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Chico Mello:

Em memória de Thomas

No dia 29 de junho de 2016 desapareceu prematuramente deste mundo, aos 49 anos, o


compositor Thomas Beimel. Para os que o conheceram, e para os amigos mais ainda,
uma perda irreparável. Extremamente ativo e competente compositor, intérprete,
musicólogo, jornalista musical, mas acima de tudo uma pessoa de rara integridade
ética, que cultivava as amizades com uma afetuosa dedicação. Atento e inteligente
interlocutor, as conversas com ele nunca ficavam na superfície, eram um estímulo ao
pensar e perceber o mundo dialogando. Me fica uma irreparável saudade de nossas
tantas conversas afetivo-musico-filosóficas em Berlim, em Wuppertal, em Colônia, e por
último no dia 30 de maio de 2016 em Bucareste, cidade que ele me apresentou,
comemorando as primeiras horas de seu aniversário de 49 anos. Como era bom
conversar com ele: um ouvido e olhos atentos, sensíveis, sabendo tão bem a proporção
do que ouvir e o que falar.
O conheci numa passagem dele pelo Rio de Janeiro, no início dos anos 2000. Me
encantou na época o seu conhecimento sobre a música latinoamericana e o seu
fascínio pela multiplicidade e empenho na descentralização da chamada música
contemporânea. A sua biografia não era típica para um compositor alemão. Esse “não
típico” foi um dos motores de sua postura política e musical, tendo suas antenas ligadas
nas relações de poder envolvidas na produção de identidades, o que o levou a se
interessar pelas periferias da música européia – estudou composição com Myriam
Marbe em Bucareste – e pela música latinoamericana, da qual era um constante
divulgador, seja através da produção de artigos para revistas especializadas e
programas de rádio como na colaboração artística com compositores e intérpretes.
Assim se definiu ele em sua auto-biografia1, um esboço preparado por ele para as
comemorações de seus 50 anos no ano que vem:
Eu sou um compositor periférico. Minha infância se deu na periferia social. Para
que eu não seja mal entendido: eu não me queixo. Ao contrário, tenho orgulho
disso. Eu tive a felicidade de não ter sofrido uma discriminação inibidora. (...)

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A versão original em alemão está disponível em: http://www.thomasbeimel.de/

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Minha infância e juventude na Região do Ruhr em minha família me
sensibilizaram para perceber a influencias externas. Cultura, “minha cultura”, foi
desde cedo importante para mim como autoafirmação. Não só como músico,
mas também como criança ruiva, sobre a qual pairava a ameaça de apanhar na
rua, e mais tarde como homossexual. E a singularidade está aí. (...)
Eu quero essa estranheza: essa não pertença, essa ausência de uma identidade
pré-fabricada. Eu queria uma outra temperatura, um outro temperamento à
minha volta. Quem sabe por isso mais tarde me atraiu a periferia da Europa. Eu
preciso de um espaço imaginário, no qual eu possa descobrir liberdade: isso vale
até hoje.
Porisso música: um tempo e um espaço no qual, como jogo estético, é possível
especular sobre a própria identidade. Minha Terra de ninguém: uma música
própria.
Quem sabe essa experiência social de alteridade tenham-lhe dado uma abertura de
alma que não cultivava a artificialidade dos códigos sociais das altas classes sociais às
quais pertencem a maioria dos compositores de música erudita.
A história da vida de meus pais se diferencia daquelas que se tornaram padrão
nas biografias de compositores europeus. Meu pai, Josef Beimel, nasceu em 6
de setembro de 1938 num pequeno subúrbio da cidade de Neisse na Silésia. No
final da Guerra a família fugiu para o norte da Alemanha. A formação no
internato, que deveria prepará-lo para a atividade missionária, não correspondeu
às expectativas e foi interrompida. Sua família foi para a Região do Ruhr, onde
havia trabalho. Com 14 anos ele iniciou uma formação de torneiro mecânico na
Companhia Siderúrgica Krupp. Depois disso, 39 anos de trabalho horista e por
turnos até sua aposentadoria precoce, aos 53 anos. Quando criança, algumas
palavras me eram especialmente familiares: emprego de meia jornada, falência,
despedimento coletivo e o sinistro Xá da Pérsia como salvador em caso de
urgência.
Minha mãe nasceu com o nome Amelie Henze em 21 de outubro de 1942 em
Essen-Heidhausen. As bombas choviam e, devido às contrações, minha avó não
conseguiu chegar até o abrigo antiaéreo. Um cunhado foi rapidamente buscar

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uma parteira. Minha mãe vislumbrou a luz do mundo sob fogos de artifício. Após
estudar na escola de comércio ela trabalhou como funcionária administrativa.
Depois vieram as crianças, primeiro eu, dois anos depois minha irmã Anita.
Minha mãe ficou então em casa para cuidar de nós. Para melhorar o orçamento
familiar ela limpava a Escola Especial que ficava do outro lado da rua. Para nós
crianças, esse foi um tempo muito bom. A gente conheceu a sua amiga
espanhola e a filha dela. Assim tínhamos uma escola gigantesca para brincar e
às vezes subíamos nas mesas e fingíamos que dançávamos flamenco. Além do
mais, lá havia um piano no qual se podia improvisar. Através de meus pais eu
recebi uma profunda e serena formação católica, repleta de mistérios, rituais e
grande respeito pelos outros – sem dúvida minha estética é até hoje “pós-
católica”. Meus pais viviam muito abertos e curiosos pelo desconhecido. Isso eu
percebia. Só muito mais tarde me dei conta de que eles tem algo que não é tão
evidente assim: a formação do coração. O seu amor me sustenta ainda hoje.
A atmosfera dessa autobiografia mostra um pouco da clareza, franqueza e afetividade
que habitavam Thomas. E uma mostra de quanto ele gostava e cultivava a convivência.
A sua atividade compositiva se originou e se nutria da convivência:
No início oficial de minha graduação em música eu fundei junto com amigas
musicistas o Ensemble Partita Radicale. Desde o início desenvolvemos uma
música própria, entre improvisação e composição. Uma música que surge do
coletivo, sem uma direção: uma democracia estética de base. Esse foi um bom
fundamento para trabalhar mais tarde como compositor – com as experiências
de uma criação coletiva e com as muitas aventuras de uma comunicação direta e
não determinada. Agradeço especialmente às minhas colegas Gunda
Gottschalk, Ortrud Kegel, Karola Pasquay e Ute Völker.
O trabalho conjunto me ensinou também que eu preciso ainda de outra música:
um espaço sonoro metafórico que exige um planejamento maior – e solidão. Um
lugar de recolhimento onde eu possa me permitir tatear a própria sensibilidade,
colocar sons que eu possa então compartilhar com outros enquanto experiência.
Todas as vezes que estive em Wuppertal ao longo dos anos, me fascinava a
longevidade da fraternidade e apoio mútuo que eram cultivados pelos integrantes do

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Partita Radicale, e isso em meio aos tantos conflitos que advinham da convivência em
tantos e diferentes projetos. Por iniciativa e engajamento de Thomas vim a escrever e
desenvolver com eles a peça “Tropeço – ein transatlantischer Stolperschritt”, uma
grande montagem/colagem cênico-musical sobre materiais de origem geográfico-
culturais indicadores de nossas procedências – Bossa Nova, Bach, Schubert – e
música improvisada. Tenho em minha memória guardados o entusiasmo e flexibilidade
do Ensemble, a precisa e bem fundada intermediação de Thomas. E sua bela e alegre
voz cantando a canção Die liebe Farbe (“Im Grün will ich mich kleiden”) de Schubert. E
sua contagiante risada.
Thomas descobriu sua voz compositiva não na Alemanha de tradição pós-serial, com
suas subentendidas proibições estéticas, principalmente para os nascidos naquela
cultura, sem um passado imigratório recente. A periferia o atraiu sempre:
Depois do fim de minha juventude me desloquei para a periferia espacial, para a
Romênia e Espanha. Wuppertal, Bucareste e Madrid se tornaram meu triângulo
europeu. O que encontrei na Romênia foi uma vanguarda musical, que não
negava o caráter lingüístico da música. Minha experiência e minha “iniciação”
como compositor estão ligadas preponderantemente a uma pessoa: Myriam
Marbe. Nos anos de nossa amizade, nos infinitos debates sobre estética,
quotidiano e sobre tudo o mais, como também nas aulas propriamente ditas, eu
aprendi dessa compositora romena principalmente isso: um profundo
conhecimento da necessidade da crise, que inclui necessariamente momentos
de fracasso e de fraqueza, uma compreensão da relatividade dos sistemas
estéticos e o profundo respeito pela comunicação musical enquanto ato no qual
seres humanos possam se encontrar com dignidade. Também, considerando
nossos limites, não ter medo de se abrir para as experiências dolorosas da vida
e comunicá-las.
Seu ensino me permitiu ver na composição uma atividade na qual a própria
sensualidade e força reflexiva possam ser cultivadas sem excluir contradições,
com o intuito de se confrontar com as opressões às quais estamos expostos. E
também para seguir aparentes impulsos irracionais.

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Na periferia européia eu desenvolvi um respeito pela retórica. Para mim a
clássica arte da oratória não é um corpo de regras poco mas sim uma coleção de
experiências que os seres humanos fizeram com as leis da percepção. Um
aprendizado estético que ainda hoje, para mim, é revitalizante. Isso
evidentemente se refletiu em minha música. Mesmo se o compreensível e
obviamente respeitável desenvolvimento histórico da música européia
contemporânea culta tenha tomado outros rumos, para mim a melodia é hoje
importante enquanto portadora de afetos. Como ressonância das sensações da
própria e altamente subjetiva sensibilidade. Mas eu preciso de línguas
estrangeiras enquanto “máscaras” para que eu possa falar através delas. Pois eu
não posso falar continuamente e de maneira totalmente afirmativa: eu nasci na
Alemanha. Mas isso não designa minha fronteira, quem sabe nem mesmo minha
terra natal.
Thomas publicou com o passar dos anos vários textos sobre compositores romenos,
análises, entrevistas, pontos de vista, de uma cultura musical pouco conhecida na
Alemanha. E, por convicção e gratidão, se encarregou pessoalmente do acervo da
compositora Myriam Marbe, tendo encontrado depois de muitos percalços uma
instituição que abrigasse o seu acervo completo, o Instituto Sophie Drinker em Bremen,
especializado em investigação musicológica feminina e de gênero.
Seu movimento de descentralização cultural, feito de maneira pessoal e entusiasta, o
levou a se interessar pela música latinoamericana, tendo viajado pela América Latina
realizando entrevistas e publicando artigos e análises sobre a música uruguaia,
argentina, brasileira, colombiana e mexicana. Para escrever sobre essas diversidade de
culturas locais ele não se satisfazia com a opinião de terceiros: precisava ir até os
lugares, conversar com as pessoas, se aproximar, mantendo depois um próximo e
contínuo contato ao escrever sobre elas. E refletir partindo se sua posição geográfico-
cultural.
Eu dividi e compartilhei minha vida. Não só aqui na Alemanha ou em Bucareste e
Madrid. Nos últimos anos a America Latina se tornou importante para mim: como
espaço de experiência o qual está, para nós europeus, historicamente muito
tempo à frente, particularmente na convivência, no viver junto de muitos

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estranhos. Eu aprendi lá que eu sou um intelectual local, um ser subalterno:
como todos nós, amplamente excluído dos processos de uma ingerência social e
política, inserido em sistemas dominantes, no interior dos quais eu, como alguém
provido de luxo, posso angariar espaços subjetivos livres. Compor também
significa para mim, de uma posição marginal, recusar discursos dominantes.
Compor é também uma luta por processos descolonizadores – e isso vale
também para nós na Europa.
E sua atração pela periferia o colocou em intenso contato com a experiência de
desterritorialização que envolve a criação corajosa:
Sou eu um compositor periférico? Eu não possuo uma identidade. Antes ela
se estabelece sempre em sentido relacional, em relação ao outro: relativa e
frágil.2 Minha vida é uma rede complexa e minha riqueza pessoal consiste em
poder voluntariamente ter contato com as mais variadas pessoas. A minha
música é a expressão de diferentes solidões, de diferentes dependências. Minha
linguagem musical surge através de processos dialéticos de continuidade e
rupturas – isso não é um estilo. Quem sabe por isso ela não seja para ser
compreendida, isso é possível, mas ela é para ser vivenciada. Compor é para
mim também me tornar livre, livre dos condicionamentos de um idioma musical
definido, livre de um emblema. Eu não tenho uma “imago”, uma imagem
rigorosamente definida de mim mesmo.
Eu não tenho um eu. ‘A delicadeza é o produto se nós nos aceitamos como
ruptura, fragmento. Somente um sujeito fragmentado e uma autonomia
autocrítica permitem que surjam lógicas de dependência e sensibilidade, que são
indispensáveis para nos integrarmos num mundo de relações humanas sem o
impulso de dominação’.3. Compor significa para mim exatamente isso: formular a
força da ternura, mostrar a própria vulnerabilidade, permitir perplexidades,
dissolver meus limites e assim formular experiências contraditórias, que graças
aos intérpretes possam se tornar perceptíveis. Me alegra que existam músicos
que apoiaram meu trabalho compositivo por meio de sua confiança:

2
Eu cito aqui: Alejandro Grimson, Interculturalidad y comunicación, p. 29, Enciclopedia Latinoamericana
de Sociocultura y Comunicación, Buenos Aires, 2001.
3
Luis Carlos Restrepo, El derecho a la ternura, p. 86, Barcelona, 1997.

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principalmente Lila Brown, Werner Dickel e Elmira Sebat. Compor é finalmente –
ainda – um ato metafísico, uma deslimitação na qual êxtase e comunhão se
encontram: o sair-para-fora-de-si e a união. Meu agradecimento mais recente é
para Albert Groth, que me faz experimentar esse milagre sempre de novo.
Thomas deixou um acervo que reúne aproximadamente 80 obras para as mais diversas
formações, incluindo música para crianças, jovens e amadores, obras para
instrumentos solistas, música de câmara, para coro, orquestra e teatro musical. Muito
dessa obra pode ser lido e ouvido na sua página web no link
http://www.thomasbeimel.de/Publish_deu/html/kompositionen.html
No dia 26 de agosto de 2016, por ocasião do concerto em sua memória na City-Kirche
em Wuppertal-Ebersfeld, o grande círculo de amigos que lotava o espaço, pode, entre
emocionadas evocações e palavras de despedida, ouvir algo da música de Thomas:
electric flower (2007) para guitarra elétrica e orquestra de instrumentos de cordas
dedilhadas; canti minori (2009) 1º e 3º movimentos; Soledades (2003) para flauta doce
tenor; little language song (2010/13) para caixa de música; Ugarit (2006) para quarteto
de cordas; Das Tor des Kusses (2006), para flauta transversal; echos (2005) para dois
percussionistas e erwacht (2012) para coro e percussão.
Ficou na minha memória a atmosfera de intensidade, emocionalidade, estaticidade,
distanciamento e humor emanantes de sua música. Como se eu ainda ouvisse por um
lado a sua animada risada, e sentisse por outro sua contagiante compaixão, seu
inconformismo, sua utopia.
Thomas faz falta.

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