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NIETZSCHE

2º ano do Ensino Médio

Professor: Laerte Moreira dos Santos

Área de Sociedade e Cultura


(Filosofia, Sociologia, História, Geografia)

http://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia
ou
http://www.geocities.com/sociedadecultura/filosofiaframe.html

(Observação: um item muito usado em seminários e aulas é o “textos para as aulas”)

2º bimestre de 2005º
TEXTOS DE E SOBRE NIETZSCHE

A – TEXTOS DE AUTORES SOBRE NIETZSCHE

1. Nietzsche: este nosso mundo dos fracos


(Do livro: Nietzsche: a vida como valor maior, Alfredo Naffah Neto, FTD, São Paulo, 1996)

Apenas os medíocres têm perspectivas de prosseguir, procriar - eles são os homens do futuro, os único sobreviventes: "sejam
como eles! Tornem-se medíocres!", diz a única moral que agora tem sentido, que ainda encontra ouvidos. (Friedrich
Nietzsche, Além do bem e do mal, § 262)

No dia 15 de outubro de 1844, na cidade de Rocken (antiga Prússia, atual Alemanha), nascia aquele que se tornaria um dos
pensadores mais importantes da contemporaneidade: Friedrich Wilhelm Nietzsche.
Desprezado e incompreendido em sua época, seu pensamento acabaria por ser distorcido, utilizado pelos nazistas na Segunda
Guerra Mundial como justificativa para "a purificação de uma suposta "raça ariana". A que levou essa ideologia racista o
mundo todo soube através do massacre de milhões de judeus, comunistas, homossexuais, deficientes físicos e mentais,
considerados pelos nazistas como a escória da humanidade. Infelizmente, Nietzsche permaneceu confundido com o
pensamento nazista até há pouco tempo. Só muito recentemente - e por iniciativa de alguns pensadores franceses, como
Michel Foucault, Gilles Deleuze e Pierre Klossowski, entre outros - iniciou-se um processo de releitura dos textos
nietzschianos. Descobriu-se, então, que Nietzsche havia sido um dos mais contundentes críticos do anti-semitismo apregoado
pelos nazistas. Leia alguns trechos de afirmações de Nietzsche que comprova a sua posição contrária ao anti-semitismo:

Os judeus são, sem qualquer dúvida, a raça mais forte, mais tenaz e mais pura que atualmente vive na Europa; eles sabem se
impor mesmo nas piores condições (até mais que nas favoráveis), mercê de virtudes que hoje se prefere rotular de vícios.
[...] O que eles desejam e anseiam, com insistência quase importuna, é serem absorvidos e assimilados na Europa, pela
Europa; querem finalmente se tornar estabelecidos, admitidos, respeitados em algum lugar, pondo um fim à sua vida
nômade, ao "judeu errante"; esse ímpeto e pendor (que talvez já indique um abrandamento dos instintos judaicos) deveria
ser considerado e bem acolhido: para isso talvez fosse útil e razoável expulsar do país os agitadores anti-semitas. (aforismo
251 de Além do bem e do mal)

Em outro momento escreve: "Confesso que me sinto por demais distante do espírito alemão para ter paciência com suas
idiossincrasias particulares, especialmente o anti-semitismo."

Nietzsche chegou a sugerir a necessidade de se criar uma liga européia anti-alemã, sendo perfeito na visão lançada em carta
ao anti-semita Schmeitzner: "Prevejo terremotos europeus de monstruosas proporções, todos os movimentos indo nessa
direção, inclusive o seu anti-semita.". Cortou relações com o compositor Richard Wagner, em função do germanismo e anti-
semitismo daquele. Também rompeu radicalmente com a irmã, em função da mesma ser "tola, vingativa e anti-semita".

"Nada representa obstáculo maior à minha influência do que a associação do meu nome com anti-semitas. Sou
capaz de jogar porta afora quem quer que me inspire a menor dúvida a esse respeito."

"Desejo, cada vez mais, que os judeus ascendam ao poder na Europa, para que não precisem mais serem os
oprimidos. O alemão que, apenas por ser alemão, pretende ser mais que um judeu, faz parte de uma comédia, a
menos que encontre seu lugar num asilo de loucos. O que desejo, finalmente, é que se obrigue os anti-semitas a
deixarem a Alemanha."

A origem do mal-entendido deveu-se a dois fatos distintos. O primeiro deles é que a única irmã de Nietzsche, Elizabeth - ela
sim, claramente anti-semita -, deturpou vários dos seus textos, chegando mesmo a forjar cartas inexistentes.
Nietzsche não pôde evitar tal usurpação porque estava fora de seu juízo e sob tutela familiar desde 1890. Foi Elizabeth quem
publicou, por exemplo, uma suposta obra inédita de Nietzsche denominada Vontade de potência, composta de textos
escolhidos a dedo no caos de notas redigidas pelo filósofo e organizados desrespeitando a cronologia dos escritos. Foi ela,
também, quem possibilitou a utilização de seus textos pelos nazistas e quem foi enterrada, em 1935, com honras nacionais
pelo III Reich.

O segundo motivo do mal-entendido deveu-se a incompreensões do próprio pensamento de Nietzsche, notadamente de suas
críticas aos rumos que havia tomado o mundo ocidental. Autor de uma obra assistemática por natureza, ou, mais do que isso,
avessa à idéia de sistema, escrevia por meio de aforismos, o que dá margem a diferentes leituras, articulações, ângulos de
visão.

Isso contribui para que cada qual a utilize do jeito que bem entender. Além disso, as noções controvertidas de nobre e de
escravo ajudariam a "colocar mais lenha na fogueira". Embora seja muito difícil sintetizar seu pensamento, convém, pelo
menos, tentar esclarecer os mal-entendidos que cercam essas noções básicas.
Nietzsche via na cultura judaico-cristã, dominante no mundo ocidental, uma preponderância de valores fracos, escravos, em
oposição aos valores fortes, nobres, que haviam vigorado em épocas passadas, notadamente na Grécia arcaica, na cultura
trágica. Mas, para ele, nobre e escravo compunham dois tipos bastante característicos, bem diferentes dos que comumente se
entendem por esses termos.

O tipo nobre define uma forma de existir capaz de dizer "sim" à vida integralmente, em todos os seus aspectos, afirmando-a,
criando valores e participando ativamente da produção de sentido do mundo. Isso caracteriza uma maneira de viver
expandida, potente, onde estar-aí significa acolher e amar a existência, com tudo o que ela traz de prazer, alegria, mas
também de dor, sofrimento, pois nessa perspectiva as imperfeições da vida - geradoras de infelicidade - são a própria
condição de o homem crescer, potencializar-se, tornar-se capaz de se vergar sem se despedaçar. Por isso, esse tipo de vida
implica fundamentalmente uma capacidade de esquecer: metabolizar as injúrias, ofensas, transformando-as em proveito desse
existir exuberante, que se quer pleno de riscos, de aventura, sabendo-se habitar em um mundo que não é feito de
permanência, mas de movimentos perenes de transformação. É, pois, uma vida que se desdobra em morte e renascimento
contínuos, em movimentos de destruição e de construção, como parte do mesmo devir criador.

Dominância de valores escravos queria dizer a propagação de uma forma de ser, ocupada apenas com a sobrevivência, sem
qualquer ambição de dar forma ao mundo. Por estar atravessado por uma impotência paralisante, aprisionado por um passado
não-digerido, não-metabolizado, o tipo escravo vive perdido no tempo, incapaz de viver no presente e de criar qualquer coisa
que seja. Cultua uma memória prodigiosa que não lhe permite superar as amarguras, as humilhações, os ultrajes vividos,
vivendo amarrado a essas experiências. É, pois, incapaz de acolher e aceitar as imperfeições da vida. Está permanentemente
buscando culpados por seus infortúnios, é puro ressentimento e desejo de vingança. Assim, é incapaz de caminhar por seus
próprios pés. Vive à deriva, à espera de uma redenção vinda de fora, de um Outro, concebido como Poderoso, Absoluto e
Perfeito, seja ele Deus, uma Sociedade Irrepreensível ou uma Outra Vida, de preferência Eterna, pois o escravo não tolera a
fatalidade da morte.

Resumindo, trata-se de uma forma de vida alienada de sua potência criadora e culpada de existir. Essa alienação-tornada-
impotência que, ao se perpetuar como memória, envenena o mundo real para depois rejeitá-lo; esse veneno que cresce e que
se nutre com a ilusão de recompensas em mundos imaginários, Nietzsche os via como uma criação da sociedade de massas e
de seus valores morais corporificados especialmente nos valores cristãos (tais quais expressos pelas máximas de São Paulo).

Se o cristianismo não inventou os valores escravos, sem dúvida trouxe-lhes novo sangue, novas justificativas,
universalizando-os e refundando-os na idéia de Eternidade; com isso, eles cresceram, alastraram-se, tornando-se os valores
dominantes no mundo ocidental. E por essa razão que Nietzsche foi um dos mais contundentes críticos do cristianismo,
embora se preocupasse, em seus últimos escritos, em discriminar o cristianismo como doutrina instituída, da figura de Jesus ,
por quem até sentia alguma simpatia pois o considerava um homem adiante de sua época, tendo sido capaz de ensinar aos
homens como morrer com serenidade.

A utilização de Nietzsche pelos nazistas imprimiu aos termos escravo e nobre, fraco e forte conotações de cunho racial e
político que eles jamais tiveram. Ao se identificar a força nobre com os valores arianos e com os poderes nazistas instituídos,
invertia-se totalmente o sentido que Nietzsche lhes dera, já que, em vez do amor incondicional à vida que definia o nobre
nietzschiano, o "nobre" nazista fazia a apologia do ódio, do ressentimento, da busca de bodes expiatórios para os infortúnios
da humanidade, massacrando judeus, comunistas, homossexuais, deficientes físicos e mentais.

Mas na época, e durante muito tempo, essa deturpação não se fez visível. Isso veio lançar uma maldição sobre o filósofo,
somente revista a partir dos anos 60, quando se voltou a ler sua obra. Ainda assim, essas questões estão longe de qualquer
consenso no mundo da filosofia. Nietzsche continua até hoje louvado por uns, execrado por outros. Uma coisa, entretanto,
ninguém pode negar: desde que seu nome voltou à baila, não cessam de proliferar admiração e espanto diante de um
pensamento cuja força demolidora só encontra equivalentes, desde a Segunda metade do século XIX, na obra de um Marx e
de um Freud. Uma filosofia a marteladas, como ele costuma dizer. Na mira: os valores ocidentais dominantes, que ele
descreveu como valores escravos.

- Um solitário incompreendido -
(Do livro: Nietzsche: a vida como valor maior, Alfredo Naffah Neto, FTD, São Paulo, 1996, pág. 21-35)

Neste dia perfeito, em que tudo amadurece e não é somente o cacho que se amorena, acaba de cair um raio de sol sobre a
minha vida; olhei para trás, olhei para a frente, nunca vi tantas e tão boas coisas de uma vez. Não foi em vão que enterrei
hoje meu quadragésimo quarto ano, eu podia enterrá-lo - o que nele era vida está salvo, é imortal [...] Como não haveria
eu de estar grato à minha vida inteira? E por isso me conto minha vida. (Friedrich Nietzsche, Ecce homo, epígrafe)

Nietzsche nasceu numa família protestante: seus dois avós eram pastores e ele também chegou a pensar em se tornar um.
Aos cinco anos perdeu o pai e o irmão, restando-lhe somente a mãe e a irmão. A família mudou-se de Rocken para
Naumburg, onde Nietzsche cresceu e se educou. Em 1858, obteve uma bolsa de estudos na então famosa Escola de Pforta,
onde começou a se distanciar do cristianismo. Freqüentou, entre 1864 e 1867, as Universidades de Bonn e de Leipzig, de
onde se originou seu interesse por filologia.

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Filologia - Reconstituição histórica da vida do passado por meio da linguagem e, portanto, do estudo crítico de documentos
literários.
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De filólogo a filósofo - Em 1869 foi nomeado professor de filologia clássica na Universidade de Basiléia, Suíça, onde
permaneceu por dez anos e escreveu boa parte de sua obra: O nascimento da tragédia (l871), A filosofia na época trágica dos
gregos (l873), Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral (l873), Considerações extemporâneas
(l873/74) e Humano, demasiado humano (l878/80). O desdobramento do filólogo em filósofo deveu-se à leitura do livro de
Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, que exerceu grande influência sobre seus primeiros escritos.

É também desse período sua amizade com Richard Wagner, a quem, de início, dedicou uma calorosa admiração,
especialmente porque via em obras como Tristão e Isolda ou O anel dos Nibelungos, uma espécie de reencarnação da
tragédia grega, da cultura dionisíaca. Essa admiração foi arrefecida por volta de 1876, quando percebeu no amigo um
prestigiador da mediocridade cultural alemã, acalentado por um círculo de nacionalistas e anti-semitas.

Em 1878, ao receber o libreto de Parsifal, a última obra de Wagner, e notar que era eivada de preconceitos e superstições
cristãs, a amizade esfriou ainda mais, redundando num distanciamento cada vez maior, que culminou nos famosos textos em
que denunciava a impostura wagneriana: O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner (l888).

Apesar de não ter lido os textos na época - até porque não estavam publicados -, Wagner percebeu que ganhara um crítico de
grosso calibre, tanto que proibiu, desde então, que o nome de Nietzsche fosse pronunciado nos limites de Bayreuth, sob
qualquer alegação.
Richard Wagner - Compositor alemão do século XIX, criou, em oposição à ópera tradicional, o que ele denominou drama-
musical, em que música e libreto formam uma unidade intrínseca expressiva, articulando um trabalho orquestral
extremamente refinado ao canto e à ação cênica. Considerado o último compositor romântico, criou grandes inovações na
composição musical, um marco revolucionário nesse sentido. Uma das características dos seus dramas-musicais é a repetição
e harmonização de vários leitmotive - associados a personagens, acontecimentos ou temas -, o que lhes imprime uma
temporalidade em espiral, de múltiplos centros e anéis.

Solidão, incompreensão e doença - Os primeiros dez anos em Basiléia já revelaram a Nietzsche aquelas que seriam as
tônicas de sua vila: a incompreensão de seus textos por seus contemporâneos; a solidão, somente quebrada por alguns poucos
amigos; a saúde precária, cujos distúrbios se manifestaram em 1873 com enxaquecas, dores na vista e problemas estomacais e
que evoluiriam para a perda da razão em 1889. Na época, a doença não foi diagnosticada; depois, suspeitou-se de um quadro
degenerativo de origem sifilítica.

Foi em função da saúde precária que Nietzsche se viu obrigado a pedir demissão da Universidade de Basiléia, em 1879, e
começou uma vida errante, percorrendo a Suíça, a Itália, a França e a Alemanha; nesse período, o tempo maior que conseguiu
parar em algum lugar foi seis meses. Nessa errância, que durou até a perda da razão, produziu o restante de sua obra: Aurora
(l880/1881), A gaia ciência (l881/82), Assim falou Zaratustra (l883/85), Além do bem e do mal (l885/86), Genealogia da
moral (l887), Crepúsculo dos ídolos (l888), O Anticristo (l888), Ecce homo (l888), além de uma série de fragmentos e notas
que somente foram publicados após a sua morte.

Pedidos de casamento recusados, interesses e afetos não-correspondidos teceram a vida amorosa de Nietzsche. Dentre essas
recusas, destaca-se a paixão não-correspondida por Lou Andréas-Salomé - uma jovem russa então em viagem com a mãe pela
Europa -, que posteriormente seria conhecida como psicanalista e colaboradora de Freud.
Nessa época, o que se formou foi um triângulo amoroso entre Nietzsche, seu amigo Paul Rée e a jovem viajante, entremeado
por intrigas e pela oposição preconceituosa da família de Nietzsche à relação amorosa. O episódio terminou com a união de
Lou e Paul Rée e o rompimento de Nietzsche com ambos e com a própria família. Já nessa época, ele usava os mais
diferentes tipos de drogas para aplacar seus sintomas: sais, soporíferos e haxixe. Após a desilusão com Lou Salomé,
perseguiram-no idéias de suicídio: por três vezes, ingeriu doses abusivas de narcóticos.
Foi como um solitário incompreendido que Nietzsche viveu até o fim de seus dias. Numa carta ao amigo Overbeck (Cf.
MARTON, 1991: 75-6), ele assim se expressa:

"Se eu pudesse dar-lhe uma idéia do meu sentimento de solidão! Nem entre os vivos nem entre os mortos, não tenho
alguém de quem me sinta próximo. Não se pode descrever como é aterrorizador; e apenas o treino em suportar esse
sentimento e o caráter progressivo de sua evolução desde a tenra infância permitem-me compreender que não tenha
sido totalmente aniquilado por ele."

A incompreensão da obra de Nietzsche por seus contemporâneos chegou ao ponto de o desinteresse das editoras obrigar o
filósofo a custear, do próprio bolso a publicação de suas últimas obras. O reconhecimento só viria no final da vida e, mesmo
assim, só ganharia força total após a sua morte. Com tudo isso, ele reconhecia, a partir do valor se suas obras, a importância
de sua trajetória existencial: "Como não haveria eu de estar grato à minha vida inteira?", diz ele no início de Ecce homo.

Encarnando cada um dos personagens - Das grandes relações que Nietzsche manteve na vida, a maior e mais importante
foi com um fiel amigo-colaborador, que o acompanhou até o fim e que foi o responsável pela compilação de todas as suas
obras finais: Heinrich Koselitz, que Nietzsche carinhosamente rebatizara com o apelido de Peter Gast (Pedro, o hóspede), por
razões desconhecidas para os seus biógrafos, e que assim ficou conhecido desde então. Peter Gast era, além de tudo, músico,
o que o habilitou também a transcrever em partituras as poucas e desconhecidas composições musicais que Nietzsche
produziu na vida. A ele se referiu o compositor Caetano Veloso, numa de suas músicas:

Peter Gast,
o hóspede do Profeta sem morada,
O menino bonito Peter Gast,
Rosa do crepúsculo de Veneza.

Os primeiros sinais de degeneração mental de Nietzsche aparecera em janeiro de 1889; a doença alastrou-.se, levando-o a
uma total perda de identidade. A partir de então, ele se designava pelos vários personagens de sua obra: Dioniso, Cristo e
outros tantos com os quais se identificara e algum momento da vida.
De qualquer forma, independentemente da doença, talvez seja possível dizer que Nietzsche, de fato, encarnou na própria pele
cada um desses personagens, enquanto deles falava. Nada de estranho, pois, que se designasse por seus nomes no final da
vida. Nesse estado crepuscular, ainda viveu mais de dez anos sob custódia familiar, primeiro da mãe e depois da irmã. As
conseqüências funestas dessa custódia foram a usurpação e deturpação de sua obra, já mencionadas anteriormente.
Morreu em 25 de agosto de 1900, pouco tempo depois da virada do século.

ATIVIDADES

1. Procure, em um bom dicionário, o significado dos verbetes nobre e escravo e compare os seus sentidos correntes com
os que Nietzsche lhes deu.
2. Assista a um capítulo de uma novela de televisão e identifique, nas falas das personagens, valores escravos e valores
nobres.

VAMOS REFLETIR

1. Pelo que entendeu do texto, você acha que os valores escravos e os valores nobres têm a ver com o poder aquisitivo das
pessoas, com as classes sociais, ou independem disso? Explique.
2. Descreva as ressonâncias que estas afirmações de Nietzsche encontram em você, sem sua vida: "quem chegou, ainda que
apenas em certa medida, à liberdade da razão, só pode sentir-se sobre a terra como um andarilho. [...] Bem que ele quer
ver e ter os olhos abertos para tudo o que propriamente se passa no mundo; por isso não pode prender o seu coração com
demasiada firmeza em nada de singular; tem de haver nele próprio algo de errante, que encontra sua alegria na mudança
e na transitoriedade" (Humano, demasiado humano § 638)
3. No seu modo de ver, é difícil viver segundo os valores nobres apresentados por Nietzsche?
4. Depois de ler os textos complementares, faça duas colagens com recortes de fotos de jornais e revistas mostrando o que é
viver a vida intensamente para você e para Nietzsche.
5. Por que você acha que os gênios são sempre incompreendidos na época em que vivem?

- AVALIANDO A PARTIR DA VIDA -


(Do Livro: A vida como valor maior - Nietzsche", Alfredo Naffah Neto, F.T.D., 1996, São Paulo, pág. 52 - 74)

Necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão. Para isso é
necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se
modificaram... (FRIEDRICH NIETZSCHE, Genealogia da moral, prólogo, § 6)

Se os valores morais intoxicam a vida, disciplinando-a, ordenando-a, dividindo-a em Bem e Mal, consequentemente
repudiando toda uma dimensão vital básica, e se isso teve como desenvolvimento levar o homem a renunciar à vida terrena e
ao mundo real, em prol de uma vida eterna e de um mundo imaginário, inexistente, então é preciso uma investigação
minuciosa da constituição desses valores. Reflexões desse tipo levaram Nietzsche à criação da GENEALOGIA, que, de forma
geral, pode ser descrita como uma investigação das condições de nascimento, desenvolvimento e transformação dos valores
morais. E como os valores morais impregnam, em maior ou menor grau, todas as práticas e produções humanas, a genealogia
estende sua investigação crítica a tudo de humano que já foi criado ou que ainda venha a sê-lo.
Mas a genealogia, diferentemente de outras práticas filosóficas, não pode fundar suas investigações num critério de verdade.
Vamos tentar entender por quê.
O critério do verdadeiro - De forma geral, podemos dizer que toda a filosofia e também as ciências do mundo ocidental
apoiam-se em alguma noção de verdade, seja ela qual for. O critério que define" sempre, se uma afirmação filosófica ou uma
afirmação filosófica ou uma lei científica são válidas é o fato de elas poderem ser consideradas como verdadeiras. E aí os
critérios de verdade são os mais variados possíveis. Há escolas filosóficas que defendem um critério de verdade
fundamentado em observações empíricas e na consistência lógica das proposições, como o positivismo lógico, por exemplo.

Positivismo lógico - Essa corrente filosófica afirma que só é compreensível e possui sentido aquilo que pode ser comprovado
pela experiência; que, consequentemente, todas as afirmações metafísicas carecem de sentido. Seu objetivo é constituir uma
linguagem científica unificada, por meio de uma lógica simbólica, verdadeira língua comum a todas as ciências.

A Fenomenologia, por sua vez, defende um critério de verdade apoiado na forma como as coisas aparecem e se revelam à
consciência e no quanto as afirmações filosóficas possam ser fiéis a essa descrição. De forma análoga, as ciências também
assumem critérios de verdade, embora não reflitam sobre eles, como faz a filosofia; essa reflexão acontece num campo
denominado filosofia das ciências.

A definição clássica de verdade fala de uma adequação entre a enunciação e o enunciado.

Complicado? Nem tanto: isso quer dizer que é considerada verdadeira a afirmação (reflexão filosófica ou lei científica, tanto
faz) que consegue adequar a sua expressão, proposição (seja ela uma construção verbal ou uma fórmula matemática), àquilo
que pretende apreender e expressar (seu objeto de estudo). Adequação quer dizer, aí, correspondência ponto por ponto entre
os dois campos: o da enunciação (que é a afirmação propriamente dita, tecida no âmbito da linguagem, seja ela verbal ou
algorítmica) e o do enunciado (aquilo que é afirmado: uma propriedade ou uma relação articulando fatos, acontecimentos,
regulares ou não, do mundo existente).

A crítica nietzschiana à noção de verdade apoia-se, justamente, neste ponto: a afirmação de que é impossível a
correspondência entre a linguagem (qualquer que seja ela) e o mundo real. Num belíssimo texto denominado Introdução
teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral, ele desenvolve as principais reflexões sobre essa questão.

O argumento central do texto nietzschiano é que qualquer palavra adquire a dimensão de conceito - que é a ferramenta de
qualquer forma de pensamento racional - quando abandona e desconsidera as diferenças singulares entre as coisas e os
acontecimentos do mundo. Por exemplo, quando pronuncio a palavra "folha", todos imaginam que o som dela se refere a
alguma realidade empírica. Entretanto, para poder traduzir todas as folhas reais, tão diferentes umas das outras, por esse som
unitário e invariável, é preciso jogar fora todas as características singulares que tornam cada folha uma realidade única,
incomparável, intraduzível.

O conceito constrói um esqueleto descarnado do mundo. Esse esqueleto é um signo de reconhecimento, quer dizer, sua
utilidade é possibilitar a comunicação entre os homens, diante das utilidades da vida prática, das necessidades de
sobrevivência. Todo o contra-senso é pretender que signo como esse e a realidade possa haver alguma correspondência que
não seja meramente convencional, portanto arbitrária.

A partir de raciocínios como esse, Nietzsche conclui que não há critérios intrínsecos para avaliar se uma enunciação é
verdadeira. Dependendo do critério particular e convencional adotado, qualquer uma poderá ser verdadeira ou falsa. Mais do
que isso: os critérios de verdade, quaisquer que sejam, estão sempre ligados a certas forças que detêm o poder e que impõem
uma interpretação particular, própria, como se fosse universal.

Portanto, qualquer verdade sempre traduz a relação dos homens com o mundo, a forma como se apropriam e se utilizam das
coisas; seu ângulo de visão, perspectiva, está sempre articulado por códigos, interpretações de mundo dominantes, que são as
forças que dão forma a tudo o que os homens comuns vêem, tudo em que acreditam.

As verdades são, pois, segundo Nietzsche (s.d.: 94), "um conjunto de relações humanas poeticamente e retoricamente
erguidas, transpostas, enfeitadas, e que, depois de um longo uso, parecem a um povo firmes, canoniais e constrangedoras: as
verdades são ilusões que nós esquecemos que o são". Essa é a razão pela qual a genealogia não pode fundar-se sobre um
critério de verdade.

A vida: critério dos critérios e valor dos valores - Se é preciso uma crítica radical dos valores, se é necessário avaliar o
valor de todos os valores humanos, sem ter mais à mão um critério de verdade, então é fundamental um outro critério que seja
válido e inquestionável, que esteja acima de todos os outros.

Esse critério, segundo Nietzsche, é a vida. Só ele pode decidir se um valor é bom ou ruim. Como?

Partindo do critério vida, só se podem avaliar como bons os valores que estiverem servindo à sua expansão, intensificação e
enriquecimento. E como ruins aqueles que estiverem criando condições para sua despotencialização, enfraquecimento,
empobrecimento. Isso significa considerar vida como nunca se fez antes.
É preciso diferenciar vida da sobrevivência. Grosso modo, a sobrevivência descreve um empobrecimento da vida; quando
meramente sobrevivemos, isso quer dizer que estamos vivendo de forma bastante precária, incipiente. A vida é um fluir de
intensidades que se apropriam de mundo e se expandem em novas intensidades, num movimento crescente e inesgotável.
Sem dúvida, ela engloba a sobrevivência, mas como sua dimensão mais baixa, seu alicerce, esse funcionamento adaptativo
que pode ser o ponto de apoio para movimentos de maior expansão, criativos, transformadores. A sobrevivência depaupera a
vida quando a reduz a seus horizontes utilitários, toscos.

Por isso, diante do critério vida, um ato suicida pode até ter um valor importante, na impossibilidade de uma sobrevivência
mesquinha expandir-se numa vida mais potente: por exemplo, um prisioneiro político que se suicida, ao se saber fadado a
uma morte lenta e humilhante nas mãos dos inimigos.
Há, também, ocasiões em que a luta pela sobrevivência pode gerar valores de vida bastante preciosos: por exemplo, quando
uma pessoa com uma doença grave é levada, na luta pela sobrevivência, a se defrontar com a morte e, a partir daí, a reavaliar
a própria vida.

A morte como parte da vida - É importante ressaltar que o valor vida implica o valor morte como sua condição. Uma vida
só adquire plena potência se é capaz de se desdobrar numa morte e num renascimento constantes, ou seja, a perda, a privação,
o ocaso, são ocasiões de fortalecimento e de enriquecimento de tudo que, de vivo, floresce a partir daí. Mais do que isso, a
morte é, para o herói trágico, "o julgamento, livremente escolhido", que dá valor à existência. Isso é o que Nietzsche (1988:
431) diz num dos fragmentos póstumos em que faz o elogio de Wagner, como poeta trágico:

“Mas sob que luz ele [Wagner] vê todo o passado, tudo o que se cumpriu? É aqui que é preciso pôr em realce a
admirável significação da morte: a morte é o julgamento mas o julgamento livremente escolhido, desejado, pleno de
uma horrível sedução, como se ela fosse mais do que uma porta aberta sobre o nada. (Sobre cada um dos passos mais
firmes que a vida dá sobre o palco, ressoa surdamente a morte.) A morte é o selo batido sobre toda grande paixão e
sobre toda existência heróica; sem ela a existência não tem valor. Estar maduro para ela é a coisa mais alta que se
pode conseguir, mas também a mais difícil, que só se atinge através de combates e sofrimentos heróicos. Cada
morte desse gênero é um evangelho do amor; e toda a música é uma metafísica do amor; ela é uma aspiração e um
querer num domínio que aparece ao olhar comum como o domínio do não-querer, um banho no mar do
esquecimento, um jogo de sombras espantoso de uma paixão desaparecida.”

É evidente que, nesse texto, Nietzsche está falando da forma como Wagner-poeta-trágico constrói seus enredos e seus
personagens no palco e como esses personagens se relacionam com a vida e com a morte. Assim, nos conta em que medida o
valor vida implica o valor morte, o que reforça a idéia de que, no vocabulário nietzschiano, vida e sobrevivência jamais se
confundem, pois se, por um lado, vida implica morte, por outro, sobrevivência e morte são valores antagônicos.

Como conseqüência, jamais se confundem, também, quaisquer avaliações feitas a partir de valores vitais com aquelas feitas a
partir de valores de sobrevivência. No primeiro caso, o que é avaliado é se as forças em foco geram movimentos de
expansão, intensificação, potencialização ou de coartação, confinamento, despotencialização da vida considerada; no segundo
caso, avalia-se o quanto determinados processos são adaptativos, capazes de garantir, em maior ou menor grau, a
sobrevivência.

É importante ressaltar que a genealogia, ao fazer a crítica dos valores morais, não funda uma nova moral, como pode
eventualmente parecer a algum olhar menos arguto. Considerar ruins os valores que despotencializam, enfraquecem e
empobrecem a vida não significa submetê-la a um crivo, selecionando uma parte boa e uma parte má, como fazia a moral.
Trata-se, sem dúvida, de uma seleção, mas de outro tipo e com outra finalidade: proteger a vida contra todos os valores que,
por operarem um tipo de seleção moral, a enfraquecem e a empobrecem.

O termo ruim da avaliação genealógica não é equivalente ao termo mau da avaliação moral. Ruim, nesse caso, significa
aquele valor que faz da fraqueza, da incompetência, da impotência, uma virtude, ou seja, ruim é aquele valor que exalta o
fraco. Mau, na avaliação moral, significa malvado, cruel, indigno, execrável. São coisas distintas.

Ao tomar a vida como critério maior, a genealogia sabe valorizar todas as suas formas, mesmo nos casos-limite, nos quais ela
se encontra tão intoxicada de valores morais que mal se conseguem visualizar os traços de sua potência. Mesmo esses casos
a genealogia os avalia como encarnando o único tipo de vida possível naquelas circunstâncias, discriminando aí os recursos
pelos quais a potência vital procura se preservar, a despeito de todas as condições desfavoráveis.

Ética x Moral - Ao tentar criar um abrigo para a vida, defendendo-a a qualquer preço, a genealogia nietzschiana acaba por
se, fundar como uma ética, fazendo jus à etimologia do termo grego éthos, que originalmente significava abrigo, morada .
Ocorre aí algo sui generis no universo filosófico: a diferenciação e oposição entre dois termos normalmente interligados e
postos numa mesma direção - moral e ética.

Segundo Gilles Deleuze no referencial nietzschiano tais termos podem ser considerados antônimos: a moral designando
aquela forma de avaliação degeneradora da vida; a ética, ao contrário, designando o sentido assumido pela genealogia
nietzschiana, ao tentar restaurar aquilo que a moral deteriorou. É verdade que essa discriminação entre os dois termos nunca
foi realizada dessa forma tão explícita pelo filósofo alemão, o que não significa que não sejam dignas de consideração as
ponderações feitas por Deleuze nessa direção.

A vontade de potência - O conceito central da ética nietzschiana, também fruto de múltiplos mal-entendidos, denomina-se
vontade de potência ou vontade de poder, conforme as duas traduções que normalmente são dadas ao alemão Wille zur
Macht. Podemos dizer que, dentro da perspectiva genealógica, vontade de potência e vida são sinônimos; entretanto, a
filosofia nietzschiana desdobra-se também numa cosmologia, e no interior dessa cosmologia o conceito tem uma abrangência
maior, uma vez que inclui o mundo inorgânico.

Apesar de todas as dificuldades que cercam essas questões, vamos tentar definir, aqui, o significado de vontade de potência.
O conceito é formado por dois termos: vontade e potência, ligados pela preposição de.

Em primeiro lugar, convém não tomar o termo vontade com o sentido que ele adquiriu na psicologia contemporânea, como
faculdade da mente humana. Ele descreve aí um conjunto de forças impessoais, anônimas, sempre em luta, envolvidas em
movimentos de expansão, exaltação, apropriação, transmutação, operando uma contínua destruição e criação de formas.

O segundo termo, potência ou poder, indica justamente aquilo que constitui a vontade e que, do seu âmago, pulsa, luta e se
desdobra, em busca de expansão, exaltação. Nesse sentido, a vontade não é carente de potência. Aliás, não é carente de
nada; no dizer de Heidegger, a vontade quer a si mesma, seu crescimento, sua superação, e a potência só é potência à medida
que continua a ordenar-se mais potência, permanentemente a caminho de si mesma, em contínuo devir.

Finalmente, convém esclarecer, seguindo as indicações de Gilles Deleuze, que o poder ou potência de que se fala aqui é um
poder criador: criador de vida, criador de mundo, criador de subjetividades, ou, num só termo, criador de valores. Nesse
sentido, o conceito adquire uma abrangência que transpassa todo o universo. Como diz Nietzsche (l978: 397): "Esse mundo é
a vontade de potência - e nada além disso!". E também vós sois essa vontade de potência - e nada além disso!".

Talvez a melhor expressão poética da vontade de potência (na sua sinonímia com a vida) nos seja dada por Chico Buarque,
em sua música Vida:

Vida, minha vida, Com palcos atrás.


Olha o que é que eu fiz. Arranca, vida,
Deixei a fatia Estufa, veia,
Mais doce da vida E pulsa, pulsa, pulsa,
Na mesa dos homens Pulsa, pulsa mais.
De vida vazia. Mais, quero mais,
Mas vida, Nem que todos os barcos
Ali quem sabe Recolham ao cais,
Eu fui feliz. [...I Que os faróis da costeira
Luz, quero luz, Me lancem sinais.
Sei que além das cortinas Arranca, vida,
São palcos azuis, Estufa, vela,
E infinitas cortinas Me leva, leva longe,
Longe, leva mais...

3. Síntese em tópicos da moral de Nietzsche - Prof. Laerte M. Santos

a) Vida
- luta contínua, “vontade de potência”, conjunto de forças em luta
- Vida como luta: a luta garante a permanência da mudança: nada é senão vir a ser.
- Vida como "Vontade de Potência" = vontade de poder. Necessita de obstáculos que a estimulem, precisa de
resistências para que se manifeste, requer oponentes para exercer-se. Para que ocorra luta é preciso antagonistas. E
como ela é inevitável e sem trégua ou termo, não pode implicar destruição dos beligerantes. Não pode caracterizar-
se pela adaptação ao meio em que se acha mas quer exercer-se sempre mais sobre o que está a sua volta.
- Viver = ser cruel e inexorável com tudo o que em nós é velho e enfraquecido.
- a vida é o critério para avaliação dos valores. Bom é aquilo que favorece a vida e mau o que a desfavorece.
- Vida como conjunto de forças em luta - querendo vir a ser mais forte a força esbarra em outras que a ela resistem. É
inevitável a luta por mais potência. A cada momento as forças relacionam-se de modo diferente, dispõem-se de outra
maneira. A todo instante, a "vontade de potência", vencendo resistências, se autosupera e, nessa superação de si faz
surgir novas formas. É pois força criadora.

b) Moral dos nobres


- surge da auto-afirmação.
- nela não existe o "bom" da moral dos escravos" mas o "forte" que é o criador de valores.
- "Forte" = nobre, poderoso, feliz, o que diz sim a si mesmo, não precisa se persuadir de sua felicidade pois ela é ação
(ser ativo é parte necessária da felicidade). Não age por reação, tem iniciativa e criatividade. Vive com confiança e
franqueza diante de si mesmo. Não consegue levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus
malfeitos (ele esquece). Ama os bons inimigos - aqueles em que nada existe a desprezar e muito a venerar. Despreza
o bem estar, a segurança. Não é "prudente". Não tem sentimento de culpa.

c) Moral dos escravos

- Há nela um evidente discurso do ressentimento, que atribui todas as desgraças do mundo e da sua vida aos outros.
Incapaz de assumir a sua responsabilidade pessoal (atributo apenas dos fortes), seja lá no que for, o medíocre, o
pequeno, o de " alma estreita", o escravo, transfere a causa dos seus inúmeros fracassos e decepções a tudo o que
está além e acima dele (em Deus ou no diabo, nos nobres, no senhor, no patrão, etc..).
- O ressentido, incapaz de admirar o forte imputa-lhe o erro de ser forte. Chama-o de mau. Não cria valores, inverte o
que foi posto pelos nobres. O que vem dos nobres é mau. O que vem dele é bom.
- quer transformar em força a própria fraqueza (renúncia, paciência, resignação)
- é a impossibilidade de agir neste mundo que o leva a forjar a existência de outro, onde terá posição de destaque,
ocupará lugar privilegiado, ser figura eminente.
- traveste sua impotência em bondade, a baixeza temerosa em humildade, a submissão aos que odeia em obediência, a
covardia em paciência, o não poder vingar-se em não querer vingar-se e até perdoar, a própria miséria em
aprendizagem para a beatitude, o desejo de represália em triunfo da justiça divina sobre os ímpios.
- o Reino de Deus aparece como produto do ódio e do desejo de vingança dos fracos. Ódio e ressentimento são as
palavras chaves para compreender o ressentido. É a diferença que causa o ódio, ou melhor, é a recusa da diferença
que o engendra .
- incapaz de aniquilar o forte, o homem do ressentimento quer vingar-se. Não podendo fazê-lo, imagina o momento
em que sua ira se exercerá impiedosa e implacável
- Aquele que age de acordo com a moral dos escravos = requer estímulos exteriores para poder agir. Sua ação é por
REAÇÃO. Precisa se persuadir da felicidade, é passivo (quer sossego, paz). Concebe o inimigo como mau. Valoriza
a segurança, o bem-estar. É prudente. É o manso, domesticado. De instinto gregário (=instinto de rebanho). Remete
a Deus a vingança. Foge de toda a maldade e exige pouco da vida. É o paciente. É o medroso. É o sofredor.
Enquanto o nobre sempre afirma ele sempre nega. É o piedoso.

4. Nietzsche e a Cultura
(Do livro: Nietzsche Educador, Rosa Maria Dial, Editora Scipione,1990, pág. 81)

O Egoísmo das classes comerciantes – As classes comerciantes necessitam da cultura e a fomentam, embora prescrevendo
regras e limites para sua utilização. Eis o seu raciocínio: quanto mais cultura, maior consumo e, portanto, mais produção,
mais lucro e mais felicidade. Os adeptos dessa fórmula definem a cultura como um instrumento que permite aos homens
acompanhar e satisfazer as necessidades de sua época e um meio para torná-los aptos a ganhar muito dinheiro. Assim, os
estabelecimentos de ensino devem ser criados para reproduzir o modelo comum e formar tanto quanto possível homens que
circulem mais ou menos como “moeda corrente”.
Com a ajuda de uma formação geral não muito demorada, pois a rapidez é a alma do negócio, eles devem ser educados de
modo a saber exatamente o que exigir da vida e aprender a ter um preço como qualquer outra mercadoria. Assim, para que os
homens tenham uma parcela de felicidade na Terra, não se deve permitir que possuam mais cultura do que a necessária ao
interesse geral e ao comércio mundial.

5. Nietzsche como educador hoje


(Do livro: Nietzsche Educador, Rosa Maria Dial, Editora Scipione,1990, pág. 114 e 115)

Será que o pensamento de Nietzsche pode ser usado, hoje, como um instrumento para pensar a educação: Será que seu
exemplo ainda pode servir para nos educar e, consequentemente, educar a quem educamos?
Não há dúvidas quanto a essas questões. Nietzsche apontou problemas que, apesar dos esforços de alguns educadores bem-
intencionados, ainda não foram resolvidos. Um deles – e talvez o mais grave – é o ensino da língua materna, até hoje um
grande desafio. Cada vez mais, abandona-se a formação humanista, em favor de uma educação voltada para as necessidades
do parque industrial.
Isto incentiva os indivíduos a um preparo rápido – uma profissionalização – que os torne aptos a trabalhar na “fábrica da
utilidade publica” e a servir como técnicos na maquinaria do Estado. Uma formação humanista seria um luxo que os afastaria
do mercado de trabalho.
Como filósofo-educador e “médico da cultura”, Nietzsche repensou as questões de educação a partir das necessidades vitais
(que não se resumem à sobrevivência), e não às do mercado de trabalho, criado para satisfazer as exigências do Estado e da
burguesia mercantil.
Adotou a vida como critério fundamental para todos os valores da educação e, com isso, destruiu as convicções que
sustentavam o sistema educacional de sua época.
... Tomar Nietzsche como exemplo significa educar-se incansavelmente; adquirir uma capacidade crítica pessoal e uma
capacidade de pensar por si; aprender a ver, habituando o olho no repouso e na paciência; dominar o “instinto do saber a
qualquer preço”, utilizando este princípio seletivo: só aprender aquilo que puder viver e abominar tudo aquilo que instrui sem
aumentar ou estimular a atividade; manter uma postura artística diante da existência, trabalhando como artista a obra
cotidiana; “dar à vida o valor de um instrumento e de um meio de conhecimento”, procedendo de modo que os falsos
caminhos, os erros, as ilusões, as paixões, as esperanças possam conduzir a um único objetivo – a educação de si próprio.
Em suma, tomar Nietzsche como exemplo não é pensar como ele, mas sim pensar com ele: “Nietzsche” não é um sistema,
nem mais um pensador com um programa de educação. Nietzsche, como afirma Gérard Lebrun, “é um instrumento de
trabalho insubstituível”.

6. O eterno retorno
Nelson Boeira
(Do livro: "Nietzsche". Jorge Zahar Editor, ano 2002, pág. 41-43)

O mais importante - e o mais controverso e obscuro - dos conceitos que Zaratustra vem anunciar é o do "eterno retorno" O
conceito fora anunciado no aforismo 341 de A gaia ciência: "E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua
mais solitária solidão e te dissesse: essa vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terá de vivê-la ainda uma vez e
ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de
indizivelmente pequeno e de grande em tua vida haverão de retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência..."
Em primeiro lugar, a idéia de um eterno retorno nos convida a um experimento mental: representar para nós mesmos o
"mundo" - a totalidade dos seres - sem recorrer a qualquer instância metafísica, a um "mundo por trás deste mundo" um
mundo "mais verdadeiro e mais real" do que o acessível à nossa experiência natural.
O "mundo" pensado como eterno retorno é realidade em constante mudança, sem causas nem finalidades, sem forças ou
deuses que lhe imponham uma direção definida, à exclusão de outras. Com o eterno retorno, o "mundo" é pensado como
entregue ao jogo infinito do tempo e à sucessão caótica de suas forças em luta por afirmação. Dado que o tempo é infinito e
as formas de existência que a realidade é capaz de assumir são finitas, pode-se conceber que estas se repetirão
indefinidamente e, portanto, retornarão perpetuamente, não importa quão grande seja sua diversidade e número.
Subjacente a esse experimento, está a idéia de que, dado o eterno retorno do mesmo, cada ocorrência particular de nossa
existência supõe todas as ocorrências anteriores, inclusive suas versões prévias. Em outras palavras, suposto o eterno retorno,
tanto nossas experiências positivas como negativas não poderiam deixar de ocorrer senão da maneira que ocorreram. Neste
caso, cada momento de nossa existência implica toda a série de antecedentes passados que o tornaram possível (e também as
séries futuras). Se assim é, não podemos seriamente desejar ou aprovar qualquer aspecto de nossa existência sem desejar
igualmente todos os seus antecedentes.
Portanto, a aceitação de nossas experiências felizes im plica na aceitação de nossas infelicidades , pois a aceitação de qualquer
parcela de nossa existência supõe a aceitação de toda a nossa existência. Desejar que parcelas de nossa existência tivessem
sido diferentes e desejar que o curso da realidade tenha sido distinto do que é ou do que foi. Isto seria desejar o impossível:
negar a realidade.
Eis o experimento moral que Nietzsche nos convida a fazer: desejar viver como se cada momento de nossas vidas fosse
retornar. Amor fati, amar o que nos acontece, desejando o nosso destino - esta é a indicação mais aguda de que, de fato, nossa
vontade e nossas forças estão inteiramente investidas no que fazemos, coincidentes com o movimento da realidade.

"Minha fórmula para a grandeza no homem é o amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para frente, seja em toda a
eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo - todo o idealismo é mendacidade ante o necessário -
mas amá-lo." O amor pela totalidade de minha experiência deve, pois, derivar do meu reconhecimento e minha aceitação da
realidade que a constitui. Devo mostrar apreço à realidade tal qual existe e existiu, pois ela é, nestes termos, a única fonte
possível da experiência humana e, portanto, da plenitude humana possível. Qualquer forma de negação da realidade, direta ou
indireta, expressa ou oculta, é uma negação do ser humano que efetivamente sou. Em outras palavras: é preciso estar à altura
do que nos acontece.

7. Nietzsche contra o liberalismo político e a sociedade industrial


(Do livro: Extravagâncias – Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche, Scarlett Marton, 2ª Edição, Discurso Editora Unijui,
2001, págs. 184-185)

“As instituições liberais deixam de ser liberais tão logo são alcançadas’, sustenta Nietzsche. “Mais tarde, não há
piores e mais radicais danificadores da liberdade do que instituições liberais. Sabe-se, até, o que elas conseguem:
minam a vontade de potência, são a nivelação da montanha e vale transformada em moral, tornam pequeno, covarde
e guloso – com elas triunfa toda vez o animal de rebanho. Liberalismo: dito em alemão, animalização em rebanho...“
(Crepúsculo dos Ídolos, Incursões de um extemporâneo, parágrafo 38).

Salvaguardar as liberdades individuais teria por sinônimo exigir de todos o mesmo padrão de comportamento.
Aparentemente, isso acarretaria, por parte dos governados, submissão completa e, dos governantes, total controle. De fato,
dirigentes e dirigidos perseguiriam aqui um único objetivo: o de impor um procedimento uniforme. Membros da mesma
coletividade, talvez até acreditassem que os indivíduos livres são todos fundamentalmente iguais.
De acordo com o filósofo, a igualdade, anunciada por religiões ou defendida por correntes políticas, é uma idéia astuta. Desde
os primeiros tempo, a noção de equilíbrio e forças teria regulado as relações humanas. Para conservar a própria existência, os
indivíduos mais fracos procuraram associar-se. Vivendo gregariamente, esperavam enfrentar os que, mais fortes do que eles,
pudessem vir a ameaçá-los. Por outro lado, os adversários – fossem indivíduos ou grupos -, sempre que tivessem forças
equivalentes concluíam a paz e estabeleciam contratos entre si. Assim surgiu a noção de direito. Reconhecendo-me direitos e
permitindo-me preservá-los, cada integrante do grupo comportava-se com prudência, porque me tomava como aliado contra
uma terceira força que nos ameaçasse; com receio, uma vez que temia confrontar-se comigo; com astúcia, já que esperava,
em troca, que eu reconhecesse os seus direitos e lhe permitisse preservá-los.

Direitos manteriam relações de força; constituiriam “graus de poder”.

“A desigualdade de direitos’, declara Nietzsche, “é a condição necessária para que os direitos existam. Um direito é
sempre um privilégio” (O Anticristo, parágrafo 57).

Meus direitos seriam essa parte do meu poder que os outros reconhecem e me permitem conservar; meus deveres, os direitos
que outros têm sobre mim. Segue-se daí que os direitos durariam tanto quanto as relações de forças que lhes deram origem. A
partir do momento em que a força de um certo número de indivíduos se reduzisse consideravelmente, os outros integrantes do
grupo não mais reconheceriam os seus direitos. Mas se, ao contrário, sua força aumentasse, seriam eles que não mais
garantiriam os direitos alheios. À medida que as relações de forças sofressem modificações profundas, certos direitos
desapareceriam e outros surgiriam.

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(Texto de Oswaldo Giacóia Júnior - IFCH/UNICAMP - Fonte: http://www.rubedo.psc.br/artigosb/crimornt.htm)

"Nenhum pastor e um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais: quem sente de outra maneira, vai
voluntariamente para o hospício. ‘Outrora todo mundo desvairava’, dizem os mais sutis e pestanejam. Hoje somos
inteligentes e sabemos o que ocorreu - assim não tem fim o gracejar. A gente ainda discute, mas logo se reconcilia -
senão se estraga o estômago. Temos nosso prazerzinho para o dia e nosso prazerzinho para a noite, mas honramos a
saúde. ‘Nós inventamos a felicidade’ - dizem os últimos homens e pestanejam."

A figura do "último homem" simboliza, pois, o alvo principal da crítica nietzscheana da modernidade política: a
bagatelização do tipo-homem embutida no igualitarismo uniformizante; um outro conceito polêmico para o mesmo
fenômeno, Nietzsche o fixou no termo: mediocrização (Mittelmässigkeit), com o qual fustiga a prudência mercantil dessa
miúda felicidade dos pequenos prazeres iguais para todos, característica da moderna sociedade civil-burguesa; para ele, é nela
que desemboca, finalmente, a ideologia da liberdade, igualdade e fraternidade universais. Além desse efeito nivelador,
Nietzsche identifica, na hegemonia das "idéias modernas" ainda um outro perigo iminente: com o apagamento de todas as
diferenças e a dissolução de toda autoridade legítima, prepara-se involuntariamente o caminho para o caminho para a barbárie
e a tirania.

Nietzsche apreende a consolidação da moderna sociedade civil-burguesa como uma "utilização cada vez mais econômica de
homem e humanidade, uma ‘maquinaria’ de interesses e rendimentos sempre mais firmemente entrelaçados entre si." Essa
forma de sociedade configura, para ele, a "inevitavelmente iminente administração econômica total da terra", a que também
pertence, de modo necessário, a ideologia utilitarista da acomodação, segurança e conforto, a superficialização
mercantilizante da virtude, aquilo que Nietzsche, como símbolo do igualitarismo uniformizador, denomina "chinesismo
superior" ou, em suma, o apequenamento da humanidade, tal como se encontra tipificado no "último homem"....

Nietzsche interpreta a racionalização global da sociedade, emergente com a revolução industrial, como maquinalização do
homem, como solidarização reificadora das peças de um imenso mecanismo de ‘interesses e rendimentos’, que promove o
moderno sucateamento geral do tipo-homem, na armação dessa monstruosa engrenagem universal feita de "rodas sempre
menores, sempre mais finamente ‘adaptadas.’"

Esse ajustamento global dos interesses e rendimentos implica também, por outro lado, na fragmentação do homem pela
divisão alienante do trabalho tornado abstrato, em sua transformação em indivíduo adestrado, laborioso, utilizável em
múltiplas ocupações, nivelado e indefinidamente intercambiável......

Para Nietzsche, o balanço possível da modernidade política não deixa margem a dúvidas: ao invés de um "otimismo
econômico" que acredita poder ainda retirar proveito geral do crescente prejuízo de cada um, Nietzsche aposta no contrário:
"os prejuízos de todos se somam num prejuízo global: o homem se torna menor"

8. Nietzsche e a proposta de uma política agonística

(Do texto: “A disputa de Nietzsche: Nietzsche e s guerras culturais”, Cadernos Nietzsche n.º 7, Grupos de Estudos
Nietzsche, Alan D. Schrift, pág.12-21)
(No) exame da seção 475 de Humano, Demasiado Humano, ... Nietzsche oferece uma de suas mais poderosas acusações do
nacionalismo. No contexto de recusar a artificial e perigosa separação da Europa em distintas nações através da "produção de
hostilidades nacionais," Nietzsche sugere que isto não é o interesse de muitos mas o interesse de uns poucos - "certas
dinastias principescas e certas classes sociais e de negócios" - "que impelem para este nacionalismo". É precisamente neste
ponto que Nietzsche situa as origens do anti-semitismo moderno: "o problema todo dos judeus," escreve, "existe somente nos
estados nacionais." Ele continua, em uma passagem que deveria refutar definitivamente a acusação de que Nietzsche é
simples e honestamente anti-semita:

É aqui que sua energia e mais alta inteligência, seu capital em vontade e espírito acumulado de geração em geração
em uma longa escola de sofrimento devem vir a preponderar em um grau calculado para despertar inveja e ódio, de
modo que em quase toda nação - e tanto mais quanto mais nacionalista a atitude que a nação está novamente adotan-
do - está ganhando terreno a indecência literária de induzir os judeus à carnificina sacrificial como bodes expiatórios
para todo possível infortúnio público ou privado (MAI/HHI 475).

Se o próprio Nietzsche pode sucumbir a uma política da identidade no aspecto cultural ou étnico de que sua crítica filosófica
do nacionalismo o teria distanciado é, naturalmente, uma questão que valeria a pena tratar. Mas na medida em que ele aqui
proporciona ferramentas para uma crítica da identidade nacional em favor do ideal cosmopolita de produzir "a mais forte
possível raça mista européia," existe razão para também olhar para sua crítica como um possível recurso para criti car uma
política de identidade étnica ou cultural.

Similarmente, a crítica nietzschiana do dogmatismo, fundada como é em uma posição perspectivista que exige multiplicar os
pontos de vista e evitar as atitudes fixas e rígidas, pode ser uma voz importante para ser levada em consideração na
construção de uma política que possa contestar a ampla coleção de fundamentalismos emergentes.

Ao mesmo tempo, um perspectivismo no mais alto grau pode acomodar uma noção de contingência radical que parece tanto
teoricamente desejável como pragmaticamente necessária no presente momento para muitos que - das perspectivas dos
estudos feministas e de gênero, teoria homossexual, estudos de minorias, estudos culturais e, em geral, de qualquer
perspectiva oposicionista - desejam partir da teoria para a ação.

Em outras palavras, estar apto para ver o mundo com outros e diferentes olhos (GM/ GM III 12) aparece agora como uma
necessidade política para estes indivíduos que se encontram em posições socialmente subordinadas que resultam de
julgamentos tradicionais e/ou essencialistas a respeito de seu valor diminuído em virtude de seu pertencimento a certos
grupos historicamente marginalizados. Ao recusar tradicionais identificações de grupos dogmaticamente mantidas como o
reconhecimento objetivo e necessário de "tipos naturais", um apelo à contingência radical de tais agrupamentos abre toda
espécie de caminhos de resistência por aqueles que têm sofrido com a tradicional e opressiva distribuição de poderes, bens e
privilégios.

Em um de seus primeiros ensaios, o não-publicado "A disputa de Homero", Nietzsche sugere que os gregos sabiam que a
competição é vital "quando se deve preservar o bem-estar da cidade-estado" (Nietzsche 36, p. 191). De fato, o sistema
educacional grego estava voltado ao cultivado respeito pelo agon e, ao contrário do que Nietzsche considerava como a
ambição moderna que busca a posição exclusiva de dominação absoluta, os gregos viam a disputa contínua por poder como
necessária para o avanço cultural. O germe da idéia helênica de disputa, ele escreve, é sua aversão pelo "domínio de um só" e
o temor dos seus perigos, "ela cobiça, como proteção contra o gênio - um segundo gênio" (Nietzsche 36, p. 192). Sua
hostilidade em relação à “’exclusividade' do gênio em sentido moderno’" nasce de seu reconhecimento de que não só
diversos gênios se estimulam mutuamente para a ação, mas também "se mantêm mutuamente nos limites da medida"
(Nietzsche 36, p. 191-2).

Uma vitória absoluta no interior do agon marcaria assim a morte do agon e Nietzsche admitia que a fim de preservar a
liberdade da dominação, deve-se estar comprometido a manter a instituição do agon como um espaço público para a
competição aberta. Foi, de acordo com Nietzsche, através de seu saudável respeito pela competição que os gregos homéricos
estiveram aptos para escapar daquele "abismo préhomérico de uma cruel selvageria do ódio e do desejo de aniquilamento"
(Nietzsche 36, p. 193).sobre o qual aprendemos em Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo, "um mundo mítico, no qual Urano,
Cronos e Zeus e a luta contra os Titãs teriam sem dúvida de nos parecer um alivio" (Nietzsche 36 p. 188). E sem aquela
competição saudável e respeitosa, a cultura grega não poderia senão deteriorar, tal como é evidenciado pelos declínios de
Atenas e Esparta seguindo suas respectivas ascensões em uma hegemonia cultural inigualável.

O que a leitura nietzschiana do agon grego nos mostra, e o que penso que também a crítica de Nietzsche ao nacionalismo e às
assunções metafísicas que sustentam identidades políticas rígidas deveria nos mostrar, é que não é somente uma política da
diferença; mas é também uma boa política. Os méritos de uma tal política agonística foram exploradas recentemente por
diversos teóricos políticos. Chantal Mouffe, por exemplo, fez da “permanência do conflito e do antagonismo" uma
característica fundamental em sua articulação de uma "democracia radical e plural."
Contrariamente a teóricos democráticos liberais como John Rawls, para quem o conflito e o antagonismo são "vistos como
distúrbios que infelizmente não podem ser completamente eliminados ou como obstáculos empíricos que tornam impossível a
completa realização de um bern" que a total harmonia social constituiria, Mouffe sustenta que o pluralismo é necessário para
a democracia, e a dissensão - conflito e contestação, diversidade e discordância - é uma condição necessária do pluralismo
(Mouffe 35, p. 44). Ao invés de apagar as diferenças através da postulação de algum consenso imaginário ainda a ser
alcançado, Mouffe busca o desenvolvimento de uma atitude positiva em relação às diferenças agonísticas que vê num
pluralismo "cujo objetivo é alcançar a harmonia ... no fundo uma negação do valor positivo da diversidade e da diferença",
não a vida mas a morte de uma forma de governo democrática (Mouffe 35, p. 44).....

William E. Connolly também enfoca o apelo de Nietzsche à natureza contestatória do agon enquanto argumentando a favor
de uma democracia revigorada, entendida não em termos da busca pelo consen so mas como um espaço social. dinâmico no
qual o respeito agonístico está revestido pelas "ambigüidades, conflitos e interdependências que constituem as relações
sociais" (Connolly 10, p. 195).

Connolly faz do agonismo central para a prática democrática enquanto exige a impossibilidade da chegada a uma identidade
final e fixa - seja social ou individual - como a base para o cultivo do "respeito agonístico" necessário à democracia. Como
para Honig, para Connolly o dinamismo agonístico de Nietzsche opera não só interpessoalmente mas também intrapes -
soalmente, tal como a proposição nietzschiana do eu múltiplo - do eu como uma luta entre impulsos que competem entre si -
pode igualmente servir como um modelo para uma forma de governo dinâmica e pluralista. Acostumando-se com as
"diferenças que continuam a circular através minha ou nossa identidade pode[-se] engendrar uma certa empatia por aquilo
que nós ou eu não sou. A empatia, então, emerge do caráter ambíguo, relacional da própria identidade, quando esta ambi -
güidade é afirmada preferivelmente a ser negada ou lamentada" (Connolly 10, p. 195).

Enquanto os seres humanos operarem dentro da modernidade e a moralidade servil de políticas identitárias oposicionais que
ela tem fomentado não forem capazes de exibir esta empatia pelo que nós não somos permanece para Nietzsche uma
possibilidade para aqueles indivíduos soberanos que serão aptos a superar a modernidade. De fato, isto é o que Connolly leva
Nietzsche a dizer com seu "pathos da distância": "uma afeição em relação àquilo que difere de você fazen do crescer
pequenos sinais de diferença em você, uma afeição que toma a forma de tolerância no conflito e generosidade na
interdependência, ao invés de uma busca pela diminuição das distâncias através da forma ção de uma maior unidade. ... Este
costume do respeito agonístico no meio de um mundo de dissonantes interdependências é crucial para o tecido da política
democrática: ... ele reveste com um pathos da distância as relações democráticas de contestação, colaboração e hegemonia"
(Connolly 10, p. 195).....

O pensamento de Nietzsche... se encaixa bem à idéia de democracia como um permanente “vir”, sempre algo que estamos em
direção a e para o qual as relações agonísticas entre nós não são algo para ser lamentavelmente suportado mas são, de fato, o
único meio pelo qual nos tornaremos aptos a nos engajarmos em práticas políticas democráticas. O próprio Nietzsche
observou o mesmo quando escreveu que esta democracia ainda por vir “quer criar e garantir tanta independência quanto
possível: independência de opinião, e modo de vida [ Lebensart] e de trabalho” (WS/AS 293). E observou – uma observação
tão pertinente no final de nosso século quanto era no final do seu – que os três grandes inimigos deste triplo sentido de
independência “são os pobres, os ricos e os partidos” (WS/AS 293).

O próprio Connolly toma nota desta sensibilidade nietzschiana, a mesma sensibilidade que admirava o agon grego enquanto
se desesperava com a tendência dogmático-cristã de buscar a eliminação da diferença porque sempre entendera a diferença
somente como oposição. Seguindo a famosa seção aberta de “Moralidade como contranatureza” de Crepúsculo dos ídolos, na
qual Nietzsche observa que o único jeito que a Igreja, e a moralidade de modo geral, sabe combater as paixões é através e sua
exterminação, vem esta menos famosa afirmação da alternativa de Nietzsche, que Connolly cita:

A Igreja em todos os tempos desejou a destruição de seus inimigos: nós, nós imoralistas e anticristãos, vemos que é
em nossa vantagem que a Igreja existe... Em política, também a inimizade tornou-se muito mais espiritual – muito
mais prudente, muito mais circunspecta, muito mais ponderada... Adotamos a mesma atitude em relação ao “inimigo
interior’; aqui também espiritualizamos a inimizade, aqui também alcançamos o seu valor. É-se proveitoso somente
ao custo de ser rico em contradições; permanece-se jovem somente com a condição de que alma não relaxe, não
anseie pela paz (GD/CI Moral como contranatureza 3)

Assim, no final de sua vida produtiva, como em seu início, Nietzsche continuou a apelar para a idéia de que competição e
contestação – a agon – são necessárias para o contínuo bem-estar do indivíduo e da comunidade. Embora Nietzsche não tenha
escolhido vincular a agon com a democracia, seu descuido não deveria nos afastar do reconhecimento de que é precisamente
o totalitarismo que requer a eliminação da competição e da contestação da esfera política. De fato, Nietzsche reconhece
exatamente isto em O andarilho e sua Sombra (289), onde observa que as instituições democráticas servem para combater a
“pestilência antiga, a ambição pela tirania”. E, contrariamente à tendência da direita em desejar uma identidade ou
unanimidade que presuma a eliminação de seus antagonistas, Nietzsche nunca se cansou de invocar a desejabilidade de um
“inimigo respeitável”, cuja resistente presença é requerida para o agon continuar e para cada um dos parceiros agonísticos
prosseguirem pelo caminho da auto-superação.
Para concluir, precisamos, portanto, não deixar Nietzsche para a direita e seu uso dele par legitimar sua identificação da
diferença com discriminação e com apelos para a hegemonia étnica ou nacionalista. Pois há razões para a esquerda olhar para
Nietzsche, assim como explorar as possibilidades da política democrática dentro de um espaço público agonístico e
diferencial, para o Nietzsche que viu na meta antiga de uma educação agonística não “uma ambição do desmedido e do
incalculável como a maioria das ambições modernas” e que viu como o mais alto lugar na qual os dramas da cultura devem
ser combatidos não os campos de batalha da Europa mas os festivais dionisíacos ateniense, nos quais “mesmo o modo mais
geral de instrução, a arte dramática, era participado ao povo na forma de uma imensa competição dos grandes artistas
musicais e dramáticos” (Nietzsche 36, p. 192). Era este Nietzsche que olhava para as competições homéricas para entender
seu próprio futuro; é para este Nietzsche que se dirige ao “cultivo do respeito agonístico entre eleitorados mesclados e
conflitantes” (Connolly 10, p. 197) que devemos ainda prestar atenção enquanto olhamos para um novo século com
estratégias para evitar uma recorrência daqueles confrontos não-democráticos que atormentaram este último século; e, para
finalizar, é este Nietzsche que invocamos quando respondemos para os polemistas antinietzschianos de hoje, afirmando que
ainda existem boas razões para sermos nietzschianos.

9. Vontade de potência, vida, corpo, teoria das forças, vontade e sujeito


(Do livro: Nietzsche - das forças cósmicas aos valores humanos, Scarlett Marton, Editora Brasiliense, 1990, São Paulo )

(Nietzsche) com a TEORIA DAS FORÇAS, é levado a ampliar o âmbito da atuação do conceito de vontade de potência:
quando foi introduzido, ele operava apenas no domínio orgânico; a partir de agora, passa a atuar em relação a tudo o que
existe. A vontade de potência diz respeito assim ao efetivar-se da força.

... Nietzsche acredita haver uma única força, a força criadora de tudo o que existe. O caráter pluralista de sua filosofia está
presente também aí, ao nível das preocupações - digamos - cosmológicas. Quando trata do mundo, ele sempre postula a
existência de uma pluralidade de forças presentes em toda a parte.

A força só existe no plural; não é em si mas na relação com outras, não é algo mas um agir sobre. Não é por acaso que ele
sugere que se veja "tudo o que ocorre, todo movimento, todo vi-a-ser como um constatar de relações de graus e de forças,
como um combate..." (XII, (65) 9 (91)). No limite, pode-se dizer que o mundo, isto é, tudo o que existe - seja natureza inerte
ou vida orgânica - é constituído por forças agindo e resistindo umas em relação às outras.

... Querendo-vir-a-ser-mais-forte, a força esbarra em outras que ela resistem; é inevitável a luta - por mais potência. A cada
momento, as forças relacionam-se de modo diferente, dispõem-se de outra maneira; a todo instante, a vontade de potência,
vencendo resistência, se auto-supera e, nessa superação de si, faz surgir novas formas.

"A vontade de potência só pode manifestar-se em face de resistências", esclarece Nietzsche, "procura, pois, o que lhe resiste:
tendência original do protoplasma, quando estende seus pseudópodes e tateia à sua volta".

É por encontrar resistências que a vontade de potência se exerce; é por exercer-se que torna a luta inevitável. Efetivando-se,
faz com que a célula esbarre em outras que a ela resistem; o obstáculo, porém, constitui um estímulo. A luta desencadeia-se
de tal forma que não há pausa ou fim possíveis. Com o combate, uma célula passa a obedecer a outra mais forte, um tecido
submete-se a outro que predomina, uma parte do organismo torna-se função de outra que vence - durante algum tempo.

A luta propicia que se estabeleçam hierarquias.

Nietzsche concebe "o próprio indivíduo como combate das partes (por alimentação, espaço etc.): sua evolução ligada um
vencer, um predominar de certas partes, a um definhar, um 'tornar-se órgão' de outras partes'.

O corpo humano ou, para sermos precisos, o que se considera enquanto tal, é constituído por numerosos seres vivos
microscópicos que lutam entre si, uns vencendo e outros definhando - e assim se mantém temporariamente. ´

É por facilidade que se fala num corpo, é por comodidade que se vê o corpo como unidade. É preciso, porém, encarar 'o
homem como multiplicidade: a fisiologia nada mais faz que indicar um maravilhoso comércio entre essa multiplicidade e o
arranjo das partes sob e em um todo. Mas seria falso, disso, inferir necessariamente um Estado com um monarca absoluto (a
unidade do sujeito). .... No limite, a todo instante qualquer elemento pode vir a predominar ou a perecer..... Graças a essa
organização hierárquica, diríamos graças a este "sistema de vassalagem", os vários elementos tornam-se coesos e formam um
todo. Isso não significa, porém, que enfim se instaure a paz - nem mesmo uma paz temporária. As hierarquias nunca são
definitivas; além disso, mandar e obedecer é prosseguir a luta.

Dominar é suportar o contrapeso da força mais fraca, é portanto uma espécie de continuação da luta. Obedecer é
também uma luta: desde que reste força capaz de resistir". É com processos de dominação que a vida se confunde, é
com vontade de potência que ela se identifica.
Ora, a vontade de potência está presente nos numerosos seres vivos microscópicos que formam o corpo, na medida em que
cada um deles quer prevalecer na relação com os demais. Encontra-se, pois, em todo ser vivo, espalhada no organismo,
atuando nos diminutos elementos que o constituem. Assim, deixa de ter sentido, em termos fisiológicos, a idéia de um
aparelho neurocerebral responsável pelo querer. ... Não só o querer mas também o sentir e o pensar estão disseminados pelo
organismo; a relação entre eles é de tal ordem que, no querer, já se acham embutidos o sentir e o pensar, de modo que
pensamento, sentimento e vontade aparecem como indissociáveis.

Vontade
(Do livro: Nietzsche – das forças cósmicas aos valores humanos, Scarlett Marton, Ed. Brasiliense, 1990, págs. 33-34)

Se, do ponto de vista fisiológico, deixa de ter sentido a idéia de um aparelho neurocerebral responsável pelo querer, tampouco
faz sentido, em termos filosóficos, considerar a vontade uma faculdade do homem, ao lado de outras como a imaginação, o
entendimento ou a razão. Ao ser humano não é facultado exercer ou não a vontade; ela não apresenta caráter intencional
algum. Só é pertinente falar em “liberdade da vontade”, quando se chega a encará-la enquanto afeto de mando. “Querer é
mandar, mas mandar é um afeto particular (esse afeto é uma repentina explosão de força) – tenso, claro, uma coisa excluindo
as outras em vista, convicção íntima da superioridade, certeza de ser obedecido – a ‘liberdade da vontade’ é o “senti mento de
superioridade” de quem manda’ em relação a quem obedece: ‘eu sou livre, é preciso que ele obedeça’” (XI, 25 (436)). A
vontade é livre, não porque pode escolher, mas porque implica um sentimento de superioridade.

Este é o ponto de partida da crítica que o filósofo faz a duas concepções distintas da vontade: a que chama de psicológica e a
que se pode chamar de metafísica. No seu entender, a “teoria psicológica” compreende o ato como conseqüência necessária
da vontade, pois basta querer para agir. Com isso, é levada a postular um sujeito por trás da ação: a ele caberia exercer ou não
a vontade e, por conseguinte, realizar ou não o ato. Mas, “em todo querer”, sustenta Nietzsche, “trata-se simplesmente do
mandar e do obedecer, por parte (...) de um edifício coletivo de múltiplas ‘almas’” (BM §19).

Ao contrário do que supõe a “teoria psicológica”, o sujeito não é o executor da ação e sim o seu “efeito”. A vontade, atuando
em todo o organismo, ganha adeptos e esbarra em opositores, depara com solicitações que lhe são conformes e outras
antagônicas, conjuga-se com os elementos de disposição concordante e vence os que lhe opõem resistências, predomina,
enfim, graças ao concerto de uma pluralidade de elementos – ou, se se preferir, de “almas”. “L’effet c’est moi: ocorre aqui o
que ocorre em toda coletividade bem organizada e feliz, ou seja, a classe dirigente identifica-se com os sucessos da
coletividade” (BM § 19).
Pensar e agir como decorrente do querer e postular um sujeito por trás da ação só é possível quando se despreza o processo
que leva uma vontade a tornar-se vencedora, fazer-se predominante. Do sucesso da vontade, da vontade bem-sucedida, então
se infere uma causa: o sujeito a quem seria facultado exercê-la.

Contra tais idéias, reitera o filósofo no Anticristo: "a antiga palavra 'vontade' serve apenas para definir uma resultante, uma
espécie de reação individual, que se segue necessariamente a uma multidão de estímulos em parte contraditórios, em parte
concordantes - a vontade não mais 'se efetiva', não mais 'põe em movimento` (AC § 14). A chamada "teoria psicológica"
negligencia o fato de a vonta de agir no homem e no ser vivo em geral ou, mais precisamente, nos numerosos seres vivos
microscópicos que constituem o organismo.

Ora, Nietzsche toma nosso corpo como um edifício de múltiplas almas; referindo-se a almas mortais, posiciona-se contra o
indivíduo; desqualifica a hipótese de um sujeito único e aponta seu caráter transitório; por fim, afirma peremptório: "o
homem enquanto multiplicidade de 'vontades de potência': cada uma com uma multipli cidade de meios de expressão e de
formas".

Nessa perspectiva, nada mais errôneo do que supor a existência de um sujeito responsável pelo querer. “Minha tese", conclui,
"é que a vontade, tal como a psicologia até agora a compreendeu, é urna generalização injustificada, que essa vontade
absolutamente não existe, que, em vez de apreender a transformação de uma vontade determinada em várias formas,
riscou-se seu caráter e eliminou-se seu conteúdo e direção" (XIII, 14 (121)). Procede por redução quem descuida de que a
vontade tem diversas direções e, por generalização, quem desconsidera que ela atua nos elementos mais ínfimos do
organismo. No limite, não se deve falar em vontade, mas em vontades.

O corpo
(Do livro: Nietzsche – das forças cósmicas aos valores humanos, Scarlett Marton, Ed. Brasiliense,
1990, págs. 31-32)

O corpo humano ou, para sermos precisos, o que se considera enquanto tal, é constituído por numerosos seres vivos
microscópicos que lutam entre si, uns vencendo e outros definhando - e assim se mantém temporariamente. O caráter
pluralista da filosofia nietzschiana já se acha presente aí, no nível das preocupações - digamos, - fisiológicas. É por
facilidade que se fala num corpo, é por comodidade que se vê o corpo corno unidade. É preciso, porém, encarar

“o homem como multiplicidade: a fisiologia nada mais faz que indicar um maravilhoso comércio entre essa
multiplicidade e o arranjo das partes sob e em um todo. Mas seria falso, disso, inferir necessariamente um Estado
com um monarca absoluto (a unidade do sujeito)”.

Por ora, fiquemos com a questão da unidade do corpo, ou melhor, da sua multiplicidade. Consistindo numa pluralidade de
adversários, tanto no que diz respeito às células quanto aos tecidos ou órgãos, ele é animado por combate permanente. Até o
número dos seres vivos microscópicos que o constituem muda sem cessar, dado o desaparecimento e a produção de novas
células. No limite, a todo instante qualquer elemento pode vir a predominar ou a perecer. Compreende-se então que "a vida
vive sempre às expensas de outra vida" (XII, 2 (205)), justamente por ser a luta o seu traço fundamental. Vencedores e
vencidos surgem necessariamente a cada momento, de sorte que "nossa vida, como toda vida, é ao mesmo tempo uma morte
perpétua” (XI, 37 (4)). Desse ponto de vista, a lua garante a permanência da mudança: nada é senão vir-a-ser; ela faz também
com que se estabeleçam hierarquias – e é isso o que conta por ora. Arranjam -se os diversos elementos de forma a que suas
atividades se integrem; relações de interdependência determinam-se: uns se submetem a outros, que por sua vez se acham
subordinados a outros ainda. Graças a essa organização hierárquica, diríamos graças a esse “sistema de vassalagem”, os
vários elementos tornam-se coesos e formam um todo. Isso não significa, porém, que enfim se instaure a paz – nem mesmo
uma paz temporária. As hierarquias nunca são definitivas; além disso, mandar e obedecer é prosseguir a luta. “dominar é
suportar o contrapeso da força mais fraca, é portanto uma espécie de continuação da luta. Obedecer é também uma luta: desde
que reste força capaz de resistir” É com processos de dominação que a vida se confunde, é com vontade d epotência que ela
se identifica.

Ora, vontade de potência está presente nos numerosos seres vivos microscópicos que formam o corpo, na medida em que
cada um deles quer prevalecer na relação com os demais. Encontra-se, pois, em todo ser vivo, espalhada no organismo,
atuando nos diminutos elementos que o constituem. Assim deixa de ter sentido, em termos fisiológicos, a idéia de um
aparelho neurocerebral responsável pelo querer. "O aparelho neurocerebral não foi construído com essa 'divina' sutileza na
intenção única de produzir o pensamento, o sentimento, a vontade", assegura o filósofo, 'parece -me, bem ao contrário, que
justamente não há necessidade alguma de um 'aparelho', para produzir o pensar, o sentir e o querer, e que esses fenômenos, e
apenas eles, constituem 'a própria coisa` (XI, 37 (4)). Nessa direção, afirma ainda: "pressupõe -se aqui que todo o organismo
pensa, todas as formas orgânicas tomam parte no pensar, no sentir, no querer – por conseguinte, o cérebro é apenas um
enorme aparelho de centralização”. Não só o querer mas também o sentir e o pensar estão disseminados pelo organismo; a
relação entre eles é de tal ordem que, no querer, já se acham embutidos o sentir e o pensar, de modo que pensamento
sentimento e vontade aparecem como indissociáveis.

10. Nietzsche e a mulher - Oswaldo Giacoia Junior


(Do livro "Nietzsche e para além de bem e mal". Jorge Zahar Editor, 2002, pág. 57)

Nietzsche diagnostica, na exigência feminista de igualdade de direitos entre os gêneros, um aprofundamento e uma extensão
da vontade de nivelamento que caracteriza a moderna "moral de rebanho". É certo que Nietzsche tem uma visão da mulher e
do feminino cujo ideal é ainda marcado pelas grandes figuras femininas da Antigüidade. E muitas de suas provocações têm
uma ressonância acentuadamente machista e retrógrada.
A luta feminista pela emancipação da mulher, de acordo com o juízo de Nietzsche, se faz a partir da crença esclarecida na
mulher em si, das tentativas científicas de fixar objetivamente o que seria a natureza ou essência do feminino e de sua
verdadeira e justa posição em face do masculino.
Esse crença contém, entretanto, um pressuposto idealista, a saber, a convicção de que existe um em si da mulher, uma idéia
do feminino. Essa abstração, que subtrai do feminino o seu elemento vital, insondável, não fixável - é isso o que Nietzsche
critica como grosseira ignorância de um necessário antagonismo, de uma eterna tensão entre os sexos - tensão de que não está
ausenta uma certa ponta de hostilidade, um típico sinal dos tempos de uniformização e rebaixamento do "tipo homem".
O que Nietzsche não pode perdoar no feminismo de seu tempo é o irrefreável desejo de ser como o outro, de renunciar à
própria especificidade. Para ele, atributos como o disfarce, a simulação, a astúcia, a sedução, o velamento, o jogo sutil entre
profundidade e máscara são as características mais fascinantes do feminino - justamente aquilo que se perde com a
masculinização da mulher em si.

11. Nietzsche e a Política Brasileira -Sandro Kobol Fornazari*(Fonte:


http://www.terravista.pt/enseada/3306/sandronietzsche3.htm)
É muito comum que pessoas inteligentes e engajadas se refiram às elites brasileiras como as grandes responsáveis pelos
problemas do subdesenvolvimento e os níveis de miséria e desigualdade social. Normalmente esta conclusão faz-se inferir
das parcas qualidades morais dos ricaços: eles são mesquinhos, egoístas, sem responsabilidade social, insensíveis, etc. A
revista Caros Amigos, por exemplo, está cheia de argumentos como esse, que se repetem à exaustão.
Embora concordemos com o fato de que as elites são as principais responsáveis pela pobreza em que vivem dois terços dos
brasileiros, consideramos um absurdo fazer essa responsabilidade derivar de uma deficiência moral coletiva por parte da elite
brasileira. É uma ingenuidade pensar o poder a partir da moralidade, já dizia Maquiavel, e é realmente impossível não se
render à evidência de que a característica básica da vida é a disputa, e esta talvez seja a contribuição que Nietzsche pode
trazer para o pensamento político. Não se trata de uma disputa pela preservação, mas sim por algo mais, melhor, a luta de
cada ser vivo por expandir sua potência cada vez mais e melhor. Numa disputa, mesmo os que são dominados, ao resistirem à
dominação estão lutando, mesmo enquanto obedecem estão lutando até serem capazes de reunir forças suficientes para
inverter a situação e se tornarem então dominantes.
Nesse sentido, as elites brasileiras levam a exploração a um patamar tão alto porque são extremamente eficientes em suas
estratégias de dominação. São capazes, por exemplo, de inventar realidades de modo a que os dominados passem a acreditar
não no que vêem de fato, mas naquilo em que assistem nos telejornais. São muito eficazes também em manter o sistema
público de ensino a porcaria que é, emasculando quotidianamente alunos e professores através de sua estrutura burocrática e
dos baixos salários e péssimas condições de trabalho.
Assim, é forçoso reconhecer que aqueles que se opõem às estruturas de poder são, em comparação com as elites, muito pouco
eficientes. Quando um partido de oposição recorre às manchetes da Folha de São Paulo, por exemplo, o que está fazendo
senão o jogo das elites, legitimando um dos mais fortes elos da dominação que é a imprensa conservadora? No entanto, a luta
contra a exploração existe e vem ganhando força. As contradições estão cada vez mais presentes na vida das pessoas,
tornando cada vez mais difícil a tarefa dos ideólogos do neoliberalismo.
É preciso, portanto, reconhecer que a sociedade brasileira é caracterizada pela disputa pelo poder, pelo jogo de forças
ininterrupto entre os que participam das riquezas produzidas e os que estão excluídos dela. Não se trata de tentar educar os
ricos ou convencê-los a explorarem em menor proporção ou desqualificá-los como moralmente abjetos. Trata-se sim de
conquistar o direito de participar coletivamente e em igualdade dos frutos do trabalho humano. (*Sandro Kobol Fornazari é
Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo, membro da comissão editorial dos Cadernos Nietzsche e professor de
Filosofia na Universidade Estadual de Santa Catarina (skf@usp.br)

12. Amor ao próximo, altruísmo em nietzsche


(Do livro: Nietzsche – das forças cósmicas aos valores humanos, Scarlett Marton, Ed. Brasiliense, 1990, págs. 133-134)

Por outro lado, a fraternidade, enquanto dogma religioso, ideal político ou exigência moral, é uma idéia enganosa. Ao
contrário do que se apregoa, o "amor ao próximo" não seria um sentimento antagônico ao egoísmo e sim a sua expressão
mais acabada. "(As pessoas) acreditam ser desinteressadas quando amam", afirma Nietzsche,

"porque desejam o benefício de outrem, freqüentemente, contra o seu próprio benefício. Mas, para tanto, querem
possuir esse outro ser... Até Deus não constitui exceção. Ele está longe de pensar: 'que te interessa, se te amo?' - ao
contrário, torna-se terrível se não é amado" (CW § 2).

Vir em auxílio de outrem não corresponderia a um ato de desprendimento. Convencer-se da própria coragem, assegurar-se o
reconhecimento social, defender-se da sensação de fragilidade, exorcizar a vulnerabilidade humana evidenciada pela visão do
sofrimento alheio, vários seriam os móveis que impelem a agir em favor do semelhante.
Contudo, o móvel primeiro de todas as ações tidas por altruístas residiria numa incontível vontade de possuir, Quem socorre
o necessitado tem a impressão de poder dele dispor corno se fosse sua propriedade; acredita amar o próximo quando o que
sente é o prazer de uma nova apropriação. Lá onde se louva o desinteresse, a abnegação, o despojamento de si, é que irrompe,
de modo mais flagrante, o egoísmo. Mas egoísmo maior consistiria em fazer do "amor ao próximo" norma de conduta.
Considera-se a caridade, a compaixão, a piedade, o zelo e a solicitude virtudes que devem inspirar as ações humanas; julga-se
virtuosa a ação que propicia benefícios a outrem, pouco importando se é prejudicial a quem a realiza.
Ora, erigir o altruísmo em princípio moral nada teria de desinteressado; ao con trário, esconderia um objetivo utilitário . O
desinteresse só seria aconselhado por quem nele encontra vantagens; o altruísmo propalado apenas por quem dele se pode
servir. "A preponderância de urna maneira altruísta de avaliar", assevera o filósofo, “é conseqüência do instinto de
ser-fracassado. No fundo, o juízo de valor aqui diz: ‘não valho grande coisa': um juízo de valor meramente fisiológico,
melhor ainda, o sentimento de impotência, a falta de grandes sentimentos positivos de potência (nos músculos, nervos,
centros motores)" (XIII, 14 (29)). São os sofredores, os oprimidos, os covardes, os medrosos, os mesquinhos, os dependentes,
os infelizes, que esperam seja tudo feito em seu favor. São os que querem ser amados, socorridos, amparados, que
preconizam as virtudes que contribuem para aliviar o peso da existência. São os que se sentem contrariados pela própria
fraqueza, os que odeiam e esperam vingar-se dos mais fortes, que só visam ao próprio benefício. Seriam os ressentidos os
inventores dessa moral utilitária, que impõe o "amor ao próximo" como norma de conduta.

13. Consciência
(do livro: Nietzsche como psicólogo, Editora Unisinos, Oswaldo Giacóia Junior, 2001)

Suposto que essa observação é correta, posso passar à suposição de que consciência em geral só se desenvolveu sob a
pressão da necessidade de comunicação - que previamente só entre homem e homem (entre mandante e obediente em
particular) ela era necessária, era útil, e também que somente em proporção ao grau dessa utilidade ela se desenvolveu."
(Nietzsche, “Gaia Ciência”)

Portanto, retoma-se a hipótese (suposto que) anteriormente suscitada: o desenvolvimento da consciência está em função da
necessidade da comunicação, e esse desenvolvimento se determina na mesma proporção e grau em que a consciência é útil.
18
Consciência é propriamente apenas uma rede de ligação entre homem e homem - apenas como tal ela teve de se
desenvolver: o homem ermitão e animal de rapina não teria precisado dela". (ibidem)

Se, desde um ponto de vista genealógico, a origem da consciência está ligada à pressão da necessidade de comunicação, então
existe um vínculo essencial entre cons ciência e comunidade (sociedade) - isto é, não fora a necessidade da vida em comum, não
haveria consciência.

Que nossas ações, pensamentos, sentimentos e mesmo movimentos, nos cheguem à consciência -pelo menos uma parte
deles - é a conseqüência de um terrível, de um longo é preciso, reinando sobre o homem: ele precisava, como o animal
mais ameaçado, de auxilio, de proteção, ele precisava de seu semelhante, ele tinha de exprimir sua indigência, de saber
tornar-se inteligível - e, para tudo isso, ele necessitava, em primeiro lugar, de consciência, portanto, de saber ele mesmo
o que lhe falta, de saber como se sente, de saber o que pensa. Pois, para dizê-lo mais uma vez: o homem, como toda
criatura viva, pensa continuamente mas não sabe disso; o pensamento que se torna consciente é apenas a mínima parte
dele, e nós dizemos: a parte mais superficial, a parte pior: - pois somente esse pensamento consciente ocorre em
palavras, isto é, em signos de comunicação; com o que se revela a origem da própria consciência. (ibidem)

De acordo com a hipotética reconstituição da gênese da consciência, empreendida por Nietzsche, esta não somente não pode mais
reivindicar para si o estatuto privilegiado de uma faculdade essencial, fazendo parte da própria natureza do ser humano, no sentido
em que fora entendida pela filosofia tradicional. Também a consciência pode ter sua proveniência vinculada a um vir -a-ser, a um
processo de constituição, a uma espécie de pré-história. Sendo assim, ela não pode mais ser simplesmente identificada com a
essência ou com o núcleo perene da subjetividade. Essa (pre)história da consciência se apresenta, para Nietzsche, como um
processo formativo conduzido sob a imposição de um comando, de um "é preciso” Por que é preciso que se constitua e
desenvolva a faculdade da consciência?

É preciso porque é indispensável; para que o homem possa se comunicar, faz-se necessário, antes de tudo, que ele possa refletir,
inteirar-se daquilo que pretende comunicar . Nesse sentido, a consciência representa justamente a superfície onde seus estados
interiores se projetam ou refletem; de modo que a partir daí, sabe-se, ou pensa-se saber, aquilo que se quer, sente, teme, deseja,
pensa, isto é, aquilo que se pode comunicar desses estados. É preciso, portanto, que o homem tenha diante de si um espelho onde
possa se refletir; algo, um objeto a ser comunicado, um conteúdo objetivado dos seus estados vividos.

O que chega até a consciência constitui aquela parte dos nossos estados anímicos, de nossas representações mentais, que deve ou
precisa ser objeto de comunicação. Por isso mesmo, segundo Nietzsche, a parte mais superficial e pior: - pois somente esse
pensamento consciente ocorre em palavras, isto é, em signos de comunicação.

Aquilo de que nós temos consciência é, pois, o que nos ocorre (geschiet) em palavras. Gostaria de chamar a atenção para o fato de
que Nietzsche sublinha, para destacar, as palavras ocorre e signos de comunicação, introduzindo entre elas efetivamente também
com destaque, a expressão ou seja (dass heisst). Essa sinonímia tem função de desvendar (aufdecken) a procedência (Herkunft) da
consciência.

Esta se desvela como o originário ponto de confluência entre consciência, linguagem e sociabilidade, sob o vetor da comunicação,
a determinar o desenvolvimento ulterior, em regime de recíproca influência, da linguagem e da capacidade de tornar -se
consciente. De acordo com isso, as nossas vivências conscientes são somente aquelas que ocorrem, isto é, cuja configuração se dá
em palavras, ou seja, em expressões lingüísticas. Os estados anímicos de que somos conscientes são aquelas representações,
sentimentos, volições, pensamentos, movimentos, etc., que podem ser acolhidos no espaço da linguagem, isto é, no veículo da
comunicação. E, por outro lado, somente aquilo que pode ser dito – o comunicável, o que é suscetível de se tornar comum -,
aquilo que pode ser linguisticamente articulado, ascende à consciência.............

Ora comunicar significa também tornar comum, isto é, reduzir ao que se pode partilhar com o outro, àquilo em que um eu e um
outro podem se identificar, àquilo que suprime a diferença entre ambos. Como signo de comunicação das representações
conscientes, a linguagem opera como os conceitos, ou seja, ela produz o idêntico, o abstrato, as significações comuns, obtidas por
igualação do desigual, pela supressão da diferença individual. Nesse sentido, ela não pode expressar o que é singular e
autenticamente único, já que seu elemento próprio é o abstrato, aquilo que é abstraído de um e de outro, o elo que os liga, o corte
médio entre eles, aquilo que, por ser comum a ambos, não é mais, estritamente, nem um, nem outro........

A linguagem, a consciência e a sociedade têm uma origem comum. Sendo assim, há que se admitir que nem a consciência, nem a
linguagem, nem a sociedade são um dado, um fato natural, não sujeito à transformação, ao vir-a-ser, à história . Nesse domínio,
nada há, pois, que seja dado de uma vez por todas, mas o mesmo devir que está presente na linguagem, está presente também na
sociedade e na consciência.... Nossas pretensões discursivas e comunitárias serão aquelas que nos remetem ao socius, ao próximo,
e nos bloqueiam as vias de acesso ao próprio, ao si mesmo, tornando a consciência e a linguagem reféns do gregário, do
identitário, do inautêntico.

A crítica de Nietzsche ao primado da consciência se desenvolve a partir de uma recusa do “tipo homem”, ou do ideal de
humanidade surgido em uma sociedade civil burguesa, emergente da revolução industrial – mais precisamente de uma sociedade
19
de massa, em que vigora hegemonicamente o privilégio do coletivo, em detrimento do individual.....

A sobrevalorização da consciência não garante necessariamente a “objetividade plena” do conhecimento, o aceso à estrutura
ontológica da realidade, mas precisamente uma redução à perspectiva do comunicável, portanto, a uma espécie própria de
perspectivação: aquela das generalidades e superfícies.

14. Nietzsche: Iluminismo, Ideologia, Consciência, Verdade, Freud e Marx

(trecho de “Cinco aulas sobre Nietzsche” - Prof. Oswaldo Giacóia Júnior - IFCH/UNICAMP) - (Fonte: http://www.rubedo.psc.br)

A idéia cara ao Iluminismo, nos seus diferentes matizes, que exatamente a consciência é o lugar da verdade ou o lugar do
absoluto, da revelação do absoluto, e que, por conseguinte, todo e qualquer tipo de salvação (entre aspas), todo e qualquer tipo de
esclarecimento ou de ilustração, ou melhor, toda a felicidade do homem, depende desse processo de esclarecimento, de ilustração,
que se funda na consciência; e por conseguinte, a crença e a fé inerentes a todas as formas de Iluminismo, de que exatamente em
virtude dos progressos da consciência e da ilustração, vai ser possível construir uma espécie de reinado da felicidade sobre a terra,
ou seja, o estabelecimento das relações do homem com a natureza e do homem consigo mesmo, fundadas em critérios pura e
simplesmente racionais; tudo isso é que vai ser completamente denunciado como ilusão, precisamente a partir dessa crítica da
consciência.

"Nossas ações são, no fundo, todas elas, pessoais de uma maneira incomparável, únicas, ilimitadamente individuais, sem
dúvida nenhuma; mas, tão logo nós as traduzimos na consciência, elas não parecem mais sê-lo... "

Claro, porque cada uma das nossas ações só é absolutamente singular, na medida em que ela escapa a este plano gregário da
consciência. Se ela é traduzida para este plano gregário da consciência, ela já é posta sob perspectiva daquilo que é comum, por
conseguinte, ela já não é mais única, singular, pessoal.

"Isto é propriamente o fenomenalismo e perspectivismo, assim como eu o entendo: a natureza da consciência animal
acarreta que o mundo, de que podemos tomar consciência, é apenas um mundo de superfícies e de signos, um mundo
generalizado, vulgarizado - que tudo que se torna consciente justamente com isso se torna raso, ralo, relativamente
estúpido, geral, signo, marca de rebanho, que, com todo tornar-consciente, está associada uma grande e radical
corrupção, falsificação, superficialização e generalização."

Essa é uma das mais radicais formulações da crítica nietzschiana à crença iluminista de que toda e qualquer forma de progresso,
de acesso a verdade, passa necessariamente pela clarificação ou iluminação da consciência. Ou seja, é até bem possível, é até
muito provável, em termos nietzschianos, que os progressos da consciência são passos decisivos em direção a paz e a felicidade,
mas simplesmente a paz e a felicidade do rebanho. Então, certo tipo de paz e de felicidade, que Nietzsche denomina muito
provocativamente, de paz e felicidade à inglesa, ou seja, felicidade entendida como bem estar, conforto, ausência de riscos, de
perigos, de extremos; a felicidade simplesmente reduzida à perspectiva do bem estar. Então, não somente, não se deve esperar da
ilusão de onipotência da consciência alguma espécie de acesso efetivo a verdade, mas sim corrupção, falsificação, generalização.

Mas, aqui, eu queria voltar àquela questão do Dornelis (observação: um dos alunos que dialogam com o professor Giacóia):
vejam é preciso prestar um pouco de atenção a este movimento dialético que está presente no pensamento do Nietzsche. Eu não
tenho escrúpulo em usar a palavra dialético para me referir ao Nietzsche, porque há uma longa discussão sobre se o verdadeiro
adversário do Nietzsche não é todo e qualquer pensamento dialético. Eu estou entendendo aqui, dialético, no sentido antigo da
palavra dialético. Veja, isso que está sendo feito aqui é uma crítica da consciência, uma denúncia do caráter gregário da
consciência. Mas de onde se faz essa crítica? Evidentemente a partir da própria consciência filosófica.
É isso que eu tentava dizer a você: como é, de certa maneira, antitético o próprio movimento; porque, na verdade, aqui se trata de
uma autocrítica da consciência filosófica. É uma espécie de auto-reflexão da consciência acerca da sua própria natureza . Ou seja,
inequivocamente uma crítica radical da consciência e da linguagem só pode ser feita a partir do ponto extremo a que chegou o
desenvolvimento da consciência e da linguagem. Vale dizer, é somente a partir do momento do seu extremo amadurecimento, da
sua extrema sofisticação, é que a consciência é capaz de se tomar-a-si-mesma como objeto.
É precisamente ao longo ou ao termo de um processo histórico de profundo refinamento e sofisticação que a consciência se torna
auto-consciente. Isso não quer dizer, como veremos a partir do exame dos outros textos, que é essa consciência que ela toma das
suas próprias limitações, uma espécie de um sucedâneo nietzschiano da onipotência da consciência. Ou seja, que a consciência se
torna tão poderosa, que ela toma consciência das suas próprias limitações. Não. Ela toma consciência das suas limitações, mas tão
radicalmente, que ela sabe que a própria consciência que ela toma das suas limitações, também não é consciência de todas as suas
limitações, nem pode ser. Ou seja...
Comentário: É a experiência do sem-fundo.
Professor Giacóia: Isso. Ou seja, a consciência está sempre dançando sobre a cratera de um vulcão. Ou, como diz o jovem
Nietzsche: está sonhando no dorso de um tigre. Quer dizer, ela sempre é a superfície, é a fachada de uma espécie de abismo que
ela encobre, cuja profundidade não consegue atingir, jamais conseguirá. Isso a gente vai ver com bastante tempo.
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Pergunta: Escuta, essa crítica que você está falando, a autocrítica, não é a capacidade da consciência de perceber no particular, o
do rebanho, conseguir perceber o geral.
Professor Giacóia É isso mesmo. Veja, a consciência pode perceber naquilo que é perspectiva do rebanho, exatamente a sua
natureza de rebanho. Então, ela pode ter uma espécie de perspectiva acima da simples perspectiva do rebanho . Vou tentar dar um
exemplo: se você toma as formas mais comuns de crítica da consciência, se você quiser, de crítica da consciência ideológica, você
encontra, mais ou menos, o seguinte movimento: há um certo nível de vivência, de experiência de saber, que é tido como falso
saber, tomado por um certo tipo de consciência como o saber verdadeiro.
Ora, precisamente, a crítica da ideologia tem como função denunciar o caráter fictício, falso, desta forma da consciência, deste
conteúdo do saber, como sendo simplesmente encobridor de um outro nível de realidade, que se encontra ou denegado ou
reprimido ou inibido ou, simplesmente desfigurado, por este falso saber que a consciência imediata julga ser seu saber verdadeiro.
Então, qual é a função da crítica da ideologia? Reconduzir a forma da consciência à sua figura verdadeira.
E denunciar todas as formas de distorção pelas quais a ideologia pode se impor à consciência como verdade. Por exemplo, se você
usa o exemplo freudiano, é clássico: o discurso do analisado como uma forma de falsa consciência, e você faz uma interpretação
desses discursos e dos seus sintomas, no sentido de repor estes elementos todos num certo plano de verdade, e tornar possível o
acesso da consciência a esses planos de verdade, conseguindo então uma verdadeira ou uma forma verdadeira da consciência a
respeito da ideologia dos sintomas ou da razão de ser desse discurso. Então, a interpretação consiste sempre nesse movimento de
passagem de uma forma distorcida da consciência para uma forma verdadeira da consciência.
Isso se você pegar o caso de Freud, mas você pode pegar o caso da crítica marxista da ideologia, que é a denúncia da consciência
como simplesmente inversão encobridora daquilo que, efetivamente, se passa ao nível das relações de produção.
Então, a consciência, o que é? A ideologia o que é? É uma representação invertida, falsa por conseguinte, encobridora daquilo
que, efetivamente se passa a nível das relações de produção e reprodução da vida material. Então, o que é que faz a crítica da
ideologia neste sentido?
Reconduz a consciência desta distorção de que ela é vítima, para uma visão, para uma compreensão, para uma inteligência
adequada daquilo que, efetivamente, acontece; ou seja, da realidade. O que é que está por debaixo desses dois protótipos de crítica
da ideologia e crítica da consciência? Exatamente a possibilidade de que por meio do saber, vale dizer, por meio dos progressos da
consciência, é possível, então, a obtenção de um saber que é um saber verdadeiro; ou seja, que é um saber onde, realmente, se dá
uma adequação entre a representação e o objeto da representação. Ou seja, o que é de comum entre essas duas formas de ideologia
é a convicção de que por meio de um refinamento, de um progresso da consciência, é possível obter algo assim, como um saber
verdadeiro.
Comentário: Mas, então, nós estamos enganchando - por mais intelectual mesmo que seja ou nem é tão intelectual -, é isso que
existe como possibilidade, desde Freud até Max que é um patamar alto. É isto que existe. Então, isso causa o desconforto, porque
entre os psicólogos, me perdoe Dornelis, eu nunca vi alguém propondo algo que não fosse o alargamento da consciência.
Professor: Concordo. O que Nietzsche está dizendo aqui, não é que a consciência não deve ser alargada, pelo contrário, ela deve
ser alargada. Só que ela nunca escapa de um fundo de ignorância que é constitutivo dela. Então, essa ilusão de que é possível à
consciência tornar-se inteiramente transparente para si mesma, isso é exatamente uma ilusão herdada do iluminismo, para
Nietzsche.
Pergunta: Quando ele afirma que a consciência não é o lugar da verdade, isso não quer dizer que ela seja falsa. Porque ele
desmonta esse tipo de idéia. Ela apenas não é onisciente, mas não é falsa.
Professor: Não. Ela não é onisciente, nem pode ser. Ou seja, há um certo grau de ignorância, que é absolutamente necessário para
que a consciência possa ser consciente, ou seja, para que ela possa executar exatamente as suas funções.
Pergunta: E se a gente pensa no inconsciente do Freud, não seria esta a parte da consciência que nunca se descobre. Ou como é
que é isso?
Professor: Não. Eu acho que aí as duas coisas não se recobrem mais. Eu acho que dá para você manter, tanto no Nietzsche quanto
no Freud, a idéia de um inconsciente; eu acho que, inclusive, no Nietzsche, esse inconsciente seja ainda, talvez, muito mais
corporal do que no Freud.
O que é diferente é este eu, que no Freud é uma das instâncias ou um dos seus componentes a nível psíquico. É precisamente a
consciência, consciência entendida aqui como Benvurstzein, como sede desse eu. Em Freud e em Nietzsche a tematização desta
consciência é diferente; enquanto você tem em Freud a persistência do tema iluminista de que esta consciência, ou a consciência
pensada como sede do eu, é sim o lugar da verdade. Para Nietzsche você tem a afirmação de que, a consciência pertence,
necessariamente, uma dimensão de ignorância, uma ignorância de que não é negativa, que não é simplesmente o avesso da
verdade, não é a não verdade; mas que é elemento constitutivo e faz parte do funcionamento da consciência.
Pergunta: Mas tem outro elemento aí também que diferencia. Porque toda essa tendência, quer o iluminismo, quer o Marx, o
Freud, tem ainda essa ilusão iluminista de fazer da consciência o lugar da verdade, tem um atributo de valoração da consciência
muito profundo. Tanto que neste texto, que nós estamos lendo, não tem o atributo de positividade. Quanto mais você refina a
consciência, mais você se torna comum no rebanho. Então, é uma diferença muito grande dessa valoração.
Professor: É. Insisto sempre que Nietzsche é propositadamente ambíguo: existem duas coisas: por um lado, existe essa
identificação entre consciência e gregarismo; e, por outro, e isso não aparece no texto, mas fica no fundo - um pouco chamando a
atenção para pergunta do Dornelis -, existe este movimento de repô-lo contra si, que a própria consciência faz, que é o patamar, o
nível, o registro, onde se insere a filosofia de Nietzsche. Exatamente este registro não fica na fachada, fica nos bastidores do
discurso. E você precisa, então, saltar para uma espécie de metanível, metaplano reflexivo para você poder perceber, como o
discurso nietzschiano é um discurso que só pode ser feito a partir exatamente dos progressos da consciência.
Comentário: E aí não tem mais expressão da língua, o que também dá uma dimensão diferente da consciência, quer dizer, você
pode expressar a tua singularidade, por meio de imagens da coisa poética.
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Professor: É precisamente isso.
Comentário: Então, a consciência é simplesmente uma ferramenta e, como tal, pode e deve ser melhorada, mas ela não é uma
finalidade em si mesma, está a serviço do si mesmo. Contudo, para o rebanho, ela é uma finalidade em si mesma e para quem não
é rebanho ela não tem sentido como finalidade por ser ferramenta.
Professor: Mas é precisamente isso. Acho que esse tema é precisamente aquilo de que trata este texto e os outros que a gente vai
examinar. O caráter da consciência e da linguagem enquanto signo de comunicação é instrumental só. E se você não ultrapassa o
nível da simples instrumentalidade da consciência e da linguagem como signo de comunicação, você perde precisamente aquilo
que é o singular, o individual, o pessoal. E mais que isso: ao pretender adquirir alguma espécie de verdadeira vivência neste plano,
você não está fazendo outra coisa senão conseguir com toda eficácia fugir de si mesmo. E, ao mesmo tempo, se fechar na ilusão
de que por meio da linguagem e da consciência você vai ter acesso a algo como sendo a verdade. E não se esqueçam que aqui
vocês já viram isso, já nos referimos a isso.

B - TEXTOS DE NIETZSCHE

1. Moral nobre e moral escrava - Aqui, Nietzsche traça, com seu estilo direto e irreverente, as características que demarcam os
dois tipos de vida, representados pelas duas morais: a nobre (ou dos senhores) e a escrava.

"Numa perambulação pelas muitas morais, as mais finas e as mais grosseiras, que até agora dominaram e continuam dominando
na terra, encontrei certos traços que regularmente retornam juntos e ligados entre si: até que finalmente se revelaram dois tipos
básicos, e uma diferença fundamental sobressaiu. Há uma moral dos senhores e uma moral de escravos; acrescento de imediato
que em todas as culturas superiores e mais misturadas aparecem também tentativas de mediação entre as duas morais, e, com
ainda maior freqüência, confusão das mesmas e incompreensão mútua, por vezes inclusive dura coexistência até mesmo num
homem, no interior de uma só alma.
As diferenciações morais de valor se originaram ou dentro de uma espécie dominante, que se tornou agradavelmente cônscia da
sua diferença em relação à dominada, ou entre os dominados, os escravos e dependentes de qualquer grau. No primeiro caso,
quando os dominantes determinam o conceito de "bom", são os estados de alma elevados e orgulhosos que são considerados
distintivos e determinantes da hierarquia. O homem nobre afasta de si os seres nos quais se exprime o contrário desses estados de
elevação e orgulho: ele os despreza. Note-se que, nessa primeira espécie de moral, a oposição "bom" e "ruim" significa tanto
quanto "nobre" e "desprezível"; a oposição "bom" e "mau" tem outra origem.
Despreza-se o covarde, o medroso, o mesquinho, o que pensa na estreita utilidade; assim como o desconfiado, com seu olhar
obstruído, o que rebaixa a si mesmo, a espécie canina de homem, que se deixa maltratar, o adulador que mendiga, e, sobretudo, o
mentiroso - é crença básica de todos os aristocratas que o povo comum é mentiroso. "Nós , verdadeiros" - assim se denominavam
os nobres da Grécia antiga.
É óbvio que as designações morais de valor, em toda parte, foram aplicadas primeiro a homens, e somente depois, de forma
derivada, a ações: por isso é um grande equívoco, quando historiadores da moral partem de questões como "por que foi louvada a
ação compassiva?". O homem de espécie nobre se sente como aquele que determina valores, ele não tem necessidade de ser
abonado, ele julga: "o que me é prejudicial é prejudicial em si", sabe-se como o único que empresta honra às coisas, que cria
valores. Tudo o que conhece de si, ele honra: uma semelhante moral é glorificação de si.
Em primeiro plano está a sensação de plenitude, de poder que quer elevada, a consciência de uma riqueza que gostaria de ceder e
presentear - também o homem nobre ajuda o infeliz, mas não ou quase não por compaixão, antes por um ímpeto gerado pela
abundância de poder.
O homem nobre honra em si o poderoso, e o que tem poder sobre si mesmo, que entende de falar e calar, que com prazer exerce
rigor e dureza consigo e venera tudo que seja rigoroso e duro.
"Um coração duro me colocou Wotan no peito", diz uma velha saga escandinava: uma justa expressão poética da alma de um
orgulhoso viking. Uma tal espécie de homem se orgulha justamente de não ser feito para a compaixão: daí o herói da saga
acrescentar, em tom de aviso, que "quem quando jovem não tem o coração duro, jamais o terá". Os nobres e bravos que assim
pensam estão longe da moral que vê o sinal distintivo do que é moral na compaixão, na ação altruísta ou no desintéressement
[desinteresse]; a fé em si mesmo, o orgulho de si mesmo, uma radical hostilidade e ironia face à "abnegação" pertencem tão
claramente à moral nobre quanto um leve desprezo e cuidado ante as simpatias e o "coração quente".
São os poderosos que entendem de venerar, esta é sua arte, o reino de sua invenção. A profunda reverência pela idade e pela
origem - todo o direito se baseia nessa dupla reverência -, a fé e o preconceito em favor dos ancestrais e contra os vindouros são
algo típico da moral dos poderosos; e quando, inversamente, os homens das "idéias modernas" crêem quase instintivamente no
progresso" e no "porvir", e cada vez mais carecem do respeito pela idade, já se acusa em tudo isso a origem não-nobre dessas
"idéias"
O que faz uma moral dos dominantes parecer mais estranha e penosa para o gosto atual, no entanto, é o rigor do seu princípio
básico de que apenas frente aos iguais existem deveres; de que frente aos seres de categoria inferior, a tudo estranho-alheio, pode-
se agir ao bel-prazer ou como quiser o coração", e em todo caso "além do bem e do mal": aqui pode entrar a compaixão, e coisas
do gênero. A capacidade e o dever da longa gratidão e da longa vingança - as duas somente com os iguais -, a finura na
retribuição, o refinamento no conceito de amizade, de uma certa necessidade de ter inimigos (como canais de escoamento, por
assim dizer, para os afetos de inveja, agressividade, petulância - no fundo, para poder ser bem amigo): todas essas são
características da moral nobre, que, como foi indicado, não é a moral das "idéias modernas", sendo hoje difícil percebê-la,
portanto, e também desenterrá-la e descobri-la.
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É diferente com o segundo tipo de moral, a moral dos escravos. Supondo que os violentados, oprimidos, prisioneiros, sofredores,
inseguros e cansados de si moralizem: o que terão em comum suas valorações morais? Provavelmente uma suspeita pessimista
face a toda a situação do homem achará expressão, talvez uma condenação do homem e da sua situação. O olhar do escravo não é
favorável às virtudes do poderoso: é cético e desconfiado, tem finura na desconfiança frente a tudo "bom" que é honrado por ele
gostaria de convencer-se de que nele a própria felicidade não é genuína.
Inversamente, as propriedades que servem para aliviar a existência dos que sofrem são postas em relevo e inundadas de luz: a
compaixão, a mão solícita e afável, o coração cálido, a paciência, a diligência, a humildade, a amabilidade recebem todas as
honras - pois são as propriedades mais úteis no caso, e praticamente todos os únicos meios de suportar a pressão da existência.
A moral dos escravos é essencialmente uma moral de utilidade. Aqui está o foco de origem da famosa oposição "bom" e "mau" -
no que é mau se sente poder e periculosidade, uma certa terribilidade, sutileza e força que não permite o desprezo. Logo segundo
a moral dos escravos o "mau" inspira medo; segundo a moral dos senhores é precisamente o "bom" que desperta e quer despertar
medo, enquanto o homem "ruim" é sentido como desprezível. A opressão chega ao auge quando, de modo conseqüente à moral
dos escravos, um leve ar de menosprezo envolve também o "bom" dessa moral - ele pode ser ligeiro e benévolo porque em todo
caso o bom tem de ser, no modo de pensar escravo, um homem inofensivo: é de boa índole, fácil de enganar, talvez um pouco
estúpido, ou seja, un bonhomme [um bom homem]. Onde quer que a moral dos escravos se torne preponderante, a linguagem
tende a aproximar as palavras "bom" e "estúpido". Uma última diferença básica: o anseio de liberdade, o instinto para a felicidade
e as sutilezas do sentimento de liberdade pertencem tão necessariamente à moral e moralidade escrava quanto a arte e entusiasmo
da veneração, da dedicação, sintoma regular do modo aristocrático de pensamento e valoração.
Com isso, pode-se compreender por que o amor-paixão - nossa especialidade européia - deve absolutamente ter uma procedência
nobre: é notório que ele foi invenção dos cavaleiros-poetas provençais, aqueles magníficos, inventivos homens do gai saber [gaia
ciência], aos quais a Europa tanto deve, se não deve ela mesma." (NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal, § 260. Trad.
Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p, 172-5)

2. A moral como contra-natureza - Todas as paixões têm uma época em que são meramente nefastas, durante a qual, com o peso
da estupidez, arrastam as suas vítimas para uma depressão - e uma época mais tardia muito posterior, na qual desposam o espírito,
na qual se "espiritualizam". Noutro tempo movia-se guerra à própria paixão, por causa da estupidez nela existente: as pessoas
conjuravam-se para aniquilá-la, - todos os velhos monstros da moral coincidem unanimemente em que il faut tuer les passions.
A fórmula mais célebre desta idéia encontra-se no Novo Testamento, naquele Sermão da Montanha, no qual, diga-se de passagem,
as coisas não são consideradas de modo algum desde as alturas. Nele se diz, por exemplo, aplicando-o na prática à sexualidade,
"se o teu olho te escandaliza, arranca-o": por sorte nenhum cristão atua de acordo com esse preceito. Aniquilar as paixões e
apetites meramente para prevenir a sua estupidez e as conseqüências desagradáveis desta é algo que hoje nos aparece
simplesmente como uma forma aguda de estupidez. Já não admiramos os dentistas que extraem os dentes para que não continuem
a doer... Com certa equidade concedamos, por outro lado, que o conceito "espiritualização da paixão" não podia ser concebido de
forma alguma no terreno de que brotou o cristianismo. A Igreja primitiva lutou, com efeito, como é sabido, contra os
"inteligentes" em favor dos "pobres de espírito": como esperar dela uma guerra inteligente contra a paixão? - A Igreja combate a
paixão com a extirpação, em todos os sentidos da palavra: a sua medicina, a sua "cura" é a castração. Não pergunta nunca: "como
espiritualizar, embelezar, divinizar um apetite?" - ela sempre carregou o acento da disciplina no extermínio (da sensualidade, do
orgulho, da vontade de poder, da ânsia de posse, do desejo de vingança). - Porém atacar as paixões na sua raiz sig nifica atacar a
vida na sua raiz: a praxis da Igreja é hostil à vida...

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Esse mesmo remédio, a castração, o extermínio, é escolhido instintivamente, na luta contra um desejo, pelos que são demasiado
débeis, pelos que estão demasiado degenerados para poderem impor-se moderação nesse desejo: por aquelas naturezas que, para
falar em metáfora (e sem metáfora -), têm necessidade de La Trappe , de alguma declaração definitiva de inimizade, de um
abismo entre elas e uma paixão. Os meios radicais afiguram-se indispensáveis tão-só aos. degenerados; a debilidade da vontade,
ou, dito com mais exatidão, a incapacidade de não reagir a um estímulo é simplesmente outra forma de degenerescência . A
inimizade radical, o ódio mortal contra a sensualidade. não deixa de ser um sintoma que induz a refletir: ele autoriza a fazer
conjecturas sobre a saúde mental de quem comete tais excessos. - Essa hostilidade, esse ódio chega ao seu cúmulo, além disso, só
quando tais naturezas não têm já firmeza bastante para a cura radical, para renunciar ao seu "demônio". Deite-se um olhar para a
história inteira dos sacerdotes e filósofos, não esquecendo a dos artistas: as coisas mais venenosas contra os sentidos não foram
ditas pelos impotentes, tão-pouco pelos ascetas, mas sim pelos ascetas impossíveis, por aqueles que teriam necessitado de ser
ascetas...

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A espiritualização da sensualidade chama-se amor: ela é um grande triunfo sobre o cristianismo. Outro triunfo é a nossa
espiritualização da inimizade. Consiste em compreender profundamente o valor que possui o ter inimigos: dito brevemente, em
proceder e extrair conclusões ao inverso de como se procedia e extraia conclusões noutro tempo. A Igreja quis sempre a aniqui -
lação dos seus inimigos: nós, nós os imoralistas e anti cristãos, vemos a nossa vantagem em que a Igreja subsista . Também no
âmbito político a inimizade se tornou agora mais espiritual, - muito mais inteligente, muito mais reflexiva, muito mais indulgente.
Quase todos os partidos se dão conta de que para a sua própria autoconservação lhes interessa que o partido oposto não perca
forças; o mesmo se deve dizer para a grande política. Especialmente uma criação nova, por exemplo o novo Reich, tem uma maior
necessidade de inimigos que de amigos: só na antítese se sente necessário, só na antítese chega a tornar-se necessário... Não nos
comportamos de outro modo com o nosso "inimigo interior": também aqui temos espiritualizado a inimizade, também aqui temos
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compreendido o seu valor. Só se é fecundo pelo preço de se ser rico em contradições; só se permanece jovem na condição de que
a alma não se relaxe, não deseje a paz... Nada se nos tornou mais estranho que aquela aspiração de outrora, a aspiração à "paz de
espírito", a aspiração cristã; nada nos causa menos inveja do que a moral ruminante e a sebosa felicidade da consciência tranqüila.
Renunciou-se à vida grande quando se renunciou à guerra... Em muitos casos, desde logo, a "paz de espírito" não é mais do que
um mal-entendido, - outra coisa, a que unicamente não se sabe atribuir um nome mais honrado. Sem divagações nem preconceitos
aqui temos uns quantos casos. "Paz de espírito" pode ser, por exemplo, a plácida projeção de uma animalidade rica no terreno
moral (ou religioso). Ou o começo da fadiga, a primeira sombra que traz o crepúsculo, qualquer espécie de crepúsculo. Ou um
sinal de que o ar está úmido, de que se aproximam ventos do Sul. Ou o agradecimento, sem se o saber, por uma digestão feliz
(chamado às vezes "filantropia"). Ou a calma do convalescente, para o qual todas as coisas têm um sabor e que está à espera... ou
o estado que se segue a uma intensa satisfação da nossa paixão dominante, o sentimento de bem-estar próprio de uma saciedade
rara. Ou a debilidade senil da nossa vontade, dos nossos apetites, dos nossos vícios. Ou a preguiça, persuadida pela vaidade a
ataviar-se com adornos morais. Ou o advento de uma certeza, mesmo de uma certeza terrível, após uma tensão e tortura
prolongadas devidas à incerteza. Ou a expressão da maturidade e a maestria na atividade, no criar, agir, querer, a. respiração
tranqüila, a alcançada "liberdade da vontade"... Crepúsculo dos ídolos: quem sabe?, talvez também unicamente uma espécie de
"paz de espírito"...
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Vou reduzir a fórmula um princípio. Todo o naturalismo em moral, quero dizer, toda a moral sã está regida por um instinto da
vida, - um mandamento qualquer da vida é cumprido com um certo cânone de "deves" e "não deves", um obstáculo e uma
inimizade qualquer no caminho da vida ficam com isso eliminados. A moral contranatural, ou seja, quase toda a, moral, até agora
ensinada, venerada e pregada, dirige-se, pelo contrário, precisamente contra os instintos da vida - é uma condenação, por vezes
encoberta, por vezes ruidosa e insolente, desses instintos . Ao dizer "Deus lê nos corações", a moral diz não aos apetites mais
baixos e mais altos da vida e considera Deus inimigo da vida... O santo para quem Deus tem a sua complacência é o castrado
ideal... A vida acaba onde começa o reino de Deus"... (Friedrich Nietzsche, "Crepúsculo dos ídolos, ou como se filosofa à
marteladas", Lisboa, Guimarães Editores, Lda, 1985)

3. O ressentimento - "O homem do ressentimento traveste sua impotência em bondade, a baixeza temerosa em humildade, a
submissão aos que odeia em obediência, a covardia em paciência, o não poder vingar-se em não querer vingar-se e até perdoar,
sua própria miséria em aprendizagem para a beatitude, o desejo de represália em triunfo da justiça divina sobre os ímpios. O reino
de Deus aparece como produto do ódio e da vingança dos fracos. Incapaz de enfrentar o que o cerca, o homem do ressentimento
inventa, para seu consolo, o outro mundo. Assim também procede o "filisteu da cultura’, que só pode afirmar-se através da
negação do que considera seu oposto: a própria cultura. Ou então, o homem da ciência, que a si mesmo opõe um outro: o
pesquisador, que pretende comportar-se de maneira impessoal, desinteressada e neutra diante do mundo, para chegar a abordá-lo
com objetividade. E ainda o filósofo que, na elaboração de suas idéias, acredita poder desvinculá-las da própria vida, não se
reconhecendo como advogado de seus preconceitos." ("Para além de Bem e Mal", parágrafo 2)

4. Os valores "Bom" e "Mau" - torna-se possível... traçar um dupla história dos valores "Bem" e "mal". O fraco concebe
primeiro a idéia de "mau", com que designa os nobres, os corajosos, os mais fortes do que ele - e então a partir da idéia de "mau",
chega, como antítese, à concepção de "bom", que se atribui a si mesmo. O forte, por outro lado, concebe espontaneamente o
princípio "bom" a partir de si mesmo e só depois cria a idéia de "ruim". Do ponto de vista do forte, "ruim" é apenas uma criação
secundária, enquanto para o fraco "mau" é a criação primeira, o ato fundador da sua moral, a moral dos ressentidos. O forte só
procede por afirmação e, mais, por auto-afirmação; o fraco só pode firmar-se negando o que considera ser o seu oposto.
"O levante dos escravos na moral começa quando o ressentimento mesmo se torna criador e pare valores: o ressentimento de seres
tais, aos quais está vedada a reação propriamente dita, o ato, e que somente por uma vingança imaginária ficam quites. Enquanto a
moral nobre brota de um triunfante dizer-sim a si próprio, a moral de escravos diz não, logo de início, a um "fora", a um "outro", a
um "não-mesmo". E esse não é seu ato criador. Essa inversão do olhar que põe valores, essa direção necessária para fora, em vez
de voltar-se para si próprio - pertence, justamente, ao ressentimento: a moral de escravos precisa sempre, para surgir, de um
mundo oposto e exterior, precisa, dito fisiologicamente, de estímulos externos para em geral agir - sua ação é, desde o
fundamento, por reação."("Para a Genealogia da Moral", Primeira dissertação, parágrafo 10)

5. Liberdade de vontade - Onde um homem chega à convicção fundamental de que é preciso que mandem nele, ele se torna
"crente"; inversamente seria pensável um prazer e uma força de autodeterminação, uma liberdade de vontade, em que um espírito
se despede de toda crença, de todo desejo de certeza, exercitado, como ele está, em poder manter-se sobre leves cordas e
possibilidades, e mesmo diante de abismos dançar ainda. Um tal espírito seria o espírito livre "par excellence" (" A Gaia Ciência",
quinto livro, parágrafo 347)

6. Humildade - O verme pisado encolhe-se. Atitude inteligente. Com isso reduz a probabilidade de ser pisado de novo. Na
linguagem da moral: humildade." (Friedrich Nietzsche, "Crepúsculo dos ídolos, ou como se filosofa à marteladas", Lisboa,
Guimarães Editores, Lda, 1985, pág. 16)

7. Moralidade e sucesso - Não são apenas os espectadores de um ato que com freqüência medem o que nele é moral ou imoral
conforme o seu êxito: não, o seu próprio autor faz isso. Pois os motivos e intenções raramente são bastante claros e simples, e às
vezes a própria memória parece turvada pelo sucesso do ato, de modo que a pessoa atribui ao próprio ato motivos falsos ou trata
motivos secundários como essenciais. E freqüente o sucesso dar a um ato o brilho honesto da boa consciência, e o fracasso lançar
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a sombra do remorso sobre uma ação digna de respeito. Daí resulta a conhecida prática do político que pensa: "Dêem-me apenas o
sucesso: com ele terei a meu lado todas as almas honestas - e me tornarei honesto diante de mim mesmo". - De modo semelhante,
o sucesso pode tomar o lugar do melhor argumento. Muitos homens cultos acham, ainda hoje, que a vitória do cristianismo sobre a
filosofia grega seria uma prova da maior verdade do primeiro - embora nesse caso o mais grosseiro e violento tenha triunfado
sobre o mais espiritual e delicado. Para ver onde se acha a verdade maior, basta notar que as ciências que nasciam retomaram
ponto a ponto a filosofia de Epicuro, mas rejeitaram ponto a ponto o cristianismo. (Friedrich Nietzsche , "Humano, demasiado
humano", Cia de Letras, p. 62, aforismo 68, ano 2001, São Paulo)

8. Execuções - O que faz com que toda execução nos ofenda mais que um assassinato? É a frieza dos juízes, a penosa preparação,
a percepção de que um homem é ali utilizado como um meio para amedrontar outros. Pois a culpa não é punida, mesmo que
houvesse uma; esta se acha nos educadores, nos pais, no ambiente, em nós, não no assassino - refiro-me às circunstâncias
determinantes. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 63, aforismo 71, ano 2001, São Paulo)

9. Fazendo esquecer o mestre - O pianista que executa a obra de um mestre terá tocado da melhor maneira possível se fizer
esquecer o mestre e se der a impressão de que conta uma história sua ou de que justamente então vivencia algo. (Friedrich
Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 130, aforismo 172, ano 2001, São Paulo)

10. A esperança - Pandora trouxe o vaso que continha os males e o abriu. Era o presente dos deuses aos homens, exteriormente
um presente belo e sedutor, denominado "vaso da felicidade". E todos os males, seres vivos alados, escaparam voando: desde
então vagueiam e prejudicam os homens dia e noite. Um único mal ainda não saíra do recipiente: então, seguindo a von tade de
Zeus, Pandora repôs a tampa, e ele permaneceu dentro. O homem tem agora para sempre o vaso da felicidade, e pensa maravilhas
do tesouro que nele possui; este se acha à sua disposição: ele o abre quando quer; pois não sabe que Pandora lhe trouxe o
recipiente dos males, e para ele o mal que restou é o maior dos bens - é a esperança. - Zeus quis que os homens, por mais
torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu a
esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado
humano", Cia de Letras, p. 63, aforismo 71, ano 2001, São Paulo)

11. Valor da diminuição - Não poucos, talvez a maioria homens, têm necessidade de rebaixar e diminuir na sua imaginação todos
os homens que conhecem, para manter sua autoestima e uma certa competência no agir. E, como as naturezas mesquinhas são em
número superior, é muito importante elas terem essa competência. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de
Letras, p. 61, aforismo 63, ano 2001, São Paulo)

12. Deus - É com seu próprio deus que as pessoas são mais desonestas: não lhe é permitido pecar. (Friedrich Nietzsche, "Além do
Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 65a, pág. 67)

13. Desinteresse no amor? - As pessoas acreditam ser desinteressadas quando amam porque desejam o benefício de outrem,
freqüentemente, conta o seu próprio benefício. Mas, para tanto, querem possuir esse outro ser... Até Deus não constitui exceção.
Ele está longe de pensar: 'que te interesssa, se te amo?' - ao contrário, torna-se terrível se não é amado" (O Caso Wagner §2)

14. O enfurecido - Diante de um homem que se enfurece conosco devemos tomar cuidado, como diante de alguém que já tenha
atentado contra a nossa vida; pois o fato de ainda vivermos se deve à ausência do poder de matar; se os olhares bastas sem, há
muito estaríamos liquidados. É traço de uma cultura grosseira fazer calar alguém tornando visível a brutalidade, sus citando o
medo. - Do mesmo modo, o olhar frio que os nobres têm para seus criados é resíduo daquela separação dos homens em castas, um
traço de antigüidade grosseira; as mulheres, essas conservadoras do antigo, também conservaram mais fielmente essa survival
[sobrevivência]. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 61, aforismo 64, ano 2001, São Paulo)

15. Medida para todos os dias - Raramente se erra, quando se liga as ações extremas à vaidade, as medíocres ao costume e as
mesquinhas ao medo. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 65, aforismo 74, ano 2001, São
Paulo)

16. Ideal - Quem alcança seu ideal, vai além dele. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001,
Aforismo 73, pág. 68)

17. Reputação - Quem já não se sacrificou alguma vez - pela própria reputação? (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal",
Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 92, pág. 71)

18. Costumes e moral - Ser moral, morigerado, ético" significa prestar obediência a uma lei ou tradição há muito estabelecida. Se
alguém se sujeita a ela com dificuldade ou com prazer é indiferente, bastando que o faça, "Bom" é chamado aquele que, após
longa hereditariedade e quase por natureza, pratica facilmente e de bom grado o que é moral, conforme seja (por exemplo, exerce
a vingança quando exercê-la faz parte do bom costume, como entre os antigos gregos). Ele é denominado bom porque é bom
"para algo"; mas como, na mudança dos costumes, a benevolência, a compaixão e similares sempre foram sentidos como "bons
para algo", como úteis, agora sobretudo o benevolente, o prestativo, é chamado de "bom". Mau é ser "não moral" (imoral),
praticar o mau costume, ofender a tradição, seja ela racional ou estúpida; especialmente prejudicar o próximo foi visto nas leis
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morais das diferentes épocas como nocivo, de modo que hoje a palavra "mau" nos faz pensar sobretudo no dano voluntário ao
próximo. "Egoísta" e "altruísta" não é a oposição fundamental que levou os homens à diferenciação entre moral e imoral, bom e
mau, mas sim estar ligado a uma tradição, uma lei, ou desligar-se dela. Nisso não importa saber como surgiu a tradição, de todo
modo ela o fez sem consideração pelo bem e o mal, ou por algum imperativo categórico imanente, mas antes de tudo a fim de
conservar uma comunidade, um povo; cada hábito supersticioso, surgido a partir de um acaso erroneamente interpretado,
determina uma tradição que é moral seguir; afastar-se dela é perigoso, ainda mais nocivo para a comunidade que para o indivíduo
(pois a divindade pune a comunidade pelo sacrilégio e por toda violação de suas prerrogativas, e apenas ao fazê -lo pune também o
indivíduo). Ora, toda tradição se torna mais respeitável à medida que fica mais distante a sua origem, quanto mais esquecida for
esta; o respeito que lhe é tributado aumenta a cada geração, a tradição se torna enfim sagrada, despertando temor e veneração;
assim, de todo modo a moral da piedade é muito mais antiga do que a que exige ações altruístas. (Friedrich Nietzsche, "Humano,
demasiado humano", Cia de Letras, p. 73, aforismo 96, ano 2001, São Paulo)

19. O prazer no costume - Um importante gênero de prazer, e com isso importante fonte de moralidade, tem origem no hábito.
Fazemos o habitual mais facilmente, melhor, e por isso de mais bom grado; sentimos prazer nisso, e sabemos por experiência que
o habitual foi comprovado, e portanto é útil; um costume com o qual podemos viver demonstrou ser salutar, proveitoso, ao
contrário de todas as novas tentativas não comprovadas. O costume é, assim, a união do útil ao agradável, e além disso não pede
reflexão. Sempre que pode exercer coação, o homem a exerce para impor e introduzir seus costumes, pois para ele são
comprovada sabedoria de vida. Do mesmo modo, uma comunidade de indivíduos força todos eles a adotar o mesmo costume. Eis
a conclusão errada: porque nos sentimos bem com um costume, ou ao menos levamos nossa vida com ele, esse costume é
necessário, pois vale como a única possibilidade na qual nos sentimos bem; o bem estar da vida parece vir apenas dele. Essa
concepção do habitual como condição da existência é aplicada aos mínimos detalhes do costume: como a percepção da
causalidade real é muito escassa entre os povos e as culturas de nível pouco elevado, um medo supersticioso cuida para que todos
sigam o mesmo caminho; e até quando o costume é difícil, duro, pesado, ele é conservado por sua utilidade aparentemente
superior. Não sabem que o mesmo grau de bem-estar pode existir com outros costumes, e que mesmo graus superiores podem ser
alcançados. Mas certamente notam que todos os costumes, inclusive os mais duros, tornam-se mais agradáveis e mais brandos
com o tempo, e que também o mais severo modo de vida pode ser tornar hábito e com isso um prazer. (Friedrich Nietzsche,
"Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 73-74, aforismo 97, ano 2001, São Paulo)

20. Dois tipos de igualdade - A ânsia de igualdade pode se expressar tanto pelo desejo de rebaixar os outros até seu próprio nível
(diminuindo, segregando, derrubando) como pelo desejo de subir juntamente com os outros (reconhecendo, ajudando, alegrando-
se com seu êxito) (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 198, aforismo 300, ano 2001, São Paulo)

21. A preferência por certas virtudes - Não atribuímos valor especial à posse de uma determinada virtude, até que percebemos a
sua ausência total em nosso adversário. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 199, aforismo 302,
ano 2001, São Paulo)

22. Respeitosamente - Não querer magoar, não querer prejudicar ninguém pode ser sinal tanto de um caráter justo como de um
caráter medroso. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 201, aforismo 314, ano 2001, São Paulo)

23. Criança - Maturidade do homem: significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar. (Friedrich Nietzsche,
"Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 94, pág. 71)

24. Mundo às avessas - Criticamos mais duramente um pensamento quando ele oferece uma proposição que nos é desagradável;
no entanto, seria mais razoável fazê-lo quando sua proposição nos é agradável. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado
humano", Cia de Letras, p. 265, aforismo 484, ano 2001, São Paulo)

25. Amor ao próximo - Não o seu amor ao próximo, mas a impotência do seu amor ao próximo é que impede os cristãos de hoje
de nos queimar. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 104, pág.73)

26. Amor - Com freqüência a sensualidade precipita o crescimento do amor, de modo que a raiz permanece fraca e é facilmente
arrancada. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 120, pág. 75)

27. O laço da gratidão - Existem almas servis, que levam a tal ponto o reconhecimento por benefícios, que estrangulam a si
mesmas com o laço da gratidão. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 277, aforismo 550, ano
2001, São Paulo)

28. Confissão - Esquecemos nossa culpa quando a confessamos a outro alguém, mas geralmente o outro não a esquece. (Friedrich
Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 280, aforismo 568, ano 2001, São Paulo)

29. Monstruosidades - Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar
longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das
Letras, ano 2001, Aforismo 146, pág. 79)
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30. Atavismo - O que uma época percebe como mau é geralmente uma ressonância anacrônica daquilo que um dia foi
considerado bom - o atavismo de um antigo ideal. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001,
Aforismo 149, pág. 79)

31. Sinais de saúde - O reparo, a travessura, a sorridente suspeita, a zombaria são sinais de saúde: todo absoluto pertence à
patologia. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 154, pág. 80)

32. Loucura - A loucura é algo raro em indivíduos - mas em grupos, partidos, povos e épocas é a norma. (Friedrich Nietzsche,
"Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 156, pág. 80)

33. Falar de si - Falar muito de si pode ser um meio de se ocultar. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras,
ano 2001, Aforismo 169, pág. 82)

34. Elogio - No elogio há mais indiscrição que na censura. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano
2001, Aforismo 170, pág. 82)

35. Desejo - Por fim amamos o próprio desejo, e não o desejado. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras,
ano 2001, Aforismo 175, pág. 83)

36. Amor e reverência - O amor deseja, o medo evita. Por causa disso não podemos ser amados e reverenciados pela mesma
pessoa, não no mesmo período de tempo, pelo menos. Pois quem reverencia reconhece o poder, isto é, o teme: seu estado é de
medo-respeito. Mas o amor não reconhece nenhum poder, nada que separe, distinga, sobreponha ou submeta. E, como ele não
reverencia, pessoas ávidas de reverência resistem aberta ou secretamente a serem amadas. (Friedrich Nietzsche, "Humano,
demasiado humano", Cia de Letras, p. 289, aforismo 603, ano 2001, São Paulo)

37. Bondade - Há uma exuberância da bondade que pode parecer maldade. (Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia
das Letras, ano 2001, Aforismo 184, pág. 84)

38. Estar à altura de algo - "Isso não me agrada" - Por quê? - "Não estou à altura disso." - Algum homem já respondeu assim?
(Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, ano 2001, Aforismo 185, pág. 84)

39. Mau humor com os outros e com o mundo - Quando, como é tão freqüente, desafogamos nosso mau humor nos outros, e na
realidade o sentimos em relação a nós mesmos, o que no fundo procuramos é anuviar e enganar o nosso julgamento: queremos
motivar esse mau humor a posterior, mediante os erros, as deficiências dos outros, e assim não ter olhos para nós mesmos. - Os
homens religiosamente severos, juízes implacáveis consigo mesmos, foram também os que mais denegriram a humanidade: nunca
houve um santo que reservasse para si os pecados e para os outros as virtudes; e tampouco alguém que, conforme o preceito do
Buda, ocultasse às pessoas o que tem de bom e lhes deixasse ver apenas o que tem de mau. (Friedrich Nietzsche, " Humano,
demasiado humano", Cia de Letras, p. 290, aforismo 607, ano 2001, São Paulo)

40. A melancolia de tudo terminado - Péssimo! Sempre a velha história! Ao terminar a construção da casa, notamos que sem
nos dar conta aprendemos, ao construí-la, algo que simplesmente tínhamos de saber, antes de começar a construir. O eterno
aborrecido "Tarde demais!" - a melancolia de tudo terminado!... '
.
41. Confusão entre causa e efeito - Inconscientemente buscamos os princípios e as teorias adequados ao nosso temperamento,
de modo que afinal aparece que esses princípios e teorias criaram o nosso caráter, deram-lhe firmeza e segurança: quando
aconteceu justamente o contrário. O nosso pensamento e julgamento, assim parece, é transformado posteriormente em causa de
nosso ser: mas na realidade é nosso ser a causa de pensarmos e julgarmos desse ou daquele modo. - E o que nos induz a essa
comédia quase inconsciente? A indolência e a comodidade, e também o desejo vaidoso de ser considerado inteiramente
consistente, uniforme no ser e no pensar: pois isso conquista respeito, empresta confiança e poder. (Friedrich Nietzsche,
"Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 291, aforismo 608, ano 2001, São Paulo)

42. Elogio - Supondo que se deseje absolutamente elogiar, constitui um sutil e também nobre autodomínio elogiar somente
quando não se está de acordo: - de outro modo se estaria elogiando a si mesmo, o que vai de encontro ao bom gosto - sem duvida,
um autodomínio que traz boa instigação e ocasião para ser continuamente mal entendido. É preciso, para se dar a esse verdadeiro
luxo de gosto e moralidade, não viver enter grosseirões do espírito, mas entre homens nos quais os mal-entendidos e equívocos
divertem por sua sutileza - ou então se terá de pagar caro! - "Ele me elogia: portanto me dá razão" - essa dedução perfeitamente
asinina nos estraga boa parte da vida, a nós, eremitas, porque atrai os asnos à nossa vizinhança e amizade. (Friedrich Nietzsche,
"Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza, ano 2001, Aforismo 283, pág.
191)

43. Filosofia - Toda filosofia é uma filosofia-de-fachada - eis um juízo-de-eremita: "Existe algo de arbitrário no fato de ele se
deter aqui, de olhar para trás e em volta, de não cavar mais fundo aqui e pôr de lado a pá - há também algo de suspeito nisso".
Toda filosofia também esconde uma filosofia, toda opinião é também um palavra também esconderijo, toda uma máscara.
27
(Friedrich Nietzsche, "Além do Bem e do Mal", Cia das Letras, Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza, ano 2001,
Aforismo 289, pág. 193)

44. Amor - ... O amor é o estado em que os homens vêem as coisas como elas não são. A força da ilusão está no amor em toda sua
potência, assim como a força de adoçar, de transfigurar.... (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do Cristianismo",
Edição Integral,1992, pág. 44)

45. Cristo (1) - ... (Cristo) não tinha mais necessidade de fórmulas, de ritos para comunicar-se com Deus, nem mesmo da prece.
Acabou com toda doutrina judaica de penitência e reconciliação, sabe que somente com a prática da vida o homem se sente
"divino", "abençoado", "evangélico", em qualquer momento um "filho de Deus." "Penitência', "oração" e "absolvição" não são o
caminho para Deus: somente a prática evangélica conduz a Deus, ela é propriamente "Deus"! O que foi destronado do Evangelho
foi o judaísmo dos conceitos de "pecado", "absolvição dos pecados", "fé", "redenção dos pecados", toda doutrina da igreja judaica
foi negada na "boa nova". (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do Cristianismo", Edição Integral,1992, pág. 56)

46. Reino de Deus - ... O "reino de Deus" não é o que se espera; não existe nem ontem nem depois do amanhã, não virá em "mil
anos", é uma experiência do coração; está em toda parte, em parte alguma... (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do
Cristianismo", Edição Integral,1992, pág. 57)

47. Vida - Quando não se coloca o peso da vida na própria vida, mas sim no "além", no nada, então retira-se da vida toda sua
importância. A grande mentira da imortalidade pessoal destrói toda razão, todo instinto natural. Tudo que é benéfico, vital,
promissor nos instintos, suscita cada vez maior desconfiança. Viver assim, de modo a esvaziar o sentido do viver, isso tornou-se
atualmente o "sentido" da vida... (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do Cristianismo", Edição Integral,1992, pág. 65)

48. Fé (1)- ... a fé não move montanhas (na verdade coloca montanhas onde não há nenhuma) ... (Friedrich Nietzsche, " O
Anticristo - Maldição do Cristianismo", Edição Integral,1992, pág. 75)

49. Fé (2) - ... Fé significa não-querer-saber o que é verdadeiro. (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do Cristianismo",
Edição Integral,1992, pág. 77)

50. Cristianismo - O cristianismo tem necessidade de doença, da mesma forma mais ou menos como os gregos tinham
necessidade de excesso de saúde; criar doentes é a meta obscura de todo sistema de procedimentos de cura da Igreja. (Friedrich
Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do Cristianismo", Edição Integral,1992, pág. 75)

51. Mártires - ... as mortes dos mártires, diga-se da passagem, foram uma grande infelicidade histórica: elas fascinavam.... Os
mártires prejudicaram a verdade... Até hoje basta uma certa crueza na perseguição de uma seita insignificante para que esta
conquiste um nome respeitável. Como? O valor de uma coisa por acaso muda só porque alguém desiste da vida.... Exatamente
isso foi a maior idiotice histórica de todos os perseguidores, ter dado à questão dos oponentes uma aparência de honra, tê-la
presenteado com a fascinação do martírio... A mulher continua ajoelhada ante um equívoco, porque disseram-lhe que por sua
causa alguém morreu na cruz. É pois a cruz um argumento? ... Escreveram letras sangrentas no caminho que percorreram e sua
loucura ensinava que a verdade se prova com sangue. Mas o sangue é a pior testemunha da verdade; o sangue envenena
transformando o ensinamento puro em loucura e ódio dos corações. E quando alguém atravessa o inferno em nome da doutrina, o
que isso prova? É mais verdadeiro quando a própria doutrina nasce da queimadura. (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição
do Cristianismo", Edição Integral,1992, pág. 79)

52. O homem de fé - O homem de fé, o crente de qualquer espécie é obrigatoriamente um homem dependente, um desses que não
pode colocar sua própria meta ou colocar metas para si mesmo. O crente não se pertence, só sabe ser um meio, tem de ser
consumido, precisa de alguém que o consuma. Seu instinto fornece a honra mais alta à moral de auto-esvaziamento: tudo
persuade para isso, sua inteligência, sua experiência, sua vaidade. Toda forma de crença é em si mesma uma expressão de auto-
esvaziamento, e auto-afastamento. (Friedrich Nietzsche, "O Anticristo - Maldição do Cristianismo", Edição Integral,1992, pág.
80)

53. Homens atrasados e homens antecipadores - O caráter desagradável, que é pleno de desconfiança, que recebe com inveja
todos os êxitos de competidores e vizinhos, que é violento e raivoso com opiniões divergentes, mostra que pertence a um estágio
anterior da cultura, que é então um resíduo: pois o seu modo de lidar com as pessoas era certo e apropriado para as condições de
uma época em que vigorava o "direito dos punhos"; ele é um homem atrasado. Um outro caráter, que prontamente partilha da
alegria alheia, que conquista amizades em toda parte, que tem afeição pelo que cresce e vem a ser, que tem prazer com as honras e
sucessos de outros e não reivindica o privilégio de sozinho conhecer a verdade, mas é pleno de uma modesta desconfiança - este
um homem antecipador, que se move rumo a uma superior cultura humana. O caráter desagradável procede de um tempo em que
os toscos fundamentos das relações humanas estavam por ser construídos; o outro vive nos andares superiores destas relações, o
mais afastado possível do animal selvagem que encerrado nos porões, sob os fundamentos da cultura, uiva e esbraveja. (Friedrich
Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 293-294, aforismo 614, ano 2001, São Paulo)

54. Alienado do presente - Há grandes vantagens em alguma vez alienar-se muito de seu tempo e ser como que arrastado de suas
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margens, de volta para o oceano das antigas concepções do mundo. Olhando para a costa a partir de lá, abarcamos pela primeira
vez sua configuração total, e ao nos reaproximarmos dela teremos a vantagem de, no seu conjunto, entendê-la melhor do que
aqueles que nunca a deixaram. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 294, aforismo 616, ano
2001, São Paulo)

55. Viver - Que significa viver? - Viver - é continuamente afastar de si algo que quer morrer; viver - é ser cruel e implacável com
tudo o que em nós, e não apenas em nós , se torna fraco e velho. (Friedrich Nietzsche, "A gaia Ciência", Cia das Letras, ano 2001,
Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza, Aforismo 26, pág. 77)

56. Pobre - Hoje ele é pobre; mas não porque lhe tiraram tudo, e sim porque jogou tudo fora - que lhe importa isso? Ele está
habituado a encontrar. - Pobres são aqueles que não entendem a pobreza voluntária dele. (Friedrich Nietzsche, "A gaia Ciência",
Cia das Letras, ano 2001, Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza, Aforismo 185, pág. 169)

57. Contra os que elogiam - A: "Somos elogiados apenas por nossos iguais!". B: "Sim! E quem o elogia lhe diz: você é meu
igual!" (Friedrich Nietzsche, "A gaia Ciência", Cia das Letras, ano 2001, Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza,
Aforismo 190, pág. 170)

58. Ter espírito filosófico - Habitualmente nos empenhamos em alcançar, ante todas as situações e acontecimentos da vida, uma
atitude mental, uma maneira de ver as coisas - sobretudo a isto se chama ter espírito filosófico. Para enriquecer o conhecimento,
no entanto, pode ser de mais valor não se uniformizar desse modo, mas escutar a voz suave das diferentes situações da vida; elas
trazem consigo suas próprias maneiras de ver. Assim participamos atentamente da vida e da natureza de muitos, não tratando a
nós mesmos como um indivíduo fixo, constante, único. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p.
295, aforismo 618, ano 2001, São Paulo)
59. Sacrifício - Havendo a escolha, deve-se preferir um grande sacrifício a um pequeno: pois compensamos o grande sacrifício
com a auto-admiração, o que não é possível no caso do pequeno. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de
Letras, p. 295, aforismo 620, ano 2001, São Paulo)

60. Convicção - Não foi o conflito de opiniões que tornou a história tão violenta, mas o conflito da fé nas opiniões, ou seja, das
convicções. Se todos aqueles que tiveram em conta a sua convicção, que lhe fizeram sacrifícios de toda não pouparam honra,
corpo e vida para servi-la, tivessem dedicado apenas metade de sua energia a investigar com que direito se apegavam a esta ou
àquela convicção, por que caminho tinham a ela chegado: como se mostraria pacífica a história da humanidade! (Friedrich
Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 301, aforismo 630, ano 2001, São Paulo)

61. Convicções - .... Quem ainda hoje combate e derruba opiniões com suspeitas, com acessos de raiva, como se fazia durante a
Reforma, revela claramente que teria queimado o seus rivais, se tivesse vivido em outros tempos, e que teria recorrido a todos os
meios da Inquisição, se tivesse vivido como adversário da Reforma. Essa Inquisição era razoável na época pois não significava
outra coisa senão o estado de sítio que teve de ser proclamado em todo o domínio da Igreja, que, como todo estado de sítio,
autorizava os meios mais extremos, com base no pressuposto (que já não partilhamos com aqueles homens) de que a Igreja tinha a
verdade, e de que era preciso conservá-la para a salvação da humanidade, a todo custo e com todo sacrifício. Hoje em dia, porém,
já não admitimos tão facilmente que alguém possua a verdade: os rigorosos métodos de investigação propagaram desconfiança e
cautela bastantes, de modo que todo aquele que defende opiniões com palavras e atos violen tos é visto como um inimigo de nossa
presente cultura ou, no mínimo, como um atrasado. Realmente: o pathos de possuir a verdade vale hoje bem pouco em relação
àquele outro, mais suave e nada altissonante, da busca da verdade, que nunca se cansa de reaprender e reexaminar. (Friedrich
Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 303, Aforismo 633, ano 2001, São Paulo)

62. Tempos felizes - Uma época feliz é completamente impossível, porque as pessoas querem desejá-la, mas não tê-la, e todo
indivíduo, em seus dias felizes, chega quase a implorar por inquietude e miséria. O destino dos homens se acha disposto para
momentos felizes - cada vida humana tem deles -, mas não para tempos felizes. No entanto, estes perduram na fantasia humana
como "o que está além dos montes", como uma herança dos antepassados; pois a noção de uma era feliz talvez provenha, desde
tempos imemoriais, daquele estado em que o homem, após violentos esforços na caça e na guerra, entrega-se ao repouso, distende
os membros e ouve o rumor das asas do sono. Há uma conclusão errada em imaginar, conforme aquele antigo hábito, que após
períodos inteiros de carência e fadiga se pode partilhar também aquele estado de felicidade, com intensidade e duração
correspondentes. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 251, Aforismo 471, ano 2001, São
Paulo)

63. Nietzsche, Estado e Política

O socialismo em vista de seus meios - O socialismo é o visionário irmão mais novo do quase extinto despotismo, do qual quer ser
herdeiro; seus esforços, portanto, são reacionários no sentido mais profundo. Pois ele deseja uma plenitude de poder estatal como
até hoje somente o despotismo teve, e até mesmo supera o que houve no passado, por aspirar ao aniquilamento formal do
indivíduo: o qual ele vê como um luxo injustificado da natureza, que deve aprimorar e transformar num pertinente órgão da
comunidade. Devido à afinidade, o socialismo sempre aparece na vizinhança de toda excessiva manifestação de poder, como o
velho, típico socialista Platão na corte do tirano da Sicília; ele deseja (e em algumas circunstâncias promove) o cesáreo Estado
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despótico neste século, porque, como disse, gostaria de vir a ser seu herdeiro. Mas mesmo essa herança não bastaria para os seus
objetivos, ele precisa da mais servil submissão de todos os cidadãos ao Estado absoluto, como nunca houve igual; e, já não
podendo contar nem mesmo com a antiga piedade religiosa ante o Estado, tendo, queira ou não, que trabalhar incessantemente
para a eliminação deste - pois trabalha para a eliminação de todos os Estados existentes -, não pode ter esperança de existir a não
ser por curtos períodos, aqui e ali, mediante o terrorismo extremo. Por isso ele se prepara secretamente para governos de terror, e
empurra a palavra "justiça" como um prego na cabeça das massas semicultas, para despojá -las totalmente de sua compreensão
(depois que esta já sofreu muito com a semi-educação) e criar nelas uma boa consciência para o jogo perverso que deverão jogar. -
O socialismo pode servir para ensinar, de modo brutal e enérgico, o perigo que há em todo acumulo de poder estatal, e assim
instilar desconfiança do próprio Estado. Quando sua voz áspera se junta ao grito de guerra que diz o máximo de Estado possível,
este soa, inicialmente, mais ruidoso do que nunca: mas logo também se ouve, com força tanto maior, o grito contrário que diz: O
mínimo de Estado possível. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 255-256, Aforismo 473, ano
2001, São Paulo)

O homem europeu e a destruição das nações (elogio aos judeus) - O comércio e a indústria, a circulação de livros e cartas, a
posse comum de toda a cultura superior, a rápida mudança de lar e de região, a atual vida nômade dos que não possuem terra -
essas circunstâncias trazem necessariamente um enfraquecimento e por fim uma destruição das nações, ao menos das européias:
de modo que a partir delas, em conseqüência de contínuos cruzamentos, deve surgir uma raça mista, a do homem europeu. Hoje
em dia o isolamento das nações trabalha contra esse objetivo, de modo consciente ou inconsciente, através da geração de
hostilidades nacionais, mas a mistura avança lentamente, apesar dessas momentâneas correntes contrárias: esse nacionalismo
artificial é, aliás, tão perigoso como era o catolicismo artificial, pois é na essência um estado de emergência e de sítio que alguns
poucos impõem a muitos, e que requer astúcia, mentira e força para manter -se respeitável. Não é o interesse de muitos (dos
povos), como se diz, mas sobretudo o interesse de algumas dinastias rei nantes, e depois de determinadas classes do comércio e da
sociedade, o que impele a esse nacionalismo; uma vez que se tenha reconhecido isto, não é preciso ter medo de proclamar-se um
bom europeu e trabalhar ativamente pela fusão das nações: no que os alemães, graças à sua antiga e comprovada qualidade de
intérpretes e mediadores dos povos, serão capazes de colaborar. - Diga-se de passagem que o problema dos judeus existe apenas
no interior dos Estados nacionais, na medida em que neles a sua energia e superior inteligência, o seu capital de espírito e de
vontade, acumulado de geração em geração em prolongada escola de sofrimento, devem preponderar numa escala que desperta
inveja e ódio, de modo que em quase todas as nações de hoje - e tanto mais quanto mais nacionalista é a pose que adotam -
aumenta a grosseria literária de conduzir os judeus ao matadouro, como bodes expiatórios de todos os males públicos e
particulares. Quando a questão não for mais conservar as nações, mas criar uma raça européia mista que seja a mais vigorosa
possível, o judeu será um ingrediente tão útil e desejável quanto qualquer outro vestígio nacional. Caracterís ticas desagradáveis, e
mesmo perigosas, toda nação, todo indivíduo tem: é cruel exigir que o judeu constitua exceção. Nele essas características podem
até ser particularmente perigosas e assustadoras; e talvez o jovem especulador da Bolsa judeu seja a invenção mais repugnante da
espécie humana. Apesar disso gostaria de saber o quanto, num balanço geral, devemos relevar num povo que, não sem a culpa de
todos nós, teve a mais sofrida história entre todos os povos, e ao qual devemos o mais nobre dos homens (Cristo), o mais puro dos
sábios (Spinoza), o mais poderoso dos livros e a lei moral mais eficaz do mundo. E além disso: nos tempos mais sombrios da
Idade Média, quando as nuvens asiáticas pesavam sobre a Europa, foram os livres pensadores, eruditos e médicos judeus que, nas
mais duras condições pessoais, mantiveram firme a bandeira das Luzes e da independência intelectual, defendendo a Europa
contra a Ásia; tampouco se deve menos aos seus esforços o fato de finalmente vir a triunfar uma explicação do mundo mais
natural, mais conforme à razão e certamente não mítica, e de o anel da cultura que hoje nos liga às luzes da Antigüidade
greco-romana não ter se rompido. Se o cristianismo tudo fez para orientalizar o Oci dente, o judaísmo contribuiu de modo
essencial para ocidentalizá-lo de novo: o que, num determinado sentido, significa fazer da missão e da história da Europa uma
continuação da grega. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 257-258, Aforismo 475, ano 2001,
São Paulo)

Propriedade e Justiça - Quando os socialistas demonstram que a divisão da propriedade, na humanidade de hoje, é conseqüência
de inúmeras injustiças e violências, e in summa rejeitam a obrigação para com algo de fundamento tão injusto, eles vêem apenas
um aspecto da questão. O passado inteiro da cultura antiga foi construído sobre a violência, a escravidão, o embuste, o erro; mas
nós, herdeiros de todas essas situações, e mesmo concreções de todo esse passado, não podemos abolir a nós mesmos, nem nos é
permitido querer extrair algum pedaço dele. A disposição injusta se acha também na alma dos que não possuem, eles não são
melhores do que os possuidores e não têm prerrogativa moral, pois em algum momentos seus antepassados foram possuidores. O
que é necessário não são novas distribuições pela força, mas graduais transformações do pensamento; em cada indivíduo a justiça
deve se tornar maior e o instinto de violência mais fraco. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p.
244, Aforismo 452, ano 2001, São Paulo)

Os perigosos entre os subversivos - Podemos dividir os que pretendem uma subversão da sociedade entre aqueles que desejam
alcançar algo para si e aqueles que o desejam para seus filhos e netos. Esses últimos são os mais perigosos; porque têm a fé e a
boa consciência do desinteresse. Os demais podem ser contentados com um osso: a sociedade dominante é rica e inteligente o
bastante para isso. O perigo começa quando os objetivos se tornam impessoais; os revolucionários movidos por interesse
impessoal podem considerar todos os defensores da ordem vigente como pessoalmente interessados, sentindo-se então superiores
a eles. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 245, Aforismo 454, ano 2001, São Paulo)

Uma ilusão na doutrina da subversão - Há visionários políticos e sociais que com eloquência e fogosidade pedem a subversão de
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toda ordem, na crença de que logo em seguida o mais altivo templo da bela humanidade se erguerá por si só. Nestes sonhos
perigosos ainda ecoa a superstição de Rousseau, que acredita numa miraculosa, primordial, mas, digamos, soterrada bondade da
natureza humana, e que culpa por esse soterramento as instituições da cultura, na forma de sociedade, Estado, educação.
Infelizmente aprendemos, com a história, que toda subversão desse tipo traz a ressurreição das mais selvagens energias, dos
terrores e excessos das mais remotas épocas, há muito tempo sepultados: e que, portanto, uma subversão pode ser fonte de energia
numa humanidade cansada, mas nunca é organizadora, arquiteta, artista, aperfeiçoadora da natureza humana. - Não foi a natureza
moderada de Voltaire, com seu pendor a ordenar, purificar e modificar, mas sim as apaixonadas tolices e meias verdades de
Rousseau que despertaram o espírito otimista da Revolução, contra o qual eu grito: "Ecrasez l'infâme [Esmaguem o infame]!.
Graças a ele o espírito do Iluminismo e da progressiva evolução foi por muito tempo afugentado: vejamos - cada qual dentro de si
- se é possível chamá-lo de volta! (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 249, Aforismo 463, ano
2001, São Paulo)

64. Comedimento - A completa firmeza de pensamento e investigação, ou seja, a liberdade de espírito, quando se tornou
qualidade do caráter, traz comedimento na ação: pois enfraquece a avidez, atrai muito da energia existente, para promover
objetivos espirituais, e mostra a utilidade parcial ou a inutilidade e o perigo de todas as mudanças repentinas. (Friedrich Nietzsche,
"Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 249, Aforismo 464, ano 2001, São Paulo)

65. Ressurreição do espírito - No leito de enfermo da política, geralmente um povo rejuvenesce e redescobre seu espírito, que ele
havia gradualmente perdido ao buscar e assegurar o poder. A cultura deve suas mais altas conquistas aos tempos politicamente
debilitados. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p. 250, Aforismo 465, ano 2001, São Paulo)

66. Instrução pública - Nos grandes Estados a instrução pública será sempre, no melhor dos casos, medíocre, pelo mesmo motivo
por que nas grandes cozinhas cozinha-se mediocremente. (Friedrich Nietzsche, "Humano, demasiado humano", Cia de Letras, p.
250, Aforismo 467, ano 2001, São Paulo)

67. Contra o feminismo - Em nenhuma época o sexo fraco foi tratado com tanto respeito pelos homens como na nossa - o que é
parte da tendência democrática e seu gosto básico, do mesmo modo que a falta de reverência pela velhice -: como admirar que
logo se abuse desse respeito? Querem mais, aprendem a exigir, por fim acham quase ofensivo esse tributo de respeito, preferiam a
competição por direitos, até mesmo a luta: em suma, a mulher perde o pudor. Acrescentemos logo que também perde o gosto.
Desaprende a temer o homem: mas a mulher que "desaprende o temor" abandona seus instintos mais femininos . Que a mulher
ouse avançar quando já não se quer nem se cultiva o que há de amedrontador no homem, mais precisamente o homem no homem,
é algo de se esperar e também de compreender; o que dificilmente se compreende é que por isso mesmo a mulher - degenera. Isso
acontece hoje: não nos enganemos! Em toda parte onde o espírito industrial venceu o espírito militar e aristocrático, a mulher
aspira à independência econômica e legal de um caixeiro: "a mulher como caixeira" - está escrito no portal da sociedade moderna
que se forma. Apoderando-se de tal maneira de novos direitos, buscando tornar-se "senhor" e inscrevendo o "progresso- feminino
em suas bandeiras e bandeirolas, ela vê realizar-se o contrário, com terrível nitidez: a mulher está em regressão. Desde a
Revolução Francesa a influência da mulher na Europa diminuiu, na proporção em que aumen taram seus direitos e exigências; e a
"emancipação da mulher", na medida em que é reivindicada e promovida pelas próprias mulheres (e não só por homens de cabeça
oca) resulta num sintoma curioso de progressivo enfraquecimento e embotamento dos instintos mais femininos. Há estupidez
nesse movimento, uma quase masculina estupidez, da qual uma mulher bem lograda - que é sempre uma mulher sagaz - se
envergonharia gravemente. Perder a intuição do terreno onde a vitória é mais segura; descuidar o exercício de sua verdadeira
arma; pôr-se a anteceder o homem, chegando talvez "até o livro", quando antes praticava a reserva e uma sutil, astuta submissão;
combater, com virtuosa audácia, a crença do homem num ideal radicalmente outro escondido na mulher, num eterno - e necessário
- feminino; tentar dissuadir o homem, com insistência e parolice, de que a mulher deve ser cuidada, mantida, protegida, poupada
como um animal doméstico bem delicado, curiosamente selvagem e freqüentemente agradável; a procura canhestra e indignada de
tudo o que há de escravo e servil na posição da mulher na presente ordem social (como se a escravidão fosse um contra-
argumento, e não uma condição de toda cultura elevada, de toda elevação da cultura) - que significa tudo isso, senão uma
desagregação dos instintos femininos, uma desfeminização? Certamente não faltam idiotas amigos das senhoras e corruptores da
mulher entre os doutos jumentos masculinos, que aconselham a mulher a se desfeminizar dessa maneira e imitar as estupidezes de
que sofre o "homem" da Europa, a "masculinidade" européia - que gostariam de rebaixar a mulher á "educação geral" e mesmo à
leitura de jornais e à política. Pensa-se inclusive, aqui e ali, em fazer das mulheres livres-pensadores e literatos: como se uma
mulher sem religião não fosse, para um homem profundo e ateu, algo totalmente repugnante ou ridículo -: em quase toda parte
arruinam os nervos delas com a mais doentia e perigosa espécie de música (nossa mais recente música alemã) e as tornam a cada
dia mais histéricas e mais incapacitadas para sua primeira e última ocupação, que é gerar filhos robustos. Querem "cultivá-las"
ainda mais e, como dizem, através da cultura tornar forte o "sexo fraco": como se a história não ensinasse, do modo mais
premente, que o "cultivo" do ser humano e o enfraquecimento - isto é, enfraquecimento, fragmentação adoecimento da força de
vontade - sempre andam juntos, e que as mais poderosas e influentes mulheres do mundo (por último a mãe de Napoleão)
deveram seu poder e autoridade junto aos homens à sua força de vontade - e não aos professores! O que na mulher inspira respeito
e com freqüência temor é sua natureza, que é "mais natural" que a do homem, sua autêntica astuciosa agilidade ferina, sua garra de
tigre por baixo da luva, sua inocência no egoísmo, sua ineducabilidade e selvageria interior, o caráter inapreensível, vasto, errante
de seus desejos e virtudes... O que, com todo o temor, desperta compaixão por esse belo e perigoso felino "mulher", é o fato de ela
parecer mais sofredora, mais frágil, mais necessitada de amor e condenada à desilusão que qualquer outro animal. Temor e
compaixão: Com estes sentimentos o homem colocou-se até agora diante da mulher, sempre com um pé na tragédia, que dilacera
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ao encantar. - Como? E isso estaria acabando? O desencantamento da mulher está em marcha? Estará surgindo o entediamento da
mulher? .... (Para além do Bem e do Mal, Cia das Letras, 2001, nº 239, pág. 145)

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