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Capítulo 1: título spoiler (parte 1)

14 de janeiro de 2021, do alto do prédio vejo os carros passando na rua. Que falta de
poesia, quando foi que eu decidi morrer assim? No lugar dos prédios podiam ser montanhas
e a passagem dos carros substituída pela de correnteza de um rio. Enfim, melhor pular logo,
antes que me vejam e que tédio seria se alguém tentasse me impedir.

Com um leve impulso me jogo em direção a rua. Não quero ir batendo no prédio ou acabar
caindo por alguma janela. Meus pensamentos me lembram que esse ano foi um ano feliz,
quase completei minha lista, faltou apenas um item, mas um já é motivo suficiente pra eu
desistir de tudo.

Pow

Pow
Pow
Pow
Pow pow pow

"Sem chance. Sem nenhuma chance." Digo mentalmente, a incredulidade tomando conta
de mim.

"Não era para eu estar vendo o céu, não era pra eu estar em pé, não era. Não tem chance
de isso estar acontecendo."

– Feliiiiz dois mil e viiinte meu fiiiilho. Que esse ano te traga muuuuuitas bençãos, que você
consiga superar todos esse problemas que te afligem e que consiga ser feliz e ter paz. – A
voz da minha mãe soa atrás de mim, de onde também bem um abraço apertado.

– Feliz dois mil e vinte? -- Respondo eu. Ainda desnorteado. Não foi um sonho, como eu
confirmo se não foi um sonho?
O que vai ter de show hoje aqui na praia? Não me lembro. Covid, minha loja, meus tios,
porto seguro, nada disso aconteceu ainda? A Marina? Merda.

Procuro meu telefone nos bolsos e então me lembro dos ideais estúpidos de não tirar foto e
só curtir o momento que devem ter feito meu eu de um ano atrás deixá-lo pra trás.

Sem saber o que fazer, minha primeira vontade era dizer pra todo mundo que estava
passando mal e voltar pra casa. Mas estragar a primeira noite do ano não vai ser a primeira
coisa que eu farei. Ainda assim, preciso pensar no que fazer.

Mas preciso de uma cerveja antes.

-- Vou comprar uma cerveja. Alguém quer alguma coisa?

-- Precisa de dinheiro? -- Pergunta meu pai.


Então coloco a mão no bolso, minha carteira, vazia. Eu ainda não tinha começado a
trabalhar.

Capítulo 1: título spoiler (parte 2)

Hoje faz um mês que eu voltei, estou tentando manter as coisas o mais parecidas possível,
mas elas já estão diferentes. Não tive paciência para conversar com nenhuma das meninas
que havia conversado da primeira vez. A grande briga de janeiro entre eu e meus tios
também não aconteceu.

Uma série de atritos tem acontecido entre eu e meu pai, como explicar pra alguém com
vinte anos de experiência que você sabe mais do que ele sobre o que vai acontecer no
ano? Felizmente, nem tudo foi perdido. Usei a animação que seria gerada por notícias de
liberação do porte de arma para dobrar meu dinheiro, e dobrei novamente quando todo
mundo percebeu que era só um alarme falso.

Minhas finanças estão resolvidas, com todo o movimento que o covid vai gerar no dólar, eu
consigo fazer dinheiro suficiente pro restante da vida, e ainda vai sobrar. Meu coração dói
em ver o mundo definhar por uma segunda vez, os sinais estão cada vez mais
aparentementes e especialistas por todo o mundo já avisaram o que vai acontecer, se eu
me juntasse a eles… eu não passaria de um louco com teorias do apocalipse, e quando
vissem que eu estava certo, ganharia a visibilidade de alguém que sabe o futuro. E a última
coisa que quem sabe o futuro quer, é visibilidade.

– Boa tarde, como posso ajudar? – Pergunto a um cliente que se aproxima da porta.

– Você tem película aí?

– Temos sim, R$ 20,00.

– Coloca pra mim?

– Claro.

Eu fiquei acostumado com minha rotina na loja, então decidi manter seu funcionamento.
Monetariamente falando, ela não faz muito sentido, mas meu objetivo esse ano não é ficar
rico, é ser feliz.

Faz exatamente um mêss que eu voltei pra 2020, tudo que eu preciso fazer esse ano já
está planejado, exceto uma coisa. Penso eu enquanto tiro o celular do bolso e digito no
Instagram "@marstarling".

"Seguir."

Capítulo 1: título é spoiler (parte 3)


Faz três meses que voltei. Minha decepção amorosa inventada foi suficiente para criar
novamente uma conexão com o Pedro. Conseguimos achar o Estevão, os repórteres e os
gringos no segundo dia de Carnaval. Encontramos as advogadas apenas no terceiro, mas
ainda assim, porto seguro foi o melhor carnaval da minha vida. Quer dizer, o segundo
melhor, afinal, faltou aquela surpresa que tinha sido a primeira vez que eu vivi aquilo.

O começo do covid me deu dinheiro suficiente pra viver o restante da vida. O carnaval
serviu pra garantir um clima bom pro restante do ano. E agora basta me preparar para o
próximo evento importante de 2020. Até lá eu fico tranquilo jogando, skins, fantasias, armas,
itens, com os limites dos meus cartões, ter tudo é só um detalhe.

∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆∆

Faz quase nove meses que eu voltei pra 2020. É quarta feira, 19:30. Meu pai me deixou na
rua errada. Eu liguei pra ela fingindo estar perdido e só então fiz meu caminho até o
apartamento 703.

Estava com saudade desse oi, estava com saudade desse toque, desse sorriso e até
saudade dessa batata frita meio murcha que ela fez no forno.

Senti saudade dessa conversa e dessa cerveja e de recusar um baseado até decidir
mostrar uma música meio estúpida para ela.

– Levanta, é melhor você deitar no quarto. – Diz ela, e eu lembro o que vem a seguir.

Ela me puxa pela mão, eu vou atrás até a porta, paro nervoso, sorrio e dou mais um passo.

O piso frio do apartamento se tornam nada mais que pedra encandescente.


O perfume e cheiro dela substituídos pelo odor putrido de enxofre.
E a única voz que ouço, é o grunhido rouco Neaveh.

– Sem beijos pra você hoje. – diz o demônio, parando para rir, antes de continuar se
deliciando. – Sem beijos amanhã e sem beijos pra sempre.

O cenário muda, o alto de um prédio surge e eu engravo novamente na minha mente. Siga
"MarStarlong", fecho os olhos, é hora de pular de novo.

O inferno de Lucas.

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