Você está na página 1de 19

FARMACOTÉCNICA

E TECNOLOGIA DE
MEDICAMENTOS
LÍQUIDOS E
SEMISSÓLIDOS

Marcella Gabrielle Mendes Machado


Aspectos biofarma-
cêuticos e
biotecnológicos
de novos
medicamentos
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:


>> Relacionar bioquímica e biotecnologia no desenvolvimento e produção de
medicamentos.
>> Analisar aspectos biofarmacêuticos na produção de medicamentos
análogos.
>> Discutir o uso de biotecnologia na produção de medicamentos e vacinas.

Introdução
A biotecnologia é um ramo da ciência que utiliza sistemas biológicos, organis-
mos vivos ou seus derivados na produção ou modificação de produtos. Novos
medicamentos e vacinas têm sido desenvolvidos por meio da biotecnologia,
2 Aspectos biofarmacêuticos e biotecnológicos de novos medicamentos

em especial para o tratamento de doenças raras e complexas. Medicamentos


biotecnológicos, ou biofármacos, já contribuem significantemente no mercado
farmacêutico. Os maiores desafios para uso desses medicamentos ainda são o
alto custo e a imunogenicidade frequentemente relacionada.
Neste capítulo, você vai examinar como a biotecnologia é aplicada no desen-
volvimento e produção de medicamentos e vacinas, incluindo as técnicas mais
utilizadas e os principais medicamentos biotecnológicos disponíveis no mercado.
Além disso, vai conhecer o impacto financeiro da aquisição de biofármacos e
biossimilares pelo sistema público de saúde.

Biotecnologia e medicamentos
Nas últimas décadas, a biotecnologia tem avançado consideravelmente nas
áreas da medicina e da farmácia, sendo possível hoje produzir medicamen-
tos em quantidades suficientes a partir da biologia molecular. Os fármacos
biotecnológicos ou biofármacos obtidos pela tecnologia do ácido desoxir-
ribonucleico recombinante (DNAr) são exemplos clássicos da aplicação da
biotecnologia na produção de medicamentos (ALLEN JR., 2016; ALLEN JR.;
POPOVICH; ANSEL, 2013).
De acordo com Allen Jr., Popovich e Ansel (2013, p. 597), o termo biotec-
nologia refere-se a “[...] qualquer técnica que utilize organismos vivos (i.e.,
microrganismos) na produção ou modificação de produtos”, sendo que o
termo biotecnologia frequentemente é usado de forma intercambiável com
“engenharia genética” no contexto da ciência e da saúde. Embora grandes
avanços tenham sido observados nas últimas décadas, o conceito de biotec-
nologia não é novo. Organismos vivos têm sido manipulados desde a época
da Primeira Guerra Mundial a fim de solucionar problemas e melhorar a
qualidade de vida das pessoas.
O início da aplicação da biotecnologia na indústria farmacêutica foi mar-
cado pela aprovação da primeira insulina humana recombinante em 1982,
pela agência reguladora norte-americana Food and Drug Administration
(FDA). Até então, esse medicamento só podia ser extraído de animais. Atual-
mente, a biotecnologia é aplicada no desenvolvimento de vacinas, reagentes
para diagnóstico, materiais médicos e odontológicos, bem como na terapia
celular e na terapia gênica. Os primeiros fármacos biotecnológicos eram de
Aspectos biofarmacêuticos e biotecnológicos de novos medicamentos 3

natureza proteica, mas tem crescido o número de biofármacos com moléculas


menores, desenvolvidos via processos biotecnológicos altamente complexos
(MEIRELLES et al., 2020). As principais diferenças entre os fármacos sintéticos
e biológicos podem ser vistos no Quadro 1.

Quadro 1. Principais diferenças entre fármacos sintéticos e biológicos

Fármacos sintéticos Biofármacos

Moléculas Pequenas Grandes

Estrutura Simples Complexas

Estabilidade Estáveis Instáveis

Caracterização Simples e completa Difícil e incompleta

Manufatura Previsível pelo processo Variável, produzido por


químico; sistemas vivos; impossível
cópias idênticas podem ser de realizar cópias idênticas
feitas

Patentes Geralmente única Múltiplas

Imunogenicidade Ocasional Frequente

Fonte: Adaptado de Salerno, Matsumoto e Ferraz (2018).

De acordo Meirelles et al. (2020, documento on-line) “[...] a biotecnologia


farmacêutica abriu oportunidade para o tratamento de doenças raras e
complexas, e tornou-se estratégica para as políticas de inovação em diver-
sos países, incluindo o Brasil”. Como pode ser visto na Figura 1, apesar do
investimento crescente em pesquisa e desenvolvimento (P&D) pela indústria
farmacêutica na década de 2000, o número de novas moléculas aprovadas
diminuía. Com isso, a biotecnologia mostrou-se uma importante estratégia
para o desenvolvimento de inovações radicais, levando a um novo crescimento
de moléculas aprovadas. Atualmente, a estimativa é que cerca de 40% dos
fármacos em desenvolvimento em todo o mundo possam ser classificados
como biofármacos.
4 Aspectos biofarmacêuticos e biotecnológicos de novos medicamentos

Figura 1. Número de moléculas aprovadas pela FDA versus gastos em P&D


na indústria farmacêutica.
Fonte: Meirelles et al. (2020, documento on-line).

Os biofármacos são comercializados por um alto preço quando comparados


aos medicamentos sintéticos, mas possuem grande aplicação em enfermida-
des raras e complexas, como doenças autoimunes e câncer. Em 2018, dentre
os 30 medicamentos mais vendidos em todo o mundo, 17 eram biofármacos,
sendo que o biofármaco Humira, com o princípio ativo adalimumabe, foi
o campeão de vendas, com uma receita anual de 20,5 bilhões de dólares
(MEIRELLES et al., 2020).
Com o desenvolvimento de novos medicamentos biológicos com o passar
dos anos, há também a expiração das patentes de biofármacos já existen-
tes no mercado, o que leva ao desenvolvimento e produção de produtos
concorrentes, os chamados biossimilares. A introdução de biossimilares no
mercado provoca a redução dos preços de comercialização, de forma similar
ao que ocorreu no mercado de medicamentos sintéticos a partir da introdu-
ção dos medicamentos genéricos. Com isso, vários países têm incentivado
a disseminação dos biossimilares, a exemplo da França, que, de acordo com
Meirelles et al. (2020, documento on-line), “[...] estabeleceu como meta que
os biossimilares representem 80% do consumo de biológicos nos mercados
relevantes até 2022”.
Aspectos biofarmacêuticos e biotecnológicos de novos medicamentos 5

No Brasil, 56% dos medicamentos mais vendidos no país são anticorpos


monoclonais, sendo que a importação desses produtos de alto valor provocam
um gasto muito relevante para a saúde pública. Com isso, o governo federal
também vem incentivando a produção de biossimilares, a fim de reduzir os
custos com importação e desenvolvimento de competências de fabricação
(SALERNO; MATSUMOTO; FERRAZ, 2018).
Quando comparado aos medicamentos genéricos obtidos por síntese
química, o desenvolvimento de biossimilares é mais complexo e possui altos
riscos. Pequenas alterações no processo de produção dos biossimilares po-
dem resultar em alterações na estrutura molecular do produto em questão,
comprometendo a eficácia e segurança do produto final. Com isso, para um
medicamento biossimilar ser aprovado pelas agências reguladoras, devem ser
realizados ensaios clínicos muito próximos daqueles exigidos para a aprovação
de um medicamento novo, fazendo com que o preço de um biossimilar seja
muito superior ao de um genérico, por exemplo.
Meirelles et al. (2020, documento on-line) relata que, mesmo com reduções
de preço chegando a 30% para produtos mais tradicionais, os biossimila-
res “[...] ainda representam menos de 2% das vendas globais de biológicos,
equivalentes a US$ 5,95 bilhões em 2018. No entanto, estimativas apontam
que o mercado global de biossimilares deve quadruplicar entre 2018 e 2023,
chegando a US$ 23,63 bilhões em 2023”.

Produção de medicamentos biotecnológicos


Os biofármacos podem ser separados nas seguintes classes principais:
antissenso, fatores da coagulação, fatores hematopoiéticos, hormônios,
interferons, interleucinas, anticorpos monoclonais, fatores de crescimento
teciduais e vacinas. Esses fármacos podem ser peptídeos fisiológicos (como
insulina, hormônio do crescimento e eritropoetina) ou não fisiológicos (como
vacinas, agentes trombolíticos e antitrombóticos), ou ainda novos produtos
biotecnológicos (ALLEN JR.; POPOVICH; ANSEL, 2013).
Diferentes técnicas podem ser utilizadas no desenvolvimento e produção
de medicamentos biotecnológicos, a exemplo da tecnologia do DNAr, tecno-
logia dos anticorpos monoclonais, reação em cadeia da polimerase, terapia
gênica, nucleotídeo bloqueado e antissenso e peptídeos biotecnológicos.
Cada uma dessas técnicas será detalhada a seguir.
6 Aspectos biofarmacêuticos e biotecnológicos de novos medicamentos

DNA recombinante

A produção dos fármacos biotecnológicos por meio da tecnologia do DNA


recombinante (DNAr) é realizada com base na clonagem molecular, por meio
do isolamento e propagação de moléculas de DNA idênticas. Conforme rela-
tado por Oliveira e Silva (2020, documento on-line), pelo menos dois estágios
podem ser destacados nesse processo:

Primeiramente, a ligação de um fragmento de DNA de interesse denominado de


inserto em uma molécula de DNA que é denominado de vetor, formando o DNA
recombinante. Segunda parte, a molécula de DNA recombinante é introduzida
em uma célula hospedeira, geralmente em bactéria Escherichia coli (E. coli), no
processo denominado de transformação, que passa a fabricar uma proteína de
interesse para a qual foi reprogramada. Dessa forma, a bactéria transforma-
-se em uma fábrica de uma substância de interesse, sofrendo muitos ciclos de
divisão celular, produzindo uma colônia que contém milhares de cópias do DNA
recombinante.

Ao utilizar células não humanas (como de E. coli) para produzir proteínas


análogas às naturalmente produzidas no corpo humano, é possível produzir
grandes quantidades dessas moléculas para aplicação na terapêutica. Os
primeiros produtos biotecnológicos obtidos a partir da tecnologia do DNAr
foram o hormônio do crescimento humano (GH) e a insulina (ALLEN JR.; POPO-
VICH; ANSEL, 2013). Alguns exemplos de fármacos biotecnológicos registrados
no Brasil e obtidos pela tecnologia do DNAr incluem:

„„ Alfaepoetina — glicoproteína que contém uma sequência de aminoáci-


dos idêntica à eritropoietina humana endógena. É utilizada em algumas
anemias, doença renal crônica, Aids e quimioterapia oncológica.
„„ Filgrastim — fármaco que atua estimulando a síntese de neutrófilos
na medula óssea. É indicado para a redução da duração da neutro-
penia e incidência de neutropenia febril em pacientes tratados com
quimioterápicos (exceto para leucemia mieloide crônica e síndromes
mielodisplásicas).
„„ Insulina glargina, insulina humana inalável, insulina humana regular,
insulina NPH, insulina isofana — tratamento de diabetes. A insulina
regular (R) também é indicada para casos de cetoacidose diabética
e coma diabético.
Aspectos biofarmacêuticos e biotecnológicos de novos medicamentos 7

„„ Betainterferona 1a — os interferons atuam regulando a imunidade no


organismo. Essa forma de interferon é indicada para tratar as formas
reincidentes de esclerose múltipla, reduzir a progressão da incapaci-
dade física e diminuir a frequência de exacerbações clínicas.
„„ Somatropina — indicada para o tratamento prolongado da deficiência
no crescimento em crianças cuja secreção do GH endógeno não ocorre.

No final da década de 1950, o tratamento de crianças com deficiência


de crescimento era realizado a partir do uso de glândulas hipófise de
cadáveres para produção do GH. Aproximadamente 50 hipófises eram necessárias
para tratar uma única criança durante o período de um ano. Além do custo
elevado, esse método de obtenção do GH apresentava risco de contaminação
viral do hormônio. Hoje o GH é produzido em quantidades suficientes por meio
da técnica do DNAr, além de ser altamente purificado.

Anticorpos monoclonais
Os anticorpos, também conhecidos como imunoglobulinas (Ig), são moléculas
proteicas produzidas e secretadas por linfócitos B que atuam na defesa do
organismo. De acordo com Costa (2019, documento on-line), “[...] a utilização
dos anticorpos como recurso terapêutico iniciou-se com a descoberta de que
o soro animal imunizado com toxinas ou vírus possuía uma grande eficácia
contra esses agentes que são causadores de doenças em humanos”.
Os anticorpos monoclonais (AcMs) são obtidos pela técnica de fusão celular
(hibridoma), ou seja, a partir da fusão de linfócitos B, previamente estimu-
lados com o antígeno de interesse, com células de mieloma. Os hibridomas
formados podem ser mantidos e armazenados em culturas. A partir daí,
podem produzir grandes quantidades de anticorpos com alta qualidade. Por
meio dessas células híbridas, é possível selecionar uma linhagem específica
de células que produzam imunoglobulinas monoespecíficas (VITOLO et al.,
2015; ALLEN JR.; POPOVICH; ANSEL, 2013).
De modo geral, os anticorpos apresentam estrutura em forma de Y, formado
por quatro cadeias polipeptídicas, sendo duas pesadas e duas leves. Essas
cadeias são unidas por meio de ligações covalentes e não covalentes (como
pontes de hidrogênio, interações hidrofóbicas e de Van der Waals e ligações
iônicas) (COSTA, 2019).
8 Aspectos biofarmacêuticos e biotecnológicos de novos medicamentos

Uma grande parte dos AcMs disponíveis comercialmente são Ig do tipo G


(IgG). Como pode ser visto na Figura 2, as cadeias pesadas e leves são unidas
por pontes dissulfeto, e ambas cadeias possuem um domínio variável e
um constante. O domínio constante geralmente apresenta uma sequência
semelhante entre as Ig de uma mesma classe (como IgM, IgG). Já os domínios
variáveis são muito heterogêneos, sendo os responsáveis pela afinidade do
anticorpo e sua especificidade de ligação (ALLEN JR.; POPOVICH; ANSEL, 2013).

Figura 2. Forma básica de uma molécula de imunoglobulina per-


tencente à classe IgG.
Fonte: Allen Jr., Popovich e Ansel (2013, p. 601).

Na pesquisa clínica, grande parte dos AcMs estudados eram derivados de


camundongos, sendo que pacientes tratados com esses compostos podiam
desenvolver resposta imunológica contra eles. Esse fator levou à busca
por AcMs com componentes humanos, e hoje, com o auxílio da engenharia
genética, tem-se anticorpos quiméricos, humanizados e totalmente humanos
desenvolvidos para contornar os problemas intrínsecos dos AcMs murinos. Os
AcMs quiméricos são obtidos pela tecnologia de DNAr, pela qual são retiradas
as porções estranhas do AcM e substituídas por estruturas de Ig humanas
(COSTA, 2019; ALLEN JR.; POPOVICH; ANSEL, 2013).
Os anticorpos monoclonais (AcMs) possuem alta especificidade, sendo
utilizados na detecção, quantificação e localização de certas substâncias no
Aspectos biofarmacêuticos e biotecnológicos de novos medicamentos 9

organismo. Na terapêutica, possuem um grande emprego no tratamento do


câncer e de diversas doenças autoimunes (COSTA, 2019; VITOLO et al., 2015).
No Quadro 2, é possível ver alguns exemplos de anticorpos monoclonais e
seu uso terapêutico.

Quadro 2. Anticorpos monoclonais aplicados ao uso terapêutico

Anticorpo Tipo de anticorpo Indicação

Abciximabe Quimérico Complicações de angioplastia


coronária

Adalimumabe Humano Artrite reumatoide

Alemtuzumabe Humanizado Esclerose múltipla

Bevacizumabe Humanizado Tumor sólido, câncer colorretal


metastático

Cetuximabe Quimérico Câncer colorretal em metástase na


cabeça e pescoço, carcinoma de
células de pulmão

Denosumabe Humano Osteoporose

Infliximabe Quimérico Doença de Crohn, artrite reumatoide

Nivolumabe Humano Melanoma avançado

Omalizumabe Humanizado Asma alérgica

Rituximabe Quimérico Artrite reumatoide, linfoma não


Hodgkin

Tocilizumabe Humanizado Artrite reumatoide e artrite


idiopática juvenil sistêmica

Trastuzumab Humanizado Câncer de mama

Fonte: Adaptado de Costa (2019).

A nomenclatura dos AcMs segue um padrão pré-estabelecido. Assim, pelo


nome já é possível conhecer o respectivo alvo principal de aplicação terapêu-
tica e o tipo/origem do anticorpo (quimérico, humanizado ou humano). O nome
do AcM é composto por um prefixo, dois infixos e um sufixo. O prefixo é a sílaba
inicial, escolhida pelo fabricante para batizar o medicamento; os dois infixos
identificam o alvo terapêutico e a origem do anticorpo, respectivamente; o
10 Aspectos biofarmacêuticos e biotecnológicos de novos medicamentos

sufixo é sempre composto por “-mabe”, indicando que o medicamento foi


produzido pela tecnologia de AcMs.
De acordo com Câmara (2014), são exemplos de infixos que definem o
alvo terapêutico:

„„ vir-: viral;
„„ bac-: bacteriano;
„„ li- ou lim-: imunológica;
„„ les-: lesões infecciosas;
„„ cir-: cardiovascular;
„„ col-, mel-, mar-, got-, gov-, pr(o)-, tu-: tumores no cólon, melanoma,
mama, testículo, ovário, próstata e miscelano, respectivamente.

Quanto aos infixos que definem a origem do anticorpo, tem-se:

„„ -u- = humano;
„„ -o- = camundongo;
„„ -a- = rato;
„„ -zu- = humanizado;
„„ -e- = hamster;
„„ -i- = primata;
„„ -xi- = quimera.

Como exemplo das regras de nomenclatura, vejamos o caso do


infliximabe: inf- (nome dado pelo fabricante) + -li- (alvo: doença
imunológica) + -xi- (fonte: quimérica) + -mabe (anticorpo monoclonal).

Reação em cadeia da polimerase


A reação em cadeia da polimerase (PCR, do inglês polymerase chain reaction)
consiste em uma grande amplificação de uma sequência de ácidos nucleicos
selecionados, gerando milhares de cópias de uma determinada sequência
de DNA. De acordo com Allen Jr., Popovich e Ansel (2013, p. 602), essa reação
ocorre em ciclos repetitivos, com um processo em três etapas:
Aspectos biofarmacêuticos e biotecnológicos de novos medicamentos 11

Primeiro, o DNA é desnaturado para a separação das duas fitas. Em seguida, um


primer de ácido nucleico é hibridizado com cada fita de DNA em um local específico
dentro da sequência de ácidos nucleicos. Finalmente, uma enzima DNA polimerase
é adicionada ao prolongamento do primer ao longo da fita de DNA, a fim de copiar
a sequência de ácido nucleico.

As moléculas de DNA são duplicadas a cada ciclo, sendo que os ciclos são
repetidos até se obter material suficiente da sequência de DNA copiado. Allen
Jr., Popovich e Ansel (2013) relata como exemplo que, se forem realizados 20
ciclos a taxa de 90% de sucesso, isso resulta na amplificação de 375 mil vezes
uma sequência de DNA.

Terapia gênica
A terapia gênica consiste em transferir um material genético exógeno para
dentro das células somáticas, com o objetivo de corrigir um defeito adquirido
ou herdado e introduzir uma nova função ou propriedade nas células. O avanço
da biotecnologia tem proporcionado o desenvolvimento de meios eficientes e
seguros para transferência de genes para as células. Com isso, a terapia gênica
tornou-se uma opção viável para o tratamento de muitas imunodeficiências
com delineamento genético e fisiopatologia molecular conhecidos (ALLEN
JR.; POPOVICH; ANSEL, 2013). A terapia gênica destaca-se pelo seu elevado
grau de pontualidade terapêutica e por provocar poucos efeitos colaterais.
Além disso, sua aplicação vai além do tratamento de doenças (PAIVA, 2017)
Para a transferência do material genético para o interior das células,
é necessária a utilização de um vetor, para que não ocorra a degradação
do gene e para garantir que a inserção seja feita do modo mais eficiente
possível. Esses vetores podem ser virais ou não virais. Os meios virais são
os mais utilizados na terapia gênica, pois apresentam alta eficiência. Os
retrovírus, adenovírus, vírus adenoassociados e herpes vírus simples são os
mais utilizados. As técnicas não virais de transferência de DNA incluem lipos-
somas, plasmídeos, microinjeção, eletroporação e biobalística (bombardeio
de partículas) (PAIVA, 2017).
De acordo com Allen Jr., Popovich e Ansel (2013), o primeiro protocolo
a utilizar terapia gência foi realizado em 1990, no National Institutes of
Health, em pacientes com deficiência de adenosina desaminase (ADA).
Supressões no gene que codifica a ADA, assim como mutações pontuais,
podem resultar em redução elevada ou perda da atividade dessa enzima,
o que pode resultar no desenvolvimento da imunodeficiênica grave com-
12 Aspectos biofarmacêuticos e biotecnológicos de novos medicamentos

binada (SCID, do inglês combined immunodeficiency disease), que causa


frequentemente a morte de crianças e adolescentes.
A aplicação da terapia gênica foi inicialmente planejada para o trata-
mento de doenças hereditárias com caráter monogênico (como hemofilias,
fibrose cística e distrofias musculares). No entanto, devido à alta incidência
global de doenças adquiridas, as pesquisas se expandiram para a busca
de tratamentos para doenças como HIV, câncer e doenças cardiovasculares
(PAIVA, 2017).
Podemos citar três estratégias diferentes de terapia gênica para o tra-
tamento com câncer:

„„ administração de um gene supressor tumoral ou proto-oncogene


mutado por um selvagem, que corrige o fenótipo mutado e leva à
apoptose e morte celular;
„„ administração de um gene suicida que produz uma proteína ou enzima
capaz de realizar a clivagem de um pró-fármaco em seu metabólito
ativo e tóxico para a célula, resultando em morte celular;
„„ administração de um vírus oncolítico que infecta as células tumorais
e se replica até causar lise nas células tumorais.

O uso do gene selvagem p53 é um exemplo e um dos focos da primeira


estratégia, pois é um dos genes mutados com maior frequência em
células tumorais. Um exemplo de gene suicida, é a administração do gene que
codifica a timidina quinase do herpes simples em células tumorais. A timidina
quinase produzida pela célula tumoral fosforiliza o ganciclovir, um pró-fármaco
que inibe a replicação do herpes vírus. O metabólito ativo do ganciclovir interfere
nos processos de replicação de DNA, levando à apoptose da célula. De acordo
com Paiva (2017, documento on-line), um exemplo da estratégia de terapia
gênica com administração de um vírus oncolítico “[...] é o uso do adenovírus
ONYX-015, que foi geneticamente modificado para se replicar e causar lise em
células tumorais que são deficientes de gene p53”.

A terapia gênica é utilizada no tratamento do HIV geralmente por meio de


silenciamento por RNAs de interferência (RNAi) ou por edição de genoma. O
silenciamento induzido pelo complexo de silenciamento ou de não expressão
induzido pelo RNA (RISC-RNA) é um mecanismo que existe naturalmente nas
células humanas. O tratamento baseado nessa técnica tem a vantagem de
Aspectos biofarmacêuticos e biotecnológicos de novos medicamentos 13

apresentar baixa toxicidade ao hospedeiro, por não ter efeito sobre seus
genes. De acordo com Paiva (2017, documento on-line), o objetivo dessa
técnica no combate ao HIV é:

[...] usar RNA de interferência (RNAi) sintético e, o mais usado é o siRNA, junto
ao sistema do complexo RISC para silenciar genes de replicação ou de infecti-
vidade do vírus durante a replicação, pois nesse momento tem exposição do
genoma viral por meio do mRNA. Sendo assim, esse tipo de tratamento inibe
a replicação viral e tenta diminuir a infectividade do vírus, fazendo com que,
quando utilizada em ensaios laboratoriais com camundongos, haja a redução
da carga viral no organismo.

A técnica de edição de genoma no combate ao vírus HIV passou a ser


cogitada após descobrir-se que um paciente portador de HIV foi curado ao
receber a medula óssea de um doador que apresentava uma mutação no
gene do receptor CCR5. Com isso, o CCR5, assim como o correceptor CXCR4,
tornaram-se alvos da terapia gênica no tratamento do HIV. Assim, os genes
normais seriam substituídos por genes mutados desses receptores, o que
levaria à uma resistência a ligação, reconhecimento e entrada do HIV na
célula (PAIVA, 2017).
Novas estratégias de edição de genoma, como o sistema formado por
repetições palindrômicas curtas, interespaçadas e regulamente agrupadas
(CRISPR, do inglês clustered regularly interspaced short palindromic repeats)
associado com a endonuclease Cas9, permitem a excisão dos segmentos de
DNA pró-viral do HIV presente no DNA das células. A Cas9 realiza a identifi-
cação do genoma do vírus por meio de RNA guia (gRNA) e efetua a excisão
do genoma viral em várias células hospedeiras (como linfócitos T auxiliares).
De acordo com Paiva (2017, documento on-line):

[...] o sistema CRISPR/Cas9 é originado do sistema imunológico de bactérias, onde


CRISPR dá origem a um gRNA, derivado de sequências de genes adquiridos por
um contato prévio ao invasor, que se liga a uma enzima de restrição (Cas9) para
detectar e degradar material genético invasor em uma reinfecção, com o DNA
proveniente de vírus (bacteriófagos) concedendo imunidade a elas.

O sistema CRISPR/Cas9 é empregado na terapia gênica a partir da síntese


in vitro de gRNA sintético (geralmente mais de um tipo de gRNA) e de Cas9,
a fim de aumentar sua especificidade ao vírus, sendo estes incorporados ao
sistema de entrega por meio de vetores virais.
14 Aspectos biofarmacêuticos e biotecnológicos de novos medicamentos

Nucleotídeo bloqueado/antissenso e tecnologia


dos peptídeos

As tecnologias do nucleotídeo bloqueado e antissenso enfatizam a função


de proteínas específicas e da expressão intracelular. A sequência senso é a
sequência de uma cadeia de nucleotídeos que compreende a informação para
a síntese proteica, enquanto a sequência antissenso é a cadeia de nucleotídeos
complementar à sequência senso (ALLEN JR.; POPOVICH; ANSEL, 2013).
Os fármacos antissenso são aqueles que fazem o reconhecimento e se
ligam à uma sequência senso de moléculas de RNAm específicas, impedindo
a síntese de possíveis proteínas indesejadas ou até mesmo destruindo a
molécula senso durante o processo. De acordo com Allen Jr., Popovich e
Ansel (2013, p. 603), “[...] a tecnologia antissenso é, em parte, uma nova
abordagem, denominada genética reversa”. Ela vem sendo utilizada no
tratamento do câncer e de doenças virais como herpes simples e HIV. Como
exemplo, podemos citar o fomivirseno sódico, um fármaco antissenso apro-
vado para o tratamento local do citomegalovírus em pacientes com Aids.
Já a tecnologia dos peptídeos envolve a utilização de moléculas
polipeptídicas com a mesma capacidade de proteínas maiores. Com isso, são
obtidos produtos mais simples, estáveis e com processo de obtenção mais
fácil. Esses peptídeos obtidos podem atuar como agonistas ou antagonistas
de receptores proteicos (ALLEN JR.; POPOVICH; ANSEL, 2013).

Produção de vacinas
A biotecnologia tem contribuído de modo significativo no desenvolvimento
de novas vacinas, bem como na descoberta de novos antígenos, adjuvantes,
vetores e sistemas de entrega. As primeiras vacinas eram fundamentadas
em patógenos, bactérias ou vírus, sendo estes atenuados ou inativados, e,
em alguns casos, reativos.
De acordo com Oliveira e Silva (2020), as vacinas podem ser classificadas
em três gerações, de acordo com a preparação do princípio ativo, nesse caso
os antígenos vacinais:

„„ de primeira geração — aquelas que utilizam os agentes patogênicos


atenuados ou inativados;
„„ de segunda geração — obtidas pela indução de anticorpos específicos para
um único alvo (como uma toxina responsável pelos sintomas da patologia);
Aspectos biofarmacêuticos e biotecnológicos de novos medicamentos 15

„„ de terceira geração — aquelas obtidas por engenharia genética, sendo


também conhecidas como vacinas gênicas ou vacinas de DNA.

As vacinas gênicas podem atuar de duas formas distintas. Na primeira,


segundo Oliveira e Silva (2020, documento on-line):

[...] os genes para o antígeno de interesse são localizados e clonados, [...] o DNA
é injetado diretamente no músculo do indivíduo ou animal. Após a vacinação do
antígeno de interesse, as células musculares passam a expressá-lo, desencadeando
resposta imunológica desejada.

Na vacina recombinante, por sua vez, é administrado no paciente o gene


que codifica uma proteína típica do agente agressor, o que induz o organismo
a produzir a proteína exógena mediante o estímulo ao seu sistema imune.
Vacinas de DNA tem sido utilizadas de forma experimental para a indução
de imunidade contra diversos patógenos, cânceres, alergias e doenças autoi-
munes. No entanto, vêm se revelando pouco imunogênicas. Com isso, surgiu
uma nova abordagem, que emprega vacinas de DNA como complementares
às vacinas tradicionais, a fim de aumentar a eficácia protetora.
As vacinas obtidas por engenharia genética apresentam a vantagem de
minimizar um possível risco de causar a infecção que a vacina deveria evitar,
isso por não utilizar vírus vivos. Além disso, deixa de haver preocupações
com as condições dos doadores de sangue, existentes na produção de va-
cinas naturais. De acordo com Allen Jr., Popovich e Ansel (2013, p. 633), “[...]
as vacinas produzidas por engenharia genética utilizam uma cópia sintética
do revestimento proteico do vírus, a fim de burlar o sistema imunológico do
organismo, para que ele produza uma resposta protetora”. A primeira vacina
produzida por engenharia genética e aprovada pela FDA foi para imunização
contra hepatite B, em 1986, substituindo a vacina que anteriormente era
derivada do plasma.
Um exemplo de vacina recombinante contra hepatite B é a Engerix B, que
apresenta a capacidade de induzir o anticorpo contra o antígeno de superfície
do vírus da hepatite B (anti-HBs). Essa vacina é indicada para a imunização
ativa de adultos e crianças contra a infecção causada por todos os subtipos de
vírus da hepatite B. Allen Jr., Popovich e Ansel (2013) cita ainda outro exemplo:
a vacina conjugada PedvaxHIB líquida/ActHIB para a imunização contra a bac-
téria Haemophilus influenzae tipo B (HIB). A HIB é responsável por diferentes
patologias, como meningite, epiglotite, sepse, artrite séptica, osteomielite e
pericardite. Antes da introdução dessa vacina no mercado, a HIB era a causa
16 Aspectos biofarmacêuticos e biotecnológicos de novos medicamentos

mais frequente de meningite bacteriana e doenças bacterianas sistêmicas


graves em crianças (principalmente as menores de 5 anos) em todo o mundo.
Segundo Allen Jr., Popovich e Ansel (2013, p. 634), as vacinas HIB conjugadas:

[...] usam uma nova tecnologia, a ligação covalente do polissacarídeo capsular de


Haemophilus influenzae do tipo B com o toxoide diftérico, proteína diftérica CRM197
ou um complexo proteico da membrana externa (CPME) de Neisseria meningitidis,
para produzir um antígeno que se afirma converter um antígeno T-independente
em um antígeno T-dependente. A proteína carrega seus próprios determinantes
antigênicos e aqueles dos polissacarídeos ligados por covalência. Dessa maneira,
o polissacarídeo é teoricamente apresentado como um antígeno T-dependente,
resultando em aumento na produção de anticorpos e memória imunológica.

A biotecnologia é um ramo da ciência que continuará proporcionando


avanços na produção de medicamentos e vacinas, gerando produtos cada
vez mais eficazes, específicos e seguros. Além disso, sua aplicação contra
doenças específicas pela utilização de tecnologias inovadoras traz uma nova
esperança para o tratamento de doenças raras e certos tipos de cânceres. Os
altos custos de produção de biofármacos impõem um desafio para a saúde
pública de países em todo o mundo, enquanto a produção de biossimilares
representa uma boa alternativa para diminuir tais custos e ainda fornecer as
medicações para os usuários que necessitem de tratamento.

Referências
ALLEN JR., L. V. Introdução à farmácia de Remington. Porto Alegre: Artmed, 2016.
ALLEN JR., L. V.; POPOVICH, N. G.; ANSEL, H. C. Formas farmacêuticas e sistemas de
liberação de fármacos. 9. ed. Porto Alegre: Artmed, 2013.
CÂMARA, B. Terapia com anticorpos monoclonais. 2014. Disponível em: https://www.
biomedicinapadrao.com.br/2014/05/terapia-com-anticorpos-monoclonais.html. Acesso
em: 27 ago. 2020.
COSTA, A. S. da. Aplicação dos anticorpos monoclonais na biotecnologia. 2019. Tra-
balho de Conclusão de Curso (Graduação em Biomedicina) — Faculdade de Ciências
da Educação e Saúde, Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2019. Disponível em:
https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/prefix/13642/1/21302810.pdf. Acesso
em: 27 ago. 2020.
MEIRELLES, B. B. et al. Balanço da estratégia de desenvolvimento da biotecnologia
farmacêutica no Brasil: 2009-2019. BNDES Setorial, v. 26, nº. 51, p. 7–75, mar. 2020.
Disponível em: https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/bitstream/1408/19802/3/PR_Bio-
tecnologia_BD.pdf. Acesso em: 27 ago. 2020.
OLIVEIRA, V. O.; SILVA, O. V. Biotecnologia para a produção de biofármacos: farmacovigi-
lância, regulamentação e mercado no Brasil. 2019. Disponível em: http://www.revista.
oswaldocruz.br/Content/pdf/Edicao_19_Veridiana_Oliveira.pdf. Acesso em: 27 ago. 2020.
Aspectos biofarmacêuticos e biotecnológicos de novos medicamentos 17

PAIVA, J. C. C. de. Terapia gênica e suas aplicações no tratamento de doenças. 2017. 26 f.


Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Biomedicina) — Faculdade de Ciências
da Educação e Saúde, Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2017. Disponível em:
https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/235/11662/1/21413350.pdf. Acesso em:
27 ago. 2020.
SALERNO, M. S.; MATSUMOTO, C.; FERRAZ, I. Biofármacos no Brasil: características,
importância e delineamento de políticas públicas para seu desenvolvimento. Brasília:
IPEA, 2018. (Texto para Discussão, 2398). (E-book).
VITOLO, M. et al. Biotecnologia farmacêutica: aspectos sobre aplicação industrial. São
Paulo: Blucher, 2015.

Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos


testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da
publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas
páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores
declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou
integralidade das informações referidas em tais links.

Você também pode gostar