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Medida Provisória: o filme choca porque ao vivo é muito pior

Dirigido por Lázaro Ramos, o filme Medida Provisória chegou em 14 de abril


aos cinemas brasileiros e já se consolidou como a segunda maior estreia
nacional do ano, atrás apenas de Tô Ryca 2, que fez R$ 2,2 milhões em sua
abertura em fevereiro. Infelizmente na cidade de Santos, que tem como lema a
“terra da liberdade e da caridade”, este aguardado filme só estreou no dia 21
de abril, uma semana após o lançamento nacional. Os cinemas do grupo Roxy
do litoral paulista divulgou em suas redes sociais que “o filme foi apenas adiado
por uma questão de readequação de agenda do filme na Baixada Santista”.
Atitude no mínimo estranha e um desserviço à produção audiovisual nacional.
Já que todos sabem que o mais importante para um filme é atingir o maior
número possível de público, justamente na primeira semana de exibição, para
conseguir ampliar o agendamento dos espaços nas salas exibição. Mesmo
com problemas como este que vergonhosamente ocorreu no litoral paulista, o
filme Medida Provisória atingiu logo na primeira semana em cartaz a marca de
100 mil espectadores e arrecadou mais de R$ 2 milhões entre os dias 21
(quinta) e 24 de abril (domingo). Já na segunda semana em exibição, o filme
somou 237 mil espectadores no total.

Sobreviver pode ser um ato de desobediência civil. Esta frase resume bem
“Medida Provisória”, primeiro filme dirigido por Lázaro Ramos, baseado na
peça “Namíbia, não!” de Aldri Anunciação. Taís Araújo está no elenco na
companhia de Seu Jorge, Alfred Enoch (da saga Harry Potter), Adriana
Esteves, Renata Sorrah, Emicida e grande elenco – formado majoritariamente
por negros na frente da tela e atrás dela, na produção do filme. A trilha
sonora também é um ponto de destaque do filme. Nomes como Elza Soares,
Liniker, Xênia França, Cartola e Rincon Sapiência emprestam suas músicas
para a história.

A trama mostra o Brasil num futuro distópico no qual o governo emite uma
medida provisória autoritária obrigando os negros do país a retornarem à
África. A obra aborda um futuro não muito distante em que é instituído um
autointitulado “programa de reparação” contra o racismo que primeiro estimula
e depois obriga os negros do Brasil a migrarem para a África. É difícil saber se
ela choca porque é muito real ou porque a realidade é muito mais violenta. Na
história, após muito esforço, os descendentes de escravizados estavam
prestes a serem indenizados financeiramente pelo sofrimento dos
antepassados. Surge então a nova legislação: Medida Provisória 1888 da
ficção, cujo número sarcasticamente remete ao ano da lei áurea. Sempre que
um grupo oprimido parece começar a se aproximar de diminuir a opressão que
sofre, há um grande incômodo e a reação “generosa” contra os “exageros
identitários”. Como na vida real, no filme os racistas incomodados bradam com
firmeza que não são, nem jamais foram racistas.

Historicamente o desejo de branqueamento da população brasileira tem


precedentes legais muito fortes. A Constituição de 1934, por exemplo,
determinava que cabia à União, aos Estados e aos Municípios estimular a
educação eugênica. Renato Kehl, fundador da Sociedade Eugênica de São
Paulo nesta mesma época, defendia a segregação entre brancos e negros e a
esterilização de todos os negros e indígenas. Outros eugenistas eram
entusiastas da miscigenação, mas também a viam como forma de apagar
traços genéticos de negros e indígenas. Todos foram erigidos a norma
constitucional. Programas de estímulo ou imposição da saída de pessoas
pretas do Brasil com destino á África tampouco são fruto de criatividade
exagerada dos artistas. Uma lei baiana de 1835 era mais cruel que a do filme.
A lei nº 9, promulgada em 13 de maio, como se também fosse uma ironia
intencional, determinava igualmente que todos africanos libertos ou escravos
teriam que se mudar para qualquer país africano que fosse convencido pelo
governo da província a recebê-lo. A dose adicional de crueldade é a
seguinte: ainda pagariam um imposto anual, enquanto não encontrado seu
destino.

Hoje, não temos leis em vigor que falem sobre deportação compulsória, mas
existe ampla descriminação, falta de oportunidades e, principalmente, uma
óbvia violência e política de extermínio dos jovens negros brasileiros. Segundo
o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pessoas negras foram 76,2% das
pessoas assassinadas em 2020 e 78,9% das vítimas de intervenções policiais.
A polícia brasileira é que mais mata no mundo e a que mais morre também.
Resultado de uma gestão da segurança pública ineficiência e preconceituosa.
Em Santos, por exemplo, a mesma polícia faz um tipo de abordagem nos
Morros ou na Zona Noroeste da cidade e outra completamente diferente no
Gonzaga - mesmo bairro nobre que foi divulgada recentemente a descoberta
por vizinhos de uma senhora negra que por 50 anos foi vítima de trabalho
escravo e violência física, por parte de uma família de alta renda que sequer
teve os nomes de seus integrantes revelados pela imprensa local. Infelizmente
a justiça não é igual para todos. Faz parte da cultura da polícia no Brasil ser
racista, elitista e ainda se orgulhar disso. Tudo com o respaldo dos “cidadãos
de bem” e das autoridades. A maioria da sociedade branca só quer manter os
seus privilégios seculares.

O filme de Lázaro Ramos não destaca a expressão genocídio, mas trata dele,
no mesmo sentido que aqueles intelectuais e militantes lhe dão. Nenhum deles
imagina que haja alguém rindo enquanto conta corpos negros mortos. Mas,
todos sabem que esses corpos incomodam que muitos se sentem mais felizes
quando não os veem e que eles só tombam com tanta frequência porque há
tolerância e indiferença por parte de autoridades e pessoas comuns da
sociedade que juram que jamais foram racistas. Pura hipocrisia. Como bem
disse o mestre, escritor e compositor Nei Lopes “O Brasil é um país altamente
preconceituoso, racista e excludente”, sendo dever de todos, brancos e negros,
ajudarem a transformar estas mazelas históricas em nosso país.

Se você caro leitor ou leitora ainda não viu, veja Medida Provisória. Quer seja
nos cinemas ou em breve nas plataformas de streaming. Um filme necessário,
que choca porque na realidade, ao vivo, é muito pior.

Jamir Lopes - Gestor e Produtor Cultural

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