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Erótica dos signos em

aplicativos de pegação
G l eito n M at h eu s B o n fa n t e

Erótica dos
signos em
aplicativos
de pegação
performances íntimo-espetaculares de si

Ilustrações
Camilo Martins e Miriam Kajiki

EDITORA MULTIFOCO
Rio de Janeiro, 2016
Copyright © Gleiton Matheus Bonfante, Camilo Martins e Miriam Kajiki
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob
quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos editores e autores.

Edição Thayssa Martins


REVISÃO Ricardo Pinheiro de Almeida
Ilustração Camilo Martins e Miriam Kajiki
Imagem capa A man - Enjoyamau (Deviantart)
CAPA E DIAGRAMAÇÃO Karina Tenório
IMPRESSÃO E ACABAMENTO Gráfica Multifoco

B713e
Bonfante, Gleiton Matheus
Erótica dos signos nos aplicativos de pegação: processos multissemióticos em perfor-
mances íntimo-espetaculares de si. / Gleiton Matheus Bonfante. – Rio de Janeiro, 2016.
338 p.

Orientadora: Branca Falabella Fabricio.


Coorientador: Daniel do Nascimento e Silva.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras,
Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, 2015.

ISBN 978-85-5996-244-4

1. Linguística aplicada indisciplinar. 2. Aplicativos de pegação. 3. Semiótica da esti-


lização. 4. Subjetividade. 5. Desejo. I. Fabricio, Branca Falabella, orient. II. Silva, Daniel do
Nascimento e, coorient. III. Título.

Editora Multifoco
Flaneur Edição, Comunicação, Comércio e Produção Cultural LTDA.
Av. Henrique Valadares, 17b - Centro
20231-030 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.: (21) 3958-8899
contato@editoramultifoco. com. br
www. editoramultifoco. com. br
dedicatória

Dedico este livro aos participantes da pesquisa: [semtí-


tulo], Ken, Hugo, GatoBotafogo, BomdoLeblon, PASGloria,
CasalJdBot, ATIVOIcaraí, Comedor e seu alter-ego Guto25p,
Dimitris8719, GORDO ZS, FELIPE ATV TJK, ATIVO
COPA, Gato passivo, Coroa botafogo, Ben, Turista Rio BVG,
Maurício, Agilidade, XY, Excluindo em 5, 4, 3, 2…, Dele-
tando isso., Str8 act/Copa, Gatoatleticopa, Dois, Sexfriend,
Flamengo, Tatuado, Achou o Wally, MulekãO MaChO, vida
hetero., “HETERO” GATO, SaradoEncolha, moreno do rio,
AtivoMachoMete, Pretosaradobota, Kd os ativos, Kiko, lek
x lek, Atv quer Atv, Sem compromisso, ;), Pago Lek Psv/V,
Pretodefarda, morenim, Negão, Branco, Karioka Loiro,
Arabe21cm, PassGATO, Massagistas, Popperskomigo, Beck
& Teko, 2tkdos, kasalzs-rio, F, Fora Cabral, O XERIFE, E.,
Irmã Doralice, Guto, Marcão, Martins, CaraZS, PassBotafo-
go, BRAZILIAN, ATVRoludo, pass, cudeleite, Murilo ATV
100%, Surf26-Whey, JVS, Falcom dot vers, ativo picão, JizzA-
ddicted, Saradão Pkão GP, peludo e dotado, morenão, Turis-
ta Caio, Ativão, ENSEADA, Socador, florzinha, neg_, cude-
leite, Menina. We are family! I got all my sisters with me!
Sumário

Prefácio..................................................................................... 9
Prelúdio..................................................................................... 17

1. Introdução........................................................................... 23
2. Performance, linguagem e ação: a construção e a
estilização semióticas do corpo....................................... 51
3. Novas tecnologias de subjetivação: nas tramas
do desejo e da performance.............................................. 87
4. Netnografia sexual: uma erótica dos signos................. 125
5. A construção semiótica do sujeito desejante................ 175
6. (Cu)nclusão......................................................................... 297

Posfácio..................................................................................... 313
Referências................................................................................ 321
Prefácio

Do signo descorporificado ao signo que incita, agita, excita

A erótica social evoca uma outra temporalidade: a do


Kairos, isto é, da oportunidade, da aventura, sucessão de
instantes centradas na intensividade do momento, a ju-
bilação do efêmero, a alegria de viver e de gozar se apre-
senta aqui e agora.
(Mafessoli, 2014:19)

O homo rationalis iluminista de Kant e Descartes presti-


giou a razão como principal faculdade humana, responsável
pelo controle de impulsos corpóreos, pela produção de ver-
dades científicas, pela capacidade de teorização, e pela pos-
sibilidade de explicação objetiva do real. Essa racionalidade
dominadora, que tão bem se acoplou aos ideais do chamado
período moderno ocidental, se robusteceu simultaneamente
à desvalorização dos sentimentos, das paixões, e de outros
sentidos emocionais. E, como grande aliada do estado-na-
ção e da tradição judaico-cristã, orientou a produção de uma
infinidade de leis, relações político-jurídico-econômicas-re-
ligiosas-educacionais e modos de organização da vida social
pública e privada.
A conhecida forma de vida burguesa e as subjetividades
pudicas, interiorizadas e culpadas a ela entrelaçadas são efei-

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

tos familiares advindos de técnicas de vigilância dos corpos


e dos sentidos afetivos-amorosos-eróticos, “inimigos da ra-
zão”. Estes últimos, banidos do domínio público e relegados
ao confinamento do lar ou dos territórios interditos da obsce-
nidade e pornografia, se incorporaram ao casal heterossexual
– e às noções de familialismo, intimidade doméstica e sexo
reprodutivo – como a referência reguladora da cultura sexual
e política no ocidente (Berlant e Warner, 2005). À heteronor-
ma, entendida como forma de governo, se amalgamaram
uma série de parâmetros não somente de cidadania e vida pú-
blica descorporificadas como também de sistematização, pa-
dronização, normalização, e previsibilidade de condutas – na
verdade sustentáculos do conceito de estado-nação capitalista
e soberano e seus ideais de pureza cultural, moral, sexual, ra-
cial e linguística.
O dito estado moderno se deixou capturar por formas de
compreensão da existência pelas lentes das regras de cálculo,
do planejamento, da normatização, da regimentação linear de
tempo-espaço, e de ações racionais que, sufocando possíveis
vazamentos ou riscos, pudessem “garantir” ordem, desenvol-
vimento e evolução. Projetou, assim, uma poderosa episte-
mologia das certezas, que colocou em circulação expectativas
e práticas de saneamento generalizado: monoculturalismo
higienizado; raça, etnia e cidadania purificadas; comporta-
mento imaculado, sexo asséptico, e linguagem impoluta. Ela
forjou padrões de coesão, precisão e topografias territoriais e
simbólicas que vem informando nossa inteligibilidade e sis-
temas de valoração – um tanto enrijecidos! – sobre sujeitos e
seus lugares socioculturais.

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Gleiton Matheus Bonfante

Pode-se dizer que o Homo rationalis e a sociedade regu-


lada investem no controle somático, mas temem o Eros e seus
excessos e extravagâncias e, em nome de uma forma de vida
estática, censuram desejos, prazeres e ardências. Entretanto,
como argumentou Foucault (1988/2001), tais intensidades,
quanto mais julgadas moralmente, quanto mais escrutinadas,
quanto mais coíbidas e demonizadas, mais incitam, excitam,
fazem falar e agir. Segundo ele, o diálogo efervecências-in-
terdições produziu os discursos e textos que deram forma ao
imaginário social moderno e seu olhar atento para o sexo e a
sexualidade. A modernidade e a tensão entre regras e exces-
sos ainda estão por aí, mas se apresentam de forma exacerba-
da a reboquedas novas tecnologias comunicacionais contem-
porâneas e do ritmo frenético de circulação de informações,
discursos, corpos, imagens e toda sorte de signos.
É exatamente nessa conjuntura que se increve Bonfante
e sua Erótica dos signos. Atento às novas mídias e seus com-
passos, o autor investiga alguns aplicativos de pegação insta-
lados em celulares e as novas formas de conexão com o outro
que eles possibilitam: pelo erotismo e por práticas qualifica-
das como performances íntimo-espetaculares de si. Bonfan-
te localiza seu estudo, a partir de Preciado (2008), na atual
fase da economia capitalista caracterizada por um sistema
farmacopornográfico em que “qualquer modo de produção
ambiciona uma produção molecular intensificada do dese-
jo corporal semelhante à narcoticossexual” (2008:37). Nela,
emerge o Homo Eroticus (Maffesoli, 2014), um toxicômano
tecnopolítico de seu próprio corpo, cujo cuidado encontra
suporte na indústria bioquímica e eletrônica. Sujeito-Prozac,
sujeito-anfetamina, sujeito-smartphone, o Homo Eroticus se

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

mescla a substâncias bioindustriais e a toda sorte de gadgets


na gestão e maximização de prazeres e desejos.
Bonfante convida leitores e leitoras à observação de novos
modos de produção de subjetividade nos quais se hibridizam
corpos, máquinas, fármacos e uma multiplicidade de signos.
Ao acompanhar seu movimento analítico, centrado nos per-
fis de usuário em três aplicativos voltados para um público
que se descreve como homossexual, detectamos processos
de subjetivação em curso na contemporaneidade que podem
ser lidos como sintomas de nossa época acelerada, tecnocên-
trica e hipersemiotizada. Nela tanto relações sociais quanto
vivências de intimidade são digitalizadas, encontrando na
mobilidade sua força central. Indivíduos se deslocam pelas
ruas com olhos atentos aos seus celulares dotados de um GPS
localizador de pessoas; o aparato segue próximo ao corpo;
o movimento de um dedo rastreia possíveis interlocutores e
parceiros sexuais que se deslocam em ambientes próximos,
podendo conduzí-los à interação. A decisão do encontro face
a face é tomada com base em imagens de corpos fragmenta-
dos que se engajam em performances intensificadas de de-
sejo e tesão. Esse conjunto de ações ocorre em segundos, em
movimento não circunscrito a um espaço específico. Através
de narrativas dessa natureza, testemunhamos a reconstru-
ção de uma erótica social que, embora ainda obcecada pelo
exame do corpo, é marcada pela cadência de uma outra tem-
poralidade – afastada de parâmetros cronológico-causais, e
dependente de ações reflexivas continuadas e pulsantes. O
imediatismo e a efemeridade da experiência visual na tela do
celular convidam à fruição intensa e instântanea de corpos
que, aparecendo e desaparecendo ao tocar de uma tecla, per-

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Gleiton Matheus Bonfante

formam segundo a lógica da exposição exuberante, da por-


nificação, e do despudor.
Uma miríade de signos (linguísticos e não linguísticos)
indicando oportunidades de gozo e de excitabilidade podem
capturar a atenção do usuário. Gestos e posturas corporais
sugerindo virilidade e macheza; torsos molhados, bombados,
bronzeados e tatuados; abdomens sarados; falos rígidos, ro-
bustos e ejaculantes; e, categorias étnico-raciais generalizantes
como “negão”, “árabe” e “latino”, entre outros, semiotizam cor-
pos desejáveis e desejantes. A interpretação do apelo erótico e
libidinoso de tal sinalização só se concretiza via uma ideologia
semiótica bem diferente da ideologia racionalista equilibrada,
descorporificada e concentrada em conteúdos proposicionais.
Sua leitura demanda, contariamente, foco na dimensão per-
formativa dos signos e em suas indexicalidades, e não em seu
valor meramente referencial. Requer também a projeção de
elos imediatos entre sujeitos, corpos e repertórios passionais.
O tempo de interpelação e conquista confia na instantaneida-
de dos afetos e efeitos de sentido suscitados pela performance.
Talvez por isso, uma das estratégias recorrentes nos perfis ana-
lisados por Bonfante seja a redundância indexical – termo que
alude à profusão de ícones, índices e símbolos (Peirce, 1995)
mobilizados nas encenações de desejo analisadas.
As performances íntimo-espetaculares de si que aqui ga-
nham visibilidade colocam em xeque, de diferentes formas, a
racionalidade moderna. Luxuriosas e devassas, elas abalam os
afetos e paixões regulados pelos dispositivos da privacidade e
do pudor, reivindicando para a vida cotidiana o valor das afec-
ções carnais. De modo semelhante, elas colocam em cena uma
semiose corporificada, mostrando que signos em geral agem

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

performativamente, sendo constitutivos das subjetividades (e


não apenas as comunicando ou descrevendo); eles não atuam
isoladamente, residindo em um campo relacional, indissociável
dos sujeitos e corpos que os empregam, incitando-os, excitan-
do-os e agitando-os eroticamente. Por conseguinte, as atuações
em tela nos mostram que desejos e demandas desejantes não
podem ser pensadas fora de processos semióticos. Indicam-nos,
também, que contatos móveis, por indivíduos móveis, podem
ensejar desejos móveis, mais afeitos aos acasos e acontecimentos
inesperados, não previsíveis ou calculáveis a priori.
Se por um lado tais aspectos provocam uma série de des-
centramentos da episteme moderna, por outro, eles comportam
ambivalências e contradições. É justamente essa oscilação que a
análise das performances íntimo-espetaculares dos participan-
tes problematiza, ao focalizar corpos ativos que se engajam em
processos de subjetivação capturados por diferentes dispositi-
vos. Pois é inegável que o conglomerado de signos colocados em
ação por usuários dos aplicativos condecoram a gramática da
virilidade, força, macheza e masculinidade como valor maior.
Constrói também sujeitos submissos a uma certa estética cor-
poral sarada, bombada e esportiva, típicas da cultura fitness.
Recicla ainda uma episteme colonial e essencialista que associa
corpos não-europeus (negros, latinos e árabes) a uma hiperse-
xualização exotizada. Finalmente, elege o ânus e o pênis como
zonas herógenas por excelência, limitando as possibilidades or-
gásmicas à penetração e ao potencial ejaculatório – sentidos de
gozo e práticas de sexualidade reducionistas, dinamitadas por
Preciado em seu Manifesto Contrassexual (2004/2014).
Tal sistema de valoração não só reafirma normas vincula-
das aos dispositivos da sexualidade, gênero e raça como pune

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Gleiton Matheus Bonfante

moralmente performances que fogem à heteronorma. Nos


ambientes digitais em questão, performances associadas à fe-
mina vulnerabilis, indexando sentidos de fragilidade corporal
e/ou emocional são frequentemente desqualificadas. Entretan-
to, como reiterado por tantos pensadores (como, por exemplo,
Foucault, Butler e Agambem), a captura pela norma anda de
braços dados com possibilidades de resistências, vazamentos
e profanação em seu interior. E é essa característica que cria
oportunidades de fissuras ou, como alega Bonfante, de pro-
cessos de desidentificação. Desse modo, em meio a inúmeras
ações ritualizadas de auto-apresentação de si, como as acima
apontadas, alguns dos participantes encontram pontos de fuga
e constroem corpos desejantes que escapam ao dispositivo, ne-
gociando formas distintas de ocupar certos espaço-tempos.
Bonfante nos presenteia com um interessante panora-
ma das formas atuais de construção de sujeitos desejantes.
Elas ocorrem enredadas em deslocamentos e movimentos
contínuos os quais, subtraídos do tempo para produção de
memória, são prenhes de sucessões de acontencimentos se-
mióticos-carnais instantâneos. Vale a pena percorrer a rota
traçada nesta Erótica dos Signos e explorar o que está em jogo
no precurso do Homo Rationalis público ao Homo Eroticus
clandestino-espetacular. Por entre tensões e contradições, no-
vos modos de afecção pulsam, instigando a imaginação de es-
tratégias inauditas para uma erótica da vida e de elos sociais.

Branca Falabella Fabrício


Professora Associada do Programa Interdisciplinar de
Linguística Aplicada da Universidade
Federal do Rio de Janeiro

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

REFERÊNCIAS

AGAMBEM, G. 2006/2014. O amigo & O que é um disposi-


tivo. Chapecó: Argos. Tradução: Vinícios Nicastro Honesko.
BUTLER, J. 1997. Excitable Speech: a Politics of the Performa-
tive. London: Blackwell.
BERLANT, L.; WARNER, M. 2005. Sex in public. In: Michael
Warner. Publics and Counterpublics. New York: Zone Books,
p. 187-208.
FOUCAULT, Michel. 1988/2001. História da sexualidade I: a
vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal. Tradução: Ma-
ria Teresa da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque.
MAFFESOLI, M. 2014. Homo eroticus: comunhões emocionais.
Rio de Janeiro: Forense Universitária. Tradução: Abner Chiquieri.
PIERCE, C. S. 1897/1955. Logic as semiotic: the theory of sig-
ns. In BUCHLER, J. (Org.) Philosophical writings of Peirce.
Nova York: Dover Publications, p. 98-119.
PRECIADO, P. 2004/2014. Manifesto Contrassexual. São
Paulo: n-1 Edições. Tradução: Maria Paula Gurgel Ribeiro.
PRECIADO, B. 2008. Testo Yonki. Barcelona: Espasa.

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Prelúdio

Figura 1: Davi de Michelangelo fazendo uma selfie

Cena I

Morreu em Taranto, após cinco dias de coma, Isabella


Fracchiolla. A jovem italiana de 16 anos se acidentou fatal-
mente ao cair de um penhasco tentando tirar uma selfie1.
Oscar Reyes morreu em janeiro de 2014, no banheiro de sua
mãe devido a uma hemorragia craniana. O garoto tentava fa-
zer uma selfie, pendurando-se de cabeça para baixo quando
1 A selfie, do inglês self (si mesmo) + ie(sufixo formador de substantivo). É um autorretrato, uma
foto tirada de si mesmo. A selfie possui uma dimensão autoperformativa, pois é uma tecnologia sub-
jetiva, por meio da qual um sujeito se produz ao se mostrar, ao se exteriorizar em performances.
Também possui uma dimensão confessional, pois, assim como na confissão, o enunciador coincide
com o sujeito da narrativa, aquele que vive os fatos. A selfie é um gesto reflexivo em direção ao seu
próprio corpo e self.

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

caiu e se feriu letalmente. Xenia Ignatyeva foi eletrocutada


em São Petersburgo, na Rússia, ao cair da ponte que escalou
para tirar uma selfie. Mohammad al-Chaar tirou uma selfie
segundos antes de morrer na explosão causada por um car-
ro bomba em Beirute. Courtney Standford bateu seu carro
contra um caminhão, poucos minutos2 após postar uma sel-
fie no Facebook. Na foto, cuja legenda dizia “músicas felizes
me fazem sentir feliz”, ela dirigia enquanto escutava a música
Happy, de Pharell Williams.

Cena II

Um usuário do Facebook postou a seguinte imagem –


uma selfie durante o ato sexual em um motel – na sua linha
do tempo (página principal):

2 A estimativa foi feita através do horário do post na rede e da notificação da polícia de acidente na
autovia. O post foi submetido quatro minutos antes da notificação de acidente na rodovia.

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Gleiton Matheus Bonfante

Figura 2: Selfie durante o ato sexual, feita no motel e postada no


Facebook

O momento de intimidade da relação sexual é registrado


e distribuído globalmente como performance espetacular no
mundialmente famoso site de relacionamentos pessoais.

Cena III

Os dedos nevrálgicos tocam a tela engordurada do ce-


lular quase mecanicamente. Deslizam, porém, exercendo a
luxúria do tato. Eles procuram freneticamente por algo que
não podem deveras encontrar: a imagem encarnada de seu
próprio desejo. Doubletap: “Fala aí, blz?”, voltar. Double tap
novamente: “Fala de onde?”; “Curte o q?”, voltar. Double tap

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

no terceiro perfil, penso: “Hmmm, já falei com esse cara, ele


não responde”, voltar. Um tap: “Este é gatinho, mas esse papo
de sigilo me dá preguiça”, voltar. A perambulação por outros
perfis se desenrola noite afora com a avidez sem entusiasmo
de um faminto analfabeto que se perde nas páginas de um
cardápio, seduzido pelas imagens que contempla. Um con-
sumidor voraz de símbolos, cujos sentidos se estendem para
além dos limites dos signos; olha e revira a lista de perfis dis-
poníveis para chat, sempre espiado pelo seu próprio perfil,
altivo e onipresente no alto da lista. Uma lista dos duzentos
homens mais próximos3 ao redor de mim, travestidos de seus
perfis, se organizava em forma linear. Esses homens não ape-
nas se vestem de seus perfis, mas eles sequer existiriam se não
fossem seus perfis.
Os olhos percorriam os corpos na tela, um a um, e tam-
bém os dedos por eles vagueavam, como se para vê-los, para
sabê-los, fosse preciso tocá-los. Um toque para visualizar um
perfil, mais um para aumentar a foto, para estimular um sen-
timento de copresença, para desbravar as imagens, para es-
miuçar os contornos do corpo altero, para acessar nos outros,
nossas próprias fantasias. Dois toques para interagir, para en-
trar na ordem dos discursos, para penetrar a sintaxe do de-
sejo, para movimentar(-se) nas narrativas do tesão. O toque
orienta a sempre infinda busca do sujeito desejante pela ima-
gem em carne e osso de seu desejo. Uma busca tão veemente
quanto infinda, já que os desejos não se podem materializar
no signo, são da ordem do irrepresentável. Uma carícia na

3 A instalação e a utilização dos aplicativos (doravante, também apps) aqui estudados são gratuitas.
No entanto, se pode pagar pela modalidade extra, cujas vantagens variam de aplicativo para aplicativo e,
normalmente, incluem: a visualização de duzentos perfis a mais, a possibilidade de especificar detalhes na
busca de outros perfis, o salvamento dos históricos e a eliminação dos anúncios.

20
Gleiton Matheus Bonfante

tela para percorrer quilômetros, para se afastar de si mesmo,


viajar online para mais longe de seu próprio perfil, percorrer
distâncias que são medidas em corpos, e em seus desejos. Por
corpos e desejos vagueei, tão ébrio quanto sedento.

Cena IV

Trecho de reportagem de Eduardo Vanini publicada em


O Globo, em 13 de fevereiro de 2015:

“A fórmula do amor virtual: Estudo mostra como ser


mais atraente em paquera online
Cientistas dizem que fotos bem escolhidas pesam no su-
cesso de quem busca romance em ‘apps’ e sites.
Se a concorrência anda acirrada nos sites e aplicativos de
namoro, pesquisadores de Inglaterra e Estados Unidos
sabem como dar “aquela” valorizada no perfil. Baseados
em vários estudos sobre comportamento e atração huma-
na, eles descobriram que escolher um apelido criterioso é
tão importante quanto ter uma foto atraente e um título
descritivo bem compreensível na página de apresentação.
Publicada na revista “Evidence based Medicine”, a pes-
quisa teve como meta investigar os tipos de abordagens
que podem elevar as chances de um contato on-line entre
homens e mulheres migrar para o mundo real.
Os autores Khalid S. Khan da Escola de Medicina de
Londres e Sameer Chaudhry da Universidade do Norte
do Texas descobriram, por exemplo, que apelidos asso-
ciados a termos que podem ter conotação de inferiori-
dade, como “little” devem ser evitados em detrimento
de opções mais lúdicas […].”

21
1. Introdução

Figura 3: Pichação no centro de Campinas, SP



O risco de vida assumido em benefício de dar-se a ver,
além da extensa e detalhada documentação da vida social e
íntima expostos nas Cenas I e II do Prelúdio são peculiari-
dades da vida contemporânea, que encontram grande respal-
do na prática da performance de si, frequentemente através
da autofotografia, chamada de selfie. Se a fotografia sempre
configurou uma relação de um observador, um fotógrafo, que
eternizaria um momento de um sujeito outro, à parte de al-
guns autorretratos, a selfie é um fenômeno que coloca em re-
lação o sujeito consigo mesmo, estimulando um sentimento
de individualidade e de independência. Por meio da selfie, da
exibição de si, do contínuo mostrar-se, indivíduos se fazem
sujeitos. Sendo visíveis, pessoas passam a existir para o mun-
23
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

do social. A selfie está entre as técnicas de subjetivação mais


protuberantes na atualidade e entre as formas de visibilidade
e de resistência mais insignes na contemporaneidade, espe-
cialmente porque a selfie, como uma apreensão de si mesmo e
como congelamento de si, é uma foto íntima, uma foto onde
o sujeito (fotógrafo) e o objeto (fotografado) coincidem. Ela é
convidativa à estilização do corpo. A selfie permite e estimula
a experimentação, inclusive a autopornográfica, de si, como
no caso da Cena II.
A atividade de construir-se semioticamente – e estilizar-
se na telinha4 – opera na construção de si mesmo e atribui
afeto e veracidade à existência material do sujeito. No univer-
so online, a performance imagística de nossos corpos, asso-
ciada à enunciação de nossos desejos, tensionam a articula-
ção entre sujeito, discurso e espetacularidade, trazendo à luz
performances de sensualidade para produzir efeitos materiais
sobre quem se é: entre eles a desejabilidade, espetacularidade
e inteligibilidade. Todos nós, envolvidos no pérpetuo ato de se
colocar em performance, aderimos às regras do jogo: o exibi-
cionismo e o voyeurismo.
A performance de si, em sua necessária inflexão do sujei-
to consigo mesmo por meio da estilização de seu corpo, é não
apenas uma “febre”, uma moda na contemporaneidade, mas
uma das principais “técnicas de existência”: estratégias para
vir a ser, para dar-se a ver. E a selfie é uma das estratégias mais
frequentes para se construir online em diversas plataformas.
Configura-se-nos como a principal estratégia de afetar corpos

4 Brincando com a denotatividade da palavra, emprego “telinha” como referência à tela do celular, já
que as telas das televisões nos dias de hoje são ridiculamente grandes. Apesar disso, ou talvez por isso, o
aparelho televisor não é tão imprescindível como o smartphone portátil, íntimo, corpóreo.

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Gleiton Matheus Bonfante

outros e, assim, trazer à existência um sujeito, muito frequen-


temente um sujeito do desejo.
As performances do sujeito apreendem o corpo e seus
afetos e os enviam e distribuem a outros distantes; elas calam
a utopia, a errância do corpo ao trazer à visibilidade o que
antes era inexistência. O trágico fim dos jovens mencionados
no Prelúdio e o risco a que eles se submeteram em busca do
melhor ângulo, da luz ideal, da pose mais lisonjeira, enfim,
da foto perfeita, da selfie que melhor os traduz ou que mais
adequadamente os estiliza, nos fazem refletir sobre a impor-
tância vital de certo tipo deperformance de si na contempora-
neidade, que denomino performances íntimo-espetaculares
de si. As selfies íntimo-espetaculares são uma estratégia mui-
to corriqueira de representação de si na contemporaneidade,
embora sejam fenômenos de recente popularização. O que é
recente na prática da selfie não é a prática do autorretrato em
si, mas a tecnologização e o aprimoramento dos recursos téc-
nicos: melhores e mais acessíveis aparatos técnicos, a reversi-
bilidade das câmeras dos celulares que permitem a visualiza-
ção da foto antes do clique, os “paus de selfie” que ampliam o
ângulo de abrangência de uma foto, os filtros de manipulação
de imagem, etc. Além disso, a popularização de aparelhos
eletrônicos e a indispensabilidade cotidiana dos “espertofo-
nes” – smartphones que geralmente possuem câmeras embu-
tidas – elevou a prática da performance íntima à qualidade de
um indispensável exercício de si na contemporaneidade. As
performances íntimo-espetaculares são, nos dias de hoje, ver-
dadeiros atalhos para a intimidade de um corpo, para o seu
sexo. São uma ponte de intersecção entre o eu e Outro e um
atestado visível de existência subjetiva. São práticas corriquei-

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

ras na estilização de si nos aplicativos de pegação, e consistem


no foco da presente obra.
A participação nos aplicativos de pegação inseridos
em aparelhos celulares – descrita brevemente na Cena III –
aponta para novos modos de ligação com o Outro, um tipo
de conexão e sentido de copresença que se constrói na tela,
por meio da estilização da imagem de si (no autorretrato)
e de seu próprio nome (nickname), presentes no perfil dos
usuários. Dispositivos como os aplicativos de pegação, ao
viabilizar a interação entre sujeitos do desejo, realçam a di-
mensão corpórea, a dimensão das sensações nas interações.
Assim, os apps invocam efeitos no corpo como a excitação e
o prazer do tato para afetarem outros sujeitos através dos e
nos signos. Uma das maneiras como a tecnologia dos smar-
tphones inspira um sentido de realidade, de corporalidade
nas relações in absentia que viabiliza é de fato a primazia
do toque que inaugura: não apenas o tato é o sentido es-
sencial ao manuseio das funções nos celulares e nos seus
softwares, mas os desejos e o próprio gozo parecem estar a
apenas um toque de distância. O tato, a aprazível “taticida-
de” dos aplicativos e dos smartphones atua no estímulo de
um sentimento de inalienabilidade do celular5 em relação ao
corpo. O tato se atrela à conectividade como característica
orgânica do corpo, de modo que um corpo desconectado
assume a feição de um corpo incompleto. Se as máquinas
na sociedade disciplinar sempre mantiveram uma distância
segura do corpo, ainda que ambígua (DOMINGUEZ, 2010),
hoje, máquina e corpo se implodiram em uma “plataforma
viva e multi-conectada” (PRECIADO, 2010). Assim, o tato
5 Ou melhor, a inalienabilidade de sua função mais importante na contemporaneidade, a conectividade.

26
Gleiton Matheus Bonfante

organiza a experiência sensual nos aplicativos, como uma


experiência deveras mundana, corporificada, intensa. Tato,
imagem, texto se associam na estilização do sujeito do de-
sejo em plataformas contemporâneas, afetando seus inter-
locutores. E é por essa multimodalidade de recursos na es-
tilização do sujeito desejante nos apps de pegação que este
livro se interessa. As estilizações de si nos perfis dos apps
são pautadas em desejos de si, em fantasias de si enquanto
seus desejos propriamente confessos na tela são fantasias a
respeito dos outros, de seus corpos, de suas potentia gauden-
di (PRECIADO, 2008), sua espetacularidade, da qual a mul-
timodalidade é – vale a pena reforçar – uma grande aliada.
Tocado pelas peculiaridades de nossa sociedade contem-
porânea, este livro vem investigar justamente a relação dos
sujeitos com seus corpos na busca incessante por novos êx-
tases, por novas sensações, por novas formas de ser em uma
sociedade íntimo-espetacular. Conforme detalharei no Capí-
tulo 3, o cenário estudado é um grupo de aplicativos, plata-
formas midiáticas contemporâneas que se propõem a viabili-
zar encontros online e offline entre homens gays6. As práticas
observadas, relatadas e descritas são as estilizações semióticas
do sujeito, do seu corpo, suas estratégias na busca pela satis-
fação de seus desejos, e no constante desejar de outros sujei-
tos. Práticas sem as quais esses sujeitos não existiriam, não se
condensariam na malha do discurso, não se fariam sujeitos, já
que, “quem não é visto, não é lembrado”.

6 Note-se que o uso do termo gay aqui é um posicionamento político que pretende atribuir visibilida-
de e não homogeneidade a formas desejantes consideradas subalternas. Gay aqui é um hiperônimo para
homossexualidade, bissexualidade, sujeitos trans e cis, heterossexuais ocasionalmente homoafetivos, goys,
mulheres que praticam pegging, etc.

27
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Tal proposta de pesquisa, que se desenrola na contem-


poraneidade, faz-nos olhar para nosso momento histórico
não apenas como contexto, como palco do embate filosófico
aqui empreendido, mas como o próprio objeto de inquéri-
to. Elejo, então, como ponto de observação da atualidade,
alguns processos de construção de subjetividade, por meio
da estilização de si que nomeio performances íntimo-es-
petaculares de si. Os focos principais são: (1) na análise de
performances do sujeito que deseja, (2) nos recursos semió-
ticos empregados na sua tipificação online, e (3) na relação
entre corpo e tecnologia. Investigo e exploro essas perfor-
mances e relações em três aplicativos: GRINDR, SCRUFF
e HORNET7 que são softwares “baixados” em smartphones.
Embora os apps possam ser desenvolvidos com distintas fi-
nalidades, como acesso a contas de banco, mapas e jogos,
os softwares aqui investigados foram pensados como chats
de relacionamentos interpessoais. Tal contexto onde se en-
saiam performances do desejo possibilitam um espaço de
observação social privilegiado, pois “A existência humana
tem pelo menos tanto a ver com fantasia e desejo quanto
com verdade e razão” (EAGLETON, 2011:17).

1.1 As antonomásias do agora: a


contemporaneidade e seus epítetos

Não seria possível estudar as performances íntimo-espe-


taculares nos apps de pegação sem discutir seu contexto ma-

7 Os apps de pegação são atualmente muito abundantes e também estão se especificando a públicos
exclusivos, como, por exemplo, GROWLER (voltado para ursos) e RECON (voltado para fetiches como fis-
tfucking, BDSM, pissing, pés, bareback, etc.) A escolha de analisar dados de três deles foi uma estratégia para
conseguir um volume mais representativo de dados, e o critério de escolha destes foi a sua popularidade:
eram, à época da geração de dados, os mais populares no Brasil, com grande número de usuários.

28
Gleiton Matheus Bonfante

cro de inserção, sem localizá-las na contemporaneidade e sem


pensá-las frente às “perplexidades com as quais a atualidade
nos confronta” (SOUZA SANTOS, 1999 [1994]). Uma das
maiores perplexidades que a contemporaneidade apresenta é
a intensa ponderação sobre o presente, a manutenção do agora
sempre em foco de reflexão. A “modernidade reflexiva”, sobre
a qual teorizam Anthony Giddens, Ülrich Beck e Scott Lash
(BECKet al, 1997), inaugura um interesse contemplativo e
analítico, sem precedentes, pelo dinamismo do presente, assim
como pressupõe o conhecimento, a reflexividade e a tecnologia
como valores sociais fundamentais na contemporaneidade. O
agora é efervescente e, por isso mesmo, tem se tornado foco
principal das incursões filosóficas em diversas áreas do conhe-
cimento, de modo que as diferentes perspectivas de observa-
ção da contemporaneidade acabam por disseminar formas de
designação muito dissonantes para nosso momento histórico:
Sociedade Pós-moderna (Frederic Jameson, 2007); Sociedade
Líquida (Zygmunt Bauman, 2001); Sociedade Pós-industrial
(Daniel Bell, 1999 [1973]); Sociedade Programada (Alain Tou-
raine, 1994); Sociedade Super-Moderna (Georges Balandier,
1971); Pós-Modernidade Inquietante ou de Oposição (Boaven-
tura Souza Santos, 1999 [1994]); Modernidade Tardia (Stuart
Hall, 2006 [1992]); Sociedade do Risco (Ülrich Beck, 1997);
Sociedade do Espetáculo (Guy Debord, 1997 [1967]); Regime
Farmacopornográfico (Beatriz Preciado, 2008); Sociedade de
Acesso (Jeremy Riffkin, 2001); Sociedade da Informação (Ma-
nuel Castells, 1997); Sociedade Pós-Teórica (Terry Eagleton,
2011); e Cultura Somática (Jurandir Costa, 2004), entre outros.
Esta pluralidade conceitual com a qual a contemporaneidade
é predicada e o olhar multifacetado que a toca ajudam a cons-

29
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

truí-la como um fenômeno dinâmico, fluido, plurissignifican-


te e não tão simples de teorizar, já que “a realidade está sempre
em trânsito” (FABRICIO, 2006).
As distintas apreensões supracitadas da dinâmica reali-
dade que experienciamos se propõem a descrever os novos
itinerários da subjetividade contemporânea realçando carac-
terísticas socioeconômicas e culturais que alicerçam a vida
coetânea como:

A - Reinado da Imagem (Debord, 1997 [1967]; Kress &


Van Leeuwen, 1996): a proliferação das performances imagís-
ticas de si e sua sobrepujança frente a outros signos, como a
palavra, estimula o cuidado com a imagem como uma exte-
riorização da subjetividade;
B - Visibilidade e Voyeurismo (Costa, 2004; Debord, 1997;
Baltar, 2013): a relevância da imagem traz a importância da
visibilidade para atenção, isto é, de ser visível para o Outro. A
centralidade da imagem ressalta o prazer da livre prática do
olhar, de percorrer os limites do Outro e de sua imagem, de
vê-lo, e assim, sabê-lo;
C - Hipersemiose e Circulação Acelerada de Semioses
(Blommaert, 2005, 2010; boyd, 2008): a contemporaneidade
nos apresenta uma proliferação de recursos semióticos (lin-
guísticos, imagísticos, sonoros etc), de discursos e de imagens
que circulam de forma muito acelerada, e cuja circulação, em-
bora por vezes regulada, é difícil de conter. A multiplicidade
de sistemas de significação nos processos de construção de
sentidos, sua excitabilidade e sua intertextualidade tornam
visões estáticas e normativas da linguagem e dos repertórios
semióticos, defasadas e sem respaldo empírico;

30
Gleiton Matheus Bonfante

D - Imediatismo (Fridman, 2000; Halberstam, 2005): a


temporalidade está hoje alterada. A medição do tempo, fluido
e subjetivo, através de parâmetros socioeconômicos nos fez
hipervalorizar o tempo como uma espécie de capital e expe-
rienciar o ócio e a tranquilidade como perdas. A imediati-
cidade também se apóia na urgência de sanar e satisfazer os
desejos/as sensações do corpo na cultura somática;
E - Cultura Somática (Costa, 2004): o triunfo do corpo e
suas sensações frente à mente conduzem à valorização da boa
forma física e à corporificação do “eu”, instaurando o corpo e a
experimentação sensória como grandes valores pós-modernos;
F - Tensão entre Público/Privado (Lazzara 2010; Berlant
& Warrent, 2003; Baltar, 2013): o embate entre o próprio sen-
tido opositivo, entre íntimo e público, assim como uma com-
pulsão social por simultaneamente mostrar-se e preservar-se,
reinventam valores sociais quanto às políticas de visibilidade
e transmutam paradigmas culturais, como a censura;
G - Reflexividade (Beck et al, 1997; Eagleton, 2011): como
característica incontornável de nossa era, contribui para a
compreensão do atual ethos do conhecimento como contin-
gente e colaborativo. A Reflexividade é uma atitude contem-
porânea, que prevê uma fé inabalável nos sistemas de exper-
tise, atribuindo à ciência, à racionalidade e ao conhecimento
um caráter metafísico e confortante de verdade absoluta;
H - Tecnologização das Relações Sociais e do Próprio
“Eu” (Preciado, 2008): uma profusão de aparatos técnico-se-
mióticos (celulares, medicamentos, próteses, silicone, entre
outros) que se acoplam aos sujeitos, faz parte de corpos e de
processos de subjetivação, tecnologizando as relações subjeti-
vas e interpessoais e redimensionando-as indescritivelmente.

31
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Entre as possíveis e plausíveis designações para a nossa


contemporaneidade baseadas no recorte analítico dos auto-
res citados, duas delas merecem especial atenção nesta Eróti-
ca dos Signos, justamente por melhor capturarem o conjunto
de hábitos, crenças e valores característicos que perpassam a
contemporaneidade e por mais adequadamente se ensambla-
rem no gesto analítico que empreendemos e nas supracitadas
singularidades do contemporâneo que desejamos tornar sa-
lientes. Sociedade do Espetáculo (Guy Debord, 1997 [1967])
e Regime Farmacopornográfico (Paul B. Preciado, 2008),
embora separadas por quarenta anos, são abordagens do
agora especialmente interessantes, por se comprometerem
com a definição de uma sociedade que nos confronta com
sujeitos errantes pelo universo dos desejos; sujeitos espeta-
culares, que são espectadores e performers, e que não o são
sem as plataformas midiáticas e químicas através das quais
se fazem sujeitos. Ambos os conceitos assinalam novas ro-
tas no vir a ser do sujeito ressaltando a tecnologização das
relações interpessoais e dos próprios corpos e a tensão entre
público – mostrar-se – e privado – resguardar-se. Apontam
também para a ideia de imediatismo de nosso momento his-
tórico, para a priorização da imagem e do cuidado com ela,
e para hipersemiotização da vida social. De Debord (1997
[1967]) nos interessa principalmente a dimensão espetacular
como paradigma societal. Embora ele descreva uma socieda-
de separada cinquenta anos no tempo, não podemos deixar
de reconhecer seus méritos pelas reflexões pioneiras sobre a
espetacularidade como projeto pós-moderno.
Já o Capitalismo Farmacopornográfico, este novo regime
socioeconômico “quente, psicotrópico e punk” que regula a

32
Gleiton Matheus Bonfante

contemporaneidade, nos interessa porque articula, segundo


o filósofo espanhol8, uma coleção de novos “dispositivos mi-
croprostéticos de controle da subjetividade com novas plata-
formas técnicas biomoleculares e midiáticas” (PRECIADO,
2010:31-32) que promovem o vir a ser do sujeito. Em outras
palavras, as subjetividades e identidades contemporâneas se
apoiam em ‘tecnologias de subjetivação’ (FOUCAULT, 1988b)
– Preciado (2008) diz próteses da subjetividade – e em subs-
tâncias químicas para existir, para se estilizar, construir seus
corpos, produzir efeitos orgânicos e dar forma robusta à ver-
dade sempre transitiva de si. Em outras palavras, nós viemos a
ser, adquirimos consistência através de técnicas de existência
reguladas por plataformas midiáticas e por suportes farmaco-
lógicos. Assim como Debord (1997 [1967]), Preciado propõe
a centralidade do consumo da espetacularidade de sujeitos e
seus corpos para a vida social contemporânea. Contudo, o au-
tor, que relata sua adicção em injetar-se testosterona, propõe
ser também o consumo de fármacos um legítimo exercício
de si, uma técnica de existência, de modo que na contempo-
raneidade os sujeitos se mesclam em tal grau com suas subs-
tâncias químicas e plataformas midiáticas que não sabemos
quem é anterior a quem. Tanto intervenção farmacológica
na experiência do corpo como corpo, quanto a adesão a um
código-território midiático são performances que operam na
estilização de si. A tecnologia intervém na realidade social e
transforma a ereção em Viagra, a capacidade de concentração
em Ritalina, a musculatura em anabolizantes. Também as ru-

8 Beatriz Preciado anunciou sua mudança de gênero e atende por Paul Beatriz Preciado, entretanto,
à época de publicação do texto referido, performava-se como Beatriz. Portanto, embora tenha havido
um cuidado para tratar o autor como Paul, é possível que as referências neste texto oscilem entre as duas
performances do escritor.

33
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

gas, celulites, e estrias são ‘photoshopadas9’ e a pele, o corpo


gozam as delícias de ser visível, de se estilizar ao nosso desejo
de nós mesmos. Nas palavras do filósofo:

A sociedade contemporânea está habitada por subjeti-


vidades toxicopornográficas: subjetividades que se de-
finem pela substância (ou substâncias) que domina seus
metabolismos, pelas próteses cibernéticas através das
quais se tornam agentes, pelos tipos de desejos far-
macopornográficos que orientam suas ações. Assim
falaremos de sujeitos Prozac, sujeitos cannabis, sujeitos
cocaína, sujeitos álcool, sujeitos ritalina, sujeitos corti-
sona, sujeitos silicone, sujeitos heterovaginais, sujeitos
dupla-penetração, sujeitos Viagra, etc. (PRECIADO,
2010:33. Grifos meus.)

Ele explica que as subjetividades pós-modernas são go-


vernadas pela indústria biomolecular “fármaco” e semiótico-
técnico “pornô”, de modo que os sujeitos são dependentes de
próteses de subjetividade como fármacos (entre eles, drogas
legais e ilegais), tecnologias (cirurgias plásticas, máquinas fo-
tográficas e filmadoras) e plataformas online (como Facebook,
sites de pornografia, apps de pegação) para virem a ser. No
regime farmacopornográfico, nos interessa especialmente os
aparatos técnico-semióticos que auxiliam os sujeitos em seus
processos de subjetivação; aparatos e plataformas que confi-
guram verdadeiras tecnologias para o cultivo de si, como as
plataformas midiáticas de relacionamento específicas dos ce-
lulares, os aplicativos de pegação, lócus da investigação aqui
relatada. Como nos interessa a estilização do corpo, o papel

9 O corpo sofre intervenção tecnológica de programas de manipulação de imagem como o Photoshop.

34
Gleiton Matheus Bonfante

da intervenção farmacológica ou médica no capitalismo psi-


cotrópico e sensual não será olvidado aqui e, quando perti-
nente, será invocado como constante na construção de si.
Paul Preciado identifica ainda a entrada do corpo auto-
pornográfico – aquele que se performa, aderindo à estética
da pornografia – como nova força da economia mundial.
Não apenas porque o mercado adotou a lógica da pornografia
e sua expansão avassaladora via web, mas também, e prin-
cipalmente, porque a iminência de pornificar-se nos ronda,
ou seja, basta ao sujeito possuir um corpo e um aparato de
reprodutibilidade (como câmeras de vídeo ou fotografia, ou
um celular equipado com elas) para ascender ao mercado do
pornô, ou simplesmente para figurar como um sujeito do de-
sejo, um sujeito-desejo ou um sujeito-objeto de desejo. Como
veremos, os corpos nos dias de hoje tendem a se pornificar, a
aderir à lógica da sensualidade, adotando performances que
nomeei íntimo-espetaculares. Fato que nos faz questionar
se as performances íntimo-espetaculares de nossos corpos
seriam uma estratégia de criação/produção de nosso corpo
como inteligível. O capitalismo sempre foi o empreendimento
da sedução, e está disposto a se pornificar para triunfar. Por-
nificar-se para o “capitalismo farmacopornográfico” (PRE-
CIADO, 2008) significa abraçar o corpo e suas sensações
como uma das mercadorias mais profitosas para investir em
performances íntimas como espetáculo.
A mídia e o mercado, como propõe Debord (1997 [1967]),
foram invadidos, tomados pelo tecnocorpo como espetáculo,
justamente pelo seu potencial de afeto sobre outros corpos.
A noção de espetáculo e de corpo espetacular nos interessa
em especial porque no regime farmacopornográfico o corpo

35
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

funciona como “fonte de capital ejaculante” (PRECIADO,


2008) e a mercantilização das sensações do corpo e do pró-
prio corpo é uma característica insuperável da ordem econô-
mica farmacopornográfica. Os corpos, os sujeitos, os desejos
e sua satisfação estão todos aptos ao consumo nos apps de
pegação, e o espetáculo que inauguram é a alma do negócio.
O próprio sentido de felicidade na contemporaneidade não se
baseia na plenitude, ou na realização pessoal ou profissional,
mas na “satisfação sensorial” (COSTA, 2004), na satisfação
dos desejos do corpo. Não só o corpo está em voga, mas as
suas sensações, a sua experimentação.
De acordo com Costa (2004), a personalidade somática
contemporânea baseia sua identidade no narcisismo e no he-
donismo. Para ele, essa organização social em torno do corpo
é o efeito histórico de um remapeamento cognitivo do corpo
físico e da cristalização de uma moral contemporânea sus-
tentada no corpo, no sensório e no espetáculo. De acordo
com o psicanalista, a cultura somática possuiria entre suas
características: (a) a alteração na percepção cultural do corpo;
(b) uma consequente revalorização ou reinvocação do cor-
po na construção das identidades, justamente por vivermos
um ‘processo de individualização’, no qual nos diferenciar-
mos dos outros é uma condição do sentimento de existência;
(c) recusa da divisão cartesiana entre mente e corpo e uma
convocação das sensações do corpo para várias dimensões da
área social, inclusive no âmbito da ciência10; e, por fim, (d) o
encantamento pelo corpo ‘sarado’e boa forma física.

10 Veja Bolton (2003), Kendall (2008), Bonfante (2015) e Díaz-Benítez (2007) para uma discussão
sobre a invocação aspectos sensoriais e sexuais na pesquisa etnográfica.

36
Gleiton Matheus Bonfante

Nos apps de pegação, o conceito de cultura somática ilu-


mina a perambulação do corpo errante e utópico pelo uni-
verso dos desejos. Evidencia a emergência da satisfação de
seus ensejos e ânsias em prol de sua coleção de sensações,
justamente porque o foco no corpo “exacerbou a atenção dos
indivíduos para com a sensorialidade” (COSTA, 2004:192).
Assim, as performances íntimo-espetaculares nos apps são,
não apenas técnicas de existência, mas práticas culturais so-
cialmente prestigiadas e desejáveis, pois comunicam um po-
tencial de estímulo sensorial e de gozo. Tais promessas de
estímulo corpóreo e de gozo performadas pelo sujeito do de-
sejo possuem valor capital e inauguram “uma temporalização
masturbatória da vida” (PRECIADO, 2008:37).

1.2 Performance como técnica de existência ou a


inspiração foucaultiana no interesse pelo sujeito

O mostrar-se é, na contemporaneidade, uma técnica de si


e uma técnica de existência, de modo que a performance dos
sujeitos pode ser muito elucidativa da própria sociedade e deve
ser inquirida de forma crítica e ética. Mostrar-se representa na
sociedade farmacopornográfica uma questão pela qual arris-
camos nossa integridade física. Como a Cena I apresentada no
Prelúdio sugere, poderia-se assegurar que o performar-se, o
mostrar-se configure uma questão de vida ou morte. A existên-
cia se reinventou atestável, como se a comprovação semiótica
da vida fosse indispensável ao próprio sentido contemporâneo
de vitalidade; como se a performance semiótica de si se afigu-
rasse como a própria condição subjetiva, como a mais legíti-
ma “técnica de existência” (FOUCAULT, 2014), e como a única
possibilidade de condensar a presença material do sujeito, sem-

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

pre disperso no discurso. “Técnica de existência” é um concei-


to foucaultiano que se refere a práticas culturais, as quais vêm
articular um indivíduo consigo mesmo, com o socius, e com
sua própria existência, fazendo surgir desta articulação um su-
jeito. As técnicas de existência supõem que não existimos sem
nossa cultura, sem a intermitente presença do Outro, e sem a
nossa inevitável inserção no simbólico. A performance íntimo
-espetacular de si se configura como uma das mais populares
técnica de existência da contemporaneidade, tanto por sua re-
lação prazerosa com o olhar, com o Outro voyeur, quanto por
sua relação prazerosa com o mostrar-se, com o desnudamento
de si. A ideia de autoexibição como uma faceta da vida social
supera o sentimento de obscenidade da nudez (SIBILIA, 2011).
Além da análise das performances íntimo-espetaculares
de si através do conceito foucaultiano de “técnica de existên-
cia” e da compreensão dos apps de pegação como “tecnolo-
gias do sujeito”, o interesse de Michel Foucault pela sujbjeti-
vidade, i.e., por como um indivíduo se faz sujeito, permeará
este livro de cabo a rabo. Apesar das grandes contribuições
do pensamento foucaultiano acerca do poder, da sexualidade
e do próprio discurso, sua preocupação principal, o fio con-
dutor de sua obra, foi na verdade o sujeito: “Meu objetivo […]
tem sido criar uma história dos diferentes modos, através dos
quais, em nossa cultura, seres humanos são feitos sujeitos”
(FOUCAULT, 1982:208).
De acordo com Foucault, existiriam três modos de ob-
jetificação que operam na transmutação de indivíduos em
sujeitos: (1) o biopoder – o poder exercido nos sujeitos e seus
corpos pela biologia como baliza da verdade; (2) os regimes
de verdade de uma época: discursos que submetem o sujeito

38
Gleiton Matheus Bonfante

às leis morais e interesses específicos a determinado contexto


sócio-histórico; e, finalmente, (3) a cultura e os discursos que
tomam o indivíduo, que o interpelam, o capturam em uma or-
dem simbólica da qual nunca poderão escapar, submetendo os
sujeitos a uma ordem simbólica da qual serão sempre objetos.
As técnicas de si são procedimentos para vir a ser sujeito
que se interrelacionam com uma ou mais das dimensões obje-
tificantes do processo de subjetivação supracitadas, de modo
que também a performance de si está em estreita relação com
a objetificação e com seus efeitos, não apenas como colabo-
radora inerte e passiva da ordem e da norma, mas também,
e principalmente, como sua desafiadora, sua perturbadora
mais incansável. As performances íntimo-espetaculares de si
que estudo nesta investigação não estão comprometidas com
o reflexo do que somos, mas com as múltiplas possibilidades
de ser, com a intangibilidade dos devires, com a possibilidade
da fundação de novos roteiros de subjetivação.
Como propõe Foucault, “[n]ós temos que promover no-
vas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de
individualidade que nos tem sido imposta por muitos sécu-
los” (FOUCAULT, 1982:216). E é esta insurreição a formas
pré-determinadas de ser, como pretendo argumentar, que a
performance íntimo-espetacular de si pode viabilizar, como
um gesto timidamente disruptivo dentro do perpétuo exercí-
cio de nós mesmos.
Assim, neste livro, vamos percorrer as tramas da subjeti-
vidade interessados em como indivíduos – ora em tensão, ora
em conformidade com as normas morais de sujeição social e
com as vontades de verdade de nossa época – se fazem sujei-
tos do desejo. Sujeitos que existem através de suas inovadoras

39
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

– ou conservadoras – formas de estilizar-se, nas suas especí-


ficas – ou genéricas – tipificações, na sua complexa singula-
ridade – ou trivialidade –, nos novos códigos-territórios que
habitam, em uma ambivalência constitutiva da tensão entre
sujeito e ordem moral. Na Erótica dos Signos, nos interessam
as resistências às imposições seculares a formas de assujeita-
mento, assim como as performances que corroboram com a
manutenção de certos roteiros subjetivos. Através das perfor-
mances tanto de resignação quanto de resistência nos apps
nos rebelamos, nos reinventamos, performativos, sensuais,
vibrantes em desejo e, acima de tudo, visíveis.

1.3 A espetacularização do íntimo

A performance íntimo-espetacular é uma estilização de


si que vem orientando novos roteiros de subjetivação na con-
temporaneidade. São performances muito típicas nos apps de
pegação que se apoiam na visibilidade dos corpos, e nos afetos
que sua performance podem produzir. A visualidade/a visibi-
lidade do sujeito, do seu corpo, do seu sexo, de sua intimidade
e de seus desejos são trazidas à performance para fazer flo-
rescer, para dar a ver, na revelação de si, o potencial de gozo
e o poder de excitação de um corpo como sua verdade mais
significativa. Na sociedade somática (COSTA, 2004), a sexua-
lidade e o desejo se aliam à performance multissemiótica para
estilizar o sujeito e para afetar outros corpos, provocar efeitos
corpóreos no Outro. Performances íntimo-espetaculares con-
figuram uma técnica de existência pós-moderna corriqueira.
Como se o silêncio do corpo, o silêncio do ser sobre si
mesmo fosse da morte seu sinônimo mais assertivo, mos-

40
Gleiton Matheus Bonfante

trar-se cada vez mais e mais intimamente por meio de textos


e imagens se delineia como condição vital na contempora-
neidade. Com razão, para Baltar (2013:4), “no contexto da
contemporaneidade, de um modo mais adensado ainda, ser
visível (em especial dar-se a ver) é existir.” Tais instâncias
da autoexposição se alinham a uma lógica que se define no
intervalo entre ativamente mostrar-se e o livre exercício do
olhar, estabelecendo uma relação indelével entre eu e o Ou-
tro. As personalidades performativas de nosso tempo exis-
tem entre as duas extremidades no contínuo do prazer: de
um lado, a autoexposição e a performance do íntimo e, de
outro, o voyeurismo.
Ao mostrar-se intimamente, o sujeito verte seu corpo,
seu sexo e seus desejos em complexos semióticos. As semioses
do desejo pressupõem uma performance excitável: palavras
e signos excitantes, que afetam. Embora mostrar-se seja uma
das técnicas de existência mais tradicionais, a pós-moderni-
dade introduz o performar-se sensual e intimamente como
uma técnica de existência viável, desejável e prazerosa e que
afeta mais, por ser confessional, autorreferencial. O “design
do sexo” (PRECIADO, 2008) é pensado, refletido, cuidado na
performance, não apenas para atribuir existência a sujeitos,
mas para mobilizar, para afetar, para produzir efeitos corpó-
reos, como a excitação e o orgasmo.
A visibilidade e a visualidade, mesmo que textuais, mobi-
lizam prazeres e são subentendidas na estilização dos corpos.
Irrecusável é a conjunção, o envolvimento entre o saber-o
-Outro e o desejar-o-Outro. Irrefutáveis são os vínculos entre
performance, realidade e afeto. Tanto o mostrar-se quanto o
ver mais e mais intimamente são instâncias do prazer e quan-

41
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

to mais intimamente nos mostramos, mais “reais” somos.


Nudez é sinônimo de transparência, de verdade.
A questão da relação entre visibilidade e realidade, mais
especificamente, a conexão entre a máxima visibilidade e a
realidade dos corpos, foi o interesse de Mariana Baltar (2013)
na análise de uma série de filmes11 pornográficos protagoni-
zados por casais reais. O intuito de sua análise era entender
como o “frenesi do visível” (WILLIAMS, 1999 [1989]) – prin-
cípio norteador da semiologia pornográfica – se alia à ‘reali-
dade’, à tangibilidade destes casais na produção do afeto12, ao
agir sobre o corpo, tocá-lo e produzir sobre ele efeitos como
a excitabilidade. Ela explica que os efeitos do prazer da visi-
bilidade se intensificam na associação entre explícito e real13.
Propõe, então, “que ao dar a ver a concretude corpórea do su-
jeito, dá-se a ver o sujeito naquilo que lhe é mais próprio: seu
sexo, sua existência. […] [D]ar a ver (e dar-se a ver) mobiliza
prazeres; e […]dar a ver (e dar-se a ver) no âmbito da intimi-
dade afeta mais ainda” (BALTAR, 2013:4).
A revelação da sexualidade, o desvelamento da intimi-
dade, a confissão dos desejos corresponde tradicionalmente
na subjetividade ocidental à revelação da verdade de si mais
íntima. No entanto, a verdade de si não é uma substância que
aflora na palavra, a verdade é produzida, fabricada nos pró-
prios discursos que a descrevem. Para Foucault (2008), nas
suas aulas reunidas no livro O Governo dos Vivos, três leis que
11 Os documentários pornográficos de Tony Comstock contam com cinco filmes que retratam a vida
sexual de cinco casais, cada filme tem como título o nome dos casais.
12 A pornografia é uma performance de um corpo que tenciona causar um afeto em outros corpos. A
dimensão do afeto é essencial à performance pornográfica. De forma análoga, acredito que para a perfor-
mance íntimo-espetacular de si também seja a produção de afeto uma característica típica.
13 Vale lembrar a atual profícua produção de filmes pornôs que apostam na estética amadora: am-
bientes domésticos, precariedade de equipamentos técnicos, corpos reais, que escapam aos padrões de
beleza midiáticos. Para Preciado (2008), a possibilidade do sujeito comum de se pornificar é um dos
combustíveis da nossa ordem econômica: o capitalismo farmacopornográfico.

42
Gleiton Matheus Bonfante

regulam a relação entre sujeito e verdade na sociedade oci-


dental são identificadas nesta histórica articulação entre ver-
dade e subjetividade: (1) Lei do aprofundamento ao infinito
que invoca a atenção a todo detalhe de mim mesmo, por me-
nor que seja; (2) Lei da Exteriorização que prevê a necessidade
de exteriorização, discursivização da verdade de nós, e (3) Lei
do tropismo, a qual, mais do que revelar a verdade, trata de
produzir a verdade. Não se propõe a desvelar uma verdade
interior, mas faz aparecer, por meio de um trabalho de apro-
fundamento em si mesmo, uma verdade que não estava lá
oculta, mas que nasce nesta busca pelo secreto. O sujeito pas-
sou, segundo Foucault, a ser uma peça fundamental na arti-
culação entre verdade e subjetividade justamente porque não
há uma verdade interior, esperando ganhar voz. É o próprio
sujeito que faz surgir sua verdade através de (1) uma atenção
intensiva aos pequenos detalhes de si, (2) um movimento de
exteriorização de si, de colocação de si em discurso e (3) um
mergulho nas profundezas não para exteriorizar a si mesmo,
mas para criar uma verdade que não estava lá, de modo que
a verdade do sujeito não aguarda sua revelação, mas é ativa-
mente desenhada na inflexão do sujeito consigo mesmo. Nas
palavras de Foucault:

Nessa obrigação de falar de si, vocês vêem o lugar que


o discurso tomou: colocar em discurso a si mesmo, eis
com efeito uma das grandes linhas de evolução, linhas
de força, na organização da relação subjetividade ver-
dade no Ocidente cristão. Subjetividade e verdade não
se comunicam mais simplesmente, primordialmente
ou, em todo caso, não se comunicam somente no aces-
so do sujeito à verdade: será preciso sempre que exista

43
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

essa inflexão do sujeito em direção à sua própria verdade


por intermédio da colocação em discurso perpétuo de si
mesmo. (FOUCAULT, 2008:138)

A revelação da dimensão desejante do sujeito é um evento


sensacional não apenas porque a exibição do íntimo afeta ain-
da mais intensamente, mas também porque é um exercício de
exteriorização da verdade. Como propõe Foucault (2008), a re-
velação da verdade é antes de um fenômeno de exteriorização,
um fenômeno criativo, uma performance do sujeito, um efeito
da participação do sujeito na relação entre verdade e discurso.
A verdade – e porque seria diferente? – também é performance.
Para Paul B Preciado, com razão, não haveria nenhuma
revelação na exibição do sexo. A performance íntimo-espe-
tacular de si pressupõe uma espetacularização através da se-
miotização do sexo e sua consequente estilização. Como ela
explica, “Não há nada a ser revelado no sexo nem na identida-
de sexual, não há nenhum segredo escondido. A verdade do
sexo não é revelação, é sex design” (PRECIADO, 2010:34). As-
sim, a exibição da intimidade nos apps é espetacular porque
é uma performance que afeta o Outro articulando os signos
da verdade de sia uma performance de estilização da deseja-
bilidade. A performance do potencial de excitabilidade de um
corpo configura uma técnica de existência na contempora-
neidade “somática” (COSTA, 2004), “espetacular” (DEBORD,
1997[1967]) e “farmacopornográfica” (PRECIADO, 2008).

1.4 Descrição dos capítulos

A exibição da intimidade em performances do sujeito


desejante são o foco de investigação da Erótica dos Signos

44
Gleiton Matheus Bonfante

que, ao longo do seu desenvolvimento, norteou-se pelas se-


guintes perguntas: Como se dá a estilização de si do sujeito
do desejo nos apps de pegação? Quais modelos de autoexpo-
sição são mobilizados? Quais recursos semióticos são em-
pregados na estilização online de si? Haveria padrões, frames
de inteligibilidade acerca dos corpos? E acerca dos desejos?
Considerando as discussões sobre o corpo e seus signos
e como eles vêm a ser na performance, na ação, optei por
centrar-me na análise dos perfis e de seus elementos como
o nickname e as imagens. Tradicionalmente, o nick – um
nome escolhido para representar uma pessoa online – tem
sido o principal recurso de estilização de si online. Conhe-
cidamente, outros recursos também são utilizados em di-
versas plataformas. Nos apps de pegação, por exemplo, além
do nickname, estão entre tais estratégias de estilização de si
os avatares – as fotos que passam a representar uma pessoa
–, o about – um espaço destinado a uma pequena descrição
de si –, a headline – um espaço destinado a uma frase cha-
mativa, de impacto – e a listagem de dados pessoais, como
altura, peso, idade, etnia. Todos esses mecanismos de au-
torreferenciação não apenas colocam o sujeito em relação
consigo mesmo, com seu corpo e com sua identidade social,
mas também possibilitam aos sujeitos se construírem, se es-
tilizarem, delinearem e atribuírem materialidade a seus cor-
pos e desejos. Assim, baseando-me em uma discussão sobre
performance, poder criativo da atividade semiótica e desejo,
me proponho a responder: (1) Quais estratégias semióticas
são empregadas na produção do sujeito do desejo em aplica-
tivos de pegação? (2) Como se dá a articulação entre sujeito,
desejo e verdade nesses aplicativos? (3) Como os sujeitos on-

45
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

line, na composição de seus perfis, performatizam e estili-


zam seus corpos, seus desejos e verdades de si?
Respondo a essas perguntas investigando as performan-
ces de sujeitos desejantes pelas tramas da semiose do desejo
e do tesão nos apps de pegação, através do percurso explici-
tado a seguir.
Como esta obra se dedica a estudar de que modo atores
sociais constroem seus corpos e seus desejos semioticamente,
o nickname e o avatar, assim como os demais recursos semió-
ticos empregados na caracterização de seu perfil online, são
de grave interesse, pois eles nomeiam nossos corpos, desejos e
existências, e ao nomeá-los, atribuem-lhe consistência, mate-
rialidade histórico-discursiva. No Capítulo 2 discuto as bases
epistêmicas que inspiram as pressuposições teóricas nortea-
doras da escritura deste texto.
Abordo as noções de (a) linguagem como ação e (b) rea-
lidade como dependente de efeitos discursivo-semióticos, ba-
seando-me na revolução epistêmica que a teorização de John
Austin sobre os atos de fala provocaram na área dos estudos
da linguagem. Também exploro o caráter interpelativo da lin-
guagem, assim como a relação entre corpo e agentividade. Fi-
lósofos como Michel Foucault, Paul Beatriz Preciado e Judith
Butler me acompanham no debate proposto.
No Capítulo 3, me dedico à descrição das peculiarida-
des do microcontexto de investigação, i. e, os apps de pega-
ção e seus participantes. Embora as plataformas midiáticas
nas quais os indivíduos performam exercícios de si tenham
sido identificadas por alguns autores como Preciado (2010) e
Domingues (2008) como próteses tecnológicas, eu as anali-
so como tecnologias de subjetivação, tanto no sentido de um

46
Gleiton Matheus Bonfante

aprimoramento técnico do processo de subjetivação, como


uma prática cultural através da qual um indivíduo se faz su-
jeito. Também discuto como os apps são código-territórios
onde se desenvolvem atividades semióticas e desejantes espe-
cíficas, defendendo a necessidade do entendimento dos terri-
tórios sociais (inclusive os virtuais) como impreterivelmente
inscritos em discursos.
Outra proposta a que se lança o terceiro capítulo é dis-
tinguir os apps das plataformas de computadores quanto à
importância de geolocalização. Os apps se alojam no corpo
e acompanham os sujeitos por toda parte, resignificando as
dimensões espaço-temporais e subvertendo concepções nor-
mativas de tempo e de espaço. Ao apresentarem aos sujeitos
uma temporalidade apressada, fugidia, simultânea, compri-
mida no agora, os apps desafiam assunções heterocapitalistas
de vivência do tempo. E ao viabilizarem o afeto dos corpos,
mesmo in absentia, os apps inauguram a ausência como ex-
periência sensória intensa e a dois. Por último, explicito o
que denomino semiose do desejo, caracterizando-a como um
conjunto de signos disponibilizados pelo sujeito nas perfor-
mances de si como seres desejáveis e desejantes.
No Capítulo 4, apresento a metodologia orientadora do
processo de investigação. Nele, critico a distinção entre “eu-
”(pesquisador) e o “Outro” (pesquisado), o ideal de objetivi-
dade e a noção de autoridade etnográfica, inspirando-me na
minha experiência como “pesquisador in-mundo” (ABRAH-
ÃO, 2014), que compartilha o mundo social com seus infor-
mantes. Discuto a produção e a sustentação da distinção entre
sujeito e objeto na narrativa científica como uma estratégia
de criação de uma assimetria de conhecimento, assim como

47
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

discuto a importância da ponderação sobre o nível de envol-


vimento do pesquisador com as práticas estudadas e os efeitos
de sua presença no campo.
No quarto Capítulo destaco ainda a Erótica dos Signos,
termo que utilizo para denominar a etnografia virtual eleita
como metodologia de análise dos signos do sujeito e de seus
desejos. Advogo uma hibridez metodológica e uma apropria-
ção indisciplinar da produção de conhecimento que respeita
as sensações e os sentimentos como legítimos produtores de
saber e que aposta na descrição minuciosa como principal
movimento analítico. Discuto a necessidade de uma metodo-
logia de análise sempre nova, que se adéque ao seu objeto de
análise e que constantemente se reinvente ao desafiar enfer-
rujados paradigmas, e evitar que as teorizações sociais sejam
anacrônicas. Reivindico, ademais, o reconhecimento da sub-
jetividade, do corpo e dos desejos do investigador como infle-
xões de produção de conhecimento.
No Capítulo 5, empreendo a análise multissemiótica dos
perfis observados durante a imersão em campo, focalizando
a estilização do sujeito desejante. Os perfis foram organiza-
dos em uma narrativa que percorreu diferentes trajetórias na
performance de si no que tange a (1) estratégias semióticas
(tatuagem, racialização, cariocalidade, jeito, bem-estar cor-
póreo, entre outros); (2) estratégias retóricas (gírias, morfo-
logia, palavras tabu, entre outros); (3) congruência temática
(sexo, romance, política, etc.); (4) recursos visuais (fragmen-
tação, redundância indexical); (5) apropriações específicas re-
lacionadas com o design da plataforma (agilidade, metaprag-
mático). Contudo, performances singulares, ou disruptivas,
as (6) performances desidentificatórias também foram consi-

48
Gleiton Matheus Bonfante

deradas como relevantes. Ao todo são descritos setenta e um


perfis. Processos multissemióticos de tipificação de si, como
indiciação rizômica, saliência pragmática, metonimização/
fragmentação, “desidentificação” (MUÑOZ, 1999) e redun-
dância indexical são identificados e discutidos na sua relação
com as performances de sujeitos desejantes/desejáveis.
No Capítulo 6, o capítulo final, organizo os resultados da
investigação e esboço uma (in)conclusão explorando as novi-
dades trazidas para a área de conhecimento e traçando novos
possíveis percursos para o desenvolvimento da área de saber.
Proponho que a performance – uma prática de significa-
ção (cf. Coupland, 2007) – se associa na contemporaneidade
à contínua exposição da intimidade e do mostrar-se espeta-
cularizado. Ser visível – ou existir – é uma questão de vida
ou morte. Ao sugerir que a performance online é uma relação
dialógica de afeto, convido o leitor para mergulhar em uma
reflexão acerca do desejo e para submergir na liquidez do ago-
ra, em uma era individualista na qual olhamos mais para a
própria tela e, muitas vezes, para nós mesmos dentro dela.
Convoco o leitor a explorar uma sociedade em que nosso cor-
po não é uma prisão biológica, mas uma força motriz de po-
tência orgásmica que produz nossa própria existência, na qual
vislumbramos a propagandização do sexo e da sexualização
como produtos, em uma lógica capitalista quente, sensual e
pervasiva. Conclamo o leitor a desbravar a lógica da autoex-
posição em uma época na qual somos dependentes não ape-
nas de nossas performances da intimidade para existir, mas
também das plataformas midiáticas e técnicas por meio das
quais nos mostramos, nos estilizamos e nos fazemos sujeitos.

49
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Incito-o, enfim a ‘penetrar’ na Erótica dos Signos, se dei-


xar levar por uma narrativa subjetiva e política que entende o
discurso como formativo; a explorar a tirania, a onipotência
do olhar, a presença da alteridade na interpretação dos sig-
nos, a presença do Outro em quem nós somos, e a discutir os
efeitos desta constante interpelação na sociedade da imagem.
A questão da performance íntimo-espetacular como um
meio para existir, já amplamente manifestada até agora no
texto, é baseada em pressupostos filosóficos e ganha atenção
especial no próximo capítulo. A nomeação é uma ação sem-
pre do Outro sobre nós? Seria possível interpelarmos a nós
mesmos através da criação de nicknames? Seria o nickname
uma forma de nos constituirmos? Quando adotamos outro
nome online, estamos livres do peso discursivo de nossos an-
tigos nomes e de nossos pesados corpos descritos por eles?
Conseguimos alterar a nossa própria existência através da re-
nomeação? A fantasia na reinscrição de si no discurso e na se-
miose conhece limites? Essas são algumas das perguntas que
o capítulo seguinte se propõe a discutir.

50
2. Performance,
linguagem e ação: a
construção e a estilização
semióticas do corpo

“Meu nome não é meu:


é produto, corolário
da parolagem mundana
movida a desejo e sonho
de absurda liberdade;
É fruto retardatário
da lavoura onomástca
que deuses e anjos bestas
cultivam neste desterro
e arremedo do Céu íntimo.
Meu nome não sou eu:
é outro, adversário
que combato, mato e como,
filho desnecessário.
Baste o Nome secreto.”
Waldo Motta (sem título) in: O Bundo e outros poemas

“Repetir repetir – até ficar diferente.


Repetir é um dom do estilo.”
Manoel de Barros

51
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Ao longo da segunda metade do século XX, muitos gestos


epistêmicos simultâneos alteraram o que se entende por lin-
guagem, língua e linguística, e provocaram instabilidades sig-
nificativas e necessárias no panorama dos estudos dos signos.
A dinamicidade e a reflexidade contemporâneas trouxeram
várias inquietações filosóficas acerca da linguagem, ajudando
a implodir o longo enlace romântico das investigações linguís-
ticas com o positivismo. Uma das mais relevantes provocações
epistêmicas proveio do filósofo John Austin ao descrever o po-
der performativo – ou agentivo – das palavras. Austin colocou
em cheque o pressuposto de referencialidade da linguagem e,
assim, desafiou dois preceitos clássicos da compreensão da lin-
guagem: 1) entendimento de repertórios semióticos como ins-
trumentos de descrição do mundo 2) linguagem como mero
objeto de mediação entre sujeito e mundo social.
Austin (1990 [1962]) tornou possível pensar a linguagem
para além de sua relação com a mediação e a referencialidade:
ao perceber que serem descritivos era apenas uma das carac-
terísticas dos enunciados, ele deslocou a atenção da verdade
das proposições (a realidade averiguável no mundo que re-
latava a linguagem) para a sua felicidade (para as condições
contextuais que permitem à elocução atingir, alcançar os efei-
tos sociais que se propõe a realizar). O foco no contexto do
enunciado, no ritual e no próprio milieu social onde se desen-
rolam os atos de fala tornou possível postular que a prática da
enunciação não descreve um estado de mundo, mas constitui
a performance de um ato, sobretudo através da constatação
de que um ato de fala poderia alterar uma situação no mundo:
realizar um casamento, fazer uma ameaça, uma aposta, reali-
zar um batismo, nomear um ser.

52
Gleiton Matheus Bonfante

A assunção austiniana introduziu uma perspectiva epis-


temológica na qual a linguagem é uma entidade dinâmica
e com potencial de ação, com poder criador, um poder que
carrega consigo uma responsabilidade ética, já que a discursi-
vização dos sujeitos cria seus limites, seus semblantes e mol-
da seu valor como vidas “dignas de serem vividas ou não”
(BUTLER, 2009), como “corpos que importam” (BUTLER,
1993) ou não. A perspectiva austiniana assume que não haja
distinção entre linguagem e mundo social, e propõe que eles
sejam interdependentes e se definam mutuamente. Ao de-
nunciar a “falácia descritiva”, Austin (1990 [1962]) propõe não
apenas que a linguagem não é um instrumento de referência,
mas também que o mundo não é anterior a ela. A linguagem
não vem representar um mundo que existe, ela o cria e o re-
cria constantemente por meio daquilo que aparenta ser mera
referenciação. A linguagem, ao falar do mundo, o constrói.
Poderia estar se perguntando o leitor: “Quem constrói
quem?”, pressupondo uma estrutura do tipo: linguagem (su-
jeito) constrói (ação)mundo (objeto). Ou poderia duvidar-se
da habilidade de meras palavras – ou imagens – de produzir
efeitos substanciais no mundo. O leitor pode ainda estar des-
confiando da possibilidade de agentividade na produção do
próprio corpo, este cujos contornos tão fixos, tão reais, tão
incontornáveis nos parecem insuperáveis e indeléveis. No en-
tanto, acredito – e em torno dessa crença/observação gravita o
embasamento teórico deste livro comprometido com a pers-
pectiva socioconstrucionista (FABRÍCIO, 2006) – que o sujei-
to pode, por meio da repetida estilização de si, alcançar subs-
tanciais efeitos em quem se é, mudanças na própria carne14.
14 Uma das principais críticas – ver Ortega (2008) – ao construtivismo social é quanto à materialidade,
à coisidade, à organicidade do corpo, que seria algo distinto dos sentidos sociais que o corpo possui.

53
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

A corporeidade, a existência corpórea é entendida como


sendo a mais ‘real’ das experiências e sua relação com o dis-
curso pode soar mística quando se opera dentro de uma pers-
pectiva estável do ser e do mundo, quando se acredita na imu-
tabilidade e na fixidez das identidades sociais, dos jeitos, dos
gostos, dos afetos, dos corpos. Ao contrário de engessadas pers-
pectivas sobre a identidade do sujeito, a modernidade líquida
(BAUMAN, 2003) nos apresenta sujeitos efêmeros, mutáveis,
discursivamente construídos, não apenas porque interpelados
pelo discurso, mas porque estão dispostos a arriscar sua pró-
pria vida (como os sujeitos descritos no Prelúdio, que morre-
ram tentando fazer selfies) para ascender à condição visível de
sujeito. A construção que opera por meio da performance não
é exatamente o fruto de agência subjetiva, mas os efeitos de um
processo reiterativo de predicação, nomeação, referenciação. A
construção discursiva (e cada vez mais multissemiótica) do que
denominamos ‘real’ são os efeitos discursivos que apontam, in-
duzem a uma naturalização do visível como realidade, através
de sua constante reiteração e repetição. Os sujeitos de desejo
nos apps de pegação estão envolvidos em uma tarefa intermi-
tente de (re)construção e estilização usando tanto a linguagem
quanto as imagens como recursos na construção semiótica de
si, e nas práticas de dar-se a ver e de existir na contemporanei-
dade, já que quem não é visto não existe.

Contudo, com Butler (1993), defendo que nós somos os sentidos sociais que permeiam nossos corpos.
O que seriam os corpos sem suas histórias, seus nomes ou os discursos que os compõem? A expressão
“cadáver adiado que procria”, de Fernando Pessoa, aponta para o fato de que serem entendidos em termos
biológicos não é tudo o que os corpos são, mas uma característica deles, apenas. E mesmo seus contornos
mais inegáveis são alcançados por meio do discurso e da repetição. Uma perspectiva que considera a
organicidade como principal material do corpo aposta no biopoder como princípio valorativo e ético, e
tal perspectiva pode ser perversa por pressupor certa essência na composição dos corpos. Essencializar
sujeitos, entedê-los como determinados por sua configuração biológica significa compreendê-los como
imóveis, imutáveis e enraizados aos valores corpóreos a que lhe foram arremetidos por sentidos que são
efeitos sociais da história e dos discursos, e não verdades transcendentais.

54
Gleiton Matheus Bonfante

Construção, como a concebe Butler, “não corresponde


a um sujeito ou a um ato, mas a um processo de reiteração
através do qual ambos, sujeitos e atos, vêm a ser” (BUTLER,
1993:9). Assim, o modo como os sujeitos e suas ações, seus
signos circulam nos discursos, e a maneira como eles são re-
petidos e reiterados pelo e no discurso são constitutivos da
materialidade dos seus corpos. E a ênfase na ideia de proces-
so é imprescindível ao entendimento da construção semióti-
ca de si, porque processo alude auma constante reiteração de
quem somos, de modo que sem os discursos, sem os sentidos
discursivos que habitam nossos corpos, não conseguiríamos
sequer existir. A filósofa explica que “discursos, na verdade,
habitam corpos. Eles se acomodam em corpos; os corpos na
verdade carregam discursos como parte de seu próprio san-
gue” (BUTLER, 2002:163)
Dizer que o discurso é formativo não é propor que ele
funda ou inaugura magicamente uma nova realidade; tra-
ta-se, ao contrário, deum diferente gesto epistemológico em
relação ao próprio fenômeno de referencialidade. A referên-
cia não seria uma forma de falar sobre o mundo, mas de ati-
vamente criá-lo. Esse ponto de vista atribui aos repertórios
semióticos papel central na agência sobre o mundo social,
na produção de efeitos nos corpos. A perspectiva austinia-
na conjura responsabilidade ética ao exercício da linguagem,
já que “dizer é fazer” (AUSTIN, 1990[1962]), e aponta para
a impossibilidade de apreender objetos que sejam anterio-
res ou exteriores aos discursos. Butler propõe que “abordar
ingenuamente ou diretamente um objeto pré-discursivo re-
quer uma delimitação entre discursivo e extradiscursivo que
é linguística e, portanto, forjada dentro dos próprios discur-

55
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

sos dos quais tentamos nos libertar” (BUTLER, 1993:11). A


proposta da filósofa norte-americana, dedicada ao estudo do
gênero e da excitabilidade do discurso, se baseia na Teoria
dos Atos de Fala do filósofo inglês John Austin, que defende
“a continuidade ininterrompível da linguagem e a impossi-
bilidade de separar a linguagem-objeto de uma eventual me-
talinguagem que consiga discuti-la sem ser influenciada por
ela” (RAJAGOPALAN, 2014:13). Em outras palavras, os au-
tores que seguem John Austin sugerem que o papel mediador
que a linguagem desempenha nas relações sociais não pode
ser contornado, pois não é possível pensar em um estágio do
mundo anterior à linguagem sem a ela recorrer. Não é pos-
sível delimitar fronteiras discursivas seguras, atrás das quais
estaríamos protegidos dos sentidos histórico-discursivos que
impregnam o mundo. Todo conhecimento que temos acerca
da realidade não é proveniente de verdades transcendentais,
mas de efeitos de discursos sobre a realidade.

2.1 Alguns conceitos: performance, ato


performativo e performatividade

A Teoria dos Atos de Fala, assim como sua apropriação


butleriana, mobiliza alguns conceitos que precisam ser bem
esclarecidos, especialmente pela confusão que sua parecença
etmológica pode produzir. Assim, um ato performativo con-
figura qualquer performance discursiva que ativamente pro-
duz aquilo que ela discursiviza, uma prática que sedimenta
sentidos e naturaliza significados através da repetição. Justa-
mente porque “uma performance é em si mesma, performa-
tiva” (SULLIVAN, 2003:90), práticas sociais possuem o po-
tencial de inaugurar sentidos e (re)produzir efeitos. Embora

56
Gleiton Matheus Bonfante

os efeitos da atividade semiótica não possam ser previstos ou


garantidos, ela se configura como instrumento potencial da
agência semiótica à qual aludimos aqui: a agência do sujeito
sobre o mundo (performances dos sujeitos de desejo nos apps
afetam corpos online), a agência do sujeito sobre si mesmo
(estilização do corpo e da identidade) e a agência dos discur-
sos e vontades de verdade sobre o sujeito (semioses do de-
sejo, ordens morais). Assim, podemos entender que os atos
performativos, pelos quais me interesso, são as estilizações
íntimo-espetaculares dos sujeitos desejantes nos apps. Elas
inauguram uma situação de mundo e possuem um poder
performativo, um poder de agir. Embora toda performance
seja necessariamente um ato performativo, há atos performa-
tivos que não são necessariamente performances. Performan-
ces habitam uma inconstância, um paradoxo fundamental: se
por um lado, “a performance é ancorada em seu contexto de
uso e dele inseparável” (BAUMAN&BRIGGS, 2009:608), por
outro “a performance potencializa a descontextualização”
(BAUMAN&BRIGGS, 2009:609). Isso significa que os senti-
dos das performances são eminentemente locais e, concomi-
tantemente, são favoráveis à citação, à reprodução em um dis-
tinto contexto, esão propensas à recontextualização. Assim,
podemos dizer que quaisquer performances que mobilizem
sentidos sociais – tanto linguístico-discursivas quanto cor-
póreo-semióticas – são munidas de um poder transformador
que pode alterar, construir/destruir, (re)produzir e estilizar.
A Erótica dos Signos se interessa pelas performances ín-
timas de si que os sujeitos colocam em cena. Essas perfor-
mances de si e de seus corpos são atos performativos que por
meio da repetição ou reiteração produzem performatividade,

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

i. e, vêm estilizar eproduzir os corpos como substanciais, ma-


ciços, verdadeiros, tangíveis ou não. Tais performances vêm
estilizar os corpos, sobretudo, como espetaculares.
Segundo Austin (1990 [1962]), os atos performativos, que
são capazes de agir sobre a realidade, atribuir materialidade
a corpos e a estados do mundo e alcançam tais façanhas no
próprio processo de significação e referenciação, podem ser
de duas naturezas: os atos performativos iloucucionários (ilo-
cução corresponde a uma ação alcançada no ato de dizer) e
atos performativos perlocucionários (que denotam os efeitos
produzidos, resultantes de uma enunciação). Ambos são ob-
servados na descrição da Erótica dos Signos: os primeiros, os
atos ilocucionários, são realizados através das descrições ima-
gísticas e discursivas: eles operam uma mudança mundana na
medida em que produzem determinado sujeito, o ancoram em
uma localidade, o inscrevem em determinado corpo, o trazem
à existência, que só é encontrada nos signos. A materialidade
de nossos corpos é efeito de atos de predicação. Os últimos,
os perlocucionários, são os efeitos corpóreos produzidos em
outros sujeitos, como a excitação e o orgasmo. A relação dialó-
gica entre sujeito que performa suas intimidades e sujeito que
consome suas performances é que este é pressuposto necessa-
riamente afetável/excitável pelo primeiro. Os atos perlocucio-
nários aqui estudados são verdadeiros afetos do corpo.
Os atos performativos, como determinadas performan-
ces de identidade-alteridade, produzem a materialidade dos
corpos por meio da repetição; por meio da reiteração eles
sedimentam seus sentidos e alimentam uma ontologia do
corpo. A capacidade da performance de produzir uma ideia
de estabilidade, de verdade é chamada de performatividade.

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Gleiton Matheus Bonfante

“Performatividade, como Butler a entende, é a pré-condição


do sujeito, é o veículo através do qual efeitos ontológicos são
produzidos” (SULLIVAN, 2003:89), portanto a performativi-
dade seria os efeitos da repetição de performances que cons-
troem os corpos e os sustentam.
O conceito de performatividade foi empregado pela filó-
sofa Judith Butler para se referir ao caráter contingente com
que corpos são construídos como abjetos em detrimento de
outros que são construídos como inteligíveis, assim como para
desvelar os efeitos materiais a que sentidos sociais submetem
os corpos nos âmbitos social, institucional, legal e legislati-
vo. O conceito de performatividade é invocado nesta tessitura
para explicar como a sedimentação dos efeitos de nossas per-
formances atribui realidade e inteligibilidade aos nossos cor-
pos – especialmente como corpos desejáveis e desejantes nos
apps de pegação. A performatividade é utilizada para explicar
a estabilidade de nossa existência discursiva, a construção de
nosso corpo semiótico. O mostrar-se e o performatizar-se é
atualmente a forma mais corriqueira de performar atos de
identidade, de se construir como sujeito do desejo, de criar e
de recriar nossos corpos através da predicação. É, enfim, uma
maneira de existir. E a repetição, a reiteração projeta o efeito
de substancialidade, de verdade dos nossos atos de estilização
para nossos interlocutores. Como Manoel de Barros explica
em seu poema, “a repetição é o dom do estilo”. Especialmente
porque a repetição nunca é a mesma. É sempre inovadora.
A performancede si – presente em qualquer processo de
negociação identitária-alteritária – é o fenômeno por meio
do qual viemos a ser, no entanto nossa contínua estilização
de nós mesmos como sujeitos esbarra em um obstáculo, uma

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

verdade, uma idiossincrasia que nos marca, uma cicatriz que


nos singulariza: nosso nome. Por mais que estejamos envol-
vidos num constante processo de criação e estilização de nós
mesmos, uma dimensão do que somos é fruto de uma ação do
Outro sobre nós: nosso nome, que parece, à primeira vista, in-
transponível. Esta ação primeira, que nos interpela, nos traz
para o mundo da linguagem. A ação da nomeação que, na
era pós-tecnológica, encontra novas configurações na relação
entre sujeito e agentividade são os assuntos da próxima seção.

2.2 Interpelação, autonomeação e subversão

“Única é a condição do homem na linguagem.”


Émile Benveniste in: Problemas de linguística geral.

Existe um irrecusável vínculo entre nós e a linguagem.


Vínculo que está no cerne de nossa localização na existência.
A linguagem é o lócus onde um indivíduo se faz sujeito; é a
própria condição da existência humana na cultura e na socie-
dade. A linguagem é um chamado a que todos atendemos;ela
nos captura, nos interpela.
Inspirada justamente pelo conceito althusseriano de inter-
pelação15, Butler (1997) propõe que ser denominado, receber
um nome é parte essencial do que nos constitui como sujeitos
da linguagem. Assim, ser chamado de um nome, ser interpe-
lado, é o estopim da inevitável prática social de assujeitamento:
a prática de sujeição humana à máquina social e ao poder dis-

15 Apesar de sua inspiração na obra althusseriana, Butler critica a ideia da interpelação como uma
“voz divina”, como um chamado que se atende de uma vez por todas. Para a filósofa, a interpelação é um
constante processo; ela funciona fora da dicotomia Adresser/Adressé. A terceira pessoa é também um lócus
de interpelação.

60
Gleiton Matheus Bonfante

cursivo que nos arrebata, que nos insere no mundo discursi-


vo. De acordo com a filósofa, “ao ser chamado por um nome,
nos é também, paradoxalmente, atribuída a possibilidade de
existência social, iniciada em uma vida temporal da lingua-
gem que excede os propósitos iniciais que animam o próprio
chamado” (BUTLER, 1997: 2). Não se pode existir sem uma
garantia linguística de existência que é o nome, aquele que nos
localiza no tempo e no espaço da linguagem, aquele que nos
predica, que nos cerze ao mundo. É nesse sentido que Butler
pondera que a linguagem, em seu movimento interpelativo,
incita, provoca e excita, afetando os sujeitos e seus corpos.
Para Butler (1997), a nomeação é necessariamente prece-
dida pelo reconhecimento. O reconhecimento do indivíduo
como um sujeito social precederia inevitavelmente sua entra-
da na ordem do discurso, sua interpelação, seu chamado para
a vida social. Assim, um corpo só se torna inteligível como su-
jeito através do chamado social a que atende, sendo a interpe-
lação um marco no processo de subjetivação, i. e., o momento
inicial da transição de um indivíduo para sujeito. A teoriza-
ção Althusser-butleriana parece muito densa quando consi-
derados os aparelhos mais tradicionais de sujeição social, e se
emparelham de forma muito conveniente com as teorizações
de John Austin acerca do poder performativo da linguagem,
já que a nomeação configura uma ação sobre alguém. A atri-
buição de um nome é uma ação sobre os sujeitos, pois ajusta
os limites dos corpos, dos seres, atribuindo-lhes específicos
valores sociais. Como explica Butler, “um nome tende a fixar,
a congelar, a delimitar, a tornar substancial; com razão, ele
parece invocar uma metafísica da substância para tipos espe-
cíficos e singulares de seres” (1997:35). A nomeação pressupõe
uma limitadora e substancializadora ontologia.
61
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Contudo, o objeto de pesquisa aqui contemplado – os


apps de pegação – não apenas coloca o sujeito em relação
com a linguagem por meio da interpelação. A participação
nesses código-territórios16 coloca o sujeito em relação consigo
mesmo, na medida em que os limites de sua existência e os
contornos de quem se é são autoatribuídos através da autono-
meação, e por meio da performance semiótica de si. A ação de
nomear-se é certamente parte do processo de interpelação do
sujeito pela cultura. Ao permitir a entrada do sujeito na exis-
tência discursiva, a autonomeação oferece uma brecha epistê-
mica que merece ser discutida para ampliar a reflexão acerca
do assujeitamento, (da nomeação/interpelação). A agentivi-
dade que o existir online permite aos atores sociais deve ser
incorporada ao estudo das práticas de subjetivação e à relação
entre sujeito e discurso na sociedade.
Nos apps, indivíduos podem se reinventar: se nomeando
e performando seus corpos. Quando suas performances são
reconhecidas como ‘dignas de desejo’, eles ascendem à con-
dição de sujeito do desejo de modo que o reconhecimento e a
inteligibilidade dos corpos são altamente dependentes da per-
formance da renomeação (no caso uma performance de auto-
nomeação). A nomeação é um ato performativo constitutivo
da estilização de si. Embora alguns nomes sejam passíveis de
reconhecimento como sujeitos desejáveis– portanto, aptos a
serem desejados –, outros não, porque nossa existência ono-
mástica é normativa.

16 Código é compreendido aqui como um conjunto de recursos semióticos, que incluem elementos
linguísticos, porém a eles não se limitam. Códigos são altamente normativos, embora espaços onde as
resistências possam respirar. Em Perlongher (2008), código-território é um conceito empregado para
designar os territórios sociais frisando seu caráter discursivo, sua dependência constitutivados signos.

62
Gleiton Matheus Bonfante

Sujeitos são constituídos através de normas, que, na sua


reiteração, produzem e alteram os termos [ou nomes]
através dos quais sujeitos são reconhecidos. Estas con-
dições normativas para a produção do sujeito produzem
uma ontologia historicamente contingente, de forma
que nossa própria capacidade de discernir e nomear
a existência do sujeito [being of the subject] é depen-
dente de normas que viabilizam seu reconhecimento
(BUTLER, 2009:3-4).

Por que então alguns nomes são reconhecidos/reco-


nhecíveis enquanto outros não? Os nomes possuem uma
materialidade que é discursiva. As anteriormente mencio-
nadas ontologias dos nomes são produtos de uma ficção de
coerência e de coesão do sujeito. As ficções sobre o sujeito
regulam as formas de conhecimento e de reconhecimento
deste sujeito, se apresentando como verdades, de modo que
a adequação a normas sociais e ordens morais diz muito
sobre um sujeito quanto a sua legitimidade. Como aponta
Foucault (1988) no primeiro volume de A História da Se-
xualidade, no que diz respeito à genealogia do conceito de
homossexualidade, a nomeação cria tipos de sujeitos e dis-
simula a distribuição de poder. Nas palavras de Butler: “Po-
der funciona através da dissimulação: ele vem a parecer algo
diferente de si mesmo, de fato, ele vem a aparecer como um
nome” (1997:36). Esse poder, diluído, dissimulado nos no-
mes, é efeito da história das palavras. A força de um nome,
seu poder tanto criativo quanto destrutivo são os efeitos ma-
teriais de sua historicidade. Nomes possuem suas histórias.
Não apenas suas histórias, mas também suas convenções de
uso; seus contextos de uso são justamente o que nomes são.

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Aquilo que os nomes referenciam representa a materialida-


de dos nomes. Como explica a filósofa:

O nome possui, assim, uma historicidade, que pode ser


compreendida como a história que se tornou interna ao
nome, que passou a constituir o significado contempo-
râneo de um nome: a sedimentação de seus usos como
se eles se tornassem parte do próprio nome, uma sedi-
mentação, uma repetição que congela, que dá ao nome
sua força” (BUTLER, 1997:36)

É devido à historicidade, à materialidade histórica dos no-


mes, que a responsabilidade pelo ato linguístico é ligada à repe-
tição, à reprodutibilidade de atos de fala e não à sua originalida-
de. Enquanto a originalidade é um mito, já que as performances
sociais são cópias sem original17 (BUTLER, 1993), a repetição
sedimenta significados; a performatividade consolida sentidos
sociais, de modo que nossa própria inteligibilidade depende da
estilização repetida de quem somos. Online, somos reconhe-
cidos como um sujeito específico através das repetidas perfor-
mances que disponibilizamos e da sedimentação identitária al-
cançada na performatividade de nossos atos de estilização.
Deve-se lembrar que em interações in absentia como as
dos apps, existe uma ideia ainda mais acentuada de que tanto
nome quanto imagem “passem a ser”, se transformem em um
símbolo inequívoco da própria pessoa representada. A mate-
rialidade do sujeito que se mostra não se acessa fora das telas,
nem dos símbolos nela mobilizados. Não apenas do nome e da
imagem, mas do preenchimento detalhado das lacunas que a
17 Butler (1993) explica que no caso da performatividade do gênero, o original – a norma de perfor-
mance generificada que se persegue e se almeja – é um ideal e, portanto, não existe, permanece sempre
fora do alcance, pois ideais são intangíveis.

64
Gleiton Matheus Bonfante

virtualidade coloca para o corpo, dependem a construção e a


performance de si. Embora os sentidos sociais acerca de um
corpo específico terminem por produzi-lo, significá-lo, no
universo online, talvez mais que presencialmente, nosso cor-
po seja mais facilmente percebido como um “corpo semiótico”
(LEMKE, 1995): um corpo cujos contornos são delineados na
performance semiótica de si. Tratar de um corpo semiótico
nos apps de pegação não significa, de forma alguma, separar
corpo cárneo da performance encarnada, pois o corpo semió-
tico é um corpo percebido em sua materialidade, entendido
como presencial e corpóreo. Sem sua dimensão cárnea ou sua
inserção corpórea, um sujeito não pode ser reconhecido como
desejante e seu corpo não pode estar aberto ao afeto.
Assim, a interpelação – na figura da autonomeação – não
é necessariamente precedida pelo reconhecimento social, mas
pode ser um empreendimento que viabilize o reconhecimento
como sujeito do desejo. A liberdade online vê na performance
um meio e não um fim. Um meio para alcançar o reconheci-
mento, mas não uma garantia dele. Não há reconhecimento
definitivo. De fato, nunca há garantia de efeitos. A potência
subversiva da autonomeação jaz justamente no fato de o reco-
nhecimento não ser uma certeza que se conquista de uma vez
por todas e que marca a entrada de um sujeito definitivamente
na ordem do discurso, mas uma condição alcançada através
de um constante trabalho de si, da repetição bem-sucedida
de uma performance, de uma constante negociação acerca de
nossos significados e de nossa inteligibilidade. O sujeito do
desejo é um sujeito que deve ser reconhecido como digno de
desejo e para tanto a reflexividade é sua maior aliada. Ele se
esmera na sua performance, no design de si a ser apresentado,

65
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

no design de seu corpo, e na possibilidade de reconhecimento,


de ser desejado, de ser completo18, de ser inteligível.
Assim, ao contrário do que propõe a tradição hegeliana,
da qual faz parte Butler, proponho considerar que o reconhe-
cimento não preceda necessariamente a nomeação e, conse-
quentemente, a interpelação. Embora sua teorização nos caiba
perfeitamente, vale a pena fazer um refinamento ao pensamento
hegeliano tradicional acerca do reconhecimento, quanto à an-
tecedendência da nomeação em relação ao reconhecimento. A
nomeação, o endereçamento, tem uma grande parcela no enten-
dimento do ser como passível de reconhecimento e de desejo. Se
por um lado, viemos a ser, a existir, porque somos reconhecíveis
e, portanto, interpelados (BUTLER, 1993, 1997), temos também
que considerar que já nos apps de pegação – e talvez na rede em
geral, em qualquer interação in absentia entre desconhecidos –,
nos atribuímos nome, figura e materialidade histórico-discur-
siva e só então somos endereçados, reconhecidos como sujeitos
do desejo. Um sujeito sem contornos físicos não é desejado ou
desejável, muito embora as fantasias acerca de um sujeito sem
contornos físicos possam ser muito desejáveis.
Um exemplo de que os sujeitos sem materialidade históri-
co-discursiva não são reconhecidos como sujeitos é nos apps
de pegação a recusa de chat por grande parte dos participan-
tes com perfis sem nome e sem contornos físicos, i. e., sem
uma imagem ilustrativa qualquer. Correlata da recusa de chat
com pessoas “sem rosto”, sem contornos, há a exigência aos
perfis sem foto de seu envio no primeiro contato, como os
exemplos a seguir indicam:

18 Para Lacan, em seu Seminário V, um ser só é completo se desejado. O desejo pelo desejo do Outro
é, na psicanálise lacaniana, o desejo básico e fundante de qualquer sujeito.

66
Gleiton Matheus Bonfante

Figura 4: “Sem foto não converso”.

Figura 5: “Foto de rosto !!!”

67
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Ambos os perfis relatam sua exigência por uma repre-


sentação imagística do interlocutor, mais especificamente,
uma foto de seu rosto. E tal performance é muito corriqueira
nos apps. Eles exigem que seu interlocutor “mostre a cara”. A
rostilidade, para os sujeitos dos apps e para sujeitos gays no
geral, é um lócus de embate e tensão social. A clandestinida-
de do desejo homossexual fez os rostos se esconderem his-
toricamente, para proteger uma identidade social atribuída a
uma prática sexual estigmatizada. Se o rosto é essencial para
a representação social de um sujeito, se reconhecemos, ana-
lisamos rostos e intrepretamos suas feições, os desejos, por
outro lado, podem deles ser indepedentes. Desejam-se frag-
mentos, partes específicas do corpo, ou até funções específi-
cas que não necessariamente tenham um rosto, como iremos
discutir no Capítulo 5 na seção sobre as metonímias de si.
As representações de si nos apps de pegação articulam dife-
rentes recortes do corpo, diferentes enfoques do sujeito. Uma
oposição fundamental desta representação é o rosto versus o
corpo. Nos apps fica claro que o corpo contém o rosto. Mas
qual seria a natureza deste corpo que criamos online? Como
acessamos sua utopia e sua maleabilidade para moldá-lo ao
nosso desejo? Dedico-me a esta discussão na próxima seção.

2.3 Performance e corpo: a tecnotopia


da criação agentiva

A internet potencializa a visibilidade dos efeitos de atos


performativos, possibilita certa agência19 subjetiva na perfor-

19 Tal agência subjetiva não se traduz na criatividade, na inovação, mas na repetição de performances.
Toda repetição é inovativa e toda inovação uma repetição. Assim, de acordo com Butler (1997), a respon-
sabilidade por uma performance não é atribuída a sua criação, ou inauguração, mas pela repetição de um
discurso com efeitos sociais específicos.

68
Gleiton Matheus Bonfante

mance imagística de si e alimenta uma ideia de desconfiança


quanto a realidade das performances ensaiadas na tela. A des-
confiança ocorre, porque embora exista grande margem para
agência na performance de si, só a alteridade pode ratificar
uma performance como verdadeira. Não se parecer in praesen-
tia com as performances e estilizações de si online soa como
uma ‘mentira’, uma ‘enganação’, de modo que o que somos de
fato se encontra no intervalo entre o que mostramos de nós e
o que é ratificado pela alteridade, pelos nossos interlocutores.
A desconfiança quanto à correspondência entre perfil e
realidade é uma tensão que inevitavelmente perpassa a ex-
periência online, especialmente nos apps. Desconfiança20 não
tanto em torno dos fakes21, mas em relação à “averiguabilida-
de”, a realidade de suas performances. Quando questionado
sobre os mais evidentes pontos positivos e negativos dos apps
de pegação, um dos participantes da pesquisa, Hugo, diz: “O
melhor é a praticidade, o pior é a surpresinha”. A “surpresinha”
a que ele alude diz respeito ao intervalo, à diferença entre o que
se é e o que se mostra de si e denuncia “nesta interação através
de próteses eletrônicas, a primazia [absoluta] do sujeito (que
constrói) frente ao objeto construído (o mundo)” (DOMIN-
GUEZ, 2008:58). Para Hugo, como informado no decorrer da
entrevista, os sujeitos podem, em diferentes graus, ser “me-
lhores” ou “piores” que as performances que disponibilizam e
através das quais opera a construção semiótica de si. Contudo,
nunca são iguais a elas. A construção a que alude Dominguez
20 Para Leitão & Gomes (2011), alguns contextos, ao contrário dos apps, desejam fomentar uma fantasia,
mais do que aludir à realidade. No Second Life, plataforma que as autoras estudaram, a inacessibilidade do
corpo e da identidade reais dos sujeitos que habitam suas tramas é essencial para as interações subjetivas.
Neste contexto, as ficções de si são duráveis, enquanto nos apps configurem um atalho para o sujeito real.
21 Perfis fake são aqueles que não estabelecem uma relação muito verossímil com sua identidade.
Contudo, tal conceito é paradoxal: por não conhecer seu referente, não podemos acessar a verdade dos
perfis fake e estabelecer até que ponto eles são falsos ou reais.

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

(2008) é, no caso dos perfis do Grindr, Scruff e Hornet, autor-


referencial: o sujeito é também objeto de sua construção, maté-
ria-prima de sua estilização. O sujeito que se cria age sobre os
contornos de seu próprio corpo. Isso implica assumir que na
criação de nicknames haja uma total possibilidade de agência
do sujeito do desejo frente a seu próprio corpo, frente a si mes-
mo. Tal agência, o poder performativo dos signos, se baseia
necessariamente na iterabilidade – reprodutibilidade, capaci-
dade da linguagem de ser repetida – e performatividade – o
efeito em que a repetição da linguagem culmina –, pois o gesto
ritual é formativo. A repetição ou ritualidade atua sobre o cor-
po, atua na fixação de uma identidade social e atribui a ambos
um aspecto sólido, ‘real’, corpóreo. Online, a ritualização aju-
da na construção da materialidade dos nomes, promovendo a
fixação dos nomes à sua referência ao mesmo tempo em que
ancora e aferra um avatar virtual a um corpo físico.
De acordo com Cleminson & Gordo,

[…] a rotina, a referencialidade, as relações mantidas,


a associação entre nicks e endereços de email […] tudo
isso contribui a um assinalamento de uma identidade e
sua correspondente fixação a uma imagem cada vez mais
corpórea. […] Assim, as tecnologias sociais atuais contri-
buem a estabelecer e fixar a conexão entre o corpo virtual
como lugar de identidade, e a sensação de controle e ges-
tão emocional das mesmas [tecnologias] como lugar de
experiência corpórea. (CLEMINSON; GORDO, 2008:44)

De acordo com Parreiras, apropriando-se do conceito


bretoniano22 de corpo supranumerário, “o online liberta os
22 Ver LeBreton em “Adeus ao Corpo” apud Parreiras (2009).

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Gleiton Matheus Bonfante

indivíduos dos pesos de seus corpos, e ao fazer isso, coloca


todos eles em igualdade” (PARREIRAS, 2009:350). Contudo
não há algo como uma experiência online. A experiência on-
line é código-dependente de modo que diferentes plataformas
possibilitam diferentes relações entre ser/estar online e ser/
estar fora da rede. Nos apps, não se pode ignorar o caráter
interrelacionado do virtual e do real. De fato, real e virtual
não configuram nos apps territorialidades distintas que se es-
barram, mas faces da mesma realidade, em constante atrito e
mútua interpelação. Nos apps, tal tensão entre real e virtual
se mostra especialmente relevante, já que, embora aceitemos
certa fantasia na composição dos corpos (muitas vezes fanta-
sias digitais, como o uso de filtros nas imagens e manipulação
da imagem em Photoshops), a expectativa de um encontro
‘real’23 constrange os corpos a manter uma mínima relação
de pertencimento a sua organicidade, pois os corpos correm
o risco de não serem aceitos como suas propostas idealiza-
ções subjetivas e serem rejeitados in praesentia. De fato, como
explica Dominguez acerca da necessidade de coerência nas
salas de bate-papo, “Não se parecer com si mesmo, por com-
portamento ou por semelhança, sempre soa como uma trai-
ção” (DOMINGUEZ, 2008:61). Esta “traição” é considerada
popularmente nos apps um ‘pecado grave’ que motiva ressen-
timentos e, possivelmente, o cancelamento do encontro tátil.
Assim, somos reféns do olhar do Outro. Frisemos as duas
expressões também separadamente. Somos reféns do olhar,
porque somos sujeitos performáticos e performativos, cuja

23 A palavra “real” em tais contextos alude a um encontro pessoal e é muito recorrente e produtiva
em tais meios para designar encontros com finalidade sexual. A palavra “real” aparece em perfis que
procuram encontros sexuais funcionando como um sinônimo, aparecendo também nas interações com o
mesmo sentido.

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

materialidade é dependente dos efeitos de nossas atividades


semióticas na sua relação com o olhar do Outro. Uma relação
com o olhar, que se desenrola na linha do prazer, em suas duas
extremidades: o voyeurismo e o exibicionismo. Ao mesmo
tempo somos reféns do Outro porque somos vulneráveis ao
Outro, por depender de sua ratificação. Aquilo que somos é a
intersecção entre como nos percebemos (conjunto de caracte-
rísticas e atravessamentos identitários) e entre como nos per-
cebem (características ratificadas, suposições e dúvidas, frame
social), podendo ser a área de intersecção – o resultado do que
somos – de distintas dimensões. Não somos vulneráveis ape-
nas porque dependemos de ratificação, de reconhecimento,
mas também porque somos visíveis, e porque nos damos a ver.
A exposição, a exibição necessária de quem somos é uma vul-
nerabilidade social fundadora, já que “na sua superfície e na
sua profundidade, o corpo é um fenômeno social: ele é expos-
to aos outros, vulnerável por definição” (BUTLER, 2009:31).
Estar exposto é outro fator de vulnerabilidade. Em ou-
tras palavras, nossa vulnerabilidade é em ser um corpo social
e também em ser um corpo semiótico. Para Foucault, nosso
corpo é uma jaula: “[m]eu corpo é uma jaula desagradável, na
qual terei que me mostrar e passear. É através de suas grades
que eu vou falar, olhar, ser visto. Meu corpo é o lugar irreme-
diável a que estou condenado” (FOUCAULT, 2014 [1966]:1).
Na medida em que o corpo é uma “jaula desagradável”, ele
pode também ser o lugar por excelência do surgimento das
utopias. As utopias do corpo, a morte, a alma e a imagem
fazem o corpo desaparecer. Segundo Foucault, as utopias
o calam, o fecham sobre si mesmo, e neste movimento de
abertura e fechamento, o corpo acaba por se delinear como

72
Gleiton Matheus Bonfante

uma utopia ele mesmo: “corpo incompreensível, penetrável


e opaco, aberto e fechado: corpo utópico. Corpo absoluta-
mente visível – porque sei muito bem […] o que é estar nu”
(FOUCAULT, 2010 [1966]:1).
Para Foucault, o corpo é uma utopia. Ou seria a utopia
inevitavelmente corpo, já que “para que eu seja utopia, basta
que eu seja corpo” (2010 [1966]:3). De acordo com o autor “[a]
utopia é um lugar fora de todos os lugares” (2010 [1966]:1), de
modo que o corpo é uma certeza incerta. O filósofo nos lembra
que o corpo possui seus não-lugares. O corpo também é des-
caminho, incerteza. Sua equivocidade, sua mobilidade e sua
maleabilidade parecem ser componentes do que são os corpos.
O caráter utópico do corpo jaz justamente na ambiguidade ne-
cessária da etimologia da palavra utopia: o lugar perfeito e o
lugar nenhum. Como explica Nagib (apud SILVA, 2010):

Faz parte essencial de Utopia a sua impossibilidade. A


palavra […] reúne o vocábulo grego topos, ou seja, “lu-
gar”, a uma combinação de dois prefixos: ou, que signi-
fica negação, e eu, que indica “boa qualidade”. Assim,
“utopia” seria ao mesmo tempo o “bom lugar” e o “lugar
nenhum” […] (NAGIB, 2006:32, apud SILVA, 2010:134)

Esse “lugar nenhum” do sentido de corpo simultâneo a


seu “bom lugar” denota um movimento típico dos corpos, um
movimento de limites entre o ser e o não ser, entre a inteligi-
bilidade e a abjeção, entre o lugar perfeito e o sem-lugar, um
limite entre o “eu” e o “Outro”. Para Butler, a incerteza, o mo-
vimento dos corpos lhes são características sine qua non: “[n]
ão apenas os corpos tendem a indicar um mundo além deles
mesmos, mas este movimento para além de seus limites, um

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

movimento de limites, de fronteiras parece ser muito central


ao que os corpos ‘são’” (BUTLER, 1993: ix). Os corpos indi-
cam um mundo além de seus limites, possuem lugares e não
-lugares próprios, encontram na incerteza e na flexibilidade
sua resistência, sua obstinação utópica existencial. Eles osci-
lam, como toda utopia, entre a luminosidade e a obscuridão:

Meu corpo, para dizer a verdade, não se deixa subme-


ter com tanta facilidade. Depois de tudo, ele mesmo
tem seus recursos próprios e fantásticos. Também ele
possui lugares sem-lugar e lugares mais profundos,
mais obstinados ainda que a alma, que a tumba, que
o encanto dos magos. Têm suas bodegas e seus celei-
ros, seus lugares obscuros e praias luminosas24 (FOU-
CAULT, 2014 [1966]:2).

Mas então, o que acalmaria a utopia do corpo, o que lhe


atribuiria sua inserção no real, sua certeza cárnea, seu senti-
mento de fixidez, sua ancoragem espacial? Para Foucault, o
cadáver, o espelho e o sexo atribuiriam ao nosso corpo sua
inserção no real e sua certeza. Eles abrandariam a utopia do
corpo e silenciariam o corpo que fala e que age.

É o cadáver e é o espelho que nos ensinam (enfim, que


ensinaram os gregos e que ensinam agora as crianças)
que temos um corpo, que esse corpo tem uma forma,
que essa forma tem um contorno, que nesse contorno
há uma espessura, um peso, numa palavra, que o corpo
ocupa um lugar (FOUCAULT, 2010 [1966]:4).

24 Um dos lugares misteriosos do corpo, talvez sua mais obscura bodega, é o cu que, pela sua margina-
lidade sentidos e pela simbologia de resistência política, é analisado como performance empoderadora nos
apps. Discussão na qual corpo e linguagem se cruzam é empreendida nas conclusões no último capítulo.

74
Gleiton Matheus Bonfante

No limite, o espelho é uma imagem; olhar no espelho é


contemplar uma selfie animada, uma selfie veramente viva.
Assim, me parece lógico propor que a própria certeza cor-
pórea que temos de nós mesmos é imagística. De modo que
as selfies, as fotos e as performances imagísticas que fazemos
de nós mesmos atribuem uma ideia de constância e de esta-
bilidade ao inquietante corpo, tranquilizando sua errância,
apaziguando sua utopia, amenizando sua equivocidade. O es-
pelho, assim como as imagens de si, é a convergência entre o
olhar da alteridade e o nosso próprio olhar.
A performance de si, na forma da apreensão imagística de
si, como a selfie e o autorretrato, é especialmente cara ao sujeito
do desejo, porque acalma a utopia de nosso corpo, permitindo
certa agentividade na produção de si. O “eu” é um produto da
alteridade. O Outro ratifica quem somos, no entanto, o “Ou-
tro” e o “eu” convergem na presença do espelho, do retrato.
A selfie, a foto, o espelho e a representação imagística de nós
mesmos atribuem um lugar ao nosso corpo, condensando sua
existência no espaço e no tempo. “O corpo, fantasma que não
aparece senão na miragem de um espelho e, mesmo assim, de
maneira fragmentada” (FOUCAULT, 2014 [1966]: 2), adquire
sua inserção no real, seus nós de coerência através da perfor-
mance. Se o espelho e o sexo tornam o corpo presente, já que
“no sexo o corpo está aqui” (FOUCAULT, 2014 [1966]), então
uma selfie íntimo-espetacular, como as performances do su-
jeito do desejo, é duplamente uma estratégia de existência e de
presentificação do corpo: conduz o corpo a um estatuto real,
corpóreo; acalma sua utopia; e o faz não apenas porque a per-
formance desfaz a utopia tanto como lugar bom, lugar perfeito
quanto no sentido de nenhum lugar, mas também porque a

75
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

performance imagística – e também onomástica – ancora o


corpo no espaço e no lugar do sexo, um lugar fundamental-
mente mal-sucedido, sem a presença dos corpos ou, pelo me-
nos, sem um sentimento de presença dos corpos.
O corpo sexualizado, ou a performance do corpo, do
desejo e a visibilidade da intimidade do corpo conta com a
tecnologia midiática para apreender um momento de inten-
sidade do corpo e distribuí-lo a outros corpos, em uma rela-
ção social que segue a lógica da “mercantilização das sensa-
ções”. O corpo é vendido ao olhar do Outro como unívoco
e espetacular. A performance do corpo silencia e enrijece a
maleabilidade e equivocidade típicas do corpo tecno-utópico.
Para LeBreton, a maleabilidade do corpo, sua equivocidade e
sua utopia seriam impulsionadas pela sua tecnologização. “O
corpo não é mais um destino, no sentido fatalista, mas um
acessório da presença, uma matéria-prima para se modelar
e submeter ao design do momento” (LEBRETON, 2002:21).
Para Preciado, os corpos não são apenas modeláveis, “os
corpos são efeitos de um abrangente dispositivo de represen-
tação e produção cultural” (PRECIADO, 2008:42) e, portan-
to, esta matéria-prima para a construção do sujeito, o corpo,
seria, na contemporaneidade, invariavelmente farmacoporno-
gráfico, já que os corpos se tornam inteligíveis apenas como
“capital ejaculatório”, como potencialidade de experiências
sensuais, como possibilidade de gozo. Dentro do regime far-
macopornográfico, a maleabilidade e a utopia do corpo se ar-
ticulam com seu potencial de força orgásmica e sua nature-
za performativa na produção de corpos munidos de potentia
gaudendi (PRECIADO, 2008), pois o “design do momento” é
o design do sujeito-objeto de desejo. Interessa saber através de

76
Gleiton Matheus Bonfante

quais processos interpelativos (cultura, discursos, tecnologia)


o indivíduo passa a existir. Já não interessam mais sua existên-
cia orgânica ou sua morfologia biologizante por dois motivos
principais: primeiramente não interessa sua força vital ou bios
aristotélica, mas seu potencial de gozo, que independe de estar
vivo. E em segundo lugar, porque o corpo é um amálgama do
substrato biológico, dos discursos e da tecnologia:

O corpo polisexual vivo é o substrato da força orgás-


mica. Este corpo não se reduz a um corpo pré-discursi-
vo, nem tem seus limites na envoltura carnal que a pele
circunscreve. Esta vida não pode ser entendida como
um substrato biológico fora das tramas de produção e
cultivo próprios da tecnociência. Este corpo é uma en-
tidade tecnoviva e multiconectada que incorpora tec-
nologia. Nem organismo, nem máquina: tecnocorpo”
(PRECIADO, 2008:39).

Mostrar-se mais do que uma forma de existir se configura


como uma maneira prazerosa de existir, tão prazerosa como
o exercício livre do olhar e, portanto, é também uma forma
desejável de existir, já que na contemporaneidade “o que é de-
sejável é o que pode ser sensorialmente experimentado como
agradável, prazeroso ou extático” (COSTA, 2004:194). A cul-
tura somática, o regime farmacopornográfico e a virada dis-
cursiva introduzem na discussão filosófica um corpo novo e
tecnológico, um corpo em permanente estado de êxtase, cuja
materialidade depende do desmantelamento de sua utopia
através da sua suspensão performática no tempo e no espaço.
A tecnologia, neste regime, funciona como potencialização e
expansão do corpo; a tecnologia funciona já como o próprio

77
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

corpo. A fusão entre o homem e a técnica, como desejo mo-


derno, é bem-vinda, porque a técnica vem aprimorar o corpo.
A máquina possui o status de um corpo glorioso, libertador
do corpo cárneo, do corpo imperfeito. A tecnologia é uma
forma de controlar o acaso do corpo, suas emoções e suas
sensações; de acalmar sua utopia. E os devires se alimentam
e se delineiam através da relação com a tecnologia, de modo
que “o corpo do século XXI é uma plataforma tecnoviva, o
resultado de una implosão irreversível de sujeito e objeto […]”
(PRECIADO, 2008:39).
Os corpos na sua relação com os signos, com o desejo e
com o próprio sujeito são, então, corpos utópicos, tecnovivos
e que dependem da performance para sua existência, sua ma-
terialização. São corpos, enfim, semióticos, cujos contornos
são realçados na performance e por meio dela são estilizados.
Corpos incertos, maleáveis que se distribuem pelas tramas do
desejo. Corpos que se entregam às sensações e colecionam ex-
periências são corpos entregues a “um modo contínuo e sem
descanso de desejar e de resistir, de consumir e destruir, de
evoluir e de autoextinguir-se” (PRECIADO, 2008:37). São
corpos que dependem da sua suspensão performativa no tem-
po e no espaço para existirem, de sua produção/estilização, de
sua representação imagística, do acalento de sua utopia para
serem inteligíveis.
Bom, se de fato possuímos um corpo utópico; um corpo
aberto que se define na maleabilidade das palavras, na plu-
rissignificância e na poesia da imagem, somente a performa-
tividade – o efeito de estabilidade e de verdade atingido na
repetição – pode calar o corpo, resgatá-lo de sua inexatidão,
expô-lo à luminosidade do exame do olhar. O interessante é

78
Gleiton Matheus Bonfante

pensar o corpo no seu paradoxo essencial: é simultaneamente


uma utopia e uma prisão. É o display de nossa identidade, mas
não é absoluto. É moldável e moldado tanto pelos discursos
quanto por intervenções estéticas físicas, mas conhece um li-
mite na sua criação tecno-utópica: seus próprios contornos
refletidos no espelho, na imagem ou na selfie.
Tendo em vista os argumentos acima, considero mais poé-
tico que observável supor que os corpos seriam liberados de
seus pesos sócio-históricos, pois não há filtros que consigam
alterar a cor da pele, não há Photoshop que consiga alterar
significativamente as dimensões de um corpo, muito embora
consigam disfarçá-las, fantasiá-las, de modo que as caracterís-
ticas corpóreas estão sujeitas à interpretação e ao desejo do Ou-
tro, a objetificações e a estigmatizações. Estas últimas, sempre
culturais e históricas, estão sob o império tirânico e prazeroso
do olhar. Os pesos dos quais o corpo, ou nosso “paraíso san-
grante”, nas palavras de Foucault, estariam libertados, pode-
riam ser trazidos à tona pelo olhar da alteridade, que legitima
as performances corpóreo-discursivas em tais ambientes, pois
“não existe um acesso direto à realidade, independentemente
de ser virtual ou não, se não através da linguagem, das versões
que construímos sobre o mundo e neste caso sobre nós mes-
mos […] Essas versões têm que ser necessariamente validadas
pelos outros” (DOMINGUEZ, 2008:63).
As tecnologias sociais, como técnicas de existência e
como tecnologias do corpo, ajudam a estabelecer o corpo e a
corporalidade como um ponto seguro para a identidade vir-
tual nos apps, ao mesmo tempo em que se apossam da mídia
como experiência corpórea, estabelecendo o próprio corpo
como limite da performance criadora de si. Se antes se pen-

79
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

sava que mundo virtual e mundo ‘real’ eram dois mundos


essencialmente incompatíveis, hoje se sabe que eles são dois
lados da mesma realidade que se interrelacionam de formas
distintas de acordo com o contexto social. Ademais, os corpos
apresentados online e offline são duas modalidades do mesmo
corpo. Juntamente com recursos imagísticos e discursivos, o
nickname é peça fundamental na ancoragem da identidade
e do próprio corpo no mundo ‘real’. Online se pode mudar
ilimitadamente seu nickname, provocando contundentes mu-
danças em quem se é. O mesmo ocorre com as imagens. A
possibilidade de escolher seu próprio nome, de fantasiar sua
própria imagem, de se estilizar, enfim, se emparelha com a
efemeridade e a contextualidade da existência pós-moderna e
com a compressão temporal experienciada na sociedade con-
temporânea, pois realçam a instabilidade e a fugacidade das
identidades e dos próprios corpos, ao mesmo tempo em que
deixam ver a contingência da verdade como um produto his-
tórico, como sedimentação alcançada na repetição e disfarça-
da no poder dos nomes que vêm a abrigar ontologias.
A autonomeação, a escolha de um nome para si atribui
agentividade ao particularmente assujeitado ato de receber
um nome, porém, como antes explicitado, a agência é limi-
tada, e não apenas pelo olhar altero. Se a autonomeação ou a
escolha de um apelido ou nickname permitem certa liberdade
na criação de si, elas também são processos disciplinares que
nos sujeitam aos discursos sociais, que nos inserem na nossa
humanidade, pois “colocar o usuário ao centro (dos discur-
sos e das práticas) não significa depositar nele as capacidades
de controle” (ARRIAZU et al, 2008: 207), já que os nomes
carregam sempre significados sociais difíceis – ou até impos-

80
Gleiton Matheus Bonfante

síveis – de apagar. No entanto, a escolha de um apelido ou do


próprio “nome social”, no caso de sujeitos transgêneros, pode
permitir uma experiência de libertação, de reinserção de si
na cultura a partir de uma materialidade outra, uma parti-
cipação na sociedade por outra perspectiva, uma estilização
do “eu” ou um novo design social de si. Não falamos de uma
estilização que irá limar o peso material de seu corpo, mas
uma que vai redefinir através da renomeação um valor social
de um indivíduo, modificar a forma de inserção de um sujeito
no sócius. Não é à toa que a luta pelo nome social é uma cau-
sa tão relevante – e sumariamente ignorada pelas autoridades
competentes – entre os sujeitos transsexuais.
Como explica Dominguez (2010) sobre a relevância do
nome próprio e as relações que o nome forja com o mundo
social:

Se Harré (1982) comprovou a importância do nome


próprio, que nos enlaça a valores sociais e culturais,
o apelido nos permite completar esses valores com
elementos de nossa própria história, nos ligando a
um espaço e tempo sentidos como próprios por mais
virtuais que estes sejam, assim como a determinadas
relações enquanto constitutivas da identidade pessoal
(DOMINGUEZ, 2008:62).

É justamente rompendo com grilhões de significados


sociais e fundando novos devires para o sujeito que o nickna-
me “nos permite alcançar um efeito de libertação” (DOMIN-
GUEZ, 2008:62). A libertação não zera ou reinicia o corpo
como propõe Lebreton (2003, apud PARREIRAS, 2009), mas
permite ao sujeito um pouco de fantasia na composição de si

81
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

e agentividade em relação a seu corpo utópico, maleável. A


agentividade subjetiva também evidencia que os sujeitos po-
dem se entender, se identificar com certas performances que
não são ratificadas pelo Outro. Esta é, com certeza, uma das
vulnerabilidades que tornam nosso corpo utópico e incerto.
Nós podemos e de fato nos percebemos de forma muito dife-
rente de como os outros nos veem.

2.4 O eu e os Outros

“7
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
pilar da ponte de tédio,
que vai de mim para o outro”
Mario Sá Carneiro, ‘Indícios de Oiro’

Am I even thinkable without the world of others?


Judith Butler in: “Excitable Speech”

Para Butler (1997), o nome é do tempo do Outro. Por


meio da nomeação se é trazido para um tempo e um espaço
social que não é nosso propriamente, mas é da ordem da al-
teridade, que nos sujeita a mecanismos sociais de poder que
regem a existência humana. Em ser colocado em um espaço
outro pela nomeação consiste uma vulnerabilidade do sujeito
frente à interpelação discursivo-social exercida pelo Outro.
Se para Butler “[a] vulnerabilidade em ser nomeado constitui
uma condição constante do sujeito falante” (1997:30), penso a
prática de se autonomear como um escape potencial à vulne-
rabilidade a que a iminência de ser nomeado nos conjura. Na
experiência subjetiva da autonomeação nos apps, uma segun-

82
Gleiton Matheus Bonfante

da vulnerabilidade do corpo é não ser ratificado como digno


do desejo que sua performance enseja, é não ser reconhecido
como performance capaz de afetar, é estar à deriva nos efeitos
sempre imprevisíveis de sua própria performance.
Embora seja observado certo potencial de agência, suble-
vação e libertação na escolha subjetiva dos nomes (nicknames
ou apelidos) que vêm a nos estilizar online, nossos nomes não
nos pertencem. De acordo com Waldo Motta, em seu poema
sem nome na epígrafe deste capítulo:

Meu nome não é meu:


é produto, corolário
da parolagem mundana
movida a desejo e sonho
de absurda liberdade; […]
(MOTTA, 1996:63)

Nosso nome não é nosso, tanto porque ele é mais usado


pelos outros do que por nós mesmos, quanto porque sempre
é escolhido por outrem e atribuído a nós, como uma referên-
cia inequívoca. O autor, em seguida, propõe ser o nome um
produto da parolagem, da loquacidade, da verbosidade. Esta
constituição discursiva do mundo, ele propõe, é movida a
desejo e a sonho de liberdade. O nome, este que nos coloca
em relação com o Outro, que delimita nossas fronteiras e que
nasce do sonho e desejo de liberdade, acaba por limitar nossa
liberdade e agentividade ao nos ligar a outros que o podem
usar – e o usam – contra nós. A alteridade nos congrega e nos
ata um ao outro porque somos diferentes. Somos conectados
aos outros através de nossa separação, através de nossa inegá-
vel diferença; “I am bound to you in my separateness”, como

83
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

assevera Butler (2009:44). E os nomes são dessas diferenças,


dessas separações, estandartes.
Os nomes não apenas delimitam as fronteiras de quem
eu sou, mas eles traçam os limites entre o “eu” e “Outro”.
Estamos conectados pela nossa disjunção. Sermos delimita-
dos e distintos, sermos sempre outros que possuem limites
determinados nos coloca em pé de igualdade. O que eu sou,
quem eu sou é ligado necessariamente ao que os outros não
são. Nenhuma cópia é original, mas a repetição é inovadora.
Toda cópia é diferente. A repetição nos liga uns aos outros,
enquanto a inovação que ela presume nos diferencia.
Ligada ao Outro, possibilitada pelo discurso e oriunda da
performance, minha existência transborda os limites meus e se
distribui pelo mundo social nos discursos meus e dos outros.
Contudo minha existência não me pertence exclusivamente,
“minha existência não é minha somente, mas é encontrada
fora de mim mesmo, neste conjunto de relações que precedem
e excedem os limites de quem eu sou” (BUTLER, 2009:44).
As corporalidades (ou o desejo de corporalidade) nos
apps parecem ser um fator de suma importância não porque
relacionam o ser ao seu corpo, à sua verdade imóvel imutável,
mas porque o corpo tecno-utópico é na performance, é no
dar-se a ver escrutinado pelo olhar do Outro. A estilização
repetida dos sujeitos são fantasias de nós mesmos, porém tais
fantasias reforçam o sentimento no outro da consistência e
substância de nossa robusta existência. Como sugere Thomas,
“[i]dentidade é uma performance de fantasia e desejo – pro-
cura por ser, por tornar-se a imagem desse desejo” (2007; 5).
Tanto fantasias quanto desejos se articulam, colocando em
relação necessariamente o eu e o Outro. Na relação do desejo,

84
Gleiton Matheus Bonfante

eu e Outro se articulam como sujeito e objeto, eles se afetam


como sujeito e objeto. Nas relações da fantasia de si e na nego-
ciação da identidade (que permeia em grande parte também
as relações de desejo entre sujeitos), os sujeitos são objetos de
si mesmo e são frutos de seu olhar e percepção. A performan-
ce de um sujeito pode ser conflituosa em relação à imagem
que seus interlocutores fazem deles, de forma que nosso nome
pode se virar contra nossa imagem25. Assim, como propõe o
lirismo onomástico de Waldo Motta, o outro é adversário, as-
sim como nosso nome que é do outro: “Meu nome não sou eu:
é outro, adversário” (MOTTA, 1996:63)
O nome nos revela, não necessariamente como nos enten-
demos, muitas vezes a nosso contragosto. Nosso nome pode
ser um inimigo, adversário, porque nos expõe, porque é do
tempo dos outros. Porque “podemos muito bem nos imaginar
de forma bem distinta de como somos constituídos social-
mente” (BUTLER 1997:31), nossos nomes podem ser traido-
res de nossos desejos, e das fantasias de nós mesmos.
Com razão, no mesmo artigo, em que Foucault propõe
que nosso corpo seja uma jaula, ele admite que o próprio cor-
po, nosso carcereiro, é também fantasia e imaginação, é nosso
maleável material de estilização, nossa brecha para agência.
Em suas palavras, “Então, o corpo, em sua materialidade, em
sua carne, seria como o produto de suas próprias fantasias”
(2014 [1966]:4).
Os apps de pegação são territorialidades propícias à vi-
vência das fantasias do corpo, à agência do sujeito, à estili-
zação de si. Os apps são plataformas muito específicas onde

25 Ou seria nosso corpo que se vira contra o nome? De acordo com Butler (2009), a característica de
se levantar contra as coisas parece ser imperiosa a que os corpos são.

85
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

circulam distintas ordens morais, distintas configurações


sócio-desejantes e distintos signos. Os aplicativos inau-
guram dimensões diferentes de tempo e espaço e abrigam
sujeitos que desejam incessantemente. Eles se configuram
como verdadeiras tecnologias de subjetivação por permiti-
rem aos indivíduos se fazerem sujeitos online. À discussão
detalhada dos aplicativos e suas características nos lança-
mos no próximo capítulo.

86
3. Novas tecnologias de
subjetivação: nas tramas do
desejo e da performance

Figura 6: Página de abertura do aplicativo Grindr

87
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Figura 7: Página inicial do app Grindr. Os homens da região que estão


conectados aparecem em ordem de proximidade. Abaixo, no espaço
para propaganda, a oferta do Grindr Xtra, a modalidade paga do app,
que permite a visualização de mais perfis.

Figura 8: Fantasia de Carnaval inspirada no aplicativo Grindr.

88
Gleiton Matheus Bonfante

Os aplicativos de pegação são um radar que viabiliza


a comunicação entre homens permitindo encontrar e co-
nhecer outros usuários para se relacionar. Assim, se con-
figuram como plataformas tecnológicas onde se ensaiam
as performances do sujeito do desejo, ao mesmo tempo em
que promovem a própria ascensão dos indivíduos à condi-
ção de sujeitos, através da performance de si. Existem cerca
de 170 apps com avaliação de usuários26 disponíveis para
serem ‘baixados’, e inúmeros outros menos populares sem
avaliação. O número de novos apps cresce exponencialmen-
te. O uso de tais aplicativos varia não apenas em relação a
convergências desejantes, ou padrões de práticas sociais,
mas também diatopicamente, ou seja, conhece uma geogra-
fia específica, sendo o Grindr o mais difundido mundial-
mente, seguido do Scruff e do Hornet. Nos três foram ge-
rados os dados que esta obra analisa. Estes aplicativos de
relacionamento social possuem um diferencial contundente
em relação aos sites de relacionamento na internet: eles são
equipados com um GPS que indica a localização dos outros
participantes, estimulando o encontro entre pessoas próxi-
mas. Eles funcionam assim como uma espécie de radar, ou
‘gaydar27’ – que amplifica a visão local e ajuda a localizar
na multidão os objetos potenciais de desejo, as fantasias,
enfim as performances corpóreas cuja potentia gaudendi
(PRECIADO, 2008) imanente satisfaria o sujeito contem-
porâneo, esse incansável colecionador de sensações. Neste
26 Uma avaliação de usuário significa que pelo menos um participante fez download do app e o testou.
Quase todos os 170 apps catalogados possuíam mais de duas avaliações. Em 2013, quando fiz esse levan-
tamento desses 170 apps, o Tinder, um dos mais famosos apps atualmente, ainda não havia sido criado,
fato que endossa a crença de que o número de apps atualmente disponíveis seja astronomicamente maior,
assim como suas funções sejam cada vez mais especializadas.
27 Gaydar é um termo que popularmente remete à habilidade de uma pessoa de reconhecer outros
gays. Gaydar é também um termo que nomeia um dos apps existentes.

89
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

sentido, uma característica interessante de tais aplicativos


é que, contrariamente à internet, que possibilita uma am-
pliação dos horizontes e intercomunicação ilimitada e livre
de empecilhos geográficos, tais aplicativos direcionam seus
participantes às proximidades, à possibilidade real do en-
contro cárneo para satisfazer a emergência dos desejos.
Estas tecnologias – tecnologias do sujeito e de seus de-
sejos – implicam a fundação de uma territorialidade pró-
pria para a circulação dos signos do desejo, um gueto dis-
cursivo cujos limites são inscritos ao código, aos discursos.
Este código-território – e o foco no poder discursivo que
delineia os territórios é essencial à definição de um terri-
tório social – é descrito pelas práticas corpóreo-semióticas
que ali se desenrolam, mas também é delas simultaneamen-
te prescritivo. Código-territórios como os apps são rituali-
zados porque compreendem práticas semióticas habituais e
são normativos porque propõem regras de participação. In-
dependentemente da sua territorialidade espaço-temporal-
discursiva efêmera e própria do impulso pós-moderno de
colecionar sensações, de satisfazer o corpo sensoriamente,
a instrumentalidade dos apps quanto à expressão da subje-
tividade é especialmente notável. A etnografia 28 conduzida
aqui tem que considerar o papel da mediação tecnológica
dos apps de pegação na performance de si. Tal atenção ana-
lítica ao papel mediador da tecnologia nas relações inter-
pessoais traz para reflexão duas observações muito relevan-
tes na investigação das performances do sujeito do desejo
nos aplicativos de pegação: 1) a relevância da especificidade

28 A discussão detalhada do procedimento etnográfico e da metodologia de análise será conduzida no


Capítulo 4, “Erótica dos signos”.

90
Gleiton Matheus Bonfante

da mídia e 2) o papel da interação entre sujeito e tecnologia.


Vamos discuti-las brevemente:
Primeiramente, que uma prática semiótica seja histori-
camente situada e seus significados sejam contexto-depen-
dentes não é uma grande novidade. Contudo, os sentidos
alcançados na interação são também mídia-dependentes. A
relevância do contexto e da mídia mediadora é algo cru-
cial na compreensão dos movimentos dos signos, pois os
rituais prescritos em meios de comunicação específicos
são responsáveis em certa medida por direcionar os sen-
tidos mobilizados e até por influenciar as performances
corpóreo-dicursivas e seus sentidos, já que “mídias distin-
tas moldam nossas mensagens diferentemente” (DAVIES;
MERCHANT, 2009:101). Não apenas as moldam de manei-
ra diferente, mas as mídias através das quais se veiculam
conteúdos significativos podem “excercer impactos para
além da mensagem ela mesma” (CARRINGTON, 2007:66)
e, assim, expandem os sentidos para além dos signos que
contêm, colocando-os em relação dialógica com seu con-
texto e com outros contextos.
Os aplicativos de pegação possibilitaram novas e cria-
tivas maneiras de produzir significados sociais; colocaram
em foco a centralidade do corpo e a eficácia da comunica-
ção; trouxeram para os jogos discursivos as abreviaturas, as
perguntas formulaicas, o envio de imagens que substituem
descrições; sinalizam a urgência das respostas, a incerteza
das respostas e a efemeridade das relações intersubjetivas. Os
aplicativos instituíram novas formas de performatizar iden-
tidades sociais e fundaram novos usos semióticos nas rela-
ções interpessoais in absentia: os aplicativos vieram colocar

91
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

o corpo na linguagem, trazer o sexo para o discurso e envol-


ver os significados em nuvens de sensações corpóreas.
Nada disso seria possível se a tecnologia em questão
não fosse de um tipo específico: do tipo que toca o corpo,
que produz afeto. De fato, não só entre si, mas também com
o próprio aparato tecnológico, os sujeitos forjam relações
pessoais de diferentes naturezas: afetividade, dependência,
raiva, frustração, tesão e até amor29. O que de certa forma
implica em assumir que tais chats não são apenas tecnolo-
gias mediadoras, porém fundadoras e possibilitadoras da
subjetividade humana. Por meio da prática de si em tais pla-
taformas técnicas, os indivíduos se tornam sujeitos perfor-
mando sentidos sociais sobre si mesmo. Dominguez (2010),
ao ressaltar a importância da interação com a mídia na pro-
dução de sentidos, e Preciado (2008), ao frisar a dimensão
tecno-química na produção do corpo na contemporaneida-
de, chegam ambos a propor que tais tecnologias interativas
são ‘próteses eletrônicas’, das quais o sujeito e sua agência
social, em certa medida, seriam dependentes. Em vez de
‘próteses eletrônicas’, prefiro pensar as plataformas virtuais
como tecnologias de subjetivação ou “tecnologias de si”,
como Foucault (1988b) descreve, já que as entendo como
simultaneamente uma prática de si e uma sofisticação no
processo de interação, ao contrário de uma tecnologia que
vem sanar uma incompletude humana. As tecnologias de
subjetivação neste livro examinadas são exclusivas do apa-
relho celular. Este artefato veicula uma intensa carga emo-
cional, ao qual podem estar atrelados vários significados
29 Para uma incursão no tema sobre sentimento de amor estimulado por um software, o leitor pode
assistir ao filme Ela (“Her” em inglês). Dirigida por Spike Jonze, a película entrou nos circuitos brasilei-
ros em 2013.

92
Gleiton Matheus Bonfante

sexuais, devido à proximidade do corpo, a cumplicidade, a


intimidade e a afetividade que o celular desperta. Em parte,
por ser uma tecnologia de subjetivação, em parte por seu
valor econômico e em parte por ser um lócus onde se con-
centram muitas funções da vida social; o celular mora no
corpo, está sempre em contato com ele, se distribui por ele
e com ele os aplicativos de pegação propiciam e ensejam a
recriação do corpo constantemente através das performan-
ces que instrumentalizam.
Embora distintos das plataformas online – já que são ex-
clusivos do aparelho celular, que é o suporte da conectividade
do corpo “tecnovivo e multiconetado” –, os apps de pegação
se somaram à grande parcela de plataformas contemporâneas
que visam viabilizar, organizar e promover encontros eróti-
cos. Além de viabilizar a performance de si como um sujei-
to do desejo e de articular a potentia gaudendi (PRECIADO,
2008) de um corpo, os apps acabam por ressignificar o pró-
prio corpo, permitindo certa agentividade subjetiva.
Beatriz Preciado (2008) propõe que já nos anos 1950 se
postulava que as tecnologias de comunicação funcionavam
como extensões do corpo. O caráter interventivo da tecnolo-
gia no corpo não é uma novidade na filosofia, especialmen-
te após a escrita de Manifesto Ciborgue por Donna Haraway
(2000). Embora a conexão entre tecnologia de comunicação
(em especial o celular, como suporte da conectividade cor-
pórea) e corpo seja uma relação intensa, já não podemos afe-
rir com segurança quem é parte de quem, em que medida
determinamos a tecnologia ou somos determinados por ela.
A conectividade deixou de ser uma característica maquínica
para ser uma função orgânica. Como explica Preciado, “hoje

93
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

a situação parece muito mais complexa: o corpo individual


funciona como uma extensão das tecnologias globais de co-
municação” (2010:39).
Assim, os apps de pegação se erigem como tecnologias
de subjetivação, como territorialidades próprias a viabilizar
o vir a ser do sujeito e a exercitar técnicas de si, a identifi-
car-se com ou resistir às possibilidades subjetivas historica-
mente licenciadas em nossa cultura. Os apps são tecnologias
subjetivas que permitem desejar e fantasiar o Outro e a nós
mesmos. Acima de tudo, eles ressignificam o corpo, tanto
porque a conectividade e o estar sempre online passam a ser
uma função orgânica, quanto porque a internet exacerba,
potencializa a visibilidade dos efeitos da performatividade.
Os apps de pegação são uma territorialidade online propí-
cia para vivenciar uma experiência corporificada. Apesar
da minha insistência no termo tecnologia de subjetivação
em detrimento de prótese, para Paul Preciado (2008) nossas
subjetividades no regime farmacopornográfico só se defi-
nem por meio de próteses cibernéticas, como os aplicativos
aqui estudados. O benefício do conceito ‘próteses’, através
das quais agimos socialmente, evidenciamos nossos corpos
e nos mostramos, seria colocar uma ênfase na tecnologi-
zação do corpo e na dependência da máquina que o corpo
contemporâneo experimenta. A ideia de ‘prótese’ enfatiza
a fusão tecnológica do corpo com a máquina e o “grande
ressentimento que tem como centro o fato de [o corpo] não
ser uma invenção técnica. O corpo revisado e corrigido pela
técnica é o único digno de valor” (LEBRETON, 2001:22). O
conceito de ‘prótese’ destaca a incômoda incompletude do
orgânico e o inquietante desejo pela existência do ciborgue.

94
Gleiton Matheus Bonfante

É interessante notar que a internet (metáfora de desloca-


mento e movimento rápido) sempre foi fisicamente imóvel; é
um fenômeno relativamente novo sua mudança para aparatos
móveis (como celulares, iPods e tablets) e, consequentemen-
te, para mais próximo do corpo. A proximidade com o corpo
e a própria centralidade coetânea do corpo podem suscitar
sentimentos sexuais e eróticos em torno dos aparatos e seus
softwares. De fato, a erotização se inscreve nas tecnologias
de subjetivação e encontra nelas uma habitação confortável,
especialmente naquelas que se aproximam do corpo que o
acentuam como os apps de pegação. Alguns dos aplicativos30
observados em minha incursão etnográfica, como Manhunt
e GayRomeo, surgiram como sites e migraram para os celu-
lares em formato de aplicativo. Hoje, eles coexistem com seus
tradicionais sítios eletrônicos. No entanto, a grande maioria
de softwares para relação interpessoal como Grindr, Scruff,
Hornet foram planejados especialmente e unicamente para
aparelhos móveis e não podem ser acessados pelo computa-
dor, não apenas porque a geolocalização é orientadora das
relações ali, mas também porque, através do celular, tecnolo-
gia pessoal e intransferível, se lida com sentimentos mais pri-
vados, mais íntimos. O computador pode ser compartilhado,
o celular é individual. Dotados de GPS, os aplicativos foram
pensados para condensar possibilidades reais de encontro e
amplificar a visão local31.

30 A decisão em focar em apenas três apps, os mais populares, se deu também porque a discussão das
diferenças entre eles – operacionais, de publico alvo, técnicas, de layout – exigiria muito tempo e espaço e
fugiria aos interesses do livro.
31 Existem diferenças pungentes quanto à funcionalidade, design e configuração dos aplicativos que
migraram da internet e daqueles que “nasceram” como aplicativos. Tais distinções não serão exploradas
aqui, porém podem ser trazidas para a análise na medida em que sejam relevantes.

95
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Assim, é necessário ressaltar o aspecto positivo da me-


diação. Mediação não implicaria em certa dependência de
um meio, não configuraria necessariamente uma desvanta-
gem ou uma limitação. A mediação deve ser entendida como
uma tecnologização, um aprimoramento no processo de sub-
jetivação. Os apps não são uma prótese neste constante ato
de vir a ser, mas uma especialização e uma especificação no
processo sociointeracional.
Dessa forma, a internet, com suas características, e em
especial os sites de relacionamento pessoal e seus complexos
traços, estão ressignificando profundamente as relações in-
terpessoais. Os apps não são apenas uma experiência semió-
tica, mas eles potencializam a experiência sensual e sensória
dos signos, através da qual articulamos nós mesmos e nossos
desejos no corpo dos signos ao produzir efeitos de excitabi-
lidade em outros corpos e ao afetá-los. Estas tecnologias de
subjetivação contemporâneas, os apps, são plataformas não
apenas mediadoras das relações entre os sujeitos do desejo,
mas o próprio artifício, o meio para ascenção do indivíduo à
condição de sujeito do desejo.

3.1 In a queer time and space32

As distâncias nos apps de pegação não se dão em qui-


lômetros, mas são aferidas por meio de densidade demo-
gráfica, ou seja, as distâncias são ressignificadas em uma
equação de número de usuários pelo raio de distância. As-
sim, se viaja mais distante e se percorre mais corpos quan-
do mais perfis em menor espaço se concentram. A pesquisa
32 O título do capítulo é uma apropriação explícita do título do brilhantíssimo livro de Jack
Halberstam (2005).

96
Gleiton Matheus Bonfante

aqui empreendida se compromete com significados locais


e contextuais, em detrimento de almejar inventar verda-
des normativas e totalizantes. O contexto sociogeográfico,
onde a maior parte dos dados foi gerada e em torno do qual
gravitam os sentidos sociais discutidos, é a Zona Sul33 do
Rio do Janeiro, uma região que possui alta densidade de-
mográfica. Logo, dispõe de uma alta densidade de perfis,
não apenas dos moradores e trabalhadores da região, mas
também de muitos turistas e passantes de outras regiões do
Rio de Janeiro. Portanto, normalmente se viaja em torno de
dois a três quilômetros34 sem ultrapassar o limite permitido
de visualização, que é de 200 perfis. Viaja-se não ganhando
distâncias, mas cruzando perfis, atravessando corpos: para
ir de “GatoBotafogo” ao “BomdoLeblon”, do “PASGlória”
ao “CasalJdBot”, para cruzar a Baía de Guanabara e falar
com “ATIVOIcaraí”35. Como as personas dos perfis se dis-
tribuíam na tela em relação ao usuário seguindo a lógica
da proximidade, a geolocalização dos corpos, orientadora
da semiose dos aplicativos de pegação, atrai a atenção dos
participantes primeiramente para aqueles perfis mais pró-
ximos e, assim, estimula não só uma possibilidade de en-
contro ‘real’, mas especialmente fomenta uma ancoragem

33 Mesmo dentro de uma região como a zona sul, fica difícil apostar completamente em homogeneida-
des estruturantes.
34 Em outra comparação matemática, isso significa que em um raio de 2 km na Zona Sul (ou mais
especificamente, em Botafogo, de onde provêm cerca de 70% dos dados analisados) existem pelo menos
200 homens que se fazem sujeitos através da discursivização dos seus desejos. Contudo, há horários de
pico, nos quais mais perfis estão online e não se viaja mais de 1 km, assim como existem horários em que
o perfil mais distante se encontra a cerca de 4 ou 5 km. Além disso, a densidade de perfis pode ser alterada
significativamente nos períodos de alta temporada devido ao grande número de turistas. A presença dos
turistas também altera significativamente a paisagem dos apps, tornando evidente a centralidade do corpo
na estilização de si no Rio de Janeiro.
35 Todos estes nicknames usados para referenciar bairros da Zona do Sul (e de Niterói, no caso de
Icaraí) foram extraídos de perfis verdadeiros das plataformas estudadas. Uma evidência da relevância
da geolocalização é certamente a produtividade de perfis que se nomeiam baseados em suas localidades:
bairros, cidades, ruas, parques, etc.

97
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

no mundo, acentuando a realidade e a corporalidade do su-


jeito. Como se investido do poder de ver através de paredes,
de acessar o corpo apesar das roupas, de encontrar sujeitos
nos recônditos da cidade e observar os corpos por ângulos
insólitos, ao usuário do Grindr, acima de tudo, é permitido
o acesso aos desejos das pessoas, às suas práticas sexuais,
à ‘verdade’ delas mais profunda: o seu sexo. Os aplicativos
articulam os corpos aos seus “potenciais de gozo”, ou po-
tentia gaudendi através das performances online. Para Paul
Preciado (2008), todos os corpos na pós-modernidade já
funcionariam como potenciais ilimitados de gozo; corpos
são inteligíveis na contemporaneidade farmacopornográ-
fica porque podem se erotizar. Erotizar-se e pornificar-se
acabam por ser estratégias não apenas para afetar outros
corpos, mas também para existir, para se fazer sujeito.
O contraste destes aplicativos para com a multiplicida-
de de diferentes plataformas que viabilizam encontros na
contemporaneidade jaz justamente na sua geolocalização,
na relação contínua, contígua com o corpo e com suas per-
formances. Os apps nos apresentam a uma espacialidade
queer, não apenas pela virtualidade dos seus territórios, que
já representam conhecidamente um obstáculo conceitual
para a pesquisa acadêmica e demandam novas epistemolo-
gias, mais dinâmicas. Mas também e especialmente porque
possuem uma ancoragem geográfica. Ao contrário de uma
sala de bate-papo, os apps são móveis, já que se locomovem
junto com os corpos. Nos apps, a ideia de compartilhamento
de uma sala reforçado pela metalinguagem, como propõe
King (2011), não acha lugar. O autor propõe que nas salas
de bate-papo existe um imaginário de compartilhamento de

98
Gleiton Matheus Bonfante

uma sala, reforçado pela metalinguagem “entrar”, “sair” etc,


e constantemente reforçado pelas performances generifica-
das e sexualizadas que acabam por sexualizar o ambiente.
Embora de fato circulasse nas antigas36 salas de bate-papo a
ideia de sair da realidade para entrar em uma localidade vir-
tual (com razão, cada plataforma pode fomentar experiên-
cias muitos distintas de tempo e espaço), compartilhando
um espaço com outros, nos apps a geolocalização do outro
é precisa, a distância de um ao outro é precisa, já que o app
revela a real distância em linha reta entre o ‘eu’ e o ‘Outro’,
o espaço que separa sujeito e objeto de desejo. A ilusão de
proximidade não faz parte da experiência, justamente por-
que a exata localização do outro importa na viabilização de
um encontro in praesentia. Não se compartilha uma sala,
mas um desejo de estar juntos corporeamente. Também as
relações não são, a exemplo das interações nos antigos chat
rooms e nos grupos do Whatsapp, ensaiadas entre múltiplos
interlocutores. Fala-se sim com muitas pessoas simultanea-
mente – inclusive dando vazão a diferentes ‘eus’, como a ex-
pressão “esquizofrenia” abaixo designa – contudo em chats
particulares. A intimidade da conversa particular, resguar-
dada pelo anonimato relativo (como as representações são
fragmentadas, nunca se apreende a pessoa por completo) é
característica central às interações nos apps de pegação.
Se, por um lado, a experiência de um tempo mais rápido,
mais urgente, mais acelerado é um sintoma da contempo-
raneidade íntimo-espetacular, por outro, a simultaneidade
de eventos também caracteriza uma particularidade da ex-
36 “Antigo” no sentido de “pioneira’, já que algumas salas de bate-papo ainda gozam de plena
vitalidade, especialmente para sujeitos que não tenham tanta privacidade no próprio celular, como
sujeitos casados.

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

periência do tempo nos dias de hoje. Nos apps de pegação, e


certamente na rede em geral, a conectividade tornou possível
a simultaneidade das pessoas em mais de um contexto social
ao mesmo tempo, ou no mesmo contexto se relacionando
com vários interlocutores ou grupos de interlocução distin-
tos simultaneamente.
O fragmento seguinte, extraído do diário de campo,
pode ilustrar a experiência de simultaneidade do tempo, ou
de fragmentação do ser no agora:

Guto relata que possui dois perfis diferentes no Grin-


dr: um como ativo (Comedor) e um como passivo
(Guto25p). De acordo com ele, a versatilidade era um
empecilho para conseguir parceiros sexuais, porque sig-
nificava um sinônimo de pouca exigência ou até apatia
sensual, como se para se fazer sujeito do desejo, se de-
vesse fornecer uma imagem assertiva do seu desejo. Em
suas palavras: “As bicha quer gente decidida. Ou quer dá,
ou quer comer. Também tem aqueles que querem revezar,
mas é raro. Como pros flex, tudo serve, parece que eles es-
tão com menos vontade ou são só passivos. Aí fiz dois per-
fis, um como ativo e um como passivo, porque vontade de
dar não falta. ” Além das ideias acerca da versatilidade,
Guto25p explica que os sujeitos passivos não querem se
relacionar com versáteis, só querem ativos decididos. A
ironia é que como os perfis são organizados na tela por
ordem de proximidade, seus dois ‘eus’ se emparelhavam
sempre lado a lado e ele mesmo sempre será seu vizinho
mais próximo. Ele diz: “O Grindr é a prova da minha
esquizofrenia” (Diário de Campo, janeiro de 2014).

A esquizofrenia aqui é um sintoma inegável de uma


época, e não de um sujeito específico. A esquizofrenia a que

100
Gleiton Matheus Bonfante

alude Guto é uma metáfora que se refere à experiência de


performar simultaneamente sujeitos diferentes. As tempo-
ralidades e também as espacialidades online esfacelam os
sujeitos em múltiplos suportes: se é pai, professor, amante,
ativista político, sujeito do desejo, trabalhador etc., simulta-
neamente, dependendo da sua mídia, do seu interlocutor e
de sua performance.
Se, como propõe Jack Halberstam, as noções de tempo
e espaço são construtos sociais amplamente ancorados no
capitalismo e na temporalidade familiar (HALBERSTAM,
2005), então a ressignificação queer do tempo e do espa-
ço provoca e desafia assunções e valores sociais relativos à
compreensão e vivência do tempo. Além da virtualidade37,
um componente inerentemente queer do tempo e do espa-
ço online, os apps fundam uma territorialidade na qual é
promovido um contato interclasse, interracial e intergera-
cional, que é queer. Os apps por um lado, desafiam os sig-
nificados hegemônicos do tempo e do espaço na sociedade
e, por outro, atuam em uma desguetificação da vida social
gay, tanto no sentido de estimular o contato entre diferen-
tes grupos dentro da heterogênea e guetificada comunidade
LGBT, quanto no sentido de vislumbrar esquemas de orga-
nização marital que escapam a heteronormatividade, que a
desafiam e que a problematizam. Essa apreensão acelerada
e simultânea do tempo expõe a instabilidade dos sentidos e
a dependência da performance na produção dos efeitos de
estabilidade identitária e corpórea.

37 Estar em um sítio virtual pressupõe necessariamente uma espécie de simultaneidade espaço-tem-


poral, já que não há sujeito que consiga se transmutar definitivamente para um ambiente virtual. O corpo
ainda prende o sujeito a sua organicidade, às leis da física de corpos, ao mundo.

101
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Os apps representam uma apreensão queer do tempo por-


que nos confrontam com uma compressão do tempo. Neles,
o tempo, efêmero, apressado, fugaz da performance e do de-
sejo reorganiza as relações em uma temporalidade urgente,
rápida, volátil, simultânea, como a temporalidade típica do
sujeito desejante, do “colecionador de sensações” (BAUMAN,
1998). A volatilidade das performances, sempre perenes deve
ser ressaltada. A própria existência nos apps pertence ao ago-
ra e é combalida, perecível, volátil: ao mudar a foto, um nick-
name ou seu texto, se tem outra performance. Nem o sujeito
é durável. Dinamismo, efemeridade e intensidade são carac-
terísticas centrais da pós-modernidade, embora nem sempre
associados à tecnologização das relações intersubjetivas. Cle-
minson e Gordo (2008) identificam uma mudança no ethos
das tecnologias de relacionamento social, como os chats. De
acordo com eles, os chats possuíam uma configuração mais
impessoal e menos íntima, que privilegiava interações efê-
meras, anônimas e coletivas. Tal mudança se expressaria na
atual predileção popular por sites de relacionamento e rela-
ções mais duradouras em lugar dos chats e dos coletivos. Para
os autores, as salas de bate-papo foram substituídas por MSN
e mais atualmente pelo Skype, que comprou o MSN. Embora
o Whatsapp ainda não tivesse sido popularizado em 2008 à
época da publicação dos autores, acredito que ele se encaixa-
ria no movimento analítico que eles empreendem. Estes três
últimos, assim, incitariam interações mais sustentáveis, du-
ráveis no tempo, mais íntimas de acordo com os autores. Ao
contrário do proposto pelos autores, os aplicativos de pegação
se insurgem como uma resistência do efêmero, do volátil. No
entanto, sua volatilidade não sugere que as interações não se-

102
Gleiton Matheus Bonfante

jam íntimas. Os apps trazem o corpo para o signo não apenas


por que discursivizam, produzem o corpo, mas porque os sig-
nos tocam os corpos, os afetam.
Pela volatilidade, efemeridade das performances e dos
sentidos veiculados nos apps de pegação, eles acabam por se
configurar como uma temporalidade queer e também uma
territorialidade queer, ou seja, desafiam a universalidade do
tempo e do espaço e denotam a insurgência de novas formas
de concebê-los e experienciá-los. A palavra queer aparecerá
no texto com sentidos nem sempre confluentes. Aqui, seguin-
do os escritos de Halberstam (2005), queer time e queer space
se referem a distintas formas de conceber o tempo, recusando
sua normatividade altamente respaldada pela lógica hetero-
capitalista que prevê o tempo como aquele biológico do nas-
cimento, crescimento, reprodução e morte como a norma e
que prevê o espaço orientado pelos valores dos ininterditos
consumo e produção. A efemeridade do tempo e a discursivi-
dade do espaço nos apps deixam ver o desafio que infringem
não apenas para a sua teorização, mas principalmente porque
instituem novas escalas de tempo e espaço, dinâmicas, fluí-
das, efêmeras e, especialmente, intensas.
Na contemporaneidade, e em especial nos aplicativos
de pegação, experienciamos uma sensação de aceleração do
tempo. Na pós-modernidade, as relações interpessoais se des-
prendem dos contextos tradicionais e fundam novas escalas
de tempo, assim como novos contextos sociais. O ‘agora’ pa-
rece ser o único tempo na pós-modernidade, eternamente
congelado como um desejo sempre pulsante, nunca realizado.
Como resume Fridman, hoje a “vivência do tempo é profun-
damente alterada: não há mais longo prazo” (2000:56).

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Assim, pela experiência de aceleração do tempo nos apps,


o tempo é experimentado de forma mais intensa. As tecnolo-
gias de subjetivação, como os apps atribuem às performances
fugidias do desejo a característica de um momento de inten-
sidade (GUMBRECHT, 2010) não apenas pela experiência es-
tética que tais performances inauguram, mas por configura-
rem “fenômenos de presença”, fenônemos que tocam o corpo
como afeto e arrebatamento mais do que sentido.

3.2 “Tem foto pelado?”: performance e desejo na


contemporaneidade

Se, por um lado, o post de uma foto durante o ato sexual


introduzido na Cena II do Prelúdio desse livro causou grande
polêmica online, sendo não apenas largamente compartilhado
e duramente criticado e ridicularizado em blogs e no What-
sapp, mas também foi finalmente deletado algumas horas
depois de postado, devido à sua repercussão, por outro, nos
aplicativos de pegação, as performances pornificadoras de si
são esperadas, desejadas e valorizadas. Se, por um lado, uma
performance íntima pode parecer por demais pornográfica,
desnecessária e até ofensiva, dependendo de seu código-ter-
ritório de circulação, por outro, a exibição íntima de si é um
espetáculo midiático e uma maneira de forjar inteligibilidade
em outros código-territórios, de modo que performances ín-
timas estão circunscritas a um regime de circulação.
Independentemente da detalhada documentação da
vida social que presenciamos no Facebook, como fotos de
comida, check-in nas mais diversas localidades, fotos de be-
bês ainda ensaguentados do parto, fotos na academia, no
banheiro, no banheiro da academia, de roupa de banho e

104
Gleiton Matheus Bonfante

íntima, fotos de momentos particulares com sua família e


fotos de cadáveres, a sexualidade ainda parece ser um pon-
to de tensão na sociedade contemporânea, e a performan-
ce pornográfica parece respeitar um regime de circulação e
de moral. Voltando-nos a Figura 2, a selfie no motel, apre-
sentada no Prelúdio vemos a descrição “barbarizar e cmg
mesmo” que complementa38 o post do garoto no Facebook.
O texto parece indicar, por parte do autor da postagem, o
reconhecimento da possibilidade de choque, de subversão,
de provocação social que a imagem carrega, justamente por
transgredir os limites de sua circulação. A imagem produz
certamente uma espécie de afeto, já que ao se adequar a um
código pornográfico de representação de si, a performance
privilegia o excesso (BALTAR, 2013) como elemento esté-
tico para afetar os corpos e mobilizar sensações. Por outro
lado, a dimensão confessional da enunciação do seu sexo
possui especial importância na produção de afeto: ela pare-
ce contribuir para a realidade e a verdade da imagem, já que
articula o sujeito com a enunciação de si, ao mesmo tempo
em que contribui para o sentido de obscenidade, oriundo de
regimes sociais de moralidade que limitam a circulação e o
acesso de alguns conteúdos, como o pornográfico. A inten-
sificação do afeto ocorre porque como proposto por Baltar
(2013), as ideias de realidade e de verdade não apenas estão
invarialvelmente ligadas ao explícito, ao excesso, ao aberto e
ao sexual, mas também se acentuam nessa relação.
Mas seriam a sexualidade e o sexo em si de fato obs-
cenos – do latim ‘ob’ + ‘scaena’: fora de cena? Estariam as

38 Interessante notar que imagem e texto se complementam nas performances dos sujeitos con-
temporâneos.

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

práticas sexuais e o corpo sexualizado, como aponta a eti-


mologia da palavra, realmente fora de cena? “O que é obsce-
no na nudez?” é a pergunta fundamental que Sibilia (2013)
propõe, em um artigo que discute casos de censura de nu-
dez no Facebook.
A sexualidade heterossexual e seus rituais certamente
não são obcenos. E embora a foto dos rapazes no motel fa-
zendo sexo tenha sido socialmente rechaçada, diariamente
vários casais heterossexuais celebram seu desejo postando
selfies pós-sexo, selfies de ‘selinho’, além de outras em que
demonstram explicitamente afetividade e carinho e o privi-
légio de celebrar em público seu desejo perfeitamente ajus-
tado a normas sociais. As normas não podem estar fora de
cena; elas compõem os próprios regimes de saber e traba-
lham na criação de sujeitos ab-normais, através da reiteração,
da manutenção da diferença (BUTLER, 1993). A afetivida-
de heterossexual é não apenas estimulada socialmente; ela é
também é pressuposta. A sexualidade familiar e reprodutiva
é não apenas desejada, mas incentivada em público como um
estandarte de ajustamento social.
No terceiro volume da História da Sexualidade, ao estu-
dar as práticas matrimoniais no mundo helenístico, Foucault
(2014) esclarece que o casamento – uma prática privada, um
negócio da família – começa a se institucionalizar e ser regu-
lamentado pela esfera pública. Os rituais matrimoniais, como
a cerimônia, a consumação e a vida a dois intermediaram
a relação entre público e privado e trouxeram visibilidade a
essa forma de afetividade, das quais o sexo seria seu maior
estandarte. Hoje, enquanto a homoafetividade se vê relega-
da à esfera privada, enrustida na semiose do segredo, vários

106
Gleiton Matheus Bonfante

signos da heterossexualidade circulam atribuindo seu caráter


“em cena”, de normalidade, de característica desejada. Como
explicam Berlant e Warner:

A heterossexualidade moderna supostamente se refe-


re a relações de intimidade e identificação com outras
pessoas, e atos sexuais são supostamente a mais íntima
comunicação entre eles. O ato sexual, protegido pela
zona de privacidade, é o nimbus de afeto que a cultura
heterossexual protege, e do qual ela abstrai seu mode-
lo de ética, porém essa utopia de pertencimento social
é também apoiada e ampliada por atos menos comu-
mente reconhecidos como parte da cultura sexual: pa-
gar impostos, ficar repugnado, ser galanteador, deixar
à posteridade, celebrar um feriado, investir para o fu-
turo, ensinar, desfazer-se de um cadáver, carregar fotos
na carteira, comprar tamanho econômico, ser nepótico,
concorrer à presidência, se divorciar ou possuir qual-
quer coisa “d’Ele” ou “d’Ela” (2003:169).

Assim, a imagem publicamente mostrada, livremente


compartilhada de uma relação sexual interracial entre dois
homens possui não apenas um caráter provocador porque
ousa transgredir os limites entre gêneros, etnias e aqueles im-
postos entre esfera pública e privada, mas também, e princi-
palmente, devido ao caráter privado – ou melhor, sem lugar
– ao qual foi relegada a experiência homossexual na nossa so-
ciedade. De acordo com Ferreira, “as relações entre pessoas
do mesmo sexo é reflexo da tensão que os sujeitos experimen-
tariam, já que se situariam num espaço vazio a partir do qual
a intensidade da experiência deveria diferenciar-se da história
e não simplesmente se submeter a ela” (2010:268).

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Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

A experiência homossexual engloba necessariamente


uma diferenciação da história – uma história heterecom-
pulsória. Engloba também um novo traçar de caminho, um
afastamento do até então familiar e conhecido. Não há nar-
rativas gays acessíveis, públicas e, assim, tornar-se um sujei-
to homoafetivo implica, necessariamente, distanciar-se dos
discursos heteronormativos e de seus contextos de produção
e, possivelmente, fundar uma nova territorialidade onde se
possa fazer sujeito. Assim, para sujeitos homo-orientados, as
possibilidades de se fazer sujeito e experienciar a si mesmos
só podem ser alcançadas através do distanciamento do co-
nhecido, justamente porque a experiência39 homossexual é
da ordem do impossível, do inimaginável, do obsceno. Por
isso, as performances de si de sujeitos homoafetivos são ne-
cessariamente permeadas por uma tensão: por um lado, um
impulso pós-moderno em se mostrar, se estilizar, se subme-
ter ao olhar do outro, por outro, um sentimento de censura,
de restrição de circulação de suas performances e de ‘obsce-
nidade’ frente ao olhar público.
Encarando esse caráter sem-lugar da homossexualidade
na sociedade ocidental, os homo-orientados têm historica-
mente criado novos código-territórios, novas tecnologias de
subjetivação – lugares de onde possam ascender à condição
de sujeito e possam ser sujeitos do desejo, à parte da mo-
ral normativa heterocapitalista que domesticam os sujeitos
e relegam os desviantes ao âmbito privado, à invisibilida-

39 Vale lembrar que não existe tal coisa como uma experiência homossexual. Experienciamos nossa sexualidade de for-
mas muito específicas, o que nos impede falar de uma “essência homossexual”. De fato, muitos homossexuais decidem (ou
são impelidos) a viver dentro do regime que Lisa Duggan (2003) chamou de homonormatividade, e assim corroborar para a
manutenção da norma que os oprime. A autora em Homonormativity descreve a política sexual neoliberal como uma política
que não contesta instituições e assunções heteronormativas, mas ao contrário as mantém e sustenta, enquanto estimulam a
possibilidade de uma comunidade gay integrada e uma cultura gay despolitizada ancorada na domesticidade e no consumo.

108
Gleiton Matheus Bonfante

de e à inexistência. Os territórios de resistência, como, por


exemplo, os banheiros públicos, os parques, os apps de pe-
gação, são movimentos de relutância40 ao heterocapitalismo
e formas de rejeição dos esquemas de subjetividade a que
somos submetidos. Um código-território é uma localidade
cuja realidade, cujos contornos são alcançados no discurso
e nas semioses. O foco semiótico é essencial para o tangen-
ciamento do espaço social. Em distintos código-territórios
se articulam, se fundam diferentes símbolos e ícones sociais.
Neles, circulam diferentes sentidos, distintos sujeitos, distin-
tos corpos, numa especificidade e singularidade que são al-
cançadas no discurso. Para Perlongher (2008), por exemplo,
o gay seria um prisioneiro da passagem, por não conseguir
nunca abandonar o código de onde partiu e nunca chegar
definitivamente no código em que escolheu viver. Não penso,
contudo, a existência de código-territórios nem como fron-
teiras fixas e imutáveis nem como intransponíveis. Prefiro,
por outro lado, a metáfora ‘viajante do código’ para se referir
ao homossexual, pois entendo que a alternância de códigos
seja uma movimentação típica e positiva e que não estamos
presos à passagem, mas somos livres para circular – ou tal-
vez impelidos a circular. Apesar das violências sociais que
a inadequação assertiva ao normativo código da heterosse-
xualidade pode provocar, a alternância entre códigos pode
significar um conhecimento expandido, uma visão privile-
giada sobre a prescritividade dos código-territórios e sobre a
contextualidade dos significados sociais.

40 Vale ressaltar que tais movimentos de resistências são revolvidos por outros movimentos de reitera-
ção das normas sociais atribuindo contornos ambivalentes às performances estudadas.

109
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Sensível à impossibilidade da circulação pública da ho-


moafetividade pelos códigos sociais permeados pelo regime
de heteronormatividade, atento à clandestinidade da expe-
riência homoafetiva, Joel Simkhai criou em 2009 o aplicativo
Grindr, um distinto código-território, propício à performan-
ce de si, ao dar a ver da intimidade homossexual, à exibição
do afeto homossexual. Os aplicativos foram pensados para
solucionar a dificuldade de conhecer e encontrar outros ca-
ras gays, configurando, assim, um distinto código-território,
clandestino, furtivo, uma forma de insubmissão às práticas
subjetivas tradicionais, um exercício de si, uma tecnologia de
subjetivação, através dos quais indivíduos se fazem sujeitos.
Dar-se a ver nos apps, mostrar-se ali é existir infinitamente
nas tramas do discurso como sujeito do desejo pelo universo
íntimo-espetacular da contemporaneidade.
Dar-se a ver intimamente nos apps de pegação é um dese-
jo pungente. A interpelação constante por fotos e outras per-
formances imagísticas de si, pela exibição precisa do potencial
de gozo é uma prescrição da nova tecnologia de subjetivação.
Lá, a performance ensaiada no Facebook introduzida no Pre-
lúdio não seria digna de represália, mas de aprovação. A de-
manda por ilustrações, por selfies, por performances de si, nas
quais o sex design dos participantes seja explicitado é corri-
queira. “Tem foto pelado?” é uma muito recorrente pergunta
nos apps que muitas vezes é completamente descontextuali-
zada, como na Figuras 9, 10 e 11a seguir. O pedido pode ser
mais eufêmico como em “mais fotos?” ou econômico como
em “Foto?”. A frase pode ainda ser mais específica, requeren-
do a revelação de partes do corpo características: “Mostra a
piroca”, “Tem foto do pau?” Muitas vezes também o pedido

110
Gleiton Matheus Bonfante

é dispensável já que o contato é feito através do envio direto


de uma imagem de um pênis ereto. E a ideia de retribuição é
um alicerce dessas relações, causando um mal-estar quando
o Outro não retribui a foto.
É interessante também ponderar que os apps de pegação,
devido a regras da Apple®, são proibidos de veicular conteúdo
pornográfico. Os perfis sofrem vigilância quanto ao conteúdo
de suas imagens. A estilização de si não pode ser pornográfica
na imagem de perfil, embora o conteúdo seja livre nos diálo-
gos privados.

Figura 9: “May I see your cock?”

111
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Figura 10: Interação entre ATIVO COPA e GORDO ZS

Figura 11: Interação entre Gato Passivo e FELIPE ATV TJK

112
Gleiton Matheus Bonfante

Contudo, muitas vezes, poucos minutos – ou até segun-


dos após a troca de fotos – os sujeitos da interação, cada qual
satisfeito à sua maneira, se esvaem. Assim como seu abrupto
começo, seu fim é inesperado. Embora a duração da interação
seja efêmera e dinâmica e os corpos talvez nunca se encon-
trem, a interação é intensa, sensual, propensa à satisfação se-
xual. Uma característica muito relevante dos apps é sua pro-
pensão ao sexo, mesmo que muitas vezes apenas discursivo.
Nos apps de pegação habita o desejo latente – embora não
unânime – entre os participantes de ser sexo, de ser gozo, de
ser, ao mesmo tempo, sujeito e objeto de desejo.
Relutei o quanto pude para não descrever o código-ter-
ritório em questão como hipersexualizado, ou saturado de
sexo. Não apenas porque a experiência no campo me mos-
trou a diversidade de possibilidades relacionais e de interes-
ses distintos dos participantes do chat, mas também, e prin-
cipalmente, porque propor a hipersexualização implicaria
necessariamente assumir noções heteronormativas de mo-
ral como padrões comparativos e reforçar tais noções como
normas sociais. Ora, frente ao estilo heterocapitalista e mo-
nogâmico de moralismo, o código-território dos apps seria
um antro de promiscuidade, embora as relações sexuais ca-
suais ali articuladas não sejam nada diferentes daquelas or-
ganizadas nos apps direcionados ao público heterossexual,
como o Tinder. Ao contrário, quero propor que as relações
estabelecidas nos apps oferecem resistência ao modelo hete-
ronormativo e à moral burguesa e religiosa, pois instituem o
sexo como prática identitária, como uma forma de se fazer
sujeito homoafetivo e de estabelecer laços de amizade. Com
razão, não há uma experiência comum entre os sujeitos ho-

113
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

moafetivos, muito menos uma confluência garantida de atra-


vessamentos identitários, de modo que para ser reconhecido
como um sujeito homoafetivo, é necessário manter práticas
sexuais homoafetivas ou pelo menos nutrir um desejo por
elas. Assim, o desejo é imprescindível ao devir homoafeti-
vo. Levando esse aspecto crítico e des-homogeneizante em
consideração, proponho que os aplicativos de pegação são
territórios onde frequentemente se procuram e se organi-
zam encontros reais que não necessariamente incluem atos
sexuais, mas frequentemente sim. Todos ali desejam, embo-
ra existam diversos perfis que desejam outras coisas além de
sexo: amizade, ‘drugmates’, romance, contatos profissionais.
De qualquer forma, o desejo parece ser um sentimento nor-
teador da estilização de si nesses apps. É crucial ser desejável
e desejar. Isso pode muitas vezes trazer uma tensão para as
interações na forma de competição, ou só “te quero se vc
me quiser”. Esse imperativo de desejabilidade contribui para
a ambivalência típica de tais código-territórios: se por um
lado, seus sujeitos se lançam constantemente a um movi-
mento de subversão das normas afetivas, por outro, muitas
vezes reforçam normas de desejabilidade.

3.3 Eu e os rapazes

Embora seja de praxe na pesquisa etnográfica descrever


os participantes baseando-se em várias características co-
muns e pressupondo, assim, um grupo mais ou menos homo-
gêneo, a única peculiaridade entre os participantes da minha
pesquisa era o fato de aderirem à mesma técnica de existência
para exercício de si: a performance desejante nos apps de pe-

114
Gleiton Matheus Bonfante

gação. Todos eles se mostravam, se despiam, se submetiam à


vulnerabilidade de ser visto, para serem reconhecidos como
sujeitos do desejo. À parte disso, eles possuíam atravessamen-
tos identitários muito variados. Embora eu apresente aqui
um panorama dos participantes seguindo macrocategorias
sociais para exemplificar a alta diversidade dos participantes
dos apps, na análise tais categorias serão consideradas inter-
seccionalmente. O foco em pensar as características dos par-
ticipantes dos apps é, neste livro, para frisar a diferença e a
heterogeneidade dos apps e o conseguinte encontro entre dis-
tintos grupos sociais – leia-se ‘choque com a alteridade’ – que
eles proporcionam.
Quanto à idade, embora a maioria dos perfis analisa-
dos tivesse entre 18 e 40 anos, várias gerações se encontram
online, sendo este encontro entre gerações uma caracterís-
tica queer e interessante da plataforma. Entre os extremos,
já entrevistei online um homem de 73 anos e um garoto de
14, muito embora os apps sejam proibidos para menores de
18 anos. Também é interessante notar que quanto mais pró-
ximos dos extremos na linha etária, mais provável que os
sujeitos queiram omitir sua idade, o que torna mais difícil
apreender com certeza as idades dos sujeitos. Com razão,
nenhum dos dois sujeitos (de 14 e 73 anos) admitiam sua
verdadeira idade nos perfis. Elas me foram ‘confessadas’ em
interação. No que se refere ao gênero, a maioria esmagadora
dos participantes se performam como homens cissexuais41,
que se identificando como heterossexuais, gays, bissexuais,

41 Cissexual ou cisgênero desgina um sujeito em cuja performance haja uma concordância entre sexo
e gênero, ou seja, entre seu comportamento social generificado e o seu sexo anatômico. Em resumo, cisgê-
neros seriam os indivíduos não transgêneros.

115
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

curiosos e goys42. As meninas participam basicamente de


duas formas: em primeiro lugar, e mais abundantemente,
na presença das transexuais; em segundo lugar, mulheres
que praticam pegging: prática sexual que consiste na pene-
tração do parceiro pela mulher instrumentalizada por uma
prótese peniana sustentada por um cinturão, popularmente
conhecida como ‘cinta-pinto’ ou ‘cintaralho’. Além da pre-
sença das meninas e dos meninos, há também muitos per-
fis compartilhados por casais, normalmente gays, embora
já tenha me deparado com mais de um casal heterossexual.
No que tange à etnia, ela pode ser informada nos dados pes-
soais assim como altura, peso e idade, mas também podem
figurar, e de fato figuram muito frequentemente na compo-
sição do perfil em outros espaços com mais destaque, como
o nickname ou na descrição de si, assim como podem fre-
quentemente ser evidenciadas nas imagens43. No início da
inserção do campo, os apps ainda eram uma novidade, as-
sim como os próprios smartphones, objetos que se populari-
zaram rapidamente nos últimos três anos no Brasil. Assim,
conquanto um primeiro impulso seja em assumir que o pú-
blico dos apps pertença às classes média ou alta, acredito
que os smartphones se tornaram artigos tão imprescindíveis
à subjetividade contemporânea, ao constante mostrar-se
que mesmo as classes sociais menos favorecidas o enten-
dam como um artigo essencial, principalmente as gerações
42 Homens com apreço pela heteronormatividade, ou estilo de vida heterossexual, mas que fazem sexo
ocasionalmente, ou frequentemente, com outros homens. “Goys” também é empregado para se referir a
sujeitos homoafetivos que não pratiquem a penetração anal, mas prefiram à masturbação e ao sexo oral.
43 A cor da pele é normalmente invocada como potentia gaudendi do corpo. Contudo, a cor da pele pode
ser disfarçada, confundida por filtros, tornando difícil a identificação. Entre os dados estudados, existe uma
interação entre dois sujeitos que reproduzo aqui: Pirocudo ativo: “O que curte?” Jizzaddicted: “Curto um
negão, safado e pirocudo!” Pirocudo ativo: “Só vou ficar devendo o negão. ” Em seguida, Pirocudo envia
uma foto em que sua branquitude fica muito visível, muito embora ela tenha sido enxergada diferentemente
por Jizzaddicted na foto do perfil. Jizzaddicted se desculpa pela confusão e a interação acaba.

116
Gleiton Matheus Bonfante

mais novas. Por conseguinte, os apps são um território de


encontros de classe, de estabelecimento de contato entre di-
ferentes classes. As profissões não recebem grande desta-
que na estilização dos perfis – com exceção de profissões
que poderiam ser consideradas sensuais ou fetiches sexuais
como policiais, bombeiros, militares, médicos, advogados.
Profissões que poderiam ser consideradas femininas, como
cabeleireiro, maquiador, enfermeiro ou outras que denotem
pouco prestígio social ou pouco capital simbólico erótico
devido sua inserção no universo feminino, são usualmente
omitidas. Contudo, uma profissão específica depende de sua
revelação para que seu perfil seja bem-sucedido: a de garoto
de programa e dos outros perfis-capital como massagistas,
escorts, etc. Quanto à religião, embora símbolos religiosos
como crucifixos e escapulários apareçam nas fotos como ín-
dices convocados na performance de si (estes índices apon-
tam para um moralismo religioso, uma correção social, uma
adequação à masculinidade hegemônica e à heteronormati-
vidade), grandes detalhes sobre a religião ou credo religioso
não são costumeiramente muito relevantes à performance
de si como sujeito do desejo.
Em vista de tal heterogenia, e por entender na heterogenia
mesma uma qualidade, um potencial de subversão, e é claro,
um desafio epistêmico, o interesse pelas práticas recebe evi-
dência e relevância óbvias, pois as práticas não são apenas efei-
tos e resultados, mas atribuem fronteiras existenciais aos pró-
prios sujeitos. Assumimos, portanto, as práticas como limites
dos participantes: os participantes da pesquisa são aqueles que
participam nos apps de pegação, performando e estilizando a
si mesmos e seus desejos, e/ou consumindo performances e

117
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

desejos de outros sujeitos do desejo. Aqui os participantes in-


teressam mais por serem suportes de ideologias sociais, e por
se rebelarem contra elas do que por representarem uma pe-
culiaridade confluente de características identitárias. “Talvez
o alvo nos dias de hoje seja não descobrir o que somos, mas
recusar o que somos” (FOUCAULT, 1982:216). Talvez este não
seja apenas o objetivo do sujeito, como contraventor, como
resistência, mas também um interesse e uma responsabilida-
de da investigação científica: a de recusar a homogeneidade
como estabilidade de sentido e adquirir gosto pela diferença,
lembrando sempre que o autor de uma enunciação somente a
anima; não é o foco original de sua enunciação, não a criou,
não pode ser sozinho seu dono ou responsável.
Este movimento – de entender o sujeito como um supor-
te, um articulador, aquele que faz emergir significados sociais
e não individuais – é contrário ao tradicional foco de interesse
de pesquisa na relação entre a enunciação e seus sujeitos. Tal
tradição conclama a descrição do autor – no caso da pesquisa,
dos participantes, entrevistados etc. – e seus atravessamentos
identitários como parte fundamental do próprio sentido dos
textos, como se a biografia do sujeito iluminasse o texto. Não
queremos dizer que o autor não importa, mas que fatores so-
ciais como suas manifestações desejantes serão privilegiados
em relação a seus traços bibliográficos para a produção de co-
nhecimento. Os sujeitos importam como parte do contexto e
como articuladores de si nas tramas do desejo. Já que enten-
demos desejo como uma prática social, este sujeito do dese-
jo articula significados sociais mais do que individuais. Nos
aplicativos, não participam indivíduos, mas sujeitos imersos
em tramas discursivo-sociais de desejo.

118
Gleiton Matheus Bonfante

3.4 Desejo e linguagem: a semiose do desejo

Antes de responder o que seria a semiose do desejo – um


código específico ao qual os sujeitos do desejo aderem nas
suas performances de si e o qual compõe o foco de investiga-
ção nesta Erótica dos Signos–, proponho esboçar o que com-
preendo por desejo e por atividade semiótica.
Por serem de uma secretude típica, aos desejos sempre foi
atribuída uma profundidade inexorável, como se sua permis-
sividade combinatória e sua estranha liberdade configuracio-
nal fossem fruto de significados tão subterrâneos que deviam
ser cavados na infância, em traumas, na relação com a famí-
lia, recuando à natureza animalesca e instintiva para além
do acessível, para além do apreensível, do sensível. O desejo
seria, assim, fruto do inconsciente, numa acepção do termo
conforme as forças profundas e invisíveis que constrangem
a ação. Regredir ao inconsciente para teorizar o desejo signi-
fica assumir que haja a primazia de processos inconscientes
em relação a uma série de reflexões e avaliações que fazemos
constantemente acerca de características desejosas ou não as
quais não nos são apresentadas de forma isolada, mas dentro
de um contexto social mais amplo.
Certamente, os desejos são fenômenos individuais toca-
dos pela subjetividade, porém são especialmente atados a có-
digos sociais. O aspecto subjetivo se mostra no desejar por-
que as configurações desejantes, ou combinação de unidades
de desejo como etnia, rosto, porte físico, jeito são particulares
a cada sujeito. Desejar pode ser subversivo pois, embora liga-
dos a valores socias, as características sociais podem ser res-
significadas pelos desejos. Elas podem ser investidas de outro
significado pelos sujeitos desejantes. Desejar é duplamente

119
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

uma prática social e uma prática de si. Para Agamben (2007),


o desejo é o mais natural sentimento humano, de modo que
nós somos nossos desejos. Nós somos nossos desejos em dois
sentidos: 1) somos socialmente identificados com nossas
práticas; 2) não podemos representá-los exatamente porque
desejos são um recôndito inalienável. Modificamos necessa-
riamente os desejos quando os discursivizamos, mas, mesmo
assim, só os podemos conhecer através de sua exteriorização.
Essa parodoxal relação do desejo – de ser duplamente indivi-
dual, interno e almejar ser fato, virar realização, ser gozo – o
colocaria, de acordo com o autor, em indisponibilidade com
a linguagem. Tal relação de indisponibilidade seria mantida
com a discursivização, porque desejos não podem ser expres-
sos em palavras ou descrições linguísticas: eles nos habitam
como imagens e imaginações. Esta tensão subjetivo/social
deixa ver que desejos fazem parte de uma semiose social, um
conjunto de signos, cujos sentidos são históricos, comparti-
lhados e, acima de tudo, políticos. Contudo, sentidos não são
absolutos; novos sentidos podem ser inaugurados na própria
prática desejante.
Os desejos são práticas de si e práticas de imaginação
de si, de modo que quando o sujeito coloca seus desejos em
discurso, ele está colocando a si mesmo em movimento nas
tessituras dos signos, está estilizando-se como ser desejante.
E quando alguém é afetado pelas promessas de gozo de um
corpo, não está se deparando com seu próprio desejo. Em-
bora se depare com uma possível satisfação prazerosa, não é
exatamente seu desejo, mas uma ilustração dele pervertida
pelo significante linguístico. Por o desejo ser essencialmente
não-realizado, sua satisfação o faz deixar de ser desejo para

120
Gleiton Matheus Bonfante

ser lembrança, para ser uma figura completamente alterada


depois de sua realização. A ‘febre’ dos apps de pegação é fre-
nética, justamente pela promessa tácita que não pode cum-
prir: a um tap ou toque estaria a figura cristalizada de nosso
desejo, conquanto desejos nunca se possam cristalizar, ma-
terializar através do signo. No entanto, a impossibilidade de
materialização dos desejos não implica na impossibilidade de
satisfação do sujeito do desejo.
Desejo, portanto, configura uma prática social, imbuída
em jogos de poder que permeiam as relações entre sujeito e
objeto de desejo, as relações entre o que é socialmente desejá-
vel e o que é abjeto. O desejo alcança seus efeitos de sentido e
inteligibilidade (como aceito, prazeroso, asqueroso, crimino-
so, legítimo) sempre em relação a um código de conduta so-
cial. Como prática social, o desejo se dissipa pelas linguagens.
Dado a multissemiotização dos desejos, e sua indisponibili-
dade com a linguagem, que os faz existir como fragmentos al-
terados de nós mesmos, uma abordagem semiótica que não se
limita à linguística é necessária para apreender fenômenos do
desejo como as estilizações de si do sujeito do desejo. À parte
dos sentimentos de homogeneidade, estabilidade e unidade
que o conceito de língua suscita, entendo as atividades semió-
ticas como fenômenos mais amplos: são atividades sociais,
multiformes, que articulam diferentes repertórios de signos,
dos quais fazem parte também os linguísticos. Atividades
semióticas estão sujeitas e abertas à agentividade humana e,
acima de tudo, são contextuais, locais e dinâmicas. Que elas
possuam uma configuração distinta, específica de acordo
com seu contexto, é baseado nas assunções teóricas de que
esses repertórios semióticos – entre eles a linguagem – são

121
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

refletidos, direcionados, contextuais e ritualizados. Portan-


to, da investigação de fenômenos semióticos deve fazer parte
uma densa descrição do contexto social onde as linguagens e
repertórios específicos de signos são colocados em movimen-
to. A metáfora do movimento é essencial não apenas porque a
linguagem é dinâmica, mas porque ela é ação.
Como então o desejo se faz linguagem? Como é articula-
do por ela? O que seriam, afinal, as linguagens do desejo?
A primeira conjunção inevitável entre linguagem e desejo
se refere ao fato de o desejo ser como muitas outras práticas,
uma prática social. Assim, podemos falar de uma semiose do
desejo: um repertório de signos que articulam, conceituali-
zam, criam e recriam práticas desejantes. A segunda está rela-
cionada à potencialidade de excitabilidade (cf. Capítulo 2) de
toda linguagem em interação.
Semiose do desejo é um conceito que visa recobrir gêne-
ros discursivos que têm em comum ser o lócus de performan-
ce, representação e construção discursiva de seus desejos eró-
ticos e, especialmente, o lócus de como os sujeitos desejantes
se constroem, se performam como tal. Semioses enfatizam a
imperiosidade da imagem na contemporaneidade frente à pa-
lavra e ao discurso. São exemplos de gêneros que pressupõem
semioses de desejo: paqueras, sexo virtual, anúncios pessoais,
disque-sexo, chats nos apps de pegação, pornografia, perfor-
mances íntimo-espetaculares de si. Altamente subjetiva, e
muitas vezes contida, é a semiose do desejo: sempre em ten-
são entre a inconfessabilidade e a vontade de se ser gozo, de
deixar de ser desejo para ser lembrança. Uma linguagem nun-
ca exata, sempre errante. Apressada, volátil, vem descrever e,
portanto, criar, revelar o furtivo mundo dos amantes, atribuir

122
Gleiton Matheus Bonfante

contornos mais fixos à fugacidade dos jogos eróticos, como


propõe Genet: “Os jogos eróticos desvendam um mundo ino-
minável que a linguagem noturna dos amantes revela. Essa
linguagem não se escreve. Cochicha-se de noite, ao ouvido,
com voz rouca. De madrugada está esquecida” (2009:15).
Assim, das linguagens do desejo nos interessa tanto seu
esquecimento, quanto seus exercícios mnemônicos. Interes-
sa-nos tanto de que modo o sujeito e o objeto do discurso se
constroem semioticamente, quanto à articulação semiótica
entre sujeito e objeto através das tramas do desejo-poder.
Essa semiose do desejo, cuja configuração se pretende ana-
lisar, pode ser – e, de fato, é nos apps – mediada pelas tec-
nologias de subjetivação. Elas vêm mediar a ascensão de um
indivíduo à condição de sujeito por meio da performance
íntimo-espetacular de si, que está se tornando uma “técnica
de existência” corriqueira, entre as estratégias de subjetiva-
ção no mundo contemporâneo.
Essa semiose do desejo, pela qual indivíduos se fazem
sujeitos, também articula signos de diversas naturezas e sig-
nos que não podem ser analisados somente através da racio-
nalidade. Eles são sentidos na pele, eles afetam os sujeitos e
seus corpos. Eles são signos que não respeitam uma gramá-
tica, mas uma erótica. Analisar esses signos do desejo, entrar
na semiose do desejo, nos faz pensar em uma metodologia
comprometida com a relação entre os sentidos e afecções do
corpo, i. e., entre o caráter excitável das linguagens e seus efei-
tos sobre o corpo. No próximo Capítulo, nos lançamos à dis-
cussão dos procedimentos metodológicos da netnografia aqui
empreendida, assim como de suas implicações éticas.

123
4. Netnografia44 sexual:
uma erótica dos signos

Etnografia é método e produto semiótico, porque resulta


sempre em uma narrativa, uma descrição detalhada da realida-
de cultural observada. A narrativa neste livro se prestou à des-
crição das performances dos sujeitos do desejo e das estratégias
semióticas de estilização de si nos apps de pegação. Portanto, a
presença do pesquisador nas querelas do desejo foi considerada
não como uma idiossincrasia, como um efeito colateral da ob-
servação objetiva, mas como um fator positivo. O pesquisador
“IN-mundo” (ABRAHÃO et al, 2014) é aqui um participan-
te nos códigos-territórios em que pesquisa, de modo que sua
experiência subjetiva também se dilui entre a experiência de
outros sujeitos do desejo nos apps de pegação para formar um
complexo conjunto de dados. Como marca peculiar da narra-
tiva de um pesquisador participante, ressalto o desfacelamento
dos limites seguros entre narrador e narrado como uma impli-
cação do envolvimento irremediável do pesquisador in-mundo
com seu contexto de estudo. Como resultado deste empreendi-
mento investigativo, se desenhou um produto etnográfico que
intitulei Erótica dos Signos: uma metodologia que considera
como objeto de descrição e análise os signos discursivo-imagís-

44 Entendo “netnografia” como uma etnografia virtual; uma prática etnográfica que estuda as práticas
sociais, simbólicas e subjetivas em contextos online.

125
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

ticos convocados pelos sujeitos do desejo na estilização de si, no


seu processo de vir a ser como sujeito desejante.
A Erótica dos Signos mergulha na semiose dos desejos,
para analisar signos que não se restringem ao campo dos sig-
nificados, mas afetam os corpos, agem sobre eles e sobre o
mundo social. A Erótica dos Signos não se presta a signos que
significam, mas aos que excitam, aos que produzem efeitos
substanciais sobre os corpos. Especialmente sensível ao afe-
to causado pelos perfis em seus interlocutores, a Erótica dos
Signos considera também fragmentos de discursos na inte-
ração como uma extensão da performance de si. Sua questão
central é descrever as performances íntimo-espetaculares do
sujeito: suas estratégias de estilização envolvidas nas intera-
ções simbólicas, tomando como pressuposto a “excitabilidade
do discurso” (BUTLER, 1997). A Erótica dos Signos foca na
maneira como os indivíduos definem e interpretam uns aos
outros e seus desejos, e como os signos circulantes tocam nos-
sos corpos, agem sobre eles.

4.1 A Erótica dos Signos como um conhecimento


indisciplinar

“Knowledge is never benign.”


Ian Barnard, in: Queer Race

“The answer, my friend, is blowin’ in the wind, the


answer is blowin’ in the wind”
Bob Dylan

Erótica dos Signos propõe a reflexão sobre método de


pesquisa e sobre os instrumentos que o pesquisador emprega,

126
Gleiton Matheus Bonfante

assim como o esclarecimento das filiações políticas e ideoló-


gicas, assumindo a empreitada científica como uma atitude
política. Esta perspectiva que assume “[a] necessidade de re-
invenção […] como central em qualquer empreendimento
de pesquisa” (MOITA LOPES, 2006:21) foi instituída pela
Linguística Aplicada Indisciplinar (MOITA LOPES, 2006)
a qual me emparelho. Partindo da premissa de que toda
produção de conhecimento é um empreendimento político,
Moita Lopes (2006) propõe que a lógica da indisciplinarida-
de permite driblarmos conhecimentos e abordagens tradi-
cionais e vislumbrar novos percursos de pesquisa, lançando
um olhar interessado ao que a ciência menosprezou como
fonte útil de conhecimento: os saberes marginais ou subal-
ternos45. Os por Foucault nomeados conhecimentos subju-
gados não foram esquecidos pela cultura cartesiana, “mas
desqualificados, compreendidos como sem sentido, não-con-
ceituais, ingênuos e até insuficientemente elaborados”, como
explica Halberstam (2011:11). Os conhecimentos marginais
são reconvocados por posturas pós-positivistas como aspec-
tos legítimos do saber, pois permitem o vislumbre de lógi-
cas de pensamento outras. Dar voz ao mudo, periférico, ao
invisível acaba por se tornar compromisso e estandarte das
pesquisas politicamente engajadas na contemporaneidade. A
proposta de “low theory” de Halberstam sintetiza bem o ideal

45 Com Foucault, entendo saberes subalternos ou sujeitados como duas coisas: “De uma parte […],
conteúdos históricos que foram sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações
formais” (1999:11), e também: “toda uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes
não-conceituais, saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes inferiores, […] saberes
abaixo da cientificidade requerid[a]” (1999:12). Para a etnografia, conhecimentos subalternos podem se
materializar como: a) conhecimentos sobre temáticas marginalizadas, b) atribuição de voz aos sujeitos
estudados e c) uma metodologia assumidamente política. São também nestes três feixes – marginalidade
temática, empoderamento social e engajamento político – que a erótica dos signos se mostra congruente
com a produção de conhecimentos subalternos. Leia Spivak (1985) e Mignolo (2003) para uma discussão
mais profunda sobre conhecimentos subalternos.

127
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

contemporâneo de conhecimento local e político, ao mesmo


tempo em que frisa a inclinação ao fracasso, a despretensão
por seriedade e sua busca por exemplos contraintuitivos de
resistências: “Acredito em low theory, em lugares populares,
no que seja pequeno, incosequente, anti-monumental, mi-
cro, irrelevante; eu acredito em fazer a diferença pensando
pequenas ideias e compartilhando-as extensamente” (HAL-
BERSTAM, 2011:21).
Privilegiar conhecimentos silenciados, ditos ingênuos, ir-
relevantes, subjetivos e parciais significa inaugurar um ceti-
cismo em relação a modelos teóricos tradicionais e sistemas
de conhecimento axiomáticos. Significa descomprometer-se
com universais, generalizações, evidências e verdades típicas
do projeto modernista. Frente às intensas mudanças sociais
que presenciamos, modelos estáticos e antiquados de teoriza-
ção social precisam ser reinventados ou até “desaprendidos”,
nas palavras de Fabrício (2006). Ao advogar uma produção de
saber em constante movimento, em contínuo refazer-se, à de-
riva, a linguista aplicada se compromete com uma ciência que
vê na desaprendizagem uma possibilidade de “refinamento
do processo de conhecer” (FABRÍCIO, 2006:61) e aposta em
um empreendimento científico que desconfia “da formação de
sistemas explicativos coesos, desestabilizando conceitos natu-
ralizados e desprendendo-se de consensos tranquilizadores”
(FABRÍCIO, 2006:58). Uma postura indisciplinar também
pode indicar uma atitude desconfiada quanto às expectativas
heterocapitalistas e normativas na produção de saber e uma
postura altamente comprometida com a dessencialização da
vida social e do sujeito, especialmente na produção de conhe-
cimento sobre este. Em outras palavras, indisciplinar-se é uma

128
Gleiton Matheus Bonfante

atitude queer – ou uma atitude cu46 –, já que queer seria um


termo disruptivo e, portanto, crítico do fantasma da normati-
vidade que não repousa na vigilância dos devires e desejos ho-
mo-trans-queer-afetivos, segundo De Lauretis (1991) explica.
Assim, a Erótica dos Signos, inspirada pela Linguística
Aplicada Indisciplinar se emparelha com perspectivas muito
caras a abordagens pós-coloniais, como a Teoria Queer, e se
propõe a desaprender dogmas consagrados e transgredir os
limites impostos pelo positivismo à produção de conhecimen-
to. Ao transgredir, se ultrapassam os limites do conhecimen-
to tradicional e da política (PENNYCOOK, 2006). Por trans-
gredir os limites da normatividade, as fronteiras da opressão
e por pensar o que deveria ser silenciado, a Erótica dos Signos
desafia epistemes consagradas e os mecanismos de poder que
as estruturam e, assim, acredita no pensamento indisciplina-
do com uma responsabilidade social contemporânea.
A Erótica dos Signos, uma apropriação indisciplinar de
métodos de produção de conhecimento, se propõe não ape-
nas a descrever a vida social, mas redescrever os instrumentos
para concebê-la, para conceitualizá-la, sempre tendo em vis-
ta o dinamismo e a liquidez da nossa era, a sensualidade do
campo etnográfico, a constante construção no e pelo Discur-
so dos significados sociais, e a instabilidade/historicidade de
seus sentidos. Apostando na interdisciplinaridade e na indis-
ciplinaridade como caminhos para o conhecimento, conduzo
uma investigação sobre as performances íntimo-espetacula-
res dos sujeitos desejantes nos apps. Uma investigação com-
prometida com o volátil, com o local, com o marginal, com
46 Pelúcio (2014) propõe “cu” como uma tradução possível de Queer para o português. Pela sua margi-
nalidade intrínseca, periferia simbólica e fisiológica, por ser tanto repulsivo quanto excitante, ‘cu’ sintetiza
bem a proposta queer no Brasil, propõe Pelúcio.

129
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

o sensual. Volátil porque as performances nos aplicativos são


efêmeras, pouco duráveis. Local porque os significados são
altamente contextuais. Marginal porque retrata práticas se-
xuais estigmatizadas e dá voz a lógicas de existência desejante
à parte da heteronormatividade. E sensual porque convoca
afecções do corpo do pesquisador como dado potencial.
O pensamento foucaultiano foi essencial à Erótica dos
Signos, para analisar as performances de estilização do sujei-
to do desejo nos apps de pegação, porque ele introduz incer-
teza, dúvida, na produção de conhecimento, com a intenção
de “subverter pretensões universalistas sobre conhecimento e
significado” (WILCHINS, 2004:97) e “rebelar-se quanto for-
mas de subjetividade que nos foram impostas secularmente”
(FOUCAULT, 1996:216). Michel Foucault introduz uma ver-
tente crítica que por ser interessada pelo “vir-a-ser”, pela his-
toricidade dos sentidos e pela subjetividade humana, instaura
horizonte de potencial agência subjetiva. Para Foucault, poder
não se detém, é um constante embate. O confesso interesse
foucaultiano pelo sujeito (FOUCAULT, 1996), pelas práticas
de governamentabilidade (FOUCAULT, 2008) e genealogia
dos significados sociais (FOUCAULT, 1988) apresentou um
antídoto para a virulência das grandes verdades sobre os cor-
pos que tocam. Se a humanidade viu na história do Ocidente
uma procissão de grandes verdades que subsidiaram formas
de conhecimento tirânicas, egocêntricas e totalitárias, Fou-
cault instaura uma atitude filosófica que propõe denunciar a
dependência de verdades transcendentais de outras pequenas
verdades, socialmente construídas. Seu pensamento viabiliza
um desmantelamento necessário que permite enxergar outras
lógicas. A historicização e a contextualidade dos sentidos de-

130
Gleiton Matheus Bonfante

nunciaram o caráter funesto do ‘universal’ e acabaram por


desamparar de qualquer certeza intelectual exata e imutável
os crentes na estabilidade da verdade.

Foucault compreende declarações de verdade universal


como uma forma de política: um fascismo intelectual,
um modo de tomar a voz universal com o intuito de se
atribuir poder e ao mesmo tempo se imunizar de cri-
ticismo. Seguir Foucault muito frequentemente parece
um caminho sem volta: desconstruindo praticamente
tudo e construindo quase nada. (WILCHINS, 2004:101)

Contudo, embora Foucault não nos presenteie com verda-


des edificantes, ele certamente ilumina nosso desejo por co-
nhecer pequenas verdades: relativas, locais, contextuais, con-
tingentes, voláteis e que, nem por isso, sejam de menor valia. A
construção de pequenas verdades sobre como um indivíduo se
faz um sujeito desejante e como vem a ser através da estilização
de si nos apps é o interesse da Erótica dos Signos, que adota a
metodologia etnográfica. A etnografia tem sido considerada
uma das mais interessantes armas metodológicas no emba-
te pela visibilidade de lógicas alteritárias e pela edificação de
verdades sempre locais e contextuais: sentidos são altamente
contextuais e sua inserção com a verdade não é absoluta, mas
necessariamente parcial. No entanto, algumas abordagens et-
nográficas podem apresentar inconstâncias com a proposta
da indisciplinaridade e contextualidade da verdade. A Erótica
dos Signos, embora partidária da flexibilidade etnográfica, se
propõe a desaprender preceitos da ciência positivista como a
distinção entre Eu e Outro e a assimetria de poder entre pes-
quisado e pesquisador, tema discutido na próxima seção.

131
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

4. 1. 1 Autoridade etnográfica e
assimetria de poder
O mito da objetividade científica na prática da etnografia é
uma forma de respaldar a autoridade do etnógrafo, protegê-lo
de críticas, sustentar uma hierarquia entre pesquisador e infor-
mante. Ainda assim, “a ficção da objetividade do etnógrafo é
celebrada e tem sido definitivamente um traço definidor da ex-
periência de campo tradicional” (WILLSON, 1996 [1995]:255).
Entre os pressupostos da objetividade no empreendi-
mento etnográfico estão o desdém por narrativas pessoais e
a necessidade de invisibilidade do autor nas suas construções
textuais como procedimentos metodológicos. A objetividade
pressupõe o objeto como anterior ao discurso que o toca e
que lhe atribui seus contornos, ou seja, pressupõe – ao con-
trário do que penso – que a linguagem teria a mera função de
descrever o mundo social que acaba por construir, estilizar.
Outra assunção teórica corresponde ao mito da supressão de
aspectos subjetivos na narrativa etnográfica, na produção de
uma escrita neutra, despida de ideologias. Como concorda
Kullick, “a observação é pressuposta como objetiva, pois se
debruça sobre um objeto anterior à sua observação, enquan-
to textualmente, o antropólogo se retira de cena, fazendo-se
invisível na narrativa” (KULLICK, 1996 [1995]:3). A Erótica
dos Signos, por outro lado, traz o pesquisador para o texto,
seu corpo, suas sensações e abraça a responsabilidade ética
pela produção discursiva dos sujeitos que descreve. Ela rejeita
a objetividade como preceito orientador da pesquisa.
Objetividade possui uma relação estreita com a autorida-
de do etnógrafo. O afastamento e a neutralidade ainda são fic-
ções desejadas para a validação dos resultados da pesquisa e

132
Gleiton Matheus Bonfante

para a manutenção de uma assimetria de conhecimento entre


pesquisador e pesquisado que é decisiva no fazer ciência. De
acordo com Drew (1990), que estudou assimetrias de conhe-
cimento em interações conversacionais, “estados de conheci-
mento relativo são atribuídos a papéis identitários” (DREW,
1990:25), de modo que a assunção de assimetrias de conhe-
cimento influencia as relações discursivo-sociais entre inte-
ractantes no mundo social, produzindo assimetrias interacio-
nais. De acordo com o autor, “uma [assumida] distribuição
desigual de conhecimento entre participantes pode ser usa-
da como uma estratégia pela parte ‘conhecedora’ para fazer
algo interativamente, para jogar jogos com o outro” (DREW,
1990:32), pois o design da interação é comprometido por as-
sunções acerca de conhecimento, que são organizadas social-
mente, ou seja, que são pressupostas a partir de trajetórias
pessoais e não baseadas em um conhecimento que o sujeito de
fato possua. As assimetrias de conhecimento posicionam et-
nógrafos em uma relação confortável de poder e lhe atribuem
autoridade sobre os conteúdos que produzem. No entanto, me
pergunto: Seria o limite entre eu e o Outro sequer possível em
uma pesquisa que também se inspira na experiência do pes-
quisador? E a objetividade? Seria ela realmente indispensável
ao conhecimento etnográfico?

4. 1. 2 O pesquisador insider e a objetividade


na pesquisa etnográfica: o fim dos limites
entre o “eu” e o “outro”?
Uma tradição etnográfica consiste em refletir sobre a re-
lação estabelecida entre pesquisador e realidade social inves-
tigada, em pontuar sobre as distintas formas de participação

133
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

do investigador nas comunidades estudadas e sobre seu nível


de engajamento nas práticas que pesquisa: como ele se inse-
re em tal grupo social e qual a natureza e dinâmica das re-
lações que forja com seus informantes. É muito comum que
os pesquisadores se interessem por “comunidades de prática”
(WENGER, 1998) da qual fazem parte, ou sobre as quais pos-
suem minimamente conhecimento.
Na Erótica dos Signos, meu interesse em descrever os re-
cursos empregados nas performances íntimo-espetaculares
de si proveio certamente do meu contato com o campo e a
observação de que o sucesso da paquera nos apps dependia
da produção de si como sujeito desejável. As estratégias per-
formativas da desejabilidade passaram então a ser de grande
curiosidade quando eu ainda era participante-observador.
Meu prévio envolvimento com o campo fomentou a dificul-
dade para precisar como eu interagia nele. Uma autoetno-
grafia suporia o uso de dados exclusivamente meus para o
design da narrativa etnográfica, enquanto uma participação
insider pressupõe certa inserção íntima nas práticas sociais
estudadas; no entanto, sem se respaldar em elementos auto-
biográficos para a produção da narrativa etnográfica. Assim
se fez aqui urgente a dificuldade no estabelecimento de um
consenso para os limites entre autoetnógrafo e pesquisador
insider. A Erótica dos Signos admite uma hibridização cate-
gorial, já que sou pesquisador insider, mas, ao mesmo tem-
po, reivindico o estatuto de informante, de pesquisado, pois
disponibilizo dados de minhas performances para análise.
Embora possa ser mais difícil para o pesquisador insider ou
autonetnógrafo se afastar das práticas sociais e semióticas
que estuda para questioná-las e estranhá-las, não há dúvidas

134
Gleiton Matheus Bonfante

de que o engajamento e a biografia do investigador represen-


tem aspectos positivos à prática da pesquisa (FRAGOSO et
al., 2010; ZAGO, SANTOS, 2013), entre outros. Tais aspectos
positivos consistem em: 1) maior facilidade para conquistar
confiança; 2) sensibilidade a questões éticas e cuidado com a
exposição dos informantes; 3) compartilhamento de uma re-
gião moral47 – por se tratar de uma “etnografia das margens”
(PERLONGHER, 2008), uma abertura moral para as práticas
estudadas é importante no estabelecimento de confiança e de
uma postura ética –; 4) a reflexão sobre si e suas práticas igno-
ra qualquer censura que possa existir na confissão a outrem,
de modo que tive acesso à “verdade” nua e crua sobre minhas
experiências, por um ponto de vista despido de censuras so-
ciais; 5) estabelecimento de uma ponte entre contextos micro
e macrossocial: a experiência local e contextual do etnógra-
fo pode, de muitas maneiras diferentes, ser a experiência de
muitos outros sujeitos em silêncio.
Emparelhando-se a este ponto de vista, propõe Amaral
(2009) uma definição de autoetnografia:

A autoetnografia é aqui compreendida como uma fer-


ramenta reflexiva que possibilita discutir os múltiplos
papéis do pesquisador e de suas proximidades, subjeti-
vidades e sensibilidades na medida em que se constitui
como um fator de interferência nos resultados e no pró-
prio objeto pesquisado. […] relato escrito em primeira
pessoa, na qual, elementos autobiográficos do pesquisa-
dor ajudam a desvelar diferentes contornos e enfrenta-
mentos do objeto em um fluxo narrativo de cuja análise

47 Para Zago e Santos (2013), foi necessário ‘sair do armário para fazer pesquisa’ ao estudar platafor-
mas online de encontros, o que respalda o fato de que o compartilhamento de traços identitários pode ser
benéfico ao dialogismo etnográfico.

135
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

sujeito e objeto fazem parte. (AMARAL, 2009:2 apud


FRAGOSO et al, 2010:196)

Como sugerido, a articulação entre pesquisador e infor-


mante – e do informante-pesquisador – no texto etnográfico
permite ver os contornos dialógicos da empresa etnográfica e
endossa a autoridade etnográfica que é baseada na cumplici-
dade entre pesquisador e sujeitos pesquisados e não na pre-
sunção de falar pelo outro. A ocupação deste entre-lugar nar-
rativo não apenas desmantela a pressuposição de assimetria de
conhecimento entre etnógrafo e sujeito, mas pode contribuir
para a rejeição de uma agenda colonialista que cria a diferença
e o exotismo do Outro na medida em que o descreve. Os sujei-
tos adquirem seus contornos nos caminhos dos discursos. O
estudo do objeto e sua discursivização eminentemente acabam
por construí-lo, na medida em que o referenciam. Assim, a va-
lidação dos resultados da Erótica dos Signos se nutre de um
diálogo entre as experiências e práticas do eu (pesquisador) e
experiências e práticas subjetivas do Outro (informante).
É neste dialogismo entre a experiência subjetiva e local
do pesquisador e as narrativas de seus colaboradores que a
diluição da distinção entre eu (pesquisador) e o Outro (sujeito
da pesquisa) encontra um terreno produtivo, no qual os signi-
ficados sociais são assumidamente construídos nas relações, e
não meramente delas apreendidos. A desconfiança em relação
aos dados também sugere um movimento na direção do abalo
dos limiares entre eu e o Outro e da estrutura de assimetria
de conhecimento que impregna a ciência, na medida em que
considera relevantes a reflexividade e o conhecimento do pes-
quisado sobre suas práticas sociais.

136
Gleiton Matheus Bonfante

Considerar a voz dos sujeitos de pesquisa significa de-


saprender dogmas da tradição positivista como a pretensão
de objetividade, o purismo científico ou disciplinaridade e
a universalidade da verdade. Lanço-me ao esquecimento da
gramática da ciência positivista para esboçar uma indisci-
plinar trajetória epistemológica: a Erótica dos Signos. Uma
postura indisciplinar reflete sobre paradigmas que a ante-
cederam, examina as ideologias – ou “vontades de verdade”
(FOUCAULT, 1988a) – subjacentes, e se propõe à transgres-
são (PENNYCOOK, 2006) e à desaprendizagem (FABRÍCIO,
2006) como formas responsáveis e políticas de produzir co-
nhecimento. Nas palavras de Halberstam:

[…] esquecer se torna uma forma de resistência às lógi-


cas grandiosas e heróicas de recordação e desencadeia
novas formas de memória que se relacionam mais com
espectralidade do que evidência dura, com genealogias
perdidas do que hereditariedade, com apagamento do
que inscrição. (2011:15)

O esquecimento e a “desaprendizagem” são invocados


como uma atitude epistemológica contemporânea ética. Es-
quecer é uma forma desejada de resistência a epistemes des-
comprometidas com a justiça social e com a desnormativi-
zação. Assim, o esquecimento é invocado como uma atitude
política pela Erótica dos Signos que, embora se baseie nos
pressupostos campo, trabalho de campo, comunidade, autori-
dade etnográfica, mobiliza um esforço para os ressignificar. O
mais contundente aspecto de ressignificação se refere à insta-
bilidade do conhecimento, ao seu caráter construído e à tran-
sitoriedade da verdade.

137
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

A Erótica dos Signos é muito solidária à compreensão do


conhecimento como dinâmico, fluido, instável e incoeren-
te. O conhecimento indisciplinar na pós-modernidade é da
ordem da instabilidade. O próprio dinamismo da sociedade
contemporânea não permite que simulacros se formem e ver-
dades absolutas se erijam. O saber é mutante e transforma-
dor, enquanto a verdade é uma contingência. Além disso, o
conhecimento nos dias de hoje é colaborativo, a inteligência
é coletiva, o armazenamento do conhecimento é em nuvem,
e os ‘gurus’ do conhecimento são a Wikipedia e o Google. O
ethos colaborativo do conhecimento na contemporaneidade
expõe sua necessária parcialidade. “Conhecimento é, e deve
ser, parcial. A parcialidade não corresponde a uma fraqueza
ou falha. É, ao contrário, uma força” (KULLICK 1996 [1995]:
18). Como Haraway (1991) e Strathern (1991) propõem, co-
nhecimento parcial, conhecimento posicionado pode ser epis-
temologicamente produtivo devido às conexões e às aberturas
inesperadas que torna possível. ‘Verdades’, como as aborda-
gens pós-positivistas a concebem, sempre são desconstru-
ções e permitem inovadoras relações com o saber. Verdades
aqui são comprometidas com aspectos subjetivos e políticos
do autor e aspectos locais da pesquisa, o que faz da descrição
densa na narrativa etnográfica uma forma de produzir ver-
dades pós-positivistas, parciais e altamente políticas. Por se-
rem parciais, são altamente comprometidas com a ética, com
a inconstância, com a incerteza. “Verdades etnográficas são
parciais, pois são concomitantemente incompletas e compro-
metidas” (STRATHERN, 1991:39). Verdades etnográficas se
comprometem com a contextualidade, com a situacionalida-
de das práticas sociais. A próxima seção se dedica a discutir a

138
Gleiton Matheus Bonfante

prática etnográfica em ambientes virtuais e a descrever o con-


texto de atuação da Erótica dos Signos: os apps de pegação.

4.2 A etnografia virtual nos tempos do


cruising48online

“The only way to find a larger vision is


to be somewhere in particular”
Donna Haraway in: Cyborgs and Wo-
men: the reinvention of nature

Produzir conhecimento é sinônimo de autorreflexivida-


de. Assim, a metodologia etnográfica abraça a prática de pon-
tuar sobre seus contextos de atuação como um compromisso
indispensável.
Para Androutsopoulos (2006, 2008), duas fases distintas
na pesquisa etnográfica acerca de comunicação tecnologica-
mente mediada podem ser distinguidas. Na primeira onda,
o foco era nos efeitos das tecnologias sobre a comunicação,
nos seus traços e estratégias assumidos como mídia-especí-
ficos, em detrimento da observação de práticas em contex-
to. A primeira onda foi, de acordo com o autor, experimental
e nela prevaleceu um grande interesse pela coleta de dados
mesmo que assistemática. Esta primeira incursão represen-
tou um desbravamento pelo novo território da internet. Já a
segunda onda de estudos centrados na linguagem em comu-
nicação mediada por computadores foi, de acordo com An-
droutsopoulos (2008:1-2), “informada pela pragmática, socio-
48 Cruising que traduzo como ‘pegação’ se refere à prática de encontros homoeróticos adequadas aos
regimes de marginalidade e invisibilidade. Pollack (1983) apud Perlongher (2008) pressupõe isolamento
do ato, uma minimização dos investimentos e maximização dos rendimentos orgásticos. O cruising se
organizou tradicionalmente emparques, banheiros públicos e dark rooms; contudo, os aplicativos permi-
tiram a colonização dos ambientes virtuais pela pegação.

139
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

linguística e estudos do discurso e acabou por enfatizar o uso


situado da linguagem e a diversidade linguística”. A principal
distinção entre primeira e segunda fases na etnografia vir-
tual centrada no discurso é, nas palavras de Varis (2014), uma
diferença entre “estudo de coisas” e o “estudo de ações con-
textualizadas”, ou, em outras palavras, o estudo de textos na
primeira fase e de práticas culturais na segunda fase.
Contudo, o fenômeno recente da descomputadorização,
ou seja, a emergente e crescente popularidade de tecnologias
móveis (smartphones, tablets) com acesso à internet, comple-
xificou a discussão sobre virtualidade, ressaltando: a) a conec-
tividade como uma função orgânica do corpo; b) as tecnolo-
gias de subjetividade49 (FOUCAULT, 1988b) que passaram a
ser componentes essenciais do sujeito e não um espaço virtual
que adentramos ora ou outra; c) a complexificação da discus-
são sobre espaço e tempo – e com razão a própria compreen-
são de ‘campo’ etnográfico – já que geolocalização dos apps
ressalta corporalidade do sujeito, enquanto a virtualidade a
dilui. O sujeito está simultaneamente inscrito e não-inscrito
em um espaço físico, justamente porque o espaço é simbólico.
A descomputadorização sugere que estamos frente a uma ter-
ceira fase da etnografia online – fase altamente comprometida
com o interesse pela performance, pelos devires, pela fusão en-
tre corpo cárneo e afeto virtual, pelo redimensionamento do
tempo-espaço e pela imperiosidade do campo simbólico. Os
aplicativos como exemplos do fenômeno da descomputadori-
zação ressaltam a premissa de que o procedimento metodoló-
gico deve manter-se em constante reatualização e reinvenção.

49 Uma discussão mais profunda sobre a análise dos apps como tecnologias de subjetividade foge ao
escopo desse texto. Veja Foucault (1988b) e Bonfante (2015).

140
Gleiton Matheus Bonfante

Os apps são softwares baixados exclusivamente para dis-


positivos móveis. Na tela, os participantes se organizam em
ordem de proximidade, o que acentua uma atenção para o
próximo, ressaltando a expectativa da proximidade dos cor-
pos e a tensão entre performance virtual e corpo material,
entre avatar e identidade. Diferentemente das salas de bate
-papo, não há um sentimento de compartilhamento de uma
sala reforçado pela metalinguagem. Os apps funcionam como
radares que amplificam a visão, que encontram nos recôn-
ditos das cidades um objeto de desejo. Os apps se prestam a
interação entre homens gays50, e embora não pressuponha ne-
nhuma prática específica é frequentemente usado para agen-
ciamento de encontros sexuais e performance de fantasia.
Os apps acentuam a dependência espacial dos discursos e
revelam não apenas que territórios são calcados no simbólico,
mas que performances virtuais e afeto corpóreo são duas faces
da mesma experiência social. Se antes se acreditava que a in-
ternet era um óbice epistemológico pela dificuldade de apreen-
der a dinamicidade que é constitutiva da virtualidade, hoje os
empecilhos são oriundos da compreensão da simultaneidade e
interrelação constitutiva entre presença e ausência dos corpos,
assim como a dimensão simbólica do mundo físico.
Na etnografia virtual ou netnografia51, a tecnologia é vis-
ta como parte da realidade estudada e por isso adquire im-
portância fundamental na pesquisa já que plataformas tecno-

50 ‘Gay’ aqui é um termo político e não uma tentativa de homogeneização dos desejos. A presença de
casais compostos por homens e mulheres, transexuais e mulheres praticantes de pegging é significativa.
51 A proliferação categorial da prática da etnografia em ambientes virtuais é um sintoma da reflexivi-
dade que tange a área. Etnografia Virtual (HINE, 2000), Webnografia (STRÜBING, 2004), Ciberantropo-
logia (HARAWAY, 1991), Netnografia (KOZINETS, 1997). Embora eu tenha ciência das reivindicações
por diferenças nos métodos supracitados, penso netnografia, como um sinônimo de etnografia virtual.
Uma etnografia em contextos virtuais que se interessa por práticas culturais situadas e pelos meandros do
contexto, ou seja, pelas características das plataformas estudadas.

141
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

lógicas interferem qualitativamente nas interações sociais que


viabilizam influenciando a comunicação e as relações inter-
subjetivas. Os apps são plataformas sensuais, anônimas que
permitem o livre fluxo de performances de desejos. Os aplica-
tivos são o suporte da interação subjetiva e, ao mesmo tempo,
o seu contexto e, portanto, devem ser considerados no fluxo
de interação entre dados e analista. Como apontam Davies e
Merchant (2009), as possibilidades funcionais da mídia não
determinam o modo em como ela será usada para seus pro-
pósitos comunicativos, porém o design da plataforma pode
influenciar o uso feito dela pelos sujeitos. Para além de sua
influência, digamos, não-determinística no código e nas rela-
ções intersubjetivas ensaiadas em suas tramas, as tecnologias
de subjetividade como os apps podem ainda comportar dife-
rentes componentes da prática etnográfica como: 1) instru-
mento de geração e armazenamento de dados, e 2) o próprio
campo de pesquisa. O fato de a internet configurar campo
etnográfico, para pesquisadores que estudam práticas sociais
online, corrobora com uma definição mais elástica e maleável
de campo etnográfico. À discussão do campo etnográfico nos
lançamos na próxima seção.

4.3 O campo camp: queerizando uma


catacrese dúbia

“[T]he field has changed”


Margareth Willson

Conquanto a etnografia seja uma metodologia flexível,


ela possui alguns traços comuns: “a vivência em campo; a
narrativa personalizada; a utilização e a combinação flexível

142
Gleiton Matheus Bonfante

de múltiplas técnicas de pesquisa, um compromisso de lon-


go prazo […] e a indução a partir de um número de descri-
ções” (FRAGOSO et al, 2010:191). Não há, de fato, consenso
a respeito de uma fórmula para a aplicação dos seus traços
constitutivos; no entanto Fragoso et al. (2010) propõem que-
camadas mais tradicionais dos estudos etnográficos podem
supervalorizar o deslocamento, o estranhamento e a imersão
contínua – traços questionáveis na etnografia virtual – como
indispensáveis à experiência etnográfica. Para tal abordagem,
“o deslocamento, o estranhamento e o ‘ir a campo’, tão de-
cisivos na formação do olhar interpretativo, pareciam ter se
esvaído frente à possível dissolução espaço-temporal advinda
das tecnologias de comunicação e informação” (FRAGOSO et
al 2010:171). Se maleabilidade, parcialidade e indefinição são
características sine qua non da etnografia, é também esperado
que seus instrumentos teórico-metodológicos se adaptem ao
mundo social para melhor apreenderem a complexidade das
realidades que se propõem a descrever. O mundo muda, mu-
dam as vontades de verdade, mudam-se as epistemes.
A internet se popularizou no Brasil em 1995. Como mui-
tos, eu sempre estive inserido em pesquisas etnográficas on-
line. Por pertencer a uma geração em que a legitimidade das
pesquisas etnográficas online já era irrefutável – inclusive
devido ao apelo que sua hipersemiotização provoca e protu-
berância de dados que viabiliza – admito minha dificuldade
reflexiva em retroceder à ideia de que a etnografia virtual se-
ria uma etnografia de menor valia por carecer de mais tradi-
cionais visões de seus princípios como “ir a campo”, “comu-
nidade”, “imersão”, “objetividade”. É de difícil compreensão
e discussão, o antagonismo das etnografias virtuais quando

143
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

as relações virtuais parecem superar quantitativamente as


in praesentia na contemporaneidade52. A Erótica dos Signos
abraça mundos ‘real’ e ‘virtual’ como partes interdependentes
da mesma realidade diluída, pois admite que o vir a ser, ‘tor-
nar-se um sujeito’ (Foucault, 1996, 2014 [1984]) compreende
mais produção de sentidos sobre si, do que a inscrição de um
corpo no eixo tempo-espaço.
Se para etnógrafos virtuais a percepção de ida a campo
pode parecer amenizada pela não completa imersão física,
para mim, estar em campo foi tão intenso quanto uma ex-
periência carnal, conquanto raramente tivesse deixado meu
apartamento. De fato, a virtualidade não apresentou nenhum
obstáculo para o afeto que as performances semióticas me
provocavam, para a intensidade da vida social que pulsava
no código-território em que emergi. No caso dos apps de pe-
gação, não parece ser a virtualidade, mas a efemeridade e a
volatilidade das performances que dificultam a concepção de
ida a campo, justamente porque o próprio conceito de comu-
nidade é muito precário. Assim como é precária a experiência
de durabilidade das performances e de estabilidade identitá-
ria. Evidente o fato de que noções de campo respaldadas em
compreensões muito estáticas da vida social e dos sujeitos so-
ciais precisam ser repensadas frente ao cenário em ebulição
da contemporaneidade: frente à efemeridade do tempo, ao
imediatismo, frente aos novos valores trazidos pela “cultura

52 Muito se discute sobre a obrigação ou não da oscilação entre mundo real e mundo virtual na prática
etnográfica. Se para Miller e Slater (2004, 2000 apud LEITÃO; GOMES, 2011) é imprescindível oscilar entre
online e offline para uma pesquisa mais holística, para Leitão eGomes (2011) houve, em suas pesquisas sobre
o Second Life, uma necessidade de respeitar os fluxos dos pesquisados, acompanhando-os para o offline
quando pertinente. Nos apps, fica claro que virtualidade e realidade não podem ser separadas. Perfis sem
ancoragem real como foto, descrição física e geolocalização raramente encontram interactantes. Conquanto
acredite que não haja fórmulas para o desenvolvimento da etnografia, assumo com Leitão e Gomes que “os
limites entre on e off não podem ser apriorísticos, mas definidos pelo próprio campo” (2011:28).

144
Gleiton Matheus Bonfante

somática” (COSTA, 2004) e à tecnologização do corpo, à vi-


sibilidade como condição do sujeito, e ao voyeurismo como
prática social. Levando em consideração a tensão entre mos-
trar-se e resguardar-se, uma tensão entre público e privado, a
ebulição reflexiva que contamina a pós-modernidade deve ser
assimilada como uma idiossincrasia favorável à pesquisa. Afi-
nal de contas, a hipersemiotização do mundo e a circulação
acelerada de conteúdo semiótico nos contemplam com uma
quantidade exorbitante de material de análise.
Com razão, não só com problematizações a etnografia
virtual é desafiada pela pós-modernidade. A pesquisadora
boyd (2014) ressalta as vantagens que o campo virtual ofe-
rece como a acessibilidade do campo e dos dados, a replica-
bilidade e a escalabilidade (scalibity). A primeira se refere ao
fato de o conteúdo online estar acessível a qualquer momen-
to, inclusive em locomoção no caso de pesquisas em plata-
formas típicas de dispositivos móveis. A acessibilidade da
Rede facilita o acesso do etnógrafo às práticas que estuda. A
replicabilidade se refere ao fato de conteúdos digitais serem
mais facilmente replicados e, portanto, a captura de dados
na tela pode ser facilitada, como através dos printpages utili-
zados aqui. Já a escalabilidade alude ao grande potencial de
visibilidade e de distribuição de materiais semióticos que a
rede encerra e à profusão de material que ela nos apresenta
como dado em potencial. Tais especificidades são suficien-
tes para propor que na etnografia virtual nada se perde em
intensidade de imersão e em qualidade de geração de dados.
Acessibilidade, replicabilidade e escalabilidade deixam ver a
emergência da discussão a respeito da catacrese da “entrada
no campo de pesquisa”, já que “em um mundo interconec-

145
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

tado, nunca estamos realmente fora do campo” (GUPTA;


FERGUSON, 1997:35).
Esta interpenetração tão característica entre campo e et-
nógrafo permeou minha experiência como pesquisador. A
própria obviedade da ida a campo parece questionável quan-
do o aspecto discursivo das territorialidades é ressaltado na
experiência netnográfica. Muitas vezes acreditamos entrar no
campo quando na verdade ele que nos penetra, seus códigos
nos interpelam. Nossa pele e nosso corpo não têm a função de
criar limites precisos entre nós e o mundo, mas de fundi-los,
conectá-los, como propõe Catherine Keller:

Nossa pele não nos separa – ela nos conecta ao mundo


através de uma rede fascinante de percepção sensorial
[…]. Através de meus sentidos eu entro no mundo e o
mundo me penetra […]. O mundo entra em nós, debai-
xo de nossa pele, ele não mantém uma distância respei-
tável. (KELLER, 1986:200)

De fato, notei eventualmente que era inútil tentar separar


a minha vida pessoal do meu empreendimento investigativo.
Como Kate Altork (1995 [1996]) que, em seu artigo em defesa
da investigação do componente erótico no trabalho de campo,
confidencia os repetitivos sonhos eróticos que tinha com as
pessoas que investigava no campo, minha vida estava permea-
da e interpenetrada pelas minhas incursões investigativas.

Na verdade, percebi que nunca entrara no campo, mas


o campo entrara em mim: havia inundado todo aspecto
da minha vida. Recebia constantemente textos e outras
entextualizações sobre os apps de amigos e informantes,

146
Gleiton Matheus Bonfante

passava muitas horas por dia online, a ponto de reconhe-


cer na rua meus vizinhos de aplicativo. Respondia dia-
riamente a muitos curiosos sobre a pesquisa online, mais
até do que recebia informações […] e não havia outro
lugar onde eu gostaria mais de estar. (Diário de Campo,
dezembro de 2013)

Assim como a autora, que estudou uma brigada de bom-


beiros combatendo incêndios florestais, minha vida havia
sido penetrada pelo campo. Não sempre com a positividade
da sensualidade imanente do código-território dos apps e do
divertido flerte fácil, mas frequentemente como uma ânsia
por desejar, ser visto, ser inteligível, gozar, uma ânsia ago-
niante por existir, por ser sujeito do desejo. A vontade de ex-
perimentar os gozos do campo me tentou a duvidar de mim
como pesquisador, da minha capacidade de realizar a pesqui-
sa. Manter uma desconfiança sobre minha vulnerabilidade
quanto aos encantos do campo foi essencial para equilibrar
minha participação enquanto sujeito do desejo e pesquisador.
O campo me seduziu, e me seduzindo me deu a possibilidade
de estar em dois lugares ao mesmo tempo: na pele do pes-
quisador e na pele do sujeito e objeto do desejo, de modo que
a reflexão autoetnográfica permitiu a implosão da hierarquia
entre investigador e realidade estudada. Esta relação hierár-
quica entre empreendimento etnográfico e o mundo do qual
ele apreende seu conhecimento é em grande partida mantida
pela imagem metafórica do campo, de acordo com Willson
(1996 [1995]: 252). Tal metáfora também influenciaria que ti-
pos de informação são consideradas valiosas para o saber et-
nográfico, ao mesmo tempo em que trabalha na produção de
uma autoridade etnográfica para tratar dos temas que estuda.

147
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

No entanto, pensar a questão da autoridade etnográfica


para a Erótica dos Signos pressupôs necessariamente uma re-
formulação. Autoridade etnográfica aqui não é resultante de
uma narrativa objetiva, de uma observação imparcial e de
uma assimetria hierárquica entre aquele que detém o poder
da descrição e o objeto de estudo, mas advém da experiência
subjetiva do pesquisador e de sua habilidade em torná-las in-
teligíveis. Provém, enfim, da tentativa de habitar um espaço
outro para compor uma narrativa. Exatamente como propõe
Probyn (1993:145): “temos que falar deste espaço, deste inter-
valo entre eu e outro”, na escrita etnográfica. Nossos produtos
etnográficos devem ser pensados para não privilegiar o pon-
to de vista do etnógrafo nem presumir falar pelo outro, mas
ocupar um espaço entre ambos. Este espaço, ou intervalo de
indefinição entre a 1ª e a 3ª pessoas, pode ser fundado na re-
flexividade teórica e estimulado no estudo autoetnográfico, na
narrativa subjetiva e na atenção às condições sócio-históricas
e contextuais onde as práticas observadas estão imbuídas. Au-
tor e objeto de observação, pesquisador e informante, obser-
vador e participante, entrevistador e respondente se mesclam,
se embaralham, revezam postos num dialogismo que implode
as hierarquias de saber que impregnam a prática etnográfica.
Pesquisador e pesquisado compartilham o mesmo mun-
do. “O pesquisador implicado transita pelo território das suas
implicações como sujeito in-mundo, ele produz e se produz na
construção do conhecimento” (ABRAHÃO et al, 2014:159). É
fantasioso almejar uma participação discreta, onisciente, dis-
tanciada, na medida em que somos tocados, invadidos pelo
mundo que estudamos. A proximidade, a intimidade com os
contextos estudados não pode mais representar um tabu, visto

148
Gleiton Matheus Bonfante

que muitas vezes a distinção é uma ficção inventada por uma


tradição ou até um instrumento de proteção do pesquisador.
O perfil a seguir denota a presença dos pesquisadores em
tais plataformas como interpelação. Sua descrição “Não bus-
co nada” alude a uma questão frequente nos apps: a sondagem
quanto aos interesses do seu interlocutor, ao mesmo tempo em
que introduz a piada sobre a existência de participantes que se
descreveriam como meros observadores. Todos buscam algo
nos apps, inclusive os pesquisadores. Também o sujeito em
questão está no mínimo interessado em interação já que as
bandeirinhas dos Estados Unidos e da Espanha indicam que
o sujeito pode interagir em outras línguas além do português.
Seu nome “Turista Rio” é uma estilização frequente na
performance da desejabilidade, assim como seu correlato o
“nativo do rio”. Aquele aposta no diferente, no estrangeiro
para se estilizar desejável, enquanto este empresta a sensua-
lidade da cidade e do carioca como signo do desejo. A estili-
zação do corpo também é comum: signos de masculinidade,
de boa forma física, de saúde apontam para aptidão do sujeito
ao desejo e à prática sexual53. Esse perfil me causou sensa-
ção de revolta, incômodo tanto por fazer piada com o fato de
haver pesquisadores online, quanto pelo fato de me lembrar
que tanto pesquisadores quanto pesquisados se submetiam
ao mesmo código de desejabilidade: um corpo desnudo, que
exibe seus signos desejáveis. Embora eu quisesse negar, meu
poder interpelativo no campo não se baseava na performance

53 Bonfante (2015) analisa a mobilização de vários signos que apontam para os mesmos sentidos
nos apps como um processo de redundância indexical. ‘Redundância indexical’ se refere à convocação
de inúmeros signos que apontam para os mesmos significados sociais, comumente a masculinidade, o
bem-estar físico e a aptidão à prática sexual.

149
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

de uma identidade de pesquisador, mas na minha performan-


ce como sujeito desejável.

Figura 12: Perfil “tese de sociologia”

Nos apps, a desejabilidade é a arma performativa nos em-


bates pelo poder e não o conhecimento perito. Uma gramá-
tica centrada no afeto dos corpos submete a todo e qualquer
participante – entre eles o pesquisador –, independentemente
de sua identidade social e razão de participação. A implosão
da distinção entre eu e Outro é urgente para denunciar que
essa relação assimétrica entre pesquisador e informantes nem
sempre sequer corresponde às dinâmicas sociais nas semioses
que estudamos. A assimetria entre pesquisador e os sujeitos
que pesquisa nos apps é antes um “traço do discurso etno-
gráfico tradicional” (MOORE, 1993) do que valores observá-
veis. O devir-pesquisador como performance de si pode não

150
Gleiton Matheus Bonfante

surtir afeto, de modo que a identidade do pesquisador não


necessariamente lhe atribui posição hierárquica superior nos
apps. A diferença é muitas vezes uma invenção espontânea –
como forma de conquistar autoridade – ou infringida – pelo
gênero discurso etnográfico –, a que o etnógrafo dá vazão
textualmente. A expectativa da objetividade científica acaba
colocando o pesquisador em uma posição paradoxal, na me-
dida em que é esperado dele ser simultaneamente “imparcial
e intensamente engajado […]” (WILLSON, 1996 [1995]: 255).

4.4 Sexo no campo

Se por um lado, cuidados éticos auxiliam a destruição dos


pré-outorgados papéis sociais na empreitada científca, por
outro lado, também o faz o sexo. Para Bolton (1996 [1995]),
que estudou as práticas sexuais de homens gays em Bruxe-
las nos anos 1980, sua pesquisa não seria possível se ele não
estudasse seus amigos e amantes. Sexo com os informantes
forjava intimidade, e laços de afeição duradouros, fundando
um diálogo honesto e diluindo os limites entre sujeito e obje-
to. Com razão, o autor se recusa a referir-se a amigos e aman-
tes como informantes (BOLTON, 1996 [1995]) e esclarece que
em nenhum momento, o sexo serviu de moeda de troca pela
contribuição na pesquisa. Pelo contrário, o autor tomou suas
experiências em uma comunidade homossexual como foco
de análise na investigação das práticas sexuais e desenvolvi-
mentos de estratégias na prevenção de DSTs.
Também na minha experiência de campo, abrir-me para
possibilidades de encontros e aventura sexual me fez um me-
lhor pesquisador porque pude experienciar as vivências do

151
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

campo e contar com outros sentidos e sensações como possí-


veis dados. Embora a etnografia tenha se focado tradicional-
mente na análise de dados semióticos, sejam eles linguísticos
ou visuais, “quaisquer percepções e experiências são poten-
cialmente dados” (BOLTON, 1996 [1995]; DÍAZ-BENÍTEZ,
2007). Díaz-Benítez descreve, em um artigo inspirador, sua
experiência etnográfica no escuro e em silêncio e denuncia
que “a prática etnográfica tem priorizado aquilo que se pode
ver, deixando de lado análises baseadas em dimensões como
o tato, o olfato, o gosto, a escuta, enfim, os sentidos a partir
dos quais muitas sociedades organizam suas experiências e
constroem seus mundos” (2007:95). Ao me assumir como ser
desejante e excitável, as informações, que antes pareciam di-
fíceis de serem obtidas, surgiam naturalmente. Parecia que
minha netnografia sexual nunca fluiria plenamente sem que
eu flertasse com o desejo, sem que povoasse as iminências do
sexo, mesmo que em seu caráter discursivo, in absentia. Se,
por um lado, parece incoerente pensar em estímulos sensó-
rios outros para a etnografia virtual tão afeita à visão, por ou-
tro, não há dúvidas sobre a pertinência desses sentidos para
o erotismo. Aqui, a Erótica é antes um afeto que um método.
Para Kendall (2008), muitos autores se privam de descre-
ver suas experiências e aspectos identitários por parecer nar-
cisístico ou desnecessário. Embora tenha tentado vestir meu
‘cinto celibatário’ de pesquisador durante o ano da geração de
dados, acabei sucumbindo ao desejo, ao prazer do olhar e do
mostrar-me. Muitas das sensações, das estratégias semióticas
de estilização, dos hábitos linguístico-discursivos que anali-
sei eram também meus. E elementos da minha experiência,
tanto no âmbito das sensações como excitação, tesão e repul-

152
Gleiton Matheus Bonfante

sa, quanto no âmbito dos sentimentos como rejeição, desejo,


medo, raiva, frustração, ofensa foram muito relevantes para
descrever a relação entre nossas performances e as ideologias
sociais que as respaldam.

Neguei minha vaidade frente às cantadas que recebo no


campo. Lutei com meu asco e minha excitação diante
das performances ínimo-espetaculares. Duelei com meu
medo, minha ansiedade como se pudesse emudecê-los. Foi
infrutífero pensar razão como oposto a sensação. Foi infér-
til pensar que pesquisador possui características sob-hu-
manas, que está acima da realidade mundana. O campo
me afeta e pronto. Estimula sensações corpóreas através
de estímulos semióticos. Parece que meu desafio não é ne-
gar os signos do meu corpo, mas enfrentar os afetos que o
tocam e traduzi-los em inteligelibilidade. Minha missão é
verter minhas sensações em sentidos, por mais vulnerável
que eu me torne. (Diário de Campo, novembro de 2014)

Se eu cheguei a pensar que pudesse separar o pesquisa-


dor do sujeito do desejo, meus interlocutores nunca comete-
ram esse engano, e apesar dos meus esforços para performar
um etnógrafo, era minha corporalidade que frequentemente
interpelava, que afetava. Se pensei que pesquisadores fossem
supra-corpóreos, me equivoquei sozinho.

4.5 Notas sobre a interpelação do pesquisador


como objeto de desejo

Se “in-mundo” estava o pesquisador online, desejando,


desejando e online também estavam os outros, todos sujos
da materialidade do mundo. E os desejos deles me encontra-

153
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

ram em diferentes ocasiões. O pesquisador pode ser projetado


como objeto de desejo por dispor de algum aspecto que seja
atrativo, sendo ele pessoal, como aparência e porte físico ou
social, como a própria condição de pesquisador, que instiga
um fetiche sobre a assimetria de posição social do pesquisador
e do pesquisado. De fato, assimetrias parecem jazer no cerne
da experiência sensual, e as relações sexuais homoeróticas se
articulam, reforçando-as como propõe o modelo bicha/bofe
hierárquico, ou detonando-as como propõe o modelo gay/gay
igualitário (FRY, 1982, apud PERLONGHER, 2008).
Assim, a figura do pesquisador não pode ser desprezada
como fator de atratividade. Enquanto muitos pesquisadores
“relutam em reconhecer a importância da atratividade física,
especialmente para relacionamentos intersubjetivos não-se-
xuais” (KENDALL, 2008:106), a atratividade física deve ser dis-
cutida no campo como influência nos resultados de pesquisa.
Se perfis que davam sinais claros de interesse no pesquisador
-objeto-de-desejo eram mais colaborativos com as expectativas
e necessidades do pesquisador, o diálogo com sujeitos a quem
minha performance não produzia afeto foi dificultado. Assim,
me foi difícil estabelecer interlocução com perfis que prezavam
por uma masculinidade indexicalmente redundante, que con-
sumiam performances caricaturais de macheza e demanda-
vam signos de diferentes naturezas (“piroca grande”, “voz de
homem”, “jeito de macho”) para apontar para virilidade. Além
disso, muitas interações foram abandonadas quando os parti-
cipantes notaram a veracidade do meu interesse investigativo,
deixando claro seu interesse apenas devido ao apelo exercido
pelo investigador como objeto de desejo. Acredito, assim, que
“o corpo do pesquisador na prática etnográfica se transfigura

154
Gleiton Matheus Bonfante

como um instrumento de entrada no campo”, (ZAGO; SOU-


ZA, 2014:46) e um instrumento de geração de dados.
Objetificado, eu tive que intermitentemente negociar mi-
nha posição como etnógrafo, num código-território profunda-
mente excitável e sexualizado. Contudo, como propõe Altork
(1996 [1995]), a questão não é apenas a sexualização do campo
no qual se insere um etnógrafo, mas também o posicionamen-
to do pesquisador como figura sexual dentro do campo, pelos
outros. O campo é interativo com o pesquisador, interpelati-
vo dele, ao mesmo tempo em que nossa presença age, produz
efeitos no campo. Minha presença não foi despercebida nem
discreta, nem como pesquisador nem como sujeito do desejo.
Meu próprio gênero, minha branquitude, minha ‘mineiri-
ce’ ou ‘não-cariocalidade’, minha predileção de posição no ato
sexual – e este fato importou como poucos – o tamanho do meu
órgão genital, todos esses traços corpóreo-subjetivos se torna-
ram salientes e focos de interesse e questionamento, na medida
em que eu era produzido como objeto de desejo no código terri-
tório que etnografei. Se posso sugerir que branquitude, masculi-
nidade, juventude, bem-estar corporal, saúde, potência e pronti-
dão para o ato sexual, ‘marra’, ‘cariocalidade’ são performances
com alto potencial de afeto nos apps é porque estive literalmente
nu no campo. Porque meu corpo e minha subjetividade foram
examinados, testados quanto seu potencial de afeto, e porque
também me orientei por esses índices nos meus exames. De
fato, “estamos todos metaforicamente nus no campo: às vezes
nossas pretensões de objetividade são a única roupa que temos”
(WILLSON, 1996[1995]:256). E eu, despido desta pretensão, es-
tava vulnerável ao olhar do Outro. E era interpelado pelo sujeito
do desejo, como exemplificam as figuras a seguir:

155
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Figura 13: Cantada 1

Figura 14: Cantada 2

156
Gleiton Matheus Bonfante

A repetição do termo ‘etnógrafo’ na abordagem de “co-


roa botafogo” (Figura 13) parece reforçar esse traço como um
aspecto de significativa saliência sensual. No entanto, outros
signos são nomeados para o desejo do sujeito “a barba”, “o
rosto” e principalmente ser “ativo”. O que sacia no desejo
desse sujeito é a instrumentalidade do pênis (no caso, a ap-
tidão a penetrar). Como pesquisador, estava disposto a ouvir,
a dialogar, a obter informação. Por isso fui frequentemente
‘vítima fácil’ de abordagens que eu nunca responderia fora
da pesquisa. Se por vezes tentava negociar minha condição
de pesquisador quando interpelado como objeto de desejo,
em outras eu me calei. Não porque me isentava de resposta,
mas porque o silêncio nos apps é circunscrito em significados:
descontentamento, repulsa, desprezo, repreensão, ou simples-
mente “não”. Nos apps, o silêncio fala.

Figura 15: Cantada 3

157
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Já na Figura 15, a mensagem foi enviada como uma res-


posta à interpelação que meu nick‘Linguista’ produziu no
seu perfil. Porque a língua é também um órgão sexual, a ho-
monímia entre o órgão e a linguagem no ambiente de pega-
ção online foi muito frequentemente explorada pelos meus in-
terlocutores. Enviar uma nude – foto autopornificadora – no
primeiro contato, assim como convites para relações sexuais
são muito freqüentes nos apps de pegação. Interessante neste
exemplo é que a figura do pesquisador desaparece na figura
no objeto de desejo. Também é importante ressaltar a impe-
riosidade do desejo frente ao signo. Participar nos apps de pe-
gação significa comumente dobrar a performance de outrem
a nosso desejo. Signos afetam corpos e são por eles lidos de
acordo com o desejo subjetivo. Os efeitos de nossas perfor-
mances não são controláveis ou previsíveis e encontram em
cada em interlocutor um foco de afeto.
Eis aqui combalida e devastada a distinção entre pes-
quisador e informante; pisoteada a autoridade etnográfica
pautada na objetividade; risível a pretensão de uma observa-
ção discreta; e principalmente, deflagrante a necessidade de
convocar aspectos da autobiografia do etnógrafo para pensar
uma narrativa etnográfica mais holística, mais densa. Colate-
ralmente, jaz o pesquisador vulnerável. Para Haraway (2000),
etnografia não seria apenas um procedimento metodológico
específico da antropologia, mas um método de estar em risco
frente às práticas e discursos que se inquire. Esse risco é o
risco da nomeação, da interpelação e da objetificação a qual
a etnografia tem submetido historicamente suas culturas de
interesse. É um risco ao qual me lancei quando expus meu
corpo aos caprichos e fantasias dos desejos do Outro. Colo-

158
Gleiton Matheus Bonfante

car-se sobre escrutínio para o pesquisador, debruçar-se sobre


suas vulnerabilidades e expor sua nudez são práticas que so-
frem resistência acadêmica pela exposição, vulnerabilidade a
que relega o pesquisador. No entanto, me lancei a Erótica dos
Signos de “corpo e alma” (KENDALL, 2008) e encarei minha
nudez e vulnerabilidade em campo como um aspecto original
e positivo da Erótica dos Signos.

4.6 Comunidade e participação como fantasias


etnográficas

Se pressupor uma homogeneidade e prognosticar uma


comunidade virtual se configuram como uma tradição etno-
gráfica, uma maneira de melhorar a confiabilidade dos resul-
tados da pesquisa por endossar uma suposta estabilidade dos
sentidos, aqui tal característica não é nem desejada nem er-
roneamente pressuposta. A fugacidade das participações nos
chats e a própria heterogeneidade das identidades homosse-
xuais, somadas à intensa recusa de uma identificação como
participante dos apps, tornam a questão da ‘participação’nos
aplicativos polêmica, denunciando a performance de partici-
pante dos apps se configura mais como uma pressuposição a
priori, do que fato social deveras observável. Se para Duranti,
a participação e as estratégias de sua performance são elemen-
tos essenciais a serem observado pela antropologia linguísitca
(DURANTI, 1997), a participação confessa e a performance
impreterível de atos de mútua identificação em comunidades
virtuais não é observável frente aos nossos dados, já que os
participantes do Grindr, Scruff e Hornet se envolvem em uma
interminável batalha performativa de recusa de sua participa-
ção naquele código-território. Tal constatação nos coloca as

159
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

questões: Podem as identidades de gênero serem atribuídas


à revelia das práticas? E das performances? São participantes
que não se identificam com suas práticas participantes? Seria
a homogeneidade no campo e em comunidades um mito et-
nográfico? De acordo com Néstor Perlongher:

A premissa da identidade, da ‘imagem coerente do self’,


parece resultar antes de um pressuposto a priori do ob-
servador, que um fenômeno empiricamente registrável.
Essa premissa não somente afasta do campo estudado
as fugas, contradições, incoerências, desejos dos sujei-
tos – esmagando-os sob o imperativo da sujeição a uma
coerência preestabelecida –, mas tende a transformar-se
numa espécie de “obstáculo epistemológico”: levado por
essas noções, o observador tenderá a se deter nos mean-
dros da atribuição de identidade, talvez em detrimento
das práticas concretas (PERLONGHER, 2008:201).

De acordo com Duranti (1997), a homogeneidade é um


construto ideológico. Um que impregnou a ciência por mun-
do tempo. A inconstância e a variabilidade são não apenas
uma norma em qualquer observação cultural, mas deveriam
ser o maior ponto de interesse de uma disciplina que se in-
teressa por cultura. De acordo com Duranti, “variação é a
norma, ao contrário da exceção” (1997:83). A variabilidade de
uma cultura está imbuída em processos de identificação e di-
ferenciação e alinham o sujeito a ideologias sociais. A variabi-
lidade das práticas sociossemióticas delimita grupos homogê-
neos: gírias, aspectos morfológicos, tipificações do corpo, da
indumentária, do jeito etc. E a criação de grupos homogêneos
depende não apenas de uma mútua identificação, mas, e prin-
cipalmente, da exclusão de outsiders.

160
Gleiton Matheus Bonfante

De acordo com Kozinets (1997), o mútuo reconhecimen-


to como uma comunidade virtual depende de:

(a) uma familiarização entre os sujeitos;


(b) da revelação das identidades;
(c) de que exista uma linguagem compartilhada; e,
(d) que exista um esforço por parte dos participantes para
preservação de um sentido de comunidade.

Contudo, no contexto aqui investigado, i. e., nos apps de


pegação, podemos relatar ao contrário:

(a) omissão de detalhes pessoais, performance de si como


um sujeito do desejo, sempre difuso;
(b) o oblívio da identidade, a fragmentação do corpo, o
ocultamento do rosto;
(c) signos compartilhados que são mobilizados na lingua-
gem de forma distinta;
(d) a exibição de atestados de não-participação ou a-par-
ticipação – um contínuo esforço de ataque a estereó-
tipos homoafetivos, apreço por valores heteronorma-
tivos e reprodutivos como um moralismo sexual, e
reiteração muito direta de seu não pertencimento ao
código-território em questão.

Assim, a ideia de comunidade não permeia as teoriza-


ções neste livro, por se tratar de uma fantasia incabível com
a observação do contexto estudado. Prefiro assim, o con-
ceito código-território, discutido no primeiro capítulo, por
focar na dinamicidade e na fugacidade das participações:

161
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

participantes vêm e vão, se identificam e se desidentificam,


neste trânsito constante entre códigos, discursos, signos e
entre os territórios forjados por eles. Nesta tessitura, parti-
cipação é cerceada pela prática e participante assume a si-
nonímia de praticante.

4.7 A desestruturação como destino: nos


descaminhos da geração de dados

Perder-se também é caminho.


Clarice Lispector in: A Cidade Sitiada

For some kooky minds, disciplines actually get in the


way of answers and theorems precisely because they of-
fer maps of thought where intuition and blind fumbling
might yield better results.
Jack Halberstam in: The Queer Art of Failure

Os instrumentos de geração de dados e procedimentos da


Erótica dos Signos estão descritos a seguir.
A geração desses dados foi de várias naturezas: (1) sele-
çãode perfis através de print page; (2) históricos das interações
fornecidos pelos próprios participantes, salvos por meio da
impressão da página – entre os dez participantes que cede-
ram dez interações encontra-se o pesquisador –; (3) diário de
campo, onde mantive anotações e extensas descrições sobre
minha imersão no campo – interessantemente, o diário de
campo foi mantido, como as interações, no próprio celular,
no aplicativo de bloco de notas –; (4) entrevistas, que também
eram interações no próprio aplicativo, entre pesquisador e in-
formante. Estas entrevistas, por volta de vinte, além de reuni-
rem informações acerca do campo, também tencionavam re-

162
Gleiton Matheus Bonfante

crutar participantes que doassem seus históricos. Por ser mais


desafiadora do que a prática do print page54 dos perfis, que
a organização dos dados dos informantes, e que a manuten-
ção de um diário, gostaria de abordar mais demoradamente a
questão das entrevistas.
As entrevistas realizadas assumiram uma configuração
inovadora e difícil de controlar, já que adotavam a estrutura
de uma interação no próprio aplicativo cujas características
prototípicas são: interações curtas, muitas abreviações, res-
postas sucintas, linguagem direta e frequente, e espontâneo
abandono da interação. Se, por um lado, a entrevista online
foi essencial para o design pretendido para a pesquisa, já que
também estava interessado na configuração das interações e
nas suas particularidades em tais meios, por outro, contou
com destreza do pesquisador em manter os informantes mo-
tivados e na tentativa de formular perguntas que pudessem
ser respondidas de forma sucinta. Foram requeridas habilida-
de para tentar estabelecer rapidamente elos com as respostas
fornecidas para elaboração de novas questões, e para desven-
cilhar-me educadamente de ‘cantadas’ e investidas sexuais,
e um compromisso em não me fechar a temas salientes, me
lançando à deriva dos sentidos.
A escolha pela condução da entrevista no próprio am-
biente pesquisado se baseou na pretensão de entender o cam-
po de imersão da pesquisa em sua totalidade e complexidade,
sem retirar as interações com os participantes de seu ambien-

54 O print page é um recurso dos smartphones que congela a tela e a guarda como uma foto. Foi a
estratégia de apreensão dos dados nesta pesquisa: transformá-los em pequenas fotos, quadros onde as
interações se desenrolaram, as performances eram congeladas e os dados passaram a posteridade. Eles são
expostos ao longo do livro. O leitor já deve ter percebido que grande parte dos perfis analisados neste livro
não são as impressões originais, mas ilustrações delas realizadas por artistas plásticos com intuito tanto de
proteger a identidade dos participantes quanto de criar uma estética visual-autoral do livro.

163
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

te original de ocorrência – como seria o caso inevitavelmente


em uma entrevista pessoal. Contudo, também conversei com
muitas pessoas em muitas ocasiões pessoalmente sobre suas
experiências nos aplicativos de pegação, e tais contribuições
endossam o conjunto de dados analisados como parte do
Diário de Campo.
As entrevistas foram conduzidas de forma não-estrutu-
rada55, ou seja, não contaram com um roteiro ou com uma
lista de perguntas pré-determinadas, privilegiando assim o
surgimento dos tópicos, a conversa informal e uma interação
aberta. Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (1998) chamam
a atenção para os benefícios da adoção de um planejamen-
to de pesquisa menos estruturado quando o pesquisador se
confronta com realidades complexas e desconhecidas e aler-
tam para o risco de ‘aprisionarmos’ o sentido em categorias
e teorias adotadas a priori e que podem alterara qualidade
dos dados e do estranhamento etnográfico. Para os autores,
a flexibilidade é uma característica sine qua non da pesquisa
qualitativa. A vantagem de uma entrevista desestruturada foi
poder contar com informações e incursões temáticas novas a
cada participante, e evitar que um informante se fechasse a
algum tópico, tentando sempre inferir suas limitações e suas
melhores contribuições.

55 Acho complicado pensar em entrevista completamente não-estruturada, pois o pesquisador já


possui muitas questões ao entrar em contato com o campo, na medida em que seu trabalho é estranhar e
pensar o ‘natural’. De fato, muitos questionamentos já povoavam minhas reflexões acerca da participação
na prática social aqui estudada, mas prefiro o termo não-estruturada por dois motivos: (1) não contei com
uma lista de perguntas (o que configuraria uma entrevista estruturada) nem com uma lista de tópicos
(característica de entrevistas semi-estruturadas) fixa, e (2) preferi privilegiar a audição (no meu caso,
a leitura já que as entrevistas foram online) e permitir que as respostas dos informantes me guiassem a
lugares não antes interrogados. De acordo com Lago (2007; 52) apud Fragoso et al. (2010, 186), “O ouvir,
alcançado mediante entrevistas em profundidade, abertas, mas também diálogos casuais, ajuda aopes-
quisador perceber o sentido das ações que observa, bem como as significações específicas que o grupo
observado atribui às suas próprias ações, rituais, etc. ”

164
Gleiton Matheus Bonfante

Contudo, outras tensões dificultaram ou pelo menos


criaram certas ansiedades na condução das entrevistas. Pri-
meiramente, estes aplicativos como Grindr, Scruff, Hornet,
entre outros se levantam na contemporaneidade como resis-
tências da efemeridade, e, assim, foi necessário abraçar as ten-
sões constituintes do ambiente, como o bloqueio do perfil e o
abandono da interação. Embora o bloqueio do meu perfil assi-
nalasse um drama na medida em que nem o participante que
me bloqueou, nem nosso diálogo poderiam mais ser visuali-
zados por mim, o abandono da conversa causava ainda mais
ansiedade, pois não deixava claro o fim da interação ou do
interesse de participar da pesquisa. Também representaram
empecilhos, respectivamente: 1) a dificuldade em estabelecer
relações de confiança com os pesquisados, devido à dúvida
quanto à identidade do pesquisador ou o próprio receio de se
exibir demais; e 2) a constante interpelação do pesquisador
como objeto de desejo. Além disso, pude notar durante meus
dois anos de imersão no campo que há um grande investi-
mento na performance de si e pouco investimento nas con-
versas, motivo que com certeza motivou a alteração do foco
da Erótica dos Signos da interação para a performance. Os
participantes interactantes consentiram livremente em par-
ticipar da pesquisa, interagindo com o pesquisador e doando
seus históricos de conversa, no entanto, como explicitado aci-
ma, a maior parte dos dados analisados foi conseguida atra-
vés do print page dos perfis estudados, o que não pressupõe
nem a autorização nem o conhecimento destes participantes
da utilização de seus perfis para desenvolver investigações so-
ciais. Na próxima seção discutiremos as implicações éticas da
geração de dados e de sua utilização.

165
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

4.8 Ética de pesquisa

Em nenhum momento da pesquisa desenvolvida houve a


distribuição de um Termo de Consentimento Livre e Esclareci-
do, contudo os participantes – ou grande parte deles – aceitaram
participar online e sua aceitação foi impressa do chatpor meio do
print page. A adesão voluntária a parte de medidas burocráticas
dificultadoras da pesquisa foi chamada por Zago e Santos (2013)
de “método consensual”. Assim o descrevem os autores:

[…] ‘método do consenso’, isto é, que o/a pesquisado/a


possa ‘consentir livre e esclarecidamente’ a participar
da pesquisa ou a deixá-la em qualquer momento; que
negocie com o/a pesquisador/a as perguntas feitas e as
respostas dadas; que o pesquisado/a possa também fazer
perguntas ao pesquisador/a e, talvez, pedir informações
sobre a perspectiva teórica adotada na análise dos dados.
Sobretudo, o método do consenso, no âmbito das pesqui-
sas que vimos realizando, é um método em que a relação
entre pesquisador/a e pesquisado/a é construída princi-
palmente em referência ao contexto no qual se desenvolve
a pesquisa (seu objeto, os dados produzidos, a abordagem
teórica das análises), e não somente em relação estrita a
um conjunto de normas e regras prévia, externa e buro-
craticamente impostas, que enrijecem e cristalizam os lu-
gares, direitos e deveres tanto do/a pesquisado/a quanto
do/a pesquisador/a (ZAGO; SANTOS, 2013:46).

O método do consenso, por permitir espaço de negociação


flexibiliza as relações entre pesquisado e pesquisador e ajuda
a implodir essa distinção tradicional na prática etnográfica:
etnógrafo/sujeito/1ª pessoa gramatical versus pesquisado/ob-
jeto/3ª pessoa gramatical. Ele permite uma relação mais livre

166
Gleiton Matheus Bonfante

e fluida entre os participantes por libertá-los de funções parti-


cipativas outorgadas a priori, atribuindo à pesquisa contornos
mais sinceros, honestos, justamente por respeitar os limites
do etnógrafo e dos contribuidores da pesquisa.
Contudo, a impressão dos perfis aqui analisados não foi
necessariamente consentida, o que poderia levantar questio-
namentos quanto à postura ética do pesquisador nesta incur-
são científica. Portanto, reservo os parágrafos seguintes para
descrever e justificar minhas escolhas e possibilidades quanto
aos cuidados éticos subjacentes à pesquisa.
Em primeiro lugar, gostaria de ressaltar que a ultilização
dos apps em questão, assim como dos diversos softwares co-
tidianos, pressupõe uma concordata com os termos ‘contra-
tuais’ impostos pelos softwares. Embora todos concordem com
os termos, poucos lêem as cláusulas, nas quais estão previstas,
por exemplo, “permissão de acesso irrestrito aos conteúdos dos
apps pelo governo”, além de “nenhuma garantia de privacida-
de para os perfis apresentados nos apps” e “total permissão aos
apps para usar os perfis e suas fotos com distintas finalidades,
inclusive propaganda dos apps em redes externas”. Nada é dito
na exaustiva leitura sobre a possibilidade a pesquisadores de
usar os dados para suas pesquisas; no entanto, acredito ser a
divulgação dos dados com os devidos cuidados para preserva-
ção da identidade dos respondentes em ambientes acadêmicos
muito menos danosa e invasiva do que sua distribuição indis-
criminada a mídias publicitárias e entidades governamentais.
As duas Figuras seguintes, 16 e 17, print pages do acordo que
aceitamos pelos serviços de aplicativos e outras plataformas de
relacionamentos ilustram exemplos de informação a que eles
têm acesso “voluntariamente” ou “automaticamente”:

167
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Figura 16: “Você nos fornece voluntariamente…” termo da política de


uso do app Grindr

Figura 17: “Nós coletamos automaticamente…” termo da política de uso


do app Grindr

168
Gleiton Matheus Bonfante

O acesso aos nossos dados e a livre distribuição deles


possibilita práticas sociais de controle e governamentabilida-
de dos corpos e subjetividades. Tais práticas de governo nos
submetem a mecanismos de vigilância e à imposta pedagogia
dos corpos. Um exemplo da violaçãode privacidade a que es-
tes contratos nos relegam foi uma recente campanha do Go-
verno Brasileiro para prevenção de DSTs fundamentada nos
aplicativos, a qual causou muita polêmica. Ela consistia na
criação de perfis falsos gerenciados pelo governo que sedu-
ziam os usuários para prática de sexo desprotegida. Frente à
reciprocidade do usuário, o perfil se revelava como uma enti-
dade governamental e dava uma ‘liçãozinha de moral’ acerca
da importância do uso do preservativo e da periculosidade de
contrair uma doença sexualmente transmissível, numa práti-
ca descarada de coerção, intimidação, invasão desmedida da
intimidade e desrespeito a autonomia sobre o próprio corpo.
Por outro lado, enquanto um entendimento estrito do
princípio de consentimento do uso de informações em pes-
quisa pressupõe o requerimento da distribuição dos termos
em qualquer pesquisa entre humanos, uma interpretação
possível para as ciências humanas – Bolton (1996 [1995]) e
Zago e Santos (2013), entre outros – é de que tal exigência
venha dificultar ou impossibilitar a pesquisa qualitativa, de
modo que a impreteribilidade da distribuição de tal termo de
esclarecimento seja legítima toda vez que a pesquisa apresen-
tar riscos a um indivíduo ou sociedade. A pesquisa em ques-
tão não apresentaria nenhum risco a seus participantes, com
exceção da possibilidade de revelação da identidade, que é
um cuidado muito esmerado nesta pesquisa como discutido
pelo seguinte ponto.

169
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Em terceiro lugar, o cuidado com a identidade foi, do


principio ao fim, um esforço seriamente encarado. Apesar
da ordinariedade das performances de estilização nos apps,
todos as fotos dos perfis foram reinterpretadas por artistas
plásticos para permitir maior anonimato. Para Bolton (1996
[1995]:155), e também no meu ponto de vista, é de obvieda-
de indiscutível a “preservação absoluta da confidencialidade
e dos direitos de privacidade dos participantes em qualquer
pesquisa sobre sujeitos sensíveis”. Aqui houve um extenuante
esforço para esconder o rosto (quando ele aparecia!) e carac-
terísticas marcantes como tatuagens e outras tipificações cor-
porais que poderiam ajudar a identificar os sujeitos apesar do
exagero que tais práticas de proteção figuravam, já que, devi-
do à própria efemeridade das relações nos apps, e a distância
entre estilização e realidade, a ‘real’ identidade é de difícil ou
praticamente impossível apreensão, apesar de performances
tão fragmentárias.
Apesar dos cuidados tomados, Varis (2014) propõe que
textos online são rastreáveis. Em suas palavras: “mesmo que
dados sejam tornados anônimos e os nomes das pessoas se-
jam alterados, discurso ainda é rastreável” (VARIS, 2014; 8).
De fato, discurso é rastreável na rede, mas não nos apps. E
essa é uma novidade da descomputadorização. Os perfis só
podem sair dali por meio da intenção dos usuários, ou dos
aplicativos enquanto as interações só são extraídas por um
dos dois interactantes. Além disso, os discursos nos apps são
muito pouco inovadores e escassamente originais o que tor-
na questionável a possibilidade de reivindicação de autoria de
determinado conteúdo. De qualquer forma, pela volatilidade,
rapidez do tempo nos apps e pouca originalidade tanto na es-

170
Gleiton Matheus Bonfante

tilização de si quanto nas interações, os perfis acabam sendo


congêneres e suas participações parecem se adequar a uma
gramática bem normativa que não permite muito o exercício
da individualidade, nem respalda a noção de autoria.
A maioria dos participantes achou muito interessante a
ideia de participar da pesquisa: além de concordar, manifes-
tavam sentimentos positivos em relação à sua participação
como empoderamento social, voz política e curiosidade ge-
nuína quanto aos resultados da pesquisa. Contudo, é muito
provável que alguns perfis não gostem da ideia, especialmente
aqueles com incitações preconceituosas, discursos de intole-
rância e misoginia – justamente os perfis que gostaríamos de
explorar e que devido a seu caráter preconceituoso, dificil-
mente contribuiriam com o pesquisador.
Varis (2014) ainda nos lembra que “o fato de material
semiótico estar disponível online, não significa que temos o
direito de nos apropriar deles para fins de pesquisas acadê-
micas” (VARIS, 2014:8) Apesar de termos que considerar as
peculiaridades de cada situação, eu discordo deste ponto por
cinco motivos:

1. Porque essa assunção vislumbra um modelo ético que


não condiz em absolutamente nada com o mundo so-
cial em que vivemos, no qual nos expomos e somos
expostos e não temos controle algum sobre a repro-
dutibilidade de nossas performances. Não somos do-
nos de nossas performances.
2. Discordo deste ponto porque ele delega aos pesquisa-
dores a responsabilidade pelas performances impen-
sadas e constrangimentos sociais autoinfringidos que

171
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

os sujeitos se provocam, nos colocando em uma espé-


cie de obrigação moral com a sociedade que nem os
sujeitos, nem o governo, nem as empresas respeitam,
já que eles têm acesso irrestrito aos nossos dados e os
usam com virulência a favor de interesses próprios e
lucro fácil. A responsabilização do pesquisador pela
indiscrição dos dados disponibilizados online protege
os manipulativos mecanismos de controle emprega-
dos por serviços privados, principalmente de publi-
cidade e facções governamentais ao mesmo tempo
em que estimula uma ingenuidade dos sujeitos que
não lêm os contratos com os quais compactuam ao
contratar serviços como Facebook e os apps de pega-
ção. Essa responsabilidade exclusiva da pesquisa por
respeitar intenção dos atores sociais ao disponibilizar
material semiótico na rede é uma estratégia políti-
co-econômica que tenta proteger instituições gover-
namentais e privadas do seu constante desrespeito à
privacidade das pessoas.
3. A pesquisa qualitativa é uma prática social. Os perfis
analisados aqui foram meus conhecidos e interactan-
tes e não ‘cobaias’. O conservadorismo nos limites da
incursão do etnógrafo pressupõe uma pesquisa que
assume os dogmas positivistas que a Erótica dos Sig-
nos combate tão ferrenhamente. Uma ética de pes-
quisa burocrática e engessada faz muito sentido para
práticas de pesquisa na área biomédica que estuda
indivíduos e não sujeitos. O foco subjetivo da Erótica
dos Signos pressupõe um respeito a liberdade e um

172
Gleiton Matheus Bonfante

compromisso de não subjugar sujeitos a posições au-


torgadas a priori.
4. O discurso de discrição dos dados deve assumir sua
responsabilidade no estabelecimento de territórios
seguros da censura social para que os sujeitos repro-
duzam performances preconceituosas e criminosas,
como incitação ao ódio, misoginia e homofobia, per-
formances que devem ser estudadas e denunciadas.
Nos apps, injúrias e atos de violência discursiva de-
vem ser estudados inaugurando um compromisso
político com o bem-estar social.
5. Finalmente, discordo de Varis (2014) por estipular o
pesquisador como um alien, um ser extraterrestre. O
pesquisador é deste mundo. O autoetnógrafo o co-ha-
bita com seus informantes e fala de si toda vez que
fala do Outro. Acredito que por habitar o lugar de in-
formante, o pesquisador de inspiração autoetnográ-
fica tem o direito de se colocar em discurso indiscri-
minadamente, mesmo que também predique outros
quando fala de si e de sua relação com o código.

Os pesquisadores são parte de praticamente qualquer


realidade social, especialmente nos territórios online. O perfil
“tese de sociologia” (FIGURA 12), discutida anteriormente,
exemplifica a sensibilidade dos participantes quanto à presen-
ça dos pesquisadores, fazendo uma piada sobre a incredulida-
de de pessoas participarem nos apps sem estarem dispostas a
jogar o jogo dos desejos.
Em resumo, os cuidados éticos foram tomados para ga-
rantir o bem-estar dos participantes mesmo que não sendo

173
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

os cuidados burocráticos prototípicos – e muitas vezes, inefi-


cientes – previstos pelos códigos de ética engessados das pes-
quisas biológicas; no entanto, foram estipulados com esmero
e comprometimento. Com razão, de acordo com Bolton, “Em
última instância, a proteção dos participantes na pesquisa
depende muito mais da integridade, das intenções e da inte-
ligência dos investigadores, assim como de sua preocupação
com o bem-estar da população sendo estudada do que de ins-
trumentos formais e burocráticos” (1996[1995]:156).
Proponho aqui pensarmos a ética como a prática refleti-
da da liberdade individual e respeito ao Outro. Houve muita
reflexão e cuidado na estipulação do código ético previsto na
pesquisa e na forma como as informações iam circular e li-
berdade para pensá-lo como um aspecto responsável, político
e positivo ao contrário de uma formalidade da pesquisa. Com
Foucault, penso que “[a] liberdade é a condição ontológica da
ética. Mas a ética é a forma assumida e refletida pela liberda-
de” (FOUCAULT, 1984:267).

174
5. A construção semiótica
do sujeito desejante

Figura 18: Descrição de si no Scruff eleita como epígrafe do capítulo

Específicas variáveis emergem dos repertórios de signos


na vida social tornando-se símbolos ou emblemas semióticos
e servindo como estratégias semióticas de estilização, tipifi-
cação de si. De acordo com Coupland (2007), compreender os
significados de um estilo é um exercício inerentemente con-
trastivo; contudo, estilo não é diferença apenas, mas faz refe-
rência a uma dimensão estética da diferença. A estilização – a

175
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

ativação do significado estilístico, nas palavras de Coupland


(2007) – consiste na convocação de fatos semióticos (signos,
imagens e até morfologia da língua) empregados como estra-
tégias semióticas de performances de diferenciação e indi-
vidualização que apontam para características sociais como
signos do sujeito (fragmentação da imagem, redução de si a
partes de corpos, acesso à ‘gramática do macho’ – caracterís-
ticas salientes na fala popularmente atribuída a homens). No
entanto, se “[o] termo geral usado na sociolinguística se refere
a específicos modos de falar que são indexicalmente ligados a
grupos sociais, momentos e lugares” (COUPLAND, 2007:2),
aqui estilo é entendido para além da linguagem e convoca ou-
tros tipos de signos como imagens e emoticons para significa-
rem na estilização do sujeito do desejo e para afetarem outros
sujeitos. A dimensão estética, afeccional do estilo é de grande
relevância neste trabalho. Embora a análise aqui esteja com-
prometida com estilo, isto é, um feixe de traços semióticos
associados a uma identidade, não falaremos em identidade,
mas em processo de identificação devido à efemeridade das
performances e à impossiblidade de alcançar efeitos durá-
veis através da repetição. A continuidade nos apps como o
Grindr é errática, a estabilidade é difícil de ser alcançada, as
performances são efêmeras, assim como são as interações, de
modo que a experiência da perdurabilidade é comprometida.
A repetição salienta uma performance, um devir, um vir a ser
plenamente comprometido com o agora. Ela pode, ao invés
de atingir um efeito de estabilidade, atribuir afeto, aumen-
tar o poder de uma performance, tornando-a mais intensa e
volátil. A repetição normalmente geradora de efeitos de esta-
bilidade sem reiteração não consegue fixar-se como um efei-

176
Gleiton Matheus Bonfante

to substancial da citacionalidade, uma verdade que atua na


modelagem dos corpos e aqui, portanto, a repetição paira nas
performances ao gosto da redundância.
Ao interagir longamente com os perfis, pude notar uma
regularidade não surpreendente nas suas performances: o de-
vir sujeito do desejo. Todos os sujeitos estão ali porque de-
sejam. No entanto, o sujeito do desejo é sempre outro: o que
se deseja, como se deseja e quais estratégias semióticas são
empregadas na transformação do desejo em gozo diferem de
sujeito para sujeito. Nestes movimentos de desejos, sujeitos
não se lançam apenas aos outros, mas especialmente sobre
si mesmos. Os desejos de si são estilizados e são disponibili-
zados online como objetos possíveis do desejo do Outro. Em-
bora as performances sejam sempre outras, a orignalidade e
variabilidade da estilização de si como sujeito do desejo não é
especialmente averiguável nos apps, justamente porque dese-
jo é um fenômeno social. Há um conjunto de características
que são combinadas e recombinadas no processo de produção
de distintas estilizações de si. A complexidade desses efeitos
da estilização e os pormenores de sua composição serão foco
de interesse na análise.
A estilização que estudaremos aqui é, portanto, a de um
sujeito específico: a do sujeito do desejo e, por isso mesmo,
intensa e volátil – afeta os corpos e não deixa vestígios dos
‘pecados’. Como estratégias para tal estilização, discutiremos
performances semióticas de duas naturezas na estilização de
si: atos ilocucionários (delineiam os contornos e desejos do
amante) e perlocucionários (são as afecções produzidas no
Outro pela performance semiótica;são os efeitos de signos
que excitam e incitam, tentam captar um desejo). Contudo

177
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

essa distinção entre atos de estilização é mais pedagógica do


que útil na análise, já que capital simbólico do desejo que afe-
ta outros sujeitos nas performances íntimo-espetaculares é
ingrediente imprescindível na estilização de si nos apps.
Este capítulo divide-se em quatro partes, além desta
apresentação: a primeira se dedica a entender a presença do
código na estilização de si. Entre inúmeras opções para se
referir a si, para se construir, muitos participantes elegem
características do ethos dos apps para se tipificarem – ou se-
riam os sujeitos influenciadores dos signos que normatizam
o próprio código? –, de modo a complexificar a discussão
a respeito da influência da mídia nas interações. A segun-
da parte lida com as estratégias de estilização de si através
da indexicalização (que, de acordo com Scollon & Scollon
(2003) implica no emprego de um índice, um signo qualquer
que aponta para algo, que é atado socialmente a um objeto ou
característica específicos) e da iconicização (que, de acordo
com Scollon & Scollon (2003), é o processo através do qual
um signo sugere uma relação com uma característica social
e passa a ser empregado para fazer alusão a ela). Ainda na
segunda parte, estudaremos e metonimização de si como
performance do sujeito desejante/desejável. A metonimiza-
ção é como nomeei o corriqueiro processo de performance
do corpo que o objetifica, o fragmenta para o olhar.
Na terceira parte, discuto como alguns traços semióti-
cos se tornam salientes como marcas estilísticas associadas
ao ‘gênero masculino’, de modo que os participantes os invo-
cam através de estratégias semióticas específicas que figuram
como símbolos de si, indexicalizando virilidade, um dos mais
relevantes capitais simbólicos dos apps de pegação. O último

178
Gleiton Matheus Bonfante

tópico, no entanto, se volta para performances não-prototípi-


cas ou queer que, num gesto de subversão, se “desidentificam”
(MUÑOZ, 1999) com os signos sociais do desejo e ressignifi-
cam suas performances corpóreo-discursivas, indexicalizan-
do sentidos insólitos ao fantasmagórico e onipresente desejo
heteronormativo, o qual assombra a semiose do desejo ho-
moerótico de diversas formas.
Por razões didáticas, os perfis discutidos foram analisa-
dos de acordo com seus tópicos semânticos, o que privilegiou
um fio narrativo coeso na análise. No entanto, a interseccio-
nalidade de diferentes características nos perfis compeliu-me
a fazer ziguezagues no texto para cobrir as complexas simila-
ridades entre eles. Os tópicos se referem a performances pro-
totípicas muito recorrentes nos apps. O termo ‘prototípico’
(SANDIG, 2009) é invocado para propor certa estabilidade
de gênero ao mesmo tempo em que permite certa fluidez na
combinação de seus traços frequentes.
Embora o nickname e imagem recebam importância cen-
tral na composição dos perfis do Grindr e Scruff, a análise dos
elementos da composição do perfil de modo separado não se
mostrou muito proveitosa. A intersecção do sentido oriunda
da junção do texto (about, headline e nome) com a imagem se
mostrou o foco principal de análise por três motivos: primei-
ramente, muitas vezes o perfil era deixado incompleto, às ve-
zes o nickname não era preenchido, ou o headline ou o about.
Em segundo lugar, por mais que a configuração do perfil ga-
rantisse ao nickname uma posição mais central e mais desta-
cada no texto do perfil, muitas vezes este espaço era ocupado
com emoticons (ver FIGURA 27, cf. p. 114), reticências etc., fa-
zendo o foco de atenção descer ao próximo texto que passava

179
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

a comandar os efeitos de indexicalização. Em terceiro lugar,


as lacunas poderiam ser apropriadas com diferentes propósi-
tos ou deixadas em branco e o nickname só era informado no
about ou na headline.
Para explorar a semiose dos apps e os espaços da mídia
que os sujeitos ocupam na produção de si e para familiari-
zar o leitor com a plataforma, eu inicio a análise discutindo a
composição do perfil do pesquisador56:

Figura 19: 1º Perfil composto pelo Pesquisador

De cima para baixo, identificamos os espaços da mídia


onde se dão as estratégias textuais de produção de si. No alto,
sobre o fundo amarelo, o nickname: “Cientista”. Em seguida,
descendo à esquerda, os dados pessoais como altura, peso,

56 Tal discussão também coaduna com uma postura ética e transparente a respeito da participação do pesquisador na
pesquisa. Para uma discussão mais aprofundada sobre o tema, veja o Capítulo IV, “Erótica dos signos”.

180
Gleiton Matheus Bonfante

idade, etnia, essenciais para a composição de uma imagem


corpórea. Abaixo, com uma fonte um pouco maior (a dis-
tinção entre fontes e posicionamento dos dados na tela são
próprias do design da plataforma), a headline “Fazendo etno-
grafia” e o about, preenchido com a música popularizada por
Daniela Mercury que sugere um interesse em ouvir o Outro
– típico da prática etnográfica –, mas de forma descontraída,
talvez até informal. A escolha partiu do pressuposto de que as
pessoas podem se assustar com demonstrações de interesse
muito explícitas sobre suas práticas sexuais ou suas perfor-
mances íntimo-espetaculares. E, assim, além de respeitar os
limites de cada participante, um começo mais desinteressado,
menos direto poderia ser uma vantagem na geração de infor-
mações. No terceiro perfil elaborado para o campo, alterei o
nick “Cientista” por “Linguista”, e, no local onde citei a letra
da música do cantor Roberto Carlos, descrevi com mais deta-
lhes meu interesse: “Pesquisador interessado nas práticas so-
ciais e uso da língua no Grindr. Procuram-se informantes57!
:D”. Este perfil recebeu mais abordagens, questionando e in-
querindo sobre a pesquisa, enquanto aquele, em cujo texto o
interesse acadêmico não foi tão explicitamente descrito, atraiu
interações mais espontâneas. Quanto à imagem, mostrei o
rosto seguindo as instruções do app Scruff, que na ocasião
da composição do perfil nos informa que perfis com foto de
rosto têm mais chances de serem respondidos. Para a escolha
da foto, supus que mostrar o rosto, me assumir ali poderia in-

57 Neste perfil foi inicialmente escrito “Procura-se informantes”. Como sociolinguista e etnógrafo
não sou muito afeito de normatividades linguísticas e não me preocupei com a correção gramatical na
composição do perfil. Contudo, correção gramatical se mostrou muito relvante para meus interlocutores.
Depois de ser corrigido frequentemente por eles e ser posicionado como linguista incompetente pela
minha inabilidade de ‘escrever corretamente’, alterei a forma da escrita para evitar novas discussões sobre
gramaticalidade e preconceito linguístico que, embora relevantes, me afastavam do objetivo de pesquisa.

181
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

centivar a confiança dos outros perfis a contribuir com a pes-


quisa. Embora a tenha escolhido por achar que estava bonito
apenas, não posso negligenciar que os participantes podem
ter atribuído algum tipo de sentido a esses signos os quais não
posso garantir ou prever. Durante o campo, ainda modifiquei
o perfil duas vezes. Mantendo os escritos do terceiro perfil,
troquei a foto de rosto por uma em que eu estava sem camisa
e mudei o nome “Linguista” para “Pedro Lontra58” (FIGURA
20). Esta alteração tornou a pesquisa impossível, porque fez o
pesquisador desaparecer dentro do sujeito do desejo.

Figura 20: 3º Perfil composto pelo pesquisador

58 ‘Lontra’, do inglês otter, é um termo usado para designar subespécies de ‘ursos’. Assim como os ursos,
os ‘lontras’ são peludinhos e barbados, mas normalmente são menos corpulentos.

182
Gleiton Matheus Bonfante

Na última experiência de estilização que empreendi,


confeccionei um perfil sem foto e sem nenhuma composi-
ção textual além de idade, peso, altura. Apesar da constante
interpelação do app para que eu colocasse uma foto, para
minha surpresa seis pessoas me contataram em um mês (um
número pequeno frente ao fluxo normal de abordagens, mas
ainda significativo visto o silêncio do perfil). Todos desis-
tiam da interação quando confessava minha condição de
pesquisador-lurker ali.

5.1 O sujeito e o código: uma gramática mútua

Como já discutido em outras ocasiões nesta Erótica dos


Signos, as peculiriadades de uma mídia tensionam, influen-
ciam o uso que fazemos dela e, assim, o comportamento
linguístico de seus participantes é motivado, influenciado
pelos códigos em que se inserem. No entanto, por outro
lado, também parece sensato afirmar que as mídias são de-
terminadas pelo uso que se faz delas, e que seriam moldadas
pelo constante tensionamento dos atores sociais. Se códigos
podem ser normativos eles também são sujeitos à agência
social, de modo que uma relação de simbiose se deixa ob-
servar. Com razão, perguntar se os sujeitos forjam relações
supérfluas e voltadas para o desejo porque os apps as tor-
nam possíveis, ou se apps viabilizam relações efêmeras, ur-
gentes de desejo, performances de a-participação, porque
seus usuários o ultilizam com este propósito, parece nos
fazer perder muito da complexidade da relação de mútua
ação que sujeito e mídia estabelecem entre si. A estilização
de si nos apps encontra eco nas especificidades do aplicati-

183
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

vo, de modo que características de seu ethos podem e vêm a


compor a estilização dos perfis e dos sujeitos. Interessante
notar como, entre tantas possibilidades de identificação, os
perfis escolhem falar de características popularmente atri-
buídas ao apps, para construir a si mesmo. Examinemos
esses tópicos nas seções a seguir.

5.1.1 Efemeridade/Urgência do tesão


No contexto dos apps de pegação, as interações rápidas,
apressadas, efêmeras são típicas dos sujeitos do desejo. As re-
lações intersubjetivas nos apps comprimem o tempo no ago-
ra, o condensam na imagem dos desejos do corpo e na sua
ânsia sem descanço por realizá-los.
No perfil a seguir (FIGURA 21), a referência à compressão
do tempo, à pressa do desejo e à crença de que muita conversa
faz os indivíduos se desviarem do foco principal do encontro
real aparece logo no título “Agilidade…!”. Tais sentidos indi-
ciais são reiterados no about: “Tc demais não leva a nada!”. No
entanto, o sujeito utiliza seu espaço de descrição para explicar
que sua ‘agilidade’ e destreza na articulação de um encon-
tro não são um sintoma do desespero. Essa é uma diferen-
ça fundamental para entender um sujeito como desejável, já
que desespero poderia indexicalizar permissividade típica de
não-desejabilidade. Ele dá a entender, assim, que apesar de
valorizar a agilidade mantém um padrão de exigência: “pes-
soas do BEM”, “de mente sã” etc.

184
Gleiton Matheus Bonfante

Figura 21: Perfil “Agilidade”

O sujeito em questão ressalta a prolixa discursividade


das práticas nos apps, a qual ele recusa como forma de sa-
tisfação, frisando seu interesse por um encontro cárneo. A
foto sem camisa é não apenas uma estratégia de afeto pelo
mostrar-se, mas indexicaliza iconicamente um sentido de
prontidão do sujeito para o encontro corpóreo. Estar nu é
típico da entrega ao sexo, é um símbolo do corpo aberto ao
prazer. O perfil logo a seguir (FIGURA 22) também frisa a
necessidade de ser direto e de não “enrolar” na negociação
de um encontro real.

185
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Figura 22: Perfil “XY”

Ele, inclusive, propõe ser a agilidade sua exigência mais


pungente. Ao contrário do primeiro perfil que, apesar da sua
‘agilidade’, se apresenta como exigente em relação a certos
aspectos do interlocutor, o sujeito aqui se descreve como
detentor dos requerimentos do prazer, como possuir pênis
grande. A estratégia para se estilizar como desejável é então
listar uma série de outros signos que indexicalizam suas po-
tencialidades orgásmicas (como ter local para receber o par-
ceiro, carro ou mobilidade, ter dinheiro para pagar o motel,
ter o pênis grande). Interessante é observar que, apesar do
foco na diligência do encontro, a sua estilização onomásti-
ca, i. e., seu apelido, indexicalizaa representação biológica da
macheza. A alusão aos cromossomos XY que determinam o

186
Gleiton Matheus Bonfante

sexo masculino figuram como referência central na perfor-


mance de si, invocando uma virilidade inata para nomear-se.
Ser um indivíduo macho, no sentido biológico, é não apenas
relevante para o desejo homoafetivo, mas uma estratégia de
afeto, por sugerir a pertencença a uma categoria animalesca,
que realça o aspecto sexual do amante aumentando, assim, a
performance de sua potentia gaudendi.
Ambos os perfis apostam na selfie como imagem de si.
Interessante notar na FIGURA 22 o ambiente doméstico
da foto, que aponta para símbolos de amadorismo na per-
formance de si tem valor icônico pois acentua uma ideia de
realidade da performance. Pela mochila e indumentária su-
põe-se que ele vai à academia. É interessante pontuar como
esse ambiente torna as pessoas reflexivas a respeito de seus
corpos, as fazem observarem os mesmos, rastrearem mudan-
ças e documentarem estágios. O signo da academia também
é frequentamente invocado na atribuição de desejabilidade a
um sujeito, pois indexa na cultura somática um corpo sau-
dável e treinado, apto à coleção de sensações e à fugacidade
dos sentidos que marcam a experiência subjetiva nos apps de
pegação, e que se mostram na estilização dos perfis. Tais es-
tilizações não são fruto das plataformas, mas possibilitam ao
sujeito, por meio da agência, fundar territorialidades aptas a
abrigar práticas de si específicas. Novos códigos desejantes,
novas territorialidades e novas temporalidades se abrigaram
sob o conforto dos apps de pegação, novas formas de socia-
bilidade online onde “os vínculos ultrapassam os contextos
locais de interação e se reorganizam em outras magnitudes
de tempo e espaço” (FRIDMAN, 2000:46). A efemeridade e
a iminência do desaparecimento nas tramas da rede são uma

187
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

dimensão da existência que é ressaltada constantemente nas


estilizações dos perfis.
O perfil a seguir (FIGURA 23), com poucos detalhes e
uma foto da parte dorsal do corpo, nos apresenta um ângu-
lo muito interessante. As selfies podem nos presentear com
ângulos insólitos e atípicos, pois supõem nossos braços – ou
‘paus de selfie’ – como a extensão da angulação da foto. Ao fo-
tografarmos a nós mesmos, possibilitamos ângulos não expe-
rienciados quando o fotógrafo e a fotografia não coincidem,
ângulos que podem afetar seus interlocutores ao sugerirem
uma proximidade do corpo.

Figura 23: Perfil “Excluindo”

O sujeito da FIGURA 23 promete sua exclusão, sua re-


tirada iminente do aplicativo de que participa, no entanto,
continua online por mais tempo que sua contagem regressiva

188
Gleiton Matheus Bonfante

propõe, exercendo um afeto da ordem da expectativa; a con-


tagem se repete no encontro com o perfil e, a cada repetição,
se repete uma ideia de curiosidade, de expectativa. Além de
uma performance de afastamento do, e de renúncia ao códi-
go-território, a estratégia pode provocar uma atração nos seus
interlocutores pela prometida efemeridade de sua existência
online. A sua saída de cena é uma dupla estratégia: por um
lado pode captar rapidamente outros perfis, advertindo-os
de sua fugacidade, por outro, performa uma recusa em fazer
parte do código-território em que se insere.
Já o sujeito do desejo da FIGURA 24, a seguir, embora
tenha preenchido um perfil mais detalhado, se compromete
com a mesma retirada de cena.

Figura 24: Perfil “Deletando”

189
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

O gerúndio – que é uma indicação processual no portu-


guês, um traço morfológico para expressão de um ato con-
tínuo – se refere a uma ação que se desenrola no agora. O
uso de gerúndio indexicaliza no português uma ideia de fini-
tude próxima e uma garantia linguística da simultaneidade
entre ação e enunciação. Contudo, a ação do sujeito, apesar
da sugestão linguística de sua próxima conclusão, continua
sempre inacabada, se mantém no presente. Linguisticamen-
te, tanto os perfis 23 quanto 24 parecem congelar o presente,
não cumprindo sua promessa de sair de cena. A promessa
que não se cumpre é uma estratégia que performa atos de
não-reconhecimento, configurando, assim, uma forma de
participar no código-território dos apps através da negação
de sua participação.

5.1.2 A-participação
Como discutido no Capítulo 4, a emergência de novos
entendimentos de comunidade na empreitada etnográfica é
contundente. Nos apps, os participantes não se identificam
como uma comunidade e dispendem grande esforço e espaço
valioso do layout dos apps que poderiam ser usados na esti-
lização de si para performar atestados de a-participação. A
expressão “Perdido aqui” (FIGURA 25), que recebe grande
destaque no perfil, indica uma moderação da participação
do sujeito, na medida em que admite sua participação, mas
a modaliza como uma casualidade, como um despretensioso
envolvimento colateral no código-território dos apps.

190
Gleiton Matheus Bonfante

Figura 25: Perfil “Perdido”

O ponto final não é uma casualidade; ele reforça um sen-


timento de compleção da mensagem e um cuidado reflexivo
com o texto, já que a pontuação online é muito livre e normal-
mente convocada na indexicalizaçãode emoções assertivas.
A a-participação, no entanto, é uma forma de agir nesses
código-territórios e uma forma de ser participante. A negação
contraditória como nas FIGURAS 23 e 24 e a moderação da
participação nas FIGURAS 24 e 25 também são participação,
mas uma participação às avessas, muitas vezes secreta, adap-
tada à clandestinidade da homoafetividade. Uma participação
renegada, rejeitada, conflitante. Assim como na FIGURA 25 a
estratégia do perfil a seguir (FIGURA 26) é negar a expertise
provinda da assiduidade ao código-território.

191
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Figura 26: Perfil “Aprendendo”

Tanto “estar aprendendo” quanto “estar perdido” in-


dexicalizam sentidos de moderação na participação, de pou-
ca familiaridade com o código e, assim, são signos de uma
performance normalizadora de si, na medida em que, ao se
distanciar das subterrâneas práticas homoafetivas, o sujeito
se aproxima da sociedade normativa. Além da recusa de par-
ticipação através da promessa de retirada de cena, e da moda-
lização e atenuação da participação, há uma terceira forma de
produzir tais efeitos: o ataque aos participantes da comunida-
de, como é o caso da FIGURA 27, a seguir.

192
Gleiton Matheus Bonfante

Figura 27: Perfil “só tem doente”

Se, por um lado, uma ideia de mútua identificação não


encontra lugar – pois o signo ‘doente’ indexicalizaria uma
oposição entre saudáveis, sadios (grupo no qual se situa o
participante) e os abjetos (os Outros) – por outro, o ataque
aos co-participantes performa uma contraditória aversão ao
código em que se insere voluntariamente. Se todos os partici-
pantes são doentes como o “só” propõe, o que restaria como
desejável para o sujeito da FIGURA 27? Que desejos ensejam
sua continuidade no app?
Por mais paradoxal que possa parecer, o mote pode fun-
cionar como uma performance para atrair, seduzir sujei-
tos que coadunam com sua visão negativa dos aplicativos.
A estratégia de diferenciação entre eu (o sujeito que fala) e
Outros (“os doentes”) não se fecha a todos “os doentes”, mas
pode encontrar entre eles aqueles que neguem sua “doen-

193
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

ça”, e que se alinhem às suas críticas ao código e juntos pos-


sam de alguma forma se identificar. Por outro lado, o “kkk”,
como forma de indexicalizar riso funciona como um ate-
nuador da sua declaração mesmo que a grande quantidade
de “kkkkkkkkkkkkkk” possa indexicalizar deboche ou até
agressividade. A sugestão do riso parece aliviar a propagação
de um discurso não propenso ao riso, e também estilizar-se
a uma maneira não tão assertiva, mais aberta ao acaso da in-
terpretação subjetiva. Também acho importante relatar que,
muito frequentemente no campo, me pareceu que falar mal
dos apps e de seus usuários dentro e fora da tela era uma per-
formance corriqueira de participação, em um código moral
gay que privilegia uma adequação heterocapitalista da sexua-
lidade e repudia a ‘promiscuidade’ entendida como sinônimo
de prática autodestrutiva e desvio moral.
É interessante notar que, apesar da intervenção, por as-
sim dizer, agressiva no código-território, o sujeito do desejo
acima performa uma atitude reflexiva frente ao código-terri-
tório. A reflexividade acentuada é uma característica da con-
temporaneidade (cf. Capítulo 1), e reflexões acerca dos apps
são muito frequentemente incorporadas aos perfis, como tá-
ticas de estilização de si.

5.1.3 Perfis autorreflexivos ou


metapragmáticos
Os perfis por mim denominados autorreflexivos ou me-
tapragmáticos são aqueles que pensam o código e que, ao
pensá-lo, nele interferem e sobre ele acabam por agir. Estes
perfis trazem para a estilização de si sua experiência crítica
nos apps.

194
Gleiton Matheus Bonfante

Estamos o tempo todo engajados em uma atividade alta-


mente reflexiva no que tange aos repertórios semióticos. No
contexto dos apps de pegação, tal reflexividade tem inclusive
uma função específica: a produção do eu fantasiado pelo ou-
tro; um self que seduza o Outro que materialize seus desejos.
A performance do sujeito do desejo é um ato de fala altamen-
te reflexivo, como qualquer performance já que, de acordo
com Bauman eBriggs: “performance, a promulgação da fun-
ção poética, é um modo altamente reflexivo de comunicação”
(BAUMAN; BRIGGS, 2009:608). A reflexividade sobre si, so-
bre o Outro e sobre os apps se mostram nas performances
íntimo-espetaculares de si nos apps.
Na FIGURA 28 a seguir, o casal descreve o que entende
por performances prototípicas no Grindr: foto expondo o pei-
to, selfie no espelho, na academia e em casa.

Figura 28: Perfil “Dois”

195
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Ao compor uma pequena gramática da performance ima-


gística de si nos apps, a dupla reforça a imperiosidade do olhar
e chama a atenção para os contextos de produção das fotos:
normalmente são selfies, tiradas em momentos íntimos, par-
ticulares, como no banheiro, no espelho (sujo ou não) de casa
ou da academia. Esta convocação de características do código
para a performance de si pode ser entendida como uma forma
de participação crítica, que reflete sobre o ethos dos apps ao
mesmo tempo que dele participa.
Interessante notar outro aspecto da estilização: o da se-
melhança entre os dois sujeitos do perfil como recurso de
estilização subjetiva: a tipificação indumentária semelhante,
a postura corpórea, o sorriso, o desenho de barba parecido
sugerem uma identificação, uma produção de ambos como
sujeitos semelhantes, muito embora muitos perfis de casais
que procuram juntos parceiros tentem se diferenciar e se es-
tilizar como únicos.
Para dois ou para um só, muitos perfis procuram as cha-
madas “ fast fodas”, relações sexuais diretas e desprovidas de
grandes envolvimentos pessoais. O perfil a seguir (FIGURA
29) invoca esse desejo como uma característica prototípica da
participação no app.

196
Gleiton Matheus Bonfante

Figura 29: Perfil “Sexfriend”

Apesar das constantes críticas à “ fastfoda” – a procura


por relações sexuais “purificadas” (BAUMAN, 1998) – que
figuram nos apps, como recusa da extração do sexo de qual-
quer forma de relação social, o sujeito da FIGURA 29 reitera
sua posição como sujeito do desejo; o conjunto de signos re-
unidos na headline indexicalizam seu interesse por sexo des-
complicado e rápido. O emprego da caixa alta em “SIM”, do
ponto de exclamação logo a seguir e da proposição “está no
app errado” projetam tais sentidos de forma assertiva. Popu-
larmente, os apps são conhecidos como formas pós-moder-
nas de promover encontros fugidios, efêmeros que visam “a
maximização dos orgasmos e a minimização dos ritos prepa-
ratórios” (PERLONGHER, 2008). Embora já tenha argumen-
tado nos capítulos anteriores que a finalidade dos apps não
é exclusivamente o agenciamento de sexo, as performances

197
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

de sujeitos que desejam é o foco do meu interesse neste livro.


Sujeitos que desejam trazem reflexividade para suas perfor-
mances estilizantes.
O próximo perfil (FIGURA 30), que eu chamo de me-
tapragmático ou reflexivo, faz parte de uma série de outras
performances de estilização de si que comentam o código no
qual estão inseridas e convocam suas reflexões como forma
de performance de si.

Figura 30: Perfil “Flamengo”

Ele usa o headline para fazer menção ao fato de a prefe-


rência sexual (ativo/passivo) ser muito frequentemente, e com
certa centralidade, descrita no perfil. “Posição sexual” indexi-
caliza a abordagem dicotômica do senso comum (passivo/ati-
vo), frequentemente orientadora das performances nos apps

198
Gleiton Matheus Bonfante

e do desejo homoafetivo. Já no about, ele brinca com a recor-


rência de perfis que citam frases em inglês, ou que muitas ve-
zes traduzem frases suas para o inglês, cujo uso indexicaliza
sentidos de contemporaneidade, sofisticação etc. No entanto,
embora atento criticamente ao código em que se insere; ele
também se utiliza de uma técnica típica de performance de si
nos apps de pegação: a nomeação de si através da caracteriza-
ção de sua localidade (que aparece tanto no signo ‘Flamengo’,
como na foto do Pão de Açúcar tirada do Aterro do Flamen-
go). Tal nomeação tanto projeta a ancoragem geográfica do
sujeito, localizando-o no mapa, quanto empresta os encantos
e os adjetivos da sua cidade, seu bairro ou sua naturalidade às
performances do sujeito do desejo.

5.2 As metonímias do desejo (ou do bofe)

Meus estudos dos processos de indexicalização na estili-


zação do sujeito do desejo me fazem perceber que o próprio
processo de indexicalização, a convocação de signos para ope-
rar como marcas de uma característica do sujeito, é um pro-
cesso necessariamente metonímico. De acordo com o dicio-
nário Houaiss, uma metonímia é “uma figura de retórica que
consiste no uso de uma palavra […] [em] uma significação que
tenha relação objetiva, de contiguidade, material ou concei-
tual, com o conteúdo ou o referente ocasionalmente pensado”.
A metonímia, em latim pars pro toto, sugere que a relação as-
sociativa entre signo e referente nunca é de fato completa, mas
baseada em relações de similitude partitivas. Justamente, da
mesma forma, opera o processo de indexicalização: o ator so-
cial reflete sobre seu repertório de recursos semióticos e mo-

199
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

biliza signos que passam a representá-lo. Estes signos que ele


mobiliza não apontam para o autor mas para características
– ou até desejos de características – dele mesmo. Discutiremos
três formas de indexicalização observadas nos aplicativos. A
primeira, que denominei ‘indiciação semio-rizômica’ (na qual
os signos mobilizados apontam para diferentes significados
sociais do sujeito), é muito semelhante ao conceito de indexi-
calização em Scollon & Scollon (2003) e Woolard (2008), po-
rém a indiciação rizômica destaca a complexidade referencial
e interrelacional dos signos como um emaranhado de senti-
dos, típico da estilização que frequentemente mobiliza vários
signos diferentes. O segundo, que denominei ‘metonímia per-
feita’, é uma relação indexical na qual o sujeito é identificado
por uma parte específica de seu corpo, ou seja, o sujeito passa
a ser identificado por uma característica única, por uma mor-
fologia corpórea singular, muito comumente sendo essa par-
te seus orgãos genitais. A terceira forma se refere à ‘saliência
pragmática’, um conceito discutido em Woolard (2008) que
pressupõe que características prototípicas dos falantes indu-
zem a escolhas discursivas na performance de si, ou seja, os
falantes teriam consciência de relações indexicais salientes en-
tre estilos e identidades específicas.

5.2.1 Indiciação rizômica


A indiciação rizômica engloba fenômenos de indexicali-
dade no qual os sujeitos invocam signos que apontam e cha-
mam a atenção para um conjunto de traços sociais a serem
ressaltados como seus. Chamei-as de ‘rizômicas’ porque se
lançam aos acasos dos desejos e aos descaminhos da experiên-
cia semântica, produzindo associações de sentido complexas

200
Gleiton Matheus Bonfante

no seu emaranhado com outros signos nas tramas dos con-


tínuos e eflúveos processos de indexicalização. Tanto as rela-
ções entre unidades de sentidos quanto as relações de sentido
dentro das performances do desejo são rizomáticas, ou seja,
se espalham e se relacionam de forma assistemática, errática,
irregular. Indiciações rizômicas indicam a existência de múlti-
plos signos fundantes de relações semântico-pragmáticas que
se contaminam e se ‘sujam’ dos sentidos umas da outras.
As indiciações rizomáticas normalmente invocam cor-
poralidades ou fragmentos de corpo: a barba, a tatuagem, o
fitness, a negritude e a branquitude etc., que estilizam o sujei-
to do desejo, funcionando como seus estandartes do prazer,
expondo sua potentia gaudendi, atribuindo contornos ao seu
corpo, delineando seus desejos. As estratégias estilizam um
indivíduo como sujeito do desejo, mas para isso precisam esti-
lizá-lo como objeto de desejo. Para existir na semiose do dese-
jo, o sujeito precisa ser ao mesmo tempo desejável e desejante.

5.2.1.1 Tatuagem
Nas querelas do desejo, a univocidade de um corpo, a
irrepetibilidade de um gozo, a singularidade de uma corpo-
reidade são performances invocadas na produção de afeto.
Performances que podem tocar o corpo Outro, indexicali-
zando ao sujeito do desejo capital ejaculante. As tatuagens são
compreendidas como um aspecto individualizador do corpo
e uma forma de abrir seu corpo a novos significados, que, de
acordo com Foucault (2014 [1966]), são sagrados e profanos,
são toda uma linguagem que distribui o corpo por um espa-
ço outro, típico da “vitalidade do desejo”. A tatuagem seria
a possessão do corpo por uma linguagem sobrenatural, uma

201
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

linguagem que é altera aos signos dos homens. E o signo da


tatuagem na pele faz o corpo comunicar um afeto aos sujeitos
do desejo que seduzem. Tatuagens correspondem a um lançar
do corpo pela utopia incorpórea que ele contém, e a utopia é
invocada como uma forma de se produzir desejante, como
um corpo propriamente mítico que manifesta o encanto, o
afeto místico dos deuses, dos signos inumanos.
O próximo perfil (FIGURA 31) parece apostar no nome-
tatuagem e na imagem-tatuagem na estilização de seu cor-
po ao sabor do desejo, distribuindo-o por um espaço místico
revolvido por signos que indexicalizam com o sinal tatuado
– os desenhos tribais que ostenta na pele – sentidos secretos,
cabalísticos, criptografados.

Figura 31: Perfil “Tatuado”

Como explica Foucault:

202
Gleiton Matheus Bonfante

O corpo é também um grande ator utópico quando se


pensa nas máscaras, na maquiagem e na tatuagem. Usar
máscaras, maquiar-se, tatuar-se, não é exatamente, como
se poderia imaginar, adquirir outro corpo, simplesmente
um pouco mais belo, melhor decorado, mais facilmente
reconhecível. Tatuar-se, maquiar-se, usar máscaras, é,
sem dúvida, algo muito diferente; é fazer entrar o corpo
em comunicação com poderes secretos e forças invisí-
veis. A máscara, o sinal tatuado, o enfeite colocado no
corpo é toda uma linguagem: uma linguagem enigmá-
tica, cifrada, secreta, sagrada, que se deposita sobre esse
mesmo corpo, chamando sobre ele a força de um deus,
o poder surdo do sagrado ou a vivacidade do desejo. A
máscara, a tatuagem, o enfeite coloca o corpo em outro
espaço, o fazem entrar em um lugar que não tem lugar
diretamente no mundo, fazem desse corpo um fragmen-
to de um espaço imaginário, que entra em comunicação
com o universo das divindades ou com o universo do
outro. Alguém será possuído pelos deuses ou pela pes-
soa que acaba de seduzir. Em todo o caso, a máscara, a
tatuagem, o enfeite são operações pelas quais o corpo é
arrancado do seu espaço próprio e projetado a outro es-
paço. (FOUCAULT, 2014 [1966]:3. Grifos meus.)

O perfil 31 não apenas tem seu corpo “projetado a outro


espaço”, mas projetado ao espaço do Outro, ao desejo do Ou-
tro, pelo mítico, pelo oculto, por uma performance corpórea
cuja potentia gaudendifoi tocada pelo signo da tatuagem que
indexicaliza sentidos místicos. Contudo, o signo da tatuagem
também indexicaliza sentidos muito terrenos, como a mas-
culinidade. A dor do tatuar-se, seu caráter subversivo e sua
obsoleta discriminação são signos não apenas fetichizados
no amante, mas também no homem. No entanto, performar

203
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

masculinidade não é uma característica de toda tatuagem; tal


performance depende do tamanho, da posição e do desenho,
e dos significados que as partes do corpo envolvidas, os signos
mobilizados, e o próprio gesto da tatuagem indexam de for-
ma rizômica. Por exemplo, tatuagens na cintura lombar aci-
ma das nádegas, ou nas próprias nádegas são consideradas fe-
mininas por atraírem a atenção para essa região, assim como
desenhos de estrela podem ser considerados femininos inde-
pendentemente do tamanho e da parte do corpo que tocam,
podendo funcionar como um não-desejo para consumidores
de performances íntimo-espetaculares de masculinidade he-
gemônica. O exemplo a seguir, retirado de uma entrevista
com um dos participantes, ilustra os valores generificados
que costumam regimentar as interações no GRINDR:

É tudo mentira nessa porra! Nada que eles falam – es-


crevem, né? – é verdade. Até tatuagem. . O cara se cha-
ma de macho tatuado, quando vai ver é magrelo e tem
duas estrelas no ombro. Isso não é ser tatuado, muito
menos macho. É ser bicha comum! (Trecho da entrevis-
ta de Copass21, do Diário de Campo, setembro de 2014.)

5.2.1.2 O “Jeito de Homem”


Além do corpo em si, de características místicas como
as tatuagens invocadas como signos da desejabilidade, como
potentia gaudendi, o ‘jeito’ também é apresentado não apenas
como um componente relevante do sujeito-objeto-de-desejo,
mas também como uma estratégia de produzir afeto, porque
“jeito é supostamente uma expressão de um atributo durável
do sujeito” (OLIVEIRA, 2010:235). O jeito, postura corporal

204
Gleiton Matheus Bonfante

investida de sentidos sociais, é invocado nos apps como signo


de desejabilidade – quando indexicaliza masculinidade – e
de abjeção – quando indexicaliza feminilidade. Ou, como es-
clarece Oliveira (2010:244), “[j]eito de bicha e jeito de homem
são duas expressões êmicas que assinalariam, supostamente,
atributos perduráveis dos atores sociais – e que, na prática,
operam constrastando e opondo estilos performáticos em
campos distintos.”
O jeito – assim como o rosto que o sujeito (FIGURA 32)
descreve como relevantes ao seu desejo – não é apreensível
por uma foto, já que é dinâmico, movediço, expressivo, mas
pode ser indiciado por signos, como no caso da FIGURA
32, a seguir.

Figura 32: Perfil “Jeito de Homem”

205
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

A postura corporal ereta, a corrente usada no pescoço, a


cabeça erguida, os braços cruzados são signos que indexam
um gestual considerado tipicamente masculino. “Jeito de ho-
mem” compreende, assim, tanto um rizoma de sentidos que
indexicalizam uma masculinidade hegemônica, quanto uma
estilização de si ou, “estilo de performances [que] operam
na sedimentação de materialidades corporais” (OLIVEIRA,
2010, 247:248). O jeito chama atenção para a relação entre
performance e materialidade dos corpos.
Alguns perfis (FIGURA 33), inclusive, se dedicam a um
trabalho de doutrinação do jeito, ao propor uma ‘pedagogia
do macho’. Tais perfis, ao projetarem estilizações de si, corri-
gem e doutrinam o comportamento e as performances de ou-
tros perfis, estabelecendo coerência, normalizando o sujeito,
masculinizando-o, e castrando o devir-bicha.
“Mulekão Macho”, por exemplo, convoca seus interlocu-
tores a “aprenderem a ser homem antes de sair com homem”.
Ele propõe que a masculinidade indexicalizada pelo signo do
“jeito de homem” é a característica considerada mais relevan-
te para ele no seu objeto de desejo, mais relevante ainda que
corpo e rosto. Pelo fato de o jeito ser uma performance à qual
são atribuídos sentidos perduráveis, ele pode ser compreendi-
do por vários interlocutores como o espelho de carecterísticas
hipoteticamente essenciais do sujeito. Enquanto se pode mu-
dar seu corpo e seu rosto, o jeito parece figurar como imutá-
vel, e o “jeito de bicha”, irremediável.

206
Gleiton Matheus Bonfante

Figura 33: Perfil “Mulekão Macho”

A ‘bichice’ não seria uma representação de masculi-


nidade imprópria ou defectiva, mas uma performance in-
concebível como ‘masculina’. A presença da feminilidade
seria como a própria invocação da masculinidade como
ausência e, portanto, da inadequação daquela performance
ou até de sua inexistência dentro de uma sociedade que
privilegia o masculino.

5.2.1.3 Heteronormativos
Os perfis que denominei ‘heteronormativos’ sustentam
performances muito explíticitas de queerfobia e um desejo mais
que confesso pela ‘normalidade’. É o caso do perfil a seguir.

207
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Figura 34: Perfil “vida hetero”

“Vida hetero” e ponto final (FIGURA 34). Se sua perfor-


mance, por um lado, encena um encanto pela normalidade
da vida heterossexual como a estilização de si e de seu desejo,
por outro, ela coloca em funcionamento uma contradição: o
desejo heterosexual entre sujeitos do mesmo sexo – um con-
trassenso discursivo oriundo da própria cunhagem essen-
cialmente oposicional de ‘homossexual’ e ‘heterosexual’ na
sociedade ocidental. Contudo, heteros homoafetivos não são
um paradoxo, mas um exemplo da emergência do queer como
instrumento político contra a batalha anti-identitária e da im-
portância da atenção às minúcias, às complexidades, às ner-
vuras da sexualidade e dos desejos. Nas palavras de Miskolci,
que estudou os ‘Machos’ e ‘Brothers’ nos sites de bate-papo,
em São Paulo:

208
Gleiton Matheus Bonfante

Na Internet, seu [destes homens] principal local de so-


cialização homoerótica, o culto da masculinidade he-
gemônica equivale à criação de uma forma de desejo
por ela. O desejo que os guia está na masculinidade
padrão corporificada na imagem de um homem plena-
mente ajustado à ordem heteronormativa. Assim, seu
desejo é homoerótico, mas se dirige ao homem “hete-
rossexual” e aos valores e práticas de uma masculini-
dade historicamente construída alçando-os a sua su-
perioridade em relação aos claramente homossexuais.
(MISKOLCI, 2013:19)

Para o autor, tais perfis encenariam uma relação de ca-


maradagem na qual seus desejos sexuais poderiam se realizar,
ao mesmo tempo em que sua masculinidade fosse performa-
da e reconhecida. – como parece ser o caso do perfil, a seguir.

Figura 35: Perfil “Straight acting”

209
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

A referência quanto à localização “Copa” é uma estratégia


comum de estilização de si por localizar o sujeito a uma distân-
cia clara de seu interlocutor. Contudo, a autonomeação “straight
-acting” (FIGURA 35) chama a atenção aqui. O sujeito em ques-
tão, através de sua nomeação, performa um sujeito voltado para
valores heteronormativos, que vê na emulação dos gestos, das
corporalidades e da experiência heterossexual não apenas uma
qualidade, mas um atributo onomástico, que o define. A pro-
posição “Perdido aqui”, como discutido anteriormente na seção
5.1.2, reitera a performance de a-participação no código-terri-
tório dos apps, modalizando seu envolvimento com o código
e indexando valores morais heterossexuais na medida em que
descreve sua participação como mera casualidade como “estar
perdido”, negando sua adequação a uma semiose gay.
Os perfis que se apresentam como apreciadores da norma
heterossexual pressupõem o “jeito de homem”, discutido na se-
ção anterior 5.2.1.2, como capital erótico fundamental. Contu-
do, a palavra “acting” em especial nos interessa na predicação
de “straight”. Ao usar “acting”, ele sinaliza o fato de que não é
essencialmente heterossexual (straight), mas que assim age. Pri-
meiramente, ele chama atenção para a performatividade do gê-
nero; em segundo lugar para a reflexividade que a prática de
estilização de si requer. Em terceiro lugar, para a atuação da
coerção social: o fato de que atores sociais têm que desempenhar
um papel normalizado para serem inteligíveis e desejados.
A negação da identificação com práticas homossexuais é
um gesto embutido em um movimento mais amplo dos sujeitos
do gênero masculino que se comprometam com a negação de
qualquer signo que contradiga o signo da masculinidade, que
performe qualquer tipo de feminilidade, como explica Coates

210
Gleiton Matheus Bonfante

(2003:69): “nós todos contruímos em parte quem somos atra-


vés da negação do que não somos, no entanto, para homens,
a negação da homossexualidade é particularmente saliente. ”
A negação da feminilidade é central à performance do gênero
masculino. Assim, uma das estratégias empregadas por mui-
tos participantes – e principalmente a-participantes – é uma
aversão violenta a todo tipo de efeminação, o que acaba por
condenar os indivíduos a uma contradição fundamental que é
para eles mesmos muito violenta e – como diz Miskolci (2013)
– “solitária”: desejar outros homens, enquanto heterossexuais.
Quando a performance da heterossexualidade não é pos-
sível, quando sua ratificação falha, quando seu afeto não ‘vin-
ga’, qualquer resquício da heterossexualidade pode ser invoca-
do para indexicalizar virilidade, como mostra o perfil a seguir.

Figura 36: Perfil “‘HETERO’ GATO”

211
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

No caso de “‘Hetero’ Gato”, o signo da bissexualidade in-


dexicalizaria uma moderação da ‘bichice’, uma garantia de
peformance masculina. E, assim, seria capaz de atribuir ao
sujeito que se estiliza sob esse signo não apenas uma signi-
ficação viril, mas também desejável, como denota o convi-
te do perfil anterior (FIGURA 36) aos “BI”s para “chamar”.
Tal convite é exclusivo aos sujeitos que se performam “bi” e
“boa pinta”, marcando sua predileção por sujeitos ajustados
ao mundo heteronormativo. Muitos dos sujeitos por trás dos
perfis “bi” ou “hetero” não só saem com mulheres, mas mui-
tas vezes mantêm relações estáveis com elas. A infidelidade
do homem é, em sociedades de cultura machista, como o
Brasil, incentivada e quase essencial à performance da mas-
culinidade hegemônica e à manutenção do privilégio social
masculino, especialmente entre outros homens, como propõe
Miskolci (2013:24): a “infidelidade tem papel fundamental na
consolidação de sua masculinidade, particularmente no uni-
verso da camaradagem masculina. ”
Além da sua relação de desejo com a bissexualidade nes-
te perfil (FIGURA 36), é interessante notar o uso das aspas
– um recurso metadiscursivo popularmente empregado para
denotar a imprecisão de um termo. O sujeito do perfil sabe
da contradição performada entre a definição de heterossexual
(uma pessoa que mantém relações sexuais com alguém do
sexo oposto) e sua condição de sujeito desejante que vaga por
um ambiente marjoritariamente gay, com o desejo declarado
de ser penetrado como sugere seu perfil: “prefiro ser pass”.
Assim, esses perfis (FIGURAS 34, 35 e 36), ao defende-
rem os valores morais de uma norma heterossexual, acabam
por recusar o epíteto gay, ou até desprezá-lo. Ao sublevar-se

212
Gleiton Matheus Bonfante

contra sua própria existência como sujeito queer, os sujeitos


do desejo heteronormativos, em outras palavras, são reféns do
dispositivo do “armário” (SEGDWICK, 2007), que discutire-
mos melhor na seção seguinte.

5.2.1.4 Sigilo/Encolha: “Um armário para dois59”


Os perfis “na encolha” ou “sigilo” (como o da FIGURA 37
a seguir) são aqueles que resguardam a secretude das práticas
sexuais homoafetivas como um valor moral. Tais perfis cor-
porificam o que Miskolci chama de “persistência do armário
na era das mídias digitais” (2013:3).

Figura 37: Perfil “Encolha”

59 “Um armário para dois” é o título de um artigo de Miskolci (2013).

213
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

O apreço pela “vida hétero”, como discutido na seção


anterior, é para esses perfis um desejo fundamental pela
secretude. Nas palavras de Richard Miskolci: “Ela [a re-
corrente afirmação “sou fora do meio”] aloca o desejo por
pessoas do mesmo sexo no segredo conformando-o a ex-
pectativas historicamente criadas de que estas relações de-
veriam permanecer invisíveis no espaço público e restritas
à vida privada dos envolvidos” (MISKOLCI, 2013:3). Tais
relações de secretude legitimam o pressuposto heteronor-
mativo da visibilidade exclusiva da sexualidade heteroafe-
tiva, o que nos leva a crer que, além de uma estilização de
uma identidade social, procurar parceiros “na encolha”, ou
“no sigilo”, é uma performance que implica em um estili-
zar-se de forma específica.
Os “machos” e “brothers” estudados em São Paulo por
Miskolci (2013) – assim como os perfis “sigilo”, “encolha”,
seus corolários cariocas – se engajam com prazer na “vida
heterossexual”, no seio familiar, e encaram a relação online
e sexual com outros homens como uma ‘para-sociabilidade’.
Para o sociólogo, a internet é confortável para estes homens
que desejam viver desejos sexuais marginalizados. Ele acre-
dita ser o ‘segredo’ e o ‘armário’ tanto estimulantes para a
performance de masculinidade como uma forma de vazão
de seus desejos.

5.2.1.5 Negação da efeminação


Não apenas no código-território ambivalente dos apps de
pegação, mas na vida social como um todo, somos constan-
temente policiados quanto a nossas performances de gênero
e quanto à sua articulação assertiva com nosso sexo. Em es-

214
Gleiton Matheus Bonfante

pecial, os homens parecem ter menos espaço para moverem-


se e serem criativos dentro das normas de gênero. “A perfor-
mance da masculinidade é continuamente posta sob suspeita:
supõe-se que, sob o menor gesto discrepante, possa-se ocultar
uma variante da figura da bicha” (OLIVEIRA, 2010:249). Se
na vida social a concordância entre gênero e sexo é controla-
da como uma norma, nos apps ela pode aumentar a potentia
gaudendi, agregando valor erótico à sua performance, sendo,
como no caso a seguir, uma performance esmerada.

Figura 38: Perfil “a bolsa não é minha”

A negação da feminilidade frente a características que


poderiam ser associadas como tipicamente não masculinas
é muito frequente na composição dos perfis nos apps estuda-
dos, como evidencia o exemplo (FIGURA 38) anterior. Ela

215
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

é uma prática tão celebrada e até necessária aos negócios


do desejo que, na FIGURA 38, o espaço reservado para a
descrição de si é ocupado com uma explicação de um dos
elementos da foto, que acabou ficando bem aparente e até
centralizado na imagem a partir da tentativa de excluir uma
outra pessoa da foto do perfil. O sujeito corre um risco alto
de ser efemenizado pela presença de um artigo feminino na
sua estilização – uma bolsa – e, por isso, dedica o espaço
de estilização de si à justificação da intrépida presença da
mácula de feminilidade na sua imagem de homem. O corte
da foto acabou colateralmente fazendo da bolsa um signo
centralizado na imagem que, apesar do aviso, acaba por in-
dexar o universo feminino. O sujeito, sensível ao totem de
feminilidade que o perfil focalizado sustenta, precisa dis-
cursivamente explicar a presença daquele signo inesperado
na sua própria estilização.

5.2.1.6 A localidade como índice: ‘cariocalidade’


como performance de capital erótico
O Rio de Janeiro é uma cidade mundialmente famosa por
sentidos estereotipados de exotismo, de beleza, de sensuali-
dade, da natureza, de seu povo e das festas. Assim, o signo
‘carioca’ indexa, com muita frequência, um feixe semântico
rizomático do qual fazem parte associações com o calor, pele
bronzeada, ginga e hipersexualidade. A ‘cariocalidade’ é ge-
ralmente invocada como um potencial erótico, potentia gau-
dendi, nos apps de pegação no Rio de Janeiro. A seguir, na FI-
GURA 39, o sujeito invoca a ‘cariocalidade’ como um índice
desejável, mas, acima de tudo, um símbolo dele mesmo, um
que passa a encarnar a realidade do sujeito.

216
Gleiton Matheus Bonfante

Figura 39: Perfil “moreno do rio”

Interessante nessa performance é que, como relata-


do em entrevista, o sujeito não é do Rio de Janeiro, em-
bora viva aqui há muito tempo. Isso indica que inclusive
a característica naturalidade precisava ser semioticamente
negociada por meio da performance. Também é notável a
invocação de uma característica essencial, inata ao sujeito
– ser carioca –, que se faz inteligível, sustentada através do
emprego de signos que indexicalizam estereótipos sociais
como uma performance íntimo-espetacular de si: o corpo
molhado, bronzeado do sol, com a água atrás, nos seus en-
calços. Todos esses signos apontam para a ‘cariocalidade’
fantasiada da FIGURA 39.

217
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

5.2.1.7 A cidade do Carnaval: alteridade e


desejo no Rio
A netnografia aqui empreendida se deu analisando có-
digo-territórios virtuais, que embora online, constantemente
sugeriam a presença do sexo, a fisicalidade intensa dos cor-
pos, a geografia da cidade. Os apps são práticas virtuais, mas
necessariamente urbanas. A cidade do Rio de Janeiro entra
constantemente nas fotos que estilizam os sujeitos, como um
monumento, uma praia, uma pedra, o Pão de Açúcar, a Baía
da Guanabara, tanto na indexicalização da ‘cariocalidade’,
quanto na ancoragem geográfica dos corpos. Parafraseando
Drummond (1945), poderíamos dizer que “nos apps, tinha
escrita uma cidade”. Como ele prossegue no poema “em tudo
onde pisasse alguém, se desenhava tua imagem”. A coloniza-
ção da cidade pelos apps trouxe o Rio de Janeiro para compor
a estilização dos sujeitos, para produzir afeto. Nos apps, os
sujeitos do desejo tomam emprestado da cidade seu encanto
icônico como índice de desejabilidade.
A cidade do Rio de Janeiro, em um sentido urbanístico, se
inscreve na natureza exuberante. No Brasil, desde a chegada
da família real portuguesa, o Rio se tornou uma metáfora do
encontro da cidade (do moderno, da civilização, do europeu)
com o mato (o selvagem, exótico, sensual, as figuras do índio
e do negro). Pela cidade, se distribuem regiões que abrigam
classes médias e altas (como as da Zona Sul e Tijuca), mas que
são completamente rodeadas por favelas, em uma tensão não
apenas com a natureza e com a geografia, mas uma tensão
típica do embate de classes entre os habitantes. A mesma rua
abriga estabelecimentos para o pobre, para o rico e, às vezes,
para os dois. E embora as segregações espaciais e de circula-

218
Gleiton Matheus Bonfante

ção também sejam observadas em vários espaços na cidade,


as baladas gays, as praias e os apps são um lugar legítimo de
encontro e convivência de classes, idades, raças distintas, pro-
vomendo um encontro social que é queer.
Aqui nos apps, assim como na cidade onde se inscrevem,
o encontro de classes sociais, etnias, desejos é tenso e teso e
é produtivo, criativo. É, enfim, inevitável e excitável. A trans-
gressão de tais diferenças sociais como um dispositivo de ex-
citação talvez seja um ethos do desejo em si que é muito afeito
a assimetrias. A assimetria e a diferença de poder podem se
configurar como elementos eróticos. Não porque pressupõem
igualdade, mas porque ressaltam a diferença: a exotificação,
a objetificação do corpo altero é um dos motes do tesão, de
modo que o desejo pela diferença é uma estratégia de estiliza-
ção de si e de performance dos desejos corriqueira nos apps.
Que não se deixe enganar o leitor menos atento: não postulo
em absoluto uma democracia sociorracial na sociedade ca-
rioca. Ao contrário, proponho que a alteridade (o corpo di-
ferente do meu, a etnia distinta, o exótico), pode ser, e muito
frequente é, ressaltada como um aspecto excitante nas tramas
do desejo. Por mais que os desejos sejam fenômenos sociais,
eles traçam seus próprios caminhos por valores e sentidos so-
ciais experienciados subjetivamente.
A diferença pode ter apelo sensual. E tem frequentemen-
te. A assimetria social pode ser afrodisíaca, assim como os
jogos do poder. O Outro talvez seja inclusive mais facilmen-
te objetificado pelos desejos do eu. Desejos e exotismo pos-
suem profundas e complexas ligações, que passeiam desde o
colonialismo dos corpos até a subversão que a alternância de
poder no ato sexual (muitas vezes denotadas pela posição na

219
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

cama – em cima ou embaixo, ou por jogos de poder como


amarrar e vendar o parceiro) inaugura. Pressupor que a dife-
rença pode produzir afeto, não é o mesmo que pressupor que
haja democracia de qualquer tipo entre raça e gênero. Mui-
to pelo contrário, sugiro que a ausência da democracia seja
constitutiva dos jogos do desejo. O potencial latente de gozo
habita todo e qualquer corpo: um corpo branco, negro, infan-
til, um corpo morto ou um corpo não-humano, como explica
Preciado (2010), porque todo corpo é uma potencialidade.
O próximo perfil (FIGURA 40) constrói seus desejos ba-
seado na diferença.

Figura 40: Perfil “AtivoMachoMete”

Enquanto se contrói como “MachoMete”, ele ratifica a sua


macheza ao mesmo tempo expressando desejo pelo feminino
e procurando garotos passivos “afeminadinhos”, diferentes
dele, que não tenham – ou tenham pouco – pelo, diferente-

220
Gleiton Matheus Bonfante

mente dele e que são não sejam musculosos, ao contrário dele.


Curiosamente, ao performar seu desejo pelo afeminado, ele
também se produz como masculino (musculoso, potente, pe-
ludo), o que automaticamente lhe agrega prestígio social e ca-
pital simbólico erótico. Não é de se dizer que a diferença seja
minimizada ou obliterada. Muito pelo contrário, ela conti-
nua sempre lá, reforçada, ressaltada, visível, risível e sensível.
Porém, a apreensão da diferença como experiência erótica se
delineia como uma interessante possibilidade dos apps, que
pode estar ligada à visibilidade do Outro que o compartilha-
mento – muito frequentemente conflituoso – de espaços por
distintas classes sociais e etnias nas ruas – e na Rede – do Rio
de Janeiro propiciam.
Além da diferença entre masculino/feminino, indexa-
da no perfil anterior (FIGURA 40) pelos contrastes “peludo/
liso”, “forte/magro”, “macho/afeminado”, a diferença étnica
pode ser invocada como um fator de tesão. Há roteiros bas-
tante estereotipados que circulam socialmente orientando
algumas performances. Esses discursos racializados acerca
da sexualidade, que remontam a construções coloniais sobre
identidades culturais, propõem que os negros seriam mais se-
xualizados que brancos, que seriam mais ‘homens’, o que ali-
menta uma fantasia popular, uma ficção estereotípica de uma
hierarquia de virilidade entre homens negros e brancos. Esses
roteiros fantasiosos orientam diversas práticas sociais, prin-
cipalmente no âmbito do desejo. Com razão, Barnard (2004),
ao estudar os modos como as identidades sexuais e raciais
dos sujeitos se definem mutuamente em filmes pornôs na
África do Sul produzidos para consumo americano, chegou
à conclusão de que há uma complexa interdependência entre

221
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

branquitude e “gayness” (BARNARD, 2004:20), reiteradas nas


próprias performances pornográficas.
A figura do “preto sarado”a seguir (FIGURA 41) que de-
seja o “passivo afeminido de preferência branco”, indexa a
fantasia social discutida anteriormente, projetando-a como
forma de viver seu desejo, mas também como forma de se
estilizar ‘macho’ e‘desejável’.

Figura 41: Perfil “Pretosaradobota”

Estes tipos de perfis (FIGURA 40 e 41) são muito deseja-


dos por dois motivos: primeiro pelo capital-M, capital macho
60

que indexicalizam e, em segundo lugar, por representarem


uma declaração de liberdade para a vivência da feminilidade,
ou uma alforria para a bicha, liberdade que muitos sujeitos
60 Como posso fazer a afirmação de que estes perfis são desejados? Além dos motivos levantados no
texto (“Capital Macho e liberdade para a feminilidade”), nomeio dois outros aqui. Em primeiro lugar, há
uma constante reclamação dos perfis em geral pela “falta de ativos”, sendo o tema também muito comu-
mente eleito como performance de si. “Kd os ativos”, por exemplo, é um nick documentado na erótica dos
signos. Em segundo lugar, é muito significante a documentação de alguns perfis semelhantes a estes, os
quais pedem desculpas por não conseguir responder a tantas abordagens. Contudo, vale lembrar: nada é
unânime no desejo.

222
Gleiton Matheus Bonfante

desejantes nos apps almejam devido à violência da constan-


te coerção da feminilidade. Tais perfis são também um tan-
to raros. A efeminização é menos frequentemente invocada
nestes territórios como um índice de tesão, o que me leva a
propor esses perfis como disruptivos. Também o perfil a se-
guir se estiliza como apreciador da diferença, que no caso dele
é performadapor meio das boas-vindas aos signos de “ZN”
e “favela”, que podem indexicalizar pessoas de classe média
ou baixa e pode indexicalizar negritude. “Favela” ainda pode
indexicalizar ‘perigo’, ou a excitabilidade de uma aventura em
uma realidade desconhecida. Essa periculosidade é típica do
cruising homossexual, de acordo com Perlongher (2008).

Figura 42: “favela e ZN bem-vindos”

Assim como as diferenças entre jeito (macho X bicha), e en-


tre cor (preto X branco), as distinções de idade e de classe social
também podem figurar como índices do desejo que são perfor-

223
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

mados nos perfis estilizados como mostra a FIGURA 42. A ex-


citação pela diferença é sempre um jogo de vulnerabilidade por
dois motivos: 1) admite como desejoso algo diferente de si mes-
mo, porque reconhece a alteridade como desejável; 2) muitas
vezes a diferença é uma vantagem na colonização de um corpo
para satisfação do desejo, porque pode sobrepujar, sobrejugar.

5.2.1.8 Procuro semelhante


Apesar do afeto que a diferença como índice do desejo
pode produzir nos corpos, há também perfis-narciso, para
os quais a diferença representa um desistímulo, ou até uma
repulsa. Assim, outro tipo de perfil, o oposto dos perfis que
desejam o Outro, é atraído justamente pelo semelhante. Tam-
bém é possível que eles produzam, estilizem-se na medida de
seus desejos de si. Como no próximo perfil, a semelhança e o
igual a si mesmo são invocados como desejo do sujeito.

Figura 43: Perfil “lek x lek”

224
Gleiton Matheus Bonfante

O termo “mu’leke” tem origem quimbunda e quer dizer


“menino’. Na linguagem familiar, designa um guri inquie-
to, bagunceiro, pouco disciplinado e irresponsável, criança
solta ou menino de rua. Pode ser ofensivo quando dirigido
seriamente a alguém, podendo indicar irresponsabilidade e
canalhice. De acordo com a sociolinguista Tania Alckmin,
durante as aulas de sociolinguística na Unicamp em 2009, a
palavra era usada tradicionalmente no Rio de Janeiro para
designar crianças negras. Hoje, no Rio de Janeiro, é um ter-
mo indiscriminado e polissêmico que além das definições
acima, admite a composição de um estilo, a performance
de uma identidade social. Os leks, que são simultaneamente
objeto de desejo e de performance do PERFIL 43, são garo-
tos jovens frequentemente da periferia que se engajam em
performances qualificadas como “marrentas”, muitas vezes
subversivas, por privilegiar valores morais orientados para
uma cultura popular. A demanda “lek x lek” pressupõe o te-
são pelo parecido consigo mesmo, ou por aqueles sujeitos que
possuem performances semelhantes, assim como no perfil
a seguir (FIGURA 44). Ainda no perfil anterior (FIGURA
43), vale a pena notar a relação da selfie com o espelho. Na
selfie no espelho, o aparato de reprodução faz parte da foto
e figura nela, por vezes, de forma muito interessante. A re-
versibilidade das câmeras dos celulares é importante para a
selfie como inauguradora de diferentes possibilidades de sen-
tido. Ela permite que alcancemos partes mais inacessíveis de
nossos corpos, que nos estilizemos como ângulos antes im-
prováveis. No perfil anterior, ela inclui na foto a imagem do
próprio aparato e a figura do sujeito.

225
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Já no perfil abaixo, o desejo expresso é pela instrumenta-


lidade corpórea semelhante, pela predileção pela mesma fun-
ção na prática sexual.

Figura 44: “Ativo quer Ativo”

Interessante frisar, na construção desejante do perfil acima


(FIGURA 44), que ele se orienta por categorias sociais oriun-
das na prática da penetração, enquanto organiza seu perfil em
torno de uma prática, de um desejo para o qual a não-realiza-
ção da penetração é essencial. No “sarro” entre ativos, a ideia
da excitação se baseia muito no jogo da resistência à penetra-
ção, que deve ser absolutamente irredutível para que ambos
se estilizem como ativos. Assim, tanto o devir ativo quanto a
penetração ficam bloqueadas, nunca chegam a se realizar, pois
se um for penetrado, não é mais considerado ativo. Neste caso
específico, o apreço pelo mesmo tem o poder de traçar outros
caminhos para o prazer que não seja a penetração, a prática

226
Gleiton Matheus Bonfante

que parece historicamente ter organizado o sentido de sexo, ao


mesmo tempo que centraliza o falo e o prazer peniano como
essenciais ao próprio entendimento de sexo.
O desejo pelo semelhante assume muito comumente a
forma do desejo pelo e elogio da sua própria figura, especial-
mente da figura que se adequa à cultura somática e sua de-
manda pelo aspecto saudável, pela pele lisa, “Photoshopada”,
pelo corpo malhado, como veremos a seguir.

Figura 45: “Sem compromisso”

No perfil mostrado, o corpo malhado, a postura com


os braços cruzados, os pelos corporais e a sunga branca e
molhada, que evidencia o contorno do pênis, são signos de
uma complexa indiciação rizômica que produzem um sujei-
to como viril, saudável, másculo, desejável. É imprescindí-
vel notar que estas performances de desejo pelo semelhante
(FIGURAS, 43, 44, 45) se prestam não apenas a se anunciar

227
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

desejantes e delinear as sutilezas de seu desejo em um espaço


discursivo específico, mas se constroem mutuamente como
– e talvez como o único – objeto de desejo. Ao reiterar sua
procura pela semelhança, tais perfis legitimam sua própria
figura como objeto de desejo, e traçam uma linha precisa
entre as categorias sociais desejáveis e as não-desejáveis. O
perfil anterior (FIGURA 45) convoca, por meio de seu gesto
de nomeação, a sua inaptidão para o compromisso, um devir
muito popular nos apps, como já apresentado na FIGURA
29, ao mesmo tempo em que expressa seu desejo por caras
malhados como ele.
Diferentemente destes perfis e da maioria das estiliza-
ções dos apps estão perfis cujos desejos vão além do amor
carnal: aqueles que chamei de “românticos” e que discuto na
próxima seção.

5.2.1.9 Os românticos
Para Bauman (1998), amor e desejo seriam tão distin-
tos que precisariam de línguas diferentes para conceituali-
zá-los. Para o autor, a definição de um está fatalmente ligada
de forma antonímica ao outro. No entanto, o desejo humano
de amar, de ser amado, é uma verdadeira instituição huma-
na secularizada e um desejo que dita uma série de compor-
tamentos aceitos, no âmbito social, íntimo e político. Além
disso, desejar ao amor é um ideal que guia as performances
dos perfis românticos. Embora os apps sejam popularmente
tachados como locais de pegação, de realização de desejos
carnais, aqueles que procuram um amor, um relacionamen-
to, também se distribuem pela semiose do desejo nos apps
de pegação.

228
Gleiton Matheus Bonfante

Figura 46: Perfil “procuro O Verdadeiro Amor”

Os sujeitos que se estilizam como procurando amor são


menos numerosos, mas também habitam o constante desejar
dos apps. O perfil da FIGURA 46 está “procurando O Verda-
deiro Amor” com letras capitais. Ele estabelece conexão cau-
sal entre o fato de estar “ridículo”, “parado” e “procurar O
Verdadeiro Amor”, descrevendo sua busca como a causa da
sua ridicularidade, possivelmente pelo fato de a busca se dar
“no meio desse lixo todo” que o app representa. Esse “lixo” é
um fantasma pós-moderno que assombra o ideal de “Amor
Romântico”: o espectro do desejo, que persegue o amor du-
radouro como uma insistente tentação a ser vencida, como
uma renúncia muitas vezes sofrida e uma batalha contra a
qual quase nunca se ganha. Das performances de amor, faz

229
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

parte negar o código que seria da ordem do desejo, opondo


ao sentimento do amor – verdadeiro e em letras maiúsculas
– “esse lixo todo”, como se as noções de tesão e amor fossem
essencialmente contrárias e devessem expressar na lingua-
gem sua necessária oposição. Tais performances de sujeitos
do amor (FIGURAS 46 e 47) normalmente indexicalizam um
desânimo, um sentido de utopia, desesperança e até uma co-
micidade, proveniente da pressuposição de que os apps ar-
ticulam, marjoritariamente, sujeitos do desejo, com aptidão
para relações mais intensas e menos duráveis.

Figura 47: Perfil “Love in a hopeless app”

A busca por amor nos apps é afetada por uma sensação de


nostalgia, de dificuldade ou até fracasso adiado, de ridiculari-
dade como na FIGURA 46 ou de desesperança, que o sujeito
indexicaliza por meioda intertextualidade (FIGURA 47) in-
vocada com a música da cantora Rihanna: “we found love in a

230
Gleiton Matheus Bonfante

hopeless place”. Esse sentido de desesperança provém de uma


ideia de inadequação entre a busca por amor real em meio
a um circo de alados e efêmeros desejos em frenesi: os apps
de pegação. A imagem em si aqui (FIGURA 47) indexicaliza
através da própria expressão facial neste perfil – o olhar, como
que perdido no horizonte, que parece buscar sem esperança e
desejar sem vigor – uma performance de melancolia do amar.

5.2.1.10 Os fetichistas
Alguns perfis são construídos de forma bem direta, como o
perfil seguinte: ele anuncia seu desejo “Pago lek pas/v” e convida
seu interlocutor “afim?”. Em seguida, descreve com mais deta-
lhes seu fetiche, seu desejo. A imagem ilustrativa do perfil é mui-
to interessante: realça as performances do corpo como produto
social e a sua existência como a transitoriedade de uma roupa.

Figura 48: Perfil “Pago lek Pass”

231
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Desejo é uma língua sem regras de bom uso, sem gra-


mática. Ele possui sintaxe muito livre. Enquanto uma gramá-
tica prevê normas e regras de configuração, a sintaxe prevê
múltiplas possibilidades de combinação. Uma “sintaxe do de-
sejo”, ao contrário das normalizadoras “gramáticas dos cor-
pos”, permite experimentação e a recombinação de unidades
de excitação, de signos que detêm capital erótico para criar
distintas configurações do desejo. Essa desnormativização do
possível é típica do desejar. As sintaxes não são exclusivas das
línguas. Toda unidade de sentido que pode ser descontruída
em unidades de sentidos menores, como a música, os corpos e
os desejos, possuem sintaxe. Os desejos possuem uma sintaxe
sem gramática, ou seja, pressupõem uma relação entre um
sujeito e as unidades de excitação, no entanto sem estabelecer
nenhuma regra combinatória. É necessário nos libertarmos
de metáforas como “gramática dos corpos”, “gramáticas de
gêneros”, para pensarmos além das possibilidades que a nor-
mativização dos corpos nos apresentam. As minúcias do pra-
zer são caprichosas detalhistas e embora haja vários “michês”
disponíveis, o sujeito da FIGURA 48 gostaria de pagar por
sexo a sujeitos que compartilhem desse fetiche, e não a sujeitos
que possam realizá-lo profissionalmente por meio da verossí-
mel relação com a fantasia. As fantasias, muitas vezes, não de-
vem cruzar o limite entre realidade e ficção, mas se manter no
campo idealizado da imaginação da performance, enquanto
não ela mesma, mas sua imaginação de experiência é realçada
como fator essencial do gozo, fundando distintas relações en-
tre sujeitos do desejo e “engendrando ações particulares, rela-
cionamentos e identidades” (SULLIVAN 2003:63), que vão se
orquestrar nas tramas discursivas do desejo.

232
Gleiton Matheus Bonfante

Um fetiche muito propagado no imaginário humano –


talvez uma característica sine qua non do próprio desejo se-
xual – é a submissão/dominação. Na sociedade ocidental, a
farda tem sido um recurso semiótico que indexicaliza uma
assimetria de poder entre pessoas tendo como parâmetro ser
o símbolo de representação oficial da nação. Assim, a farda
se configura como um símbolo de uma das mais poderosas
formas de poder, aquela que se assume como a própria voz
do Estado nacional e, portanto, pode tocar qualquer corpo
indiscriminidamente, dominá-lo, submetê-lo.

Figura 49: Perfil “Pretodefarda”

Como dito antes neste texto, as assimetrias oriundas


de hierarquias sociais podem configurar zonas afrodisía-
cas para os sujeitos e, portanto, também são performadas

233
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

como um fetiche, que eu entendo como a estilização do pró-


prio ato sexual ao sabor de um desejo. A FIGURA 49 aci-
ma articula um interessante jogo de poder social, pois traz
dois signos distintos inaugurando uma indiciação rizômica
muito complexa pela variedade combinatória dos sentidos
sociais: a negritude e a farda. A negritude pode indexicali-
zar uma etnia secularmente submetida, tanto socialmente
quanto economicamente, e que por isso se preste à domi-
nação sexual como mímese da dominação social. Por ou-
tro lado, em comparação com a branquitude masculina, a
negritude pode indiciar maior masculinidade, potência se-
xual, maior órgão genital. Já a farda normalmente indexa
sentidos de poder na sociedade. Militares, policiais e outros
fardados costumam ser investidos de poder simbólico que a
sociedade civil não possui. No entanto, a propensão da “far-
da” a ocupar uma posição de superioridade a faz ser poten-
cialmente ressignificada como um novo objeto de desejo: o
de dominá-la, subjugá-la, possuí-la. O desejo e o sexo em
si representam uma das escassas situações políticas na qual
as hierarquias sociais podem ser invertidas, ressignificadas
ou profundamente transformadas, já que as relações sociais
gozam de certa estabilidade de poder difícil de desafiar. Os
sentidos acerca da “farda” e da “negritude” neste perfil po-
dem estabelecer rizomas de sentidos distintos como (1) preto
=> macho, sexualmente potente + de farda => macho, pode-
roso, dominador ou (2) preto => desvalorizado socialmente,
desempoderado e defarda => empoderamento social e béli-
co. As complexidades das relações hierárquicas socialmente
construídas interessam muito aos meandros do prazer se-
xual, mas não são esgotadas nessas possibilidades apresenta-

234
Gleiton Matheus Bonfante

das; elas podem, ainda, se lançar a inesperadas relações que


escapam a qualquer gramática.
Os fetiches podem ser recursos de estilização dos desejos
de si, podem servir para selecionar parceiros como na FIGU-
RA 48 supracitada, mas são também e principalmente con-
vocados na composição de sua potentia gaudendi, seu capital
sensual, como na FIGURA 49.

5.2.1.11 Fantasias racializadas


São dois os motivos para esse tópico vir depois dos perfis
fetichistas. O primeiro é que “raça […] é uma fantasia61 instá-
vel e mutante” (SULLIVAN 2003:65), e o segundo é que toda
sexualidade não-branca tem sido historicamente fetichizada
e exoticizada na Sociedade Ocidental. Não é sem razão que a
racialização também é um recurso muito frequente nos per-
fis para produção de si como sujeito desejante e como objeto
de desejo. Embora raça seja, como descreve Sullivan (2003),
uma fantasia, sempre transitória e inconstante, a convocação
de signos que aludem a uma identidade racial negra profun-
damente essencializada é uma estratégia de indiciação, de um
devir hipersexualizado, um devir animalesco e potente na es-
tilização de si nos apps de pegação.
No entanto, a mobilização dos signos da negritude tam-
bém pode funcionar para amenizá-la, eufemizá-la e tornar
seu contraste com a privilegiada e não-marcada branquitu-
de menos visível, menos saliente para as relações do desejo,
como no perfil a seguir (FIGURA 50).
61 Dizer que raça seja uma invenção, não significa dizer que o racismo não afeta, lesa, mata milhares de
pessoas negras no Brasil e no mundo diariamente. Mesmo diferenças inventadas têm o poder de produzir
efeitos materiais em pessoas, corpos, sociedades. Ao contrário, dizer que diferenças étnicas são invenções
significa eleger Discursos como responsáveis por forjar a realidade social em que vivemos e o lócus de
ação para a transformação social.

235
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Figura 50: Perfil “moreninho”

A reflexividade acerca da morfologia da língua, sobretudo


acerca do funcionamento do aumentativo e diminutivo e suas
convenções sociais generificadas, é um instrumento muito re-
levante de estilização de si e será discutida na seção 5. 3. 1 em
mais detalhes. Aqui, na FIGURA 49, basta observar a esse res-
peito o uso do diminutivo como uma forma de atenuação da
raça. “Moreno” indexicaliza tracionalmente um eufemismo
social para denominar pessoas negras e aqui, além de perfor-
mar um abrandamento dos limites entre branco e preto, ele
pode também performar uma recusa ou mitigação de uma
expectativa social de masculinidade e virilidade exacerbadas
que o signo fetichizado da negritude pode indexicalizar.
Se, por um lado, o diminutivo pode figurar, em uma per-
formance, como a atenuação de uma condição essencializa-
da, o aumentativo, por outro lado, aponta para a exacerbação

236
Gleiton Matheus Bonfante

das características estereotípicas, como potencial de afeto na


estratégia de estilização de si, como no PERFIL 51 a seguir.
Abraçar uma característica e exacerbá-la é uma forma de se
produzir desejável, confiante, de se inflar de uma potentia
gaudendi que nós mesmos produzimos.

Figura 51: Perfil “Negão”

O “negão” é uma categoria social originada de uma fan-


tasia popular de virilidade, de sensualidade animalesca e
de potencial erótico principalmente para os brancos, mas
também para outras pessoas negras. Máicon 4&20, um dos
informantes da pesquisa, informou que já sofreu precon-
ceito62 por ser branco e ativo, quando o rapaz negro que pa-
62 Citando este exemplo de preconceito em relação à branquitude, que é inegavelmente a classe
privilegiada no Brasil, não pretendo protegê-la. Muito pelo contrário, pretendo acusar uma relação de
preconceito muito mais complexa: o preconceito contra a feminilidade masculina. Um preconceito que se
associa à cor da pele de forma interseccional para aumentar seu potencial funesto sobre os corpos. Neste

237
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

querava no Scruff lhe disse: “Vc é branco, branco não sabe


meter!” (Diário de Campo, abril de 2014). Para Sullivan
(2003:63), ao analisar o trabalho de Mercer (1994), homens
negros podem se apegar a formas tradicionais patriarcais
como força física, potência sexual e controle como um meio
de sobreviver em uma sociedade racista, incorporando o
modelo do macho como forma de recuperar a masculini-
dade ferida através da submissão e da dependência daque-
le que o subjuga. Este devir sexualizado é constantemente
conclamado por sujeitos negros para performar seu poten-
cial erótico como na FIGURA 51, mas são também lugares
de contestação como na FIGURA 50.
Inscrever-se em uma raça é uma forma de se circuns-
crever em sistemas de significados sociais que têm um poder
formativo. Portanto, também a “não-marcada” branquitu-
de63 pode se fazer saliente nos jogos do tesão. Ela pode ser
reiterada como marca em confluências desejantes, como no
perfil a seguir (FIGURA 52), o que ressalta a necessidade de
compreender racializações sempre interseccionalmente defi-
nidas com gênero.

jogo dos desejos viris, ser branco não é necessariamente um privilégio, pois a branquitude indexicaliza
socialmente uma ficção de menor virilidade. Por outro lado, pode ser mais difícil para um corpo negro
viver sua feminilidade frente a expectativas sociais de conduta masculina. Como já dito antes, os desejos
são sim fenômenos sociais, no entanto abertos, independentes e podem ressignificar relações intersubje-
tivas, como as raciais.
63 Algumas pessoas poderiam clamar uma dificuldade na compreensão da branquitude com uma
racialização, já que há uma assimetria na relação branco/negro que impede de inferir socialmente os mes-
mos sentidos para os dois elementos do par. Bom, em primeiro lugar, é imprescindível frisar que falamos
de sujeitos do desejo, que constroem seus corpos como estandartes de seu potencial de gozo e, portanto,
não lidam com categorias não-marcadas. Tudo no corpo do sujeito do desejo tem uma espessura, tem um
peso, qualquer elemento dos corpos é importante na sintaxe do desejo e a branquitude se faz – tanto com
fator de excitação como fator de repulsa – tão visível, tão marcada como a negritude.

238
Gleiton Matheus Bonfante

Figura 52: Perfil “Branco”

Essas performances reforçam as teorizações de vários au-


tores (BARNARD, 2004; MUÑOZ, 1999; SULLIVAN 2003),
para os quais um dos principais aspectos fictivos de raça é
ser imaginada como unidade. Devemos estudar sexualidade
e raça de forma interseccional se quisermos compreender de-
sejo e sociedade, pois raça é generificada enquanto gênero é
sempre raça-dependente.

5.2.1.12 Perfil-capital ou a ocasião faz a puta


O deslocamento do sujeito pela semiose do desejo deixa
ver uma implosão pós-moderna entre sujeito e objeto, como
se para existir como sujeito, para dar asas ao devir dese-

239
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

jante, devamos antes nos performar como objetos. Nas pa-


lavras de Bauman (2007), “ninguém pode se converter em
sujeito sem antes converter-se em produto, e ninguém pode
preservar seu caráter de sujeito se não se propuser a ressus-
citar, reviver e realimentar sua perpetuidade, as qualidades
e habilidades que se exigem em todo o produto de consu-
mo” (BAUMAN, 2007 apud ARRIAZU ET AL, 2008:203).
Embora para os autores a pós-modernidade tenha como
traço fundamental a transformação de pessoas em merca-
dorias ao expandir a lógica do consumo para relações in-
terpessoais, aqui a implosão de sujeito e objeto tem outro
sentido: essa oscilação entre sujeito e objeto é sintoma da
performatividade e sugere a posição que o sujeito ocupa nos
repertórios semióticos quando se faz presente na linguagem
do tesão. O sujeito, ao se movimentar no discurso do de-
sejo, faz coincidir a pessoa que fala com a pessoa de quem
se fala e assim faz oscilar seu funcionamento como sujeito
e como objeto dicursivo. O sujeito do desejo se coloca sob
o escrutínio do Outro, que o mensura, o avalia, de acordo
com seu potencial de gozo. Para o desejo, todos os sujeitos
são objetos, pois se os sujeitos não forem desejados, como
poderão satisfazer seus próprios desejos?
A tensão constitutiva entre objeto e sujeito perpassa os
perfis cerzindo a performance ao desejo. Conquanto os su-
jeitos contemporâneos sejam uma fatalística implosão entre
sujeito e objeto alguns perfis são reclusos à posição de objeto,
porque se estilizam com propósitos mercadológicos, como
acontece na performance do perfil a seguir.

240
Gleiton Matheus Bonfante

Figura 53: “Entretenimento Adulto”

Os sujeitos do desejo normalmente se performam por


meio do capital erótico que mobilizam, um capital que é sim-
bólico. No entanto, os garotos de programa estabelecem um
valor capital real para sua potência de gozo. Se nas negocia-
ções do desejo intercambia-se potência ejaculatória e os sujei-
tos do desejo trocam seu poder de gozo por aquele do Outro,
os sujeitos do desejo compráveis trocam seu capital erótico
por dinheiro. Embora os perfis no geral tendam a se construir
segundo as convenções de gênero propagandístico, os GPs
(ou garotos de programa) possuem uma sensibilidade espe-
cial para descrever seus potenciais de gozo, produzindo com
palavras um afeto sobre outros corpos. Veja como o PERFIL
53 consegue atribuir contornos muito específicos ao seu cor-
po, indicar sua localidade e ainda usar jargões próprios da

241
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

propaganda, como “Quer diversão? Vem que tem!”, ou ainda


“Entretenimento adulto”.
Também na FIGURA 54, “Árabe 21cm” – note-se a racia-
lização no nome do perfil que, ao aludir ao estereótipo do ho-
mem árabe, produz um afeto ao descrever-se como desejante
– pode-se observar uma retórica propagandística na qual a
desejabilidade também é performada pela avidez em saciar
seu desejo de “currar um rabo”, caracterizadas por estratégias
retóricas como a insistência, a repetição e a instigação.

Figura 54: Interação entre “PassGATO” e “Árabe 21cm”

Ele lista as qualidades que tem e cuja performance pode


produzir afeto sobre seus interlocutores, usando termos como
“arrombador de cu”, “macho” e “picão” que, apesar de serem
frequentemente considerados socialmente inadequados ou
até ofensivos, podem indexicalizar excitabilidade durante o
ato sexual. Este sujeito não se performa como um sujeito-ob-

242
Gleiton Matheus Bonfante

jeto. Muito pelo contrário, ele descreve seu desejo: uma “real”
– termo que alude a um encontro dos corpos – com “passivao
que guenta levar ferro no rabo mesmo”.
Sua postura de sujeito desejante, por um lado, se desali-
nha com as práticas do michê de orientarem seu desejo para
qualquer prática, desde que paga; por outro, produz mais afe-
to, ao performar sua atividade profissional como provinda de
seu desejo em detrimento de ser estimulado pela recompen-
sa financeira. De fato, pela interação, não se pode ter certe-
za de que se trata de um profissional do sexo, embora haja
indícios como o blog e a mensagem enviada que parece ter
sido copiada e colada. Alguns michês não se revelam como
tais e só se mostram como sujeito-mercadoria em interação.
A revelação do devir-GP a posteriori permite a prática da
prostituição ocasional: sujeitos do desejo que estão nos apps
com desejos legítimos, mas que cobram por sexo quando só
encontram parceiros que não lhe interessam, se assumindo
como GPs eventuais. Para a maioria desses perfis, o sexo não
é fonte de renda primária. Muitas vezes nem secundária, mas
uma forma de participar como sujeito do desejo, e – acima de
tudo – nesses código-territórios, e alinhar uma prática sexual
prazerosa à aquisição de bens capitais. Um michê, um aman-
te profissional, também deveria somar entre suas qualifica-
ções atratividade e um bom desempenho nas práticas sexuais,
duas performances muito gratas ao sujeito do desejo dos apps.
Se por um lado, nem todo perfil-capital se mostra, se con-
fessa como tal, propondo que a prostituição na maioria das
vezes não é visível, por outro lado, perfis-capitais não traba-
lham necessariamente com prostituição, como o perfil a se-
guir (FIGURA 55).

243
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Figura 55: Perfil “Massagistas”

O perfil da FIGURA 55 anuncia um serviço de massagem.


Aqui é interessante notar que há um site anunciado no perfil.
Acessei o site e constatei que é bem ordinário e mal-feito, ofe-
recendo serviços de massagem e tratamentos estéticos como
depilação, sobrancelha etc. Após ter tentado um contato e ter
sido ignorado pelo perfil, passei a supor que ele não fosse um
perfil verdadeiro, mas uma propaganda para o site. No en-
tanto, preciso também considerar a possibilidade de que não
quisesse contribuir com o pesquisador ou simplesmente não
quisesse papo com o meu perfil. Contudo, a ausência de mar-
cas subjetivas no texto respalda minha interpretação de que
seja um perfil-propaganda, sem nenhuma pessoa específica
por trás, mas uma empresa de massagens. O sujeito ali não se
coloca nas tramas do discurso. O próprio nick na forma plural
supõe que o perfil seja um caminho para diversas possibili-
dades, ou pelo menos mais que uma, como o plural sugere.
O perfil se despe textualmente de qualquer marca de autoria,

244
Gleiton Matheus Bonfante

como pronomes pessoais, singularidade, expressão de dese-


jos, de atravavessamentos identitários etc.
Os perfis-capital não apenas articulam-se como produtos,
mas negociam muitas vezes produtos que não são eles próprios.
O perfil a seguir, intitulado “Popperskomigo” (FIGURA 56),
divulga sua disponibilidade de “poppers” para venda. Poppers
são substâncias da família dos nitratos alquílicos cujo nome
deriva onomatopeicamente do som – “pop” – que a quebra das
ampolas produzia. Os poppers são líquidos muito voláteis e são
inalados, por isso fazem efeito segundos depois da inalação.
Seus efeitos no organismo incluem a aceleração dos batimentos
cardíacos e aumento da pressão sanguínea periférica, o que faz
a temperatura subir e o fluxo sanguíneo no cérebro aumentar,
ao mesmo tempo em que provoca um relaxamento dos múscu-
los. Entre homens gays, os poppers são conhecidos como uma
droga que auxilia a penetração anal pelo seu efeito relaxante.

Figura 56: Interação entre pesquisador e “Popperskomigo”

245
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

O perfil em questão não está negociando apenas a venda


dos poppers, mas também de lubrificantes importados. O co-
mércio de commodities sexuais denota o caráter sexualizado
dos código-territórios e é exemplo do intercâmbio de conhe-
cimento e ajuda que as experiências nos apps promovem. É
sabida a dificuldade de comprar poppers assim como lubrifi-
cantes diferentes, ou qualquer artigo/acessório para práticas
sexuais no Brasil, devido aos altos preços e a pouca diversida-
de. Não obstante, para além do comércio nos apps, uma outra
questão se faz interessante: a relação entre sexo e drogas nos
apps, que iremos discutir em seguida.

5.2.1.13 4&20, Teko e Poppers: “Foda


Aditivada”
Se por um lado são raros os casos de perfis-sex-shop como
a FIGURA 56, por outro é notável a quantidade de perfis que
anunciam seu interesse em parceiros para o compartilha-
mento de drogas, tanto durante a prática sexual, quanto em
situações de sociabilidade64. Tal articulação do sujeito com
substâncias químicas nos apps pode aludir a duas marcantes
características do sujeito contemporâneo: 1) a quimicalização
do sexo e 2) a quimicalização do próprio sujeito – da qual é
sintomática a busca por parceiros de drogas (não necessaria-
mente sexuais), ou seja, sujeitos que se definam pelo consumo
das mesmas substâncias químicas. Consumo que, de acordo
com Preciado (2008), seria imprescindível ao significado con-
temporâneo do próprio sujeito. O sujeito contemporâneo não

64 Embora eu faça aqui uma distinção entre práticas sexuais e práticas de sociabilidade, acredito que
para sujeitos homoafetivos fazer sexo é prática social que reforça laços de mútua identificação.

246
Gleiton Matheus Bonfante

poderia ser, sem as moléculas químicas que interferem, re-


configuram e produzem seus corpos.
O uso de drogas é uma prática imemorável e tem feito
parte da experiência humana amplamente, embora possuam
uma relação simbólica controversa com a licitude. Sujeitos-
cafeína, sujeitos-tabaco, sujeitos-ritalina, sujeitos-álcool,
sujeitos-lexotan, sujeitos-aspartame, sujeito-cocaína, sujei-
tos-crack, sujeitos-poppers vagam pela contemporaneidade.
Como propõe Preciado (2008), as substâncias químicas são
definidoras dos sujeitos, são deles formativas no Capitalismo
Farmacopornográfico. Embora seja um fenômeno muito dis-
cutido na contemporaneidade, o consumo de drogas não é re-
cente nem sequer parece ser exclusividade humana. O gosto
pelo álcool, especicificamente, foi de acordo com a “hipótese
do macaco bêbado” (DUDLEY, 2014) um traço adaptativo65
que atuou positivamente na seleção natural.
As drogas endossam uma experiência queer, pois desa-
fiam a racionalidade entorpecendo o corpo e a mente. De
acordo com Halberstam (2005), as drogas apresentam uma
temporalidade lúdica, intensa que desafia o heterocapita-
lismo e a exaltação do tempo da reprodução e do consumo,
introduzindo novas magnitudes de tempo e espaço e novas
possibilidades subjetivas. Assim, além da farmacoprodução
do sujeito que lhe atribui uma existência molecular pauta-
da em sensações e (e)feitos químicos, a quimicalização do
sexo e a introdução de drogas no ato sexual podem ter como
motivação a facilitação da penetração pelo relaxamento, a
intensificação do prazer pelo estímulo de outros sentidos, a
65 De forma muito simplificada, a hipótese de Dudley (2014) propõe que o gosto pelo álcool originado
na fermentação de frutos maduros, representa a aquisição de maior sensibilidade de certos indivíduos
para encontrar frutos mais maduros e, portanto, com maior teor nutritivo.

247
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

experimentação corpórea, ou/e a experiência de uma reali-


dade suspensa, profundamente alterada por lógicas desco-
nhecidas. Cada ‘viagem’ é sempre nova e ilógica, não apenas
porque as drogas se propõem a um arrebatamento do sujei-
to, mas também porque a atual política de criminalização e
desregulamentação das drogas através de sua demonização
social e guerra declarada ao combate do tráfico e do consu-
mo não permite aos usuários ter qualquer controle sobre a
qualidade e a composição das mesmas, de modo que também
os efeitos podem ser em parte imprevisíveis.
Se para Preciado, somos definidos pelas substâncias quí-
micas que elegemos, se nossa subjetividade é determinada
pelas plataformas químicas, nos apps vemos não apenas sujei-
tos que dependem de seus fármacos para serem, mas relações
sexuais que se entorpecem, que passam a ser ressignificadas
pelas relações que estabelecem com uma experiência química
e com os significados sociais atribuídos a uma droga, assim
como o próprio sujeito que se quimicaliza. ‘Sujeitos-cocaína,
sujeitos-viagra, sujeitos-testosterona’ (PRECIADO, 2008), to-
dos eles habitam, com significados sociais muito distintos, a
sociedade farmacopornográfica.
Nas estilizações do sujeito farmacopronográfico, as dro-
gas são articuladas como um convite para interagir, para estar
in praesentia, para desejar, para negociar uma ideia de mútua
identificação. Além do álcool – a droga mais difusa e popu-
larmente aceita – podemos listar o poppers que já mencionei
anteriormente, a maconha e a cocaína. Maconha e cocaína
são normalmente trazidas ao texto sob rubricas mais discre-
tas como “beck” e “4&20” para a primeira, e “teko” e “padê”
para a última, como mostra o perfil a seguir (FIGURA 57).

248
Gleiton Matheus Bonfante

Figura 57: Perfil “Beck & Teko”

Na sua performance de si, “Beck & Teko” elege a presença


das drogas no seu desejo como digna de nomear-se, estilizan-
do tanto sujeito como desejo específicos: um sujeito interes-
sado em “Foda Aditivada”. Vale notar na imagem, a alusão a
práticas de atividade ao ar livre, como um repertório muito
valorizado para o sujeito do desejo no Rio de Janeiro. A prá-
tica de esportes e de atividades ao ar livre além de apresen-
tarem um atalho do olhar para o corpo despido, indexica-
lizam saúde e disposição física essenciais à prática sexual. A
presença das drogas na composição de si pode ainda operar
na nomeação do sujeito do desejo pelas suas práticas: uma
nomeação instrumental. Como se observa no próximo perfil
(FIGURA 58), os sujeitos do desejo que se denominam como

249
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

“tkdos”, ou ‘tekados’, são aqueles que usam, gostam ou estão


sob o efeito do ‘teko’.

Figura 58: Perfil “2tkdos”

É interessante notar que os dois perfis anteriores (FIGU-


RAS 57 e 58) estilizados como sujeitos do desejo não apenas
adeptos da cocaína, mas que se nomeiam através do consumo
da cocaína, não mostram seus rostos. Eles se posicionam de
costas para seus interlocutores, resguardando suas identida-
des de possíveis críticas morais que sua prática-tabu poderia
culminar. De fato, poucos perfis mostram o rosto; contudo,
nenhum perfil que compõe o corpus alude ao consumo de co-
caína, mostrando o rosto.
Tendo em vista que as práticas instituem os limites en-
tre os sujeitos, elas são formas de reconhecer-se, de perfor-

250
Gleiton Matheus Bonfante

mar uma ideia de identificação, de modo que compartilhar


drogas com outras pessoas pode figurar para além do mú-
tuo reconhecimento: como prazer intenso compartilhado,
como realização acompanhada de um desejo do corpo. Se
por um lado, a quimicalização do sexo é resultado de dois
fenômenos: a ‘coleção de sensações’ do sujeito contemporâ-
neo (BAUMAN 1998) e a dependência fármaco-molecular
do sujeito para ser e para produzir-se inteligível (PRECIA-
DO, 2008), por outro ela é um tabu social, assim como as
sexualidades desviantes. O consumo de drogas ilícitas e o
sexo homossexual são modos análogos – conquanto muito
distintos – de desafiar o heterocapitalismo. São formas de
habitar uma temporalidade lúdica e extática, fora dos senti-
dos outorgados ao tempo que nossa sociedade impõe. Acima
de tudo, tanto o sexo como as drogas são uma das poucas
formas permitidas sociopoliticamente de possuirmos nosso
próprio corpo, de experimentarmos com ele, de nos sentir-
mos abertos ao prazer e ao existir na plenitude da liberdade
que a vida social nos rouba diariamente.

5.2.1.14 Casais: uma subjetividade habitada por


dois sujeitos
Como proposto na análise do perfil mostrado na FIGU-
RA 55, a entrada na semiose do desejo e a estilização de si aos
moldes do sujeito do desejo são performances que se utilizam
de linguagem subjetiva e de marcas semióticas de subjetivi-
dade (modalizações, indexicalizações, iconizações, reflexivi-
dade, autorreferenciação, entre outras). Os perfis nos apps de
pegação, assim como seus celulares, são íntimos dos donos,
conhecem os corpos, passeiam pelos sujeitos, exploram suas

251
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

individualidades. Contudo, alguns perfis se constroem para


abrigar mais de um sujeito.
Perfis de casais (FIGURA 59) também são tão comuns no
Grindr quanto a troca do ‘c’ pelo ‘k’ na rede. O perfil descreve
os desejos de dois, mas mantém uma relação de individualida-
de inusitada por apresentar dados e foto de apenas um deles.

Figura 59: Perfil “Kasalzs”

A busca por aventuras sexuais compartilhadas com seu


parceiro é típica performance de desejo nos apps de pega-
ção, e a estilização de si pode se lançar a um ou aos dois
sujeitos do casal. Interessante nesta prática é o compartilha-
mento do perfil que, como o celular, pertence a apenas um
deles. Na maioria dos casos, os parceiros mantêm perfis in-

252
Gleiton Matheus Bonfante

dividuais e ‘caçam’ – termo usado na semiose homoerótica


para designar a procura por parceiros – para dois. A tensão
entre liberdade individual na ‘caça’ e divisão igualitária no
‘compartilhamento da presa’ me fez pensar no termo ‘trai-
ção a dois’ ou ‘traição consentida’ para designar tal prática,
na qual o objeto externo ao casal satisfaz a ambos e, por-
tanto, é convocado como desejo dos dois. Na ‘traição a dois’
existe certa liberdade para procurar satisfação fora do re-
lacionamento, porém tal satisfação, se encontrada, deve ser
compartilhada com o parceiro. Obviamente, existem muitas
outras distintas configurações conjugais, mas o interessante
de observar aqui é que muitos perfis não são casais na rea-
lidade, mas se unem e performam um casal para ter mais
chances de conseguir um parceiro, como relatado em entre-
vista pelo perfil “E & F”.

5.2.1.15 “Sai do Grindr e vem pras ruas!”


Em meados de 2013, o Brasil rompeu um silêncio opressi-
vo e injuriou nas ruas os ecos da insatisfação, da indignação e
da aversão que há gerações engolia a seco. Embora tenhamos
assistido à ocupação da rua por várias camadas da sociedade
brasileira com agendas muito diversas e às vezes conflitan-
tes, o Brasil se uniu durante as manifestações de junho contra
a figura de um governo que não considera o povo nas suas
escolhas políticas. Nos apps, a adesão ao movimento contes-
tatório foi um tema que ganhou popularidade, e o mote “Sai
do Grindr e vem pras ruas!”, como mostra a FIGURA 60, foi
amplamente distribuído, não apenas nos apps, mas nas mí-
dias sociais como um todo. A inclinação política passou a ser
um tema invocado para auxiliar na estilização de si, nas per-

253
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

formances do sujeito do desejo. Uma reivindicação específi-


ca, uma bandeira partidária e uma pauta política passaram
a compor as performances dos sujeitos e até de seus desejos.

Figura 60: “Sai do Grindr e vem pra rua”

Em especial, a pauta dos direitos LGBT e a revolta contra


a chefia da Secretaria dos Direitos Humanos pela figura po-
lêmica – para não dizer cínica, descabida e repugnante – do
deputado pastor Marco Feliciano motivaram estratégias polí-
ticas de performar-se que ressaltavam o direito ao protesto, à
indignação, a conquista de uma voz que fosse ouvida. Assim,
cartazes das passeatas, pichações das ruas (FIGURA 61) pas-
saram a endossar a peformance do sujeito do desejo, que em
meio a desejos carnais, possuía um desejo maior: ser ouvido,
ter voz no panaroma social.

254
Gleiton Matheus Bonfante

Figura 61: “que só os beijos me tapem a boca”

Os sujeitos desejantes dos apps, ao serem sensíveis às ma-


nifestações populares de junho de 2013, ressaltaram a dimen-
são política do desejo e a emergência das práticas semióticas
nas mídias digitais “como lugares de construção de ativismo
político sobre sexualidade e gênero” (MOITA LOPES, 2010).
Assim, os apps se desenharam como plataformas legíti-
mas para reinvindicação de direitos sociais e engajamento po-
lítico. E o territótio de construção de desejos se fundiu ao ló-
cus de convenção de mensagens políticas. Essas performances
do sujeito político figuram nos apps como signos de atributos
identitários dos sujeitos e como aspecto desejoso de sua iden-
tidade social. São colocados a funcionar a seu favor na estili-
zação de si. O próximo perfil (FIGURA 62) se mostra muito
interessante pela confluência de temas distintos que convém.

255
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Figura 62: “Fora Cabral”

Como mote, em primeiro plano, com relativo destaque,


seu manifesto político: hino ecoado no Rio de Janeiro durante
as manifestações de junho e por todo o ano contra66 os, então,
governador Sérgio Cabral Filho e prefeito Eduardo Paes. No
entanto, logo abaixo, ele continua sua estilização como sujei-
to do desejo, indicando através dos signos “versátil”, “só com
fotos”, e “rosto em close-up fazendo biquinho” a interseção de
política e desejo. Essa confluência temática nos faz supor que
o sujeito do desejo não sai de cena para dar lugar ao sujeito
político, mas eles coexistem nas performances encenadas pe-
los atores sociais. Desejo e sexualidade são questões inerente-
mente políticas.

66 Fora Temer!

256
Gleiton Matheus Bonfante

5.2.1.16 Fake
Qual o limite entre nós e nossas fantasias? A forma como
nos entendemos, nos enxergamos, nos identificamos, podem
e são muito diversas das formas como somos compreendidos
pelo Outro. Se existe um hiato entre eu e o sujeito que enceno
em performance, existiriam limites seguros entre um perfil
fake e um apenas fantasioso? Quão fake somos nós mesmos?
Quão fake são nossas perfomances?
Na FIGURA 63 a seguir nos deparamos com um perfil
que analisei como fake.

Figura 63: Perfil “O XERIFE”

257
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Devido a dificuldade – ou até impossibilidade – de recu-


perar o sujeito por trás de seu avatar, não há regras seguras
para classificar um perfil como fake. Acredito que perfis fake
apresentam uma estilização de si que é inconcebível, como
no caso a participação da presidenta em um chat de pegação
gay. A escolha de Dilma, em “O XERIFE”, para a estilização
do perfil, indexicalizam para este sujeito uma posição hie-
rarquicamente elevada em relação aos demais usuários, que
não é absolutamente clara ou inequívoca. Uma proteção que
os fakes possuem é terem acesso a aspectos de outros perfis,
revelando pouco ou quase nada de si mesmos. Talvez sua ca-
racterística de ‘poderoso’ frente aos outros seja uma alusão
a esta possibilidade de espiar as performances dos outros,
sempre protegido da vulnerabilidade do mostrar-se. Por ou-
tro lado, “Dessa Porra!!” indexicaliza tanto um desdém pelo
código, quanto uma estratégia (emprego de palavras tabu)
típica da performance da masculinidade hegemônica como
discutiremos melhor na seção 5. 3. 3. Os perfis fake, por sua
impossibilidade, são muitas vezes engraçados e nada impede
que eles identifiquem o autor/sujeito da performance, duran-
te as interações, já eles chamam bastante atenção de outros
perfis e podem produzir afeto. É uma forma de participação
que não é necessariamente ‘falsa’ ou ‘fingida’ como o nome
supõe, mas uma distinta estratégia de flerte, por meio de
uma estilização lúdica e muitas vezes contestadora, como no
perfil (FIGURA 64) a seguir.

258
Gleiton Matheus Bonfante

Figura 64: Perfil “Amy”

Às avessas da primordial recomendação na estilização


de si como sujeito do desejo, a atratividade física, o perfil
da FIGURA 64 se constrói como não-atraente. A escolha da
cantora Amy Whinehouse funciona como índice de não-a-
tratividade, desregramento, instabilidade emocional, invoca
uma personalidade internacionalmente identificada com um
padrão de vida disruptivo, desregrado e com abuso de drogas.
Pela criatividade e pelos desafios propostos à normatividade
dos estilos do ser desejante, estes perfis intervêm no meio, pro-
duzem certa reflexividade. Perfis fake afetam corpos. Seriam
verdadeiros? Estaria por trás da imagem que repele algum su-
jeito do desejo que atrai? Tanto a FIGURA 63 como a FIGU-
RA 64 (e a 65, a seguir) mobilizam formas muito criativas de
participar nesta territorialidade desejante: como improváveis
abjeções. Primeiro porque são inverossímeis: apresentam fi-

259
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

guras de mulheres – que causariam sensualmente pouco afeto


em públicos homoafetivos – no entanto, não são quaisquer
mulheres, a presidente (FIGURA 63) do país, uma estrela do
rock (FIGURA 64) já falecida e uma freira (FIGURA 65), no
caso do próximo perfil.

Figura 65: Perfil “Irmã Doralice”

O perfil de “Irmã Doralice” mobiliza índices da Igreja


Católica, como “serva” e “ungida”, juntamente com índices
da cultura popular gay como a “santa Cher”, a cantora re-
conhecida como um ícone gay, produzindo um humor mui-
to interessante. Na imagem, “Irmã Doralice” posa com um
terço na mão, com as vestes completas de uma freira e com
a feição sincera de uma pessoa de fé. “As mãos unidas em
prece”, “a cabeça levemente reclinada”, o “hábito” e “o olhar
complacente” indexicalizam doçura, benignidade, suavidade

260
Gleiton Matheus Bonfante

típicas da sublevação espiritual. E, assim, uma freira adentra


os territórios do desejo com toda a solenidade das servas de
Deus provocando esse território, interpelando seus interlo-
cutores e intrigando-os.
Os perfis fake me intrigam em especial. Primeiramente,
pela curiosidade que despertam sobre sua carnalidade, sobre
a correspondência entre existência corpórea e performance.
Em segundo lugar pela sua assunção parodoxal. Julgamos
fake, peças fantasiosas, mas não temos a menor possibilidade
de julgar sua realidade, de averiguar se os dados são ‘verda-
deiros’, se o sujeito realmente é ele mesmo na foto: o perfil fake
é aquele que planta uma indissolúvel dúvida no seu interlocu-
tor. A foto de “Irmã Doralice”, por exemplo, causa certa dúvi-
da quanto a seu referente, especialmente quanto ao gênero da
pessoa representada na foto. As tecnologias do sujeito que ela
usa para produzir um devir-freira performam um rosto livre
de qualquer tecnologia de gênero (brincos, cabelos, maquia-
gem) nos deixando uma dúvida sobre quem se esconde sob
aquelas vestes. Ali poderia estar um garoto vestido de freira
(o próprio sujeito do desejo que com o rótulo de fake julgamos
se esconder), ou uma freira de fato (uma imagem que ele usa
para compor sua estilização).
As dimensões do intervalo entre como nos enxergamos e
como os outros nos enxergam é imprevisível. Um perfil que
julgamos real pode ser muito mais fake que um que julgamos
fake, se ele operar na performance de si com uma foto veros-
símel. O conceito de fake surge não sempre da experiência
real dos usuários, mas em uma prepotência aflitiva do analis-
ta que não consegue recuperar a referência mundana de um
perfil. Talvez fake seja justamente um perfil que traz descon-

261
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

fiança entre atitude online e realidade mundana e exemplifica


a interrelação entre mundo virtual e mundo online na compo-
sição do que entendemos por ‘realidade’.
Os fakes são ótimos exemplos de indiciação rizômica,
pois invocam signos de diferentes campos semânticos. Tam-
bém são exemplo da atuação do acaso na estilização de si, da
atuação da fantasia nas performances do sujeito.

5.2.1.17 Nomeação instrumental


Nem tudo é fantasia, subversão, agência e superlativo na
relação do sujeito com sua estilização. Muitos participantes
nos apps optam pelo uso de apelidos que tenham uma relação
com seu nome, que sejam seu nome, sobrenome ou variações
do mesmo (Guto, Marcão, Martins etc.). Como na FIGURA
66 a seguir, o nome na estilização de si, muitas vezes não se
compromete com a ideia de fantasia ou libertação discutidas
pela Erótica dos Signos, mas sim de autorrevelação:

Figura 66: Perfil “Martins”

262
Gleiton Matheus Bonfante

Muitas vezes, os sujeitos do desejo nos apps optam por


nomes que os localizem geograficamente (“CaraZS”, “Pass-
Botafogo”, “BRAZILIAN”), como já mencionado, enquanto
muitos outros sujeitos do desejo se decidem por nomes que
sejam descritivos de suas práticas, (“ATVRoludo”, “pass”,
“cudeleite”, entre outros), que os façam referência metonímica
por meio da convocação de sua função, sua instrumentalida-
de, como o próximo perfil (FIGURA 67).

Figura 67: Perfil “Murilo ATV”

Neste perfil (FIGURA 67), o sujeito se nomeia com um


nome comum que pode ser seu ou inventado, e isso não in-
teressa ao seu interlocutor, porque o foco da estilização de si
nesse perfil é a sua instrumentalidade. Ao mesmo tempo, este
sujeito descreve seus desejos, suas particularidades sexuais e,
ao descrevê-las, invoca ontologias corpóreas que o posicionam

263
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

socialmente como um corpo desviante “pero no mucho”, já que


o ativo não carrega historicamente o peso do pecado do prazer
sodomita pela submissão perante outro homem (FOUCAULT,
2014). Nota-se a repetição aqui invocada para reiterar seu
devir-ativo; a palavra “ATV” aparece duas vezes, uma delas
predicada por “100%” e na outra por “TOTALMENTE”. Essa
repetição representa um tipo de redundância, configurando
performances que mobilizam mais de um índice apontando
para o mesmo fato social. Note-se que a caixa alta frisa ainda
mais sua condição de ativo. Aqui essa redundância indexical
combina diferentes elementos para afetar seu interlocutor: a
repetição, a modalização (através dos advérbios “TOTAL-
MENTE” e “100%”) e a caixa alta, um recurso formal e estéti-
co. Além dos recursos linguísticos, é preciso salientar o gesto
como outro recurso semiótico que também opera na redun-
dância indexical, que também indexicaliza masculinidade.
Utilizo, assim, o termo ‘redundância indexical’ para ana-
lisaresse fenômeno semiótico, no qual um sujeito mobiliza
muitos e distintos índices, ícones, símbolos, etc., apontando
para os mesmos sentidos sociais. O perfil a seguir (FIGURA
68) é um exemplo perfeito de uma redundância indexical,
pois articula signos muito diversos para indexicalizar uma
característica social. Os signos que apontam para virilidade,
masculinidade e saúde, sobretudo reprodutiva, são de dois ti-
pos semióticos: (1) imagísticos – a postura, o gesto da mão, a
corrente, o porte saudável, a sugestão da prática de esportes –;
e, (2) discursivos – “surf” e “whey”, por exemplo, termos com-
pletamente descontextualizados que indexicalizam macheza/
virilidade pelas relações semânticas que apresento e explico a
partir do perfil seguinte.

264
Gleiton Matheus Bonfante

Figura 68: Perfil “Surf-Whey”

Além do vocabulário gírio “lekao” e “koe”, que apontam


para uma saliência pragmática da fala masculina (discutire-
mos melhor na seção 5. 3), este sujeito se nomeia com dois sig-
nos aparentemente desconexos, mas que operam como uma
exacerbação de sua condição masculina e saudável: “whey”,
que remete aos suplementos proteicos ingeridos por atletas
e frequentadores de academia, e o “surf”, prática esportiva
popularmente reconhecida como heterossexual. Somados
aos signos imagísticos que ele dispõe de si, sua performance
corpóreo-discursiva acaba sendo redundante: por mais que se
ultilize de diferentes estratégias de indexicalização, elas assi-
nalam a mesma característica: a masculinidade.

265
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

5.2.1.18 Fragmentação
O sujeito que escolhe seu nickname, que escolhe uma
foto, que se cria online, se encontra no espaço entre a ficção
e a realidade e desafia sua relação opositiva borrando seus
limites, através da fragmentação de seu corpo (Figuras: 68,
67, 62, 59, 58, 55, 53, 52, 51, 45, 44, para nomear apenas algu-
mas). Nos apps, homens se fragmentam, reduzem a si mes-
mos a partes de seus corpos, constroem a si mesmos com
sentidos sociais específicos e com sentidos abertos a imagi-
nação típicos da fragmentação.
Imagens zoom, focadas, riqueza dos detalhes evidentes
como musculatura e pilosidade são elementos que colaboram
com uma semiose da performance do desejo nos apps de pe-
gação. Se homens são constantemente acusados de objetificar
mulheres, reduzindo-as a partes do seu corpo, eles também
objetificam a si mesmos nas performances de si nos apps de
pegação. Questiono-me frequentemente frente aos dados:
seriam a fragmentação e a objetificação do corpo típicas do
machismo ou das tramas do tesão? Esta segmentação, frag-
mentação do objeto de desejo em partes, pode sugerir que
a fragmentação é uma linguagem típica do desejo. Se como
Bauman (1998) propõe, amor e desejo ‘falam línguas distin-
tas’, porque não supor que a semiose do desejo seja aquela que
privilegia a parte excitante em detrimento do todo?
A fragmentação, tão recorrente nos exemplos discutidos,
não significa uma mentira de si, uma dissimulação, mas um
artifício para multiplicar as possibilidades de verdades. Frag-
mentação pressupõe fantasia. A fragmentação apresenta peças
do corpo, mas sua totalidade permanece sempre alheia como
um quebra-cabeça para sempre inconcluso. A fragmentação

266
Gleiton Matheus Bonfante

se apóia em partes, mas significa o todo e é, sobretudo, uma


estratégia imagística cujas funções são preservar-se, estilizar-
se ao desejo do outro, realçar partes de si que seriam mais ape-
lativas, transformar, por fim, um sujeito em objeto de desejo.
No entanto a fragmentação ou metonimização de si tam-
bém podem ser estratégias da ordem dos signos para a repre-
sentação e a estilização de si. Na próxima seção, discutiremos
a relação entre indexicalização, metonímia e a estilização do
sujeito do desejo por meio das metonímias perfeitas.

5.2.2 Metonímias perfeitas


Argumentei anteriormente no texto que os processos de
indexicalização nos apps são de natureza metonímica, pois
eles sugerem movimentos de relação de sentido marginais,
ou seja, trata-se de índices que operam pelas margens, pelas
bordas do sentido, para denotar um todo, para trazer à cena
um significado social. Nesta seção, falaremos de ‘metonímias
perfeitas’, processos de iconização com sentidos muito está-
veis. Em particular, serão tratadas as metonímias perfeitas do
macho. Pelo sentimento inalienável e substancial que o corpo
possui sobre a ideia de quem o sujeito é, metonímias perfei-
tas comumente são signos do corpo, ou seja, partes do “cor-
po semiótico” (LEMKE, 1995), amplamente respaldados no
biopoder, que compreende o poder político de disciplinar e
regulamentar as subjetividades humanas de acordo com sua
configuração corpórea. O biopoder invoca a biologia como
verdade e como aporte valorativo na organização social. As
metonímias perfeitas do macho são processos de indexicali-
zação nos quais índices da virilidade são performados, para
estilizar masculinidade hegemônica por meio de atributos

267
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

físicos prototípicos do macho. Nos apps, eles são trazidos às


performances do sujeito do desejo indexicalizando desejabi-
lidade, já que macheza se configura como um capital erótico
muito valorizado neste código-território. As metonímias per-
feitas são uma estratégia de estilização de si que possibilitam
ao sujeito ser representado, substituído por seu signo de pra-
zer, transformando-o metonimicamente nos focos mais ób-
vios da objetificação no sexo, nomeadamente os órgãos envol-
vidos no ato sexual: o pênis e o ânus, e o produto da relação
sexual, o esperma. Os sujeitos das metonímias perfeitas ou
verdadeiras se reduzem a partes de seus corpos. Eles querem
ser identificados como “sujeito-pirocão”, “sujeito-rabão”, “su-
jeito-porra-abundante” etc.
Fragmentar-se, estilizar-se por meio das metonímias
verdadeiras pode ser uma forma de despersonalizar o sexo,
e assim evitar laços, ou criar laços menos duráveis, forjados
no tesão. A fragmentação de si é um fator do tesão e um ele-
mento da sintaxe do desejo, das quais podemos citar ícones
do desejo homoafetivo, como os gloryholes67, a prática sexual
na qual corpos só apresentam seus orgãos sexuais, e a suruba,
que corresponde a uma metonimização absoluta de si, o des-
facelamento do corpo no sexo, sua distribuição para outros
corpos e desejos.
Na análise seguinte dos perfis que evocam símbolos me-
tonímicos verdadeiros ou perfeitos, pretendo discutir como
a estilização de si combina as potencialidades do corpo com
seus significados sociais.

67 Gênero da pornografia gay ou cenário de prática sexual na qual pessoas em cabines diferentes sepa-
radas por uma divisória com um furo que permite intercâmbio sexual sem que os corpos se toquem ou
sejam vistos.

268
Gleiton Matheus Bonfante

5.2.2.1 Príapo sagrado, o deus profano


O significado do falo é, como todo sentido, social con-
texto-dependente; no entanto, o endeusamento da “neca
faloônica” (GUIMARÃES, 2013) ou do órgão sexual mas-
culino parece uma prática social que perdura, porém com
sentidos muito diferentes e, às vezes, obtusos, conflitantes.
Na Cultura Clássica, o falo era um Deus. Ou era um Deus
seu falo? Príapo, filho de Afrodite e Dionísio, foi um deus
mundano, que viveu entre os mortais. Ele sempre foi repre-
sentado em pinturas e estátuas por seu pênis gigantesco. No
período clássico, a figura do falo avantajado possuía sentidos
cômicos, ridículos pela desproporcionalidade anatômica e a
sugestão de deformidade. De acordo com o professor Hen-
rique Cairus (2014), devido à importância estética do cor-
po para o período clássico, vários personagens considerados
‘feios’ ou ‘ridículos’, inclusive Sócrates, eram representados
na comédia grega com falos enormes como forma de ressal-
tar sua corporeidade hedionda. Assim, o falo colossal fazia
de Príapo um deus menor, de menor valia.
Embora uma genealogia do significado do falo não seja
um assunto possível de ser esgotado aqui, acredito que um
marco artístico-histórico tenha exercido algum efeito na po-
sitivação dos significados do falo homérico: a representação
do falo como grandioso começou a se desenhar pelas linhas
de Tom of Finland e outros artistas e fotógrafos que, a partir
dos anos 1950, disseminaram a imagem de um pênis inflado,
potente, invariavelmente duro, viril. Assim, a “neca faloôni-
ca”, o pênis titânico, que substitui o próprio homem, não é
apenas um fruto de um sistema simbólico que masculiniza ou
feminiliza o homem de acordo com seu pênis, mas tem uma

269
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

direta ligação com a expansão de uma cultura sexual gay de


apreciação estética. O pênis, assim, se desenha como um fator
fundamental do tesão homoerótico, sem o qual todo o poten-
cial ejaculatório de um corpo seria comprometido.
Nos perfis de homens gays em diferentes plataformas que
viabilizam encontros entre sujeitos do desejo, o falo é invoca-
do como signo de si, como signo do macho. Zago, que reali-
zou uma etnografia virtual no Manhunt68, escreveu que nas
performances dos sujeitos, “o pênis torna-se o rosto do corpo”
(ZAGO, 2009:6). Nos apps, embora a rostilidade, a presença
do rosto na estilização de si, não seja absolutamente impres-
cindível, a disposição de uma imagem do pênis é vetada pe-
las empresas de smartphones. Tanto Apple® como Android®,
principais sistemas de operação de smartphones, possuem
uma política rígida de censura quanto a qualquer performan-
ce entendida como pornográfica, de modo que o pênis nunca
é exposto como parte do perfil, mas como uma confissão tro-
cada entre dois, na interação.
Nos apps de pegação, portanto, a impossibilidade de
mostrar o falo à maneira das plataformas de computadores
faz com que haja uma intensa discursivização sobre ele e que
ele seja também um elemento de apelo central ao desejo do
outro e um ícone da potentia gaudendi e da masculinidade.
O pênis funciona como metonímia do corpo do outro, e um
signo que aponta diretamente para o prazer, perseguindo a
lógica do quanto mais e maior, melhor.

68 Manhunt é um site de relacionamentos para homens gays. Embora à época da pesquisa de Leandro
Zago mencionada ele fosse exclusivo ao computador, hoje já existe um app para acessá-lo com mobilidade;
no entanto, ele continua acessível para computadores, diferentemente dos apps Grindr, Scruff e Hornet
aqui estudados, que são exclusivos a aparelhos móveis.

270
Gleiton Matheus Bonfante

O pênis grande como atributo é não apenas mencionado


nos perfis como estratégia de se apresentar como objetos de
desejo (cf. FIGURAS 70 e 71), mas é também orientador da se-
miose do macho e aparece – salvo exceções – como indispen-
sáveis à semiose do ativo, sendo um requisito para o prazer.
O primeiro tipo de construção de perfil, estilização de si que
podemos ressaltar remete à centralidade do falo e seu prota-
gonismo no desejo e no sexo homossexual (FIGURA 69).

Figura 69: Perfil “Passkerpikao”

A apreciação, o encanto pelo falo corresponde a uma ati-


tude essencialmente masculina e talvez narcísica na semiose
do desejo homoafetivo. Muito embora Freud tenha relegado
às mulheres o Penisneid69 – inveja involuntária pela posse de
um falo, proveniente de um sentimento de castração –, a ado-

69 A inveja do pênis poderia se manifestar de três formas nas mulheres: (1) pelo desejo de ter relações
sexuais, de gozar com um pênis, (2) pelo desejo ter um filho, que é um falo simbólico, já que a fantasia da
mãe se realizaria no filho, ou (3) manifestando um comportamento masculino.

271
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

ração do falo e o interesse por ele parecem ser muito maiores


pela parte dos próprios homens. Para os homens nos apps, os
pormenores do pênis são de interesse do tesão.

Figura 70: “Falcom dot vers”

O desejo é ação catártica sobre o mundo e por isso se lança


a cartografias muito específicas, quiçá lúdicas. O formato, o
peso, a cor, a potência ejaculatória, a presença ou não do pre-
púcio: o pênis é a estrela do corpo do homem e foco de gran-
de interesse nas performances do desejo e seu consumo pelo
Outro. Na FIGURA 70, o sujeito convoca seu desejo por pênis
dotados e não-circuncisados como estilização de si. A circun-
cisão pode popularmente alimentar mitos de diminuição do
prazer, ela é castradora, porque diminui o pênis. O prepúcio é
uma extensão do pênis, e, portanto, uma extensão do próprio
prazer do qual o pênis é promessa. Também pode se entender

272
Gleiton Matheus Bonfante

que a retirada de prepúcio é uma multilação do pênis. No en-


tanto, embora a circuncisão também possua apreciadores, a
grandiosidade do pênis parece ser não necessariamente uma
exigência, mas definitivamente uma predileção geral.

Figura 71: Interação entre “JizzAddicted” e “ativo picão”

Figura 72: “SARADÃO PKÃO GP”

273
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Na FIGURA 72 embora a invocação ao pênis como sig-


no de si compartilhe a estilização de si com outros signos,
a metonímia do macho recebe atenção especial: ele usa três
adjetivos para se qualificar: “sarado”, “macho”, “100% ati-
vo” – lembrando que essa última é uma característica que
diretamente se refere à funcionalidade do pênis –, enquanto
emprega o dobro de adjetivos para descrever seus órgãos ge-
nitais: o pênis é “reto”, “grosso”, tem “21cm” e no nickname já
figura como “PKÃO”, em caixa alta, e o saco é “-ão”, “pesado”
e “cheio”. O “sacão cheio” é uma potência sexual, na medida
em que a ejaculação é central ao sexo gay. A visibilidade da
ejaculação é central tanto pelo apelo erótico e “comprovação”
do gozo, quanto pela indexicalização de sentidos de aptidão
para o coito, de vigor físico para o sexo, de um corpo saudá-
vel, funcionalmente masculino. Assim, a ejaculação emula,
aponta para esses sinais de saúde e de aptidão funcional à
prática sexual ao mesmo tempo que se adéqua a um padrão
estético do gênero pornográfico, pois, de acordo com Ziplow
(1977), o ‘money shot’ ou a cena da ejaculação é de notável
importância para a estética do pornô. Outra possível expli-
cação para o afeto que a ejaculação provoca é o caráter trans-
gressivo que ela contém na medida em que o sêmen apresen-
ta risco de transmissão de DSTs.
A descrição minuciosa do pênis e de sua potência eja-
culatória também poderia ser identificada como uma for-
ma de performar masculinidade discursivamente. O apego
ao detalhe é identificado por Coates (2003) como um estilo
narrativo comumente empregado por homens entre outros
homens como uma performance de gênero. A riqueza de
detalhes nas narrativas serve como meio de demonstrar co-

274
Gleiton Matheus Bonfante

nhecimento técnico e distância emocional, de acordo com a


autora. Nas narrativas de si, que estilizam o corpo do sujeito
desejante, os homens nos apps se voltam para as minúcias
dos orgãos genitais. A centralidade dos órgãos genitais no
desejo homoafetivo é uma lógica um tanto cruel e limita-
dora do erotismo do corpo masculino. O falocentrismo que
assombra nossa sociedade insiste na centralidade – e até im-
prescindibilidade – do falo no ato sexual. Na prostituição
viril, como explica Perlongher (2008), a demanda de capital
simbólico gira em torno do mercado da virilidade sob os
signos da potência e prepotência do pênis, e o perfil anterior
(FIGURA 72) provém deste capital, reservando à estilização
de si grande atenção à estilização do seu pênis.
Contudo, a desejabilidade do pênis assim como sua po-
tência sexual precisam ser testadas, experienciadas, resisti-
das. Toda a potência seria inútil sem resistência, e assim o cu
se insurge como à resistência essencial ao falo, à penetração.
Uma resistência que deve ser vencida, penetrada. Na gramá-
tica superlativa da macheza masculina, o cu, a resistência ao
falo, não pode ser uma dificuldade intransponível, ou uma
impossibilidade. Cu apresenta um apelo erótico na medida
em que representa, aponta para uma resistência a ser venci-
da pelo falo. O elogio do cu como agente de resistência não
é ser pequeno ou apertado, mas distendível, elástico. Como
propõe a performance do sujeito do desejo a seguir (FIGU-
RA 73), a corpulência é signo do macho e o próprio cu e
a bunda devem ser grandes, monumentais, colossais para
receber a “neca faloônica”.

275
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Figura 73: Perfil “pauzao bundao”

Não é absolutamente estranho pensar que, como elemen-


tos interrelacionados pela penetração, um pênis gigante seria
inútil como instrumento de prazer, se não pudesse penetrar
um ânus elástico que se molde ao prazer do penetrador. As-
sim, “levar que nem homem”, “aguentar como macho” são
facetas da passividade que acabam por indexicalizar mascu-
linidade e virilidade.
Embora o prazer ainda revolva o pênis rígido, observa-
se um empoderamento do cu, ressaltado pela sua possibi-
lidade de estabelecer outros significados com o sexo. O cu
é, assim, poderoso pela distenbilidade; seu poder de disten-
são é definidor de seu potencial de gozo: ele deve apresen-
tar uma resistência, contudo, possível de ser vencida. O cu,
que é a imagem por natureza do pornográfico, nessa relação
com o pênis ressignifica sua relação reclusa ao decoro, sua

276
Gleiton Matheus Bonfante

anatomia exótica, sua intrínseca repugnância para configu-


rar um símbolo de empoderamento social. Apesar do poder
simbólico que o cu adquire, “passivo” e “ativo” ainda se rela-
cionam entre si como silêncio e estrondo na sociedade con-
temporânea, de modo que os sujeitos silenciados continuam
sendo os não-fálicos.
As performances do corpo através do pênis e do ânus são
metonímias perfeitas, substituem os sujeitos pelas partes se-
xuais envolvidas no coito. As metonímias perfeitas ou meto-
nímias verdadeiras são artifícos populares na estilização de si
como objeto de desejo nos apps de pegação.

5.3 Saliência pragmática

Estereótipos nos ajudam a organizar o nosso conheci-


mento sobre o mundo social. Sempre generalizantes, eles são
descritivos de apreensões totalizantes, imprecisas e hegemô-
nicas sobre os sujeitos e acabam funcionando como símbolos
popularmente aceitos de determinados tipos de pessoa. Este-
reótipos sociais são lócus de saliência pragmática, pois podem
ser interpretados pelos atores sociais como signos de uma ca-
racterística essencial do sujeito. A saliência pragmática é có-
digo-dependente, de modo que as categorias sociais não são
universalmente salientes. A saliência pragmática é contextual
e nos apps, os sujeitos são pragmaticamente atentos a signos
que salientam características que eles acham desejáveis, entre
elas a masculinidade. Saliência pragmática é a interpretação
ideológica do sujeito a respeito da estética da estilização de
outrem. A atenção ao código e a sensibilidade ao fato de es-
pecíficas variáveis indexicalizarem valores sociais específicos

277
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

fez os participantes desenvolverem estratégias morfológicas,


lexicais e discursivas na performancede desejabilidade.

5.3.1 Aumentativo: a morfologia do bofe


No caso das indexicalizões de cunho morfológico, eu
gostaria de ressaltar duas alterações morfo-semânticas, no-
meadamente o diminutivo e o aumentativo, que já aparece-
ram no texto em vários exemplos como forma de indexicali-
zar macheza, vigor e potência sexual.

Figura 74: Perfil “Morenão”

No perfil da FIGURA 74, os índices são convocados à per-


formance na conquista de um determinado efeito discursivo,
de forma que o aumentativo que performatiza masculinidade

278
Gleiton Matheus Bonfante

hegemônica emerge como icônico do masculino, sendo fre-


quentemente usado para performar uma identidade social: o
macho. O diminutivo, por outro lado, nem sempre em neces-
sária oposição ao aumentativo, pode indexicalizar, associar
valores relativos ao feminino, assim como estratégia retórica
de diminuir o outro, de construir seus atributos como ínfi-
mos, como exemplifica a FIGURA (75).

Figura 75: Perfil “Turista Caio”

Neste caso, FIGURA 75, o diminutivo é um recurso na


criação – ou destruição – do Outro. O diminutivo também é
convocado como uma fantasia social para referir-se com des-
prezo à alteridade, mas também é associado como um signo –
até positivo – de delicadeza, fragilidade, como propõe o perfil
a seguir (FIGURA 76) ao predicar o ânus.

279
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Figura 76: Perfil “Ativão”

Entre as possibilidades de estilização do corpo, a oposi-


ção discursiva entre pênis grande e ânus apertado é popu-
lar e se faz marcar através da oposição morfológica entre o
diminutivo e aumentativo. Por meio dessa performance de
polarização se constroem não apenas redes de significação
específica para o cu (delicado, ferível, ‘-inho’) e para o falo
(colonizador, colossal, ferino, potente, grandioso), mas se
coaduna comum a gramática dos corpos que opera na cons-
trução de uma diferença social ligada à instrumentalidade do
corpo no ato sexual: Ativo (poderoso, ‘-ão’, viril) e Passivo
(submisso, ‘-inho’, delicado).

5.3.2 Gírias
Para Preti (1983), as linguagens possuem o prestígio de
quem as fala, portanto, modos de falar, variedades dialetais

280
Gleiton Matheus Bonfante

da língua podem ser volúveis à saliência pragmática. As gí-


rias, para além de indexicalizar traços de comunidade, po-
dem ser ostentadas para indiciar um repertório popular de
linguajar informal. Estudiosas da linguagem, como Coates
(2003), Cameron (2008[1998]) e Eckert (2008[1998]), inte-
ressadas em características linguísticas convocadas à perfor-
mance de gênero, identificaram que performances de femi-
nilidade costumam preferir formas mais gramaticalmente
canônicas, enquanto performances de masculinidade tendem
a privilegiar falares menos prestigiados, como estratégias de
performances de gênero. De acordo com Cameron (2003:280-
281), “aprendemos um amplo set de significados generifica-
dos que anexamos de forma reflexiva em diferentes e com-
plexas formas de falar, produzindo nosso comportamento à
luz destes significados”, de modo que, ao ser entendidas como
símbolos de um modo de falar masculino, as gírias podem
funcionar como estratégia lexical na performance do gênero
masculino. Gírias costumam indexicalizar masculinidade,
na medida em que salientam pragmaticamente um contraste
entre agramatical e gramatical, entre linguajar de prestígio
e língua desprestigiada, enfim, entre masculino e feminino.
Não apenas o uso de gírias, mas várias formas de linguagem
‘desviante’ foram associadas por sociolinguistas como Coates
(2003) e outros a performances de masculinidade, enquanto
performances de feminilidade têm sido associadas à boa edu-
cação, cortesia e assertividade gramatical70.

70 Vale lembrar que essa diferença não se refere em absoluto a características ‘inatas’ da fala da mulher
ou do homem, mas, ao contrário, a características sociais e socialmente aprendidas. Eckert (2008) pro-
põe, por exemplo, que a fala mais educada, mais correta das mulheres observada por sociolinguistas em
diferentes contextos pode indicar uma estratégia de conquistar um prestígio social do qual seu gênero foi
socialmente privado em prol da manutenção do privilégio masculino.

281
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

As gírias são atos performativos muito corriqueiros nos


apps de pegação. Gírias como performances de estilização
indexicalizam traços identitários. O vocabulário gírio é tão
frequente que alguns participantes mais sensíveis às caricatu-
ras das performances de gêneros chegam a protestar contra o
uso de gírias por vezes exagerado nos apps de pegação, como
o perfil a seguir.

Figura 77: Perfil “Enseada”

Contudo, como observável no Perfil da FIGURA 77, as


estratégias de estilização de si, que chamei de lexicais: gírias,
expressões e sotaques nativos e regionais (como a gíria dos
‘lekes/leskis’ no Rio de Janeiro) indexicalizam masculinida-
de. No entanto, muito frequentemente, não são ratificadas por
outros sujeitos do desejo como signos legítimos de masculi-
nidade. Como propõe o perfil anterior, o vocabulário gírio

282
Gleiton Matheus Bonfante

indexicalizaria uma identidade social de “bicha passiva que-


rendo dar o truque de macho”. “Dar o truque”, como uma
expressão marcadamente gay, em oposição à língua dos ‘les-
kis’ provoca um efeito de humor interessante, pois coloca o
macho em relação com a bicha como produtos performativos
da mestiçagem de estilos.
Embora formas de falar específicas sejam identificadas
com grupos de falantes específicos, sua convocação pode não
ser suficiente para produzir um efeito de passing– ou passar
– por esse devir social. A mobilização de outros signos para-
lelamente pode ser necessária para ratificar uma performance
como legítima e evitar “dar o truque” como o perfil anterior
(FIGURA 77) propõe, indicando, assim, a emergência do con-
ceito de Redundância Indexical observado em outros perfis e
já discutido nesta Erótica dos Signos.
Além de o linguajar gírio ser identificado socialmente
com masculinidade, outra forma de linguagem desviante a
dos palavrões também são popularmente características tão
salientes da performance linguístico-discursiva masculina
quanto corriqueiras nos apps.

5.3.3 Palavrões e “falta de educação”: do


tabu social ao privilégio masculino

Os ‘palavrões’, as ‘blasfêmias’, a ‘gíria’ e o ‘discurso mali-


cioso’ são tipos de manifestação linguística que o lexicólogo
Dino Preti reuniu sob o título genérico de “linguagem proi-
bida” (PRETI, 1983), por serem modalidades da linguagem
que habitualmente indexicalizam baixo prestígio social, o que
acabou por transformá-las em tabus linguísticos.

283
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Até aí concordamos com o autor, pioneiro no estudo da


linguagem erótica no Brasil. No entanto, um tabu social não
é uma decorrência necessária do baixo prestígio que um vo-
cábulo recebe na modalidade dominante da língua já que os
significados são contextuais e dependem das relações indexi-
cais que forjam in locu. Ao contrário da proposição do autor
de que “tabus linguísticos são decorrências de tabus sociais”
(PRETI, 1983:61), tabus linguísticos não são universais, mas
contextuais. Um tabu social implica necessariamente em um
regime moral-discursivo que é um regime de circulação. E
exatamente um regime de circulaçãoque não é uma restrição
absoluta, mas uma exclusividade. Circular pelo campo se-
mântico dos palavrões tem sido tradicionalmente um privilé-
gio do gênero masculino.
As palavras tabu de uma cultura são específicas de uma
época e em grande parte são palavras que visam descrever de
forma crua e grosseira partes do corpo (“rola”, “pica”, “buce-
ta”, “cu”), assim como funções fisiológicas, especialmente as
ligadas ao sexo (“dar”, “comer”, “foder”, “meter”, “foda-se”,
“tomar no cu”), ou ainda identidades sociais ligadas a prá-
ticas sexuais estigmatizadas (“viado”, “puta”, “corno”). As
palavras tabus são muito abundantes na estilização de si nos
apps de pegação com basicamente duas funções: (1) produzir
afeto sobre os corpos já que as palavras de calão possuem um
apelo erótico muito forte (atos perlocucionários de fala) e (2)
performar masculinidade hegemônica (atos ilocucionários de
fala), já que o acesso a este tipo de vocabulário é restrito a
contextos específicos e celebrado como traço identitário que
invoca dureza, virilidade e ‘marra’. De acordo com a linguista
Jennifer Coates, que analisou e descreveu as representações

284
Gleiton Matheus Bonfante

discursivas de masculinidades em narrativas, uma das carac-


terísticas prototípicas da masculinidade hegemônica seria o
uso de palavrões: “A linguagem tabu[…] funciona de várias
maneiras: atribui verisimilitude ao discurso direto, adiciona
ênfase nos pontos que o narrador quer destacar, porém, mais
importante, ela performa masculinidade hegemônica. Xinga-
mento e palavras tabus têm sido empregados historicamente
por homens na companhia de outros homens como símbo-
los da sua tenacidade e masculinidade” (COATES, 2003:46),
como apreensível no perfil a seguir (FIGURA 78).

Figura 78: “se vc quiser tomar no cu”

Na FIGURA 78, há indistinção entre headline, nome,


assunto. E o perfil apresenta suas armas de sedução: atos ilo-
cucionários (através dos quais o sujeito constrói a si como um
sujeito desejante, acessando a linguagem chula na produção

285
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

de masculinidade) e atos perlocucionários (que podem pro-


duzir tesão em alguém através da linguagem obscena, que
é uma estratégia de produção de excitação) de linguagem.
Essa mesma potencialidade performática do tesão e do estilo
através da linguagem marginilizada é estratégia do PERFIL
79 a seguir.

Figura 79: Perfil “Socador”

5.3.4 Humor & ironia


O uso de humor nas performances de estilização dos su-
jeitos nos perfis dos aplicativos de pegação também se deixa
observar. De acordo com Hall et al. (2012), humor pode ser
uma estratégia de distanciamento entre sujeito enunciador e
práticas sociais específicas. Na investigação de um chat dire-
cionado a homens metrossexuais, os pesquisadores constata-
ram o uso generalizado de ironia e humor para menosprezar

286
Gleiton Matheus Bonfante

demonstrações de feminilidade como na FIGURA 80 cujo


sujeito, ao estilizar-se, performa uma paródia dos partici-
pantes dos apps.

Figura 80: Perfil “RAWR!”

O perfil, sem completar nenhuma lacuna acima apontada


como responsável pela modelagem do corpo e da identidade,
funciona como uma verdadeira intervenção no código-terri-
tório dos apps: a imagem propõe uma disparidade entre o que
se fantasia de si e o que realmente se é. A figura emblemática
de uma flor dente-de-leão que se imagina um leão indexica-
liza não apenas o papel da alteridade na apreensão de quem
se é, mas também uma fantasia de masculinidade, virilidade
que impera na semiose gay. O sujeito da figura selecionada sa-
tiriza o código-território e as performances de masculinidade
ali encenadas. O perfil mostrado é uma metáfora da relação
entre performance de si e o sucesso da performance, acusan-

287
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

do, com humor, os exageros com os quais os perfis são com-


postos e a estilização de uma masculinidade caricata tanto
idealizada quanto pouco verossímil.

5.4 Desidentificação

Nesta última seção do capítulo analítico me proponho a


discutir as performances que Muñoz (1999) teorizou como
desidentificatórias – “Disidentification”. Elas são, para o autor,
performances transformativas com potencial de operar mu-
danças ideológicas no mundo, na medida em que ao dele se
desidentificarem, os atores sociais performam para si e para
os outros uma nova realidade social. As performances de rea-
lidades outras podem inaugurar novas formas de perceber o
mundo, e, além disso, permitem aos próprios sujeitos do de-
sejo situarem-se no espaço histórico-discursivo, inauguran-
do novas possibilidades de roteiros subjetivos e significados
sociais para si, apesar das pressões sociais de conformação e
normalização sócio-biopolítica. Estes sujeitos se desidentifi-
cam com as histórias de seus nomes, com as ontologias de
seus corpos e os estilizam outros, para virem a ser, renascidos
no bojo do seu próprio olhar. São sujeitos queer porque deto-
nam as normas essencialistas da categorização jogando pelas
regras do jogo, se movimentando por dentro dos discursos
que combatem. Eles se reinventam descontruindo a autorida-
de da estabilidade para a significação e trazendo a alteridade
para a visibilidade social. São sujeitos queer porque se desi-
dentificam com os papeís sociais que lhe foram designados
e produzem um tipo de conhecimento novo sobre si e sobre
seus corpos. Nas palavras do autor:

288
Gleiton Matheus Bonfante

Desidentificação se propõe a ser descritiva das estraté-


gias de sobrevivência, que sujeitos minoritários prati-
cam para negociar em uma esfera pública majoritária e
fóbica que continuamente elide e pune a existência de
sujeitos que não estão em conformidade com o fantasma
da cidadania normativa. (MUÑOZ, 1999:4)

A cidadania normativa, a qual alude Muñoz (1999), revol-


ve de um sentimento fóbico qualquer discordância entre sexo
e gênero, silenciando sujeitos que não se adequem às expecta-
tivas socias e que desafiem lógicas coesas de existência, como
“Florzinha” a seguir, já que, como discutido extensamente, a
performance da masculinidade hegemônica, o ataque à efe-
minização e a mobilização dos signos do macho são estiliza-
ções de si corriqueiras no jogo do afeto nos apps.

Figura 81: Perfil “Florzinha”

289
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Muñoz se refere à “desidentificação como uma herme-


nêutica, um processo de produção e um modo de performan-
ce” (MUÑOZ, 1999:25), e com razão “Florzinha” (FIGURA
81) é um modo específico de performance: a disruptiva, assim
como encerra um processo de produção de novos sentidos
para si e uma hermenêutica do sujeito efeminado. Uma florzi-
nha, poder-se-ia dizer, sintetiza o pesadelo indexical do ma-
cho: o diminutivo, o próprio signifcado da flor tradicional-
mente relacionadaao universo feminino, as cores da imagem,
etc. A “Florzinha”se desidentifica com as normas sissyfóbicas
de estilização e se produz frágil, irreverente, feminina e dis-
ruptiva: a flor, quem diria, é na sua singleza, a erva daninha
no jardim dos machos.
Desidentificação, como propõe o autor, “é sobre re-
ciclar e repensar significados engendrados socialmente”.
(MUÑOZ, 1999:31). Isso quer dizer que a desidentificação
recolhe como material para performance as ideologias so-
ciais que desempoderam politicamente formas específicas
de existência, no caso aqui (FIGURA 81) a feminilidade
masculina, mas também ficções racializadas (FIGURA 82),
o “descuidado” de si (FIGURA 83) e a atividade sexual fe-
minina no ato sexual (FIGURA 84). Performances desiden-
tificatórias convocam os próprios alicerces universalistas
do pensamento dominante para transformar sentidos so-
ciais criando versões de si mesmos que são impensáveis, in-
visíveis para o heterocapitalismo.

290
Gleiton Matheus Bonfante

Figura 82: Perfil “neg_”

O perfil anterior (FIGURA 82) corresponde a uma decla-


rada performance de desidentificação com a história dos sig-
nificados acerca da negritude e com sua associação a valores
relativos a potência sexual. A performance desidentificatória
rompe com roteiros sociais de experiência identitária. Como
o nome “neg” sugere, ele se agarra a um signo (a negritude) in-
vestindo-lhe de novo sentido, purificando-se dos espectros da
objetificação e sexualização a que sua etnia foi secularmente
submetida, e rejeitando “roteiros socialmente codificados de
identidade […] comumente formados por energias fóbicas em
torno de raça, sexualidade, gênero” (MUÑOZ, 1999:6). Na
imagem (FIGURA 82), o sujeito expõe somente o olho, a pro-
ximidade do olhar com seu espectador desvia o foco típico

291
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

do desejo na objetificação do corpo através do seu desnuda-


mento e sua fragmentação para sua figura metonimizada pelo
olho. O perfil é seu olhar, um consumidor de objetos, ativo,
empoderado, que insiste no oblívio do corpo negro como re-
sistência à sua constante objetificação. Desidentificar-se é se
posicionar como simultanemante dentro e fora da imagem
de negro (FIGURA 82), mas também do sujeito saudável (FI-
GURA 83), que pratica e exalta a filosofia do “Cuidado de si”
(FOUCAULT, 2014).

Figura 83: Perfil “cudeleite”

O perfil mostrado (FIGURA 83) se desidentifica com a


ideologia ocidental do cuidado de si no sexo, com os valores
da moral dominante e com normas de conduta socialmente

292
Gleiton Matheus Bonfante

esperadas em relação ao corpo. Ele se rebela contra a valori-


zação da longevidade e a adoração de um corpo sempre ‘su-
per’, sempre saudável, preservado e perdurável. Mais corajosa
e queer é a revelação do rosto ao adotar como mais relevantes
signos na estilização de si, aqueles que muitas vezes são so-
cialmente considerados destrutivos e até criminosos. O sujei-
to do perfil da FIGURA 83 se atreve a convocar publicamente
a prática de ejaculação dentro do ânus como signo do prazer
sendo provocativo do ideal de longeividade e de preservação
do corpo e, ao mesmo tempo, atribuindo novos sentidos ao
sexo destropegido e à própria vivência com DSTs e HIV, como
a excitação e a livre experimentação. Sentidos que extrapolam
os limites discursivos da morte ao qual o HIV foi relegado,
socialmente. Apesar do ethos de sexo protegido na comuni-
dade homoafetiva e da pozfobia71, “cudeleite” se desidentifica
com os signos da morte, da doença e da convalescência que
circundam os soropositivos para ressaltar o potencial erótico
desses corpos abjetos, assinalando sua predileção por receber
no ânus a ejaculação do parceiro – “cu de leite”, ou seja, a prá-
tica de sexo anal desprotegida. Que o leitor mais conservador
não me entenda como apologista ao sexo desprotegido, mas
alguém que pensa em tal performance como instrumento im-
portante na desmistificação do fantasma do HIV que ronda
a homossexualidade se dedicando a fundar um novo terreno
de subjetivação. “Cudeleite” se desidentifica como signo do
‘cadáver adiado’ que devasta inúmeros sujeitos soropositivos,
privando-os de sua humanidade.

71 Pozfobia é um termo utilizado para designar preconceito contra portadores do vírus HIV.

293
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

Figura 84: Perfil “Menina”

Como discutido anteriormente, o falo é central ao signifi-


cado do homem. Contudo, na contemporaneidade, o falo não
pode mais se resumir a uma característica inata, ou a um es-
tandarte do privilégio masculino, porque ele pode ser adqui-
rido tecnologicamente. O falo é uma mercadoria comprável.
O corpo prostático, aprimorado pela ciência, permite o de-
sempenho de funções que nossa biologia não necessariamente
permite, e assim à “Menina” é possibilitado penetrar outros
meninos e ao mesmo tempo se desidentificar com um padrão
sexual e de comportamento socialmente desejado para ela. Tal
performance de um devir-em-diferença pode ser um signo de
uma interpelação social que fracassou, e tem o poder de fun-
dar um contra-público, como explica Munõz: “Estas identida-

294
Gleiton Matheus Bonfante

des-em-diferença emergem de uma interpelação falida dentro


da esfera pública dominante. Sua emergência é predicada pela
habilidade de desidentificar-se com a massa pública e, ao con-
trário, através da desidentificação, contribuir para o funcio-
namento de uma esfera de contrapúblico” (MUÑOZ, 1999:7)
Citando o trabalho de Michel Pêcheux, Muñoz (1999) ex-
plica que desidentificar-se não é nem se identificar, nem se
opor: “A desidentificação […] não opta por assimilar tal estru-
tura [formações ideológicas], nem se opor estritamente a ela;
ao contrário ela opera nas e contra as ideologias dominantes”
(1999:11), e assim ela age tentando transformar a lógica cul-
tural por dentro, em uma resistência que não é explítica ou
violenta, mas é micro, local, quiçá insignificante, e por isso
mesmo detentora de potencial de mudança. Eis o potencial
transformativo, combativo disruptivo dos apps de pegação: as
microperformances.
Como se pode perceber ao longo do movimento analí-
tico dos perfis, os usuários dos apps realizam performances
multissemióticas que emaranham um conjunto complexo de
signos e sentidos. Grande parte dos rescursos indexicalizam,
de forma redundante, sentidos comprometidos com o que de-
nominei ‘falocentrismo’, ‘pedagogia do macho’ e ‘virilidade’.
Elementos como postura corporal, gestual, expressão facial,
acessórios (correntes, tauagens e farda, por exemplo), cor de
pele, etnia, diferentes registros e estilos de linguagem, ima-
gens, entre muitos outros, são empregados em performances
íntimo-espetaculares do desejo que se apóiam no mostrar-se
como forma de construção de desejo.
Entretanto, embora a maioria das peformances se apoiem
em valores sociais dominantes como a heteronormatividade,

295
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

branquitude, misoginia, masculinidade hegemônica, muitos


sujeitos optam por se desidentificar e viabilizar outras tra-
jetórias para o sujeito do desejo, implodindo ontologias, ex-
pondo a maleabilidade do ser e o potencial de agentividade
das perfomances. Esta ambivalência, que perpassa os dados
e perpassa os apps, configura uma oscilação entre resistência
e conformação muito interessante e típica do poder, como o
concebe Michel Foucault. Ação e reação, manifestação e resis-
tência são inerentes tanto às disputas pelo poder quanto aos
discursos formativos que nos interpelam.

296
6. (Cu)nclusão

Neste livro, me propus a descrever ea documentar a Eró-


tica dos Signos que, em outras palavras, corresponde a uma
descrição do funcionamento de signos típicos da estilização
de si em um contexto muito especial: os aplicativos de paque-
ra online. A dimensão erótica deste empreendimento cientí-
fico pode ser relacionada a cinco características específicas
à abordagem da pesquisa e ao próprio contexto. Primeira-
mente, a natureza íntimo-espetacular das performances ana-
lisadas: as performances ensaiadas nos apps são técnicas de
existência que vêm a produzir, a criar, um sujeito específico:
um sujeito que deseja, que se lança a um contínuo desejar e
experiencia uma ânsia por fazer morrer seus desejos e nasce-
rem seus gozos. Um sujeito que se se pornifica, que assume
a autopornificação não apenas como modo de inteligibilida-
de, mas como palco de embate político. Segundo aspecto em
que a perspectiva erótica comparece é na excitação, no afeto
produzido pelos signos no corpo dos interactantes neste có-
digo-território. Como relato nos capítulos prévios, a lingua-
gem tem o poder de tocar os corpos, produzir neles diferen-
tes tipos de afecções: algumas palavras ferem, como propõe
Butler (1997), outras ainda excitam, outras – ou as mesmas
em diferentes contextos – provocam diferentes tipos de sen-
sação: medo, encantamento, tesão. Em terceiro lugar, o ero-
tismo também parece ser inerente ao estudo de sexualidades,

297
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

especialmente das estigmatizadas, como a homoafetividade.


A prática homoafetiva é revolvida pela exotização típica do
Outro, recorrente na produção de sujeitos identificados por
suas práticas sexuais e quase nunca para além delas. Assim,
a terceira inserção do erotismo nesta pesquisa se dá porque
erotismo é uma dimensão política que tange a visibilidade
de desejos subalternos. Quarto, a tessitura aqui se desenha
como um empreendimento erótico por causa da própria di-
mensão sensual na geração de dados: o envolvimento íntimo
do pesquisador in-mundo em seu contexto de pesquisa e a
inspiração autoetnográfica da pesquisa. Finalmente, o em-
preendimento erótico comparece neste livro por causa do cu;
do meu cu, do vosso excelentíssimo cu, de todos os cus que
importam e cuja funcionalidade é de suma importância para
nos atribuir certa condição como corpo, certo valor como
humanos. A instrumentalidade do nosso cu atribui ao leitor,
a mim mesmo, a nós todos, um sentido social específico, de
modo que o que fazemos com ele é de interesse público e será
discutido na parte final deste Capítulo.
Nesta tessitura me perguntei: como o sujeito do desejo
estiliza seu corpo e performa seus desejos? Quais estratégias
semióticas eles empregam para se produzir como sujeitos de-
sejantes, como corpos inteligíveis?
Na resposta a essas questões contemplei o seguinte per-
curso: primeiramente, no Prelúdio, trouxe alguns exemplos
de práticas que têm integrado roteiros de subjetivação con-
temporâneos: correr o risco de vida pela performance de si,
engajar-se na performance íntimo-espetacular de si em redes
sociais, e construir performances desejantes intensas nos apps
de pegação, como relatado pelo registro etnográfico e pela

298
Gleiton Matheus Bonfante

matéria de O Globo, que realça a importância da estilização


de si para a paquera contemporânea. Desenvolvi, então, no
primeiro capítulo uma discussão acerca das características da
contemporaneidade, destacando, sobretudo, sua alta reflexi-
vidade, os novos regimes de visibilidade e as insígnes culturas
somática e farmacopornográfica. Em seguida, no Capítulo
dois, empreendi uma discussão teórica sobre o corpo e sua
maleabilidade e utopia constitutivas, seu vir a ser semiótico e
a dependência da alteridade que seus sentidos experimentam.
Explorei a questão da linguagem como ação, i. e., a performa-
tividade da linguagem, e o sentido de estabilidade identitária
advinda da repetição.
No Capítulo seguinte, descrevi, em minúcias, os apli-
cativos como código-territórios específicos, caracterizados
por: sua função de tecnologia de subjetivação e seu funcio-
namento como uma tecnologia do próprio corpo. Discuti a
dificuldade de estabelecer congruências identitárias entre
seus participantes e o fenômeno de a-participação. Ressaltei
as novas escalas de tempo e espaço – comprimidos e acelera-
dos –, profundamente influenciadas pelo desejo que os apps
inauguram. No quarto Capítulo, explicitei os procedimentos
metodológicos com os quais delineei os contornos da pesqui-
sa, destacando os embates éticos e a necessidade de contínua
reinvenção que a etnografia virtual, ou netnografia, introduz.
Discuti a geração de dados e os desafios implicados em uma
netnografia, atacando o conceito tradicional de autoridade et-
nográfica, aquele que supõe uma assimetria de conhecimen-
to e de poder entre o pesquisador e os sujeitos que estuda.
Propus, ao contrário, pensar no pesquisador como um ser
mundano, que, assim como os sujeitos que estuda, está inse-

299
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

rido irremediavelmente nos código-territórios que se propõe


a investigar. Denominei as diversas práticas envolvidas nessa
metodologia, nesse modo de construção do conhecimento de
Erótica dos Signos.
Em seguida, analisei os perfis, descrevendo as estratégias
de performances íntimo-espetaculares dos sujeitos e investi-
gando os sentidos indexicalizados pelos signos dispostos nas
performances íntimo-espetaculares de si. A análise apontou
para a intensa convocação de símbolos sociais de alto prestí-
gio como masculinidade hegemônica, um corpo que corres-
ponde aos ideais sensórios e a centralidade da boa forma na
cultura somática. A análise mostrou que performar sua po-
tentia gaudendi (PRECIADO, 2008), seu potencial de gozo re-
presenta uma tarefa essencial aos sujeitos do desejo, de modo
que a intensa mobilização de signos apontando para caracte-
rísticas sociais semelhantes – i. e., seu capital ejaculatório –
deixava ver processos de estilização que nomeei‘redundância
indexical’ – a mobilização de vários signos que indexicalizam
o mesmo sentido –, indiciação rizômica – sistemas complexos
de signos indexicalizando emaranhados de sentidos de forma
interrelacional –, metonímia perfeita do macho – a estiliza-
ção de si por meio de performances semióticas da genitália –,
“saliência pragmática” (WOOLARD, 2008) – que se refere à
identificação de identidades sociais com certos fatos linguís-
ticos como sotaque, gírias, entre outros. Porém, não apenas
as performances discursivas, mas também as imagens se adé-
quam a metonimização de si: a análise nos confrontou com
a apresentação de corpos fragmentados, com foco em partes
específicas, simulando uma proximidade do olhar em relação
ao corpo e a intimidade da autopornificação.

300
Gleiton Matheus Bonfante

Na próxima seção me dedico a revisitar alguns pontos


relevantes da análise empreendida, pontos que tocam as per-
guntas de pesquisa que orientaram a discussão, porém or-
ganizados de forma distinta. Em seguida, descrevo as con-
tribuições da pesquisa para a área da Linguística Aplicada
Indisciplinar. Depois, delineio possíveis itinerários de inves-
tigação, que possam ser desencaminhados pela Erótica dos
Signos. Por fim, discuto a linguagem como arena política e
defendo o ‘cu’ como signo de emporadamento, como estraté-
gia de desidentificação subversiva e de atribuição de visibili-
dade à homoafetividade.

6.1 Algumas inconclusões

Os sentidos que gravitam ao redor do corpo são con-


textuais e historicamente determinados. As interações nos
apps contemporâneos inauguram novos significados sobre o
corpo, assim como novos limites. Se antes o corpo era com-
preendido como o vestígio do pecado, o lócus da renúncia e
do sacrifício pela alma, hoje o corpo é compreendido como
forma de ‘admiração moral’. A cultura somática instaurou o
cuidado de si, uma técnica de si secularizada como uma busca
sem descanso pela boa forma física, pelo corpo saudável e ‘sa-
rado’: “O cuidado de si antes voltado para o desenvolvimento
da alma, dos sentimentos ou das qualidades morais, dirige-se
agora para a longevidade, a saúde, a beleza e a boa forma”
(FREIRE, 2004:190). E nos apps, o cuidado de si, como exer-
cício subjetivo de si mesmo, é celebrado amplamente a partir
do cuidado com a imagem de si. A prática do cuidado de si
não é uma prática relacional, é uma performance atravessa-

301
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

da pelo olhar do outro. Ela passa necessariamente pelo signo.


Nas palavras de Foucault, o cuidado de si articula uma inten-
sa atividade discursiva, pois “em torno dos cuidados consigo
toda uma atividade de palavra e de escrita se desenvolveu, na
qual se ligam o trabalho de si para consigo e a comunicação
com outrem” (FOUCAULT, 2014:66-67). E nos apps, o cui-
dado de si é celebrado por meio das performances espetacu-
lares e íntimas do tecnocorpo. Performances íntimo-espeta-
culares são práticas sociais que consagram o cuidado com a
imagem do corpo, investindo em filtros de imagens e recortes
metonímicos lisonjeiros, em performances do corpo saudável
(academias de ginástica, dietas insensatas e inúmeros tipos
de intervenções estéticas, principalmente cirúrgicas) que nem
sempre – ou quase nunca – pressupõem saúde. No capitalis-
mo farmacopornográfico, os sujeitos praticam a si mesmos
através do Cuidado de si, que marjoritariamente assume a fi-
gura do cuidado com a imagem de si.
Também nos apps, não apenas os sujeitos, mas seus mais
íntimos desejos são visíveis. Esta cartografia dos signos do de-
sejo que a Erótica dos Signos apresenta nos leva a (re)pensar
as complexas relações entre desejo e visibilidade dos corpos.
Uma conclusão aqui seria entender a performance dos pró-
prios desejos como técnica de si. A movimentação do desejo
pelos signos da pornificação dos corpos e da confissão atribui
ao sujeito a própria existência. Tantos os corpos como os de-
sejos dos corpos só existem em performance.
A visibilidade como evidência do real (BALTAR, 2013)
atribui ao corpo um papel central: ele seria o limite entre o
visível e o invisível, o corpo seria a interpelação primeira da
veracidade do indivíduo, de sua realidade. Mas não apenas o

302
Gleiton Matheus Bonfante

corpo seria uma insígnia do real. Existiria algo mais íntimo,


mais inalienável e, ao mesmo tempo, mais visível, real, pre-
sente do que o próprio corpo?
A investigação das performances íntimo-espetaculares
nos apps nos mostrou que sim. Há sim algo mais íntimo do
que o próprio corpo: os desejos do corpo. A investigação aqui
empreendida nos mostrou que, quando a exibição do próprio
corpo não for mais suficiente aos ensejos do prazer, o dese-
jo deve ser igualmente mostrado, comprovado, tangenciado
pela palavra e pela imagem. Vimos nos capítulos anteriores
que os desejos do corpo são invocados como estratégias de
performance de si, são invocados como verdades de si, não
apenas porque revelam o potencial de excitação, de afeto, de
um corpo – uma das verdades mais valorizadas na ‘geração
fuck’ – mas também porque fazem surgir na articulação do
sujeito consigo mesmo uma verdade do tipo confessional. As-
sim os sujeitos que informam esta pesquisa são aqueles que se
objetificam sob o véu do desejo, que articulam seus corpos e
seus desejos à estilização de si.
Durante a investigação empreendida pela Erótica dos
Signos, pude observar uma conexão incontornável entre
manifestações desejantes e ideologias sociais. O desejo, em-
bora aleatório e permissivo, responde a códigos culturais de
apreciação e reconhecimento. Quais ideologias sociais sub-
jazem aos signos empregados na performance íntimo-espe-
tacular? Quais relações indexicais se estabelecem entre sig-
nos e imaginário social?
Baseando-me na pressuposição de que a performance de
si do sujeito do desejo é informada por um imaginário social,
uma semiose social do desejo, pude notar que o desejo pode

303
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

ser um fator de normalização dos sujeitos e de suas perfor-


mances. O desejo pode motivar alterações linguísticas, como
o emprego de gírias, o uso de palavras tabu, um estilo discur-
sivo confessional com muitas marcas subjetivas, e a fragmen-
tação do corpo, entre outras características. O desejo pode
ser uma motivação social para mudanças lexicais, discursi-
vas e semióticas, para a estilização de si, porque o sujeito que
reflete sobre si, se estiliza investindo na conquista do desejo
do outro. O desejo pode ser um fator determinante para a va-
riação ou normatização sociolinguísticas, pois ao se estilizar
como objeto de desejo, o sujeito precisa aderir à ideologia so-
cial do que é desejado e desejável, para ser reconhecido como
ser desejante. A performance de si segue, assim, um roteiro
apreciativo social e uma ideologia social. Em outras palavras,
os sujeitos são sensíveis às categorias pragmaticamente sa-
lientes de identidades sociais de modo que categorias sociais
com mais prestígio são performadas muito frequentemente
na estilização de um sujeito desejável. Uma performance de
estilização de si online envolve diversos índices, que podem
indexicalizar significados de masculinidade porque na se-
miose social do desejo gay, os signos da masculinidade, viri-
lidade, vigor físico, saúde são compreendidos como desejosos
capitais simbólicos.
A partir da análise empreendida, proponho que vários
signos podem ser estilizados como signo do macho: (a) signos
que indexicalizam características físicas e são combinados
em indiciações rizômicas: a barba, o peitoral, a musculatura,
a etnia, os pelos, a tatuagem, o “jeito de homem” – índices
que indexicalizam qualidades duráveis do sujeito; (b) metoní-
mias do homem, ou partes de seu corpo tomadas como signos

304
Gleiton Matheus Bonfante

completos de si, como os órgãos genitais, principalmente – e


até aspectos morfológicos, como o aumentativo e o diminu-
tivo discutidos no Capítulo cinco. Esses signos combinados
de forma rizômica podem produzir um efeito de redundância
indexical, na medida em que vários signos distintos apontam
para o mesmo sentido: a virilidade.
Em meio à heteronormatividade a que se submete, o dese-
jo social pela macheza motiva muitas performances sissyfóbi-
cas. O desejo pelo macho tenta constantemente limar a bicha
da configuração relacional homoafetiva, conhecida como hie-
rárquica72. Se seguirmos essa análise, acredito que a demanda
pela macheza tenha tentado obliterar o gay em favor de um
homossexual macho e amplamente ajustado aos ideiais de
masculinidade, performando a rejeição da igualdade gay/gay e
inaugurando na contemporaneidade o modelo macho/macho
e uma demanda de masculinidade hegemônica para todos os
sujeitos: passivos, ativos, bichas, gay, bofe, mariconas etc.
Perlongher (2008), claro, defende uma “carnavalização
bakhtiniana” em detrimento da normalização das relações
homoafetivas e ressalta uma relevante “resistência da bicha
louca” na desnormativização de qualquer gramática dos cor-
pos. Também os perfis nos apps analisados, embora tocados
pela “pedagogia do macho”, irrompem a normatividade dese-
jante, apontando também para práticas de resistências – nada
desprezíveis – aos levantes normalizadores pós-modernos.
Tais práticas nos auxiliam a questionar o sentido de desejo
como uma expressão individual e interior de corpos particu-

72 Peter Fry, em seu O que é a homosexualidade?, discute modelos de configurações afetivas conhecidos
como hierárquico (bofe/bicha) e igualitário (gay/gay), propondo existir uma tendência social de migrar
do primeiro para este último. Embora Perlongher (2008) concorde com a análise de Fry, ele acredita haver
uma resistência não desprezível da “bicha louca” agindo na contramão desses modelos normalizadores.

305
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

lares em favor de uma compreensão das práticas desejantes


como performances públicas e intersubjetivas, entrelaçadas
a um constante dizer-fazer para o outro. A experiência dos
jogos de micropoder nas performances dos apps também de-
notam a ambivalência do desejo e do próprio poder: ambos
irrompem de microações e pressupõem sempre uma resistên-
cia, atribuindo centralidade às tensões, disputas de poder que
subjazem qualquer prática semiótica.

6.2 Em diálogo: contribuição da Erótica dos Signos


para uma Linguistica Aplicada Indisciplinar

Dentro da área de Linguística Aplicada, a diversidade das


pesquisas, das abordagens teóricas e dos temas parece ser o
único grande consenso. Embora a LA tenha se constituído
muito diversa, os estudos sobre sexualidades ainda parecem
gozar de pouca popularidade, especialmente no que tange ao
desejo. A Erótica dos Signos institui o desejo como proposta
metodológico-analítica profícua dentro da área da lingua-
gem, propondo a experiência semiótica como uma experiên-
cia sensual e sensória, que cita, incita e excita. Aqui, o desejo,
assim como suas manifestações – de natureza semiótica – é
considerado um terreno privilegiado para a observação de
subjetividade e sua relação com a alteridade.
O interesse pelos signos do desejo e seus afetos como ob-
jeto de análise nas ciências humanas se inscreve em um mo-
vimento reflexivo que visa devolver ao sujeito seu corpo, que
aqui é pensado como uma unidade de potencial erótico em
uma malha de saber-poder que valoriza o orgásmico, o extá-
sico. A Erótica dos Signos trouxe para LA Indisciplinar uma
alternativa analítico-metodológica em que os efeitos e afetos

306
Gleiton Matheus Bonfante

dos signos nos sujeitos e no próprio pesquisador são pensados


não pelos seus sentidos apenas, mas pelo modo com que to-
cam os corpos. Se, por um lado, esse retorno aos corpos (no
plural, porque para a Erótica dos Signos até o corpo do pes-
quisador importa) talvez tenha sucedido por compreender no
corpo um ponto de estabilidade nesse universo de errâncias,
de incertezas que a pós-modernidade instaurou. Por outro
lado, também se configura como uma postura antipositivista
que atribui aos saberes do corpo a mesma valia que a da razão
na produção de conhecimento.
Outro ponto de originalidade desta tessitura para o cam-
po da Linguística Aplicada Indisciplinar se refere ao seu con-
texto de pesquisa. Discursos contemporâneos online são de
grande interesse para pesquisadores de processos semióticos,
e a internet móvel, que se anexa ao corpo, acompanhando-o
integralmente, apresenta outros desafios ético-metodológicos
e também outras características positivas. A Erótica dos Sig-
nos, inspirada pelos estudos foucaultianos sobre processos de
subjetivação, instaurou a internet na pesquisa da linguagem
como uma função orgânica do tecnocorpo e um verdadeiro
acessório da existência. Os apps em si também são um con-
texto original de pesquisa, na medida em que articulam o
acaso do sexo homossexual à normatividade das semioses do
desejo. Pode-se dizer que nos apps, assim como na paquera
homossexual, “sem perder a qualidade do acaso, essas inte-
rações [que organizam a pegação] estavam percorridas por
redes, mais ou menos implícitas de signos codificados” (PER-
LONGHER, 2008:68). Lançando-se a pesquisa dos signos da
paquera nos apps, a Erótica dos Signos se propôs a observar
sua excitabilidade, interessada pela normatividade com que

307
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

os signos tocam o corpo, mas também observando as derivas


e o acaso típicos do desejo.

6.3 Possíveis descaminhos para futuros estudos

A partir das teorizações aqui empreendidas, podem-se


trilhar outros rumos para a pesquisa nos aplicativos de pega-
ção e para a produção de outras Eróticas dos Signos.
Um caminho possível seria colocar as inconclusões da
presente pesquisa em diálogo com outros estudos de natureza
semelhante. Gosto muito da ideia de derivar ou até inspirar
estudos sobre a sexualidade heterossexual de uma pesquisa
como esta, de modo que acredito ser o estudo das relações
sociais e performances ensaiadas nos apps voltados para o
público heterossexual como o Tinder, uma necessidade nos
estudos sociais. É interessante notar neste movimento episte-
mológico, no qual observamos a inversão da anterioridade da
experiência heterossexual em relação à experiência homoafe-
tiva, a convocação do conhecimento queer e da sexualidade
subalterna e exótica que são presupostos na experiência do
homoafetividade para informar possibilidades outras de ser
e estar no mundo.
Outra possibilidade seria o estudo das interações forja-
das nos apps. Tenho ciência de que pouquíssima atenção foi
reservada a elas neste trabalho. As interações ensaiadas nos
apps são curtas, sucintas, muito diretas e tencionam afetar
seu interlocutor. Estudá-las seria uma frutífera e possível
abordagem do estudo dos apps, investigando os discursos dos
desejos e as narrativas do tesão. Elas se assemelham em gran-
de parte ao sexo virtual, não apenas porque investem em uma

308
Gleiton Matheus Bonfante

narrativa que segue o tempo do sexo, mas porque muitas vezes


culminam em uma satisfação que é discursiva. No discurso,
os sujeitos encontram sua satisfação e, muitas vezes, depois
de discursivizarem/confessarem seus desejos, o abandonam,
saciados pela interação. No que tange às interações, acredito
em dois possíveis temas de investigação muito interessantes e
pertinentes para os estudos de gênero, das imagens e das lin-
guagens: as práticas de pornificação de si nos apps e a busca
de relações de ‘sexo e amizade’ nos apps.

6.4 No cu da questão ou a questão do “cu”

“Venerai o Santo Fiofó,


ó neófito das delícias,
e os deuses hão de vos abrir as portas”
Waldo Motta in: Exortação

“Eu sou a Nossa Senhora do Buraco Negro,


Sujo e Fedorento da Rocha Dorsal,
mãe dos nove céus, a tetéia do caralhudo.
Sou a dona de todo o universo. ”
Waldo Motta in: Anunciação

O leitor atento percebeu que nesta Erótica dos Signos se


privilegiou o “cu” ao “ânus”. Participo de uma tradição teó-
rica que acredita serem as palavras investidas de potencial
transformador e, portanto, são uma arma imprescindível na
luta contra opressões de todos os tipos. Também a narrativa
acadêmica é um gesto político e requer cuidado e responsa-
bilidade no emprego da metalinguagem. Justamente por “cu”
não ser um signo frequente na escrita acadêmica, ele foi me-
ticulosamente escolhido para figurar neste texto. Em portu-

309
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

guês, pelo tabu, pela sonoridade e pela sua obscenidade in-


trínseca, “cu” se tornou um vocábulo muito querido entre os
queers tupiniquins como instrumento de contestação política
e de resistência.
Se para Alípio Filho (2012), o buraco do nosso cu é políti-
co, para Larissa Pelúcio (2014), posicionado-se em relação aos
Estudos Queer no Brasil, “cu” seria uma sugestão de tradu-
ção para queer em português por ser nesta língua uma marca
provocativa de subversividade que é perdida na manutenção
do termo original cunhado por Teresa de Lauretis. Para ela,
“cu é tão excitante quanto repulsivo. E isso é o que queer sig-
nifica” (2014:37). Ela assume estarmos nós, os pesquisadores
brasileiros, no “cu do mundo” e explica que a metáfora é mui-
to pertinente para a questão da teorização já que “o reto é
compreendido como o órgão mais periférico possível, ligado a
situações de extrema marginalidade geográfica e/ou sociopo-
lítica” (PELÚCIO, 2014:36). A autora, então, propõe a Teoria
Cu como um conhecimento queer legitimamente brasileiro.
O cu é necessariamente um signo de transgressão na socieda-
de machista, porque a homossexualidade transgride uma su-
posta “ordem natural no sexo” e, como propõe Hocquenghem
(apud PERLONGHER, 2008:218), “Toda homossexualidade
[masculina] está ligada ao ânus”, pelo menos simbolicamen-
te73. Não é por acaso a relação assumida popularmente entre
ânus e homoafetividade. Ela, assim como a desconfiança do
ânus como zona erógena, se retroalimenta da abjeta gramáti-
ca do cu. Nas palavras de Néstor Perlongher:

73 Ou estaria toda sexualidade simbolicamente ligada ao pênis? De modo que o cu, assim como a boca
e a vagina só são inteligíveis como figuras relacionais à penetração e ao prazer peniano. A penetração
peniana é a prática simbólica e física da colonização dos corpos.

310
Gleiton Matheus Bonfante

A categoria de sodomita (e, por extensão, a de homos-


sexual) constitui-se ela mesma em torno da transgres-
são de um tabu – ou, melhor, da realização de um ato
registrado enquanto transgressão em certo “regime de
signos”, que dispõe determinada organização do orga-
nismo, em que os órgãos vão ser atrelados a funções hie-
rárquicas preestabelecidas (a boca para comer, o ânus
para defecar etc.) (PERLONGHER, 2008:218).

Pela sua marginalidade e periferia, o cu nos interessa


mais que o ânus porque me identifico como pesquisador in
-mundo interessado, de forma confessa, pelas margens. De
fato, se ânus se refere ao nosso orifício anal anatômico, cu se
refere ao nosso cu mesmo, com todos os seus valores sociais
e significados: o cu que defeca, o que cu que peida, que senta,
que coça, que é felado, que é penetrado. E é esse que interessa
para os estudos da Erótica dos Signos.
Como discutimos no Capítulo dois, os nomes criam uma
região ontológica para as coisas; têm poder criativo sobre elas.
Nesta obra, proponho a emergência de fazer o poder dos no-
mes operar para o empoderamento do cu, pela sua necessária
ressignificação para que os sujeitos-penetração-anal não te-
nham menor valia que outros sujeitos desejantes.
A preocupação da Erótica dos Signos com a política do
sexo, dos corpos e dos desejo sse apresenta, aqui, como um
viés político para explorar as contradições de um sistema po-
lítico e econômico que, em grande parte, nos molda e dire-
ciona nossas possibilidades de existência para seus próprios
interesses regulatórios. Ser um sujeito do desejo nos apps,
performar online seus desejos, corresponde a um ato de aber-
tura ao novo, uma deriva subversiva, implicada nas perfor-

311
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

mances não apenas dos sujeitos do desejo, mas também do


pesquisador. “No ato de [nos] lançar à deriva, à paquera, à
vadiagem, parece estar implícita certa disponibilidade para o
novo, o inesperado, a aventura” (PERLONGHER, 2008:168).
Essa aventura é a potencialidade política deste livro. A
aventura da Erótica dos Signos é o assumido compromisso
de trazer à visibilidade formas de vida subterrâneas, existên-
cias possíveis, e experiências queer – ou experiências-cu – que
desafiam instituições e sistemas sociais e políticos baseados
nas desigualdades e, assim se lançam a proposta política de
Foucault de que procuremos outros meios para ascendermos
a condição de sujeito que não sejam pré-estabelecidos. Nas
palavras de Foucault, “temos que promover novas formas de
subjetividade através da recusa deste tipo de invidualidade
que tem sido imposta a nós por muitos séculos” (1996a:216).
Ao convite para resistir às possibilidades de subjetividade às
quais somos submetidos eu aceitei e, em um exercício legíti-
mo de desidentificação, descrevi uma Erótica dos Signos; uma
narrativa sensual e marginal que eu espero que tenha afetado
o leitor, que lhe tenha tocado o corpo, não como as teses o
fazem, mas à maneira do tesão.

312
Posfácio

O corpo distópico

Para que eu seja utopia, basta que eu seja um corpo.


Michel Foucault

A excitabilidade é uma propriedade elementar do vivo.


O vivo é, de início, excitado: chama a responder a um
exterior.
Jean-Luc Nancy

O corpo tem exercido grande fascinação em certos âmbi-


tos das ciências humanas e sociais. Filosofia, antropologia, so-
ciologia, literatura têm lançado seus olhares para este que é o
âmbito mais obvio (porém, o mais paradoxal) de nossas exis-
tências humanas. Afinal, o corpo é o que temos de mais ínti-
mo, mas é também o que temos de mais público. “Um corpo
expõe uma existência” (Nancy, 2015, p. 7) ao mesmo tempo
em que a abriga. Nesse cenário, tem-se perguntado, seguindo
Espinoza, o que pode um corpo? As respostas, é claro, são tão
múltiplas quanto é o próprio corpo: respirar, mover-se, correr,
comer, piscar, ver, arfar, suar, perecer, amar, gozar. .
Nos estudos da linguagem, contudo, o corpo tem recebido
menos atenção. Isso, de fato, não surpreende, pois a linguísti-
ca é, por definição, logocêntrica (Bucholtz e Hall, 2016). Com
efeito, como explica Pennycook (2007:58), com Saussure e, mais

313
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

fortemente, Chomsky, “uma distinção era mantida entre siste-


ma e realização, com o foco da linguística no primeiro termo,
as habilidades subjacentes abstratas das/os usuárias/os de uma
língua em vez de a realização concreta ou o uso da língua na
vida diária”. Em outros termos, a ciência da linguagem deve se
preocupar com o sistema da língua e não com o corpo que a
produz. A língua é, na linguística, descorporificada. Felizmente,
a linguística aplicada, área indisciplinar por vocação, tem pro-
blematizado essa falta. A Erótica dos Signos é exemplo disso.
As viradas performativa (Butler, 1993) e somática (Shus-
terman, 2000) – depois de terem afetado vários campos das
ciências humanas e sociais – chegaram, mesmo que tardia-
mente, aos estudos da linguagem. Consoante Pennycook
(2006, p. 83), “a virada somática nos permite refocalizar a
corporeidade da diferença, ao passo que a virada performa-
tiva sugere que as identidades são formadas na ’performance’
linguística e corporificada, em vez de ser pré-dadas. ” Essas
reviravoltas epistemológicas mostram que, se quisermos en-
tender as idiossincrasias da vida social, devemos atentar para
o corpo e para a linguagem.
Não devemos, no entanto, tomar a dicotomia corpo/lin-
guagem de forma ingênua como se houvesse um corpo que
produz linguagem e esta dependesse inexoravelmente daque-
le. O que o livro de Bonfante mostra é justamente a interpene-
tração radical entre esses dois âmbitos de nossas existências: o
corpo que fala se produz ao (se) falar, dá-se a ver e ouvir ao fa-
lar; faz-se corpo ao fazer linguagem. O corpo é, nesse sentido,
o ponto cego do discurso: ao produzi-lo, se faz. A realidade do
sujeito que diz, do corpo que fala e age, é performativamente
produzida in situ pelo que é dito e feito.

314
Gleiton Matheus Bonfante

Vale aqui relembrar a contenda que a teoria da perfor-


matividade proposta por Butler (1990) causou no feminismo.
Defrontadas com a contundente argumentação de Butler na
qual a filósofa defende, a partir de uma perspectiva pós-estru-
turalista, que o corpo é efeito do discurso, feministas como
Elizabeth Grosz (1993) lançaram ferrenhas críticas ao femi-
nismo pós-identitário butleriano: afinal, o corpo é o principal
vetor de opressão das mulheres; é nele que elas sofrem toda
sorte de violência física e simbólica e, assim, ele é material,
não discursivo. Em Bodies That Matter (1993), Butler argu-
menta, fortemente baseada em Derrida e em críticas feminis-
tas ao trabalho psicanalítico lacaniano, que não considera o
corpo como imaterial, mas que está mais interessada na ma-
terialidade dos significados e das estruturas reguladoras pelas
quais sujeitos corporificados atingem inteligibilidade cultural
ou não: “o argumento de Butler não é que a materialidade do
corpo não é nada além de um produto linguístico, mas que o
conceito de materialidade é inescapavelmente cercado de sig-
nificação” (Jagger, 2008:62).
Entender que o sexo e o corpo são efeitos discursivos não
implica negar a existência da carne, do sangue, do sêmen, da
dor, mas, sim, considerar que a materialidade do corpo e sua
significação cultural são inextricavelmente imbricadas. Na
Grécia antiga, por exemplo, não existiam corpos. Nas olimpía-
das da era clássica, havia somente braços, pernas, mãos, pés. .
Foi em Homero e sua Odisseia que a palavra corpo apareceu
pela primeira vez e, com isso, passamos a poder falar sobre
essa massa de músculos, pele e ossos que carregamos. Ho-
mero, assim, inaugurou o que entendemos, no Ocidente, por
corpo. Nesse sentido, com sua abordagem discursiva, Butler

315
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

chama a atenção para códigos de significação e as estruturas


reguladoras informadas por esses códigos que significam (i. e.
materializam) o corpo. Não se pode conceber a ideia de corpo
fora dos processos culturais (e, portanto, discursivos) que sig-
nificam sua materialidade e a moldam.
O trabalho de Bonfante oferece lentes analíticas que
explicam essa inseparabilidade entre corpo e discurso. Ao
analisar como usuários de aplicativos de pegação desenham
performances íntimo-espetaculares de si com vistas a se pro-
duzir como sujeitos desejantes e desejáveis, o autor mostra
como esses homens fazem usos estratégicos de certos signos
na projeção de determinados efeitos em seus interlocutores.
A efração da excitabilidade, nesse contexto, é eminentemen-
te semiótica. Em outros termos, os usuários desses apps se
metonimizam em suas fotos e textos; fragmentando-se, fo-
calizando regiões corporais que julgam desejáveis, se trans-
formam em partes que idealizam um todo, agindo, assim,
como sujeitos-abdômen, sujeitos-bíceps, sujeitos-peitoral,
sujeitos-pirocas. Essa produção de sujeitos-corpo só se ins-
taura na semiose: nos apps, a apresentação de si como desejá-
vel depende da imagem que se faz de si. Em outras palavras,
a pesquisa de Bonfante se encontra na interseção das vira-
das somática e performativa: sua atenção à discursividade do
corpo e à corpereidade do discurso dá força para sua crítica
sociocultural da era farmacopornográfica.
Um aspecto central na produção dos sujeitos-grindr® é a
semiose do macho. A virilidade, como bem mostra Bonfan-
te, é condição sine qua non do desejo tecnocêntrico e hiper-
semiótico dos aplicativos de pegação. Não é toda construção
semiótica do corpo que conta como desejável. O corpo, nesses

316
Gleiton Matheus Bonfante

aplicativos, perde seu devir utópico e reafirma normas que o


oprimem. Em conferência ministrada em 1966 e recentemen-
te traduzida para o português, Foucault (2013) afirma que “o
corpo humano é o ator principal das utopias” (p. 12). É pelo
corpo que sonhamos, amamos e nos construímos. O filósofo
pensava no corpo como lugar onde se desfazer de si e se repen-
sar outro; a potência utópica do corpo está na sua capacidade
de ser e não ser, de se fazer e refazer, de estar e não estar. Claro
que nas performances íntimo-espetaculares de si estudadas
por Bonfante, os sujeitos se aproveitam da maleabilidade utó-
pica do corpo e fazem bom uso dela ao se transformarem no
macho que pensam/querem ser. Contudo, nesses aplicativos,
penso que o corpo é, na verdade, uma produção distópica.
Na literatura, a distopia representa a antítese da utopia,
o anti-utópico, aquilo que promove uma vivência utópica ne-
gativa (Jacoby, 2007). Numa distopia, as personagens vivem
sob um regime governamental opressivo de controle da so-
ciedade. Cada movimento, ato ou pensamento é milimetri-
camente controlado. Admirável Mundo Novo, de Aldous Hu-
xley e 1984, de George Orwell são bons exemplos de distopias.
Nessas obras, os indivíduos vivem em sociedades totalitárias
sempre sob a vigilância de um olho que tudo vê e sabe: seus
corpos, ações, desejos e pensamentos estão sempre sob escru-
tínio de uma estrutura governamental que limita as possibili-
dades de (subjetiv)ação.
Nos aplicativos analisados por Bonfante, vê-se a trans-
posição dessa distopia para o mundo das relações digitais.
Ali, os sujeitos dão-se a ver, oferecem-se ao olhar do outro,
sob formas que reiteram certas normas de gênero e cor-
poralidade. Tem-se que ter “jeito de homem”; não se pode

317
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

“dar pinta”; é vetado estar fora de forma; é preciso “cuidar


do corpo”; enfim, a semiose do macho utilizada nesses apli-
cativos, sua gramática, sintaxe e pragmática, é guiada pela
negatividade. É só abrir o grindr® ou qualquer outro aplica-
tivo do gênero que se verá alguma mensagem do tipo: “não
curto afeminados, gordos, passivos, peludos, velhos”. O su-
jeito desejável, aí, é viril, jovem, atlético. Nesse sentido, a
cisheteronormatividade é exuberantemente reiterada pela
redundância indexical que caracteriza os perfis: não basta
se apresentar como macho; é necessário ser macho na enési-
ma potência: nas fotos e nos textos sobrepõem-se signos que
insistem reiteradamente nos mesmos sentidos: a virilidade
atlética e a negação da bicha efeminada.
Na distopia dos aplicativos de pegação, a cisheteronorma-
tividade é o olho que tudo vê e tudo sabe. Qualquer deslize
pode destruir a cuidadosa apresentação semiótica de si nos
perfis. Via metonímia, fragmentação e redundância indexi-
cal, as imagens de si que os usuários dão a ver em seus per-
fis retroalimentam normas que nem eles conseguem de fato
cumprir. Os machos, ativos e bem dotados dos aplicativos,
pessoalmente, podem não ser tão machos, nem tão ativos nem
tão dotados como se performam. O possível descompasso en-
tre performances íntimo-espetaculares de si nos aplicativos e
aquelas confeccionadas no cara-a-cara não é o foco de Bon-
fante. Entretanto, os processos de digitalização corporal por
ele analisados indicam o sistema de idealização e valorização
heteronormativos para os quais os usuários se orientam.
Pela semiose do macho, discutida em detalhes pelo autor,
os oprimidos se transformam em opressores sem nem mesmo
perceber. Algozes de si, mostram que este mundo novo não é

318
Gleiton Matheus Bonfante

tão admirável assim. Estão ali todos no mesmo barco, por as-
sim dizer, mas nem todos são igualmente reconhecidos como
merecedores do desejo. “Não curto afeminados, não é pre-
conceito, é gosto”, dizem; para manter a metáfora da distopia,
vale aqui aproximar esse enunciado tão comum dos aplicati-
vos de pegação a uma das leis da fazenda de A Revolução dos
Bichos, de Orwell: “Todos animais são iguais, mas alguns são
mais iguais que outros”. E, assim, limita-se semioticamente o
campo da excitabilidade dos corpos para aquilo que é seme-
lhante; o diferente não excita e, por conseguinte, não sendo
excitante nem desejável é expelido para a desconfortável zona
da abjeção. O corpo, essa “utopia implacável” (Foucault, 2013,
p. 7), esse lugar onde nos fazemos e refazemos, é, nos aplica-
tivos de pegação, o lugar onde discursivamente se constrange
sua utopia, sua possibilidade de ser o que for, por essa distopia
cishetronormativa e totalitária.
Felizmente, contudo, há espaço para performances de si
que contestam essa idolatria do macho cis. Afinal, é possível
escapar até mesmo da distopia mais hermética. No livro de
Bonfante, vemos também performances desidentificatórias
que criticam o controle opressor da cisheteronormatividade.
O que chama atenção nesses processos de desidentificação
não é uma ruptura ostensiva com os códigos semióticos que
constituem os aplicativos, mas sim o fato que fazerem uso da
própria semiose do macho e dos discursos da cisheteronor-
matividade na produção de contradiscursos nos quais se vis-
lumbram outras possibilidades de se fazer sujeito do desejo.
O desejo, afinal, como diziam Deleuze e Guattari (2010), é
obtuso. Se os machos “discretos” e “sigilosos” procuram se re-
lacionar com seus semelhantes, os antimachos estão ali mos-

319
Erótica d os sig n os em a plicativos d e peg ação

trando que as normas são porosas e oferecem os termos para


sua própria contestação.
Com seu livro, Bonfante nos mostra que na interseção
entre discurso e corpo, entre o somático e o performativo, as
continuidades coexistem com as rupturas; as fricções entre
a mesmidade e a diferença, nos aplicativos estudados nesta
obra, são efeitos dos repertórios semióticos que temos dispo-
níveis para nossa construção corpórea e discursiva como su-
jeitos sociais, imbricados que estamos nas contradições com
as quais as normas nos capturam. O que esta obra deixa claro
é que não podemos considerar nem o corpo nem o discurso
como dados, antecedentes de nossa ação social e intersubje-
tiva. Como afirma Jean-Luc Nancy (2015), “um corpo não ‘é’
no sentido em que se costuma supor que uma coisa ou um
conceito ‘é’ – posto, delimitado, estabilizado em algum lugar.
Um corpo só é fazendo e se fazendo” (p. 8). O mesmo se pode
dizer do discurso: ele não existe sem antes o fazermos. Como
as performances desidentificatórias estudadas por Bonfante
indicam, corpo e discurso se constituem mutuamente e em
sua produção conjunta podem inaugurar sentidos inauditos
e excitabilidades inesperadas para o que podemos nos tornar.

Rio de Janeiro, numa inusitada tarde cinza de 2016.

Rodrigo Borba
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Este livro foi composto em Minion Pro pelo
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