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O Deus triúno

Introdução
1. O nome triúno de Deus
O sentido de "Deus"
Dogmática cristã / Editoração de Cari E. Braaten e Robert W. Jenson ; A identificação de Deus em Israel
tradução de Luis M. Sander e Gerrit Delfstra, Luis H. Dreher e A identificação de Deus no Novo Testamento
Geraldo Komdiirfer. — 2.ed. — São Leopoldo : Sinodal, 2002. "Pai, Filho e Espírito Santo" como nome próprio
552p. O nome triúno como dogma
2. A lógica e retórica trinitárias
A lógica trinitária
As Escrituras hebraicas como raiz do trinitarismo
Segundo Locus O trinitarismo primário
O status dogmático do trinitarismo primário
3. O dogma niceno-constantinopolitano
O Deus dos gregos
A cristianização inicial do helenismo
A crise ariana
Nicéia e Constantinopla
O Deus triúno*
4. Um e três
A terminologia trinitária oriental
As três hipóstases
O ser único
Robert W. Jenson A versão ocidental
O credo atanasiano
As vicissitudes do trinitarismo ocidental
5. O ser de Deus
As questões metafísicas
* Tradução: Gerrit Delfstra Deus como evento
Revisão: Luis M. Sander Deus como pessoa
Deus como espirito
Deus como discurso
6. Os atributos de Deus
A necessidade da doutrina
O método da derivação
"Jesus ressuscitou": atributos para o predicado
"Jesus ressuscitou": atributos para o sujeito
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titui X, "redime" adquire o valor operacional "manda chuva!'. Uma teologia
de nenhum-deus-em-particular ou de todos-os-deuses-ao-mesmo-tempo, se não
fosse totalmente vazia, não ajudaria em nada. Antes de identificar Deus, tudo
que se pode dizer a respeito dele/dela é que "Deus é o objeto da preocupação
Introdução última" ou "Deus é tudo a que apegas teu coração". O máximo que "X redi-
me" poderia significar é que "X restaura a situação que X define como boa".
Uma doutrina que não fosse além disso seria de uso puramente analítico e de
O locas da dogmática que trata de Deus não é nem pode ser uma descrição nenhum uso religioso.
dele, apesar de que muitas vezes sua intenção seja apresentar fatos a seu respei- Por isso iniciamos e gastamos a maior parte de nosso espaço com a identi-
to. Esse locas tampouco é uma parte da metafísica, apesar de levantar e tentar dade do Deus do evangelho, e discutimos a existência e a natureza de Deus de-
responder a questões metafisicas. O locas dogmático acerca de Deus reúne de pois. Isto é, começamos com "a doutrina da ftindade" porque dentro da teolo-
maneira conveniente certas perguntas que surgem regularmente na Igreja cristã: gia cristã este conjunto de ensinamentos tenta identificar
' Deus'. Ao seguir essa
aquelas que dizem respeito mais diretamente a Deus. É claro que essas pergun- ordem, aderimos a uma tradição minoritária na dogmática2; afirmamos que a
tas acabam se relacionando sistematicamente uma com a outra, e uma das tare- minoria tem razão.
fas principais da dogmática é reconstituir essas relações. Mas o conjunto especí- Em seguida temos que observar que a doutrina da 'frmndade não é nenhum
fico de questões que juntas constituem o locas "a respeito de Deus" é antes ensinamento único ou conjunto homogêneo de ensinamentos como, por exem-
o fruto da história litúrgica e catequética que de uma lógica atemporal. plo, a doutrina da justificação somente pela fé. Ë um complexo de expressões
A indagação religiosa primária sempre é sobre a identidade de Deus: qual variadas quanto a sua forma e quanto a sua relação com a identificação de Deus.
é Deus? Qual das supostas ou possíveis divindades da história preencherá os re- Distinguimos quatro unidades de discurso trinitário. Sua classificação constitui
quisitos? A quem posso dirigir minhas orações e as dirijo de fato? o esboço geral da parte seguinte, dedicada à doutrina trinitária (capítulos 14).
Dentro da fé bíblica ou da cultura influenciada por ela, a pergunta se Deus A distribuição de espaço entre os quatro reflete a sua relativa complexidade, não
existe também pode adquirir força religiosa, porque a fé bíblica apresenta a pos- sua relativa importância.
sibilidade do niilismo, da absoluta desconfiança acerca da realidade, como nem A doutrina da Trindade está moribunda em amplos segmentos da Igreja
todas as religiões fazem. E enquanto parece haver apenas um plausível candida- de fato, muitas vezes serve como exemplo predileto de sutileza teológica sem qual-
to à divindade, e só deuses de palha como "dinheiro" ou "o ventre" parecem quer utilidade. O livro talvez mais freqüentemente usado em seminários protes-
competir com o Deus da Bíblia, a terrível disputa entre fé e niilismo é a primeira tantes para ensinar teologia sistemática, The Faith of the Christian Church, de
a exigir atenção. Se sabemos com certeza quem seria Deus, caso existisse algum, Gustaf Aulén, mal-e-mal menciona o assunto, e o que diz não é acurado3. Ou-
a pergunta "Deus existe?" é a primeira na expressão de nossa perplexidade. tras; obras de referência são mais informativas, mas não muito mais proveitosas
Mas a história já deixou claro que a "era pós-cristã" não será uma era de para reconhecer o que está em jogo na linguagem trinitária e a vivacidade da
secularidade eficiente e não-religiosa, e sim a combinação de uma vida comuni- mesma4. Obras positivas como The Doctrine of the lÍinity, de Leonard Hodg-
tária niilista, coletivista ou caótica, com uma eflorescência compensadora de re- son, In This Name, de Claude Welch, ou até a obra pioneira de Karl Rahner,
ligiões privadas não-cristãs. No futuro próximo, toda esquina das ruas do Oci- The 11inity, não tiveram o impacto que se poderia esperar. E quando uma
dente apresentará um novo pretendente à divindade, como acontecia no mundo "lhndade" é definida, muitas Vezes é a de John Macquarrie ou Paul Tillich,
antigo em seu declínio, e primeiro teremos que esclarecer para nós mesmos a interessante como resultado de especulação, mas relacionada apenas de longe com
quem nos referimos como "Deus' antes que apostemos na realidade de Deus. o trinitarismo da Igreja a ser discutido aqui. Em geral, um empreendimento
Numa época de pluralismo religioso, a pergunta pela identidade de Deus reafir- como o presente ensaio é um relato de uma minoria na Igreja atual.
ma sua prioridade natural.
Não é proveitoso considerar primeiro a questão de como Deus é. As gran-
des palavras teológicas - "salvífico", "misericordioso", etc. - têm em comum 1 Karl Barth esclareceu isso. Karl BARTH, Kirchliche Dogmatik,Theologischer Verlag, Zü-
uma pecularidade lógica: são tão determinadamente análogas e abertas à inter- rich, 1932-67, vol. 1/1, pp. 313-20.
2 Representada da forma mais notável por Pedro Lombardo, Boaventura e Barth.
pretação que, por si próprias, significam quase nada. "X redime!', por exemplo, 3 Gustaf AULÉN, The Faith of the Christian Church, Philadelphia, Fortress, 1948, pp. 245-9.
nem mesmo é uma frase aberta comum, que faça uma afirmação específica so- ('frad. port.: A fé da Igreja cristã, São Paulo, ASTE, 1965, pp. 219-23)
bre um sujeito não-especificado, porque até que X seja definido não sabemos 4 P. ex.: Regin PRENTER, Creation and Reciemption, Philadelphia, Fortress, 1967; Hehflut
o que "redime" diz a respeito dele/dela. Só quando "Baal", por exemplo, subs- THIELICKE, The EvangelicaIFith, Grand Rapids, Wrn. B. Eerdmans, 1967, vol. 2, pp. 124-83.
5 Leonard HODGSON, The Doctrine of the Trinity, New York, Charles Scribner's Sons, 1944;
Claude WELCH, In This Naine, New York, Charles Scribner's Sons, 1952; Karl RAHNER,
The TJ-inity, New York, Herder & Herder, 1970.

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É de se temer que a moderna incompreensão do discurso trinitárjo muitas Deus? E por que deveríamos dizer determinada coisa e não outra? Tais questões
vezes expressa uma morbidez da própria fé; contra isso a dogmática como tal constituem o problema dos atributos de Deus, como são chamados tradicional-
pouco pode fazer. Os maiores responsáveis por isso são erros e lacunas existen- mente, e aqui são examinadas no capítulo 6.
tes tanto no conjunto herdado de ensinamentos trinitários como nas hipóteses
teológicas usuais da atualidade. Esperamos contribuir para superá-los, mas 102
suspeita-se que o mero volume do discurso trinitário herdado, com várias fun-
ções e proveniente de diversas épocas e lugares na maior parte distantes, tam- 1
bém torna difícil simplesmente apreender para que serve este material todo. Pa-
ra ajudar nessa última perplexidade adotou-se a organização dos capítulos 1-4, O nome triúno de Deus
numa tentativa de dividir o grande volume de linguagem trinitária em grupos.
Após examinar a identidade triúna de Deus, devemos passar às questões Em continuidade funcional com o testemunho bíblico, "Pai, Filho e
discutidas tradicionalmente como a doutrina do "único Deus": o que Deus é, Espírito Santo" é o nome próprio do Deus da Igreja. Tanto as Escri-
se Deus é, como Deus é. Quanto mais específica, em termos de clareza e dialéti- turas hebraicas quanto o evangelho do Novo Testamento requerem que
ca, for nossa maneira de falar de Deus, tanto mais drásticos - mas talvez tam- Deus tenha um nome próprio. O fato de que ele tem este nome pró-
bém esperançosos - serão os desafios que enfrentará em nossa época. O ácido
da modernidade ataca todo aspecto da fé. Será que faz sentido falar de Deus? prio é um reflexo imediato da experiência cristã primária.
Existe alguma razão para afirmar a realidade de Deus? Não é antes o mal ou
o absurdo que é Deus, e não a bondade paterna? E como descobrimos o que
pensar a respeito de Deus? Não seria melhor simplesmente adorar Deus em si- O sentido de "Deus"
lêncio ou mediante um modo de falar sem sentido?
A tarefa da dogmática não pode consistir em completar a resposta da fé O que é possível dizer antes da identificação de Deus certamente deve ser
a todos os desafios, mas ela pode dar uma contribuição necessária. Ao longo dito. Com que finalidade as pessoas usam esta palavra "Deus", para que per-
da história da teologia desenvolveram-se três conjuntos de ensinamentos que pro- guntemos com tanta urgência a quem ou a que ela se aplica verdadeiramente?
curam explicar a realidade única de Deus. Não é por acaso que cada um de fato O horizonte da vida e suas preocupações é o tempo, o inescapável já, não
responde a um aspecto da perplexidade moderna. Não é por acaso - porque mais, ainda e ainda não de tudo que conhecemos e desejamos. Todo ato huma-
as perguntas que acabaram de ser enumeradas são, historicamente, as perguntas no se movimenta daquilo que era em direção daquilo que haverá de ser; é carre-
da própria fé, agora meramente refletidas em forma secularizada. gado pela tradição e está repleto dela, mas tem como intenção a criação de algo
A dúvida se falar sobre Deus faz sentido permeia a época moderna. Na novo. Assim nossos atos pendem entre o passado e o futuro, para serem, de fa-
tradição teológica moderna, a análise da lógica da linguagem teológica se tor- to, temporais, para serem a autotranscendência, a aventura inerente e inevitável
nou um empreendimento próprio. Em resposta a esse desenvolvimento, este li- que é o tema de toda religião e filosofia. Mas nossos atos também ameaçam
vro contém um locus separado que trata do conhecimento de Deus, onde se en- cair entre o passado e o futuro, para se tornarem tediosos, ou fantásticos, ou
contrará um exame direto do significado da linguagem sobre Deus. Mas a sin- ambas as coisas, e toda a vida ameaça tornar-se uma seqüência fortuita de even-
gularidade lógica da fala sobre Deus não é, como tal, uma descoberta moderna. tos que se juntaram de modo meramente causal e que por acaso sucederam a
A teologia tradicionalmente a discutiu em termos de conteúdo, perguntando: que uma entidade de fato impessoal, "eu".
espécie de "ser" é Deus? Como estou usando "é" quando digo: "Deus é assim A vida humana é possível ou, em terminologia recente, faz sentido -
e assim?" Essas investigações muitas vezes levaram e ainda podem levar a im- apenas se o passado e o futuro forem, de alguma maneira, enquadrados, sua
portantes afirmações materiais sobre Deus e devem, por isso, ser realizadas tam- desconexão transcendida de algum modo e nossas vidas se tornarem, de uma
bém neste locus, no capítulo 5. maneira ou outra, coerentes para formar uma estória*. A vida no tempo somen-
O Deus mais ou menos bíblico da religião ocidental foi, durante muito tempo, te é possível se houver tal enquadramento, isto é, se existir eternidade. Por con-
o único candidato sério entre nós. Igualmente, durante muito tempo houve um seguinte, procuramos eternidade em tudo que fazemos. Se a nossa busca se tor-
assunto usual: se é razoável pensar que Deus é. Essa questão muitas vezes faz na explicita, praticamos "religião". Se nossa religião percebe o enquadramento em
parte do presente locus, porém nesta obra será discutida no locus seguinte o volta do tempo como algo que seja de alguma maneira um algo determinado,
epistemológico, sendo por isso omitida aqui.
Finalmente, como os teólogos precisam formular frases na forma "Deus
é assim e assim", eles precisam se preocupar não somente com o "é", mas tam-
bém com o "assim e assim", com o predicado. O que deveríamos dizer sobre * N. do E.: Story1 no original. Traduzimos este termo por "estória" para diferenciá-lo de his-
tory, que traduzimos sempre por "história".

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de alguma maneira o possível sujeito de verbos (como, p. ex., em: "O eterno Geralmente, nomes próprios somente funcionam se tais descrições identifi-
fala através dos profetas"), nossa tendência é dizer "Deus" em vez de "eterni- cadoras estão disponíveis. Podemos dizer: "Maria vem jantar" e receber a res-
dade". posta: "Quem é Maria?" Então devemos ser capazes de dizer: "Maria é aquela
Mas nossa indefinição já está se tornando intolerável, porque é Claro que que mora no apartamento 2C, sempre é tão alegre e...", continuando até que
muitos tipos de enquadramento podem ser Colocados em redor do passado e a pessoa que perguntou diga: "Ah, aquela!" Podemos dizer: "Javé sempre per-
do futuro, que há muitas possíveis eternidades. Existe, por exemplo, a eternida- doa" e receber como resposta: "Vocês querem dizer o Eu Interior?" Então devemos
de dos ancestrais tribais que se tornaram tão velhos que não há mais nada que ser -capazes de dizer: "Não. Referimo-nos àquele que libertou Israel do Egito
possa surpreendê-los e em Cuja presença Contínua todas as supostas novidades e..."
do futuro são, portanto, dominadas por máximas tradicionais. Existe a eterni- A religião precisa de meios lingüísticos para estabelecer identidades: nomes
dade do nirvana, onde uma diferença entre o passado e o futuro simplesmente próprios, descrições identificadoras ou ambos. As orações, como outros pedi-
não é permitida. Existe a eternidade do existencialismo, em que a decisão pára dos ou louvores, devem se dirigir a alguém. Por isso a forma típica de oração
o tempo momentaneamente. A eternidade é tão multiforme, que a mera afirma- do cristianismo ocidental, a coleta, normalmente começa com alguma descrição
ção de que ela existe, de que existe alguma união do passado e do futuro, de identificadora, tal como: "O Deus, que deste teu Filho unigênito para ser..."
que a vida tem algum sentido, possui, na prática, o mesmo valor que a suspeita Deve-se proclamar a vontade moral de Deus como uma vontade determinada,
de que não existe nenhuma eternidade. A vida não se torna possível quando se se é que devemos obedecê-Ia. Paulo estabeleceu um padrão para a pregação cris-
afirma que ela tem sentido, mas quando se afirma qual é seu sentido. O tipo tã quando escreveu aos filipenses: "Tenham em vocês o mesmo sentimento que
de eternidade em que Confiamos determina o enredo e a energia da vida, e a houve em Cristo Jesus, que..." (Fp 2.1-11.) Deve-se especificar a promessa escatoló-
realidade da eternidade que qualquer modo de vida afirma determina sua ver- gica. A proclamação de uma união final da humanidade é evangelho porque
dade. Se falamos de "Deus", o tipo de Deus que adoramos dá substância à nos- a reunião acontecerá em torno de Jesus, mas seria algo totalmente diferente se
sa vida, e da realidade da existência deste Deus depende a verdade de nossa vi- fosse em torno de Stalin. Paulo viu a perversão dos gentios exatamente no ende-
da. reçamento errado de seu louvor (Rm 1.24-25).
Ao meditar sobre o fundamento da fé bíblica, o êxodo, os primeiros teólo- O discurso trinitário é a tentativa do cristianismo de identificar o Deus que
gos de Israel fizeram Com que a pergunta decisiva de Moisés fosse: "Se eu vier nos reclama. A doutrina da Trindade inclui tanto um nome próprio: "Pai, Filho
aos filhos de Israel e lhes disser: 'O Deus de seus pais me enviou a vocês', e eles e Espírito Santo" com diversas variantes gramaticais, como também um desen-
me perguntarem: 'Qual é o seu nome?', que lhes direi?" Para que assumisse volvimento e análise complicados das descrições identificadoras corresponden-
o risco do futuro deste Deus, deixasse a sua não-existência segura no Egito e
tes.
se arriscasse com base nas promessas de Deus, Israel tinha que saber, em pri- Vivemos no presente; isso é uma tautologia. Mas o conteúdo da vida pre-
meiro lugar e fundamentalmente, que futuro era esse. Deus respondeu: "Assim sente é memória e expectativa, de alguma forma unidas. Falamos de "Deus"
dirás aos filhos de Israel: [Javéj, o Deus de seus pais, o Deus de Abraão, o para dar nome a essa união. Ou melhor, falamos com Deus e a partir dele para
Deus de Isaque e o Deus de Jacó, me enviou a vocês; este é meu nome eterna- invocar a mesma. Assim sendo, precisamos saber quem Deus é para saber como
mente, e assim serei lembrado de geração em geração." (Ex 3.1315.)1 nossas vidas são compostas. A resposta do cristianismo para essa necessidade
A resposta fornece um nome próprio: "Javé". 1mbém fornece aquilo que é o discurso trinitário.
os lógicos hoje chamam uma descrição identificadora, uma expressão ou ora-
ção descritiva ou um conjunto das mesmas, que se aplica somente à coisa parti-
cular a ser identificada. Aqui a descrição é: "o Deus que Abraão, Isaque e Jacó A identificação de Deus em Israel
adoraram". A descrição mais comum se encontra num relato paralelo, alguns
capítulos adiante: Deus disse a Moisés: "Dize ( ... ) aos filhos de Israel: 'Eu sou Não sabemos o que a palavra "Javé" pode ter significado em outros tem-
[Javé], e tirarei vocês de debaixo das cargas dos egípcios ( ... ); e vocês saberão pos. Como nem e Israel histórico o sabia, teologicamente não perdemos muito.
que eu sou [Javé] seu Deus, que tirou vocês Eu sou [Javéj". (Êx 6.2-7; "Javé" era para Israel um puro nome próprio que sem dúvida em outras épocas
itálicos meus.)
fora usado por causa de seu significado, mas que sobrevivera ao conhecimento
do mesm02 . De fato, na famosa passagem em que Moisés pede uma explica-
ção do nome, Javé é descrito como quem responde mediante um jogo de pala-
1 Neste locus serão usados colchetes em redor de "Javé" (hebraico YHWH ou JHWH) nas
citações da edição Revista e Atualizada de Almeida (ARA). A ARA segue o costume judaico 2 Gerhasd VON RAD, OId lèstament Theology, 2 vols., New York, Harper & Row, 1962-65,
de evitar o nome próprio de Deus e substitui-lo por "Senhor", mas neste locus estamos fa- vol. 1, pp. 10-1. [frad. port: lèologia do Antigo Testamento, São Paulo, ASTE, 1973-74, 2
lando exatamente do nome próprio de Deus e por isso usamos "Javé". vols.]

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vras com uma etimologia ad hoc, exatamente para rejeitar tal curiosidade: "Eu
sou o que sou" (Ëx 3.14). "Vocês viram o que fiz aos egípcios, e corno ( ... ) os cheguei a mim. Agora, pois..."
(Ex 19.4ss.) Quando se perguntava a Israel: "Quem é o Deus ao qual vocês se
É notável que "Javé", com suas variantes, era o único nome próprio de referem?", a resposta era: "Aquele que nos tirou do Egito."
uso comum para o Deus de Israel. Outros substantivos, entre os quais predomi- Chamar Deus pelo nome era um ato tão tremendo em Israel, que, quando
nava Elohim*, eram usados como termos e apelativos comuns. Outros povos a identificação do Deus verdadeiro em oposição a outros que postulavam divin-
antigos acumulavam nomes divinos4. A abrangência da autoridade de um deus dade deixou de ser um desafio diário e o uso do nome, portanto, não era mais
era obtida obscurecendo-se a sua particularidade e identificando-se nu' menos ini- uma necessidade diária, o nome deixou de ser pronunciado de fato, a não ser
cialmente distintos um com o outro, resultando numa divindade-geral muito in- nas ocasiões mais importantes7. A pontuação de YHWH em nosso texto he-
definida. Israel moveu-se na direção oposta. A sua salvação dependia exatamente braico com as vogais de adonai (Senhor) como um sinal para dizer essa palavra
da identificação não-ambígua de seu Deus em contraste com a generalidade do no lugar daquela, e a tradução de "Javé" por Kyrios* na Septuaginta, refletem
numinoso. No relato javista da auto-revelação decisiva de Javé no monte Sinai, isso.
a passagem central é: "E [Javé] desceu ( ... ) e proclamou o nome [Javé] ( ... ): [Ja-
vé, Javé], Deus compassivo e gracioso" (Ex 34.5-6), o que, supunha-se, os deu-
ses em geral não podiam ser. Por isso foi incluído na descrição fundamental da A identificação de Deus
justiça de Israel, os Dez Mandamentos, que Israel não devia aviltar o nome de no Novo Testamento
Javé (Ex 20.7).
Um lugar, portanto, era apropriado para oração, sacrifício ou consulta dos O evangelho do Novo Testamento é a provisão de uma nova descrição iden-
oráculos, quando o nome "Javé" era conhecido (Ex 20.24). O que acontece em tificadora para esse mesmo Deus. O processo de aplicação dessa nova descrição
tal lugar sagrado pode ser descrito resumidamente como "invocar o nome [Ja- está centrado no evento cujo testemunho é ponto central do Novo Testamento.
vé] (p. ex. Gn 12.8). Bênçãos são "aplicações" do nome "Javé" (s'. ex. Nm 6.27), Deus, no evangelho, é "aquele que ressuscitou Jesus dos mortos"8 .
e as orações contêm invocações do mesmo (p. ex. 1 Rs 18.24). O uso de "Javé" A identificação de Deus por meio da ressurreição não substituiu a identifi-
é a razão por que os adoradores confiam que suas ofertas serão aceitáveis e suas cação pelo êxodo; é essencial que o Deus que ressuscitou Jesus seja o mesmo
orações ouvidas (p. ex. SI 20.1-3; 25.11), porque aqueles que conhecem o nome que libertou Israel. Mas a novidade que constitui o conteúdo do evangelho é
de Deus são o povo de Deus, com que Deus está comprometido. Quando Deus que Deus agora se identificou também como "aquele que ressuscitou dentre os
não quis ser apreendido, ele ocultou seu nome (Gn 32.30); os gentios são gen- mortos a Jesus nosso Senhor" (Rm 4.24), No Novo Testamento este tipo de
tios exatamente porque não o conhecem (SI 79.6). expressão se torna a maneira usual de se referir a Deus9.
Israel necessariamente tinha descrições identificadoras para acompanhar o Não há muitos nomes novos para acompanhar esta nova descrição identi-
nome. Na própria base da vida de Israel, que é a introdução à tora básica dos ficadora, mas antes novas maneiras de nomeação. "Javé" não reaparece como
Dez Mandamentos, ambos são colocados nitidamente lado a lado: Eu sou [Ja- nome em uso. O hábito de substitui-lo por "Senhor" o enterrou por demais
vé], teu Deus, que te tirei da terra do Egito." (Ex 20.2.) Havia muitas descrições que profundamente sob o nome apelativo10 . Mas a situação missionária da Igreja
podiam ser usadas para identificar Javé, mas dessa em particular, a narrativa torna o uso efetivo de um nome próprio para falar de Deus novamente necessá-
do êxodo, dependia a fé de Israel-5. O êxodo constituía o conteúdo principal do rio numa variedade de contextos. O nome de Jesus é mencionado em todas es-
credo de Israel: "Testificarás perante [Javé] teu Deus e dirás: 'Um arameu pere- sas funções. Exorcismo, cura e, de fato, as boas obras em geral são realizados
grino era meu pai, e desceu para o Egito (...). E os egípcios nos maltrataram "em nome de Jesus" (p. ex. Mc 9.37ss., par.). A disciplina da Igreja e o que
e afligiram ( ... ). Então clamamos a [Javé] (...) e [Javé] nos tirou do Egito com se assemelha à mesma se exercem mediante sentenças pronunciadas em nome
poderosa mão ( ... ) e nos trouxe a este lugar e nos deu esta terra." (Dt 26.5-9; v. de Jesus (p. ex. 1 Co 1.10), e o perdão se anuncia da mesma maneira (p. ex. 1
também Js 24.2ss.) Toda a narrativa das Escrituras hebraicas é melhor com- Jo 2.12). Descreve-se o Batismo como sendo em nome de Jesus (p. ex. At 2.38),
preendida como uma versão expandida da narrativa do credo que acabou de
ser citada6. E a tora inteira era uma explicação das conseqüências do êxodo:
7 A partir do século Ill a.C. RGG, 3. ed., s. v. "Namenglaube", de K. BALTZER.
* N. do E.: Senhor.
3 Sobre aexegese: Waither ZIMMERLJ, Old Testament Theology in Outline, Atlanta, John 8 A mais conveniente organização recente do material a este respeito foi feita por Peter STUHL-
Knox, 1978, pp. 19-20. MACHER, "Das Bekenntnis zur Auferweckung Jesu von den 1ten und die biblische Theo-
* N. do E.: Deuses, ou deus, ou Deus. logie", ZTHK, Tübingen, 70:377ss., 389ss., 1973.
4 VON RAD, op. cit., vol. 2, pp. I80ss. 9 Cf. Riu 4.24 com Ri-ri 8.11; 1 Co 15.15; 2 Co 1.9; 4.14; 011.1; CI 2.12; 1 Pe 1.21.
5 P. ex. ZIMMERLI, op. cit., pp. 21-7. 10 Como nome, Kyrios aparece apenas em citações da Escritura, p. ex. Mt 4.10; 22.37. Nos ou-
6 VON RAD, op. cit., vol. 1, pp. 123ss. tros casos, ao se referir a Deus, é somente uma alternativa para theos.

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quer tenha de fato sido realizado em algum tempo com esta fórmula ou não. são incorporadas na comunhão dos fiéis e na comunhão com Deus é uma ini-
Submeter-se a tal Batismo é igualado àquela invocação do nome "Javé" pela ciação "no nome 'Pai, Filho e Espírito Santo".
qual, de acordo com Joel 3-5*, Israel será salvo (At 2.21, 38). Sobretudo, talvez, O uso do nome trinitário é um hábito universal ao longo da vida da Igreja.
a oração é feita "em nome de Jesus" (p. ex. Jo 14.13-14), e em conseqüência Não podemos dizer até que ponto do passado ele remonta. Certamente remonta
disso o nome pode ser apresentado como o próprio objeto da fé (p. ex. Jo 1.12). a uma época ainda mais remota que os traços mais fracos da reflexão trinitária,
Os crentes são aqueles que "invocam o nome do nosso Senhor Jesus Cristo" e parece ter sido uma expressão imediata da maneira como os crentes experi-
(p. ex. At 9.14). mentaram Deus. É na liturgia, quando não falamos sobre Deus, mas a ele e por
O uso do nome "Jesus" era tão predominante na vida religiosa da Igreja ele, que precisamos do nome de Deus e o usamos, e é aqui que aparecem as
apostólica, que a missão toda pode ser descrita como a proclamação "em seu fórmulas trinitárias, tanto no princípio quanto até o dia de hoje12 . Na literatu-
nome" (Lc 24.47), "pregar boas novas a respeito do reino de Deus e do nome ra imediatamente pós-apostólica nenhuma fórmula trinitária é usada como par-
de Jesus Cristo" (At 8.12), de fato como "levar" o nome de Jesus às pessoas te da teologia ou de uma maneira que dependa de um desenvolvimento anterior
(p. ex. At 9.15). Podem-se descrever as reuniões das congregações como "dar na teologia, mas mesmo assim a fórmula está presente. Seu lugar próprio é a
graças ( ... ) em nome de nosso Senhor Jesus Cristo" (Ef 5.20) e, de fato, simples- liturgia, o Batismo e a Eucaristia. Aí seu uso foi considerado regularmente co-
mente como encontros em seu nome (Mt 18.20). Onde a fé deve ser confessada mo o centro da questão13 .
diante da hostilidade da sociedade, trata-se da "confissão do nome" (p. ex. Mc No Novo Testamento há duas ocorrências em que o nome trinitário é for-
13.13). A conclusão teológica é tirada em louvores tais como o hino que foi pre- mulado. A mais antiga é a bênção na conclusão da Segunda Epístola de Paulo
servado em Filipenses, no qual a vitória escatológica do próprio Deus é evocada aos Coríntios (2 Co 13.13). As bênçãos nas epístolas do Novo Testamento refle-
como o curvar-se do cosmo diante do nome "Jesus" (Fi 2.10), ou em fórmulas tem o costume epistolar, a liturgia e, sem dúvida, o estilo pessoal. Elas ocorrem
tais como a de Atos, que faz do nome de Jesus o agente da salvação (At 4.12). nas saudações de abertura e no fim. O resultado de seu agrupamento é surpreen-
Qualquer que seja a maneira como os vários grupos na Igreja primitiva tenham dente. Todas as bênçãos na abertura das epístolas mencionam tanto "Deus Pai"
concebido a relação entre Jesus e Deus, "Jesus" era a maneira como todos in- quanto "o Senhor Jesus Cristo". As bênçãos finais - com uma exceção - ou
vocavam a Deus. não mencionam nenhum nome e simplesmente desejam a "graça" ou mencio-
No Novo Testamento aparece mais uma maneira nova de nomeação: o no- nam apenas o Senhor Jesus. Além disso, a menção do nome do Senhor Jesus
me triúno: "Pai, Filho e Espírito Santo". Seu surgimento depende, sem dúvida, ocorre em todas as cartas autênticas de Paulo, e é obviamente uma idiossincra-
da nomeação de Deus mediante a nomeação de Jesus, que acabou de ser exami- sia de Paulo. Então, repentinamente, em uma das cartas paulinas (e não é nem
nada, mas as conexões causais não podem mais ser recuperadas. Naturalmente a mais antiga nem a mais recente) a menção do nome trinitário substitui a men-
direcionamos nossa discussão para este nome. Nas Escrituras hebraicas vimos ção exclusiva do nome do Senhor Jesus: "A graça do Senhor Jesus Cristo, e
que o Deus bíblico deve ter um nome próprio. Na vida da Igreja primitiva Deus o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vocês."
é nomeado por meio de usos que implicam o nome de Jesus. "Pai, Filho e Espí- Essas circunstâncias não permitem que se pense num desenvolvimento de
rito" é a nomeação deste tipo que triunfou historicamente. fórmulas de um membro para fórmulas de dois membros e dessas para as de
três membros14. Até onde os textos nos permitem ver, todas as formas são igual-
mente imediatas15 , e a escolha depende do costume epistolar. A fórmula trini-
"Pai, Filho e Espírito Santo" tária particular com que 2 Coríntios termina tem toda a aparência de ser uma
como nome próprio criação paulina do momento, sem nenhuma ligação com algo especial na carta,
e feita apenas por ser natural. A bênção puramente cristológica que Paulo tinha
Mesmo uma observação apressada da vida da Igreja deve mostrar que "Pai, o hábito de usar ("A graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja com vocês") se
Filho e Espírito Santo" de fato ocupa nela o lugar que em Israel era ocupado expande em ambas as direções seguindo sua própria lógica. Ou, se Paulo não
por "Javé" ou, posteriormente, "Senhor"". Por que isso veio a ser assim é o
assunto do próximo capítulo; por enquanto só registramos o fato. "Em nome 12 INÁCIO, Aos magnesianos, XIII, 1,2; CLEMENTE, Aos coríntios, XLII, 3; XLVI, 6; LVIII,
do Pai, do Filho e do Espírito Santo" são as palavras com que começam nossos 2; 2 Clemente, XX, 5; O martírio de Policarpo, XIV, 3.
cultos e que neles se inserem. Nossas orações concluem com: "Em nome dele, 13 Georg KRETSCHMAR, Studien zur frühchristlichen Thnitãtstheologie, Tübingen, J. C. B.
que contigo e com o Espírito Santo é..." Sobretudo, o ato pelo qual as pessoas Mohr [Paul Siebeck], 1956, pp. 182-216.
14 Como proposto por Henry A. WOLFSON, The Philosophy of the Church Fathers.
Cambridge, Mass., Harvard University, 1956, vol. 1, pp. 147-54. V. também Hans von
* N. do E.: Sic. A passagem bíblica ao qual o autor se refere deve ser JI 2.32. CAMPENHAUSEN, "Tàufen auf dem Namen Jesu", Vig Chr, 25: 1-16, 1971.
11 Para uma observação menos apressada, v. Josef A. JUNGMANN, The Píace of-Christ in 15 Assim também J. N. D. KELLY, Early Christian Creeds, New York, Longmans, Green, 1950,
Christian Liturgical Prayer, New York, Alba, 1965. pp. 23ss.

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a criou aqui, ele a tomou do uso litúrgico da mesma maneira óbvia e sem ne- que só pode ser traduzido por "Pai", deve resolver a questão no que diz respeito
nhum motivo especial. ao nome trinitário, porque é a realidade histórica de Jesus que criou o nome.
O uso mais importante do nome trinitário no Novo Testamento é a comis- É claro que a impossibilidade de substituir "Pai" no nome trinitário só pode
são batismal de Mateus (Mt 28.19). O Batismo é sacramento principal da Igre- significar que o nome todo é irremediavelmente ofensivo. 1inbém não se pode
ja, seu rito da passagem da realidade antiga para a nova. Dentro de tal rito, separar totalmente o uso de "Pai" dentro do nome trinitário de seu uso mais
a nova realidade precisa ser identificada, porque os neófitos precisam ser con- geral na maneira em que os cristãos falam com Deus e a respeito dele.
duzidos para dentro dela. No Batismo, como muitas vezes em outras ocasiões, Para dirigir-se a Deus na qualidade de filho, o número de palavras entre
isso se dá mencionando Deus, de cuja realidade se trata. O nome estipulado as quais se pode escolher é limitado, tanto para nós quanto para Jesus. Não se
na instrução canônica para a liturgia batismal é "Pai, Filho e Espírito Santo"6 . pode usar regularmente parente * e seus equivalentes naturais ou artificiais para
Supõe-se, muitas vezes, que a fórmula batismal tripartida se desenvolveu falar como filho, porque não são específicos em nível individual. Assim restam
a partir de fórmulas unitárias ou bipartidas: "em nome de Jesus" ou "em nome "mãe" e "pai". E decisivo para o Deus de Israel que não somos de sua própria
de Deus e do Senhor Jesus". Existem indicações do século II de que este tipo substância, que seu papel como nosso parente* não é sexual e que ele nem
de fórmulas foi usado no Batismo. Mas não há provas de que a origem da fór- metaforicamente é um Deus da fertilidad&°. Escolheu-se e ainda deve-se esco-
mula trinitária esteja nas mesmas17 . Em todo caso, a fórmula tripartida existia lher entre "Mãe" e "Pai", como termos empregados para dirigir-se fihialmente
cedo e é a única no Novo Testamento. a Deus, de acordo com a maior facilidade de separar o termo do papel reprodu-
O nome trinitário não caiu do céu. Os crentes o formularam para o Deus tivo.
com que nos encontramos envolvidos. "Pai" era a maneira peculiar em que Je- A sexualidade como a união de sensualidade e papéis e órgãos reproduto-
sus se dirigia à transcendência particular diante de quem vivia18. Ele se qualifi- res diferenciados constitui -a grandeza da nossa humanidade específica. Ela é o
cou como Filho exatamente por este modo de dirigir-se a Deus, e na memória modo em que a condição de estarmos voltados um pam o outro, tanto no meio
da Igreja dos primórdios a sua aclamação como Filho foi o início da fé19 . "Es- dos que vivem agora quanto entre as gerações - e isso exatamente pelas dife-
pírito" foi o termo fornecido por toda a teologia bíblica para o resultado de renças existentes entre nós -, é embutida em nossos corpos, em nossa pura fac-
tal encontro entre este Deus e um ser humano especial seu. O envolvimento nes- ticidade como criaturas. Além disso, dentro da mutualidade de homem e mu-
ta estrutura do próprio evento de Jesus - a oração dirigida ao "Pai" com "o lher, a mulher é ontologicamente superior. A sua humanidade é mais inerradi-
Filho" no poder de e para "o Espírito" - é o conhecimento de Deus que a cável, porque, enquanto a sensualidade e a reprodução podem ser separadas so-
fé possui. Assim, "Pai, Filho e Espírito Santo" resumem a apreensão de Deus cialmente no homem, através de estruturas econômicas ou políticas alienantes,
pela fé; este é o assunto do próximo capítulo. Contudo, no evento que pode ser
nem mesmo o aborto pode fazer isso com a mulher - exceto, é claro, o "admi-
resumido assim, "Pai, Filho e Espírito Santo" também foram juntados simples- rável mundo novo" ou a decisão da humanidade de se extinguir. Nas sociedades
mente para nomear o Deus apreendido no mesmo, e aparentemente isso aconte- que valorizam seus membros por normas especialmente desumanas, como em
ceu antes de qualquer análise de sua conveniência. sociedades capitalistas ou tecnocrático-socialistas que somente atribuem valor
Mais um assunto precisa ser discutido aqui: a masculinidade de "Pai". A à contribuição ao produto nacional bruto, a superioridade humana da mulher
consciência emergente da opressão histórica das mulheres busca, com toda a ra- de fato será causa de sofrimento e é compreensível que muitas procurarão se
zão, expressões da mesma também, ou talvez principalmente, nas interpretações livrar dela.
tradicionais de Deus. Quando são encontradas, o cristianismo tem toda razão Por isso, nas religiões em que a analogia direta entre as perfeições humana
para eliminá-las. De fato encontraremos uma área decisiva em que o sexismo e divina não sofre perturbações, o gênero feminino normalmente tem sido do-
masculino deu forma à estrutura doutrinária. No entanto, a linguagem trinitá- minante em termos religiosos, mesmo nas sociedades em que o masculino do-
ria que emprega o termo "Pai" não pode ser uma dessas áreas; e a suposição mina os outros aspectos. Toda a soteriologia cristã pode ser resumida na obser-
amplamente difundida de que o seja reflete um desmoronamento do conheci- vação de que nela esta analogia é quebrada. Vice-versa, é justamente a inferiori-
mento e juízo lingüísticos e doutrinários. dade ontológica do homem que propõe "Pai" antes que "Mãe" como o termo
A maneira como Jesus se dirige fihialmente a Deus está incorporada no uso apropriado para a invocação do Deus sexualmente transcendente de Israel, quando
do nome trinitário pela Igreja. O fato de que Jesus chamava Deus de "Abba", uma expressão filial é necessária.
E claro que a transcendência sexual do Deus bíblico não significa que ele
16 Para os séculos II e III: KRETSCHMAR, op cit., pp. 196-216. seja menos que sexual, mas antes que ele é aquilo que nós somos por diferencia-
17 As passagens em Atos que descrevem o Batismo "em nome de Jesus" (2.38; 8.16; 10.48; 19.15)
são todas descrições teológicas, não instruções.
18 P. ex. Günther BORNKAMM, Jesus of Nazaj-eth, New York, Harper & Row, 1960, pp. 124-9. N. do E.: Parent, no original. O termo "parente" é empregado aqui em sua acepção antiqua-
[frad. port.: Jesus de Nazaré, Petrópolis, Vozes, 1976.1 da de "pai", isto é, de genitor/a. Parent pode designar o pai ou a mãe.
19 Martin HENGEL, The Son of God, Philadelphia, Fortress, 1976.
20 VON RAD, op. cit., vol 1, pp. 24 ss., 62 ss.
ção sexual, mas sem as várias relações de mais e menos implicadas de fato na De fato foi isso que aconteceu na Igreja, tanto litúrgica quanto teologica-
diferenciação sexual. Que Jesus, e nós depois dele, chamamos Deus de "Pai", mente. Na vida de oração e bênção da Igreja a invocação tripla se estabelece
não implica, então, uma valorização da masculinidade acima da feminilidade. em cada momento decisivo. E na história da teologia que vamos traçar num
Ao contrário, é a única maneira disponível para cumprir a determinação de Is- dos próximos capítulos, descobriremos que o papel da fórmula batismal foi tão
rael e da Igreja de não atribuir nenhuma das duas a Deus. O termo "Pai e Mãe" predominante, que haveria motivo de chamar o "Vão ( ... ) batizando no nome
— que, por incrível que pareça, tem sido efetivamente usado em cultos que pre do Pai e do Filho e do Espírito Santo" o dogma fundador da fé
tendem ser cristãos - é o mais objetável de todos, porque, pela insistência em Esse dogma não diz respeito a algo que devemos pensar mas a algo que de-
ambos, a atribuição de papéis sexuais se torna totalmente inevitável e repristina vemos fazer. Quando oramos, agradecemos ou de alguma outra maneira invo-
o mito mais profundo da fertilidade, o da androginia divina. O Deus da Bíblia camos Deus, damos a mais exata direção à nossa expressão mediante essa fór-
não é aquele que ao mesmo tempo nos gerou e nos deu à luz; ele não é nenhum mula. Há outros dogmas ortopráticos deste tipo. A própria determinação de um
dos dois. banho em nome de Deus como iniciação à Igreja é um deles. Assim também
Geralmente, pressupor que seja uma privação não se dirigir a Deus no pró- a ordenação de uma refeição que consiste do pão e do cálice, com uma ação
prio gênero é um exemplo da hipótese religiosa geral por parte da humanidade de graças cristológica, como a ocasião principal para a Igreja se reunir. E assim
de que existe uma analogia direta entre as perfeições humanas e as qualidades o a determinação de que a autoridade final na Igreja deve funcionar por nossa
divinas. Na fé da Bíblia, essa linha direta foi quebrada, para nossa salvação. E leitura da Bíblia.
claro que toda linguagem a respeito de Deus é analógica, no sentido comum De vez em quando preocupações várias levam a propostas de substituir o
da palavra. Mas o evangelho toma a liberdade de tirar suas analogias às vezes nome trinitário, por exemplo: "Em nome de Deus: Criador, Redentor e Santifi-
das perfeições humanas e às vezes das imperfeições humanas, dependendo da cador", ou: "Em nome de Deus, o Fundamento, e de Deus, o Logos e de Deus,
necessidade teológica. As vezes as toma da morte e do pecado. Se precisamos o Espírito". Todas essas paródias rompem a identidade própria da fé no nível
nos preocupar irrelevantemente com a questão se, ao chamar Deus de "Pai", de sua historicidade original e menos refletida.
estaremos exaltando ou diminuindo pais terrestres, a resposta, dentro da estru- làis tentativas pressupõem que primeiro sabemos que há um Deus triúno
tura do uso da linguagem cristã, deve ser que em alguns contextos o primeiro e depois procuramos palavras para nos dirigirmos a esse Deus, quando, de fato,
será o caso e em outros o segundo. o que ocorre é o contrário. Além disso, "Criador, Redentor e Santificador", por
exemplo, não é nome, como nenhuma das demais expressões deste tipo. E antes
um ajuntamento de abstrações teológicas posteriores, úteis em seu próprio lu-
O nome triúno como dogma gar, mas não aqui. Tais ajuntamentos nem podem ser convertidos em nomes,
porque não identificam. Toda suposta divindade deve afirmar, por exemplo, que
Até aqui meramente notamos um fato historicamente contingente a respei- "cria", "redime" e "santifica" de alguma maneira. Por certo, também há nu-
to do discurso da Igreja. Agora precisamos observar que se trata de um fato merosos candidatos a Pai ou Espírito, mas, dentro do nome trinitário, "o Pai"
que possui autoridade, porque em vista da função da autorização canônica dos não é primordialmente nosso Pai, mas o Pai do Filho que é mencionado logo
sacramentos, a fixação bíblica de uma fórmula triúna para o Batismo deve ser em seguida, isso é, Jesus. O "Espírito Santo", dentro desse nome, não é um
considerada um dogma21. Além disso, o impacto deste dogma se estende para espírito qualquer que afirma ser santo, mas o espírito comunal de Jesus, que
muito além do próprio rito batisma122 . A função da menção do nome de Deus acabou de ser mencionado, e seu Pai. Por meio dessas relações dentro da ex-
na iniciação, no Batismo como em outras ocasiões, é de remeter o iniciando à pressão, "Pai, Filho e Espírito Santo" é historicamente específico e pode ser aquilo
nova realidade, de conceder um novo acesso a Deus. Por isso, na comunidade que a liturgia e a devoção - e em sua base, toda teologia — precisam ter: um
dos batizados, o nome divino pronunciado no Batismo é estabelecido como a nome próprio de Deus.
forma particular da comunidade dirigir-se a Deus23 . Estas últimas observações afirmam novamente que "Pai, Filho e Espírito
Santo" não é um rótulo arbitrário, assim como "Robert" para o autor destas
21 Robert W. JENSON, Visible Words, Philadelphia, Fortress, 1978, pp. 6-11.
Páginas. Um nome próprio é próprio somente na medida em que é usado inde-
22 Para um relato de como a fórmula batismal se expandiu para dentro do restante do culto pendentemente de aptidão para aquele a quem o nome é dado, mas não lhe pre-
da Igreja primitiva, v. KRETSCHMAR, op. cit., pp. 182-216. cisa, por isso, faltar aptidão. "Pai, Filho e Espírito Santo" é um nome apro-
23 A Igreja antiga enfatizou muito este ponto. Veja BASILIO MAGNO, Do Espírito Santo, 26,
in: PG 32: 67-218. "Porque se o Batismo foi para mim o início da vida ( ... ), então é claro
que a palavra dirigida a mim na graça da minha adoção é, para mim, a mais importante das to'. Por isso dizemos que é temeroso e mau desprezar ( ... ) esses sons divinos."
expressões." De acordo com GREGÓR IO DE NISSA, "Refutation of Eunomius' 24 Isso não é somente nossa interpretação a posteriori. Os teólogos trinitkios da Igreja antiga,
Confession", in: Opera, Leiden, E. J. BrilI, 1952, vol. 2, p. 313: "Porque aprendemos de que criaram a doutrina desenvolvida, elaboraram essa lógica explicitamente; p. ex. GREGÓ-
uma vez por todas do Senhor a quem devemos atender ( ... ): ao 'Pai e Filho e Espírito San- RIO DE NISSA, op. cit., pp. 314-5.

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priado para o Deus do evangelho porque a expressão resume imediatamente a
interpretação cristã original de Deus. E para este segundo nível de trinitarismo
que devemos passar agora. o seu conhecimento de Deus, normalmente não identificam o objeto deste co-
nhecimento por aquele evento.
114 Para identificar o Deus do evangelho, devemos identificar Jesus. Neste sen-
tido podemos dizer primeiro que Deus "é" Jesus. Toda realidade é identificável
de uma maneira ou outra, e não podemos identificar este Deus sem identificar-
mos simultaneamente a Jesus. Isso também mostra por que as religiões normal-
2 mente não vinculam suas identificações de Deus à identidade de um evento his-
tórico, porque restrições drásticas são impostas à maneira como podemos conti-
A lógica e retórica trinitárias nuar a falar de um Deus assim identificado. Se Deus, em qualquer sentido, é
Jesus - ou se ele fosse Abraão Lincoln ou o Império Britânico -, não pode-
"Pai, Filho e Espírito Santo" é uma expressão usada para articular mos falar corretamente desse Deus de algum modo que tornasse as seqüências
a estrutura temporal da apreensão de Deus pela Igreja e a lógica pecu- temporais, o material da narrativa, não-essenciais para seu ser, e é claro que é
liar de sua proclamação e liturgia. Dentro da interpretação de Deus assim que as religiões normalmente querem falar de Deus. De fato, todo o pro-
das Escrituras hebraicas, o discurso trinitário não suscita problemas e pósito usual de seu empreendimento é a apresentação de alguém para quem os
assim dá origem a uma linguagem e imagens novas, mas não à análise. tempos verbais sejam insignificantes e em quem, por conseguinte, se possa esca-
par do tempo.
Por isso podemos identificar Deus como aquilo que acontece com Jesus.
Mas, se disséssemos só isso, não mostraríamos nenhum motivo por que aquilo
que acontece com Jesus deveria ser Deus e não talvez meramente um importan-
A lógica trinitária te marco religioso. Além disso, não é como se em todo caso tivéssemos conheci-
mento a respeito de Deus e depois por algum motivo decidíssemos "identifi-
"Pai, Filho e Espírito Santo" se tornou o nome que a Igreja dá a seu Deus, car" Deus fazendo referência a Jesus. Pois é aquilo que acontece com Jesus em
porque reúne em uma só expressão o conteúdo e a lógica das descrições identifi- particular que nos compele a usar a palavra "Deus" em relação a este Pai.
cadoras do mesmo. Essas, por sua vez, corporificam a experiência original da Seguindo boa parte do Novo Testamento, usemos o termo "amor" para
Igreja com Deus. Ao passarmos do nome trinitário para a história e a lógica exprimir aquilo que aconteceu em nível humano com o Jesus histórico. Então
de seu surgimento, deixamos para trás a vida específica de louvor e petição da podemos dizer que Jesus era um amante que preferiu caminhar para a morte
Igreja, em que um nome é mais necessário, e entramos na totalidade mais am- a restringir sua autodoação aos outros; o amor que era o enredo de sua vida
pla da vida e reflexão da Igreja. é um amor incondicional. Diz-se que essa pessoa, apesar de tudo, vive, que res-
O evangelho identifica Deus assim: Deus é aquele que ressuscitou o Jesus suscitou. Falando dele em particular, tal afirmação - seja ela verdadeira ou não
de Israel dentre os mortos. Pode-se descrever toda a tarefa da teologia como o - é no mínimo apropriada, porque o amor significa uma doação incondicional
desdobramento desta frase de diversas maneiras, uma das quais produz a lin- de si, uma aceitação da morte; e um amor bem-sucedido seria uma aceitação
guagem e o pensamento trinitários da Igreja. da morte que não resultasse na ausência do amante em relação aos amados, mas
Se por algum motivo prestamos atenção à temporalidade da frase "Deus em sua presença. O amor significa morte e ressurreição. Por isso, a ressurreição,
é aquele que ressuscitou Jesus", notamos certas características temporais que já se aconteceu, foi, para este homem particular, apenas o resultado apropriado
foram observadas, pelo menos liturgicamente, desde os primórdios da Igreja. de sua vida.
Deus é identificado aqui por uma narrativa que usa a estrutura temporal da lin- Além disso, se a ressurreição desse amante ocorreu, então agora alguém
guagem comum, enquanto é mais comum identificá-lo mediante atributos neu- que amou incondicionalmente vive, tendo já deixado a morte - o limite do amor
tros quanto a seu aspecto temporal, como em: "Deus é aquele que é onipotente - para trás de si, de maneira que no final seu amor deve obter uma vitória
para me amparar em minha fraqueza", ou: "Deus é aquilo que é imune ao tem- total, abranger todas as pessoas e todas as circunstâncias de suas vidas. Se ele
po que toma a minha vida." Essa narrativa tampouco é mítica, de maneira que ressuscitou, o projeto humano tem uma conclusão: uma comunhão humana cons-
os tempos verbais não seriam usados de um modo normal, porque sua capaci- tituída em seu aspecto comum pela autodedicação incondicional de um homem
dade de identificar depende da menção de um indivíduo histórico e assim, por às demais criaturas e que, assim, abrange toda liberdade individual e comunal
sua vez, da narrativa histórica pela qual esse indivíduo - como qualquer outro estabelecida na história que se consumou dessa maneira.
deve ser identificado. 1l procedimento é peculiar entre as religiões, como Por isso, se Jesus ressuscitou, seu amor pessoal será o resultado final do
muitas vezes se observou, porque, embora elas muitas vezes mencionem algum projeto humano. Se ele morreu, a sua autodefinição foi escrita até o fim, como
evento histórico (urna "revelação") que seria epistemologicamente necessário para acontecerá com cada um de nós, mas se ele também ainda vive, exatamente esta

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de apontar (como em: "Qual?", "Aquele"), devemos usar todas as três setas
vida, que assim se definiu, não é, por isso, um item morto do passado, mas um do tempo para apontar em direção deste Deus: para o Pai como Dado, para
item do tempo vivo, surpreendente, um item do futuro e, de fato, do último fu- o Senhor Jesus como a possibilidade presente da realidade de Deus para nós
turo. Essas proposições somente seriam apropriadas se aplicadas a uma pessoa e para o Espírito como o resultado da obra de Jesus. A identificação é tríplice
cuja vida tivesse sido definida como este homem particular definiu a sua. E é
porque elas são apropriadas e são feitas que "Deus" é uma palavra apropriada - e não, digamos, dupla ou quíntupla - porque o tempo tem três setas. O
passado, o presente e o futuro de tudo que existe, é, sem dúvida, um fato de
para a realidade que pode ser identificada como aquilo que aconteceu com Je-
sus. Um Deus sempre é algum tipo de eternidade, alguma espécie de abraço ao uma espécie peculiar, mas também o menos evitável.
redor do tempo, dentro do qual as seqüências do tempo podem ser coerentes, A tríplice identificação de Deus pelo evangelho se baseia, por isso, na ma-
e, se Jesus ressuscitou, ele deve tanto ser lembrado quanto aguardado. neira em que o evangelho modula um fato metafísico do qual geralmente não se
Inversamente, podemos identificar Deus, agora pela segunda vez, as- pode escapar. A pecularidade da identificação de Deus no evangelho não é o
sim: Deus é o que vai resultar de Jesus e nós, juntos. Em nossa proposição ori- número três, mas antes que ela segue as três setas do tempo sem mitigar sua
ginal: "Deus é aquele que ressuscitou Jesus", o evento pelo qual Deus é identifi- diferença. A maior parte do discurso sobre deuses tem justamente por, objetivo.
cado, a ressurreição de Jesus, é aquele em que Jesus é futuro para si próprio mitigar a diferença ameaçadora entre passado, presente e futuro. Entre nós, gre-
gos, isso normalmente se realiza mediante uma doutrina do ser de Deus como
e para nós. uma persistência atemporal em que o passado, o presente e o futuro são "real-
Geralmente na Bíblia o "Espírito" é Deus no sentido do poder, do futuro
para derrubar o que já existe e, justamente assim, consumá-lo. O Espírito é de mente" a mesma coisa. A teologia do evangelho não pode produzir tal doutri-
na, porque com ela cortaria o ramo da identificação narrativa em que todo o
fato uma realidade presente. Mas o que está presente é que há uma meta e que
nela somos livres de toda servidão em relação ao que existe. O Espírito é o po- seu discurso sobre Deus está assentado. Mas, se não se produz tal doutrina, nos
restam as três identificações peculiares de Deus acima descritas e sua relação mútua
der do eschaton* para ser agora ao mesmo tempo a meta e a negação daquilo
que é. No Novo Testamento este Espírito é identificado como o espírito de Je- ainda mais peculiar.
sus, no sentido como cada ser humano tem espírito. O fato de o espírito particu- O Deus do evangelho é a esperança no princípio de todas as coisas, em
lar de Jesus ser o próprio poder do último futuro constitui a forma de "espíri- que nós e todas as coisas estamos abertos para a nossa realização; ele é o amor
to" da identificação de Deus por Jesus a partir da qual a linguagem trinitária co- que será essa realização; e ele é a fidelidade de Jesus, o israelita, que, dentro
meça. Por isso o "Espírito" bíblico é a palavra inevitável para essa segunda iden- das seqüências do tempo, reconcilia este princípio e este fim. Todas as outras
tificação de Deus, apesar de as doutrinas trinitárias plenamente desenvolvidas, coisas sendo iguais, nada mais precisa ser dito. O espaço retórico e soteriológico
já que respondem a problemas pós-bíblicos, não precisarem, de maneira nenhu- que se abriu aqui é vasto e permissivo. Inácio de Antioquia foi levado, em certa
ma, se limitar exclusivamente a esse nome. ocasião, a dizer: "Somos puxados para cima [a Deus Pai] pelo guindaste de Cristo
Finalmente, esse abraço específico precisa ser universal, porque é o abraço - a cruz - suspensos na corda que é o Espírito Santo." (Aos efésios, IX, 1.)
de um amor incondicional. Ele precisa conceder um destino universal. Por isso, A estrutura temporal que analisamos é horizonte temporal irrefletido, aberto
esse Deus também pode ser identificado como a vontade em que todas as coisas e livre, da vida e proclamação da Igreja. O discurso trinitário se torna proble-
têm o amor de Jesus como destino. Como vimos, Jesus "é" Deus somente co- mático e a difícil dialética metafísica que concebemos primeiro como "a doutri-
mo a possibilidade de identificar Deus. Em nossa proposição identificadora ori- na da Trindade" se torna necessária apenas quando a mitigação do tempo se
ginal: "Deus é aquele que ressuscitou Jesus", Jesus é o objeto de um verbo de torna uma tentação, isto é, só em confronto com identificações mais normais
ação. Deus é, pela terceira vez, identificado como aquele que opera a ressurrei- de Deus. Esse tipo de confrontação que ocorreu historicamente é o assunto do
ção de Jesus, como uma dada transcendência ativa em relação a tudo que Jesus próximo capítulo.
é e faz. Assim como o que acontece com Jesus é seu próprio e nosso fim, assim
também é seu próprio e nosso dado.
No Novo Testamento, "Pai" é a maneira de Jesus se dirigir à transcendên- As Escrituras hebraicas
cia dada a seus atos e sofrimentos, diante da qual vive e é responsável - à qual como raiz do trinitarismo
se dirige em confiança. Para os discípulos dele, "o Pai" é, por isso, Deus como
o dado transcendente do amor de Jesus, aquele em quem podemos confiar em Uma frase famosa de um pregador anônimo do século 1 diz que devemos
relação a esse amor. "pensar em Jesus Cristo como pensamos em Deus". O dito formulou uni
Assim temos uma identificação do Deus do evangelho que, quanto ao tempo, princípio que foi imediato e evidente ao longo do tempo apostólico e imediata-
contém três pontos. Se considerarmos uma identificação como uma operação
* N. do E.: O último, a última coisa. 1 V. 2 Clemente 1, 1-2.

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mente pós-apostólic&, porque pensar a respeito de Deus da forma que esse ca-
pítulo até aqui analisou é pensar em Cristo "como de" Deus'. dade. Marduque, por exemplo, era aquele que, no começo remoto, dividira os
Se tal maneira de pensar permanece imediata e óbvia ou é clificil e proble- pântanos da Mesopotmia em terra irrigada e água canalizada, e por ele ainda
mática, e assim também se simplesmente pensamos desta maneira ou também estar sempre presente podia-se transcender a sempre renovada ameaça de uma
refletimos sobre o que fazemos, depende de como de fato se pensa anteriormen- recaída na desordem de antes da criação. A danação contra a qual Javé lutou
te sobre Deus. Quando as Escrituras hebraicas e também a Igreja primitiva pen- em favor de Israel era exatamente o contrário.
sam em Deus, não há nem se sentiu nenhum problema. Quando a religião e Israel compreendeu-se a si próprio não a partir de uma ordem estabelecida,
a filosofia dos gregos e nós mesmos pensamos em Deus, há muitos grandes pro- mas da salvação da opressão debaixo da ordem arquetipicamente estabelecida,
blemas, que serão o assunto dos próximos dois capítulos. - a do Egito. Ao longo de sua história, Israel desejou se tornar um Estado estabe-
E verdade que a reflexão superficial supõe o contrário. E comum pensar lecido "como todas as nações" (1 Sm 8.43). Mas Deus sempre fez com que
que a linguagem trinitária a respeito de Deus marca a descontinuidade entre o Israel falhasse, e os profetas denunciaram regularmente a própria tentativa de
cristianismo e as Escrituras hebraicas. Supõe-se que os cristãos helenistas foram tornar-se tal Estado (v. 1 Sm 8.7-9). De fato, o mais misterioso de tudo era que
cada vez mais levados por sua devoção a Jesus a "divinizá-lo" e assim a mitigar Javé permanecesse livre para desfazer a ordem estabelecida de seu próprio povo
o caráter único de Deus. Essa suposição comum é falsa. "Porque, eis que [Javé, Javé] dos exércitos tira de Jerusalém e de Judá o susten-
É verdade - como veremos no próximo capítulo - que a partir de aproxi- to e o apoio, todo sustento de pão e todo sustento de água; o valente e o guerrei-
madamente 150 A.D. a confrontação do cristianismo com o helenismo resultou ro, o juiz e o profeta, o adivinho e o aixião." (Is 3.1-2.)
em formulações que inicialmente cheiraram a divinização. Mas - como vere- Segundo, a vontade de Javé não é idêntica à necessidade natural - isto
mos também - toda a doutrina da lhndade plenamente desenvolvida foi o es- é, sua vontade é de fato o que entendemos por "vontade". Nos grandes mitos
forço da Igreja de resistir a essa tentação. E no nível do testemunho e da expe- da Antiguidade o início da adoração de Deus pelas pessoas é, em todos os ca-
riência trinitários imediatos de que estamos tratando agora e durante o período sos, idêntico ao começo absoluto de todas as coisas. Isso era seguro: nada pode
antes do confronto em grande escala com a teologia helênica, não havia nem derrubar a base do povo, porque fora dela nada existe. Israel, por outro lado,
mesmo um conflito incipiente entre as interpretações trinitária e hebraica de Deus. sabia muito bem de uma história - inclusive de uma história de seus próprios
Ao contrário, esse trinitarismo imediato era o único cumprimento possível das ancestrais - anterior ao êxodo. Os grandes mitos de outros povos falam de um
Escrituras hebraicas. evento primordial que, por estabelecer o padrão do tempo, está acima dele, que
A interpretação de Deus em Israel foi, sem dúvida, o resultado histórico na realidade jamais pára de acontecer - como a separação original entre a água
de múltiplos fatores, muitos dos quais não podem mais ser reconstituídos. Mas e a terra por Marduque, que se repetia a cada inundação e seca anuais. A narra-
sistematicamente e, pelo menos em parte, historicamente pode-se derivar toda tiva de Israel falava de um evento que, apesar de todas as repetidas celebrações
a teologia de Israel da identificação de Deus pelo êxodo. Se Deus for, mais que cúlticas, ocorrera apenas uma vez, no tempo e não acima dele.
trivialmente, aquele que salvou Israel do Egio, as características principais desse Israel podia, naturalmente, atribuir a criação geral a Deus e assim fez. Mas
Deus são imediatamente evidentes4. a criação do mundo e de Israel por Javé eram dois atos, não um só. Israel sabia
Primeiro, Javé não está do lado da ordem estabelecida. O Deus usual, cuja não estar necessariamente incluído na realidade criada, que poderia não ter exis-
eternidade é a persistência do começo, tem sua honra entre nós no fato de que tido. Visto que Israel apesar disso existia, mediante um ato de Javé, por conse-
nele estamos seguros contra as ameaças do futuro. Os povos imperiais da Anti- guinte tal ato era compreendido como uma escolha5 : "Vocês viram o que fiz
guidade experimentavam de maneira dolorosa a fragilidade de suas realizações: aos egípcios, e como (...) os cheguei a mim. Agora, pois (...) vocês serão a mi-
a situação em que a sementeira e a colheita retornam a cada ano mal tinha sido nha propriedade peculiar dentre todos os povos." (Ex 19.4-5.)
assegurada, e o destruidor bárbaro estava à porta todo ano. Os deuses das civili- Terceiro, como havia uma história antes de Israel existir e, contudo, o Deus
zações antigas eram simplesmente a certeza do retorno, a garantia da continui- de Israel governava aquela história, deve-se perguntar o seguinte: como Javé era
o Deus de Israel antes de Israel existir? A forma plenamente desenvolvida da
2 Assim Inácio, que usa a terminologia grega, um conceito de Logos, e trata a atribuição de tradição de Israel tinha uma resposta: entre a época da criação e o êxodo havia
divindade e temporalidade a um só sujeito como um paradoxo, mas se refere a Jesus simples- a época dos pais, de Abraão, Isaque e Jacó. Mas como os mesmos eram Israel?
mente como Deus, sem perceber nenhum problema: Aos efésios, VIII, 2; Aos esmirneanos, A solução dos narradores antigos foi de que o Israel patriarcal era Israel pela
1, 1; Aos romanos, VIII, 2; Efésios, XIX, 2; XVII, 2.
3 Assim "Clemente" faz uma exegese de seu próprio dito em 2 Clemente, 1, 1-2: "...como so- promessa de uma terra e a possibilidade da terra se tornar uma nação6. Abraão
bre o Juiz dos vivos e dos mortos". e os outros patriarcas viveram em resposta à promessa de que seus descendentes
4 Sobre o seguinte, em relação a Israel, v. Waither ZIMMERLI, OId Testament Theology in
Outline, Allanta, John Knox, 1978, pp. 21-32. Sobre o padrão geral da religião antiga, v. Mir-
cea ELIADE, Cosmos and History, New York, Harper & Row, 1959, o estudo clássico. 5 ZIMMERLJ, op. cit., pp. 43 ss.
6 Ibid., pp. 27-32; 64-5.

119 120
seriam um grande povo. Como não tinham ainda uma ordem estabelecida, os À diferença dos Deuses normais, Javé não transcende o tempo por ter imu-
pais viveram pela palavra que a prometia. nidade em relação a ele. A continuidade do ser de Javé não é a de uma entidade
Assim Israel sabia que fora criado pela palavra de Deus, no sentido exato definida, de cujas características definidoras algumas persistem do começo até
em que até recentemente falamos de "palavra de honra". Javé fez uma promes- o fim. E antes o tipo de continuidade que viemos a chamar de "pessoal". Ela
sa e a cumpriu, e assim Israel veio a existir. Desde o princípio, a salvação para é estabelecida nas palavras e nos compromissos de Javé, na fidelidade de atos
Israel é dada pela promessa daquilo que ainda não e, do futuro que é real so- posteriores às promessas feitas em seus atos anteriores. A continuidade do ser
mente na palavra que o abre. O que outras nações podiam dizer em relação a de Javé é eternidade, transcende o tempo, no sentido de que Javé cumpre todas
uma presença visível e tangível de Deus em imagens e lugares sagrados, Israel as promessas e o tempo não pode desfazer nenhum compromisso. Introduzimos
podia dizer apenas em relação à declaração de Deus: "Seca-se a erva, e cai a exatamente essa interpretação da eternidade de Deus como necessidade lógica
sua flor, mas a palavra de nosso Deus permanece eternamente." (Is 40.7-8.) Além - em vista da ressurreição e da necessidade resultante de identificar Deus por
disso, Israel sabia que houve uma época em que fora Israel somente mediante meio de Jesus - da identificação trinitária de Deus.
esta palavra, sem segurança, quando toda a sua existência fora esperança. Só
falta observar que com o exílio de 587 a.C., quando toda a existência segura
como nação lhe foi tirada (pelo menos até 1948 A.D.), o Israel histórico foi co- O trinitarismo primário
locado exatamente na situação em que se encontravam os patriarcas7 .
Portanto, a identidade do Deus de Israel, a diferença entre ele e os outros Por isso, enquanto houve uma continuidade inabalada entre a interpreta-
deuses, consiste exatamente no fato de que o Deus de Israel não é eterno do ção cristã de Deus e a das Escrituras hebraicas, o discurso e a reflexão cristãs
mesmo modo que os outros deuses, não é Deus da mesma maneira. A divinda- se adaptaram naturalmente e sem problemas ao espaço lógico e retórico tnúno.
de dos deuses consiste exatamente em que o passado garante o futuro, mas Javé Isso pode ser visto no Novo Testamento e depois' enquanto não houve um forte
sempre desafia o passado e tudo que por ele é garantido, e o faz a partir de confronto das comunidades com a interpretação helênica de Deus.
um futuro que é liberdade. Os passos decisivos da lógica trinitária descritos na Que "Deus" e o "Espírito" de Deus formam um par retórico e conceitual
seção anterior constituem o que há de específico na interpretação que as Escri- para a proclamação da obra de Deus e a interpretação da nossa vida não consti-
turas hebraicas fazem de Deus. tui nenhum problema no Novo Testamento. O uso se impôs pela experiência de
Quanto à questão como, positivamente, Javé é eterno, a interpretação de Pentecostes e não precisou de nenhuma inovação conceitual ou lingüística em
Israel é que ele é fiel. Onde outras religiões antigas diziam que Deus está além relação às Escrituras hebraicas. Também constituiu uma interpretação direta e
do tempo, Israel dizia: "Para sempre, ó [Javél, está firmada a tua palavra no historicamente legítima das Escrituras hebraicas que "Cristo" e o "Espírito" for-
céu. A tua fidelidade estende-se de geração em geração; fundaste a terra, e ela mam um par deste tipo no sentido de que o Espírito é o Espírito de Cristo, afir-
permanece." (SI 119.89,90.) Emunah (fidelidade) é a confiabilidade de uma pro- mando meramente o cumprimento de certas expectativas de fato nelas contidas
messa; por isso algumas versões* a traduzem muitas vezes por "verdade" (p. e não implicando nenhuma inovação conceitual ou lingüística. Esses assuntos
ex. Pv 12.17; Os 5.9) e uma promessa confirmada pelos acontecimentos é "feita são analisados detalhadamente num outro locus desta obra.
emun" (p. ex. 1 Rs 8.26). Se Deus, apesar de tudo, continua a abençoar Israel, Que "Deus Pai" e "Jesus Cristo, seu Filho" formam um par semelhante
é porque ele "está guardando o juramento que fez" aos pais, "porque [Javé] é mais complicado. Essa foi, naturalmente, a conseqüência imediata daquela iden-
é o Deus fiel que guarda a aliança" (Dt 7.8,9). E quando vier o cumprimento, tificação de Deus pela ressurreição de Jesus que é todo o significado do Novo
quando "reis verão e se levantarão", será "por causa de [Javé], que é fiel" (Is Testamento. Mas, apesar da identificação de Deus por meio de eventos históri-
49.7). cos ser fundamental nas Escrituras hebraicas, o fato de que os eventos que cons-
Numa passagem famosa, a interpretação da eternidade de Deus em termos tituem a identificação decisiva acabam sendo a vida de uma só pessoa requer
de fidelidade se aproxima de uma definição metafísica. Dentro da tradição da uma linguagem que esteja além daquela das Escrituras hebraicas, embora ela,
aliança com Davi, a afirmação mais bonita da esperança de Israel proclama: no próprio Novo Testamento, não seja incongruente com as mesmas. Não p0-
"Farei com vocês uma aliança perpétua, meu constante e seguro amor por Da- demos evitar um rápido exame desses desenvolvimentos, apesar de que, em ter-
vi." (Is 55.1) mos de detalhes, também eles pertençam a um locus diferente.
O surgimento de um padrão semântico em que os usos de "Deus" e "Je-
sus Cristo" se determinam mutuamente é fundamental. Esse padrão é estabele-

7 Waither ZJMMERLI, "Die Bedeutung der grossen Schriftprophetie für das alttestamentliche 8 Isto é, no que Jean DANIÉLOU, The Theology of Jewish Christianity, Chicago, Henry Reg-
Reden von Gott", VTS, 1972, pp. 63-4. nery; London, Dat-ton, Longman & Todd, 1964, chamou, um pouco enganosamente, de "cris-
* N. do E.: No original, o autor menciona a Revised Standard Version. tianismo judaico".

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cido firmemente antes dos escritos paulinos mais antigos9, por exemplo, a fór- são era, inicialmente, apenas a que os discípulos usavam para se dirigir a seu
mula citada por Paulo: "Se com a tua boca confessares que Jesus é Senhor, e mestre, ela foi retomada e aplicada naturalmente ao Senhor ressurreto após a
em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo." (Rm ressurreição. Mas agora esse Senhor é entronizado no poder do próprio Deus
10.9.) Esse padrão é a espinha dorsal lógica de tudo que Paulo fala sobre Deus'°. e dirige sua missão por intermédio de um Espírito que é o do próprio Deus.
Nele os predicados teológicos hebraicos usuais tomam ou Deus ou Jesus como Nessas circunstâncias é inevitável que no uso de "Senhor" em relação a Deus
sujeito, ou ambos ao mesmo tempo"; por exemplo, a "graça" é alternadamen- nas Escrituras hebraicas ecoe o título que em si ainda é puramente humano. Co-
te "de Deus" (Rm 5.15) ou "de Cristo" (Rm 16.20) ou concedida "da parte mo a experiência da Igreja antiga faz parte de nossa herança, nós não podemos
de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo" (Rm 1.7). As construções parale- deixar de perguntar que modo de ser ("divino", "humano" ou outro) esse título
las têm "Deus" em uma parte e "Cristo" na outra12. "De sorte que somos em- e os outros usados pela Igreja primitiva atribuem a Jesus. E vital compreender
baixadores em nome de Cristo, e Deus apela por nosso intermédio." (2 Co 5.20.) que os mesmos não suscitaram esse tipo de perguntas para a própria Igreja pri-
Para Paulo, Deus exercerá o reinado, Jesus é Senhor, e essas duas circunstâncias mitiva e que a análise que acabou de ser feita de "Senhor", por exemplo, des-
são um fato só: "Porque o reino de Deus [significa] justiça e paz ( ... ); aquele creve completamente o que a expressão fazia ou poderia fazer para os que a usaram
que deste modo serve a Cristo, é aceitável" (Rm 14.17-18, p. ex.). Cristo é sim- na era apostólica.
plesmente "o poder de Deus e a sabedoria de Deus" (1 Co 1.24), a manifesta- A ressurreição obrigou a Igreja apostólica a encontrar uma linguagem no-
ção daquela "justiça" em que o judaísmo resumia a divindade de Deus (Rm va. Somente para nós essa linguagem suscita perguntas em relação às Escrituras
3.20-21). Contudo, "Deus" e "Cristo" não são simplesmente feitos idênticos; hebraicas. Em vista da linguagem disponível naquela época e da lógica do que
por isso a oração e a ação de graças são sempre dirigidas a Deus, por intermé- as Escrituras hebraicas falam sobre Deus, a invocação, exortação e explicação
dio de Cristo ou "em seu nome"". cristãs parecem ter tomado uma forma triúna meramente seguindo o caminho
Este padrão semântico demonstra da melhor maneira como a Igreja apos- da menor dificuldade e totalmente sem necessidade de uma reflexão explícita
tólica experimentava a relação entre o Pai e Jesus, "o Filho". Os títulos e ima- sobre o próprio padrão. Podemos nos assegurar disso da melhor maneira por
gens pelos quais diversos grupos tentaram apreender mais diretamente essa rela- meio de amostras, citadas quase ao acaso, de diferentes partes do Novo Testa-
ção são de importância secundária para a nossa preocupação do momento. Pre- mento: "Vocês, porém, amados ( ... ) orem no Espírito Santo; guardem-se no amor
cisamos apenas observar o ecletismo do cristianismo primitivo ao esboçar tais de Deus; esperem a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo." (Jd 20-21.)
concepções e sua concordância geral com as Escrituras hebraicas. Uma cristolo- "Mas é Deus que nos estabelece com vocês em Cristo; ele nos deu o penhor do
gia mítica tal como aparece, por exemplo, em Filipenses 2, na Carta aos He- seu Espírito em nossos corações." (2 Co 1.21-22.)17 "Porque por ele [Cristo] am-
breus ou no Evangelho de João, onde Cristo é um ser celestial "pré" ou "pós- bos temos acesso ao Pai em um Espírito." (Ef 2.18.)18 Tampouco se trata mera-
existente" que tem uma relação não-definida com Deus, demonstra um modo mente de expressões correntes; a lógica temporal essencial aparece em fórmulas
de pensar plenamente compartilhado pelo judaísmo contemporâneo14 e bem triúnas nas quais falta um dos títulos usuais, por exemplo: "Conjuro-te perante
fundado no Antigo Testamento'5. Os vários "títulos cristológicos" pelos quais Deus e Cristo Jesus que há de julgar vivos e mortos, pela sua aparição e pelo
o Senhor ressurreto era invocado e proclamado tem, sem exceção, um significa- seu reino." (2 Tm 4.1.)' E: "O Deus da esperança encha vocês de todo o gozo
do funcional. Não dizem que modo de "ser" Cristo tem, mas meramente que e paz no crer, para que (...) no poder do Espírito Santo." (Rm 15.11)
papel ele tem. O mais típico em sua lógica é "Senhor" I6 Enquanto a expres- O lugar vivencial inicial desse tipo de linguagem é mostrado, sem dúvida,
pelo autor de Efésios em 5.18-20: "Mas encham-se do Espírito, falando entre
9 Maus WENGST, Christologische FormeIn und Lieder des Urchristentums, Gütersloh, Gerd
vocês com salmos, hinos e cânticos espirituais, entoando e louvando de coração
Mohn, 1972 (StNT, 7). - ao Senhor ( ... ) dando graças a Deus Pai em nome de nosso Senhor Jesus Cris-
10 Veja Wolfgang SCHRAGE, "Theologie und Christologie bei Paulus und Jesus", EvTh, to." A experiência cristã essencial era de congregações dominadas pelo dinamis-
36:123-35, 1976. mo de um futuro particular - "sua aparição e seu reino" -, dinamismo este
11 Ibid., pp. 124-5. que as Escrituras lhes ensinaram a chamar "o Espírito" e sob cujo domínio to-
12 Ibid., p. 125.
13 Ibid., pp. 127-8. da oração e louvor eram dirigidos a "Deus Pai" e em nome daquele sob cujo
14 Wilhelm BOUSSET, Die Rehgion des Judentums, 3. ed., Tübingen, J.C.B. Mohr [Paul Sie-
beck], 1966, pp. 302-57; Robert L. WILKEN, ed., Aspects of Wisdom in Judaism and Eariy
Christianity, Notre Dame, Ind., Notre Dame University, 1975, pp. 1-31, 103-41; Martin HEN- 17 Em Paulo a lista de tais usos é comprida; p. ex.: Rm 14.17-18; 15.30; 1 Co 2.2-5; 12.4-6; 2
GEL, Judaism and Christianity,London, SCM, 1974, vol. 1, pp. 153-75. Co 3.3; Fp 13; 1 Ts 5.18-20.
15 Desde o "anjo do Senhor" nas narrativas acerca dos patriarcas (Gn 22.9-19, p. ex.) até a 18 Outras ocorrências nessa literatura: Ef 1.11-14; 1.17; 2.18-22; 3. 2-7, 14-17; 4.4-6; 5.18-20; Cl
grande figura escatológica de Dn 7.13-14. 1.6-8; Tt 3.4-6.
16 P. ex.: Ferdjnand HAHN, The Titles of Jesus in Christology, Cleveland, World Publishing, 19 Via de regra é "Espírito" que é omitido como palavra, mas está presente em substância; p.
1969, s.v. "Lord". ex. 1 Pe 1.3.

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senhorio somos de fato filhos de Deus e compartilhamos de seu Espírito. Em
vista deste tipo de experiência litúrgica era muito natural descrever resumida- cavam o Filho e o Espírito como "anjos". Na Igreja pós-apost61ica mais antiga
mente a obra da salvação simplesmente invertendo a ordem e passando pela mesma havia, sem dúvida, uma cristologia angélica imediatamente dependente da espe-
seqüência, começando por Deus, como faz o mesmo autor aos Efésios: "Nele, culação do judaísmo apocalíptico em relação aos anjos, mas havia também uma
pneumatologia angélica, com a mesma base23. E assim a plena experiência tri-
segundo o propósito daquele que faz todas as coisas (...) nós, os que de ante-
mão esperamos em Cristo, fomos predestinados ( ... ) a fim de vivermos para louvor nitária de Deus ganhou expressão, como na visão apocalíptica de Isaías: "E eu
o vi [Cristo] subir até o sétimo céu, e todos os santos e anjos o louvavam. E
de sua glória. Nele também vocês (...) tendo crido nele, foram selados com o
Espírito Santo da promessa, o qual é o penhor da nossa herança." (Ef 1.11-14) vi que ele se assentou à direita da Glória. (...) E vi o Anjo do Espfritõ Santõ
sentado à esquerda."24 A visão de Deus e de dois grandes anjos parece ter tido
Assim sendo, esse autor obtém uma estrutura completa para a teologia e pode
descrever toda a realidade cristã nas coordenadas da "graça de Deus", do "mis- uma grande e permanente importância para o desenvolvimento posterior do tri-
tério de Cristo" e da revelação "pelo Espírito" (Ef 12-6, p. ex.). nitarismo: Orígenes, o criador da primeira grande teologia trinitária, usou repe-
A passagem trinitária mais notável do Novo Testamento, que resulta num tidamente como prova o texto de Is 6.1-3, interpretando os dois grandes serafins
sistema teológico completo, é Romanos 8. Seu cerne conceitual e argumentativo daquela passagem como alegorias do Filho e do Espírito e atribuindo essa inter-
pretação explicitamente a um mestre judaico25 .
é o versículo 17. "Se habita em vocês o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus
dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos Hoje em dia consideramos alarmantes essa cristologia e pneumatologia an-
vivificará também os seus corpos mortais, por meio de seu Espírito que habita gélicas. Parecem criar uma extensa classe de semideuses e localizar Cristo e o
em vocês." A expressão que descreve o sujeito apresenta, numa condensação ex- Espírito entre eles, certamente um caso de "divinização", e, além do mais, sem
trema de idéias, exatamente a estrutura que chamamos de "lógica trinitária": muito entusiasmo. Mas isso só acontece porque nós retroprojetamos anacroni-
camente nossa pergunta pelos modos de ser sobre esse discurso essencialmente
o Espírito é "daquele que ressuscitou Jesus". E a partir da estrutura preposicio- semítico e depois nos desapontamos" ao descobrirmos que Cristo e o Espírito
nal desta frase, Paulo então desenvolve uma retórica e argumentação que jun- não são plenamente divinos, nem Cristo plenamente humano. Mas nesse próprio
tam a justificação, a obra de Cristo, a oração, a escatologia, a ética e a predesti- modo de pensar, um "anjo" é simplesmente alguém a quem Deus dá uma mis-
nação numa compreensão única coerente. Muitas outras passagens exibem, com
uma complexidade um pouco menos dialética e retórica que Romanos 8, aquilo são e cuja própria realidade é constituída por essa missão. Com isso não se su-
gere nada quanto ao modo de ser que Deus ou essa manifestação possui27. Po-
que somente pode ser chamado de conceitualidade trinitária usual de Paulo.
de bem ser que a missão seja, de fato, a missão do próprio Deus. Se for assim,
"Deus" é mencionado como o agente da salvação, que se realiza num ato des-
crito por expressões como "em Cristo Jesus", e a finalidade do mesmo, tanto isso simplesmente aparecerá nas descrições do que o anjo faz - julga todas as
pessoas, perdoa pecados ou qualquer outra coisa. E o fato de que Cristo e
em sentido escatológico como penúltimo, é um "envio" do Espírito com "dons" o Espírito são transcendentes sobre "outros" anjos aparece de modo iconográ-
(p. ex.: 1 Co 1.4-8; Gl 4.4). fico, como em Hermas, onde Cristo é maior que os outros arcanjos, sendo o
A novidade que aparece na Igreja imediatamente pós-apostólica é a tentati- sétimo, quando todos sabem que o número completo deles é seis, ou como na
va de apreender - geralmente em imagens míticas - a constituição de Deus Ascensão de Isaías, onde Deus e os dois grandes anjos são adorados juntos pe-
por Cristo e pelo Espírito, isto é, de não falar meramente de um modo trinitá- los demais anjos29 .
rio, mas de falar sobre a Trindade. Precisamos examinar aqui o trinitarismo do
que Daniélou chamou, de maneira ligeiramente enganosa, de "cristianismo ju- The Christian Tradition; a History of the Development of Doctrine, vol. 1: The Emergence
daico"20 , isto é, todo o cristianismo até o desafio direto do pensamento helêni- of the Catholic Tradition (100-600), Chicago, University of Chicago, 1971, pp. 176ss., 184ss.;
co em torno do ano de 150 A.D., e depois disso o cristianismo daquelas áreas Georg KRETSCHMAR, Studien zur frühchristlichen Trinitãstheologie, Tübingen, J. C. B.
que não foram fortemente desafiadas dessa forma. O princípio de todo esse tri- Mohr [Paul Siebeck], 1956, pp. 20-2.
23 DANIÉLOU, op. cit., pp. 11 -47, especialmente pp. 128ss.; Johannes BARBEL, Christos An-
nitarismo foi classicamente formulado pela continuação epexegética do dito de gelos, Bonn, Hauslein, 1941, pp. 181-3 11; Martin WERNER, The Formation of Christian Doc-
Clemente citado anteriormente: "como de Deus, como do juiz dos vivos e dos trine, New York, Harper & Row, 1957, pp. 120-61; GRILLMEIER, op. cit., pp. 46ss.
mortos"21. A equação de Cristo - e do Espírito - com Deus é, em todo este 24 Ascensão de Isalas, XI, 32-35. Para outra documentação: KRETSCHMAR, op. cit., pp. 71-124.
modo de pensar, uma atribuição de uma função inseparável de Deus. 25 P. ex.: ORIGENES, Comentário sobre Isaías, 1,2; 15; 41; Comentário sobre Ezequiel, 14,2;
Dos princípios, 1, 3,4; IV, 3,14. Veja KRETSCHMAR, op. cit., pp. 220-3.
Havia muitas imagens "judaicas" da Trindade. As mais importantes evo- 26 Ou podemos ficar contentes, se nos opomos às doutrinas posteriores da verdadeira divindade
e acreditamos que nós descobrimos agora que a Igreja primitiva as contradizia. Esse é o erro
de Martin Werner, que invalida todos os argumentos de suas investigações admiráveis sob ou-
20 DANLÉLOU, op. cit. tros aspectos.
21 2 Clemente 1, 2. 27 DANIELOU, op. cit., pp. 117ss.
22 Sobre essas imagens, v. DANIELOU, op. cit., pp. 146-66; AIOYS GRLLLMEIER, Christ in 28 P. ex.: HERMAS, Similitudes, VIII, 1-2.
Christian Tradition, New York, Sheed & Ward, 1965, vol. 2, pp. 41-53; Jaroslav PELIKAN, 29 Ibid., IX, 12,7-8; Ascensão de Isaías, VIII, 16-18.

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Os tipos de discurso trinitário desenvolvidos no Novo lèstamento e na épo- me do Pai e do Filho e do Espírito Santo". Não sabemos qual a forma litúrgica
ca imediatamente subseqüente continuaram existindo através da história da Igreja. que essa menção tomou inicialmente, ou até se assumiu a mesma forma em to-
Com o uso do nome trinitário, eles constituem a substância da apreensão trini- das as comunidades. Mas na época em que a prática batismal antiga pode ser
tária viva de Deus. Os cristãos se dirigem a Deus num sistema de coordenadas vista com clareza32, nos escritos de Hipólito por volta da virada do século II
trinitário: falam ao Pai, com o Filho, no Espírito, e somente assim se dirigem para o século III, a menção dos nomes é uma interrogação quanto à confissão
a Deus. De fato, vivem em uma espécie de espaço temporal definido por essas trinitária: "O que ministra o Batismo deve (...) dizer: 'Crês em Deus, o Pai Todo-
coordenadas, e justamente assim e apenas assim vivem "em Deus". E represen- Poderoso? Crês em Cristo Jesus, o Filho de Deus ( ... )?' [etc.].1133 Há indica-
tam o Deus com quem assim se relacionam numa iconografia e metáfora cuja ções de que tal interrogação possa ter sido a - ou uma - maneira original
maneira de atribuir divindade é funcional. Onde, como na Igreja medieval e mo- da "nomeação" batismal; em todo caso, a Igreja primitiva exigia a confissão
derna do Ocidente, esses modos perdem parte de sua força de dar forma à pro- de fé por ocasião do Batism&4, e essa confissão foi modelada pelo padrão triú-
clamação e oração efetivas, deve-se suspeitar que haja uma alienação da Igreja. no da menção batismal dos nomes, qualquer que tenha sido a maneira em que
Os pastores acreditam, muitas vezes, que a Trindade é complicada demais a mesma se deu.
para ser explicada aos leigos. Não poderia haver engano maior. Os crentes sa- O tipo de credo declaratório que conhecemos e usamos, como o Credo Apos-
bem como orar ao Pai; ousando chamá-lo de "Pai", porque oram com Jesus, tólico ou os que foram tomados por base pelos concílios de Nicéia e Constanti-
o Filho de Deus, e assim entram no futuro que esses dois lhes oferecem, isto nopla, desenvolveram-se a partir da fusão dessas duas formas: as perguntas ba-
é, orando no Espírito. Aqueles que sabem fazer isso e estão conscientes de que tismais com seu padrão triiino, estabelecido canonicamente, e os resumos da nar-
estão tratando com Deus justamente no espaço definido por essas coordenadas, rativa cristológica35. Parece provável que esse desenvolvimento ocorreu na dis-
entendem a Trindade. Todas as complexidades intelectuais nas quais temos que ciplina catequética, que tinha como função tanto a preparação para o Batismo
entrar sucintamente são um fenômeno secundário, cujo lugar apropriado é o quanto o reforço dos pontos principais da pregação missionária cristológica. A
fundo da mente dosmestres e pastores, para determinar a maneira como orien- mudança da forma interrogativa para a declarativa provavelmente foi ocasiona-
tam essa relação com Deus e, quando necessário, a explicam. da pela exigência de que os catecúmenos, antes do Batismo, relatassem à con-
gregação sua participação na fé em que a congregação fora batizada: "Eu creio
- como vocês - em..." 1mbém parece provável que o resultado duradouro
O status dogmático mais antigo desse desenvolvimento foi o predecessor do Credo Apostólico, o antigo
do trinitansmo primário credo da Igreja de Roma, estabelecido mais ou menos no final do século II. Es-
se antigo credo romano foi criado pela adição do querigma cristológico "que
As estruturas da linguagem e da experiência analisadas nas duas seções an- foi concebido por" a uma interrogação batismal trinitária sobre "Deus, o Pai
teriores não estão presentes na vida da Igreja como meros fatos. As congrega- Todo-Poderoso, e ( ... ) Cristo Jesus, seu único Filho, nosso Senhor, e o Espírito
ções do cristianismo inteiro, em sua adoração, as reconhecem e proclamam diá- Santo, a santa Igreja, a ressurreição da carne"36 .
ria e explicitamente como sendo fundamentais, e elas estão corporificadas nos O que os credos clássicos de três artigos formulam como dogma não é só
grandes credos litúrgicos dos apóstolos e de Nicéia. Os credos de três artigos nem principalmente uma lista qualquer de eventos cristológicos vitais para o que-
são o ensino diário e a autodefjnição pública da comunidade cristã em todas rigma ou de itens teológicos necessários. Jamais existiu, de fato, uma listagem,
as suas ramificações, sendo recitados por ocasião do Batismo e muitas vezes da em forma de credo, de tais eventos ou itens que gozasse de aceitação universal.
Ceia ou outros cultos principais. São reconhecidos como tais igualmente Até hoje, quando reduzimos o número de credos em uso prático a dois, esses
pelas igrejas oriental, católica romana e reformatórias - como, por exemplo, não apresentam uma lista totalmente idêntica. A história narrada querigmatica-
no Livro de concórdia luterano, onde são colocados em primeiro lugar e apro- mente, a estrutura do nome triplo e a união dos dois são formuladas como dog-
priadamente chamados de credos "ecumênicos' ma em primeiro lugar. Além disso, está errada a impressão popular de que pri-
A formulação de credos é tão antiga quanto o próprio evangelh&°. Para meiramente há uma história das obras de Deus em três fases - os "três arti-
nossas finalidades imediatas, duas formas são importantes. Primeiro, os prega- gos" — e de que depois o nome trinitário é uma espécie de resumo e a lógica
dores e catequistas do princípio e seus sucessores usaram e transmitiram resu- trinitária uma espécie de explicação da mesma; o que ocorre é o contrário.
mos das afirmações e fatos principais a respeito de Jesus em forma de narrativa
(v. 1 Co 15.1-7)31. Segundo, há a instrução de que o Batismo deve ser "em no-
32 V. ibid., pp. 40-9.
33 HIPÓLITO, A tradição apostólica, 21.
30 A exposição clássica é de J. N. D. KELLY, Early Christian Creeds, New York, Longmafl, 34 KELLY, op. cit., pp. 40ss.
Green & Co., 1950, pp. 6-29. 35 Ibid., pp. 30-130.
31 Ibid., p. 17ss. 36 Ibid., pp. 119ss.

127 128
O Credo Apostólico e outros semelhantes a ele foram criados pela afinida-
de catequética e litúrgica e pelo encaixe lógico entre o nome batismal triúno de
Deus e a história das boas novas narrada no evangelho. Isso é, os credos decla- tribos2. A onda de tribos dórias do Norte levou de roldão o florescente mundo
ram que a lógica verdadeira e necessária do evangelho é exatamente a que foi religioso e material da Grécia micênica. Mas em certas áreas a memória e a tra-
analisada neste capítulo. dição do esplendor perdido sobreviveram. Foram esses iônios sobreviventes que
lideraram o reavivamento da civilização grega no século IX. A memória históri-
129 ca da Grécia, então, começou com catástrofe, com uma experiência nacional de
contingência e poder absolutamente irracionais e de morte e destruição trazidas
pela mesma. A religião e reflexão gregas foram trágicas desde sua origem. Fo-
ram uma tentativa contínua de lidar com a experiência de que não devemos "con-
3 siderar qualquer mortal abençoado (...) até que tenha alcançado o fim de sua
vida sem sofrer nenhuma calamidade"3 . Desse modo, a religião e reflexão gre-
O dogma niceno-constantinopolitano gas foram marcadas por cinco características importantes para o nosso propósi-
to.
Em face da identificação helênica de Deus, o discurso da Igreja a res- Primeiro, sua pergunta fundamental era: "Pode ser que todas as coisas pas-
peito de Deus foi e ainda é tentado a alienar-se de sua lógica trinitá- sam?" A segurança de que precisavam tinha que ser, nas palavras de Aristóteles:
ria própria. O dogma de Nicéia e Constantinopla foi uma vitória de- "O ser como tal nem vem a ser, nem perece."4 No mito de Cronos, o "Pai lèm-
cisiva sobre essa tentação. po", que devorou todos os seus filhos, os gregos expressaram a sua experiência
com o tempo e suas surpresas. Sua religião era a decisão de que o "Tempo"
O Deus dos gregos não fosse supremo, que ele fosse derrotado por um verdadeiro "Pai dos deuses
e dos homens". Era a busca de uma rocha eterna, resistente ao fluxo do tempo,
Em grande parte deste capítulo temos uma estória para contar. O evange- um lugar ou parte ou aspecto da realidade que fosse imune à mudança. A única
lho em sua missão encontrou-se de fato com uma outra identificação de Deus,
a
fundamentalmente incompatível, dos gregos, que não podia ser ignorada. O
resultado disso é o cristianismo como o conhecemos, e especialmente o conjun-
característica que define os deuses era, portanto, a imortalidade, imunidade à
destruição. Enquanto Javé era eterno por sua fidelidade através do tempo, a eter-
nidade dos deuses gregos era sua abstração do tempo. A eternidade de Javé é,
to de dogma e análise trinitários plenamente desenvolvidos que herdamos. então, intrinsecamente uma relação com suas criaturas - supondo que haja cria-
Se o evangelho não tivesse se defrontado com o desafio de identificar Deus turas -' enquanto a eternidade dos deuses gregos é a negação de tal relação.
de um modo estranho na forma da interpretação grega, teria se defrontado com Segundo, a religião e reflexão gregas eram um ato de autodefesa humana
ele de alguma outra forma - e de fato isso aconteceu e acontece ainda naque- contra o poder misterioso e a contingência inexplicável, isto é, justamente con-
las ramificações da missão que levam a grandes áreas culturais diferentes daque- tra aquilo que a humanidade na maioria das vezes chamou de "Deus". Os so-
la em que nossa narrativa se situa. Além disso, o choque ocorrerá sempre no breviventes iônicos desejavam que a história tivesse um padrão humanamente
mesmo ponto: a relutância normal da religião de levar o tempo a sério em rela- compreensível, de tal tipo que seus acontecimentos fossem, em princípio, predi-
ção a Deus. Por isso qualquer grande teologia não-ocidental possível precisa conter ziveis e pudessem ser planejados. Se agentes super-humanos (isto é, imortais)
algum equivalente funcional para o trinitarismo plenamente desenvolvido no qual fossem necessários para explicar alguns acontecimentos e assim justificar seu sen-
estamos prestes a nos aprofundar. Mas tais possibilidades estão fora do alcance tido, as motivações e razões dos mesmos também deveriam ser compreensíveis
desta obra. e predizíveis. Assim eram os deuses olímpicos, as versões racionalizadas - de
Desde o princípio, a teologia helênica foi o antagonista exato da fé bíblica'. autoria de Homero, o iônio - de diversas divindades tradicionais da natureza
A interpretação de Deus por Israel foi determinada pela libertação de tribos nô- e do clã, cuja singular falta de santidade e mistério sempre foi notada pelos es-
mades de uma opressão sob uma civilização já estabelecida, e a interpretação tudiosos. Os iônios se salvaram do caos pelo esclarecimento, pela explicação dos
da Grécia pelo fato de uma civilização estabelecida ter sido derrubada por tais aparentes mistérios do tempo.
Os pensadores religiosos que sucederam a Homero eram os filósofos
iOrncos5. Com eles a redução de todas as características divinas a uma, a imor-
10 que se segue depende das histórias clássicas: Jane Ellen HARRISON, Prol egom ena to the talidade, e também a inclusão dos deuses num único esquema compreensível dos
Study of Greek Religion, Cambridge, University Press, 1903, caps. 1, 6, 7; Martin P. NILS
SON, A History of Greek Reigion, Oxford, Clarendon, 1925; ID., "Die Griechen", in: Chan-
tepie DE LA SAUSSAYE, ed., Lehrbuch der Dogmengeschichte, Tübingen, J. C. B. Mohr 2 MANN, op. cit., pp. 62ss.
[Paul Siebeck], 1925, vol. 2, pp. 281-417; Ulrich von WILAMOWITZ-MOELLENDORF, Der 3 SÓFOCLES, Edipo rei, II, 1528-30.
Glaube der Heilenen, Berlin, Weidmann, 1932. A interpretação recebeu forte influência de 4 ARISTÓTELES, Metafísica, 1051b, 29-30.
Ulrich MANN, Vorspiel des Heils, Stuttgart, Klett, 1962. 5 Werner JAEGER, The Theology ofthe Early Greek Philosophers, Oxford, Clarendon, 1947.

130 131
acontecimentos, resultou (e isso é a terceira característica de nossa lista) no con- Até aqui os aspectos essenciais da interpretação grega de Deus na prática
ceito do "divino", uma abstração unitária do poder explanatório divino em e religiosa e na filosofia dela originada. Antes de voltar à linha principal de nossa
por trás dos deuses plurais da religião diária; Aristóteles, por exemplo, relata: narrativa, precisamos observar um grande evento na história desta religião.
"O Ilimitado não tem princípio (...), mas parece antes ser o Princípio de todas O postulado da intemporalidade era inicialmente um postulado sustenta-
as outras realidades e as envolver e controlar. (...) Isso é o Divino. Essa é a opi- dor: a divindade era o sentido e o fundamento confiáveis do mundo humano.
nião de Anaximandro e da maioria dos filósofos da natureza. 16 Essa abstra- Mas só uma espécie de piscadela foi necessária para que os sinais de valor se
ção, muitas vezes chamada de "Zeus", era, para a classe letrada do período clássico invertessem. As realidades intemporal e temporal foram definidas como diferen-
da Grécia, o verdadeiro objeto religioso: a intemporalidade simplesmente como tes modos de ser, caracterizados por se negaram mutuamente. Todo sentido e
tal. Assim também se entende a palavra "Deus" como um adjetivo, aplicável valor foram localizados no ser intemporal. Se sofremos um choque metafísico,
a várias manifestações em vários graus. podemos ver de repente a linha divisória entre tempo e eternidade como uma
Quarto, a busca de uma realidade intemporal nunca é satisfeita por algo barreira que nos exclui do sentido, porque somos temporais. Sem tentar apontar
que se apresenta diretamente em nossa experiência. Todo o mundo que vemõs, uma causa, para nosso objetivo basta observar que na transição das comunida-
ouvimos e tocamos de fato é passageiro. Portanto, se o divino existe, ele deve des locais da Grécia clássica para o helenismo cosmopolita ocorreu exatamente
estar acima, por trás, por baixo ou dentro do mundo experimentado. Deve ser essa inversão de valores9 .
o leito pelo qual o rio do tempo passa, o fundamento da estrutura do mundo, A apreensão religiosa predominante na Antiguidade Tardia era a da distân-
que de outra maneira é instável, o trilho pelo qual as luzes do céu se apressam. cia da divindade, criada pelas próprias características que a constituíam divin-
A religião e reflexão gregas eram, por sua função interior, metafísicas, uma bus- dade. Nós estamos no tempo e Deus não; conseqüentemente, nossa situação é
ca do fundamento intemporal do ser temporal, que, por conseguinte, é uma es- de desespero. Por isso a religião da Antiguidade Tardia era uma procura frenéti-
pécie diferente de ser que jamais encontramos imediatamente. ca por "mediadores", seres de uma terceira espécie ontológica entre o tempo
E quinto, a religião e reflexão gregas eram exatamente o que chamamos uma e a intemporalidade, para transpor o abismo 10 . Sócrates já postulara tal tercei-
busca, porque, uma vez que o fundamento intemporal jamais se apresenta dire- ra espécie, Eros, o filho de Plenitude e Carência, e percebera que a linguagem
tamente na experiência, ele deve ser procurado. Todo um complexo de temas de apropriada para falar dessa esfera é o mito, isto é, estórias sobre seres divinos,
importância central para a nossa estória está implicado nisso. A apreensão gre- discurso a respeito de eternidades como se existissem no tempo". Em todo ca-
ga de Deus se realiza penetrando através do mundo temporal da experiência até so, o discurso sobre a divindade era considerado analógico; "deus" é basica-
chegar a seu fundamento intemporal. Essa teologia é, por isso, essencialmente mente um adjetivo e por isso pode ser aplicado com graduações diversas à pró-
negativa: os predicados verdadeiros da divindade são negações dos predicados pria divindade e a quaisquer mediadores de um ou mais escalões inferiores. No
que pertencem à realidade experimentada em virtude de sua temporalidade. Deus helenismo cosmopolita tal interpretação foi colocada em prática. Toda a vasta
é "invisível", "intangível", "impassível" (i. é, não afetado por eventos externos), herança do mundo em termos de deuses-salvadores, semideuses, abstrações rei-
"indescritível". Essa teologia é essencialmente analógica7, porque, embora con- ficadas e seres intermediários em geral foram colocados a serviço da mediação.
sista na negação dos predicados que se aplicam ao mundo temporal, não pode Era inevitável que, quando o evangelho apareceu nesse cenário, a mesma coisa
dispensar os mesmos. O padrão sempre é: "A divindade é F, só que não é F acontecesse com Cristo.
como a outra realidade temporal o é." Essa teologia levanta necessariamente a
questão da verdadeira divindade, das características que marcam o fundamento
final e assim real, porque se a divindade precisa ser procurada, temos que ser A cristianização inicial do helenismo
capazes de reconhecê-la quando a encontramos. E finalmente, toda essa pene-
tração se realiza pela "mente" (nous), isto é, não pela análise ou argumentação A missão do evangelho, quando se confronta com a interpretação helênica
discursiva, mas pela intuição intelectual instantânea, por uma espécie de espe- de Deus, não pode nem poderia simplesmente rejeitá-la. Israel proclamava Javé
Ihamento interior, porque aquilo que deve ser apreendido é exatamente um pa- como Deus para todos os povos. Na confrontação com o helenismo, isso signi-
drão intempora18.
9 Veja Hans JONAS, Qnosis und spãtantikei- Geist, Gëttingen, Vandenhoeck & Ruprecht,
6 ARISTÓTELES, Física, 4,203b7. 1954; ID., "Gnosis und moderner Nihilismus", KuD, 6:155-71, 1960. Sobre o Corpus Hermeti-
7 Veja Eberhard JUNGEL, Zum Ursprung der Analogie bei Parinenides und Heraklit, Berlin, cum, que preserva o melhor testemunho da crise, veja André M. J. FESTUGIERE, La Révé-
Walter de Gruyter, 1964. lation de I'Hermes Trismégiste, Paris, Lecatte, 1944-54, vol. 4.
8 K. VON FRITZ, "The Function of Nous", CP, 38:79-93, 1943; 40:223-42, 1945;.41:12-34, 10 P. ex. Hal KOCH, Pronoia und Paideusis, Berlin, Walter de Gruyter, 1932, pp. 180-314; NILS-
1946; Vrner MARX, The Meaning of Aristotle's "Ontology", The Hague, Nijhoff, 1954, SON, "Die Griechen", pp. 394-417.
pp. 8-29. 11 PLATÃO, Simpósio, 101A-21213.

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ficava necessariamente afirmar que o Deus de Israel é Deus verdadeiro postu- tirou Israel do Egito (Apologia, 1, 11)1 . IM linguagem não é mediada com a
lado pelos filósofos de Hélade12 . Além disso, a interpretação de Deus pelo he- teologia negativa; as duas concepções de Deus não são sintetizadas, mas sim
lenismo causou e também expressou o principal problema religioso da Antigui- meramente juntadas17. E essa tática de adição que, desde os apologistas até o
dade Urdia: a distância de Deus; o evangelho tinha que enfrentar esse proble- presente, tem sido o procedimento corrente na teologia. A noção da intempora-
ma. Em meados do século II os pensadores cristãos se colocaram, pela primeira lidade divina, assim que se deu espaço a ela na interpretação cristã, ataca então
vez, as tarefas helênicas de análise como um assunto explícito para sua reflexão. prontamente o trinitarismo imediato da liturgia e proclamação.
Com isso iniciamos a nossa narrativa. Todo helenista, ao ouvir o que o evangelho diz a respeito de Deus que é
Seja qual for a maneira como o confronto iniciou, ele de fato começou o princípio, que é o nosso companheiro Jesus e que é a consumação, deve per-
assim: os dois conjuntos discursivos sobre Deus, o bíblico e o helênico, foram guntar imediatamente: mas o que é o algo intemporalmente idêntico a si pró-
simplesmente colocados lado a lado e, dependendo da habilidade, mais ou me- prio que é todos esses três? Qual é a continuidade imune ao tempo que deve
nos bem juntados. Por um lado, isso significava que os cristãos adotaram o pro- constituir o ser do Deus verdadeiro? Se não estivermos firmes o suficiente para
cedimento de penetrar até o Deus "verdadeiro" abstraindo do tempo e empre- contestar a pergunta, há apenas duas respostas possíveis: é um quarto, do qual
gando analogias negativas13 . Por conseguinte, também adotaram os predicados os três são apenas manifestações temporais, ou é um dos três (que então deve
negativos pelos quais o helenismo qualificara a verdadeira divindade, e fizeram ser o Pai, já que os outros dois são "a partir dele"), do qual os outros dois
uma única lista composta, incluindo itens tomados da linguagem bíblica. são apenas manifestações temporais. Os historiadores rotulam o primeiro de "mo-
Inácio, em 125 A.D., já adotou o conceito central e menos bíblico da teolo- dalismo", o segundo de "subordinacionismo". Juntos abrangem toda a lista das
gia helênica tardia: Deus é "impassível", imune a qualquer ação que o influen- antigas heresias trinitárias. São heresias porque falam de Deus justamente da-
ciasse (Aos efésios, VII, 2). Esse conceito se tornaria a marca mais clara e incô- quela maneira que corta o ramo da nossa narrativa. São hoje exatamente tão
moda da interpretação helênica dentro da teologia cristã14 . Justino Mártir, o comuns e contrários ao evangelho quanto nos séculos II e III. Na história, pre-
teólogo mais influente do século II, definiu Deus como a causa eternamente au- cisaram ser trabalhados para serem descobertos.
tocausada e imutável do ser de todos os demais seres (p. ex.: Diálogo com Trí- O modalismo é o ensinamento de que Deus está acima do tempo e das dis-
fon, 3), para satisfação tanto de crentes quanto de não-crentes. Para Justino e tinções de Pai, Filho e Espírito, mas aparece sucessivamente nesses papéis para
seus companheiros, Deus, por isso, é "não-originado", "indizível", "imóvel", criar, redimir e santjficar18 . Desde a primeira vez que se relatou a sua aparição,
"impassível", "inexpressível", "invisível", ''imutável", "não-localizável", "ima- em Roma, em torno de 190 A.D., essa foi a teoria usual das congregações, co-
terial", "não-nomeável' '15• mo é até hoje. Foi, de fato, uma tentativa direta de sistematizar a devoção con-
No entanto, os mesmos teólogos podiam falar de Deus de um modo incisi- gregacional sob a pressuposição de que Deus é intemporal. Mantém Pai, Filho
vamente e até criativamente bíblico. Assim novamente Justino: Deus se preocu- e Espírito na mesma fileira e assim fica próximo do uso litúrgico do nome triú-
pa conosco; Deus é o "supervisor justo" da nossa vida (Apologia, II, 12); Deus no e do passado, presente e futuro lineares da vida batismal e eucarística. Não
é compassivo e paciente (a contradição flagrante de "impassível") (Diálogo, 108); obstante, era um compromisso com a divindade helênica tanto quanto o subor-
a onipotência de Deus se exerce sobretudo na ressurreição de Jesus (Apologia, dinacionismo. De fato foi e é a forma mais completa de submissão, já que tudo
1, 19); Deus intervém ativamente para recompensar e punir (Apologia 1, 12); o que a Bíblia fala de Deus é privado da referência a ele. Nenhum dos três é Deus.
curso da ação de Deus é determinado por sua consideração para conosco (Apo- Isso não se nota na experiência imediata da liturgia e da proclamação, mas é
logia, 1, 28). O Deus verdadeiro, de fato, deve ser identificado como aquele que notado imediatamente pela reflexão. Por isso o modalismo sempre foi rejeitado
no nível da teologia dogmática ou erudita, tão logo aparecesse19 . Ouvimos fa-
12 Veja Wolfhart PANNENBERG, "Die Aufnahme des phiosophischen Gottesbegriffs ais dog- lar de apenas dois teólogos verdadeiramente modalistas na Igreja antiga: Paulo
matisches Problem der frühchristlichen Theologie", ZKG 70: 1-45, 1959; Yehoshua AMIR, de Samósata e Sabélio. Dos detalhes de seu pensamento não sabemos pratica-
"Die Begegnung des biblischen und des philosophischen Monotheismus", EvTh, 30:2-19,
1978. mente nada; somente seus nomes sobreviveram como os rótulos usados pela Igreja
13 P. ex. TEÓFILO DE ANTIOQUIA, Apologia a Autólico, 1,2,5; MELITO DE SARDES, antiga para referir-se ao modalismo.
Discurso a Antônio César, 6-8. O subordinacionismo parece capaz de identificar pelo menos o "Pai" bí-
14 Jaroslav PELIKAN, The Christian Tradition, vol. 1: The Emergence of the Catholic Tradi- blico com Deus. Além disso, possuía a vantagem missionária de responder dire-
tion (100-600), Chicago, Universjty of Chicago, 1971, pp. 52 ss: Renê BRAUN, Deus Christia-
norum; Recherches sur le vocabulaire doctrinal de Tertuilian, Paris, Presses Universitaires,
1962, pp. 62ss. 16 BARNARD, op. cit., pp. 77ss.; BRAUN, op. cit., p. 74.
15 JUSTINO MÁRTIR, Apologia 1,12,13, 25; MELITO DE SARDES, op. cit., 2; TEÓFILO 17 Sobre o fracasso da síntese criativa, v. PANNENBERG, op. cit., pp. 312-46.
DE ANTIOQUIA, op. cit., 1,3; ATENÁGORAS, Súplica em favor dos cristãos, 10. Sobre 18 PELIKAN, op. cit., pp. 136-82; F. H. KETTLER, s. v. "Trinitãt", m: RGG3 .
a teologia médio-platônica usual de Justino, v. L.W. BARNARD, Justin Martyr; His Life 19 A primeira grande obra antimodalista foi TERTULIANO, Contra Práxeas, pouco depois
and Thought, Cambridge, University Press, 1967, pp. 79ss. de 207 A.D. Em nível teórico, outra jamais fora necessária.

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tamente à necessidade religiosa do helenismo tardio. Por colocar o Pai em cima Abraão, nem Isaque, nem Jacó, nem qualquer outro ser humano viram o Pai,
e classificar o Filho abaixo do Pai - em ordem vertical, por assim dizer -, o Senhor indizível ( ... ); antes, viram aquele outro, que por sua vontade é seu
ele faz do Filho um desses seres intermediários entre a eternidade de Deus e nos- Filho e o mensageiro ("anjo") para servir a seu propósito." Um "outro Deus",
so tempo, pelos quais a Antiguidade Tardia ansiava. um degrau mais baixo na hierarquia do ser, é necessário para transpor o abismo
Cada vez que se apreende Cristo como uma entidade intermediária entre entre Deus e o tempo.
o Deus supostamente intemporal e o mundo temporal, estabelece-se o. esquema Esse "outro Deus" é o Logos, o Deus que se manifesta a si próprio, "o
subordinacionista. Isso pode e de fato foi e ainda é feito de uma maneira estrita- anjo do Senhor" das Escrituras hebraicas. A subordinação t explícita. O Logos
é "chamado" Deus, mas em contraste com "o criador de todas as coisas, acima
mente mitológica, com um semi-Deus descendo e subind&°. Mas é o subordj-
nacionismo sofisticado, inaugurado em torno de 150 A.D. pelos assim chama- do qual não há outro Deus" esse predicado não é literal. O Logos "veio a ser",
dos apologistas, a famosa cristologia do Logos, que precisamos descrever, por- ao contrário do Pai; ele vem "do" Pai inomeável e não-originado e, assim, é
que criou o sistema teológico dentro do qual e contra o qual o trinitarismo em adorado "depois dele"25.
sua forma plenamente desenvolvida foi elaborado. Cristo, diziam os apologis- Por Deus ser racional, o Logos está eternamente em si mesmo como sua
tas, é - quase - Deus no sentido de que "o Logos" se encarnou nele. própria racionalidade. Então, quando Deus passa a criar, isto é, a entrar em re-
Qualquer que tenha sido a maneira como Justino, Teófflo e os outros deri- lação com uma realidade diferente da sua, seu Logos se torna externo em rela-
varam ou inventaram seu conceito de Logos, o que entenderam pelo mesmo es- ção a ele, assim como a racionalidade de um artesão se manifesta em suas cria-
tá claro. Na tradição filosófica grega21, logos é ao mesmo tempo o discurso e ções, e assim também como a relação de Deus com sua criação, isto é, como
a ordem significativa que o discurso revela. Se o universo possui tal ordem, essa revelação. Portanto, o Logos é o "primeiro ser originado" ou até simplesmente
é um Logos divino, que, é tanto o discurso pelo qual a divindade se revela como a "primeira criatura"26 em contraposição ao Pai, que não tem princípio. Não
a ordem racional do universo. Os apologistas falaram do "Logos" desta manei- se faz ainda nenhuma distinção entre os diversos modos de derivar-se de Deus;
ra. Além disso, o Logos, sendo a razão divina em nosso mundo, podia tornar-se por conseguinte, a diferença entre o Logos e o mundo é formulada por adjeti-
o mediador da divindade para o nosso mundo, um "segundo Deus", e foi isso vos como "primeiro". E essa ponte divina para o tempo que está presente em
que aconteceu quando a ansiedade religiosa da Antiguidade 11rdia se tornou Jesus 27, firmando assim a ponte com mais segurança do nosso lado. Quanto
mais intensa22 . Dependendo ou não desse desenvolvimento fora do cristianis- à derivação do segundo Deus do Pai, "Filho" sugere "nasceu" e "Logos" "ex-
mo, os apologistas fizeram um paralelo ao mesmo e deram o nome Logos a uma pressou"; ambas aparecem e se juntam no neutro "procedeu"28 . Ele é numeri-
entidade mediadora personalizada típica da religiosidade do século II, "o poder camente distinto do Pai, mas não separado del&9.
seguinte depois do Pai de Todos, um Filho... 1 23. Com ou sem razão, eles pen- Não se falou muito a respeito do Espírito, o que nos, leva a um ponto vital.
saram que nisso tudo estavam apenas dando continuidade ao testemunho de João A teologia do Logos não é a origem do trinitarismo plenamente desenvolvido.
em relação ao Logos que "no princípio estava com Deus", "iluminava a todo De fato, em si ela não é trinitária de modo nenhum30 . A nomeação trinitária
homem", e veio na carne para tornar Deus conhecido (Jo 1.144). e o padrão litúrgico primordiais dão origem a uma estrutura temporal que é ho-
Ao compartilharem a interpretação de Deus como aquele que fundamenta rizontal em relação ao tempo e inerentemente tríplice como o mesmo. O esque-
todo o ser pela negação do tempo, os apologistas também compartilharam o ma Deus/Mediador/Mundo é intemporalmente vertical em relação ao tempo e
grande problema da Antiguidade Tardia: a distância deste Deus. Todos concor- por si próprio postularia a divindade de Deus e de seu único mediador ou de
davam que Deus precisa, de alguma maneira, habitar em nosso mundo para que Deus e de um número infinito de mediadores. O espaço entre Deus e o mundo
sejamos salvos. No Antigo Testamento os cristãos possuíam uma narrativa da temporal pode ser imaginado como um espaço único ou indefinidamente divisí-
atividade de Deus aqui. Mas Deus foi definido justamente como estando acima vel, mas não há motivo para pensar em dois subespaços. De fato, o status do
de uma ação no tempo. Era impossível o próprio Deus ter passeado no jardim Espírito era ambíguo em toda a teologia apologética. Porque Deus "é Espírito"
de Adão, fechado a porta da arca de Noé ou falado a Abraão e Moisés, pois
- assim perguntou Justino - como haveria ele de "falar a alguém, ser visto 24 Ibid., 13, 62-3; v. também JUSTINO MÁRTIR, Diálogo com fl-ífon, 10, 126-8; TEÓFILO
por alguém ou aparecer em alguma parte deste mundo em particular ( ... )? Nem DE ANTIOQUIA, Apologia, 11,22.
25 JUSTINO MARTIR, Diálogo, 55-62; Apologia, 11,6,13.
26 P. ex. ATENAGORAS, op. cit., 10; TEÓFILO, op. cit., II, 22; JUSTINO MÁRTIR, Diálogo,
20 Aloys GRILLMEIER, Christ in Chrjstjan Tradition, New York, Sheed & Ward, 1965, vol. 61.
1, pp. 190-206. 27 P. ex. JUSTINO MÁRTIR, Apologia, 1,5.
21 Veja H. KLEINKNECHT, s. v. "Word", in: TDNT. 28 Veja BRAUN, op. cit., pp. 287-91.
22 P. ex. Teologia grega, 16; "Hermes é o Logos, que os deuses enviaram até nós do céu, para 29 JUSTINO MÁRTIR, Diálogo, 62,128.
tornar o ser humano racional (logikos) (...) mais ainda, para nos salvar." 30 Georg KREtSCHMAR, Studien zur frühchristlichen Trinitãtstheologie, Tübingen, J. C. B.
23 JUSTINO MÁRTIR, op. cit., 1,32. Mohr [Paul Siebeck], 1956, pp. 1-15.

136 137
de acordo com João (4.24), "Espírito" pode ser o nome do que há de divino A principal preocupação trinitária de Tertuliano foi de mostrar como a "mo-
em Cristo31 . Mas como então "o" Espírito é um terceiro? No próprio modelo narquia" de Deus e sua "economia" podiam ser preservadas simultaneamente
trinitárjo, por outro lado, não há problema. Ao contrário, vimos que a Divinda- (ibid., VII, 7). "Monarquia" era a divisa usada por seus adversários para desig-
de triúna se estabelece exatamente na autopostulação do Espírito. Foi a falta nar a unicidade abstrata de Deus em si, a que Tertuliano, ao invés, deu o signifi-
de um lugar para o Espírito dentro da visão do mundo em relação à qual o cado da unicidade e autoconsistência do governo de Deus, de sua obra divina36.
subordinaciomsmo foi uma adaptação que impediu a assimilação de todos os Ele próprio adaptou "economia" para ser um termo da análise trinitária,
três itens da fé batismal no esquema subordinacionista e preservou as fórmulas tomando-o de Ireneu, para quem ele significava o desdobramento da obra salví-
batismais em três artigos como a principal instância contrária a ele. fica de Deus; Tertuliano o usa para indicar que o próprio Deus se dispõe inte-
Na medida em que os apologistas, mesmo assim, eram trinitários, às vezes riormente para esta história salvadora37 . É "a economia (...) que dispõe a uni-
tentaram posicionar todos os três verticalmente em relação ao tempo - com dade para a trindade" (ibid., II, 4). Claramente a tarefa de Tertuliano é uma
pouco êxito em termos de conceituação - e às vezes atribuíram ao Espírito seu interpretação teológica do credo em três degraus. A realidade de Deus na histó-
papel bíblico totalmente fora de seu esquema de mediação32. O que os mante- ria salvífica é tanto única quanto tripla.
ve trinitários em sua intenção foram fatores presentes fora de seu sistema: a vida Tertuliano usou personae para referir-se aos três, estabelecendo o termo para
trinitária contínua da Igreja; o desenvolvimento da estrutura do credo em três toda a teologia ocidental subseqüente. Persona38 fora, primeiro, a máscara do
artigos, baseada na confissão batismal, como acabou de ser observado3 ; tal- ator, pela qual ele falava, depois o papel que assim desempenhava, e no tempo
vez a disponibilidade e influência contínuas de uma figura pela qual Deus pode de Tertuliano era a expressão do dia-a-dia para designar o indivíduo humano,
ser imaginado de acordo com esse credo: a figura "judaico-cristã" do Pai e dos cuja individualidade é estabelecida por seu papel social, por falar e responder.
dois grandes advogados angelicais; e a crítica eclesiástica da base religiosa e me- O background imediato do uso trinitário da palavra foi uma prática exegética
tafísica do subordinacjonjsmo34 . já estabelecida. O Logos era considerado pela teologia antiga o agente de toda
Na interação de todos esses fatores, a teologia apologética alcançou sua rea- revelação; por isso, dizia-se que quando a Escritura atribui o ato de falar ao
lização histórica com duas grandes figuras do início do século III. No Ocidente, Pai ou ao Espírito é o Filho que fala "na pessoa" (ex persona) do Pai ou do
Tertuliano ensinou um trinitarismo mais voltado para o credo e terminológico; Espírito. Assim Tertuliano estava exegeticamente acostumado a chamar os três,
no Oriente, Orígenes ensinou um trinitarismo mais especulativo. Cada um mar- em sua distinção um do outro, de "pessoas". O passo para o uso do termo na
cou o estilo de sua região para os séculos seguintes. análise trinitária obviamente foi dado antes de Tertuliano; em todo caso, foi um
Para Tertuliano a teologia do Logos não foi tanto a solução de seus pró- passo pequeno.
prios problemas religiosos quanto uma parte do repertório intelectual agora dis- Ao propor as três personae em Deus, Tertuliano afirma, portanto, contra
ponível para ser usado em relação a um problema totalmente diferente: a pró- o modalismo, que as distinções de papéis, as relações de chamame'nto e respos-
pria lhndade, a explicitação apropriada da interpretação cristã de Deus35. Pa- ta, encontradas na Escritura entre o Pai, o Filho e o Espírito, estabelecem uma
ra ele, a regra trinitária de fé já era algo dado (Contra Práxeas, II, 1-2). Tertulia- realidade em Deus, exatamente como tais relações o fazem entre indivíduos
no foi levado à análise trinitária por uma explicação da regra que estava sendo humanos39. Os casos em que Tertuliano distingue "pessdas" se resumem à dis-
propagandeada: o modalismo em que um certo Práxeas insistia em Roma em tinção de Pai, Jesus e Espírito na narrativa da Escritura (ibid., XXIss.). Eles
torno de 190 A.D. Ele pensou, com razão, que essa explicação acabava com o são três porque falam um ao outro e um do outro (ibid., XI, 9-10) em aconteci-
credo e pôs-se a refutá-la e oferecer uma explicação melhor. O resultado foi que mentos bíblicos como o batismo de Jesus. São três porque têm três nomes pró-
ele estabeleceu a terminologia para toda a análise ocidental subseqüente: exis- prios mutuamente reconhecidos (ibid., IV, 4). Também os papéis eternos dentro
tem em Deus "três pessoas" (personae) que são "de uma substância" (unius da Trindade são definidos pelos papéis na história salvífica; quando Deus disse:
substantiae). "Façamos o homem", "ele falou, na unidade da Trindade, com o Filho que de-
veria assumir o homem, e com o Espírito, que deveria santificar o homem, co-
31 P. ex. TACIANO, Discurso aos helenos, 7. Veja KRETSCHMAR, op. cit., pp. 40-61; mo com ministros e membros do conselho" (ibid. XII, 3).
PELI-
KAN, op. cit., pp. 185-6. - Ao aplicar substantia à unidade de Deus, Tertuliano seguiu a sua própria
32 Sobre o primeiro procedimento, veja JUSTINO MÁRTIR, Apologia, 1,13; sobre o segundo, tradição filosófica. A teologia ocidental posterior não aderiu a isso, de maneira
veja J. Armitage ROBINSON, ed., "Introduction", in: IRENAEUS, The Demonstrarjon of que "uma substância" simplesmente veio a significar de algum modo "uma coi-
the ApostoJjc Preaching, London, SPCK, 1920.
33 NOVACIANO, Da Trindade, se preocupa inteiramente com a função mediadora do
Logos,
mas acrescenta uma parte sobre o Espírito (XXX-XXXI), porque, diz ele, "a autoridade da 36 Ibid., pp. 71-2.
confissão batismal nos lembra ( ... ) que também cremos no Espírito" (XXXI). 37 Ibid., pp. 158-67.
34 P. ex. IRENEU, Contra todas as heresias, II, 1-11; II,VI; II, XVII, 3; II,VII, 6; II, XIII, 4-6. 38 Sobre o que se segue, v. ibid., pp. 207-32.
35 Sobre isso e o que se segue, veja BRAUN, op. cit. 39 Ibid., pp. 228-32. Sobre o que se segue, v. ibid., pp. 235-6.

138 139
sa"40, para depois ser interpretada de acordo com qualquer filosofia que esti- diação ascendente da consumação são, assim, essencialmente tríplices - ainda
vesse em voga. que dubiosamente triúnas (ibid., 1,3,5; 1,3,8).
A terminologia resultante foi útil tanto para o bem quanto para o mal. Deu
à Igreja ocidental uma linguagem com a qual pôde prosseguir sua atividade diá-
ria de proclamação e disciplina, 175 anos antes que essa necessidade urgente fosse A crise ariana
satisfeita no Oriente. Mas, devido à suavidade de seus conceitos, a mesma tam-
bém serviu para encobrir os problemas religiosos e intelectuais muito reais que O sistema de Orígenes era instável, porque o mero compromisso inicial en-
a identificação cristã de Deus propôs. Esses seriam enfrentados no Oriente. tre as interpretações bíblica e helênica de Deus ainda estava em seu âmago. No
A preparação desse evento foi feita pelo primeiro pensador e estudioso ver- que diz respeito à particularidade histórica, o mesmo não podia resistir à per-
dadeiramente grande da história cristã: Orígenes de Alexandria, que levou 'o tri- gunta: "Bem, o que é o Logos, Criador ou criatura?" O segredo do trinitarismo
nitarismo subordinacionista a sua perfeição instável e criou um modo de pensar subordinacionista, aperfeiçoado por Orígenes, era a postulação de uma conti-
que dominou a Igreja oriental durante o resto de sua história teologicamente. nuidade ininterrupta do ser, começando pelo grande Deus, passando pelo Lo-
criativa. Apesar de ser um teólogo muito maior que Tertuliano, seu papel em gos, o Espírito e outros seres "espirituais", até chegar aos seres temporais. Neste
nossa estória especial é de ter desenvolvido plenamente tendências já descritas, bonito espectro a radical distinção bíblica entre Criador e criatura só podia fa-
de maneira que nosso tratamento pode ser breve. Pode-se simplesmente mencio- zer um corte feio. Mas o estudo intensivo e aberto da Escritura, que era a outra
nar aqui um grande aspecto de sua obra, para referência futura: ele foi o criador grande realização do origenismo, tinha que levantar, mais cedo ou mais tarde,
da exegese bíblica hermeneuticamente autoconsciente. a questão da diferença Criador-criatura.
O Deus Pai de Orígenes é uma divindade helênica em sua forma mais pu- A instabilidade intelectual e religiosa do origenismo constituía também uma
ra: uma mente pura, totalmente distante do mundo material e temporal, total- instabilidade confessional da Igreja oriental. Na virada do século III para o sé-
mente indiferenciado e portanto incognoscível (Dos princípios, 1,1,5-6). A in- culo IV as grandes dioceses e posições no magistério teológico do Oriente esta-
cognoscibilidade de Deus é idêntica à diferença entre o temporal e o intemporal vam, quase todas, ocupadas por origenistas de matizes diversos, indo desde uma
(Fragmentos sobre João, I,XIII). Deus só pode ser conhecido como o funda- ala esquerda composta por aqueles que foram atraídos por sua respeitabilidade
mento de suas obras, pela intuição da nous (Dos princípios, 1,1,6; IV,3,15). intelectual até uma ala direita atraída por sua paixão cristológica42 .
Conseqüentemente, toda a preocupação soteriológica de Orígenes é com O colapso inevitável do subordinacionismo foi desencadeado pelos estudantes
a mediação do conhecimento de Deus. Ele conseguiu criar um sistema subordi- e outros discípulos de Luciano de Antioquia43 . Sua teologia não é muito conhe-
nacionista coerente para mediar essa divindade, no qual havia lugar para o Es- cida. Nas últimas décadas do século III e nas primeiras do século IV ele foi um
pírito e que assim não colidiu claramente com os credos e liturgias trinitários. grande mestre no estilo de Orígenes e um mártir, que fez com que Antioquia
Criou uma versão grandiosa da visão de uma hierarquia do ser existente na An- obtivesse fama de erudição. Seus alunos aprendiam uma exegese metódica da
tiguidade Tardia - o parceiro cristão para o sistema de Plotino -, na qual as Escritura mais voltada para o sentido literal que a de Orígenes, e por isso com
mediações sucessivas descem a partir de Deus, como os raios do sol, até alcan- maior probabilidade de introduzir a perigosa distinção Criador-criatura. Tam-
çar por fim o universo materia141. O "nascimento" da divindade mediadora de bém aprendiam um platonismo mais friamente analítico - aristotélico -, re-
Deus é um evento eterno: Deus se medeia a si próprio (ibid., 1,2; 1,9; LV,5). 1km- ceptivo para afirmações do bom senso como a de que cada coisa é o que é e
bém o Espírito é eterno, dado por Deus sem princípio (ibid., 1,3,4). não algo diferente. Isso fez com que o espectro do ser de Orígenes parecesse
O problema do lugar do Espírito é resolvido de modo engenhoso. A obra mais um conjunto de degraus que uma rampa de deslize, enfatizando assim seu
do Espírito é a santificação; seu campo de ação é a Igreja; Orígenes inclui a subordinacionismo. Se o Logos é uma entidade distinta que difere só muito, muito
realidade especial da Igreja em seu sistema de mediações. Ele concebe a obra pouco de Deus, ele é, diziam os lucianistas, de fato diferente.
do Pai, do Filho e do Espírito como três círculos concêntricos, ao longo da li-
nha de mediação entre Deus e nós, na forma de um cone invertido, dividido 42 A mais típica representação da esquerda foi EUSÉBIO DE CESARÉIA, Demonstração do
em degraus. O Pai concede o ser a todos os seres; o Filho concede o conheci- evangelho, IVV. Para a direita podemos mencionar o jovem ATANASIO, Discurso sobre a
mento de Deus a todos os seres capazes de conhecer; o Espírito concede a santi- encarnação da Palavra.
dade na qual tal conhecimento é consumado àqueles entre os seres racionais 43 Sobre Luciano e os lucianistas, v. Gustave BARDY, Recherches sur Saint Lucien d'Antioch
que haverão de ser salvos. Tinto a mediação descendente do ser quanto a me- et son École, Paris, Gabriel Beauchesne, 1936; aqui há uma coleção dos textos lucianistas
que foram preservados. Sobre a história teológica seguinte, v. Louis DUCHESNE, Early
History of the Christian Chw-ch, New York, Longmans, Green, 1912, vol. 2, pp. 98ss.;
40 Ibid., pp. 173-94. GRILLMEIER, op. cit., pp. 218ss.; J. N. D. KELLY, Early Christian Doctrines, New York,
41 Sobre Orígenes, v. Robert W. JENSON, The Knowledge of Things Hoped For, New York, Harper & Row, 1960, pp. 223-71.
Oxford University, 1969, pp. 26ss; aí se encontram outras referências bibliográficas. 44 Veja, p. ex., KELLY, op. cit., p. 231.

140 141
A disputa iniciou entre os clérigos egípcios. O sacerdote de uma paróquia nente Deus: "Como o Logos, que dorme como homem, chora e sofre, pode
de Alexandria, um lucianista de segunda classe chamado Ano, atacou a tendên- ser Deus?"" Já se decidira há muito tempo, contra os modalistas, que o abso-
cia da ala direita do origenismo de atribuir plena eternidade divina ao Filhos luto Intemporal e Impassível pelo qual se ansiava não pode ser uma essência
Pelo fato do ataque atingir o bispo, Alexandre, um sínodo de bispos egípcios divina diferente de Pai, Filho e Espírito. Então deve ser o Pai. Muito cedo os
destituiu Ano e alguns simpatizantes de seu posto. arianos formularam toda a sua tese em duas frases: "Como mônada e Fonte
Em conseqüência disso Ano apelou para o vínculo com a sua antiga esco- de todas as coisas, Deus é antes de tudo. Por isso ele também é antes do Fi-
la. Ao deixar o Egito, ele e seus companheiros rebeldes procuraram e encontra- Todas as demais considerações devem ser sacrificadas a essa lógica e à
ram um lugar junto ao mais notável dos lucianistas: o bispo Eusébio de Nico.. necessidade religiosa por trás dela. -
média. Esse começou uma campanha por correspondência entre os bispos orientais A controvérsia se conduziu em torno da afirmação inversa. Ano precisou
para que Ário fosse reintegrado em sua função. Alexandre reagiu, e o resultado dizer: "Houve um tempo em que ele [o Logos] não era"", isto é, o Logos é
foi um tumulto geral cuja única explicação possível é que o desenvolvimento uma criatura. O caminho para a transcendência de onde viemos e para a qual
teológico estava pronto para o mesmo. havemos de voltar, leva, conforme os arianos, para além do que acontece com
A preocupação de Ano e seus amigos está explícita e clara no primeiro do- Cristo no tempo, a um Deus que ainda não é o Pai do Filho, que é absolutamen-
cumento do conflito: o apelo que Ano fez a Eusébio de Nicomédia. Conforme te não-originado, acima de toda diferenciação e relação. Ao voltarmos, su-
para nós,
ele entendia, aqueles que atribuem ao Filho coeternidade com o Pai, devem con- bindo a escada do ser, o Logos, enquanto está acima de nós, é Deus
siderar o Filho como tendo surgido de algum modo de dentro do ser do Pai ou mas não é Deus em 5j54 O grande pensador do arianismo tardio, Eunômio
como um ser não-originado paralelo. Ambas as coisas são chamadas "blas- (350-380), finalmente haveria de tirar a conclusão religiosa: o último objetivo
fêmias". é exatamente transcender o revelador e ver Deus como ele".
Para Ano, todo o grupo lucianista a que apelou e, de fato, para todos os Durante o longo conflito a oposição a Ano haveria de ser exercida acima
discípulos mais esquerdistas de Orígenes, existiam apenas duas características que de tudo por Atanásio, o conselheiro de Alexandre e depois seu sucessor como
identificam Deus. Primeiro, Deus "não tem origem". Como vimos, a teologia bispo. Ele atacou a visão ariana de Deus justamente como não sendo a do evan-
derivada dos apologistas não fazia distinção entre diferentes maneiras possíveis gelho. Se Deus não for intrinsecamente o Pai do Filho, ele não é intrinsecamen-
Ora,
de possuir origem; o origenismo de esquerda transformou a definição da divin- te Pai, porque "pai" indica uma relação (Discurso II contra os arianos).
dade num balaio de negações47. Segundo, Deus é totalmente destituído de di- ser paterno define o Deus que os cristãos adoram. Por isso é tão impossível que
ferenciação interna. Por isso, para Ano, dizer que o Filho também "não tem ele seja Deus sem o Filho quanto o é para a luz deixar de brilhar (Epístola sobre
origem", ou qualquer coisa desse tipo, é afirmar a existência de dois "codeu- o Decreto de Nicéia, 2; 12). Aqui se faz uma adaptação da doutrina de Orígenes
ses"*, ao passo que dizer que o Filho surge do Pai introduz uma diferencia- a respeito da geração eterna do Filho: que a origem do Filho a partir do Pai
ção até no Pai, isto é, nega totalmente que exista qualquer Deus verdadeiro49. não ocorre, em absoluto, no tempo. O próprio ser do Pai seria inacabado sem
Ano, por isso, ensina: "O Filho não é não-originado e não faz parte, de manei- o Filho; a bondade de Deus consiste em que ele é Pai; a verdade de Deus é o
ra nenhuma, do Não-Origjnado."50 Filho (Discurso 1 contra os arianos, 14, 28; 20); e o Filho não pode ser uma
(Discurso III, 68).
Está claro que Ano é movido pela necessidade totalmente dominante do criatura querida pelo Pai porque o Filho é a vontade do Pai
helenismo tardio de escapar ao tempo. Para que sejamos salvos, deve existir al- Não é exagero dizer que, para Atanásio, o que o Filho revela sobre Deus é exata-
guma realidade que não esteja de maneira nenhuma envolvida com o tempo, mente que Deus é seu Pai.
não tenha nenhum tipo de origem e cuja continuidade seja indiferenciada e inin- Como a relação conosco, na qualidade de Pai de nosso Senhor, é interna
terrupta. Assim sendo, Cristo, por estar inserido no tempo, não poderá ser real- ao ser de Deus, não há necessidade de seres que sirvam de ponte entre Deus
e nós. A grande necessidade religiosa da Antiguidade Tardia não é satisfeita pe-
45 ÁRIO, A Eusébio, in: BARDY, op. cit., p.
lo evangelho; ela é abolida. Então Atanásio está livre para rotular o uso adjeti-
mente gritam: 'sempre Deus, sempre Filho'."
227: "Não concordamos com aqueles que diaria- val e graduado de "Deus" como aquilo que é: "politeísmo, porque como eles
46 Ibid., p. 227.
47 Astérjo, o Sofista, o principal divulgador dos arianos na controvérsia subseqüente, formulou
o princípio: "ageneton ( ... ) to me poiethen ( ... )" ( PC 26, pp. 321-407.
fragmento VII, in: BARDY, op. cit.). O 51 ÁRIO, citado por ATANÁSIO, Discurso contra os arianos, 111,28, in:
grande líder do arianismo tardio, Aécio, fez de toda a doutrina de Deus uma mera dialética 52 ARIO, A Alexandre, in: BARDY, op. cit., p. 237.
abstrata sobre agennetosIgennetos, Syntagmata, in: PC 42, 53 ARIO, Banquete, in: ibid., p. 261.
48 ÁRIO, Banquete (Thaiia), in: BARDY, op. cit., p. 286: pp. 533-45.
"(...) lie monas en, lie duas de ouk 54 Ibid., p. 267: "O Logos também não é verdadeiro Deus. Ele é, certamente, chamado 'Deus'
en prin hyparxe". ( ... ), mas por participação concedida por graça."
49 ARIO, A Alexandre, in: BARDY, op. cit. pp. 236-7. Opera,
50 ARIO, A Eusébio, in: ibid., p. 228. 55 EUNOMIO, cit. ap. GREGÓRIO DE NISSA, "Contra Eunômio", in: W JAEGER, ed.,
Leiden, E. J. Brili, 1960, vols. 1-2, III/VIII,14.

142 143
[os arianos] chamam [o Filho] de Deus por assim estar escrito, mas não o cha- relação necessária a seu ser Deus Pai. Ser Deus é estar relacionado. Com isso
mam próprio ao Pai em seu ser, eles introduzem uma pluralidade de ( ... ) formas os pais da Igreja contradisseram o princípio mais importante da teologia helêni-
do ser divino" (Discurso III, 15). A assimilação de seres criados a Deus é o pró- ca.
prio princípio da religião não-cristã: "Essa é característica dos gregos: a intro- "Nascido, não criado..." faz exatamente aquela distinção entre dois modos
dução de uma criatura na Trindade." (Discurso III, 18.) A esfera intermediária de se originar de Deus, cuja ausência possibilitou a gradação subordinacionista
desapareceu totalmente: "Se for Filho, não é criatura; se for criatura, não é Fi- a partir do próprio Deus, que não tem origem, até nós, que temos, através do
lho." (Nicéia, 11) Filho, que é um pouco de ambos. Ao contrário, nós somos "criados", o Filho
é "gerado" - trata-se de duas coisas diferentes. Ninguém afirmou saber exata-
mente o que "gerado" significava nessa conexão. Não obstante, faz-se urna afir-
Nicéia e Constantinopla mação tremenda: há um modo de ser iniciado, de receber o ser, que rópri épo
da divindade. Ser Deus não é somente dar o ser, é também recebê-lo. E lá se
Por isso, movidos por preocupações últimas iguais, porém contrárias, os foi o resto da filosofia de Platão.
lideres eclesiásticos do Império oriental atacaram um ao outro quando Ano dis- "Deus verdadeiro de Deus verdadeiro" proíbe qualquer uso do princípio
se "quando ele não era' Exatamente neste momento o primeiro imperador cristão da analogia ao chamar Jesus de "Deus". Ele é simplesmente Deus, não Deus
assumiu o poder. Constantino veio como agente da paz universal, sonhando com em sentido restrito. A cláusula proíbe todo o uso grego de "Deus" como um
a restauração da pax Romana* pela nova religião do amor, e encontrou justa- adjetivo aplicável em vários graus.
mente os bispos metidos numa briga, os mais eruditos na linha de frente. De- Finalmente, há o famoso e decisivo "homoousios com o Pai". A história
pois de terem fracassado as tentativas iniciais de restaurar a paz, ele convocou da palavra homoousios passou por posições diferentes57. Foi usada teologicamen-
um concilio geral dos bispos do Império oriental para se encontrar em Nicéia, te pela primeira vez pelos gnósticos, para designar o surgimento mítico de suas
em 325, em sucessão a um concílio anterior realizado no Egito. diversas entidades divinas. Orígenes usou a palavra, porém raras vezes, para di-
Os participantes se encontraram na primeira grande reunião do cristianis- zer que o Filho tinha todas as mesmas características essenciais do Pai, mas num
mo ecumênico, num mundo em que a perseguição se transformou de repente nível ontológico diferente58 .
em súplica. E compreensível que sua disposição para com perturbadores da uni- Não sabemos como nem por que essa veio a ser a palavra importante em
dade fosse tão pouca quanto a do próprio Constantino. Confirmaram a conde- Nicéia. 'Làlvez ela tenha sido introduzida exatamente por Ano tê-la usado no
nação de Arió e depuseram de seus cargos os mais intransigentes entre os que sentido negativo, simplesmente para contradizê-lo. Ano tinha dito: "O Filho ( ... )
o apoiavam. Formularam uma regra para falar de Cristo que excluía Ano não é homoousios com [o Pai]" para rejeitar o trinitarismo do tipo ocidental
e seus seguidores imediatos, mas que todos os demais, até Eusébio de Nicomé- ou qualquer noção de Pai e Filho serem dois pela divisão de uma única
dia, conseguiram subscrever. Inseriram quatro explicações teológicas num credo substância59 .
litúrgico típico de três artigos: disseram que Cristo é "da substância do Pai", Os bispos, pelo que parece, não tiveram nenhum significado particular em
"Deus verdadeiro de Deus verdadeiro", "gerado, não feito" e "homoousios (de mente quando usaram homoousios. Os conselheiros ocidentais de Constantino
uma só substância) com o Pai". Esse é o dogma de Nicéia, o primeiro dog- em Nicéia, que pensavam em latim, sem dúvida consideraram homoousios co-
ma criado deliberadamente e um dos objetos principais de todo este locus. mo simples tradução da expressão "de uma única substância", de Tertuliano,
"Da substância do Pai" afirma justamente aquela origem de Cristo dentro e não tiveram mais nenhum problema. Para aqueles que pensavam em grego,
do próprio ser de Deus que Ano mais temia. A expressão diz que o Filho não o assunto não era tão simples. Homoousios teria o mesmo significado que em
é uma entidade originada fora de Deus por sua escolha externamente dirigida, Orígenes? Os antiarianos mais fervorosos, como Atanásio, suspeitavam que es-
que ele não é, em sentido algum, uma criatura. E diz que há uma diferenciação se poderia ser o caso, e que a palavra, por isso, poderia ser uma salvaguarda
dentro de Deus, que a relação com o Filho é uma relação interna no Pai, uma insatisfatória contra o sub ordinacionismo; durante algum tempo foram cautelo-
sos com seu uso. Significaria que tanto o Pai quanto o Filho tinham todas as
características da divindade, quaisquer que sejam? Neste caso não haveria dois
* N. do E.: Paz romana. (ou três) Deuses? Ou significaria, de um modo mais aristotélico, que o Pai e
56 O texto da paste relevante do segundo artigo e dos anátemas apensos: "E em um Senhor
Jesus Cristo, o Filho de Deus, nascido do Pai (ek tou patros), de forma única, i. é, do ser
do Pai (ek tes ousias tou patros), Deus de Deus, luz de luz, verdadeiro Deus de verdadeiro
Deus; não feito, de um só ser com o Pai (homoousion to patri)..." "A Igreja católica conde- 57 Heinz KRAFF, "OMOOUSIOS", ZKG, 66: 1-24, 1954-55; Adolf M. RITTER, Das Konzil
na aqueles que dizem: 'Houve (um tempo) em que ele não era', e: 'Antes de nascer, ele não von Konstantin opel und sein Sym boi, Gttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1965, pp. 270-93.
era', e: 'Ele se originou daquilo que não é', chamando-o 'de uma outra hipóstae' ou 'de 58 ORIGENES, fragmento 540, coletado por M. J. Rouët de JOURNAL, EnchP, 1965.
um outro ser' (ousia), de maneira que ele seria um 'Filho de Deus' variável e mutável." 59 ARIO, Banquete, in: BARDY, op. cit., p. 256.

144 145
o Filho constituíam numericamente uma só entidade efetiva? Mas como então a cada nova tentativa teológica. De um lado do espectro havia dois grupos: Ata-
se poderia evitar o modalismo? Os lucianistas temiam que o modalismo não pu- násio com seus seguidores e os bispos ocidentais, que se fixaram na fórmula de
desse ser evitado, e quando um dos principais antiarianos em Nicéia, Marcelo Tertuliano, nunca entenderam totalmente os problemas dos orientais e apoia-
de Ancira, de fato revelou-se modalista, eles tiveram para sempre um exemplo ram Atanásio quando ousaram. Um pouco de coragem era necessário porque
assustador60 . - depois de Nicéia a reação antinicena normalmente conseguiu parecer o meio-ter-
Uma coisa, no entanto, ficou clara: homoousios significava que Ano era mo interessado na paz e assim assegurar o apoio do imperador. Do outro lado
um herege. Positivamente, há apenas um ser divino, e tanto o Pai quanto o Fi- havia os arianos de fato, alguns dos quais dispostos a serem chamados assim
lho o possuem. Seja qual for o significado de ser Deus, pura e simplesmente, e outros não, esporadicamente recrutados do meio origenista. Entre essas posi-
Cristo é Deus. E isso é o bastante para fazer a afirmação necessária e revolucio- ções estava a maioria dos líderes eclesiásticos do Oriente, cuja finalidade comum
nária: Cristo não é, de forma nenhuma, o tipo de entidade intermediária de que era a preservação da tradicional teologia origenista do Oriente. Mas, uma vez
a religião normal precisa e que ela providencia para mediar entre o tempo e a que passou a existir o desafio do homoousios, seu terreno mostrou ser escorre-
eternidade. Não é um mestre ou exemplo divino, um salvador pessoal, um me- gadio, e a ala esquerda resvalava constantemente para posições praticamente aria-
diador da graça ou qualquer um dos queridos semideuses da religião nõrmál. nas.
Ele é constitutivo de Deus, não meramente seu revelador - ou, se se desenvolve Após hesitação inicial, Atanásio fez do hornoousios a sua divisa, signifi-
toda uma teologia da revelação, então ser revelado em Cristo é, em si, constitu- cando que o Pai e o Filho - e o Espírito - juntos constituem a realidade única
tivo de Deus. de Deus: a Trindade como tal é Deus62 . Qualquer que tenha sido o significado
Apesar de serem abruptas e quase instintivas, as expressões usadas por Ni- que os diversos bispos em Nicéia deram a homoousios, é com esta característica
céia estabelecem a diferença decisiva entre a interpretação cristã de Deus e as de- que a palavra entra na história da dogmática. As várias coligações antinicenas
mais, então e agora. A proclamação de um Deus ou de uma salvação que não consideravam o Pai por si verdadeiramente Deus, e o Filho, o próximo na escala
se enquadra não pode ser o evangelho, por mais religiosa ou benéfica que possa descendente do espectro do ser, como muito estreitamente - talvez até total-
ser em outros aspectos. Na auto-identificação do cristianismo, o incidente aria- mente - assimilado a Deus. Mesmo que as terminologias estivessem confusas,
no foi a crise mais decisiva e o Credo Niceno a vitória mais decisiva até hoje. a questão era e é clara e vital para a fé. O que está em jogo não é tanto o status
O evangelho - disse Nicéia finalmente de maneira inequívoca - não fornece de Jesus, e sim quem e o que é o próprio Deus.
nenhum mediador pelo qual possamos ascender a um Deus intemporal e por As divisas anti-homoousianas surgiam e desapareciam. Nenhuma realmen-
isso distante. Antes, proclama um Deus cuja própria divindade não pode ser te funcionava; então se tentava uma outra. O resultado final do movimento an-
separada de uma figura da nossa história temporal e que, por isso, não é e nun- tiniceno foi o descrédito do subordinacionismo pela destruição da unidade con-
ca foi intemporal e não está e nunca esteve distante de nós. fessional da Igreja oriental. Por exemplo, em Antioquia, pouco antes de 360,
Os bispos não tinham plena consciência do que haviam dito através deste existia um sistema denominacional completo: uma congregação de arianos con-
credo, a não ser que Ano fora longe demais. Quando voltaram para casa, tor- sumados, uma de arianos sofisticados, a Igreja oficial com um bispo eusebiano,
naram-se conscientes lentamente. Então começou a disputa verdadeira, que du- um grupo pró-niceno que se submetera ao bispo mas fazia suas próprias reu-
raria 60 anos. De certo modo, ela ainda continua. niõese uma congregação separada de nicenos intransigentes.
O trinitarismo subordinacionista ainda não tinha se desfeito por dentro; só A medida que continuava a cansativa formulação de credos, muitos que
se renunciara à sua versão rude. Aparentemente, ainda havia uma variedade de originalmente não pertenciam ao partido de Atanásio começaram a ver que a
procedimentos a serem tentados para combinar a gradação do ser com a dife- visão de Deus evocada por homoousios - no sentido usado por Atanásio -
rença entre o Criador e a criatura. Nos 40 anos seguintes cada tentativa dessas era a sua também65 . O que o Oriente precisava era uma explicação de como is-
produziria uma nova proposta de credo e um novo alinhamento contra Ataná- so poderia funcionar, de como alguém poderia dizer de fato que o Pai e o Filho
sio. Além disso, o dogma niceno era incompleto; o que dizer a respeito do Espí- são um só Deus, e que isso não é uma questão de níveis, sem com isso cair no
rito? Tão logo se notou a questão - novamente no Egito - todo um espectro modalismo, isto é, como se poderia manter a percepção decisiva de Orígenes
novo de disputas veio à tona.
Os lucianistas iniciaram a nova batalha, recusando-se a considerar Nicéia
como a última palavra e esforçando-se para se apossar dos bispados e para que chel MESLIN, Les Arjens d'Ocddent, Paris, Servil, 1967, pp. 253-99.
um credo mais moderado fosse ecumenicamente aceito61. As posições mudavam 62 ATANASIO, Discurso 1 contra ps arianos, 18. Atanásio explica que homoousios é o produto
lógico de "possuído por características idênticas (homoiousios)" e "do ser (ek tes physeos)"
60 Se Marcelo não era modalista (como GRILLMEIER, op. cit., pp. 275-96, se esforça para (Epístola sobre os concílios de Arimino e Selêucia, 41-2).
mostrar), ele enganou todo o mundo na época. 63 Veja RITTER, op. cit., pp. 64-85.
64 DUCHESNE, op. cit., pp. 276-7.
61 Veja DUCHESNE, op. cit., pp. 125-200, 218ss. Para o melhor relato breve da teologia, v. Mi- 65 RITTER, op. cit., pp. 68-85.

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de que Pai, Filho e Espírito são de fato três em Deus, sem precisar classificá-los
ontologicamente.
Tal teoria foi elaborada finalmente na década de 370 por uma nova e bri-
lhante geração de mestres e bispos, novamente da escola de Orígenes, porém
usando a sua dialética para vencer seu subordinacionismo. Os pensadores mais
poderosos entre esses eram os capadócios: Basilio, o primaz da Capadócia, seu. ri'
irmão Gregório de Nissa e seu protegido, Gregório de Nazianzo. Uma análise
de seu pensamento faz parte do próximo capítulo. Aqui uma caracterização ge- Um e três
ral será o suficiente. Os capadócios tomaram as três hipóstases de Orígenes e
as distinções reais entre elas — que, para ele, constituíam uma escada que ligava A dialética trinitária plenamente desenvolvida, tal como a proposi-
Deus ao tempo em sentido vertical — e a deitaram de lado, para fazer uma es- ção de que Deus é "três pessoas de uma única substância", é uma
trutura horizontal em relação ao tempo que ligava um ponto a outro em Deus; análise metafísica da identificação triúna de Deus pelo evangelho e
Só se precisou de um movimento dialético deste tipo para possibilitar uma acei- especialmente de sua diferença em relação à interpretação helênica de
tação geral do dogma de Nicéia. Deus. A necessidade de tal análise não pertence ao passado; de fato,
O Imperador Teodósio 1, decidido, como seus antecessores, a restaurar a no momento atual ela é mais urgente que em qualquer tempo desde
unidade da Igreja, convocou ainda um outro concílio em Constantinopla em
381. Foi um concilio dos seguidores de Basilio, e obteve êxito onde todos os a Antiguidade.
anteriores tinham falhado. Proclamou a confissão de Nicéia como a confissão
oficial do Oriente pela adoção de um outro credo batismal regional que, ao ser
usado em sentido niceno, fora enriquecido com as suas expressões. E adicionou A terminologia trinitána oriental
uma afirmação da plena divindade do Espírito, com inserções no terceiro artigo:
"(...) Senhor e Vivificador, que procede do Pai, que com o Pai e o Filho con- Dois séculos de reflexão apaixonada levaram a Igreja oriental de volta à
juntamente é adorado e glorificado ( ... )." Neste artigo evitou-se a própria pala- regra de fé com a qual começara. Mas agora há conceitos sobre os quais existe
vra homoousios, para não começar outra vez a batalha por causa da terminolo-
gia. concordância, providenciados pelos capadócios: "um ser (ousia) de Deus em três
O artigo sobre o Espírito completou o dogma trinitário. Visto que, na hipóstases (hypostaseis)". Esses conceitos foram derivados de expressões de Orí-
genes' e, numa segunda sessão do concílio de Teodósio, em 382, seu uso
hierarquia subordinacionista, o Espírito estava um degrau mais distante de Deus
que o Logos, a afirmação da plena divindade do Espírito marcou a rejeição fi- eclesiástico foi aprovado2. Ao elucidá-los, exporemos a análise dos capadócios
nal de todo o princípio subordinacionista. Com essa afirmação a posição de meio- e continuaremos com uma análise própria.
Num primeiro nível, "um ser em três hipóstases" foi meramente uma espé-
termo se dividiu entre aqueles que entraram na Igreja ecumênica reconstituída cie de acerto lingüístico, que determinou uma terminologia para uma necessida-
e aqueles que continuaram numa oposição decrescente ou no sectarismo67 . de percebida: a de que, de uma maneira ou de outra, possamos nos referir a
Falta mais um passo na estória do dogma niceno. Em 451, muito depois Deus tanto como uma quanto como três realidades. Na maior parte do uso teo-
de terem cessado essas controvérsias, o Concílio de Calcedônia proclamou for-
malmente tanto o Credo de Nicéia quanto o de Constantinopla como dogma lógico prévio, ousia e hypostasis tinham sido tratados mais ou menos como sinô-
nimos. O decreto de Nicéia usou ambos os termos indiscriminadamente no sin-
para toda a Igreja, Ocidente e Oriente. Desde então, o Credo Constantinopo- gular ao afirmar a unicidade da realidade triúna, como Atanásio fez durante
litano — chamado incorretamente de Credo Niceno — veio a dominar o uso toda a sua vida'. O espectro origenista inteiro usou os dois no plural ao afir-
litúrgico por conter as expressões sobre o Espírito. Os dois credos juntos são mar que há de fato três realidades, de alguma maneira diferentes, na frmndade4 .
os documentos dogmáticos. Desde então a regra ecumênica para todo discurso
na Igreja cristã tem sido: em todas as três direções temporais da nossa relação
com Jesus Cristo, tratamos insuperavelmente com Deus, e exatamente por essa "naturam Ti-initatis et
circunstância nosso Deus difere do Deus cultural da civilização ocidental, até ORÍGENES, Comentário de Romanos, in: EnchP, 1965, 502:7, 13:
substantiam unam". ORIGENES, Comentário de João, 2,10,75: "treis hypostaseis (...) tyganein".
mesmo em suas versões cristianizadas. 2 COD, 1973, 28: Há uma "divindade e um poder e ser (ousia) (...) em três hipóstases perfei-
tas''.
66 Sobre esse parágrafo, veja ibid., pp. 21-40, 132-2041 293-307. 3 P. ex., em Discurso III contra os arianos, 65. New York,
67 MESLIN, op. cit., pp. 325-435; RITTER, op. cit., pp. 68-85. 4 V., p. ex., o "Credo de Luciano", in: P. SCHAFF, ed., Creeds of Christendom,
68 RITTER, ibid., pp. 133-51, 172-5, 204-8. Harper, 1889, vol. 2, p. 27.

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A nova regulamentação da terminologia, encontrando duas palavras para "o que Deus é comum às três hipóstases, que se distinguem pelas características que
é verdadeiro" no uso trinitário, adotou um meio-termo e tomou uma palavra as identificam individualmente como "não-gerado", "gerado" e "procedente"9.
para designar o único e outra para os três. E claro que isso as expõe à pergunta: "Como Pedro, Paulo e Barnabé são três
Com isso providenciou-se para o Oriente uma terminologia trinitária equi- homens, por que Pai, Filho e Espírito não são três deuses?"° A criatividade
valente, em termos de extensão, à expressão "uma substância (substantia) em metafísica dos capadócios aparece em sua resposta a esse desafio.
três pessoas (per9onae)" do Ocidente. Mas é vital que se compreenda que as duas
terminologias não são equivalentes quanto à sua intenção. Se uma prõpõsição
de uma delas for colocada simplesmente na outra, seu significado não é neces- As três hipóstases
sariamente preservado. O fato de se deixar de observar isso tem sido e é a causa
de muita confusão. "Substância" e "pessoa" jamais foram intercambiávejs. Assim Os capadócios reelaboraram os conceitos ousia e hypostasis. Consideramos
sendo, sua distinção não evocou nenhuma nova percepção. Elas também não hypostasis primeiro. Os múltiplos indivíduos que compartilham a humanidade
continham qualquer história de controvérsia trinitária5 . diferem um do outro por características adventícias à - na visão helênica usual,
Unto ousia quanto hypostasis entraram na teologia procedentes da tradi- até mesmo privativas da - humanidade que têm em comum: cabelos castanhos,
ção filosófica6. Nela foram usadas quase intercambiavelmente para designar o inteligência moderada, ancestrais atenienses, ou qualquer outra coisa. Por conse-
que é - conforme a apreensão helênica, aquilo que é pela possessão de algum guinte, são seres humanos múltiplos. Mas a Divindade, disseram os capadócios,
complexo específico de características permanentes. Por conseguinte, são usadas não pode receber tais características que lhe são adventícias ou privativas.
também para designar o "ser" assim possuído, isto é, tanto este comple- Por isso não há maneira de uma pluralidade de hipóstases divinas - se a mes-
xo de características quanto a estabilidade ao longo do tempo que a possessão ma for, de alguma maneira, estabelecida - formar uma pluralidade de
das mesmas confere. Deuses". Deve-se observar que sua argumentação só tem validade se o uso ad-
Entre os significados de ousia e hypostasis havia, no entanto, pequenas nuan- jetival graduado de "Deus" se tornar totalmente inconcebível, e é justamente
ças de diferença. Ousia costumava ser usado para designar a realidade que as a isto que a autoconsciência teológica cristã tinha chegado.
coisas reais têm e assim evocar, por exemplo, a humanidade que Sócrates pos- E de fato há uma maneira de identificar os três individualmente que não
sui, mas não tanto as marcas pelas quais ele, como ser humano, difere de outros seja através de características adventícias à Divindade ou privativas dela. Suas ca-
seres, enquanto hypostasis tinha conotações mais fortes de distinção e identifi- racterísticas de identificação individual são as relações que têm um com o ou-
cação. Quando o uso trinitário separou os termos, a divisão foi feita de acordo tro, exatamente no que diz respeito a sua possessão conjunta da divindade. Deus
com essas nuanças. Hypostasis significou agora simplesmente aquilo que pode é o Pai como a fonte da Divindade do Filho e do Espírito; Deus é o Filho como
ser identificado, enquanto ousia significou o que tal coisa identificável é,. Isso o recipiente da Divindade do Pai; e Deus é o Espírito como o espírito da posses-
fez hypostasis cair necessariamente para o nível do indivíduo e localizou ousia são da Divindade do Pai pelo Filho12 . A maneira diferente em que cada um é
no nível do ser que qualquer tipo de indivíduos têm em comum - exceto que o Deus único, para e a partir dos outros, é a única diferença entre eles".
hypostasis trazia consigo um ar de dignidade metafísica que faltava nas expres- Chegamos a completar de certo modo a dialética. 1àmbém alcançamos um
sões anteriores que designavam o indivíduo. ponto onde é necessário algo além da interpretação e reflexão históricas. Há dois
Esse é o ponto de partida da análise dos capadócios: Pai, Filho e Espírito, assuntos a levar em consideração.
dizem eles, são três indivíduos que partilham da Divindade, como Pedro, Paulo Primeiro, devemos nos lembrar de que é que se trata em todos esses jogos
e Barnabé são três indivíduos que partilham da humanidade8. O ser único de de palavras. As "hipóstases" são Jesus, a vontade transcendente que ele cha-
mou Pai e o Espírito do futuro deles para nós. E igualmente essencial lembrar
5 Os gregos usavam, ocasionalmente, prosopon no lugar de ou junto com hypostasis. Os ter-
mos prosopon e persona deveriam ser traduções exatas um do outro. Mas prosopon jamais 9 P. ex. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Sermão XXXI, in: A. J. MASON, ed., The Five The-
teve qualquer importância como conceito trinitário no Oriente. E os latinos não adotaram ologica! Orations, 1889, p. 9; GREGÓRIO DE NISSA, Contra Eunômio, in: W.
persona como tradução de prosopon, mas por sua própria causa. Veja Renê BRAUN, Deus JAEGER, ed., Opera, Leiden, E. J. Brill, 1960, vol. 1, pp. 278-80.
Christianorum; recherches sur le vocabulaire doctrinal de Tertullian, Paris, Presses Uni- 10 Feita por GREGÓRIO DE NISSA, A Ablábio, in: E MUELLER, ed., Opera, Leiden, E.
versitaires, 1962, pp. 240-7. J. Brili, vol. 2/1, p. 117.
6 Sobre ousia: Joseph OWNES, The Doctrine of Being in the Aristotelian Metaphysics, Toron- 11 P. ex. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Sermão XXXI, 15-6.
to, Pontifical Institute, 1951; Werner MARX, The Meaning ofAristotle's "Ontology", The 12 P. ex. BASILIO O GRANDE, Contra Eunômio, 11,22; GREGÓRIO DE NAZIANZO, Ser-
Hague, Nijhoff, 1954. Sobre hypostasis: H. KOESTER, s. v. "Hypostasis", in: ThWNT. mão XXXIV, 10.
7 BASILIO, O GRANDE, Cartas, CCXIV,4: "Assim como um substantivo comum está rela- 13 Conforme GREGÓRIO DE NISSA, A Ablábio, 135, há três questões ontológicas: "Se [o
cionado com um nome próprio, da mesma forma a ousia está relacionada com a hypostasis." ser] é", "O que [o ser] é", "Como [o ser] é". A distinção das três hipóstases é relativa apenas
8 Ibid. à terceira questão.

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que as "relações" das hipóstases são a obediência e dependência históricas de de", porque, como é evidente a partir da história da adaptação de hypostasis
Jesus em relação a seu Pai e a entrada de seu futuro na comunidade dos fiéis. ao uso trinitrio, ahipostasis trinitária, em sua separação de ousia, invocava exa-
"Gerando", "gerado", "procedente" e suas variantes são termos bíblicos para tamente a função ontológica agora indicada por "identidade". Explicamos essa
designar as estruturas temporais da história evangélica, que a teologia então usa função em dois passos.
para evocar as relações constitutivas da vida de Deus. O que ocorre entre Jesus Primeiro, a identidade de alguma coisa é a possibilidade de destacá-la do
e seu Pai e nosso futuro acontece em Deus - essa é a questão.
meio da agitação da realidade para poder falar sobre ela. A enumerabilidade
Os capadócios conseguiram encontrar uma maneira de expressar isso em do mundo, pela qual podemos dizer: "isto, e isto, e depois isto" é uma de suas
conceitos, dispondo as hipóstases de Orígenes e sua homoousia horizontalmen- características metafisicas mais profundas. Essa característica, referindo-se a qual-
te e não verticalmente em relação ao tempo, fazendo das relações mútuas das
hipóstases as estruturas da vida do Deus único, e não graus descendentes ,a par- quer um desses "isto", é uma identidade.
Identificamos de várias maneiras. Apontamos o dedo e dizemos: "isso".
tir de Deus até nós14 . Assim a Trindade como tal é o Criador, em contraste com
Mas muitas vezes não podemos apontar o dedo. Então temos dois recursos lin-
a criatura, e os três em Deus e suas relações se tornam a realidade da história güísticos: nomes próprios e descrições identificadoras.
evangélica do lado do Criador na grande linha divisória estabelecida pela Bí- Conseqüentemente, o fato de que há três identidades em Deus significa que
blia. Para transpor a distinção Criador-criatura não há necessidade de nenhum há três conjuntos distintos de nomes e descrições e cada um é suficiente para
mediador"; "Criador/criatura" indica uma diferença absoluta, porém nenhu- especificar de modo único, mas todos identificam a mesma realidade. Entre eles,
ma distância, porque ser o Criador significa, meramente como tal, relacionar-se aquele que diz: "Deus é aquilo que acontece com Jesus", tem a prioridade epis-
ativamente com a criatura. Cada uma das relações intratrinitárias é então uma tçmológica do tempo presente, de maneira que em cada um dos outros dois apa-
afirmação de que, assim como Deus trabalha criativamente entre nós, ele é em recerão termos que, se uma interpretação for exigida, só podem ser interpreta-
si próprio. dos mediante referência à história de Jesus. Por exemplo, se dissermos: "Deus
Já era tempo, dissemos, de nos lembrarmos dessas coisas. O dogma niceno é a esperança no princípio de todas as coisas" e depois se nos fizer a pergunta:
e a análise dos capadócios foram vitórias no confronto entre as interpretações "Esperança em quê?", devemos responder: "Esperança na vitória de Jesus."
de Deus do evangelho e do helenismo. Mas o confronto não está concluído de As três identificações podem, quanto ao mais, ser realizadas independente-
modo nenhum. Uma contínua ameaça pós-nicena tem sido a tentação de inter- mente. Mas os predicados que usamos para aquele que foi identificado em qual-
pretar a Trindade como um todo pela teologia negativa helênica, de maneira que quer uma dessas três maneiras só podem se tornar inequívocos - no caso de
a Trindade, por sua vez, desapareça na antiga intemporalidade distante, levando ameaça de ambigüidade - se os aplicarmos a todas as três identidades. Por exem-
consigo a sua reflexão interna da história evangélica. Nos capadócios já há um plo: "Deus é bom no sentido em que um doador é bom; Deus é bom no sentido
sinal de perigo: a sua tendência de se refugiar no mistério quando se lhes per- em que uma dádiva é boa; e Deus é bom no sentido em que o efeito de uma
gunta o que "gerando" e "procedente" significam'6. Por que haveria de existir
dádiva é bom?'
um problema? Não há nenhum em relação ao que essas palavras significam co-
mo divisas para eventos históricos salvíficos. Não deveria haver mais nenhum Segundo, "identidade" hoje é usado regularmente para interpretar a exis-
em relação a seus significados trinitários - a não ser que a compreensão da tência pessoal, como quando dizemos que alguém "está buscando sua identida-
própria vida triúna seja infiltrada com impassibilidade, imobilidade, etc., e em de". Esse sentido está ligado ao primeiro; menciona o modo de identificabilida-
referência a isto uma palavra como "procedente" de fato não pode significar de próprio de certas entidades, aquelas que chamamos correntemente de "pes-
muito. soais" num sentido bem diferente da "pessoa" trinitária. Como pessoa, neste
Uma vez que a referência temporal da linguagem trinitária seja reafirmada, sentido moderno, sou o que sou somente por me lembrar do que tenho sido
podemos voltar-nos novamente ao problema conceitual das três hipóstases. Co- e esperar por aquilo que serei. Se Jones é uma pessoa, nesse sentido moderno,
mo parte da linguagem trinitária, o termo hypostasis é meramente um pedaço o "é" em "Jones é preguiçoso" não é bem um verbo de ligação normal. E antes
de entulho lingüístico arrancado da filosofia grega pela colisão com Javé. A com- um verbo transitivo, modificável por um advérbio. É a palavra que indica um
preensão atual progrediria se o substituíssemos por uma palavra filosoficamen- ato específico de se posicionar em e através do tempo. O pensamento existencia-
te ativa no presente. Os leitores não se surpreenderão que propomos "identida- lista inventou palavras como "existência" ou Dasein para esse ato. Em seus usos
pré-trinitário e pré-cristológico, hypostasis não tinha este sentido, mas, nas ma-
neiras muitas vezes deturpadas da tradição teológica usar hypostasis, justamen-
14 P. ex. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Sermão XXIX, 11: "Se é importante para o Pai não te esta percepção da identidade peculiar de realidades-pessoas lutou para ganhar
ter origem, não é menos importante para o Filho ter o Pai como fonte."
15 Ou, alternativamente, a encarnação, e não o Logos como tal, é a mediação. Assim GREGÓ- expressão já nos capadócios.
RIO DE NISSA, Refutação do segundo livro de Eunômio, in: Opera, vol. 2, p. 144. Conseqüentemente, o fato de haver até mesmo uma única identidade em
16 P. ex. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Sermão XXXI, 8. Deus significa que Deus é pessoal, que é Deus e que faz a Divindade, no sentido

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de que ele se escolhe a si próprio como Deus. O fato de haver três identidades em à ousia divina de maneira nenhuma, nem em sua singularidade nem em sua tri-
Deus significa que o ato desse Deus de ser o único Deus é repetido três vezes17 , plicidade. "Deus" é um predicado, e a quantidade de deuses que se afirma ha-
e de maneira que cada repetição é um ser de Deus; e de maneira que somente ver depende da quantidade de sujeitos lógicos a que se liga o mesmo. A plurali-
nesta exata auto-repetição Deus é o Deus particular que ele de fato é. Deus faz dade de instâncias da ousia divina não é uma pluralidade de deuses, porque,
Deus, e novamente e mais uma vez - e somente assim ocorrem o evento e a primeiramente a ousia não é o sujeito lógico de "Deus", e as instâncias da ou-
decisão que é este Deus. sia também não o são; o número de indivíduos que são instâncias da ousia de
Deus é irrelevante para o número de deuses que há.
"Deus" é então o predicado de quê? A resposta revolucionária de Gregó-
O ser único rio é: da atividade divina em relação a nós (ibid., 124). E como toda ação divina
é a obra estruturadarflente mútua de Pai, Filho e Espírito, a sua atividade divina
Voltemos aos capadócios. Eles também precisavam de uma análise correia- é somente um sujeito lógico de "Deus": "Toda ação que é exercida sobre a cria-
ta da ousia divina para mostrar como a mesma poderia ser o ser de três indiví- tura a partir de Deus ( ... ) começa do Pai, está presente pelo Filho e é aperfeiçoa-
duos sem que esses fossem três instâncias de Deus. Tinham uma variedade de da no Espírito Santo. Por isso o nome da ação ("Deus") não é dividido entre
argumentos; acompanharemos um deles, elaborado por Gregório de Nissa. a pluralidade de agentes." (Ibid., 127.) Gregório de Nazianzo certa vez revisou
Por haver somente uma Divindade, a Trindade é, de alguma maneira, indi- uma antiga ilustração trinitária de maneira surpreendente. Em vez de comparar
vidual e por isso deve ser identificável para ser real. E Gregório de fato oferece Pai, Filho e Espírito com o sol e seus raios, ele os comparou a três sóis, focaliza-
uma descrição que identifica a ousia única de Deus - mas essa descrição é exa- dos de tal maneira que formassem um raio só: o raio é Deus (Sermão XXXI,
tamente que o ser de Deus é infinito18 . Podemos identificar o ser único de Deus 14).
como, e somente como a vida que não conhece limite e que por isso continuará A ousia divina não fica fora desta imagem, porque as relações intratrinitá-
sempre ultrapassando toda descrição identificadora mesmo que essa seja rias, pelas quais há três já de saída, são definidas em termos da mesma. O Pai
verdadeira19 . Isso não significa necessariamente que de modo algum possamos concede precisamente a divindade no sentido de infinidade, o Filho a recebe e
identificar Deus positivamente: Deus é "aquele que ressuscitou a Jesus' mas o Espírito a comunica; por suas relações, a ação de cada um é temporalmente
então trata-se dos três e não do único. ilimitada, para ser a ação de Deus. Mas é a obra, o evento criativo, realizada
Gregório tem plena consciência de estar rompendo com a tradição filosófi- através da vida, morte, ressurreição e vinda futura de Jesus, operada por seu
ca. Menciona a opinião "dos muitos", que ele rejeita. De acordo com essa opi- Pai para o Espírito deles, que é o Deus único.
nião, "Deus" é, como "ser humano" ou "rocha", "por natureza um nome não- Com certeza, essa tendência é biblicamente correta, ao menos por aquela
metafórico", "a quem se confere um predicado para identificá-lo pela natureza compreensão do testemunho bíblico acima esboçada. A determinação de um even-
da coisa" (A Ablábio, 121). iki palavra evoca todo o conjunto de características to como o sujeito de "Deus" impõe uma tarefa de revisão ontológica, para a
essenciais de alguma entidade de uma só vez, na medida em que essas formam qual eventualmente teremos que nos voltar, como o fez Gregório. Mas, deixan-
um complexo orgânico de tal maneira que cada característica seja o que é so- do isso de lado por um momento e lembrando a exposição da "identidade",
mente junto com as demais. Por conseguinte, tal palavra revela de maneira úni- obtemos a seguinte fórmula: há um evento, Deus, de três identidades. E com
ca o "sujeitÕ individual subjacente" (ibid.), aquilo que, em qualquer coisa real, isso obtemos a análise trinitária básica proposta por este ensaio.
tem todas as características pelas quais a coisa é o que é, e que é estabelecido
como o possível possuidor dessas características, e não de outras. Para Deus,
diz Gregório, não existe tal palavra (ibid.). A versão ocidental
Assim - e finalmente chegamos à questão -, a resposta de Gregório à
pergunta por que três indivíduos que compartilham a ousia de Deus não consti- A batalha e a criação que narramos neste capítulo e no anterior ocorreram
tuem três deuses, é que "Deus" e todos os seus equivalentes não são atribuídos na Igreja oriental. Seus resultados foram assimilados no Ocidente a partir do
final do século IV. As circunstâncias da assimilação foram decisivas para o pen-
17 Essa é a linguagem de Karl Barth. samento e a vida da Igreja ocidental. Sem tentar julgar sua importância relati-
18 Isso agora já está tão minuciosamente pesquisado, que não faz sentido listar as passagens va, podemos mencionar três dessas circunstâncias.
aqui; Ekkehard MUEHLENBERG, Die Unend]ichkelt Gottes bei Gregor von Nyssa, Gttin- Primeiro, a doutrina da Trindade veio ao Ocidente como um produto aca-
gen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1966. Para o uso anterior de "infinito" na teologia, v. Werner
ELERT, Der Ausgang der altkircJi]jchen Chrlstologle, Berlin, Lutherisches Verlagshaus, 1957, bado. Assim, era antes algo a ser explicado que uma explicação.
p. 118-32. - Segundo, ao conduzir a análise e especulação trinitárias em latim, os resul-
19 Também isso está minuciosamente analisado agora: Jean DANIELOU, L'Etre e des Temps tados gregos foram comprimidos numa terminologia previamente estabelecida
chez Grégoire de Nysse, Leiden, E. J. BrilI, 1970. na tradição latina: há uma "substância" de Deus (ou "essência" ou "nature-
154 155
za") em três "pessoas". Mas esses termos não haviam passado por nenhuma dar; por conseguinte, "é justo dizer que ele é" (Da Trindade, V,2).
das batalhas conceptuais do Oriente; quando se tratava dos impulsos criativos Essa repristinação acrítica das pressuposições gregas teve duas conseqüên-
de orientais como Gregório de Nissa, os leitores ocidentais invariavelmente no cias diretamente relevantes para o que nos interessa. Uma foi a doutrina da "sim-
compreendiam o cerne da questão. O próprio Agostinho confessou não com- plicidade" divina, que se tornou um expediente técnico crucial para toda análise
preender a distinção-chave dos gregos: "Não sei que diferença eles visam esta- trinitária ocidental subseqüente. Como é pela posse de "acidentes", isto é, ca-
belecer entre ousia e hypostasis." 20
racterísticas que podem mudar, que as realidades comuns são vulneráveis ao tem-
Terceiro, a síntese entre o pensamento oriental e a linguagem ocidental foi , po, Deus não possui nenhuma delas, assim todos concordavam (ibid., V,3). Co-
quase totalmente obra de um só homem: Agostinho, um dos poucos gênios que mo afirmou Tomás de Aquino, acidentes são a marca da potencialidade, da ca-
moldaram a história. As suas experiências espirituais e intelectuais de caráter pacidade de se tornar diferente do que se é; isso está ausente em Deus (Suma
pessoal se estamparam na teologia ocidental de uma maneira que não tem para~
lelo na história cristã. Para grande parte da teologia, isso foi uma bênção, mas teológica, 1,3,6). Mas enquanto houver uma diferença real entre a coisa e suas
o nosso trinitarismo foi arruinado, porque sua experiência religiosa particular características, deve ser possível que a substância permaneça enquanto pelo me-
o levou a compreender o caráter triúno de Deus como uma coisa, e a história nos algumas características mudam, isto é, algumas devem ser acidentes. Por is-
so, em Deus não há tal diferença; como formula Agostinho: "Deus não é gran-
da salvação como outra, totalmente diferente. Assim as fórmulas trinitárjas per- de por uma grandeza diferente dele ( ... ); ele é grande por aquela grandeza ( ... )
deram completamente a sua função origina121 . que ele próprio é?' (Da Trindade, V,11.) "Deus é chamado simples porque ele
Todas essas circunstâncias promoveram uma espécie de volta ao pensamen- é o que tem." (Da cidade de Deus, 1,XI,10,1.)
to pré-niceno. A interpretação helênica de Deus jamais fora totalmente vencida A segunda conseqüência foi que a preocupação da Antiguidade Tardia a
na teologia geral dos pais do Orientei mas apenas dentro do próprio dogma e respeito da relação de um Deus supostamente intemporal com sua criação tem-
análise trinitários, e aí com distinções sutis, que se perdiam facilmente. Assim poral voltou a invadir o cerne da questão trinitária, com maus resultados. O agos-
o caminho permaneceu aberto para que a teologia ocidental repristinasse a táti- tinismo proibia qualquer afirmação sobre a relação de Deus com o tempo que
ca aditiva dos antigos apologistas numa forma nova. E é isso que aconteceu du- pudesse sugerir uma mudança no próprio Deus. O próprio Agostinho reconhe-
rante a longa história da teologia ocidental. A herança da interpretação helênica ceu que aqui havia uma dificuldade: "E difícil ver como Deus ( ... ) cria coisas
foi recebida como aquilo que os escolásticos viriam a chamar de teologia "na- e eventos temporais sem qualquer movimento temporal de sua substância." (Da
tural", um conjunto de verdades a respeito de Deus compartilhado com os pa- Trindade, 1,1) No entanto, ele estabelece a regra: quando falamos que Deus é
gãos e assim considerado resultado, pelo menos em princípio, das circunstâncias "nosso Senhor", o que ele não poderia ser antes que existíssemos, ou que Deus
meramente criadas da vida e das capacidades religiosas e intelectuais meramente "se torna nosso Pai no Batismo" ou coisas semelhantes, devemos compreender
criadas da alma. Aquela parte do discurso bíblico sobre Deus não compartilha- que "nada é acrescentado a Deus, mas apenas àquilo com que se diz que Deus
da pelos pagãos era, por isso, considerada algo que não estava à disposição ge- se relaciona". Assim, por exemplo, "Deus começa a ser nosso Pai quando so-
ral, sendo recebida como um conjunto mais alto, sobrenatural de verdades a res- mos nascidos de novo. ( ... ) Nossa substância é transformada para melhor quan-
peito de Deus, dado somente por revelação. Ora, quando o assunto é formulado do nos tornamos seus filhos; com isso ele também começa a ser nosso Pai, mas
desta forma, o conhecimento natural de Deus se torna o fundamento do sobre- sem nenhuma mudança desse tipo." (Ibid., V,17.)
natural; Homero e Parmênides escrevem o primeiro capítulo do locus a respeito O resultado trinitá.rio mais desastroso dessa regra é que o ensinamento oci-
de Deus. Conseqüentemente a suposta intemporalidade e impassibilidade de Deus dental, ao classificar rigorosamente os usos que, no Oriente, haviam sido salu-
determinam tudo que se segue, inclusive o discurso trinitário22 . tarmente vagos, fez com que as "processões" trinitárias em Deus (i. éç "geran-
Agostinho estabeleceu o seguinte status axiomático da intemporalidade di- do" e "espirando") e as "missões" das pessoas divinas no tempo (i. é, a encar-
vina para toda a teologia ocidental subseqüente: "Fala das mudanças das coi- nação do Filho e a entrada do Espírito na Igreja; i. é, novamente, toda a realida-
sas, e descobrirás 'era' e 'será'; pensa em Deus, e descobrirás o 'é', onde 'era' e de triúna como Tertuliano ou Atanásio a evocaram) fossem duas coisas simples-
'será' não podem entrar."23 Deus não somente não muda, mas nem pode mu- mente diferentes e metafisicamente separadas: "missão' e 'envio' ( ... ) são predi-
cados usados só em sentido temporal, 'geração' e 'espiração' são usados apenas
20 AGOSTINHO, Da Trindade, V,10. em sentido eterno". A "geração" do Filho pelo Pai, por exemplo, e seu "en-
21 Pelo menos isso é provado por Olivier DU ROY, L'intelligence de Ia Foi en Ia Trinité selon
Saint Augustine, Paris, Etudes Augustiniennes, 1966; suas conclusões são resumidas nas pp.
413-4, 435-56.
24 Tomás de AQUINO, Suma teológica, 1,43,2. Sobre o próprio Agostinho, v. Alfred SCHIN-
22 Assim em Tomás de AQUINO, Suma teológica, 1,2-26, a existência, simplicidade, perfeição, DLER, Wort und Anaiogie in Augustins Trinitãtslehre, Tübingen, J. C. B. Mohr [Paul Sie-
bondade, infinitude, etc. de Deus são todas discutidas antes que haja qualquer referência a beck], 1965, pp. 160-2; Jean-Louis MAIER, Les Missions Divines selon Saint Augustin, Frei-
sua triunidade. E note qual dessas vem em primeiro lugar. burg, Presses Universitaires, 1960, pp. 7-98. Pedro LOMBARDO, na base da discussão me-
23 AGOSTINHO, Comentário de João, 38,10. dieval, desenvolve a distinção extensamente nas Sentenças, 1,14-6.

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vio" para redimir a humanidade são considerados agora como dois eventos dis- missão divina é a Trindade, ou qualquer das pessoas, incluindo aquela que foi
tintos, um na eternidade, outro no tempo. "Afirma-se que o Filho foi enviado, enviada28 .
não (...) no sentido de que é nascido do Pai, mas no sentido de que aparece Assim também não existe mais qualquer conexão necessária das pessoas tri-
neste mundo como o Verbo feito carne ( ... ), ou de que é apreendido interior- nitárias com os papéis e as estruturas da história salvífica. Conforme Agosti-
mente por uma mente temporal."25 De fato, o argumento usado por Aquino pa- nho, as teofanias das escrituras hebraicas poderiam ter sido aparições de qual-
ra justificar por que deve haver exatamente as duas processões é que o Filho sur- quer pessoa trinitária, ou da Trindade como tal; somente a exegese decide em
ge por um ato da mente do Pai e o Espírito por um ato de sua vontade, e que cada caso, e o resultado não faz nenhuma diferença teológica (Da Trindade, II;
pensar e querer são os dois únicos movimentos pessoais que não surgem necessa- 111,3). Finalmente, com Lombardo torna-se corrente para todo o escolasticismo
riamente do agente, isto é, neste caso, de Deus para um objeto temporal (Suma a concepção de que "assim como o Filho foi feito homem, assim o Pai ou o
teológica, 1,27,5). Nessa teologia há efetivamente dois conjuntos distintos de re- Espírito Santo poderia ter sido feito homem e o pode agora" (Sentenças, 111,1,3).
lações trinitárias, um constituindo uma 'frmndade "imanente", o próprio Deus Com essa última proposição, a falência do significado trinitário é completa. "O
triúno, e o outro a Trindade "econômica", o padrão triúno da obra de Deus. Filho" ou "o Logos" eram originalmente títulos aplicados a Jesus em relação
A conseqüência final desses desenvolvimentos é que a linguagem trinitária a seu papel na realidade salvadora de Deus; agora indicam uma entidade pura-
a respeito de "pessoas" e "relações" em Deus perde seu significado original mente metafisica, não relacionada necessariamente com Jesus e — igualmente
e de fato ameaça perder qualquer tipo de significado. O fato de que Deus é "um com as outras pessoas divinas - disponível para qualquer obrigação divina que
e três" se torna a pura mistificação que as pessoas que freqüentam a Igreja no apareça.
Ocidente aceitam — ou rejeitam — como algo que afirmamos porque devemos Depois que se evaporou o sentido original de "Pai", "Filho", "gera", "dá-
fazê-lo, sem sequer saber o que estamos afirmando. Agostinho deu à teologia diva", etc., como palavras usadas para designar a realidade da história salví-
ocidental uma fórmula concisa para resumir as décadas de reflexão trinitária orien- fica em Deus, a teologia ocidental foi obrigada a descobrir outras maneiras de
tal: o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito é Deus; e o Pai, o Filho e o Espíri- sustentar o significado da terminologia trinitária — a não ser, é claro, que se
to não são o mesmo; e os três são apenas um Deus26. Mas a fórmula não re- abandonasse toda a doutrina, o que era impensável antes do século XVI. Como
presenta mais uma atividade analítica para ajudar a compreender Deus. Ao in- a relação entre a criatura e Deus agora voltou a se caracterizar pela antiga com-
vés, é uma fórmula paradoxal: como Deus é infinito, de maneira que adição e pensação helênica entre a temporalidade e sua negação abstrata, também foi ine-
subtração não se aplicam a ele, "um é tanto quanto os três juntos" (Da Trinda- vitável que o modo grego de conferir significado à linguagem sobre uma divin-
de, VI, 12). Com sua invariável clareza, Agostinho vê muito bem o que aconte- dade intemporal fosse adotado: "pessoas" e "relações" são consideradas uma
ce então com a linguagem trinitária. Ele determina explicitamente que, quando realidade em Deus que pode ser descrita por analogia com a realidade
dizemos uma "substância" ou três "pessoas", não comunicamos absolutamen- tempora129 . Todo o padrão da teologia ocidental já está fixado na seqüência da
te nada, usando as palavras somente para dizer "de alguma maneira um" e "de obra Da ltindade de Agostinho. Os primeiros sete livros analisam as fórmulas
alguma maneira três" e usando essas palavras em particular apenas porque são trinitárias herdadas à luz do axioma da simplicidade divina, e terminam com
tradicionais (ibid., V,10; VII,741). A teologia posterior usa a vacuidade para fa- sua redução à vacuidade. Esse resultado requer a busca de análogos da triunida-
lar piamente de mistérios; por exemplo, é normativo a partir de L.ombardo dizer de na realidade criada, o que ocupa os livros remanescentes30 . E a realidade
que o "ser gerado" do Filho difere do "proceder" do Espírito apenas por uma criada escolhida é a alma humana, onde, desde Sócrates, a "imagem" da divin-
diferença que não pode ser "conhecida nesta vida" (Sentenças, 1,13). dade intemporal fora procurada principalmente". Visto que Deus é triúno, vis-
Que as obras salvíficas de Deus, as "obras ad extra*", são obras de toda a to que o ser temporal é ontologicamente dependente da analogia interior .com
Trindade não pode mais significar que cada uma seja uma obra conjunta de o ser intemporal e visto que, para a alma intrinsecamente autoconsciente, a apre-
Pai, Filho e Espírito, em que cada identidade desempenha um papel distintoV, ensão dessa analogia é sua própria realidade ativa, podemos dizer significativa-
mas que as obras salvíficas são indiferentemente obra de cada pessoa e de todas; mente "Pai, Filho e Espírito" a respeito de Deus32 — de acordo com Agostinho
a "inseparabilidade" das obras de Deus agora se identifica com uma divindade
abstrata, matematicamente igual das pessoas triúnas. A criação é indiferencia-
velmente a obra da frmndade como um único Deus. E "o que envia" em cada 28 AGOSTINHO, Da Trindade, 1,123; IV,30; 1,740.
29 SCHINDLER, op. cit., expõe tudo isso; há um resumo na p. 233.
30 Ibid., p. ex. p. 180.
25 AGOSTINHO, Da Trindade, IV,28. 31 AGOSTINHO, Da Trindade, IV,l: "O leitor deve se esforçar em usar aquelas coisas que são
26 Michael SCHMAUS, Die psychologische TrinitãtsJehre des heiligen Augustinus, Münster, 1927, criadas, para conhecer aquele por quem são feitas; assim chegaremos àquela imagem que
pp. 125-6, menciona os textos. é o próprio homem, naquilo (...) que é chamado 'mente' ou 'alma'."
* N. do E.: Voltadas para fora. - 32 DU ROY, op. cit., especialmente pp. 420-8, 447-50. Em Da Trindade, a argumentação do
27 Como, p. ex., novamente em ATANASIO, Carta a Serapião, IV,3. livro 8 faz disso a questão central.

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e seus seguidores. Com isso, toda a relação de Deus com sua obra no tempo não conhece a si própria ( ... )? Eis, pois, a Trindade: consciência, conhecimento
voltou à concepção pré-nicena da imaginação temporal da realidade intempo- de si e amor a si próprio." (Ibid., XV,10.) Apesar de estar a vários passos de
ral. Afinal, Ário foi vitorioso. distância da percepção trinitária autêntica, essa interpretação de Deus é uma gran-
Todo ser temporal, conforme Agostinho e seus mestres platônicos, é de- de realização intelectual em si, feita sob a pressão da Escritura. Deus é pessoal
pendente de Deus no que diz respeito a seu ser, sua inteligibilidade e sua ativida- - esta é uma noção profundamente cristã e uma contribuição permanente da
de A imagem triúna de Deus na alma é a realização dessas dependências da teologia ocidental.
maneira apropriada à consciência": "Somos, sabemos que somos e amamos es- A segunda virtude do trinitarismo ocidental é que exatamente a tarefa -
se ser e esse saber." (Da cidade de Deus, XI,26,7-9.) E como essa consciência em última análise inauspiciosa - de pensar. a pluralidade de pessoas dentro da
de si é necessariamente também consciência de Deus (p. ex. Da Trindade, VIII,3-6), noção de um Deus temporalmente indiferenciável e dentro de uma noção tão
a estrutura tripla da consciência é uma imagem da triplicidade divina: "Essa abstrata da unidade de Deus como a representada pelo axioma da simplicidade,
( ... ) trindade da mente não é a imagem de Deus somente porque a mente se lem- obrigou a teologia ocidental a elaborar a dialética abstrata da tri-identicalidade
bra de si própria, conhece a si próprit e ama a si própria, mas porque também com perfeição37. Seguindo Agostinho, Lombardo fixou as condições que deli-
consegue se lembrar, conhecer e amar aquele por quem é criada." (Ibid., XIV, 12.) mitam a dialética: "O Pai não é maior que o Filho, nem o Pai ou o Filho são
Todas as analogias trinitárias de Agostinho, os apetrechos da reflexão oci- maiores que o Espírito Santo; nem são duas pessoas juntas algo maiores que
dental subseqüente, são apenas descrições variantes dessa estrutura da consciên- uma, nem três maiores que duas; nem é a essência divina maior em três pessoas
cia de si e consciência de Deus simultâneas. A tríplice dependência se reflete da que em duas, nem em duas que em uma." Conseqüentemente, "o Pai está no
maneira mais direta nesta fórmula: ser/conhecimento/amor. Como o ser da Filho e o Filho no Pai e o Espírito em ambos, e cada um está em cada um e
alma em sua dependência é o amor, essa fórmula pode se transformar em: a em todos" (Sentenças, 1, VIX,4-5). A regra adquiriu status conciliar: "As três
alma como amante/a alma como objeto de seu próprio amor, isto é, como co- pessoas são uma ( ... ) substância, uma essência, uma natureza, uma divindade,
nhecida por si própria/a alma como amor (ibid., VIII,IX,1-3). A trindade do uma imensidade, uma eternidade; toda realidade divina é uma onde uma oposi-
amor, por sua vez, traduzida numa descrição da alma como substância, se tor- ção de relações não o impede."38
na: mente/conhecimento/amor (ibid., IX,3-4). E traduzindo mais uma vez, para As distinções em Deus são postuladas por "processões" divinas interiores,
uma análise mais funcional, obtemos: memória/conhecimento/vontade (ibid., das quais há duas: a "geração" do Filho e a "espiração" do Espírito39. Uma
X), porque a mente como consciência é idêntica a si própria como ser no senti- "processão" é um "movimento em direção a um outro"; o outro da geração
do de que é memória e o amor é a ação da vontade. e da espiração em Deus é o próprio Deus; por isso supõe-se que a simplicidade
Nosso exame do trinitarismo ocidental tem que alternar lamentação e admi- divina não seja violada40. E por isso, visto que cada processão estabelece rela-
ração das virtudes de seus defeitos. Agora precisamos registrar a primeira ções, também existem relações em Deus. Além disso, as mesmas são "reais",
dessas virtudes. Ao se voltar à alma para obter um análogo que confira signifi- isto é, não meramente externas, como entre duas moedas possuídas pelo mesmo
cado à triunidade divina, Agostinho necessariamente expôs sua introspecção a proprietário, das quais cada uma é igual até mesmo quando não estão relacio-
alguma pressão por parte da linguagem trinitária herdada. Assim descobriu a nadas dessa maneira. Pois, visto que ambos os termos de cada uma dessas rela-
complexidade dialética da realidade da própria alma. Toda a Antiguidade sabia ções são Deus, a relação não pode ser externa a seus termos41 .
que a alma é complexa. Mas Agostinho foi o primeiro a notar que a complexi- Isso fornece imediatamente uma lista de quatro relações: o Pai "gera", o
dade é viva e dialética, que nela cada fator é o que é somente por e para os Filho "é gerado", o Pai e o Filho "espiram" e o Espírito é "espirado"42. E te-
Outros fatores. "A alma não procuraria se conhecer ( ... ) se não amasse a si pró-
pria de alguma maneira, com um amor que novamente depende do conheci- ser conhecimento vontade
mento dado na memória!"' Na verdade, ao procurar análogos da divindade amante amado amor
tritna, Agostinho descobriu a diferença ontológica entre o ser consciente e o mente conhecimento amor
inconsciente, o grande tema de toda filosofia ocidental subseqüent&6. E então, memória conhecimento vontade
A equivalência postulada dos termos na primeira coluna fornece a proposição: o ser da
apesar de sua relutância, ele faz tudo isso refletir novamente para Deus: "Ou mente como sujeito é autoconsciência imediata. Com isso é proposta toda a filosofia oci-
devemos de fato supor que a consciência que é Deus conhece Outras coisas e dental vindoura. -
37 Para a seguinte história técnica, v. A. MICHEL, s. v. "Trinité" e "Relations Divines", in:
33 Ibid., pp. 447ss; aí há abundantes citações. DThC.
38 Concílio de Florença, "Decreto para os coptas", in: COD, 1973, pp. 57-8.
34 Permeia o escrito Da cidade de Deus. 39 Tomás de AQUINO, Suma teológica, 1,27-8; BOAVENTURA, Sentenças, XIII,1.
35 MAIER, op. cit., p. 187. 40 Tomás de AQUINO, op. cit., 1,27,1.
36 Se colocarmos as principais analogias com a alma postuladas por Agostinho em colunas, 41 P. ex. ibid., 1,28,1.
elas ficarão assim: 42 Em todas essas formalidades, seguirei a versão de Tomás de AQUINO; aqui, ibid., 1,28,4.

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mos então cinco "noções" aplicáveis às distinções intradivinas: as quatro rela- Mas se as relações não são meramente reais em Deus, mas reais na medida
ções mais o "não-gerado" ou "não-originado" do Pai, que marca a posição em que - e somente na medida em que - são idênticas à substância divina,
dele como ponto de partida de todas as processões, sendo que ele mesmo não então elas são reais em Deus da mesma maneira em que a substância divina
procede43. Se agora procurarmos características identificadoras para cada uma é real. Assim elas "subsistem", isto é, são possuidoras de atributos (aqui os atri-
das pessoas, "não-gerado" é excluído, porque também se aplica à frmndade co- butos divinos) e praticantes de atos (aqui os atos divinos). Isto é, são verdadei-
mo tal, e assim também "espira", porque se aplica tanto ao Pai quanto ao Fi- ras "pessoas" no sentido regular da palavra em latim. E agora, inversamen-
lho. Assim, pela pura geometria da estrutura das relações, chegamos a exata- te, podemos dizer o que as "pessoas" verdadeiramente são: "Pessoa divina' (...)
mente três "propriedades" ou "noções pessoais": "gera", "é gerado", "é espi. significa uma relação subsistente.1147
rado' '. Certamente deve-se dizer que a mera correção estética dessa análise de Dentro da tradição metafísica, a noção de uma relação subsistente natural-
alguma maneira a recomenda. A figura 1 mostra a divindade em forma de um mente não faz nenhum sentido. Os escolásticos trabalharam muito para mitigar
fluxograma. a ofensa causada por sua definição àquilo que aceitavam como verdade natural.
Entretanto, uma doutrina tão radical da realidade das relações não pode ser con-
tida por Platão ou Aristóteles. A sabedoria herdada pode aceitar que algumas
relações, tais como paternidade, estão fundadas nos termos relacionados. Mas
essa doutrina identifica a substancialidade dos termos relacionados com a inter-
Gera nalidade das relações entre eles. Até a classificação das propriedades pessoais
à qual os escolásticos são levados - que elas são "relativas" e mesmo assim
gerado "eternas e imutáveis" - é um desafio a todo senso comum helênico.
Essa afirmação da substancialidade das relações, isto é, de sua independên-
cia ontológica e possível prioridade em face dos termos relacionados, é o lugar
principal em que o poder metafisicamente revolucionário do evangelho irrompe
na teologia ocidental. Seguindo os gregos, nossos modos herdados de pensar
supõem que primeiro deve haver coisas que em segundo lugar podem se relacio-
nar de várias maneiras. Mas não há nada de intrinsecamente óbvio nisso; de
fato, pela percepção bíblica é o contrário que ocorre. As conseqüências gerais
FIGURA 1 dessa inversão na interpretação apareceram há muito tempo na filosofia ociden-
tal, de forma mais explícita em alguns aspectos do idealismo alemão, como a
definição hegeliana do espírito como a relação entre o eu e o não-eu, que, por
Depois vêm as grandes afirmações metafísicas. Primeiro, as relações, e as- conseguinte, é o ser do eu49 . A tarefa de deduzir as conseqüências mais especi-
sim as propriedades pessoais, são todas idênticas à única substância divina, "no ficamente teológicas demorou, como tinha que ser, até que se descartasse a dou-
que diz respeito à entidade", isto é, como nós diríamos, "objetivamente", por- trina agostiniana da simplicidade divina. Esse, de fato, é um dos objetivos deste
que "paternidade" e "espirar" são em si atributos divinos, e, conforme o axio- estudo, que abordamos diversas vezes e ao qual voltaremos.
ma da simplicidade, cada atributo divino é, "no que diz respeito à entidade",
a substância divina. As relações-propriedades diferem da substância divina so-
mente "no que diz respeito à maneira pela qual as conhecemos", exceto que O Credo Atanasiano
"somente" é enganoso, porque essa necessidade do nosso conhecer está, ela pró-
pria, fundada de alguma maneira na realidade divina. As relações e a essência A medida em que o ensinamento trinitário agostiniano pode ser considera-
são realmente idênticas, mas aquela realidade única torna indispensável a distin- do doutrina oficial da Igreja ocidental depende da medida em que o assim cha-
ção que inevitavelmente fazemos45. mado Credo Manasiano50 estabelece tal doutrina. A primeira extensa seção des-

43 Ibid., 1,32,3. 46 P. ex. BOAVENTURA, Sentenças, XXIII,1,1; 1,2; XXV,1,1-2.


44 Ibid., 1,40. 47 Tomás de AQUINO, Suma teológica, 1,29,4.
45 Ibid., 1,28,24; BOAVENTURA, Sentenças, XIX/II,1,2. Essa é a linha medieval principal; 48 Pedro LOMBARDO, Sentenças, I,XXVI,2-3.
MICHEL, s. v. "Relations Divines", in: op. cit., 2147ss. Isso foi negado por uma linha de 49 P. ex. Georg W. E HEGEL, Phãnomenologie des Geistes, 1952, ed. in: PhB, pp. 313ss.
pensadores de Gilbert de Ia Porrée a Joaquim de Fiore; v. ibid., 2145ss.; ID., s. v. "lHnité", 50 O texto se encontra em LC, pp. 204; sobre ele e também sobre o que se segue, v. J. N. D.
in: op. cit., 1715-32. KELLY, The Athanasian Creed, New York, Longmans, Green & Co., 1964, pp. 76ss.

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sa composição é uma breve afirmação - retoricamente esplêndida e teologica- Credo Atanasiano para a sala de aula pode ser considerada um retorno ao lugar
mente astuta - das regras da linguagem trinitária ocidental. O princípio básico apropriado de sua autoridade. Lá, no entanto, ele certamente merece o mais al-
é que "não devemos confundir as pessoas nem dividir a substância". to respeito.
A unidade da substância será preservada se tomarmos o cuidado de atri-
buir todos os atributos divinos igualmente a cada pessoa, mas nunca de manei-
ra a postular três sujeitos lógicos: "Incriado é o Pai, incriado o Filho, incriado As vicissitudes do trinitarismo ocidental
o Espírito Santo. ( ... ) contudo, ( ... ) não há três incriados ( ... ) porém um só in-
criado ( ... )." Etc. Isso é inculcado em repetidas frases sucessivas, escolhendo-se O perigo da análise trinitária abstrata do Ocidente não é apenas que esteja
justamente aqueles atributos de Deus que eram decisivos finte aos arianos: "in- errada, mas também que provavelmente se refletirá negativamente sobre os ní-
criado", "imenso", "eterno", "onipotente", "infinito". Seguindo diretamente a veis fundamentais do discurso trinitário: a liturgia e a proclamação. Parece claro
linha de pensamento de Atanásio, a postulação de três tipos de divindade é re- que isso aconteceu de fato, embora esteja fora do alcance deste trabalho recons-
jeitada como politeísta: "Porque, assim como pela verdade cristã somos obriga- tituir a história. Basta pensar em fenômenos como a substituição, no catolicis-
dos a confessar que cada pessoa, tomada em separado, é Deus e Senhor, assim mo popular, da estrutura triúna da oração por uma ou outra devoção do tipo
também estamos proibidos pela religião católica de dizer que são três Deuses "Jesus-Maria-José", ou a simpatia secular do luteranismo denominacional por
ou três Senhores." formas de oração e louvor com um conteúdo mnêmico relativo apenas ao segun-
Deve-se distinguir entre as pessoas pela linguagem das relações, apesar de do artigo e nenhuma invocação do Espírito, ou a concentração, no calvinismo,
que esse termo técnico não apareça. "O Pai por ninguém foi feito, nem criado, de temor e esperança numa divindade pré-temporal que se parece mais com o
nem gerado. O Filho é só do Pai; não feito, nem criado, mas gerado. O Espírito "Não-Originado" de Eunômio do que com qualquer outra coisa.
Santo é do Pai e do Filho; não feito, nem criado, nem gerado, mas procedente." Desde Agostinho a doutrina da Trindade tendeu a se tomar cada vez mais
Deve-se registrar que os traços mais infelizes da análise ocidental não aparecem um "mistério revelado", ensinado no lugar apropriado da teologia sistemática,
explicitamente. porque supunha-se que fora revelado de modo sobrenatural que Deus era, de
O Credo Atanasiano parece ter se originado na virada do século V para fato, triúno, passando a ter cada vez menos força interpretativa em relação às
o século VI na Espanha ou no Sul da França. Tornou-se o texto usado para a preocupações efetivas dos fiéis. Como tal, ela foi uma vítima fácil para a crítica
instrução trinitária nas instituiçÕs teológicas carolíngias, e gozou de grande pres- destrutiva, que veio tanto da Igreja quanto do mundo.
tígio durante a Idade Média. A partir do século VIII foi cantado como cântico, Não tem sido fácil ver a doutrina como funcional dentro da vida religiosa.
usualmente no primeiro ofício do domingo. A maioria dos compêndios da dou- Assim, um tipo de crítica, vinda de dentro do coração da Igreja, foi a negligên-
trina oficial da Reforma o incluiu. De fato ele afirma a parte não-problemática cia benevolente. O primeiro sistema teológico da Reforma, os Loci Communes
da herança trinitária da Igreja ocidental. de Melanchthon, em 1521, omitiu a doutrina totalmente, alegando que "conhe-
Contudo, o Credo Atanasiano jamais foi adotado por uma assembléia ecu- cer Deus é conhecer seus benefícios", supondo assim claramente que o discurso
mênica no estilo de Calcedônia. Na época moderna, muitas pessoas comprome- trinitário não trata dos benefícios de Deus. Os pietistas de todas as ramificações
tidas com sua doutrina tiveram, não obstante, grande dificuldade para afirmá- da Igreja adotaram regularmente a mesma atitude52, como fizeram John Locke53
lo, em especial para usá-lo liturgicamente. O problema foi, geralmente, o fato e outros precursores do iluminismo. Um outro tipo de crítica eclesiástica foi mais
de o credo identificar a "fé católica" com uma análise teológica particular, e explícita. Os cristãos ocidentais de fato se encontraram, no que diz respeito à
especificamente o anátema da abertura: "Quem quer que não a conservar ínte- experiência, numa situação pré-nicena. Muitos, libertados pela crítica histórica
gra e inviolada sem dúvida perecerá eternamente." Que alguém deva ser conde- ou filosófica da obrigação de afirmar a doutrina herdada só por ser herdada,
nado por causa de uma teologia ruim, ou até meramente fora da época, pareceu recapitularam a história pré-nicena da teologia, inventando novamente o subor-
um tanto duro. dinacionismo e arianismo apologético. E esse fenômeno que aparece em movi-
1Jvez a dificuldade pelo menos apareça numa luz diferente se o texto, co- mentos "unitários" que foram explicitamente cristãos: Serveto, os socinianos54
mo agora parece ter sido provado", não foi escrito e usado inicialmente como ou os unitaristas ingleses e americanos55 . Aparece novamente nos "neologia-
uma confissão litúrgica ou pessoal, mas como instrumento de memorização no
ensino dos seminários. E uma coisa os futuros pregadores entenderem que a sal-
vação depende de sua pregação e que devem pregar assim e assado. E algo total- 52 Emanuel HIRSCH, Geschichte der neuern evangelischen Theologie, Gütersloh, Bertelsmann,
mente diferente uma congregação proclamar publicamente maldições sobre quem 1951, vol. 2, pp. 114-20, 186-93.
é teologicamente desajeitado ou anacrônico. De qualquer forma, a retirada do 53 John LOCKE, The Reasonableness o! Christianity as Delivered in the Scriptures. 1695.
54 H. BORNKAMM, s. v. "Servet", in: RGG3; H. R. GUGGISBERG, s. v. "Sozinianer", in:
ibid.
51 Ibid., pp. 53-69, 109-14. 55 M. SCHMIDT, s. v. "Unitarier", in: ibid.

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nos", que, na Alemanha, mediaram o primeiro impacto do iluminismo56. Co-
mo já cobrimos esse terreno uma vez, não precisamos investigar qualquer des- como uma percepção especulativa, fornecendo o padrão para outras tentativas
sas teologias aqui, mas apenas mencionar sua existência e influência. posteriores desse tipo e boa parte do ímpeto e do estilo conceptual para a reno-
Esse tipo de crítica não diminuiu em nosso século. Exercem influência atual- vação mais ligada à Igreja que Karl Barth empreendeu no século XX.
mente os argumentos de Cyril C. Richardson de que o trinitarismo herdado é Schleiermacher colocou sua seção extremamente breve sobre a Trindade no
o resultado do uso de uma linguagem bíblica e helênica inapropriada para uma final de sua sistemática, como uma espécie de resumo. Ali a mesma não pode
apreensão teológica necessária da transcendência e imanência de Deus57, de G. exercer a função de identificar ou interpretar o Deus do qual o corpo do livro
W. H. Lampe, de que precisamos de uma linguagem mais "pessoal" e que os fala. Antes, depois de ter explicado o que é efetivamente o conteúdo de um cre-
problemas metafisicos gerados pela linguagem tradicional são insolúveis58, e de do em três artigos, Schleiermacher considera o "Pai... Filho... Espírito" de tal
C. E D. Moule de que uma "bindade" faria sentido, mas que não há necessida- credo como um dispositivo da memória sugerido pela tradição e usado como
de de fazer do Espírito uma "pessoa"59. Em geral, as objeções atuais não di- conclusão. Ao nível da expressão imediata e da crítica da piedade - que, con-
ferem muito das dos séculos XVIII e XIX e, como essas, se baseiam na pressu- forme Schleiermacher, é o único nível legítimo para a dogmática - a função
posição de que o ensinamento-padrão do Ocidente é "a doutrina" da lhndãde. necessária da doutrina, diz ele, é insistir que "nada menos que o ser divino esta-
O iluminismo pleno, naturalmente, rejeitou o trinitarismo a partir de uma va em Cristo e habitaa Igreja cristã como seu espírito comunal, e que não en-
posição bem diferente60. A própria tradição afirmou a existência de dois con- tendamos essas expressões em qualquer sentido enfraquecido ( ... ) e não queira-
juntos de conhecimento de Deus, o "natural" e o "sobrenatural", e estipulou mos saber nada de ( ... ) divindades subordinadas.'.' (The Christian Faith, 170,1 .)61
o primeiro como o conhecimento acessível à razão e o segundo como o conheci- A isso devemos dizer: até aqui, tudo bem.
mento obtido somente curvando-se à autoridade de alguma transmissão da re- Como doutrina sobre o próprio "ser divino", no entanto, a doutrina da
velação. O iluminismo foi uma declaração da liberdade da razão em contraposi- Trindade é, de acordo com Schleiermacher, uma mixórdia. Tal doutrina resulta,
ção à autoridade; assim, sancionou apenas a parte "natural" da teologia. Por primeiro, da "eternalização da distinção entre o ser de Deus para si e o ser de
isso o iluminismo afirmou o Deus de Aristóteles em sua pureza, intocado até Deus para a unificação [com Jesus e a Igreja]" (ibid., 170,3). Mas esse procedi-
mesmo por elementos bíblicos contaminadores como aqueles mantidos por Agos- mento é desastroso. A dificuldade de Schleiermacher, e é vital notar isso, é exa-
tinho. Na medida em que o iluminismo simplesmente não foi um fenômeno ecle- tamente igual à de Agostinho: aceitação acrítica do dogma grego de que divin-
siástico, como na França, seu unitarismo está fora da nossa estória. Mas na me- dade é igual a intemporalidade (ibid., 171,52) e que por isso só se pode falar
dida em que permaneceu dentro da Igreja, como muitas vezes foi o caso na In- dela por meio de analogias. "A causalidade divina [a interpretação que Schleier-
glaterra, Alemanha ou nos Estados Unidos, ele se misturou com correntes co- macher faz da realidade de Deus] ( ... ) deve ser concebida como absolutamente
mo as descritas acima, promovendo vários modalismos e subordinacionismos, intemporal. Isso se alcança através de expressões que nomeiam a realidade tem-
bem como silenciosos acordos de cavalheiro para deixar em paz os cães "dog- poral e se realiza, por isso, mediante imagens; ( ... ) igualam-se os opostos tempo-
máticos" que estivessem dormindo. Debaixo de todos esses tipos de crítica, no rais antes-depois, mais cedo-mais tarde e assim se os suspendem." (Ibid., 171,1)
Mas enquanto Agostinho lutava para manter alguma percepção das propo-
início do século XIX a doutrina tradicional da 'frmndade estava quase extinta
em todos os segmentos da Igreja abertos à modernidade. sições trinitárias tradicionais, Schleiermacher simplesmente as abandona. Ele é
A história da espiritualidade e da teologia do século XIX, pelo menos em livre para fazer isso por causa da nova situação histórica, mas também porque,
tais setores da Igreja, foi uma série de tentativas de vencer o iluminismo no que segundo ele, a apreensão especificamente cristã não chega, de forma nenhuma,
até a compreensão básica de Deus; a mesma é tomada emprestada (palavra de-
diz respeito a seu esvaziamento da substância religiosa, sem voltar a depender
de uma autoridade sobrenatural. Duas grandes figuras predominam neste esfor- le) da análise filosófica universalmente válida (BriefDescription of Theologicai
ço: Friedrich Schleiermacher e G. W. E Hegel. Ambos são, de fato, importantes Study, 43-53). De fato, apesar do que normalmente se diz dele, Schleiermacher
mantém uma forma particularmente simplista da antiga e desastrosa distinção
para o pensamento trinitário corrente. Schleiermacher tipifica e inaugurou em
grande parte o padrão dominante dos séculos XIX e XX, que continua a existir entre teologia natural e revelada.
Se, por motivos de harmonização puramente intelectual, ainda quisermos
sem muita ênfase no trinitarismo. Hegel deliberadamente "renovou" a doutrina
uma doutrina da triunidade, Schleiermacher faz duas recomendações. Primeiro,
a doutrina deveria ser "sabeliana", uma descrição de manifestações temporais
56 HIRSCH, op. cit., vol. 4, pp. 1-119. sucessivas de uma realidade divina que, ela própria, não é afetada por elas. Se-
57 Cyril C. RICHARDSON, The Doctrine of the Trinity, Nashville, Abingdon, 1958. gundo, deveríamos tomar "o Pai" como nome para essa realidade divina, e "o
58 G. W. H. LAMPE, God as Spirit, New York, Oxford University, 1977. Filho" e "o Espírito" como nomes para as manifestações (The Christian Faith,
59 C. F. D. MOULE, The Holy Spirit, Oxford, Mowbray, 1978, pp. 43-51.
60 O documento clássico da religião iluminista é Immanuel KANT, "Religião dentro dos limi-
61 As citações de The Christian Faith, de Friedrich SCHLEIERMACHER, são da 7? edição,
tes da mera razão", 1783. Sobre isso, v. HIRSCH, op. cit., vol. 4, pp. 271-6, 320-9.
Berlin, Walter de Gruyter, 1960.

166 167
172,3). Assim a recomendação de Schleiermacher é, afinal, exata e resumida- que se realiza como acabou de ser descrito, que elabora a sua própria razão exa-
mente ariana. tamente na realidade objetiva contingente e cheia de contradições. A grande afir-
Não precisamos decidir se a versão da Trindade de Scl-ileiermacher influen- mação metafísica segue-se naturalmente: a realidade como história somente faz
ciou o cristianismo comum dos séculos XIX e XX em grande escala ou se ape- sentido como o objeto de um Sujeito que se encontra a si mesmo nela, sendo
nas o exemplifica de maneira maravilhosa. E suficiente observar que a maioria assim ele próprio o Espírito. Deus é a Mente que tem o mundo por objeto; ele
dos leitores protestantes reconhecerão nos últimos parágrafos uma descrição da- é o mundo na medida em que a Mente de fato encontra sentido e assim a si
quilo que colheram da catequese e pregação das denominações tradicionais. própria no mundo; e ele é o Espírito livre que ocorre como esse evento. Deus
Hegel deliberadamente propôs-se a restaurar o vigór da doutrina tradicio- é o Poeta-Estadista-Filósofo absoluto. Ele é exatamente o que Agostinho disse:
nal da Trindade, liberando suas implicações metáfisicamente revolucjonárias62 Mente, Conhecimento e o Amor que os une.
Fez da versão agostiniana-ocidental da doutrina o centro de sua filosofia, o últi- Hegel acreditava que com ele o pensamento ocidental alcançava sua pleni-
mo sistema universal e talvez o último grande sistema de pensamento do Oci- tude; pelo menos no que diz respeito ao seu trinitarismo, ele tinha razão. A per-
dente. Agostinho, insistimos, não conseguiu descrever um Deus genuinamnt cepção de Agostinho não pode ser levada mais adiante ainda. Nem o pode a fa-
tri-idêntico. Mas em sua tentativa ele percebeu uma verdade nova; percebeu um lha de Agostinho: a distância desse trinitarismo em relação à história salvífica
Deus pessoal no sentido moderno da palavra, cujo ser se constitui na dialética que precisamente o tornou necessário. Em Hegel, o trinitarismo de Agostinho
interior da consciência, no jogo e agora vamos usar a linguagem da época realiza sua constante tendência, considerando enfim o mundo - e não Jesus,
de Hegel da consciência imediata de si ("memória"), do conhecimento obje- o Filho explicitamente como o objeto de Deus. A partir de Hegel, tem havi-
tivo do eu e da vontade que os une. Hegel abandonou as hesitações de Agosti- do uma tradição contínua na qual a dialética trinitária é explorada por causa
nho, fez dessa interpretação um conceito universal de ser pessoal e depois tor- de suas possibilidades especulativas, sem que a especulação seja muito direcio-
nou toda a realidade pessoal. nada pelo objeto original da dialética. Os mais notáveis expoentes recentes dessa
O objetivo de Hegel era fazer uma síntese verdadeira das duas correntes tradição são John Macquarne e Paul Tillich63 . Do ponto de vista deste traba-
conflitantes do pensamento ocidental: a vontade grega de apreender racional- lho, tais esforços meramente aperfeiçoam o erro antigo.
mente o sentido da realidade, e a apreensão bíblica da realidade como história, Em nosso século foi dado o passo decisivo para consertar a grande falha
com todas as suas contingências e contradições. Isso pode ser feito, disse Hegel, do trinitarismo agostiniano-hegeliano. Karl Barth conseguiu chegar novamente
se percebermos que a história faz seu próprio tipo de sentido, que não é o da a uma autêntica doutrina da triunidade, por meio daquilo que representa uma
mente meramente contemplativa e descritiva do sentido, mas do espírito vivo inversão cristológica da de Hegel. E só fazer de Jesus em vez do "mun-
e criador de sentido. A racionalidade vigorosa de poetas e grandes estadistas - do" de Hegel ou do "Logos" meramente metafisico de Agostinho - o objeto
e de filósofos autênticos como Platão não abstrai da contingência e das con- de Deus em que ele se encontra a si mesmo, e se terá a doutrina de Church Dog-
tradições, para só assim alcançar a si própria; ela as coloca, para as vencer e matics, volume 11/1, de Barth - observação essa que não diminui a extraordi-
abranger, e assim alcançar um significado que se expande, vivo. Napoleão não nária engenhosidade do passo dado por Barth65 .
detesta inimigos; procura-os, para criar uma ordem européia maior através da Barth percebe a diferença entre a procura helênica por Deus (que ele cha-
batalha. Goethe não exclui a irracionalidade e o conflito de seus enredos; inventa- ma de "teologia natural") e a proclamação do evangelho de que em Jesus Deus
os, para conseguir o significado de um drama e não de uma mera crônica. For- procura a nós (o que ele chama de "revelação") mais rigorosamente que qual-
mulado de forma abstrata: o sujeito racional coloca seu objeto - aquilo que quer outro antes dele, com exceção' de Lutero, usando essa percepção como a
ele próprio não é - e não puro significado transparente. Então o sujeito racio- única força motora do discurso trinitário. Toda a doutrina da Trindade, diz ele,
nal alcança a si próprio como o processo, o ato de se redescobrir no objeto, é somente a especificação de qual Deus pode se revelar a si próprio assim
isto é, de encontrar significado naquilo que, meramente como tal, não é signifi- como Deus de fato se revelou em Cristo.
cativo. Essa reconciliação da razão-como-sujeito com o objeto-tornado-racional
é a razão viva, o espírito.
Como a realidade é histórica, ela possui o tipo de sentido que acabou de 63 John MACQUARRIE, Principies of Christian Theoiogy, New York, Charles Scribner's Sons,
ser descrito: a eterna criação e superação da contradição numa harmonia supe- 1966,pp. 94-110, 174-93; Paul TILLICH, Systematic Theoiogy, 3 vols., Chicago, University
rior. Como a realidade possui esse tipo de sentido, a verdadeira razão é a mente of Chicago, 1951-63, vol, 3, pp, 283-94. (Trad. port.: Teologia sistemática, São Paulo, Pauli-
nas; São Leopoldo, Sinodal, 1984)
64 Sobre o trinitarismo de Barth, v. Eberhard JUNGEL, The Doctrine of the Trinity, Grand
62 HEGEL, op. cit., IV,A; VII, C; ID.,Vorlesung über die Phiosophie der Religion, introdução, Rapids, Wm. B. Eerdmans, 1976; Colin GUNTON, Becoming and Being, New York, Oxford
pontos 1, 3; ID., Encydopâdie der phiosophischen Wissenschaften, ed. 1840, vol. 6; HIRSCH, University, 1978, pp. 117-85.
OP. cit., vol. 5, pp. 231-68; Robert W. JENSON, God after God, Indianapolis, Bobbs-Merrill,
65 Para uma análise mais completa, e sobre o que se segue, v. JENSON, op. cit., pp. 95456.
1969, pp. 33-5. 66 Karl BARTH, Church Dogmatics, Edinburgh, T & T. Clark, 1936, vol. 1/1, pp. 32, 329.

168 169
A pretensão bíblica de revelação, diz Barth, coloca três perguntas: quem realizado no próximo capítulo, onde tentaremos formular um conceito evangéli-
é revelado? O que ele faz para se revelar? O que a revelação realiza? A resposta co de divindade, cuja base já foi lançada ao longo dos capítulos anteriores.
a cada uma deve ser Deus, sem restrição67. "Deus se revela a si próprio. Ele se Dentro da própria dialética trinitária, é a relação das Trindades "imanen-
revela através de si próprio. Ele se revela a Si próp110. te" e "econômica" que deve ser considerada neste contexto. Os teóricos trinitá-
1168 E separadas de cada
uma dessas três frases, as outras duas permanecem ambíguas69. rios contemporâneos mais importantes, o católico Karl Rahner e o protestante
O ponto crucial é por que a resposta a todas as três perguntas deve ser sim- Eberhard Jüngel, concordam quanto a uma regra para a tarefa contemporânea:
plesmente Deus. Resumindo drasticamente, podemos afirmar que a resposta de "A Trindade 'econômica' é a Trindade 'imanente', e vice-versa.' '72
Barth é: a todas as três perguntas deve-se responder "Deus" para negas nossa A razão teológica que legitima a distinção "imanente" /"econômico" é a
procura religiosa conceptualmente, assim como a revelação na morte e ressurrei- liberdade de Deus. É preciso que Deus "em si próprio" pudesse ter sido o mes-
ção de Jesus a nega de fato70. Se a revelação, Jesus, ou a realização da revela- mo Deus que ele é, e por isso triúno, caso não tivesse havido criatura ou salva-
ção, a presença divina entre nós, não fossem simplesmente o próprio Deus, nós ção da criação caída e por isso tampouco a história trinitária que de fato houve.
seríamos meramente lançados pelas mesmas a uma procura religiosa pelo pró- Esta é uma segunda regra (que talvez não seja observada suficientemente tanto
prio Deus. Mas o que a cruz e a ressurreição revelam é exatamente que tal pro- por Rahner quanto por Jüngel). O problema sempre foi reconciliá-la com a ou-
cura, negando a suficiência da palavra do evangelho, é incredulidade. Contudo, tra que acabou de ser enunciada. Propomos que as duas regras só são compatí-
o Deus que assim se revela a si próprio não se torna com isso meramente idênti- veis se a identidade da Trindade "econômica" e "imanente" for escatológica.
co à revelação histórica e à presença consumada; a cruz revela, de novo, que Enquanto a teologia estivesse pisa ao axioma da intemporalidade, a eter-
Deus jamais é apreendido dessa maneira por nós. Lmbém aquele que é revela- nidade de Jesus só poderia ser concebida como uma realidade que sempre exis-
do é Deus absolutamente. Por fim, após ter prevenido assim o subordinacjonjs.. tiu em Deus. Assim se postulou o "Logos asarkos", o "Verbo [ainda] não en-
mo, Barth exclui o modalismo pelas mesmas considerações. A necessidade de carnado", o doublé metafísico de Jesus, que sempre estava em Deus e então se
dar a mesma resposta a todas as três perguntas da revelação não faz das pró- tomou aquele que nos foi enviado na carne. Descreveu-se a ilação do Logos
prias perguntas uma só, porque então o verdadeiro Deus permaneceria nova- com o Pai como relação de Pai-Filho, e com razão, já que é a relação de Jesus
mente atrás da revelação e estaríamos de volta a nossa procura. com seu Pai que deve ser interpretada. Mas o gerar e o ser-gerado deste Pai e
Como foi Barth quem ensinou à teologia do século XX - ou às partes Filho tinham que ser intemporais; assim essa "processão" não podia de fato,
vivas da mesma - a importância e o ponto crucial do discurso trinitário, sua ser o mesmo que a relação temporal de Jesus com seu Pai, isto é, que a "mis-
influência permeou todo este estudo. Isso deve ser reconhecido explicitamente são". Os pais gregos, na maioria, ignoraram a dificuldade, permitindo assim o
aqui. Mas sua contribuição para a nova análise trinitária requerida não é tão discurso trinitário autêntico em que as processões e missões ocorrem juntas. Mas
grande quanto se poderia esperar. Ele tampouco nos leva à plena libertação de quando apareceram pensadores mais rígidos, a dificuldade provou ser fatal. To-
uma interpretação de Deus determinada pelo passado. do esse padrão precisa ser invertido.
A análise trinitária de maneira nenhuma está completa, e nem o estará Ao invés de interpretar a divindade de Cristo como uma entidade separada
enquanto a batalha entre as identificações de Deus do evangelho e do helenismo que sempre era - e de proceder de maneira análoga com o Espírito -' devería-
não tiver cessado. Está na hora de expor aquelas entre nossas próprias propos- mos interpretá-la como um resultado final, e, assim, como eterna, assim, como
tas que ainda não foram explicitadas. o enquadramento em volta de todos os princípios e fins. A vida histórica de
O primeiro passo é libertar a doutrina trinitária de seu cativeiro em relação Jesus foi um envio pelo Pai; a relação filial entre esse homem e a transcendência
à interpretação anterior da divindade como intemporaljdade71. Em parte isso já a quem ele se voltava temporalmente ocorreu; e esse homem ressuscitou dos mor-
é feito neste trabalho - como em Barth e algumas outras abordagens pós- tos, de maneira que sua missão deve triunfar, de maneira que sua relação filial
hegelianas - pela mera seqüência dos tópicos e pela concentração cristológica com seu Pai é incontestável. Assim a obediência de Jesus ao Pai, e o amor deles
em que nós, como Barth, insistimos em cada passo. Em parte isso terá que ser para conosco que nisso ocorre, provarão ser um evento insuperável, isto é, são
um evento de Deus, uma "processão" em Deus. A oração aramaica ou hebraica
67 Ibid., pp. 311-52. de Jesus e sua apreensão profética da palavra de Deus serão a auto-expressão
68 Ibid., p. 312. final do Pai, pela qual ele estabelece a sua identidade para nós e para si próprio.
69 Ibid., pp. 321-2. E o Espírito que é a espiração desse futuro soprará todas as coisas diante
70 Sobre isso e que se segue, v. ibid., pp. 101-8; aí também há citações. de si para dentro de uma nova vida. Os eventos salvíficos, cujo enredo é expres-
71 Eberhard JUNGEL, "Das Verhjtnjs von 'õkonomjscher' und 'immanenter' 'ftinitãt",
ZThK, 72:363, 1975: "Não se pode mais pensar o conceito da essência divina abstraindo
do evento da existência triúna de Deus." Essa exigência, quase universal na teologia contem-
porânea, é cumprida de maneiras variadas, mais ambiciosamente por Karl Barth e pela "te- 72 Karl RAHNER, The Trinity, New York, Herder & Herder, 1970, pp. 212; JÜNGEL, "Das
ologia do processo". Verhaltnis...".

170 171
so pela doutrina das relações trinitárias, são, em seu caráter escatológico final, dia a essa apreensão73. Dessas raízes do subordinacionismo apenas a primeira
a transcendência do tempo por Deus, a eternidade de Deus. Assim não precisa- foi arrancada pelos capadócios. Assim tornou-se um axioma fixo que a geração
mos postular entidades especiais intemporalmente antecedentes - o Logos asarkos pelo Pai marcava uma primazia única na divindade74, que a transcendência para
ou o Espírito ainda-não-dado - para afirmar a plena eternidade do Filho e do a qual Jesus voltava seu olhar era divindade ativamente, enquanto o Espírito
Espírito. que ele deu ao futuro o era só passivamente.
Enquanto o pensamento trinitário estava preso a uma definição alienígena A assimetria das relações trinitárias é ainda mais notável pelo fato da Bí-
da divindade, não tivemos condições de dizer simplesmente que Jesus é o "Filho blia apresentar claramente candidatos para as partes que faltam no gráfico. Pro-
eterno", que aquilo que acontece entre o Jesus humano e seu Pai e a comunida- pomos preenchê-las. Qual a linguagem bíblica que escolhemos para as relações
de dos fiéis é eternidade. Ao invés, precisamos dizer que Jesus é a habitação e ativas do futuro com o passado é, no momento presente, de importância secun-
manifestação de seu próprio sósia preexistente - e, com isso, todas as impossibi- dária. Usando "testifica" para o Espírito e "liberta" para o Espírito com o Fi-
lidades através das quais nos arrastamos se fazem presentes. E a necessidade do lho, podemos dizer o seguinte: o testemunho que o Espírito dá a respeito do
"pré-" que as causa; isto é, é a interpretação da eternidade como persistência. Filho é tão constituinte de Deus quanto as relações tradicionais. E assim é a
do primeiro passado que as provoca. Se, ao invés, seguimos a Escritura e com- realidade conjunta do Filho e do Espírito, como a abertura na qual o Pai é li-
preendemos a eternidade como fidelidade em relação ao último futuro, esses pro- berto de uma mera persistência em sua transcendência pré-temporal. Além dis-
blemas simplesmente desaparecem. so, por "Deus é Espírito" ser a única abordagem bíblica para uma definição
Na verdade, a Trindade é simplesmente o Pai, o homem Jesus e o Espírito de divindade, o Espírito deve, pelo menos, ser reconhecido como "princípio e
deles como o Espírito da comunidade que crê. Essa Trindade "econômica" é fonte" de modo diferente, mas em grau igual que o Pai; marquemos isso com
escatologicamente o "próprio" Deus, uma Trindade "imanente". E não há ne- uma "noção": "insuperado". Assim obtemos um gráfico novo, mostrado na fi-
nhum problema em afirmar isso, pois o próprio Deus só é ele mesmo escatolo- gura 2.
gicamente, porque é Espírito.
Quanto à liberdade de Deus, apenas a nossa proposta a afirma plenamen-
te. A Trindade imanente da interpretação ocidental prévia tinha apenas a liber-
dade espúria de não estar afetado. A liberdade genuína é a realidade da possibi-
lidade, é abertura para o futuro. A liberdade genuína é Espírito. E é apenas pelo / N\
fato de interpretar a eternidade de Deus como a certeza de seu triunfo que so-
mos capazes de dizer, sem restrições, que Deus é Espírito. Se assim entendemos 03
a liberdade de Deus, de fato somos incapazes de descrever como Deus poderia Gera Testifica
ter sido o mesmo Deus triúno de outra forma do que como a Trindade agora F
de fato dada. Mas nem somos, de maneira alguma, chamados a isso, enquanto É gerado É testificado
a liberdade total de Deus, como Espírito, for reconhecida. Nesse reconhecimen-
to é-nos igualmente ordenado dizer que Deus poderia ter sido Deus de outra ma- z
neira e proibido dizer como.
Com isso chegamos à próxima retificação que é preciso fazer no ensinamen-
to tradicional. Num diagrama tradicional das relações trinitárias a processão do
ser divino ocorre num sentido único, a partir do Pai. O Filho e o Espírito deri-
vam sua divindade do Pai, mas o Pai e o Filho não derivam a divindade do Es-
pírito; na fórmula de Agostinho, "o Pai é o princípio e a fonte de toda a divin-
dade" (Da Trindade, IV,29). Os lugares para as relações cujas setas apon-
tariam na direção do Pai estão vagos. FIGURA 2
O sub ordinacjonjsmo pré-niceno tinha duas raízes intimamente relaciona-
das. Uma era a necessidade de mediação entre o tempo e a eternidade. A outra
era a apreensão de Deus como localizado fundamentalmente no princípio e não
no final, de maneira que as relações trinitárias, mesmo quando corretamente
colocadas de modo paralelo ao tempo, tinham, como relações ativas, que apon-
tar apenas com a seta do tempo. A opinião de que ordenar, gerar, dar, etc. se-
73 Afirmado sem rodeios p. ex. por TERTULIANO, Contra Práxeas, IX,2-3.
riam mais apropriados para a divindade que ser dado, obedecer, etc. correspon- 74 P. ex. BOAVENTURA, Sentenças, VII,1,H.

172 173
A tradição podia dizer como envio e obediência, dar e ser dado são reali-
dades não meramente entre Deus e nós, mas em Deus - e assim bens finais.
Mas não podia dizer como libertar e ser liberto, testificar e ser testificado são
igualmente realidades em Deus. Assim a tradição podia mostrar - para usar
a linguagem da Reforma - que a lei de Deus é sua própria auto-expressão ver-
dadeira. Mas não podia mostrar que o evangelho está, de maneira semelhante,
ancorado em seu ser. Não sugerimos que a Igreja escorrega no legalismo to 5
persistentemente por causa de lacunas num gráfico; sugerimos, isso sim, que ela
o faz por causa de uma concepção de Deus representada com exatidão no gráfi- O ser de Deus
co tradicional, segundo a qual Deus de fato é o Deus da lei, mas não do evange-
lho, definido em sua divindade como o Pai, mas não como o-Espírito. Quere- A especificação da espécie de ser que Deus é, deve seguir a identifica-
mos emendar essa concepção. ção trinitária. Nesse caso, especificamos o ser de Deus como evento,
Talvez este seja também o lugar onde a doutrina tradicional de Deus refle- pessoa, espírito e discurso.
te, de fato, a dominação masculina. Quer a dominação seja uma característica
masculina -em termos biológicos ou não, culturalmente ela o tem sido. As rela-
ções trinitárias tradicionais, sem o suplemento que propomos, mostram a or-
dem e a asserção como constituintes da divindade, mas não a obediência e o As questões metafísicas
recebimento. De fato, a própria definição de divindade como asserção contra
o tempo e suas contingências, que está por trás da assimetria das relações e con- Todos os credos iniciam com "Creio em Deus, o...". É um dogma que Deus
tra a qual argumentamos, carrega a mesma preferência valorativa. Sustentou-se é. Não é possível existir um ateu cristão, exceto em sentidos muito especiais de
de maneira convincente que essas características do trinitarismo tradicional são "ateu"'. Mas em que sentido Deus "é"? Deus é como é uma idéia? Ou uma
o último baluarte da dominação dos deuses do sol e do céu sobre deusas da árvore? Ou como? Sóo fato de fazer essa pergunta já a torna desesperadamente
terra e da lua no mundo antigo75. Ao ensinar uma simetria de relações trinitá- intrigante. Assim, a pergunta pelo ser de Deus se impõe dogmaticamente ao em-
rias não pretendemos, naturalmente, criar um equilíbrio entre as características pieendimento teológico e de fato tem sido investigada vigorosamente em todas
femininas e masculinas, e certamente não queremos postular obediência ou re- as épocas. Com ela, chegamos decisivamente ao outro lado de uma fronteira
ceptividade como características inerentemente femininas. Nosso propósito é, antes, que estivemos atravessando ao longo dos dois capítulos anteriores. Chegamos
eliminar totalmente a influência das doutrinas de papéis sexuais da Antiguidade. ao centro da metafisica.
A metafísica faz duas grandes perguntas. Primeiro, que modo de ser tem...?
Segundo, quaisquer que sejam os modos de ser, de que maneira todos são mo-
dos de "ser"? Isto é, o que é o ser? Essas não são perguntas esotéricas. Veremos
imediatamente que a primeira não é esotérica se inserirmos "eu" no espaço em
branco: que modo de ser eu possuo? O tipo que desaparece com o tempo? O
tipo que transcende o tempo? Ou algum outro? E obvio, em nível de senso co-
muni, que há diversos modos de ser; há coisas, eventos, idéias, números, cons-
ciências, e quem sabe o que mais. E contra a ameaça do tempo que a pluralida-
de dos modos de ser torna-se portentosa, como nossa expansão da pergunta na
primeira pessoa presumiu. Assim, a reflexão dos gregos sobre os modos de ser
era impelida pelo temor de que todas as "coisas" pudessem passar. Eles viram
que as coisas comuns estão claramente sujeitas ao tempo; as idéias obviamente
não, mas que tal as consciência,02 E se a primeira pergunta metafísica for rele-
vante, a segunda, em conseqüência, deve sê-lo também.

1 Como no uso por Altizer; Thomas J.J. ALTIZER, The Gospel of Christian Atheism, Phila-
75 Franz K. MAYR, "Trinitãtstheologie und theologische Anthropologie", delphia, Westminster, 1966.
ZThK, 68: 427-77,
1971. 2 P. ex., PLATÃO, Fédon.

174 175
A teologia fez a primeira pergunta metafísica também em relação a Deus: prio Aristóteles definiu algumas vezes sua "primeira filosofia" como a investi-
qual é o modo de ser de Deus? Isso é claramente um exemplo gramaticalmente gação da divindade4 e outras vezes como a investigação da ousias, porque se
possível, mas logicamente estranho de pergunta, porque a palavra "Deus", co- há um Deus - e a negação de que haja um também é uma posição teológica
mo vimos, significa "realidade eterna". Por isso, qualquer religião realmente exis- - então ser é ser Deus ou então ser dependente dele/dela/daquilo para ser qual-
tente que identifica seu Deus e assim especifica como Deus é eterno responde, quer outra coisa. Numa reflexão religiosa, portanto, é o "ou" da frase anterior
com isso, a pergunta metafísica de antemão. Os adeptos de uma religião real que é a chave para a pergunta pelo ser. A pergunta será respondida ao se achar
não têm necessidade direta de perguntar pelo modo de ser de Deus- Para eles; um determinante que possa ser trocado para mostrar a diferença entre Deus e
o questionamento ocorre no sentido inverso. E é claro que só os adeptos de al- a realidade diferente dele e então ao afirmá-lo indiferentemente a essa troca. Por
guma religião usam a palavra "Deus", em tais perguntas ou de outras maneiras. exemplo, o procedimento usual no pensamento cristão escolástico é: Deus é a
Assim, "Qual o modo de ser de Deus?" somente pode ser uma pergunta rele- explicação; as criaturas são aquilo-que-precisa-de-explicação; e por isso ser é ser
vante entre religiões, como esforço de uma religião para se entender em face de
inteligível - ens est veritas*.
uma outra. Nossa tradição tem uma resposta-padrão para a primeira pergunta metafisi-
De fato, foi no longo confronto entre as religiões bíblica e helênica, ãõ qual co-teológica: Deus tem um ser contínuo. E à segunda: Deus é contínuo, tudo o
já dedicamos tanta atenção, que o cristianismo perguntou, necessária e justa- mais é temporário, e por isso ser é ter um passado. Não precisamos aqui atacar nova-
mente, pelo ser de Deus. O caráter especial dessas duas religiões fez com que mente essas respostas. Toda a estória dos últimos dois capítulos falou da luta
a confrontação fosse singularmente criativa em termos metafisicos, mas tam- do cristianismo com elas; já mencionamos a nossa rejeição. A tarefa deste capí-
bém a torceu traiçoeiramente. Pelo fato da Grécia precisar de critérios para re- tulo é mostrar a alternativa da fé. Faremos quatro especificações do ser de Deus:
conhecer a "verdadeira" divindade quando sua procura a alcançasse, sua refle- que Deus é evento, pessoa, espírito e discurso.
xão religiosa implicou uma forma embrionária da pergunta metafísica sobre Deus: Como o grande confronto iniciou com o aprisionamento da fé bíblica por
quais são as marcas da verdadeira intemporalidade? Como os helenistas cristãos seu rival e interlocutor, a alternativa da fé sempre apareceu como uma ruptura,
tinham que lidar com a exigência de demonstrar que o Pai de Jesus é realmente como uma veemente divergência dos pensadores cristãos em relação àquilo que
Deus, tendo que lidar assim com a exigência de critérios para a verdadeira di- também eles supõem que seja obviamente verdadeiro. A história total da longa
vindade, eles facilmente foram levados a fazer a pergunta pelo ser de Deus de ruptura seria uma história completa da teologia; aqui procederemos de uma ma-
uma maneira pela qual incorriam em petição de princípio e acabavam se train- neira mais sistemática, referindo-nos ao acaso a umas poucas grandes figuras
do: quais são as demais características metafísicas de Deus, além da intempora- da tradição. De que maneira nossa própria contribuição também é uma revira-
lidade'?3 Já encontramos a pergunta nessa forma em Agostinho. Na medida em volta em relação a profundas pressuposições do nosso pensamento, não pode-
que os pais se enredaram assim, o cristianismo se enquadrou no padrão que ten- mos dizer; outros terão que fazer isso.
tamos superar: o padrão em que a interpretação de Deus pelo cristianismo, que Não investigaremos explicitamente a segunda questão metafísica. Isso nos
apropriadamente se tornou metafísica na discussão com a Grécia, assume uma levaria longe demais, para além dos limites da dogmática. Mas uma resposta
definição inicial de divindade que aborta a discussão e meramente recita osprin- a essa pergunta guiará a nossa consideração do ser de Deus e ao mesmo tempo
cípios helênicos. emergirá dela. E bom mencioná-la aqui, para que os leitores possam conhecê-la
O método, portanto, é decisivo. Uma doutrina do ser de qualquer suposto à medida que lêem: Deus antecipa; as criaturas recuam; por isso ser é ter um
Deus é uma certa abstração da forma da identificação desse Deus que se desen- futuro.
volveu mediante a reflexão; se, por exemplo, "Deus é aquele que ressuscitou Je-
sus", já nos referimos a ele como pessoa, falando dele como "aquele que", se-
guido por um verbo transitivo. Assim, o hábito da teologia de tratar primeiro Deus como evento
o ser de Deus e sua triunidade depois, é um desastre, porque se não se fizer da
identificação trinitárja de Deus a base da doutrina do ser de Deus, será fácil Toda a exposição da triunidade de Deus requer nossa primeira proposição:
demais pressupor inconscientemente alguma outra identificação. A pergunta certa, Deus é um evento. O tipo de realidade que Deus possui é igual à de um beijo
que tentaremos responder a seguir, : qual é o modo de ser que Deus deve ou de um acidente automobilístico. O argumento em favor dessa proposição são
possuir, por ser triúno?
os três capítulos anteriores.
A segunda pergunta metafísica: "O que é o ser?" não tem nenhuma forma
teológica especial, porque ela própria é uma pergunta teológica. Por isso o pró-
4 P. ex., ARISTÓTELES, Metafísica, 1028a,13-15.
3 Wolfhart PANNENBERG, "Die Aufnahme. des phiosophischen Gottesbegriffs ais dogmati- 5 P. ex., ibid., 1026a,15-19.
sches Problem der frühchristljchen Theologie", ZTIZK, 70:145, 1959.
* N. do E.: O ser é a verdade.
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Na tradição dominante especificou-se o ser de Deus pela noção de "subs- bm o luterano conservador Peter Bruriner: "Em vista da autodeterminação ( ... )
tância", seja na compreensão que está mais de acordo com Platão, seja na que de Deus em relação a nós, devemos ( ... ) abandonar todas as imagens de Deus
está mais de acordo com Aristóteles. Johann Gerhard, por exemplo, afirma: "Deus que, com a ajuda do modo de pensar da Antiguidade, projetam sobre Deus uma
é uma substância espiritual: simples ao extremo, infinito (...)."6 Uma substância perfeição fixa, imóvel e abstrata, de maneira que ( ... ) falar de novos juízos, no-
é que algo é, mantendo o seu ser pela possessão de algum complexo definido vas reações, novos atos e novas palavras em Deus (...) pareça ser um antropo-
de atributos que respondem a "algo"; ou substância é a realidade possuída por morfismo ingênuo.O
e como aqueles atributos; e a palavra em uso tremeluze entre os dois e deriva Mas, enquanto a exigência é geral, o cumprimento dela é menos freqüente.
grande parte de seu poder metafísico dessa ambigüidade. Uma substância, por Um grande projeto teológico do século XX foi dedicado ao mesmo, a "Dogmá-
exemplo, é o que "tem pés", "com assento", etc., de modo a ser uma cadeira, tica Eclesiástica"" de Karl Barth: "A divindade de Deus consiste, até suas maio-
e continua sendo-o enquanto retém a possessão de "pé-dade" e "assento-dade". res profundezas, nisso - ou pelo menos também nisso: que ela é evento". Além
Assim a metafísica da substância realiza um grupo de noções com signifi- disso, o ser de Deus não é eventualidade* ou qualquer coisa semelhante, mas
cado existencial: de persistência, independência e possessão. Ser substancioso é um evento particular: "aquele evento da atividade de Deus no qual somos en-
durar, tendo realidade como "atributos", isto é, independentemente de outras volvidos em sua revelação"12 , a relação ativa das pessoas triúnas13 . A doutrina
substâncias. E claro que nenhuma realidade experienciada imediatamente cor- de Barth acerca do ser de Deus como amor e liberdade é então a explicação
responde totalmente a essa visão. Todas estão sujeitas à ação de outras realida- desse ser-como-evento14 . Na medida em que a teologia atualmente tende a ig-
des, e assim de vez em quando ganham e perdem atributos. Jones, o animal norar as partes principais da obra de Barth (e, em territórios de fala inglesa,
com duas pernas, pode de fato perder uma. Assim todos estão sujeitos ao tem- jamais as apreendeu), ela se isolou da única tentativa plenamente realizada até
po e podem durar muito, mas não para sempre: Jones, o bípede vertebrado, po- aqui de cumprir a exigência constante da própria teologia moderna. Pensa-se
de sobreviver à perda de sua bipedalidade, mas não de sua vertebralidade. "Deus" muitas vezes que um outro projeto teológico contemporâneo ponderável e mui-
então é postulado como a única substância verdadeira8, que possui todos os to influente especificaria o ser de Deus como evento. De fato, porém, não o faz.
seus atributos com segurança, de tal maneira que as contingências do tempo na- Assim, precisamos dedicar alguma atenção à "teologia do processo". Não de-
da significam para ele. Deus não tem atributos "acidentais" que vão e vêm, e signamos com esta expressão toda teologia que aprendeu com Alfred North White-
assim não está sujeito ao tempo ou a outras realidades. Deus é a substância per- head ou Charles Hartshorne (seria quase toda a teologia de língua inglesa),
feita. Tudo que atribuímos a Deus - "simplicidade", "infinidade", "onipotên- mas apenas aquelas teologias que encontram em seu pensamento "a filosofia
cia", ou qualquer que seja o atributo - meramente explica sua perfeição. certa" e assim mantêm as doutrinas-chaves de sua interpretação de Deus15. Des-
Deveria ter sido evidente que os cristãos não podem aprovar essa metafísi- se modo, nós mesmos analisaremos o próprio Hartshorn&6 .
ca: "Porquanto quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á." (Mt 16.25) Vimos E verdade que a metafísica do "processo" entende toda realidade - e as-
como os maiores teólogos trinitários foram impelidos pela dialética da identifi- sim também Deus - como consistindo concretamente em eventos. O que há
cação trinitâria de Deus a negar que haja qualquer complexo de atributos pela de mais concreto não é de forma nenhuma uma substância (3D. ex. "este homem"),
possessão dos quais Deus é, e assim tiveram que fazer com que o sujeito de "é mas os eventos momentâneos da vida do homem. O humano que perdura é uma
Deus" não fosse, de jeito nenhum, uma substância, mas um ato, um evento. série de eventos, estabelecida como série por certos tipos de semelhança e rela-
Vimos também como subseqüentemente a maior parte da teologia se afastou ção entre os eventos. "Este homem" é o fato de que uma unidade pode ser abs-
por completo dessa percepção.
A rejeição da tradição dominante exatamente neste ponto é endêmica na
teologia contemporânea. Podemos ilustrar isso quase ao acaso. Assim se posi- 10 Peter BRUNNER, "Die Freiheit des Menschen in Gottes Heilsgeschichte", in: -, Pro Eccie-
ciona o católico romano radical Leslie Dewart: precisamos "des-helenizar" a fé, sia. Berlin, Lutherisches Verlagshaus, 1962, vol. 1, p. 110.
superando os ideais de imortalidade, estabilidade e impassibilidade9. Mas tam- 11 Karl BARTH, Kirchliche Dogmatik, Zürich, Theologischer Verlag, 1932-69, vol. 2/1, pp.
288-305.
* N. do E.: Eventhood, no original; isto é, a qualidade de ser evento ou acontecimento.
12 Ibid., p. 284.
6 Johann GERHARD, Loci communes theologici, 11,93; Tomás de AQUINO, Suma teológica, 13 Ibid., p. 300.
1,3,3. A partir de Boécio, essenria era o equivalente teológico usual de ousia, no lugar de 14 Ibid., pp. 306-61. Sobre isso, v. Colin GUNTON, Becoming and Being, New York, Oxford
substantia, que é mais natural e usado em outros lugares. Para aumentar a confusão, ao tra- University, 1978, pp. 17-214; Robert W. JENSON, God after God, Indianapolis, Bobbs-Merrill,
duzir essentia, onde substitui ousia, para o português, somos obrigados a voltar à forma por- 1969.
tuguesa de substantia. 15 P. ex. John COBB, A Christian Natural Theology, Philadelphia, Westminster; London, Lut-
7 V., p. ex., Werner MARX, The Meaning ofAristotle's "Onrology", The Hague, Nijhoff, 1954. terworth, 1965; Ralph E. JAMES, The Concrere God, Indianapolis, Bobbs-Merrill, 1967; Schu-
8 Em ARISTÓTELES, v. Metafísica, liv. lambda. bert OGDEN, The Reality of God, New York, Harper & Row, 1966.
9 Lesije DEWARF, The Future of Belief, New York, Herder & Herder, 1966, pp. 134-43. 16 Dependerei fortemente de GUNTON, op. cit., pp. 11-114.

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traída da seqüência de alguns eventos particulares que é mais que sua mera retornassem a seu começo. E para esse mundo o Deus apropriado poderia ser
totalidadeZl. Brama-Atmã. Mas isso é um assunto completamente diferente. Quanto à ques-
Assim, nenhuma entidade duradoura é, nessa metafísica, um evento, mas tão se o Deus verdadeiro poderia ter sido Deus sem qualquer mundo, só pode-
antes uma abstração de algum conjunto de eventos. Mas, ao passo que cada mos responder como antes: a análise de Deus como evento livre, como espírito,
ser humano ou cada galáxia ou de fato toda entidade duradoura que não seja igualmente nos obriga a dizer que ele o poderia ter sido e nos proíbe dizer co-
Deus, é uma abstração de seu próprio conjunto especificável de eventos de mo.
maneira que faz sentido dizer que esse ser humano é tais e tais eventos -, os Segundo, se Deus é real, ele deve ser um sujeito lógico. Deve ser possível
eventos que Deus é concretamente são simplesmente todos os eventos que cons- formar frases com um verbo e "Deus" como sujeito. E se Deus é aquele de quem
tituem a história do mundo18 . Por isso, se nosso discurso permanece em nível falamos, o verbo deve poder ser ativo, de fato transitiyo. Quanto aos eventos
concreto, a palavra "Deus" não tem significado próprio; não podemos, com no tempo, é precisamente a dificuldade de fazer de um evento o sujeito lógico,
ela, indicar nenhuma realidade identificável. Concretamente (i. é, como evento) especialmentç de verbos ativos, que levou à doutrina da prioridade da substân-
existe apenas o mundo. Deus existe como Deus, como mais que o mundo, ape- cia em relação ao que lhes acontece. Como se pode dizer que um acontecimen-
nas em seu "caráter abstrato", naquela espécie de realidade sua que é apreendi- to "fala através dos profetas", por exemplo, ou "sustenta o universo"?
da por nossas abstrações da realidade concreta, isto é, ele existe, não como even- Um sujeito lógico não deve ser apenas identificável, mas também reidentifi-
to, mas apenas como uma estrutura - dada intemporalmente em si própria - cável, como quando se liga para a oficina dizendo: "Aqui fala o homem que trou-
de relações entre todos os eventos. A metafísica do processo contribui muito pa- xe (observe o tempo) o Horizon para regular." Porque se eu disser: "João
ra a nossa compreensão do caráter geral da realidade. Mas não explica a afirma- está com raiva", e você replicar: "Quem é João?", não posso meramente res-
ção: "Deus é um evento", porque de fato não afirma isso. A metafísica do pro- ponder: "Aquele que está com raiva." Um sujeito lógico deve, de fato, ser uma
cesso degrada ontologicamente a noção de substância. Mas, assim que chega- entidade duradoura em algum sentido'9. Exatamente este ponto desqualificou
mos a falar das entidades duradouras às quais a noção foi aplicada tradicional- tradicionalmente os eventos como sujeitos lógicos: um evento acontece, e depois,
mente - seja "Jones" ou "Deus" -, ela também a aplica, e então não a mo- onde está?
difica realmente de forma nenhuma. Sugerimos que é porque Deus é o evento triúno que Deus não passa depois
Queremos dizer que Deus é um evento. Vemos a necessidade de explicar de acontecer. E a tri-identicalidade da ação divina que faz com que eia seja um
duas coisas. sujeito lógico. O que acontece ao mundo em Cristo tem múltiplas possibilida-
Primeiro, a metafísica tradicional está certa, em termos de bom senso, na des de identificação que enquadram o tempo e assim se estendem através do
medida em que um evento deve acontecer a alguma entidade duradoura. O que tempo. As mesmas também não são desconexas, deixando, por assim dizer, la-
não se segue disso e o que negamos é que a mesma, por isso, seja ontologica- cunas de tempo entre si, porque sua pluralidade é a mesma coisa que suas rela-
mente anterior ao evento. Aquilo a que Deus acontece é Jesus e o mundo. Deus ções mútuas. Assim podemos dizer que o que acontece com Cristo tem uma
é o evento da transformação final do mundo pelo amor de Jesus. A realidade identificabilidade que se repete a si mesma, que podemos plausivelmente tratar
de Deus é que "toda espécie de coisas estará bem" e que isso é verdade agora. como a identificabilidade contínua de um sujeito lógico, sem que isso seja o ti-
Assim Deus não é um evento no tempo, nem um evento estendido ao longo de po de reidentificabilidade que a tradição considerou ser o único tipo: a persis-
todo o tempo. Ele é, antes, o evento pelo qual o mundo tem um futuro, para tência de algum conjunto único de características de identificação, a extensão
ser um mundo do tempo. Se não houvesse eschaton, se o mundo como um todo temporal de uma "substância".
não estivesse aberto ao futuro desta forma, o mundo não ocorreria dentro da- Aproveitaremos uma última sugestão de Gregório de Nissa. A ousia divi-
quela insustável aproximação de incerteza que chamamos de tempo. Deus é a na, a "divindade", é, em sua opinião, pura infinidade temporal. Para ele a pala-
temporalização do mundo. vra não significa mais algo que é Deus; denota puramente a infinidade do ato
Mas e se nenhuma coisa dessas acontecesse ao mundo, se ele não fosse tem- que é Deus. E essa ousia que as três hipóstases derivam uma da outra e uma
poralizado? Então este mundo seria absolutamente nada. No lugar do mundo com a outra, isto é, os atos do Pai, ou do Filho, ou do Espírito, dentro de seu
que realmente existe, poderia haver um outro mundo, no qual a grande visão ato conjunto que é Deus, estão realmente dentro daquele ato, são atos divinos,
mítica de um tempo circular fosse verdadeira, no qual todas as coisas sempre pelo fato de que não estão sujeitos a nenhum limite temporal. A distinção e a
relação das três identidades são uma estrutura da pura e triunfante possibilidade-
17 P. ex. Charles HARTSHORNE, fie Logic of Perfection, LaSaile, III., Open Court, 1962, como-tal. Elas são a estrutura dos modos temporalmente múltiplos em que a
pp. 216ss.
18 Sobre esse parágrafo, veja p. ex. Charles HARTSHORNE, A Natural Theology for Our Ti-
me, LaSaile, III., Open Court, 1967, pp. 6-28; ID., The Divine Relativity, a Social Concep- 19 P. F. STRAWSON, Individuais; an Essay in Descriptive Metaphysics, Garden City, N. Y
tion of God, New Haven, Yale University, 1948, pp. 30-47, 67-75, 88-94. Doubieday; London, Methuen, 1959.

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ação que é Deus vence todas as condições. A "ousia única" dos capadócios sig- A tendência de nossa análisé está dada de antemão. Em vista da linguagem
nifica que, quer as condições que poderiam ser impostas ao que acontece com clara da Bíblia manteremos a pessoalidade de Deus até que sejamos afastados
Cristo sejam os fardos do passado (impostos ao Pai, se só ele fosse Deus), dela. Já entramos na profunda corrente cristã de percepção da pessoalidade de
quer sejam os riscos do futuro (impostos ao Espírito, se só ele fosse Deus), Deus, representada por Agostinho e Hegel, e não a deixaremos voluntariamen-
quer sejam as estatísticas do presente (impostas ao Filho, se só ele fosse Deus), te.
elas não impedem o ato que de fato é Deus, e que justamente nesse extremo Johann Gottlieb Fichte pode apresentar o problema. Ele deixou sua marca
desimpedimento pode ser apenas uma ação. na virada do século XVIII para o XIX na Alemanha com a "controvérsia do
ateísmo" ocasionada por seus pontos de vista23. Fichte disse, junto com todo
o pensamento de sua época, e com razão, que um ser consciente estabelece seu
Deus como pessoa ser individual pela autoconsciência. Mas não é possível haver um objeto da cons-
ciência que não tenha uma fronteira que o distingue do resto da realidade. Por
O conceito de pessoalidade* como um modo particular de ser parece ser isso o eu da autoconsciência deve ser um eu limitado, finito; e por isso, disse
moderno e, além disso, resultar da influência da teologia cristã sobre a vida e Fichte, Deus não pode ser um ser consciente, pois ele é infinito e assim não po-
reflexão ocidentais20. Mas, já que o conceito existe, é óbvio que todo o discur- de se conhecer a si próprio como finito. E por isso Deus também não pode
so da Bíblia a respeito de Deus de fato fala dele como daquilo que agora cha- ser pessoal, porque uma "pessoalidade inconsciente" seria uma contradição.
mamos pessoa121. De fato, a maioria das religiões praticadas trata a divindade Há duas possíveis respostas ao tipo de preocupação que Fichte apresenta.
como pessoal, porque se dirige à divindade na esperança de uma resposta. Con- Uma é o argumento de que Deus pode ser pessoal sem ser uma pessoa. A outra
tudo, a pessoalidade de Deus também é atacada regularmente em termos reli- é o argumento de que é possível existir uma pessoa infinita, rebatendo Fichte
giosos. Assim, toda a religião védica efetiva aceita a pessoalidade da divindade, frontalmente. Seguiremos o último curso.
e quase toda a reflexão védica sofisticada a nega22. Na história da teologia cris- O objeto como qual Deus se conhece a si próprio é Jesus. Assim, a auto-
tã, o mal-estar com a idéia da pessoalidade de Deus ou, antes do surgimento consciência de Deus é de fato consciência de um indivíduo limitado, particular,
da idéia, com aquelas descrições bíblicas de Deus que agora incluímos nessa ca- de maneira que essa exigência em relação à pessoalidade é cumprida. Mas a ques-
tegoria, dependeu em grande parte da interpretação helênica da divindade. Pelo tão decisiva é justamente como a realidade desse indivíduo é limitada. A reali-
fato dessa divindade ser o fundamento intempora1 da realidade temporal e, por dade de cada pessoa criada é definida pela seqüência de eventos, pelo enredo
isso, poder se manifestar simultânea e sucessivamente através de muitas pessoas de sua vida, na medida em que dessa seqüência se faz uma totalidade determi-
diferentes, é natural que a interpretação helênica conceba a própria divindade nada, de fato um enredo, por meio de sua morte. E o que acontece com Jesus.
como impessoal. Ele é definido por sua vida e morte particulares como "amor", como uma vida
Aqui existe um problema que não pode ser evitado pela mera execração da para todas as demais vidas. Ele é o crucificado, que viveu sua vida na promessa
religião helênica. Logo que o confronto com o helenismo desperta a reflexão que trouxe a seus companheiros e que finalmente entregou a si mesmo total-
metafísica na Igreja, seja na Antiguidade ou agora, fica claro que não basta cha- mente àquela promessa. O fato de que ele ressuscitou não significa que sua morte
mar Deus "uma pessoa" sem nenhuma qualificação. Porque "uma" pessoa é é cancelada de tal maneira que sua vida novamente seja indefinida. Significa
individualizada pela diferença em relação a outras pessoas, e, no caso de Deus, que esse indivíduo, esse indivíduo definido, é uma realidade futura emesmo*
presente
quais seriam elas? Mas, se Deus não é "uma pessoa' pode fazer sentido chamá-lo e não meramente do passado, de tal maneira que ele pode ser o "eu
"pessoal"? O problema não é esotérico. Cada crente o enfrenta, e é seguro di- objetivo do Deus vivo. Ora, se a autoconsciência de Deus é a consciência deste
zer que a maioria meramente faz a sua opção, ou pensando vagamente em Deus indivíduo presente, limitado, Deus é consciente de seu eu como a pessoa para
como bastante parecido com eletricidade ou imaginando Deus de uma maneira todas as pessoas, como um amor específico e definido, e assim não é restrito,
totalmente mítica, como uma mulher ou um homem poderoso, porém invisível. mas liberto por essa autoconsciência limitada.

* N. do E.: Personhood, no original. Utilizamos o termo "pessoalidade" para distingui-lo de 23 Sobre o que se segue: Emanuel HIRSCH, Geschichte der neuern evangelischen Theologie,
"personalidade", que seria a tradução de personaiity. Gütersloh, Bertelsmann, 1949-54, vol. 4, pp. 345-75. Também RGG3, s. v. "Person", col. 232.
20 Wolfhart PANNENBERG, s.v. "Person", in: RGG3. * N. do E.: Self, no original.
21 E. WURTHWEIN, s.v. "Gott", iii: RGXY. 24 Vale a pena observar que essa é a mesma dialética pela qual Paul Tillich demonstrou a quali-
22 Sten KONOW, "Dje Inder", iii: Chantepie DE LA SAUSSAYE, ed., Lehrbuch der Religions- ficação de Jesus para ser "a última revelação": Systematic Theology, 3 vols., Chicago, Uni-
geschichte, Tübingen, J. C. B. Mohr [Paul Siebeck], 1925, vol. 2, pp. 1-88; RAI)AKRISH- versity of Chicago, 1951-63, vol. 2, pp. 135-7 (trad. port.: Teologia sistemática, São Paulo,
NAN, Indian Philosophy, New York, Macmillan, 1923-27, vol. 1, pp. 63-267, e vol. 2. Paulinas; São Leopoldo, Sinodal, 1984).

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Tudo depende do tipo de infinidade, da espécie de liberdade de limitação nentes que aqueles que ela de fato tem, tornar-se "absurdos". No entanto, en-
em que pensamos quando atribuímos infinidade a Deus. Se pensamos na sim- quanto Deus não pune minha incredulidade pela perda real da minha identida-
ples ausência de definição, um ser infinito não pode, de fato, ser autoconsciente. de no fluxo dos eventos, não posso deixar de reconhecer alguns eventos como
Mas se pensamos na infinidade de Deus como o trinitarismo (Gregório de Nis- meus atos e sofrimentos e outros como não sendo meus. Assim, sou impelido
sa, p. ex.) deveria nos ensinar a concebê-la, como liberdade para transcender ou em direção à fé em Deus ou à suposição de algo misterioso que não seja
cada nova definição sem que jamais falte alguma, ou como as Escrituras he- a minha vida e sua coerência intrínseca, "cuja" vida é constituída pela minha
braicas deveriam nos ensinar a concebê-la, como fidelidade invencível, então o vida, "cujos" atos e sofrimentos são constituídos pelos eventos da minha vida.
fato do indivíduo limitado que é Jesus ser o eu-objeto de Deus não impede a E assim surge o mito da "pessoa" que eu sou como algo diferente do evento
infinidade de Deus, mas a constitui. que sou.
O "uma pessoa" que Deus é, é a pessoa humana Jesus, o Filho. O evento Em nossa condição de criaturas caídas podemos, de fato, ser incapazes de
triúno que Deus é, é, por sua triunidade, uma pessoa, esta pessoa. Não precisa- lidar conosco mesmos sem o mito aqui descrito. Mas não há motivo por que
mos, por isso, pensar nas outras identidades, a do Pai ou do Espírito, como - aplicá-lo a Deus. Deus não é uma criatura, nem é caído. Ele fala e escuta a Pa-
no que diz respeito àquilo que os distingue um do outro - seres pessoais indivi- lavra pela qual vive. E crê em sua Palavra. Nele "pessoa" e "evento" são, por
duais no sentido moderno. Se o Pai e o Filho fossem pessoas singulares, seriam isso, apenas percepções alternativas de uma única realidade.
Agora também podemos tratar da dificuldade levantada pela linguagem dras-
algo metafísico no exato estilo do "Logos asarkos" que acabamos de eliminar
ticamente pessoal da Bíblia sobre Deus: que Deus muda de opinião, reage a eventos
e a respeito do qual bem poderíamos ter as mesmas dúvidas de Fichte. Ao invés,
insistiremos na interpretação escolástica das identidades triúnas como "relações terrestres e coisas semelhantes25 . Ou melhor, podemos ver que não há dificul-
subsistentes". Diremos: todo o significado de ser Deus Pai consiste em ser dade.
Em relação com e dentro do tempo determinado e abrangido pela ocorrên-
invocado como "Pai" pelo Filho, Jesus; todo o significado de ser Deus Espírito
consiste em ser o espírito desse intercâmbio. cia de Deus, ele é uma entidade duradoura em virtude de sua triunidade. E o
eu objetivo dessa entidade duradoura, o critério de sua auto-identidade, é Jesus
Pelo fato de Jesus gritar: "Pai, se possível...", e pelo fato de que entregará de Nazaré, em sua abertura para com seus companheiros. Por isso, é apenas fi-
seu domínio no final, e pelo fato dele não ser desapontado nessas relações, há
o Pai. Pelo fato de Jesus dar seu espírito, e pelo fato de que atrairá todos a si delidade para consigo próprio que Deus, em relação ao tempo, ouve, considera
e responde de verdade. A ação e reação de Deus em relação a nós através do
nesse espírito, e pelo fato de que esse movimento tem caráter final, há o Espíri- tempo, por ser fiel ao seu eu que é Jesus e, assim, um incansável cortejar e sal-
to. Isso não significa que o Pai e o Filho sejam criados por Jesus. As relações var, não compromete a eterna auto-identidade de Deus, mas a constitui.
necessariamente postulam alguns termos individuais, mas isso não significa que Que Deus responde oração, faz ameaças e "se arrepende" delas quando
elas sejam secundárias em relação a eles. E, finalmente, por tudo isso ser verda-
de, Jesus é o Filho (não: há o Filho!). Quanto ao Pai e ao Espírito, Fichte e o mal tornou-se passado, faz promessas e as cumpre mediante novas e inespe-
radas promessas - tudo isso não é uma afirmação "antropomórfica" ou "sim-
aqueles que argumentaram como ele tinham razão. O tipo de ser possuído por bólica". É a verdade proposicional descritiva mais estrita. E quando se diz que
eles, e assim pelo Deus triúno que cada um deles é, relativamente a cada um
deles, não é o de alguma coisa, pessoal ou não. Mas isso não é tudo. Deus não nós iniciamos algo novo, que somos surpreendentes e fiéis ao mesmo tempo, que
é uma pessoa individual. Mas há uma pessoa individual que é Deus. E por isso a linguagem precisa ser esticada um pouco. Deus não tem nenhum problema
aqui. "Desde a eternidade o Pai nos vê no Filho ( ... ) como determinados para
a dialética agostiniano-hegeliana da consciência, que define a própria noção de a comunhão com ele. ( ... ) Pelo fato de Deus, com a totalidade de seu ser e desde
pessoalidade no sentido moderno, pode, de fato, em sua aplicação trinitária a a eternidade, entrar na relação de pacto que ele quis, a história da salvação co-
Deus, estabelecer sua pessoalidade.
Agora podemos tratar de uma dificuldade que possivelmente incomode os mo história real torna-se possível também para Deus."26
É na determinação do ser de Deus como evento e pessoa que surgem os
leitores: falar de um evento como pessoa, mesmo no sentido descrito acima, po-
de ter algum significado? Respondemos: só um evento pode ser uma pessoa. principais problemas. "Deus é Espírito" e "Deus é Discurso", a que agora diri-
gimos a nossa atenção, podem, por isso, ser expostos mais brevemente. Contu-
A vida de qualquer um de nós é um evento, mas também é constituída por
muitos eventos. Para apreender a minha vida como um evento, preciso, por isso, do, são os determinantes decisivos em termos religiosos.
apreender a conexão dramática, a fidelidade de cada um de seus eventos consti-
tuintes em relação a todos os demais. Mas, como criatura, não tenho essa fideli-
dade em mim mesmo. A coerência dos dias da minha vida não está em qual-
London, Oxford University,
quer coisa visível neles, mas apenas nas promessas de Deus. E, como criatura 25 Para uma mudança de referência, Johannes PEDERSEN, Israel,
caída, não dou ouvidos às promessas de Deus. Por isso meus dias ameaçam de- 1926-40, vol. 2, pp. 611-69.
26 BRUNNER, op. cit., pp. 109-10. Este artigo é a melhor investigação do assunto em pauta.
sintegrar-se, tornar-se uma seqüência incoerente que poderia ter outros compo-
185
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Deus como Espírito no entendimento de um Ezequiel. Contudo, o Deus da Bíblia tampouco e uma
força puramente arbitrária. Temos que aprender, de alguma maneira, a pensar
A compreensão ocidental da pessoalidade como uma espécie de ser encon- em Deus como vontade fieL
trou, classicamente, dois grandes movimentos essenciais do ser pessoal e dentro Em toda a história.,da teologia uma obra pode ser o material de averigua-
do mesmo: a mente e a vontade. Assim, Tomás de Aquino, seguindo Aristóte.. ção. "Do arbítrio cativo"33 , de Martinho Lutero, é intemperado, prolixo e, às
les, menciona cinco poderes "da alma" mas confere significado teológico a apenas vezes, desencaminhado; também é, depois da Bíblia, o livro que trata de Deus
dois: o "intelectual" e o "apetitivo' '27 Schleiermacher baseou a necessidade da da forma mais inescapável. Deus é aquele que "opera a vida, a morte e tudo
religião na necessidade da unidade, em nossa vida, entre "pensar" e 69agir"28 . em todos" ("Do arbítrio cativo", p. 685), que, de fato, não pode não operar
Ou, também, todo o pensamento de Kant pode ser lido como uma análise da tudo em todos (ibid., pp. 709, 712). Sabemos isso a respeito de Deus não por
pessoalidade; sua obra magna tem três volumes, um sobre o conhecimento, ou- causa de especulação filosófica, mas por causa do evangelho. Só quando con-
tro sobre a vontade, e um terceiro sobre a maneira como funcionam juntos29 . fessamos que Deus é responsável por tudo que acontece somos tão humilhados
Como sugerem os exemplos de Schleiermacher e Kant, o grande problema diante dele que precisamos do evangelho. E só pelo fato de governar de modo
analítico quanto à pessoalidade tem sido como a mente e a vontade se unem. absoluto Deus pode fazer promessas incondicionais, isto é, o evangelho pode
A pessoa é uma mente que governa os apetites, como Sócrates e todos os seus ser verdade (ibid., pp. 614, 619, 632). Mas justamente assim Deus está oculto,
seguidores ensinaram (p. ex. Platão, Fedro)? Ou a pessoa é uma vontade, que e exatamente em sua realidade como Deus do evangelho, porque o "tudo" que
usa o raciocínio para pensar como conseguirá o que quer, como Arthur Schopen- ele opera é, na melhor das hipóteses, moralmente ambíguo à luz do próprio evan-
hauer ensinava com a maior franqueza?30 Ou elas se juntam de alguma outra gelho: "Isso é (...) fé: crer que ele, que salva tão poucos e condena tantos, é
maneira? Aqui não estamos preocupados com isso como um problema misericordioso (...) de maneira que parece que ( ... ) ele se alegra com a tortura
humano31 . Mas, ao ver Deus como uma pessoa, o vemos também como mente dos infelizes e é mais digno de ódio que de amor." (Ibid., p. 633.) Nossa única
e vontade. O trinitarismo agostiniano-hegeliano define Deus como consciência esperança é fugir de Deus em seu poder indefinido e sua pura majestade, para
que se estabelece no conhecimento de si - o Filho, e no amor a si - o Espírito. o Deus que se definiu em Cristo, como amor redentor (ibid., pp. 6843). Contu-
E assim o problema se apresenta também em relação a Deus. do, essa autodefmição não mitiga a vontade e a majestade incontroladas de Deus,
Os grandes escolásticos discutiram o problema de uma forma particular- nem faz de nossa fuga em direção a ela uma fuga para um Deus mitigado, co-
mente sofisticada. Por Deus ser o Criador, o que ele sabe e o que ele quer são mo quase toda a outra teologia a entende, porque a autodefinição de Deus co-
idênticos. E como Deus é bom, o que ele quer é o bem. Assim surge a pergunta: mo amor ocorre como a crucificação, como outra ocultação, ainda mais pro-
Deus sabe o que é bom e por isso o quer; ou o bom é bom porque Deus o quer? funda que a primeira, na ambigüidade do mundo (ibid., pp. 689-90), e assim
Tomás de Aquino foi o grande defensor da primeira opção, Duns Escoto e os como o evento final daquela poderosa abscondidade que, como acabamos de
nominalistas posteriores da segunda32. ver, é a majestade de Deus.
A questão em pauta é vital para a fé, apesar de sua aparência esotérica. Com essa pedra de toque, não podemos definir Deus nem como pura mente
Podemos pensar num evento ou pessoa absolutos e, contudo, não pensar em nem como pura vontade. Devemos centralizar nossa reflexão na vontade, mas
Deus - ou, pelo menos, não no Deus da Bíblia. O Deus cuja realidade primá- precisamos postular uma vontade que justamente é também mente. Isto é, pen-
ria é de conhecer impassivelmente a nós e a todas as coisas, como aquilo que saremos em Deus como espírito.
somos, para depois talvez fazer planos para nós de acordo com isso, simples- Se Deus Pai fosse Deus por si (o que é contrário não meramente ao fato,
mente não é aquele de quem a Bíblia fala. O Deus da Bíblia é uma tempestade, mas à lógica), então haveria em relação a ele exatamente o problema dos esco-
que nos impele como folhas daquilo que somos para aquilo que seremos e que lásticos: ele escolhe o que escolhe porque sabe o que é bom, ou aquilo que é
nos conhece apenas neste movimento. O grande Olho da Mente sem dúvida é bom é bom porque ele o escolhe? E o problema seria insolúvel, dado na própria
uma concepção nobre e pode até existir, mas é inofensivo demais para ser Deus concepção de tal "majestade pura".
Sendo como é, Deus é Deus Pai e Deus Filho, e justamente assim Deus Es-
27 Tomás de AQUINO, Suma teológica, 1,78, introdução. pínto. Por isso, se pensamos no Pai primeiro como mente, de maneira que ele
28 Friedrich SCHLEIERMACHER, Speeches on Religion to Its Cultured Despisers, II. tenha sua auto-identidade no autoconhecimento, então o eu como o qual ele
29 Crítica da razão pura, 1781; Crítica da razão prática, 1788, Crítica da capacidade de julga- se conhece é Jesus, e assim um amor e uma esperança particulares, algo bom
mento, 1790.
30 Arthur SCHOPENHAUER, O mundo como vontade e como representação, 11,19.
31 O primeiro teólogo sistemático protestante, Filipe MELANCHTHON, construiu toda a sua 33 Martinho LUTERO, "Do arbítrio cativo", 1525, daqui para a frente citado no texto pela pa-
sistemática em torno da desconexão de mente e vontade na criatura decaída: Loci communes ginação de WA 18. Veja Gerhard FORDE, "Bound to Be Free: Luther on the 57: Gospel and
3-16, in-
(1521), T. Koldeed, 1890, pp. 68ss. Human Freedom", Bulletin of the Lutheran Theological Seminary, Gettysburg,
32 Habilmente resumido por H. BLANKHERTZ, s. v. "Voluntarismus", in: RGG3 . verno 1977; Eberhard JUNGEL, "Quae supra nos, nihil ad nos", EvTh, 32: 197-240, 1972.

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em particular é querido pelo Criador, isto é, pelo próprio Deus. Ou, se pensa- voz e nossos ouvidos ao nos aproximarmos dele, que ele não somente tem uma
mos primeiro no Pai como vontade, de maneira que ele tenha sua auto-identidade palavra para nós - o que é bastante excêntrico no mundo das religiões -, mas
na auto-escolha, então o eu que ele escolhe para si é Jesus, que, como pessoa é a sua palavra para nós: o Verbo é "de um só ser com o Pai".
criada, sempre é determinado, em suas escolhas, pele outros, isto é, por seu Deus é evento, pessoa e espírito. As três proposições alcançam sua síntese,
conhecimento deles, inclusive do Pai. Assim, a dialética abstrata e no fmaljm- e com isso sua clareza final, na proposição de que Deus é palavra. Ou talvez
potente de mente versus vontade não pode descrever como Deus de fato é. Sua devêssemos dizer que o cristianismo primeiro soube que Deus é palavra e depois
realidade é complexa e viva; a mente e a vontade estão dadas nele apenas numa se engajou na elaboração dos outros três determinantes.
unidade estruturada original. Religiosamente é ofensivo dizer que Deus é palavra. Certo, todas as reli-
Isto é, Deus é liberdade. Deus não é uma mente que usa a vontade, nem giões reconhecem que Deus precisa se revelar inicialmente a nós, para que pos-
uma vontade que usa a mente; Deus é a criatividade que é ambas. Deus é vivaci- samos conhecê-lo/a, porque se Deus simplesmente estivesse aí para ser inspe-
dade transformadora e fiel. Deus é espírito. cionado/a, ele/ela não seria Deus. Uma comunicação de algum tipo, urna "pala-
Devemos nos apressar para evitar mal-entendidos. Hoje em dia, a palavra vra" em algum sistema de sinais deve começar a relação. Mas então, pela apreensão
"espírito" é usada muitas vezes de uma maneira que tem pouco a ver com sei religiosa normal, temos que passar para uma apreensão mais profunda ou mais
uso na Escritura ou aqui. Que Deus é espírito não significa que ele não tenha elevada de Deus. E quando nos movemos em direção a ele, movemo-nos para
corpo, que seja um "espírito puro" no sentido vulgar. Ao contrário, ele tem além da comunicação inicial, porque Deus como tal é silêncio. O Deus da reli-
corp&4, e, se não tivesse, não seria, de fato, um espírito. Que Deus tem corpo gião normal não está pessoalmente presente quando se dirige a nós; dirige-se a nós
significa, primeiro, que35 há um objeto de nossa intenção, que é ele, e que essa só para nos chamar para dentro da distância onde ele habita verdadeirament&6.
mesma realidade é o objeto da intenção de Deus mesmo em relação a si próprio. A palavra é o meio da vida no tempo. O tempo pode ser o horizonte da
E, segundo, que há uma entidade duradoura pela qual Deus pode ser identifica- nossa vida, porque o mundo não está meramente presente para nós, mas está
do e pela qual ele se identifica. Esse objeto duradouro que é o corpo de Deus, presente como mundo interpretado em sinais e símbolos de indefinidamente muitos
é Jesus que andou na Palestina e foi ressuscitado para a vida eterna presente. tipos. Pois o mundo experimentado em e por meio da interpretação é justamente
Se Deus não tivesse corpo, ele não poderia ser espírito, porque acabamos de ver assim o mundo que poderia ser experimentado como interpretado de maneira
como a liberdade e a complexa urgência temporal de Deus estão dadas no fato diferente do que é; e assim a potencialidade está presente em nosso mundo. Co-
dele ter Jesus como seu eu objetivo. mo a palavra é o meio da vida no tempo, os deuses normais evitam o mundo,
A idéia religiosa comum de "espírito puro' no sentido de pessoalidade in- exceto como medida temporária. -
corporal, não se aplica ao Deus triúno, mesmo que quase toda a tradição teoló- A palavra é o meio da comunitariedade da vida. E ao falarmos a respeito
gica tenha tentado aplicá-la, levada pela confusão da oposição bíblica "espíri- do mundo, através de quaisquer tipos de sinais, que habitamos um mundo que
to"/"carne" com a oposição helênica "mente/"corpo", e por uma identifica- não é somente meu ou teu, mas exatamente nosso, de tal maneira que possamos
ção apressada demais de "corpo" com "massa no espaço". O mero "Deus Pai" nos encontrar nele. Como a palavra é o meio da determinação mútua, os deuses
hipotético de três parágrafos atrás seria uma tal entidade, e, em conseqüência, normais são, em si próprios, silenciosos.
nem livre nem potente no tempo. Um espírito "puro" seria uma mente impo- Que o Deus da Bíblia é diferente neste sentido tornou-se evidente tão cedo,
tente ou uma vontade sem objetivo. Para nossa salvação, o Deus real não é nem que nesse ponto não há uma história contínua de alienação teológica como a
uma coisa nem outra. Ele é a união viva do Pai e do Filho. Ele tem corpo e que reconstituímos em outros pontos. A tentação operou principalmente na tra-
por isso pode ser livre espírito criativo, o poder do último futuro. dição mística e na tradição da piedade, nos hinos e nas orações. Assim, um anô-
nimo místico inglês aconselhou: "Abandona tanto os pensamentos bons quanto
os maus, e não ores com a tua boca. 137 E temos um número considerável de
Deus como discurso poemas veementemente anticristãos que, em virtude de seu tom piedoso e de
melodias sentimentais a eles associadas, são favoritos das congregações. Cita-
"No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus." mos apenas o mais insolente: a comunhão entre Jesus e o Pai é "o silêncio da
(Jo 1.1) O primeiro dogma deliberado do cristianismo, pelo qual a fé definiu eternidade, interpretado pelo amor", e, para participar da mesma, somos exor-
para sempre sua diferença em relação a outras religiões, foi que com o Deus tados a "fazer com que o sentido seja mudo e a carne se retire".
do cristianismo não há nenhum "silêncio da eternidade' que não perdemos nossa

34 Para uma análise mais extensa, especialmente sobre a importância soteriológica, v. Robert 36 Sobre este parágrafo, veja p. ex. G. van der LEEUW, Reigion in Essence and Manifestation,
W JENSON, Visible Words, Philadelphia, Fortress, 1978, pp. 120-39. London, George Allen & Unwin, 1938, p. 21.
35 Ibid., pp. 34ss.
37 Citado ap. Evelyn UNDERHILL, Mysticism, New York, Noonday, 1955 (1? ed. 1910), p. 320.

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O Deus triúno não apenas fala para iniciar uma relação conosco, mas a do falar de ir e vir entre o céu e o resto da criação, e da localização do corpo
relação iniciada continua sendo eternamente discurso, continua sendo comuni- ressurreto de Cristo ali e não em algum outro lugar da criação, por exemplo,
cação. A eternidade deste Deus é sua futuridade inconquistável, e é na palavra nas reuniões em que se celebra a Ceia. Essa tradição ainda é mantida por Karl
que o futuro está presente. Esse Deus é comunhão conosco, e é na palavra que Barth. Os luteranos seguiram, com algumas flutuações, o ponto de vista do pró-
estamos presentes um para o outro. A visão cristã dofim não é a de um grande prio Lutero: que Deus não tem nenhum espaço particular dentro da criação, e
silêncio, mas de uma grande liturgia, de pregação e de nossa resposta eterna de que, em conseqüência, seu lugar nela, isto é, sua presença-objeto para nós, é on-
louvor e aclamação (Ap 4-5). de o evangelho é proclamado, para que possamos apreendê-lo ali. O céu é
O Deus triúno tampouco é fala apenas em relação anós. A segunda identi- o "espaço" da Palavra e dos sacramentos, o espaço. Os
da Ceia e do Batismo e de
leitores perceberão a adesão
dade é "o Verbo' é Deus se dirigindo a nós. A terceira identidade é o Espírito quantos outros desses eventos possa haver 40
desta comunicação, o poder da Palavra para nos abrir para o último futuro. Deus desta obra à posição luterana, e mais: a força determinante daquela decisão pa-
vive exatamente na relação entre esses três. Deus é cada uma das identidades, ra toda a compreensão de Deus. Ao mesmo tempo, dificilmente haveremos de
e assim ele é a Palavra. E pela realidade triúna do que quer que Deus seja, a querer julgar agora qualquer divisão contínua sobre o assunto em si como um
Palavra que ele é, é um diálogo, não uma palestra. Assim, a caracterização final motivo legítimo para a divisão de igrejas.
da realidade de Deus deve ser: Deus é uma conversa. Ou, escolhendo uma pala-
vra mais digna: Deus é um discurso.
A conversa que é Deus, não é no céu - pelo menos, não se o céu é algum
lugar diferente da terra. A conversação que é Deus é a proclamação da lei e do
evangelho. Onde ocorre o discurso humano que abre a vida humana para o últi-
mo futuro, aí Deus ocorre. Mateus cita Jesus exatamente como Senhor exaltado,
como o que a teologia trinitária veio a chamar a segunda hipóstase de Deus:
"Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles."
(Mt 18.20) E como Deus-presente que a segunda identidade é Deus. Deus está
de fato presente em cada quark ou cada galáxia, mas está presente para todas
as coisas no e a partir do evento verbal da lei e do evangelho.
Assim, o corpo de Deus, o objeto que é Deus e em virtude do qual ele de
fato tem uma localização, é "o corpo de Cristo", o lado corporal do evento da
lei e do evangelho. Cada evento de comunicação tem um lado corporal, uma
realidade-objeto, como a qual aqueles que se dirigem uns aos outros estão pre-
sentes uns para os outros38. Se a pregação do evangelho é de fato a ocorrência
da palavra de Deus, então o lado corporal da pregação do evangelho - o que
se vê e ouve, o pão, o cálice, o banho do Batismo, os gestos dos crentes - é
o lado corporal da,presença de Deus. Cristo é, como dissemos anteriormente,
o corpo de Deus. E para dentro da corporificação do evangelho, isto é, para
dentro da vida objetiva da Igreja que Cristo ressuscitou corporalmente. E a cor-
porificação do evangelho que é o "corpo de Cristo" e assim o corpo de Deus.
Este assunto tem algum significado dogmático. Confessamos, na oração
do Pai-Nosso, que Deus Pai está no "céu" e, nos credos de três artigos, que
Cristo ressuscitou como corpo e está lá "à direita" do Pai. Mas onde é isso?
A localização do céu, ou antes a natureza do céu como localização de Deus,
se tornou um motivo de divisão confessional entre calvinistas e luteranos. Os
calvinistas defenderam a idéia de que o céu é uma parte metafísica da criação,
criado por Deus como seu próprio lugar dentro dela, de maneira que faz senti-
40 Ibid. Um grande pensador luterano, Johannes BRENZ, desenvolveu uma profunda compreen-
38 Para uma análise mais extensa, v. JENSON, Visible Words. são especulativa do espaço a partir desta posição de Lutero; P. ex. Von der Majestãt unsers
39 Leia Martinho LUTERO, Confession Concerning Christ's Supper (1528), LW 37, pp. 151-372. lieben Herrn und einigen Heilands Jesu Christi (1562).

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O método da derivação
Nossa primeira preocupação é com o método. Infelizmente também ques-
tionamos o método tradicional de derivação. Uma conseqüência imediata de tu-
do que foi exposto nos capítulos anteriores é que Martinho Lutero estava certo
quando em 1518 apresentou a seguinte tese: "O verdadeiro teólogo não é aquele
que chega a ver as coisas invisíveis de Deus, pensando a respeito das coisas cria-
das; o verdadeiro teólogo é aquele que pensa a respeito das partes visíveis e pos-
Os atributos de Deus teriores de Deus, tendo-as visto nos sofrimentos e na cruz:" A chave para a tese
é o quiasmo de "ver" e "pensar a respeito de", que os leitores deveriam obser-
Porque Deus é, podemos fazer afirmações fatuais a respeito dele. Õ var antes de continuar.
método de obter tais afirmações é decisivo para sua verdade. Atribu- A primeira frase de Lutero capta exatamente o método usual2 , pelo menos
tos verdadeiros de Deus são, então, formas do evangelho. a partir de Agostinho. Deus, em sua glória intemporal, é "invisível" Nosso ob-
jeto inicial é, por isso, o mundo criado, "visível". O pensamento revela, em rela-
ção a este mundo, que ele não contém em si próprio razão suficiente para sua
própria existência ou caráter. A não ser que o mundo seja desprovido de razão
A necessidade da doutrina - uma possibilidade até recentemente impensável, e que talvez de fato não pos-
sa ser afirmada de modo coerente -, deve haver uma razão do mundo que não
Se há Deus, deve ser possível formar frases que contenham um sujeito e faça parte dele.
um atributo, tais como "Deus é amor", ou "Deus é um incômodo", que são Chega-se a esta razão somente pelo método da analogia negativa. Podem-
e podem ser julgadas como certas ou erradas. A doutrina tradicional dos atri- se atribuir à razão do mundo aquelas características que ela precisa ter para ser
butos de Deus é a tentativa de fazer uma lista dos atributos verdadeiros impor- a razão do mundo. Mas todas as nossas palavras que designam causação e pro-
tantes e de elaborar o método de sua derivação. Dado o significado inicial da pósito são modeladas pelas causas e resultados pertencentes ao mundo criado.
palavra "Deus", e dada uma especificação prévia do modo de ser de Deus (de Podemos aplicá-las à razão do mundo apenas eliminando a sua referência ao
maneira que não estejamos preocupados, p. ex., com a questão se Deus é liqui- mundo: assim, por exemplo: "Deus é um Pai amoroso - mas não como os
do), as palavras em apreço na qualidade de predicados serão aqüelas que indi- pais criados amam, de modo não-confiável ( ... ) [etc.]." E realizaremos essa ope-
cam algum valor. ração somente com aquelas entre nossas palavras que, no uso secular, designam
A tentativa agora assume facilmente um ar cômico. Não havia nenhum pro- o que é bom na criação, porque queremos alcançar a razão, o valor do mundo.
blema enquanto se podiam fazer certas pressuposições da filosofia clássica: que Não se pode pensar o fim deste caminho no sentido normal; durante o processo
há um número definido de atributos desejáveis, cada um com sua palavra apro- houve uma ruptura na lógica das nossas palavras pela eliminação da referência
priada numa dada linguagem natural qualquer. Mas agora tendemos a conceber temporal. O fim é antes uma visão, um ver, com o olho da ment&, das "coi-
a linguagem como uma atividade criativa, e assim o bem como uma torta que sas invisíveis de Deus". Também deve-se observar que não há uma diferença me-
pode ser dividida por palavras de indefinidamente muitas maneiras. Assim, o
número possível de palavras para expressar valor é infinito. Com estas pressupo-
sições é absurdo perguntar: quais são as (seis? sete? ou cem?) perfeições de Deus? 1 Martinho LUTERO, "O Debate de Heidelberg", WA 1,350-74, teses 19-20. As traduções in-
Devemos pôr "gentil" na lista? Ou decidir por "humorístico"? glesas dessas teses não lidaram com o engenhoso quiasmo de conspicere e intelligere com muito
Pode-se reter da doutrina tradicional a tentativa de expor o método de de- êxito e por isso perdem a maior parte do sentido. (N. do E.: Cf. a versão em português em
rivar predicados para usar com "Deus" e o exame de uma amostra de casos. Maninho LUTER0, Obras selecionadas, vol. 1, São Leopoldo, Sinodal; Porto Alegre, Con-
Mas é necessário reter tanto, porque se não pudermos dizer, por exemplo, que córdia, 1987, p. 39.
20 que se segue tem por modelo Tomás de Aquino; sobre ele v. Ralph McINERNY, The Logic
"Deus é amoroso" e saber que falamos a verdade, Deus não é real. Um dogma ofAnalogy, The Hague, Nijhoff, 1961; George P. KWBERTANZ, St. Thomas Aquinas on
nos credos de três artigos é que Deus de fato é Pai, Todo-Poderoso, Criador, Analogy, Chicago, Loyola University, 1960; Robert W. JENSON, The Knowledge of Things
Senhor, Juiz e Doador da vida, e assim também que tais afirmações podem ser Hoped For, New York, Oxford University, 1960, pp. 67-85. Que o protestantismo clássico
fatuais. Provavelmente será desejável também tirar nossos exemplos principal- seguiu o mesmo método geral, pode ser visto p. ex. em Johann Wilhelm BALER, Compen-
mente das listas tradicionais, pois essas formaram a linguagem da Igreja. dium theologiae positivae (1686-94), I,I,4ss.
3 Essa "percepção intelectual", nous, é a idéia mais profunda e mais original da teologia grega;
aqui ela domina a metodologia teológica como alhures domina o assunto. Veja Werner MARX,
The Meaning of Aristotle's "Ontology", The Hague, Nijhoff, 1954, pp. 11-6.

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todológica fundamental aqui entre conhecimento "natural" e "revelado". A re- e morte o definiram como vida em favor dos outros, vive apesar da morte que
velação em Cristo simplesmente adiciona itens especiais ao total dos efeitos no tal altruísmo tinha que causar, de maneira que agora existe um ser humano que
mundo a partir dos quais se intui o caráter de Deus como razão do mundo. não precisa explorar os outros, e de maneira que sua relação com eles deve fi-
A segunda frase de Lutero propõe um método muito diferente. O ponto nalmente dar forma a suas vidas. Por isso, seremos libertos. Na outra direção
de partida não é nossa reflexão sobre o mundo, mas eventos particulares no mun- a interpretação fornece uma ética: nossa esperança de libertação é realista por
do, resumidos como "a cruz". Esses se apresentam diretamente à nossa expe- ser, em última instância, a esperança da vitória de Jesus; e por isso também nós
riência, ao nosso "ver". Eles tampouco exemplificam as perfeições do mundo; mesmos não precisamos nos tornar exploradores para conseguir isso. "Deus li-
'são antes "sofrimentos". A visão de Deus então não é fim do nosso caminho berta" é um slogan que resume toda essa interpretação do evangelhos.
cognitivo; ela é o mesmo ato que esta experiência - cognitivamente normal Há, como propusemos, duas classes de atributos divinos: slogans que ex-
da cruz, e assim o início. Os eventos resumidos como "cruz" são simplesmente pressam a afirmação do evangelho meramente como tal, e slogans que expres-
Deus na medida em que ele se torna nosso objeto, aquilo que podemos ver. Isso sam versões efetivas da proclamação do evangelho. Nesse dualismo seguimos
não significa que não haja mistério em nossa experiência de Deus, mas o misté- a tradição, em que o hábito da classificação bipartida é universal e está enraiza-
rio não é o tremeluzir místico da distância; é que Deus se apresenta em sofri- do profundamente. Assim, Johann Gerhard faz uma lista de nove possíveis sis-
mentos. O que vemos como Deus é, conseqüentemente, a sua realidade "visí- temas de classificação, todos bipartidos (Loci coinmunes theologici, 11,105). Sem
vel" e ingloriosa, sua participação no pecado, na morte e na ignomínia. E a dúvida essa tendência dualista está enraizada, em última análise, no dualismo
tarefa do teólogo agora é refletir muito sobre tudo isso, em si um exercício ra- Deus-criatura e no dualismo correlato (seguindo o esquema de Lutero) de Deus
cional normal antes que uma visão a grande distância. Por conseguinte, o mun- em sua majestade pura e Deus em sua majestade definida.
do de maneira nenhuma é excluído como objeto da reflexão teológica. Ao con- Mas, embora possamos aprovar a razão profunda para uma classificação
trário, ele está incluído no início e no fim. bipartida, não podemos aprovar a classificação bipartida particular que de fato
Ë necessário ir um passo além da descrição de Lutero, um passo que ele domina a tradição. Continuando com Gerhard: "Alguns [atributos] são afirma-
próprio pressupôs ou talvez tenha observado inadequadamente. Não escolhemos dos acerca de Deus em sentido absoluto, i. é, sem qualquer relação com as criatu-
arbitrariamente ver Deus na cruz. E a ressurreição do Crucificado que apresenta ras, p. ex. quando Deus é chamado 'eterno' ou 'imenso'; e outros são afirma-
a ele e seus sofrimentos como Deus-por--nós - e apenas nisso, de fato, ele é dos em sentido relativo, p. ex. quando Deus é chamado 'Criador', 'ser' ou 'juiz'."
Deus-por-nós4. Quer com isto sigamos totalmente a Lutero ou não, devemos di- (Ibid.) Essa divisão revela de modo por demais claro a definição do próprio
zer que o objeto mundano como o qual temos Deus por objeto, é o Jesus histó- Deus abstraindo-se de suas relações; é contra isso que temos lutado. Por
rico como corpo do Senhor ressurreto. isso propusemos uma classificação diferente para servir à parte legítima do mesmo
Com as exigências anteriores em mente, propomos um método de conferir objetivo.
atributos a Deus que pode ser resumido assim: toda proposição verdadeira da Algumas frases verdadeiras a respeito de Deus que contêm uma estrutura
forma: "Deus é..." é um slogan que expressa ou a afirmação central do evange- sujeito-atributo são slogans que expressam simplesmente que "alguém (Jesus)
lho ou alguma versão verdadeira da proclamação efetiva do mesmo. Neste resu- ressuscitou". Estipulam, em relação a alguma preocupação religiosa, o que im-
mo, "a afirmação central do evangelho" denota um pólo de toda proclamação plica dizer que ele "ressuscitou". Assim, por exemplo, em relação à questão se
efetiva do evangelho: a asserção de que "Jesus ressuscitou", onde "Jesus" p0- Jesus, essa figura da Antiguidade histórica, pode ter algum significado para nós
de, se necessário, ser reforçada por descrições como: "aquele que proclamou a em nosso mundo tão diferente, podemos responder que, por ele ter ressuscitado,
iminência do reino e foi por isso crucificado". O outro pólo são as esperanças sua vida não está, de fato, distante no tempo, mas enquadra nosso tempo, defi-
e medos pelos quais as pessoas num determinado tempo e lugar têm um futuro, nindo todas as nossas possibilidades. Como slogan: "Deus (sempre o Deus triú-
por exemplo, a esperança da liberdade, do céu ou de alimento. "A proclamação no, do qual Jesus é a segunda identidade) é eterno."
efetiva do evangelho" ocorre como a interpretação mútua desses pólos. Outras frases verdadeiras a respeito de Deus do tipo sujeito-atributo são
Deveríamos dar um exemplo dessa interpretação. A esperança de "liberta- siogans que expressam proclamações efetivas do evangelho, aquilo que é dito
ção", de escapai das condições de exploração econômica e política instituciona- quando a frase "Jesus ressuscitou" e as penúltimas esperanças e medos de algu-
lizada, empolga atualmente grandes áreas do mundo. A afirmação da ressurrei- ma comunidade ou algum indivíduo interpretam um ao outro de tal maneira
ção de Jesus pode interpretar essa esperança e se interpretar a si mesma por ela. que fornecem uma visão escatológica e uma ética fundada. Já demos um exem-
Numa direção, a interpretação fornece uma visão escatológica: Jesus, cuja vida plo, e daremos outros depois. Tais slogans são intrinsecamente históricos quan-
to a sua validade. Porque as esperanças e medos da humanidade não são cons-
4 Por trás dessa emenda está aquele amplo movimento metodológico, verjfjcável na teologia
recente, que pode ser representado em um de seus aspectos por Wolfhart PANNENBERG, 5 Para o exemplo intelectualmente mais vigoroso dessa interpretação, v. a obra de James
ed., ReveJatjon as History, New York, Macmillan, 1968; e em outro por JENSON, op. cit. CONE, p. ex. A Black Theology of Liberation, Philadelphia, J. B. Lippincott, 1970.

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tantes; sua mudança e sucessão constituem de fato a própria substância da his- Como essa infinidade ocorre como a ressurreição de Jesus, a transcendên-
tória. Assim, que nós ainda seremos livres da exploração por Jesus estar vivo, cia criativa de Deus não é arbitrária. Tem um caráter: fidelidade ao Jesus histó-
não teria sido uma proclamação de evangelho, digamos, para Corinto nos dias rico. Um segundo atributo: Deus é fiel. Com isso, substituímos um segundo atri-
de Paulo, e "Deus liberta", por isso, não teria sido um predicado significativo buto "absoluto" tradicional: a imutabilidade7, e o substituímos por uma apreen-
para Deus. Neste aspecto esses atributos diferem dos da primeira classe; que sempre são fundamental das Escrituras hebraicas. A continuidade de Deus como enti-
são relevantes. dade duradoura é a de uma vida pessoal bem-sucedida, cuja verdade consiste
O verdadeiro Deus ocorre como a ressurreição de Jesus. Exagerando um exatamente em unir imprevisibilidade e confiabilidade. Aristóteles definiu um
pouco na simplificação, podemos dizer que as duas classes de atributos de Deus drama bem-sucedido como aquele em que cada evento é uma surpresa quando
são aqueles que são postulados quando se diz que alguém ressuscitou e aqueles acontece, mas nos faz dizer posteriormente que era justamente o que devia acon-
que são postulados quando se diz que foi Jesus quem ressuscitou. Se Nero tives- tecer'. E esse tipo de continuidade que atribuímos à infinidade temporal de Deus,
se ressuscitado no lugar de Cristo, ainda assim haveria algo eterno, mas seria chamando-o fiel.
uma eterna malignidade. Que, ao invés, há uma eterna benignidade é o que & Seguindo o exemplo da lista tradicional dos atributos "absolutos", chega-
dito por atribuições da segunda classe. E é o conteúdo real da vida humana de mos, em seguida, à onipresença, ou, como os escolásticos protestantes tinham
Jesus que interpreta as esperanças e medos penúltimos para conferir tal conteúdo à o costume de dizer, "imensidade". Aqui nossa desavença com a tradição é me-
visão escatológica. Que a humanidade de Jesus e a nossa interpretam uma à nor. De acordo com Aquino9, Deus "está em todas as coisas por essência, pre-
outra depende de sua ressurreição, mas o assunto da interpretação depende da sença e poder" (Suma teológica, 1,8,3) Ele está em todo lugar "por essência",
especificidade de sua humanidade. isto é, em sua maneira própria de ser, por ser o Criador, o doador do ser. 1tnto
qualquer lugar quanto o que nele está localizado só existem pela ação direta de
Deus, que justamente assim está naquele lugar (ibid., 1,8,2). Deus está em todo
"Jesus ressuscitou": lugar "por presença" como qualquer pessoa está presente em relação àquelas
atributos para o predicado coisas que estão ao alcance de sua intenção, que ela "vê" (ibid., 1,4,3, resp.).
Deus está em todo lugar "por poder" como um governante está presente em
A primeira classe de atributos, então, consiste naqueles que explicam a no- relação a todos os que lhe estão sujeitos (ibid.). Ver-se-á como, em parte apesar
ção de ressurreição, sempre lembrando que essa noção não é, ela própria, deri- da linguagem, esse conceito de onipresença é o de uma presença pessoal em re-
vada de considerações gerais, mas das tentativas dos apóstolos de descrever um lação a toda a criação: Deus está presente em relação ao mundo como eu estou
evento particular que aconteceu a eles e a Jesus, o Nazareno, depois de sua mor- em relação a alguém com quem me encontro e a quem me dirijo efetiva e criati-
te. Estabelecido isso, podemos dizer que a primeira classe de atributos são aque- vamente.
les que explicam a noção de divindade como tal, aquela divindade que Pai, Fi- Na tradição cristã a noção de espaço tem sido repensada durante longo tempo
lho e Espírito Santo têm em comum porque a derivam um do outro. Já temos - começando decisivamente com os pais gregos10 e atingindo uma consuma-
nossa explicação primária dessa divindade, e assim nosso primeiro atributo: in- ção na obra dos metafisicos luteranos do século XVII -, passando da noção
finidade temporal. de um recipiente universal para a noção de um sistema coordenado de presença
Deus é infinito. Isto é, Deus não pode ser limitado por condições tempo- mútua. Assim, os escolásticos tardios distinguiam três modos de presença espa-
rais. Regras da forma: "Se X acontecer/aconteceu, Y não deve/não pode acon- cial: uma entidade pode estar em algum lugar "localmente", no sentido de ter
tecer por isso" não se aplicam a ele. Deus pode aceitar e aprovar não apenas limites espaciais; uma entidade pode estar em algum lugar "por definição", no
o piedoso, mas também o ímpio. Ele pode usar, em sua consumação final, não sentido de que um espaço limitado pode ser indicado como a localização da
apenas as virtudes e os sucessos da história, mas também seus pecados e desas- entidade, embora a própria entidade não tenha limites espaciais, assim como
tres. Deus pode dar vida não meramente aos ainda não nascidos, mas também um pensamento está no cérebro; ou uma entidade pode estar em algum lugar
aos que já estão mortos. Ele não é previsível pelas probabilidades. Deus trans- "repletivamente", "contendo" o espaço. Deus está em qualquer lugar somente
cende o que aconteceu e o que agora é, criando o que não pode ser, mas apesar do terceiro modo, e desta maneira ele está em todo lugar: "Deus, que não é
disso ainda deve ser. Levando em conta a distorção introduzida pela suposição
da intemporalidade divina na tradição majoritária, afirmamos assim o conteú-
do legítimo de um atributo tradicionalmente incluído na lista da classe "abso- americana, William AMES, The Marrow o! Theology, 1,1V.
luta": eternidade6. 7 Tomás de AQU1NO, Suma teológica, IX; GERHARD, op. cit., 11,150; AMES, op. cit., 1,1V.
8 ARISTOTELES, Poética, 1452a,1-11; 1554a,33-6.
9 O protestantismo usual é materialmente idêntico; p. ex. GERHARD, op. cit., II,171ss.
6 Tomás de AQUINO, Suma teológica, X; Johann GERHARD, Loci comrnunes theologid, 10 Analisado de modo pioneiro por Thomas F. TORRANCE, Time, Space, and Incamation,
1,137; e para um exemplo proveniente da tradição calvinista, o livro-texto da teologia colonial New York, Oxford University, 1969.

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contido em nenhum espaço, contém todos os espaços pela imensidade de seu tece entre ele e seu Pai e o Espírito deles, e não a algo diferente. Apesar da dis-
ser." torção da qual nos queixamos nesta parte da doutrina tradicional, essa lógica
Temos apenas uma - porém considerável - emenda a fazer nessa tradi- pode ser discernida com facilidade também nas listas tradicionais. Assim, Ger-
ção geral. A doutrina tradicional, por mais sutil e distintivamente que seja cris- hard tem como sua segunda classe: onipotência, bondade, misericórdia, justiça,
tã, pressupõe que Deus, em essência, não possui um corpo. Contra isso (mas onisciência, livre-arbítrio e verdade; todos eles explicam o evangelho. A afirma-
continuando a usar a terminologia escolástica) queremos afirmar a presença "por ção dos atributos de Deus deste tipo, por exemplo: "Deus é bom", é por isso,
definição" de Deus em certos lugares dentro do espaço criado. Assim Marti- ela própria, um modo de proclamar o evangelho.
nho Lutero converteu em presença "por definição" de Cristo o modo de sua Deve-se admitir que alguns atributos relativos tradicionais parecem estar ape-
presença na Eucaristia12. Deus, afirma ele, está presente "repletivamente" em nas distantemente relacionados com o evangelho, por exemplo, onipotência e onis-
todos os lugares, e, por isso, Cristo também, "à sua direita". Mas para que Deus ciência. Contudo, por que Deus deve, por exemplo, ser onipotente? Muitos su-
em Cristo possa estar presente para nós como seres conscientes, devemos ser ca- postos deuses não o são, e seria até mesmo possível falar de alguém como res-
pazes de nos dirigir a ele, de ter uma intenção em relação a ele. Apesar dessa suscitado e mesmo assim não atribuir onipotência a esse ser. E o caráter especí-
não ser a linguagem de Lutero, a onipresença "repletiva" subjetiva de Deus de- fico das promessas a serem feitas porque Jesus é o ressuscitado que exige que
ve ter um lado objetivo, constituído por sua presença "por definição" em certos os que crêem naquelas promessas concebam Deus como onipotente. Elas são
lugares, para os quais sua palavra nos chama. Se nos dirigimos ao espaço ocu- promessas de vitória daquele que ama incondicionalmente e por isso de um bem
pado, por exemplo, pelo pão da Eucaristia, nos relacionamos, assim, espacial- tão abrangente que pode ser realizado apenas por uma vontade que abrange to-
mente com Deus, mesmo que ele não tenha limites espaciais. dos os eventos, e tão contrário à probabilidade que pode ser esperado apenas
A infinidade de Deus é, ao nosso ver, basicamente sua infinidade temporal, de uma vontade que não reconhece nenhum outro modo de impossibilidade se-
o caráter desimpedido de sua transcendência através do tempo. A infinidade es- não a contradição de si próprio. Deve-se admitir que em muitas deduções erudi-
pacial de Deus é meramente uma expressão disso. Ele "contém" todos os espa- tas da onipotência de Deus essa derivação evangélica não é muito patente; con-
ços, não por ser um espaço maior, mas enquadrando temporalmente o mundo tudo, até mesmo na mais abstrata dessas deduções ela pode ser detectada nas
espacial. Os significados sutilmente inter-relacionados da palavra "presente" não justificativas e tendenciosidades da argumentação. Lutero vai direto ao princí-
são acidentais e podem direcionar o nosso pensamento. O espaço, o horizonte pio: "A única e suprema consolação dos cristãos em todas as suas adversidades
da presença, é simplesmente a realidade experimentada do presente temporal. é saber que Deus ( ... ) faz todas as coisas imutavelmente, que não se pode resistir
A infinidade espacial de Deus é sua capacidade de estar aí agora, de estar pre- a sua vontade, nem mudá-la ou impedi-la 114
sente para toda criatura. A infinidade espacial de Deus é o tempo presente de Por conseguinte, no nos surpreenderemos com o fato de que também o
sua fidelidade: ele está onde quer que a autodoação de Jesus alcança. "todo-poderoso" do Credo tinha sua matriz nas esperanças e ansiedades de uma
Poderíamos continuar indefinidamente com tais atributos absolutos, mas época particular". O grande medo da Antiguidade Lrdia era a falta de senti-
talvez infinidade, fidelidade e onipresença sejam exemplos suficientes em núme- do: que o abismo entre este mundo temporal e a eternidade não pudesse ser trans-
ro e importância fundamental. Tomando a lista de Gerhard como típica da tra- posto, ou, expresso em termos do divino, que o Deus que é plenamente divino,
dição, ele também incluiu espiritual, incorporal, invisível, simples, imorta113; to- que é irrestritamente eterno, possa não operar como Deus deste mundo. Isso
dos esses atributos de fato foram considerados em algum lugar deste locus. Pas- significaria que nenhum ser divino governa sobre tudo. Aos assim atormenta-
samos para a segunda classe de atributos. dos, os pregadores do evangelho disseram: o Pai de Jesus e nosso é, apesar de
tudo, o governante sobre todas as coisas, o Senhor tanto deste mundo como
do vindouro.
Depois que uma palavra como "todo-poderoso" se torna de uso corrente
"Jesus ressuscitou": na linguagem da Igreja (e neste caso até foi absorvida no Credo), ela tende a
atributos para o sujeito adquirir vida própria. "Deus é todo-poderoso" se torna um axioma teológico,
do qual pode-se deduzir uma soteriologia para situações bem diferentes daquela
A segunda classe de atributos são aqueles que afirmam o que significa o em que ele tinha seu próprio significado soteriológico. E a própria palavra faz
fato de que foi Jesus quem ressuscitou. Explicam o que significa o fato de que parte da linguagem, pronta para a vida, quando o evangelho encontrar nova-
"a divindade" - infinidade temporal - concerne ao evento particular que acon- mente o medo da debilidade no âmago do ser, como é decididamente o caso

11 GERHARD, op. cit., 11,172. 14 "Do arbítrio cativo", WA 18,619.


12 Martinho LUTERO, "Confissão a respeito da ceia de Cristo" (1528), WA 26,327ss. 15 Sobre esse parágrafo, J. N. D. KELLY, Early Christian Creeds, New York, Longmans, Green,
13 GERHARD, op. cit., 11,113. 1950, pp. 136ss.

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na época presente. Ambas as histórias contínuas podem ser boas ou ruins para "que foi crucificado por nós" foi suprimido pelas autoridades eclesiásticas com-
o evangelho. prometidas com a teologia usual, para que a Trindade não fosse considerada
Continuamos com um segundo atributo desse tipo, sendo este não-tradi- objeto de sofrimento. Na segunda fase, uma explicação de compromisso de tal
cional. Se aderimos à regra metodológica de Lutero e então examinamos as lis- liturgia foi proposta, formulada para deixar claro que a Trindade como tal não
tas tradicionais de atributos, achamo-las radicalmente incompletas. Todos os tra- foi crucificada: "Um da Trindade sofreu na carne." Mas mesmo em relação a
dicionais atributos "relativos" são características que também são boas .neste isso houve resistência, entre outros por parte do papa, apesar de sua evidente
mundo. Nunca adivinharíamos à base deles que Deus é visto nos sofrimentos autenticidade bíblica e perfeita concordância com a tradição ortodoxa. Foi ne-
e na cruz. Dos possíveis atributos que não são bons neste mundo, discutiremos cessário que o imperador Justiniano, cujos motivos eram ambivalentes, compe-
o mais ofensivo e decisivo: Deus é mortal. Deus de fato sofreu a morte e por lisse a Igreja a uma aceitação oficial, selada num concílio geral em 55319• E ape-
isso é de uma maneira ou outra qualificado e qualificável pela morte. sar de a linguagem teopassianista ter tido status dogmático depois disso, ela con-
Jesus morreu, mais ainda: foi executado. De acordo com a apreensão trini- tinuou rara na teologia sistemática e não foi incluída nas listas usuais de atribu-
tária de Deus, ele é uma identidade de Deus. O que ele faz e sofre, Deus • faz tos divinos.
e sofre. 1unpouco seu significado para nós pode ser abstraído de sua morte. A compreensão da mortalidade de Deus deve, de fato, ser trinitária. "Um
A crucificação não pode ser transformada num incidente irrelevante para o ser da Trindade morreu"; e quando os patripassianistas estenderam o sofrimento
de Jesus como Deus para nós, por mais que nossas suposições a respeito de Deus, da morte de Jesus ao Pai, isso, com razão, foi rejeitado prontamente20. Vamos
derivadas de outras fontes, possam nos fazer desejar que isso fosse possível: "Nós estabelecer a dialética fazendo uma pergunta ingênua, porém inevitável: o que
pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gen- dizer do tempo entre a morte e a ressurreição de Jesus? Se a segunda identidade
tios." (1 Co 1.23) É por isso um item inevitável da proclamação e reflexão cris- morreu na sexta-feira e ressuscitou no domingo, Deus, neste intervalo, era uma
tãs: "Deus Filho morreu." E tal linguagem foi ancorada profundamente desde bindade?
o princípio na liturgia e na piedade; assim, por exemplo, Melito de Sardes: "O Se entendemos de que se trata no trinitarismo, a questão fornece sua pró-
Invisível é visto (...), o Impassível sofre (...), o Imortal morre (...). Deus foi mor- pria resposta. A morte de Jesus não foi uma interrupção de sua divindade; co-
to 116
: mo conclusão de sua obediência ao Pai, como parte daquilo que o Pai pretende
Apesar da necessidade óbvia da proposição a partir do evangelho, resistiu- ao pretender Jesus como seu eu, a morte de Jesus é constitutiva para sua relação
se a ela ao longo de toda a história da Igreja. O arianismo foi, no fundo, uma com o Pai e assim tanto para a sua divindade quanto para a do Pai. Jesus não
única grande tentativa de evitá-la: o Logos não poderia ser Deus diretamente, é Deus apesar de sua morte; ele é Deus porque morreu.
exatamente porque ele é uma só pessoa com Jesus e assim alguém que sofre a Esta resposta ainda parecerá enigmática se continuarmos a compreender
morte. De fato, toda a agonia do desenvolvimento trinitário foi, como vimos, o ser como persistência, se pensarmos que algo realmente é o que era e persiste
ocasionada pela aceitação, no século II, do axioma da impassibilidade, do qual sendo. Então os três dias de morte devem ser uma interrupção do ser de Jesus
"Deus morreu" é a contradição radical. e assim de sua divindade. Mas é exatamente essa compreensão do ser que a in-
Nas controvérsias cristológicas que levaram ao Concílio de Calcedôriia e terpretação cristã de Deus contradiz. Algo realmente é aquilo que será e agora
se seguiram a ele, a tentativa contínua daqueles que estavam mais comprometi- está aberto a ser.
dos com o axioma da impassibilidade de evitar a atribuição de morte e sofri- A morte de Jesus faz parte de sua relação com o Pai e o Espírito, caracteri-
mento ao Logos, e a insistência daqueles mais comprometidos com a imagem zada por eventos. Porque ele ressuscitou, essa relação é uma realidade futura
bíblica de Cristo de que isso deve ser feito de alguma maneira, foram talvez e presente. E exatamente esse evento é a eternidade de Deus, em que Jesus sem-
o problema principal17 . Essas controvérsias geralmente pertencem a um outro pre é Deus. A morte e a ressurreição de Jesus são a maneira como o Deus parti-
locus, mas aqui devemos observar a controvérsia "teopassianista" na virada do cular do cristianismo age para ser eterno, para ser temporalmente infinito. Pois
século V para o VI, quando o assunto foi colocado explicitamente à prova18 . é o que acontece entre as identidades - e deste evento a morte de Jesus é um
Na primeira fase da controvérsia, o entusiasmo litúrgico e os escrúpulos teológi- dos principais fatores constituintes - que é o eterno Deus.
cos colidiram diretamente. Uma versão nova e imediatamente querida do
Trisagion* "Santo Deus, Santo Todo-Poderoso, Santo Imortal' enriquecido com
19 Ibid., pp. 165ss. O decreto do concílio reza: "Se alguém não confessar que aquele que foi
16 MELITO DE SARDES, fragmentos XXXI, XVI. crucificado na carne, o Senhor Jesus Cristo, é o verdadeiro Deus e o Senhor da Glória, e
17 Sobre isso, v. Werner ELERT, Der Ausgang der aitkirchlichen Christologie, Berlin, Luthe- um da Santa Trindade, que seja condenado." (Sacrorurn conciliorurn nova et arnplissirna col-
risches Verlagshaus, 1957, pp. 71-169. lectio, ed. J. D. Mansi, Firenze, 1759-1827, vol. 9, p. 375)
18 Ibid., pp. 105-9. 20 Jaroslav PELIKAN, Thc Erncrgcncc of thc Catholic Tradition, Chicago, University of Chica-
* N. do E.: Três vezes santo. go, 1971, pp. 176-82.

200 201
Participação em nossa fmitude, alienação e conseqüente desastre perten-
cem, assim, ao evento que Deus, de fato, é. Fazendo exegese de "pertencem":
é característica essencial do Deus verdadeiro que, se há criaturas e criaturas caí-
das, ele é capaz e apto para participar assim em sua vida. Ë apropriado, para
o que significa ser esse Deus, que em sua segunda identidade ele tenha morrido
com e para nós. Deus não está sujeito à morte, mas ele só vence a morte, pas-
sando por ela. Desta maneira Deus de fato é mortal.
Finalmente, outro dos atributos tradicionais deve ser examinado:
bondad&'. A partir dos credos e da liturgia, é dogma que Deus seja bom. É
a interpretação mais simples e mais abrangente da ressurreição: a história terá
um resultado bom; bondade é o ceme dos eventos.
Contudo, há duas armadilhas na noção da bondade divina. A primeira é
que "Deus é bom" pode ser formulado como proclamação evangélica em todas
e quaisquer situações, e assim tende a se tornar uma afirmação genérica e de-
pois vazia. Segundo, como a derivação tradicional dos atributos divinos por ana-
logia com características da criação necessariamente fez uso' das características
"boas" da criação, foi fácil confundir a bondade divina, proclamada pelo evan-
gelho, com um caráter abstratamente necessário da razão primeira, e assim no-
vamente esvaziá-la de sua significação evangélica. De qualquer maneira, o resul-
tado é a concepção familiar do "bom Deus", cuja bondade é inquestionável e
na maior parte irrelevante.
"Deus é bom" é uma frase cristã apenas na medida em que é usada exata-
mente como um equivalente de "Jesus de Nazaré triunfará". A diferença entre
as duas frases é somente a que há entre contextos retóricos ou metafísicos em
que uma ou outra é mais conveniente: uma frase usa o tempo presente, a outra
o futuro.
Não há como fmalizar nossa discussão dos atributos da segunda classe, por-
que em princípio podemos inventar atributos novos para sempre. Ao invés, fina-
lizaremos todo o nosso locus sobre Deus voltando bem para trás. Deus é o even-
to universalmente transformador entre Jesus o israelita e a transcendência que
ele chamava de "Pai" e o Espírito deles entre nós. Dado quem Jesus é, esse even-
to é bom. Assim concluímos a doutrina de Deus.

21 lómás de AQUINO, Suma teológica, VI; GERHARD, op. cit., 11,208-15.

MM

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