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Raro como a flor de Udumbara.

A influência crescente de Dogen no pensamento filosófico-religioso mundial


José Jorge de Carvalho

. A influência do pensamento japonês budista clássico no mundo ocidental e mesmo no mundo


contemporâneo em um sentido amplo

. Dogen Zenji - fundador da escola Soto de Zen-budismo

. Dogen faleceu em 1253 e imediatamente todos os manuscritos do Shobogenzo


foram guardados a sete chaves dentro dos templos da linhagem Soto por ele fundados.
Esta obra esteve inteiramente esquecida por mais de 400 anos após a morte do seu autor.

. O encontro com o pensamento japonês implica pensar a nossa relação com o horizonte filosófico ocidental e
também a falta de relação do nosso grupo de acadêmicos brancos eurocêntricos (condição hegemônica na
nossa academia)

. Jaspers elogia Nagarjuna, filósofo do século II d.C

. Tal afirmação é revolucionária, porque sempre se estuda nas histórias das filosofias que os maiores
dialéticos de todos os tempos foram Heráclito, o pré-socrático que se opunha ao sistema metafísico dualista
de Parmênides; e Hegel, o grande dialético do mundo moderno que influenciou Karl Marx. É ainda admirável
que Karl Jaspers tenha sido capaz de formular tal elogio a um pensador budista indiano de 1.700 anos atrás e
até hoje inteiramente desconhecido das histórias da filosofia canônicas e dos departamentos de filosofia dos
países ocidentais. Podemos apenas imaginar o que ele não teria dito, com sua abertura fora do comum para os
pensadores orientais, caso tivesse caído em suas mãos alguns dos tratados do Shobogenzo de Dogen,
herdeiro da sofisticada especulação budista de Nagarjuna. Infelizmente, Dogen ainda não era conhecido no
Ocidente naquela época. Na verdade, apesar de ter falecido em 1253, Dogen somente foi traduzido para uma
língua ocidental pela primeira vez em 1958, por Reiho Masunaga.3 Seu lugar no pensamento mundial
começa a consolidar-se, portanto, na presente geração de estudiosos da filosofia oriental.

. o budismo nega a existência de qualquer realidade, coisa ou fenômeno que se apresente como separada,
autônoma ou independente: daí a formulação da condição de codependência generalizada de tudo no mundo.

. A interconexão e co-dependência de todo o existente conduz a uma percepção que é formulada no segundo
princípio filosófico budista original que Nagarjuna também ampliou em seu poder argumentativo: a
vacuidade, ou sunyata em sânscrito

. Essa teoria budista da vacuidade foi inúmeras vezes mal interpretada no Ocidente, como se a qualidade de
sunya indicasse um nihilismo, uma espécie de negação do mundo. É sunya, vazia, a noção ou crença em uma
substancialidade de alguma coisa neste mundo varrido pela impermanência. Todavia, o que o budismo
propõe não é a negação da impermanência (o que implicaria em negar o mundo, atitude alheia aos valores do
budismo), mas a aceitação plena dessa condição.

. Nagarjuna representava o vazio por um círculo fechado, símbolo sagrado que


veio a representar, mais tarde, em uma dimensão profana, o número zero, introduzido na
Matemática pelos sábios indianos (vale lembrar que os matemáticos gregos
desconheciam o número zero).

. Shobogenzo- O Olho do Tesouro da Verdadeira Lei”

. Heiddegger - O ser o tempo. Dasein.

Nota minha - Investiga o ser enquanto conceito universal e indefinível. Para Heidegger, ele está vinculado à
existência, ao seu próprio acontecimento. O caminho para o conhecimento do ser parte do próprio homem, de
seus questionamentos e reflexões. Diferenciando a noção de ser e ente (coisa), Heidegger afirma que o
homem é um “ente inacabado”, que se reconstrói constantemente. Tendo a morte como horizonte e limite do
futuro, o homem deve retomar-se a cada momento, unir presente e passado. A existência está, portanto,
vinculada à temporalidade.

. Dogen reescreve de uma forma radical a expressão japonesa arutoki, “algumas vezes” e a converte na
expressão original e indivisa uji, que se traduz literalmente por “ser-tempo”. Em alguns momentos do ensaio
o termo uji talvez esteja mais próximo, em português, do composto “temposer”, sobretudo porque uji é às
vezes utilizado por Dogen como uma ação e não apenas como um substantivo. “Temposer” evita que
pensemos, como em arutoki, em “algumas vezes” como ser-no-tempo ou como uma forma de existir para o
tempo, que seria um modo de assimilação da expressão = “sertempo”.

. Para transcender o dualismo de ser no tempo, há que “temposer”. Esta é a idéia que faz Dogen do “ser-
tempo” como uma só palavra. Para imaginar a novidade do salto proposto por Dogen entre arutoki e uji,
lembremos que o último grande tratado filosófico ocidental sobre o tempo, de Martin Heidegger, chama-se
Ser e Tempo. Por mais que queiramos conceber uma intimidade imediata entre ser e tempo, a divisão entre os
dois termos já está posta como uma barreira intransponível, pela presença do conectivo “e”: “tempo” é
concebido, já de saída, como uma dimensão separada, ou complementar, do ser. Essa descontinuidade ou
disjunção inicial é justamente o que Dogen procurou evitar ao criar a expressão uji.

. Outro grande filósofo ocidental falecido em 2004 que soube explorar como poucos os limites do sistema de
representação da tradição clássica ocidental foi Jacques Derrida, que também pdoeria ser concebido como um
pensador de tipo dogeniano: a forma de escrita de Derrida lembra também a forma de escrita de Dogen.

. No final do século XX, Michel Foucault vaticinou que o século XXI seria deleuziano. Não posso confirmar
nem refutar essa proposição de Foucault, mas estou convencido de que muitos filósofos ocidentais a partir de
agora serão dogenianos, com a mesma radicalidade de afiliação com que muitos ainda podem ser
identificados como platônicos, kantianos, hegelianos, marxistas, heideggerianos.

. Lacan - Homofonia
. Derrida - Homofonia
. Heiddegger - Neologismos

. Gramaticalmente, as coisas e os fenômenos (os rios, as montanhas, a água, a flor) falam nos textos de
Dogen, dialogam entre si, às vezes comentam o que o mestre acaba de enunciar, agem, movimentam-se,
repousam. Deste modo, o texto dogeniano é constantemente descentrado em relação a um sujeito, um autor,
um observador, um ponto de vista, uma verdade, um sentido, um efeito, um gênero, um número.

. Como afirma Dogen no seu tratado Bussho (A Natureza de Buda), “nunca existiu um tempo a não ser este
instante que acaba de chegar, nem uma natureza de Buda que não seja esta que se manifesta agora diante de
nós”.

. O Corpo é a árvore da Sabedoria Búdica,


A Mente é semelhante a um espelho brilhante;
Trata de limpá-la constantemente,
Não deixe que sobre ela se acumule a poeira - Shen Hsiu - 5o patriarca.

. A Sabedoria Búdica nunca foi uma árvore,


A Mente nunca foi um espelho brilhante;
Na verdade, não existe coisa alguma!
Onde irá então acumular-se a poeira? - Hui Neng - 6o patriarca.

. Do mesmo modo como encontramos a ocasião certa para celebrar Platão, Aristóteles ou Kant, não há nada
de errado, imagino, em celebrar pensadores não ocidentais extraordinários como Lao Tzu, o autor do Dao-
De-Jing; Nagarjuna, o mestre da escola Madhyamika; Shankara, o mestre do não-dualismo vedanta; Tsong
Kha-pa, o fundador da escola Gelugpa do budismo tibetano, a que pertence o Dalai Lama; e Dogen, o autor
desse grande monumento do pensamento filosófico-religioso mundial que é o Shobogenzo.
. Um primeiro ponto a ilustrar sobre a originalidade do pensamento de Dogen é o seu conceito de tempo.
Talvez nenhuma categoria filosófica tenha sido mais enigmática, mais fascinante e que tenha causado mais
perplexidade no mundo ocidental do que tentar de alguma forma desvendar o mistério, em forma de
argumento, da existência do tempo.

. Contamos com uma longa genealogia de sábios que tentaram formular conceitos de tempo que perduraram
como modelos: Santo Agostinho, Kant, Comte, Husserl (com sua idéia da fenomenologia do tempo
imanente) e finalmente Heidegger, com a finitude radical da condição humana que pressupõe um tempo que
se presentifica como um condicionante (ou existencial) de nosso horizonte de vida. Não há um equivalente
em nenhum desses pensadores em que o tempo deixe de ser somente uma forma que pode ser apreendida,
principalmente uma forma que pode ser conceituada e inteligida para transformar-se diretamente na própria
existência.

. Nós nos colocamos em uma linha sucessiva e vemos o resultado desse ato como todo o universo. Devemos
considerar cada coisa e cada indivíduo no universo inteiro como momentos individuais do tempo. Objeto não
afeta objeto; do mesmo modo, o momento do tempo não afeta o momento do tempo. Assim, existem mentes
que são realizadas no mesmo momento do tempo; e existem momentos do tempo em que a mesma mente é
realizada. O mesmo sucede com a prática e a realização: são uma e simultâneas. Tal é a nossa condição de
sertempo. Nada, no universo inteiro, está ausente deste momento. Observe e reflita diariamente sobre isso.

. “O mesmo tempo que desperta a mente é a mesma mente que desperta o tempo” - Dogen.

. Em uma passagem central de Uji (SerTempo), em que oferece uma afirmação que sempre parece carregada
de metafísica quando traduzida para as línguas ocidentais, Dogen compõe o texto com recursos lingüísticos
análogos aos da poesia concreta: “Cada indivíduo e cada objeto neste Universo inteiro deve ser vislumbrado
como momentos individuais do tempo”.

. “Todas as coisas e os seres do universo não são mais que aparições instantâneas no tempo”.

. “O asno olha o poço; o poço olha o asno; o poço olha o poço; o asno olha o asno”. (Eihei Koroku, pág. 360).

. Entramos aqui no campo de um pensamento que, da perspectiva do cânon filosófico ocidental, é


completamente contra-intuitivo. Na verdade, esse tipo de raciocínio não tem lugar nas nossas escolas e
departamentos de filosofia.

. O asno olha o poço é intuitivo e concorda com o nosso pensamento ocidental cartesiano. Já o segundo
movimento, em que o poço olha o asno, é contra-intuitivo: postula a situação do objeto atrever-se a mirar o
sujeito. Contudo, seria ainda minimamente aceitável que o poço olhasse o asno, posto que o poço se construiu
a partir do olhar do animal.

. Na medida em que o asno olhou para o poço, o poço passou a existir, e ao reconhecer-se que existe ele pode
então, mimeticamente, espelhar, pois na sua condição de poço ele é espelho do asno e ficando no lugar do
asno pode então olharse.
O asno que se vê na superfície espelhada do poço é também o poço, imbuído agora
dos olhos-espelhos imateriais do asno – e é essa face asinina do poço que “olha” o asno
vivo que olha (e se olha) o poço.

. A influência do asno sobre o poço seria então possível, ainda que em um campo contra-intuitivo. Dogen,
porém, vai ainda mais longe: ele diz que o asno olha a si mesmo. A quarta posição, em que o poço olha o
poço é ainda mais contra-intuitiva que a terceira e Dogen de alguma maneira sustenta todas as quatro como
verdades ao radicalizar ao máximo a situação e sentenciar: o poço olha o poço.

. Dogen nos convida a refletir que até onde parece haver apenas inércia, também
há vida. A certeza da vitalidade de todo o universo e da relação imediata e inadiável
entre todas as coisas, podemos senti-la na idéia de um poço que olha a si mesmo, após
olhar o asno que se olhou ao olhá-lo. Não acredito que tenhamos equivalente desse tipo de argumentação
em todo o pensamento ocidental, dos pré-socráticos aos clássicos, modernos e contemporâneos.

“A aparência do corpo e a presença da mente são ilimitados. As formas


manifestas em resposta aos seres são abundantes” (Eihei Koroku, pág. 360).

A idéia de um lugar incontaminado, onde todos poderemos ir apenas para contemplar, para viver, mas não
para modificar, não para destruir, é uma idéia acessível aos leitores de Dogen, cuja ontologia (para utilizar
uma categoria familiar aos ocidentais não é antropocêntrica, mas trata a toda a natureza como sensiente). Não
retirei essa idéia de Platão, nem de Hegel, nem de Kant, nem de Marx, nem de Heidegger. Idéias
similares estão presentes em vários textos do Shobogenzo.

Por exemplo, no ensaio Sansuikyo (O Sermão das Montanhas e das Águas), Dogen sustenta a tese de que “as
montanhas azuis caminham” e “a montanha oriental se move na água”. Se a montanha é capaz de caminhar,
por que não poderia contemplar-se a si mesma? Com rara audácia poética, Dogen afirma a concepção não-
dualista radical do budismo: “O caminhar das montanhas deve ser igual ao caminhar dos homens. Não ouse
duvidar do caminhar das montanhas apenas porque não se parece com o caminhar dos homens”.20 Essa idéia
de uma natureza tão viva como os seres humanos está presente em outro texto maravilhoso do Shobogenzo
chamado Udonge, que traduzimos como A Flor de Udumbara e que justamente escolhi como título do
presente ensaio. A udumbara é uma figueira da família da amoreira (Ficus glomerata). Suas flores crescem
em torno do fruto e assim se parecem mais a uma casca que a uma flor. Por isso, as pessoas na Índia antiga
consideravam a udumbara como uma árvore sem flor. Usavam-na então como símbolo do que ocorre muito
raramente (no caso mais direto, a própria iluminação do Buda). No Sutra do Lótus se diz: “O Dharma é
pregado muito raramente, como a flor de udumbara que aparece uma vez em cada era”.

. Tudo se integra a tudo. Todos os seres existentes, que existiram e ainda vão
existir se conectam e se unificam nas suas diferenças irredutíveis na pequena flor da
udumbara que o Buda girou entre os dedos. O pequeno figo jaz escondido no interior da
flor, que se parece a um cálice contendo uma esfera vegetal diminuta. A um pressão
giratória de dois dedos do Buda o cálice florido gira como um pião - como um mundo,
como um planeta, como uma esfera celeste que girasse a um pequeno toque do
indicador e do polegar do Iluminado.

. Penso que neste momento de uma civilização em crise, nossas universidades necessitam reconectar-se não
apenas com a ciência, mas também com a sabedoria da qual nos encontramos profundamente carentes. Neste
momento, então, de mais um giro da flor de udumbara, a mensagem filosófica e espiritual de Dogen deixa de
ser apenas japonesa e passa a colocar-se nesse lugar muito maior, que é o lugar das grandes formulações do
pensamento mundial, que interessa ao mundo como um todo, independente de credos, nações e línguas.

. E no nosso caso específico, de onde vos falo neste encontro internacional nipo-brasileiro, poderemos
reconectar-nos também com o pensamento e a espiritualidade não-destrutiva e não-dualista que os pajés e
xamãs indígenas tinham e ainda têm aqui no Brasil; e que os líderes espirituais de matriz africana também
cultuam aqui e que nos têm sido bloqueados por desconhecermos uma outra forma de chegar até eles, distante
do racionalismo dualista e tão hegemônico no pensamento ocidental. É esta comunicação então, mais
complexa e misteriosa que circula entre a Europa, os Estados Unidos, o Japão, a Índia, a China, a Oceania, o
Brasil, os povos indígenas das Américas e os povos africanos e afro-americanos, que eu espero que se possa
abrir a partir deste momento, único como todo momento é único e pleno da presença iluminadora de Dogen
Zenji.
AURORAS QUE AINDA NÃO BRILHARAM - Oswaldo Giacoia

Quais seriam as razões pelas quais Nietzsche escolhe como epígrafe para seu livro Aurora. Reflexões
Sobre os Preconceitos Morais o seguinte verso do Rigveda1:

“Há tantas auroras que não brilharam ainda”.2?

Parece-me que se trata de uma busca de novos horizontes, de uma esperança, até mesmo de uma crença
nascida no seio de uma missão que visa retirar o mundo moral de seus eixos tradicionais:

“Onde busca o seu criador aquela nova manhã, aquele delicado e até aqui desconhecido rubor com que um
novo dia – ah, toda uma sucessão, todo um mundo de novos dias! – romperá? Em uma tresvaloração de
todos os valores, em um desprender-se de todos os valores morais, em um confiar e dizer Sim a tudo o que
até aqui foi proibido, desprezado, maldito. Este livro que diz Sim derrama sua luz, seu amor, sua ternura sobre
coisas apenas ruins, que lhes devolve ‘a alma’, a boa consciência, o elevado direito e privilégio à existência.”3

Ora, que nesse livro afirmativo, terno, luminoso e enamorado, segundo a apreciação do próprio autor,
que nesse livro que, apesar disso, contém também sua primeira investida crítica contra a moral, Nietzsche
tenha se inspirado num verso indiano causa particular estranheza. É justamente em função desse espanto
provocado logo à sua entrada que Aurora merece atenção especial. A que remete, o que pode significar o fato
que um ex-discípulo entusiasmado de Arthur Schopenhauer, com quem Humano, Demasiado Humano já
consumara um rompimento tão intransigente quanto apaixonado, tenha feito tal escolha no livro publicado
logo em seguida?

Sabemos que a filosofia Vedanta constitui, juntamente com a filosofia de Platão e de Kant, um dos
pilares do sistema de Schopenhauer. Na interpretação schopenhaueriana, os Vedas são considerados como a
forma mais elevada de expressão religioso-filosófica da doutrina moral da negação da vontade de viver,
brotada do mais profundo discernimento acerca da essência da vida como sofrimento eterno.

No capítulo 57 do quarto livro de O Mundo como Vontade e Represenatação, entre inúmeros outros
textos congêneres, podemos ler o seguinte: “O conhecimento vivo da justiça eterna, dos dois pratos da
balança que liga inseparavelmente o malum culpae (mal da culpa) com o malo poenae (mal da pena) exige
1
“Coleção de hinos sânscritos que forma o primeiro e mais importante dos quatro livros de versos dos Vedas, ou livros sagrados da
primitiva religião indo-ariana. Compreende 1.028 cantos ou hinos, distribuídos em dez livros. Data provavelmente do segundo
milênio a. C. Não existindo ainda a escrita, os hinos que formam essa coleção foram conservados na tradição oral de certas famílias
sacerdotais. Mantiveram-se assim diversas versões, com pequenas divergências, até que a escrita permitiu sua unificação e registro.
De seus dez livros, somente os primeiros sete ou oito são de antiguidade remota, tendo sido os demais acrescentados
posteriormente. Consistem na maior parte de odes líricas atribuídas a sábios ou profetas e endereçadas aos deuses indo-arianos. As
primeiras traduções européias desses livros datam de meados do século XIX, portanto bem posteriores às de outros livros religiosos
da Índia.” (Enciclopédia Brasileira Mérito. São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife: Ed. Mérito, s. d. Volume 17, p. 230).
2
Nietzsche, F. Aurora. Reflexões sobre os Preconceitos Morais. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2004. Os textos originais de Nietzsche utilizados no presente trabalho são extraídos da seguinte edição: F. Nietzsche. Sämtliche
Werke. Kritische Studienausgabe (abreviada como KSA). Ed. G. Colli und M. Montinari. Berlin, New York, München: de Gruyter,
DTV. 1980. Quando não houver indicação em contrário, as traduções de textos de Nietzsche são de minha autoria e têm como
referência a edição acima mencionada.
3
Nietzsche, F. Ecce Homo. Como Alguém se Torna o Que é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995,
p. 79.
completa elevação sobre a individualidade e o princípio de sua possibilidade: porisso, ele permanecerá
sempre inacessível à maioria dos homens, assim como aquele seu aparentado conhecimento puro e claro da
essência da virtude. – Porisso, os sábios pais ancestrais do povo indiano o exprimiram diretamente nos
Vedas, em verdade apenas permitidos para as três castas regeneradas, ou na doutrina sapiencial esotérica, na
medida, contudo, em que o permite o conceito, a linguagem e seu sempre ainda figurativo e rapsódico modo
de aprsentação; porém na religião popular ou na doutrina exotérica (exprimiram-no, OGJ.) apenas
miticamente. A apresentação direta encontrâmo-la nos Vedas, o fruto do supremo conhecimento e sabedoria
humanas”.4

Nos Vedas, assim como na doutrina budista do Nirvana, que não admite castas nem Vedas, e de igual
modo no dogma cristão do pecado original e da queda, encontramos, segundo Schopenhauer, uma doutrina
ascética de negação da vida, de condenação do mundo, do ciclo permanente do vir-a-ser, com seu cortejo
incessante de nascimento, velhice, doença e morte, geração e corrupção, a indicar que a realidade empírica do
universo – tudo aquilo que adquire individualidade e faz parte do mundo tal como se nos apresenta sob as
formas do espaço, do tempo e da causalidade, com inclusão de nós mesmos como sujeitos individuais – tudo
isso nada mais é que vale de lágrimas, castigo, fantasma, ilusão, véu de maia, a ser ultrapassado no caminho
para a fusão com o todo absoluto – portanto o completo avesso de uma postura existencial e filosófica que
afirma a vida e ao mundo, tal como Nietzsche considera ser a postura de seu Aurora.

A despeito do paradoxo desconcertante, suspeito que a compreensão por Nietzsche do essencial da


filosofia e da religião vedanta, tanto quanto da budista e mesmo cristã, conserva o mesmo sentido de sua
interpretação por Schopenhauer. E, no entanto, por que razão Aurora, que dá início à campanha nietzscheana
contra a moral, principia por uma citação dos Vedas – uma versão religioso-filosófica da doutrina da negação
do mundo? E essa escolha se torna ainda mais problemática, quando se considera, como acabo de sugerir, que
entre o Rigveda e Nietzsche eleva-se o vulto de Schopenhauer. Pois é justamente Schopenhauer o autor
original da tese de acordo com os Vedas contém uma moral de renúncia a si, a mesma que, no essencial, foi
consagrada pelo Cristianismo e secularizada na modernidade pelas diferentes formas de altruísmo, passando a
ser considerada como ‘a moral em si’. Essa moralidade confere por toda parte um valor incondicional ao que
é altruísta, e condena com intransigente hostilidade o que é egoísta – justamente a modalidade de avaliação
moral com a qual Nietzsche se encontra no mais profundo desacordo.

Com respeito a esse desacordo, Nietzsche não deixa nenhuma margem de dúvida: “Quem comigo
neste ponto está em desacordo está infectado... Mas o mundo inteiro está comigo em desacordo” 5 À vista
disso, não seria, portanto, um contra-senso que Aurora, livro concebido e executado como uma denúncia da
moral da renúncia de si, ali tratada como perda de centro de gravidade da vida, que trava com essa doutrina
um combate de morte, se inspire num verso indiano? Não seria isso, no mínimo, tão curioso quanto o fato de
que Aurora talvez seja o único livro na história da filosofia moderna que termina com a partícula gramatical
disjuntiva ou?

Vemos que, sob vários pontos de vista, Aurora é um livro curioso. Nele trabalha um ‘ser
subterrâneo’,uma toupeira que escava, revolve nas profundezas. Seu esforço de socapa tem um objetivo
perigoso: ele visa nada menos do que de solapar a confiança na moral – este é o objetivo mais fundamental
tanto da crítica nietzscheana da metafísica como da ciência.

Desacreditar a moral é o objetivo mestre porque as oposições lógicas de valor (juízos verdadeiros e
falsos) não são, para Nietzsche, as fundamentais. Na base delas encontra-se um fenômeno moral, a saber a
confiança, a crença na razão, na verdade. Ultrapassar esse patamar, penetrar ainda mais fundo, para
alcançar um domínio de questões ainda mais fundamental do que aquele lógica, e mesmo do que o da moral,
4
Schopenhauer, A. Die Welt Als Wille und Vostellung IV § 63. In: Sämtliche Werke. Ed. Wolfgang Frhr. Von Löhneysen.
Frankfurt/M: Suhrkamp. Band I, p. 485.
5
Id. p. 80.
eis o propósito dessa escavação que desce aos alicerces do edifício ético. Mas, para alcancá-lo, é necessário
primeiro abalar os fundamentos dessa fortaleza – essa a missão de Aurora.

“Por fim, que eu indique pelo menos com uma palavra um processo formidável, e ainda totalmente
encoberto, que só se estabeleceu devagar, lentamente: não houve até agora problemas mais fundamentais do
que os morais; é a partir da força propulsora deles que tiveram origem todas as grandes concepções no reimo
dos valores de até então (por exemplo, tudo o que em geral é denominado ‘filosofia’; e até lá em baixo nos
últimos pressupostos de teoria do conhecimento). Mas há problemas ainda mais fundamentais do que os
morais: estes só chegam à vista de alguém, quando se tem o preconceito moral atrás de si.”6

Nesse seu trabalho de solapamento, Nietzsche admite que, seu lavor implacável na escuridão das
profundezas, privado de ar, era guiado no entanto ainda por uma fé, algum consolo prometia sua recompensa:
“Não parece que talvez queira a sua própria e demorada treva, seu elemento incompreensível, oculto,
enigmático, porque sabe o que também terá: sua manhã, sua redenção, sua autora?”7 A recompensa
representada por essa aurora consiste em deixar a moral atrás de si, abaixo de si, em superá-la, o que só se
torna possível por meio de sua supressão. Esta, por sua vez, não pode se dar senão como auto-supressão e,
portanto, como resultado final do processo de escavação da moral, de atravessá-la por dentro, até atingir seu
ponto de saturação ou de esgotamento, levá-la à catástrofe. A mim me parece ser este o sentido mais
profundo de Aurora, tal como o reconhece o próprio Nietzsche no prefácio que escreveu para a segunda
edição desse livro, em 1886, no qual o filósofo faz uma auto-reflexão sobre o sentido de sua trajetória como
pensador.

Nesse texto, Nietzsche põe em destaque a dificuldade implicada na tarefa a que se propôs com
Aurora. Pois “a moral não dispõe somente de toda espécie de meios de apavoramento para conservar longe
de si as mãos críticas e os instrumentos de tortura: sua segurança repousa mais ainda em certa arte do
encanto, na qual ela é entendida – ela sabe ‘entusiasmar’. Freqüentemente consegue paralisar a vontade
crítica com um único olhar e até atraí-la para o seu lado, havendo ocasiões em que sabe fazê-la voltar-se
contra si mesma: de modo que, tal como o escorpião, ela crava o ferrão no próprio corpo”. 8 Para exorcizar o
feitiço moral, Nietzsche emprega então, contra a moral, o seu próprio veneno, aquele voltar-se contra si
mesma e, como o escorpião, cravar no próprio corpo o seu ferrão. Esta é, a meu ver, a razão mais profunda
pela qual, no prefácio de Aurora, Nietzsche reivindica enfaticamente sua pertença à tradição do pessimismo
alemão, de Lutero a Hegel e, em perspectiva ainda mais ampliada, à inteira história espiritual da Europa.

“Talvez o pessimismo alemão tenha ainda um último passo a dar? Talvez deva ainda justapor, de
maneira terrível, seu credo e seu absurdum? E se este livro é pessimista até dentro da moral, até além da
confiança na moral, - não seria justamente por isso um livro alemão? Pois representa, de fato, uma
contradição, e não tem receio dela: nele é retirada a confiança na mmoral – e por que? Por moralidade! Ou
como deveríamos chamar o que nele – em nós – sucede? Em nós se realiza, supondo que desejem uma
fórmula – a auto-supressão da moral. - -”9

Assim, na esteira dessa linhagem reivindicada, no que concerne aos alemães Nietzsche considera que
o sistema crítico de Kant revela a contragosto o pessimismo de todo bom alemão, a convicção de que é
necessário acreditar na verdade da moral, ainda que esta não possa ser demonstrada nem pela natureza e nem
pela história – ainda que esta, pelo contrário, seja constantemente desmentida tanto pela natureza quanto pela
história; analogamente o pessimismo de Lutero já se expressara em sua versão reformada do credo quia
absurdum est.

6
Nietzsche, F. Fragmento Póstumo nr. 5[80], do verão de 1886 – outono de 1887. In: KSA, op. cit. vol. 12, p. 220.
7
Nietzsche, F. Aurora. Prólogo, 1. op. cit. p. 9.
8
Nietzsche, F. Aurora. Prólogo, 3. op. cit. p. 10.
9
Id. 4, p. 13s.
Desse modo, porque, a despeito do desmentido da natureza e da história, é preciso acreditar na moral,
Kant teria repetido o gesto de Lutero, e por meio de sua crítica da razão, subtrai o âmbito moral (o
incondicionado) das pretensões de conhecimento objetivo e, por essa operação, limita o domínio do
conhecimento para resguardar o espaço da fé; Hegel, por sua vez, teria seguido pelo mesmo caminho de
crença no incondicionado, apenas tendo deslocado para o futuro, para o devir do espírito absoluto, a
realização do Ideal, justificando filosoficamente o culto ao processo de revelação do espírito do mundo, bem
como o princípio de sujeição ao Estado como ao domínio de realização desse espírito.

Já Schopenhauer, por seu turno, não é considerado por Nietzsche um fenômeno estritamente alemão,
mas europeu. Se é verdade que com sua filosofia emerge um novo espírito e uma nova postura, aquele
ateísmo intransigente e leal, que se desdobra num desejo de retidão e honestidade intelectual incondicional,
seu sistema culmina, todavia, numa ética da negação da vontade de viver, bem como na afirmação de uma
ordem e significação moral do mundo – com o que o seu sistema reencontra o mesmo âmago espiritual da
filosofia vedanta, do budismo e do autêntico Cristianismo. E, no entanto, é na linhagem dessa rigorosa
disciplina moral e teórica e, sobretudo, dessa lealdade e retidão inflexível que remete a Schopenhauer, aos
alemães e aos assim chamados ‘bons europeus’, que Nietzsche pretende se inserir:

Sua postura é descrita por ele “como uma vitória final, e duramente conquistada, da consciência
européia, como o ato mais rico de conseqüências de uma disciplina de dois milênios para a verdade, que por
fim se proíbe a mentira de acreditar em Deus… Vê-se o que propriamente triunfou sobre o Deus cristão, o
conceito de veracidade, tornado cada vez mais rigorosamente, o refinamento de confessores da consciência
cristã, traduzido e sublimado em consciência científica, em asseio intelectual a qualquer preço … é por esse
rigor, se é que por alguma coisa, que somos justamente bons europeus e herdeiros damais longa e corajosa
auto-superação da Europa”.10

Percebe-se, pois, que Nietzsche tem em vista, em textos como esse, uma radicalização de figuras que
procedem originariamente da própria moral que se encontra em vias de superação. Porisso, a figura do
escorpião que retorna contra si mesmo e crava o ferrão no próprio corpo é das mais apropriadas para
descrever o empreendimento levado a efeito com Aurora.

Essa passagem permite apreender a inflexão genuinamente original do ateísmo e do imoralismo de


Nietzsche, assim como de seu ataque à moral. Trata-se de visar não o caráter deficitário do real (natureza ou
história) em relação com a perfeição do Ideal. Não se pergunta mais pelas razões em virtude das quais o Ideal
não pode ser realizado, seja em parte ou no todo. Não se considera esse deficit entre o ideal e sua realização
concreta – no âmbito da filosofia, da moral e da política – como um estado de necessidade, como uma
condição de penúria, indigência, de privação, de imperfeição. Nietzsche busca apreendê-lo com a ponta
avançada do pensamento e com os recursos da imaginação histórica – ou seja, conduzí-lo ao estado de auto-
reflexão para, dessa maneira, problematizá-lo, mais precisamente considerar o próprio Ideal (e não mais a
possibilidade ou impossibilidade de demonstração total ou parcial do mesmo) como um problema digno de
questão.

A originalidade consiste em fazer incidir a crítica histórico-filosófica contra o prório Ideal, de extrair
dele suas próprias conseqüências, de tornar incondicional o dever de honestidade intelectual justamente em
relação ao Incondiconado. O resultado dessa operação é uma refutação definitiva do lugar originário do Ideal,
do Absoluto, do Incondicionado: “A refutação histórica como refutação definitiva. – Outrora buscava-se
demonstar que não existe Deus – hoje mostra-se como pôde surgir a crença de que existe Deus e de que
modo essa crença adquiriu peso e importância: com isso torna-se supérflua a contraprova de que não existe
Deus. – Quando, outrora, eram refutadas as ‘provas da existência de Deus’ apresentadas, sempre restava a

10
Nietzsche, F. A Gaia Ciência. Aforismo 357. In: Obras Incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. Coleção Os
Pensadores 1a. Ed..São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 226s.
dúvida de que talvez fossem achadas provas melhores do que aquelas que vinham de ser refutadas: naquele
tempo os ateus não sabiam limpar completamente a mesa.”11

Essa é uma reversão decisiva, possibilitada e posta em marcha pela forma moderna da consciência
histórica, que desvia a questão das provas da existência de Deus (o Ideal, o Além) para a história de
proveniência da crença no Ideal. Nesse contexto, é indispensável levar em conta o significado do termo ‘Deus
cristão’ em Nietzsche. Como ensina Heidegger, “deve-se pensar previamente que nos nomes Deus e Deus
cristão no pensar de Nietzsche são usados para a designação do mundo supra-sensível em geral. Deus é o
nome para o âmbito das idéias e dos ideais. Esse âmbito do sura-sensível vale como o mundo cverdadeiro e
autênticamente real desde Platão… Diferenciando-se dele, o mundo sensível ºe apenas o mundo do aquém, o
mundo mutável e, por isso, o mundo meramente aparente, não real. O mundo do aquém é o vale de lágrimas,
diferenciando-se do monte da felicidade eterna no além. Se, tal como acontece ainda em Kant, chamarmos
mundo sensível ao mundo físico em sentido lato, o mundo supra-sensível é o mundo metafísico”.12

Se Deus é o conceito que representa o supra-sensível, o ideal, o âmbito originário das idéias e ideais,
então seu abalo subtrai solo de apoio e, portanto, o crédito e a validez a todo ideal que seja instituído em seu
lugar. Isso implica em apreender a problematicidade do próprio ideal, a partir da investigação de sua gênese,
que traz à luz o condicionamento interessado e subjetivo do Ideal, a necessidade da crença nele como
condição de vida. Esse questionamento se desdobra na denúncia radical da hipocrisia consistente em
continuar pretendendo confiar num simples deficit metafísico, em continuar a sustentar a possibilidade de
justificação ética da existência, ou de um ordenamento e significação moral do mundo, pois o próprio Ideal –
o ‘além’ entendido como toda forma secular candidata a substituto ideal do Deus sacralizador – tornou-se
insubsistente com a perempção do próprio âmbito do ideal supra-sensível representado por Deus. Com efeito,
afirma Nietzsche: “a história inteira constitui a refutação experimental da sentença da dita ‘ordem moral
universal’.”13

Podemos compreender melhor, com base nesses elementos, por que o esforço crítico de solapamento
das bases da confiança na moral, a desestabilização do edifício majestático da moral hegemônica no Ocidente
pode conduzir à sua auto-supressão e, com isso, propiciar as condições de surgimento de uma nova aurora. Se
a moral platônico-cristã e suas congêneres contaminaram a existência com o veneno da culpa e do castigo,
identificando a vida com o castigo para expiação da culpa, a auto-supressão da moral adquire o sentido de
uma transvaloração. Ela resgata a inocência do mundo, proclamando a insubsistência de toda culpabilidade,
numa condição de ‘segunda inocência’, que Nietzsche denomina inocência do vir-a-ser.

“A redenção de toda culpa. Nós outros, nós que desejaríamos recuperar para o vir-a-ser sua inocência,
gostaríamos de ser os missionários de um pensamento mais puro: que ninguém deu ao homem suas
propriedades, nem Deus, nem a sociedade, nem seus pais ou antepassados, nem ele mesmo – que ninguém é
culpado por ele… Falta um ser que pudesse ser responsabilizado por que alguém em geral exista, por que
alguém seja assim e assim, por alguém tenha nascido sob tais circunstâncias, nessa região. É um grande
alívio que falte tal ser … Nós não somos o resultado de um propísito eterno, de uma vontade, de um desejo:
conosco não é feita nenhuma tentativa de alcançar um ‘ideal de perfeição’, ou um ‘ideal de felicidade’, ou um
‘ideal de virtude’; - do mesmo modo, não somos o erro de Deus, perante o qual para ele próprio teria que
advir o medo (- pensamento com o qual, como é sabido, tem início o Velho Testamento) . Falta toda
localidade, toda finalidade, todo sentido, em direção ao qual pudéssemos fazer rolar nosso ser, nosso ser
assim e assim. Sobretudo: niguém poderia fazê-lo: não se pode julgar, medir, comparar ou até condenar o
todo. Por que não? Por cinco razões, todas elas acessíveis até mesmo a modestas inteligências: por exemplo,
11
Nietzsche, F. Aurora. Aforismo nr. 95. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 71.
12
Heidegger, M. A Palavra de Nietzsche: ‘Deus morreu’. Trad. Alexandre Franco de Sá. In: Caminhos de Floresta. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, s. d. p. 250s.
13
Nietzsche, F. Ecce Homo. Por que sou um Destino, 3. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.
111.
porque nada existe fora do todo. – E, dito novamente, isso é um grande alívio, nisso está a inocência de toda
existência”. 14

Chegados a esse ponto, impõe-se um retorno à situação de perplexidade de onde partimos: o que
significa a inscrição indiana na porta de entrada de Aurora. A recuperação da inocência do devir, como
libertação e redenção de toda culpa, não estaria no front ético diametralmente oposto de todo hinduísmo, de
todo budismo, de todo Cristianismo? Como, na atmosfera espiritual do elemento ético-religioso desse tipo de
potência cultural poderia haver ‘tantas auroras que não brilharam ainda”? Não seria justamente o contrário?
Haveria ainda espaço, em tal horizonte e sobre tal solo, para alguma coisa além de ocaso, crepúsculo,
declínio?

Uma pista para uma resposta possível a tais questões pode ser encontrada num trecho enigmático,
inserido entre parênteses no parágrafo 27 da terceira dissertação de Para a Genealogia da Moral. É
necessário prestar bastante atenção à interpretação desse trecho, para retirar dele elementos que permitam
divissar o alcance daquela indicação sutil dada por Nietzsche no comentário feito em Ecce Homo da epígrafe
de Aurora. No mencionado parágrafo 27 de Para a Genealogia da Moral, o que se encontra principalmente
em questão é o significado dos ideiais ascéticos. Nietzsche tematiza nesse texto a relação entre o rigor da
postura científica moderna, especialmente do ateísmo que constitui uma espécie de exigência de retidão
intelectual por parte da moderna consciência histórica, e os ideais ascéticos. Nesse contexto, ele se pergunta:
existe oposição entre ciência e ideal ascético, entre o ateísmo moderno e o ascetismo? Eis sua resposta:

“Por toda parte onde o espírito está hoje em obra, com rigor, com potência e sem falsificação de
moda, ele se abstém agora de ideal em geral – a expressão popular dessa abstinência é ‘ateísmo’ – descontada
sua vontade de verdade. Essa vontade, porém, esse resto de ideal é, se me quiserem acreditar, aquele ideal
mesmo, em sua mais rigorosa, mais espiritual formulação, esotérica de cabo a rabo, despida de todo
contraforte e, com isso, não tanto seu resíduo quanto sua medula”.15

Esse trecho introduz um paralelo fecundo e interessante entre ateísmo e vontade de verdade, que
guarda importantes relações com o tema da auto-supressão da moral. De acordo com esse paralelo, não
somente o ateísmo leal da consciência científica moderna não está em contradição com o ideal ascético como
representa, antes, uma de suas formas tardias e refinadas, a conclusão da própria lógica interna do ideal
ascético. Conclusão catastrófica de uma disciplina de milênios para a verdade que, chegada a esse ponto de
seu próprio desenvolvimento, proíbe a si mesma toda forma de inverdade, como aquela que consiste na
crença em Deus.

Trata-se do mesmo movimento pelo qual, por dever de honestidade intelectual, portanto em respeito à
verdade, a moderna consciência científica se vê compelida também a negar assentimento, a retirar sua
confiança no incondicionado pressuposto pela moral, na medida em que, juntamente com o sentido do
conceito de Deus enquanto significando o âmbito originário do Ideal, nenhum sucedâneo seu, nenhum
Incondicionado pode subsistir na perempção da estrutura que lhe dava sustentação – o conceito de Deus era a
representação mais elevada dessa estrutura.

Ora, o teor do trecho entre parênteses do parágrafo 27 da terceira dissertação de Para a Genealogia da
Moral é o seguinte: “(A mesma marcha de desenvolvimento nas Índias em completa independência e, por
isso mesmo, demonstrando algo, o mesmo ideal coagindo a igual conclusão; o ponto decisivo alcançado

14
Nietzsche, F. Fragmento Póstumo nr. 15[30] da primavera de 1888. In: KSA, op. cit. vol. 13, p. 422s. O fragmento é encimado
pela frase: “A Redenção de toda Culpa”. É interessante compará-lo com o ítem nr. 8 do capítulo intitulado Os Qutro Grandes
Erros do livro Crepúsculo dos Ídolos, escrito dois anos depois do prefácio à segunda edição de Aurora (CF. KSA, op. cit. vol. 6, p.
96. Tradução brasileira por Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 49s.).
15
Nietzsche, F. Para a Genealogia da Moral III, 27. In: Obras Incompletas. Op. cit. p. 331.Tradução ligeiramente modificada.
cinco séculos antes da contagem de tempo européia, com Buda e, mais exatamente: já com a filosofia sankya,
esta em seguida popularizada por Buda e convertida em religião)”.16

Ora, esse parênteses lança luz sobre o sentido da epígrafe indiana de Aurora. Ele quer indicar que, já
na filosofia vedanta mais genuinamente antiga existia a intuição daquela lei necessária na essência da vida,
cuja fórmula Nietzsche encontrou nos conceitos de auto-superação e auto-supressão. A propósito, logo
adiante no mesmo parágrafo 27 da terceira dissertação de Para a Genealogia da Moral, a auto-superação é
tematizada como a lei da vida, a lei da necessária auto-superação na essência da vida. Com base nesses
conceitos, poderíamos traçar outro paralelo, não menos interessante e fecundo, agora entre a história do
desenvolvimento da cultura hindu e a história do desenvolvimento da civilização européia, paralelo no qual o
sentido do desenvolvimento da segunda torna-se inteligível, em relação à primeira, como uma repetição
modificada da mesma lógica interna, do mesmo processo de transformação e extração de conseqúências a
partir de valores fundamentais.

Se isso é plausível, então se compreende também como Nietzsche pode se inspirar no Rigveda para
prenunciar auroras que não brilharam ainda. E pode fazê-lo precisamente no mesmo livro em que empreende
– a partir de dentro, como vimos – seu primeiro combate sem quartel à moral dominante na Europa. Esse
combate tem para ele o significado – explicitamente tematizado como tal no prefácio da obra – de auto-
supressão, de auto-superação da moral. E, de acordo com a lei desse processo, o esgotamento da moral dá
origem a uma figura de ateísmo redentor, que é capaz de resgatar a inocência do devir. Essa é, do ponto de
vista de Nietzsche, sem nenhuma dúvida, uma daquelas auroras que ainda não brilharam. Por essa razão, é no
antagonismo com o mestre Schopenhauer – o paladino do ateísmo leal e intransigente, também estilizado por
Nietzsche como o sacerdote de um insólito budismo europeu na modernidade – que se pode erigir uma nova
crença e, no brilho dessa nova aurora, construir a ponte que conduz para além do ascetismo, para além da
negação do mundo, deixando atrás de si, abaixo de si o território minado da moral e do absoluto.

“Nós, aeronautas do espírito! – Todos esses ousados pássaros que voam para longe, para bem longe –
é claro! em algum lugar não poderão mais prosseguir e pousarão num mastro ou num recife – e ainda estarão
agradecidos por essa mísera acomodação! Mas quem poderia concluir que à sua frente não há mais uma
imensa via livre, que voaram tão longe quanto é possível voar? Todos os nossos grandes mestres e
precursores pararam, afinal, e não é com o gesto mais nobre e elegante que a fadiga se detêm: assim também
será comigo e com você! Mas que importa a mim e a você? Outros pássaros voarão adiante? Esta nossa idéia
e crença porfia em voar com eles para o alto e para longe, sobe diretamente acima de nossa cabeça e de sua
impotência, às alturas de onde olha na distância e vê bandos de pássaros bem mais poderosos do que somos,
que ambicionarão as lonjuras que ambicionávamos, onde tudo é ainda mar, mar e mar! – E para onde
queremos ir, então? Queremos transpor o mar? Para onde nos arrasta essa poderosa avidez, que para nós vale
mais que qualquer outro desejo? Por que justamente nessa direção, para ali onde até hoje todos os sóis da
humanidade se puseram, desapareceram? Dirão as pessoas, algum dia, que também nós, rumando para o
Ocidente, esperávamos alcançar as Índias – mas que nosso destino era naufragar no infinito? Ou então, meus
irmãos? Ou?”17

Ou então? Minha sugestão é que essas metáforas sinalizam poeticamente uma resposta positiva à
pergunta conclusiva de Aurora colocada sob a forma disjuntiva da partícula ‘ou’ – e afirmativa no sentido da
implacável coerência interna desse livro. A inscrição retirada do Rigveda alegoriza a travessia dos aeronautas
do espírito na direção do ocidente – no sentido e através da moral ocidental. Justamente nessa direção, onde
até hoje todos os sóis da humanidade fizeram seu crepúsculo e declinaram, é possível alcançar as Índias –
essa terra que anuncia tantas auroras que não brilharam ainda. Com isso, Nietzsche indica simbolicamente
que o fim de uma era, a agonia de uma imponente figura do mundo, não tem forçosamente que ser vivida

16
Ibid.
17
Nietzsche, F. Aurora. Aforismo 575. Op. cit. p. 283s.
apenas com torpor e depressão, mas que ocasos podem ser prenúncios de novas auroras, que as dores de
abandono e da partida podem ser também dores de parto. Com isso, ele expressa sua confiança entre nós, que
estar aquela revoada de pássaros cujas asas são bem mais vogorosas que as de nossos mestres e
predecessores, alçando vôos intrépidos para distâncias infinitas, onde tudo é mar, mar e, mais além, ainda
mar.

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