caso, é
você! — exasperado, falou, pegando minha jaqueta que estava
caída no chão e jogando em cima de mim. — Cai fora daqui!
— Mas... — Ainda tentei argumentar.
— Sai! Agora! — e empurrou para fora do quarto.
— Liam... — tentei falar novamente.
— Cai fora! — e, com força, fechou a porta na minha cara.
Tudo culpa do Eric
Liam

“Olá, eu sou o Robert. Não posso atender no momento. Deixe seu


recado após o sinal.”
Mas que inferno é esse?!
Exasperado, joguei o celular na cama e passei as mãos no
rosto. Eu tinha certeza que meu rosto estava ficando vermelho de
tanta raiva. Por que a pessoa tinha um celular, se não atendia? Já
era segunda-feira de manhã, mas ninguém, eu disse ninguém, do
time me deu notícias sobre o jogo. Liguei quinhentas mil vezes para
o Robert, mas a chamada só caía na caixa postal. Também liguei
quatrocentas mil vezes para o William, mas a ligação não
completava. Como se não bastasse, também tinha enviado
mensagens para todos os meus amigos do time, mas aqueles
imbecis não me responderam.
Buda definitivamente não estava facilitando a minha vida. Só
existia apenas uma pessoa para quem eu não tinha ligado, nem ia
ligar, para saber informações sobre o jogo: Eric. Era mais do que
lógico que eu não iria ligar para ele, até porque a culpa era toda
dele, por eu não ter jogado. Se não tivesse me beijado na varanda,
a minha cabeça não tinha virado e eu não chegaria tão estressado
para o treino ao ponto de querer descontar toda a raiva na porcaria
do exercício!
Mas, ao contrário, ele me beijou, eu fiquei louco quando a
ficha caiu, me estressei e cheguei ao colégio querendo soltar uma
bomba em todo mundo. Ferrei minha perna no treino, não joguei, os
primeiros olheiros das universidades não me viram, e, agora, eu
estava feito um retardado, querendo saber sobre o jogo, mas
ninguém me dava um infeliz retorno. Perfeito. Como eu disse, isso
era tudo culpa do Eric!
Para completar, nos últimos dias, esses não foram os únicos
efeitos nocivos do Eric sobre a minha vida. Ele simplesmente tinha
virado o meu mundo de cabeça para baixo. Era como se tudo
estivesse fugindo do meu controle. Uma verdadeira bosta, já que eu
sempre comandei a maioria das situações da minha vida. Agora, no
entanto, era como se eu estivesse em um tobogã, descendo direto
para o inferno! E quem estaria lá me esperando? O Eric, sentado no
colo do capeta, segurando um tridente e esperando só o momento
de enfiar no meu traseiro.
Desde o infeliz episódio no pub, era como se a minha vida,
cada vez mais, estivesse se afundando em uma fossa podre e
imunda. Eu jurava que a Vodca, minha linda e amada Santa Vodca
do Céu, iria me fazer esquecer de todas as coisas erradas que eu
estava com vontade de fazer. Mas, o que aconteceu? Meu pior
pesadelo. Quase morri de beber, beijei o Eric, desmaiei e, no outro
dia, eu me lembrei de simplesmente tudo! Quando eu queria me
lembrar das coisas, a Vodca me fazia esquecer que era uma beleza,
mas, quando eu queria esquecer, parecia que ela fazia questão de
não funcionar.
Eu tentei, eu juro que tentei agir como se eu tivesse
esquecido, ou melhor, como se nada tivesse acontecido, mas
parecia existir a porcaria de ímã me atraindo para perto daquele
imbecil-idiota-certinho-santinho-do-pau-oco. A grande prova do meu
completo fracasso era que eu cheguei, até mesmo, ao nível de ligar
para agradecê-lo por ter me livrado da detenção, e, depois, de ainda
ajudá-lo a sair da sua. Thor, Zeus, Buda, Poseidon, onde eu estava
com a minha cabeça? Me arrependia tanto de tudo o que eu tinha
feito! Sem dúvidas, eu estava fora de mim. Era um colapso na
minha lucidez e sanidade.
Depois disso, eu me concentrei para voltar a ser eu.
Maravilhoso e fantástico, como eu era, eu estava conseguindo. Os
ficas com a Stefany e com as outras garotas estavam até voltando
ao normal. Quer dizer, não tão normal assim, porque eu até as
beijava e fazia as preliminares, mas não conseguia transar há dias.
Eu estava subindo pelas paredes, mas, na hora h, não acontecia!
Stefany estava até brincando com a minha cara! Eu estava
perdendo minha reputação mesmo... Logo eu! O cara mais hetero
do Colégio Regent. Não era porque eu tinha cometido alguns
deslizes, que tinha deixado de ser hetero!
Completando o inferno na minha vida, Eric teve a brilhante
ideia de me beijar na varanda do meu quarto. Agora, eu não
conseguia chegar perto daquele maldito parapeito sem me lembrar,
e o pior era que eu estava indo tão bem e fingindo tão bem que
nada tinha acontecido! Porém, o clima mudou entre nós, durante os
estudos, ele me colocou contra a parede, literalmente, e eu, de
maneira idiota, acabei confessando e cedendo. Ah como eu tinha
sido idiota nos últimos dias! Estava cedendo a todas as investidas
do pilantra do Eric, aquele safado que tinha um beijo gostoso.
Por que ele tinha que beijar tão bem?
Por que ele tinha que ter uma pegada tão boa?
Mas, a gota d’água aconteceu no dia anterior, quando, além
de eu já estar com a cabeça cheia por causa daquela intrometida da
tia dele, aquele imbecil ainda teve a audácia de dizer que eu
também era gay, um gay como ele! Tudo bem que fui eu quem o
chamou primeiro, mas ele deveria ter ficado de bico fechado. Se eu
o chamei assim, era porque ele, de fato, era. Enquanto eu,
definitivamente, não era! A palavra simplesmente saiu da minha
boca, porque foi a primeira coisa que eu pensei quando minha mão
estava quase chegando a sua bunda.
Ao contrário dele, eu era hetero. Eu era Liam Wyman
Tremblay Terceiro, o maior artilheiro que o time do Colégio Regent já
viu, o maior atacante de todos os atacantes do campeonato, o cara
mais homem e mais pegador daquela escola. Portanto, ser gay não
estava nos meus planos. Se Eric queria me colocar no mau
caminho, não conseguiria. Não conseguiria mesmo!

❖❖❖
— Bom dia, querido! — mamãe me cumprimentou assim que
sentei à mesa do café da manhã.
Bom? O que tinha de bom na porcaria de um dia em que
seus amigos decidiram te ignorar e que você teria que aguentar a
presença do Eric no colégio? Eu realmente não via nada de bom.
Em silêncio, sentei-me para fazer a refeição e comecei a me servir.
Mamãe estava tomando seu café, papai lia entretido um jornal e
minha irmã escutava música em seus fones.
— As vendas da empresa estão indo bem esse mês — papai
comentou com mamãe, enquanto tomava um gole de café, após
fechar o jornal. — Acredito que poderemos comprar mais um carro.
Aquela BMW conversível lançada há pouco tempo.
— Notícia boa, querido — sorrindo, mamãe respondeu. —
Então, acho que vou dar uma passadinha na Gucci e na Louis
Vuitton — e soltou uma piscadela astuta para o papai. Meus pais e
seus hábitos consumistas. Eu não podia reclamar, porque eu era tão
consumista quanto eles.
— Me chama quando for, mãe — Molly se pronunciou.
— Sendo assim, acho que posso trocar minha Lamborghini
por uma mais nova, não é? — sugeri, já imaginando que isso era
completamente possível, diante das nossas condições financeiras.
Nós já tínhamos uma boa vida normalmente, mas, com as vendas
aumentando, nosso padrão melhoraria ainda mais.
Papai, no entanto, tomou mais um gole do café e me olhou
de maneira incisiva.
— Como estão seus estudos? — questionou.
Quando seu dia estiver uma merda, não se preocupe. Ele
pode piorar.
— Bem — respondi tão somente. Eu não tinha como avaliar,
por enquanto, já que não tive novas provas, depois que comecei a
estudar com o imbecil do Eric. Então, eu ainda não conseguia saber
se as aulas particulares estavam servindo para alguma coisa. Para
beijar, no entanto, estavam servindo que era uma beleza. Merda.
— Não foi isso que suas últimas notas disseram — replicou.
— Querido, Liam está tendo aulas particulares com o Eric
agora — mamãe interviu na situação, embora eu não soubesse se
esse era o melhor comentário a ser feito. — Acredito que essas
aulas vão trazer bons resultados.
— Não tive provas depois que comecei a ter aulas com
aquele imbe... Digo, com o Eric. Então não consigo avaliar os
resultados, por enquanto — Assim que me calei, notei Molly me dar
um olhar raivoso pelo quase saiu da minha boca. Qual é? Eric era
um imbecil mesmo. Tudo bem que explicava bem a matéria,
ensinava bem, beijava bem, mas não deixava de ser uma porcaria.
— Eric é um bom menino — Após comer um pedaço do bolo,
papai continuou, enquanto ainda mastigava. — Talvez essas aulas
tragam bons resultados mesmo. De toda forma, quero ver suas
próximas notas. Ok?
Que saco, por que eu era o único daquela casa a ser cobrado
dessa maneira? Nunca vi meus pais cobrando a Molly assim por
nada! E olha que ela nem era uma aluna exemplo. Isso era muito
injusto comigo.
— Tá — resmunguei.
— Por que está me respondendo assim? — Sua voz se
tornou ainda mais séria. — Eu sou seu pai. Quero ser respeitado.
Então, me responda direito, como tal.
Ah, me poupe!
— Eu respondo assim, porque eu sou o único cobrado aqui!
— falhando miseravelmente na tentativa de controlar minha raiva,
falei. — A Molly está bem aqui e ninguém pergunta a ela nem se foi
às aulas da semana passada. A Molly não é uma aluna tão
exemplar assim! Cobrem dela também, porque eu estou cansado!
— Cala a boca, seu idiota! — ela disparou. — Eu tiro notas
boas, diferente de você!
— Se acalmem, crianças... Se acalmem — Com tom de
advertência, mamãe se pronunciou, tentando apaziguar a situação.
— Briga nunca levou ninguém a lugar algum.
— Liam, quem está no último ano escolar é você, não a
Molly. E, mesmo se fosse ela, tenho certeza de que teria um
desempenho melhor que o seu — papai falou, pouco se importando
em colocar mais lenha na fogueira. — Não era você que queria ir
para Harvard?
Na verdade, eu queria ir para qualquer universidade que me
aceitasse. Só falei de Harvard para impressionar, mas já me
arrependia disso, porque não aguentava mais toda essa cobrança.
— É — respondi tão somente.
— Com suas notas e sua inteligência, você não passa nem
na calçada de Harvard — Sério que eu estava ouvindo isso mesmo?
Então, quer dizer que eu não podia desrespeitá-lo, mas ele podia
fazer isso comigo? — Se você finalmente decidir ser como o Eric,
quem sabe consiga, porque o Eric é inteligente, esforçado, dedi...
Que droga, eu não queria mais saber absolutamente nada
sobre o Eric, porque já ouvia isso desde criança!
Levantei-me rapidamente da cadeira e peguei minha mochila.
— Não sou obrigado a ouvir isso — interrompendo-o, saí
porta afora da sala de refeições.
— Querido, você está esquecendo sua irmã! — Ainda ouvi
minha mãe falar.

❖❖❖

Saí de casa tão rápido que nem dei carona para a minha
irmã. Não sabia se meus pais tinham a levado, mas eu não estava
me importando com isso. A minha cabeça só conseguia pensar nos
meus próprios problemas. Como se não bastasse a pressão que eu
fazia sobre mim mesmo, ainda tinha que aguentar a pressão do meu
pai! Eu só esperava que dessem boas notícias sobre o jogo, para
que algo de bom pudesse acontecer naquele inferno de dia.
Estacionei o carro no colégio e caminhei em direção à
entrada principal. Onde estavam as pessoas que sempre me
cumprimentavam? Ninguém tinha falado comigo ainda. Porém, eu
não me daria ao trabalho de cumprimentar alguém. Poucas pessoas
tinham essa sorte comigo. Adentrei no corredor e...
— Bom dia, capitão — Com um sorriso que não chegava aos
seus olhos, uma garota falou.
— Capitão — um cara, em seguida, me cumprimentou
apenas com um breve acenar de cabeça. Seu semblante estava
meio sério.
Agora sim eu estava reconhecendo o meu colégio: as
pessoas estavam me cumprimentando como sempre faziam. A
única coisa que eu não entendia era esse clima estranho rolando no
ar.
— Oi, capitão — Mais uma garota e mais um garoto falaram
comigo. Porém, o tom de voz deles demonstrava certo
desapontamento.
Me inquietei. Que merda estava acontecendo ali? Onde
estavam meus amigos? Cadê as pessoas do time? Será que
alguém poderia me dar alguma explicação?
Caminhei até o pátio, procurando por Robert e William, e
observei de maneira geral o local. Não demorou muito até meu olhar
mirar na direção em que estavam. Conversavam em uma parte mais
reservada do pátio. Seus semblantes estavam sérios, assim como
os das outras pessoas do colégio. Isso só me deixava preocupado e
curioso.
Alguma coisa tinha acontecido!
Só um detalhe: eu odiava ser o último a saber!
Caminhei rapidamente até eles e não me demorei em
perguntar:
— Que merda aconteceu?
Ambos se assustaram um pouco com a minha chegada
repentina, ou, então, porque estavam realmente escondendo algo,
ou pelos dois motivos.
— Oi... Liam... — Robert tentou sorrir.
— Estou esperando uma resposta decente — olhei
seriamente para os dois, impaciente. — Aliás, eu estou esperando
por essa resposta o final de semana inteiro, mas parece que todos
estão me evitando. Digam logo.
— Liam... — William começou. — O técnico quer fazer uma
reunião antes da aula começar. Vamos?
Definitivamente, minha paciência tinha ido para o espaço!
— Que saco! — exclamei. — Por que vocês não falam logo?
— Reunião, Liam. Reunião — Robert disse tão somente e
puxou em direção à sala da concentração.

❖❖❖

— Perdemos — Essa foi a primeira palavra que o técnico


pronunciou.
O quê? Perderam o jogo?!
Olhei em volta e constatei, pelo rosto nada surpreso de todos,
que eles já estavam cientes. Eu realmente tinha sido o último a
saber daquela merda. Agora eu entendia porque não estavam
atendendo às minhas ligações, nem respondendo às minhas
mensagens. Provavelmente, estava com medo que eu soubesse.
Frouxos.
— Infelizmente, perdemos para o nosso atual principal
adversário. O Colégio Manchester. Com o Liam suspenso por causa
da perna e com o Eric no banco reserva por causa do ocorrido no
pub, ficamos em desvantagem. Dois titulares afastados do jogo. Eu
sei que isso é triste. Eu sei que isso é ruim. Mas, não podemos nos
deixar abalar. Esse foi apenas o primeiro jogo. Ainda temos outros
para recuperar a pontuação.
Eu não estava acreditando no que ouvia. Como a gente
perdia um jogo daquele? Tínhamos que começar o campeonato
vencendo! Isso só fazia com que minha raiva e meu estresse
aumentassem cada vez mais. Virei meu rosto para o lado em
exasperação e acabei notando que, da ponta oposta, Eric estava me
observando. Rapidamente, desviei meu olhar. Desde que eu entrei
naquela sala, ele não parava de me encarar.
O que ele queria, afinal? Dizer de novo “se eu sou, você
também é”? Ah, por favor!
— Então, chamei vocês aqui para avisar três coisas —
continuei a ouvir o técnico. — A primeira é que amanhã teremos
treino. Precisamos treinar o quanto antes, porque, ainda essa
semana, teremos o próximo jogo do campeonato. A segunda é que
eu estou bolando novas estratégias para colocar em prática nas
próximas partidas. Posteriormente, entrarei em detalhes. A terceira
é que falei com o médico da escola sobre a situação do Liam. Ele
disse que Liam poderá participar do próximo jogo... — Amém, Zeus!
— Mas, me advertiu de que ele não poderá fazer muito esforço e de
que precisa pegar leve no treino e no jogo. Portanto, decidi que,
enquanto Liam não estiver totalmente recuperado, Eric será o
capitão do time.
— O quê?! — exclamei de supetão, para todos daquela sala
ouvirem, mesmo que não fosse proposital. As palavras
automaticamente saíram da minha boca, tamanho absurdo que eu
tinha acabado de ouvir.
Como assim? Não, não, não. Isso não podia estar
acontecendo!
— É isso mesmo que você ouviu, Liam — Sr. Jones
confirmou aquele pesadelo. — Por enquanto, Eric será o capitão do
time.
Isso só podia ser uma piada de muito mau gosto! Poseidon
realmente decidiu brincar com a minha cara. Instantaneamente,
encarei o imbecil do outro lado, que mantinha no rosto um
semblante perplexo, como se não soubesse de nada até aquele
momento. Ah, me poupe! Ele não me enganava! Não adiantava
fazer aquela cara de santo, porque eu tinha certeza de que ele já
sabia.
Transtornado, virei-me rapidamente para o técnico e...
— Mas, Sr. Jones, minha perna já está praticamente boa! —
exclamei, porque estava difícil manter a calma. — Não é necessário
fazer esse tipo de substituição.
— Sim, Liam, é necessário. O médico me falou que você
ainda não pode se esforçar muito. O posto de capitão requer
esforço, principalmente porque me ajuda no comando da equipe,
dentro e fora de campo, antes e durante os jogos. Então, enquanto
você não estiver totalmente recuperado, Eric será o capitão. Ele já
tem experiência com isso, já que assumiu esse posto por muito
tempo, enquanto estudava no Colégio Liverpool.
Já não bastava tirar notas boas? Já não bastava ser
inteligente? Já não bastava ser um dos melhores alunos do colégio?
Já não bastava ser queridinho por todos? Já não bastava jogar
bem? Agora também tinha que tirar de mim o Meu posto que eu
tinha no Meu time?!
— Mas, Sr. Jones... — Ainda tentei argumentar.
— A decisão é essa, Liam — o técnico, no entanto, me
interrompeu. — Estão liberados. Não se esqueçam do treino de
amanhã. A reunião está encerrada.
Merda!
Saí da sala da concentração bufando e deixando todos para
trás. Não fazia questão de esperar por nenhum deles, assim como
não estava com vontade de falar com ninguém. Eu tinha certeza que
era capaz de matar a primeira pessoa que cruzasse o meu caminho,
daquele minuto em diante. Depois de tudo, eu me sentia
completamente sem cabeça para assistir aula. O melhor que eu
poderia fazer era tentar encontrar um local reservado no pátio, para
que eu ficasse lá até os meus ânimos se acalmarem.
Continuei caminhando, quase correndo, em direção ao pátio,
quando, de repente, senti alguém segurar meu braço. Quem era o
infeliz que ainda queria atrapalhar um pouco mais da minha vida?
Virei-me e... Ah não. Não, não, não. O idiota do Eric não! Não lhe
dei uma palavra sequer. Apenas puxei meu braço e voltei a
caminhar, sem paciência. Ele, no entanto, era um inferno insistente.
Assim, me segurou pelo braço outra vez.
— Me solta, idiota! — disparei. Eric, por sua vez, como se
não estivesse escutando o que eu dizia, me puxou para um corredor
vazio próximo a nós. — Mas merda é essa? — questionei, enquanto
tentava me desvencilhar de suas mãos. Ele, no entanto, continuava
me segurando firme.
— Liam, espera. Vamos conversar? — pediu.
Thor, me dai forças para não arrebentar a cara dele,
obrigado!
— O que você quer, capitão? — Com minha voz carregada
de ódio e sarcasmo, dei ênfase na palavra “capitão”. — O que foi?
Vai querer me chamar de gay de novo ou vai querer esfregar na
minha cara que pegou meu posto no time?
Bingo! Em uma só frase joguei os dois principais motivos da
minha raiva. Eric, por sua vez, tentando manter calma, respirou
fundo e me olhou nos olhos.
— Primeiro, a culpa não é minha se o treinador quis me
colocar como capitão. Mas, não fica assim, daqui a pouco você se
recupera e volta ao seu posto de origem. Segundo, eu não te
chamei de gay. Eu só retribuí o que você falou comigo.
Revirei os olhos, enojado.
— Eu não me importo com o que você tá falando! Me solta!
— impaciente, tornei a pedir. Eu só queria sair dali e ficar sozinho
com meus próprios pensamentos!
— Liam, calma... — pediu novamente. — Eu queria te dizer
que jamais faria qualquer coisa pra te tirar do posto de capitão. Eu
sei o quanto isso é importante para você. Eu não sabia que o
treinador faria isso. Fui pego de surpresa tanto quanto você. Não
fica assim chateado. Daqui a pouco esse título é seu novamente.
Eu não aguentava quando Eric queria dar uma de “golden
boy”. Sentia ainda mais vontade de socá-lo!
— Se você não me soltar agora, eu juro que meu punho vai
acertar sua cara — ameacei.
— Você não faria isso. Sabe que não pode mais ir para a
detenção.
Inferno de vida!
— O que mais você quer, além de me perturbar?
— Olha, Liam, eu passei o fim de semana inteiro pensando
no que aconteceu no seu quarto. Mesmo sabendo que foi errado,
não quero apontar o dedo na sua cara e dizer que foi errado da sua
parte em me chamar de gay de um jeito tão pejorativo. Mas, quero
me desculpar, porque também foi errado da minha parte eu ter
retribuído o que você me falou. Desculpa. Eu não deveria ter falado
aquilo.
Automaticamente, revirei os olhos para ele. Eu não curtia
pedir desculpa, assim como também não curtia ouvir pedido de
desculpas. Isso não era do meu feitio.
— Capitão... — Minha voz, novamente, estava carregada de
sarcasmo. — Vai aproveitar seu posto e todas as regalias a que tem
direito, e me deixa em paz — empurrei-o forte, conseguindo me
desvencilhar de suas mãos, dando-lhe as costas, logo em seguida,
e, rapidamente, sumindo do corredor.
Te odeio com todas as minhas forças

Eric

— Tia, as coisas estão cada vez piores — preocupado, disse ao


celular, após ligar para Samantha, enquanto eu ainda estava deitado
na cama, durante a manhã do dia seguinte.
— Calma, querido, o que aconteceu?
— As coisas entre Liam e eu estão piorando — tornei a falar.
— Tivemos uma discussão no sábado, quando fui devolver um
remédio que ele esqueceu na casa, e, para completar, ontem o
técnico do time praticamente impôs que eu o substituísse
temporariamente do seu posto de capitão do time, até que ele se
recupere totalmente. Liam não entendeu isso e eu sei que está me
culpando.
Como sempre, ele me culpava por tudo.
— Discussão no sábado? Você como capitão do time? —
confusa, tia Sam questionou. — Como tudo isso aconteceu?
— Bom, Liam esqueceu o remédio dele na cozinha da minha
casa. Então, no sábado, antes de eu viajar, fui devolver. Acabou que
nós ficamos e nos beijamos no quarto dele e... No meio de tudo o
que estava rolando, Liam me chamou de gay. Daquele jeito
pejorativo, sabe? Eu, com minha mania de provocá-lo, acabei
retribuindo e dizendo “se eu sou gay, você também”. Isso foi o
suficiente para que ele ficasse uma fera comigo e me colocasse pra
fora do quarto. Se antes ele já me odiava, depois disso ele não quis
mais me ver nem pintado de ouro.
— Querido... — tia Sam soltou uma pequena risadinha. — O
Liam não te odeia, ele só não está sabendo lidar com tudo isso
agora, mas eu tenho certeza que, muito em breve, vocês vão se
resolver da melhor maneira possível. Daqui uns dias ou semanas
você vai me dizer “tia, eu o amo o Liam e nós estamos apaixonados
um pelo outro” — imitando a voz de uma pessoa apaixonada, riu
mais um pouco.
Ah, por favor. Como se um dia eu fosse realmente falar isso...
Até parece! Eu podia estar confuso sobre uma série de coisas, mas
doido a esse ponto, graças a Deus, ainda não. Dizer que amava o
Liam era como uma sentença de morte, pois gostar dele já era
castigo demais.
— Tia, isso era para ser uma ligação séria... — levemente, a
repreendi.
— Tudo bem, querido, tudo bem. Eu vou me comportar — e
deu mais uma pequena risadinha. — Mas, agora me conte sobre
essa história de você ser o novo capitão do time.
Respirei fundo, tentando reunir forças para falar sobre isso.
Somente para mencionar o assunto, eu já gastava as minhas
energias. Eu não queria ter mais problemas com o Liam. Porém, eu
tinha a impressão de que o universo não colaborava com isso,
porque sempre surgia algo externo para nos atrapalhar.
— Nossa, tia... Essa é uma das piores partes. Sabe que o
Liam machucou a perna no treino, né? Ele ainda não está
totalmente recuperado. Vai voltar aos poucos para os treinos e não
pode fazer muito esforço. Então, ontem, de surpresa, o técnico
anunciou que eu vou substituí-lo como capitão, até que ele esteja
totalmente recuperado. Eu fiquei tão perplexo que, na hora, nem
contra argumentei com o técnico, até porque o Sr. Jones foi muito
incisivo quanto a isso. Liam ficou com raiva de mim, tia. Muita raiva.
Eu sei que ele está me culpando por tudo o que aconteceu.
— Te culpando por algo que você não teve culpa? —
interrogou.
Nada de novo sob o sol. Isso sempre acontecia comigo,
desde que éramos crianças. Se as pessoas nos comparavam, a
culpa era minha. Se ele não podia jogar, a culpa também era minha.
Se duvidar, até o fato de nos envolvermos mais intimamente, devia
ser culpa única e exclusivamente minha, em sua cabeça. Era assim
que Liam funcionava.
— Sim... Meio que isso sempre acontece, tia — desabafei. —
Inclusive, eu vou falar com o técnico hoje. Não quero substituir o
Liam temporariamente. Se o Liam não puder ocupar o posto por
enquanto, que seja ocupado por outra pessoa, menos por mim. Eu
só queria poder me entender com o Liam, sabe? Desde criança eu
tento me entender com ele. Principalmente agora que... Bem... Você
sabe...
— Querido, você já tentou conversar com ele? Quero dizer,
de maneira civilizada. Vocês precisam se entender, vocês se
gostam. Não adianta ficar nessa briga de cão e gato para sempre.
Se o treinador considerou essa substituição, mesmo que temporária,
então deve ser algo realmente viável para o time. Enfim, eu não
entendo de futebol, mas eu entendo de relacionamentos, e sei que
você e o Liam precisam se entender quanto ao time e a muitas
outras coisas.
Vocês se gostam... Essas palavras ressoaram na minha
cabeça em um quase looping eterno. Sim, eu realmente gostava
dele. Mas, e ele? O que ele sentia por mim? Ódio? Eu não
conseguia sentir outra coisa vinda do Liam, a não ser ódio.
Infelizmente.
— Eu até tentei falar com ele ontem, tia, depois do
comunicado do técnico. Mas, ele saiu feito um louco da sala de
concentração. Eu o segui e pedi para que conversasse comigo,
civilizadamente, só que ele não quis me ouvir. Ele nunca quer se
entender comigo, como se algo sempre puxasse, para bem longe,
uma possível amizade entre nós.
— Meu Deus, o que eu faço com esse garoto? — notei, pelo
tom de voz da tia Sam, que ela estava desapontada. — Precisamos
ter paciência com ele, querido. Parece que, com Liam, as coisas vão
ser mais lentas do que com você.
Suspirei.
— Por que eu tenho que gostar do Liam, tia? — indaguei,
levantando-me da cama e passando as mãos no rosto, enquanto
pensava no quanto tudo aquilo estava sendo complicado e
desgastante. — Não poderia ser um cara mais legal e menos
babaca? Por que eu tenho que gostar justo dele?
— Bom... — parou por alguns segundos, mas, logo depois,
continuou. — Talvez o presente esteja repetindo o passado. O
destino adora pregar pegar — falou rapidamente, como se estivesse
dizendo isso mais para si do que para mim.
Hum? Não entendi.
— Do que tá falando, tia? — confuso, perguntei.
— Nada, querido, nada... Você sabe que tem uma tia louca
né? — riu um pouquinho. — Agora, falando sério, meu amor, vai
ficar tudo bem. Mais cedo ou mais tarde, você e o Liam vão se
acertar.
— Melhor eu não criar expectativas — desanimado, repliquei.
— Confie no que eu digo.

❖❖❖

Confiar no que minha tia me disse? Ok, ela era mais velha e
mais experiente que eu, mas será mesmo que eu podia nutrir
alguma esperança? Eu havia ligado naquela manhã, porque já não
aguentava guardar, só para mim, tudo aquilo que estava
acontecendo. Então, aproveitando que ela já sabia mesmo sobre o
principal, resolvi desabafar sobre o resto.
Parecia que, quanto mais eu queria me entender com o Liam,
mais as coisas aconteciam para que a gente se afastasse ainda
mais um do outro. Como se não bastasse o que aconteceu em seu
quarto, o técnico ainda inventou toda aquela situação para eu ser o
capitão temporário do time. Eu precisava consertar essa bagunça.
Ainda bem que eu já estava chegando ao colégio e que, em
poucos minutos, eu teria treino. Seria um momento muito apropriado
para conversar com o técnico. Se o Liam não podia ser capitão por
enquanto, que fosse o Robert, o William, o Adam, ou qualquer outra
pessoa, menos eu. Eu estava farto de problemas com o Liam.
Caminhei pelos corredores do colégio, indo em direção ao
vestiário para trocar de roupa e treinar. Acenei para as pessoas,
falei com elas, mas notei que alguns comportamentos estranhos
estavam começando a surgir, como me chamarem por um nome
que eu não gostaria e queria distância.
— Bom dia, capitão... — sorrindo de maneira um tanto
provocativa, uma garota falou ao passar por mim.
As pessoas já sabiam que eu era “capitão”?
— Então, você é o novo capitão do colégio? —
entusiasmado, um cara cruzou meu caminho e também falou ao
tocar em meu ombro.
Aparentemente, as notícias por ali corriam rápido. Eu não o
respondi, apenas dei-lhe um breve sorriso amarelo e continuei
caminhando. Isso era tão desconfortável, porque eu não era, de
fato, um capitão. No Colégio Liverpool, sim, eu era. Mas ali não, e
eu precisava consertar isso já. Preferia nem imaginar como Liam
ficaria se soubesse que as pessoas estavam me cumprimentando
dessa maneira.
— Ele está uma fera! — Como se estivesse lendo meus
pensamentos, repentinamente, Molly surgiu, rindo um pouquinho ao
me contar isso. — Mas, isso é até bom, sabe? Bom para ele deixar
de ser tão mimado — e riu mais um pouquinho.
— Ah, oi, prin... — Como de costume, eu quase a chamei de
princesa, mas logo minha mente me trouxe uma lembrança:
terminar o namoro, mesmo que aos poucos. — Oi, Molly —
rapidamente, refiz a palavra. — Nossa, ele deve estar me odiando
mais ainda... — automaticamente, as palavras saíram da minha
boca em tom de preocupação e tristeza.
Por que eu não podia gostar da Molly? Por que eu tinha que
gostar do seu irmão? Por que eu a pedi em namoro? Eu pensava
que gostava dela. Ledo engano. Eu gostava mesmo era do idiota do
seu irmão.
— E desde quando você se preocupa com o ódio que meu
irmão sente por você? — sorrindo relaxada, ela ergueu uma das
sobrancelhas para mim.
Desde o momento em que eu admiti para mim mesmo que
gosto daquele infeliz.
— Desde... Desde... — tentei encontrar as palavras certas,
para não contar tudo de uma vez, mas dar-lhe, pelo menos, alguma
pequena pista. — Ah, sei lá — balancei a cabeça, meio confuso. —
Só seria bom se ele me odiasse menos.
— E por quê seria bom? — Dessa vez, o sorriso relaxado deu
lugar a um semblante meio confuso como o meu. Seu cenho já
estava um pouco franzido.
Ah, droga. Algo me dizia que aquela ideia de prepará-la aos
poucos não daria certo, porque eu não conseguiria aguentar por
muito tempo sem contar tudo de uma vez. Era um inferno. Eu já
estava a ponto de confessar, a qualquer momento.
— Porque eu... Eu... — Meu Deus, será que esse era o
momento de falar? Eu não sabia. A única coisa que eu sabia era
que eu estava a ponto de confessar. Tudo aquilo guardado,
borbulhava na minha garganta. Droga, eu não conseguiria colocar
em prática os conselhos das minhas tias? — Eu... Gos...
— Capitão! — Adam apareceu de supetão, passando, de um
jeito bem relaxado, um dos braços pelos meus ombros e me
interrompendo de falar. Fui pego de surpresa, como se eu voltasse
para a realidade em um nanossegundo. — Desculpe atrapalhar os
pombinhos, mas o técnico está chamando para o treino.
— Ah, tu-tudo bem... — Ainda me sentindo meio absorto por
ter sido retirado bruscamente daqueles pensamentos, respondi e
olhei para a Molly. Talvez não fosse o momento certo ainda. —
Depois nos falamos. Preciso ir para o treino — e dei um passo para
caminhar em direção ao vestiário, mas...
— Espera — Molly segurou uma das minhas mãos. Droga,
ela iria me fazer alguma pergunta sobre o que eu quase falei ou iria
pedir um beijo de despedida? O que seria pior? — Por que a gente
não assiste um filme? — perguntou, sorrindo.
Quê?
— Filme? — enruguei a testa.
— Sim... — entusiasmada, continuou. — Já está com um
tempo que não fazemos um programinha desses. Pode ser na
minha casa ou na sua.
Eu não sabia se isso era uma boa ideia.
— Molly, depois a gente fala sobre isso, tá? — e soltei minha
mão da sua.
— Tudo bem — Ainda a ouvi falar quando já tinha me virado
para ir embora e caminhava junto com Adam. — Eu amo você!
Ah, Céus, ela disse isso mesmo? Estava ficando cada vez
mais difícil! Virei meu rosto somente o suficiente para lhe dar um
pequeno sorriso e continuei meu percurso, me sentindo o pior cara
da face da Terra.

❖❖❖

Nunca pensei que um dia eu fosse sentir na pele o que era


ser fuzilado. Sim, porque eu estava sendo constantemente fuzilado
pelos do Liam, enquanto caminhava pelo vestiário. Isso quando ele
me olhava, claro, porque, na maior parte do tempo, ele preferia virar
seu rosto e desviar qualquer contato visual.
Não poderia ser diferente, já que, quando cheguei ao
vestiário, todos os jogadores começaram a me chamar pela alcunha
de “capitão”. A maioria em tom de brincadeira, claro, mas, mesmo
assim, continuava sendo desconfortável para mim e, com certeza,
muito irritante para o Liam. Era nítido que ele estava me culpando
por tudo isso.
Eu precisava ajeitar logo essa bagunça, porque não
aguentava ter mais desentendimentos com ele. Depois que
tínhamos acabado de nos vestir e já estávamos saindo para o
campo, aproveitei o momento para falar com o Sr. Jones, antes que
o treino começasse. Inclusive, era a situação perfeita, porque o time
estava andando mais na frente, enquanto ele permanecia atrás,
mais afastado de nós.
Diminuí o ritmo do meu passo, fazendo com que eu me
afastasse um pouco do time e me aproximasse o suficiente do
técnico. Era agora. Eu não aceitaria essa imposição de ser o capitão
temporário do time. Embora Liam não pudesse ocupar seu posto no
momento, outro jogador, que não fosse eu, poderia fazer isso
perfeitamente.
— Bom dia, Sr. Jones — cumprimentei-o, enquanto
continuávamos caminhando.
— Bom dia, Eric — replicou, sério. — Que bom que veio falar
comigo. Eu já ia falar mesmo com você. Como atual capitão do time,
você sabe que precisa me auxiliar não somente nos jogos, mas
também nos treinos. Hoje, você vai organizar o time e o treino. Você
vai... — e desatou em me passar diversas instruções que eu não
prestava a mínima atenção, quando constatei que recusar seria
mais difícil do que eu imaginava.
Eu não queria fazer essas coisas, eu não era capitão. Não
mais. Eu era no Colégio Liverpool, mas ali não.
— Sr. Jones... — interrompi-o um pouco sem jeito. — Era
justamente sobre isso que eu gostaria de falar com o senhor. Eu...
— suspirei, tentando reunir coragem. — Eu não quero ser capitão
temporário do time. Desculpe.
Isso foi o suficiente para que o Sr. Jones me encarasse com
um semblante confuso e espantado. Era como se, além de estar
recusando uma oportunidade incrivelmente grandiosa, na opinião
dele, eu também estivesse o desrespeitando. Céus.
— Você acha que isso é uma questão de escolha? —
seriamente questionou.
Que pergunta era essa?
Senti como se tivesse acabado de ser atingido por um tiro.
— Nã-Não, Sr. Jones — gaguejei um pouco nervoso e sem
jeito. — É que não me apto para isso — menti. Modéstia à parte, eu
era sim apto para o posto. Só não queria ter mais problemas com o
Liam. — Prefiro ser só o zagueiro do time mesmo — concluí.
— Eric, eu não vou voltar na minha decisão — respondeu de
maneira incisiva. — Além do mais, é só por enquanto. Após Liam se
recuperar totalmente, ele volta a ser capitão. Isso não vai levar mais
que alguns poucos dias. Talvez, depois do próximo jogo ele volte ao
posto.
Ah, mesmo assim, eu não queria. Não era possível que
somente eu pudesse fazer isso!
— O senhor pode escolher o Robert, o William, o Adam, o
Max... Há várias opções — Ainda tentei argumentar mais um pouco.
— Eric... — suspirou, impaciente. Sr. Jones não era um
homem de perder tempo com conversinhas. — Eu preciso que você
entenda uma coisa, você e o Liam são os dois melhores jogadores
do time. Enquanto um estiver com algum problema, eu vou precisar
do outro. Então, a pessoa mais apropriada é você.
— Sr. Jones... — também inquieto, balbuciei. — O senhor
não pode me obrigar.
Foi imediato. Ele parou instantaneamente no meio do
caminho e me encarou de maneira muito séria.
— Sim, eu posso — comedido, mas incisivo, replicou. —
Diga-me, Eric, o time é muito importante para você, não é? E você
precisa estar jogando no time para ganhar uma bolsa de estudos na
universidade, não é? Você sabe que eu posso te tirar do time se não
cumprir as minhas ordens, não sabe?
Merda.
— Sim, eu sei — desanimado, respondi.
— Ótimo. Então, estamos entendidos — disse, enquanto
tirava uma das chaves do bolso. — Agora, vá até a sala onde ficam
os materiais do time e pegue as bolas e os cones. Vamos treinar
condução de bola de hoje — Me entregou a tal chave e me deu as
costas, caminhando até o campo e acompanhando o time.
Permaneci parado no meio do caminho, frustrado, com a
sensação de que isso não poderia ficar assim e, ao mesmo tempo,
de que eu não tinha poder para decidir coisa alguma. Observei o
time e, mais a frente, o Liam. Um pouco cabisbaixo, mal conversava
com os amigos. Me senti mal por ele, mesmo que não ele não
merecesse esse sentimento de mim.
O que eu faço? Pensa, Eric, pensa. Talvez se... Não, não...
Essa ideia não era boa. Mas, por outro lado, talvez se... Sim! Sim!
Boa ideia! Na verdade, excelente ideia! Talvez isso melhorasse a
situação. Eu precisava falar com o técnico novamente, agora
mesmo.
Corri até ele, antes que entrasse no campo junto com os
outros, e...
— Sr. Jones! Com licença, Sr. Jones.
— O que foi dessa vez, Eric?
Ok, Deus, eu precisava que um milagre acontecesse.
— Bom, eu sei que tenho experiência como capitão, mas não
tenho experiência especificamente com esse posto nesse time, e o
senhor sabe que cada time tem as suas particularidades. Então,
considerando a longa experiência do Liam no time do Colégio
Regent, eu gostaria que ele pudesse auxiliar nessa tarefa de capitão
temporário. Eu sei que ele está voltando a jogar aos poucos,
inclusive no treino de hoje vai fazer pouco esforço. Mas... Seria
muito importante pra mim, se ele pudesse me ajudar.
O treinador suspirou.
— Eric, um capitão não precisa de um auxiliar. Eu vou te
orientar em tudo, você não precisa de mais ninguém.
Ah, que saco, a questão não é essa!
— Sr. Jones, eu lhe asseguro de que preciso. Liam não vai
fazer esforço que comprometa sua recuperação. É apenas um
auxílio, como me repassar algumas informações, me ajudar a
organizar o time, me ajudar a coordenar o treino. Esse tipo de coisa.
É como se fosse um co-capitão. Entende? — expectante, o
observei. Vi quando ele coçou a barba, analisando a situação e me
olhando com certa desconfiança.
— Não sei se posso considerar isso.
Mas que merda.
— Sr. Jones, eu lhe asseguro de que Liam vai continuar se
exercitando aos poucos. Eu não vou colocá-lo para fazer qualquer
grande esforço. É só uma pequena ajuda, tudo bem? Por favor? —
quase supliquei.
— Olha... — Sr. Jones respirou fundo e balançou a cabeça
em uma quase rendição àquela pequena luta. Ele estava se dando
por vencido. — Tudo bem... Tudo bem. Mas, atenção, eu não quero
ver Liam fazendo muito esforço. Hoje, ele vai pegar leve no treino e,
da mesma forma, no jogo. Você é o capitão. Ele só pode te ajudar,
repassando um pouco da experiência dele como capitão.
Ah, meu Deus, eu nem estava acreditando!
— Sr. Jones, que maravilha! Eu não sei nem como
agradecer! — incrivelmente entusiasmado, repliquei. Meu sorriso
não cabia no meu rosto.
Eu esperava, de verdade, que o Liam gostasse disso. Assim,
ele iria dividir comigo a tarefa. Não era a melhor opção, porque bom
mesmo seria se ele pudesse ser capitão sozinho, mas ser meu
auxiliar ainda era melhor do que nada.
— Me agradeça sendo um bom capitão temporário para o
time. — e deu-me um milagroso pequeno sorriso. Milagroso mesmo,
porque o Sr. Jones era sempre tão sério. — Agora vai lá pegar o
material para o treino de hoje.
— Certo, Sr. Jones. Eu vou ser — garanti com alegria e
convicção. — Será que o Liam pode me ajudar pegando os cones e
as bolas? — perguntei. Era mais uma das minhas pequenas
tentativas de fazê-lo participar e deixá-lo com a sensação de que ele
continuava sendo alguém importante para o time, mesmo que fosse
com algo tão básico quanto pegar os materiais do treino. Além do
mais, eu precisava falar com ele e contar sobre a novidade. Eu
sabia que ele estava uma fera comigo, mas eu precisava dizer que
ele também seria um capitão. Um co-capitão. — Prometo que ele
não vai fazer muito esforço.
O técnico ainda me avaliou por alguns segundos, até que...
— Liam! — chamou por ele, que já estava em campo com os
outros jogadores.
Instantaneamente, ele se virou. Eu sabia que o Sr. Jones era
uma das poucas pessoas, na vida, que o Liam respeitava. O técnico
acenou com a mão, indicando que ele deveria se aproximar de nós,
e, obediente, assim o fez.
— Sim, Sr. Jones — Com o semblante bem sério, ele
respondeu sem ao menos me olhar.
— Liam, ajude o Eric a trazer o material para o treino de hoje.
Por favor.
A boca de Liam tornou-se uma fina linha, quando ele apertou
seus maxilares. Aparentemente, não gostou nem um pouco do que
ouviu. Droga. Será que ele nunca daria o braço a torcer com nada
que tivesse a ver comigo?
No entanto...
— Tudo bem, Sr. Jones — respondeu e passou por mim, indo
em direção à sala onde ficavam os materiais do time.
— Com licença, Sr. Jones — e me afastei, tentando
acompanhá-lo.
Caminhei rápido o suficiente para tentar alcançá-lo. Na
verdade, eu já estava quase correndo. Porém, parecia que quanto
mais rápido eu andava, mais o Liam apressava o passo, para que
não ficássemos lado a lado.
— Ei, Liam... Vai com mais calma...
Ele, no entanto, nem ao menos virou o rosto para mim.
Continuou caminhando a passos largos. Por que diabos ele tinha
que ser tão insuportável assim? No entanto, ele não foi muito longe.
Logo desacelerou e parou em frente à porta da tal sala. Entretanto,
ele tinha que esperar, porque era eu quem estava com a chave. Seu
olhar continuava evitando o meu. Notei sua impaciência ao aguardar
que eu destrancasse.
Com calma e sem pressa, fazendo totalmente o contrário,
abri a porta bem devagar. Claramente, eu estava o provocando,
porque eu sabia que a sua inquietação tinha a ver com a minha
presença. Eu sabia que, nos últimos tempo, nós estávamos nos
desentendendo muito mais que o de costume, eu também sabia que
não deveria estar indo atrás dele, considerando a maneira como me
tratou no dia anterior e em todos os outros dias da minha vida, e,
por fim, eu também sabia que aquele não era o momento mais
apropriado para provocá-lo.
Mas, sempre que eu estava perto dele, ou eu o provocava ou
eu perdia o controle e o beijava ou as duas coisas. Era inevitável,
por mais raiva que sentíssemos um do outro.
— Abre logo essa porra — resmungou.
Revirei os olhos, mas assim o fiz, até porque eu também não
podia demorar muito tempo, tendo em vista o horário do treino que
se aproximava. Entramos e eu logo fechei a porta para que
tivéssemos mais privacidade em uma possível e teórica conversa
civilizada.
— Por que a gente não se entende, Liam? — questionei,
enquanto me dirigia aos cones e ao saco de bolas.
— Que honra eu me entender com o grande capitão do time!
— ironizou.
Que saco. Por que ele não parava com isso?
Dei um breve suspiro e...
— Liam, eu falei com o Sr. Jones... E pedi para sair do posto
de capitão temporário.
Instantaneamente, ele arregalou os olhos ao ponto de não
conseguir disfarçar a surpresa. Me encarou como se não estivesse
acreditando no que ouvia. Era ruim admitir isso, mas ele ficava
adorável quando baixava um pouquinho a guarda.
— Você fez isso? — Sua voz entregou o quanto ele tinha
ficado afetado pelo que eu havia dito. No entanto, provavelmente ao
se dar conta disso, logo pigarrou a garganta e retomou sua
compostura de desprezo e desdém. — Por que fez isso, idiota? —
refez a pergunta.
Ora, isso não parecia óbvio?
— Porque eu não quero que pareça que estou “tomando algo
que é seu” — fiz aspas com as mãos. — E, principalmente, não
quero criar mais problemas com você. Já bastam todos os
problemas que a gente tem. Mas, tem um detalhe... O técnico não
deixou. Infelizmente.
Isso foi o suficiente para que ele revirasse os olhos e
cruzasse os braços.
— Agora me conta uma novidade, mané — deu-me um olhar
de tédio. Sua voz estava carregada de irritação. — Não é sempre
você o melhor em tudo? O queridinho por todos? Lógico que o
treinador não ia voltar com a palavra.
— Cara, para com isso! — exclamei e levantei uma das
mãos, indicando para que ele realmente parasse. Eu tento consertar
as coisas, mas parece que nada nunca está bom para você! O
técnico não permitiu que eu saísse do posto, mas concordou que
você divida comigo, como um co-capitão, até se recuperar
completamente e voltar a ser capitão sozinho.
— O quê? — franziu o cenho.
— É isso mesmo o que você ouviu, Liam. Você não vai deixar
de ser capitão. Você vai ser co-capitão temporariamente comigo.
Ele, por sua vez, balançou a cabeça e me deu uma pequena
risada de desdém.
Ah não, o que foi dessa vez?
— Não sei se sou páreo para dividir esse posto com o
digníssimo zagueiro do time! — Seu tom estava carregado de ironia.
— Além do mais, eu não quero restos. Não quero ter que ficar com
a parte menos importante, ou a parte que sobrou — deu de ombros.
Por que ele não nasceu menos idiota?
— Você é tão imbecil ao ponto de não perceber o que está
acontecendo? — exclamei.
— O que está acontecendo?! — ele disparou. — Minha vida
está cada vez mais afundada em uma fossa por sua culpa! — deu
ênfase na palavra “sua”.
Ah, claro, eu já deveria esperar por isso!
— Minha culpa? Você é tão imbecil ao ponto de não perceber
que eu me preocupo contigo? Se eu te dou aulas, é porque me
preocupo contigo! Se te ajudo no que posso, é porque me preocupo
contigo! Se eu fui falar com o técnico, é porque me preocupo
contigo! Se eu vou terminar com a Molly, é porque me preocupo...
Conosco... — ofegante, finalizei.
Na minha última frase, no entanto, percebi ele travar de
automático. Somente quando eu me calei foi que eu me dei conta do
que eu tinha falado. Caramba. Talvez eu tivesse falado coisas
demais.
— Terminar com a Molly? — franziu o cenho.
Droga. Era oficial: eu tinha mesmo falado coisas demais.
Talvez eu não devesse falar isso para ele, antes de falar para ela.
Mas, tudo bem. Se eu já estava no fogo, agora eu ia me queimar,
então.
— Sim, Liam, eu vou terminar com ela — confessei. — Não
tá dando pra continuar.
Será que ele ia gostar disso? Será que ia finalmente me tratar
melhor agora?
Ele, por sua vez, analisou meu rosto por alguns instantes e...
— Sempre soube que você não era homem para ela — deu
de ombros e se virou para pegar outro saco de bolas. Nitidamente,
foi uma tentativa de não me encarar.
Quê? Ele realmente foi capaz de me dizer isso? E eu, idiota,
tinha até sonhado que ele poderia começar a me tratar melhor
depois de saber disso. Ingenuidade minha! Mas, agora, ele ia me
ouvir. Quem fala o que quer, ouve o que não quer.
Aproximei-me dele o bastante para ficarmos cara a cara. Ele
virou-se novamente para mim, quando percebeu a minha
proximidade. Notei quando prendeu a respiração.
— Não sou homem para ela, porque você sempre soube que
eu sou homem para você, não é? — sorri irônico, no momento em
que senti meu tom de voz provocativo aparecer.
Liam engoliu a seco. Aparentemente, o que eu falei lhe afetou
de alguma forma. Talvez, a provocação tivesse mesmo algum fundo
de verdade para ele. Mas Liam era Liam, e ele não se abalava tão
fácil assim.
— Ao contrário do que você pode estar pensando, seu idiota,
eu não sou gay como você — cuspiu todas as palavras, tentando se
passar como superior. — Eu gosto de mulher, sabe? Já imaginou
uma mulher gostosa chegando aqui, te abraçando, e você tocando
nos seios e na bunda dela com as duas mãos, enquanto a beija?
Então, ela te faz um boquete e vocês transam feito loucos em cima
daquela mesa — apontou. — E aí? Você sabe o que é isso? Você
gosta disso? Ah, espera! — riu com desdém. — Você não sabe o
que é isso, você não gosta disso, porque você é gay. Mas, eu sei e
eu gosto, porque eu sou um homem de verdade. Entendeu?
Então era assim?
Ele pensava que podia jogar todas essas palavras em mim e
ficar por isso mesmo?
— Ah é? — aproximei-me dele ainda mais, ao ponto de
ficarmos quase com os nossos narizes se tocando. Liam prendeu a
respiração novamente, meio nervoso, eu sentia, e deu um passo
para trás. Mas, eu o segurei pela cintura. — Então, por que você
sempre fica excitado quando eu chego perto? — e apalpei seu pênis
com uma das mãos, já notando dar os primeiros sinais de vida. —
Não percebe que eu gosto de ti? — dei um pequeno beijo em seu
pescoço, enquanto continuava com minha mão lá. — Não percebe
que, muito provavelmente, você também sente atração por mim? —
e levei minha boca em direção aos seus lábios.
No entanto, Liam repentinamente me empurrou, fazendo com
que eu me afastasse.
— Quê? Atração por você?! — disparou. — Atração?!
E lá vamos nós de novo...
— Liam... Calma...
— Calma? — passou as mãos no rosto, em pura
exasperação, e seguiu em direção aos cones, pegando-os como
podia. — Eu não sinto atração por você! Na verdade, eu tenho raiva
de você! Então, fica longe de mim, entendeu? Fica longe! — e,
rapidamente, abriu a porta, segurando os cones e o saco de bolas,
e, com uma batida estrondosa, saiu.
Merda... Caminhei de um lado para o outro da sala, passei as
mãos nos cabelos e respirei fundo. Por que o Liam tinha que ser
assim? Por que eu tinha que gostar dele? Seria tão mais fácil se eu
gostasse assim de outra pessoa... Liam era muito cabeça dura.
Mas... Quer saber de uma coisa? Eu estava cansado de ser tão
trouxa.
“Fica longe de mim, entendeu? Fica longe!”
Essas palavras ressoaram em minha mente, a base de
verdadeiras marteladas. Me senti decepcionado comigo mesmo. Se
era isso que ele queria, então era isso que ele ia ter. Dois podiam
jogar esse jogo. Agora, eu veria quem ia aguentar por mais tempo.
Ele não está tão a fim de você

Liam

— Cara, sério, eu não acredito que, desde ontem, você está se


recusando a ser co-capitão com o Eric — William disse, enquanto
organizava seus livros no armário do corredor.
Que saco. Desde ontem, os imbecis do William e do Robert
não paravam de me perturbar com essa história de eu aceitar a
proposta do Eric. Graças a Thor, o Robert, aparentemente, ainda
não tinha chegado ao colégio. Talvez porque naquele dia era o
aniversário dele. Senão, seria mais um idiota para torrar com a
minha paciência.
— Vai se ferrar e para de me encher, William — revirei os
olhos, ao fechar meu armário. — Eu já disse que não vou fazer isso.
Se não for para ser capitão sozinho, com o Eric é que eu não vou
ser.
Estava mais do que claro que eu não iria aceitar migalhas.
Quem ele pensava que eu era?! Preferia vê-lo como capitão durante
alguns dias do que dividir o posto com aquele tarado de meia tigela!
E, pensando em tarado, quem aquele infeliz pensava que era para
se achar no direito de me apalpar? A cena não saía mais da minha
cabeça. Ele tinha deixado meu pênis duro. Vê se pode! Era um
tremendo absurdo. Eu nem estava me reconhecendo. Mas, pela
graça de Zeus, eu fui bem claro ao dizer para ele ficar longe de mim.
Esperava que aquele cérebro de ameba tivesse entendido o recado!
— Vai se ferrar você — William resmungou. — Não custa
nada, e você ainda não ficaria totalmente afastado. Continuaria no
posto de capitão, mas fazendo menos esforço até se recuperar
completamente. Simples assim. Acho que você está perdendo seu
tempo em não confirmar logo para o técnico que topa isso.
— Não enche, William, sério — repliquei. — Não vou fazer
isso. Agora, mudando de assunto, Robert vai fazer alguma coisa
hoje? É o aniversário dele.
— Parece que ele quer ir a pub — respondeu, após fechar
seu armário de livros. — E não muda de assunto, Liam, você vai,
sim, falar para o técnico que aceita o lance de ser co-capitão. Para
de ser burro, cara.
Ah não, que merda!
— Que coisa mais chata, William! — exclamei com
exasperação, já começando a caminhar pelo corredor, indo em
direção à sala de aula, na tentativa de me desvencilhar daquele
assunto. — Já disse que não e ponto final!
William ainda continuou me acompanhando, mesmo que
estivesse balançando a cabeça em pura reprovação pelo que eu
havia dito. Eu não me importava, nem um pouco, se ele tinha
gostado ou não da minha resposta, assim como também não iria
dividir o posto com o Eric de jeito nenhum. Porém, foi aí que algo
aconteceu e que fez o meu mundo parar, no exato instante em que
mirei de relance para a porta do corredor principal do colégio.
Vi Eric entrando, acompanhado de praticamente um exercício
ao seu redor. Parei de caminhar, quando tudo começou a passar em
câmera lenta, frente aos meus olhos. Observei o idiota do Eric
caminhando sorridente, leve e despreocupado pelo corredor. Suas
mãos brincavam com uma bola de futebol, enquanto seus vinte mil
seguidores o puxavam pelo ombro, de um lado para o outro,
curtindo com ele.
Eric gargalhava e... Espera... Ele estava... Não, não, não! Ele
estava usando o moletom do time que somente os capitães podiam
usar? Quem ele pensava que era?! Instantaneamente, uma vozinha
vinda do local mais profundo da minha mente me trouxe a resposta:
capitão, ele é capitão. Que inferno! Não importava! Eu tinha um
moletom igualzinho a esse e o usava porque eu era um capitão, de
fato! Ele era só temporário!
Notei o grupo se aproximando, cada vez mais, da área do
corredor onde William e eu estávamos parados, observando-os.
Aparentemente, o lesado do Eric ainda não tinha percebido que eu
estava ali. O bando que o acompanhava, pulando e fazendo a maior
algazarra, chegou tão próximo a nós que...
— Porra! — Foi a primeira palavra que soltei, quando senti o
impacto.
Um deles caminhava tão entretido no meio daquela confusão,
que acabou tropeçando em cima de mim e me fazendo cair no chão.
Sim, cair! Que ódio! Por acaso, eu estava me tornando invisível
naquele inferno de colégio? Eu? Liam Wyman Tremblay Terceiro? O
cara mais popular? O verdadeiro capitão do time?
— Ih, cara, foi mal! — estendendo a mão para me ajudar a
levantar, o demônio do garoto falou.
— Sai fora! — disparei.
Era claro que eu não precisava de ajuda, eu sabia me
levantar sozinho!
Foi nesse exato instante, entretanto, que meu olhar cruzou
com o Eric. O infeliz percebeu o que aconteceu, mas me encarou
com indiferença. Seu semblante estava impassível. No seu rosto
não havia qualquer sombra de preocupação, nem um mísero
movimento de quem estava se importando. Era como se nada
tivesse acontecido. Eric virou o rosto e continuou caminhando pelo
corredor, enquanto ainda ria e brincava com seus comparsas.
Algo dentro de mim se inquietou e se irritou. No fundo,
mesmo que eu não quisesse admitir, eu não tinha gostado dessa
frieza. Será que ele não estava vendo que eu ainda estava caído na
porcaria daquele corredor? Ele não iria mesmo se preocupar
comigo? Não ia me ajudar a se levantar? Onde estava o otário do
Eric de ontem que disse que se preocupava comigo? Com ódio,
observei-o se distanciar, enquanto dobrava o corredor junto com seu
exército. Só então, me levantei.
— É... Parece que Eric é mesmo o novo capitão... — rindo de
leve, William falou em tom de brincadeira.
Quê?
— Ele que pensa — com ar de superioridade, respondi. —
Vou agora mesmo à sala do Sr. Jones para dizer que sou o co-
capitão temporário. Eu preciso colocar moral nisso aqui — e finalizei
com determinação, sentindo o ódio subir pelas minhas veias.
— Vai mesmo? — dando-me um sorriso surpreso, William
arregalou um pouco os olhos. — Não era você quem disse que ia
esperar para voltar a ser capitão sozinho? Que não queria dividir o
posto com o Eric?
Ah, infeliz!
— Nunca disse isso — irritado, respondi, enquanto o
arrastava pela gola da camisa, para ir comigo à sala do treinador.

❖❖❖

Sabe o que é felicidade? Pois bem, foi isso o que eu vi no


rosto do Sr. Jones quando eu fui à sua sala e disse que estava de
acordo com a ideia de ser co-capitão com o Eric. De acordo era uma
ova! Claro que eu não estava de acordo com isso. Eu só não queria
mais ver o Eric se achando o dono de tudo. Eu não o daria esse
gostinho de ser o capitão temporário sozinho. Como co-capitão, eu
iria infernizar tanto a sua vida, que ele se arrependeria de ter
nascido!
Sr. Jones disse que, de início, não estava tão de acordo com
a ideia, porque poderia atrapalhar a recuperação da minha perna, -
o que era uma grande bobagem, porque não me atrapalhava de
forma alguma, inclusive eu poderia ser capitão sozinho mesmo -
mas que, agora, se deu por satisfeito com a situação. Segundo ele,
isso seria bom para o time e para a minha relação com o Eric, que
nunca foi das melhores. Sinceramente, as pessoas sonhavam
demais.
Por que diabos todos insistiam para que eu tivesse uma boa
relação com o Eric? Eu não gostava de pessoas metidas a
perfeitinhas, como ele. Me dava uma espécie de nojo. Aliás, ele nem
era perfeito. Estava mais para capeta que fazia tudo por debaixo
dos panos. Porém, a imagem que ele passava era de uma pessoa
bem correta, e isso me dava asco, tanto asco que quando ele me
beijava e... Porra, que beijo gostoso.
Quê? Não, não, não.
Concentração, Liam! Concentração e foco!
Balancei minha cabeça levemente, tentando fazer com que
esses pensamentos sórdidos encontrassem o caminho da saída,
enquanto William e eu estávamos saindo da sala do Sr. Jones e
indo direto para a sala de aula.
— Tá tudo bem? — William perguntou.
Merda. Provavelmente, ele percebeu não somente meu
semblante de bobo, ao pensar no beijo do Eric, mas também o meu
balançar de cabeça. Será que posso passar um só segundo vivendo
uma vida normal sem pensar no Eric?
— Tá — resmunguei.
— Pensei que se sentiria melhor depois de comunicar ao
técnico que será co-capitão também — comentou.
William só podia ser muito tapado mesmo!
— Pensou errado — respondi ao abrir a porta da sala de
aula.
Todavia, assim que entrei, me deparei com mais uma cena
vinda diretamente dos infernos. Como se não bastasse o que tinha
acontecido há poucos minutos no corredor, a turma inteira estava
tratando Eric como o centro das atenções. Se antes o colégio estava
dividido, meio a meio, entre quem gostava de mim e quem gostava
dele, aparentemente, agora, depois de se tornar o “capitão”, o
colégio via apenas ele. Eu só queria saber como eles iriam reagir,
quando fossem comunicados de que eu também era co-capitão e,
principalmente, quando eu voltasse a ser o capitão supremo.
Inclusive... Espera. O que era aquilo que os meus olhos
estavam vendo? Como se não bastasse ser o centro das atenções
na sala de aula, Eric estava conversando de maneira muito
entusiasmada com Robert, muito entusiasmada mesmo. Ele era
meu amigo! Mas, eu não podia impedir que o imbecil do Robert, vez
ou outra conversasse com o idiota do Eric. Inferno. Claro que o
golden boy tinha que ser amigo de todos, inclusive dos meus
amigos, não é? Eu, até hoje, não sabia o que as pessoas viam nele.
Eric era só um dissimulado que se fingia de legal e responsável para
melhor passar. Irritado, caminhei rapidamente até onde
conversavam. William me acompanhou.
— O que tá pegando? — apareci no meio deles, esbarrando,
propositalmente, no ombro do Eric, para provocá-lo mesmo que não
explicitamente.
— Nossa, que amigo eu tenho! — com ironia, Robert
replicou. — Aparece aqui com essa cara de quem comeu e não
gostou, e nem me dá os parabéns pelo meu aniversário! — sorrindo,
finalizou. Não era como se ele estivesse chateado com a minha falta
de modos. Robert já era acostumado com isso.
— É a única cara que eu tenho — dei de ombros. — E
parabéns. Te desejo muita mulher gostosa. — Eram os meus mais
sinceros desejos de felicidade, afinal.
Robert caiu na risada.
— Valeu, cara. — disse entre risos. — Eu estava aqui falando
com o Eric sobre o meu aniversário e...
— O que o Eric tem a ver com o seu aniversário? —
interrompi-o de automático. Essa frase não me cheirou nada bem,
porque a combinação de palavras, claramente, não era apropriada.
Olhei para Eric de canto de olho, quase o intimidando. Ele, por sua
vez, não me deu a mínima atenção. Imbecil.
— Robert, irmão, vou sentar na minha carteira, para esperar
o professor, tá? — Como se estivesse tentando me evitar e sair de
perto de mim, Eric se pronunciou antes que Robert pudesse
responder. — Depois a gente se fala.
Vai tarde, idiota.
— Beleza, cara. Espero que esteja tudo certo para mais tarde
— disse quando Eric já estava se virando. Vi apenas quando o idiota
sorriu e acenou um sim com a cabeça. Senti algo pinicar na minha
nuca, talvez fosse a irritação latente por imaginar algo que eu não
queria que fosse verdade: Robert o convidou para algo — Ah, Liam,
eu chamei o Eric para a comemoração do meu aniversário —
finalizou, voltando o rosto para mim e falando como se isso fosse a
coisa mais natural do mundo.
— Bom dia, turma! — Antes que eu pudesse soltar os
cachorros nele, no entanto, ouvi a voz do professor, entrando em
sala. Droga, estava a ponto de sair quase pela minha garganta! Tive
que engolir o ódio, para não fazer uma cena e ir, novamente, à
detenção.
Comprimi meus lábios, praticamente os retorcendo. Não
podia acreditar que Robert tinha o convidado para o aniversário! O
pior era que eu não podia fazer nada para impedir. Merda. Eu sabia
que podia muitas coisas, mas dizer quem deveria ir ou não para o
seu aniversário, não estava ao meu alcance. Por quê, Thor? Por
quê?!
Após o professor entrar, Robert, William e Eric rapidamente
se sentaram em suas respectivas carteiras e me deixaram plantados
no meio da sala, com cara de tacho. Bando de infelizes. Olhei
brevemente para o professor e, no momento em que me virei para
dar o primeiro passo em busca de um lugar para mim, acabei
esbarrando em algo.
Que merda era essa?
Após recuperar meu equilíbrio, encarei a “coisa” na qual eu
havia tropeçado: Noah. Só podia ser esse fracassado! Sempre se
colocando no meu caminho! Ele conseguia ser mais tapado que
William, o que era algo incrivelmente milagroso.
— Olha por onde, seu idiota! — irritado, cupi todas as
palavras da maneira mais rude como um perdedor, como ele,
merecia. Ele, por sua vez, me encarou por debaixo dos cílios, com
vergonha e timidez extremamente aparentes.
— De-Desculpa — gaguejou.
Dei de ombros, pouco me importando com ele, e virei-me na
direção oposta, sentando na carteira mais próxima. Claro que eu
não ia dar trela para um perdedor. Noah sentou-se todo encolhido,
em lugar ao meu lado, porque a sala, infelizmente, estava lotada.
Que ótimo. Ainda girei o olhar pelo local, tentando avistar alguma
carteira vazia, mas não tinha. Droga.
Respirei fundo, tentando controlar todas as raivas pelas quais
eu estava passando naquele dia, e abri minha mochila, para tirar
meu caderno e minha caneta, enquanto o professor anotava algo na
lousa. De repente, notei Noah se atrapalhar - nossa que novidade -
e deixar seu estojo cair, espalhando tudo pelo chão.
Rapidamente, ele se levantou, vacilando sobre os pés, ao
tentar juntar todas as canetas. Porém, algumas tinham caído
exatamente embaixo do lugar onde eu estava sentado. Percebi seu
olhar subir cautelosamente em minha direção, quando ele estava
abaixado, como se pedisse, em silêncio, para que eu o ajudasse a
pegar aquelas mais próximas a mim.
Revirei as orbes. Por acaso eu tinha cara de quem ajuda
alguém?
Virei meu rosto com meu melhor semblante de desprezo,
para que ele entendesse que, de mim, não ganharia nada, nem
mesmo uma ajuda para juntar míseras canetas que caíram de um
estojo. Aparentemente, Noah entendeu o recado, pois, em questão
de segundos, parou de me olhar e começou a recolher tudo o que
estava embaixo da minha carteira.
Ora essa! Muito folgado, da parte dele, querer que eu o
ajudasse a juntar toda aquela bobagem. Eu tinha mais o que fazer,
tipo ficar viajando na aula enquanto o professor explicava qualquer
coisa sobre física. Ou seria química? Caramba, eu não sabia nem
que aula seria. Tanto faz. Eu não me importava mesmo.
— Meus caros... — o professor se pronunciou. — Sr.
Dawson, diretor do colégio, gostaria de dar um aviso antes da aula
começar.
No mesmo instante, ele entrou na sala.
— Queridos, bom dia a todos! — nos cumprimentou. — Meu
comunicado será breve. Vim aqui somente para avisar que as
inscrições para os processos seletivos das universidades já estão
abertas — Instantaneamente, senti meu corpo estremecer e meu
coração acelerar. Já? Sério? Que droga. Essa era uma realidade da
qual eu não podia fugir. Tudo o que eu mais queria era pular este
último ano do colegial, mas, infelizmente, isso não seria possível. —
A maior parte dos processos seletivos é composta de teste de
conhecimentos gerais, teste de proficiência em inglês, análise de
currículo acadêmico, envio de cartas de recomendação e redações.
Caramba. De tudo isso, tinha alguma coisa que eu podia me
dar bem? Teste de conhecimentos gerais: eu precisava saber de
todos os conteúdos estudados no colégio. Se eu já tirava notas
baixas normalmente, imagina nesse teste da universidade. Teste de
proficiência em inglês: pelo menos, com isso, eu podia respirar
aliviado. Eu falava e escrevia em inglês normalmente. Era a minha
língua. Análise de currículo acadêmico: preferia nem comentar. Eu
estava mais ferrado em termos de currículo acadêmico do que
qualquer outra coisa. Pelo menos, ainda tinha o futebol, mas eu não
sabia se seria o suficiente para pontuar. Cartas de recomendação:
quem seria o santo professor a escrever uma carta de
recomendação para mim? Piada, né? E, droga, redação: eu era
péssimo escrevendo até a lista de compras do supermercado!
Em resumo: eu estava muito fodido!
— Sr. Dawson... — ouvi a voz do idiota do Eric. — Então, já
podemos ir à coordenação para fazer as escolhas das
universidades?
— Sim, claro — de pronto, o diretor respondeu. — Vocês
podem escolher até três universidades. As inscrições podem ser
feitas na coordenação mesmo. Os funcionários poderão tirar todas
as suas dúvidas e lhes auxiliar no passo a passo para a
candidatura.
Obviamente, aquele imbecil já sabia o que queria fazer da
vida e tinha total capacidade para isso. Afinal, ele era o golden boy
das notas boas e do excelente comportamento escolar. Enquanto
eu... Eu até estava tentando estudar, mas, sei lá... A voz do meu pai
me dizendo que eu não seria nada, ainda sussurrava nos meus
ouvidos.

❖❖❖

Depois que a aula acabou, enrolei bastante tempo, tentando


criar coragem para fazer minhas inscrições nos processos seletivos
das universidades. O problema foi que a coragem não quis
aparecer, porque não eram simples inscrições. Eu estava decidindo
o meu futuro, para onde eu iria e que eu possivelmente seria. Era
complicado uma pessoa de dezoito anos ter que decidir o que faria
pelo resto da vida. A única certeza que eu tinha era de que queria
jogar futebol até o dia que eu morresse. No entanto, a faculdade
ainda era uma incógnita para mim.
O fato era que eu enrolei tanto que acabei passando a tarde
inteira no colégio. Fiquei conversando com Robert e William, depois
que a aula acabou, tentando distrair meus pensamentos ao ponto de
eu criar coragem para fazer as inscrições e decidir o meu futuro,
mas não deu certo. Minha cabeça estava cheia. Primeiro, Eric e eu
como co-capitães do time. Segundo, eu tentando me desvencilhar
da vontade de beijar aquele imbecil novamente. Terceiro, era
impressão minha ou ele estava me evitando? Naquele dia, ele
quase não tinha me olhado. E, quarto, para fechar com chave de
ouro, eu tinha que lidar com as universidades.
Pelo menos, mais tarde, aconteceria a comemoração do
aniversário do Robert, e, então, eu poderia beber até ficar a minha
corrente sanguínea ficar cheia de Vodca. Pouco me importava se,
no dia seguinte, nós precisássemos viajar para mais um jogo. Eu ia
beber sim! Talvez, dessa forma, eu conseguisse esquecer os meus
problemas por algumas horas. Inclusive, eu já estava chegando em
casa para me arrumar e, depois, já seguir para o pub. Nem o fato do
otário do Eric estar lá, iria atrapalhar a minha noite. Não mesmo!
Assim, estacionei o carro na garagem de casa e caminhei pelo
jardim. Abri a porta da sala e...
Quê?
Me deparei exatamente com Molly e Eric deitados sobre o
tapete felpudo de casa, enquanto assistiam a um filme. Que merda
era essa? Ele não tinha me dito, com todas as letras, que terminaria
com a Molly? Quem queria terminar não ficava assistindo filminho!
Aquele mentiroso de uma figa!
Os dois idiotas estavam tão entretidos, que nem, ao menos,
perceberam que eu tinha acabado de abrir a porta. Me exasperei
com isso. Ora, eles tinham que perceber que eu estava ali. O dono
da casa tinha chegado. Mas, eles iam. Ah, se iam! Principalmente o
Eric. Em menos de meio segundo, fechei a porta da sala com toda a
força, fazendo com que ambos se assustassem e me encarassem.
Todavia, o olhar do Eric, que transmitia alguma emoção, não
durou mais que dois milésimos. Logo, me encarou com indiferença
e, como se eu não existisse, virou o rosto para continuar assistindo
ao filme. Desde cedo, Eric estava agindo assim. Que diabos tinha
dado nele? Era ele o otário quem ficava me olhando o tempo todo,
não eu para ele.
Talvez, tudo não passasse de puro charminho. Mas, se ele
pensava que eu iria atrás, estava muito enganado! Principalmente,
porque, agora, eu estava ainda mais irritado com suas mentiras. Em
vez de terminar o namoro, como me disse que faria, estava
assistindo filme com minha irmã.
Caminhei pela sala e pigarrei a garganta, tentando tirar a
concentração deles novamente. Senti o ódio subindo pelas veias por
vê-los juntos. Mesmo que eles não estivessem abraçados, nem se
beijando, graças a Zeus, ainda assim, eu sentia uma raiva imensa
surgindo dentro de mim, somente pelo fato de estarem próximos um
ao outro.
— Então o casalzinho está assistindo filme? — falei em uma
mistura de sarcasmo e irritação. Eu sabia que não deveria ter dito
isso, assim como o certo seria se eu agisse como se não me
importasse, mas eu era impulsivo e aquela cena realmente estava
despertando o meu pior lado.
— Algum problema, encrenqueiro? — Molly perguntou, com o
tom de voz cansado, provavelmente cansada das minhas
confusões. Ela não se deu nem ao trabalho de tirar os olhos da
televisão.
O único problema é o fato de você estar com o meu homem.
O quê? Arregalei os olhos para mim mesmo, quando me dei
conta do que eu tinha pensado. Que merda era essa que estava
acontecendo comigo? Balancei a cabeça em exasperação.
Definitivamente, minha raiva não era porque Eric estava com ela.
Era porque... Porque... Ah que seja! Eu não precisava ficar dando
explicações para mim mesmo! Eu só estava irritado com a cena e
ponto final!
Eric, no entanto, continuou com sua infeliz postura de quem
não estava dando a mínima atenção para a minha existência.
Nenhum olhar, nenhuma palavra. Mas, eu não ia ser bobo de ir atrás
dele, não mesmo. Na verdade, eu nem estava sentindo falta do seu
olhar, da sua preocupação comigo, da sua boca gostosa, do seu
beijo delicioso, daquelas mãos sabe... Aquelas mãos que... Droga!
Que diabos eu estava pensando?
Foco, Liam, foco!
Tentei me desfazer dos pensamentos sobre o paspalho,
enquanto me concentrava em outra coisa. E que coisa! Comecei a
prestar atenção no que estavam assistindo. Ora, eu conhecia esse
filme. Aqueles dois idiotas não poderiam estar assistindo a um filme
melhor. Esse era muito adequado!
— Ele não está tão a fim de você? — com um sarcástico
começando a surgir no rosto, perguntei. — É esse o filme que estão
assistindo?
— Sim, e, se quiser parar de atrapalhar, agradeço — de
pronto, Molly, ainda vidrada no filme, replicou.
— Só acho que esse filme fala muito sobre vocês... — com o
máximo de ironia que eu conseguia, disse e dei as costas,
caminhando até as escadas. — Tem muito a ver, sabe... — soltei em
um tom um pouco mais baixo.
— O que você quiz dizer com isso? — ouvi Molly perguntar.
Foi aí que eu parei de caminhar e, novamente, me virei na direção.
Ela tinha até dado uma pausa no filme. — O que você quis dizer,
heim? — tornou a perguntar.
Encarei Eric que, totalmente ao contrário de seu semblante
de indiferença de poucos minutos atrás, agora estava me fuzilando
com os olhos. Eu, no entanto, não me importava com isso. Por mim,
ele poderia morrer de raiva. Se a Molly fosse só um pouco
inteligente, entenderia o que eu estava falando.
— Só disse que o filme tem a ver com vocês, ora... — sorri
ironicamente.
— Mas... — ela tentou argumentar.
— Molly — Eric a interrompeu, abraçando-a e fazendo com
que ela voltasse a se deitar com ele no tapete. Que ódio! Ele tinha
um jeitinho irritante de contornar as situações. — Já viu o Liam
falando algo que faça sentido? Não né? Então, vamos voltar a
assistir.
Isso foi o suficiente para Molly se dar por convencida e voltar
sua atenção, novamente, para a televisão. Que ódio! O sangue
subiu para a minha cabeça, à medida que as palavras também
subiam pela minha garganta. Eu estava quase falando. Eu estava
quase contando tudo o que tinha acontecido entre Eric e eu. Minha
vontade era dizer que ela não era exatamente a pessoa de quem
Eric gostava.
— Molly! — disparei, respirando fundo.
De supetão, ela virou o rosto em minha direção. Todavia, tudo
aconteceu tão rápido quanto à própria ativação cerebral da minha
lucidez. No mesmo instante em que pensei de abrir a boca para
contar tudo o que estava acontecendo e desmascarar o Eric, uma
palavra se formou nítida em minha mente: gay.
Não, não, não. Caramba, não!
Se eu dissesse os reais motivos pelos quais o namoradinho
não estava tão a fim dela, eu assinaria o meu atestado de boiola! E
eu não podia fazer isso. Não podia fazer mesmo! Droga!
— O que você quer, Liam? — ela perguntou com certa
impaciência.
Encarei os dois, tentando escolher as palavras certas, para
que eu contasse sem me comprometer, mas não dava, não tinha
como. Era impossível.
— Nada... — balancei a cabeça e rapidamente subi as
escadas.

❖❖❖

— Acima! Abaixo! Ao centro! À dentro! — Robert, William,


Eric, Adam, Max, Jordan e todos os outros caras do time
exclamaram o bordão, segundos antes de tomarem juntos um shot
de tequila.
Observei-os enquanto eu caminhava pelo pub, em meio às
pessoas dançando. Eu tinha acabado de chegar ao local, quando
ouvi o famoso “grito de guerra”. Na hora que saí de casa, o idiota do
Eric já tinha ido embora. Fiquei tão irritado com o que vi na sala, que
me tranquei no quarto e só saí no momento que precisei ir ao bar.
Eu mal tinha entrado no local, mas já estava percebendo que todos
curtiam a festa de um jeito muito entrosado uns com os outros,
principalmente o Eric. Claro. Afinal, o golden boy tinha que se dar
bem com todo mundo, não é?
— Liam! — Robert foi o primeiro a me ver e a se aproximar
de mim. — Chega mais, cara! — e passou um dos braços pelos
meus ombros, levando-me para perto de onde os outros estavam.
Todos me cumprimentaram, menos o Eric. Ele, nem ao
menos, me olhou. Afinal, onde estava o Eric que era sempre um
trouxa comigo? Foi pra China? Desde cedo, ele era só um garoto
esnobe. Até mirou em mim algumas poucas vezes, mas só quando
era estritamente necessário. Trocar palavras? Não. Se os olhares já
estavam escassos, trocar meras frases já era algo demais para nós
dois.
Mas, eu não ligava. Não ligava mesmo. Para ser sincero, até
que era melhor assim. Quanto mais longe de mim ele ficasse,
melhor. Melhor para todo mundo, principalmente para o meu próprio
bem-estar psíquico. Talvez, ele tivesse mesmo entendido o meu
recado do dia anterior. Tudo o que eu mais queria era qualquer tipo
de gay bem longe de mim, para eu não correr o risco de sofrer más
influências.
— Cara, tem vodca aqui. Eu sei que você vai querer —
William me puxou até o balcão de drinques e empurrou uma garrafa
da bebida em minha direção.
— Valeu — respondi, enquanto enchia um copo para mim.
Robert se aproximou e...
— Acho que o colégio inteiro vem... — rindo, falou. — Aliás,
eu tenho algo aqui pra deixar a gente mais legal ainda... — Com
uma voz seriamente suspeita, ele retirou de dentro do bolso da
calça um saquinho com vários comprimidos.
No exato instante, Eric surgiu ao lado dos caras, pedindo um
uísque ao barman. Robert tocou em seu ombro, chamando sua
atenção para que se unisse ao grupo também. Eu estava tão
curioso para saber, de fato, o que era aquilo, que milagrosamente
não me importei tanto com a presença do Eric ali.
— Eric, irmão, o aniversário é meu, mas eu trouxe um
presentinho pra galera — e balançou o saquinho com os
comprimidos, bem em frente ao seu rosto. — Vou começar
distribuindo para vocês.
O paspalho do Eric, no entanto, encarou o saquinho e franziu
o cenho. Com certeza o otário sabia do que se tratava, porque eu
mesmo já tinha entendido.
— Cara, valeu — replicou, negando. — Mas, eu tô tranquilo e
amanhã a gente precisa viajar para o jogo. Não posso acordar com
muita ressaca.
Claro que a donzela certinha iria recusar.
— Qual é, irmão? — sorrindo, Robert deu um empurrão de
leve no ombro do outro. — Deixa de ser frouxo. Pega. Essa aqui é
fraquinha, só vai te deixar feliz — e ergueu novamente o saquinho
em direção a ele.
— Eu já tô feliz, cara. Sério, hoje não — balançou a cabeça,
afastando a mão do Robert que ainda estava em seu ombro.
Dando uma pequena risada de quem estava pouco se
importando com a recusa, Robert, desta vez, virou-se para mim, e
balançou o saquinho de comprimidos.
— Você não vai fazer essa desfeita comigo, não é, Liam? —
sorriu. — Vai. Pega.
E, então, pela primeira vez no dia, Eric verdadeiramente me
olhou. Eu vi no seu semblante um rastro de preocupação. Era como
se ele dissesse, mesmo que em silêncio, para eu não aceitar.
Entretanto, eu não me importava com o seu olhar, nem com a sua
preocupação. Ele tinha passado o dia inteiro me esnobando, então
não seria agora que ele me convenceria de algo.
— Vai, irmão. Pega — Robert falou mais uma vez.
Foda-se.
Não era a primeira vez que eu fazia isso. Eu sabia como
funcionava. Não era certo, mas eu não estava ali para ser certinho
como o Eric. Então, peguei o saquinho, abri e retirei um comprimido,
tomando-o junto com um gole de vodca. Encarei Eric, que me
retornou um olhar de desapontamento misturado com desprezo.
Depois disso, apenas tocou no ombro de Robert brevemente
e nos deu as costas. Mas, ele não saiu para ficar sozinho. De
repente, mais pessoas do colégio chegaram ao pub e logo se
enturmaram com ele, puxando-o para dançar. Eric parecia tão
entretido, que não me olhou mais nenhuma vez.
❖❖❖

Algum tempo mais tarde, eu não sabia explicar, ao certo, o


que tinha acontecido comigo. A única coisa que eu sabia era que eu
estava no meio pub, dançando com pessoas que eu nunca tinha
visto na vida. Algumas mulheres passavam a mão em mim, mas eu
não sentia nada, como se meu corpo estivesse dormente. Eu
apenas continuava dançando.
Notei as luzes do pub se tornarem cada vez mais vivas na
minha visão. E, mesmo que isso fosse contraditório, as pessoas
pareciam dançar de forma lenta e rápida ao mesmo tempo. De
repente, senti um suor frio escorrer pela minha testa. Eu estava
perdendo a noção de espaço. A música parecia zumbir cada vez
mais alto nos meus ouvidos, enquanto os meus sentidos se
tornavam ainda mais aguçados.
De supetão, notei o mundo girar ao meu redor, com em uma
vertigem. Segurei-me rapidamente na parede mais próxima. No
entanto, as luzes da boate não ajudavam. Vi todas girando na frente
dos meus olhos. Com pouca força nas pernas, me encostei à
parede. Coloquei as mãos no joelho e baixei meu rosto. A sensação
não estava legal, como disseram.
Que porra eu tinha tomado?
Respirei fundo e levantei o rosto outra vez, tentando achar
meus amigos. Esfreguei os olhos com os dedos, pois minha visão
estava meio turva. Mesmo que nada. Não melhorou, eu ainda
visualizava tudo como um borrão. Tentei me concentrar, no entanto,
e, aos poucos, fui conseguindo distinguir as pessoas. Um pouco
mais à frente, enxerguei Robert e William. Nas laterais encontrei
mais alguns rapazes do time de futebol. E na minha diagonal... Na
minha diagonal, eu vi Eric.
Ele parecia estar perto e longe ao mesmo tempo, porque
minha visão ainda me traía. Ele estava dançando e... Que merda
era essa? Apertei meus olhos, tentando enxergar melhor. Estava
tudo ainda muito embaçado, mas... Ele estava dançando e beijando
um cara?! Aquele era o Eric mesmo?! De repente, devido à força
que eu estava fazendo para afirmar minha visão, senti meus olhos
pesarem. Não podia ser. Não podia ser... Ele não... Ele estava
mesmo ficando com um cara que não era eu?
Não, não, não!
Caminhei como conseguia em sua direção, aos trancos e
barrancos. A cada dois passos, eu esbarrava em uma pessoa. Me
sentia tonto, enjoado, e minha cabeça doía muito, mas me
aproximei ao máximo e o agarrei pela gola da camisa.
— O que você tá fazendo, seu idiota? — disparei,
— Quê? — ouvi sua voz, embora seu rosto estivesse
embaçado na minha visão. — Do que você está falando, Liam?
Não perdi meu tempo e o arrastei pela gola da camisa,
mesmo que eu não estivesse com tanta coordenação motora para
tal feito. Entrei em um local fechado e, só então, me dei conta de
que era o banheiro. Eric protestou, mas continuei o empurrando até
que ele, de fato, entrasse. Eu não estava entendendo o que ele
dizia, a única coisa que eu sabia era que não o veria beijar outro
cara sem fazer nada a respeito disso.
Para fechar a porta de uma vez por todas, o empurrei contra
ela, e, então, cheguei bem próximo a ele, para tentar distinguir o seu
rosto. Minha visão continuava turva.
— Tá ficando doido, Liam?! — exclamou.
— Doido? Doido é você! — disparei, mesmo com certa
dificuldade. Minha cabeça doía. — Você estava beijando um cara!
— Quê?! — Mesmo que eu não enxergasse direito, percebi
que ele arregalou os olhos.
— É isso mesmo! Eu vi com meus próprios olhos!
Ele balançou a cabeça, exasperado.
— Com os olhos de drogado, você quis dizer, não é? —
questionou com obviedade.
Imbecil. Eu estava drogado! Talvez só um pouco.
— Eu vi sim! Para de mentir! — protestei.
— Liam! — segurou meu rosto com as duas, olhando no
fundo dos meus olhos. Nós estávamos muito próximos. — Eu não
estava beijando ninguém. Você está tendo alucinações, você está
drogado! Esqueceu-se daquele comprimido que tomou? Vem lavar o
rosto! — e me puxou pelo braço até a pia. Logo, abriu a torneira e
jogou água no meu rosto.
— Sai! Não quero! — quis empurrá-lo, mas me senti sem
forças para isso. — Não muda de assunto! Você estava, sim,
beijando um cara! Você tá ficando doido? Você é meu! — As
palavras saíram emboladas pela minha boca, ao ponto de eu não ter
noção da besteira que estava falando.
Ao ouvir aquilo, Eric instantaneamente fechou a torneira e
virou o rosto para mim. Percebi que seu semblante estava muito
mais sério que antes, apesar da minha visão continuar turva e dos
meus sentidos ainda estarem comprometidos. Era como se meu
juízo estivesse afetado, eu não sabia ao certo o que eu estava
fazendo.
— Olha aqui — seriamente falou. — Eu não estava beijando
ninguém. E, mesmo se estivesse, isso não é da sua conta. Agora se
me dá licença... — me soltou, ao passo que eu imediatamente me
segurei na parede para não cair de tontura.
— Muito bem! — tentei falar de maneira irônica, mesmo que
eu estivesse quase incapaz de pronunciar qualquer palavra com
clareza. — Vai continuar me esnobando assim como fez durante o
dia inteiro?!
Eric, no entanto, somente tornou a me olhar com seriedade e
desprezo.
— Estou apenas fazendo o que você mandou. Estou ficando
longe de você.
Simplesmente me deu as costas e caminhou até a porta,
fechando-a e me deixando sozinho.
Me beija

Eric

— Cara, o Liam tá bem? — Essas foram as primeiras palavras


que pronunciei no dia, após acordar. Nem tinha saído da cama
ainda e já liguei para o Robert, em busca de saber o paradeiro
daquele louco. Eu tinha consciência de que não deveria me importar
com o Liam, assim como também tinha prometido para mim mesmo
que não iria atrás dele novamente. Mas, tecnicamente, eu não
estava indo atrás dele, eu estava indo atrás dos seus amigos, para
saber dele, e Liam não precisava saber disso.
— Hãn? Quê? — notei Robert falar com certa dificuldade, do
outro lado da linha. Provavelmente, ele tinha acabado de acordar,
assim como eu, mas, diferente de mim, o cara estava com uma
baita ressaca. — Quem é?
Poxa, ele tinha bebido tanto na noite anterior ao ponto de
esquecer minha voz?
— O Eric, irmão, o Eric — repliquei com um pouco de
impaciência. — Você tem notícias do Liam? Ele está bem? — tornei
a perguntar.
— Ah... O Li... Au! — exclamou de repente. — Minha
cabeça... — e resmungou, seguido de um longo bocejo.
Droga, o filho da mãe estava morrendo de ressaca ao ponto
de mal conseguir falar.
— Vai, cara! Me responde — de fato, impaciente, alterei um
pouco a voz.
— Não fala alto, porra! — gritou em um sussurro. — Tô com
dor de cabeça. E sei lá... Ele deve tá bem... Sei lá — finalizou como
se estivesse dando de ombros, pouco se importando com o estado
do amigo, depois de ingerir o tal comprimido que ele mesmo
ofereceu.
— Como assim “sei lá”? — franzi o cenho, meio irritado com
sua falta de consideração. — Você não ficou com ele depois que eu
fui embora do pub? — Eu sabia que o tom desse questionamento
saiu carregado de preocupação. — Ele estava drogado! — disparei.
— Droga que você mesmo deu a ele!
— Se você gritar mais uma vez, eu desligo essa merda —
disse entredentes, com uma voz de poucos amigos. — Pra quê essa
preocupação toda com o Liam? Qual é? Você nunca fez isso. Pelo
menos, não que eu tenha visto.
Engoli a seco. Que saco. Talvez eu estivesse passando dos
limites e dando muita bandeira. Prometi, para mim mesmo, que me
afastaria do Liam. Afinal, foi isso o que ele disse para eu fazer. E eu
fiz. Eu estava me distanciando tanto que, no dia anterior, não lhe dei
a menor atenção. Confesso que na hora do pub eu tive que me
segurar para não o fazer companhia e ajudá-lo a voltar para casa.
Mas, eu tentei ser mais forte e fiz o contrário do que os meus
desejos queriam: deixei-o sozinho e fui embora. Isso foi péssimo
para mim, mas eu tive que fazer. No entanto, meu primeiro
pensamento ao acordar, assim como o meu último antes de dormir,
ainda era ele, e eu precisava saber como ele estava. O problema
era que eu estava disfarçando muito mal as minhas reais intenções.
— Nada... Nada — tentei desconversar. — É só que... Ele
estava drogado e... Sei lá. Eu só queria saber se ele chegou vivo em
casa.
Robert soltou uma pequena risada pelo nariz.
— Vivo ele tá. Fica tranquilo. Só não sei se em condições
vegetativas — e riu mais um pouco. — Agora, falando sério, você
sabe que notícias ruins correm muito rápido. Então, se qualquer
coisa tivesse acontecido nós já estaríamos sabendo.
“Falando sério…” Até parece que ele estava falando sério
mesmo. Estava me segurando para dizer a ele que parasse de
brincar com esse tipo de coisa. Se eu dissesse, daria bandeira
novamente.
— Tudo bem — respondi, comedido. — Isso é tudo.
— Liga pra ele e pergunta... — Ainda o ouvi falar segundos
antes de eu desligar a chamada.
Ligar para o Liam? Não. Mesmo que eu quisesse mais
detalhes, agora eu sabia que, pelo menos, ele estava vivo. Assim,
encerrei a ligação e joguei o celular no criado mudo ao lado da
cama. Estava tentando me afastar, mas ainda era idiota o bastante
para me importar em saber como ele estava. Eu tinha que parar
com isso.
De repente, imagens da noite passada surgiram em minha
mente. A droga. O Liam dizendo que me viu beijando um cara, o
que era algo totalmente sem nexo. E... O Liam dizendo que eu era
dele. “Você é meu”. Só que ele estava drogado. Do mesmo jeito que
me acusou de ter beijado um cara, coisa que eu não fiz e que era
completamente fora de lógica, ele disse que eu era dele, coisa
completamente fora de lógica também. Não dava para se confiar na
veracidade das palavras que saíam da boca de uma pessoa
alterada.
Liam só me disse isso porque estava drogado. Sendo assim,
era melhor eu não alimentar qualquer esperança em mim. Ele
jamais falaria esse tipo de coisa em plena consciência. Eu tinha que
parar de sonhar, assim como também precisava virar aquela página
e continuar me afastando, por mais que eu quisesse o contrário. Era
melhor eu voltar os pensamentos para o que eu tinha que fazer, por
exemplo a viagem e o jogo.

❖❖❖

— Bom dia — disse, após descer do quarto e chegar à mesa


de café da manhã. Meu pai estava lendo seu típico jornal, porque
ele não era muito adepto à tecnologia, enquanto minha mãe e
Stefany conversavam.
Sentei-me em uma das cadeiras e comecei a me servir.
— Bom dia, querido — mamãe falou.
— Bom dia, maninho — Stefany também me cumprimentou.
Sorri para as duas, enquanto George permanecia calado, o
que era algo bem comum.
— Estou lendo aqui no jornal que os processos seletivos para
as universidades já estão abertos — ele finalmente se pronunciou.
— Você já fez sua inscrição?
Nossa, bom dia para você também.
— Ainda não. Vou fazer quando voltar de viagem.
— Você está brincando com o seu futuro, Eric — disse com
seriedade, advertindo-me. — Já deveria ter feito essa inscrição.
Sim, já deveria ter feito, mas, como eu faria a porcaria da
inscrição, se...
— Você já sabe qual curso escolher, não sabe?
Viu só? Era por isso que não tinha feito inscrição alguma.
Não aguentava mais essa pressão.
— Sim, sei. Engenharia Mecatrônica na Universidade de
Oxford.
No mesmo instante, entretanto, meu pai baixou o jornal e me
encarou de maneira firme.
— Não. Engenheira Civil na Universidade Londres.
Caramba, não! Eu não queria fazer Engenharia Civil, queria
fazer Engenharia Mecatrônica, e muito menos queria ficar em
Londres, eu queria ir para Oxford. Primeiro, porque o curso que ele
me obrigava a fazer não tinha nada a ver com meus gostos
pessoais. Segundo, porque quanto mais longe de Londres, e
consequentemente dele, eu ficasse, melhor. Dei um breve suspiro,
tentando controlar a iminente raiva que estava surgindo em mim.
Era impossível ficar calmo quando ele começava a falar sobre esse
assunto.
— Não, George — falei tão sério quanto ele. — Engenharia
Mecatrônica. Universidade de Oxford.
Ele bufou.
— Primeiro, não me chame de George, eu sou seu pai —
cuspiu todas as palavras em pura arrogância. — Segundo, já está
decidido. Você vai fazer Engenharia Civil em Londres! Precisa
cuidar dos negócios da família!
Que inferno!
— Você não pode tomar decisões por mim! — disparei,
porque não tive como me conter.
— Acalmem-se! — mamãe exclamou, tentando intervir na
situação. — Não é hora para vocês estarem discutindo.
George, no entanto, não deu a mínima atenção para o que
ela disse. Apenas continuou e...
— Eu sou seu pai, eu tenho os meus direitos! Você só tem
dezoito anos. Não sabe o que quer e não vai saber até os quarenta
e cinco, e, quando souber, não vai saber como usar.
— Chega! — Agora foi a vez da Stefany. — Pai, você não
pode decidir o futuro do Eric assim! Deixe-o tomar as próprias
decisões!
— Parem! — mamãe tornou a dizer. — Será que não vamos
conseguir terminar de lanchar em paz?
— Perdi a fome — resmunguei, ainda seriamente irritado com
todo aquele pseudo diálogo, e me levantei da cadeira, retirando-me
da mesa de café da manhã. Preferia ir para o colégio sem me
alimentar, do que ficar ali para ouvir mais besteiras. Peguei minha
mala, afinal eu ia viajar depois da aula, e saí sem me despedir.

❖❖❖

Meu pai era mesmo um merda. Nem decidir sobre a minha


própria vida eu tinha direito. Praticamente, vivia uma vida que não
era minha. Será que ele não se importava com a chance de eu me
tornar um profissional frustrado? Porra!
Ainda de cabeça quente, estacionei o carro em frente ao
colégio. Caminhei com um semblante tão fechado que já estava
notando os olhares estranhos de todos. Claro, eles não estavam
acostumados a me ver assim, porque eu era sempre simpático.
Mas, não dava para ser legal sempre. Cada um com seus
problemas. Se eu sorrisse agora para as pessoas, estaria sendo um
falso e, definitivamente, isso não era do meu feitio.
Caminhei até a sala de aula, segurei a maçaneta, ainda
sentindo toda a carga de raiva sobre o meu corpo, abri a porta e...
Liam foi a primeira pessoa com quem meu olhar cruzou. Ele estava
de óculos escuros, com seu rosto voltado para a minha direção.
Estranhamente, minha raiva dissipou um pouco com sua presença.
Era um tipo de conforto que eu sentia somente com sua presença,
apesar de nós sempre vivermos com cão e gato. Além do mais, ele
estar em sala de aula era a prova de que estava vivo, depois da bad
trip no pub.
Eu perguntava que tipo de efeito era esse que ele tinha sobre
mim. Além de tudo o que eu já estava sentindo por ele, agora
apenas a sua presença me deixava mais... Leve?
Entretanto, apesar da minha raiva ter milagrosamente
diminuído e de eu constatar que ele continuava vivo, um traço de
preocupação me atingiu, por notar seu semblante completamente
destruído. Mesmo com os óculos escuros, eu conseguia perceber
que a região próxima aos seus olhos estava arroxeada, enquanto a
cor do restante do rosto era pálida. Seu cabelo estava uma bagunça
e ele parecia sentir muito sono. Isso, certamente, era efeito do que
ele tinha consumido na noite anterior.
Pelo menos, a droga não o fez cair ao ponto de não
conseguir levantar para ir ao colégio. Pelo menos, ele estava ali.
Pelo menos, ia viajar para o jogo. Mas... Como será que ele passou
a noite? Será que tomou algum remédio para cortar um pouco o
efeito da ressaca? Como ele conseguiu chegar em casa depois do
bar? Instantaneamente parei, quando minha cabeça me sinalizou
que eu já estava me preocupando demais. Logo eu, que tinha
prometido a mim mesmo que, por mais complicado que fosse, me
afastaria dele.
Droga, era melhor parar de pensar nele, era melhor eu
continuar com o meu plano de me afastar.
Caminhei até a ponta oposta da sala, distante do local onde
ele estava, e me sentei em uma das carteiras que estavam um
pouco ao fundo. Era o meu dia de cão. Eu nem estava me
reconhecendo, parecia até o Liam mal humorado de sempre.
Porém, depois de tudo o que tive que ouvir do George naquela
manhã, eu estaria bem somente se tivesse sangue de barata.
Algumas pessoas ainda falaram comigo, mas eu só consegui
retribuir com pequenos sorrisos amarelos. Tentava ser educado,
mas, porra, era difícil quando você começava o dia recebendo
ordens de um cara que era para ser o seu pai, e não seu patrão.
Poucos minutos se passaram até que o professor de química
entrou em sala de aula. Rapidamente, as conversas cessaram e
todos os que estavam em pé procuraram os seus lugares. O
professor, então, se pronunciou, após o silêncio se fazer presente
ali.
— Queridos, bom dia — sorriu. — Todos se aquietaram tão
rapidamente que eu fiquei até admirado. Mas, eu sei o que é isso.
Estão querendo ser agradáveis porque sabem que as provas estão
chegando, não é? — soltou uma pequena risadinha.
— Imagina, professor — Robert falou. — É porque gostamos
muito do senhor — e sorriu de um jeito muito malandro que só ele
tinha.
Palhaço.
— Quem não te conhece que te compre, Robert — soltou
mais uma pequena risadinha, outra vez. — Inclusive, a noite
passada deve ter sido boa, não é? Porque você está com uma baita
cara de ressaca — sorriu, simpático. — Mas, por falar em provas,
tenho um pequeno aviso para dar, antes de começar a explicar
sobre o Diagrama de Pauling que vocês tanto adoram. Como todos
sabem, as provas estão chegando e... — De repente, ele
interrompeu a si mesmo e olhou diretamente para o Liam. — Sr.
Liam Tremblay, sabe que não pode usar óculos escuros durante a
aula, não sabe?
Isso foi o suficiente para os olhares da turma inteira se
voltassem para o moreno. Se ele não estivesse de óculos escuros,
eu poderia jurar que ele revirou as orbes ao ouvir aquilo.
— Estou com um problema nos olhos, professor — tentou se
explicar com uma baita voz de ressaca.
— Então, vá à enfermaria para se medicar. Em sala de aula,
com óculos escuros, você não pode ficar. Não sou eu quem diz isso.
São as normas da escola.
Se ele não estivesse de óculos escuros, poderia jurar que
revirou os olhos novamente. Mas, então, devagar, os retirou. Aos
poucos, seu semblante de ressaca foi se tornando mais evidente. O
mais preocupante, de fato, era a região dos olhos. Eles estavam
bem roxos, como se ele não tivesse dormido. Um burburinho, então,
comandado pelos fofoqueiros, se alastrou pela classe. Liam ainda
tentou disfarçar, mas eu sabia que ele estava se sentindo altamente
desconfortável com a situação. A prova disso era que ele se
remexia um pouco na cadeira, inquieto, a cada comentário ouvido.
— Silêncio — pediu o professor, tentando dissipar as
conversas paralelas já instaladas em sala de aula. — Silêncio —
novamente falou, ao perceber que seu pedido por pouco não era
atendido. Aos poucos, os alunos se calaram, enquanto o ele
retomava o seu aviso. — Bom... As provas estão chegando e, por
isso, elaborei um teste para ajudar vocês. Sim, ajudar. Esse teste
vale ponto extra na prova e deve ser realizado pelas duplas do
laboratório de química na próxima aula.
Quê? Dupla de química? Na próxima aula? Não, meu Deus.
Parecia que quando eu decidia me afastar do Liam, tudo acontecia
para que eu não colocasse os meus planos em prática!
De repente, Liam virou o rosto em minha direção. Jesus.
Dessa vez, consegui ver perfeitamente os seus olhos arroxeados, o
rosto abatido, caramba, coitado... Ele estava destruído. Senti um
aperto no peito. Talvez se eu só... Fosse lá e perguntasse se ele
estava precisando de alguma coisa... Quê? Não! Rapidamente, caí
na real. Para com isso, Eric! Que porra é essa? Eu precisava
policiar os pensamentos, porque, se eu queria distância, eu não
poderia perguntar coisas desse tipo a ele.
Ligeiro, desviei meu olhar do seu e virei o rosto. Pela minha
visão periférica, no entanto, eu ainda o notava insistir em me olhar
por mais alguns segundos. Porém, provavelmente após se dar conta
de que eu não viraria meu rosto em sua direção novamente, acabou
desistindo. Que fosse assim, daqui para frente.

❖❖❖
— Eu odiei aquele filme, sério! — Moly confessou, após se
sentar em um dos bancos do pátio. Ela estava se referindo ao filme
que assistimos no dia anterior. A aula acabou e eu fui me encontrar
com ela antes de viajar, para me despedir. Inclusive, de onde
estávamos, eu já conseguia ver os dois ônibus que levariam o time.
— Ah, qual é, Molly? Nem é tão ruim assim — Embora eu
estivesse me esforçando para ser simpático e conversar
normalmente, era quase impossível disfarçar o meu desânimo. Eu
ainda estava chateado pelo que tinha acontecido na manhã daquele
dia, em minha casa. Além disso, também não era animador ter que
fingir um relacionamento com a Molly. Não estava mais aguentando
isso.
— Nossa, que falta de energia... — com certo desgosto, ela
respondeu. — Aquele filme é ruim sim. Nem todos os casais
terminam juntos. Tem gente que termina sozinha. Tem traição.
Enfim... Só o que não é legal.
“Nem todos os casais terminam juntos. Tem gente que
termina sozinha. Tem traição”. Traição. Droga. Assim ficava cada
vez mais difícil terminar esse namoro. Eu não tinha escolhido “Ele
não está tão a fim de você” por acaso, para assistirmos. Eu queria
adentrar aos poucos, como minhas tias me aconselharam, no
assunto do fim daquele relacionamento.
— Se lembra do que aquela personagem, a Gigi, falou no
final? — questionei. — Talvez o final feliz seja só seguir em frente.
Molly, no entanto, torceu o nariz ao ouvir isso.
— Credo, Eric. Eu acho que você tá passando o seu
desânimo pra mim. Nossa, que comentário mais sem graça —
replicou, enquanto franzia o cenho e balançava a cabeça.
— Ora, acontece... — falei. — Se lembra daquele
personagem, o Ben? Ele era casado com a Janine, mas se
apaixonou pela Anna. Não acha que ele fez certo em seguir o
coração? Teria sido pior se ele tivesse continuado com a Janine,
mesmo gostando da Anna. Não acha?
— Não... — balançou a cabeça e, de um jeito bem manhoso,
me abraçou, ficando com o rosto bem próximo ao meu. Céus. — Eu
acho que essa conversa tá muito chata. Você vai viajar daqui a
pouco e não fez carinho em mim nenhuma vez... Me beija... — falou
no ouvido, cheia de dengo.
Ah não, cara. Droga. Eu tentava entrar, de todas as formas,
aos poucos, no assunto do término; tentava incutir, devagar, essa
ideia em sua cabeça; tentava seguir os conselhos das minhas tias;
mas, parecia que não dava. Parecia que, quanto mais eu tentava ir
aos poucos, mais a Molly não colaborava.
— Me beija, vai... — ela continuou me pedindo com jeitinho.
— Faz tempo que você só me dá selinho. Onde foi parar meu
namorado?
Meu Deus do Céu. Eu não aguentava mais. Chega!! Não
aguentava mais ter que ir aos poucos. Não aguentava mais fingir um
relacionamento. Eu tinha chegado ao meu limite. Desculpa, tia Sam.
Desculpa, tia Lexie. Mas, eu ia ter que falar de uma vez pra Molly
que queria terminar. Não queria continuar a enganando.
Ela ia me matar? Eu não sabia. Ela nunca mais olharia na
minha cara? Também não sabia. Eu só precisava, de uma vez por
todas, acabar com isso.
— Molly... — suspirei. Seu rosto ainda estava bem próximo
ao meu. — Preciso te falar algo.
— Falar o quê? — perguntou e aproximou ainda mais seus
lábios do meus.
Meu Deus do Céu.
— Molly... Eu... Eu quero... — parei por alguns instantes,
tentando organizar os pensamentos, fechei os olhos e... — Quero...
— Com licença — ouvi uma voz masculina falar ao nosso
lado. Droga. Quem tinha aparecido para atrapalhar?
Virei o rosto e... Era o Sr. Davis, o auxiliar do técnico.
— Pois não, Davis — falei.
— Desculpe atrapalhar o casal, mas o ônibus vai partir dentro
de dois minutos. Só falta você, Eric.
Merda. Droga.
— Tudo bem — repliquei, tentando disfarçar o meu
desapontamento.
Levantei-me do banco e segurei minha mala com uma das
mãos.
— Nos falamos quando eu voltar, Molly.
— O que você tinha pra me dizer? — curiosa, questionou.
Algo muito importante e que provavelmente vai fazer com que
você me mate.
— Nos falamos depois — repeti.
— T-Tá bom... — gaguejou, um pouco insegura, por não
entender do que se tratava. — Boa viagem... — e se levantou para
me dar um beijo.
— Obrigado — dei-lhe um pequeno sorriso e comecei a
caminhar, antes que ela pudesse concluir o que estava planejando.
Sentia um apeto no peito por fazer isso com ela. Eu precisava, já,
por fim nesse relacionamento. Nunca imaginei que eu pudesse ser
tão cafajeste desse jeito. O fato era que eu estava tentando, mas
parecia que o universo conspirava contra. Droga.
Caminhei, acompanhando o Sr. Davis até um dos ônibus. Em
um deles, o time seria transportado. No outro menor, era a
organização. Aproximei-me o bastante até ver todo o time. Estavam
quietos. A típica animação de viajar para um jogo parecia não
existir. Compreensível. A maioria estava no pub, na noite anterior.
Ou seja, eles estavam de ressaca.
Não demorou muito até o olhar do Liam cair sobre mim. Por
que diabos ele estava me olhando tanto? Foi assim na sala de aula,
estava sendo assim agora. Não era ele que me queria longe? Como
quem não se importava, desviei meu olhar dele e entrei no ônibus.
Caminhei até as últimas poltronas e me sentei na que ficava
próxima ao banheiro.
Definitivamente, não era o melhor lugar. Inclusive, me eu me
lembrava da viagem em que Liam me fez sentar, de propósito,
nessa mesma poltrona. Ocorre que, naquele dia, minha cabeça
estava cheia. Então, quanto mais distante eu ficasse dos meus
colegas, menos oportunidade eu teria de destratá-los. Não queria
que meus problemas atingissem os outros.
Tirei meu celular do bolso e procurei pelos fones de ouvido na
mala. Me acomodei na poltrona e comecei a procurar por alguma
música. Dentro de segundos, vi de relance alguém sentando ao meu
lado. Virei meu rosto para ver quem era e... Uma surpresa. Uma
grande surpresa.
Que diabos Liam estava fazendo aqui? Ele estava ficando
louco? Nunca tinha visto pessoa mais bipolar e estranha na face da
terra!
Ele e sua cara de ressaca tiraram um lado do meu fone de
ouvido e...
— Por que me deixou sozinho no pub ontem? — Seu tom de
voz era audível o suficiente para que somente eu ouvisse a
conversa.
Quê? Eu, definitivamente, não entendia a cabeça dele
— Eu não tinha a obrigação de ficar com você — respondi.
— Mas você sempre fica — replicou de automático.
Liam estava muito mal acostumado.
— Não quando você me pede pra ficar longe. Não quando
você dá uma de doido — falei.
— Eu não dei uma de doido, imbecil — revirou os olhos
arroxeados. — Tenho certeza que te vi ficando com um cara.
Liam era absolutamente louco!
— Você estava drogado! — gritei em um sussurro.
— Eu não estava drogado! — também gritou em um
sussurro, mas logo parou e... — Talvez só um pouco... Porra, eu vi.
Caramba! Ele não ia parar?
Aliás, essa conversa estava se alongando mais do que
deveria.
— Eu não estava com ninguém — sussurrei e o encarei com
seriedade. — E mesmo que eu estivesse isso não é da sua conta —
levantei-me da poltrona e peguei minha mala.
— Vai continuar fugindo? — perguntou.
— Não vou suporta passar a viagem inteira do seu lado —
menti. Era claro que eu suportaria. — Além do mais, só estou
fazendo o que você me disse. Só estou ficando longe de você.
Liam até tentou disfarçar, mas ficou boquiaberto com as
minhas respostas. Eu conseguia notar o choque em seu rosto. Dei-
lhe as costas e caminhei até outra poltrona que estava vazia.
Última chance

Liam

— Eu tenho uma mania que já é tradição! — Robert puxou o grito


de guerra, dentro do ônibus, enquanto estamos voltando para casa.
— De nunca se entregar e cair no chão! — o time inteiro
respondeu.
Felizmente, a ressaca não nos impediu de fazer um bom
jogo. Claro que isso deu pelo fato de que eu estava finalmente
jogando, mesmo que sem fazer muito esforço. Minha perna
praticamente recuperada. Aquele time só funcionava se eu jogasse.
Assim como também só funcionava se o idiota do Eric estivesse
jogando. Mas, isso não vinha ao caso, porque nós não devíamos
dar crédito a quem já tinha crédito demais. Ele voltou da tal
suspensão, por causa do ocorrido na última viagem, e estava
jogando novamente.
— Se é pra ganhar! — Robert gritou.
— Se é pra ganhar! — repetimos.
— Se é pra perder! — Robert gritou.
— Se é pra perder! — repetimos.
— O Regent vai mostrar sua força, garra e determinação!
Quem vai dar o sangue? Quem?
— Uh! Uh! Uh! — todos ficaram de pé dentro do ônibus e
começaram a pular.
Graças a Thor conseguimos vencer o jogo e recuperar um
pouco da pontuação perdida. Era justamente por causa disso que
estávamos tão animados. Todos pulavam e se divertiam, até mesmo
o imbecil do Eric que chegou à viagem com o semblante mais
fechado do mundo.
— Eric e Liam são os melhores capitães que a gente
respeita! — rindo, William disse.
Eric e eu fomos co-capitães durante a partida e... Bem... Eu
quis matá-lo diversas vezes, claro, mas, me contive. Pelo menos,
durante o jogo, eu me segurei, já que não podia garantir o mesmo
nas horas livres.
O time inteiro concordou, sorriu para o que William disse,
assim como também continuou a baderna dentro do ônibus.
Instintivamente, olhei para Eric, que voltou suas íris para mim.
Nossos sorrisos automaticamente sumiram. Nem a felicidade por
termos vencido o jogo conseguia mascarar o mal-estar entre nós. É
que... Porra! A vida também não colaborava! Primeiro, quem ele
pensava que era para ficar me esnobando? Depois, os olheiros das
universidades, no dia anterior, me fizeram ferver o sangue. Depois...
Ok, ok. Vamos por partes.

...

— Liam — ouvi o treinador me chamar.


Encarei-o, no mesmo instante, e o vi se virar para Eric, que
estava na ponta oposta do saguão do hotel.
— Eric — Dessa vez, era ele quem o Sr. Jones chamou.
Rapidamente, o loiro se aproximou, sem ao menos olhar na
minha cara. Parecia que eu não existia ou que ele tinha se
esquecido de quem eu era. Idiota. Eu não tinha mandado ele me
esnobar.
“Eu não sinto atração por você! Na verdade, eu tenho raiva
de você! Então, fica longe de mim, entendeu? Fica longe!”,
automaticamente essas palavras, ditas por mim, surgiram em minha
mente, refrescando a minha memória. Droga. Eu tinha falado
mesmo para ele ficar longe de mim, mas... Eu já estava sentindo
falta daquele idiota por perto, o que era uma verdadeira merda.
— Pois não, Sr. Jones — Eric disse.
— Os co-capitães devem ficar no mesmo quarto. Ok? — o
treinador replicou e ergueu a chave do quarto em direção ao infeliz.
Santa Vodca do Céu! A gente tinha mesmo que ficar juntos
no quarto?
— No mesmo quarto? — Eric questionou, como se tentasse
confirmar para si aquela informação. Notei-o engolir a seco.
— Sim — o treinador reiterou — Agora segure a chave.
Percebi o loiro tentando esconder sua expressão de quem
comeu e não gostou, mas logo segurou a chave, conforme a
orientação. Afinal, nós tínhamos que seguir todas as ordens.
— Tudo bem. Com licença — respondeu e deu as costas,
caminhando em direção aos quartos. Mais uma vez, aquele otário
tinha me deixado para trás. Nem me esperou para irmos juntos ao
quarto onde iríamos ficar.
Volta aqui com essa chave! Esse quarto não é só seu,
imbecil!
Caminhei rapidamente em direção a ele, tentando o
acompanhar, mas parecia que, quanto mais rápido eu caminhava,
mais ele apressava o passo. Meu sangue esquentou. Quem fazia
esse tipo de coisa era eu, não ele. O papel dele, naquela história,
era ir atrás de mim.
— Me espera, imbecil! — exclamei quando, finalmente,
consegui chegar perto o suficiente. — Esse quarto não é só seu.
Eric não me respondeu, nem me olhou, apenas abriu a porta,
como se eu e nada fôssemos a mesma coisa. Em menos de um
segundo, ele escolheu a melhor cama do quarto, justamente aquela
que ficava mais próximo ao aquecedor.
— Quero ficar com essa cama — requisitei, me referindo
àquela que já estava sentado e acomodado.
— Cheguei primeiro. — replicou curto e grosso.
Idiota.
— Eu não ligo — bem malcriado, falei — Eu quero essa
cama.
Eric, no entanto, me observou com seriedade. Não havia uma
sombra de simpatia em seus olhos. Ele não estava para
brincadeiras mesmo.
— A cama é minha. Agora cala a boca, porque eu vou dormir
um pouco até a hora do jogo. Ainda estou cansado de ontem.
Quê? Me senti estupefato. Nós, por acaso, tínhamos trocado
de papel e ninguém me avisou? O que era isso? Onde estava o Eric
otário? Onde foi parar o Eric que eu conhecia?
— Você está mui... — tento dizer, mas...
— Cala a boca — tirou o tênis, deitou na cama e fechou os
olhos.

...

Eric começou a viagem me ferrando. Como se não bastasse


estar me evitando há tempos, ainda teve a audácia de continuar me
destratando.
— Meus caros... — ouvi a voz do Sr. Jones,
consequentemente tirando-me dos meus pensamentos. — Eu sei
que todos estão felizes por termos ganhado o jogo, mas, por favor,
sentem-se. Estamos no meio da estrada.
— Senta aqui do meu lado, capitão — Adam requisitou ao
Eric. — Quero trocar uma ideia contigo.
O sorriso do loiro automaticamente retornou ao seu rosto.
Parecia que ele só conseguia sorrir com outros, mas comigo não.
— Também quero trocar uma ideia com o capitão — Dessa
vez, foi William quem falou. — Mas, é com esse capitão — e me
puxou pelo braço, fazendo-me sentar em uma poltrona ao seu lado.
— E aí, brother.
— Cara, que jogo incrível foi aquele? — perguntou
praticamente extasiado. — Você e o Eric são excelentes co-capitães
e fizeram um ótimo trabalho juntos. O time deveria ter vocês dois
como capitães daqui pra frente e não só temporariamente.
Quê?
Eric e eu como co-capitães daqui pra frente?! Não! Claro que
não! O time só podia ter um capitão. Eu. Eric era somente um
temporário.
— Óbvio que não, William. Tá doido? — balancei a cabeça
em exasperação. — Isso não dá certo.
— Daria certo se você e o Eric se dessem bem. Vocês
deveriam se unir. Formariam uma bela dupla de capitães.
William ainda devia estar drogado!
— Para com isso, cara — repliquei. — Sabe que não dá
certo. Não quero dividir para todo o sempre meu posto com o Eric.
— Não é para todo o sempre — soltou uma pequena risada.
— Vai ser só enquanto vocês estiverem no time. Aliás, percebi que
na viagem vocês estão mais distantes do que já são normalmente.
Só no jogo vocês fizeram o trabalho em dupla. O que está
acontecendo?
O que está acontecendo é que aquele idiota está me
ignorando e me deixando com saudade!
Quê?
Meu Zeus, eu estava cada vez pior. Não, eu não pensei isso.
Eu não estava com saudade dele. Que coisa mais gay!
— Nada... — limitei-me a dor de ombros. — Nada.

...

Observei o meu reflexo no espelho do banheiro do quarto e


logo constatei que as olheiras já estavam desaparecendo. Afinal,
assim como o Eric, eu tinha decidido dormir um pouco, até a hora do
jogo, para me recuperar totalmente.
Enquanto ele estava na melhor cama do quarto, eu estava na
minha, tentando me concentrar para dormir e parar de observá-lo.
Inúmeras vezes as cenas dos nossos beijos surgiam em minha
mente e... Droga! Eu estava com tanta saudade, por mais que não
quisesse admitir isso.
Eu sabia que isso não era certo, assim como também sabia
que feria a minha heterossexualidade, mas... Aquele idiota beija tão
bem. Era impossível não sentir falta! Além do mais, a saudade
triplicava quando eu percebia que ele estava explicitamente me
esnobando. Afinal, a função de ignorar era minha.
Mas, depois que eu acordei e olhei para a cama ao lado, não
o vi. Pela sua mala um pouco desarrumada, notei que tinha acabado
de se vestir para o jogo. Provavelmente, já devia ter ido para o
saguão, onde estavam fazendo uns comes e bebes com
alimentação saudável para os jogadores antes da partida.
Pelo que fiquei sabendo, o time adversário também estava
hospedado naquele mesmo hotel. Então, a organização do
campeonato decidiu fazer esse momento de convivência entre os
jogadores antes da partida.
Não demorou muito até eu terminar de me arrumar e ir para o
saguão. Saí do quarto, caminhei alguns poucos metros e logo
começo a avistar todos os que estavam conversando e se servindo.
Um pouco mais à frente vi o Sr. Jones conversando com alguns
homens de aparência mais velha. Não demora muito até esses
mesmos homens se dirigirem até onde Eric estava.
A curiosidade, de repente, me atingiu.
O que esses caras queriam com o Eric? Quem eles eram?
Será que eram...
— Liam! — ouvi Robert falar ao meu lado. — Pensei que não
fosse sair do quarto. O técnico já estava cogitando a ideia de jogar
um balde de água fria para ver se você acordava — soltou uma
pequena risada.
Entretanto, eu quase não estava prestando atenção no que
ele falava. Não conseguia tirar os olhos do Eric e daqueles
senhores. Todos de paletó. Muito bem vestidos. Nunca os vi. Será
que eram da organização do time adversário? O que eles queriam?
— Robert... Quem são aquelas caras que estão conversando
com o Eric? — questionei sem tirar os olhos de lá.
— Aqueles caras?
— Sim.
— Ah... Eles são alguns olheiros das universidades...
Quê?
De repente, senti um buraco se abrindo sob os meus pés.
Então... Eles eram mesmo os olheiros das universidades? Então...
Eles foram atrás do Eric para conversar? Então... Eles estavam
interessados pelo Eric?! Droga! Por que todas as pessoas só
queriam saber do Eric? Eu tinha certeza que aqueles velhos nem ao
menos pensaram no meu nome!
Agora sim, um dos meus piores pesadelos foi concretizado!
Eric seria o jogador do time a ganhar bolsa e o meu sonho de
ganhar uma bolsa na universidade por causa do futebol iria por água
abaixo.

...

Depois disso, tentei me esforçar ao máximo na partida, pra


jogar bonito e tentar chamar a atenção de todos para mim. Talvez
tenha sido por isso que o jogo foi tão bom. O problema era que,
mesmo fazendo bonito, eles não me procuraram depois do jogo. E
só Zeus sabia se ainda iriam me procurar.
— Liam! — senti William me chacoalhar. — Liam!
— Que foi?! — respondi, tentando dispersar meus
pensamentos sobre o jogo.
— Chegamos em Londres! — falou. — Estou há um tempão
te chamando e tu só sonhando acordado. Você tá pensando em
que? — rindo, perguntou.
Em um cara que só ferra a minha vida.
— Cala a boca, mané — revirei os olhos e me levantei da
poltrona do ônibus.

❖❖❖

— E aí, gatinho, como foi a viagem? — Stefany perguntou.


Depois que cheguei de viagem, no dia anterior, minha casa
foi o primeiro e único lugar para onde fui. Uma noite de sono foi o
suficiente para me recuperar totalmente do cansaço. Cheguei pela
manhã ao colégio e Stefany foi a primeira pessoa que veio falar
comigo.
— Pelo menos ganhamos — falei.
— Nossa, que desânimo é esse? — franziu o cenho. — Esse
“pelo menos ganhamos” foi tão insosso.
Bom, por onde eu podia começar? Primeiro, Eric se tornou
mais imbecil do que já era. Segundo, aqueles velhos de uma figa,
também conhecidos como olheiros das universidades, não me
deram a mínima atenção. Terceiro, ainda naquele dia, eu precisava
fazer as inscrições nos processos seletivos das universidades e eu
não sabia que curso escolher. Quarto, eu também teria aula com o
Eric, por causa do tal teste com as duplas do laboratório de química.
Tinha como minha vida ficar pior? Acho que não!
— Só não tenho motivo pra ficar animado — falei.
— Você está até parecendo o Eric, que só anda desanimado
agora! Não sei o que a aquele menino tem — Stefany balançou a
cabeça. — Já perguntei, mas ele sempre diz que tá tudo bem. Só
que eu sei que não está.
Então, Eric também estava desanimado? Bem que eu vi a
cara dele no início da viagem. Mas a vida do “Golden Boy” era tão
perfeitinha! Por que o desânimo?
— Deve tá triste porque tirou um A- na prova, quando queria
tirar um A+. Ou deve ter acertado 19 exercícios de matemática,
quando queria acertar 20 — repliquei com ironia. — Deve ser por
isso que anda desanimado.
Stefany revirou os olhos.
— Você tem uma imagem muito distorcida da vida do Eric. A
vida dele não é perfeita.
— Porra... Se a vida dele não é perfeita, a minha é menos
ainda — garanti.
— Nossa... — a loira franziu o cenho. — Tá bom de você ficar
com alguém pra ver se essa bad passa.
— Ficar com alguém? — soltei um pequeno sorriso. — Você,
no caso?
— Ah, eu não — Stefany deu de ombros. — Pega alguma
líder de torcida. Ouvi dizer que são bem flexíveis — sussurrou de
uma maneira sarcástica.
Ri um pouquinho, assim como ela também
— Caramba, Stefany, você não existe!
Só mesmo essa loira para me fazer sorrir.
— Também pensei que eu tinha deixado de existir, depois
que fique com um aluno transferido numa festinha antes de ontem.
— Stefany olhou para cima, como se estivesse relembrando os
momentos, e sorriu. — Gostoso da porra.
Meu Zeus do Céu, era por isso que acho a Stefany irada!
Nunca vi menina mais desencanada.
— Só me esperou viajar para me trair né? — brinquei,
enquanto ela caiu na risada
— Nossa, você sempre foi muito preocupado com isso! —
também brincou.
Era verdade. Tirando o Eric, eu nunca me preocupei com
quem ela ficava ou deixava de ficar, assim como ela também agia
da mesma forma comigo. Precisava dar mais motivos pra explicar o
porquê da Stefany ser minha melhor amiga?
— Certo, gatinha... — sorri, passando carinhosamente uma
das minhas mãos em seu cabelo. — Preciso ir agora. Meu pesadelo
vai se tornar realidade.
— Nossa... — Stefany arqueou as sobrancelhas. — O que
você vai fazer?
— As merdas das inscrições nos processos seletivos das
universidades — revirei os olhos.
— Ah, já fiz as minhas — Ela disse. — Boa sorte lá!
— Vou precisar.

❖❖❖

— Fez as inscrições nos processos seletivos das


universidades? — Essas foram as primeiras palavras que meu pai
pronunciou após eu chegar do colégio. Eu mal tinha fechado a porta
de entrada.
Até que fiz, só não tinha certeza se fiz as escolhas certas.
Decidir seu futuro com dezoito anos de idade era o pior momento da
vida de qualquer adolescente.
— Fiz — respondi secamente.
— Escolheu que curso?
Merda.
— O curso que eu escolhi? — Mesmo tendo ouvido
perfeitamente bem, perguntei. Era uma tática para se ganhar tempo
na formulação de desculpas.
— Sim — papai replicou.
Ai, caramba. Eu tinha escolhido Relações Públicas, porque,
no fim das contas, eu tinha que escolher algo, né? Mas, sei lá,
talvez eu não gostasse de nada, de nenhum curso. Quer dizer, a
única coisa que eu gostava de fazer era jogar futebol.
— Pai... — meio receoso, falei. — Escolhi...
— Qual? — curioso, questionou.
— É... Hum... Relações Públicas.
Meu pai virou o rosto, ainda mais, na minha direção, como se
sentisse a necessidade de me dar ainda mais atenção.
— Quais universidades? — tornou a perguntar.
— Universidade da Califórnia, Universidade de Oxford e... É...
Har-Harvard... — gaguejei, por fim.
— Até onde você falou, Harvard é sua principal escolha, não
é?
— É... É? — repliquei um pouco incerto. Papai logo franziu o
cenho com a minha insegurança. Droga. — É. Sim. Harvard é a...
Principal escolha — reformulei a frase, tentando passar mais um
pouco de confiança.
Só que... Era claro que não! Toquei no assunto de Harvard
uma única vez, somente para impressionar meus pais, e, de lá para
cá, eles internalizaram isso de tal forma que acreditaram piamente
que eu queria realmente Harvard. Mencionar aquela universidade foi
uma das piores besteiras da minha vida, diga-se de passagem. Eu
ficaria satisfeito se qualquer uma me aceitasse. Do jeito que eu era,
todas estavam valendo. O que importava era passar.
— Bom... Então, espero que esteja realmente se preparando
para passar em Harvard. Conheço o filho que tenho. Conheço suas
notas. Não são notas de quem quer passar em Harvard — Puta
merda. Lá vem ele com essa história de novo! — Inclusive, espero
que as aulas com o Eric deem resultado. Soube que ele vem pra cá
daqui a pouco.
— Infelizmente — repliquei no automático, mas... — Quer
dizer... — pigarreei a garganta. — Sim, vem.
Assim que me calei, no entanto, ouvi a campainha de casa
tocar. Por Thor! Será que era ele? Meu coração inexplicavelmente
começou a palpitar. Que coisa mais gay! Só agora a ficha tinha
caído de que esse seria o nosso primeiro momento juntos, depois
que ele inventou de me ignorar. Queria ver como ele fugiria de mim
naquele dia.
— Talvez seja ele — meu pai disse. — Atenda, Liam.
E, além de tudo, eu ainda era o empregado que abria a porta
de casa. Mas, mesmo a contragosto, dirijo-me até lá. Eric surgiu em
minha frente, no instante em que o atendi. Seu rosto estava
impassível, quando, de repente...
— Eric! — ouvi a voz entusiasmada do meu pai. — Entre,
querido, por favor. Que bom vê-lo aqui!
Logo um sorriso estampou o rosto do “Golden Boy”.
— Padrinho! — eles se cumprimentaram, enquanto eu
fechava a porta. — Digo mesmo. Muito bom ver o senhor!
Ai, que ceninha triste. Eric conseguia ser irritante até quando
não queria. Esse jeitinho dele me dava nos nervos.
— Vocês vão estudar hoje, não é? — meu pai perguntou.
Instantaneamente, notei Eric tentando esconder o semblante
de desconforto ao ouvir “vocês vão estudar hoje”.
— Sim, tio... Vamos...
— Ótimo! — Papai respondeu e virou-se para mim. — Liam,
se esforce nessas aulas, tá? Siga o exemplo do Eric. Menino bom.
Menino estudioso. Menino responsável. Menino...
— Tá, tá... — repliquei rapidamente, quase sem paciência,
tentando interrompê-lo. Eu não suportava quando ele começa com
esse discurso!
— Certo. Preciso deixá-los a sós agora. Vou a uma
concessionária para trocar a BMW! — disse, alegre. Talvez eu
tivesse puxado dele o meu lado consumista. — Aproveitem os
estudos, garotos.
Quando se despediu e nos deixou a sós, um silêncio
desconfortável reinou entre nós. Apenas Eric e eu estávamos dentro
de casa. Papai saiu, mamãe estava na empresa e Molly ainda não
tinha voltado do colégio.
Mais silêncio.
Eric parecia não estar muito interessado em cumprir com seu
papel de professor. Aliás, parecia não estar interessado em nada
que dissesse respeito a mim. Esse não era o Eric bobo que eu
conhecia.
— Lá em cima — Finalmente me pronunciei e caminhei até
as escadas.
Subimos até o meu quarto, enquanto o clima entre nós era de
total desconforto. Eu sabia que ele só estava me dando essas aulas
porque minha mãe pediu e que ele queria estar em qualquer lugar
menos ali. Provavelmente, se arrependimento matasse, ele já
estaria morto.
Quando entramos e nos sentamos nas cadeiras da
escrivaninha, Eric, sem nem ao menos perguntar se podia, abriu sua
mochila e colocou tudo em cima da mesa. Onde foi parar o Eric que
disse não saber como agir no meu quarto?
— Quanto mais rápido a gente começar, mais rápido a gente
vai terminar — Finalmente ele se pronunciou, mas sem olhar nos
meus olhos. Aliás, há dias não tínhamos um longo contato visual.
Não que eu estivesse com saudade disso. Claro que não. Quero
dizer... Talvez... Talvez só um pouco.
— Olha, se você não quiser me dar aula, a porta da rua é a
serventia da casa — falei.
— Infelizmente, eu tenho um compromisso com a minha tia e,
infelizmente, somos uma dupla no laboratório de química —
respondeu. — Agora vê se colabora, porque não quero prejudicar
minhas notas por sua causa. A gente tem um teste pra fazer
próxima aula.
— Sabe que o papel de esnobe é meu, né? — questionei.
— Não é um papel que requer muito empenho, por isso
consigo cumpri-lo perfeitamente bem — replicou.
Inexplicavelmente uma tristeza me abateu. Que diabos era
isso? Será que era mesmo por causa do Eric? Será que era porque,
no fundo, eu tivesse uma grama de esperança de que, na aula, ele
agiria diferente? Será que era porque eu estava sentindo falta dele?
Será que era porque esse Eric era irreconhecível pra mim?
Eu sei que tinha raiva dele. Raiva de ser sempre certinho.
Raiva de que tudo pra ele dava sempre certo. Raiva de me fazer
querer beijá-lo. Raiva das comparações. Raiva dos olheiros terem
falado com ele. Raiva de tanta de coisa. Mas, quando ele me
ignorava, eu só queria que ele voltasse a me olhar com o carinho
que sempre me olhou. Por mais gay que essa vontade fosse, eu só
queria isso. Merda.
— Fala comigo direito — tentei esconder a vulnerabilidade
nas minhas palavras, embora eu soubesse que era quase
impossível.
Foi aí que ele, finalmente, virou-se para mim e me encarou.
Segundos de silêncio se passaram dentro do quarto, até que Eric
disse:
— Eu estou falando da maneira como você sempre falou
comigo. Bom, né? — questionou com uma ponta de sarcasmo.
Idiota! Ele estava querendo passar na minha cara a maneira
como sempre o tratei, assim como também queria me esnobar como
sempre o esnobei. Eric queria devolver na mesma moeda. E o pior...
Em vez da minha raiva aumentar, o que aumentava era a minha
tristeza. Que merda estava acontecendo comigo? Eu não era assim!
Liam Wyman Tremblay Terceiro não era assim! Nós estávamos
trocando de papéis? Agora eu era o bobalhão e o Eric era o
arrogante da história?
— Eu tenho meus motivos pra te tratar assim — repliquei.
— E eu tenho os meus — respondeu no automático. —
Agora, se não for pedir muito à ex-donzela esnobe, será que
podemos começar a estudar? — perguntou com seu típico
sarcasmo. Isso era a única coisa que nunca mudava.
— Donzela é seu rabo.
Eric, no entanto, balançou a cabeça, revirou os olhos e
começou a recolher o seu material.
— Ei, idiota, o que você está fazendo? — perguntei.
— Você não quer estudar — respondeu. — Então, se fode
sozinho, porque eu vou estudar pro teste em casa e vou pedir para
resolver o teste sozinho.
Quê?!
— Não! — exclamei. — Espera aí! Eu vou estudar. Sério.
Vi quando respirou fundo, tentando conter os nervos.
— Última chance — replicou friamente.
Para de agir assim comigo! Para de me ignorar!
Gritei internamente, mas...
— Tá — limitei-me apenas a dizer isso.
Até quando o Eric continuaria sendo um clone de mim?
Onde foi parar o meu namorado?

Eric

Controle. Controle foi tudo o que eu precisei ter na aula particular,


ontem, com o Liam. Há dias estou usando uma máscara de frieza e
vestindo trajes de esnobismo. No entanto, diferente do que disse, no
dia anterior, para o Liam, ser esnobe era a tarefa mais difícil que já
desempenhei em toda a minha vida. Esse não era eu. Eu não era
isso. Às vezes, eu nem me reconhecia. E, por mais que eu
soubesse que Liam merecia tal tratamento, me cortava o coração.
Precisei me controlar para não abraçá-lo, para não beijá-lo,
para não dizer que tudo o que eu mais queria era ficar com ele.
Mas, se eu fizesse tudo isso, provavelmente receberia mais e mais
patadas. Ah, Deus, onde eu fui me meter? Por que eu tinha que
gostar do Liam? Por que eu não podia gostar de uma menina? Por
que eu não podia gostar de outro menino? Liam era tão complicado,
tão difícil. Eu não o entendia na maior parte do tempo. Ele era a
pessoa mais confusa que conhecia. Quem conseguisse decifrá-lo
precisaria ganhar um prêmio.
O fato era que, por mais estranho que isso me parecesse,
durante toda a aula particular, eu notei que, no fundo, seus olhos me
pediam para parar com tudo o que estava fazendo. Seus olhos me
pediam para ficar com ele. Me perguntei a todo momento se eu não
estava vendo coisas demais. Talvez fosse tudo ilusão da minha
cabeça. Mas, enquanto eu tentava iludir a mim mesmo, seu
semblante me dizia o contrário. “Eric, para de me ignorar e fica
comigo”.
Mas, porque, em vez de falar com olhos, ele não falava com
a boca? Não dizia o que sentia? Se é que sentia algo, porque isso
tudo também poderia ser uma grande estupidez minha. Liam
certamente não me queria, porque isso era “coisa de gay”, segundo
suas palavras. Quando comecei com essa de ignorá-lo, nunca
pensei que fosse tão difícil. Mas, mesmo sendo difícil continuar
daquele jeito, talvez isso fosse o mais correto a se fazer. Doía
ignorá-lo, mas doía ainda mais se passar por bobo ou trouxa na
frente de quem não se esforçava em nada por mim.
Ok, Eric, melhor parar de pensar nisso e levantar dessa
cama.
Eu tinha dormido mais do que deveria e não sabia se
conseguiria chegar a tempo no colégio para assistir a primeira aula.
Assim que coloquei o primeiro pé fora da cama, no entanto, ouvi
meu celular tocar. Quem poderia ser? Estiquei o braço até a cômoda
ao lado e olhei o nome no visor. George. Droga. O que ele queria?
Provavelmente, já tinha saído para o trabalho. Do contrário, não
estaria me ligando.
— Oi — falei
— Filho, preciso que você venha à construtora.
Quê? Agora?
— Não posso. Tenho aula.
— Eric, você não me ouviu? Preciso que venha agora — deu
ênfase no “agora”.
— Mas... — tentei argumentar.
— Eric, agora — me interrompeu, sem paciência.
— Não po...
— Agora! — replicou de maneira ainda mais incisiva e
desligou o celular.
Mas que merda! Por que eu tinha um pai assim? Um pai que
não me ouvia e que só sabia dar ordens! Um pai que queria que eu
vivesse a vida dele.

❖❖❖
Mesmo a contragosto, me arrumei e fui para a empresa.
Estacionei o carro e logo entrei no grande edifício da Construtora
Hastings. Não demorou muito para que os funcionários me
recebessem e me dessem “bom dia”. O bom dia para o filho do
dono. A maioria de lá me via como “filho do dono e futuro dono”,
alguns até tinham vergonha e receio de falar comigo. No entanto,
sempre procurei tratar todos bem e de igual pra igual. Nunca me
gabei por ser o “herdeiro”. Afinal, quem se gabaria por ser filho do
George? Me poupe.
Entrei no elevador e apertei no botão do último andar, local
onde ficavam somente as salas do George e do tio Jimmy. As portas
estavam quase se fechando, quando...
— Espera! — ouvi uma voz masculina e passos que
indicavam que a pessoa estava correndo. — Segura o elevador, por
favor!
Coloquei minhas mãos nas portas, impedindo-as que se
fechassem. Logo a pessoa apareceu.
— Eric! — Alex sorriu para mim.
— Alex! — sorri de volta. — Que coincidência!
— Não é? Uma baita coincidência — me cumprimentou com
um aperto de mãos. — Como estão as coisas? Você está bem?
Não. Mas, isso era uma pergunta praxe. Não iria sair falando
sobre minha vida e a grande bosta em que ela se encontrava.
— Tá tudo bem sim, e com você?
— Tudo bastante corrido — soltou uma pequena risada.
— Ah, imagino... — sorri. — Estagiar na “grande Construtora
Hastings” deve ser bastante puxado mesmo.
— Ô se é! Todo dia tem um problema diferente pra resolver.
Mas, eu gosto daqui, sabe? Trabalho com meu pai e acho isso muito
bom.
Felizmente, algumas pessoas gostavam de trabalhar com o
pai. Definitivamente, não era o meu caso.
— Fico muito feliz por ti, cara — sorri. — E por falar no seu
pai, como ele está? Tio Jimmy está firme e forte?
— Ah, ele está bem sim. Daquele mesmo jeito. Sempre ativo,
nunca para.
Todavia, no mesmo instante em que ele se calou e o elevador
abriu no último andar, senti meu celular vibrar.
— Sim... — dei uma pequena risada e saí do elevador. — Tio
Jimmy sempre muito ativo. Se não se importa, vou só atender... Um
segundo.
Tirei o celular do bolso e olhei o visor. Era a Molly. Céus.
Desde que cheguei de viagem, ainda não tinha a encontrado,
apenas liguei para avisá-la que já estava em Londres. E eu não a
encontrei não porque não quis, mas porque sabia que, quando a
visse, eu iria, definitivamente, dar um basta em tudo. Portanto, eu
ainda estava criando coragem e pensando em como dizer. Se eu
não terminasse esse namoro, eu ficaria louco.
— Alô? — atendi um pouco desanimado.
— Amor? — ela respondeu.
“Amor”.
Esse tipo de tratamento acabava comigo. Eu era mesmo um
cafajeste!
— O-Oi, Molly.
— Estou sentindo sua falta aqui no colégio. Você não vem
hoje, gatinho?
Ah, meu Deus. Eu adorava a Molly como amiga, mas essa
situação toda estava me sufocando.
— Molly, eu precisei vim à construtora. Não vou poder ir hoje
ao colégio.
— Ah, amor... Não acredito que vou passar mais um dia sem
te ver... — falou com a voz mais manhosa do mundo. — Desde o dia
em que você viajou, eu não te vejo... Estou com saudade.
Saudade? Céus. Me ajuda, meu Pai.
— Pois é... — Isso foi tudo o que consegui dizer. — Eu... Eu...
— Não podia dizer que também estava com saudade, porque a
minha cota de mentiras já tinha extrapolado. — Eu preciso desligar.
— Posso passar na sua casa mais tarde? — perguntou.
Eu não sabia se era uma boa ideia, assim como também não
sabia se conseguiria me segurar. Por outro lado, talvez até fosse
bom que não me segurasse. Só pedia aos Céus que eu criasse
forças para fazer o que deveria ter feito há muito tempo!
— Claro... — respondi com o mesmo desânimo. — Pode.
— Então, até mais tarde! Beijão! — com entusiasmo,
desligou.
Liberei um breve suspiro, como quem, discretamente, queria
recuperar o fôlego, e guardei o celular no bolso. Levantei meu rosto
em direção ao Alex e lhe dei um sorriso um tanto quanto amarelo,
tentando disfarçar o que eu estava sentindo e esconder o que eu
estava passando.
— Onde paramos? — perguntei.
Alex analisou meu semblante, como se estivesse tentando
discretamente me desvendar.
— Tá... Tá tudo bem... — parecia meio incerto, meio receoso.
— Tá tudo bem entre você e a Molly?
Cristo. Ele percebeu o clima da conversa. Eu precisava
disfarçar.
— Sim — rapidamente, repliquei. — Está tudo bem.
— Ah... — abriu um pequeno sorriso. — Que bom. Você tem
muita sorte, Eric. Molly é uma menina muito boa.
Caramba. Era melhor cortar logo esse assunto, antes que eu
me sentisse ainda mais cafajeste por fazer tudo o que fiz, mesmo
que tudo aquilo não tivesse sido premeditado, nem intencional,
muito menos proposital.
— Sim. Obrigado. Podemos ir à sala do tio Jimmy? — tentei
mudar o foco da conversa. — Meu pai não me falou, mas com
certeza eu vim para ajudá-lo a conferir alguns projetos.
— Claro. Vamos.
Caminhamos alguns poucos metros até chegarmos à sala do
tio Jimmy. A porta, no entanto, estava entreaberta e não havia
nenhum sinal de que tinha alguém lá dentro. Silêncio. Ao que tudo
indicava, nem o tio Jimmy, nem o George estavam ali.
Empurro levemente a porta e... O que... O que era aquilo?
Rapidamente, franzi o cenho. George estava com a mão no rosto do
Jimmy. Se fossem outras pessoas, eu poderia jurar que um estava
fazendo carinho no outro. Ligeiro, ambos se afastaram.
— Pa... Pai... — Pela voz do Alex, ele tinha achado tão
estranho quanto eu.
— Querido! Eric! — Jimmy sorriu, afastando-se do George e
aproximando-se de nós. — Que... Que surpresa agradável vê-los
aqui!
— Desculpe, Jimmy... — George se pronuncia. — Esqueci de
te avisar que Eric viria hoje.
— Ah sim... — ele me deu um pequeno sorriso. — Eu deveria
imaginar... Sempre que estamos abarrotados de trabalho, seu pai dá
um jeito de te perturbar para vim aqui, não é, Eric? — em tom de
brincadeira, soltou uma pequena risada amigável.
Ainda bem que ele sabia.
— Não somente perturbar, como também obrigar —
resmunguei, demonstrando toda a minha má vontade em estar ali.
Automaticamente, George me deu um olhar de repreensão.
— Vou deixá-los a sós para trabalhar. — disse, enquanto
caminhava em direção à porta. — Eric, faça o trabalho direito — e,
simplesmente, nos deu às costas.
Claro. Ele não poderia sair sem dar uma ordem antes.

❖❖❖

Lar doce lar. Depois de um dia cheio de trabalho, que deveria


ter sido cheio de estudo, finalmente eu tinha chegado em casa.
Esse deveria ser um momento para relaxar, mas eu não conseguia.
Afinal, quem conseguiria ficar tranquilo quando sua quase ex-
namorada está prestes a chegar e você sabe que vai ter que
terminar uma hora ou outra?
Pior: você sabe que tem que dizer o motivo do término. Pior
duas vezes: se você mentir sobre o motivo do término, a “bola de
neve de mentira” se tornará maior. Pior três vezes: o motivo do
término é somente o fato de você estar gostando do irmão da sua
namorada.
Deitei-me na cama, buscando alguma intervenção divina,
uma luz ou qualquer coisa que me ajudasse a explicar da melhor
maneira possível a ela que eu queria terminar e porque queria
terminar. Não dava mais pra ir aos poucos. Desculpa, tia Sam.
Desculpa, tia Lexie. Mas, não dava.
Se eu não colocasse um ponto final nisso, eu acabaria louco.
O problema era: como colocar o ponto final? Molly, certamente,
ficaria uma fera. Ela ia matar e nunca mais olharia na minha cara.
Eu perderia não somente uma namorada, mas também uma amiga.
Meu Deus, como fazer isso da maneira menos dolorosa possível?
Como?!
Suspirei.
Dez, quinze, vinte minutos se passaram. Continuei deitado,
pensando, mas nenhuma ideia de como tornar isso menos pior
surgiu em minha mente. De repente, no entanto, ouvi batidas na
porta do meu quarto.
Ouço batidas na porta do meu quarto.
— Querido! — ouvi a voz da minha mãe. — Molly está aqui!
Ela está subindo!
Meu Deus do Céu! Automaticamente, meu coração acelerou.
Eu mesmo conseguia ouvir as batidas descompassadas. Estava
assim porque sabia que aquela era a hora de pôr fim em tudo. Eu
não podia deixar passar.
Seja o que Deus quiser.
Respirei fundo, tentando controlar o nervosismo e a
ansiedade.
Manter-se calmo, Eric. Manter-se calmo.
Ouvi passos se aproximando da porta do meu quarto. A
maçaneta girou. Engoli a seco e limpei uma gota de suor que estava
escorrendo pelo meu rosto. A porta se abriu e...
— Meu amor! — Foram as primeiras palavras que ouvi.
Molly fechou a porta, de supetão, e correu para os meus
braços.
— Que saudade de você! — e encheu meu rosto de beijos.
Tentei discretamente me desvencilhar de todos eles, mas era
quase impossível.
— Nossa... — dei-lhe uma pequena risada sem graça. — Ok,
Molly... Ok... — sorri amarelo.
— Que menino mais chato! — disse em tom de brincadeira.
— Até parece que não sentiu falta de mim!
Até senti, mas não dá mesma forma que você sentiu de mim,
nem dá mesma forma que você espera que eu sinta.
— Eu só... — tentei organizar meus pensamentos, tentei
disfarçar, pelo menos por agora. — Eu só queria conversar...
Molly, no entanto, sorriu de maneira sacana.
— E eu quero fazer outra coisa... — disse, enquanto
desabotoava a minha calça.
Jesus Cristo! Ela não estava pensando em... Estava? Não!
— Espera, Molly... — pedi, tentando impedi-la de me deixar
nu. — O que é isso? — franzi o cenho.
— Eu que te pergunto: o que é isso? — sorriu
maliciosamente e segurou minhas mãos, fazendo com que eu não
pudesse fechar o meu zíper. — Eu estou morrendo de saudade,
amor. Você não sabe o quanto eu preciso disso — e foi me
empurrando em direção à cama.
Ah, não! Não, não, não! Não era para as coisas irem nesse
rumo!
— Espera, Molly... — pedi novamente, tentando fazer com
que ela parasse tudo isso, mas...
— Eu te conheço muito bem — me empurrou contra a cama,
fazendo-me deitar. — Sei que tá querendo tanto quanto eu — e
subiu em cima de mim, deixando uma perna de cada lado da minha
cintura.
Mas o que é isso?!
— Molly, chega — disse, enquanto tentava tirá-la de cima de
mim.
— Qual é, amor? — sorriu maliciosamente. — Eu te conheço.
Deve estar subindo pelas paredes — e desabotoou sua blusa,
ficando somente de sutiã. — Faz o quê? Um mês que a gente não
transa? Acho que mais de um mês...
— Molly, chega — continuei tentando pará-la. Não queria
usar a força física. — Para com isso.
— Parar o que? — perguntou com ironia e subiu a saia.
— Molly, veste essa roupa! — exclamei, tentando baixar sua
saia e abotoar sua blusa.
— Tá se fazendo de difícil né? — ri, segurando minhas mãos
para que eu não a vestisse. — Eu gosto.
— Molly... Eu ainda estou te pedindo com calma. Chega.
— Você que tem que parar... — sorriu. — Que coisa mais
chata! — e, dessa vez, desabotoou completamente minha calça e
apalpou meu pênis.
Eu não acreditava que ela tinha feito isso! Eu não queria
transar, queria terminar!
— Chega! — gritei de uma vez por todas, girando-a no
colchão a ponto de colocá-la de baixo de mim. Segurei firme suas
duas mãos acima da sua cabeça, deixando-a imobilizada. Respirei
fundo, tentando controlar a raiva. — Chega — Dessa vez, sussurrei.
— Não quero. Eu não quero. Não mesmo.
Molly me deu um olhar apreensivo. Ela não estava esperando
por uma explosão minha, como essa. Droga. Eu a assustei. Respirei
fundo mais uma vez e a soltei, levantando-me da cama e passando
as mãos no rosto. Eu precisava me acalmar, me controlar.
— Desculpa, Molly. Não queria ter te assustado. Eu só... Só...
— e simplesmente perdi as palavras.
Molly ajeitou a roupa e sentou-se na cama.
— Onde foi parar meu namorado? — Seu olhar era de
tristeza. — Faz um mês que a gente não transa. Você não
conseguia passar nem uma semana sem fazer sexo. Você nem me
beija mais. Eu preciso ficar pedindo por selinho... E... Você não me
chama mais de princesa. Você está frio, está distante. Isso não é de
hoje. Isso faz tempo. O que está acontecendo? Onde foi parar o
meu namorado?
Ah, meu Deus! Era agora! Eu não podia dar pra trás! Eu
precisava ir adiante!
— Molly... — aproximei-me da cama e me sentei. — Eu...
Eu... — suspirei. — Preciso te falar algo.
— Falar o que?
Não tinha para onde correr, eu precisava terminar, eu
precisava contar toda a verdade. Dentro de mim, eu torcia para que
o pior não acontecesse.
— Molly, antes de tudo, eu quero deixar claro que eu gosto
muito de ti e sempre gostei. Acontece que a vida... A vida tem umas
coisas meio... — tentei buscar a palavra correta. — Meio
inexplicáveis e...
— Fala logo, Eric — me interrompe, impaciente, pedindo de
maneira incisiva.
Jesus. Ok. Lá vai.
Não tinha como falar isso de uma maneira que não fosse
direta. Coragem, Eric.
— Molly... Eu aceitei que você viesse aqui hoje, porque...
Porque... E-Eu... — gaguejei. — Eu...
— Você? — questionou, aguardando pelo momento que eu
finalmente falasse.
Porra! Eu era muito filho da mãe! Precisava criar coragem e
falar, antes que alguém aparecesse e atrapalhasse, assim como foi
no dia da viagem.
— Eu... — Tá. Chega. Lá vai. — Eu quero terminar.
Imediatamente, senti como se um peso de toneladas
estivesse saindo das minhas costas. Molly, no entanto, ficou pálida.
Meu Deus.
— Você... Vo-Você... — Molly me encarou perplexa. Sua voz
era quase inaudível de tão chocada que estava. — Terminar?
Ah, coitada da Molly. Eu não queria machucá-la. Antes de ser
minha namorada, ela era minha amiga, mas eu não tinha outra coisa
mais sensata a fazer do que terminar esse relacionamento. Não era
certo continuar uma relação que não fazia sentido para mim, por
mais doloroso que isso fosse.
— Sim — respondi. — É isso mesmo. Me desculpa., mas...
Não dá pra continuar.
— E-Eu não posso acreditar... — sussurrou, ao mesmo
tempo em que lágrimas silenciosas caíam dos seus olhos. Ah, que
dor de vê-la assim! — Po-Por que? Por que? Eu fiz algo de errado?
Fiz? Eu não me lembro, mas, se eu tiver feito, me desculpa. Me
desculpa. Eu... Eu quero continuar e... Eu te amo! Eric, eu te amo!
Céus, ela parecia estar começando a entrar em desespero.
— Molly, por Deus, calma... — pedi. — Você não fez nada de
errado.
Na verdade, o errado e cafajeste da história era eu.
— Não fiz? — franziu o cenho. Seus olhos estavam úmidos.
— Se eu não fiz... Então, por que quer terminar?
Ah, o motivo. O grande motivo. Por que todos os términos
precisavam apresentar um motivo? Essa era a pior parte, sem
dúvidas. Eu sabia que não deveria mentir, ainda mais, sobre tudo o
que estava acontecendo, mas também sabia que não era fácil dizer:
ah, Molly, estou terminando porque estou gostando do seu irmão.
Porra! Isso só piorava!
— Molly... A vida é assim mesmo... — Meu Deus, eu não ia
conseguir contar o real motivo do término. — As coisas vão
acontecendo e... Meio que o motivo é esse.
Automaticamente, ela me encarou ainda mais confusa.
— Não, Eric, não. Isso não é motivo — argumentou. — Me
fala o motivo. Eu preciso saber. Eu sei que você tá escondendo
alguma coisa de mim.
Ela sabia? Claro. Era impossível não notar que eu estava
escondendo algo. Mas, como dizer, meu Deus? Como falar sem
tornar tudo isso ainda mais doloroso?
— Molly, eu... — As palavras simplesmente estavam sumindo
da minha boca.
— Eric, FALA LOGO! — explodiu.
Jesus Cristo. Ela estava ficando cada vez mais impaciente.
Eu precisava contar a verdade, não tinha para onde correr. Agora
que eu comecei com isso, precisava ir até o fim. Custe o que
custasse.
— Calma... — suspirei e fechei os olhos. Não queria estar
olhando-a enquanto a confissão saísse da minha boca. Se a
coragem já me faltava para dizer, imagine para olhá-la. Mas, agora
era a hora. — Molly... — continuei de olhos fechados. Eu estava
praticamente sussurrando. — Eu... Eu acho que... — Coragem, Eric.
— Eu acho que gosto de rapazes — engoli a seco, após pronunciar
todas essas palavras, mas... Ainda não era isso. Na verdade, não
era só isso que eu precisava dizer. — Quer dizer... — continuei. —
Eu gosto de um rapaz em específico — Jesus. — Seu irmão —
sussurrei.
Aos poucos fui abrindo meus olhos. E, à medida que eu fazia
isso, fui encontrando uma expressão ainda mais perplexa, ainda
mais assustada, ainda mais pálida. Meu Deus. Molly estava
estupefata. Seus olhos azuis estavam muito mais úmidos, assim
como sua boca estava aberta em pura surpresa. Era quase
impossível adivinhar o que se passava por sua cabeça naquele
exato momento.
— Você... Você... — me encarou confusa e se levantou da
cama de supetão. Caminhou de um lado para o outro do quarto,
com as mãos no rosto. Meu Deus, ela ia surtar? — Você... — em pé,
finalmente virou-se para mim. — Você está me dizendo que gosta
do Liam? Do Liam?! — disparou. — Você está me dizendo que...
estava me traindo com o meu irmão?!
Cristo. Eu não disse isso. Eu disse gostava dele. Não disse
que fiquei com ele. Apesar de que... Sim... Eu fiquei com ele e...
Sim... Eu fiquei com ele enquanto estávamos namorando.
— Molly... — levantei-me rapidamente da cama e caminhei
em direção a ela. — Calma...
— Não me toca! — empurrou-me, distanciando-se.
Porra. Ela estava com muita raiva.
— Molly, pelo amor de Deus, calma — pedi. — Olha, deixa eu
explicar...
— Explicar o quê?! — disparou outra vez. — Explicar que
você estava me traindo justo com o meu irmão? Com o meu irmão?!
Ah, meu Deus! Daqui a pouco, todos iriam ouvir.
— Molly, por favor, não grita — tentei pedir. — Não quero que
as pessoas saibam. Por favor, não conta isso pra ninguém. Eu ainda
estou tentando me entender e entender a situação.
— Tentando entender que você estava me traindo com o meu
irmão?! — Exclamou, ainda mais perplexa.
— Molly, por favor, fala mais baixo. Não conta isso pra
ninguém, eu te peço — repliquei com o tom de voz mais brando
possível. — Tudo o que aconteceu não foi proposital. Eu juro —
tentei me explicar, mas ela voltou a caminhar de um lado para o
outro do quarto, como se não estivesse disposta a ouvir o meu lado.
— Não tive a intenção de te trair. As coisas só... As coisas só
aconteceram. Foi tudo fora do meu controle. Foi tudo só agora. Me
desculpa, por favor.
No mesmo instante em que me calei, Molly virou-se para
mim. Seus olhos estavam quase pulando para fora do rosto e suas
lágrimas não paravam de cair
— Foi tudo só agora?! — gritou, caminhando em direção à
saída, sem tirar os olhos de mim. — Só agora? Isso não é só de
agora! Isso é desde criança! — e, como em um passe de mágica,
Molly saiu do meu quarto com uma batida estrondosa na porta,
deixando-me sozinho.
Desde criança? Como assim? A Molly sabia do que?
Ah, meu Deus, eu tinha quase certeza de que o maior inferno
da minha vida iria começar. Ela não ia fazer o que eu pedi. Ela ia
contar para todo mundo, inclusive para os seus pais, eu tinha
certeza. Ferrou!
Feliz, porém com raiva

Liam

A noite já havia caído e eu, sem muito que fazer, estava na sala de
casa, assistindo seriado. Meus pais estavam trabalhando e eu
estava sozinho. Deveria estar estudando? Deveria. Mas, nem tudo o
que a gente deve fazer, a gente faz, não é mesmo? Preferia ficar
assistindo Game of Thrones a estudar sobre reações químicas.
Alguns minutos se passaram até que, de repente, a porta de
casa se abriu de uma vez, dando-me um susto. Molly passou por
mim, como um raio, chorando e subindo as escadas rapidamente.
Mas que diabos aconteceu?
Eu nunca fui muito próximo a minha irmã. Para ser sincero,
às vezes parecia que só éramos irmãos porque tínhamos saído da
barriga da mesma mulher. Mas, por mais distante que nós
fôssemos, não era nada normal vê-la chorando assim. Melhor saber
o que estava acontecendo.
Levantei-me do sofá e segui em direção às escadas. Subi os
degraus e logo estava no andar superior. Não demorei muito até
chegar ao quarto dela. Porta fechada. Tentei abri-la, mas... Estava
trancada. Que porra era essa? O que tinha dado na Molly?
— Molly? — chamei-a e dei três batidinhas.
Esperei alguns segundos. Sem resposta.
— Molly? — tentei mais uma vez. — Tá tudo bem?
— Sai daqui! Me deixa em paz! Inferno! — gritou de dentro do
quarto.
Quê? Eu não estava entendendo nada. Por mais que Molly e
eu não tivéssemos o melhor dos laços de irmandade, ela nunca me
tratou de maneira tão grosseira assim. E, até onde eu me lembrava,
não fiz nada para deixá-la com tanta raiva dessa maneira.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Vai embora! Agora! — gritou novamente.
Que saco! A garota não queria falar!
— Vou ficar te adulando não — adverti. — Se quiser
conversar, estou lá embaixo.
Dei meia volta e comecei a caminhar pelo corredor. De
repente, quando estava prestes a dar o primeiro passo para descer
as escadas, ouvi o som da porta do quarto da Molly destrancando.
Ah, então a mimadinha decidiu dar as caras?
Virei-me com o intuito de voltar para o quarto dela, mas, no
mesmo instante, Molly foi com tudo em minha direção. Seu rosto
estava inchado de tanto chorar. Seus olhos vermelhos e raivosos. O
que estava acontecendo? Ela quer...
— Seu idiota! — e ergueu a mão em direção ao meu rosto.
— Caralho, Molly! — segurei seu pulso, impedindo-a de me
dar o tapa. — Que porra tá acontecendo?!
— Ah, você não sabe o que tá acontecendo? — questionou
com ironia. Lágrimas não paravam de escorrer dos seus olhos.
Não faço a menor ideia, ô minha filha!
— Adoraria saber — repliquei curto e grosso.
— Você não se lembra do que fez nas últimas semanas? —
questionou com ironia novamente.
Aonde ela queria chegar?
— Do que você está falando, Molly? — perguntei, começando
a sentir uma apreensão inexplicável.
— Talvez eu esteja falando do fato de que você ESTAVA
FICANDO COM O MEU NAMORADO! — gritou, mas logo sua voz
foi abafada por um grande soluço de choro.
Puta merda! Instantaneamente, senti o sangue do meu rosto
se esvair, o chão sob meus pés se abrir e todo meu juízo sumir. Eu
não podia acreditar que ela tinha descoberto! Não! Isso só podia ser
um pesadelo!
— Não sei do que você tá falando — nervoso, respondi
rapidamente.
Molly, por sua vez, passou as mãos no rosto e limpou suas
próprias lágrimas com toda a força.
— Sabe sim! — disparou. Seus olhos continuavam raivosos,
eles estavam a ponto de sair da caixa craniana. — É claro que você
sabe! Imbecil!
Santa Vodca do Céu! Como ela soube disso? A pocaria do
Eric falou?
— Molly, o que quer que tenham dito, o que quer você tenha
ouvido, é mentira! É tudo mentira! — tentei contornar a situação,
mesmo sabendo que eu estava a ponto de perder a única grama de
controle que me restava.
— Mentira?! — gritou novamente. — Então, por que você
ficou tão pálido assim? Por que está nervoso? Por que está suando
frio? Por quê?! É claro que é verdade!
— Molly... — tentei encontrar alguma desculpa, algo que
consertasse essa merda toda, mas...
— Cala a boca! — me interrompeu. — O Eric terminou
comigo por sua culpa! Como você teve coragem de fazer isso
comigo, Liam? Eu sou sua irmã!
Quê?! Terminaram? Eles terminaram mesmo?
Agora tudo fazia sentido. Eric, provavelmente, contou tudo.
Automaticamente, senti um misto de emoções. Uma estranha
felicidade me tomou por saber que eles terminaram, ao mesmo
tempo em que um ódio me consumiu por saber que aquele filho da
mãe deu com a língua nos dentes.
— Terminaram mesmo? — perguntei, pasmo.
A morena bufou.
— Terminamos! Isso era tudo o que você queria, não é?!
Toda aquela história de “o Eric não é homem pra você” — com
desdém, tentou imitar meu tom de voz. — Era porque você queria
ficar com ele, né? Fala! Confessa logo!
Puta merda! Que inferno!
— Molly, eu não... — tentei argumentar, mas...
— Que ódio de você! — ela me interrompeu.
Sua interrupção só fez com que mais e mais palavras de
repúdio fossem despejadas. Ela estava com extrema raiva,
enquanto minha cabeça girava depois de tantas informações. Eles
terminaram. O filho da mãe deu com a língua nos dentes. E se ela
contasse para todo mundo? Estou feliz, porém com raiva. Que saco!
Que confusão na minha cabeça!
Molly, em meio a tantas palavras de ódio e repulsa, de
repente, começou a parar de falar. Sua respiração parecia estar
falhando, assim como o seu cenho estava franzido. Um semblante
estranho estampou seu rosto. Ela... Ela estava... Ela estava
passando mal? Em um piscar de olhos, a morena correu em direção
ao seu quarto.
Meu Zeus, o que estava acontecendo agora?!
— Molly! — gritei e corri atrás dela.
Entrei rapidamente em seu quarto e logo vi a luz do banheiro
acesa.
— Molly, o que... — Ainda quis perguntar o que estava
acontecendo, mas logo a resposta surgiu frente aos meus olhos.
Encontrei minha irmã vomitando na pia do banheiro. Cacete!
Tiro seus cabelos da frente do rosto, mas Molly me empurra.
— Sai daqui! — exclamou, enquanto limpava a boca. — Sai
da minha frente! Não te quero aqui! — e me empurrou.
No entanto, assim que me empurrou, ela se desequilibrou.
Rapidamente, se encostou à parede do banheiro.
— Tontura... — sussurrou.
Puta merda! Ela estava passando mal mesmo!
— Molly... E-Eu vou trazer água... — tentei segurá-la pelo
braço, para ajudá-la a sentar, mas...
— Sai daqui! — me empurrou novamente, mesmo com
dificuldade. — Eu me viro sozinha! Sai do meu quarto! Sai da minha
frente!
Apesar da falta de força, a morena ainda conseguiu me
colocar para fora do quarto. Com uma batida estrondosa, fechou a
porta bem na minha cara.
Cacete...
Encostei-me à parede do corredor e apoiei as mãos no
joelho. Respirei fundo, tentando recuperar as forças, tentando
organizar as ideias. Molly não ia querer conversar comigo. Mesmo
que eu ficasse ali o tempo que fosse, ela não ia querer conversar.
Mas, existia uma pessoa com a obrigação de falar comigo: Eric.
Precisava ir tirar satisfação, naquele mesmo instante, com aquele
filho da mãe!
Quem ele pensava que era pra abrir a boca daquela
maneira?!

❖❖❖

Não demorei muito até chegar à casa do grande imbecil.


Dirigi o mais rápido que pude. A vontade de tirar uma bela
satisfação só aumentava! O estranho era que... Mesmo com raiva,
no fundo, eu sentia que estava feliz por saber que o Eric agora
estava livre. Isso não fazia o menor sentido! Eu deveria estar feliz
porque minha irmã finalmente se livrou daquele cafajeste, e não
porque Eric agora estava livre. Era melhor eu parar de pensar nisso,
antes que eu ficasse mais louco. Melhor seguir em frente e fazer o
que planejei: tirar uma boa satisfação com aquele otário.
Estacionei o carro a alguns metros de distância da casa dele.
Fora o Eric, não queria que mais ninguém soubesse que eu estava
ali. Desci do carro e caminhei pelo jardim. Logo avistei a varanda do
quarto dele e notei que a luz estava acesa, ou seja, ele estava lá.
Olhei para a porta de entrada e, depois, encarei novamente para
varanda. Decidi que entraria pela varanda, porque: um – não queria
que ninguém soubesse que eu estava ali; e dois – se Eric soubesse
que fui até lá, ele não iria querer me receber, então era melhor
pegar aquele filho da mãe de surpresa.
Assim como na minha casa, a parede era coberta por
trepadeiras e suportes de madeiras próprios para esse tipo de
folhagem. Eu conseguia escalar perfeitamente bem por eles. Além
do mais, o quarto nem era tão alto. Portanto, subi pelo suporte, por
entre as plantas e, dentro de alguns poucos minutos, cheguei à
varanda do quarto dele. No instante em que finquei os dois pés “em
terra firme”, levantei o rosto e logo vi o... Zeus... O que era isso? O
cara mais lindo que já vi na vida... Ele estava sem camisa... Acabou
de tomar banho?
Oh meu...
Quê? Eu estava pensando esse tipo de coisa nesse exato
momento e no meio dessa situação?! Que ódio de mim! Que coisa
mais gay! Foco, Liam, foco!
Aproximei-me da porta de vidro que separava a varada do
quarto e o vi de costas, vestindo uma camisa. Quando Eric se virou,
seu corpo tremeu de susto ao me ver do outro lado da porta de
vidro. Não ouvi sua voz, mas consegui fazer uma leitura labial de
que chamou por meu nome sem acreditar que eu estava ali.
Instantaneamente, entrei em seu quarto e caminhei a passos largos
e rápidos em sua direção.
— Você tem merda na cabeça?! — agarrei sua camisa entre
os meus dedos.
Eric, automaticamente, me empurrou com força.
— E você tá ficando doido?! — replicou.
— Não, mas quem deve estar é você! — disparei. — O que
você disse para a Molly?! O que você falou? Você contou tudo?!
— Fala baixo, desgraçado! — gritou em um sussurro. —
Minha mãe já veio no meu quarto, pouco tempo depois que a Molly
saiu, perguntando o motivo da gritaria. Não quero que ela venha
aqui de novo!
Thor da minha vida! Então, tudo foi muito pior do que
imaginei!
— Ah, meu Deus do céu! — comecei a caminhar atônito de
um lado para o outro do quarto. — O que você falou pra ela, seu
imbecil?
— Não te interessa! — replicou com raiva. — Agora sai
daqui!
Não vou a lugar algum antes que me fale, seu zé mané!
— Claro que me interessa! — disparei outra vez. — Ela
chegou em casa dizendo que descobriu tudo sobre a gente! Você
não pensou nas consequências disso?! — respirei fundo, tentando
me controlar, porque estava a ponto de voar no pescoço dele. —
Não imaginou a possibilidade dela contar pra todo mundo? Me fala!
Me fala agora! Eu quero saber de cada palavra que saiu da sua
boca!
— Pra quê você quer saber disso? — perguntou. — Não é
algo óbvio pra você o que eu disse?
— Eu quero saber, porque talvez você tenha dito de uma
maneira que dê pra reverter essa merda que você fez! — repliquei.
Quando me calei, Eric, de repente, parou, e me encarou
seriamente. Foi após alguns longos segundos de silêncio que ele
decidiu falar novamente:
— Então, quer que eu volte pra ela? — perguntou.
Quê?! De onde você tirou isso, imbecil?!
— Claro que não! Minha irmã fica bem melhor sem você! —
repliquei, mas, ao mesmo tempo, ouvi meu subconsciente para mim
mesmo que, na verdade, era ele que ficava melhor sem ela. Porra!
— Então, que situação quer reverter? — perguntou.
Burro!
— Quero tentar desmentir o que você disse, idiota! Anda!
Fala! — exigi. — Quero reverter cada palavra que você pronunciou!
Eric, por sua vez, passou as mãos no rosto impacientemente.
— Vê se me erra, Liam! Cai fora daqui! Eu não vou falar
nada!
Agora era eu quem estava ficando cada vez mais impaciente
nessa história!
Sem a menor paciência para a glicose anal do Eric, agarrei,
novamente, com toda a força, sua camisa entre os meus dedos.
Nossos rostos se aproximaram automaticamente. Eu estava
praticamente sentindo sua respiração no meu rosto. Entreolhamo-
nos de maneira firme. Nossas respirações estavam pesadas devido
a raiva.
— Fala agora! — exigi mais uma vez.
— Que saco, Liam! — me empurrou.
— Até parece que você não quer consertar isso! — exclamei.
Eric bufou, passou as mãos no rosto em exasperação e...
— Eu disse que queria terminar porque gosto de você,
caralho!
E, como em um piscar de olhos, senti meu mundo desabar.
Meus sentidos começaram a falhar, enquanto meu juízo foi para o
espaço. Tudo o que eu sabia era que meu coração parecia querer
sair pela boca. Merda. Ele disse pra Molly que gostava de mim? Não
era como se ele nunca tivesse me dito isso. Ele até tinha falado
algumas vezes, mas... Porra! Ele falou pra ela! Ele disse pra ela que
gostava de mim!
Então, apesar de estar me esnobando há dias, ele ainda
gostava de mim? Era isso mesmo? Eu estava entendendo, certo?
Ele ainda gostava de mim, mesmo com toda aquela frieza? Uma
estranha e inoportuna felicidade tomou conta de mim. Era
inexplicável a felicidade que crescia dentro de mim. Era tão errado
se sentir assim em uma situação como essa, mas era mais forte que
eu.
Eu deveria estar com raiva, mas estava feliz. Que caralho de
vida.
— Você disse pra ela que gosta de mim? — incrédulo,
perguntei.
Eric, então, balançou a cabeça, como se estivesse com raiva
de si mesmo, e passou as mãos no rosto mais uma vez.
— Sai daqui, por favor. — falou com frieza.
Quê?
— Eric... — tentei falar, mas...
— Vaza daqui. — Seu tom esnobe se fez presente. — Cansei
de olhar pra sua cara. Cansei de falar contigo. Preciso ficar sozinho.
“Cansei de olhar pra tua cara. Cansei de falar contigo.
Preciso ficar sozinho”. Todas essas palavras, ditas com o tom de
voz mais frio que ele já usou comigo, ressoaram em minha mente
causando-me uma repentina tristeza e... Porra... Não... Merda...
Vontade de chorar.
— Eu não vou falar de novo, Liam — olhou-me de maneira
incisiva. — Sai daqui. Eu quero ficar sozinho.
Inevitavelmente, a porcaria da vontade de chorar só
aumentou. Caralho. Senti os olhos marejando. Isso não era legal.
Engoli o nó na garganta. Isso era pior ainda. Não desejaria essa
sensação nem para o meu pior inimigo, que, no caso, ironicamente
era o Eric.
— Liam, porra! — Eric, impaciente, notou que estava
paralisado. Paralisado porque estava tentando não desabar em
choro feito uma mulherzinha. — Eu disse que não falaria outra vez!
— De repente, Eric me pegou pela gola da camisa e me arrastou até
a porta de vidro que fica entre o quarto e a varanda. — Vaza daqui
— e me empurrou para fora, trancando-se.
Além disso, também fechou a cortina, impedindo-me de olhar
para dentro. O nó na garganta só aumentou. Eu não queria chorar!
Eu não queria ser gay! Merda.
Engoli o choro novamente e, sem muito que fazer, desci para
o jardim através dos suportes da trepadeira. Merda de vida. A
conversa com ele tomou um rumo não desejado. Queria nunca ter
conhecido o Eric! Por que a minha mãe tinha que ser melhor amiga
da mãe dele?
Caminho pelo jardim, indo em direção ao meu carro, até que,
de repente...
— Liam! — ouvi uma voz conhecida.
Quando me virei, vi Stefany, com uma mochila e dois livros
na mão, vindo da direção oposta. Ela estava chegando do colégio?
Devia ter passado o dia lá.
— O-Oi... — gaguejei um pouco devido a surpresa de
encontrá-la.
Stefany se aproximou ainda mais e parou em minha frente.
— O que estava fazendo? — sorriu.
Merda. O que eu estava fazendo? Definitivamente, não podia
dizer. Já bastava a quantidade de pessoas que sabiam sobre Eric e
eu. Apesar de que, talvez nesse momento, Molly já tivesse
espalhado para o restante de Londres. Inferno.
— E-Eu... Eu... — tentei encontrar alguma desculpa. — Eu...
Vim te ver — menti. — Mas, você não estava em casa. Daí, eu já
estava indo embora.
— Veio me ver? — franziu o cenho e, ao mesmo tempo, me
deu um meio sorriso. — A que devo a honra? — perguntou em tom
de brincadeira.
Droga. Chega de perguntas, Stefany!
— Sei lá... Só quis vim...
— Hum. Entendo — soltou uma pequena risada. — Então,
quer entrar?
— Tem cerveja?
❖❖❖

— Aqui — ergueu uma lata de cerveja em minha direção e


sentou-se na cama do seu quarto, enquanto eu estava na cadeira
da escrivaninha.
Stefany e eu subimos para o quarto dela. Pelo menos, eu
tinha uma amiga que não me esnobava, nem era fria comigo, e
ainda me trazia cerveja. Puta merda, eu estava necessitado de uma
bebida! Tudo bem que ela teve que se virar para esconder da tia
Cynthia as latas de cerveja. Felizmente, conseguiu. Enquanto isso,
o idiota do Eric permaneceu trancafiado no quarto o tempo todo.
— Mas, então, me conta — a loira se pronunciou mais uma
vez e bebeu um gole da sua cerveja. — Me conta o que está
acontecendo, porque você está com uma cara péssima.
Droga! Eu não conseguia nem disfarçar.
— O que aconteceu? — tentei me fazer de desentendido.
— Sim. Alguma coisa deve ter acontecido para você ficar
com essa cara péssima! O que foi?
Ah não. Não, não, não. Eu não podia dizer.
Impressão sua, Ste — dei de ombros de maneira fingida. —
Mas... É... Como foi seu dia? — tentei mudar o foco do assunto. —
Ficou de novo com aquele novato transferido? — Eu sabia que, se
eu tocasse no assunto do novato, ela passaria horas a fio falando e
não ia nem se lembrar da minha cara idiota.
— Ah... Aquele novato? Ele... — Bingo! Dito e feito!
A loira, então, começou a falar sobre o tal novato. Passou um
tempão dissertando sobre sua “ficada” com o moleque. Ela era o
tipo de pessoa que não fechava a matraca facilmente. Prova disso
era que já estava falando do seu dia no colégio e das líderes de
torcidas da sua turma, que se achavam a última bolacha do pacote.
O problema era que eu não estava conseguindo filtrar
nenhuma palavra que a Stefany pronunciava. Parecia um “blábláblá”
sem fim, e olha que eu sempre adorei as conversas dela. O fato era
que minha cabeça estava em um certo filho da mãe do quarto ao
lado: Eric. Meu Zeus, eu deveria estar com tanto ódio daquele
desgraçado por ter entregue de bandeja à Molly tudo o nós fizemos!
Mas, eu só conseguia sentir um misto de felicidade e tristeza.
Felicidade porque agora ele estava livre e porque disse para
ela que gostava de mim. Tristeza pelo esnobismo dele, por ser
ignorado, pelas palavras frias. Era só lembrar de tudo que o nó na
minha garganta surgia. “Cansei de olhar pra sua cara. Cansei de
falar contigo. Preciso ficar sozinho”, meus olhos inevitavelmente
lacrimejavam por lembrar. Merda!
Eu só queria que ele parasse de me ignorar! Mas não, eu não
podia pedir para que ele parasse, eu não podia falar nada. Se eu
abrisse a minha boca para pedir qualquer coisa desse tipo a ele,
estaria assinando meu atestado de boiola! Isso não poderia
acontecer! Talvez eu precisasse de algo que tirasse meus
pensamentos do Eric. Precisava de algo que fizesse eu me sentir
mais hétero que nunca.
Eu não podia deixar minha masculinidade morrer. Eu... Eu
precisava... Eu preciso de sexo. Sim, eu precisava disso, naquele
exato momento. Talvez isso fosse uma das únicas coisas capazes
de me fazer esquecer a merda que a minha vida estava, uma das
poucas coisas que faria minha heterossexualidade não morrer.
— Liam! — ouvi Stefany me chamar em voz alta e estalar os
dedos na minha cara.
— O-Oi... — gaguejei, piscando os olhos como se estivesse
acordando de um sonho.
— Estou há trezentos mil anos conversando e te chamando,
mas você parece estar sonhando acordado! — replicou com
impaciência. — O que tá acontecendo?
Suspirei e...
— Transa comigo? — pedi sem pensar.
A loira, automaticamente, franziu o cenho.
— Oi? — Uma pequena risada escapou de sua boca.
— Transa comigo — repeti. Dessa vez, com mais seriedade.
Stefany, no entanto, me observou com uma cara de
brincalhona, ignorando totalmente minha seriedade.
— Liam... — deu um breve suspiro, sem tirar seu semblante
brincalhão do rosto. — Das últimas vezes que a gente tentou
transar, você não conseguiu.
Isso é passado, Stefany! Tudo bem que um passado não
muito distante. Um passado de uma semana talvez? Mas não deixa
de ser passado!
— Hoje vai ser diferente, Ste — assegurei.
— Duvido... — me desafiou.
Duvida? Que audácia!
Imediatamente, me levantei da cadeira e avancei em direção
a ela. Agarrei-a pela cintura, fazendo com que ela se levantasse da
cama e pulasse em mim, entrelaçando as pernas. Beijamo-nos de
maneira profunda e demorada. O problema era que... Ainda não
estava legal. Eu ainda me sentia um pouco desconfortável. Merda.
Eu precisava, já, esquentar essa situação.
Não perdi meu tempo e a joguei sobre a cama. Stefany tirou
minha camisa, enquanto eu desabotoava sua calça jeans. O
problema era que... Meu infeliz pênis não estava subindo, nem
ficando semiduro! Que porra era essa? Por que eu não conseguia
mais transar? Por quê?!
Passei uma das minhas mãos por dentro da sua calcinha,
para tentar me excitar. Droga! Nem sinal do meu pau! Em outras
ocasiões, ele já estaria explodindo. Stefany, por sua vez, passou
uma das suas mãos por dentro da minha cueca e tocou meu saco e
meu pênis. Mole. Que desgraçado.
De repente, minha memória me trouxe a lembrança de outra
pessoa tocando lá. Alguém com os cabelos tão castanhos quanto os
da Stefany. Alguém com os olhos tão castanhos quanto os dela. Lá
na sala de materiais do time, ele tocou, mesmo que por cima da
roupa. Zeus, foi tão bom! Porra!
Automaticamente, me lembrei dos nossos beijos e do jeito
como ele me pegava. Sua boca na minha. Sua respiração ofegante.
Suas mãos no meu corpo e... De supetão, minha mente me traiu
mais uma vez. Lembrei-me de todo o desprezo, de toda a frieza, das
palavras esnobes. O nó na minha garganta simplesmente voltou.
Droga! Eu gostava dos seus beijos, mas não queria ser gay!
Eu gosto do jeito como ele me pegava, mas não queria ser gay! Eu
queria que ele parasse com todo aquele desprezo, mas não queria
ser gay! O problema era que, não me excitar com uma mulher tão
gostosa quanto a Stefany e ainda querer um homem, só me fazia
pensar em uma coisa: eu estava me tornando gay.
Minha cabeça girou em meio aos inúmeros acontecimentos
dos últimos tempos. Eric. Molly. Stefany. Eu. Eric e eu. Eu desejando
Eric. Eric dizendo para Molly que gostava de mim. Eric terminando
com a Molly. Molly contando para todo mundo. Eric me esnobando.
Stefany se entregando a um cara que não se excita. Eu virando gay.
Meu mundo desmoronando.
Sem conseguir me segurar, um soluço de choro escapou da
minha garganta. Merda! Eu não podia acreditar! Eu não podia estar
chorando! Inevitavelmente, Stefany e eu paramos o beijo.
— Ah meu Deus! — com uma voz carregada de
preocupação, a loira exclamou. — Você tá chorando?
Imediatamente, me sentei na cama e apoiei os dois cotovelos
nos joelhos, colocando as duas mãos no rosto e impedindo que ela
visse meu rosto. O choro saiu, as lágrimas escorreram. Tentei me
segurar mais foi impossível. Droga.
— Liam, pelo amor de Deus! — senti suas mãos tentando
tirar as minhas do meu rosto. — O que tá acontecendo? Me fala!
Continuei chorando, sem conseguir parar. Não queria falar,
ao mesmo tempo em que não conseguia mais guardar todos esses
problemas só para mim. Eu sentia como se uma carga muito pesada
estivesse sobre os meus ombros.
— Liam! — Sua voz continuava cheia de preocupação. — Por
favor, tira essas mãos do rosto e me fala o que tá acontecendo! Eu
tô muito preocupada! Não me deixa preocupada assim!
Eu não queria falar, ao mesmo tempo em que sentia as
palavras quase escapando da minha boca. Era como se o peso de
tudo estivesse extrapolando e eu não conseguisse segurar sozinho.
Sentia-me como um copo d’água prestes a transbordar. E merda! Eu
ia transbordar!
— Ste... — tirei as mãos do rosto lavado por lágrimas. Minha
voz falhava. — Eu... — Mais um soluço escapou, impedindo-me
falar. Porra! Eu estava parecendo uma mocinha chorando!
Stefany se aproximou ainda mais de mim e me abraçou.
— Liam, pelo amor de Deus, me fala o que está acontecendo.
Ah, Zeus! Eu realmente não queria falar, mas o peso nos
meus ombros era muito forte para eu aguentar sozinho. As tias do
Eric já sabiam, a Molly já sabia, as pessoas estavam começando a
descobrir. Só me restava terminar de jogar a merda no ventilador e
contar para a Stefany. Não aguentava mais.
— Ste... — tentei mais uma vez. — Eu... — Merda, era muito
difícil falar. — Eu... Já fiquei... — fechei os olhos, lágrimas
escorreram. Respirei fundo, criando coragem. — Eu já fiquei com o
Eric.
À medida em que fui abrindo os olhos, encontrei uma
expressão de choque no rosto da loira.
— Você... — ela estava perplexa. — O quê?! — Seu queixo
caiu.
— Eu já fiquei com ele... — continuei, mesmo com
dificuldade. — E não foi só uma vez, nem duas, foram várias.
O queixo dela caiu ainda mais, enquanto minhas lágrimas
continuavam escorrendo. Provavelmente, eu estava mesmo
assinando meu atestado de boiola.
— Meu Deus... — sussurrou, incrédula. — Você está me
dizendo que você e o Eric já... — me olhou com uma cara meio
suspeita e, bem, eu conhecia essa cara.
— Não, pelo amor de Deus, Stefany! — repliquei de imediato,
chocado com o seu pensamento. — Foi só beijo.
— Meu Deus do Céu — imediatamente me abraçou. —
Sempre tive algumas convicções, mas... Eu nunca pensei que
pudesse realmente acontecer.
Oi? Do que a Stefany estava falando?
— Como assim “sempre tive algumas convicções”? —
questionei.
— Ah, Liam... — me soltou um pouco do abraço e me
encarou. — Sempre achei que... Bom... Antes de me explicar, quero
que você me diga como tudo isso aconteceu.
— Tem certeza de que quer mesmo saber? — funguei,
enquanto enxugava algumas lágrimas que ainda restavam.
— Absoluta.
— Tá. Então, lá vai...
Comecei, então, a contá-la como tudo aconteceu desde o
início. Por mais que eu estivesse confessando toda a boiolagem, era
como se toneladas estivessem sendo retiradas das minhas costas.
Podia estar desabafando que nem uma mulherzinha? Muito
provavelmente. Mas, eu não conseguiria mais guardar isso só
comigo por mais tempo.
— E agora eu tô com medo... — finalizei. — Medo da Molly
falar disso pra todo mundo. Medo de não conseguir ser mais cem
por cento homem. Medo de não esquecer a porcaria do Eric.
Porque, sim, eu quero esquecer! Não posso ser vgay! Não quero ser
gay!
A loira levou uma de suas mãos aos meus cabelos e fez
carinho.
— Liam... — Seu tom de voz era ameno. — Não tem nada de
errado em ser gay...
— Claro que tem! — disparei. — Não é normal! Não é
natural! O certo é homem com mulher.
Stefany, entretanto, balançou um não com a cabeça.
— O certo é ficar com quem se gosta.
— Eu nem gosto do Eric! — repliquei de imediato, mas meu
subconsciente me acusou de mentiroso. — E não, não é certo! O
certo é homem com mulher.
A loira deu um breve suspiro e...
— Olha, primeiro, se isso te consola, eu sou bi. Segundo,
você não lembra de uma vez que jogamos verdade ou desafio na
infância?
O quê?! Espera! Como assim a Stefany era bi?
Instantaneamente, levantei-me da cama e me afastei dela. Eu
sabia que meu rosto não escondia o quanto estava assustado.
— Você é bi?! — atônito, questionei.
— Sou — com naturalidade, respondeu. — Por quê? Vai
deixar de ser meu amigo agora, assim como fez quando descobriu
que o Luke era gay?
Luke... Não toca no nome dele, por favor.
— Eu nunca te vi ficando com nenhuma menina! — disparei.
Ela, no entanto, me deu um pequeno sorriso, se levantou da
cama, se aproximou de mim e me fez voltar a sentar.
— Primeiro, nem você, nem ninguém, sabe de metade das
pessoas que eu fico. Segundo, não preciso ficar colocando no jornal
que sou bi. Hétero, por acaso, precisa ficar gritando pra todo mundo
que é hétero? Não, né? Então, não preciso sair por aí gritando que
sou bi.
Engulo a seco. Como a Stefany conseguia ser tão bem
resolvida?
— Então... Você também fica com menina? — perguntei
novamente, ainda um pouco incrédulo.
— Sim. E não existe problema algum nisso. — sorriu. —
Assim como também não existe problema algum em um menino
ficar com outro menino.
— Como não existe problema? — questionei. — A sociedade
inteira sabe que é errado!
Stefany balançou a cabeça.
— Você tá falando da sociedade antiquada, né? Olha, Liam...
— segurou minhas mãos e me encarou com seriedade. — Deixa
esse seu preconceito de lado. Essa história de que homem não
pode ficar com homem é mais antiga que a vovó. Então... Fica com
o Eric... Está mais do que na cara que ele te quer também. Ele até
terminou com a Molly! E... — Dessa vez, um largo sorriso estampou
o rosto. — Eu adoraria ver vocês dois juntinhos! Ai, que lindo!
Ah, meu Deus! A Stefany falou isso mesmo? Ela torcia por
nós?!
— Não, Stefany! Não! Primeiro, eu não gosto do Eric! Eu o
odeio! — repliquei, mas meu subconsciente me acusou de
mentiroso de novo. — Segundo, ultimamente ele só tem me
ignorando. Não quer nada comigo — Inevitavelmente, minha voz
demonstrou certo tom de tristeza.
Ela sorriu e ergueu uma sobrancelha, como se não
acreditasse em uma só palavra que eu dizia.
— Primeiro, esse gelo do Eric é questionável. Segundo, você
não lembra de uma vez que jogamos verdade ou desafio na
infância?
— Ah, Stefany... A gente brincou de verdade ou desafio
milhares de vezes. Não tem como lembrar.
— Ah, Liam... Mas essa é, digamos, marcante... Tem certeza
que não lembra?
Stefany, então, começou a me contar sobre o episódio da
brincadeira. Aos poucos fui me lembrando. Era algo que, por muitos
anos, lutei em esquecer. Claro. A vergonha foi tão grande que tudo
o que eu queria era não lembrar mais. Todavia, naquele momento,
com a Stefany me fazendo recordar, eu conseguia imaginar
perfeitamente bem a situação.
Eu tinha uns oito anos de idade. Stefany deveria ter uns
nove, já que era um ano mais velha. Estávamos brincando com uns
adolescentes do bairro. Mesmo criança, Stefany sempre foi muito
adiantada para sua idade e, por isso, sempre se acompanhou com
meninas e meninos mais velhos. Nesse dia, somente Stefany, eles e
eu estávamos brincamos. Eric e Molly ficaram em casa.

...

— Liam! Liam! — Stefany se aproximou de mim,


entusiasmada. — Vamos brincar de verdade ou desafio? Os
adolescentes do bairro estão chamando!
Adolescentes do bairro? Eu não sabia se era uma boa ideia.
— Eles não são chatos, Ste? — indaguei.
— Ah, que nada, Liam! — deu de ombros. — Sempre ando
com eles. São legais. Vem! — e me puxou pelo braço.
Não demorou muito até chegarmos ao final da rua onde
estavam todos reunidos. Pela aparência, eles deviam ter mais ou
menos uns 15 ou 16 anos. Não sabia como a Stefany conseguia se
acompanhar com essa gente.
— Ah, então o menino Liam veio também! — uma garota
disse.
— Vim — respondi com certo tom de superioridade, tentando
não demonstrar que me sentia intimidado por estar com pessoas tão
mais velhas que eu.
— Podemos começar, então? — um dos garotos perguntou.
Todos acenaram um sim com a cabeça e o jogo, então,
começou. A garrafa girou várias vezes. Rodadas e mais rodadas de
perguntas e desafios aconteceram até que...
— Ora ora! — um deles se pronunciou ao ver que, depois de
tantas rodadas, a garrafa finalmente parou na minha direção. —
Agora é a vez no menino Liam!
— Vai, criança! — uma garota falou. — Fala o que você quer:
verdade ou desafio?
Meu Deus, o que eu ia escolher? O que era menos ruim?
— É... Hum... Verdade — acabei respondendo sem pensar
muito.
— Uau! Ele escolheu verdade! — em tom zombeteiro, um
garoto riu.
— Então, me responde, menino Liam... — uma garota se
pronunciou. — O que você sente pelo menino Eric?
Todos caíam em uma risada, menos a Stefany. Seu
semblante estava apreensivo, talvez por perceber que todos esses
idiotas queriam zombar de mim. Esses adolescentes já nos
conheciam e sabiam que Eric e eu não éramos amigos. Será que
eles não podiam me deixar em paz com isso? Eu só era amigo de
quem eu queria!
— Não vou responder isso — resmunguei de cara fechada.
— Tá com medinho? — em tom zombeteiro mais uma vez, a
garota falou.
Chata!
— Não! — repliquei bem desaforado. — Vocês já sabem a
resposta! Eu odeio o Eric!
Todos gargalharam novamente, menos Stefany. Ela
continuava apreensiva.
— Liam... — um garoto me chamou. — O nome da
brincadeira é verdade ou desafio, não é mentira e desafio — riu.
— É, Liam! Conta a verdade! — outro se pronunciou.
— É! Diz logo que você gosta do Eric!
Que saco! Que gente chata!
— Quero desafio! — bem desaforado outra vez, exigi. — Não
quero mais essa porcaria de verdade!
No entanto, eles não paravam de rir da minha cara.
— Então, você quer desafio? — maliciosa, uma garota
questionou.
— Quero — resmunguei.
Ela sorriu para os outros, como se já tivesse bolado um
plano, mas logo virou o rosto pra mim outra vez
— Então, tá. Seu desafio é entrar naquele bosque do outro
lado da rua e ficar quinze minutos lá!
O quê? Naquele bosque? O bosque mal assombrado? Todo
mundo sabia que dava de medo entrar lá... Imediatamente, encarei
apreensivo o bosque. Ouvi risadas de todos, menos da Ste. Eles
continuavam zombando de mim.
— Vocês não podem passar outro desafio para o Liam? —
Stefany perguntou. — Esse desafio é covardia!
— Não, Ste! — a garota respondeu. — Vai ser esse o
desafio! Quer dizer... — parou por alguns instantes e sorriu para
mim de maneira maliciosa. — Se você contar o que realmente sente
pelo Eric, você não precisa entrar no bosque.
Ah, meu Deus! O que era menos pior?
Olhei para o bosque, depois para a Stefany, e fiz o mesmo
movimento umas três vezes. A apreensão e a indecisão tomaram
conta de mim.
— Ah, menino Liam, tá demorando muito! — o garoto ao meu
lado falou. — Vai logo para o bosque! — e me empurra para que eu
me levantasse.
— É! Vai logo! Vai! — outro disse.
De repente, todos os garotos se levantaram e me ergueram à
força para entrar no bosque.
Não! Que pesadelo!
— Me larguem! — gritei. — Me soltem!
— Não façam isso! — ouvi Stefany também gritar. — Soltem
ele!
— Ué! Se não vai falar a verdade, tem que cumprir o desafio!
— um dos garotos replicou.
— É isso aí! — outro concordou.
Que inferno!
— Me soltem! Chega! Eu vou dizer a verdade! — exclamei
sem muito pensar.
— Vai? — um deles ergueu a sobrancelha em puro desafio.
— Vou! — afobado, respondi.
Era melhor contar uma verdade que me deixasse com
vergonha, do que entrar naquele bosque mal assombrado. Assim,
todos os garotos me soltaram, de qualquer jeito, diga-se de
passagem, e me fizeram cair de bunda no chão. Imbecis!
— Eu gosto do Eric, tá legal?! — desaforado repliquei.
— Gosta? — um garoto perguntou, já começando a rir.
— Sim — resmunguei.
— E como você gosta dele? — uma garota questionou.
— Chega, Stela — ouvi Stefany pedir.
Ela, no entanto, deu de ombros e tornou a pergunta.
— De que jeito você gosta dele, Liam?
— Ah, eu... É... — Que vergonha de dizer isso! — É... Meu
coração... Meu coração bate mais rápido e mais lento, ao mesmo
tempo, sempre que o vejo — respondi e baixei imediatamente a
minha cabeça, morrendo de vergonha.
Em questão de segundos, um silêncio se instalou na roda da
brincadeira. Levantei meu rosto e vi todos se entreolhando, até
que...
— Gayzinho! — um garoto gritou.
Ligeiro, todos gargalharam. Encarei Stefany e vi preocupação
em seu rosto.
— O Liam é um gayzinho — Agora foi a vez de uma garota.
— Sim! — Outra concordou.
— Parem com isso! — Stefany exclamou. — Parem de
chamá-lo assim!
Entretanto, todos deram de ombros para o que a loira disse e
continuaram zombando da minha cara. Me senti mal, muito mal.
Uma gota de lágrima quis escorrer dos meus olhos. Por que todos
estavam rindo assim de mim? Por quê? Era errado menino gostar
de menino? Eu era um gayzinho?

...
— Naquela época, eu ainda não sabia o que era
preconceito... — sussurrei mais para mim do que para Stefany.
— E deveria ter ficado sem saber pelo resto da vida... — ela
replicou. — Mas... Agora lembrou que sempre gostou do Eric?
Mesmo que numa situação nada legal e nada agradável.
Não, Zeus. Eu me recusava a acreditar que, desde a infância,
eu gostava daquele desgraçado!
— Eu era uma criança, Stefany. Eu não sabia de nada da
vida.
Ela suspirou.
— Ok, se você diz... Mas, o fato é que hoje você é
praticamente um adulto. Tem dezoito anos. Sabe do que gosta.
Sabe de quem gosta. Sabe do que quer. E eu sei que você gosta e
quer o Eric.
— Stefany... — respirei fundo, tentando argumentar, mas...
— Liam! Para de negar o óbvio! Você deu um beijo nele
primeiro! Você estava desejando ele e ainda deseja! Para de negar
o óbvio!
Ah, meu Deus! Não!
— Eu não quero ser gay, Stefany! — disparei.
A loira, automaticamente, revirou os olhos para mim.
— Tudo isso são rótulo, Liam. Rótulos. Você não precisa se
rotular. Só segue o seu coração.
— Ste... — senti o nó na minha garganta se formando outra
vez. — Eu não quero isso pra minha vida...
— Ah, é? — ergueu as duas sobrancelhas e cruzou os
braços. — Então, o que você quer pra sua vida? Quer passar a vida
inteira se martirizando por não ficar com o cara que gosta ou quer
ligar o “foda-se” e ser feliz?
As suas palavras eram duras e cortavam por dentro, mas, no
fundo, bem no fundo, eu sabia que ela estava certa. Que droga de
vida.
— Ste... — Meus olhos começaram a lacrimejar novamente.
— Liam... Me escuta, presta atenção em mim... — segurou
minhas mãos e me encarou de maneira incisiva. — Esquece teu
preconceito por, pelo menos, dois segundos e me fala a verdade. Eu
quero a verdade. O que você sente pelo Eric?
— Ódio — respondi no automático.
— Liam... — Stefany usou um tom de repreensão. Ela sabia
que isso não era verdade.
Droga. Respirei fundo e... Chega! Foda-se! Eu não aguentava
mais isso. Estava na cara que eu gostava de um homem. Estava na
cara que eu era gay mesmo.
— Que saco, Stefany! — Um novo soluço de choro escapou
da minha garganta. Foi impossível segurar. — Eu não só gosto dele!
— As lágrimas escorriam. — Eu sou absurdamente louco por aquele
desgraçado! Tudo o que eu quero é ficar com ele e dizer pra ele
parar de me ignorar e de ser frio comigo! Eu o quero, Stefany... —
As lágrimas continuavam descendo.
Imediatamente, Stefany me abraçou.
— Ah, Liam... — Mesmo não a vendo, eu sabia que ela
estava sorrindo. — Isso era tudo o que eu queria ouvir... Fico tão
feliz por você finalmente admitir!
Aos poucos, Ste foi me soltando do abraço e enxugando as
minhas lágrimas.
— Para de chorar... — pediu. — Quero te ver sorrindo.
— Meio difícil... — resmunguei.
— Você já sabe o que tem que fazer, né? — perguntou.
— Ignorar toda essa boiolagem e seguir em frente — falei,
mesmo sabendo que não era essa resposta correta.
Ela, automaticamente, balançou um não com a cabeça.
Tá. Ok. Vamos, Liam. Dê a resposta correta agora.
— Ir atrás dele.
Com um largo e entusiasmado sorriso, a loira acenou um sim.
Me ensina

Eric

Um novo dia amanheceu, mas os problemas do dia anterior


persistiam. Quase não consegui dormir à noite, pensando em tudo o
que aconteceu. A confissão. O término. A maneira como a Molly
saiu da minha casa. Liam chegando de surpresa no meu quarto.
Tudo. Tudo isso fez com que eu, praticamente, não pregasse os
olhos
Perdi, até mesmo, a fome. Era de manhã cedo e eu nem ao
menos tinha descido para lanchar. Desde a tarde do dia anterior eu
não coloquei um alimento sequer na boca. Sentia-me
completamente perdido. Para completar, já havia ligado umas
oitenta vezes para a Molly, a fim de saber como ela está, ou mesmo
de tentar explicar melhor a situação. Mas, ela não atendeu ligação
alguma. Eu estava completamente sem notícias.
Como se não bastasse, Liam ainda apareceu ali à noite,
pegando-me completamente de surpresa e surtando, claro. Exigiu
que eu repetisse palavra por palavra que falei para a Molly. Claro
que eu não faria esse papel de otário para ele. Mas, apesar de tudo,
quando eu soltei somente uma frase, dizendo que tinha terminado
porque revelei a Molly que gostava dele, notei Liam um tanto
quanto... Vulnerável.
Liam vulnerável? Isso era completamente novo para mim. Ele
sempre fez questão de passar uma imagem de quem era forte,
durão, inabalável. No entanto, não somente ontem, mas nos últimos
dias, eu estava percebendo certa mudança em seu semblante. Ele
parecia abalado com a minha frieza. Às vezes, eu até me
perguntava se isso não era só impressão minha ou se não era só
coisa da minha cabeça.
E talvez fosse. Liam nunca se sentiria abalado pela minha
frieza. Eu tinha certeza disso. Ele era sempre muito autossuficiente.
Além do mais, sua tal heterossexualidade estaria em apuros se ele,
pelo menos, cogitasse a possibilidade de se sentir mal por eu estar
distante. Certamente, esse olhar vulnerável, esse jeito abalado, não
passava de impressão minha. Liam estava pouco se importando
com meu esnobismo.
Então, era melhor parar de pensar nisso e de me preocupar
com isso. Melhor também continuar mantendo a distância que eu já
estava tomando dele. Assim, eu poderia me resguardar de qualquer
patada e de qualquer deslize em ficar com ele. Era melhor que eu
me preocupasse apenas com a Molly e com o estado dela. Ela não
saiu nada bem dali. E, pensando nisso, talvez fosse hora de tentar
ligar novamente.
Ainda deitado na cama, peguei o celular e selecionei o
número dela. Iniciei a ligação. O celular chamou uma, duas,
inúmeras vezes, até cair. Droga. Por que não me atendia, Molly?! Eu
estava tão preocupado!
Joguei o celular no criado mudo ao lado e, impaciente com a
situação, virei-me no colchão, afundando meu rosto no travesseiro.
Olhos e punhos fechados. A impaciência só aumentava. Será que o
mundo inteiro já sabia de tudo? Será que ela já espalhou para
todos? Ah, meu Deus, preferia nem imaginar!
De repente, ouvi a porta do meu quarto sendo aberta. Droga,
eu tinha me esquecido de trancar. Virei-me novamente na cama,
liberando meu rosto do travesseiro. Vi Stefany entrando e fechando
a porta. Me olhou com seu semblante amigável de sempre,
sorridente. Porém, seu sorriso estava muito mais largo do que eu
comumente via. Aconteceu alguma coisa?
Rapidamente, me sentei na cama para recebê-la, que logo se
sentou ao meu lado e me cumprimentou com um abraço e um beijo
no rosto.
— Bom dia, maninho!
— Bom dia, Ste.
— Dormiu bem? — perguntou.
Não.
— Sim — menti. — E você?
Stefany me deu um breve suspiro e...
— Liam dormiu aqui. Comigo. No meu quarto.
O quê? Liam dormiu aqui? Com a Stefany?!
No mesmo instante, meu semblante se fechou, mesmo que
eu não quisesse. Era impossível esconder o meu desapontamento.
Idiota... Ele devia estar muito preocupado mesmo com a situação!
Não perdeu tempo em transar com a minha irmã!
— Calma... — a loira sorri e soltou uma pequena risada. —
Não precisa ficar ciúmes. Ele dormiu no meu quarto porque não
queria voltar pra casa e dar de cara a Molly. Pelo menos, não agora.
E, nós não fizemos o que você deve estar pensando que fizemos —
riu um pouquinho novamente.
Não fizeram?
— Por que eu teria ciúmes daquele mané? — resmunguei.
Stefany, no entanto, segurou minhas mãos e fez carinho com
os polegares.
— Eric, eu já sei de tudo. Liam me contou tudo — Seu tom de
voz era o mais ameno e amável possível.
Oi? O Liam contou tudo para a Stefany? Tudo? Tudinho?
Cada parte? Meu Deus. Muito bonito, para não dizer o contrário! Ele
faltou me matar porque contei por cima pra Molly, e depois contou
tudo para a Stefany! Liam e contradição deveriam ser sinônimos.
Sem pensar duas vezes, coloquei as mãos no rosto e respirei
fundo, tentando me controlar. Um misto de vergonha e indignação
me consumiu. Como o Liam podia ser tão contraditório e hipócrita?
Não que a Stefany fosse uma ameaça, mas tinha necessidade
agora? Primeiro minhas tias, depois a Molly (que tinha necessidade
de saber o motivo do término) e agora a Stefany.
— Ei, maninho... — continuou com seu tom de voz ameno e
tenta tirar minhas mãos do rosto. — Não precisa ficar assim. Eu só
quero ajudar.
Eu sabia disso, mas... Droga. Era difícil quando a realidade
batia e você percebia que todos, ao seu redor, estavam
descobrindo. Aliás, talvez Londres inteira já estivesse sabendo
através da boca da Molly.
— Ele contou tudo? — perguntei, para me certificar. —
Tudinho?
— Tudinho — acenou um sim com cabeça. — E é por isso
que estou aqui. Não acha que vocês dois precisam se entender?
Liam e eu? Nós dois nos entendendo? Mais fácil cair um
meteoro na Terra.
— Eu já dei inúmeras chances a ele, para nos entendermos
— falei. — Liam não aproveitou nenhuma. Aliás, desde criança, eu
tento me entender com ele. Já desisti de qualquer entendimento.
A loira, por sua vez, passou uma das mãos no meu cabelo e
fez carinho.
— Eu sei — replicou. — Liam me falou que você está distante
e frio com ele. Ele está sofrendo, sabia?
Oi?
No mesmo instante, virei meu rosto em direção à Stefany,
incrédulo. Liam sofrendo? Não. Isso só podia ser brincadeira. Liam
não era de sofrer. Principalmente quando se tratava da minha
pessoa.
— Que conversa é essa, Ste? — franzindo o cenho,
questionei.
Minha irmã me deu um breve suspiro e voltou a segurar
minhas mãos.
— Maninho, o Liam sempre gostou de você. Desde criança.
Claro que não deixou de ser uma surpresa, para mim, quando ele
me disse que vocês tinham ficado. Mas, eu sempre soube que ele
sempre gostou de ti. Só que ele nunca quis aceitar. Nunca quis
admitir. Liam cresceu condicionado a ficar meninas e a achar que
isso era o certo. Ele se tornou uma pessoa complicada e cheia de
preconceitos. Complicada por conta das comparações que sempre
sofreu com você. Cheia de preconceitos porque a sociedade sempre
colocou na cabeça dele que não é certo gostar de meninos. Soma
tudo isso à personalidade, digamos, peculiar dele. Tudo isso forma
um Liam que fez questão de enterrar todo e qualquer sentimento por
ti. Acontece que, nas últimas semanas, o destino deu uma mãozinha
e vocês se tornaram mais próximos do que pretendiam.
Antigamente, vocês só se viam quando faziam alguma visita na
casa de um ou do outro, ou quando tinha algum aniversário dos
nossos pais ou dos pais dele. Já nas últimas semanas, vocês
começaram a estudar no mesmo colégio, a ter aulas particulares
juntos e a jogar no mesmo time! Olha só! Toda essa proximidade
mexeu com todo o sentimento que vocês tinham enterrado um pelo
outro. Dá mais uma chance a ele, Eric. Por favor.
Assim que Stefany se calou, senti meu queixo bater no chão.
Como ela conseguiu captar tudo isso? Como ela teve sensibilidade
para tudo isso? Rapidamente, me levantei da cama e caminhei pelo
quarto. Passei as mãos nos cabelos, buscando por alguma
intervenção divina. Os pensamentos giravam na cabeça depois de
tantas informações
— Não sei, Stefany — Foi a primeira coisa que consegui
pronunciar. — Não quero me machucar. Liam é uma pessoa muito
difícil de lidar.
Dessa vez, foi ela quem se levantou da cama e caminhou até
onde estava. Seu olhar afável não saía do rosto. Era incrível que,
mesmo quando eu me sentia confuso, minha irmã conseguia me
acalmar apenas com o olhar.
— Irmão, você tem que entender que também não é fácil
para o Liam. Você tem que entender que cada um age de maneira
diferente quando se vê gostando de pessoas do mesmo sexo. Você
me parece ser mais mente aberta quanto a isso. Liam não é assim,
mas, algo me diz que ele está disposto a consertar isso.
Não, eu não podia acreditar nisso. Caminhei de um lado para
o outro do quarto, tentando me conformar de que eu não podia me
confiar nisso. Eu sabia muito bem como o Liam era.
— Ste... Eu conheço o Liam desde que eu nasci! — exclamei.
— Eu sei como ele é. Conheço seu temperamento. Definitivamente,
ele não é o tipo de pessoa que aceita esse tipo de coisa.
— Eric... — balançou a cabeça, como se suplicasse para que
eu mudasse meus pensamentos. — Se você visse o tanto que ele
chorou por ti ontem!
Instantaneamente, senti meu corpo travar e meu queixo cair
mais uma vez. Não... Isso não podia ser verdade.
— Liam? Chorando... Por mim? — pergunto, incrédulo. Olhos
arregalados. Queixo caído. Corpo em puro estado de alerta.
Definitivamente, ele não era assim. Prova disso era que eu não
conseguia nem imaginar uma cena dessas.
— Maninho... — me deu um sorriso amável e ergueu suas
mãos em direção ao meu rosto, fazendo carinho com os polegares.
— O Liam é completamente apaixonado por ti.
Pronto. Agora sim.
O restante de chão que ainda me restava se desmoronou.
Liam? Apa-Apaixonado por mim?
— Ste... I-Isso... — gaguejei, nervoso. — Não pode ser
verdade.
— Olha, Eric, espera — levantou brevemente as mãos e
suspirou. — Eu preciso te mostrar algo — e caminhou em direção à
porta, abrindo-a.
Franzi o cenho e encarei-a de maneira confusa.
O que Stefany queria me mostrar?
— Ei... Vem aqui... — Ouvi-a sussurrar para alguém lá fora
Meu Deus. Quem estava ali?
— Vem aqui! — novamente, gritou em um sussurro, enquanto
continuava chamando a tal pessoa que parecia apresentar
resistência ao seu pedido. — Vem!
Ah não... Meu coração estava a ponto de sair pela boca. Será
que era o... Não. Não podia ser. Ele ainda estava na minha casa?
— Liam? — O nome dele saiu automaticamente da minha
boca ao vê-lo entrar de cabeça baixa no meu quarto.
— Acho que vocês precisam conversar — com um pequeno
sorriso no rosto, Stefany saiu do quarto e fechou a porta, nos
deixando a sós.
Ah meu Deus. Eu não podia acreditar que ele estava ali. Era
tudo tão novo para mim. Saber que ele contou tudo para a Stefany e
ainda teve a coragem de aparecer no meu quarto daquele jeito, era
novo para mim. Saber que ele chorou, também era novo pra mim.
Saber que ele está apai... Apai... Era difícil de falar isso até em
pensamento.
Observei-o atentamente. Liam permaneceu calado e de
cabeça baixa. Parecia envergonhado, encabulado. Poucas vezes na
vida o vi assim. Eu também estava calado, mas, ao contrário dele,
permanecia encarando-o, enquanto aguardava pelo momento em
que ele decidisse levantar o rosto.
Será que ele não ia falar nada? Será que ele ia continuar
assim? Calado e de cabeça baixa? O silêncio no quarto era
aterrorizante. Somente ouvia o som do vento batendo na porta de
vidro da varanda. O clima no quarto não estava normal. Eu me
sentia travado, semelhante a ele.
Mais alguns segundos de silêncio se passaram, até que
suspirei e, finalmente, decidi começar a falar. Se eu não tomasse
iniciativa, era provável que nós continuássemos ali pelo resto do dia.
Na verdade, eu nem sabia como ele tinha conseguido criar coragem
de estar naquele quarto, depois de ter falado tudo sobre nós para a
Stefany.
— Liam... — comecei. Ele, no entanto, continuou calado e de
cabeça baixa. — Stefany me contou o que aconteceu.
Quando me calei, automaticamente me lembrei da minha
irmã me dizendo que ele chorou. Meu Deus, ele chorou? Mesmo
não querendo, isso me cortava o coração. Entretanto, algo
interrompeu meus pensamentos. Liam, finalmente, levantou o rosto
e, cautelosamente, me olhou. Notei que ele tentava demonstrar sua
típica pose de durão, mas, no fundo, eu sabia que estava
vulnerável. Seus olhos não mentiam.
— Ela me obrigou a vim aqui — falou.
— Obrigou? — Instantaneamente, perguntei e ergui as
sobrancelhas.
Claro. Se um rastro de pensamento passou pela minha
cabeça de que ele pudesse ter vindo por livre e espontânea
vontade, foi muita ingenuidade minha. Claro. Lógico. Liam não
estaria aqui se...
— Mentira... — sussurrou e baixou a cabeça novamente.
Quê?
— Mentira? — em choque, indaguei.
Ele suspirou e arqueou lentamente seu olhar na minha
direção.
— Sim — respondeu. — Eu vim aqui porque quis.
Então... Deus... Ele estava mesmo ali, depois de ter revelado
tudo à Stefany? Esse era o Liam mesmo? O Liam que eu conhecia
estaria fugindo a léguas, se tivesse dito para alguém o que sentia
por mim. O Liam que estava agora em minha frente eu não conhecia
— Sério? — abismado, perguntei.
— Claro, seu idiota — respondei.
“Seu idiota”.
Bom, aparentemente, era o mesmo Liam, mas com algumas
mudanças.
— Então, por que veio aqui?
Liam revirou os olhos.
— Não parece óbvio?
— Para mim, não — falei.
Liam revirou os olhos mais uma vez.
— Stefany provavelmente já te contou tudo. Acho que não
preciso mais falar.
Claro que eu não era bobo. Eu tinha uma ideia do motivo dele
estar ali, mas...
— Eu quero ouvir da sua boca — requisitei e me aproximei
dele.
O moreno engoliu a seco, mas não se afastou de mim.
— O-Ouvir o quê? — gaguejou um pouco, mas logo
pigarreou a garganta e tentou voltar com a sua pose de durão. —
Ouvir o quê? — Dessa vez, Liam falou com uma voz mais grossa.
— Ora... O que você falou para a Stefany — repliquei.
— Você já sabe — disse automaticamente.
— Quero te ouvir — pedi
Ele ainda continuou tentando manter sua postura, mas isso
não durou mais que meio minuto. Logo suspirou e...
— Eu te odeio — disse, olhando no fundo dos meus olhos.
Oi? Nós tínhamos voltado à estaca zero? Como assim?
— Quê? — franzi o cenho.
Não foi isso o que a minha irmã me contou.
— Eu te odeio porque não consigo te odiar nem por um
segundo. Passei a vida inteira tentando te odiar. Todas as tentativas
foram falhas. Eu queria tanto te odiar. Queria tanto odiar o fato de...
— parou um pouco, quando seus olhos começaram a marejar.
Céus. — Eu não sei como estou conseguindo falar tudo isso. Eu só
sei que queria odiar o fato de gostar de ti — fechou os olhos,
impedindo que as lágrimas caíssem. — Para de me ignorar. Para de
me esnobar. Só... Só fica comigo.
“Fica comigo”. As palavras ressoaram em minha mente. Isso
era um sonho? Isso era realidade? Liam estava querendo que eu
ficasse com ele? Eu não conseguia acreditar que isso estivesse
realmente acontecendo. Nem nos meus melhores sonhos eu
poderia imaginar isso. Só existia uma maneira de saber se isso, de
fato, era real.
— Repete — pedi, extasiado.
Isso era como música para os meus ouvidos.
— Você já ouviu — ainda de olhos fechados, argumentou.
Tudo bem. Eu não deveria abusar da boa vontade. Já
considerava um milagre tudo isso. Liam permaneceu de olhos
fechados. Aproximei-me dele aos poucos e coloquei,
cautelosamente, minhas mãos no seu rosto. Notei quando ele
estremeceu e, logo em seguida, abriu os olhos. Lágrimas
silenciosas caíram. Enxuguei-as com meu polegar. Seu olhar estava
mais vulnerável que nunca. Aproximei lentamente meus lábios dos
seus, e ele, milagrosamente, retribuiu.
Nossas bocas se tocaram no beijo mais calmo que já
experimentei na vida. Liam afundou seus dedos nos meus cabelos,
enquanto eu continuava segurando seu rosto. Senti seus lábios, sua
língua, seu corpo entregue. Senti o quanto ele estava esperando por
isso. Entretanto, de repente, Liam parou.
— Só não pense que vou deixar de te considerar um idiota —
notei que ele estava tentando segurar o sorriso. — Só vai ser um
idiota mais legal.
— Eu já sabia disso — sorri e voltei a beijá-lo.
Foi quando ele interrompeu o beijo de novo.
— E não pense que vai deixar de ser um Pateta — Dessa
vez, ele não conseguiu segurar o sorriso.
— Eu sobrevivo — respondi em tom de brincadeira e tornei a
beijá-lo.
E, então, ele me interrompeu mais uma vez. Agora, mais
sério. O que houve?
— Me ensina... — pediu. Seus olhos vulneráveis apareceram
novamente.
— Ensinar o quê? — sem entender, perguntei.
— Me ensina a ser menos preconceituoso. Me ensina a me
aceitar melhor.
Ah, meu Deus... Isso era sério? Eu estava ouvindo isso
mesmo?
Me apaixonei ainda mais.
— Claro... — sussurrei. Dessa vez, eram os meus olhos que
estavam marejados. — Você é um ótimo aluno e... Podemos ir com
calma. A gente se conhece desde criança, mas não nos
conhecemos como um... Um... — Para mim, era algo novo falar
isso, mas... — Um casal. Então, o que acha de nos conhecermos
como casal? A gente vai se descobrindo ainda mais, descobrindo do
que gostamos e de como gostamos. O que acha?
Liam, por sua vez, me encarou, até que, aos poucos, um
pequeno sorriso se formou em seu rosto.
— Para um idiota, até que você tem boas ideias — soltou
uma pequena risada. — Eu topo.
— Ótimo... — sussurrei e, agora, quem me beijou foi ele.
Continuamos nos beijando sem ver o tempo passar, apenas
aproveitando a companhia um do outro e descobrindo ainda mais
sobre nossos sentimentos. Como seria dali em diante? Eu não
sabia. A única coisa que eu sabia era que queria aproveitar cada
minuto ao seu lado.
A felicidade tem olhos castanhos

Liam

Um dia se passou, desde que tudo aquilo aconteceu no quarto do


Eric, e eu me sentia... Como podia dizer? Fodidamente diferente.
Era até difícil de explicar. Mas, eu sentia como se eu estivesse
passado todos esses anos dormindo e só agora acordei. Estranho?
Sim, muito. Ou, na verdade, era como se agora eu estivesse
vivendo um sonho.
Um sonho no qual eu virei um gay. Santa Vodca do Céu. Eu
devia confessar que, dizer tudo o que sentia para a Stefany e para o
Eric, foi como tirar um peso das costas, mas, definitivamente, o Liam
de um mês atrás não reconheceria o Liam de hoje. Inclusive, eu
nem mesmo sabia como iria reagir, naquele dia, quando chegasse
ao colégio e desse de cara com o Eric.
Ontem, depois de toda a conversa, ainda ficamos um tempo
no quarto. Não me pergunte fazendo o quê, porque eu não me
lembrava. Era como se eu estivesse de ressaca, porque tudo o que
me lembrava era que ficamos no quarto nos beijando, sem dar mais
nenhuma palavra. Era como se nós estivéssemos tirando o atraso
por passarmos tanto tempo sem nos beijar. E, eu não podia negar,
foi bom. Muito bom.
Apesar disso, voltei pra casa nervoso. Eu estava morrendo
de medo de chegar aqui e dar de cara com a Molly e com os nossos
pais querendo arrancar meu couro por tudo o que aconteceu. Sabe-
se lá de que maneira a Molly poderia fazer a cabeça deles. Nunca
duvidei da sua capacidade para armar as coisas, principalmente
pelo fato de ser a “queridinha dos pais”.
Mas, o curioso era que eu cheguei e a casa estava na mais
santa paz de Zeus. Meus pais estavam em casa, assistindo
televisão e, segundo o eles me disseram, Molly estava na casa de
uma amiga. Eles até chegaram a comentar, muito por cima, sobre o
término do namoro e sobre a infelicidade terem perdido um
“excelente genro”, segundo palavras deles, mas foi só isso.
Ao que tudo indicava, Molly não falou o real motivo do
término para ninguém. Isso era muito estranho. Mas, era bom. Pelo
menos, Londres inteira ainda não sabia que eu era gay. Pelo menos,
as coisas ainda estavam quase que somente entre Eric e eu. Era
melhor que continuasse assim. Ninguém precisaria ficar sabendo
que eu estava com um cara. Especialmente meus amigos e minha
família. Thor do Céu, preferia nem imaginar o que diriam!
Continuei imerso em pensamentos, até que, de repente, ouvi
o típico som de uma mensagem chegando ao meu celular. Quem
poderia ser? Estiquei-me na cama e peguei o celular que estava no
criado-mudo ao lado. Olhei o visor e... Eric. Imediatamente, meu
coração acelerou ao ponto de quase sair pela boca. Suspirei,
tentando controlar a porcaria do meu coração que parecia ser mais
gay do que eu mesmo, e abri a mensagem.
“Bom dia, bonequinha! Eu tô com saudade.”
Ah, sério? Ele já estava com saudade? Que fo... O quê? Não!
Coisa mais brega. Esse sorriso de abestado precisava sair da minha
boca.
“Acho que esqueceram de te avisar que você está com um cara
e não com uma bonequinha. Bom dia.”
Alguns segundos se passaram até receber a sua resposta.
“Sabe que eu gosto de brincar com a sua cara, né? Mas, me fala
uma coisa, quando você chegar ao colégio, posso ficar um
pouquinho contigo no pátio, antes do teste de química começar?”
O quê? Ele estava louco? Claro que não. Isso não daria
certo. Quando na vida Eric e Liam já ficaram juntos no colégio?
Nunca.
“Tá doido, Eric? Vai ser muito estranho se todo mundo ver nós
dois juntos no pátio. Ninguém está acostumado com isso lá colégio.
Vai dar muita bandeira.”
Dentro de poucos instantes, recebi sua nova mensagem.
“É que eu tô com saudade, bonequinha.”
Rapidamente, digitei:
“Para de ser brega.”
Rapidamente, Eric me enviou:
“Chato.”
Sem pensar duas vezes, digitei a resposta:
“Mané.”
Dentro de segundos, a mensagem dele chegou ao meu
celular.
“Confessa logo que você também está com saudade de mim...
Vai...”
Automaticamente, revirei os olhos. Dizem que eu era
convencido, e eu era mesmo, mas, às vezes, o Eric me superava!
“Porque você é tão brega?”
Eric pareceu não pensar duas vezes e logo me enviou a
resposta:
“Um brega que tu está morrendo de saudade.”
Ai que boiolagem. Pior que eu já estava com saudade desse
mané mesmo.
“Tá bom! Tá bom! Eu estou mesmo com saudade, coisinha.
Satisfeito? Agora preciso me arrumar pra escola. Falou valeu!”
Não demorou muito até receber sua última resposta:
“Rá! Sabia que você já estava com saudade desse homem
maravilhoso que eu sou! Até mais tarde, bonequinha arredia.
Beijão!”
Primeiro: mais convencido que eu. Segundo: bonequinha de
novo! Era melhor eu desistir. Como eu fui gostar de um idiota
assim? Ironias da vida.

❖❖❖

Não demorou muito até eu terminar de me arrumar para o


colégio. Estava descendo as escadas, para lanchar algo antes de ir,
mas o problema era que o meu nervosismo teimava em aparecer.
Será que agora minha irmã tinha contado tudo? Será que agora
meus pais já sabiam que eu fiquei e continuava ficando com o Eric?
Será que agora era a parte do dia em que meus pais me matavam?
Ah, meu Zeus, me ajuda.
Terminei de descer as escadas e caminhei até a sala de
refeições. Aos poucos, comecei a ouvir as vozes dos meus pais.
Cruzei a porta e logo os vi, mas eles não estavam sozinhos. O olhar
de Molly foi o primeiro a mirar em mim. Olhar de desprezo. Thor do
Céu. Seu semblante ainda estava bem abatido. Claro que estava
melhor que antes de ontem, mas ainda continuava abatido.
— Bom dia, filho — papai se pronunciou, tirando-me dos
meus pensamentos.
— Entre, querido — agora foi a vez da mamãe. — Sente-se.
Não fique parado aí na porta.
Observei a grande mesa e procurei a cadeira mais distante
possível da Molly. Vai que ela estivesse só esperando a hora de
pular no meu pescoço e me esganar. Nunca se sabe. Era melhor
não arriscar. Caminhei pelo local e a notei me acompanhar com o
olhar o tempo todo. Como eu sabia disso? Porque eu também não
estava conseguindo desviar os meus olhos dela.
Ao que tudo indicava, meus pais ainda não sabiam de nada.
Mas, ela será que ela seria capaz de contar tudo agora,
aproveitando que eu estava ali? Puta merda, eu estava muito
nervoso. Sentei-me em uma das cadeiras e comecei a me servir,
tentando disfarçar o suor frio que escorria pela minha espinha.
Papai e mamãe, então, entraram em um assunto só deles,
falando sobre compras e viagens. Mamãe até comentou sobre
passagens aéreas, papai sobre hotéis. Consumistas. No entanto, de
repente, eles pararam. Provavelmente perceberam o silêncio
mórbido entre Molly e eu na mesa.
— Querido, ainda não tinha perguntado, mas porque dormiu
na casa da Cynthia e do George antes de ontem? — Mamãe
questionou.
Minha irmã, instantaneamente, se remexeu na cadeira, como
se estivesse altamente afetada pelo assunto. Droga. Será que ela
estava pensando que eu fui pra ficar com Eric? E pior, pra dormir
com o Eric? Ah meu Deus.
— Eu fui pra... — A resposta que eu daria não seria das
melhores, mas, pelo menos, não deixaria a Molly pensando
besteiras. — Pra dormir com a Stefany.
Notei minha irmã revirar os olhos discretamente.
— Hum. Então, dormiram juntos? — Papai perguntou.
Ok, ok. Eles já podiam parar com esse assunto. Não era
nada legal ficar pensando na vida sexual do filho.
— Dormimos — limitei-me a responder somente isso.
Percebi mamãe sorrir.
— Sabe, querido... — ela disse. — Eu fico muito feliz que
você e a Stefany se deem tão bem. Sei que já disse isso, mas digo
e repito: deveria pedi-la em namoro.
Eu, que estava tomando um gole de suco, automaticamente
me engasguei.
E-Eu? Pe-Pedindo a Stefany em namoro? Mais fácil chover
canivete! Mesmo antes de inventar essa boiolagem toda na minha
vida, eu já não a pediria em namoro, imagine depois disso. Stefany
era uma “amizade colorida”, que, diante dos últimos
acontecimentos, tirou a parte “colorida” e ficou só na “amizade”
mesmo.
— Sua mãe tem razão — papai falou. — Deveria firmar um
compromisso sério com ela, rapaz. Adoraria ter uma nora como ela.
Menina de renome, de boa família. Principalmente agora que
perdemos um excelente genro.
Excelente genro. Tecnicamente eles não perderam o
“excelente genro”. O “excelente genro” só estava com outro membro
da família.
— Talvez Liam tenha outras preferências, papai — Molly se
pronunciou, esboçando um pequeno sorriso sarcástico.
Santa Vodca de Céu! Essa garota mal tinha aberto a boca,
mas quando abriu foi para falar besteira!
— Que outras preferências, querida? — curioso, papai
indagou.
Que merda!
— Acho que Liam pode responder isso — Molly sorriu
friamente para mim.
Cacete, ela estava querendo fazer joguinho comigo. Pensa
rápido, Liam!
— E-Ela está querendo dizer que eu posso estar gostando de
outra garota — repliquei, tentando esconder o nervosismo.
Isso foi o suficiente para minha irmã cerrar levemente os
olhos para mim e beber um gole de suco.
— Ah, filho, outra garota? — mamãe balançou um não com a
cabeça. — Stefany é a pessoa certa. Assim como Eric era a pessoa
certa para a Molly. Aliás, até agora não me conformo com esse
término. Por que vocês terminaram mesmo, querida? — questionou.
— Até agora não entendi.
Ah meu Zeus! Por que minha mãe tinha que desenterrar essa
história que mal estava enterrada! Instantaneamente, senti meu
corpo gelar. Será que era agora que a Molly iria falar?
Molly mirou seu olhar de maneira incisiva em mim. Senti meu
corpo tremer de cima abaixo. Eu já estava esperando pelo pior.
— Coisas da vida, mãe — ela limitou-se a responder apenas
isso e desviou seus olhos de mim.
Mais uma vez, meu corpo estremeceu. Eu tinha certeza que
foi por pouco! Por pouco, Molly não me entregou. Por pouco, eles
não souberam de tudo. Merda, até quando eu iria viver com essa
insegurança?

❖❖❖

Depois que o pesadelo acabou, também conhecido como


café da manhã, dirigi até o colégio. Molly fez questão de não pegar
carona comigo, disse para nossos pais que, daqui pra frente, iria
para o colégio com uma amiga. Ela realmente estava disposta a se
tornar mais distante de mim do que já era.
Tudo. Tudo isso que estava acontecendo fazia com que eu
me sentisse cada vez mais diferente. A minha essência permanecia
a mesma, mas era como se um novo Liam estivesse tomando o
lugar do Liam que sempre existiu. E eu não estava fazendo o menor
esforço para isso acontecer, simplesmente estava acontecendo e
era inexplicável.
Por exemplo, saí do carro e quem poderia dizer que algum eu
caminharia pelos corredores do colégio dando bom dia para Deus e
o mundo? Porra, eu sempre esperei que me dessem bom dia.
Nunca me dei ao trabalho de cumprimentar quem quer que fosse.
Mas agora eu estava inexplicavelmente fazendo isso. Não porque
eu quisesse, mas porque meu corpo estava simplesmente agindo
assim.
O que estava acontecendo comigo?
— Oi, bom dia... — sorri para um. — Tudo bom? —
cumprimentei outro.
Assim, eu fiz até chegar ao corredor principal do colégio, e
continuava ser saber porque tinha decidido agir assim.
— E aí, gayzinho! — ouvi uma voz conhecida falando comigo.
Virei-me e vi Robert.
Espera. Ele me chamou de gayzinho?! Thor do Céu! Ele
sabia? Ele já sabia? Não. Não podia ser.
Automaticamente, senti meu corpo travar.
— Ei, que é isso? — Robert riu de mim. — Que cara é essa?
Ah, então foi só brincadeira? Então, ele ainda não sabia?
Thor, Buda, Odin, Zeus e Poseidon precisavam me acalmar.
— Na-nada — repliquei.
— Só me fala uma coisa... — disse. — Que Liam é esse que
sai cumprimentando a galera? Me apresenta a ele? — e riu
novamente.
Nem eu sabia que Liam era esse.
— Pois é... Só deu vontade — falei.
— Transou com alguma menina e tá feliz da vida, né? —
Robert sorriu e deu um soquinho de leve no meu ombro.
“Transou”, “menina”. Antes fosse. Não era uma menina e
muito menos tinha transado. Poderia ter transado? Poderia, mas...
Meu Deus do Céu! Que tipo de pensamento era esse?
— Cara, preciso ir para o laboratório de química, vou ter um
teste agora... — desconversei. — Aliás, você também tem, né?
— Infelizmente — Robert fez uma cara de tédio. — Bora lá.
❖❖❖

Dentro de alguns poucos minutos, eu e Robert chegamos ao


laboratório de química. A turma já estava praticamente completa.
Robert seguiu até uma garota, que era a sua dupla, e eu segui para
o balcão onde devia ficar com minha dupla, que no caso era o Eric.
Olhei em volta da sala, a fim de encontrá-lo. Parecia que ele
ainda não tinha chegado, mas... Quando meu olhar mirou bem na
porta, o vi entrando. Lindo... Não tinha como negar. E, por mais que
por fora eu tentasse disfarçar que me sentia extasiado com a
presença daquele mané, por dentro meu coração me levava de volta
pra infância, batendo mais rápido e mais lento ao mesmo tempo.
Eric se aproximou de mim com um contido, mas maravilhoso
sorriso no rosto. Em outras ocasiões eu estaria brigando comigo
mesmo por estar com pensamentos tão gays, mas o fato era que a
minha dignidade já tinha ido parar no fundo do poço e, se antes eu
ficava me martirizando por achá-lo atraente, depois do que
aconteceu no dia anterior, isso não me cabia mais.
Só tinha um probleminha: Eric pareceu que vai me comer só
com o olhar. Será que esse lesado não conseguia ser discreto?!
Daqui a pouco a classe inteira iria perceber! Que idiota lesado!
Eric estendeu a mão para um toque. Olhei rapidamente para
os dois lados. É, parecia que ninguém estava olhando pra gente.
Estendi a minha mão e nos cumprimentamos. Aquele típico toque
de mãos que rolava entre meus amigos e eu, mas que nunca foi
comum entre Eric e eu. Isso era uma novidade para nós agora.
O loiro se sentou e jogou sua mochila sobre o balcão.
— Sabia que você poderia disfarçar? — resmunguei.
— Mas eu estou disfarçando... — respondeu e, erguendo
uma sobrancelha para mim, aproximou-se mais um pouco e
sussurrou. — Do contrário, eu já tinha te beijado aqui e agora, já
tinha te colocado em cima desse balcão e...
Meu queixo caiu, ao mesmo tempo em que senti um fodido
calorzinho subindo pelos meus países baixos.
— Tá bom, tá bom... — falei rapidamente, interrompendo-o
de continuar, e baixei o olhar. — Já entendi.
Eric soltou uma pequena risada.
— Ah, que fofo, você ficou vermelhinho...
Revirei os olhos.
— Cala a boca, idiota.
O loiro riu novamente.
— Falei de propósito — disse com orgulho da própria
brincadeira. — Sabia que ficaria com vergonha.
Inevitavelmente, revirei os olhos de novo.
— Se foder... — resmunguei.
Eric, automaticamente, me deu um olhar suspeito, muito
suspeito. Na verdade, um olhar safado. Eu poderia jurar que, se não
estivéssemos rodeados de pessoas, ele falaria alguma sacanagem.
Como ele conseguia ser assim se nós mal começamos a... Sei lá...
Se nós mal começamos a ficar?
Eu já fui bem sacana. Na verdade, eu ainda era. Mas, todas
as vezes que fiz ou que falei sacanagens foi com mulheres, né? Não
estava acostumado a fazer isso com um homem. Eric era “muito pra
frente”. Espertinho demais para o meu gosto.
— Como tá na sua casa? — perguntei, buscando algum meio
de fugir do olhar de predador do Eric. Vou nem mentir que tô com
medo.
Ele, no mesmo, instante suspirou.
— Bem, na medida do possível — replicou. — Meus pais já
sabem do término. Só não sabem do real motivo. E na sua, como
tá? A Molly contou pra alguém? Pelo que notei, ninguém sabe
ainda.
— Bem, na medida do possível também — respondi. — Meus
pais não gostaram muito saber que vocês terminaram, mas estão de
boa. O problema mesmo é a Molly. Ela não contou, mas está mais
distante que o normal. Fora que eu nunca sei se ela vai acabar
contando ou não. Se você visse no dia... Foi foda... — Balancei a
cabeça ao lembrar. — Ela até passou mal.
Eric, automaticamente, franziu o cenho.
— Passou mal? — confuso, perguntou. — Como assim?
— Ah, cara, ela vomitou... Disse que estava tonta... Sei lá...
Eu quis ficar e ajudar, mas ela estava com tanta raiva que me
colocou pra fora do quarto. — expliquei.
— Sério? — Eric continuou de cenho franzido. — Não sabia
disso...
— Bom dia, turma! — De repente, a voz do professor de
química ecoou pelo laboratório.
Eric e eu nos viramos para olhar. Observei o professor entrar
e colocar seus pertences em cima da sua mesa.
— Caros, vamos começar o teste, ok? — o professor se
pronunciou novamente. — Façam com bastante atenção, porque
vale pontuação extra na prova!
Ele, então, começou a distribuir o teste no laboratório. Logo
uma folha foi entregue a nós dois. Eric não demorou a ler e a falar.
— O professor passou o Teste da Chama pra gente fazer e
no final tem umas perguntinhas. Lembra que a gente estudou sobre
esse teste antes de ontem? — perguntou.
Lembro que antes de ontem você eu estava com meu rabo
trancado. Pensei, mas não falei. Claro.
— Lembro — respondi. Não tinha tanta certeza de como fazia
o procedimento, mas me recordava de que tínhamos estudado.
— Ótimo — disse. — Você quer fazer o procedimento ou eu
posso fazer?
Eu sabia que estudamos, mas, porra, não me sentia cem por
cento seguro pra fazer isso, e ainda valia nota.
— Melhor você fazer essa parte. Não me sinto totalmente
seguro — falei com franqueza.
— Tudo bem — Eric me deu um pequeno sorriso confortante.
— Nas perguntinhas do final você me dá uma mãozinha, então.
— Se eu souber... — resmunguei.
O loiro suspirou.
— Liam, você precisa começar a se aceitar como uma
pessoa inteligente, como uma pessoa que sabe das coisas. Porque
eu sei que você sabe.
Eu? Inteligente? Sem conseguir me segurar, acabei rindo.
— Por favor, né, Eric? Vamos mentir, mas também não
vamos mentir tanto.
Ele revirou os olhos.
— Eu não tô mentindo — falou com seriedade. — Você
bloqueia a si mesmo. Eu já percebi isso e não é de hoje. Você vai
responder as perguntas do final, ok?
— Se eu souber...
— Você vai saber — respondeu com convicção e começou a
fazer o procedimento químico do teste da chama.
Eu não podia negar que era, de certa forma, excitante vê-lo
tão concentrado em algo. Sempre notei que ele fazia um biquinho.
Era hilário. E lindo. E eu estava muito gay. E minha dignidade de
hétero, certamente, já estava no fundo do poço. A que ponto eu
cheguei, meu Zeus?
Alguns minutos se passaram, enquanto eu continuava
observando-o fazer o procedimento, até que...
— Liam, me passa o cloreto de magnésio, por favor — pediu.
No mesmo instante, li nos recipientes os nomes das
substâncias. Cloreto de Estrôncio, Cloreto de Cobre e... Cloreto de
Magnésio. Aqui. Achei.
Ergui o recipiente na direção dele e, no momento em que Eric
foi segurá-lo, sua mão tocou a minha, fazendo um leve carinho.
Engoli a seco. Talvez tivesse sido por acaso.
— Liam, anota no teste que a cor da chama foi amarela e
depois me passa o Cloreto de Cobre, por favor.
Assim como ele pediu, fiz. Anotei no teste o resultado do
primeiro experimento e ergui o recipiente com Cloreto de Cobre em
direção a ele. No entanto, no momento que ele foi segurá-lo, sua
mão, novamente, tocou na minha. Dessa vez, o carinho pareceu
segundos mais demorado.
Safado. Isso não estava acontecendo por acaso. No mesmo
instante, olhei nos seus olhos. Eric me deu um pequeno sorriso de
canto de boca acompanhado de um olhar que, no fundo, é bem
sacana. Santa Vodca do Céu, onde foi parar o Eric otário?
Automaticamente, minha memória me trouxe a lembrança de
que, antes de firmar um “compromisso sério” com a Molly, Eric era
tão sacana quanto eu. Sempre se escondeu na máscara de bom
moço, mas os boatos que rolavam eram de que ele transou todas as
líderes de torcida do Colégio Liverpool.
É, talvez eu tivesse o subestimado um pouco. Olha só que
ironia: até eu, que nunca fui ludibriado com a sua cara de santo,
cometi um pequeno deslize de lhe subestimar um pouco. Ledo
engano. Eric sempre foi tão safado quanto eu.
O problema era somente um: ele agora estava sendo safado
comigo. E eu estava como? Sendo o otário da situação. Thor, quem
sou eu e o que fizeram comigo?
— Liam... — me chamou com a maior tranquilidade do
mundo. — Anota aí que a cor da chama foi azul esverdeada e, para
finalizar, me passa o Cloreto de Estrôncio.
Ainda afetado pelos últimos pensamentos, fiz o que ele
orientou e ergui o recipiente. Eric não perdeu tempo em fazer seu
discreto carinho de novo. Meu coração acelerou. O que estava
acontecendo comigo, meu Zeus? Devia ser o nervosismo de estar
me envolvendo com um cara. Eu não estava acostumado com isso.
— Liam... — me chamou novamente.
Acabei levando um pequeno susto, por estar tão imerso nos
meus pensamentos.
— O-Oi... — gaguejei.
Eric soltou uma pequena risada e franziu o cenho.
— Se assustou?
Quase isso.
— Ah, nã-não... — passei as mãos no rosto, como se tivesse
acabado de acordar. — O que você quer?
— Que você anote o resultado da última chama, que foi
avermelhada, e responda as perguntinhas do final — disse.
— Ah, não, Eric... — resmunguei. — Eu não vou saber
responder essa porra não.
No mesmo instante, ele me deu um olhar de tédio.
— A gente estudou, Liam! Pelo menos tenta fazer... — pediu.
— Além do mais, a prova não vai ser em dupla. Você vai ter que
saber responder isso.
Ah que saco!
Revirei os olhos e, mesmo a contragosto, peguei caneta e
papel.
— Vamos lá — me encorajou. — Eu vou ler e você vai me
responder antes de escrever. Eu digo se tá certo ou errado, tudo
bem?
— Tá — resmunguei.
— Ok. A primeira pergunta é a seguinte — começou. —
Como você poderia explicar o aparecimento de cores diferentes,
relacionando elétrons e níveis de energia?
Oi?
— Pe-pera — gaguejei, pegando minha folha do teste, para
que eu mesmo lesse a questão.
Como explicar o aparecimento das cores diferentes e ainda
relacionar com elétrons e níveis de energia? É... Hum... Pensa,
Liam! Pensa! Caramba, eu era muito burro! Estudava e não sabia
das coisas! Estudava e era mesmo que nada!
— Tem a ver com o movimento dos elétrons... — Eric
rapidamente soltou uma dica.
No mesmo instante em que ele fechou a boca, senti como se
uma luz tivesse surgido sobre minha cabeça para iluminar as ideias!
— Já sei! Lembrei! — exclamei, entusiasmado. — O elétron
recebe energia, no caso o calor, e salta de uma camada interna para
uma camada externa e, ao voltar para sua camada de origem, volta
de forma luminosa. É isso? — perguntei com expectativa.
O loiro fez uma cara de suspense, até que...
— Sim! — respondeu tão entusiasmado quanto eu. — É isso!
— Porra! — Não consegui conter a alegria por acertar uma
questão de química.
Comemorei quase pulando da cadeira, enquanto Eric
bagunçava meu cabelo, mas... Quando olhei de relance para as
pessoas mais próximas a nós, notei-as observando a maneira
carinhosa como Eric estava me tratando. Cacete. Essa proximidade
entre ele e eu não era comum pra galera do colégio. Aliás, pra
ninguém. Com certeza, estavam achando estranho.
Automaticamente, parei.
— Tá. Tá bom — falei, enquanto tentava retomar minha
compostura e me desviar de suas mãos. Por fim, arrumei meu
cabelo.
Eric me deu um olhar compreensivo, típico de quem
entendeu o que aconteceu.
— Ok — disse. — Está apto para responder as outras.
❖❖❖

— Boa sorte aos dois — o professor falou ao entregarmos


nosso teste no final.
Estaria mentindo se dissesse que terminamos rápido. Muito
pelo contrário, demoramos demais. Prova disso era que fomos a
última dupla a sair do laboratório. Pelo menos, senti que fizemos um
bom teste. O esforço podia ter valido a pena. Agora era só esperar o
resultado.
— Obrigado, professor — Eric respondeu.
Caminhamos em direção à porta de saída do laboratório e ao
sairmos... Tudo vazio. Corredor vazio. Parecia que éramos não
somente a última dupla a sair do laboratório, mas também os
últimos alunos a saírem do colégio.
— É... Então... — falei meio sem jeito, devido ao silêncio não
somente no ambiente, mas também entre nós. — Já vou indo...
O loiro, no entanto, deu um breve suspiro e...
— Vamo comigo ao banheiro? — perguntou.
Banheiro? Não. Isso não dava certo. As pessoas sabiam que
não era comum Eric e eu andarmos juntos. Isso daria muita
bandeira.
— Claro que não — repliquei. — Se alguém ver a gente
andan...
— Somos praticamente as únicas pessoas no colégio — me
interrompeu. — Tem ninguém no corredor. Ninguém vai ver.
— Eric... — tentei argumentar, mas...
— Vamo comigo ao banheiro? — repetiu a pergunta do jeito
mais tranquilo possível.
Respirei fundo, tentando controlar o meu lado explosivo. Lado
que o Eric tanto conhecia. Conhecia há anos!
— Por que você quer que eu vá? — Sério, eu estava
tentando ser calmo. Ele só não devia abusar muito da boa vontade.
O loiro não respondeu, apenas me deu um pequeno sorriso e
seguiu em direção ao banheiro mais próximo, que ficava
exatamente no corredor em que estávamos. Em menos de meio
minuto, entrou, deixando-me sozinho.
Zeus, dai-me paciência com o Eric!! Porque não estava fácil!
Ele sabia que não podíamos ser muito próximos em locais públicos.
O que será que essa criatura queria agora? Era uma cruz na minha
vida!
Mesmo a contragosto, caminhei até o banheiro e entrei. O
local esrava vazio. Onde aquele pestinha tinha se metido? Sério, eu
estava até me sentindo o pai de uma criança travessa.
— Eric? — chamei-o.
Sem resposta.
— Eric? — chamei novamente.
Sem resposta mais uma vez.
Eu estava, cada vez mais, sentindo minha paciência acabar!
Ah, menino Eric, se ela acabasse, você estaria fodido! E... Talvez
ela já tivesse acabado...
— Onde você está, idiota?! — exclamei e fui abrindo cada
porta de cada box do banheiro.
No entanto, quando tentei abrir a porta do quinto box, um dos
últimos do banheiro, ela rapidamente foi aberta, antes que eu
pudesse empurrá-la.
— Eu estou aqui, bonequinha — Eric respondeu e agarrou
minha camisa entre os dedos, levando-me para dento do box e
trancando-o.
Como um verdadeiro predador, ele me empurrou contra uma
das paredes do box. Se o Eric de meses atrás me empurrasse
contra alguma parede, seria para me bater ou fazer algo tipo.
Provavelmente estaríamos no meio de alguma confusão. No
entanto, talvez o Eric que estava na minha frente agora, quisesse
outra coisa.
— Tá ficando doido? — perguntei com os olhos arregalados
de surpresa.
— Alucinado por ti — respondeu e avançou nos meus lábios.
Seus beijos encheram a minha boca em uma mistura de
carinho e tesão. Inevitavelmente, refleti que isso estava
acontecendo na companhia de um homem, não de uma mulher.
Meio inacreditável para mim. No entanto, sua língua logo tocou a
minha, e isso foi o suficiente para que a minha lucidez começasse a
se tornar comprometida. Eu estava tentando manter a sanidade,
mas era fodidamente difícil nessas circunstâncias.
— Você disse que a gente ia aos poucos... — tentei
argumentar entre beijos.
No mesmo instante, Eric, entretanto, parou e sorriu.
— Mas eu tô indo aos poucos... — e desceu lentamente sua
boca até o meu pescoço. Ah, que escroto! Ele estava apelando! Isso
era muito gostoso.
Suspirei e fechei os olhos. Sua língua e seus lábios
começaram, então, a torturar meu pescoço e todos os meus
sentidos. Se esse filho da mãe deixasse alguma marca... Ele estaria
morto... Ele estaria... Ah, meu Zeus... Que imbecil da boca macia! E,
como se não bastasse tudo o que já estava fazendo, suas mãos
começaram a traçar uma trilha perigosa pelo meu corpo.
Minha mochila, por suas mãos, foi parar no chão. Depois,
passou-as por debaixo da minha camisa. Quanto mais perto suas
mãos chegavam do cós da minha calça, mais eu sentia o meu
querido companheiro querer endurecer entre as minhas pernas. E
foi justamente esse companheiro que, naquele exato momento,
casou um estalo em minha mente.
Onde foi parar o Liam sacana? Onde? Sempre me mantive
na função de conduzir a situação, de dominar, durante toda a minha
vida de pegação. Daí, naquele instante que eu estava com um cara,
isso iria mudar? Não. Claro que não. Não era porque eu estava
dando uma de boiola que eu iria ser a mulherzinha da relação. Não
era só o Eric que ia cantar de galo ali. Eu também podia tomar as
rédeas da situação. Eu também sabia dominar.
Sem perder mais tempo, empurrei Eric contra a parede do
box. Automaticamente, ele sorriu. Eu sabia que ele tinha gostado. O
feedback foi o sorriso. E que sorriso! Ainda sem perder mais tempo,
tirei sua jaqueta e deixei-a cair no chão. Assim, eu podia passar
minhas mãos sem muito pano por cima. Foi aí que as deixei
ingressar numa deliciosa viagem por seu abdômen e suas costas.
No entanto, além do abdômen e das costas, havia outro local muito
bom. Pelo menos, quando eu ficava com mulheres, era um dos
meus lugares preferidos: a bunda. Será que com homens seria um
dos meus lugares preferidos também? Só me restava descobrir.
Sem parar o beijo, desci minhas mãos por suas costas, em
uma linha direta até o seu traseiro. No entanto, quando cheguei ao
cós da calça, parei por alguns instantes, fazendo com que Eric
também interrompesse o beijo.
— Eu sei o que você vai fazer — ele disse, pousando suas
duas mãos sobre a minha bunda. — Pode fazer — e, por fim, a
apertou.
Suas mãos apertando minha bunda me fizeram,
inevitavelmente, soltar um pequeno gemido. Oh, merda, foi
impossível segurar. Isso foi bom pra cacete! Agora, no entanto, era
a minha vez. Sem pensar duas vezes, também apertei a sua. Assim
como eu, Eric fechou os olhos e gemeu. Meu Zeus, apertar era tão
bom quanto ser receber.
Finalmente, ele suspirou e abriu os olhos. Seu rosto estava
com um rubor de excitação. Seus olhos estavam perdidos.
Definitivamente, a felicidade tinha os olhos castanhos.
— Eu gostei... — sussurrou. — Muito. Você também?
— Pra caralho — respondi sem pensar duas vezes.
Devagarzinho, o loiro aproximou seus lábios dos meus e me
deu um pequeno beijo.
— Isso é só começo — garantiu. — Ainda tem bastante coisa
pra gente descobrir. Juntos.
Eu não sou uma garota

Eric

— Querido, está me dizendo que você e o Liam se acertaram? —


tia Sam perguntou em um misto de surpresa e alegria.
— Sim, tia! — com entusiasmo, respondi. — Por isso que
estou ligando. Tá sendo... — suspirei. — Incrível.
Se o paraíso existisse, certamente um pedacinho dele estava
no olhar do Liam e nos últimos dois dias em que esse olhar esteve
sobre mim. Tudo estava sendo como um despertar. E isso era o
máximo que eu conseguia explicar. Eu sabia que podia estar sendo
bobo demais por não conseguir parar de sorrir ou estúpido demais
por não conseguir parar de pensar nele, mas, quando, em toda a
minha existência, eu poderia imaginar que fosse viver o que estava
vivendo? Talvez, desde a infância, mesmo eu sendo ingênuo demais
para entender, ter o Liam pra mim era tudo o que eu queria.
Quando eu era criança, queria jogar bola com ele, queria
conversar com ele, queria brincar com ele, queria que ele me
aceitasse como amigo, queria que ele fosse menos chato comigo. E
agora eu tinha tudo isso e mais um pouco. Agora, eu podia abraçá-
lo, beijá-lo, colocar minha mão em cada parte do seu corpo. Deus,
isso era tão bom, que chegava a ser indescritível. Era surreal.
Imaginar que Liam estava se permitindo era surreal. Se tudo não
passasse de um sonho, eu não queria acordar.
— Você não sabe o quanto eu estou feliz por saber disso! —
Somente pela voz dela, eu conseguia notar o quanto realmente
estava feliz. — Como tudo isso aconteceu, meu anjo?
Uma longa história...
— Tia, é uma longa história, mas a principal parte é que Liam
pediu pra que eu ficasse com ele. Tem noção de como eu fiquei ao
ouvir isso?
— O Liam disse isso, Eric? — perguntou, incrédula.
— Sim, tia! — dei uma pequena risada. — Claro que ele
continua com o mesmo jeito arredio de sempre, mas tudo melhorou
entre nós. E estamos juntos agora.
— Que ótimo, querido! Que ótimo! Fico bastante feliz! Mas...
— notei sua voz se tornou um pouco mais séria. — E a Molly?
Como ficou a situação entre vocês?
Isso era um problema...
— Bom... Entre eu e a Molly... — No momento em que
comecei a falar, no entanto, vi Stefany entrar no meu quarto. — Tia,
eu posso ligar daqui a pouco? A Ste chegou aqui e eu preciso falar
com ela. Mas, em resumo, como já era de se esperar, a situação
entre a gente não tá legal. Depois eu ligo de novo, tá?
— Isso é realmente uma pena, querido. Estava torcendo para
que a Molly fosse um pouco compreensiva. Mas, podemos continuar
a conversa aqui em casa. Venha me visitar. Estou morrendo de
saudade!
— Tudo bem, tia... Quando eu tiver um tempinho, lhe faço
uma visita.
— Um beijo! — ela se despediu.
— Outro — desliguei.
Vi quando a loira se aproximou de mim e sentou-se ao meu
lado na cama. Seu sorriso ia de orelha a orelha.
— Era a tia Sam? — perguntou.
— Sim, era ela.
— Liam me contou que ela descobriu por acaso — soltou
uma pequena risada. — Na cozinha.
— Foi meio tenso na hora... — acabei rindo. — Mas depois
ficou tudo bem.
Stefany leva uma das suas mãos ao meu cabelo e faz
carinho.
— E entre você e o Liam? Tá tudo bem?
Inevitavelmente, um largo sorriso estampou meu rosto. Era
impossível não sorrir ao me lembrar da voz do Liam falando “fica
comigo”. O choro caindo. A coisa mais linda e... Doce... Do mundo.
Nunca imaginei que pudesse vê-lo assim. Tão dócil.
— Ste... — continuei sorrindo feito bobo. — Tá maravilhoso!
— Sem conseguir conter a alegria, abracei-a. — Inclusive, tudo
aconteceu tão de repente, que não tive como te agradecer de
maneira decente. Eu preciso te dizer muito obrigado, Ste. Obrigado
por ser uma irmã tão boa para mim e uma amiga tão legal para o
Liam. Obrigado pelo que fez por nós. Você não julgou. Você ajudou.
— Ah, seu lindo! — me soltou do abraço e segurou meu rosto
com as duas mãos, olhando no fundo dos meus olhos e sorrindo. —
Não precisa agradecer. Vocês sempre gostaram um do outro. Só
precisavam de um empurrãozinho.
— Felizmente, você e a tia Sam existem — sorri.
— Claro! — disse com um fingido tom de convencimento,
mas logo riu para a brincadeira. — Na verdade, felizmente o destino
existe. Como eu disse para o Liam, nas últimas semanas, situações
da vida fizeram vocês se aproximarem demais, mesmo que não
quisessem. Isso mexeu com todo o sentimento que vocês
enterraram um pelo outro.
Meu Deus. A Stefany era muito incrível.
— Você é a melhor pessoa, sabia? — levei uma das minhas
mãos ao seu rost, fazendo carinho. — Merece um cara bem legal.
A loira, automaticamente, ergueu uma das sobrancelhas e
me deu um sorriso de canto de boca.
— Um cara? — perguntou com um tom de voz suspeito e
levantou-se da cama.
Oi? Não tô entendendo.
O que ela estava querendo dizer com isso?
— Não seria um cara? — confuso, questionei.
Minha irmã, então, caminhou até a porta e, com um sorriso
irônico no rosto, virou-se para mim antes de abri-la.
— Talvez não...
Não? Como assim?
— Então... Uma... Garota? — meio incerto, perguntei
novamente.
Ela, por sua vez, soltou uma pequena risada travessa e abriu
a porta do meu quarto.
— Talvez sim...
O quê?
Inevitavelmente, arregalei os olhos e sorri com surpresa.
— Como assim, Ste? — Uma pequena risada saiu da minha
boca. — Você é uma caixinha de surpresas mesmo!
Ela apenas soltou mais uma risada travessa e saiu do quarto,
fechando a porta atrás de si.

❖❖❖

— E esse sorriso bobo no rosto? — Adam surgiu bem na


minha frente, no exato momento em que estava olhando
disfarçadamente para o Liam, do outro lado do campo de futebol.
Depois da conversa com minha irmã, bem surpreendente,
diga-se de passagem, fui para o colégio. Cheguei e fui direto para o
campo. Naquele dia, eu tinha somente o treino, porque precisamos
focar no campeonato. No entanto, antes do técnico chegar, eu
estava focando meu olhar em algo bem atrativo do outro lado do
campo, não fosse o Adam aparecer exatamente na frente.
— Bobo? — ri um pouquinho, tentando disfarçar. — Do que
tá falando? — me fiz de desentendido.
Adam sorriu, dando um leve toque no meu ombro.
— Relaxa, tô só tirando onda... — falou. — É que, sei lá, fico
feliz de ver que você está bem, mesmo tendo terminado o namoro.
Como assim “mesmo tendo terminado o namoro”? Não me
lembrava de ter falado isso para ninguém. Somente a minha família
e a família da Molly sabiam.
— Como você soube? — questionei com o cenho franzido.
— Ah, cara, sei lá, o colégio inteiro tá sabendo.
No mesmo instante, senti meu corpo inteiro gelar.
— O colégio inteiro tá sabendo? — tentando disfarçar o
choque, embora soubesse que era em vão, perguntei.
— Sabe que as notícias aqui correm rápido, né? — justificou.
Puta merda. Eu não podia acreditar. Será que além do
término, as pessoas já sabiam do outro detalhe? O detalhe do tipo
que eu estava com o Liam. Se soubesem, ele iria me assassinar.
— Mas... Do que você sabe exatamente? — com cautela,
ainda indaguei.
Adam soltou uma pequena risada.
— O que foi? Só estou sabendo disso. Aconteceu mais
alguma coisa?
No mesmo instante em que Alex se calou, o som do apito do
técnico ecoou pelo campo de futebol. Mirei meu olhar exatamente
na direção de onde o som vinha. Vi o Sr. Jones se aproximar.
— Nada — desconversei. — Bora lá — toquei em seu no
ombro e comecei a caminhar. — O treino vai começar.
Aparentemente, as pessoas ainda não sabiam sobre Liam e
eu. Não que eu fizesse extrema questão de esconder isso de todo
mundo, mas eu sabia que o Liam fazia extrema questão. Então, era
melhor que continuasse assim: sem saber. Do contrário, cabeças
iriam rolar. No caso, a minha.
Caminhei em direção ao centro do campo de futebol, local
onde o time e técnico estavam reunidos. Olhei para o Liam e o vi
com Robert e William. Queria tanto poder ser próximo a ele em
qualquer lugar, assim como Robert e William eram.
Liam me encarou de volta. Trocamos olhares. A saudade que
eu sentia dele era algo que nunca passava. Parecia que todos os
meus sentidos queriam compensar todos os anos que não ficamos
juntos. Inevitavelmente, pisquei o olho para ele. Liam rapidamente
virou o rosto e balançou a cabeça.
Desculpa, bonequinha, foi inevitável. Mas, eu sabia que
ninguém estava vendo.
— Bom dia a todos! — Sr. Jones se pronunciou. — Podem
sentar na grama. Vou dar algumas orientações antes do treino
começar.
Assim como recomendado, todos nós nos sentamos na
grama.
— Vencemos o último jogo. — disse, caminhando entre nós.
— Apesar de termos perdido um, estamos com vantagem no placar,
por conta da quantidade de gols. Precisamos nos concentrar para
os próximos jogos. É sobre isso que quero falar. Não sei se
lembram, mas, no último treino, falei que estou estudando novas
táticas para o time. De início, não fui a favor de termos dois co-
capitães no time, Eric e Liam. Mas, depois do último jogo, vi que a
interação em campo entre eles foi excelente, mesmo que Liam
ainda estivesse em fase recuperação.
Automaticamente, Liam e eu nos entreolhamos. Seu rosto
estava impassível. Eu não consegui identificar o que pudesse estar
pensando.
— Hoje... — Sr. Jones continuou. — Liam está
completamente recuperado da perna e volta ao seu posto de capitão
do time. — No mesmo instante, Robert e William o chacoalharam
em comemoração. Liam sorriu com eles. — Não podemos ter dois
capitães no time por tempo indeterminado, isso vai contra os
regulamentos do futebol. No entanto, o tempo em que Eric e Liam
passaram sendo co-capitães e o trabalho em conjunto entre os dois
no último jogo, me fizeram vislumbrar uma nova tática para o time.
No entanto, quero usar essa tática em um momento chave do
campeonato: o jogo da final. Não vou entrar em muitos detalhes por
enquanto, mas, Eric e Liam... — nos encarou. — Fiquem sabendo
que quero ensaiar uma jogada com vocês dois. Por isso... — olhou
para o time como um todo. — Quero que todos vocês se
empenhem, porque eu quero o time na final e quero usar essa
jogada.
Mas, que jogada era essa? Fiquei curioso.
Liam e eu nos entreolhamos mais uma vez. Percebi que ele
estava tão confuso quanto eu. Talvez o Sr. Jones nunca tivesse
proposto nada assim a ele.
— Eric... — o técnico me chamou, fazendo-me desviar meu
olhar do Liam para ele. — Por favor. Repasse a braçadeira de
capitão do time para o Liam. Obrigado pelo tempo como capitão.
Assim como ele pediu, levantei-me e segui em direção ao
Liam, que também se levantou. Ficamos de frente um para o outro.
Se eu estivesse parado de frente para o Liam de meses atrás, ele
estaria me olhando com ar de superioridade, justamente porque
estava saindo do posto de capitão e ele estava voltando. Mas, o
Liam de agora não me olhava assim. Eu não conseguia descrever o
seu semblante. Talvez estivesse me observando com expectativa,
mas não com superioridade.
Destaquei o velcro da braçadeira, tirei-a e coloquei-a no
braço do Liam. Sem pensar, acabei sorrindo e tocando em seu rosto
com uma das mãos.
— Bem-vindo de volta — falei.
O moreno se afastou meio sem jeito, provavelmente com
medo do que iriam pensar sobre a nossa interação.
— Valeu — respondeu rapidamente.
— Agora sim — Sr. Jones se pronunciou. — Podemos
começar o treino.

❖❖❖

— Ah, hora do banho! — ouvi Adam comentar. — Finalmente!


— Os números pares vão primeiros. Os números ímpares
vão depois — o técnico indicou.
Todos estavam ansiosos pelo banho, mas eu ansiava por
somente uma coisa: ter um momento com o Liam. Passei o treino
inteiro querendo isso. Será que somente eu me sentia assim? Será
que ele não sentia tanta falta de mim quanto eu sentia dele?
Porque, cara, eu morria de saudade dele.
Esse tempo todo sem ficarmos juntos foi extremamente
prejudicial, porque agora eu o queria por perto o tempo todo. E,
pensando nisso, eu sabia que meus pais iriam trabalhar até tarde,
que a Stefany ia passar o dia no colégio e, nem eu, nem ele,
teríamos aula depois do banho. A gente poderia ir lá pra casa.
Sim! Era uma excelente ideia! Só nós dois lá. Um momento
só nosso. A casa inteirinha pra gente. Caramba. Eu precisava falar
com ele. Ele era camisa 10. Número par. Então, entraria no banho
antes de mim. Precisava falar com ele antes que fosse para o
vestiário e estava nem aí se ele ia achar ruim que eu o puxasse
para conversar na frente do time.
Olhei para ele e o vi caminhar em direção à saída do campo.
Droga. Ele já estava indo. Foi aí que me apressei para alcançá-lo,
mesmo que ele estivesse conversando com Robert e William. Puxei-
o levemente pelo braço. No mesmo instante, Liam virou-se e franziu
o cenho para mim. Robert e William pararam de caminhar. Noto
ambos me dando olhares confusos.
Qual é? Era tão estranho assim se eu quisesse falar com o
Liam? Vão se foder!
— O que você quer? — Seu tom de voz frio comigo era de
cortar o coração.
Eu sabia que ele estava fazendo isso só por causa dos
amigos.
— Posso trocar uma ideia contigo? — perguntei. — É sobre o
treino — menti.
Liam me encarou e deu um breve suspiro de exasperação.
— Vão na minha frente — olhou para Robert e William. —
Chego daqui a pouco.
— Beleza... — Ambos me encararam com certa
desconfiança. — Falou! — e se despediram do Liam.
Vi não somente os dois se distanciando de nós, mas também
o time inteiro e o técnico. Somente ele e eu estávamos no campo.
Ao notar que estávamos totalmente a sós, Liam virou seu
rosto para mim e...
— Porra, você tá vacilando! — Foi a primeira coisa que ele
disse. — Primeiro pisca o olho, depois toca no meu rosto e agora
vem atrás de mim pra conversar. Tá dando muita bandeira, cara! Tá
dando muita bandeira!
Que merda.
Suspirei e...
— Foi mal... Eu sei... É que... É difícil agir de uma maneira,
quando se quer agir de outra. Queria poder ficar de boa contigo em
qualquer lugar.
— Sabe que não dá — disse. — Ninguém tá acostumado
com isso.
— Que se acostumem, então! — exclamei sem pensar. —
Não estamos devendo nada a ninguém!
Liam, no entanto, revirou os olhos.
— Porra, você sabe que não é assim que funciona.
Suspirei novamente. Não queria discutir.
— Tudo bem... Tudo bem...
— Mas fala aí... Que ideia quer trocar? — perguntou.
— Quero te pegar — repliquei no automático.
O moreno, no mesmo instante, ficou vermelho e baixou o
olhar.
— Vai me deixar com vergonha assim na casa do caralho —
resmungou.
Inevitavelmente, soltei uma risada com a vermelhidão no seu
rosto e com o comentário que fez.
— Na verdade, eu quero te deixar com vergonha assim lá em
casa — com um largo sorriso, falei. — Meus pais vão trabalhar até
tarde, Stefany vai passar o dia no colégio e nós não temos aula
agora. O que você acha de assistir um filme lá em casa?
— Filme? — ergueu uma das sobrancelhas e me olhou
desconfiado. — Conheço esse papo.
— Ora... Filme... Normal... — fiz a maior cara de santo.
— Tua cara de santo nunca me enganou — resmungou. —
Sempre foi um capeta.
Inevitavelmente, ri de novo.
— Que seja... — dei de ombros. — Vamos?
Ele, no entanto, balançou a cabeça.
— Sabe que isso não dá certo...
— E porque não? — perguntei.
— Vão ver nós dois saindo juntos daqui, seu lesado. — deu-
me um olhar de tédio, como se isso fosse a coisa mais óbvia do
mundo.
— Claro que não.
— Claro que sim.
— Bonequinha, é simples... — tentei falar, mas...
— Quer levar um soco na cara? — com uma das
sobrancelhas arqueadas, perguntou.
Por que esse jeito estressadinho do Liam era tão engraçado?
Tão bom tirá-lo do sério.
— Desculpa, bonequi..., digo, Liam — sorri como uma criança
travessa, mas Liam revirou os olhos para a brincadeira. — Então,
como eu ia dizendo, Liam... — deu ênfase sarcasticamente no nome
“Liam”. — É simples. Você toma banho, sai e me espera dentro do
carro no estacionamento. Rapidinho eu tomo meu banho e vou pro
meu carro. Eu saio na frente, com o meu carro. E você sai minutos
depois, no seu. Ninguém vai parar pra reparar nisso.
— Eric... — Ainda tentou argumentar, mas...
— Confia em mim — repliquei, antes mesmo de ouvi-lo. —
Vai dar certo.
O moreno, por sua vez, me encarou e logo suspirou em
derrota.
— Tá. Tudo bem.

❖❖❖

— Vem... — Sorri e acenei com a cabeça. — Pode entrar.


Liam observou, de maneira apreensiva, os dois lados da rua,
como se estivesse com medo de ser visto. Eu entendia e era
compreensivo. Sabia que seria complicado abrir nosso
relacionamento para todo mundo, mas, ao mesmo tempo, achava
isso foda. Foda porque casais héteros não precisavam andar por aí
se escondendo.
Eu, pelo menos, nunca precisei me esconder quando saía
com alguma garota. Sempre fui reservado, porque ficava com várias
garotas de um mesmo local e não queria que elas soubessem entre
si. Inclusive, agora me envergonhava disso. Eu era tão podre. Mas,
enfim, eu só era reservado por conta disso, não pelo fato de ter
receio do que a sociedade iria falar.
Com o Liam era diferente. A gente se escondia com “medo”
do que os outros poderiam pensar e achar. Eu também sabia que,
por mais que tivesse concordado em ficar comigo, ele tinha
vergonha disso. Liam ainda estava aceitando toda essa ideia de
estar com um cara. E logo o cara que sempre foi alvo do seu “ódio”.
Logo o cara que ele nunca foi amigo. Eu entendia. Pra ele devia ser
difícil assimilar toda essa situação.
Apesar da aceitação de acompanhar seus passos lentos, no
fundo, bem no fundo, eu estava começando a me sentir inclinado a
“assumir” isso pra todo mundo. Sim, estava crescendo uma vontade
dentro de mim, mesmo que aos poucos. Não sabia nem se
“assumir” era a palavra correta. Afinal, não estávamos cometendo
nenhum crime. Mas, enfim, estava começando a pensar no quão era
idiota ficar escondendo isso.
— Vem... — segurei sua mão e a puxei levemente.
Liam, cautelosamente, entrou na sala da minha casa, como
se estivesse adentrando pela primeira vez no local. E era
praticamente uma primeira vez. Pela primeira vez, desde que nos
acertamos, estávamos completamente sozinhos em um lugar.
Mesmo que fosse um lugar conhecido, nossa atual condição fazia
com ele se tornasse novo.
— Melhor trancar a porta — Liam falou. — Não quero que
ninguém entre de surpresa e nos veja aqui.
O moreno estava claramente com medo de ser pegue.
Inclusive, para sairmos do colégio e virmos juntos até lá, foi
praticamente uma novela. Tivemos que bolar quase um plano de
guerra para não sermos vistos juntos, porque, além de eu estar me
relacionando com um cara, eu ainda estava me relacionando com
um cara que nunca teve amizade comigo. O colégio não estava
acostumado com isso. Era foda!
— Tudo bem — Assim como ele pediu, tranquei a porta e
virei-me de volta pra ele. — Enfim, sós — dei-lhe o meu mais
verdadeiro sorriso e caminhei rapidamente até ele, pegando-o nos
meus braços e beijando-o.
— Tem certeza que teus pais não vão aparecer? —
perguntou apreensivo, entre beijos.
— Absoluta — respondi, dando apenas uma pequena folga
entre um beijo e outro. — Além do mais, a porta está trancada.
— Então, vamos assistir logo esse filme, mané. — disse,
tentando se desvencilhar dos meus lábios. — Porque você me
chamou pra assistir filme, né? — e deu um pequeno soquinho no
meu ombro.
— Ah sim, claro... — sorri e ergui uma das sobrancelhas do
jeito mais sugestivo possível. — Filme...
— Então, vamos — me empurrou e caminhou até o sofá.

❖❖❖

Demorei somente o tempo para preparar a pipoca e pegar as


cervejas. Liam estava sentado sobre o tapete da sala, com a
televisão já ligada. Notei-o entretido, bebendo uma latinha de
cerveja e passando os filmes na tela, aparentemente escolhendo
algum para vermos.
— Tá querendo me embebedar? — perguntou ao me ver
carregando mais cervejas.
Soltei uma pequena risada e coloquei as cervejas no chão.
— É o meu sonho — em tom de brincadeira, falei.
— Engraçadinho — revirou os olhos, mas logo mudou de
assunto. — O que a gente vai assistir?
— Estava pensando em Batman versus Superman... — e me
sentei ao seu lado.
O moreno revirou os olhos mais uma vez.
— Já vi que vou ser eu a escolher o filme — disse, enquanto
continuava passando os filmes na Smart TV. — Vamos assistir
Deadpool.
— E porque não pode ser Batman versus Superman? —
questionei.
— Definitivamente eu tenho um gosto melhor para filmes do
que você — replicou em uma mistura de desdém e orgulho.
— Isso tá parecendo quando a gente era criança e eu queria
assistir o desenho do Pateta e você o do Patolino — ri.
— Sempre teve péssimo gosto pra tudo — respondeu sem
tirar os olhos da TV.
— Ah é? — virei meu rosto para ele e ergui as duas
sobrancelhas. — Então, te querer também significa que eu tenho um
péssimo gosto, né? — sorri sarcasticamente.
No mesmo instante, o moreno voltou-se para mim e...
— Pelo menos pra isso teve bom gosto — notei-o tentando
segurar o sorriso.
Então era assim? Por que sempre tentava segurar o sorriso?
Por que sempre tentava manter essa pose de durão?
Vamos ver se consegue agora, bonitão.
— Convencido! — avancei nele, fazendo cócegas por todo o
seu corpo.
Liam imediatamente se desmontou da pose de marrento e
começou a rir como uma criança. O sorriso e a risada dele eram tão
lindos e contagiantes. Por que ele não sorria sempre? Ele ficava tão
mais bonito sorrindo. Poucas vezes na vida o vi assim:
verdadeiramente feliz.
— Para, idiota! — continuou rindo, ao mesmo tempo em que
tentava se desvencilhar das cócegas.
— Eu estou adorando isso — sorrindo, continuei.
— Para, imbecil! — Sem parar de rir, Liam me empurrou. No
entanto, fui mais rápido e consegui prender suas duas mãos atrás
de si.
Assim que ele percebeu que estava preso, seu riso parou.
Imediatamente, mexeu suas mãos, tentando se soltar. Segurei-as.
Seu olhar penetrou cautelosamente no meu. Senti-o intimidado por
mim. Uma sensação, de fato, nova para mim. Deus, quantas novas
faces do Liam eu ainda ia conhecer?
— Para de me olhar assim, porra — resmungou e baixando o
olhar, como se estivesse envergonhado.
Ah, meu Deus. Mais uma face linda do Liam: envergonhado.
Eu precisava de muito, mas muito, autocontrole perto desse cara. E
controle era algo que definitivamente estava indo embora. Assim,
sem perder mais tempo, ainda segurando suas mãos, me
movimentei sobre o tapete da sala e sentei-me no seu colo, de
frente para ele, com uma perna de cada lado. Liam prendeu a
respiração.
— Porque você não sorri mais vezes? — perguntei ao
mesmo tempo em que aproximei meus lábios dos dele. — Você fica
tão lindo sorrindo — e encostei lentamente minha boca na sua.
O moreno fechou os olhos e eu fechei os meus. Beijei-o bem
devagarzinho, ao mesmo tempo em que soltei lentamente suas
mãos. Senti cada parte da boca, ao passo que, gradualmente, o
beijo foi tomando outras proporções. Senti... Ah, meu Deus. Senti
suas mãos subindo pelas minhas pernas. Esse era o Liam?
A vergonha e intimidação de poucos minutos atrás pareciam
estar se esvaindo, enquanto ele se entregava cada vez mais ao
momento. A intensidade do beijo aumentou. Nossas respirações se
tornaram ofegantes. E tudo o que eu conseguia pensar era:
caramba, como passei tanto tempo sem fazer isso?
Levei minhas mãos ao seu abdômen, passando-as por
debaixo da blusa, enquanto ele apertava minha bunda. A pressão
das suas mãos no meu traseiro fez com que nossos corpos se
aproximassem ainda mais. Nosso beijo tinha cada vez mais
urgência. No entanto...
— Filme... — Liam, ofegante, separou seus lábios dos meus.
— Acho melhor...
Sorri com malícia.
— Isso tá mais interessante — voltei a beijá-lo.
— Filme — separou novamente nossos lábios. Dessa vez,
ele falou de maneira mais incisiva.
Saco. Porque ele não só aproveita o momento?
Suspirei em derrota e saí de cima dele, sentando-me ao seu
lado no tapete.
— Você me convidou pra assistir filme, né? — pegou o
controle da Smart TV e selecionou Deadpool.
Ah não. Que merda. Eu estava completamente maluco por
ele! Não queria saber de filme!
Sem pensar duas vezes, puxei-o em minha direção, com toda
força, pela gola da camisa, pegando-o de surpresa. Com a força do
ato, Liam, consequentemente, parou em cima de mim. Assim como
eu estava antes, agora era ele quem esentava no meu colo, com
uma perna de cada lado.
— Que po... — tentou falar. No entanto, interrompi-o com um
beijo.
— Fica comigo? — pedi, beijando-o com urgência. — Sei que
você quer. Só aproveita o momento.
Liam, então, me encarou. Seu olhar passeou entre meus
olhos e minha boca. Seu rosto estava impassível. Não conseguia
imaginar o que pudesse estar se passando por sua cabeça. Mas, de
repente, como em um piscar de olhos, sua boca se encontrou com a
minha, em um beijo extremamente provocante.
— Só tô achando essa minha posição muito gay —
resmungou entre beijos.
Automaticamente, sorri. Se ele soubesse que eu o imaginava
em uma infinidade de posições bem gays, provavelmente já teria
fugido dali
— Relaxa — limitei-me a dizer apenas isso e continuei.
Meu instinto levou minhas mãos até a sua bunda. Apertei-a
sem o menor pudor, assim como ele fez com a minha. Por poucos
segundos, Liam encostou sua testa na minha, soltou meus lábios e
ofegou, mas logo tornou a me beijar. O beijo tinha uma necessidade
palpável. Era como se cada beijo fosse uma tentativa de
compensação por passarmos tantos anos sem fazer isso.
— Posso avançar pra primeira base? — acabei perguntando
sem pensar. Apenas me deixei levar pelo momento.
— Que primei... — Liam ainda tentou perguntar, mas...
Antes mesmo dele concluir a pergunta “que primeira base?”,
o deitei sobre o tapete, deixando-o debaixo de mim. Ah, meu Deus,
pela primeira vez eu estava deitado com o Liam! Mesmo que no
chão, apenas com o tapete dando certo conforto, isso era
indescritivelmente bom.
— Essa — repliquei, mesmo sem a pergunta ter sido
concluída.
— Você disse que ia aos poucos, seu imbecil... — disse
ofegante, ao sentir minhas mãos passeando por seu corpo.
— Mas eu estou indo aos poucos... — falei como uma criança
travessa. — Olha só... — e o beijei bem devagarzinho.
— Ai, como eu te odeio — resmungou entre beijos.
Dei uma pequena risada.
— Você me ama — respondi todo convencido.
— Para de ser brega — resmungou mais uma vez e
continuou me beijando.
Sorri novamente, entre beijos. Era impossível não gostar
ainda mais dele com esse jeitinho marrento. Isso só me dava mais
vontade de ficar com ele, porque eu sabia que tudo não passava de
charminho.
— Posso avançar pra segunda base? — perguntei, enquanto
afundava meu rosto no seu pescoço.
— Se eu disser que não, você vai avançar do mesmo jeito —
murmurou. — Idiota.
— Eu não vou fazer nada que você não queira — sussurrei
no seu ouvido.
— Retardado. Eu falava a mesma coisa para as garotas.
Conheço esse papo — suspirou e deu um pequeno soquinho no
meu braço. — Eu não sou uma garota.
Sorri e soltei pequenos beijinhos pelo seu pescoço.
— Eu sei que não. Você é meu homem — sussurrei de
maneira provocativa no seu ouvido. Isso poderia me causar
estranheza alguns meses atrás. Mas, agora eu sabia que não tinha
como fugir dessa realidade. Se me sentia feliz com um homem, tudo
bem. — Meu.
Liam se remexeu debaixo de mim, como quem gostou do que
ouviu. Eu sabia que ele devia ter gostado de ser considerado como
um macho. Conhecia-o muito bem para saber disso. Mas, falei não
somente para agradar. Eu também sabia que não era pelo fato de
estar com um homem que ele iria se tornar automaticamente uma
mulher. Ele continuava sendo com um cara.
Sem perder mais tempo, avancei para a segunda base. Sem
movimentos bruscos, consegui me encaixar entre suas pernas. Ah,
meu Deus. Isso era fodidamente inacreditável para mim. Como Liam
estava me deixando ficar entre as suas pernas? Esse era o Liam
mesmo?
— Eric, que porra de posição é essa?
Mas, nem tudo são flores.
Eu não podia me iludir facilmente. Era preciso tentar domar a
fera.
— Relaxa — beijei seu pescoço.
— Eric... — tentou argumentar.
Beijei sua boca, impedindo-o de falar e, sem refletir sobre
minhas ações, instintivamente comecei a mexer levemente meu
quadril entre suas pernas. Mesmo que nós dois estivéssemos de
calças jeans, eu estava começando a sentir. Cristo. O pênis dele. O
meu pênis. Assim como o meu, senti o volume dele crescer dentro
da roupa.
Quando pensei que não tivesse como ficar melhor, percebi
ambos os volumes se encontrarem. Meu Pai. Nunca me senti tão
excitado. Inevitavelmente, mesmo vestido, comecei a friccionar meu
pênis duro contra o dele. Liam ofegou e me segurou pelo quadril,
pressionando-me contra ele. Isso me estimulava ainda mais. Não
sabia se ia conseguir parar, se ele continuasse assim.
— Posso avançar pra terceira base? — perguntei com minha
voz falhando, tomado pela excitação.
Liam suspirou e...
— Caralho, tá me fazendo cair em tentação...
Apenas seguindo meus instintos e tomado completamente
pelo calor do momento, beijei de maneira provocativa seu pescoço,
ao mesmo tempo em que desci minhas mãos até sua calça jeans e
abri o botão. Respirações pesadas. Suspiros. Rostos enrubescidos.
E minhas mãos descendo o zíper da sua roupa, até que, de
repente...
A campainha da minha casa tocou.
Merda!
— Deixa pra lá — sussurrei, voltando a beijá-lo, mas...
A campainha tocou novamente.
Cacete!
— Melhor ver quem é — Liam disse.
— Não... — repliquei. — Não quero sair daqui.
Voltei minhas mãos para sua calça jeans e, aos poucos, fui
tentando abaixá-la, mas...
A porcaria campainha tocou mais uma vez.
No mesmo instante, Liam revirou os olhos e saiu debaixo de
mim.
— Chega, Eric. Vê logo quem é. Eu saio pelos fundos. Não
quero que saibam que eu estou aqui.
Logo agora esse inferno de campainha tinha que tocar?!
Balancei a cabeça, bufando em exasperação.
— Espera — levantei-me do chão e, mesmo a contragosto,
caminhei em direção à porta.
Sem abri-la, busquei apenas pelo olho-mágico quem era e...
Molly?! O que a Molly queria ali?!
O sujo falando do mal lavado

Eric

Ah, meu Deus do céu! A Molly tinha que aparecer logo agora?
Liam estava na minha casa, com a calça jeans toda
desabotoada. E eu estava bem ali, na porta, com o meu pênis
completamente duro. Se ela tivesse demorado mais cinco minutos,
eu poderia estar com o pênis duro em outro local. Droga.
— Quem é? — Liam perguntou um pouco aflito. — São seus
pais?
Merda. Eu não sabia o que era pior: meus pais ou a Molly.
— É-É... — gaguejei, porque tinha certeza que ele ia
enlouquecer quando soubesse que era a sua irmã. — Hum... —
olhei para baixo. Notei meu pênis já semiduro. Volta logo ao normal,
porra!
— Fala logo! — impaciente, gritou em um sussurro.
Que bosta de situação! A gente estava tão... Tão... Perto de...
Ah, que bosta!
— A Molly... — com receio, respondi.
— A Molly?! — automaticamente, arregalou os olhos. —
Caralho!
No mesmo instante, a campainha tocou novamente. Droga. A
Molly devia estar muito apressada, porque já tinha tocado umas
vinte vezes aquela campainha! Rapidamente, corri de volta para o
tapete e comecei a recolher todas as cervejas e as pipocas. Liam
também me ajudou a recolher tudo, ao mesmo tempo em ajeitava
sua roupa e abotoa sua calça.
— Leva pra cozinha, Liam, por favor — pedi de maneira
apressada, enquanto o entregava a última latinha de cerveja a ele.
— Fica lá. Não sai de lá.
— Eu vou embora — replicou. — Vou sair daqui.
O quê? Eu não queria que ele fosse embora.
— Não. Fica — de maneira incisiva, quase supliquei. — Vou
falar rápido com a Molly. E ela não vai nem saber que você está
aqui.
A campainha, então, tocou mais uma vez. Cacete! Não sabe
esperar?!
— Eu vou embora, imbecil! — gritou em sussurro. — Vou sair
pela porta dos fundos. Não quero que ela saiba que eu estou aqui.
Revirei os olhos, suspirando em exasperação, e comecei a
caminhar de costas, em direção à porta, mas sem tirar os olhos
dele.
— Vai pra cozinha... — apontei. — Mas não sai de lá!
O moreno balançou a cabeça com tanta raiva quanto eu e
seguiu em direção à cozinha.
Quando o vi desaparecer da sala, virei-me de frente para a
porta e suspirei, tentando me recompor. Os últimos minutos foram
intensos. Primeiro, todas as sensações que tive com Liam naquele
tapete bem ali. Depois, o susto por ver a Molly aparecer.
Ok, pensamento positivo, Eric. O quê de ruim poderia
acontecer?
A pior parte de tudo já tinha acontecido. Eu já tinha
confessado a ela que gostava do Liam. Sem dúvidas, esse foi o
momento mais delicado. Nada pior poderia acontecer. A menos que
ela chegasse ali com uma arma, querendo me assassinar.
Suspirei mais uma vez e girei a maçaneta. Finalmente, abri a
porta. Molly, que estava com o rosto abaixado, o levantou para me
encarar. Olhar sério e penetrante. Nunca a vi tão séria. Nem mesmo
no dia em que confessei tudo.
Cristo, o que ela queria?
Segundos de silêncio se passaram entre nós até que, em um
piscar de olhos, Molly me empurrou levemente, liberando
passagem, e entrou em minha casa, sem ao menos abrir a boca.
— Onde está o Liam? — perguntou, enquanto olhava de lado
para o outro. Seu tom de voz era firme, mas ameno. — Eu sei que
ele está aqui.
Ah meu Deus. Ela sabia?
— Do que está falando? — disse, fazendo-me de
desentendido.
— Eu sei que o Liam está aqui — Seu tom de voz não se
alterava. Nunca a vi agindo de maneira tão decidida.
Puta merda.
— Molly... — fiz menção de fechar a porta de casa, para
continuar a conversa sem que os vizinhos ouvissem uma possível
discussão. No entanto, senti uma mão segurar a passagem. Virei
meu rosto e vi Stefany entrando. — Stefany? — O questionamento
automaticamente saiu da minha boca.
Ela não ia passar o dia no colégio?
— Oi, Eric — respondeu com um sorriso que não chegava
aos seus olhos.
O que aconteceu? Porque Stefany estava tão séria quanto a
Molly?
— Preciso de alguma bebida, Ste — Molly disse, enquanto se
aproximava da minha irmã. — Se o Liam estava aqui com o Eric,
com certeza tinha bebida. Porque, seja qual for o lugar, se Eric e
Liam estão, esse lugar tem bebida.
Ste? Bebida? Desde quando Molly chamava a Stefany de
Ste? Desde quando a Molly bebia? Isso estava muito estranho!
— Liam não estava aqui, nem temos bebida — menti, ainda
me sentindo confuso por tudo o que estava presenciando.
Molly revirou os olhos para mim.
— Qual é, Eric? Para de mentir. Eu vi vocês dois entrando
aqui.
Engoli a seco. Ela viu? Como assim ela viu? Eu não podia
acreditar nisso. Nós tínhamos sido tão discretos!
— Deve ter bebida na geladeira, Molly — Stefany respondeu.
— Pode pegar.
Quê? Geladeira? A geladeira ficava na cozinha, Liam estava
na cozinha e Molly começou a caminhar em direção a ela. Cacete.
— Es-Espera, Molly — me apressando para alcança-la, a
impedi de seguir em frente. — Não tem bebida na geladeira. Sério
— segurei-a pelo braço. — Aliás, você nem bebe.
A morena me encarou, analisando meu rosto, e...
— Sempre fomos amigos... — falou baixinho, mais para si
mesma do que para mim. — Só que você conhece muito pouco de
mim.
Inevitavelmente, arqueei um pouco as sobrancelhas. O que
ela quis dizer com isso? Porque a Molly estava tão diferente? Essa
não era a Molly que eu conhecia. Onde estava a Molly com que eu
convivi desde criança?
Abalado pelo que ela disse, soltei seu braço, liberando-a para
fazer o que bem entendesse. Molly, então, virou-se na direção da
cozinha. No entanto, antes de dar o primeiro passo, Liam apareceu.
Caralho. Agora ferrou de vez.
A morena parou no meio do caminho, observando-o de cima
abaixo, como se acabasse de comprovar algo que tinha certeza. E,
então, continuou seu percurso até a cozinha.
— Sabia que você estava aqui — ouvi-a falar, quando passou
por Liam.
Encarei Stefany, ainda mais confuso com tudo, mas seu
semblante estava impassível. Onde estava a Stefany que eu
conhecia? Onde estava a minha irmã? Por que estava agindo de
maneira tão estranha quanto a Molly?
E pensando nela, em menos de um minuto, a morena voltou
com uma latinha de cerveja na mão. Onde estava a antiga Molly e o
que fizeram com ela?
— O que está fazendo? — receoso, perguntei.
— Algo que eu deveria ter feito há muito tempo — replicou e
destacou o lacre da lata de cerveja. — Não sei outra maneira de
falar isso, se não for da maneira mais direta — e simplesmente virou
na boca todo o conteúdo de uma só vez. — Eric... — disse, após
terminar de beber. — Eu... — se aproximou cautelosamente. — Eu...
Eu estava te traindo.
Automaticamente, senti o chão sumir sob os meus pés. O
mundo girou em questão de segundos, na minha frente. Era como
se nada mais fizesse sentido e tudo o que eu tinha vivido, até ali,
fosse uma mentira. Inevitavelmente, arregalei os olhos com a
surpresa. Encarei Liam e o notei tão assustado quanto eu.
Me traindo? Sério? A Molly estava me traindo? Ela fez todo
aquele escândalo e estava me traindo? Ela aparentava ser toda
apaixonada e estava me traindo? Eu pensei que estivesse
enganando-a ao ficar com o Liam e namora-la ao mesmo tempo,
mas, na verdade, eu também estava sendo enganado?
Mas... Espera... Eu nunca desconfiei dela. Ela nunca me deu
motivos para desconfiança. Sempre foi certa demais e recatada
demais. Na verdade, sempre a achei apaixonada até demais. Ela
tinha sido mais discreta que Liam e eu... Quem era o cara?
— Com ela — completou a frase e virou seu rosto em direção
à Stefany.
No mesmo instante, ouvi Liam se engasgar com a própria
saliva.
Calma.
Eu ouvi direito?
A Molly estava me traindo com a Stefany?!
Inevitavelmente, prendi a respiração com o susto e me sentei
na poltrona mais próxima. Levei as mãos ao rosto, tentando
organizar as ideias. Olhei para a Stefany, buscando uma explicação
plausível para isso tudo. Ela me deu apenas um sorriso sem graça.
Sorriso típico de criança que fez travessura e os pais acabaram
descobrindo.
De repente, a lembrança da conversa, que tivemos no quarto
ontem, surgiu em minha mente. Eu disse que ela merecia um cara
bem legal. Stefany disse que talvez não. Eu perguntei se seria uma
garota, então. E, ela respondeu que talvez sim. Logo percebi que
minha irmã também curtia meninas. Foi surpreendente para mim.
Mas, saber que Molly era a menina, deixava tudo mais
surpreendente ainda!
— Ma-mas... — tentei pronunciar alguma palavra que fizesse
sentido.
— Eu sei. É estranho — Molly me interrompeu e sentou-se na
poltrona ao meu lado. Liam e Stefany permaneceram em pé.
— E como ela acha estranho... — Stefany resmungou. —
Sabe a sua versão feminina, Liam? — perguntou. — É a Molly. E eu,
boba, aguento isso. Uma versão feminina trouxa do Eric — revirou
os olhos.
Liam franziu o cenho, mas logo soltou um pequeno sorriso e
balançou a cabeça, como se não estivesse acreditando naquilo que
via e ouvi. De fato, era inacreditável mesmo. Isso só podia ser
pegadinha. Onde estavam as câmeras? Não podia ser verdade. Era
brincadeira.
— Mas... Molly... — perdido e confuso, encarei-a. — Como
assim? Você fez o maior escândalo quando soube que eu estava
ficando com o Liam. Você aparentava gostar bastante de mim.
Você... — baixei meu tom de voz. — Sempre quis transar comigo...
Mesmo quando eu não queria.
— Eu sei... — falou com um tom de voz triste, um pouco
envergonhada. — Desculpa. Eu não me aceitava, assim como ainda
estou lutando para me aceitar.
— Só muita paciência com ela... — Stefany resmungou.
— Por isso que eu tentei, de todas as formas, continuar
contigo — a morena explicou. — Eu não queria terminar o namoro e
me entregar ao fato de estar gostando de uma garota. Eu sempre
gostei de caras e me vi gostando de uma menina. Isso foi difícil pra
mim. Assustador. Pensei que, se eu continuasse contigo, essa ideia
toda de gostar dela fosse passar.
— É um Liam de saia — minha irmã disse ironicamente.
— Cala a boca, Stefany — Molly resmungou e revirou os
olhos.
— Foi mal, princesinha — Stefany soltou uma pequena
risada.
Meu Deus. Parecia até que eu estava vendo Liam e eu em
formato de mulher.
— Vocês nunca foram muito próximas... — argumentei.
— Talvez tenha sido por isso que começamos a nos gostar —
a morena replicou.
— Molly... — Liam finalmente abriu a boca para falar algo e
se aproximou. — Não dá pra acreditar nisso. Você quis me dar um
tapa! Você passou mal de tanta raiva! Você ficou jogando indireta
pra mim na frente dos nossos pais!
Ela, então, baixou a cabeça, envergonhada mais uma vez.
— Hipocrisia minha — respondeu. — Me senti traída. Mas, na
verdade, foi como a história do sujo falando do mal lavado, porque
eu estava traindo também. Prova disso é que não contei pra
ninguém, quando Eric me falou tudo. Eu não tinha respaldo pra
espalhar sobre algo que eu estava e estou passando também.
Minha consciência pesou ao ponto de eu passar mal. Você viu.
Que loucura.
— Porque não me contou nada, Stefany? — questionei.
— Molly me mataria se eu contasse alguma coisa para você
ou para o Liam — se justificou. — Na verdade, Molly me mataria se
falasse sobre isso para qualquer pessoa. Inclusive, ainda estou
surpresa por ela ter decidido vim aqui.
— É... Se eu não viesse aqui e contasse tudo, eu ficaria louca
— ela confessou. — Me desculpem pelo que fiz — olhou para Liam
e eu, ainda com o semblante encabulado.
Cristo. Era muita informação para um momento só. Nunca,
em toda minha vida, imaginei que isso pudesse acontecer. Eu com
Liam. Molly com Stefany. Eu não estava com raiva. Só estava
surpreso. Aliás, eu também devia também desculpas. Todos nós
erramos em um ou outro aspecto.
— Tudo bem... — repliquei. — Eu também devo desculpas.
Deveria ter terminado logo o namoro.
— Tudo bem... — resignada, a morena falou. — Eu também
deveria ter terminado.
— Eric... Liam... — ouvi Stefany nos chamar. — Caso
estejam achando que eu ajudei vocês só pra poder ficar com a
Molly, sim, isso é verdade. — disse com seriedade, mas logo soltou
uma pequena risada. Engraçadinha. — Eu estou brincando. Ajudei
porque sei que vocês se gostam pra caralho, assim como eu sou
doida por ela.
— Para de ser melosa... — Molly resmungou.
— Tudo bem, Liam. — Stefany ironicamente a chamou, rindo.
— Então... — o moreno se aproximou, ainda com o
semblante confuso. — Caramba... A gente trocou?
A loira riu novamente e se aproximou dele, abraçando-o pela
cintura.
— Não, bonitão — ela respondeu. — Na verdade, nós
passamos a vida inteira trocados. Agora que destrocamos. Agora
que estamos com as pessoas certas.
Qual era a probabilidade disso acontecer na vida das
pessoas? Cômico, mas, ao mesmo tempo, muito bom.
Aparentemente, nós tínhamos mesmo encontrado nossos pares
certos agora.
— Verdade — repliquei, me levantando da poltrona. — Acho
que agora está certo.
— Que galera melosa... — Molly disse em tom de brincadeira
e levantou-se da poltrona também.
— Também acho — Liam concordou.
Virei-me para Molly, sorrindo com o cenho franzido.
— Desde quando você deixou de romântica? — questionei
em tom de brincadeira. — Quando estava comigo não era assim.
— Desde quando começou a ficar comigo — minha irmã
replicou com um fingido tom de tristeza.
— Boba... — a outra sorriu, dando uma leve tapinha no
ombro dela.
Stefany riu
— Acho que agora podemos fazer uns programinhas de
casais juntos — disse com o mesmo tom de brincadeira. — Cinema,
parque, esse tipo de coisa — sorri.
— Menos, Eric, menos — Liam se pronunciou.
— Ah, qual é? — Stefany riu. — Todo mundo achando que
são dois casais héteros, quando na verdade... Seria muito
engraçado!
Daí em diante, continuamos conversando e rindo das ironias
da vida. As cervejas que eu e Liam usaríamos, foram divididas entre
nós quatro. As pipocas também. Acabamos assistindo Deadpool e
Batman vs Superman. Depois, as meninas ainda escolheram uma
comédia romântica.
Quem diria que no fim das contas não daria Molly e eu, e
Liam e Stefany, mas, sim, Liam e eu, e Molly e Stefany?
“Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas
pelo coração?”
Podemos conversar?

Liam

— Cynthia me falou que encontrou todos vocês juntos, assistindo


filme, depois que chegou do trabalho — Essas foram as primeiras
palavras que mamãe pronunciou, após Molly e eu cruzarmos a porta
de casa. O sorriso dela não escondia a felicidade. Sempre torceu
para que, não somente Eric e eu, mas todos nós nos tornássemos
amigos.
— É, mãe. Acabamos de chegar de lá — respondi meio
encabulado. Não estava acostumado com a ideia de que os outros
já percebiam a minha proximidade com o Eric. — A gente assistiu
filme.
— Mas que coisa maravilhosa! — o sorriso dela se alargou
mais ainda. — Você está se tornando mais próximo do Eric. — olhou
para mim. Próximo até demais, mãe. — E você assistindo filme com
o Eric, mesmo depois de terminar o namoro — Por fim, olhou para a
Molly. Mamãe estava visivelmente satisfeita com a nossa aparente
maturidade.
— A gente se acertou, mãe — com um pequeno sorriso,
minha irmã disse. — Continuamos amigos. Como sempre fomos.
— Isso me deixa muito feliz — com notória sinceridade,
mamãe falou.
E acho que essa era a minha hora de dar o fora.
— Vou subir para o quarto — comuniquei. — Está tarde e eu
estou com sono.
— Eu também — Molly falou.
— Durmam bem, queridos — Mamãe finalizou.
Minha irmã e eu, então, começamos a subir as escadas rumo
ao andar dos quartos. Tecnicamente, esse era o nosso primeiro
momento a sós, depois que tudo aconteceu. Silêncio. Mas, não era
um silêncio incômodo, era um silêncio de cumplicidade.
Cumplicidade de irmãos. Coisa que nunca tivemos.
— Boa noite, Molly — disse após subir todos os degraus e
parar em frente à porta do meu quarto, que era ao lado do seu.
— Boa noite... — ela sorriu e virou-se para abrir a porta. No
entanto, no momento de tocar a maçaneta... — Liam... — me
chamou.
— Oi?
— Podemos conversar? — perguntou.
Conversar? Sinto meu coração acelerar de maneira
inexplicável. Por que eu estava me sentindo assim com a minha
irmã? Nunca senti vergonha de falar com ela, mas... Claro, agora
ela sabia de tudo. Talvez a vergonha fosse porque agora ela sabia
que eu estava com o Eric. Eu ainda tentava me acostumar com isso.
— Claro... — falei.
Por mais vergonha que eu sentisse, eu sabia que
precisávamos conversar. Afinal, conversar era o mínimo que
podíamos fazer depois que a Molly descobriu sobre Eric e eu, e,
principalmente, depois que eu descobri sobre ela e a Stefany.
Assim, sem pensar por mais tempo, abri a porta do meu quarto e
liberei o caminho para ela entrar. Indiquei a cama para ela se sentar.
Fechei a porta e, meio sem jeito, virei-me para ela.
— Vai ficar em pé aí? — com um pequeno sorriso, perguntou.
Passei uma das mãos na nuca e...
— Não — logo me apressei para me sentar ao seu lado na
cama.
O silêncio reinou no quarto. Molly me encarou. Olhei para as
minhas mãos, meio sem jeito. O que a gente fazia agora? Quero
dizer, nunca tivemos um momento assim. Por mais que Molly fosse
minha irmã, nunca agimos como irmãos, nunca tivemos muito
vínculo e, consequentemente, nunca tivemos um momento de
conversa.
— Nunca fomos muito próximos, né? — Molly finalmente
quebrou o silêncio.
Caramba. Ela estava pensando a mesma coisa que eu.
— Sim... — respondi meio sério, meio encabulado.
— Acho que nós dois erramos — Sua voz estava carregada
de confissão. — Fiz minha vida seguir um rumo diferente do que era
pra ser. Acho que o mesmo aconteceu com você. Acabei notando
que somos muito parecidos.
Até aquele dia, eu não via muitas semelhanças, além das
físicas, com a minha irmã. Mas, talvez, tivéssemos o mesmo
temperamento difícil.
— Você acha? — perguntei.
— Dois preconceituosos — respondeu com uma pequena
risadinha.
Poxa. Dois preconceituosos? Eu sabia que nunca curti a ideia
de dois homens se relacionarem, mas, pela primeira vez na vida,
senti bater mais forte na minha cabeça o fato de que eu era
preconceituoso. Nem quando a Stefany conversou comigo isso
aconteceu. Talvez fosse porque Molly também estivesse se
colocando nesse lugar. Lugar ocupado por mim desde sempre: uma
pessoa preconceituosa.
— É — baixei meu olhar e cocei a cabeça. — Talvez eu seja
um pouco.
Molly soltou mais uma pequena risada.
— Não precisa ficar desse jeito — Sua voz era confortante.
— Eu também sou assim — confessou. — Na verdade, eu estou
tentando mudar. Não dá pra ser preconceituosa e, ao mesmo
tempo, gostar de uma garota.
Automaticamente, levantei minha cabeça. Era justo nesse
ponto que eu queria que a conversa chegasse. Ela e a Stefany. Eu
ainda não consegui entender isso tudo. Stefany sempre ficou
comigo, transava comigo, também transava com outros caras. Mas,
eram caras. Não garotas. Por mais que ela tivesse me dito que era
bissexual, eu não poderia imaginar que ela pegaria justo a minha
irmã.
— Então... Você gosta mesmo da Stefany? — perguntei.
A morena deu um pequeno suspiro.
— Infelizmente sim — respondeu com pesar, mas logo
esboçou um pequeno sorriso. — Eu tentei por muito, muito, tempo
fingir que não. Na verdade, eu vivia em uma mentira até o Eric
terminar comigo. Acho que foi por isso que eu fiquei tão louca no
dia. Tudo veio à tona com o término. Minha vida sendo uma mentira,
eu gostando de uma menina, meu irmão gostando de um menino
também, e essa menina e esse menino sendo nada mais, nada
menos, que a Stefany e o Eric. Foi uma loucura pra mim, assim
como ainda é, mas eu estou tentando lidar com isso. Você já me
desculpou, né?
Balancei a cabeça.
— Não tenho pelo que te desculpar. Estamos no mesmo
barco. Mas... É estranho — confessei.
Ela acenou um sim com a cabeça, concordando comigo.
— Eu sei. Se é estranho pra você, imagine pra mim. Stefany
me contou que já tinha ficado com outras meninas, mas eu não. Eu
nunca tinha ficado com uma pessoa do meu mesmo sexo. Foi muito
difícil de me aceitar. Na verdade, eu ainda estou no processo de
aceitação. Eu sempre fiquei com caras. Eu achava que gostava do
Eric, mas a Stefany virou meu mundo de cabeça pra baixo. Eu ainda
nem sei o que eu sou. Não sei se sou bi, não sei se sou lésbica. Sei
de nada a respeito disso. Só sei que eu estou... — parou por alguns
instantes e suspirou. — Só sei que estou gostando da Stefany.
— Isso faz pouco tempo? — perguntei, tentando entender a
situação.
— Não... — balançou a cabeça. — Isso tudo começou bem
antes de eu namorar o Eric.
O quê?!
Automaticamente, franzi o cenho.
— Como assim? — confuso, perguntei.
Molly suspirou e olhou para o teto, como se estivesse
escolhendo as palavras certas para se explicar.
— Bom... — ela começou. — Na verdade, eu não pressionei
o Eric para namorar comigo porque eu realmente estava a fim de
namorar ele, ou porque realmente queria um compromisso sério, ou
porque estava cansada de vê-lo ficar comigo e com outras garotas
ao mesmo tempo. Eu quis começar a namorar ele porque pensei
que isso fosse tirar da minha cabeça o fato de estar gostando de
uma garota. Eu estava extremamente confusa. De maneira imbecil,
pensei que, namorando-o, isso fosse me fazer esquecer que me
sentia atraída por uma menina. Foi também justamente por isso que
não tive coragem de terminar com ele. Eu quis levar o namoro até o
limite, mesmo percebendo o quão distante ele estava de mim.
Porque sim, não dava pra não perceber o quanto ele estava longe
de ser meu namorado. Eu quis continuar porque pensei que isso me
faria encontrar a “cura” pra parar de gostar de uma garota. Só que
parece que parece que quanto mais tempo eu ficava com ele, mais
eu me sentia atraída por ela. Principalmente quando o Eric começou
a ficar distante. Foi justamente aí que eu caí na tentação de ficar
com ela nas escondidas outra.
Cacete... O caso da Molly era muito parecido com o meu. Já
tinha perdido as contas de quantas vezes tentei ficar com a Stefany
para me autoafirmar como homem. Já tinha perdido as contas de
quantas vezes tentei dormir com ela para tentar esquecer o fato de
estar gostando do Eric. Mas... Por falar em dormir, a loira ficava
comigo até pouco tempo.
— Ela ficava comigo ao mesmo tempo em que ficava
contigo?
— Sim — minha irmã revirou os olhos. Claramente, não
gostou de ouvir isso. — Eu morria de ciúmes de ver vocês dois
juntos. Morria de ciúmes de saber que vocês tinham transado. Era
horrível. Mas, o que eu podia fazer? Um lado meu queria ficar com
ela, mas o outro, o lado preconceituoso, sempre falava mais alto.
— Você tinha ciúmes de ver nós dois juntos? — chocado,
perguntei.
— Muito — confessou.
— Porra. Você fingia muito bem, então, viu? Porque eu nunca
percebi. Na verdade, você e a Stefany fingem muito bem! Nunca
percebi nada entre vocês duas.
— Eu sei — deu uma pequena risadinha envergonhada. —
Eu fingia muito bem. Minha vida era uma mentira. Mas, Stefany só
fingia porque se ela ousasse demonstrar qualquer coisa, eu seria
capaz de matá-la. Ela teve muita paciência comigo. Eu era muito
pior do que agora.
Caramba... E a Stefany estava ficando com um carinha! Um
novato transferido! Ela ficava com várias pessoas e com a Molly?
Santa Vodca do Céu!
— Molly... — meio receoso, tentei falar. — Ela me contou que
estava ficando com um novato transferido e me falou altas coisas
sobre eles. Você devia morrer de ciúmes disso, não?
— O novato transferido era eu — disse, rindo.
— O quê?! Como assim?! — perguntei, automaticamente,
boquiaberto.
— Bom... — tentou segurar a risada. — Stefany não estava
mais conseguindo guardar pra si mesma tudo o que vinha
acontecendo, mas, se ela ao menos pensasse em tocar no meu
nome e contar sobre tudo, eu seria capaz de assassiná-la. Daí, ela
encontrou uma saída. Inventou tipo um “pseudônimo” pra mim. “O
novato transferido”. E foi aí que ela conseguiu externar o que estava
acontecendo. Tudo certo, desde que não tocasse no meu
verdadeiro nome.
Meu Thor do Céu! Eu nunca poderia imaginar isso!
— Mas... Molly... A gente quase transou um dia desses... O
problema é que eu não consegui. — envergonhado, revelei. — Você
já deve imaginar o porquê.
Dessa vez, ela revirou os olhos.
— Eu sei. Que ódio disso — resmungou. — Foi justamente
em um dia que a gente brigou. Stefany sempre ia atrás de ti quando
a gente brigava. Parece que fazia de propósito, porque eu era
sempre a causadora da briga. Era como se ela quisesse me deixar
com ciúmes. E sim, ela conseguia me deixar com ciúmes. Aquela
idiota. Obviamente, ela não vai mais poder fazer isso.
Thor do céu. Eram elas que estavam nos enganando.
— Molly... Isso é... Caralho... — Eu não tinha nem palavras.
— Eu sei... — concordou. — É complicado. Sempre foi. Mas,
eu acho que toda essa situação de saber sobre você e o Eric está
me ajudando a me aceitar melhor. Aos poucos eu sinto que estou
mudando.
— Sente? — indaguei.
No mesmo instante, a morena escorregou sobre a cama,
aproximando-se ainda mais de uma mim. Uma de suas mãos parou
no meu coração. Prendi a respiração. Nunca recebi um mínimo
carinho vindo dela. Também nunca dei carinho algum para ela.
— Sinto — respondeu. — E sinto também que você está
mudando. Aos poucos, como eu, mas está mudando. Eu vejo... Eu
vejo no fundo dos seus olhos que está.
Observei-a paralisado, quase sem piscar os olhos. Nunca
recebi palavras assim dela. Da mesma forma, eu também nunca fui
tão atencioso com ela. Será que nossa relação de irmãos iria
finalmente mudar? Mudar pra melhor?
— Posso te dar um abraço? — perguntou.
Abraço? Eu ia receber um abraço da minha irmã?
— Sei que a gente nunca se abraça — continuou. — A não
ser quando precisamos nos abraçar, tipo em comemorações e
aniversários, mas...
Sem esperar que ela completasse a frase, envolvi-a com
meus braços e abracei-a forte. Abracei-a por todos os anos que não
fizemos isso. Abracei-a como Eric sempre abraçava a Stefany. No
fundo, sempre senti inveja da relação de irmãos que eles tinham.
Sempre foi uma relação tão melhor do que aquela que nós
tínhamos.
— Senti falta disso — Molly revelou.
— Eu também senti — confessei. — Senti muita falta.
Golden boy

Liam

O dia amanheceu diferente. Ao contrário dos dias anteriores, o


café da manhã foi harmonioso. A frase “e de repente a vida te vira
do avesso, e você descobre que o avesso é o seu lado certo” nunca
fez tanto sentido pra mim. Minha vida estava completamente do
avesso, mas era do avesso que as coisas estavam melhorando.
Apesar de tudo ser muito confuso, aquela situação de estar com
Eric e de descobrir sobre Molly e Stefany estava mudando a minha
vida... Pra melhor.
Eu nunca poderia imaginar que minha irmã me daria um “bom
dia” com um largo e sincero sorriso no rosto, assim como ela me
deu naquele dia, assim como eu também nunca poderia imaginar
que a ida ao colégio com a Molly fosse se tornar tão boa, porque,
sim, ela tinha voltado a pegar carona comigo para o colégio e estava
tudo bem. Eu nunca poderia imaginar que ela tiraria os típicos fones
de ouvidos e conversaria comigo durante o caminho, assim como
também nunca poderia imaginar que curtiríamos ouvir as mesmas
músicas no carro, como fizemos naquele dia.
Será que, mesmo sem querer e sem perceber, eu estava me
tornando uma pessoa simpática, educada e tranquila como o Eric?
Santa Vodca do Céu! Não. Claro que não. Eu sabia que era chato. E
eu adorava ser chato. Isso não iria mudar. Nunca. Claro que eu
gostava de me dar bem com minha irmã, mas minha essência não
iria mudar. Até porque não eu não queria ser um chato de galocha
como o Eric. Existia uma boa diferença entre ser um chato legal,
que era meu caso, e um chato de galocha, que era o caso do Eric.
Ser “certinho”, como ele, cansava. Apesar de que haviam
controvérsias quanto a isso, ele não era totalmente certinho.
Aliás, até agora estava me perguntando em que lugar do
tempo e do espaço eu perdi o meu juízo, porque definitivamente não
sabia como fui gostar daquele otário. Era algo inexplicável e
irracional. Eu mesmo já tinha cansado de ficar procurando
respostas. Desisti. Tinha tanto cara maneiro por aí, mas precisava
que ser logo o Eric? Claro que eu não estava pensando na
possibilidade de ficar com outros caras. Isso iria extrapolar o nível
de boiolagem. Já bastava o Eric! Além do mais, eu não conseguia
me imaginar ficando com outro cara que não fosse ele. Se eu não
conseguia mais me imaginar com uma garota, imagine com outro
cara.
E, cara, isso era louco! Eu não conseguia mais me imaginar
com uma menina! Puta merda! Talvez eu tivesse me tornado gay
mesmo. Droga. Será? Será que eu era gay mesmo? Será que eu
não poderia ser bi? Ah, que vida mais bosta! Eu não sabia o que eu
era! E era melhor eu parar de pensar nisso, antes que eu ficasse
louco. A vida iria se encarregar de responder isso pra mim: se eu
era gay (ai, meu Deus, que vontade de chorar) ou se, pelo menos,
podia ser bi.
Melhor focar no que eu precisava fazer agora: receber o
resultado do teste de química. Teste esse que respondi a maior
parte das questões, porque o idiota do Eric disse que confiava em
mim, confiava que eu sabia do conteúdo. Otário. Se a gente se
ferrasse no teste, a culpa era dele. Ninguém o mandou me deixar
fazer o teste todo praticamente sozinho. Queria só ver a cara que o
Golden Boy ia fazer se recebesse nota baixa e manchasse o
exemplar histórico escolar dele.
Caminhei pelos corredores do colégio, rumo ao laboratório de
química, até que...
— Liam! — Uma agitada e familiar voz me chamou.
Virei-me e, claro, vi a Stefany com seu típico sorriso no rosto.
— Oi, Ste! — cumprimentei-a com um abraço. — A Molly não
tá comigo agora — disse com certo tom de brincadeira. — Já foi pra
sala de aula.
A loira me deu uma pequena risadinha.
— Eu sei. Vou ficar com ela no intervalo das aulas — sorriu.
O quê?!
— Ficar? — pasmo, perguntei. — Ficar? Ficar do tipo se
pegar?
No mesmo instante, ela gargalhou.
— Não, bobinho — disse entre risos. — Ficar do tipo fazer
companhia. Ficar do tipo conversar. Entendeu?
Ah sim! Ufa! Talvez eu ainda não estivesse preparado para
ver a minha irmã e a Stefany se pegando.
— Entendi — mais aliviado, respondi. — Mas... Vocês não
têm vergonha de, sei lá, ficar assim na frente de todo mundo?
— Bom, por mim, todos já estariam sabendo, mas Molly
ainda não quer “assumir” — fez sinal de aspas com os dedos. —
que estamos nos relacionando, só que agora que você e o Eric já
sabem, podemos agir como boas amigas. Na verdade, excelentes
amigas — sorriu de canto de boca. — Por falar nisso, você e o Eric
deveriam agir assim também.
Eu? Agindo como amigo do Eric na frente de todo mundo?
Não. Claro que não. Isso não dava certo.
— Não rola, Stefany.
— E por que não?
— Porque o colégio não está acostumado com isso —
expliquei — Todo mundo sabe que nós nos odiamos. Meus amigos
sabem que nós nos odiamos. O time inteiro sabe que nós nos
odiamos.
— Isso é uma desculpa esfarrapada! — disparou. — Agir
como amigo do Eric não vai colocar na sua testa o título de gay!
— Fala baixo, Stefany! — gritei em um sussurro, ao mesmo
tempo em que olhei para os dois lados do corredor. — As pessoas
podem ouvir!
Ela, automaticamente, revirou os olhos.
— Pois vou gritar pra todo mundo desse corredor que você é
gay, se você não passar o intervalo comigo, a Molly e o Eric no pátio
da escola.
O quê?!
— Tá ficando doida, Stefany?! — me exaltei.
Vi quando esboçou um pequeno sorriso travesso e...
— Pessoal! — falou em um tom de voz bem alto. — O Liam
é...
Puta merda!
Imediatamente, coloquei as duas mãos em sua boca,
impedindo-a de continuar.
— Caralho, Stefany! Você enlouqueceu de vez!
Tirou as minhas mãos da boca e caiu na risada.
— É pegar ou largar, bonitão — sorriu. — Ou vai passar o
intervalo com a gente ou esse corredor cheinho de aluno vai acabar
sabendo que você quer dar o...
Mas que história era essa?!
— Stefany! — a interrompi mais uma vez. — Que absurdo!
— Tá bom, então — deu de ombros e... — Pessoal! O Liam
é...
— Stefany! Tá bom! Eu passo o intervalo com vocês!
Automaticamente, a loira soltou um gritinho de vitória.
— Todos os dias? — perguntou com um sorriso de orelha a
orelha.
— Só hoje — resmunguei.
— O quê?! — gritou com entusiasmo, como se eu tivesse
dado outra resposta. — Todos os dias?! Ah, que maravilha! Sabia
que você ia aceitar!
— Stefany... — tentei falar, mas...
— Vai ser ótimo passar os intervalos com vocês todos os
dias! — me abraçou.
— Stefany... Eu disse que é só ho... — tentei falar
novamente, mas...
Ela me soltou do abraço e, já caminhando de costas em
direção à sua sala de aula, enquanto continuava me observando, foi
se afastando de mim. O largo sorriso não saía do seu rosto.
— Vai ser uma maravilha! — entusiasmada, ainda a ouvi. —
Todos os dias!
Merda. A Stefany era impossível.

❖❖❖
Entrei no laboratório de química, após o quase ataque
terrorista da Stefany, e logo dei de cara com Eric já sentado na
nossa bancada do laboratório de química. Lindo. Filho da mãe
bonito. Ódio disso. Eric estava sorrindo de leve para pra mim.
Sorriso bonito pra cacete.
Para de ser assim, idiota, só me faz perder a cabeça ainda
mais.
Aproximei-me dele, notando que o professor ainda não tinha
chegado. A cada passo que eu dava, Eric se ajeitava no seu banco.
Sentei ao seu lado. Calado estava, calado permaneci. No entanto, o
loiro quebrou o silêncio da maneira mais inoportuna possível.
— Bom dia, amor — notei o sarcasmo escorrendo pela
palavra “amor”.
Inevitavelmente, revirei os olhos.
— Primeiro, cuidado com o que fala. As pessoas podem
ouvir. Segundo, vai se foder.
Eric deu um breve suspiro e logo sorriu.
— Como sempre, um doce de pessoa — Mais sarcasmos
saindo de sua boca. — Meu coração até acelera com essas
demonstrações de afeto e carinho.
Por que esse demônio sempre foi tão irônico?
Virei totalmente meu rosto em direção a ele e encarei-o com
os olhos levemente cerrados.
— Sabe o que você poderia fazer com esse sarcasmo? Enfiá-
lo no rabo — sorri ironicamente.
O loiro ergueu uma das sobrancelhas para mim, como se
estivesse me desafiando.
— E sabe o que poderia fazer com você? — aproximou-se
ainda mais e sussurrou. — Enfiar outra coisa no seu rabo.
Puta que... Engoli a seco. O que ele quis dizer com isso?
Ele estava brincando. Ele só podia estar brincando. Eu não
daria ouvidos a essa coisa sem cabimento. Rapidamente, virei-me
de frente para a bancada e comecei a tirar meus livros da mochila.
— Como foi na sua casa ontem, depois que eu e a Molly
fomos embora? — tentei mudar de assunto.
— Tranquilo — respondeu. — Stefany e eu conversamos
antes de dormir. Mas foi uma conversa normal, como a gente
sempre teve.
Claro. Eric e Stefany sempre tiveram uma ótima relação de
irmãos. Mais um pontinho positivo na vida do Golden Boy.
— Maneiro — repliquei.
— E na sua casa, como foi? Molly falou mais alguma coisa?
— perguntou.
Inevitavelmente, um sorriso escapou da minha boca. Pensar
que eu estava começando a me dar bem com a minha irmã era
indescritível de tão bom.
— Sim... A gente tá começando a se entender como irmãos,
sabe?
— Ah, meu Deus! — alegre, exclamou. — Você tá sorrindo!
Notei-o se aproximar para tocar meu rosto. Rapidamente, me
afastei.
— Não faz essas coisas, lesado! — gritei em um sussurro. —
Aqui não!
— Lá na sua casa, então? — sorriu.
Mas era muito folgado mesmo!
— Também não — fiz uma cara de tédio para ele.
— Qual é? Hoje é dia de estudar para as seleções das
universidades!
— A gente não estuda juntos para as seleções — revirei os
olhos. — A gente só estuda química e física.
— Mas a gente pode começar a estudar. O que acha? —
sugeriu. — Os processos seletivos estão perto de começar.
Ah que saco! Nem me fale nisso! Se eu pudesse pular essa
parte da minha vida, seria uma maravilha, porque só existia uma
coisa pior que o Eric: a seleção para as universidades.
— Não quero estudar — revirei os olhos novamente.
O loiro suspirou e me deu um olhar nada satisfeito, como se
não tivesse gostado de saber que eu não queria estudar.
— Quais universidades você escolheu? — perguntou.
— UCLA, Harvard e Oxford. — Respondo.
No mesmo instante, ele sorriu.
— Oxford? — perguntou.
— Sim.
— Oxford é minha principal escolha! Quero estudar lá! —
disse com entusiasmo. — Já venho me preparando para a seleção.
Posso te dar umas dicas. Podemos estudar juntos para Oxford.
Não. Estudos e eu eram duas coisas que definitivamente
nunca combinaram.
— Já disse que não quero estudar — resmunguei.
— E porque não? — cruzou os braços.
Simples.
— Porque tenho preguiça — respondi curto e grosso.
— Quê? — franziu o cenho. Seu semblante em puro estado
de indignação. — Que história é essa de preguiça? Agora é que a
gente vai estudar mesmo! — disse com determinação. — Depois
que sairmos do colégio, vamos pra sua casa.
Droga, que garoto pra encher o saco!
— Não vou estudar hoje e ponto final.
— Ah, vai sim!
— Não vou!
— Vai!
— Bom dia, turma! — A voz do professor ecoou pelo
laboratório de química, interrompendo minha típica briguinha com o
Eric. — Vamos fazer silêncio para eu começar a aula?
O loiro e eu nos entreolhamos de maneira ríspida, mas
acabamos por nos calar. Extremamente normal essa troca de
olhares entre nós. Eu já era acostumado com isso e ele também.
Nunca concordamos com nada mesmo.
Instantaneamente, todos da sala ouviram um barulho na
porta, como se alguém tivesse acabado de tropeçar. Em menos de
um segundo, Noah entrou, completamente desajeitado, segurando
uma pilha de livros.
Ah, claro. Só podia ser esse fracassado. Ele era tão
desajeitado que seus óculos estavam completamente tortos no rosto
e os livros que carregava estavam todos amarrotados devido ao
tropeço. Alguém precisava urgentemente lhe dar umas boas dicas
de como ser descolado.
Como se não bastasse, o fracassado, por fim, se sentou em
uma bancada em frente a que eu e o Eric estávamos, e deixou
alguns livros caírem no chão. Que desgraçado desastrado. Noah se
abaixou para pegar os livros e mais dois caíram. Sério, eu me
recusava a ver isso.
— Está tudo bem, Noah? — o professor perguntou.
— Si-Sim... — gaguejou, enquanto terminava de recolher os
livros. — Tu-Tudo.
Envergonhado, desastrado, desajeitado, inseguro. Porra,
quantos “bons” adjetivos esse garoto tinha?
— Ótimo — o professor respondeu. — Espero que agora
possamos começar a aula. Bom, eu trouxe os testes de vocês
corrigidos. E não, as notas não foram boas.
Que merda. Instantaneamente, senti meu corpo gelar. A
minha maior certeza era de que meu teste estava entre as notas
baixas. Droga. Pior que o Eric era minha dupla. Ou seja, ele se
ferrou junto comigo.
Ninguém mandou esse imbecil me deixar fazer o teste
praticamente sozinho!
— Mas, vou entregá-los somente no final da aula — o
professor concluiu.
O quê?! Eu ia passar a aula inteira esperando por essa nota?
Mas que droga! Eu que já não me concentrava facilmente nas aulas,
agora ficaria ainda mais desconcentrado esperando por essa nota!
— Relaxa... — ouvi Eric falar.
Provavelmente, ele tinha notado meu nervosismo e
ansiedade.
— Não tem como relaxar — repliquei.
— Só relaxa — disse e passou a mão na minha coxa, por
debaixo da mesa, fazendo carinho.
Que filho da mãe do toque bom. Suspirei.
— Tira a mão — falei, mesmo querendo que ele continuasse
com a mão lá. — Alguém pode ver.
Apesar de ter olhado diretamente para o loiro, notei-o fazer
uma cara de poucos amigos. No entanto, findou por tirar sua mão de
lá. Eu não sabia por que ele agia assim. O Golden Boy sempre fez
tudo por debaixo dos panos, sempre foi discreto. Por isso, poucas
pessoas sabiam que ele não era tão certinho quanto parecia.
Mas, agora que estava comigo, queria sair por aí fazendo
tudo de maneira explícita. Coisa mais sem cabimento! No momento
em que ele precisava fazer as coisas por debaixo dos panos, não
fazia.
Suspirei mais uma vez, tentando focar na aula e não no toque
dele ou no teste que iria receber em alguns minutos. O professor,
então, começou sua explicação sobre o que pareceria ser
radioatividade. Não que eu estivesse prestando atenção, mas era o
que estava escrito na lousa.
Os minutos passaram-se lentamente. Eric observava tudo
atentamente. Ele era daquele tipo de aluno que não precisava
anotar nada e entendia tudo. Apenas o fato de prestar atenção era
suficiente para que ele soubesse a matéria. Filho da mãe de sorte.
Robert e William era totalmente o oposto. Estavam bem ali,
no canto esquerdo do laboratório. Ambos de cabeça baixa,
dormindo. Conseguia até ver a baba escorrendo. Eca. Rapidamente,
mudei a direção do meu olhar. Não queria ver essa nojeira.
Porém, no momento dessa mudança, meu olhar acabou
cruzando com o olhar do Noah. Ele estava me observando? Tudo
indicava que sim, porque ele ficou nervoso. Garoto estranho. Estava
olhando o quê, mané? Sem pensar duas vezes, desvio virei meu
rosto e mirei exatamente no professor.
Tentei prestar atenção. Mais alguns poucos minutos se
passaram até que notei um olhar novamente sobre mim, mas, dessa
vez, era do Eric. O que ele queria, afinal? Voltei-me para ele, a fim
de saber se ele queria me falar algo. Todavia, no momento em que o
olhei, Eric mirou exatamente do Noah. Encarei Noah e percebi que
ele estava me observando novamente. O garoto, ao perceber que
foi descoberto, virou praticamente um tomate de tão vermelho e
volveu seu rosto para o professor.
— Nunca tinha percebido... — Eric se pronunciou em tom de
voz baixinho. Ele não parecia estar muito satisfeito. — Mas hoje
notei que o Noah te olha bastante.
Desde quando aquele fracassado colocou os pés pela
primeira vez no colégio, ele me observava. Normal pra mim. Talvez
eu até já tivesse me acostumado.
— Ah, é só o Noah... — dei de ombros, fazendo pouco do
garoto. — É só um gayzi...
No mesmo instante, interrompi a mim mesmo. Minha mente
estalou em um pensamento: hipocrisia do tamanho do mundo em
chamá-lo de gayzinho enquanto eu... Enquanto eu estava com um
cara. Droga.
— Gayzinho? — o loiro pergunta.
Merda.
— É... Nã-Não... Quer dizer... Ah, sei lá. Esquece — balancei
a cabeça, demonstrando que queria deixar de falar sobre isso.
— Hum. Dentro de três minutos, ele te olhou vinte vezes.
— Esquece isso, Eric — resmunguei.
Do jeitinho que você é

Liam

Mas que idiotice era essa do Eric agora? Isso estava na cara que
era ciúme. Imagina só! Ciúmes de mim com o Noah? O Noah?!
Piada, né? Mesmo que eu não estivesse mais em posição de
chamá-lo de gayzinho, aquele garoto não deixa de ser um
fracassado. Se eu já não tinha interesse em sua amizade, quanto
mais em outras coisas. Só de pensar me dava asco.
— Só esquece isso, Eric — resmunguei novamente.
O loiro suspirou com ares de derrota.
— Se você diz, tudo bem. Mas que ele está de olho, ele está.
Agora mais essa. Além de lidar com todos os outros
problemas que nós já tínhamos, Eric ainda apareceu com um
repentino ciúme. Me poupe. Ainda bem que eu não sofria disso.
Quer dizer, tirando a época em Molly estava com Eric, tirando a
época em Eric ficava com todas as meninas da galáxia, tirando a
época em que ele não estava comigo. Sim, tirando tudo isso, nunca
senti ciúmes dele, ora.
— Meus caros, nossa aula está se aproximando do fim —
ouvi o professor falar. — Chegou o momento de devolver o teste a
vocês.
Caramba. Era agora.
Instantaneamente senti meu coração acelerar. Que pesadelo.
Se o idiota do Eric não tivesse me deixado responder praticamente
sozinho todas as perguntas do teste, eu não estaria assim agora.
Imbecil. Se a gente se ferrasse nesse teste, a culpa não era minha.
A culpa era dele. Claro. A culpa era sempre dele.
— Calma — passou a mão nas minhas costas.
Calma? Como eu podia manter a calma?
No mesmo instante, me afastei, fazendo a mão dele me
soltar. As pessoas podiam ver essa “demonstração de carinho”
totalmente atípica.
— Dylan Gleeson e Peter Poulter — o professor começou a
chamar os alunos.
— Ellen Joner e Melanie Carter.
Meu coração acelerava ainda mais a cada nome
pronunciado.
— Robert Grim e William Wood — o professor continuou.
Robert foi quem se levantou para pegar. Seus olhos miraram
no teste e sua cara não era boa. Merda. Nunca gostei de admitir
isso, mas Robert e William, por mais preguiçosos que fossem, eram
melhores alunos que eu. Se eles não foram bem no teste, imagina
como devia ter sido minha nota! Santa Vodca do Céu, me ajude.
— Eric Hastings e Liam Tremblay.
Caramba, era a gente.
— Deixa que eu pego — o loiro se levantou antes que eu
abrisse minha boca para falar qualquer coisa.
No exato instante em que ele pegou a folha, me encarou e
fechou o semblante. Merda. Ferrou. Ferrou muito. Ah meu Zeus do
Céu! Eu tinha certeza que tiramos um grande F. Eric se aproximou
lentamente, sem tirar os olhos do teste. Anda mais rápido, demônio!
Queria ver logo essa besteira que eu fiz. Quando ele chegou perto o
suficiente de mim, sem aguentar mais esperar, puxei o teste de suas
mãos e fixei meus olhos exatamente no espaço destinado à nota.
O quê?!
Não. Espera. Não podia ser. Como assim?
Nós tiramos um A? Um A?!
Encarei-o boquiaberto, enquanto ele me observava com uma
grande e largo sorriso.
— Você conseguiu... — alegre, falou.
— Consegui? — completamente extasiado e incrédulo,
perguntei. — Isso daqui é verdade? — levantei a folha.
— É sim! — Eric não parava de sorrir. — A mais pura
verdade.
Então, eu realmente consegui responder um teste de química
e tirar A? Quando foi a última vez que tirei um A? Talvez só colando!
Ai cacete!
Sem conter a felicidade, abracei Eric, pouco me importando
com o que os outros iriam achar. Era como se dentro do laboratório
de química só existisse Eric e eu. A felicidade que eu estava
sentindo só não era maior do que a realidade que acabou tomando
minha mente: eu consegui com a ajuda do Eric. As aulas realmente
estavam dando resultado. Sim, Eric me ensinou. Eric teve paciência
em me ensinar. Esse filho da mãe que eu tanto am... Odeio!
E pela primeira vez...
— Eric... — soltei-o do abraço somente o suficiente para
olhá-lo nos olhos. — Valeu — senti uma imensa vontade de
agradecê-lo.
O loiro, então, segurou meu queixo.
— Não precisa agradecer — sorriu. — O mérito é seu — e,
no mesmo instante, o sinal tocou, indicando que a aula tinha
acabado.
Eric e eu permanecemos olhando um para o outro feito dois
imbecis, enquanto as pessoas saíam do laboratório. Eu não sabia
se estavam achando estranho, mas, foda-se, eu estava tão feliz,
que isso pouco me importava. A felicidade era tanta que eu poderia
beijá-lo ali mesmo. Aquele idiota ficava me fazendo querer as coisas
mais estúpidas.
No entanto, de repente, uma voz conhecida falou perto de
nós. Robert e William estavam ao meu lado com os semblantes
mais desconfiados da face da Terra. Merda. Talvez eu tivesse
extrapolado na boiolagem agora. Em um piscar de olhos, me afastei
do Eric.
— É... Liam... — desconfiado, Robert falou com seu cenho
levemente franzido. — Vamos lanchar? Hora do intervalo.
Lanchar? Automaticamente, minha memória me trouxe a
lembrança de que, naquele dia, eu deveria passar o intervalo com a
Stefany, a Molly e o Eric. Droga, não era para eu ter aceitado isso.
Robert e William iriam achar ainda mais estranho.
— É... E-Eu... — gaguejei um pouco. — Hoje eu vou passar o
intervalo com a Molly, a Stefany e o... — Droga. Lá vai. — E o Eric.
— Vai? — surpreso e visivelmente feliz, Eric perguntou.
Cacete. Ele ainda não sabia.
— Sim — limitei-me apenas a dizer isso.
— Stefany, Molly e... Eric? — William questionou tão confuso
quanto Robert também estava
— Sim — rapidamente respondi. Eu precisava me livrar
dessa situação logo. — Depois a gente se fala. Valeu — peguei
minha mochila e caminhei para fora da sala, deixando Robert,
William e Eric com cara de tacho.

❖❖❖

— Ah, que bonitinhos! — com aquela típica voz de uma


pessoa que fala com um bebê, Stefany disse. — Os casaizinhos
juntinhos! Eu e Molly, Eric e Liam! Ah! — e sorriu de orelha a orelha.
— Cala a boca, Stefany! — Molly e eu falamos ao mesmo
tempo. — As pessoas podem ouvir!
Isso foi o suficiente para que os dois outros irmãos caíssem
em uma risada.
— Stefany... — Eric falou entre risos. — Liam e Molly
poderiam ser gêmeos!
A loira concordou, rindo.
— Nossa, sim! Como a gente os aguenta? — a loira
perguntou.
— Só muito amor, Stefany — em tom de brincadeira, o outro
replicou.
Minha irmã, no mesmo instante, revirou os olhos.
— Vocês são tão bregas.
Isso foi o suficiente para que uma briguinha infantil
começasse entre Stefany, Molly e Eric. Eu não iria me envolver
nisso porque só conseguia pensar em uma coisa: a porra do colégio
inteiro estava olhando para nós. Sério. Sabem o que é ter os olhos
de todos voltados para somente quatro pessoas? Porque era
exatamente isso o que estava acontecendo! Talvez as pessoas
daquela escola não soubessem lidar com o fato de que eu, o Eric, a
Molly e a Stefany estarmos passando o intervalo juntos.
E os motivos eram:
1 – Ninguém estava acostumado com o fato de ver Molly e
Stefany tão próximas, porque, bem, elas nunca foram próximas.
Essas piranhas esconderam tudo direitinho.
2 – As pessoas provavelmente estavam pensando “nossa,
Molly e Eric terminaram o namoro e já estão bem um com o outro
assim?”.
3 – Por fim, e não menos importante, a galera não estava
acostumada a me ver tão próximo ao Eric assim. Parecia, inclusive,
que os olhares mais surpresos estavam direcionados para nós dois.
Pior mesmo era a maneira como meus amigos, Robert e
William, nos observavam. Eles não paravam de nos encarar. Seus
olhares não escondiam a desconfiança e o repúdio em ver que eu
estava, durante o intervalo, com o Eric e não com eles. Cacete.
— Liam! — ouvi Eric, Molly e Stefany me chamarem ao
mesmo tempo.
— O-Oi? Quê? — meio desorientado, por ainda estava
imerso em pensamentos, desviei minha atenção das pessoas do
pátio para eles.
— Faz meia hora que a gente tá te chamando — Eric falou.
— Esquece essa galera do colégio! — Stefany deu de
ombros. — Não precisamos dar satisfação de nada para eles.
— Estávamos aqui falando sobre o aniversário do Eric que
vai ser no próximo fim de semana — Molly se pronunciou.
Caramba. Era mesmo. O aniversário do Eric era no próximo
fim de semana. Durante anos, eu não liguei para esse
acontecimento, por isso não estava, de fato, me lembrando. Só que,
ao contrário dos outros anos, nesse nós estávamos diferentes um
com o outro.
— Nossa, verdade — repliquei.
— E aí, bonitão... — Stefany falou com um tom de voz
totalmente malicioso. — Você já sabe o que vai dar para o Eric?
O que eu vou da-dar para o Eric?
O que essa capetinha quis dizer com isso?
Molly caiu na risada, no mesmo instante.
— Você não presta! — disse para a loira, entre risos.
— Ora... — com a maior cara de anjo, Stefany replicou. —
Foi uma pergunta normal. Como qualquer outra.
— Acho melhor mudarmos de assunto — o loiro se
pronunciou, um pouco sem jeito.
— Também acho — e, pela primeira vez na vida, concordei
em alguma coisa com ele.
— Ok — sua irmã deu uma pequena risadinha. — Bom,
poderíamos fazer alguma coisa pra comemorar.
— Gostei — minha irmã disse e logo sugeriu algo. —
Poderíamos sair juntos. Nós quatro.
— Claro! — com entusiasmo, Stefany, de pronto, aceitou.
Sair juntos? Nós quatro? Quando isso já aconteceu? Tipo,
nunca?
— Sabe... — ouvi Eric. — Até pode ser uma boa ideia.
Comemorar meu aniversário e o A que o Liam tirou em química.
No mesmo que instante em que ele disse “e o A que o Liam
tirou em química”, um sorriso involuntário estampou o meu rosto.
Thor do céu, eu ainda não acreditava que tinha tirado um A em um
teste que respondi praticamente todo sozinho!
— A em química?! — surpresa, Stefany exclamou.
— Como assim?! — minha irmã arregalou os olhos.
— Ora... O bonitão aí estudou comigo né? — todo
convencido, Eric sorriu.
— Então, quer dizer que vocês estudavam mesmo em vez de
se comerem?
— Stefany! — disparei na mesma hora.
— Ah, qual é? — minha irmã deu-me um olhar de tédio. —
Depois que descobrimos sobre vocês, ficou mais do que na cara
que vocês se pegavam a todo instante, inclusive nas aulas
particulares.
— O que não é uma mentira — o loiro deu uma risadinha.
— Eric! — empurrei de leve seu ombro.
Ele sorriu
— Papai vai gostar de saber dessa nota, Liam — Molly
lembrou.
Papai... Ah, meu Zeus. Molly tinha razão. O que será o que o
papai diria quando soubesse essa nota? Com certeza, iria gostar.
Claro. Ele sempre quis que eu começasse a tirar notas boas. Será
que pela primeira vez na vida meu pai sentiria orgulho de mim?

❖❖❖

— Um A? — sorrindo, papai arregalou os olhos, enquanto


observava o teste em suas mãos.
Depois do intervalo e da aula, Eric e eu fomos para minha
casa. Ele continuava insistindo em me dar aulas para o processo
seletivo de Oxford. Saco. Mas, pelo menos, essas aulas estavam
servindo para alguma. Tirei um A em química. Então, esperava que
servisse para o processo seletivo das universidades também.
Nós dois tínhamos acabado e chegar e logo encontramos o
papai no jardim, babando pela sua nova BMW. Queria uma
Lamborghini nova também. Mas, nem tudo na vida era possível.
Quem sabe com essas notas boas, o papai me desse alguns
“agradinhos”, tipo um carro novo. Dinheiro era feito para se gastar
mesmo.
— Sim, pai, tirei um A em química — todo orgulhoso comigo
mesmo, repliquei. Um sorriso de orelha a orelha. — Legal né?
— Muito bem! Continue assim! — correu seu olhar pelo teste
de cima abaixo. — Mas... — franziu o cenho. — Estou vendo que o
teste foi feito em dupla com o Eric — ergueu seu olhar em direção
ao loiro e sorriu. — Meus parabéns, Eric! — e o abraçou. Meio sem
jeito, ele retribuiu. Seu rosto, no entanto, estava levemente franzido.
— Meus parabéns pela nota! — papai repetiu
Ainda de cenho franzido, Eric se pronunciou.
— Mas... Foi o Liam que tirou essa nota.
Papai soltou uma pequena risadinha.
— Ora, Eric... Venhamos e convenhamos. Liam não tiraria
essa nota se não fosse sua dupla.
Mas que porra era essa?
Agora eu tinha entendido tudo. Aquele coroa estava achando
que eu não tinha capacidade para resolver um teste de química!
No mesmo instante, Eric fechou o semblante.
— Na verdade, tio, foi o Liam que resolveu 90% do teste
sozinho. O mérito é dele — explicou.
Papai, por sua vez, virou-se para mim com breve sorriso e
deu três batidinhas no meu ombro.
— Muito bem, Liam. Vejo que finalmente está seguindo os
passos do Eric. Está se tornando um garoto estudioso, como o Eric.
Um garoto responsável, como o Eric. Um garoto...
Chega!
Sem pensar duas vezes, puxei o teste de suas mãos, dei-lhe
as costas e saí caminhando rapidamente pelo jardim, indo em
direção à porta de casa. Se eu estava com raiva? Eu estava muito
além disso!
Quer dizer que eu só tirava nota boa por causa do Eric? Quer
dizer eu estava me tornando o Eric porque tirei nota boa? Quer dizer
que eu, por si só, não tinha a capacidade de tirar nota boa? Ah, vai
se foder!
— Pare de agir feito criança, Liam! — ouvi quando meu pai
exclamou.
— Liam! — Eric correu atrás de mim.
Sem dar ouvidos a ele, entrei em casa e subi as escadas
rapidamente.
— Liam! — o loiro tentou me alcançar.
Entrei no meu quarto e bati a porta com toda força. Andei de
um lado para o outro, tentando controlar a raiva. Porque o Eric tinha
que receber as melhores congratulações? O meu pai nem me
abraçou! Ele abraçou o Eric! Enquanto continuava caminhando,
freneticamente, de um lado para o outro do quarto, o loiro entrou.
Por dois segundos, olhei para a sua cara. Ele fechou a porta e se
aproximou.
— Liam... — me tocou.
— Não toca em mim! — me afastei. — Melhor você sair
daqui, porque eu estou com muita raiva!
Eric, no entanto, se aproximou novamente.
— Eu não vou sair daqui. Eu preciso que você se acalme —
disse com a voz mais amável do mundo.
— Como eu vou me acalmar se você é o melhor em tudo?! —
disparei. — Sempre foi assim! Você é o garoto estudioso,
responsável, simpático, educado! E se eu não me tornar alguém
como você, eu estou fodido!
No mesmo instante, Eric me abraçou.
Ah, não! O que esse filho da mãe queria me abraçando?!
Empurrei-o sem pena.
— Sai daqui!
— Liam, não faz assim... — pediu. — Não dê ouvidos ao seu
pai. Ele não tem noção do que fala.
Esse garoto não tinha a menor noção do que estava falando!
Claro que meu pai sabia do que falava! Aliás, todo mundo sempre
soube que o Eric era o melhor em tudo e que eu devia me tornar um
Eric na vida. Saco!
— Claro que sabe, Eric! — disparei. — Não viu ele dizendo
que eu só tirei nota boa porque você foi minha dupla? Eu não sei de
nada nessa vida, Eric. E se eu tô tirando nota boa é porque estou
me tornando você, segundo meu pai!
— Liam... — tentou se aproximar mais uma vez. — Eu te
adoro do jeitinho que você é — e me abraçou.
Empurrei-o.
— Já disse pra sair daqui.
Eric, como se não tivesse me escutado, segurou meu rosto
com as duas mãos e olhou nos meus olhos.
— Amor...
Ah, meu... Deus, Zeus, Buda, Thor, Odin, ele estava me
chamando de amor com seriedade? No mesmo instante, senti meu
corpo travar.
— Tá me chamando de amor sem sarcasmo? — A pergunta
saiu da minha boca sem que eu percebesse.
O loiro sorriu amavelmente.
— Estou — e me deu um pequeno beijo na boca. — Eu te
adoro do jeitinho que você é. Até os seus defeitos são qualidades.
Adoro o seu jeito estressadinho. Adoro os palavrões que fala comigo
— riu um pouquinho. — Adoro a maneira como presta atenção
quando eu estou explicando química e física. Adoro o seu jeito
dedicado quando quer aprender alguma coisa. Adoro os beijos que
você me dá. Adoro a maneira como você me pega. Adoro a maneira
como você joga. Adoro a maneira como você faz gols. Eu adoro
tudo em você. E você não deve mudar nada disso. Você, da
maneira como é, vai continuar tirando notas boas, vai passar numa
universidade, vai mostrar para todo mundo como tem capacidade de
fazer o que quer. Sem precisar mudar, sem precisar ser outra
pessoa, sem parecer comigo.
Inevitavelmente, meus olhos se encheram de lágrimas com
as palavras do Eric.
Ah não, esse filho da mãe não podia me fazer chorar!
— Tem certeza que eu vou conseguir tudo isso? — Duas
lágrimas caíram. Merda. — Não sou tão inteligente quanto você.
Você é melhor que eu.
Eric suspirou e balançou a cabeça, demonstrando ter gostado
do que ouviu.
— Liam, você precisa saber que cada pessoa tem um tipo de
habilidade e de inteligência. Ninguém é igual. Todos são diferentes e
é isso que torna tudo tão interessante. Você também tem suas
habilidades e sua inteligência.
— Não sei que habilidade e inteligência são essas —
resmunguei.
— Então, eu vou te contar uma história. Algo que eu nunca te
falei. Sabia que quando eu era criança eu te admirava tanto que
queria ser igual a você?
— Igual a mim? — confuso, perguntei.
Eric sempre foi bom em tudo. Não existiam motivos para
querer ser igual a mim.
— Sim — me deu um pequeno sorriso. — Desde pequeno,
você sempre mandou bem no futebol. Sempre foi habilidoso. Eu
queria ser como você. Eu queria mandar bem no futebol como você.
Eu queria ter a mesma habilidade que você tinha com a bola. Eu
treinava futebol me espelhando em você. Antes de treinar, eu
fechava os olhos e te imaginava jogando. Eu me imaginava fazendo
dribles tão bons quanto os seus. Eu me empenhei pra isso.
Consegui ficar tão bom quanto você. Me tornei capitão do Colégio
Liverpool, assim como você é capitão do Colégio Regent. Fiz tudo
isso porque você me inspirou a ser assim. Nunca te disse isso, mas
sei que esse é o momento certo de falar.
Quando se calou, eu estava boquiaberto.
— Isso é sério? — perguntei, ainda sem acreditar.
— Tão sério quanto o que eu sinto por você — respondeu.
Ah meu Zeus! Dessa vez, fui eu quem o abraçou forte.
— Valeu. Valeu mesmo pelas palavras.
Eric se afastou do abraço somente o suficiente para ficarmos
cara a cara.
— Isso foi só uma pequena história pra te mostrar o quanto
você é demais. Você não tem habilidade só com futebol, você pode
ter habilidade com tudo, com qualquer coisa que quiser. Basta você
querer. Olha só, você tirou A em química! Você conseguiu! Nós dois
sabemos que eu não fiz praticamente nada daquele teste. O mérito
disso vai ser sempre seu. É por isso que eu sei que você vai
conseguir atingir todos os seus objetivos. Vai continuar tirando notas
boas. Vai ser aceito em uma universidade. Vai passar na cara de
todo mundo que você conseguiu isso sem deixar de o ser Liam de
sempre.
“Vai passar na cara de todo mundo que você conseguiu isso
sem deixar de o ser Liam de sempre”.
As palavras ressoaram em minha mente. Eric estava certo.
Eu ia provar para todo mundo que eu também era capaz! Todos
veriam que eu poderia bom sendo eu mesmo, sem precisar me
tornar outra pessoa.
— É isso aí! — com determinação, falei. — Vou tirar notas
boas por conta própria. Vou passar na porra de uma universidade.
Esses putos vão ver do que eu sou capaz.
Eric soltou uma pequena risada.
— Esse é o Liam que eu conheço! E eu estou aqui pra ajudar
no que for preciso.
— E o Liam que você conhece faz isso? — peguei-o pela
cintura e o beijei com toda vontade.
Extasiado, Eric separou nossos lábios por alguns segundos.
— Conheci há pouco tempo, mas já estou considerando pra
caralho — e me empurrou contra a escrivaninha, fazendo com que
eu me sentasse sobre ela.
Afastando minhas pernas, Eric se encaixou entre elas, me
beijando.
— A gente deveria começar a estudar... — disse, entre beijos,
em tom de brincadeira, e ri um pouquinho.
— Hum, Liam estudioso entrando em ação — Eric também
brincou. — A gente vai. Já já — e tornou a me beijar.
Meta de vida

Liam

Os dias estavam passando rápido e lentamente ao mesmo tempo.


Era estranho. Somente nesses últimos dias, já tínhamos jogado a
última partida das oitavas finais. Ganhamos, porra! Agora,
estávamos nas quartas de finais do campeonato. Mata-mata. Quem
perdesse algum jogo, estava automaticamente eliminado.
Precisávamos ter todo o cuidado do mundo. Inclusive, o jogo das
quartas de final já seria naquela mesma semana.
O problema era que isso sinalizava que o campeonato estava
acabando. E campeonato acabando era sinal de que os olheiros
iriam escolher algum jogador para receber uma bolsa de estudos em
alguma universidade. Será que esse jogador iria ser eu? Com o Eric
no time, tudo permanecia incerto. Pelo menos, ele estava me
ajudando. Inclusive, eu nem estava me reconhecendo direito, sabe?
Eu sentia diariamente uma vontade de estudar. Caralho. Eu nunca
senti isso na vida.
Eric e eu estávamos estudando juntos praticamente todo dia.
E não era só química e física. A gente estava estudando para os
processos seletivos das universidades também. Até estudando
sozinho eu estava! Quando isso já aconteceu na minha vida?
Nunca. Todavia, isso me deixava cada vez mais próximo ao Eric.
Não estava dando mais pra esconder isso de ninguém. Meus pais já
perceberam, os pais dele já perceberam, os meus amigos já
perceberam, o colégio inteiro também. Todos estavam notando.
Era mais forte que eu. Não conseguia mais manter a porcaria
do Eric longe de mim. Era como um vício. Eu sentia como se
definitivamente tivesse entrado no caminho da boiolagem. Um
caminho sem volta. Logo eu! O cara mais macho que já nasceu em
Londres! O problema era que a vida pregava peças. Eu não
conseguia mais passar um dia sequer sem beijá-lo, abraçá-lo, tocá-
lo. Mesmo que tudo isso fosse feito nas escondidas. Que morte
horrível.
Além do mais, eu sentia como se tudo estivesse tomando
proporções cada vez maiores. Se antes a gente se via e não se
beijava, agora a gente tentava se esconder em qualquer lugar pra
se beijar. Se antes a gente a só se beijava feito dois adolescentes,
agora a vontade de tirar a roupa apareceu feito dois adultos. Era
como se os beijos não estivessem mais me saciando. Era como se
somente tocá-lo não fosse suficiente. Era como se Eric e eu
precisássemos de mais para nos satisfazer. Era como se eu
quisesse que eu e o ele fôssemos um só. E, caralho, isso era
assustador.
Por exemplo, naquele momento, nós estávamos aqui no meu
quarto, estudando para os processos seletivos das universidades,
mas eu não conseguia parar de pensar na boca daquele demônio,
no corpo daquele capeta, no jeito como ele me pegava, na maneira
como ele me abraçava. Estávamos tão concentrados resolvendo
exercícios, pelo menos o Eric estava, mas, mesmo respondendo as
questões, vez ou outra, acabava desviando meu olhar para o lado,
na tentativa de observar, pelo menos um pouquinho, aquele rosto
horroroso que ele tinha.
Ok. Foco, Liam. Não era hora de pegar o Eric. Era hora de
estudar. Sim. Melhor ler a próxima questão de física do último
processo seletivo de Oxford: “Um capacitor plano de capacitância C
e cujas placas estão separadas pela distância d encontra-se no
vácuo. Uma das placas apresenta o potencial V e a outra –V. Qual o
valor da carga elétrica armazenada pelo capacitor?”.
Hum. Eu conhecia essa questão. Me lembrava de ter visto
algo parecido no caderno de física que o Eric me emprestou no
início das aulas. Ainda estava com ele. Na verdade, estava em cima
da escrivaninha onde estudávamos. Por sorte, eu não queimei de
raiva esse caderno. No início, sempre que o via, eu me lembrava do
Eric. E isso era a última coisa que eu queria lembrar, antes de
perder minha dignidade e virar boiola.
O problema era que uma hora a gente cansava de lutar
contra tudo.
Enfim. Foco na física, Liam.
Levantei-me da cadeira somente o suficiente para tirar o
caderno que estava debaixo de alguns livros. Eric permaneceu
concentrado, resolvendo suas questões. Ele estava fazendo o típico
biquinho de quando se concentrava em algo. Coisa lin... Horrível!
Eric feio. Muito feio. Horroroso. Eu não sabia como fui gostar
daquele imbecil. Esses cabelos loirinhos. Esse nariz arrebitado.
Esses braços malhados. Esse abdômen definido. Horroroso. Mil
vezes horroroso.
Sentei-me novamente na cadeira e comecei a folhear o tal
caderno de física que o Eric me emprestou no início das aulas. Isso
era quase uma bíblia. Ali tinham todos os tipos de questões de
todos os conteúdos de física. Eric realmente era nerd. Um nerd fora
dos padrões. Jogava futebol, era descolado, era gato. Tudo bem
que eu nunca queria dar o braço a torcer pra beleza dele, mas isso
não vinha ao caso. O que queria dizer era que esse desgraçado
quebrava os padrões de nerd.
Inevitavelmente, virei meu rosto em direção a ele,
observando-o. Biquinho lindo. Tá! Era lindo mesmo, e daí?! Aquele
cafajeste estava tirando minha concentração e não se dava conta
disso, assim como também nem estava prestando atenção em mim.
Parece que o jogo virou, não é mesmo, Liam? Revirei os olhos para
mim mesmo.
Apenas seguindo meus instintos, abri o caderno na última
folha e escrevi “filho da mãe”. Arrastei o caderno em sua direção,
até que ele finalmente tirou sua atenção dos exercícios.
Instantaneamente, sorriu ao ler e me deu um olhar um tanto quanto
malicioso. Não demorou muito até ele também escrever algo e
arrastra o caderno em meu rumo.
“Lindo”, li.
“Brega”, escrevi.
“Perfeito”
“Horroroso”
“Gostoso”
Gostoso? Hum. Gostei.
“Atrevido”, escrevi.
Eric deu uma pequena risadinha ao ver.
“Excitante”, li.
Puta merda. Eu li isso mesmo?
“Gay”, escrevi.
Eric sorriu.
“Você também”, ele colocou.
Eu não sou boiola!
Instantaneamente, meu subconsciente me acusou de
mentiroso.
Que seja.
Tá bom, eu era sim.
Droga!
Um boiola macho, só pra deixar claro!
“Quero te beijar”, escrevi.
A que ponto chegamos, meu Zeus! Tudo culpa do Eric!
No mesmo instante em que leu, seu semblante malicioso
retornou ao rosto.
“Fique à vontade”, escreveu.
Thor, o que estava acontecendo comigo? No exato momento
em que li, senti uma pequena chama se acender dentro de mim. A
chama da boiolagem, socorro! Sem pensar por mais tempo,
levantei-me da minha cadeira e sentei em seu colo, de frente pra
ele, com uma perna de cada lado. Eric arregalou um pouco os olhos
com a surpresa, mas logo sorriu.
Santa Vodca do Céu, eu estava ficando cada vez mais gay!
Isso tinha volta?
Em um piscar de olhos, Eric avançou em minha boca. Suas
mãos apalparam minhas pernas e minha bunda, colando ainda mais
meu corpo ao dele. Filho da mãe da pegada boa. De repente, Eric
afastou a cadeira de rodinhas em que estávamos e se levantou.
Com a surpresa, acabei entrelaçando minhas pernas na sua cintura
e segurando nos seus ombros. Que posição mais gay, pelo amor de
Odin! Pior que era mais forte eu. Eu não sabia o que aquele
desgraçado estava fazendo com a minha cabeça, eu só sabia que,
ultimamente, queria mais e mais e mais.
Notei Eric caminhar em direção a minha cama, até que, de
repente, me jogou e foi pra cima de mim. Mas o que estava
acontecendo ali?! Eu estava na mesma cama com o Eric?
Produção, ninguém me avisou sobre essa parte! Alguém me salva!
Quer dizer, salva não! Ele sugou meu pescoço. Merda. Aquele idiota
ia me deixar louco. Ia sim, com certeza. Mas, ele que não achasse
que eu ia me deixar levar sem fazer nada. Ali não era a casa da
mãe Joana, não!
No mesmo instante, virei-me, deixando-o por baixo e eu por
cima, entre as suas pernas. O loiro sorriu e, de maneira provocativa
e brincalhona, inclinou seu quadril na direção do meu, fazendo com
que ambos os volumes dos pênis se encontrassem. Ai, caramba.
Beijei-o, totalmente excitado. Quando, meu Thor amado, eu poderia
imaginar que ficaria assim com o Eric um dia? Parecia piada! Mas, o
fato era que eu estava completamente tomado pela excitação. Não
sabia se era ele, não sei se era porque eu estava há muito tempo só
com masturbação. A real era que eu estava mesmo excitado.
De repente, o loiro virou-se, ficando, novamente, entre as
minhas pernas e me deixando, mais uma vez, por baixo. Qual é?!
Ele estava querendo mesmo me deixar por baixo? Não, filho. Não
era assim que funcionava. Sem pensar duas, virei-me, deixando-o,
outra vez, por baixo e ficando, novamente, entre as suas pernas.
Eric soltou uma pequena risada.
— O que foi, Liam? A gente compete até sobre quem fica por
baixo na hora da pegação? — perguntou entre risos.
— Mais ou menos isso — um pouco ofegante, repliquei.
O loiro ainda me encarou por alguns segundos, até que
finalmente...
— Me toca — Seu olhar, de repente, se tornou totalmente
sério.
No mesmo instante, senti meu corpo travar.
— Te tocar? — um pouco incerto, perguntei.
— Sim — com o mesmo olhar sério, replicou.
— Mas eu tô te tocando — dei-lhe um pequeno sorriso
amarelo.
Não podia ser o que meu subconsciente estava querendo
pensar. Não mesmo.
Eric suspirou
— Você sabe do que eu estou falando — e segurou minha
mão direita, levando-a até o botão e o zíper da sua calça jeans.
Meu Pai!
Era o que eu mais temia.
Quer dizer... Eu sabia que só os beijos não estavam nos
satisfazendo. Eu sabia que nós queríamos mais. Só que... Porra, eu
não sabia se estava preparado para aumentar a proporção das
minhas intimidades com o Eric. Isso era muito novo!
No mesmo instante, saí de cima dele e me levantei da cama.
— O que foi, Liam? — ouvi o loiro perguntar.
Caminhei de um lado para o outro do quarto, pensando,
analisando. Ah, meu Zeus, como era difícil ser um boiola novato!
Toda essa confusão de pensamentos e sentimentos era foda e
extremamente desgastante.
— Liam... — Eric me chamou novamente e se levantou da
cama.
Continuei sem dar ouvidos, andando freneticamente de um
lado para o outro, até que...
— Liam — ele me abraçou por trás e beijou meu pescoço.
Ô Hades, me ajuda aí!
Suspirei.
— Não precisa ter medo — falou com o tom de voz mais
amável do mundo, ainda me abraçando por trás.
O quê? Medo?
— Eu não estou com medo! — disparei e virei-me de frente
para ele, cruzando os braços e fazendo-o me soltar do abraço.
Eric sorriu.
— Ah, não tá com medo? Ótimo! Então... — e levou suas
mãos até o botão da minha calça.
Instantaneamente, me afastei e fechei os olhos, espremendo-
os com raiva de mim mesmo.
— Droga. Eu tô com medo, porra — confessei.
Se fosse com uma mulher, eu saberia exatamente o que
fazer, mas eu estava com um homem!
Eric sorriu outra vez, mordendo levemente o lábio inferior, e
me puxou devagar pela cintura.
— Olha... — me deu um pequeno beijo na minha boca. —
Não precisa ter medo. Eu disse que iríamos aos poucos, não disse?
O que vai acontecer aqui será só pra gente... Se conhecer melhor.
— Se conhecer melhor? — indaguei.
— Sim.
Eu conhecia bem essa história de “se conhecer melhor”,
garanhão! Usava a mesma “técnica” com as garotas.
— Não sei... — desviei-me dele, caminhando até o outro lado
do quarto.
Eric, com sua típica postura de predador, foi em minha
direção. A cada passo que ele dava, era um meu para trás. No
entanto, minhas costas logo tocaram a parede. Merda. Esse filho da
mãe ia me dar o bote.
— Sabe... A gente deveria voltar para as questões... — com
uma pontinha de nervosismo, falei.
— Foi você que começou com isso... — com certo sarcasmo,
respondeu e me beijou.
Ah não... Por que o Eric sempre fazia isso? Parecia até que
tinha domínio sobre mim. Esse desgraçado dos infernos.
— Você vai ver como vai ser bom... — disse entre beijos.
— Bom? — questionei, já me sentindo entregue às suas
garras.
Eric tornou a me beijar. Dessa vez, muito mais lentamente.
— Sim — e replicou. — Posso começar fazendo em você.
O quê, meu Zeus? Como assim? O que eu estava fazendo da
minha vida?
— Co-começar fa-fazendo em mim? — gaguejei.
— Sim... — respondeu simplesmente e começou a
desabotoar minha calça.
Santa Vodca do Céu! Ele ia fazer mesmo o que eu estava
pensando?
— Eric... — tentei falar, mas...
Ele me interrompeu com um beijo. Fechei os olhos e, por
mais estranho que tudo isso fosse, eu me deixei levar sem perceber.
Eric parecia ter uma artimanha nata para me deixar entregue a tudo
o que eu mais temia. Apenas sentindo o momento, mesmo com os
olhos fechados, percebi o exato momento em que abriu minha calça
por completo. Um frio na barriga me tomou. Parei de beijá-lo e
respirei fundo. Nossos rostos estavam colados, mas havia um
espaço suficiente para que eu conseguisse olhar para baixo.
Um misto de ansiedade, medo, nervosismo, tesão, felicidade,
alegria, excitação percorreu o meu corpo. Que diabos eu estava
sentindo, afinal? Nunca senti isso em toda a minha vida. Nenhuma
mulher despertou em mim esse misto de sensações. Assim, ainda
olhando para baixo, vi o momento em que Eric afastou os dois lados
da braguilha da calça. Oh, merda. Meu pênis estava completamente
duro. Suspirei e mordi o lábio inferior no segundo em que puxou
para baixo a parte da frente da minha cueca e liberou meu pênis.
Caramba. Meu membro saltou. Inevitavelmente, fiquei
vermelho de vergonha. Porra. Não era pra eu estar tão excitado
assim. Olha só a cara de safado do Eric! Seus olhos lentamente
subiram, indo de encontro ao meu. Virei meu rosto para o lado,
tentando esconder a vergonha. Ele não podia me ver assim. De
repente, uma de suas mãos segurou o meu queixo e forçou
levemente meu rosto para frente. Ah, meu Zeus, esse desgraçado
queria me encara enquanto estivesse fazendo o trabalho sujo. Sim,
eu sabia o que ele queria. Ele queria saborear todas as minhas
expressões faciais. Eu sabia disso, porque eu fazia o mesmo com
as mulheres.
E, quando eu menos esperei, senti sua mão tocar meu pênis
sem qualquer barreira. Inevitavelmente, abri a boca de leve, em
puro êxtase. Ele sorriu. O sorriso mais safado que já vi na vida. Nem
as mulheres me davam sorrisos tão safados quanto esse. Sua boca
encostou-se a minha e sua mão envolveu meu pênis por completo.
Quando fechei os olhos para sentir seu beijo, Eric começou um lento
e torturante movimento de vai e vem no meu pênis. Inevitavelmente,
abri os olhos e mirei-os exatamente no local.
Oh meu Zeus! Eu podia gozar se passasse mais cinco
segundos só olhando. Melhor desviar meu rosto. Sim. Ergui meu
olhar e virei para o lado novamente. Não queria vê-lo me masturbar,
porque podia gozar em cinco segundos, assim como não queria que
ele visse minhas expressões faciais de prazer. Contudo, mais uma
vez, Eric segurou meu queixo, virando meu rosto para frente. Que
demônio dos infernos! Ele realmente sentiu prazer em me ver tendo
prazer. Quando fui abrir minha boca para repreendê-lo, ele me
beijou com voracidade, ao mesmo tempo em que aumentava o ritmo
do movimento no meu pênis.
Santa Vodca do Céu, me ajuda a não gozar! Não. Cristo. Eu
não ia aguentar.
Eu ia gozar.
Separei nossos lábios no exato momento em que senti meu
corpo se preparar para ter um orgasmo. Concentrei-me para não me
entregar. Eric sorriu. Aquele capeta estava se divertindo com isso.
Notei seu olhar buscando por minhas expressões faciais de prazer.
Porém, eu não ia mostrar isso. Ah, não ia mesmo. Entretanto, meu
organismo estava começando a falar mais alto. Minha cabeça
pensava de um jeito, mas meus instintos me levavam a fazer
totalmente o contrário do que eu queria. Droga. Cada vez mais, eu
estava me sentindo entregue, sentindo o prazer. Gradativamente, eu
ia me conformando, mesmo sem querer, de que não dava mais para
prender.
Tentei, ao máximo, forçar meu rosto para não demonstrar o
prazer. Tentei. Tentei com todas as minhas forças. Contudo, um
gemido baixinho escapou da minha garganta. Ferrou. Eu tinha
entrado em um caminho sem volta. Eric sorriu e me observou com
admiração e malícia ao mesmo tempo. Idiota. Fechei os olhos e
mordi o lábio inferior. Meu subconsciente me dizia que eu estava me
entregando. E, cacete, eu estava mesmo. Eu me sentia cada vez
mais ofegante, à medida em que comecei a mexer meu quadril
involuntariamente. Eu sabia que as expressões de prazer já
estavam em meu rosto, assim como também sabia o quanto Eric
estava se divertindo com isso.
Que filho da mãe pra masturbar bem!
E, para completar, ele pronunciou as palavras mais sacanas
que já ouvi nos últimos tempos.
— Vai. Bate uma pra mim também. Eu tô pertinho de gozar
sem nem tocar nele.
Ca-ra-lho.
Essas palavras foram o suficiente para que eu me entregasse
por completo. Sem pensar duas vezes, levei minhas mãos ao botão
e ao zíper da sua calça. Abri-a e suspirei no exato instante em que
vi seu pênis saindo. Completamente duro. Um tamanho bastante
convidativo. Lindo. Que pênis bonito, meu irmão! E eu nem
acreditava que estava fazendo essas considerações sobre o
membro de outro homem. A que ponto eu cheguei, meu Zeus! Eu
estava fazendo considerações sobre o pênis de outro cara e ainda
queria bater uma pra ele. Socorro!
Envolvi seu pênis com minha mão e comecei a masturbá-lo.
Eric olhou para baixo por alguns segundos, mas logo inclinou sua
cabeça para trás e gemeu baixinho. Dessa vez, era eu quem o
segurava pelo queixo. Queria ver todas as expressões dele, assim
como ele queria ver as minhas. E ali estávamos nós. Um olhando
para outro com tesão, prazer, excitação, malícia. Um masturbando o
outro com vontade, urgência, voracidade. Um mexendo o quadril
para o outro, a fim de aumentando a intensidade do movimento. A
libido estava aumentando a ponto de não aguentarmos mais.
Acabamos gozando.
Não sabia ao certo quem gozou primeiro, quem gozou
depois. Eu só sabia que o líquido dele estava escorrendo por entre
os meus dedos e o meu líquido estava escorrendo por entre os
dedos dele. No mesmo instante, Eric praticamente desabou em
mim, inclinando seu corpo e apoiando sua cabeça no meu ombro.
Eu, que já estava com as costas na parede, encostei-as ainda mais
e inclinei minha cabeça, apoiando-a na do Eric. Ambos ofegantes,
tentando recuperar o fôlego. Caralho, foi muito forte. Foi muito bom.
Foi indescritivelmente maravilhoso. A melhor punheta de todos os
tempos.
— Você ainda vai me deixar doido — com a voz rouca, falei.
O loiro afundou o rosto no meu pescoço.
— Essa é minha meta de vida — e respondeu com a voz
abafada.
A fenda do biquíni

Liam

“Essa é minha meta de vida”.


Tais palavras estavam martelando na minha cabeça desde o
dia anterior. A sua boca na minha. As suas mãos no meu pênis. As
minhas no dele. Só de me lembrar em cada coisa que fizemos a
chama da boiolagem começava a soltar as primeiras faíscas dentro
de mim. Zeus, quando eu me tornei tão gay? Porque, olha, não
estava fácil. A cada dia eu me sentia cada vez mais envolvido.
Parecia algo sem precedentes. Os minutos com Eric eram
como uma eternidade, ao mesmo tempo em que passavam como
um piscar de olhos. E esses minutos me traíam. Me traíam porque,
à medida em que eles passavam como um piscar de olhos, eu
sentia cada vez mais a necessidade de ter aquele imbecil comigo; e
à medida em que eles passavam como uma eternidade, eu sentia
que precisava realmente de uma eternidade pra me aceitar.
O problema era que, ao lado do Eric, eu notava que já estava
vivendo essa eternidade, ou seja, me sentia cada vez mais
convencido de que realmente gostava de caras. Quer dizer, caras
não. Eu gostava de um cara: Eric. E nem era “nossa, eu gosto dele
pra caramba”, mas era um “gostarzinho”. Coisa pouca, sabe? Quase
nada. Aquela boquinha maravilhosa. Aquela bunda gostosinha.
Aquele pênis... Ah meu Zeus do Céu! Meu Poseidon do Mar! Tá
legal! Eu gostava dele tipo pra caralho!
— Querido! Liam! — senti as mãos da mamãe me
chacoalhar. — Assim você vai derramar o suco!
— Ah, o-oi, mãe... — gaguejei, como se estivesse acordando
de um sonho, ao mesmo tempo em que foquei na jarra de suco que
estava na minha mão.
Estava despejando o suco no copo. Por pouco, não derramei.
— Querido, estava te chamando há meia hora — Nossa,
como minha mãe era exagerada. — Você anda no mundo da lua.
Ah, olha aí! Tá vendo? Agora eu andava até no mundo da lua
por causa daquele filho da mãe.
— Impressão sua, mãe. Eu só estava... Só... É... Só...
— Quem é a garota? — mamãe perguntou com certa malícia
nos olhos.
No mesmo instante, Molly se engasgou com o café que
estava bebendo. Olhei para ela e percebi que estava se segurando
para não rir. Se nossa relação como irmãos não estivesse indo tão
bem, eu a chamaria de capeta dentro de instantes. Quer dizer, eu
podia muito bem chamá-la de capeta, mesmo que nossa relação
estivesse “muito-bem-obrigado”.
Antes fosse uma garota, né, mãe?
— Ninguém — limitei-me apenas a responder isso.
— Saudade da época em que nossos filhos conversavam
conosco na hora do café da manhã, não é, querido? — mamãe falou
com certa ironia e olhou para o papai.
— Quando isso aconteceu? — ele franziu o cenho e sorriu de
leve. — Quando Molly tinha seis anos e Liam tinha sete?
— Realmente — rindo, mamãe concordou.
— Claire comentou comigo ontem que você e o Eric estão
bastante próximos — papai me encarou. — E você e a Stefany
também — por fim, olhou para Molly.
Assim que ele se calou, senti meu corpo gelar de leve. Molly
e eu nos entreolhamos de maneira disfarçadamente cúmplice, até
que ela decidiu tomar partido.
— Amigos — replicou. — Muito amigos. Deixamos de lado
todos os problemas com os relacionamentos que tivemos.
Papai e mamãe, satisfeitos, sorriram.
— Muito bem — eles disseram.
Bebi um gole de suco, tentando ajustar meu tom de voz, para
não parecer nervoso, e, finalmente, me pronunciei.
— Não é isso o que vocês sempre quiseram? Somos muito
amigos agora — Amigos até demais. Pensei, mas não disse essa
última parte.
— Cynthia deve estar tão feliz quanto nós — mamãe falou.
Um breve momento de silêncio, então, surgiu na mesa, até
que, de repente, ouvimos o toque do celular do papai. Deixando seu
sanduíche de lado, ele atendeu.
— Olá, Smith, bom dia — limpou os cantos da boca com
guardanapo. — Pois não. Pode falar — levantou-se da cadeira e
caminhou brevemente pela sala de refeições. — Na empresa? Mas
como isso pôde acontecer? — Seu tom de voz se altera levemente.
O que estava havendo? — Vocês têm certeza? — perguntou com o
semblante preocupado. — Ok. Estou indo. Eu mesmo quero avaliar
esses papéis — e desligou o celular.
— Claire, preciso ir a empresa agora. Não tenho como
esperar por você. Pegue o outro carro. Te espero lá.
— Aconteceu algum problema, querido? — mamãe
perguntou.
— Eu espero que não — ele respondeu, pegando sua pasta e
saindo.

❖❖❖

— Se é pra ganhar! — gritei.


— Se é pra ganhar! — o time repetiu.
— Se é pra perder!
— Se é pra perder!
— O Regent vai mostrar sua força, garra e determinação! —
exclamei.
— Quem vai dar o sangue?! Quem?! — Eric também puxou o
grito de guerra, animando o time, assim como eu.
— Eu! — responderam em uníssono.
— Quem vai dar o sangue?! Quem?! — o loiro repetiu.
— Uh! Uh! Uh! — todos os jogadores passaram os braços por
cima dos ombros uns dos outros e começaram a pular, até que Eric,
sorrindo como uma criança, me puxou e bagunçou meu cabelo.
Sem pensar duas vezes, puxei-o também e baguncei seu
cabelo da mesma forma que fez com o meu.
Depois que a aula acabou todos nós do time fomos para a
sala da concentração. O treino iria começar dentro de poucos
minutos. Para animar a galera, já que estávamos indo para as
quartas de final, puxei o grito de guerra e Eric me ajudou. Todos
entraram no clima. O problema era que os olhares do Robert e do
William para nós não mudavam. Principalmente agora, com o Eric
me ajudando no grito de guerra, bagunçando meu cabelo e eu o
dele. Merda. Estava cada vez mais difícil disfarçar.
Bruscamente, parei a palhaçada e tentei recuperar minha
compostura. Para todos os outros do time, Eric e eu só estávamos
nos tornando amigos. Contudo, eu sentia que Robert e do William
pensavam diferente. Será que eu realmente estava dando muita
bandeira? Será que eles realmente estavam percebendo que rolava
coisa muito além da amizade entre Eric e eu? Ou será que tudo não
passava de ciúmes de amigos? Porque, bem, eles sempre foram
meus melhores amigos e agora eu estava mais próximo ao Eric do
que deles.
Era melhor ir falar com eles. Sim. Eles estavam cada vez
mais estranhos comigo. Se duvidar, daqui a pouco, parariam de falar
comigo. Não que eu me preocupasse com isso. Óbvio que não.
Nunca fui preocupado em manter amizade com seu ninguém. Eu
era muito popular e podia ter a amizade de quem eu quisesse. Eu
só não queria que eles desconfiassem que estava me tornando
boiola.
— E aí! — me aproximei deles e ergui minha mão para um
toque de irmãos.
— E aí... — Robert respondeu meio desconfiado.
— E aí... — William também respondeu, igualmente estranho.
— Tudo tranquilo? — perguntei.
Não que eu estivesse interessado no bem-estar daqueles
otários. Eu só não sabia como começar a conversa. Nós realmente
estávamos nos tornando cada vez mais distantes. Mas, a culpa não
era minha. A culpa era deles. Eles que estavam se afastando de
mim, depois que... Bem, depois que eu comecei a me aproximar do
Eric.
— Tudo... — Ambos responderam ainda desconfiados.
— Hum — tentei ao máximo encontrar algum rumo para a
conversa. — Vai rolar o que no fim de semana? Sair pra algum
lugar?
— Tá chamando a gente pra sair? — William ergueu uma das
sobrancelhas.
Não. Só não quero que fique muito na cara que estou dando
uma de boiola com o Eric.
— Ah, sei lá — repliquei. — Faz tempo que a gente não sai.
— Pub? Sábado à noite? — Robert perguntou. — Tomar
umas e tal.
Assim que ele sugeriu, minha mente, no entanto, me trouxe
uma lembrança: sábado era o aniversário do Eric. Cacete. Eu já
estava me esquecendo! Não que eu me preocupasse com isso. Era
só o aniversário do Eric. Mas, e se ele quisesse sair para algum
lugar? Ah não. Não, não. Eu não podia acreditar que estava me
preocupando com isso. Eu não era nem namorado do Eric.
Namorado... Senti um calafrio só de pensar nessa palavra.
Zeus me proteja. Eu não era... Namo... Namo... Ah que seja! Eu não
era esse troço do Eric. Então, eu não tinha a obrigação de sair com
ele para canto nenhum no dia do aniversário. Ora essa.
— Sim — sorri. — Pub. Sábado à noite. Pode ser sábado à
noite.
— Marcado então — William me deu um toque no ombro.
— Bom dia, jogadores que estão nas quartas de final! — Sr.
Jones entrou animado na sala da concentração.
— Bom dia, Sr. Jones! — o time respondeu.
— Sentem-se, por favor — pediu.
Quando fui me sentar em uma das cadeiras, junto com
Robert e William, senti, no entanto, um olhar sobre mim. Era o Eric.
Indicou levemente com a cabeça para que eu me sentasse ao seu
lado. Não. Isso já era demais. Estávamos muito juntos. Eu precisava
de um tempo com Robert e William.
Acenei discretamente um “não” e sentei-me ao lado dos
meus amigos. Eric me observou de maneira impassível e se sentou
também, mas do outro lado, próximo ao Adam. Lado oposto ao local
onde eu estava.
— Estão animados? — Sr. Jones perguntou. — Porque eu
estou bastante!
— Claro, Sr. Jones! Se o senhor visse a quantidade de
gatinhas gamadas na gente por causa dos jogos... — um dos
jogadores disse em tom de brincadeira. — Se a gente ganhar o
campeonato, vou ter transa garantida pelo resto do ano!
O time inteiro riu, inclusive o próprio técnico.
— Ora, meu caro James, sugiro que se preocupe primeiro
com os jogos e depois com as gatinhas — respondeu no mesmo
tom de brincadeira. Ele, milagrosamente, estava de bom humor
naquele dia. Devia ser porque passamos de fase. — Mas, por falar
em ganhar o campeonato, precisamos focar nas quartas de finais.
Se tudo correr conforme planejamos, temos apenas três jogos pela
frente. As quartas de final, a semifinal e a grande final. Quero que, a
partir do treino de hoje, o Liam e o Eric façam um intenso trabalho
em dupla — No mesmo instante, Eric e eu nos entreolhamos. —
Vocês dois são minhas cartas na manga para vencer o campeonato.
Preciso que trabalhem em dupla e que essa dupla de vocês esteja
conectada com o restante da equipe. Principalmente para o que o
tenho em mente para o jogo da final. Se nós formos para a final, é
claro.
— E... O que o senhor tem em mente para a final? — um
pouco receoso, Eric perguntou.
Sr. Jones encarou nós dois ao mesmo tempo, dando-nos um
sorriso de certa forma enigmático.
— Uma jogada de mestre — replicou.
— Jogada de mestre? — com o cenho franzido, questionei.
— Sim — Sr. Jones deu um breve sorriso.
— E como seria essa jogada? — Eric perguntou.
O técnico, no entanto, suspirou e se levantou da cadeira.
— Uma coisa de cada vez, Eric. Ainda não é o momento.
Primeiro, as quartas de final. Depois, a semifinal. Por fim, a final.
— Mas... — tentei falar.
— Vamos lá, time! Ao trabalho! — ele me interrompeu.

❖❖❖

Eu não sabia que o trabalho em dupla, que o Sr. Jones


estava se referindo, era... O Eric ficar se jogando pra cima de mim
durante todo o treino! Caralho, eu já estava subindo pelas paredes
com essa palhaçada! Que garoto mais filho da mãe! Claro que ele
fez tudo disfarçadamente. Mas, eu percebi. Eu percebi, bem, todas
as artimanhas daquele enviado pelo capeta! Ele se aproveitou do
fato de termos que treinar em dupla pra ficar se esfregando em mim
sempre que pudesse. Enquanto eu ficava como? Exatamente!
Ficava com vontade de fodê-lo! Literalmente.
Sempre que tinha a oportunidade, ele me tocava, no ombro,
no braço, na mão, ou em qualquer outra parte. Até mesmo, quando
o passe de bola permitia proximidade, ele roçava de leve em mim!
Filho da mãe querendo me deixar duro na frente do time. Claro que
eu tentava não dar muita bandeira. Mas, o fato era que ele me
atiçou e não fez o trabalho completo. Óbvio. Não dava pra fazer o
trabalho completo na frente de todo mundo. Mas, eu ainda estava
no clima. E o problema maior qual era? Nós estamos indo para o
vestiário, porque o treino acabou, e, do jeito que eu estava, não
podia vê-lo pelado.
— Pessoal! — Sr. Jones falou enquanto caminhávamos. —
Grupo completo no banho.
Puta merda! Eu merecia mesmo! Agora sim! Que Buda me
ajudasse. Que Zeus desviasse meu olhar do Eric. Que Poseidon
segurasse o meu pênis. E, principalmente, que Odin fizesse com
que a porcaria do Eric ficasse quieto!
— Treino hoje foi pesado né? — tentei puxar conversa com o
Robert, para me afastar do Eric o máximo o que eu pudesse
naquele banho.
— Foi — respondeu. — Eric estava bem empenhado contigo,
né? — notei o sarcasmo em sua voz.
Merda. Ele percebeu.
— Acho que todo mundo estava empenhado, né? — tentei
disfarçar.
— É. Estava — replicou e entrou no vestiário, enquanto eu o
acompanhava.
Ao entrarmos no local, Robert logo começou a tirar a roupa,
assim como todos os outros do time. William apareceu e se juntou
nós. Vi todos tirando a roupa e não senti absolutamente nada. Mas,
era só pensar no Eric que tudo mudava. Como eu podia me sentir
tão atraído assim por um homem? Socorro. Pelo menos, eu não
estava vendo-o ali. Graças a Zeus!
— Vai tomar banho não, Liam? — De repente, ouvi uma voz
conhecida falar ao meu lado.
Virei meu rosto. Eric.
Eu devia estar pagando por todos os meus pecados!
— Vo-vou — respondi.
No mesmo instante, o loiro tirou sua camisa na minha frente.
Que merda. Senti meu rosto queimar!
— Então, por que não tira essa roupa? — Enquanto se
despia, perguntou baixinho. O suficiente para somente eu ouvir.
— Tá tudo bem aí, Liam? — ouvi William questionar já com o
típico ar de desconfiança.
Engoli a seco.
— Tá! — esbocei um breve sorriso amarelo e tirei a camisa.
— Tá tudo bem sim.
— Gostou do treino de hoje, Liam? — Eric perguntou
baixinho novamente e tirou o calção e a cueca ao mesmo tempo.
Cacete dez vezes!
Dentro de meio segundo, olhei para baixo e vi seu pênis
completamente nu. Caralho. Literalmente. Em um piscar de olhos,
subi minha visão. Não podia olhar para o pênis dele, senão... Ah
meu Zeus! Não podia. Dei as costas discretamente para ele e tirei o
restante da minha roupa. Primeiro, a chuteira e o meião. Depois, o
calção e a cueca. Completamente nu também.
Abri minha bolsa e tirei meus produtos de higiene pessoal.
Olhei para o outro lado e vi Robert e William já indo para debaixo do
chuveiro. Era melhor eu também ir logo. Ficar perto do Eric, nessas
circunstâncias, não estava me fazendo bem, principalmente porque
eu estava pelado e, bem, não podia ficar de pênis duro!
No entanto, fui dar o primeiro passo rumo ao chuveiro...
— Ih, que bosta! — ouvi Eric falar atrás de mim. — Me
esqueci de trazer o sabonete! Liam, você pode dividir o seu
sabonete comigo?
O quê?!
Esse demônio estava querendo me atormentar!
Respirei fundo, tentando me controlar, e virei-me para ele,
encarando-o bem nos seus olhos, não dando oportunidade para o
meu olhar descer para outras partes.
— Eu sei o que você tá querendo fazer, imbecil! — gritei em
um sussurro. — Não é hora pra isso. A gente tá na frente de todo
mundo!
— Mas eu só estou pedindo pra dividir o sabonete comigo...
— respondeu com a voz mais inocente do mundo.
Idiota!
— Pede pra outra pessoa! — gritei em um sussurro
novamente.
— Liam... — fez uma fingida cara de surpresa. Sonso! —
Você vai me negar um sabonete? Que coisa feia... — percebi o
sarcasmo escorrendo pelas suas palavras.
Eu merecia mesmo!
— Está acontecendo alguma coisa aí? — ouvi a voz do Sr.
Jones.
— Não, Sr. Jones — o loiro sorriu. Aquele sorriso simpático e
inocente que somente ele sabia dar. — Está tudo na mais perfeita
ordem.
— Ótimo — e, assim, o técnico se afastou.
— E aí, vai dividir o sabonete comigo? — continuou com o
sorriso no rosto.
Santa Vodca do Céu!
— Anda logo! — respondi sem paciência e dei as costas para
ele, caminhando até o chuveiro.
Escolhi um dos chuveiros e Eric, claro, escolheu o chuveiro
vazio que estava ao meu lado. Coloquei o sabote no suporte que
havia entre nós e comecei a tomar banho. Inevitavelmente, vez ou
outra, eu ainda olhava para o lado e via de relance o corpo
maravilhoso dele. Eric parecia estar tentando me seduzir enquanto
se molhava, porque eu nunca vi banho mais demorado!
Cada passada de sabonete pelo corpo durava mil anos e
cada enxague parecia acontecer em câmera lenta. Isso só
aumentava minha tensão. Tensão sexual! Eu estava quase
explodindo sem poder fazer nada. Mas, ele teria o que merecia. Só
não agora, mas teria. Inclusive, era melhor eu encerrar rapidamente
aquela palhaçada. Rapidamente, tirei todo o sabonete do meu
corpo, junto com o shampoo do meu cabelo, e segui rumo a minha
toalha.
— Ei, Liam! — ouvi a voz daquele imbecil.
O que esse demônio queria agora?
Virei-me para ele, fixando meu olhar no seu, para não cair na
tentação de observar outras. Não agora.
— O que é? — perguntei de maneira impaciente.
— Não vai levar o sabonete líquido? — balançou o recipiente
e sorriu sarcasticamente.
— Te espero lá fora — falei curto e grosso.
O sorriso dele ficou ainda maior. Parecia até que estava
planejando algo diabólico. Tinha medo. Vesti rapidamente minha
roupa, guardei tudo dentro da mochila, saí do vestiário e me sentei
em dos bancos que ficavam do lado de fora, esperando a hora em
que o Pateta finalmente terminasse o banho.
Cinco, dez, quinze e nada. Nada dele sair!
— Fazendo o que aí, Liam? — Robert, acompanhado de
William, perguntou desconfiado, quando passou por ali.
Merda.
O que dizer?
— Eu tô... É... — Ah que seja! Eu ia dizer a verdade mesmo!
Estava cansado de dar desculpas. — Estou esperando o Eric sair.
Ficou de devolver meu sabonete.
Meus amigos franziram o cenho automaticamente.
— Dividiram o sabonete? — William perguntou, ao mesmo
tempo em que um sorriso irônico começou a surgir em seu rosto.
— Tipo isso — resmunguei meio sem jeito, meio
envergonhado.
O mesmo sorriso irônico surgiu no rosto do Robert.
— Nenhum dos dois deixou o sabonete cair, né? — indagou
sarcasticamente.
Que bosta. A típica piadinha homofóbica.
Espera.
Eu pensei na palavra “homofóbica”?
Definitivamente, eu estava mudando!
— Porra, você é engraçado, heim, Robert? — repliquei com o
mesmo sarcasmo.
Ambos sorriram levemente um paro o outro, como se
conversassem por olhares, até que...
— Eric está terminando de se arrumar — William falou. —
Vamos nessa? — e olhou para o Robert.
— Vamos. Falou! — e se despediu de mim
— Falou! — William disse.
Dei apenas um breve aceno de mão e voltei minha atenção
para a porta do vestiário. Mais alguns minutos se passaram e nada
do Eric sair. Na verdade, depois do Robert e do William, ninguém
mais saiu de lá. Que diabos era isso? Será que todos já tinham
terminado e só o Eric continuava lá dentro? Levantei-me do banco,
sentindo-me levemente confuso por ele ter aparentemente descido
pela descarga da privada, e segui até o vestiário. Abri a porta e...
— Eric?
Olho de um lado para o outro do vestiário e não vejo
ninguém. Parece que todos já saíram daqui. A porcaria do Eric deve
ter descido mesmo pela descarga da privada!
— Eric?! — chamei-o em um tom de voz mais alto, enquanto
caminhava pelo corredor do vestiário, quando, de repente, duas
mãos agarraram minha camisa.
— Estou aqui, bonequinha — As mesmas mãos que puxaram
minha camisa, me empurraram contra um dos armários do vestiário.
— Estava com vontade de fazer isso desde que te vi chegando para
o treino de hoje — e me beijou com intensidade.
— Mas o que... — tentei falar entre beijos.
— O que foi? — Eric afastou poucos centímetros seu rosto do
meu.
— Tá ficando doido?! — gritei em um sussurro. — E se
alguém entrar aqui?!
— Ninguém vai entrar aqui — sorriu convencido e deu de
ombros, levando seus lábios ao meu pescoço.
Seus lábios e sua língua passearam pelo meu pescoço de
maneira lenta e torturante. Uma tortura maravilhosa. Senti sua
respiração quente contra a minha pele. Todos os meus pelos se
arrepiaram com o seu toque. Fechei os olhos. Mordi o lábio inferior.
— Eric... — Minha voz saiu manhosa. Mais manhosa do que
deveria. Merda. Rapidamente, pigarreei a garganta e engrossei o
tom. — Eric! — segurei sua camisa com as duas mãos e, dessa vez,
foi eu quem o empurrou contra o armário, trocando nossas
posições.
Eric sorriu. Sorriso largo, despojado, leve.
Como eu adorava esse sorriso horroroso!
— Gosto quando você faz isso... — e passou as mãos pelos
braços que ainda o seguravam pela camisa, fazendo carinho.
— Não desconversa, imbecil — resmunguei, tentando manter
a compostura, tentando ao máximo me sentir alheio aos seus
toques. Quase impossível. — A gente não pode fazer esse tipo de
coisa dentro do vestiário!
— Que coisa? — perguntou com a voz mais inocente do
planeta, enquanto fazia uma carinha de anjo, e enfiava a mão dentro
da minha calça, passando pela cueca.
Oh merda, ele estava pegando no meu pai.
— Golpe baixo — sussurrei e fechei levemente os olhos,
sentindo meu pênis ser envolvido.
— Aqui só trabalhamos com golpes baixos — soltou uma
pequena risadinha e desabotoou minha calça, abrindo o zíper e
ganhando mais espaço para me tocar.
— Vou te ma... — me fazendo parar no meio da frase, Eric
tocou minha glande que já começava a se lubrificar.
— Vai o que? — questionou com seu típico sarcasmo,
enquanto continuava me tocando.
— Te matar... — sussurrei e, aos poucos, levei minha cabeça
à curva do seu pescoço, fechando os olhos e tentando aproveitar ao
máximo o seu toque.
No entanto, de repente, sua mão liberou meu pênis. Ô, não
para não. Continua, filho da mãe. A mesma mão, que estava
tocando meu pênis, começou a traçar um percurso estranho. A
outra, que estava na minha cintura, iniciou o mesmo percurso
estranho. Lentamente, seu toque foi se direcionando para minha
parte traseira, quando, tão somente, senti minha bunda ser
envolvida pelas suas duas mãos.
No mesmo instante, minha cabeça, que estava recostada no
seu pescoço, inevitavelmente levantou-se. Não era como se ele
nunca tivesse tocado na minha bunda. Ele já tocou, mas sempre por
cima da roupa. Essa era a primeira vez em que suas mãos me
apalpavam sem barreira alguma. Senti meu corpo começando a
entrar em estado de alerta.
Observei-o, tentando decifrar o que ele estava querendo.
Eric, por sua vez, me encarou com seu típico olhar malicioso. Não
satisfeito em apalpar, suas mãos apertaram com gosto meu traseiro
bunda, fazendo com que nossos corpos se aproximassem ainda
mais um do outro. Porra. Cacete. Alguém poderia me explicar o que
estava acontecendo ali?
E, como em um piscar de olhos, senti dedos furtivos
caminharem pela... Santa Vodca do Céu! Como era o nome disso?
Os dedos dele estavam caminhando pela fenda da minha bunda e
indo direção à entrada do meu...
— Uou! — afastei-me dele sem pensar duas vezes,
colocando minha calça no lugar. — O. Que. É. Isso? —
pausadamente, perguntei, ainda sem acreditar no que tinha
acabado de presenciar.
Não era pra ser diferente?

Liam

Eric deu um breve suspiro e tentou gesticular algo com boca, mas
não emitiu som algum. Parecia um pouco nervoso ou sem jeito, por
eu ter me dado conta do que estava acontecendo.
— Responde, imbecil.
O que tinha sido aquilo exatamente? Por que os dedos dele
estavam indo justamente para aquele lugar? Não era como se ele
nunca tivesse pegado na minha bunda. O problema era que ele
nunca pegou daquele jeito.
— É... — pigarreou a garganta. — Eu... Eu só... — e, no
mesmo instante, seu celular tocou.
Ah não.
Por que aqueles malditos dedos me deixaram tão nervoso?
Eu precisava voltar ao normal!
Respira. Um, dois, três. Respira.
— Um segundo — se afastando um pouco, atendeu o celular.
— Alô? Tia Sam?! — Santa Vodca do Céu. Era essa mulher? —
Que bom ouvir sua voz! — Eric sorriu. — Ah, eu também estava
com saudade... — Blábláblá. Senti meus olhos revirando. —
Convite? Hum. Isso muito me interessa! — soltou uma pequena
risada. — Sério? — arregalou um pouco os olhos. — Hoje à noite?
Claro! Eu chamo a Stefany sim. — Espera. Eles estavam
combinando de sair naquela noite? — Será que eu posso levar mais
uma pessoa? — perguntou. — O Liam. — O quê?! Para onde ele
queria me levar? — Sim, ele, o Liam... — deu uma pequena risada.
— Uma longa história tia. Vou te deixar atualizada sobre tudo
durante o jantar — Jantar? Mas que jantar era esse? — Ótimo, tia!
Então nos vemos mais tarde! — Por fim, desligou o celular.
O loiro, então, se aproximou de mim e me puxou levemente
pela cintura. Inevitavelmente, me lembrei do que aconteceu há
poucos minutos. Ah, Meu Zeus, eu precisava parar pensar nisso ou
ficaria nervoso de novo. Era melhor esquecer. Sim. Muito melhor
agir como se nada tivesse acontecido. Talvez, assim, o Eric não
voltasse a direcionar esses dedinhos malignos para a minha bunda.
Qualquer que tivesse sido a sua intenção, eu preferia ficar sem
saber. Se eu não lembrasse, poderia ser que ele esquecesse
também e, até mesmo, não tentasse novamente.
— Tia Sam me ligou — com um sorriso no rosto, comentou.
Lógico que eu sabia que quem ligou foi aquela mulherzinha.
— Ah, foi mesmo? — perguntei como se não tivesse ouvido a
conversa deles.
— Sim, foi. Ela me convidou para um jantar na casa dela.
Hoje.
— E você vai? — Era claro que ele ia.
— Sim. Vou. — Agora me conta uma novidade. — Disse pra
eu chamar a Stefany.
— Legal — repliquei, enquanto ajeitava minha roupa que
tinha sido amarrotada há poucos minutos pelas suas mãos. No
entanto, ele segurou minhas mãos, impedindo que eu continuasse
abotoando a calça e me fazendo erguer o rosto para olhar em seus
olhos.
— Quero que vá comigo — disse.
O quê?
Ir a um jantar na casa daquela mulherzinha? Eu não gostava
dela. Fora que isso daria muita bandeira. Todo mundo iria notar algo
estranho, se eu, um inimigo ou quase inimigo do Eric, o
acompanhasse em um jantar na casa de sua tia. Claro que eu não
ia!
— Querer é uma coisa, poder é outra — respondi e me
afastei.
— Qual é, Liam? — o loiro franziu o cenho e aproximou-se
novamente de mim. — Por que não vai comigo?
— Primeiro, não gosto daquela mulher. Segundo, vai dar
muita bandeira. Ela vai perceber. Todo mundo vai perceber. As
pessoas não estão acostumadas a nos ver tão próximos assim!
No mesmo instante em que me calei, Eric soltou uma
pequena risada.
— Liam... — continuou rindo. — Por que você não gosta da
tia Sam? Ela é uma ótima pessoa! Vocês só precisam se conhecer
melhor!
Revirei os olhos.
— Conheço-a desde criança. Não gosto dela desde criança
— suspiro e... — Ela é uma intrometida! — disparei. Era impossível
não me exaltar um pouco ao pensar no que aconteceu da última vez
em que a vi. — Não lembra que ela viu a gente se pegando na
cozinha da sua casa?!
Eric aproximou-se ainda mais de mim, levando uma de suas
mãos ao meu cabelo e fazendo carinho. O sorriso não saía do seu
rosto. Por que ele tinha um sorriso tão lindo? Maldito sorriso: um dos
grandes motivos para eu estar com ele.
— Ah, Liam, não foi de propósito. Além do mais, ela gosta de
você. Te garanto! A tia Sam vai adorar te ver lá na casa dela. A
Stefany vai estar lá também.
Sua mão direita desceu até a minha nuca e continuou
fazendo carinho. Um breve suspiro escapou dos meus lábios. Eu
sabia o que aquele idiota estava querendo fazer. O pior: ele sempre
conseguia o que queria, quando começava a fazer esses carinhos.
Eu era muito fraco. Inferno!
— Não vou — cruzei os braços. — Todo mundo vai perceber.
Vai dar muita bandeira.
E, como quem sabia exatamente o que fazer para me
convencer de algo, Eric desceu suas mãos do meu cabelo para
minha cintura e me abraçou. Seu rosto encaixou-se na curva do
meu pescoço, ao mesmo tempo em que senti a ponta do seu nariz
passeando sobre a minha pele.
— Amor, todo mundo já tá percebendo que nós dois estamos
ficando próximos. Não é algo que dá pra esconder por muito tempo.
A própria tia Sam já sabe um pouco da nossa história. Não temos
nada a esconder dela.
Amor? Ele me chamou de amor mais uma vez sem
sarcasmo?
Ah, meu Zeus, isso não deveria ser um ponto fraco meu! Não
deveria!
— Não vou — permaneci de braços cruzados, fazendo birra
mesmo.
— Vamos, amor... — pediu com jeitinho, começando a beijar
o meu pescoço.
“Amor” de novo! Droga.
Para de ser assim, seu enviado do demônio!
— Não... — Minha voz saiu levemente manhosa pelos beijos
que eu estava sentindo no meu pescoço e pelo “amor” que acabei
de ouvir. Merda. Não era pra ser diferente?! Pigarreei a garganta e
engrossei o tom de voz. — Não — tentei responder de maneira
incisiva, embora eu soubesse que estava falhando miseravelmente.
— Príncipe... — Suas mãos subiram pelo meu corpo e
pararam uma de cada lado do meu rosto, ao mesmo tempo em que
seus beijos cessaram no meu pescoço e seu rosto se ergueu para
me olhar.
Príncipe? Ah, que coisinha mais lin... Gay!
— Boiola... — resmunguei.
— Você também é... — replicou com um sorrisinho no rosto e
desceu uma de suas mãos pelo meu corpo, tocando o meu pênis
por cima da calça, enquanto a outra permanece no meu rosto,
passeando de leve com o polegar nos meus lábios. Esse idiota
sabia como mexer comigo. — Vamos comigo?
— Por que você só joga sujo comigo? — questionei,
começando a sentir meu pênis ficando duro novamente.
Eric soltou uma pequena risada pelo nariz.
— Eu nunca disse que jogaria limpo. Vamos? — e
massageou carinhosamente meu membro por cima da calça.
Sem conseguir me conter, fechei os olhos, aproveitando toda
a indecência do toque.
— O que você me pede sorrindo que eu não faço chorando,
imbecil? — sussurrei no mesmo instante em que sua mão quebrou a
barreira da calça e passou pela minha cueca.
Inferno de vida! Eu era muito fraco!
O Eric podia me fazer de gato e sapato. Claro eu nunca diria
isso em voz alta.
— Então, você vai?
Abri os olhos para encarar o garoto mais sacana que já
conheci na vida (depois de mim, óbvio) e me deparei com um
sorriso enorme no seu rosto.
— O que você acha, idiota? — respondi.

❖❖❖

Era incrível como o imbecil do Eric mexia comigo. Bastava


fazer algum carinho mais sacana ou pedir com jeitinho, que eu já ia
logo abanando o rabinho pra ele como se fosse um cachorrinho. Eu
não sabia explicar como isso estava acontecendo, mas, desde
aquele dia em que fizemos as pazes no seu quarto, eu estou
descendo ladeira abaixo, rumo ao vale dos homossexuais, e cada
vez mais longe do meu lado hétero. Nem Zeus na causa!
Agora, eu estava aqui, feito um idiota, chegando em casa
para me arrumar para o tal jantar na casa da Samantha. Aquela
mulherzinha não me entrava. Na verdade, nunca fui com a cara
dela. O episódio na cozinha foi apenas a gota d’água. Desde criança
ela sempre olhou para mim e para o Eric de um jeito diferente.
Parecia que ela sabia de algo e eu sempre me senti desconfortável
com isso. Quando Eric e eu crescemos, ela continuou com o mesmo
olhar para nós, mas eu nunca tive ideia do que se passava pela
cabeça dela.
Caminhei pelo jardim, abri a porta de casa e...
Havana, ooh na na
Half of my heart is in Havana, ooh na na
He took me back to East Atlanta, oh na na na
Camila Cabello no volume máximo, vindo diretamente do
andar de cima.
Mas, gente, o que era isso? Decidiram dar uma festa na
minha casa e não me chamaram?
Ah, já sei!! Uma pessoa com um nome que começa com “Mo”
e termina com “lly” adorava música. Prova disso era que vivia com
fones de ouvido (até na hora do café da manhã), e adorava Camila
Cabello. Essa música, certamente, estava vindo do quarto da minha
querida irmãzinha.
A única coisa estranha era: ela só tirava os fones de ouvido e
escutava músicas nas alturas quando estava se arrumando para
sair. Então, isso significava que ela também ia sair? Eu não seria o
único? Certamente, se ela fosse sair, seria para algum lugar melhor
do que a casa daquela mulherzinha para onde eu tinha que ir.
Olhei de um lado para o outro, enquanto caminhava pela
casa, e não vi ninguém. Será que papai e mamãe ainda não
chegaram do trabalho? Que seja. Era melhor eu subir para o quarto
e começar a me arrumar para o bendito jantar. O que aquele cretino
do Eric ainda iria me provocar a fazer, heim?
Não demorou muito até eu chegar ao andar superior. O som
da Camila parece ainda mais alto dali, principalmente porque o
quarto da Molly era ao lado do meu. Abri a porta do meu quarto,
fechei e logo a tirei camisa, bem como descalcei os coturnos.
Tirei o celular do bolso e joguei-o na cama, quando, de
repente, o som típico de notificação do Facebook ecoou pelo quarto.
Hum. Eu mal usava Facebook, já deveria ter excluído essa conta há
bastante tempo, mas fui olhar que notificação era essa.
Peguei minha toalha de banho, coloquei-a por cima do meu
ombro e sentei-me na cama, alcançando o celular logo em seguida.
O aplicativo do Facebook rapidamente abriu no exato momento em
desbloqueei a tela. Uma surpresa. Ah não. Cabelos ruivos, olhos
castanhos, expressão suave, apesar do queixo marcado. Luke.
“Deseja compartilhar sua lembrança de quatro anos atrás?”
Na foto, nós dois estávamos sentados no asfalto da rua. Eu,
no auge dos quatorze anos, e Luke, no auge dos quinze. Os
sorrisos largos e expostos nos nossos rostos não escondiam o
quanto nós nos divertíamos. Os dois skates nos nossos pés também
não escondiam o quanto nós compartilhávamos dos mesmos
gostos. E o principal: nossos braços, um passando por cima do
ombro do outro, não escondiam o quanto nós éramos os melhores
amigos que poderiam existir.
...

— Ah, qual é, Liam? Vai, você consegue. — Luke me


encorajou, enquanto erguia o skate em minha direção.
— Cara, sei não... — balancei a cabeça em desconfiança
comigo mesmo. — Você já tem prática em andar de skate. Eu vou
cair e me quebrar todo. Minha praia é futebol.
E como ele tinham prática! Eu adorava ver o Luke andando
de skate, mesmo que não fosse admirar outras pessoas,
principalmente se fossem caras, mas o Luke, porra, ele mandava
muito bem no skate! Cada manobra que ele fazia!
— Liam, eu trouxe um skate só pra ti. Vai. Tenta — me
encorajou mais uma vez.
Assim, eu sabia que eu era muito bom em fazer várias
coisas. Afinal, eu era Liam Wyman Tremblay Terceiro. Depois de
mim, só eu de novo. Mas, eu reconhecia, mesmo que a muito custo,
quando não mandava bem em algo. Principalmente porque não
estava a fim de me ralar todo no chão.
— Irmão, sério, não vai rolar. Eu vou cair dessa porra.
— Vai nada — sorriu. Aquele sorriso leve. Sorriso solto.
Só quem tinha um sorriso tão leve e tão bonito quanto o dele
era o... O... Eric.
Ah, que bosta! Não podia acreditar que eu estava pensando
na porcaria do Eric!
Balancei a cabeça em exasperação comigo mesmo e voltei
minha atenção para a conversa com Luke.
— Cara, sério, não vou — repliquei.
Luke, por sua vez, suspirou, como se estivesse pensando
exatamente nas próximas palavras que iria pronunciar para me
convencer, e, então, soltou o skate no asfalto da rua, prendendo-o
no pé.
— A sensação de liberdade é ótima.
Liberdade?
Endireitei minha coluna sem nem perceber. Claramente, me
senti atraído pela palavra liberdade. Na verdade, eu sempre fui
fascinado por essas nove letras, e o Luke sabia muito bem disso.
Ele era esperto. Ele sabia como me convencer de algo.
— É mesmo? — Meu tom de voz não escondia o interesse
nascente.
— Sim, sim! — garantiu com entusiasmo, enquanto um
pequeno sorriso começou a se desenhar em seu rosto. Ele sabia
que estava quase conseguindo o que queria.
Ai caramba, pra quê que ele foi falar a palavra “liberdade”?
Agora, lá ia eu, subir em um skate e, no mínimo, cair de
bunda. Tudo pela tal sensação de liberdade.
— Olha aqui, se eu cair, eu juro que...
— Não vai cair — me interrompeu. — Eu te seguro — e
pousou sua mão na minha cintura.
Meus olhos lentamente desceram até o local, onde sua mão
dele estava. Meu Zeus, não era a primeira vez que isso acontecia.
Aliás, nos últimos tempos, o Luke andava muito estranho. Ele me
olhava de um jeito diferente, não era como os meus outros amigos,
nem como os outros meninos.
Eu não gostava nem de pensar nisso, mas, às vezes, por
mais estranho que fosse, eu sinto que ele ficava encarando a minha
boca e viajando nela. Tinha vergonha até de pensar, mas, às vezes,
parece que ele queria me... Me... Bei... Credo! Não! Eu era homem,
ele era homem. Não era correto ficar imaginando coisas, certo?
Certo!
— Beleza — respondi, afastando-me de maneira que a sua
mão saísse da minha cintura. — Mas, se eu cair, eu juro que te dou
uns bons socos — e me abaixei para pegar o skate.
Luke soltou uma pequena risada pelo nariz.
— Pode me dar uns bons socos — e replicou em tom de
brincadeira.

...
Naquele dia, quatro anos atrás, nós brincamos, zoamos,
curtimos, andamos de skate. Nós éramos a melhor dupla de amigos
que o Colégio Regent conhecia. Nem Robert e William eram tão
meus amigos quanto o Luke. Ele me ensinou a andar de skate e a
fazer as manobras mais iradas. E no fim de tudo, quando nós
caíamos um por cima do outro, depois de tanto treinar no skate...

...

— Eu juro que... — tentei completar a frase, mas, porra, a


minha risada estava incontrolável. — Que... — Mais risadas. — Que
eu vou te dar um soco tão grande!
O ruivo, por baixo de mim, caído no asfalto da rua, também
não conseguia conter as risadas.
— Ei, mas esse Varial foi irado, sério! — ele disse entre risos.
— É né?! Teria sido mais irado se você não tivesse me feito
tropeçar e cair em cima de ti! — continuei gargalhando. — Pior que
eu não consigo nem ter raiva de você!
Assim que me calei, notei o riso do Luke cessar aos poucos.
Parecia que ele estava ficando sério, à medida em que olhava no
fundo dos meus olhos. Inevitavelmente, me senti intimidado.
Inevitavelmente, meu riso também parou.
— Não consegue ter raiva de mim? — perguntou baixinho.
Confuso, sem entender o que estava acontecendo e sem
saber motivo para ele estar me olhando tão compenetrado assim,
apenas balancei um não com a cabeça, em resposta à sua
pergunta.
— Coincidência... — Mais uma vez, sua voz saiu quase em
um sussurro, e, então... Sua mão encaixou-se exatamente na minha
nuca, fazendo carinho nos pelinhos que lá existiam.
Engoli a seco. O que estava acontecendo ali?
— Liam... — pronunciou meu nome de modo tão delicado
quanto a sua mão sobre a minha pele.
Um vento frio soprou sobre nós, quando percebi seu rosto se
aproximar do meu. Meu Deus. O que ele estava pensando em
fazer? Minha mente, de repente, deu um estalo e me trouxe para a
realidade: estávamos caídos no meio da rua, um por cima do outro,
skates espalhados, seu rosto perto do meu. Não.
— Acho melhor ir pra casa — resmunguei e comecei a me
levantar. — Tá ficando tarde — Não que a hora fosse um problema.
Hora nunca foi problema pra mim. O problema era... O Luke.

...

Eu pensava que o problema fosse realmente ele. Mas o


problema não era ele. O problema era eu. E no dia em que ele
decidiu contar o que sentia, dois anos atrás, eu coloquei para fora
todo meu lado homofóbico. Durante anos, eu tentei enterrar essa
lembrança, mas, porra, o Facebook insistia em me fazer lembrar
esse passado que eu queria esquecer. Logo eu, que agora estava
com um homem.

...

— É... Eu... E-Eu... — gaguejou, mas logo respirou fundo,


para tentar se recompor. A coisa devia ser séria mesmo, para o cara
estar assim. — Eu... Eu ando beijando garotos.
Be... Be-Beijando... Garotos?!
A frase se repetiu em um looping quase eterno, e de maneira
confusa, na minha cabeça. Era como se eu não conhecesse
nenhuma dessas palavras no meu vocabulário, ou como se eu me
recusasse a entender.
— O quê?! — arregalei os olhos. Coração acelerado. — Você
anda beijando... Garotos?! — boquiaberto, perguntei. Era como se
eu precisasse de uma confirmação, pois a primeira informação
ainda estava embaralhada para mim.
— Sim... — fechando os olhos e colocando as mãos no rosto,
respondeu encabulado. — Mas não é só isso...
— Não é só isso?! — arqueei ainda mais as sobrancelhas.
Não podia ter mais do que isso. Já era informação demais para a
minha cabeça. — Não venha me dizer que, além de beijar, você
também está... Está... Transan... Ah meu Deus!
— Nã-Não é exatamente isso... — gaguejando outra vez, ele
replicou.
— Então, o que é, porra? — questionei, mesmo sem ter
certeza se eu realmente queria saber mais alguma coisa sobre isso.
Era muita informação para uma noite só. Logo na comemoração do
meu aniversário!
— Beijar garotos me fez confirmar uma coisa...
— Que você gosta de garotas, não é?! — de automático,
questionei em um tom de voz que quase o exigia a responder que
sim. Era a única resposta plausível para aquele completo absurdo.
Ele estremeceu, mas, mesmo assim continuou.
— Não... — Balançou a cabeça em negativo e engoliu a
seco. Meu coração, de automático, apertou. Não viria coisa boa por
aí. — Me fez confirmar que eu gosto de um garoto em específico.
— Ah meu Deus! — coloquei as mãos no rosto, esfregando-
o. Não sabia se queria continuar ouvindo ou se seria melhor correr
para bem longe dali.
Eu tinha um amigo gay?! Como assim? O Luke nunca me
pareceu ser gay. Nunquinha! Ele ficava com tantas garotas quanto
eu e tinha maior jeito de homem. Eu nunca poderia imaginar que
esse diálogo fosse acontecer um dia.
— Eu gosto de você, Liam.
Oi? Oi?!
Instantaneamente tirei as mãos do rosto e, pasmo, encarei-o.
Eu podia não ter ouvido direito.
— Gosta de mim? — perguntei quase em um sussurro.
— Sim... — um pequeno sorriso de esperança surgiu em seu
rosto, em meio aos olhos marejados. Levou cautelosamente uma
das mãos ao meu rosto e acariciou. Eu estava inerte demais para
me dar conta do grau de homossexualidade desse carinho.
— Ma-Mas... — gaguejando, tentei entender. — Vo-Você
gosta como amigo ou tipo pra bei... bei... — me sentia tão em
choque que fui incapaz de completar a frase. Só pedia aos céus que
não fosse a segunda opção.
— Os dois... — ainda com traço de esperança em seu rosto,
ele respondeu. — Como amigo e para beijar.
Ah meu Zeus! O meu mundo foi abaixo em questão de
segundos.
Isso... Isso não estava certo! Não estava nem um pouco
certo! O Luke era homem. Eu era homem. Homens ficavam com
mulheres. Homens namoravam mulheres. Homens se casavam com
mulheres. Homens deveriam ficar com mulheres!
Em um piscar de olhos, me levantei do banco.
— Sai daqui — com frieza, falei.
Seu sorriso, juntamente com o filete de esperança,
desapareceu na mesma velocidade que eu me afastei dele.
— Você... Você quer que eu vá embora? Está me
expulsando? — dessa vez, era ele quem estava pasmo.
— Não só quero como também exijo. Sai daqui!
— Mas... — Luke parecia desnorteado. — Nós somos
melhores amigos! Eu não esperava que você fosse querer algo
comigo, mas eu esperava que você fosse, pelo menos, me
entender.
Esperou errado. Errado!
— Eu não sou amigo de gay! — disparei. — Sai daqui. Agora!
— apontei para a rua.
— Liam...
— Eu já disse para cair fora! — falei antes que ele pudesse
continuar.
— Li... — ainda tentou falar.
— Vai embora! — Mas eu não deixei.
Com lágrimas nos olhos e sem me dar mais palavra alguma,
Luke se levantou do banco e seguiu em direção à rua.
...

Ah que inferno de vida! Eu fui um imbecil com ele e agora eu


estava com um homem. Era tudo tão confuso. Eu com um homem?
Logo eu, com um cara! Logo o Eric! Por Zeus, a minha vida poderia
ser menos conturbada? Porque, olha, não estava fácil.
O resultado foi uma amizade findada. Nunca mais o vi. No dia
seguinte a nossa “briga”, ouvi falar que o pai dele recebeu uma
proposta de emprego. A sua família se mudou para outra cidade da
Inglaterra, Luke saiu do Colégio Regent e, daí em diante, nunca
mais nos cruzamos.
Até mesmo as redes sociais que ele possuía, depois de um
tempo, foram excluídas. Mais um fator para eu não ter notícias dele.
Robert e William também nunca mais comentaram sobre ele,
aparentemente porque o cara era gay.
Mas, fora tudo o que aconteceu, o que me deixava mais
inquieto era pensar se não poderia ter sido diferente. Eu nunca senti
muito remorso disso. Ou talvez sempre tivesse tentado me manter
forte pra esconder o remorso. Só que agora, com o Eric e tudo o
que estava acontecendo, eu começava a me sentir diferente com
relação a muitas coisas.
Se o Liam de meses atrás visse essa recordação do
Facebook, provavelmente ele queimaria o celular e daria um belo
foda-se pra tudo. Mas, o Liam de agora não. O Liam de agora se
preocupava e sentia... Remorso. Céus, eu estava me tornando gay
e sentimental!
Será que o Eric estava me mudando? Ou será que eu estava
mudando por si só? Ou será que eu sempre fui isso, mas tudo ficou
escondido no meio de muito preconceito e babaquice?
— E aí, bonitão, vai se arrumar para o jantar não? — Uma
voz ecoou pelo meu quarto, após a porta ser aberta, fazendo-me
acordar dos devaneios.
— O-Oi? — virei-me na cama e olhei em direção à porta.
Só agora me dei conta de que Havana tinha parado de tocar,
de que Molly estava impecavelmente linda e de que estava dentro
do meu quarto.
— Jantar? Quê? — franzi o cenho.
— O jantar, Liam... — falou como se fosse a coisa mais óbvia
do mundo. — O jantar na casa da Samantha. Alô! — e estalou os
dedos, como se isso fosse me fazer acordar.
Ah bom! O jantar na casa daquela mulherzinha! Que saco.
— Sim, sim... É que eu estava só olhando um... — Espera!
Calminha aí! — Como você sabe do jantar?
Molly aproximou-se, caminhando elegantemente sobre o seu
salto, e parou ao meu lado.
— Ah, bobinho, a Stefany me convidou, né?
Que beleza. Claro. Como não me lembrei desse detalhe?
Óbvio que a Stefany iria convidá-la. Um jantar de casais. Mais gay
impossível. Quatro lésbicas, dois boiolas. Quer dizer, um boiola-
boiola e um boiola-macho, no caso eu.
Agora eu tinha entendido o motivo por ela estar ouvindo
Havana nas alturas.
— Saquei.
— Já avisei para o papai e a mamãe.
— Boa menina.
Deu um pequeno sorriso, mas logo parou e...
— E você, o que estava fazendo aí tão compenetrado nesse
celular, heim? — Uma de suas sobrancelhas se ergueu.
Me lembrando de um cara com quem eu fui um completo
babaca.
— Nada demais — rapidamente me levantei da cama,
levando o celular comigo. — Vou tomar banho agora. Daqui a pouco
a gente sai.
Caminhei até o banheiro, fingindo que estava tudo bem, mas
o fato era que minha cabeça ainda permanecia lá nos cabelos
ruivos, nos olhos castanhos, no rosto suave, no queixo marcado, no
Luke.
Dois namoradinhos?

Liam

Uma última olhada pelo retrovisor do carro, uma última passada de


mãos pelo cabelo, deixando-o bagunçado do jeito que eu gostava,
e... Voilà! Puta merda, heim, meu irmão? Eu era gato pra porra.
Sério, cara, o Eric tinha muita sorte, mas muita sorte mesmo. Olha
só esse rosto magnífico!
Talvez eu fosse muita areia para o caminhãozinho do Eric?
Talvez. Quer dizer, ele também era bem gostosinho, mas isso não
importava. Obviamente, jamais reconheceria isso em voz alta e na
frente dele. Aquele garoto ficaria altamente convencido e apenas eu
podia ser convencido naquela história.
— Caramba, heim, Liam? — Molly resmungou ao meu lado,
no banco do passageiro. — Você está pior que eu. Tá bom isso daí.
Não se preocupa, Eric vai babar em você todinho... — Certo tom de
malícia escapou da sua boca. — Opa — Por fim, soltou uma
risadinha ligeira.
Revirei os olhos com a ousadia da garota e respondi a altura.
— Eu tenho meus requisitos, amor. Você deve estar
morrendo de inveja.
A morena, no entanto, virou o rosto para mim como se
dissesse “ah, coitado!”.
— Eu também tenho meus requisitos, querido.
— Seus requisitos não conquistaram o Eric — Era notável o
tom de brincadeira na minha voz. — Opa. Escapuliu — coloquei
rapidamente a mão na frente da boca e arregalei os olhos. Uma
fingida menção de quem falou o que não devia, mas isso foi só para
brincar mesmo com ela.
— E os seus não conquistaram a Stefany — Um olhar
soberbo se desenhou em seu rosto, seguido de uma piscadinha
sacana. — Opa. Escapuliu.
Touché! A garota tinha a língua afiada. Minha irmã, né? Só
me dava orgulho!
— Não vale usar minhas próprias palavras contra mim,
espertinha — dei-lhe um pequeno sorriso de canto de boca. —
Agora, acho melhor a gente sair desse carro. Temos que enfrentar
esse maldito jantar.
Molly ergueu uma sobrancelha para mim.
— Ah, qual é Liam? Samantha e Lexie são ótimas pessoas.
Tudo bem que eu acho que a idiota da Stefany ainda vai me fazer
passar bastante vergonha hoje, mas isso não tira o fato das tias
deles serem pessoas excelentes.
Pessoas excelentes? Super! Nossa, não conseguia nem
imaginar o quanto! Até parecia mesmo. Minha irmã só dizia isso
porque não foi ela a ser pegue numa cozinha com a mão na massa
com a Stefany. E bem, a massa não era uma comida. Quero dizer,
dependendo do ponto de vista, podia até ser considerada como uma
comida mesmo.
— Que seja. Nunca fui muito com a cara delas —
desconversei, enquanto saíamos do carro.
Lógico que não ia falar para a Molly sobre o episódio na
cozinha. Tudo bem que eu sabia que a gente já tinha superado toda
aquela questão de “nossa, o Eric tá traindo a Molly” (e, no fim das
contas, ela que também estava o traindo), mas, sei lá, isso foi na
época que eles ainda estavam “juntos” e algumas coisas não
precisavam ser relembradas, por mais que já tivessem sido
superadas.
— Ah, maninho, relaxa — passou o braço pela minha cintura,
enquanto eu passava meu braço pelo seu ombro. — Vai dar tudo
certo — caminhamos juntos, lado a lado. — Ou pelo menos eu acho
que vai.
“Ou pelo menos eu acho que vai.”
É. Molly definiu tudo muito bem em uma frase.
A casa da Samantha e da Lexie, de longe, era a mais bonita
da rua. Tão grande e ampla quanto a minha casa e a do Eric. O
jardim era imenso e, fazendo uma comparação da minha casa e da
casa do Eric, talvez as três tivessem o mesmo tamanho.
Aparentemente, Eric e Stefany já tinham chegado, porque o
Porsche amarelo-cor-de-vômito-de-criança dele estava estacionado
na rua. Esperava que ele já não estivesse contando tudo o que não
devia para as suas tias, porque aquele garoto só falava o que não
devia e na hora que não podia.
Não demorou muito Molly e eu chegarmos em frente à porta
da casa. Reparei no espaço de entrada e, porra, era tudo fino e
chique. Aquela mulher devia ter muita grana, porque tudo ali era do
bom e do melhor.
— E aí, preparado? — minha irmã perguntou.
— Não... — dei-lhe um sorriso um tanto amarelo.
— Bobinho... — balançou a cabeça, com um pequeno
sorrisinho no rosto de quem estava se divertindo com a minha
insegurança. Logo em seguida, tocou a campainha.
Ok, Liam, respira fundo. Não pode ser tão difícil assim
enfrentar um jantar desses. Eric não iria ser louco de entrar em
detalhes sobre as nossas intimidades. Ele não ia contar nada sobre
o que aconteceu e o que estava acontecendo. Eu confiava nele...
Naquele filho da mãe que me fez ir até ali e...
— Crianças! — Samantha, de repente, apareceu na porta,
com o seu típico jeito extrovertido de ser. Parecia até a Stefany mais
velha. — Que bom que chegaram! Entrem, entrem! Eric e Stefany já
estão aqui — e, por fim, nos puxou para dentro.
— Oh, Samantha... — Molly adentrou a sala um pouquinho
sem jeito com essa recepção tão calorosa. — Com licença.
— Querida, me chame de Sam. Fique à vontade! A casa é
sua! — abraçou-a e deu-lhe um beijo em cada lado do rosto. —
Tudo bem com você?
— Ah, tudo ótimo! — Molly retribuiu o sorriso entusiasmado.
— E com a senhora?
Samantha, de repente, arregalou os olhos e fez uma cara de
espanto um tanto quanto engraçada. Ela era tão caricata que eu
acabei soltando uma pequena risada sem nem perceber. Não ia
muito com a sua cara, mas devia admitir que essa mulher era
engraçada.
— Senhora? — estava tentando parecer perplexa, mas, no
fundo, eu sabia que tudo não passa de brincadeira. — Senhora está
no céu, querida. Pode me chamar de “você”. Sou tão jovem quanto
todos aqui! — e riu. — Mas, e você, querido? — virou-se para mim.
Ah, Meu Zeus do Céu, ela me notou. O que eu faria? Corria
sem olhar pra trás? Porque, assim, da última vez que a gente se viu,
eu estava exatamente em cima do balcão da casa do Eric com as
mãos dele percorrendo todo o meu corpinho maravilhoso. É, eu sei,
o flagra não foi muito legal.
— Ah... O-Oi... — ergui brevemente a mão.
— Não vai me dar um abraço? — Samantha abriu os braços
e caminhou em minha direção. Cruzes, essa mulher era louca. —
Antes eu já te considerava como um sobrinho... — e me apertou.
Caralho, ela ia me matar sufocado. — Mas agora, que está
namorando o Eric, eu considero mais ainda!
Namo... Namorando o Eric? O quê?! Co-como assim eu
estava namorando o Eric? Ninguém me avisou isso!
Respirei fundo, tentando me controlar. Ok, voltando à minha
belíssima compostura interna. Nós estávamos ficando, no máximo.
Mas, espera aí... Se ela falou isso era porque... O Eric já tinha dado
com a língua nos dentes! Filho da mãe!
— Olha só! Olha quem chegou! — A voz do imbecil ecoou
pela sala.
Aquele idiota, aquele enviado do satanás, aquel presente do
capeta, aquele... Aquele... Santa Vodca do Céu, o que era isso?
Esse... Estava muito gato! Puta merda. Ele sempre foi gato, mas,
naquele dia, ele estava infinitamente mais. Que roupa era essa?
Que cabelo era esse? Que postura era essa? Isso tudo era pra um
jantar na casa da Samantha? Ele tá muito... Homem. E ele sempre
foi um moleque. Na verdade, eu sempre o vi como moleque. Mas
agora... Cara, quando o Eric se tornou tão homem assim?
Solto-me devagarzinho do abraço de Samantha, sentindo-me
levemente extasiado pela visão daquela quase miragem. Não
estava conseguindo tirar os olhos dele e mentalmente eu sabia que
meu queixo estava batendo lá no chão. Eu não deveria estar tão
abobalhado assim, mas, à medida em que ele se aproximava, eu só
consigo ficar ainda mais...
— Gay... — Sussurrei para mim mesmo.
Eric me envolveu pela cintura com um de seus braços e me
arrastou gentilmente contra si. Estava tão abobalhado que deixei-me
levar. Após um beijo no rosto, senti seus lábios indo em direção a
minha orelha.
— Gostou? — sussurrou leve, baixinho, sexy.
— Adorei... — respondi sem pensar, sem analisar a palavra
que saiu da minha boca. E, sem esperar ou imaginar que isso fosse
acontecer, Eric sorriu e aproximou seus lábios dos meus, me dando
um beijo. Opa! Assim como a bela adormecida, o beijo acabou me
despertando. Cacete, eu não podia acreditar! Como esse idiota foi
capaz de me beijar assim na frente de todo mundo?! — Tá louco?!
— arregalei os olhos e gritei em um sussurro.
— Querido! — Uma mão tocou o meu ombro antes que Eric
pudesse responder qualquer coisa. Ah não, quem era dessa vez? —
Desculpe atrapalhar o casal, mas seja bem-vindo! — virei-me para
trás e vi Lexie, que em menos de um segundo me abraçou,
pegando-me de surpresa.
Caramba, só tinha louco nessa família.
— Opa... — tentei retribuir de leve e meio sem jeito o abraço.
— Tu-Tudo bem?
— Tudo ótimo! — respondeu com um sorriso imenso. — Não
preciso nem perguntar se está tudo bem com você, não é? Com um
homão desses ao lado... — olhou de relance para o Eric, mas
rapidamente voltou a atenção para mim. — Não tem como não ficar
bem!
Homão?
Desviei lentamente meu olhar para o Eric, que, por sua vez,
estava com uma das sobrancelhas erguida sugestivamente para
mim, enquanto tomava um gole de vinho em uma taça que
segurava. Fiquei tão abobalhado que nem percebi essa taça no
vinho no momento em que ele me abraçou.
Um homão de dezoito anos? Ele era só um moleque que
ainda nem saiu direito dos cueiros. Eric apenas usava uma máscara
para se passar de adulto. Eu era mais homem que ele, claramente.
Eu era mais macho que ele. Eu era mais...
— Vamos para a sala de jantar? — Eric perguntou, enquanto
me envolvia novamente pela cintura. Parecia que ele gostava de
fazer isso. Parecia que existe um ímã entre ele e a minha cintura. E,
como se não bastasse... Senti um leve e quente aperto pela sua
mão contra a minha pele. Uou... Um repentino calafrio subiu pela
minha espinha. — Vamos? — tornou a perguntar.
Ok. Eric estava fazendo um belo papel de homem naquele
dia, eu devia admitir. Mas, só naquele dia. Quer dizer, talvez ele
fosse um pouco homem sempre. Só um pouco.

❖❖❖

Eu não sabia o que estava fazendo nessa casa. Eu nem


curtia mesmo as tias do Eric e da Stefany. Há duas horas nós
estávamos naquela mesa de jantar e a conversa não acabava,
enquanto eu ficava “moscando” ali. Não me esforcei para entrar na
conversa, afinal, como eu já falei, não ia muito com a cara das tias
do Eric. Nunca fui. Principalmente depois do ocorrido na cozinha da
casa dele.
Stefany, como sempre, estava falante. Molly, por incrível que
pudesse parecer, se enturmou com as tias do Eric. Arrisco dizer que
essa simpatia toda era porque ninguém tocou no assunto sobre ela
estar com a Stefany. Eu tinha certeza que se tivessem tocando
nesse ponto, ela estaria tão calada quanto eu. E, sobre o Eric, bom,
eu não preciso nem comentar, não é?
Ele era a simpatia em pessoa. Sempre foi. Principalmente
quando estava com as tias. Nunca vi garoto para conversar tanto,
credo! Ouso dizer que o jantar só estava se estendendo mais por
causa dele. Ele não calava a boca. Direto falando. O tempo inteiro.
Rindo, sorrindo. Mas, não eu não podia mentir: adorava ouvir a voz
e a risada daquele imbecil. Era pra ser diferente, mas eu já tinha
cansado de lutar contra a vida e agora apenas aceitava o fato de
gostar dele.
Estavam falando sobre tudo. A vida, o tempo, o espaço.
Tanto besteirol que eu já nem sabia e tinha perdido as contas de
quantas vezes Samantha e Lexie disseram que estavam com
saudades dos lindos e amados sobrinhos. Tudo bem, queridas, nós
já entendemos, não precisam falar isso o tempo inteiro. Pelo menos,
não estavam tocando em nenhum assunto que me envolvesse
diretamente, assim eu podia ficar quietinho na minha. Só ouvindo o
blábláblá e bebendo uma bela taça de champanhe.
— Então, quer dizer que você está com Liam e a Stefany com
a Molly?
O quê?!
Em menos de um milésimo, me engasguei com o
champanhe. Molly me acompanhou na tosse. Estavam todos
conversando sobre uma baboseira qualquer e do nada a Samantha
apareceu com essa pergunta.
— Tá tudo bem, amor? — Eric perguntou com a voz mais
cínica que já se ouviu na face da terra.
Amor?!
Por Hades, ele me chamou de amor na frente de todo mundo!
— Queridos, não precisam ficar assim... — Lexie tentou nos
acalmar com uma voz amena e um sorrisinho no rosto. — Nós já
sabemos. Eric e Stefany nos contaram sobre tudo antes de vocês
chegarem.
Contaram?!
Eu e Molly nos entreolhamos de maneira surpresa. Os olhos
azuis dela estavam quase saindo do rosto, tamanho o espanto,
assim como os meus também. Nossos semblantes não escondiam o
quanto nós estávamos envergonhados com isso.
Agora sim eu tinha confirmando o que imaginei quando a
Lexie falou “com um homão desses ao lado, não tem como não ficar
bem”. Eric imbecil! Deu com a língua nos dentes! O que eu podia
fazer para esse desgraçado calar a boca?! Ele não poderia ao
menos ter avisado?! Tipo: “olha, Liam, eu estou aqui pensando de
falar para as minhas tias o que aconteceu entre a gente e tal” (claro
que, mesmo avisando, eu não deixaria ele falar nem sob pena de
morte). Mas não! Ele nem avisou!
Sem pensar duas vezes, dei um “belo e gentil” chute em sua
canela por debaixo da mesa. Afinal, onde já se isso? Ninguém mais
podia ficar com um garoto por debaixo dos panos? Tinha mesmo a
necessidade de sair por aí espalhando essas poucas vergonhas
(maravilhosas, diga-se de passagem)?
— Au! — Eric se contorceu ao meu lado, sentindo a dor da
minha adorável demonstração de carinho por ter falado o que não
devia na hora que não podia, como sempre.
— Stefany! — No mesmo instante em que o repreendi com o
singelo chutinho, ouvi Molly tendo uma breve DR (Discussão de
Relacionamento) com a ficante/peguete/namorada/seja lá o que for.
— Calma, princesa... — a loira sorriu, tentando amansar a
fera. Rá! Agora sim! Não era a Molly que estava toda simpática há
poucos instantes? Isso porque ninguém tinha pisado em seu calo.
Queria só ver agora. Ainda bem que eu não era o único. — Isso não
foi nada.
Nada?!
Piada, não é, meu anjo?
Queria virar um avestruz e enterrar minha cabeça em algum
buraco.
— Crianças! — Samantha soltou uma pequena risada. — Por
que esse alvoroço? Stefany tem toda razão, realmente não foi nada!
Estamos todos em família aqui!
— É, meus amores... — Lexie se pronunciou com mais
delicadeza que a companheira, colocando uma mecha do seu
ondulado cabelo atrás da orelha. — Não fiquem assim. Nós duas
apoiamos totalmente vocês e queremos que saibam que estamos
aqui para ajudar no que puder — finalizou com a voz mais gentil que
eu já ouvi.
“Nós duas apoiamos totalmente vocês e queremos que
saibam que estamos aqui para ajudar no que puder.”, tais palavras
ressoaram na minha cabeça. Isso foi tão... Fofo. Eu e Molly nos
entreolhamos mais uma vez e... Fofo?! Eu pensei realmente na
palavra “fofo”? Buda, Odin, Zeus, Thor, o negócio estava sério! Esse
caminho da boiolagem era algo sem volta!
— Sabe que eu vou te matar, né? — sussurrei o mais baixo
possível para somente o Eric ouvir, no entanto...
— Mas que coisinhas mais lindas! — Samantha olhou para
nós dois como se fôssemos dois cachorrinhos meigos e adoráveis
dentro de uma caixinha para adoção. — Mata ele não, meu lindo. E
se for pra matar, mata de um jeito gostoso — finalizou com uma
piscadinha de olho bem sugestiva, enquanto bebia um gole de
champanhe.
Essa mulher só podia ser louca!
— Me mata de me amar... — Eric soltou essa belíssima
pérola e me deu um beijo no rosto.
Mereço mesmo, viu?
Nem me esforcei para não rolar os olhos. Acabei girando-os e
esfregando a mão na bochecha, exatamente no local onde ele me
beijou, igual a uma criança birrenta.
— Esse Liam com esse jeitinho desde a infância... —
Samantha balançou a cabeça em negativo e sorriu, como se
estivesse se divertindo com a situação. — Mas eu vi, heim? Eu vi
muito bem lá na cozinha da casa do Eric, no dia do aniversário do
George, o quanto você gosta do meu sobrinho.
O quê?! Não, meu Zeus. Não. Eu não podia acreditar que ela
estava tocando nesse assunto. Senti minha pele arder de vergonha!
Ai que show de mico esse jantar!
— O que aconteceu no dia do aniversário do tio? — Molly
franziu o cenho.
Caralho! Eu sabia que já estava tudo mais que superado, só
que... Não! Era constrangedor.
— Ah, eu e o Liam... — o loiro se pronunciou em um tom
totalmente despreocupado.
— Nada! — Minha voz se sobressaiu a dele. — Nada, não foi
nada — tentei desconversar. Eu tinha passado bastante vergonha
naquele maldito jantar. Já deveria, até mesmo, ter ido pra casa.
Inferno.
— Vocês estavam se pegando na cozinha, né? — Stefany
sorriu. — Relaxa, bonitão... — encarou-me com semblante bem
faceiro. — Quando você vem com as castanhas, eu já estou com a
farinha pronta.
— O que você quis dizer com isso? — perguntei.
Assim que me calei, foi Molly quem se inquietou.
— Nada — minha irmã esboçou um pequeno sorrisinho
amarelo e baixou o olhar para o prato do jantar. — Não é nada.
Ora ora, será que tínhamos, mais uma vez, o sujo falando do
mal lavado?
— A gente se pegou de tarde lá em casa, horas antes do
aniversário do papai. — Stefany jogou na lata e revelou como se
estivesse contando uma coisa qualquer.
Voilà!
— Ei! — Molly virou-se para ela com os olhos arregalados,
como se não estivesse acreditando no que acabou de ouvir.
Contudo, em menos de um segundo, seus olhos mudaram para uma
expressão de quem tentava fazer o outro se passar como louco. —
Não liguem para o que ela diz. É uma doida.
— Não sou quem fica doida quando minha boca passa na
sua...
Quê?!
— Então, é isso, meus amores! — Lexie interrompeu-a,
provavelmente percebendo para onde os rumos da conversa
estavam indo. — Será que nós podemos partir para uma das partes
mais importantes do jantar?
Parte mais importante do jantar? Essa era a hora que a gente
saía correndo pra casa sem olhar pra trás? Porque sim, se existiam
duas coisas que amava fazer era: chegar em casa e ficar em casa.
No meu quarto. Na minha cama. Dormindo, de preferência.
— Tem razão, meu amor... — Samantha respondeu,
colocando uma de suas mãos sobre a de Lexie e fazendo carinho
com o polegar. Ela era louca, mas parecia ser bem carinhosa. —
Nós decidimos fazer esse jantar, primeiro, para matar a saudade
dos nossos sobrinhos lindos e, segundo, para fazer um convite.
— Convite? — Eric perguntou, já demonstrando total
interesse.
— Sim, meu bem, um convite — Dessa vez, foi Lexie quem
se pronunciou. — Bom, nós sabemos que seu aniversário é no final
de semana que vem e queríamos convidá-los para passar esse
momento conosco em nossa casa de campo que fica em
Cambridge.
“Queríamos convidá-los”? “Convidá-los”? Eu estava incluso
nisso também?
— De início, pensamos em chamar Eric e Stefany, mas agora
que sabemos como todos vocês estão, nós também estendemos
esse convite a Liam e Molly — Samantha finalizou.
Como é? “Estendemos esse convite a Liam e Molly”?
Ah, não! Era só o que me faltava!
— E, então, vocês vão? — Lexie perguntou com olhos cheios
de expectativa tanto quanto os de Samantha.
Hades do inferno! Esse pessoal só podia estar ficando louco.
Não tinha nada a ver eu estar presente nesse momento em família.
Eu não fazia parte da família assim. Eu não era namorado do Eric.
— Claro, tia! Que ideia maravilhosa! — o loiro se empolgou.
— Já vou preparar meu biquíni, porque deve estar fazendo
um sol gostoso lá, nessa época do ano! — Stefany disse com ainda
mais empolgação. — Você vai também né, Molly?
Molly me encarou. Eu olhei pra ela. Percebi de cara que ela
estava querendo ir.
— Eu... Eu acho que vou sim... — ela sorriu. — Acho que
meus pais não vão se opor.
Ah, meu Deus, por que ela falou isso?! Agora minha desculpa
de dizer que meus pais não iriam deixar foi por água abaixo, porque
infelizmente os meus pais eram os pais dessa capeta também!
— E você, menino Liam? — Samantha perguntou, ainda
cheia de expectativa.
Virei meu rosto para o Eric, que aguardava pela resposta tão
ansiosamente quanto qualquer outra pessoa presente na sala de
jantar. Seus olhos brilhavam de esperança. Ai, meu Thor, isso não
era uma boa ideia. Ainda mais porque... Porque eu combinei de sair
com o Robert e o William no sábado à noite! Sim! Exatamente isso!
Caramba, eu esperava que eles aceitassem essa desculpa, que não
era uma mentira.
— Agradeço o convite... — repliquei, desviando meu rosto do
seu olhar. Não queria ver a cara que ele ia fazer. — Mas, eu já tenho
um compromisso marcado para o sábado à noite.
— Que compromisso? — Eric perguntou instantaneamente,
não me dando tempo nem de respirar para inventar outra desculpa.
Oh vida difícil!
— Vou sair com o Robert e o William — respondi
rapidamente, torcendo para que ele não tivesse entendido. E tomara
que não tivesse mesmo! Já podíamos partir para outro assunto, não
podíamos? Podíamos! — Tem alguém com sede? Estou morrendo
de sede — tentei desconversar, mas, puta merda, eu estava cada
vez mais ridículo nas desculpas. Tinha a porcaria de uma taça de
Champanhe bem na minha frente!
— Você prefere sair com o Robert e o William em vez de
participar do meu aniversário?
Ai, cacete, ele entendeu.
— Eu...
— O Liam vai, gente! — Eric me interrompeu, dando um
sorriso enorme. — Vai sim. Isso foi só um surto dessa cabecinha.
Ele vai sim! — e desceu uma de suas mãos pela minha coxa,
apertando a pele por cima da calça.

❖❖❖

— Eu não vou! Já disse que não vou! — Praticamente gritei


dentro do carro enquanto dirigia, voltando para casa.
— Para de ser gay, Liam! — Molly falou tão alto quanto eu.
No entanto, logo soltou uma risada pelo que disse. — Não, espera,
deixa eu refazer a frase, porque gay você sempre foi e nunca vai
deixar de ser.
Engraçadinha!
Nossa, eu estava morrendo de rir.
— Me poupe, se poupe, nos poupe, Molly — resmunguei.
— Por que você não quer ir, afinal?
E eu precisava de motivos?
Iria passar o resto da noite listando uma infinidade de motivos
pelos quais me faziam querer não ir a essa bendita viagem. Essa
galera só inventava coisas para perturbar o meu juízo!
— Primeiro, eu não sou da família. Segundo, eu não sou
namorado do Eric. Terceiro, justamente pelo fato de eu não ser
namorado do Eric, eu não tenho a obrigação de ir. Quarto, eu não
gosto das tias deles. Quinto, eu vou sair com o Robert e o William.
Sexto, eu já disse que não gosto das tias deles?
Mesmo sem olhar no seu rosto, porque eu estava dirigindo,
percebi Molly revirar os olhos.
— Pra mim, isso tudo é desculpa esfarrapada pelo medo que
você tem do que pode acontecer lá.
Como assim? O que podia acontecer lá?
— O que você quis dizer com isso?
A morena, então, se endireitou no banco do passageiro ao
meu lado, como se estivesse bem interessada nessa parte do
assunto.
— Bom, você e o Eric, sozinhos, longe dos pais, com uma
casa enorme, com quartos, com camas...
Quê?!
— Eu não sei de nada sobre isso que você está falando —
desconversei na mesma hora. — Eu só não gosto das tias do Eric e
da Stefany, sério. Eu estou sendo sincero.
— Ai, Liam, eu não entendo essa sua antipatia por elas. As
duas são tão queridas, que apesar dos momentos constrangedores
na hora do jantar, tá mais do que na cara de que querem nos ajudar.
Talvez ela tivesse razão. Confesso que fiquei um tanto
comovido com o jeito da Lexie de dizer que elas nos apoiam e
querem nos ajudar no que for preciso, mas, sei lá, era provável que
eu ainda precisava me acostumar, ainda mais, com tudo isso.
— É que, Molly, você não entende...
— O que eu não entendo?
Tipo, tudo?
— Tem algo estranho. Uma coisa que eu não sei explicar —
confessei, enquanto vi as ruas e avenidas passando frente aos
meus olhos, à medida em que o carro se movimentava. — Elas
sempre me olharam de um jeito esquisito. Como se sempre
soubessem de tudo. Como se soubessem de mais coisas do que eu
sei. Como se me conhecessem mais do que eu mesmo. É estranho.
— E não acha que elas, de fato, sempre souberam de tudo?
Inevitavelmente, sorri com o pensamento ingênuo da Molly.
Claro que uma possível desconfiança não tinha cabimento algum.
Sempre fui muito homem, nunca dei a entender que gostava de
caras, exceto nos últimos tempos.
— Acho que isso não tem nada a ver, Molly — repliquei. —
Nunca demonstrei nada. Elas não têm uma bola de cristal. Elas são
muito estranhas, isso sim.
Dessa vez, foi ela quem riu do que eu disse.
— Eu acho que você é bobo. Não era, nem é, difícil perceber
os sentimentos que você sempre teve pelo Eric, ainda mais levando-
se em consideração que elas são lésbicas. Elas entendem bem de
tudo isso.
— Ah, qual é, Molly? Nem vem. Eu nunca dei pinta de gay.
— Gay não tem um jeito de ser, Liam! É uma pessoa como
qualquer outra. Além do mais, eu mesma acabei percebendo o que
rolava com vocês desde criança por causa delas. Elas sempre
souberam mesmo. E não tem nada de ruim nisso.
— Que história é essa?
— Ah... Acontecimentos de infância...
— Desembucha logo, Molly! — insisti.

...

Eu não sabia quantos anos o tio George estava fazendo


naquele dia, mas eu, papai, mamãe e o chato do Liam tínhamos
sido convidados para ir a esse aniversário. Desde que eu era
pequeninha (tá, eu ainda tinha seis anos de idade), sempre fomos
convidados pra essas comemorações na casa deles. Devia ser
porque a mamãe sempre foi amiga da mãe do Eric e da Stefany.
Ouvi falar eram amigas desde a faculdade. O que era faculdade? Eu
só sabia que era um lugar onde gente grande ia.
O chato do Liam estava ali, sentado ao meu lado, de castigo
porque tirou um F em matemática e enterrou a prova na grama do
jardim. Que burro. Não tinha como esconder nota baixa dos nossos
pais. Papai ficou com tanta raiva, que meu irmão estava a uma
semana sem poder brincar. Nem naquele dia, que era aniversário do
tio George, ele podia brincar com as crianças. E eu, bom, não
estava brincando, porque não conhecia ninguém, fora o Eric e a
Stefany. Tinha um pouco de vergonha.
Eu poderia estar brincando, mas o Eric desapareceu. A gente
chegou e ele correu pra dentro de casa, enquanto nós ficamos do
lado de fora, no jardim. Quer dizer, ele não simplesmente correu, ele
ficou meio estranho depois do Liam não dar bola pra ele, quando a
gente chegou. Eric foi falar todo animado com ele, mas o Liam,
como sempre, nem olhou direito na cara do menino. Eric correu pra
dentro de casa todo estranho por causa disso. Eu não sabia porque
Liam não gostava dele. Ele era tão legal!
E sobre a Stefany, que era a outra “criança” dali que eu
conhecia, bem, não estava brincando com ela porque ela era...
Esquisita. Dois anos mais velha que eu, mas nunca agia como uma
criança. Tinha cabeça de adolescente e... Ela olhava pra mim de um
jeito esquisito. Parecia querer alguma coisa de mim. Nunca entendi
isso, já que ela era muito mais próxima do Liam do que de mim. Por
exemplo, agora ela estava bem ali, do outro lado do jardim,
conversando com umas garotas mais velhas, mas, de vez em
quando, me encarava.
Quer dizer, que cabeça essa minha! Era claro que ela não
estava olhando pra mim. Stefany devia ser estar olhando para o
Liam, que estava sentado do meu lado. Sim, claro que devia ser
isso. Eles dois eram carne e unha. Talvez porque o Liam pensasse
como ela, ou, pelo menos, era parecido com ela. Talvez eu fosse
meio infantil para a cabeça avançada da Stefany. Mas, eu não
ligava, eu era criança, ué!
E, nossa... Ela estava começando a caminhar na minha
direção. Não, na minha não. Claro que não. Na direção do Liam.
Porque meu coração estav acelerando?
— Oi, Liam! — Stefany, junto com algumas garotas mais
velhas, aproximou-se de nós, olhou para o meu irmão e... — Molly...
— abriu um sorriso lindo para mim.
Eu nunca ouvi a voz de um anjo, mas eu tinha certeza que
eles tinham uma voz parecida com a da Stefany.
— E aí... — Liam respondeu com uma animação péssima.
Ele devia estar com raiva pelo castigo justo em um
aniversário, enquanto várias crianças corriam de um lado para o
outro. Ninguém mandou tirar nota baixa e esconder a prova na
grama do jardim.
— Oi, Stefany... — dei-lhe um pequeno sorrisinho.
— Vocês estão tão parados aí! — parecia surpresa por nos
ver tão quietos. Na verdade, não era normal mesmo ver o Liam
parado em algum lugar. Quanto a mim, eu era mais quieta mesmo.
— Por que a gente não joga algum jogo de tabuleiro? Tem vários
aqui em casa!
Jogo de tabuleiro?
Olhei para o Liam, que me encarou de volta. Ele não ia poder
brincar e, mesmo assim, ele não gostava muito de jogo de tabuleiro.
Preferia futebol. Se elas tivessem chegado ali com uma bola de
futebol, com certeza o bobão do Liam iria quebrar a ordem que o
papai deu de não poder brincar.
— Liam está de castigo — respondi.
— Castigo? — Stefany ergueu as sobrancelhas.
As garotas adolescentes, que estavam acompanhando-a,
soltaram algumas risadinhas baixas, enquanto encaravam Liam, que
parecia bem envergonhado por eu ter revelado o pequeno
“segredo”. Quer dizer, isso era segredo? Ai, meu Deus.
— Calada, Molly! — meu irmão gritou em um sussurro.
— Desculpe... — repliquei meio sem jeito.
— Não vou porque não quero — Seu típico ar de
superioridade surgiu.
Liam nunca queria sair por baixo em nada.
— Claro... — Stefany, que estava em pé, o encarou de cima a
baixo, com pequeno sorrisinho de quem não se convencia daquilo.
Ela não era boba, sabia que Liam só não iria porque estava
mesmo de castigo.
— E você, Molly? — Seus olhos se voltaram para mim. —
Vai?
Encarei-a olho a olho e... Não conseguia deixar de achar
esquisita a maneira como ela me observava. Eu sabia que Liam e
ela eram melhores amigos, mas, às vezes, por mais estranho que
fosse, parecia que ela tinha mais vontade de estar comigo do que
com ele. Não que existam problemas em ser amiga dela, mas era
que... Stefany era muito avançada para a idade e eu... Eu era só eu,
né...
— Não sei, eu acho que...
— Vem... — a loira, de repente, segurou minha mão.
Volvi meu olhar para sua mão, que estava em cima da minha,
e achei tudo ainda mais estranho e... Bom. Era bom e estranho. Não
conseguia explicar. Nunca senti a mão dela na minha. Era fina e
macia, diferente do jeito dela, que era agitado e... Ah, tudo bem.
Não havia mal algum em brincar de tabuleiro, havia?
— Tá bom, eu vou, mas... Preciso fazer xixi antes.
A loira me deu uma pequena risadinha para o que acabei de
falar e me respondeu, soltando minha mão.
— Tá, vai lá, mas não demora muito, heim?
Levantei-me da cadeira e caminhei rapidamente pelo jardim.
Não demorou muito até eu entrar na casa. Como já era acostumada
a ir à casa dos tios, sabia muito bem onde ficava o banheiro mais
próximo. Era logo ali, pertinho da cozinha.
Quando me aproximei do banheiro, no entanto, exatamente
no momento em que passei próximo à cozinha, ouvi um nome que
me causava arrepios. E, caramba, era a voz da tia Cynthia! Mãe do
Eric! Olhei para o lado e a vi conversar com a Samantha, pertinho
da geladeira.
— Doente? — A voz da tia Cynthia demonstrava o quando
estava preocupada.
Sim, era essa palavra que me causava arrepios. Doente.
Doença. Tinha medo de ficar doente, assim como também tinha
medo de ver gente doente.
— O Eric? — Outra vez, a voz da tia Cynthia ressoou. Agora,
com muito mais preocupação.
Oi? Eu ouvi direito? Era o Eric que estava doente? Não...
Meu amiguinho estava doente?
Sem pensar duas vezes, me escondi atrás da parede que
dava acesso à cozinha, ficando com metade do corpo para dentro e
só uma pontinha do rosto para fora, espiando a conversa delas.
Papai e mamãe me disseram que era feio ficar espiando a
conversa dos outros, mas eu precisava saber o que o meu
amiguinho tinha. Ele não podia estar doente!
— Calma, Cynthia, calma... — Samantha soltou uma
pequena risada, enquanto passava uma das mãos pelo braço da tia,
tentando acalmá-la.
— Ora essa, Samantha! Você me vem com uma história de
que meu filho está doente e pede para que eu fiquei calma? Que
história é essa?
Ah, não! Meu amiguinho não podia estar doente! Será, então,
que era por isso que ele desapareceu do aniversário?
— Cynthia, minha irmã... — Samantha passou as mãos
carinhosamente sobre os cabelos da tia. — Seu filho está amando
com apenas sete aninhos de idade, paixãozinha de criança... — Por
fim, sorriu.
Amando? Amor era doença? Eu não estava entendendo
nada. Uma vez, eu ouvi falar que amor era coisa boa!
— Como assim, Samantha? — titia perguntou baixinho,
parecendo mais calma. — Amando quem?
— Bom... Na cabecinha inocente dele é doença, mas eu
expliquei que não é. Estava até todo tristinho na sala, quando eu e
Lexie o vimos — Samantha segurou as mãos da tia Cynthia e... —
Seu filho está gostando do Liam.
Oi? O Eric estava gostando do Liam?
Co-como assim? Era tipo um “gostar” de amigo?
— Do Liam? — Um traço de sorriso apareceu no rosto da tia
Cynthia.
— Do Liam! — Samantha respondeu com empolgação. — A
coisa mais fofa! Você precisava ver o rostinho dele, minha irmã!
Amor de criança é muito puro...
Amor?
— Nossa, Sam... — Cynthia balançou levemente a cabeça
com um pequeno sorriso incrédulo no rosto. — Ele é só uma
criança, ainda não entende sobre a vida ou sobre como as coisas
funcionam.
— Eu sei... Por isso que eu e Lexie não nos aprofundamos
muito. Quem sabe, quando ele estiver maiorzinho, ele entenda.
— Ah, meu Deus... — tia Cynthia sorriu ainda incrédula. —
Será que o passado vai se repetir?

...

— E foi isso — Molly finalizou. — Na época em que me


envolvi com o Eric, sempre tentei me cegar para esse fato, mas a
recordação desse dia sempre vinha na minha cabeça e, toda vida
em que eu via vocês dois brigando pelos mais bobos motivos, eu
lembrava do aniversário e notava que vocês realmente sempre se
gostaram. Desde criança.
Caramba...
Eu nunca imaginei que o Eric pudesse gostar de mim desde
criança, porque, de fato, eu gostava dele desde criança. A própria
Stefany me lembrou disso. Só que eu nunca imaginei que pudesse
ser recíproco. Eu nunca imaginei que as tias deles pudessem saber
disso desde tão cedo. E, principalmente, eu nunca imaginei que a
Cynthia, a própria mãe do Eric, já soubesse.
Meu Deus, quem mais desconfiava?
— Eu tô sem palavras, Molly... — confessei após estacionar o
carro na garagem de casa.
— Eu sei — respondeu, complacente. — Eu também fiquei
assim quando fui crescendo e entendendo a gravidade da situação.
Sim, nossa, meu Deus... Eram tantas coisas a se pensar
sobre isso e...
— Que história é essa do passado se repetir? — perguntei
ainda mais confuso.
— Essa foi a única parte que não entendi até hoje.
O cara é apaixonado por mim

Liam

“Ah, Liam, você vai sim!”, “Liam, para com essa boiolagem, você
vai na viagem”, “Liam, faz isso.”, “Liam, faz aquilo.”, “Liam, faz
assim.”, “Liam, faz assado.” Porra! Sério, as pessoas estavam
querendo me deixar louco por causa dessa maldita viagem de
comemoração do aniversário do Eric. E eu juro que não sabia mais
o que fazer para pararem com essa palhaçada.
Desde ontem, desde o momento daquele jantar, eu ouvia
essa mesma ladainha nos meus fabulosos ouvidos! Queriam cansar
a minha beleza! Como se não bastasse ter de ouvir a Molly – que
infelizmente morava debaixo do mesmo teto que eu, o que facilitava
na execução do “maravilhoso” ofício de me tirar do sério –
cacarejando dia e noite para eu acompanhá-los, a Stefany ainda me
ligou, praticamente me obrigando a ir.
Olha, eu sabia que a minha companhia era fantástica e
excepcional, tinha total consciência. E não, eu não era convencido.
Mas, essa história já deu, né? Chega! Eu não estava com a menor
vontade de ir, não curtia esses passeios em “família”, não ia com a
cara das tias do Eric e da Stefany, não tinha a obrigação de ir e,
principalmente, não era namo... Namo... Meu Zeus, era até difícil
pronunciar essa palavra em pensamento.
Credo.
Eu não era namorado do Eric.
Sim, ufa, eu não era.
Eu não tinha a obrigação de dar o ar da graça na tal da casa
de campo.
E por falar no Eric, curiosamente, ele era o único que ainda
não tocou no assunto depois do jantar. Não me ligou, nem mandou
mensagem. Quero dizer, ele até mandou mensagem, mas foi
somente um bom dia naquela manhã. Ele não falou sobre nada a
respeito da viagem, mas eu conhecia muito bem esse garoto, e o
Eric não seria o Eric se não me convencesse a fazer algo.
Portanto, eu estava apenas aguardando o momento em que
ele iria aparecer cheio de jeitinho para me fazer mudar de ideia. Já
conhecia todas as artimanhas e joguinhos que ele usava, nada mais
era segredo para mim. Aquele idiota, aquela peste, aquele demônio
que eu gostava tanto. Espera. Gostava só um pouco. Só um
pouquinho. Quase nada, sabe?
Mas ele que não pensasse que iria conseguir me convencer
com aqueles beijos que me dava, com aquele corpo que tinha, com
aqueles braços que me envolviam, com aquela pegada que...
— Liam? — No exato instante em que ia suspirar (sim,
porque aquele filho da mãe me fazia suspirar até em pensamento,
imbecil!), ouvi meu nome sendo chamado por uma voz conhecida.
Bastante conhecida, na verdade.
— A-ah! O-Oi, Robert! — respondi como se estivesse
acordando de um sonho. Pior era que parecia que eu estava mesmo
despertando de sonho. A bela adormecida, como Eric já me chamou
algumas vezes. Palhaço.
— Sonhando acordado dentro do vestiário, capitão? — Seu
tom de voz era totalmente sugestivo. O que ele estava querendo
dizer com isso? — Tá sonhando com os caras se trocando para o
treino é? — e, como péssimo comediante que era, finalizou com
uma pequena risada.
Nossa, como ele era engraçado! Meu Zeus do Céu! E eu
ainda conseguia ser amigo deste traste que zoava com a minha
cara. Mas será que essa “zoação” era porque ele estava
percebendo alguma coisa que não devia? Ai, Santa Vodca do Céu,
será que ele descobriu que eu estava me envolvendo com o Eric?
Cacete, eu estava ficando muito paranoico. Desse jeito, eu ia acabar
internado em um hospício!
— Se eu sonhasse com os machos desse time,
provavelmente não seria um sonho, seria um pesadelo. Se você
estivesse no sonho, então, puta que pariu, nunca mais voltava a
dormir — sorri com sarcasmo, mostrando bem os meus refinados
modos.
— Opa! Parece que pisei no calo do capitão... Foi mal, cara
— Robert me devolveu o sorriso com ainda mais sarcasmo.
Caralho, será que as pessoas não entendiam que só quem podia
ser sarcástico que comigo era o Eric? Só quem podia me provocar
era o Eric! Não que ele fosse um privilegiado. Não que o “provocar”
tivesse conotação sexual. Claro que não. — Mas, eu vim em missão
de paz.
Missão de paz?
— Fala logo o que você quer, Robert. Se for dinheiro, meus
pais ainda não me deram a mesada desse mês. Tô duro — Não
duro como eu gostaria de estar com um certo alguém. Pensei, mas
não disse, obviamente. — Então, se for pra pedir dinheiro
emprestado, melhor perder as esperanças.
— Dinheiro? — perguntou entre risos, enquanto balançava a
cabeça em negativo. — Como se eu já tivesse te pedido dinheiro
mesmo, né? — Ah, tá! Até parece! Já pediu, assim como eu já
paguei umas doses de bebidas pra ele na balada. — Vim aqui para
saber se ainda está de pé a nossa saída no sábado à noite.
Ai, cacete. A tal da saída que era no mesmo dia do
aniversário do Eric e, consequentemente, da viagem. Por que a vida
tinha que ser complicada? Mas, tudo bem, eu já decidi por mim
mesmo que não iria ao passeio em família. Além do mais, precisava
me reaproximar dos meus amigos. Eles estavam meio distantes e
eu sentia que também estavam desconfiados da minha proximidade
com o Eric, mesmo que eu tentasse disfarçar. Então, sim, eu ia
tomar umas com ele e o William no sábado à noite.
— Ah, sobre o fim de semana? Mas é claro que es... — e, no
exato instante em que eu tentei confirmar, o vestiário do time se
encheu de um cheiro amadeirado misturado com aroma de loção
pós-barba, de cabelos castanhos, de olhos cor de mel, de um
sorriso branquinho e brilhante... Eric.
O zagueiro mais gostoso que eu já vi na vida entrou no
vestiário, pronto e vestido para o treino, rindo e sorrindo para os
caras do time, jogando brincadeira e simpatia para uns e outros,
exalando jovialidade e bom humor. Por Zeus, como ele conseguia
ser assim?
E, como se já não bastasse a aura fodidamente sexy que
carregava consigo, seu olhar cruzou com o meu e, com uma
piscadela, sorriu para mim. Puta que... Cara, sinceramente, eu não
sabia mais nem o que pensar. A boiolagem era um caminho sem
volta.
— Liam... Ei... Liam? — Robert estalou os dedos bem em
frente ao meu rosto, trazendo-me de volta ao Planeta Terra depois
de sonhar acordado pela segunda vez com o Eric em uma só
manhã. Meu Santo Thor, eu estava indo de mal a pior!
— Ah, sim... É... — balancei a cabeça, tentando me lembrar
do que estava falando, mas falhando miseravelmente nisso. — A
gente estava conversando sobre o que mesmo, heim? — franzi o
cenho, sem me dar conta da bandeira que eu estava dando.
No entanto, assim que olhei para a cara que ele estava
fazendo para mim, logo percebi a mancada que dei. Que merda!
Enquanto eu estava vendo o Eric praticamente entrando em câmera
lenta e esbanjando simpatia para tudo e todos, o Robert percebeu
exatamente meu rosto de abobalhado!
— O que houve aqui? — questionou enquanto volvia seu
rosto para mim e para o Eric ao mesmo tempo, encarando nós dois
como se estivesse a ponto de descobrir um segredo ou algo que há
tempos buscava por uma resposta.
Hades do inferno, ele percebeu mesmo! Pensa rápido, Liam!
Pensa rápido!
— Oi? — me fiz de desentendido com a melhor cara de
paisagem. — Do você tá falando? — desconversei, soltando um
sorrisinho de quem estava confuso com algo. Confuso... Até parece!
— Você e o Eric... — fez menção de continuar com as
indagações, contudo lhe interrompi de imediato, com o mesmo tom
de voz despreocupado, um timbre digno de uma pessoa que não
estava entendendo bulhufas.
— Quê? — totalmente despretensioso, encarei-o como um
extraterreste, tentando fazê-lo pensar que estava insinuando algo
completamente descabido. E o pior era que estava! — Tá viajando
com o quê, cara? Hum? Acabei de me lembrar do que estávamos
falando. É claro que nossa saída está de pé!
Assim que lhe dei a confirmação sobre a nossa quase
baladinha, já percebi logo uma mudança de semblante dele. De
insinuador passou para empolgado. Meu Zeus, será que eu
consegui contornar a situação?
— Então, tá fechado, né? — perguntou. — Sábado à noite,
balada, bebida e pegar muita mulher!
— Pegar muita mulher? — Uma voz simpática, gentil e
fodidamente sarcástica falou ao meu lado: Eric. Não podia acreditar
que aquele imbecil ouviu logo essa parte da conversa! — Então,
vocês vão sair no sábado à noite? — questionou com toda sua
simpatia costumeira, mas, no fundo, bem no fundo, eu sabia que ele
estava sendo extremamente irônico.
Era claro que o Robert não percebia a ironia e o sarcasmo
por trás de tudo, mas eu percebi, porque eu conheci muito bem
aquele garoto. E por falar no Robert, porra! Todo o meu esforço para
contornar a situação foi por água a baixo com esse repentino
aparecimento do Eric! O semblante questionador e desconfiado logo
voltou ao seu rosto, porque, claro, o Eric nunca teve tanta intimidade
comigo a ponto de interromper uma conversa entre mim e um
amigo.
Por que diabos o Eric não colaborava em fingir as
aparências?!
— É, nós vamos dar uma saída no sábado à noite. Por que?
— Robert indagou todo desconfiado, praticamente arqueando uma
das sobrancelhas em um claro gesto de quem estava suspeitando
de algo. — Tá a fim de ir com a gente? Tá querendo se convidar e
tal? — finalizou com uma leve pontinha de ironia.
Era impressão minha ou estava rolando ciúmes não somente
por parte do Eric, mas também por parte do Robert?
— Ah, não, imagina! Não quero atrapalhar uma saída de
vocês... — Eric replicou e eu consegui sentir a quilômetros de
distância o cheiro de escárnio que escorria por entre as palavras
que ele pronunciava. Que o Robert não estivesse percebendo! Que
o Robert não estivesse percebendo! Era essa a minha oração
silenciosa. — Mas, será você poderia nos dar uma licencinha?
Estou a fim de trocar uma ideia aqui com o Liam. Será que rola,
heim?
O quê?!
Como assim “trocar uma ideia com o Liam”? Eric e Liam não
trocavam ideias na frente dos outros, porque todos achavam que
Eric e Liam não eram amigos! Será que ele estava esquecendo
desse pequeno detalhe? Será que já não bastava todos aqueles
intervalos de aulas em que Stefany me obrigou a passar junto a ele?
— Beleza, irmão, pode trocar aí uma ideia com o capitão... —
Robert respondeu de uma maneira que me fez sentir um gosto
amargo na boca. Caramba. Agora sim estava mais do que na cara
que ele realmente estava com ciúmes! Ciúmes de amigos, porque
ele devia estar se sentindo trocado por um alguém que nunca foi
próximo a mim.
— Foi mal, viu, cara? — Eric ainda soltou no ar tal frase
quando Robert, de costas, foi se afastando de nós. — Depois vocês
voltam a conversar sobre as garotas que vão pegar na balada de
sábado à noite — Ai cacete, será que ele não conseguia disfarçar?
Olha a bandeira que ele estava dando!
— Vai fundo aí, amigão — Robert soltou a frase de volta, já
caminhando para o outro lado do vestiário. Eu estava presenciando
uma competição de sarcasmo única e exclusivamente por causa da
minha companhia. Eu sabia que minha presença era fabulosa na
vida de qualquer pessoa, mas era que eles parassem!
E não demorou dois segundos para que Eric pousasse uma
de suas mãos sobre o meu ombro. Limites? Ele parecia não
conhecer o significado dessa palavra! Já não bastava ter
interrompido a conversa? Agora, inventava de colocar as mãos em
cima de mim na frente de todo mundo!
Não perdi meu tempo e logo me afastei, fazendo com que
sua mão escorregasse e liberasse meu ombro. No entanto, em um
piscar de olhos, Eric, novamente, colocou sua mão no mesmo local,
mas, dessa vez, apertando levemente minha pele contra seus
dedos.
Meu Zeus, esse era o momento em que ele iria tocar no
assunto sobre eu não ir à viagem, nem participar do aniversário
dele? Esse era momento em que a gente iria discutir na frente de
todo mundo? Não, já sei, esse era o momento em que eu correria e
fugiria sem olhar pra trás!
— Vamos estudar hoje à tarde? — Sua voz amena
perguntou.
Oi?
Tanta coisa para falar e ele estava perguntando sobre
estudo?
— O que disse? — questionei com o cenho franzido.
— Perguntei se podemos estudar hoje à tarde, lá em casa,
depois da aula.
Ok, ele não estava tocando no assunto do aniversário, nem
da viagem e, muito menos estava me enchendo o saco por ter
decidido sair com o Robert e William, o que era muito bom, pois não
estava cansando a minha beleza em ter que discutir, mas estudar?
Assim, do nada?
— Por que você quer estudar hoje à tarde? — perguntei,
achando tudo isso muito estranho, já que o Eric sempre encontrava
uma maneira ou dava um jeitinho de me convencer de algo, no caso
me convencer a ir ao passeio em família, mas, até o presente
momento ele não tocou nesse assunto.
— Esqueceu que temos uma prova de simulado dos
processos seletivos das universidades na semana que vem? —
cruzou os braços, finalmente liberando meu ombro, em um claro
gesto que se preocupava com o meu futuro mais do eu mesmo.
E, porra, eu tinha esquecido completamente desse simulado!
Sem falar que os processos seletivos das universidades estavam
em cima! Daqui a pouco, eles aconteceriam e nenhuma
universidade me aceitaria! Ai, meu Zeus, eu não podia pensar
assim. Eric estava me influenciando a estudar há muito tempo e eu
estava melhorando as minhas notas e o meu conhecimento. Ou
seja, essa porra de seleção tinha que dar certo!
— É verdade... — resmunguei. — Tenho que estudar pra
essa bosta, que saco. E amanhã a gente viaja para as quartas de
final do campeonato, então, preciso estudar hoje mesmo.
— Depois da aula, lá em casa, beleza?
Era o jeito, né?
— E por que não pode ser na minha casa? — perguntei.
— Melhor lá em casa — respondeu.
— Bom dia, meus caros! — Assim que Eric se calou, a voz do
técnico, Sr. Jones, ecoou pelo vestiário. — Vamos para o treino?
Temos as quartas de final para enfrentar! Avante!

❖❖❖

Curiosamente, tudo correu na mais perfeita naturalidade


durante o treino. Tirando o fato dos putos do Robert e do William
ainda me olharem de um jeito desconfiado, Eric agiu naturalmente.
Se comparado aos outros treinos, ele não me provocou daquela
maneira sexy e discreta que somente ele sabia fazer na frente do
time, mas também não pareceu estar com raiva ou desapontado
comigo. Isso ia totalmente de encontro ao que eu pensava que
fosse acontecer, porque imaginei que ele ficaria com raiva por saber
que eu estava combinando de sair com meus amigos, justo no seu
aniversário, mas, não, ele agiu normal, pleno.
Depois de tomarmos banho e nos vestirmos, entramos na
sala de aula, e Eric escolheu uma carteira para se sentar, sem se
importar se o local era perto ou longe de onde eu estava me
sentando, assim como também não parecia ter feito isso de
propósito. Ele, simplesmente, estava agindo naturalmente, como
qualquer outra pessoa que chegava em uma sala de aula e escolhia
um lugar.
Até o seu olhar e o jeito como falava comigo estava natural,
parecia até que não lembrava de que eu não ia comemorar seu
aniversário com ele. Ou talvez ele lembrasse, mas não estivesse se
importando, o que era algo que, realmente, muito me interessava,
porque isso significava que eu não teria de desgastar minha
fabulosa beleza em uma discussãozinha qualquer. Mesmo não
gostando de elencar suas qualidades, ele parecia estar sendo
maduro.
Assim, sentei-me em carteira do lado direito da sala e,
enquanto abria a minha mochila, tirando meu caderno e uma
caneta, Eric sentou um pouco mais atrás de mim. Retirei meu
material e... Olha só! Naquele dia, eu tinha levado a bíblia, digo, o
caderno de física e química dele, aquele que ele me emprestou no
início das aulas. Levei para devolvê-lo, já que estávamos perto do
fim das aulas e eu já tinha pegue todas as anotações que precisava.
Displicentemente, abri o caderno e o folheei, relembrando as
infinitas horas de estudo que passei debruçado por cima daquelas
anotações, tentando entender pelo menos dez por cento da lógica
por trás dos conteúdos que o Eric escreveu nele. Medidas elétricas,
geradores, receptores, capacitores e blábláblá! Tudo rimava com
“dores”, e realmente sentia uma dor estudando aquelas coisas.
Graças a Thor, meu curso na universidade não teria nada
relacionado à cálculos, só o Eric mesmo que era doido pra gostar
disso.
Passei as folhas aleatoriamente e... Santa Vodca do Céu! Na
última folha do caderno: “horroroso” escrito com a minha letra,
“gostoso” escrito com a letra do Eric, “atrevido” escrito por mim,
“excitante” escrito por ele. Gelei e fechei o caderno
instantaneamente, sentindo meu coração quase sair coração pela
boca.
Por Deus, por Zeus, por Hades! Fizemos essa bobagem
antes da nossa última pegação lá no meu quarto, quando
estávamos estudando. A pegação foi maravilhosa, claro, mas essas
mensagens escritas... Credo! Ninguém podia ver isso ou eu teria
que fugir para as colinas e nunca mais botaria os pés naquele
colégio!
Coloquei rapidamente o caderno embaixo de todo o meu
material que estava em cima da carteira, me certificando de que
nada, nem ninguém, pudesse ao menos tocar naquele objeto
proibido! Ficaria ali até o final da aula e, depois, eu o entregaria para
o Eric, fazendo-o colocar dentro da mochila e só tirar de lá quando
estivesse longe qualquer pessoa, de preferência em casa.
Porém, a vida sempre me pregava peças. Além de ter que
lidar com o susto que levei ao ler a pouca vergonha no caderno, o
Noah sentou, naquele exato instante, na carteira ao lado da minha
Eu precisava fazer algumas ressalvas aqui: eu sabia que não estava
mais posição de chamá-lo de gayzinho, porque, bem, não tinha nem
a necessidade de explicar o motivo! Mas, isso não anulava o fato de
eu não ir com a cara daquele garoto. Olha só como ele era
estranho! Todo desengonçado! Deveria ter escolhido um local mais
distante para se sentar.
Ele era tão esquisito de um jeito, que me olhava por baixo
dos cílios, através dos óculos, como se estivesse com vergonha o
tempo todo. E ele era assim desde a primeira vez que notei a
existência dele na face da Terra. Coisa que eu nunca deveria ter
notado. Mas, era meio impossível de não perceber quando todos os
meus amigos zoavam o fato do cara ser apaixonado por mim.
Ou, pelo menos, acreditava-se que ele era, porque me
encarava, mesmo que disfarçadamente, sempre que eu estava por
perto, ou me secava durante os jogos de futebol, ou me olhava
enquanto eu caminhava pelos corredores do colégio, ou me
observava no pátio quando estava conversando com meus amigos.
Eu sabia que já tinha zoado muito ele, e de mau gosto mesmo, mas
no fundo ficava meio assustado com essa sina. Era nessas horas
que eu, curiosamente, gostaria de ter o idiota do Eric sentando ao
meu lado.
— Bom dia, turma! — ouvi a voz do professor, assim que
cruzou a porta da sala e seguiu rumo à sua mesa, tirando-me dos
meus devaneios. — Vamos acalmando aí os ânimos e cessando as
conversas, porque teremos teste surpresa hoje!
O quê?!
Espera aí.
Eu estava ouvindo direito? Teste surpresa?
Puta merda!
Em questão de segundos, a sala se tornou um alvoroço só.
Alunos choramingando de um lado, alunos se agoniando do outro
lado, alunos rezando a todos os deuses (pareciam até eu) para que
o professor desistisse da ideia. E como eu estava? Tendo as três
reações em um corpo só!
Caralho. Sério. Caralho. Isso era tudo o que eu conseguia
pensar.
Eu não sabia se estava preparado o suficiente para esse
teste. Eu estudei com o Eric, mas não estava esperando por essa
bomba! E, pensando nele, virei-me de relance para trás, apenas
para saber a reação dele, e vi que o imbecil estava mais pleno do
que nunca! Por que eu não era assim, meu Zeus? Por que eu não
era inteligente como o Eric?
E, no exato instante em que fiz menção de me virar para
frente, ele me olhou com sua típica expressão de “Liam, calma, você
vai conseguir, a gente estudou”. Ele me falava isso a todo momento,
mas eu era fodidamente inseguro e sempre pensava que nunca
estudava o suficiente.
— Acalmem-se, meus caros! Não entrem em uma crise de
pânico — o professor se pronunciou novamente. — Esse teste está
bem simples e vocês poderão fazer em dupla. Mas a dupla deve ser
com o aluno que está sentado ao lado de vocês.
Oi?
Com o aluno que estava sentado ao lado? Isso era sério?
Olhei para frente e vi a morena inteligente da turma, pensei
em quem estava um pouco mais atrás de mim e lembrei-me do Eric,
mas a pessoa que estava ao lado... A pessoa que estava sentada
ao meu lado... Aos poucos, virei meu rosto, até que minha visão foi
tomada por olhos castanhos e tímidos, em óculos fundos de
garrafas, e por cabelos escuros e revoltos: Noah.
A ficha caiu

Liam

— Professor, será que não dá pra trocar de dupla? — perguntei,


após ter me levantado e seguido na direção do professor com a
ilusão ou a esperança de poder fazer o teste com outra pessoa que
não fosse aquele esquisito.
Sinceramente, eu não gostava da ideia das pessoas me
verem tão próximo ao Eric no colégio, mas eu prefiro mil vezes fazer
o teste com ele do que com aquele nerd estranho. Cadê o meu Eric,
o meu bebê-imbecil-idiota-inteligente? Me salve dessa barbaridade!
— Não, Liam, não dá pra trocar de dupla — o professor
replicou curto e grosso. Aparentemente, nenhum professor ia com a
minha cara. Inferno! Talvez fosse por causa das minhas péssimas
condutas e notas de tempos atrás.
Para a sua informação, professorzinho, eu estou mudando,
tá?! Não sei se te avisaram, mas as pessoas mudam com o passar
do tempo!
Claro que eu estava respondendo assim a ele somente em
pensamento. Não era doido o bastante para ir à detenção, mais uma
vez, por ser mal-educado com um professor. Eu já estava fodido
demais.
— Mas, professor... — quase choraminguei.
— Sem “mas”, Liam — me interrompeu, já impaciente. — Se
não quer fazer o teste com a sua dupla, pode fazer sozinho. Agora
volte para a sua carteira, porque vou distribuir as perguntas.
Sozinho?! Mas que absurdo! Se fazer um teste de física em
dupla já era difícil, imagina fazer um teste de física sozinho! Era
para o Eric estar fazendo esse teste comigo. Mas não, agora ele
estava sendo a dupla de sei lá quem.
Com um suspiro de derrota, dei meia volta, caminhando em
direção à minha carteira e encarando o garoto esquisito que o
destino obrigou a ser minha dupla. Seus olhos não escondiam que
estava mais nervoso que nunca, ao ponto de não conseguir me
encarar direito.
Por que ele era assim comigo? Eu, por acaso, era um
monstro de sete cabeças?
Sentei-me no meu lugar e fixei meu olhar no seu,
praticamente o dizendo em silêncio para juntar as nossas carteiras,
porque, obviamente, eu não ia me dar ao trabalho de fazer isso. Ele
que se levantasse e se juntasse a mim, já que não tínhamos outra
alternativa.
E, pela graça de Thor, ele entendeu. Levantou-se, aos
trancos e barrancos, mais desengonçado que nunca, e arrastou sua
carteira em direção à minha. No entanto, Noah não era o Noah, se
não deixasse tudo cair no chão.
Caralho, irmão. Como uma pessoa podia ser tão desastrada?
Olha só! Todas as canetas e cadernos caídas no chão. Meu Zeus,
dai-me paciência para aguentar a companhia desse ser humano por
mais de cinco minutos. Cinco minutos era tudo o que eu pedia.
Depois de trocar os pés pelas mãos, quando finalmente
conseguiu juntar tudo do chão e empurrar sua carteira até a minha,
Noah sentou-se ao meu lado com o rosto vermelho, queimando de
vergonha e nervosismo. No entanto, algo me surpreendeu.
— Oi... — Sua voz saiu em um tom baixo e levemente
trêmulo. Seus olhos não me encaravam de volta, da mesma forma
como eu o observava, mas, mesmo assim, me olha de maneira
suave e tímida. E isso era estranho.
Estranho não pela timidez ou pelo tom de voz trêmulo, mas
porque ele estava tomando a iniciativa de começar o diálogo e de
me olhar nos olhos, quando nunca fez isso. Essa era a primeira vez
que ouvia a sua voz com mais atenção e clareza.
— Oi — repliquei sem empatia alguma, até porque eu não
tinha a menor obrigação de ser simpático com alguém. Só era
simpático com quem eu queria, com quem eu gostava, com quem o
meu santo batia. E esse menino era muito estranho para o meu
gosto.
Alguns segundos de um incômodo silêncio entre nós se
passaram, no qual nem ele, e muito menos eu, ousamos ao menos
abrir a boca para falar sobre qualquer assunto. Contudo, o
professor, de repente, parou em nossa frente, deixando apenas uma
folha do teste para nós dois.
— Respostas somente de caneta preta e rascunhos podem
ser feitos no verso — nos orientou. — Vocês têm 50 minutos para
realizar o teste. Guardem livros e cadernos debaixo da carteira ou
dentro da mochila, porque é sem consulta.
Ah, ótimo! Além de ter que aturar a companhia dessa pessoa
ao meu lado por cinquenta minutos, nós ainda não podíamos
pesquisar! Pelo menos, esse garoto era nerd. Ao menos nisso eu
estava com sorte, porque, se alguém mais burro que eu tivesse se
sentado ao meu lado, eu estaria mais fodido do que agora.
Bufando de raiva, coloquei debaixo da minha carteira, com
toda a calma que eu não tinha, tudo o que estava em cima da minha
mesa, deixando apenas uma caneta preta, um lápis e uma borracha.
Notei Noah também guardar o seu material, apesar de estar fazendo
uma cara de quem queria falar algo, mas que estava com receio.
Fala logo, idiota.
— De-desculpa, m-mas... — Ah, céus, ele estava
gaguejando. — Queria saber se você vai querer passar a limpo as
respostas ou se quer que eu faça isso.
Ai, meu Hades do inferno, por que eu não estava fazendo
essa bosta de teste com o Eric?! Sentia falta daquele imbecil me
passando confiança e me dizendo que eu tinha a capacidade e a
inteligência de resolver tudo sozinho. Agora, ele estava bem ali,
sendo dupla de uma menina. Sortuda, por estar com o meu homem.
— Pode passar a limpo você mesmo — falei.
Isso não queria dizer que ele ia responder tudo sozinho.
Claro que não. Embora nerd como ele era, talvez soubesse muito
mais sobre como resolver aquelas questões do que eu.
— Certo e... De-desculpa, mas poderia me emprestar uma
caneta preta? Eu só tenho uma azul aqui.
Que tipo de nerd era esse que não ia preparado para o
colégio? Até eu, que não era um exemplo de aluno, levei tudo o que
era necessário. Praticamente revirando os olhos para ele, ergui uma
das minhas canetas pretas em sua direção.
No entanto, no momento da entrega, as pontas dos nossos
dedos se tocaram levemente, causando certo choque com as
diferenças de temperaturas de pele. A minha estava quente, a dele
estava gelada, fria, típica de uma pessoa nervosa. Em questão de
segundos, levantei meu olhar e mirei em seu rosto.
Sua expressão estava ainda mais aturdida, encarando-me
como alguém que acabou de fazer uma coisa horrível e invasiva.
Crê em Deus Pai! Esse garoto ia morrer do coração se continuasse
pisando em ovos assim quando estava perto de mim!
— De-desculpa, e-eu não....
— Me faz um favor? — o interrompi, erguendo uma das mãos
e tentando não parecer tão impaciente quanto eu estava. — Para de
pedir desculpa. Se encararmos isso apenas como um simples
trabalho de dupla, talvez você não sinta tanta vontade de pedir
desculpas. Então, só para.
Respirei fundo, recobrando o meu fôlego e a minha fabulosa
compostura, depois de ter jogado todas aquelas palavras
rapidamente e de supetão. Odiava ouvir pedidos de desculpa, assim
como odiava pedir desculpas, principalmente quando não havia
necessidade.
Após a minha interrupção, o semblante de Noah, que já
estava tímido, ficou ainda mais envergonhado. Parecia que,
internamente, ele estava jogando pragas sobre si mesmo. Sério,
esse garoto ia acabar tendo uma hemorragia nasal só de ficar perto
de mim.
— Ce-certo... De-descu... Quero dizer... — pigarreou a
garganta de maneira agitada e nervosa. — Foi mal, eu... Ai, que
saco — e colocou as duas mãos na frente do rosto, demonstrando o
ápice da vergonha de alguém que não conseguia falar mais que
duas palavras sem gaguejar ou corar.
Meu Zeus do Céu! Alguém precisava urgentemente ajudar
esse garoto a ser mais confiante, porque, olha, não estava fácil!
— Que seja — respondi sem a menor paciência. — Bora logo
fazer isso — e peguei de maneira brusca o papel do teste,
segurando-o em minhas mãos e iniciando a leitura das questões.
Se eu não começasse logo a fazer isso, a gente nunca ia
terminar. Só queria estar aqui com o Eric, porque era para ele estar
fazendo esse teste comigo, e não esse filhote de cruz-credo com
Deus me livre.

❖❖❖

Pela Santa Graça de Zeus, depois naqueles iniciais minutos


vergonhosos, causados, única e exclusivamente, pelo Noah,
conseguimos fazer o teste. O bom de tudo era porque ele era nerd,
então me senti confiante em fazer as questões. O ruim de tudo foi
ter que aguentá-lo por longos 50 minutos.
Mas, felizmente, nunca mais precisaria tê-lo por perto.
Após todo o terror por ter feito aquela porcaria de teste de
física ao lado de um garoto esquisito, finalmente eu estava livre,
liberto e nos braços do meu amor... Espera. Amor? Não, eu não
pensei isso. Que coisa mais ridícula. Eu estava apenas livre e liberto
de ter que olhar para a cara de alguém que eu não gostava.
— Entra... — Eric disse, enquanto abria a porta do quarto e
liberava caminho para eu passar. Saímos do colégio separados,
para que nada servisse de motivo para fofocas ou coisas do tipo
àquela gentinha medíocre da escola, nos encontramos em frente à
sua casa e agora estávamos entrando no local onde íamos estudar:
seu quarto.
Mesmo um pouco receoso e me perguntando porque diabos
ele queria que a gente estudasse em sua casa naquele dia e não na
minha, adentrei em seu reino. Meu Zeus, há quantos zilhões de
anos eu não entrava no quarto do Eric? Porque, olha, eu nem me
lembrava da última vez! Talvez quando nós éramos crianças e
nossas mães insistiam para que fôssemos amigos e brincássemos
juntos?
Eu realmente não fazia ideia, mas do que eu me lembrava
mesmo era que, caralho, o quarto do Eric era irado! Era claro que eu
não iria admitir isso, mas ele tinha um quarto muito maneiro, de
verdade! Quando nós éramos pequenos, eu achava muito legal
todos os carrinhos que ele tinha em sua estante, mas nunca
brinquei com eles, porque não queria aproximação, assim como
também nunca deixei que ele brincasse com os meus.
O fato era que agora eu estava notando que os mesmos
carrinhos permaneciam intactos na sua estante, enfeitando o local,
porque era óbvio que o Eric não brincava mais com eles. Sem me
dar conta, acabei me aproximando da área dos brinquedos e toquei
em uma réplica de uma Lamborghini, meu carro. Assim como eu,
ele tinha uma coleção inteira dos mais variados conversíveis.
— Legal, né? — o ouvi, enquanto fechava a porta e se
aproximava de mim. — Eu lembro que meus pais me deram quando
eu tinha uns cinco anos de idade. Se fosse preto, seria da cor do
seu carro.
— É... — deixei-me sorrir. — Seria.
Ainda sem me dar conta, acabei relembrando nossa infância:
eu nunca deixei que ele tocasse em nada que era meu, em nenhum
dos meus brinquedos, em nenhum dos meus carrinhos. Caralho, eu
era tão imbecil. Mas, o mais estranho não era eu estar relembrando
isso. O estranho era estar me considerando um imbecil com o Eric.
Thor do céu, por que eu estava mudando tanto?
— Tá com fome? Quer comer alguma coisa? — Sua voz me
tirou dos devaneios. — Eu sei que meus pais estão trabalhando,
mas a gente pode se virar na cozinha. Fazer algum lanche, sei lá.
Por que ele tinha que ser sempre tão gentil? Por que ele
estava agindo com tanta naturalidade, mesmo sabendo que eu não
ia para a viagem e mesmo tendo ouvido a minha conversa com o
Robert? Eu só queria saber por que o Eric tinha que ser sempre
uma pessoa incrível como ele era. E eu nem acreditava que estava
pensando que ele era incrível! Eu jamais pensei assim. O que
estava acontecendo comigo?
Parecia existir alguma coisinha no meu peito, que eu não
sabia explicar o que era, mas que me dava a impressão de que
aumentava a cada minuto em que eu estava próximo ao Eric. Era
uma coisa muito estranha. Uma coisa que eu nunca senti. Ai,
caralho, será que eu estava ficando doente? Ok, Liam, não entre em
pânico. Esse calorzinho no peito não devia ser nada demais.
— Ah, não, tranquilo, eu comi antes de sair do colégio —
respondi. — E, então, a gente pode começar a estudar? Tô bem
puto porque tem muita coisa pra ver e eu tô morrendo de preguiça,
mas amanhã a gente viaja pro jogo e o tempo vai ficar curto.
Porra, eu nem acreditava que tinha falado isso! Liam Wyman
Tremblay Terceiro se preocupando com os estudos? Agora era
oficial: eu, com certeza, devia estar doente! Porque eu nunca, em
toda a minha linda e fabulosa vida, me preocupei com estudos. Eric,
provavelmente, estava fazendo uma séria e intensiva lavagem
cerebral em mim.
Até palavrão eu estava falando/pensando menos! Caralho!
Opa.
— A gente vai já, relaxa, vai dar tempo de estudar tudo —
Eric garantiu, enquanto começava a desamarrar e a descalçar os
coturnos. Primeira atitude típica de uma pessoa que chegava em
casa. — Quer trocar de roupa? Pode vestir alguma coisa minha.
Fica à vontade — e retirou a blusa.
Santa Vodca! Senti meus membros se paralisarem em menos
de um segundo ao me deparar com o belo e convidativo corpo
daquele imbecil. E não se dando por satisfeito em apenas tirar a
blusa, ele retirou também a calça jeans, ficando somente de cueca
na minha frente. Porra!
— É... N-Não... — gaguejei. — T-Tô de boa aqui. Posso
continuar com a minha roupa mesmo — e desviei meu olhar para
qualquer outra parte do quarto que não fosse o seu belo e escultural
físico, que não era muito forte, nem muito magro, mas no ponto
certo.
Meu Zeus, como esse filho da puta podia ter um corpo tão
bonito? E como eu podia me sentir tão atraído por esse corpo? Um
corpo que não tinha peitos? Um corpo que tinha apenas músculos, e
tríceps, e bíceps, e tanquinho, e um bumbum maravilhoso? O
caminho da boiolagem era mesmo sem volta.
— Por que você tá assim todo nervoso? — Eric soltou uma
pequena risadinha pelo nariz. — Já me viu no vestiário com menos
roupa que isso — e apontou para a cueca.
Ora por que! Existia uma pequena e sutil diferença do
vestiário para lá: no vestiário eu estava cercado por um monte de
machos e sabia que não iria cair na tentação de fazer nada, já ali
não tinha ninguém além de eu e ele, ou seja, eu podia não me
responsabilizar por meus atos.
No entanto...
— E-eu tô de boa — Minha voz acabou saindo em um tom
fodidamente fino. Que absurdo! Sem pensar duas vezes, pigarreei a
garganta, endireitei minha postura e engrossei o tom da voz. — Eu
estou bem.
Era óbvio que eu não ia admitir que, por dentro, estava
saltitando feito uma gazela. Coisa de boiola.
Mas você é boiola, Liam...
Esse meu subconsciente tinha que começar a aprender a
calar a boca!
— Hum, tranquilo, então... — sorriu e virou-se para o closet,
provavelmente procurando por alguma roupa.
Não demorou muito até encontrar algo e vestir-se com uma
calça de moletom, deixando apenas o tronco nu e caminhando em
direção à cama. Espera. Cama? O que esse serzinho queria na
cama uma hora dessas? Ele não disse que íamos estudar?
Acompanhei-o com o olhar e vi o exato instante em que se
deitou e me encarou. Sua expressão estava calma e tranquila,
acompanhada de um pequeno sorrisinho leve e jovial. Seu rosto
parecia me convidar para algo. Mas, o quê?
— Por que a gente não conversa um pouco?
Ah tá bom. Agora eu entendi! Era nesse momento em que ele
ia começar a encher minha cabeça de caraminholas para que eu o
acompanhasse na viagem, não era? Era nesse momento em que
ele ia se utilizar dos seus mais variados e ardilosos artifícios de
sedução para me convencer a participar de seu aniversário, não
era?
— E por que você quer conversar? — questionei.
O loiro, inevitavelmente, alargou ainda mais o sorriso, como
se não estivesse acreditando no que acabou de ouvir.
— Será que eu não posso conversar com o cara que eu
estou ficando? Ou nosso relacionamento se resume a apenas beijos
e pegação? — Seu sorriso questionador não saía do rosto. — Vem,
amor, nós ainda não tivemos um momento assim a sós para
conversar.
“Nosso relacionamento”? Calma. Ainda era um pouco
estranho se referir assim a nós dois. Eu não estava tão acostumado
assim. E, nem sabia quando iria me acostumar com o fato de estar
gostando e ficando com um homem, por mais que eu tentasse,
todos os dias, aceitar esse fato.
— E por que tem ser na cama? — cruzei os braços e arqueei
uma das sobrancelhas. Se ele queria uma conversa, podíamos fazer
isso em qualquer outro lugar, não precisava ser na cama.
— Nossa, quantos porquês... — franziu o cenho e fez um
biquinho de deboche bem engraçado. — A minha cama é bem
confortável para conversar, você vai gostar. Eu tenho certeza.
Eu não sei não, heim? Isso não estava me cheirando a
apenas uma conversa. Eric tinha sempre alguma artimanha, alguma
estratégia. Eu já conhecia esse garoto e sabia muito bem como ele
agia.
— Eu e você numa cama? E se alguém abrir a porta do
quarto?
— Eu tranquei a porta — respondeu de imediato. — Pode
verificar se quiser.
Ah meu Zeus, esse imbecil sempre tentando deixar me
confuso, porque era claro que aquela cama estava bem convidativa
pra mim, não somente pelo conforto, mas especialmente pelo que
estava em cima dela, vestindo apenas uma calça cinza de moletom.
— Vem... — pediu mais uma vez, afastando-se na cama e
deixando um espaço para eu me deitar ao seu lado.
Não. Eu não vou. Não vou. Não vou.
Ai que merda, eu vou sim!
Com um suspiro de derrota, deixei-me caminhar até lá e me
deitar ao seu lado. Seu sorriso de orelha a orelha não escondia o
quanto estava feliz por me convencer, mais uma vez, a fazer alguma
coisa. Isso era uma verdadeira bosta, porque só mostrava o quanto
eu era fraco!
Não, Liam, você não é fraco, você apenas quer os braços
dele te envolvendo.
Porra! Esse meu subconsciente tinha mesmo que calar a
boca!
E, como se estivesse lendo meus pensamentos mais
profundos e obscuros, seus braços quentes e definidos me
envolveram, levando-me para ainda mais perto dele em um claro
aconchego que nunca tive na vida. O estranho era que, à medida
em que ele me envolvia com carinho, eu senti aquela coisinha no
peito saltitando, que não era o coração, obviamente.
Eu nunca imaginei que ficaria abraçado assim com o Eric,
numa cama, algum dia. Era como diziam: existe primeira vez para
tudo.
Querendo ou não, tínhamos que aproveitar os momentos a
sós, porque naquela bosta de colégio eu não me atreveria nem a
olhar direito para a cara dele.
Mas, não podia mentir: isso ali realmente estava maravilhoso.
— Assim está bom? — perguntou, direcionando uma das
mãos aos meus cabelos e fazendo um carinho que intercalava em
um vai e vem das mechas para o rosto. Eu nunca tive alguém, fora a
minha mãe, que me fizesse um carinho assim. Essa era a primeira
vez.
— Um pouco — respondi, omitindo a parte sobre estar
achando uma delícia, porque era claro que eu não ia dar o braço a
torcer. Imagina se ele ficasse mais convencido que eu? Não, nem
pensar, isso estava fora de questão.
— Já é um bom começo — respondeu sem deixar o
sorrisinho sair do rosto. Ele realmente estava feliz por me ter
literalmente nos braços e, porra, eu não podia dizer que não estava,
porque eu também me sentia bem em tê-lo por perto. E isso era tão
gay. — Mas, me fala, como você está?
Como eu estava? Então, era assim que ele queria começar a
conversa?
— Tô bem e você?
— Estou muito melhor agora — replicou, ainda fazendo o
mesmo carinho com uma das mãos que ia dos meus cabelos ao
rosto em um vai e vem. — E como foi o teste de física? Deu certo a
dupla com o Noah? Vocês foram bem?
Noah... Podia revirar os olhos somente por pensar nele.
— Ah, é aquela coisa né? Ele é nerd, então presumo que
fomos bem — falei ao me lembrar do ridículo episódio de ter de
fazer dupla com ele. Carinha mais esquisito aquele. Credo.
— E você também é muito inteligente, Liam. Ou seja, com
certeza devem ter se saído bem.
Inteligente? Eu? Às vezes parecia que o Eric gostava de
mentir!
— Não vem me bajular, Eric, me conheço muito bem... —
estreito meus olhos em sua direção, observando-o com uma cara de
tédio pelo que ele acabou de falar.
Assim que lhe lancei o olhar de poucos amigos, Eric, no
entanto, soltou uma pequena risadinha pelo nariz e balançou a
cabeça em negação.
— Eu não estou te bajulando, só estou dizendo a verdade
pelo que vi das nossas aulas. Precisa confiar mais em si mesmo.
— Tá legal, Tony Robbins... — me permiti soltar uma
pequena ironia em tom de brincadeira, ao chamá-lo de Tony
Robbins, um palestrante motivacional gringo que era muito
conhecido.
E, então, conversa vai e conversa vem. Os minutos passaram
e eu nem percebi. Seus carinhos me envolveram de tal maneira,
que, ao seu lado, nem vi o tempo passar somente eu, ele e mais
ninguém. Eu podia estar sendo muito gay ao pensar assim, mas o
fato era que, sem me dar conta, já estávamos, nós dois, rindo e
sorrindo um para o outro, conversando sobre assuntos totalmente
aleatórios
Sem perceber me vi com as pernas traspassadas nas suas,
com meus braços envolvendo o seu corpo e com o meu rosto
recostado sobre o seu peito nu e lisinho, enquanto
compartilhávamos das mais variadas e engraçadas conversas. Tudo
isso era bem estranho, mas era bom, porque nunca fizemos algo
assim, ainda mais levando-se em consideração que eu achava que
ele ficaria com raiva de mim, depois da minha decisão sobre a
viagem.
— E quando eu vi, já estava estatelado no chão, com todos
aqueles putos rindo da minha cara, porque eu tinha caído com os
patins! — contei, em meio à risos, o dia em que meus amigos me
convidaram para andar de patins pela primeira vez.
A conversa estava fluindo tanto que eu nem percebi em como
chegamos no assunto sobre a primeira vez em que andei de patins.
Era a primeira vez em que eu e o Eric tínhamos uma conversa
assim, natural, sem barreiras ou impedimentos. Apenas duas
pessoas conversando, como acontecia em rotinas de... Casal.
— Ai, meu Deus, eu tô te imaginando aqui caído no chão...
Desculpa! — Eric disse entre risos soltos e leves, seus olhinhos se
fechando em graça. — Deve ter sido bem engraçado! Confessa pra
mim!
— Engraçado porque não foi você, né, idiota? — avancei
para cima dele, fazendo menção de quem ia lhe dar um soquinho de
brincadeira, mas, na verdade, acabei, mesmo que sem intenção,
subindo sobre seu corpo e deixando uma perna de cada lado da sua
cintura.
Eric me observou fascinado, extasiado, completamente
encantado com a minha pessoa sobre o seu corpo. E, sem que eu
percebesse, uma de suas mãos subiu pela minha nuca e levou
gentilmente meu rosto ao encontro do seu, selando nossos lábios
em um beijo calmo e terno, como somente ele sabia dar.
— Adoro o fato de podermos estar assim um com o outro...
— Sua voz saiu entre beijos, fazendo com que eu sentisse a sua
respiração cálida contra o meu rosto e o delicioso cheiro mentolado
e de hortelã que exalava de seu hálito. Ele era tão cheiroso,
completamente cheiroso, cada pequena parte do seu corpo. — E eu
quero muito poder ficar ainda mais assim com você... Por que não
vai ao meu aniversário?
Ah, Zeus, o momento de tocar nesse assunto chegou. Sabia
que em algum momento ele iria falar sobre isso. E por que eu não
queria ir ao seu aniversário? Podia fazer uma lista imensa de
motivos, assim como já fiz mentalmente.
— Ah, não é que eu não queira ir ao seu aniversário... —
afundei meu rosto na curva do seu pescoço como uma criancinha
birrenta, sentindo ainda mais seu cheiro agradável de perfume
amadeirado. — É que... — suspirei contra sua pele. — Você não tá
com raiva? — e acabei perguntando sobre a principal dúvida que
permeava minha fabulosa vida desde hoje cedo.
Assim que meus lábios se fecharam, suas mãos subiram
pelos meus ombros, indo em direção ao meu rosto e, ao chegar lá,
no destino final, ergueu-o delicadamente, fazendo-me encará-lo nos
olhos. Semblante tão sereno, lindo e perfeito.
Talvez eu estivesse ficando ainda mais louco por aquele
idiota.
— Claro que não... — Um pequeno sorrisinho se desprendeu
de sua boca, seguido de um tom de voz ameno. — Não quero criar
problemas contigo por causa disso... Eu só queria que fosse comigo
e ficasse comigo nessa viagem, mas não posso te obrigar a nada —
e finalizou fazendo um carinho afetuoso em meus cabelos.
Como uma pessoa podia ser tão maravilhosa, madura,
confiante e perfeita assim?
Eu nem conseguia acreditar que estava pensando dessa
maneira sobre o Eric, porque, meses atrás, eu estaria mandando-o
ir à merda, mas agora não, agora estava mudando tanto em relação
a ele, que quase não me reconhecia.
Senti aquele calorzinho no peito aumentando ainda mais.
Obviamente, não era o coração, porque esse negócio de coração
era muito meloso. Devia ser outra coisa esse negocinho. Não sabia
o que era, mas estava saltando dentro de mim.
E, sem pensar ou analisar os meus atos, abracei-o forte
contra o colchão, mantendo-o firme entre os meus braços e
pensando no quanto eu era imbecil com uma pessoa assim. Nunca
fui adepto ao pedido de desculpas, nem gostava de ouvir desculpas,
mas sabia fazer isso da minha maneira.
Ainda com uma perna de cada lado da sua cintura, levei
meus lábios aos seus e beijei-o com toda a vontade que guardava
dentro de mim, podendo ser eu mesmo, ser quem eu queria ser com
ele, porque somente nós dois estávamos ali, sozinhos entre quatro
paredes, e mais ninguém.
Eric correspondeu à minha ânsia, subindo suas mãos por
debaixo da minha blusa e sentindo a textura e o calor da minha pele
contra a ponta de seus dedos. Seu toque findou por conduzir ondas
de excitação sobre o meu corpo, como fogo de rastilho.
De repente, sem que eu me desse conta ou que eu parasse
para refletir sobre minhas vontades, um novo e estranho desejo
nasceu dentro de mim. Na verdade, eu sentia que o quero dentro de
mim. Mas, como assim “eu o queria dentro de mim”? Isso era
infinitamente estranho, infindavelmente descabido.
E, como quem lia meus pensamentos, à medida que desceu
seus lábios, distribuindo beijos sobre o meu pescoço, Eric abriu o
zíper da minha calça e traspassou suas mãos por dentro da minha
cueca, sendo invasivo o suficiente para que seus dedos espertos
atingissem um local pouco explorado.
Foi nesse instante, nesse exato instante, que flashes do
episódio do vestiário passaram pela minha cabeça: ele estava
guiando seus dedos para o mesmo local. Pela segunda vez. Mas,
pela vez primeira vez, acabei me dando conta do que significava o
meu desejo de tê-lo dentro de mim.
Isso era a coisa mais assustadora pela qual já passei na vida!
Como assim eu o queria dentro de mim? Como assim esses
dedos estavam indo novamente para o local inexplorado? Isso era
tão novo, tão estranho.
De supetão, afastei-me dele, cessando o beijo e sentando-me
na cama. Meu olhar não escondia o quanto estava temeroso, assim
como minha respiração ofegante não me deixava mentir sobre meus
pensamentos. Seu semblante aturdido me encarava em uma
interrogação, demonstrando não entender o que está acontecendo.
— O que você ia fazer? — perguntei com uma timidez que
não era de mim. Eu não era tímido assim, na verdade, odiava
pessoas tímidas, porque tinha agonia, mas, aparentemente, Eric
despertava faces em mim que eu mesmo desconhecia.
— Do que você tá falando? — franziu o cenho, como se não
estivesse entendendo onde eu queria chegar. Será que ele não
sabia mesmo do que eu estava falando? Porque, para mim, estava
muito claro. Mas, tudo bem, eu ia tentar de outra maneira.
— O que seus dedos iam fazer dentro da minha cueca? —
Dessa vez, questionei com mais clareza. E o medo de ouvir a
resposta era latente, porque não sabia se realmente queria saber
sobre suas pretensões.
Ao ouvir meu questionamento, o loiro, em um suspiro, fechou
os olhos e colocou as mãos sobre o rosto, como se tivesse
consciência de que fez algo que não deveria ou que avançou
algumas casas do jogo mais do que a regra estipulava.
— Desculpa... — Suas mãos subiram da face para os
cabelos, passando as mechas entre os dedos. — Desculpa... — e
balançou o rosto em negação. — Eu não deveria...
— Me fala... — o interrompi. — Eu quero saber o que você
queria fazer — pedi, mesmo não tendo tanta certeza se realmente
queria saber das suas intenções.
No entanto, esse era o momento da verdade.
— Liam... — suspirou. — Eu meio que perco o controle
quanto estou contigo, e faz um tempo já que estamos juntos e eu
estou morrendo de vontade de...
Sem que ele precisasse completar a frase, fui tomado por um
choque de realidade, fazendo com que minha própria mentalidade
jogasse na cara algo que há tantos dias eu tentava me cegar ou me
enganar: Zeus, Thor, Buda, o Eric queria que eu cedesse a ele o
meu bem mais precioso. A ficha caiu.
Emergência

Liam

Eu não sabia o que pensar, eu não sabia como agir.


Como eu podia ter sido tão ingênuo, tão bobo, tão imaturo?
Era claro que, em algum momento, nós iríamos chegar nesse ponto
da situação, porque eu estava ficando com um cara sexualmente
ativo, que comeu metade das meninas do Colégio Liverpool, assim
como eu comi metade das garotas do Colégio Regent.
E o problema era exatamente esse: eu era uma pessoa ativa
também! De onde eu tirei a ideia de querê-lo dentro de mim? De
onde ele tirou essa ideia de colocar dedos dentro de mim? Ele, por
acaso, queria que eu fosse a mulher da relação? Não, eu não podia
ser a mulher da relação. Isso já era demais para mim.
Sem pensar duas vezes, levantei-me da cama rapidamente,
abotoando a calça jeans e colocando a blusa amarrotada em seu
devido lugar. Não podia passar nem mais um minuto dentro daquele
quarto ou eu iria começar a falar besteira, ou eu iria brigar com o
Eric, ou sei lá.
— Ei... Liam, espera. Aonde você vai? — notei-o levantar-se
da cama e ir em minha direção, no instante em que tirei minha
mochila do chão e segui rumo à porta do quarto. — Você vai
embora? — Sua voz exalava preocupação, frustração e
incredulidade diante de tudo o que estava acontecendo.
Calado, abri a porta do quarto e caminhei a passos rápidos e
largos pelo corredor, rumando em direção à escada que levava ao
andar de baixo. Senti Eric logo atrás de mim, aturdido e confuso,
tentando me alcançar. O que ele não sabia era que eu estava
fazendo isso para o próprio bem da “relação”.
— Liam, fala alguma coisa! — Dessa vez, utilizou-se de um
tom de voz mais elevado para tentar me fazer parar. — Não vai
embora assim! Ainda íamos estudar... — e, quando alcancei o
primeiro degrau da escada para descer, sua mão segurou meu
braço, fazendo-me virar para encará-lo. — Você está com raiva pelo
que eu disse? Pelo que eu fiz? Fala alguma coisa.
— Me solta, por favor — finalmente, abri minha boca para
dizer algo. Ele não quer criar confusão comigo porque eu não queria
ir à viagem, então agora eu estava agindo da mesma forma, me
retirando daquela casa, antes que eu brigasse com ele pelo que
aconteceu no quarto. Só estava evitando algo pior.
— O que isso significa? — Seu olhar revelava muito mais que
preocupação, revelava angústia; assim como sua voz demonstrava
muito mais que medo, demonstrava temor. — Você está me
deixando porque eu quero transar? — O castanho de seus olhos, de
repente, se tornou um pequeno lance de mar, no qual lágrimas
ondulavam e marejavam.
— Posso, por favor, sair daqui? — puxei meu braço com
certa força, buscando libertá-lo de sua mão. E, finalmente
conseguindo, desci todo o lance de escada quase vacilando sobre
os meus pés. Não podia perder minha cabeça ali, não podia perder
minha cabeça na frente dele, porque eu já era imaturo o bastante
para manchar ainda mais a minha imagem.
Então, quando cheguei ao último degrau, pronto para seguir
em direção à porta de saída:
— Você não me pediu para te ensinar a ser menos
preconceituoso? — Sua voz ondulou pela casa, chegando viva e
nítida aos meus ouvidos, e fazendo com meus pés travassem e todo
o meu corpo se tencionasse. Uma clara e transparente certeza
surgiu em minha mente: ele acabou de tocar na ferida.
O peso dos meus próprios pensamentos me fez apoiar uma
das mãos na parede mais próxima e abaixar a cabeça, fechando os
olhos, respirando fundo e reunido forças. Forças para não explodir
ali mesmo. Calma, Liam. Calma. Eu não podia explodir ali, não na
frente dele, não depois de tudo o que fizéssemos, não depois de
pedi-lo para ficar comigo. Graças aos céus, estávamos só nós dois
naquela casa, assim, ninguém poderia nos ouvir.
Com um breve suspiro, abri meus olhos e, lentamente, virei-
me para encará-lo, mirando minha visão nele, que estava parado e
de pé no topo da escada. Seu corpo fazia menção de ir até mim,
mas minhas próximas doze palavras o pararam e interromperam
qualquer tentativa de aproximação.
— Então, é me fodendo que quer me ensinar a ser menos
preconceituoso? — As minhas palavras saíram ácidas e cortantes.
Eu sabia que estava tentando ao máximo manter a minha
compostura, mas foi realmente impossível não falar isso de uma
maneira amarga.
Seu olhar se torna um mar de aflição ainda maior, assomado
a uma mistura de espanto e tensão. Eu não estava o vendo de
perto, mas sabia que as ondas de lágrimas ainda se faziam
presentes em seus castanhos olhos. No entanto, choro maior ainda
era o que acontecia dentro de mim, já que não sabia o que fazer da
minha vida, já que tudo pelo que eu acreditava acabou de se esvair
por entre os meus dedos, já que o soco de realidade estava me
causando um medo maior do que qualquer outro que já tivesse
sentido.
Eu nunca me senti com tanto medo. Nunca. Essa era a
primeira vez.
Eu nunca me senti tão confuso. Nunca. Essa era a primeira
vez.
Eu nunca me senti tão estranho. Nunca. Essa era a primeira
vez.
— Eu não quis dizer isso, Liam... — Depois de uma longa
pausa de silêncio, com sua voz praticamente muda e seu semblante
quase que completamente tomado pela surpresa das minhas
palavras, ele finalmente se pronunciou. — Por favor, não me
interprete mal.
Que tipo de interpretação ele queria que eu tivesse? Eu
estava entendendo muito bem. Era me fodendo que ele queria me
ensinar a ser menos preconceituoso. E que belo ensinamento era
esse, não era? Assim ficava difícil manter qualquer compostura e
não explodir logo de uma vez, porque eu já estava uma pilha de
confusão interna. Uma pilha de conflitos comigo mesmo.
— Liam, vamos conversar... — descendo os primeiros
degraus da escada, ele pediu quase que em tom de súplica. No
entanto, antes que chegasse perto de mim, interrompi-o, levantando
uma das mãos, em um claro de gesto de que não queria que se
aproximasse.
— Me dá um tempo — repliquei no exato instante em que ele
parou na metade da escada. Agora que estava relativamente perto,
conseguia ver perfeitamente bem seus olhos ainda mais confusos e
aflitos, como quem sentia que estava me perdendo. E ele estava?
Eu realmente não sabia.
Eu só queria sair dali.
E, sem olhar para trás, caminhei até à saída, completamente
decido a ir embora, seguir rumo à minha casa, entrar no meu quarto
e nunca mais sair de lá. Não até colocar minha cabeça no lugar.
Ainda o ouvi me chamar pela última vez, mas, sem dar atenção e
com um baque surdo na porta da sala, saí de sua casa.
A passos rápidos e largos, cruzei o jardim e, em poucos
minutos, alcancei meu carro. Com quase o Inferno de Dante na
minha cabeça, permiti-me recostá-la no volante e lá ficar por alguns
instantes, apenas ouvindo o som da minha respiração.
Como organizar minhas ideias? Como organizar meus
pensamentos? Como não acreditar que poderia ter sido diferente?
Como não achar que fiz uma tremenda burrada em ter iniciado esse
“relacionamento”? Quero dizer, eu estava fazendo uma tempestade
em copo d’água ou tinha razão em ficar tão aturdido e confuso
assim?
Sexo era uma coisa normal, natural, um dos atos mais
comuns de qualquer pessoa, mas... Eu nunca fiz sexo com homem,
assim como também nunca me imaginei fazendo, a não ser nas
últimas semanas, lá no fundo do meu subconsciente, nos meus
momentos de traição para comigo mesmo.
Transar com homem era a mesma coisa que transar com
mulher? Quero dizer, tinha alguma diferença? Era claro que tinha
diferença, lógico, porque, em vez uma vagina, eu tinha um orifício
anal. E, ah não, essa era a pior parte! Eu ia ser a mulher da
relação? Quero dizer, era o Eric quem iria utilizar todas as suas
ferramentas comigo? Eu não estava acostumado com isso.
Me sentia tão confuso e frágil. Era a primeira vez que isso me
acontecia. Nem na época em que tentava me reprimir a beijar o Eric,
eu me senti tão vulnerável assim. E vulnerável era realmente a
palavra correta. Eu estava me sentindo completamente vulnerável,
como se não me reconhecesse.
Pior que era mais do que óbvio que iríamos acabar chegando
a esse ponto na “relação”, por que “todo casal faz sexo”. Aliás, já
estava mais do que na hora, porque, se eu for parar para comparar,
por exemplo, minhas experiências sexuais com garotas e as
experiências dele, nós estávamos muito atrasados. Por vezes, eu
transava com uma garota logo no primeiro encontro.
E agora, com o Eric, nós estávamos juntos há várias
semanas e nada tinha acontecido além de beijos ou de mãos bobas.
Isso tudo só mostrava o quanto aquela relação era estranha,
porque, se fosse com uma menina, eu saberia exatamente o que
fazer e como fazer, mas, agora, eu estava homem, e isso fazia com
que tudo o que eu acreditava e tinha prática mudasse de cenário.
Eu estava fazendo uma tempestade em copo d’água? Não
sabia, mas o medo falava mais alto do que qualquer coisa, mais alto
do que a própria razão. Embora a razão jogasse na minha cara, o
tempo todo, que fui eu quem foi ao seu quarto e pediu para que
ficasse comigo. Eu. E tudo isso me levava a pensar na besteira que
eu fiz, porque, sim, foi uma bobagem muito grande.
Talvez fosse melhor que eu nunca tivesse começado com
isso, mas agora a merda já estava feita e eu já estava
absurdamente maluco por aquele idiota. Definitivamente, não era
fácil, para um cara que se dizia hétero, até algumas semanas atrás,
ter um cara querendo comer sua bunda. E mais difícil ainda era
quando se gostava desse infeliz, mas se tinha medo do que
pudesse acontecer.
Porque dar a ele o meu bem mais precioso retirava de mim
os últimos resquícios de um cara aparentemente hétero que eu
tinha. Héteros não dão.
Todavia, era melhor ir logo para casa, antes que ele
percebesse que eu ainda estava ali. Bastava de tentar pensar ou
formular uma solução para algo que simplesmente não tinha
solução. Mas, no instante em que girava a chave do carro, senti
meu celular vibrar de maneira incessante. Meu estado de alerta logo
me trouxe a certeza de que era ele, sem que eu precisasse ao
menos desbloquear a tela para ver.
Sem atender ou dar atenção, tirei o celular do bolso, joguei-o
no banco do passageiro e dei partida no carro, seguindo rumo à
minha casa e deixando para trás qualquer possibilidade de diálogo
cara-a-cara, porque eu simplesmente não tinha cabeça para
conversar naquele momento. Talvez, no dia seguinte. Talvez, na
semana seguinte. Ou, no outro mês. Ou, nunca.
E, mesmo quase sem cabeça para fazer qualquer coisa ou
até dirigir, milagrosamente não demorei muito até chegar em casa.
Ao estacionar na garagem, o típico som de mensagem chegando ao
celular surgiu. A certeza de que era ele não me deixava. Liberei o
cinto de segurança e apanhei o celular que deixei jogado no banco
do passageiro ao lado.
Meu Deus. 15 ligações perdidas e 10 mensagens não lidas.
“Liam, por favor, vamos conversar.”, “Você está me deixando?”,
“Acabou, é isso?”, “Eu gosto tanto de ti, não faz isso.”, “Me atende.”,
“Atende esse celular.”, “Eu tô muito preocupado.”, “Liam, não joga
fora tudo o que a gente viveu por causa disso.”, “Preciso de você.”.
Estava sem cabeça para responder qualquer naquele
momento!
Exasperado, saí do carro e entrei rapidamente em casa,
fechando a porta atrás de mim com uma batida forte. Oh, que
beleza: a Molly estava deitada no sofá, assistindo televisão, e
levantou o rosto para ver que barulho era aquele. Nossos olhares se
cruzaram, mas eu tentei de todas as maneiras esconder meu
semblante aturdido, subindo as escadas em uma corrida.
— Liam? — ouvi-a me chamar, enquanto subia rapidamente
as escadas. — Liam! O que aconteceu? — Que ótimo. Ter mais uma
pessoa querendo explicações era tudo o que eu não precisava, por
mais que fosse a minha irmã e que nós estivéssemos com uma
ótima relação.
Entrei no meu quarto, fechei a porta e me deitei na cama,
afundando meu rosto no travesseiro, ainda me sentindo
completamente vulnerável e desnorteado. No entanto, em poucos
segundos, minha adorável solidão foi suprimida quando ouvi-a
entrar e se sentar na cama ao meu lado.
— Liam... — senti suas mãos tocando meus cabelos e
fazendo um carinho que, pela primeira vez, recebi dela. — O que
aconteceu? Me fala... — e, curiosamente, notei que o seu tom de
voz se parecia tanto com da nossa mãe, quando ela nos confortava
de algo ruim. Saudades de ter minha mãe me confortando.
Eu realmente gostaria de poder contar a ela o que estava
acontecendo, mas não sabia se a relação que estava tendo com o
Eric era a amizade que ela sempre sonhou para nós. Agora, só tinha
como recorrer à Molly ou à Stefany, porque eram as duas únicas
pessoas mais próximas a mim que sabiam de tudo. Também tinha
as tias do Eric, mas jamais conversaria com elas sobre isso.
Isso foi o suficiente para que eu, de maneira frágil e infantil,
me achegasse lentamente à minha irmã, que estava sentada na
ponta da cama, abraçando-a pela cintura e recostando minha
cabeça em seu colo. Sem saber quais palavras escolher ou quais
expressões bonitas e poéticas usar, apenas a respondi, sem
rodeios, da maneira mais clara e direta possível.
— O Eric quer me comer.
E, mesmo sem estar olhando em seus olhos, a ouvi suspirar
no exato instante em que segurou meu rosto com as duas mãos,
fazendo-o erguer-se para encará-la.
— Meu Deus... — Sua fala saiu quase como um sussurro
incrédulo. Encarou-me sem piscar os olhos.
E, antes que eu pudesse abrir a minha boca para, ao menos,
tentar falar qualquer outra coisa ou dar alguma explicação sobre
isso, sua mão retirou seu celular do bolso da calça e digitou algo.
— O que você vai fazer? — perguntei sem esconder o cenho
franzido.
Em uma expressão muda, ela levantou seu dedo indicador,
como se me pedisse para esperar um segundo e...
— Stefany? Emergência.
Príncipe cavalheiro

Liam

— Ok, Liam, agora que minha ilustre pessoa já está aqui nesse
seu magnífico quarto, vamos por partes. Primeiro, bebe isso daqui
— Stefany ergueu em minha direção um copo d’água com açúcar,
cheio até a borda. — Teus nervos precisam se acalmar.
— Isso daí é pra eu morrer de uma vez? — perguntei,
pensando que talvez não fosse uma má ideia se eu partisse dessa
para uma melhor. No céu, os anjos iam adorar minha fabulosa
companhia e lá eu não precisaria dar para ninguém. Credo.
— Claro que não, idiota — a loira revirou os olhos para mim.
— Isso é água com açúcar. Quem sabe te ajude a se acalmar,
porque não quero conversar com nenhum desequilibrado mental,
beleza? Bebe tudinho — e ergueu novamente o copo para mim.
Desequilibrado mental? Eu não era um desequilibrado mental
só porque estava aflito com a ideia de ter um homem querendo me
comer. Ok, talvez só um pouco. Nada demais. Não era o caso de eu
ir a um psicólogo ou a um psiquiatra, por exemplo.
Então, ainda temeroso e um pouco trêmulo, dei um breve
suspiro, segurei o copo de vidro com as duas mãos, em um gesto
que me fazia parecer uma criança, e bebi alguns goles, encarando
Stefany e Molly por debaixo dos cílios.
Sentado na cama, observei o exato instante em que ambas
também se sentaram e ficaram de frente para mim, uma do lado
direito e a outra do lado esquerdo. Meu Zeus, isso dali ia virar tipo
uma inquisição na época da caça às bruxas ou um interrogatório de
um criminoso?
— Agora sim, bonitão, me fala o que aconteceu — Stefany se
pronunciou. Seus olhos recaíram sobre mim com atenção, embora
eu soubesse que ela já sabia o que, de fato, aconteceu. Molly já
devia ter contado meio que por cima.
Para ser sincero, eu nem sabia como cheguei ao ponto de
dizer à Molly o que aconteceu, assim como também não sabia como
chegaria ao ponto de dizer para a Stefany. Tudo era muito
constrangedor. Mas, eu tinha escolha? Quero dizer, eu já estava
fodido demais para ficar escondendo algo.
Então, respirei fundo, bebi mais gole da gororoba que tinha
dentro daquele copo e finalmente respondi.
— Aquele filho da mãe quer me comer. E vocês sabem quem
é o filho da mãe.
Sem rodeios e da maneira mais direta possível disse aquilo
que estava me corroendo por dentro. Meus olhos recaíram sobre
Molly, mas principalmente sobre Stefany, que, após uma pausa
sarcasticamente dramática, suspirou e escorregou pela cama,
aproximando-se de mim.
— Querido, até eu já estava esperando por isso. Você não?
— questionou e cruzou os braços, como se isso fosse a coisa mais
natural do mundo. De fato, transar era bem natural mesmo, mas não
quando se tratava de um homem que nunca transou com outro
homem.
— Eu também já estava esperando por isso... — Molly se
pronunciou e...
O quê?
— Vocês já estavam esperando por isso?! — incrédulo,
perguntei, olhando abismado para as duas. Será que eu era o único
inocente dessa história e o último a saber que o Eric era um filho da
mãe tarado que gostava de comer homem?
— Queridinho, eu conheço meu irmão desde o dia em que
ele nasceu — a loira replicou com o seu típico ar de sabichona. —
Eu sei muito bem como funciona a cabecinha dele. Nós somos
muito próximos e eu sei de todos os gostos dele. Além do mais, me
poupe né? Vocês são um casal e casais fazem isso.
— E eu também já estava esperando por isso, porque, bem...
— minha irmã soltou um pequeno sorrisinho malicioso. — Eu e o
Eric passamos anos...
— Molly! — a interrompi sem pensar duas vezes. — Não
quero saber do que vocês dois faziam em uma cama no passado —
disse meio sem jeito e levemente envergonhado, bebendo mais
alguns goles da água com açúcar. — E você está querendo dizer
casais formados por um homem e uma mulher, né, Stefany?!
— Não, bobão, isso é para qualquer tipo de casal. Homem e
mulher, homem e homem ou mulher e mulher. Todos, eu disse
todos, os casais fazem isso! É a coisa mais natural do mundo, Liam.
Você precisa relaxar e abstrair. Sério.
Balancei a cabeça em negação, pensando no quanto isso era
uma verdadeira loucura. Eu? Dormindo com um cara? Eu sabia que
podia parecer hipocrisia, mas, cara, não dava. Isso estava fora de
qualquer perspectiva minha. Não rolava. A gente podia ficar
somente nos beijos, não podia?
— Isso é demais pra mim, Stefany — respondi com toda
seriedade e sinceridade. Era a primeira vez na vida que passava por
algo assim. — Isso vai além de tudo o que eu já tenha feito e, olha,
eu já fiz bastante coisa que nunca me imaginei fazendo, tipo entrar
no quarto dele, me declarar e pedir para ficar comigo.
— Mas, Liam, você não fez isso porque quis? Quero dizer,
ninguém te obrigou a ir lá no quarto dele, se declarar e pedir para
ficar contigo. Você foi porque era algo que queria muito fazer e eu
sei disso — Era claro que a Stefany sabia, porque foi ela mesma
quem me deu a maior força na noite anterior para cometer tal
loucura.
— Tá, tudo bem, beleza. Eu quem quis ir lá e falar tudo aquilo
— confessei à contragosto, porque achava um saco a Stefany estar
sempre certa em relação a tudo na vida. — Mas, a situação de
agora é completamente diferente. Não é algo que eu queira fazer.
Não mesmo — concluí de maneira enfática.
— Tem certeza que não é algo que você queira fazer? —
Dessa vez, foi Molly quem perguntou. Volvi meu olhar para ela e a vi
com uma das sobrancelhas erguida, observando-me como se já
soubesse da resposta sem que eu, ao menos, precisasse abrir a
boca.
Qual é? Agora a Molly ia dar uma de Stefany e dizer que me
conhecia tão bem a ponto de saber dos meus gostos? Por acaso,
estava na cara que eu queria realmente dar o meu mais precioso e
fabuloso bem ao Eric Hastings, o zagueiro mais gato que eu já vi na
vida?
Acho que não. Na verdade, era claro que não. Isso não podia
estar estampado na minha cara, porque seria uma mentira absurda.
Afinal, onde já viu eu permitir que aquelas mãos maravilhosas e
aqueles braços tentadores me envolvessem de maneira forte e viril,
fazendo-me ir ao delírio e... Quê? O que eu estava pensando?
Socorro.
— Nunca tive tanta certeza na minha vida, Molly — repliquei,
tentando passar o máximo de convicção em minha fala e,
principalmente, esquecer o pensamento irracional que tive. Não
podia ficar pensando em suas mãos maravilhosas, nem em seus
braços tentadores. Isso era arriscado demais.
— Sei não, heim, Liam? — ouvi Stefany com seu típico tom
de voz irônico. — Você tem certeza disso mesmo? Não quer pensar
mais um pouco? — e soltou uma pequena risadinha, fazendo Molly
rir também. Qual é? Eu não podia ter tanta cara de passivo assim,
podia?
Credo.
— Tá achando que eu tenho cara de mulherzinha da relação,
Stefany? Me respeita! — disparei já sentindo o sangue subir, porque
isso um tremendo absurdo! Logo eu, tão homem, tão macho, tão
viril, me sujeitar ao papel de mulher?
— Ai, meu Deus, eu não acredito que ouvi isso! — Dessa
vez, foi Stefany quem disparou. — Você precisa parar com esse tipo
de pensamento! Não existe isso de “mulher da relação”! — e fez
aspas com os dedos. — São dois homens! Dois. Homens.
— Se são dois homens, porque logo eu tenho que dar?! —
Meu tom de voz não escondia o quanto estava irritado com essa
péssima lógica da vida. Eu que ia me sujeitar a isso? Eu que ia me
foder, literalmente?
— Ah, Liam, alguém tem que dar, né? — minha irmã se
pronunciou com um importuno tom de obviedade. — E eu acho que
esse alguém é você — Eu?! Por que tinha que ser eu? — A não ser
que vocês fiquem somente na famosa guerra de espadas, não é?
Guerra de espadas? Mas, que história era essa de guerra de
espadas? Era cada expressão e nome esquisito que eu estava
aprendendo, depois que entrei nesse caminho da boiolagem, que
talvez eu precisasse de um glossário ou de um dicionário que falava
a língua do “boiolês”.
— Molly, eu não sei de nada sobre isso que você tá falando,
só sei que... — Ainda tentei me sobrepor a essa ideia de que
alguém tinha que dar e de que esse alguém era eu, no entanto foi a
voz da “sabedoria” que se sobrepôs à minha.
— Liam, espera... — a loira me interrompeu. — Não pensa
assim, tá legal? É claro que o Eric pode ser passivo também, mas o
“x” da questão aqui é que, independentemente disso, o Eric quer ter
a possibilidade de ser ativo. E eu acho isso mais do que
compreensivo.
— Compreensivo? Ah sim, claro, é altamente compreensivo
eu dar o meu mais precioso e fabuloso bem para aquele tarado de
uma figa. Isso é injusto! — disparei mais uma vez, pensando que, se
tinha alguém que devia ser o ativo da relação, esse alguém era eu.
Somente eu. — Eu sou homem e homens não dão!
— Para de falar besteira, Liam! Ser o passivo não vai te
deixar menos homem que o Eric, assim como ser ativo não vai te
deixar mais homem que o Eric. Homens dão sim e continuam sendo
homens! — Stefany tentou explicar. — Então, Liam, não pensa
assim. Isso não é injusto. Isso é experiência sexual com um parceiro
— e finalizou em um tom de voz tão ameno quanto o da minha mãe
quando queria me ensinar algo.
Experiência sexual com um parceiro? Ah tá!
— Então tá bom, que tenhamos uma experiência sexual sem
que eu precise ficar com minha bunda ardida e dolorida! — Sem me
dar conta, soltei um dos meus principais medos, porque, sim, podia
não parecer, mas eu sabia como funcionava sexo anal e não era
legal.
— E com certeza vai! — Molly tomou partido. — Eric vai ser
um príncipe, um cavalheiro! — O que ela estava querendo dizer com
isso? Que ele ia fazer uma mágica maravilhosa para eu não sentir
dor? Até parece! Isso não era a Disneylândia!
— Príncipe? Cavalheiro? — questionei praticamente fazendo
pouco do que ela estava falando. — Ele tá mais pra tarado, isso sim!
— Tarado demais, porque me surpreendia somente de pensar que
ele foi o primeiro a apresentar vontade de avançar algumas casas
naquele jogo.
— Por mais galinha que ele já tenha sido, Eric sempre foi um
cavalheiro na cama, Liam. Sempre — Molly replicou de maneira
enfática, olhando-me como quem não estivesse contando uma
mentira. Santa Vodca do Céu, era melhor eu voltar a beber minha
água com açúcar. — E ele manda muito bem, diga-se de passagem.
No exato instante em que virei o copo para beber o restante
da gororoba, a ouvi falando essas oito poderosas palavrinhas, o que
acabou me fazendo engasgar. Ele mandava muito bem? Eu estava
ouvindo direito? Inevitavelmente, isso despertou em mim uma
curiosidade perigosa.
— Tipo, muito bem mesmo? — perguntei, tentando disfarçar
a curiosidade nascente e... Outra coisa que estava nascendo dentro
de mim também era: a vontade. Não, não, não. Eu não podia ser tão
fraco assim. Com apenas oito palavras eu já estava imaginando se
ele mandaria bem comigo também? Não podia ser.
— Muito — balançou um sim com a cabeça de maneira
incisiva. — Talvez seja por isso que tantas garotas tinham, e ainda
tem, vontade de transar com ele. A fama é grande e boa. Você não
sabe o que tá perdendo.
Eu sempre soube que o Eric tinha lá a sua fama, porque não
era à toa que já dormiu com várias garotas, incluindo a minha irmã.
Mas, ele, por acaso, era um Yoda do Sexo? Não podia acreditar que
eu estivesse perdendo muita coisa assim.
— É mesmo? — indaguei, ainda tentando esconder a
perigosa curiosidade. Bom, fazendo uma ligação com os beijos que
me dava ou com a maneira como me pegava, talvez eu estivesse
perdendo algumas respirações ofegantes ou alguns orgasmos ou...
O quê?! Que absurdo era esse que eu estava pensando?!
— Confia no que eu digo, maninho — soltou uma piscadela
de olho para mim um tanto quanto maliciosa. Esperava que ela não
estivesse relembrando os infinitos momentos que tiveram na cama
em um passado não tão distante.
— Ok, essa conversa tá um pouco estranha, não é, Molly? —
Stefany replicou um pouco enciumada, ao mesmo tempo em que
soltou uma pequena risadinha de nervoso, mas, logo voltou sua
atenção para mim e para o assunto em questão. — O que acho é
que você deve tentar, Liam.
Ah, meu Zeus!
— Te-tentar? — inevitavelmente, gaguejei, imaginando,
mesmo que à contragosto, a maneira como eu podia tentar. E,
nessa maneira, eu me encontrava, mais especificamente, com as
pernas abertas para o Eric em cima de uma cama. Caralho, não.
Socorro.
— Sim, tentar, sem compromisso, apenas como uma
experiência para ver se gosta ou não — respondeu como se isso
fosse a coisa mais natural do mundo. Uma experiência para ver se
eu gostava ou não? Que coisa mais sem cabimento.
— É claro que eu não vou gostar de porra nenhuma! Que
absurdo! Claro que vai ser horrível tê-lo dentro de mim daquele jeito
tão brutal e primitivo — repliquei, pensando que era mais do que
lógico que eu ia odiar tê-lo em cima de mim, com sua boca
passando por todos os lugares possíveis e impossíveis... Aquela
boca tão... Tão... Gostosa.
Oh não, eu estava pensando de novo daquele jeito errado!
— Jeito brutal e primitivo que você adorava usar com as
meninas, né? — Stefany cruzou os braços e arqueou uma das
sobrancelhas para mim. — Eu sei muito bem disso e não preciso
explicar o porquê — Espera. Ela estava lembrando das vezes em
que a gente já transou? Eu sempre era um cavalheiro!
Tá, ok. Nem sempre. Talvez nunca. Na maioria das vezes,
era mais forte do que romântico, provavelmente diferente do Golden
Boy, que devia ser mais romântico do que forte. Por que o Eric tinha
que ser tão certinho?
— O que você está querendo dizer com isso? — Ainda me
arrisquei a perguntar, mesmo tendo quase certeza do que estava
passando pela sua cabeça. Pelo menos, não podia deixar de afirmar
que era muito bom, porque, modéstia à parte, eu era muito bom de
cama.
— Esquece, bobão — deu de ombros e logo voltou
novamente para o “x” da questão. — A questão aqui é entre você e
o Eric. Então, vamos tentar de outra forma, por outro caminho —
soltou um breve suspiro e analisou meu rosto, como se estivesse
pensando muito bem nas próximas palavras. — Quando você fica
com o Eric, quando beija o Eric, você não sente nada?
O que eu podia responder diante de uma pergunta como
essa? Bom, se eu dissesse que não sentia nada, estaria mentindo.
E, se dissesse que ficava complemente louco de desejo, ia parecer
um exagerado e desesperado. Era melhor responder de um jeito
mais contido.
Volvi meu olhar para ela, que me observava com total
entusiasmo. Provavelmente, devia estar esperando que eu dissesse
que o amava, que o adorava e que era completamente maluco por
ele. O que não era uma mentira. Quero dizer, não era uma mentira,
mas eu também não fazia questão de falar, porque meu nível de
boiolagem já estava extrapolando muito para o meu gosto.
— Ah, sei lá, eu gosto, é bom — limitei-me apenas a falar
isso. Claro que não ia entrar em detalhes sobre o que eu sentia
quando aquela boca sensacional se encostava à minha ou quando
aquelas mãos tão fabulosas quanto as minhas percorriam o meu
corpo.
Em um piscar de olhos, todo o entusiasmo do rosto da
Stefany desapareceu, dando lugar a um semblante de tédio e
desgosto para comigo. Eu tinha raiva daquela garota porque sabia
que ela sempre soube quando eu tentava esconder algo. Pessoa
mais esperta não existia.
— Só isso? — O desapontamento era perceptível em seu
tom de voz. — É só bom? Você nunca sentiu algo mais, tipo... —
parou, cerrou um pouco o olhar em minha direção e finalmente
soltou a última palavra da pergunta. — Tesão?
Ah meu Thor, lá vinha ela querendo insinuar coisas, apesar
de que não era tão difícil de imaginar que eu morria de tesão por
aquele imbecil. Perdia totalmente a compostura quando estava ele,
mas era claro que eu não precisava entrar em detalhes assim.
— Te-tesão? — gaguejei um pouco e pigarreei a garganta,
tomando fôlego para responder. — Um pouco — limitei-me apenas a
responder isso.
Assim que fechei a boca, a loira me encarou com
exasperação. Ah, que saco! Será que essa garota nunca ficava
satisfeita? Ela queria mesmo que eu falasse que estava louco para
dar pra ele?!
O quê?!
Ai meu Deus! Olha só o que eu estava pensando! Vai
quebrando, senhor, toda maldição, meu pai!
— Liam, eu preciso que você seja sincero! — exigiu,
deslizando pela cama e aproximando-se ainda mais de mim. — Eu
te conheço bem demais e sei quando você está omitindo
informações!
Ai que inferno de vida! Stefany sempre me fazia dizer o que
eu queria guardar no mais profundo do meu ser!
— Tá bom, tá bom! — revirei os olhos e confessei à
contragosto. — Eu sinto muito tesão, fico completamente excitado e
perco totalmente a compostura. Satisfeita? — Realmente esperava
que sim, porque não estava muito a fim de continuar revelando
todos os sentidos que o Eric despertava em mim.
— Ótimo! — finalmente sorriu com entusiasmo. — Já é um
ótimo começo para o nosso diálogo! Mas, me conta... — e inclinou
seu corpo em minha direção, em um claro gesto de que eu tinha sua
total atenção. — Esse tesão aí já despertou outros sentimentos? Já
despertou alguma vontade?
Sentimentos? Vontade?
— Onde você está querendo chegar? — questionei com o
cenho franzido, pois a conhecia tão bem quanto ela me conhecia, e
sabia que Stefany nunca dava ponto sem nó. Na verdade, no fundo,
eu já sabia onde ela queria chegar com isso.
— Oras, só quero te ajudar a esclarecer as coisas, então
preciso que colabore. — Ah, claro, que eu precisava colaborar.
Devia ser colaborar em passar vergonha, porque era a única coisa
que ia acontecer se eu confessasse o que não queria dizer. — Por
isso, me diga se esse tesão já despertou outras vontades.
No entanto, apesar da vergonha, inevitavelmente, me
recordei do que aconteceu no quarto do Eric e do que eu senti e
pensei no momento em que ele estava me beijando. Eu... Eu... Oh
céus... Eu o queria dentro de mim. E eu sabia que, por mais que, em
um primeiro momento, eu tivesse pensado nisso com ingenuidade,
essa vontade tinha outra conotação.
Uma conotação que eu queria me condicionar a não aceitar,
embora sentisse que era o que o meu corpo mais queria. Isso era
uma verdadeira loucura. A primeira vez que me sentia assim, a
primeira vez que desejava outro homem, a primeira vez me via tão
confuso.
— Assim... — dei um breve suspiro e, mesmo sem acreditar
no que ia falar, acabei confessando mesmo por cima e de maneira
pouco direta. — Mais ou menos. Um pouco.
— Pouco como? — Dessa vez, foi Molly quem pergunta. Por
Hades, eu estava sendo interrogado por duas mulheres. E, até onde
eu sabia, duas mulheres muito curiosas.
Eu não vou falar. Claro que não. Não vou, não vou, não vou.
Ai que bosta. Eu vou sim.
Senti as palavras querendo escapar da minha boca. Parecia
que ficar com o Eric estava fazendo eu me tornar uma pessoa mais
verdadeira. Eu não conseguia mais omitir absolutamente nada por
muito tempo. Isso só mostrava o quanto aquele infeliz estava me
transformando em outra pessoa.
— Ah sei lá, pensei umas coisas hoje, na hora que a gente
estava se beijando. — As palavras realmente escapavam da minha
boca e isso era fodidamente inevitável. Onde eu ia parar agindo
assim? Daqui a pouco, não ia conseguir, nem mesmo, esconder da
sociedade que estava ficando com ele. Credo.
— E que coisas são essas? — Dessa vez, foi Stefany quem
questionou. Claro, muito mais questionadora que a Molly, embora
minha irmã estivesse aprendendo direitinho a ser assim também.
Feitas sob medida uma para a outra.
— Ai, Stefany! Coisas! — repliquei já sentindo meu rosto
queimar de vergonha, porque eu sabia que, uma hora ou outra, ia
acabar falando. Mais uma pergunta e, com certeza, não conseguiria
conter as palavras que insistiam em sair. Merda.
— Fala logo, idiota! — exigiu, claramente já sem paciência
para minhas omissões.
— Que saco! Eu senti a vontade de tê-lo dentro de mim! —
despejei todas as palavras o mais rápido que conseguia e, quando
me dei conta de que tudo o que tinha saído, joguei meu corpo de
supetão na cama e afundei meu rosto no travesseiro. — Ma-mas foi
totalmente na inocência! — Com as forças que ainda me restavam,
tentei me justificar, mesmo com minha voz saindo abafada. —
Somente depois, eu fui perceber a dupla conotação que isso pode
ter.
— Ah, Liam! — Stefany, com uma voz totalmente
entusiasmada e alegre, me puxou pelo braço, fazendo-me sentar
novamente na cama. — Não acredito, finalmente! Agora sim! Agora
chegamos onde eu queria! Não acha que essa vontade diz muito
sobre o que você realmente quer?
Ai meu Zeus do Céu!
— Você está querendo dizer que eu realmente quero dar pra
ele?! — questionei completamente abismado e assustado comigo
mesmo, porque eu sabia que no fundo, bem no fundo, a resposta
para essa pergunta era um grandioso e pesado sim.
— Olha, foi você quem, mesmo na inocência, sentiu vontade
de tê-lo dentro de si... Então, eu presumo que... — e parou no meio
da frase, dando a entender que eu realmente queria que o
famigerado ato sexual se consumasse.
Eu não queria, eu juro que eu não queria! Mas, era
impossível ao menos não cogitar a possibilidade, quando eu estava
em cima dele, com uma perna de cada lado da sua cintura,
beijando-o ardentemente e sentindo suas mãos espertas
percorrerem o meu corpo inteiro. Era muita tentação!
Na verdade, o Eric, por completo, era uma pura tentação!
Aquele rosto, aquele corpo, aqueles beijos, aquela pele, aquele jeito
de ser. Antes parecia um moleque, mas agora eu o via como um
homem. Ele mudou tanto nos últimos tempos, que eu só conseguia
dizer que...
— Ah, Stefany... É que ele é tão... Tão...
— Tão?
Eu não podia acreditar no que ia dizer! Mas, já bastava de
mentir e de omitir para elas o que todo mundo conseguia ver, até
porque tenho certeza elas mesmas viam isso. Afinal, todo mundo
achava o Eric gostoso, não era mesmo? Eu era só mais um em um
milhão.
— Tão gostoso, tá legal? Tão maravilhoso e perfeito. A gente
estava em um climinha na cama dele, eu estava totalmente
envolvido e acabei pensando nisso. Ele me faz pensar nisso. E me
faz ter ainda mais raiva dele por despertar essas vontades em mim.
Joguei todas as palavras de uma só vez, tentando não me
preocupar com as consequências, nem com o que elas iam dizer
sobre isso. Apenas falei o que estava saltando do meu peito há
tanto tempo e o que estava ainda mais claro depois do episódio do
quarto.
— Ah, Liam... — com um tom de voz ameno e amigável,
Stefany segurou de maneira afável uma das minhas mãos. — Você
está totalmente a fim de fazer. Dá pra ver no seu rosto. Para de
negar o óbvio. Você já deu tantos passos, então não regride agora.
Vai em frente e larga qualquer medo.
Como assim? Estava tão na cara que eu me tornei um boiola
ao ponto de querer ser realmente o passivo da história? Por Thor,
não estava me reconhecendo. Estava com tanto medo.
— Dá pra ver no meu rosto? — incrédulo e assustado,
perguntei, com os olhos levemente arregalados, ainda tentando
assimilar todas essas informações, porque, definitivamente, era tudo
muito novo para mim.
— Dá sim e eu tenho certeza que vai ser maravilhoso pra
vocês dois — Dessa vez, foi Molly quem se pronunciou. Por Zeus,
não era só a Stefany quem via isso na minha cara, mas a minha
irmã também! — Só vai, maninho, e faz o que tem de ser feito.
— Ah, gente, eu... — dei um breve suspiro, tentando
compreender toda essa loucura que estava acontecendo comigo. —
Que merda, não sei... E-eu tô com tanto medo e... — No exato
instante em que tentei prosseguir com meus devaneios expressados
através de falas, senti algo em meu bolso vibrar incessantemente.
— Meu celular tá tocando... — tirei-o do bolso da calça jeans e olhei
para a tela. — Droga, é o Eric, ligando e mandando mensagens pela
centésima vez.
— Ai, coitado do meu irmão! — Stefany disse com um tom de
voz levemente aflito, balançando a cabeça em negativo. — Depois
eu vou conversar com ele e pedir pra se acalmar.
Continuei observando a tela do celular, enquanto passei um
rápido olhar por cima das mensagens. Notei que todas
demonstravam preocupação pela forma como eu saí da casa dele,
mas foi o “melhor” que eu consegui fazer, já que, se eu tivesse
ficado lá, poderia ter falado o que eu não devia.
— Eu não sei como não explodi lá na casa de vocês, depois
do que aconteceu — confessei para a loira. — Eu precisei de muita
força, porque o Liam de um tempo atrás explodiria com toda
certeza!
— Não explodiu porque você está aprendendo a ser outra
pessoa e, principalmente, porque gosta dele — respondeu,
deixando um breve sorrisinho se desenhar em seu rosto. — Você
gosta muito dele. Não explodiria mais como antigamente.
— Isso tudo ainda é muito confuso pra mim. Me tornei um
virgem de novo, sabe? Eu me sinto virgem e isso é tão estranho —
confessei novamente, passando as mãos pelo rosto e deslizando-as
pelos cabelos, em um claro gesto que demonstrava a bagunça que
estava a cabeça.
— Eu sei que é confuso e estranho — falou de maneira
compreensiva e, com todo carinho, me abraçou. — Mas, tenta...
Tenta sem compromisso, somente como uma experiência. Ninguém
vai te obrigar a nada, muito menos o Eric. Eu sei que, no fundo,
você quer tentar.
Aproveitando o momento, Molly aproximou-se de nós e
também nos abraçou, envolvendo-nos de maneira carinhosa.
Finalizou a conversa com uma frase que, há poucos minutos eu não
queria acreditar, mas que, no fundo, me fazia o admirar ainda mais
pela pessoa que ele era:
— Eu tenho certeza absoluta que o Eric vai ser muito príncipe
e cavalheiro contigo na hora.
Dez sorrisos

Eric

Sentado em minha cama, observei fixamente a tela do celular e,


para meu completo desespero, nenhum sinal, nada. Nenhuma pista
que me dissesse como ele estava, nenhuma mensagem respondida,
nenhuma ligação atendida. Com um breve suspiro, ergui meus olhos
rumo à janela do quarto e notei que a noite já se fazia presente.
Algumas horas já tinham se passado, desde que ele foi
embora, mas sequer retornou meus contatos. Foi embora da minha
casa, mas será que da minha vida também? Senti meu peito se
apertar somente em pensar nessa possibilidade e, diante disso,
notei, pela primeira vez, que Liam Wyman Tremblay Terceiro estava
verdadeiramente em um lugar jamais habitado por outra pessoa que
não fosse minha irmã ou minha mãe: meu coração.
Sua maneira presunçosa de ser, seu jeitinho estressado, sua
boca feroz, sua língua afiada, sua personalidade difícil, mas... A
maneira como me olhava quando eu me aproximava, o modo como
se entregava quando eu o beijava, o jeito como ficava
envergonhado quando eu o provocava, a maneira como seus lábios
se desenhavam quando soltava um sorriso... Ele podia não sorrir
com tanta facilidade, mas eu sabia exatamente quantos sorrisos ele
tinha.
Um quando conseguia marcar gols, um quando comemorava
a vitória de um jogo, um quando tirava A em química, um quando
fazia planos, um quando falava com a Stefany, um quando achava
que alguém era idiota (e, na maioria das vezes, esse alguém era
eu), um quando achava que alguém era idiota de verdade, um
quando debochava de mim, um quando me olhava nos momentos
em que estávamos a sós, e um quando me beijava. Ele tinha dez
sorrisos.
Tudo isso, somado ao fato de temer por sua perca, me
envolvia e me levava a crer em algo que somente agora estava me
dando conta: não apenas gostava dele, como também estava
loucamente, absurdamente e perdidamente apaixonado por ele.
Pela primeira vez na vida, me vi apaixonado por alguém, e esse
alguém era a pessoa mais perfeita e linda com a qual eu já tive a
oportunidade de estar.
Temia por ter avançado as algumas casas para além das
quais as regras do jogo estipulavam. E sabia que avancei, o que me
levava a crer que eu deveria ter ido mais devagar, ido com mais
jeitinho ou ido de outra forma. Infelizmente, perdia o controle quando
estava com ele. Era algo que ia além da razão ou do meu pleno
juízo, apenas deixei-me levar e, quando vi, já estava tirando sua
roupa.
Tentei ao máximo respeitar seu espaço, mas seus beijos,
suas mãos, seu corpo... Céus, tudo me tirava da órbita! Apenas
queria ter a oportunidade de mostrá-lo que não precisava ter medo
comigo, que ia ser tão bom para ele quanto para mim, que eu ia
tentar ao máximo não o machucar e, principalmente, que ele não ia
se tornar menos homem que eu somente pelo fato de eu estar entre
suas pernas.
No entanto, antes de qualquer coisa, devia me desculpar,
tentar conversar ou entrar em algum consenso. Mas, se ele não me
retornasse, eu não tinha como fazer isso. Por que não me atendia?
Por que não respondia as minhas mensagens? Eu entendia seu
ponto e sabia que ele me pediu um tempo, mas eu podia encarar
somente como um tempo mesmo? Era apenas um tempo ou estava
me deixando? Sentia-o escapando por entre os meus dedos.
Não queria sufocá-lo, nem infringir o tempo que me pediu,
mas se eu ficasse mais um segundo dentro daquela casa, sem fazer
algo, seria capaz de enlouquecer. Não podia deixá-lo escapar
assim, não podia perder a única pessoa que conseguiu mexer
comigo dessa maneira. Eu... Eu o amava. Sim, eu o amava e
somente agora tinha essa certeza. Amor era coisa séria, não era?
Não eram todos os dias que achávamos alguém para amar.
Liam era o meu primeiro e único amor. Desde criança. Desde
que eu era somente um moleque.
Decidido a não esperar por mais resposta alguma, levantei-
me da cama de supetão. Passei as mãos no rosto e nos cabelos,
tomando fôlego para o que pretendia fazer. Eu ia à casa dele. Sim,
eu ia. Podia estar agindo por impulso mais uma vez, no entanto
precisávamos conversar, nos falar. Não tínhamos como resolver
essa situação sem contato algum.
Trocando de roupa rapidamente, tirei a calça de moletom e
vesti a primeira roupa que vi pela frente. Calçando meus coturnos,
busquei pela chave do carro no criado mudo ao lado da cama.
Imerso em um único e exclusivo pensamento de encontrá-lo,
caminhei à passos largos, mas, no momento em que abri a porta...
— Filho! — Ah não, o que o meu pai queria agora? — Que
coincidência! Abriu a porta no momento em que eu ia entrar em seu
quarto.
— Ah, é mesmo? — repliquei, pensando que, se eu soubesse
que iria dar de cara com ele, teria saído pela janela. — O que você
quer, George? — Claro que ele queria alguma coisa, porque eu já
conhecia quando aparecia cheio de dentes assim para mim. — Eu
estou de saída.
— Você e essa sua mania de me chamar de George — Seu
cenho se franziu em um leve tom de repreensão. — Me chame de
pai. Eu sou seu pai — Ah, claro. — E eu vim aqui porque quero sua
ajuda — Sério? Não me diga.
— Olha, agora não posso, eu estou de saída — respondi,
dando pouca importância para o fato dele estar precisando de mim
ou não. — Quem sabe em um outro momento — e dei-lhe as
costas, caminhando pelo corredor rumo às escadas.
— Espere — Sua mão segurou meu braço, impedindo-me de
continuar a andar. — O que pode ser mais importante do que ajudar
o seu pai? Vai encontrar com esses seus amigos que não tem futuro
algum e que não te agregam valor algum? Você vai ficar — De
repente, seu tom de voz se tornou ainda mais incisivo.
O que podia ser mais importante? Eu ia encontrar o amor da
minha vida e tentar ajeitar a merda que aconteceu! Não me faça
ficar aqui. Não me obrigue.
— Eu preciso sair — disse quase entredentes. — Sério — e
tentei puxar meu braço. No entanto, ele segurou ainda mais firme,
mantendo-me próximo de suas vistas.
— Aonde você quer ir? — George perguntou mais uma vez.
Seu tom de voz inquiridor adentrou meus ouvidos, causando-
me ondas de estresse maiores das que eu já estava sentindo. A
vontade de contar toda a verdade, de uma vez por todas, acabou
por tomar os meus desejos.
E se eu dissesse que estava indo encontrar o cara com quem
eu estava ficando? E se eu dissesse que esse cara era
simplesmente a melhor pessoa do mundo? E se eu dissesse que
esse cara era o Liam? A vontade de despejar todos os fatos me
consumia e me dominava de maneira que eu sentia as palavras
quase querendo escapar.
Eu realmente não estava com cabeça.
— Vou encontrar uma pessoa — repliquei com seriedade. —
Agora, se puder me soltar, ficarei muito grato, papai — dei ênfase na
palavra “papai” com um sarcasmo velado. Eu sabia que devíamos
respeitar os pais, mas, definitivamente, o George não colaborava.
— Que pessoa? — tornou a perguntar e, como fogo de
rastilho, senti a raiva tomando proporções ainda maiores sobre o
meu corpo. As palavras borbulharam tão agitadas em minha boca
que eu não sabia se seria capaz de guardá-las dentro de mim.
Contudo, mesmo tentando prendê-las, findei por soltar uma
das mais importantes e significativas:
— O Liam — Definitivamente, não estava com cabeça.
Merda.
— O Liam? — George imediatamente franziu o cenho. — O
que você quer com aquele garoto problemático? Eu sei que é filho
dos seus padrinhos, mas...
Garoto problemático?! Ninguém podia chamá-lo assim!
— Ele não é problemático! — o interrompi de supetão,
pensando que, se tivesse um espelho em minha frente, eu poderia
ver o quanto meu rosto estava vermelho de raiva. Eu estava
cansado, isso mesmo, cansado de ouvir ele me falar, desde criança,
que o Liam era um menino problemático.
— Ora... — Ainda com o cenho franzido, ele deixou escapar
um pequeno sorriso de quem se sentia confuso. — Não sabia que
você estava tão próximo assim do Liam a ponto de se irritar com
certos comentários... Vocês nunca foram amigos, foram?
— Claro que você não sabe! — disparei sem analisar ou, até
mesmo, refletir sobre o que eu estava fazendo. — Você nunca foi
um pai presente para saber que eu... — No entanto, quando senti
que ia acabar revelando tudo, emudeci, caindo na real de que ainda
não podia falar.
Por pouco, não falei que ele nunca foi pai presente para
saber que eu sempre gostei do Liam e que era apaixonado por ele.
Porém, eu não posso dizer isso, não por enquanto. Por mais que eu
quisesse falar e espalhar para todo mundo, o Liam podia me matar
e a situação entre nós pioraria.
Liam ainda não estava preparado para assumir algo assim.
— Você...? — questionou, fazendo menção para que eu
completasse a frase.
— Esquece — balancei a cabeça, puxando o braço
novamente para que ele me soltasse. — Estou indo. Se eu voltar
com tempo, ajudo no que quer que seja — e tentei dar mais um
passo em direção às escadas, em direção à minha liberdade de ver
o cara que eu gostava.
— Eu já disse que não, Eric. Você vai ficar para me ajudar
com alguns projetos da construtora. Alex virá no lugar de Jimmy,
porque ele está em outro compromisso e... — No exato instante em
que ele se pronunciou, ouvi a campainha tocar. — Olha só, acabou
de chegar. Vá para o meu escritório, no andar de baixo, que eu vou
recebê-lo. Nos encontraremos lá.
— George, eu não vou — tentei, mais uma vez, respondê-lo
de maneira incisiva.
E, sem esperar para ouvir que qualquer outra contrariedade
saísse da minha boca, ele me respondeu da maneira mais mordaz
que já ouvi.
— Eric, me obedeça! — Sua voz comedida saiu entredentes.
— Você pode ter 18 anos, mas ainda é sustentado por mim e está
sujeito às minhas ordens nessa casa. Eu sou seu pai e você me
deve obediência. Quando eu digo “não” é não. Estamos entendidos?

❖❖❖

Inferno de vida. Eu nunca conseguia convencer meu pai do


contrário, na verdade, era ele quem sempre me convencia a fazer o
que eu não queria. Estava há exatas três longas horas trancafiado
naquele escritório, lendo papeladas e mais papeladas de projetos de
engenharia civil. Um trabalho para ser feito pelo George e o tio
Jimmy, mas que estava sendo realizado por mim e pelo Alex,
enquanto o intitulado de meu pai estava sentado em seu troninho,
apenas nos observando e avaliando alguns poucos papéis.
Mas, mesmo tendo sido impedido de ir à casa do Liam e
obrigado a fazer esse serviço, a cada cinco minutos, olhava o meu
celular para ter certeza se não tinha chegado alguma mensagem ou
se não perdi alguma ligação. O pior de tudo era a decepção a cada
visualização no aplicativo de mensagens, porque não havia sinal
algum dele. E, por mais que eu soubesse que ele não queria
conversar e que eu tinha de permanecer ali, estava agoniado para
ser liberado o quanto antes. Até porque, três horas era demais, não
era?
— Os cálculos desse projeto aqui da Mount Street precisam
ser refeitos. O prédio tem uma estrutura arquitetônica antiga e uma
das exigências foi reformar sem comprometer o estilo antiquado...
— joguei o projeto em cima da mesa do George. — É melhor rever
os cálculos e as estratégias.
Com um olhar um tanto quanto mesquinho, suas mãos
seguraram o projeto e seus olhos recaíram sobre a papelada,
analisando, com os óculos na ponta do nariz, se eu realmente
estava certo. Ele me pedia para que eu o ajudasse, mas fazia essa
cara de poucos amigos quando eu tinha algo a dizer sobre os
projetos que ele escrevia. Me poupe.
— Não acha que está se precipitando? — questionou. — Fiz
este projeto com muito afinco. — Seus dedos começaram a folhear
as páginas. — Não acredito que tenham erros aqui. Reveja isso,
sim? — e, por fim, ergue-o minha direção.
Ah não.
— Este era o último projeto que eu tinha para revisar. E já
revisei. Agora, por gentileza, me libere, porque tenho mais o que
fazer — Era claro que eu tinha. Já era tarde da noite e eu estava
dentro daquele escritório por três horas. Não aguentava mais ver
nada relacionado à construtora em minha frente.
— Ora, foi você mesmo quem encontrou erros no excelente
projeto que fiz. Não é nada mais lógico que você encontre a solução
também. Volte ao seu lugar e...
Excelente projeto?
— Se você acha seus projetos tão bons, por que pede a
minha ajuda? — com a raiva por um triz de reaparecer, o interrompi
de imediato. — Pode se virar muito bem sozinho com eles.
— Eric, essa sua falta de respeito para comigo já está
acabando com a minha paciência — George levantou-se de supetão
da sua poltrona, arrancando os óculos do rosto com certa
voracidade e praticamente me engolindo com os olhos. — Sente-se
nessa cadeira antes que eu...
— Sr. Hastings... — e, antes que prosseguisse com sua
intimação, a voz de Alex ecoou sorrateira pelo escritório, como se
estivesse levemente envergonhado por presenciar um momento
como aquele e interromper a fala de seu chefe. — Me desculpe,
mas eu posso revisar o projeto pelo Eric. E, se me permitir, posso
fazer isso em casa, tendo em vista que a hora já está bem
avançada.
Seus olhos recaíram sobre o garoto de 23 anos e de cabelos
castanhos levemente dourados, analisando-o por sob os alongados
fios de cílios. Que ele aceitasse essa proposta, era tudo o que eu
pedia! Já estava há bastante tempo ali, precisava resolver minha
vida.
— Creio que não tem que se dar a esse trabalho, Alex —
respondeu. — Isso é uma obrigação do Eric — Obrigação minha?
Por acaso eu era algum dos funcionários da construtora dele? Ah,
claro que, na cabeça dele, eu era. George queria me tornar o futuro
presidente da empresa.
— De forma alguma, senhor. Não é trabalho para mim —
Alex replicou e me olhou de relance. — Na verdade, quanto mais
experiência eu tiver no meu estágio, melhor será. Meus professores
da universidade, inclusive, adoram o fato de eu estagiar na grande
Construtora Hastings.
Seu olhar novamente recaiu sobre o jovem, observando-o
milimetricamente. Ah, por Deus, fale logo! São o quê? Deixe-me
ver... Retirei o celular do bolso e... Dez horas da noite? Droga, já
estava muito tarde. Sentia, cada vez mais, a possibilidade de ir,
ainda naquela noite, à casa do Liam se esvaindo pelos meus dedos.
— Ok, tudo bem — Oh, céus, que os anjos digam amém! —
Estão liberados por hoje. Você pode levar o projeto para analisar em
casa, no lugar do Eric, e quero também que entregue uma
documentação ao Jimmy. Está em meu quarto. Espere um instante,
porque vou pegá-la.
— Tudo bem, Sr. Hastings, fique à vontade. Eu aguardo — e,
por fim, respondeu educadamente, deixando transparecer um leve
sorriso de cordialidade.
Caminhando à passos moderados, deixou-nos para trás,
enquanto seguia rumo à porta do escritório. Meu Deus, o Alex tinha
salvo a minha pele de ter que aturar por mais tempo toda aquela
história de construtora e projetos de engenharia civil.
Eu devia agradecê-lo pelo que fez, porque, com certeza, ele
tinha notado muito bem a minha cara de tédio e de poucos amigos
durante as três horas passei fazendo o tal serviço. Assim, esperei
somente o tempo do George cruzar a porta e fechá-la, para nos
deixar a sós e eu poder abrir a boca.
— Cara, muito obrigado! — aproximei-me dele, tocando-o no
ombro. — Valeu mesmo! Nossa, você me livrou de mais dor de
cabeça — Eu não tinha medo de ser sincero, porque não tinha
motivos para esconder que não gostava desses assuntos nos quais
o George tentava me envolver.
— Tudo bem, não precisa agradecer... — Um breve sorriso se
desenhou em seu rosto. — Você... — pareceu hesitar um pouco
antes de falar, mas prosseguiu. — Você parece não gostar muito de
trabalhar com o seu pai, não é?
Ah, claro que ele iria notar, até porque eu realmente não
escondia de ninguém, nem tinha motivos para fazer isso, de que
não curtia a ideia de trabalhar com engenharia civil, muito menos de
assumir o “império” depois que meu pai se “aposentasse”.
— Cara, eu realmente não curto, mas ele insiste em me
incluir nesse meio — confessei. — Acho que desde os meus onze
anos é assim, desde que eu comecei a apresentar interesse por
números. Ele, às vezes, me tira um pouco a paciência.
Assim que me calei, um breve sorriso novamente se
desenhou em sua boca.
— Seu pai é um cara legal, Eric — Sua amena e simpática
voz se pronunciou. — Talvez ele só não tenha muito tato com essa
situação de ser pai, mesmo assumindo esse posto há dezoito anos
— e um pequeno risinho escapou de seus lábios.
Um cara legal? Não me lembrava a última vez em que ele foi
100% legal comigo, porque, em todas as vezes que tentamos nos
aproximar ou que ele me procurou para conversar, o assunto
sempre acabava na construtora. Isso era um saco.
— Só se ele for legal contigo, irmão — me permiti soltar uma
pequena brincadeira. — Porque comigo, acho que tem prazer em
tirar minha paciência — respondi com o máximo de sinceridade, por
mais que meu tom de voz fosse de certa chacota.
Alex também permitiu-se soltar uma pequena risadinha, mas,
o que ele falou, logo depois, deixou-me, de certa forma, pensativo:
— Talvez você só não conheça o suficiente o seu pai. Vai por
mim, ele é legal.
Eu não conhecia o suficiente o meu pai? Como assim eu não
o conhecia? Ora essa, eu o conhecia desde que me entendia por
gente. Sabia como ele era, sabia o que fazia, sabia dos seus gostos.
Não tinha como não saber, já que, mesmo sendo um pai meio
distante, ainda era meu pai.
Porém, no exato instante em que fiz menção de abrir a boca
para perguntar o que ele quis dizer com isso, George adentrou
novamente ao escritório.
— Aqui está, Alex — Logo se pronunciou, erguendo alguns
papéis em direção ao outro. — O projeto para você analisar e a
documentação para entregar ao Jimmy. Por favor, faça isso. E me
dê notícias quando finalizar a avaliação do material.
— Tudo bem, Sr. Hastings, como quiser — replicou. —
Tentarei avaliar o projeto o mais breve possível e, no mais tardar, no
final da tarde de amanhã, já apresento ao senhor as minhas
ressalvas, observações e possíveis soluções. Agora, se me permite,
vou para casa.
— Ok, pode ir. Nos vemos amanhã na empresa.
Alex, então, despediu-se de mim e do meu pai, mas,
enquanto o vi atravessando a porta e sendo acompanhado pelo
George até a saída, meu pensamento desprendeu-se do ambiente
do escritório, voou e caiu em um alguém que estava a quilômetros
de distância de mim. Um alguém que eu não sabia como estava.
Um alguém que não me respondia.
Dez horas da noite. Tarde demais para ir até lá. Como eu ia
conseguir dormir pensando nele, lembrando-me dele e do que
aconteceu? Ok, era melhor eu parar com isso, melhor esperar pelo
tempo dele (que eu esperava que não fosse definitivo), melhor...
Espera. Meu celular estava vibrando?
Com as batidas do coração dando leves indícios de que iriam
aumentar, tirei o celular do bolso e observei a tela. Uma mistura de
ansiedade, nervosismo, euforia e inquietação me tomou de tal
maneira que, mesmo falhando miseravelmente, tentei me manter
calmo ao desbloqueá-lo e ver duas poderosas palavras surgirem
frente aos meus olhos:
“Quero conversar.”
Tio Google

Eric

Meu Deus, ele queria conversar, mas colocou apenas essas duas
palavrinhas. Eu poderia considerar isso como um bom ou mau
sinal? Bem, se eu fosse levar em consideração o jeito e a
personalidade do Liam, não teria como achar resposta para essa
pergunta, já que, em quaisquer situações comigo, ele sempre foi um
tanto quanto fechado, especialmente depois do que aconteceu no
quarto.
Okay, eu precisava manter a calma, mas, droga, não
conseguia me conter com esse seu sinal de vida, porque pensei que
ele nunca mais fosse trocar qualquer palavra comigo. Então, por
mais que tivesse sido curto e seco na mensagem, meu coração já
pulava em batidas incessantes, imaginando que eu poderia ter mais
uma chance de consertar a burrada que fiz.
Eu só queria poder dizer a ele que ficaria tudo bem, que eu
não iria forçá-lo a nada e que esperaria pacientemente pelo
momento em que, enfim, ele se sentisse preparado para fazer aquilo
que casais faziam. Se ele se sentisse preparado somente daqui a
vinte anos, eu esperaria os vinte anos completos sem reclamar,
porque, para mim, o que mais importava era ficar com ele, com ou
sem sexo.
Por mais sexualmente ativo que eu fosse e por mais que
quisesse tê-lo por inteiro em minha cama, a garantia de que ficaria
comigo excedia qualquer outra preocupação e o sexo se tornava
apenas um bônus ou a cereja do bolo. Um bônus por tê-lo comigo e
a cereja do bolo do nosso relacionamento. Ou seja, transar nada
mais era que uma mera consequência daquilo que sentíamos um
pelo outro, não era a parte mais importante.
A parte mais importante era ficarmos juntos e era exatamente
isso o que eu gostaria de falar olhando nos seus olhos. Infelizmente,
fui impedido por meu pai e seus inúmeros projetos de engenharia
civil, mas, agora que já estava livre de tudo isso, eu iria correndo até
a sua casa, se ele me permitisse, claro. Depois de sua mensagem,
a hora avançada não mais me preocupava, porque tudo o que eu
mais queria era vê-lo. Assim, segurando o celular entre dedos,
digitei uma resposta o mais rápido que pude.
“Eu posso ir na sua casa agora? Quer dizer, a gente pode
conversar agora? Mas só se você quiser. O que você quiser tá bom,
porque eu quero o que você quer.”
Deus, eu estava tão atordoado que ele, provavelmente,
perceberia somente com aquela resposta. Eu precisava ser mais
seguro de si e, definitivamente, eu era, mas a situação não estava
me ajudando a deixar em evidência essa minha característica. Eu
parecia uma criança vivendo o primeiro amor. Não que eu fosse
uma criança, mas, poxa, eu estava vivendo o primeiro amor sim.
Inseguranças infantis e patéticas, mas necessárias para alguém que
nunca tinha vivenciado algo assim.
“Não. Não quero que você venha aqui agora. A gente conversa
amanhã.”
E, então, essa foi a sua mensagem de volta. Ele queria
conversar, mas somente no dia seguinte. A pergunta que não calava
em minha mente era: eu conseguiria dormir? A resposta para isso
era mais fácil e simples que qualquer outra. Era mais do que óbvio
que eu não teria uma noite de sono plena e em paz. Liam Tremblay
estava tirando de mim todos os meus resquícios de sanidade, mas,
como eu disse, o que ele quisesse estava bom, porque eu queria o
que ele quisesse.
“Amanhã a gente vai viajar para as quartas de final. Você quer
conversar lá mesmo?”
Enviei, mais uma vez, por dois motivos: primeiro, necessitava
trocar mesmo que míseras palavras com ele; e segundo, talvez, por
conta de tudo, ele não estivesse se lembrando que iria viajar com o
time inteiro. Então, não sabia se ele se sentiria confortável em
conversar em um local assim. Por mim, eu o encontraria naquela
mesma hora, mas, bem, não era assim que funcionava. Não quando
se tratava do Liam.
“Sim. Boa noite.”
E com apenas três palavras, ele me deixou querendo muito
mais, porque eu sempre queria mais dele. Nenhuma palavra era
suficiente o bastante. Droga, eu estava completamente entregue.
Entregue e confuso, porque não sabia como essa conversa iria
acontecer. Teríamos um momento a sós antes ou depois do jogo?
Onde poderíamos nos encontrar com privacidade? De toda forma,
preferi não lhe encher com mais perguntas. Já bastavam todas as
cinquenta mil ligações e mensagens que eu tinha feito. Devagar e
sempre, esse era o lema.
“Boa noite e durma bem.”
Finalizei assim, querendo falar muito mais do que essas cinco
palavrinhas, mas, bom, não agora. Tudo no tempo certo. Com o
Liam eu precisava ir com calma e esperar o momento dele para
cada coisinha. Ele era assim e eu não reclamava disso, porque cada
um tinha um jeito diferente de encarar as situações da vida,
especialmente ele, que sempre foi muito preconceituoso até consigo
mesmo.
Guardei, então, o celular no meu bolso e, erguendo meu
rosto, notei que George ainda estava se despedindo do Alex na
porta da nossa casa. Provavelmente, estava dando-o alguma
informação sobre os trabalhos. Como não queria me envolver mais
em nada sobre os seus projetos, pelo menos não naquela noite, saí
sorrateiramente do escritório e segui em direção à escada que dava
acesso ao andar dos quartos.
No entanto, quando coloquei o pé no primeiro degrau, ouvi a
voz de Stefany ao passar por eles na entrada e vir em minha
direção, tagarela como sempre. Ela estava chegando em casa e
vindo de algum local que eu, claro, não fazia ideia de qual se
tratava, porque ela era assim: livre, leve e solta. Ia e vinha para
onde tinha vontade e quando tinha vontade.
Não precisei ao menos me virar para cumprimentá-la, com
seu jeito espaçoso e extrovertido, logo passou um dos braços por
mim, enlaçando-me pela cintura, sem dar-me tempo de até mesmo
retribuir. Como eu amava essa garota! Talvez eu estivesse
precisando de algo assim para dormir um pouco mais sossegado.
Ainda bem que morávamos debaixo do mesmo teto.
— Como você tá, heim, maninho? — perguntou como se já
soubesse o que estava acontecendo. Ela tinha algum tipo de sexto
sentido ou o quê? Na verdade, talvez estivesse estampado em
minha cara tudo aquilo o que eu estava passando, principalmente
depois de ter trocado todas aquelas mensagens com o Liam. Ou
talvez... Não, não era possível que ele tivesse contado. Ele era
muito fechado para fazer esse tipo de coisa até mesmo com a
Stefany.
— Não muito bem, Ste — Com uma voz um tanto quanto
desanimada, respondi, porque, diferente do que eu achava, não era
tão fechado quanto ele, a ponto de não falar sobre os
acontecimentos com a minha própria irmã. Eu precisava de alguém
para desabafar antes de dormir e ela parecia ser a pessoa perfeita
isso. Ela sempre era perfeita.
— É, eu sabia que você falaria isso — replicou com um tom
afável, fazendo-me parar no meio da escada. Do que estava
falando, afinal? — Nunca consegue esconder nada de mim — e
sorriu, deixando-me ainda mais de orelha em pé. Ela sabia do que
tinha acontecido? Mas, como? Até onde eu me lembrava, ela não
estava em casa quando tudo aconteceu.
— Você sabe o motivo? — questionei quase em um sussurro,
para que ninguém nos ouvisse, observando pelo cantinho do olho se
o George não estava por ali. Tinha receio que ele nos visse falando
sobre isso e perguntasse do que se tratava, por mais que, pelos
meus gostos, eu já tivesse, há muito tempo, exposto o meu
relacionamento para qualquer pessoa. Mas, existia o Liam e ele
ainda não estava preparado para isso.
— Claro que sei, seu bobo — deu-me um pequeno sorrisinho,
bagunçando meus cabelos. — O Liam me contou — sussurrou,
como uma criancinha que falava sobre traquinagens, deixando-me
completamente boquiaberto. Isso era sério? Ele teve coragem para
falar abertamente com alguém sobre o que tinha acontecido? Eu
sabia que Liam e Stefany sempre tiveram uma boa amizade, mas
duvidava que ele falasse até mesmo para ela. — Vem! Vamos lá
para o seu quarto — e me puxou rapidamente pelas escadas.
Entrou em meu quarto, fechando a porta atrás de si, e, de
maneira entusiasmada, aproximou-se de mim, empurrando-me até a
cama.
— Eu tô tão feliz por vocês! — e pulou em pescoço,
deixando-me ainda mais confuso e fazendo-me cair sobre o
colchão. Como ela podia estar tão feliz assim, se o que o aconteceu
nós, foi um belo de um desentendimento?
— Espera, Stefany... — falei um pouco receoso, tirando-a de
cima de mim e sentando-me sobre a cama. — Calminha aí — Na
verdade, era eu quem estava tentando se acalmar. — O Liam falou
pra você sobre o que aconteceu? — questionei totalmente incrédulo.
— Falou sim, bebê — respondeu, soltando uma leve
risadinha de quem estava se divertindo com a situação. E, bem, na
minha cabeça, aquela não era uma situação divertida. Discutimos,
passei a noite inteira tentando falar com ele, fui impedido de ir até a
sua casa, e, por fim, recebi apenas uma mísera mensagem. Não,
não era um momento bacana. — Por que o espanto? Eu consigo
arrancar do Liam mais coisas do que você imagina.
Bom, um dia ela deve ter arrancado muitas coisas mesmo
dele, mas arrancar isso? Definitivamente, ele sempre me
surpreendia. Era uma verdadeira caixinha de surpresas.
— Eu não pensei que ele fosse dizer logo isso — confessei,
dando ênfase na palavra “isso”, afinal, querendo ou não, estávamos
tratando da intimidade de um casal. No entanto, tão logo me calei,
minha mente deu um estalo, porque se eles conversaram, ela devia
saber como ele estava. — Ste, como ele tá? — perguntei, sedento
por uma boa resposta, e deslizei pela cama, aproximando-me dela
com uma avidez de quem se sentia desolado. — Me fala, ele tá
bem?
— Calma... — Soltou uma pequena risadinha pelo nariz,
balançando levemente a cabeça para minha ânsia. — A Molly me
ligou, dizendo meio que por cima o que tinha acontecido e me pediu
que eu fosse lá pra ajudar. Nós conversamos e bom... — hesitou um
pouco antes de prosseguir, mas logo completou a frase. — Ele está
bem sim. Claro que eu não posso dizer que foi fácil, porque você
conhece muito bem o Liam e sabe como ele é, mas...
— Mas? — indaguei expectante por uma resposta. Uma boa
resposta. Eu precisava saber como ele estava encarando aquilo
tudo, já que não consegui identificar absolutamente nada com suas
poucas palavras nas mensagens que mandou. Ele foi muito evasivo,
enquanto eu, mesmo que tentando manter o controle, ansiava por
saber mais.
— Mas... — suspirou, apresentando um sutil sorriso em
seguida. — Não quero falar pelo Liam aquilo que ele tem pra te
dizer na conversa que vocês vão ter. — Meu Deus, ela sabia até da
conversa? Então, ele tinha contado tudo mesmo. — Só quis vim
aqui porque, sabendo como o meu irmãozinho é, eu estava sentindo
que você não iria conseguir dormir com a preocupação. Então, pra
que você tenha uma boa noite de sono, só quero digo isso: relaxa.
Relaxar? Se ela me conhecia tão bem assim como dizia,
sabia que eu ficaria ainda mais ansioso e curioso. Por isso, não
hesitei em pedir algo no segundo seguinte:
— Por favor, me fala o que ele tem pra me dizer. Agora que
não vou conseguir dormir mesmo. Vou ficar pensando nisso —
admiti, praticamente suplicando-a.
— Claro que não, né? — sorriu de modo travesso. — Está
pensando que eu sou o quê? Uma menina de recados? — e me
olhou com uma fingida soberba, que de imediato deu lugar a um
semblante gaiato. — Tô brincando... Eu só acho que seria muita
sacanagem eu dizer — falou, levantando-se da cama. — Espera,
maninho, porque ele vai conversar contigo amanhã.
— Mas, Ste... — Ainda tentei sibilar algo que pudesse
convencê-la a dizer. Inclusive, eu quase a prometi que faria uma
fingida, mas excelente, cara de surpresa quando ele, enfim,
conversasse comigo. No entanto, antes que eu conseguisse
prosseguir, logo fui interrompido.
— Não, nem vem, Eric — balançou a cabeça em negativo,
afastando-se de mim e caminhando de costas até a porta. — Só
relaxa e durma como um anjo, porque amanhã vocês vão conversar
— tocou na maçaneta, dando-me um último olhar. — Ah, se quer
uma dica, procura na internet sobre sexo gay — e, com um sorriso
arteiro e uma breve piscadela, saiu do meu quarto antes que eu
pudesse perguntar qualquer coisa sobre isso.
Sexo gay? Como assim? Por que eu deveria pesquisar sobre
sexo gay na internet? Ela estava querendo dizer nas entrelinhas
que... Não, não podia ser. Eu não deveria sonhar tão alto, nem criar
esperanças. Liam não iria aceitar, principalmente pela maneira como
saiu da minha casa. Ele era uma pessoa difícil, que demorava para
entender certas coisas, por isso eu não deveria me iludir.
Ou talvez... Oh não. Balancei a cabeça, tentando dissipar os
pensamentos sobre a tal dica que Stefany me passou, e deitei-me
de súbito na cama, afundando meu rosto no travesseiro e pensando
que o melhor que eu poderia fazer, naquele instante, era dormir
como se não houvesse amanhã. Sim, porque, se eu pensasse no
dia seguinte, provavelmente não iria conseguir pregar os olhos. E,
bom, eu precisava estar bem descansado para o jogo.
Assim, sem levantar-me, ou seja, deitado mesmo, descalcei
meus coturnos, jogando-os no chão, tirei a roupa, colocando-a no
criado mudo ao lado da cama e ficando somente de cueca.
Desliguei a luz do quarto, que ficava em um interruptor próximo a
mim, e me cobri com edredom, fechando os olhos e me
concentrando para dormir.
Não fazia ideia de quantos minutos ou horas haviam se
passado, apenas sabia que bolei incessante sobre a cama, de um
lado para o outro, por muito tempo, sem conseguir pegar no sono.
Droga, eu precisava de descanso para o dia seguinte, mas, a cada
momento em que fechava os olhos, a imagem dele surgia a mente e
me despertava. Talvez eu estivesse ficando louco com aquela
situação.
Já sem paciência, bufei com exasperação e afastei
bruscamente o edredom, tirando-o de cima de mim. Eu não
conseguia parar de pensar na última frase que Stefany que havia
me dito. Então, quando, enfim, decidi parar de lutar contra a insônia
e abri os olhos, lá estava ele sobre minha escrivaninha: o notebook.
O pensamento do segundo seguinte representou parte da minha
confusão: será que eu devia mesmo pesquisar?
Oh, não. Eu não devia, porque poderia criar esperanças com
algo que não se tornaria realidade. Mas, por outro lado, aquilo
despertou minha total curiosidade, ao ponto de não conseguir
adormecer. Sexo gay era tão diferente de sexo hétero? E se eu
pesquisasse só um pouquinho? Talvez cinco minutinhos não
fizessem tanta diferença. Eu não iria conseguir dormir mesmo.
Então, dando de ombros para o receio e abrindo os braços
para a bisbilhotice, levantei-me da cama e segui rumo à
escrivaninha, sentando-me na cadeira. Com um breve suspiro, liguei
o notebook e, em poucos minutos, a página do tio Google já estava
aberta frente aos meus olhos. Digitei, então, duas palavrinhas
poderosas na caixa de pesquisa: sexo gay.
Okay, só apareceu vídeo pornográfico, mas eu não queria ver
isso, assim como sabia que, quando a Stefany pediu para que eu
pesquisasse, ela não estava referindo a esse tipo de conteúdo. Eu
sentia que ela queria que eu me informasse, lesse alguns textos,
algumas matérias. Coisas desse tipo. Portanto, fui novamente na
lupa de busca e digitei: tudo sobre sexo gay.
O primeiro artigo que apareceu era chamado de “O que as
escolas deveriam ensinar sobre sexo gay?”. Achei o título
interessante e cliquei para saber o que o texto trazia. Com a leitura,
pude identificar algumas frases-chaves, cuja primeira era “sexo não
é somente entre homem e mulher”. Claro, nas aulas de biologia
parecia que os professores esqueciam de mencionar que pessoas
do mesmo sexo também transavam.
Outra frase em destaque era “seu prazer não vem só do
pênis”. Engoli em seco ao ver as outras três palavras que se
sucederam, porque, bem, com as garotas eu usava somente o meu
órgão genital mesmo, não aqueles elencados ali: “o períneo, o ânus
e o saco escrotal”. Okay, talvez eu tivesse passado muito tempo da
minha vida utilizando-me de poucos recursos na hora do sexo.
Ainda pude ver também “a próstata é sua melhor amiga,
entenda como ela funciona”. Certo, eu queria ter a oportunidade de
ser ativo com o Liam, porque eu não podia negar que meu membro
clamava por aquilo, mas, sei lá, não descartava a possibilidade de
ser passivo algum dia na vida. Afinal, eu duvidava muito que ele
quisesse usar somente a parte traseira para todo o sempre. E,
nossa, eu já estava pensando nele mais uma vez e numa
possibilidade remota. Sim, eu precisava me concentrar para ler sem
criar expectativas.
Rolei a tela para baixo e vi “o lubrificante também faz parte da
sua rodinha de amigos”. Inclusive, ponto importante, porque, pelo
menos, eu sabia que o ânus não tinha a mesma lubrificação que
uma vagina. E, para completar, letras quase garrafais surgiram em
minha frente com: “não use óleos de bebê, sabão e, muito menos,
itens de culinárias. Compre o produto apropriado na farmácia”.
Credo, que tipo de itens de culinária o texto estava se referindo?
Manteiga? Preferia nem imaginar. Próximo!
Baixei novamente o texto e, quando me dei conta, lá estava:
“o seu sexo não tem nada a ver com o pornô gay que você assiste”.
Bom, eu nunca havia assistido pornô gay, somente os héteros, mas,
sempre soube que realmente não tinha nada a ver. Então,
provavelmente, quando o assunto era relação íntima entre dois
homens, aqueles vídeos deviam ser utópicos também. Até porque
sexo anal talvez doesse um pouco, se não fosse feito com cuidado.
Atenção para ritmo e posição eram importantes. E, lógico, eu iria
com jeitinho com ele.
Um pouco mais à frente, outra frase em destaque surgiu
“sexo gay não é só sexo anal”. Talvez alguma língua por aqui ou
algum dedo por ali fizesse também uma boa diferença. Céus, eu
não podia nem imaginar isso, porque meu corpo já queria
apresentar sinais entre minhas pernas. Próximo. Pulei algumas até
encontrar algo que me fez relembrar o que aconteceria no dia
seguinte: “a melhor forma de melhorar sua transa é conversando
com o parceiro. É importante falar abertamente sobre medos,
fantasias, frustrações e posições sexuais.”
Não que fôssemos conversar especificamente sobre isso. Na
verdade, eu nem sabia sobre o que ele queria falar, já que a Stefany
fez o favor de não me contar. Mas, enfim, o texto estava mais do
que certo, porque nós precisávamos de um diálogo, sim. Eu
precisava passar confiança a ele, assim como ele precisava sentir
segurança em mim. De toda forma, era melhor eu parar de pensar
nisso, ou, definitivamente, não conseguiria dormir naquela noite.
Então, quando estava quase concluindo minhas pesquisas,
desci um pouco mais a página e vi “você precisa ter uma camisinha
sempre. HIV/AIDS não é a única doença sexualmente
transmissível”. Eu sempre tomei cuidado quando pretendia ter
relações sexuais com alguém, assim como tinha quase certeza de
que Liam também o fazia. De todo modo, esse era um ponto
importante, tanto para nós, quanto para todas as outras pessoas,
fossem elas ativas ou passivas.
Por fim, minimizei uma das abas e, quando ia fechar a outra,
um nome curioso apareceu. Era nada mais, nada menos, que:
chuca. Mas, que diabos era isso? Cliquei em cima do nome e...
Enema? Chuveirinho? Mangueirinha? Duchinha? Lavagem retal?!
Meu Deus, talvez eu já estivesse passando dos limites nas
pesquisas. Era melhor deixar isso para outro dia. Depois, bem
depois, eu leria mais sobre isso, porque, naquele momento, o
melhor que eu podia fazer era dormir.
Desliguei o notebook, caminhei até a cama e me deitei com a
cabeça trabalhando, quase que de maneira incessante, nas
informações recém recebidas. No entanto, aquilo que tomava mais
ainda meus pensamentos não eram as pesquisas que eu tinha feito,
era ele. E eu nem sabia como ele estava naquele momento, se
estava dormindo, ou se estava com dificuldade assim como eu. De
qualquer maneira, fechei os olhos e tentei sonhar. Com ele.
Uma caixinha de surpresas

Eric

Minhas mãos despudoradas subiram pelo seu torso ainda coberto


por uma camiseta, apoderando-se de cada centímetro que me
oferecia, bem como sentindo o subir e o descer de uma respiração
pesada e excitada através de seu peito. Tal respiração quente e
exultante incidia contra a pele de meu rosto, nutrindo-me de um
prazer já latente, dada a proximidade que o beijo nos proporcionava.
Éramos somente eu e ele, entre quatro paredes, desfrutando
a privacidade de um quarto. Meu quarto, que agora também era
seu, pois tudo o que era meu tornou-se dele. Eu era dele, completa
e inteiramente, assim como seu corpo a se inclinar em minha
direção, ansiando por mais toques e menores distâncias, fazia-me
sentir que ele era meu. E, para não deixar dúvidas quanto a isso, ele
falava e sussurrava em meu ouvido:
— Eu sou seu. Total e completamente seu.
No armário próximo à cama, onde estavam os paletós, as
calças e os sapatos sociais, ainda restavam os resquícios dos
momentos inesquecíveis que vivemos no dia anterior: a troca de
votos, todos à nossa volta, a certeza de uma vida inteira ao seu
lado. Naquele momento, debaixo dos lençóis, eu tinha a convicção
de que seria a primeira de muitas outras primeiras vezes que
teríamos, porque, com ele, por mais que repetíssemos, o momento
sempre se tornava único, como se fosse uma primeira vez.
E, então, seus braços me puxaram e me levaram para
debaixo de si, fazendo com que suas pernas se posicionassem uma
de cada lado. Já sem as roupas de baixo, somente de cueca, pude
sentir sentar-se sobre a minha rigidez, levando minha libido à níveis
ainda mais elevados, porque era simplesmente o amor da minha
vida, com seu rosto felino, seus trejeitos sedutores e sua pele em
pura polvorosa, sobre mim. O pudor, o medo e a vergonha já não
mais existiam. Éramos um só sem máscaras.
Enquanto seu baixo ventre já estava quase totalmente
exposto, sua parte superior ainda não, mas, sem esperar que eu
mesmo erguesse minhas mãos para retirar sua camiseta, ele
mesmo o fez, puxando minha cueca, com ânsia e vontade, logo em
seguida. Seus dedos percorram meu corpo, meu busto, meus
braços, refletindo ondas de prazer por cada milímetro que me
formava, mas pararam ao chegarem ao meu rosto. Encarou-me por
alguns instantes, observando cada traço de minhas feições.
Assim, eu também o fiz, analisando e apreciando cada
detalhe que compunha seu semblante, bem como chegando à
conclusão de algo que já tinha conhecimento a muito tempo: ele era
lindo. Especialmente quando estava tomado pela libido em nossos
momentos íntimos, o que o deixava ainda mais belo, se isso fosse
realmente possível. Seus cabelos pretos emolduravam seu rosto e
seus maravilhosos olhos azuis me encaravam com um brilho sem
igual. O brilho de alguém que prometia em silêncio aquilo que faria
no segundo seguinte.
Então, ainda sobre mim, levou seus lábios à minha boca,
beijando-me com volúpia e languidez, invadindo-me com sua língua
aprazível e deixando-me completamente extasiado. Mas, como se
não bastasse tudo o que já estava acontecendo, desceu seus lábios
pelo meu pescoço, em seguida pelo meu peito, depois pelo meu
abdômen, abandonando ali um rastro de beijos, até chegar lá,
naquela local específico e notável. No entanto, quando me
envolveu, fazendo-me sentir sua textura interna quente, macia e
quase aveludada...
Acordei.
Suado, ofegante e atordoado, abri os olhos e me sentei na
cama de supetão, observando em volta e desapontado com a
situação. Droga, aquilo tudo não passava de um sonho? Para
chegar a esse ponto, eu devia mesmo estar ficando louco ou muito
preocupado com o que iria acontecer entre nós durante a bendita
conversa. Isso me alucinava mais que qualquer coisa, embora eu
estivesse tentando manter a calma o tempo todo.
Olhei para baixo, vi meu pênis totalmente enrijecido e tive a
certeza de algo: ele me afetava até em sonho. Suspirei em
desalento, porque, iludido, queria que tudo fosse realidade. Não
somente seus beijos, as trocas de carícias ou o momento íntimo em
que estávamos, mas, principalmente, seu corpo entregue e a
certeza de que ficaríamos juntos não somente por uma noite ou
alguns dias, e sim pelo resto da vida.
Eu era tão iludido que criava esperanças até mesmo em
sonho, como se eu pudesse esperar isso do Liam. Na verdade, eu
poderia mesmo esperar muito dele, caso tivesse, pelo menos, uma
chance de um por cento de dar certo. Mas, eu tinha? Não.
Temperamento difícil, personalidade duvidosa e preconceito à flor da
pele era o que eu deveria aguardar, para ser sincero.
Talvez as pesquisas que fiz antes de dormir também tivessem
me afetado, já que eu nunca tinha entrado em contato com algo
daquele tipo e, por mais que tivesse lido tentando condicionar meus
pensamentos a não se direcionarem a ele, meu subconsciente ainda
trabalhava fortemente. No entanto, eu precisava parar com esse tipo
de coisa ou não aguentaria até o momento em que fôssemos trocar
as tais palavras.
E, bem, ele me prometeu que conversaríamos.
Assim, afastei o cobertor, tirando-o de cima de mim, e
levantei-me da cama, afinal, eu tinha uma viagem para fazer em
poucos minutos e pensar no que o Liam iria me falar poderia ser
bastante prejudicial para minha sanidade mental. Era melhor tentar
manter a calma e viver minha vida normalmente, ou pelo menos
quase isso.
Tirando a cueca para tomar banho e me arrumar, notei que,
dado o desapontamento com a realidade, meu pênis já estava
voltando ao seu estado normal. E, mesmo que não estivesse, eu
não iria me masturbar pensando no Liam, somente para satisfazer
uma necessidade. Não. Claro que não. Seria péssimo me satisfazer
dessa maneira, porque não era ele ali, era só a minha imaginação...
Mas...
Talvez... Talvez se eu tentasse e...
Não, Eric! Okay, eu também estava incluso entre os jovens
que pensavam um pouquinho com a cabeça de baixo, mas eu me
iria me contentar em deixar tudo no mundo da imaginação.
Então, pegando a minha toalha, segui para o banheiro,
pensando que provavelmente um banho de fria água fosse o melhor
remédio para aquilo. A água gelada sempre era uma boa solução
para esses casos e eu já tinha prática nesse tipo de coisa. Controle
era tudo e mais um pouco do que eu precisava, controle para
esperar por ele, se é que eu podia realmente esperar por algo.
Talvez eu fosse um iludido a níveis estratosféricos.
Liguei o chuveiro e, então, a água desceu, banhando o meu
corpo e baixando a tensão pelo que havia sonhado. Minha pele,
outrora quente e praticamente pegando fogo ou entrando
combustão, foi entrando em um estado de neutralidade, pois as tais
gotículas que caíam talvez pudessem ser, além de tudo,
terapêuticas também. O suor, ocasionado pelo calor e pela minha
respiração ofegante, foi se esvaindo, assim como eu já me sentia
mais disposto para aquele dia.
E, bem, eu precisava mesmo de disposição, pois, apesar de
minha vida pessoal estar uma loucura, eu teria de enfrentar uma
viagem e um jogo importantíssimo. As quartas de final estavam
batendo na porta e agora o conhecido “mata-mata” iria começar,
pois, se perdêssemos qualquer jogo daqui para frente, o
campeonato acabava para nós e seríamos eliminados, assim como
o sonho de ganhar uma bolsa da universidade iria por água abaixo.
Pelo menos eu tinha conseguido dormir por algumas horas,
coisa que eu pensava que nem aconteceria, já que rolei na cama,
de um lado para o outro, por muito tempo sem ter a capacidade de
pregar os olhos. Não queria mais ficar tão preocupado com o que
iria decorrer de nossa conversa, mas esperava que ele estivesse
bem e que tivesse conseguido pegar no sono à noite com uma
maior facilidade, diferente de mim.
Talvez até tivesse conseguido mesmo, já que não era muito
do feitio do Liam preocupar-se com algo, especialmente quando
esse algo era relacionado a mim, mesmo que nós tivéssemos um
lance há algum tempo. Ele era muito solto, independente, não se
prendia a nada, assim como tinha afeição por poucas coisas. Eu já
fui um pouquinho desse jeito, em um passado não muito distante,
mas nada comparado a ele, porque sempre fui mais apegado ao
que realmente gostava.
E, quando se tratava de algo que eu realmente gostava, sem
dúvidas, ele estava no topo da lista, ultrapassando qualquer outra
pessoa. Na verdade, talvez estivesse em um patamar próximo à
minha mãe e à minha irmã, apesar de que nem sempre foi assim,
porque, antigamente, quanto mais distância eu tivesse dele, melhor.
No entanto, em pouco tempo ele conseguiu ocupar um local de
destaque na minha vida. Local esse que poucas já tinham estado.
Após o banho, desliguei o chuveiro e me enxuguei, saindo do
banheiro logo em seguida. Com a toalha encaixada em minha
cintura, fui em direção ao closet para escolher uma roupa e me
vestir, além de colocar algumas na mochila da viagem. No entanto,
enquanto estava separando algumas camisas, ouvi um som de
notificação vindo do meu celular. E, bom, eu ainda não tinha o
checado naquele dia.
Assim, vesti uma calça e uma blusa e segui rumo ao criado
mudo, que ficava ao lado da cama, onde estava o celular. Sentei-me
na cama, desbloqueando a tela, logo em seguida, e vendo as
mensagens do aplicativo. O grupo do time já estava fervilhando,
prova de que acordaram realmente cedo e de que estavam ansiosos
pelo jogo de logo mais, mas, nenhum sinal de vida do Liam
apareceu lá. Já tinham mensagens de todos, Robert, William, Adam,
mas nada do Liam.
Será que ele ainda não tinha acordado? Meu Deus, e se ele
ainda estivesse dormindo e perdesse o horário do ônibus? Talvez se
eu mandasse alguma mensagem, perguntando se estava tudo bem
e... Não. Não, não. Não iria fazer isso, porque já bastavam todos os
contatos que tentei fazer no dia anterior, além do mais, no fundo, eu
sabia que minha preocupação era, única e exclusivamente, uma
desculpa para tentar falar com ele. Por mais que estivesse sentindo
sua falta, iria esperar até o horário da viagem.
Então, no momento em que decidi guardar o celular no bolso
e voltar a arrumar minha mochila, uma outra notificação surgiu, mas,
dessa vez, não era do aplicativo de mensagens, e sim do Facebook.
Cliquei em cima para ver do que se tratava e, logo em seguida,
apareceu uma solicitação de amizade, algo até bem comum de se
acontecer. Entrei no perfil da pessoa para saber se a conhecia ou
não e... Lana Hill? Mas, quem era Lana?
Longos cabelos ruivos, olhos castanhos, pele clara e... Eu
nunca tinha vista essa pessoa em toda minha vida. Por que me
mandou uma solicitação de amizade, afinal? Tudo bem que eu já
tinha certo costume de receber tal solicitação de várias garotas,
fosse do meu antigo colégio ou do Colégio Regent, mas, querendo
ou não, eu sempre as via anteriormente e, como eu possuía uma
boa memória fotográfica, geralmente me lembrava delas.
Outro ponto também era que isso se tornava mais habitual na
época em que eu tinha o costume de ficar com várias garotas, coisa
que não acontecia desde que eu comecei a namorar a Molly, e
muito menos depois que me envolvi com o Liam. Já fazia bastante
tempo que não me relacionava com nenhuma, para que elas
quisessem me adicionar no Facebook em busca de uma “amizade”.
Elas sempre criavam a esperança de que, fazendo isso, eu
acabaria me interessando por alguma, o que não era algo
totalmente ilusório, já que, por vezes, me interessei, mas isso não
estava mais acontecendo ultimamente. Eu tinha olhos somente para
o Liam e, por isso, estava fora de campo há bastante tempo. No
entanto, ainda assim, fui nas fotos da tal menina.
Não tinham muitas, poucas com os amigos, algumas com a
família e outras sozinha, mas eu não podia negar que era muito
bonita. Na verdade, uma das meninas mais lindas que já vi e, com
toda certeza, se eu tivesse cruzado com ela algum dia, não teria
como esquecer aquele rosto. De toda forma, não aceitei o pedido,
porque não tinha o hábito de fazer isso com quem não conhecia.
No entanto, também não excluí. Deixei-o lá, sem resposta, e
me levantei da cama para voltar à minha mochila. Lana... Lana...
Nome bonito, pensava alto enquanto arrumava minhas roupas para
o jogo. Por que me mandou um pedido amizade? Eu me
perguntava. Quem sabe algum dia viéssemos a nos conhecer.
Afinal, aparentemente, ela já me conhecia. Só faltava eu conhecê-la.
Mas, deixando de focar nisso e me preocupando com o fato
de que teria de me apressar para chegar ao colégio, terminei tudo o
que tinha para fazer e saí do quarto com a bolsa já no ombro. Não
que eu estivesse atrasado, na verdade meu tempo estava bem
folgado, mas eu gostava de sempre chegar com antecedência.
Assim, no momento em que cruzei a porta, Stefany também estava
de saída.
— Maninho! — Meu Deus, às vezes eu tinha a impressão de
que ela era ligada em 220 volts direto, porque a garota já acordava
toda animada. Nem eu, que era uma pessoa de bem com a vida,
amanhecia assim. — E aí, você tá bem? Dormiu bem? Conseguiu
pregar os olhinhos?
Bom, tirando a parte de ter um sonho erótico com o Liam e de
acordar com o pênis duro, eu consegui dormir sim. Claro que eu não
ia ser tão específico assim com ela.
— Ah, Ste, dormi sim. Ainda rolei na cama por algum tempo,
mas consegui dormir.
— Hum, e você pesquisou aquilo que eu disse? — indagou
sem esconder com um sorrisinho malicioso que logo se desenhou
em seu rosto. Céus, será que existia garota mais perspicaz que ela?
Eu definitivamente desconhecia.
— Assim... — hesitei um pouco em falar, mas continuei. —
Eu dei uma olhada e tal — por fim, tentei ser um pouco evasivo, já
que não queria entrar em muitos detalhes sobre aquilo que havia
afetado tanto o meu sonho.
— Ah é?! — Stefany quase gritou e eu quase pulei para
tampar sua boca e não fazer algum barulho comprometedor aos
nossos pais. — E o que você achou? Pesquisou tudinho? Você
assistiu vídeo pornográfico não né? — e me bombardeou com
trezentas perguntas.
— Ste... — tentei fazê-la parar e me concentrei para não falar
isso em voz alta. — Eu pesquisei, tá legal? Me informei de algumas
coisas. Achei interessante. E não, eu não assisti vídeo pornô —
disse baixinho, porque talvez as paredes tivessem ouvidos. —
Agora, se me der licença, eu preciso comer alguma coisa ‘pra sair.
— Espera! — segurou-me por um dos braços, antes que eu
me virasse para descer as escadas. — Mas, me fala aí, o que você
viu, heim? — Seu tom de voz arteiro e malicioso não sumia. — Tá
sabendo direitinho? — e não se conteve em soltar uma pequena
risadinha.
— Ste, ontem você não me falou o que o Liam tem para me
dizer. Então, eu também não preciso entrar em detalhes sobre isso.
Estamos quites — sorri como uma criança travessa, pois, se ela
sabia me esconder certas coisas, eu também sabia esconder dela.
— Ai, que injusto! — balançou a cabeça em negativo sem
tirar o semblante brincalhão do rosto. Ela somente fingia estar com
raiva por eu não dizer, porque brincadeira era o seu nome do meio.
— Se eu pudesse dizer, eu dizia, mas é melhor ouvir da boca dele.
Seu chato.
— Tudo bem, eu já me conformei que você não vai me falar
mesmo. Então, vamos descer logo, porque eu preciso lanchar —
Dessa vez, fui eu quem a puxei pelo braço, já que não poderia
dispensar mais tempo conversando ali.
Descemos as escadas e, logo ao chegarmos na sala de
refeições, pude ver que minha mãe e o George já estavam lá. Como
me ensinaram a ser educado, dei bom dia para todos e me sentei
em uma das cadeiras. Dei graças a Deus por George não ter
direcionado nenhum assunto especificamente a mim, assim eu
poderia comer e ir para o colégio em paz.
Já bastava o que havia acontecido no dia anterior, onde eu fui
obrigado a ajudá-lo nos projetos de engenharia civil contra a minha
vontade. Assim, ficaram conversando sobre assuntos aleatórios com
a Stefany, enquanto eu comia meu sanduiche despreocupadamente
e em silêncio. Na verdade, preocupado somente com o horário que
o ônibus ia sair, apesar de estar com tempo de sobra. E, então,
quando já estava quase finalizando o lanche, foi justamente o
assunto do ônibus que desencadeou uma situação um tanto quanto
chata.
— Mãe, será que a senhora pode ir me levar ao colégio? —
perguntei enquanto me retirava da mesa. Embora eu tivesse um
carro e dirigisse, precisava que alguém me levasse, caso contrário
meu Porsche ficaria no estacionamento do colégio até eu voltar de
viagem e, bem, essa não era uma boa alternativa.
— Eu te levo — George falou antes que mamãe pudesse
responder, arrancando assim, as atenções de todos ali.
O quê? Ele me levaria ao colégio? Ah não, eu não podia
acreditar. Ele nunca fazia esse tipo de coisa e foi justamente por
isso que minha mãe e minha irmã olharam surpresas. George nunca
foi um pai presente e nunca me levou ao colégio ou me buscou,
principalmente quando eu chegava ou saía de viagem com o time.
Quando eu era mais novo, não gostava dessa distância, mas,
depois de crescer, eu tinha me acostumado tanto que até gostava,
porque, assim, ele não enchia a minha cabeça com assuntos que
não gostava.
— Não precisa — repliquei de imediato, porque não queria
que ele me acompanhasse até lá. Talvez as besteiras que eu ouviria
no carro até chegar ao colégio fossem inimagináveis. — A minha
mãe pode me levar. Não é, mãe? — fui enfático no final, porque
pedia aos céus que ela se disponibilizasse a fazer isso.
— Não se preocupe, Cynthia — disse tão logo me calei. —
Eu levo o Eric. Afinal, preciso passar um tempo com o meu filho,
não é mesmo? — e sorriu, deixando-me ainda mais confuso e
menos alegre. O que ele queria com isso?
Infelizmente eu não pude fugir do destino. Me despedi da
minha mãe e da minha irmã, recebendo boa sorte e boas vibrações
para jogo, e, então, seguimos para o carro. Não consegui esconder
o semblante fechado, porque ainda não havia me recuperado o
suficiente de ter passado longas horas trancafiado em seu escritório,
revisando projetos.
De toda forma, o que eu podia fazer, se não aceitasse a
carona? Durante todo o percurso, procurei me manter calado, até
porque eu não tinha absolutamente nada para falar com ele e, se o
fizesse, poderíamos acabar caindo em assuntos que eu não estava
interessado como, por exemplo, a construtora, já que, sempre
quando tentávamos conversar, era aí onde parávamos.
No entanto, para minha completa infelicidade, quando
estávamos próximo ao colégio, quase dobrando a esquina, ele fez o
favor de falar. E, claro, era nada mais, nada menos, que uma
maneira de chegar no ponto onde ele queria. Esse ponto eu não
precisava nem me demorar muito tempo imaginando qual era,
porque estava mais transparente do que água.
— E, então, como anda o time de futebol? — questionou com
certo desdém. Eu já sabia que ele não era afeito à ideia de eu jogar
bola. Não que eu quisesse levar esse esporte como profissão, mas
eu adoraria que ele tivesse um pouco mais de respeito. — Vai te
fazer ganhar mesmo uma bolsa na universidade?
Esse era o seu único e exclusivo interesse para eu fazer
parte do time do colégio: a bendita bolsa da universidade. Eu queria
demais ganhar uma e estava me esforçando para isso, mas odiava
o fato de sempre conversar comigo sobre esse tipo de coisa. Por
que não falava sobre outros assuntos?
— Eu espero que sim — repliquei tentando disfarçar o tom
entediado de minha voz.
— Sabe que esse é o principal objetivo dessa perca de tempo
que é jogar futebol. — Nossa, eu tinha verdadeira repulsa quando
ele se referia assim ao esporte. — Espero que isso renda algum
resultado para sua carreira profissional — finalizou ao estacionar o
carro em frente ao colégio.
Assim, antes que ele pudesse dizer qualquer outra coisa que
tirasse minha paciência e minha paz interior, falei de supetão e abri
a porta do carro.
— Vai ter resultado. Tchau — por fim, saí sem ao menos
olhar para trás, antes que ele pudesse citar algo pior: a empresa.
No entanto, não consegui dar três passos até ouvir a buzina
de carro chamando minha atenção. Ah não, o que ele queria dessa
vez? Virei-me quase sem paciência, porque tudo o que eu mais
desejava era entrar no ônibus (que por sinal já estava lá), e vi
quando acenou com a mão para que eu me aproximasse.
Contra a minha vontade, o que era algo comum de acontecer,
aproximei-me, quando, enfim, ouvi sua voz falar seis palavras que
eu não via sair de sua boca desde a infância:
— Só quero te desejar bom um jogo — e sorriu.
Mesmo sem querer, não pude deixar de ficar surpreso,
porque há muitos anos isso não acontecia. Então, somente fui
capaz de responder brevemente:
— Obrigado — e, ainda um pouco afetado com isso, tornei a
caminhar, de certa forma pensativo, até o ônibus onde a
organização do time já se encontrava.
Talvez eu não devesse refletir muito sobre o que tinha
acontecido, já que, sempre que ele fazia algo de bom, era porque
tinha segundas intenções. Talvez me desejou boa sorte, porque
visava no meu bom desempenho a porta para o curso de
engenharia civil que eu nem queria fazer.
Assim, esquecendo-me disso, aproximei-me de onde o
ônibus estava. Como eu tinha o hábito de chegar com uma boa
antecedência, pude perceber que poucos jogadores tinham
chegado, lá estavam somente o técnico e os seus assistentes.
— Bom dia, Sr. Jones — falei ao tocar em seu ombro. — Bom
dia a todos — e mirei minhas vistas nos demais que se encontravam
ali por perto, recebendo de volta os cumprimentos.
— Bom dia, Eric — Respondeu, dando leves batidinhas em
meu ombro com seu jeito sempre austero, mas, que no fundo, não
escondia a boa pessoa que era. — Pode entrar no ônibus e escolher
um lugar para se sentar. Partimos dentro de meia hora, quando os
demais já tiverem chegado. Como sua mochila não é muito grande,
pode levar no colo, não precisa colocar no bagageiro.
Assenti brevemente com a cabeça para as orientações e,
assim, o fiz. De modo displicente, natural e até relaxado, caminhei
até a porta do ônibus, subi a pequena escadinha e, então, quando
entrei... Paralisado talvez ainda não fosse uma palavra que
descrevesse adequadamente a maneira como fiquei. Talvez
extasiado e admirado chegassem mais próximo ao que senti.
Ele estava lá, sentado sozinho, com o ônibus praticamente
vazio, em uma poltrona próxima ao fim do corredor, não exatamente
no fim, mas, ainda assim, distante da porta. Seus olhos miravam
para a parte de fora através da janela, enquanto ouvia uma música
pelos fones. Absorto, não percebeu quando entrei, mas eu o admirei
por alguns segundos. Parecia pensativo, longe e distante de onde
estávamos, viajando em meio a pensamentos.
E, então, uma dúvida me veio: será que eu deveria ir até lá?
Se eu fosse, ele iria gostar ou odiar? Eu sabia que ele havia dito que
queria conversar, mas eu não iria forçar esse diálogo, eu iria deixá-
lo livre para falar quando bem quisesse. No entanto, antes que
pudesse concluir qualquer coisa em pensamento, como se
adivinhasse que eu estava ali na entrada, volveu seu olhar para
mim. Seria um exagero se eu dissesse que seus profundos olhos
azuis me fizeram arrepiar do dedinho do pé até o último fio de
cabelo?
Não, não seria, porque foi exatamente isso o que aconteceu.
Como se pudesse entrar meu corpo e observar a minha alma, ele
me olhou, pela primeira vez desde a nossa discussão. Não fazia
muito tempo, desde que tínhamos nos visto pessoalmente pela
última, mas, para mim, parecia uma eternidade, já que tudo o que
eu menos queria era me desentender com ele, principalmente
quando se tratava da nossa vida íntima como um casal.
Assim, com o seu olhar sobre mim, foi impossível não
esquecer de todos os questionamentos, de todos os receios, e
seguir em sua direção. Definitivamente, não queria ser invasivo
demais, mas ele me hipnotizava, especialmente se eu levasse em
consideração a falta e a saudade que eu sentia de tê-lo por perto,
assim como estávamos em minha cama antes de tudo acontecer.
Enquanto aproximava-me dele, seu semblante, a despeito do
meu que não escondia a ansiedade e a admiração, continuava
impassível, indiferente e apático. Por que ele tinha que ser assim?
Isso fazia-me lembrar do tal ditado “tudo o que vem fácil, vai fácil”, e,
se tinha algo que o Liam era, esse algo era ser difícil.
Quando parei ao lado de sua poltrona, pude perceber que,
aquela que se encontrava vazia ao seu lado, estava com a sua
mochila. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, seus olhos
encararam-me de cima a baixo, tão profundos e tentadores como
jamais estiveram. No entanto, nem mesmo seu semblante apático
ou meu receio de avançar algumas casas daquele jogo, fizeram-me
calar.
— Bom dia — tentei iniciar algum diálogo, na esperança de
ouvir alguma mísera palavra sua, seu tom de voz, qualquer coisa
que fosse.
Então, encarando-me mais uma vez, por alguns segundos,
retirou devagar os fones de ouvido, matando-me de ansiedade e...
— Oi.
Eu sabia que tentar algum diálogo com ele, nas
circunstâncias em que estávamos, era como pisar em ovos ou como
avançar as casas de um jogo sem atentar para as regras. E o meu
medo era avançar novamente como havia feito no dia anterior,
porque lidar com o Liam era quase como cuidar de uma bomba
prestes a explodir. No entanto, as palavras queriam saltar de minha
boca, assim como a ousadia, que já era de minha natureza, não
parava quieta dentro de mim.
— Será que eu posso sentar aqui? — e avancei, mas com
cuidado, utilizando-me do meu melhor tom de voz calmo. Ousadia
era meu nome do meio, tendo em vista tantas e tantas vezes pelas
quais eu já havia o provocado, fosse no meu quarto, no vestiário,
nos treinos, nas aulas, mas, naquele momento, tentei ser o mais
cauteloso possível.
Eu já esperava por um não ou algum esporro ou qualquer
mínimo sinal de que eu deveria me afastar dali. No entanto, apesar
do seu semblante que nada me dizia e de ter me encarado por mais
alguns segundos, me surpreendeu, mais uma vez, ao levar suas
mãos à sua mochila, mesmo que sem dar uma palavra, e colocá-la
no chão, entre suas pernas, liberando espaço para que eu pudesse
me sentar na poltrona ao seu lado.
Meu Deus, isso estava acontecendo mesmo? Não pude
esconder minhas feições admiradas, muito menos o sorriso sutil e
bobo que queria se desenhar em meu rosto. Eu era bobo por ele e
me tornava mais bobo ainda quando ele fazia algo que não
esperava. Em outros tempos, ele, com certeza, iria me expulsar dali,
assim como me diria para me sentar o mais distante possível.
No entanto, ele não fez isso. Muito pelo contrário, apesar do
que tinha acontecido no dia anterior (situação pela qual eu achei
que nunca mais olharia em minha cara), abriu espaço para eu ficar
ao seu lado, próximo a ele durante toda a viagem. Isso não era uma
maravilha? Eu não queria criar esperanças de que a tal conversa
tivesse um final feliz, mas essa atitude me encheu de alegria.
Erroneamente ou não, interpretei isso como um sinal verde,
pois imaginei que, já que estava permitindo que eu ficasse próximo
a ele, talvez estivesse me dizendo nas entrelinhas que eu poderia
ficar à vontade para falar, até porque, se ele não quisesse ouvir
minha voz, teria me enxotado dali, o que felizmente não aconteceu.
— Como você tá? — perguntei, porque, primeiro, queria
muito ouvir mais um pouco de sua voz e, segundo, estava realmente
preocupado com o jeito que ele tinha deixado minha casa no dia
anterior, mesmo que a Stefany tivesse me dito que ele estava bem.
— Bem — Sem olhar em meus olhos, respondeu de modo
contido, como nunca tinha visto, nem ouvido. Será que ele estava
bem mesmo ou só disse isso para não entrar em detalhes de como
se sentia? — E você?
Okay, ele também queria saber como eu estava. Será que eu
já podia pular de felicidade ou só mais tarde? Quando alguém
perguntava como o outro estava, era um mínimo sinal de que se
importava. E, bem, ele estava se importando comigo.
— Tô bem também. — Na verdade, somente com aquelas
poucas palavras, eu já me sentia ótimo e revigorado. — Você
dormiu bem?
Questionei, porque queria saber se, assim como eu, ele tinha
rolado pela cama por um bom tempo ou dormido como um anjinho.
Eu preferia que ele me dissesse que tinha dormido como um
anjinho, porque me sentiria mal em saber que teve dificuldade.
Então, mesmo notando que hesitou um pouco em responder a tal a
pergunta, falou como se lesse meus pensamentos.
— Sim.
Era um homem de poucas palavras quando queria, mas,
apesar dos pesares, eu já estava adorando ouvir mesmo que um
pouquinho da sua voz. No entanto, quando pensei em perguntar
outra coisa, um serzinho um tanto quanto impertinente, inoportuno e
espaçoso surgiu.
— E aí, Liam! — era o Robert, aproximando-se de nós e
atrapalhando o meu precioso momento. — E aí... — olhou para
mim, como quem pouco se importava, e logo se voltou novamente
para o Liam. — Vamos lá pra frente, cara, a galera tá toda lá! O
William, o Gregory, o Adam, só gente boa.
— Lá pra frente? — Liam questionou um pouco sem jeito,
olhando-me pelo cantinho do olho. — E-Eu não sei... — balançou a
cabeça em negativo. — Prefiro ficar aqui atrás mesmo. É mais
calmo e... — Ainda tentou prosseguir. No entanto, Robert o
interrompeu.
— Calmo? — Por pouco não deu uma risada irônica. —
Desde quando o Liam Wyman Tremblay Terceiro, capitão e artilheiro
do time, gosta de calmaria? — e, então, quando se calou, seus
olhos caíram sobre mim, desconfiados da maneira como eu já
estava acostumado.
— É... Eu tô passando a gostar — replicou com um tom de
quem queria encerrar o assunto. Eu não podia acreditar que ele
estava trocando a proposta de ficar com a galera lá na frente, para
estar comigo, ao meu lado, durante a viagem. O Liam de tempos
atrás não faria isso.
E, então, antes que Robert pudesse falar qualquer outra
coisa, a voz do Sr. Jones soou por todo o interior do ônibus, até
chegar aos nossos ouvidos.
— Robert! Sente-se, porque nós vamos partir agora e eu não
quero ver ninguém em pé enquanto o ônibus estiver em trânsito.
Somente em casos de ir ao banheiro.
Assim, encarando-nos com um rosto totalmente desconfiado
e, até mesmo, um pouco revoltado, deu as costas e caminhou até
sua poltrona, que ficava bem distante de nós. Quando finalmente
nos vimos sozinhos nas duas poltronas e o ônibus começou a se
movimentar, Liam olhou-me de um jeito bem mais ameno e bem
menos impassível.
Pude notar, mesmo que sutilmente, seus olhos recaindo
sobre a minha boca por alguns poucos segundos. Alguns preciosos
poucos segundos. Isso já era demais para mim: primeiro, tirou a
mochila para que eu pudesse me sentar ao seu lado. Segundo,
trocou algumas palavrinhas comigo. Terceiro, preferiu ficar comigo
durante a viagem. Na verdade, não era demais, poderia vir ainda
mais que eu não iria reclamar!
Embora eu não devesse criar esperanças, não pude conter a
felicidade. Então, quando todos já estavam quietos e sentados em
seus devidos lugares, observei em volta, para ter a certeza de que
ninguém estava nos olhando, coloquei minha mochila sobre minhas
pernas, como uma espécie de bloqueio, e deslizei minha mão pelo
seu braço até chegar à sua.
Meu Deus, meu coração parecia que iria sair pela boca em
uma mistura de alegria e receio que eu estava sentindo. Alegria pelo
pouco que havia acontecido minutos atrás e receio pela atitude
invasiva que eu estava tomando. E se ele achasse ruim? E se
piorasse a situação entre nós? Eu estava correndo um tremendo
risco de colocar tudo por água abaixo mais uma vez. Mas, estava
disposto a arcar com as responsabilidades, porque simplesmente
não podia me conter.
Entrelacei meus dedos nos seus, segurando sua mão, na
verdade, deixando nossas mãos unidas, como elas sempre
deveriam estar. Tentei aproveitar por míseros segundos a sensação
de sentir a sua pele na minha e a loucura que aquilo estava sendo,
porque, bem, ele era podia ser uma bomba prestes a explodir e eu
poderia estar sendo invasivo e descuidado demais, já que Liam era
todo preocupado com o que os outros pensavam.
Então, em questão de pouco tempo, antes que pudesse me
prolongar muito naquele toque e que ele brigasse comigo por tal ato,
decidi soltar sua mão. No entanto, quando fiz menção de retirá-la,
para minha surpresa, ele a segurou. Céus, ele a segurou! Impediu-
me de soltá-lo, continuando, assim, com nossos dedos entrelaçados
e sua mão junto à minha. Meus olhos se arregalaram com sua
atitude, fazendo-me ter a completa certeza de que ele era uma
caixinha de surpresas.
E, como se não bastasse, enquanto seus olhos miravam para
as ruas nas quais o ônibus percorria, seu polegar desceu e subiu
por uma parte da minha mão unida à sua, em um vai e vem, em um
carinho seu que eu nunca havia recebido. Bobo e extasiado, baixei
minhas vistas para essa cena, pois queria fixar na minha memória
as nossas mãos juntas e o seu polegar fazendo carinho.
Criar esperanças era como assinar uma sentença de morte,
pois, quanto mais alto eu sonhasse, maior poderia ser a queda, mas
tudo que o estava acontecendo ali excedia todas as minhas
expectativas. Eu não sabia o que ele queria me falar sobre o
episódio do dia anterior, mas, independentemente do que fosse,
com o seu toque, eu tive a certeza de que estávamos bem. Bem um
com o outro.
Custa nada tentar

Eric

— Passa a bola para o William, Eric! William! — o técnico gritava


por mim, lá do banco, nos últimos minutos do jogo das quartas de
final. A noite já tinha caído e os eram momentos decisivos da
partida, quando o placar estava de dois a um para o nosso time.
Precisávamos manter essa pontuação, do contrário, se
deixássemos o time de Oxford empatar, o jogo iria para prorrogação
ou até para os pênaltis. E, bem, nós não queríamos isso.
William era o lateral do time, enquanto eu era zagueiro. Havia
tirado a bola do pé do adversário e, por isso, o Sr. Jones, atordoado,
gritava aos quatro ventos para que eu chutasse para ele, e ele para
o atacante do time, no caso o Liam. Liam... Era maravilhoso admirá-
lo jogando e correndo pelo campo, principalmente quando eu me
lembrava que ele tinha ficado ao meu lado durante o caminho
inteiro.
Permanecemos de mãos dadas sempre que alguém não
passava pelo corredor, indo em direção ao banheiro que ficava
próximo às nossas poltronas. Claro que quando alguém surgia, ele
soltava a minha mão, mas, logo depois, voltava a segurar. Era
nosso momento de intimidade. Se eu estava nas nuvens? Eu estava
além das nuvens. Talvez flutuando ou em uma outra dimensão.
Não, eu não estava criando esperanças. Okay, talvez um
pouco. Na verdade, talvez um pouco muito. Ah, que seja! Poxa, nós
tínhamos nos desentendidos no dia anterior e ele estava ali, de
mãos dadas comigo. Somente se eu fosse muito insensível para
não ficar alegre com essa pequena demonstração de que,
aparentemente, estava tudo bem.
Trocamos poucas palavras e, na maior parte do tempo,
ficamos em silêncio, mas apenas por tê-lo ao meu lado, segurando
a minha mão, eu já me dava por satisfeito. Em nenhum momento fiz
menção de tocar naquele assunto, pois queria que ele se sentisse à
vontade para falar quando bem entendesse. Além do mais, eu tinha
certeza de que não era uma boa hora enquanto estivéssemos na
companhia de outras pessoas.
O Eric provocante e ousado, que adorava se aproximar do
Liam para fazê-lo cair em tentação, ficou guardadinho em algum
lugar dentro de mim, para ser usado somente na situação certa e
apropriada. Por mais vontade que eu tivesse de beijá-lo ou de fazer
algo além, paciência era a qualidade da vez. Esperar pelo tempo
dele de falar e, principalmente, de se aceitar.
Assim, saímos normalmente do ônibus e, quando entramos
no hotel, o Sr. Jones logo fez o sorteio da divisão dos quartos.
Infelizmente, não demos a sorte de ficar no mesmo, pois eu adoraria
passar mais um tempinho com ele. No entanto, o que aconteceu foi
totalmente o contrário, eu dei o azar de cair naquele em que o
William ficaria, para minha completa infelicidade.
— Sigam para os seus quartos — gesticulou com uma das
mãos. — Podem se instalar, tomar banho, descansar um pouco da
viagem. Daqui a quarenta minutos chamaremos para o almoço — e
finalizou as instruções após o sorteio.
Antes de seguir para o quarto, ainda dei um último olhar em
silêncio para o Liam, que meneou brevemente a cabeça para mim,
como se estivesse dando um breve “tchauzinho”. Observei enquanto
dava as costas para caminhar na companhia de um cara do time e,
então, quando virei meu rosto para o lado, lá estava ele: William me
dando o mesmo semblante desconfiado que o Robert costumava
me oferecer.
— Você pegou a chave? — perguntei, tentando disfarçar,
embora eu tivesse entendido que ele havia notado a troca de
olhares que aconteceu entre mim e o Liam, segundos atrás. Eu
tinha completa aversão a essas expressões intrigadas que os
amigos dele nos davam, mas nada podia fazer. Pelo menos não por
enquanto. Não enquanto o Liam não estivesse à vontade para
admitir o que realmente existia ente nós.
— Peguei — respondeu curto e seco ao me dar as costas e
seguir à minha frente para o quarto. Apenas o acompanhei alguns
passos atrás, mas, mesmo não vendo seu rosto, podia jurar que
estava sério e apático. Eu sabia que tinha a ver com a aproximação,
cada vez maior, entre mim e seu amigo. Isso me enchia tanto a
paciência, que eu seria capaz de mandar todos se ferrarem. Mas,
ainda não podia fazer isso.
Portanto, apenas caminhei em silêncio e permaneci da
mesma forma até entrar no quarto, pois não fazia questão alguma
de trocar palavras com ele, por mais que eu tentasse ao máximo
fingir que estava tudo normal. No entanto, como se eu pudesse
adivinhar que alguma bobagem fosse sair de sua boca, mesmo
calado como eu estava, ele falou.
E não esperou nem que nos instalássemos direito, não fez ao
menos cerimônia alguma para perguntar, nem buscou por palavras
eufêmicas para aliviar o questionamento que faria. Assim, como
Robert agia, foi curto e seco, enquanto eu colocava minha mochila
sobre uma das camas:
— Você e o Liam estão bastante próximos, não é?
Que tipo de pergunta era, afinal? Na verdade, por que eles
insistiam em se meter assim no que acontecia entre mim e o Liam?
Eu realmente não gostava de ficar dando satisfação para quem quer
que fosse, especialmente se esse alguém fosse preconceituoso
como eu sabia que ele era, mas, se dependesse somente de mim,
eu já teria falado com todas as letras o que, de fato, estava
acontecendo.
No entanto, não dependia somente de mim, por isso,
tentando passar naturalidade e me contendo para dizer aquilo que
não devia, virei-me em sua direção e lhe dei minha melhor cara de
paisagem.
— Não acha que isso é bom? Fazemos parte do mesmo time
e estamos aprendendo a conviver em paz — disse. Talvez a parte
“fazemos parte do mesmo time” soasse com um pouco de duplo
sentido, mas isso não vinha ao caso.
Nenhuma resposta em retorno me foi dada, William apenas
me ofereceu seu olhar desconfiado de sempre e ficou calado, assim
como fez durante todo o resto do dia e assim como estava fazendo
naquele exato instante do jogo em que esperava para que eu
passasse a bola para ele. Robert e William que me receberam de
certa forma bem, quando cheguei ao time, não eram mais os
mesmos.
— Passa a logo a porra dessa bola, Eric! — impaciente,
falou, enquanto o técnico ainda gritava lá do banco. Talvez eu
tivesse passado alguns segundinhos preciosos relembrando o que
tinha acontecido durante o dia. Mas, era hora de agir, faltavam
apenas alguns minutos para o final do jogo e precisávamos manter
o placar. Não podíamos deixar que o time do Colégio Oxford
empatasse.
No entanto, no momento em que fui chutar a bola, um
integrante do time adversário apareceu de surpresa para tirá-la do
meu pé. Ainda tentei reagir e puxá-la para mim, mas o infeliz foi
mais rápido que eu e logo a passou para outro jogador que estava
ainda mais distante. William, que já não me oferecia a melhor das
expressões, me fuzilou com os olhos por ter perdido a bola.
E, então, para completar os momentos de tensão, faltando
apenas uns dois minutos para o jogo acabar, a defesa do time de
Oxford, que tirou a bola do meu pé, trabalhou com o ataque e a
levou para a grande área, quase de frente para o gol. O mundo ficou
em câmera lenta e todos as respirações dos jogadores do meu time,
inclusive a minha, paralisaram, quando o atacante chutou em
direção à nossa trave.
Aqueles eram os minutos finais e eles não podiam empatar.
Não podiam. A bola viajou fazendo uma pequena curva no ar,
acompanhada do olhar de todos do estádio. Com um pulo, Robert, o
nosso goleiro, esticou a mão e a ponta, somente a ponta dos dedos,
tocou a bola, impedindo-a de entrar. O universo, que estava
passando lentamente, de repente voltou a normal com os torcedores
do Colégio Regent indo a loucura com a defesa.
No segundo seguinte, o juiz apitou, indicando o fim do jogo e
a vitória do nosso time. Estávamos na semifinal! Semifinal, meu
Deus do céu! Os jogadores que estavam no banco reserva correram
em nossa direção para comemorar, assim como o técnico e os seus
assistentes. Uma verdadeira festa. Cara, era muito surreal e
engraçado ver o Sr. Jones correndo pelo campo igual a um
adolescente.
Virei para o lado no exato instante em que alguns caras
pularam em mim feito loucos, eles estavam eufóricos, assim como
eu também. Abracei e comemorei com os todos que estavam por
perto e, quando mirei minhas vistas um pouco mais frente, vi ele,
sorrindo feito criança e conversando de maneira entusiasmada. Era
tão maravilhoso vê-lo desse jeito. Seu olhar displicente caiu sobre
mim e parou, desviando sua atenção de quem estava trocando uma
ideia com ele.
Eu deveria me aproximar? Deveria cumprimenta-lo pelo fim
do jogo? Bom, seu olhar não era de repulsa. E não deveria ser,
afinal, se eu levasse em consideração a viagem, ele não parecia
querer ficar longe de mim. Então, enquanto eu fazia todas essas
considerações mentalmente, notei o cara tocando em seu ombro,
em um claro gesto de que estava se despedindo para ir falar com os
outros.
Não pensei por mais tempo, pois aquele era o meu momento.
Liam finalmente ficou sozinho e eu tinha de aproveitar antes que
outra pessoa chegasse. Assim, guardando qualquer receio do bolso,
por correr o risco de estar avançando algumas casas, me apressei
para me aproximar dele. Enquanto caminhava, podia perceber que
seu olhar ainda estava sobre mim, por isso não o peguei de
surpresa, assim como não recebi nenhum semblante de rejeição
pelo que estava fazendo.
— Grande jogo... — tomei a liberdade de falar, apesar de
tudo. Eu não sabia bem o que dizer, só queria aproveitar a
oportunidade para trocar algumas míseras palavras com ele. E
pedia aos céus para que ele não encarasse isso de uma maneira
ruim, porque, bem, nós nunca nos cumprimentávamos antes ou
depois das partidas. Quase adversários dentro do próprio time.
— Grande... — encarou-me ligeiro de cima a baixo e falou.
Seu rosto parecia ameno, mesmo eu não sabendo como estava se
sentindo por dentro. Na verdade, eu sabia que estava feliz pelo jogo,
mas seus sentimentos com relação a mim ainda eram uma
incógnita. — Mas sofrido — e finalizou com uma voz comedida.
Sofrido...
— É... — assenti brevemente com a cabeça. — Mas você fez
uma boa partida. — O Eric de meses atrás jamais admitiria isso ao
Liam no final de um jogo. — Jogou bem — e ergui meu braço para
um aperto de mãos. Não consegui me conter, pois estar próximo a
ele me deixava inquieto ao ponto de tentar fazer qualquer coisa para
sentir seu toque.
Seu olhar baixou até a minha mão e a encarou por alguns
poucos segundos. Eu não fazia ideia do que podia estar se
passando pela sua cabeça, mas, enfim, a apertou. Consegui sentir a
sua pele, assim como havia sentido durante o caminho. Era lisa,
macia, perfeita. Na verdade, não existia nada nele que eu não fosse
perfeito. Não existia nada nele que não caísse bem.
E, então, quando fez menção para soltá-la, agi da maneira
mais improvável possível, correndo o risco de estragar tudo, e
puxei-o gentilmente para um abraço. Meu Deus, eu estava louco ou
o quê? Sim, eu só podia estar louco por querer um abraço dele na
frente todos, já que nunca fazíamos isso. Mas, arrisquei. Arrisquei
feio, pois não sabia como ele reagiria.
Nossos corpos foram de encontro um ao outro, deslizei
minhas mãos sobre uma pequena área das suas costas e senti o
momento em que ele travou. Deus, ele travou. Com certeza, eu
tinha feito besteira. Uma grande besteira! Suas mãos nem ao menos
retribuíram o abraço e eu estava o segurando como um completo
idiota. Era hora de parar com isso. Eu não queria nem ver a cara
que ele provavelmente devia estar fazendo.
No entanto, quando indiquei que iria soltá-lo, suas mãos um
pouco desajeitadas subiram pelas minhas costas, fazendo-me parar
no mesmo instante. Ele tinha retribuído o abraço? Sim, tinha. Nos
instantes iniciais ele não parecia estar confortável, mas, pouco
tempo depois, foi como se nos encaixássemos perfeitamente.
Diferente da maneira como eu e ele abraçávamos os outros em
questão de segundos, esse demorou.
Demorou, porque eu queria aproveitar cada segundinho, e,
mesmo que estivéssemos cercados de pessoas, eu pouco me
importava. Liam também não parecia muito disposto a me soltar. Um
abraço que parecia passar rápido e lento ao mesmo tempo.
Contudo...
— E aí, Liam! — Seu ombro foi puxado, fazendo com que nós
dois nos separássemos.
Olhei para a infeliz pessoa que atrapalhou o meu milagroso
momento e vi ninguém mais, ninguém menos, que o Robert. Ah,
não. Só podia ser. Como goleiro era ótimo, mas como pessoa era
melhor nem comentar. Será que ele não tinha uma hora melhor para
aparecer? Não, claro que não. Provavelmente devia ter feito isso de
propósito.
— Cara, seguinte, dessa vez a gente vai pedir permissão ao
técnico pra ir ao pub — o ouvi falar, dando um leve olhar de
reprovação para mim, porque com certeza devia ter lembrado que
da última vez eu os levei sem pedir ao Sr. Jones. — Não é possível
que ele não deixe. Comemoração do jogo. Vamos, né? Vamos! — e
passou um dos braços pelo ombro do Liam, sem nem esperar por
uma resposta, levando-o para bem longe de mim.

❖❖❖

As luzes em tons variados de amarelo, azul, vermelho e


verde logo vieram aos meus olhos assim que entramos. As pessoas
bonitas de Oxford, o local climatizado, a música boa, o balcão de
bebidas e a pista de dança lotada ainda eram os mesmos.
Tínhamos ido para o mesmo pub onde fomos no dia da cerimônia
de abertura dos jogos, afinal ficava perto do hotel ontem estávamos
hospedados.
Até então, eu não sabia como o Sr. Jones permitiu que o time
saísse para comemorar a vitória no pub. Talvez ele estivesse muito
alegre por termos conseguido chegar à semifinal, porque concordar
com isso era um verdadeiro milagre. De toda forma, ele deu a
ordem de que não deveríamos exagerar na bebida, para não termos
ressaca, ou sofreríamos sérias consequências.
Então, precisávamos manter o máximo de sobriedade ou ele
nos veria em péssimo estado na manhã seguinte, antes de
pegarmos o ônibus e voltarmos para casa. Eu não sabia dos outros,
mas, por mim, isso não era um problema. Não estava a fim de beber
mesmo e só decidi ir porque não queria ser o único do contra.
Ultimamente minha cabeça não funcionava mais em prol de festas e
bebidas como antigamente.
Na verdade, a ideia inicial foi do Robert, mas ele não me
convidou diretamente para ir. O que acontecia era meio automático:
se o time ia, isso incluía a mim também, mesmo que ele não
quisesse. E eu sabia que ele não queria. Era um pouco cômico de
pensar que, quando eu cheguei ao time, ele e o William foram tão
receptivos. Isso não acontecia mais. Eles pareciam outras pessoas.
Eu não precisava pensar muito para chegar à conclusão do
motivo. O motivo estava especificamente andando alguns metros à
minha frente, com o Robert do lado direito e o William do lado
esquerdo, seus fiéis escudeiros. Enquanto isso, eu caminhava um
pouco mais atrás na companhia do Adam e de outros caras do time.
Os três mosqueteiros logo seguiram para o balcão de
bebidas, enquanto eu e alguns outros caras escolhíamos uma
mesa. Torcia em silêncio para que Liam não se excedesse, já que
ele não tinha um bom histórico com álcool, mas estava confiante de
que ele não faria nada demais. Curiosamente, de uns tempos para
cá, ele parecia mais maduro.
Ao fundo tocava uma música eletrônica, com algumas
pessoas dançando ali por perto, e, mesmo que eu não estivesse
interessado, pude notar olhares furtivos de algumas garotas para
mim. Infelizmente, por mais bonitas e atraentes que fossem, meus
desejos não estavam direcionados a elas. Com o passar do tempo e
depois de viver tantas coisas nos últimos meses, estava inclinado a
me considerar como bissexual.
Não que eu tivesse tanta certeza, afinal eu ainda estava em
processo de autoconhecimento, mas sentia que mulheres ainda me
atraíam, apesar de estar gostando de um homem. Assim como,
apesar de ainda me sentir atraído por mulheres, eu sentia o mesmo
por homens. Na verdade, um homem em específico, pelo menos até
aquele momento.
No entanto, não era como se eu fosse ficar com algumas
delas. Não. Claro que não. Eu não estava interessado, porque meu
real objetivo tinha nome e sobrenome, e estava, naquele instante,
no balcão de bebidas, tomando um belo copo de Vodca. Vodca...
Isso era a cara dele, enquanto eu preferia Uísque, porque sempre
achei que tivesse um gosto melhor. Não combinávamos nem nos
gostos das bebidas. Sermos opostos era a melhor parte de tudo.
— Grande Eric, não vai pegar alguma bebida? — Adam, que
estava sentado ao meu lado, tocou em meu ombro e me fez a
pergunta, falando relativamente alto, por conta da música que
tocava. — Se quiser, eu pego uma pra ti.
— Ah, cara, valeu. — Respondi. — Mas, não precisa. Eu ‘tô
bem assim mesmo, vou beber hoje não. — Por mais que eu
gostasse de sentir o sabor do Uísque, não iria beber. Não naquela
noite, até porque nem vontade de realmente estar ali eu tinha.
— Qual é, irmão? Cadê o Eric que eu conheço lá do Colégio
Liverpool e que adora beber? — Sorriu brincalhão para mim. — Fica
aí com essa cerveja, que eu vou pegar outra pra mim — empurrou a
latinha em minha direção. — Aproveita pra curtir, porque tem gente
que já tá fazendo isso — e saiu, apontando brevemente com a
cabeça para o balcão de bebidas.
Quando mirei minhas vistas na direção para onde ele
apontou, lá estavam eles e... Elas. Liam, Robert e William, todos os
três com uma menina diferente. Eles não perdiam tempo mesmo.
Robert e William já beijavam as que estavam com eles, mas o
Liam... Liam parecia desconfortável. A garota se insinuava, olhava-o
de maneira sedutora, tentava conversar próximo ao seu rosto,
passava a mão sobre o seu peito, mas ele não dava muita atenção.
De repente, seu olhar cruzou-se com o meu. Dizia tanto e ao
mesmo tempo nada. Parecia pedir para que eu o salvasse daquela
situação, ao mesmo tempo em que me fazia pensar que isso era
apenas coisa da minha imaginação. Então, por mais que eu visse
que ele não estava correspondendo a ela, virei meu rosto,
desviando meu o olhar, totalmente indisposto a continuar
observando aquilo que era para eu estar fazendo no lugar dela.
Baixei meu rosto e tirei o celular do bolso, já que eu não
estava a fim de dançar, beber, e muito menos ver uma mulher
tentando ficar com o Liam. Para tentar me distrair e fazer o tempo
passar, fui abrindo aleatoriamente os aplicativos, até que parei no
Facebook. Rolei o feed de notícias, mas algo ali me chamou
atenção: a solicitação de amizade não respondida daquela uma
garota, que não conhecia, ainda marcava as notificações.
Como não tinha nada melhor para fazer, decidi inspecionar
novamente seu Facebook. Talvez eu a conhecesse, mas não me
recordasse. Abri o perfil da ruiva e encontrei suas fotos. Fotos
sozinha, fotos com os amigos, fotos com a família. Família... Cliquei
em uma das fotos com seus, aparentemente, pais, para olhar com
mais calma o que eu havia visto pela manhã. E, então, após
segundos observando aqueles rostos, algo me surgiu à cabeça: eu
sentia que os conhecia de algum lugar. Mas, de onde? Que família
era essa? Quem era menina?
Ruiva e bonita, se já tivesse a visto pessoalmente, com
certeza lembraria do seu rosto. Será que ela... E, antes que eu
pudesse concluir meus pensamentos, notei quando alguém passou
ao meu lado, esbarrando levemente em meu braço. Virei meu rosto
e, quando olhei para os lados, vi que foi o Liam já dobrando em
direção à porta de saída do pub.
Franzi meu cenho, confuso, e logo me desliguei das fotos que
estava olhando. O que tinha acontecido, afinal? O Liam já foi
embora para o hotel? E não esperou seus amigos? No entanto,
antes que mais questionamentos pudessem aparecer em minha
mente, o meu celular vibrou, indicando que havia chegado uma
mensagem. Desbloqueei a tela e...
“Me encontra nos fundos do pub, mas disfarça. Demora mais um
pouco aí e vem me encontrar.”
Era uma mensagem dele. Meu coração chegou a acelerar por
saber que ele queria me encontrar e que tinha largado os outros, até
a garota. Quis sair o mais rápido possível dali, mas me contive. Me
contive, porque ele pediu para que eu disfarçasse e eu não queria
estragar isso. Será que aquela noite no pub iria terminar de um jeito
que não imaginava?
Cinco, dez, quinze minutos se passaram e eu não sabia se
era o tempo adequado, assim como não queria que os outros
percebessem que eu iria sair dali. No entanto, quando menos
esperei, os caras que estavam comigo na mesa se levantaram e...
— Ei, cara, vamos pra pista de dança? Muito parado aqui e tá
cheio de gatinha ali.
— A-ah, é... — pigarreei a garganta para soltar a mentira e
falei. — Vão na minha frente, eu chego daqui a pouco lá — sorri de
modo convincente, até que todos se entreolharam e deram de
ombros, seguindo para a pista de dança e me deixando sozinho ali.
Aquele finalmente era o meu momento. Eu estava tão ansioso para
vê-lo e conversar com ele.
Ainda esperei mais alguns minutinhos, depois de ficar a sós,
e, quando me senti totalmente seguro, levantei-me da cadeira,
olhando disfarçadamente para os lados, e caminhei em direção à
porta de saída, pedindo aos céus para que nenhum cara do time
tivesse me visto, nem notado a minha ausência. Caminhei
praticamente com pés de plumas para que ninguém reparasse em
mim e saí do pub.
Do lado de fora, olhei para os dois lados e não havia sinal
algum dele. Bom, na mensagem ele havia dito onde queria me
encontrar e, definitivamente, não seria ali na entrada do local em
que várias pessoas estavam. Ajeitando meu casaco para me
proteger do clima gelado daquela noite de Oxford, caminhei pelas
calçadas, indo em direção ao lugar que eu imaginava que ele
estivesse.
Não demorei muito até chegar aos fundos do pub, uma parte
costumeiramente vazia e deserta. Somente o som de alguns poucos
carros passando em uma rua próxima era possível ouvir, de resto
tudo estava silencioso.
O local ainda estava do mesmo jeitinho como na primeira
vez, assim como a noite fria e o vento fresco traziam lembranças de
um passado não muito distante. A diferença era que meses atrás
nos víamos como dois inimigos e agora nos enxergávamos como
dois cúmplices.
Foi impossível não lembrar daquele dia, dos seguranças nos
jogando para fora da festa, da nossa briga e... Dos seus lábios nos
meus. Estava sentindo tanta falta de beijá-lo, que me arrisquei a
dizer algo que não sabia se deveria. As palavras apenas saíram da
minha boca.
— Foi aqui onde a gente se beijou pela primeira vez —
finalmente quebrei o silêncio. — Lembra? — Não era possível que já
tivesse esquecido. Tudo bem que, depois do ocorrido, ele passou
um tempão fingindo não lembrar. Mas, não lembrar disso era quase
impossível.
Liam, que até então não havia me visto ainda e que estava
com seu rosto voltado para o céu, desviou seu olhar das estrelas,
virou-se lentamente para mim e me encarou. Aqueles olhos azuis
que eu tanto venerava estavam voltados para mim e, melhor, eles
me queriam ali.
— Não foi um beijo — balançou brevemente a cabeça em
negativo. — Foi um selinho e você me empurrou quando eu quis
mais — Um pequeno sorriso ameaçou surgir em seus lábios. Ah, ele
estava relaxado... Isso, consequentemente, me deixava tranquilo.
— Claro — repliquei, não me contendo em soltar uma
pequena risadinha pelo meu nariz. — Você me pegou de surpresa.
Eu não podia imaginar que Liam Tremblay Terceiro fosse me
encostar a uma parede e me dar um beijo — sorri. — Mas... —
suspirei e diminuí um pouco o tom de voz. — Eu gostei e... — Não
podia acreditar que isso sairia da minha boca. — Para compensar a
minha falta, eu deixo que me beije do jeito certo agora.
E saiu. Droga, eu deveria me controlar! Por que que, sempre
quando estava com o Liam, eu levava os assuntos para caminhos
impróprios? O Eric provocativo precisava se esconder por algum por
tempo ou, mais uma vez, eu acabaria estragando tudo! Com certeza
ele não devia ter gostado de ouvir isso, quando provavelmente e
claramente queria apenas conversar.
Ah, eu era um mané mesmo! Não deveria ter dito isso!
Passei as mãos no rosto e fechei os olhos, repreendendo a
mim mesmo pela liberdade que eu tomei. Eu sempre falava o que
não devia, na hora que não podia. Eric bobo, Eric imbecil, Eric... E,
então, de repente, quando eu ainda estava passando as mãos no
rosto, senti ele se aproximar e segurar meus pulsos, liberando o
meu rosto.
Em questão de segundos, franzi o cenho.
Mas... O que ele ia fa... E, antes que pudesse concluir a
pergunta em pensamento, seus lábios tocaram os meus e sua
língua invadiu a minha. Suas mãos desceram pela minha cintura e
me guiaram até que minhas costas fossem de encontro à parede
mais próxima. Aquela era a repetição do primeiro beijo, mas, dessa
vez, com correspondência e muito mais desejo. Muito mais ânsia.
Se naquele dia eu fui pegue de surpresa, hoje também. Se
naquele dia era ele a tomar a iniciativa, agora também. Se naquele
dia era a língua dele a procurar pela minha, hoje também. Se
naquele dia foi ele quem me encostou à parede, agora também. A
diferença era que, dessa vez, não empurrei, nem me afastei. Para
ser sincero, eu estava no céu. Toda a saudade e o receio de ter
estragado tudo foi por água abaixo ou beijo abaixo.
— Eu senti sua falta, seu otário — disse entre beijos,
enquanto separava nossos lábios, deixando-os a poucos
centímetros um do outro. Sua respiração quente, a despeito do
clima frio, batia contra a pele do meu rosto, me aquecendo. E sua
boca, que já era vermelhinha por natureza, estava ainda mais. Eu
poderia passar o resto da noite a beijando sem me cansar.
— Também senti sua falta, amor — confessei, pouco me
importando se estava sendo brega demais por chamá-lo de “amor”,
como ele costumava dizer. Levei uma das minhas mãos ao seu
rosto, fazendo carinho e subindo para os cabelos. — Desculpa —
pedi com sinceridade. — Desculpa pelo que eu fiz. Eu deveria ter
ido com mais calma. não quero te forçar a nada.
— Não... Não... — balançou a cabeça e colocou gentilmente
alguns dedos frente à minha boca, demonstrando que não queria
que eu continuasse. — Shiu — Ah, lembrei, ele não gostava de
ouvir pedidos de desculpa, nem dar desculpa. Nunca gostou. — Não
precisa falar isso, não precisa pedir desculpa. Eu estava com
medo... Quer dizer... — suspirou e hesitou um pouco antes de
concluir. Claro, Liam não gostava de admitir seus receios. — Eu
ainda estou um pouco. Nunca transei com um homem.
E essa foi a deixa para que eu pudesse falar tudo o que
estava engasgado em minha garganta, desde o momento em que
ele saiu da minha casa. Trocando as posições, assim como
aconteceu em nosso segundo beijo, na varanda do seu quarto,
coloquei-o de costas para a parede, ficando à sua frente. Com a
ponta do meu nariz, fiz um carinho na ponta do seu, seguido de um
pequeno beijo, dessa vez, bem mais calmo.
— Eu quero te dizer algo... — com os dentes, não me contive
em não puxar levemente seu lábio inferior. Ah, aquela boca... Era
minha perdição! — Eu vou esperar o tempo que for preciso e não
quero te forçar a nada. Quero esperar pelo seu tempo. O tempo em
que você se sentir preparado pra fazer. Se você só sentir preparado
daqui a vinte anos, eu vou esperar os vinte anos sem reclamar. Se
você nunca se sentir preparado, eu vou entender, porque o mais
importante é ficar contigo, com ou sem sexo. Certo?
E, por fim, o abracei, permitindo que seu rosto se recostasse
à curva do meu pescoço. Era um encaixe perfeito. Abracei-o e ele
me abraçou de volta, ambos em silêncio, apenas ouvindo o som do
vento que corria sorrateiro naquela noite gelada de Oxford.
Enquanto estava junto ao seu corpo, sentia sua respiração leve e
amena, indicando que aparentemente estava calmo, tranquilo.
Assim permanecemos por alguns minutos, apenas
aproveitando o silêncio da nossa companhia. Nós e mais ninguém.
O local era completamente deserto e, se não fosse os fundos do
pub, poderia ser o paraíso. Eu não acharia ruim se pudesse passar
o resto da vida desse jeito, pois qualquer coisa em que ele estivesse
incluso se tornava interessante. No entanto, de repente, Liam se
mexeu, soltando-me sutilmente e levando seu rosto para frente do
meu.
Encarou-me por alguns segundos, olhando no fundo dos
meus olhos, e...
— Eu quero tentar — Sua voz saiu baixa, quase em um
sussurro, mas determinada em certa medida.
Tentar?
Naquele instante, meu corpo entrou em puro estado de
alerta.
— Tentar o quê? — perguntei um tanto quanto receoso.
— No seu aniversário à noite. Na viagem do final de semana,
eu quero tentar lá... Você sabe o quê... — e um rubor levemente
vermelhinho apareceu nas maçãs do seu rosto. Meu Deus, ele
estava envergonhado e era coisa mais fofa do mundo. Eu não podia
acreditar que veria Liam envergonhado algum dia, assim como não
podia acreditar que ele estava falando isso. Era muito surreal.
— Então, você vai ao meu aniversário e quer... Tentar lá? —
perguntei, incrédulo, porque eram duas coisas que eu jamais
imaginaria que pudessem sair de sua boca. Era a isso que a Stefany
se referia quando disse que o Liam tinha algo para me contar?
Sem me dar uma resposta com palavras, apenas balançou
um sim com a cabeça, fazendo-me pensar se isso era, de fato,
realidade ou se eu estava sonhando. Cara, só podia ser um sonho
maravilhoso e perfeito. Que ninguém me acordasse!
— Você tem certeza disso? — Ainda questionei mais uma
vez, porque, por mais que eu quisesse tentar também, eu queria
que ele estivesse plenamente satisfeito com sua própria decisão.
Como eu disse, não queria forçá-lo a fazer absolutamente nada.
Revirou os olhos brevemente para mim, como já era de seu
costume, sorriu meio de lado e falou:
— Ah, cara, cala essa boca e me beija, tá? — então, avançou
em meus lábios, impedindo-me de fazer qualquer outra coisa, se
não o beijar. E eu poderia passar o resto da vida fazendo isso.
Acabou

Liam

Tentar...
Essa era a palavra da vez e...
Meu Zeus do Céu, eu ia transar com um homem? Ele quem
ia usar aquele troço comigo? E ele quem ia colocar aquele troço em
mim? Meu coração acelerava somente de pensar nisso, mas eu
precisava manter a calma, manter a pose. Estava tudo sob controle,
não estava? Tudo na mais perfeita ordem, tudo como deveria ser,
tudo... Só que não. Eu estava quase fazendo uma novena para a
Santa Vodca do Céu desde aquele momentinho em que eu disse
para ele que queria que acontecesse no final de semana.
Ia acontecer, Thor.
Eu não podia negar que estava com vontade de... Okay, de
experimentar. Sim, esse era o maior fato da minha fabulosa vida de
dezoito anos: curiosamente, eu estava curioso com uma curiosidade
curiosa. Quando eu poderia imaginar que no auge da minha
digníssima heterossexualidade eu fosse querer um intruso daquele
entre as minhas pernas? Só podia ser piada. Mas, não adiantava
desmentir: eu desci de tobogã rumo ao Vale dos Homossexuais.
A Molly dizia: “ah, você não sabe o que está perdendo!”, “ah,
o Eric manda muito bem!”. Cara, ela estava me incitando! Sério, eu,
que sempre fui curioso por natureza, fiquei ainda mais tentado.
Enquanto isso, a Stefany dizia: “ah, o Eric vai ser um príncipe
contigo”, “ah, ele vai com jeitinho”. Príncipe? Jeitinho? Isso era
verdade? Eu não sabia o que pensar, nem o que raciocinar, nem o
que dizer. A única coisa que eu tinha certeza era: eu estava com
vontade.
Tinha loucura maior do que querer?
Por outro lado, enquanto o meu interior estava assim:
nervoso, conturbado, saltitante e inquieto, meu exterior estava:
pleno. Sim, íntegro, absoluto, invejável. Tentei de todas as formas
não perder a cabeça com ele em sua casa, depois do ocorrido, nem
transparecer muita insegurança quando conversamos nos fundos do
pub. Aparentemente, eu estava maduro e convencido do que queria.
Não que isso fosse uma mentira, porque, sim, eu havia melhorado
em muitos aspectos, mas...
Okay, eu estava tentando.
Eu sentia segurança no que ele dizia, principalmente quando
falou que esperaria o tempo que fosse para que eu me sentisse
realmente à vontade. Mas, esse tempo chegaria? Tinha certeza que
não. A vontade era inversamente proporcional à tranquilidade.
Vontade: dez. Tranquilidade: zero. Ou seja, isso precisava ser feito
como quem tirava um curativo, um band-aid: sem pensar muito e de
olhos fechados. Se fosse algo muito inconsequente, eu não faria,
faria? Tudo não passava de medo.
E eu com medo parecia uma mulherzinha. Droga.
Ah, poxa, que bobagem! Era só transar! Oras, o que tinha
demais numa transa? Nada... Nada... Tudo! Ai, meu Zeus, tudo! Eu
já estava massageando inconscientemente o meu bumbum. Credo.
Mas, parando de pensar no futuro e focando no que já tinha
acontecido, depois que nos falamos e ficamos um tempo nos fundos
do pub, conseguimos voltar para a festa, separadamente, sem
ninguém perceber. Para não dizer que não perceberam, Robert,
claro, perguntou onde eu tinha ido, porque aparentemente “sumi”
por alguns minutos. O detalhe era que, mesmo beijando uma garota,
o cara ainda prestava atenção no que eu fazia ou deixava de fazer.
Quase eu falava para ele ir transar em vez de ficar enchendo o meu
saco.
Pelo menos, ninguém tinha visto a escapadinha que eu e o
Eric demos, afinal, depois que voltamos para o interior do local, não
notamos nenhum olhar diferente, nem algo que achássemos
estranho ou suspeito. Eric continuou com os caras do time que eram
mais próximos a ele e eu... Bem, eu continuei desviando das
garotas que me puxavam para dançar. Definitivamente, eu ainda
gostava de mulheres, claro, gostava pra caramba. Mas, não era
mais a mesma coisa. Eu não sentia mais tesão em ficar me
esfregando com elas, nem em provar para os outros o quanto eu era
um garanhão. Apenas segui bebendo, e não muito.
Tudo era novo e estranho para mim. Eu ainda tinha um pouco
do Liam que sempre fui, mas, ao mesmo tempo, eu notava que algo
diferente estava em mim.
No dia seguinte, depois que acordamos, logo pela manhã
partimos para viagem de volta à Londres. Pela Santa Graça de
Cher... O quê? Cher? Caramba, eu estava cada vez mais gay! Okay,
corrigindo... Pela Santa Graça de Thor, nenhum de nós ficamos de
ressaca, porque senão o técnico podia cortar até o nosso pinto. O
caminho foi ainda mais calmo que a ida, mas a diferença era que,
mesmo calados, guardávamos dentro de si toda a felicidade
extravasada no pub por termos conseguido entrar na semifinal do
campeonato.
Na volta, para não dar tanta “bandeira”, não me sentei
novamente ao lado do Eric, mesmo estando com muita vontade de
fazer isso. Escolhi ficar próximo aos meus amigos, assim como ele
também o fez. Mas, não nos contemos em trocar alguns olhares vez
ou outra, especialmente na hora da despedida, quando ele me foi
me dar tchau na frente de todo mundo. Estávamos avançando
alguns passos na frente das pessoas: primeiro sentamos perto,
depois nos cumprimentamos no final da partida, depois nos
abraçamos...
Aquele desgraçado estava me transformando dia após dia e
isso só me fazia lembrar do meu pedido: “me ensina a ser menos
preconceituoso”. Bom, talvez isso estivesse mesmo acontecendo e
a próxima lição dessa disciplina era: participar do aniversário dele,
sendo um bom... Bom... Namo... Não, namorado não. Credo. Sendo
um bom “amigo”. Isso mesmo. Liam Wyman Tremblay Terceiro, eu
mesmo, nunca entrava em um relacionamento sério com alguém.
Nem o Eric, exceto o deslize com a minha irmã.
Era melhor assim: apenas amizade. Uma amizade colorida.
Algo somente entre nós, que mais ninguém precisava saber. E,
poxa, isso já era um grande passo, porque eu ser amigo do Eric era
um milagre maior do que aqueles da Madre Teresa de Calcutá.
Por falar em aniversário, eu passei a viagem inteira
procurando maneiras de dizer ao Robert e ao William que nossa
saída no sábado à noite teria de ser adiada. O problema era que eu
não encontrava uma desculpa boa, nem algo que me fizesse
esconder o verdadeiro motivo por desmarcar. E, droga! Até nisso eu
estava mudando! Eu sempre mentia tão bem quando queria. Talvez
estivesse perdendo esse dom.
Mas, eu precisava encontrar uma maneira de falar. Não sabia
como, mas precisava. E eu não podia demorar, porque o sábado já
era no dia seguinte. Naquele momento, eu estava quase chegando
em Londres, depois da viagem, e teria a manhã livre, mas pela tarde
tinha uma aula para assistir e, quando eu chegasse ao colégio logo
mais, falaria de uma vez por todas. Só não diria o que de fato eu iria
fazer no final de semana, mas acharia uma boa solução.
O ônibus estacionou em frente à escola, que era nosso ponto
de chegada e partida. De lá, alguns pais apareciam para buscar e
outros pegavam um táxi. Eu fui um daqueles que optaram por pegar
um táxi, porque, naquele dia, nem meu pai, nem minha mãe,
poderiam ir me buscar. Após alguns minutos, consegui finalmente
adentrar ao meu outro reino, que não era o colégio, mas, sim, a
minha maravilhosa casa e a minha digníssima cama.
No entanto, assim que abri a porta, logo dei de cara com a
Molly descendo as escadas, acompanhada de umas quatrocentas
malas de viagem. Estava tão desengonçada com as centenas de
bolsas em cima de si, que nem bom dia eu dei, já fui logo
perguntando:
— Ué, você vai fazer um cruzeiro? — e franzi o cenho,
quando ela, enfim, ergueu os olhos das bolsas e me encarou, quase
tropeçando em um dos degraus. — Opa, não vai cair, heim... — me
apressei para segurá-la antes que o pior acontecesse.
— Esqueceu da viagem de amanhã? — apoiou-se em mim
para não se desequilibrar por completo, enrugou a testa e me olhou
de maneira confusa. — Aniversário do seu... — falou com certa
dificuldade ao colocar umas das bolsas pesadas em um dos
degraus da escada. — Ai... — exclamou levemente quando um de
seus dedos prendeu em uma alça. — Namorado, seu bobão.
Namorado? Molly estava ficando boa em piadas.
— Okay, deixa eu te ajudar com isso aqui... — peguei
algumas malas que estavam em seus braços e ajudei a descer com
elas até o piso inferior, que estava apenas alguns degraus abaixo.
— Primeiro, ele não é meu namorado — Óbvio, que não. De onde já
se viu eu namorar alguém? — Segundo, eu não esqueci — Afinal,
como eu poderia esquecer? — Terceiro, você vai passar vinte dias
lá?
Com um olhar de tédio, virou-se para mim e...
— Uma mulher precisa estar sempre preparada para
qualquer eventualidade, meu caro — finalizou com uma breve
piscadela. Okay, eu concordava que era bom estar preparada, mas,
caramba, eram quatrocentas bolsas para um sábado e um domingo.
Jamais entenderia a cabeça de uma mulher. Talvez esse fosse mais
um dos motivos por eu estar com um homem agora.
— Você está preparada pra uma guerra — Não me contive
em soltar uma pequena ironia, seguida de uma pequena risada.
Ficava imaginando como seriam duas mulheres juntas, porque,
bem, Molly era bastante vaidosa e Stefany, então, era melhor nem
comentar. Imaginou como seriam ambas se arrumando no mesmo
quarto para sair? Meu Zeus do Céu, levariam dez dias para
terminar.
— Okay, agora deixa de falar bobagem e vamos para a parte
importante — disse ao terminar de colocar suas cinquenta bolsas no
andar de baixo. — Você finalmente falou com o Eric? — questionou
com uma das sobrancelhas erguidas. — Você disse que vai ao
aniversário, né?! — e eu senti que isso foi praticamente uma
pergunta retórica.
— Falei... Falei... — suspirei, gesticulando com as mãos para
que ela pegasse mais leve. Isso ainda era um assunto delicado para
mim. — Se acalma, tá? — pedi, mas, na verdade, era eu quem
estava precisando me acalmar. — Eu disse ‘pra ele que eu vou e...
— baixei o tom de voz para dizer a última parte. — Eu também falei
sobre aquele outro ponto.
O ponto em que ele especificamente ficaria entre as minhas
pernas.
Santa Vodca do Céu.
— Então... — olhou-me com certa malícia. Um sorrisinho
safado ameaçou surgir em seu rosto e, para contê-lo, não hesitou
em morder o lábio inferior. Isso tudo me deixava ainda mais
nervoso. Na verdade, somente de tentar imaginar a cena, meu
coração acelerava. Essa inquietação era tão gay. A que ponto eu
tinha chegado!
— Vai rolar?
— Vai — suspirei e, por mais, que eu tentasse parece
pleníssimo na frente Eric, quando se tratava da Molly, isso não tinha
como acontecer. Ela já sabia de tudo mesmo, já tinha visto o meu
show de horrores no quarto, depois que cheguei da casa do Eric,
assim como também ouviu sobre todos os meus medos. Eu não
tinha algo para esconder dela, por isso confessei algo no segundo
seguinte.
— Eu ainda estou desesperado.
Minha voz saiu quase em um sussurro, o que era um milagre,
porque eu dificilmente demonstrava fraqueza, medo ou algo do tipo.
Eu estava cada vez mais me tornando outra pessoa. E pior, eu não
sabia no que estava me transformando. Mas, percebendo minha
completa falta de segurança, Molly logo se pronunciou:
— Calma, bobinho — Sua voz amena tentou me passar
tranquilidade. — Vai dar tudo certo e... Espera! — De repente,
mudou de tom. — Você tá esquecendo de algo!
— De quê? — enruguei a testa. Do que eu estava
esquecendo, afinal? Estava esquecendo meu juízo em algum lugar
por ter vontade de transar com um cara? Ou estava esquecendo de
ser um pouquinho mais macho? Porque, definitivamente, minha
masculinidade estava descendo pelo ralo. Certeza que era alguma
dessas opções.
— Do presente, seu idiota — deu-me um olhar de tédio e me
encarou como se estivesse falando a coisa mais óbvia do mundo. —
É o aniversário dele! Alô?! — e chacoalhou meus ombros, como se
quisesse me acordar. Sinceramente, eu não via necessidade
alguma em comprar presente.
Ah, poxa, eu já estava fazendo demais em viajar e...
— Não já basta meu corpinho fabuloso como presente? —
perguntei com a maior naturalidade, afinal já era um baita presente
a minha presença. E não era uma mera presença, ele ia poder fazer
o que quisesse comigo. Cara, o meu corpo era maravilhoso. Sério,
aquele imbecil tinha muita sorte, meu Zeus do céu! E não, eu não
era convencido. Talvez só um pouco.
— Ah, me poupe, Liam — revirou os olhos e me puxou pelo
braço.

❖❖❖

— Eu não sei o que comprar, Molly! — exclamei ao fazer uma


cara bem dramática no meio do corredor de um dos shoppings mais
conhecidos de Londres. Era um local enorme e cheio das mais
variadas lojas que qualquer um pudesse imaginar. O problema era,
apesar de ser sortido, eu não fazia a menor ideia do que dar de
presente para aquele traste.
— Use a sua criatividade, Liam! — falou, já sem paciência, ao
entrelaçar nossos braços, enquanto me guiava pelas vitrines. —
Não é possível que você tenha essa cabeça só pra enfeite — e
balançou o rosto em negativo, fazendo-me ter a certeza de que
Stefany estava a ensinando direitinho como ser insistente. Zeus me
livre, agora eram duas Stefany’s!
— Mas eu nunca tive muita intimidade com o Eric pra saber
do que ele realmente gosta — Isso era fato. Passei anos sem ao
menos me lembrar da data do seu aniversário e só participava das
comemorações porque a minha família era convidada. Eu sempre ia
contra minha vontade e não dava a mínima atenção para ele. —
Não faço ideia do que comprar.
— Ai, não acredito que até pra isso você é um imprestável. —
resmungou ao meu lado, enquanto caminhávamos pelos corredores
e seu olhar seguia firme nas vitrines. — Me poupe. Vocês estão
juntos há o quê? — virou o rosto para mim. — Um mês? Um mês e
meio? Já era para você saber do que ele gosta.
Ah, mas eu sabia do que ele gostava.
E isso eu iria dar no sábado à noite. Socorro.
— Anda, Molly — Dessa, vez era a minha paciência que
estava quase acabando. Já estávamos a quase uma hora naquele
maldito shopping e nenhuma compra tinha sido feita. Uma
verdadeira perca de tempo. — Fala logo o que é pra eu comprar, a
gente tá perdendo tempo aqui e eu tenho aula mais tarde —
finalizei, lembrando-me de que ainda devia uma explicação ao
Robert e ao William sobre o final de semana. Droga.
— Poxa, Liam, pensa em alguma coisa — suspirou em
desânimo ao parar no meio do caminho. — Não vou dar tudo de
mão beijada pra ti — falou isso porque claramente sabia muito mais
sobre o Eric do que eu. Amiga de infância e ex namorada. Ela bem
que podia me dar tudo de mão beijada mesmo. — Pensa no que ele
pode gostar.
— Eu já disse que eu não sei. Não faço a menor ideia —
revirei os olhos. Aquele serzinho já teria muito de mim no
aniversário e eu ainda tinha que comprar presente. — Se você me
falar logo, eu compro, a gente vai embora e fim de papo — finalizei,
porque eu era assim mesmo: muito prático com determinadas
coisas. Odiava perder tempo fazendo compras.
— Você é um namorado muito desnaturado! — De novo essa
história de “namorado”. Que saco. — Lá vou eu ter que dizer o que
você precisa comprar, porque o bonitão aí não... — e parou de
súbito no meio da frase, enquanto olhava por cima do meu ombro. O
que foi? Por que ela estava olhando fixamente para um ponto?
Virei meu rosto, mirando exatamente onde seus olhos
estavam e... “Eros: A Loja do Prazer” era o que estava escrito na
vitrine. — Por que está... — tentei perguntar, mas, antes que eu
pudesse concluir, Molly entusiasmada me puxou pelo braço. — Ei!
Pra onde você tá me levando? — questionei atordoado, porque já
percebia que estava me levando para a tal loja.
— Olha só, Liam! — sorriu para mim com os olhos bem
arregalados. — É disso o que você está precisando! — e quase deu
pulinhos de empolgação ao meu lado. A Stefany definitivamente
estava sendo uma péssima influência para a Molly!
— De uma loja de artigos sexuais? — ergui uma das
sobrancelhas para ela e cruzei os braços. — De um Sex Shop?! —
e quase gritei em um sussurro. Eu estava pasmo com a situação!
Como ela podia ser tão ousada assim? Talvez não fosse eu o único
a passar por mudanças nessa história.
Alguém precisava processar a autora da minha vida.
— Não, queridinho, você precisa de uma jockstrap — e me
deu um imenso, largo e genuíno sorriso.
— O quê?! — praticamente berrei. — De uma jocks-o-quê?!
— arregalei os olhos e enruguei a testa ao mesmo tempo. Não
podia ser o que eu estava pensando. Claro que não. A Molly não
poderia estar se referindo à...
— Sim, bebê, você não está vendo? — tocou a vitrine. —
Olha só que maravilhosa essa aqui... Preta com detalhes vermelhos.
Adorei. De muito bom gosto — e cruzou com os braços, analisando
com seriedade a peça íntima que estava no manequim, como se
fosse um quadro de Picasso.
— Bom gosto?! — Dessa vez, berrei de verdade. — Você tá
ficando louca? Eu não vou comprar isso! — exclamei. Que coisa
mais horrorosa essa cueca com o traseiro todo exposto! Será que já
não bastava eu ter vontade de dar? Eu ainda tinha que dar e passar
vergonha?
— Ah, qual é, Liam? — falou com se fosse a coisa mais
natural do mundo. — É sexy. O Eric vai adorar. Um excelente
presente pra ele, que, no caso, é você que vai usar — e sorriu com
uma mistura de malícia e sarcasmo. Ai, eu queria matá-la! Estava
ficando pior que a Stefany. As duas se mereciam mesmo.
— Você está passando dos limites, Molly — falei com
seriedade e puxei-a pelo braço, para que saíssemos da frente da tal
loja comprometedora. — Eu já estou nervoso e esse tipo de coisa
me deixa mais nervoso ainda! — quase me exaltei, assim como me
sentia por dentro sempre que eu pensava no que aconteceria no
sábado à noite, mas tentei me controlar, assim como eu agia na
frente do Eric: pleno.
— Vai dizer que algum dia vocês não vão usar uns
brinquedinhos, nem vestir umas roupinhas? — continuou com o
mesmo sorriso safado e irônico. — Meu poupe.
— Não! — disse, antes que ela pudesse soltar qualquer outra
pérola. — Ninguém vai usar nada. Nunca. Já basta a cueca normal
e pronto. Não faz sentido usar outras coisas, porque no fim todo
mundo fica nu mesmo — balancei a cabeça em negativo. — Agora
vamos comprar logo esse presente, pode ser? — tentei mudar de
assunto, mesmo que não estivesse muito satisfeito com a ideia de
comprar presente. — Tenho que ir para o colégio daqui a pouco —
e, assim que me calei, avistei algo que logo me interessou e que
prendeu minha atenção.
Era uma loja de calçados no final do corredor, mas, mesmo
sendo imensa e com diversos sapatos, eu só conseguia olhar para
um deles: uma chuteira maravilhosa Mercurial da Nike que estava
exposta em um lugar de destaque na vitrine. Luzes a iluminavam
como se ela fosse uma verdadeira atração. E era. Lançamento.
Prata com detalhes azuis, o símbolo da Nike preto com contorno
verde. Era tão linda que fui atraído à loja como um metal que era
atraído por um ímã.
Me aproximei, enquanto Molly me acompanhava, e, assim
que fiquei de frente para a chuteira, falei:
— É esse o presente do Eric. — Meus olhos brilhavam como
se eu estivesse comprando para mim mesmo. Aquele imbecil ia
adorar com certeza, porque não tinha como não gostar. Olhei o
preço e... Custava o meu rim.
— Você vai comprar mesmo essa chuteira desse preço? —
Molly perguntou não em tom de repreensão, mas em tom de
admiração.
E, então, ponderei. Ponderei por alguns segundos: valia
realmente à pena comprar? Enquanto eu me perguntava, meu
subconsciente só me dizia: Vale! Vale! Vale! Ah, meu Zeus, além de
fazer virar gay, Eric também estava me fazendo virar bobão por
querer comprar algo tão caro. Não que eu não tivesse dinheiro.
Felizmente eu tinha boas condições de mesada, mas nunca tinha
gasto tanto assim com alguém. Eric seria o primeiro.
No entanto, enquanto eu pensava, algo curioso e um pouco
estranho aconteceu. Por entre os calçados e os vidros da vitrine, eu
avistei algo saindo da loja. Na verdade, alguém. Era uma moça...
Uma moça bem gata, na verdade. Caminhava acompanhada de
uma outra garota, mas o que me chamou atenção não foi
exatamente a sua beleza, foi... Outra coisa. Algo que eu não sabia
explicar.
Ainda ouvi Molly falar alguma coisa sobre o tamanho que o
Eric calçava, mas eu só consegui prestar atenção na garota ruiva.
Não que eu já tivesse a visto algum dia na vida. Claro que não. Ou
talvez... Será que já a vi? Eu sentia algo estranho. Estranho e...
Familiar. Mas, familiar? Como assim? Eu não conseguia entender.
Contudo, mais bizarro ainda foi quando ela realmente saiu da loja e
seu olhar cruzou com o meu.
Assim como sua amiga, com uma de suas mãos segurava as
compras e com a outra comia a casquinha de um sorvete. Era alta,
tinha um corpo escultural e cabelos longos, seu rosto parecia de
boneca, mas os seus olhos... Os seus olhos e o seu queixo... Em
um primeiro momento, quando passou pela porta da loja, virou o
rosto para o lado e me viu de relance. Porém, em questão de
segundos, seu olhar displicente tornou a me encarar por mais um
tempo.
Alguns poucos segundos que pareceram durar séculos.
Aqueles olhos... Aquele queixo...
E, então, virou-se e foi embora.
— Você conhece? — Molly perguntou, acordando-me quase
de um sonho.
Desviei meu olhar para minha irmã e...
— Não. Vamos entrar pra comprar a chuteira.

❖❖❖

— Juízo na vida e boa aula — Molly disse ao sair do carro e


fechar a porta. Depois de eu quase ir à falência por ter comprado a
fantástica chuteira da Nike, passei em casa somente para deixar o
presente e a minha irmã. Em poucos minutos eu precisaria estar no
colégio para assistir a uma bendita aula.
— Valeu — respondi e dei partida. As ruas passavam frente
aos meus olhos e eu não conseguia tirar da cabeça a tal garota que
vi no shopping. Não somente por causa da beleza. Não, claro que
não. Ela tinha outra coisa que eu não sabia explicar. E mesmo que
tivesse sido por pouco tempo, ela me encarou de um jeito diferente.
Okay, de qualquer forma, isso não iria dar em nada. Podia ser
só coisa da minha cabeça. E muito provavelmente era. Por isso, não
perdi mais tempo pensando nisso, logo direcionei meus
pensamentos para algo muito importante que eu precisava fazer
assim que chegasse na escola: falar com o Robert e o William.
E para minha completa felicidade ou infelicidade, dependia do
ponto de vista, não demorei muito a chegar. Quando dei por mim, já
estava estacionando o carro, até porque minha casa não ficava
muito longe de lá. Assim que desci, logo vi os primeiros alunos
andando por ali.
Caminhei em direção ao corredor principal com um único
objetivo: encontrar os caras e dar alguma desculpa sobre não poder
sair com eles no dia seguinte. No entanto, enquanto eu me movia
por ali, acabei notando algumas coisas estranhas, inusitadas... Tudo
naquele dia seria esquisito?
Eu estava acostumado a ser o centro das atenções de todos
dali, afinal sempre que eu chegava todos vinham me cumprimentar
e me bajular. Tinham como verdadeira meta de vida se tornarem
meus amigos, mesmo que eu não desse a mínima atenção para
eles. Claro, eu me achava muito importante para dar atenção a
qualquer um. Desde sempre foi assim, desde que eu comecei a ser
popular.
O bizarro foi que, naquele dia em específico, isso não
aconteceu. Muito pelo contrário, as pessoas estavam me olhando de
um jeito diferente, de um jeito estranho. Algumas me encaravam e
desviavam o olhar, outras me observavam e riam, e outras apenas
me encaravam como se eu tivesse feito alguma coisa muito errada.
Parecia que sabiam de algo sobre mim.
Inevitavelmente, comecei a me sentir mal, desconfortável.
Que diabos estava acontecendo ali? Eu tinha virado motivo
de piada? Por que eu percebia risadinhas em minha direção? O que
houve? Isso era algum tipo de pesadelo? Onde estavam todos os
que me cumprimentavam e me bajulavam?
Quando, enfim, consegui adentrar ao corredor principal do
colégio, a sensação ruim triplicou, porque o número de alunos a
minha volta aumentou. Dessa vez, eram dezenas que me
encaravam torto. Olhei de um lado para o outro, começando a me
sentir sem jeito.
Não bastando as expressões nos rostos de todos, eu também
conseguia ouvir um burburinho, como se estivessem falando de
mim. Mas, que droga, o que eu tinha feito, afinal? Isso nunca, sob
hipótese alguma, havia acontecido. Era a primeira vez em que eu
me sentia pequenininho e excluído no colégio, no meu reino.
Logo eu, que sempre gostei de ser o centro das atenções.
Contudo, não desse jeito, com olhares de reprovação, provocação,
sarcasmo e ironia. Dificilmente, eu me sentia envergonhado por
algo, mas inconscientemente baixei o rosto, pois estava
constrangido por alguma coisa que eu sequer tinha noção.
Eu não fazia ideia do que era ou do que tinha acontecido,
mas aqueles olhares, que nunca tinha recebido, me diminuíram e
me fizeram baixar a crista. Eu nem me reconhecia por estar tão
encabulado. Em outros tempos, eu andaria de cabeça erguida, mas
não naquele momento.
Só queria saber o que diabos estava havendo.
Então, tomando coragem, levantei levemente o rosto e mirei
no final do corredor, próximo à sala onde eu teria aula. Foi quando vi
Robert e William, conversando entre si. Ah, finalmente! Meus
amigos! Eles com certeza poderiam me explicar o que era aquilo,
assim como também deveriam me tratar normal, diferente de todo
esse povinho estranho.
No entanto...
Quando me aproximei deles, de imediato, ambos levemente
deram um passo para trás.
Ah não! Eles também? Por acaso, eu estava com alguma
doença contagiosa?
Pela manhã, quando chegamos de viagem, estava tudo
normal! Que raios estava acontecendo agora?
— E aí, galera — tentei me aproximar deles, mas senti
desconforto em seus rostos. Parecia que não me queriam ali, não
queriam a minha companhia. E isso era muito estranho. — ‘Tá tudo
bem? O que tá pegando aqui no colégio?
— É... — Robert balbuciou. — Então, a gente... Eu e o
William... — parecia querer deixar claro que era somente eles, que
eu não estava incluso. — A gente precisa ir ali. Até depois — e
puxou William pelo braço, deixando-me sozinho antes que eu
pudesse falar qualquer outra coisa.
Vire-me para trás e vi nada além dos alunos do corredor
ainda me encarando. Eu continuava sem entender e, pior, por mais
que estivesse cercado de pessoas, me sentia sozinho. Isso nunca
tinha acontecido comigo. De repente, senti alguém tocar em meu
ombro.
Ah, graças a Zeus! Alguém!
Quando volvi meu rosto, dei de cara com um dos funcionários
do colégio. Logo senti que algo ali estava mais estranho do que
parecia. E mais esquisito ainda foi quando ele falou:
— Liam, estão te chamando no Departamento de Achados e
Perdidos.
Achados e perdidos? Mas que diabos eu tinha perdido?
Mesmo que tudo estivesse muito bizarro, fiz o que ele pediu e
me dirigi ao tal departamento. Ainda acompanhado por olhares e
burburinhos de reprovação, caminhei pelos corredores e finalmente
cheguei ao destino final. Quando passei pela porta, logo encontrei
uma senhora que trabalhava lá.
— É... Eu vim aqui porque...
— Ah, Liam — interrompeu-me antes que eu pudesse
concluir. — Eu pedi que te chamassem, não precisa explicar. Você
esqueceu um caderno debaixo da carteira depois da sua última aula
de física — Foi até um dos armários, retirou o dito caderno e ergueu
em minha direção. — Dentro tem escrito o nome Eric Hastings, mas
nós encontramos alguns alunos tomando atitudes indevidas com
esse caderno e eles nos disseram que pertencia a você, que estava
debaixo da sua carteira.
Quando ela se calou, senti como um buraco tivesse se aberto
sob os meus pés e de imediato me lembrei da última aula que tive,
do maldito teste de física com o imbecil do Noah! Esse era o
caderno de física que o Eric tinha me emprestado no início das
aulas, para que eu pudesse estudar, e, como eu já tinha visto tudo o
que estava nele, decidi levar à escola para devolver. Mas o idiota do
professor pediu que colocássemos o material debaixo da carteira na
hora do teste e eu acabei esquecendo o maldito caderno lá!
Que inferno!
E, pior, não era um caderno comum, não era somente um
caderno de física. Era o desgraçado do caderno em que na última
folha estava escrito algumas coisas impróprias sobre mim e o Eric!
“Lindo, brega, perfeito, horroroso, gostoso, atrevido, excitante,
veado, você também”. Eu me lembrava! Eu me lembrava de cada
absurdo que a gente escreveu no final do caderno, durante a última
vez em que ele me deu aula no meu quarto. A minha letra e a letra
dele. As pessoas conheciam. As pessoas viram. E as pessoas
estavam me olhando torto.
Ótimo.
A minha vida acabou.
As aparências enganam

Liam

Tudo o que eu quis, naquele instante, foi abrir um buraco e enterrar


a minha cabeça com tamanha vergonha que eu estava sentido. Na
verdade, eu me vi sem chão. Eu tinha descoberto o motivo de todos
estarem agindo de maneira estranha comigo. Claro, souberam do
grande e imenso boiola que me tornei. Foi aí que a palavra “gay” se
desenhou nítida e visível em minha testa.
E eu nem era gay mesmo. Ainda me sentia atraído por
garotas, mas era lógico que ninguém ligaria para a minha
bissexualidade. Todos deviam estar mais preocupados em apontar o
dedo para o cara homofóbico que estava se envolvendo com um
homem (ninguém mais, ninguém menos, que meu inimigo). Todos
sabiam o quanto eu já tinha feito chacota com gays. E agora, na
visão deles, eu era um hipócrita.
Para ser sincero, as pessoas notavam que eu fazia chacota
com todos. Um verdadeiro nariz empinado sempre, convencido.
Geralmente, eram essas mesmas pessoas que apenas esperavam
o outro cair para apunhalá-lo pelas costas. Estavam fazendo comigo
o que eu fazia com eles. E era por isso que eu me vi paralisado
frente à senhora do Departamento de Achados e Perdidos. Não
sabia como agir dali em diante.
Eu seria mais um excluído e fracassado do colégio?
Não!
Foi aí que eu acordei.
Pisquei os olhos repetidas vezes, como se realmente
estivesse acordando de um sonho, e vi a funcionária ainda com o
maldito caderno estendido em minha direção. Se segundos atrás eu
não sabia o que fazer, de repente a consciência veio à tona. E não
somente a consciência, mas também a raiva. Uma raiva que há
muito tempo eu não sentia. Uma raiva típica de Liam antigo.
E o motivo? Noah! Ele tinha feito o teste de física comigo,
não tinha? Tinha sentado ao meu lado, colado em mim! Eu não
precisei pensar por muito tempo para deduzir que o responsável por
essas fofocas tinha sido esse imbecil. Senti a fúria tomar o controle
do meu corpo. Meus olhos nem piscavam, meu rosto, então,
exalava ódio. Puxei o caderno das mãos daquela velha e saí dali
com um baque forte na porta.
Era agora que aquele idiota ia aprender a não mexer com
quem não devia. Eu ia pegá-lo. Que ninguém ousasse protegê-lo,
era tudo o que eu pedia. Do contrário, seria pior.
Praticamente com o capeta nos meus couros, caminhei à
passos largos e rápidos pelos corredores, dessa vez ignorando
todos os olhares irônicos e sarcásticos que eram direcionados a
mim. Queria mandar todos para o inferno, mas meu objetivo maior
era esganar o Noah. Ele foi o responsável por esse pesadelo. Ele
quem espalhou os boatos pelo colégio. Eu tinha certeza.
De repente, meus olhos se encheram de lágrimas que
ameaçaram cair. Lágrimas de tristeza, de vergonha, mas sobretudo
de raiva, de ódio. Eu tinha sido exposto de uma maneira que nunca
havia acontecido. Mas, com dentes trincados e a boca fechada em
uma linha dura e insensível, engoli qualquer mísero sinal de choro e
segui quase correndo até o laboratório de química, local onde eu
teria a aula e onde sabia que o Noah estaria.
Quando alcancei a porta, abri sem dó, fazendo com que um
baque seco assustasse todos os que já estavam sentados
esperando o professor chegar. Pouco me importei com os
semblantes espantos que me davam, apenas volvi meu rosto de um
lado para o outro, como um exímio caçador, e, quando meus olhos
miraram no lado esquerdo, exatamente onde ficava o balcão com os
materiais do laboratório, lá estava o imbecil, como típico monitor de
química que era, organizando os béqueres e os tubos de ensaios.
Atencioso ao que estava fazendo, não viu o momento em que
eu entrei na sala, mas, quando caminhei violentamente em sua
direção, emanando ódio e fúria por cada poro do meu corpo, seu
rosto volveu para o lado e, em questão de milésimos, sua expressão
suave, de quem arrumava calmamente os materiais, transformou-se
em pavor e temor. Depois de tanto tempo querendo quebrar a cara
daquele desgraçado, eu finalmente conseguiria fazer isso sem peso
na consciência.
Então, quando me aproximei o bastante, ele balbuciou:
— Li-Liam? — quase não conseguiu falar.
Com o frenesi que estava sentindo, segurei
despudoradamente sua blusa entre os meus dedos e o arremessei
contra a parede mais próxima, fazendo com que suas costas se
chocassem em uma pancada. Foi aí que ouvi um burburinho no
laboratório tomar proporções alarmantes. Sequer me dei ao trabalho
de olhar para eles, porque minha atenção estava totalmente voltada
para o Sr. Fracote à minha frente, mas eu sabia estavam todos
chocados.
As lágrimas de raiva e de indignação ameaçaram voltar,
marejando, assim, meus olhos. Eu estava completamente fora de
mim, pois toda a imagem que eu tinha construído em anos foi por
água abaixo. Então, tomado pela loucura, segurei-o pelo pescoço e
o prendi ainda mais contra a parede, soltando as primeiras palavras
de puro veneno:
— Foi você, não foi?! Foi você quem pegou aquele caderno e
espalhou aqueles absurdos pelo colégio, não foi? Seu imundo!
Perdedor! Você tá querendo que eu seja mais um fracassado como
você, não é? Mais um excluído!
Meus dedos prendiam ainda mais o seu pescoço, enquanto
ele tentava falar:
— Nã-Não... — e tossia pela força que eu empregava contra
sua garganta. — Eu ju... Juro que não... — Minhas mãos fortes
deixavam marcas vermelhas em sua pele, que provavelmente, mais
tarde, ficariam roxas e o fariam usar gola alta pelo resto do mês,
caso sobrevivesse. — Não fui eu... — e assim como os meus olhos,
os seus também se encheram de lágrimas. Ele era milhões de vez
mais fraco e não tinha a capacidade de se defender.
Mas, eu não queria saber disso, eu não queria ouvir. Não
precisava saber de suas mentiras, porque, por mais que negasse,
eu estava convicto de que o responsável tinha sido ele. Assim,
apertei ainda mais minha mão contra o seu pescoço, até que...
— Eu... Eu... — e buscava por ar com o rosto vermelho como
uma pimenta. — Não consigo... Respirar... — finalizou, fechando os
olhos e deixando algumas lágrimas caírem.
Foi aí que uma súbita noção me tomou e me fez parar. Soltei
seu pescoço e vi o estrago que tinha feito. Seu corpo pequeno e
frágil se escorou ainda mais contra a parede, parecendo buscar por
forças e equilíbrio. A tosse seca logo apareceu ao ponto de eu
pensar que ele fosse vomitar. Meu Deus... Baixei os olhos para
minhas mãos, aquelas que fizeram o trabalho sujo, e... Eu era um
monstro.
Voltei a si e, quando pensei que não, a consciência bateu.
Por mais que ele tivesse sido culpado por aquele inferno, eu estava
quase o matando asfixiado. Isso era extremamente errado. No
entanto, quando tentei me aproximar novamente, dessa vez para
tentar ajudar, seu corpo com resquícios de forças se desviou
levemente, porque provavelmente ainda estava com medo, e os
funcionários do colégio chegaram.
— O que está havendo aqui? — Um dos fiscais de sala se
aproximou. — Os alunos nos chamaram, porque disseram que você
estava brigando — e desviou seu olhar de mim para o Noah. — O
garoto... — tocou levemente em seu rosto e ergueu um pouco seu
queixo para olhar o pescoço. — O que você fez, Liam...? — ele
parecia perplexo ao ver as marcas que eu havia deixado. — Pra
sala da diretoria agora!
Droga.
Praticamente escoltado por outros dois fiscais do colégio, fui
levado para fora do laboratório. Se antes os semblantes eram de
escárnio, agora eram de espanto. Quando pus os pés no corredor,
uns quinhentos pares de olhos vieram em minha direção. Parecia
que todos os curiosos e fofoqueiros tinham ido para ali, buscando
saber o que estava acontecendo.
E, então, quando desviei meu rosto de todos aqueles que
estavam próximos à porta, meu olhar cruzou com um par castanho...
Aqueles desgraçados olhos castanhos que tinham tornado a minha
vida um verdadeiro inferno desde que eu me entendia por gente.
Com uma das alças da mochila presa somente a um ombro, Eric
parecia estar chegando ao colégio naquele momento e, pelo seu
cenho franzido e confuso em minha direção, ele ainda não fazia
ideia do que estava acontecendo. Stefany também o acompanhava.
Notei quando ambos apressaram o passo para falar comigo,
mas, antes que concluíssem a intenção, foram impedidos por um
dos fiscais que me acompanhava.
— Liam não pode falar agora — e os afastou dali. Ainda bem!
Eu não estava com cabeça alguma para falar com ninguém naquele
instante, principalmente o Eric, ainda mais porque o colégio em
peso estava no corredor e isso daria margem para mais fofocas e
boatos.
Na verdade, eu o queria a quilômetros de distância antes que
eu fizesse outra besteira
Ainda vi seu semblante de estranheza se transformar em
preocupação, mas apenas virei meu rosto e continuei seguindo para
a sala da diretoria. A minha vida já tinha acabado mesmo, então que
eu terminasse de destruí-la com algum castigo do diretor que fosse
queimar ainda mais meu filme para as universidades naquela reta
final do colegial.

❖❖❖

— Então, meu caro Liam, vejamos o que temos aqui... —


Diretor Dawson, à minha frente, disse, enquanto abria a minha pasta
de ocorrência. Ao meu lado, sentado em uma cadeira próxima,
estava Noah encolhido, ainda abalado pelo que havia acontecido.
Não deu uma palavra sequer desde que chegamos à diretoria e
apenas olhava para as mãos. — No último mês o seu
comportamento foi excelente — pronunciou-se novamente ao
passar as vistas pelos meus precedentes. — Participou de todas as
aulas, conseguiu notas boas, não se meteu em confusões, nem
participou de brigas, mas... O que houve agora? Voltou a ser o Liam
do início do semestre? — e me encarou.
Eu não sabia o que responder.
Nem como agir.
Afinal, o que eu iria dizer? “Ah, Sr. Dawson, o que aconteceu
foi que o Noah espalhou para todo mundo que eu gosto de homem,
assim como ele também gosta, e por isso eu decidi dar o troco”.
Não, eu não ia falar isso. O problema era que não haviam maneiras
de tentar deixar tudo de modo mais eufemista, mesmo que eu
tentasse ir no mais profundo do meu cérebro. Eu estava ferrado. No
entanto, tentei ao responder:
— Eu estou passando por problemas pessoais, Sr. Dawson
— e isso foi tudo o que consegui externar.
Não era uma mentira.
— Eu sei que está, Liam — replicou, complacente. —
Inclusive, eu sei exatamente o que aconteceu. Sei dos boatos e do
que houve para chegarmos até aqui. Só fiz a pergunta para lhe dar
a chance de poder se explicar, mas vejo que tem... — parecia
buscar uma palavra certa para encaixar. — Tem dificuldade. A
questão é que, por mais problemas pessoais que você tenha, você
não tem o direito de tratar seus colegas assim. Consegue me
entender?
Em partes, sim. Eu estava com tanta raiva e de cabeça
quente, que não consegui me conter e acabei ficando fora de mim,
mas isso não anulava o fato daquele idiota ter usado aquele
caderno para espalhar os boatos absurdos sobre mim. Isso eu
definitivamente não perdoava, então apenas respondi:
— Eu sei, diretor. Acontece que ele espalhou coisas sobre
mim e ele também não tinha o direito de fazer isso. Eu não sou o
único errado aqui — Quando finalizei, comecei a sentir leves
indícios de que a raiva queria voltar, apesar de tudo.
No entanto...
— Ele? — comedido como sempre era, Sr. Dawson
questionou suavemente com um breve franzir de cenho. — Você
está querendo me dizer que foi o Noah que espalhou os boatos
sobre você pelo colégio? — e concluiu levando uma das mãos ao
queixo.
— Sim — respondi convicto, de supetão. Estava tão certo de
que havia sido ele. — Eu tenho certeza absoluta de que foi. Esse
idio... Quero dizer... — pigarreei a garganta, tentando me conter
para não extravasar novamente. — O Noah fez o teste de física
comigo, sentou bem ao meu lado, colado comigo. Eu esqueci o
caderno embaixo da carteira e ele pegou depois que eu saí da sala.
— É mesmo, Liam? — Sr. Dawson permanecia com a mão
no queixo, sondando-me cautelosamente. O curioso era que, a
despeito do seu tom complacente, eu sentia uma pontinha de
desfaçatez em sua fala. — Você tem certeza absoluta que o
causador de seu infortúnio é o Noah?
— Cla-Claro... — gaguejei um pouco e nem sabia o porquê.
Talvez aquele tom utilizado pelo Sr. Dawson estivesse me dizendo
implicitamente algo que eu não queria acredita. — Quero dizer... Ele
é a pessoa mais provável, não é? Estava comigo, sentado ao meu
lado, colado em mim e... Sempre foi apaixonado por mim — Meu
Zeus, acabei soltando algo que não estava nos meus planos. — Vai
ver isso foi algum tipo de vingança. Ele é gay, não é?
E, assim que falei a palavra “gay”, Noah, que, até então,
estava calado e disperso, olhando para as suas mãos, virou seu
rosto lentamente para mim, parecendo estar ainda abalado com
tudo, e me surpreendeu ao dizer:
— Eu não sou gay — O quê? Pisquei os olhos repetidas
vezes para ter certeza de que estava ouvindo isso. — Eu não sou
gay. Você quem criou essa imagem errada de mim, por eu não ser
um “pegador” como você era ou por ser um garoto mais reservado e
tímido. Mas eu não sou, e, mesmo se eu fosse, não teria espalhado
esses boatos.
Eu fiquei paralisado. Estático. Não podia acreditar no que eu
tinha acabado de ouvir.
Passei esse tempo todo chamando-o de gay, quando, na
verdade, o “gay” era eu?
— Filho... — ouvi a voz do diretor me chamar, mas só
conseguia encarar pasmo o Noah, enquanto ele me observava de
volta com olhos abatidos, mas, ainda assim, suaves. Noah era
assim, ele não tinha expressões fortes, nem firmes. Era
completamente delicado, por isso sempre imaginei que fosse gay.
Estereótipos. — Sabe esse garoto... Esse garoto que você agrediu?
— e, então, baixei minhas vistas para o seu pescoço. As marcas do
que eu tinha feito estavam mais evidentes do que antes. Engoli em
seco ao perceber o seu estado. — Ele foi o único... O único que te
defendeu quando todos os outros alunos estavam tomando atitudes
impróprias com aquele caderno.
O quê?
Inevitavelmente, volvi meu rosto surpreso para o Sr. Dawson,
porque, por mais que eu quisesse, era impossível esconder o
espanto. Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Na verdade,
eu não queria acreditar, porque, se assim o fizesse, eu teria
completa certeza de que, sim, eu era um verdadeiro monstro. No
entanto, mesmo não querendo ouvir mais nada, ele continuou:
— Quando Noah estava saindo da sala, minutos depois de
você, ele ouvir o burburinho dos colegas e percebeu o que estava
acontecendo. Ainda tentou tirar o caderno das mãos deles, mas foi
em vão. Por pouco, não se envolveu em uma confusão maior.
Então, ele veio até aqui, à diretoria, e relatou sobre o ocorrido,
pedindo que algum fiscal ou até mesmo eu fosse lá para resolver a
situação. Conseguimos recuperar o caderno, mas infelizmente os
boatos já haviam se espalhado.
Incrédulo e boquiaberto, olhei novamente para o Noah.
Dessa vez, ele já não mais me olhava, mas, ainda assim, consegui
notar algumas lágrimas se formando no cantinho dos seus olhos.
— Liam... — Sr. Dawson ainda continuou a se pronunciar,
fazendo-me virar mais uma vez o rosto para ele. — A moral disso
tudo é que você não deve julgar as pessoas e as situações da vida
por impulso. Seja menos explosivo e mais racional. Você tem noção
do que quase fez com esse garoto? — Um silêncio se instalou na
sala por alguns segundos. Estava tão em choque que não sabia o
que falar. — Ele foi o único que esteve ao seu lado, então eu espero
que, de agora em diante, você aja da maneira correta com seu
colega de turma — e desviou seu olhar de mim para ele. — Noah,
querido, você está liberado. Eu já pedi para que um funcionário lhe
acompanhe até a enfermaria do colégio.
Assim, Noah se levantou em silêncio e eu não consegui mais
encará-lo. Poderia até ter tentando um último contato visual antes
que ele fosse embora, mas a vergonha me tomou em proporções
gigantescas. Como se não bastasse chamá-lo de gay, durante todo
aquele tempo, quando na verdade ele não era, ainda usei minhas
mãos para quase cometer uma loucura com o garoto.
Eu estava me sentindo um lixo. Um verdadeiro lixo humano.
Três palavrinhas poderosas

Liam

E o mundo tinha virado de cabeça para baixo em questão de


segundos.
Quando ele saiu da sala do diretor, tudo o que consegui sentir
foi uma culpa imensa e um vazio enorme. Pela primeira vez na vida,
eu me vi com um remorso maior que eu. Na verdade, pela primeira
vez não. Eu já tinha sentido algo assim em relação ao Luke... Luke...
Esse ainda era um nome difícil para mim. Mas, pelo menos com ele,
eu não tinha partido para agressões físicas.
Com o Noah, sim, eu tinha o agredido fisicamente e
verbalmente. Não somente naquele dia, mas há muito tempo
durante o colegial. E ele nunca ousou me responder. Tinha
aguentado tudo calado, até esse momento na sala do Sr. Dawson.
Por isso, embora eu fosse um grande e insensível babaca, era
impossível não sentir uma dor no peito.
Tudo se misturava e girava freneticamente em minha cabeça
ao ponto de eu não saber o que fazer: os boatos, a injustiça com o
Noah, a minha relação com o Eric. O que eu faria dali em diante?
Minha vida nunca tinha jogado tamanha responsabilidade em
minhas mãos. Será que era hora de crescer e amadurecer? Talvez
fosse, mas eu não sabia se estava preparado para isso.
No entanto...
— Com relação ao Noah, faça aquilo o que a sua consciência
está mandando — A voz do Sr. Dawson me retirou dos meus
devaneios. Ainda estava em sua sala, pois não havia me liberado, e
eu nem sabia quando ele iria fazer isso. — Creio que já tem idade
suficiente para saber quais atitudes tomar — falou como se pudesse
ler meus pensamentos.
O pior era que ele não estava errado. Minha consciência
desenhava clara e nitidamente uma palavra. Uma palavra que eu
sempre tentava apagar do meu vocabulário: desculpa. Não gostava
de pedir, nem de ouvir, assim como também não podia acreditar que
meus pensamentos estavam querendo levar a me redimir. Só que
eu não podia ser mais hipócrita do que já era.
O problema era que eu tinha feito algo tão terrível, que talvez
nem um pedido de desculpas fosse capaz de compensar a minha
falha.
E, então, antes que eu pudesse respondê-lo, Sr. Dawson
continuou:
— Agora que ele não está mais aqui, podemos tratar de
assuntos que dizem respeito somente a você. Vou ter de ligar para
os seus pais e contar sobre o ocorrido.
O quê?!
Gelei imediatamente. Fui no céu e voltei. Ou melhor, no
inferno e voltei.
— Nã-Não, Sr. Dawson, por favor, os meus pais não — até
gaguejei e senti o nervosismo querendo voltar. — O senhor pode
fazer qualquer coisa, menos contar a eles sobre o que aconteceu,
porque daí eles teriam de saber o motivo por eu ter feito isso com o
Noah. E eu não quero que eles saibam o motivo, se é que o senhor
me entende.
Eu estava apavorado. Meus pais não podiam saber sobre o
meu “envolvimento amoroso” com o Eric. Com que cara eu olharia
para eles, se soubessem disso? Eu ainda não estava preparado
para expor isso, e nem sabia quando estaria. Já bastavam as
pessoas do colégio e o inferno em vida que eu teria de enfrentar ali.
Tudo o que eu pedia aos céus era para que essas fofocas não
caíssem nos ouvidos dos meus pais.
— Liam, é meu trabalho como diretor e... — tentou falar, mas,
desesperado como eu estava, logo o interrompi em uma súplica.
— Por favor, Sr. Dawson... — Talvez essa fosse a primeira
vez que eu implorava algo a alguém. Nem eu mesmo estava me
reconhecendo, mas o medo dos meus pais descobrirem que eu
beijava uma boca masculina era maior. — Isso se trata de um
assunto muito delicado pra mim e eu ainda não me sinto seguro pra
contar aos meus pais — finalizei com um olhar um tanto quanto
aturdido.
O diretor, então, complacente como sempre era, sondou-me
com os olhos comedidos. Sua típica mão no queixo logo se fez
presente, e não demorou muito até questionar:
— Mas, você sabe que, sendo seus pais, uma hora ou outra,
eles vão ter conhecimento sobre isso, não sabe?
— Sim, eu sei — repliquei, dando um breve suspiro, pois
expor isso ainda não era fácil pra mim. Nunca imaginei que algum
dia fosse estar discutindo com alguém, dessa maneira, sobre a
minha orientação sexual. — Mas, no momento, eu ainda não quero
que eles saibam. Talvez um dia.
— Eu entendo seu ponto, Liam — retrucou, balançando
levemente um sim com a cabeça. — Mas, você precisa estar ciente
de que o apoio da família e a orientação de pessoas adultas são de
suma importância nesses casos de descoberta da sexualidade e
auto aceitação. Talvez até mesmo casos, como esse que ocorreu
hoje entre você e o Noah, possam ser evitados.
— Sei disso, Sr. Dawson. O problema é que eu não sei se
vou ter exatamente um apoio da família em casa, entende? — fui
franco. Primeiro, eu ainda não me sentia confortável em confessar
isso para eles. Segundo, por mais que meus pais exaltassem e
enaltecessem o Eric, e sempre torcessem para que eu tivesse uma
boa relação com ele, não sabia se era esse tipo de relação que eles
sonhavam para nós.
Dando um breve suspiro, sondou-me novamente com o olhar
e...
— Tudo bem. Eu, como diretor, também preciso ser conivente
com determinados casos que demandam isso de mim. Vou respeitar
sua posição, pelo fato da situação envolver algo muito íntimo. Mas,
vou te dar suspensão pelas aulas de hoje e vou anotar em sua
pasta de histórico essa ocorrência.
Ótimo. Mais uma queimação de filme para as universidades.
Eu estava ferrado.
— Tudo bem, Sr. Dawson. — Não, não estava nada bem,
mas isso foi tudo o que consegui responder, porque até mesmo uma
“queimação de filme” era menos ruim do que meus pais descobrindo
o que eu andava fazendo nas escondidas com o Eric.
— Eu espero que isso não se repita, Liam. Estou lhe dando
um voto de confiança — e um pequeno traço de sorriso ameaçou
surgir em seus lábios. — Lembre-se de que os processos seletivos
para universidades são daqui a poucas semanas e elas avaliam
tudo.
Okay, eu não precisava me lembrar disso, porque só fazia eu
me sentir pior, mas...
— Sim, diretor. Eu garanto que não vai mais se repetir —
repliquei com uma educação que eu não usava costumeiramente.
Ao menos uma vez na vida eu precisava ser equilibrado.
— Ótimo — Dessa vez, não hesitou em sorrir. — Para
finalizar, eu quero que saiba que pode contar comigo sempre que
quiser conversar. A força física não resolve problemas. Além disso,
o colégio oferece um serviço de atendimento psicopedagógico com
uma excelente psicóloga. Sinta-se à vontade para procurar por mim
ou por ela. Se você ainda não se sente confortável para falar sobre
isso com os seus pais, procure os profissionais daqui da escola.
Você não está sozinho, nós podemos ajudar.
Você não está sozinho, nós podemos ajudar...
Essa foi uma das poucas coisas boas que eu tinha ouvido até
aquela hora do dia.
— Obrigado, Sr. Dawson — agradeci honestamente. Era
reconfortante saber que mesmo sendo julgado pelos alunos, eu
ainda tinha com quem contar. — Saber disso é importante pra mim.
— Ótimo, Liam — levantou-se da cadeira, erguendo uma das
mãos para mim. — Terminamos por aqui. Mas lembre-se da
suspensão e... Creio que ainda tenha muito o que conversar... — foi
enfático nessa última palavra. — Com o Noah.
Noah...
Só de pensar nesse nome a culpa batia.
Levantei-me da cadeira e apertei sua mão.
— Certamente, Sr. Dawson. Obrigado — tentando engolir o
remorso que eu ainda sentia, me despedi dele e saí de sua sala.
Quando cheguei ao corredor, estava vazio, porque, claro, o
horário de aulas já tinha começado. Ao menos os olhares que me
deixavam constrangidos não estavam por ali naquele instante.
Acabei me sentindo um pouco mais tranquilo, mas essa
tranquilidade não durou por muito tempo.
Foi apenas o tempo de uma me escorar à uma das paredes
para respirar e pensar no que tinha acontecido, que a imagem dele
veio à minha cabeça. Era impossível não lembrar do que eu tinha
feito minutos atrás. Eu ainda me sentia um verdadeiro lixo.
Talvez essa tenha sido a primeira vez que senti pena e
empatia genuína por alguém ao mesmo tempo.
Tanto tempo o julgando mal e, para completar, ainda agredi o
garoto por algo que ele não tinha feito. Muito pelo contrário, foi o
único que me defendeu. Isso doía. Com que cara eu iria pedir
desculpas? Eu estava morrendo de vergonha.
Na verdade, eu sentia uma estranha mistura de sentimento:
vergonha, culpa, remorso, medo, nervosismo. Tudo junto. E somado
a isso, ainda tinha aquela outra palavrinha que vinha à minha
mente: desculpa.
Pedir perdão era mesmo suficiente para o que eu tinha feito?
A sensação de choro ameaçou voltar e agora era por tudo:
por ter sido descoberto, por ter sido exposto, por estar sendo
rejeitado no meu reino, pelo absurdo que eu tinha feito com o Noah,
por ter machucado o menino, por ter o julgado mal e por não saber
como seria minha relação com o Eric dali pra frente.
Respirei fundo. Não, eu não podia chorar. Engoli o choro.
Eu precisava seguir em frente e fazer o que já para era ter
feito.
Mesmo que eu nunca gostasse de fazer isso, me sentia na
obrigação de me desculpar pela atitude de minutos atrás. A questão
era: ele me perdoaria? Porque, sinceramente, se eu estivesse no
lugar dele, eu não me perdoaria. Eu era uma pessoa extremamente
rancorosa. Mas, será que Noah também era?
E mais: onde ele estava naquele momento? Podia estar no
laboratório de química, mas isso era muito improvável, já que, com
certeza, não estava em condições de assistir aula. O Sr. Dawson
falou algo sobre ele ir à enfermaria do colégio. Talvez ele ainda
estivesse lá.
Eu precisava sair dali e ir embora pra casa, pois estava
suspenso, mas não podia seguir sem antes falar com ele. Mesmo
com a vergonha maior que eu e o receio de olhar novamente em
seu rosto, eu sentia a necessidade de falar com ele.
Assim, desencostei da parede, respirei fundo e segui rumo à
enfermaria do colégio. No entanto, quando dobrei o corredor à
direita, lá estavam, sentados em um banco próximo à algumas salas
de aulas, com semblantes totalmente preocupados, Stefany e Eric.
Ah não.
Quando tentei me virar discretamente para seguir por outro
caminho, eles me viram. Droga. Quanto à Stefany, tudo bem, mas
quanto ao Eric... Não. Eu não queria cruzar com ele pelo colégio. Na
verdade, eu preferia que ele sumisse dali e só voltasse quando a
poeira baixasse. Se é que ela ia baixar.
Virei-me rapidamente e apressei o passo para que não me
alcançassem. Porém, quando estava quase dobrando o corredor em
outra direção, fui segurado pelo ombro e...
— Liam! Espera! — era o Eric. Que saco! Ele estava
estragando ainda mais aquilo que já estava estragado.
Ele estava piorando a situação!
— Não fala comigo! — gritei em um sussurro. — Não fala
comigo agora — me soltei e dei as costas para ele, tentando
caminhar para longe dali. Não queria ao menos imaginar se algum
daqueles alunos nojentos nos vissem assim no corredor.
— Liam, por favor... — ele foi atrás de mim, mais uma vez.
Meu Zeus do Céu. Eu tinha acabado de brigar com alguém que não
merecia, mas já estava tentando me controlar para não dar mais um
escândalo. Só que, dessa vez, com razão, porque o Eric estava
piorando tudo! — Eu tô preocupado contigo. Fala comigo, por favor
— e me segurou pelo braço.
Revirei os olhos e respirei fundo, tentando manter a calma,
mas falhando miseravelmente.
— Será que você não percebe que ‘tá piorando as coisas?!
— gritei novamente em um sussurro. — Você não devia nem ter me
procurado aqui. Sai de perto de mim antes que alguém veja! — e
puxei meu braço, tentando me soltar.
Só que, diferente do Noah, Eric tinha tanta força quanto eu.
Éramos páreos um para o outro. Ou seja, ele me segurou de novo.
— Eu tô preocupado contigo... Depois de tudo o que
aconteceu eu... — tentou falar novamente, mas logo o interrompi.
— Eu estou suspenso, ‘tá legal? — puxei meu braço mais
uma vez. — Pronto. Isso é tudo o que você precisa saber. Agora me
deixa em paz antes que alguém nos veja aqui e faça mais fofocas.
Não vem me ferrar mais do que eu já estou ferrado — Depois de
tudo o que tinha acontecido, eu já estava traumatizado.
— Liam... — Eric ainda balbuciou algo, mas logo ouvi a voz
da Stefany, pedindo para que ele parasse. Amém! Alguém sensato
por ali, porque de desequilibrado já bastava eu.
— Calminha aí, Eric — ela falou. — Fica aqui, porque sou eu
quem vai falar com o Liam — e, dessa vez, foi ela quem me puxou,
afastando-se, assim, dele. Pelo menos, com a Stefany, eu me sentia
mais confortável para trocar algumas palavras no corredor, embora
eu estivesse com pressa para sair dali.
— Você tá suspenso e tá indo pra onde? — perguntou, direta
como sempre.
— Tô indo pra casa, não posso ficar aqui no colégio — Nessa
altura do campeonato, eu já tinha desistido de ir falar com o Noah.
Teria de falar com ele outro dia, pois, depois de me estressar um
pouco com o Eric, não estava mais com cabeça para pedir
desculpas.
As desculpas ficariam para outra ocasião.
— Okay, então eu vou contigo pra sua casa — respondeu,
aparentemente convicta do que queria.
— Não, Stefany... — dei um breve suspiro, balançando
levemente a cabeça. — Não precisa ir. Eu quero descansar, ficar
sozinho, colocar a minha cabeça no lugar. Enfim... — Okay, eu não
tinha tantas desculpas para impedi-la de ir comigo. — Não precisa ir.
Stefany, esperta como sempre, logo percebeu meus
argumentos esfarrapados, e disse:
— Meu bem, se tem alguém apto a colocar sua cabeça no
lugar, esse alguém sou eu. Vamos! — finalizou com determinação.
Eu nunca conseguia convencê-la do contrário.

❖❖❖

Deitados na minha cama, Stefany tinha meu rosto recostado


sobre o seu colo, enquanto fazia carinho em meus cabelos, como se
eu fosse um bebê. O silêncio era tudo o que tínhamos, desde o
momento em que ela entrou no carro até aquele instante em que
nem o som das nossas respirações era possível de se ouvir no
quarto. Talvez ela estivesse esperando pela hora em que eu me
sentisse confortável para falar.
Antes de sairmos do colégio, eu não ouvi o que Stefany disse
para o Eric, porque foi falar em particular com ele. O fato era que ele
não foi atrás de mim, depois que ela se afastou e nós seguimos
para o estacionamento. Apenas, de longe, me deu seu olhar
preocupado, enquanto nos distanciávamos dali. Eu agradeci em
silêncio, porque tudo o que eu menos queria era algum contato com
ele naqueles corredores.
Pela Santa Graça de Thor, quando chegamos à minha casa,
meus pais ainda não tinham saído do trabalho, ou seja, estávamos
sozinhos. Nem a Molly estava lá, pois, pelo recado que deixou
pregado em um ímã da geladeira, tinha ido fazer uma atividade
escolar na casa de uma amiga. Foi melhor assim, já que eu não
precisei esconder meu semblante destruído, apenas subi para o
quarto.
Vestindo somente uma calça de moletom velha, eu estava
deitado como uma criança no colo da Stefany. Seus dedos iam e
voltavam sobre os meus fios de cabelo, enquanto o meu corpo
parecia dormente. Sentia todas as sensações possíveis e, ao
mesmo tempo, nada. Era estranho. Em determinados instantes, eu
sentia como se estivesse vivendo um sonho. Não queria acreditar
que era real.
Mas era.
O imperador perdeu seu o império ou o rei perdeu o reino.
Passei anos agindo como um verdadeiro “governador daquelas
terras” e construindo uma imagem de superioridade, prepotência e
autossuficiência. Todos queriam ser eu ou como eu. Todos
almejavam a minha amizade e tentavam alcançar a minha
companhia. Sim, eu era bem cobiçado.
Eu era visto como um símbolo para aqueles que também
queriam se tornar populares: hétero, capitão do time de futebol,
bonito e pegador de mulheres. Durante tanto tempo busquei a
estabilidade da minha popularidade para no fim perceber que... Eles
não gostavam de mim de verdade ou não me admiravam de
verdade. Eles só idolatravam uma imagem falsa que eu tinha de
criado de mim.
Porque se realmente me admirassem pelo que eu era de fato,
e não por uma imagem construída, eles, com certeza, agiriam da
mesma forma comigo no momento em que descobrissem sobre a
minha real orientação sexual. Eram falsos. Tão falsos quanto eu era.
Uma via de mão dupla da falsidade: me bajulavam falsamente,
enquanto eu, também falsamente, tentava ser o que não era.
Mas... Ah, a popularidade... Tudo o que eu fiz foi para
conquistar a tal popularidade. E o preço dela: agora todos sabiam
da minha vida mais do que deveriam. Se eu fosse um qualquer, um
aluno como qualquer outro, as chances de se importarem com o que
eu fazia ou deixava de fazer seriam bem menores. Ou seja, a
popularidade não valia a pena.
Eu fui tirado do meu pedestal e exposto numa vitrine como
um objeto: “vejam só, ele está ficando com um cara!”. Não queria
isso pra mim agora. Não mesmo. Nem fazia ideia de quando iria me
sentir plenamente confortável para revelar, principalmente no
colégio, sobre essa parte da minha vida. Porém, o circo já estava
montado e a vergonha de pisar novamente naquele lugar já estava
em níveis elevadíssimos.
Só queria ficar no meu quarto e nunca mais sair de lá.
Preferia ficar trancafiado do que ver dezenas de pessoas me dando
olhares de sarcasmo, provocação, reprovação. Se eu pudesse fazer
um pedido, eu gostaria que em um piscar de olhos nós pulássemos
para a última semana do colegial. Assim, eu nunca mais precisaria
pisar lá. Infelizmente, a realidade era outra.
Para completar todas as burradas que eu já tinha feito e
todos absurdos que já tinham acontecido naquele dia, ainda existia
o Noah e o fato de eu não conseguir perdoar a mim mesmo. Se eu
não conseguia aceitar as próprias desculpas que eu queria dar,
ficava imaginando como ele encararia isso. Ele e aquele corpo
pequeno e frágil que eu agredi gratuitamente.
Um nó na minha garganta se formava somente de pensar
nisso.
Na verdade, de pensar em tudo: na exposição sobre a minha
intimidade, na minha relação com o Eric e na agressão física e
verbal que cometi contra o Noah. Desde cedo, a vontade era de
chorar. Mas eu precisava tentar ser forte. Nenhuma lágrima cairia
dos meus olhos. Eu não ia deixar.
E, então, em meio aos meus devaneios silenciosos,
finalmente ouvi a voz da Stefany:
— Como você tá se sentindo? — perguntou, enquanto ainda
estávamos deitados e ela fazia carinho em meus cabelos. Sua voz
era amena e doce, completamente diferente daquela que eu estava
acostumado a ouvir, sempre tão agitada.
— Um lixo — Já a minha voz, saiu completamente
embargada. Mas, ah, droga, eu não podia chorar. Por isso, o engoli
mais uma vez. Eu já estava na fossa demais para ainda me dar a
liberdade de chorar. Isso não precisava acontecer.
— Ah, Liam... — suspirou em desânimo. — Você não pode
ficar assim. Precisa ser forte. Isso não é o fim do mundo e eu tenho
certeza que você vai saber lidar com essa situação daqui pra frente.
Você tem a mim, a Molly e o Eric.
Eric...
— Eu só penso em como vou conseguir terminar o colegial
sem ter a mínima vontade de voltar pra lá e... — parei por alguns
instantes para não deixar o choro sair. O problema era que, quando
eu notava a sensação de choro, a primeira coisa que vinha à minha
mente era o Noah. — Você tem noção da besteira que eu fiz hoje?
— quase me exaltei comigo mesmo ao relembrar.
— Tenho... — Uma de suas mãos desceu para o meu braço,
fazendo um vai e vem de consolo. — Mas só de reconhecer o seu
erro já é um grande passo. O mínimo que você pode fazer agora é
pedir desculpas para o garoto.
Desculpas... Liam Wyman Tremblay Terceiro pedindo
desculpas... Isso era novo.
— Eu sei, eu vou pedir. Só não sei se ele vai aceitar — Isso
me entristecia cada vez mais. — Naquela hora que eu encontrei
vocês no corredor, eu estava indo atrás dele na enfermaria, mas eu
acabei me estressando com o Eric e preferi vim logo pra casa antes
que alguém nos visse juntos.
— Por falar em Eric... — Stefany pigarreou a garganta e se
ajeitou na cama. — Você sabe que ele está bem preocupado
contigo né? Ele viu o que rolou no colégio e sabe do que aconteceu
entre você e o Noah. Ele tá bem preocupado.
Assim que ela direcionou a conversa para o seu nome, de
imediato, eu, que estava deitado sobre o seu colo, saí e encostei
minha cabeça no travesseiro. Inquieto. Naquele momento, eu
realmente não estava com cabeça para lidar com nada que dissesse
respeito ao Eric, por isso respondi:
— Eu não quero falar sobre isso agora.
— Tudo bem Liam... Eu respeito sua decisão... — falou em
tom de derrota. — Mas, por favor, tenta não explodir com ele, tá?
São tão perfeitos juntos, que seria uma grande injustiça se vocês se
afastarem por causa disso. Lembra que o Eric tá contigo para o que
der e vier.
— É, ele tá comigo para o que der e vier, inclusive pra ferrar
com a minha vida — Não me contive em soltar essa alfinetada. Era
inevitável a raiva que eu estava sentindo. Raiva por gostar dele,
raiva por ser assim. E a sensação de choro veio novamente. Não,
eu não podia chorar. Engoli mais uma vez.
— Ah não... — Stefany balançou a cabeça em exasperação.
— Não fala assim, Liam! Ele não ferrou com nada da sua vida. Isso
foi simplesmente coisa do destino. Já era pra ser assim, talvez já
estivesse escrito que vocês ficariam juntos. Algo além da vontade
de vocês. Simplesmente a vida quis que fosse assim. Sem
explicações, sem culpa do Eric, sem culpa sua.
— Nossa, quanta baboseira, Ste — revirei os olhos, soltando
um breve suspiro. — Eu não acredito nessas coisas. Não acredito
nisso de destino, nem que as coisas já estejam escritas quando a
gente nasce. Acho que eu simplesmente fui fraco por... Por... —
sibilei, enquanto a notava me encarando com expectativa. — Por ter
me apaixonado — fechei os olhos de súbito e coloquei as mãos em
cima do rosto. Droga, não acreditava no que tinha acabado de falar.
— Apaixonado?! — Essa foi a primeira vez, durante aquela
tarde, em que ouvi a sua voz se animar. — Ah meu Deus, eu adoro
quando você confessa as coisas! — e puxou minhas mãos,
liberando, assim, o meu rosto. Que droga. — Você não foi fraco por
se apaixonar. Você simplesmente se apaixonou. Então, relaxa e não
pira com essa situação. Não joga fora uma das melhores coisas que
já aconteceu na tua vida.
Uma das melhores coisas que já aconteceu na minha vida?
Por favor...
— Eu não quero vê-lo nem pintado de ouro por tipo... Uns
dez anos! — declarei com uma falsa determinação. Tão falsa quanto
eu era. Eu era todo falso.
No entanto, quando me calei, ouvi um típico som de
notificação chegando ao celular. Era o da Ste.
— Só um instante, Liam — ergueu o dedo indicador para que
eu esperasse um pouco e retirou o celular do bolso da calça jeans.
Ao que parecia, uma mensagem havia chegado, pois seus olhos
leram algo. E, então, pouco tempo depois, virou-se para mim e... —
O Eric tá aqui. Na frente da sua casa. Ele quer subir pra falar
contigo.
— O quê?! — disparei, incrédulo. Como ele podia ter a
audácia de ir atrás de mim, quando sabia que eu não queria falar
com ele, muito menos vê-lo? — Pode mandá-lo ir pra casa, Stefany!
Não quero falar com ele. Não agora. Eu tô sem cabeça pra isso! —
e me levantei da cama, com a raiva já dando indícios de que iria
voltar.
— Liam... Calma... — respirou fundo e foi atrás de mim,
tocando em meus ombros e massageando-os em uma leve tentativa
de fazer a tensão passar. — Acho que vocês precisam conversar.
Se não for agora, vai ser quando? Depois de você ter feito alguma
outra besteira, como a que fez com o Noah?
Ah não... Eu nem queria me lembrar desse fiasco!
— Eu vou fazer alguma besteira é se ele entrar nesse quarto,
Stefany! — passei as mãos no rosto, tentando controlar a raiva, mas
estava quase impossível. — Por favor, tira ele daqui e leva pra bem
longe. Não quero nem ouvir a voz.
— Você precisar aprender a se controlar e a lidar com os
problemas de maneira correta, Liam — Dessa vez, falou em tom de
repreensão, como uma mãe dando sermão em um filho. — Você
não deve fugir dos problemas, nem os atacar como um leão. Meio
termo pra tudo na vida. Não caia no mesmo erro de hoje cedo.
“Não caia no mesmo erro de hoje cedo”.
O Noah... Droga. Já tinha feito uma tremenda burrada, não
podia errar de novo. Só que eu sentia a raiva querendo aparecer,
mas precisava me controlar. O diretor Dawson disse para eu ser
menos explosivo e mais racional. Isso era tão difícil! Porém, eu tinha
que tentar. Que eu não o esganasse, era tudo o que eu pedia.
Então, respirando fundo, respondi:
— Tá — Minha voz saiu meio à contragosto. — Traz ele.
Com um pequeno, mas satisfeito sorriso, replicou:
— Fica tranquilo. Vai dar tudo certo. O Eric só quer te ajudar,
tá? — me deu um beijo no rosto e caminhou até a porta, saindo logo
em seguida.
Eu estava sozinho, perdido em meio à pensamentos
controversos. Caminhei de um lado para o outro do quarto,
sentindo-me impossibilitado de esconder a ansiedade por saber que
o Eric estaria ali em poucos minutos. Parei, encostado à porta que
dava acesso à varanda do quarto, e pensei no quanto a minha vida
tinha virado um caos.
Quando, enfim, respirei fundo mais uma vez, para tentar me
controlar, ouvi a porta do quarto se abrir. Meio temeroso, virei-me
em direção a ela e vi o exato instante em que ele a cruzou e a
fechou. Seu rosto estava tão destruído quanto o meu e seus olhos,
então, pareciam um mar pronto para cair.
Nesse instante, a raiva que eu estava querendo sentir
simplesmente se dissipou e a vontade de chorar veio à tona, muito
mais forte que antes. Eu só queria chorar e desabar, tanto quanto
ele também parecia querer, mesmo que eu não soubesse se era
pelo mesmo motivo. Ah não, dois chorões não.
Virei-me de frente para a varanda novamente, cessando
nosso contato por meio olhares, porque, se eu continuasse o
encarando, com certeza não iria mais conseguir segurar aquilo que
estava prendendo desde o momento em que tudo aconteceu no
colégio.
Porém, segundos após, senti quando ele se aproximou e
tocou carinhosamente em meus ombros, enquanto eu olhava para
frente. Ao contrário do que eu podia imaginar, meu corpo
estremeceu em ânsia por mais toques. Pensei que iria sentir
repulsa, mas eu só queria mais das suas mãos.
No entanto...
— Não toca em mim — Mesmo com a voz embargada, eu
não queria dar o braço a torcer.
Ah, eu e a minha cabeça dura.
— Liam... — Sua voz saiu tão embargada quanto a minha. —
Olha pra mim, por favor — e me abraçou por trás, passando seus
braços firmes por minha cintura e encostando sua cabeça em meu
ombro. Inevitavelmente fechei meus olhos, aproveitando um pouco
do seu corpo perto do meu.
Eu era tão fácil... Fácil por me deixar levar sempre que ele
chegava perto...
Se eu tivesse um coração, Eric seria a única pessoa por
quem ele bateria.
Mas... Eu me sentia tão fodido.
Por isso, afastando-me dele, me desfiz do abraço, caminhei
pelo quarto e...
— Eu te odeio — Meus típicos pensamentos contraditórios e
conflituosos vieram à tona em forma de três palavrinhas que
caminhavam junto comigo desde que minha consciência soube da
existência do Eric, ou seja, desde criança.
Sempre o odiando.
— O que disse? — questionou, fazendo-me notar surpresa e
temor em seu tom de voz.
Ainda sem encará-lo, senti toda a mistura de rancor, tristeza,
mágoa dentro de mim. O nó subia na minha garganta, enquanto
meus olhos se encharcavam de lágrimas. De costas para ele, meu
peito subia e descia, como se eu tivesse corrido uma maratona.
Quando, enfim, não aguentei mais, virei-me para ele com os
olhos inundados e o rosto vermelho. Minha voz, então, mais
sufocada que nunca, externou tudo aquilo que estava guardado
desde o instante em que a bomba explodiu no colégio:
— Eu te odeio! Eu odeio ser assim, eu odeio o que você faz
comigo, eu odeio me sentir atraído por ti, eu odeio gostar de ti! —
Todas as palavras saíram como uma metralhadora, mas... Na última
parte... — E eu odeio principalmente... — Meu tom baixou e minhas
lágrimas, depois de tantas horas, caíram. — Eu odeio
principalmente não conseguir te odiar, nem um pouco, nem por um
segundo, nem mesmo só por te odiar.
Então, o soluço de choro saiu e eu, completamente entregue
às emoções, caminhei para os braços dele como uma criança.
Tentei por tanto tempo segurar as lágrimas, mas na frente dele eu
não conseguia. Elas simplesmente saíam. Eric me abraçou forte,
mantendo-me firme em seus braços, e levou uma de suas mãos à
minha nuca, enquanto eu chorava com o rosto afundado na curva
do seu pescoço.
Chorei por tudo. Chorei por ter sido exposto de uma maneira
que eu não queria, chorei pelos olhares que eu recebi, chorei pelo
que eu tinha feito com o Noah, chorei por estar me sentindo um lixo.
Enquanto as lágrimas caíam, suas mãos subiram pelo meu corpo,
indo em direção ao meu rosto, e, quanto lá chegou, o segurou firme,
trazendo-o para frente de si. Foi impossível não ver o meu
semblante ainda mais acabado, meus olhos e meu rosto vermelhos.
Mas, quando menos esperei, ele, que agora me observava com
ternura, olhou no fundo dos meus olhos e disse:
— Eu te amo.
Eu paralisei.
Ele tinha falado isso?
Essa foi a primeira vez na qual Eric falou as tais três
palavrinhas. Antes, ele só tinha chegado a dizer “eu te adoro” ou “eu
adoro tal coisa em você”, mas “eu te amo” não. “Eu te amo” era a
primeira vez, o que me deixava extremamente incrédulo. Incrédulo
pela coragem e pelo próprio amor. Por isso, balancei a cabeça em
negativo, enquanto lágrimas ainda cintilavam meus olhos e...
— Eu não mereço receber o seu amor — fui franco. — Eu
sou um monstro. — Isso só me fazia lembrar do que eu tinha feito
mais cedo com o Noah e de tantas atitudes ruins que já tinha
tomado com o próprio Eric. — Você é uma pessoa incrível — Pela
primeira vez, eu também fiz um genuíno elogio a ele. — Merece
alguém melhor que eu.
— Não... Shh... — colocou o polegar sobre os meus lábios
para que eu não continuasse. Uma lágrima também caiu de seus
olhos. — Eu não quero outra pessoa. Eu quero você. Só você, tipo
pra sempre. E eu tô pouco me importando pra o que as pessoas do
colégio estão falando. Eu não me importo mesmo. Só não quero te
perder, só isso...
Como ele podia me perder se eu já era dele?
— O problema é que eu ainda me importo com o que falam...
— fui sincero novamente, enquanto ele ainda mantinha meu rosto a
poucos centímetros do seu. — E tô me sentido destruído por ter sido
exposto, por receber aqueles olhares, por saber que sempre que eu
passar nos corredores vão falar de mim — Mais lágrimas saíam. Eu
ainda não estava preparado para passar por isso.
— Liam, eu te amo e vou estar sempre contigo — olhou
firmemente em meus olhos. — Você não vai passar por isso sozinho
— falou com determinação. — Eu tô aqui pra te ajudar, te
acompanhar, te dar apoio... Pra fazer tudo por ti. Eu só te quero
comigo. Só isso. Te amo como nunca amei alguém.
E, mesmo tendo a certeza de que não merecia, eu realmente
me senti amado. Foi a melhor sensação em anos, apesar do dia
desastroso que tive. Não podia imaginar que, se em algum
momento ele me dissesse que me amava, eu reagiria assim, mas a
maneira como consegui respondê-lo foi o beijando.
Beijei-o com todo o carinho que eu era capaz de dar. Se é
que eu tinha a capacidade de dar carinho para alguém... Mas, tentei.
Tentei e falei, quando nossos lábios se separaram um pouco:
— Você tem certeza disso? Porque, olha, se eu dou um
passo, eu faço uma merda — fui sincero mais uma vez. Nunca tinha
usado de tanta sinceridade em um só diálogo.
— Nunca tive tanta certeza na minha vida — replicou com
convicção e desviou seu rosto alguns centímetros do meu, indo em
direção ao meu ouvido. — Eu amo, amo, amo... — sussurrou
carinhosamente. — Amo você. E, se não for pedir demais... Por
favor... Não desiste da gente por causa disso...
Assim, abraçou-me de maneira ainda mais terna, deixando
uma trilha de beijos até a minha boca. Nossos lábios se
encontraram mais uma vez, compartilhando de carinho, afeição,
calor... E, então, quando pensei que não, me surpreendi ao notar
que eu estava dizendo...
— Mesmo me sentido fodido, eu vou tentar. Por você.
Porque eu não valia nada, mas ele, pela pessoa que era,
merecia que eu tentasse, que eu não desistisse na primeira
reviravolta da vida.
A temida, digo, bendita viagem

Liam

Depois do dia anterior ter sido tão tempestuoso quanto o período


invernal, o sol daquela manhã de sábado abriu como se fosse uma
premissa de algo bom. Será que eu podia confiar? Ainda me sentia
completamente destruído, mas também não podia ficar deitado na
cama pelo resto da vida.
Por isso, tirei o edredom de cima de mim e, quando olhei
para o criado mudo ao lado da minha cama, o relógio indicava que
eles chegariam em poucos minutos para buscar a Molly e eu. O final
de semana em comemoração ao aniversário do Eric estava
começando e eu não sabia o que esperar.
Apesar de tudo o que aconteceu, eu ainda me lembrava do
que tinha dito a ele no pub de Oxford. Recordava-me de cada
palavrinha pronunciada e, principalmente, da decisão tomada: eu
iria dar a ele o meu bem mais precioso. Pelo menos, tentar.
Sentei na cama e suspirei, fechando os olhos e esfregando o
rosto com as mãos. O nervosismo parecia querer aparecer, porque,
como se não bastasse tudo o que já havia ocorrido em um curto
espaço de tempo de um dia, eu ainda precisava encarar outra
realidade: eu ia transar com um homem.
Santa Vodca do Céu.
Tudo bem que não era um homem qualquer, era o Eric, o
cara mais fantástico que eu já tinha conhecido. No dia anterior
mesmo, confessei pela primeira vez, em voz alta para que ele
ouvisse, o quanto o achava incrível. Há uns três meses, nunca me
imaginaria fazendo isso, mas ele era. Então, tudo não passava de
fatos.
Porém, por mais maravilhoso que ele fosse, ainda sentia um
peso em mim. O peso pelo episódio do colégio e o peso por saber o
que eu iria fazer logo mais à noite. Era difícil conciliar essas duas
questões, ainda mais se eu pensasse o quanto ainda estava me
sentindo um lixo e o quanto queria passar o resto do dia dentro do
quarto.
Caso eu pudesse fazer um pedido a algum “gênio da
lâmpada”, certamente suplicaria para que me deixasse passar os
próximos quinhentos dias debaixo dos lençóis ou, quem sabe, até
me fizesse sumir da face da Terra para sempre. Por outro lado, eu
pensava: era o aniversário dele. Uma das pessoas mais importantes
pra mim. Eu precisava fazer um mínimo esforço.
Já bastavam a inúmeras vezes da minha vida em que agi
como um completo idiota.
Eu não podia ser mais assim.
Mudar.
Tentar.
E, então, enquanto estava imerso em meio aos pensamentos,
quase pondo um pé para fora da cama, Molly abriu a porta do meu
quarto de supetão, pegando-me surpresa. Ela não tinha o costume
de fazer isso, mas entrou com um semblante tão aflito, que me fez
pensar, em questão de milésimos, se algo havia acontecido.
Antes que eu pudesse abrir a boca para falar qualquer coisa,
ela já foi logo dizendo:
— Stefany acabou de me ligar para me dizer que daqui a
pouco eles chegam, mas me contou também o que aconteceu
ontem — sentou-se de frente para mim. — Achei estranho que,
depois que cheguei da minha amiga, você já estava no quarto,
dormindo, mas imaginei que talvez ainda estivesse cansado da
viagem. E agora ela me contou isso. Como você tá? — Seus olhos
buscaram os meus com preocupação.
— Tentando seguir — respondi, procurando ser sincero, e
baixei o olhar para as minhas mãos. Por mais que eu tentasse
seguir em frente e pensar que tudo aquilo não passava de uma fase,
uma péssima fase, ainda me sentia muito pra baixo, bem destruído.
Um lixo. Um zero.
Molly suspirou em desânimo, escorregando pela cama e
aproximando-se ainda mais de mim.
— Se está tentando seguir, então tira essa carinha de tristeza
do rosto — passou uma das mãos em minha bochecha. — Vai ficar
tudo bem, certo?
— Queria ter certeza disso — ergui meu olhar novamente
para ela. — Difícil agir normalmente depois de tudo o que aconteceu
— Principalmente quando em minha cabeça ainda rondavam
pensamentos sobre o que iria acontecer em um dos quartos da casa
de campo.
Suspirou mais uma vez, segurando meu rosto e olhando no
fundo dos meus olhos.
— Então, que tal aproveitar esse final de semana para tentar
espairecer? Tenho certeza que essa viagem vai ajudar. Tenta
usufruir desse momento e esquecer o que aconteceu. Pensa só no
quanto você pode se divertir.
— Me divertir? — sorri com certo desdém, porque não via
graça alguma em ter que sair quando queria ficar em casa. Eu até já
tinha aceitado a ideia de viajar e estava convivendo perfeitamente
com isso. Sendo sincero, eu estava até de certa forma empolgado.
Só que eu não contava com o episódio do dia anterior.
— Sim! Se divertir! — respondeu com determinação. —
Vamos! Quero ver um sorrisinho de verdade nesse rosto! — puxou
levemente minha boca para lados, a fim de formar o tal sorriso e...
— Animação! Animação! — me chacoalhou, fazendo-me levantar
logo em seguida da cama e dando-me tapinhas de ânimo no
bumbum.
Foi impossível não sair daquela cama e ir direto para o
banho, pois Molly jamais me deixaria ficar debaixo dos lençóis por
mais tempo. Eu sabia que ela queria me animar e, claro, com razão.
Até eu já estava com raiva de mim mesmo por me sentir tão
cabisbaixo.
Assim, dei um breve suspiro, abri a porta do banheiro e me
olhei no espelho: “Tudo vai melhorar, Liam. Tudo vai dar certo.” Falei
para mim mesmo, tentando mentalizar cada uma das palavras. Eu
precisava ser forte. Esse final de semana tinha que acontecer.

❖❖❖

Não demorei muito até terminar de me arrumar e descer para


o lanche da manhã. Minha mala já estava pronta e, lógico, o
presente do Eric que custou o meu rim já estava embalado e
devidamente guardado dentro dela. Ainda não sabia que horas iria
entregá-lo, mas esperava que não fosse em um momento que me
deixasse muito constrangido, porque, bem, eu nunca o havia dado
presente algum.
Meus pais já estavam sentados à mesa, assim como minha
irmã. Conversavam sobre assuntos que eu pouco me importava,
mas, para manter as falsas aparências de que estava tudo bem,
tentei acompanhá-los com “hum”, “unhum”, “sim”, “não”. Zeus me
livre se eles soubessem o que tinha acontecido. Preferia qualquer
coisa a ter que encarar uma realidade onde meus pais sabiam que
eu estava ficando com um cara.
E que esse cara era nada mais, nada menos, que o Eric.
No entanto, quando um carro buzinou na frente da nossa
casa, fazendo meu coração acelerar de ansiedade, por saber que
eram eles, minha mãe tocou em meu ombro, chamando minha
atenção antes que eu pudesse acompanhar a Molly, que já abria a
porta e já saía de casa. Com sua voz tipicamente calma e gentil,
perguntou:
— Está tudo bem, filho?
Nesse exato instante, meu coração se partiu. Não por um
motivo qualquer, mas porque eu sabia que estava a enganando e,
mesmo que já tivesse a enganado algumas outras vezes durante a
minha vida, isso parecia que não fazia mais parte de mim. Ah, eu
queria tanto falar o que estava acontecendo! Porém, ainda não
estava preparado para expor isso aos meus pais. Então, apenas
respondi:
— Sim, mãe, tá tudo bem — e tentei esboçar um falso sorriso
verdadeiro.
— Tem certeza, filho? — Ainda com o semblante carregado
de afeto, questionou. — Você não tem algo a me falar? — e passou
uma das mãos em meus cabelos, em um claro sinal de carinho que
me fazia sentir ainda mais culpa. A bola de neve de mentira só
aumentava.
— Sim, mãe — repliquei com uma convicção que não era
minha. Por fora, eu parecia o poço de segurança e autoconfiança,
enquanto, por dentro, eu estava acabado. Eu já não era mais o
mesmo. Antigamente, mentia sem peso na consciência, já agora...
— Tá tudo bem. Não precisa se preocupar.
Com um pequeno sorriso de conformação, ela disse:
— Certo, querido — suspirou, como se guardasse dentro de
si algo que queria externar. — Faça uma boa viagem e cuidado, tá?
Eu já estou morrendo de saudades — e me abraçou.
Mesmo desanimado, foi impossível não dar uma pequena
risadinha. Mães... Balancei a cabeça com certo divertimento.
— Relaxa, mãe. Não são nem dois dias direito. Vou hoje e
volto amanhã à tarde. Eu sobrevivo! — garanti e, em poucos
instantes, me despedi.
O adeus ao meu pai foi ainda mais rápido, logo já estávamos
cruzando a porta, enquanto ambos nos observavam ir embora.
Quando, enfim, me virei... Lá estava ele... Encostado no capô do
seu Porsche amarelo, de braços cruzados, um porte de tirar o fôlego
e um sorriso de fazer eu me perder.
Eric estava lindo e eu... Gay demais da conta!
Meu Zeus.
Balancei a cabeça em negativo para espantar os
pensamentos e me aproximei. Stefany estava ao seu lado, mas logo
tratou de falar com a Molly, restando-me seguir em direção ao Eric.
Seu sorriso se tornou ainda maior e, quando me dei conta, ele já
estava me abraçando carinhosamente.
Carinhosamente até demais, para quem estava a poucos
metros de distância dos meus pais.
Não tinha como negar, eu fiquei muito sem jeito. Os coroas
ainda estavam na porta.
— Bom dia, meu amor — falou baixinho para que somente eu
ouvisse, mas, ainda assim, meu corpo deu uma travada com tal
ousadia. Realmente esperava que só eu tivesse escutado isso. —
Tá tudo bem? — e me soltou do abraço, somente o suficiente para
me olhar nos olhos. — Você dormiu bem?
— Eu tô bem — respondi, dando um passo para trás logo em
seguida. Estávamos muito próximo em público. Isso não era bom.
Por mais que o colégio já tivesse espalhado boatos, meus pais
ainda não sabiam. Então, era melhor ainda nos mantermos
afastados. — Dormi bem. Valeu por perguntar.
Então, assim que me calei, a típica voz agitada da Stefany
soou em meus nos ouvidos:
— E, aí, gatinho! Partiu pra melhor viagem do século? — me
chacoalhou. — Vamos lá! Vamos lá também, Eric! — o apressou
para que tomasse logo o lugar do motorista. — O tempo é precioso!
Vai na frente com o ele, que eu vou atrás com a Molly — abriu a
porta e me empurrou para dentro em um piscar de olhos.
Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, a fechou bem no
meu nariz e seguiu para o banco traseiro, juntamente com a Molly.
Eu notava que todos ali estavam fazendo de tudo para que eu me
sentisse bem, pois sabiam que eu ainda não estava cem por cento.
A Stefany, então, nem tocou no assunto do dia anterior. Era
como uma página que eles quisessem virar para que o fim de
semana fosse o melhor possível. Queriam que estivéssemos
praticamente dentro de uma bolha.
Eu não podia prometer animação, mas, pelo menos, me
esforçava.
Como as malas já estavam no bagageiro, tudo o que
precisamos fazer foi esperar que o Eric desse a partida no carro.
Com breves acenos de mãos e algumas buzinadas, nos
despedimos de vez dos meus pais e rumamos pelas estradas da
Inglaterra em direção a Cambridge.
Eu tentava não pensar no que iria acontecer ainda naquele
dia, mais especificamente à noite. No entanto, era difícil esquecer,
quando o sujeitinho, que estava bem ao meu lado, repousava sua
mão em minha coxa, quando não estava trocando as marchas,
enquanto a outra segurava o volante.
A cada carícia na minha perna, meu coração acelerava mais.
Aquele dia, certamente, iria entrar para a história.

❖❖❖

Após cerca de duas horas de viagem, a paisagem da antiga


cidade universitária do Reino Unido começou a surgir através das
janelas do veículo. Bem menos desenvolvida e agitada que Londres,
o principal cartão postal de Cambridge era os colégios recobertos de
vegetação, alinhados ao longo do rio, os verdes gramados e os
campos de esportes. De fato, uma cidade muito bucólica.
Se o centro do local era calmo assim, a casa de campo de
Samantha e Lexie, então, nem se falava. Afastada da zona urbana,
o grande casarão ficava na área rural, a alguns quilômetros da
civilização propriamente dita. Não podia negar: era um espaço muito
confortável, perfeito para esquecer de todos os problemas da vida.
E, quando se tratava de problemas da vida, era impossível
não lembrar do tal absurdo. Porém, durante todo percurso, Eric,
Stefany e Molly fizeram quaisquer outras coisas, que não fossem
falar sobre o ocorrido. Riram, contaram histórias, colocaram música
alta, curtiram. Não me restavam mais dúvidas: eles definitivamente
queriam fazer eu me sentir melhor.
Stefany e Molly até trocaram beijinhos no banco traseiro,
enquanto eu podia olhar tudo pelo espelho do retrovisor. Devia
confessar que era bem constrangedor. Não pelo fato da minha irmã
estar beijando uma mulher, mas simplesmente pelo fato de estar
beijando. Podia ser até com um camelo, uma girafa, um leão. Mas,
certamente, não me sentia confortável em ver minha inocente
irmãzinha se enroscando com alguém.
Mesmo que esse alguém fosse a Stefany, minha melhor
amiga e uma das pessoas mais legais do mundo. Por mais que
antes eu e Molly não nos déssemos muito bem, sempre tive muito
cuidado com ela, e um ciúme saudável. Coisa de família. De toda
forma, tudo bem, eu iria superar. Tudo não passava de um
“ciuminho” de irmão que eu sempre tive dela.
Stefany e Eric agora faziam ainda mais parte da minha
família. Não estávamos mais ligados por nossos pais. Estávamos
ligados por nós mesmo e pelo vínculo que criamos entre si. Quatro
inseparáveis amigos e dois casais. Não que considerasse que eu e
o Eric fôssemos mesmo um casal. Afinal, ninguém estava
namorando. Era só “pegação”.
Só isso.
Quando, enfim, o carro estacionou, Samantha e Lexie, que
estavam na varanda, logo se apressaram para nos recepcionar.
Uma alegria só! Um sorriso que estampava os rostos de orelha a
orelha. Ouvi falar que tinham ido antes para preparar a casa e nos
receber com mais organização. Sempre achei que essas mulheres
fossem loucas, especialmente a Sam. Talvez Stefany tivessem de
quem puxar a loucura. Era coisa de família.
— Meus queridos! — praticamente correu em nossa direção.
— Eu já estava preocupada! Chegaram quase no horário do almoço!
— abraçou a cada um de nós, juntamente com sua namorada Lexie.
Deu até um beijo no meu rosto! Sim, ela era muito extrovertida e
louca. — Aconteceu alguma coisa? Vocês estão bem?
— Ah não, tia! Pode ficar tranquila — Eric respondeu com o
mesmo sorriso imenso que ela nos dava. — A gente só saiu um
pouquinho tarde de Londres, por isso demoramos. Mas o caminho
foi tranquilo. Tudo na mais perfeita ordem!
— Ah que ótimo! — Dessa vez, foi Lexie que se pronunciou.
— O que acham de subir para deixar as malas nos quartos? Temos
quartos para cada um de vocês! Já deixamos tudo preparado e
limpinho — finalizou com entusiasmo.
“Temos quartos para cada um de vocês”? Eu ouvi isso
mesmo?
Então, ela estava querendo dizer que nenhum de nós
dividiríamos o mesmo quarto? Ficaríamos em quartos separados?
Meu Zeus do Céu! Que notícia maravilhosa! Será que minha
privacidade ainda estaria intacta pelo menos algumas horas antes
do Eric invadi-la? Isso era perfeito!
Qualquer coisa, se eu quisesse fugir de suas garras, poderia
me trancar no meu quarto.
Okay, era melhor eu parar de drama.
Logicamente que eu não ia comentar algo sobre isso, mas
esperei pacientemente até que subíssemos as escadas daquela
mansão para que minhas suspeitas fossem confirmadas. E elas
realmente foram. Cada um de nós ficou em um quarto diferente do
imenso corredor, mas todos próximos um ao outro.
Pelo que pude notar, o casarão tinha dois andares. Embaixo
ficava a sala, a cozinha e todo o resto, enquanto o andar de cima
era destinado aos inúmeros quartos. Um corredor repleto deles.
Cada um com banheiro. Era realmente uma mansão, o que me fazia
chegar a uma conclusão:
Elas eram ricas.
Depois que acomodamos nossos pertences nos quartos,
descemos para a área externa, mais especificamente a piscina. Era
onde a mesa do almoço estava posta: um lugar de deixar qualquer
queixo caído. Mas, mesmo que eu estivesse hipnotizado com a
exuberância daquele local, sem saber direito nem para onde ir de
tão grande que era, os acompanhei.
Como se estivesse, de certa forma, preocupado comigo, Eric
não saía do meu lado, ora colocando a minha na cintura, ora
segurando a minha mão. Talvez se perguntasse como eu estava me
sentindo diante de tudo aquilo. E, eu não me enganei, pois logo
constatei, quando ele questionou baixinho, ao pararmos próximo ao
balcão do deck, onde todos já começavam a se servir um pouco
mais distantes de nós:
— O que você tá achando?
— Ah, eu estou gostando — fui sincero. Estava curtindo
mesmo. Não que fosse algo do tipo “nossa, eu tô super animado”,
mas estava achando interessante o local, assim como também me
esforçava para não ser um completo chato e idiota logo no dia do
aniversário dele. Já bastavam todos os outros anos da minha vida
em que eu pouco me importei com essa data.
— Então, por que até agora você ainda não me deu um beijo
bem gostoso? — fez um biquinho de bebê e uma carinha de
cachorro sem dono.
A coisa mais linda do mundo, que fez com que eu
estupidamente paralisasse de cima a baixo. Era incrível a
capacidade que ele tinha de deixar uma simples pergunta com uma
conotação mais “sexual”, apesar da cara de gatinho do Shrek que
fez.
Me sentia tão absurdamente gay e bobo.
Thor, quando eu tinha me tornado assim? Talvez tivesse
perdido o controle sobre a minha vida.
— É... — pigarreei a garganta com certa inquietação. — A
ge-gente tá na frente das suas tias... — Até gaguejei, porque, bem,
eu não estava mais sabendo ser uma pessoa normal na frente dele,
principalmente quando sentia provocação e ousadia de sua parte.
— Ah, que bobagem... — sorriu frouxo, dando de ombro. —
Você sabe que elas sabem de tudo... Vem cá... — e me puxou
levemente pela blusa, todo manhoso, abraçando-me logo em
seguida. Eu não pude evitar, quando dei por mim, já estava lá,
demonstrando afeto e carinho na frente de todo mundo.
Seus braços me envolveram com dengo e carinho, parecia
até uma criança pedindo por colo. Com as mãos exatamente na
minha cintura, seu rosto se afundou contra a curva do meu pescoço,
aspirando meu cheiro com suavidade e beijando a minha pele com
delicadeza.
Seus lábios subiram pelo meu pescoço, chegaram ao meu
queixo e foram em direção à minha boca. Quando pensei que não,
já estava lá, beijando aquela boca gostosa, enquanto ele segurava
meu rosto com uma das mãos. Credo. Eu era muito fraco. Logo ali,
na frente de todo mundo.
Com garotas, eu beijava até em um palco, na frente um
milhão de pessoas, mas com o Eric era diferente. Eu ainda estava
me acostumando a beijar um homem em público. Coisa que deveria
ser bem normal, mas, infelizmente, a sociedade não ensinava
assim. Ou seja, a gente tinha que aprender com o tempo.
Mas, foi justamente por causa desse “maravilhoso” detalhe
de ser em público, que logo ouvi algumas brincadeirinhas:
— Eita! — Molly foi a primeira a gritar. — Que pouca
vergonha é essa?! — questionou com ironia, enquanto deixava
escapar uma grande risada.
— Nossa! — Dessa vez, foi Stefany. — Vão logo para um
quarto, vocês dois! — completou em tom de chacota.
Quarto? Que elas não viessem me falar de quarto, porque eu
já estava ficando preocupado.
Essas duas adoravam tirar onda com a cara dos outros.
Eric, por sua vez, ao ouvir as brincadeiras, separou nossos
lábios e virou o rosto com um grande sorriso, se divertindo tanto
quanto elas, enquanto eu dava o meu melhor olhar de tédio para
ambas. Elas que me aguardassem, porque, quando eu visse
qualquer mínimo beijinho, iria zoar também!
— Ai, meninas, deixem os rapazes aproveitarem em paz! —
Lexie logo intercedeu em tom de brincadeira também. — Tão
bonitinho vê-los juntinhos! — falou como se fosse uma daquelas
garotas que suspiravam, enquanto liam fanfics de romance gay.
— São bem bonitinhos mesmo... — Samantha também falou.
— Mas... — nos olhou com certa malícia. Uma malícia que até dava
medo! — Se quiserem, os quartos estão disponíveis lá em cima — e
soltou uma piscadela para nós, juntamente com um sorriso de canto
de boca.
Eu nunca me enganei com relação a ela: essa mulher era
louca!
Onde eu podia enterrar minha cabeça com a vergonha que
estava sentindo, heim, Santa Vodca do Céu? Devia estar rogando
por mim, mulher!
Os quartos separados não fariam a menor diferença.
E para completar...
— Quem sabe mais tarde, não é? — sussurrou em meu
ouvido, de modo que nenhuma delas percebesse.
Ah, pronto!
Sabe o gelo? Eu senti de em cada centímetro do meu corpo.
Era uma hora perfeita para desmaiar de nervosismo, porque eu
sabia. Eu sabia muito bem que, apesar de tudo, ele ainda lembrava
do que eu tinha dito no pub de Oxford. Querer, eu queria, mas, olha,
não estava sendo fácil encarar a realidade.
Zagueiro apaixonado

Liam

O almoço estava seguindo normal. Na verdade, “normal”. Bem


entre aspas mesmo, porque as palavras que Eric sussurrou em meu
ouvido continuavam latejando em minha mente: “quem sabe mais
tarde, não é?”. Meu Zeus do Céu, isso ainda me deixaria louco até o
final do dia.
Tentava me concentrar na comida à minha frente, mas,
droga, eu não conseguia tirar da cabeça que à noite, depois de
todas as loucuras que haviam acontecido no dia anterior, eu iria
ceder o meu bem mais precioso a ele. Por mais que eu tivesse
aceitado de livre e espontânea vontade, ainda não me sentia
completamente confortável.
A questão era que talvez eu nunca fosse me sentir
plenamente confortável com isso, enquanto não provasse pela
primeira vez. Talvez, depois de experimentar, eu gostasse e
quisesse de novo. Quem sabe na segunda vez eu estivesse menos
nervoso. O problema era que... E se eu não gostasse? E se eu
odiasse? Meu coração acelerava só de pensar nessa possibilidade.
Eu e Eric não podíamos ser incompatíveis até nisso. Não
mesmo! Ia estragar tudo! Que a Santa Vodca do Céu me desse
tranquilidade. Era tudo o que pedia.
E, então, quando já estávamos quase finalizando nossos
pratos, Samantha direcionou a conversa para mim:
— Como seus pais estão, Liam? Tudo bem com eles? A
Claire? — questionou ao beber um pouco do seu suco.
— Estão bem sim. Estão todos bem — respondi, dando-lhe
um pequeno sorriso. Estava aprendendo a ser educado. Eu sabia
que semana atrás tinha dito que não gostava dela, porque me
olhava de um jeito esquisito desde criança, como se já soubesse o
que ia acontecer entre mim e o seu sobrinho.
E de fato eu percebia seus olhares, mas era uma mentira
dizer que não gostava dela por causa disso. Na verdade, não tinha
nada contra. Deveria confessar que era apenas uma desculpa, para
disfarçar o medo que estava sentindo de ter que fazer essa viagem.
Medo justamente do que iria acontecer mais tarde.
Mas, enfim, ali estava eu, tentando burlar o nervosismo,
seguir em frente e ter novas experiências.
— Ah, que ótimo! — ela sorriu de volta. — Eu e a Lexie
realmente ficamos muito feliz por eles terem permitido que você e
Molly passassem conosco esse fim de semana — falou enquanto
segurava carinhosamente a mão da namorada.
— Ah, Samantha, imagina! — Molly logo se pronunciou,
dando uma pequena risadinha. — Não teria porque não deixar. Eu
conversei com a mamãe essa semana e ela foi... — virou levemente
o rosto em minha direção, oferecendo-me um olhar afetuoso e, ao
mesmo tempo, enigmático. — Foi muito compreensiva.
Stefany, que estava sentada ao seu lado, também se virou
para mim, mas observou-me meio de relance. Eu não estava
entendendo a absolutamente nada. Porém, ela logo se pronunciou,
dando um sorriso bem divertido, que, ainda assim, me deixou meio
confuso:
— A tia Claire é sempre um amor.
— Vocês têm razão, queridas — Lexie, com seu típico tom de
voz simpático, também falou. — A Claire realmente é um amor de
pessoa. Mas... — deu um pequeno sorrisinho de quem não queria
cortar assunto, embora fosse necessário. — Eu e a Sam precisamos
ir agora à cidade.
— Nossa, é mesmo! — Samantha respondeu como se já
estivesse se esquecendo. — Nós fizemos algumas encomendas
para o aniversário do Eric e precisamos ir buscar. Vocês se
importam, meus amores? Não vamos demorar muito.
— Poxa, tia, encomenda? — Eric questionou com o cenho
franzido. — Mas já está tudo perfeito. Não precisa se preocupar com
mais nada. Meu aniversário está ótimo e eu estou adorando tudo.
Podem ficar tranquilas, tá tudo em ordem. Não quero incomodar.
— Querido... — Sam deu uma pequena risada, balançando
levemente a cabeça. — Não é incômodo algum. Mais tarde nós
vamos cantar os parabéns. Então, estamos indo pegar o bolo, os
docinhos, os salgadinhos. Vai ser ótimo.
E não deu outra: Eric sequer conseguiu contra argumentar.
As duas logo saíram para os afazeres. Pareciam estar determinadas
em tornar aquele um dos melhores aniversários que ele já teve. Eu
não julgaria, pois também estava tentando manter as coisas bem.
Apesar de tudo, agia da melhor maneira que conseguia.
Já bastavam as outras vezes em que nem ligava para essa
data do ano.
Minha cota de babaquice estava no limite.
Quando me dei conta, estávamos somente eu, o Eric, a Molly
e a Stefany ali, até que, de repente, ouvi a voz da minha irmã:
— Sabe... O dia tá lindo. Olha esse sol! Estou com vontade
de entrar na piscina. Vocês topam? — De fato o sol em Cambridge
estava bem veranesco naquele dia.
Todos nós nos entre olhamos, mas Stefany foi a primeira a
responder:
— Claro! Vou sim. Só preciso subir pra trocar de roupa e
vestir o biquíni. E vocês, mocinhas? — virou-se para mim e para o
Eric. — Vão também?
Eric, calado, me olhou. Seu semblante perguntava-me em
silêncio se eu estava a fim de ir. Bom, talvez sim, mas não naquele
momento. Preferia ficar mais um pouco por ali, sentado no deck,
vendo o tempo passar. Por isso, respondi:
— Eu vou ficar por aqui. Vão na frente. Depois apareço por
lá.
— Então, eu vou ficar aqui com ele, meninas — o loiro
respondeu. — Mais tarde a gente aparece por lá.
Não deu dois segundos para que elas, entusiasmadas com
todas as possibilidades que aquela casa imensa podia proporcionar,
saíssem dali e nos deixassem a sós. Agora, estávamos somente eu
e ele no deck, de frente para um jardim imenso, onde somente
podia-se ouvir o som do vento.
Deixando alguns instantes de silêncio se desenvolverem, Eric
levantou-se da cadeira onde estava sentado bem ao meu lado e
caminhou até uma espreguiçadeira que ficava ali próximo,
localizada exatamente embaixo da sombra de uma árvore.
Olhou para mim, gesticulou com uma das mãos e perguntou:
— Me acompanha? — dando-me um sorrisinho pequeno,
mas lindo. Lindo demais. E, quando eu pensava no quanto
apreciava a beleza dele, lembrava-me das incontáveis vezes em
que, meses atrás, me negava a achá-lo bonito.
Quanta estupidez... Eric era o cara mais perfeito, por dentro e
por fora, com quem eu já tive a oportunidade de me relacionar. Na
verdade, ele era o único. Jamais me interessaria por outro homem e
sabia que, por mais brega que isso fosse, tinha olhos somente para
esse loiro azedo.
Eu havia realmente descido de tobogã ao Vale dos
Homossexuais...
Mas, isso fazia alguma diferença naquela altura do
campeonato?
Minha vida já tinha dado tantas voltas até ali, que, mesmo
que eu ainda tentasse manter a discrição perante a sociedade, a
ideia de ser um gay ou um bissexual simplesmente já não me
assustava como antes. De fato, a exposição no colégio me
assustava, assim como o que poderia acontecer logo mais à noite.
No entanto, a realidade de gostar de um cara já era encarada por
mim com mais naturalidade.
Assim, nem ao menos me dei ao trabalho de lhe responder.
Fui ao seu encontro de bom grado, aproximando-me dele, enquanto
o via sentando-se na espreguiçadeira e deixando um espaço entre
as suas pernas para que eu me encaixasse ali também.
Estávamos somente nós dois naquele espaço e, quando
ficávamos sozinhos, eu não tinha tanto receio de me aproximar. Era
como se no mundo existisse só eu e ele dentro de uma bolha, que
representava um pedacinho do paraíso na Terra.
Por isso, isento de qualquer vergonha que eu poderia ter,
caso as tias dele estivessem ali, sentei-me entre as suas pernas,
exatamente no local que ele havia reservado para mim, recostando
minhas costas em seu peito, enquanto nossas pernas descansavam
estiradas e deitadas no restante da espreguiçadeira.
Seus braços envolveram o meu corpo e eu me senti
estupidamente confortável e amado. Era incrível, e ao mesmo
tempo inquietante, a maneira como eu me sentia entregue a ele.
Sempre tão fácil... Bobamente fácil. Quer dizer, nem sempre. No
início fiz bastante jogo duro, mas agora...
Agora eu sinceramente não tinha mais forças para lutar
contra a maré. Deixava-me levar por ele. E, quando via, já estava
assim, em seus braços, feito idiota. Sim, eu era imbecil. Imbecil por
ele. Eric me tinha na palma da mão e talvez nem soubesse disso.
Na verdade, eu fazia questão de não deixar totalmente claro.
Não queria que ele soubesse que havia me conquistado por
completo. E se ele perdesse o interesse depois de ficar ciente?
Algumas pessoas perdiam o interesse, quando sabiam que tinham
conquistado alguém. Eu era assim em um passado não muito
distante.
Não que eu ainda fosse, porque, depois de tantas tentativas
frustradas de me afastar e esquecê-lo, eu só conseguia me sentir
ainda mais envolvido por ele. A cada vez que eu dizia “não”, parecia
que os sentimentos só cresciam. Acabei por parar de lutar contra
isso. Aceitei.
Mas tinha medo que ele fosse como eu já tinha sido.
Então, talvez um dia eu dissesse e confessasse com todas
letras em sua frente.
Mas, talvez... Só talvez...
Por enquanto, tudo o que eu sentia e tudo o que tirava minha
concentração eram suas mãos, que subiam pelos meus braços e
iam em direção aos meus cabelos, enquanto eu estava ali,
praticamente deitado com a cabeça sobre seu peito e as costas
sobre seu tronco.
Seus dedos dançavam sorrateiros pelos meus fios pretos, ao
passo que o vento só ajudava a bagunçá-los ainda mais. Eu estava
gostando do carinho. Aprendi a gostar de carinho, porque Eric me
ensinou. Na verdade, ele tinha me ensinado tantas coisas até então,
que, ultimamente, uma das poucas justificativas para me fazer
querer seguir em frente, depois de tudo o que aconteceu, era a
ânsia por saber o que ele poderia me mostrar no amanhã.
O silêncio era nosso aliado. E nada mais podia ser ouvido
além das folhas que balançavam conforme a brisa. Todo o clima
daquele lugar, somado às mãos dele que iam e vinham sobre a
minha pele, faziam-me sentir completamente absorto. Era como
terapia, sabe? Uma terapia que eu estava precisando, por mais que
meu peito ainda batesse descompassado se, por um segundo, eu
me lembrasse do que faríamos à noite.
Aquele era o nosso momento. Longe de quaisquer
preocupações por pelo menos alguns poucos instantes. Isso já era
suficiente. Eu não pediria nada mais. Só queria continuar assim até
o fim dos tempos. Depois de meses, era a primeira vez que
ficávamos dessa maneira, mesmo que já tivéssemos passado por
tantos momentos. Minha história com o Eric era uma história de
“primeiras vezes”.
E, então... De repente, eu ouvi sua voz calma. Tão suave...
— Obrigado por ter vindo... Mesmo... — senti sinceridade em
suas palavras. Claro que ele sempre fazia uso da sinceridade
comigo, mas eu sabia que, nessas palavras, ela teve um peso
maior. Por mais que eu tivesse conhecimento de que ele não queria
tocar naquele determinado assunto, notei que estava se referindo a
ele.
— Não precisa agradecer... — respondi. — Eu tô gostando.
Sério — e também havia sinceridade em minhas palavras. No fundo,
eu sabia que precisava de um momento como esses: longe de tudo
e de todos, em um lugar onde só houvesse eu, o Eric e mais
ninguém. Talvez a vida fosse perfeita se fosse assim sempre. Quem
sabe um dia pudéssemos ficar assim por mais tempo que um final
de semana.
— Acho que esse é o melhor aniversário da minha vida —
passou novamente a mão em meus cabelos e... — Porque você tá
aqui comigo... Desse jeito... — seu peito subiu e desceu em um
suspiro que eu pude sentir em minhas costas. Todos os meus
pelinhos se eriçaram. Eu não podia negar e realmente não negava
mais a mim mesmo: estava total e completamente entregue a ele.
— Era o mínimo que eu podia fazer — disse. Estava mais do
que na hora de começar a valorizar o que realmente importava na
vida. Depois de todos os socos que a vida me deu nos últimos
meses, fechando com chave de ouro o golpe final no colégio
durante o dia anterior, eu precisava começar a rever certas
prioridades. Diferente do que eu pensava antigamente, a vida não
era uma grande uma brincadeira. — Espero estar indo bem.
Eu tinha que começar a levar à sério.
— Bem?! — Não podia ver seu rosto, porque eu estava de
costas sobre seu peito, mas tive a certeza de que seus olhos se
arregalaram e de que um imenso sorriso surgiu em seu rosto. —
Liam... Você está indo muito mais que bem... Ouviu? — apertou
carinhosamente meus braços. — Se bem é mais ou menos por
aqui... — colocou uma das mãos à certa altura do meu rosto. —
Você vai muito além dessas árvores. Se bem é um grãozinho de
areia, você é a praia inteira. Se bem é uma gotinha de água, você é
o Caribe todo! — me chacoalhou, fazendo cócegas e provocando
risadas em mim. — Quer que eu continue? — perguntou, rindo
também.
— Não, seu idiota... — falei, enquanto tentava me
desvencilhar de suas mãos, ainda rindo pelas cócegas. — Para com
isso... — tentava afastá-lo, mas, nem em brincadeira conseguia. Na
verdade, em brincadeira é que eu não conseguia mesmo.
No entanto, de repente, ele parou e me abraçou forte,
envolvendo-me pela cintura, mantendo ainda a posição que
estávamos. Seu rosto foi parar em meu ombro, quase na curva do
meu pescoço. Podia quase sentir sua respiração contra a minha
pele quando ele disse:
— Já falei que te amo? — e eu tinha certeza que o típico
sorriso travesso ainda permanecia em seu rosto.
Não pude me conter: eu também estava sorrindo. Estava
feliz, apesar da zona que minha vida tinha se tornado. Era
inevitável. E mais inevitável ainda foi fazer aquele adorável
charminho:
— Para de ser brega... — revirei os olhos e, sem dúvidas,
meu tom de voz saiu meio manhoso... Gay... Argh... Não tinha como
fugir: o amor era brega, cor de rosa e cheio de unicórnio. Bem gay
mesmo.
— Quando eu falei ontem, você não achou brega... — disse
em tom brincalhão, soltando uma pequena risadinha em seguida. E
ele tinha razão. Não achei mesmo. Na verdade, ali eu só estava
fazendo charminho. Era só para brincar com a sua cara. Naquela
altura do campeonato, eu já não via mais cafonice nesses tipos de
declarações, o que me levava a chegar a uma conclusão: eu estava
mesmo virado do avesso.
Talvez fosse meu melhor lado.
— Pois eu acho brega... — tentava, mas não conseguia
esconder o sorriso. E ele sabia que eu estava brincando. Não tinha
como existir verdade nisso. Por mais que eu não me considerasse
merecedor, escutar que me amava era como música para os meus
ouvidos. E eu gostava de me sentir amado. Me fazia sentir seguro,
como se eu pudesse ser quem quisesse.
— Hum... Sendo assim, você vai ter que se acostumar com
as minhas cafonices, porque... — Parou por alguns segundinhos e,
de súbito, me puxou, fazendo com que nossa posição nos
permitisse ficar cara a cara. — Eu te amo, te amo, te amo, te amo...
— e foi aproximando o rosto do meu até me beijar. — Posso falar
isso a vida toda sem me cansar — disse entre um selinho e outro.
Eu gostava de ouvir isso, mas ainda não sabia direito como
reagir, nem o que fazer, nem o que falar. Era tudo tão novo. A
primeira vez que eu me relacionava com alguém dessa forma...
Com sentimento. Assim, a maneira que encontrei de lhe responder,
do mesmo jeito que tinha feito no dia anterior, foi o beijando com
toda a vontade que tinha em mim.
Nossos lábios trocaram afetos até que nossas respirações
falhassem. E, então, quando paramos para recuperar o fôlego, Eric
encostou sua testa na minha, ainda de olhos fechados, e ficou em
silêncio por alguns instantes, até que disse:
— Sabe... — quase sussurrou. — Eu estava aqui pensando
e... — abriu os olhos. — O que acha de jogar uma bolinha comigo?
Jogar bola?
— Só eu e você? — perguntei, arqueando um pouco as
sobrancelhas. Não tinha como negar, achei um pouco estranho o
pedido. Apesar de tudo o que a gente tinha feito até ali, com direito
a coisas íntimas e tudo mais, nunca tínhamos jogado bola sozinhos.
Somente treinávamos juntos e participávamos dos jogos, porque
fazíamos parte do mesmo time.
Do contrário, nunca tínhamos compartilhado de um momento
assim. Exceto na infância, em um dos aniversários do pai do Eric, o
tio George, quando eu estava de castigo por ter tirado nota baixa,
mas, mesmo assim, caí na tentação de desobedecer a meus pais. O
resultado não foi dos melhores. Fiquei com tanta raiva do Eric
naquela época! E ele nem teve culpa. Típico.
O fato era que eu nunca quis jogar bola com ele, nem fazer
qualquer coisa que o envolvesse, porque eu era imbecil. Dizia que o
odiava, quando sabia que isso não era verdade. Falava que queria
distância dele, quando tudo o que eu mais queria era tê-lo por perto.
Recusava sua amizade, quando o que eu desejava era poder ser
seu amigo. Desdenhava das suas habilidades, quando o admirava.
No fundo, eu sabia que só o queria longe, porque tinha noção
do quanto ele já mexia comigo.
Era como fugir de uma tentação.
E aceitar jogar bola com ele agora, por mais que parecesse
uma situação boba, significava demais. O Liam de meses atrás,
jamais se imaginaria jogando bola sozinho com o Eric, dando o
braço a torcer, sendo agradável, tentando melhorar como pessoa.
Era mais um passo. Mais um nível a ser avançado. E eu deveria
fazer.
Por isso, assim que ele confirmou minha pergunta ao
balançar um sim com a cabeça, igualzinho ao Eric criança, quando
me chamava para brincar e eu negava veemente, não hesitei em
responder:
— Claro — e sorri.
— Opa! — de supetão, abriu um sorriso inigualável, como se
tivesse ganhado a sorte grande na loteria, e, em seguida, levantou-
se rapidamente da espreguiçadeira, quase me levando junto pelo
braço. Estava tão alegre! Podia até imaginar que o Eric criança
agiria do mesmo jeito, caso eu aceitasse naquela época. — Vamos,
amor! Tô aqui azilado pra jogar!
— Pega leve, idiota — dei uma pequena risadinha,
levantando-me também. — Não sei porque tá todo feliz assim, se
vai perder pra mim. Eu me garanto mais com a bola. Sempre fui
melhor... Desde criança — me gabei de mentirinha, só para pegar
no pé dele. Ou talvez... Talvez tivesse um pouquinho de fundo de
verdade.
Apesar dos pesares, eu ainda era Liam Wyman Tremblay
Terceiro, o maior artilheiro da história do Colégio Regent, o cara
mais talentoso, o cara mais habilidoso. Eu era demais.
Okay, parei. Foi só para relembrar um pouquinho as minhas
origens.
Atualmente, se eu ainda abrisse a minha boca para me gabar
desse jeito, seria por pura brincadeira.
— Ah tá bom — Eric riu ironicamente, dando-me um
olharzinho um tanto cínico. — Eu tenho minhas estratégias para te
vencer. Só aguarda. Vou marcar todos os gols. E olha que eu sou
zagueiro — saiu caminhando todo garboso, mas eu sabia que ele
estava de zoeira.
Ou... Ele ia me vencer mesmo? Franzi o cenho.
— Ei, volta aqui! — apressei o passo para alcançá-lo. Se
esse sujeitinho estava pensando que ia me vencer, se enganava
muito. Credo, eu era muito competitivo! Mas, felizmente ou
infelizmente, por mais mudanças que estivessem acontecendo
comigo, esse ponto em específico não dava para mudar. Era a
minha essência. — Aonde você tá indo? Tô achando que já tá
amarelando — não hesitei em provocá-lo um pouquinho.
— Amarelando?! — arregalou os olhos e riu alto. — Amor, até
parece que não me conhece. Eu nunca amarelo, ainda mais se for
pra jogar contigo! Eu tô indo no meu quarto. Trouxe uma bola na
mochila. Adidas, novinha, uma maravilha... — e me deu um sorriso
vitorioso, como se trazer uma bola tivesse sido a melhor decisão do
mundo. E de fato era.
Eu amava futebol com todas as minhas forças!
Inclusive, essa ideia de jogar já estava fazendo-me sentir
mais solto. Me relaxava.
Assim, segui-o de livre e espontânea vontade. Eric iria pegar
a bola e eu, claro, fui o acompanhando. Durante o caminho, ele
disse todo empolgado:
— Amor, vai passar um jogo do Chelsea amanhã! Boatos de
que o Hazard vai sair do time. Cara, isso não pode acontecer... Ele é
um dos jogadores mais importantes! — e o tom empolgado
transformou-se meio em irritado.
Eric tomava as dores de time de futebol assim como eu.
Mas, revirei os olhos e...
— Tô nem aí pro Chelsea. Tomara que ele saia logo e esse
time acabe de uma vez. Quero saber do meu amado Manchester...
— sorri com satisfação. — Anthony Martial do Manchester é bem
melhor que o Hazard do Chelsea. Mais gols, mais assistências. O
cara é um craque.
— Ah, cala a boca, Liam... — disse, enquanto balançava a
cabeça e passava pela porta de entrada da mansão, caminhando
pela sala. — Esqueceu que o Chelsea ficou em primeiro lugar da
Premier League 2016-17, enquanto esse teu timinho aí ficou em
sexto — riu com desdém. — Tem que respei... — e, então, parou de
súbito, ficando calado e estático no meio da sala.
— O que você tá ven... — e, antes que eu pudesse concluir a
pergunta, não me contive em virar o rosto na direção em que estava
olhando, ficando tão paralisado quanto ele. Meu Zeus do Céu, o que
era isso que estava acontecendo ali? Fiquei boquiaberto e sem
reação.
Molly e Stefany estavam simplesmente se engolindo no sofá!
A loira sentada, enquanto a minha irmãzinha, com uma perna
de cada lado da sua cintura, sem blusa, somente com a parte de
cima do biquíni, a beijava. Era a primeira vez que as via assim, por
isso o choque triplicou. Eu sabia que tinha prometido a mim mesmo
de que ia zoá-las quando visse, pelo menos, qualquer mínimo sinal
de beijo. E, bem, isso era muito mais que um sinal! Só que o baque
me impedia de fazer qualquer coisa.
Era para elas estarem na piscina, brincando, e não nessa
pouca vergonha!
Ah, okay, olha só quem estava pensando! Eu não tinha moral
para falar nada.
Por isso, permaneci calado e estático. Mesmo se eu quisesse
falar alguma coisa, provavelmente não conseguiria.
As mãos de Molly estavam mergulhadas nos cabelos loiros
de Stefany, enquanto esta, por sua vez, a segurava firme pela
cintura. Beijavam como se não houvesse amanhã, como se fossem
somente elas dentro daquele local. Beijavam com tanta
voracidade... Desejo... Credo. Será que eu e o Eric também nos
beijávamos desse jeito? Arregalei os olhos para o meu próprio
pensamento. Talvez elas estivessem aproveitando a ausência das
donas da casa.
Porém, de repente, minha irmã afastou o rosto, separando os
lábios por alguns instantes, provavelmente para tomar fôlego. E,
então, quando ergueu as vistas, deu de cara justamente com a
gente. Que situação! Abriu levemente a boca, com certa surpresa, e
disse:
— Ah, então as duas moças estavam bisbilhotando por aqui?
No mesmo instante, Stefany virou o rosto para o lado,
olhando em nossa direção. Não parecia surpresa. Na verdade, seu
semblante estava um tanto brincalhão:
— Apreciando a obra de arte? — questionou com ironia ao
erguer uma das sobrancelhas, claramente se referindo àquela cena
na qual as duas estavam praticamente “fazendo um filho” ali.
Ainda estava sem reação, incapaz de falar qualquer coisa
sobre o ocorrido. Nunca tinha as visto daquele. Mas, Eric, apesar de
ter ficado tão boquiaberto quanto eu, parecia estar recuperado o
suficiente para dizer:
— Que pouca vergonha! — sorriu. — Vão para um quarto
vocês duas! — claramente estava devolvendo na mesma moeda
aquilo que elas haviam dito para nós na hora do almoço.
Inevitavelmente ri, apesar do choque. Na verdade, parecia
que sua fala foi o suficiente para me tirar do transe. Eu não poderia
perder essa oportunidade de zoar. Imagina só se Liam Wyman
perderia! Por isso, não me contive em falar:
— Eu sinto o cheiro do couro... — e gargalhei para a cara de
tacho que as duas fizeram logo em seguida.
— Ai, seu idiota! — Stefany bradou, jogando em minha
direção uma das almofadas que estavam no sofá, naquele antro de
sem-vergonhice onde ambas estavam fazendo sacanagenzinhas e...
Okay, parei. Não era para tanto. Mas, poxa, eu tinha o direito de
zoar, não tinha? Uma brincadeirinha não faz a mal a ninguém.
— Saiam daqui! — Dessa vez, foi Molly a gritar e a jogar sua
blusa em direção ao Eric que estava ao meu lado. Literalmente, as
duas nos expulsavam para que pudessem se pegar mais um pouco.
— Nos deixem em paz... Estão com invejinha, porque queriam fazer
a mesma coisa! — e, mesmo tentando transparecer irritação,
acabou rindo.
— Vamos lá, amor, vamos lá… — Eric, rindo, me puxou pelo
braço para que seguíssemos em busca da bendita bola, mas, antes
que saíssemos totalmente dali, ainda soltou mais uma
brincadeirinha. — Não faz inveja não... Esse aqui é bem melhor... —
e olhou pra mim, sorrindo.
Bem melhor?
Hum.
Estava considerando melhor ficar comigo do que com
mulheres? Bom, mulheres eram umas verdadeiras dádivas dos céus
e... Será que, depois dessa informação, eu podia me gabar um
pouquinho? Dei um pequeno sorriso para mim mesmo, com meu
próprio pensamento.

❖❖❖

Fomos para o jardim depois de pegarmos a bola que Eric


havia trazido em sua mochila. O cara era tão “fominha” por futebol,
que já tinha ido precavido e, claro, esquematizando mentalmente a
possibilidade de eu jogar bola com ele. O loiro não dava um ponto
sem nó. E eu não poderia mentir, curtia a ideia de que
compartilhávamos dos mesmos gostos. Admirava-o ainda mais por
saber que gostava de futebol tanto quanto eu.
Assim, paramos naquele pátio para fazer uma das coisas que
mais adorávamos: jogar uma bolinha. O local era imenso, um jardim
que se estendia de uma ponta a outra da mansão. E, como em um
espaço significativo e considerável a grama era baixa,
conseguíamos jogar perfeitamente bem ali. O sol ainda estava vivo
naquela tarde e nem de longe fazia frio.
Então, quando menos esperei, Eric tirou sua chinela e sua
camisa em minha frente, ficando descalço e somente de bermuda.
Prendi a respiração assim que vi aquilo... Aquilo também chamado
de abdômen. Era inevitável... Apesar de já tê-lo visto inúmeras
vezes sem camisa, tal visão ainda me impactava e me deixava mais
gay do que eu já era.
— O que acha de tirar isso aqui também? — aproximou-se de
mim e colocou suas mãos exatamente na barra da minha camisa.
De súbito, coloquei as minhas sobre as suas, impedindo que
prosseguisse no ato. O sorrisinho safado que me deu logo em
seguida não escondia suas intenções com aquele... Jogo...
Realmente não demorou para que uma luz divina caísse
sobre minha cabeça e eu percebesse o que ele realmente queria
com tudo aquilo. Não era um simples futebol.
Cara, eu era homem. E sabia como homem pensava. Na
verdade, para ter noção dos propósitos dele, não precisava ser um
homem. Qualquer um que olhasse para o seu rosto e visse aquele
sorriso sacana, saberia. Aquele maldito sorriso sacana que sempre,
sempre, acabava com a minha lucidez.
Eric sempre foi provocante.
— Por que eu preciso tirar a minha camisa? — Ainda com as
mãos sobre as suas, questionei. As coloquei ali sem nem pensar.
Foi coisa de segundos, como se meu corpo já apresentasse um
instinto de defesa quando ele chegava próximo a mim, algo que eu
não precisava pensar para fazer. Apenas fazia naturalmente.
Talvez fosse o costume de me “proteger” de suas mãos, que
eu ainda carregava comigo, mesmo já tendo passado daquela fase
de negação.
Pelo menos eu achava que tinha passado.
— Porque tá quente e... — parou, baixou seu olhar para a
minha boca, perdeu-se ali por alguns instantes e... — Jogar sem
camisa é melhor — tentou puxá-la para cima novamente, mas
minhas mãos ainda estavam sobre as suas. Ele não iria conseguir
tão fácil. Enquanto ele era bom em provocar, eu era bom em fazer
charme.
— Não... — dei um sorrisinho implicante. — Você é o time
sem camisa e eu sou o time com camisa. Beleza? — soltei suas
mãos e me virei despretensiosamente, me afastando dele e
caminhando pelo jardim para fazer um tipo de “reconhecimento de
campo”. — E aí, como vai ser? — perguntei, ainda de costas,
quando de repente...
— Os dois sem camisa... — em um piscar de olhos, a puxou
para cima. Não tive tempo de fazer nada, a não ser virar
rapidamente para ele com os olhos bem arregalados pela surpresa.
Ainda fiz menção de abrir a boca para respondê-lo à altura daquela
ousadia, mas, antes que eu pudesse falar qualquer coisa, avançou
em meus lábios, mantendo-me seguro em seus braços.
— Ei! — Ainda tentei contra argumentar entre beijos, mas ele
não dava trégua. E eu também não fazia muito esforço para pará-lo.
No fundo, eu estava gostando daquilo. Na verdade, nem precisava ir
muito a fundo. Meu semblante não escondia nada, nem o dele que,
mesmo me beijando, ainda era possível notar o sorriso de criança
traquina. O idiota estava se divertindo com isso, claro.
Afinal, como não se divertiria?
— Eu sei que você tá gostando tanto quanto eu... — soltou
uma pequena risadinha, enquanto ainda me mantinha em seus
braços. Estávamos corpo a corpo, pele a pele. Pelo menos com
relação a parte de cima. Era a primeira vez que o sentia assim.
— Pensei que o convencido da história era eu... — tentava
não mostrar o sorriso mais era impossível. — O tempo tá passando
e você ainda não me explicou como vai ser. Bora, eu quero jogar e
ganhar — disse com uma determinação quase fajuta, porque talvez
eu ainda quisesse passar mais uns dois ou três minutos naqueles
braços.
— Tudo bem, então, capitão — respondeu com certa ironia e
me soltou. — Ali, entre aquelas duas árvores da esquerda é o seu
gol — apontou. — E ali, entre aquelas árvores da direita é o meu
gol. Fica esperto porque eu sou o melhor zagueiro que você já viu.
Não vou te deixar colocar nenhuma bolinha dentro — falou, todo
metido.
Às vezes, ele era pior que eu em matéria de convencimento.
— Vai nessa... — balancei a cabeça com desdém, dando-lhe
um sorriso de quem não acreditava em uma palavra que dizia. — Eu
sou o melhor artilheiro da história do Colégio Regent. Ganho fácil de
ti. Agora... Bora lá! Par!
E, então, tiramos no par ou ímpar quem começaria com a
bola. Eu, claro, acabei vencendo. Me posicionei no que seria quase
o centro do jardim, Eric ficou ali próximo e comecei. Eu precisava
fazer gol no lado oposto, que justamente era a área do “time do
Eric”, assim, fui tentando levar a bola para lá.
Chutei para a lateral, guiando-a em meus pés, enquanto Eric
vinha em minha cola para roubá-la de mim. Porém... De repente,
senti seu corpo colando-se às minhas costas. Emparelhou-se
comigo, mas eu sentia... Sentia que seu objetivo não exatamente
pegar a bola, era...
— Ei! — ralhei exatamente no momento em que ele me
abraçou por trás e me puxou, fazendo com que eu perdesse a bola.
— Que porra você tá fazendo? — questionei enquanto tentava me
desvencilhar dos seus braços.
— Minha super estratégia de zagueiro apaixonado... —
respondeu com um sorrisinho irônico, enquanto me soltava
rapidamente e passava por mim para pegar a bola. Logo, ela já
estava em seus pés, enquanto ele corria para longe de mim.
— Mas isso não vale! — gritei. — Cadê o juiz dessa porra de
jogo? Tem que te dar cartão vermelho! — e acabei rindo da
situação. Não me contive. Era impossível me segurar diante daquele
pseudo-jogo.
Tendo a certeza de que aquilo o que falei não ia dar em nada,
corri em direção a ele, para tentar roubar a bola de volta. Se ele
podia se utilizar de estratégias sujas para tirá-la de mim, eu também
tinha o direito de usar!
Assim, quando me aproximei o suficiente, puxei-o pelo braço
e tasquei-lhe um beijo bem ousado. Eric, que certamente não estava
nenhum pouco preocupado com a bola e sim comigo, esqueceu-a
completamente rolando pela grama. Nem se deu ao trabalho de
reclamar do meu golpe baixo. Logo pôs as mãos em minha cintura e
quis aprofundar o beijo.
Porém... Não demorou muito até notar o quanto ficou
abobalhado o suficiente para que eu pudesse soltá-lo e pegar a bola
de volta. Foi questão de segundos. Ele era muito fácil. Risos.
Bobão!
Sem pensar duas vezes, o soltei e corri em direção à bola.
Dessa vez, foi ele que ralhou:
— Ei! — Ainda virei um pouquinho o rosto para olhar, me
segurando para não rir, e foi possível percebê-lo com os braços
abertos, fazendo tipo “ué, vai me deixar desse jeito mesmo?”.
Eu só sabia rir da cara de paspalho dele.
Peguei a bola de volta e corri em direção ao gol.
Rapidamente, Eric, que há poucos segundos ainda esperava para
que eu voltasse e concluísse o beijo (coitadinho), colocou-se à
minha frente, para tentar roubar a bola mais uma vez. Consegui dar
duas pedaladas para driblá-lo. E, de fato, o driblei!
No entanto... Já estava chegando pertinho do gol, até que, de
repente... Meu braço foi puxado de tal forma que me desequilibrei.
Quando dei por mim, já estava caído no gramado, com o Eric por
cima do meu corpo, rindo feito criança.
— Você me derrubou, seu idiota! — falei, também em meio a
risos. — Você é muito engraçadinho! Me chama pra bater uma bola
e me faz participar de um jogo sujo desse... — passei as mãos no
rosto, apoiando a cabeça no gramado logo em seguida e mirando
meu olhar no céu.
— Mas que foi legal, foi! — Eric, também rindo, respondeu. —
Quero uma segunda rodada desse jogo sujo. Adorei a estratégia do
beijo. Foi sensacional — percebi o tom de voz sacana que ele
utilizou. — Inclusive, vamos terminar. Ficou pela metade — e
avançou na minha boca.
— Mas... — tentei falar entre beijos. — Será que você não
consegue se controlar? — Milagrosamente, consegui perguntar
mesmo com a boca meio ocupada. — Vai com calma, senão não
sobra boca.
— Como eu consigo me controlar, se eu tenho o cara mais
lindo, mais perfeito e mais craque de bola comigo? — respondeu
com uma pergunta, entre um selinho e outro. — Sabe a minha sorte
de ter o capitão do time comigo? — e me deu aquele típico sorriso
de moleque.
— Eu sou tudo isso? — ergui uma das sobrancelhas, dando-
lhe um sorrisinho de canto de boca. Eric ainda permanecia sobre
mim. Nossas pernas entrelaçadas umas nas outras. Eu sabia que já
tinha sido bem convencido na vida, mas era bom ouvir esse tipo de
coisa, quando, há um dia, eu me sentia um completo lixo.
— Você é muito mais que isso! — me beijou mais uma vez.
— É inteligente, é esperto. E eu tenho certeza que, unindo a
inteligente com o futebol, vai ser o jogador do time a ganhar uma
bolsa na universidade.
Ah não... Universidade?
Revirei os olhos.
Eu não gostava nem de ouvir essa palavra.
— Ah, cara... Nem me fala disso... — passei as mãos no
rosto, meio inquieto. — Eu já estou começando a entrar numa pilha
porque os processos seletivos são daqui a poucas semanas. Tipo,
tá em cima!
— Não fica assim, amor — respondeu, enquanto ainda
estávamos deitados um sobre o outro na grama. — Eu estudei e
ainda estou estudando com você. Sei do seu potencial. Você precisa
acreditar mais em si.
Como eu podia acreditar em mim com tantos obstáculos?
— Eu não sei... — balancei a cabeça em negativo. — Meu
comportamento só melhorou agora e ainda teve aquele lance com o
Noah. Minhas notas também só melhoraram agora. Eles avaliam
tudo e... Ainda tem você... Tenho certeza que vão te escolher. Você
é mais inteligente, mais comportado e sempre tirou notas melhores.
Eric suspirou...
— Olha, eu não me importo de não ganhar a bolsa, caso
você ganhe no meu lugar. Fico feliz com o seu sucesso,
independentemente de qualquer coisa, tá? — e passou a mão
carinhosamente em meu rosto. — Você vai conseguir.
— Sei de nada, Eric... Sei de nada... — suspirei igualmente.
— Teu futuro ainda vai ser maravilhoso. Confia no que eu
digo — aproximou seus lábios dos meus e deu um beijo bem doce.
— Eu vou estar sempre contigo. Sabe que pode contar comigo pra
tudo.
Não tinha tantas certezas na vida, mas, se tinha algo que eu
podia me confiar, esse algo era que o Eric sempre estaria mesmo
comigo.

❖❖❖

Ainda seguimos conversando deitados na grama por um bom


tempo e depois decidimos jogar futebol de verdade. Quando a noite
já estava caindo e nós já estávamos encharcados de suor de tanto
chutar uma bola, resolvemos dar uma parada para subir e tomar
banho.
Afinal, as tias do Eric já tinham chegado em casa e já
estavam nos preparativos para o aniversário de logo mais. Achamos
melhor parar por ali, antes que ficasse muito tarde. O final de
semana seguia tranquilo até então. Inclusive, tinha até me
esquecido dos problemas do dia anterior, assim como minha mente
tinha abstraído aquilo... Aquele negócio, sabe?
Aquela coisa que podia acontecer à noite... Depois que todos
estivessem dormindo...
Nem lembrava direito...
No entanto...
Nem tudo eram flores...
Eric entrou em seu quarto para tomar banho, assim como eu
entrei no meu. Fechei e tranquei a porta. Nossa, podia sentir meu
cheiro fedido de tanto rolar na grama ou de correr atrás da bola. O
dia tinha sido quente e só nos fazia suar ainda mais. O banho viria a
calhar.
Segui em direção à minha mala para tirar minha toalha e
meus produtos de higiene pessoal, mas, quando abri o zíper...
Batidas quase desesperadas na porta do meu quarto. De imediato,
ergui o rosto em atenção.
Ora, o que estava acontecendo? Zeus tinha decidido descer
para a Terra?
Mais batidas na porta.
O mundo estava acabando?
Assustado e até apreensivo, corri para ver o que era. Quando
abri a porta... Meus olhos arregalados deram de cara com os
sorrisos de orelha a orelha da Stefany e da Molly. Ah não, eram só
essas duas malucas? O que elas queriam dessa vez?
— O que foi? — perguntei com o cenho franzido, achando
tudo aquilo muito estranho. — Aconteceu alguma coisa?
E, antes que eu pudesse falar qualquer outra coisa, as duas
entraram no quarto, fecharam a porta e me empurraram até a cama.
Tudo tão rapidamente, que eu só tive tempo de dizer:
— Ei! O que vocês estão fazendo?! — Aquilo não estava me
cheirando bem! Ah, não estava mesmo!
Sentado na cama, encarei as duas de pé em minha frente,
ambas carregando um sorriso de orelha a orelha, um sorriso
enigmático e, ao mesmo tempo, travesso. Isso estava me
preocupando. Não sabia o que elas queriam aprontar daquela vez.
E pior: eu podia esperar qualquer coisa de ambas.
Senti-me como uma criancinha apreensiva com um possível
castigo, esperando pela resposta dos pais, até que finalmente
alguém se pronunciou, e esse alguém foi Stefany:
— Bom, ainda não aconteceu nada. Mas, nós viemos aqui
justamente por causa do que ainda vai acontecer — e me deu um
olhar um tanto quanto malicioso.
Gelei da cabeça aos pés.
Meu subconsciente começou a me dar a resposta sobre o
que elas tinham ido fazer ali, mas eu não queria acreditar.
Me recusava.
Até porque, não queria tocar no tal assunto.
— Você pode nos chamar de Molly e de Stefany, mas
também pode nos chamar de salvadoras da sua pátria — minha
irmã também se pronunciou e, logo em seguida, deu uma pequena
risadinha.
— O q-que vocês estão querendo me dizer com isso? —
inevitavelmente gaguejei, enquanto tentava manter uma postura de
que estava me sentindo pleno. Tudo sob controle. Uma grande
mentira. Meu subconsciente não parava de me dar respostas pelas
quais eu não queria acreditar.
— Ora... — Stefany deu um passo à frente, aproximando-se
de mim com um olhar bem perspicaz. — Nós duas sabemos do que
vai acontecer mais tarde entre você e o garanhão ali do outro
quarto... — soltou uma pequena risadinha, assim como Molly
também. — Por isso, nós viemos te ajudar! Olha só que maravilha!
Ajudar?! Ajudar com o quê?!
Que a Santa Vodca do Céu me segurasse, porque essa era a
hora perfeita para eu desmaiar.
Meu subconsciente estava certo! E meu coração
inevitavelmente acelerou só de lembrar desse fato de mais tarde.
Pior que estava tudo tão tranquilo! Eu nem estava mais lembrando
direto até elas aparecerem!
Encarando-as com o semblante ainda mais confuso, Molly,
segurando um embrulho, falou dez palavrinhas que me deixaram no
chão:
— Nós duas viemos te apresentar o kit do passivo prevenido!
O quê?!
Kit do passivo prevenido?!
Que merda era essa?
A hora perfeita para ser abduzido por alienígenas!
Talvez sim, talvez não

Liam

— Para, para, para! — ergui as duas mãos e, de súbito, me


levantei da cama. Respirei fundo, tentando controlar o nervosismo
que aquilo me causou. — Do que vocês estão falando? — perguntei
compassadamente.
Eu precisava ter a certeza de que meus ouvidos realmente
tinham escutado aquilo. Queria me recusar a acreditar. Na verdade,
eu nem sabia o que pensar. Era algo novo. Fui pego totalmente de
surpresa.
— Ora, Liam, é isso mesmo o que você ouviu: “kit do passivo
prevenido” — Molly respondeu com um sorriso divertido no rosto.
Enquanto para ela era motivo de diversão, para mim era motivo de
aflição.
Eu ia dar.
Logo eu que sempre comia.
Meu Zeus do Céu!
Tudo bem que eu já estava ciente do meu destino. Tudo bem
que eu estivesse com vontade de transar. Afinal, eu já estava em
abstinência há muito tempo! Desde que comecei o rolo com o Eric,
não tinha feito sexo com ninguém, nenhuma garota.
Sério, eu estava quase virando padre! Nunca tinha passado
tanto sem ter relações sexuais. O problema era que... Droga, por
mais que eu quisesse, ainda não me sentia plenamente confortável.
Era uma experiência totalmente nova e até assustadora.
Eu. Ia. Dar.
— Okay, moça virgem... — Stefany ironizou em sua fala.
Provavelmente notou meu rosto tenso. — Afasta pra lá que a gente
vai te mostrar o que tem aqui — e aproximou-se de mim,
empurrando-me de volta para a cama. Sentou-se de um lado e Molly
do outro.
Eu estava cercado.
— O que é que te-tem aí? — Minha voz falhou
miseravelmente em um gaguejar, enquanto encarava o pacote que
estava nas mãos da minha irmã. Não fazia a menor ideia do que
elas tinham preparado. — Não é só chegar, transar e pronto?
Stefany soltou uma gargalhada.
— Ai, Liam, nós somos as suas salvadoras da pátria mesmo!
— disse entre risos, deixando-me ainda mais confuso. Eu realmente
pensava que era só transar. Tinha algo além disso? Minha Santa
Vodca do Céu! — A gente vai te mostrar o que tem aqui. Princesa,
passa aqui o pacote — pediu, erguendo uma das mãos em direção
à Molly.
Conforme pedido, minha irmã, com um sorrisinho malicioso
no rosto, entregou e Stefany já foi logo abrindo o embrulho. Eu não
tinha como negar: as caras que ambas faziam me deixando ainda
mais preocupado. E pior ainda foi quando a loira começou a tirar as
coisas de dentro.
— Bom, vamos por partes! — falou toda empolgada. —
Primeiro de tudo, temos aqui as camisinhas. Porque né, vai que
você engravida... Nunca se sabe... — e soltou uma risada,
acompanhada de Molly. Revirei os olhos. Idiotas... — Na verdade, é
importante usar camisinha, mesmo que você não engravide e que
meu irmãozinho seja limpinho de doenças.
— E aí tem umas quinhentas viu? De todos os gostos e
sabores — Molly disse. — Pra vocês aproveitarem quantas vezes
quiserem. Tipo... A noite toda, sei lá... O Eric é bem... — e parou no
meio da frase, olhando-me de uma maneira bem sugestiva.
Por Thor! Aquela era a primeira vez! Não tinha certeza se iria
aguentar a primeira, quanto mais as outras! Tadinho do meu
traseiro. Eu já estava ficando com pena e preocupado. Elas me
disseram lá em casa que o Eric seria um “príncipe cavalheiro” e
blábláblá. Queria só ver esse príncipe mesmo...
— Tá, tá... — suspirei com certa impaciência. — A camisinha
é de boa. Isso aí eu já conheço muito bem — Claro. A quantidade
de meninas que eu já tinha transado antes de me envolver com
aquele idiota... Velhos tempos de Liam. — Tem mais alguma coisa
aí? Ou vocês podem me liberar para o banho?
— Calma! Tem mais coisa sim! — Molly me repreendeu. —
Tem muito mais coisa. Aquieta essa periquita aí!
Muito mais coisa? Ai meu Zeus! Eu já estava me preparando
para o pior. A cabeça dessas duas era fértil demais e não dava para
se confiar.
— Pois é, filho, se aquieta aí! Paciência. Isso aqui é muito
importante pra que tudo saia nos conformes — Stefany também
falou e... — O segundo item é esse aqui... — tirou um tubo branco
de dentro do pacote, entregando-me logo em seguida. — Querido,
esse aqui é o seu melhor amigo.
Ergui o produto e quando li a embalagem... KY - Lubrificante
Íntimo.
Ai Zeus.
Eu sabia para o que isso servia. E foi justamente por saber
que engoli em seco.
— Sabe a quantidade? — Ste olhou no fundo dos meus olhos
de um jeito um tanto afetado. — Meu amor, você pega esse tubo e
você passa como se não houvesse amanhã, entendeu? Passa...
Passa bastante! Tenha pena não! Passe bem muito! Nós
compramos dois. Tem outro aqui dentro — apontou para o pacote.
— Aliás, você pode pedir para o Eric passar. É uma ótima
preliminar! — e me deu um sorriso imenso. — Ele pega... Vai
colocando os dedinhos e...
— Tá, Stefany! — gritei, interrompendo-a. O coração
acelerado. Não queria ouvir mais daquilo. Já bastava ter que
imaginar o que iria acontecer. Respirei fundo, tentando me controlar.
— Eu já entendi. Não precisa entrar nos detalhes. Agora termina
logo isso aí, porque eu preciso tomar um banho.
— Chato! — revirou os olhos. — Mas tudo bem. Vamos lá!
Chegamos na parte mais importante!
— Parte mais importante? — franzi o cenho.
Era melhor eu já me preparar o pior.
— Sim! — Ste respondeu, enquanto retirava uma garrafa de
soro fisiológico de dentro do pacote. Por Odin, quantas coisas ela
ainda ia tirar dali de dentro? Uma casa? Um carro? — Esse é o seu
segundo melhor amigo — ergueu para mim. Soltei o tubo de
lubrificante para segurá-lo. — Soro fisiológico!
— E pra quê eu quero soro fisiológico? — perguntei. Minha
testa já estava enrugada. Não sabia aonde ela queria chegar com
aquilo.
— Pra isso! — prontamente tirou um objeto de dentro do
pacote e colocou bem na frente do meu nariz.
Confuso, o analisei por completo. Parecia uma garrafinha um
pouco mole no meio, com um bico relativamente médio na ponta...
Um bico um tanto quanto fino. Que raios era aquilo, afinal? Nunca
tinha visto algo assim, nem parecido.
— Que troço é esse? — minha testa franziu ainda mais. Isso
só podia ser obra de satanás contra a minha vida, para me deixar
ainda mais nervoso. Suspirei. — Me diz que é uma coisa boa — por
pouco não supliquei.
— Mas é excelente! — Stefany quase deu um pulo na cama.
— Querido, isso aqui é maior maravilhosa que os deuses já
inventaram! Segura aqui — ergueu em minha direção, enquanto eu
largava o soro para segurar o troço. — Conheça a incrível chuqueira
portátil!
— Chuqueira portátil?! — praticamente gritei. — O que
diabos é uma chuqueira portátil?! — segurava aquela coisa como se
ela fosse um extraterrestre pronto para me eliminar. Esse lance de
transar com um homem estava saindo muito complicado!
— Ai meu Deus... — a loira soltou uma pequena risadinha. —
Então... — suspirou sem tirar o sorrisinho do rosto. — Não é
possível que você não faça nem ideia, mas... Bom, como eu posso
explicar isso...
— Olha, maninho, é o seguinte! — parecendo não querer
perder mais tempo com aquilo, Molly tomou partido, enquanto
aproximava-se ainda mais de mim na cama. — Assim... Você sabe
que... Pelo mesmo lugar que entra, também sai, né? Então...
Quando ela falou isso, eu simplesmente arregalei os olhos de
súbito e não precisei ouvir mais nada. Eu tinha entendido tudo.
Tudo! Meu Zeus do Céu, isso era um pesadelo! Socorro. Alguém
precisava me salvar!
— Você tá querendo dizer que eu... Q-Que eu... — não
estava nem conseguir falar direito. O coração acelerado. — Que eu
posso... — e então, não consegui terminar a pergunta. Aquilo era
constrangedor em níveis extremos.
— Sim... — Dessa vez, foi Stefany que falou, confirmando. —
Pode acontecer uma sujeirinha se não se preparar. Não é 100%
certeza, às vezes não acontece, mas vai que né... Só que você não
precisa se preocupar com isso, porque...
Porém, antes que ela pudesse concluir a explicação, me
levantei de súbito da cama e comecei a andar de um lado para o
outro dentro do quarto. Não conseguia ouvir mais nada! Estava
desesperado.
— Eu não consigo respirar! — ergui o rosto, olhando para o
teto e buscando por ar. — Meu Deus, acho que eu vou desmaiar! Eu
tô tonto e minha cabeça tá doendo! Socorro — sentei no chão e
coloquei a cabeça entre as pernas, movendo-me para frente e para
trás como um louco.
— Liam, liam! Pelo amor de Deus, para com isso! — senti o
momento em que Molly e ela sentaram ao meu lado no chão. Uma
de cada lado. Ambas me abraçaram. — Olha, você tem que
entender que isso é só uma ajudinha, mas esse tabu de passar o
cheque precisa ser quebrado. Isso é natural de acontecer. Quem
quer sexo anal sabe das consequências. Claro que não é uma
situação muito interessante, mas, se acontecer, paciência. Vida que
segue. Além do mais, eu tenho certeza que o Eric entende isso. Ele
não se preocupa com esse tipo de coisa.
— Sim, maninho, eu conheço o Eric muito bem! Melhor que
qualquer um de vocês nesses momentos mais... — falou baixinho,
pigarreando a garganta. — E sei que ele é super compreensivo.
Então, relaxa! Vai tudo correr bem.
Eu estava praticamente ouvindo nada daquilo. Minha cabeça
trabalhava nas inúmeras possibilidades sórdidas que a vida poderia
armar para me fazer passar uma tremenda vergonha na cama com
o dito cujo.
— Tô nem aí se ele é compreensivo! — bradei, erguendo a
cabeça e tirando-a de entre as minhas pernas. — Um absurdo
desses não pode acontecer! Imagina só se a gente tá lá e... E... E
de repente o meu... O meu... — Era constrangedor demais para
que eu pudesse concluir a frase. E quanto mais eu pensava, mais
nervoso eu ficava.
— Liam, se acalma! — Ste segurou meu rosto com as duas,
virando-o em direção a ela e olhando-me firme. — É por isso que
nós estamos aqui. Pra dizer o que você pode fazer. Certo? Você só
precisa manter a calma.
Que situação!
Mas ela estava certa. Eu precisava mesmo manter a calma
ou teria um ataque cardíaco a qualquer momento. Aquela era a
noite de aniversário do Eric. Eu não podia estragar tudo. Que a
Santa Vodca do Céu me ajudasse.
— Okay — respirei fundo. — Vou tentar manter a calma. —
Disse enquanto ainda sentia meu coração acelerado. Porém, eu,
pelo menos, tinha que me iludir de que tudo daria certo. — O que eu
posso fazer?
— A chuca — respondeu. — Tem outra alternativa também,
mas a chuqueira é melhor por ser mais rápida. E como é melhor que
você se apronte no banho, a chuca é a alternativa mais viável por
ora.
Até o nome “chuca” me dava arrepios.
— Tá... — assenti, mesmo inseguro. — Como eu faço isso?
Como acontece? Eu não faço ideia. — Confessei, enquanto pedia à
Buda que não fosse algo tão ruim quanto a palavra fazia parecer.
Assim que me calei, Molly levantou-se e pegou o embrulho,
levando-o para onde estávamos no chão. Logo percebi que ainda
tinham mais coisinhas ali dentro.
— Olha, Liam... — minha irmã falou. — Essa chuqueira é
descartável. Tem mais algumas aqui dentro. Você usa uma por vez
e, quando acabar, pode comprar outras na farmácia. É bem simples.
Enche esse tubinho de soro fisiológico, coloca o bico lá naquele
lugarzinho, aperta e solta o líquido. Faz isso até que o soro saia
limpo. Tem gente que faz com água, mas não é muito confiável. A
água pode estar contaminada e você pode pegar uma infecção. Por
isso que é melhor que seja feito com soro.
Quando ela terminou de falar, meu olho só sabia ficar
arregalado. Como assim eu teria que colocar esse negócio lá e
limpar e tirar e colocar de novo e tirar de novo? Santa Vodca do
Céu. Pensando nisso, eu estava precisando de Vodca mesmo!
— É sério que eu vou ter que colocar esse negócio lá? —
Minha voz saiu meio trêmula. O coração voltou a acelerar. — Gente,
e-eu não vou conseguir fazer isso — gaguejei e olhei para as duas,
balançando a cabeça negativamente. — Tá tão trancado que não
passa nem wifi.
Stefany riu da aflição, aquela sem coração!
— Liam, calma — falou entre risos. — Isso não é uma
lavagem intestinal completa. Você meio que só vai limpar ali o salão
de entrada, entende? Além do mais, essa não é a única alternativa
— puxou o pacote e tirou uma pequena caixa de lá, entregando-me
logo em seguida. — Você pode usar esse supositório de glicerina.
Como já tá perto da hora, não é bom você usar agora. Mas, quando
você tiver mais tempo, usa, porque chega a ser melhor que a
própria chuca. Se você ficar fazendo chuca direto, isso pode mudar
o ph do teu traseiro ou até tirar algumas bactérias importantes e
necessárias pro teu intestino. Hoje você faz a chuca porque é mais
prático e rápido.
Fazer? Ela falou como se eu já estivesse cem por cento certo
disso. Na verdade, ainda me sentia muito confuso. Queria fazer as
coisas darem certo. Era o aniversário dele. Além do mais, eu estava
com vontade, apesar do nervosismo. Só que a preparação estava
muito complicada!
— Gente... — suspirei, demonstrando uma cara de certo
desânimo. — Isso tá muito difícil. Acho que tá mais difícil que o
próprio sexo. Nunca fiz essas coisas na vida. Não sei se vou
conseguir. Esse troço todo... — peguei a chuqueira e a caixinha. —
É muito novo.
— Força, meu anjo. — Ste segurou em meus dois ombros,
chacoalhando-me. — Isso não é um bicho de sete cabeças, ok?
Pode parecer difícil agora, mas depois você pega a prática e tudo se
torna mais simples.
— É isso aí! — Molly também se pronunciou, encorajando-
me. Vai tudo correr bem. Você vai ver. E tem outras coisinhas aqui
que a gente ainda não mostrou. Umas coisinhas bem legais!
Coisinhas bem legais? Eu não caía mais nesse papo.
Suspirei, já me preparando para mais bombas.
— O que mais vocês têm aí? — não escondi o desânimo.
— Bom, a gente trouxe umas folhinhas depilatórias —
Stefany disse. — Porém, isso fica ao seu critério. Você não é
obrigado a se depilar. Só se você quiser mesmo e se sentir bem. Na
verdade, você não é obrigado a nada — sorriu. — Tem tanto essas
folhas depilatórias que você coloca aplica em cima do pelo e puxa,
quanto essa maquininha de depilar.
Olhei para os dois produtos e dei de ombros. Com isso eu já
estava familiarizado.
— Você sabe que eu sempre me depilo, Stefany — rolei os
olhos. Ela já tinha me visto nu umas quinhentas vezes para saber
disso. — Não vou precisar fazer isso. Tá tudo nos conformes já.
— Ok! Então, vamos para a última coisinha — ela respondeu.
— Ainda tem mais? — quase choraminguei. Porém, logo que
me calei, senti Molly jogando algo em mim.
Quando baixei o rosto para ver o que era, dei de cara com
uma... Uma... O quê?! Levei lentamente minhas mãos até aquela
coisa e a segurei com as pontas dos dedos, ainda sem acreditar no
que estava vendo. Era uma jockstrap!
— Molly! — virei meu rosto totalmente incrédulo para ela. —
Você comprou aquela jockstrap do Sex Shop?! — Só não gritei mais
pelo medo de que pudessem ouvir lá de fora do quarto. — Eu. Não.
Vou. Usar. Isso!
A doida caiu numa gargalhada mais louca que ela própria.
Stefany a acompanhou. Um casal de doidas. Sabe a tampa e a
panela? Pois bem, elas eram! Estarrecido, me levantei do chão,
deixando todos aqueles produtos para trás, especialmente a
jockstrap, e fui em direção à minha mala, para pegar a toalha de
banho.
— Qual é, Liam? — Stefany disse entre risos. — O Eric vai a-
do-rar! Ele merece um bumbum sexy desses do lado de fora! Vai,
neném, usa!
Onde estava a Santa Vodca do Céu para me dar paciência?!
— Ele vai ter a porcaria da bunda de fora quando tirar a
minha cueca normal! Pronto!
As duas riram ainda mais. Será que eu tinha virado palhaço
ou algo do tipo? Por favor. Eu precisava de um tempo daquilo tudo.
Já tinha recebido informações demais para um início de noite. Ainda
mais se eu fosse levar em consideração que aquela noite seria
longa... Bem longa.
— Estamos brincando contigo, seu bobão! — Molly falou. —
Claro que você não precisa usar essa jockstrap, a menos que
queira... — deu-me um olhar um pouquinho malicioso, erguendo
uma das sobrancelhas. — Na verdade, temos aqui algo mais sexy...
— Colocou a mão dentro do embrulho e quando tirou... — Olha só
isso aqui.
Uou!
Quando bati os olhos, inevitavelmente me aproximei. Era
uma cueca boxer preta linda! Sem hesitar, a segurei nas mãos. Era
perfeita. E talvez fosse melhor do que a que eu pretendia vestir.
— Ela tá limpinha e pronta pra ser usada! — Ste sorriu. —
Aproveita!
Ainda encarando-a, pensei que esse talvez tivesse sido o
melhor item que elas me trouxeram. Eu não tinha dúvidas de que
iria usá-la, por mais que a parte boa do sexo fosse quando se tirava
tudo.
— Tá, ok — balancei um sim com a cabeça, tentando me
concentrar naquilo o que eu precisava fazer, ou seja, me arrumar. Já
tinha perdido muito tempo ali e a hora estava correndo. — Valeu por
me mostrarem todos esses troços. Só que agora eu preciso ir
mesmo tomar banho. Então, se quiserem... — e gesticulei em
direção à porta.
As duas entenderam o recado, claro. E não demoraram muito
até se retirarem dali, já que o trabalhinho delas estava finalizado.
Obviamente saíram sem não antes soltarem uma pequena piadinha
sobre a minha preparação e tudo o que iria acontecer mais tarde.
Bobonas.
Procurei não dar ouvidos, até porque, sozinho no quarto, eu
tinha coisas mais importantes para tirar completamente a minha
atenção. Olhei para o chão e a tal chuqueira ainda jazia caída por lá.
Engoli a seco.
Aquela era a hora do meu banho e, bem, se eu não quisesse
desistir, era a hora de usar aquele troço também. Encarei-o por uns
dois minutos, parado e quieto. Minha mente rodava em
pensamentos. Um misto de medo e ansiedade me tomou, até que...
Caí na real.
Se eu não enfrentasse o meu medo de usar a tal chuqueira,
como eu poderia enfrentar o medo de transar com um homem?
Teoricamente, fazer a chuca era mais fácil do que dar o meu bem
mais precioso. Além do mais, eu não queria correr o risco de que
algo constrangedor acontecesse.
Okay, estava decidido: eu precisava agir.
Aquilo ia acontecer de uma vez por todas!
Foco no objetivo, Liam.
Coloquei a toalha sobre meu ombro, peguei aquela obra de
satanás que estava no chão e segui para o banheiro. Fechei a porta
e me tranquei lá. Respirei fundo e fechei os olhos. Quando os abri,
vi meu reflexo no espelho. Olhei no fundo dos meus olhos e pensei:
“para de frescura Liam, seja macho!”
Enchi o tubinho de soro fisiológico e...
Cinco.
Dez.
Quinze minutos de tentativa se passaram, até que...
NÃO!
Não dava! Não tinha condições! Aquilo era realmente obra do
capeta! Das duas uma: ou eu estava muito nervoso, ou chuca não
era para mim. Foi a experiência mais esquisita e nojenta da minha
vida!
Eu não conseguia nem descrever para mim mesmo o que
estava sentindo, só sei que larguei aquele troço na lixeira do
banheiro de qualquer jeito e fui para debaixo do chuveiro. Não tinha
como. Eu não tinha jeito para isso.
Eu não iria fazer essa chuca do demônio!
Deixei que a água descesse pelo corpo, mas, quando fechei
os olhos para molhar os cabelos, a consciência bateu: “e se o pior
acontecesse? E se aquela coisa constrangedora acontecesse?” Abri
os olhos, quase desesperado.
Sobre aquela noite, eu não tinha muitas certezas, mas, sem
dúvidas, eu estava ferrado. Como aqueles desenhos animados onde
um anjinho e um capetinha apareciam em cada um dos ouvidos,
ponderei.
O anjinho falava: “faz a chuca, neném, senão depois você vai
se arrepender”. Enquanto isso, o capetinha buzinava no meu outro
ouvido: “larga isso, faz essa porra não, você vai ver que não vai dar
em nada”.
E então, o que eu decidi? Isso mesmo. Eu, como sendo Liam
Wyman Tremblay Terceiro, dei ouvidos para o meu adorável amigo
capeta, como sempre! Não escutei o anjinho. Eu nunca escutava.
Desliguei o chuveiro, terminei o banho e saí dali sem ter
organizado o salão de entrada. Que fosse o que Deus quisesse! Na
verdade, o que o capeta quisesse. E que ele fosse bonzinho pelo
menos uma vez em toda a sua existência.

❖❖❖

Depois que me vesti, incluindo a incrível cueca boxer preta,


desci as escadas, segurando o presente do Eric. Ainda sentia um
peso por não ter feito o principal de tudo e, graças ao tempão que
perdi tentando fazer aquele absurdo, quando cheguei à sala do
andar de baixo, todos já estavam lá. Parecia que eu mesmo era o
aniversariante.
Porém...
Pensando em aniversariante, cara, assim que passei do
último degrau, a primeira pessoa que meus olhos encontraram foi
ele... Eric. Era inexplicável, eu não tinha justificativas, nem sabia
como isso podia acontecer, mas ele tinha a capacidade de sempre
me surpreender cada dia mais.
Se no dia anterior ele estava bonito, no dia seguinte ele
estava estonteante. Se no dia anterior ele estava bonito, no dia
seguinte estava lindo. Era sempre assim, uma crescente. Não havia
um dia sequer em que ele não estivesse mais bonito que o dia
anterior.
E naquela noite de aniversário, ele estava maravilhosamente
perfeito. Usava jeans escuro e jaqueta. Os lisos cabelos castanho-
claro estavam em um bagunçado charmoso, como de costume.
Já segurava duas taças de champanhe, uma em cada mão,
quando veio em minha direção. Antes que eu pudesse falar
qualquer coisa, envolveu-me com o braço por minha cintura e me
deu um beijo no rosto. Ele parecia estar tão feliz por eu participar
daquele momento.
— Pra você... — sorriu, erguendo uma das taças de
champanhe.
— Valeu... — segurei, enquanto o observava tomando um
gole da outra que tinha ficado em sua mão. Estava sedutoramente
lindo. E eu cada vez mais gay. Essa vida de boiola realmente era
um caminho sem volta. Suspirei e, quando baixei o olhar, vi que, na
minha outra mão, o presente dele ainda estava lá. O coração
acelerou. Eu nunca tinha dado presente algum a ele. Me sentia
envergonhado. Porém, eu não havia praticamente dado um dos
meus rins por aquela chuteira, para depois não entregá-la. Assim,
tomei coragem e... — Olha, isso aqui é pra vo-você... —
estupidamente gaguejei.
Eric subitamente arqueou as sobrancelhas. Um sorriso ainda
maior logo apareceu em seu rosto. Ele não escondia o quanto
estava surpreso e feliz. Claro, algo assim nunca havia acontecido
entre nós. O primeiro presente dado por mim.
— É... Pra mim? — parecia não acreditar no que tinha
ouvido. E eu, envergonhado como estava, tudo o que consegui fazer
foi acenar um sim com a cabeça. Eric sorriu ainda mais e, feliz, tirou
o pacote da minha mão. — Poxa, muito obrigado, amor... —
abraçou-me novamente pela cintura e me beijou a boca.
Porém...
— Olha só! — Stefany disse, chamando a atenção dos
outros. — Os pombinhos! Liam criando vergonha na cara e dando
um presente para o Eric. Muito bem, continue assim — e soltou uma
pequena risadinha, fazendo as outras rirem também. As tias dele
nos observavam como se fôssemos dois bebês.
— Se não comprasse, eu mesma o mataria — Molly falou em
tom de brincadeira. — Abre aí, Eric, pra gente ver o que é... — deu
um sorrisinho sugestivo, porque, claro, ela sabia o que era o
presente. Tinha ido comigo ao shopping. Naquele instante, todavia,
eu mesmo quis matá-la. Fiquei nervoso com a possibilidade dele ver
o presente ali, na frente de todo mundo.
E se ele não gostasse? E se achasse a chuteira feia? Eu
tinha achado irada, mas não sabia dos gostos dele e, quando
comprei, fiquei tão hipnotizado com a beleza dela, que nem parei
para pensar muito. Além do mais, estava com vergonha... De todas
elas, principalmente as tias, nos encaravam como se estivéssemos
envolvidos em meio a um milhão de coraçõezinhos. Tão brega.
— Claro! Vou abrir — sorriu e caminhou até o sofá com o
presente em mãos, sentando-se logo em seguida. Droga. Eu estava
quase suando frio. Onde poderia me esconder? Os pensamentos
negativos sobre não gostar da chuteira estavam cada vez mais
fortes.
Começou a desembrulhar o pacote, até que caixa de sapatos
apareceu. Quando a viu, subitamente ergueu o rosto, arregalando
os olhos para mim. O que foi? Ele não estava acreditando que eu
tinha dado uma chuteira da Nike para ele? Ou será que não tinha
gostado mesmo?
Quando enfim abriu a caixa, suas mãos rapidamente
seguraram as chuteiras. Elas reluziam em prata... Lindas... Eu, pelo
menos, achava. Mas, não sabia dele, a não ser pelo seu rosto
completamente surpreso e seus olhos brilhando. Piscava como se
tentasse comprovar que realmente não estava sonhando.
— Que lindas chuteiras, Liam! — Lexie falou com admiração.
— Você realmente acertou em cheio no presente! — Dessa
vez, foi Samantha que disse.
Acertei?
Mesmo que elas tivessem gostado, eu queria saber da boca
dele. Pelo menos, a loja tinha me dado um vale-troca e eu poderia
entregá-lo, caso ele quisesse. Porém, como se estivesse lendo
meus pensamentos, Eric se levantou e rapidamente veio em minha
direção.
— Eu adorei! E-Eu amei! — parecia eufórico. — Nem acredito
que você me deu um presente... — e me abraçou forte, deixando
pequenos beijinhos por todo o meu rosto. — Obrigado mesmo.
Agora vai ser a minha chuteira da sorte!
Inevitavelmente sorri com tranquilidade. Ele tinha gostado!
Não poderia ficar mais feliz.
Graças a Santa Vodca do Céu, ele tinha gostado. E se não
gostasse, esfregaria a cara dele no asfalto e mandaria criar
vergonha na cara. Calma, brincadeirinha. Eu não faria isso. O que
importava era que parte do meu nervosismo por aquela noite tinha
passado, mesmo que uma parcela dele, aquela que dizia respeito
ao que faríamos no quarto, ainda continuasse existindo.
— Ah, que bonitinhos! — Stefany falou como se estivesse se
referindo à duas criancinhas. — Mas, eu já estou quase tendo
diabetes com tanto açúcar. Vamos colocar um pouquinho de sal
nessa noite! Que tal o jantar, tia Sam? — virou-se para ela com
expectativa. — Eu já estou morrendo de fome.
Olhei em volta e vi que tudo realmente já estava pronto.
Obviamente, não tinham balões e aquelas coisinhas de festa infantil,
por mais que o Eric fosse uma criançona. Entretanto, a mesa já
estava posta para o jantar, assim como algumas bebidas já estavam
colocadas em baldes de gelo. Talvez comer não fosse uma má
ideia. Comida de verdade, claro. Não aquela que o loiro azedo
acharia na minha cama.
Um frio na espinha subia só de pensar.
— Ótima ideia, querida! — Samantha sorriu. — Vamos para a
mesa. Já está tudo preparado!

❖❖❖

The Less I Know The Better do Tame Impala tocava através


do som da Smart TV, enquanto estávamos sentados em alguns
sofás na varanda que ficava no topo da mansão. O jantar já havia
sido finalizado, mas os parabéns ainda não tinham sido cantados.
Stefany e Molly estavam abraçadas e coladinhas na sacada, se
mexendo levemente de um lado para o outro, conforme a música, e
“namorando”, um pouco mais afastadas de nós.
Enquanto isso, Eric e eu conversávamos com as tias dele. Na
verdade, praticamente só o Eric. Eu também falava, mas era menos
que ele. Estava mais acompanhando os assuntos. Regados a muito
champanhe, risos, sorrisos e assuntos agradáveis, a noite seguia
em uma festa de seis pessoas, três casais. Eric segurava uma das
minhas mãos, enquanto fazia carinho com o polegar sobre a minha
pele.
Naquele instante, depois de tantos assuntos, elas estavam
relembrando sobre as peripécias de Eric quando criança. Os risos a
cada lembrança me levavam a rir também. Fora que era engraçado
saber do que ele aprontava. Eu não era o único capetinha da
história. Como eu sempre soube, ele não era tão anjinho quanto
aparentava ser. Quem o conhecia bem, sabia.
— Querido, lembra daquele dia em que viajamos com seus
pais para uma casa de campo e você pintou o George inteiro
enquanto ele estava dormindo? — Samantha disse entre
gargalhadas. — Você devia ter uns oito anos... Pegou todas as suas
tintas guache e ele só foi perceber depois que acordou do cochilo da
tarde. Nem eu, nem Lexie, nem sua mãe vimos você fazendo essa
traquinagem.
Eu me lembrava que na infância, Eric e seu pai eram bem
próximos. Só foram se distanciar depois que Eric cresceu mais um
pouco. Por isso, não achei estranho quando Samantha relembrou
esse acontecimento. Até então, não sabia o que tinha os distanciado
tanto. Talvez a vontade de George em querer torná-lo o próximo
engenheiro civil da família. Mas, eu não tinha certeza, porque nunca
havíamos conversado sobre isso.
— Eu lembro sim... — Eric também riu. — Coisa de criança
— balançou a cabeça levemente. — Acho que isso foi no meu
aniversário de oito anos mesmo. E hoje eu estou fazendo 19 anos
— virou-se para mim com um sorriso irônico e uma das
sobrancelhas arqueadas. — Agora sou mais velho que você.
Sorri de volta, revirando os olhos. Tinha certeza de que ele
iria falar sobre isso em algum momento. Não perderia a
oportunidade de brincar com a minha cara. Isso era típico.
Engraçadinho.
— Somente por questão de meses. Também estou perto de
fazer 19 anos. Vai ser daqui a um mês — pisquei um dos olhos, de
modo provocativo. — Não precisa ficar aí se achando o “adulto”.
Estou quase chegando lá.
— Hum, tudo bem, ponto pra você — respondeu sem tirar
sorriso. — É claro que eu estava lembrando disso. Antigamente, eu
me odiava por lembrar todos os anos, mas agora... — e me deu um
selinho como forma de completar a frase.
Quando voltei meu olhar para Samantha e Lexie, as duas nos
observavam daquele jeito bobo de sempre. Será que nós dois juntos
era tão bonitinho assim?
— Acho que poderíamos cantar os parabéns agora, querida
— Lexie falou. — O que acha? São quase meia noite. Perdemos o
horário conversando — e deu uma pequena risadinha.
— Tem razão! Nossa, já tá ficando bem tarde — olhou para o
relógio de pulso, surpresa com o horário. — Vamos lá embaixo para
pegar o bolo e os talheres — levantou-se do sofá, acompanhada de
Lexie, e olhou para Ste e Molly. — Meninas, venham aqui, vamos
cantar os parabéns!
Ambas desceram, mas não demoraram muito a voltar com o
bolo, os pratos e os talheres. Dentro de poucos minutos já estavam
colocando tudo em uma mesa da varanda. Não era um móvel muito
grande, mas tinha tamanho o suficiente para que Eric pudesse partir
os pedaços.
Da sacada era possível observar aquele início de madrugada
e voltar a sentir a promessa para a tal noite. Como a casa ficava
mais afastada da cidade, podíamos ver as luzes acesas de longe,
iluminando o sono daqueles que já estavam dormindo. Mas eu sabia
que, especificamente, eu, não dormiria tão cedo. Respirei fundo com
o pensamento.
Todos nós nos aproximamos e ficamos em volta da mesa.
Lexie acendeu as velas e... “Happy birthday to you! Happy birthday
to you! Happy birthday, happy birthday, happy birthday to you!”.
Batemos palmas, enquanto Eric estava sorridente. Logo em
seguida, fechou os olhos e assoprou as velas. Ele parecia ter feito
um pedido. Porém, para o pedido fazer efeito, tinha que ser secreto.
Ninguém ousou perguntar.
— E então, querido, para quem vai o primeiro pedaço do
bolo? — Samantha perguntou como se já soubesse da resposta.
Ste e Molly deram risadinhas, como se também já soubessem o que
estava por vir.
Eric, por sua vez, mirou em mim, mas logo baixou os olhos
para o bolo. Cortou um pedaço, deu a volta na mesa e, quando
percebi, ele já estava me abraçando pela cintura.
— Eu pedi pra que você fique comigo pelo resto vida —
sussurrou em meu ouvindo, direcionando o pedaço para mim logo
em seguida.
— Você sabe que só funciona se manter o segredo do pedido
— respondi baixinho, enquanto segurava o prato que estava me
entregando.
Sorrindo como criança travessa e dando um beijo rápido em
minha testa, ele falou:
— Eu não sou supersticioso.

❖❖❖

O relógio marcava duas horas da manhã, quando a


comemoração oficialmente finalizou. Samantha e Lexie disseram
que ficariam conversando por mais tempo, não fosse pelo sono já
batendo. Decidimos, então, irmos todos dormir. Já estava ficando
tarde mesmo e logo mais voltaríamos para Londres.
“Dormir”.
Entre aspas.
Bem entre aspas.
Em nenhum momento minha cabeça se condicionou a pensar
que eu realmente iria dormir. Inevitavelmente, comecei a ficar
nervoso. Durante toda a comemoração do aniversário, tentei me
manter calmo, tentei não pensar no que iria acontecer. E, graças a
Santa Vodca do Céu, tinha quase certeza de que fui bem nisso.
Conversei e me enturmei na medida do possível, mesmo que
eu ainda não tivesse muita prática em ser educado com as pessoas.
Me esforcei. Não somente pelo Eric, mas principalmente por mim.
Eu sabia que precisava mudar alguns aspectos do meu estilo de
vida. Já estava na hora de crescer.
Porém, foi no momento em que paramos no corredor dos
quartos, para desejar “boa noite” uns aos outros, que meu corpo
definitivamente entrou em estado de ansiedade, tensão,
inquietação. Um suor frio já descia por minhas costas e eu quase
não conseguia disfarçar. Me esforcei para transparecer
tranquilidade, como se nada estivesse acontecendo dentro minha
cabecinha e do meu corpo como um todo.
Estava difícil manter as aparências.
Mesmo que, durante o dia, ele não tivesse tocado de forma
explícita no assunto, eu sabia que ia acontecer. Seu rosto, suas
atitudes, seu jeito, tudo. Tudo falava por si só. A menos que eu
estivesse ficando paranoico. Especialmente depois daqueles
produtinhos enviados diretamente por satanás, que Molly e Stefany
fizeram questão me mostrar.
Meu Zeus do Céu. O Liam de meses atrás jamais
reconheceria o Liam de hoje.
Aliás, o Liam de mês atrás n-u-n-c-a cogitaria a possibilidade
de transar com um homem, principalmente se esse homem fosse o
Eric. Meu ex-inimigo natural. Tudo ainda era tão novo, que minha
cabeça começou a trabalhar em inúmeras possibilidades e a fazer
uma série de perguntas para si mesma.
Será que ele iria entrar no quarto junto comigo? Ou será que
ele iria primeiro passar no quarto dele e depois iria para o meu? Ou
será que eu deveria entrar no quarto dele com ele? Ou será que eu
deveria entrar no meu quarto e depois ir para o quarto dele? Droga!
Eu estava ficando tão nervoso, que nem sabia o que fazer, como
agir ou que falar.
Tantas perguntas estúpidas!
Claro, com as garotas eu tinha total controle da situação.
Sabia o que fazer, como fazer e quando fazer. Eu dominava tudo.
Só que com o Eric não. Com ele, eu não sabia de absolutamente
nada. E isso era assustador. Dois homens... Dois homens que
queriam comandar? Ou um comandaria e o outro não? Se fosse
assim, então quem comandaria? O Eric mesmo? Um passivo
literalmente tinha que ser passivo ou ele podia...?
Que saco. Mais perguntas estúpidas!
Meus pensamentos precisavam se controlar.
Porém, pior ainda foi quando me despedi de todos e todos se
despediram de mim. Samantha e Lexie estavam agindo
normalmente, enquanto Molly e Stefany... Essas secretárias do
demônio! Me encaravam com os olhares mais descarados do
mundo. Elas não sabiam disfarçar. Disfarçar não estava no
vocabulário delas.
Já o Eric...
Diferente dos olhares que me deu durante o dia inteiro,
naquele instante seu semblante não me dizia absolutamente nada.
Isso me angustiava e me deixava ainda mais cheio de perguntas.
Para completar... “Boa noite”. Foi tudo o que ele disse, antes de se
despedir dos outros, me abraçar, entrar em seu quarto e fechar a
porta.
Pronto.
Me deixou lá, plantado no meio do corredor, enquanto Lexia,
Samantha, Molly e Stefany entravam em seus quartos. Fiquei
estático, pensando: “e agora? O quê que acontece? Ele desistiu?”.
Apesar das dúvidas, claro que não fiquei mais que alguns segundos
encarando a sua porta feito idiota. Tão logo todos fecharam as
portas, entrei em meu quarto e o tranquei também.
Olhei em volta. Eu estava sozinho. O silêncio era tudo o que
eu tinha. Fui em direção à janela e a abri. Encarei o céu. Ainda não
sabia o que fazer. Talvez eu estivesse ficando paranoico por ter
pensado que ele olhava diferente durante o dia. Talvez ele tivesse
esquecido. Talvez eu estivesse enganado quando pensei que ele
realmente lembrava. Talvez o “quem sabe mais tarde, não é?”
tivesse sido apenas uma brincadeira para o que as meninas
disseram na hora do almoço.
A Santa Vodca do Céu precisava me deixar mais calmo.
Eu não sabia se o fato de não acontecer era bom ou ruim.
Pelo menos eu não perdi meu tempo fazendo aquela chuca para
uma coisa que nem ia rolar. Talvez a vida tivesse dado uma dentro
ao menos uma vez. Okay. Talvez fosse melhor deixar tudo quieto.
Fechei os olhos. Respirei fundo. Me convenci: era isso.
Saí da janela, liguei o abajur, apaguei a luz do quarto e
caminhei até a cama. Nem me dei ao trabalho de tirar a roupa.
Deitei de jaqueta e tudo, apenas descalcei os sapatos e encarei o
teto, pensativo. Talvez Eric tivesse se convencido de que era melhor
esperarmos mais um pouco. Talvez ele não estivesse tão preparado.
Era melhor eu dormir.
Antes de fechar os olhos, peguei o celular em um súbito
pensamento de que pudesse ter uma mensagem dele lá.
Desbloqueei a tela e... Nada. Suspirei. E se eu mesmo mandasse
uma mensagem perguntando o que aconteceu? Seria uma boa? Ou
não? Encarei a tela por longos minutos. Nem sabia há quanto tempo
estava ali deitado, olhando para o um estúpido celular.
Os pensamentos sobre aquela noite estavam tão confusos,
que uma súbita lembrança de Robert e William passou minha
cabeça. Era para nós termos saído para um pub. Porém, nenhum
dos dois me procurou depois do que aconteceu no colégio, assim
como eu também não tinha cabeça para falar com eles. Nem sabia
como seria quando eu voltasse dessa viagem.
E, então, depois de passar um tempão pensando sobre a
vida e fazendo papel de bobo sobre cogitar a possibilidade de
mandar uma mensagem para o Eric, caí na real: o que eu estava
fazendo afinal? Ora essa, se nada acontecesse, eu resguardaria
minha preciosa “virgindade” por mais tempo. Era isso mesmo: nada
iria acontecer. E meu bem mais precioso continuaria intacto. Estava
decidido. Eu não iria atrás de seu ninguém.
Determinado a finalmente dormir, larguei o celular na cama
e...
Quando fui desligar o abajur...
Três batidas na minha porta.
Como se tivesse um botãozinho dentro de mim, meu coração
acelerou automaticamente e meus olhos se arregalaram de súbito.
Será que...? Sentei na cama sem nem perceber. Eu definitivamente
estava no automático. Não, não era possível. Talvez eu estivesse
ouvindo coisas.
Porém...
Mais três batidinhas na porta.
Tais batidinhas reverberaram mais uma vez dentro de mim,
ao ponto de eu conseguir escutar meu coração retumbando em
meus ouvidos e senti-lo batendo forte no peito. As mãos começaram
a suar frio. Eu estava completamente gelado. E, então, de repente...
Um cheiro foi de encontro ao meu nariz...
Era o cheiro dele, atravessando a porta do quarto. Parecia
que seu perfume chegava antes que ele próprio. E eu já o conhecia.
Impossível não identificar, depois de todo aquele tempo. Cheiro
agradável, cheiro de quem parecia que havia acabado de tomar
banho.
Buscando uma coragem de até onde eu não sabia que
existia, me levantei da cama. Só podia ser ele. Com um misto de
ansiedade e tensão, caminhei até a porta. Antes de abrir, respirei
fundo e pensei: “não pode ser tão assustador quanto você pensa,
Liam”.
Respiração presa, mãos frias, lábios secos.
Só então girei a maçaneta e...
Seus olhos estavam fortes e expressivos como eu nunca
tinha visto. Seus cabelos molhados, a pele fresca. Sim, ele tinha
acabado de tomar banho, o cheiro agradável estava ainda mais
evidente. Vestia apenas uma regata que deixava amostra seus
braços seguramente definidos e um short de tecido fino que
marcava o seu... Minha Nossa Senhora.
Segurava em uma das mãos uma garrafa de vinho, enquanto
na outra haviam duas taças. Observava-me de uma maneira
inexplicável, ao ponto de eu me sentir completamente despido,
mesmo coberto por roupas. Pisquei os olhos para ter certeza de que
estava vivendo aquilo. Engoli a seco, quando tive a certeza.
— Posso entrar?
Impressão sua

Liam

“Posso entrar?”
Uma pergunta, duas palavras. Algo tão pequeno, mas que
teve uma capacidade imensa de me deixar ainda mais nervoso. Eu
nem me reconhecia. Liam Wyman Tremblay Terceiro jamais ficou
nervoso por transar com alguém.
Mas tudo bem. Okay. Isso era compreensível, porque, no
caso, eu iria transar com um cara. Algo que eu jamais havia feito,
assim como também nunca tive a pretensão de fazer. Exceto depois
que aquele enviado de Satanás virou a minha cabeça.
Ainda fiquei parado, feito uma boba estátua, por uns dez
segundos. No entanto, logo pisquei os olhos e acordei, quando notei
que Eric me encarava com uma expressão do tipo “e então... Eu vou
ficar aqui mesmo na porta?”.
Agi.
— Cla-Claro — e ainda gaguejei. Merda! Ele não podia saber
o quanto eu estava nervoso. Lógico que não. Eu precisava passar
uma imagem de que estava tudo certo, tudo sob controle, assim
como sempre fazia, mesmo que dentro de mim a guerra estivesse
grande.
Tinha a ilusão de que, se eu transmitisse segurança para ele,
ele perceberia, e, consequentemente, isso me deixaria seguro de
verdade. Era assim como eu sempre agia em todas as situações da
vida, especialmente quando se tratava daquelas que vivia com o
Eric. Nunca baixava a cabeça, por mais inquieto que me sentisse.
Abri ainda mais a porta, liberando o caminho para que ele
entrasse e, assim, o fez. Era como um sonho. Não parecia real vê-lo
entrando daquela maneira naquilo que seria o meu quarto. Diferente
de mim, que tentava passar uma falsa imagem de segurança, ele
estava verdadeiramente confiante e caminhava como se fosse o
próprio dono daquele espaço.
Tão seguro...
Lógico. Não era ele quem ia dar.
Respirei fundo e fechei a porta. Passei a chave, trancando-a.
Não queria correr o risco de que alguém entrasse no quarto e nos
pegasse em uma situação... Digamos... Constrangedora. Mesmo
que fosse de madrugada e que todos, supostamente, estivessem
dormindo, eu não queria dar sorte para o azar.
Quando me virei de volta para ele, seu olhar estava sobre
mim. Eu não conseguia desvendar o que estava pensamento, mas
tinha a certeza de que seguramente seria atacado dentro de
instantes. Meu Zeus, para que lugar eu poderia fugir, caso quisesse
pedir arrego?
E eu não estava errado.
Tão logo pensei que seria atacado, Eric se aproximou de
mim. Deixou o vinho e as taças em cima de uma cômoda e
caminhou em minha direção. Inconscientemente, dei um passo para
trás. Droga, desse jeito ele ia perceber que eu estava com um
fodido nervosismo! Me segurei. Tentei não tremer na base.
— Tá tudo bem? — segurou meu rosto com uma das mãos e
fez carinho com o polegar, dando-me um pequeno selinho em
seguida. Sua voz era calma, como músicas cantadas por anjos. Isso
nem de longe parecia o inferno que eu sentia dentro de mim. Sentia
inveja daquela calmaria dele.
Bem? Meu anjo...
Era fato que eu queria que acontecesse. Afinal, se eu não
quisesse, nunca teria ao menos cogitado a possibilidade, assim
como não o deixaria entrar naquele local. Porém, meu corpo
exalava ansiedade e nervosismo. O medo era evidente. Medo da
dor física e psicológica.
Eu sabia que, depois do ato acontecer, eu jamais seria a
mesma pessoa. Não tinha como continuar sendo a mesma pessoa.
E, por mais que em minha cabeça a ideia de gostar de um homem
estivesse quase que completamente consolidada, fazer sexo com
um, definitivamente, me daria o título de gay com todas as letras
que ainda poderiam faltar.
Meu coração acelerou.
A palavra “boiola” se desenhou ainda mais clara e evidente
em minha testa.
Engoli a seco.
— Tá sim.
Menti.
Desviei-me dele, caminhando em direção à janela do quarto.
Aproveitei a brisa fresca que corria por ali e respirei fundo. Eu
precisava aproveitar o ar puro e a capacidade que eu ainda tinha de
respirar, porque já estava começando a sentir meus pulmões
começando a falhar.
Por alguns instantes, comecei a me questionar se quando as
garotas perdiam a virgindade também era assim. No caso, eu tinha
voltado a ser virgem, porque nunca havia feito sexo naquelas
circunstâncias.
Meninas também se sentiam tão nervosas quanto eu? Caras
gays também se sentiam tão nervosos quanto eu? Ou eu era o
único frouxo da face da Terra? Não, não podia ser. Era normal se
sentir nervoso e inseguro, não era?
E pior: o medo da dor ainda triplicava quando eu pensava na
possibilidade de não gostar do que quer que fosse acontecer. Não,
não, não. Seria muito azar! Um azar imenso, se nós dois fôssemos
incompatíveis até nisso.
Eu nunca havia estado em um relacionamento sério antes,
mas sabia da importância da vida sexual de um casal. Não queria
nem pensar na possibilidade de não darmos certo nisso. Não era
possível. Não mesmo. Tinha que dar certo.
Debrucei-me sobre o peitoril da janela, apoiando meus
braços. Fechei os olhos, tentando encontrar paz de espírito e, assim
que os abri, vi quando seus braços me envolveram e suas duas
mãos puseram as duas taças, com vinho até a metade, no
parapeito.
Prendi a respiração.
— Não é o que vejo — ele disse. — Você parece tenso — e,
logo que abandonou as taças ali, levou suas mãos à minha jaqueta,
enquanto eu ainda estava de costas e ele atrás de mim, tirando-a
em seguida e deixando-me de camiseta.
Droga. Depois que comecei a me relacionar com o Eric, nem
mentir eu estava conseguindo, sendo que, antigamente, eu fazia
isso com maestria. Ninguém percebia quando eu fingia algo, mas
ele... Ele parecia ter a capacidade de não somente ler minha mente,
mas também ver a minha alma.
— Impressão sua — respondi e peguei uma taça de vinho,
desviando-me novamente dele, enquanto ainda estava de costas.
Caminhei até próximo à cama e finalmente virei-me para ele. — Tá
tudo na mais perfeita ordem — e virei todo vinho em um só gole.
— Uou! — Eric arregalou os olhos, provavelmente surpreso
com minha atitude de beber tudo de uma só vez. Pegou sua taça e
tomou apenas um pequeno gole. — Quer mais um pouco? —
questionou com certa ironia. — Encontrei esse vinho e essas taças
na cozinha. Acho que a tia Sam não vai se importar — deu um
pequeno sorrisinho.
— Quero. Pode colocar mais — ergui a taça em direção a
ele, demonstrando que queria que ele se aproximasse. Nem me
importei com sua pequena ironia sobre eu ter bebido tudo de uma
vez. Eu só precisava de algo que me desse coragem. E certamente
esse algo seria o álcool.
Ele assim o fez. Se aproximou de mim e encheu novamente
minha taça até a metade. Dessa vez, ainda bebi goles generosos do
vinho, mas não tomei todo de uma vez, por mais que quisesse ter
feito isso novamente. Eu iria assustá-lo com minha voracidade e
deixá-lo ainda mais desconfiado com o possível, e quase evidente,
nervosismo.
Deixá-lo perceber minha ansiedade era tudo o que eu menos
queria. Precisava de calma. Afinal, para quê pressa? A pressa
sempre foi inimiga da perfeição e, se eu queria que aquilo desse
certo, achava que precisávamos ir com calma.
— E, então, tá satisfeito agora? — perguntou, abandonando
mais uma vez a garrafa de vinho na cômoda onde estava.
Aproximou-se ainda mais de mim e passou sua mão direita
delicadamente em meu rosto, levando-a até meu queixo para
segurá-lo.
— Sim — respondi quase em um sussurro. Isso não era uma
completa verdade, porque, por mim, da maneira como estava, eu
beberia aquela garrafa sozinho em menos de cinco minutos. — Eu
tô — e, em praticamente um ato de coragem, ergui uma das minhas
mãos e também toquei em seu rosto.
Esse era o primeiro passo.
Eu sabia que dali em diante, após esse toque, uma sucessão
de tantos outros iriam acontecer até que eu chegasse ao auge da
noite. Meu coração não parava quieto quando eu imaginava isso.
Era como entrar em um caminho sem volta, numa estrada longa e
quase infinita.
— Sua mão tá gelada... — soltou um pequeno risinho pelo
nariz e colocou a sua por cima da minha, fazendo carinho.
Droga! Ele percebeu!
Imediatamente soltei seu rosto. Não queria que ele
continuasse sentindo minha completa falta de segurança e minha
estúpida sensação de medo. Essas mãos tinham que voltar ao
normal!
— Impressão sua — repliquei e me afastei, dando um passo
para trás e me encostando à cômoda que estava às minhas costas.
Era uma certa zona de segurança que eu tentava criar por ali.
Alguns centímetros de distância e eu poderia me sentir mais seguro,
mesmo que tudo fosse ilusório, porque segurança eu jamais teria ali.
— Já é a segunda vez que você me responde isso — sorriu.
— Será que tô enxergando coisa demais mesmo? — fixou seu olhar
no meu, dando-me a certeza de que, sim, ele podia enxergar minha
alma. Era como se estivesse nu, mesmo com roupa. E eu sabia que
ele tinha a certeza do que estava acontecendo comigo
internamente. Porém, preferi ficar calado. Deixei a pergunta solta no
ar, até que alguns instantes de silêncio se passaram. Éramos
somente nós dois e o silêncio naquele local. Mas logo... — Bom...
Tudo bem... — soltou um pequeno risinho, finalmente quebrando o
silêncio e balançando a cabeça, como se estivesse demonstrando
querer mudar de assunto. — Quer vir pra cá? — e se sentou na
cama, como um claro convite para mim.
Deslizei meu olhar dele para o espaço livre ao seu lado. Eu
poderia me sentar ali e nós poderíamos começar. Ele poderia me
beijar e eu poderia tirar sua camisa. Ele poderia me deitar na cama
e eu poderia viajar com minhas mãos pelo seu corpo. Mas... Ele
também poderia ficar entre minhas pernas ou atrás de mim ou pedir
para que eu ficasse por cima. E isso me assustava!
Suspirei.
Avaliei.
Fiquei calado. Não agi.
Era como se meus pés estivessem fincados no chão e presos
seguramente por raízes.
— Não precisa ter medo. Eu não vou te machucar — falou
como se realmente estivesse lendo meus pensamentos. Sua voz
calma e tranquila, como se estivesse conversando com uma
criancinha assustada. — Mas, só se quiser, claro. Não quero te
forçar. Só quero se você se sentir à vontade pra fazer.
E de uma coisa eu tinha certeza: essa peste era maravilhosa.
Tudo bem que isso deveria ser o natural de qualquer pessoa,
mas ele era atencioso, paciente, cuidadoso, preocupado. Isso só me
deixava ainda mais gay por ele. Porém, por mais palavras
confortantes que ele dissesse, eu jamais me sentiria completamente
à vontade para fazer.
Era fato que eu queria. Sim, claro, eu queria. Mas o medo e a
insegurança não me deixariam até que eu finalmente provasse pela
primeira vez e soubesse como tudo aquilo realmente funcionava. Eu
precisava ter a certeza de que, verdadeiramente, era bom e pedia a
todos os deus existentes que de fato fosse, porque não queria que
nós fôssemos incompatíveis até nesse ponto.
Uma incompatibilidade assim seria quase uma tragédia.
Porque...
Bom... Um casal não vive sem sexo. Pelo menos não é o
esperado.
Suspirei. Eu precisava seguir em frente e tentar deixar de
lado todos os meus medos e inseguranças. Aquele era o momento,
a hora da verdade. “Não seja bobo, Liam. Não seja bobo” era tudo o
que eu pensava.
— Eu não estou com medo — tentei passar confiança na
minha voz, por mais descabida que essa resposta fosse.
Desencostei da cômoda e fui em direção à cama. Ficava
praticamente ao lado de onde eu estava, mas tudo ali passava em
câmera lenta frente aos meus olhos, fazendo-me ter a impressão de
que levei décadas até chegar lá e me sentar ao seu lado. Era como
um sonho ou um filme. Flashes da minha vida “hétero” acabaram
passando rapidamente por minha cabeça. Eu ficava com tantas
garotas e agora... Quem era Liam Wyman Tremblay Terceiro?
Desconhecia.
Eu jamais tinha levado tanto tempo para começar uma
transa. Se fosse com alguma menina, provavelmente eu já teria até
gozado, já teria até feito pela segunda vez. Mas com um homem,
com o Eric, era tudo diferente. A primeira vez gay era diferente até
da primeira vez hétero. Lembrava de que, quando perdi a virgindade
com a Stefany, me senti menos nervoso e, mesmo que eu não
soubesse fazer direito, fui pelo instinto.
O problema era que meu instinto agora estava seriamente
comprometido, assim como meu traseiro.
No entanto, apesar de tudo, suspirei e tomei novamente a
iniciativa de tocá-lo, apesar das mãos meio trêmulas e
absolutamente geladas. Ele já tinha percebido, mas eu pedia a Zeus
que não soltasse mais comentário algum sobre isso. Eu só queria
começar ou jamais faríamos qualquer coisa ali. Eric queria, mas
estava esperando por mim, esperando para que eu desse o passe-
livre.
E eu dei.
Toquei seu rosto. Meu olhar fixou no seu. Não abri a boca
para dizer palavra alguma, mas meus olhos lhe falavam
explicitamente que poderia seguir em frente. Por mais inseguro que
eu estivesse, era preciso realmente seguir em frente. Eu queria
saber como era. E, no fundo, queria gostar.
Percebendo o que estava acontecendo ali, Eric baixou seu
olhar até minha boca e aproximou seu rosto do meu. O cheiro de
perfume, sabonete e creme de barbear ficou ainda mais evidente,
deixando-me quase embriagado. Ele era extremamente cheiroso.
Além disso, seus cabelos, ainda um pouco molhados, o deixavam
ainda mais charmoso. E eu cada vez mais gay.
— Posso? — olhando no fundo dos meus olhos, sussurrou
com seus lábios quase colados aos meus.
Dando um breve suspiro, não o respondi com palavras,
apenas balancei um sim com a cabeça, dando-o permissão para
que começasse. Em menos de dois segundos, um pequeno sorriso
se desenhou em seus lábios. Eric não estava só feliz, ele estava
absurdamente feliz.
— Eu te amo tanto — deslizou sua mão até nuca, segurando-
a firmemente, e me beijou.
“Eu te amo tanto”.
Essa frase reverberou em meus ouvidos, chegando
praticamente no fundo da minha alma e mexendo com tudo o que
teoricamente existia dentro de mim. Sempre acreditei que eu não
tivesse coração, até porque eu nunca fui das melhores pessoas.
Sempre fui um babaca bem escroto e reconhecia isso, mas o Eric...
O Eric despertava coisas em mim que eu mesmo não acreditava
que pudessem existir.
Fiquei sem reação, assim como sempre ficava quando ouvia
tais palavras, porém, mesmo que eu quisesse e me sentisse
confortável para abrir a boca e retribuir letra por letra, foi impossível.
Logo que se calou, seus lábios vieram ao encontro dos meus,
tomando-me o fôlego quase que por completo.
De início, o beijo parecia calmo, mas, três segundos depois,
nem de longe podia-se ver calmaria por ali. O que antes era silêncio,
tornou-se barulho de bocas sedentas uma pela outra. O que antes
era aparente sossego, tornou-se alvoroço de duas pessoas que só
queriam sentir uma a outra. O que antes parecia frio, tornou-se
quente, pegando fogo.
O clima do quarto mudou.
A maneira como eu me sentia era estranha e até inexplicável.
Jamais havia me sentido daquela maneira. Era uma mistura de
tesão e medo, excitação e nervosismo, vontade e intimidação. Meu
corpo queria o dele o mais próximo possível, qualquer centímetro a
menos não chegava a ser suficiente, ao mesmo em que minha
cabeça trazia pensamentos dos quais eu pedia a Buda para que não
existissem.
Eric, por sua vez, aparentava estar ainda mais certo do que
queria. A cada segundo que se passava, ele se tornava ainda mais
desinibido, expansivo e... Eu diria até que... Predador... Meu Zeus!
Predador?! Ele era o caçador e eu era a caça? Era sim! Era mesmo!
Eu nunca havia estado nessa posição!
De supetão, arregalei os olhos, que estavam fechados, e
imediatamente parei o beijo, afastando meu rosto logo em seguida.
Ofegante, tentei organizar as ideias. Eu precisava me controlar para
que esse tipo de pensamento não me tomasse a cabeça
novamente. Isso estava me atrapalhando. Na verdade, estava nos
atrapalhando, não somente eu.
Eric logo franziu o cenho, olhando-me de maneira confusa.
Provavelmente achou estranho eu ter interrompido o beijo daquela
maneira. E com razão! Até eu me surpreendi comigo mesmo. Minha
cabeça parecia trabalhar mais rápido que minhas próprias atitudes
corporais. Isso não estava ajudando. Não mesmo.
— O que houve? — com um tom de voz preocupado, ele
perguntou. Seu olhar apreensivo logo se fez presente.
Ah meu Zeus, eu não podia estragar aquilo!
Respirei fundo.
Sim, eu não podia estragar. O certo era seguir em frente e
tentar bloquear quaisquer pensamentos inapropriados. Daquela
noite não iria passar. Nós já tínhamos esperado muito tempo.
Aquele era o momento.
— Nada — balancei levemente a cabeça, dando de ombros.
— Vamos continuar — finalizei e logo avancei em sua boca
novamente. Dessa vez, tentando ser mais seguro de si, tentando
desligar-me de qualquer medo, insegurança, nervosismo. Eu tinha
que fazer aquilo valer a pena. Queria fosse bom não só para ele,
mas também para mim.
Tentei novamente. Me esforcei.
Tomei a liberdade de tocá-lo. Primeiro levei minhas mãos ao
seu rosto, sentindo toda a textura de sua pele. A região da barba
estava lisinha, sinal de que ele havia feito antes de ir para o meu
quarto, já que durante o dia ela estava por fazer. Desci até seu
pescoço e segui em frente, percorrendo toda a região até a barra da
sua camisa.
Eric continuou me beijando ainda com mais vontade, mas, foi
quando eu passei minha mão por dentro da sua blusa e apertei seu
abdômen, que ele ofegou. Ofegou, parou, me olhou com certa
intensidade e soltou uma pequena risadinha faceira, balançando a
cabeça levemente.
— Tá brincando com o perigo — mordeu seu próprio lábio
inferior e, antes que eu pudesse ao menos piscar os olhos, levou
seu corpo para cima do meu, fazendo-me deitar na cama. —
Cuidado... — guiou de tal forma que, quando dei por mim, minha
cabeça já estava no travesseiro.
Suspirei... Os boatos das garotas sobre o “desempenho
sexual” do Eric talvez fossem verdade mesmo. O cara sabia o que
fazer e como fazer. Se eu não estivesse tão nervoso, podia
confessar que isso era de se admirar, até porque, quem também
tinha fama de bom de cama no colégio era eu.
Dois bons de cama?
Crê em Deus Pai!
Eu não estava nos meus melhores dias de “pegador”, mas se
eu pudesse mostrar a ele como eu realmente era na cama... Bem
diferente do cara nervoso e inseguro como eu estava. Quem sabe
um dia eu pudesse mostrar. Quem sabe quando eu me sentisse
mais seguro numa situação como essa.
— Cuidado? — ri de nervoso. — Só se for pra tomar cuidado
contigo né? — e dei ênfase no “contigo”, ficando um pouco mais
sério depois da pergunta. Eric era uma louca mistura de doçura e
safadeza, tranquilidade e perigo, anjo e demônio. E, quando ele
queria, mostrava exatamente o nome “canalha” escrito na testa,
tanto quanto eu era.
— Eu sou inofensivo... — sussurrou em um tom sugestivo,
seguido de um pequeno sorrisinho safado. — Relaxa... Só tô
brincando contigo... — seu olhar mirou nos meus, tão admirado
quanto em qualquer outra situação que eu já tivesse a oportunidade
de ter presenciado esse semblante. Ele nunca pareceu tão imerso
em algo. E, bem, daqui a pouco ele estaria imerso em outra coisa...
Que delícia... Digo, credo!
Eu não tinha certeza de muitas coisas para aquela noite, mas
de uma coisa eu tinha plena convicção: ela daria o que falar.
— Tá — resmunguei no melhor estilo Liam de ser. — Para de
falar besteira e continua — finalizei. Eric ergueu uma das
sobrancelhas, deixando escapar um pequeno sorriso enigmático
para aquilo que eu havia acabado de falar. Na verdade, ordenar. Se
eu estava nervoso por dentro, ao menos havia conseguido
transparecer segurança naquele milésimo de segundo. Sorri de
volta, satisfeito com minha momentânea determinação.
— Seu pedido é uma ordem — respondeu e, sem tirar o
sorriso do rosto, aproximou-se de mim, sussurrando contra meus
lábios. — Vamos começar. Agora pra valer.
Quem sou eu?

Liam

Eric aproximou novamente seu rosto do meu, tornando a me beijar.


Parecia tão decidido, seguro. Parecia querer que aquilo já tivesse
acontecido a menos tempo. E talvez quisesse mesmo, considerando
que já estávamos há vários meses nos relacionando com um total
de zero atividades sexuais (somente algumas “brincadeirinhas”), o
que era um tempo recorde tanto para ele quanto para mim.
Porém, só não tinha acontecido porque eu não me sentia
completamente preparado. E talvez eu não estivesse me sentindo
nem mesmo naquele momento, mas uma hora precisava acontecer.
Além do mais, com certeza eu jamais me sentiria totalmente
preparado para fazer aquilo. Precisava saber como era. Precisava
gostar.
Ok, era hora de definitivamente entrar em ação.
Segurei na mão da Santa Vodca do Céu e fui.
Retribui seu beijo com tanta ânsia quanto a dele, porque eu
tinha que entrar no clima. Me excitar era uma prerrogativa
necessária para que tudo desse certo, especialmente naquele caso
onde o meu rabinho seria a vítima da noite. Por isso, tentando
deixar de lado qualquer insegurança, medo ou vergonha que nunca
havia sentido com uma garota, somente com o Eric, busquei me
entrosar mais. Meu pênis precisava subir, mesmo que ele não fosse
o grande astro daquela noite.
— Pega aqui... — me movi levemente, somente para abrir um
pouco de caminho entre nós dois, e segurei em sua mão, levando-a
até o meu pênis, ainda por cima da calça. Tudo o que eu mais
queria era que ele desabotoasse de um jeito bem excitante e me
estimulasse. Em outros tempos, eu já estaria completamente duro,
mas, para meu completo azar, isso estava demorando mais do que
deveria para acontecer naquela ocasião.
Afinal, o que diabos era aquilo?
Meu coração quis acelerar quando me dei conta disso,
quando percebi que meu pênis duro ainda não era uma realidade e,
bem, o Eric estava em cima de mim, me beijando, me tocando. Não
estar duro não era normal! Ainda mais se eu pensasse que já tinha
me excitado por muito menos com o Eric, mas, justo no dia que era
para subir, não subia!
Ok, eu precisava manter a calma. Tentei aquietar o coração.
Aquilo devia ser só nervosismo, só pressão que eu fazia sobre mim
mesmo. Logo logo, eu estaria em “ponto de bala”, já que, por mais
que ele não fosse ser usado ativamente ali, gozar era uma
necessidade para mim em qualquer relação sexual, mesmo que fora
e não dentro.
— Vai... Pega... — falei mais uma vez. Queria que ele
descesse com as mãos até lá e fizesse o que tinha de fazer. Ou
seja, o que sempre fazia e o que sempre me deixava ligado. Não
seria ali que não iria acontecer, não era possível, já que em todas as
outras vezes ele sempre “dava as caras”.
— Claro... — sorriu entre um beijo e outro, deslizando suas
mãos sobre o meu peito e abdômen. Lembrava que nas outras
vezes que a gente se pegou, seja no meu quarto ou no quarto dele,
eu sempre ficava muito excitado. Muito mesmo. Por mais que eu me
negasse, por mais que eu não quisesse. Só que não era isso o que
estava acontecendo ali.
Sabe... Cheguei a ter a impressão de que era castigo de
Zeus. Só podia ser! Em todas as vezes que eu me negava a ficar
excitado com o Eric, eu sempre ficava. Mas logo naquela hora que
eu realmente queria ficar de pênis duro, que eu definitivamente não
estava me negando, o demônio não subia.
Eu precisava contar até dez mentalmente e respirar fundo.
Não era possível.
Me negava a acreditar.
Seus dedos descendo sobre meus braços, meu peito e minha
barriga em nada faziam efeito e, por mais que eu estivesse tentando
manter a calma diante dessa gafe, a minha preocupação só queria
aumentar, principalmente quando eu pensava que uma hora ou
outra ele iria acabar percebendo. Isso se já não tivesse percebido.
Merda! Que vergonha!
Mas eu ainda tinha esperanças... Um fio de esperança de
que, quando ele chegasse lá, tudo ia mudar! Afinal, era uma região
do meu corpo que sempre foi muito sensível. A não ser que os
deuses realmente estivessem querendo tirar uma com a minha cara!
Porém, quando sua mão finalmente chegou ao destino final, o
pior aconteceu. Com seus dedos hábeis, demonstrando uma prática
com a qual deixava claro a quantidade de calças que ele já
desabotoou (não de homens, mas de mulheres), Eric abriu o zíper,
afastando primeiramente uma lateral e depois a outra. Muito
lentamente. Ele parecia querer que aquele momento acabasse
nunca.
Na verdade, se eu já estivesse excitado, como era para ser,
eu também não iria querer que aquilo acabasse tão cedo. Em outras
ocasiões, eu já estaria sentindo antecipação, graças àquela lentidão
torturante e sedutora. No entanto, a realidade que se apresentava
frente aos meus olhos era sórdida e inquietante, pois nem mesmo a
tal antecipação estava se fazendo presente ali.
Eu queria sumir!
Ou acreditar que tudo aquilo não passava de um pesadelo
terrível e irônico no qual, justo no dia que era para eu me excitar
com o Eric, eu não me excitava. A vida era sarcástica... E adorava
brincar com a minha cara.
Talvez se eu tomasse um... Viagra?
Oh não! Eu não podia acreditar que havia acabado de pensar
nisso!
Logo eu, Liam Wyam Tremblay Terceiro! Macho, viril, sarado,
atlético! Jamais precisei de qualquer artifício, que não fosse a
própria pessoa, para ficar de pênis duro! O que estava acontecendo
comigo afinal?!
Era tudo muito estranho. Até porque, se eu nunca tivesse
ficado excitado na presença do Eric, era compreensível não ficar
naquele momento. A questão era que em todas as outras vezes eu
tinha ficado, só não naquela! Algo de errado não estava certo! Mas,
o quê?!
Por Buda, Zeus, Thor, isso só podia ser uma brincadeira de
mau gosto!
E, então, exatamente no segundo seguinte foi quando tudo
se perdeu de vez: o loiro baixou minha calça, minha cueca e me
tocou, mas nada, absolutamente nada, aconteceu. Estava mole.
Como se eu estivesse deitado sozinho em uma cama, preste a
dormir.
Minha respiração saiu descompassada quando ele, após
duas ou três tentativas de masturbação, soltou uma pequena e
singela risadinha de estranhamento e me olhou. Ergueu uma das
sobrancelhas, como se tentasse desvendar o que estava
acontecendo ali, e, logo depois, externou aquilo o que eu mais
temia.
— Tá... — Ainda hesitou um pouco em prosseguir, mas
continuar. — Tá tudo bem? — perguntou delicadamente, com um
jeitinho que ele ainda não tinha usado, pois, até então, a libido tinha
se sobressaído em cada palavra, gesto ou ação dele. — Você...
Você não tá... — e parou a frase pela metade.
Qualquer outra pessoa no lugar dele poderia dizer: “ah, você
não está excitado, pois vou te excitar agora”. Mas, nesse caso não,
porque eu não era como qualquer outra pessoa. Eric me conhecia
muito bem e ele sabia, melhor do que ninguém, que não precisavam
ser feitos muitos esforços para que meu pênis levantasse.
Afinal, ele mesmo já tinha comprovado isso em todas as
outras vezes que ficávamos, seja no meu quarto ou no quarto dele,
na sala, no colégio, em qualquer lugar. Menos ali. Ou seja, não era
apenas questão de dizer “vamos resolver esse problema”, mas sim
de saber qual era o problema.
O problema do problema era que o Eric poderia pensar que o
problema era ele, quando, na verdade, era eu. Eu e minha completa
insegurança. Eu e meu total medo. Estava difícil. E mais difícil ainda
era o fato de eu não querer que ele soubesse que o problema era
eu. Na realidade, eu queria que ele pensasse que não havia
problemas ali, nem da minha parte e, muito menos, da dele.
Acontece que era impossível não pensar.
Uma verdadeira droga.
— E-eu... — acabei gaguejando e por dois segundos pensei
em contar a verdade. Pensei em dizer o quanto eu estava me
sentindo fodido. E o quanto o nervosismo estava me consumindo.
Mas não, eu não queria me sujeitar. Logo pigarreei a garganta, a fim
de melhorar aquilo, e engrossei a voz, tentando uma postura mais
segura. Não podia demonstrar ainda mais fragilidade, ou tudo em
mim iria por água abaixo. Eu acreditava que, se eu fingisse ser forte,
aquilo iria acabar, de alguma maneira, me tornando forte de
verdade. — Tá tudo bem. Continua. Me toca.
— Mas, você tá... — Eric ainda tentou falar, no entanto...
— Eu quero que você continue, Eric — o interrompi de
maneira até meio incisiva, sem pensar duas vezes. Definitivamente,
não queria prolongar aquela situação de vulnerabilidade. Eu tinha a
certeza de que se começasse a me abrir verdadeiramente ali, eu iria
acabar desmoronando e tudo iria por água abaixo. Parecia que
podia se tornar pior, caso eu externasse. Era como aquelas
situações em que a pessoa opta por ficar calada, porque, se abrir a
boca, acaba chorando. Assim, preferi seguir na omissão. — Me
toca, por favor... — olhei no fundo dos seus olhos com genuína
necessidade. A necessidade era palpável. Tão palpável que não
hesitei em segurá-lo pela gola da camisa e puxar o seu rosto para
ainda mais perto do meu, a fim de olhá-lo ainda mais de perto. —
Me excita. Eu. Quero. Ficar. Excitado — falei compassadamente,
em uma quase súplica. Meus olhos quase nem piscavam, tamanha
era vontade.
O loiro ainda me encarou por alguns segundos, olhando tão
firme no fundo dos meus olhos quanto eu olhava nos dele. Nós
estávamos decididos a fazer aquilo dar certo. A vida só precisava
colaborar um pouquinho... E não era pedir demais para que
colaborasse, era? Nós merecíamos um pouquinho de felicidade.
Aquilo tinha que acontecer.
E então, quando menos esperei, seus lábios tomaram os
meus em um beijo profundo e cheio de urgência. Urgência de mim,
urgência daquilo, urgência de nós. Suas mãos desceram novamente
e, antes que me tocassem novamente, retiraram minha calça e
minha cueca, só não me deixando completamente nu porque eu
ainda vestia uma blusa.
Mas não por muito tempo.
Com a mesma ânsia que se utilizou para retirar minhas
roupas de baixo, o loiro logo se livrou daquela que eu vestia por
cima, deixando-me totalmente descoberto. Meu corpo estava
completamente nu e exposto diante da sua visão. Visão esta que
não perdeu tempo em observar.
Encarava-me não somente por fora, mas também por dentro,
porque eu sabia e tinha a certeza de que ele tinha a capacidade de
enxergar a minha alma, desvendar meus sentimentos e ler meus
pensamentos. Eric, mais do que qualquer outra pessoa, me
conhecia muito bem. Talvez melhor do que eu mesmo.
Com um dos cotovelos afastou-se levemente para o lado
disponível da cama. Não falou absolutamente, mas eu sabia que ele
tinha feito isso para que pudesse me ver melhor. Nessa posição,
Eric tinha uma visão privilegiada da minha completa nudez. Visão
essa que ele fez questão de apreciar sem cerimônia.
Observou-me compassadamente por alguns segundos, que
mais pareceram décadas. Parecia satisfeito (e muito) com o que via.
Porém, eu era o único descoberto ali, pois ele ainda vestia sua
bermuda e sua regatta. Meu completo nervosismo não me permitiu
nem mesmo deixá-lo sem roupas, coisa que eu poderia fazer sem
muito esforço com qualquer garota.
Com o Eric era diferente. Tudo diferente.
No entanto, tentando novamente esquecer que eu estava
completamente fodido de nervosismo e vergonha, tentei esboçar
através de palavras verbais o que eu estava pensando. Até porque,
por mais exibido e convencido que já tivesse sido, ter aquele olhar
de gavião sobre mim, por longos segundos, era um tanto quanto
constrangedor.
— Só eu que vou ficar pelado aqui? — perguntei, tentando
quebrar um pouco do gelo que somente eu estava sentindo, porque
ele, no caso, estava pegando fogo. — Você não vai tirar isso aí não?
— e apontei com o queixo para suas roupas, que definitivamente
não o cobriam tanto quanto as minhas me cobriam, mas ainda me
impediam de olhá-lo por completo. Talvez vê-lo nu me ajudasse a
ficar excitado também.
— Pensei que fosse você que tiraria elas... — sorriu sedutora
e faceiramente. Eric era a própria tentação em pessoa. E não, ele
não fazia isso de propósito. Não era algo forçado, graças a Zeus.
Era algo próprio da natureza dele, como se ele já tivesse nascido
com essa aura e não precisasse de esforço algum para externá-la.
Devia ser exatamente isso mesmo. — Mas tudo bem. Eu mesmo
tiro... — e finalizou sem tirar o sorriso do rosto.
Ele, que estava praticamente sobre mim, levantou-se, ficando
ainda sobre a cama e dando espaço somente para que retirasse
suas roupas. O charme que exalava dele tornou-se ainda mais forte
quando se livrou da regata e chegou a níveis estratosféricos quando
se despiu do short. Engoli a seco ao perceber que não usava cueca.
Estava completamente duro. Na verdade,
surpreendentemente duro, porque, por mais que eu já tivesse visto
outras vezes, naquele dia o Eric estava excepcionalmente excitado.
Que puta inveja! Queria eu estar desse jeito também! Mas, não tive
muito tempo de invejá-lo, porque a admiração pelo seu corpo e pelo
“pacote” que carregava consigo entre as pernas falava mais alto.
Eu nunca, NUNCA, me cansaria daquilo, do corpo (que era
só músculos e gominhos), da pele (aquele branco bronzeado, que
deixava minha brancura no chinelo), do cheiro (tão amadeirado
quanto sua cara de pau)... E, por Zeus, do pênis! Aquele demônio
tinha uma coisa linda entre as pernas, por mais que pensar nisso
ainda soasse meio esquisito na minha cabeça. Afinal, eu achava o
pau de um cara bonito! A que ponto eu tinha chegado... Seria
cômico, se eu ainda não estivesse fodidamente nervoso com tudo.
Mas okay, eu já havia superado de certa forma o fato de me
sentir atraído por um homem e de... Sei lá... Considerar que ele
tinha uma boa aparência e... Tá certo! Melhor não enrolar! E de
achar um pênis, que não era o meu, bonito pra caralho. Porque
antes, claro, só o meu era perfeito.
Eric era meu anjo e demônio ao mesmo tempo, meu paraíso
e inferno particular. Podia ser quem quisesse, desde um querubim
até a pior das criaturas do submundo. Ele caminhava facilmente
entre esses dois extremos: um cavalheiro e um cafajeste. E eu tive
ainda mais certeza disso, quando ele, após tirar completamente as
roupas, voltou para cima de mim e encaixou-se entre as minhas
pernas.
Estávamos. Nós. Dois. Nus.
Crê Deus Pai Todo Poderoso!
— Quem sabe agora dê certo... — e sorriu suavemente,
complacente, atencioso, cuidadoso. O próprio demônio em pele de
cordeiro. Não se referiu explicitamente ao que “agora pudesse dar
certo”, mas eu sabia que estava falando da minha constrangedora
condição, também intitulada de pau mole.
Nunca pensei que eu fosse trair a mim mesmo desse jeito.
Definitivamente, meu pênis tinha vida própria. Era teimoso e
adorava pregar peças.
Assim, encaixando-se ainda mais entre as minhas pernas,
inclinou-se e voltou a me beijar. Ainda que eu estivesse frente a toda
aquela perdição, meu pênis não havia dado sinal de vida, porém sua
boca deslizou sorrateiramente em uma dança tentadoramente
sedutora entre meus lábios e escorregou pelo meu pescoço, indo
em direção ao meu ouvido, até que...
Ele moveu-se e seu pênis completamente duro e despido
tocou o meu, também nu.
Caralho.
Hum.
Isso era bom...
Sugou o lóbulo da minha orelha, arfou suavemente, falando
bem baixinho “gostoso...” e... Mexeu mais uma vez, fazendo nossos
pênis encostarem um no outro novamente.
Puta que...
Isso era bom de verdade. Eu queria mais. Eu queria muito
mais. Mais. Sentir mais.
Em um impulso quase irracional, enquanto ele ainda estava
entre minhas pernas, segurei em sua cintura e me mexi por baixo
dele, fazendo nossos dois membros se tocarem novamente, mas,
dessa vez, com mais intensidade... E... Continuei!
Continuei, porque não queria parar. Continuei... Continuei...
Até que entramos em um só ritmo. Eles roçavam um no outro,
fazendo com que nossas gargantas não conseguissem ficar
caladas. Era algo involuntário, até que gemer baixinho tornou-se
uma realidade.
E o meu pênis... Meu pênis começou a dar sinal de vida.
Lá estava ele! Oh, meu Zeus, eu estava duro. Queria gritar de
felicidade!
Eric ora beijava meus lábios, ora descia para o meu pescoço,
ora deslizava até o meu pescoço, enquanto eu me deixava levar.
Nem de longe nosso ritmo era lento. Muito pelo contrário. Seria um
exagero dizer que era frenético, porém era intenso, tentador. E eu...
Eu estava gostando pra caralho de sentir aquilo!
Também deslizei minha boca pelo seu pescoço, arrancando
ainda mais suspiros dele, e suguei seus lábios com uma vontade
que há muito tempo estava guardada em mim. O loiro olhava-me
como se estivesse vivendo um sonho e eu também não acreditava
que aquilo estivesse realmente acontecendo.
Minha felicidade era genuína não somente pelo ato, mas por
estar gostando do ato.
No entanto...
Eric, que antes passava seus lábios e sua língua somente no
meu ouvido e no meu pescoço, desceu sobre o meu busto e,
quando alcançou um dos meus mamilos, algo estranho aconteceu.
Meus olhos, que estavam fechados, apenas aproveitando todas
aquelas sensações novas e gostosas, abriram-se de repente com o
pensamento que tive.
Na verdade, não somente um pensamento, mas dezenas!
Minha cabeça começou a girar em um turbilhão de
incontroláveis pensamentos. Era involuntário, era mais forte que eu.
Droga, que merda estava acontecendo?
Fiquei confuso, extremamente confuso. Tão desnorteado que
eu mesmo não conseguia organizar aquilo que vinha em forma de
flashes à minha cabeça. Pedaços picotados de coisas que eu já
tinha vivido meses e anos atrás tomaram em cheio a minha cabeça,
à medida que Eric descia com sua boca pelo meu corpo. Eu não
estava mais nem conseguindo me concentrar no que ele fazia e nas
possíveis boas sensações que aquilo poderia me controlar.
Imagens da época em que eu era o grande Liam Wyman
Tremblay Terceiro se apossaram da minha cabeça sem
precedentes, sem avisos ou quaisquer ressalvas. Imagens de uma
época que eu fazia coisas totalmente diferentes daquelas que eu
estava vivendo naquele momento. Eric, com seus lábios no meu
mamilo, no meu corpo, no meu abdômen, trouxe recordações que
eu preferia não lembrar, porque lembrar era perigoso.
Eric por cima de mim me fez recordar... Recordar... Recordar
da época que era eu quem ficava por cima das garotas, da época
que era eu quem sugava seus mamilos, da época que era eu quem
comandava o sexo numa cama, da época em que um corpo
feminino era a minha maior fonte de prazer. Oh não! Não, não, não.
Que merda. Eu precisava parar de pensar nisso ou acabaria
estragando aquele momento! Porque eu me conhecia e sabia que
meu corpo era traidor, que na primeira oportunidade que ele tivesse
me faria travar inconscientemente, mesmo que eu não quisesse
parar, mesmo que eu tentasse com todas as minhas forças
continuar.
Porra. Estava ficando difícil.
Eu tentava e me mexia, fechava os olhos e tocava o Eric,
procurava me concentrar somente no que eu estava vivendo, mas,
para o meu completo desespero, nada me fazia parar de pensar.
Nada, absolutamente nada. Pior: as lembranças e os pensamentos
estavam se tornando cada vez mais fortes.
E podia não parecer, mas isso tudo aconteceu em questão de
segundos. Foi apenas o tempo do loiro descer dos meus lábios para
o restante do meu corpo que tudo veio à tona. Eu estava ficando
louco. Louco de raiva por não conseguir bloquear aqueles malditos
pensamentos.
“Oh, Liam... Você faz tão bem...”
“Isso, continua...”
“Quero transar contigo todo dia...”
Vozes e mais vozes femininas, ofegantes e tomadas pelo
prazer, das garotas com quem eu me envolvia, começaram a zumbir
em meus ouvidos para completar as lembranças de um Liam que
fazia sexo todo dia com uma menina diferente. Esse era o Liam. O
verdadeiro Liam que habitou em mim durante longos 18 anos. E,
afinal, quem era o Liam que estava ali agora? O Liam que gostava
de mulher ou o Liam que gostava do Eric? O Liam que gostava de
transar com mulher ou o Liam passivo na cama com um homem?
O Liam que comia ou o Liam que dava?
Quem eu era? O que eu era?
Eu estava me sentindo estranho. Comecei a me sentir
irreconhecível.
Parecia que a realidade tinha batido em cheio. Eu realmente
estava transando com um cara. Na verdade, tendo preliminares com
um cara!
Caralho. A tristeza me tomou. Eu pensava que, por estar
aceitando gostar de um homem, esse tipo de coisa não iria mais
acontecer; que, por ter chegado aonde cheguei com o Eric, o meu
passado já tinha ficado para trás. Mas eu estava estupidamente
enganado. Aqueles pensamentos intrusos estavam guardados e
escondidos, esperando somente o tempo oportuno para
ressurgirem.
A vontade de chorar deu o primeiro sinal.
Merda, merda, merda.
Isso não podia acontecer! Não mesmo! Eu não podia chorar
ali, naquele momento, na frente do Eric. Não! Por mais
irreconhecível e confuso que estivesse me achando, ainda me
sentia na obrigação de não decepcionar o Eric, de não estragar
aquilo que estava acontecendo.
Droga, a gente já tinha esperado tanto tempo! Eu não podia
estragar tudo.
Por que eu tinha que ser assim? Por que eu tinha que ser tão
complicado? Eu me odiava de verdade por não conseguir deixar as
coisas mais fáceis!
O Eric estava lá, pronto para me dar o melhor que ele podia,
enquanto eu estava aquela bosta! Que inferno de vida.
Mas não.
Eu. Não. Podia. Estragar. Tudo.
Não mesmo!
Estava decidido. Eu não podia estragar. Por mais na merda
que eu estivesse me sentindo, por mais que eu não soubesse mais
quem eu era, eu precisava seguir. Talvez se fôssemos logo para os
“finalmente”, toda aquela droga que eu estava sentindo iria passar.
Talvez, se eu gostasse, eu pudesse superar tudo aquilo.
Sim, eu precisava gostar. Eu tinha que gostar! Era quase
como uma obrigação.
E era hora de agir. Não dava para ficar o resto da noite cheio
daqueles pensamentos.
Foi exatamente no instante em que notei o Eric descendo
cada vez mais com sua boca, indo que direção ao meu pênis, que
segurei firme seu rosto, tentando ser decidido, tentando encontrar
segurança naquilo que eu estava preste a fazer.
O loiro ergueu seu olhar para mim e me observou de um jeito
meio confuso. Claro. Ele ainda não estava entendendo o que
acontecia ali, nem sabia porque eu havia o interrompido quase que
bruscamente daquele jeito.
E então, por impulso, em um ato quase irracional e sem
precedentes, falei antes mesmo de pensar nas consequências:
— Me penetra logo.
Minha voz saiu firme, por mais que eu nem soubesse o que
estava fazendo. Sim, eu não tinha absolutamente nenhuma noção
daquilo que tinha acabado de dizer. Só que talvez fosse tipo aquele
caso da ferida com band-aid: o curativo precisava ser retirado de
uma vez, porque aos pouquinhos doeria mais. Ou seja, se a gente
enrolasse ainda mais para fazer, poderia ser pior para mim.
No entanto...
— Oi? — com genuíno estranhamento, Eric perguntou, dando
uma pequena risadinha embaraçada logo em seguida. Certamente
ele achou aquilo estranho. O jeito como eu falei foi quase como uma
ordem. Então, no mínimo, ele acharia estranho mesmo.
— Sim, é isso mesmo o que você ouviu — tentei passar
segurança no que estava dizendo. Tentei fingir que eu estava
completamente certo do que queria. Na verdade, eu não estava nem
um pouco. — Eu quero que me penetre logo.
— Mas... — Eric ainda tentou prosseguir. Com certeza estava
achando estranho a minha pressa. E com razão. — Agora que a
gente começou as preliminares... Já quer fazer logo? — franziu um
pouco o cenho.
Não.
— Sim.
Menti. Menti assim como tantas vezes eu já tinha mentido na
vida. Meu hobby sempre foi pensar uma coisa e dizer outra. Menti,
porque era necessário. Transar era necessário, por mais que eu não
estivesse completamente seguro daquilo, por mais que eu não
soubesse o que estava fazendo da minha vida. Eu precisava
bloquear aqueles malditos pensamentos, eu precisava saber como
era, eu precisava gostar.
Eu e o Eric precisávamos ser compatíveis pelo menos
naquilo.
Sem esperar que ele dissesse algo mais, me virei levemente,
a fim de alcançar o criado-mudo que ficava ao lado da cama. Depois
que me arrumei para o aniversário dele e antes de sair do quarto,
lembrei de deixar as camisinhas e o lubrificantes, que a Stefany e a
Molly tinham me dado, em uma das gavetas. Quanto à jockstrap
joguei na parte mais escondida da minha mala. Aquilo nunca
deveria ter saído da loja.
E sobre a chuca... Bom, eu preferia nem lembrar dessa coisa
ridícula. Na minha cabeça já haviam preocupações demais, para
que eu ainda fosse me importar em não ter feito. Deixei pra lá,
porque, se eu fosse pensar que poderia dar em merda
(literalmente), eu ficaria ainda mais nervoso do que já estava. Só
pedia a todos os deuses do universo que me ajudassem, pelo
menos, naquela hora.
Eu já tinha passado por coisas demais. Não era possível ter
mais um desgosto.
Abri a gaveta, tentando não demonstrar meu latente receio, e
retirei de lá as tais camisinhas e o lubrificante. Joguei em cima da
cama, olhei para tudo aquilo e depois olhei para o Eric, que me
encarou de volta. Eu não disse mais nada, nem ele, mas nós
conversamos por olhares.
E como conversamos...
O loiro, por mais vontade que tivesse de fazer aquilo
acontecer, parecia tentar desvendar o que se passava em minha
cabeça. E eu, enquanto isso, fazia de tudo para que ele não
sacasse a merda que estava acontecendo comigo. Por dentro eu
era tempestade, por fora eu tentava ser calmaria.
Eric sempre foi bom em ver minha alma, desvendar meus
sentimentos e ler meus pensamentos, mas, naquele instante,
aparentava ter dificuldades. Eu agradecia a Buda, Thor, Poseidon,
Zeus e todo o resto por não deixarem que ele pudesse ver com
tanta facilidade a luta interna que estava acontecendo dentro de
mim entre o Liam antigo e o Liam novo.
Foram alguns segundos, que mais pareceram horas, em uma
conversa silenciosa. Nem eu dizia nada, nem ele. Cada um
esperando para que o outro tomassem alguma atitude. Ambos sem
saber onde aquilo poderia dar. Ambos esperando por um sinal ou
qualquer coisa que nos fizesse ter a certeza de que aquele era
realmente o caminho certo a seguir.
E então, após esperar por uma atitude minha que não vinha,
Eric pegou o lubrificante. Percebi que ainda hesitou um pouco, pois
quando ergueu o braço, a fim de pegá-lo, ele ainda travou
levemente. Meus olhos nem ao menos piscavam, pois eu não queria
perder nenhuma parte das suas atitudes. Queria ter ciência de tudo
o que estava fazendo ali.
— Vou colocar primeiros os dedos — com a voz um pouco
trêmula, Eric finalmente quebrou o silêncio. — Tudo bem?
Não... Não estava nada bem!
— Sim, tudo bem. Vai logo.
Eu só queria terminar logo com aquilo. Só queria ver como
era de uma vez por todas. Só queria parar de pensar no antigo
Liam, naquele que transava apenas com garotas, naquele que era
ativo, naquele que comandava. Era esse Liam que não queria sair
da minha cabeça.
Era esse Liam que queria se libertar naquele instante.
E não, ele não podia se libertar.
— Vai logo — falei novamente, antes que o pior acontecesse.
Antes que eu desistisse. Deitei-me novamente, dobrei os joelhos e
afastei as pernas, liberando o caminho para que ele fizesse aquilo
que tinha de ser feito. Era a posição mais estranha em que eu já
havia estado em toda minha vida.
Um traço de vergonha ainda quis surgir em meu rosto.
E a vontade de chorar... Bom, era melhor nem pensar nisso
ou eu não me seguraria e acabaria chorando mesmo.
Notei que o Eric ainda quis perguntar “você tem certeza
disso?”, mas foi em frente. Ainda vi quando balançou a cabeça
levemente em negativo, enquanto eu não fazia ideia do que se
passava em sua cabeça. Porém, logo abriu o lacre do lubrificante,
passou em seus dedos e...
— Posso? — perguntou após levar sua mão para próximo ao
meu traseiro.
Apenas me deixei levar. Eu parecia estar dormente ou fora de
mim, como se eu tivesse saído do meu corpo e estivesse nos
observando do canto do quarto, apenas assistindo aquilo tudo
acontecer como espectador.
Naquele instante, tudo começou a fazer menos sentido ainda
e, se eu já não sabia quem eu era, foi ali que fiquei ainda mais sem
saber. Eu não sabia quem eu era, eu não sabia o que estava
fazendo. Eu estava dormente.
Apenas balancei um sim com a cabeça, tendo noção de
absolutamente nada. Eu estava sóbrio, havia tomado apenas um
pouco do vinho que o Eric tinha trazido, mas nunca tinha me sentido
daquele jeito... Tão estranho... Nem mesmo na época em que
tomava litros e mais litros de Vodca, e ficava completamente louco,
eu não me sentia tão esquisito assim.
Eu estava mesmo dormente.
Era como um sonho... Ou o sonho de um sonho. Não parecia
real.
Eric, então, aproximou seus dedos de mim e passou bastante
lubrificante por toda a parte de fora da região, até que... Colocou o
primeiro. Meu Zeus. Eu estava completamente travado. Não doeu,
mas eu estava paralisado e foi impossível ele não perceber.
— Você tá nervoso... Não tá relaxado... Dá pra perceber pelo
seu... — e baixou o olhar até lá, onde seu dedo estava. — Quer
mesmo continuar? Olha, a gente pode parar quando você quiser.
Não tem o menor problema — falou de modo gentil, complacente,
como ele sempre era.
— Coloca outro.
Caralho. Eu nem sabia o que eu estava fazendo ou falando!
— Outro? — Eric ergueu as duas sobrancelhas, surpreso
com a minha resposta totalmente diferente daquilo que ele esperava
que eu dissesse. Certamente, aguardava que eu quisesse parar,
mas eu não tinha noção do que estava fazendo.
— Sim, vai. Coloca logo outro.
E então, quando menos esperei minha luta interna tornou-se
ainda maior e mais forte. Merda. Aquele não era eu, aquele não era
eu, aquele não era eu. Quer dizer... Eu era aquilo? Eu me deitava
mesmo com homens? Eu dava a minha bunda?
Por fora, eu era uma fingida determinação. Por dentro, eu era
desespero e tempestade.
— Liam... — o loiro ainda tentou falar, mas...
— Porra, coloca logo outro — o interrompi, antes que
dissesse algo que provavelmente seria “tem certeza?”. E, se ele
perguntasse novamente isso, eu não aguentaria. Eu desistiria. Ou
seja, era melhor não ouvir essas palavrinhas.
Eric suspirou e, mesmo hesitante, assim o fez.
Com cuidado, tirou o dedo que estava lá e, logo depois,
colocou dois de uma só vez.
Fechei os olhos e respirei fundo, quando realmente senti.
Anteriormente, não havia doído, mas, dessa vez, um leve sinal de
dor, durante a penetração, quis aparecer. Tentei não me preocupar,
afinal era só uma sensação de incômodo. Logo ia passar.
E assim, comecei a me mexer, ao mesmo tempo em que ele
também colocava e tirava em um ritmo cadenciado. Porém, a cada
vez eu o sentia, os pensamentos impróprios latejavam ainda mais
fortes em minha cabeça. Como se não bastasse, comecei a me
lembrar do episódio da escola.
Os olhares...
As palavras...
As risadas debochadas...
“Liam viadinho…”
“Liam mulherzinha…”
“Virou mulher agora?”
“É a mulher do Eric!”
Porra!
Eu queria gritar. Eu queria parar de lembrar, de pensar nisso.
Por que tinha que ser assim?
Fechei os olhos bruscamente e respirei fundo e forte. Quando
os reabri, olhei com determinação para o Eric e disse as quatro
palavras mais absurdas e loucas que eu poderia falar diante
daquelas circunstâncias, ou seja, diante da minha luta interna:
— Agora coloca o pênis.
Eric abriu levemente os lábios. Eu queria acreditar que não,
mas parecia que ele já estava começando a enxergar a minha luta
interna que eu, a tanto custo, tentava esconder dele:
— Liam, você...
— Eric, eu estou mandando você colocar — praticamente
ordenei.
— Liam... — o loiro parecia preocupado com o meu estado.
E, sem dúvidas, ele já estava enxergando mesmo tudo. O filho da
mãe me conhecia bem demais. Melhor até do que eu mesmo. — Eu
já disse que você não precisa fazer, se não quiser.
— E eu já disse que quero que você coloque o pau em mim
— respondi de supetão, firme. Os olhos quase não piscavam,
graças à fingida determinação. — Anda.
Não perdi mais tempo. Peguei uma das camisinhas que
estavam sobre a cama e abri o pacote que vinha com umas três.
Retirei uma e... Me inclinei em direção ao Eric, que, apesar de tudo,
ainda estava com o membro enrijecido.
— Você que vai colocar em mim? — perguntou.
— Eu posso não estar sendo o ativo aqui, mas eu ainda
lembro muito bem como se coloca um preservativo. Fiz isso por
muito tempo — e, assim que falei “fiz isso por muito tempo”, mais
lembranças tomaram a minha mente. Cenas das minhas noitadas
com as garotas. Minha fama de galinha na escola. Tudo o que eu
tinha construído... Por mais que eu já tivesse consciência de que
nada disso valia a pena, ainda era difícil me acostumar com a ideia
de que eu não era mais assim, de que eu não tinha mais isso e de
que nunca voltaria a ter. Todos do colégio agora me consideravam o
maior gay. Respirei fundo, porque, sempre que eu pensava nisso, o
choro queria vir. Tudo ainda estava muito recente. — Agora faz o
que tem que fazer — finalizei, quando enfim coloquei a camisinha
nele, e me deitei novamente, voltando para aquela mesma posição
exposta.
Eric suspirou e me encarou. Observou-me de cima a baixo
diversas vezes, como se pensasse se deveria mesmo seguir em
frente com aquilo, como se analisasse se realmente era o caminho
certo a seguir. Ele claramente queria, mas avaliava tanto assim por
minha causa, pelo meu estado. Sabia que eu não estava cem por
cento.
Porém...
Quebrou o silêncio.
— Tudo bem... — suspirou novamente, mas, dessa vez,
como se tomasse fôlego para se preparar para o que estava por vir.
— Eu vou devagar e você pode pedir para eu parar a hora que
quiser. Não quero que sinta muita dor.
“Não quero que sinta muita dor”.
Isso foi o suficiente para que meu coração acelerasse ainda
mais.
O medo era genuíno.
Merda.
Assim, Eric encaixou-se lentamente entre as minhas pernas
mais uma vez, aproximou seu rosto do meu e me beijou com
carinho, muito carinho. Passou umas das mãos pelo meu rosto e
afastou seus lábios dos meus alguns poucos centímetros, apenas o
suficiente para que pudesse me olhar no fundo dos olhos.
— Eu te amo... — sussurrou.
E então... Colocou suas mãos em cada uma das minhas
pernas, segurando-as para se apoiar e abrir ainda mais o caminho,
até que... Eu senti. Senti seu pênis me tocar lá. O coração acelerou,
fazendo-me respirar fundo. Mas eu não sabia... Eu ainda não sabia
o que estava por vir.
Porém, quando menos esperei, o senti começando a
pressionar. Meu Zeus do Céu. Pressionou uma, duas, três vezes,
mas estava completamente fechado, mesmo que ele tivesse
colocado os dedos antes. Algumas vezes, seu pênis até
escorregava, por causa do lubrificante.
Droga.
Será que isso não ia dar certo mesmo?
Tentou mais um pouco, até que eu disse:
— Deixa eu me ajeitar melhor — e coloquei as pernas em
cima dos seus dois ombros. Era a posição mais exposta que eu já
tinha ficado na vida! Que vergonha, meu Zeus, que vergonha! Mas
era necessário. — Pode ser que agora dê certo.
— Posso pressionar com mais força? — perguntou. — Se
doer, você me avisa que eu paro.
Meu Zeus.
Eu só conseguia ficar ainda mais nervoso.
Nem respondi nada, apenas balancei um sim com a cabeça.
— Respira... Relaxa... — continuou falando.
E assim, aproximou-se de lá novamente e... Eu não saberia
nunca explicar como foi ou dizer com detalhes o que senti, mas ele
ultrapassou a barreira inicial, colocando somente a glande, e...
— Caralho... — sussurrei, porque todas as minhas forças
tinham sido sugadas, impedindo-me de falar mais alto.
Foi a maior dor que eu já tinha sentido em toda a minha
existência!
Nem os socos das confusões que eu me metia doíam tanto,
nem a vez em que eu quebrei meu braço quando era criança doeu
tanto. Nada. Nada. Absolutamente nada se comparava àquilo. E
sabe por que? Porque não era somente uma dor física, era uma dor
na alma. Na minha alma. E eu nunca havia experimentado isso na
vida.
Fechei os olhos o mais forte que pude, absorvendo toda
aquela sensação horrível, e, se antes eu pensava que ser penetrado
me faria esquecer todos aqueles pensamentos ruins e indesejáveis,
porque eu iria gostar de transar, eu estava redondamente enganado.
Assim que fechei os olhos, os malditos pensamentos
tomaram a forma de cenas intensas. Voltei a me ver sendo o centro
do colégio e das garotas. Pude rever as vezes em que transava com
uma ou duas diferentes a cada dia. Relembrei a época em que eu
era a figura típica de um homem viril. E agora...
Eu era o que?
A palavra “boiola” se desenhou ainda mais forte e nítida em
minha testa.
A dor se tornou ainda mais forte e estava insuportável de
aguentar. A luta interna entre Liam antigo e o Liam novo se tornou
ainda mais intensa dentro de mim. E para completar, eu me senti
frágil de uma maneira que nunca havia experimentado.
“Liam gayzinho”
“Liam mulherzinha”
“A mulher do Eric”
Isso soava em minha mente, acompanhado da dor física e
psicológica que eu sentia.
Desmoralizado era como eu me encontrava no colégio,
porque, sim, eram esses os boatos que corriam pelos corredores. E
agora, deitado numa cama com o Eric, sendo penetrado pelo seu
pênis, a moral caiu ainda mais, rumo ao menos infinito.
Eu estava completamente vulnerável. Despido não somente
de roupas, mas também de sentimentos. Frágil, indefeso, exposto.
Eu, definitivamente, não estava preparado para aquilo. Não. Não
mesmo. Era demais pra mim. Uma carga mais forte do que eu
poderia aguentar.
Transar com um homem não era legal.
Transar com um homem não era bom.
E seria ainda pior, se a cada vez que eu deitasse com o Eric,
esses mesmos pensamentos ressurgissem.
Era insuportável.
Ainda senti quando ele penetrou por completo e tentou
mexer. Porém, a dor física e psicológica aumentou ainda mais, ao
ponto de eu não conseguir mais resistir. Eu precisava fazer algo,
tomar alguma atitude, pois daquele jeito não dava para eu continuar.
A vontade de chorar tomou proporções reais e se
materializou em formas de lágrimas que caíram como riachos dos
meus olhos. Em vez de gemidos de prazer, tudo o que saiu de
maneira incontrolável da minha garganta foram soluços de choro.
Tudo isso em questão de segundos.
Foi tudo tão rápido que, de supetão, antes mesmo que ele
pudesse perceber ou fazer qualquer coisa, me afastei e deslizei pela
cama, indo na direção oposta à que ele estava, porque eu queria
ficar o mais distante possível.
Dobrei meus joelhos, abracei minhas pernas contra meu
corpo e baixei minha cabeça para chorar. E chorar... E chorar... Tudo
o que eu conseguia fazer era chorar.
— Liam! — Eric gritou desesperado. — O que aconteceu?
Doeu muito? Por que você tá chorando assim? Não chora, por
favor... — e se aproximou rapidamente de mim, tentando erguer
meu rosto que estava abaixado entre as minhas pernas, assim
como também tentava me abraçar.
No entanto, eu não queria isso. Eu não queria nada.
Eu só queria ficar sozinho, encolhido em um canto e chorar
em paz. Eu não queria conversar e muito menos olhar para o Eric.
Tudo o que eu mais queria era ficar sozinho.
— Liam, fala comigo, por favor... — Sua voz estava desolada
e ele claramente estava muito aflito.
Só que eu continuava chorando e me perguntando: “quem
sou eu?”
Eu não me reconhecia. Não sabia quem eu era. Não sabia do
que gostava. Não sabia se queria seguir em frente ou desistir de
tudo. Eu estava completamente confuso e não tinha respostas para
nada.
— Liam, por favor, me responde... — Eric tentou me abraçar,
mas eu me afastei sem pensar duas vezes. Eu não queria ser
tocado, porque tudo em mim, dentro e fora, doía. Toque era a última
que eu podia precisava naquele instante.
E, se eu não tinha respostas para mim mesmo, para o Eric
era que eu não tinha mesmo.
— Sai daqui... — falei baixinho. — Me deixa sozinho, por
favor. Eu preciso ficar sozinho — mesmo em meio aos fungados de
choro, ainda consegui falar.
— O quê? Te deixar sozinho? — perguntou incrédulo,
parecendo tentar controlar o desespero. — Mas...
— Só faz o que eu tô pedindo e sai desse quarto — Ainda
com a cabeça entre os joelhos e a voz saindo abafada, pedi
novamente. Tudo o que eu mais queria era que ele acolhesse meu
pedido.
Ficar sozinho era uma necessidade.
— Liam, por favor... — tentou me abraçar mais uma vez,
porém...
Tirando forças de não sei onde, me afastei bruscamente e me
levantei da cama, puxando o edredom logo em seguida. Mesmo
coberto por aquele pano, eu ainda estava despido de alma e isso
era a pior coisa do mundo.
Fui em direção à porta e a abri, indicando com a cabeça para
que ele me deixasse ali sozinho, assim como já havia pedido. Nada
mais ali me importava, a não ser a vontade de não ter mais ninguém
comigo dentro daquele quarto.
— Por favor... — apontei novamente com a cabeça para fora,
enquanto as lágrimas ainda caíam.
Eric estava destruído e, a cada vez que eu pedia para ir
embora, notava que ele ficava ainda mais arrasado. Seu olhar
tornou-se um mar de lágrimas tanto quanto o meu e eu vi quando
ele ainda tentou falar algo mais, porém desistiu e parou a si mesmo.
Com um respirar fundo, recolheu suas roupas jogadas pelo
chão, vestiu o short e com uma das mãos segurou a regata.
Caminhou até a porta onde eu estava, passou por mim sem olhar,
até que parou, antes de definitivamente ir embora, virou-se para trás
e me encarou pela última vez.
Duas lágrimas rolaram dos seus olhos, mas, ainda em
silêncio, virou-se novamente e foi embora, entrando em seu quarto
que ficava do outro lado do corredor e fechando a porta.
Agora sozinho, também fechei minha porta e andei
rapidamente até a cama, jogando-me nela logo em seguida. Se
antes eu já estava chorando, naquele momento desabei de vez. Era
a pior sensação pela qual já havia passado na vida. Nunca pensei
que fosse passar.
Me sentia frágil, vulnerável, destruído, vazio, indefeso...
Sentia tudo e nada ao mesmo tempo. O Liam antigo e o Liam novo
em um completo conflito dentro de mim. Um querendo se sobrepor
ao outro. Eu não sabia mais quem eu era. Não sabia mais do que eu
gostava. Não sabia mais o que eu queria.
Estava desnorteado, confuso, perdido.
Tudo o que passava em minha mente eram incertezas.
Afinal, quem eu era?
Me dá um tempo

Liam

O inchaço dos olhos, depois de tanto chorar, quase me impediu de


abri-los quando os primeiros raios de sol do dia seguinte
atravessaram a janela do quarto e me fizeram acordar. Parecia que
eu tinha sido atropelado por um trator, porque, se antes eu já me
sentia dolorido, naquela manhã eu estava me sentindo muito mais.
Com certa dificuldade, consegui me sentar na cama. Passei
as mãos no rosto e no cabelo, respirei fundo e abaixei meu olhar
para o meu corpo. Eu ainda estava nu. Não me lembrava direito do
que tinha acontecido comigo depois que fechei a porta e me joguei
sozinho naqueles lençóis, mas, tendo em vista a maneira como eu
me encontrava, provavelmente chorei até o sono me alcançar, até
cansar e dormir.
Ergui a cabeça para o teto e... Que loucura!
Nada do que havia ocorrido durante a madrugada parecia
real. Era louco. Pensar no que aconteceu era muito louco. Tudo
ainda parecia um sonho, como se eu tivesse nunca vivido aquilo.
Talvez fosse a vontade de realmente não ter vivido. Como eu queria
não ter passado por tudo aquilo! Como eu queria que tivesse sido
diferente!
Droga.
Balancei a cabeça em negativo para mim mesmo. Eu estava
decepcionado... Comigo. Respirei fundo novamente e... Okay, era a
hora de colocar a cabeça no lugar.
O Liam de antigamente quis ressurgir durante a madrugada,
mas eu não poderia deixá-lo retornar de vez. Não. Claro que não. O
Liam antigo jamais procuraria colocar a cabeça no lugar, mas o meu
eu atual sim. Esse sim faria de tudo para organizar as ideias, porque
não dava para continuar do jeito que eu estava: sem respostas.
Eu precisava encontrar respostas para tudo e tomar alguma
decisão. Alguma decisão com relação a mim e, principalmente, ao
meu relacionamento com o Eric.
Talvez um banho frio me ajudasse a pensar melhor, refrescar
a cabeça. Sim, era disso que eu realmente precisava naquele
momento. Portanto, levantei-me da cama, mas, quando ia direção
ao banheiro, ouvi algo vibrar em cima do criado-mudo. Olhei para o
lado e constatei que era meu celular. Suspirei. Por mais que eu
ainda não tivesse visto, sabia o que era e quem era.
Aproximei-me, o alcancei e, quando desbloqueei a tela... Sim,
era ele. Uma mensagem dele. Apenas uma mensagem, que, por
sinal, tinha sido enviada naquele instante. Sem ligações, sem outras
mensagens... Nenhum sinal de que havia mandado quatrocentas mil
mensagens ou feito oitocentas mil ligações durante a madrugada.
Apenas uma mensagem. Apenas naquela manhã.
Ele tinha me deixado livre...
“Olá, Liam... Bom dia. Como você está? Eu realmente espero
que melhor. Depois daquilo, eu... Não sei por onde começar ou
recomeçar, mas... Eu gostaria de conversar contigo e tentar
entender melhor o que houve. Você poderia conversar comigo?
Tenho coisas para te falar.”
Respirei fundo. Ele queria conversar... Claro. Depois que
aconteceu, isso era o mínimo a se fazer. O problema era que... Eu
realmente estava preparado para conversar? Lógico que não. Antes
de qualquer coisa eu precisava colocar a cabeça no lugar, já que
nem mesmo sabia o que falaria para ele.
A sorte era que, no dia anterior, antes de irmos para os
quartos à noite, ouvi a Samantha dizendo que iríamos embora logo
pela manhã. Ou seja, pela graça de Zeus, eu não teria mais muito
tempo próximo ao Eric ali. Assim, evitaria que a tal conversa
acontecesse antes do tempo certo. E o tempo certo seria quando eu
me sentisse preparado.
Preparado... Jamais faria qualquer outra coisa sem me sentir
total e completamente preparado. Aprendi essa lição da pior
maneira possível.
“Posso, mas... Não agora. Eu preciso de um tempo pra pensar.
Espero que entenda.”
O Liam antigo também não responderia essa mensagem do
Eric. O deixaria sem resposta até o momento que bem entendesse e
se sentisse a fim de falar. Pouco se importaria com o que ele sentiria
ou não. Porém, o meu eu atual; aquele que estava tentando me
tornar uma pessoa melhor, não somente para o Eric, mas,
principalmente, para mim mesmo; jamais o deixaria por muito tempo
sem algum retorno.
Larguei o celular novamente no criado-mudo e fui banheiro.
A água que descia pelo chuveiro estava gelada e refrescava
o meu corpo, a minha cabeça, a minha mente, as minhas ideias. Eu
ainda me sentia tão dolorido quanto no momento em que tudo
aconteceu. Porém, a dor física já tinha passado. A que persistia era
a dor na alma, a dor interna. A decepção de mim mesmo. A tristeza
por ter falhado. A tristeza por ter me enganado.
E a vontade de querer sumir ainda estava lá, mas eu
precisava encarar a realidade. Já estava mais do que a hora de
amadurecer, de crescer. Ficar me escondendo ou evitando os fatos
que se tornaram realidade não era a solução. A real solução para
aquilo era tentar me entender, compreender meus sentimentos e,
sobretudo, me conhecer.
Eu precisava ser honesto comigo mesmo. Até porque, se eu
já tivesse feito isso a mais tempo, nada daquilo teria acontecido
durante a madrugada. Agir por impulso sempre foi uma das minhas
características mais fortes. Inclusive, tudo aconteceu daquela forma
porque eu sabia que tinha agido por impulso durante a madrugada.
Agi por impulso quando decidi transar sem me sentir
completamente preparado. Me enganei quando pensei que já tinha
superado meu eu antigo. Me enganei ainda mais, quando ao ver
que, a parte dele que ainda estava viva, poderia morrer com uma
simples noite de sexo.
Não... Não... Para aquilo morrer precisava de algo mais
forte... E esse algo era... Eu. Eu sozinho. Eu por si só.
Para começar a ser honesto comigo mesmo, eu precisava
fazer uma recapitulação de tudo até ali: do começo até aquele
momento em que eu me encontrava embaixo do chuveiro da casa
de campo da Samantha, tia do Eric, o cara mais incrível que eu
tinha já conhecido e que não merecia passar por todo aquele sufoco
onde o culpado era única e exclusivamente eu.
Tudo começou comigo, quando o Eric chegou para estudar
no meu colégio e me tirar completamente da minha zona de
conforto. Era claro que o início não tinha sido exatamente ali. Eu já
aceitava e tinha plena consciência que a semente foi plantada na
infância. Porém, foi na sua mudança de colégio que ficamos mais
próximos. E, ainda mais, quando as aulas particulares começaram.
Eu me neguei... Ah, como eu me neguei! Passei dias,
semanas, meses negando o óbvio, negando aquilo que estava mais
claro do que água: eu me sentia totalmente atraído por ele. E foi
difícil aceitar. Tão difícil. Precisei sentir falta dele, precisei achar que
o perderia, para que finalmente tomasse consciência de que era
com ele que eu queria ficar.
Por anos, achei que eu fosse hétero da cabeça aos pés.
Claro, a sociedade plantou isso na minha cabeça e já estava tão
enraizado que, quando o muro começou a ruir na sua chegada, eu
entrei em desespero. E o desespero se materializou através de
brigas, discussões e maus tratos que ele já tinha costume de
receber da minha parte.
No entanto, quando parei de lutar contra mim mesmo, eu
tentei mudar. A mudança começou primeiro pelo Eric, mas
continuou por mim mesmo. Eu sabia que o que valia a pena era
mudar por si próprio e não por outra pessoa, mesmo que eu
gostasse muito dessa pessoa. Talvez essa fosse a mudança mais
genuína que alguém poderia ter. Nos primeiros momentos foi difícil,
eu fazia um esforço danado para ser alguém agradável, mas
depois...
Depois, eu simplesmente me acostumei. Parecia que aquilo
já fazia parte de mim. Eu tentava agir da melhor maneira e nem
sentia, porque a prática do dia-a-dia tornou aquilo habitual. E, então,
fomos nos aproximando cada vez mais, nos envolvendo cada vez
mais, até que... O natural aconteceu: o desejo sexual.
Afinal, qual casal não sente desejo sexual?
Mais natural impossível.
E poderia ser ainda mais natural, se eu não fizesse parte
desse casal.
Ah, que tristeza eu estava sentindo de mim! Tristeza,
desapontamento, decepção. Eu tinha sido fraco, mais uma vez, e,
por pouco, não deixei o antigo Liam se libertar completamente! Ele
ainda estava escondido... Escondido em alguma parte de mim. Me
desvencilhar dele não era fácil. Ele era mais forte que eu. Tinha
habitado em mim desde o nascimento e permaneceu por longos
dezoito anos.
Mas, para ser honesto (afinal, esse era o objetivo), os sinais
de que aquilo não daria certo sempre estiveram presentes, sempre
foram claros. Eu que fui burro, eu não quis enxergar. Desde o início,
eu sabia que não me sentia completamente preparado. Desde o
início, o medo e a insegurança eram as maiores realidades.
E isso ia muito além da simples justificativa de ser passivo.
Se eu fosse o ativo, o problema iria persistir, porque eu estaria me
deitando com um homem do mesmo jeito e a droga do meu eu
antigo ainda estaria ali, martelando os meus pensamentos e
trazendo lembranças involuntárias sobre o meu passado. Minha
cabeça latejava no banho por constatar isso, porque, nas
entrelinhas, tudo o que meu subconsciente dizia era...
“Vocês são incompatíveis.”
“Esse relacionamento não é saudável, nem para você, nem
para ele.”
“O Eric merece alguém que realmente possa corresponde-lo
em tudo.”
Será que essas eram, então, as respostas para toda a
confusão em que minha mente se encontrava? Será que nós
éramos realmente incompatíveis? Será que eu nunca seria alguém
suficiente para o Eric? Será que meu eu antigo sempre estaria
escondido em algum lugar da minha mente, esperando o momento
de retornar? Será que eu nunca conseguiria superar toda essa
merda de preconceito e me aceitaria completamente? Será que o
Eric realmente merecia alguém melhor?
Mais e mais perguntas sem resposta!
Desliguei o chuveiro, ofegante. O banho que era para ser
esclarecedor trouxe ainda mais perguntas para mim. E pior: me fez
pensar, por alguns instantes, que eu e o Eric poderíamos acabar
nos...
Merda.
Meu peito apertou apenas por imaginar.
Eu não era suficiente para ele... Mas, o que eu faria com
relação a isso?
Fechei os olhos, respirei fundo, tentei achar uma solução, até
que...
Uma resposta começou surgir na minha cabeça... Mas... Me
assustava.
O coração apertou involuntariamente.
Eu não queria aceitá-la. Ainda não.

❖❖❖

— Meus amores, foi um prazer tê-los conosco esse fim de


semana em nossa casa de campo — Samantha se pronunciou,
enquanto nos despedíamos, já em frente à minha casa, em Londres.
Tínhamos todos descido dos carros para dar adeus. Mesmo que eu
e Molly tivéssemos voltado da mesma maneira fomos, ou seja, no
carro do Eric com a Stefany, Samantha e Lexie fizeram questão de
nos acompanhar em seu carro durante todo o trajeto até ali.
Eu estava de óculos escuros, assim como fiquei desde o
momento em que saí do quarto na casa de campo, depois do
banho. Meus olhos ainda denunciavam como tinha sido minha noite
anterior e eu realmente não queria que ninguém visse, nem
percebesse. Na verdade... Ver, ninguém estava vendo, mas
perceber...
Podiam não estar vendo, nem percebendo meus olhos, mas
certamente notaram o clima estranho entre Eric e eu, especialmente
Stefany e Molly que nos fizeram companhia no caminho de volta.
Era impossível não notar, desde o momento em que eu saí do
quarto e desci para o café da manhã, desde o instante em que eu
me sentei na mesa e não trocamos uma palavra sequer ou desde o
momento em que entrei no carro e fiquei calado praticamente a
viagem inteira.
Eu e ele não estávamos brigados. Claro que não. Era
diferente. Muito diferente de um estar com raiva do outro.
Definitivamente, não era isso. Eu não estava com raiva dele, nem
ele com raiva de mim. Era diferente. Era estranho. Inexplicável. Uma
situação pela qual nunca havíamos passado, um sentimento de
desconforto pelo qual nunca havíamos sentido.
E acho que era isso mesmo: desconforto. Essa era a palavra
certa para definir o que estava acontecendo ali entre nós. Não
estávamos nos falando, nem nos olhando por puro desconforto. Era
como se não soubéssemos mais agir um com o outro depois do
houve. Eu notava que o loiro, vez ou outra, até tentava me dar umas
olhadas, porém nada muito contundente. E quanto a mim, pior
ainda. Eu nem me esforçava para encará-lo.
O detalhe era que eu não estava fazendo isso de propósito.
Lógico que não. Na verdade, era porque eu simplesmente não
conseguia olhá-lo, por mais que eu quisesse e estivesse morrendo
de vontade. Sentia, além de tudo, que a mesma coisa estava
acontecendo com ele. Por mais que Eric sempre tivesse sido o mais
maduro e sensato, ele parecia tão desnorteado quanto eu. Era como
se não estivéssemos sabendo agir um com o outro. Era como se
pensássemos: “e agora, qual será o próximo passo?”
Dois idiotas, depois de uma noite idiota, carregada de
decisões idiotas.
Durante o café da manhã, ainda tentei conversar, ao menos
com Molly, Stefany, Samantha e Lexie. Eric também pareceu tentar
fazer o mesmo. Nós não queríamos que ficasse tão visível que
estávamos passando por um problema. Talvez, na casa de campo
tivéssemos conseguido obter algum êxito com isso, mas foi no carro
que tudo desandou completamente e, com certeza, ficou cristalino
como água, para as meninas, que havia algo de ruim entre eu e ele.
Isso porque estávamos totalmente distantes e diferentes da
maneira como tínhamos agido até noite passada, antes de
entrarmos nos quartos, para supostamente dormir. Não éramos
mais o Liam e o Eric que jogaram bola depois do almoço, ou o Liam
e Eric que ficaram abraçadinhos durante a festa de aniversário. No
carro, eu simplesmente liguei o foda-se, porque já estava cansando
de ficar, desde a hora do café da manhã, tentando passar uma
imagem de que estava tudo. Ou seja, me calei e fiquei no meu
cantinho o caminho inteiro. Calado estava e calado fiquei. No
máximo, troquei duas palavras com as meninas.
E foi ali, naquela despedida em frente à minha casa, que tudo
ficou ainda mais claro para todos. Merda. Era impossível. Inevitável
não perceber.
— Ah, tia! Foi maravilhoso! — Stefany respondeu com sua
típica animação. — Espero que a gente possa marcar novamente!
— Com certeza, Samantha! — Molly, simpática, também
falou. — Muito obrigada mesmo por tudo! Liam e eu ficamos
agradecidos por toda a recepção e cuidado que tiveram com a
gente. Não é, maninho? — e me deu cotovelada, provavelmente
para que “acordasse” e falasse alguma coisa também.
O fato era que eu estava completamente aéreo, graças a
tudo o que aconteceu.
Pisquei os olhos repetidas vezes, como se realmente
estivesse acordando de um longo sono (ou, na verdade, acordando
de um zilhão de pensamentos) e tentei tirar um sorriso não sabia de
onde. Estava difícil. Meus lábios pareciam pesar toneladas ao tentar
formar o sorriso.
— É-É verdade... — gaguejei, ainda meio desnorteado. —
Muito obrigado, Samantha e Lexie, foi um momento bastante... —
hesitei em continuar porque a realidade me mostrava o contrário. —
Agradável — Mas conclui, afinal tinha sido bom até a hora de
“dormir”. — E desculpa também por qualquer coisa.
— Imagina, querido! — Samantha, ainda com seu sorriso
gentil, soltou uma pequena risadinha. — Não tem pelo que
agradecer ou se desculpar! Depois marcamos novamente e, dessa
vez, para passar mais tempo, heim?
— Tem razão, querida. Só um fim de semana é pouco tempo
e muito corrido. — Lexie também se pronunciou.
— Com certeza! Marcaremos para ficar uma semana! — riu
novamente. — Agora vamos, sim? Amanhã já é segunda e temos
uma longa semana pela frente.
E, então, todos começaram a se abraçar para se despedirem.
Olhei de relance para o Eric e ele, definitivamente, estava se
esforçando para parecer bem. Eu sabia. Eu o conhecia e seria
capaz de notar isso a quilômetros de distância, por maior que fosse
o esforço dele em disfarçar.
O problema mesmo foi na hora de nós dois nos abraçarmos...
Droga.
A “sorte” era que nós estávamos em frente à minha casa e,
tecnicamente, não deveríamos fazer muitas demonstrações de afeto
e carinho ali, já que os Eric e Liam da sociedade não fariam isso.
Assim, o loiro se aproximou, meio desajeitado e um tanto
quanto hesitante, e me abraçou. Se tiver durado o tempo de um
piscar de olhos, foi muito. Porém, não reclamei nem internamente.
Muito pelo contrário, agradeci. Eu ainda carregava consigo aquele
mesmo sentimento da noite passada: querer certo espaço, querer
certa distância. Toques ainda não estavam na lista de coisas que eu
gostaria voltar a sentir.
No entanto, após nos separarmos tão rapidamente quanto
nos abraçamos, olhei para o lado e o primeiro olhar torto que recebi
foi o da Molly. Na verdade, torto não, mas confuso. Depois daquele
“projeto” de abraço, todas as tentativas de disfarce foram realmente
por água abaixo, mesmo que eu e ele não tivéssemos o hábito de
demonstrar muito carinho no meio da rua (porque, tecnicamente, a
sociedade ainda não sabia sobre nós, ou não tinha certeza).
Preferi não abrir margem para mais nada, apenas me
despedi em definitivo, peguei minha mochila e dei as costas.
Caminhei um pouco e, quando passei pela porta de casa, lá
estavam eles, papai e mamãe sentados no sofá e assistindo
televisão. Típico. Assim que me deparei com eles, tentei não fazer
muito barulho. Só queria passar quase invisível por ali e subir
correndo para o meu quarto.
Porém...
— Querido! — mamãe foi a primeira a anunciar minha
chegada e interromper meu percurso apressado até o quarto. —
Você chegou!
“Não, mãe, cheguei não. Ainda estou lá no meio do mato de
Cambridge.”, pensei. Não disse, claro. Mas, tentei disfarçar a
revirada de olhos que dei. Eu estava tão cansado. Cansado de tudo.
Psicologicamente e fisicamente.
— Oi, mamãe — foi tudo o que falei.
— Venha aqui, venha aqui! — ela, toda animada, pediu, já se
levantando do sofá. — Nos conte como foi a viagem! — acenou
para que eu me aproximasse. — Eu estava com tanta saudade!
Meu Zeus... E eu mal passei um dia fora!
— É verdade — papai se pronunciou. — Ela quase não
dormiu à noite, pensando no “bebezão” dormindo fora de casa — riu
com desdém, balançando a cabeça. — O garoto já vai fazer
dezenove anos...
Credo.
— Tem razão, papai. Já sou praticamente adulto — disse,
enquanto me aproximava da escada, tentando escapar dali e de
todo o interrogatório da Sra. Claire. — Olha só, eu estou muito
cansado da viagem, sabe? — fui falando, enquanto subia os
degraus e olhava para eles. — Depois eu falo melhor como foi.
— Mas... — mamãe ainda tentou dizer algo, só que...
— Deixa o garoto descansar, Claire... — papai interrompeu.
— E a sua irmã? — ela ainda tentou continuar.
— Tá vindo aí! — finalizei e corri para o andar de cima.
Tudo o que eu mais queria era o meu quarto, a minha cama e
o meu espaço. Estava na hora de ter um tempo só pra mim, longe
de qualquer coisa, de qualquer perturbação. Eu precisava pensar
em como seria tudo dali pra frente, no colégio, em casa, e,
principalmente, com o Eric.

❖❖❖

Minha mochila jogada de um lado, meus tênis espalhados


pelo chão do quarto, minha camisa pendurada sei lá onde, e eu...
Completamente estatelado na cama, olhando para o teto e
pensando em absolutamente tudo e nada ao mesmo tempo.
Na verdade, a coisa que mais passava pela minha cabeça,
naquele instante, era a resposta que meu cérebro, em silêncio, me
mandou, antes de eu sair do banho em Cambridge. Era tão
assustador. E mais assustador ainda era saber que há alguns
meses eu não acharia isso assustador. Para ser sincero, ter
convicção dessa resposta seria libertador para mim em tempos
atrás.
Mas, naquele exato momento, não.
E sabe por que? Porque eu e o Eric já tínhamos vivido coisas
demais, porque nós já estávamos mais conectados que tudo,
porque eu e ele não éramos mais os mesmos que antes, porque nós
mudamos e, principalmente, porque eu tinha a certeza que, apesar
dos pesares... Gostava daquele filho da mãe pra caralho!
A razão me dizia para desistir e a emoção me falava para
continuar.
O problema era que agir com a emoção não estava ajudando.
Na verdade, sempre que eu agia com a emoção, eu fazia merda.
Por outro lado, agir com a razão e aceitar a resposta que meu
subconsciente me mandou era como... Termin... Ah não! Não, não,
não... Isso me estava me deixando perturbado!
Me revirei na cama com aqueles pensamentos, até que...
— Liam! — Batidas frenéticas na porta do meu quarto. Era a
Molly. E não precisou se passar mais que três segundos, porque,
em um piscar de olhos, ela já tinha entrado ali e se colocado em
minha frente, com os braços cruzados e um olhar um tanto
inquisidor.
Merda. Por que eu não tranquei a porra da porta?
— O que foi? — perguntei com um tom um tanto
desinteressado. Afinal, eu não estava mesmo a fim de conversar,
enquanto ela parecia querer falar um mundo de coisas. Ou querer
que eu falasse um mundo de coisas.
— Eu que pergunto... O que foi, Liam?
É. Eu não estava enganado.
— Hãn? — franzi o cenho e me fiz desentendido. — Do que
você tá falando? — Era claro que eu não ia contar de cara o que
tinha acontecido. Não porque eu não quisesse que ela soubesse,
mas porque eu realmente não estava a fim de falar sobre aquela
catástrofe.
— Ah, nem vem... — revirou os olhos. — Eu te conheço,
Liam! Aliás, eu te conheço e conheço o Eric também. Sei que
alguma coisa aconteceu entre vocês. Não estão normais. E eu
quero saber o que houve — cruzou os braços.
Merda. Por que a Molly teve que se envolver com a Stefany?
Agora elas estavam iguaizinhas!
— Não aconteceu nada, Molly. Eu só estou cansado da
viagem — e me virei na cama, como se quisesse dormir. — Vai pra
lá. Eu tô com sono — tentei desconversar, ao mesmo tempo que
fingia um bocejar.
A morena de pronto fez uma cara de “ah tá, eu não acredito
nisso” e continuou de braço cruzados. Ela realmente estava
determinada a descobrir o que tinha acontecido. Isso se já não
desconfiasse do que realmente houve.
— Para de ceninha, Liam — descruzou os braços e logo foi
para minha cama, sentando ao meu lado e me puxando para que eu
sentasse também. Ô porra. Eu não estava com sorte mesmo. Agora
eu tinha uma Stefany número dois na minha vida. — Eu sei que
alguma coisa aconteceu. Vocês foram dormir de um jeito e
acordaram de outro. Aliás... Eu até já imagino o que seja...
Droga. Ela já sabia e só queria ter certeza.
— Você tá ficando doi... — e antes que eu concluísse a
frase...
— A transa não deu certo, né? — me interrompeu e me olhou
como se já soubesse mesmo de tudo. E pior: ela tinha razão. Queria
tanto que essa frase fosse ao contrário, tipo “a transa deu certo e
vocês treparam a noite toda, né?”
Triste ilusão.
Respirei fundo.
— Nem pense em negar pra me fazer ir embora daqui —
continuou antes que eu pudesse responder qualquer coisa. —
Porque eu sei que é isso, assim como também não vou sair daqui.
Então, desista e desembucha logo.
Droga.
Droga.
Droga.
Eu não vou falar. Eu não quero falar. Eu não…
— Foi um desastre! — Tudo bem, não resisti. — O Eric foi
aquele “cavalheiro” todo e blábláblá... — fiz aspas com os dedos. —
Mas não deu certo. Não rolou. Por culpa minha! E no final de tudo...
Chorei feito um imbecil! Estou me sentindo todo dolorido, arrasado...
Boiola mesmo.
— Foi tão ruim assim? — perguntou com os olhos
arregalados em uma mistura de surpresa e preocupação.
— Ruim? — ri fraco e balancei a cabeça. — Ruim é pouco.
Acho que não existem palavras que possam descrever o que foi
aquilo. Nunca na vida pensei que fosse passar por uma situação
como aquela. Acho que eu não nasci pra isso.
— E vocês já conversaram sobre isso? — perguntou
novamente.
— Eu meio que... — pigarreei a garganta. — Expulsei ele do
meu quarto, depois que tudo aconteceu. Desde então, a gente não
se falou novamente... Quer dizer, ele até mandou uma mensagem
hoje de manhã, mas eu respondi que precisava de um tempo pra
pensar.
Dessa vez, foi Molly quem respirou fundo. Nunca tinha a visto
tão preocupada quanto naquele momento. Parecia que sentia na
pele o que eu estava sentindo. Talvez fosse coisa de irmãos, ou
talvez... Ela já tivesse passado por algo parecido. Ou talvez os dois.
— Você pensou?
Balancei um sim com a cabeça.
— Mas ainda não sei o que fazer — falei com toda a
sinceridade.
Molly, então, aproximou-se ainda mais de mim na cama,
levou suas mãos ao meu rosto e fez carinho com polegares,
olhando no fundo dos meus olhos com uma ternura sem igual.
Parecia realmente sentir o que eu estava sentindo.
— Olha, você sabe que pode contar comigo pra tudo, né? —
continuou olhando-me firme, enquanto eu balançava um sim com a
cabeça. Ainda me sentia assustado com tudo o que tinha acontecido
e, principalmente, com a resposta que meu subconsciente me deu
sobre o que fazer. — Eu não posso tomar uma decisão por você,
assim como também não posso interferir na sua vida, nem no que
você pretende fazer. Mas, o que te digo com toda a sinceridade de
alguém que torce pra que tudo dê certo é: faça o que seu coração
está mandando.
“Faça o que seu coração está mandando”.
Cada uma dessas palavras entrou pelos ouvidos e ecoou no
meu subconsciente.
Meu coração me mandava continuar, mas minha cabeça
gritava para que eu...
Droga. Eu realmente estava assustado.

❖❖❖

O dia seguinte amanheceu diferente. Além de toda a merda


que tinha acontecido no fim de semana, eu ainda precisava lidar
com o colégio. Era segunda-feira, o primeiro dia de aula depois que
os boatos sobre o meu caso com o Eric se espalharam pelos
corredores. E mais: tinha o Noah também. Principalmente o Noah.
Eu estava no meu carro, parado no estacionamento da
escola, pensando no quanto minha vida tinha se tornado um
obstáculo atrás do outro. Nunca poderia imaginar no quanto ela
mudaria em tão pouco tempo. Agora, todo dia eu precisava matar
um leão diferente, enquanto, antigamente, minhas maiores
preocupações eram se eu já tinha a transa da semana garantia com
uma menina gata ou se iria jogar bola depois da aula.
Antes de chegar ali, tive que lidar com o café da manhã.
Meus pais pareciam normais e diferentes ao mesmo tempo, como
se soubessem de alguma coisa. Porém, conversavam normalmente
comigo e com a Molly. Eu também tentei conversar normalmente,
porque não queria que eles desconfiassem do que estava
acontecendo comigo. Só pedia a Zeus, Buda, Thor e qualquer outro
deus que os boatos dos corredores do colégio não chegassem aos
corredores da minha casa.
E pensando nisso... Estava na hora.
Eu precisava sair daquele carro ou passaria o resto do dia ali
até criar raízes. A coragem estava pouca, mas eu precisava seguir
em frente. No fundo, eu queria nunca mais ter que pisar naquele
lugar, mas, pela graça de Zeus, faltavam poucas semanas para o
fim das aulas, ou seja, para o fim do colegial. Logo eu me formaria e
não teria mais que cruzar diariamente com aquela gente.
Porém, até chegar ao último de dia de aula, eu precisava ser
forte.
Força, Liam. Força, Liam.
Respirei fundo e abri a porta do carro. Me pus de pé e
comecei a caminhar pelo estacionamento, indo em direção à
entrada do colégio. Em pouco tempo, eu já sentia os primeiros
olhares sobre mim. À medida que eu me aproximava mais, os
olhares aumentavam. Merda.
Ao chegar na entrada, onde ficava o pátio do colégio, percebi
que o lugar estava lotado. Claro, todo mundo estava chegando para
assistir aula. Era o meu fim. Logo comecei a ouvir aquele típico
burburinho. Estavam falando sobre mim. Baixei a cabeça, assim
como fiz da outra vez.
Eu não suportava ser o centro das atenções daquele jeito.
Em tempos atrás, eu adorava ser o centro das atenções, mas só
quando me bajulavam, quando eu era o deus daquela escola,
quando aquele lugar era o meu reino. Hoje em dia, nada mais
daquilo importava, nada mais fazia sentido, assim como eu não
fazia mais questão de ser o centro das atenções, nem de um jeito
bom, nem daquele jeito ruim.
Tudo o que eu queria era me tornar invisível, assistir minha
aula e ir embora pra casa. Será era pedir demais? Talvez fosse. E,
porra, eu me sentia tão só. Mesmo rodeado por dezenas de
pessoas, eu me sentia só. Nem a Molly, nem a Stefany estavam ali
para me dar uma mão. Molly teve que ajudar mamãe em algumas
coisas, antes de ir para o colégio, e a Stefany aparentemente ainda
não tinha chegado.
A parte boa da Stefany ainda não ter chegado era que eu
tinha a certeza de que o Eric também não estava ali. Era menos um
obstáculo a enfrentar e menos um motivo para aumentar os
burburinhos daqueles fofoqueiros da escola. Eu sabia que todos só
estavam esperando pelo meu próximo passo em falso para rirem
ainda mais de mim. Idiotas.
Fiz uma força para erguer a cabeça e, assim que o fiz, meus
olhos alcançaram Robert e William do outro do lado pátio. Ambos
me olhavam e pareciam estar falando sobre mim. Caminhei, então,
em direção a eles para tentar me aproximar, ter companhia, ter com
quem conversar, porém... Quando perceberam que eu estava indo
para lá, Robert deu um toque no ombro do William e saíram
rapidamente de onde estavam.
Parei no meio do pátio.
Ótimo.
Eles também estavam me evitando. Imbecis.
Grandes amigos esses merdas.
Suspirei em desânimo. Porém, quando me virei para seguir
em direção ao corredor das salas de aulas, já que eu estava sozinho
ali, vi alguém muito, muito, importante na outra ponta do pátio:
Noah. Parei de imediato o percurso que ia começar a fazer e fiquei o
observando.
Estava sentado na grama, sozinho, lendo um livro, com fones
nos ouvidos. Noah sempre foi sozinho na escola, era quieto, na
dele, introvertido, parecia não ter amigos. Pela primeira vez na vida,
eu sentia na pele como era isso. Pela primeira vez na vida, eu
entendia o quanto isso era ruim. Uma sensação muito, muito, ruim.
Antes, a galera fazia de tudo para ter a minha companhia.
Agora, eu era mais um Noah no colégio. Sozinho.
E, então, no mesmo segundo, um flash passou pela minha
cabeça e me lembrei de todos os insultos que lhe dei durante todos
os anos que estudamos no Regent, inclusive o último, o pior de
todos. Olhei para as minhas mãos e me lembrei amargamente de
quando elas foram parar em seu pescoço. O suspendi do chão.
Apesar de ter a mesma idade que eu, ele era tão frágil, pequeno e
magro. Eu era dez vezes mais forte. Ele não tinha nem a
capacidade de se defender de igual para igual.
Aquilo foi injusto de todas as formas. Injusto por suas
condições físicas. Injusto por tê-lo julgado mal. Injusto por ter
achado que ele tinha feito algo que não fez, e, mesmo que tivesse
feito, era injusto fazer aquilo com qualquer pessoa, porque ninguém
merecia ser agredido fisicamente. Injusto, principalmente, por ter
passado anos e anos caçoando dele. Injusto, principalmente, por ter
passado anos e anos insultando-o por algo que ele não era, e,
mesmo se fosse, não merecia ouvir aquilo.
Eu achava que eu era o hétero da história.
Mas era ele.
Um nó na garganta se formou por relembrar tudo o que tinha
feito contra ele. Eu realmente precisava pedir desculpas. Não
somente pelo papelão de sexta-feira, mas pelo papelão de todos os
outros anos do colegial.
Respirei fundo, tomando coragem.
Aquela era a primeira vez que eu iria agir como um ser
humano com ele.
Comecei, então, a caminhar em sua direção. As dezenas de
pares de olhos ainda continuavam sobre mim, assim como o
burburinho infernal ainda estava lá, mas eu prossegui e não hesitei,
mesmo sabendo que aquela atitude iria aflorar ainda mais as
fofocas no colégio. Afinal, todos viram o que tinha feito com ele,
assim como sabiam que eu sempre o insultei.
Estava tão compenetrado na leitura, que parecia não prestar
atenção em mais nada. Talvez fosse a única pessoa daquele pátio
que não estivesse me olhando ou fofocando sobre mim. Noah
preferia seu livro. Ou talvez nem tivesse se dado conta da minha
presença ali.
Aproximei-me o bastante até que... Ergueu a cabeça,
desviando o olhar da sua leitura, provavelmente quando percebeu
uma presença próxima demais a ele, fazendo sombra em seu livro.
Parei exatamente diante de si. Ele sentado na grama e eu de pé.
Seu olhar que, até então, estava calmo, ficou claramente
assustado quando me viu. De imediato se afastou, deslizando
alguns poucos centímetros na grama, como uma espécie de
mecanismo automático de defesa, algo inconsciente e involuntário.
Eu realmente o assustava.
— Calma — falei. — Eu não vou fazer nada.
Percebi quando prendeu a respiração assim que ouviu a
minha voz. Eu o afetava demais. Seu corpo parecia em puro estado
de alerta, como se estivesse pronto para correr a qualquer
momento.
Meu Deus, o que eu fiz com esse garoto?
— Não precisa ficar assim... — falei novamente. — Eu juro.
Eu não vou fazer nada — tentei acalmá-lo, por mais que ele
parecesse ficar mais nervoso a cada palavra que ouvia sair da
minha boca. — Será que eu posso sentar aqui? — apontei com o
queixo para a grama.
Incrédulo, baixou a cabeça e olhou para o espaço vazio ao
seu lado. Olhou de novo para mim, baixou a cabeça novamente
para a grama. Repetiu o mesmo processo umas três vezes,
totalmente incrédulo, até que...
— Posso? — perguntei outra vez.
Noah, então, me encarou. Me observou por alguns segundos,
como se estivesse tentando colocar o juízo no lugar. Percebi quando
respirou fundo e, logo depois, fechou o livro. Não falou
absolutamente nada, mas balançou um sim com a cabeça.
Finalmente.
Sem pensar duas vezes sentei ao seu lado.
E eu sabia que o colégio inteiro nos observava.
Em minha cabeça se passavam milhares de formas de
começar aquela conversa, mas nenhuma delas saíam da minha
boca. Zeus, como era difícil! Não era somente ele que estava
nervoso, eu também estava. Eu nunca tinha feito aquilo: baixar a
guarda para alguém. Quer dizer, só para o Eric. Mas, o caso ali era
outro.
Ficamos em silêncio, um do lado do outro, por uns cinco
minutos. Ainda éramos o centro das atenções, o que dificultava
ainda mais o início de qualquer diálogo. Mas, ok, eu precisava
começar aquilo de algum jeito. Não dava para continuar fazendo
merda com o garoto.
Vamos lá, Liam. Vamos lá.
Suspirei e...
— Olha, Noah, eu não sei como começar isso... — fui
bastante sincero. — Mas, eu realmente quero te pedir... — e pela
primeira vez hesitei. Era difícil. O Liam antigo jamais pediria
desculpa. O Liam antigo odiava pedir ou ouvir desculpas. Eu ainda
não estava acostumado com isso. Era tudo muito novo. Mas, Noah
merecia. Continuei. — Eu realmente quero te pedir desculpas por
tudo o que eu já te fiz. Não somente por sexta-feira, mas por tudo,
durante todos os anos... — olhei para ele e vi quando seu semblante
foi passando de assustado para magoado. Meu Zeus, será que o
pedido de desculpas estava piorando tudo? — Eu fui um grande
idiota.
E parei, esperando que ele dissesse alguma coisa. Porém,
ele permaneceu calado, apenas ouvindo. Seu semblante ainda era
de mágoa.
— Eu tô tentando, sabe? — continuei. — Eu tô tentando ser
uma pessoa diferente, uma pessoa melhor. Mas, às vezes, eu ainda
tenho umas recaídas... É complicado. Eu tenho consciência do
quanto sempre agi de um jeito fútil e imbecil. Contigo e com outras
pessoas. Mas eu pretendo melhorar. Não quero mais ser assim. Não
quero mais te tratar mal.
Parei novamente, esperando que ele dissesse algo. Podia até
me xingar, me bater, fazer qualquer coisa, mas ele permanecia
quieto com o mesmo semblante de mágoa.
— E mais... — continuei, já que ele ainda estava calado. —
Eu quero te agradecer. O Diretor Dawson me falou que você me
defendeu quando pegaram o caderno, que você foi na coordenação
pedir pra que um funcionário pegasse o caderno de volta porque
você não estava conseguindo. Muito obrigado por ter sido o único a
ficar do meu lado... Isso foi realmente muito... Gentil. Muito
obrigado.
Parei mais uma vez, porém ele nada dizia. Seu semblante de
mágoa e ressentimento ainda estava lá. E eu não tiraria sua razão
em ficar assim. Eu realmente fui muito filho da mãe com ele, durante
muito tempo. Não tinha como ficar tudo bem de uma hora para
outra.
— Você não fala...? — perguntei. Não que eu quisesse forçá-
lo a aceitar minhas desculpas, eu só queria que ele reagisse de
alguma maneira. — Pode me xingar, me bater, fazer o que quiser...
Noah, então, me encarou e suspirou.
— Desculpas aceitas — respondeu, pegou sua mochila,
levantou-se da grama e me deixou sozinho ali.
Uou! O que foi?
Me levantei rapidamente e tentei alcançá-lo.
Corri em sua direção e segurei seu ombro, mas ele
rapidamente se virou, fazendo com que eu o soltasse.
— Você me desculpou mesmo? — perguntei.
— Sim... Agora só me dá um tempo, tá? — e virou-se
novamente, indo embora dali, deixando-me no meio do pátio.
Ótimo. Era eu pedindo um tempo para o Eric e o Noah
pedindo um tempo para mim. Um dia da caça e outro do caçador.
O começo de uma nova jornada

Liam

Parado no meio do pátio, vi Noah se distanciar de mim.


Tudo bem, ele precisava de um tempo e isso era totalmente
compreensível. Não tinha como ele simplesmente lidar fácil com
tudo aquilo. Na verdade, achei que ele tivesse sido muito bom em
aceitar minhas desculpas, porque eu realmente não merecia. O
garoto tinha um bom coração e isso era inegável.
Além do mais, não era como se eu esperasse que nós
fôssemos virar “best friends forever” depois de eu ter sido tão filho
da mãe com ele durante anos. Por outro lado, se ele quisesse ser
meu amigo, eu ia... Gostar. Sim. Sinceramente, eu ia gostar. Ia
gostar pra caramba! Queria poder conhecê-lo melhor, conversar
mais, ouvir melhor sua voz.
Porém, já dizia o ditado “expectativa é a mãe da merda”. Eu
não criaria esperanças de uma possível amizade. Deixar a vida
seguir seu fluxo talvez fosse a melhor alternativa. Na verdade,
estava quase adotando essa filosofia para tudo.
Dei meia volta e segui no pátio. Ainda sob olhares curiosos e
julgadores caminhei em direção ao corredor principal do colégio. A
aula estava quase começando, ou seja, era melhor eu entrar logo na
sala.
Porém, antes de definitivamente chegar ao destino final, senti
vontade de ir ao banheiro. Desviei o caminho, indo em direção para
lá. Era um espaço relativamente grande, onde havia um corredor de
tamanho médio poucos metros antes das cabines e dos mictórios.
Algo, no entanto, estranho aconteceu enquanto eu
caminhava no tal corredor...
— O Liam... — ouvi meu nome vindo de dentro do banheiro,
seguido de risadas, muitas risadas.
Como assim? O que estavam falando sobre mim?
De imediato, franzi o cenho e, silenciosamente, caminhei
mais um pouco pelo corredor que dava acesso às cabines e aos
lavatórios, tomando cuidado para não ser visto e ouvido. Eu queria
saber o que estavam falando sobre mim.
— Lembra do que as garotas falavam? — um deles
perguntou com certo desdém. — “Ah, o Liam é o cara mais bom de
cama da escola... Ah, o Liam pega assim, pega assado e blábláblá”.
Agora vão falar o quê? Maior boiola! — e riu alto.
Como se eu tivesse levado um golpe, meu peito doeu de
imediato. Um forte golpe. Meu coração acelerou, minha cabeça
rodou, minhas pernas ficaram bambas. Suei frio. Aquela era a
primeira vez que eu ouvia claramente os comentários sobre mim.
Antes eu só ouvia burburinhos e palavras soltas. Mas, ali não.
Ali eu estava clara e nitidamente, palavra por palavra, ouvindo o que
todos pensavam de mim. Um grupo de caras dentro do banheiro
masculino, falando exatamente aquilo que pensavam sobre mim.
— E eu que tinha ele como o deus desse colégio? — outro
falou. — O cara nem pisava no chão. Ainda bem não fiz muito
esforço pra ser amigo dele. Vai que dava em cima de mim, se eu
tivesse dado abertura! — e também riu.
— É, cara — o primeiro concordou. — A gente não pode
chegar perto dessa gente. Nunca se sabe quando eles podem dar
em cima ou não. Não dá pra confiar!
— Nossa, sim... Não quero “queima-rosca” perto de mim —
mais um falou. — Minha praia é outra. Aliás, não sei como o cara
que era maior pegador da escola decidiu trocar todas as gostosas
por um pau — soltou uma gargalhada. — Tem que ser muito mané
mesmo.
— Ou muito boiola! — outro também gargalhou.
Aquilo era demais pra mim.
Meu estômago se revirou, ao mesmo tempo que meus olhos
se encheram de lágrimas. Uma coisa era eu falar sobre a minha
sexualidade, outra coisa era eu ouvir pessoas falando sobre a minha
sexualidade de um jeito extremamente pejorativo.
Senti na pele e, não, a sensação não era nada boa. Na
verdade, foi uma das piores sensações que já tinha experimentado
na vida. A certeza era única: Eu. Não. Estava. Preparado. Eu
definitivamente não estava preparado para enfrentar tudo aquilo.
Por mais forte que eu tentasse ser, por mais evoluído
mentalmente que eu parecesse estar, por mais “novo Liam” que se
fizesse presente em mim, eu não estava preparado. Era humilhante,
vergonhoso, ofensivo.
Nunca, em toda a minha vida, eu tinha passado por algo
assim. Nem quando eu era criança e tentava fingir para os outros
que não gostava do Eric, nem durante a minha pré-adolescência,
quando alguns caçoavam de mim justamente por fingir não gostar
do Eric.
Nunca. Nunca algo assim tinha acontecido.
Era como se, a cada passo que eu quisesse dar pra frente,
uma força descomunal me puxasse para trás. Eu queria seguir em
frente. Eu queria me aceitar e aceitar toda aquela situação que eu
estava vivendo. Eu queria ser uma pessoa melhor, uma pessoa
diferente. E principalmente: eu queria ser suficiente para o Eric.
Porém, isso me mostrou o quanto eu estava despreparado.
Eu não ia conseguir. Essa vida não era pra mim. Definitivamente,
não era. O Liam antigo ainda estava em mim, por mais que eu
tentasse sufocá-lo a todo instante. Prova disso era que, se ele não
estivesse vivo e escondido em alguma parte de mim, eu não teria
me sentido tão atingido quanto me senti.
Aquela era a gota d’água. Se antes eu só ouvia palavras
soltas e burburinhos, ali eu ouvi frases completas e claras. Ali, eu
tive a certeza de que toda a minha imagem tinha ido por água
abaixo, mesmo que isso já não fizesse tanta importância para mim.
Ali, tudo começou a fazer sentido, mesmo sendo em uma situação
tão absurda e ruim.
Ali, meu subconsciente gritou com todas as letras possíveis
aquilo que eu quis me negar a aceitar antes de ir embora de
Cambridge: você precisa terminar com o Eric!
Essa era a resposta que me assustava, a resposta que eu
não queria aceitar. Mas, talvez a resposta mais justa e sensata que
meu subconsciente já tivesse me dado, desde que eu me entendia
por gente. E, se eu bem me conhecia, eu nunca escutava o lado
certo e sempre agia por impulso. Aquele era o momento de mudar.
Não porque eu não quisesse enfrentar, diante de todos, o fato
de gostar de um homem, ou porque quisesse fingir que não gostava,
ou porque quisesse desistir de gostar, ou porque estava com
vergonha de gostar. Não, não era por causa de nada disso.
Era porque eu não estava preparado.
Desde o início eu nunca estive preparado, mas quis
continuar. Na noite passada eu definitivamente não estava
preparado, mas quis continuar. Eu não aceitava meu despreparo,
minha impotência, porque, para mim, isso soava como fraqueza. E
eu nunca gostei de me sentir fraco.
Porém, aquela era a gota d’água, o fim, a resposta que eu
realmente precisava.
Se com tais comentários eu me senti completamente
impotente, imagina com o tudo o que eu ainda precisava enfrentar
diante de uma sociedade totalmente preconceituosa? Essa situação
me fez enxergar, com nitidez, algo que eu, a todo custo, me
recusava a ver.
Assinei meu atestado de fraqueza e incompetência? Assinei.
Mas, não dava para continuar. Nem por mim, nem por ele... Eric. Na
verdade, principalmente por ele. Eu não estava preparado para viver
tudo aquilo e isso iria acabar machucando-o ainda mais. Talvez o
peso de cortar relações fosse menor do que se machucar com
minha completa falta de preparo. Eu não era suficiente para ele. Eric
merecia alguém melhor. Alguém que pudesse dar tudo o que
estivesse a sua altura e fazê-lo feliz do jeito certo.
Ele era perfeito, em cada detalhe, em cada ação, em cada
sentimento, enquanto isso eu era... Nada. Não conseguia, nem
conseguiria, retribuir dez por cento do que ele era capaz de me dar.
Nós éramos incompatíveis. O clichê de que os opostos se atraíam e
davam certo no fim das contas não se aplicava aqui.
Nós éramos opostos e continuaríamos sendo pelo resto da
vida. Totalmente incompatíveis. Eu não seria capaz de dar aquilo
que ele merecia e queria. Não somente na parte sexual, mas
também sentimental. Por mais que eu tentasse, por mais que eu
quisesse. Essa era a sina da nossa vida.
Eric claramente precisava de alguém diferente, alguém
melhor. E, por mais que isso doesse em mim, eu tinha consciência.
Gostar dele pra caralho não era suficiente. Eu não era suficiente.
Eric merecia alguém melhor, alguém que não tornasse sua vida uma
completa confusão, alguém que não o machucasse.
Essa pessoa não era eu. Nossa relação não era saudável.
Nunca foi. E por que? Por minha causa! Tudo sempre foi sobre mim.
Desde o início, desde quando começamos, eu vinha manchando a
relação. Não era algo saudável.
Por mais que eu gostasse dele, por mais que eu estivesse
me sentindo completamente fodido por tomar essa decisão, eu
precisava protegê-lo de mim. Talvez um dia... Talvez... Nós
pudéssemos tentar algo. Ou talvez não. Talvez ele só precisasse de
alguém que não fosse eu.
Naquele momento, eu só precisava ficar sozinho para tentar
me entender. Caminhar junto com o Eric, enquanto eu vivia uma
confusão de pensamentos e sentimentos, só abriria margem para
que eu o machucasse ainda mais. E não, eu não queria machucá-lo
mais do que já tinha machucado.
Era hora de parar de machucar as pessoas. Ele, o Noah, e
todos os outros. Eu precisava ficar sozinho e tentar me entender.
Seguir em frente sozinho talvez fosse a melhor opção. Era como a
Terceira Lei de Newton que Eric me ensinou em uma das aulas no
meu quarto: para uma coisa ir para frente, outras precisam ficar para
trás.
Aqueles comentários que eu ouvi foram apenas a gota
d’água, apenas o impulso que eu precisava para ter certeza de que
eu não estava preparado e de que eu precisava ouvir meu
subconsciente. Infelizmente, eu não tinha como seguir o conselho
da Molly e fazer aquilo que meu coração estava mandando.
Era hora de fazer o que a razão estava me dizendo, não a
emoção.
Pela primeira vez na vida, eu não agiria por impulso, eu faria
a coisa certa.
E, então, como se adivinhasse o que estava acontecendo,
senti quando meu celular vibrou em uma mensagem dele. Limpei os
olhos, tirando as lágrimas que teimavam em descer, e li o texto:
“Liam, eu sei que você não está em um bom momento e que
você pediu um tempo para pensar, mas eu realmente preciso te ver
e falar contigo. Quero muito me entender contigo.”
Se entender comigo...
“Me encontra em quinze minutos na Praça Sherman. Aquela que
fica a três quarteirões do colégio.”
Respondi.
Era chegada a hora.

❖❖❖

A vantagem de se estudar no Colégio Regent era a certa


autonomia que os alunos tinham. Em poucos minutos, consegui sair
de lá, antes mesmo que a aula começasse, sem ter que dar
satisfação para ninguém. Graças a Zeus por isso. Não estava em
muitas condições de falar com qualquer pessoa que não fosse o
Eric.
Na verdade, nem com ele, mas era necessário.
Eu tinha que dar um ponto final naquilo tudo.
A praça Sherman ficava a três quarteirões do colégio, mas
não fui andando, porque não queria que as pessoas me vissem ou
notassem para onde eu estava indo. Naquela manhã em específico,
o céu estava encoberto por nuvens tipicamente londrinas, que
impediam que os raios solares deixassem o ambiente mais claro;
assim como a praça estava praticamente vazia. Afinal, era uma
segunda-feira e todos deveriam estar trabalhando ou estudando.
Era melhor que fosse assim: vazia.
Por ali, apenas um vento frio soprava, que eu logo senti
quando saí do carro e respirei fundo, tomando fôlego e coragem. Na
real, eu sentia uma mistura de segurança e insegurança. Meu
coração dizia não, enquanto minha cabeça dizia sim. Ao mesmo
tempo que a emoção suplicava para que eu continuasse com ele, a
razão gritava para que pusesse fim naquela história. Eu não estava
nada bem. Era como deixar uma parte de mim. Eric já fazia parte de
mim.
Caminhei alguns passos em direção aos bancos da praça e
logo o avistei. Estava sentado em um dos lugares mais reservados,
no cantinho direito. Direito. Ele sempre gostava de tudo direito. Parei
por alguns segundos e o observei. Foi como algo automático e
involuntário. Estava tão quieto. Parecia perdido em meio a milhares
de pensamentos.
O que será que ele estava pensando?
Queria tanto saber...
No entanto, não demorou muito para que percebesse minha
presença por perto e erguesse o rosto. Nossos olhares se
encontraram e o dele parecia tão... Angustiado. Tão angustiado
quanto o meu. Me dizia em silêncio para que eu me aproximasse e,
mesmo hesitante, assim o fiz.
Era preciso coragem.
Quando cheguei ainda mais perto, ele fez menção de se
levantar, mas o impedi. Balancei a cabeça e gesticulei com as mãos
para que ficasse sentado mesmo. Precisava que ficasse sentado
para ouvir tudo o que eu tinha a dizer. E, assim que me sentei ao
seu lado, logo ouvi um forte respirar, como alguém que tivesse
acabado de retomar o fôlego...
— Pensei que você nunca fosse chegar... — Sua voz parecia
tão triste e desanimada.
— Demorei tanto assim? — perguntei.
— Não... — balançou a cabeça. — É que eu senti muito a
sua falta... Desde ontem, eu não paro de pensar... Em tudo. Queria
tanto te abraçar e te beijar... — se inquietou no banco e gesticulou
levemente com as mãos, como se quisesse me tocar, mas não
pudesse. — Mas nós estamos no meio da rua e eu sei que você não
gosta e... — falou rapidamente, ansioso, atropelando palavra por
palavra. — Depois de ontem... Eu não sei mais como agir.
Nem eu.
Estávamos quites.
Nenhum de nós sabia mais como agir um com o outro.
— Calma — falei. Irônico demais pedi-lo para que se
acalmasse, quando eu também precisava me acalmar.
— Eu estou tentando, mas... — Eu sentia a angústia em cada
palavra que pronunciava. — Tenho tanto pra te falar. Quero tanto me
acertar contigo. Olha... — fixou firmemente seu olhar no meu. —
Você não precisa se preocupar de maneira alguma com ontem.
Definitivamente — falava com tanta convicção. — O ontem não
importa mais. Vamos passar uma régua nisso e recomeçar. De
agora em diante, vai ser diferente. Não vamos nos apressar. Vamos
seguir naturalmente, tá? — sorriu amarelo com os olhos já
começando a encher de lágrimas. — Vamos esquecer o que
aconteceu e, daqui pra frente, ninguém força mais a barra pra nada.
Eu só quero ficar bem contigo e...
Não.
Não.
Não.
A minha razão só falava não. Não para tudo, para qualquer
tentativa de levar aquilo adiante. Não era o certo. Nosso
relacionamento estaria sempre fadado ao fracasso. Éramos duas
pessoas que não foram feitas ficar juntas. Dizer que ninguém
forçaria a barra já estava indiretamente forçando a barra para ficar
tudo bem, quando a gente sabia que não estava nada bem.
— Shh... — pedi baixinho e toquei levemente com o polegar
em seus lábios, interrompendo sua tentativa, praticamente frustrada,
de tentar ajeitar as coisas. — Para de falar, Eric, por favor... — meu
tom de voz estava tão fraco. Me sentia tão abalado por tudo. Pela
noite da viagem, pelos comentários no colégio, pelo Noah, que,
mesmo me desculpando, me deu as costas. — Sou eu quem
precisa falar.
— Pois me fala. Me fala que vai ficar tudo bem... — o loiro
quase suplicou. Parecia tão apavorado com tudo aquilo, como se já
soubesse do motivo pelo qual o chamei ali. — Me diz que a gente
vai enfrentar isso juntos — e tomou a liberdade e a coragem de
segurar firme meu rosto entre as mãos, para que me olhasse
fixamente.
Fechei os olhos para conter as lágrimas que teimaram em
aparecer. Deus, como era difícil ser forte. Logo eu, que sempre me
achei imbatível para qualquer coisa. Quanta ironia da vida.
— Não... — sussurrei, sem ânimo. Minha boca falava o que o
coração não queria, mas o que a cabeça pedia.
Ouvi exatamente o instante em que ele prendeu a respiração,
como se tivesse acabado de entrar em estado de alerta.
— Não? — perguntou com um tom de voz cauteloso. Eu não
estava enganado, Eric realmente tinha entrado em estado de alerta.
Ele sabia. Eu tinha certeza de que ele sabia a razão para eu ter o
chamado até ali. — Não o quê? — e, assim como eu, não conseguiu
mais conter as lágrimas que insistiam em se desprender.
Respirei fundo. A hora era agora. Eu tinha que falar, era
necessário.
— Não dá pra continuar... — disse, mas era como se eu
estivesse fora de mim. Algo automático, mecânico. Totalmente sem
ânimo, sem estímulo, sem prazer. — Não dá — suspirei.
Eric parou. Soltou meu rosto e me encarou. Uma mistura de
incredulidade e espanto tomou seu rosto.
— Então... Você tá querendo me dizer que...
— Sim, é isso mesmo — o interrompi, antes que pudesse
concluir sua frase. Isso se ele pudesse concluí-la. Nem eu mesmo
sabia como estava conseguindo falar tudo aquilo. Mas, era
necessário, era por um bem maior. — Eu quero terminar — Terminar
algo que nem tinha começado direito. — Somos incompatíveis,
nosso relacionamento não é saudável, nunca foi... — Quanto mais
eu falava, mais lágrimas caíam. — Eu nunca vou ser capaz de te
satisfazer em nenhum sentido.
O loiro abriu e fechou a boca repetidas vezes, como se
estivesse fora de si, como se quisesse falar uma tonelada, mas não
saísse uma grama. Passou as mãos fortemente no rosto e deslizou
pelos cabelos. Seu rosto ficou vermelho, parecia que todo o sangue
do seu corpo estava concentrado ali, até que...
— Você é perfeito pra mim! — exclamou em tom um mais
alto, de uma maneira que não tinha falado até então. — Em cada
detalhe! Jamais... Jamais diga isso novamente! — requisitou com
determinação. — Você está me ouvindo?
E eu estava... Ouvindo tudo aquilo perfeitamente bem. No
entanto, não era tão simples quanto ele pensava. Nada era simples
e fácil. Aquela não era uma situação pela qual Eric e Liam de
antigamente estavam acostumados a enfrentar. Não era como
quando nos relacionávamos com garotas, era diferente.
— Cai na real, Eric... — o desânimo da minha voz era
palpável. — Desde que tudo isso começou, nada deu certo e a gota
d’água foi aquela noite... — suspirei, hesitei. Não era fácil falar do
final de semana. — Aquela noite da viagem. Sempre que a gente
tira a roupa a gente faz merda, sempre que a gente se beija a gente
faz merda, sempre a gente tenta qualquer coisa a gente faz merda.
Eu... Eu não sou a pessoa certa pra você. Nunca fui.
— Cala essa boca, Liam... — pediu exausto, balançando
negativamente a cabeça. — Você não tem noção do que fala.
Você... — o desassossego era nítido em seu olhar e em sua voz. —
Tá completamente enganado. Não é porque as coisas parecem dar
errado que elas têm que ser assim pra sempre. Uma hora tudo vai
melhorar, tudo vai...
— Não, não vai... — o interrompi novamente. — Continuar
insistindo nisso é um erro e eu só vou te machucar ainda mais. Eu
nunca fui a pessoa certa pra ti. Infelizmente, nunca vou retribuir o
sentimento que você tem por mim ou o que você é capaz de fazer
por mim. Isso não é certo, isso não é saudável. Você... — suspirei.
Não era fácil dizer isso. Não era fácil imaginar o Eric com outra
pessoa, mas... — Você merece alguém melhor que eu. Alguém que
possa suprir todas as suas necessidades. Alguém que possa ser
aquilo que você merece...
— Mas eu não quero ninguém que não seja você, Liam! —
segurou novamente meu rosto entre as mãos. — Esqueceu que eu
te amo? Que eu sou doido por ti? Maluco... Do dedo do pé até o
último fio de cabelo da sua cabeça.
Não, eu não tinha esquecido. Não tinha como esquecer. Na
verdade, o grande problema era esse. Eu não seria capaz de
retribuir do jeito certo todo esse sentimento. Eu não estava
preparado, por mais doido que eu também fosse por ele. Por mais
que eu gostasse dele pra caralho.
— É justamente por isso... — o cansaço na minha voz era
nítido. — Eu não sou capaz de retribuir. Primeiro, eu preciso me
ajeitar... Me aceitar... Primeiro, eu preciso organizar a bagunça que
eu me tornei. Colocar a cabeça no lugar e... — Aquilo já estava indo
longe demais. — Eu preciso ir.
Seus olhos castanhos se arregalaram ainda mais.
— Você... Você tá querendo me dizer que vai embora? —
Eric estava incrédulo com toda a situação.
— Vai ser melhor assim — me sentia tão dolorido. Eu estava
deixando alguém que já fazia parte de mim. Mas, era preciso. —
Acredite — Eu mesmo estava me esforçando para acreditar naquilo.
Retirei suas mãos do meu rosto e me levantei. Em menos de
meio segundo, Eric também se levantou e segurou meu braço,
impedindo-me de virar e ir embora.
— Não faz isso, por favor... — Seu tom era quase de súplica.
Os olhos já tinham se tornado um verdadeiro oceano.
— Já está feito, Eric — respondi, completamente destruído
por dentro, graças a tudo que eu tinha vivido até ali, até aquele
exato momento. — A gente já terminou antes mesmo de se dar
conta. A gente já terminou antes mesmo de começar — puxei meu
braço, fazendo com que ele me soltasse, para que eu pudesse ir de
vez.
No entanto...
— Então, me deixar fazer uma merda de novo — de supetão,
segurou meu braço novamente e me puxou contra ele. Pego de
surpresa, quando dei por mim, já estava em seus braços. Sua boca
fez trajeto direto e certeiro até a minha.
Eric me beijou. Com ânsia, com vontade, como se fosse a
última vez que pudesse fazer aquilo. E era. Eu poderia ter o
impedido, ter o afastado, ter o empurrado, mas eu permiti. Permiti
que a minha boca sentisse a sua pelos últimos segundos que ela
ainda podia.
O beijo já tinha gosto de saudade e cheiro do seu perfume
ficou impregnado pela última vez no meu casaco. Era o fim. E o
começo de uma nova jornada. Nossos lábios unidos selaram a
última fase daquela etapa de nossas, para que, enfim, uma nova
pudesse começar.
Por mais que estivéssemos na rua, numa praça a três
quarteirões do colégio, eu me dei a liberdade, porque eu sabia que
era a última vez. Então, quando nossos pulmões já estavam
pedindo por fôlego, separei nossos lábios, encostei minha testa na
sua, e...
— Agora eu preciso ir... — sussurrei, ainda de olhos
fechados. — Mesmo — me soltei dos seus braços e dei as costas.
Não me permiti dar nem uma última olhada, porque eu sabia
que, se o olhasse mais uma vez, eu desistiria daquilo tudo. Apenas
caminhei involuntariamente em direção ao meu carro. Deixando um
pedaço de mim para trás, o desafio agora era entender a minha
outra parte. Sozinho.

❖❖❖

Depois de tudo o que aconteceu, eu não sei como consegui,


mas ainda decidi voltar para o colégio e assistir a última aula, a que
acontecia depois do intervalo, porque a primeira eu já tinha perdido.
Talvez eu fosse algo como sadomasoquista ou sei lá o quê, porque
foi apenas pisar novamente por aqueles corredores para me sentir
ainda mais mal do que já estava.
Nada era fácil. O término com o Eric, os burburinhos das
pessoas, a exclusão pelos meus colegas, as costas que todos me
davam. Sozinho, era assim como eu me sentia, mesmo estando
cercado por dezenas de alunos. Afinal, de nada adiantava estar com
trezentas pessoas, se todas elas queriam me apunhalar pelas
costas com conversas, comentários e olhares preconceituosos.
Tudo o que eu pedia a todos os deuses que pudessem existir
era que o tempo passasse o mais rápido possível para que, enfim, o
colegial terminasse e eu nunca mais olhasse para a cara de nenhum
deles. Outra coisa que eu também rogava era para que aquela
tristeza passasse e eu conseguisse superar de vez o término.
Ainda estava tudo muito recente. Fazia o que? Meia hora que
eu tinha colocado fim naquilo tudo? Sim, estava muito recente. Eu
quase não conseguia pensar em nada, a não ser na maneira como
o Eric ficou. Estava arrasado. Tão arrasado quanto eu. No entanto,
era preciso seguir em frente. Seria melhor assim, pra nós dois.
Quando entrei na minha sala de aula, todos os alunos ainda
estavam de pé e conversavam uns com os outros em uma
verdadeira algazarra. Era sempre assim, quando o intervalo
terminava e eles voltavam para a classe. O único que se mantinha
quieto era o Noah, lendo um livro, como sempre.
Porém, foi justamente ele a primeira pessoa a se dar conta
da minha presença ali. Talvez a cara de choro e desânimo ainda
fosse nítida, mas gesticulei levei com a cabeça, como se o
cumprimentasse de longe, e dei um pequeno, quase imperceptível,
sorrisinho. Noah apenas me encarou e baixou novamente o olhar
para sua leitura.
Sim, ele estava me ignorando, apesar de ter me perdoado.
Segundos depois, foi a vez dos outros alunos. No entanto,
diferente da maneira como o Noah me ignorava, os outros me
ignoravam com verdadeiras caras de deboche nos rostos. Ninguém
perdia a oportunidade de cochichar algo pejorativo e preconceituoso
sobre minha orientação sexual, assim como muitos ainda estavam
incrédulos sobre o “grande Liam hétero e pegador” ter “virado
boiola”.
Era tudo um verdadeiro saco. Eu estava cansado.
Sem perder muito tempo, caminhei até o final da sala e me
sentei numa das últimas cadeiras, excluído de todo mundo. Quanto
mais invisível eu fosse, melhor pra mim. Estava farto de ser o centro
das atenções de uma maneira ruim. Na verdade, eu não queria mais
ser o centro das atenções nem de uma maneira boa, como era
antigamente. Eu só queria ser uma pessoa comum e normal
mesmo.
Enquanto esperávamos o professor chegar, o diretor do
colégio, Sr. Dawson, entrou na sala e arrancou a atenção de todos
que ali estavam.
— Bom dia, turma! — falou em alto e bom tom para que
todos se aquietassem. Alguns ainda estavam de pé, enquanto
outros caminhavam rapidamente pela sala, em busca de seus
lugares. — Atenção, por favor. Eu tenho um comunicado a lhes
fazer.
Aos poucos, as conversaram foram cessando até acabarem
de vez, enquanto aqueles que procuravam por seus lugares se
sentaram de uma vez por todas. Foi preciso somente alguns
segundos para que tudo ficasse em ordem e o diretor Dawson
pudesse voltar a falar.
— Meus caros, vim aqui dar um pequeno e rápido aviso. Na
verdade, uma rápida boas-vindas. Nós temos uma aluna, de certa
forma, nova — pigarreou levemente a garganta. — Apesar do
semestre letivo estar acabando, por motivos pessoais sua família
decidiu transferi-la, para que ela pudesse concluir seus estudos
aqui. Espero que vocês a recebam de maneira educada. Por favor,
Lana, entre — concluiu.
Uma garota de cabeça baixa, de repente, adentrou a sala.
Porém, em questão de segundos, ergueu o rosto. A sala inteira ficou
em um súbito silêncio, enquanto o meu coração estranhamente
acelerou. Era a garota do shopping! Aquela que me deixou intrigado!
E era justamente por isso que eu não poderia esquecê-la.
Ela era linda. Todos ficaram extasiados com a sua beleza.
Por Zeus, era a garota mais linda que eu já tinha visto na vida. O
rosto, o corpo, o cabelo ruivo, os olhos castanhos, enfim, o conjunto
completo da obra fazia dela uma menina sem igual. Pior ainda foi
quando ela sorriu um pouco envergonhada e encaixou
delicadamente uma mecha do seu cabelo atrás da orelha. O meu
mundo foi abaixo.
E eu não estava extasiado somente com a sua beleza, era
muito mais que isso. Da mesma maneira como aconteceu no
shopping, eu senti algo meio que... Familiar ali... Só não sabia ao
certo o que era. Algo meio inexplicável. Era estranho. Seu rosto era
fino e delicado, seus olhos eram castanhos, sua pele era clara e seu
cabelo era de um ruivo sem igual, mas o queixo... E aquele sorriso...
Pisquei os olhos repetidas vezes e franzi o cenho, tentando
recobrar alguma memória que eu nem mesmo sabia se existia.
Aquele formato de queixo e aquele sorriso desenhado não me eram
estranhos, eu já tinha os visto em algum lugar, muito antes do
shopping. Só não sabia onde.
Que coisa mais esquisita.
— Esta é sua turma — Sr. Dawson se pronunciou no exato
instante em que ela parou ao seu lado. — Seja muito bem-vinda,
Lana Hill — e finalizou.
— Muito obrigada, diretor — respondeu educadamente e
olhou novamente para nós. — Bom dia, pessoal! — sorriu
gentilmente.
A voz mais feminina, delicada e doce que eu já tinha ouvido
em toda a minha vida. Thor do Céu, estava começando a acreditar
que aquela menina não existia. Só podia ser miragem. Por um
segundo, seu olhar cruzou com o meu. Logo eu, que estava lá no
fim da sala. Não sabia explicar, mas, da mesma maneira como
aconteceu no dia do shopping, tinha algo em seu olhar. Eu só queria
entender o que era.
O prazer é todo meu

Eric

Parado no meio da praça, estático, incrédulo, arrasado. Foi assim


que ele me deixou. Sem saber o que fazer ou como agir dali em
diante. Ainda observei enquanto se distanciava de mim e caminhava
até o seu carro. Continuei olhando-o até o instante em que não pude
mais vê-lo, até o momento em que tomou seu rumo e foi embora de
vez.
Como se eu tivesse levado um soco no estômago, me senti
devastado. Se me dissessem que um dia eu passaria por tal
situação, eu certamente os chamaria de loucos. O Eric de meses
atrás jamais se imaginaria passando por tudo o que passou, ou
sentindo tudo o que sentiu. Especialmente, se parasse para pensar
que o centro desse “tudo” era o Liam.
Por meio segundo, senti falta de como eu era antes. Alguém
desprendido, alguém que não se apegava a ninguém, alguém que
não alimentava verdadeiros sentimentos mesmo que estivesse em
um relacionamento, quiçá alguém sem escrúpulos. Apesar disso,
sempre fui tido como um “golden boy”, porque eu sabia fingir muito
bem e passar a imagem de uma pessoa mais centrada.
Por meio segundo, senti falta do meu antigo desapego por
qualquer pessoa, porque, sem dúvidas, a pior sensação que eu já
experimentei foi ter sido deixado por quem eu mais amei, por quem
eu seria capaz de mover de céus e terra, por aquele cara que eu
tinha a plena certeza de ser a única pessoa com quem eu toparia
passar o resto da minha vida, mesmo com todos os problemas que
tivéssemos de enfrentar.
E agora, parado, sozinho, estático no meio da porcaria de
uma praça, eu me sentia mais vulnerável que nunca, como se tudo
aquilo pelo qual eu tanto lutei (e estava disposto a lutar mais)
tivesse escorrido pelos meus dedos. Nada daquilo estava certo.
Deixá-lo ir embora daquela maneira não estava certo, assim como
também impedi-lo e forçá-lo a fazer algo que não queria era errado.
Eu estava em uma encruzilhada. Queria desfazer toda aquela
situação, ao mesmo tempo em que tinha a obrigação de respeitar
sua decisão. Já tinha pedido demais para que não fosse em frente
com aquilo, com o término, quase supliquei, mas ele estava tão
decidido em fazer esse absurdo! Um lado meu queria correr atrás
dele e fazer de tudo para reverter a situação, enquanto outra parte
de mim falava para que eu aceitasse a decisão.
Sobretudo, o que me irritava e me deixava inquieto era a
maneira depreciativa como ele se via dentro do nosso
relacionamento. Como ele pôde pensar que não era suficiente para
mim? Como ele pôde dizer que eu merecia alguém melhor? Como
ele pôde achar que jamais supria as minhas necessidades?
Ele era, sim, o suficiente para mim. Ele era, sim, tudo o que
eu merecia. Ele era, sim, perfeito para mim, e só quem tinha a
capacidade de dizer ou achar isso era eu, não ele e suas ideias
mirabolantes. Ele podia, sim, suprir todas as minhas necessidades,
porque ele conseguia isso apenas por existir, por estar vivo, sem
precisar fazer absolutamente nada. E eu estava, sim, disposto a
aceitá-lo do jeitinho como ele era, a não forçar barra para que
fizéssemos qualquer coisa.
Seria tudo natural.
Mas, mesmo que eu me negasse a aceitar, eu estava
sentindo que esse absurdo ia acabar acontecendo. A maneira como
ele ficou depois que tentamos transar, o modo como ele chorou, a
maneira como ele me colocou para fora do quarto, o modo como ele
agiu no dia seguinte. Tudo isso, tudo, já estava indiretamente me
preparando para o pior, mesmo que eu tentasse me cegar para essa
realidade.
Forçar a barra foi pior. Nós poderíamos ter esperado mais. Eu
poderia ter esperado mais. Na verdade, eu poderia esperar a vida
toda. Ou nem fazer e viver uma vida em abstinência, porque o que
realmente importava para mim era tê-lo comigo. Não importava
como. Com ou sem sexo. Em outra hipótese, poderia ter sido eu o
passivo. Eu não ligaria mesmo.
Tudo bem que eu o desejava como ativo, tudo bem que eu
queria ter a oportunidade de senti-lo daquela maneira, mas não me
importaria em ficar em outra posição, literalmente. Inclusive, eu iria
propor isso, se ele tivesse me deixado ficar no quarto, se ele não
tivesse me expulsado. O problema era que já era tarde demais, eu
demorei demais. Deveria ter dito isso logo, mais cedo. Droga, eu me
culpava tanto por isso.
No entanto, o problema não era só esse, nós já vínhamos
enfrentando muitos outros problemas. A autoaceitação, os
problemas familiares, os problemas no colégio. Essa situação na
viagem foi só a gota d’água, o limite do limite. Eu sabia que Liam
estava chegando nesse limite, mas eu estava com tanto medo de
aceitar isso que tentei me cegar.
E, enquanto ele estava chegando ao seu limite, eu seria
capaz de consertar as coisas e estava disposto a fazer tudo para
aquela relação dar certo. Só que agora nada mais disso fazia
sentido. Ele terminou. Ele foi embora. E me deu uma liberdade que
eu realmente não fazia a menor questão de ter: seguir meu rumo
sem ele e/ou com outra pessoa. Que ridículo. Eu não queria outra
pessoa. Eu o queria.
De repente, em meio aos pensamentos, lembrei que Stefany
não iria para o colégio. Eu precisava de alguém para conversar,
alguém com quem eu pudesse desabafar sem medo, e ela era a
pessoa perfeita para isso. Só mesmo a minha irmã para me salvar
nesses momentos. Aliás, ela já sabia o que tinha acontecido à noite
em Cambridge, porque quase me obrigou a contar tudo quando
chegamos em casa. Então, ela já estava ciente da situação.
Tirei o celular do bolso e, sem pensar duas vezes, digitei uma
mensagem:
“Ste, você está em casa? Preciso conversar. Estou indo pra aí.”

❖❖❖
Dirigi o mais rápido que pude para chegar logo em casa. A
sorte era que a praça não ficava muito longe. Na verdade, era tudo
no mesmo bairro: a praça, o colégio, a minha casa, a casa do Liam.
Tudo muito perto. Na minha cabeça, meus pensamentos eram um
só: conversar com alguém confiável que pudesse me dizer o que
fazer daqui para frente, porque eu mesmo não tinha ideia.
Estacionei o carro e rapidamente alcancei a porta. No
entanto, assim que cruzei a entrada, encontrei alguém que não
queria ver nem nos meus piores pesadelos, especialmente num
momento como aquele que eu estava passando: meu pai. Ele
parecia estar de saída e vestido muito formalmente, como sempre.
Seu terno sempre alinhado, barba bem feita e cabelos muito bem
penteados. O típico homem de negócios.
Quis ficar invisível para que ele não me visse e,
consequentemente, não me cobrasse nada, como já era de seu
costume. Contudo...
— Filho? — ele virou-se em minha direção assim que fechei
a porta. Por mais silêncio que tivesse tentado fazer, ele notou minha
presença ali. Droga. — Não foi assistir aula? Aconteceu alguma
coisa?
— Ah, oi — respondi mais seco do que o normal. Já tinha
costume de não ter muita emoção para falar com ele. No entanto,
minha falta de vontade triplicou depois do que tinha acontecido na
praça. Eu realmente não estava com cabeça para lidar com meu
pai. Só queria sumir dali e conversar com a Stefany. — Não... Eu só
esqueci uma coisa em casa — dei uma desculpa qualquer e
caminhei em direção à escada.
— Hum — mesmo de costas, consegui ouvi-lo. — Espere.
Preciso falar com você.
Ah não. Não, não, não. Mas que saco!
Meus ombros subiram e desceram em um longo e pesado
suspiro. Estava buscando por forças para me virar e ter algum
diálogo com ele. Eu já sabia o que ele iria falar comigo. Seria
alguma cobrança, provavelmente algo sobre a empresa, negócios,
engenharia civil, algo assim... Porque era somente sobre isso que
ele falava comigo. Não haviam surpresas.
— O que quer? — perguntei sem vontade.
— Olha... — George se aproximou da escada, caminhando
em minha direção. — Essa semana nós teremos uma comemoração
na empresa. Recentemente, como você já deve saber, fechamos
contratos valiosos, além disso os lucros estão aumentando
consideravelmente. Decidimos fazer essa confraternização para
apresentar os números e as novas parcerias aos sócios e aos
amigos mais próximos à nossa família. Além disso, daremos boas-
vindas ao novo engenheiro que finalmente chegou para somar ao
grupo. Será uma grande cerimônia. Por isso, quero que, hoje à
tarde, você vá até a construtora. Jimmy e Alex estão cuidando de
alguns preparativos e precisam de ajuda. Contamos com você —
tão logo finalizou sua ordem, deu as costas e caminhou até a porta.
— Isso não foi um pedido. Até mais tarde.
E, antes que eu pudesse responder qualquer coisa, fechou a
porta e foi embora.
Droga.
Como eu já deveria imaginar, George me passou mais
ordens. Sempre cobranças. Ainda mais naquele dia em que eu
estava com um total de zero paciência para fazer qualquer coisa. Eu
não tinha cabeça para nada e agora teria que ir para construtora, o
último lugar onde eu desejaria estar naquela tarde.
Que merda.
Por que aquele ano não acabava de uma vez por todas para
que eu pudesse ir logo para a universidade e finalmente me ver livre
do meu pai?
Revirei os olhos e subi as escadas. Tudo bem, depois eu
lidaria com isso. Agora, tudo o que eu precisava fazer era conversar
com a Stefany. Sem perder mais tempo, caminhei até o seu quarto e
rapidamente abri a porta. Tínhamos a liberdade de entrar no quarto
um do outro assim, não tínhamos o costume de bater na porta um
do outro, por mais que, às vezes, meses atrás, já tivéssemos
passado por algumas situações um pouco constrangedoras, tipo
encontrar alguém na cama do outro.
Enfim, minha irmã estava deitada com seu notebook, mas,
assim que me viu, tratou logo de fechá-lo e sentou-se na cama. Eu
notava em seu rosto a preocupação. Ela parecia muito ansiosa em
me ver.
— Maninho, eu vi sua mensagem... O que aconteceu? —
perguntou. Seus olhos quase não piscavam em puro interesse para
saber mais sobre a situação. — Você está com uma cara péssima!
Vem cá... Senta aqui... — gesticulou para que eu me aproximasse
da cama.
— Lembra do que eu falei que aconteceu naquela noite em
Cambrigde? — indaguei, logo após sentar na cama, ao seu lado.
A loira balançou um sim com a cabeça.
— O que houve agora? — Seus olhos demonstravam ainda
mais ansiedade.
Um nó logo se formou na minha garganta. Era difícil falar
naquilo sem sentir vontade de chorar. Eu ainda não tinha me
acostumado com a ideia do término, assim como também não sabia
se algum dia iria me acostumar. Poxa... Era o cara da minha vida.
— O Liam... — baixei o olhar para as minhas mãos. Esfreguei
uma na outra. Senti quando algumas lágrimas teimaram em se
formar nos meus olhos. — O Liam... — Eu realmente estava me
esforçando para dizer aquilo. Era difícil falar sobre algo que ainda
doía. Algo tão recente.
— O Liam? — Ste questionou, ansiosa pela minha resposta.
Uma parte de mim sentia que ela também já sabia o que tinha
acontecido.
Suspirei e...
— Terminou comigo... — ergui os olhos para ela, cheios de
lágrimas.
— Ah não... — Seus olhos se firmaram em mim com
verdadeira preocupação e, em menos de dois segundos, me
abraçou forte. — Não acredito que ele fez isso, Eric. Você deve
estar se sentindo péssimo, né? — e me abraçou ainda mais forte.
— Eu estou destruído — respondi, enquanto ainda
permanecia nos seus braços. Pelo menos, era reconfortante tê-la
comigo. Uma das poucas pessoas com quem eu podia contar. —
Por isso eu te mandei aquela mensagem. Eu preciso de alguém pra
conversar, alguém que me diga o que fazer. Alguém que me
aconselhe. Porque eu realmente não sei o que fazer, não sei como
agir. Não sei o que eu faço, Ste — fui falando tudo rapidamente e
atropelado. Ansioso, angustiado, inquieto. Uma mistura de tudo. —
Eu me sinto sem rumo. Uma parte de mim quer correr pra ele e
pedir para que volte. Outra parte de mim fala pra eu aceitar a sua
decisão. O que eu faço, Ste? Me diz o que fazer? Eu corro pra ele e
peço pra desistir disso ou simplesmente aceito essa merda toda? —
perguntei ainda mais rápido, agoniado. Uma angústia sem fim. —
Me diz o que fazer, me fala qualquer coisa, por favor.
— Calma, Eric, calma — a loira se afastou um pouco e
segurou meu rosto entre as mãos, olhando-me nos olhos. — Você tá
muito nervoso. Precisa esfriar a cabeça, porque nada se resolve
assim. Se continuar desse jeito, vai acabar tomando uma atitude
precipitada. Precisa mesmo se acalmar.
— Eu sei, eu sei... — repliquei fraco, mas consciente. Quase
não conseguia sustentar o olhar. — É só que... Sabe como é
quando você cria expectativa sobre algo e, de repente, acontece
alguma coisa totalmente diferente daquilo que você sonhou? É tipo
isso... Eu esperava, sei lá... Passar o resto da vida com ele, por
mais brega que isso possa soar... E agora eu não sei o que fazer. O
que eu faço?
Brega... Isso era a cara do Liam. Se eu fechasse os olhos,
poderia ouvi-lo claramente, com aquele jeitinho lindo e maravilhoso,
pelo qual eu me apaixonei, me chamando de brega e depois
sorrindo igual criança. E eu realmente tinha me tornado bem brega
depois dele. Um brega com muito orgulho. Ninguém poderia me
culpar por gostar demais dele.
— Espera, maninho, calma. Me conta isso direito —
requisitou. — Eu preciso saber disso direitinho. O que ele te falou?
Como ele agiu na hora? Eu preciso disso, antes de qualquer coisa.
— Ah, Ste... — suspirei. Era péssimo recordar tudo aquilo,
mas, enfim, eu precisava desabafar e conseguir algum conselho. —
Ele me mandou uma mensagem e pediu que eu o encontrasse na
praça Sherman, aquela que fica perto do colégio. Chegando lá, ele
me disse que chegou à conclusão de que não era o suficiente pra
mim, de que, por mais que quisesse, jamais conseguiria suprir as
minhas necessidades. Falou que eu merecia alguém melhor que
ele, alguém que pudesse retribuir o sentimento na mesma medida,
alguém que pudesse suprir as minhas necessidades... — triste,
voltei a abraçá-la, ainda mais forte, afundando meu rosto na curva
do seu pescoço. — Ele parecia péssimo também... Disse que
precisava se entender, que precisava organizar a bagunça que se
tornou, e que, se continuasse comigo, iria me machucar ainda mais.
Notei quando os ombros dela subiram e desceram em um
suspiro. Levou suas mãos às minhas costas, massageando-as em
um carinho reconfortante. Com a Stefany, eu conseguia me sentir
um pouco mais seguro e um pouco menos fraco. Ela tinha algo
como o verdadeiro significado da palavra “irmã”. Porém,
permaneceu em silêncio, enquanto eu, no fundo, aguardava para
que ela me dissesse “é, Eric, vai lá, corre atrás dele, pede pra voltar,
não desiste de vocês”, mas a loira nada falou.
— O que eu faço, minha irmã? — questionei, ansiando por
aquela resposta que me faria tomar uma atitude pela qual eu não
queria me responsabilizar sozinho, mas que, teria a desculpa de
dizer “foi a Stefany que me aconselhou a fazer, então está tudo
bem”, caso eu a fizesse. — Eu me sinto completamente
desnorteado.
Ela, então, novamente se afastou alguns poucos centímetros
de mim, somente o suficiente para que pudéssemos ficar cara a
cara, mais uma vez. Segurou meu rosto e olhou nos meus olhos
muito mais firme que antes. Parecia determinada no que iria dizer
logo a seguir. E eu, numa prece silenciosa, pedia para que me
falasse o conselho que eu, no fundo, queria receber.
— Eu sei... Eu sinto que você quer que eu diga “maninho,
não aceita isso, vai atrás dele e faz com que ele desista dessa
ideia”, mas não — respondeu com seriedade. — Não é isso que eu
vou te dizer.
— Não? — a angústia retornou aos meus olhos.
Ste balançou negativamente a cabeça.
— Não, por mais que eu seja a pessoa que mais torce por
vocês dois nessa vida. — disse, enquanto ainda segurava firme meu
rosto entre as mãos e olhava no fundo dos meus olhos. — O meu
conselho é: siga em frente, maninho.
Seguir em frente?! Meus sentidos gritaram em silêncio.
Como eu poderia seguir em frente?
— Siga em frente, Eric — continuou. — Eu torço e sempre
vou torcer por você. Eu desejo e sempre vou desejar o melhor pra
vocês — disse com segurança. Em seu olhar pairava uma genuína
sinceridade. — E eu sempre vou querer que vocês fiquem juntos.
Mas...
— Mas? — questionei, ainda incrédulo com aquilo tudo.
— Mas acho que chegou o momento de limpar as arestas e
organizar a vida. Vocês já estão há muitos meses lutando com isso,
com esse relacionamento. Acho que vocês já estão bem
desgastados emocionalmente, psicologicamente. Muita coisa
aconteceu nesse meio tempo. Vocês amadureceram em poucos
meses aquilo que, normalmente, se leva alguns anos. E isso causa
impactos. Impactos não somente pra vocês dois como um casal,
mas pra vocês dois individualmente. Não esqueça que, antes de
tudo, vocês são seres humanos independentes, com sentimentos e
pensamentos independentes... Com o Liam isso não seria diferente.
Por mais doloroso que isso possa ser, acho que chegou o momento
dele realmente tentar organizar a bagunça que se tornou, como
disse que faria. Enquanto isso, chegou o momento de você tentar
seguir sem depositar em alguém todas as suas expectativas. Vocês
amadureceram diante daquilo que um relacionamento requer, mas
chegou a hora de amadurecerem individualmente. E só depois... Só
depois de um tempo, quem sabe vocês possam retornar... Ou nem
retornar, não sei... Só a vida é quem poderá dizer isso.
— Mas... Ste... — me sentia em um verdadeiro conflito
interno. — Eu o amo demais. Mais que tudo! É ridículo ele dizer que
não é o suficiente pra mim e que se continuar comigo vai me
machucar ainda mais, porque ele é perfeito pra mim! E eu acho que
juntos é que nos tornamos mais fortes!
— Ah, Eric... — ela balançou a cabeça. — Tem certeza?
Vocês tentaram por muito tempo seguir juntos e fazer jus a esse
ditado, mas não acha que tudo só ficou ainda mais bagunçado?
Em silêncio, torci o nariz e quase emburrei o rosto, porque,
por mais que eu não quisesse aceitar, no fundo, eu sabia que ela
tinha razão.
— Dê esse tempo ao Liam... — tirou as mãos do meu rosto e
segurou as minhas. — E faça o que ele disse... Siga em frente,
maninho. Faça mesmo o que ele disse, conheça pessoas novas.
Você precisa de novos ares e merece conhecer pessoas novas. O
mundo é tão grande. Isso vai te ajudar...
Balancei a cabeça para aquilo tudo.
— Não sei se consigo, Ste...
— Consegue sim... — piscou um dos olhos e sorriu para mim.
— Você é forte.
E, então, assim que se calou, me dei conta que meu celular
vibrava freneticamente no bolso da minha calça, como se
estivessem chegando muitas mensagens. De imediato, franzi o
cenho e o retirei. Quando desbloqueei a tela, cerca de cinquenta
mensagens não lidas no grupo do time de futebol.
Minha cabeça rapidamente sinalizou o que estava
acontecendo.
Merda!
Era o primeiro treino do time para a grande final do
campeonato!
Eu tinha esquecido completamente de que haveria treino
naquele dia!
— Droga, Ste! — bufei e imediatamente me levantei da cama,
apressando-me para ir embora.
— Nossa, o que foi? — arregalou os olhos, preocupada, e
levantou-se da cama também.
— Eu me esqueci que hoje é o primeiro treino do time para a
final do campeonato! Começa doze horas e faltam quinze minutos!
— dei um passo para sair do quarto, mas logo voltei, caminhando
rapidamente em sua direção. — Obrigado por me ouvir, Ste — Por
mais apressado que eu estivesse, não poderia sair dali sem
agradecer. — Obrigado pelo ombro amigo, obrigado pelos
conselhos, obrigado por tudo. Você é demais — abracei-a.
— Não precisa agradecer, meu amor. Sabe que pode contar
sempre comigo — sorriu.
— Agora eu tenho mesmo que ir! — falei e rapidamente me
afastei, indo em direção à porta.
— Tá certo! Tira esse desânimo do rosto e pensa no que eu
falei, heim... — deu um breve sorrisinho.
— Eu nunca poderia me esquecer...

❖❖❖

O relógio marcava 11:55. Só me restavam cinco minutos.


Droga, eu estava atrasado e o treino quase começando. Estacionei
o carro e saí o mais rápido que conseguia, correndo pelo pátio e
indo em direção à entrada principal do colégio.
Como eu pude me esquecer disso, faltando tão pouco tempo
para a final? Minha vida tinha ficado tão louca que eu estava
conseguindo me desligar de algumas das coisas mais importantes
para mim.
Tudo tinha virado uma verdadeira droga.
E agora... Como se não bastasse tudo o que já estava
acontecendo, as palavras da Stefany continuavam martelando na
minha cabeça “siga em frente, maninho”, “faça mesmo o que ele
disse, conheça pessoas novas”, “o mundo é tão grande”, “isso vai te
ajudar...”
Me ajudar? Como isso poderia me ajudar, se a única pessoa
que conseguia habitar meus pensamentos era o Liam? Como eu
poderia me envolver com outras pessoas, se todos os meus
sentidos eram direcionados para uma só pessoa, o Liam? Tudo bem
que talvez novos ares e novas pessoas fizessem eu me desligar um
pouco dessa loucura toda.
Mas, como eu conseguiria?
Eu ainda era louco por ele e não sabia quando isso ia mudar.
Apressado, caminhando a passos rápidos e largos, olhei para
o relógio novamente. Agora marcava 11:58. Droga! Eu estava ainda
mais atrasado e o vestiário parecia ainda mais longe que o normal.
Ligeiro, alcancei a entrada principal do colégio, onde vários alunos
já estavam por ali, graças ao horário do fim da aula.
Todos os olhares foram direcionados para mim, assim como
percebi que burburinhos, quase que imediatos, começaram à
medida que eu passava por eles. Quando parariam de agir feito
crianças? Eu realmente não ligava para isso. Poderiam me olhar da
maneira que quisessem, ou falar o que quisessem. Eu não me
importava mesmo.
Tinha coisas mais importantes na minha vida para eu me
importar do que me ligar para fofoquinhas ou me deixar atingir por
julgamentos preconceituosos. Eu realmente não ligava para essa
merda toda.
Tão logo caminhei apressado por ali, de repente o sinal do
colégio soou em meus ouvidos. Droga, era meio dia! O Sr. Jones iria
me matar se eu chegasse atrasado. Ele odiava atrasos. E, ainda em
meio aos pensamentos que não me largavam e martelavam o tempo
todo na minha cabeça...
“Siga em frente, maninho”
“Faça mesmo o que ele disse, conheça pessoas novas”
“O mundo é tão grande”
“Isso vai te ajudar...”
Ao mesmo tempo, as palavras que Liam me disse na praça
também voltaram a rondar minha mente...
“Você merece alguém melhor que eu.”
“Alguém que possa suprir todas as suas necessidades.”
“Alguém que possa ser aquilo que você merece...”
Voltei a correr, tentando chegar ao vestiário o mais rápido
possível. No entanto, com a respiração ofegante, a cabeça em uma
completa confusão e o coração acelerado, assim que dobrei à
esquerda, para alcançar o corredor principal do colégio... Pá!
Livros foram ao chão e papéis voaram por ali. Acabei
tropeçando em algo. Merda. Na verdade, alguém. Nem olhei para o
rosto da pessoa, já fui logo me abaixando para ajudar a juntar os
livros, cadernos e papéis. Eu e minha pressa fazendo besteira!
— Olha, me desculpa! Foi sem querer... Eu não te vi. — falei
prontamente, enquanto recolhia tudo o que estava caído no chão,
ainda sem nem saber quem era. — É que eu estou apressado e
acabei nem...
— Ah, imagina... — respondeu, me interrompendo. — Não
tem problema.
Ouvi sua voz.
Aquela voz.
Parei tudo o que eu estava fazendo e finalmente ergui o rosto
para ver quem era.
Por Deus, era tão linda quanto sua voz.
— Não tem problema — sorriu gentilmente para mim. Um
sorriso sem igual, que perdia somente para o do Liam. — Deixa que
eu pego. Pode ir, você disse que tá com pressa — e tirou os livros e
papéis que estavam em minhas mãos, enquanto eu permanecia
meio estático, meio boquiaberto. Aquela beleza não era comum.
Cabelos lisos, levemente ondulados, ruivos. Olhos castanhos,
de um brilho ingênuo e, ao mesmo tempo, sagaz. Uma mistura de
inocência e malícia que eu ainda não tinha visto em ninguém. Era
linda. Sem defeitos. De rosto, de corpo, de voz, de cheiro.
De repente, uma leve lembrança me atingiu. Meu Facebook.
O pedido de amizade. Era ela! A garota do pedido de amizade...
Mas... Eu não a conhecia, assim como também não me recordava
de já tê-la visto antes. Será que eu devia mencionar sobre o
Facebook? Não, era claro que não. Perguntar sobre isso, do nada,
seria muito estranho. Porém, eu precisava saber quem ela era, de
onde veio e o que estava fazendo ali no colégio.
Se minha cabeça já estava uma verdadeira confusão, ali ela
ficou ainda mais. Precisei de um tempo para recobrar a consciência.
Foi exatamente quando ela tocou em meu braço, fazendo-me
acordar.
— Hey... — soltou uma pequena risadinha. — Tá tudo bem
contigo? Precisa de ajuda?
— Ahh... — pisquei os olhos repetidas vezes e, enfim,
levantei-me do chão. Em seguida, ela também fez o mesmo,
ajeitando a alça da bolsa que estava em seu ombro. — Na-não... Tá
tudo bem. É só que... A gente se conhece? — franzi levemente o
cenho, ainda tentando me recordar de algo mais, alguma situação
que pudesse me fazer lembrar se já tinha a visto antes do pedido de
amizade no Facebook.
Porém, assim que nos levantamos totalmente, percebi
quando seu olhar me observou e me analisou de cima abaixo. Eu
era alguns centímetros mais alto e poderia jurar que ela ficou tão
admirada comigo quanto eu estava com ela. Por dois segundos, tive
a certeza de ter ouvido um sussurro do tipo “você cresceu...” saindo
de sua boca.
— O que disse? — franzi ainda mais o cenho. Precisava ter a
certeza do que achava que tinha ouvido.
— Ahh... — soltou novamente uma risadinha e, dessa vez,
falou como se fosse ela a estar acordando de um sonho. Passou
uma das mãos no rosto e, logo em seguida, ergueu em minha
direção. — Não... Ainda não nos conhecemos. Prazer. Lana Hill.
Baixei meu olhar em direção a sua mão. Era tão delicada
quanto foi o seu toque que senti em meu braço. Não demorei até
erguer a minha e apertar a sua.
— O prazer é todo meu — sorri de volta. — Eric Hastings.
Interessante

Eric

— Você é nova aqui? — perguntei assim que demos o aperto de


mãos. Não sabia o porquê, mas eu estava realmente curioso para
saber mais sobre ela. Talvez fosse pelo estranho pedido de amizade
no Facebook, já que ela mesma disse que não nos conhecíamos.
Ou talvez fosse por algum outro motivo que eu ainda não sabia
explicar... — Acho que nunca te vi...
A garota soltou uma risadinha e colocou delicadamente uma
mecha atrás da orelha, desviando o olhar, mas voltando
rapidamente para mim, como se estivesse um pouco envergonhada.
Era tão... Suave. Apesar de seu semblante carregar certa dose de
ousadia.
— Sim, eu sou nova aqui... — respondeu sem tirar aquele
sorriso do rosto. — Na verdade, acabei de chegar. Cheguei hoje.
— Hoje? — arqueei um pouco as sobrancelhas. — Poxa, seja
bem-vinda, então — sorri. — E desculpa de novo pelo esbarrão. Eu
não te vi mesmo. Estava correndo pra chegar a tempo no treino,
mas já foi... — desviei de relance o olhar para meu relógio de pulso.
— Treino? — questionou com um nítido interesse. — Capitão
do time? — e, como há poucos minutos, notei seus olhos
discretamente me analisando de cima abaixo, mais uma vez.
— Sim, treino do time de futebol do colégio. Final de
campeonato e tal... Esse tipo de coisa... — gesticulei brevemente
com as mãos. — E não, eu não sou o capitão. É outro cara... —
Meu primeiro cara. — O Liam.
Liam... Será que era possível eu ter algum diálogo sem
pensar nele ou mencionar o nome dele?
— Ah, Liam... — balançou levemente a cabeça, um pouco
reflexiva. — Claro — finalizou em um tom mais baixo. Quase um
sussurro.
Ué? Cocei levemente o queixo.
— Conhece ele? — Dessa vez, era eu quem perguntava com
genuíno interesse.
— Não... — meneou brevemente a cabeça em negativo,
sorrindo de um jeito leve. Ela era tão leve, diferente do peso que eu
sentia em mim naquele dia e em todos os outros dias anteriores.
Diferente do peso que todas as outras pessoas do colégio pareciam
carregar desde que a bomba explodiu. Era estranho (depois de
tanto tempo na presença de quem só colocava carga sobre as
minhas costas), mas agradável estar próximo a alguém assim. —
Mas... Não era você quem estava apressado? Acho melhor ir, senão
vai chegar lá ainda mais atrasado.
Droga, verdade.
— Você tem razão — suspirei em um aparente cansaço, já
imaginando o puxão de orelha que o Sr. Jones me daria quando me
visse. — Eu tenho mesmo que ir — Apesar de ter gostado da sua
presença em uma conversa de cinco segundos.
— Então, até mais... — sorriu, se despedindo, passando por
mim e ficando às minhas costas. — Quem sabe a gente se esbarra
por aí de novo, Eric — notei certa ênfase no meu nome.
Virei o rosto brevemente para trás, enquanto ela se
distanciava de mim. Pude vê-la melhor, mesmo de costas. Constatei
que, sim, ela era diferente de qualquer outra menina que eu já tinha
visto ou conhecido no colégio. Na vida. Diferente, mas
inegavelmente linda.
— É, quem sabe — sussurrei, quando ela já tinha sumido do
corredor.

❖❖❖
Corri para o treino, apesar de estar muito atrasado. A pressa
não iria resolver muita coisa, mas era melhor do que nada. Quando
cheguei ao vestiário, já estava vazio. Provavelmente, todos já
tinham se vestido e ido para a sala da concentração, onde o
treinador costumava fazer reuniões para orientar os jogadores sobre
planejamentos, ideias e tática antes dos treinos práticos.
Será que o Liam iria para o treino? Será que ele estava
lembrando? Será que ele já estava lá?
Ah, que saco! Eu tinha que parar de pensar nele. Do
contrário, jamais seguiria em frente, como Stefany disse, ou
superaria o término. Porém, era difícil. Eu era de uma espécie rara
de trouxa.
Troquei de roupa ligeiro e voei para a sala da concentração.
Assim que abri a porta, Sr. Jones já tinha começado. No entanto, se
o lugar já estava em silêncio, com a minha chegada ficou ainda
mais. Todos os caras do time volveram o rosto para mim e me
observaram detidamente feito estátuas.
No cantinho da sala, ao fundo, estava Liam. Meu coração
acelerou em batidas descompassadas. Tão quieto, tão sozinho, tão
excluído por todos os outros. Robert e William estavam do lado
oposto ao que ele se sentava. Grandes amigos de merda. Deram as
costas na primeira situação crítica. Jamais imaginaria que um dia
veria Liam, o cara mais popular do colégio, sendo evitado por todos.
Meu coração apertou.
Eu não ligava em ser evitado por todos, ou ouvir
conversinhas estúpidas, ou receber olhares tortos. Na verdade, eu
estava pouco me fodendo. Mesmo. Mas, com o Liam era diferente.
Eu sabia o quanto estava sendo difícil para ele. Era como se a vida
tivesse o tirado do céu e o atirado com todas as forças no lugar mais
profundo do inferno.
Se eu, ao menos, pudesse fazer alguma coisa... Se ele, ao
menos, me deixasse ficar ao seu lado... Eu não faria absolutamente
nada, mas lhe daria a minha companhia. Não o deixaria sozinho.
Porém, ao contrário, ele cortou relações comigo e me deixou
totalmente à escanteio. Era doloroso pensar nisso, mas eu sabia
que, depois de todas as fofocas e boatos por aqueles corredores do
Regent, eu era a última pessoa que Liam queria por perto.
E eu sabia que estava sendo muito difícil para ele ter que
estar ali, depois de tudo o que aconteceu, ter que ir ao colégio, ter
que assistir aula, ter que participar dos treinos, por mais que ele
amasse jogar futebol, ter que ficar na presença dos outros alunos.
Estava sendo muito mais difícil para ele do que para mim. Mas,
apesar dos pesares, Liam estava sendo forte. Muito forte. Isso era
admirável.
Com um suspiro, entrei na sala e busquei pela primeira
cadeira vazia que vi. No entanto, antes que eu pudesse me sentar,
Sr. Jones chamou minha atenção.
Ah não.
— Eric, você sabe que horas são? — questionou em tom
rígido.
Suspirei com pesar.
— Desculpe, Sr. Jones... — repliquei ao me sentar. — Acabei
perdendo o horário por conta de alguns problemas pessoais, mas
isso não vai se repetir.
Sr. Jones levantou-se e começou a caminhar de um lado para
o outro da sala. As duas mãos para trás, o peito estufado. Um
verdadeiro porte de general, como já era de seu costume.
— Vocês podem ter milhares de problemas, mas, quando
tiverem que treinar, quero que deixem todos eles daquela porta ali...
— apontou. — Para fora! Entendido? — perguntou em alto e bom
som, não somente para mim, mas todos os que estão presentes.
— Sim, senhor! — o time respondeu em uníssono.
— Bom — disse em um tom mais baixo e mais calmo. —
Inclusive... — ergueu o rosto para o lado esquerdo da sala. — Liam,
venha aqui para frente. Sente-se ao meu lado. Você é o capitão do
time. Seu lugar é na frente de todos. Não quero que fique encolhido
no canto da sala feito uma maricas.
Ah não.
Se eu não conhecesse o Liam tão bem, não conseguiria
perceber que ele estava evitando ao máximo ser o centro das
atenções. Mas, eu o conhecia bem até demais, e sabia o quanto ele
estava fugindo dos olhares de todos. Porém, como desobedecer a
qualquer ordem do Sr. Jones, por menor que fosse?
Vi quando seus ombros subiram e desceram em um suspirar
bem discreto, até que se levantou. Calado foi e calado ficou. Não
olhou para ninguém, nem para mim. Na verdade, desde que eu
tinha colocado os pés ali, Liam não me olhou uma única vez. Era
como se eu estivesse invisível. Isso doía.
Doía porque era como se eu e nada fôssemos a mesma
coisa.
— Seja nos treinos, nos jogos ou em qualquer outro local
onde o time se apresentar, não quero saber de brincadeiras bobas,
piadinhas, fofoquinhas, nem nada do tipo — Sr. Jones completou,
autoritário como sempre foi, demonstrando estar ciente do caos que
o Colégio Regent se tornou nos últimos dias. — Hajam feito
homens, não feito moleques. Entendido?!
— Entendido, Sr. Jones — todos responderam em uníssono,
como se realmente estivessem respondendo a um militar da mais
alta patente.
Em verdade, o Sr. Jones era tido por todos como verdadeiro
general e recebia de nós todo o respeito que o treinador de um time
merecia. Além do mais, ninguém era doido de contrariar qualquer
coisa que ele falasse. Ninguém queria se queimar com o técnico,
nem correr o risco de sair do time. Fazer parte do time do colégio
era importante para todo mundo. Afinal, poucos tinham essa
oportunidade.
E, fora o respeito que todos deveriam ter pelo Sr. Jones,
também era um costume, passado de geração a geração, ter
respeito pelo capitão do time. Ou seja, por mais que, por dentro,
todos estivessem, assim como a maioria das pessoas do colégio,
rindo e falando coisas absurdas a respeito do Liam e de mim, pelo
menos no âmbito do time, dos treinos e dos jogos, eles eram
obrigados a manter a pose de respeito, por mais falsa que fosse.
— Agora que todos já estão presentes, podemos continuar...
— sentou-se ao lado de Liam, na frente de todos. O moreno
permanecia parado e quieto. Apesar de estar em um local de
destaque ali, não agia como se quisesse estar, nem como era de
seu costume em tempos atrás. Eu tinha a certeza de que seu desejo
era fugir para qualquer lugar. — Bem, o nosso foco agora é na final
do campeonato. Com muita dedicação e muito esforço,
conseguimos chegar ao último jogo desse campeonato, que é
importante não somente para mim, mas para todos. Afinal, vocês
sabem que, mais do que nunca, é a ocasião onde os olheiros das
universidades vão estar e, provavelmente, vão oferecer bolsas aos
concludentes merecedores e futuros universitários. Os concludentes
que mais se destacarem no jogo terão mais chances de conseguir
bolsa. E o maior destaque todos podem conseguir é vencendo o
campeonato. Porém, nós vamos enfrentar o time do Colégio
Manchester, nosso maior adversário, depois do time do Colégio
Liverpool, que não está competindo esse ano...
Enquanto o Sr. Jones falava, eu me recordava de tudo... Da
minha vontade de conseguir uma bolsa, da vontade do Liam de
também conseguir uma bolsa, do meu antigo time do Colégio
Liverpool, que era o maior adversário do Colégio Regent, mas que
não estava competindo naquele ano por falta de verbas (e era
justamente por isso que eu fui parar ali, no time do Colégio Regent).
O sentimento já era de despedida. Tudo estava acabando... O
campeonato, o colegial. Eram os últimos momentos. Instantes
decisivos e definidores do futuro de todos.
— E é exatamente por ser nosso maior adversário, o time
inegavelmente mais forte de todo o campeonato, que nós
precisamos não somente treinar, mas ter estratégia — voltei minha
atenção para o que o Sr. Jones falava. — É por isso que estamos
aqui, para falar de estratégia, antes de tudo. Precisamos vencer não
por força, mas por inteligência — suspirou e virou o rosto para o
moreno ao seu lado. — Liam é o atacante do time e, inegavelmente,
o jogador mais visado e mais marcado por todo e qualquer time que
joga contra nós.
O técnico realmente tinha razão. Era impossível não lembrar
que uma das maiores ordens que eu recebia, enquanto jogava no
time do Colégio Liverpool, era marcar o Liam do início ao fim do
jogo. Isso alimentava ainda mais a raiva dele por mim. Porém, eu
precisava cumprir as ordens, não precisava? Ok, ok, tudo bem.
Além de cumprir ordens, eu também tinha prazer em marcá-lo.
Adorava tirá-lo do sério. Velhos tempos... Mas, a questão era que
todos os técnicos de todos os colégios sabiam o quanto Liam era
um jogador talentoso, perspicaz e extremamente rápido com a bola.
Era como se tivesse um motorzinho nos pés. Se não o marcassem,
o moreno, em questão de segundos, podia fazer quantos quisesse.
Ele era muito rápido.
Na verdade, Liam era tudo: talentoso, perspicaz, rápido,
lindo, gostoso e... Ah, que droga. Ok, voltando a atenção para a
reunião.
— Com certeza, com o time do Colégio Manchester não será
diferente... — Sr. Jones continuou. — Principalmente porque eu
tenho informações de que Dylan, o zagueiro deles, é um dos
jogadores mais talentosos que eles têm e está recebendo
treinamento e orientações especiais para que marque cada passo
do Liam. Por outro lado, nós também temos um zagueiro talentoso...
— virou, dessa vez, o rosto em minha direção. — Eric — e me
observou de maneira bem incisiva. Meu coração estranhamente
acelerou, porque... Ele estava colocando Liam e eu na mesma
explicação? — É claro todos jogadores do nosso time são peças
fundamentais para que tenhamos sucesso na final... — levantou-se
da cadeira e começou a caminhar de um lado para o outro da sala.
— No entanto, se quisermos vencer realmente, precisamos de uma
estratégia que quebre o planejamento deles, ou seja, a marcação no
atacante do time, no caso o Liam. Sendo assim... — parou de falar
por alguns segundos e depois retornou. Eu realmente estava
curioso para saber onde ele queria chegar com isso tudo. — O meu
plano é, em um momento estratégico do jogo, trocar, em segredo,
Liam e Eric de posição, para confundir os jogadores do outro time.
O quê?
Inevitavelmente, arqueei as sobrancelhas com a surpresa. Ao
mesmo tempo, percebi Liam se inquietando discretamente na
cadeira onde estava sentado. Meus olhos recaíram sobre ele e, pela
primeira vez, desde que eu havia entrado naquela sala, ele me
encarou. Eu não conseguia decifrar seu olhar, mas ele parecia tão
surpreso quanto eu.
Como assim, cara? Trocar Liam e eu de posição? Momento
estratégico do jogo? Em segredo? Confundir os jogadores?
Minha cabeça rodava em perguntas e pensamentos.
Calma. O que estava acontecendo com o Sr. Jones? O
treinador nunca foi de tomar decisões arriscadas e que pudessem
colocar em jogo a vitória do time dessa maneira.
Liam e eu não tínhamos como trocar de posição. Eu era o
zagueiro. Ele era o atacante. Duas funções diferentes. Fomos
treinados a vida inteira para ocupar essas duas funções e
definitivamente não tínhamos prática em outra posição que não
fosse a nossa de origem, por mais que a gente jogasse bola muito
bem. Era arriscado e até precipitado. O Sr. Jones só podia ter batido
com a cabeça em algum lugar.
Enquanto eu e o moreno nos encarávamos, um burburinho
tomou conta de todo o espaço, por parte dos outros jogadores. Com
certeza, Liam e eu não fomos os únicos surpresos com essa
decisão. E, nessa altura da situação, eu já não sabia se outros caras
estavam falando somente do atacante e zagueiro trocarem de
posição, ou se estava falando também do Liam e do Eric, os dois
caras do time que estavam se pegando, trocarem de posição.
Em menos de um segundo, tudo ficou ainda mais doido.
— Será que vocês podem fazer silêncio?! — o treinador
exclamou, já aborrecido com o barulho que todos estavam fazendo
e que o impedia de continuar. Os nervos do time estavam à flor da
pele com aquela notícia. Foi preciso alguns segundos a mais para
que se aquietassem e o Sr. Jones pudesse prosseguir. — Será que
vocês podem parar de especular tanto e me ouvir? — perguntou em
um tom mais baixo, após o time se calar. — Bom... — voltou a
caminhar de um lado para o outro da sala. — Pelo que percebi,
todos ficaram preocupados com a minha decisão. Mas, tenho
algumas ressalvas para fazer. Primeiro, as posições não serão
trocadas em definitivo. Liam e Eric continuarão sendo atacante e
zagueiro como sempre foram. Essa estratégia é apenas uma carta
na manga que quero ter para o caso de precisarmos virar o jogo ou
desempatar. Segundo, é justamente por Liam e Eric continuarem em
suas posições normais que essa será uma estratégia secreta. Os
jogadores do outro time não podem ficar sabendo. Do contrário, em
vez de marcar o Liam, que assumirá atitudes de zagueiro, vão
marcar o Eric, que assumirá atitudes de atacante. Ou seja, seria
mesmo que nada. A ideia é que eles marquem o Liam, pensando
ser ele o atacante. Assim, o Eric poderá ficar mais livre para guiar a
bola. Terceiro... — volveu o rosto para mim e para o Liam ao mesmo
tempo. — Por mais que não estejam acostumados com a troca de
posição, vocês são extremamente capazes. Não se sintam
inseguros. Até porque, se não tivessem capacidade, eu jamais iria
propor algo assim e colocar em risco a vitória do time. Vamos utilizar
essa carta na manga, porque eu sei que vocês conseguem — Foi
bem enfático no “sei”. — Vocês são dois dos melhores jogadores
que já passaram pelo time do Colégio Regent.
E, então, quando se calou, eu senti o peso sobre as minhas
costas. Por um lado, era bom ser reconhecido como um dos
melhores jogadores que já passaram pelo time do Colégio Regente,
mas, por outro, isso era um pesadelo. A expectativa que o treinador
estava jogando sobre os meus ombros e os do Liam era muito
pesada, e isso me deixava seriamente preocupado. Talvez o moreno
estivesse sentindo o mesmo ou até mais, porque eu percebi
exatamente a hora em que se empertigou na cadeira e, pela
primeira vez, desde que a reunião havia começado, abriu a boca
para falar algo.
— Sr. Jones... Olha... — balbuciou. Parecia tentar encontrar
as palavras certas, para que conseguisse convencer o treinador a
desistir daquilo e buscar por outra estratégia. — Não sei se é uma
boa ideia. Acho que é muito arriscado para o time e...
— O Liam tem razão, Sr. Jones — o interrompi de repente.
Eu também sentia necessidade de colocar para fora a angústia que
estava sentindo pelo peso que o técnico estava jogando sobre
nossas costas. E se não desse certo? E se nós colocássemos o
time a perder com isso? E se time inteiro quisesse nos matar por
errar essa jogada? — Isso é muito arriscado. Eu não sei se vou
conseguir assumir a posição de atacante, mesmo que por pouco
tempo. Fui treinado a vida toda para ser zagueiro e... O Liam... —
voltei o rosto para ele, que carregava expectativa nos olhos. — O
Liam é atacante com maestria... — falei com toda a sinceridade.
Notei quando seu olhar suavizou ao ouvir o elogio. Elogio
genuinamente verdadeiro. Eu não estava querendo puxar o saco
dele. Até porque eu nem precisava fazer isso. Era apenas a mais
pura verdade. — Eu não vou conseguir. Desculpe, Sr. Jones... —
volvi meu olhar para o técnico. — Faltam poucas semanas. Não vou
conseguir chegar aos pés do que o Liam faz.
— Está enganado, Eric. Vocês dois estão preparados para
isso — o treinador respondeu. — Confiem em mim. Eu sei do
potencial que nem mesmo vocês sabem que têm. Além do mais,
nós vamos treinar. Treinar com afinco. Com meu auxílio e de todo o
restante do time, você e o Liam vão treinar juntos cada passe, cada
tática, cada jogada e...
— Não! — De repente, Liam exclamou em tom mais alto,
pegando-nos de surpresa. Parecia aflito. No entanto, quando
percebeu a maneira como havia falado, pigarreou a garganta, se
recompondo e tentando falar de uma maneira mais contida. —
Quero dizer... — coçou a cabeça. Seu olhar ainda carregava certo
desassossego. — Sr. Jones, é que Eric e eu não podemos treinar
juntos assim, porque... Porque... É... — parecia tentar encontrar
alguma desculpa, qualquer justificativa que fosse, para impedir
aquilo.
Claro. Claro que Liam ficaria ainda mais desesperado. Como
se não bastasse trocarmos de posição, ainda teríamos que treinar
juntos, mais próximos do que quaisquer outros jogadores do time.
Esse era o grande problema. Eu sentia e o conhecia
suficientemente bem para saber disso. Liam não me queria por
perto, especialmente no colégio e nos treinos.
— Porque...? — Sr. Jones replicou em um tom que o sugeria
que prosseguisse com o que quer fosse.
— É... Po-porque... — gaguejou levemente. — Porque é
isso... A gente não vai conseguir, mesmo com os treinos. Corre o
risco de levarmos o time a perder o campeonato com essa troca.
E... Eu não vou saber ser um bom zagueiro...
Essa poderia até ser parte da justificativa, mas eu tinha a
certeza de que outro lado gritava “não” porque não queria que
voltássemos a ficar próximos quando tínhamos acabado de romper
relações.
— Liam, eu já disse, confiem em mim — o técnico falou. —
Vai dar tudo certo. Nós faremos uma grande jogada de mestre.

❖❖❖
Jogada de mestre?
Que tipo de jogada de mestre faríamos naquele
importantíssimo jogo, atuando em posições nas quais não tínhamos
nenhum costume de estar? E tudo isso para confundir os jogadores
do time adversário. Com certeza esse seria o jogo mais arriscado
que iria participar, desde que havia começado a competir.
No entanto, além da inquietação que eu sentia por não saber
se daria “conta do recado”, ainda tinha o outro detalhe: me
aproximar do Liam novamente. Deus, seria muito difícil tê-lo tão
perto e tão longe ao mesmo. Já tinha sido difícil, naquele dia,
quando ele passou meio século fingindo que eu estava invisível
naquela sala.
Como eu iria resistir em tê-lo tão perto e não poder fazer
nada? O término ainda era muito recente para que eu pudesse
segurar facilmente os meus instintos.
Naquele dia, ainda tive um pouco de “sorte”, já que os treinos
para a tal jogada de mestre ainda não tinham efetivamente
começado. Depois da reunião, apenas nos exercitamos na
academia do colégio e treinamos coletivamente com o time. Liam
distante de mim o tempo todo. Mas, e quando tivéssemos que
treinar juntos? Como seria?
Preferia nem imaginar.
Liam me deu liberdade para seguir em frente e Stefany me
aconselhou a isso com todas as letras. Mas, como conseguir, depois
dessas ideias mirabolantes do Sr. Jones? Estava complicado.
Suspirei.
No fim das contas, depois que o treino acabou, tomei banho,
me arrumei e segui para o meu carro sob mensagens incessantes
do meu pai no celular: “onde está você, Eric?”, “Jimmy e Alex já
estão aqui, não os deixe esperando”, “você ainda está nessa perca
de tempo que é o time de futebol?”, “saia já desse treino e venha
logo para a construtora”.
Era uma merda.
Não tive escolha a não ser fazer a vontade do George e ir
ajudar Jimmy e Alex sabe-se lá com o que, para a maldita festa de
confraternização que aconteceria ainda naquela semana. Eu
realmente não tinha animação para alguma com aquilo e só fazia as
vontades daquele velho porque ainda morava debaixo do mesmo
teto que ele.
Naquele instante, tinha acabado de estacionar o carro e já
havia pulado para elevador, rumando para o tão conhecido último
andar do prédio, local onde ficavam as salas do Presidente, meu
pai, e Vice-presidente da empresa, Jimmy.
Não demorou muito para que eu chegasse até lá e, quando
entrei na sala, sem bater na porta, os três, George, Jimmy e Alex, já
estavam presentes, claro. Também não demorou muito para que os
primeiros comentários entediantes do meu pai começassem a surgir.
— Pensei que eu completaria cem anos de idade e você não
chegaria nessa empresa — foi a primeira coisa que meu pai falou.
Grande recepção. — Já estava naquela perca de tempo que você
chama de time de futebol, não era?
A raiva quis correr em minhas veias por ter que ouvir aquele
tipo de comentário sobre o meu time, mas respirei fundo e tentei me
segurar. Achava sacanagem eu ter que me dar ao trabalho de ir até
lá, fazer aqueles favores, que eu não gostava nem um pouco e que
ele sempre me pediu durante toda a minha existência, e ainda ter
que escutar essas besteiras.
Eu poderia lidar facilmente com os comentários idiotas das
pessoas do colégio, porque nenhum deles realmente me importava,
mas com meu pai era diferente, sabe? Tipo, ele era meu pai! Não
era para ser assim. Eu deveria receber algum tipo de apoio ou sei
lá, qualquer coisa que fosse. Mas, isso, eu não tinha, eram apenas
cobranças e ordens.
— Ah, George... — Jimmy interveio, passando uma das mãos
nas costas de meu pai. — Deixe o garoto... Ele já está aqui — sorriu
para mim e se aproximou. — Tudo bem com você, filho? Estava
com saudade. Faz tempo que não nos vemos.
— Oi, tio Jimmy — o abracei. — Tá tudo bem. É que... A vida
tá meio corrida, sabe? Eu também senti saudade — sorri de volta.
Sempre gostei dele. E até hoje não sabia como suportava trabalhar
com meu pai.
— E aí, cara... — Dessa vez, foi Alex que se aproximou,
erguendo uma das mãos. — Tá tudo bem, né? Não faz tanto tempo
que nos vimos... — sorriu também.
— Fala, Alex... — apertei sua mão em um cumprimento. —
Tudo tranquilo, cara — Mentira, minha vida estava uma verdadeira
loucura, mas isso não vinha ao caso. — É, a gente se viu naquele
dia que você foi lá em casa para ajudar o George num projeto.
— Pai... — George interrompeu.
Ele odiava o fato de eu nunca o chamar de pai, assim como
também nunca tinha se acostumado com esse meu jeito de tratá-lo.
Infelizmente, eu nada poderia fazer com relação a isso, porque,
sinceramente, não tinha a mínima vontade de chamá-lo de pai. E
isso já durava anos.
— É, pois é... — voltei, novamente, minha atenção para Alex,
como se não tivesse ouvido aquilo. — Mas, deu tudo certo com o
projeto? Lembro que você tinha ficado de fazer uma parte que era
para eu fazer... Falando nisso, obrigado de novo, cara.
— Ah sim, Eric, deu tudo certo sim... — respondeu. — Acabei
errando alguns cálculos, mas o Sr. Hastings... — volveu o rosto na
direção do meu pai. — Foi muito compreensivo e gentil comigo... —
deu um breve sorriso e voltou seu olhar para mim. — No fim das
contas, acabei fazendo um dos meus melhores trabalhos aqui.
Compreensivo...? Gentil...? Franzi o cenho levemente.
Isso sim era uma surpresa pra mim, porque jamais poderia
imaginar alguém usando esses adjetivos para se referir ao George.
Alex deveria estar querendo puxar o saco dele. Só podia ser isso.
— George, como sempre, aprazível... — Jimmy, novamente,
passou uma das mãos nas costas dele. — Alex tem sorte de estar
fazendo seu estágio da faculdade aqui. Milhares de alunos de
Administração se matariam por esse cargo.
— É verdade... — Alex sorriu gentilmente. — Sr. Hastings
tem sido como um segundo pai pra mim.
Uou!
Aprazível? Como sempre? Segundo pai?!
Eu tive que me segurar para não rir com essa cena!
Como assim “segundo pai”, se ele não fazia decentemente o
papel de pai nem para o filho verdadeiro? Ou Jimmy e Alex tinham
bebido alguma coisa que lhes afetou o cérebro, ou não estávamos
falando do mesmo George.
De todo modo, soltei uma pequena e discreta risadinha pelo
nariz, porque não consegui me conter totalmente, mas logo mudei
de assunto. Já estava perdendo muito tempo ali e não via a hora de
ir para casa.
— Mas, enfim, porque me chamou aqui mesmo? — voltei
minha atenção para George. Que eu não tivesse que fazer algum
trabalho que fosse demasiadamente chato, era tudo o que eu pedia.
Meu dia já tinha sido complicado demais.
— Jimmy e Alex estão preparando a apresentação dos
resultados da empresa que será repassada durante a cerimônia,
para os sócios e demais convidados. Quero que os ajude com isso
— replicou com seu típico tom seco. — Enquanto isso, vou a uma
reunião. Eles saberão como te orientar.
Quando finalizou, em menos de meio minuto, pegou sua
pasta, deu as costas e cruzou a porta da sala, indo embora,
provavelmente rumando para a tal reunião. Tudo tão rápido, que, se
eu quisesse contestar alguma coisa, não teria nem tempo de fazer.
Assim que sumiu das minhas vistas, desviei meu olhar e tudo
o que eu tinha ali era companhia de Jimmy, Alex e das milhares de
planilhas que eu teria de avaliar para ajudá-los na organização da
apresentação.

❖❖❖

Dez da noite foi a hora que eu cheguei em casa. Cansado,


morto. Fisicamente, mentalmente e psicologicamente. Fisicamente,
porque meu corpo ainda sentia o esforço que fiz no treino mais
cedo. Mentalmente, porque minha cabeça estava pesada com a
quantidade de números e cálculos que tive de enfrentar do período
da tarde até à noite na maldita construtora. E psicologicamente,
porque... Nada tirava ele da minha cabeça... Liam. Liam e suas
palavras na praça.
A saudade batia ainda mais forte no meu peito e parecia
aumentar a cada minuto que passava. Durante todo o restante do
dia, tentei focar minha atenção no que eu precisava fazer e, quem
sabe assim, talvez esquecesse um pouco do que tinha acontecido
entre nós. Mas isso era impossível, especialmente naquele instante:
em casa, deitado na cama do meu quarto, com a cabeça vazia. Meu
pensamento era um só: Liam.
Me acostumar com o término não estava sendo fácil, saber
que não podia mais beijá-lo ou abraçá-lo, mesmo que nas
escondidas, era pior ainda. Ah, que sentimento ruim! Me inquietei na
cama, rolando de um lado para o outro e esfregando as mãos no
rosto em pura agonia com aquilo. Eu me sentia impotente, porque
sabia que nada poderia fazer em relação a isso. Eu não podia
obrigá-lo a fazer algo que não quisesse. Eu precisava aceitar sua
decisão.
Droga.
Precisava conseguir uma forma de me acostumar com aquela
realidade. Stefany me disse para seguir em frente, tentar fazer
novas coisas, conhecer pessoas novas. Eu realmente não estava
com cabeça para isso, porque aquele moreno... Aquele moreno dos
olhos azuis ainda habitava todos os meus pensamentos. Mas, para
o meu próprio bem, ainda naquela noite, eu precisava me distrair
com qualquer coisa que fosse, ou não conseguiria nem dormir.
Certo. Mas, o que fazer?
Jogar vídeo game e tentar esquecer o mundo lá fora? Pensei
na possibilidade por alguns segundos e senti preguiça. Não, melhor
não. Estava cansado e tinha que ser algo que eu não precisasse
fazer esforço. Então, talvez assistir um filme? É... Talvez fosse uma
boa ideia, porque era algo que não gastaria meu restante de
energia.
Sendo assim, peguei o controle da minha Smart TV, que
estava no criado-mudo ao lado da minha cama, e abri na Netflix. Fui
passando os filmes e os seriados, um por um... Olhei os trailers, li as
sinopses... Cinco, dez, quinze minutos e eu não conseguia achar
nada que prendesse minha atenção. Suspirei em uma mistura de
desânimo e irritação.
Queria assistir a droga de um filme até que o sono finalmente
aparecesse e me fizesse desligar de tudo por, pelo menos, algumas
horas. Porém, a vida não estava colaborando. Passei a mão na
nuca, exasperado. Olhei de um lado para o outro, até que vi meu
celular jogado em um lado da cama. Suspirei. Ok, se não tinha nada
para fazer, eu ia ao menos olhar alguma coisa no celular. Abri no
Instagram, Twitter, passei cerca de cinco a dez minutos, mas nada
despertava meu interesse. Que noite mais chata. Por fim, abri no
Facebook. Rolei o feed para baixo, até que uma lembrança
repentinamente surgiu em minha cabeça.
Aquela garota...
A garota de mais cedo... Ana... Alana... Ah sim! Lana!
Lana, claro. Era Lana o nome dela.
Ela tinha me enviado uma solicitação de amizade (sabe-se lá
o porquê, já que mais cedo tinha dito não me conhecer), mas, até
aquela data, eu não tinha aceitado o pedido por não saber quem
era. Tinha ficado lá, em aberto.
Cliquei, então, nas minhas antigas notificações e, de fato, seu
pedido de amizade ainda estava lá. Como eu tinha a conhecido
mais cedo e estava sem nada para fazer, aceitei. O perfil que antes
exibia algumas fotos, agora mostrava muito mais!
Fui direto nessas fotos. Olhei cada uma lentamente. Tentei
identificar quem era sua possível família e seus amigos. A cada foto,
eu constatava algo que já estava cristalino como água em minha
cabeça: a garota era linda. Muito mais linda do que qualquer outra
que já tive oportunidade de ver ou conhecer.
Era tão doce, suave, delicada, feminina.
Porém, uma das fotos chamou minha atenção mais do que
todas as outras. Era de alguns meses atrás. Estava em um grupo
que, provavelmente, deveriam ser seus amigos e... Andava de
skate. Skate! Que foda!
Como assim ela sabia andar de skate?
Na foto, estavam ela e mais três amigos, dois caras e uma
garota. Eu jamais poderia imaginar que aquela menina toda
delicadinha de mais cedo gostava e sabia andar de skate. Se me
perguntassem qual poderia ser seu hobby, eu não pensaria em
outra coisa, se não bailarina, porque ela tinha muito jeito de
bailarina, especialmente pelo corpo, pela postura... Era magra,
longilínea, esguia, como a maioria das garotas que faziam ballet.
Mas, skate?
Surpreendente.
E, sem que eu percebesse, deixei escapar um sorriso meio
bobo.
Ela parecia ser interessante...
Eu estou aqui

Liam

Parecia que quanto mais rápido eu queria que o tempo passasse,


mais lento ele se tornava, especialmente naquela maldita aula de
física. Já estávamos a mais de uma hora ouvindo teorias e mais
teorias sobre eletrodinâmica. Uma merda. Tão chato que eu poderia
me imaginar saindo correndo, a qualquer momento, daquela sala,
feito um doido.
Para completar, um dia já havia se passado desde que tudo
aconteceu. E, por ser algo tão recente, a ferida ainda estava aberta.
A falta que eu sentia do Eric era mais forte do que qualquer outra
coisa. Ele estava sentado algumas cadeiras à frente, na minha
diagonal, mas, desde o dia anterior, eu fazia o maior esforço para
que não trocássemos olhares.
Não, eu não tinha prazer nisso. Não, eu não estava gostando
de esnobá-lo. Acontece que eu tinha certeza de que, se tivéssemos
um maior contato visual, eu não resistiria. Iria fraquejar e colocar a
perder minha decisão. Correria de volta para os seus braços,
mesmo sabendo que isso era a atitude mais burra e estúpida que eu
poderia tomar.
Não, eu não podia colocar tudo a perder.
Respirei fundo e, dando graças a Zeus por ele estar tão
entretido na aula, decidi desviar o olhar e tentar me satisfazer, por
pelo menos alguns míseros segundos, com aquela visão do paraíso.
Estava estupidamente lindo, como sempre. Inferno de vida. Por que
ele tinha que ser tão lindo e eu ser tão imbecil por achá-lo lindo?
Suspirei com certa discrição e continuei olhando mais um pouco.
Okay, era melhor parar ou ele perceberia. Tentei desviar o
olhar, no entanto, antes eu pudesse fazê-lo por completo, como se
adivinhasse que eu estava o secando (até demais), virou o rosto na
minha direção. Tremi na base e meu coração acelerou em batidas
mais fortes que as de uma escola de samba. Graças ao susto, por
ter sido pegue surpresa, fiquei estático por alguns segundos. Puta
merda. Assim que dei por mim, virei o rosto para a direção oposta.
Roguei pragas a mim mesmo. Que porra, eu estava sendo
fraco.
Força, Liam. Força.
Porém, enquanto eu me maldizia mentalmente e, ao mesmo
tempo, buscava por determinação para seguir em frente com a
minha decisão, notei que, com a virada de rosto para o meu lado
oposto, meu olhar recaiu sobre outra pessoa, Noah, que me
encarou de volta. Segurando uma caneta em uma das mãos,
enquanto fazia as anotações da aula, seus óculos redondos
pendiam sobre o nariz e seu semblante nada me dizia. Estava sério.
Se anteriormente Noah me olhava com certa vergonha ou inibição,
agora ele me encarava com coragem e até certa audácia.
Não era mais o mesmo. Não parecia em nada com aquele
garoto que tinha medo de mim. Estava mudado. Todos estavam
mudados, incluindo a mim. Santa Vodca do Céu, o que tinha
acontecido com o mundo? Tudo de cabeça para baixo!
Apesar do rosto de certa forma carregado, eu me lembrava
muito bem do momento em que me garantiu ter aceitado meu
pedido de desculpas. Eu estava seriamente tentando me confiar
nisso e nutria esperanças de que ele não estivesse mentindo para
mim. Queria me redimir com ele de todas as maneiras que fossem
possíveis. Queria ser alguém melhor, depois de anos agindo feito
um idiota com o garoto.
Assim, percebendo que seu olhar estava realmente fixado em
mim, não refreei a vontade de tentar ser agradável mais uma vez.
Sorri para ele. Mesmo um sorriso contido e pequeno, já que eu tinha
dúvidas e inseguranças sobre como seria a nossa relação dali para
frente, afinal não queria pressioná-lo para que aceitasse, de fato,
meu pedido de perdão, sorri com sinceridade.
Noah, por sua vez, me encarou sério por mais alguns
segundos, até que, de repente, seu semblante relaxou brevemente,
parecendo apresentar menos resistência, e... Sorriu de volta. Ele
sorriu para mim! Não era daquele sorriso que alcançava totalmente
os olhos. Na verdade, era um daqueles bem concisos e discretos,
mas, ainda assim, ele sorriu, e nada seria capaz de mudar esse
fato.
Meu peito se agitou com uma inexplicável mistura de alegria
e alívio. Aquela era a primeira vez, desde o dia da confusão em que
fomos parar na sala do diretor, que ele demonstrou estar
começando a se abrir mais pra mim. Eu não sabia o porquê, mas a
felicidade me tomou de maneira tal que alarguei ainda mais o
sorriso para ele. Comecei a imaginar o real motivo da minha
empolgação com aquele simples sorriso.
Um sorriso que talvez representasse o primeiro sinal de
amizade.
Talvez fosse porque eu estivesse começando a valorizar
pessoas com quem realmente se valia à pena nutrir uma amizade,
ou talvez porque essa foi a primeira vez que ele demonstrou ter
realmente ter me perdoado, ou talvez pelos dois, ou talvez por mais
alguma outra coisa... Eu não sabia explicar, mas me sentia
extremamente feliz. O peso da culpa começando a sair um pouco
das minhas costas.
Porém, enquanto sorríamos um para o outro, notei que
alguém me observava. Por puro instinto, desviei o olhar na direção
para onde meus sentidos apontavam e... Dei de cara com Lana. Eu
não consegui decifrar ao certo o que seu rosto transmitia, mas, no
exato segundo em que me deparei com ela, parecia me observar
com certa cautela ou até curiosidade. Dois milésimos depois,
desviou o olhar e focou sua atenção na aula.
Eu continuei a observando inconscientemente. Era esquisito
o quanto eu me perdia ao encará-la. Mesmo sem perceber, podia
passar horas olhando para aquele rosto, enquanto minha cabeça
viaja. Essa não foi a primeira vez, desde que apareceu no Colégio
Regent, em que eu me perdi em pensamentos ao observá-la. Perdia
a noção de tempo e espaço. Minha mente sinalizando coisas
estranhas...
Era como se eu encontrasse algo familiar nela, mesmo que
ainda não conseguisse descrever com exatidão o que era. Essa
familiaridade prendia toda a minha atenção e fazia com meus olhos
se cravassem involuntariamente nela. Era como naqueles filmes
quando o personagem está sob efeito de feitiço. Ela me
enfeitiçava...
Apertei meus olhos e franzi o cenho, fazendo um esforço
descomunal para que minha cabeça sinalizasse alguma lembrança
mais concreta sobre ela. Porém, infelizmente, tudo estava muito
turvo, embaçado. Eu não conseguia visualizar em que parte da
minha memória ela se encaixava, e isso só aumentava minha
curiosidade ainda mais. Afinal, a garota era novata e, teoricamente,
a única vez que eu tinha a visto foi no dia do shopping.
De repente, o sinal do colégio tocou, indicando o horário do
fim da primeira aula e o começo do intervalo. Pisquei os olhos
repetidas vezes, como se aquele barulho me acordasse de um
sonho ou quebrasse o feitiço sob o qual eu estava inebriado. Num
rompante de determinação, levantei-me da cadeira, assim que a vi
também se levantar e começar a caminhar para fora da sala.
Eu não aguentava mais carregar aquela curiosidade, aquela
sensação estranha de familiaridade. Esse já era seu segundo dia no
colégio e eu precisava tirar a história a limpo. A sensação de
familiaridade só crescia e martelava minha cabeça. Era muito,
muito, esquisito. Respirei fundo e, tentando desviar dos outros
alunos que estavam pelo meio do caminho, a segui.
Antes que pudesse cruzar a porta, numa atitude meio
impensada e até precipitada, a segurei pelo braço. A garota, então,
pegue de surpresa, virou-se, cravou sua atenção no braço que
estava seguro pela mão e subiu seu olhar lentamente para mim.
Encarou-me em uma mistura que eu nunca saberia descrever, mas
era algo como espanto e... Desconforto.
Mas por quê?
Baixou novamente seu olhar para o braço que estava preso
por minha mão e, de uma maneira comedida, puxou-o para que eu a
soltasse. Se não fosse muito estranho, eu poderia jurar ter visto um
traço de incômodo em seu semblante por eu ter a tocado. Talvez
fosse daquele tipo de pessoa que não gostava de muito contato.
Tentei não pensar muito sobre isso e apenas iniciei algum
diálogo. Ela não poderia achar tão estranho, poderia? Ora essa...
Ela era novata e pessoas educadas se apresentavam e davam
boas-vindas aos que estavam chegando, não davam? Ok, ok, o
Liam de antigamente nunca se daria a esse trabalho. Na verdade, o
Liam de antigamente não procurava falar com ninguém, porque
todos já falavam com ele, sem que ele precisasse fazer o menor
esforço.
— É-É... — gaguejei um pouco. Não sabia o porquê, mas me
senti um pouco inibido a falar com ela. — Você deve ser a Lana, não
é...? — fiz uma pequena pausa, esperando por alguma resposta,
mas ela nada disse, então eu continuei. — Prazer — ergui minha
mão, para cumprimentá-la. — Meu nome é Liam... Liam Tremblay.
Me analisou de cima abaixo e fixou seu olhar na minha mão
estendida, mas nada fez. Apenas ergueu o rosto em direção ao meu
e...
— Sim, eu sou a Lana — me deu um largo e generoso
sorriso. O problema era que ela que sorria só com a boca, mas não
com os olhos. Enquanto sua boca sorria, seu olhar era apático.
Parecia mais como um daqueles sorrisos por educação do que por
vontade real.
— Eu sei que pode ser estranho eu chegar assim do nada,
mas... — pigarreei levemente a garganta, tentando ser o menos
esquisito possível. — A gente não já se conhece de algum lugar? —
enruguei um pouco a testa.
Fixou seu olhar no meu, aquele olhar um tanto quanto
apático, e...
— Não... — sorriu novamente e, antes que eu pudesse falar
mais alguma coisa, deu as costas e foi embora, deixando-me
parado e com cara de tacho na porta da sala, enquanto os outros
alunos também saíam e, vez por outra, batiam com os ombros nos
meus.
Ótimo.
Como se já não bastasse estar sendo evitado por todas as
outras pessoas do colégio, a garota novata, n-o-v-a-t-a, também não
parecia curtir muito a minha companhia. Show, incrível, fantástico.
Eu estava indo de mal a pior. Será que já tinha ouvido os boatos e
era mais uma das pessoas preconceituosas?
Balancei o rosto em negativo e, com um breve suspiro de
conformação, voltei para minha cadeira, recolhi meu material,
coloquei a mochila nas costas e saí da sala. Ainda estava pensativo
sobre o que tinha acabado de acontecer. A garota inegavelmente
linda era estranha. Na verdade, tinha agido estranho.
Ok, ok, ela foi simpática e educada na medida do possível.
Não foi nada que eu pudesse dizer “nossa, que antipática”, mas foi
esquisito. Aquele sorriso por educação, aquele olhar diferente.
Enfim... Eu não sabia mais de nada. Talvez o melhor que eu
pudesse fazer, naquele momento, fosse parar de pensar nisso.
Talvez tudo fosse só coisa da minha cabeça. Se eu a
conhecesse realmente, era claro que eu iria me lembrar. Eu ainda
não estava tão esquecido assim. Meu cérebro ainda funcionava
muito bem.
Dei de ombros e segui para o pátio principal do colégio, onde
haviam algumas lanchonetes e mesas. Ainda em meio às
cochichadas que soltavam por onde quer que eu passasse,
caminhei até uma das lanchonetes e comprei uma Coca-Cola com
sanduíche. Quando me virei, ainda era observado por todos.
O “engraçado” era que cem por cento deles estava me
evitando, se eu chegasse perto. Porém, esse mesmo cem por cento
não fazia outra coisa, a não ser observar cada passo que eu dava e
falar sobre mim. Deviam me amar demais para que eu pudesse ser
sempre o assunto principal e o centro das atenções, não é? Filhos
da mãe.
Balancei a cabeça em negativo, já de saco cheio dessas
atitudes escrotas, e caminhei até uma parte do pátio, onde havia um
gramado com várias árvores. Era um lugar imenso e uma parte em
que os alunos aproveitavam a sombra para deitar, conversar,
lanchar, dormir, descansar, fazer qualquer coisa.
Comendo meu sanduíche, larguei minha mochila na grama e
me sentei na sombra de uma grande árvore. Olhei de um lado para
o outro. Havia dezenas de alunos, mas eu estava sozinho. Nenhum
deles queria minha companhia. Antigamente, esses idiotas faziam
de tudo para ter dez por cento da minha atenção. O mundo dava
voltas.
Ainda lembrava da conversa dos caras no banheiro, que eu
tinha ouvido no dia anterior, e isso me machucava. Pegava mal
andar com um “boiola”, não era? Poderiam pensar que tinham
virado boiola também, não era? No melhor estilo do ditado “diga-me
com quem tu andas e eu te direi quem tu és”. Ou... Vai que eu
pudesse dar em cima de algum deles, não era? Não dava para se
confiar em um boiola...
Seria cômico se não fosse trágico.
Por essas e outras, me evitavam.
Essa era a infeliz realidade daquele colégio. Esses eram os
pensamentos que tinham sobre mim.
Suspirei com verdadeiro desgosto. A comida descia com
dificuldade.
Olhei novamente, de um lado para o outro, em uma busca
fracassada de encontrar alguém conhecido que me quisesse por
perto. Porém... Molly não tinha ido ao colégio naquele dia; Stefany
eu não sabia por onde andava, já que, desde que eu tinha chegado
não nos cruzamos uma única vez e eu também estava com preguiça
de mandar mensagens ou algo do tipo; por fim, Robert e William...
Era melhor eu nem pensar neles ou me estressaria.
Sem dúvidas, eles eram duas das minhas maiores
decepções. Tantos anos de amizade para no final eu descobrir que
tudo não passava de falsidade; que no primeiro momento em que eu
mais precisaria deles, eles me dariam as costas. Eu sentia raiva. Ou
melhor, mágoa. Sim, eu sentia uma mágoa do tamanho do universo!
Como eles podiam...? Como foram capazes de ser tão baixos
assim? E se diziam meus amigos! Imagina se não fossem! Eu não
esperava que me aceitassem logo de cara, mas eu esperava que
me entendesse e...
De repente, e não mais que de repente, meu subconsciente
foi capaz de me dar uma porrada na cara com um mísero e pequeno
sussurro: “foi exatamente a mesma coisa que você com o Luke, três
anos atrás”.
Minhas estruturas balançaram de cima a baixo e o nó na
garganta, que eu sempre sentia quando minha memória me traía e
me fazia lembrar da última vez que o vi, se formou muito mais forte
e potente.
Merda.
Se antigamente eu fazia de tudo para não me culpar e me
iludir de que eu não tinha sido um filho da mãe tão grande com ele,
depois dos últimos acontecimentos da vida, eu não podia mais
enganar a mim mesmo. Sim, eu tinha sido um grande filho da mãe
com ele.
E foi preciso eu passar pela mesma situação, três anos
depois, para que eu pudesse reconhecer isso, quando, na verdade,
teria sido muito mais fácil, se eu tivesse sido uma pessoa menos
desagradável naquela época, se eu tivesse o aceitado do jeito que
ele era.
Até porque, ser gay iria mudar em que nossa relação de
amizade? Ele continuaria sendo o mesmo Luke de sempre. Ok, ok,
ele tinha se declarado para mim, tinha dito que gostava de mim
além da amizade. Eu me assustei, obviamente. Jamais esperaria
algo assim dele. Ora, o cara ficava com várias meninas! E, muitas
das vezes, na minha frente! Eu não tinha como desconfiar.
Porém, ele não iria me obrigar a entrar em algum
relacionamento além da amizade com ele, por causa disso, iria? Era
claro que não. Eu não nutria o mesmo sentimento por ele, eu não
tinha como corresponder. Mas, eu tinha a certeza de que ele
entenderia a minha incapacidade de corresponder e, assim,
seguiríamos com a amizade normalmente.
Só que, claro, eu tive que ser um grande monte de bosta
ambulante!
Falei um monte de merda, perdi a amizade e agora... Agora
eu nem sabia onde ele estava, com quem ele estava, como ele
estava... Se estava bem ou não, se ainda morava em alguma cidade
da Inglaterra, se ainda continuava sendo aquele mesmo Luke, se
ainda era aquele cara gente boa que eu conhecia.
E o pior, além disso tudo, era que eu não tinha como pedir
desculpas, porque, nem se eu rogasse a Zeus, Buda, Thor, Odin, eu
descobriria onde ele estava agora. Logo eu, Liam Wyman Tremblay
Terceiro, que não gostava de pedir desculpas, estava aprendendo o
poder que essa palavra possuía. Primeiro Eric, depois Noah e
agora... A vontade de ser perdoado por Luke. Para quantas mais
pessoas eu pediria desculpas? Realmente não sabia, mas isso
estava se tornando hábito na minha vida.
Luke, no entanto, me bloqueou de tudo, depois que foi
embora de Londres. Mudou o número do celular, me excluiu de
todas as redes sociais, se tornou só um fantasma do meu passado.
Seria muito, muito, difícil reencontrá-lo. Por mais que o peito se
apertasse com essa realidade, para a minha cabeça, a ideia de
reencontrá-lo era inconcebível. A Inglaterra era enorme. Isso se ele
ainda estivesse em alguma parte da Inglaterra.
Se eu, pelo menos, tivesse a oportunidade de revê-lo...
— Sozinho? — De repente, uma voz me tirou dos meus
devaneios.
Pisquei os olhos algumas vezes, tentando recobrar a
consciência para o presente, não para o passado, e ergui a cabeça.
O susto que tomei não estava escrito em um gibi. Era o Noah! O
Noah! O próprio, em carne, osso e óculos. Quase não acreditei
quando eu o vi de pé, ao meu lado, puxando conversa comigo.
Ainda precisei de alguns segundos encarando-o, para ter
certeza de que ele realmente estava ali. Afinal, jamais esperaria que
ele fosse se aproximar. Será que ele estava precisando de alguma
coisa?
— Si-sim, sozinho... — respondi meio incrédulo, meio em
dúvida, meio “aconteceu alguma coisa?”.
— Será que eu posso sentar aqui? — e apontou com o
queixo para um espaço vazio da grama que tinha ao meu lado. De
súbito, meus pensamentos levaram-me de volta ao dia em que o
pedi desculpas por tudo. Nós estávamos exatamente no mesmo
local, debaixo da sombra da mesma árvore, e ele usou a mesma
pergunta que eu, quando me aproximei.
A diferença era que, agora, eu estava no lugar dele e ele
estava no meu.
Incrédulo, baixei a cabeça e olhei para o espaço vazio ao
meu lado. Olhei de novo para ele, baixei a cabeça novamente para
a grama. Repeti o mesmo processo umas três vezes, totalmente
incrédulo, até que...
— Posso? — perguntou novamente.
Definitivamente, estávamos repetindo a mesma cena do dia
em que eu pedi desculpas, a diferença era que, naquele instante, os
papéis estavam trocados.
Dei um breve suspiro e balancei positivamente a cabeça,
estático, quase sem piscar os olhos. Parecia mentira, ou miragem,
ou sei lá. Noah estava se aproximando de mim, mesmo depois de
tudo o que eu fiz.
— Cla-claro — respondi, prontamente me afastando, para
que ele tivesse ainda mais espaço.
Sentou-se ao meu lado e, então, ficamos em um silêncio
meio desconfortável, um do lado do outro, por algum tempo que não
saberia mensurar ao certo. Percebi que os alunos do pátio nos
observavam descaradamente e cochichavam. Éramos o centro das
atenções.
Eu estava ainda estava surpreso, enquanto Noah parecia
pensar nas palavras que queria usar. No entanto, quando tomei
coragem para finalmente falar alguma coisa, e quebrar aquele
silêncio entre nós...
— É estranho te ver aqui sozinho — ele disse, tão somente.
Suspirei.
— Eu sei... — Claro. Quem poderia dizer que um dia o
grande Liam Wyman Tremblay Terceiro, o ícone do colégio, o cara
mais popular, o capitão do time de futebol, seria excluído por todos
do colégio? — Ainda tô me acostumando com isso. Nunca estive
nessa posição.
— Eu sempre estive — replicou, de súbito. — Sei como é. Sei
como se sente.
E eu nada consegui responder. Um sentimento ruim me
tomou de uma maneira sem igual. Era péssimo imaginar que, por
anos, Noah viveu o que eu estava passando por somente alguns
dias. Era pior ainda saber que eu tinha contribuído para que isso
acontecesse.
Sim. Eu contribuí quando pratiquei bullying contra ele. Eu
contribuí quando criei uma imagem dele que não existia, que só
existia na minha mentalidade preconceituosa e julgadora. Eu
contribuí quando influenciei pessoas a não se aproximarem dele,
graças aos meus comentários pejorativos. E eu contribuí quando o
via sozinho e nada fazia.
O que custava eu ter me aproximado? O que custava eu ter
ficado calado, em vez de falar um monte de merda com ele? Por
que eu tive que ser um grande lixo humano por tanto tempo?
Se arrependimento matasse...
— Mas... Você não tá realmente sozinho — continuou.
Não?
Franzi o cenho e, meu rosto que, até então, estava
direcionado para a frente, observando as pessoas passando de um
lado para o outro, virou em direção a ele com claro e evidente
espanto.
— Eu estou aqui — e também volveu seu rosto para mim.
Se eu ainda tinha coração, naquele exatíssimo segundo ele
parou de funcionar. Tudo dentro de mim pareceu saltar como fogos
de artifícios em um show pirotécnico. Encarei-o sem saber o que
falar, incrédulo. Tive a impressão de que todas as palavras tinham
fugido da minha boca, e tudo o que eu consegui expressar foi...
— Me perdoou mesmo?
Eu nem piscava.
— Perdoei — respondeu, comedido, mas decidido. — E eu
estou aqui, caso queira minha companhia, claro.
Caralho.
Caralho.
Caralho.
As letras do alfabeto só conseguiam formar uma palavra na
minha cabeça: caralho.
Era lógico, claro, óbvio e evidente que eu queria a companhia
dele! E isso não era porque eu estava me sentindo sozinho, ou
porque eu queria me aproveitar do momento só por estava sendo
excluído do restante das pessoas. Não, não era nada disso. Era
porque eu realmente queria ser amigo dele!
E, num rompante de euforia, sem pensar mais em nada ou no
que iriam falar de nós, fui ao seu encontro com um abraço de
esmagar todas as costelas. Nem imaginei o quanto ele poderia
achar estranho, apenas o abracei com todas as forças que eu tinha.
Meu sorriso só não era maior, porque já tinha chegado nos limites
do tamanho do meu rosto. Meus olhos quiseram estupidamente
marejar.
Ah, droga, já fazia um bom tempo que eu parecia uma
manteiga derretida para choro, e eu notava que isso, quanto mais
tempo passava, mais piorava. Só que eu não estava nem aí! Tudo o
que eu pensava era em retribuir aquilo de alguma forma e
extravasar aquela mistura de alegria, felicidade, alívio que ele me
fizera sentir. Finalmente, depois de tantos momentos, eu pude me
sentir bem novamente.
Noah, por sua vez, pegue de surpresa, travou, no ar, os
braços no exatíssimo segundo em que eu o envolvi. Percebi seu
corpo tencionar, porém, não demorou muito para se entregar e
retribuir o abraço. Meio sem jeito, meio sem saber onde colocar as
mãos, retribuiu, até que em pouco tempo o encaixe tornou-se
perfeito.
— Não se importa com o que estão falando sobre mim? —
soltando-o um pouco do abraço, perguntei um pouco inseguro,
ansioso, expectante. — Não se incomoda em acompanhar o
suposto novo boiola do Colégio Regent? Porque é isso o que se fala
pelos corredores.
O garoto, então, esboço um sorriso, seguido de uma pequena
risadinha, e balançou a cabeça em negativo.
— Eu não me importo — deu de ombros. — Dificilmente me
importo com a opinião dos outros. Minha cabeça pensa diferente da
maioria das pessoas.
Sorri de volta. Um sorriso genuíno. Um sorriso de alívio, de
alegria, de euforia, de felicidade. Um sorriso que expressava
sentimentos que, há muito tempo, eu não tinha a oportunidade de
sentir. Era como recuperar o fôlego, depois de tanto sufoco. Como
ver uma parte de um arco-íris, depois de uma grande tempestade.
— Obrigado, Noah — A verdade saltava dos meus lábios. Eu
estava realmente agradecido. — Não sei se mereço, mas muito
obrigado — conclui, fixando meu olhar no seu.
Se antes eu pensava que o mundo dava voltas, eu estava
enganado. O mundo não dava voltas, ele capotava! O garoto, que
eu tanto enxotei, estava erguendo a mão para mim, enquanto todos
os outros me davam as costas. O cara que, por vezes, acusei de
“boiola”, mesmo sem ter certeza se era ou não, estava querendo ser
meu amigo.
— Obrigado nada, me passa logo a grana, que estamos
conversados — falou em tom de piada, soltando uma risadinha e me
fazendo rir também. O sinal do colégio, indicando que o intervalo
havia acabado, soou no segundo seguinte. — Não tem o que
agradecer, mas, se quiser mesmo se redimir comigo, me
acompanha até a reunião que o diretor vai fazer agora com os
concludentes.
— Claro. É claro que eu acompanho — repliquei sem pensar
duas vezes. — E não vai ter aula? Vai ser essa reunião com o Sr.
Dawson mesmo?
— Foi o comunicado que a coordenação deu — falou. —
Você não recebeu?
Cocei levemente a cabeça. Minha cabeça estava tão louca
ultimamente, que, provavelmente, devia ter visto o comunicado e
esquecido.
— Acho que sim, mas ainda bem você me lembrou — sorri.
— Vamos lá!
Eu estava tão feliz por ter ganho a amizade do Noah, mesmo
sem merecer, que nem me importei com os típicos burburinhos que
ouvia enquanto caminhávamos. Me sentia farto, cansado daquilo
tudo, era verdade, mas ter uma companhia, um apoio, de alguém
que eu realmente me queria por perto, me tornava um pouquinho
mais forte.
A reunião com o diretor era em um dos auditórios do colégio
e o local já estava abarrotado de alunos. Sim, eram muitos
concludentes naquele ano. Mesmo em meio àquele formigueiro de
pessoas, Noah e eu conseguimos um lugar no meio, que era nem
tão longe do palco, nem tão perto. Um bom lugar.
— Você sabe sobre o que vai ser? — perguntei ao nos
sentarmos.
— Não sei direito, mas parece que é algo sobre a prova da
seleção das universidades.
Tremi na base. A expressão “prova de seleção das
universidades” me fazia suar frio, especialmente quando eu me
lembrava que só faltava uma semana. U-m-a s-e-m-a-n-a! Uma
bendita semana! Como se não bastasse tudo o que já estava
acontecendo na minha vida, eu ainda tinha que lidar com a ideia de
que, em uma semana, o futuro da minha vida teria de ser decidido.
Tudo bem que o resultado ainda demoraria mais algum tempo para
sair, mas, cara, era a seleção!
Que Odin me ajudasse.
Enquanto eu estava lá, fazendo preces silenciosas para todos
os deuses possíveis e impossíveis, erguendo santuários e
acendendo velas, o Sr. Dawson apareceu no palco e arrancou a
atenção de todos. Ao seu lado, alguns funcionários surgiram
carregando caixas que pareciam ter materiais de estudos dentro.
— Bom dia a todos! — começou. O auditório inteiro em
silêncio. — Espero que estejam bem. Tentarei ser rápido, pois não
quero tomar muito tempo de vocês. Bom, não é novidade para
ninguém que falta apenas uma semana para o processo seletivo
das universidades. Nosso colégio sempre prezou pela melhor
preparação dos alunos. Queremos que todos se saiam bem,
queremos que todos sejam aprovados. Por conta disso, a partir de
hoje nós começaremos um intensivo de uma semana. Ou seja, até a
data da seleção. Os funcionários... — virou brevemente o rosto para
o lado. — Estão trazendo o material de estudos para o intensivo.
Nós estaremos distribuindo esses materiais a todos e a minha dica é
que, agora, vocês se organizem entre si, para formarem duplas ou
grupos de estudos nessa reta final. Estudar com um colega ajudará
sobremaneira no intensivo, bem como na própria seleção. Assim
que vocês se dividirem, podem vir aqui na frente para pegar o
material.
Quando o Sr. Dawson finalizou o comunicado, uma agitação
sem igual tomou conta de cada parte do auditório. O silêncio, que
outrora reinava, deu lugar a um falatório estridente. Todos os que
estavam sentados ficaram de pé e começaram a caminhar de um
lado para o outro, formando as duplas e os grupos de estudos com
seus amigos.
Olhei de um lado para o outro. Ninguém se importava
comigo, ninguém parava ao meu lado, perguntando se eu queria
formar dupla ou grupo de estudos, ninguém me escolhia... A não
ser... A não ser uma pessoa... Volvi, meio sem jeito, meio
envergonhado, o rosto para lado, e lá estava o Noah, que me
acompanhava desde a hora em que saímos do pátio. Ele também
me encarava meio sem jeito, meio incerto.
Apesar de estarmos começando a nos entender, tudo ainda
era muito novo para nós. Afinal, nunca tivemos o costume de
estarmos tão próximos assim. Minha insegurança era pela dúvida de
não saber se ele queria um mala, como eu, sendo sua dupla. Já a
insegurança dele, eu não tinha certeza, mas parecia ser pela dúvida
de não saber se eu queria um “nerdzinho estranho”, como ele,
sendo minha dupla. Vale lembrar que “nerdzinho estranho” era a
maneira como eu o chamava antigamente, não naquele momento.
Não queria chamá-lo nunca mais dessa maneira.
Mesmo que ele tivesse dito que eu não estava sozinho, que
eu tinha a companhia dele, ainda estávamos nos acostumando com
tudo isso. E mesmo que eu tivesse demonstrado ficar muito feliz
com isso e até o abraçado, ainda estávamos sim nos acostumando
com esse novo passo. Era tudo muito novo. Não tínhamos muita
intimidade um com outro. Na verdade, não tínhamos nenhuma
intimidade um com o outro. Porém, meio encabulado, tomei
coragem para perguntar.
— É-É... — pigarreei a garganta, olhando-o meio nervoso.
Notei que ele estava tão envergonhado quanto eu. — Então, Noah...
Você quer... Você quer ser minha dupla?
Meio tímido me encarou e...
— Que-quero... — respondeu com um sorrisinho acanhado.
— Se não for incômodo pra você, claro...
Incômodo?
— Mas é lógico que não é incômodo algum! Eu vou curtir pra
caramba fazer dupla contigo — repliquei com toda sinceridade. Será
que, com isso, nascia de verdade uma amizade entre nós?
O sorriso de Noah que, há dois segundos, era acanhado, deu
lugar a um sorriso cheio de segurança e alegria. Nós dois tínhamos
ficado inseguros e envergonhados, porque não era algo do nosso
costume, mas nós dois queríamos igualmente a companhia um do
outro.
— Ótimo! — balançou a cabeça com satisfação e ajeitou os
óculos de um jeito ainda meio atrapalhado. Ele era cheio de trejeitos
engraçadinhos. — Então, vamos lá pegar o material?
Sorrindo, dei dois tapinhas em suas costas como forma de
resposta e me levantei. Noah me acompanhou. Caminhamos até a
parte da frente do auditório, próximo ao palco, onde os funcionários
estavam entregando os materiais. A fila estava meio grande, mas
não demorou muito até que chegasse nossa vez.
Quando um dos funcionários se preparou para nos entregar a
apostila, Sr. Dawson se aproximou.
— Então, vocês dois vão formar uma dupla de estudos? —
perguntou com um verdadeiro semblante de quem estava
sondando.
Noah e eu nos entreolhamos com sorriso de cumplicidade e
balançamos um sim com a cabeça.
— Sim, Sr. Dawson, nós dois — falei.
Notei um breve suspiro de satisfação por parte do diretor.
— Bom. Muito bom — Seu olhar não escondia a aprovação
por ver que estávamos nos entendendo depois de tudo o que tinha
acontecido. — Desejo excelentes estudos aos dois, então.
Agradecemos ao diretor e logo nos afastamos da fila para
que outros alunos pudessem pegar o material. Começamos, então,
a folhear a apostila e trocar ideias sobre como poderíamos estudar,
até que, displicentemente, mirei meu olhar em algum ponto do outro
lado do auditório.
Inevitavelmente, franzi o cenho e me desliguei do restante do
mundo ao ver a cena.
Era a Lana...
Caminhou alguns breves passos e... Tocou no ombro do
Eric...? O loiro virou e sorriu com gentileza para ela...?
Calma.
Eles se conheciam? Mas, ela não tinha acabado de chegar
no colégio? Não era novata? O que ela queria com o Eric ali?
Naquele exato momento?
Eu não conseguia compreender em que parte do tempo e do
espaço eles tinham se conhecido. Minha cabeça, no entanto, saltou
em uma curiosidade ainda maior que qualquer outra quando os vi
caminhar, juntos, até a parte da frente do auditório, para pegar o
material de estudos.
Juntos.
Eles...
Eles... Iriam formar uma dupla?
A dupla

Eric

— Então, eu posso mesmo fazer dupla com você? — perguntou,


enquanto caminhávamos juntos em direção a parte da frente do
auditório, para pegar o material de estudos. Seu sorrisinho singelo e
doce não saía do rosto. Era quase como um anjo, ou uma princesa,
ou os dois. Uma princesa-anjo. Se é que isso existia. Mas, se não
existisse, ela tinha acabado de inventar, certamente.
— Claro — respondi de prontidão, sorrindo também. Afinal,
por que ela não poderia ser minha dupla? Não haviam motivos. Eu
também não via problema. Nem por Stefany, que também era
concludente. Eu conhecia muito bem minha irmã e sabia que
opções de duplas ou de grupos não faltariam para ela.
Percebi um suspiro de alívio.
— Ah, que ótimo! — realmente parecia aliviada. — É que,
sabe, eu acabei de chegar... Tipo, cheguei ontem! E ainda não
conheço ninguém — deu uma risadinha meio desconcertada. —
Quer dizer, só conheço você, porque a gente se esbarrou no
corredor e tal... Aí, vim aqui te perturbar.
Perturbar?
Balancei a cabeça, rindo levemente da sua infundada
preocupação.
No momento em que ela tocou no meu ombro, chamando
minha atenção, eu estava pensando em ir atrás da Stefany, para
que pudéssemos formar a dupla. Mas, agora, com a Lana ali, não
via porque não aceitar. Não que eu estivesse simplesmente
descartando minha irmãzinha. Claro que não. Mas, eu sabia que
Stefany, extrovertida e popular do jeito que era, tinha muitas opções,
enquanto Lana era novata e parecia bem deslocada. A garota ainda
não estava enturmada com ninguém.
— Relaxa... — sorri com tranquilidade, ao mesmo tempo que
tentava passar o máximo de confiança a ela. — Você não está
perturbando. Sério mesmo. Inclusive, se precisar de mim, para
qualquer coisa, é só falar. Você está chegando agora e ainda não
deve saber muito bem como são as coisas por aqui. Posso te
ajudar.
— Pode? — arqueou um pouco as sobrancelhas e mordeu
brevemente o lábio inferior. — Isso seria ótimo...
Inconscientemente, fixei meu olhar em sua boca. Quando
liberou o lábio inferior, percebi certa proeminência. Era cheio,
vermelhinho e muito bem desenhado. Parecia macio. Viajei por
alguns segundos, em meio a pensamentos um tanto confusos. Eu
nem sabia por que diabos estava pensando naquilo ou fazendo
esses tipos de considerações mentalmente.
Que coisa mais sem lógica.
Pisquei os olhos, tentando voltar para a realidade.
— É, cla-claro... — pigarreei a garganta, ainda tentando
retornar ao meu estado normal. — Então, vamos pegar a apostila?
— sugeri, apontando com a cabeça em direção ao palco do
auditório. Uma estratégia para me fazer parar, de uma vez por
todas, com os pensamentos inadequados.
Balançou um sim com cabeça, ainda sorrindo gentilmente, e
passou por mim, caminhando em direção ao local onde estavam
distribuindo o material. Em nenhum momento tirava do seu rosto
aquele semblante ameno, simpático e doce. Apesar de que, em
determinados momentos, como em questão de segundos, eu
poderia jurar ver traços de ousadia em seu olhar.
Lana pegou sua apostila e eu também. No entanto, quando
me virei para que pudéssemos voltar ao local onde estávamos, meu
olhar cruzou com o de alguém. Ninguém mais, ninguém menos, que
Liam. Ele estava nos observando. E, se até então eu o percebia
tentar não me olhar ou virar o rosto, ali ele não fez esforço algum
para desviar.
Encarou fixamente, como se estivesse com uma mistura de
curiosidade e estranhamento. Ou até... Ciúme...? Ah não. Não, não,
não. Liam com ciúme de mim? Claro que não. Jamais. Não tinha
sido ele quem me disse para seguir em frente? Não tinha sido ele
quem falou que não era o suficiente pra mim e que eu merecia
alguém melhor?
Ciúmes com certeza não era algo presente no seu atual
vocabulário.
Eu não podia me iludir.
Liam devia estar só... Sei lá... Achando estranho eu estar
acompanhando a novata. Até porque eles não deviam se conhecer.
Talvez ele ainda nem tivesse a visto no colégio e, por isso, olhava-
nos fixamente. Ou seja, por mais que esse tipo de pensamento me
machucasse, ele não estava realmente se importando comigo.
Inclusive...
Como assim?
Franzi o cenho ao ver o Noah tocando em seu ombro e
fazendo-o desviar a atenção de nós. Falou algo para ele, próximo ao
seu ouvido. Calma. O Noah estava falando próximo ao Liam?
Pisquei os olhos algumas vezes, tentando digerir aquilo e acreditar
na cena que eu estava vendo.
Então, eles estavam próximos assim?
Mas, como?
Lembrava que Liam estava arrependido do tinha feito com o
garoto durante anos, especialmente pelo último episódio que os
levou à sala do diretor. Lembrava também que ele tinha me dito que
pediria desculpas, tão logo voltasse ao colégio. Ele tinha pedido
desculpas, então? E eles já estavam próximos assim?
Bom, por um lado isso era inegavelmente bom. O garoto
merecia um decente pedido de desculpas por tudo. E era bom saber
que Liam estava amadurecendo ao ponto de reconhecer seus erros
e procurar consertar as coisas. Além do mais, também era bom
saber que ele não estava totalmente sozinho no colégio. Porém...
Eu ainda lembrava dos olhares que Noah sempre direcionava a ele.
Olhares sempre tão interessados.
Ok, Liam tinha me dito que o garoto afirmou com todas as
letras ser hétero, mas...
Suspirei com uma nascente exasperação por estar pensando
nisso tudo, quando, na verdade, o que eu mais deveria fazer era
deixar toda essa história pra lá, tirar da minha vida tudo relacionado
ao Liam, e enterrar qualquer coisa que ainda me ligasse a ele. Foi
ele quem quis assim. Foi ele quem quis terminar. Só bloqueando
qualquer ligação que me levasse a ele, eu poderia seguir em frente
de verdade.
Ou seja, eu não tinha que estar me preocupando em nada
com o fato de Liam e Noah estarem tão próximos assim. Isso não
tinha nada ver comigo. Eu não tinha nada a ver com eles. Era
melhor parar antes que eu começasse a me importar realmente. Se
fossem só amigos ou qualquer outra coisa... Isso não tinha mais
nada a ver comigo.
Estava decidido.
E, então, quando pensei em virar meu rosto, para voltar a
falar com Lana, ela se antecipou.
— Eric? — chamou-me com certa cautela.
Assim que desviei minha atenção para ela, notei seu cenho
levemente franzido. Parecia estar achando estranho eu ter parado,
de repente, daquele jeito, para ficar observando Liam e Noah.
— Tá tudo bem? — perguntou, tocando em meu ombro. Seu
semblante com reais traços de preocupações. Não preocupações
fortes, mas de forma que dava para perceber um cuidado em seu
olhar.
— Ah... Claro, claro... — soltei um ar, dando uma leve
risadinha e balançando a cabeça. — Eu só... — e não continuei.
Preferi deixar para lá. Não tinha cabimento ficar explicando sobre
minha vida para alguém que eu tinha acabado de conhecer. Apenas
parei e sorri. — Vamos sair daqui?
— Vamos... — Um breve sorrisinho quis surgir, apesar de
ainda parecer meio preocupada com o jeito que eu fiquei. — Mas....
Quem é aquele garoto que estava olhando pra gente?
Só o cara por quem eu sou loucamente apaixonado. Nada
demais.
— Lembra de quando nos esbarramos e, no meio da
conversa, você perguntou se eu era o capitão do time de futebol, daí
eu disse que não e que era o Liam?
Ela balançou um sim com a cabeça, me observando com
bastante atenção.
— Pois é... — continuei. — Ele é o Liam. Capitão do time de
futebol. Time que eu também jogo.
— Ah... — suspirou. — Daquele tipo que se sente o rei do
colégio, idolatrado pelas garotas, adorado por todos, mas verdadeiro
com nenhum,,,? — Por um segundo, podia jurar que a entonação da
sua voz era muito mais de afirmação do que de interrogação.
— Não exatamente — respondi, meio incerto. Ok, ele já tinha
sido assim um dia, mas não mais. — Quero dizer, ele já foi um dia
assim. Mas, agora, não é mais. As coisas estão diferentes — e, por
um instante, me perguntei em silêncio porque raios estávamos
mesmo conversando sobre esse assunto.
Lana arqueou levemente as sobrancelhas. Parecia tentar
esconder o espanto, apesar de não ter sido muito bem sucedida na
tentativa. Por que estava tão surpresa? Tudo bem que, apesar dos
pesares, mesmo tendo mudado, depois de tudo o que tinha
acontecido, Liam ainda carregava consigo aquele típico estereótipo
de bad boy, porque, querendo ou não, estava grudado no jeito dele,
no corpo dele, no rosto dele, nas roupas, nos trejeitos dele (algo que
sempre foi dele e que nunca iria mudar - era o seu natural). Porém,
era tanto assim ao ponto dela se assustar?
Bom, o título de capitão de time de futebol talvez pudesse
causar um pré-julgamento nela... Talvez fosse isso... Afinal, era
costume os capitães de times de futebol carregarem essa fama.
— Impressionante... — falou quase em um sussurro.
E eu continuei sem entender. Lembrava que ela tinha me dito
não o conhecer, ao mesmo tempo que parecia... Ah, era melhor
deixar isso pra lá! Eu já estava novamente voltando todos os meus
pensamentos para o Liam, e eu precisava para com isso. Nunca
superaria, se não parasse.
— Então... — preferi não estender mais o assunto sobre ele.
Era melhor parar, para o bem-estar da minha sanidade mental. —
Não quer ir lá pra fora? — reiterei a proposta que tinha feito minutos
atrás.
Lana sorriu.
— Ah sim, claro. Vamos!
❖❖❖

Depois da reunião no auditório com o diretor Dawson, troquei


uma ideia durante alguns minutos com a Lana e fui direto para o
treino. Quando cheguei ao campo, o time inteiro já estava lá. Com a
“prensa” que o treinador Jones deu nos caras do time, eles pararam,
pelo menos momentaneamente, de fazer qualquer comentário
indecente ou agir de maneira inconveniente comigo e com o Liam.
Estavam comportados... Ou sabiam atuar muito bem.
Apesar disso, o treino tinha sido péssimo! Tanto em relação
ao futebol, quanto em relação ao clima entre ele e eu. Graças a
“brilhante” ideia do técnico de nos fazer trocar de posições em uma
jogada ensaiada, para enganar os jogadores do time do Colégio
Manchester no dia da final, eu tive que passar o treino inteiro
interagindo com o Liam, mesmo ele tendo olhado na minha cara
uma ou duas vezes durante todo o tempo.
E não, não era fácil. Nem um pouco.
Tê-lo próximo a mim foi o suficiente para me desconcentrar
totalmente! Deus, como eu iria conseguir acertar essa jogada no dia
da final?! Eu não conseguia jogar bem, com o Liam perto de mim,
naquelas circunstâncias. Quanto mais perto ele ficava de mim, mais
vontade de agarrá-lo e beijá-lo eu tinha, tamanha saudade. E não se
engane, ele estava errando tanto os passes quanto eu. Logo ele!
Liam! Errando passes?!
Ok. A ideia do Sr. Jones de nos colocar na mesma jogada
ensaiada tinha, definitivamente, sido péssima!
Virava o rosto, desviava o olhar quando percebia que eu
estava o observando, se afastava quando eu chegava perto, e tudo
isso o fazia errar ainda mais. Estava me evitando. Mas, como eu
conseguiria fazer aquela jogada sem me aproximar? Isso doía,
porque eu ainda sentia saudade. Isso não ia dar certo, porque eu
quase não conseguia chegar perto. Preferia nem imaginar como
seria no dia da grande final, porque as chances de ser um desastre
eram enormes!
Minha cabeça ainda estava cheia por causa do treino. Ter o
Liam tão próximo a mim, durante todo aquele tempo, e não poder
fazer coisa alguma, foi torturante. Parecia que, sempre que algum
de nós tomava a decisão de se afastar um do outro, a vida
encontrava uma maneira de tentar nos aproximar de novo.
Assim, ficava difícil superar o término, porque até mesmo o
cheiro do seu perfume, dentro do vestiário ou circulando pelo campo
de futebol, me atraía. Era algo quase magnético, automático.
Impossível não querer puxá-lo ali mesmo, no meio de todos, e
arrancar um beijo daquela boca gostosa que sempre me fazia
perder o juízo.
Porém, esse desejo era utópico demais. Ele não queria mais
nada comigo.
Suspirei em desânimo.
Agora, depois de passar o dia no colégio, dividindo meu
tempo entre aulas e treinos, eu estava chegando em casa. Era por
volta das oito da noite. Estacionei meu Porsche e, assim que saí do
carro, já era possível sentir o cheiro de comida vindo da sala de
jantar. Franzi o cenho com isso.
Ue, naquele dia jantaríamos todos juntos?
Geralmente, isso acontecia quando meu pai estava em casa,
porque, nos outros dias, por mais que Stefany e eu gostássemos de
jantar com a nossa mãe, a gente sempre fazia só um lanche
mesmo. Quando a dona Cynthia pedia para a empregada caprichar
no jantar, era porque o George estaria lá. E hoje parecia um desses
dias.
Droga.
Eu não fazia a menor questão de jantar com pai, até porque
eu sabia que surgiriam assuntos que não queria ouvir, nem falar.
Como sempre, claro. Era um tédio. Revirei os olhos somente com o
pensamento e caminhei a contragosto até a porta de entrada.
Quando entrei, dito e feito: eu já podia ouvir as conversas
vindo da sala de jantar. E não demorou muito até que eu ouvisse,
mesmo um pouco de longe, a voz da minha mãe dando a notícia
que eu tinha acabado de chegar.
— Ah, o Eric chegou! — Eu conseguia ouvir a animação na
sua voz. Era incrível o quanto gostava dos dias em que estávamos
todos juntos para jantar em casa. Talvez fosse porque esses dias
eram raridade, já que meu pai mal parava em casa.
Em pouco tempo, apareceu na entrada da sala de jantar,
escorando-se levemente à parede. Um sorriso de orelha a orelha.
Me permiti sorrir também. Por mais que não fosse fã da presença do
meu pai, era muito bom vê-la feliz assim. Seria capaz de aturá-lo por
alguns minutos só pra ver o sorrisinho no rosto dela por mais tempo.
— Querido, estávamos só esperando você chegar. Seu pai
vai jantar em casa hoje!
Que merda.
— Que ótimo, mãe! — tentei continuar sorrindo.
Eu não estava errado mesmo. O cheiro de comida, as
conversas, e, claro, seu carro estacionado, já me confirmavam que
ele estava lá. Desde a minha infância, ele passou tanto tempo longe
de casa, que eu me acostumei com sua ausência ao ponto de não
apreciar em nada sua presença.
— Venha, querido! — ela gesticulou com mãos, para que eu
me aproximasse. — Deixe sua mochila aí no sofá.
Mesmo sem a menor vontade, fiz o que ela pediu. Larguei a
mochila por ali e fui para a sala de jantar. Quando entrei, pude ver a
toda a família reunida. Meu pai, minha mãe e minha irmã. A
empregada já estava começando a servi-los.
Sentei ao lado da Stefany e de frente para minha mãe. Ao
seu lado estava meu pai.
— Então, querido, como foi no colégio hoje? — mamãe
perguntou toda entusiasmada, enquanto tomava um gole do seu
vinho branco.
— Hum... Deve ter sido bem animado né, maninho? —
Stefany disse com uma voz faceira, enquanto sorria com o cantinho
da boca e me cutucava na costela. — Te vi todo enturmado com a
novata gatinha...
— Novata gati... — mamãe ainda tentou falar, provavelmente
queria entender o que era aquilo de “novata gatinha”, quem era,
quantos anos tinha, de onde vinha, em que local morava, onde vivia,
o que comia, entre outros...
Porém, a interrompi bem no meio, antes que fizesse mais
perguntas.
Revirei os olhos levemente. Stefany era tão inconveniente às
vezes.
— Não é ninguém mãe... — repliquei rapidamente. — É só
uma menina que chegou agora no colégio. Ela não conhece
ninguém. Pediu pra ser minha dupla no intensivo para o processo
seletivo da universidade. Só isso.
— Dupla? — mamãe arqueou as sobrancelhas um pouco,
sorrindo. — Que maravilha, querido. Fico orgulhosa de te ver
ajudando essa moça que acabou de chegar, mas... O Liam não era
sua dupla? As aulas que a Claire pediu...? — deixou no ar.
Ah não... Que vacilo!
Como eu não pude me tocar que ela perguntaria sobre isso?!
— Ah, mãe... — pigareei a garganta, meio nervoso. Mamãe
não ia gostar nem um pouco de saber que eu não estava mais
dando aulas para o seu afilhado. Ela e a mãe do Liam eram carne e
unha! — Estão acontecendo... Tudo na mais perfeita ordem —
menti.
— Eric está perdendo tempo com esse garoto... — George
resmungou por ali, balançando a cabeça em negativo. — Liam não
quer nada, nunca quis. É um atraso de vida para o Eric. Enquanto
nosso filho está dando aula para esse moleque, ele podia estar
estudando para passar em engenharia civil.
Eu estava tão farto com esse tipo de discurso, que foi preciso
apenas dois segundos para que todo o meu sangue subisse para a
cabeça.
Respira, Eric, respira. Ou você vai acabar fazendo uma
besteira.
— Está enganado, George — falei de maneira incisiva. —
Liam é muito esforçado. Não tem o direito de falar assim do que não
conhece. Ele está mudando. Melhorou as notas e agora está
estudando.
— É verdade, pai! — Stefany também interviu na situação. —
Eu sei que o Liam não tem um bom histórico, mas ela está se dando
muito bem nos estudos ultimamente. E tudo por causa do Ericzinho!
— virou o rosto para mim, sorrindo e apertando minha bochecha.
— Por favor... — papai caçoou. — Aquele ali só tem jeito se
nascer de novo...
Basta!
Estava tão cheio do meu pai que qualquer coisa que ele
dissesse era como uma faísca no palheiro. Eu poderia incendiar!
Falar daquele jeito do Liam era como se estivesse falando mal de
mim mesmo. Eu ainda o amava, assim como também não gostava
de injustiças. Especialmente, as que eram vindas do meu pai.
Era injusto pensar aquilo, porque Liam não era mais daquele
jeito.
E ele sempre foi injusto com o Liam.
Minha garganta ainda coçou para que eu batesse boca, mas
um pequeno, minúsculo e quase imperceptível rastro de
racionalidade passou pela minha cabeça, e me fez engolir qualquer
vontade de fazer alguma besteira.
Passei o guardanapo na boca, joguei em cima da mesa de
qualquer jeito e me levantei.
— Com licença — falei ríspido ao me virar, seguindo em
silêncio para o meu quarto.

❖❖❖

Assim que cheguei no meu quarto, fechei a porta e me atirei


na cama. Suspirei, passando as mãos no rosto. Lá era quase meu
refúgio, o local para onde eu poderia fugir das conversas do meu
pai. Se ele queria que eu cursasse a tal Engenharia Civil na
Universidade de Londres (só para ele continuar infernizando minha
vida de perto, obviamente), eu faria de tudo para passar numa
universidade de Marte, se fosse preciso.
Quanto mais longe dele, melhor.
Infelizmente, eu e meu pai nos tornamos duas pessoas com
ideias completamente distintas. Ele pensava de um jeito e eu de
outro. Tínhamos opiniões diferentes, gostos diferentes,
pensamentos diferentes. Eu tinha chegado ao ponto de não
concordar com mais nada que ele dizia, nem se abrisse a boca para
falar que dois mais dois eram quatro.
Não queria que fosse assim, mas a vida quis assim.
Na verdade, ele fez com que fosse assim.
Deitado na cama, tirei meus tênis e joguei em uma parte
qualquer do quarto. O mesmo fiz com minha camisa, nem vi onde
ela caiu. Olhei para o teto e continuei pensando em tudo. Passei um
tempo só aproveitando o silêncio, que, naquelas circunstâncias, era
meu melhor amigo. Ouvir nada era muito melhor do que ouvir a voz
do meu pai falando besteira.
Não sabia quanto tempo eu tinha passado ali, só divagando
em pensamentos, mas, de repente, senti meu celular vibrar no bolso
da calça.
Quando tirei, o nome “Lana” apareceu na tela.
Arqueei um pouquinho as sobrancelhas. Nós havíamos
trocados os números de telefone mais cedo, para facilitar a
comunicação sobre os estudos e esse tipo de coisa. Mas, eu não
esperava que ela fosse mandar alguma mensagem ainda naquele
dia.
“Hey, Eric, boa noite! Desculpa o horário... Tudo bem com você?”
Era o que ela tinha me enviado pelo Whatsapp.
“E aí, Lana, boa noite! Tem problema não... Tudo tranquilo. E
contigo?”
Não, não estava nada tranquilo na minha vida, mas era
aquela coisa, né? Quando as pessoas faziam esse tipo de pergunta,
a gente nunca foi acostumado a dizer como estava se sentindo
mesmo, né? Pura formalidade.
“Está tudo bem comigo. Então... Eu estava aqui pensando e
queria saber quando você gostaria de começar a estudar, pegar
aquela apostila para resolver e tal...”
Hum. A gente tinha que começar a estudar e resolver aquela
apostila mesmo. A seleção para as universidades já seria na
semana seguinte. Estava muito perto! Um frio na barriga quis
aparecer. Afinal, era o meu futuro que estava em jogo ali. O meu
futuro e a oportunidade de me ver livre do meu pai de uma vez por
todas. Eu estava em busca da minha independência.
“Pode ser amanhã. O que você acha?”
Sugeri para logo, porque todo minuto, até a outra semana,
seria valioso.
“Por mim tá ótimo! Você tem ideia de onde podemos estudar?”
Cocei o queixo, pensando. Ah sei lá... No colégio? Biblioteca?
Minha casa? Não, melhor não. Talvez não fosse uma boa ideia
chamar uma garota que eu mal conhecia para estudar no meu
quarto. Talvez ela pudesse entender de outra maneira e pegasse
mal.
“Ah, não sei... Pode ficar à vontade pra escolher o lugar. Pra mim
tanto faz, qualquer canto serve.”
Enviei. Poucos instantes depois, ela respondeu.
“Lá no shopping Redmall tem uma livraria com umas salas de
estudos ótimas. Eu gosto muito de estudar lá e é mais tranquilo do
que no colégio. Topa?”
Ah, verdade. Eu lembrava mesmo que na Livraria Culture
tinham umas salas de estudos bem bacanas e reservadas. Nunca
tinha estudado lá, mas sabia da fama.
“Por mim, tudo certo. Pode ser lá sim.”
Pouco tempo depois ela respondeu.
“Então, combinado. Amanhã na Livraria Culture às 9 horas. Boa
noite, Eric!”
Chequei o horário. Eram onze horas da noite. Hora de dormir,
ou não me acordaria cedo para ir.
“Fechado, Lana. Boa noite. Até amanhã!”
Me aceito como sou

Liam

Os dias estavam passando cada vez mais rápido. A seleção das


universidades já era na semana seguinte, e caralho! Meus pais não
paravam de falar nisso. Na verdade, mamãe era mais tranquila, mas
o meu pai... Só Buda na causa! Minha paciência já estava bem
curtinha pra isso. Logo eu, que nunca fui a calma em pessoa.
Não aguentava mais aquele último ano de colegial. Tinha
sido pior do que eu esperava. Minha vida virou de cabeça para
baixo em tudo! A única vantagem era que as minhas notas tinham
melhorado, graças a ajuda do Eric... Eric, Eric... O anjo e o demônio
de toda a minha existência! Era melhor eu nem começar pensar
nele, ou eu me sentiria pior.
Estava me condicionando a direcionar meus pensamentos
para outras coisas que não fossem ele, ou jamais o superaria. Era
por isso que, na manhã daquele dia, depois de abrir os olhos,
levantei da cama rapidamente e desci para o café da manhã. Tive a
impressão, nos dias anteriores, de que quanto mais tempo eu
passava na cama, depois de acordar, mais eu pensava nele. E não,
isso não estava nada legal.
Por outro lado, sair mais cedo do quarto e sentar à mesa pela
manhã com meus pais também tinha suas desvantagens. Como eu
disse, papai não parava de falar da seleção das universidades, e
isso me deixava cada vez mais nervoso! Mamãe, por sua vez,
sempre perguntava pelo Eric e eu realmente não entendia que porra
era aquela. Ok, ok, tudo bem que ele era seu afilhado, mas ela
nunca foi de perguntar tanto assim dele, especialmente para mim, já
que, até então, para os meus pais, teoricamente, ainda éramos
como cão e gato.
— E, então, querido, como você está? — mamãe perguntou
ao tomar um gole do seu suco de laranja. — Molly quase não
dormiu essa noite, finalizando uns trabalhos, e olha que ela ainda
está no penúltimo ano do colegial. Parece que esse fim de semestre
está puxado para vocês.
Devia ser por isso que nem no café da manhã apareceu.
Provavelmente, ainda estava dormindo depois de virar a noite. A
sorte dela era que estávamos no começo do fim de semana,
sábado, ou ela iria para o colégio com duas belas olheiras no rosto.
— Liam, Liam... Toma cuidado pra não vacilar viu? — papai,
em tom de advertência, disse antes que pudesse responder
qualquer coisa. — As provas para as universidades já são nessa
semana! O que você fez durante o ano todo?
Eu odiava quando o papai falava assim! Parecia que não
estava vendo todo o meu esforço! Tudo bem que passei muito
tempo sendo um verdadeiro vagabundo na escola, mas nos últimos
seis meses, sério, meu comportamento estava impecável! Notas
altas, poucas confusões... Ficava com raiva por ser julgado
injustamente. Tive que respirar fundo.
— Pai, não estou entendendo isso o que senhor tá falando...
Não tá vendo as minhas notas, meu comportamento nos últimos
tempos? Até parece que eu ainda sou aquele mesmo cara de
antes... Eu mudei, pai. Estou mais responsável agora.
— É verdade, querido... — mamãe consentiu comigo, em tom
apaziguador. Provavelmente, já estava tentando amenizar qualquer
indício de bate-boca. — Depois que o Eric começou a dar aulas
para o Liam, as notas e o comportamento dele só melhoraram. Eric
faz bem para o nosso filho.
Ah pronto! Ela tinha que começar a falar no Eric. Sério, isso
já estava ficando preocupante! O que estava acontecendo com essa
mulher? Quanto mais eu queria esquecer esse nome, mais ela
falava dele! Que merda.
— Bom, isso eu tenho que concordar — papai respondeu
conformado. — Eric sempre foi um bom garoto. Sempre um
exemplo de menino. Responsável, estudioso, cuidadoso, generoso.
Um menino de ouro!
Há alguns meses, eu poderia vomitar de nojo ao ouvir essas
bajulações dos meus pais com o Eric, mas, naquele momento, eu
concordava com eles. Concordava amargamente. E o amargamente
não era porque eu tinha inveja ou raiva disso, mas porque sentia
saudade dele. Muita saudade daquele filho da mãe.
— Sim, querido! O Eric é realmente um amor... O Liam tem
muita sorte de...
Chega!
— Mamãe! — falei dois tons acima, tomando cuidado para
não parecer tão desesperado. — Sabe de uma coisa? Chamei um
amigo meu para estudar aqui comigo hoje... — sorri, tentando
disfarçar a pressa em tirar o Eric do foco da conversa.
— Amigo? — ela franziu o cenho. — Que amigo? Você não
estava estudando com o Eri...
— Não! — repliquei dois tons acima novamente, pigarreando
a garganta logo em seguida para tentar retomar a compostura. —
Quero dizer... Sim, eu estava estudando com o Eric, mas é que...
Sabe... — tentei encontrar alguma justificativa. Não queria que ela
soubesse que ele não estava mais me dando aulas, ou iria falar com
a tia Cynthia e isso não ia dar certo. — É bom estudar com outras
pessoas também! E o Noah... O Noah é... Super inteligente, mãe!
Melhor aluno da escola, precisa ver... — balancei a cabeça com
convicção, fazendo a maior propaganda do garoto. — Aliás, eu vou
subir lá pro quarto, porque preciso dar uma geral por lá, sabe?
Chamei ele pra cá, vai já chegar!
Pulei pra fora da cadeira onde estava sentado e corri
rapidamente para as escadas. Queria fugir de mais comentários
sobre o Eric e de mais perguntas sobre o Noah. Eu nem tinha o
chamado lá pra casa, mas, enquanto subia as escadas, digitei
rapidamente uma mensagem para ele:
“Ei, parceiro, chega aqui em casa. Bora estudar. Botar pra foder
nessa seleção!”
❖❖❖

Não demorou muito para que campainha da minha casa


soasse. Incrível como o garoto era certinho em tudo! Até na hora de
chegar num local marcado. E, no caso do Noah, ele era certinho
mesmo! Certinho raiz, não certinho Nutella. Eric era certinho Nutella,
o típico santo do pau oco. Já o Noah era certinho raiz, fazia nada de
errado mesmo, sempre seguia na linha.
E droga, eu já estava pensando naquele indivíduo mais uma
vez.
Coisa mais chata, droga de memória!
Balancei a cabeça para espantar esses pensamentos e segui
até a porta. Quando abri, o garoto realmente estava lá. Franzino e
magro, como sempre. Suas roupas habituais também estavam lá.
Ele se vestia pessimamente. Os óculos fundo de garrafa
completavam o visual. Não tinha noção de estilo ou coisa alguma.
Mas... Era um dos caras mais legais que eu já tinha conhecido no
colégio. Talvez o mais, porque ele era o único que estava ao meu
lado naquele momento, e eu deveria valorizar isso com a minha
lealdade.
Suas roupas e sua aparência eram o de menos.
— E aí, cara! Chega aí! — me aproximei, cumprimentando-o
com dois toques no ombro e sinalizando com a cabeça para que ele
entrasse. — Apareceu na hora, heim? Você é foda mesmo, bicho...
Entra aí!
— A-Ah... O-Oi, Liam! — gaguejou um pouco, embora
parecesse estar um pouco menos inibido que antigamente. Era o
jeito dele. Ele sempre seria tímido e talvez nada mudasse isso
totalmente. Era essência dele. E estava tudo bem com isso. Pelo
menos pra mim, estava tudo bem, eu não o julgaria mais por isso,
nem por qualquer coisa. — Com licença...
Percebi Noah olhando em volta, com um semblante
ligeiramente impressionado. Parecia boquiaberto com o luxo da
casa. Não que eu morasse em um palácio, mas nós sempre tivemos
boas condições. Não sabia como era a casa Noah, nem quem eram
os seus pais ou o tipo de vida que levavam, mas percebi, logo de
cara, que ele não estava acostumado com aquele padrão de vida.
— Fica à vontade, irmão! — Tentei deixá-lo menos
envergonhado, já que, por mais que se esforçasse para disfarçar,
tinha percebido a maneira como ele estava. — Meus pais saíram
pra resolver umas coisas e a Molly ainda está dormindo no quarto.
Pode ficar de boa!
— T-Tá bem... — sorriu, ainda um pouco envergonhado.
Talvez ele nunca tivesse se imaginado entrando na minha casa.
Talvez nunca tivesse imaginado que eu o chamaria para a minha
casa e muito menos que nos tornaríamos amigos.
— Você tá com fome? Tá com sede? Quer comer alguma
coisa? Beber alguma coisa? Água? Cerveja? Vodca de manhã? —
brinquei para tentar quebrar um pouco o gelo e fazê-lo se sentir
mais em casa. — Qualquer coisa, a gente passa na cozinha, antes
de ir estudar. Ou num bar.
Noah riu de leve, balançando cabeça.
— Não, não... Eu tô bem. Sério! — garantiu. — A gente já
pode ir estudar.
E, assim, confirmando estar tudo bem, acreditei e segui rumo
ao meu quarto. Subimos as escadas e, ao entramos no meu quarto,
percebi os olhares de Noah ainda mais surpresos do que lá
embaixo, quando estávamos na sala. Parecia impressionado com o
local, o tamanho e tudo o que tinha dentro.
Era claro que estava tentando disfarçar, mas, ainda assim, eu
conseguia perceber. Inevitavelmente, lembrei que era Noah e não
ele... Ele, aquele que eu não queria mencionar nem em
pensamento. Ele, quando entrava ali, parecia ser mais dono do
lugar e das coisas do que eu. Sempre tão cara de pau... Fazia piada
com a minha cara e com o ciúme que eu tinha das minhas coisas...
“Será que eu posso me sentar nessa sua incrível cadeira?”,
era assim como ele perguntava no início, quando seu palavreado
era puro sarcasmo, antes de tudo acontecer. Com o Noah não. Com
o Noah, se ele perguntasse se poderia sentar na minha cadeira, ele
realmente estava perguntando com verdade. Não tinha alto teor
sarcasmo ou ironia. Noah não era assim, não era tão extrovertido ou
cara de pau. De fato, era tão inteligente quanto ele, mas, ainda
assim, não era como ele.
E eu sentia falta dele e de tudo o que envolvia ele. Saudade
da sua cara de pau, do seu jeito debochado e desinibido, da
maneira como falava comigo e de como me ensinava, saudade dos
sarcasmos e das brincadeiras, saudade até das brigas e
desentendimentos dentro daquele quarto. Com o Noah ali, sentado
no mesmo local onde ele costumava sentar para me ensinar ou
estudar, era impossível não lembrar.
Mas eu não queria lembrar.
Respirei fundo para dissipar os pensamentos.
— E aí, que acha de começarmos? — sugeri, enquanto via
Noah tirando seu material da mochila e colocando em cima da
minha escrivaninha. — Trouxe a apostila do intensivo?
Depois disso, eu tinha perdido a noção de quanto tempo
passamos dentro daquele quarto estudando, mas a única certeza
que eu tinha era: não aguentava mais ver números na minha frente
e resolver questões! Sério, se eu passasse mais meio segundo
naquele local, poderia enlouquecer.
Eu precisava respirar, sair, ver gente, ou seria internado em
um hospício. Para ser sincero, eu não sabia como ainda não tinham
me internado, porque, depois de tudo o que eu passei e ainda
estava passando, um hospício era o mínimo pra mim. Eu precisava
sair dali pra descansar.
— Noah... — suspirei de cansaço. — Sério, cara, faz quanto
tempo que a gente tá aqui? Olha o céu! Olha o pôr do sol bem ali!
Eu consigo ver! — com desespero, falei.
Ele, por sua vez, riu do meu pseudo-desespero.
— Para de exagerado, Liam... — continuou rindo. — Pôr do
sol onde? Agora que são uma da tarde! A gente só passou, sei lá...
Umas cinco horas estudando?
— Cinco horas?! Cinco horas?! — me desesperei ainda mais
e Noah gargalhou. — Sério, eu tô já pra pular daquela janela ali!
Não aguento mais estudar... — toquei no braço dele e me contorci,
como se estivesse a ponto de falecer. Dramático, eu? Só um pouco.
— E você quer fazer o quê? — perguntou, ainda com um
sorriso meio brincalhão.
— Ah, sei lá... — dei de ombros. — Pode ser qualquer coisa,
desde que eu saia daqui, respire ar puro, veja gente e não livros.
Pode ser jogar futebol, empinar pipa, andar de skate... Sei lá,
qualquer coisa... — parei, tentando encontrar algo que nós dois
pudéssemos fazer, já que eu sabia que Noah não fazia nenhuma
dessas coisas. Suspirei e, de repente, veio a ideia. — Já sei! Vamos
no shopping? O Redmall... Fica aqui pertinho... Dá até pra gente ir
andando! A gente toma um sorvete, sei lá, caminha, descansa... Só
quero sair daqui mesmo.
— Tudo bem... — Noah soltou uma pequena risadinha. —
Não tenho prática, nem coordenação motora, em jogar futebol,
empinar pipa ou andar de skate, mas andar no shopping e tomar
sorvete eu topo! A gente tá precisando descansar mesmo.

❖❖❖

O shopping Redmall não ficava muito longe da minha casa,


nós realmente conseguíamos ir andando, era no mesmo bairro. Por
ser um sábado à tarde, o local estava relativamente cheio, afinal era
o local onde todos do bairro costumavam ir aos fins de semana,
para fazer compras, comer, passear ou assistir filme. Eu e Noah
paramos em uma sorveteria de lá, que era uma das melhores.
Noah pediu um sorvete de duas bolas, morango e chocolate,
enquanto eu, como sempre fui bom de boca, pedi um super Sundae
de uns trezentos quilos. Sentamos em uma das mesas e ficamos
conversando. Nessa altura, ele já estava menos envergonhado e até
puxava assunto tanto quanto eu. Noah estava se tornando um
verdadeiro parceiro pra mim.
— E aí, acha que consegue recuperar as energias com esse
sorvete? — com um sorrisinho, perguntou.
— Acho que não... — respondi em tom de brincadeira. —
Acho que preciso de mais uns três desse, pra recuperar
completamente minhas energias e estudar até o fim do dia — ri.
Noah riu também. Riu despreocupado, desavergonhado,
confortável. Acho que esse foi o primeiro riso/sorriso
verdadeiramente relaxado que me deu, e eu me sentia tão bem com
isso. Era como se eu estivesse conseguindo reverter o mal que lhe
fiz durante anos e retribuir o bem que ele estava me fazendo agora.
— Sabe Noah... — cessei um pouco o riso e falei em um tom
um pouco mais sério. — Eu sei que já te pedi desculpas várias
vezes e sei também que a gente já tá se dando tão bem, mas eu
queria te falar que ainda sinto muito por tudo o que te fiz nos últimos
anos de colegial. Os comentários maldosos, os maus tratos... Me
envergonho muito disso. Eu não sou mais aquela pessoa e não
penso mais aquelas coisas de você.
Noah sorriu fraco.
— Eu sei... — replicou, complacente. — Tá tudo bem agora.
Não precisa mais se desculpar. E não era só você que pensava ou
falava aquelas coisas de mim. Acho que todo mundo colégio. Acho
que até hoje pensam e falam aquilo de mim.
— A galera do colégio é muito otária — falei. — E só agora
tenho completa certeza disso.
— Sim... — concordou comigo, enquanto levava uma colher
do seu sorvete à boca. — Falam e julgam sem ao menos saberem a
verdade. Eles nem procuram saber... Mas eu não me importo com
isso, não mais. Eu sei da minha consciência — suspirou. —
Durante muitos anos eu quis ser como você, por causa dessas
coisas. Você meio que me inspirava.
— Hãn? — franzi o cenho, confuso. Não estava entendendo
onde ele queria chegar. Jamais imaginei que pudesse inspirar
pessoas. Talvez inspirasse e influenciasse para o mal, já que eu era
um zero à esquerda, mas... Eu ainda não entendia — Como assim?
— Ah, não sei... — Sorriu meio sem jeito, desviando um
pouco o olhar. — Eu te via lá no colégio. Você tinha muitos amigos e
estava sempre rodeado de pessoas. Todos queriam ser seu amigo...
Isso sem falar das garotas... O sonho de qualquer uma do colégio
era ficar contigo, namorar contigo. Acho que nenhuma garota do
colégio nunca olhou pra mim. Mas você está lá, rodeado por elas.
Capitão do time de futebol, bonito, popular... Tudo o que eu nunca
tive durante todos os anos do colegial — deu uma risadinha, mas
logo arregalou os olhos para mim. — Não me entenda mal! Isso não
era inveja minha... Não, não... Eu não tinha inveja de você, na
época eu só queria que você me ensinasse a ser assim, porque eu
sempre fui muito tapado pra essas coisas... — riu de novo.
— Então, era por isso que você ficava me olhando e me
encarando às vezes? — de queixo caído, perguntei.
— Sim... Era por isso — riu meio envergonhado. — Eu queria
tanto ser seu amigo. Você era tipo “o cara pra mim”. Você poderia
me ensinar a ser melhor, sabe? A ser mais descolado no colégio e
com as garotas. Durante muito tempo tentei ser seu amigo, mas
você só me enxotava, dizia que eu estava dando em cima de ti —
sorriu fraco. — Mas eu só queria ser teu amigo mesmo.
— Nossa, cara... — Eu ainda estava perplexo e com muita
vergonha de mim mesmo e das minhas atitudes, do meu
preconceito idiota. — Nossa... — estava quase sem palavras, de
olhos arregalados. — Me desculpa, me desculpa mesmo! Eu não...
— bufei com raiva de mim mesmo, sem nem saber o que falar. —
Eu era tão idiota, julgava tanto as pessoas... Como você queria ser
meu amigo? — me sentia inconformado com tudo aquilo. — Me
desculpa por ter tão sido tão idiota com você!
Noah riu novamente, mas, dessa vez, um riso que tentava
apaziguar a situação e me deixar menos perplexo, mais calmo.
— Tudo bem, tudo bem... Sério! — replicou com convicção.
— Tá tudo bem agora! Se você mudou, eu também mudei. Eu não
penso mais assim. Agora eu quero ser eu mesmo, sabe? Hoje eu
me aceito como eu sou, e isso é tão bom! É tão bom se aceitar! Eu
não quero ser outra pessoa, quero apenas ser eu mesmo, e me
sinto muito satisfeito com isso... De verdade! — falou olhando nos
fundo dos meus olhos, com verdade. — Tudo isso já passou. Eu sou
uma nova pessoa, você é uma nova pessoa. E tudo bem. Agora nós
somos nós mesmos.
O cara era demais! Demais! E quanto mais ele falava, mais
boquiaberto eu ficava! Como eu pude ter sido tão idiota de passar
todos esses anos sem querer a amizade dele?! O cara era incrível.
Um amigo de verdade! Um amigo como eu nunca tive! Minha
cabeça dava tantas voltas, que estava quase explodindo. Minhas
palavras se embolaram e eu estava completamente sem ação, mas,
sentado numa cadeira ao lado dele, num estopim de impulso, eu o
abracei! Abracei forte, de olhos fechados.
Um abraço de quebrar todas as costelas!
Era o máximo que eu conseguia fazer naquele momento. Era
assim como eu tentava pedir desculpas e ser melhor. Claro que eu
podia fazer muitas outras coisas para tentar ser realmente um
grande amigo para ele, mas eu sentia que, naquele momento, eu
precisava o abraçar. Era questão de necessidade.
— Noah, sério, cara, me desculpa por tudo! — Ainda o
abraçando e de olhos fechados, falei. — Eu deveria ter sido seu
amigo há muito mais tempo! Você é o melhor amigo que eu já tive
em toda a minha vida. Ninguém nunca foi tão meu amigo quanto
você é! Na verdade, todos os que eu achava que fossem meus
amigos me deram as costas, Robert e William me deram as costas,
a galera do colégio me deu as costas. Só você ficou, porque você é
de verdade, não é de mentira. É a melhor pessoa do mundo.
Senti Noah suspirar, enquanto devolvia o abraço repentino
que lhe dei.
— Eu não enxergava só sua popularidade, sua
superficialidade — respondeu ainda no abraço. — Eu também
enxergava sua bondade. Eu sabia que, no fundo, você era uma
pessoa boa... Só precisava de alguém que despertasse isso em
você.
E eu sabia quem despertou isso em mim...
— Muito, muito obrigada mesmo, Noah! Você é um grande
amigo.
E, em meio àquela aura de magia e revelação, ainda no
abraço, abri meus olhos devagar. Desnorteado, aos poucos
consegui firmá-los para frente, em uma direção certa. Quando eles
finalmente focaram, me assustei. Era quase como uma miragem ou
uma visão de outro mundo... Do outro lado... Do outro lado da
sorveteria, em frente à Livraria Culture, a pessoa que despertou o
meu lado bom... Eric, acompanhado de Lana. Estavam saindo da
sala de estudos.
Meu coração parou e minha respiração ficou presa. Não
somente porque estavam juntos, mas também porque Eric me
olhava e me encarava com uma expressão de surpresa. Os olhos
ligeiramente abertos além do normal. Ele parecia estar tentando
disfarçar, mas eu o conhecia e sabia o que estava se passando
dentro de si, ao me ver abraçado, daquele jeito, à Noah.
A ruiva

Eric

Eu lembrava... Eu me lembrava de todas as vezes, nos últimos


tempos, em que Liam me garantiu que Noah era hétero, que
gostava apenas de garotas. Por muito tempo, durante o colegial, eu
achei que os boatos sobre a sua suposta homossexualidade eram
verdadeiros, até porque ele encarava muito o Liam, como se
realmente tivesse outras intenções.
Porém, depois do ocorrido que levou ambos à sala do diretor
Dawson, e Noah afirmou com todas as letras que aquilo que
pensavam sobre ele era um equívoco, eu acreditei, e até apoiei a
amizade dos dois. Queria que Liam se desculpasse com o garoto.
Era o mínimo que ele poderia fazer.
Mas, enquanto eu estava ali, parado em frente à Livraria
Culture, vendo os dois se abraçando do outro lado, em uma
sorveteria, meus piores instintos de ciúmes subiram da pontinha do
meu dedão do pé, até o meu último fio de cabelo da cabeça. Eu via.
Eu percebia que não era um abraço qualquer. Era um abraço
envolvente, confidente.
Um abraço que somente eu costumava lhe dar.
Eles estavam juntos? O envolvimento ia além de mera
amizade? Minha cabeça gerou tantas perguntas em questão de
milésimos. Liam tinha me deixado para ficar com Noah? E por que?
Ele me disse que não ficaria comigo porque não conseguiria suprir
minhas necessidades, porque era não suficiente pra mim. Mas, ele
conseguia suprir as necessidades do Noah? Ele era suficiente para
o Noah?
Aquele abraço, nem de longe, parecia ser de apenas dois
amigos.
Notei que quando percebeu que eu estava olhando
fixamente, quase paralisado, soltou o garoto do abraço, todo
desconsertado. Engoli a seco, amargamente. Eu não queria mais
ficar ali presenciando aquilo, eu não queria mais olhar para a aquela
cena. Algo inimaginável para cabeça. Uma ideia completamente
impossível de ser concebida.
Porém, antes que pudesse me virar para ir embora, ouvi a
voz de Lana, em um tom que aparentava certo estranhamento.
— Tá... Tudo bem? — perguntou pausadamente. Se eu
estivesse a olhando, com certeza veria seu cenho franzido. — Você
tá... O Liam é amigo daquele garoto? — notei certa estranheza em
seu tom de voz. — Você e o Liam... — e deixou a frase em aberto,
como se estivesse tentando juntar as peças de algum quebra
cabeça.
E eu não queria que ela juntasse aquelas peças.
— Nada, nada — desconversei de imediato, balançando a
cabeça e desviando meu olhar do Liam e do Noah. — Quer ir pra
outro? — Isso era tudo o que eu mais queria. Lana não parecia ser
do tipo intrometida, mas eu também não gostaria comentar sobre
aquela parte da minha vida. Não que eu não quisesse que ela não
soubesse. Eu só não estava a fim de falar sobre aquilo. — Vamos
andar pelo shopping?
— C-Claro... — gaguejou um pouquinho com a minha
cortada, mas sorriu. Percebi dando uma última olhada em direção a
Liam e Noah, mas logo indicou com a cabeça para que
seguíssemos. — Vamos?

❖❖❖

Caminhávamos pelo shopping com nossas casquinhas de


sorvete. Minha cabeça ainda estava lá no Liam e naquela cena com
o Noah. Me sentia confuso... Eles não podiam ser mais que amigos,
podiam? Eles estavam se abraçando tão... Liam nunca abraçou
alguém daquele jeito que não fosse eu.
Uma pontinha maior de ciúmes quis aparecer.
Eu precisava parar de pensar naquela merda.
— Então, Lana... — puxei assunto para dispersar meus
pensamentos. — Quer dizer que você se mudou pra cá porque seu
pai recebeu uma proposta de emprego para trabalhar aqui?
Ela sorriu.
— Sim, foi exatamente isso. Me mudei pra cá, porque meu
pai recebeu uma proposta de emprego pra cá — e soltou uma
pequena risadinha suspeita, como se estivesse se divertindo com
algo. Eu só não sabia o que.
— O que foi? — de cenho franzido, perguntei.
— Nada, Sr. Hastings. Nada — replicou com certa ironia, ao
mesmo que parecia falar naturalmente. Mas, não era uma ironia ao
pé da letra, era uma ironia com divertimento, como se estivesse
escondendo algo que em três segundos fosse revelar.
— Por que me chamou como as pessoas chamam meu pai?
— arqueei uma das sobrancelhas. Ninguém nunca me chamava
assim. A não ser... A não ser na empresa do meu pai. Alguns
funcionários mais formais tinham o costume de me chamar assim,
enquanto outros, mais antigos, que me viram crescer, ainda me
consideravam como o “pequeno Eric”.
— A proposta que meu pai recebeu foi para trabalhar na
empresa do seu pai — respondeu com um sorrisinho. — Ele agora é
um dos engenheiros da Construtora Hastings.
Meu queixo caiu no mesmo instante.
Imediatamente, tudo começou a fazer sentido. Meu pai vivia
me falando de um grande engenheiro que se juntou ao grupo e que
estava de mudança com sua família para Londres. A festa na
empresa, além de tudo, seria também para recebê-lo e dar boas-
vindas. Talvez fosse por isso que Lana havia me enviado uma
solicitação de amizade no Facebook. Afinal, provavelmente eu era a
única pessoa do colégio que ela “conhecia” previamente.
— Então... — boquiaberto, falei. — É o seu pai que vai
receber as boas-vindas na festa de amanhã?
Meu Deus, como o mundo era pequeno!
— Sim, é ele mesmo — deu uma risadinha para o meu
completo espanto.
Confirmado: o mundo era pequeno mesmo.
— Acho que eu nunca tinha te perguntado isso, embora
tivesse achado um pouco estranho, mas foi por isso que você
mandou uma solicitação de amizade para o meu Facebook, antes
de chegar?
Notei suas bochechas ficarem coradas. Desviou o olhar,
depois os volveu para as mãos, que já estavam passando uma na
outra. Ela não sabia esconder mesmo a vergonha.
— Sim... Foi por isso — soltou um sorrisinho sem jeito e sua
voz quase não saiu. — Eu não conhecia ninguém aqui. Você era o
único rosto mais familiar, porque, antes da gente se mudar, papai
mostrou, pra mim e pra mamãe, você e sua família. Sabia que você
estudava no mesmo colégio que eu ia estudar... Só não queria me
sentir tão deslocada quanto já estava. Eu tinha muitos amigos onde
eu morava e aqui eu não tinha nenhum.
— Nossa... — ri fraco para a história toda. — Você poderia ter
me falado logo! Me pegou de surpresa... Não sabia que seu pai iria
trabalhar com o meu, agora. E não precisa ficar com vergonha do
lance do Facebook... Eu adoro fazer amizade e com certeza faria
com você, mesmo se não tivesse me mandado a solicitação de
amizade ou esbarrado comigo no colégio.
— Obrigada, Eric... — sorriu. — Eu sei que você é a melhor
pessoa com quem eu poderia fazer amizade...
E, assim que se calou, um carinha passou por nós,
entregando dois panfletos.
Segurei e li o que tinha ali.
“Inauguração do Space Pub neste sábado à noite: estrelas,
festa, música e open bar liberado até às duas da manhã no terraço
do Sant Lucy Edifício, mais próximo ao céu de Londres”
— Olha só que interessante... — Lana falou, enquanto lia o
panfleto. — Vai ter a inauguração de um novo pub aqui no bairro.
Parece que vai ser legal.
— Sim, parece que vai ser massa... — repliquei, enquanto
ainda olhava o anúncio. — Open bar liberado até as duas da
manhã... — sorri.
— Tá a fim de ir? — perguntou, fazendo-me erguer o rosto
em sua direção.
Ir com ela à inauguração do pub?
Bom, talvez não fosse uma má ideia. Eu estava mesmo
precisando sair. Desde o término com o Liam, eu ficava em casa o
tempo todo, só estudando para o processo seletivo das
universidades. Precisava de descanso, de lazer. E de umas boas
doses de bebida alcoólica que eu não tomava há bastante tempo.
— Acho uma ótima ideia — aceitei sem objeção e sorri. — Eu
estou precisando mesmo sair. Que horas eu passo na sua casa pra
te pegar?

❖❖❖

Depois que combinamos os detalhes da festa de logo mais,


fui para casa. Precisava me arrumar, tomar banho e ajeitar outras
coisas. Tinha passado o dia na sala de estudos da livraria do
shopping. Minha cabeça fervilhava em matérias de pré-vestibular,
mas, agora, eu daria uma desacelerada com a festa.
A casa estava aparentemente vazia. George tinha saído para
ajustar os últimos detalhes da confraternização da empresa, que
aconteceria no dia seguinte. Minha mãe deve ter ido com ele. O
silêncio reinava ali. Porém, assim que terminei de subir todos os
degraus, vi Stefany saindo do seu quarto.
— E aí, maninho querido do meu coração! — falou, enquanto
caminhava pelo corredor rapidamente. — Onde vai com tanta
pressa? Vai sair de novo? Passou o dia fora... — riu.
— Ah, eu vou sim... Tá sabendo não da inauguração de um
novo pub aqui no bairro?
— Pub? — questionou. — O Space Pub? Ah, estou sim, mas
não vou hoje... Minhas amigas acabaram chamando Molly e eu para
ir em uma social na casa da Jessie. Vai ser bom lá, só meninas e
alguns quartos para Molly e eu passarmos a noite... — riu com uma
pontinha de malícia. — Mas me fala... Com quem você vai pra
inauguração do pub? Não me fala que vai sozinho, porque eu não
acredito.
Eita... Por um segundo eu tinha esquecido como a Stefany
era: curiosa, enxerida... Com certeza, me faria contar nos mínimos
detalhes com quem eu ia sair, o que faríamos, se estávamos ficando
e todos os outros questionamentos possíveis.
— Pois eu vou sozinho mesmo... — desconversei e toquei na
maçaneta da porta do meu quarto. Queria fugir do interrogatório que
viria a seguir e pedia aos céus que minha irmã não insistisse,
porque, com certeza, alimentaria todas as esperanças de que eu
tinha realmente seguido em frente e estava com outra pessoa. Lana,
no entanto, era apenas uma amiga.
— Ah, me poupe, Eric! Eu sei que você não vai sozinho! Você
nunca sai sozinho... Anda, pode me falar com quem vai sair... Eu
sou sua irmã e mereço saber dessas coisas! — requisitou, mandona
como sempre era quando queria saber algo de mim.
Ah não... Por pouco, não revirei os olhos.
— Esse é o meu “novo eu”, Stefany... Agora eu ando sozinho,
saio sozinho, faço tudo sozinho e aproveito muito bem a minha
companhia. Você deveria fazer o mesmo. Eu recomendo —
desconversei novamente, abri a porta do quarto e entrei para fugir
daquela inquisição.
Porém, quando menos esperei Stefany entrou e me empurrou
para a cama.
— Bora, pode falar. Só saio daqui quando me contar tudinho.
Afinal, preciso saber com quem meu irmãozinho está se
envolvendo.
Revirei os olhos.
— Stefany, eu nunca fui atrás de saber com quem você se
envolve. Deveria fazer o mesmo comigo.
Dessa vez, foi ela quem revirou os olhos.
— Ah, me poupe, você sabe como eu sou curiosa. Vai, me
conta tudo, irmãozinho.
Respirei fundo e passei as mãos nos cabelos. Ela não
desistiria mesmo e eu sabia disso porque a Stefany era assim
mesmo. Não tinha como fugir. Ela só se daria por satisfeita quando
eu contasse tudo.
— Olha, primeiro que não tem envolvimento nenhum — falei
com seriedade. — Ela é só uma amiga. Eu vou com a Lana, a
garota nova do colégio.
— Espera — levantou a mão direita. — Você vai com a Lana,
a novata? A menina que você estava falando direto? A menina que
te procurou pra fazer dupla? Mas, está me falando que não tem
envolvimento nenhum? — Stefany soltou a maior gargalhada de
todos os tempos. — Eu te conheço, querido. E não é de hoje não!
Meu Deus, Stefany era impossível! Não dava para conversar
com ela. Quando colocava uma coisa na cabeça, era aquilo e
pronto, nada mais a fazia mudar de ideia. Ou seja, na cabeça dela,
provavelmente, eu já estava transando com a garota.
— Ste, é sério. Não tenho nada com ela além de amizade —
repliquei. — Agora, se você não quer acreditar, eu não posso fazer
nada — dei de ombros.
Sorriu.
— Meu bem, eu sei que você ainda é apaixonado pelo
traseiro do Liam, eu sei bem! Eu sei que ele tem um bumbum bem
gostoso... — riu fraco, ironicamente. — Mas! — levantou o dedo
indicador. — Você tem que seguir em frente, não é, meu anjo? Liam
te deu um pé na bunda. Por mais que eu sempre tenha torcido por
vocês, já disse: parte pra outra! Aliás, eu acho que você já partiu
né... — riu ironicamente mais uma vez.
E por mais desbocada que Stefany fosse, eu tinha que
concordar que estava certa. Estava coberta de razão. Liam não me
queria e, quem sabe, até já tivesse partido pra outra primeiro. Eu
realmente precisava seguir em frente. No entanto... Eu não fazia
ideia de com quem deveria seguir em frente. Na verdade, talvez
fosse até melhor eu seguir sozinho. A Lana era linda. Sim, era linda
demais, simpática, esperta, inteligente, mas...
— Eu não sei, Ste — balancei a cabeça em negativo. —
Prefiro não pensar nisso agora. Quero ocupar minha cabeça com a
universidade. Eu só vou sair hoje à noite, porque sinto que preciso
de um momento assim mesmo. Mas, a Lana é só minha amiga. Até
o presente momento ela é só minha amiga.
A loira suspirou com um sorrisinho de canto de boca.
— Se você diz... — deu de ombros e caminhou até a porta.
— Só me faz um favor... — virou-se para mim novamente, ao tocar
na maçaneta da porta. — Beija muito na boca da sua amiguinha
hoje! Mas só na amizade heim... — sarcasticamente foi embora.
Ri fraco, me dando por vencido.
Stefany era impossível!

❖❖❖

A noite daquele sábado de Londres parecia mais agitada que


o normal. Aparentemente, o universo estava conspirando mesmo
para que eu saísse, naquele dia, para desopilar. Ou então, fazia
tanto tempo que não caía na noite assim, que tudo parecia novo e
até diferente para mim. Era por volta das onze horas da noite e o
movimento de pessoas nas ruas estava grande: todos em busca de
uma boa noitada. Essa era hora que a galera costumava sair e as
festas começavam a lotar. Sair mais cedo do que isso era um erro.
Peguei meu Porsche e passei na casa da Lana, digo, na
mansão da Lana. Sua família parecia muito bem de vida e,
aparentemente, ficaria mais, já que seu pai era o mais novo
engenheiro da Construtora Hastings. Vi na hora que a ruiva cruzou
porta afora. Estava estupidamente linda! Meu Deus, como ela
conseguia se superar assim? Sério, porque ela já era linda. Mas,
ficar mais linda do que já era? Consciência!
Usava um vestido prateado, brilhante, cujo feixe ficava no
pescoço, deixando suas costas completamente nuas. O decote
acentuava seus seios e o tamanho da roupa não era nem um pouco
longa. Muito pelo contrário. Ficava bem acima dos joelhos, na
metade das coxas. E que coxas... Torneadas de uma maneira que
somente agora eu podia notar, uma vez que não estava de jeans.
Calçava sandálias, cujo salto alto deixava seu bumbum mais
arrebitado que o normal.
E, bem, se eu notei tudo isso de dentro do carro, imagina
quando saísse e visse mais “de perto”.
Fiquei realmente extasiado.
Durante todo o caminho fomos conversando bem animados.
Eu sentia que, cada vez mais, estávamos nos dando bem. Nem eu,
nem ela, tínhamos vergonha um do outro. Muito mais extrovertidos
que o começo. Talvez a noite tivesse lá seus efeitos sobre isso e
ainda nem tínhamos começado a beber.
Não demoramos muito até chegar ao Space Pub. Agora tudo
fazia sentido: o bar era realmente quase no espaço. Ficava no
terraço de um dos edifícios mais altos da cidade de Londres. De lá
de cima, podíamos ver a cidade praticamente inteira, enquanto as
estrelas pareciam muito mais nítidas e próximas a nós.
Quando entramos no terraço, um espaço aberto e muito bem
ventilado, o local já estava lotado. A música eletrônica já tocava alto,
enquanto todos dançavam em cada centímetro do lounge. Luzes
neon, sofás acolchoados e a decoração nos faziam se sentir
realmente no espaço sideral. As estrelas da noite completavam a
ambientação sem cobrar nada por isso.
— E aí, a fim de beber? — com sorriso largo e toda animada,
Lana perguntou por sobre o som da música.
— Claro! — respondi de imediato. — Eu estou aqui pra isso!
Afinal, tinha que aproveitar bastante as regalias de um open
bar.
A ruiva logo puxou dois copos de sei lá o quê de um dos
garçons que estavam passando ao nosso lado. Me entregou um e
bebeu o outro em seguida, sem esperar por mais nada. Virou de
uma só vez todo o líquido que tinha ali e, no fim, fez uma pequena
caretinha.
— Tá puro! — riu.
— Quer o meu também? — brinquei, erguendo o copo em
sua direção.
Balançou uma das mãos, rindo.
— Daqui a pouco eu pego outro.
Sorri e tomei um gole da bebida. Estava pura mesmo e era
Gin. Desceu rasgando pela quantidade de tempo que eu não ingeria
bebida alcoólica. Alguns poderiam até dizer que Gin era até mais
forte que Uísque, a minha bebida preferida.
— Gostou? — perguntou.
— Desceu rasgando um pouquinho pelo tempo que eu não
bebo... — sorri. — Estou pegando no tranco aos poucos — brinquei.
— Mas, daqui a pouco, eu vou bebendo mais e me soltando mais...
Você vai ver!
— Eita! Pegar no tranco aos poucos? — franziu o cenho
como se estivesse indignada. — Nada disso! Você vai pegar no
tranco agora! — e me puxou pelo braço, indo em uma direção que
eu não fazia ideia.
— Ei! Espera! — falei aos risos. — O que você tá fazendo?
Pra onde a gente tá indo?
E, assim que eu me calei, paramos em frente ao balcão de
bebidas, onde alguns barmans serviam a galera.
— Me vê dez shots de tequila! — Lana falou, dando dois
toques no balcão com a palma da mão.
“Me vê dez shots de tequila”. Soletrei letra por letra, palavra
por palavra, na minha mente. A ruiva era realmente diferente de
todas as outras garotas que eu conhecia ou já tinha ficado. Diferente
até mesmo da Stefany, que, dentre todas, era tida como a “mais
descolada”.
— Você tem uma coisa diferente... — soltei sem querer,
disperso em meio aos pensamentos.
— Oi? — ela, que estava atenta ao barman, virou-se de
súbito pra mim, com uma das sobrancelhas arqueadas. — Eu tenho
uma coisa diferente?
Meu Deus, falei demais!
Ri, me fazendo de desentendido, e apontei para frente.
— Olha só! O cara tá trazendo as bebidas! — passei as
mãos, uma na outra, demonstrando entusiasmo com o que estava
por vir. Sim, eu estava realmente entusiasmado para beber, mas
também queria muito desviar a atenção dela do que eu tinha
acabado de falar. — Vamos cair dentro?
— Na hora! — replicou tão entusiasmada quanto eu,
parecendo até já ter esquecido o que eu tinha dito. Em silêncio,
agradeci aos céus por isso. Talvez eu tivesse conseguido contornar
a situação. — Cinco minhas e cinco suas. Você sabe a musiquinha
da tequila né?
Como eu poderia me esquecer?
— Mas claro! — sorri. — Você está falando com um festeiro
que quase pendurou as chuteiras, mas que ainda está firme e forte!
Lana também sorriu toda entusiasmada.
— Então vamos lá! — segurou um dos shots de tequila,
enquanto eu segurava outro.
— Arriba! Abajo! Al centro! Adentro! — falamos juntos e
viramos ao mesmo tempo os shots de tequila.
Nesse mesmo ritmo, foram todos os outros quatro.
No final de tudo, eu já tinha pegado no tranco, mesmo se não
quisesse. Assim, eu nem vi em que momento isso aconteceu, mas,
quando dei por mim, já estava no meio da pista, dançando com a
ruiva, rodeado por outras pessoas que também dançavam. Naquela
altura da noite, todos já estavam muito loucos, principalmente com a
Deep House comandada pelo DJ.
A música era profunda e envolvente, fazendo com que até
meus pés, meio presos pelo tempo que eu não dançava, se
soltassem. A aura era de magia, universo e algo mais. Lana
dançava como ninguém e me envolvia ainda mais com seus passos.
Se mexia com o corpo colado no meu, em uma dança atrevida e
sensual.
Mesmo sendo um local aberto, graças à dança e a
quantidade de pessoas que estavam por perto dançando também,
eu me sentia suado e a notava suada também. Em dado momento,
quando se virou para dançar com as costas no meu peito, levantou
os cabelos, segurando entre seus dedos (o que a deixava ainda
mais atraente), eu pude ver um suor escorrendo sedutoramente do
seu pescoço até suas costas nuas pelo vestido aberto.
Vi no exato instante em que se virou de frente para mim,
ainda dançando com os cabelos presos entre as mãos, os soltou,
fazendo-os cair sobre seu busto em uma perfeita moldura do rosto e
do corpo. A garota era sim estupidamente linda. E ficava ainda mais
quando estava com a pele rosada do calor e da dança.
Aproximou-se de mim ou eu me aproximei ainda mais dela...
Não sei... Só sei que estávamos ainda mais pertos um do outro. O
toque da música se tornou muito mais envolvente e seu corpo se
colou ainda mais ao meu. Suas mãos pousaram nos meus braços, e
as minhas foram de encontro às suas costas nuas.
Senti sua respiração no meu rosto.
Senti sua respiração minha boca.
Olhei para a sua boca... E era tão...
Linda.
Vi quando passou a língua por entre os lábios, umedecendo a
boca.
Entreabri a minha. E eu já estava quase fora de mim.
Talvez eu quisesse beijá-la...
Ou talvez... Eu fosse beijá-la...
Me aproximei e...
— Acho que preciso tomar um pouco de ar... — levemente
ofegante, ela disse, interrompendo o milímetro de distância que eu
precisava percorrer até a sua boca.
Engoli a seco, tentando retomar minha compostura, e, logo
depois, dei um pequeno sorriso.
— Tudo bem...
Todo o terraço do pub estava tomado por pessoas, mas havia
um lugarzinho ao final, um parapeito onde as pessoas ficavam mais
tranquilas e observavam a paisagem da cidade de Londres. Lá, a
música conseguia chegar com menos intensidade, enquanto que,
por ser um local com menos pessoas, praticamente uma varanda, o
vento corria soltou.
Agora, ela teria ar, exatamente como queria.
Encostou-se ao parapeito com os dois cotovelos. Fiz o
mesmo, parando ao seu lado. Ficamos alguns segundos em
silêncio. Eu não sabia o que pensar e também não sabia o que ela
estava pensando. Estava muito calada, diferente da pessoa que ela
aparentava ser, sempre muito extrovertida. Parecia bastante imersa
no horizonte de Londres a frente de nós.
E, então, depois de algum tempo, falou de repente.
— Me acha diferente? — perguntou baixinho, ainda olhando
para frente, vendo todas as luzes da cidade de Londres brilharem.
Engoli a seco. Ela não tinha esquecido.
Pigarreei a garganta, pensando bem no que falar.
— É-É... — gaguejei. A última coisa que eu queria era que
ela me achasse um completo estranho. Lana era uma garota muito
legal. — Não é nada... É só que... Diferente num bom sentido,
sabe? — e eu tinha plena certeza de que pouca coisa coerente
conseguiu sair da minha boca.
— Mas, como? — Dessa vez, virou o rosto para mim, mas eu
não conseguia decifrar nada em seu olhar.
Pensei.
Ela era diferente em muitos aspectos.
— Eu juro que não sei te explicar — fui sincero. — Mas...
Você é diferente de todas as outras meninas que eu já conheci.
Num sentido bom, é claro. Você é... Melhor. Diferente. Tem atitudes
diferentes e... Isso é muito bom.
Vi um traço de sorriso se formar no canto da sua boca.
Porém, o seu olhar estava longe, por mais que estivesse
direcionado para mim. Era como se estivesse pensando em outra
coisa, visualizando outro lugar.
— Por muito tempo eu não aceitei quem eu era, como se, por
fora, eu fosse uma coisa e, por dentro, eu fosse outra. Me neguei.
Tentei ser como diziam para eu ser, ou como esperavam que eu
fosse, mas eu não consegui. Era mais forte que eu... — Seu olhar
estava cada vez mais distante. — Perdi amigos por ser quem sou,
fui excluída por ser quem sou, mas eu consegui me reerguer. E
agora eu estou aqui, de frente para uma pessoa tão... — Nesse
instante, seu olhar que estava longe, se firmou verdadeiramente em
mim. — Incrível. Obrigada por enxergar coisas boas em mim —
sorriu.
E essas palavras me tocaram... De um jeito muito mais
profundo do que eu poderia imaginar. Primeiro, como uma garota
tão perfeita assim poderia ser excluída? Ela era o sonho de
consumo de qualquer cara e tinha todas as características que
qualquer garota se matava para ter. Mas, segundo... Eu lembrei de
mim. E da minha situação. Lembrei o quanto era difícil não se
aceitar e sofrer pela não aceitação de outras pessoas... Eu tinha
passado por isso.
— Te entendo — fui sincero. — Também sofri com isso por
um tempo. — E, nesse momento, vi um pequeno traço de espanto
em seu olhar. — Mas, agora tá tudo bem. Agora eu aceito quem eu
sou e estou bem com isso. E quanto a você... Acho que é a garota
mais linda e incrível que eu já conheci... Não tem que se preocupar
com o que os outros pensam.
Senti somente o toque da sua mão na minha.
— Posso te dar um abraço? — perguntou.
E antes que eu pudesse responder com palavra, a abracei.
Os pinguinhos de suor que estavam na sua pele, por causa
da dança, já tinham desaparecido. Agora, somente a brisa da noite
de Londres nos envolvia e balançava nossos cabelos. A brisa da
noite e algo mais... O contato da sua pele na minha causava uma
energia sem igual. O seu abraço era aconchegante.
Me senti profundamente confortável com seu rosto encaixado
à curva do meu pescoço e poderia passar muitas horas naquela
posição. Porém... Ela se mexeu. E, aos poucos, moveu seu rosto
para a frente do meu. Senti a pontinha do seu nariz percorrer a pele
minha bochecha e parar de frente para mim.
Estávamos tão próximo que eu podia sentir sua respiração. E
o meu olhar... Estava tão cravado em sua boca quanto o dela estava
na minha. A garota era tão, mas tão, convidativa. E eu quis me
aproximar ainda mais. E ela não se afastou... Afundou seus dedos
nos meus cabelos e eu apertei sua cintura entre os meus.
Só vi o momento em que mordeu levemente o lábio inferior
depois do meu toque. Eu não pensei em mais nada, a não ser em
eu mesmo mordê-lo.
Máscaras caindo

Eric

E, então, quando quebrei os milímetros de distância para beijá-la,


Lana se afastou levemente, inclinando-se um pouco para trás e
colocando suas mãos em meus braços, como um sinal para que eu
não fosse em frente.
Mas... Por que?
— Acho que tá na hora da gente ir — disse.
Pisquei os olhos repetidas vezes, como se estivesse
acordando de um sonho. Por que ela não me deixou beijá-la? O
clima estava bacana e, na minha concepção, ela com tanta vontade
quanto eu. O que tinha acontecido? Por que?
— Quer ir pra casa? — perguntei.
— Acho melhor, né? — replicou um pouco séria, mas dois
segundos depois deu uma risadinha meio sem jeito, percebendo a
maneira como tinha falado. — Quero dizer, a noite foi maravilhosa!
Está sendo maravilhosa! Mas, já é de madrugada... Está bem tarde
e ainda hoje tem aquela confraternização da construtora... As
famílias dos engenheiros foram convidadas e eu quero estar bem
disposta para ir! — deu uma risadinha um pouco sem jeito
novamente.
Ok, ok. Se ela achava melhor não continuar, não seria eu a
insistir. Não tinha nenhum problema nisso. Estava tudo bem.
— Ah, claro, como quiser! — respondi. — Te levo pra casa de
volta.
— Fico grata... — sorriu.
— Adorei a noite. Obrigado pela companhia — agradeci.
A ruiva sorriu um pouquinho envergonhada. Notei as maçãs
das suas bochechas um pouquinho mais rosadas.
— Imagina, eu que agradeço. Você é muito gente boa —
falou. — Obrigada por fazer amizade com essa novata aqui — riu
baixinho.

❖❖❖

Na manhã do dia seguinte, acordei quase sem ressaca


alguma. Por mais que eu tivesse tomado umas boas doses e
estivesse há um bom tempo sem beber, parecia que meu organismo
tinha “memória de pinguço”. Por isso, quase não sofri com dores de
cabeça ou algo do tipo.
Porém, assim que abri os olhos e peguei meu celular que
ficava do criado-mudo ao lado da cama, havia uma mensagem.
Desbloqueei a tela e, quando vi, era um texto dela. Até arregalei um
pouquinho mais os olhos e passei as mãos no rosto, a fim de
acordar, de uma vez por todas, e ler direitinho.
“Bom dia, Eric! Espero que tenha dormido bem. Estou te
mandando essa mensagem só pra agradecer por ontem. Foi uma
noite maravilhosa e a sua companhia é ótima. Beijos!”
Estava comprovado: ela era incrível mesmo. E eu já não era
mais o tipo de cara que não ligava para uma garota depois do
“primeiro encontro”. Na verdade, eu poderia considerar aquilo como
um encontro? Bom, eu não sabia. Mas, o que eu tinha certeza era
de que Lana era diferente e merecia uma atenção especial.
“Bom dia, Lana! Eu dormi bem sim, espero que você também. E
olha, não precisa agradecer. Foi sim uma noite muito boa. Inclusive,
podemos marcar de novo! Beijo!
Isso foi o que eu enviei. Quando disse que poderia marcar de
novo, estava sendo sincero. Me senti bem saindo com ela. Bem de
uma maneira que não me sentia há muito tempo. As últimas
semanas tinham sido bem tensas e a Lana era como um escape
para mim. Ainda gostava, sim, do Liam e não estava a usando para
esquecê-lo, mas, se ela me fazia sentir bem, por que não continuar?
Com certeza! Já fica certo a próxima saída, tá? Nos vemos mais
tarde na confraternização da construtora!
E assim que eu li “nos vemos mais tarde na confraternização
da construtora” na resposta que ela mandou, abri meus olhos três
vezes mais. Puta que... O George! Ele tinha pedido para que eu
acordasse cedo, fosse ao buffet, onde aconteceria a
confraternização de logo mais, e ajudasse nos últimos preparativos!
Volvi meu olhar para o relógio do celular e já eram nove horas
da manhã!
Levantei da cama em um pulo, correndo para banheiro,
somente para me molhar. Não poderia demorar mais ainda ou ele
faria um inferno na minha cabeça. Não que eu realmente estivesse
preocupado de ajudá-lo, mas, droga, eu preferia qualquer coisa a ter
que ouvir a ladainha de reclamação do George nos meus ouvidos.
No entanto, assim que cruzei a porta do banheiro, ouvi meu
celular tocar em cima da cama. Droga, eu tinha certeza que era ele.
Atendo ou não atendo? Atendo ou não atendo? Atendo ou
não atendo?
Na dúvida, resolvi atender. Imaginei que seria ainda pior se
eu não atendesse. Corri para a cama, respirei fundo e aceitei a
chama, já pensando no que viria por aí.
— Oi?
— Oi?! — respondeu bem rígido do outro lado da linha. —
Eric, você sabe que horas são? Todos já estão aqui trabalhando e
só você não colocou os pés aqui ainda. Posso saber o que está
fazendo? Porque deve ser uma coisa muito importante para ainda
não ter chegado aqui.
Merda.
Mantenha a paciência, Eric. Mantenha a paciência.
— Eu já estou chegando. Estou a caminho — menti. Ainda
nem tinha saído de casa.
— Assim eu espero — replicou friamente. — Esteja aqui em
no máximo dez minutos — e subitamente desligou, sem me dar a
chance de falar mais nada.
Eu só podia ter jogado pedra na cruz para ter um pai como
esse. Só pedia aos céus que eu passasse logo na universidade e,
enfim, conseguisse minha tão sonhada independência. Moraria há
milhares de quilômetros dali.

❖❖❖

Não tive tempo nem de tomar café da manhã, apenas vesti


uma roupa, arrumei minhas coisas e saí de casa. Preparei uma
mochila com a roupa que usaria na festa, pois tinha certeza que
passaria o dia trabalhando no buffet e me arrumaria lá mesmo. Eu
só voltaria para casa no final da confraternização. Ou seja, depois
de todos os convidados irem embora.
Quando cheguei ao buffet onde aconteceria a festa, muitos
funcionários passavam de um lado para o outro, organizando todo o
espaço. As mesas e as cadeiras já estavam sendo postas, enquanto
a decoração também já estava sendo feita. Tudo cuidado nos
mínimos detalhes, para que tudo corresse na mais perfeita ordem à
noite.
Assim que entrei, logo avistei George, Tio Jimmy e Alex.
Estavam conversando próximos ao palco. Caminhei o mais rápido
que pude até lá, afinal já tinha demorado demais e meu pai poderia
estar soltando fogo pelo nariz. Não queria nem ver o que ele falaria
quando eu chegasse lá.
Porém, para minha completa surpresa, quando me aproximei
deles, George me tratou com uma total indiferença. Eu conseguia
ver a indignação em seu olhar, por causa do meu atraso. Porém, ele
me tratou como um nada, como se eu nem estivesse ali.
— Hey, tio Jimmy! Alex! — cumprimentei os dois.
Alex apertou minha mão com um grande sorriso, enquanto
Jimmy me deu um de seus abraços de urso.
— Meu menino, que bom que apareceu! — Jimmy falou. —
Estávamos só esperando por você! Olha só, George... — tocou no
ombro dele. — Seu filho chegou.
Ele nem ao menos olhou na minha cara, assim como também
fingiu não ligar para o que Jimmy falou. O tio, por sua vez, fez uma
cara para mim que se traduzia em “liga não, ele é cabeça dura
mesmo”.
— Acho que podemos ver se todos os fornecedores já
entregaram as encomendas que foram feitas — George falou tão
somente, dirigindo-se ao Jimmy. Ele realmente não se importou com
a minha presença.
Porém, ele não iria deixar passar totalmente em branco. E eu
tinha plena certeza disso.
— Podemos fechar os últimos detalhes também da
apresentação, George... — tocou novamente em seu ombro. Dessa
vez, se demorou mais no toque.
— Sim, é verdade. Vamos tratar logo disso, porque é o mais
urgente — consentiu. — Alex, por favor... — virou-se para o garoto,
o filho do Jimmy que estagiava na empresa. — Repasse ao Eric
essa lista de fornecedores e encomendas, e, sob sua total vigilância,
deixe que ele faça o checklist de todos os fornecedores que já
fizeram suas entregas, ok? Você sabe lidar com pessoas
irresponsáveis, não sabe? — falou de modo bem sério e ríspido,
sem ao menos olhar na minha cara ou esperar que algum de nós
dois falássemos qualquer coisa.
Tocou nas costas de Jimmy, como um sinal para que ele o
acompanhasse e logo saiu dali.
Bufei.
Era muita pretensão mesmo em me chamar de irresponsável!
Eu sabia que ele não deixaria passar em branco, e ele até poderia
me chamar de qualquer coisa, menos de irresponsável! Uma coisa
que definitivamente não era, era isso!
Senti meu rosto ficar vermelho de raiva. Primeiro, pela
injustiça. Segundo, por fazer isso na frente do Alex. Se ele quisesse
me chamar atenção, que fizesse isso em particular. E não na frente
dos outros!
— Não liga, Eric... — Alex deu uma pequena risadinha meio
sem jeito. — Ele só estava de cabeça quente...
De cabeça quente é o meu...!
— Eu deveria ir embora aqui agora — falei amargamente, me
controlando para não dizer coisa pior.
— Não faz isso... — aconselhou. — Seu pai só é cabeça
dura, mas eu sei que ele tá muito orgulhoso e feliz de te ver aqui.
E quem o Alex pensava que era para saber como meu pai se
sentia ou dizer o que eu deveria fazer?
— Isso é um saco! — soltei meio sem pensar.
Ele, no entanto, me deu um sorrisinho de canto de boca.
— George é uma grande pessoa, ele só não sabe lidar muito
bem com você às vezes. Mas tenha paciência e tente relevar
algumas coisas, que tudo vai dar certo!
Balancei a cabeça em negativo. Nem sabia o que pensar
diante disso, mas a única coisa da qual eu tinha plena certeza era
que não sabia da onde Alex tirou que meu pai era um grande
homem. Muito baba ovo, isso sim! Talvez tivesse aprendido com o
tio Jimmy, que era outro baba ovo, assim como alguns dos demais
funcionários.

❖❖❖

E, após um dia inteiro de trabalho, de dores de cabeça e de


estresses, o momento da confraternização chegou. O buffet estava
um verdadeiro luxo. Na verdade, ele já era luxuoso por si só, mas a
decoração feita deixou tudo muito mais requintado. Era um dos
buffets mais caros e bem frequentados de Londres. Somente
pessoas de classe alta o escolhiam para realizar seus eventos.
A chegada dos convidados estava marcada para começar às
vinte e uma horas e, impreterivelmente nesse horário, já podíamos
ver os primeiros chegando. Em pouco tempo, o espaço já estava
lotado e era composto pelos funcionários da empresa, engenheiros
e suas famílias, assim como também também por amigos dos meus
pais.
Não somente quem trabalhava na empresa foi convidado
para a cerimônia, mas também famílias que eram amigas da nossa
família. Era uma noite de festa, comemoração de números de
sucesso, confraternização pelo trabalho bem feito, e também de
boas-vindas aos novos engenheiros da companhia.
Eu sabia que uma família em especial tinha sido convidada: a
família do Liam. Claro, meus pais eram amigos há muito tempo dos
pais dele. Eles eram convidados para todas as festas da
construtora. Ou seja, aquela era somente mais uma. Porém,
diferentes das outras vezes, eu não sabia como reagiria ao ver o
moreno cruzar a porta de entrada.
Bom, minha mãe e Stefany estavam “fazendo as honras da
casa”, passavam de mesa em mesa, conversando, perguntando
como estavam, se precisavam de algo. Puxavam conversa como se
fossem amigas íntimas dos funcionários e dos engenheiros da
construtora. Enquanto isso, George e eu nos posicionamos na
entrada, recepcionando os convidados que chegavam.
Sinceramente, eu estava achando tudo aquilo muito tedioso!
Desde sempre, George me colocava neste posto em todas as
festas, junto a ele, como se quisesse que eu o acompanhasse em
tudo e fosse como ele em tudo, até nos mínimos detalhes, incluindo
recepcionar pessoas que não me despertavam o mínimo interesse.
Odiava ter que vestir aquelas roupas formais, blazers, calças
e sapatos sociais. Roupas essas que mal me deixavam respirar, me
sufocavam. E eu tinha também verdadeira repulsa em precisar ser
simpático com todo mundo, quando o que eu mais queria era estar
em outro local, na companhia de outras pessoas, fazendo outras
coisas. Todos ali me viam como o herdeiro, o futuro dono da
Construtora Hastings e isso me chateava ainda mais.
No entanto, de repente, senti como se a porta do paraíso
tivesse sido aberta. Talvez Deus tivesse sentido um pouquinho de
pena de mim e da minha situação. Lana chegou ao buffet,
acompanhada dos pais. Um rosto familiar e, principalmente,
agradável. Eu conhecia as outras pessoas e a maioria daqueles que
estavam ali era familiares para mim. Porém, não eram agradáveis
como ela.
Lana era da minha turma, tinha um jeito parecido com o meu,
pensava semelhante a mim. Não era como mais um daqueles
coroas que lotavam cada espaço vazio do buffet em questão de
poucos minutos. Queria tanto que meu pai me liberasse dali para
me sentar próximo a ela. Talvez, assim, eu não sentisse tanto o
peso daquela noite.
Mas, isso era um sonho muito utópico. Se George me
liberasse dali, seria para fazer outra coisa ou assistir a tediosa
cerimônia.
— Ora ora, finalmente chegou! — ouvi George falar, todo
animado. — Christian e Marta, sejam muito bem-vindos à festa de
confraternização da Construtora Hastings! Estou muito feliz por
estarem aqui! — apertou as mãos de ambos. Lana vinha logo atrás
e não tirava os olhos de mim, assim como eu não tirava os olhos
dela. Estávamos um sorrindo para o outro. E ela estava linda, como
sempre.
— Muito obrigado pela recepção, George! — o pai da Lana
respondeu. — Eu e Martha ficamos muito agradecidos. Olha, quero
te apresentar minha filha... — apontou para a ruiva. — Esta é Lana
Camp. Lana, este é George Hastings, o dono da companhia —
apresentou ambos.
Meu pai a cumprimentou muito simpático, o que era um
milagre, porque, por Deus, quando esse homem era simpático? E
Lana, como sempre, foi muito educada.
Entretanto, o que achei um pouco esquisito, no primeiro
instante, foi o nome “Camp”. Por que ele a apresentou como Lana
Camp e não como Lana Hill? Um pouco estranho. Mas, tudo bem,
talvez o nome dela fosse Lana Hill Camp e preferisse ser chamada
pelos amigos como Lana Hill.
— Quero apresentar a vocês também o meu filho, o futuro
dono da companhia! — George disse todo orgulho. Argh! “Futuro
dono da companhia”?! Me poupe. Por que ele tinha que me
apresentar assim? Bastava dizer “quero apresentar a vocês meu
filho Eric”. Só isso!
Apesar disso, os cumprimentei com muita educação e
simpatia. Ambos pareciam ser muito gentis e legais. Porém, no
momento em que foram apresentar Lana a mim, tiveram a surpresa
de já nos conhecermos e gostaram de saber que já éramos amigos
e colegas de turma.
Quis falar algo como “me salva disso aqui, Lana”, no
momento em que passaram por mim para se sentarem, mas George
foi mais rápido, apontando a mesa para onde deveriam ir e fazendo
com que os três fossem logo para lá.
— Fiquem à vontade! A mesa de vocês é aquela que está
reservada daquele lado esquerdo — meu pai apontou, fazendo-os
seguir para lá.
Ainda observei por alguns instantes Lana se afastar dali com
seus pais. Queria acompanhá-la e poder fugir das vistas do George,
mas eu não conseguiria isso. Era melhor eu me conformar de que
meu destino era aquele: ficar recepcionando convidados até minhas
bochechas doerem, graças ao sorriso falso.
Porém, quando me virei para frente, a fim de recepcionar os
outros convidados, dessa vez, quem apareceu foi a família do Liam.
Meu Deus. Prendi a respiração e paralisei. Na frente, entraram Liam
pai e Claire, e atrás estavam Molly e Liam. Nossa, ele estava... Sem
palavras!
Eu não tinha nem adjetivos pra descrever a beleza dele.
Conseguiria descrever a beleza de qualquer outra pessoa, mas a
dele não. Com um blazer e calça social, estava... Meu Deus. E pior:
eu não consegui disfarçar. Olhei mesmo descaradamente para ele e
para cada centímetro dele.
George os cumprimentou com muita simpatia e eu também
tentei fazer a linha de que estava tudo bem, mas não consegui tirar
os olhos, um minuto sequer, do moreno. Ele, porém, não olhou um
minuto sequer para mim. A não ser durante dois segundos, por pura
cordialidade, quando apertei sua mão e ele apertou a minha de
volta, já que seria estranho se nós não nos cumprimentássemos.
— Queridos, fizemos questão de colocar vocês para se
sentarem em nossa mesa. Por gentileza, se sentem. É aquela onde
Cynthia e Stefany estão, bem em frente ao palco — apontou para lá,
fazendo com que a família Tremblay seguisse.
Perfeito. Como se não bastasse a companhia tentadora do
Liam, ele ainda ficaria na mesma mesa que eu. George acertou em
cheio, para não dizer o contrário! Só Deus sabia como eu iria
aguentar até o final da festa sem poder fazer nada, tendo ele tão
próximo a mim.
❖❖❖

Poucos minutos depois que a família do Liam chegou, foi


dado início a cerimônia, uma vez que todos os convidados já
estavam presentes. Quem estava comandando a apresentação no
palco era o George e o tio Jimmy. Apresentação essa que foi feita
por mim, diga-se de passagem, com algumas ajudas do Alex.
Ainda não sabia como George não tinha me obrigado a subir
naquele palco para apresentar com eles também. Ao menos, às
vezes, parecia que ele tinha surtos de lucidez e bom senso. Meu pai
tinha plena consciência de que eu odiaria fazer isso, já bastava ter
preparado toda a apresentação.
No palco, Jimmy e ele apresentavam todos os números e as
conquistas da empresa pelas quais estávamos comemorando
naquela noite. Todos os funcionários e engenheiros estavam
entusiasmados com o sucesso. Aplaudiam e assobiavam em
determinados momentos.
Porém, eu observava em volta, especialmente quem estava
na minha mesa: Liam. A mesa em que estávamos era circular, bem
de frente para o palco. Do meu lado esquerdo estava Stafeny e do
meu lado direito estava minha mãe. Do lado minha mãe estava
Claire, do lado dela Liam, e depois Molly.
O moreno permaneceu praticamente imóvel, enquanto olhava
de maneira fixa para o palco e para apresentação. Todavia, por mais
que demonstrasse estar prestando atenção, parecia distante. As
únicas vezes que se mexia era para pegar outra taça de champanhe
ou vinho, ou para falar com Molly ou sua mãe.
Não me olhou nenhuma vez, enquanto eu, mesmo assim,
ainda dei algumas olhadas nele. Nenhum contato visual, nada. Era
como se eu estivesse invisível para ele. E não adiantava eu fazer
absolutamente nada para chamar atenção, porque tinha certeza que
não adiantaria. Liam parecia ter se escondido dentro de si.
Apesar dos pesares, eu não tinha que estar preocupado com
nada disso. Foi ele quem quis assim, foi ele quem decidiu isso, foi
ele quem não quis voltar.
Por isso, volvi meu olhar em outra direção, que,
displicentemente, recaiu sobre a mesa da Lana, do outro lado.
Estava estonteante, muito educada e refinada. Uma verdadeira
dama. Era engraçado como ela poderia adquirir vários jeitos,
trejeitos e atitudes, conforme o ambiente onde estivesse.
De repente, seu olhar cruzou com o meu, quando se virou
para pegar mais um champanhe com o garçom. Sorriu para mim,
afetuosamente. Tão doce, tão linda. Pegou a nova taça com o
garçom e discretamente ergueu em minha direção, como se
estivesse brindando comigo. Sorriu como um anjo.
E eu só desviei meu olhar, quando todos a minha volta
começaram a aplaudir, tirando a minha atenção. Parecia que depois
de longos quarenta minutos, a apresentação, enfim, havia
terminado. Olhei para frente, em direção ao telão, e realmente
estava no último slide, feito por mim.
— Muito obrigado, queridos! Muito obrigado! — George falou,
em meio aos aplausos. — Vocês fazem parte de todos esses
números. Foi graças a vocês que nós alcançamos essas metas.
Então, não teríamos conseguido todos esses grandes feitos, sem a
ajuda de cada um.
Após isso, todos deram mais uma grande salva de palmas.
Quando George queria, ele realmente era falante, educado,
gentil. Talvez com todas as outras pessoas ele fosse legal, menos
comigo. Talvez Alex estivesse certo, e até Jimmy. Porém, aquilo que
eles falavam não se aplicava a nossa relação.
— Queridos, muito obrigado! — meu pai agradeceu mais uma
vez. — Mas, agora, quero apresentar uma pessoa a vocês. Temos
mais um grande nome se juntando a esta companhia, para que
esses números apresentados continuem assim e cresçam ainda
mais. É um grande engenheiro, um grande nome da engenharia da
Inglaterra. Quero apresentar a vocês nosso mais novo engenheiro
da companhia: Christian Hill Camp e sua família, Martha Camp e
Lana Camp!
No entanto, no mesmo instante em que todos aplaudiram
para receber Christian, Marta e Lana no palco, Liam, que estava
verdadeiramente imóvel, desde o início, e sentado à mesma mesa
que eu, teve uma súbita crise de tosse, ao se engasgar com o
champanhe. Notei Molly dando algumas batidinhas em suas costas,
enquanto Claire perguntava se ele estava bem.
Mas “bem” não era uma palavra que chegava nem perto de
descrever como ele estava. Liam estava branco, pálido, a não ser
pelas bochechas um pouco vermelhas, graças a falta de ar da tosse.
E eu notei que ficou muito mais branco no exato instante em que
Christian subiu ao palco com Martha e Lana. Parecia que tinha visto
um fantasma ou algo do tipo. Quando finalmente parou de tossir,
encarou boquiaberto todos eles.
Era você o tempo todo

Liam

Senti como se minha cabeça tivesse explodido.


Desde o primeiro instante que eu tinha pisado naquela festa,
tentei ser o mais invisível possível. Só queria voltar para casa e ficar
em um lugar onde Eric não pudesse ser minha tentação. Mas, porra,
depois do que vi e ouvi, eu não tinha mais condições de agir com
indiferença.
Não tinha mesmo!
Lana Hill Camp! CAMP!
Christian Hill Camp!
Martha Hill Camp!
LUKE Hill CAMP!
Como? Quando? Onde? Eu não conseguia entender! Meu
Deus, o que tinha acontecido? Quantos anos eu tinha dormido?
Minha cabeça explodia a cada a instante em que eu via Lu... Lana
no palco!
Não podia ser...
Não podia ser.
Não podia ser!
Eu me recusava acreditar! Não dava para acreditar! Aquilo
era praticamente impossível para mim!
Mas... Porra!
Não tinha como não ser. Era inexplicável para mim. Eu nem
sabia o que estava pensando ou que pensar. Me sentia tão confuso,
desnorteado. Como eu não pude ter percebido antes? Estava tão na
minha cara! Mas... Não podia ser! Era inacreditável!
Porém, entretanto, contudo, todavia, precisávamos ir aos
fatos:
1º - Eu conhecia Christian e Martha Camp. Eles eram os pais
do Luke, e eu os conhecia porque Luke e eu éramos, tipo, melhores
amigos. Na época que moravam em Londres, eu vivia na casa
deles! Ia jogar com o Luke, andar de skate com o Luke, fazer
qualquer coisa com o Luke! E, bom, eu me lembrava muito bem que
Luke não tinha irmãos, muito menos uma irmã! Era impossível que
em dois ou três anos Christian e Martha tivessem uma filha que
cresceu em tempo recorde! Era impossível!
2º - Luke sempre era chamado por todos como Luke Camp,
CAMP! Mas, eu não tinha me ligado até então, porque, porra, como
eu ia imaginar que ele...? Nossa! Talvez a Lana preferisse ser
chamada por Hill, já que o sobrenome Camp lembrava muito o Luke.
Mais um motivo para eu não ter me ligado.
3º e mais importante - Ela era a cara do Luke! Porra! Como
eu pude ser tão burro?! Claro, com algumas ressalvas. Se você
olhasse sem prestar muita atenção, poderia, com toda certeza,
passar despercebido. Nossa, estava uma mulher linda! Uma mulher
todinha! Em NADA se parecia com um homem. Mas, quem conhecia
Luke muito bem, se parasse para observar com mais cuidado, o
veria por trás dos traços. O formato da boca, o queixo, o nariz, os
olhos... Era tudo do Luke, mesmo com a feminização facial!
Meu Zeus, como eu pude ter sido tão idiota?!
Era ele! Era ele o tempo todo! Meu (ex)amigo Luke!
Me inquietei ainda mais na cadeira. Eu precisava falar com
ele! Ela! Agora! Alguém tinha que me tirar dali! Alguém tinha que
tirar ela de cima do palco! O que eu ia fazer? Meu coração estava
quase saindo pela boca de tanta ansiedade e nervosismo! Era ele!
Era ele! Era ele!
Um misto de sensações de atingiu. Uma mistura de surpresa,
ansiedade, nervosismo, inquietação, culpa, saudade... Saudade! Eu
queria meu amigo de volta. Onde ele estava esse tempo todo? Eu
queria falar com ele! Quer dizer, com ela! Sei lá... Eu só queria meu
amigo de volta, ok? Eu queria pedir desculpas pelo que fiz no
passado! Meu peito gritava de vontade de pedir desculpas!
Durante muito tempo eu me ceguei. Eu quis fingir que a
maneira como tinha agido com ele estava certíssima, mas tudo não
tinha passado de uma grande estupidez! Eu fui um completo
hipócrita e preconceituoso com ele! Depois de tudo o que eu passei
nos últimos tempos, me sentia como outra pessoa e tinha plena
convicção das minhas atitudes erradas de antigamente. Eu sabia
que uma dessas atitudes tinha sido a maneira como tratei Luke.
Respirei fundo, tentando me acalmar. Eu precisava falar com
ele!
Molly, no entanto, percebeu minha inquietação na cadeira.
— Tá tudo bem, Liam? — notei certo estranhamento em seu
tom de voz.
Pigarreei a garganta antes de falar. Eu estava quase sem
fôlego.
— Tá tudo bem sim... —tentei disfarçar com meu tom de voz.
Talvez eu não tivesse passado tanta segurança, mas Molly
aparentemente aceitou o que eu disse, já que preferiu não entrar em
mais detalhes sobre o que estava acontecendo.
Eu estava tão imerso em pensamentos que nem prestem
atenção no discurso de agradecimento do Sr. Camp pelas boas-
vindas, apenas olhava fixamente para Lu... Lana. Era como se eu
visse meu amigo por trás de tudo... Da maquiagem, do vestido, dos
cabelos longos. Era uma mulher completa, perfeita, linda. Não tinha
absolutamente nada de um homem. Mas eu ainda conseguia
enxergar Luke.
E consegui acordar somente daquele “quase sono profundo”
que eu estava, quando todos aplaudiram, sinalizando que o discurso
tinha acabado, e Christian, Martha e Lana voltaram para sua mesa.
Era agora! Eu tinha que encontrar uma maneira de falar com ele!
Ela! Precisava, necessitava conversar! A certeza gritava dentro do
meu coração, mas eu tinha que ouvir a confirmação diretamente da
sua boca.
Mas, como? Como eu conseguiria arrancá-la daquela mesa?
Então, no segundo seguinte, como uma resposta para
minhas preces, vi que Lana não se sentou em sua mesa. Christian e
Martha sentaram, mas Lana seguiu. Parou apenas para pegar sua
bolsa que estava em cima da mesa e seguiu. Meu coração acelerou
ao constatar que ela estava indo para algum lugar. Esse era o
momento! Eu não poderia perder essa chance!
Subitamente levantei da cadeira, quase arrastando a toalha
de mesa junto comigo, de tão rápido que eu fui. Muito
provavelmente todos os que estavam sentados comigo, olharam
para mim, mas segui antes que a perdesse de vista. Notei que
estava displicentemente caminhando em direção aos banheiros do
buffet.
Apressei o passo.
E, quando vi que estava prestes a puxar a maçaneta da porta
do toalete feminino, segurei seu braço, impedindo-a de seguir em
frente.
Lana virou-se um pouco assustada, graças ao modo como
seu braço foi repentinamente preso. E pareceu ainda mais
assustada quando me encarou. Seus olhos se abriram duas vezes
mais. Provavelmente, não esperava me encontrar ali.
Estávamos de frente um para o outro. O meu passado e o
meu presente em uma só pessoa. Respirei fundo e engoli a seco.
Era ele. Era indiscutivelmente ele. Mas eu precisava ouvir da sua
boca. Eu necessitava que ele mesmo me desse a confirmação.
Meu coração estava realmente saindo pela boca. Eu nem
sabia como tinha conseguido chegar até ali. Talvez tivesse sido a
adrenalina ou sei lá o quê. Ou a vontade de saber de toda a
verdade. Ou a culpa. Ou a saudade... Sim, a saudade... Meu Deus,
que saudade! Uma saudade que ficou adormecida tanto tempo
dentro de mim, quando eu tentava me convencer de que a minha
atitude do passado tinha sido certa.
— Lana... — Eu quase não conseguia respirar. — Eu... —
Meus olhos demonstravam tanta necessidade. Eu tinha tanta
certeza disso. — Eu preciso conversar contigo. Agora mesmo —
pedi, encarando-a no fundo do seu olhar.
E ela me encarou de volta.
E seu olhar me dizia tudo.
Estava assustada. Ela sabia.
Eu tinha certeza que sabia!
— E-Eu... — gaguejou, completamente assustada. — Eu
estou com pressa... Depois nos falamos — desconversou e virou-se,
tentando se sair da situação, mas eu continuei a segurando pelo
braço.
Era agora! Eu tinha que falar, não podia deixar ela sair dali
sem que me dissesse nada!
Coragem, Liam. Coragem.
— É você, não é? — perguntei. A voz um pouco trêmula. O
medo, o nervosismo, por uma sombra de incredulidade que quis
passar. — Eu sei a verdade. Eu sei quem é você... — disse tão
somente. A vontade de chorar quis surgir. Eu sentia tantas coisas.
Tantas inexplicáveis coisas.
E ela, que estava de costas tentando fazer com que eu
soltasse seu braço, parou subitamente. Soltei seu braço, ela não
fugiria mais.
— Eu sei... — continuei. Estava sem ar, sem chão. Meu
coração retumbava em batidas fortes e descontroladas no peito. —
Eu sei que é você... Luke — soltei o nome no ar, estremecendo
todas as poucas estruturas que eu ainda tinha. — Lana, você é o
Luke, não é?
De repente, ela, que estava de costas, virou-se de frente para
mim, séria e calada. Seu olhar estava duro feito pedra e eu os vi
coberto de ressentimentos. Era ele. Era ele sim. Se Lana fosse
somente Lana, jamais me olharia desse jeito, sem eu ter feito nada.
De súbito, segurei em seu braço e a puxei dali. Ela se deixou
levar, sem apresentar mais alguma resistência. Caminhei pelo
corredor, com braço ainda preso em minha mão, e fui em direção ao
pátio de fora, onde havia um jardim. Em nenhum momento Lana
perguntou o que eu estava fazendo ou para onde íamos. Apenas foi,
calada.
Era ele! Era ele!
E ele sabia que não adiantaria fugir, porque já estava muito
na cara.
Quando chegamos ao pátio de fora, estava vazio, apenas
alguns funcionários passavam de um lado para o outro. O silêncio
reinava, pois a festa acontecia na parte de dentro. Apenas o som do
vento chegava aos nossos ouvidos. Apenas o som do meu coração
martelava na minha cabeça.
Virei para ela, em determinado ponto do pátio, soltando seu
braço. Ainda me encarava séria, calada, fria como uma pedra de
gelo. O ressentimento estava claro em seu olhar e na maneira como
seu corpo se comportava. Estava dura, sem demonstrar qualquer
daquela simpatia que usava com todos.
— Vai... Me fala — pedi. — É você, não é? Luke? — e seu
nome saiu da minha boca com tanto sentimento. Por mais que
sempre tivesse lutado para apagá-lo da minha memória, eu nunca
consegui. Ainda me lembrava de tudo. Da nossa amizade, do nosso
companheirismo.
E ela continuou calada, impassível. Seu rosto não
demonstrava uma emoção sequer. Estava dura, como se fosse oca
por dentro, sem sentimento algum. Mas, eu ainda via o
ressentimento em seu olhar.
— Você pode até fingir que não, me garantir que não é, mas
eu não acredito... — continuei. — Você está uma mulher completa,
perfeita, linda. Não tem nada de um homem. Mas, eu consigo ver o
Luke no seu olhar, no seu nariz, no seu queixo, na sua boca... —
suspirei. E, no segundo seguinte, perguntei quase como uma
súplica. — É você, não é? Era você o tempo todo... Meu amigo
Luke.
Então, quando me calei, seu olhar, que mais parecia uma
pedra de gelo, acabou se tornando um rio de lágrimas prestes a
arrebentar.
— Seu amigo Luke? — com o cenho franzido e o semblante
ligeiramente indignado, ela perguntou. — Amigo? Eu pensei que
você tivesse dito que não era amigo de gay — e parou de falar,
porque senão as lágrimas cairiam. Fechou a boca em uma fina linha
tensa.
Oh meu Deus! A confirmação!
— Então, é você! É você mesmo! — E eu queria sorrir. E eu
queria chorar. Na verdade, eu nem sabia o que eu queria fazer.
Talvez eu quisesse explodir. — Meu Deus, é você! — segurei firme
seus ombros, chacoalhando um pouco. — Meu Deus, eu senti tanto
a sua a falta!
E eu quis abraçá-la, mas ela prontamente deu um passo para
trás, se afastando.
— Não toca em mim — replicou bem séria. Seus olhos ainda
eram um mar de lágrimas. — Acho que eu não tenho mais nada pra
falar com você. Se era a confirmação que você queria, agora você
tem. Por favor, me dê licença.
Quis passar por mim, assim que se calou, mas eu a segurei
pelo braço novamente.
— Espera! — pedi. — Por favor, fica... — supliquei não só
com as palavras, mas também com os olhos. — Eu preciso
conversar com você... — dei ênfase na palavra “preciso”. — Senti
muito a sua falta durante todo esse tempo...
Quando se virou mais uma vez em minha direção, vi um traço
de saudade correr em seus olhos molhados. Saudade, falta... Olhou
para mim como se sentisse a mesma coisa que eu, ou até mais. No
entanto, no segundo seguinte, retomou a postura anterior,
encarando-me como se eu fosse um inseto... Um inseto desprezível.
— Eu estou certa de não tenho mais absolutamente nada pra
falar contigo — respondeu com seriedade. — Agora eu preciso ir
mesmo. Tem outras pessoas conhecidas nessa festa e eu não quero
que elas também percebam. E, por favor, o meu nome é Lana.
Puxou seu braço com mais força, para que eu a soltasse e
saiu sem me dar a chance de dizer mais nada. Fiquei parado
sozinho no pátio, vendo-a se distanciar de mim. Mais uma vez.
Todavia, eu tinha a confirmação. Era ele!
Meu amigo Luke. Meu melhor amigo Luke. Aquele que jogava
comigo, que andava de skate comigo... Que me ensinou a andar de
skate, que caiu comigo e machucava os joelhos no asfalto, que ria
da minha cara quando eu errava uma manobra, que era meu
confidente, companheiro, ouvinte de segredos... Era ele.
Agora ela. Lana.
Ou talvez sempre tenha sido ela. Desde que nasceu. Eu que
não soube enxergar.
Então, enquanto eu ainda estava parado no meio pátio,
pensando em tudo o que tinha acontecido e mais confuso do que
qualquer outra coisa, ouvi a voz da Molly falar ao meu lado.
— Hey, Liam... — Seu tom parecia meio incerto, como se
tivesse achado algo estranho. — Tá tudo bem? Eu vi um climão
entre você e aquela novata do colégio lá perto dos banheiros. Aí,
decidi vir aqui fora, para saber o que estava acontecendo...
Virei-me para ela.
Molly conhecia Luke. Por mais que a diferença de idade fosse
de uns dois anos e ela ainda fosse novinha na época em que ele
andava na minha casa, ela o conhecia. Poderia não lembrar bem ou
não ter prestado muita atenção, mas ela o conhecia. E Lana foi
muito clara, não queria que outras pessoas soubessem.
Eu não poderia vacilar de novo com ela assim.
— Tá tudo bem sim, Molly. Pode ficar tranquila — falei. — Eu
só vim aqui fora para tomar um ar mesmo. Aquela cerimônia estava
muito entediante — dei uma pequena risadinha para tentar quebrar
o gelo.
— Tem certeza? — perguntou.
— Absoluta.
A mulher mais incrível

Liam

Passei todo o caminho de volta para casa mais calado do que eu já


estava durante toda a cerimônia. Porém, enquanto eu fazia silêncio
por fora, por dentro eu gritava! Minha cabeça estava uma bagunça.
Tão bagunçada quanto nunca esteve. Na verdade, nos últimos
tempos, minha vida era uma grande bagunça.
Lana não quis conversar comigo, não quis trocar nenhuma
palavra sequer. E, bem, errada ela não estava, né? Fui muito
escroto com Luke no passado, e preferia nem imaginar quais foram
as consequências daquela noite para a vida dele. Cara, eu era o
melhor amigo dele! E melhores amigos não faziam aquele tipo de
coisa.
Em nenhum momento do resto da confraternização, ela me
olhou. Voltei para casa pensando nisso, e, quando cheguei, fui
direto para o meu quarto. Me joguei na cama e fiquei olhando para o
teto. Parado, estático. O que acontecido com a minha vida? O que
tinha acontecido com a vida do Luke?
Estávamos longe há tanto tempo que eu sequer fazia ideia de
onde sugira a vontade de... De... Deixar de ser Luke. Suspirei. Nada
fazia sentido. Nada. Se eu não poderia pensar que ele era gay,
imagina só considerar que gostaria de ser mulher? Não, não. Ele
não aparentava isso em nada. Nunca.
Bom, eu não sabia como era quando ele estava em casa
sozinho, mas, quando estava comigo, era um menino por completo.
Conversávamos sobre as meninas que queríamos ficar, e até
disputávamos algumas. Por isso, durante muito tempo, não aceitei a
sua orientação sexual. Não aceitei quando me disse que gostava de
garotos.
Lembrava perfeitamente bem das vezes em que falávamos
de mulheres. Tínhamos por volta dos dezesseis anos e esse era um
dos nossos principais assuntos. De fato, algumas vezes, Luke
soltava algumas coisas sem sentido, que até me deixavam um
pouco reflexivo. Mas, eu não ligava, para mim estava tudo bem,
Luke era hétero. Na minha cabeça, era.
Na manhã do dia seguinte, acordei com minha cabeça
pesada. Achava que era de tanto pensar em tudo o que tinha
acontecido. Eu ainda não tinha conseguido assimilar tudo aquilo
direito, assim como também ainda sentia uma extrema necessidade
de conversar com ela. Primeiro, eu tinha a curiosidade de entender
como ela tinha chegado até aquele ponto, já que, em nenhum
momento da nossa adolescência, isso tinha passado pela minha
cabeça, e, segundo, eu precisava pedir desculpas, porque era uma
questão de honra para comigo mesmo.
Tomei o café da manhã tão introspectivo quanto qualquer
outro dia da minha vida e fui para o colégio ainda pensativo. Não
estava me ligando nem na porcaria que tinha se tornado frequentar
aquele colégio. Eu só conseguia pensar na Lana e em quanto a
minha vida tinha se tornado surreal.
Quando cheguei ao colégio, pouco me importei com os
típicos burburinhos, aquelas fofoquinhas e risadinhas que me davam
nos nervos. Praticamente não me importei mesmo, a minha cabeça
estava em outro lugar. Como ainda faltavam alguns minutos para o
toque sinalizar o início da aula, fui até o pátio.
Chegando lá, avistei Noah sentado no gramado, debaixo de
uma árvore, local onde ele sempre ficava lendo algum livro.
Admirava isso nele. Não se preocupava em estar sozinho e até
gostava de ficar assim, apreciava sua própria companhia. Não que
ele não gostasse de ter amigos, mas, se não tivesse, era amigo de
si próprio. Definitivamente, eu tinha de aprender muitas coisas com
Noah.
Caminhei até ele e, quando me viu, sorriu, fechando o livro
logo em seguida. Sentei ao seu lado, debaixo da sombra da árvore.
Notava que as pessoas ainda cochivavam, com semblantes um
pouco chocados, quando eu me aproximava dele. Mas, isso era
mais uma das coisas que eu não estava mais ligando. Ele era meu
amigo e pronto. Ninguém tinha nada a ver com a nossa vida.
— E aí, irmão! — dei dois tapinhas em suas costas,
cumprimentando-o. — Tudo de boa?
— Tudo bem sim! — respondeu. — Eu estava aqui só lendo
mesmo...
— Tava lendo o que? — perguntei, puxavam de sua mão,
para ver o nome do título.
— Ah, era só um livro sobre como sobreviver ao ensino
médio... Nada demais... — Soltou uma risadinha irônica e eu o
acompanhei na risadinha também.
Quando vi o título, na verdade, era algo relacionado à
espaço, estrelas, planetas. Noah era mesmo um amante do
universo. Afinal, nerd é nerd, né?
— Ansioso pra seleção das universidades que vai ser nessa
semana? — questionei, mas o frio na barriga que eu senti somente
de pensar nisso foi sem igual. — Conseguiu estudar mais alguma
coisa?
— Muito! — replicou com ênfase. — Tô muito ansioso,
nervoso, sei lá... — suspirou. — Por isso que não estudei mais nada
depois daquele dia que fui na tua casa. Acho que chegou a hora de
dar um tempo e descansar a mente até a prova — explicou. — E
você estudou?
— Que nada... — falei. — Minha cabeça tá muito cheia
nesses últimos dias e acho que vou acabar adotando essa sua
filosofia aí de tentar descansar a mente até o dia da prova. Acho
que o que a gente tinha pra estudar, a gente já estudou.
Noah acenou um sim com a cabeça, consentindo comigo.
Porém, assim que eu me calei, vi as duas pessoas mais
responsáveis pelas minhas confusões mentais dos últimos tempos,
entrando no pátio juntos: Lana e Eric.
Parei tudo e fiquei descaradamente mirando nos dois. Nem
disfarçar eu conseguia... Vê-los juntos era... Curioso. Caminhavam
despreocupados, conversando pelo pátio, até se sentarem em um
dos banquinhos. Lana sorria e Eric também, pareciam quase amigos
de infância. Estavam tão entrosados.
Quis sentir um pouco de ciúmes, não somente por Eric, mas
também por Lana. Era o cara por quem eu era apaixonado
conversando com Lana. Era o meu antigo melhor amigo
conversando com Eric. Mas, ao mesmo tempo... Eu não conseguia
ficar com raiva, nem sentir ciúmes de fato, o que foi bem confuso
pra mim.
Eric era um cara incrível, a melhor pessoa com quem eu já
me relacionei. E eu nunca gostei de alguém o tanto quanto eu gostei
dele. Por outro lado, eu não me sentia suficiente para ele. Meu
subconsciente gritava que eu não seria capaz de suprir suas
necessidades. E fui eu quem pedi pra terminar, fui eu quem não quis
terminar.
Eu praticamente disse para ele seguir em frente. E, vendo os
dois conversando daquele jeito, parecia que ele tinha seguido
mesmo.
Lana não ficava atrás. Se ainda tivesse a mesma
personalidade e os mesmos princípios do Luke, era sim uma das
melhores pessoas com quem Eric poderia estar. E, depois de tudo o
que eu fiz, só desejava que ele, agora Lana, tivesse tudo de melhor
nessa vida. Não somente pelo que eu fiz, lógico, mas também
porque era uma boa pessoa. Sempre foi.
E eu sabia que mesma sendo Lana, ainda carregava a
essência de pessoa boa do Luke. Eu constatei isso somente pelo
traço de saudade em seu olhar que vi no dia anterior.
Eram duas boas pessoas. Eu reconhecia isso. E, por mais
que eu quisesse sentir um pouco de ciúme por ambos, vê-los juntos
e ter a consciência de que os dois fariam bem um ao outro, me
soava como maturidade, e isso era como uma redenção para mim.
No entanto, de repente, algo estranho ali começou a
acontecer...
Em um piscar de olhos, um burburinho começou. Aquele
típico burburinho que eu odiava. A diferença era que os olhares não
estavam indo em minha direção, como costumeiramente acontecia.
Os olhares preconceituosos, julgadores, sarcásticos e irônicos, as
risadas maldosas e caluniosas estavam indo em direção a... Lana.
Ah não.
Meu peito apertou imediatamente.
Eu não sabia o que estava acontecendo, não sabia o motivo
daquilo, mas eu sentia... E o que eu sentia me dava medo.
Lana não demorou muito para perceber o furdunço por ali.
Notei-a totalmente desconfortável. Olhava confusa para Eric, pois
não fazia ideia do que estava acontecendo, assim como ele também
não sabia. Senti que começou a ficar nervosa, assim como eu
também estava.
Foram segundos longos e eternos perguntando a mim
mesmo o que estava acontecendo, até que, de súbito, a resposta
surgiu.
Senti meu celular vibrar no meu bolso. Parecia que uma
mensagem havia chegado. Tirei-o e desbloqueei a tela, realmente
era uma mensagem. Porém, quando a abri... Meu coração se
quebrou em um milhão de pedaços.
Era a pior coisa que poderia acontecer. Muito pior do que
tinha acontecido comigo. Zilhões de vezes pior do que tinha
acontecido comigo. Era perverso, maldoso. Uma maldade sem
tamanho, sem precedentes, muito além do que qualquer pessoa que
estivesse nessa situação pudesse aguentar.
Fechei os olhos e levei as mãos ao meu rosto. Não. Aquilo
não podia estar acontecendo. Não podia! O tanto que ela já tinha
passado na vida, e agora aquilo? Por que as pessoas tinham que
ser assim? Por que o mundo tinha que ser assim?!
Respirei fundo, fazendo de tudo para acreditar que aquilo não
passava de um grande e terrível pesadelo.
No entanto, quando abri os olhos novamente. Todos os
alunos que estavam ali, todos, sem exceção alguma, seguravam
seus celulares e riam, enquanto olhavam para Lana. Eles também
tinham recebido a mensagem. A pior mensagem de todos os
tempos.
Era uma imagem. Uma terrível imagem, carregada de ódio e
preconceito. Nela tinha uma montagem, onde o rosto era de Luke,
da época em que era um menino, e o corpo era de Lana, o de agora
como mulher. Na outra, tinha um antes e depois de rosto e corpo
completo.
Era inacreditável.
Inacreditável a capacidade que as pessoas tinham de ser tão
nojentas!
E como tinham descoberto, meu Deus?!
Provavelmente, isso era obra dos mesmos fofoqueiros que
haviam feito o mesmo comigo e espalhado os boatos sobre o
caderno do Eric. Sim, com certeza, sem sombra de dúvidas, foram
eles.
E eu vi o exato instante em que Eric, um pouco trêmulo,
ergueu o celular em direção a Lana, tão em choque quanto eu, para
que ela tivesse ciência do que estava acontecendo. Ele estava
pálido, pois, com certeza, não sabia a verdadeira história sobre ela,
e somente naquele momento, graças àqueles imundos do colégio,
estava sabendo.
Quando a ruiva tocou no celular e viu o que estava ali, levou
uma das mãos a boca. Seus olhos imediatamente se encheram
d’água, cujas lágrimas saíram sem quaisquer barreiras. Era como
um rio sem limites, sem pudor.
Ergueu os olhos castanhos e incrédulos para Eric, que estava
tão surpreso quanto ela, enquanto eu olhei em volta. Todos riam,
todos chacotavam, todos. Todos. Sem exceção. Era um circo, um
show de horrores. Tocaram em um assunto delicado que só deveria
vir à tona com a autorização de Lana e mais ninguém.
E, naquele instante, uma raiva, um ódio, subiu por cada
centímetro do meu corpo. Eu queria explodir, eu estava farto!
Cansado de tudo! Cansado do preconceito, cansado daquelas
pessoas, cansado daquele colégio, cansado daquela mentalidade
atrasada, cansado do preconceito sofrido por mim, que, até aquele
dia, estava aguentando a duras penas, e, principalmente, cansado
do preconceito com Lana!
Não suportava mais passar pelos corredores e ouvir
piadinhas. Não suportava mais aqueles olhares preconceituosos em
minha direção. Não aguentava mais aquelas risadinhas sarcásticas.
Eu não aguentava! Já estava passando da hora daquilo ter um
basta! E eu não aguentaria, não suportaria, que a mesma coisa
acontecesse com a Lana. Eu tinha aguentado até então, porque
aquilo era somente comigo. Mas, não aguentaria vê-la passar por
tudo aquilo também.
Senti o gosto de fel subir pela minha boca. Era amargo e era
mais um sinal de que eu não deveria me calar. Aquela era a hora. E,
então, de súbito me levantei da grama e, no meio do pátio, gritei:
— Hey! — Em menos de meio segundo, o barulho de risadas
e chacotas acabou e tudo o que tinha ali era o silêncio. Não me
tratavam mais com uma pessoa popular, mas qualquer coisa que eu
fizesse, arrancava involuntariamente a atenção de todos. — O que
pensam que estão fazendo?! — e eu tinha absoluta certeza de a ira
estava explícita nos meus olhos. — Quem vocês pensam que são?!
— encarei a todos em volta com seriedade. — Não passam de
preconceituosos de merda! Merecem a cadeia por crime de
homofobia! Muitos países já consideram isso como crime, sabiam?!
— continuei os encarando. Eu estava ofegante de raiva, de ódio. —
O que vocês estão fazendo não tem perdão, não tem desculpas.
Parem! Eu disse, parem! E deixem essa garota em paz! Vocês não
têm o direito de humilhar ninguém pelo que são! Respeitem as
pessoas, respeitem a escolha das pessoas! Vocês não têm nada a
ver com a vida de ninguém! — disse pausadamente e com ênfase
em cada palavra. — Essa garota... — apontei para Lana, que
estava com seu rosto lindo nada menos que banhado de lágrima e
vermelho de choro. — É a MULHER mais incrível que vocês vão ter
a oportunidade de conhecer na vidinha medíocre de vocês!
E me calei.
Respirei fundo e fechei os olhos, para retomar meu fôlego.
Quando os abri, notei que todos estavam sem jeito, se entreolhavam
com vergonha, com pesar. Por mais mal criados que pudessem ser,
uma hora a consciência tinha que bater. E aquele colégio precisava
mudar. Éramos seres teoricamente civilizados, não éramos?
Virei meu rosto na direção onde Lana estava, a fim de puxá-
la para uma conversa, e tudo o que encontrei foi o banco vazio.
Nem Eric estava mais lá. Para onde tinham ido? Eu precisava falar
com Lana a sós. Necessitava dar uma palavra com ela. Tudo o que
eu tinha falado na frente de todos ainda não era o suficiente.
Eu deveria procurá-los.
Caminhei rapidamente pelo pátio, deixando todos, diga-se de
passagem, desconcertados, para trás. Eu precisava encontrá-la.
Precisava conversar com ela. Eu tinha muito mais para lhe falar.
Pensei em procurar dentro do colégio, pensei em procurar até
na sala do diretor, já que alguma punição precisava ser dada
àquelas pessoas, mas não, não deveria ter ido pra lá, pelo menos
não naquele momento. Talvez Lana ainda não tivesse com cabeça
para isso.
E, então, quando desviei meu caminho do corredor principal,
para continuar procurando no lado de fora do colégio mesmo, eu
vi... Estavam de pé, em um jardim nos fundos da escola.
Lana estava entre os braços de Eric, enquanto ele a
abraçava como se ela pudesse cair a qualquer momento. A ruiva
chorava com a cabeça encostada em seu peito. Eles não me viram,
mas, mesmo distante, eu conseguia perceber e ouvir, mesmo em
meio a uma leitura labial, Eric a confortando.
Passava as mãos em seus cabelos ruivos, enquanto ela
chorava em seu peito, lhe dizia que tudo ia ficar bem e que ele
estava com ela. Por vezes, levava uma das suas mãos ao rosto
para enxugar as lágrimas. Ficaram longos minutos assim...
Até que Lana ergueu seu rosto que estava recostado em Eric.
Ergueu e o encarou de frente. Algumas lágrimas ainda caíam, mas
Eric enxugava todas. Seu rosto estava muito, muito, próximo ao
dele. Talvez conseguissem sentir a respiração um do outro...
De repente, ouvi Lana dizer baixinho “obrigada...”, e, então,
aproximou ainda mais o seu rosto do dele e... O beijou. Com
ternura, com carinho. De um jeitinho que talvez somente eu tivesse
o beijado, quando estávamos no auge do relacionamento, na época
que eu começava a aceitar, a me aceitar.
E Eric retribuiu.
Meu coração apertou involuntariamente.
Mais involuntária ainda foi a lágrima que caiu.
Precisamos conversar

Eric

Ela me beijou. Eu a beijei.


E foi... Bom.
Lana estava quebrada e eu sentia que deveria ajudá-la a
juntar todos os seus pedaços. Ainda estava frágil, abalada.
Precisava de alguém, precisava da ajuda de alguém. O que Liam
tinha feito foi verdadeiramente generoso, conveniente, adequado.
Ele tinha mudado mesmo. Provavelmente, era um dos poucos
daquele colégio que não dariam as costas a ela. Mas, era eu quem
estava ali naquele instante. Era eu quem estava com ela desde o
início. E era eu quem ia continuar.
Quando seus lábios se separaram dos meus, me encarou
sem norte. Seus olhos, ainda marejados de lágrimas, na verdade,
tentavam mirar outros locais que não fossem os meus. Parecia
completamente sem jeito, envergonhada.
— E-Eric... — gaguejou. — Meu Deus, me desculpa... Me
desculpa! — com preocupação, me olhou. — Isso... Isso não era pra
ter acontecido! Foi... Por impulso! Eu sei lá... Não soube me segurar.
Desculpa.
Sorri fraco. Eu não me importava. Não via problema em nos
beijarmos.
— Tudo bem, tudo bem... — respondi, enquanto segurava
seus ombros e os massageava. — Pode ficar tranquila, porque, pra
mim, isso não é um problema — expliquei, porque eu sabia
exatamente o motivo dela estar tão preocupada em ter me beijado.
Me encarou com certa surpresa.
— Então, você... — parou por alguns segundos, meio
incrédula, mas logo depois continuou. — Você não se importa em
me beijar? Porque, olha... — suspirou. — Eu já passei por situações
ruins, quando os caras, que eu estava ficando, descobriam que eu
sou uma mulher trans e...
E ainda mais surpresa ficou com o que eu fiz no segundo
seguinte.
A interrompi com outro beijo. Dessa vez, muito mais
demorado que o anterior. Arregalou os olhos em um primeiro
momento, mas, logo depois, se entregou. Segurou firmes meus
braços e abriu caminho em sua boca para que eu aprofundasse o
beijo.
No entanto, quando eu estava de olhos fechados, de repente,
um flash de meio segundo, com o rosto do Liam, surgiu na minha
mente. Separei nossos lábios no mesmo instante, fingindo estar
buscando por ar, depois de um beijo intenso.
Mas, não foi por causa do ar. Foi por causa dele, do rosto
dele, que veio à tona na minha cabeça. Droga. Abri meus olhos,
Lana abriu os dela logo em seguida. Ainda estava imersa em todo o
clima do beijo, e não parecia ter percebido. Aparentemente, fui sutil
ao separar nossos lábios.
— Obrigada, Eric... — olhou no fundo dos meus olhos. —
Obrigada por ser tão gentil e incrível. Acho que você é a melhor
pessoa que eu já conheci... Talvez seja o primeiro cara hétero que
conheço com a mente tão aberta.
Hétero? Lana provavelmente ainda não sabia o que
aconteceu entre mim e Liam. Mas, eu preferi não entrar em detalhes
sobre isso. Pelo menos não naquele momento.
— Você não tem que agradecer por nada... — falei. — Isso é
o mínimo que qualquer pessoa deve fazer, tratar os outros com
respeito, sendo hétero ou não.
Lana deu um pequeno sorriso.
— Eu sempre soube que você era um cara legal, desde a
época em que eu morava aqui e era... Amigo do Liam... — percebi
que ela deu uma travada na parte do “amigo”. — Nunca entendia o
motivo dele entrar em tanto atrito contigo. Você sempre foi um cara
legal. Eu não quis fazer amizade com você só porque meu pai vai
trabalhar na empresa do seu pai e você era a “única” pessoa que eu
“conhecia”, mas também porque eu sempre soube que você é um
cara legal e que tudo seria mais difícil quando as pessoas
descobrissem que eu sou trans.
Suspirei.
— Todos mudam. O Liam mudou... Não viu o jeito como ele
te defendeu na frente de todo mundo? Eu também mudei, mesmo
que você também sempre tenha me considerado um cara legal —
expliquei.
— Sim, eu vi o jeito como ele me defendeu... — percebi seus
olhos querendo marejar em lágrimas mais uma vez. Parecia que
envolver Liam no assunto a tocava ainda mais do que o incidente no
pátio do colégio. — O Liam de antigamente não faria isso —
reconheceu. — Mas, você sempre foi bom — deu um pequeno
sorrisinho.
— Agora sou melhor — sorri de volta.
Eu era melhor graças ao Liam. Na verdade, nós melhoramos
um ao outro. Mas, disso, ela ainda não sabia.
E, então, quando me calei, um dos fiscais do colégio se
aproximou de nós.
— Lana? — a chamou.
— Sim? — ela se virou.
— O diretor Dawson quer falar com você — disse. — Por
favor, me acompanhe até a sala dele.
A ruiva virou-se brevemente para mim, tocando em meu
ombro e me olhando como se em seu rosto tivesse um pedido
silencioso para que eu fosse com ela. Eu prontamente a segui.

❖❖❖

Fomos juntos até a sala do diretor e, quando chegamos lá,


Sr. Dawson já nos aguardava sentado em seu gabinete. Porém,
assim que o fiscal abriu a porta para nós, ele rapidamente se
levantou. Parecia bastante preocupado.
— Oh, caríssima senhorita Hill, queira se sentar por favor... —
apontou para uma das cadeiras vazias à frente da sua mesa. —
Precisamos conversar.
— Obrigada, Sr. Dawson — agradeceu e, em seguida, se
sentou, enquanto eu permanecia em pé, pois não sabia se era
correto ficar ali ou não.
— Eric, pode nos dar licença, por favor? — o diretor se
pronunciou, dando-me a resposta para minha pergunta silenciosa.
— Gostaria de tratar do assunto apenas com a senhorita Hill.
Lana, no entanto, se apressou.
— Por favor, Sr. Dawson... — a ruiva chamou sua atenção,
antes que eu pudesse me virar para sair. — É... O Eric pode ficar
aqui? — pediu com jeitinho. — Seria muito importante para mim, se
ele me fizesse companhia.
O diretor olhou para Lana e, em seguida, para mim, por
alguns segundos, provavelmente avaliando o pedido, até que...
— Tudo bem... — consentiu. — Sente-se Eric, por favor —
apontou para cadeira vazia ao lado de Lana. — Bom... — Após eu
me sentar e o fiscal sair da sala, ele voltou a falar. — Lana, em
nome de toda a escola, desde os funcionários até os alunos, eu
quero lhe pedir imensas desculpas pelo ocorrido de mais cedo no
pátio. Fui informado pelos fiscais da escola sobre tudo o que
aconteceu, sobre a humilhação e o preconceito sofrido por você.
Fico extremamente entristecido com isso. Isso é algo
terminantemente execrável por esta escola, pelos princípios e
normas do colégio. Desde que você se matriculou aqui, eu soube da
sua história e das condições, e, da mesma forma que lhe recebi,
quero que a sua estadia aqui seja agradável. Portanto, lhe peço
sinceras desculpas. Como você está?
Lana suspirou.
— Estou bem na medida do possível, Sr. Dawson —
respondeu. — O Eric me ajudou bastante... — tocou na minha mão,
fazendo um leve carinho. — Esteve comigo o tempo todo. E o Liam
Tremblay... — virei meu rosto para ela, quando tocou em seu nome.
Notei-a engolir a seco, enquanto passava suas mãos umas nas
horas. Baixou ligeiramente o rosto, mas segundos depois o ergueu.
— O Liam me defendeu na frente de todos.
— Liam fez isso? — notei Sr. Dawson arquear um pouco as
sobrancelhas.
— Sim, diretor — Lana confirmou.
Percebi um leve sorrisinho surgir no cantinho da boca dele.
— Muito bem... — replicou. — Lana, eu quero que saiba que
a política que esse colégio adota está pautada no respeito e nós
abominamos qualquer tipo de preconceito. Eu quero que você se
sinta bem em estudar aqui, quero que não tenha receio de vir ao
colégio por conta disso. Ensinamos para formar cidadãos aqui.
Porém, para minha completa decepção, esse não é o primeiro caso
de homofobia registrado nas dependências do colégio. Na verdade,
eu recebi informações de que estamos tendo uma onda de atitudes
homofóbicas, desde a descoberta de um suposto casal gay aqui...
— Sr. Dawson olhou ligeiramente para mim. Ele estava falando de
mim e do Liam, eu sabia disso. Porém, se levantou e começou a
caminhar pela sala, indo em direção à porta. Acompanhamos com o
olhar. — Lana, eu quero lhe assegurar de que iremos tomar
medidas eficazes para que este tenha sido o último caso de
homofobia registrado nesta escola — abriu a porta e virou-se para
nós. — É por isso que quero que me acompanhem até a sala de
aula, pois tenho um comunicado a fazer.

❖❖❖

Já era próximo de acabar o horário de aulas, mas o Sr.


Dawson não se importou com isso. Nos fez seguir com ele até
nossa sala de aula, a classe do último ano do colegial, e, quando
chegou lá, antes de entrarmos, pediu a licença do professor. Era
uma aula de revisão de química.
No mesmo instante que o diretor pediu, o professor parou a
aula e nos deixou entrar. Ficamos em pé, de frente para a turma.
Um tanto constrangedor até, porque todos estavam nos observando,
desconfiados... Pareciam já estar esperando pelo pior. Bom, ao
menos eles tinham consciência do que fizeram e de tudo o que
ainda estavam fazendo, não é?
— Caros alunos, eu vim aqui para conversar com vocês
sobre o triste ocorrido de mais cedo com a aluna Lana, colega de
vocês... — Sr. Dawson falou e todos os que estavam ali se
entreolharam. — Eu realmente estou muito decepcionado com
vocês. Na verdade, não somente eu, mas também todos os outros
funcionários. É lamentável saber deste e dos últimos
acontecimentos de homofobia neste colégio. E nós abominamos
esse tipo de conduta. Estamos aqui para formar cidadãos, pessoas
de bem, civilizadas e respeitadoras. É por isso que eu não serei
tolerante, caso haja uma próxima situação como essa. Darei
punição máxima a todos, com a expulsão do colégio e a mancha no
histórico de boas condutas, daqueles que praticarem qualquer outro
ato de homofobia. E vocês sabem que as universidades não vão
gostar nem um pouco disso no histórico de vocês, não é? — parou
por alguns instantes, olhando com seriedade para todos. Eu notava
o medo no olhar de todos os responsáveis por aquilo. — Além disso,
vou passar uma atividade para vocês. Essa atividade valerá como o
trabalho de conclusão de ensino médio de vocês, e, caso não
façam, serão automaticamente reprovados. Acredito que não seja
isso que vocês querem para suas vidas nesta altura do campeonato,
não é mesmo? — O olhar de medo de todos se transformou em
transtorno. — O trabalho de vocês será o seguinte. Vocês se
dividirão em grupos de cinco de pessoas, onde cada um irá
pesquisar e apresentar no auditório do colégio sobre casos de gays,
lésbicas, trans, negros e toda sorte de minorias que sofreram
preconceitos, mas que também tiveram uma história de sucesso.
Estamos entendidos?
Todos ficaram calados, apreensivos. Se entreolhavam sem
saber o que fazer. Provavelmente, estavam pensando no trabalho
que isso ia dar, ainda mais agora, nas vésperas dos processos
seletivos das universidades.
— Estamos entendidos?! — o diretor perguntou novamente,
ainda mais incisivo.
— Sim, Sr. Dawson! — todos apreensivos, responderam de
uma vez, em uníssono.
E tão somente ao fecharem a boca, o sinal do colégio tocou,
indicando o fim do horário de aulas.
Os alunos começaram a se levantar e a sala se tornou uma
bagunça com o trânsito de pessoas de um lado para o outro, a
maioria querendo sair dali. Lana e eu nos encaramos e, somente
com uma conversa entre olhares, decidimos que era melhor sairmos
dali também. Porém, no momento em que cruzamos a porta, eu ouvi
uma voz... Uma voz tão conhecida, mas que nos meus ouvidos
soava como música, especialmente pelo jeitinho como se
expressou.
— Precisamos conversar... — eu ouvi.
Meu Deus, seria miragem? Eu estava ouvindo demais?
Uma ilusão?
Ou a resposta das minhas orações?
Ele finalmente...?
Me virei com o coração querendo sair pela boca e, quando vi,
realmente era Liam. Porém, era o braço da Lana que ele estava
segurando, enquanto ela o observava.
Me perdoa?

Liam

Segurei seu braço, porque precisava muito conversar com ela. E


eu realmente esperava que aceitasse. Tinha tantas coisas entaladas
na minha garganta, prontas para serem jogadas para fora, que não
dava mais pra esperar. A hora era agora, e eu já tinha suportado
tempo demais de espera.
Lana se virou e me olhou. Porém, aquele olhar... Eu conhecia
aquele olhar. Tinha feições indiscutivelmente femininas, mas seu par
de olhos castanhos escondiam, lá no fundo, a mesma maneira
afetuosa como Luke me observava. E essa foi a primeira vez, desde
que Lana chegou, que ela me olhou assim.
— Podemos conversar? — perguntei novamente. Estava
calada, apenas encarando-me fixamente. E eu não fazia ideia do
que se passava na sua cabeça, mas seu olhar não me escondia os
sentimentos que estavam dentro de si. Eu a conhecia. Mesmo que
por fora estivesse diferente, por dentro eu sabia que ainda era a
mesma pessoa, porque Luke sempre foi Lana. E Luke era bom.
Lana também era. — Por favor... — pedi com tanta necessidade.
Notei quando suspirou e, em seguida, virou o rosto para Eric.
Fez um breve sim com a cabeça, indicando que ele podia seguir em
frente, porque ela iria conversar comigo. Eric, por sua vez, pareceu
ter entendido, pois, sem dar nenhuma palavra, também fez um
breve sim com a cabeça, me olhou antes de ir embora, com um
semblante que eu não conseguia desvendar, se virou e foi embora.
Voltei minha atenção para Lana e quis pular de felicidade por
ver que ela finalmente tinha aceitado conversar comigo. Aquela era
a hora. Não tinha mais como adiar. Não tinha mais como deixar para
outro momento. Tanto tempo querendo dizer tudo o que eu tinha
para falar...
Caminhamos em silêncio até o pátio do colégio. A levei para
um dos locais mais reservados, onde poucas pessoas passavam
por ali. Tivemos a sorte de pegar o horário do fim das aulas, em que
a maioria dos alunos saíam do colégio e íam para casa. Uma
conversa daquelas, merecia privacidade.
Parei de frente para um dos bancos e me sentei. Lana, no
entanto, permaneceu em pé. Notei que estava um pouco travada...
Meio sem saber como agir naquela situação. Talvez envergonhada
ou apreensiva. Temerosa... Não sabia ao certo como descrevê-la.
Mas, errada ela não estava. A última vez em que sentamos nos
bancos de um jardim para conversar, perdi meu melhor amigo e
ficamos dois anos sem nos falar.
Suspirei.
Que Deus me ajudasse a escolher as melhores palavras.
No fundo eu sabia que Ele já tinha me ajudado a escolher
todas elas.
— Senta... — indiquei com a cabeça para que ela se
sentasse ao meu lado.
Lana também suspirou.
Percebi seu olhar vacilar brevemente. A postura austera e
dura já não estava mais ali. As barreiras pareciam estar começando
a se quebrar. Os muros começavam a cair. Eu conseguia ver uma
pequena luz no fim do túnel.
Ela não apresentou resistência para se sentar ao meu lado.
Embora estivesse temerosa, parecia disposta, e isso era... Incrível!
Traguei um pouco de ar para os meus pulmões. Eu tinha que
começar. De algum jeito eu tinha que começar. Por meio segundo,
pareciam que todas as palavras tinham sumido da minha boca. Mas,
eu precisava me concentrar. Desistir estava definitivamente fora de
cogitação.
— Lana, e-eu... — tropecei nas palavras. Estava nervoso.
Pigarreei a garganta. Era pelo jeito como nossa amizade tinha
acabado. Era pelo tempo que eu estava sem falar com meu melhor
amigo. Era pelo peso na consciência. Pela vontade de tratá-la da
melhor maneira possível, dessa vez — Eu...
No entanto, antes que eu pudesse prosseguir, Lana me
interrompeu com uma frase que me arrancou o compasso do
coração.
— Obrigada pelo que você fez hoje no pátio — disse, tão de
repente. — Sou muito grata pelo que fez, por ter me defendido na
frente de todos. Eu vi e ouvi tudo. Isso foi... — parou por alguns
segundos e olhou no fundo dos meus olhos. — Incrível — baixou o
rosto por um instante, mas logo o ergueu novamente. — Quero não
estar enganada sobre isso, mas me parece que você... Mudou. Por
isso aceitei conversar.
Passei a língua entre os lábios. Isso muito me interessava.
Esse era o ponto chave de tudo: eu mudei. Já não era mais a
mesma pessoa que ela conhecia. Aquele Liam de dois anos atrás
ficou no passado. Eu era uma nova pessoa. Eu tinha passado por
situações que jamais poderiam passar pela sua cabeça, mas que
me ajudaram a me tornar aquela versão atual.
— Sim, Lana, eu mudei — falei com total segurança. — Já
não sou mais aquela pessoa que você conheceu. Aquele Liam ficou
no passado e eu não sinto a menor saudade dele. Sinto que agora
estou bem melhor, que sou uma pessoa melhor. Não precisa ter
medo de falar comigo. Eu estou aqui em missão de paz.
A ruiva me encarou surpresa. Percebi suas duas
sobrancelhas arquearem sutilmente. Eu sabia que isso era tudo
muito novo pra ela. Eu sabia que ela jamais imaginaria que eu
dissesse isso um dia. Nem eu mesmo imaginava falar isso um dia.
— Você... — deu um pequeno sorriso fraco. — Nossa... Isso
é muito... Inacreditável... E indiscutivelmente bom. Eu sempre torci
pra que você se tornasse uma pessoa melhor. Na verdade, eu
sempre enxerguei uma boa pessoa dentro de ti. Algo só precisava te
incentivar a mostrar esse lado bom — automaticamente me lembrei
do Eric. Foi ele quem tirou a coberta de cima de mim. Foi ele quem
revelou meu lado bom. — O que te aconteceu? O que aconteceu
com você? — perguntou com tanta vontade. — Quando você me
defendeu na frente de todo mundo, eu não acreditei. Parecia
miragem. E você... Você falou com tanta propriedade, como se
aquilo também tivesse a ver com você... — franziu o cenho,
confusa.
Suspirei. Era a hora de contar tudo. A verdade. Mostrar os
fatos.
— E tinha — respondi. — Aquilo também tinha a ver comigo.
Primeiro, porque eu não poderia deixar ninguém te humilhar daquele
jeito. Já bastavam as coisas sem cabimento que eu tinha falado pra
você há dois anos — engoli a seco para continuar. — Segundo,
porque eu também sofri preconceito por essas mesmas pessoas...
Na verdade, quando você voltou, todos estavam me evitando, me
excluindo. Hoje em dia, eu só tenho um amigo. O Noah.
— O que? — Lana riu fraco. — O grande Liam Wyman
Tremblay Terceiro, o garoto mais popular do Colégio Regent,
sofrendo preconceito? — questionou, incrédula, com ar de risinho.
Ela não acreditava. — Você sofreu preconceito com o que? Te
rejeitaram por não fazer a quantidade de gols que um capitão
deveria fazer? Ou porque não bateu a meta de garotas para pegar
no mês?
Respirei fundo.
— Não, Lana. Eu sofri preconceito porque me envolvi com
um homem — falei com seriedade. — Eles descobriram isso.
Seu queixo caiu automaticamente.
Piscou os olhos repetidas vezes, como se não estivesse
acreditando.
— Você... Vo-você... — gaguejou. — Tá me dizendo que....
— Sim... — repliquei antes que ela continuasse. — É isso
mesmo o que você ouviu. Eu me envolvi com um cara. Fiquei com
ele.
— Meu Deus... — me encarou, pasma. Sua boca nem
fechava. — Isso jamais poderia passar pela minha cabeça... Que-
quem foi esse cara? Quem foi esse anjo que te mostrou o caminho
da luz?
Bom, essa era parte mais delicada da história.
Pigarreei a garganta.
— Ah, sei lá — tentei desconversar. — Foi só um cara. O que
importa é que isso, e tudo o que isso acarretou depois, me
transformou na pessoa que sou hoje. Livre de preconceitos, mais
evoluído mentalmente, e extremamente arrependido por tudo o que
te falei há dois anos.
— Meu Deus do Céu... — sussurrou, ainda incrédula. — Por
favor, me diz quem foi esse anjo... Porque, sério, tem que ser um
anjo muito grande pra ter conseguido fazer contigo o que ninguém
nunca conseguiu fazer. Te tornar uma pessoa melhor e te mostrar
quem você realmente é...
Eu tinha plena consciência. Esse anjo era o Eric. Eric, Eric,
Eric. Minha mente gritava Eric, meu coração gritava Eric e minha
boca também gritar, muito embora eu estivesse receoso, porque
tinha quase certeza que eles estavam se envolvendo. Ele era o meu
maior incentivador. O meu anjo. A melhor pessoa com quem eu já
tive a oportunidade de me relacionar. E foi por causa de tudo isso
que eu não consegui me conter em dizer:
— O Eric.
Seu queixo que já estava caído, tocou o chão.
— O Eric? — notei seu olhar indo em todas as direções.
Colocou uma das mãos no rosto, com uma expressão do tipo “agora
tudo faz sentido”. — Eu jamais poderia pensar nisso — continuou
depois de um tempo. — Jamais poderia imaginar você ficando com
homem, ainda mais esse homem sendo o Eric... Foi o único?
— Sim, foi o único — disse. — Ninguém antes dele. Ninguém
depois dele. Mas eu não quero que se preocupe com isso. Nós não
estamos mais juntos e... Eu acho que tá rolando algo entre vocês.
Eu não quero atrapalhar.
Não queria atrapalhar, por mais que o meu coração ainda
gritasse o nome dele.
— Por que não estão mais juntos? — questionou. — Ele é
uma ótima pessoa.
Suspirei.
Oh não. Eu não queria entrar demais nesse assunto.
Precisava cortar já e mudar o foco da conversa. Não era bem esse
tipo de assunto que eu estava planejando.
— Nós somos incompatíveis — expliquei. — Talvez ele tenha
sido a melhor pessoa com quem eu já me relacionei. Mas, o tempo
de relacionamento foi o suficiente pra mostrar que a gente não... —
senti como se meu coração estivesse se partindo em mil pedaços.
— Não se encaixa.
— Sério? — me olhou com certa preocupação.
O fundo do meu coração dizia que não, enquanto meu
subconsciente gritava um sim.
— Sim — A razão tinha que falar mais alto. — Mas... O que
importa é que ele me ajudou a ser alguém melhor. Enxergou coisas
melhores em mim. Coisas que ninguém enxergava. Tudo na vida
tem um motivo e acho que o nosso motivo era esse. Hoje eu tenho
plena certeza de que o que fiz contigo foi errado. Por muito tempo,
eu tentei me cegar, me enganar, me fazer acreditar que a maneira
como eu tinha agido era a mais correta. Mas não. Eu vivi muitas
coisas, eu aprendi muitas coisas. Eu sofri na pele preconceitos e sei
como isso é uma barra pra gente. Sofri preconceitos de pessoas
que eu achava que eram meus amigos, mas amigos de verdade não
fazem isso. E amigos não fazem o que eu fiz com você... — senti
meus olhos lacrimejarem. — Amigos não rejeitam, amigos não
agem daquele jeito... E você era meu melhor amigo. Hoje, eu sei
que fui um completo estúpido contigo — uma lágrima quis escapar.
— Lana... — suspirei. — Me desculpa pelo que eu fiz, me desculpa
pela maneira como eu agi, me desculpa pelos absurdos que eu te
falei naquela noite... Você me perdoa?
Se os meus olhos lacrimejavam, os dela já tinham se tornado
um verdadeiro mar. Eu sabia que isso ainda doía. Eu sabia que isso
ainda era uma ferida não cicatrizada. Se em mim aquela ferida não
cicatrizou, eu imaginava como poderia ser com ela. Certamente
passou tempos remoendo aquela fatídica noite do meu aniversário
de dezesseis anos, assim como eu também remoía.
— Liam... Eu... — notei-a engolir a seco. — Eu passei muito
tempo pensando naquela noite, sabe? Você era meu melhor
amigo... Eu não esperava que você aceitasse ou quisesse alguma
coisa comigo, mas eu esperava que você pelo menos entendesse.
Depois disso, eu fui embora com meus pais. Não tive nem a
oportunidade de me despedir de ti. Foi algo tão de repente essa
proposta de emprego do meu pai, e eu também estava tão magoada
contigo, que nem fui atrás, sabe? E eu mudei. Eu mudei, assim
como você mudou. Mas, diferente de você, eu mudei mais por fora
do que por dentro. Você me conhecia como Luke, todos me
conheciam como Luke, e eu fazia de tudo pra tentar agir como Luke,
como um menino, mas eu sempre fui Lana por dentro, eu nasci
sendo Lana. E, nesses quase três anos, eu a fiz florescer de dentro
de mim para fora... Fiz cirurgia de redesignação de sexo, fiz
feminização facial, fui acompanhada por médicos especialistas,
tomei hormônios femininos... Meus seios cresceram por causa disso
e, pra completar, eu ainda coloquei silicone. Minha voz mudou, meu
rosto mudou, meu corpo mudou, minhas curvas ficaram mais
acentuadas, assim como as de uma mulher... Tudo por fora mudou,
mas a única coisa que não mudou foi o meu interior. Lembra do
Luke parceiro, do Luke companheiro, do Luke conselheiro, cúmplice
e ouvinte? Ele ainda existe, por mais decepcionada que eu tenha
ficado contigo... — segurou minhas mãos. — E, durante esses
quase três anos, não teve um dia sequer que eu não tenha
lembrado de ti. Você estava nos meus pensamentos, a nossa
amizade estava nos meus pensamentos. A gente se via todos os
dias, só que de repente... — suspirou. — Eu senti tanto a sua falta...
— de súbito, tomando-me de surpresa, me abraçou. Um abraço tão
apertado, tão íntimo, tão afetuoso e amigável. Parecia sonho. Eu
quase não acreditava. Retribuí o abraço de imediato, por mais
incrédulo que eu estivesse. E, embora o seu corpo não fosse mais o
mesmo, eu senti o mesmo toque do meu amigo, do mesmo jeito
como me abraçava. — Eu te perdoo... — continuou e, então, nos
separou do abraço somente o suficiente para olhar nos meus olhos.
Seu olhar tinha lágrimas, mas seus lábios sorriam. Levei minhas
mãos ao seu rosto, para tirar os pinguinhos que tinham ali. — No
começo, eu não quis falar contigo, porque eu estava com medo...
Com medo de você não ter mudado, de ainda ser aquela mesma
pessoa. Eu não queria ouvir aquelas palavras de novo. Mas...
Agora, eu vejo, eu sinto que você mudou, e isso é simplesmente...
Lindo! — Seu sorriso se alargou ainda mais, indo de uma orelha a
outra.
Lindo é esse perdão!
Senti como se tivessem tirado uma tonelada das minhas
costas, me senti livre, leve, feliz! Sim, eu estava feliz, tão feliz! Tão
feliz que não conseguia conter o sorriso! E eu não queria contê-lo.
Eu queria sorrir! Porque há muito tempo eu não dava um sorriso tão
genuíno, verdadeiro e tranquilo como aquele. Eu me sentia
tranquilo. Eu me sentia liberto.
— Lana... Isso é incrível! Você é incrível... — Eu sorria. Eu
sorria tanto! — Muito obrigado por ser assim, por me mostrar uma
amizade de verdadeira, por me ensinar sobre perdão... Obrigado! —
e a abracei de novo.
A ruiva me apertou, consumindo toda a saudade que eu senti
por tanto tempo.
— E o Eric foi um responsável por isso? — nos separou
poucos centímetros do abraço, somente o suficiente para me olhar
nos olhos de novo.
— Ele teve parcelas significativas nisso — falei.
— Não sente falta dele?
Demais, muita, infinita!
— Não muita... — respondi.
Lana arqueou sutilmente uma das sobrancelhas, como se
estivesse avaliando minha resposta. Por meio segundo, até me
lembrou um pouquinho o jeito da Stefany.
— Tem certeza? Não quer voltar pra ele?
Meu peito gritava SIM, SOMENTE SIM, SIM EM LETRAS
GARRAFAIS.
— Não acho que essa seja a melhor decisão... — repliquei.
A ruiva ergueu sutilmente uma das sobrancelhas, mais uma
vez. Nossa, ela estava muito parecida com a Stefany mesmo!
— Tudo bem... — me deu um pequeno sorrisinho
conformado. — Amigos? — e ergueu o dedo mindinho em minha
direção.
O sorriso largo, feliz e tranquilo se apossou de mim outra vez.
— Amigos! — falei com segurança, ergui meu dedo mindinho
também e envolvi o seu, assim como fazíamos antigamente. Era um
pacto nosso.
Porém o pacto de mindinho não foi suficiente. Abracei-a forte
novamente. Eu estava vivendo um sonho.
Espetacular

Liam

E faltava apenas um dia para o vestibular.


Apesar do natural nervosismo com a seleção da
universidade, eu me sentia incrivelmente bem. Depois da minha
reconciliação com Lana, era como se tudo à minha volta estivesse
em perfeita sintonia. Tudo o que antes me preocupava, já não me
causava a mesma sensação. Tudo fazia sentido. A vida fazia
sentido.
Eu tinha voltado a me sentir genuinamente bem, depois de
tanto tempo.
Um peso das minhas costas tinha sido retirado. Além do
mais, o clima no colégio não era mais o mesmo. Não sei se foi
somente por conta do recado do Sr. Dawson, ou se tinha algo além
disso, mas os olhares, os cochichos, os burburinhos e as risadinhas
irônicas não estavam mais ali nos corredores. Todos os estavam se
comportando bem e com naturalidade.
Naturalidade...
Não era como se estivesse com medo de uma punição do Sr.
Dawson, era como se estivessem agindo normalmente. Em um
primeiro momento, achei esquisito. Depois, achei incrível. Eu
finalmente tinha começado a me sentir bem novamente em ir para a
escola. Não me tratavam mais como o garoto popular do Colégio
Regent, e eu nem queria que fizessem isso, mas me tratavam como
mais um deles. Um aluno normal.
Naquela manhã, eu tinha chegado mais cedo para dar uma
pequena e última revisada, antes do último simulado do vestibular.
Terminei de organizar minhas coisas no armário do corredor e segui
para o local onde Noah e eu tínhamos combinado de nos
encontrarmos para estudar.
Era uma mesinha mais reservada do pátio. Quando cheguei
lá, ele já estava com seu focinho enfurnado nos livros, como um
bom nerd que era. Todo empolgado, me sentei. Eu estava feliz com
tudo, feliz com a vida, feliz com o rumo que as coisas estavam
tomando. Parecia que tudo, finalmente, estava começando a dar
certo.
— Nossa, e essa carinha de feliz? — Noah perguntou com
um sorrisinho no rosto. — Faz tempo que não te vejo assim.
— Me acertei com a Lana! — respondi com um sorriso de
orelha a orelha.
Noah ergueu as duas sobrancelhas. Ele também sorria e
estava feliz por mim. A parte boa das partes ruins de tudo o que
tinha acontecido na minha vida era que, apesar dos pesares, eu
tinha me aproximado ou reaproximado de pessoas que eram meus
amigos de verdade: Noah e Lana.
— Então, toda aquela confusão das fotos era verdade? —
indagou. — E você conseguiu se desculpar com ela? Estou muito
orgulhoso de você, Liam! — deu dois toques no meu ombro. — E
não é de agora que eu estou orgulhoso com você. Parabéns pela
atitude.
— Sim, apesar daquela humilhação toda, a história era
verdade. Mas, o que importa é que eu consegui me desculpar com
ela... E isso já tirou um peso imenso das minhas costas, sabe? Eu
sentia a necessidade de fazer isso. Lana é e sempre foi uma ótima
pessoa... Uma pessoa incrível.
— Ela é uma pessoa linda... — replicou logo em seguida,
meio imerso em pensamentos, como se estivesse sonhando
acordado um pouquinho.
— Uou! — arregalei os olhos com aquele comentário. —
Pessoa linda? — soltei uma pequena risadinha. — É, a Lana é
indiscutivelmente linda mesmo, mas esse jeito como você falou...
Hum... Tá a fim? — perguntei cheio de malícia.
— Ahh... — Noah balançou a cabeça, todo envergonhado,
como se estivesse querendo desconversar. — Eu achei ela linda
desde o primeiro dia que chegou aqui no colégio. Mas, ela nunca
olharia pra mim. Garotas bonitas nunca olham pra mim.
— Ué?! — arqueei as sobrancelhas. — Você tem que ter
mais confiança consigo mesmo! Eu sei que eu estou meio
derrubado nesse lance de “segurança consigo mesmo”, mas ainda
lembro de algumas coisas da época que eu era popular... Preciso te
dar umas aulinhas — ri um pouquinho. — Mas, assim... — fiquei
meio sem jeito de perguntar. — Tipo... Você não é hétero?
Noah me encarou como se eu fosse um ET.
— Liam, você já aprendeu muita coisa sobre a vida em
sociedade, mas ainda é burrinho pra umas coisas, heim... — riu. —
Ei, inteligência britânica, eu não me torno menos hétero ou deixo de
ser hétero só por ficar com uma menina trans. Ela continua menina
do mesmo jeito. Pra mim, nasceu menina — deu de ombros.
Caralho, isso era verdade!
— Porra, você tem razão viu, bicho! — reconheci. — Acho
que todo mundo deveria pensar assim. Até porque é o certo, né? —
ergui uma das sobrancelhas. — Enfim, acho que você deveria
investir.
— Investir? — ele riu. — A Lana é muita areia para o meu
caminhãozinho. Melhor eu não sonhar tão alto.
E, então, o sinal do colégio tocou, indicando que era a hora
de entrar na sala para fazermos a prova do último simulado do
colegial.

❖❖❖

Eu não sabia o que pensar, apenas sentir. Quando terminei o


simulado e entreguei ao professor que estava fiscalizando a prova, a
paz de espírito que eu senti foi ainda maior do que aquela que eu já
estava sentindo. Eu estava confiante com o simulado. Eu sabia que
tinha ido bem. E, a todo instante, em cada questão da prova, eu me
lembrava de tudo o que eu tinha estudado sozinho, com o Noah e
com... O Eric.
Voltei para casa refletindo sobre tudo isso, sobre o que tinha
acontecido comigo em tão pouco tempo. Se eu não tivesse vivido na
pele tudo aquilo, eu jamais poderia imaginar que terminaria aquele
último ano de colegial tão diferente da maneira como eu comecei.
Prepotente, arrogante, preguiçoso, desestimulado, bagunceiro... Eu
odiava estudar, só sabia arrumar confusão, e minha vida era
resumida em apenas futebol, festas e garotas.
Quem diria que, no final de tudo, eu ficaria assim? Mais
quieto, estudioso, ainda amante do futebol e gostava sim festas,
mas estava responsável o bastante para saber dividir os horários
entre estudos, bola e lazer. Sobre a parte das mulheres... Bem, fazia
tempo que eu não sabia o que era beijar a boca de uma.
A parte do colégio que eu mais frequentava era a detenção e,
com o passar do tempo, acabei fazendo o Eric frequentá-la bastante
também. Mas, foi ele quem me tirou de lá. Nos últimos tempos,
parecia até que eu tinha esquecido o caminho para chegar até lá.
Detenção não fazia mais parte do meu vocabulário.
Consequentemente, minhas notas começaram a aumentar,
assim como meu histórico de bom comportamento no colégio
também começou a melhorar. Eu me lembrava que, no início,
achava tão entediante estudar. E eu tinha muita dificuldade. Para
entender alguma explicação, então... Era uma tragédia.
Só que, do meio para o fim, as coisas foram mudando ainda
mais. A dificuldade que eu sentia no aprendizado foi
desaparecendo, assim como meu interesse por sentar a bunda
numa cadeira e estudar a tarde inteira foi aumentando. Minha
cabeça, porém, só mencionava um nome, enquanto eu refletia sobre
tudo isso: Eric.
Foi ele quem me ajudou.
Se não fossem aquelas aulas particulares... Aquelas
benditas/malditas aulas particulares... Ajudaram em tantas coisas,
mas desandaram a minha vida em tantas coisas também. Eu me
sentia irreconhecível no final daquele ano. Mas, bem. Sim, eu me
sentia bem, embora irreconhecível. E não nutria nenhuma falta da
pessoa que eu fui um dia.
Quando cheguei em casa, subi para o meu quarto, fechei a
porta e me joguei na cama, ainda pensativo sobre tudo. Olhei para o
teto e desci meu olhar pela parede... Ele recaiu sobre a minha
escrivaninha. Foi ali onde tudo começou a acontecer. A cadeira
onde ele sentava para me dar aulas ainda estava lá.
Apesar do seu típico ar sarcástico que carregava consigo
antigamente, Eric sempre acreditou no meu potencial. E sempre me
fazer acreditar em mim mesmo. Me ensinava e tinha paciência de
ensinar, apesar das brigas entre nós, que sempre rolavam, quando
ele ainda era meu “inimigo”.
Depois, tudo foi mudando.
Eu fui mudando. Ele também.
E amanhã era o dia. Amanhã era a prova da seleção das
universidades, assim como também aconteceriam as entrevistas.
Porém, a minha cabeça e o meu coração só sabiam perguntar uma
coisa: como ele está se sentindo? Fazia tanto tempo que não nos
falávamos. Desde o término, a gente nunca mais tinha conversado.
Estávamos a um dia de fazermos aquilo que passamos tanto
tempo nos preparando juntos: o vestibular. Era a materialização de
dias e dias de estudos naquela escrivaninha do meu quarto. E,
sinceramente, eu estava balançado. Estava tentado a mandar
alguma mensagem. Ou, melhor, ligar. Além de que, claro, a saudade
que eu sentia dele ainda estava ali.
Por alguns instantes, me questionei: será que eu estava
usando a desculpa do vestibular para tentar algum contato?
Não, não, não.
Isso poderia ser um erro. Um grande erro!
Era quase como mandar um feliz natal para o ex-namorado,
com a desculpa de “ah, vamos aproveitar o clima de fraternidade da
época do ano, é só isso”, mas, no fundo, querer se reaproximar.
Eu não poderia ser tão bobo a esse ponto.
Mas... E se eu mandasse pelo menos uma mensagem? Uma
mensagem bem breve...? Tipo “Oi, só passando pra te desejar uma
boa prova amanhã. Vlw flw”.
Ah, que coisa ridícula!
Eu me sentia ridículo. Estava com tanta vontade de fazer
alguma coisa, ao mesmo tempo que sabia que nada era o certo a se
fazer. Deveríamos manter a distância. Eu já tinha o evitado tanto,
para não ter uma recaída, e logo agora dar pra trás em tudo?
Eu deveria seguir em frente... Era só um vestibular, afinal de
contas. Nada demais.
Nada demais.
Nada demais.
Nada demais.
Não, não, não. Tinha tudo de demais!
Foi ele quem ajudou em quase que cem por cento dos meus
estudos. Se eu estava com notas boas, com um histórico bom, foi
ele quem me ajudou. Se eu tinha saído do simulado, naquele dia,
me sentindo bem com a prova, em grande parte foi ele quem me
ajudou.
Eu tinha mudado tanto, para agora não saber reconhecer as
coisas?
Minha razão dizia para não fazer isso, mas meu coração
gritava para eu seguir em frente.
Bem, eu nunca fui muito bom em seguir minha razão mesmo.
Tirei meu celular que estava no bolso da calça jeans.
Respirei fundo.
Era agora ou nunca. A prova das universidades já seria no
dia seguinte e estava de noite.
Não poderia ser tão difícil discar o número, poderia?
Ah, poderia! Poderia sim!
Meu Zeus!
Ok, ok, ok. Respirei fundo.
Eu não era mais assim. Eu tinha mudado. Estava mais
maduro, mais responsável. E eu saberia, com certeza, dividir as
coisas. Seria apenas um agradecimento e um desejo de boa prova.
Apenas isso e nada mais. Eu desligaria o celular e ficaria tudo bem.
Tudo seguiria do mesmo jeito. Normalmente. Nada mudaria por
causa de uma ligação.
Suspirei e, em seguida, tomei coragem de discar o número
dele, que eu ainda sabia decoração.
Meu Deus do Céu, o que eu estava fazendo?!
Argh!
Não era hora para entrar em pânico. Eu era uma pessoa mais
madura agora!
O celular tocou uma, duas, três vezes. Ele não atenderia.
Tudo bem, tudo bem... Era um caso perdido.
Continuou tocando.
Certo, ele não atenderia mesmo.
Eu fui tão idio...
— A-Alô?
Puta merda. Ele atendeu!
Fiquei calado.
Perdi a voz.
O coração acelerou.
— Alô? Li-liam? — Sua voz um pouco trêmula falou
novamente.
Merda, merda, merda. Ele sabia que era eu! Claro! Eu tinha
ligado do meu número, que, com certeza, ele ainda tinha salvo na
agenda do celular. Cacete, eu deveria ter ligado de um número
desconhecido!
Não, melhor, eu deveria ter mandado só uma mensagem
mesmo!
— Liam? — disse mais uma vez. — Eu estou ouvindo sua
respiração...
Caralho!
Que o chão se abrisse sob os meus pés!
Coragem, meu bom rapaz...
Suspirei.
— Oi, Eric — finalmente respondi. — É... E-eu... — pigarreei
a garganta. — Como... Como você tá?
Eu nem sabia mais o que eu estava falando. Nem sabia o
que falar. Estava desnorteado, sem rumo.
Meu Deus, por que eu tinha ligado mesmo?
Ah, vestibular! Vestibular!
Foco!
— Bem... — falou. — E você?
Mortalmente nervoso!
Puta merda, que saudade dessa voz...
— Bem também — disse. — Eu só te liguei pra... Pra te
desejar uma boa prova e uma boa entrevista amanhã... — Meu
coração estava quase saindo pela boca. — E também pra
agradecer... Tipo... Se não fosse a sua ajuda, com as aulas e as
explicações, eu não teria chegado onde cheguei. Obrigado.
Quando fechei a boca, Eric permaneceu calado.
E permaneceu calado por alguns longos e dolorosos
segundos.
Meu Deus, ele nunca mais ia falar?!
— Liam... — disse, finalmente. — Você não tem que me
agradecer por nada. Eu só te ajudei, mas o protagonista mesmo foi
você. Eu sempre te achei capaz. E continuo acreditando na sua
capacidade e no seu potencial até hoje. Você vai muito longe, eu
tenho certeza. É por isso que eu não te desejo boa sorte, eu te
desejo boa prova. Vai com tudo pra esse vestibular.
Meus olhos estupidamente quiseram se encher de lágrimas.
Ele estava falando do mesmo jeito... Do mesmo jeitinho como
falava comigo. Deus, que saudade.
— Eu não sei se já te disse isso, mas você é uma pessoa
fantástica — De repente, saiu da minha boca... Simplesmente.
E, quando percebi, cacete!
O que eu tinha falado?!
Ouvi sua respiração do outro lado, parecia estar sorrindo.
Sorrindo bobamente.
— E você é pessoa mais espetacular que eu já conheci —
falou.
Oh não.
Não, não, não.
Ele disse isso mesmo?
Meus olhos não estavam mais enchendo, eles já queriam
rebentar.
Essa conversa estava ficando longa demais, mais longa do
que aquilo que eu tinha planejado. Era hora de parar. Por mais que
meu coração quisesse continuar.
— Obrigado, Eric. Obrigado mesmo... — parei por breves
segundos e... — É... Eu preciso desligar.
Ele ficou calado por um tempinho, até que...
— Tudo bem.
Engoli a seco. Eu nunca me sentia preparado em me
despedir dele.
— Então, boa prova amanhã e... Até outra hora.
Ouvi ele suspirar sutilmente do outro lado.
— Eu desejo o mesmo a você, Liam. Até.
Hoje, eu sei quem sou

Eric

O dia do vestibular tinha chegado.


E eu não tinha esquecido a ligação.
Havia acordado cedinho, já estava arrumado e descia para
garagem, somente esperando a Stefany aparecer. Mamãe me
desejou um bom vestibular, com direito a beijo na testa e tudo,
enquanto George... Bom, ele disse que eu deveria me inscrever
para Engenharia Civil, como sempre. Mal sabia ele que eu já tinha
escolhido outro curso...
Porém, apesar de tudo, o dia anterior não saía da minha
cabeça. Mais especificamente, a noite e a ligação dele...
Por que tinha ligado, afinal? Era só para desejar uma boa
prova mesmo ou para mexer numa ferida que ainda não tinha
cicatrizado? Sua voz, seu jeito de falar... Tudo me fazia sentir ainda
mais saudade, e, principalmente, ter a certeza de que ele tinha se
lembrado de mim.
Eu ainda estava em seus pensamentos.
Se eu não estivesse, ele não teria ligado.
Tudo isso fazia meu peito querer acelerar de um jeito
diferente.
Sua ligação agitou sentimentos dentro de mim que estavam
quietinhos, parados, condicionados a se acostumarem com o fato de
que eu não o tinha mais. E por que? Por que me ligar quando eu já
estava quase me acostumando com a sua ausência? Quase...
Quase. Na verdade, “quase” coisa nenhuma. Eu tinha a impressão
de que nunca conseguiria me acostumar com a sua falta. E, bom, a
sua voz ecoando através do celular, piorou tudo.
Me encostei no capô do carro, que estava estacionado na
frente de casa, esperando apenas a Stefany aparecer, cruzei os
braços, respirei fundo e...
“Se não fosse a sua ajuda, com as aulas e as explicações, eu
não teria chegado onde cheguei. Obrigado.”
Deus... Quando eu poderia imaginar que Liam me falaria isso
um dia?!
Era claro que o mérito era todo dele, o esforço era todo dele.
Mas...
O Liam de antigamente jamais falaria isso. E o Eric de
antigamente jamais ficaria abobalhado ao ouvir sua voz. Aquela
voz... Aquela voz que...
De repente, tirando-me dos meus devaneios, ouvi o celular
tocar, indicando que havia chegado uma mensagem. Pisquei
algumas vezes, como se estivesse acordando de um sonho
profundo. Tentei me recompor, porque pensar no Liam não era tão
simples assim, e tirei o celular do bolso.
Lana.
O nome que aparecia na notificação era o dela.
“Bom dia, menino prodígio! Será que devo te desejar boa
prova? Risos. Brincando! Espero que você arrase no vestibular!
Beijos!”
Desde aquele fatídico dia do episódio na escola, nós
estávamos ficando. Lana era uma ótima companhia. A gente se
dava bem. E eu acreditava que ela era a pessoa ideal para que eu
pudesse seguir em frente, como a Stefany bem tinha dito. Era isso
que eu estava tentando fazer.
“Bom dia, princesinha! Eu acho que você deve me desejar
boa prova sim, mas pessoalmente. Me encontra na entrada da
universidade, ok? Beijo!”
Suspirei.
Eu ainda não sabia onde Lana e eu chegaríamos juntos. Mas,
eu sentia que estávamos ajudando um ao outro naquele momento.
E, no exato instante em que enviei a mensagem, Stefany
apareceu.
— Vamos vamos, manezinho. Senão, a gente perde o
vestibular e eu não estou nem um pouco a fim de passar mais um
ano naquela escola com aquela galera estranha — disse, me
apressando para entrar no carro.
— Eu estava só esperando por ti... — falei. — E... — baixei o
olhar para a roupa dela. Stefany tinha o costume de vestir roupas
estilosas, mas a que ela estava usando naquele dia superava todas
as outras. Não era só estilosa, era diferente e... Esquisita. — Você
vai vestida assim?
— É claro — replicou, me olhando com obviedade. — Eu vou
ser entrevistada para fazer o curso de moda, bebê. Eu tinha que
arrasar no look de hoje — revirou os olhos para mim e entrou no
carro.
Bom, eu definitivamente não entendia nada de moda.
Também entrei no carro e seguimos juntos para a
universidade.

❖❖❖

Quando chegamos à Universidade de Londres, local onde


seriam aplicadas as provas, já estava lotado. Alunos de todas as
partes da cidade e arredores estavam ali. Pais e amigos também se
faziam presentes. Uns olhavam de maneira apreensiva para a
entrada da universidade, outros tiravam fotos e pareciam felizes em
dar aquele passo.
Stefany tinha saído para encontrar sua turma antes de entrar
na sala da prova, e eu, de verdade, me sentia tranquilo. Sabia que
tinha feito a minha parte não somente naquele último ano do
colegial. Eu tinha dado o meu melhor desde que comecei a estudar
pequenininho. Mas... E o Liam? Como será que ele estava naquele
momento? Esse era o maior questionamento da minha cabeça.
Será que estava feliz? Com medo? Ansioso? Pelo que eu
bem conhecia dele, devia estar muito, muito, ansioso. Talvez seu
coração estivesse acelerado. Talvez não. E se eu o ligasse? Hum...
Não, não. Era melhor não. Ele já tinha ligado no dia anterior e, se eu
fosse atrás, ele podia interpretar de outra maneira.
Não que eu não quisesse que ele interpretasse de outra
maneira, mas já estava cansado de levar tantos foras daquele
garoto. A pequena parte de dignidade, que eu ainda tinha dentro de
mim, clamava para que eu não a jogasse no lixo. Enfim, tentei me
aquietar. Eu não iria atrás dele.
Ainda olhei de relance a minha volta, com leve expectativa de
que eu pudesse vê-lo, mesmo que de longe, em meio à multidão. Só
que não. Eu não o vi em lugar algum por ali. Na verdade, quando
volvi meu rosto para um dos lados, quem eu vi se aproximar de mim
era ela... A ruiva. Apareceu com um sorriso lindo, de orelha a orelha.
Simpática, linda e educada como sempre.
Sorri de automático. Não tinha como não sorrir ao vê-la.
— Hey, garoto! — me abraçou ao me encontrar. Deu um beijo
no meu rosto e não na minha boca. Uma pequena parte de mim
achou isso um pouquinho estranho. Ela não estava estranha
comigo, obviamente. Lana sempre agia de um jeito muito natural
comigo. Porém, estávamos ficando há alguns dias já. E, claro, nos
beijávamos sempre que nos víamos. — Eu nem acredito que
consegui te achar com tanta facilidade no meio dessa multidão! Tá
lotado né?
— Nossa, pra caramba! — repliquei. — Eu sabia que todos
os anos essa universidade lotava no vestibular, mas esse ano
parece que triplicou!
— Sim, sim — concordou. — Só espero que esse tanto de
gente não seja para o mesmo curso que o nosso — deu uma
risadinha. — Mas e aí, me fala, como você tá? — me olhou com
entusiasmo. — Ansioso? Tranquilo? Com medo?
— Com muito, muito, medo — respondi uma ironia
disfarçada. Eu não estava com medo, nem ansioso, só queria ver a
carinha de preocupação que ela ia fazer. — Coração acelerado,
batendo forte. Estou bem nervoso, sabe? — tentei expressar um
semblante sério, para que ela acreditasse na brincadeira.
— Oh meu Deus — abriu a boca em um “o”, assim como
também arregalou um pouco os olhos. Ela acreditou! — De
verdade? — me olhou com preocupação. — Não acredito! Você
sempre pareceu tão confiante... Olha, não fica assim! Eu tenho
certeza absoluta de que a sua vaga tá mais do que garantida!
— Pois é... — suspirei. — Mas, você sabe como é né... No
dia fatídico é tudo diferente. Não tem como não ficar nervoso, mas...
Tem uma coisa que poderia me deixar melhor...
— É? — arregalou ainda mais os olhos, toda atenta para o
que eu ia dizer. — O que é?
— Ah, é uma coisa... — comecei uma soltar um sorrisinho
faceiro e a puxá-la aos poucos para mais perto de mim.
— Hum... — aos poucos seu semblante preocupado foi
dando lugar a um sorriso também. — Tenho minhas suspeitas do
que seja... Suspeito também de que você não está nada nervoso...
Dei uma risadinha e ela também. Em seguida, nos beijamos.
— Acho que eu merecia né? — sorri, após separar um pouco
nossos lábios. — Você chegou aqui e só me deu um beijinho sem
graça no rosto... Fiquei sentido... — fiz uma falsa cara de tristeza.
Ela sorriu.
— Você é muito espertinho, isso sim — riu um pouquinho. —
Contou essa história toda só pra ver se ganhava um beijo meu.
— É... Você tem razão. Foi só pra ganhar um beijo seu antes
da prova mesmo. Tenho certeza que vai me trazer boas energias
para o vestibular. Não acha?
Sorri, olhando de relance para o lado, até que, de repente,
aquela imagem surgiu no meio dos outros alunos. O sorriso do meu
rosto logo desapareceu. Por mais que eu não quisesse aceitar, ele
ainda mexia de verdade comigo, mais do que qualquer outra
pessoa. Estava acompanhado do Noah e conversava muito
entretido com ele. Não tinha notado minha presença por perto, até
olhar para o lado dois segundos depois. Me viu ao lado de Lana.
A ruiva ainda respondia alguma coisa, mas eu não consiga
entender nada, nem ouvir nada. Eu só consiga olhar para ele.
Inevitavelmente, me lembrei da ligação na noite anterior. Era ele! Ele
tinha ligado pra mim! Ouvi sua voz de novo. Meu Deus. E agora ele
estava ali por perto, em carne e osso.
Entrei em um espiral de devaneios, que, com certeza, não
passou despercebido por Lana. E despercebida também não
passou sua pergunta logo em seguida:
— O que foi?
Tal questionamento veio como um estalo, como se eu
estivesse acordando de um sono muito profundo. Pisquei os olhos
ainda algumas vezes e volvi meu rosto para ela. Antes que eu
pudesse dar qualquer resposta, Lana olhou para o lado e viu. A
resposta já estava lá, mesmo sem eu dizer qualquer coisa. E seu
semblante, ao olhar para ele, me dizia que ela já sabia.
Virou para mim novamente. Seu olhar, no entanto, não tinha
raiva, tristeza, nem nada do tipo. Me encarava com conformação.
— Ah, eu entendi — deu um pequeno sorriso. — Agora eu
entendi.
— Entendeu? — perguntei como se não soubesse do que ela
estava falando.
A ruiva suspirou.
— Eu estava tentando não tocar no assunto, até porque
ainda estava pensando em como falar, mas... Acho que essa é a
hora mais adequada — parou por alguns segundos e depois
continuou. — Naquele dia que o Liam me chamou para conversar,
ele acabou me contando o que aconteceu entre vocês...
Meu coração parou e eu não consegui mais pensar em nada.
— Contou? — arregalei os olhos.
— Contou — balançou um sim com a cabeça. — Depois tudo
começou a fazer sentido. Comecei a entender as birras inexplicáveis
da infância e da adolescência, e até o jeito esquisito como vocês se
olhavam, depois que eu voltei pra cá. No fundo... Eu acho que vocês
ainda se gostam e eu meio que... Não sei o que estou fazendo aqui
e contigo... — me olhou de um jeitinho meio desconsertado. —
Assim, claro que tem sido ótimo o que está acontecendo entre a
gente, mas...
— Lana... — Minha voz saiu meio apertada. Pigarreei a
garganta, para ver se voltava ao normal. — Eu não faço ideia do
motivo dele ter contado a você. Fiquei até surpreso, porque... O
Liam não é de falar sobre esse tipo de coisa e...
— Ele ainda gosta de você — a ruiva me interrompeu antes
que eu pudesse concluir minha frase. — E você ainda gosta dele
também, não é?
Gelei.
Como assim? Estava tão na cara assim?
Não, não, não.
Ela questionou e seu olhar continuava sem traço algum de
raiva ou tristeza. Parecia estar bem. Parecia estar mais preocupada
comigo do que conosco. De fato, eu ainda tinha muitos sentimentos
por ele. E conseguiria perder totalmente meu controle, se ele ao
menos sinalizasse qualquer possibilidade de voltar. Porém, eu não
podia falar isso para ela, eu não podia deixar que minha vida
caminhasse para trás novamente.
Liam já tinha dito com todas as letras que não iria voltar. Ele
tinha me garantido que o melhor era seguirmos em frente, e isso era
justamente o que eu estava tentando fazer. Eu tinha colocado na
minha cabeça de que deveria seguir em frente. Estava cansado de
receber tantos foras de uma pessoa que claramente continuaria me
dando muitos outros. Foi ele quem me dispensou, não eu.
— Lana... Tudo o que eu quero que você saiba é que isso é
um caso passado. É algo que ficou para trás, algo sem volta —
garanti.
— Tem certeza? — perguntou. Seu olhar continuava ainda
sereno, tranquilo. Não parecia chateada com algo. Apenas parecia
querer entender a situação.
— Absoluta — garanti novamente e a puxei para mais perto
de mim mais uma vez. — Liam ficou para trás — com um beijo
suave em seus lábios, selei minha confirmação.

Liam

Eles estavam se beijando. E eu vi com meus próprios olhos.


Não precisou alguém me dizer, não precisou eu ouvir da boca de
alguém. Eu vi com meus próprios olhos, mas preferia não ter visto.
Era uma sensação estranha, como se estivessem se aproveitando
de uma parte de mim ou do meu mundo.
Porém, eu tinha dado uma parte do mundo para quem
quisesse pegar. E eu tinha consciência disso. Quem pegou foi Lana.
Eu desejava tudo de melhor para ela. E não é que ela tinha pegado
tudo de melhor para si mesmo? Eric era o melhor. Talvez eles se
merecessem, por mais que o meu coração ainda o quisesse.
Meu coração sempre o quis. Minha cabeça sempre o
repulsou.
— É, amigo, parece que não estamos com sorte no amor. Eu
nunca tive mesmo, não é como se fizesse alguma diferença agora
— Noah deu uma risadinha, enquanto falava, ao perceber que meu
olhar estava voltado para Eric e Lana.
— Amor? — franzi o cenho, desviando o meu olhar para ele.
— Para de falar besteira, Noah. Ninguém estava mencionando a
palavra “amor” aqui — repliquei.
— É, mas, sobre a parte de não termos sorte, eu estou certo.
Somos dois azarados. Eu querendo a Lana, você querendo o Eric, e
os dois ficando um com o outro — olhou com cara de paisagem
para os dois. — Parece até piada.
— Piada é o soco que eu vou dar na sua cara, se não parar
de falar besteira — revirei os olhos. — Eu não estou querendo
ninguém, já disse. Mas, você tá querendo a Lana mesmo. E pra ser
bem sincero, acho que ela se daria bem ficando contigo ou
continuando com ele. Eric é uma ótima pessoa, você também. Lana
merece estar com alguém assim.
Noah deu uma pequena risadinha.
— Sabe aquela expressão “corno manso”, Liam? —
perguntou com ironia.
— O que tem essa expressão, querido Noah? — estreitei os
olhos em sua direção, já fechando o pulso no segundo seguinte.
Noah gargalhou.
— Melhor eu parar de falar, senão vou chegar com um olho
roxo pra fazer a prova do vestibular.
Sorri de leve pra ele.
— Melhor mesmo, bobalhão — concordei e o abracei logo em
seguida, bagunçando seus cabelos. — Boa prova, viu? Eu sei que
você vai se dar muito bem! Estou torcendo por ti!
Ele sorriu de orelha a orelha, retribuindo forte o abraço.
— Eu também estou torcendo demais por ti, Liam! Tenho
certeza que você vai conseguir!
E, assim, nos despedimos, caminhando cada um em uma
direção diferente, rumo às nossas salas de prova. A cada passo que
eu dava, meu coração acelerava ainda mais. As batidas estavam
tão fortes, que eu podia jurar que ele saltaria pela boca a qualquer
momento. Eu estava realmente nervoso, afinal aquela era a hora da
verdade, o momento que eu saberia se o meu esforço tinha valido a
pena mesmo.
Quando entrei na sala e me sentei em uma das cadeiras, não
demorou muito até os fiscais distribuírem as provas. Era extensa,
muita extensa. Mas, muito semelhante aos simulados que eu tinha
feito. Lá estava ela a minha frente, questão por questão. Meu futuro
resumido em páginas, meu passado traduzido naquilo.
Passado...
Era impossível não lembrar do passado à medida que eu
respondia as questões. Ele sentava ao meu lado na escrivaninha do
quarto. Ficava ao lado da minha estante, onde eu tinha uma coleção
imensa de carrinhos originais. Mesmo com dezoito anos, ele ainda
babava por todos os carrinhos, e eu percebia isso sempre que ele
entrava no meu quarto para me dar aulas.
Sempre com sua ironia ou sarcasmo. Perguntava se eu podia
lhe dar a honra de sentar na maravilhosa cadeira da minha incrível
escrivaninha. Ele sempre soube que eu sempre tive muito ciúme
das minhas coisas, desde criança. Por isso, a pergunta era
carregada de ironia. Mas, ele me ensinou de tudo. De tudo mesmo.
Me ensinou sobre a lei da atração e repulsão de física, que
caiu no vestibular também. Me ensinou também sobre as fórmulas
químicas, como a do etanol, que também caiu no vestibular. Me
ensinou sobre tantas coisas que estavam naquelas questões, que,
com o tempo, meu nervosismo acabou passando e eu comecei a
me sentir, até mesmo, um tanto confortável.
E ele me ensinou sobre tantas outras coisas...
Me ensinou a ser gente. Me ensinou a me enxergar como eu
realmente era por dentro e me ensinou a ser por fora o que eu
escondia que era por dentro. Me ensinou, mesmo que
indiretamente, a saber como responder, por exemplo, um zelador de
um colégio ou um reitor da universidade.
— Então... Você é o Liam Wyman Tremblay Terceiro? —
perguntou o avaliador do processo seletivo, durante a minha
entrevista, depois da prova.
— Isso, sou eu mesmo — confirmei.
— E o curso que você deseja é Relações Públicas?
— Sim, senhor.
— Hum, ok. Nesse momento de entrevista avaliamos o perfil
do aluno, em especial sobre sua trajetória acadêmica na escola e
sobre o que almeja para o futuro. Vamos lá... Este é seu histórico de
notas e comportamento... — retirou de uma pasta o documento.
Gelei. Ele veria tudo de ruim que eu tinha feito em boa parte da
minha vida acadêmica no colégio. Merda. Eu não ia passar. Eu não
ia passar. — Vejamos... — começou a analisar o documento. —
Suas notas não foram muito satisfatórias, principalmente no início
desse último ano de colegial... Notas vermelhas em física, química,
matemática... Na verdade, em quase todas as disciplinas... —
encarou-me por cima dos óculos.
Engoli a seco.
— É... É... — balbuciei. — É, e-eu não fui muito bem no início
desse ano, mas...
— E maus comportamentos também... — interrompeu-me,
sem me dar nem a oportunidade de concluir. — Brigas com colegas
de turmas, muitas idas à detenção, suspensões de aulas... Foi um
ano bem agitado, não é, Liam?
Engoli a seco novamente.
Droga!
Por que eu tive que ser uma pessoa tão inconsequente por
tanto tempo da minha vida?
— Como acha que devo te dar a oportunidade de estudar em
uma das melhores universidades do mundo, se você não se
mostrou tão comprometido com isso durante o seu colegial? —
questionou. — Por que eu deveria lhe aprovar?
Merda.
O peito apertou. A vontade de sair correndo apareceu. Eu só
queria sumir, eu só queria ir embora, eu só queria desistir de toda
essa ideia de fazer faculdade, eu só... Não... Não, não, não. Não!
De onde eu tinha tirado tudo isso? Por que eu estava sendo tão
fraco? Eu sentia que, mais cedo, tinha feito uma boa prova de
vestibular. Não seria a porcaria de uma entrevista que iria me
derrubar!
Quem era eu, afinal?
Eu era Liam Wyman Tremblay Terceiro.
Lyam Wyman Tremblay Terceiro.
Ex garoto popular do colégio, não mais tão destacado no time
de futebol da escola por causa da baixa popularidade, não mais tão
conhecido. Eu era comum. Um aluno qualquer, um estudante como
qualquer outro, mas que também merecia uma vaga como qualquer
outro.
Eu era Lyam Wyman Tremblay Terceiro: menino, comum,
estudante normal, sonhador, louco às vezes, um ser humano que
também erra, medroso, determinado, esperto, agora gentil,
amigável, alto, amante de futebol, bissexual. Bissexual. Esse era eu.
Esse sou eu.
E tudo isso não me assustava mais.
Agora eu finalmente sabia quem eu era!
Eu era capaz. Sim, eu era capaz! Tinha total capacidade de
ser aprovado e não seria um avaliador qualquer de entrevista que
me impediria!
Respirei fundo, tomando fôlego. Há muito tempo eu não me
sentia tão forte, há muito tempo eu não me sentia tão potente! Era
como se eu pudesse respirar de verdade, pela primeira vez, em
muito tempo. Era como se eu tivesse retomado minha autoestima,
aquela autoestima que eu tinha.
— Consegue me responder? — perguntou novamente,
graças ao tempo que levei pensando em tudo.
— Sim, consigo — respondi sem mais rodeios, com
segurança. — Caro Sr. Norman... — baixei meu olhar rapidamente
em direção ao seu crachá, para ver seu nome. — Durante esse ano
eu vivi um período de mudanças. Mudanças em todo o meu eu. Não
tenho porque mentir para o senhor, o meu histórico lhe mostra isso.
Eu era um péssimo aluno e reconheço isso. Fui expulso da sala de
aula diversas vezes, ia para a detenção mais do que assistia aula,
tirava notas baixas inúmeras vezes. Eu não tinha a visão de futuro e
de responsabilidade que eu tenho hoje. Mas, eu mudei. Ou melhor,
eu me redescobri, deixei transparecer quem eu realmente sou. Não
sou burro, como um dia pensei que eu fosse. Também não sou
irresponsável, como eu aparentemente era. Acho que durante muito
tempo usei máscaras para parecer ser uma pessoa “bacana”. O
estereótipo de cara bacana nos colégios é esse que não liga pra
nada. Tolice. Eu ligo sim. Agora eu ligo. Sou uma pessoa inteligente.
Meu histórico comprova isso porque minhas notas aumentaram
drasticamente nos últimos seis meses. Também sou uma pessoa
esforçada, determinada e capaz, porque, como pode perceber,
minhas notas começaram a aumentar num curto período de tempo
de um mês e meio, e vieram aumentando ao longo de todos os
últimos seis meses. Não me envolvi mais em brigas e confusões.
Me retratei com as pessoas que me comportei mal. Eu evoluí, e
acredito que a evolução é um processo contínuo, pelo qual todas
pessoas devem passar. Se eu sou perfeito? Não, eu não sou
perfeito. Não sou como esses alunos que já foram à inúmeras
olimpíadas de química, física e matemática, e tiraram os primeiros
lugares. Não, eu não sou essas pessoas. Mas, eu sei que, se
passar em primeiro em qualquer dessas olimpíadas, fosse um dos
meus objetivos atuais, o senhor pode ter certeza que dentro de dois
meses, no máximo, eu passaria — Nesse momento, o entrevistador
se endireitou na cadeira e até ajeitou os óculos no rosto. — E eu
tenho certeza disso porque eu sei quem eu sou. Eu sou uma pessoa
determinada. Quando eu quero algo, eu realmente vou atrás de
conseguir, custe o que custar. Hoje, eu sei quem sou. Hoje, eu sei
que sou isso, que sou assim. Hoje, eu sei que mereço ter a chance
de ser aprovado, porque eu me esforcei muito para isso nos últimos
seis meses.
— E o que lhe fez mudar, meu jovem? — o entrevistador tão
somente perguntou.
— Eu não mudei, Sr. Norman... — dei um breve sorriso. —
Eu me redescobri, eu deixei transparecer quem eu realmente sou.
Tirei todas as minhas máscaras e mostrei quem eu sou de verdade,
quem ficou escondido por muito tempo.
— Ok, Liam. Sobre essa parte, eu já entendi, mas... O que
lhe fez se redescobrir, então?
Suspirei.
Eu precisava ser sincero.
— Uma pessoa. Na verdade, um anjo. Eu não fiz isso por ele,
nem por ninguém, eu fiz isso por mim. Ele me deu o impulso inicial e
o resto foi por minha conta. Ele me mostrou que eu podia ser melhor
e a maturidade me fez enxergar isso de maneira ainda mais clara.
— Então, hoje você é esse jovem determinado, responsável e
maduro que me descreveu? — o avaliador perguntou novamente.
— Sim. Hoje, eu sei quem sou. E eu sei que sou isso.
Volta pra mim

Eric

O dia seguinte após o vestibular amanheceu diferente. A obrigação


de ir para o colégio e assistir aulas não existia mais. Era como se
um peso tivesse sido retirado das minhas costas. Ou melhor, das
costas de todos os alunos concludentes. O que faríamos agora?
Mais nada, apenas esperaríamos pelo resultado final.
Eu não precisava mais pisar no Colégio Regent, a não ser
para fazer as duas últimas obrigações, que eram as palestras que o
diretor Dawson havia nos repassado e o jogo da final do
campeonato. Fora isso, eu não tinha mais nada. O Colégio Regent
estava praticamente para trás. Uma nova fase estava prestes a
começar, a fase da universidade.
Porém, aquele dia não tinha começado diferente somente por
isso. Aquele também era o dia do aniversário do Liam. E eu sabia
disso porque era impossível esquecer, todos os anos, a família do
Liam convidava nossa família para cantar os parabéns. Às vezes
era somente algo simples, só um bolinho mesmo com as pessoas
mais próximas.
Só que naquele ano eu não iria. Procuraria qualquer desculpa
para não ir, mesmo que, no fundo, eu quisesse vê-lo, abraçá-lo, dar
os parabéns. Na verdade, eu queria mesmo era poder ligá-lo. Ouvir
sua voz e lhe dar os parabéns mesmo que pelo celular, talvez já
fosse o suficiente.
Suficiente...
Balancei a cabeça.
Suficiente nada.
Quem eu estava querendo enganar? Eu mesmo? Jamais
conseguiria enganar a mim mesmo. Com a saudade que eu estava
sentindo, uma simples ligação não seria suficiente. Eu precisava de
mais, de muito mais, para matar a saudade que eu estava sentindo.
Mas, o pior era saber que essa saudade eu nunca mais
poderia matar.
Suspirei.
Meu restinho de dignidade me falava para eu me aquietar.
Não vai atrás dele, Eric. Não vai.
Se eu fosse atrás dele, seria só para ter mais desgosto.
Insisti nele por tempo demais e só levei não. Até nas vezes que ele
me dava “sim”, era quase um “não” disfarçado. Liam nunca se
entregou totalmente de corpo e alma pra mim. Nunca. Eu sempre
dei tudo de mim para ele. Mas ele nunca se permitiu dar tudo de si a
mim. Sempre foi um “não” velado, até quando ele tentou me dar
mais.
Suspirei novamente.
Era um caso perdido. E eu já sabia disso.
Era melhor eu me conformar de uma vez por todas.
Logo, me levantei da cama e rapidamente me arrumei. Tomei
um banho, vesti uma roupa e desci para o café da manhã. Quando
cheguei na parte de baixo, minha mãe, Stefany e George já estavam
na mesa. Conversavam sobre alguma coisa, que eu não demorei
muito tempo a entender. Afinal, minha mãe logo deu a notícia.
— Querido, que bom que chegou! — minha mãe falou, assim
que eu me sentei a mesa. — Eu estava aqui comentando que Claire
nos convidou para uma pequena comemoração do aniversário do
Liam, que acontecerá mais tarde. Seu pai já disse que não poderá ir,
porque vai trabalhar até mais tarde na construtora hoje... Que
novidade... — revirou os olhos. — Mas, você vai, não é, querido?
Sua irmã também vai conosco.
Ah claro. Como eu bem poderia imaginar, eles fariam mesmo
uma comemoração do aniversário do Liam, embora simples.
— Não, Cynthia, ele não vai — George respondeu, antes que
eu pudesse dizer qualquer coisa. — Eric também vai trabalhar na
construtora até mais tarde hoje. Vamos aproveitar que suas aulas no
colégio acabaram. Agora você poderá se dedicar melhor à
construtora. Além do mais, Christian Hill, a partir de hoje, começará
a ser integrado na construtora. Você, Jimmy e Alex saberão como
repassar todas as informações mais importantes a ele, para que
comece a trabalhar. Quero que vá para a empresa hoje.
Merda!
“Vamos aproveitar que suas aulas no colégio acabaram.
Agora você poderá se dedicar melhor à construtora.”
Merda dez vezes!
Agora, George iria se aproveitar ainda mais de mim, com a
desculpa de que eu não estava mais estudando.
Que pesadelo! Por que as aulas da universidade não
começavam logo?
— George, pare de ser inconveniente — minha mãe falou. —
Deixe o menino ir ao aniversário. Todos os anos nós vamos, já é um
costume da família.
Ele, no entanto, suspirou com tédio.
— É justamente por que vamos todos os anos, que não
temos a obrigação de ir nesse — replicou e volveu seu olhar para
mim. — Quero que esteja na construtora, no mais tarde depois do
almoço. Ok?
Droga.
Ir à construtora era o maior saco da minha vida. Por outro
lado, ir ao aniversário do Liam também não estava dentro dos meus
planos. E eu precisava de uma desculpa para não ir. Talvez a
porcaria da construtora pudesse me ajudar, pelo menos, com isso.
Não era a melhor das decisões, mas, ao menos trabalhando,
minha mãe poderia se convencer de que eu não fui ao aniversário
porque não quis. Por isso, engoli amargamente toda a raiva de ter
que pisar naquele local e respondi:
— Tudo bem. Estarei lá, George.
Ainda pude notar seu olhar arquear brevemente.
Provavelmente, ficou surpreso por eu aceitar ir sem apresentar
muita resistência. Isso nunca acontecia.
— Ótimo. Temos muito trabalho.
❖❖❖

George foi na frente, mais cedo, e, logo depois do almoço, eu


também fui. Ir à construtora era sempre muito entediante pra mim.
Mas, se essa era a melhor desculpa para eu não precisar dar de
cara com o Liam, eu tinha que aproveitar. Talvez eu não
conseguisse me controlar por muito tempo, se passasse muito
tempo próximo a ele. A saudade que eu estava sentindo poderia ser
muito traiçoeira. A distância entre nós poderia ser a melhor opção,
para que eu não caísse em tentação.
Não demorou muito para que eu chegasse à construtora. Do
estacionamento subterrâneo, peguei logo o elevador de serviço para
que pudesse chegar mais rápido ao último andar. Em poucos
segundos, alcancei o piso onde ficava a sala do meu pai e do
Jimmy. Quando saí do elevador, logo avistei a porta do escritório.
Estava entreaberta. Dei dois toques de leve e entrei devagar.
George não estava lá. Quem estava lá era apenas Alex.
Porém, parecia que Alex não tinha percebido que eu havia
chegado. Estava sentado em uma mesa que o deixava de costas
para a porta e de frente para um computador, que ele trabalhava no
momento. Alex estava tão, mas tão concentrado, que logo pensei na
complexidade do serviço que estava fazendo. Isso não seria
nenhuma surpresa pra mim. Se meu pai exigia muito de mim, ficava
imaginando o quanto ele deveria exigir do Alex, que, mesmo sendo
filho do Jimmy, era um estagiário.
Estagiários geralmente sofriam na mão do George.
No entanto, quando me aproximei o bastante, vi que, na
verdade, ele não estava trabalhando em tabelas de Excel, gráficos
ou projetos de engenharia. Ele estava vendo fotos, muitas fotos.
Várias delas tinham o George sozinho, em outras tinha o George e o
Jimmy. E, então, quando tentei me aproximar ainda mais, Alex,
finalmente, percebeu que eu estava ali. De supetão, se levantou da
cadeira, baixando a tela do notebook logo em seguida. Assustado,
como se eu tivesse o pegado no flagra.
Ora, não eram apenas fotos?
O que tinha demais com fotos?
— O-Oi, Eric! — sorriu, ainda meio assustado, mas tentando
disfarçar. — Você por aqui...
— Ah, oi, Alex! — sorri também. — Pois é, o George não
avisou que eu viria? Eu pensei que... Ele tivesse dito. Me falou que
tínhamos que fazer a integração do Christian na empresa.
— Ah, verdade, verdade — falou, ainda meio sem jeito. —
Bom, eles, o George e o meu pai, saíram aqui da sala justamente
para apresentar algumas áreas físicas da construtora ao Christian.
Eu fiquei pra adiantar alguns trabalhos...
— Hum, sei, entendi — disse. — Então, você estava
resolvendo o que? Tá precisando de ajuda? Eu posso te ajudar.
— Ah, eu só tava... — parou por alguns instantes. Percebi
que tentava buscar na mente algo para falar. — Eu só estava
organizando algumas tabelas com as obras concluídas, em
andamento e futuras. É um dos materiais que precisamos mostrar
ao Christian quando ele voltar.
Mentira. Ele estava vendo fotos.
Por que não disse?
Ficou com medo de eu dedurá-lo ao George, contando que
ele estava procrastinando em vez de trabalhar?
Besteira. Claro que eu não ia falar isso.
— Ok, entendi. Então... Posso te ajudar? — perguntei.
— Claro. Claro que sim. Vamos começar. Temos muito o que
mostrar ao Christian.

❖❖❖

Já eram oito e meia da noite. Na sala da presidência havia


somente eu. Eu e mais ninguém. George, Jimmy e Alex já tinham
ido embora, mas meu pai fez questão de que eu passasse mais
tempo ali, finalizando coisas que qualquer um dos três poderia fazer
em qualquer outro horário.
Eu tinha uma leve impressão de que George fazia isso para
que eu começasse a sentir como era ficar sozinha naquela sala,
sentado na cadeira do presidente da empresa. Eu tinha a impressão
de que ele queria que eu começasse a sentir como era ser o
presidente da construtora, porque, futuramente, segundo ele, eu
assumiria o negócio.
Suspirei.
Eu não aguentava mais aquilo. Era como uma prisão. A
grande parede de vidro que ficava na sua sala, embora tivesse a
função deixar tudo mais iluminado e confortável, fazia eu me sentir
como se estivesse em um aquário. Um peixe preso.
Conseguia ver apenas toda a cidade de Londres, lá em baixo.
Os carros passando, os outros prédios e... A noite escura. O céu
estava fechado, encoberto por nuvens negras e pesadas. Parecia
que uma tempestade poderia cair a qualquer momento.
Me lembrei que eu tinha visto, mais cedo, no noticiário, que a
previsão do tempo para aquela noite era de muita chuva. E eu ainda
estava ali. Praticamente trancafiado naquele escritório. Precisava
sair, precisar descansar e espairecer a mente. Peguei o celular e
abri no aplicativo de mensagens. O primeiro contato que aparecia
era o de Lana. Era ela a última pessoa com quem eu tinha falado e
era com ela que eu iria falar agora. Quem sabe pudéssemos ir para
algum lugar, fazer alguma coisa. Eu só precisava descansar.
“Boa noite, princesinha! E aí, como você está? Tá a fim de fazer
alguma coisa hoje? Ir pra algum lugar?”
Em poucos minutos, ela me respondeu:
“Hey, garoto! Bom, na verdade, eu estou em casa agora. Meus
pais saíram para um jantar e eu fiquei sozinha. Tá a fim de vir pra cá
comer alguma coisa, assistir um filme?”
Opa, convite perfeito!
“Hummm, seria ótimo, princesa! Pois eu estou saindo aqui da
construtora e chego aí em uns quinze minutos.”
Mesmo sem realmente finalizar tudo, larguei aquele trabalho
e saí dali, antes que eu ficasse doido. Quando deixei a sala, a
empresa já estava vazia. O estacionamento, então, só tinha o meu
carro. Para não dizer que não tinha mais ninguém, o segurança
ainda estava lá, pelo menos.
As ruas de Londres não estavam tão cheias. Talvez as
pessoas já estivessem resguardadas em casa, para se livrarem da
tempestade que a qualquer momento poderia cair. Eu, no entanto,
não queria voltar para casa. Talvez minha mãe e minha irmã ainda
estivessem no aniversário do Liam. E meu pai, sabe-se lá onde
estaria. Só queria não ter o azar de dar de cara com ele novamente
em casa.
A casa da Lana era a melhor alternativa.
Entre quinze a vinte minutos, eu cheguei. A casa dela
realmente era imensa. E tive ainda mais certeza quando eu entrei.
Não poderia ser diferente, né? Era a casa de um engenheiro civil
renomado. Christian devia ser tipo o George. Gostava de coisas
grandes e espaçosas.
Lana estava linda, como sempre. Usava um vestido azul, um
pouco acima dos joelhos, de alça, que ressaltava seus seios. O
rosto de boneca e os cabelos ruivos estupidamente brilhantes
também estavam lá. Me deu seu costumeiro sorriso gentil e
educado, de orelha a orelha, quando eu apareci.
— Vem, entra... — segurou na minha mão, me levando para
dentro. — Seja bem-vindo e se sinta em casa, viu? Se quiser
alguma coisa, não tenha vergonha de pedir.
— Obrigado, princesa! — dei um pequeno beijo na sua boca.
— Muita gentileza sua.
Ela sorriu.
— E você, como está? Muito cansado do dia de trabalho? —
perguntou.
— Muito! — fui sincero. — Mas eu estou mais cansado
mentalmente, sabe? Aquilo não dá pra mim... — balancei a cabeça.
— Ainda bem que eu vim pra cá — sorri. — Agora sei que posso
descansar.
— E pode mesmo! Inclusive, eu pedi um sushi que é uma
delícia. Inclusive, já chegou. Então, a gente pode comer, enquanto
assiste filme lá no meu quarto. A cama é confortável, os lençóis
estão cheirosinhos, e tá tudo bem arrumadinho. Tenho certeza que
você vai gostar. Só não vale dormir no meio do filme, heim? — deu
uma risadinha.
— Como eu vou dormir contigo do meu lado? — também ri,
puxando-a para perto de mim e dando-lhe um beijo. — Não tem
como dormir com uma mulher dessa do meu lado...
— É? — deu um breve sorrisinho sacana entre beijos. — E o
que você vai fazer em vez de dormir?
— Ora... — Também esbocei um pequeno sorrisinho sacana
entre beijos. — Vou assistir filme... Você me chamou para assistir
filme, não foi?
A ruiva riu e logo me puxou pelo braço para subirmos as
escadas. Quando chegamos no andar superior, seu quarto era um
dos últimos do corredor. Lindo, grande, espaçoso. Sofisticado. A
cama e televisão eram imensas. Parecia como uma daquelas camas
colossais de antigamente.
Lana me fez deitar, trazendo para próximo de nós o sushi e o
controle da Smart TV. Tirou uma peça de sushi para mim e outra
para ela. Colocou em dois pratos e ligou a tv.
— Fica à vontade, tá? Se quiser mais, é só pegar! E aí, o que
vamos assistir?
— Hum... Não faço ideia — ri um pouquinho. — Mas, tem um
filme já meio antigo, que todo mundo fala que é bom, e eu tenho
muita vontade de assistir. Não sei você já assistiu... É “O
Profissional”. Já assistiu?
— Aquele com a Natalie Portman? — perguntou e eu logo
balancei um sim com a cabeça. — Nossa, eu nunca assisti, mas
também tenho muita vontade de ver. Me falaram que é muito bom.
Vou colocar esse, tá?
Lana, então, selecionou o filme e começamos a assistir,
enquanto comíamos sushi. Estava uma delícia, por sinal. Na
verdade, todo o clima do momento estava muito bom. Ela tinha
razão mesmo, sua cama era muito confortável e os lençóis muito
cheirosos. Tudo estava muito agradável e o filme já ia pelos
quarenta minutos.
No entanto...
De repente, e não mais que de repente...
Minha memória fez questão de me trair.
E me traiu de uma maneira muito mais forte e intensa do que
em qualquer outro momento ou dia. Era como se eu tivesse levado
um soco na cabeça, e o momento agradável de filme e lasanha
começou a realmente me incomodar. Porém, o que estava me
incomodando não era o presente, eram as lembranças do passado.
Eu me lembrei dele. Lembrei que aquele dia era o seu
aniversário. E que poderia ser nós dois assistindo filme e comendo
sushi. Lembrei que eu não o desejei nem um mísero “feliz
aniversário”. Lembrei das vezes em que fui para o seu quarto, e das
vezes que nos beijamos e ficamos no seu quarto. Lembrei que podia
ser o quarto dele... Lembrei que podia ser ele, em vez de ser ela.
Merda, merda, merda!
Droga.
Liam não tinha o direito de invadir meus pensamentos
daquele jeito e estragar a noite agradável que eu estava tendo!
Por que eu tinha que ser assim? Por que eu tinha que ser tão
trouxa a esse ponto?
Por que Liam não podia simplesmente sair da minha
cabeça?!
A Lana era tão legal, tão linda, tão educada, tão perfeita! E eu
sabia que ela estava gostando de mim! Eu também estava gostando
dela! Será que Liam não podia deixar meus pensamentos em paz
para que eu pudesse aproveitar o momento e seguir em frente,
como ele mesmo falou que eu deveria fazer?!
Não, eu não podia permitir que Liam me atrapalhasse
novamente!
Ele iria sair dos meus pensamentos por bem ou por mal!
Eu já estava entrando em desespero. De verdade.
— Lana... — praticamente sussurrei próximo ao seu ouvido.
Ela estava deitada do meu lado na cama.
Quando virou o rosto para mim, eu não perdi mais tempo.
Alcancei seus lábios com urgência. Beijei sua boca de um jeito
muito profundo, pegando-a quase de surpresa. Lana correspondeu
e me beijou na mesma intensidade, porém...
— Eric? — falou entre beijos, um pouco ofegante. — O que
aconteceu? Tá tudo bem?
— Tá tudo bem sim — também respondi entre beijos. — Eu
só... — parei olhando no fundo dos seus olhos. — Eu só queria ficar
contigo. Quer dizer, eu quero muito ficar contigo — Meus olhos
quase suplicavam. — Pode ser?
Lana ainda me encarou por alguns segundos, alternando seu
olhar entre os meus olhos e a minha boca. E com palavras não mais
me respondeu. A resposta que me deu foi um beijo muito mais forte
e intenso que o anterior.
Eu, então, continuei. Tomei sua boca de um jeito como eu
nunca tinha feito antes. Segurei-a forte pela cintura, trazendo-a para
cima de mim. A ruiva montou em mim, ficando com uma pequena de
cada lado.
Suas mãos deslizaram pelos meus braços, pelo meu peito.
Eu sentia sua respiração quente e ofegante. No entanto, suas mãos
finas e delicadas, de repente, pareceram mais grossas e maiores.
Seu rosto macio e suave, de repente, pareceu ter pelos, como se
uma barba me espetasse.
Assustado, abri os olhos. E, quando dei por mim, eu vi a
imagem dele em cima. Não era mais ela, era ele. Ele seus incríveis
olhos azuis e brilhantes. Ele seus cabelos curtos e pretos. Ele seu
queixo muito bem definido e lábios marcantes.
Meu coração parou.
E meus olhos quiseram encher de lágrimas. Era ele. Ele não
queria sair da minha cabeça de jeito nenhum. E eu não sabia mais o
que fazer! Me segurei para não chorar. Eu não podia fazer isso com
ela. Eu não podia fazer comigo!
Minha mente tinha me traído mais uma vez!
Droga.
Tentando apagá-lo da minha cabeça, me virei na cama,
deixando-a por baixo e eu por cima. Eu estava entre as suas
pernas, enquanto ela se movia embaixo de mim. Levei minhas mãos
aos seus seios. Eram fartos e firmes. Apertei-os com vontade,
enquanto ouvia gemidos baixinhos.
Desci minhas mãos para suas pernas, suas coxas e sua
bunda. Ela era toda linda e muito, muito, atraente. Porém, quando
subi novamente minhas mãos até os seus seios, eles já não
estavam mais lá. Parecia um peito liso e até musculoso. Um peito
de homem.
Senti meu coração acelerar, o susto me tomou novamente, e,
quando abri os olhos, ele estava lá mais uma vez. Era como se
fosse de carne e osso, me observando com seus lindos e grandes
olhos azuis, mesmo que eu soubesse que aquilo era só uma ilusão
de ótica.
Não, não, não.
Não podia ser!
O que aquele cara tinha feito comigo?!
Por que diabos não saía da minha cabeça?!
Por que?!
Eu tentava achar explicações, respostas. Isso nunca tinha
acontecido comigo, até Liam entrar daquele jeito na minha vida!
E, então, as comportas de lágrimas que estavam seguras em
meus olhos arrebentaram. Não pude segurar. Era demais pra mim.
Além do que eu poderia aguentar. Estava tentando de todas as
formas seguir em frente, como ele bem disse para eu fazer, mas eu
definitivamente não estava conseguindo.
Que tolice!
Saí de cima da Lana e me levantei da cama, indo em direção
a janela. Tentei segurar os soluços de choro, mas, às vezes, eles
vinham mais fortes do que eu conseguia disfarçar. Ouvi apenas a
voz da ruiva preocupada.
— O que aconteceu, Eric?! — levantou da cama e
rapidamente veio atrás de mim. — O que aconteceu?! Por você tá
chorando? Eu fiz alguma coisa?! — tentou me virar, mas eu
permaneci de frente para a janela. Não queria que ela me visse
naquele estado.
A mesma coisa tinha acontecido entre Molly e eu, meses
atrás. A mesma coisa estava acontecendo entre mim e ela, agora.
Merda! O que Liam tinha feito comigo?!
— Desculpa... Desculpa... Eu não consigo... — Minha voz
saiu quase como um sussurro. — Você não fez nada. Não se
preocupe. O problema sou eu mesmo — disse, enquanto tentava
controlar o choro, mesmo que fosse uma tentativa frustrada.
— E por que você não consegue? — tentou me fazer virar
novamente, mas eu permaneci de frente para a janela.
Eu não podia dizer! Não podia! Não podia!
— Por causa dele... — Merda. Falei. — Eu não consigo parar
de pensar nele um segundo sequer... — e, dessa vez, não consegui
me segurar de jeito nenhum. O choro aumentou e eu me virei para
ela, logo em seguida, abraçando-a. — Me perdoa... Por favor... Eu
não queria fazer isso com você, sério mesmo. Eu gosto de ti pra
caramba!
Lana, por sua vez, me abraçou ainda mais forte. Um abraço
aconchegante, acolhedor. Levou uma das suas mãos aos meus
cabelos e fez carinho. Passou seus dedos entre os meus fios e me
acolheu.
— Você não tem culpa de nada. Ninguém tem culpa de nada
— replicou, enquanto se afastava brevemente, somente o suficiente
para que ficássemos de frente um para o outro. — Ninguém manda
no coração. Essa é uma lição que eu aprendi há muito tempo —
esboçou um pequeno sorrisinho.
— Eu não quero isso pra mim. Chega — fui sincero. — Eu
preciso seguir em frente. Ele é passado. Ele mesmo disse para eu
seguir em frente. É o que eu estou tentando fazer.
Lana riu um pouquinho.
— Eu sei que Liam mudou bastante, mas eu me lembro muito
bem da época que nós éramos melhores amigos, e eu sei que, em
quase todas as vezes que o Liam diz “não” é, na verdade, um “sim”.
Não. Não. Eu não me conformava. Não tinha como eu me
conformar com isso.
— Então, por que ele não me fala isso?! Por que ele não é
sincero?! — me exaltei um pouco. As lágrimas ainda corriam. — Por
que ele simplesmente não diz que me quer também?! — suspirei,
tentando me acalmar. — Eu não acredito mais nisso. São muitos,
muitos, nãos. Desde o início ele sempre me deu “não” e, até hoje,
eu não sei como tudo entre nós aconteceu. Ele sempre me deu
“não”.
— Por medo, insegurança talvez — Lana respondeu. — Nem
todo mundo encara a descoberta da sexualidade da mesma forma.
Alguns encaram de forma mais simples, outros têm mais dificuldade.
Mas, eu posso te assegurar de uma coisa... — olhou no fundo dos
meus olhos. — O Liam ainda gosta muito de ti!
Balancei a cabeça, inconformado.
— Não, não... — passei as mãos no rosto e me afastei um
pouco, caminhando pelo quarto. — E... E nós? — virei-me pra ela.
— Eu gosto muito de ti. De verdade. Você é incrível!
A ruiva me deu um sorrisinho.
— Você pode até gostar de mim, mas o seu coração é total e
completamente do Liam. Eu estava só esperando o momento de
você mesmo falar isso.
E, quando ela se calou, meus olhos arrebentaram em
lágrimas de novo. Era tão ruim saber que ela realmente estava
certa, que eu não conseguia mais falar nada, nem pensar em nada,
e que eu só sentia vontade de chorar.
Lana, então, se aproximou novamente de mim, e...
— Vai... — falou baixinho.
Vai?
— Pra onde? — perguntei, confuso.
— Atrás do Liam.
Atrás do Liam?!
— Não... Não... — balancei a cabeça, passando as mãos no
rosto, exasperado. — Vai ser outro fora, outro não. Eu estou
cansado de ser dispensado.
A ruiva sorriu, passando as mãos no meu rosto em um
carinho.
— Ele não vai fazer isso... — balançou levemente a cabeça.
— Confia em mim. Confia no que eu estou dizendo. Não vai ser
outro “não”.
Meu coração acelerou.
— Como você pode ter certeza? — questionei.
— Eu sinto — sussurrou. — Vai! Vai logo. Fala tudo pra ele.
Seja sincero. Fala pra ele tudo o que está no seu coração. Vai —
esticou-se até o criado-mudo ao lado da cama e pegou a chave do
meu carro, estendendo em minha direção. — Vai.
Meu coração acelerou ainda mais. Eu estava vivendo uma
luta interna. Era o último resquício de dignidade que eu ainda tinha
dentro de mim. Se eu fosse até lá e recebesse outro fora, essa
dignidade desapareceria completamente. Por outro lado... Por outro
lado, eu estava com tanta, tanta, saudade!
Eu só queria voltar... Mesmo sem saber onde aquilo ia dar.
E, então, Lana falou pela última vez, balançando a chave na
minha frente:
— Vai.
Um surto de euforia, então, me tomou. A vontade de ir até lá
cresceu e superou qualquer limite da razão. Meu coração queria
saltar do peito. E eu queria correr até lá, sem saber nas
consequências, sem saber no fora que eu poderia levar.
Eu só queria ir até lá.
Puxando todo o ar que eu podia para os meus pulmões, tirei
a chave das mãos dela.
— Eu vou — respondi, finalmente. — Eu vou! — disse com
mais convicção. — Lana, você é incrível. A melhor pessoa do
mundo. Obrigado! Mesmo! — dei-lhe um abraço forte e logo corri
para fora do quarto.
Ainda consegui vê-la me observar da janela do seu quarto,
enquanto eu entrava no carro. Acenei com a mão, me despedindo, e
finalmente fui embora. Acelerei o máximo que eu podia. Eram onze
e meia da noite, já estava tarde, mas, pelo menos, sua casa ficava
no mesmo bairro, e eu estava pedindo a Deus para eu dar a sorte
de encontrá-lo em casa.
Olhei para o céu e as nuvens estavam ainda mais pesadas. A
previsão do tempo estava certa mesmo, ia chover pra caramba.
Bastou eu dobrar na sua rua, para o temporal começar a cair. Chuva
forte, pesada, acompanhada de raios e trovões.
Quando parei na frente da sua casa, vi que tudo já estava
fechado e todas as luzes apagadas. Provavelmente, todos já tinham
ido dormir.
Ah não, será que Liam já estava em seu sono pesado
também?
Droga.
Estava tarde.
Mas, eu não podia desistir.
Saí do carro, mesmo debaixo do temporal. E eu só precisei
pegar meio segundo de chuva para ficar completamente
encharcado. Molhado era pouco para descrever como eu estava.
Mas, eu não me importava nem um pouco com isso. Tudo o que eu
queria era poder falar com ele.
Meu coração saltava pela boca.
Relembrando os velhos tempos, juntei algumas pedrinhas em
minhas mãos e me posicionei debaixo da sua janela, que ficava no
segundo andar. Comecei a jogá-las.
Uma, duas... Três...
Nada dele aparecer.
Nossa, será que seu sono estava tão pesado assim?!
Joguei mais duas pedrinhas na sua janela e...
Nada.
Suspirei. Todo molhado. Encharcado pela chuva.
Ele não ia aparecer.
A última tentativa era a última pedrinha.
Joguei.
A luz continuou apagada.
É, aquele era um caso perdido. Não era a hora mais
apropriada para nos falarmos. Talvez em outro momento.
No entanto, quando fiz que ia me virar para ir embora... A luz
do seu quarto acendeu.
Acendeu!
Prendi a respiração e abri ainda mais os olhos.
Ele surgiu. Abriu a janela, olhou para baixo e me viu. Notei
que ficou espantado, mesmo que tentasse disfarçar um pouco. Ele
jamais esperaria que eu fosse aparecer ali, ainda mais naquelas
circunstâncias.
Encarei-o, mas nada falei. Não gritei para que abrisse a porta
para mim. Ele também não falou, nem gritou nada lá de cima. Mas
ficou longos segundos me observando. Será que ele não abriria a
porta? Será que ele não tinha entendido? Para mim, estava explícito
demais que eu queria que ele abrisse a porta, mesmo sem eu
precisar dizer nada.
Então, de repente, ele desapareceu da janela e a luz do seu
quarto se apagou.
Meu peito apertou.
Ele foi embora? Voltou a dormir? Não queria mesmo falar
nada comigo?
As lágrimas quiseram surgir novamente.
Porém... Repentinamente, vi a porta da entrada se abrindo.
Ele apareceu.
Ainda fiquei paralisado por alguns segundos vendo aquela
cena. Queria que ele abrisse a porta pra mim, mas ainda não estava
acreditando que ele realmente tinha feito isso. Meu sonho estava se
tornando realidade.
Finalmente, consegui me mover e caminhei ligeiro até lá. Em
frente à entrada tinha uma coberta, e foi para lá que eu caminhei.
Liam ficou de pé na porta e eu parei em sua frente, embaixo da
coberta, todo molhado da chuva.
Ele não me convidou para entrar, apenas...
— O que você tá fazendo aqui? — perguntou. Seu olhar
estava meio assustado.
O que eu estava fazendo ali... Era uma boa pergunta. Na
verdade, excelente pergunta. Eu tinha tanto para lhe falar, mas
parecia que, ali, todas as palavras sumiram da minha mente e da
minha boca.
— Diz... — Seu olhar ainda estava assustado. E ele falava
baixinho, porque provavelmente todos estavam dormindo. — O que
você está fazendo aqui?
O que eu ia dizer?
“Ah, eu vim te dar os parabéns”.
“Sei lá, eu estava passando pelas redondezas e decidir vir
aqui”.
“Eu só queria um abrigo da chuva”.
Não, não, não!
Eu precisava ser sincero!
Sinceridade.
Sincero como sempre fui em relação aos sentimentos que eu
tinha por ele.
— Eu... — respirei fundo, tentando tomar coragem. Era mais
um fora que eu ia levar. — Eu vim aqui porque... Porque eu estou
morrendo de saudade de ti... — Meu tom de voz foi quase uma
súplica e meus olhos encheram automaticamente.
Notei sua boca abrir levemente em surpresa. Suas
sobrancelhas também arquearam. E a sua respiração... Sua
respiração ficou descompassada. De repente, seu olhar, que antes
de encarava atentamente, desviou para um ponto qualquer.
— Eric, eu... — engoliu a seco e baixou a cabeça. — Eu
não...
Ah não. Não, não, não. Era mais um fora que eu ia levar!
— Liam... — o interrompi antes que ele falasse mais alguma
coisa. — Eu sei, você vai me dar outro fora, vai me dispensar outra
vez, e o meu restinho de dignidade foi embora junto com essa chuva
que me molhou todo para eu estar aqui. Só queria que você
soubesse que eu tentei seguir em frente sim, mas você não sai da
minha cabeça nem mesmo por um segundo — suspirei, tentando
recuperar o fôlego. — Eu tô com saudade. Morrendo de saudade,
na verdade, porque... Eu te amo. Eu te amo como nunca amei
alguém — Nesse momento, seu olhar, que estava direcionado para
baixo, se ergueu, ao mesmo tempo que o seu queixo caiu. — E eu
só queria que você voltasse pra mim, porque eu não aguento mais
ficar longe de ti. Isso era tudo o que eu mais queria. Mas, eu sei que
esperar por isso é inútil e decepcionante — As lágrimas que eu
tentava segurar já estavam banhando seu rosto. — E eu estou
cansado de me decepcionar — suspirei. — Enfim, desculpa por ter
vindo te perturbar. Só queria que você soubesse disso mesmo. Eu...
Tô indo agora, ok?
Ainda fiquei em silêncio, parado, por alguns segundos,
esperando que me falasse qualquer coisa, mas ele estava estático,
parado como uma estátua sem ação. Sim, era inútil e decepcionante
esperar por Liam. Assim, reunindo o máximo de forças que eu era
capaz, já que eu não tinha tantas, fui embora.
Sem ao menos olhar para o seu rosto pela última vez, dei as
costas e caminhei novamente no meio daquela chuva grossa e forte.
Pelo menos, eu tinha o falado tudo o que estava guardado no meu
coração. Era como se eu tivesse tirado um peso de mim. Porém,
assim como esperava, foi mais um fora, mais uma decepção.
Esperar por Liam era inútil e decepcionante.
Ele não voltaria mais pra mim de jeito nenhum.
Quando toquei na maçaneta da porta do carro, no entanto, eu
ouvi...
E meu coração parou em questão de segundos.
Eu ouvi...
— Eric!
Sua voz gritou pelo meu nome.
Sem acreditar, pensando que aquilo era mais uma artimanha
da minha mente fértil, me virei. Era ele! Em carne e osso, de
verdade. De verdade mesmo. Estava parado no meio da chuva,
todo molhado também, a alguns metros de mim.
Vi seu peito subir e descer em uma respiração forte e
pesada, até que, de repente, ele começou a caminhar rapidamente
em minha direção, tão rapidamente que parecia estar quase
correndo. Sem pensar em mais nada, fiz o mesmo, fui ligeiro em sua
direção, até nos encontrarmos finalmente.
E, quando enfim nos encontramos, só deu tempo dele me
falar:
— Volta pra mim — e me beijou. Forte. Intenso. Com
vontade. Com saudade.
Eu não estava quase acreditando. Parecia um sonho ou o
sonho de um sonho. Eu estava o beijando novamente, eu estava
sentindo o seu corpo colado no meu mais uma vez. O amor da
minha vida.
— Volta pra mim, por favor — suplicou, enquanto suas
lágrimas se confundiam com as gotas da chuva. Seu rosto colado
no meu.
— Eu volto pra você quantas vezes você quiser — garanti,
emocionado. — Eu volto pra você todos os dias, todas as horas.
Eu realmente estava vivendo um sonho, sem precedentes,
sem avisos. Jamais poderia imaginar que aquilo ia acontecer
exatamente ali, naquela hora, naquele exato momento. Era muito
mais do que eu poderia pensar. Era muito melhor do que qualquer
coisa que eu tivesse planejado.
E para completar...
— Eu tô morrendo de saudade... — sussurrou entre beijos
incontroláveis. — Por favor... Eu tô morrendo de saudade, não
aguento mais... — encarou-me, olhando firme no fundo dos meus
olhos. — Transa comigo? — Seu olhar suplicava.
E ali, ele acabou com o restinho de vida que eu tinha.
Meu Deus, ele sabia exatamente como acabar comigo.
Era inacreditável, insuperável, inimaginável...
Balancei um não com a cabeça.
Liam arqueou as sobrancelhas, demonstrando surpresa e
preocupação.
— Não? — questionou. Traços de tristeza cruzaram seu
olhar.
— Não — respondi e sorri com suavidade. — Eu não vou
transar contigo. Eu vou fazer amor contigo — e o beijei novamente.
Divisor de águas

Liam

Era o momento da minha entrega.


Minha completa e total entrega.
O ápice, o auge.
O maior divisor de águas da minha vida.
Palavras me faltavam para descrever a maneira como eu
estava me sentindo. Nem o maior dos maiores experts poderia
decifrar todos os sentimentos que percorriam cada pedaço do meu
corpo e se espalhavam por cada centímetro da minha pele.
Era como a mistura de tesão e doçura, urgência e saudade,
rapidez e lentidão. Eu sentia tudo ao mesmo tempo, tudo à flor da
pele. Uma fusão de sensações e sentimentos, um choque vontades
e necessidades.
Sim, necessidades.
Eu necessitava. Eu precisava daquilo. Como uma pessoa que
precisava de ar para respirar ou de água para sobreviver. Minha
vida estava destinada àquilo, eu tinha certeza. E isso era o resultado
de tudo, de todas as situações que eu tinha vivido até ali.
Eu tinha convicção de que estava predestinado para que isso
acontecesse. Não tinha como fugir, não tinha como driblar. Por mais
que eu quisesse evitar ou me negar, Eric e eu tínhamos que
acontecer.
E eu realmente havia evitado, negado com todas as minhas
forças. Foram anos e mais anos de negação. Foram dias e meses
de pura repulsa. Tentei evitá-lo, tentei me evitar, tentei ser forte,
mas... Enquanto eu o negava, eu estava negando a mim mesmo,
negando quem eu realmente era, negando a pessoa que, no fundo,
eu sempre fui.
Eu sempre fui isso, eu sempre fui aquilo. Eu sempre amei o
Eric. Desde os primeiros anos de convivência na infância, eu o
amei. Desde as primeiras birras, eu o amei. Desde os primeiros
jogos de futebol, eu o amei. Até mesmo quando nos afastamos e
fomos estudar em colégio diferentes, eu no Regent e ele no
Liverpool, com toda aquela disputa de times e nós dois capitães
rivais, eu o amei. E eu o amei ainda mais, quando o destino nos fez
se aproximar novamente.
E a materialização desse amor estava acontecendo nesse
momento, desse jeito.
Ele sendo o meu homem e eu sendo o homem dele.
Não tinha como negar, não tinha como mudar. Era pra ser
assim e não de outro jeito. Por mais clichê, ou até meloso, que isso
pudesse parecer, nosso destino estava escrito, traçado por deuses.
O universo sempre quis que fosse assim. E era por isso que,
naquele exato momento, estávamos nos beijando no meio da chuva,
molhados, na rua, sem nos importar que alguém pudesse nos ver,
sem nos importar se alguém iria comentar. Só queríamos ser felizes
e aproveitar ao máximo o que estava acontecendo.
Beijo tão intenso, acolhedor, cheio de saudade e esperança,
cheio de vigor e nenhum pudor. Demos vazão a tudo o que
sentíamos um pelo outro. E eu me permiti me desprender de
qualquer amarra que ainda pudesse estar me segurando. Me soltei
de tudo, de toda máscara, de todo preconceito, e, principalmente, de
toda saudade.
Eu estava morrendo de saudade. Deus, que saudade. Foram
semanas tão longas. Sem tê-lo por perto e vendo-o se envolver com
outras pessoas, as semanas que se passaram pareciam anos. Anos
que eu achei que nunca mais fossem acabar. Talvez tivesse sido,
sim, uma atitude precipitada minha de cortar qualquer relação com
ele, mas... Eu estava tão confuso.
Precisava respeitar o meu momento.
E, principalmente, eu precisava saber quem eu realmente
era, e o que eu estava fazendo da minha vida.
As semanas foram longas. Aprendi com a dor. Me conheci no
sufoco. Mas agora, enfim, sabia quem eu era. E não somente sabia
quem eu era, como também sabia do que gosta e de quem estava,
do que me fazia feliz e de quem eu queria que me fizesse feliz. Eu
sabia quem eu queria pelo resto da minha vida...
Eric.
E foi por isso que eu não pude perder a oportunidade. Vê-lo
bater na minha porta, todo molhado da chuva, se declarando e
querendo voltar, foi demais pra mim. O medo ainda quis aparecer, o
receio quis dar o primeiro sinal, os pensamentos negativos ainda
sondaram minha mente... Sobre não dar certo, sobre eu não ser
suficiente pra ele...
Eu, no entanto, tomei a decisão de não dar mais ouvidos para
isso. Queria tentar, queria me jogar, mesmo que fosse num abismo
escuro, mesmo sem saber onde aquilo ia dar. O sentimento que eu
tinha por ele era maior do que tudo e mais forte do que qualquer
coisa. Estava na hora de parar de retroceder, estava na hora de
seguir em frente. Dessa vez, seguir em frente com ele.
E eu não me arrependia, nem mesmo por um segundo, de
estar ali, o beijando no meio da chuva, todo molhado, na rua, à
noite. Não me arrependia de nada. Somente de não ter feito isso
antes. Mas, já que eu não tinha feito antes, que eu aproveitasse o
presente e fizesse aquilo que eu, no fundo, sempre tive vontade de
fazer.
— Vamos pro meu quarto? — sussurrei, entre beijos, quase
sem fôlego.
— Com certeza — ele respondeu, prontamente.
Determinado e cheio de vontade, segurei em suas mãos e
entrelacei nossos dedos. Caminhamos, enquanto eu o guiava
rapidamente pela chuva até a porta da minha casa. Entramos nos
beijando com tesão, com urgência. Ele parecia necessitar daquilo
tanto quanto eu.
Era praticamente impossível desgrudarmos um do outro. A
vontade de ter um ao outro era tão grande, que não separamos
nossos lábios um segundo sequer. Por conta disso, ainda nos
esbarramos em muitos móveis da sala, enquanto fazíamos o
caminho em direção às escadas.
Molhamos o piso da sala inteiro, graças às nossas roupas
encharcadas pela chuva. Tiramos do lugar muito móveis, pois todas
as luzes estavam fechadas e não enxergávamos praticamente nada.
Porém, nem mesmo o barulho que poderíamos estar fazendo,
correndo o risco até dos meus pais e da Molly acordarem, nos
preocupava.
Nada nos preocupava.
Só queríamos aproveitar e fazer o que deveríamos ter feito
há muito tempo.
Logo após alcançarmos o segundo andar, não demorou muito
até entrarmos no meu quarto. Adentramos com beijos fortes,
intensos, cheios de necessidades. Porém, assim que fechei a porta,
com as minhas próprias costas, porque não queria largá-lo nem por
um segundo, nem mesmo para tocar na maçaneta, Eric parou.
Encostou sua testa na minha e me encarou no fundo dos
olhos.
Seu olhar estava brilhando.
— Eu não acredito que isso tá acontecendo — disse. Um
traço de sorriso quis aparecer. — Tanto tempo que eu esperei por
isso... E agora tá acontecendo... É inacreditável.
Esbocei um pequeno sorriso e passei minhas mãos em seu
rosto, fazendo carinho.
— Pra mim, é como um sonho... — beijei-o de leve. — Pateta
— e dei uma risadinha.
Eric também riu um pouquinho e balançou a cabeça, como se
dissesse por dentro “tudo pode mudar, menos os apelidos”.
— Tá nervoso? — perguntou.
— Nem um pouco — respondi com convicção.
O loiro, então, ainda me encarou em silêncio por alguns
segundos, como se estivesse me apreciando ou apreciando a
situação, até que aproximou novamente seus lábios dos meus e me
beijou. Levou suas mãos até minha cintura e apertou com uma
inexplicável mistura de força e suavidade.
Esse era ele. Sempre fui a mistura de tantas coisas, tantos
antagonismos. Eric sempre soube unir perfeitamente bem os dois
extremos. O anjo e o demônio, o céu e o inferno, a doçura e a
vivacidade, a suavidade e a intensidade. Porém, agora, a linha, que
separava cada um de seus extremos, tornou-se tão tênue, que era
quase impossível delimitar.
Agora, ele era tudo isso junto e muito mais, sem dar margens
para qualquer divisão. Agora, ele era o meu tudo. Tudo de bom. Não
tinha nada que nele que não me fizesse bem. Eric era minha paz,
minha bonança, meu bem. Se eu estava com ele, eu estava bem. E
qualquer coisa que fizéssemos juntos, me fazia bem.
Aquilo me fazia bem.
Em passos lentos, me guiou rumo a minha cama. Me beijava
ora com suavidade, ora com intensidade. Suas mãos percorriam
minhas costas, meus braços, em carinhos preguiçosos e sem
pressa nenhuma de acabar. Não tínhamos pressa. Ele não tinha
pressa, nem eu. Estávamos vivendo nosso tempo, nosso momento.
Sem hora para acabar, sem prazo determinado.
Era somente eu, ele e mais ninguém.
Porém, quando, enfim, chegamos à beira da cama, antes de
me inclinar para eu me deitar, Eric parou. E me encarou um pouco
encabulado. Milagrosamente encabulado. Era muito difícil vê-lo
assim, pois sempre foi muito desinibido. Logo, achei um pouco
estranho.
— O que foi? — perguntei com o cenho levemente franzido.
O loiro suspirou.
— Estamos no seu quarto... — soltou no ar. — Praticamente
na sua cama.
Franzi ainda mais o cenho.
— E o que isso tem a ver? — questionei mais uma vez.
Eric me deu um sorrisinho meio desconsertado.
— Desculpa, é que estar aqui, fazendo isso contigo aqui,
ainda é novo pra mim... — Seus olhos brilhavam. Parecia de
emoção. — Você nunca... — e não completou a frase.
Ele não precisou completar a frase, para que eu, enfim,
entendesse. Minha voz de anos atrás surgiu em minha cabeça e eu
fechei os olhos automaticamente, como se, naquele instante, eu
estivesse revivendo o passado: “tira a mão daqui, seu idiota”, “você
não pode pegar nos meus carrinhos”, “para de bagunçar minha
estante!”, “sai de perto da minha cama, vai sujar o lençol”, “sai do
meu quarto, não quero você aqui”.
Respirei fundo e abri os olhos.
Foi como se um filme tivesse passado pela minha cabeça,
onde as cenas eram os episódios que vivemos que na infância e na
adolescência. Eu era tão tolo. Não gostava que ele chegasse perto
de nenhuma das minhas coisas, como se eu sentisse que ele fosse
uma espécie de ameaça pra mim. Era um tipo de autodefesa criada
por mim, já que Eric sempre me intimidou e bagunçou meus
sentimentos desde cedo.
Uma autodefesa bem tola, por sinal.
Por conta disso, talvez, no fundo, Eric tivesse criado certo
trauma de entrar no meu quarto ou de tocar nas minhas coisas. Ele
nunca se sentiu totalmente confortável em entrar no meu quarto,
nem mesmo na época que ele precisava me dar as aulas
particulares. Quando ele perguntava se eu poderia lhe dar a “honra”
de sentar na “incrível” cadeira da minha escrivaninha, o sarcasmo
escondia a falta de jeito por estar ali, a inquietude.
Era com um peso que eu me lembrava disso.
Sempre fui tão babaca com ele, enquanto ele tentava ser
gentil comigo. Pelo menos quando éramos crianças.
Algumas lágrimas quiseram surgir... Mas eu segurei...
Apenas...
— Você pode se sentir confortável aqui... — fisse. — Meu
quarto é seu quarto — toquei seu rosto com carinho. — Você pode
tocar em qualquer coisa do meu quarto. Principalmente em mim —
sorri.
Seus brilharam ainda mais. Ele parecia muito emocionado. E
o sorriso de orelha a orelha que meu deu, comprovou isso.
— Você nunca me deixou tocar em nada... Mas agora eu tô
tocando no bem mais valioso de todos... — e antes que eu pudesse
responder qualquer coisa, me beijou, segurando-me forte entre as
suas mãos.
Me beijou da maneira como sempre fazia, e como ninguém
nunca conseguiu fazer. Só ele. Somente ele. Nenhuma menina que
eu já tivesse me envolvido alcançou o nível de envolvimento e
sentimento que Eric era capaz de transmitir apenas com um beijo.
Eu amava isso. Eu amava ele.
E eu me deixei levar.
Deitamos na cama, ainda com as roupas encharcadas pela
chuva. Eu por baixo e Eric entre as minhas pernas. Não me
preocupei nem um segundo com o fato de molharmos ou sujarmos
minha cama. A água escorria pelo nosso corpo e nossos dedos já
estavam enrugados de frio. A chuva ainda caía lá fora.
Porém, o frio do tempo e da roupa molhada, aos poucos, foi
dando lugar a um calor. Um calor muito específico. As gotas de
chuva começaram a se misturar com o suor das nossas peles
molhadas e cheias de tesão. A quentura gostosa de um sexo
nascente começou a aparecer.
Era tesão, era saudade, era desejo, era amor, era tudo.
Tirei sua jaqueta e sua blusa molhada, e as joguei em um
lugar qualquer do chão. Toquei sua pele, apertei cada centímetro
das suas costas, dos seus braços, do seu abdômen, por vontade,
por desejo e também para ter certeza que aquilo realmente estava
acontecendo. Eu precisava saber se era real, se não era apenas um
sonho.
Por mais inacreditável que pudesse ser, constatei que era
real sim. E muito mais gostoso que um sonho.
Desabotoei sua calça e o ajudei a tirá-la, enquanto ele se
livrava dos tênis. Eric estava apenas de cueca, deixando amostra a
imagem do seu corpo que sempre me fez perder a cabeça. Minhas
roupas ainda molhavam a cama. Eu estava com a blusa e a calça
do pijama, afinal, quando ele apareceu, eu já estava quase
dormindo.
Eric tinha tanta habilidade em despir alguém e eu também
estava tão envolvido, que, quando dei por mim, minha pele já estava
completamente em contato com a sua, sem a barreira de roupa
alguma. O arrepio, graças a esse contato, era inevitável, como se
nossos corpos estivessem transmitindo altas cargas de energias.
E eu o beijei ainda mais.
Beijei por todas as vezes que quis beijá-lo, mas me retraí.
Beijei por todas as vezes que quis beijá-lo no colégio, mas me
bloqueei. Beijei por todos os dias que senti saudades, por todas as
noites que sonhei com ele, por todos momentos que chorei com
vontade de tê-lo comigo, por todas as vezes que ele quis e eu
neguei.
E o abracei ainda mais.
Abracei por todas as vezes que brigamos por bobagem.
Abracei por todas as vezes que senti ciúmes e não pude falar.
Abracei por todas as vezes que mamãe, na infância, dizia que
devíamos ser amigos; por todas as situações que papai, na
adolescência, falou que Eric era um bom garoto; por todos os
momentos que eu sonhei, em silêncio, com um abraço seu.
E o toquei ainda mais.
Toquei por todas as vezes que senti tesão e não me permiti
transar. Toquei por todos os momentos em que o meu maior desejo
era sentir sua pele colada na minha. Toquei por todas as situações
em que me neguei a reconhecer que era o seu beijo, o seu abraço e
o seu toque que eu queria, não o dia outra pessoa. Toquei por todos
os dias que eu quis tocar, mas não pude, e por todas as noites que
sonhei, mas não realizei.
Beijei, abracei, toquei, me permiti. Permiti ser quem eu
realmente era, quem eu, no fundo, sempre quis ser, quem eu
sempre fui. Soltei todas as amarras do pudor, do preconceito, do
medo. Corri em busca da minha felicidade, do meu amor. Realizei
minha maior vontade. Vontade essa que, há tanto tempo, suprimi.
Beijei, abracei e toquei sem culpa, sem peso na consciência.
Sem culpa pelo que eu estava fazendo ou pelo que eu já tinha feito.
Sem culpa por ter sido um inútil e um babaca por tanto tempo, pois
eu sabia que, agora, eu era a melhor versão que eu podia ser. Sem
peso na consciência por beijar, tocar, chupar um homem.
Afinal, que mal tinha em beijar, tocar e chupar o amor da
minha vida?
Sem julgamentos. Sem nada. Eu estava feliz, eu estava
tranquilo.
E lá fora ainda chovia, fazia frio, mas, dentro do quarto, o
calor era tão grande.
Eric desceu seus lábios pelo meu abdômen, deixando seu
rastro em cada centímetro do meu corpo, preenchendo de tesão
cada ponto da minha pele. Baixou minha cueca e fez caminho reto e
certeiro até lá. Fui no céu e voltei. Sua boca era tão macia, sua
língua tão habilidosa. Eu me sentia completamente sortudo por ser o
alvo de todo o seu desejo. Era muito bom e incrível ser desejado
desse tanto por ele.
Se entreteve por longos minutos nessa tarefa de me deixar
doido com apenas um oral. Subiu, desceu, levou sua boca para
outras partes do meu corpo. Na verdade, para todas as partes do
meu corpo. Não teve sequer uma parte imune aos seus lábios.
Parecia faminto, voraz, louco para satisfazer os meus e os desejos
dele. Inclusive, eu já tinha perdido até a noção do tempo. Já não
sabia mais há quanto tempo estávamos lá. Eu só tinha a certeza de
que pouco tempo não era.
Porém, quando, enfim, achei que não ia aguentar mais me
segurar para não chegar ao ápice...
— Para, para... — falei praticamente sem fôlego, segurando
seu rosto. As gotas de chuva, que antes escorriam, deram lugar a
gotas de suor. Sentia meu corpo em polvorosa. Minha pele
queimava.
— O que foi? — questionou, já preocupado.
— Nada... Tá ótimo — disse, ofegante. — É que eu já tô
quase gozando... Não consigo mais segurar.
— E isso é um problema? — arqueou uma das sobrancelhas
e sorriu com muita malícia.
— Não... — sorri também. — Claro que não. É só que... —
me estiquei até o criado-mudo ao lado da cama. Para minha sorte,
eu ainda tinha guardado os “presentinhos” da Stefany da época da
viagem. Nem sabia porque tinha guardado, na verdade. Talvez, no
fundo, bem no fundo, eu tivesse a esperança de que algo ainda
pudesse acontecer.
Tirei de dentro do criado-mudo uma camisinha e um tubo de
lubrificante. Ergui em direção a ele. Eric, por sua vez, não segurou
nada, apenas franziu o cenho, olhando-me um pouco confuso.
— O que foi? — perguntei.
O loiro me deu um sorriso meio desconsertado.
— É que... — parecia meio sem jeito. — Você tá erguendo
isso aí na minha direção e... Eu não sei se eu tô entendendo certo
— me deu mais um sorrisinho desconcertado.
Olhei-o como se fosse o garoto mais fofo do mundo.
Porque ele realmente era.
— É isso mesmo que você tá pensando — respondi
gentilmente. — Eu quero que seja você o primeiro — dei ênfase na
palavra “quero”.
Eric, todavia, passou as mãos no rosto. Estava meio
incrédulo, ou meio sem saber o que fazer. Talvez, preocupado. Sim,
seu rosto, na verdade, começou a parecer bem preocupado. E eu
não queria que ele se sentisse assim, porque eu realmente estava
decidido a fazer aquilo.
— Liam... Não... — balançou a cabeça. — Eu não queria
mencionar a última vez, porque sei lá... Não foi muito bom. Não foi
como o esperado. E eu não quero que isso se repita. Eu prefiro que
seja eu, não você.
Balancei a cabeça. Eu estava decidido.
— Não, Eric. De outra vez, pode ser você sim, mas, agora, eu
quero que seja eu. Pode ficar tranquilo, eu quero mesmo — dei
ênfase novamente na palavra “quero”. — De verdade.
E eu queria não porque estava me sentindo na obrigação de
fazer isso, já que a última vez não deu certo. Eu também queria não
porque estava com peso na consciência de “ter causado todo o
problema anterior”. Não, não era por nada disso.
Eu queria, porque eu realmente queria. Simples assim. Eu
estava com vontade, de verdade. E nada poderia curar essa
vontade, a não ser Eric me penetrando. Eu necessitava, precisava,
queria isso com todas as minhas forças.
Era isso o que eu sempre, sempre, quis. Eu só tinha medo,
só me negava, só não aceitava. Mas, era o que eu sempre quis. E,
finalmente, eu tinha a oportunidade nas minhas mãos de fazer isso
acontecer.
— Por favor... — praticamente supliquei. E balancei a
camisinha e o lubrificante na frente do seu rosto.
Eric ainda me encarou por alguns segundos. Parecia estar
alisando tudo aquilo, como se travasse uma luta interna dentro de si.
Eu sabia que ele estava com medo de botar tudo a perder mais uma
vez. Porém, dessa vez, eu não ia mais fugir, eu não ia para lugar
algum.
Eu ficar com ele. Pra sempre.
Então, após longos segundos de silêncio, Eric suspirou e,
enfim, pegou a camisinha e o lubrificante que estavam em minhas
mãos.
— Você pode me pedir para parar a qualquer momento, ok?
— falou.
E, sem perder mais tempo, voltou a me beijar e a me tocar.
Com muito mais intensidade e vigor que antes. Moveu seu corpo
sobre mim, fazendo com nossos desejos encontrarem mais uma
vez. Era extremamente excitante sentir sua ereção sobre a minha,
sua respiração misturada com a minha e sua mão entrelaçada na
minha.
Eric se encaixou entre as minhas pernas e não demorou
muito a me envolver novamente na sua nuvem de prazer e tesão.
Em pouco tempo, já estávamos quase alcançando o auge
novamente. Respiração ofegante, suor escorrendo, coração quase
saltando da boca e sentimentos à flor da pele.
Foi que aí senti algo meio frio e molhado. Eric passou uma
quantidade generosa de lubrificante, tanto em mim quanto nele. E...
Tentou cruzar a primeira barreira. Gemi baixinho, enquanto ele não
tirava os olhos dos meus. Eu via uma mistura de tesão e
preocupação, suavidade e desejo.
Forçou mais um pouco e perguntou se estava tudo bem. Eu
iria aguentar, com certeza. Estava determinado. Fiz que sim com a
cabeça, porque realmente estava tudo bem. E começou a ficar
ainda mais, quando, enfim, senti o obstáculo ficando para trás.
Deus...
Tinha dado certo?!
Eu quis chorar. Não de dor, mas de felicidade. Que felicidade!
Eric começou a se mover. Por fora meu corpo sentia dor, de
fato. Não podia mentir. Mas, minha alma sentia prazer e, aos
poucos, o prazer da alma foi transbordando para todo o meu corpo.
Aos poucos, ele foi se movimentando, até o ritmo ganhar uma
velocidade maior, graças à facilidade.
Não foi tão simples, não foi tão fácil, mas também não foi um
bicho de sete como eu imaginava. Talvez, naquela primeira vez, eu
estivesse assustado demais, inibido demais. Ali, jamais daria certo
mesmo. Mas, dessa vez... Dessa vez, eu tinha certeza do que eu
queria. Eu tinha certeza dos meus sentimentos, do que eu era e do
que eu queria para a minha vida.
Eu me sentia seguro. Eu estava seguro. Eu me sentia pronto
para isso.
Dessa vez, foi tudo muito mais fácil.
Tudo o que eu tinha vivido até ali, me preparou para que esse
momento desse certo.
O ritmo passou a ficar maior e melhor. A dor de outrora
começou a desaparecer e dar lugar somente ao prazer. E que
prazer... Jamais poderia imaginar que isso desse tanto prazer. O
Liam de antigamente jamais poderia imaginar e concordar que isso
desse tanto prazer.
A cada vez que Eric se acomodava mais dentro de mim,
passava um filme na minha cabeça. Era o meu auge. O auge da
minha vida. Eu estava vivendo a melhor fase da minha vida. Eu
sabia quem eu era, eu sabia do que realmente gostava.
Autoconhecimento era tudo!
E eu tive mais certeza disso no segundo seguinte, quando,
enfim, alcancei o ápice. Minha ereção ficou muito mais rígida,
enquanto Eric parecia muito mais envolvido de prazer. Seu olhar
cravado no meu não me deixava dúvidas. Me toquei, enquanto ele
continuava seu trabalho.
Não consegui mais aguentar. E também não saberia dizer
quem chegou primeiro ou depois. Eu só sabia que nós dois
tínhamos chegado lá. Uma explosão de sensações e sentimentos
dos mais variados. Desejo, prazer, loucura, tesão, amor, paixão.
Minha redenção, meu renascimento.
Naquele momento, eu tive a certeza de que nasci de novo.
Era o meu momento. O meu novo eu. Dali em diante, o antigo Liam
tinha morrido definitivamente. Eu já não era mais o mesmo, nem de
longe. Era o meu marco. Antes daquela noite eu era um, e depois
daquela noite eu passei a ser outro.
Minha nova personalidade estava totalmente definida. Meus
verdadeiros sentimentos estavam realmente demarcados. O
preconceito tinha ficado para trás e a liberdade estava nas minhas
mãos. Eu era livre. Livre de todas as amarras que me prendiam
antigamente. Nada mais me segurava. Nada.
E para completar, o melhor:
Eu tive a certeza absoluta de que Eric era mesmo o homem
da minha vida.
Quis chorar, quis sorrir. Morri de prazer, de tesão, de amor.
Eu morri tantas vezes naquela noite, pra no final eu renascer, mais
forte, mais evoluído, mais gentil. Eu estava total e completamente
satisfeito. Nada mais na vida me dava a completude que Eric me
proporcionava.
Foi por isso, por tudo isso, que eu não me aguentei. Eu não
segurei. Tive que externar. Tive que falar as três palavras mais
poderosas do mundo. As três palavras que sempre me deram medo
e que sempre me atormentavam quando eu me aproximava do Eric,
até mesmo na infância, quando nem sonhávamos que isso iria
acontecer.
Segurei seu rosto, olhando no fundo dos seus olhos,
enquanto ainda estava entre as minhas pernas, tentando recuperar
o fôlego, e...
— Eu te amo.
Falei isso pela primeira a ele. Na verdade, eu nunca tinha dito
isso para alguém. Somente ele. Ele foi o único que conseguiu
despertar o amor em mim. E só ele era dono de todo o meu amor e
de todo o meu coração.
— Eu te amo demais, de verdade — completei. — Obrigado
por tudo.
Eric paralisou e a única coisa que se moveu nele foi uma
lágrima que escapou do seu olho. Estava inebriado, absorto. O
fôlego que tentava recuperar, pareceu ter sumido completamente.
E, quando enfim conseguiu se mover, me abraçou forte,
muito forte, afundando seu rosto na curva do meu pescoço.
— Eu te amo tanto, tanto... — ele disse. A voz embargada,
cheia de emoção. — Você me faz o cara mais feliz do mundo...
Suspirei de gratidão. Gratidão por tudo, pela vida, por ter
vivido aquilo e ouvido isso. Era, sim, o nosso novo começo.
Tínhamos dado um novo e grande passo. E eu sabia que eu tinha
tomado a decisão mais acertada da minha vida.
Primeiro e único

Três semanas depois

Liam

Depois daquela noite, foi como se todas as coisas começassem a


se encaixar.
Eu realmente já não era mais o mesmo. Se antes as
mudanças já tinham começado, depois daquilo elas ficaram muito
mais evidentes. Me sentia como uma nova pessoa, uma pessoa
melhor. E isso me fazia tão bem, tão feliz.
Coisas que antes tiravam meu sono, já não me importavam.
E coisas que eu não tinha tanto interesse começaram a ocupar lugar
de destaque na minha vida. Eric e eu estávamos ficando e vivendo
nosso melhor momento juntos.
Saíamos todos dias, transávamos todos os dias, tiramos o
atraso de muitos meses, nos víamos o tempo todo e o sentimento
dentro de nós apenas aumentava com o passar do tempo. Naquela
altura do campeonato, eu já não me importava mais em andar de
mãos dadas com ele, ou de beijá-lo na rua.
A única coisa que me importava era a nossa felicidade. E eu
me sentia extremamente feliz de poder ser quem eu era com ele,
mesmo que fosse em público. Nossos pais ainda não sabiam sobre
nós, mas em nenhum momento tivemos medo que eles acabassem
descobrindo.
Na verdade, nós já estávamos planejando de contar, apenas
aguardaríamos pelo momento mais ideal. Ainda não sabíamos como
seria a reação deles, mas isso também não nos preocupava.
Sabíamos que, independentemente do que acontecesse, nós
permaneceríamos juntos, firmes e fortes, porque o que nós
sentíamos um pelo outro era mais forte do que qualquer coisa. Nem
mesmo um possível repúdio dos nossos pais seria capaz de nos
separar.
Do dia da nossa primeira vez em diante, nossas maiores
obrigações com o colégio tinham acabado, porque o vestibular já
tinha passado. Ou seja, fim das aulas. Para a minha completa
felicidade, a gente só precisava ir aos treinos de futebol e aguardar
pela grande final do campeonato.
Não precisávamos mais cruzar com aquelas pessoas do
colégio, muito embora, desde o que aconteceu com a Lana, eles já
estivessem começando a mudar certas posturas. E isso ficou ainda
mais evidente depois que tivemos o ciclo de palestra de
conscientização sobre pessoas LGBTQ+, que o diretor Dawson
tinha proposto como forma de nos redimir sobre o lamentável
ocorrido no pátio da escola e a onda de preconceitos que nos
assolava nos últimos tempos.
Era notório, no rosto de cada um deles, a maneira como
reagiram aos relatos de casos de vida de pessoas LGBTQ+. As
histórias eram tocantes, importantes, verdadeiros mecanismos para
abrir mentes tão fechadas. Algumas tristes, outras felizes. Histórias
de vida, de superação. Histórias que nos mostravam o real
significado da palavra “respeito”. Histórias que arrancavam lágrimas,
sorrisos. Histórias que nos davam, sobretudo, a esperança de uma
vida melhor.
No final do ciclo de palestras, o clima estava ameno. Era
como se todos tivessem passado a sentir vergonha das atitudes que
tomaram. Olhavam para mim e para o Eric de mãos dadas e nada
falavam, agiam naturalmente. Sim, nós estávamos andando de
mãos dadas no Colégio Regent. E, para ser sincero, pela primeira
vez, eu descobri que o “andar de mãos dadas” era tão mais íntimo
que fazer sexo...
Era libertador.
Os burburinhos, os olhares atravessados, as piadinhas de
mal gosto já não estavam mais ali. Exceto por uma coisa. No dia do
ciclo de palestras, assim que acabou e nós todos nos levantamos,
Eric estava do meu lado e segurou minha mão para irmos embora.
Em dado momento, olhei para o lado e vi... Eu vi olhares de Robert
e William se cruzarem com o meu. Tanto tempo que eles nem
olhavam mais na minha cara, tanto tempo que eu não ouvia uma
palavra sequer sair da boca deles.
Tanto tempo me evitando. Por causa de uma bobagem.
Olharam para mim e para Eric, até deslizarem o foco rumo às
nossas mãos.
Mas... Os olhares não eram mais os mesmos. Não eram
como antes. Eles pareciam... Não sei... Pedir desculpas. Uma
mistura de saudade com culpa. Ou saudade, vergonha e culpa. Eu
não sabia. Ainda passamos alguns segundos nos olhando. Eles
pareciam querer se aproximar, mas não o fizeram. Talvez o
sentimento de vergonha fosse maior. Uma pena, porque, apesar dos
pesares, eu sentia falta daquilo que a gente chamava de amizade,
mesmo que por um tempo eu tivesse pensado que a tal “amizade”
não fosse nada além de uma mentira.
Senti, então, quando Eric puxou levemente minha mão. Virei
meu rosto em sua direção e vi quando indicou com o queixo para
irmos embora. Dei um último olhar para Robert e William, notei em
seus semblantes que ainda ficaram tentados a fazer algo, mas
continuaram sem fazer nada. Suspirei e saí. Diferente de antes, eu
não guardava mais ressentimentos. Eu tinha consciência de que
eles agiram como eu mesmo agia, e de que cada um tinha um
tempo diferente para se desconstruir. Antes tarde do que nunca. Eu
só não iria atrás, mas, quem sabe, algum dia eles tomassem alguma
boa iniciativa.
Desse dia em diante, não nos vimos mais. Eu também não
estava muito preocupado com isso. Eu estava vivendo uma das
melhores fases da minha vida e não queria me preocupar com muita
coisa. Só queria ficar bem. Só queria aproveitar o que estava
acontecendo entre o Eric e eu. Era por isso que, naquele fim de
tarde de sábado, eu estava terminando de me arrumar, quando ouvi
a buzina do seu carro, o Porsche amarelo-cor-de-vômito-de-criança.
Risos.
Corri para a varanda e vi seu carro estacionado. Acenou pela
janela, deu um sorriso lindo. Lindo demais. Sorriso lindo do caralho,
puta merda. Acenei de volta e corri para fora. Aproveitei que meus
pais tinham saído de casa e, assim, eu não precisava dar satisfação
para ninguém. Na verdade, eu nunca fui de dar muita satisfação
para onde eu ia. Talvez, só um pouco mais, nos últimos tempos.
Não porque eles pediam, mas por consciência mesmo.
Quando alcancei seu carro, abri a porta e não me contive em
agarrá-lo no mesmo instante. Eu não me importava se estava na
frente da minha casa ou no meio da rua. Eu não me importava com
nada. Na verdade, eu só me importava com uma coisa: Eric.
Abracei, beijei. Para ser bem sincero, eu enchi beijos. Por mais que
eu o visse todos os dias, nunca era o bastante. Eu sempre
precisava de mais, eu sempre queria mais, como se fizesse vinte
anos desde a última vez que nos vimos.
— Nossa, que gostoso esse ataque de beijos... — falou com
um sorriso todo satisfeito, enquanto retribuía todos os meus
selinhos. — Quero mais, quero mais... — em tom de brincadeira,
disse, me abraçando.
Soltou uma pequena risadinha.
— Meu Deus, eu estou cada vez mais boiola — O sorriso não
saía do meu rosto. Eu não me importava, não me preocupava. Era
tão natural quanto qualquer outra característica minha. — Só ladeira
abaixo viu... — brinquei. — De mal para pior.
— “Ah, mas eu sou bi, eu sou bi...” — fazendo aspas com os
dedos e cheio de sarcasmo, imitou meu jeito de falar.
— Ei, mas eu sou bi sim, viu? — repliquei. — Inclusive, eu
estava até pensando de chamar alguma gatinha pra sei lá... Fazer
um ménage com a gente. Acho que devíamos aproveitar todas as...
Oportunidades — arqueando uma das sobrancelhas, sorri com
muito mais sarcasmo que ele.
Eric virou o rosto.
— E eu acho que você devia aquietar esse pau dentro das
calças — estreitou os olhos em minha direção com uma raivinha
fingida.
— Acha? — levantei novamente uma das sobrancelhas. —
Mas aí a brincadeira não teria tanta graça... — segurei sua mão,
levando-a até meu membro e fazendo-o apertar. — Deixa de ser
idiota — sorri. — Só fico duro contigo — e o abracei de novo,
beijando-o.
Realmente, isso era a mais pura verdade. Eu não tinha ficado
meses sem transar porque eu simplesmente quis. Não foi por falta
de tentativa. Eu queria, e muito, transar, mas só conseguia ficar
excitado com aquele imbecil. E era exatamente isso o que ele
estava fazendo comigo naquele momento: me excitando.
Eric segurou ainda mais firme, aprofundando o beijo. Abriu o
zíper da calça e continuou, agora sem barreiras. Não demorei
absolutamente nada para ficar completamente duro. Essa era a sina
da minha vida.
— Pra onde a gente vai? — perguntei entre beijos, ofegante.
— Pra um quarto? — ele respondeu, ainda me masturbando.
Porém, eu sabia que ele estava brincando com a minha cara. Eu
tinha certeza de que ele não queria quarto coisíssima nenhuma. Era
ali, agora.
— Por que a gente não faz aqui mesmo, no carro? —
perguntei, já tomado totalmente pela vontade. Era real: eu não me
importava mais com o lugar, com nada. Eu só queria aproveitar o
máximo que ele poderíamos dar um ao outro.
— Na frente da sua casa? — sorriu cheio de malícia.
— Sim — respondi prontamente. — Tem fumê, a gente sobe
os vidros e vamos pro banco de trás. Ninguém vai perceber. Vamos
— fiz que ia me levantar para atravessar em direção ao banco
traseiro, mas...
— Espera... — segurou minha mão.
Eric ainda sorria daquele jeitinho gostoso. Mas, me fez parar.
— O que foi?
— Você está esquecendo uma coisa importantíssima.
Continuou sorrindo, todo feliz, relaxado. Era tão bom vê-lo
assim.
— O que? — franzi o cenho.
— A camisinha e o lubrificante né? — respondeu com
obviedade.
— Ah? — revirei os olhos. — Pensei que fosse outra coisa.
Onde tá? — perguntei.
— Ali, no porta-luvas — indicou com o queixo. — Pega lá —
definitivamente aquele sorriso gostoso e despreocupado não saía
do seu rosto. E isso me deixava muito mais excitado. Até o seu
sorriso me deixava duro. Meu Deus, eu estava virando um maníaco
por ele.
Ansioso pelo que estava por vir, não me demorei. Abri
rapidamente o porta-luvas do carro.
Porém...
Quando vi...
Não tinha exatamente camisinhas e lubrificante...
Tinha... Uma caixa. Era de veludo azul, como uma caixa de
joias. Na verdade, era mesmo uma caixinha de joias, mas de
tamanho médio. Nem muito pequena, nem muito grande. Peguei
com certo estranhamento.
— O que é isso? — franzi o cenho.
O sorriso de Eric se alargou ainda mais.
— Não sei... Abre aí, que eu também quero descobrir — falou
em tom de brincadeira.
— O que você tá me escondendo, heim? — estreitei os olhos
em sua direção, mas logo foquei novamente na caixinha de joias.
Suspirei e, então, abri.
Meu Deus...
Era um colar prata. Lindo. E o seu pingente era um “E”.
— Isso é... — balbuciei antes mesmo de erguer novamente
meu rosto em sua direção, mas, quando ergui, Eric já estava
segurando uma outra caixinha de joias igual a minha. — São duas?
— Essa que você pegou é sua, e essa é minha — abriu a
caixinha e retirou outro colar. Porém, o dele tinha um “L” como
pingente.
Meu coração acelerou.
Não podia ser o que eu estava pensando.
— Por que você...? — com os olhos arregalados, sibilei
novamente. Eu estava tão surpreso que nem consegui completar a
pergunta.
Eric, então, suspirou. Largou a caixinha no seu colo e, com
seus olhos, brilhando, segurou minha mão.
— Liam... — levou sua outra mão ao meu rosto, fazendo
carinho. Meu coração estava quase saindo pela boca. Meu Zeus do
Céu. — Você... Aceita namorar comigo?
Não, espera.
Eu tinha ouvido isso?
Eu tinha ouvido isso mesmo?!
Namorar? N-a-m-o-r-a-r?
O Eric estava me pedindo em namoro? O cara da minha
vida? A pessoa que eu mais amava?
Meu Zeus... Finalmente!
Finalmente né? Por que, tipo assim, já estava na hora!
Eu nunca quis namorar. Nunca senti a menor vontade. De
verdade. Até mesmo na época que eu ficava com a Stefany, por
mais que ela fosse a “principal” e uma menina muito da hora, eu
nunca senti vontade. Nem com ela, nem com ninguém. Estava
“muito bem, obrigado” sendo solteiro e pegando quantas pessoas eu
quisesse.
Mas, com o Eric... Com o Eric era diferente. Na verdade,
depois dele, tudo foi diferente. Eu não me interessava por ninguém
mais, não conseguia me relacionar com outras pessoas. Era só ele.
Era só com ele. E eu sabia que eu precisava disso. Eu precisava
namorá-lo. Como uma necessidade de vida.
E eu não tinha a menor dúvidas de que eu realmente queria
isso.
— É-É, cla-claro! Claro! — com o coração saindo pela boca,
surpreso, nervoso, respondi. — É lógico que eu quero namorar
contigo — A cada segundo que eu falava, o sorriso dele ficava ainda
maior, mesmo que eu não soubesse como isso era possível, porque
já estava bem grande. — É claro que eu aceito — e no mesmo
instante o abracei forte, apertado, dando-lhe um dos beijos mais
apaixonados.
— Eu te amo! Eu te amo muito! — falou entre beijos,
enquanto também retribuía meu abraço forte. Ele me apertava em
cada parte do meu corpo, como se estivesse querendo atestar que
aquilo era real mesmo.
— Eu também te amo demais, seu imbecil. — disse. —
Quase me mata do coração com isso — sorri.
Eric deu uma risadinha.
— Foi ótimo ver sua carinha de surpresa — brincou como
uma criança que tinha acabado de aprontar.
— Idiota... — revirei os olhos e ri. — Vem, coloca o colar em
mim. Adorei o presente. Você realmente tem bom gosto. Claro. Para
estar comigo tem que ter bom gosto mesmo.
O loiro riu.
— Você usa o colar com a inicial do meu nome e... —
explicou enquanto colocava em mim. — Eu uso o colar com a inicial
do seu. Assim, você vai poder lembrar sempre de mim.
— Nem se eu quisesse, e fizesse muito esforço, conseguiria
te esquecer — dei-lhe um sorriso de canto de boca e o beijei.
Encostei minha testa na sua e olhei nos seus olhos. — Eu te amo.
Mesmo. De verdade.
Eric era a primeira pessoa com quem eu namorava. E seria a
única.
Eu prometo

Eric

Naquele dia, acordei com o coração muito, muito, acelerado. E


não, eu não estava passando mal, não era doença. Era só... Nada
mais, nada menos, que o resultado do vestibular! Naquele dia, o
resultado do vestibular seria divulgado e meu coração estava quase
saindo pela boca de tanta ansiedade.
Tudo bem que no dia da seleção em si eu não fiquei tão
nervoso. Porém, sentia como se a minha ficha realmente estivesse
caindo ali, naquele exato momento. Era o meu futuro que estava em
jogo! Tudo estava em jogo! Minha vida ainda era uma incógnita. Eu
ainda não sabia como seria tudo dali pra frente.
Eu tinha sido aprovado? E para qual universidade? Para
onde eu iria? Eu iria para uma universidade distante e finalmente
conseguiria ficar bem longe do meu pai? E o Liam? Como ficaria
nosso relacionamento? Ele iria pra onde? Em qual parte do país
estudaria? Seria muito longe de mim? E quando meu pai
descobrisse que eu não tinha me inscrito para engenharia civil, mas,
sim, para engenharia mecatrônica? Ia me assassinar? E mais, eu ia
conseguir bolsa para me sustentar e não ia mais depender do meu
pai pra nada? Mas, e o Liam também ia conseguir?
Meu Deus do Céu!
Minha cabeça estava girando!
Eu estava no meu quarto, sentado na minha escrivaninha e
de frente para o meu notebook. Atualizava a página do vestibular a
cada cinco segundos. Droga. Me sentia tão nervoso. E o nervosismo
aumentava a cada vez que eu atualizava a página e via que o
resultado ainda não tinha sido divulgado. Por que tanta demora?!
Parecia que faziam isso de propósito só pra deixar o aluno ainda
mais doido!
Respirei fundo.
Balancei a cabeça.
Não, não, não.
Entrar em pânico não era a solução!
Okay.
Era melhor eu descer e beber um copo d’água.
Foi o que eu fiz. Saí do quarto, desci as escadas e caminhei
em direção à cozinha. Quando me aproximei, percebi que Stefany
estava por lá, comendo um pedaço de bolo de chocolate. Muito
entretida nisso, por sinal.
— E aí, maninho! — falou, quando percebeu que eu estava
entrando. — Como estamos nessa linda manhã de sexta pré-
resultado do vestibular?
— Já olhei o site umas 345 mil vez. — resmunguei, enquanto
passava por ela e ia direto para a geladeira.
— Ah, você ainda está em vantagem! — deu uma risadinha.
— Eu olhei 745 mil vezes — sorriu com a boca cheia de chocolate.
Revirei os olhos e deu uma risadinha também.
— Anda, me dá logo um pedaço desse bolo pra ver se eu fico
mais calmo — caminhei até ela, puxei um garfo e prato com o bolo.
— Ei! — requisitou, enquanto mastigava um pedaço. — Pega
um pra você. Esse é meu — disse em tom de brincadeira.
— Bobona — respondi e tirei meu primeiro pedaço.
Hum. Era ótimo. Uma delícia, para falar a verdade. Bolo de
chocolate, recheio de ninho e uma generosa calda de brigadeiro.
Porém, de repente, ouvi um grito da Stefany bem ao meu
lado.
— Meu Deus! — exclamou, enquanto não tirava os olhos do
celular.
— O que foi?! — assustado, perguntei quase me engasgando
com o pedaço do bolo.
— Saiu! — Stefany ergueu o rosto pra mim. — Saiu! Saiu!
Saiu o resultado do vestibular! — estava tão eufórica que seus olhos
poderiam saltar da caixa craniana. — E a gente passou! Caralho, a
gente passou! Moda na Universidade de Londres, aí vou eu! —
soltou o celular em cima do balcão e saiu pulando feito louca pela
cozinha.
Me tremendo da cabeça aos pés, segurei seu celular. E, puta
merda, meus olhos quase não acreditaram no que estavam vendo.
Eu não somente passei, como também fui aprovado nas três opções
de universidade que eu tinha colocado: Universidade de Londres,
Universidade de Cambridge e Universidade de Oxford! Oxford!
OXFORD!
O-X-F-O-R-D!
Meu sonho estava se realizando! Eu sempre quis estudar na
Universidade de Oxford! Além de ser uma melhores das
universidades do mundo, eu iria estar a muitos quilômetros de
distância do meu pai! Que bênção! Será que eu podia já me mudar
no dia seguinte? Ou mesmo naquele dia?!
Não, calma.
Espera, espera, espera.
E o Liam? Ele passou também? Meu Deus, Liam estava tão
preocupado com esse resultado do vestibular! Isso era tão
importante para ele! Liam se esforçou tanto! Se ele não tivesse
passado, eu ia me sentir no lixo.
Corri então na lista para o procurar o nome dele...
Liam, Liam, Liam...
E, então, lá estava!
Liam Wyman Tremblay Terceiro! Aprovado na Universidade
de Oxford e Universidade de Newcastle! Só não tinha sido aprovado
na terceira opção, que era a Universidade de Manchester, mas já
estava ótimo! Estava perfeito! Ele tinha sido aprovado em duas
ótimas universidades, inclusive em uma em comum comigo!
— DEU CERTO, PORRA! — gritei. Dessa vez, me permiti
gritar, porque eu fiquei muito mais feliz pela aprovação do Liam do
que pela minha própria aprovação. Ele tinha conseguido, ele tinha
provado do que era capaz! E eu sempre, sempre, soube da sua
capacidade!
Abracei Stefany com tanta vontade, tanta felicidade! Nós dois
estávamos eufóricos. Eu por ter passado nas minhas três opções.
Ela por ter passado na Universidade de Londres. Nosso maior
objetivo do ano tinha, enfim, se cumprido!
— Ah, seu nerd do caralho! Você foi aprovado nas três
universidades que colocou! — me chacoalhou enquanto me
abraçava e bagunçava meus cabelos. — O orgulho da família, cara!
— Eu também estou orgulhoso de você! Parabéns, Ste! —
disse, enquanto ainda a abraçava. — Muito orgulhoso... E muito
orgulhoso do Liam! Cara, o Liam passou! Preciso ligar pra ele!
— Vai, vai! Liga! — falou, toda empolgada. — Eu também
estou muito feliz por ele!
No mesmo instante, tirei meu celular do bolso. No segundo
seguinte, seu número já estava chamando. Deixei no viva-voz para
que a Stefany e eu pudéssemos falar. Não demorou muito até que...
— Oi, amor! — ele atendeu. Sua voz já denunciava o estado
de euforia que estava. Liam já tinha visto o resultado, constatei.
— Meu amor, você passou! Parabéns! — praticamente gritei
no celular. Na verdade, eu gritei mesmo no celular. Não estava
conseguindo conter a minha felicidade por todos nós termos
conseguido passar em alguma universidade. — Eu não falei que ia
dar certo? Eu não falei?!
— Parabéns, meu gay favorito do mundo inteiro! — Stefany
gritou, fazendo-me rir ao seu lado. — Arrasou! Mandou bem! Agora
só falta morar vocês dois juntos numa república da Universidade de
Oxford e viveram felizes para sempre!
Ah, Deus! Stefany tocou exatamente no ponto. Nós dois
tínhamos passado juntos para Oxford. Era a única universidade que
tínhamos em comum.
— Gente, gente! Porra, caralho, cacete! Eu tô explodindo
aqui em casa! — ele respondeu, gritando também. — Não acredito
que essa merda deu certo! Passei nesse caralho de universidade!
Obrigado, Zeus, Buda, Thor, universo!
Stefany e eu ríamos do jeito dele. Tão lindo! Estava tão feliz!
E merecia demais toda essa felicidade.
— Parabéns, meu amor! — falei mais uma vez. Meu sorriso
ia de orelha a orelha.
— Parabéns, seu lindo! — Stefany também disse.
— Ai, pessoal, muito obrigado! Valeu mesmo! — replicou. —
Eric, amor, eu tenho tanta coisa pra te falar. A gente precisava tanto
conversar — disse, mas não em tom de preocupação. Falou
normalmente, como se precisássemos só conversar sobre como
íamos fazer. Isso era super natural.
— Claro, claro! — concordei. — Mais tarde eu passo aí na
sua casa e a gente vai pra algum canto. Tá certo?
Porém, no segundo seguinte que me calei, uma voz soou tal
qual um trovão em meio a uma tempestade. Voz fria, cortante,
grossa e nem um pouco amigável.
— Eric! — era meu pai.
Entrou na cozinha como um raio cortante e pareceu carregar
atrás de si um vendaval. Engoli a seco e nem mesmo me despedi.
Desliguei o celular em menos de um segundo.
— Oi, George — respondi, seco. Ou melhor, travado.
Pela sua cara, ele já sabia que eu não tinha me inscrito no
vestibular para engenharia civil, como ele queria desde o dia que
não nasci. Deus, eu já poderia até imaginar o show que estava por
vir. Isso se ele não me assassinasse logo de uma vez.
— Você pode me explicar porque diabos não fez o vestibular
para engenharia civil?! — questionou com ódio. Seu corpo exalava
energia de pura raiva. — Por que descumpriu o que eu disse? Por
que me desobedeceu?! — ele bufava.
Respirei fundo.
— Porque não gosto — tentei responder da maneira mais
breve possível, até porque ele já sabia disso. Estava cansado de me
ouvir falar que não gostava de engenharia e que não queria cuidar
dos negócios da família porque isso não me fazia feliz.
— “Por que não gosto”?! — exclamou novamente. — Como
você pode me dar uma resposta dessa tão sem cabimento?! Você
não sabe de nada! Você não tem noção de nada! Você é jovem e
não sabe o que é melhor pra si, e, quando souber não vai saber o
que fazer! — partiu em minha direção, mas eu me afastei dois
passos para trás. Ele parou.
— Você não pode dizer isso. Você não pode dizer isso —
tentei manter a calma, embora a raiva já estivesse querendo subir
pela minha garganta. — A única pessoa que sabe o que é melhor
para mim sou eu mesmo!
— Não, não é você! Eu sou seu pai e eu sei o que é melhor
para você! — retrucou no mesmo instante. — Você fez a pior
besteira da sua vida ao não escolher engenharia civil! Mas, agora
que fez essa burrice sem tamanho, mais do que nunca, quero que
fique perto de mim e da construtora o máximo que puder. Não que
quero perca o costume com os processos da empresa, você não
pode nos abandonar. Nem pense nas outras opções, você vai
estudar na Universidade de Londres e ponto final!
Espera.
O quê?!
Não.
Não, não, não.
Eu tinha ouvido isso mesmo?
Ele iria me obrigar a ficar em Londres? Ele sempre soube que
meu sonho era estudar em Oxford! E ainda tinha o Liam! Oxford era
a nossa única esperança de ficarmos próximos. Eu não ia permitir
que meu pai me manipulasse daquele jeito!
A cabeça esquentou, o peito saltou e os olhos se tornaram
duas esferas brilhantes de fogo. Minha raiva subiu para cabeça e,
em vez usar a racionalidade como estava fazendo, a emoção falou
mais alto, muito mais alto.
— NÃO! — exclamei. — Já chega! Você está passando dos
limites! Você sabe que eu sempre quis estudar em Oxford e não
pode me impedir! Você não pode fazer isso!
— Eu não só posso, como vou! Eu sou seu pai e posso fazer
o que eu quiser! — e se aproximou ainda mais de mim. Dessa vez,
ficando cara a cara comigo.
Nessa hora, Stefany interviu.
— Calma, pessoal! Calma! — levantou as mãos. — Não é
desse jeito que se resolve as coisas.
Porém, antes mesmo que eu pudesse falar qualquer coisa,
George respondeu.
— Saia daqui, Stefany! — exigiu sem tirar os olhos de mim.
— Essa conversa é só entre o seu irmão e eu!
— Mas pai, eu ach... — ainda tentou argumentar alguma
coisa, mas...
— Saia, Stefany! — interrompeu-a imediatamente. Não quis
ouvir nada, nenhuma tentativa de apaziguar a situação. — E você,
Eric, vai fazer o que estou mandando. Amanhã mesmo vai organizar
a documentação para se matricular na Universidade de Londres!
— Não, eu não vou! — retruquei instantaneamente. O ódio já
tinha se apossado de cada centímetro do meu corpo. — Eu não vou
e não adianta me obrigar!
— Você vai sim! — rebateu, cada vez mais próximo do meu
rosto. Tínhamos a mesma altura. Assim, não era muito difícil ficar
cara a cara. — E não contrarie minha decisão! Eu sou seu pai e
você me deve obediência, coisa que nunca fez na vida! — enfatizou
ainda mais a palavra “pai”.
Ah não.
Não, não, não.
Aquilo já era demais pra mim!
Eu nunca lhe obedeci na vida?!
Ele estava querendo falar de “vida”? Vida?!
Ok, se ele queria falar de vida, receberia uma resposta à
altura.
— Então, é de vida que você quer falar? — questionei em um
tom carregado de ironia. — Você nunca foi meu pai, de fato! Por
isso que eu há muito tempo não te chamo de pai! Eu sei que você
me deu uma vida muito confortável financeiramente, mas o papel de
um pai não é só botar a comida na mesa. É dar carinho, amor,
conselho! E isso você nunca fez! Sempre foi minha mãe que esteve
comigo em casa, presente, me ajudando, porque você sempre
passou as vinte e quatro horas do dia naquela porcaria de
construtora que eu odeio! — por fim, enchi o peito de ar para falar a
última frase com toda a vontade que eu tinha. — Você nunca foi
meu pai e nunca vai ser! — falei tudo aquilo que estava guardado
dentro de mim há tanto, tanto, tempo.
Na hora que me calei, seus olhos estavam a ponto de saltar
da caixa craniana, tamanha raiva que sentia. E, então, no segundo
seguinte, sua resposta surgiu na forma de uma das ações mais
irracionais possíveis:
Um tapa forte e certeiro no meu rosto.
Tão forte que meu rosto virou.
E doeu. Cada parte do meu rosto deu. Minha bochecha,
minha boca, meus olhos. Doeu tudo. Mas, a pior dor mesmo foi a da
alma. Apenas um só tapa, mas eu sentia como se ele tivesse dado
tantos outros. E todos esses outros tapas invisíveis e imaginários
foram dados dentro de mim, na minha alma, na minha dignidade.
Inevitavelmente uma lágrima se formou nos meus olhos. Na
verdade, duas ou três... Mais que isso...
Levei minha mão à bochecha, tentando suprimir a dor. Fechei
os olhos e todas as lágrimas formadas caíram. Meu rosto começou
a banhar-se. Eu quase não acreditava que aquilo tinha acontecido.
E, então, quando finalmente abri os olhos e ergui meu rosto
completamente magoado, ou até mesmo transtornado, em sua
direção, percebi que o único incrédulo não era eu. Ele também
parecia não acreditar no que tinha feito, mesmo que tentasse
disfarçar.
Eu não quis dar mais nem uma palavra, não quis mais olhar
na sua cara por nenhum mais um segundo. Ele nunca tinha feito
aquilo comigo, nem quando eu era criança. Ele nunca tinha me
batido. Tudo o que eu queria era sair dali. E foi o que eu fiz.
Me desviei dele o máximo que pude e passei direto,
caminhando para fora da cozinha. Quando, enfim, cruzei a porta,
não consegui me segurar. As lágrimas desabaram como uma
verdadeira cachoeira. O dia que era para ser um dos melhores da
minha vida, tornou-se um pesadelo.

❖❖❖

Nem sei como consegui dirigir. Talvez fosse a vontade de


sentir conforto nos braços do Liam, misturado com desespero de
sair de dentro daquela casa. Estávamos em uma praça de Londres,
um pouco distante das nossas casas. Era um local muito tranquilo,
onde poucas pessoas circulavam. Não era a primeira vez, tínhamos
o costume de ir para lá.
Estávamos sentados em um banco, eu com minha cabeça
encostada no seu peito do Liam e ele fazendo carinho no meu
cabelo. Eu chorava. Mas, não era somente pela briga daquele dia
ou pelo tapa. Eu chorava por todos os anos, por todo aquele tempo
que ele realmente não foi meu pai, pelas suas negligências e
cobranças excessivas, por me manipular, e, principalmente, por eu
não conseguir me sair dele, por eu me sentir um completo inútil e
impotente.
Quando minha vida mudaria?
Quando?!
Eu tinha a esperança de que depois do vestibular tudo fosse
melhorar, mas, meu Deus, como eu fui tolo! Era claro que nada
melhoraria. Tudo pioraria. Lógico que meu pai iria me obrigar a fazer
tudo o que ele quisesse, como se eu fosse um ventríloquo. Claro.
Como eu pude ser tão idiota?
“Você me deve obediência, coisa que nunca fiz nada.”
Nunca?
Como assim, “nunca”?!
A única coisa que eu fiz durante toda a minha vida, do dia
que eu nasci até ali, era obedecê-lo. Quando criança, que ele me
obrigava a ir à construtora somente para “acompanhá-lo”, eu ia por
obediência. Quando pequeno, que ele me proibia de ir brincar com
meus amigos, para ficar em casa estudando matemática, eu ficava
por obediência. Quando na adolescência, ele me obrigava a ir
trabalhar na construtora com Jimmy, eu ia por obediência.
Eu simplesmente passei toda a merda da minha vida inteira
obedecendo-o, mas ele não reconhecia isso.
E, pior, por causa disso, por causa de sempre obedecê-lo, eu
não conseguia ver nenhuma luz no fim do túnel. Eu não conseguiria
encontrar alguma maneira de impedi-lo de me matricular, contra a
minha vontade, na Universidade de Londres. Porque, sim, ele com
certeza iria me matrícula, mesmo contra a minha vontade, nem que
ele pegasse à força todos os meus documentos. Ele era capaz
disso.
— Eric... — Liam falou baixinho, enquanto fazia carinho nos
meus cabelos. — Amor, por favor... Eu não aguento mais te ver
chorando. Isso dói em mim — e segurou meu rosto com as duas
mãos, levantando-o. — Por favor, calma.
Suspirei. Me sentia quase sem forças.
— Como eu vou manter a calma, se eu não sei mais o que
fazer? — questionei, quase para mim mesmo. — É impossível. Eu
não consigo encontrar nenhuma alternativa, nenhuma saída pra
evitar. Eu não sei o que fazer para me ver livre do meu pai.
Liam passou as mãos no meu rosto, fazendo carinho. Seu
olhar estava preocupado, mas, ao mesmo tempo complacente. Me
observava com carinho, como se eu fosse a coisa mais importante
do mundo pra ele.
— Mas nós vamos achar uma solução — falou com
convicção me encarando no fundo dos olhos. Parecia estar tão certo
daquilo e me passava tanta segurança.
Só que...
Balancei a cabeça.
— Eu não quero mais me iludir de que vai ficar tudo bem —
Meus olhos marejaram novamente. — Estou cansado de ter
esperança. Eu não sei como vai ser. Me preocupa. Tudo me
preocupa. Meu futuro na universidade e em casa... Meu pai no meu
pé o tempo todo e... Principalmente, nós... Oxford era nossa
esperança de ficarmos juntos na universidade.
— Eu sei, eu sei... — Liam suspirou. Porém, logo segurou
meu rosto entre as mãos mais uma vez. Me olhou no fundo dos
olhos, de maneira muito mais segura e fixa que antes. — Confia em
mim. Vai dar tudo certo. A vida vai conspirar ao nosso favor. Nós
vamos achar uma solução! — disse com convicção novamente. —
Você confia em mim, não confia?
— Confio.
E eu confiava mesmo, só não sabia se ele seria capaz de
fazer alguma coisa para mudar o rumo que a minha vida estava
tomando.
— Ótimo... Relaxa... — encostou novamente minha cabeça
no seu peito. — Vai ficar tudo bem. Eu prometo.
Jogada de Mestre

Liam

Mãos suadas, coração acelerado, respiração ofegante... Não, eu


não estava transando. Pelo menos não por enquanto. Era a grande
jogo da final que tinha chegado. O dia anterior não tinha sido nem
um pouco fácil. Ver o Eric triste daquele jeito e ter a incerteza diante
de nós sobre o nosso futuro era péssimo.
Depois de tudo o que eu tinha vivido até ali, eu aprendi
muitas coisas, e, sem dúvidas, uma das maiores que lições era que
se você nasceu pra ser de uma pessoa, você vai continuar sendo
dela, independente das dificuldades, independente do que pudesse
acontecer. Era por isso que eu estava confiante de que tudo ia
acabar se acertando. Era por isso que eu estava tentando me
concentrar no jogo que aconteceria daqui a alguns minutos.
O vestiário estava cheio e todos os caras estavam se
trocando, vestindo-se com seus uniformes do time. Eric estava do
meu lado, se aprontando, mas nenhum dos caras nos dava aqueles
olhares de antigamente. Eu tinha a sensação de que as mudanças
começaram a acontecer com episódio da Lana, afinal, quando todo
mundo se deu conta do que tinha feito, a consciência bateu. E a
consciência bateu ainda mais com o trabalho feito pelo diretor
Dawson, graças às palestras sobre pessoas que faziam parte do
grupo LGBTQ+.
Além do mais, naquele momento, todos estavam
preocupados com o jogo, todos estavam focados em vencer, em
levantar a taça do campeonato. E, para ser sincero, eu sentia que
os caras do time estavam voltando a me olhar com respeito. Eu
notava que eles estavam voltando a me encarar como realmente o
capitão do time. Por vezes, no vestiário, eu até pegava um ou outro
me encarando como eu se eu fosse a maior esperança do time.
Cada integrante era importante, lógico, mas eu percebia que
estavam voltando a me observar como se eu fosse levar a vitória
para o time, como se eles dependessem de mim para ganhar o jogo,
assim como faziam antes. Isso fazia meu peito acelerar. Eu não
queria ser visto como o maioral, claro que não. Eu só queria ter a
sensação de que estavam me incluindo no time de novo. E saber
que estavam me incluindo no time novamente, daquele jeito, com
tanto respeito e confiança, já era a minha própria vitória. Minha
vitória particular.
Afinal, eu amava futebol. Eu amava jogar. Eu amava aquele
time.
— Os boatos que correm é de que o time do Colégio
Manchester veio para te marcar até o último segundo do jogo... —
Eric comentou, enquanto terminava de calçar suas chuteiras. —
Como sempre... — e sorriu fraco, como se admitisse amargamente
para si.
Bom, era o que todos faziam. Ele mesmo fazia isso quando
jogava pelo time do Colégio Liverpool e era meu adversário número
um. Como eles não estavam competindo agora, nosso principal
adversário tinha se tornado o time do Colégio Manchester. Eles não
nos deixariam ganhar tão fácil e me marcariam muito mesmo.
Eu era o capitão e atacante do time, a minha função era
mesmo fazer gols. Eu estava ali para fazer gols e o meu histórico
era de artilharia. Antigamente, eu enchia a boca para dizer que eu
era o maior artilheiro de time e falava isso com muito desdém.
Agora, eu não falava do mesmo jeito, mas ainda tinha consciência e
muito orgulho disso.
Porém, naquele dia, a expectativa era de que eu mascarasse
a minha função no time e passasse ela para outra pessoa, numa
jogada muito bem ensaiada. Mas, essa jogada só deveria ser
utilizada em último caso. Somente se estivéssemos passando por
maus bocados no jogo. Seria a mais jogada mais arriscada da
minha carreira e da história do time. Nunca fizemos algo assim. No
entanto, isso poderia ser vantajoso, pois o time adversário não
estaria esperando. Seria um elemento surpresa.
— Se liga na jogada ensaiada né? — respondi, enquanto
vestia a blusa do meu uniforme. O “10” estampado e bem evidente
nas minhas costas. Eu amava isso. O futebol era minha vida. Eu
amava ter a oportunidade de ser o camisa dez do time.
Eric me encarou com certo receio.
— Eu sei que a gente já ensaiou muito isso. Eu sei, eu sei...
Mas é que... — prendeu o ar e depois soltou como uma expressão
do tipo “foda-se”. — Não sei se eu vou conseguir... — balançou a
cabeça e eu percebi o medo em seu tom de voz. — Minha posição é
zagueiro. Sou bom sendo zagueiro. Fui o melhor zagueiro da
história do time do Colégio Liverpool, mas... Eu nunca...
— Amor... — falei, interrompendo-o. Segurei em seus dois
ombros e o encarei firme. — Nós vamos conseguir. Não é
obrigatório nós fazermos essa jogada, eu estou aqui. Eu sou o
atacante do time, e a minha função é essa. Você tira as bolas do
campo e eu as coloco dentro do gol. Mas, se a gente tiver que fazer
essa jogada, vai dar tudo certo, eu tenho certeza. Eu confio em
você... — segurei na sua nuca. — Eu confio no seu potencial.
Eric confiava no meu potencial para os estudos e eu confiava
no seu para o futebol.
Ele sorriu. Um sorriso tão lindo, tão... Meu.
— Obrigado. Muito obrigado... — e desceu o olhar para
minha boca, mordendo discretamente seu lábio inferior. — Queria
poder te beijar agora... — sussurrou.
— E por que não beija? — sorri.
Porém, no exato segundo seguinte...
— E aí seus moleques! — A voz grossa e forte do treinador,
sr. Jones, ocupou cada canto do vestiário, fazendo com que todas
as atenções se voltassem para ele. — Preparados para o jogo! Isso
não foi uma pergunta! Todos vocês têm que estar preparados nessa
altura — falou com aquele jeitinho nada amigável dele. Sr. Jones era
um ótimo técnico, isso ninguém podia negar, mas seu jeito botava
medo em qualquer um. Tínhamos muito respeito por ele. —
Lembrem-se das nossas reuniões! Lembrem-se dos nossos treinos!
Vocês têm total capacidade para ganhar esse jogo! Vocês passaram
o ano inteiro treinando para ganhar esse jogo! Lutem com garra,
com vontade, e tragam a taça do campeonato para o Colégio
Regent! — Todos vibraram diante das palavras do Sr. Jones, assim
como também bateram palmas, em forma, até mesmo, de
aquecimento pré-jogo. — Agora, façam um círculo aqui no meio do
vestiário — Uou, meu coração acelerou. Eu já sabia o que viria logo
a seguir. — Venha cá, Liam, no centro do círculo. Você sabe o que
fazer.
Sim, eu sabia.
Mas, essa era a primeira vez que eu puxava o time em um
grande jogo, desde que tudo aquilo aconteceu na minha vida.
Respirei fundo e entrei no círculo. Todos já estavam com os
braços por cima dos ombros uns dos outros, unidos. Ainda um
pouco inseguro, em silêncio, comecei a dar a volta dentro do círculo,
para tentar filtrar o clima de cada um. E eu percebi... Eles realmente
me encaravam com respeito, confiança... Eles queriam mais de
mim. Eles precisam de mim. E eu sabia que eles sabiam que eu
merecia ser esse respeito. Eu era o capitão deles.
E, entre eles, estavam lá... Robert e William. Prendi um
pouco a respiração quando os encarei. Assim como os outros, eles
me olhavam com respeito e confiança, mas tinha algo mais. Eu era
o capitão deles, mas também já tinha sido o melhor amigo deles.
Nossa ligação era muito maior, era muito mais forte. E a energia boa
que emanava deles, assim como também de todos os outros caras
do time, fez com que a minha adrenalina subisse a níveis muito
altos. Tão altos, que eu não pude me segurar.
— Eu tenho uma mania que já é tradição! — gritei em alto e
bom tom, com todo o ar que eu tinha nos meus pulmões. Há muito,
muito, tempo eu não fazia isso.
— De nunca se entregar e cair no chão! — o time inteiro
completou.
— Se é pra ganhar! — puxei.
— Se é pra ganhar! — gritaram.
— Se é pra perder! — continuei.
— Se é pra perder! — continuaram.
— O Regent vai mostrar sua força, garra e determinação!
Quem vai dar o sangue?! Quem?! — gritei com mais vontade ainda
— Eu! — o time gritou em uníssono.
— Quem vai dar o sangue?! Quem?! — repeti.
— Uh! Uh! Uh! — todos começaram a pular e a se abraçar.
Todos se abraçaram. E abraçaram, inclusive a mim. Eu me
senti parte do time novamente e isso foi incrível! Eles me tinham
como parte do time, eles me viam como capitão mais uma vez! Eu
não me sentia mais excluído, eu não me sentia mais rejeitado. E,
independente do resultado do jogo, somente por isso, eu já era um
vitorioso.
E, então, enquanto todos ainda estavam se abraçando, fui
surpreendido por Robert e William, que me abraçaram ao mesmo
tempo. Minha respiração parou e meu coração quase parou. O que
estava acontecendo, Meu Zeus do Céu?! Eles estavam me
abraçando mesmo?! Quis sorrir, quis chorar... Sim, ultimamente eu
estava muito besta para chorar.
Porém, antes que eu conseguisse falar qualquer coisa...
— Vamos, vamos! O jogo vai começar! Precisamos entrar no
campo! — Sr. Jones nos chamou.
Droga.
Robert, no entanto, falou no meu ouvido.
— Final do jogo a gente se fala — e saiu, junto com William,
rumo ao campo.
Meu Deus, o que foi isso?
Eu estava incrédulo. Mas, respirei fundo, tentando retomar a
compostura. Eu precisava estar concentrado no jogo para jogar
bem. Assim, segui junto com os outros, pelo corredor que dava
acesso ao campo do futebol. Porém, em dado momento, Eric ficou
ao meu lado e passou o braço pelo meu ombro.
— Bom jogo, amor — sorriu.
— Bom jogo pra você também! — respondi. — Eu sei que
você vai se garantir muito.
— Te amo! — ele falou.
— Eu te amo mais!
Sorrimos um para o outro. Esse era um dos momentos mais
importantes da minha vida e passar por isso, com o amor da minha
vida, era muito mais que perfeito. Era incrível.
Poucos metros antes de entrarmos no campo, já era possível
ouvir toda a euforia que exalava de lá. Isso fazia com que minha
adrenalina subisse ainda mais. Eu estava em polvorosa! E fique
ainda mais, quando, de fato, entrei no campo. Estava lo-ta-do. Era
enorme e as arquibancadas estavam completamente cheias!
Não estávamos mais tendo aulas, mas o Colégio Regent
tinha a tradição de sempre assistir todos os jogos do time,
especialmente naquela situação, a final do campeonato. Todos os
alunos estavam lá em peso! Dei um olhada geral em volta do campo
e vi muitos conhecidos na arquibancada.
Zeus! Até minha família estava lá! Meu pai, minha mãe e
minha irmã! A mãe do Eric e a Stefany também estavam lá! Noah e
Lana também marcaram presença e pareciam estar... Juntos?!
Como assim? Eu precisava de muitas explicações depois desse
jogo. Risos.
Mas, a verdade era que eu estava muito feliz por ver tanta
gente ali, especialmente as pessoas mais importantes da minha
vida! Era surreal, mágico.
Meu time todo já estava em campo e o time adversário
também. Eu e o capitão adversário tiramos o par ou ímpar, para ver
que começaria com a bola, mas o Colégio Manchester ganhou.
Tudo bem, isso não queria dizer nada. Muita água ainda ia rolar até
o resultado final daquele campeonato. Eles começariam com a bola
e nós terminaríamos com a taça.
Nos cumprimentamos e o jogo finalmente começou. A bola
começou a rolar e os minutos foram passando. A arquibancada
gritava a cada passe. A euforia era pura e contagiava todos os
jogadores. Todos, sem exceção, estavam dando o máximo de si.
Robert e William estavam indo muito bem. Eric, então, estava ótimo.
Eram minutos decisivos e definidores do nosso futuro.
Ganhar era uma questão de honra.
E os minutos passaram, os corações se aceleraram, as
respirações aumentaram e gotinhas de suor pingaram. Com quinze
minutos eu fiz o primeiro gol! Foi uma alegria só! A arquibancada foi
à loucura! Todos os caras foram me abraçar e agradecer. Fizemos
dancinha e tudo para comemorar.
Porém, o time do Colégio Manchester estava agressivo. Os
jogadores estavam me marcando muito, principalmente depois do
primeiro gol. Praticamente fecharam o time em cima de mim, para
que eu não tivesse espaço de fazer nada. E não era somente o
zagueiro do time deles que fazia isso, era praticamente todos os
jogadores mesmo. Eu fiquei travado.
E pior: estavam agressivos no sentido mais literal da palavra.
Marcaram diversas faltas em mim, me derrubaram, e, algumas
vezes, senti até machucar o pé, o tornozelo, a perna. Mas, eu
continuei lá, eu não ia sair daquele jogo para uma enfermaria. Eu
ficar até o fim! Para levantar a taça! O juiz, porém, não marcou
todas as faltas que mereciam ser marcadas. Isso já estava deixando
a arquibancada revoltada e, principalmente, Eric.
Pelo jeito como ele me olhava, Eric não estava nada satisfeito
com as faltas não marcadas e, sobretudo, com o jeito como os caras
do outro time estavam chegando em mim. Para completar, nos
quarenta minutos do primeiro tempo, o time do Colégio Manchester
fez o primeiro gol e empatou o gol. Ficamos putos, mas não nos
entristecemos. Ainda dava tempo de correr atrás, virar o jogo e
ganhar o campeonato. Só era preciso paciência e técnica.
Técnica.
Nos quinze minutos de intervalo o Sr. Jones faltou esfregar
na nossa cara essa palavra. Na verdade, ele faltou arrancar nossas
cabeças. Estava com raiva. Disse que se o time adversário
continuasse me marcando daquele jeito e faltando arrancar minha
perna a cada passe, Eric e eu precisávamos inverter as posições e
o time teria que auxiliar nessa jogada ensaiada. Foi isso o que ficou
combinado. Seria uma medida a ser adotada em último caso, mas
seria, sim, executada, se o jogo adversário continuasse o mesmo.
O segundo tempo foi ainda pior. O time do Colégio
Manchester se fechou muito mais. Eu não conseguia me mexer.
Nosso time ia pra cima, mas eles se fechavam. Os minutos corriam.
Quinze, vinte, vinte e cinco, trinta minutos se passaram e não
conseguíamos marcar mais nenhum gol porque o outro time
continuava completamente fechado.
Eles não marcavam gol, mas também não deixavam a gente
marcar. Eu tinha a impressão de que queriam levar para os pênaltis.
Porém, pênalti era uma roleta russa e eu, definitivamente, não
queria passar nessa roleta. Precisávamos vencer ali mesmo, dentro
do tempo de jogo. No entanto, quanto mais eu tentava agir, mais me
derrubavam. Em vez de futebol de campo, parecia mais futebol
americano. O Eric estava bufando! Seu rosto estava vermelho. E
não era de cansaço, era de raiva.
Os minutos estavam acabando e a apreensão, a raiva e tudo
mais começou a nos dominar. O desapontamento por não conseguir
agir na área deles estava nos tomando e o desespero nos
dominando. Nessa altura, a torcida inteira estava aflita. Os olhos de
todos permaneciam vidrados na gente e alguns até juntavam as
mãos coladas ao rosto em uma prece silenciosa.
Já estávamos esgotados. O cansaço por correr quase 90
minutos já era evidente. Enquanto isso, o Sr. Jones gritava lá do
banco por nós. Estava se esgoelando e, provavelmente, já queria
nos assassinar.
— Eric! Liam!
Eu sabia o que ele queria. Eu sabia que o Sr. Jones queria
que Eric e eu trocássemos para fazer a jogada. O medo de errar
falava tão mais alto. Merda! Era como se naquele momento, por
mais confiante que fôssemos com a nossa técnica, a insegurança
de levar tudo a perder, principalmente faltando tão pouco tempo
para acabar o jogo, nos travasse.
Porém, quando o placar marcou quarenta minutos do
segundo tempo, como uma resposta aos gritos do treinador Jones, o
zagueiro do time adversários marcou uma falta em mim e me levou
ao chão muito mais brutalmente do que as outras vezes. Gritei de
dor, pressionando minhas mãos no local. Ele tinha acertado em
cheio o meu tornozelo. A dor era incomensurável.
No mesmo instante, uns três caras do time, que estavam
mais próximos a mim, incluindo o Eric, foram me socorrer. Ouvi
quando um gritou “chama a enfermaria rápido!”. Eu estava de olhos
fechados, tamanha dor, mas eu sabia que Eric estava ali, e muito
preocupado, porque foi o primeiro a falar comigo.
— Liam, Liam! Onde é a dor? — falou ofegante. — É no
tornozelo?
— Sim... — respondi. — Meu tornozelo tá doendo pra
caralho!
— É no tornozelo! Faz o que for preciso! — disse para os
enfermeiros que me atenderam no próprio campo e afastou-se um
pouco para que eles pudessem trabalhar.
Passaram muito spray, fizeram massagem, me examinaram
ali mesmo. Melhorou, só que ainda estava doendo. Mas, mesmo
assim, me levantei. Eu não ia desistir. Não seria por causa disso que
ia sair do jogo. Essa era a vontade do time do Colégio do
Manchester: eu sair do jogo. Mas eu não daria esse gostinho pra
eles. Ah, não daria mesmo!
Eric rapidamente se aproximou, quando viu eu me
levantando.
— Como você tá agora? — perguntou, apreensivo.
— Eu tô mais ou menos, mas dá pra continuar. Eu quero
continuar.
— Tem certeza? — questionou, ainda preocupado. — É
melhor você ser substituído por um reserva. Se você ficar forçando
o tornozelo, pode ser pior. Pode ficar mais sério.
— Não — repliquei rapidamente, no segundo seguinte. Olhei
firme no fundo dos seus olhos. — Eu quero continuar! — garanti.
Nada ia me tirar dali! Nada! Eu iria ficar até o fim, nem que eu
tivesse que andar de muletas depois!
Eric ainda me encarou meio inconformado, mas logo
balançou um “sim” com a cabeça.
— Tudo bem. Mas tá na hora da jogada — falou com
seriedade.
Meu Zeus.
— Tem certeza? — Dessa vez, eu que fiquei apreensivo.
— Tenho — respondeu na lata. — Porque é melhor a gente
fazer isso do que eu quebrar a cara do time todo do Colégio
Manchester por ter te derrubado propositalmente várias vezes.
Respirei fundo.
— Ok — repliquei.
— A próxima vez que você tocar nessa bola é como zagueiro.
O atacante agora sou eu.
Indiquei um “sim” com a cabeça. Ainda meio apreensivo, mas
concordei. Eric logo se virou em direção ao time, fazendo um “dois”
em cada mão. Era nossa comunicação secreta de que a jogada ia
acontecer, para que o time pudesse se preparar. A gente ia trocar de
posição. Sr. Jones, lá do banco, ergueu as mãos pro céu, como um
“graças à Deus”, quando viu.
O juiz apitou, indicando para que o jogo continuasse. O jogo
estava quase acabando e nós já estávamos indo para os minutos de
acréscimo. A próxima vez que eu ou o Eric pegasse na bola era
tudo o nada. E, pra ser sincero, eu vi tudo aquilo passar com um
filme em câmera lenta sob os meus olhos.
Para iniciar aquilo que deixaria o time adversário sem norte,
eu fui para cima do atacante deles, quando a bola caiu no seu pé. E
tudo, tudo, aconteceu muito rápido, em questão de segundos, mas,
ao mesmo tempo, em câmera lenta, como se eu estivesse vivendo
em um filme.
Tirei a bola do seu pé, como um zagueiro faria, e, quando
percebi que os caras do time adversário já estavam se aproximando
de mim, para me marcar, passei a bola para Eric, que veio pela
minha direita, me mostrando que estava livre. Provavelmente, ele
percebeu que os caras já estavam querendo me marcar mais uma
vez.
Como não pensaram que Eric fosse atuar como atacante, o
caminho ficou livre para ele. Foi somente o tempo de eu passar a
bola para o Eric, para que os jogadores adversários ficassem que
nem baratas tontas perto de mim, achando que a bola poderia voltar
para o meu pé, por eu ser teoricamente o atacante.
O caminho ficou aberto para o loiro. Livre de marcações e
sem ninguém no seu meio, ele conseguiu adentrar pelo lado direito.
Mirando no cantinho, chutou a bola em cheio, com toda a habilidade
e técnica que tinha. Era questão de segundos. Era tudo ou nada
para virarmos aquele jogo e vencermos o campeonato.
O placar marcava os milésimos que faltavam para o jogo
acabar. As respirações de todos pararam, sem exceção. Jogadores,
técnicos, torcida. Todo mundo parou e nem piscou. Eu vi todos os
treinos do ano inteiro passarem pela minha cabeça, como uma
lembrança em forma de filme, vi nossos esforços, nosso empenho,
até que, quando enfim voltei para o presente, a rede balançou.
A bola certeira entrou pelo cantinho de cima da trave.
Que filho da mãe da mira boa!
A arquibancada inteira gritou em alto e bom tom: GOOOL!
O tempo zerou.
Nós tínhamos ganhado! Nós tínhamos vencido, porra! Nós
éramos os campeões do XXXV Campeonato Intercolegial de
Futebol!
Foi uma verdadeira euforia na arquibancada e no campo.
Todo mundo se abraçava! Mas, nada, nada, nunca na minha vida
até ali, se comparou com o que aconteceu logo em seguida: Eric
correu em minha direção, leve, feliz, livre de qualquer peso, e pulou
em cima de mim, encaixando suas pernas na minha cintura.
— Vencermos, meu amor! — gritou.
— Que jogada de mestre, porra! — exclamei.
Ele, todo feliz, com o sorriso de orelha a orelha, escorregou
em mim até tocar o chão. Parou, ficando cara a cara. Seu rosto tão
perto do meu. Sua respiração tão ofegante em uma mistura de
cansaço e alegria. Seus olhos tão brilhantes de emoção. Ele
encostou sua testa na minha e:
— Você sabe que a minha maior de jogada de mestre é ter
você na minha vida, né? — sussurrou.
Porra!
Ele sabia exatamente como me deixar ainda mais
apaixonado por ele! E, com o seu rosto tão perto do meu, com a
alegria que eu estava sentindo, com o amor que eu tinha por ele, eu
não resisti. Esqueci que estávamos no campo de futebol, esqueci
que estávamos na frente da arquibancada inteira, esqueci de tudo,
apenas o beijei com toda a vontade e o desejo que eu tinha.
Um dos beijos mais libertadores e gostosos da minha vida.
Eu não me importava mais com nada. Não queria saber das
consequências, e se realmente teria alguma consequência. Nós
merecíamos isso e muito mais. Nós sempre merecemos isso. Nós
merecíamos toda a felicidade do mundo.
E, então, quando dei por mim, toda a arquibancada começou
a gritar “uhul” para nós e aplaudir. Abri os olhos, virei meu rosto em
direção a eles e tive uma das maiores surpresas da minha vida:
todos os casais da arquibancada estavam se beijando, felizes.
Casais héteros. Casais lésbicos e gays que eu nunca tinha visto
finalmente estavam se assumindo!
E, opa! Aquilo ali era Noah e Lana se beijando?!
E... O quê?! Ali era Stefany e Molly se beijando do lado dos
nossos pais?!
Oh meu Deus!
Levei minhas mãos à cabeça, não com preocupação, mas
com alegria. Eric e eu rimos e sorrimos um para o outro. Aquilo era
incrível, demais!
O abracei forte, enquanto ele me rodava pelo campo.
Puta merda, eu amava aquele colégio!
Desgraça

Eric

Aquele era um dos dias mais felizes das nossas vidas.


Todos os jogadores exalavam energia de pura alegria, riam e
sorriam uns para os outros, até mesmo treinador Jones, que sempre
carregava um semblante carrancudo consigo, estava a simpatia em
pessoa com todo mundo. Inclusive, eu nunca tinha o visto correr
pelo campo com tanta felicidade. Risos.
A comissão organizadora do campeonato nos entregou as
medalhas de ouro e a taça de campeões, que foi erguida pelo Liam,
o capitão, na frente de uma arquibancada imensa, lotada e muito,
muito, feliz. Depois, pegando-nos completamente de surpresa, nós
fomos erguidos, Liam e eu, pelos jogadores do time, enquanto
fazíamos o caminho de volta ao vestiário.
Nos colocaram sobre seus ombros, enquanto nos
carregavam pelos corredores e entoavam músicas e o grito de
guerra. Liam e eu ríamos e sorríamos um para o outro, praticamente
incrédulos, quase sem acreditar que aquilo realmente estava
acontecendo. Ganharmos o campeonato e ainda sermos tratados
daquela maneira pelos nossos companheiros de time, era uma
sensação indescritível, especialmente depois de tudo o que
passamos.
Quando chegamos ao vestiário e nos colocaram no chão,
fizeram o típico círculo no meio da sala. Para minha completa
surpresa, o primeiro a falar foi Robert, e, enquanto eu esperava por
algum discurso relacionado ao jogo, o que aconteceu em seguida foi
algo completamente diferente.
— É-É... — suspirou, quando todos fizeram silêncio para que
ele pudesse falar. Parecia um pouco nervoso. — Eu... Em nome de
todo mundo do time, queria pedir desculpas a vocês, Liam e Eric.
Principalmente, ao Liam, que sempre considerei como um dos meus
melhores amigos. Eu sei que isso já era algo que deveríamos ter
feito há muito tempo, e realmente era algo que queríamos ter feito
antes, mas, quando a consciência pelo erro bate, parece que a
gente trava e fica com vergonha... Só que agora estamos todos nós
aqui, especialmente eu, pedindo desculpas pelo que fizemos.
Sabemos que agimos errado, sabemos que não tratamos vocês do
jeito certo. Sabemos que não gostaríamos que nos tratassem do
jeito que tratamos vocês. Então, nos desculpem por tudo e muito
obrigado por não terem desistido do time. Sem vocês, não seríamos
mais time. Respeitamos vocês e respeitamos quem são.
No momento que Robert falava, os outros jogadores
assentiam com a cabeça, concordando com aquilo. Alguns
carregavam um semblante com certa tristeza, provavelmente pela
consciência de que tinham errado. Olhei para Liam e ele parecia
bastante emocionado. Eu sabia o quanto isso era importante pra
ele, por mais mudado que ele estivesse.
— Não estamos aqui para julgar ninguém, nem para apontar
erros — respondi, quando Robert se calou. — Sabemos que cada
pessoa tem um tempo diferente de lidar com essa situação. Seria
maravilhoso se todo mundo, de cara, pudesse aceitar certas coisas
com naturalidade. O mundo seria bem melhor e muito mais
evoluído, se fosse assim. Mas, a gente sabe que não é. Até mesmo
Liam e eu tivemos um tempo diferente. E mais, a desconstrução é
um exercício diário. Nem mesmo eu, nem mesmo o Liam estamos
isentos. Todos os dias, todos nós, temos a oportunidade de
melhorarmos como pessoa, mesmo que seja só por um detalhe.
Então, muito obrigado por essa... Recepção. Eu fico muito feliz por
ver vocês assim, e acredito que o Liam também está — sorri e dei
uma pequena risadinha quando olhei para ele e vi como estava,
todo sem jeito por não conseguir segurar os olhinhos cheios d’água.
— É, sim, claro... — falou meio rindo, meio sorrindo, meio
engasgado pelo choro. — Eu sempre amei esse colégio e sempre
tive esse time como uma família pra mim. Quando tudo aconteceu,
eu me senti péssimo, me senti traído, porque isso aqui era tudo pra
mim. Mas, hoje eu entendo que cada pessoa tem um tempo
diferente, ainda mais se eu for pensar que a escola tem 2.500
alunos — deu uma pequena risadinha misturada com choro. — Todo
mundo muda. E graças a Deus, que muda. Não estão me vendo
chorar agora que nem um abestado? — riu, enquanto passava as
mãos no rosto. — Agora eu sou todo sensível. Não sei que porra é
essa. Mas, muito obrigado a todos vocês por isso...
Todos ali estavam sorrindo com o jeitinho do novo Liam e
bastou ele se calar para que seus amigos Robert e William o
puxasse para conversar. Estavam tão animados, tão felizes, como
se não se falassem há um século. E realmente fazia muito tempo
que não se falavam. Era bonito ver a amizade dos três renascendo.
Era bonito ver todo mundo entrosado, conversando.
Eu também fui puxado por Adam e outros caras do time para
conversar. Todos estavam agindo de um jeito tão natural, como se
nada tivesse acontecido, como se nunca tivéssemos passado por
momento de crise. E eu adorava isso. Não estava ali para apontar
erros, mas para tentar ser uma pessoa melhor, assim como todos
também estavam tentando.
E, assim, eu fiquei lá conversando, rindo, contando piadas,
por longos minutos, até que, de repente, senti um toque no meu
ombro. Me desliguei um pouco da conversa e, quando me virei, me
deparei com dois homens que eu nunca tinha visto na vida. Estavam
vestidos muito formalmente e destoavam bastante do clima
esportivo do vestiário.
— Você é o Eric Hastings? — perguntou.
— Sim, sou eu mesmo — respondi com o cenho meio
franzido e o sorriso um pouco confuso.
— Muito prazer, Eric — estendeu a mão em minha direção,
para que eu apertasse. — Me chamo Mark Davies, e, este aqui é
meu agente, Chris Scott. Eu sou um dos olheiros das universidades
que estava assistindo ao jogo e vim aqui para lhe oferecer uma
bolsa de estudos integral, pelo seu excelente desempenho na
escola e no futebol.
O quê?
Meu coração parou de bater por dois segundos e minha
respiração falhou.
— O senhor está me dizendo, então, que fui eu o ganhador
da bolsa? — perguntei mais pra mim do que para ele. Meus olhos
estavam tão arregalados de surpresa e de incredulidade.
— É isso mesmo, Eric — ele sorriu. — Estamos te
oferecendo uma bolsa de estudos integral na Universidade de
Oxford. Ficamos muito satisfeitos com as suas notas, o seu
comportamento e o histórico no futebol. Acreditamos que merece
essa bolsa. Por isso, já enviamos um e-mail para você, contendo
todas as informações necessárias para que você efetue sua
matrícula na Universidade de Oxford e envie a documentação
necessária para oficializar sua bolsa — tirou um cartão de dentro do
blazer e me entregou. — Aqui tem meu telefone e os outros meios
de contato, caso possa interessar.
Parecia um sonho! Aquilo era real mesmo? Eu realmente
tinha ganhado uma bolsa integral de estudos na universidade que
eu sempre sonhei? Meu Deus! A incredulidade ainda me dominava,
por mais que eu tivesse certeza de que tudo ali era a realidade.
— E-Eu... Nossa! — respirei fundo, tentando me recompor.
Meu coração ainda estava muito acelerado com essa notícia. —
Senhor, muito, muito, obrigado! Você não sabe o quanto isso é
importante pra mim! Eu, com certeza, vou preparar toda a
documentação para me matricular e receber a bolsa. Muito obrigado
mesmo!
— Tudo bem, Eric — sorriu novamente. — Viemos para te
dar essa notícia, então, qualquer coisa, basta nos contactar por
algum desses meios do cartão. Até mais e meus parabéns! — deu-
me um aperto de mãos de novo e saiu.
Com o sorriso de orelha a orelha, os segui com o olhar até
cruzarem a porta. Porém, assim que virei meu rosto, me deparei
com Liam sorrindo para mim e caminhando em minha direção. Em
menos de meio segundo minha cabeça deu um estalo: eu tinha
ganhado a bolsa, mas ele não. E, em pouco tempo, eu já não sabia
o que sentir, porque essa bolsa também era importante para ele.
— Era o olheiro da universidade, né? — perguntou, ainda
com um lindo sorriso no rosto.
— Era... — respondi sem saber se sorria ou não.
— Meu amor, que coisa boa! — me abraçou forte, com uma
felicidade genuína. Eu consegui sentir perfeitamente sua alegria
pura e verdadeira por mim. — Você conseguiu a bolsa! Eu estou tão
orgulhoso de você! Eu sabia que você ia conseguir... — nos separou
do abraço somente o suficiente para segurar meu rosto com suas
mãos e me olhar nos olhos.
— Eu não sei se fico feliz ou triste... — falei meio sem jeito.
— Você também queria essa bolsa. Ela também era importante pra
ti...
Liam sorriu complacente, balançando a cabeça.
— Só de você ter ganhado é como se eu tivesse ganhado
também — explicou, fazendo carinho no meu rosto. — A felicidade
que eu sinto pelas suas conquistas, pelas conquistas do homem da
minha vida, não tem preço. É melhor do que qualquer coisa.
E com essas palavras, senti como se eu estivesse flutuando.
Meu coração estava quentinho e confortável. Liam realmente era
outra pessoa e me amava de verdade. Ficava feliz com minhas
conquistas e desejava sempre o melhor pra mim. Para completar,
estávamos tão próximos e tão íntimos na frente de todo mundo,
enquanto eles agiam naturalmente e nós também.
Liam era minha salvação.
— Eu te amo — falei com o máximo de sinceridade e
convicção que tinha dentro de mim, e o beijei. Ali mesmo, no
vestiário, sem me preocupar, livre de qualquer peso na consciência,
de qualquer amarra que pudesse me prender. Livre de tudo.
Porém...
— Eric! — Aquela voz... Aquela voz que, soava tal qual um
trovão em meio a uma tempestade, invadiu cada centímetro do
vestiário, arrancando a atenção de todos, inclusive minha e do Liam.
— Que porra é essa?!
Era o George.
Droga.
Ele estava furioso!
Empurrando tudo o que via pela frente, se aproximou de mim
e, quando chegou perto o bastante, me puxou pelo braço. Somente
a força que usou para segurá-lo seria o suficiente para deixar aquela
região roxa.
— Ei! — Liam exclamou imediatamente quando meu pai nos
afastou à força e me puxou de um jeito nada delicado. Logo tentou
se aproximar, mas não conseguiu — Não faz isso com ele!
— Calado, seu moleque! — esbravejou, enquanto ainda me
segurava firme pelo braço. — Não se aproxime do meu filho
novamente! Você é uma péssima influência para ele e sempre foi!
Eu sempre disse isso! Você seduziu meu filho e virou a cabeça dele!
Ah, não. Não, não, não. Eu não acreditava que esse show
pudesse estar acontecendo ali. Todos presenciando a baixaria
desnecessária que estava sendo feita pelo George, e, além de tudo,
ainda jogando aquelas palavras totalmente descabíveis para o Liam!
— Calma, George. Calma — tentei manter meu tom baixo,
porque ali já tinha gritaria demais.
— Calma o quê, seu moleque?! — exclamou, dessa vez,
comigo. — Você me fez passar a maior vergonha da minha vida na
frente de todos e ainda me pede calma?! Eu não te criei pra você
virar viado! Se dê ao respeito!
— Você não pode falar assim como ele! — Liam gritou
novamente. Estava tão furioso quanto meu pai. — Você não pode...
— e tentou puxar meu braço para si, mas eu o impedi de puxar e de
continuar falando.
— Calma! Calma vocês dois! — exclamei para tentar pará-
los.
— Você vai sair daqui agora e nunca mais vai ver esse
moleque na sua vida! — George ameaçou. — Vamos! — e me
puxou pelo braço, mesmo que não precisasse, pois eu não iria
oferecer resistência em parar com aquele show do vestiário. Eu
queria mesmo era sair dali.
— Você não vai me separar dele! Tá me ouvindo? — Liam se
exaltou e tentou se aproximar de mim novamente. — Não vai
embora, Eric! Por favor.
E, então, eu que já estava começando a fazer meu caminho
de saída, sendo praticamente puxado pelo meu pai, parei por dois
segundos e falei baixinho, somente para Liam ouvir, olhando no
fundo dos seus olhos:
— Calma, calma. Me deixa ir. Não se preocupa, vai ficar tudo
bem — o encarei com firmeza e me virei novamente para ir embora.
Pelo jeito como o moreno me olhou, estava inconformado,
mas não tentou mais me impedir de ir. Ficou lá, parado no meio do
vestiário, enquanto eu seguia para fora, sendo arrastado por aquele
poço de ignorância e brutalidade.

❖❖❖

Depois de trancar Stefany em seu quarto, totalmente contra a


sua vontade, foi a minha vez. Abriu a porta do meu quarto e me
sacudiu com toda a força, como se eu fosse um objeto inanimado,
em cima da cama.
— Não faça isso com nossos filhos! Não faça isso com o Eric!
— minha mãe suplicou, enquanto presenciava aquela cena
deplorável.
— Filhos?! — perguntou cheio de ironia. — Não tive filho pra
ser viado e sapatão, Cynthia! Esses dois vão ficar presos de
castigos dentro até tomarem um rumo certo na vida!
— George, por favor, não trate nossos filhos assim! —
mamãe suplicou novamente. — Não é assim que se resolve as
coisas, homem! Vamos ter uma conversa civilizada com eles, que é
melhor!
— Cynthia, eu cansei de ter paciência com esses dois! —
rebateu no mesmo instante. — Você deveria me agradecer por eu
não ter ido fazer uma confusão lá na casa do Liam e da Claire!
Sinceramente, eles mereciam! Mas, não vou fazer isso por enquanto
— e virou-se para mim. — Você vai ficar dentro desse quarto,
trancado e de castigo! Só vai sair daqui quando eu deixar! Arrume a
papelada da matrícula na Universidade de Londres, porque amanhã
mesmo eu vou com você até lá!
— Não, eu não vou! — exclamei. — Você pode me manter
trancado nesse quarto o quanto quiser, mas eu não vou fazer as
suas vontades NUNCA MAIS!
Que merda! Ele me manipulava, me maltratava, me obrigava
a fazer coisas contra a minha vontade, queria me separar do Liam!
Que inferno! Eu já estava cansado!
De repente, ouvimos inúmeros pancadas vindo da porta do
quarto da Stefany. Ela estava louca. Louca de ódio. Tenho certeza
que queria matar o George tanto quanto eu.
— Eu quero sair daqui! Que droga! — gritava e batia na
porta.
— Cale sua boca, Stefany! Você vai sair daí quando eu
quiser! — George gritou de volta e virou-se novamente para mim. —
Você também vai fazer o que eu quiser! Trate de arrumar seus
documentos para fazer sua matrícula amanhã! E tem mais, nem
pense em se encontrar de novo com aquele moleque! Coisa mais
feia! Deu pra bichinha agora?!
O sangue subiu ainda mais para minha cabeça e estava
fervendo. Fervendo de ódio! O pior desgosto da minha vida era ter o
George como meu pai! Por que a minha mãe não se casou com
outro homem? Ou melhor, por que ela não já se separou dele?!
— Eu te odeio! — explodi. — Eu odeio você e todas as
desgraças que você faz! Você é o pior tipo de pessoa do mundo e
tudo o que eu mais queria era que você sumisse de uma vez por
todas da minha vida, da vida da minha mãe e da minha irmã! Você
nunca fez falta e nunca vai fazer!
— Desgraça?! — Esbugalhou os olhos e quis avançar em
mim, que estava sentado na cama, mas minha mãe o segurou. —
Desgraça é você! Você é a maior desgraça da minha vida! Filho
desobediente e viado! É muito desgosto para um pai só! Você vai
ficar trancado nesse quarto por muito tempo! Até refletir sobre todas
as suas atitudes e decidir fazer o que é certo na vida! —
praticamente empurrou minha mãe para fora do quarto e trancou a
porta, passando a chave várias vezes e levando-a consigo.
Quando, enfim, fiquei sozinho, quis socar e quebrar tudo o
que eu vi pela minha frente, mas me contive. Me joguei na cama e
pressionei o travesseiro contra o meu rosto, com toda a força. Quis
gritar, quis enlouquecer, mas tentei manter o mínimo de equilíbrio
que ainda me restava. Eu precisava agir e o mais rápido possível!
Não podia deixar as coisas como simplesmente estavam! Eu
estava trancado no meu quarto, enquanto minha irmã estava
trancada do outro lado. George nos faria passar muito, muito, tempo
ali, com certeza. Além disso, me obrigaria a me matricular na
Universidade de Londres no dia seguinte, me separaria do Liam e
me tornaria a sua melhor e maior marionete.
Não, não, não!
Eu não podia deixar isso acontecer!
Eu tinha que agir!
Respirei fundo e tirei o celular do bolso. Meu Deus do Céu,
tinham umas trezentas mensagens do Liam e umas quatrocentas
ligações. Meu peito apertou por saber que ele, com certeza, estava
muito preocupado comigo. O problema era que eu ainda não podia
procurá-lo. Eu tinha que procurá-lo quando achasse uma efetiva
solução, pois, caso contrário, seria pior e ele ficaria ainda mais
preocupado.
Por mais que Liam tivesse a melhor das melhores intenções
em me ajudar, ele não conseguiria fazer isso sozinho, pois nós
estávamos no mesmo barco. Eu precisava de alguém mais forte,
alguém maior, alguém de mais força. Eu precisava de um apoio
muito mais sólido. Foi por isso que abri o aplicativo de mensagens
e...
“Por favor, me ajuda! Meu pai passou de todos os limites.”
Foi a mensagem que enviei para a Tia Sam.
Com amor
Liam

O silêncio reinava em minha casa. Fomos o caminho todo de volta


em um silêncio meio desconfortável e, quando chegamos, isso
continuou. Mamãe e papai estavam lá embaixo, provavelmente na
sala, Molly estava em seu quarto, e eu estava no meu, deitado na
cama. Eu não sabia o que estava se passando pela cabeça dos
meus pais, mas, pelo menos, a reação deles não foi tão ruim quanto
a do pai do Eric.
Meu peito apertava de angústia a cada segundo que eu
pensava no que tinha acontecido. Liguei várias vezes para ele e
mandei um milhão de mensagens, mas Eric não deu um sinal de
vida, e isso fazia minha preocupação aumentar a níveis
exponenciais. Eu me perguntava porquê a vida tinha que ser assim.
Por que as pessoas tinham tanta dificuldade de aceitar isso,
especialmente os pais?
Eu só queria saber como toda aquela situação do vestiário
terminou na casa deles. Meu coração, porém, me dizia que as
coisas estavam piores. Eu sabia que a minha intuição não estava
errada, ela não falhava. O George, com certeza, faria de tudo para o
Eric, mais que nunca, se tornar a sua marionete. Só queria ter a
certeza de que ele ficaria bem e de que nós ficaríamos bem. Depois
tudo o que a gente já tinha passado, não merecíamos isso, quando
as coisas estavam começando a dar certo.
Suspirei e... Quando pensei em pegar o celular novamente,
para tentar entrar em contato com o Eric pela milésima vez, a porta
do meu quarto se abriu. Me endireitei na cama pra ver quem era e
quem primeiro entrou foi a Molly, seguida da minha mãe e do meu
pai, que apareceu logo atrás. Uou. Arregalei levemente os olhos
para aquilo e, por impulso, eu, que estava deitado, me sentei. Um
pouco nervoso e confuso, os encarei, embora carregassem
semblantes leves.
— Querido, precisamos conversar — em um tom bem
ameno, mamãe disse e logo se sentou na ponta da cama. Papai e
Molly fizeram o mesmo.
Mesmo que estivessem calmos, meu coração quis acelerar,
pois eu não sabia o que viria logo a seguir. A maneira como meus
pais iriam reagir a todas aquelas informações ainda era uma
incógnita muito séria para mim.
— Tudo bem — tentei responder, meio nervoso. — Mas...
Vocês não vão me matar? Quer dizer, não vão matar Molly e eu,
pelo que vocês viram hoje no jogo? Não vão brigar com a gente?
Não vão dizer que isso é errado? — perguntei atropelado, com a
voz um pouco trêmula.
Mamãe logo soltou uma pequena risadinha.
— Não, querido... — respondeu gentilmente. — Nós viemos
em missão de paz. Não viemos para deixá-los de castigo, nem nada
do tipo. Na verdade, nós já sabíamos disso. Nós dois, eu e o seu
pai, já sabíamos de tudo o que estava acontecendo entre você e o
Eric, e entre a Molly e a Stefany.
O quê?
Meu queixo caiu.
— Vocês já sabiam? — com o cenho bem franzido,
questionei, totalmente incrédulo.
— Sim — ela respondeu. — A Molly e a Stefany nos
contaram antes de vocês fazerem aquela viagem para passar um
fim de semana na casa de campo da Samantha em Cambrigde.
O quê?
Meu queixo caiu de novo.
— Você contou? — questionei boquiaberto e até um pouco
desesperado, por terem me escondido isso durante tanto tempo. Eu
fui e voltei, mas eles agiram como se nada tivesse acontecido. Meu
Deus, que atores!
— Calma, garotinho... — Molly soltou uma risadinha. — Não
precisa ficar em choque desse jeito. Eles não vão matar a gente. Se
fossem, já teriam feito isso muito antes. E eu só contei, porque a
mamãe estava achando estranho alguns comportamentos nossos.
Ela estava preocupada.
— É isso mesmo, querido — mamãe concordou. — Eu e o
seu pai estávamos preocupados com vocês e queríamos saber o
que estava acontecendo. Nós só não falamos nada, porque
quisemos esperar que você mesmo se sentisse confortável para
falar sobre isso. Mas, depois do que aconteceu no jogo... — deu
uma pequena risadinha. — Parece que você está realmente
decidido a levar adiante. É por isso que estamos aqui, para
conversar.
Pisquei os olhos repetidas vezes, como se estivesse
querendo provar para mim mesmo que isso era mesmo real. Parecia
um sonho, ou um sonho de um sonho. Algo muito, muito, distante de
qualquer coisa que eu pudesse imaginar. Uma atitude nunca
imaginada por mim. Não que eu esperasse que eles agissem como
o pai do Eric, mas também não esperava que reagissem dessa
forma.
— E o que vocês querem conversar? — perguntei, ainda
meio temeroso. Essa reação ainda era muito nova para mim. Eu
esperava por uma briga ou um castigo a qualquer momento, porque
pais raramente entendiam essas coisas.
— Nós queremos dizer pra vocês que está tudo bem — com
calma, falou fazendo-me engolir a seco. Na minha cabeça a única
coisa que se passava era: “isso é sério mesmo?”. — Não vamos
brigar com você e sua irmã, nem os castigar. Eu e o seu pai
entendemos a situação e vamos apoiá-los independentemente de
qualquer coisa.
Arqueei as sobrancelhas.
— Sério? — foi tudo o que eu consegui falar.
— Sim. Vocês continuam sendo nossos filhos do mesmo jeito
e nós continuamos amando vocês — ela respondeu. — Não é,
querido? — e virou-se para o meu pai.
— Sim, Claire... — papai, que até então estava calado, falou.
— Aconteça o que acontecer, continuamos orgulhosos de vocês.
Especialmente você, Liam — encarou-me firme. — Eu sei que,
muitas vezes, acabei errando como pai, não te valorizando do jeito
certo. Sei que, muitas vezes, te comparei com outras pessoas, com
o próprio Eric, por exemplo. Sei que muitos dos meus comentários
não eram apropriados, porque cada pessoa tem o seu valor. Sei
que, muitas vezes, pedi pra você mudar, mas o que quero dizer
agora é que sempre me orgulhei de ter você como meu filho. Eu
reconheço que você é um garoto esforçado e tenho orgulho da
pessoa que está se tornando. Tenho orgulho de vê-lo sendo
aprovado na universidade. Tenho orgulho dos adultos que você e
sua irmã estão se tornando.
Meu queixo caiu ainda mais e meus olhos se encheram
d’água involuntariamente. Jamais pensei que meu pai fosse me falar
isso um dia, principalmente nessas circunstâncias. Pensei que eu
fosse ser recebido com paus e pedras, mas me deram flores.
Nunca, nunca mesmo, pensei em presenciar isso um dia.
— Eu nem sei o que falar... — Ainda sem piscar os olhos,
soltei um risinho fraco. — Como vocês aceitaram isso tão fácil? —
indaguei, ainda para garantir se tudo aquilo era real mesmo. — O
pai do Eric o tratou de um jeito que... Eu não gosto nem de me
lembrar. Pensei que comigo fosse acontecer algo parecido. Por isso
que eu demorei tanto tempo pra falar — expliquei. — Como estão
aceitando isso tão fácil?
— Porque esse é nosso papel como pais de vocês — mamãe
logo respondeu. — Nós existimos para lhes dar apoio, segurança e
um amor incondicional — sorriu. — Além disso, também já
passamos por algo semelhante na nossa juventude, mesmo que
não tenha dado muito certo.
Hum? Como assim?
Franzi o cenho e olhei para Molly, que também me encarou
muito confusa. Assim como eu, ela também parecia não saber do
que aquilo se tratava.
— O que a senhora está querendo dizer com isso? —
questionei, cheio de curiosidade e incerteza.
— Bom... — mamãe sorriu levemente e olhou para o meu pai.
— Vocês sabem que a Cynthia e eu nos conhecemos na
universidade e que a nossa amizade vem desde essa época, não é?
— continuou. — Mas, o que vocês não sabem é que, antes da
amizade, nós tivemos um pequeno relacionamento amoroso,
quando nos conhecemos e dividimos o mesmo dormitório — Meu
queixo bateu lá no chão quando ela falou isso. — Acabou não
dando certo. Mas, isso foi uma decisão nossa, não houve
interferência, nem confusão dos nossos pais. Foi uma decisão
nossa, mesmo, porque chegamos à conclusão de que
combinávamos mais como amigas. Depois disso, eu conheci seu pai
e a Cynthia conheceu o George. Eu acabei contando para o seu pai
tudo o que aconteceu, mas ele sempre entendeu e nunca fez
confusão por causa disso. A Cynthia, porém, nunca revelou isso
para o George, por questões óbvias, não é? Mas, o melhor de tudo
é que conseguimos manter uma amizade saudável até hoje, e era
por isso que, desde que vocês eram pequenininhos, sempre
sonhamos com uma amizade saudável entre você e o Eric. Agora
temos mais uma amizade... — soltou uma pequena risadinha.
Meu Deus...
— Eu jamais, jamais, poderia imaginar isso... — falei,
perplexo.
— Nem eu... — Molly também disse, tão em choque quanto
eu.
De repente, minha mente me deu um estalo e me levou para
meses atrás. No dia em que estávamos voltando de um jantar na
casa da Samantha, o jantar que ela nos convidou para passar um
fim de semana em Cambridge, Molly comentou comigo sobre ter
ouvido algo estranho a respeito do presente repetir o passado. Eu
não lembrava direito, mas agora fazia muito sentido. No dia, eu não
imaginei isso, mas, agora, depois de toda essa história, Samantha
com certeza deveria estar se referindo a isso.
— Meus filhos, estamos aqui para apoiá-los no que for
preciso... — ela continuou. — Amamos vocês. Venham... — ergueu
os braços. — Me deem um abraço... Quero sentir vocês pertinho —
pediu, toda carinhosa.
Molly e eu nos entreolhamos, ainda chocados com aquilo
tudo, mas muito, muito felizes pela maneira como fomos tratados e
como eles encararam a situação. Se eu soubesse que seria assim,
teria falado há muito mais tempo. Minha irmã e eu, então, não
demoramos a escorregar pela cama e abraçá-la. Papai logo se
juntou a nós também, completando o abraço.
E lá estávamos nós quatro, nos abraçando ao mesmo tempo
e encarando aquela situação como uma família de verdade deveria
fazer: com amor.
Inexplicável
Eric

— Querido, calma... — com certa tranquilidade, tia Sam pediu,


após eu me sentar no sofá da sua sala. Lexie estava ao seu lado e
seu rosto demonstrava preocupação comigo. — Me explica isso
direito. Você me mandou aquela mensagem e depois fugiu de casa
pela varanda do seu quarto, porque seu pai te deixou trancado e de
castigo?
Era isso mesmo. Eu tinha fugido de casa pela varanda do
meu quarto, no meio da noite. George era esperto para muitas
coisas, mas nunca se ligou no fato de que eu, inúmeras vezes, saía
de casa, no meio da noite, pela varanda do meu quarto, sem que ele
e minha mãe percebessem. Era assim na minha época de solteiro,
para me encontrar com algumas garotas. E era assim até mesmo
depois de namorando, quando eu queria passar a noite com Liam
nas escondidas.
— Sim, tia, é isso mesmo — respondi, depois de respirar
fundo, para tentar acalmar meu coração. — Eu fugi de casa pela
varanda do meu quarto, porque o George me trancou, assim como
também fez o mesmo com a Stefany. Ele nos descobriu. Descobriu
sobre Liam e eu, e sobre a Stefany e a Molly.
— Oh meu Deus... — Lexie sussurrou, levando uma das
mãos até a boca.
Samantha, por sua vez, suspirou com uma mistura de pesar
e desgosto.
— Eu tinha certeza que ele faria isso quando descobrisse —
reconheceu amargamente. — George é impossível. Coitadinhos de
vocês por passarem por essa situação... — me encarou com
tristeza. — Eu vejo o quanto você está abatido com isso, meu amor.
— Sim, tia, eu estou me sentindo muito mal. Todas as coisas
que ele me disse foram muito pesadas. As palavras dele doeram
demais. Me humilhou, me desrespeitou. Por mais que eu seja filho
dele, ele não tem o direito de fazer isso. E por pouco não me
agrediu fisicamente. Acho que só não fez isso, porque minha mãe o
segurou. Mas, também acho que quando ele entrar no meu quarto e
descobrir que eu fugi, ele, com certeza, vai me assassinar.
— Não, não, querido — Lexie se apressou em responder. —
Não se preocupe com isso. Eu e sua tia ligaremos daqui a pouco
para sua mãe e pediremos para que ela não deixe o George entrar
no seu quarto, até que você volte pra lá — apertou a mão de
Samantha, enquanto falava. — Eu tenho certeza que Cynthia ficará
muito mais tranquila quando souber que você está aqui.
— Sim, sim — Samantha logo concordou. — Nós faremos
isso daqui a pouco. Não se preocupe, estamos aqui para te ajudar,
meu bem. Aqui você tem um lar com pessoas dispostas a te receber
de braços abertos — e saiu da poltrona onde estava, para se sentar
no sofá ao meu lado e me abraçar. — Não precisa ter medo. Nós
vamos te ajudar.
— Obrigado, tia, muito obrigado. Isso é muito importante pra
mim — repliquei, enquanto retribuía seu abraço apertado. — Eu sei
que sempre posso contar com você e com a tia Lexie. Vocês são
incríveis. Mas... — me separei brevemente do abraço, para encará-
la. — Como vocês pretendem fazer isso? — questionei
completamente desiludido. — Eu já estou praticamente sem
esperanças. Não consigo encontrar uma solução. O George, com
certeza, vai fazer de tudo para me separar do Liam, e vai me obrigar
também a me matricular na Universidade de Londres para ficar
longe dele e o mais próximo possível da construtora. Vocês sabem
que Liam e eu passamos para a Universidade de Oxford, né? Eu
ainda ganhei uma bolsa! Mas, George não vai ligar. Eu não sei o
que fazer para evitar isso. George não consegue conversar com
ninguém. Se ele coloca uma coisa na cabeça, tem que sair
exatamente do jeito dele.
— Pois ele terá que aprender a conversar e será dessa
maneira que iremos te ajudar! — Samantha garantiu com firmeza.
— George terá que aprender a dialogar, porque eu não vou admitir
ele levantando a voz para mim, nem para você. Hoje, você vai
dormir aqui em casa e amanhã de manhã iremos na construtora, eu
e você, para conversarmos com seu pai. E ele terá que nos ouvir —
garantiu novamente. — George entenderá que não pode mais ficar
te manipulando dessa forma e que precisa respeitar suas decisões
pessoais e profissionais. Você já tem dezoito anos e tudo isso é um
absurdo!
— Sério, tia? — arqueei um pouco as sobrancelhas. — Tem
certeza que quer fazer isso? — questionei um pouco preocupado. —
Meu pai não respeita ninguém. Ele não vai te respeitar também —
me senti nervoso somente de pensar na cena que ele faria com a tia
Sam, dentro da empresa. E eu não queria ver outra cena como a
que eu presenciei no vestiário do time. — Acho que pode ser pior,
tia. Precisamos pensar em outra coisa.
— Se acalme, Eric — Sam replicou, complacente. — Ele não
vai fazer nada. Se ele tentar algo contra você, precisará passar por
cima de mim, o que é algo muito difícil. E sobre tentar passar por
cima de mim, eu já vivi tantas coisas, querido... Sei muito bem lidar
com pessoas como o seu pai — fez carinho nas minhas costas,
tentando me confortar. — Agora, quero que tome um banho e
durma. Você precisa descansar e relaxar, tudo bem?
— Obrigado, tia Sam. Muito obrigado mesmo — sorri
levemente, mesmo que eu ainda me sentisse um pouco
preocupado. — Obrigado também, tia Lexie. Vocês são incríveis.
Ainda bem que posso contar com vocês agora.
— E poderá contar sempre — Lexie sorriu.

❖❖❖

Depois de um bom banho, me deitei na cama do quarto de


visitas. Lexie e Samantha me deixaram muito confortável lá e me
deram toda a assistência possível. Somente depois foram para o
quarto delas. Agora sozinho e um pouco menos preocupado, a
minha cabeça só pensava em uma coisa: ligar para o Liam. Eu não
conseguiria pregar os olhos, se não pudesse trocar, pelo menos,
duas ou três palavras com ele.
Assim, sem perder mais tempo, peguei meu celular que
estava em cima do criado-mudo ao lado da cama. Quando liguei a
tela, ainda tinham inúmeras ligações perdidas e mensagens não
lidas suas. Me doía o coração fazer isso com ele, mas, antes de
tudo, eu precisava tentar resolver a situação.
Agora que as coisas pareciam estar um pouquinho mais
encaminhadas, talvez eu pudesse me dar ao luxo de entrar em
contato com ele. Porém, já passava muito da meia noite. Era muito
tarde. Droga. Talvez, se eu ligasse, ele já estivesse dormindo e não
me atenderia. Seria uma noite difícil de me concentrar para pegar no
sono.
Mas, tentei. Não custava nada tentar.
Pelo que eu conhecia dele, talvez Liam não tivesse nem
conseguido dormir ainda de tanta preocupação.
Selecionei seu contato e cliquei para chamar.
Eu estava enganado. Liam não dormiu.
Em menos de meio segundo chamando...
— Graças a Deus é você! — ele atendeu. Parecia até um
tanto ofegante, tamanho nervosismo. — Onde você está? Você está
bem? O que aconteceu depois que você saiu do vestiário? O seu
pai fez alguma coisa contigo? — me bombardeou de perguntas,
antes mesmo que eu pudesse falar qualquer coisa.
— Calma, amor. Calma. Eu estou bem sim — respondi. —
Estou na casa da tia Sam. Meu pai me deixou de castigo e me
trancou no quarto. Eu fugi escondido para varanda do meu quarto e
vim pra cá. Agora eu estou bem sim, não se preocupa.
— Sério?! — perguntou, assustado. — Nossa, seu pai é
impossível — reconheceu amargamente. — Ele deve ter falado
coisas horríveis né? Já até imagino o mínimo que ele deve ter dito.
Estou tão preocupado contigo, com a gente. O que vai ser da gente
agora?
— Pode ficar tranquilo, por favor — repliquei. — A tia Sam vai
ajudar. Ela me garantiu que vai comigo na empresa do meu pai
amanhã de manhã, para podermos conversar sério sobre tudo isso.
Agora eu tenho meu escudo, que é ela.
— Você tem certeza que isso vai resolver? — questionou,
temeroso. — Eu conheço seu pai desde que eu nasci. Sei como
aquele velho é. Cabeça dura demais pra aceitar as coisas. Ele
nunca vai nos aceitar e vai fazer de tudo pra separar a gente. Eu
tenho certeza disso. Meu maior medo é esse. Porque juntos sempre
fomos mais fortes, mas separados... — suspirou.
— A Tia Sam o conhece desde muito antes de você nascer e
ela sabe bem como lidar com pessoas desse tipo. Ela já passou por
muitas coisas na vida, parecidas com essas — expliquei. — Eu
estou com você. Nós continuamos juntos — garanti com firmeza. —
É estupidez pensar que algo vai fazer a gente se separar, porque
não vai. Não tem cabimento. Nós estamos juntos hoje e pra sempre.
Ouvi Liam suspirar novamente do outro lado.
— Você promete?
— Eu prometo!

❖❖❖

Adormeci conversando com Liam. Nem vi a hora que peguei


no sono, só sei que ficamos trocando conversas até altas horas. Em
dado momento, eu até me esqueci de toda a confusão que estava
acontecendo. Me vi tranquilo, leve. Era esse o poder que Liam tinha
sobre mim e sobre meus sentimentos.
Agora, porém, que o dia já tinha amanhecido, eu voltava a
me sentir nervoso, preocupado, tenso. Meu coração acelerava à
medida em que nos aproximávamos da construtora. Aquele lugar
era um verdadeiro pesadelo pra mim e se tornava ainda pior com a
incerteza que eu carregava sobre o que aconteceria ou não na tal
“conversa”.
Exatamente como me prometeu, tia Sam estava me
acompanhando rumo à empresa do George. Acordamos
relativamente cedo e já estávamos bem perto de chegar. Mesmo
cedo, eu não tinha dúvidas alguma de que George já estivesse lá.
Afinal, ele praticamente morava naquela construtora e sempre
passou muito mais tempo lá do que em casa. Chegava cedo e saía
tarde.
Nunca vi pessoa para gostar tanto do trabalho como ele. Não
conseguia entender isso, e conseguia entender menos ainda
quando pensava no clima pesado que aquela construtora carregava.
Eu não gostava nem um pouco. Para mim, era como um cemitério
ou uma prisão, por mais que os funcionários fossem simpático e me
tratassem muito bem.
Mas, felizmente, talvez naquele dia eu pudesse ter, enfim, a
minha tão sonhada carta de alforria e nunca mais precisasse pisar
naquele lugar. Talvez a tia Sam pudesse abrir seus olhos e alertá-lo
sobre o quanto ele estava agindo errado. Era fato que eu ainda
duvidava que ele fosse dar ouvidos para alguém, mas um pequeno
fio de esperança quis aparecer.
Um pequeno fio de esperança que se misturava com
nervosismo e tensão, principalmente no momento em que entramos
no estacionamento da construtora e eu já me via lá dentro. Meu
coração estava acelerado em batidas tão frenéticas, e, por vezes,
parecia até querer palpitar. O meu nervosismo estava claro e
transparente tanto no meu rosto quanto no meu jeito de agir.
Tia Sam percebeu isso logo de cara, porque eu sempre fui
uma pessoa muito comunicativa e extrovertida, especialmente com
ela. Porém, naquele dia, eu não tinha dado uma palavra sequer,
durante o caminho todo, da hora que saímos de casa até aquele
momento. Era como se meus lábios, por mais que tivessem um
mundo de coisas para falar, quisessem permanecer selados de
medo e tensão.
— Você tá muito nervoso né? — perguntou assim que
estacionou o carro.
Suspirou com pesar.
— Pior que sim, tia — fui sincero. — Eu estou medo do que
vai acontecer e, principalmente, da reação dele. O George é muito
explosivo quando está com raiva. Eu não sei se ele vai
simplesmente aceitar uma conversa sem querer fazer confusão.
— Querido, confie em mim — falou com serenidade. — O seu
pai não tem chance alguma de sair com vitorioso dessa confusão.
Hoje é o dia que você vai ganhar sua liberdade — Segurou minhas
mãos com firmeza, garantindo. — Podemos ir, então?
Mesmo ainda temeroso, balancei um sim com a cabeça e
saímos do carro.
Ainda era cedo e poucos funcionários tinham chegado à
construtora, mas eu preferi não cruzar com ninguém, assim como
também não queria correr o risco de outras pessoas pudessem ouvir
nossa conversa, ou nossa confusão. Por isso, decidi que seria
melhor pegarmos o elevador que ia direto para o andar da sala do
meu pai, o último andar do prédio, sem precisar passar por nenhum
outro.
E, assim, fizemos.
Entramos no elevador e os segundos de subida pareceram
infinitos e silenciosos. Era um prédio com uns vinte andares ao todo,
e aquela subida nunca pareceu tão longa. Além disso, o silêncio era
um tanto perturbador. Fora o fato de ter pegado o elevador privado,
o prédio, naquele horário, quase não tinha funcionários, estava
praticamente vazio e deserto.
E, quando, enfim, o elevador abriu no último andar, a
aparência de abandono estava ainda maior. Não havia
absolutamente ninguém. O último andar tinha apenas duas salas. A
do George que ficava à esquerda, no final do corredor, e a do tio
Jimmy, vice-presidente, que ficava à direita, no final do corredor,
porém na outra ponta, do lado oposto à sala do meu pai.
O corredor não tinha absolutamente ninguém e o silêncio era
mórbido. A sala da vice-presidência estava fechada e parecia ter
ninguém lá dentro. Quando tia Sam e eu fomos caminhando do
elevador até a sala do meu pai, porém, percebi que a sua porta,
diferente da porta da sala da vice-presidência, estava entreaberta.
Com certeza meu pai já estava lá, trabalhando, porque a vida
dele era somente isso.
Caminhamos sem muita pressa. No entanto, algo estranho
começou a acontecer. O silêncio que outrora invadia nossos
ouvidos, fazendo-nos parecer surdos, foi gradativamente sendo
substituído, à medida que nos aproximávamos, por um barulho
estranho. Um barulho muito, muito estranho.
A cada passo que dávamos, o barulho ficava mais nítido.
Mais e mais nítido.
O estranhamento triplicou, quando me dei conta de que esse
barulho parecia... Gemido. Não, não. Gemido? Mas, como? Minha
testa enrugou, tamanha confusão na minha cabeça. Não paramos
de caminhar, mas virei brevemente meu rosto em direção à tia Sam,
e seu semblante estava tão confuso quanto meu.
O barulho, que mais parecia gemidos, vinha da sala do
George, que estava com a porta entreaberta. E quanto mais eu me
aproximava, mais curioso eu ficava para saber o que era realmente
aquilo. Quando, enfim, cheguei em frente à sua porta, com o som
muito mais nítido que antes, olhei para a tia Sam pela última vez,
que parecia tão assustada quanto eu, e não perdi mais tempo.
Abri a porta, sem avisos, sem batidas. Apenas abri.
E Meu... Deus...
Meu.
Deus.
Presenciei a cena mais bizarra, esquisita, incompreensível,
inexplicável e repulsiva da minha vida.
George estava com as calças abaixadas e Alex lhe comia por
trás.
Liberdade

Eric

Eu vi o desespero preso em seu olhar. Queria se soltar, mas


estava tão preso, tão contido e dentro si. A aflição parecia tão
aprisionada em seu olhar quanto seu verdadeiro eu ao longo de
toda a sua vida. Era como uma luta travada entre a liberdade e a
obediência, onde apenas uma delas poderia vencer.
Por longos segundos que mais pareceram uma eternidade,
estagnado ficou, como se não conseguisse ao menos mexer um
dedo sequer. Suas orbes nem piscavam, estavam estagnadas sobre
mim, um eu paralisado na frente da porta. Mesmo a certa distância,
eu conseguia sentir a tremenda angústia que parecia saltar do seu
peito.
O show tinha acabado e as cortinas do teatro se fecharam.
Era o fim.
Eu vi o fim no seu olhar e senti o fim no meu coração. O
desfecho de tudo. O ponto final de uma farsa inteira, uma vida feita
de mentiras. O término da minha agonia e o início da sua. Uma
contradição imensa. A repulsa que eu sentia era a fagulha da minha
liberdade. Uma liberdade tão cara, que tinha me custado o alto
preço de ver o meu próprio pai sendo aquilo que ele mais repudiava:
gay.
— Eric? — em um grito contido, ele sussurrou.
Pela primeira vez em toda a minha vida, eu vi seus olhos
banhados de lágrimas prestes a desabar em uma queda que só não
era maior que a própria queda do seu ego e da sua dignidade. O
conflito interno, que surgira ali e aumentava a cada segundo,
flutuava em íris molhadas pelo desgosto consigo mesmo. Como um
distúrbio, provocado por aquele gatilho, eu vi a loucura surgir no seu
rosto.
— O que é isso? — perplexo, também sussurrei. E, por mais
que eu soubesse exatamente o que era aquilo, essa foi a única
frase que consegui expressar naquele primeiro momento.
— E-Eric... — Alex, assustado, gaguejou e logo pigarreou a
garganta. — Não é nada disso que você está pensando — tentou se
explicar, enquanto levantava suas calças e saía de perto do meu
pai.
Balancei a cabeça em negativo, confuso, perplexo, preferindo
nunca ter visto ou presenciado aquilo, querendo que aquela cena
não passasse apenas de um pesadelo. O problema não era ver dois
homens transando. O problema era que um desses homens era o
meu pai e o outro era o Alex, o filho do tio Jimmy, um cara que eu
gostava pra caramba e até fez parte da minha infância. O problema
não era meu pai estar transando com um homem. O problema era
meu pai estar traindo a minha mãe, era estar fazendo exatamente
aquilo que ele repudiava em mim, era ter me crucificado e me
humilhado por algo que ele também fazia.
O problema era a hipocrisia, a pura e simples hipocrisia, que
se resvalava pelos seus olhos, à medida que as lágrimas caíam, e
pela sua boca, à medida que se queixo pendia em desespero.
Tentou dizer tanto, mas falava absolutamente nada. Um silêncio
mórbido e desconfortável. Tão desconfortável quanto ele se sentia
consigo mesmo por estar nu da cintura pra baixo e não ter forças,
ou mesmo atitude, nem para levantar suas calças.
Agora eu entendia porque Alex elogiava tanto o meu pai.
— Não... — continuei balançando a cabeça em negativo,
enquanto os encarava com o maior desgosto e decepção que fui
capaz de sentir em toda a minha vida. Meus olhos começaram a
marejar em lágrimas. Lágrimas de tristeza, de raiva, de ódio.
Lágrimas por ter a certeza de que nunca tive um pai honesto.
Porque ele podia transar com quem quisesse, desde que fizesse
isso com o mínimo de dignidade e honestidade. Honestidade
comigo, com minha irmã e, principalmente, com minha mãe. — É
exatamente tudo o que eu estou pensando. Tudo. A maior hipocrisia
que eu já presenciei. O maior desgosto da minha vida — desviei,
finalmente, o olhar deles e virei para Samantha. — Por favor, tia, me
tira daqui.
— Sim, querido, vamos — De maneira contida, tia Sam
respondeu e tocou em minhas costas, indicando para nos virarmos
e irmos embora. Não tinha mais o que conversar. Não havia mais
diálogo. O objetivo de eu estar ali já tinha sido cumprido, e da pior
maneira possível. Quisera eu que pudéssemos ter conversado
civilizadamente, sem que eu precisasse ver meu pai transando com
o filho do seu sócio. Mas, tudo já tinha sido dito, mesmo que em
silêncio, numa conversa inexistente. O ponto final já tinha sido dado.
Dali em diante, George não tinha mais nenhum direito sobre mim.
Depois daquilo, ele não poderia mais me cobrar sobre
absolutamente nada.
Porém, quando me virei, completamente abatido e arrasado,
para ir embora...
— Eric! — George gritou por mim. Como se tivessem lhe
tirado de um feitiço que o paralisou, ele correu rapidamente em
minha direção, já vestido, suas calças estavam apenas
desabotoadas, e me segurou pelo braço, fazendo-me virar. —
Espera! — suplicou. Pela primeira vez na vida, eu lhe ouvi usar esse
tom de voz comigo. George nunca me suplicou por nada. Na
verdade, ele sempre me obrigou, me manipulou. — Por favor, meu
filho... Precisamos conversar... — me encarou com ânsia, com
clamor. Se sua boca suplicava, seus olhos faziam isso três vezes
mais.
Porém, eu fui duro, porque me sentia magoado, machucado,
enganado. Por mais que eu estivesse com os olhos tão banhados
em lágrimas quanto os dele, lhe encarei com frieza, indiferença,
insensibilidade ou mesmo apatia. Nada do que ele pudesse falar ou
fazer seria capaz de mudar a minha opinião já formada sobre aquilo.
Eu já tinha tomado minha decisão interna, sozinho, comigo mesmo:
seguiria em frente, construiria minha vida, e, de uma vez por todas,
faria isso sem o meu pai.
— Acho que não temos mais nada pra conversar — respondi
e permaneci endurecido feito mármore. Eu não tinha porquê
abrandar ou me comover com aquilo. George não era digno disso.
— Aliás, quando eu quis dialogar, você se recusou. Agora, a
oportunidade passou. As pessoas não estão disponíveis pra você,
sempre que quiser. E eu não estou mais disponível pra você. Não
há mais espaço para conversas entre nós, e eu espero que entenda
e respeite isso. Por favor, finja que eu não existo. Não me procure
mais. E suma da vida minha irmã e, principalmente, da minha mãe,
porque ela não merece isso que você fez.
Lhe dei um último olhar, percebendo que, pelo seu
semblante, aquelas tinham sido as piores palavras que ouviu em
toda a sua vida, e, sem mais delongas, me virei, indo embora,
acompanhado da minha tia. George ficou paralisado no meio do
corredor, como se tivesse recebido um forte soco no estômago.
Aquelas palavras foram tão duras, que ele ficou sem reação. Não
conseguiu mais ir atrás de mim, até porque, se fosse, não receberia
nada além de rejeição. Fui embora da construtora e da sua vida.

Quatro meses depois

A estrutura da Universidade de Oxford era linda. Formada por


castelos que mais pareciam medievais, era luxuosa, suntuosa. A
estrutura da Universidade em si, se contrapunha, no entanto, com a
da imensa república, o dormitório dos estudantes. A imensa
república tinha arquitetura moderna e era muito, muito, confortável.
Comportava todos os estudantes que vinham de fora e não tinham
família lá, como era meu o caso e do Liam.
Depois que a poeira baixou, estávamos vivendo um sonho.
Estávamos, juntos, na Universidade de Oxford. Meu pai não mais
me procurou, talvez por medo ou vergonha. Se separou da minha
mãe e deixou a minha irmã livre também. Seu caso com Alex
acabou, assim como sua amizade e a sociedade com Jimmy
também. Depois que descobriu o envolvimento de seu filho com
George, a confusão foi feia. Talvez tivesse se sentido tão traído e
enganado quanto eu me senti, já que eles eram muito amigos há
anos. Cortaram todas as relações.
Eu não mais sabia ao certo onde George estava morando,
mas tinha ouvido boatos de que comprou uma casa mais afastada
da capital da Inglaterra e lá estava vivendo, sozinho. Eu também
não fazia questão de saber nada sobre a sua vida. Mamãe e
Stefany ainda tinham informações, mas eu lhes pedi, na verdade
exigi, que não me contassem nada sobre ele. Dali em diante, só
ouvi seu nome sendo mencionado, por elas, uma ou duas vezes.
Perguntei se ainda estava vivo, e me disseram que sim, mas pedi
que só me avisassem se não estivesse mais.
Depois do ocorrido, Liam e eu conseguimos nos matricular
em Oxford e, no mesmo dia, fizemos o pedido à Universidade para
que dividíssemos o mesmo quarto da república. Para nossa sorte e
felicidade, o pedido foi aceito. As aulas já tinham começado e nós já
tínhamos feito amigos em Oxford, mas Liam era o meu único colega
de quarto. E que colega de quarto mais delicioso, diga-se de
passagem. Eu dividia o apartamento somente com ele, e estávamos
experimentando há meses como era dividir a mesma moradia. Muito
bom, por sinal. Brigas eram normais, como todo casal, mas a gente
sabia se entender direitinho debaixo do mesmo teto.
Naquela manhã em específico, observei Liam dormindo sobre
o meu peito. Ressonava baixinho, feito anjo. Sempre o achei lindo
dormindo, tanto quanto era quando estava acordado. Aquela beleza
extremamente fora do comum permanecia ali, intacta. Seus olhos,
sua boca, sua bochecha, seu queixo, tudo, absolutamente tudo,
formava um conjunto profano e execravelmente bonito. O cara mais
lindo que eu já tinha visto era meu namorado. Que sorte a minha.
Pensando nisso, não me contive. Levei uma das minhas mãos ao
seu cabelo preto, fazendo um carinho sutil e doce, mas o moreno
sentiu.
— Ai, caralho, hoje não tem aula — resmungou, seguido de
um longo bocejo. — Me deixa dormir mais um pouco. Saco — e se
aninhou ainda mais sobre o meu peito, voltando a fechar seus olhos.
Sorri feito bobo. Ah, aquele humor ácido misturado com
doçura. Eu amava. Estressadinho, mas tão, tão, amável. Amável do
seu jeito. Único. Suspirei. Tudo bem, eu o deixaria dormir mais um
pouco. Afinal, não tinha porquê acordar cedo naquele dia mesmo.
Não tínhamos aula. Porém, eu não conseguia dormir até tarde sem
ficar rolando de um lado da cama para o outro. Me sentia inquieto
em passar tanto tempo deitado. O deixaria dormindo quieto, mas me
levantaria para preparar o café. Porém, assim que tentei me afastar
para colocar os pés no chão...
— Ei! — Liam resmungou e me abraçou pela cintura,
impedindo-me de levantar. — Será que você não consegue parar de
ser um nerd chato, que precisa levantar cedo pra estudar, nem nos
finais de semana?
Dei uma risadinha.
Liam era lindo de todo jeito e ficava muito mais quando me
pedia para continuar na cama com ele.
— Já tá tarde, amor — respondi, enquanto acariciava seus
cabelos. — E eu também já tô ficando com fome. Ia levantar pra
fazer nosso café.
Revirou os olhos, mesmo com aquela carinha de sono.
— Nossa, para de ser desesperado. São só nove horas da
manhã — resmungou novamente, enquanto ainda continuava me
abraçando pela cintura, com o rosto afundado no meu colo. — Vai...
Fica mais um pouquinho... — e pediu com jeitinho.
Eu não aguentava aquele jeitinho. Sempre fui muito bobo
pelo Liam, e isso não era segredo pra ninguém. Não resisti e me
deitei com ele novamente. Porém, assim que encostei a cabeça no
travesseiro e ele se ajeitou sobre meu peito, vi uma marca em seu
pescoço, graças ao que tínhamos feito na noite anterior. Não me
contive em passar o indicador sobre o local.
— Ainda bem que aqui está frio e eu vou ter que usar gola
alta de todo jeito, mas, se não fosse isso, seria bem difícil esconder,
seu canibal — resmungou pra mim.
Ri involuntariamente.
— A culpa não é minha se você é quase transparente —
repliquei. — Posso nem encostar direito que já fica todo roxo. Nam.
Liam se aninhou ainda mais sobre o meu peito, recostando
seu rosto macio em minha pele...
— Vai se foder.
Ri de novo. Eu amava esse garoto. Tudo, principalmente o
seu jeito de ser. Era a coisa mais linda de toda a minha vida. Ele se
apoiou ainda mais sobre mim e passou os dedos na minha barriga,
enquanto brinquei com seus fios pretos, até que adormecemos
juntos, novamente. Era a nossa bolha. Nosso mundinho de paz.
Nada seria capaz de comprar aquela paz e nada era melhor do que
aquilo.
Não sabia ao certo quantos minutos ou horas tinham se
passado, mas, quando acordei, senti um vazio do meu lado direito
da cama. Liam tinha acordado e eu conseguia ouvir o som do
chuveiro ligado que saía do banheiro. Olhei as horas e, meu Deus,
já estava passando das três da tarde! Levantei da cama em um pulo
e corri para o banheiro. Peguei minha toalha e abri o box do
chuveiro.
— Ei... — Liam me olhou com um ar de risinho. — Será que
eu não tenho privacidade nem na hora do meu banho? — eu via a
brincadeira em seu olhar.
— Já peguei e chupei cada centímetro, inclusive debaixo
desse chuveiro — sorri e peguei o shampoo.
— Idiota — riu e jogou água em mim. — Anda. Vem logo pra
cá — e me puxou para si e para debaixo do chuveiro ao mesmo
tempo.
A água nos molhou, enquanto nos ensaboávamos e
tomávamos banho juntos. Por mais que Liam fizesse uma ceninha,
ele adorava, tanto quanto eu, quando tomávamos banho juntos. Nos
beijamos ali mesmo e eu me aproveitei para tirar todas as
casquinhas que podia, como sempre. Era nossa rotina, nosso
cotidiano. E eu jamais me cansaria disso e de viver isso com ele.
Que fosse assim pelo resto das nossas vidas.
Terminamos o banho, mas, assim que fomos saindo do
banheiro, ouvi meu celular tocar. Quem poderia ser, afinal? Era final
de semana. Não poderia ser alguém da universidade. Talvez fosse
minha mãe ou Stefany. Corri para atender, enquanto Liam se vestia
a poucos metros.
— Alô?
— Olá — Uma voz feminina e desconhecida falou. — É o Eric
Hastings?
— Sim, sou eu — respondi, ainda sem entender o que estava
acontecendo. — Quem fala?
E, então depois disso, foi como se suas palavras se
misturassem e se embolassem ao ponto de me fazer perder o chão.
Meus pensamentos entraram em colapso e todo o sangue do meu
rosto foi sugado para tão dentro de mim, que fiquei muito mais
branco do que já era. Com uma expressão perdida, desliguei o
celular no fim da ligação. Liam me encarou preocupado e se
aproximou de mim.
— O que aconteceu? — perguntou.
— Meu pai morreu.

❖❖❖

Nunca pensei que fosse retornar à Londres sob aquelas


circunstâncias. Tivemos que ir às pressas porque o velório já estava
marcado para logo. Quem tinha me ligado era uma das funcionárias
do Instituto Médico Legal, responsável por necropsias e laudos
cadavéricos da polícia, que recebeu a ligação de que há dias as
portas da nova casa de George estavam fechadas e ele não
aparecia. Quando conseguiram entrar lá, o encontraram caído no
chão do seu escritório.
Overdose. No laudo cadavérico constava como motivo do
óbito a overdose ocasionada por remédios para depressão e
ansiedade. Eu nem sabia que ele estava passando por isso ou
mesmo consumindo isso, muito menos se automedicando. Me doía.
Me doía, porque eu não queria que nada daquilo tivesse acontecido.
Não queria ter me afastado dele, nem queria ter me desentendido
com ele, mas... Talvez se meu pai tivesse agido de outra forma
comigo desde criança, ou se tivesse sido mais honesto consigo
mesmo e conosco...
Eram muitas possibilidades, muitas perguntas, mas nós
nunca saberíamos se realmente poderia ter sido diferente ou se
aquilo tinha que acontecer mesmo.
Quando chegamos ao velório, não haviam muitas pessoas.
Alguns conhecidos estavam presentes e a família do Liam também
estava lá. Minha mãe e Stefany me abraçavam e choravam,
enquanto olhávamos o caixão a certa distância. Apesar da
separação, foram muitos anos de casamento, eles tinham uma
história, e minha mãe sentia muito a perda. Stefany também, assim
como eu. Apesar dos pesares, ele era nosso pai, pelo menos
biologicamente. Nos criou e nos sustentou até ali. Ele tinha feito sua
parte, mesmo em meio a muitos erros.
Depois de um tempo, saí dali de perto com o Liam.
Caminhávamos juntos por um jardim que tinha lá. Ele me abraçava
e me confortava, mesmo em silêncio. Eu não queria aquele fim pra
ele. E se tivesse sido diferente? E se eu tivesse dado a
oportunidade de conversarmos? E se eu não tivesse dado as
costas? E se eu não tivesse passado quatro meses longe, sem vê-
lo? E se eu tivesse o perdoado? Teria sido diferente?
As lágrimas caíram pelo meio do caminho.
Liam me abraçou de imediato.
— Calma — passou as mãos nas minhas costas, em um
carinho confortante.
Eu chorava que soluçava. De tristeza, de culpa.
— Me fala — ele pediu. — Coloca pra fora o que você tá
sentindo. É pior ficar se prendendo. É pior. Quando a gente guarda
tudo, as consequências que vêm depois não são boas.
— Eu odeio tudo isso — falei, finalmente, em meio a soluços.
— Eu sei... — Liam continuou me abraçando.
— E se ele morreu por minha causa? — continuei soluçando,
e agora muito mais forte com essa possibilidade. — E se ele tiver
morrido de desgosto? Se ele tiver ficado depressivo porque me
afastei e não falei mais com ele? Eu estou me sentindo um lixo! Não
deveria ter feito aquilo. Agora não tem mais jeito...
Liam prontamente me abraçou ainda mais.
— Calma, meu amor — se afastou do abraço somente o
suficiente para segurar meu rosto e me encarar nos olhos. — Você
não pode se culpar por isso. A culpa não é sua. As escolhas que o
seu pai fez na vida não são culpa sua. Nada disso é culpa sua. É
apenas a vida. O ciclo natural da vida.
Fiz-lhe soltar meu rosto para afundá-lo na curva de seu
pescoço e continuar chorando, dessa vez mais baixinho.
— Acho que eu vou me culpar pra sempre — revelei. — Por
mais que as escolhas que ele tenha feito não sejam culpa minha, eu
vou me culpar pelo menos de não o ter perdoado enquanto ele
ainda estava vivo.
Liam acariciou meus cabelos, tentando me acalmar.
— O perdão que você liberar agora vai ser válido do mesmo
jeito. Onde quer que ele esteja, ele vai saber — garantiu.
Suspirei pesado.
E, então, assim que se calou, alguém chegou.
— Olá, com licença — Era a funcionário do instituto médico
legal que tinha me ligado. Constatei isso assim que levantei o rosto
para vê-la. — Desculpe atrapalhar. Eu só queria te entregar algo,
Eric — e ergueu um envelope em minha direção.
— O que é isso? — perguntei, confuso.
— Encontramos essa carta junto com o testamento, no dia
que encontramos seu pai — ela respondeu. — Não lemos. Mas no
remetente diz que é para você. Talvez ele tenha preparado para te
enviar.
Mas não deu tempo... Pensei comigo mesmo.
— Tudo bem. Obrigado — dei um breve sorriso e segurei a
carta.
A moça se afastou dali e, então, perguntei para Liam...
— O que será que tem nessa carta?
Me sentia um tanto temeroso. Não sabia o que esperar do
meu pai em vida, principalmente depois de tudo o que aconteceu.
Se fossem palavras de ódio, eu teria ainda mais certeza de que
continuaria me culpando pelo resto da vida.
— Você só vai descobrir, se ler — ele disse.
Realmente. Ele estava certo, mas eu estava com tanto medo.
Suspirei, tentando reunir forças, e comecei a ler em voz alta,
para que Liam ouvisse também.

“Meu querido e amado filho, sei que nesse momento está com
muita raiva de mim, e eu não tiro sua razão. Durante toda a minha
vida, fiz escolhas ruins. Eu nunca soube ser sincero com ninguém,
nem comigo mesmo, e me escondi tão dentro de mim ao ponto de
não conseguir nem mesmo me reconhecer. Eu não sou esse
monstro que sempre me mostrei a você, meu próprio filho. Mas,
acabei me tornando, com o passar do tempo, esse ser
irreconhecível para as pessoas que eu mais amava na vida, você,
sua irmã e sua mãe. Na ânsia de conseguir bens materiais, sucesso
na vida e status social, acabei enganando a todos. E pior, a mim
mesmo. O George de 18 anos sofreu preconceitos quando disse
para os amigos que também gostava de homens. O George de 18
anos foi agredido pelo pai quando quis levar um namorado para
casa. O George de 18 anos foi obrigado a seguir na carreira de
engenharia civil e cuidar dos negócios do pai. Acabei acreditando
que o certo era ele e o errado era eu. Me escondi tão dentro de mim
que nunca mais saí, não me libertei. E pior: comecei a tomar as
atitudes que eu mesmo, durante a juventude, mais repudiava. As
atitudes do meu pai. Fui praticamente obrigado a me casar com uma
mulher, e lhe falando com toda a sinceridade do mundo, essa foi a
única coisa que não me arrependi até hoje. Eu amei muito a sua
mãe e a amo até hoje. Ele me deu os maiores presentes da minha
vida, você e sua irmã. Tivemos uma vida próspera e muito
confortável. Mas, meu pai sempre me lembrava, quando estávamos
sozinhos, que tudo isso era graças a ele, graças a rédea curta que
usara comigo. “Não deixou eu me perder”, segundo suas palavras.
E nisso, eu me espelhei. Absorvi essa ideia e tentei passar para
você, na sua criação. Queria que você fosse tão bem sucedido
quanto eu, e acreditava que só conseguiria isso se seguisse os
meus passos, assim como meu pai fez comigo: cursar engenharia
civil, cuidar da construtora e casar com uma mulher que lhe desse
filhos, ou melhor, herdeiros. Tentei, casei, consegui. Mas, por mais
que eu amasse sua mãe, os desejos antigos e reprimidos ainda me
atormentavam muito e, por conta disso, acabei caindo em tentação.
Não uma ou duas vezes, várias vezes. Tomei decisões erradas e caí
mais vezes em tentação. Eu não estava feliz. Meu casamento já
estava manchado, não era mais o mesmo. E a minha infelicidade
aumentava. Mas, eu não me dava conta disso, pelo menos não até
agora. Até você me encontrar naquela situação. Os últimos dias têm
sido muito reflexivos e sozinhos pra mim, meu filho. A solidão tem
seus males, mas ajuda a pensar. E em meio a essas reflexões, me
vejo decepcionado comigo mesmo, com as minhas atitudes. Tenho
aprendido com seu silêncio. Tenho aprendido muito mais com você
do que com qualquer outra pessoa em toda a minha vida. E me
orgulho disso. Me orgulho do filho que tenho. Na verdade, sempre
me orgulhei, e me desculpe por não ter lhe dito isso antes, do jeito
que merece. Exigir algo de alguém, especialmente de um filho, é
uma atitude muito delicada. Eu sei que lhe exige muito, durante
tanto tempo. Por isso, não mais lhe exijo. Agora, troco o verbo. Eu
lhe desejo. Eu lhe desejo que se torne tudo o que eu não me tornei.
Eu lhe desejo que seja feliz, a pessoa mais feliz de todo o mundo.
Eu desejo que faça o que lhe faz feliz, somente o que lhe faz feliz.
Desejo que tenha sucesso e felicidade na carreira que escolher para
sua vida profissional. Desejo que ame e seja amado por quem lhe
faz feliz e por quem você faz feliz. Desejo que construa uma família
com a pessoa que o seu coração escolher. Desejo que faça suas
escolhas por si próprio e não por mim. Hoje, escrevo essa carta e
meu testamento. Deixo todos os bens para você, sua irmã e sua
mãe. Mas, não quero que se sinta na obrigação de cuidar da
empresa. Faça dela o que bem entender. Venda ou tome alguma
decisão com sua mãe e irmã. Façam o que julgarem melhor. A
minha maior felicidade é saber que estão felizes sendo quem
realmente são ou quem sempre quiseram ser. Por fim, desejo algo
que não sei se sou realmente digno. Desejo o seu perdão. Onde
quer que você esteja, ou onde quer eu esteja, desejo o seu perdão.
Espero consegui-lo um dia, em algum momento, aqui ou do outro
lado. Eu te amo muito, meu filho, e sempre vou te amar.”
Para sempre

Eric

No dicionário perdão significava remissão de pena, ou de ofensa,


ou de dívida; desculpar, relevar. Na teoria, era isso. Mas, na prática,
pra mim, significava muito mais. Depois que li aquela carta, passei
dias tão reflexivo quanto meu pai estava no momento que a
escreveu. Pensei em tudo o que tinha acontecido e os caminhos
pelos quais a vida tinha decidido seguir. Me perguntei também,
várias vezes, se podia ter sido diferente, ou, se no fim das contas,
aquilo acabaria acontecendo de qualquer jeito.
Nunca tive a resposta de nada, nem de ninguém.
A dor que eu senti por causa disso, durante dias, foi
incomensurável. Me culpava, me martirizava, por coisas que
simplesmente não estavam, e nunca estiveram, ao meu alcance. Eu
não conseguia entender, pelo menos não durante um tempo, que
tudo o que tinha acontecido não estava no campo do meu controle.
Eu não tive controle sobre as ações do meu pai na juventude, nem
na vida adulta, assim como também não tinha como fazer nada para
mudar aquilo o que aconteceu no seu passado e o que reverberou
em tudo no seu presente.
Demorei a entender, mas... Nada como o tempo. Se a gente
realmente permitisse, o tempo poderia ser capaz de curar qualquer
coisa, qualquer mal, qualquer ferida. E, foi percebendo isso que,
depois de um tempo, eu liberei o perdão, não somente para o meu
pai, mas para mim também. Eu me perdoei por tudo o que eu
pensava e me fazia sentir mal. Entendi que a gente nem sempre
pode estar no controle de todas as coisas e que tudo na vida serve
de aprendizado. Esse seria o maior aprendizado que levaria na vida.
Agora, eu sabia de tudo o que deveria fazer ou não, quando eu
tivesse um filho, por exemplo.
Perdoei meu pai também, porque eu sentia que, mesmo que
não estivesse presente fisicamente, ele estava olhando pra mim de
algum lugar e saberia desse perdão. Um perdão que teve um
significado pessoal muito maior que o significado do dicionário. Para
seguir em frente, eu precisava retirar todo o peso de mim, que era
sentir raiva de alguém, principalmente um alguém tão importante
como o meu pai. Não valia a pena eu nutrir raiva ou ódio por alguém
que sofreu tanto quanto eu, na verdade mais do que eu, pois meu
pai carregava seus próprios traumas.
Eu não mais sentia raiva ou mágoa. Eu tinha sido curado
daquela ferida. Depois que liberei o perdão verdadeiro, foi como se
a paz e a liberdade, que eu sempre almejei, tivessem chegado pra
mim genuinamente. E, assim, todos os seus desejos daquela carta,
sem exceção alguma, tomei como obrigações. As maiores
obrigações da minha vida. Eu faria tudo aquilo pela minha felicidade
e pela felicidade que ele sentiria, pois eu sabia que, em algum lugar,
estava olhando pra mim e torcendo pelo meu melhor.
“Eu lhe desejo. Eu lhe desejo que se torne tudo o que eu não me
tornei. Eu lhe desejo que seja feliz, a pessoa mais feliz de todo o
mundo. Eu desejo que faça o que lhe faz feliz, somente o que lhe
faz feliz. Desejo que tenha sucesso e felicidade na carreira que
escolher para sua vida profissional. Desejo que ame e seja amado
por quem lhe faz feliz e por quem você faz feliz. Desejo que
construa uma família com a pessoa que o seu coração escolher.
Desejo que faça suas escolhas por si próprio e não por mim.”
Era tudo o que eu estava fazendo. Eram os meus maiores
objetivos de vida. Dali em diante, me tornei a pessoa mais feliz que
eu poderia ser, fiz a minha universidade dos sonhos com a maior
vontade da minha vida, escolhi por mim tudo aquilo que me fazia
bem e feliz, e amei o Liam muito mais que qualquer outra pessoa
outra pudesse ter lhe amado. Estava construindo a minha vida com
ele, livre de qualquer peso, de qualquer amarra. Nós estávamos
livres, felizes, fazendo aquilo que sempre quisemos fazer: nos
amando.
Assim, fomos vivendo. E, então, numa manhã qualquer,
pouco tempo depois que nossas aulas na Universidade de Oxford
tinham começado e que toda poeira tinha baixado, algo aconteceu.
Era um sábado. Estávamos no apartamento da república, tínhamos
acabado de acordar e preparávamos o café da manhã às duas
horas da tarde. Risos. A música que tocava era Naive do The
Kooks.
— Ei, amor, me passa aí o queijo — Liam pediu. Estava
montando nossos sanduíches, enquanto eu preparava o café.
Era a rotina mais gostosa do mundo.
Deixei a água do café fervendo no fogão e me virei para
geladeira que estava ao meu lado, para pegar o queijo que estava
lá. Na hora de entregá-lo, não perdi a oportunidade de me aproveitar
um pouquinho, como sempre. Com meus braços, o envolvi por trás
e coloquei o queijo em cima do balcão a sua frente. Beijei seu
pescoço e nuca. Rocei seu traseiro.
— Hum — vi um sorrisinho nascer no canto da sua boca. —
Eu só tinha pedido o queijo, seu aproveitador.
Soltei um risinho pelo nariz.
— Como se não gostasse... — passei a ponta do nariz na
pele da sua nuca, suavemente.
Vi quando os pelos dos seus braços se arrepiaram.
— Não gosto mesmo não... — brincou.
— E esse braço arrepiado? — ironizei e logo o virei para ficar
de frente pra mim.
Beijei sua boca antes que ele respondesse e o ergui em cima
do balcão, afastando rapidamente a comida que estava por ali. Eu
não me cansava de fazer isso, não me cansava de beija-lo, não me
cansava de transar. Na verdade, nós não nos cansávamos. Era o
tempo todo, em qualquer horário livre que tivéssemos.
— Olha a água do café que tá no fogo... — deu uma
risadinha.
— Não seja por isso... — repliquei prontamente, me estiquei
rapidinho, na mesma hora, para apagar, e logo voltei ao meu posto,
encostado no balcão, entre suas pernas. — Agora não tem mais
desculpa.
Liam me beijou sem resistência, assim como sempre fazia. E
se fazia alguma, era só por brincadeira, só charminho. Estávamos
só de short, sem blusa. O dia estava milagrosamente quente.
Aproveitei para descer minha boca dos seus lábios, para o seu
pescoço e peito sem barreiras. O moreno suspirou e me segurou
pela nuca com vontade.
Na ânsia pelo clima que estava ficando ainda mais quente,
quis subir no balcão também, porém...
No mesmo instante, a campainha tocou.
Droga.
Quem podia ser?
— Deixa pra lá — Liam, com o prazer já estampado em seu
rosto, falou. — Não deve ser nada importante. Hoje é sábado, por
favor. Continua — e segurou minha nuca com mais forças.
Tentei continuar e descer muito mais pelo seu corpo com a
minha boca. Porém... A campainha tocou de novo. E tocou muitas
outras vezes, tirando totalmente a nossa concentração.
— Que saco! — Liam se empertigou e desceu do balcão, já
puto com aquilo. — Será que ninguém tem sossego nem no sábado
de manhã?! — e foi esbravejando com raiva pelo apartamento. O
acompanhei, caminhando logo atrás. — Quem é?! — abriu a porta,
mal-humorado.
E, então, um homem vestido muito formalmente de paletó
surgiu. Segurava uma pasta nas mãos e parecia estar lá por algum
motivo muito especial. Eu logo me endireitei, devia ser alguém
importante, mas Liam continuou com aquela cara de poucos
amigos.
— Eu gostaria de falar o Liam Tremblay — o senhor falou.
— Sou eu mesmo — respondeu sem muita vontade. A cara
que ele estava fazendo era tipo “meu senhor, você é um empata
foda”.
O homem, no entanto, pareceu entusiasmado por ter
conseguido encontra-lo.
— Ah, Liam, muito prazer — esticou a mão, para um
cumprimento. — Me chamo Andrei Backer — o moreno apertou sua
mão, mas continuou com aquele semblante de tipo “e eu com
isso?”. — Sou um dos olheiros que estava assistindo a final do
Campeonato Intercolegial.
A partir daí, porém, a postura de Liam mudou
completamente. De relaxado, passou para enrijecido. De sem
vontade, passou para totalmente atento. Em questão de segundos.
— A-Ah, oi, Sr. Barker — gaguejou meio desconsertado. —
Me desculpe. Por favor, entre — e abriu a porta, liberando o
caminho. — Sente-se. Fique à vontade — apontou o sofá para ele e,
disfarçadamente, me fitou com um olhar assustado.
Logo após sentar-se, o homem continuou.
— Liam, diferente dos outros olheiros que estavam lá para
oferecer bolsas de estudos, eu sou um dos olheiros que trabalha na
busca por novos talentos que integrem as seleções de futebol da
Inglaterra, como a seleção oficial de futebol e a seleção de sub-20.
Olhei para Liam e notei-o parado, estático, com os olhos
arregalados.
— Ce-Certo... — com um tom de voz carregado de incertas, o
moreno falou. — Então, por que o senhor me procurou?
— Liam, não temos o costume de fazer a divulgação do
processo de filtragem de novos talentos, porque é algo muito
particular. Analisamos cada jogador, de cada campeonato anual, de
maneira muito particular. Não é uma oportunidade que damos para
todo mundo, assim como também não escolhemos um aluno
necessariamente todos os anos. Ano passado, por exemplo, não
filtramos ninguém, porque não achamos alguém que se encaixasse
em nossos padrões. Mas você, Liam, preenche todos os nossos
requisitos. Estávamos te observando desde o início dos seus
trabalhos na seleção do Colégio Regent e achamos que, dada sua
evolução, o momento mais adequado para lhe fazer o convite seria
agora, já que acabou de terminar o colegial. Você se tornou um
jogador de destaque com o passar e preenche os requisitos para
participar da seleção sub-20 da Inglaterra. Gostaria de marcar uma
reunião para conversarmos melhor e, quem sabe, fecharmos algum
contrato?
O queixo de Liam subitamente caiu e o meu também. Se nem
eu imaginava que isso pudesse acontecer, ele, com certeza, nunca,
ao menos, sonharia com isso. Liam não tinha ganhado a bolsa, mas,
agora, tinha nas mãos a melhor e mais fantástica proposta de toda
sua vida. Poderia seguir, assim, com o que realmente amava fazer
na vida: jogar futebol.
— O senhor tá falando sério? — o moreno, incrédulo,
perguntou. Seus olhos super arregalados.
— É claro, Liam — tirou um cartão de dentro do paletó e
entregou a ele. — Aqui estão os meus contatos. Pode me procurar
quando quiser. Mas, caso você aceite fazermos uma reunião mais
formal, a minha secretária pode entrar em contato com você, logo
na segunda-feira, para marcar a data e a horário. O que acha? Tem
interesse?
Liam arqueou ainda mais as sobrancelhas e apertou o cartão
entre as mãos, como se tentasse provar a si mesmo que tudo aquilo
era realmente verdade. Virou o rosto para mim com os olhos
brilhando de emoção e, depois disso, só deu tempo de aceitar
marcar a reunião e se despedir do Sr. Backer, para Liam correr de
felicidade em minha direção.
Melhor que a felicidade individual era a felicidade
compartilhada. E nós fomos muito, muito, felizes.

Cinco anos depois

Eu não vi somente o nosso relacionamento crescer, mas eu


também vi ele crescer. E eu fiquei feliz não somente pelo nosso
crescimento, mas também pelo crescimento dele. O garotinho que
nasceu praticamente com uma bola no pé, fanático por futebol
desde criança e capitão do time de futebol do colégio na
adolescência, se tornou um dos jogadores mais famosos e
conhecidos da Inglaterra.
Depois de aceitar a proposta para fazer parte da seleção sub-
20 oficial da Inglaterra, Liam alçou voos inimagináveis. Vimos sua
carreira entrar em pura ascensão. Foi contratado para jogar em
clubes famosos da Inglaterra, assim como também fazia parte da
seleção de futebol oficial da Inglaterra, a seleção que participava de
copas do mundo e olimpíadas. Não largou Oxford de jeito nenhum.
Terminou sua faculdade de Relações Públicas, assim como eu
concluí meu curso de Engenharia Mecatrônica também. Entretanto,
sua verdadeira paixão era o futebol mesmo e estava ganhando
muito dinheiro com isso.
Seu rosto passou a estampar infinitas capas de jornais e
revistas. Fazia inúmeras campanhas publicitárias e era chamado
para programas de televisão. As pessoas o reconheciam nas ruas e
pediam autógrafos. Liam conquistou uma legião de fãs não somente
na Inglaterra, mas também em toda a Europa. Bom, era verdade, eu
tinha um namorado muito famoso. Mas, em nenhum momento a sua
fama foi capaz de atrapalhar nosso relacionamento, nem o tornar
uma pessoa menos humilde.
No passado, Liam aprendeu o suficiente para nunca mais
deixar o ego subir a sua cabeça, independentemente de qualquer
coisa. E talvez tenha sido por isso que a vida lhe deu tantos
presentes e conquistas. Ele aprendeu que quanto mais se faz o
bem, mais se recebe o bem. Liam se destacou não somente pelo
seu inegável talento no futebol, mas também por ser um dos
jogadores mais humildes e carismáticos da sua geração. As
oportunidades apareciam e ele nunca se negava a ajudar. Eu tinha
muito orgulho da pessoa que se tornou.
Enquanto isso, eu também alcei meus voos pessoais. Após
uma conversa bem longa, eu, minha mãe e Stefany decidimos não
vender a empresa do meu pai. Stefany seguiu sua carreira de moda
junto com Molly, e acabaram se tornando duas das estilistas mais
renomadas do Reino Unido, enquanto minha mãe ficou cuidando
dos negócios da família, incluindo a construtora, e, pasmem, ela
tinha muito jeito para coisa. Passou tanto tempo cuidando da gente
em casa, sem ter a oportunidade de mostrar seu potencial. Um
potencial enterrado por muito tempo. Mas, um potencial que agora
ela mostrava.
Acabamos vendendo uma parte das ações da empresa para
um grupo espanhol, mas minha mãe ainda era a dona da maior
parte de tudo. No começo, eu a ajudei a entender como os
processos funcionavam, mas, depois de um tempo, ela começou a
caminhar com as próprias pernas e me dar muito orgulho também. A
Sra. Cynthia Hastings tinha se tornado uma exímia mulher de
negócios. Eu não tinha obrigações com a construtora e segui minha
própria carreira, a carreira que eu sempre quis, assim como meu pai
me desejava naquela carta.
Depois de formado em Engenharia de Mecatrônica pela
Universidade de Oxford, me tornei um investidor em empresas de
engenharia mecatrônica que desenvolviam robôs de alta tecnologia
para a produção de carros e automóveis de luxo. Agora, um grupo
bem significativo de empresas estava em minha posse, graças às
ações compradas e aos investimentos feitos. Era carreira
promissora e eu me sentia infinitamente feliz com o rumo que a
minha vida tinha tomado. Era como viver um sonho. Um sonho
conquistado a muito custo, mas, ainda assim, um sonho.
E, naquele dia em específico, estávamos vivendo mais um
pedacinho desse sonho. Eu me encontrava no Wembley Stadium,
um dos estádios mais conhecidos da cidade de Londres, local onde
a seleção oficial de futebol da Inglaterra jogava em casa nos
campeonatos europeus e nas eliminatórias para a copa do mundo.
Tinha a capacidade para 90 mil espectadores e estava
completamente cheio. Era uma importante partida, a última
eliminatória da seleção da Inglaterra, antes da próxima copa do
mundo. O time inglês jogava contra a seleção de Portugal, e Liam
estava lá embaixo, no campo, ocupando a posição que sempre
amou: atacante.
Eu estava no camarote do estádio e, por ser um jogo
importante, Liam tinha feito questão de convidar nossa família e boa
parte dos nossos amigos mais próximos. Estavam lá seus pais,
minha mãe, Stefany, Molly, Noah, Lana, Robert, William e alguns
amigos da época da faculdade. Naquela altura do campeonato, com
a Inglaterra ganhando de 3 a 1 e faltando poucos minutos para a
acabar o jogo, o camarote e a arquibancada já estavam em pura
farra. Todos bebiam e se divertiam. Com a agitação, eu aproveitei
para me aproximar de Molly e Stefany, para colocar as conversas
em dias. No entanto, mesmo que sem querer, acabei ouvindo a
conversa de duas moças que estavam próximas a nós.
— Ai, amiga, esse Liam é um gato! Já reparou no corpo dele
e no jeito dele jogando futebol? — a loira falou. — Deveria ser
pecado!
— E tem como não reparar, menina?! — a morena
respondeu. — É um verdadeiro pedaço de mal caminho. Quisera eu
ter uma chance com ele! Pena que já é casado e tudo, né, amiga?
— Casado não! — a loira replicou, batendo no ombro da
outra. — Parece que você vive em outro planeta! Como você não
sabe tudo da vida de um dos jogadores mais famosos da Inglaterra?
Eu heim. Ele namora há anos com um empresário aí, investidor, ou
sei lá o que. Só sei que é gato também. Deus do céu! Dois gatos
juntos!
— Casado ou namorando, ele tá comprometido do mesmo
jeito... E nós aqui sozinhas, né, amiga? — a outra resmungou. — Oh
vida injusta!
Não me contive em não rir. Me virei em direção à Stefany e
Molly, para que as moças não percebessem, mas elas também me
acompanharam nas risadas.
— Não sei como você aguenta esse assédio todo com o
Liam, maninho — Stefany falou em meio às risadas.
— Ah, eu sei que ele é meu. Só meu — deu ombros e tomei
um gole do Uísque que estava na minha mão.
— E, por falar nisso, olha ele ali embaixo! — Molly apontou.
— O jogo acabou de acabar!
Liam corria pelo campo e comemorava com os companheiros
de time a vitória, enquanto beijava o colar com a inicial do meu
nome, aquele colar que lhe dei há cinco anos quando lhe pedi em
namoro, e apontava em direção ao camarote. Ele vivia com esse
colar no pescoço, assim como eu com o dele. E ele sempre fazia
essa mesma comemoração após fazer gol ou ganhar uma partida:
beijava o colar e apontava em minha direção, como se estivesse
dedicando para mim.
Lindo. Lindo demais.
Porém, algo estranho ali aconteceu.
De repente, e não mais que de repente, todas as luzes do
estádio se apagaram, incluindo arquibancada e camarote. Um
burburinho tomou conta de todo o espaço. As pessoas, de súbito,
acharam estranho e ficaram preocupadas com o que estava
acontecendo. Não era comum faltar energia em um grande estádio
de futebol como aquele. Porém, como resposta, uma luz surgiu no
centro do campo e a voz de Liam surgiu vinda de algum lugar que
eu não sabia exatamente onde. A única coisa que eu sabia era
estava saindo por todas as caixas de som dali.
Meu coração acelerou e eu gelei involuntariamente.
O que estava acontecendo? O que Liam estava aprontando
daquela vez, meu Deus?
— Eu sei que eu deveria ter feito há mais tempo... — a voz
de Liam saiu pelas caixas de som. — Mas eu queria que fosse num
momento importante, onde outras pessoas pudessem ver o amor
que eu sinto por você. Aqui estamos em um estádio lotado, no lugar
que eu mais amo, depois do seu colo, no lugar que representa o
início de tudo entre você e eu. É por isso que aproveito essa
oportunidade para te perguntar uma coisa...
E, então, todos os jogadores se posicionaram no centro do
campo, onde a luz estava, e de frente para o camarote. Um por um,
em sequência, foi tirando a camisa, mostrando que havia outra por
debaixo, até formar a frase pura, simples e completa: “Eric, casa
comigo?”
Fui no céu e voltei. Senti como se minhas pernas estivessem
perdendo as forças. Meu Deus, eu não podia passar mal logo ali!
— Se você aceitar, vem aqui no campo, por favor. Quero te
entregar uma coisa — Liam completou e toda a arquibancada foi ao
delírio.
Eu virei o centro das atenções do camarote, enquanto todos
sorriam pra mim e gritavam para que eu saísse de lá e fosse em
direção ao campo. Olhei para minha família, para a família do Liam,
para os nossos amigos. Todos sorriam, como se já soubessem que
aquilo ia acontecer. Ah, Liam! Ele tinha preparado tudo e me
enganado tão bem! Eu pensava que seria só a última partida de
eliminatória antes da copa!
Todos continuaram gritando e me encorajando a descer. Eu
não precisava de coragem, porque casar com o Liam era tudo o que
eu mais queria na vida, eu só precisava de forças para conseguir
caminhar sem tropeçar sobre os meus pés, de tão nervoso que eu
estava. Mas, reunindo forças não sei de onde, respirei fundo, e
segui decididamente rumo ao campo de futebol.
Já tinham montado todo um esquema de segurança para que
eu pudesse chegar o mais rápido possível lá. E, para ser sincero,
ainda assim, não sei como consegui caminhar até o centro do
campo e sei menos ainda como consegui ficar de pé depois que
pisei na grama e vi a cena que estava minha frente: Liam de joelho,
segurando uma caixa de aliança.
Com o peito saltando pela boca e a falta de ar latente,
tremendo da cabeça aos pés, parei em sua em frente e, antes que
eu pudesse falar qualquer coisa, a pergunta foi feita pela sua própria
boca:
— E, então, quer casar e ficar pra sempre comigo? — sorriu
sem receios, sem ressalvas. Um sorriso genuinamente lindo, cheio
de amor e graça.
Era o homem da minha vida e eu nunca tive dúvidas disso.
A minha certeza era de que eu queria fazê-lo muito mais feliz
do que já tinha feito até ali.
— É claro que eu quero! — respondi sem mais delongas.
Liam, emocionado, colocou a aliança no meu dedo e
prontamente se levantou, erguendo-me em um abraço apaixonante.
Me beijou na frente de todos, levando a arquibancada e o camarote
ao delírio como se tivesse acabado de marcar um super gol de
placa.
E tinha.
Era o nosso gol de placa. A nossa velha, mas sempre atual,
Jogada de Mestre. Livres de quaisquer preconceitos. Livres de
quaisquer amarras. Sem nenhum peso na consciência.
— Obrigado por ser tão incrível — eu disse.
— Eu que agradeço, meu amor — respondeu.
O melhor de nós dois

Alguns meses depois

Liam

Eu o conhecia desde que me entendia por gente, mas começamos,


de fato, nosso relacionamento amoroso aos dezoito anos. O
namoro, aos dezenove anos. Agora, cinco anos depois, estávamos
com vinte e quatro anos, quase vinte e cinco. Eric, no entanto,
continuava com sua beleza estupidamente maravilhosa, que sempre
me deixou louco. Aliás, parecia que, a cada ano que ele envelhecia,
ficava ainda melhor do que já era.
Dividir a vida com ele, entretanto, era uma delícia não
somente pela oportunidade de apreciar aquela vista monumental
todos os dias, mas também pela própria convivência. Alguns
pequenos desentendimentos aconteciam, vez por outra, como com
qualquer outro casal normal, e pelos motivos mais bobos, tipo deixar
a toalha molhada em cima da cama, escolher algum filme, ou
mesmo por algum ciumezinho besta.
Por outro lado, nós sabíamos nos entender muito bem. Logo,
nós já estávamos bem um outro. E, mesmo após sete anos de
relacionamento, tudo, absolutamente tudo, era motivo para irmos
pra cama. Por exemplo, a reconciliação depois de deixar toalha
molhada em cima da cama. Risos. Mas, naquele dia em específico,
nós estávamos na cama por um motivo, muito, muito melhor.
Era a nossa lua de mel.
Na noite anterior, casamos e trocamos nossos votos, na beira
do mar, com os pés na areia de uma praia linda na cidade do Porto,
em Portugal. Nossa família e nossos amigos estavam lá, nos
prestigiando. Foi, simplesmente, maravilhoso. E a cereja do bolo
estava ali, naquela cama de casal, em um hotel lindo com vista para
o mesmo mar que foi testemunha do selamento do nosso
compromisso.
Dentre tantas promessas que lhe fiz durante a cerimônia, ali,
naquele instante, eu estava cumprindo uma delas: lhe dar muito
prazer.
Eric gemeu baixinho quando envolvi seu membro com minha
boca. Isso nunca perdia a graça. Aliás, nada perdia a graça entre
nós. Vi o momento em que seus olhos fecharam, sua cabeça
pendeu para trás e seus lábios, ofegantes, se entreabriram. Me
segurou pela nuca, mexendo os quadris, para aprofundar o
movimento.
Enquanto isso, eu sugava, lambia, chupava, fazia tudo o que
eu tinha direito, de um jeitinho que eu sabia que ele gostava. Anos
de relacionamento tinham essa vantagem. Eu conhecia seu corpo
como a palma da minha mão, sabia dos seus gostos e tinha noção
do que lhe deixava completamente maluco na cama.
Ele era o meu paraíso.
— Amor, não aguento mais — ouvi quando ele disse e jogou
o lubrificante bem ao meu lado. — Quero gozar com você dentro de
mim.
Seu pedido, pra mim, era sempre uma ordem. Não me
demorei. Rapidinho, eu já estava entre as suas pernas, olhando nos
seus olhos a cada investida, cheio de amor pra dar. Foi quando o
loiro começou a gemer um pouco mais alto. Segurou forte minha
cintura, querendo me sentir mais fundo.
Ele me deixava louco.
Eu não aguentaria mais por muito tempo, assim como eu
sabia que ele também já estava chegando no seu limite. Prova
disso, foi quando escutei:
— Eu tô perto... — ele balbuciou. — Eu vou gozar...
Ah que delícia. Filho da mãe gostoso.
Esse foi o meu passe-livre para que eu aumentasse o ritmo
sem que eu precisasse mais me prender. Ele estava quase lá e eu
também. Continuei naquele ofício. O ofício mais delicioso do mundo.
Até que, enfim, ele gemeu ainda mais alto. Gozou apenas com a
minha penetração, sem que eu precisasse ao menos tocar em seu
pênis.
Como eu disse, vantagens de anos de relacionamento.
Eu já sabia direitinho como deixá-lo totalmente pirado.
Em seguida, foi minha vez. Não me aguentei ao vê-lo
fazendo aquela carinha linda e maravilhosa de tanto prazer. Uma
das minhas promessas de casamento tinha sido cumprida, assim
como eu a cumpriria, novamente, centenas de outras vezes. Eu o
preenchi por completo, até a última gota, de amor. Tanto amor.
— Ah que sorte a minha... — ainda ofegante, tentando se
recuperar, ele disse. — Eu te amo tanto.
— Que sorte a nossa! — segurei firme seu rosto com as duas
mãos e falei. Obviamente, éramos um casal sortudo. A sorte era,
sobretudo, pela bênção de um relacionamento tão saudável,
maravilhoso e cheio de amor. — Eu também te amo demais.
— Eu estou tão feliz... — a emoção cruzou seu olhar, quando
o vi pronunciar essas palavras. — Estou por feliz por nós, por nossa
história, pelo relacionamento maravilhoso que conseguimos
construir, desde a nossa adolescência em Londres, pelo nosso
casamento e por tudo o que nós ainda vamos construir, juntos,
agora, aqui em Portugal.
Eric se referia não somente ao nosso relacionamento, mas
também às novas possibilidade que se abriam para nós.
Recentemente, eu tinha sido contratado por um famoso time de
futebol de Portugal. Agora, moraríamos em Lisboa e construiríamos
nossa vida de casados lá. Seria maravilhoso.
— Eu tenho certeza que seremos ainda mais felizes aqui —
garanti com todo o meu coração. — Eu quero ser marido em todos
os sentidos dessa palavra. Quero ter filhos com você. Quero adotar
crianças. Enfim, eu quero construir uma família com você. Vamos
viver o melhor de nós dois.
E eu nunca me senti tão homem, quanto estava me sentindo
agora. Estar casado com o Eric, bolando planos de construir uma
vida juntos, de ter filhos e de torná-lo o cara mais feliz do mundo,
fazia com que eu me sentisse um homem completo. Um homem de
verdade. O Liam de dezoito anos jamais poderia imaginar que se
sentiria homem dessa maneira. Por sorte, com o Eric, eu encontrei o
caminho certo e direto rumo à felicidade. E eu me sentia tão
completo, que transbordava.
Nota da Autora

Cada livro da série “A Família Tremblay” tem começo, meio e fim, e


pode ser lido fora de ordem; embora exista a possibilidade do leitor
receber alguns spoilers do que aconteceu com personagens de
volumes anteriores. Todavia, destaca-se que as obras são
independentes.
Até então, a série “A Família Tremblay” contará com três livros,
sendo este o primeiro. O segundo intitulado “Doce Rendição” e o
terceiro ainda sem nome definitivo. Entretanto, deixa-se aberta a
possibilidade de que outros livros possam ser desenvolvidos para
complementar esta série. Há muito para ser contado.
A previsão é de que o segundo volume, Doce Rendição, seja
lançado ainda no ano de 2022.

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eiusmod tempor incididunt ut labore et dolore magna aliqua. Ut enim
ad minim veniam, quis nostrud exercitation ullamco laboris.
Agradecimentos

O fim de Jogada de Mestre me traz inúmeros sentimentos. Essa


história, sem dúvidas, marcou a minha de um jeito que eu nunca vou
conseguir explicar. Jogada de Mestre me transformou
completamente. Eu era uma pessoa quando comecei a escrevê-la
em 2017 e sou outra pessoa completamente diferente agora.
Enquanto Eric e Liam passavam por seus processos de mudança,
eu também passei. Eu mudei e aprendi junto com eles. Consegui
evoluir como pessoa e como escritora.
Jogada de Mestre simboliza uma fase de transformações. Foi o
meu primeiro romance LGBT, a primeira história de mais de noventa
capítulos que eu consegui terminar de escrever, a primeira história
que eu tive o maior retorno da minha vida. Tenho uma gratidão e um
carinho enorme por JdM e, especialmente, por vocês, meus leitores.
Eu nunca vou me cansar de repetir que essa história só chegou ao
fim graças a vocês, que sempre estiveram presentes durante todo
esse tempo de escrita comigo.
É por isso e por muitas outras coisas que deixo aqui registrado
o meu imenso muito obrigada a todos! Todos vocês, sem exceção
alguma, são importantes para mim! Guardo um carinho enorme por
todos. Espero que continuem comigo nessa jornada de escrever
histórias, porque elas não acabam. Existem muitos outros
personagens para conhecer, muitos outros mundos, muitas outras
aventuras. Será um prazer tê-los comigo nas próximas histórias
lançadas! Enfim, muito obrigada a vocês que tornam a minha vida
mais feliz!
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fique por dentro dos próximos lançamentos

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About The Author
V. S. Vilela

V. S. Vilela é mestre e doutoranda em Administração por formação e


escritora por paixão. Desde a infância, já escrevia suas histórias e
imaginava mundos fantásticos, que só a cabeça de uma criança
poderia criar. Mas, foi apenas aos 22 anos que começou a
compartilhar na internet seus textos com amantes da leitura. Com o
tempo, a autopublicação em plataformas digitais e gratuitas lhe deu
a oportunidade de acumular números jamais imaginados, e,
principalmente, conhecer pessoas maravilhosas, seus leitores. Hoje,
certa da sua vocação, deseja se profissionalizar, cada vez mais, na
escrita e levar histórias de qualidade ao público, desde romances à
aventuras.

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