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Iolanthe Seabourne é a maior maga


elementar de sua geração – ou assim lhe disseram.

Aquela que as profecias durante anos indicavam como a


salvadora do Domínio. É seu dever e destino enfrentar
e derrotar Bane, o mago tirano e mais poderoso que o
mundo já conheceu. Esta seria uma tarefa suicida para
qualquer um, e ainda mais para uma relutante menina
de dezesseis anos sem treinamento.
Guiado pelas visões de sua mãe e comprometido com
a vingança de sua família, o Príncipe Titus jurou
proteger Iolanthe, mesmo enquanto a prepara para a
batalha contra Bane. Mas cometeu o terrível erro de
se apaixonar pela garota que deveria ter sido apenas
um meio para um fim. Agora, com os servos do tirano se
aproximando, Titus deve escolher entre sua missão – e

a vida dela.

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PRÓLOGO
Pouco antes do início da metade do verão, em abril de 1883, um
evento muito pequeno aconteceu no colégio Eton, a venerável e ilustre
escola pública inglesa para meninos. Um aluno de dezesseis anos
chamado Archer Fairfax retornou de uma ausência de três meses
causada por um fêmur fraturado, a fim de retomar sua educação.
Quase todas as palavras da frase anterior são falsas. Archer Fairfax
não fraturou nenhum membro. Nunca pisou em Eton. Seu nome não era
Archer Fairfax. E ele não era, de fato, nem mesmo ele.
Essa é a história de uma garota que enganou mil garotos, um
menino que enganou um país inteiro, uma parceria que mudaria o
destino dos reinos, e um poder para desafiar o maior tirano que o mundo
já conheceu.
Prepare-se para a magia.

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CAPÍTULO 1
O fogo foi fácil.
Na verdade, não houve nada mais fácil.
Eles disseram que quando um mago elementar convoca as
chamas, ele rouba um pouco de cada fogo no mundo. Isso tornaria
Iolanthe Seabourne uma ladra, reunindo milhões de fagulhas em uma
grande combustão.
Tal chama moldada em uma esfera perfeita de três metros de
diâmetro, suspensa acima das correntes apressadas do rio Woe.
Ela acenou com os dedos. A corrente de água disparou e se
arqueou sobre a bola de fogo. Gotas escassas brilharam brevemente sob
o sol antes de caírem na chama, soltando um chiado de vapor.
O Mestre Haywood, seu guardião, gostava de vê-la brincar com
fogo. Ele não estava sozinho em seu fascínio. Todos, desde vizinhos a
colegas de classe, queriam que ela mostrasse como fazia pequenas bolas
de fogo dançar sobre a palma da mão, da mesma forma que Iolanthe,
quando criança, pediu ao Mestre Haywood que mexesse seus ouvidos,
para assim ela bater palmas e rir de prazer.

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No entanto, o interesse do Mestre Haywood se aprofundou. Ao
contrário dos outros que simplesmente desejavam ser entretidos, ele a
desafiava a fazer padrões intrincados e difíceis, como desenhar paisagens
inteiras com filamentos de fogo. E dizia: Nossa, mas isso é bonito, e
balançaria a cabeça com admiração – e às vezes, com algo que parecia
quase como um desconforto.
Mas antes que ela pudesse perguntar qual era o problema, ele
puxava seu cabelo e dizia que ia levá-la para tomar sorvete. Foram dois
anos durante os quais eles tomaram muitos, muitos copos de sorvete
juntos, lumenberry para ele e pinemelon para ela, sentados ao lado da
janela da loja de doces da Sra. Hinderstone na Avenida University, a
apenas cinco minutos a pé de sua casa no campus do Conservatório de
Artes e Ciências Mágicas, a instituição de ensino superior mais
prestigiada em todo o Domínio.
Iolanthe não tomava um sorvete de pinemelon há alguns anos,
mas ainda podia provar o sabor azedo e refrescante em sua língua.
— Meu Deus, mas isso é lindo.
Iolanthe começou. Mas a voz pertencia a uma mulher – a Sra.
Needles, na verdade, que cozinhava e limpava para o Mestre Haywood
três dias por semana, aqui em Little Grind-on-Woe, tão longe do
Conservatório quanto poderia ir sem sair das margens do Domínio. Não
que o Mestre Haywood ganhasse o suficiente para contratar ajuda, mas
algumas tarefas domésticas foram incluídas como parte de sua
compensação.
Iolanthe dissipou a bola de fogo ainda pairando no ar acima do rio
veloz e espumando branco. Ela não se importava de fazer malabarismos
com bolas de fogo do tamanho de maçãs para as crianças, ou fornecer
algumas guirlandas de chamas dançantes no baile de solstício de Little
Grind, mas a constrangia mostrar suas habilidades assim, com bastante
fogo na mão para queimar toda a aldeia.
A menos que você esteja realmente se apresentando no Majestic
Circus, o Mestre Haywood sempre pediu a ela, pense duas vezes antes de

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exibir seus poderes. Você nunca deve querer parecer um fanfarrão – ou
pior, um louco.
Ela se virou e sorriu para a governanta. — Obrigada, Sra. Needles.
Eu estava apenas praticando para o casamento.
— Eu não tinha ideia de que você era uma poderosa maga
elementar, Senhorita Seabourne, — admirou a Sra. Needles.
No Old Millennia, quando os magos elementais decidiram o
destino dos reinos, ninguém teria dado sequer um segundo olhar aos
medíocres poderes de Iolanthe. Mas estes foram os dias finais da magia
elementar1. Comparado com a maioria dos magos elementais, que
dificilmente poderiam convocar fogo suficiente para provocar uma luz
noturna – ou água suficiente para lavar suas próprias mãos – Iolanthe
supôs que seus poderes seriam realmente considerados mais poderosos
do que a média.
— Sra. Oakbluff e Rosie – e os seus novos sogros – ficarão tão
impressionados, — a Sra. Needles continuou, abaixando uma pequena
cesta de piquenique. — E o Mestre Haywood, é claro. Ele ainda não viu
seu desempenho?
— Foi ele quem me deu a ideia da grande bola de fogo, — Iolanthe
mentiu.
Os aldeões podiam suspeitar que o Mestre Haywood fosse um
viciado em merixida que negligenciou sua pupila de dezesseis anos, mas
ela se recusava a retratá-lo como algo além de um guardião solícito e
atento.

1 Por séculos, historiadores e teóricos mágicos têm debatido a correlação entre o


surgimento de sutis magia e o declínio da magia elementar. Eles foram meramente
desenvolvimentos paralelos ou um causou os outros? Um acordo pode nunca vir, mas
sabemos que o declínio afetou não apenas o número de magos elementais - de
aproximadamente 3% da população maga a menos de 1% - mas também o poder que
cada mago elementar individual exerce sobre os elementos. Atualmente, os
trabalhadores da pedreira ainda levantam regularmente blocos de pedra de 20
toneladas, sendo o registro da década de 135 toneladas por um único mago. Mas a
maioria dos magos elementais faz poucos usos de seus poderes decrescentes e são capaz
de pouco mais que truques de salão; ainda mais surpreendente quando olhamos para
os grandes magos elementais de anos anteriores, aqueles indivíduos que colocavam
montanhas em movimento perpétuo e destruíam – e criavam - reinos inteiros.
– Das vidas e ações dos grandes magos elementares

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Nos sete anos desde que os problemas dele começaram, ela
desenvolveu certo comportamento, uma segunda personalidade que ela
usava como uma máscara. A Iolanthe que enfrentava o público era um
amor: uma garota confiante e extrovertida que também era
maravilhosamente doce e útil – o resultado de ter sido amada
profundamente por toda a sua vida, é claro.
Ela ficou tão acostumada a este exterior que nem sempre se
lembrava do que realmente havia por baixo. Particularmente, ela nem
queria. Porque viver com a desilusão, desconfiança e raiva quando
poderia pairar acima e, em vez disso, fingir ser essa garota confiante e
encantadora?
— E como você está hoje, Sra. Needles? — Ela voltou aos
questionamentos. Dada a escolha, a maioria das pessoas preferia falar
sobre si mesmas. — Como está o seu quadril?
— Muito melhor desde que você me deu aquele unguento para a
articulação.
— Isso é maravilhoso, mas não posso aceitar todo o crédito. O
Mestre Haywood me ajudou a fazê-lo – ele sempre fica por perto quando
tenho um caldeirão diante de mim.
Ou talvez ele tivesse se trancado no quarto por um dia inteiro,
ignorando as batidas de Iolanthe e as bandejas de comida que ela deixara
diante da porta. Mas a Sra. Needles não precisava saber disso.
Ninguém precisava saber disso.
— Oh, ele tem sorte de ter você, — a Sra. Needles disse.
A alegria de Iolanthe vacilou um pouco – ela nunca enganou
ninguém, afinal? Mas permanecia resolutamente no personagem.
— Para executar alguns recados de vez em quando, talvez. Mas
há maneiras muito mais fáceis de fazer isso do que criar um mago
elementar para isso.
Elas riram disso, a Sra. Needles com bom humor, Iolanthe
obstinadamente.
— Bem, eu trouxe o almoço para você, senhorita. — A Sra. Needles
colocou a cesta de piquenique mais perto de Iolanthe.

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— Obrigada, Sra. Needles. E se você quiser sair mais cedo hoje
para se preparar para o casamento, certamente, você pode ir.
Isso tiraria a Sra. Needles da casa antes que o Mestre Haywood
despertasse irritado e desorientado de seu estupor induzido por merixida.
Sra. Needles colocou uma mão sobre o coração. — Isso seria bom!
Adoro um casamento, e quero estar no meu melhor na frente de todas
aquelas pessoas chatas da cidade.
O casamento de Rosie Oakbluff aconteceria em Meadswell, a
capital da província, a quase cem quilômetros. No casamento, Iolanthe
iluminaria o caminho em que a noiva e o noivo andariam até o altar. Era
considerado boa sorte a iluminação do caminho ser realizada por um
amigo da noiva, em vez de um mago elementar contratado, e ninguém se
importou demais que Iolanthe não fosse uma amiga da noiva, mas
alguém tentando subornar a mãe dela.
— Te vejo no casamento, — ela disse a Sra. Needles.
Sra. Needles acenou, então foi embora, deixando para trás uma
distorção fraca no ar que rapidamente se dissipou. Iolanthe verificou seu
relógio – faltava quinze minutos para uma da tarde. Ela estava correndo
contra o tempo.
Não era apenas pelo casamento. Ela estava com pelo menos meio
trimestre de leitura acadêmica atrasada. Suas poções clarificantes
continuavam falhando. O último feitiço de Arquivamento mágico lutou
com unhas e dentes contra seus esforços de domínio.
E a primeira rodada de exames de qualificação para as academias
superiores começariam em cinco semanas.
A magia elementar era a magia mais antiga, uma conexão direta
e primordial entre o mago e o universo, não precisando de palavras ou
procedimentos intermediários. Durante milênios, a magia sutil foi uma
imitação pálida, tentando se aproximar de combinar o poder e a
grandiosidade da magia elementar. Mas em algum momento a maré
virou.
Agora a magia sutil possuía a profundidade e a flexibilidade para
satisfazer todas as necessidades, e a magia elementar era seu primo

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primitivo, de um país distante, adaptado às exigências da vida moderna.
Quem precisava de magos elementais que usavam fogo para iluminar,
aquecer e cozinhar com magia se atualmente haviam formas de fazer fogo
muito mais seguras e convenientes?
Sem uma educação correta em magia sutil, os magos elementais
tinham poucas escolhas de carreiras: os circos, as fundições, ou as
pedreiras, nenhuma das quais atraía Iolanthe. E sem resultados estelares
nos exames de qualificação e nas concessões que eles trariam, ela não
poderia se dar ao luxo de ter uma educação superior.
Verificou o relógio novamente. Ela repassaria sua rotina para a
iluminação do caminho, então precisava verificar o elixir de luz na sala
de aula. Uma ondulação de seus dedos trouxe uma nova esfera de fogo
de um metro de diâmetro. Outra pressão, a bola de fogo dobrou de
diâmetro, um sol em miniatura subindo contra os penhascos íngremes e
sem árvores da margem oposta.
O fogo era um prazer. O poder era um prazer. Que pena que ela
não podia dobrar o Mestre Haywood com a mesma facilidade. Ela mexeu
os dedos, separando-os. A bola de fogo separou-se em dezesseis trilhas
de chamas, passando pelo ar como um cardume de peixe, dando rápidas
voltas em uníssono.
Ela juntou as palmas das mãos. Os fluxos de fogo formaram
novamente uma esfera perfeita. Um movimento leve de seu pulso fez a
bola de fogo saltar no ar e girar, lançando inúmeras faíscas. Agora suas
mãos estavam pressionadas, submergindo a bola de fogo no rio, enviando
uma enorme nuvem de vapor – havia uma grande lagoa espelhada no
local do casamento, e ela planejava tirar o máximo proveito disso.
— Pare, — disse uma voz atrás dela. — Pare neste momento.
Ela ficou surpresa. Mestre Haywood – ele acordou cedo. Apagando
o fogo, ela se virou. Ele costumava ser um homem bonito, seu guardião,
moreno e em forma. Não mais. O cabelo ralo pendia sobre o rosto. Bolsas
caídas se formaram debaixo dos olhos. Seu corpo magro – ele, às vezes,
lembrava uma marionete – parecia poder quebrar com o menor esforço.
Nunca parava de doer vê-lo assim, uma sombra de seu antigo eu.

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Mas uma parte dela não podia deixar de ficar emocionada por ele
ter vindo vê-la treinar. Ele não havia tido muito interesse nela há muito
tempo. Talvez ela também pudesse ajudá-lo em algum trabalho. Ele
prometeu ensiná-la, mas ela teve que ensinar a si mesma, e ela tinha
muitas perguntas sem respostas.
Mas primeiro: — Boa tarde. Você já comeu alguma coisa? — Ele
não deveria ter saído com o estômago vazio.
— Você não pode fazer isso no casamento, — ele disse.
Seus ouvidos pareciam ter sido picados por abelhas. Isso era o
que ele veio dizer a ela?
— Desculpe?
— Rosie Oakbluff está se casando com uma família de
colaboradores.
Dizia-se que os Greymoors de Meadswell teriam entregado mais
de uma centena de rebeldes durante e após a Revolta de Janeiro. Todos
sabiam disso.
— Sim, ela se casará.
— Não percebi isso, — o Mestre Haywood disse. Ele se inclinou
contra uma rocha, seu rosto cansado e tenso. — Pensei que ela se casaria
com um Greymore – do clã de artistas. A Sra. Needles corrigiu meu erro
agora, e não posso deixar que os agentes da Atlantis vejam você
manipular os elementos. Eles levariam você.
Seus olhos se arregalaram. O que ele estava falando? Se Atlantis
tivesse um interesse especial em magos elementais, ela não teria ouvido
falar sobre isso? Nenhum mago elementar que conheceu jamais atraiu a
atenção de Atlantis simplesmente por ser um mago elementar.
— Todo circo tem uma dúzia de magos que podem fazer o que eu
faço. Por que Atlantis se importaria comigo?
— Porque você é mais jovem e tem muito mais potencial.
Dois mil anos atrás ela não teria questionado. Diferenças entre
reinos já foram resolvidas por guerras de magia elementar. Bons magos
elementares eram muito valorizados e excelentes magos elementais, bem,
eles eram considerados Anjos encarnados. Mas isso foi há dois mil anos.

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— Potencial para o quê?
— Para grandeza.
Iolanthe mordeu o interior de seu lábio inferior. Merixida, em
quantidades suficientes, causava ilusão e paranóia. Mas ela sempre
adulterava secretamente o destilado caseiro do Mestre Haywood com
açúcar. Ele tinha um esconderijo em algum lugar que ela não sabia?
— Eu adoraria ser uma grande maga elementar, mas não houve
um único ótimo nos últimos quinhentos anos em qualquer lugar da
Terra. E você esquece que não posso manipular o ar – ninguém pode ser
um ótimo mago sem ter controle sobre os quatro elementos.
O Mestre Haywood sacudiu a cabeça. — Isso não é verdade.
— O que não é verdade?
Ele não respondeu sua pergunta, mas apenas disse: — Você deve
me ouvir. Você estará em grande perigo se Atlantis ficar consciente do
seu poder.
Iolanthe se ofereceu para iluminar o caminho no casamento. Ela
só podia imaginar o que a mãe da noiva, a Sra. Oakbluff, pensaria se
Iolanthe anunciasse repentinamente, horas antes da cerimônia, que ela
pensou melhor e que não iria.
Seu relógio de bolso tremeu. — Com licença. Preciso tirar o elixir
de luz do caldeirão.
Ela também se ofereceu para cuidar da iluminação do casamento.
O elixir de luz prateada era o habitual; mas um elixir de luz que emitia
uma verdadeira luz prateada sem qualquer tom de azul era difícil e
demorado de fazer – e uma vez amadurecido, irradiava precisamente por
sete horas.
Toda poção tinha a possibilidade de falhar. Iolanthe começara
com cinco lotes, e apenas um sobreviveu ao processo de
amadurecimento. Mas o risco valia a pena. Os Oakbluffs desejavam
mostrar aos seus sogros ricos que eram capazes de fazer um casamento
impressionante e alegre, e um lote bem sucedido de elixir de luz prateada
percorreu um longo caminho para alcançar esse objetivo.
Iolanthe saiu, esperando que o Mestre Haywood não a seguisse.

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Eram as férias de primavera; a sala de aula estava vazia, sem
pupilos e sua desordem habitual. O equipamento para as práticas estava
localizado na extremidade, sob um retrato do príncipe. Ela descobriu o
grande caldeirão e conferiu o seu conteúdo. O elixir preso à espátula
estava grosso e opaco, como um céu prestes a chover. Perfeito. Três horas
de tempo de resfriamento e deve começar a irradiar.
— Você ouviu alguma coisa do que eu disse? — A voz do Mestre
Haywood veio atrás dela.
Ele não parecia zangado, apenas cansado. Seu coração apertou
enquanto destampava a valiosa jarra que a Sra. Oakbluff lhe dera para
colocar o elixir de luz. Ela não sabia o porquê, mas sempre sentiu uma
grande preocupação de que ela era, de alguma forma, responsável pela
condição dele – uma suspeita que era mais profunda do que a culpa de
não poder cuidar dele como gostaria.
— Você deve comer alguma coisa. Suas dores de cabeça pioram
quando você não come na hora certa.
— Não preciso comer. Preciso que você ouça.
Ele raramente parecia parental atualmente – ela não se lembrava
da última vez. Ela se virou.
— Estou ouvindo. Mas lembre-se, uma reivindicação tão
extraordinária como a sua – que estarei em perigo por causa de Atlantis
por fazer algo tão comum como a iluminação de um caminho de
casamento – precisa de uma prova extraordinária.
Foi ele quem a ensinou que alegações extraordinárias precisavam
de provas extraordinárias. Como ela era como uma esponja, absorvia
cada uma de suas palavras, leviana e orgulhosa de ser a coisa mais
próxima a uma filha para este homem eloquente e erudito.
Isso foi antes de seus erros e mentiras lhe custarem posição atrás
de posição, e o brilhante estudioso destinado a grandeza era agora um
professor de aldeia – um em perigo de ser demitido por isso.
Ele sacudiu a cabeça. — Não preciso de provas. Tudo o que
preciso é rescindir a minha permissão para que você vá à Meadswell para
o casamento.

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A única razão pela qual ela ia à Meadswell em primeiro lugar, era
para salvar o emprego dele. O rumor era que os pais reclamaram da falta
de atenção dele para com seus filhos, o que levou a Sra. Oakbluff, a
secretária da aldeia, a demiti-lo. Iolanthe esperava que fornecendo uma
iluminação espetacular do caminho, para não mencionar o elixir de luz
prateada, a Sra. Oakbluff poderia ser persuadida a inclinar sua decisão
a favor do Mestre Haywood.
Se nem mesmo uma remota aldeia com necessidade desesperada
de um professor não o retivesse, quem iria?
— Você esqueceu, — ela lembrou. — As leis dizem claramente que
quando uma maga faz dezesseis anos, ela não precisa da permissão de
seu guardião para sua liberdade de movimento.
Ela poderia tê-lo deixado há mais de seis meses. Ele tirou um
cantil do bolso e tomou um gole. O cheiro doentio de Merixida flutuava
nas suas narinas. Ela fingiu não notar, já que preferia arrancar a garrafa
da mão dele e jogá-la por uma janela. Mas eles não eram mais o tipo de
família cujos membros se preocupavam honestamente um com o outro.
Em vez disso, eles eram estranhos conduzindo um acordo com um
conjunto peculiar de regras: nenhuma referência à sua jurisdição, sem
menção ao passado e sem planejamento para qualquer tipo de futuro.
— Então você simplesmente terá que confiar em mim, — ele disse,
sua voz intensa. — Nós devemos mantê-la segura. Devemos mantê-la
longe dos olhos e ouvidos de Atlantis. Você confiará em mim, Iola? Por
favor.
Ela queria. Depois de todas as mentiras dele – não, isso não é troca
de correspondência. Não, isso não é plágio. Não, estes não são subornos –
ela ainda queria confiar nele como antes, implicitamente,
completamente.
— Desculpe, — ela disse. — Eu não posso.
Ela nunca reconheceu abertamente que poderia confiar apenas
em si mesma. Ele recuou e olhou para ela. Ele estava procurando a
criança que o adorava sem rodeios? Que o teria seguido até o fim do

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mundo? Aquela garota ainda estava aqui, ela queria dizer a ele. Se ele se
recompor, ela teria prazer em deixá-lo cuidar dela, em troca.
Ele inclinou a cabeça. — Perdoe-me, Iolanthe.
Esta não era a resposta que ela esperava. Sua respiração
acelerou. Ele realmente quis desculpar-se por tudo o que a levou a perder
a fé nele?
Ele se moveu de repente, marchando em direção aos caldeirões
enquanto desenroscava a tampa de seu frasco.
— O que você está...?
Ele derramou toda a merixida que havia no frasco no elixir de luz,
no qual ela se escravizara durante quinze dias. Então ele se virou, e em
silêncio, puxou Iolanthe em seus braços e a abraçou forte.
— Eu jurei mantê-la a salvo, e eu vou. — Quando ela
compreendeu o que ele fez, ele já estava saindo da sala de aula. — Eu
informarei a Sra. Oakbluff que você não poderá realizar a iluminação do
caminho esta noite porque está muito envergonhada por seu elixir de luz
ter falhado.

***

Iolanthe olhou para o elixir de luz arruinado, uma poça plana e


verde sem qualquer indício de viscosidade. Não era o elixir de luz
prateada que ela prometeu à Sra. Oakbluff, mas o elixir de luz prateada
não poderia ser obtido por amor ou dinheiro no último minuto.
Desespero a inundou, uma maré amarga. Por que ela tentou
tanto? Por que se preocupar em salvar um posto quando ninguém mais
se importava, e ele menos ainda?
Mas ela estava acostumada demais a afastar sua autopiedade e
lidar com as consequências das ações de Mason Haywood. Já estava na
estante de livros, tirando os títulos que poderiam ajudar. O Noviço
Fabricante de Poções não lidava com elixires de luz. Uma solução rápida:
Um manual de sala de aula para erros ao fazer poções, fornecia apenas
orientação para elixires de luz que emitiam um mau cheiro, solidificavam

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ou não paravam de espumar. O guia do mestre de poções comuns e
incomuns dava uma longa perspectiva histórica e nada mais.
No desespero, ela se virou para A poção completa.
Mas Haywood amava A poção completa. Ela não tinha ideia do
porquê – era o ponto de vista mais pretensioso do mundo. Na seção sobre
elixires de luz, além dos parágrafos introdutórios, o texto estava em
cuneiforme.
Ela continuava virando as páginas, esperando por algo em latim,
que ela lê bem, ou em grego, que ela poderia lidar com um léxico, se fosse
necessário. Mas as únicas passagens não cuneiformes eram hierógrifos.
Então, de repente, nas margens, uma nota manuscrita que ela
podia ler: Não há elixir de luz, por mais que esteja estragado, que não
possa ser revivido por um relâmpago.
Ela piscou e apressadamente inclinou a cabeça para trás: ela não
tinha ideia de que havia lágrimas em seus olhos. E que tipo de conselho
era esse? Colocar qualquer elixir em um aguaceiro causaria danos
irreversíveis ao elixir, derrotando qualquer esperança de consertá-lo.
A menos... a menos que o escritor da nota quisesse dizer algo
mais, como um relâmpago convocado.
Helgira, a Implacável, havia dominado relâmpagos.
Mas Helgira era um personagem folclórico. Iolanthe havia lido
todos os quatro volumes e doze centenas de páginas de As Vidas e mortes
dos grandes magos elementares. Nenhum mago elementar real, nem
mesmo nenhum dos Grandes, havia dominado o relâmpago.
Não há elixir de luz, por mais que esteja estragado, que não possa
ser revivido por um relâmpago.
O autor dessas palavras certamente não tinha dúvidas de que
poderia ser feito. Os redemoinhos e os traços da caligrafia exalavam
confiança. No entanto, quando ela olhou para cima, o princípe em seu
retrato não expressava nada além de desprezo por sua ideia primitiva.
Ela mordiscou o interior de sua bochecha por um minuto. Então
puxou um par de luvas grossas e agarrou o caldeirão.
O que ela tinha a perder?

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***

O príncipe estava prestes a beijar a Bela Adormecida.


Ele estava esfarrapado e suado, ainda sangrando da ferida em seu
braço. Ela, sua recompensa por lutar contra os dragões que guardavam
seu castelo, estava intocada e linda.
Ele caminhou em direção a ela, suas botas afundando até o
tornozelo na poeira. Havia pó sobre tudo, desde o caldeirão, a luz cinzenta
que entrava pela sujeira na janela, as telhas de aranha que pendiam tão
grossas quanto as cortinas teatrais. Foi ele quem colocou os detalhes no
quarto. Aos treze anos era importante para ele que o interior do sótão
refletisse com precisão a negligência de um século. Mas agora, três anos
depois, ele desejou ter dado um diálogo melhor para a Bela Adormecida
em vez disso.
Se soubesse o que queria que uma menina lhe dissesse. Ou vice-
versa.
Ele se ajoelhou ao lado da cama.
— Sua Alteza, — a voz do valet ecoou nos muros de pedra. — Você
pediu para ser despertado neste momento.
Como pensou, ele levou muito tempo com os dragões. Ele
suspirou. — E eles viveram felizes para sempre.
O príncipe não acreditava em felizes para sempre, mas essa era a
senha para sair do Crucible2.
O conto de fadas desapareceu – Bela adormecida, sotão, poeira e
teias de aranha. Ele fechou os olhos antes de terminar. Quando os abriu
de novo, ele estava de volta em sua própria câmara, esparramado na
cama, em cima de um livro muito antigo de contos de crianças.
Sua cabeça estava grogue. Seu braço direito latejava onde a cauda
do wyvern3 havia cortado. Mas as sensações de dor eram apenas sua

2 Uma situação de prova severa, ou em que diferentes elementos interagem, levando à


criação de algo novo.
3 Um dragão alado, de duas patas, e com uma cauda farpada.

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mente jogando truques. As lesões sofridas no reino imaginário do
Crucible não se transferiam para o real.
Ele se sentou. Seu canário, em sua gaiola de joias, chiou. Ele se
afastou da cama e passou a mão sobre as barras da prisão do pássaro.
Ao sair para a varanda, ele olhou para o grande relógio dourado no canto
da câmara: quatorze minutos para às duas horas, o tempo exato
mencionado na visão de sua mãe – e, portanto, sempre o momento que
ele pedia para ser despertado.
No mundo real, sua casa, construída em um alto pico das
Montanhas Labyrinthine, era o castelo mais famoso de todos os reinos
mágicos, muito mais grandioso e mais bonito do que qualquer coisa que
a Bela Adormecida ocupou. A varanda oferecia vistas esplêndidas:
cachoeiras delgadas e serpenteantes, com milhares de metros,
montanhas azuis pontilhadas por centenas de lagos alimentados com
neve, e à distância, as planícies férteis que eram o centro de seu reino.
Mas ele mal notou a vista. A varanda deixava-o tenso, pois era
aqui, ou assim foi indicado, que ele encontraria o seu destino. O começo
do fim, pois seu papel profetizado era o de um mentor, um trampolim –
aquele que não sobreviveria até o fim da busca.
Atrás dele, seus assistentes se reuniram, os pés se arrastaram, a
seda farfalhando.
— Gostaria de algum refresco, Alteza? — Giltbrace disse, o
assistente principal, sua voz pastosa.
— Não. Prepare tudo para a minha partida.
— Pensamos que sua Alteza partiria amanhã de manhã.
— Mudei de ideia.
Metade de seus atendentes eram pagos por Atlantis. Ele os
mandavam em todas as direções e mudava de ideia constantemente. Era
necessário que eles acreditassem que ele era uma criatura caprichosa
que cuidava apenas do seu próprio interesse.
— Saiam.
Os atendentes recuaram até a borda da varanda, mas vigiavam.
Fora o quarto e o banheiro, o príncipe quase sempre era observado.

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Ele examinou o horizonte, esperando – e temendo – esse evento
ainda desconhecido que já havia ditado todo o curso de sua vida.

***

Iolanthe escolheu o topo de Sunset Cliff , uma rocha a várias


quilômetros a leste de Little-Grind-on-Woe.
Ela e Mestre Haywood estiveram na aldeia por oito meses, quase
um ano acadêmico completo, mas o terreno acidentado dos desfiladeiros
de Midsouth – profundas encostas escarpadas, e cachoeiras azuis velozes
– ainda tiravam o fôlego. Por algumas milhas, a aldeia era o único posto
avançado de civilização contra uma região ininterrupta de natureza
selvagem.
Atrás do Sunset Cliff, o ponto mais alto nas imediações, os aldeões
ergueram um mastro com o estandarte do Domínio. A bandeira safira
fluía no vento, a fênix prateada em seu centro refletindo sob o sol.
Quando Iolanthe se ajoelhou, seu joelho pressionou algo frio e
duro. Afastando a grama em torno da base do mastro da bandeira
encontrou uma pequena placa de bronze colocada no chão, com a
inscrição: DUM SPIRO, SPERO.
— Enquanto eu respirar, espero, — ela murmurou, traduzindo.
Então notou a data na placa, 3 de abril de 1021. O dia que viu a execução
da Baronesa Sorren e o eventual exílio do Barão de Wintervale – eventos
que marcaram o fim da Revolta de Janeiro, o primeiro e único momento
em que os vassalos do Domínio levantaram as armas contra as regras de
fato de Atlantis.
A colocação da bandeira em si não era particularmente notável –
o que, pelo menos, Atlantis ainda não havia proibido. Mas a placa,
comemorando a rebelião, era um ato de desafio aqui, neste pequeno canto
do Domínio.
Ela tinha seis anos no momento da revolta. O Mestre Haywood a
pegou e se juntou aqueles que fugiam de Delamer, a capital da cidade.
Durante semanas, eles viveram em um campo de refugiados improvisado

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do outro lado do Serpentine Hills. Os adultos sussurravam preocupados.
As crianças brincavam com uma intensidade quase frenética.
O retorno à normalidade foi abrupto e estranho. Ninguém falou
sobre os reparos no Conservatório para substituir os telhados danificados
e estátuas derrubadas. Ninguém falou sobre qualquer coisa que
aconteceu.
Uma vez, Iolanthe encontrou uma garota que conheceu no campo
de refugiados, elas acenaram desajeitadamente uma para a outra e
depois se viraram envergonhadas, como se houvesse algo vergonhoso
nesse interlúdio.
Nos anos seguintes, Atlantis apertou seu controle sobre o
Domínio, cortando o contato com o mundo exterior e ampliando seu
alcance de poder através de uma vasta rede de colaboradores abertos e
espiões secretos no mundo.
De vez enquando, ela ouvia rumores de problemas mais próximos
de casa: a perda do trabalho de um conhecido por suspeita de atividades
desfavoráveis aos interesses de Atlantis, o desaparecimento do parente
de um companheiro no Inquisitório, o repentino deslocamento de uma
família inteira na rua para uma das ilhas mais distantes do Domínio.
Havia também rumores de uma nova rebelião. Felizmente, o
Mestre Haywood não mostrou nenhum interesse. Atlantis era como o
tempo, ou uma terra deserta. Um não tentava mudar nada; o outro tudo.
Ela abaixou e dobrou a bandeira, colocando-a de lado para evitar
danos. Por um momento, ela se perguntou se poderia realmente se pôr
em perigo ao fazer uma exibição de fogo e água. Não, ela não acreditava
nisso. Durante os dois anos antes de chegarem a Little Grind, eles
viveram ao lado de uma pequena família de colaboradores, e o Mestre
Haywood nunca se opôs que ela mostrasse truques com fogo para as
crianças.
Ela moveu o caldeirão para que a barriga de metal estivesse
apoiada contra o mastro, o melhor para absorver o choque do relâmpago.
Então mediu cinquenta grandes passos longe do mastro, por segurança.
Apenas no caso.

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Que ela estivesse se preparando para que qualquer coisa
acontecesse a espantava. Sim, ela era uma excelente maga elementar
segundo os padrões atuais, mas não era nada comparada aos Grandes.
O que a fazia pensar que conseguiria uma façanha inédita, exceto em
lendas?
Ela olhou para o céu sem nuvens e respirou fundo. Ela não podia
dizer o porquê, mas sabia que o conselho anônimo de A poção completa
estava correto. Ela só precisava do relâmpago.
Mas como convocar um relâmpago?
— Relâmpago! — Ela gritou, apontando o dedo indicador para o
céu.
Nada. Não que esperasse algo em sua primeira tentativa, mas
ainda assim ficou um pouco decepcionada. Talvez a visualização pudesse
ajudar. Ela fechou os olhos e imaginou um fio ligando o céu e a terra.
Nada de nada.
Ela afastou as mangas da blusa e tirou a varinha do bolso. Seu
coração pulsava mais rápido; ela nunca usara sua varinha para magia
elementar.
Uma varinha era um amplificador do poder de um mago; quanto
maior o poder, maior a amplificação. Se ela falhasse novamente, seria um
fracasso ressonante. Mas se tivesse sucesso...
Sua mão tremia enquanto levantava a varinha para apontá-la
diretamente sobre a cabeça. Ela inalou tão profundamente quanto podia.
— Atinja aquele caldeirão, ok? Eu não tenho o dia todo!
O primeiro brilho pareceu extraordinariamente alto na atmosfera,
e aparentemente um continente de distância. Uma linha de fogo branco
atravessou em arco o céu, curvando-se graciosamente contra aquele azul
profundo e sem nuvens.
Caiu em direção a ela, mortal e brilhante.

21
Capítulo 2
Uma faixa de pura luz branca, tão distante que era apenas mais
do que um fio, tão brilhante que quase cegou o príncipe, surgiu.
Ele ficou mudo e espantado por um minuto inteiro antes que algo
o chutasse forte no peito, fazendo-o perceber que este era o próprio sinal
pelo qual ele esperara metade de sua vida.
Sua mão apertou em punho: a profecia se tornou realidade. Ele
não estava pronto. Ele nunca estaria pronto.
Mas pronto ou não, ele agiu.
— Por que vocês parecem tão impressionados? — Ele zombou de
seus atendentes. — Vocês nunca viram um relâmpago em suas vidas?
— Mas Alteza...
— Não fique parado. Minha partida não se preparará sozinha. —
Então, disse para Giltbrace especificamente, — Vou ao meu estúdio.
Garanta que eu não seja perturbado.
— Sim, Alteza.
Seus atendentes aprenderam a deixá-lo em paz quando ele queria,
pois não gostavam de ser enviados para limpar as botas dos guardas do
palácio, arrumar os armários da cozinha ou limpar os estábulos.

22
Ele esperava que a atenção deles voltasse imediatamente para o
céu ardente. Um olhar para trás lhe disse que eles de fato estavam
novamente fascinados com o extraordinário e interminável relâmpago.
Havia passagens secretas no castelo conhecidas apenas pela
família. Ele estava diante das portas do seu estúdio em trinta segundos.
Dentro do estúdio, ele tirou um tubo da gaveta central da mesa e
assobiou dentro. O som aumentaria quando viajasse, chegando
finalmente ao seu confiável corcel nos estábulos.
Em seguida, ele tirou um binóculo, herança de família, da estante.
O binóculo identificava a localização de qualquer coisa que pudesse ser
avistada dentro de sua extensão – e seu alcance se estendia não apenas
para todos os cantos do Domínio, mas cem milhas além, em qualquer
direção.
Com seus dedos tremendo apenas um pouco, ele ajustou o
binóculo para trazer o relâmpago para um foco mais nítido. Estava longe,
perto do pico sul das Montanhas Labyrinthine.
Ele agarrou as luvas de equitação e um alforje das gavetas
inferiores da mesa e murmurou as palavras necessárias. No instante
seguinte, ele estava deslizando por uma calha de pedra lisa em um ângulo
vertical, a aceleração tão vertiginosa que ele poderia estar em queda livre.
Ele se preparou. Ainda assim, o impacto de cair virado para trás
na cela de Marble era como correr direto para uma parede. Ele engoliu
um grunhido de dor e tateou no escuro pelas alças da velha montaria.
Com os joelhos, ele a cutucou para frente.
Eles estavam na boca de uma caverna escondida que cortava a
montanha. Quando o limite invisível foi cruzado, eles se precipitaram
através de um túnel de três metros de diâmetro – quase grande o
suficiente para Marble caber com as asas dobradas.
A escuridão estava completa; o ar pressionava forte e úmido
contra sua pele. Eles dispararam para cima, tão rápido que seus
tímpanos estalaram e estalaram novamente. Então, um pico de luz
cresceu rapidamente em uma inundação de sol, e eles estavam voando,
acima de um pico desabitado, bem longe do castelo.

23
Marble abriu suas grandes asas e deslizou em uma longa queda.
O príncipe fechou os olhos e se esforçou para lembrar o que viu no
binóculo: uma aldeia tão comum como um pardal, e tão pequena quanto.
Teria sido preferível ir sozinho. Mas por ser uma distância tão
grande na sugestão visual, em vez de uma memória pessoal, era um
negócio impreciso. E ele não tinha o luxo de prosseguir a pé depois de
chegar ao seu destino.
Ele se inclinou e sussurrou na orelha de Marble.
Eles fizeram uma curva.

***

Iolanthe estava deitada de costas, cega, seu rosto ardendo, seus


ouvidos tocando como os sinos na véspera do Ano Novo.
Ela ainda deveria estar viva, então. Gemendo, ela rolou, ficou de
joelhos e apertou as mãos nas orelhas.
Depois de um tempo, ela abriu os olhos para uma propagação de
tecido verde – sua saia. Ela ergueu a cabeça um pouco e olhou para sua
mão, que lentamente entrou em foco. Havia um arranhão, mas nenhum
sangue. Ela suspirou em alívio. Tinha medo de que seus ouvidos tivessem
sangrado e de encontrar pedaços de cérebro na palma da mão.
Mas a grama ao seu redor estava marrom. Estranho, o campo no
alto do penhasco estava recentemente verde vibrante com a chegada da
primavera. Seu olhar seguiu a extensão da grama seca e... o mastro havia
desaparecido. Onde ele se encontrava uma vez, fumaça negra subia de
um buraco igualmente negro.
Ela lutou para levantar, colocou a varinha no bolso e cambaleou
para a cratera, sentindo como se suas pernas fossem feitas de geléia. A
fumaça fez seus olhos lacrimejar. Grama, seca como palha, sendo
esmagadas pelas solas de suas botas.
A cratera tinha três metros de largura e tão profunda quanto; o
mastro estava quebrado no fundo. Isso era loucura. Quando o relâmpago
atingiu, sua carga elétrica deve ter atingido com segurança no chão.

24
Então ela espiou o caldeirão, estava bem no fundo da cratera,
cheio até a borda com o mais bonito elixir que ela já havia visto, como luz
estelar destilada.
Um riso rasgou sua garganta. Por uma vez, a sorte sorriu para
ela. A iluminação do casamento seria perfeita. Sua performance seria
perfeita – oh, ela conseguiria terminar muito bem.
E a Sra. Oakbluff só poderia perdoar o Mestre Haywood pela
brincadeira que ele fez com ela, ao lhe dizer... ah!... que não haveria elixir
de luz prateada para o casamento de sua filha.
Um chiado a levou a olhar para cima. Uma besta alada, algo como
o cruzamento entre um dragão e um cavalo, passou por ela. Vinha do
norte, voando com uma velocidade surpreendente em direção à costa.
Mas enquanto ela observava, as asas se abaixaram verticalmente para
diminuir o seu impulso para a frente.
Então se virou para encará-la.

***
O príncipe não podia acreditar em seus olhos.
Ele voou até bem perto de onde o relâmpago realmente havia
caído, mas Marble disparou muito rápido para ele dar uma boa olhada
no mago no topo do penhasco enegrecido. Mas agora que ele virou
Marble...
Os longos cabelos escuros, a metade bagunçada por causa do
choque elétrico, a blusa branca arruinada, a saia verde. Não havia
dúvida: o mago elementar que convocara um relâmpago era uma garota.
Uma garota.
Archer Fairfax não podia ser uma garota. O que diabos ele deveria
fazer com uma garota?
No momento seguinte, a menina não estava mais sozinha. Um
homem com um manto preto se materializou e correu até ela.

***

25
Iolanthe olhou para a besta alada. Era azul iridescente, com
chifres afiados, ramificados na cabeça equina e uma cauda com uma bola
cravejada.
Um peryton4 da costa Barbary5.
Eles estavam muito na moda nas cidades, mas não no interior. O
que um deles fazia aqui, logo depois que ela convocou um relâmpago?
— O que você fez?
Mestre Haywood! A túnica negra de professor voava atrás dele
enquanto ele corria até ela.
— Consertei o elixir de luz, — ela disse. — E você não precisa se
preocupar com a cratera, eu cuidarei disso... e colocarei o mastro da
bandeira onde ele pertence.
Ela também comandava a terra quase tão bem quanto comandava
fogo, água – e relâmpagos.
— Meu Deus, o que aconteceu aqui? — A sra. Greenfield, uma
aldeã, também apareceu. — Você está bem, Senhorita Iolanthe? Você
parece assustada.
O Mestre Haywood pegou sua varinha, puxou Iolanthe para trás
dele e apontou a varinha para a Sra. Greenfield.
— Obliviscere6! — Ele gritou. — Obliviscere! Obliviscere!
Obliviscere era o feitiço mais poderoso de esquecimento, e ilegal
para os magos sem uma licença médica para usá-lo. A Sra. Greenfield
perderia seis meses, se não um ano, de memórias.
— O que você está fazendo? — Iolanthe exclamou.
Sra. Greenfield caiu de joelhos e vomitou. Iolanthe começou a se
dirigir a ela. Mas Mestre Haywood segurou Iolanthe. — Você vem comigo.
— Mas a Sra...

4 Peryton é um animal mitológico híbrido combinando as características físicas de um


veado e um pássaro. Jorge Luis Borges descreveu em seu livro, Livro dos Seres
Imaginários, como uma criatura azul esverdeada com o corpo de um veado e as asas de
uma águia, o peryton de Borges, é um magnífico paradoxo.
5 Um antigo nome para a costa mediterrânea do norte da África, de Marrocos para o
Egito.
6 Esquecer.

26
Ele aumentou o aperto no braço dela. — Você vem comigo agora
se quiser viver!
— O quê?
Ambos se assustaram com o som de asas batendo. Sobre o
peryton havia um cavaleiro. Ela olhou, tentando vê-lo melhor. Mas no
momento seguinte, ela olhava para sua própria porta da frente.
Mestre Haywood a empurrou para dentro. Ela tropeçou.
Sra. Needles colocou a cabeça no vestíbulo. — Mestre Haywood,
Senhorita Seabourne...
— Saia! — Mestre Haywood berrou. — Saia neste instante.
— Sinto mui...
Mestre Haywood afastou a Sra. Needles da casa e fechou a porta.
Ele arrastou Iolanthe para o centro da sala e apontou sua varinha para
o teto. A ponta da varinha estremeceu.
Ela engoliu. — Diga o que está acontecendo!
Uma mochila caiu do nada em seus braços. — Eu já te disse.
Atlantis está vindo atrás de você.
Das janelas abertas veio o som do bater de asas do peryton. Os
cabelos na nuca de Iolanthe se levantaram.
— O que devo fazer? — Ela perguntou, sua voz mal acima de um
sussurro, com a mão apertada sobre sua própria varinha.
Uma batida forte atingiu a porta da frente. Ela saltou.
— Mestre Haywood, abra a porta neste minuto! — A voz pertencia
à Sra. Oakbluff, que fazia parte da polícia da aldeia. — Você está preso
pelo ataque à Sra. Greenfield, testemunhado pelo Sr. Greenfield e por
mim. Senhorita Seabourne, você vem comigo também.
Mestre Haywood empurrou a mochila para os braços de Iolanthe.
— Ignore-a. Você precisa ir.
Ela correu atrás dele. A mochila era pesada. — O que há na
mochila?
— Não sei. Nunca a abri.
Por que não?

27
Em um canto de seu quarto de dormir, estava um grande baú,
que os seguiu por vários minutos. Quando ele destrancou o baú e
levantou a tampa, ela viu o interior pela primeira vez. Estava
completamente vazio – um portal. — Para onde eu vou?
— Eu também não sei.
Seu estômago revirou. — O que você sabe?
— Que você se colocou em um terrível perigo. — Ele fechou os
olhos brevemente. — Agora entre.
A casa explodiu. As paredes cederam; detritos se precipitaram.
Ela gritou, jogou-se no chão e protegeu a cabeça com a mochila. Pedaços
de tijolo e gesso caíam em pedaços em qualquer lugar.
Quando o caos parou um pouco, ela olhou em volta procurando
pelo Mestre Haywood. Ele estava deitado no chão entre os destroços,
sangrando por uma ferida na cabeça. Ela correu para ele.
— Você está bem, Mestre Haywood? Você pode me ouvir?
Suas pálpebras se abriram. Ele olhou para ela, seu olhar sem
foco.
— Sou eu, Iolanthe. Você está bem?
— Por que você ainda está aqui? — Ele gritou, lutando para se
levantar. — Entre no portal! Entre!
Ele agarrou a mochila dela e atirou-a para o portal. Ela respirou
fundo e subiu pelos lados do baú. Ele puxou a tampa. Ela o segurou com
a palma da mão.
— Espere, você não vem...
Ele olhou para o chão.
— Mestre Haywood!
Através da poeira, uma figura matronal avançou. A Sra. Oakbluff
acenou com a varinha. O corpo inerte de Mestre Haywood saiu voando,
aterrisando com um baque no quarto ao lado e faltando poucos
centímetros para ser empalado por um feixe quebrado.
Sra. Oakbluff veio em direção à Iolanthe.

***

28
Onde eles estavam?
A aldeia não era grande, mas ainda tinha cerca de quarenta,
cinquenta moradias de tamanhos variados. Os habitantes da aldeia
pararam o que faziam para admirar Marble, sua sombra deslizando sobre
os telhados e as ruas de paralelepípedos como um presságio de morte.
O príncipe avaliou a situação. Se ele fosse o pai ou o guardião –
alguém que obviamente entendia as implicações do que a garota havia
feito – ele já teria fugido? Improvável. Ele teria que voltar para sua casa
nas proximidades, onde teria uma bolsa embalada apenas para uma
emergência e um meio rápido para fuga.
Mas onde era essa casa?
O príncipe se aproximou da casinha que estava afastada do resto
da aldeia quando um movimento chamou sua atenção. Ele virou a
cabeça, esperando que o homem e a menina se materializassem. Somente
um mago, no entanto, estava diante da casa – e não era a garota de
cabelos longos, mas uma mulher agachada.
Decepcionado, ele continuou sua busca. Só para ver, um minuto
depois, a mesma casa tremer violentamente antes de colapsar.
Ele levou Marble a quase uma parada completa e se aproximou
dos degraus da frente da casa, agora tortos.

***

— O que você está fazendo? — Iolanthe queria gritar de


indignação, mas sua voz estava quase acima de um sussurro.
— Impressionante, não é? — Sra. Oakbluff sorriu, mas seu rosto
quadrado estava sem o sorriso rústico usual. — Você sabia que uma vez
trabalhei em demolição?
— Você destruiu nossa casa porque danifiquei o mastro?
— Não, porque você resistiu à prisão. E preciso do crédito pela
sua prisão, querida... eu tenho estado nesse lugar miserável por muito
tempo.

29
Crédito por sua prisão, não a do Mestre Haywood. A Sra. Oakbluff,
uma das principais colaboradoras de Atlantis, se não de toda a Midsouth
March, acreditava claramente que prender Iolanthe traria recompensas
especiais.
O medo que surgiu em Iolanthe evaporou de repente. Ela puxou
a tampa do baú, mas esta se recusou a abaixar.
— Oh, não, não vou deixar você ir tão facilmente, — a Sra.
Oakbluff disse.
Ela ergueu a varinha para Iolanthe. Sem pensar, Iolanthe reagiu.
Uma parede de fogo rugiu para a Sra. Oakbluff.

***

O príncipe primeiro protegeu a casa com um círculo intransitável


para evitar outros intrusos. A porta da frente ainda estava mais ou menos
intacta, mas as paredes que a rodeavam haviam desmoronado. Ele
atravessou os escombros espalhados pelo vestíbulo, e mal teve tempo de
desviar quando uma parede de fogo rugiu em sua direção.
Mas o fogo não o alcançou. Em vez disso, ele girou no ar e
disparou por onde viera. Ele o seguiu até a parte de trás da casa e parou.
Uma dúzia de linhas sibilantes, chamas crepitantes se
contorcendo como serpentes, atacavam o invasor, que gritava
freneticamente os encantos de proteção. A garota, agora coberta de poeira
de gesso, estava em um baú alto, com os braços ondulando, seu rosto
franzido em concentração.
Alguns dos encantos de proteção da invasora funcionaram. Atrás
de sua barricada, ela apontou a varinha para a garota.
O príncipe ergueu a própria varinha. A invasora caiu no chão com
um baque. A menina olhou para ele por um momento, ergueu as duas
mãos e as empurrou. O fogo avançou contra ele.

30
— Esto praesidium7! — O ar diante dele ficou mais espesso para
conter o avanço do fogo. — Guarde suas chamas. Não estou aqui para
machucá-la.
— Então vá embora.
Com uma volta de seus pulsos, o muro da chama se reconfigurou
em um aríete.
Que bom que ele lutou contra tantos dragões. — Aura
circumvallet8.
O ar fechou em volta do fogo. Ela acenou com as mãos, tentando
fazer seu fogo obedecer, mas permaneceu contido. Ela levantou o dedo
para convocar mais fogo.
— Omnis ignis unus, — ele murmurou. Todo fogo é um fogo.
A nova explosão de chamas que ela queria criar se materializou
dentro da prisão que ele já fizera.
Ele se aproximou do baú. A luz do sol infiltrou através das paredes
quebradas na sala, iluminando as partículas de gesso no ar. Um raio
particular iluminou uma fina linha de sangue na têmpora dela. Ela puxou
a tampa do baú.
Ele colocou sua própria mão contra ela. — Não estou aqui para
machucá-la, — ele falou. — Venha comigo. Vou levá-la à segurança.
Ela olhou para ele, furiosa. — Ir com você? Nem sei quem...
A voz dela se apagou; a cabeça sacudiu com reconhecimento. Ele
era Titus VII, o Mestre do Domínio9. Seu perfil adornava as moedas do
Domínio. Seus retratos pairavam nas escolas e nas construções públicas

7 Uma proteção.
8 Cerca de brisa.
9 A classificação do DOMÍNIO como principado e não como reino muitas vezes
confundiu os magos. Isto certamente não é um microreino: em mais de cento e sessenta
mil quilômetros quadrados de área, é um dos maiores reinos magos na Terra e –
historicamente, um dos mais influentes. Diz a lenda que na noite anterior à sua
coroação, Titus, o Grande, o unificador do Domínio, teve um sonho em que uma voz
gritou: "O rei está morto e sua casa caiu!" Para evitar esse destino, ele próprio foi
Coroado Mestre do Reino, estilo Sua Alteza Serena, um príncipe em vez de um rei. O
truque funcionou: Ele viveu até uma idade madura e sua casa durou. Hoje, quando a
maioria dos outros monarcas e príncipes são figuras sem poder real, a Casa de Elberon
permanece como fenômeno raro entre reinos magos: uma dinastia governante.
- Do Domínio: um guia para sua história e costumes

31
– embora ele ainda não estivesse na idade e não governaria seu próprio
Domínio por mais dezessete meses.
— Sua Alteza, perdoe minha descortesia. — Sua mão afrouxou na
alça da tampa do baú; seu olhar, no entanto, permaneceu em guarda. —
Você está aqui a pedido de Atlantis?
Então ela sabia qual era o perigo. — Não, — ele respondeu. — A
Inquisidora teria me matado para chegar até você.
A menina engoliu. — A Inquisidora me quer?
— Seriamente.
— Por quê?
— Eu te direi mais tarde. Precisamos ir.
— Onde?
Ele apreciava a cautela dela: melhor ter cuidado do que ser
ingênuo. Mas não havia tempo para respostas detalhadas. Cada segundo
que passava diminuía suas chances de saírem despercebidos.
— As montanhas, por enquanto. Amanhã eu a tirarei do Domínio.
— Mas não posso deixar o meu guardião para trás. Ele...
Tarde demais. Marble emitiu um chamado alto e agudo: ela
avistou a Inquisidora. Ele arrancou o pendente que usava ao redor do
pescoço e apertou a metade inferior em sua mão.
— Eu vou encontrá-la. Agora vá.
— Mas e quanto ao Mestre...
Ele a empurrou para baixo e fechou o baú.
Quando o baú fechou, o fundo caiu debaixo de Iolanthe. Ela caiu
na total escuridão, agitando-se.

32
Capítulo 3
Não houve tempo para chegar até Marble. Titus tinha duas
opções: ele poderia deixar a Inquisidora ver Marble, pegá-la e intuir que
o corcel pessoal de Titus estava perdido na vizinhança; ou poderia subir
no animal, com a última tentativa de despistá-la em pleno voo.
Era estúpido manobrar um objeto em movimento. Era suicida
quando o objeto em movimento estava a trinta metros no ar. Mas se sua
presença fosse ser vista, independentemente do que fosse, então ele
preferia ser pego voando, o que lhe permitiria afirmar que nunca colocara
o pé no chão.
Ele viu Marble, respirou fundo e desmaterializou, onde esperava
que ela estivesse. Ele se viu no ar, sem nada sob ele. Seu coração parou.
Uma fração de segundo depois, ele bateu em algo duro – as costas de
Marble. Alívio atravessou-o. Mas não houve tempo para se livrar da
sensação de ter enganado a morte. Ele estava muito distante. Gritando
para Marble se manter firme, ele se moveu para frente, ao longo de sua
coluna lisa, enquanto apontava a varinha para a casa a fim de apagar o
círculo intransitável.

33
Já havia um grupo de aldeões reunidos do lado de fora do círculo,
discutindo se deveriam entrar. A remoção do círculo levantou todas essas
inibições. Os aldeões correram para dentro da casa.
Titus quase não conseguira agarrar as rédeas antes da
Inquisidora e a sua comitiva chegarem. Um momento depois, seu
segundo no comando fez uma saudação formal.
Titus levou seu tempo para descer, aplicando vários feitiços de
limpeza em sua pessoa enquanto fazia isso: iria contra o propósito
aparecer perante a Inquisidora com os detritos da casa ainda se
agarrando a ele.
Havia um campo aberto atrás da casa. As asas de Marble
varreram perto do solo, forçando os guardas da Inquisidora a se jogarem
no chão para não serem empalados pelos espinhos que se projetavam na
parte da frente de suas asas – picos naturais que os lacaios de Titus
poliram em pontas afiadas.
Marble estava agora de pé, mas Titus não desmontou: a
Inquisidora, com uma demora deliberada, ainda não estava presente para
recebê-lo. Ele tirou duas maçãs do alforje, jogou uma para Marble, e deu
uma mordida na outra. Seu coração, que ainda não voltara ao ritmo
normal, começou a bater mais rapidamente.
A Inquisidora era um extratora de segredos, e ele tinha muitos.
Pelo canto do olho, ele a viu emergir da porta traseira da casa.
Marble sibilou – claro que um animal tão inteligente como Marble odiaria
a Inquisidora. Titus continuou comendo a maçã – a um ritmo tranquilo –
e desmontou logo depois de jogar o miolo de lado.
A Inquisidora curvou-se.
As aparências ainda eram mantidas – Atlantis gostava de fingir
que não era um tirano, mas apenas entre iguais. Portanto, Titus, apesar
de não ter um poder real, reinava como o Mestre do Domínio; e a
Inquisidora, uma representante de Atlantis, não era oficialmente mais
importante que qualquer outro embaixador de qualquer outro reino.
— Senhora Inquisidora, um prazer inesperado, — ele se dirigiu a
ela.

34
Suas palmas transpiravam, mas manteve seu tom altivo. A sua
linhagem se estendia por volta de mil anos até Titus, o Magnífico, o
unificador do Domínio e um dos maiores magos a manejar uma varinha.
Os pais da Inquisidora foram, se ele não estivesse enganado,
comerciantes de bens antigos – e não necessariamente genuínos.
A ascendência era um indicador de pouca importância quando se
tratava das habilidades individuais de um mago - arquimagos
frequentemente eram provenientes de famílias de certa forma medianas.
Mas a ascendência era importante para um mago médio, e isso importava
especialmente para a Inquisidora, embora ela não fosse um mago médio.
Titus lembrava-a que ele podia ser um menino fútil e egocêntrico, que
teria sido nada se não tivesse nascido na ilustre Casa de Elberon.
— Realmente inesperado, sua Alteza, — a Inquisidora respondeu.
— Midsouth March está longe de suas acomodações habituais.
Ela tinha quarenta e poucos anos, era clara, com lábios finos e
vermelhos, sobrancelhas quase invisíveis e com estranhos olhos
incolores. Ele a conheceu pela primeira vez aos oito anos, e ficara com
medo dela desde então. Ele se forçou a segurar seu olhar.
— Vi o relâmpago do castelo e tive que dar uma olhada,
naturalmente.
— Você chegou rápido. Como localizou o ponto preciso do
relâmpago tão rapidamente?
Seu tom era o mesmo, mas seus olhos se aproximavam dos dele.
Ele culpou sua mãe. Por todos os meios, a Inquisidora deveria acreditar
na frivolidade de Titus, mas não podia, uma vez que a falecida princesa
Ariadne também fora considerada dócil uma vez – e provou ser qualquer
coisa além disso.
— O binóculo do meu avô, é claro.
— Claro, — a Inquisidora disse. — O alcance da visão da sua
Alteza é louvável.
— Isso corre na família, mas você está certa, o meu é
particularmente extenso.

35
Sua implacável autofelicitação trouxe uma contração ao rosto da
Inquisidora. Felizmente para ele, a habilidade de extração era
considerada uma analogia à capacidade de cantar: um talento que não
tinha influência sobre a capacidade para magia sutil.
— O que você acha da pessoa que convocou o relâmpago? — A
Inquisidora perguntou.
— Uma pessoa convocou o relâmpago? — Ele revirou os olhos. —
Você não está lendo muitos contos infantis?
— É magia elementar, Sua Alteza.
— Lixo. Os elementos são fogo, ar, água e terra. Relâmpago não é
nenhum deles.
— Poderíamos dizer que relâmpago é o casamento do fogo e do ar.
— Poderíamos dizer que a lama é o casamento da água e da terra,
— ele disse com desdém.
O maxilar da Inquisidora apertou. Uma gota de suor rolou pelas
costas de Titus. Ele estava jogando um jogo perigoso. Havia uma linha
tênue entre irritar a Inquisidora e irritá-la completamente.
Ele deixou seu tom um pouco menos pomposo. — E qual é o
interesse de Atlantis em tudo isso, Senhora Inquisitora?
— A Atlantis está interessada em todos os fenômenos incomuns,
Sua Alteza.
— O que seu povo descobriu sobre esse fenômeno incomum?
A Inquisidora saíra da casa. Então ela já viu o interior.
— Não muito.
Ele começou a caminhar em direção à casa. — Sua Alteza, eu
aconselho contra isso. A casa está estruturalmente instável.
— Se não é muito instável para você, não é muito instável para
mim, — ele disse alegremente.
Além disso, ele não tinha escolha. Na sua pressa de sair, ele não
teve tempo de remover todos os traços que poderia ter deixado para trás.
Ele precisava voltar e verificar, no caso de seu feitiço anterior de
contenção não ter sido suficientemente pisoteado pelos aldeões.

36
A Revolta de Janeiro havia falhado por muitas razões diferentes,
incluindo porque seus líderes não foram meticulosos o suficiente. Ele não
podia se dar ao luxo de cometer os mesmos erros.
Com a Inquisidora a reboque, ele passeou pela casa. Exceto pelos
inúmeros livros, não havia nada notável nela. Os agentes da Inquisidora
perambulavam, verificando paredes e pisos, abrindo gavetas e armários.
Quase meia dúzia de agentes se aglomerava ao redor do baú, o que,
felizmente, parecia ser um portal único que mantinha seu destino para
si.
No gramado da frente, protegido por mais agentes, o guardião da
menina e a invasora da casa estavam dispostos, ambos ainda
inconscientes.
— Eles estão mortos? — Ele perguntou.
— Não, ambos estão vivos.
— Eles precisam de atenção médica, nesse caso.
— O que eles receberão no devido tempo... no Inquisitório.
— Eles são meus vassalos. Por que estão sendo levados para o
Inquisitório?
Ele se certificou de parecer irritado, preocupado não tanto com
seus vassalos, mas com sua própria falta de poder.
— Nós simplesmente desejamos questioná-los, Sua Alteza. Os
representantes do seu governo serão recebidos a qualquer momento para
vê-los enquanto permanecerem à nossa disposição, — a Inquisidora
disse.
Nenhum representante do Domínio foi permitido no Inquisitório
em uma década.
— E eu posso ter que convocá-lo nesta noite, Sua Alteza, — a
Inquisidora continuou, — Para discutir o que você viu?
Outra gota de suor percorreu a coluna vertebral de Titus. Então
ela suspeitava dele – de alguma coisa.
— Já mencionei tudo o que vi. Além disso, minhas férias
terminaram. Voltarei para a escola hoje à tarde.
— Pensei que você não iria embora até amanhã de manhã.

37
— E pensei que eu era bastante livre para ir e vir como eu
quisesse, já que sou o mestre de tudo o que eu estudo, — ele criticou.
Tudo estava lá em seus olhos, as atrocidades que ela queria
cometer para reduzi-lo a um imbecil sem palavras.
Ela não faria, no entanto. O prazer que ela teria de destruí-lo não
valia a pena o incômodo, dado que ele era, afinal, o Mestre do Domínio.
Ou então, Titus disse a si mesmo.
A Inquisidora sorriu. Ele odiava seus sorrisos quase mais do que
seus olhos.
— Claro que você pode moldar seu itinerário como desejar, Sua
Alteza, — ela disse.
Ele foi dispensado. Ele tentou não exalar muito alto pelo alívio.
Quando eles estavam mais uma vez no campo atrás da casa, ela
se curvou. Ele montou em Marble. Marble espalhou as asas e empurrou
o chão.
Mas, mesmo depois de estarem no ar, ele ainda sentiu o olhar
inabalável da Inquisidora nas costas.
***

Este não era um transporte instantâneo. Iolanthe continuava


caindo. Ela gritou durante algum tempo e percebeu que nenhum ar
passava por ela para indicar velocidade. Ela poderia muito bem estar
suspensa no lugar, só pensando que estava caindo porque não havia
nada embaixo dela.
De repente, havia. Ela bateu no chão e grunhiu com o impacto do
corpo. Tudo permaneceu escuro. Suas mãos tocaram coisas suaves que
cheiravam a poeira e um fraco aroma de lavanda – roupas lavadas.
Cavando sob as roupas, ela encontrou um revestimento de couro liso e
esticado. O material sólido sob o couro era provavelmente de madeira.
Não querendo fazer sons desnecessários, ela não bateu para descobrir.
Continuou explorando seus novos arredores. A ação manteve o
medo e as emoções confusas no limite. Se tentasse entender os eventos

38
da tarde, ela poderia gritar de perplexidade. E se pensasse no Mestre
Haywood, ela desmoronaria em pânico. Ou pura culpa.
Ele não estivera iludido por merixida. Sequer havia exagerado. E
ela escolheu não acreditar nele.
As paredes cobertas de couro continuaram sobre ela, terminando
em um teto de couro acolchoado e abaulado: ela estava dentro de outro
baú.
O baú parecia bem fechado. Ela decidiu arriscar um lampejo de
fogo. Ele derramou uma luz fraca e iluminara uma trava resistente abaixo
da abertura da tampa.
A implicação do trinco era desconcertante: era para ela manter o
baú fechado. Em cada lado do trinco havia um disco redondo de madeira,
um marcado com um olho, o outro, uma orelha. Ela reconheceu a
recomendação claramente.
Ela apagou o fogo na palma da mão – a luz poderia entregá-la – e
sentiu os discos.
O primeiro que encontrou foi o orifício da orelha, que apenas
transmitia silêncio. Ela se mudou para o buraco com olho, mas também
não viu nada. A sala que continha o baú era tão escura como o fundo do
oceano, sem sequer um vão de luz perto de uma janela.
Onde ela estava? Ela parecia estar completamente sozinha. Ela
encontrou e soltou o trinco. Colocando as palmas das mãos contra a
tampa do baú, ela aplicou uma pressão suave.
A tampa moveu alguns centímentros e parou. Ela empurrou mais
forte e ouviu um raspado metálico, mas a tampa não abriu mais.
Franzindo o cenho, ela mexeu na trava e tentou novamente. Desta vez, a
tampa não se moveu. Portanto, o trinco no lugar impedia o baú de abrir.
O que fez o baú abrir apenas um pouco depois que a trava foi liberada?
As pontas de seus dedos esfriaram. O baú estava protegido pelo
lado de fora.

***

39
Uma segunda desmaterialização em tão pouco tempo desnorteou
até mesmo um corcel tão disciplinado quanto Marble. Ela gritou quando
se materializaram acima das Montanhas Labyrinthine, seus olhos se
fecharam apertadamente. Titus teve que segurar as rédeas com todas as
suas forças para evitar bater no pico que entrou em seu caminho de
repente – a aproximação rápida das montanhas significava que até
mesmo alguém tão familiarizado com o lugar quanto eles devem sempre
ter cuidado.
— Shhhhhh, — ele murmurou, seu próprio coração batendo forte
no peito. — Shhhhh, garota. Está tudo bem.
Ele a guiou mais alto, por cima do pico, antes de decidir a direção
a tomar. Ela obedeceu seus comandos, seus músculos prodigiosos se
contraíam com cada ascensão de suas asas.
Abaixo dele, o Domínio esticou-se em todas as direções, as
Montanhas Labyrinthine dividindo o país como a coluna espinhal de um
monstro pré-histórico. De ambos os lados da grande cordilheira, o campo
era de um verde fresco e luminoso, pontilhado pelo rosa e creme dos
pomares.
Você é o administrador desta terra e do seu povo agora, Titus, o
Príncipe Gaius, seu avô, disse-lhe em seu leito de morte. Não falte com
eles como eu. Não falhe com sua mãe como eu.
Se ele soubesse então o que sabia agora, ele teria dito ao velho
bastardo, Você escolheu colocar seus próprios interesses acima daquela
terra e do povo. Você escolheu falhar com minha mãe. Espero que você
sofra muito para onde você está indo.
Realmente uma família, a Casa de Elberon.
Uma vez que a Inquisidora já sabia que ele havia visitado a
localização do relâmpago, não era necessário ser sigiloso. Quando o
castelo ficou à vista, ele virou Marble diretamente em direção à área de
pouso no topo.
Marble reclamou quando ele desmontou. Ele fez uma rápida
carícia em sua pele macia. — Vou falar para os lacaios a levarem para
mais exercícios. Vá agora, meu amor.

40
Ventos fortes batiam no topo do castelo. Titus lutou para entrar e
correu de dois em dois degraus pela escada até o seu apartamento.
Ele cumprimentou o habitual amontoado de atendentes com um
grunhido: — Já estou pronto para partir? — E acenou, afastando aqueles
que ainda eram tontos o suficiente para segui-lo.
O apartamento era enorme. Mesmo com o auxílio de passagens
secretas, ainda levou mais de um minuto para emergir na sala do globo,
onde uma representação da Terra, de quatro metros de diâmetro, pairava
no centro.
Com um balanço da varinha, as portas se fecharam, as cortinas
cerraram, e uma densa névoa subiu do chão. Apenas o ar entre o globo e
sua pessoa permaneceu transparente. Com cuidado, tocou a metade do
pingente que ele ainda usava no globo. Seus dedos roçaram contra algo
quente e granulado – o deserto de Kalahari, provavelmente.
Um pulso passou entre o pingente e o globo. Ele se afastou e olhou
para cima. Um ponto vermelho brilhante apareceu no globo, a mil milhas
a leste-nordeste de onde ele estava – e bem no meio de um reino não
mágico.
Para limitar a influência dos exilados10, Atlantis colocou um
bloqueio na viagem entre reinos mágicos e reinos não mágico. A maioria
dos portais teria sido inútil. O baú da menina deve empregar uma mágica
extraordinariamente incomum – ou alguém se certificou de que uma
brecha fosse deixada aberta para ela. Ela poderia ter sido levada a
qualquer lugar. Mas a sorte sorriu para ele hoje, e sua localização atual

10 A separação de populações de mago e não-magos nunca foi absoluta, por causa da


pequena comunidade de magos que optaram por não se juntar a uma sociedade maior
de mago ou a deixaram posteriormente. Os não-magos, com seus crescentes avanços
em ciência e tecnologia, podem um dia representar uma ameaça para o reino mago. Mas
ao longo da história, a maior ameaça aos magos sempre foram os outros magos. Nunca
foi uma caça às bruxas bem sucedida, montada sem a cooperação de magos dispostos
a se virar sozinhos. Por essa razão, os magos que moram entre os não-magos estão
sujeitos aos mais rígidos regulamentos. Aos Exilados da Revolta de Janeiro foi
apresentado um cenário curioso. No momento em que a revolta foi subjugada, não havia
outros reinos de magos aos quais seus simpatizantes pudessem fugir: Atlantis era o
mestre de todo o mundo mago. Então eles preferiram viver entre os não-magos e tramar
seu retorno.
- De um levantamento cronológico da última grande rebelião

41
estava dentro de vinte e cinco milhas de sua escola. Com sorte, ele a
encontraria dentro da hora.
Afastando o nevoeiro, ele convocou Dalbert, seu valet e espião
pessoal. Ele deveria sair imediatamente, antes que a Inquisidora
colocasse mais agentes atrás dela.
— Sua Alteza. — Dalbert apareceu na porta, um homem de meia-
idade cujo rosto redondo e agradável escondia um excepcional talento
para a coleta de informações.
Ele havia fornecido fatos e rumores para Titus de forma oportuna
e discreta nos últimos oito anos, mantendo seu mestre informado sobre
tudo o que acontecia no Domínio e ao redor do mundo, enquanto cuidava
do conforto pessoal de Titus. O príncipe, no entanto, nunca teve total
confiança em Dalbert.
— Há um trem saindo de Slough em vinte minutos. Pretendo estar
nele. Faça isso acontecer.
— Sim, senhor. E senhor, o príncipe Alectus e Lady Callista
aguardam abaixo. Eles pedem uma audiência com sua Alteza.
O regente e sua amante residiam em Delamer, a capital, e
raramente vinham à montanha de Titus.
Titus amaldiçoou. — Leve-os à sala do trono... e faça com que
Berman exercite Marble.
Dalbert apressou-se. Titus desceu dois níveis, encolhendo os
ombros em um casaco de dia enquanto andava. Ele raramente usava a
sala do trono, exceto nas ocasiões mais públicas – era ridículo para ele,
essencialmente um fantoche, estar em uma sala destinada a simbolizar
a justiça e o poder de sua posição. Hoje ele desejava livrar-se rapidamente
de seus visitantes, e a sala do trono desencorajava conversa fiada.
O teto da sala do trono elevava-se a quinze metros de altura,
apoiado em duas filas de pilares de mármore branco. O trono de
obsidiana estava colocado sobre um alto estrado. Titus passou por ele até
as janelas arqueadas. Debaixo dele havia uma distância de trezentos
metros para um precipício cortado por um rio azul, alimentado por
geleiras. À distância, os picos roxos pareciam ondas.

42
Alectus e Lady Callista estavam em dois dos quatro bancos baixos
que estavam dispostos para os visitantes na sala de recepção, antes da
sala do trono.
Alectus era o irmão mais novo do avô de Titus, um homem bonito
e moralmente flexível, de cinquenta anos. Lady Callista era uma maga da
beleza – a melhor maga da beleza de sua geração. Dos últimos trezentos
anos, segundo falavam11.
Ela estava à beira dos quarenta anos. Ao contrário de muitas
outras magas da beleza, ela não recorreu a uma magia para continuar
aparentando ter a metade de sua idade. Em vez disso, ela envelheceu
graciosamente, permitindo que rugas se espalhassem por aqui e ali,
mantendo sua influência sobre legiões de corações.
Desde que Alectus foi nomeado regente, ela era a amante dele.
Alguns sussurravam que ele até mesmo havia a pedido em casamento,
mas ela recusara. Ela era a anfitriã líder da capital, uma líder de estilo,
uma generosa patrona das artes – e uma agente de Atlantis.
Alectus se curvou. Lady Callista fez uma reverência.
— A que devo o prazer desta visita? — Titus perguntou, não
oferecendo assentos nem refrescos.
Sua descortesia surpreendeu Alectus, que olhava para a amante:
Alectus não tinha apetite para a confrontação ou qualquer tipo de
desagrado.
Callista sorriu. Foi dito que até o dia de hoje, cartas de amor
chegavam até pelo mercado. Havia uma grande habilidade em seu
sorriso, um sorriso destinado a fazer um menino que não tinha nada em
sua vida se sentir realizado e notável – viril até.

11 Nesses dias, o termo “bruxa da beleza” ficou bastante diluído. Por um lado, as
principais senhoras do palco e da moda são por vezes referidas como bruxas de beleza.
Por outro lado, também se tornou um eufemismo para as prostitutas, para grande
aborrecimento das verdadeiras bruxas belas, que se consideram muito acima de tais
prostitutas comuns. Para os fins deste livro, devemos nos apegar à definição clássica de
“bruxa da beleza”: uma mulher de grande beleza e gosto elegante que é bem versada em
música, literatura e arte e que pode conversar inteligentemente na maioria dos tópicos
sob o sol. Ela pode ou não depender economicamente da generosidade de um protetor,
mas não tem outra profissão além das suas atrações pessoais.
– De Sublime Loveliness: As Sete Bruxas De Beleza Mais Celebradas De Todos Os
Tempos

43
Titus sentiu apenas repugnância – provavelmente foi ela quem
traíra sua mãe, informando a Inquisidora da participação secreta desta
na Revolta de Janeiro.
— Recebemos uma nota da Inquisidora, — ela disse, com um
murmúrio suave. — Sua Excelência está preocupada por saber que ela
não o vê suficientemente. Ela gosta muito de você, Sua Alteza.
Titus revirou os olhos. — Ela está pensando muito de si mesma.
O que me importa se ela gosta de mim? Ela não era ninguém antes que
Bane a arrancasse da obscuridade.
— Mas agora ela é a Inquisidora e pode causar muitos problemas.
— Por que ela faria isso? Ela deseja incitar uma nova revolta?
Na palavra revolta, o sorriso de Lady Callista vacilou ligeiramente,
mas ela ficou rapidamente calorosa e preocupada novamente. — Sua
Alteza, é claro que ela não quer isso. Uma vez que você amadurecer, os
dois verão que têm muita coisa em comum. Ela espera uma associação
respeitosa, produtiva e mutuamente benéfica.
— Aprecio sua diplomacia, — ele disse, — Mas não adianta
enfeitar a situação. Não suporto isso, e ela está com ciúmes e
ressentimento de mim. Poupe o meu tempo e me diga o que ela realmente
quer.
Alectus sufocou com a linguagem de Titus. Alectus nunca teve
problemas em ser deferente para a Inquisidora. Ele estava preparado
para exercer o poder, mas ansiava por ele como uma videira tentando
alcançar o ramo mais alto. E como o parasita que era, ele provavelmente
estava mais feliz conforme mais poderes a Inquisidora conseguia para si
mesma.
O sorriso seguinte de Lady Callista estava tenso. A Inquisidora foi
desagradável com ela? Geralmente, os sorrisos de Lady Callista eram
inteiramente sem esforço.
— A Inquisidora gostaria de falar sobre o que você viu esta tarde.
— Não vi nada... eu já disse a ela.
— No entanto, ela acredita que com a ajuda dela, você pode se
lembrar de mais.

44
— Ainda estarei no continente quando eu emergir da ajuda dela?
— Os métodos da Inquisidora eram amplamente temidos.
— Tenho certeza que ela o trataria com a máxima cortesia e
consideração, Alteza.
Titus avaliou sua situação. Ele deveria sair sem demora. No
entanto, a Inquisidora também deveria ser aplacada de alguma forma. —
O baile de primavera deve ocorrer em alguns dias. Assistirei como
convidado de honra. Você pode convidar a Inquisidora. Vou conceder-lhe
uma breve audiência ao longo da noite.
Ele fazia aparições em várias funções estatais e de caridade
durante o ano, geralmente nas que envolvessem crianças e jovens. Um
baile não era exatamente o mesmo, mas ele despertaria curiosidade, não
controvérsia.
Lady Callista abriu a boca. Mas Titus a interrompeu. — Eu confio
que você estará grata por eu resolver este problema.
Era hora dela se lembrar que ele ainda era seu soberano.
— Claro, — ela murmurou, evocando outro sorriso.
Agora eles estavam sujeitos a meras formalidades antes de
dispensá-los. — Há mais alguma coisa que requeira minha atenção?
— Minha escolha de um novo overrobe 12 para o baile, — Alectus
disse, alegre agora que a tarefa foi terminada por sua amante. — Não
consigo me decidir, e Lady Callista afirma estar muito ocupada.
— Milhares de detalhes precisam ser vistos antes do baile, — Lady
Callista disse com seu jeito tímido de eu-amo-você-loucamente.
— Feche os olhos e escolha aleatoriamente, — Titus disse,
obrigando-se a não parecer tão impaciente.
— De fato, este, — Alectus concordou, — É um método tão bom
quanto qualquer outro.
— Desejo a vocês um bom dia, — Titus disse, sua mandíbula
doendo com a tensão de permanecer civil.

12 Traje medieval.

45
Alectus se curvou. Lady Callista fez uma careta. Eles saíram dos
pedestais e desapareceram para a sala de espera abaixo.
Titus soltou um suspiro. Ele olhou para o relógio: ainda faltavam
dez minutos para o trem sair.
Mas Lady Callista reapareceu, parecendo devidamente
preocupada. — Peço desculpa, Alteza, parece que deixei meu leque para
trás. Ah, está lá.
O que ela queria agora?
— Sabe quais notícias curiosas eu acabei de ouvir, senhor? — Ela
perguntou. — Que por meio do relâmpago, um grande mago elementar
se revelou: uma garota mais ou menos da sua idade.
Claro que ela perguntaria sobre a garota – qual bom agente da
Inquisidora não faria? Ele agiu aborrecido. — Devo me importar?
— Ela poderia ser muito importante, essa menina.
— A quem?
— Atlantis não se preocupa com coisas inúteis. Se a Inquisidora
está atrás da menina, ela deve ser importante de alguma forma.
— E por que você está me dizendo isso, milady?
Lady Callista se aproximou dele e colocou uma mão em seu braço.
De perto ela cheirava à fragrância sutil e potente de narciso.
— Não diz respeito a você, Alteza, que a Inquisidora esteja a meio
caminho de encontrar esta jovem possivelmente muito importante?
Poucos de seus vassalos o tocavam sem permissão expressa. Lady
Callista ousou ter a liberdade porque ela já foi a amiga mais querida da
princesa Ariadne. Seu toque era quente e familiar, sua pessoa estava
presente e interessada de uma maneira que sua mãe perpetuamente
preocupada não havia sido.
Titus se afastou. — Senhora, se você procura alguém para
enfrentar a Inquisidora, está olhando para o homem errado. Sou o
herdeiro de uma casa príncipesca que já perdeu sua glória. Isso é um
fardo suficiente. Não liderarei uma causa idealista para a qual não tenho
nem o desejo nem o talento.

46
Lady Callista riu suavemente. — Não seja bobo, Alteza. Não estou
à procura de nada desse tipo. Meu Deus, por que eu quero que algo
desestabilize a situação atual, o que me favorece nisso?
Ela retrocedeu até que estivesse no pedestal e se curvasse
novamente. — No entanto, se você decidir liderar uma causa idealista,
Alteza, você deve me informar. A estabilidade torna-se tediosa depois de
um tempo.

47
Capítulo 4
Um curioso veículo ocupou o ponto mais alto do castelo: um vagão
ferroviário privado pintado em preto. No interior, as paredes do vagão
estavam cobertas de seda azul-celeste. Duas cadeiras acolchoadas foram
estofadas em brocado creme. Um serviço de chá de porcelana com vapor
saindo do bico do bule estava em uma mesa lateral.
Com a gaiola do canário na mão, Titus entrou no vagão ferroviário,
o elo para sua outra vida. Ele quase podia cheirar o carvão queimando
no coração do motor a vapor ainda distante, sentir o ruído das rodas nos
trilhos.
Dalbert trouxe sua bagagem e fechou a porta do vagão. — Algo
para beber na viagem, Alteza?
— Obrigado, mas não será necessário.
Dalbert olhou para o relógio. — Prepare-se, senhor.
Ele puxou uma grande alavanca. O vagão agitou. No momento
seguinte, não estava mais em um local extremo no ponto mais alto do
castelo, mas a mil milhas de distância em solo inglês, parte de um trem
que partia da estação Mansion House, em Londres, quinze minutos
antes.
— Chegaremos em cinco minutos, Alteza.

48
— Obrigado, Dalbert.
Titus se moveu em seu assento para ficar diante da janela.
Chuviscava lá fora – outra Primavera inglesa molhada. A terra estava
verde e nebulosa, os movimentos do comboio rítmicos, quase hipnóticos.
Quão estranho que quando ele chegou pela primeira vez a esse
reino não mágico ele odiou tudo nele – os cheiros ofuscantes, a comida
sem sabor, os costumes inexplicáveis. No entanto, agora, depois de quase
quatro anos em sua escola não mágica, este mundo se tornou um refúgio,
um lugar para escapar, na medida em que a fuga era possível, da
opressão de Atlantis.
E da opressão de seu destino.
Duas explosões de vapor estridentes anunciaram a chegada do
trem à Slough. Dalbert saiu das sombras da janela e entregou sua
mochila a Titus.
— Que a sorte esteja com você, Alteza.
— Que a sorte atenda o seu desejo, — Titus respondeu.
Dalbert curvou-se, Titus inclinou a cabeça e se levantou.

***

Nenhum dos feitiços de abertura que Iolanthe conhecia


funcionou. Ela não tinha poder sobre madeira. Água era inútil aqui,
assim como o fogo. Ela poderia manter-se a salvo do fogo, mas se
colocasse o baú em chamas, tanto dentro como fora, ela ainda
sucumbiria à inalação de fumaça.
A menos que alguém a libertasse, ela ficaria presa.
Ela nunca cedeu ao pânico, mas sentiu a histeria crescer em seus
pulmões, espremer o ar, espremendo tudo, com a necessidade de
começar a gritar e nunca parar. Ela obrigou a mente a ficar em branco,
a respirar devagar e a tentar se acalmar.
O que a Inquisidora queria comigo?
Sério.

49
A Inquisidora era como a vice-rei de Bane para o Domínio. Uma
vez, quando Iolanthe era muito mais jovem, ela perguntou ao Mestre
Haywood porque os magos tinham tanto medo da Inquisidora. A resposta
dele foi uma que ela nunca esqueceu: porque às vezes o medo é a única
resposta apropriada.
Ela estremeceu. Se ao menos tivesse ouvido o Mestre Haywood.
Então o elixir de luz estaria bom – e ela nunca teria convocado o
relâmpago.
Ela deixou o rosto cair em suas mãos. Algo frio e pesado
pressionava no espaço entre suas sobrancelhas: o pingente que o
príncipe lhe deu antes de empurrá-la no baú.
Um novo foco de fogo revelou que o pingente era meio oval, feito
de um metal brilhante branco e prateado, com um fraco relevo na
superfície. No começo, permaneceu frio ao toque – a proximidade com o
fogo não fez diferença. Então, sem nenhuma razão aparente, ele aqueceu
até a temperatura ambiente.
A presença do príncipe com certeza foi um dos aspectos mais
desconcertantes do dia, atrás apenas da expressão angustiada do Mestre
Haywood.
Mestre Haywood sabia que ela deveria ficar longe dos olhos
curiosos de Atlantis. Ele havia preparado uma mochila no caso de uma
fuga de emergência. Como então ele não sabia onde ela ia ou o que estava
na mochila?
A mochila!
Ela empurrou o pendente para dentro do bolso – e tomou mais
cuidado com o fogo para que não se aproximasse de seus cabelos ou suas
roupas – e procurou dentro da mochila. Seus dedos encontraram tecido,
couro, uma bolsa de seda com o chocalhar de moedas e, finalmente, um
envelope.
O envelope continha uma carta.

Minha querida Iolanthe,

50
Acabei de sair do seu quarto. Você tem apenas uma semana até o
seu segundo aniversário, está dormindo docemente sob o cobertor de canto
que ainda cantava suavemente para você enquanto eu fechava a porta.
Eu quero um futuro seguro e calmo para você. Me enche de medo
ao pensar em você um dia lendo esta carta, ainda sendo uma criança,
ainda que completamente sozinha, como deve estar.
(Não posso deixar de me perguntar, mas me pergunto como seu
poder teria se manifestado. Fazendo o Rio Delamer fluir em sentido
inverso? Ou cortando o ar de um dia ensolarado com um ciclone?)
Toda noite, oro para que nunca possamos chegar a isso. Mas foi
acordado que por causa da segurança de todos, eu desistirei do
conhecimento de certos eventos para ser um guardião da memória. Depois
de amanhã, só sei que devo esconder a extensão dos seus poderes da
descoberta de Atlantis, e que se eu falhar, distanciá-la de danos imediatos.
Você sem dúvida deseja algumas explicações. Ainda não explico
tudo por escrito, por medo de que esta carta caia nas mãos erradas, apesar
de todas as minhas precauções. Lembre-se disso: Mantenha-se afastada
de todos e quaisquer agentes da Atlantis. Todos os magos em busca de
você querem usar e explorar seus poderes.
Não acredite em ninguém.
Não confie en ninguém, exceto na guardiã da memória. Ela irá
encontrá-la. E a protegerá com a própria vida.
Para ajudá-la, permaneça onde você está durante o tempo que
puder – tenho certeza que o portal final estará em um local seguro. Mas,
de qualquer forma, tenha cuidado. Você não pode ser descuidada. E o que
quer que você faça, não repita a ação que a levou a estar sob o aviso de
Atlantis em primeiro lugar.
Tenha cuidado, Iolanthe. Seja cuidadosa. Mas não se desespere. A
ajuda chegará até você.
Não quero nada além de levá-la aos meus braços e assegurar-lhe
que tudo ficará bem.
Mas só posso rezar ardentemente para que a Sorte caminhe com
você, que você descubra uma força inimaginável em si mesma e encontre

51
amigos inesperados ao longo deste caminho perigoso que agora você deve
trilhar.

Todo meu amor,


Horatio

P.S. Apliquei um feitiço irredutivível em você. Ninguém pode


capturar sua imagem – e, portanto, Atlantis não poderá divulgá-la.
P.P.S. Não se preocupe comigo.

Como não poderia me preocupar com ele? A Inquisidora ficaria


furiosa quando percebesse que ele abandonara suas lembranças
deliberadamente para ajudá-la. E se...
Uma batida no chão – uma vibração que disparou contra a
espinha de Iolanthe – dispersando seus pensamentos. Ela guardou a
carta na mochila e extinguiu seu fogo. Por um momento, não conseguiu
ouvir nada, e então voltou, a batida. Seus dedos fecharam em torno da
varinha.
Ela ergueu o disco cobrindo o furo. Parte do piso estava levantado.
Um alçapão – ela estava em um sótão. A luz iluminou as caixas, caixotes
e prateleiras sobre as quais havia fileiras e fileiras de curiosidades
empoeiradas.
O alçapão abriu mais, acompanhado de um ranger da dobradiça.
Uma lanterna entrou no sotão, seguida por uma mulher com uma
varinha. Ela levantou a lanterna. Ela ficava mais e mais brilhante,
rivalizando com o brilho cegante do meio-dia.
Iolanthe apertou os olhos contra o brilho. A mulher tinha cerca de
quarenta anos e era muito bonita: olhos intensos, maçãs do rosto altas e
lábios grossos. Seu cabelo era muito louro, quase branco na luz que
iluminava o topo da cabeça. Seu vestido azul claro era de uma forma que
Iolanthe nunca viu. Abotoado até o queixo e apertado na cintura, com
mangas apertadas que terminavam abaixo do cotovelo em mangas
rendadas.

52
Quem era esta mulher? Ela era, por acaso, a guardiã da memória
que deveria encontrar Iolanthe?
— Então você finalmente está aqui, — a mulher disse, falando
como se estivesse apertando dentes.
O estômago de Iolanthe caiu. O tom da mulher era sombrio e
hostil.
A mulher apontou a varinha para o baú. As coisas caíram com
um baque no chão. Trancas? Não, correntes. Iolanthe podia ver as
grossas cadeias de metal pelo olho mágico.
— Aperi13, — disse a mulher, usando o feitiço de abertura mais
simples agora que as restrições foram removidas.
Algum instinto profundo tomou conta de Iolanthe ao ver a tranca.
Ela não se mudou três vezes em sete anos sem aprender uma coisa ou
duas sobre ler pessoas: quem quer que fosse essa mulher, ela não
significava algo bom.
A trava se contraiu contra a mão de Iolanthe, mas ela a manteve
no lugar.
— Aperi, — a mulher repetiu.
Mais uma vez, a tranca não se moveu. A mulher franziu o cenho.
— Aperi maxime14.
Desta vez, a tranca se moveu e debateu-se como um animal
apanhado em fuga. Os dedos de Iolanthe doíam com a tensão de impedir
que ele se desengatasse. Por fim, o trinco se acalmou.
Mas ela apenas respirou fundo antes que a mulher chamasse: —
Frangare!
Frangare era um feitiço de pedreiro, usado para cortar pedras ao
meio. O baú deve estar protegido, pois não abriu, nem mesmo a menor
das fraturas.
— Frangare! — A mulher gritou de novo. — Frangare! Frangare!
Frangare!

13 Abrir.
14 Abrir mais.

53
Os dedos de Iolanthe estavam congelados de medo. O baú
permaneceu intacto. Mas por mais quanto tempo? Ela tentou se
desmaterializar – e não se moveu um centímetro: nenhuma casa de mago
respeitável permitia a desmaterialização em seus perímetros15.
A mulher afastou a lanterna e apertou o corpete do vestido, como
se estivesse exausta. — Eu esqueci, — ela disse devagar. — Ele tornou o
baú indestrutível para que eu não conseguisse me livrar dele.
Então havia um homem. Ele poderia ajudar Iolanthe?
— No seu leito de morte, ele me pediu para fazer um juramento
de sangue dizendo que eu iria protegê-lo como se fosse meu próprio filho,
desde o momento em que eu vi pela primeira vez, — a mulher disse
suavemente. Então ela riu, um som que gelou o sangue de Iolanthe. —
Ele a queria muito, não é?
A mulher ergueu a cabeça; seu rosto estava frio e vazio, seus olhos
ardendo de fervor. — Por você, ele desistiu de sua honra, — ela disse. —
Por você, ele destruiu a todos nós.
Quem era essa louca? E por que alguém acreditava que esta casa
era um local seguro?
A mulher levantou sua varinha. As correntes retornaram ao redor
do baú. Seus lábios movimentaram, como se estivesse rezando.
Iolanthe prendeu a respiração. Por um longo minuto, nada
pareceu acontecer. Então as pontas de seu cabelo flutuaram. O baú
estava fechado, ela mesma ainda estava imóvel – como o ar havia

15 Logo após o advento da desmaterialização, Magee percebeu que este revolucionário


novo meio de viagem apresentado era um problema sério para a segurança de
instituições públicas e particulares. Um mago que tenha visto o interior de um edifício
pode saltar para ele a qualquer hora, o que acaba com o propósito de ter as paredes,
em primeiro lugar. Uma série de soluções risíveis – e por vezes engenhosas – passaram
a existir. Quem pode esquecer a Nevor-Same™ Home, que mudava as cores das paredes
e móveis de uma casa após cada visita? Aleatoriamente, pode-se acrescentar, levando a
alguns dos mais feios assaltos. Hoje em dia podemos desfrutar de feitiços avançados e
discretos para proteger nossa morada de ladrões. Os feitiços listados nesta seção,
quando implementados corretamente, garantem repelir qualquer tentativa não
autorizada de desmaterialização em sua casa. ** Nenhum destes feitiços, isolados ou
em combinação, funcionam quando um semi-saltador está envolvido. Portanto, estamos
terrivelmente contente que semi-saltadores tornaram-se praticamente impossíveis de
encontrar.
– Conselho de Dono da casa para novato.

54
movimentado? No entanto, ele se moveu. Apenas em uma direção: para
fora do baú.
A mulher pretendia sufocar Iolanthe dentro do baú.
E o ar era o único elemento sobre o qual Iolanthe não tinha
nenhum controle.

***

O pingente de Titus se aqueceu sensivelmente quando ele chegou


a Inglaterra. Ele esquentou ainda mais após se materializar em Londres.
Muitos Exilados do Domínio, acostumados à vida urbana de
Delamer, optaram por se instalar em Londres, a coisa mais próxima que
a Grã-Bretanha tinha para um equivalente. A garota provavelmente havia
chegado à casa de um exilado.
A cidade estava no meio de uma das suas infames nevascas. Ele
via bem o suficiente com seus óculos de nevoeiro, mas ninguém do chão
podia vê-lo em seu tapete voador.
Os tapetes voadores foram o modo de viagem mais rápido uma
vez, confortável e luxuoso. Nesta era moderna, no entanto, tornaram-se
antiguidades muito admiradas, mas pouco utilizadas. O tapete de Titus,
com um metro e meio de comprimento, um de largura, e quase um
centímetro de espessura, era na verdade um brinquedo – e não era para
qualquer criança montar, mas para bonecas.
Ele voou sobre a casa da cidade de Rosemary Alhambra, líder dos
Exilados, mas o pingente não reagiu. Em seguida, ele tentou a casa dos
Heathmoors, considerados os magos mais poderosos entre os exilados –
ainda nada. Ele estava a caminho da casa do tenente de Alhambra
quando o pingente pulou abruptamente.
Ele acabara de passar pelo Hyde Park Corner. A única família de
magos que morava nas proximidades era os Wintervales. Certamente não
seria ali. Ninguém em sã consciência confiaria essa garota a Lady
Wintervale.

55
Mas enquanto ele circulava em cima da casa de Wintervale, o
pingente ficou tão quente que ele teve que puxá-lo para fora da camisa
para que não queimasse sua pele.
Wintervale House era uma das moradias particulares mais bem
seguras que Titus conhecia. Felizmente – muito felizmente – Leander
Wintervale, o filho da casa, era colega de Titus, e havia uma maneira de
acessar a casa do antigo colega de escola.
Titus pousou em um telhado próximo, tirou os óculos de nevoeiro
e enrolou o tapete em um pacote apertado sob seu braço. De lá,
desmaterializou para o quarto do colega de escola. Especificamente, na
sala permanentemente desocupada de Archer Fairfax.
Um olhar pela janela de Fairfax mostrou Wintervale e Mohandas
Kashkari, um menino indiano e o bom amigo de Wintervale, atrás da
casa. A chuva reduziu-se a uma névoa. Kashkari, o mais calmo dos dois,
permanecia parado; Wintervale andava ao redor dele, falando e
gesticulando.
Excelente – agora Titus não precisava inventar uma maneira de
tirar Wintervale de seu quarto. Abriu a porta de Fairfax por uma fração
de polegada e olhou para fora.
Muitos dos meninos haviam retornado. Um grupo conversava na
extremidade da passagem. Mas eles decidiram ir para Atkins para
comprar algum alimento e desceram as escadas.
Uma vez que o corredor estava vazio, Titus deixou o tapete voador
cair no chão de seu próprio quarto – depois de pensar muito, concluiu
que ele era o suficiente para carregar seu peso, mas o seu peso
combinado com o da menina manteria o tapete aterrado.
Em seguida, ele entrou no quarto do Wintervale, fechou a porta,
entrou no interior do guarda-roupa estreito de Wintervale e fechou a
porta.
— Fidus et audax16.

16 Leal e corajoso.

56
Ele abriu novamente o guarda-roupa para o quarto de Wintervale
na casa da cidade em Londres. O corredor do lado de fora estava vazio.
Ele parou nas escadas. Descendo, o pingente esfriou. Subindo, ficou mais
quente.
Ele subiu os degraus correndo.

***

Ainda havia ar no baú; ele fez um som suave quando saiu. Mas a
respiração já parecia se arrastar para seus pulmões.
Logo, a louca teria Iolanthe presa sem ar. Os dedos dela tremiam.
Ela olhou para fora pelo furo, procurando freneticamente por algo que ela
poderia usar para ajudar a si mesma.
Lá! Em uma prateleira nos recessos do sótão, entre os
instrumentos de metal empoeirados, havia uma única coisa de pedra.
Ela não podia manipular a placa de cerâmica – depois de assada
a terra mudava suas propriedades – mas ela tinha poder sobre pedra. Ela
elevou a estatueta. Ela pairou alguns centímetros acima da prateleira.
Ela abriu o braço. A estatueta esmagou a parte de trás da cabeça da
mulher.
A mulher gritou. Sua varinha caiu no chão. No entanto, ela não
perdeu a consciência como Iolanthe esperava, mas apenas tropeçou até
bater em caixas empilhadas contra a parede.
Iolanthe hesitou. Ela deveria atacar a mulher novamente em seu
estado enfraquecido?
Mas a mulher já tinha a varinha na mão. — Exstinguare17.
A estatueta de pedra se transformou em poeira. — Agora o que
você vai usar? — A mulher disse com um sorriso arrepiante.
De repente, o ar dentro do baú era tão pouco que Iolanthe ficou
chocada. Era como se alguém tivesse empurrado seu rosto contra o
cimento molhado. Apesar de tentar, ela não conseguia respirar sozinha.

17 Extinguir.

57
Pouco a pouco, muito fraca, percebeu que algo queimava contra
a sua coxa esquerda. Então tudo escureceu.

***

Quando ele chegou abaixo do alçapão aberto, Titus ouviu Lady


Wintervale falando.
— O que você fez? — Sua voz era baixa e frenética. — Nunca mais,
lembra? Você prometeu nunca mais matar.
Uma pontada de medo mergulhou no coração de Titus. A paranóia
de Lady Wintervale era profunda, e sua sanidade não era sempre
confiável. Ele chegou tarde demais?
Ele se envolveu em um feitiço de abafamento, escondeu seus
passos rapidamente e subiu. No momento em que encontrou Lady
Wintervale, ele apontou sua varinha. Tempus congelet18, ele falou, não
querendo que ela ouvisse sua voz antes que o feitiço do tempo entrasse
em vigor.
Se o feitiço funcionasse. Ele nunca o usou no mundo real.
Lady Wintervale se acalmou. Ele passou por ela até o baú.
— Você está aí? Você está bem?
O baú estava tão silencioso quanto um caixão.
Ele amaldiçoou. As correntes não responderam aos primeiros
feitiços que ele tentou. Ele amldiçoou novamente. Se tivesse mais tempo,
ele poderia convencer as correntes. Mas não havia tempo: o tempo de
congelamento durava pouco mais de três minutos. E a menina, se ainda
estivesse viva, deveria sair imediatamente.
Ele olhou ao redor. Não havia nada que pudesse usar. Um
momento depois, no entanto, ele viu que as correntes não seguiam o baú
até o final, mas em vez disso eram presas às placas aparafusadas ao lado
do baú. E a magia que ancorava as placas no baú era comum o suficiente
para que qualquer um descobrisse o feitiço.

18 Congelar tempo.

58
Ele afastou as correntes, mas a tampa do baú levantou apenas
uma fração de polegada. O que mais obstruía o seu caminho?
— Aperi.
Ouviu o som de algo destravado. Ele ergueu a tampa. A menina
estava caída, seu rosto invisível sob seus cabelos ainda bagunçados.
Sua mente ficou em branco. Ela não poderia estar morta. Poderia?
Avançando, levantou um pulso mole e procurou um pulso. Seu
coração falhou quando não encontrou um batimento fraco em sua veia.
— Revisce!
Nenhuma reação.
— Revisce forte!
Todo o seu corpo estremeceu. Sua cabeça levantou lentamente.
Seus olhos se abriram. — Alteza, — ela murmurou.
Ele estava fraco com alívio. Mas, novamente, não havia tempo
para isso. — Mantenha-se quieta, vou te tirar daqui. Omnia interiora vos
elevate19.
Tudo no baú flutuava: a menina, que ofegava e tentava encontrar
o ar; sua mochila; e um grande número de itens de roupa que devem ter
sido embalados antes que o baú se fechasse pela primeira vez. Nem uma
única peça de roupa era não mágica. Se o baú foi confiado aos
Wintervales, teria sido antes do exílio.
Ele pegou a garota, sua varinha e a mochila, e deixou tudo cair
novamente no baú. Com um clique, o baú se fechou. Um feitiço de
desfazer ajustou as placas e as correntes no lugar. Então ele tirou os dois
do alçapão com um Omnia deleantur20 lançado atrás dele para apagar
suas pegadas e quaisquer outros vestígios que pudesse ter deixado na
poeira do sótão.
— Ela te machucou? — Ele perguntou ao chegar no primeiro
degrau da escada.
— Ela tirou todo o ar do baú.

19 Levante tudo em seu interior.


20 Tudo apagado.

59
Ele olhou para a menina nos braços. Sua respiração estava
acelerada, mas ela se manteve muito bem para alguém que acabou de
suportar uma tentativa contra sua vida – ou talvez também estivesse sem
esforço para histeria.
— Por que ela queria me matar? — Ela indagou.
— Não sei. Mas ela está perturbada... ela perdeu o pai e a irmã no
levante. Seu marido também morreu jovem.
Voltando ao quarto de Wintervale dois andares abaixo, ele a
sentou na cama e abriu a janela oposta. A névoa invadiu.
— Que cheiro é esse?
— Londres.
— Londres, Inglaterra?
Ele ficou feliz por ela ter algum conhecimento sobre a geografia
não mágica. — Sim. É. Deixe-me...
O som inconfundível de alguém chegando pelo guarda-roupa.
Lady Wintervale deve ter saído do congelamento do tempo, encontrou o
baú vazio e convocou seu filho. Titus fechou a janela, tirou a garota da
cama e empurrou-a contra a parede no ponto cego atrás do guarda-
roupa.
Ela teve o bom senso de ficar quieta e silenciosa.
O guarda-roupa se abriu. Wintervale saiu. O coração de Titus
acelerou: a mochila da menina estava debaixo da janela – ele havia
colocado-a no chão para abrir a janela. Mas Wintervale não prestou
atenção ao conteúdo de seu quarto e correu para o corredor.
Titus se permitiu um momento para se acalmar.
— Rápido.
A janela estava no fundo da casa. Ele abriu a janela e levantou a
garota na borda. Em seguida, pegou sua mochila, saiu, fechou a janela e
a trancou com um feitiço.
O nevoeiro era penetrante. Ela estava perdida no espesso
nevoeiro. Ele procurou por ela, mas só sentiu seu cabelo em movimento.
— Onde está sua mão?

60
Ela pegou a mão dele, seus dedos estavam frios, mas estáveis. —
Eu não esperava que você realmente viesse.
Ele exalou. — Então você não me conhece muito bem.
Ambos saltaram.

61
Capítulo 5
Voar nunca foi um problema para Iolanthe antes, fosse sozinha
ou com outra pessoa. Mas essa queda em particular era como ser
esmagada entre dois pedregulhos. Ela fechou os olhos e engoliu um grito
de dor. Um segundo depois, ela tropeçou.
O príncipe a pegou. — Sinto muito. Eu sabia que voar poderia ser
difícil para você agora, mas eu precisava deixá-la em segurança
imediatamente.
Ele não deveria se desculpar. Se estavam seguros, então nada
mais importava. Eles estavam em uma espécie de antessala. Havia um
espelho, uma mesa, duas portas e nada mais. Ele apontou sua varinha
para a porta na frente deles. Ela abriu silenciosamente, revelando uma
sala adiante com papel de parede vermelho escuro, cadeiras amarelo
claro e uma grande varanda vazia, diante da qual estava uma grade de
ferro forjado com videiras onduladas e cachos de uvas.
Ele a levantou de novo e a levou para uma espreguiçadeira
reclinada. — Eu poderia ter um remédio para você, — ele disse,
colocando-a no chão.
Ele cruzou a sala para outra porta. — Astra castra, numen lumen.
As estrelas do meu campo, a minha luz divina.

62
A porta se abriu. Ele entrou em uma sala alinhada com gavetas e
prateleiras até onde se podia ver, prateleiras cheias de livros, prateleiras
contendo frascos, jarras e garrafas, prateleiras contendo instrumentos
tanto familiares quanto exóticos. Um canário enjaulado estava sobre uma
longa mesa no centro da sala. Também havia duas valises na mesa, uma
marrom, a segunda de um vermelho escuro.
Ele desapareceu brevemente de sua visão. Ela ouviu o som das
gavetas abrindo e fechando. Ele voltou, sentou ao lado dela e destampou
um frasco. O aroma amargo do remédio agarrou-se à lã de sua jaqueta.
— Esse remédio, — ela murmurou, — É natural?
Era espesso o suficiente para cortar com uma faca, de cor
alarmantemente amarela, e cheirava a porco.
— Não há magia por trás disso, mas também não é totalmente
natural – uma consequência da industrialização na Grã-Bretanha. Aqui:
isso é para aliviar os efeitos do voo.
O príncipe estendeu um frasco com um pó fino azul escuro dentro.
Ele segurou seu queixo, seus dedos quentes e fortes, e entornou o pó azul
na boca dela. O sabor lembrou-lhe a água do mar.
— Não há contra-remédio para asfixia, exatamente, mas isso é
bom para seu bem-estar geral.
Ele abriu um segundo frasco pequeno. O remédio tinha grânulos
cinza-prateado, e inesperadamente, gosto de laranja.
— Obrigada, sua alteza, — ela murmurou.
Ele já estava se afastando, voltando ao quarto cheio de prateleiras.
— Que quarto é esse? — Ela perguntou.
— Meu laboratório, — ele respondeu, abrindo uma gaveta.
— O que você faz aí? — De costas para ela, ele encolheu os
ombros. — O que alguém faz em laboratório... poções, destilações,
elixires, coisas desse tipo.
Ela realizou práticas na escola da aldeia para Mestre Haywood –
práticas, de uma forma ou de outra, eram obrigatórias até que um aluno
chegasse a quatorze anos. Mas não era como se os magos tivessem o seu
próprio laboratório em casa. As destilarias comerciais e os fabricantes de

63
poções atendiam adequadamente suas necessidades. De fato, muitas
famílias sequer possuíam os instrumentos necessários para fazer as
receitas que ela ensinou.
Era apenas uma excentricidade principesca que lhe permitia
equipar um laboratório inteiro para si ou era algo mais?
O príncipe saiu do laboratório e fechou a porta. Ele era alto e
magro – não fino, mas firmemente construído. Quando ela o viu pela
primeira vez em sua casa destruída, ele usava uma túnica azul clara e
calças escuras enfiadas nas botas até o joelho. Vestuário simples da
região, nada como as roupas elaboradas que usava em seus retratos
oficiais.
Agora ele usava uma jaqueta preta com um colete verde caçador,
calças pretas e sapatos de couro preto polido – a jaqueta ficou mais
perfeita do que as túnicas que os homens usavam no Domínio, as calças
também.
Seu olhar voltou ao rosto dele. Os retratos oficiais eram notáveis
por não serem confiáveis. Mas neste caso, as fotos não mentiram. Ele era
bonito, com cabelo escuro, olhos intensos e maçãs do rosto altas.
Em seus retratos, ele sempre parecia zombar. Ela uma vez
comentou com um colega de classe como ele parecia ser malvado, o tipo
de garoto que não só dizia a uma garota que parecia feia, mas que
também derramava deliberadamente uma bebida sobre ela. Em pessoa,
ele parecia menos cínico. Havia uma leveza em suas feições, era um
garoto atraente e, tanto quanto ela podia ver, sem malícia.
Seus olhos se encontraram. Seu estômago revirou.
Sem dizer uma palavra, ele abriu a porta atrás dele novamente.
Mas em vez do laboratório, ele entrou no que parecia ser um banheiro.
— O que aconteceu com o seu laboratório?
Som de água correndo. — Esse é um espaço aumentado, não faz
parte desta suíte de hotel.
— É onde estamos, em um hotel? — Ela pensou, por algum
motivo, que estavam em uma das suas propriedades menores, um
alojamento de caça ou uma cabana de verão.

64
O som de mais água correndo. — Estamos a menos de duas
milhas de onde você estava quando saiu do baú.
— Ainda estamos em Londres?
— Sim.
Agora que ele mencionou isso, ela viu que luz real – em vez de
elixir de luz – brilhava atrás do vidro fosco pendurados nas paredes. Ela
teria notado antes se estivesse menos preocupada.
Ele saiu do banheiro com uma toalha. Agachando-se diante dela,
ele apertou a toalha úmida em sua têmpora.
— Oww!
— Desculpe. O sangue está um pouco seco agora. Mas você não
deve precisar de mais do que uma boa limpeza.
Ela suportou o desconforto. — Você pode me dizer o que está
acontecendo?
Por que ela estava aqui? Por que ele estava aqui? Por que o céu
caiu hoje, de todos os dias?
— Mais tarde. Eu seria negligente como seu anfitrião se não lhe
oferecesse o uso de uma banheira primeiro.
Ela havia esquecido o estado em que deveria estar, suja e
maltratada.
— A banheira está enchendo enquanto falamos. Você ficará bem
aqui sozinha?
Ele fez uma pergunta perfeitamente legítima, já que ele a salvara
mais cedo. Mas mesmo assim, ela perguntou.
— E se eu não estiver bem?
Ela imediatamente se arrependeu da pergunta. Era muito
atrevida. E diante de seu soberano, não menos. Ela talvez não tenha
recebido muita orientação parental, mas ainda gostava de pensar em si
mesma sendo melhor do que isso.
Ele bateu os dedos contra o braço da espreguiçadeira. — Então
suponho que terei que cuidar de você.
Não houve inflexão em seu tom; nem mesmo uma mudança em
sua expressão. No entanto, o ar entre eles se esticou. Ela ficou quente.

65
— Agora, você ficará bem... ou não? — O príncipe perguntou.
Ela percebeu pela primeira vez que seus olhos eram cinza azulado,
a cor de colinas distantes. Agora ela não tinha escolha senão dispensá-
lo.
— Tenho certeza de que ficarei bem, — ela respondeu. — Mas se
eu precisar de você, senhor, não hesitarei.
O olhar de seu soberano a varreu. Ela viu aquele olhar de
interesse nos meninos. Mas o dele foi tão rápido que ela não estava certa
de que não havia imaginado.
Então ele inclinou a cabeça, com toda pompa e formalidade. —
Estou ao seu serviço, madame.

***

Mesmo sem o sangue a cobrindo, quando Iolanthe finalmente se


viu em um espelho, ela continuou olhando. Ela parecia horrível, seu rosto
sujo e arranhado, o cabelo coberto de poeira e pedaços de gesso, a blusa
uma vez branca agora parecia um pano velho.
Pelo menos, ela estava segura. Mestre Haywood... Seu coração
apertou. Sua intuição estivera exatamente correta: foi por sua causa que
tudo deu errado para ele.
Ela se lavou rapidamente. Depois, vestiu a roupa que o príncipe
forneceu: chinelos, roupas íntimas, uma camisa de flanela azul e calças
combinando, tudo para um garoto dez centímetros mais alto e mais forte.
Quando saiu do banho, com suas roupas rasgadas em um pacote
em sua mão, havia uma bandeja com alguns alimentos esperando no
salão e fogo na lareira. Então, realmente era verdade, as lareiras não
eram meras decorações no mundo não mágico.
O príncipe a olhava estranhamente, como se a visse pela primeira
vez.
— Já nos encontramos antes? Você parece... familiar.

66
Todos os anos, havia crianças selecionadas para encontrá-lo, mas
ela nunca foi escolhida. — Não, não nos encontramos, Alteza. Eu teria
me lembrado.
— Eu poderia jurar...
— Você provavelmente está pensando em outra pessoa. — Ela
estendeu a mão. — Aqui está seu pingente.
— Obrigado. — O príncipe sacudiu a cabeça, como se a limpasse.
Ele apontou para as roupas dela. — Se você não sabe, precisamos
destruí-las... eu preferiria manter a menor evidência de suas origens
mágicas possível. O mesmo com o conteúdo da mochila. Existe algo que
você deseja manter em particular?
Uma lembrança de que não estava tão segura quanto gostaria de
estar. Ela não sabia como o príncipe estava tão calmo. Mas ela estava
agradecida pela serenidade dele. Isso a deixou com menos medo.
Ele fez sinal para que ela se sentasse e lhe entregou a mochila. A
carta do Mestre Haywood ela deixou à parte. Procurando entre as roupas,
ela encontrou a bolsa de moedas que sentira antes – ouro puro Cathay,
aceitável em todos os reinos mágicos.
— Eu acho que há um fundo falso, — ela disse, sentindo o
revestimento, seus dedos discernindo o formato de algo cilíndrico.
O príncipe produziu um feitiço que retirou o fundo falso para
revelar um tubo escondido. Ele a surpreendeu, não tanto pelo feitiço,
embora fosse hábil, mas pelo seu comportamento. Se ele fosse um órfão
que tivesse que se virar tão novo, talvez ela não se surpreendesse com
sua maturidade e utilidade. Mas o seu dever exigia a educação mais
privilegiada em todo o Domínio, e aqui estava ele, sempre pensando um
passo à frente, sempre antecipando as necessidades dela.
— Obrigada, Alteza, — ela disse.
Ele poderia detectar a admiração em sua voz? Ela o admirava, e
ficou constrangida. Rapidamente ela pegou o tubo, que de fato continha

67
seu mapa21 de nascimento enrolado – ela reconheceu a elaborada pintura
do céu noturno no topo do pergaminho.
Ela colocou a carta, a bolsa de moedas e o mapa de nascimento
na mochila. Ele pegou todo o resto. — Posso perguntar por que você
convocou o relâmpago hoje?
Eu precisava manter meu guardião empregado e um teto sobre
nossas cabeças.
— Eu estava tentando corrigir um lote de elixir de luz. Encontrei
na cópia de A poção completa do meu guardião uma nota que dizia que
um relâmpago poderia corrigir qualquer elixir de luz, não importando o
quanto estivesse estragado.
Ele caminhou em direção à lareira, com os braços cheios. — Quem
escreveu essa nota?
— Não sei.
Ele jogou as coisas na grelha. — Extinguamini. Tollamini22.
Suas coisas se transformaram em pó. A poeira rosada flutuou em
uma coluna até a chaminé. O príncipe apoiou o cotovelo sobre ela e
esperou toda a evidência destruída desaparecer. Ele era alto, e todo
elegante...
Ela percebeu que estava olhando para ele, de uma maneira que
não conseguia se lembrar de ter olhado para outra pessoa.
Imediatamente abaixou o olhar.
— É estranho que alguém aconselhe isso, — ele disse. — O
relâmpago não desempenha nenhum papel na produção de poções. Quão
antiga é essa cópia da A poção completa?
— Não sei. Meu guardião sempre a teve.
Ele voltou para a porta do laboratório, repetiu a senha e entrou.
— O meu é uma primeira edição. Foi publicado durante o Ano do Milênio.
O Ano do Milênio celebrou mil anos da Casa de Elberon – a casa
dele. Era atualmente o Ano do Domínio 1031, o que significava que a

21 O mapa de nascimento é um desenho que representa o alinhamento dos astros no


momento do nascimento de um mago.
22 Queime tudo.

68
cópia em Little Grind tinha no máximo trinta e um anos. Ela achava que
o outro livro era muito mais antigo.
— Precisamos descobrir quem escreveu a nota, Alteza?
Nós. Seu uso da palavra a constrangiu. Ela estava assumindo um
grande propósito comum com seu soberano.
— Duvido que possamos, mesmo que tentássemos, — o príncipe
disse. — Você está bem o suficiente para comer algo?
— Eu acho que sim. — Seu estômago se acalmou e ela estava
faminta, por não ter tocado no lanche que a Sra. Needles lhe trouxera.
Ele serviu uma xícara de chá. — Qual é o seu nome?
Isso a surpreendeu tanto que se esqueceu de agradecê-lo pelo chá.
— Seabourne, Alteza. Iolanthe Seabourne.
— Tenho o prazer em conhecê-la, Senhorita Seabourne.
— Tenho Sorte em defender sua bandeira, senhor.
Isso era algo que se dizia ao conhecer o Mestre do Domínio. Mas
talvez ela também devesse se ajoelhar. Muito provavelmente, ela deveria
fazer uma reverência.
Como se ele lesse os seus pensamentos, o príncipe disse: — Não
se preocupe com as sutilezas. E não há necessidade de continuar me
chamando de Alteza. Não estamos no Domínio, e ninguém nos castigará
por não ter observado a etiqueta da corte.
Então... ele também é amável.
Basta! Ela nem sabia o que havia acontecido com o Mestre
Haywood, e aqui estava ela, muito perto do herói, adorando alguém que
mal conhecia.
— Obrigada, Altez... quero dizer, obrigada. E posso pedir a você
que me diga, Sua Alteza, o que aconteceu com o meu guardião depois que
eu fugi?
— Ele está sob custódia da Inquisidora agora, — o príncipe disse,
sentando-se em frente a ela.
Mesmo o prazer da proximidade dele não poderia diminuir seu
desânimo. — Então a Inquisidora veio?
— Nem meio minuto depois de você partir.

69
Ela juntou as mãos. Que ela estivesse em perigo real ainda a
chocava.
— Você não tocou em seu chá, Senhorita Seabourne. Creme ou
açúcar?
Geralmente ela gostava do seu chá cheio de açúcar e creme, mas
uma bebida tão doce já não apelava. Ela tomou um gole do chá preto. O
príncipe empurrou um prato de sanduíches em sua direção.
— Coma. Ocultar-se da Inquisidora é um trabalho árduo. Você
precisa manter sua força.
Ela pegou um sanduíche – tinha um sabor inesperado de curry.
— Então, o que a Inquisidora quer de mim?
— Mais precisamente, o que Bane quer com você23.
Ela recuou. Ela não conseguiu se lembrar de quando ou onde ela
aprendeu sobre Bane, cujo título oficial era Senhor Supremo,
Comandante do Grande Reino da Nova Atlantis. Ao contrário da
Inquisidora, de quem as pessoas falavam em sussurros silenciosos, em
relação ao Bane, havia um silêncio conspícuo.
— Por que Bane me quer?
— Por seus poderes, — o príncipe disse.
Era a coisa mais ridícula que alguém já havia dito a ela. — Mas
Bane já é o mago mais poderoso da Terra.

23 A ascensão da Nova Atlantis com um poderoso mago dominante era, em muitos


aspectos, um evento surpreendente. A ilha, enquanto grande – quase duas vezes o
tamanho do Domínio – é inadequada para a civilização em grande escala. O despertar
do vulcão por trás de sua criação era muito recente, o seu interior muito íngreme e
angular. Grande parte do terreno é basal; árduo para caminhar, e impossível cultivar.
A vida marinha, surpreendentemente abundante quando os magos pisaram pela
primeira vez na ilha, chegou perigosamente perto de um esgotamento irreversível em
vários pontos em seus oitocentos anos de história. Duzentos desses oitocentos anos, na
verdade, eram conhecidos como o século da Fome. O isolamento da ilha, o relativo
caráter primitivo do transporte de longa distância da época, e a generalizada corrupção
entre membros do clã real, resultou em grandes campanhas de ajuda por outros reinos,
em grande parte ineficaz. No final do século da Fome, a população da ilha reduziu em
pelo menos 70 por cento. Acredita-se que Bane nasceu durante a última década do
século da Fome, em uma sociedade desvastada e sem lei. Se ele ainda se tornaria o
mago mais influente na Terra caso nascesse em um reino mais próspero, só podemos
especular. Mas não há dúvida de que o caos e a privação de sua juventude influenciou
seu desejo de ordem e controle ao longo de sua carreira.
– Do império: A Ascênsão da Nova Atlantis.

70
— E ele gostaria de permanecer assim... o que só é possível com
você, — o príncipe disse. — Você está esmagando seu sanduíche, por
sinal.
Ela desejou que seus dedos rígidos se soltassem. — Como? Como
eu tenho algo a ver com o Bane permanecendo poderoso?
— Você sabe quantos anos ele tem?
Ela balançou a cabeça e levou a xícara de chá aos lábios. Ela
precisava de algo para umedecer o sanduíche em sua boca, que se
tornara uma pasta seca que ela não conseguia engolir.
— Cerca de duzentos anos. Possivelmente mais.
Ela olhou para ele, o chá esquecido. — Alguém pode viver tanto
tempo?
— Não por meios naturais. Os agentes de Atlantis observam todos
os reinos sob seu controle procurando por magos elementares
extremamente poderosos. Quando localizam tal mago, ele ou ela é
enviado secretamente para Atlantis, para nunca mais ser visto
novamente. Eu sou ignorante de como exatamente Bane faz uso desses
magos elementares, mas não duvido que ele faça uso deles.
Se ela apertasse a xícara de chá com mais força, a alça quebraria.
Ela a colocou na mesa. — Qual é exatamente a definição de um mago
elementar extremamente poderoso? Eu não tenho controle sobre o ar.
O príncipe inclinou-se em sua cadeira. — Tem certeza? Quando
foi a última vez que você tentou manipular o ar?
Ela franziu o cenho: não conseguia se lembrar. — Alguém tentou
me matar removendo todo o ar do baú. Se eu tivesse alguma afinidade
pelo ar, eu teria parado isso, não teria?
Foi a vez dele franzir o cenho. — Você não nasceu no décimo
terceiro ou décimo quarto dia de novembro de 1866... Quero dizer, no ano
do Domínio de 1014?
— Não, eu nasci mais cedo, em setembro.
Seu aniversário era um dia depois do dele, na verdade. Era
divertido, quando era pequena, fingir que as festas de aniversário dele
também eram para ela.

71
— Mostre-me o seu mapa de nascimento.
Um mapa de nascimento representava o alinhamento preciso das
estrelas e planetas no momento do nascimento de um mago. Ele era um
documento crucial para tudo, desde a escolha da escola até a escolha do
companheiro: as estrelas devem se alinhar. Nos últimos anos, tornou-se
moda em lugares como o Delamer romper com a tradição e deixar o mapa
de nascimento de lado. Mas não é assim em Little Grind. Quando Iolanthe
se ofereceu para contribuir com os riscos de incêndio para o curso anual
de obstáculos da aldeia no último outono, seu mapa, junto com os de
todos os participantes, foi requisitado para determinar a data mais
auspiciosa para fazer a competição.
Ao tirar o recipiente cilíndrico da mochila quase vazia, ocorreu-
lhe que se ela usara seu mapa de nascimento há apenas alguns meses,
então ele não poderia estar na mochila, cujos conteúdos não foram
mexidos em mais de uma década.
Ela desenrolou apenas os primeiros quinze centímetros do mapa
de nascimento antes, quando verificou que era um mapa de nascimento.
Desenrolando-o completamente, o mapa de noventa centímetros de
comprimento não tinha nenhum nome no centro, apenas a data de
nascimento, 02h05min da manhã, no dia 14 de novembro, AD 1014.
Algo soou em seus ouvidos. — Mas nasci em setembro. Já vi o
meu mapa antes... muitas vezes... e não é este.
— E, no entanto, esse é o que foi embalado, pois quando a verdade
veio à tona, você foi forçada a ir embora, — o príncipe disse.
— Você está dizendo que meu guardião falsificou o outro? Por
quê?
— Houve uma tempestade de meteoros naquela noite. As estrelas
caíram como chuva. Os videntes de todos os domínios da Terra previram
o nascimento de um grande mago elementar. Se eu fosse seu guardião,
eu certamente não teria deixado ninguém saber que você nasceu naquela
noite.
Ela já leu sobre aquela noite, quando não podia ver o céu por
causa de todos os vestígios dourados das estrelas que caíam.

72
— Você acha que eu sou esse poderoso mago elementar? — Ela
perguntou, mal conseguindo ouvir sua própria voz.
Ela não poderia ser. Ela não queria fazer parte do que estava
acontecendo agora.
— Até você, nunca houve ninguém que pudesse convocar o
relâmpago.
— Mas o relâmpago é inútil. Quase me matei quando o convoquei.
— Bane só poderia imaginar o que fazer com tal poder, — o
príncipe disse.
Ela não sabia por que essa ideia a deixou mais assustada do que
já estava, mas deixou.
— Foi um dia cansativo para você. Descanse, — o príncipe
sugeriu. — Eu devo ir agora, mas voltarei em algumas horas para verificá-
la.
Ir? Ele a deixaria sozinha?
— Você voltará para o Domínio? — Sua voz parecia fraca e com
medo em seus próprios ouvidos.
— Eu vou para a minha escola.
— Pensei que você fosse educado no castelo. — Mais
precisamente, em um alojamento monástico mais adiante das
Montanhas Labyrinthine, o qual era usado apenas para a educação de
um jovem príncipe ou princesa, pelo menos era isso que Iolanthe
aprendeu na escola.
— Não, eu frequento uma escola inglesa não muito longe de
Londres.
Ela não poderia ter ouvido direito. — Você não pode estar falando
sério.
— Eu estou. Bane desejou.
— Mas você é nosso príncipe. Você deveria ser um dos nossos
melhores magos. Você não receberá treinamento adequado em tal escola.
— Você entende perfeitamente o propósito de Bane, — ele disse
levemente.

73
Ela ficou horrorizada. — Não posso acreditar que o regente não se
opôs. Ou o Conselho Superior.
Seus olhos eram claros e diretos. — Você superestima a coragem
dos que estão no poder. Muitas vezes, eles estão mais interessados em
manter esse poder a fazer algo que valha a pena com ele.
Ele não soou amargo, somente constatou um fato. Como ele lidou
com isso, o insulto absoluto de ter Bane ditando seus movimentos,
quando ele era, no papel, pelo menos, um homen superior à Bane no
poder e privilégio?
— Então... o que devo fazer enquanto você está na escola?
— Eu esperava poder levá-la para a escola comigo, mas é uma
escola para meninos. — Ele encolheu os ombros. — Nós vamos fazer
novos planos.
Ele não poderia ter sido mais cordial com isso, mas ela teve a
distinta sensação de que não lhe agradou ter que fazer novos planos.
— Eu posso acompanhar você. Fui a uma escola de meninas por
um tempo, e sempre fiz o papel principal masculino nas peças de teatro
da escola. Minha voz é baixa e faço uma boa imitação da maneira como
um menino caminha e fala. — Ela interpretou tão bem que alguns pais
de seus colegas de classe pensaram que um menino fora chamado para
atuar. — Para não mencionar que eu posso lutar.
Ao contrário da maioria dos magos sutis, que foram ensinados a
abster-se da violência, os magos elementais foram encorajados a usar os
punhos – muito melhor bater em alguém do que incendiá-lo24.

24 Magos jovens com poderes elementares apresentam desafios adicionais para pais e
cuidadores; não há contestação disso. A maioria das crianças cede às birras pelo menos
de vez em quando. Mas uma criança um mago elementar em um ataque de gritos pode
mudar uma casa de sua fundação ou sufocar o ar dos pulmões do companheiro de
brincadeira – sem querer. E mesmo quando os magos elementais envelhecem, eles
podem, ainda inadvertidamente, deixar seus poderes tirar o melhor deles. Neste
capítulo, pretendemos apresentar uma lista abrangente de técnicas de treinamento para
interromper a conexão entre a raiva de um mago elementar jovem e seus instintos para
se voltar para os elementos. Tem sido repetidamente apontado que a violência
dificilmente é o melhor substituto, mas até aprendermos a controlar as emoções das
crianças pequenas, seus pequenos punhos permanecerão preferíveis aos seus – às
vezes, poderes desproporcionalmente imensos.
– Do cuidado e alimentação de seu Jovem Mago Elementar.

74
— Estou certo de que você pode bater nos garotos à torto e à
direito. E estou certo de que você é perfeitamente proficiente no palco.
Mas fingir ser um menino por algumas horas em uma peça de teatro é
bem diferente de fingir ser um vinte e quatro horas por dia, dia após dia,
para uma audiência de agentes.
— O quê?
— Há agentes de Atlantis na minha escola, — ele disse. — Estou
sendo observado.
Ela agarrou os braços da cadeira. — Você vive sob a vigilância de
Atlantis?
De alguma forma, ela pensou que ele deveria estar isento disso.
— Estou melhor na escola do que em casa... o castelo está cheio
de informantes da Inquisidora, mas isso não nos ajuda agora.
Ela não podia imaginar a vida que ele levava.
— Você está mais segura aqui, — ele continuou. — O vestíbulo é
acessível pela equipe do hotel, isto é, foi onde nós desmaterializamos,
mas o resto da suíte é protegido por feitiços anti-intrusos.
Os feitiços anti-intrusos não eram garantia de segurança – sua
casa em Little Grind era um exemplo disso.
— Você está totalmente anônima, — ele ainda a tranquilizou. —
Mesmo Atlantis, ótima como é, não pode esperar localizá-la tão facilmente
em uma cidade de milhões. E, se alguma coisa a alarmar, vá para o
laboratório e aguarde. Você já conhece a senha; a contra senha é o
primeiro parágrafo da página dez do livro da tabela de demilune25.
Ela preferiria que ele deixasse a escola para ficar de guarda ao
lado dela. Se ele estivesse errado, e Atlantis fosse mais rápida e
inteligente do que ele acreditava, ela seria um alvo muito fácil. Ele deveria

25 Uma palavra rápida sobre contra-senhas antes de passar para a nossa primeira
seção de feitiços. Os feitiços neste e em muitos outros livros não têm contra-senha. Mas
ninguém nunca se tornou um grande mago usando feitiços que podem ser encontrados
em bibliotecas públicas. Feitiços hereditários e feitiços novos, são considerados muito
mais poderosos, geralmente operado com um encantamento que pode ser dito em voz
alta e – portanto, ouvido por outros – e uma contra-senha nunca é pronunciada, para
preservar o segredo do feitço. Pela mesma razão, a pronúncia também é por vezes feita
com senhas, para maximizar a eficácia e segurança.
– Da arte e ciência da magia: Uma Cartilha.

75
ficar com ela. Ela deveria discutir com ele, implorar se necessário.
Trancar a porta com ele dentro.
Ela abriu a boca, mas o que saiu foi: — Tudo bem.
Sua vida estava pendurada por um fio e aqui estava ela, tentando
parecer corajosa e firme diante deste menino.
— Obrigado, — ele disse, e tocou-a brevemente no braço.
Ele ficou impressionado. A felicidade brilhante que aflorava dentro
dela era quase o suficiente para dissipar o medo da ausência dele.
Ele desapareceu por um momento dentro do laboratório e voltou
com a valise marrom que ela vira e um chapéu redondo. — Eu voltarei
depois da escola. Enquanto isso, coma e descanse. Foi muito difícil
encontrá-la; não pretendo perder você tão cedo.
Ele esteve procurando por ela? Ela ansiava saber mais, mas isso
precisaria esperar até que ele voltasse.
— Que a Sorte caminhe com você, Sua Alteza. — Ela fez uma
pequena reverência.
Ele sacudiu a cabeça. — Não há necessidade de reverência. E que
a Sorte permaneça com você, Senhorita Seabourne.
Ele colocou o chapéu e foi até a porta. Se não estivesse olhando
tão atentamente para ele, ela não teria notado o disco pequeno e plano
na manga dele. Ela hesitou. Talvez fosse a moda na Inglaterra ter tais
decorações no casaco.
Mas o que o Mestre Haywood disse? Você não pode ser
suficientemente cuidadosa.
— Um momento, Sua Alteza. Há alguma coisa na sua manga
esquerda.
Sua expressão, instantaneamente, ficou sóbria. Ele olhou para o
braço dele. — Onde?
Ela virou o braço para mostrar. Foi colocado em um ponto acima
de seu cotovelo, onde seria difícil para ele ou alguém vê-lo, a menos que
essa pessoa estivesse olhando diretamente para ele quando ele estivesse
como braço erguido. Ele encontrou o disco por toque, arrancou-o e olhou-
o, seus olhos ficaram sombrios.

76
Ao fechar o punho, ele disse: — Estamos com problemas.

77
Capítulo 6
Titus abriu a porta do banheiro, jogou o disco do tamanho de uma
moeda no vaso sanitário e deu descarga.
— Em que tipo de problema estamos? — A Senhorita Seabourne
perguntou atrás dele. Sua voz estava instável, mas para seu crédito, ela
não mostrou sinais de desmoronar.
— Eu fui rastreado.
Lady Callista. Ele lembrou agora: ela colocou a mão em seu braço
para se despedir dele. E ele estava com muita pressa para perceber.
Se tivessem sorte – e eles tiveram muita sorte até agora – então os
lacaios de Lady Callista teriam um tempo frustrante seguindo o disco
enquanto ele viajava pelos esgotos de Londres.
Mas eles ficaram sem sorte. Murmúrios surgiram do lado de fora
da porta da frente e das portas francesas que se abriam para uma
varanda estreita.
Ele acenou para a Senhorita Seabourne vir até ele. Ela não
hesitou. Para o seu crédito, ela já tinha na mão não só sua própria
mochila, mas também a valise que ele deixara cair em sua pressa de se
livrar do disco. Ele a puxou para o laboratório, fechou a porta e ouviu.
Logo eles ouviram passos na suíte.

78
— E quanto aos seus feitiços anti-intrusos? — Ela sussurrou. —
Eles deveriam manter os não-magos afastados. — O anonimato da suíte
foi sua melhor defesa contra Atlantis.
Os agentes de Atlantis não encontrariam nada que pertencesse a
ele na suíte – ele sempre foi terrivelmente cuidadoso com isso. E eles não
descobririam tão facilmente um espaço dobrado. Mesmo assim, a
segurança da suíte foi irremediavelmente comprometida.
— Exstinguatur ostium26, — ele disse, destruindo a conexão que
ancorava o laboratório à suíte.
Eles estavam seguros, por enquanto. Mas o que teria acontecido
com ela se ele já tivesse saído? Sim, ela era vigilante. Ela teria escapado
para o laboratório. No entanto, ela não teria conseguido interromper a
conexão. Quando ele voltasse da escola, os agentes de Atlantis a teriam
capturado.
— Peço desculpas. — As palavras queimaram a sua garganta. —
Eu deveria ter...
Primeiro dia, e ele já quase a perdeu para Atlantis.
— Eu deveria ter percebido o dispositivo antes de sair do Domínio.
Pensei que tivesse planejado para cada detalhe, mas não planejei meu
próprio descuido.
Ela estava tensa, seus dedos brancos sobre a varinha, mas ela
estava controlada e parecia lidar com a súbita saída melhor do que ele.
— Como você sabia que deveria se preparar para qualquer coisa?
— As profecias sobre você... Nunca duvidei da precisão dela. —
Ele puxou um banquinho para ela. — Sente-se.
Ela se sentou, e mostrando mais emoção do que ele vira nela até
agora, apertou a cabeça entre as palmas das mãos. — Quando acordei
esta manhã, eu não era importante para ninguém além de mim mesma.
Isso não deveria ter mudado.
— A sorte se importa com a vontade dos mortais.

26 Extinguir porta.

79
— Verdade. — Com seu rosto ainda abaixado, ela disse: — Por
favor, não me deixe impedir que você volte para a escola.
Dalbert foi obrigado a anotar o tempo de partida de Titus do
Domínio. A Inquisidora e seus agentes sabiam a que horas Titus deveria
chegar à escola... E ele já estava atrasado.
Mas não podia simplesmente deixar a garota no laboratório, um
lugar que não tinha comida ou água, sem banheiro e nenhum lugar para
ela se deitar e descansar, exceto na mesa de trabalho.
Ela afastou o cabelo do rosto. Ela usou o sabão de pêras que o
hotel oferecia, com a sua fragrância sutil de um prado inglês. O
laboratório era pequeno; ele estava bem perto dela. Por um momento, ele
ficou completamente distraído pelo seu perfume – e a ondulação de seus
cabelos ainda úmidos.
Ele a viu antes. Onde?
Ela olhou para cima, seus olhos escuros como tinta. — Você não
precisa mais ir?
— Não posso deixar você aqui.
O laboratório tinha duas outras saídas. Um levava a Cape Wrath,
nas Terras Altas da Escócia, onde ele visitava às vezes, em busca de um
clima mais quente, o outro dava para um celeiro abandonado em Kent.
De qualquer forma, tirando-a do laboratório, ele se inclinaria para o
inevitável.
Ele abriu uma gaveta e tirou um frasco com pó verde.
— Parece que seguiremos o plano original afinal de contas,
Senhorita Seabourne, — ele disse. — Espero que você goste da
companhia de meninos.

***

O celeiro era mais ou menos o mesmo de quando Titus o viu pela


última vez. Vigas caídas, sem algumas portas, sombras de céu cinzento
visíveis através do telhado dilapidado. Chuva caindo no chão. O cheiro
de madeira apodrecida e esterco antigo assaltaram seu nariz.

80
Uma brisa fria se agitou. Seu cabelo soprava em seu rosto. Ela
parecia despenteada, como se tivesse acabado de sair de cama, o calor
da colcha ainda se apegando a ela. — Onde estamos?
Ele fechou a porta do laboratório. A porta desapareceu
prontamente – deixando os ocupantes do laboratório do lado de fora, mas
não poderia ser usada para entrar. — Sudeste da Inglaterra.
— Você não tem uma saída que leva diretamente para a escola?
— No caso do laboratório ser violado, não quero que seja
facilmente rastreado até mim. Você pode desmaterializar mais de uma
vez em um dia27?
— Sim, mas não para uma longa distância. Nunca tentei
desmaterializar mais do que algumas milhas.
Ele pegou a mão dela e colocou um pequeno montículo de pó na
palma da mão. — Tome este desmaterializador auxilar. Temos que ir
oitenta quilômetros, mas você não precisa de uma grande quantidade
quando sabe desmaterializar.
Ela engoliu o desmaterializador auxiliar. — Você tem um alcance
de oitenta quilômetros?

27 Demorou mais de cinquenta anos após o primeiro salto para a população em geral
aceitar que a desmaterialização não é uma capacidade universal. Até então, acreditava-
se que com o treinamento mais cedo e melhor, e uma coleção cada vez mais rentável de
auxílios para desmaterialização, todos os magos poderiam aprender a saltar. Pais
nervosos regularmente matriculavam seus filhos nas aulas de desmaterialização três
anos mais cedo, com medo de que se começassem mais tarde, eles seriam emus –
pássaros que não voam – e desdenhados por seus pares. A literatura médica relata
múltiplos casos de esforços perigosamente prematuros, provocados por gestantes
realizando muitos saltos, na tentativa equivocada de incutir o processo nas mentes de
seus bebês. Mas antes de a sociedade em geral aceitar que saltos não eram possíveis
para todos os magos, tinham que primeiro aceitar que magos que poderiam saltar
frequentemente não saltariam muito longe. Nos primeiros anos inebriantes da
desmaterialização, magos estavam convencidos de que o alcance dos saltos
continuariam melhorarando, desde que continuassem praticando. Quando esses
pioneiros começaram a se frustrar por limites pessoais, atribuídos por começos tardios,
treinamento incorreto, e um entendimento falho dos princípios de salto – encorajaram
a próxima geração a se esforçar mais. Os melhores dados disponíveis sugerem que entre
75 a 80 por cento dos magos adultos são capazes de desmaterializar. Destes, mais de
90 por cento têm um alcance de menos de quinze quilômetros. Apenas um quarto pode
tolerar saltos consecutivos; o resto deve esperar pelo menos doze horas entre saltos.
Além disso, sabe-se agora que a desmaterialização exacerba as condições médicas pré-
existentes. Gestantes, enfermos, idosos, e aqueles se recuperando de doenças graves
devem se abster do salto. Em casos raros, a desmaterialização tem sido conhecida por
causar consequências graves em indivíduos saudáveis.
– Do Lar do Magos, Guia Pessoal de Saúde e Bem-Estar.

81
Ele tinha um alcance de quase cinco quilômetros, praticamente.
Ela colocou a mão no braço dele, e no momento seguinte eles estavam no
quarto em Fairfax.
Ou o desmaterializador auxiliar era super eficaz, ou seu alcance
natural era muito maior do que alguns quilômetros: ela nem se curvou,
nem ficou desorientada. Era omo se tivessem simplesmente subido um
lance de escadas e atravessado a porta, ela soltou o seu braço e olhou ao
redor.
Trinta e cinco alunos com idade entre treze e dezenove anos
moravam nesta casa. Os meninos mais novos tinham quartos menores
nos andares superiores. Os meninos veteranos gozavam de uma
acomodação maior e melhor no piso térreo.
O quarto de Fairfax, como os de outros veteranos, media 2,5 por
3,0 metros. Uma mesa de trabalho e uma cadeira foram colocadas perto
da lareira. Um conjunto de prateleiras ao lado da janela continha livros e
vários equipamentos esportivos no fundo. Uma cômoda e uma cadeira
sobresalente junto à porta completavam a coleção de móveis.
Uma imagem oval emoldurada da Rainha Victoria, que parecia
sem fôlego e desaprovadora, pendia na parede de papel azulado. Seis
cartões postais de navios oceânicos foram organizados em um
semicírculo sob a imagem da rainha. Dispersos sobre o resto da sala
havia fotografias e gravuras da África: dunas onduladas, gnus pastando,
um leopardo em um lago e uma cabana de palha ao lado de uma árvore
shepherd28.
Ele desenhou um círculo à prova de som. — Bem-vinda ao Eton
College. Estamos na casa da Sra. Dawlish. E esse é o seu quarto.
— Quem é a Sra. Dawlish? E por que eu tenho um quarto aqui?
— Os meninos em Eton vivem em casas residentes... Esta casa
em particular é dirigida pela Sra. Dawlish. Você tem um quarto aqui
porque é um aluno. Seu nome é Archer Fairfax, e você esteve em casa por
três meses com um fêmur quebrado. Sua família tem uma casa em

28 Um tipo de árvore.

82
Shropshire, mas você passou sua vida em Bechuanaland, uma área perto
do reino Kalahari.
— Onde está o verdadeiro Archer Fairfax? — Ela pareceu
alarmada.
— Nunca houve um verdadeiro Archer Fairfax. Como eu precisava
estar aqui, eu preparei um lugar para você, pois pensei que você fosse
um menino.
Ela franziu a testa. — E as pessoas aqui me conhecem, embora
eu nunca tenha pisado aqui?
— Sim.
— Isso é impressionante, — ela murmurou.
Ele raramente impressionou alguém por mérito próprio – a
sensação era mais do que um pouco vertiginosa.
— Precisamos cortar o seu cabelo agora, — ele disse de forma
bastante abrupta, não querendo que ela percebesse o que ele sentiu.
Ela soltou um suspiro. — Certo.
Ele ficou atrás dela, pegou o cabelo dela e o levantou – era macio
e surpreendentemente pesado – e cortou-o na nuca com um feitiço
cortante. — Desculpe.
— Cabelo cresce de novo.
É uma pena que eles precisassem mantê-lo curto no futuro
próximo. Ele cortou o restante dos cabelos o melhor que pôde, deixando-
o longo apenas o suficiente para que a ferida feita na casa dela não fosse
visível. Ela não parecia muito com um menino. Mas também não parecia
imediatamente e, de forma evidente, uma garota.
Ele recolheu o cabelo cortado, depositou-o na lareira apagada e
destruiu-o. Indo até a cômoda, ele trouxe os itens do uniforme de um
menino de Eton.
— Você se preparou para tudo.
— Dificilmente. Se eu tivesse alguma previsão, eu teria me
preparado para uma garota.
A visão de sua morte mostrou um menino ao seu lado,
lamentando sua morte. Tal era o perigo das visões, elas devem ser

83
interpretadas por vidente e, portanto, estão sujeitas a erros humanos.
Nessa situação, uma menina de cabelos curtos foi confundida com um
menino. E, apesar de todos os preparativos de Titus, ele agora se
encontrou nadando em incerteza.
Ele bateu no que parecia ser um armário de parede e uma cama
estreita caiu, surpreendendo-a. Então ele pegou o lençol, rasgou uma
longa tira branca de linho, amarrou-a com um feitiço rápido e entregou-
a para ela
— É para... redimensionar a sua pessoa, — ele disse, marcando a
tira com outro feitiço.
Como descrever algo que pretende restringir os seios?
Ela limpou a garganta. — Obrigada.
— Uma vez que você estiver pronta, as roupas não serão tão
complicadas, — ele falou rapidamente para cobrir seu próprio embaraço.
E para pensar, este era apenas o começo das complicações de levar uma
garota para a escola exclusiva para meninos. — Os punhos da camisa
entram nos cotovelos. Todo o resto é o que você esperaria.
Ele se virou para lhe dar privacidade. Atrás dele, veio o suave som
de sua desnudez. Não havia motivo para seu pulso acelerar. Nada
aconteceria, e ele a trataria como outro garoto. Na verdade, para a
segurança dela e a dele, ele sequer pensaria nela como nada além de
Archer Fairfax, seu amigo da escola.
Mesmo assim, seu pulso acelerou, como se ele tivesse corrido por
um campo de futebol.
Então ele olhou para cima e viu o reflexo dela no pequeno espelho
na porta. Ela estava de costas para ele, nua até o cós da calça de seu
pijama, com a cabeça inclinada, tentando amarrar o pano. O contorno de
seu pescoço esbelto, a suavidade de suas costas, a sua cintura fina... ele
sacudiu a cabeça e olhou para a cadeira sobressalente.
Depois do que pareceu uma eternidade – uma eternidade durante
a qual ele esqueceu tudo sobre o que os agentes de Atlantis pensariam
de sua prolongada ausência – ela perguntou: — Como devo manter no
lugar o tecido enfeitiçado?

84
— Diga serpens caudam mordens29. É um feitiço simples – não há
necessidade de uma varinha30.
— Nem mesmo pela primeira vez?
— Não.
— Tudo bem então.
Ela não pareceu convencida. — Serpens caudam mordens.
Um longo momento de silêncio. Ele já havia memorizado
completamente a forma do encosto da cadeira sobressalente.
— Serpens caudam mordens, — ela disse novamente. — Não está
funcionando.
Não havia tempo para ela continuar tentando. Ele respirou fundo
e virou. Ela agora estava de frente para ele, segurando as extremidades
do tecido que envolvera em seu peito. Ele abaixou seu olhar: sobre as
calças de pijama demasiado soltas, sua cintura afinava nitidamente; seu
umbigo era perfeitamente redondo.
Ele ia se aproximar dela, mas agora ele mudou de ideia.
Permanecendo precisamente onde estava, ele disse: — Serpens caudam
mordens.
O pano se esticou visivelmente. Ela emitiu um grunhido abafado.
— Obrigada. Está perfeito.
Ele ainda não estava totalmente plano. — Mais uma vez, — ele
disse.
— Não, não mais. Mal consigo respirar.
— Você tem certeza de que está apertado o suficiente?
— Sim, absolutamente.

29
Cobra mordendo a cauda.
30 Você precisa de uma varinha? A resposta curta é não, não precisa. O trabalho de um
feitiço requer apenas a intenção e ação, e tem sido provado conclusivamente que
declamar ou falar as palavras de um feitiço resulta em ação. Por que então ainda
usamos varinhas? Uma razão é Legado: brandimos as varinhas por tanto tempo que
parece quase rude parar. Outra é hábito: Magos estão acostumados e conectados a suas
varinhas. Mas, na prática, a varinha funciona como um amplificador. Feitiços são mais
poderosos e mais eficazes quando realizados com uma varinha –razão suficiente para
encontrar uma que se encaixa bem na sua mão.
– Da arte e ciência da magia: Uma Cartilha

85
Ele não deveria, mas seus olhos mergulharam novamente no
umbigo dela. Ele percebeu o que fazia e olhou para cima, apenas para vê-
la ruborizar. Ela o pegou encarando.
Ele se virou para examinar a cadeira um pouco mais. — Mexa-se
e verifique se ele permanece no lugar.
Na próxima vez que o chamou, ela já havia colocado a camisa
branca e a calça preta que ele entregara a ela. Como esperado, a roupa
não cabia bem. Ele começou a trabalhar com uma variedade de feitiços.
A camisa precisava ter suas mangas encurtadas e a largura dos ombros
encolhida. Para as calças, ele ajustou na cintura e ergueu os punhos sete
centímetros – ele havia adquirido tudo grande, pois era muito mais fácil
diminuir as roupas do que o contrário.
— Se tudo mais falhar, você sempre pode encontrar um emprego
como alfaiate, — ela murmurou enquanto ele se apoiava em um joelho
diante dela, certificando-se de que as barras das calças estavam do
mesmo tamanho.
— Você deveria ver meu laço, — ele disse. — Tão bom quanto de
uma teia de aranha.
Acima dele, ela riu suavemente. — Eu não sabia que você tinha
um senso de humor.
— Não é frequente, — ele disse, com mais sinceridade do que o
habitual.
Talvez ele não precisasse mentir para ela como mentia para todos
os outros. Ele se levantou. O colete veio com tiras na parte de trás e foi
bem fácil ajustá-las. O casaco exigia que seus ombros, a largura e o
comprimento fossem ajustados.
Mas isso não era o fim. A camisa precisava de um colarinho, a
gravata devia ser colocada. Porque ela também não tinha experiência
nisso, ele os colocou para ela.
Eles ficaram nariz a nariz, tão perto que ele podia ver o pequeno
pulsar de sua garganta. A roupa cheirava à sachê de lavanda que ele
colocara nas gavetas de Fairfax. A respiração dela escovou os topos de
seus dedos.

86
Quando puxou a gravata no formato certo, seus dedos roçaram a
parte de baixo do queixo dela. Ela mordeu o lábio. Algo nele mudou de
lugar: sua concentração.
Ele deu dois passos para trás. — Deixe-me pegar seus sapatos.
— Quanta prática com os feitiços de costura você teve? — Ela
perguntou.
— Centenas de horas. — E metade delas usadas para remendar
calçados. Ele pegou os grandes sapatos oxfords de couro preto que ele
ajustou e lhe entregou um chapéu-coco31. — Aqui na Inglaterra, você
nunca vai a lugar algum sem um chapéu.
Ela passava como um menino? Ele não estava inteiramente
confiante.
Mas a suposição era uma coisa poderosa, especialmente uma
suposição de grande crença.
Ela se examinou no espelho da porta, ajustando o ângulo do
chapéu. De repente, ela se virou.
— O quê?
Ela abriu a boca, apenas para apertar os lábios novamente. —
Não importa.
Mas ele sabia o que ela havia percebido. Que ele poderia vê-la se
despir pelo espelho. Eles olharam um para o outro. Ela abaixou o olhar
e voltou a atenção para o espelho.
Ele caminhou até a janela, separou as cortinas e olhou para fora.
As nuvens começaram a se dissipar. Alguns raios de luz pálida atingiram
o pequeno prado atrás da casa. Não havia nenhum garoto ou pessoal da
casa – estava perto da hora do chá, e todos deveriam ter entrado.
Ela se aproximou dele.
— Desmaterialize-se daqui para trás dessas árvores, — ele
instruiu. — Então venha pela porta da frente da casa. Vou encontrá-la
no salão de entrada.

31 É um chapéu pequeno e arredondado com abas curvadas dos lados, muito usado
no final so século XIX.

87
Ele não queria que ela ficasse fora de suas vistas. Mas não havia
nada a ser feito sobre isso: o retorno de Fairfax necessitava ser visto como
um evento inteiramente não relacionado ao desaparecimento de Iolanthe
Seabourne. Se ele trouxesse Fairfax do nada, ambos pareceriam mais
suspeitos para agentes da Atlantis.
— E os outros garotos saberão quem eu sou?
— Quando me ouvirem dizer, saberão. — Ele se virou para ela. —
Eu sei que é minha culpa você estar aqui. Mas seja convincente como um
menino – Ou me prepararei em vão.
Ela olhou para ele, seu olhar meio admirado, meio confuso. —
Você preparou um ótimo plano.
Você não faz ideia. — E, por isso, você não falhará comigo.
Era tanto uma oração quanto um comando.

***

A casa da Sra. Dawlish foi construída com tijolos vermelhos, os


contornos limpos e sólidos. Acima do piso térreo, atrás de uma janela no
extremo sul, o príncipe a observava.
Ele também a observou quando ela se desnudou? Era sua
imaginação ou ele a olhou de maneira diferente depois? A parte de baixo
do seu queixo, onde ele esbarrou acidentalmente, queimava de novo com
o pensamento.
Ele ergueu a mão em uma saudação silenciosa e desapareceu. De
repente, sentiu-se exposta. Ela pensou que sua vida anterior era precária;
ela não tinha ideia do quanto foi protegida, protegida a um custo
irreparável para o mestre Haywood.
Ela deveria permanecer segura, mesmo que apenas para que o
sacrifício dele não fosse em vão.
Havia chovido mais cedo neste lugar – tudo estava molhado. Uma
luz aquosa iluminava a paisagem úmida. À distância, ela conseguiu
distinguir um edifício maior do que o resto – a escola? Mais longe, em

88
uma direção diferente, as sombras do que parecia ser um castelo
atarracado.
Ela não parecia estar em uma cidade – havia muita árvore, grama
e céu. Nem parecia estar em um campo isolado. Havia outras casas. As
carruagens passavam por uma rua próxima, as carruagens eram
puxadas por? – ela apertou os olhos – sim, cavalos.
Cavalos de verdade, sem asas ou um chifre na testa, seus cascos
clamando humildemente. Ela não podia deixar de sorrir um pouco,
lembrando-se dos livros ilustrados que amava quando criança, histórias
para crianças sobre não magos que não tinham nada além de sua
inteligência, sua espada e seu leal cavalo para acompanhá-los em suas
aventuras.
As carruagens eram pretas e fechadas, algumas com cortinas
puxadas. Os pedestres em negros, marrons e azuis claros e estavam
inteiramente preocupados com seus próprios assuntos, sem pensar que
um fugitivo estava entre eles, perseguido com a força total do maior
império na face da terra.
O pensamento era quase reconfortante: ao menos ninguém
prestou atenção nela.
Uma brisa quase tirou seu chapéu; ela segurou-o e começou a
andar. Sua nova roupa não se movia bem – muitas camadas, o corte
restritivo, o material rígido. E sem o seu cabelo, a cabeça dela parecia
estranhamente leve, quase sem peso.
Com muita atenção, e tentando não se parecer com um
estrangeiro, ela pisou na calçada, apenas para ser imediatamente
abordada por um menino sujo, de idade indeterminada, acenando com
pedaços de papel impresso no ar.
Ela saltou para trás, preparada para correr até o outro lado. —
Mais detalhes do funeral de John Brown! Você quer saber sobre eles,
senhor?
— Ah... — Ela queria?
— Leia tudo sobre a tristeza de Sua Majestade. Leia por um penne.

89
Ela encontrou a respiração. Um jornal, era o que o menino estava
acenando – os jornais do Domínio não usavam papel de verdade há muito
tempo.
— Desculpe. Nunca me interessei pelo homem, — ela disse com
sinceridade.
O menino encolheu os ombros e continuou vendendo suas
mercadorias pela rua estreita, a qual era apertada por casas de tijolos à
mostra com telhados íngremes e molhados.
Ela parou diante da porta da casa da Sra. Dawlish, que era preta
e despretensiosa, situada sob uma soleira arqueada. Pronto, ela
conseguiu. Agora ela só precisava se passar por menino. No futuro
próximo. E sob os olhos atentos de Atlantis.

***

Titus trocou para o uniforme escolar em seu próprio quarto.


Quando entrou no corredor, a porta do Wintervale se abriu.
— Quando você chegou aqui? — Wintervale perguntou, surpreso.
— Há algum tempo, — Titus disse. — Estava no meu quarto.
— Por que você não se juntou a Kashkari e eu?
— Eu estava de mau humor – encontrei a Inquisidora hoje. Você
também não parece muito satisfeito. Qual é o problema?
— Minha mãe. Precisei voltar para casa agora.
Titus perguntou o óbvio. — Ela geralmente não vai para Aix-les-
Bains assim que você volta para cá?
— Baden-Baden desta vez, mas ela ainda não saiu. Eu a encontrei
no sótão tendo um ataque. Ela continuou dizendo que matou alguém e
que desta vez não haveria perdão dos Anjos. Chequei a casa de cima a
baixo: nada. Se ela realmente tivesse matado alguém, você pensaria que
eu teria encontrado o cadáver.
Não era fácil ser o filho de Lady Wintervale. Ela não era
considerada insana. Mas às vezes se aproximava o suficiente.
— Ela ainda está em casa?

90
— Ela foi ficar com minha tia. — Wintervale bateu a cabeça contra
a parede atrás dele. — Atlantis fez isso com ela. Quando você nos liderará
para derrubá-los?
Titus encolheu os ombros. — Você terá que organizar a revolta,
primo. Se pudesse, eu não estaria aqui.
Mentir para Lady Callista e a Inquisidora era uma necessidade
perene – Titus ficou realmente orgulhoso de raramente dizer algo
verdadeiro diante dessas duas. Mas mentir para o seu primo, igualmente
necessário, sempre o incomodava. Ele desejou que Wintervale não fosse
tão confiante.
— Por que você acha que estou tentando entrar no Sandhurst 32?
— Wintervale disse. — Os britânicos lutam muito. Talvez eu tenha algo a
aprender com eles.
Titus também desejou que Lady Wintervale não respeitasse a
tradição de ter o filho de uma das famílias mais importantes do Domínio
estudando junto com o herdeiro da Casa de Elberon. Lady Callista foi
amiga de sua mãe – olha quão bem acabou.
— Tente não se matar em uma das guerras coloniais britânicas,
— ele disse a Wintervale. — Seria a ironia final.
— Ouço menções às guerras coloniais? — Kashkari disse,
juntando-se a eles, elegante em seu uniforme impecável e cabelo preto
liso. — Sua dor de estômago acabou, Wintervale? Você parece melhor.
— Estou bem agora, — Wintervale disse.
O estado mental imprevisível de Lady Wintervale e a inclinação
por confiar em seu único filho significavam que Wintervale sempre
precisava inventar dores repentinas para voltar ao seu quarto – ou limpar
seu quarto – para usar o portal do guarda-roupa.
— Vocês querem chá? — Wintervale emitiu seu convite habitual.
— Por que não? — Kashkari disse.
— Vou me juntar a você em um minuto. Acho que vi Fairfax da
minha janela. Deixe-me ir verificar se é realmente ele.

32 Academia militar inglesa.

91
— Fairfax! — Wintervale exclamou. — Você tem certeza?
— Mas sua janela não fica de frente para a rua. Como você o viu?
— Kashkari perguntou.
— Ele estava caminhando pela grama. Quem sabe? Talvez ele
deseje se familiarizar com tudo.
— Já era tempo, — Wintervale disse. — Nós precisamos que ele
jogue.
— Ele ainda não sente a força em sua perna, — Titus disse,
movendo-se para a escada.
O feitiço que ele criou antes de entrar pela primeira vez na escola
era bastante simples: ninguém duvidava que Fairfax existisse 33. Mesmo
assim, era melhor ele chegar ao térreo logo. Os garotos não a
reconheceriam como Fairfax, a menos que alguém dissesse o nome em
voz alta; e só Titus poderia fazer isso. — Quem sabe se ele ainda será
bom nos esportes depois de uma lesão como essa?
A outra paixão de Wintervale, além de retornar o baronato de
Wintervale para a sua antiga glória, era o cricket. Ele se convencera – e a
um bom número de outros garotos – que Archer Fairfax era o prodígio do
cricket, o mais famoso, cujo retorno levaria a equipe da casa ao
campeonato da escola.
— Estranho. Ele só saiu há apenas três meses, e já não consigo
me lembrar de como ele é, — Wintervale disse.
— Sorte sua, — Titus disse. — Fairfax é um dos tipos mais
ferozmente feios que já conheci.

33 Pouco será dito sobre feitiços de mudança de forma aqui, uma vez que são muito
avançados para o alcance deste livro e, mais importante, ilegais. Filtros amorosos são
muitas vezes erroneamente pronunciados como o exemplo mais conhecido de feitiço de
mudança de forma. O efeitos dos filtros amorosos, apesar de violentos, são temporários.
Os efeitos dos verdadeiros feitiços de mudança de forma, por outro lado, são
semipermanente para permanente. E buscam não alterar emoções e comportamentos
de curto prazo, mas fatos percebidos. Em outras palavras, eles são informações erradas.
Felizmente, não é fácil de implementar o feitiço de mudança de forma. Se o Sr.
Rabungento é um ladrão conhecido, nenhum feitiço de mudança de forma mudará essa
percepção. Nem ajudará alguém suspeito de mentir. Feitiços de mudança de forma só
são eficazes quando (1) a audiência pretendida é inteiramente descuidada e (2) a
informação errada disseminada não é contrária aos fatos estabelecidos.
– Da arte e ciência da magia: Uma Cartilha

92
Kashkari riu, alcançando Titus nos degraus. — Vou dizer a ele
que você disse isso.
— Por favor, faça.
A casa da Sra. Dawlish, apesar da grande quantidade de
ocupantes do sexo masculino, foi decorada de acordo com os gostos da
Sra. Dawlish. O papel de parede na escada era florido. Quadros de
margaridas e jacintos pendurados em cada parede.
As escadas levavam até o hall de entrada, com cadeiras forradas
da cor de papoula e cortinas de musselina verdes. Um vaso de tulipas
laranja estava sobre a mesa de console sob um espelho antigo – um
garoto era obrigado a olhar-se no espelho antes de sair da casa para que
sua aparência não envergonhasse a Sra. Dawlish.
Titus estava nos últimos degraus quando Fairfax entrou no hall
de entrada, uma figura delgada e alta usando a capa distinta de um
garoto sênior de Eton. Imediatamente ele ficou consternado por seu
julgamento equivocado. Ela não se parecia com um garoto. Ela era muito,
muito bonita, demais: seus olhos enormes e com cílios longos; sua pele,
desnecessariamente suave; seus lábios, vermelhos e cheios, totalmente
como os de uma garota.
Ela o viu e sorriu aliviada. O sorriso ainda era pior: trazia covinhas
profundas que ele sequer suspeitava que ela possuísse.
Medo o engoliu. Em algum momento, agora, alguém gritaria, o
que uma garota está fazendo aqui? E como todos conheciam Fairfax como
seu amigo mais próximo, não levaria muito tempo para os agentes
presentes em Eton juntar dois e dois e concluir que havia muito mais
acontecendo.
— Fairfax, — ele se ouviu falar, sua voz quase não tremia. —
Pensamos que você nunca voltaria.
Quase imediatamente, Kashkari disse: — Meu Deus, é você,
Fairfax!
— Bem-vindo de volta, Fairfax! — Wintervale gritou.
Com a repetição de seu nome, outros meninos se aproximaram e
repetiram a fala. — Olhe, Fairfax está de volta!

93
Ao olhar para tantos meninos, seu sorriso se desintegrou. Ela não
disse nada, mas olhou de face a face, apertando a mão no punho da
valise. Titus não podia respirar. Por oito anos, ele viveu em um estado de
pânico lento. Mas nunca soube o que era o verdadeiro terror até o
momento. Ele sempre dependeu de si mesmo; agora tudo dependia dela.
Vamos, Fairfax, ele implorou em voz baixa. Mas ele sabia disso.
Era demais. Ela deixaria a valise cair e fugiria. Todo o inferno explodiria,
oito anos de trabalho iriam para o ralo, e sua mãe teria morrido por nada.
Ela limpou a garganta e sorriu, um sorriso presunçoso e torto. —
É bom ver as suas faces feias novamente.
A voz dela. Embarcando de um perigo para outro, ele não a ouvira
direto. Agora, ele realmente a ouviu pela primeira vez: rico, baixo e
ligeiramente grave.
Mas foi o sorriso dela, em vez da voz, que estabilizou seus
batimentos cardíacos. Não havia como confundir esse sorriso petulante,
era absolutamente a expressão de um garoto de dezesseis anos que
nunca conheceu o sabor da derrota.
Wintervale desceu o resto dos degraus e apertou a mão dela. —
Você não mudou nem um pouco, Fairfax, tão encantador quanto Sua
Alteza aqui. Não é de admirar que vocês sempre foram grosseiros como
ladrões.
A sobrancelha dela se levantou com a maneira em que Wintervale
se dirigiu a Titus. Wintervale sabia quem era Titus, mas para a escola,
Titus era um príncipe de um pequeno continente.
— Não o encoraje, Wintervale, — Titus disse. — Fairfax é
insuportável o suficiente como é.
Ela olhou para ele. — É preciso ser um para reconhecer outro.
Wintervale assobiou e deu um soco no braço dela. — Como está a
perna, Fairfax?
Wintervale tinha uma força que poderia derrubar uma árvore
jovem. Ela conseguiu não cair. — Boa como nova.
— E o seu latim ainda é tão terrível quanto o seu boliche?
Os garotos riram com bom humor.

94
— Meu latim está bom. É o meu grego que é tão horrível quanto a
sua vida amorosa, — ela retrucou.
Os meninos gargalharam, incluindo Titus, que riu de puro choque
e alívio.
Ela era boa.
Brilhante, na verdade.

95
Capítulo 7
Depois de terminar com os apertos de mão, batidas nas costas e
saudações gerais, Iolanthe esperava ter um momento para respirar. Mas
não era para ser.
— Benton! — Wintervale invocou. — Leve a mala de Fairfax para
o quarto dele. E certifique-se de acender um bom fogo lá. Fairfax, venha
conosco para o chá.
Um rapaz pequeno, vestindo não um casaco de cauda, mas um
que terminava na cintura, pegou a valise.
— Faça-o trabalhar duramente. — Wintervale sorriu para ela. Ele
era tão alto quanto o príncipe, loiro e robusto, quase saltando no lugar
com energia nervosa. — Benton não fez muito na sua ausência.
Ela não perguntou por que ela deveria fazer Benton trabalhar
muito – o príncipe explicaria tudo mais tarde. Ela apenas sorriu para
Wintervale. — Farei com que ele se arrependa de ter voltado.
Antes de Little Grind, o Mestre Haywood ensinava na escola para
meninos. Todas as noites, depois da prática de esportes, um grupo deles
passava pela janela de Iolanthe conversando alto. Ela prestara mais
atenção no menino mais popular, observando com atenção sua bravata
alegre e insultos bem-humorados.

96
Agora ela estava agindo como aquele menino feliz e pretencioso.
O príncipe, caminhando um passo na frente dela, virou a cabeça
e deu-lhe um olhar de aprovação. O seu coração pulou uma batida. Ela
não achava que ele fosse o tipo de aprovar facilmente.
Quando entrou no quarto de Wintervale, no entanto, ela parou.
No peitoril da janela florescia uma grande quantidade de weathervine34,
extremamente útil para saber quando um guarda-chuva seria necessário
para o dia.
Só que não poderia ser uma weathervine, poderia? A weathervine
era uma planta mágica. O que estava fazendo...
O príncipe colocou o braço sobre o ombro dela. — Esqueceu como
é o quarto do Wintervale?
Ela permitiu que ele a levasse para dentro, sabendo que não
deveria ter parado para admirar. — Eu só me perguntava se as paredes
sempre foram tão verdes.
— Não, elas não eram, — Wintervale disse. — Mudei o papel de
parede antes do último semestre terminar.
— Você é sortuda – e boa, — o príncipe sussurrou em seu ouvido.
A respiração dele contra sua pele enviou uma onda de calor por
todo o seu corpo. Ela não podia olhar para ele.
O quarto estava abarrotado até a sua capacidade máxima. Dois
garotos pequenos estavam agachados diante do fogo, um fazendo chá, o
outro fazia ovos mexidos com uma experiência surpreendente. Um
terceiro entregava torradas com manteiga e feijão cozido.
Ela observou cuidadosamente as coisas: os meninos, sem dúvidas
sobre isso, agiam como servos para os rapazes mais velhos.
Benton, que anteriormente foi encarregado de levar sua valise ao
quarto dela, agora voltou com um prato de salsichas ainda fumegantes.
— Você não as queimou novamente, não é, Benton? — Wintervale
perguntou.
— Eu quase nunca as queimo, — Benton respondeu, indignado.

34 Tipo de planta.

97
Wintervale cutucou Iolanthe com o cotovelo. — Os novos meninos,
eles ficam tão indignados no terceiro semestre.
O cotovelo dele apertou um ponto muito macio no peito. Ela ficou
orgulhosa de ter apenas respirado em reação. — Eles ainda aprenderão
seus lugares.
Ela caminhou até a planta e tocou suas folhas macias e bonitas.
Uma weathervine, sem dúvidas sobre isso. — Você sempre teve isso?
— Eu o plantei de uma semente, — Wintervale respondeu. —
Provavelmente tinha apenas três centímetros de altura quando você foi
para casa com o membro quebrado.
Talvez o príncipe tenha dado um para ele? — Não parece que
estive tanto tempo longe.
— Como está Somerset? — Kashkari perguntou.
Somerset? Instintivamente, ela se aproximou do príncipe, como se
sua proximidade tornasse menos provável cometer erros. — Você quer
dizer Shropshire?
O príncipe, que se sentou na cama de Wintervale, deu-lhe outro
olhar de aprovação.
Acacia Lucas, uma das alunas do Mestre Haywood em Little
Grind, estava bastante interessada em casar-se com o príncipe. Um dia,
durante uma prática sob a supervisão de Iolanthe, Acacia apontou para
o retrato dele e sussurrou para sua amiga, ele tem a cara de um anjo.
Iolanthe olhou para os traços frios e altivos do príncipe, e bufou.
Acacia não estava inteiramente correta, ou inteiramente errada.
Ele não era nada como um anjo sublimado. Mas um mundano, talvez: o
tipo perigoso, que faz aqueles que olhavam para eles verem apenas o que
queriam ver.
Ela viu um forte protetor. Mas era isso o que ele realmente era, ou
simplesmente era o que ela queria desesperadamente? Tanto quanto ela
não desejava, em algum lugar no fundo, ela entendeu que ele não
arriscara tudo puramente pela bondade de seu coração.
— Desculpe, é Shropshire? — Kashkari balançou a cabeça. —
Como foi em Shropshire então?

98
Ele tinha o cabelo preto azulado, a pele verde-oliva, olhos
inteligentes, e uma boca elegante, se ligeiramente inclinada – um garoto
extraordinariamente bonito.
— Frio e úmido, na maior parte, — Iolanthe disse, achando que
sempre era um clima aceitável para a Primavera em uma ilha do Atlântico
Norte. E então, lembrando-se de quem ela era: — Mas é claro que passei
todo o meu tempo dentro de casa, irritando nossa governanta.
— Como Derbyshire? — O príncipe perguntou a Kashkari,
afastando o assunto de Archer Fairfax.
Iolanthe soltou a respiração que estava segurando. O príncipe
mostrou uma notável previsão ao inventar Fairfax como alguém que
passou a maior parte de sua vida no exterior: poderia ser usado para
desculpar sua falta de conhecimento sobre a Grã-Bretanha. Mas foi pura
sorte ela se lembrar de sua menção à Shropshire. Não importa quão
familiarizado com a Inglaterra um expatriado fosse, ele ainda deveria
saber onde vivia.
— Eu queria que houvesse tempo suficiente entre os semestres
para eu voltar para Hyderabad. Derbyshire é bela, mas a vida em uma
casa de campo torna-se repetitiva depois de um tempo, — Kashkari
respondeu.
— Bem, você está de volta à escola agora, — o príncipe disse.
— Verdade, a escola é mais imprevisível.
— É assim? A escola é previsível para mim, e eu gosto dessa
maneira, — Wintervale disse. — Nós devemos fazer um brinde. À escola,
que sempre seja o que queremos que seja.
O chá estava pronto. Wintervale sorriu e os jovens lacaios
serviram chá para seus convidados. Eles tiniram suas xícaras de chá. —
À velha escola querida.
O chá em casa geralmente era acompanhado por alguns pastéis.
Mas aqui, o chá – a mesa estava carregada de ovos, salsichas, feijões e
torradas – constituía uma completa refeição. Iolanthe esperava que isso
significasse que os meninos se concentrariam em seus alimentos. Se
fizessem mais perguntas, ela poderia se trair.

99
— Certifique-se de comer o suficiente, — Wintervale disse. — Nós
precisamos de você pronto para o cricket.
O que é cricket? O gafanhoto? — Ah... estou tão pronto quanto
sempre estive.
— Excelente — Wintervale disse. — Necessitamos
desesperadamente de um ótimo jogador.
O quê? Pelo menos Wintervale não esperava que ela definisse o
que era um ótimo jogador. Ele apenas estendeu a mão para ela. — Para
uma temporada inesquecível.
Ela balançou a mão. — Uma temporada inesquecível.
— Esse é o espírito, — Kashkari disse.
O príncipe não parecia tão emocionado. Com o que exatamente
ela se comprometeu com esse aperto de mão? Mas antes que pudesse
puxá-lo de lado e perguntar, Kashkari fez outra pergunta para ela.
— Não sei por que, Fairfax, — ele disse, — Mas eu tenho
dificuldade em lembrar como você quebrou sua perna.
Seu estômago afundou. Como ela responderia a essa pergunta?
— Ele... — Wintervale e o príncipe disseram ao mesmo tempo.
— Vá em frente, — o príncipe disse a Wintervale.
Ela bebeu de sua xícara, tentando não parecer obviamente
aliviada demais. Claro que o príncipe cuidaria disso.
— Ele subiu na árvore ao lado de nosso campo de jogo e caiu, —
Wintervale respondeu. — O príncipe teve que carregá-lo até aqui. Não é,
sua alteza?
— Sim, — o príncipe disse, — Com Fairfax chorando como uma
menina por todo o caminho.
Oh, ela chorou, não é? — Se chorei, foi só porque você foi tão
lamentável. Peso apenas 58kg. Mas pensariam que eu era um elefante
pelo jeito como sua Alteza gemia. Oh, Fairfax, não posso dar mais um
passo. Oh, Fairfax, minhas pernas estão se transformando em pudim. Oh,
Fairfax, meus joelhos estão dobrando. E você está esmagando meus dedos
delicados.
Kashkari e Wintervale riram.

100
— Minhas costas doem até hoje, — o príncipe disse. — E você
pesava tanto quanto o Rochedo de Gibraltar.
A troca deles era quase coquete. Mas ela não pôde deixar de notar
que no meio da alegria geral, ele permaneceu distante – se não o
conhecesse, ela o teria considerado mal-humorado. Ela se perguntou por
que ele estava completamente sozinho quando estava entre os
companheiros.
Sim, claro, ela percebeu no início. Ela era o motivo. Ela era o seu
grande segredo.
E agora estavam juntos nesse segredo.
Ela sorriu para ele. — Para que servem os amigos, príncipe?

***

— Desculpe, não tive tempo de dizer que Wintervale é um exilado,


— Titus disse. — Ele é um mago elementar, na verdade, mas qualquer
não-mago com um fósforo pode produzir uma chama mais
impressionante do que ele.
Eles estavam a certa distância da casa, perto das margens do
Tâmisa, marrom e silencioso. Titus remara no rio por anos. A repetição,
a transpiração e a exaustão limpavam e acalmavam sua mente muito
bem.
Eton nem sempre era um lugar agradável: muitos meninos
tiveram dificuldade em encontrar seu lugar na hierarquia, e havia
seniores que abusavam claramente de seus poderes. Mas para ele, a
escola, com suas salas de aula, seus esportes esgotantes, e mil garotos –
e até seus agentes da Atlantis – era a coisa mais próxima da normalidade
que ele já conheceu.
— Existem outros magos aqui? — Ela perguntou.
O dia estava sumindo. E também as nuvens, deixando para trás
um céu claro que se transformara um azul profundo, exceto pelo
horizonte ocidental, ainda brilhando com as últimas luzes do pôr-do-sol.
— Além de Wintervale, apenas os agentes da Atlantis.

101
Ela estava quase aturdida com alívio ao deixar o quarto de
Wintervale, mas esse lembrete da onipresença de Atlantis arruinou seu
humor. Seus olhos baixaram. Seus ombros curvaram. Ela parecia ficar
mais pequena diante de seus olhos.
— Com medo?
— Sim.
— Você se acostumará com isso. — Não era verdade. Ele nunca
se acostumou, mas aprendeu a conviver com isso.
Ela respirou fundo, tirou uma folha de um salgueiro e enrolou-a
em um tubo na sua mão. Seus dedos eram esbeltos e delicados – como
os de uma garota.
— Wintervale chama você de Sua Alteza e ninguém pisca um olho.
Todos sabem quem você é?
— Wintervale sabe. Mas para todos os outros, eu sou um príncipe
germânico da casa de Saxe-Limburg.
— Existe tal casa?
— Não, mas qualquer um que ouvir falar sobre o nome vai
encontrá-lo em um mapa e nos livros de história sobre o principado da
Prússia – o mago chefe do regente se assegurou disso.
— Esse é um feitiço totalmente ilegal, não é?
— Então não diga a ninguém que foi assim que eu também fiz um
lugar para Archer Fairfax aqui.
Isso lhe valeu um olhar longo, meio aprovador, meio incômodo.
Eles pararam na beira do rio. A água era uma ondulação escura,
com alguns pontos de ouro avermelhado.
— O Tâmisa, — ele disse. — Nós remamos nele, aqueles que não
jogam cricket.
Ele pensou que ela poderia perguntar o que exatamente era o
cricket, mas ela apenas acenou com a cabeça lentamente.
— Do outro lado do rio está o Castelo de Windsor, uma das casas
da rainha inglesa, — ele acrescentou.

102
Ela olhou para o sul por um momento, nas muralhas que
dominavam o horizonte. Ele tinha a sensação de que ela ouvia apenas
parcialmente.
— Há algo em sua mente? — Ele perguntou.
Ela olhou para ele novamente, admiração relutante em seus
olhos. Ele raramente se importava com o que os outros pensavam dele.
Mas com essa garota que o observava com cuidado e discrição, que era
tão perspicaz quanto era capaz...
— Falamos sobre o meu guardião mais cedo, não foi?
A decisão dela de confiar nele agradou-o e ficou estranhamente
ansioso. — Sim, no hotel.
Ela deixou a folha do salgueiro cair no rio; e ela rodou em um
pequeno redemoinho. — Nos últimos anos, fiquei frustrada com ele. Ele
era um estudioso de grande potencial. Mas então ele cometeu um erro
terrível após o outro e tornou-se ninguém no meio do nada. Descobri hoje,
que quatorze anos atrás, para me proteger, ele desistiu de algumas
lembranças cruciais de seu passado para um guardião da memória.
Desde então, ele viveu sem conhecer os eventos que o levaram para onde
estava.
Titus mal podia imaginar como o homem havia suportado por
tantos anos. O consenso médico atual era de que apagar a memória era
eminentemente inadequado ao longo prazo. Depois de alguns anos, a
mente começava a caçar as memórias perdidas. E isso se tornava uma
obsessão.
— Essa foi provavelmente a razão pela qual ele se viciou em
merixida, — ela continuou. — Agora que eu penso nisso, todas essas
escolhas que custaram a carreira dele, e até mesmo sua respeitabilidade
– ele deve ter tentado, de forma inconsciente, proteger a memória.
Ela pegou um seixo do chão e atirou-o com um movimento do
pulso. O seixo pulou quatro vezes na superfície do rio antes de
desaparecer sob as correntes. Ela observou o rio por mais um momento,
depois endireitou seus ombros e ficou mais alta, como se chegasse a uma
decisão importante.

103
— Meu caso é diferente, é claro. Estou em plena posse das minhas
lembranças. Mas, como ele, estou no escuro. E eu não quero estar.
— Eu estou mantendo você no escuro?
Ela mordeu o lábio. — Por favor, não me entenda errado. Estou
extremamente agradecida por tudo o que você fez. Se eu fosse uma
pessoa melhor, eu me deixaria guiar por gratidão, e somente gratidão.
Mas preciso perguntar, por quê? Por que você se colocou nesse risco? Por
que desafiou a Inquisidora? Por que está envolvido em tudo?
Ela estava envergonhada de fazer essas perguntas – seu pé
arrastou no chão macio do banco, tão inquieta como ele nunca a viu.
Mas, mesmo assim, sua voz era cautelosa. A troca que ele pediria sempre
lhe pareceu justa e simples. Ele manteria o mago elemental seguro; e, em
troca, o mago elementar emprestaria a ele os formidáveis poderes que ele
precisava. Mas ela veria assim?
Talvez precisasse usar o guardião dela como uma forma de
barganha: ela não poderia infiltrar-se no Inquisitório. Nem ele, mas ela
não sabia disso.
Ele, no entanto, sabia. Ele era um mentiroso por necessidade,
mas poderia mentir para ela, sabendo que estava muito possivelmente
pedindo a vida dela em troca?
Ele não responder imediatamente a incomodou. Ela passou a mão
pelos cabelos, apenas para afastá-la com surpresa, como se tivesse
esquecido que a maior parte de seu cabelo foi cortada e destruída.
Ela balançou ligeiramente a cabeça com os olhos melancólicos.
Ele olhou para ela, essa garota que nunca mais estaria segura em lugar
nenhum.
Não, ele não mentiria, não para ela. Daqui por diante, seriam os
dois contra o mundo, uma aliança que definiria o que restava de seus
dias nesta terra.
E seria sua única chance de algo verdadeiro e significativo.

***

104
Por um minuto, Iolanthe pensou que o príncipe não diria nada a
ela. Então ele fez um círculo duplo em torno deles.
Ninguém fazia um círculo duplo intransponível, a menos que não
quisesse ser ouvido. A brisa que saiu do rio parecia fria de repente.
O príncipe olhou através da água para uma faixa estreita de uma
ilha. Seu perfil era familiar – ele estava em cada moeda do Domínio – mas
ela não podia desviar o olhar. Ela conheceu muitos garotos bonitos antes.
Ele era mais do que bonito; ele era impressionante. E havia uma nobreza
no seu porte que tinha pouca relação com sua linhagem e tudo a ver com
o sentido de propósito que ele irradiava.
— Eu vou derrubar o Bane.
Suas palavras calmas foram carregadas pelo vento frio. Ela
estremeceu e esperou ele dizer que era uma piada – já que ele tinha um
senso de humor.
Ele encontrou seus olhos, seu olhar inabalável.
Isso era loucura. Ele também poderia derrubar as Montanhas
Labyrinthine – seria mais fácil. Bane era invencível. Intocável.
— Por quê? — Sua voz estava rouca.
— Porque é isso que eu deveria fazer.
Apesar de sua incredulidade – ou talvez por causa disso – ela
achou a convicção dele inspiradora.
— Como você sabe o que deve fazer?
— Minha mãe me disse.
Quando as pessoas falavam sobre a princesa Ariadne,
costumavam especular sobre o misterioso caso que havia produzido o
príncipe. Ninguém poderia recordar outro exemplo em toda a história da
Casa de Elberon, quando a paternidade de um príncipe reinante
permaneceu desconhecida35.

35 Foi confirmado na semana passada pela cidadela que a princesa Ariadne está
realmente esperando seu primeiro filho; meses de especulação terminaram e
aumentaram ainda mais perguntas. O decreto que regula a sucessão à coroa especifica
que somente um herdeiro deve ser um primogênito de Titus, o grande. Nenhuma
menção é feita de legitimidade. Com algumas notáveis exceções, a maioria dos bastardos
principescos abstiveram-se de reclamar um direito ao trono. Mas fontes acreditam que
a princesa Ariadne pretende declarar seu primogênito herdeiro da Casa de Elberon. A

105
— Sua mãe era uma vidente?
— Era. — Qual era a emoção subjacente a resposta dele? Raiva,
resignação, tristeza – ou uma mistura dos três? — Por vontade dela, isso
nunca foi revelado ao público.
Verdadeiros videntes eram poucos e distantes. — O que ela
profetizou que se tornou realidade?
Sem se inclinar, ele tinha um seixo na mão. Ele o pesou. — Vinte
e cinco anos atrás, ela e meu avô receberam uma delegação de jovens
atlantes. Havia uma garota de dezessete anos que não era representante,
mas uma mera assistente. Minha mãe apontou a garota para o meu avô
e disse que um dia a garota seria a pessoa mais poderosa do Domínio.
— A Inquisidora?
Ele jogou o seixo. Ele saltou longe. — A Inquisidora.
Isso foi extremamente impressionante. — O que mais?
— Ela sabia a data exata do funeral da Baronesa Sorren, anos
antes da baronesa ter levado o ataque contra a Atlantis.
Isso desconcertou Iolanthe. Não é de admirar que a princesa
Ariadne não quisesse que soubessem que ela era uma vidente, se datas
de morte eram o tipo de coisas que ela previa.
O príncipe jogou outro seixo. — Ela também disse que eu estaria
na minha varanda, que eu veria o primeiro sinal de sua existência. E
assim foi.
Um lampejo de esperança acendeu no coração de Iolanthe. — E
ela disse que você derrubaria Bane?
Ele não respondeu imediatamente.
— Ela disse ou não?
— Ela disse que eu deveria ser aquele a tentar, a colocar as coisas
em movimento.

provável declaração não seria desafiada por razões de legalidade. Mas a maioria dos
magos Delamer consultados são da opinião de que eles merecem saber a paternidade
do futuro príncipe ou princesa. A princesa recusa firmemente dizer o nome do pai de
seu filho e que ele tenha danificado seu reputação, outrora intocada. Muitos rumores
têm questionado tanto o caráter da princesa quanto sua aptidão para governar.
– Dos obstáculos da princesa, o Observador Delamer, 08 de junho de 1014, Ano do
Domínio.

106
— Isso não é uma garantia de sucesso, não é?
— Não. Mas nunca realizaríamos algo que valha a pena na vida se
exigirmos a garantia de sucesso no início.
A audácia dele tirou o fôlego dela. Comparada com ele, ela vivia
na menor escala, preocupada apenas com o seu bem-estar e o do Mestre
Haywood. Enquanto ele, que poderia ter desfrutado de uma vida de luxo
e privilégio inimagináveis, estava disposto a dar tudo por causa do bem
maior.
— Qual é a minha parte em seu plano?
— Eu preciso de você, — ele disse simplesmente. — Somente com
um grande mago elementar ao meu lado eu tenho uma possível chance.
Quando ela era pequena, fascinada por sua leitura de As Vidas e
Ações do Grande Mago Elementar, ela se perguntou como seria se seus
próprios poderes crescessem a tal proporção tão temível, capaz de manter
o destino de reinos inteiros na palma da mão. Ouvindo-o, ela sentiu uma
agitação por aquela excitação antiga, aquela carga elétrica de
possibilidades ilimitadas.
— Você realmente tem certeza de que eu sou esse poderoso mago
elementar?
Seu olhar era inabalável. — Sim.
Se ele estava convencido, e Atlantis também, e o Mestre Haywood
também, a ponto de desistir de suas memórias – ela supôs que eles não
poderiam estar todos errados. — Assim... como vamos derrubar Bane?
— Teremos que confrontá-lo algum dia.
Ela sentiu tonturas. Certamente eles poderiam encontrar uma
maneira inteligente de derrotar Bane de longe.
— Cara a cara? — Sua voz tremulou.
— Sim.
A ideia de bravura imaginária em seu coração se dissipou,
deixando para trás apenas rastros de medo.
Mas o príncipe pensou tão bem dela. E se arriscou tanto. Ela
odiaria se ele se decepcionasse. Ela odiaria que ele ficasse desapontado
com ela. Em Quatro Grandes Aventuras e em sete Grandes épicos, livros

107
que ela adorava quando criança, este era o momento em que a
protagonista se deixava levar pela razão e participava da jornada
lendária. Ninguém nas histórias já disse: Obrigada, mas não, obrigada,
isso realmente não é para mim.
Mas isso não era para ela. Pensamentos de heroísmo podem agitar
sua alma por um minuto, mas não mais do que isso. Ela não queria ficar
em qualquer lugar perto do Bane, e muito menos participar de algum tipo
de jogo da morte.
Se estivesse morta, ela nunca se tornaria professora no
Conservatório e viveria naquele belo campus novamente.
Além disso, o Domínio estava há muito tempo sob a sombra da
Atlantis. Ela estava acostumada com a ideia. Não tinha nenhum desejo
ardente de derrubar Bane, e nenhum desejo – a menos que fosse para
libertar o Mestre Haywood – de cruzar o caminho da Inquisidora.
— Eu pensei... pensei que eu estivesse aqui para me esconder, —
ela disse, odiando quão fraca soou.
— Você não pode se esconder para sempre de Atlantis.
Ela seria encontrada um dia, ele quis dizer, e deveria lutar ou
morrer.
Ela queria reunir sua coragem, mas também poderia arrancar
diamantes do nada. Os pés pareciam estar se dissolvendo; seus pulmões
como se estivessem cheios de mercúrio.
— Como exatamente eu deveria... derrotar o Bane?
— Não sei. Eu tenho lido sobre a magia elementar há anos, mas
ainda preciso descobrir como usar o poder de um grande mago
elementar, e somente usando o poder de um poderoso mago elementar
se pode derrotar o Bane, de acordo com minha mãe.
— Usando o poder de um poderoso mago elementar... — ela ecoou
lentamente. — Você quer dizer, como o Bane.
— Não, não como ele.
— Então como?
— Eu não sei ainda.
Ela estava confusa. — Então você vai testar em mim?

108
— Não, eu vou testar com você, não em você. Estamos juntos
nisso.
Ela queria desesperadamente confiar nesse rapaz que parecia ter
nascido sob as asas dos Anjos, lindo e sem medo. Mas eles não estavam
juntos nisso. Para ajudá-lo a alcançar seu objetivo de mudar o curso da
história, ela teria que desistir de todo o seu propósito de sobrevivência.
E sendo o poderoso mago elementar ou não, ela não era uma
grande heroína, apenas uma garota comum que tremia em um par de
sapatos que não apertavam os dedos dos pés.
Seu desejo de impressioná-lo, no entanto, ainda lutava com a sua
necessidade de se salvar. — Talvez... eu deva apenas ajudá-lo como uma
consultora.
Ela era uma covarde, mas melhor ser covarde do que morrer.
Ele sacudiu a cabeça. — Não, você é a parte mais essencial.
Cada palavra caiu sobre ela como uma faca. — Mas se eu não sei
o que fazer e você não sabe o que fazer...
— Eu vou descobrir, eventualmente. Enquanto isso, treinarei você
para canalizar melhor seus poderes. Potencial não é suficiente; você deve
alcançar o domínio. Só então você poderá enfrentar o Bane.
Seus lábios tremiam. Ela não podia mais negar a verdade. — Eu
não quero enfrentar o Bane.
— Ninguém quer, mas você não pode escapar do seu destino.
Ela acreditou no destino, ela que viveu com um funcionário
humilde da aldeia apenas para que pudesse ficar em um lugar até seus
exames de qualificação?
— Eu não tenho um destino, — ela disse fracamente.
— Talvez você não soubesse disso até hoje, mas você tem e sempre
teve.
A voz dele era urgente, o olhar intenso. Se ela fosse uma
sonhadora, a força da convicção dele a teria conquistado. — Eu não sou
essa alma corajosa que você acha que eu sou. Eu vim com você porque
você ofereceu um santuário. Não tenho o que é preciso para fazer o que
você pede.

109
Ele ficou em silêncio por um momento; alguma coisa cintilava nos
olhos dele. — E o seu guardião? Você pode resgatá-lo sozinha?
As perguntas dele a agonizaram por quase um minuto antes de
reconhecê-las pelo que eram: manipulação. Ele não estava acima de usar
sua preocupação com Mestre Haywood para conseguir o que queria.
Todos os magos em busca de você querem usar e explorar seus
poderes.
Não acredite em ninguém.
Por que ela não entendeu mais cedo? Por toda a majestade do
príncipe, ele era monumentalmente ambicioso e queria que ela fosse
apenas um meio para seus próprios fins.
Desânimo se espalhou descontroladamente em seu coração. —
Isto está abaixo de você, Sua Alteza. Meu guardião não fez seus sacrifícios
para que eu pudesse jogar minha vida em uma missão selvagem
condenada a falhar. Ele ficaria indignado se eu permitisse ser explorada
dessa maneira.
O maxilar do príncipe apertou. — Não estou explorando você. Eu
salvei você duas vezes, ofereci tanta segurança como você não encontrará
em qualquer lugar nesta terra, e me arrisquei. É uma troca razoável te
pedir ajuda por uma boa causa – por uma causa tão digna.
Ao contrário dela, ele não levantara a voz. Mas parecia defensivo.
— Então um boi deve se dirigir de bom grado para o matadouro
porque o fazendeiro o alimentou e abrigou? Quantos poderiam fazer essa
barganha se soubessem o que aconteceria com eles no final? Você está
pedindo que eu desista de tudo por uma causa que não é minha. Eu não
quero fazer parte de nenhuma revolução. Quero apenas viver.
— Viver assim, sem saber o que é ser livre? — A voz dele estava
tensa.
— Não saberei nada quando estiver morta!
Sua raiva era ainda mais amarga, porque estivera pronta para
colocar sua fé e esperança nele. Confiar nele como sua âncora nesta nova
e turbulenta vida. E retribuir a bondade dele usando o máximo de sua
habilidade.

110
Apenas para ser informada de que ele queria que ela morresse por
ele.

***

No quarto de Archer Fairfax, Iolanthe levantou a pequena valise


vermelha que o príncipe lhe deu para transportar suas coisas e colocou-
a na mesa. No interior havia roupas de menino, moedas que ela
desconhecia, um mapa de Londres, um mapa da área de Eton-Windsor e
um livro chamado Guia de Ferrovias Mensal de Bradshaw.
— Por favor, reconsidere, — o príncipe disse.
Ela virou bruscamente. Ela não tinha ideia de quando ele
desmaterializou no quarto. Ele ficou de costas contra uma parede, com a
expressão vazia.
— Você nem sabe para onde ir.
Mas ela sabia. O príncipe havia dito que a escola não estava longe
de Londres. Ela precisava voltar para Londres. O Mestre Haywood
aconselhou-a a esperar perto do portal final, durante o maior tempo
possível, pela chegada do guardião da memória. A mudança tinha seus
riscos. Mas ela não pretendia voltar para dentro da casa daquela mulher
louca. Ela podia monitorar a casa de fora, de um telhado próximo,
talvez...
— Eu nem pensaria nisso.
Seu coração perdeu uma batida, mas ela voltou para a valise,
empurrou as moedas e fingiu verificar o que mais continha.
— Aquela mulher no sótão sabe quem você é – ou o que você é,
pelo menos. Ela terá contado para outros exilados. Há informantes entre
os exilados. Atlantis terá agora o bairro inteiro sob vigilância. Os agentes
vão retirar as proteções da casa para que você possa entrar, caso esteja
desesperada demais para tentar. Faça isso e será a última vez que alguém
verá você.
Ela sentiu náuseas. — A Grã-Bretanha é um grande reino. Minhas
opções são quase infinitas. Como você mesmo disse anteriormente, por

111
melhor que seja Atlantis, não podem esperar me localizar tão facilmente
em uma terra de milhões.
— Você não é tão anônima quanto pensa. Seu casaco faz parte do
uniforme de Eton. Isso a marcará em qualquer lugar como um aluno de
Eton. Os nativos se perguntarão por que você está vagueando quando
deveria estar na escola – e eles se lembrarão de você.
Ela começou a suar. Ela poderia se revelar tão facilmente, sem
sequer ter consciência disso. — Tudo o que eu tenho que fazer é trocar
de roupa.
Ela trocou o casaco por um marrom que estava na valise.
— Se fosse tão fácil. No campo, onde todos se conhecem, você será
notável. Então você deve ir às cidades, onde o anonimato é possível. Mas
você não sabe quais partes de uma cidade estão seguras para um jovem
bem vestido, você será roubada e possivelmente espancada. E antes de
me tranquilizar de novo, quão acessível você estará com os punhos,
contra vários homens ao mesmo tempo, sem recorrer aos poderes
elementais?
— Se você pretende me convencer de que todo lugar lá fora é
perigoso para mim, — ela retorquiu, — Você não vai conseguir.
Mas ele estava chegando muito perto.
— Todo lugar lá fora é perigoso para você. Você ainda não
percebeu isso? — Ela desejou que ele não falasse tão calmo e
razoavelmente.
— Mais perigoso do que aqui? Você me levará até minha morte.
— Eu darei a minha vida por você. Você conhece alguém que fará
isso?
Eu darei a minha vida por você. As palavras tiveram um efeito
estranho nela, uma dor quase como uma picada de vespa no coração. Ela
fechou a valise. — Você pode prometer que eu viverei? Não? Achei que
não.
Ele estava quieto. Entristecido. Ela não percebeu isso antes, mas
agora ela viu que sempre havia um traço de melancolia nele, um coração
pesado que veio de ser encarregado de uma carga muito grande.

112
— Desculpe, — ela disse, incapaz de evitar.
Ele caminhou até a janela e olhou para o céu escurecendo. Sua
mão esquerda apertou a cortina. Ela não podia estar completamente
certa, mas ele parecia tremer.
— O quê? — Ela perguntou.
Ele ficou em silêncio por mais algum tempo. — As estrelas. Elas
serão muito bonitas esta noite.
Ele virou e se aproximou dela, sua varinha levantada. Ela deu um
passo atrás, incerta de suas intenções. Mas ele apenas adaptou a jaqueta
marrom para ela.
— Obrigada, — ela murmurou.
— Se for apanhada por Atlantis, você pode muito bem estar no
seu melhor.
Ela queria bufar, mas não podia fazer nada do tipo. Ela parecia
ter uma bola de serragem na garganta.
— Então... isso é um adeus.
— Não precisa ser.
Ela balançou a cabeça. — Você assumiu os riscos por um motivo.
Como não posso te dar o que você quer, não posso colocá-lo em risco.
— Deixe-me decidir quanto risco eu estou disposto a suportar, —
ele disse suavemente.
Isso quase a desfez completamente. Se ele a abrigasse, mesmo
que não o ajudasse...
Não. Ela não deveria deixar se enganar pelos olhos brilhantes
novamente. — Não posso ficar, mas obrigada, em todo caso, por me dizer
a verdade.
Uma sombra escureceu seus olhos antes que seu rosto ficasse
rapidamente ilegível. Ele colocou uma mão no ombro dela. Por um
momento, ela pensou que ele iria puxá-la e beijá-la, mas ele apenas
passou o polegar em sua testa, uma bênção principesca.
— Que a sorte caminhe com você, — ele disse e a soltou.

113
Capítulo 8
Déjà vu.
Parecia ter sido há alguns instantes que Iolanthe ficou no mesmo
lugar atrás da casa da Sra. Dawlish, olhando para a janela de Fairfax.
Exceto que ela ia em direção à segurança. Agora, ela saía para perigos
desconhecidos.
Não havia movimento atrás da cortina, mas a luz permaneceu, um
retângulo dourado de conforto e refúgio. Ela deveria ir embora, mas
continuava observando a janela, esperando por coisas que não tinha
mais o direito de esperar.
Se ao menos não se sentisse tão pequena e sozinha aqui, como
uma criança perdida, necessitando desesperadamente de uma mão
amiga.
A suíte do hotel estava fora de questão. Seria o celeiro arruinado
então. A memória de seu interior vazio e lamacento não apelavam, mas
ela fechou os olhos e desejou percorrer a distância.
A desmaterialização não aconteceu. Ela tentou novamente, ainda
não funcionou. A distância devia ser maior do que seu alcance de
desmaterialização. E como não conhecia lugares no caminho, ela não
conseguia quebrar a viagem em etapas menores.

114
Ela chutou a árvore mais próxima com frustração. Sua fuga
poderia ser mais inepta? Ela deveria ter considerado seu curso de ação
com mais cuidado. Deveria ter um destino viável em mente. E, na sua
falta, deveria ter pelo menos roubado uma pílula auxilar de
desmaterialização do príncipe.
E vestido um casaco mais quente. Agora que a noite caiu, a
temperatura teve uma queda. O casaco marrom que ela vestiu não era
grosso o suficiente para protegê-la do frio. Ela se abraçou com a mão
livre.
O frio também a fez perceber que estava com fome. Ela quase não
comeu nada o dia inteiro; o seu estômago estava mais vazio do que uma
rua à meia-noite.
Se nada mais, ela precisava encontrar algum alimento.
Ela olhou pela última vez para a janela iluminada de Fairfax. Se
alguma coisa acontecesse com ela, será que o príncipe sentiria um puxão
de perda?
Ela estremeceu. Disse a si mesma que era apenas o frio. Além
disso, ela não precisava voltar para um lugar onde já esteve. Ela colocou
as moedas inglesas da valise no bolso. Ao caminhar ao longo da ruas de
Eton, provavelmente encontraria uma hospedaria onde poderia comprar
algo para comer e uma cama para passar a noite.
Na parte da manhã, as coisas não pareceriam tão terríveis.
Ela inalou profundamente, moveu a valise para a mão esquerda e
dirigiu-se para a rua. Mas mal conseguiu dar dois passos quando algo a
fez olhar para cima.
O céu era de um azul profundo e cavernoso. O príncipe estava
certo: as estrelas saíram, brilhantes e inúmeras. Leão. Virgem. Gêmeos.
E lá, Polaris, a Estrela do Norte, ancorando a grande bússola celestial.
Mas o que eram aqueles pontos negros acima, quase invisíveis
contra a escuridão da noite? Ela apertou os olhos. Aves não voavam em
uma perfeita formação de diamantes, não é?
Os pássaros se dirigiram para o leste e desapareceram à distância.
Antes que pudesse soltar um suspiro de alívio, no entanto, outro grupo

115
se aproximou do oeste, novamente em uma perfeita formação de
diamantes.
Desta vez, quando passaram por cima dela, três pássaros
quebraram a formação.
Eles circularam, descendo enquanto faziam isso, então ela viu o
brilho metálico e maçante de suas barrigas.
Não eram pássaros, mas os infames carros de guerra de Atlantis,
veículos aéreos que podiam transportar um único dignitário visitante, ou
despejar chuvas mortais em populações amotinadas36.
O que o príncipe disse? Que uma vez que a notícia de sua chegada
se espalhasse, Atlantis teria o distrito inteiro sob vigilância, com a chance
de que Iolanthe pudesse retornar.
Se isso fosse a mobilização de Atlantis, então o príncipe, se
alguma coisa, subestimou a ferocidade da resposta deles.
O ruído do sangue era alto em seus ouvidos. Ela procurou
freneticamente pela varinha em cada bolso. Não foi até que estivesse
quase se debulhando em lágrimas que lembrou que a deixou no
laboratório, depois que o príncipe a aconselhou a não ter nada que
pudesse identificá-la como uma fugitiva do reino mágico.
Agora, ela estava desprotegida sem sua varinha.
Ela tentou argumentar consigo mesma. Atlantis não conhecia sua
localização precisa – aqui na Grã-Bretanha ela era apenas uma única
mancha de areia em uma praia de dois quilômetros. Além disso, Atlantis
procurava por uma menina, e dezenas de meninos não conseguiram
reconhecê-la como uma.

36 A seguir uma reprodução de um panfleto clandestino da época da Revolta de Janeiro.


Temos más notícias de nossos amigos no subcontinente. A ofensiva no Hindu Kush falhou
catastroficamente. Sobreviventes relatam veículos aéreos Atlantes de um tipo nunca antes
visto, carruagens fechadas e blindadas que repelem todas as magias de ataque
conhecidas. Para tornar as coisas cem vezes piores, os carros blindados borrifam uma
poção mortal em seu rastro. A poção é clara e sem cheiro. Muitos dos combatentes da
resistência no terreno acreditavam que era precipitação natural e acreditava que o
desaparecimento de seus colegas era por serem vítimas da batalha. Mas depois, quando
as mortes de civis em massa foram contadas nas rotas de vôo dos carros blindados,
nossos amigos não tinham escolha, a não ser concluir que a Atlantis havia revelado uma
nova arma terrível, a chuva da morte. – De um levantamento cronológico da última
grande rebelião.

116
Mas os três carros blindados acima dela continuaram descendo.
Ela correu para uma copa de árvores, as mãos trêmulas, o coração
acelerado.
Duzentos metros acima do chão, os carros blindados pararam,
suspensos no ar.
Ela segurou o tronco mais próximo para apoio.
Um momento depois, um grupo de magos, pelo menos uma dúzia,
apareceu no gramado de trás da casa da Sra. Dawlish.

***

Em retrospectiva, a reação dela foi totalmente previsível. Por que


alguém quereria abraçar tal causa sem esperança? Titus odiava isso com
uma paixão, esse albatroz ao redor de seu pescoço.
Mas foi enganado por seus próprios sentimentos. Toda sua vida
foi definida pelo segredo e subterfúgio. Com ela, ansiava por uma
verdadeira parceria, um relacionamento de confiança, compreensão e boa
vontade – tudo o que nunca experimentou antes.
Estúpido, é claro. Mas estúpido não significava que ele desejasse
menos.
Ele saiu da janela e sentou na cadeira sobressalente, uma
Windsor robusta com uma grande almofada listrada de branco e cinza. A
cadeira que ele mesmo escolheu, assim como o tecido para a almofada do
assento. Ele também escolheu o papel de parede azul e as cortinas
brancas. Ele sabia muito pouco sobre decoração, mas queria tornar o
quarto calmo e reconfortante, sabendo que os eventos que levaram à
chegada de Fairfax em Eton inevitavelmente seriam traumáticos.
Diante dele estavam as prateleiras com os livros que ele
colecionou com o propósito de familiarizar Fairfax com o mundo não-
mágico: um manual da Grã-Bretanha para estrangeiros, vários
almanaques e enciclópedias, um guia para Eton escrito por um ex-aluno,
um volume de etiqueta, outro sobre regras dos jogos e passatempos mais
populares, entre dezenas de outros.

117
Tanto planejamento, tanto esforço, tanta futilidade.
Ele deveria ter inclinado sua mente para a duplicidade. Ele era o
melhor ator de sua geração, não era? Ele deveria ter dito que a protegeria
a qualquer custo, porque ela estava destinada a ser o amor de sua vida.
Lá, uma mentira fácil e maravilhosa, perfeita para enganar uma menina.
Ela teria ficado, e ele teria procedido com o treinamento dela, sem mais
perguntas.
Mas ela queria a verdade, e ele, em um ataque de loucura, queria
honestidade e negociação justa. E verdade, honestidade e negociação
justa o trouxeram para esse naufrágio.
Ele se afastou da cadeira. Esse som, o que era? Ele desligou a luz
e correu para a janela.
Puta merda – como os colegas de classe diriam.
Puta merda.
Ele se desmaterializou.

***

Um dos magos apontou na direção de Iolanthe. Todos se viraram


na direção da árvore.
Ela ofegou, o som de seu medo rompendo o silêncio.
Ela poderia enfrentar todos os magos que a caçavam? Ou era
melhor desmaterializar no hotel e enfrentar os poucos agentes de Atlantis
que aguardavam lá? E se ela lançasse toda cautela ao vento e convocasse
um segundo relâmpago, o que aconteceria?
Outro mago se materializou no gramado, uma mulher com roupas
não mágicas. Iolanthe encolheu mais sob as copas das árvores. A mulher
se dirigiu propositadamente para os agentes da Atlantis.
Eles falaram suavemente. Iolanthe não conseguia ouvir a
conversa, exceto para notar que, apesar de suas baixas vozes, eles
trocaram algumas palavras acaloradas.

118
Por fim, os agentes de Atlantis se desmaterializaram,
provavelmente de volta aos carros blindados. E a mulher, com um olhar
final ao redor, também desapareceu.
Alguém bateu no ombro dela. Ela saltou em puro terror. Mas era
apenas o príncipe.
— Eles se foram por agora. Não tenho certeza se permanecerão
longe. Saia rápido se quiser.
Peça-me para ficar, apenas alguns dias, até o pior passar.
Ele não fez nada desse tipo. E por que deveria? Ela havia deixado
bem claro que nada poderia induzi-la a ficar.
— O que aconteceu agora? — Ela perguntou, sua voz mais ou
menos estável, como se quase não tivesse sido atacada.
— Uma disputa jurisdicional.
Ela mordeu o interior de sua bochecha. — O que isso significa?
— Significa que os magos dos carros foram despachados pela
Inquisidora. Mas a Sra. Hancock aqui recebe suas ordens diretamente do
Departamento de Administração Ultramarina de Atlantis, e ela não lida
bem com os funcionários da Inquisidora entrando em seu território sem
um convite expresso. Eles sabem disso, e é por isso que tentaram se
esconder aqui, onde você está.
Seu coração batia ainda mais violentamente do que antes.
— Vá, — ele disse.
Ela não teve escolha senão admitir o óbvio. — Não sei para onde
ir.
Ele pegou a mão dela e colocou-a em seu braço. No momento
seguinte, eles estavam em uma rua bem iluminada, em frente a um
edifício longo e arborizado com telhados curvos.
— Onde estamos?
— Slough, a três quilômetros ao norte de Eton. Aquela é a estação
ferroviária. — Ele apontou para a construção longa. — Você tem um
cronograma em sua bolsa e mais do que dinheiro suficiente para ir a
qualquer lugar. Pegue um navio a vapor para a América se quiser.

119
Ele estava bravo com ela, mas ainda estava ajudando-a. De
alguma forma, isso tornou um futuro sem ele ainda mais sombrio. Seu
coração estava preenchido por um dor estranha que ela não podia
nomear.
Ele a virou. Ela agora encarava uma casa de dois andares. — Essa
é uma hospedaria. Você pode comprar seu jantar e ficar a noite se preferir
sair de manhã. Certifique-se de monitorar o que está lá fora e conhecer a
localização da saída traseira.
— Obrigada, — ela disse, sem olhar nos olhos dele.
— E pegue isso.
Ele pressionou uma varinha na mão dela.
— Mas é sua.
— Claro que não... é uma reposição não marcada. Não posso ter
minha varinha em sua posse quando você for capturada.
Não se, mas quando.
Ela ergueu a cabeça. Mas ele já havia desaparecido.

***

A hospedaria era pequena, mas alegremente iluminada e


escrupulosamente limpa. Um fogo ardia na taberna. O aroma era de
cerveja forte e caldo quente.
A sra. Needles muitas vezes criticava os males de um estômago
vazio: esgotava o calor, drenava a força e dizimava o pensamento claro.
Iolanthe estava fria, confusa e desanimada quando abriu as portas da
hospedaria. Mas agora, com a ceia colocada sobre a mesa diante dela –
pedaços de vegetais e cenouras nadando no molho, fatias de pão recém-
assado com um monte de manteiga, e a promessa de um pudim para
mais tarde – ela se sentia um pouco melhor.
Ela escolheu uma mesa ao lado da janela, com vista para a porta
dos fundos, que levava a um beco. No andar de cima, um quarto alugado,
mas decente, a aguardava. E na frente dela, o horário ferroviário. Ela já

120
havia circulado o trem – uma forma muito grosseira de rodovia, pelo que
ela pode entender – que ela pretendia pegar amanhã.
Ela pegou uma fatia de pão e passou a manteiga. Na casa dos
residentes, o príncipe logo se sentaria para jantar. Ele pensaria nela como
ela pensava nele? Ou estaria secretamente alegre, aliviado por não ter
que enfrentar Bane?
O Mestre Haywood ficaria satisfeito por ela ter sabiamente se
afastado dos planos extravagantes do príncipe para se concentrar em sua
própria sobrevivência. Ela olhou para o pão em sua mão, brilhando com
manteiga derretida e se perguntou se a comida oferecida ao Mestre
Haywood no Inquisitório era tão agradável. E os agentes de Atlantis
fariam qualquer coisa por ele quando os sintomas da abstinência de
merixida começarem? Ou simplesmente o deixariam sofrer?
— O que você está pensando, rapaz bonito? — Iolanthe saltou.
Mas era apenas a criada, sorrindo para ela. Sorrindo com flerte.
— Ah... uma taça de cerveja, servida pela garota mais bonita do
lugar?
A menina riu. — Vou buscar essa cerveja por você.
Iolanthe olhou para a garçonete se afastando, imaginando como
mantê-la afastada. Não conseguiu nem pensar na possibilidade de que
alguém descobrisse que ela não era um rapaz tão bonito, afinal.
A garçonete olhou por cima do ombro e piscou. Iolanthe
rapidamente olhou pela janela. Em casa, as estradas principais
geralmente tinham mais de uma hospedaria. Talvez ela visse algo perto.
No outro lado da rua, acima da estação ferroviária, pairavam dois
carros blindados. No chão, uma equipe de agentes – fácil de distinguir
dos pedestres ingleses assustados com suas túnicas uniformes – se
afastavam da estação. Vários deles vinham diretamente para a
hospedaria.
O medo que a tomou fez o tempo se alongar e se dilatar. O homem
que lia um horário sob o poste de luz da rua bocejou, sua boca se abriu
infinitamente. O rapaz na próxima mesa pediu a seu amigo, Passe o sal,
cada uma das sílabas arrastadas. O companheiro, movendo-se como se

121
estivesse dentro de um tonel de cola, colocou os dedos em um pote de
estanho com uma pequena colher dentro e o empurrou.
Com um baque alto, uma grande jarra de cerveja foi colocada
diante de Iolanthe, a espuma alta e derramando. Ela ergueu o olhar para
a garçonete, que piscou novamente de forma significativa. — Algo mais
para você, senhor?
Sua ilusão de liberdade desmoronou.
Ela não estava segura aqui. Ela não estava segura em lugar
nenhum. E ela não tinha escolhas, exceto morrer agora ou morrer um
pouco mais tarde.
Ela jogou algumas moedas ao lado de seu jantar praticamente
intocado e correu para a porta dos fundos.

***

Ele era um bastardo. Claro que ele era: ele mentiu, enganou e
manipulou.
Ela não gostaria muito dele quando percebesse o que ele fez.
Não importava, Titus disse a si mesmo. Ele não caminhou por
esse caminho para flores e abraços. A única coisa que importava era que
ela deveria voltar. Ele ignorou completamente o sentimento oco em seu
peito.
Ele acendeu a luz no quarto de Fairfax e esperou. Passou quinze
minutos. E aí estava ela, o rosto pálido, os olhos selvagens.
— Se você está procurando o seu chapéu, está lá no gancho, —
ele disse, tão casualmente quanto conseguiu. — Não se preocupe comigo;
eu só estou aqui para forjar uma nota de despedida por você.
Ela deixou cair a valise, puxou a cadeira da mesa e se sentou, seu
rosto enterrado nas mãos.
Nas últimas semanas da vida de sua mãe, ele muitas vezes sentou
assim, seu rosto nas mãos. Impaciente com a angústia dela, ele
costumava puxar a manga dela e exigir que ela brincasse com ele.

122
Depois de sua morte, ele não pensou em nada por meses, além de
que se pudesse voltar atrás, ele teria agido diferente, ele a acariciaria nas
costas e nos cabelos e prepararia suas xícaras de chá.
Ele avançou devagar, com cautela, como se a menina diante dele
fosse um dragão adormecido.
Contra o seu melhor julgamento, ele colocou uma mão sobre o
ombro dela.
Ela estremeceu, como se estivesse presa em um pesadelo.
Ele sempre se considerou de sangue frio. Sangue frio era uma
característica muito apreciada pela Casa de Elberon. Seu avô insistiu
especialmente nisso: alguém podia perder a vida, mas nunca a
indiferença.
Agora, no entanto, sua indiferença se quebrou. Em algum lugar
dentro dele, ele também estremeceu, com a força de seu medo, sua
confusão e sua vulnerabilidade – uma empatia que o chocou com sua
profundidade e enormidade.
Ele retirou a mão.
— Eles estavam lá. — Sua voz soou fantasmagórica, sem alma. —
Eles estavam na estação ferroviária. Dois desses carros blindados no ar
e... e os agentes foram para a hospedaria.
Claro que eles estavam lá. Ele havia dito à Sra. Hancock que se
Atlantis realmente achasse que a menina estava perto, eles deveriam
observar as estações ferroviárias, já que ela não conhecia a Grã-Bretanha
o suficiente para desmaterializar.
— Você desmaterializou até aqui diretamente da sua mesa de
jantar?
— Não, do beco atrás da hospedaria. Espero ter deixado moedas
suficientes para pagar o jantar... eu estava com muita pressa.
— Agora não é o momento de se preocupar com o lucro do
estalajadeiro.
— Eu sei. — Ela virou o rosto para o teto e piscou rapidamente.
Ele ficou chocado ao perceber que ela estava à beira das lágrimas. — É

123
estúpido. De tudo o que aconteceu hoje, não sei por que essa é a única
coisa que...
Ela passou a base da palma da mão sobre os olhos. — Me
desculpe.
O certo a fazer agora seria dar um abraço reconfortante, talvez até
mesmo beijar seus cabelos. Oferecer o conforto que ela ansiava e
convencê-la de que ela havia feito a escolha correta de retornar.
Ele não poderia fazer isso. Por isso, ele deu um passo atrás.
Ela olhou para ele. — Ainda posso ser o Archer Fairfax?
Ele apertou as mãos atrás das costas. — Você entende o que deve
dar em troca?
Seus lábios se retorceram. — Sim.
— Eu preciso de um juramento.
Isso a surpreendeu. Ela expirou lentamente. — O que você quer
que eu jure?
— Deixe-me esclarecer. Preciso de um juramento de sangue37.
Ela estava de pé. — O quê?
— O único juramento válido é aquele que pode ser aplicado. Sua
vida não é a única em jogo aqui.
Ela tremia, mas encontrou seu olhar. — Por um juramento de
sangue eu quero mais. Você sempre me dirá a verdade. Você libertará
meu guardião. E faremos uma e somente uma tentativa contra Bane. Se
nós conseguirmos ou falharmos, você me liberará deste juramento.
Como se houvesse uma segunda tentativa.
— Concedido, — ele disse.

37 Não pode ser enfatizado o suficiente que a magia de sangue não é o mesmo que a
magia sacrificial. Magia sacrificial, desnecessário dizer que sempre foi um tabu nos
reinos mágicos. Os magos que escolhem quebrar o tabu geralmente fazem isso entre os
não-magos, manipulando rituais religiosos locais para se adequarem aos seus próprios
fins. Magia de sangue não requer a tomada de vidas ou o corte de partes do corpo. Além
disso, o feitiço, ao contrário da crença popular, não drena o corpo. Apenas uma
quantidade muito pequena de sangue é necessária, e esse sangue deve vir de
participantes dispostos. Sangue forçosamente derramado não guarda segredos nem liga
ninguém em juramentos.
– Da arte e da ciência da magia: uma cartilha

124
Ele encontrou um prato, colocou-o sobre a mesa e apontou a
varinha para o prato. — Flamma viridis38.
Uma chama verde acendeu. Ele abriu o canivete, passou a lâmina
através do fogo, cortou o centro da palma da mão esquerda e deixou cair
três gotas de sangue sobre a chama. O fogo crepitou, transformando-se
em uma tonalidade esmeralda mais brilhante. Ele passou a faca na
chama novamente e passou para ela. — Sua vez.
Ela estremeceu, mas copiou sua ação. O fogo devorou o sangue
dela e transformou a cor de uma meia-noite. Ele segurou sua mão ainda
sangrenta e mergulhou suas mãos juntas diretamente na chama fria.
— Se qualquer um de nós renunciar ao juramento, esse fogo se
espalhará nas veias do juramentado. Não será tão legal então.
O fogo rapidamente virou um branco brilhante e queimou. Ela
sibilou. Ele respirou fundo contra a dor.
Então, bruscamente, a chama desapareceu, sem deixar nenhum
traço de ter estado lá. Ela puxou a mão e examinou ansiosamente. Mas
sua pele estava perfeitamente lisa e intacta; até mesmo o corte auto-
infligido no centro da palma da mão havia desaparecido.
— Um pouco do que aguarda o juramento, — ele disse, talvez
desnecessariamente.
— Você pensou em tudo, não... — a voz dela se apagou.
As cortinas estavam bem fechadas. De onde estava, ela não podia
ver. No entanto, ela olhou para a janela, descrença em seus olhos. Sua
negação fez com que o sentimento oco em seu peito voltasse como
vingança. Ela ainda queria acreditar que ele era melhor do que isso. Mas
era inevitável. Ela era muito inteligente, e ele estava com muita pressa
para ser sutil. O rosto já pálido tornou-se cinza, a mandíbula endureceu,
ela apertou a mão onde o corte fora feito.
— Você os viu no céu, não é, os carros blindados? Foi por isso que
você me contou sobre as estrelas, de modo que eu olharia para cima e os
veria.

38 Chama verde.

125
Sua voz era anormalmente uniforme. Ele pensou nela
agradecendo por sua honestidade. Ela tinha que pensar o mesmo,
sabendo que, mesmo que ela falasse essas palavras, ele já planejava sua
confiança.
Ele não disse nada.
— Você não poderia ter tido a decência de me dizer que eles
estavam bem sobre a minha cabeça e que eu deveria esperar quinze
minutos antes de fugir?
— A decência não é uma virtude em um príncipe.
Ela riu amargamente. — A casa em Londres está realmente
cercada por agentes de Atlantis?
Ele pode ter exagerado a probabilidade de que Lady Wintervale
falasse de sua chegada a outros exilados. Lady Wintervale estava
inclinada ao segredo, não a confissões.
— Você também teve alguma coisa a ver com os carros blindados
em Slough, aqueles que fizeram com que eu voltasse para você?
Ele encolheu os ombros.
Ela riu novamente. — Então, qual é, exatamente, a diferença entre
você e Atlantis?
— Eu ainda lhe dei uma escolha. Você voltou por sua própria
vontade.
— Não, voltei aqui porque você me encurralou. Você jogou rápido
e livre com minha vida. Você...
Ela recostou contra a parede, seu rosto contorcido pela dor.
— Já pensando em renunciar ao juramento? — Ele só podia
imaginar a agonia que a cortou.
Parecia que ela mal podia respirar. Sua voz estava rouca. — Este
não pode ser um juramento válido. Liberte-me agora!
— Não.
Nunca.
Ela fechou os olhos brevemente. Quando os abriu novamente, eles
estavam cheios de fúria fria. — Que pessoa você é para viver sem honra
ou integridade?

126
Suas unhas cavaram na palma da mão. — Obviamente o tipo
escolhido para fazer o que os outros muito decentes não conseguem
Ele queria parecer superficial, mas em vez disso ele parecia duro
e irritado.
Ela apertou a mão. — Eu gostava muito de você, muito mais
quando eu não te conhecia.
Não importava. Ele tinha o que queria dela. O que ela pensava
dele era, portanto, irrelevante.
Ele teve que respirar profundamente antes de poder responder. —
Seu carinho não é exigido neste empreendimento, Fairfax, apenas sua
cooperação.
Ela olhou para ele. De repente, ela estava bem diante dele. O
punho o atingiu forte no abdômen.
Ele grunhiu. A menina sabia como machucar alguém.
— Bastardo, — ela grunhiu.
Um pensamento irrelevante o atingiu: ele deveria tê-la beijado
quando ainda tinha a chance.
Ele se endireitou com algum esforço. — O jantar é em meia hora,
Fairfax. E da próxima vez, diga uma coisa que eu não saiba.

127
Capítulo 9
Todos os pensamentos trouxeram agonia.
Iolanthe não sabia quando ela desabou no chão, mas era um lugar
tão bom como qualquer um para sofrer.
A dor era diferente de qualquer uma que ela já tenha conhecido –
lâminas descuidadas e brutais, sujas e enferrujadas raspando todas as
terminações nervosas. Ela quase rezava pela neblina de asfixia.
Demorou muito tempo para encontrar maneiras de pensar que
não revivesse a tortura. Foi fácil imaginar a futura esposa do príncipe
traindo-o com todos os servos do castelo. Também foi bom imaginar seus
filhos detestando-o. E o mais satisfatório de todos, não fazia mal imaginar
toda a população de Delamer cuspindo no caixão dele, para que seu
funeral se tornasse uma farsa e um tumulto.
Ela não precisava ser historiadora para saber que a Casa de
Elberon estava em declínio. Sem dúvida, ele queria reviver sua glória e
deixar sua marca. Sem dúvida, ele queria ser o próximo grande príncipe.
Ela não era mais so que um peão em seu plano, assim como para Bane,
ela era apenas uma coisa a ser usada e descartada.
Ela sentia-se ferida e esgotada, como se tivesse passado por uma
doença terrível. Ela quase não podia acreditar que quando acordou este

128
dia, sua maior preocupação era o casamento de Rosie Oakbluff. Isso
parecia ter acontecido anos atrás, uma vida completamente diferente.
Segurando na beira da mesa, ela se levantou.
De alguma forma, este não era um lugar muito desconhecido,
ficando em pé apenas quando o mundo se encaixou ao redor dela. De
fato, havia uma familiaridade estranha: cada vez que o Mestre Haywood
havia perdido seu emprego, ela pensou que eles chegaram a um abismo
do qual nunca sairiam.
Exceto desta vez, era realmente o abismo, o fim da vida como ela
conhecia.
O que deveria fazer?
Como se respondesse a sua pergunta, seu estômago resmungou
– ela estava muito nervosa com o chá e também distraída por seus
pensamentos na hospedaria. Ela quase riu. Ainda estava viva, então ela
deveria comer – e esperar o jantar no andar de baixo.
Ela estava acostumada a isso: continuar, não importa o que;
fazendo o melhor de uma situação terrível.
O que mais deveria fazer?

***

Titus bateu na porta dela e não obteve resposta.


— Você não quer jantar?
Ainda não havia resposta.
Ele desceu sozinho. Para sua surpresa, ao chegar na sala de
jantar, ela já estava lá, conversando profundamente com o Wintervale.
Ou melhor, Wintervale analisava os pontos fortes e fracos das equipes de
cricket das casas rivais, e ela ouvia atentamente.
Wintervale deve ter dito algo engraçado. Ela inclinou a cabeça e
riu. A visão deixou Titus congelado: ela era terrivelmente bonita. Ele não
entendia como Wintervale poderia ficar tão perto dela e não perceber
nada.

129
Wintervale continuou conversando. Ela olhou para ele com uma
franca apreciação. O impulso de esmagar Wintervale em um armário de
porcelana surgiu em Titus. Era difícil acreditar que ele a conhecia por
apenas algumas horas: ela já havia virado sua vida de cabeça para baixo.
Ele se aproximou deles. Ela deu um rápido assentimento antes de
voltar sua atenção para Wintervale. Kashkari se aproximou de Titus e
passaram um minuto falando sobre a liquefação do oxigênio, uma nova
realização científica sobre a qual Kashkari acabara de ler nos jornais.
A porta da sala de jantar se abriu. Com empurrões e tropeços, os
meninos entraram, então se estabeleceram em duas longas mesas,
segregadas por idade. A Sra Dawlish sentou-se à frente da mesa dos
meninos seniores, Sra. Hancock, à mesa dos meninos júniors.
— Você vai dar as graças, Sra. Hancock? — A Sra. Dawlish
perguntou.
À menção do nome da Sra. Hancock, Fairfax, do outro lado da
mesa de Titus, ficou tenso. Titus poderia ver que ela queria se virar e dar
uma boa olhada na Sra. Hancock, mas teve o cuidado de imitar os outros
garotos e curvar a cabeça em vez disso.
— Nosso Pai Celestial, — a Sra. Hancock começou, — Nos ajude
na sua infinita misericórdia enquanto embarcamos em um novo semestre
nesta antiga e esplêndida escola. Guie os meninos para serem aplicados
e produtivos em seus estudos. Mantenha-os fortes e saudáveis no corpo
e na mente. E que 1883 seja o ano em que você finalmente os abençoará
com vitórias no campo de cricket... para o Senhor Todo-Poderoso, você
sabe o quanto ficamos tristes no semestre do Verão passado.
Os meninos gemeram e riram. A Sra. Dawlish, meio sorridente, os
repreendeu. Fairfax ergueu a cabeça, uma surpresa escrita em todo o seu
rosto. Ela imaginou que os agentes de Atlantis não poderiam ser
indivíduos perfeitamente charmosos? A Sra. Hancock era amada nesta
casa, quase mais do que a senhora Dawlish.
— Oferecemos nossos agradecimentos pela generosidade desta
refeição, Senhor, — a Sra. Hancock continuou. — Para a Sra. Dawlish,
nossa resoluta dama. Mesmo para os meninos, a quem amamos muito,

130
mas, se a história é alguma indicação, desejaremos estrangulá-los com
nossas próprias mãos antes da semana terminar.
Mais risada.
— Mesmo assim, estamos muito felizes pelo fato de todos os
nossos meninos voltarem com segurança para nós, especialmente
Fairfax. Que ele se abstenha de subir em árvores neste semestre.
As mãos de Fairfax apertaram a mesa. Ela curvou a cabeça
novamente, como se escondesse seu desconforto por ser escolhido por
um inimigo.
— Mas, acima de tudo, que possamos alcançar o conhecimento
de ti, Senhor, e te servir a cada respiração e ação. Porque seu é o reino,
o poder e a glória, para todo o sempre. Amém.
— Amém, — ecoaram os garotos.
Foram servidos peixe frito, espargos e geléia de laranja – o que
deve ser comida estranha para Fairfax. Ela comeu com moderação. Três
minutos depois do jantar, ela soltou o guardanapo. Ela virou no assento,
pegou o guardanapo e, ao se endireitar, finalmente olhou para a Sra.
Hancock.
Sra. Hancock era, na opinião de Titus, uma mulher mais atraente
do que aparentava. Ela preferia vestidos sem cor, em infinitas variedades
de marrom, e sempre manteve o cabelo coberto com uma touca grande e
branca. Mas eram os dentes da frente que realmente deixavam uma
impressão duradoura – dentes que Titus não acreditava serem
naturalmente grandes demais.
Para seu alívio, a Sra. Hancock, falando com um menino à sua
esquerda, não pareceu notar a atenção de Fairfax. Para seu alívio
novamente, Fairfax não olhou por muito tempo. Na verdade, nem pareceu
ter olhado. Se Titus não estivesse especificamente observando-o, talvez
nem tivesse percebido que ele havia espreitado a Sra. Hancock.
Fairfax recomeçou a comer, mastigando uma tira de espargos
como se fosse um pedaço de lenha. Agora, a Sra. Hancock virou – e olhou
para a parte de trás da cabeça de Fairfax.

131
Titus rapidamente olhou para baixo. Seu coração acelerou. Era
possível que uma mulher percebesse mais cedo que Fairfax era uma
menina. A Sra. Hancock já suspeitava de alguma coisa, ou prestou
atenção porque Fairfax era nominalmente o melhor amigo de Titus e deve
ser mantido sob vigilância?
— Você me passaria o sal? — Wintervale perguntou a Fairfax.
O saleiro estava bem ao lado de Fairfax, uma pequena terrina de
metal. Mas os pratos de qualquer cozinha respeitável no Domínio já
seriam temperados para cada pessoa na mesa. A menos que ajudasse a
cozinhar, ela nem saberia qual era a aparência do sal.
Mas antes que ele pudesse agir, ela estendeu a mão com
confiança, pegou uma pitada de sal para polvilhar o peixe frito e entregou
o saleiro para Wintervale.
Titus a encarou com espanto. O olhar que ela lhe deu foi de puro
desprezo.

***

Logo, ela e Wintervale voltaram a conversar sobre cricket. Titus


conseguiu continuar conversando com Kashkari. Mas não conseguiu se
concentrar, sua consciência estava saturada com o som de Fairfax e
Wintervale desfrutando da companhia um do outro.
Isso, e os olhares mais do que ocasionais que a Sra. Hancock
lançou em seu caminho.
A conversa sobre cricket não parou no final do jantar, mas
continuou no quarto de Fairfax, um bate-papo no qual Titus não foi
convocado.
Ele abriu um armário ao lado de sua cama. Dentro do armário
havia uma Hansen writing ball39, uma máquina de escrever que se

39

132
assemelhava a um porco-espinho mecânico, com as teclas dispostas em
um hemisfério de latão. Ele carregou uma folha de papel na moldura
semicilíndrica abaixo do hemisfério. As teclas começaram a se mover,
conduzindo os pistões curtos abaixo deles para formar as palavras e as
frases que formariam o relatório diário de Dalbert a Titus.
O relatório, parcialmente em taquigrafia, em parte em código, não
fariam nenhum sentido para os colegas de escola de Titus – ou a maioria
dos magos, para esse assunto. Mas para Titus, uma meia página
transmitia tanta informação como uma brochura inglesa inteira.
Geralmente, ele era informado sobre as decisões do governo, mas
hoje à noite não havia menções do regente ou do primeiro-ministro. Em
vez disso, Dalbert forneceu as informações que ele reuniu sobre Fairfax
e seu guardião.
Haywood nasceu na maior das Ilhas Siren, um pitoresco
arquipélago no sudoeste do Domínio continental. Seu pai era proprietário
de uma frota de pesca comercial, sua mãe era uma especialista em
conservação de pescaria. O casal teve três filhos: Helena, que morreu na
infância, Hyperion, que fugiu de casa em uma idade precoce, e finalmente
Horatio, o filho prodígio que deixava qualquer um orgulhoso.
Os registros de sua educação eram típicos o suficiente para um
jovem talentoso e ambicioso, culminando em sua admissão no
Conservatório, onde seu brilho se destacou mesmo entre a multidão
brilhante. No final de seu terceiro ano, seus pais faleceram em rápida
sucessão, e ele começou a ter problemas. Houve inúmeras infrações
menores em seu registro, embora seu sucesso acadêmico tenha
permanecido inalterado.
A impetuosidade chegou a um final abrupto quando ele assumiu
a tutela de Iolanthe Seabourne, um bebê de 11 meses de idade. A
pequena órfã estava sob os cuidados de uma tia avó idosa. Quando a
velha ficou doente, ela contatou a pessoa nomeada pelos Seabournes,
para sssumir os cuidados da menina.
Contudo, a tutela não ocorreu sem controvérsia. Outro amigo dos
Seabournes se apresentou e afirmou que antes da criança ter nascido, os

133
Seabournes pediram para colocar seu nome no testamento, como sendo
aquele que cuidaria de seus filhos no improvável caso da morte deles.
A decisão foi tomada. O nome de Haywood estava no testamento,
o dele não, e esse era o fim do assunto.
Tudo parecia bem por um tempo, mas sete anos atrás, Haywood
foi pego interferindo nos jogos de pólo intercolegiais. Ele foi relegado a
um cargo no Instituto de Magia Arquivística, onde plagiou um dos
trabalhos de pesquisa mais conhecidos recentemente. Após perder esse
emprego, ele encontrou trabalho ensinando em uma escola de segundo
nível. Ainda insatisfeito, ele aceitou subornos de alunos em troca de
melhores notas.
Ações ultrajantes de sua parte, mas ainda assim o guardião da
memória não havia intervindo.
Quanto à menina, ela era uma Maga Elementar registrada III,
incomum, mas ainda muito menos rara do que uma Maga Elementar IV,
que controlava os quatro elementos. A julgar por seu registro acadêmico,
ela não tinha intenção de se tornar uma iluminadora de rua – a escolha
de muitos magos elementais atualmente, criar fogo diante dos turistas
para viver.
E, curiosamente, quanto mais profundamente Haywood se
colocava em problemas, melhor ficavam as notas dela e mais efusivos
eram os louvores de seus professores. Uma característica desejável, isto,
a capacidade de diminuir o medo e a frustração e focar em algo.
Sua porta se abriu e Wintervale entrou.
Titus amassou o relatório e o jogou na grelha. — Não batemos
mais?
Wintervale o agarrou pelo braço e arrastou-o para a janela. — O
que diabos é aquilo?
Os carros blindados ainda estavam lá, imóveis no ar noturno. —
Os veículos aéreos do Atlantis. Eles estão lá desde antes do jantar.
— Por que eles estão aqui?

134
— Eu lhe disse que vi a Inquisidora hoje... alguém deve ter fugido
dela, — Titus disse. — Prossiga. Lance uma pedra neles e comece sua
revolução.
— Eu gostaria de poder atirar uma pedra tão alta. Eles não estão
preocupados em serem vistos?
— Por que deveriam estar? Se alguma coisa, os ingleses pensarão
que os alemães não são bons.
Wintervale sacudiu a cabeça. — É melhor eu ir na minha mãe
novamente.
— Mande lembranças minha a ela.
Titus esperou um minuto, depois saiu do quarto para bater na
porta de Fairfax.
— É Titus.
— Entre, — ela disse, para sua surpresa.
Ela usava uma longa camisola, sentada com os pés descalços na
cama, as costas contra a parede, brincando com fogo. O fogo era na forma
de uma bola de quebra-cabeças chinesa, uma esfera aberta aninhada
dentro de outra, e mais outra.
— Você não deveria brincar com fogo, — ele disse.
— Você também não deveria. — Ela não olhou para cima. —
Suponho que você está aqui para discutir a libertação do meu guardião?
A voz dela era uniforme. Havia uma calma quase antinatural nela,
como se ela soubesse exatamente o que queria fazer com ele. Quando ele
não sabia o que fazer com ela.
— Você está? — Ela pressionou o ponto.
Ele teve que se lembrar que fez um juramento de sangue para
sempre dizer a verdade, ele não poderia continuar mentindo para ela –
pelo menos não quando ela lhe fazia uma pergunta direta.
— Vim buscar minha varinha de reposição e discutir o seu
treinamento. Mas também podemos falar sobre seu guardião.
Ela puxou a varinha de seu colchão e a atirou para ele. — Então
vamos falar sobre ele.

135
— Vou voltar para o Domínio em alguns dias. Enquanto estiver
lá, eu providenciarei uma visita ao Inquisitório para ver como ele está
sendo tratado.
— Por que você não ordena que ele seja liberado? — Ela fez a
pergunta para irritá-lo. Ele não tinha tais poderes, nem mesmo se tivesse
a idade certa. — A minha influência sobre a Inquisidora é severamente
limitada.
— O que você pode fazer então?
— Primeiramente, eu preciso ver se ele ainda está em condições
de ser resgatado... ele pode ou não estar, dependendo do que a
Inquisidora tenha feito com ele.
— O que você define como não sendo resgatável?
— Se a mente dele foi completamente destruída, não correria o
risco de removê-lo fisicamente do inquisitório. Você terá que aceitar que
o perdeu.
— E se ele ainda estiver bem?
— Então precisarei planejar... meu objetivo sempre foi ficar fora
do Inquisitório, não entrar.
— Você pode descubrir o que você precisa facilmente, não pode?
— Eu posso. Mas prefiro não ser identificado ao perguntar sobre
isso.
— Você não tem ninguém em quem possa confiar?
Ele hesitou. — Não sobre você ou qualquer plano envolvendo-a...
todos têm algo a ganhar por nos trair.
— Imagino que uma pessoa enganadora como você poderia
enganar em todos os lugares, — ela disse, sua voz doce. — Também posso
imaginar por que ninguém se arriscaria voluntariamente por você.
As palavras dela perfuraram profundamente, como flechas de um
arco longo inglês.
Parte dele queria gritar que ele desejava nada além de confiança
e solidariedade. Mas não podia negar a verdade de suas palavras. Ele era
uma criatura de mentiras, toda sua vida definida pelo que os outros não
sabiam e não podiam conhecer.

136
Mas as coisas deveriam ser diferentes com ela – com Fairfax. Eles
deveriam ser camaradas, o vínculo deles forjado por perigos
compartilhados e um destino compartilhado. E agora, de todas as
pessoas que o desprezavam, ela o desprezava mais.
— Você vê as dificuldades envolvidas em resgatar seu guardião do
Inquisitório, então, — ele respondeu, odiando o quanto parecia rígido. —
Isto é, se ele ainda for considerado consciente.
— Eu vou decidir se ele ainda tem capacidade mental suficiente
para garantir um resgate.
— E como você fará isso?
— Vou acompanhá-lo ao inquisitório. Você deve ter meios prontos
para me transportar de volta ao Domínio... caso contrário, onde você
deixaria Fairfax durante as férias escolares?
— Você entende que poderia andar direto para uma armadilha ao
entrar no Inquisitório tão despreparada?
— Correrei esse risco, — ela disse calmamente.
Ele percebeu em um instante que não estava lidando com uma
garota comum. Claro, com seu potencial, ela nunca foi comum. Mas a
capacidade de manipular os elementos era como um dom atlético, quase.
O grande poder elementar nem sempre coincidia com uma grande
presença de espírito.
Mas essa garota tinha essa forte personalidade, essa dádiva.
Nessa altura, uma menina – ou um menino, de fato – menos resistente
do que ela, teria sido destruída pela calamidade, ou extremamente
irritada, ela decidiu enfrentá-lo e se encarregar de toda a situação
possível.
Ela teria sido uma aliada formidável – e um inimigo igualmente
formidável.
— Tudo bem, — ele disse. — Nós iremos juntos.
— Bom, — ela disse. — Agora, o que você queria me contar sobre
o meu treinamento?
— Que devemos começar logo, amanhã de manhã para ser exato...
e que você deve esperar que seja difícil.

137
— Por que tão cedo e por que tão árduo?
— Porque não temos tempo. Um mago elementar tem o controle
de tantos elementos na idade adulta e começa no final da adolescência.
Você ainda está crescendo?
— Como posso saber com certeza?
— Precisamente. Não temos tempo. Como hoje foi um dia difícil,
espero você às seis horas da manhã. Depois de amanhã, espero às cinco
e meia. E então, cinco para o resto da semana.
Ela não disse nada.
— Será uma vantagem você levantar tão cedo. Você não quer usar
o lavatório quando todos estiverem lá.
Seus lábios se comprimiram; ela novamente não disse nada. Mas
o fogo em sua mão se fundiu em uma bola sólida e, em seguida, uma bola
cheia de farpas. Sem dúvida, ela desejava empurrá-la pela garganta dele.
— Quanto ao banho, você pode querer ficar longe dos banhos
comunais. Direi a Benton que você quer água quente em seu quarto.
— Quão gentil você é, — ela murmurou sarcasticamente.
— Minha generosidade não conhece limites. Eu também trouxe
algo para comer. — Ele deixou cair um pacote em papel na mesa. Ela não
comeu muito no chá nem no jantar, e ele não sabia se teria sido muito
diferente na hospedaria. — Bolinho de boa noite... coma e não terá
problema para dormir.
O bolo era para a insônia dele. Seria uma longa noite para ele.
— Certo, — ela disse. — Para que eu não tenha dificuldade em
acordar para o treino.
De repente, ela se empurrou, seus ombros avançando como se
tivesse sido perfurada no estômago. Seus dedos segurando os punhos. A
bola de fogo se transformou em um azul da chama pura.
— Pensando em como você relaxará durante seu treinamento?
O juramento exigia que ela fizesse o máximo.
Ela fez uma careta e se endireitou, sem dizer nada.
Ele não podia se dar ao luxo de fazê-la gostar disso. Muito melhor
que ela o acertasse periodicamente.

138
Um pensamento lhe ocorreu. — Eu sei que você quer me punir,
então aqui está sua permissão. Faça o seu pior.
— Eu só me punirei.
— Não quando você tem o meu consentimento. Pense em queimar-
me em cinzas a cada minuto do dia, se isso a interessa. E desde que não
me mate de verdade, você pode pensar e fazer o que quiser a sua maneira.
Ela bufou. — Qual é a artimanha?
— A artimanha é que eu tenho permissão para me defender. Você
quer me ferir? Você deve ser boa.
Ela olhou para ele pela primeira vez, seus olhos acesos com
especulações.
— Vá em frente, experimente.
Ela hesitou um segundo, então seu dedo indicador se moveu em
um círculo. A bola de fogo se transformou em um pássaro apontado,
disparou alto no ar e inclinou-se sobre ele.
— Fiat ventus40.
As asas do passáro bateram valentemente, mas não conseguiram
avançar contra a corrente de ar gerada pelo seu feitiço.
Ela puxou o dedo e o pássaro de fogo quadruplicou em tamanho:
ela pegou todo o fogo da lareira.
— Ignis remittatur41.
Seu feitiço enviou o fogo de volta para a lareira.
Os olhos dela se estreitaram. — E o que você faria agora, chamar
seu velho escudo antigo?
Toda a sala ficou de repente em chamas.
— Ignis suffocetur42. — O fogo saiu, sufocado sob o peso do feitiço.
Ele sacudiu uma porção inexistente de cinza de sua manga.
— Há mais o que fazer do que agarrar uma varinha, Fairfax.

***

40 Faça ventar.
41 Fogo dispensado.
42 Fogo abafado.

139
Ela o subestimou. Ele era astuto e implacável. Mas ela não
conseguiu perceber que ele também era um mago de grande habilidade.
O fogo de um mago elementar não era fácil de desviar com magia sutil e,
no entanto, ele fez isso sem esforço – sem a ajuda de uma varinha.
Você parece ter se preparado muito para isso. Ela não tinha ideia
do quanto. Ele não era um garoto normal de dezesseis anos, mas um
semi-demônio em um uniforme escolar.
— Você ainda não é páreo para mim, Fairfax. Mas será, algum dia.
E quanto mais diligentemente você treinar, mais cedo pode me penalizar
à vontade. Pense nisso: o olhar temeroso em meus olhos quando eu
implorar por piedade.
Ela estava sendo manobrada com muita habilidade. Ele queria
que ela focasse em seu objetivo, mantendo sua derrota como uma
cenoura diante dela. Mas não era o que ela queria. Ela queria apenas...
Ela se afastou bruscamente de qualquer pensamento de
liberdade.
— Por favor, vá embora, — ela disse.
Ele tirou a varinha. — Ignis43.
Uma pequena bola de fogo ardeu. Ele acenou para ela. — Seu fogo,
Fairfax. Eu a verei de manhã.

43 Fogo.

140
Capítulo 10
O lavatório não era, felizmente, um lugar tão desagradável quanto
o príncipe levara Iolanthe a acreditar. Ainda assim, um olhar para a longa
privada e ela resolveu visitá-la o mais raramente possível.
O corredor, como o resto da casa, tinha paredes revestidas de hera
e rosas. Os lavatórios e as casas de banho ocupavam o extremo norte.
Diretamente oposto ao final da escada havia uma grande sala comum. Ao
sul da sala comum, estavam os quartos individuais para os dezesseis
meninos veteranos – quinze meninos veteranos e Iolanthe.
Ela e o príncipe ocupavam dois quartos adjacentes no extremo sul
do andar. Em frente aos seus quartos havia uma sala comum menor
reservada para o capitão da casa e seus tenentes. E ao norte do quarto
do príncipe ficava a cozinha, onde os calouros faziam o chá da tarde para
os veteranos. Como resultado, ela e o príncipe estavam isolados do resto
do andar.
Como ele pretendia, sem dúvida.
Uma porção de luz brilhava debaixo da porta dele. As memórias
vieram espontaneamente: ela mesma no escuro, olhando na janela de seu
quarto, desejando a luz. Por ele.

141
Ela voltou a entrar no quarto, fechou a porta e se vestiu. Na noite
anterior, ela se despiu com cuidado excruciante, desabotoando os botões
da camisa, estudando o encaixe do colarinho e certificando-se de que
poderia replicar o mesmo nó com a gravata. Ela não se deitou até
conseguir repetir serpens caudam mordens sete vezes consecutivas.
Nenhum problema com isso esta manhã: o feitiço serpens ajustou
a faixa e apertou até os limites de sua resistência. O resto da roupa foi
fácil. A gravata se recusou a ficar tão perfeita quanto antes, mas foi
aceitável.
Quando terminou, ela verificou sua aparência no espelho.
Ela sempre pensou que se alguém olhasse com cuidado, era
possível detectar o cinismo embaixo de sua animação. Agora não havia
necessidade de olhar atentamente. Desconfiança e raiva queimavam nos
olhos dela.
Ela não era a mesma garota que foi há vinte e quatro horas. E
nunca mais seria.

***

O príncipe estava ajoelhado diante da grelha, já vestido. À sua


entrada, ele tirou uma chaleira do fogo.
— Você dormiu bem?
Ela encolheu os ombros.
Ele olhou para ela, então inclinou-se para derramar água em um
bule de chá. Por um momento, ele pareceu estranhamente normal –
jovem e com a cara de quem acabou de acordar – e isso a deixou
claramente infeliz.
Ela afastou o olhar. Ao contrário de seu quarto, que foi
cuidadosamente decorado para transmitir a educação colonial de Archer
Fairfax, o dele era simples, exceto por uma bandeira na parede, que
apresentava um brasão de armas com um dragão, uma fênix, um grifo e
um unicórnio que ocupavam os quadrantes.

142
— Essa é a bandeira de Saxe-Limburg. — Ele apontou para um
mapa na parede oposta. — Você vai encontrá-lo como parte da Prússia.
Uma faixa dourada, em relevo com os mesmos desenhos
heráldicos que o brasão, marcava um pequeno pedaço de terra. Ela
passou pelo mapa e caminhou até a janela, levantou a cortina uma fração
de polegada e olhou acima.
Os carros blindados desapareceram.
— Eles saíram às duas e quinze, — ele disse. — E provavelmente
não voltarão... uma ordem de Atlantis substitui uma ordem da
Inquisidora.
Ela se ressentiu por ele ter lido seus pensamentos.
— Me dê isso, por favor? — Ele apontou para uma pequena e
simples caixa na mesa.
Ela entregou a caixa para ele. Ela pensou que ele iria abrir a caixa,
mas em vez disso, ele a colocou em um armário que continha pratos,
canecas e gêneros alimentícios antes de lhe entregar uma xícara de chá.
O chá estava quente e perfumado. Como ele aprendeu a fazer uma
xícara perfeita? Quando era um calouro, ele também carregou bagagens,
acendeu lareiras e cozinhou para os veteranos?
Ela se recusou a fazer perguntas pessoais. Eles beberam o chá em
silêncio. Ele terminou primeiro e a inspecionou enquanto ela fingia não
perceber.
— Bom, — ele disse. — Exceto pelos punhos da camisa.
Ele mostrou como estavam os punhos nas próprias mangas.
Coisas incômodas: ela pensou que faziam parte da camisa do dia
anterior.
Quando olhou para cima de seus punhos, ele ainda a estudava.
— O que foi?
— Nada.
— Você sempre deve me dizer a verdade.
— A verdade em relação à nossa missão. Não sou obrigado a
informá-la de todos os meus pensamentos apenas porque você
perguntou.

143
— Hipócrita, — ela disse.
— O que posso dizer? O Príncipe Encantado só existe em contos
de fadas. E falando de contos de fadas...
De uma estante ao lado da janela, ele levantou um pequeno busto
de pedra, tirou o volume abaixo, e colocou-o em sua mesa. O livro parecia
muito antigo. A encardenação de couro, uma vez sendo de um escarlate
brilhante, havia desbotado para um marrom avermelhado. O dourado em
relevo no título borrou quase inteiramente, mas ela conseguiu distinguir
as palavras, Um Livro de Contos Educativos.
— Este é o Crucible, — ele disse.
— O que é um Crucible?
— Eu vou te mostrar. Sente-se.
Ela sentou. Ele sentou no outro lado da mesa e colocou a mão no
livro.
— Agora coloque a mão no livro.
Ela seguiu a instrução dele, meio relutante, meio curiosa.
Ele ficou em silêncio por mais de um minuto – a senha deveria ser
bem longa. Então ele tocou o livro com a varinha. De repente, sua mão
ficou adormecida até o cotovelo. Algo a puxou para frente. Ela abriu a
boca para gritar quando a mesa ergueu para encontrar sua testa com
uma velocidade alarmante.
Ela pousou de joelhos na grama alta. O príncipe ofereceu-lhe a
mão, mas ela o ignorou e se levantou. Ao seu redor havia um enorme
prado banhado pela luz do início da manhã. Numa extremidade do prado,
o início das colinas cobertas por uma floresta densa. Do outro lado, a
vários quilômetros de distância, um castelo em cima de uma montanha,
suas paredes brancas tingidas de rosa e dourado pelo nascer do sol.
— Então é um portal, o Crucible.
— Não é assim que é usado. Tudo o que você vê é uma ilusão44.

44 Vale a pena lembrar que os avanços na Magia nem sempre seguem uma progressão
linear: Alguns sim, mas os recentes desenvolvimentos são comumente considerados
como redescobertas modernas de que veio antes. O centro médico dos governantes da
Mesopotâmia, por exemplo, formulou cursos inteiros sobre profilaxia de feitiços. Os
feitiços eventualmente foram perdendo para a guerra, fogo e outros estragos da Sorte,

144
— O que você quer dizer com ilusão?
Não poderia ser. Ela passou a mão na grama alta. Flores pequenas
e brancas de cinco pétalas agitavam na brisa da manhã. As folhas da
grama eram ásperas contra sua pele. E quando ela quebrou uma folha e
trouxe ao nariz, o cheiro era o perfume fresco e suave da seiva da planta.
— Isso significa que nada disso é real.
Dois pássaros de cauda longa voaram sobre sua cabeça, suas
penas iridescentes. Um rebanho de gado mastigava na borda do prado.
Sua mão estava úmida de orvalho. Ela balançou a cabeça: não podia
aceitar que tudo isso fosse uma ilusão.
— Se você andar quinze quilômetros em qualquer direção, você
achará que pode ir mais longe – como se este mundo fosse apenas um
terrário sob uma gigante redoma de vidro. Como não temos tempo para
andar quinze quilômetros...
Ele a conduziu a cem metros ao norte e apontou para o horizonte
oriental.
— Aquele é o castelo da Bela Adormecida, você lutará com dragões
lá algum dia. Você vê o segundo sol?
O castelo obscurecia a maior parte do segundo sol, mas uma
borda era visível, um círculo pálido no céu, do mesmo tamanho e elevação
que o sol, mas dois graus mais ao sul – sem dúvida, colocado lá para
lembrá-la que o Crucible não era real, afinal.
— Pense nisso. Os sonhos não são reais; mas quando você está
dentro de um sonho, é real para você. O Crucible opera da mesma
maneira. Exceto que ao contrário dos sonhos, segue os princípios físicos

mas sobreviveram os registros que atestam milagrosamente a sua eficácia. Para


considerar um exemplo mais atual, historiadores magos têm argumentado por anos que
o livro de aventuras, talvez a aplicação mágica mais bem sucedida em uma geração, não
é senão uma adaptação comercial dos dispositivos que foram empregados durante
séculos pela Casa de Elberon para instruir e treinar seu jovem herdeiro, especialmente
em tempos de adversidade. Documentos recém-revelados sobre a última grande rebelião
parecem indicar que o Príncipe Titus VII, de fato, tinha a seu dispor equipamentos que
realizavam muitas das funções dos atuais livros de aventura, mas melhor.
– De Tudo velho é novo outra vez, o Observador Delamer, 02 de dezembro de 1151, Ano
do Domínio.

145
e mágicos do mundo real. O que funciona lá fora, funciona aqui, e vice-
versa.
Ela tocou seu rosto. Sua pele não era diferente do que no mundo
real.
— Onde está meu corpo então?
— Nossos corpos estão no meu quarto, provavelmente parecendo
como se estivéssemos tirando uma soneca, nossas cabeças apoiadas na
mesa.
Essa era uma mágica extraordinária. — Como você conseguiu este
livro?
— É uma relíquia da fámilia.
Ele se virou para o castelo, apontou sua própria varinha para ele,
e então jogou uma varinha para ela. — Está pronta.
— O que você acabou de fazer?
— Nada.
— Você apontou sua varinha para o castelo.
— Oh, isso. Lancei um feitiço para quebrar uma janela.
— Por quê?
— Hábito. Eu costumava ter problemas para entrar no castelo por
causa dos dragões. Então eu quebrava as janelas para irritá-los.
— Mas esse castelo fica a cinco quilômetros de distância. Como
você pode quebrar uma janela a essa distância?
— Magia de lançamento à distância. Use um feitiço ver à
distãncia, se você não acredita em mim.
Ela usou. Com o feitiço ver à distância, o castelo estava quase
perto o suficiente para tocar – e todas as janelas estavam perfeitamente
intactas. Ela estava prestes a apontar seu blefe quando uma janela
explodiu, espalhando fragmentos de vidro. Um rugido baixo ressoou,
seguido por uma enorme nuvem de fogo que veio de algum lugar perto do
portão do castelo. Ela franziu o cenho.
— Você está treinando para ser um assassino? Quem usa esses
feitiços?

146
— Minha mãe teve uma visão na qual ela me viu praticando. Então
eu os aprendi.
— Você deveria ter sua psique examinada. A maioria dos garotos
de dezesseis anos não seguem as direções da mamãe tão servilmente.
— A maioria das mães não são videntes, — ele respondeu
simplesmente. — Agora, você está pronta?
— Para fazer o quê? — Ela não gostou do olhar no rosto dele.
— Você gosta de flores? Decapitentur flores. Eleventur.
Milhares de flores brancas flutuaram no ar, incrivelmente bonitas
na luz líquida.
— Seu treinamento começa. En garde. — O príncipe ergueu a
varinha. — Ventus.
Uma tempestade de flores a atingiu com a força de seixos sendo
jogados.
— Desvie-as, — o príncipe disse.
Ela acenou com a varinha na mão e imaginou que separava a
maré de flores. Tudo o que conseguiu foi dar um grande golpe. Irritada,
ela enviou uma pluma de fogo. Imediatamente, algo acertou a parte
superior do seu braço.
— O que...
— Apenas esterco de vaca. Agora concentre-se. Eu não deveria ter
que lembrar que este exercício é apenas para o ar.
Apenas esterco de vaca?
E o que ele sabia sobre magia elementar? Os magos elementares
não faziam exercícios. Eles tinham afinidade por um elemento particular
ou não. Ela sabia desde o primeiro momento de consciência que poderia
manipular o fogo, a água e a terra. E fez isso, se não sem esforço – a Terra
sempre exigia algum esforço – então, pelo menos, facilmente.
Ela se abaixou quando um grupo particularmente grande de flores
se aproximou dela. — Você vai machucar meus olhos.
— Não me deixe fazer isso.

147
Ela enviou um enorme spray de água, apenas para que tudo fosse
jogado de volta para ela, seguido de um punhado de esterco que a atingiu
solidamente no peito.
Ela lançou sua varinha para ele.
Ele se afastou. — Você tem um bom braço. Talvez Wintervale
consiga seu desejo, afinal de contas.
Ela enxugou o rosto molhado com a mão. — O que importa para
você?
— Nada.
Sua varinha voltou para ela. As flores continuaram a bater nela.
E elas machucavam onde atingiam. Ela se esforçou para devolvê-las a ele
e marcar seu rosto presunçoso. Mas nada aconteceu.
Seus lábios se moveram. As folhas de grama, um monte delas, se
elevaram. Seus lábios se moveram de novo. As folhas de grama viraram
no ar, a fim de apontar suas pontas afiadas para ela.
A cor foi drenada de seu rosto. As flores apenas doíam. As folhas
de grama, com suas bordas afiadas, a machucariam.
Elas avançaram para ela. Instintivamente, ela jogou uma parede
de fogo para queimá-las em cinzas. Ele apagou o fogo. Ela convocou fogo
novamente. Ele fez uma prisão com isso.
Ela ordenou que se levantasse uma parede de terra. Ele destruiu
a parede antes de atingir trinta centímetros de altura.
— Não se trata de me frustrar, — ele disse.
— Então não tente me machucar.
— Se não se sentir forte para fazer isso, você não será capaz de
desbloquear o que quer que seja que torna impossível controlar o ar.
— Talvez eu não queira desbloqueá-lo. Não é para você, seu rato.
A dor da faca vicerante do juramento de sangue voltou com uma
vingança. Ela balançou com a intensidade disso. Mas não se humilhou
diante dele, colapsando no chão. Não poderia. Ela ficaria de pé,
desafiadora.
A grama arranhou seu rosto quando ela caiu.
Ela queimou com a força de sua raiva.

148
Sua mão, por vontade própria, se levantou. Sua varinha apontou
para o céu; sua mente emitiu o comando.

***

Antes que Titus entendesse bem o que ela pretendia, ele já havia
erguido sua varinha acima da cabeça. — Praesidium maximum45!
Ele testou este escudo contra o fogo, mas nunca com um
relâmpago.
O som do relâmpago golpeando seu escudo foi como aquele de
vidro quebrando. A força dele era esmagadora. Ele mal conseguiu manter
o braço erguido, quase não tinha força o suficiente para sustentar o
escudo, que se espalhou pouco a pouco abaixo do relâmpago investido
que ofuscava sua visão.
Ele grunhiu com a tensão de manter sua varinha no alto. Os
músculos de seus ombros e braços doíam. Ele queria fechar os olhos
contra a luz insuportável.
Como os relâmpagos, que vieram do nada, continuam caindo?
Quanto mais o seu escudo suportaria? Ele sentiu em seu âmago, a
obliteração do escudo, a fissura e o estilhaçar, o ar voltando a ser apenas
ar e sem nenhuma proteção.
O escudo se desintegrou completamente. O coração dele subiu em
sua garganta. Mas o relâmpago também se apagou. O ar crepitava com a
eletricidade remanescente.
Ele havia sobrevivido a um ataque de relâmpago.

***

— Você precisará fazer melhor, — ele disse, e esperava que sua


voz não parecesse tão vacilante quanto o resto se sentia. — Quando fui
ao Bastião Negro, o relâmpago de Helgira me matou completamente.

45 Proteção máxima.

149
Ela se levantou lentamente. — Helgira já morreu há milhares de
anos, isso se ela já viveu.
— O conto dela é um dos campos de treinamento no Crucible –
um dos mais avançados.
Seus lábios se apertaram. — Você pode morrer no Crucible?
— Claro.
— Sem consequências para seu corpo real?
— Não é agradável. Se você morre no Crucible, isso lhe dará uma
profunda aversão para voltar na cena da sua morte.
— Você está no Crucible agora.
— É verdade, mas não tenho planos de visitar ao Bastião Negro
novamente. Algum dia, porém, eu poderia enviar você para lá a fim de
uma batalha real contra Helgira.
Ela encolheu os ombros. — Só porque você a teme, não significa
que eu temerei.
Titus não dormiu muito na noite anterior, esperando que os
carros blindados partissem. Enquanto olhava para suas bases metálicas
mal visíveis, ele examinou os acontecimentos do dia repetidamente,
sabendo que suas ações atravessaram uma linha – e sabendo que ele
teria feito exatamente o mesmo se fosse preciso.
Em algum ponto, ele havia parado de se defender. Ela estava
certa: ele era um vilão que não conseguiria alcançar seus fins. E olhando
para ela agora; encharcada, manchada de sujeira, mas inabalável, ele
percebeu que ainda precisava continuar.
Se alguém pudesse encontrar uma maneira de quebrar um
juramento de sangue, seria ela. Ele deveria encontrar outra forma de
segurá-la.
Ou melhor, encontrar um jeito dela não desejar ir embora, mesmo
que pudesse.
Mas não conseguiu pensar em nada... ainda.
— Isso é o suficiente por hoje, — ele disse, guardando a varinha.
— Hora da escola.

150
***

Era uma manhã ensolarada. Alunos uniformizados abandonavam


as casas residenciais em um fluxo constante. Ao longo do caminho, os
calouros se aglomeraram ao redor de várias lojas na calçada – lojas no
muro como o príncipe os chamou – comprando cafés e pães recém-
assados.
Ele a levou para um lugar maior, não exatamente um restaurante
comum, mas um estabelecimento com duas salas de jantar interligadas,
atendendo exclusivamente a veteranos. Ela comeu um bolinho
amanteigado e observou: nunca doía saber quem era popular, quem
tinha informações para compartilhar e a quem evitar.
Mas, mesmo enquanto avaliava seus novos colegas, ela se sentiu
sendo igualmente avaliada. Isso não era novo. Desde a primeira vez que
se conheceram, o príncipe a observou intensamente – afinal, ele
acreditava que ela era um meio para alcançar seus objetivos. Mas, desde
a saída do Crucible, seu olhar parecia mais... pessoal.
— O que você quer agora, Sua Alteza?
Ele ergueu uma sobrancelha. — Eu já tenho você. Devo querer
mais alguma coisa?
Ela afastou o prato vazio. — Você está com um olhar intrigante
nos olhos.
Ele virou a alça de sua própria xícara de café, da qual ele ainda
deveria tomar um gole. — Isso é terrível. Eu nunca deveria ter um olhar
intrigante. Não queremos dar a impressão de que sou capaz – ou
interessado – em estratégias.
— Você está inventando suas respostas, príncipe. Eu quero a
verdade.
Os cantos dos lábios dele se levantaram quase sem perceber. —
Eu estava pensando em como segurar você, meu querido Fairfax, que me
deixaria na primeira oportunidade.
Ela estreitou os olhos. — Desde quando um juramento de sangue
não é suficiente para manter um mago escravizado?

151
— Você está certo, é claro. Não devo duvidar do meu próprio
sucesso.
— Então por que você duvida do seu próprio sucesso?
Ele olhou nos olhos dela. — Somente porque você é infinitamente
precioso para mim, Fairfax, e sua perda seria devastadora.
Ele falava dela como uma ferramenta para ser usada contra Bane.
Ela não sabia por que sentiu uma onda de calor e uma pontada de dor
em seu coração.
Ela levantou. — Eu terminei aqui.

***

A escola era velha, um conjunto de edifícios vermelhos desbotados


em torno de um quadrilátero, onde no centro ficava uma estátua de
bronze de um homem que deveria ter sido alguém importante. Os
paralelepípedos do pátio foram desgastados durante séculos de arrastar
de pés. As janelas pareciam precisar de outra camada de tinta – ou talvez
alguma madeira nova.
— Eu esperava algo mais elegante, — Iolanthe disse.
Ela frequentou escolas maiores e mais bonitas.
— Eton tem uma tendência a fazer isso. Eles costumavam colocar
setenta alunos em um armário de vassoura e dar aula com a porta aberta
no inverno.
Ela não conseguiu entender. — Por que essa escola? Por que uma
escola não mágica? Por que não apenas deixá-lo no mosteiro e dar-lhe
tutores incompetentes?
— Bane tem seu próprio vidente. Ou tinha... não recebo
informações sobre o vidente há anos. Mas, aparentemente, ele me viu
estudando em Eton em uma visão.
O primeiro princípio em lidar com as visões era que alguém não
podia alterar um futuro que já foi revelado.
— Destino, então?
— Oh, eu sou o querido do destino.

152
Algo em seu tom a fez olhar bruscamente para ele. Mas antes que
pudesse dizer alguma coisa, vários garotos se aproximaram e apertaram
sua mão.
— Ouvi dizer que você estava de volta, Fairfax.
— Tudo curado, Fairfax?
Ela sorriu e respondeu os cumprimentos, tentando não trair o fato
de que não fazia ideia de quem eram. Os meninos seguiram o caminho.
O príncipe listava seus nomes para ela se lembrar quando ela foi
empurrada por trás.
— O que...
Dois meninos robustos riram um com o outro. — Olhe, é Fairfax,
— disse um deles. — Sua Alteza tem o bumboy46 de volta.
O maxilar de Iolanthe caiu. Sua Alteza, no entanto, não estava
nem um pouco nervoso. — Isso é jeito de se referir ao meu querido amigo,
bonito como ele é? Ou talvez você tenha apenas ciúmes, Trumper, já que
o seu amigo é tão horrível quanto um nabo esmagado.
Então Trumper era o de pescoço grosso e Hogg, aquele com um
rosto amplo, pálido e fino.
— Quem você está chamando de nabo esmagado, prussiano
mimado e efeminado? — Hogg gritou.
— Você é um inglês grande e viril, é claro, — o príncipe disse. Ele
colocou o braço em volta dos ombros de Iolanthe. — Venha, Fairfax,
estamos atrasados.
— Quem são eles? — Ela perguntou quando eles estavam fora de
alcance.
— Dois valentões comuns.
— Eles são os únicos que pensam que compartilhamos esse
relacionamento particular?
— O quê? Você se importa?
— Claro que eu me importo. Preciso viver entre esses meninos. A
última coisa que eu quero é ser conhecida como sua... qualquer coisa.

46 No inglês britânico, esse termo significa, de modo geral, uma pessoa gay.

153
— Ninguém precisa saber, Fairfax, — ele sussurrou. — Pode ser
nosso segredinho.
O jeito como ele olhou, entre ironia e maldade, fez algo revirar
dentro dela. — A pura verdade, se puder.
Ele deixou o braço dele cair. — O consenso geral é que você é meu
amigo porque você é pobre e eu sou rico.
— Bem, nisso eu posso acreditar, porque tenho certeza de que
ninguém quer ser seu amigo de outra forma.
Ele ficou em silêncio. Ela esperava que tivesse ferido seus
sentimentos – assumindo que ele tinha sentimentos em primeiro lugar.
— A amizade é insustentável para as pessoas em nossa posição,
— ele disse, seu tom suave, quase indiferente. — Ou nós sofremos por
isso, ou nossos amigos sofrem por isso. Lembre-se disso, Fairfax, antes
de se tornar o melhor amigo de todos ao redor.

***

A aula inicial, como era chamada a primeira aula do dia, foi


ministrada por um professor chamado Evanston, um homem frágil e de
cabelos brancos que quase desapareceu por debaixo de seu manto preto
de mestre. Como era o início do semestre, Evanston começou uma nova
obra, Tristia, de um poeta romano chamado Ovídio. Para seu alívio, o seu
latim foi mais do que suficiente para o curso.
A aula inicial foi seguida pela capela. Após o serviço religioso, que
ela achou lento e divertido, o príncipe a levou de volta à casa da Sra.
Dawlish, onde, para sua surpresa, um delicioso café da manhã estava
preparado. Os rapazes, muitos dos quais ela viu comprar café da manhã
lá fora, devoraram tudo em um segundo, como se estivessem morrendo
de fome por três dias.
Após o café da manhã, eles voltaram para as aulas – chamadas
divisões – até a refeição do meio-dia de volta à casa da Sra. Dawlish. A
sra. Hancock, que não estava lá no café da manhã, estava presente agora.

154
Novamente, foi quem fez a oração. Desta vez, ela não mencionou o nome
de Fairfax, mas Iolanthe ainda sentia seu olhar afiado.
Ela não sabia o que a fez fazer isso. No final da refeição, quando
os meninos estavam saindo, ela levantou do seu lugar e se aproximou da
Sra. Hancock.
— Meus pais me pediram para lhe dizer, madame, que eu terei
menos problemas neste semestre, — ela disse.
Se a Sra. Hancock ficou surpresa com a manobra de Iolanthe, ela
não demonstrou. Ela apenas riu. — Bem, nesse caso, espero que você
ouça seus pais.
Iolanthe sorriu, embora suas palmas estivessem úmidas. — Eles
também esperam. Bom dia, senhora.
O príncipe aguardou-a na porta. Ela ficou surpresa ao ver sua
expressão de impaciência sombria – era diferente de sua pessoa
controlada e reticente. Ele não falou com ela, enquanto saíam da sala de
jantar.
Mas quando eles estavam do lado de fora da casa da Sra. Dawlish,
ele disse suavemente: — Bem feito.
Ela olhou para ele. — Foi por isso que você parecia querer me
bater com alguma coisa?
— Ela seria muito mais atenta a você se acreditasse que nossa
amizade é genuína. — Seus lábios se inclinaram ligeiramente, um sorriso
hesitante. — Muito melhor que ela me veja como um arrogante e você um
oportunista.
A amizade é insustentável para as pessoas em nossa posição.
Ela nunca quis sentir simpatia por ele. Mas ela sentiu nesse
momento.

***

Titus estava curioso para ver a reação dela às suas divisões da


tarde.

155
Ele tiveram latim novamente, conduzido por um tutor chamado
Frampton, um homem com um nariz pontudo e lábios carnudos.
Esperava que Frampton falasse humildemente, mas ele enunciou com
nada menos que a perfeição enquanto lecionava sobre o banimento de
Ovídio de Roma e leu Tristia.
Fairfax parecia hipnotizado pela voz do mestre-tespiano de
Frampton. Então mordeu o lábio, e percebeu que não escutava apenas a
voz de Frampton, mas também às palavras de Ovídio com anseio.
Ela também era uma Exilada agora.
Eles estavam quase uma hora e meia na divisão antes de ver
Frampton pelo que ele era. Enquanto ele lia, Frampton passou por sua
mesa. Ela olhou para cima e ficou chocada: o design do pino de gravata
de Frampton era um redemoinho estilizado, o infame dragão Atlantis.
Imediatamente, ela inclinou a cabeça e escreveu no caderno, sem olhar
para Frampton novamente até que ele voltou para a frente da sala de
aula.
Após a divisão, ela quase arrastou Titus para trás do quadrilátero,
pegando seu braço com força.
— Por que você não me disse?
— Ele é óbvio. Você teria que ser cego para não ver.
— Há agentes que não usam o emblema?
— O que você acha?
Ela inalou. — Quantos?
— Eu queria saber. Então não precisaria suspeitar de todos.
Ela se afastou dele. — Eu vou voltar sozinha.
— Desfrute do seu passeio.
Ela se virou para ir; então, como se tivesse se lembrado de alguma
coisa, voltou a encará-lo. — O que mais você esconde de mim?
— Com quanto você consegue lidar?
Às vezes, a ignorância realmente era felicidade.
Seus olhos se estreitaram, mas ela saiu sem mais perguntas.

***

156
Iolanthe não voltou diretamente para a Sra. Dawlish, mas
caminhou para o nordeste, ao longo da rua diante do portão da escola. À
esquerda da rua havia um grande campo verde; à direita, uma alta parede
de tijolos, duas vezes maior do que ela.
Vendedores ambulantes alinhavam nessa parede. Uma mulher
velha com um vestido muito remendado tentou vender uma ratazana
para Iolanthe. Um homem bronzeado acenava com uma bandeja de
salsichas fumegantes. Outros vendedores ambulantes vendiam tortas,
pasteis, frutas e tudo mais que poderiam ser consumidos sem pratos ou
talheres. Em torno de cada vendedor ambulante, os garotos pequenos se
agrupavam como formigas em um piquenique, alguns comprando, o
restante salivando.
A normalidade da cena só fazia Iolanthe se sentir mais deslocada.
Para esses meninos, essa era a vida deles. Ela só estava passando,
fingindo.
— Fairfax.
Kashkari. Ela inalou: Kashkari a deixava nervosa. Ele parecia ser
uma pessoa rara, que quando fazia uma pergunta realmente prestava
atenção na resposta.
— Para onde você vai? — Kashkari perguntou enquanto cruzava
a rua e ficava ao lado dela.
— Reconhecendo a disposição das coisas ao redor.
— Não acho que tenha mudado tanto desde que você esteve aqui
no último semestre. Ah, vejo que o velho Joby está de volta com as
bebidas geladas por uma moeda. Quer?
Iolanthe balançou a cabeça. — O clima está um pouco frio para
isso.
Mas ela seguiu Kashkari até um vendedor ambulante de aspecto
magro. Kashkari comprou algumas nozes torradas e estendeu a palma
da mão para ela.
— Olha, é o menino turbante e Bumboy juntos.
Iolanthe se virou. Trumper e Hogg.

157
— Bumboy, o menino turbante é o seu cachorrinho agora? —
Trumper rio em silêncio.
Sua reputação, obviamente, não a precedeu aqui. Poucos alunos
em qualquer reino mago deliberadamente optavam por enfrentar magos
elementais, já que estes por frequentarem a escola há algum tempo,
teriam anos de treinamento, dirigindo sua raiva para respostas físicas e
não mágicas. E também porque um mago elementar quase nunca era
considerado culpado, desde que a escola não tivesse queimado no final
de uma briga.
Kashkari deve ter visto a hostilidade em seu rosto. — Ignore-os.
Eles se sentem mais satisfeitos quando você se aproxima da isca.
— Odeio deixar passar uma luta. — Ela tirou algumas nozes
torradas dele. — Mas depois de você.
As nozes eram doces e crocantes. Eles caminharam. Trumper e
Hogg gritaram insultos e provocações por mais um minuto antes de
desistir.
— Fiquei surpreso por você ter voltado, — Kashkari disse. — O
boato era que você poderia retornar com seus pais para Bechuanaland.
Havia uma série de atlantes no Domínio, especialmente nas
cidades maiores. Mas, tanto quanto ela sabia, todos eles, mesmo os mais
baixos funcionários e guardas, enviavam seus filhos para a escola. Ela
deveria assumir que os britânicos não eram tão diferentes.
— Meus pais podem voltar. Mas eles querem que eu termine
minha educação aqui.
Kashkari assentiu. Então sua resposta foi aceitável. Ela soltou um
suspiro.
— Você sente falta de Bechuanaland?
O que ela aprendeu sobre o reino de Kalahari na escola? Era a
sede de uma grande civilização, sua música, arte e literatura muito
admirada. Seu sistema jurídico foi copiado em muitos reinos magos ao
redor do mundo. E era famoso pela beleza de seus majestosos magos –
este último, obviamente, extraído de algum lugar além das lições de
geografia.

158
Ela colocou um pedaço de noz na boca para ganhar algum tempo.
— Sinto falta do clima quando chove muito aqui. E, claro, a caça ao
grande jogo.
— Os nativos são amigáveis?
Ela começava a transpirar. Ela precisava acreditar que, se seus
pais inexistentes retornassem, a situação não poderia ser tão terrível. —
Não mais hostis do que em outro lugar, suponho.
— Na Índia, a população nem sempre está feliz com a presença
britânica. Na juventude do meu pai, houve um grande motim.
Como ele a levou a uma discussão sobre a situação política do
mundo não-mágico, da qual ela tinha apenas ideias imprecisas? O que
ela sabia era que os reinos magos do subcontinente também se
levantaram contra Atlantis, duas vezes nos últimos quarenta anos.
— Um ocupante sempre deve considerar-se desprezado, — ela
disse. — Há alguma população que fique feliz em ser subjugada?
Kashkari parou no meio da fala. Ela ficou tensa. O que ela havia
dito?
— Você tem visões muito esclarecidas, — ele pensou, —
Especialmente para alguém que cresceu nas colônias.
Incerta se falou demais, ela decidiu ser descarada. — É o que eu
acho.
— Vocês dois! Eu estava procurando por vocês.
Iolanthe olhou para cima, surpresa por encontrar-se a apenas 4,5
metros da porta da frente da Sra. Dawlish.
Wintervale inclinou-se para fora de sua janela aberta. — Troque
de roupas rapidamente. Já avisei os outros rapazes. Hora de jogar cricket.

***

Havia um livro no quarto de Iolanthe que explicava as regras dos


jogos populares. Na noite anterior, ela pesquisou a seção sobre o cricket.
Mas estava tão cansada e distraída que nada havia feito sentido.
— Vamos, — Kashkari disse.

159
Ela estava condenada. Uma coisa era assentir e fingir estar
absorvida quando Wintervale falava no jogo, outra era se passar por um
jogador de cricket experiente. No momento em que pisasse no campo –
era chamado de campo de jogo, não era? – seria óbvio que ela não tinha
ideia do que fazer.
Muito rápido, ela chegou no andar de cima. Wintervale estava no
corredor, vestido com uma camisa de cor clara de material resistente e
calças de cor semelhantes.
— Depressa, — ele disse.
O príncipe não estava à vista. Kashkari já estava tirando seu
casaco e colete. Iolanthe não teve escolha senão também começar a
desabotoar, apesar de manter todas as roupas firmemente até estar atrás
das portas fechadas.
Em seu guarda-roupa, ela encontrou roupas similares às usadas
por Wintervale. Elas se encaixavam bem, assim como um par de sapatos
irlandeses ásperos. Quando o príncipe as alterou? Não importa, ela tinha
preocupações mais urgentes.
Wintervale bateu na porta dela. — O que leva tanto tempo,
Fairfax?
Ela abriu a porta em uma fenda, a mão apertada na maçaneta da
porta. — Minhas calças estão rasgadas. eu preciso repará-las. Vai na
frente.
— Hanson é útil com uma agulha. — Wintervale apontou para um
menino mais baixo atrás dele. — Quer que ele te ajude?
— Na última vez que ele me ajudou, ele usou meu testículo
esquerdo como almofada, — ela disse.
Os meninos no corredor riram e se foram, descendo as escadas
como um rebanho de rinocerontes.
Ela entrou no quarto de Wintervale para ver a direção em que os
meninos foram. Então bateu na porta do príncipe. Ninguém respondeu.
Ela abriu a porta para um quarto vazio.
Onde ele estava quando ela precisava dele?

160
Ela poderia fingir estar com uma repentina dor abdominal, mas,
e se Wintervale, ou alguém em casa – a Sra. Hancock, por exemplo –
insistisse em chamar um médico para ela? A última coisa que ela queria
era um escrutínio sobre seu corpo.
Ela caminhou no quarto do príncipe, preocupada. Se ela não fosse
logo, Wintervale poderia enviar alguém para buscá-la – outro resultado
indesejável.
Se tivesse a oportunidade de espionar o jogo por algum tempo, ela
poderia entender sua essência. Mas, e se o campo de jogo fosse
inteiramente aberto, com nenhum lugar para se esconder?
Não havia solução perfeita. Era melhor voltar ao seu quarto e
estudar as regras do cricket novamente – se pudesse estudar com o
coração martelando – e então tentar se aproximar do campo sem ser
vista.
Mas quando voltou para o corredor, Kashkari saiu do quarto dele.
— Vamos então? — Ele perguntou amigavelmente.
Ela foi pega.

161
Capítulo 11
Titus correu.
Ele odiava imprevistos. O imprevisto deveria acontecer apenas ao
imprevisível. Nao era justo que ele, que passou todas as suas horas de
vigília se preparando ativamente para tudo o que o futuro poderia lançar
para ele, fosse pego assim.
No entanto, desde o momento que Fairfax explodiu em sua vida,
ele passou de um imprevisto para o próximo. Ele deveria ter dito a ela
para caminhar mancando, bem o suficiente para ir à escola, mas não
elegíveis para esportes.
Foi um choque para ele, que no seu primeio semestre do verão em
Eton, tenha ouvido a discussão sobre Fairfax ser um jogador de cricket.
Mas como o consenso popular já estava formado, era tarde demais para
ele intervir e convencer os outros garotos que Fairfax era mais um
remador.
Ele tinha a intenção de lhe dar algumas lições rápidas de cricket,
mas não houve tempo. E maldito seja, Wintervale não devia marcar uma
prática hoje.

162
Seus pulmões doeram, mas se forçou a correr ainda mais rápido.
Ela não tinha ideia do que fazer. Ela iria tropeçar e mostrar sua
ignorância.
Wintervale poderia começar a questionar as coisas. É claro que
não concluiria imediatamente que Fairfax nunca existiu até antes de
ontem, mas era perigoso que alguém perguntasse alguma coisa.
Quando os indivíduos no campo se tornaram distinguíveis, ele viu
Kashkari lançar. Kashkari deu uma corrida curta, ergueu o braço e jogou.
A bola voou rápido, mas Wintervale, no alto, estava pronto para isso. Ele
arremessou bem em direção ao meio exato da distância entre a metade
do campo e o defensor a esquerda.
Foi um sucesso. A bola passou por trás dos defensores e rolou
para fora dos limites, dando ao Wintervale e equipe quatro corridas
automáticas.
Um borrão branco: alguém correndo a uma velocidade tremenda.
Então alguém mergulhou na grama. Quando ficou em pé novamente, ele
ergueu a mão para mostrar que tinha a bola do ar.
Fairfax! E ao pegar a bola antes de ter caído, ela havia retirado
Wintervale, um dos melhores batedores de toda a escola.
Wintervale emitiu um grito jubiloso. — O que eu disse a vocês? O
que eu disse? Tudo o que precisávamos era de Fairfax de volta.
Titus percebeu tardiamente que Wintervale se dirigia a ele. Ele
parou de correr em algum ponto e estava olhando, boquiaberto. Ele se
juntou e gritou: — Um lance de sorte não o faz um prodígio do cricket!
Isso ganhou um olhar desdenhoso de Fairfax. Por algum motivo,
seu coração bateu ainda mais rápido que um minuto atrás, quando ele
temia que todo seu esquema virasse fumaça.
O treino foi retomado. Nem duas jogadas depois – cada uma por
um conjunto de seis bolas rodadas consecutivamente – ela tirou
Sutherland, atacando uma das estacas acima dos tocos enquanto ele
ainda estava
correndo.

163
Wintervale estava fora de si. Ele fez com que Fairfax substituísse
Kashkari como jogador e colocou Kashkari no bastão. No momento em
que a bola saiu da mão de Fairfax, todos no campo sabiam que a equipe
finalmente tinha o jogador do qual eles precisavam desesperadamente:
ela jogava com uma velocidade surpreendente.
Kashkari, sem esperar que a bola fosse arremessada para ele tão
rapidamente, não conseguiu pegá-la. Um jogador de campo bem perto
rapidamente pegou a bola, e Kashkari não conseguiu marcar nenhuma
corrida.
Wintervale gritou instruções para Fairfax. — Mais alto! Mais
baixo! Coloque algum giro aí.
Ela girou a bola com muita decência para alguém com tal ataque
no lance. Kashkari limpou a sobrancelha enquanto ela se preparava para
jogar novamente.
— Tire-o, Fairfax, — Titus se ouviu gritando, entusiasmado além
do que pensou ser possível pelo cricket. — Coloque-o para fora!
Ela fez, derrubando uma das estacas acima dos tocos do wicket47.
A equipe rugiu com aprovação. Titus sacudiu a cabeça com espanto. Ela
era talentosa: rápida, forte e maravilhosamente coordenada.
Claro que era. Como ele poderia ter esquecido que os magos
elementais eram quase invariavelmente ótimos atletas?
Ela se virou para encarar Titus, levantou a mão direita e, com o
dedo indicador e o dedo médio apertado juntos, passou a mão diante de
seu rosto.
Foi um gesto vangloriando-se. Mas havia gestos e gestos de
ostentação. Ela teria acabado de dizer a ele para ir se foder.
Ele riu, então sua risada congelou. Wintervale viu o gesto por
acaso? Esse gesto não era usado no mundo não mágico, pelo menos não
neste país.
Não, Wintervale estava atrás dela, graças a Deus. Ela se virou
para apertar as mãos com Kashkari, a cortesia dos desportistas.

47 Área de grama nas extremidades do campo.

164
O treino foi retomado. Ela continuou se destacando, tanto que
quando as equipes trocaram de lado e ela assumiu sua vez no bastão, ela
podia rir do seu erro, de outra forma grave, por pegar o bastão do lado
errado – o lado com o ligeiro V no contorno em vez do plano – como
resultado de muita animação.
Continuaram até o relógio da escola soar na capela da noite. Nesse
ponto, cada garoto pegou seu equipamento e correu por 10 minutos.
Foi uma corrida festiva, os meninos se acostumaram com os erros
cometidos durante o treino. Fairfax sabiamente se absteve – exceto por
rir quando esperado.
Eles estavam à vista da casa da Sra. Dawlish quando Wintervale
exclamou de repente: — Que diabos!
Titus já os tinha visto. Fairfax olhou para cima. Pelo estreitar de
sua expressão, ele sabia que havia visto a formação de carros blindados.
Agora eles estavam quase invisíveis, desaparecendo no céu escurecendo.
— O que é? — Vários garotos perguntaram.
Wintervale balançou a cabeça. — Deixa pra lá. Apenas as nuvens.
Meus olhos estavam jogando um truque.
— O que você acha que viu? — Kashkari persistiu.
— Sua irmã beijando o chai-wallah48, — Wintervale disse.
Kashkari empurrou Wintervale no braço. Os outros meninos
riram, e isso foi o fim disso.
Com exceção de Fairfax. Ela estava exausta e exultante; agora
parecia apenas exausta.
***

Você se acostumará a isso, o príncipe lhe disse.


Ela ainda não se acostumou. A sensação de vulnerabilidade era
um punho de ferro na garganta.

48 Preparador de chá

165
— Você está bem? — O príncipe perguntou. Eles voltaram para a
Sra. Dawlish antes do toque de recolher. Ele entrou em seu quarto com
ela.
Ela encolheu os ombros. Pelo menos ela não precisava fingir com
ele – os meninos não se dispersaram imediatamente ao chegarem à casa,
forçando-a a manter sua fachada alegre por mais quinze minutos.
— Eu menti, — ele disse suavemente. — A verdade é que você
nunca se acostumará a isso. O gosto do medo sempre sufoca.
Ela franziu os lábios. — Não é isso que eu preciso ouvir agora.
Você deveria ter mantido a mentira.
— Acredite, eu gostaria. Nada parece mais inquietante do que a
verdade que rola da minha língua. — Ele pegou uma chaleira na grelha,
abriu seu armário, levantou uma caixa de lata e pressionou um pedaço
de bolo na mão dela. — Eu o recebi hoje. Coma, você terá menos medo
com um estômago cheio.
Ela deu uma mordida no bolo. Ela não sabia se isso a deixava com
menos medo, mas ao menos estava úmido e amanteigado, tudo o que um
bolo deveria ser.
— Como você aprendeu a jogar cricket tão rapidamente? — Ele
perguntou.
Ela sugeriu a Kashkari que eles corressem para alcançar os
outros garotos. Então fingiu, quando chegaram ao campo, sofrer de uma
cãibra muscular. Isso comprou seu tempo para sentar-se à margem.
Observando os outros meninos, sua leitura apressada sobre o cricket na
noite anterior começou a fazer sentido. A terminologia do cricket a
confundiu, mas o jogo era jogado com um bastão e bola, e ela estava
familiarizada com aqueles.
Ela descansou o quadril contra a borda da mesa e encolheu de
ombros novamente. — Não é tão difícil.
Ele desceu a cama e sentou, as costas contra a parede, as mãos
atrás da cabeça. — Sorte nossa. Wintervale estava convencido de que
você era um jogador excepcional. Esse foi o problema com meu truque: a

166
mente encontra maneiras de preencher um espaço em branco... e Archer
Fairfax era um espaço em branco perfeito.
Ela quase não ouviu o que ele dizia. O modo como ele estava
sentado, todo ombros fortes e os membros longos... estavam...
distraindo-a. — É por isso que Kashkari acha que vou voltar para
Bechuanaland com meus pais?
— Esse é o equívoco menos alarmante. Você ficará surpresa com
o que as pessoas pensaram de você. No ano passado, houve um rumor
de que você não tinha ferido sua perna, mas sido expulso por engravidar
uma empregada.
— O quê?
— Eu sei, — o príncipe disse com uma careta. — Fiquei
impressionado com a extensão da sua virilidade.
Então ele sorriu, superado pelo humor da situação. Uma
expressão travessa surgiu no seu rosto e ele era um garoto lindo, curtindo
uma piada.
Poucos segundos depois ela percebeu que, impressionada com a
transformação, ela parou de mastigar. Ela engoliu com dificuldade. —
Kashkari me fez um grande número de perguntas.
Isso o deixou sóbrio. O sorriso, como um breve vislumbre do sol
na estação chuvosa, desapareceu. — Que tipos de perguntas?
Ela estava quase aliviada por não ver mais o sorriso dele. — Ele
queria saber o que eu pensava da relação entre o Império Britânico e
terras sob sua influência no exterior.
— Ah. — Ele relaxou visivelmente. — Kashkari gostaria de
conhecer suas opiniões.
— Por quê?
A chaleira apitou. Ele levantou, tirou-a do gancho e derramou
água fervente em um bule de chá. — Kashkari tem ambições. Ele não
declara, mas ele quer libertar a Índia do governo britânico durante a vida.
Wintervale é simpatizante. Eu sou conhecido por ser apolítico, então ele
está seguro sobre esse conhecimento, pelo menos não sou antagonista
com seus objetivos. Mas ele não tem certeza de você.

167
— Ele não teria imaginado Fairfax como alguém mais
simpatizante com suas opiniões, da maneira como Wintervale acredita
que eu o ajudaria a ganhar jogos de cricket?
Ele descartou a água da chaleira aquecida, jogou algumas folhas
de chá, e derramou mais água na parte superior. — Fairfax nasceu e foi
criado no exterior. Há outros meninos assim aqui na escola, e eles são os
mais fervorosos imperialistas de todos. Kashkari não tinha razão para
pensar que você seria diferente.
Ele deixou de lado a chaleira e colocou a tampa no bule para que
o chá estivesse quente. — Então, o que você achou do relacionamento
entre o império e suas colônias?
Ela ainda não conseguiu compreender a visão do Mestre do
Domínio fazendo chá... para ela. — Eu disse que um império não deveria
estar muito surpreso que suas colônias estejam infelizes com o seu
senhor.
— E Kashkari ficou agradavelmente surpreendido por sua atitude,
sem dúvida.
— Ele pensou que meu pensamento era muito incomum.
— É. E não o transmita. A última coisa que queremos é ter você
rotulado de radical.
— O que é isso?
— Alguém cujos pais deveriam explicar melhor por que seu filho
pensa dessa maneira. Imagine um Atlantiano entrando na escola e
dizendo que Atlantis deveria libertar todos os reinos sob seu controle. A
ação aqui provavelmente não seria tão extrema, mas melhor não testá-
la.
Ela assentiu, entendendo.
Ele encheu uma xícara de chá e trouxe para ela. Ela não tinha
certeza se o queria tão perto. — Obrigada, embora você não precise fazer
comida e bebida para mim o tempo todo.
— Você faria o mesmo para a pessoa mais importante em sua vida.
Ela abaixou a xícara de chá com mais força do que precisava. Na
sequência desse som ressonante, o silêncio incômodo se espalhou –

168
desconfortável para ela, pelo menos, – entre o fascínio sombrio das
palavras dele e a aversão de seu próprio bom senso. E ele estava tão perto
que podia cheirar o musgo prateado com o qual suas roupas foram
armazenadas, o cheiro limpo e nítido tornado apenas um pouco picante
pelo calor de seu corpo.
— Preciso voltar para o laboratório, — ele disse, dando um passo
para trás. — Mantenha-se segura na minha ausência.

***

Após ir ao seu laboratório, Titus voltou para a casa da Sra.


Dawlish para jantar, depois foi ao seu próprio quarto para testar a prova
planejada para Fairfax. Ele emergiu do Crucible desorientado e enjoado
ao ouvir uma batida em sua porta.
Wintervale investiu dentro. — O que diabos está acontecendo lá
fora? Por que há carros blindados em toda parte de repente? Há uma
guerra acontecendo sobre a qual eu não ouvi falar?
Titus engoliu um copo de água. — Não.
— Então o quê? Algo está acontecendo.
A família de Wintervale, mesmo no exílio, estava
extraordinariamente conectada. Ele descobriria mais cedo ou mais tarde.
E se Titus mentisse para uma pergunta direta, pareceria que ele estava
escondendo algo.
— Atlantis está procurando um mago elementar que convocou um
relâmpago.
— Você quer dizer, como Helgira?
O nome ainda fazia com que Titus estremecesse. — Você poderia
dizer isso.
— Isso é tolice. Ninguém pode fazer isso. Qual é o próximo? Magos
andando em cometas?
Uma explosão de riso masculino veio do quarto de Fairfax ao lado.
Quem mais se tornou amigo dela?

169
Amigos, ele se corrigiu mentalmente, à medida que mais meninos
se juntaram ao riso arrepiante.
— Sabe o que eu acho? — Wintervale colocou dois dedos abaixo
do queixo. — Eu acho que é apenas uma desculpa para Atlantis se livrar
de alguns exilados que eles não gostam. É melhor eu dizer a minha mãe
para ser extremamente cuidadosa.
— Todos nós podemos ser um pouco mais cuidadosos.
— Você está certo, — Wintervale disse.
Agora, por que Fairfax não podia ser mais como Wintervale,
respeitosa e disposta a aceitar seu conselho?
— Como está Lady Wintervale, por sinal? — Ele perguntou.
— Foi para os balneários. Espero que a acalme. Não a vejo tão
nervosa há muito tempo.
Wintervale saiu logo quando estava quase sem luzes. Mas o quarto
de Fairfax, quando Titus abriu a porta, ainda estava cheio. Ela estava
sentada de pernas cruzadas na cama, Sutherland ao lado dela, Rogers e
Cooper, dois outros meninos do time de cricket da casa, cadeiras puxadas
para perto da cama. Eles estavam jogando cartas.
— Venha e me ajude, príncipe, — ela disse casualmente. — Sou
terrível nas cartas.
— Ele realmente é, — Sutherland disse.
— Bom, eu sou um atleta brilhante e bonito como um deus, — ela
disse com aquela amável petulância que ela encenava tão
surpreendentemente bem.
Os meninos riram e vaiaram. — Cheio de nós mesmos, não
somos? — Rogers perguntou.
— Minha mãe me ensinou que a falsa modéstia é um pecado, —
ela disse, sorrindo.
Titus a advertiu contra fazer amigos. Mas a sensação afiada em
seu coração não era motivada pela preocupação, mas uma facada de
inveja. Mesmo que suas circunstâncias permitissem ter amigos, ele não
os teria tido com tanta força. Havia algo nele que desencorajava o contato,
e muito menos a intimidade.

170
— Está quase sem luzes, — ele disse.
Cooper, sempre intimidado por Titus, descartou imediatamente
suas cartas. — Melhor voltar para o meu quarto então.
Mais relutantemente, Sutherland e Rogers seguiram.
Enquanto Titus fechava a porta, ela embaralhou as cartas. —
Você é muito bom em dispersar uma festa, Sua Alteza. Deve ter levado
seus anos de prática.
— Incorreto... eu nasci com talento. Mas você deve ter levado anos
para aperfeiçoar seu ato.
— Você se refere ao meu encanto inato e esplêndido?
— Seu charme é tão inato quanto minha veracidade.
Ela reuniu o baralho em sua mão direita. As cartas saíram de seus
dedos e pousaram perfeitamente na palma da mão esquerda. — Você
tinha algo para me dizer?
Ele não tinha um propósito em particular. Mas quando a pergunta
surgiu, sua resposta veio prontamente, como se ele estivesse pensando
nisso por um tempo. — Eu tenho lido sobre seu guardião. Ele não
facilitou sua vida.
— A própria vida dele foi impossivelmente difícil por minha causa.
— Relaxe... eu não questiono o caráter dele. Só quero que você
saiba que você cuidou muito bem dele. Você tem um bom coração.
Seu olhar, quando chegou, era tão frio quanto um fluxo de
montanha. — Cuidei dele porque eu o amo... e porque eu nunca poderia
fazer tanto por ele como ele fez por mim, cuidando de mim e me dando
uma casa. Seus elogios não ganharão maior devoção da minha parte. Eu
farei o que o juramento de sangue estipula e nada mais.
Garota inteligente. Ela fez com que ele se sentisse quase
transparente.
— Boa noite, Vossa Alteza.
Ótimo, também, dispensava-o como se ele fosse um súdito dela,
em vez do contrário.

171
Ele desmaterializou os metros que os separavam, beijou-a na
bochecha, e, antes que ela pudesse reagir, desmaterializou de volta ao
seu lugar junto à porta. — Boa noite, Fairfax.

172
Capítulo 12
O príncipe estava manipulando-a, Iolanthe tinha certeza. Mas
com qual objetivo? Ele pensava que dizendo que ela era infinitamente
preciosa para ele, felicitando-a pelo bom coração ou beijando-a na
bochecha a faria abraçar de bom grado o perigo mortal por causa dele?
Nada a faria voluntariamente abraçar o perigo mortal por causa
dele.
Mas ainda assim, ela se revirou por muito tempo antes de
adormecer, a impressão dos lábios frescos queimando em sua bochecha.
Na manhã seguinte, seu treinamento a mergulhou em uma história
chamada Batea e o dilúvio, onde ela teve um treino cansativo segurando
um rio corrente. Mais difícil ainda era uma aula da tarde chamada
Testamento grego. O Mestre Haywood nunca havia entendido seus
problemas com o grego antigo, apontando que não era muito mais
morfológicamente complexo do que o latim. Mas enquanto o latim para
ela não era mais difícil de dominar do que o fogo, o grego sempre parecia
como levantar montanhas.
Quando voltou para a casa da Sra. Dawlish, ela estava pronta
para se deitar por alguns minutos no quarto dela. Mas o príncipe não
terminou com ela.

173
— Venha comigo.
— Nós já treinamos hoje.
— Hoje é um dia mais curto na escola. Nesses dias, você também
terá uma sessão à tarde.
Ela não disse nada enquanto o seguia até o quarto dele.
— Eu sei que você está cansada. — Ele fechou a porta e dirigiu
um feitiço de isolamento. — Mas também sei que você é forte – muito
mais forte do que você, ou talvez até eu, possa compreender.
Ela não se sentia forte, apenas presa.
— Lembre-se sempre, — ele disse enquanto colocava a mão no
Crucible, — Algum dia sua força vai derrubar o mundo tal como o
conhecemos.

***
Eles pousaram em uma parte do Crucible que ela não havia visto
antes: um pomar de maçã, os ramos carregados com flores rosas e
brancas, o ar fresco e doce. Ela cobriu os olhos com a mão e olhou em
direção ao segundo sol, pálido e apenas lá. Ela ficou aborrecida com a
sessão extra e irritada com tudo mais em sua vida, mas não podia deixar
de ficar fascinada com o Crucible. Isso a fez sentir como se estivesse em
um mundo diferente.
— Em que história estamos?
— O Apicultor Ganancioso.
Não é de admirar que o zumbido das abelhas ecoasse nos seus
ouvidos. — O que acontece aqui?
— Você verá.
Ela não gostou da resposta.
Um ao lado do outro, eles caminharam mais profundamente no
pomar. Em um ponto, uma rocha subiu do chão. O príncipe saltou
levemente no topo e estendeu a mão para ela. Ela o ignorou e atravessou
sozinha.

174
— É apenas cortesia da minha parte, Fairfax. Você não precisa se
preocupar de que pegar minha mão te ligará mais indissoluvelmente a
mim.
— Talvez não de forma mágica. Mas com você, Sua Alteza, não
existe nada de simples cortesia. Você estende a mão porque quer algo em
troca. Talvez não hoje, talvez não amanhã, mas algum dia você
considerará que suas gentilezas premeditadas se somarão a algo.
A resposta dele foi um leve sorriso e um olhar admirado.
Calculado, tudo calculado, ela lembrou a si mesma. Mesmo assim, o calor
se acumulava bem dentro dela.
Eles chegaram a uma clareira no pomar. Ela franziu a testa.
— Isso é uma colméia? — A colméia tinha uma forma familiar, a
forma cônica de um cesto, mas tinha três andares de altura e media pelo
menos, um metro e meio em sua base.
— Essa é a casa do apicultor.
Ele abriu a porta e a conduziu para dentro. O interior da casa,
exceto pelo seu formato, parecia típico de uma habitação rústica: pisos
revestidos, móveis não pintados e cortinas amarelas nas pequenas
janelas.
Ele empurrou uma cômoda para o centro da casa, colocou uma
cadeira em cima do baú e escalou na cadeira para colocar algo em uma
viga transversal.
— O que é isso?
— Um pedaço de papel com a senha de saída para o Crucible. Não
responderá a uma convocação, mas obedecerá uma brisa.
Ele saltou, e com o feitiço exstinctio, destruiu todos os móveis. —
O apicultor mantém suas abelhas em ilhas à moda antiga. Para chegar
ao mel, ele mata as abelhas toda vez. As abelhas finalmente tiveram o
suficiente.
— E? — Ela estava começando a ficar nervosa.
— E eu gostaria que tivéssemos nos conhecido em circunstâncias
diferentes. — Ele pressionou a varinha extra em sua mão. — Boa sorte.

175
Ele saiu. Ela encarou a porta por um minuto antes de olhar para
uma viga transversal novamente. Estava a pelo menos 3,6 metros no ar,
alto demais para ela pular. Ele não deixou nada que pudesse dar impulso.
E considerando que não podia desmaterializar no Crucible, ela teria que
fazer isso com honestidade ou não.
Ela suspirou, levantou o rosto para o teto e fechou os olhos para
se concentrar.
Alguma coisa molhada e pegajosa salpicou seu rosto.
— O que... — ela saltou para trás, suas pálpebras bem abertas.
Um líquido dourado e viscoso escorria de todo o lado. Cada
centímetro da parede era agora um favo de mel, cada hexágono que filtra
o mel.
A infiltração transformou-se em garoa. Garoa transformou-se em
derramamento. Mel fluiu pela parede. Grossas gotas caíram do teto
abobado.
O único lugar que não foi assaltado diretamente foi o local exato
onde ele colocou a senha – a casa tinha uma abertura bem no centro do
telhado, que servia como uma chaminé.
Poças se formaram. Ela deu um passo em volta delas para a porta.
Mas a porta havia desaparecido atrás de quinze centímetros de cera dura.
As janelas, agora sem as cortinas, eram igualmente inacessíveis.
Se o mel continuasse inundando a sala, ela ficaria submersa.
Ela o amaldiçoou. Claro que ele pensaria em algo tão nefasto. Ela
amaldiçoou um pouco mais e implorou para o ar cooperar. Por favor. Só
desta vez.
O mel entrou em cascata cada vez mais rápido, subindo até os
tornozelos, depois os joelhos, tão grosso que ela não mexia os pés. O
aroma a dominou, doce demais, enjoativo demais. Ela ficou debaixo da
viga transversal. Mas, ainda assim, mel a alcançou, revestindo os cabelos
em sua cabeça. Ela precisava limpá-lo das sobrancelhas para que não
entrasse nos seus olhos. Até a varinha ficou revestida, pegajosa e
escorregadia.

176
Ela queria aquela senha. Como queria. Mas o ar ignorou suas
tentativas de controlá-lo. Era como gritar com um surdo, ou acenar as
mãos diante do cego.
O mel estava agora em sua cintura. Seu peito doía com pânico.
Talvez devesse sair de debaixo da viga transversal. Ela poderia ver
o pedaço de papel, e talvez isso pudesse ajudar.
Mas, quando tentou fazê-lo, ela perdeu o equilíbrio, fazendo com
que uma grande quantidade de mel caísse sobre ela e se esparramasse
para o lado. Como uma mosca apanhada na seiva da árvore, ela não podia
se endireitar. Ela era sugada para baixo – uma sensação horrível.
Ocorreu-lhe que ela poderia se afogar em mel – e que essa era
precisamente a borda para a qual ele queria empurrá-la. Ela balançou e
se afundou mais no mel. Os dedos dela tocaram no chão.
Ela ofegou, lutou para ficar na vertical, e tirou a varinha do mel.
— Eu vou quebrar a sua mão da varinha, — ela gritou. — E seu crânio
também.
O mel subiu tão alto que estava em seu peito, a pressão forte
contra o esterno. Ela ofegou. Uma gota de mel caiu em sua boca. Ela
pensou que gostava de mel, mas agora seu sabor revirou seu estômago.
Ela cuspiu e tentou se concentrar novamente. Ela nunca
precisava se concentrar para nenhum dos outros elementos: sua relação
com eles eram tão diretas quanto a respiração. A luta com o ar era como
– bem, lutar com o ar – lutar com uma entidade que não podia ser vista,
e muito menos aprisionada.
O mel aumentou cada vez mais. Passou os lábios, rastejando em
seu nariz. Ela tentou empurrar-se para flutuar. Mas não conseguiu
espernear o suficiente para ficar na horizontal. Impulsionar – se o
movimento lento pudesse ser chamado de impulsionar – só a puxou para
dentro do melaço.
Ela não podia mais respirar. Seus pulmões queimavam. O instinto
forçou-a a abrir a boca. O mel entrou. Ela tossiu, a dor bruta de mel
descendo pela sua garganta era indescritível.

177
Apenas sua mão estava acima do mel agora. Ela acenou com a
varinha, lívida e desesperada. Teria conseguido? Ela não conseguiu abrir
os olhos. Seus pulmões implodiram.
No momento seguinte, todo o mel desapareceu e ela estava
cercada pela falta de peso de ar. Ela caiu no chão – o chão do quarto do
príncipe – e ofegante, enchendo seus pulmões com a imensurável doçura
do oxigênio.
De uma maneira geral, ela sabia que nunca, por um momento,
esteve em perigo real. E, portanto, não havia nenhum motivo para ela
tremer e ofegar com o alívio da sobrevivência.
O que só fez detestá-lo mais.
— Você está bem? — Ele perguntou.
Seu braço disparou, enrolando em torno dos tornozelos dele e
puxou. Ele caiu fortemente, batendo o ombro no canto da mesa. Ela
saltou sobre ele e deu um soco no rosto dele. Ele ergueu o braço indefeso.
Seu punho conectou com o antebraço dele, um sólido choque que a
abalou.
Ela balançou o outro punho. Ele a bloqueou novamente. Ela
ergueu o joelho, com a intenção de conduzi-lo em algum lugar debilitante.
A próxima coisa que ela soube é que ele a afastou de sua pessoa.
Ela imediatamente se lançou sobre ele novamente. Ele acabou de se
levantar; ela o derrubou.
— Isso é o suficiente, Fairfax.
— Eu digo quando é o suficiente, seu canalha! — Ela ergueu o
cotovelo em direção aos dentes dele.
Ele desviou de novo.
Ela grunhiu com frustração e lhe deu uma cabeçada. Ele pegou o
rosto nas mãos. Como ambas as mãos dele estavam ocupadas, ela
finalmente acertou um golpe na têmpora dele.
Ele estremeceu e retaliou trazendo sua cabeça para baixo, e
beijando-a.

178
O choque a paralisou. As sensações eram vastas e elétricas, como
se ela tivesse convocado um relâmpago em sua própria cabeça. Ele tinha
um gosto irritado, faminto e...
Ela pulou, batendo em uma cadeira. Ele permaneceu no chão,
seus olhos sobre ela, os olhos tão famintos quanto seu beijo. Ela engoliu
em seco. Apertou o punho, mas não conseguiu bater nele novamente.
Ele se levantou com uma careta. — Eu sei como você se sente. Eu
estava lá na noite passada, com mel sobre minha cabeça.
Ela olhou para ele.
— Por que você parece tão surpresa? Eu disse que eu
experimentaria com você, não em você. Tudo o que eu tento, eu
experimentei primeiro. Claro que fiquei chocada. — A ideia de que alguém
se sujeitaria voluntariamente a tal tortura...
Ele estava na porta de repente, ouvindo.
— O que é?
— Sra. Hancock. Ela está lá fora, conversando com alguém.
Um minuto depois – tempo suficiente para ele fazer algo sobre o
corte em sua têmpora e Iolanthe levantar a cadeira caída e algumas
outras coisas derrubadas pela briga – uma batida veio da porta. O
príncipe, com uma inclinação de cabeça, gesticulou para Iolanthe abrir a
porta.
— Por que eu?
— Porque essa é a natureza da nossa amizade.
Ela torceu a boca e foi.
A Sra. Hancock estava na porta, sorrindo. — Ah, Fairfax, eu
preciso falar com você também. Tenho uma carta para você de seus pais.
Levou a Iolanthe um segundo completo para entender o que a Sra.
Hancock estava dizendo. Os pais inexistentes de Fairfax enviaram uma
carta.
Com dedos ligeiramente entorpecidos, ela aceitou o envelope. O
papel dentro era levemente cor de lavanda e cheirava a essência de rosas.
As palavras foram escritas em uma letra bonita.

179
Meu querido Archer,
Desde que você saiu para a escola, Sissy não se sentiu bem.
Ela deve ter se acostumado com sua presença em casa durante sua
convalescença. Você será tão gentil em voltar para casa neste
sábado após a aula? Sissy ficará encantada por te ver. E estou certa
de que isso fará com que ela se sinta bem novamente por um tempo.
Amor,
Mamãe

— Meus pais querem que eu vá para casa no sábado, — Iolanthe


disse a ninguém em particular. Para onde eu deveria ir? E quem estava
por trás desta carta?
— Sim, eles também enviaram uma carta à Sra. Dawlish para
garantir, — a Sra. Hancock respondeu. — Você pode tirar uma licença
curta, se desejar.
— Chatice, — Iolanthe disse. — Sissy estava perfeitamente bem
quando eu saí. Aposto que ela está fingindo.
Isso parecia ser algo que um garoto de dezesseis anos que ficou
preso por três meses com sua irmãzinha poderia dizer.
— Então fique aqui, — o príncipe disse. — Além disso, você deveria
me ajudar com o meu artigo crítico no sábado.
Ele parecia extremamente irritado.
— Receio que você não tenha tempo para o artigo crítico, Sua
Alteza, — a Sra. Hancock disse. — A embaixada pediu licença para você
também. Há uma função que gostariam que você assistisse.
— Por Deus, por que eles insistem nesta charada? Não governo
nada, não é esse castigo suficiente? Por que devo comparecer às suas
funções e ser exibido por aí?
— Vamos, príncipe, quão terrível deve ser? — Iolanthe disse,
interpretando o papel do amigo afável. — Haverá champanhe e damas.
O príncipe lançou-se em sua cama e se ajeitou. — Isso mostra o
quanto você sabe, Fairfax.

180
Ela sabia que ele estava atuando, mas ainda assim ela atirou um
olhar furioso para ele. Os olhos afiados da Sra. Hancock observaram tudo
– sem dúvida, exatamente como o príncipe pretendia.
Ele abriu um sorriso para a Sra. Hancock. — Tenho certeza de
que amanhã, Sua Alteza estará em um clima receptivo. Obrigado por ter
vindo até aqui para entregar minha carta, senhora.
— Oh, não foi nada, Fairfax. E bom dia para você também, Sua
Alteza.
Depois que ela saiu, nenhum deles falou por um tempo.
Então o príncipe lentamente soltou um suspiro. — Sábado à noite,
eu me encontrarei com a Inquisidora.

181
Capítulo 13
Iolanthe e o príncipe empreenderam uma série de
desmaterializações e determinaram que ela possuía um alcance de
quarenta e três quilômetros, o suficiente para cobrir a distância entre
Londres e Eton em uma desmaterialização.
Sábado à tarde, para manter a pretensão de ir para casa em
Shropshire, ela pegou o trem para Londres. De lá, desmaterializou-se
para um armário de vassouras na escola, onde o príncipe esperava.
— Alguém te seguiu?
Ela balançou a cabeça.
O príncipe deu-lhe uma dose de auxílio de desmaterialização. —
Vamos então.
Sua primeira desmaterialização levou-os a um espaço cheirando
a mofo e apertado, não muito diferente do armário de vassouras que
deixaram para trás.
— Onde estamos?
— Em algum lugar dentro do campanário de uma catedral em
Birmingham. Avise se você precisar de alguns minutos.
Ela balançou a cabeça, determinada a não mostrar qualquer
fraqueza. Ela aguentou mais duas desmaterializações antes de sua

182
cabeça girar. Não importava onde estivesse agora – outra sala há muito
abandonada pelo que parecia. Ela apoiou-se contra a parede e lutou
contra a náusea.
Ele verificou seu pulso, seus dedos aqueceram e iluminaram em
seu pulso. Então ele deu-lhe um pó doce como açúcar puro.
— O que é? — Ela murmurou.
— Algo que fará com que meus beijos tenham sabor de chocolate.
Até agora, nenhum deles se referiu ao beijo. Ela tentava não se
lembrar disso. O encontro iminente com a Inquisidora significava que ela
finalmente veria o Mestre Haywood, e isso era muito para ocupar sua
mente. Mas ela havia revivido o beijo. E toda vez que o fazia, era como se
um relâmpago a atravessasse.
Eu gostaria que tivéssemos nos conhecido em circunstâncias
diferentes, ele disse.
Ele desejava diariamente, continuamente, que tivesse nascido
outra pessoa e não fosse sobrecarregado com esse propósito esmagador?
Ela desejava, mas não podia falar sobre isso. Suas verdadeiras emoções
foram enterradas na profundidade de uma trincheira no oceano,
indetectável para qualquer pessoa além de si mesma.
— Seus beijos tem gosto de cachorro molhado.
— Você sabe muito sobre isso, não é? — Ele disse amigavelmente.
Que pessoa você é para viver sem honra ou integridade?
Obviamente o tipo escolhido para fazer o que os outros muito
decentes não conseguem.
Ela indicou que estava pronta para desmaterializar novamente.
Depois de mais duas desmaterializações, apesar do remédio, a cabeça
dela girava em agonia.
Ele a ajudou a sentar. — Coloque a cabeça entre os joelhos.
— Por que você ainda está de pé? — Ela perguntou, mal humorada
e invejosa, seus olhos meio fechados.
Eles estavam ao ar livre. A grama debaixo dela era macia e verde,
o ar fresco e úmido, com o distinto aroma salgado do mar.

183
— Você pode ser bonita como um deus, mas eu desmaterializo
como um.
Ela desejava ter a energia para olhar furiosamente para ele,
embora se sentisse estranhamente com vontade de sorrir.
— Onde estamos?
— Cape Wrath, Escócia.
— Onde fica isso?
— Norte da Grã-Bretanha, a dois mil e quatrocentos quilômetros
de Eton.
Não é de admirar que ela se sentisse tão horrível. Oitocentos
quilômetros geralmente eram considerados o limite superior diário para
desmaterialização. Eles chegarem tão longe em menos de quinze
minutos, era algo maravilhoso – e possivelmente fatal.
Ela levantou o rosto. Eles estavam em um promontório escarpado
com vista para um mar cinzento e inquieto. O vento era tão forte que
removeu o chapéu. Seu cabelo curto soprava selvagemente.
Ele se agachou, segurou o queixo dela entre os dedos e olhou nos
olhos dela. Ela sabia que ele estava apenas verificando o tamanho de
suas pupilas, mas o ato ainda era extremamente íntimo, um longo olhar
trancado.
Se ela não fosse cuidadosa, ela poderia se enganar a acreditar que
poderia ver todo o caminho até a alma dele.
Ela se afastou da mão dele. — Onde fica a entrada do seu
laboratório?
— Ali. — Ele inclinou a cabeça em direção a um farol ao longe.
Ela se levantou com um balanço. — O que estamos esperando?

***

Na última vez em que ambos estiveram em seu laboratório, ela


ainda tinha seu cabelo, e sua opinião ainda não havia virado contra ele.
Titus não ligava para os cabelos, mas sentiu falta do seu olhar cheio de
confiança e fé.

184
Ela levantou uma mão e tocou uma jarra de pérolas. Seu rosto
estava inclinado – ele se lembrou de colocar a gravata e encostar na parte
de baixo do queixo dela. Ele lembrou da sensação de calor correndo ao
longo seus nervos, a suavidade da pele dela.
Ela se virou. — Onde está seu canário? — Perguntou, apontando
para a gaiola desocupada.
Ele fingiu agitar a poção diante dele. — Eu o vendi no mercado de
pássaros em Londres. Era um suporte; eu não preciso quando estou na
escola.
— Um suporte para o quê?
Ele entregou-lhe a poção. Ela amadureceu bem, a alarmente cor
roxa da noite anterior agora era cor de aveia e cheirava agradavelmente
à noz-moscada. — Para você.
Ela observou a poção cautelosamente. — Você não está tentando
me transformar em um canário, não é? Feitiços de transmogrificação em
humanos são extremamente instáveis, para não mencionar perigosos
para a pessoa49.
— Eu tenho um feitiço de transmogrificação viável.
— Testado em você também?
— Claro.
O olhar que ela lançou a ele – ele experimentou uma grande parte
do seu desagrado, mas desta vez ela não estava com raiva, nem com
aversão. Em vez disso, ela parecia... pesarosa, quase.

49 A Coligação para a Magia Mais Segura e a Liga dos Pais Sábios – daqui a diante
referida como o assinado abaixo – pleiteia com o Ministério da Educação remover todas
as menções de transmogrificação de mago a animal dos livros didáticos destinados a
estabelecimentos de ensino primários e secundários. A cada ano, dezenas de jovens
magos, estimulados pela alusão nesses livros, tentam transmogrificações. Eles
inventam poções terríveis, frequentemente tóxicas, aplicam mal feitiços e causam
incêndios e explosões em casa e na escola – para não mencionar danos a suas pessoas.
Só neste último inverno, um jovem mago ficou incapaz de respirar normalmente por ter
crescido guelras; outro ficou quase cego depois de adquirir visão de morcego; e um
terceiro perdeu todo o cabelo ao fazer a mudança. Que os casos foram reversíveis não
mitigam sua gravidade.
– Da petição nº 4391, apresentada ao Ministério da Educação, 21 de abril, ano do
domínio 1029.

185
— Você está bem? Prometo que é seguro. Você sabe que eu nunca
deixaria nenhum mal acontecer com você e...
— Estou bem. — Ela tirou a poção dele e bebeu. — Por que ainda
não sou um canário?
Ele derramou um frasco de pó vermelho brilhante em um copo de
água. A água tornou-se avermelhada, depois incolor novamente. — Você
também precisa beber isso.
Ela bebeu. Então olhou para a gaiola vazia. — Isso será doloroso?
— Sim.
— Você também poderia ter mentido aqui. — Ela sorriu um pouco,
não olhando para ele. — Estou pronta.
Ele tirou a varinha e apontou para ela. — Verte in avem50.
A transformação foi repentina e dolorosa. Ele sabia bem, tendo
passado por isso cinco vezes. Ela caiu. Ele a pegou. Um momento depois,
ele segurava apenas um monte de roupas. Um canário, chilreando, quase
lamentando, atravessou a sala, as asas se agitando loucamente.
— Venha até mim, Fairfax.
Ela se dirigiu diretamente para ele. Ele quase não a pegou.
Ela ficou quieta e atordoada em suas palmas. Ele passou os dedos
pelas asas dela.
— Você fez bem, nada quebrou. Na primeira vez que tentei isso,
consegui uma concussão e fraturei o cotovelo.
Ele a colocou na gaiola de reposição, em cima de camadas de
jornal limpo. — Descanse por alguns minutos, então precisamos ir.
Ele contornou a sala reunindo o que precisaria. Ela balançou em
direção à taça de água. — Beba a água se tiver sede, mas não coma nada
do copo de alimentação. Você pode parecer um pássaro, mas não é um.
Você não pode voar muito bem, e certamente não pode digerir sementes
cruas.
Ela mergulhou seu bico na água, bebeu e pulou um pouco mais
em sua gaiola.

50 Vire uma ave.

186
A porta da gaiola ainda estava aberta. Ele estendeu a mão. —
Venha aqui.
Sua pequena cabeça de pássaro inclinou para um lado, parecendo
quase tão desconfiada quanto o ser humano. Mas subiu na palma da
mão.
Ele a ergueu até os lábios dele e beijou o topo de sua cabeça baixa.
— Será você e eu contra o mundo, Fairfax, — ele murmurou. — Você e
eu.

***

Dalbert estava na hora, como sempre.


— Sua Alteza.— Dalbert curvou-se.
Ele abriu a porta do trem ferroviário particular. Titus assentiu,
entregou sua mochila ao valete, e subiu os degraus para o trem com a
gaiola na mão.
Dalbert trouxe a Titus um copo de vinho temperado e derrubou
algumas sementes de água no copo de alimentação de Fairfax.
— Pronto aqui, Senhorita Buttercup.
Titus a observou. Ela mergulhou o bico no copo de alimentação e
tirou uma semente. Mas quando Dalbert sorriu com satisfação e se virou
para o outro lado do trem, ela deixou cair a semente no copo.
Titus respirou de novo. Toda a literatura insistia que um mago em
um estado transmogrificado compreendia claramente a linguagem e as
instruções, mas esta foi a primeira vez que ele pôde testar a reivindicação.
O apito do trem soou. Suas rodas girando contra os trilhos. Eles
estavam no caminho.
***

Eles permaneceram nos trilhos por apenas alguns minutos. O


príncipe usou o tempo para trocar de túnica e colocar um par de botas
até o joelho. Então Iolanthe não estava mais olhando para o campo inglês,
mas para picos de montanhas distantes.

187
O que acabou por não ser verdadeiros picos das montanhas, mas
um grande mural que adornava a sala circular em que o trem ferroviário
agora estava.
O príncipe levantou de seu assento. Em seu tamanho atual, ele
parecia imenso, sua mão do tamanho de uma porta. Ele levantou sua
gaiola e saiu, seguido por seu criado.
Um conjunto de portas duplas pesadas e altas se abriram. Ela
esperava uma ótima sala do outro lado, mas era apenas a escada,
iluminada por candeeiros que emitiam uma luz branca notavelmente
pura.
Eles desceram um longo lance de escadas circulares – o trem
estava estacionado no topo de uma torre. Outro conjunto de portas se
abriu e eles caminharam por um largo corredor com arcos abertos que
davam para um terraço de jardim que pendia várias centenas de metros
acima do pátio abaixo.
O corredor virou, se separou, voltou a girar. Agora havia
atendentes em todos os lugares, curvando-se e arrastando-se atrás do
príncipe, que continuou a caminhar. Subiram alguns degraus, passaram
uma biblioteca, um jardim interior com uma fonte de escultura no meio,
e um grande aviário cheio de pássaros de todas as espécies.
Quando finalmente entraram no aposento do príncipe, achou-o
escassamente mobiliado. Mestre Haywood tinha um sala mais
impressionante quando ainda estava na universidade. Ou então, Iolanthe
pensou, até que seu olhar pousou na tela do tri-painel diante da janela.
Dentro de cada painel translúcido, borboletas prateadas flutuavam. E
observou a cor de uma borboleta se transformar em um amarelo vibrante,
outra em uma delicada sombra de violeta, e ainda uma terceira, em um
padrão intrincado de verde e preto.
As borboletas deveriam ser feitas de prata azul, um elixir
inestimável, sensível às menores mudanças no calor e intensidade do sol.
O príncipe não prestou atenção em absoluto à sua tela incrivelmente
preciosa quando passou por ela. Na próxima sala, vislumbrou um enorme
vaso de rosas de gelo, suas pétalas azuis parecidas com o vidro soprado.

188
O quarto seguinte abrigava um globo giratório. Ela não podia ter certeza,
mas pensou ter visto uma tempestade acontecendo em algum lugar nos
trópicos, com pequenos flashes de iluminação. O príncipe passou debaixo
da lua enquanto caminhava.
Em seu quarto, ele parou para tirar as botas; então eles estavam
em um enorme banheiro que levava a uma banheira esculpida em um
único bloco de ametista, com acessórios e pés de garra de ouro puro.
Vapor saía da banheira, pétalas e ervas flutuavam no topo da água – ela
cheirava flor de laranjeira e menta.
Ela costumava gostar de longos mergulhos. Foi uma das
aplicações mais agradáveis de seu poder elementar, um fogo gentil
debaixo da banheira para manter a água em uma temperatura constante
enquanto ela elaborava esculturas fantásticas com gotas de água no ar.
O príncipe a colocou no chão e dispensou seus criados. O último
a sair fechou a porta. Apoiando-se contra a parede, o príncipe tirou as
meias. Enquanto caminhava em direção à banheira de ametista, ele
puxou a camisa sobre a cabeça.
Ele era esguio e firmemente definido. Seu pequeno coração de
pássaro acelerou.
Ele olhou para ela, seus lábios inclinados em um quase sorriso. A
próxima coisa que ela soube, era que a camisa dele havia atravessado o
ar e pousado na gaiola, bloqueando sua visão em direção à banheira.
— Desculpe, querida. Eu sou tímido.
Ela chilreou indignada. Não era como se ela quisesse continuar
observando-o se despir além do ponto certo. — Eu sei que você prefere
inspecionar minha forma, mas posso recomendar admirar a tapeçaria em
vez disso? — Continuou o príncipe. — É uma cena de Hesperia, a
Magnífica, ao destruir a fortaleza do usurpador. O próprio
Rumpelstiltskin amarrou a tapeçaria. Você sabe que os não-magos o
fizeram um vilão em suas histórias? Pobre companheiro, eles o obrigaram
a forçar um pobre inocente a fiar ouro como palha.
Um chapinhar de água, então um suspiro quando ele se
acomodou na banheira.

189
Ela fechou os olhos, o absurdo da situação agarrando-a
momentaneamente. Ela era um pássaro e estava em uma gaiola. O
príncipe estava completamente nu, a nem dois metros dela. E o santo
Rumpelstiltskin, que tendo deixado a poupança de sua vida para ajudar
crianças indigentes, era caluniado como um camponês ganancioso.
Ele suspirou novamente. — Por que estou falando com você? Você
não se lembrará de nada do seu tempo gasto em forma de pássaro. — Ele
fez uma pausa. — Acabei de responder a minha própria pergunta. Sabe
o que eu fiz uma vez? Decidi gravar meu tempo em forma de pássaro. Em
código Morse – meios de transmissão de mensagens, com pontos e traços
para representar letras. Planejei tudo: eu usaria meu bico para perfurar
pequenos buracos no papel para representar um ponto e fazer arranhões
com minha garra para traços. Exceto que quando voltei, a folha de papel
estava em pedaços. — Ele ficou em silêncio por um momento. — E você
terá um vazio semelhante amanhã.
Isso significava que ele estava prestes a dizer-lhe algo que ele
normalmente não faria? Seus ouvidos se aproximaram – figurativamente,
já que seus ouvidos agora eram buracos cobertos de penas nos lados da
cabeça.
Ele riu suavemente. — Sabe, você é quase agradável para
conversar, quando não diz nada.
Ela quis que a água na banheira o golpeasse no rosto. Houve um
forte golpe.
— Ei! — Ele pareceu surpreso, mas não ofendido. — Interessante.
Você ainda é capaz de usar seus poderes elementares. Mas pare – ou vou
dá-la aos gatos do castelo.
Ela o atacou novamente. — Tudo bem, tudo bem. Retiro isso. Você
é quase agradável de conversar, mesmo quando você responde.
Ela desejava que ele parasse de falar – ela não queria esse
vislumbre do tipo de relacionamento que eles deveriam ter tido, as coisas
estavam diferentes.
Fale mais, pensou uma parte menos sensível dela.

190
Ele continuou. — Sabe com o que eu deveria estar preocupado?
Sua incapacidade de controlar o ar. Relâmpago é muito dramático, mas
os carros blindados são construídos para suportar ataques de
relâmpagos. Você precisa gerar um ciclone para ter uma chance contra
eles. Não é bom quando você não pode criar uma brisa nem para salvar
sua vida.
Suas asas tremiam. Ela deveria lutar contra essas máquinas da
morte?
— Eu deveria estar pensando em maneiras novas e melhores de
superar seu bloqueio. Mas não posso pensar quando a Inquisidora me
questionará esta noite.
Ela nunca ouviu medo na voz dele. Então ele experimentou isso.
Bom. Era um sinal de loucura não ter medo quando deveria ter.
— A primeira vez que eu a conheci cara a cara, eu tinha oito anos.
— Ele falou calmamente; ela teve que se esforçar para ouvir. — Meu avô
morreu dois meses antes, e minha coroação foi no dia seguinte. Quando
você nasce na Casa de Elberon, você é treinado para agir sereno e
superior, não importa o que você sinta. Mas a Inquisidora era... ela tem
olhos assustadores. Eu tentei, e não consegui me fazer olhar para ela.
Então, enquanto falava, olhei para o meu gato.
— Minos era, na verdade, o gato da minha mãe, tão gentil e doce
quanto ela. Depois que ela morreu, ele estava lá comigo e dormia na
minha cama à noite.
— Naquele dia, ele estava no meu colo. Eu cocei a cabeça dele e
ele ronronou. Em algum momento, ele parou de ronronar. Mas não foi
até o final da audiência, quando a Inquisidora levantou para se despedir,
que eu notei que ele estava... ele estava morto.
A ruptura na voz dele lhe atraiu com uma emoção violenta, a qual
ela não poderia nomear.
— Eu queria chorar. Mas porque ela estava assistindo, eu joguei
Minos de lado e disse, da maneira como o meu avô fazia: — Qualquer um
pensaria que um gato da Casa de Elberon teria mais criação do que
morrer diante de um estimado convidado. Minhas desculpas. Só mantive

191
pássaros desde então – pássaros e répteis são imunes aos poderes de um
mago mental. E sempre fiquei aterrorizado com a Inquisidora.
Ele ficou em silêncio. Ela se virou e olhou para a tapeçaria, sem
querer simpatizar com ele.
E não conseguindo.

192
Capítulo 14
Titus conduziu sua comitiva acompanhado por uma falange de
guardas montados. Uma equipe de quatro fênix douradas do Pacífico
puxou sua carruagem – o chefe da Casa de Elberon era o único mago no
Domínio com direito a usar fênix como animais de carga.
Havia uma possibilidade, pensou Titus, que o decreto tenha sido
estabelecido para que o príncipe governante ou a princesa não ficassem
distraídos da tarefa de governar pela necessidade de inventar cada vez
mais formas ostentativas de aparecer em uma festa de gala de Delamer.
A gala da primavera de Lady Callista era a pior. Teve um ano que
alguns idiotas decidiram chegar em uma carruagem puxada por centenas
de borboletas, cada uma com o tamanho de uma mão. As borboletas
começaram a cair de exaustão à medida que a carruagem se aproximava
da plataforma de aterrissagem, causando um acidente desagradável.
No ano anterior, um grupo de convidados vieram com turuls –
falcões Magyar gigantes. Outro grupo de senhores e senhoras trouxeram
um par de dragões de água chineses. Como se viu, turuls e dragões de
água chineses se desprezavam com uma paixão intensa. Um espetáculo
confuso havia ocorrido.

193
A carruagem de Titus se aproximou da via aérea rapidamente,
construída há duzentos anos durante o reinado de Apollonia III para
facilitar a viagem entre o castelo e a capital. Fairfax estava empoleirada
em seu ombro, suas garras cavando levemente em seu casaco. Mas agora
ele a pegou na mão e colocou-a dentro de sua túnica. — Eu te seguraria,
— ele disse, — Mas preciso das minhas duas mãos.
Fênix eram animais indóceis e não se importavam nem um pouco
em desaceletar nas vias aéreas.
— Prepare-se. Será um duro golpe, — ele avisou. Provavelmente
desnecessariamente. Como nativa de Delamer, ela usaria diariamente a
vasta rede de vias rápidas da cidade, tanto no chão quanto no ar. E, se
não diariamente, certamente mais do que ele, com a prisão nas
montanhas.
O impulso veio de repente. Ele não podia respirar. Seus pulmões
ficaram mais e mais vazios. Logo quando ele pensou que não poderia
suportar mais, a carruagem foi cuspida para fora para a outra
extremidade da via aérea.
As fênix pousaram duramente. Ele recobrou controle, alcançou
Fairfax e a colocou em seu ombro novamente.
— Você está bem?
Ela estava ocupada observando a cidade que fora sua antiga casa.
Delamer era uma das maiores metrópoles mágicas da Terra, uma
extensão brilhante de palácios de mármore rosados e jardins majestosos,
desde as altas montanhas Serpentine até a borda do calmo mar azul,
avermelhado pelos últimos raios do pôr-do-sol.
Sua beleza, no entanto, era prejudicada por trechos de bosque
densos, que cresciam como fungos acima. Pinheiros rápidos, eles eram
chamados: eles não eram pinheiros, absolutamente, mas certamente
rápidos, alcançando sua altura e circunferência máxima em dois anos,
quando a maioria das árvores fazia em cinco décadas, criados pelos
botânicos de Atlantis para camuflar a seca causada pela falta de chuvas.

194
Uma conhecida coluna de fumaça vermelha subiu ao céu,
marcando a localização do Inquisitório. O fogo da Atlantis queimava
constantemente desde o final da revolta.
A hora do encontro com a Inquisidora se aproximava cada vez
mais.
Ele virou o rosto. Eles estavam se dirigindo diretamente ao pôr-
do-sol. A costa oeste como um todo era rochosa e marítima,
especialmente a extensão ao longo de Delamer. Naturalmente ambiciosa,
a rica capital de uma grande dinastia era cheia de magos que gozavam
dos agradáveis prazeres do Mediterrâneo, que precisaram decidir e fazer
melhorias.
Durante o reinado de Hesperia, a Magnífica, a cidade construiu
cinco penínsulas, coletivamente conhecidas como A Mão Direita de Titus.
As penínsulas eram de aparência acidentada – de modo a não olhar
contra a costa escarpada – mas sua aparente aspereza escondia uma
riqueza de encostas suaves e praias fortificadas, ao redor das quais
surgiram centenas de moradias com telhados azuis.
Três das penínsulas compreendiam algumas das terras mais
caras em todo o mundo mágico. Uma era um parque público adorado. E
o restante, o dedo anelar, era uma reserva principesca sobre a qual estava
a cidadela da Hesperia.
A cidadela original ainda ficava no centro, mas o complexo cresceu
em um palácio espalhado com vastos jardins, noventa e nove fontes e
dezenas de varandas flutuantes.
Logo, a Inquisidora encontraria Titus em uma dessas varandas.
Ele conduziu sua carruagem na direção à plataforma de pouso.
Ele não estava sozinho: de todos os pontos do céu, os carros convergiam
para a Cidadela. Não havia turuls ou dragões de águas chineses este ano,
apenas a variedade usual de grifos e dragões falsos.
Dois jovens realizavam cambalhotas e piruetas em uma trave
suspensa em quatro mastros maçicos de pombas. Abaixo da trave pendia
um balanço, com uma jovem acrobata sentada balançando-se.

195
Titus queria aproveitar a vista – uma bela vista, mesmo para um
príncipe. Mas já necessitava se esforçar para controlar sua respiração e
até suas mãos firmes.
A jovem reconheceu-o. Ela pôs-se em pé e realizou uma reverência
muito digna. Titus, como corresponde a seu personagem público
arrogante e mal-humorado, a ignorou completamente.
O caminho para a plataforma de pouso era demarcado com tochas
flutuantes. Outros convidados se afastaram para abrir caminho para o
seu soberano. Enquanto a carruagem de Titus passava, toda pessoa na
plataforma se curvou.
Alectus e Lady Callista estavam na frente da multidão para
recebê-lo. Titus passou por eles sem diminuir a velocidade. Mas ele sabia
que Lady Callista ergueu a cabeça de sua profunda reverência e olhou-o
com os olhos estreitados.
O dispositivo dela o seguiu até um hotel de Londres onde ele não
tinha negócios. Como ele explicaria não só sua presença, mas também
sua partida precipitada, deixando para trás uma bandeja de chá meio
consumida? Lady Callista alcançou-o. — Vejo que você trouxe Senhorita
Buttercup, Vossa Alteza.
— Ela é uma companhia mais tolerável do que a maioria.
Fairfax chilrou amavelmente.
— E ela está gostando da Inglaterra?
— Mais do que eu, sem dúvida. O próprio ar é nocivo.
— Ela gosta de escola?
— Escola? Um dos meninos do meu andar tem um furão no porta-
malas. Um furão. Buttercup vive com medo por sua vida. Ela é muito
mais feliz com a minha amante.
Fairfax parou de chilrear.
Lady Callista piscou. — Perdão?
— O que você não entendeu? Certamente você, de todas as
pessoas, sabe o que é uma mulher mantida.
— Eu não sabia que Sua Alteza tinha tal acordo.

196
— E por que deveria? Ela não me custa quase tanto quanto você
custa a Alectus, e ela não gosta de esperar por mim. Na verdade, ela já
me aborrece; eu pretendo substituí-la por uma garota mais animada,
uma que goste de fazer amor e não seja tão vulgar. Agora, se você me
desculpar, eu preciso de uma bebida.
Ele passou por ela antes que ela pudesse convocar uma das
bandejas flutuantes de bebidas azuis brilhantes. Imediatamente, ele foi
cercado pelo primeiro-ministro e vários não tão primeiros-ministros.
— Pensei que você não se importasse com eventos tão frívolos, —
Titus disse ao primeiro ministro.
— Na verdade, não me importo, majestade. Mas eu ouvi que a
Inquisidora vai participar, e espero falar com ela sobre os registros, — o
primeiro-ministro respondeu. — Não houve nenhum progresso nas
negociações. A menos que possamos chegar a um acordo, o Inquisitório
começará a destruir os registros até a quarta semana de junho. Dez anos
de registros, provavelmente, incluindo informações sobre milhares de
indivíduos que desapareceram após o levante.
— Que horrível, — Titus disse, e passou roçando nele.
Não que ele fosse inteiramente antipático, mas o que o primeiro-
ministro pensava ao alimentar o Fogo de Atlantis, cuja fumaça subia de
forma tão constante do Inquisitório?
Ele foi abordado pelo arquimago atual e seus dois principais
discípulos, e um fluxo constante de matronas que queriam saber se ele
apareceria em suas funções de caridade.
A primeira jovem a abordá-lo foi uma bruxa de beleza.
— Sua Alteza, — ela disse com um sorriso brilhante.
— Nós nos conhecemos?
— Diana Fairmyth, Sua Alteza.
Ele desconfiava de bruxas de beleza; quem tentava seduzi-lo
também poderia espioná-lo. — O que uma garota como você faz nesta
terrível festa?
Ela riu. — Oh, é terrível? Ainda não notei.

197
— Infelizmente, você é muito bonita, mas vejo que nossos gostos
são divergentes demais.
Mais algumas mulheres jovens tentaram, mas ele dispensou-as
com eficiência similar. Então veio a garota que ele não podia afastar com
tanta facilidade – Aramia, a filha de Lady Callista.
Ela estendeu as mãos para ele. — Titus, — ela disse, — É bom vê-
lo novamente.
Eles se conheciam há muitos anos – Lady Callista às vezes trazia
Aramia ao castelo, de modo que Titus teria alguém com sua idade para
brincar. Eles deveriam ter sido companheiros perfeitos: ela era paciente,
resignada, estava disposta a tentar coisas novas. Sem mencionar que,
como ele, ela nunca conheceu seu pai. Mas Titus, uma criança do
demônio nos anos imediatamente após a perda de sua mãe, a
atormentava.
Ele a trancava em armários quando eles brincavam de esconde-
esconde, jogava bichos sob sua blusa quando eles brincavam lá fora, e
perguntava por que ela era feia quando sua mãe era tão bonita.
Mas ela apenas encolhia os ombros e dizia: — Talvez meu pai não
fosse tão lindo.
Nos últimos anos, seus caminhos nunca cruzaram. Mas a culpa
era como um pântano. Sempre que a via, ele percebia que ainda estava
até o pescoço nela.
Ele a beijou em ambas as faces. — Como você está, Aramia?
— Oh, o mesmo que de costume. Você conhece a minha mãe,
ainda tentando me transformar em um cisne, — ela respondeu, sem
intenção de ser completamente desdenhosa sobre isso.
Ela nunca foi feia, simples talvez, mas não feia. Mas, mesmo as
mulheres atraentes desapareciam em insignificância ao lado de Lady
Callista. Ele não podia imaginar o que devia ser conviver diariamente na
sombra de sua beleza.
— Mas você já é um cisne, — ele disse, tentando animá-la.
— Não acho que a beleza interior seja muito importante para a
mãe.

198
— Quem disse que eu falava sobre beleza interior?
Isso fez Aramia sorrir. — Isso é muito doce, Titus, obrigada. Você
gostaria de um ponche de framboesa? É a minha própria receita, apenas
um pouco de hortelã congelada como ingrediente secreto.
Ele desejou que ela não o chamasse de doce. Ele afundou um
pouco mais no seu pântano. — Você ainda gosta de fazer suas receitas?
— Eu também poderia ser útil.
Como ela não podia ser linda, ela queria dizer.
Era doloroso o quanto ela queria a aprovação de sua mãe.
— Vou aceitar um copo.
Ela apertou a mão dele. — Me avise o que posso fazer para que a
minha mãe não te incomode demais.
Aramia foi pegar o ponche. Quando voltou, Alectus e Lady Callista
tinham encontrado Titus. Aramia, fiel à sua palavra, retirou a mãe com
a pretensão de que algo precisava da atenção dela.
Alectus sozinho era mais fácil de lidar. Com o entusiasmo de uma
criança, ele contou sobre sua busca épica de um novo manto, envolvendo
cinco acessórios de emergência nos últimos dois dias.
Titus o ouviu balbuciar enquanto fingia beber o ponche de
Aramia. Ele não desconfiava de Aramia, mas nunca sabia o que Lady
Callista poderia fazer.
— Tenha um copo de ponche de Aramia, — ele disse a Alectus. —
Isso irá recuperá-lo.
— Ah, você gosta disso então? — Alectus disse.
— Eu gosto. E por que você parece tão surpreso?
Alectus riu desajeitadamente. — Bem, é só que Sua Alteza não
gosta de muitas coisas.
— Sim, o fardo de ter nascido com gosto requintado.
— Eu acredito que isso é realmente o c...
— Pare com isso! Não, não você, Alectus, você pode continuar.
Estou falando com meu pássaro.

199
Fairfax estava agindo estranhamente. Cutucando em seus
ombros, chilreando diretamente em seus ouvidos, e agora, fazendo um
corte afiado no pescoço dele.
— Talvez a Senhorita Buttercup esteja com fome? — Alectus
sugeriu.
Fazia um tempo que Fairfax comeu e havia uma grande
quantidade de comida sendo passada por aí. Ele tirou um biscoito
embrulhado de dentro de sua túnica – ele também não confiava na
comida de Lady Callista – e abriu-o para Fairfax.
Ela bicou sua mão com força o suficiente para doer.
— O que é...
— Oh, querido, eu acredito que é a Inquisidora chegando, —
Alectus disse sem fôlego. — Ela disse que poderia aparecer, mas não
acreditei. Ela socializa tão raramente, a senhora Inquisitora.
Titus ficou frio. Ele achou que teria um pouco mais de tempo.
A carruagem da Inquisidora era clara, sem adornos, exceto pelo
emblema de vórtice da Atlantis. A própria Inquisidora também estava de
preto, seus cabelos brilhavam em um nó no topo da cabeça.
Ela parecia a morte andando.
— Se você me desculpar, Sua Alteza, — Alectus disse, e correu
para receber pessoalmente a Inquisidora.
Aramia voltou ao seu lado. — Eu não deveria dizer isso, mas ela
me deixa nervosa.
— Estou surpreso que sua mãe a tolere. Ela a teria deserdado se
você tivesse um aspecto tão feio.
Aramia riu suavemente. — Infelizmente, tio Alectus gosta muito
da Inquisidora. Mamãe diz que a Inquisidora é a única mulher que o tio
Alectus escolheria sobre ela, então ela não tem escolha senão ser muito
cordial.
De fato, Lady Callista sorriu graciosamente ao cumprimentar a
Inquisidora. Quando a Inquisidora começou a subir os degraus da
plataforma de pouso, Alectus pairou sobre ela, como uma criança que

200
perseguia um presente inédito, inteiramente sem vergonha de sua
devoção.
A Inquisidora veio diretamente até Titus, dividindo a multidão.
Quase metade dos convidados se curvou.
Aramia franziu a testa. — Eles não sabem o que estão fazendo?
Estão se curvando para um Domínio estrangeiro.
— É prático, — Titus disse. — No lugar deles eu poderia fazer o
mesmo.
— Você não faria.
Ela tinha uma visão tão cor-de-rosa dele; quase o fez querer ser
uma pessoa melhor. A Inquisidora estava agora diante dele. Ela se curvou
rigidamente.
Titus retornou um sinal de cabeça igualmente rígido.
— Senhora Inquisidora.
— Boa noite, Sua Alteza.
— Você conhece a Senhorita Aramia Tiberius?
— Já tive esse prazer. Agora, Senhorita Tiberius, eu gostaria de
uma palavra com a Sua Alteza.
— Claro, Senhora Inquisidora. Posso oferecer-lhe uma bebida
antes de ir?
— Isso será desnecessário.
Aramia franziu os lábios e partiu.
Para uma suposta diplomata, seu talento para a diplomacia é
aterrador, Senhora Inquisidora.
Titus não cedeu ao impulso: logo antes de uma entrevista privada
não era o momento para antagonizar a Inquisidora.
— Lady Callista providenciou uma sala aqui onde podemos ter
privacidade, — a Inquisidora disse.
— Bom. Nós devemos precisar disso quando retornarmos.
— Retornar?
— Não foi você mesma quem disse que os representantes do meu
governo são bem-vindos para inspecionar os súditos atualmente
mantidos no Inquisitório?

201
— Certamente isso pode ser organizado...
— Eu sou um representante perfeitamente adequado do meu
governo. E estou pronto para vê-los agora.
Atrás da Inquisidora, Alectus quase recuou pela interrupção de
Titus.
A Inquisidora disse friamente: — Agora não é o momento.
Diante da ameaça em seus olhos, Titus quis recuar como Alectus
fez. — Em qualquer momento, você disse, — ele se esforçou para falar. —
E você já me incomodou muito com suas demandas sobre o meu tempo.
— Você é jovem e obstinado, Sua Alteza, e suas demandas
dificilmente são consideradas. Vamos acabar com essa tolice.
Qualquer pessoa sensata teria se afastado. Mas ele não tinha
escolha. O juramento de sangue o obrigava a fazer o máximo. E o
máximo, é claro, era sinônimo de suicídio.
— Vejo que eu deveria ter esperado alguém de seu... calibre exibir
tal falta de confiança. — Os dentes da Inquisidora se apertaram com a
referência de Titus aos seus pais. — Eu claramente mudei de ideia sobre
falar com você em particular.
Ele se afastou e se aproximou de um trio de bruxas de beleza
jovem. — Vejo que todas as mais lindas mulheres presentes hoje à noite
já estão familiarizadas umas com as outras.
As três bruxas de beleza olharam entre si. A aparente líder do
grupo se perdeu em Titus. — Você é um estranho muito bonito, senhor.
Mas nós realmente estamos atrás do príncipe.
— Aquele idiota pretencioso? Você tem sorte, ele está muito cheio
de si mesmo para perceber vocês. Pode imaginar o aborrecimento
absoluto que ele seria?
— Eu não saberia sobre isso, mas você, Sua A... quero dizer,
senhor, é qualquer coisa menos um aborrecimento.
Ele ergueu um cacho de seus cabelos escuros, sem sentir nada da
textura, consciente apenas da força da ira da Inquisidora, como agulhas
nas suas costas. — Deixe-me adivinhar, seu nome é Afrodite, em
homenagem a deusa do amor.

202
Ela riu suavemente. — Excelente suposição, senhor, mas é
Alcyone.
— Uma ninfa celestial, eu gosto disso. — Ele se virou para uma
de suas amigas. — E você deve ser Helen, a mulher mortal tão bonita
quanto qualquer deusa.
— Infelizmente, eu sou apenas uma Rea.
— Filha da Terra e do Céu, ainda melhor. E você, — ele disse para
a terceira bruxa da beleza, — Uma Perséfone, que conquista um deus
com vontade de ser raptada.
Todas as meninas riram. — Esse é realmente o nome dela, —
Alcyone disse. — Muito bem, senhor.
— Eu nunca estou errado nesses assuntos.
— Posso perguntar, senhor, — Perséfone arriscou, — Por que você
tem um canário com você?
— Senhorita Buttercup? Ela é um juiz de caráter excepcional. Ela
fez uma careta desde que você me recebeu em seu grupo?
— Não, não fez.
— Então você tem sua aprovação. Ah, vejo pela expressão de
Senhorita Alcyone que ela não acredita. Agora observe, a Senhorita
Buttercup está se virando. Ela colocará os olhos na pessoa intratável, e
expressará sua desaprovação.
Fairfax emitiu uma série de piares furiosos. Ela estava advertindo
que ele foi longe demais?
— Sua Alteza, — a Inquisidora disse bem atrás dele.
Seu tom. Seu estômago revirou – ela estava lívida.
As bruxas de beleza recuaram. Ele não se virou. — Confio que
você pode ver que estou ocupado, Senhora Inquisitora.
— Eu mudei de ideia. Devemos ir ao Inquisitório?
Era o último lugar que ele queria ir. Ele esperava que Fairfax
estivesse feliz.
— Minhas desculpas, senhoras, — ele disse para as bruxas da
beleza. — Devo deixá-las por um curto período de tempo. Espero que
vocês não partam imediatamente.

203
Ele não ouviu o que elas disseram.
Era hora de sua primeira Inquisição.

204
Capítulo 15
Ser um pássaro deu a Iolanthe a liberdade de olhar em qualquer
lugar que ela quisesse. O que descobriu foi que todos o observavam. Ele.
No começo, ela atribuiu à sua posição e seu traje – seu manto azul
escuro, bordado com fio de prata, era magnífico. Mas esta era uma
ocasião que transbordava de magníficas roupas em homens e mulheres
de nível superior. E a maneira como eles olhavam para ele, os lacaios e o
primeiro-ministro, servos e baronesas, era como se ele tivesse lançado
um feitiço sobre eles.
Ele tinha Presença.
No momento em que ele saiu da carruagem, era óbvio que ele não
era um adolescente comum. Ele era rude e inacessível, mas exalava um
carisma enigmático que não podia ser ignorado.
Ele nunca convenceria Atlantis – ou qualquer um quanto a esse
assunto – a levá-lo levianamente.
Talvez ele soubesse disso. Seu coração bateu ao lado dela – ele a
colocou dentro de seu manto na viagem para o Inquisitório. A túnica que
usava era de seda muito fina, cheirava como as ervas com as quais foi
armazenada, e estava quente com o calor de seu corpo.
Ela mergulhou mais fundo contra ele.

205
— Eu a manterei segura, — ele murmurou.
Ele falava sério.
Enquanto ele estivesse seguro, ela também estaria.
Mas por quanto tempo ele ficaria seguro?

***

Titus dirigiu uma das carruagens de Alectus puxada por pégasus


– as fênix eram muito sensíveis para serem trazidas perto de um lugar
tão sinistro quanto o Inquisitório. Lowridge, seu capitão dos guardas e
seis soldados do castelo cavalgavam atrás dele, cada um em um pégasus
branco.
A noite caiu. Todas as luzes da rua e das casas foram acesas, o
que apenas enfatizava os escuros trechos desolados de pinheiros rápidos.
A coluna de fumaça vermelha que marcava a localização do Inquisitório
brilhava intensa e misteriosa, uma exibição de poder que dominava o
horizonte noite e dia.
O Inquisitório original foi destruído durante a Revolta de Janeiro.
Desde sua reconstrução, a segurança foi hermética. A Inquisidora não
recebia convidados e não dava festas. A única maneira de entrar, de
acordo com o mencionado, era sendo arrastado.
O par de pégasus que puxava a carruagem emprestada de Titus
certamente queria se afastar – quase tanto quanto ele. Não podiam voar
sobre o território sob o controle direto da Inquisidora; uma vez que
cruzassem a fronteira, os pégasus teriam que trotar no chão. Eles
relincharam, se contorceram e bateram com suas asas fortemente. Titus
agitou o chicote perto de seus ouvidos para parar suas atitudes nervosas.
Tudo o que ele não precisava era uma tentativa de derrubá-lo.
O novo Inquisitório era uma estrutura circular, a parede exterior
sólida, ininterrupta por uma única janela. Três conjuntos de portões
pesados levaram a um pátio fechado envolvido por uma luz
desconfortavelmente vermelha.

206
O segundo no comando da Inquisidora, Baslan, estava à
disposição para cumprimentar Titus. Titus não pôde decidir se ele deveria
estar feliz com a ausência da Inquisidora ou ter medo de que ela já
estivesse se preparando para a Inquisição.
Ele lançou as rédeas e congelou. A apenas dez metros de onde ele
estacionou a carruagem, havia um esqueleto humano exposto do chão;
os restos ósseos da mão, as pontas das falanges vermelhas escuras,
apontando para o céu como se procurassem ajuda de cima.
— Escolha interessante de decoração, — ele disse, sangue rugindo
em seus ouvidos.
— Metade do pátio foi autorizado a permanecer em ruínas... um
lembrete aos servos de Atlantis para ficar sempre vigilantes, — Baslan
respondeu.
A metade arruinada tinha buracos e estava coberta com pedaços
de parede e vidro quebrados que brilhavam vermelho na luz. Não havia
outros esqueletos humanos, mas Titus viu um esqueleto de cachorro e a
metade superior de uma boneca, que o fez retroceder até perceber que
não era um bebê mutilado.
No centro do pátio havia uma torre de meio metro de altura. Do
topo da torre, fumaça vermelha ondulava.
Titus exalou com alívio quando seu caminho finalmente o levou
do pátio ao prédio. Ele tirou as luvas de condução. Suas palmas estavam
suadas.
Eles desceram imediatamente; os aposentos acima do solo eram
obviamente muito bons para serem desperdiçados com prisioneiros. O ar
abaixo era mofado, como costumava ser o caso para locais subterrâneos,
mas cada superfície estava escrupulosamente limpa.
Todas as medidas de higiene no mundo, no entanto, não poderiam
diminuir a opressão do lugar. Com cada passo que dava, as paredes
pareciam se fechar outra polegada. O ar ficou mais quente e mais denso.
Sufocando-o.
Três lances de escada abaixo depois, um desejo de fugir o agarrou.
Milhares e milhares de magos foram mantidos aqui nos primeiros anos

207
após a Revolta de Janeiro. Ninguém sabia o que havia acontecido com
eles. Mas o desespero deles penetrou nos próprios muros. Filamentos
invisíveis passavam em torno dos tornozelos de Titus, provocando
calafrios nos seus tendões.
Mais lances de escada abaixo, eles emergiram em um grande
espaço circular com oito corredores. Eles seguiram por um corredor por
quarenta e seis metros. Não havia barras, apenas sólidas paredes e
portas de aço que estavam muito próximas umas das outras.
As celas não podiam ter mais de 1,2 metros de largura.
Baslan parou na metade do corredor. Com um toque de mão, uma
seção estreita da parede ficou transparente. Uma cela pequena e mal
iluminada apareceu diante deles, vazia, exceto por uma cama estreita no
chão. Uma mulher estava sentada na cama, soluçando: a arrombadora.
— Levante-se, — Lowridge proclamou enquanto seus
subordinados saíam. — Você está na presença do Mestre do Domínio,
Sua Alteza Sereníssima Titus, o Sétimo.
A mulher olhou chocada. Então desprezo. Ela cuspiu. — Você
mente!
Isto divertiu Titus, completamente. — Ela pode nos ver?
— Não, sua alteza — Baslan respondeu. — A transparência é
apenas de um lado.
— Quem é ela?
— Seu nome é Nettle Oakbluff. Ela é a registradora de Little Grind-
on-Woe.
Titus se dirigiu à mulher. — Por que você está aqui?
— Eu não deveria estar! — A mulher chorou. — Eu estava
tentando ajudar Atlantis. Estava tentando levar a garota até eles!
Titus olhou para Baslan, cuja expressão permaneceu
perfeitamente serena.
— Você é uma súdita do Domínio. Por que procura ajudar
Atlantis?
— Há dinheiro envolvido. — Obviamente, uma grande quantidade
de soro da verdade ainda fluía através das veias da mulher. — Escutei

208
meus sogros falando sobre isso aos sussurros. Eles disseram que Atlantis
procurava um mago elementar realmente poderoso, e que o agente que
trouxesse este mago ganharia uma enorme recompesa.
— E você recebeu a referida recompensa?
Nettle Oakbluff assoou o nariz em um lenço. — Não. Tudo o que
tenho recebido é horas e horas de questionamentos. Eu quero ouro.
Quero criados. Quero uma casa com vista para o oceano em Delamer. —
Sua voz aumentou. — Você me ouve, Atlantis? Você me deve essa
recompensa. Se não fosse por mim, Iolanthe Seabourne e seu guardião
teriam desaparecido sem deixar rastro. Você me deve! — Ela se levantou.
— Você não pode me manter aqui para sempre. Meus sogros são pessoas
importantes. Oh, Sorte tem piedade de mim, o casamento! Alguém me
conta o que aconteceu com o casamento. Preciso que minha filha se case
com o filho dos Greymoors e exijo...
— Ela parece estar bem, — Titus disse a Baslan. — Próximo.
A parede ficou instantaneamente opaca e à prova de som,
cortando a falação de Nettle Oakbluff.
Eles caminharam uns quinze metros abaixo do corredor. A
próxima cela que Baslan revelou era igualmente nua. Um homem estava
sentado na cama estreita, as costas contra a parede. Ele não estava
barbeado, era mais magro e mais velho do que Titus se lembrava. Mas
não havia dúvida: ele era o guardião de Fairfax.
Titus tirou Fairfax das dobras de seu manto, mantendo um aperto
em seu corpo minúsculo. Sua outra mão descansou contra o bolso onde
sua varinha estava escondida. Ninguém a tiraria dele – não sem uma luta
até a morte.
— Quero que ele veja com quem está falando, — Titus ordenou.
— Eu não terei outro assunto a tratar, acho que é permitido sentar-se na
minha presença.
Relutantemente, Baslan obedeceu.
Horatio Haywood piscou pelo fluxo de luz. Ele entrecerrou os
olhos para os visitantes. Havia apreensão em seus olhos, mas ainda não
o medo instintivo e encolerizado de um torturado.

209
— Levante-se, — Lowridge proclamou novamente. — Você está na
presença do Mestre do Domínio, Sua Alteza Sereníssima Titus, o Sétimo.
Haywood piscou novamente, levantou-se inseguro e curvou-se. Só
para perder o equilíbrio e se apoiar de lado na parede. Fairfax ainda
estava na mão de Titus, mas suas garras cavaram na sua palma, e seu
coração acelerou sob o peito dele.
Titus perguntou pelo nome, idade e ocupação de Haywood.
Haywood respondeu obedientemente, uma pitada de inimizade em sua
voz.
— Como você passou seu tempo desde sua chegada ao
Inquisitório?
— Fui atingido com um feitiço de paralisia antes de ser trazido
aqui e me recuperei apenas esta manhã. Desde então, eu tenho
respondido a perguntas.
— Você sabe por que está sendo mantido aqui?
Haywood olhou para Baslan. — A Inquisidora está interessada no
paradeiro da minha tutelada.
— Certas partes envolvidas me disseram que sua pupila não pode
ser encontrada.
Foi a imaginação de Titus ou Haywood relaxou quase
imperceptivelmente? Seus ombros não pareciam tão encurvados. — Eu
estava inconsciente, majestade, e não testemunhei a fuga dela.
— Qual era o meio de fuga, exatamente?
— Dois portais baús ligados que podem ser usados apenas uma
vez, indo apenas de uma via.
— Ir para onde?
— Não sei, senhor.
— Como você sabe que o outro baú não está enterrado no fundo
do oceano?
Haywood agarrou suas mãos juntas. — Eu confio que não esteja.
Entendi que ele leva à segurança, e não a uma calamidade.
Ele quase provocou uma calamidade.
Titus fez um som exasperado.

210
— Não é muito produtivo questioná-lo, não é?
— Há muitas coisas que não consigo lembrar, majestade.
— Essa grande falha de memória causa efeitos colaterais
indesejáveis. Você parece não sofrer com eles. Você confiou suas
lembranças a um guardião da memória então?
Haywood acenou um pouco ligeiramente. A Inquisidora já deve ter
lhe feito a mesma pergunta. — Aparentemente sim, senhor, embora eu
não consiga me lembrar de quem, ou quando.
— Mas você sabe o porquê.
— Para manter minha tutelada segura.
— Eu não tinha ideia de que Atlantis precisava de um grande
mago elementar, e eu deveria conhecer essas coisas. Como você sabia?
— Alguém me disse. Mas não consigo me lembrar quem foi.
Havia frustração na voz de Haywood, mas também alívio. O
sacrifício de suas memórias não foi em vão: ele não poderia trair ninguém
em sua ignorância.
— Os pais dela lhe disseram?
— Não consigo lembrar, — Haywood disse.
— Você é o pai dela?
Fairfax estremeceu com a pergunta.
— Eu não sou, mas a amo como se fosse. Alguém diga a ela para
ficar longe e nunca se aproximar do Inquisitório. Me desculpe, eu não
pude mantê-la segura. Eu...
A parede ficou opaca. — Sua Alteza, — Baslan disse suavemente.
— Não devemos manter sua excelência esperando.

***

O príncipe a abraçou forte, como se estivesse com medo dela fazer


algo estúpido.
Ela não faria, não depois de todos os sacrifícios que o Mestre
Haywood havia feito. E, certamente, não após as mais recentes súplicas
vindas do interior da cela.

211
Mas, pela primeira vez, lamentou ainda não ser uma poderosa
maga elementar. Ela arrancaria o Inquisitório de seus alicerces e
transformaria suas paredes em pó.
O príncipe acariciou as penas de sua cabeça. Ela desejou que ele
a colocasse de volta no manto. Ela queria rastejar para algum lugar
quente e escuro e não sair por muito tempo. Ela quase não percebeu que
eles pararam novamente. O capitão dos guardas do príncipe mais uma
vez proclamou a presença de seu soberano.
— Quem é você? — O príncipe perguntou.
— Rosemary Needles, majestade, — uma voz trêmula respondeu.
Iolanthe quase saltou da mão do príncipe. Sra. Needles?
Ela era realmente gentil, com seu casaco rosa, a Sra. Needles
pressionou o rosto contra a parede transparente, a expressão no rosto
entre assustada e esperançosa.
— Por que você está aqui?
— Limpei e cozinhei para o Mestre Haywood e Senhorita
Seabourne. Mas sou apenas uma empregada de dia. Eu nunca vivi na
casa deles, e não conheço os segredos deles!
O príncipe olhou para Baslan. — Agarrando as palhas?
— As palhas às vezes conduzem a outras palhas, — o Atlante
disse.
— Por favor, senhor, por favor, — a Sra. Needles gritou. — Minha
filha está prestes a ter um bebê. Não quero morrer sem ver meu neto. E
não quero passar o resto da minha vida neste lugar!
Iolanthe ficou fria. O que o príncipe disse? A amizade é
insustentável para pessoas em nossa posição. Ou nós sofremos por isso,
ou nossos amigos sofrem por isso.
E a Sra. Needles não era sequer uma amiga, apenas uma mulher
infeliz o suficiente para precisar do dinheiro que conseguia cozinhando e
limpando para o professor.
Sra. Needles caiu de joelhos. — Por favor, senhor, por favor, ajude-
me a sair daqui.
— Eu verei o que posso fazer, — o príncipe disse.

212
Lágrimas rolaram pelo rosto da Sra. Needles. — Obrigada, Sua
Alteza. Obrigada! Que a Sorte o acompanhe e o proteja onde quer vá!
A parede ficou opaca; eles começaram a longa subida. Iolanthe
tremeu até chegar à superfície.

***

— Há tempo para admirar o Fogo da Atlantis? — Titus perguntou


quando ressurgiram no pátio.
— Não há tempo, Vossa Alteza, — Baslan disse. — Sua Excelência
já está esperando.
Precisamente o que Titus não queria ouvir.
Eles atravessaram o pátio. Diante das pesadas portas da Câmara
da Inquisição, Lowridge e os guardas não podiam ir mais longe. Somente
Titus foi conduzido dentro do enorme salão mal iluminado – feitiços
mágicos funcionavam melhor em lugares sombrios.
A Inquisidora aguardava, seu rosto pálido quase brilhando, como
se sua pele fosse fosforescente. Há quinze metros de distância ele sentiu
sua antecipação. Um predador pronto para atacar; um caçador que
finalmente cercou sua presa.
Frio deslizou pela sua espinha. Parecia que a Inquisidora estava
determinada a produzir sua melhor obra de trabalho.
Quando se aproximou dela, ela indicou a mesa e duas cadeiras ao
lado dela, as únicas peças de mobiliário no espaço cavernoso. As duas
cadeiras estavam nos lados opostos da mesa, uma cadeira baixa e plana,
a outra alta e elaborada. Ou Titus escolhia a cadeira indicando maior
status e dava a Inquisidora mais uma razão para derrubá-lo, ou se
submetia à realidade da situação, selecionava a cadeira menor e
aguentava a entrevista da Inquisidora.
Sua solução foi pisar na cadeira menor e se empoleirar no encosto.
Felizmente, o encosto era plano. Se tivesse alguns entalhes, como as
cadeiras de jantar em que a Sra Dawlish e a Sra. Hancock estavam

213
sentadas, ele teria que se conformar com sentar no braço, o que não daria
a mesma impressão descuidada e confiante.
A Inquisidora franziu a testa. Titus havia lhe cedido a cadeira
maior, mas agora ele tinha a vantagem da altura.
Ela sentou e colocou as mãos juntas em cima da mesa.
Ele respirou profundamente. E então começou.
— Agora, Sua Alteza, o que você tem feito com Iolanthe
Seabourne?
Ele se preparou para esta pergunta exata, mas ainda assim se
sacudiu, como se tivesse agarrado um fio elétrico.
— Você fala da maga elementar desaparecida que você está
procurando?
— Na última vez que nos vimos, você não acreditou que ela era
uma maga elementar.
— Lady Callista me disse que Atlantis está procurando-a com toda
sua força, — Titus disse com tanta paixão quanto poderia reunir. — Ela
até me encorajou a procurá-la, uma vez que a menina é, afinal, minha
própria súdita.
A Inquisidora ignorou sua insinuação. — Você esteve no chalé e
em Little-Grind-on-Woe imediatamente após o relâmpago. Após sua
visita, você mudou seus planos e foi para a Inglaterra meio dia antes do
que originalmente programado. E quando chegou lá, em vez de se dirigir
diretamente para sua escola, foi para Londres, para um hotel onde
manteve um quarto sob o nome de Sr. Alistair McComb, de onde partiu
abruptamente. Você pode explicar seus movimentos, Sua Alteza?
Ele queria provocá-la. E onde eu estava entre o tempo que cheguei
em Londres e o tempo que fiquei no hotel? Você pode me dizer isso também?
— Vejo que você está fixada no menor dos meus feitos, — ele disse.
— Muito bem, minha partida abrupta do Domínio é facilmente explicada:
não estou ao seu alcance, Senhora Inquisidora. Você não pode dizer para
mim: Posso convidá-lo nesta noite, Sua Alteza, para discutir o que você
viu?
A Inquisidora franziu seus lábios.

214
— Além disso, se você tivesse tomado o tempo para perguntar aos
meus servos, você saberia que eu havia decidido voltar à escola mais
cedo, antes que o relâmpago caísse. Agora, a suíte do hotel. Sou jovem e
tenho necessidades que devem ser atendidas. Considerando que a
residência da escola não permite tais atividades, eu mantenho um lugar
fora da escola. Quanto ao motivo da minha partida, não consigo imaginar
por que eu deveria permanecer uma vez que a ação havia terminado.
— E para onde foi sua companheira depois... da ação?
— Saiu antes de mim. Não havia necessidade da presença dela,
uma vez que ela cumpriu seu propósito.
— Não houve nenhum relatório de alguém indo ou vindo.
Claro que não, já que ela saiu comigo.
Desta vez ele teve que engolir as palavras enquanto se levantavam
na sua língua.
— Você esteve observando todas as portas de serviço? Um grande
hotel tem muitas.
— Onde você a encontrou?
Em certa casa em Little-Grind-on-Woe. Muito bem satisfeita por
dominar o relâmpago, aquela garota.
— Em certo...
Qual era o problema com ele? Ele era um verdadeiro mentiroso. A
verdade nunca deveria se aproximar dos seus lábios.
— ...distrito de Londres. Você já esteve em Londres, Senhora
Inquisidora? Há partes desagradáveis que dizem respeito a meninas que
devem ganhar a vida duramente. Você não tem ideia das pechinchas
feitas lá. — Ele esfregou o polegar no queixo. — E, francamente, depois
do meu encontro com você, eu desejava punir alguém.
Um pequeno músculo pulou no canto do olho da Inquisidora. —
Entendo, — ela disse. — A Sua Alteza dá uma nova definição à
precocidade.
Muito pelo contrário. Não consigo me aproximar de ninguém. E
Fairfax nunca vai me querer agora, não é?

215
O alarme pulsou através dele. O que importava? Por que estava
surpreso com a necessidade de confessar?
Soro da Verdade. Ele recebeu uma dose de soro da verdade. Mas
como? Ele não tomou nada na festa, nem mesmo do ponche de Aramia.
Ele não ingeriu o ponche de Aramia, mas certamente tocou o copo,
segurou-o em sua mão por muito mais tempo do que teria feito se outra
pessoa tivesse oferecido aquele copo. O copo não estava gelado como ele
pensava: ele teria percebido se tivesse realmente tomado um gole do
próprio ponche. A frieza viera de um gel passado externamente em seu
copo, e o soro de verdade entrara por sua pele.
Era por isso que Fairfax bicara-o, tentara avisá-lo.
Ele temia ser testado com o soro da verdade, tanto que nunca
aceitou nada além de água nas refeições que a Sra Dawlish fornecia e
raramente bebia chá que ele não preparava com as próprias mãos. Ele
praticou a mentira enquanto estava sob a influência do soro de verdade.
Uma gota. Conte uma mentira. Duas gotas. Outra mentira. Três gotas.
Continue a mentir.
Mas nunca suspeitou de Aramia. Ela era boa, gentil, tranquila,
tolerante, ansiosa em agradar.
Em retrospectiva, tudo era claramente óbvio. Ela desejava a
aprovação da mãe. Se não fosse bonita, ela ainda poderia explorar a culpa
de Titus e se tornar útil. Ela havia dito, não? Ele não sentiu o mínimo de
alarme, apenas simpatia tão afiada que machucava.
A amizade é insustentável para as pessoas em nossa posição, ele
havia dito à Fairfax. Ele pensou que só se aplicava a Fairfax?
A Inquisidora olhou para ele. — Sua Alteza, onde está Iolanthe
Seabourne?
Aqui mesmo nesta sala. Ele estava em guarda, muito, muito em
guarda. No entanto, ainda sentiu seus lábios se separarem e formarem a
primeira sílaba para pronunciar a verdade.
— Eu pensei que já havia estabelecido que não tenho interesse,
nem sei onde está sua maga elementar.
— Por que você está protegendo-a, Sua Alteza?

216
Porque ela é minha. Você a terá sobre meu cadáver.
— Porque...
Ele se arrancou do precipício. Uma dor afiada cortou sua cabeça,
quase derrubando-o de sua posição na cadeira. Ele endireitou-se; a
cadeira balançando com o esforço. — Porque não tenho nada melhor para
fazer do que entrar em conflito com Atlantis, aparentemente?
A testa da Inquisidora fraziu.
— Há algo que você deveria saber sobre mim, Senhora
Inquisidora. Não me importo com ninguém, exceto comigo mesmo. Não
gosto de Atlantis. Eu desprezo você. Mas não vou prejudicar um fio de
cabelo na minha cabeça por meros irritantes como você. Por que eu me
importaria se você encontra a menina ou não? Não importa o que
aconteça, ainda sou o Mestre do Domínio.
As palavras doíam. A garganta queimava. O interior de sua boca
parecia estar mordendo unhas. E a dor de cabeça distorceu a visão em
seu olho esquerdo.
A Inquisidora o observou. Olhar em seus olhos era como olhar o
sangue escorrendo pela rua. — Você mencionou Lady Callista há um
minuto, Sua Alteza. Tenho certeza que você está ciente de que Lady
Callista e sua falecida mãe eram amigas íntimas. Sabe o que Lady Callista
me contou logo após a coroação? Ela disse que sua mãe acreditava ser
uma vidente.
Titus engoliu com dificuldade. — O que isso tem a ver com
qualquer coisa?
— Uma das coisas que a princesa Ariadne previu era que eu seria
a Inquisidora do Domínio.
— Você é, — Titus disse.
A Inquisidora sorriu. — Eu sou, mas Sua Alteza desempenhou um
papel crucial. — Titus estreitou os olhos. Ele nunca ouviu nada do tipo.
— Cerca de dezoito anos atrás, um novo Inquisidor chamado Hyas foi
nomeado para o Domínio. Ele era jovem, enérgico, excepcionalmente
capaz, e soberbamente leal ao Senhor Comandante Supremo. O Senhor
Comandante Supremo não poderia ter ficado mais satisfeito com o

217
desempenho dele. Parecia para todos que ele estava preparado para um
longo período de mandato. Mas, três anos após sua nomeação, ele foi
demitido abruptamente. Ninguém sabia o porquê – nós servimos ao
prazer do Senhor Comandante Supremo. A sua substituta, Zeuxippe, era
tão qualificada e leal. Mantiveram-na no cargo por apenas dezoito meses,
sua remoção não menos abrupta e sem cerimônias. Depois disso, fui
promovida. Durante anos, fiquei tão desconcertada como todos os outros
com relação aos eventos que levaram à minha nomeação. Ontem tive uma
audiência com o Senhor Comandante Supremo. Enquanto eu estava em
Atlantis, liguei para os meus dois predecessores e os convenci a me
contar suas histórias.
Titus não fez nenhum comentário sobre sua... persuasão.
— Hyas foi demitido por acusações de fraude e corrupção. Ele
exultantemente protestou a favor de sua inocência, mas como alguns dos
maiores tesouros da Casa de Elberon foram encontrados em sua guarda,
suas palavras caíram em ouvidos surdos. O relato de Zeuxippe era ainda
mais ignominioso, se isso fosse possível. Ela foi acusada de avanços
impróprios contra a princesa Ariadne. Foi uma acusação perniciosa.
Destruiu não só a carreira de Zeuxippe, mas também sua vida pessoal: o
amor de sua vida a deixou depois de saber das acusações. Agora eu sou
cínica – se magos fossem honestos, não haveria necessidade de
Inquisições. Mas acabei convencida da inocência de Hyas e de Zeuxippe
em suas respectivas acusações. O que me levou à única conclusão
possível, que a princesa Ariadne era louca e disposta a fazer qualquer
coisa para tornar verdadeira sua profecia.
Titus saltou da cadeira. — Eu não vim aqui para escutar asneiras.
Ele estava furioso. Ele só podia esperar que sua fúria fosse
suficiente para mascarar sua consternação.
Tudo – tudo – dependia na precisão das visões de sua mãe. Se ela
fosse uma fraude que trapaceava para cumprir suas profecias – ele não
poderia sequer seguir o pensamento para sua conclusão lógica.

218
A Inquisidora sorriu ligeiramente. — Lady Callista também me
disse que quando eram crianças, Sua Alteza teve uma visão de que um
dia ela morreria na mão de seu próprio pai.
Ele recuou. A morte de sua mãe deixou feridas que ainda
precisavam se curar. A Inquisidora estava arrancando os pontos um a
um.
— O mago comum acredita que a morte de Sua Alteza é o
resultado da doença – sua saúde sempre foi delicada e sua passagem aos
vinte e sete inesperadamente cedo, mas não implausível. Você e eu, no
entanto, ambos sabemos que o príncipe Gaius, para demonstrar seu
desejo de manter a paz com Atlantis, executou Sua Alteza como um gesto
de boa vontade e submissão. Mas agora eu me pergunto se Sua Alteza
não participou da revolta com o objetivo de ser punida, a fim de poder
preservar a integridade de sua profecia.
Ele queria gritar que sua mãe nunca gostou de seu dom – que foi
um fardo. Mas ele acreditava?
A Inquisidora sorriu novamente. — Não posso deixar de pensar
que o que você está fazendo agora tem algo a ver com os desejos da
princesa Ariadne. Ela previu algum destino magnífico para você que
exigiria que você arricasse a vida e a liberdade? Porque, como você disse,
Sua Alteza, você é um homem muito sensato e jovem. Não posso acreditar
que você jogue fora os melhores anos de sua vida por sua própria
iniciativa.
Seu coração pulsava – mais do que a agitação das palavras da
Inquisidora. Havia o soro da verdade, punindo-o por não ceder a ele, por
não contar tudo o que a Inquisidora desejava saber. Mas havia algo mais
também. Algo que o deixou tonto. Ele agarrou a parte de trás da cadeira
e olhou para a Inquisidora.
— Você deveria ter sido uma dramaturga, Senhora Inquisidora.
Nossos teatros sofrem com uma falta de enredos sensacionais.
Seus olhos se prenderam nos dele. — Um filho tão leal. Ela era
tão fiel a você? Ou será que ela te viu como apenas um meio para um
fim?

219
Ele endureceu seu aperto para que suas mãos não tremessem. —
Você atribui muitas causas a uma simples mulher. Minha mãe não era
nem inteligente, nem estrategista. E não estava perto de ser implacável o
suficiente para usar seu único filho como peão em algum jogo de xadrez
com o destino.
— Você tem certeza?
Sua cabeça doía, como se alguém tivesse marcado seu cérebro
com vidro quebrado. Mas nada doeu tanto quanto a possibilidade de sua
mãe ter tornado-o órfão para provar a si mesma.
Errado. Algo machucaria mais: a ideia de que ela ainda não tinha
acabado de provar que estava certa, além do túmulo, ela ainda
manipulava Titus para justificar as escolhas que fez na vida.
— Estou tão certo como você da veracidade de Lady Callista.
— Mas você nao está. Posso ver que não está. O desrespeito de
seu arranque prejudica você. E por que não deveria ficar indignado? O
amor de um filho por sua mãe não deve ser pervertido assim.
Era isso o que sua mãe fez? Explorou e contaminou seu amor por
ela não por um objetivo nobre que era maior do que suas vidas
individuais, mas pela simples fixação de estar certa?
Ele sempre esteve sozinho nisso. E sempre lutou contra suas
próprias dúvidas. Agora, as dúvidas e a solidão ameaçavam engoli-lo
completamente.
Ele queria dizer alguma coisa. Mas a sensação em sua cabeça –
como se a borda do crânio estivesse esfriando. Ele balançou. Suas mãos
apertaram mais na cadeira.
Era assim que a Inquisidora operava, ele entendeu tudo. Uma
mente calma e recolhida era muito mais insistente para ela, então ela
primeiro destruía a compostura de seus interrogados. Quando ficavam
perturbados, ela agia.
Sua alcunha entre os atlantes era a estrela do mar. Uma estrela
do mar inseria seu estômago entre as conchas de um mexilhão e digeria
o pobre bivalvia no lugar. A Inquisidora fazia o mesmo com os conteúdos
da memória das pessoas: dissolvendo os limites da mente do coitado,

220
sugando todas as suas lembranças na sua própria e classificando os
destroços em seu lazer.
— Somente os tolos estão no caminho da Atlantis. Onde está
Iolanthe Seabourne?
Ele não permitiria que ela tirasse nada dele. Ele não podia. Se ela
tivesse alguma suspeita de que ele estivesse escondendo Fairfax para
frustrar o Bane, mas sim para derrubá-lo totalmente, Atlantis não o
deixaria viver. E Fairfax... Fairfax desapareceria da face da Terra.
Mas ele sentiu o início da cirurgia inimiga da Inquisidora. Os
poderes dela cortaram e irritaram seu crânio. Ele tentou repeli-la. Tentou
voltar a indiferença habitual. Ele não podia. Tudo o que podia pensar era
que sua mãe havia feito isso com ele.
— Onde está a menina que convocou o relâmpago? Fale!
Ele não percebeu até que suas unhas gritavam em protesto que
ele estava arranhando o mármore. Ele não sabia quando havia caído, só
que não conseguia se levantar. Sua visão estava escurecendo. Não, estava
se estreitando em um túnel. E no final de tudo, sua mãe estava sentada
na varanda, acariciando distraidamente seu canário pelas barras de sua
gaiola.
O canário cantava, urgentemente, lindamente.
Agora ele estava realmente alucinando. A Inquisidora cavou fundo
o suficiente para extrair suas memórias? A dor em sua cabeça fazia seu
estômago revirar.
O canário cantou de novo.
Fairfax. Era Fairfax. Eles colocariam suas mãos nela dentro de
uma hora, se ele não a tirasse dali.
Mas ela ainda estava livre. Ela podia fazer algo: arrancar os olhos
da Inquisidora ou esvaziar o conteúdo das suas entranhas na cabeça da
Inquisidora.
Ele riu. Mas mesmo para si mesmo, ele parecia bastante
perturbado.
Ele ergueu a cabeça e abriu os olhos. Fairfax estava bem à sua
frente, agitando loucamente.

221
Capítulo 16
A cabeça do príncipe chocou-se contra o chão.
Iolanthe gritou, um chilreio rouco.
Ela ficou maravilhada com as revelações da Inquisidora. Então
aterrorizada – e se o príncipe a abandonasse? Então a dor explodiu sobre
ela, como se alguém exercesse uma arma de fogo dentro de seu crânio.
Ela convulsionou, suas asas tremendo inutilmente.
Ele se lembrou de tirá-la de seu manto antes de cair.
Até então, ela pensou que era a única que sofria, que ele estava
errado sobre a Inquisidora ser incapaz de afetar a mente de pássaros e
répteis. Mas quando os joelhos dele ficaram diante dela, ela percebeu que
não era o alvo da Inquisidora, ele era.
Ele estava sendo torturado e ela, talvez por causa do vínculo do
juramento do sangue, compartilhou a agonia dele.
A visão de suas mãos agarrando-se sem pensar nos pisos de
mármore – do jeito que um homem enterrado vivo arranharia a tampa do
caixão – afrouxou momentaneamente a pressão que a dor tinha sobre ela:
ele estava muito pior do que ela.

222
Seus olhos vidrados a assustaram. Ela nunca acreditou que ele,
de todas as pessoas, sempre controlado e perfeitamente preparado,
poderia ser tão vulnerável.
Não só vulnerável: desamparado.
A menos que ela o ajudasse.
Mas ela não era forte o suficiente para perturbar o alicerce do
Inquisitório, ou até mesmo as paredes da Câmara de Inquisição. E se
fosse desencadear fogo ou água, seria óbvio que um mago elemental
estava fazendo isso.
Será que poderia furar os olhos da Inquisidora com o bico? O
próprio pensamento a fez querer vomitar. Isso também era impraticável.
Ela podia sair do chão, mas não podia voar rápido ou reto, o que a tornava
inútil como uma arma.
Ela olhou ao redor desesperadamente. Um candelabro pendia de
uma corrente de ferro forjado suspensa. Tinha quatro ramos, cada um
segurando uma esfera de luz de porcelana em um copo raso. Um feitiço
anti-quebra foi inventado para o vidro, mas não para a porcelana. Se ela
balançasse o candelabro, as esferas de luz se estenderiam e cairiam nove
metros para acertarem onde a Inquisidora estava sentada.
Mas ela não deveria criar uma rajada muito forte, ou a Inquisidora
imediatamente suspeitaria da presença de um mago elementar.
Uma rajada muito forte... ela que nem poderia fazer flutuar um
pedaço de papel.
Uma explosão concentrada de ar que não seria sentida no nível
do chão. E de uma só vez, de modo que, no momento que Inquisidora
notasse algo errado, Iolanthe já teria cumprido sua ação.
Ela poderia fazer isso?
Um flash de dor cortou seu olho esquerdo. Ela estremeceu. O
príncipe estremeceu no chão. Ele apertou as mãos em ambos os lados
das orelhas. O sangue escorreu entre os dedos.
A visão chocou Iolanthe loucamente. Ela deveria tirá-lo daqui.
Ela tentou limpar a cabeça, concentrar-se até que não houvesse
nada além de um único propósito. Mas dúvida manteve sua retenção

223
teimosa. Ela nunca conseguiria, sussurrou uma voz suave. Ela não podia
nem quando estava se afogando de mel. O que a fazia pensar que poderia
agora?
O mel era uma ilusão. Mas isso era real. A sanidade dele estava
em jogo. Ela poderia acusá-lo de loucura, mas ela furaria os olhos da
Inquisidora antes de deixar a mulher destruir a mente dele.
Iolanthe bloqueou todo o resto e permitiu-se apenas lembrar o que
sentia quando manipulava fogo ou relâmpago. Aquela convicção
absoluta. Aquele sentimento profundo de conexão.
A incerteza ainda lambia as bordas de sua mente.
O tempo estava acabando. A Inquisidora levantou, ameaça
sufocou o ar nos pulmões de Iolanthe.
Iolanthe fechou os olhos. Faça. Agora. E faça exatamente o que eu
quero.
Um silêncio aparentemente infinito seguiu seu comando. Como
você ousa me desafiar? Faça isso AGORA.
Chegou um som maçante de impacto, seguido por vários choques
afiados e um grito sobrenatural. Então, de repente, o silêncio. Iolanthe
abriu os olhos. A Câmara da Inquisição estava brilhante como o dia, o
piso aceso com elixir de luz derramada, a luminância já não estava
amortecida pela opacidade das esferas de porcelana.
As portas abriram. Magos entraram correndo.
— Sua Excelência! — Os agentes da Inquisidora gritaram.
— Sua Alteza! — Lowridge gritou.
O príncipe ficou encurvado no chão. Sangue manchava seu rosto,
a gola e o chão debaixo da sua cabeça.
Iolanthe mal evitou ser pisoteada enquanto pulava na direção
dele. Ela bateu suas asas em grande parte inúteis, subiu no sapato de
um guarda e depois disparou sob a virilha de outro guarda para pousar,
desajeitadamente, no ombro do príncipe.
O capitão da guarda verificou o pulso do príncipe, seu rosto
irritado.
— Ele ainda está vivo, senhor? — Um dos guardas perguntou.

224
— Está, — o capitão disse. — Devemos levá-lo à segurança sem
demora.
Mas Baslan impediu seu caminho. — Exijo uma explicação do que
aconteceu com a Senhora Inquisidora.
Iolanthe notou pela primeira vez que a Inquisidora, como o
príncipe, estava no chão. Agentes ansiosos a cercaram. Iolanthe não
podia ver seu rosto, mas parecia tão inconsciente quanto ele51.
O capitão endireitou-se na sua altura total e elevou-se sobre
Baslan. — Como você ousa perguntar o que aconteceu com a
Inquisidora? O que ela fez ao nosso príncipe? Se você não se retirar do
meu caminho nesse instante, considerarei isso uma provocação de
guerra e atuarei em conformidade.
Iolanthe não podia respirar. Ficara frenética de medo pela
possibilidade de um dano irreversível que a Inquisidora poderia ter
causado no príncipe; nem sequer lhe ocorreu o pesadelo diplomático que
ela provocou interrompendo a Inquisição.
Baslan vacilou.
Mas o Capitão Lowridge não. Com duas das lanças cerimoniais
dos guardas e sua própria capa, ele fez uma maca improvisada. Os
guardas colocaram o príncipe na maca e saíram da câmara da Inquisição
atrás de seu capitão.
A carruagem ainda estava no pátio. O capitão Lowridge depositou
cuidadosamente a liteira do príncipe no chão da carruagem e pegou as
próprias rédeas. Soldados Atlantes bloquearam a saída. As asas de
Iolanthe se contraíram. Se isso acontecesse, ela ousaria convocar outro
relâmpago?
— Abra o caminho para o Mestre do Domínio. — A voz do capitão
Lowridge era um estrondo que parecia percorrer por quilômetros. — Ou

51 O poder de um mago mental poderoso é frequentemente comparado ao de uma broca,


perfurando o crânio para alcançar sua vítima. Mas a verdade é um pouco mais
complexa. Em uma sonda, a mente de um mago mental, embora dominante, é em um
sentido tão exposta quanto a mente de sua presa, tão vulnerável quanto devastadora.
– Da arte e da ciência da magia: uma cartilha

225
você terá declarado guerra contra ele. E nenhum de vocês verá Atlantis
novamente.
Os soldados olharam um para o outro. Finalmente, um deu um
passo para o lado e o resto seguiu. Um sargento abriu os portões triplos.
O capitão Lowridge acelerou a carruagem para fora, seus guardas atrás
dele.
Eles chegaram aos limites do Inquisitório em um momento. O
capitão Lowridge assobiou. Em seu comando, os pégasus espalharam
suas asas e a carruagem levantou no ar.
— A Cidadela, — ele gritou para seus subordinados.
— Não, — o príncipe disse. — Iolanthe se assustou. Ela pensou
que ele ainda estava inconsciente. — Não vá para a Cidadela. O castelo.
Seus olhos permaneceram fechados, sua voz era baixa e fraca,
mas ele certamente estava lúcido.
— Sim, majestade, — o capitão respondeu. Ele repetiu a ordem do
príncipe. — Nós voltaremos para o castelo sem demora.
— Canário, — o príncipe murmurou.
Iolanthe saltou sobre a palma ensanguentada. A mão dele se
fechou sobre ela. Em outro momento, ela teria protestado contra o aperto
tão forte, mas agora ela estava fervorosamente feliz por ele ter tido força
suficiente para se mexer.
Eles correram pela via aérea acelerada, o trânsito noturno sobre
Delamer cedeu lugar ao estandarte principesco voando sobre a
carruagem. O aumento da aceleração contou a Iolanthe que eles
deixaram Delamer. Ela nunca esteve tão feliz por estar quase asfixiada.
O príncipe resmungou de dor quando foram expulsos no outro extremo.
Ela esfregou a cabeça contra a ponta da palma da mão. Quase em
segurança – eles estariam bem.
— Sua Alteza, se você puder, — o capitão disse assim que estavam
acima das Montanhas Labyrinthine.
O príncipe puxou sua varinha e murmurou alguma coisa
francamente. Para o sudeste, um clarão disparou no céu, iluminando as
torres mais altas do castelo.

226
— Obrigado, Majestade.
O capitão dirigiu-se na direção do luz. Iolanthe havia esquecido
da mudança das montanhas, mesmo aqueles que viviam no castelo
deveriam procurá-la cada vez que saíam e voltavam.
O príncipe pediu para ser levado no arco de pouso no topo do
castelo, em vez de no pátio. Ele permitiu que o capitão o ajudasse a sair
da carruagem e se inclinou sobre ele para caminhar.
Seu valete, seus atendentes e uma horda de pajens o cercaram.
Eles se aglomeravam ao redor dele. Ele ordenou que o deixasse em paz,
parecendo perverso, da forma que ele fazia tão bem.
— Afastem-se, seus idiotas. Não consigo respirar.
— O médico da corte está a caminho, — um atendente disse.
— Mande-o embora.
— Mas o senhor...
— Mande-o embora ou eu mandarei você embora. Não terei
pessoas dizendo que eu preciso ser remendado depois de uma mera
conversa com aquela pessoa intratável.
Mas é claro que ele precisava ser remendado. Ele sangrou tanto –
e dos ouvidos.
Mesmo assim, o príncipe prevaleceu. Ele proibiu que a maioria da
multidão ficasse do lado de fora das portas de seu aposento. A maior
parte não era permitida além da ante-sala.
O médico da corte, que ignorou seus desejos e veio mesmo assim,
não só foi negada a entrada no quarto do príncipe, como também recebeu
um longo discurso.
— Você se atreve a insinuar que não posso falar com a Inquisidora
por dez minutos sem necessidade de atenção médica? Que tipo de pessoa
você acha que eu sou? Eu sou o príncipe herdeiro da sangrenta casa de
Elberon. Não preciso de um cirurgião sabe tudo depois de um bate-papo
com aquela bruxa atlante.
Mesmo o valete recebeu uma bronca após ajudar o príncipe a tirar
seu manto. — Vá.
— Mas senhor, pelo menos permita-me limpá-lo.

227
— Quem você acha que me limpa quando estou na escola? Não
sou um daqueles príncipes antigos que não toca seu próprio traseiro.
Saia.
O valete protestou. O príncipe o afastou do quarto e fechou a porta
no rosto dele.
Ele cambaleou, agarrou-se a uma pequena árvore frutífera que
crescia em uma panela esmaltada, cambaleou para dentro do reservado
e vomitou.
Iolanthe chilreou, infelizmente, onde ela foi deixada – fora da porta
fechada do reservado. A torneira se abriu. Chegaram sons de salpicos. O
príncipe emergiu cinza, mas com a maior parte do sangue em seu rosto
lavado. Ele a pegou e balançou quando se endireitou.
— Você queria estar no banho comigo hoje mais cedo, querida,
não é? Bem, agora você obtém seu desejo.

***

Uma vez que a banheira de ametista foi preenchida, Titus escalou


completamente vestido. Ele lavou o sangue das penas de Fairfax e recitou
uma senha. No instante seguinte, ele estava sentado em uma banheira
diferente, vazia, suas roupas e suas penas perfeitamente secas.
— Bem-vinda à escola que eu deveria frequentar, — ele
murmurou.
O antigo mosteiro era um lugar de solidão e contemplação, um
refúgio das pressões do mundo. Também era usado como um local de
aprendizado, seu ar limpo e distante das distrações mundanas julgadas
inúteis para os estudos de um princípe.
Titus passava meses aqui todos os anos entre os semestres de
Eton, lendo, praticando e experimentando. Para alguém que deveria
manter segredos, era um refúgio, sendo tão livre de espiões e vigilância
como era possível atualmente. Não havia pessoal interno, exceto aqueles
que ele escolhia para trazer, e a equipe vinha apenas uma vez por semana
para manter os terrenos.

228
Ele saiu da banheira, tão desajeitado quanto uma criança com
sono. Uma mão na parede para se estabilizar, ele avançou abatido ao
longo dos corredores, seus passos ecoando, parando cada minuto ou
mais para fechar os olhos e retomar sua respiração.
Sempre que o fazia, uma cena ameaçadora passava no interior de
suas pálpebras, de wyverns e carros blindados atravessando o céu em
uma coreografia de graça mortal. A visão veio pela primeira vez na
Câmara da Inquisição, suplantando a imagem de sua mãe e seu canário,
antes de uma onda de dor horrível deixá-lo inconsciente.
E agora se repetia sempre que ele fechava os olhos por mais de
alguns segundos.
Fairfax chilreou quando ele abriu a porta do repositório. — Sim,
eu remodelei meu laboratório a partir deste local. Mas esse é muito maior,
não é?
O repositório era dez vezes maior, suas prateleiras mantendo cada
substância conhecida no mundo mágico. Ele abriu as gavetas e apertou
os olhos – a dor de cabeça lhe dando uma visão dupla.
— Estamos com problemas. — Ele desejou se calar, mas o soro da
verdade ainda pulsava em suas veias e ele era muito fraco para lutar
contra isso. De qualquer forma, ela não se lembraria de nada após
retomar a forma humana. — Temo não ter convencido a Inquisidora de
nada, exceto a minha vontade extraordinária de esconder a verdade dela.
Fairfax tremeu em sua mão. Ou talvez fosse apenas ele tremendo.
Ele tomou uma série de remédios, seguidos de duas garrafas de
tônico. Elas tinham o sabor de água que foi deixada por quinze dias,
grossa com lodo crescente. Ele não se incomodou em minimizar o sabor,
pensando que seria bastante viril em tempos de necessidade para não se
preocupar com detalhes menores como sabor e textura.
Ele estava errado, como evidenciado por outra viagem ao
reservado para desocupar o conteúdo de seu estômago.
Tropeçando de volta, ele recolheu Fairfax do balcão onde a colocou
e se dirigiu para uma seção diferente do repositório, apoiando-se nas
mesas ao longo do caminho para preservar sua força.

229
— Preciso trazer você de volta, — ele disse, mostrando a Fairfax
um frasco de vidro com grânulos brancos que ele havia localizado. —
Você teria voltado no seu próprio tempo durante a noite, mas é melhor
você fazer isso enquanto estou lúcido.
Ele contou três grânulos. Ela alcançou ansiosamente por eles. Ele
bloqueou seu bico. — Não agora, a menos que você planeje aparecer nua
diante de mim. Espere, esse é o seu plano, não é?
Ele queria deixar de olhar para ela, mas teve que fazer uma careta
quando sua cabeça latejou novamente.
Ela bateu forte no lado de fora da mão dele.
— A senhora protesta demais, eu acho. — Ele citou. — Deixa pra
lá. Você não conhece nada de Shakespeare, sua ignorante.
Com Fairfax na mão, ele ziguezagueou em uma sala adjacente,
onde ele às vezes dormia quando ficava trabalhando no repositório. Ele
tirou o lençol cobrindo o colchão fino, colocou-a na cama, colocou os três
grânulos diante dela e espalhou o lençol sobre a cama novamente,
enterrando-a debaixo dele. Ele colocou sua túnica e botas ao lado para
que ela tivesse algo para vestir. A túnica não havia escapado
completamente do seu sangramento, mas, considerando as
circunstâncias, estava suficientemente limpa.
— Lembre-se, será desagradável e você não poderá se mover
imediatamente. Eu espero no repositório.
Ela chilreou após alguns segundos, talvez tentando se certificar
de que ele desocupou as instalações.
— Ainda estou aqui, me arrastando, — ele respondeu.
Ela chilreou novamente. Provavelmente dizendo para ele se
apressar, mas ele escolheu se divertir um pouco com ela – havia uma
grande escassez de diversão em sua vida.
— Você está ansiosa? Imagine como me sinto, querida.
Ela chilreou duas vezes seguidas. Ele desejou não se sentir tão
miserável – levar uma conversa imaginária com ela, de outra forma, teria
sido um uso altamente gratificante do tempo dele.
— Como você pode ajudar? Se você é apenas... — ele parou.

230
Ele tentava, sem sucesso aparente, superar o abismo entre eles.
Mas isso não era tudo o que ele queria, não é? Não, ele era muito mais
ambicioso do que ele mesmo percebeu. Ele queria que ela fizesse...
— Apaixone-se por mim. — Ele ouviu alto e claro as palavras que
o soro da verdade o compeliu. — Se você me amasse, tudo seria tão mais
fácil.

***

A transformação foi horrível, como se uma centena de roedores


estivessem tentando encontrar o caminho para sair da pele de Iolanthe.
Depois, ela permaneceu no lugar, incapaz de se mover – e não
apenas por causa de sua debilidade física.
As coisas que a garota queria a assustaram.
Ela deveria rir de tais ambições de sua parte: nada nele
assegurava algum romance para ela, não sua coroa, nem seu coração
sombrio, nem seu rosto lindo de mentiroso.
Mas ela tremia por dentro, pois o que ele queria não era
impossível.
Não era nem improvável.

***

— Eu não estou morto... ou estou prestes a morrer, — Titus disse


em resposta ao suspiro de Fairfax da porta.
Ela estava ao lado dele, suas respirações ásperas. — Então, por
que você está no chão?
Ele perdeu a consciência novamente depois de tomar a maioria
dos remédios. E pareceu mais fácil, depois de ter caído, simplesmente
permanecer no chão.
— Você teve a cama mais próxima. Como foi a transformação, por
sinal?

231
Ela não respondeu, mas só o puxou para se levantar, e meio
carregou, meio que o arrastou para a cama próxima. — Você tem certeza
de que não está morrendo neste instante?
— Tenho certeza. Eu morreria caindo, não mentindo
confortavelmente em uma cama.
— O quê?
Porra, o soro da verdade ainda estava correndo por suas veias. Ele
deveria ter censurado a si mesmo – ela não era mais um pássaro. — Faça
um pouco de chá para mim, você faria? Tudo o que você precisa, você
encontrará no depósito, no armário embaixo do globo.
Ela o olhou com os olhos estreitados, mas saiu, voltando alguns
minutos depois com duas canecas fumegantes e uma lata de biscoitos.
Ele tentou se sentar.
Ela colocou a palma firmemente contra o peito dele. — Fique
deitado.
— Como eu tomo chá deitado?
— Você esqueceu quem eu sou? — Um glóbulo de chá translúcido
e esfumaçado veio em sua direção. — É assim que você vai beber chá
deitado.
A expressão dela estava em algum lugar entre raiva e tristeza,
mais próximo de algo que ele não conhecia.
— Eu posso me sentar para uma xícara de chá, — ele disse.
— Não. Eu estava lá. Eu sei o que a Inquisidora fez com você. Eu
vi você sangrar dos ouvidos.
Ele respirou fundo. — Você se lembra?
— Sim.
Antes de tentar a sua primeira transmogrificação, ele havia lido
toda a literatura existente sobre o assunto. A transmogrificação era magia
bastante antiga, então, embora sempre tivesse sido desaprovada e às
vezes proibida, não havia falta de registros e estudos.
Em mil e quinhentos anos, havia apenas dois relatos de magos
alegando memória de tempos em tempos na forma animal. A maioria dos
estudiosos considerava que esses magos eram exagerados ou mentirosos.

232
Mas Fairfax claramente não estava mentindo – não havia outra
maneira de saber o que aconteceu com ele na Câmara da Inquisição,
exceto confiar em sua própria memória.
— Como?
— Não sei. Pergunto-me se tem alguma coisa a ver com o
juramento de sangue – que eu tivesse que manter a continuidade da
consciência, de modo que eu nunca corresse o perigo de trair a minha
palavra.
Ele quase não ouviu nada que ela disse ao lembrar o que ele havia
dito. Se você me amasse, tudo seria tão mais fácil.
Ela ainda estava falando, repreendendo-o por sua estupidez em
recusar-se a deixar o médico da corte examiná-lo, embora ele tivesse
sangrado pelos ouvidos.
— Eu não estava sangrando pelos ouvidos.
— Não minta. Eu vi.
— Eu não posso mentir para você enquanto estiver sob o
juramento de sangue, lembra-se? O sangue veio das veias em meus
dedos... eu tinha extratores escondidos dentro de minhas braçadeiras. O
médico da corte teria percebido. Era por isso que eu não podia vê-lo. Não
posso permitir que a Inquisidora ouça que não estou tão ferido como
deveria estar.
Pelo jeito como ela olhou para ele, ele não podia dizer se queria
dar um soco ou abraçá-lo. Provavelmente o primeiro. Ele sentiu falta
dessas breves horas, quando ela o abraçaria. Ele nunca gostou tanto de
quando ela gostava – até admirava – dele.
— Como você sabia que precisaria de extratores? — Ela
perguntou, ainda suspeita.
— Antes que suas mentes se rompessem, os interrogados da
Inquisição geralmente sangravam de vários orifícios. Eu esperava que
quando eu sangrasse, a Inquisidora pensaria que ela tinha ido o
suficiente.
Ela apertou os dentes sobre o lábio superior. — Ela parou?

233
— Não. — Ele balançou a cabeça – e fez uma careta com a dor
aguda provocada pelo movimento. — O que aconteceu lá? O capitão
Lowridge conseguiu quebrar as portas?
Interrupções durante a Inquisição nunca foram permitidas. Se o
capitão Lowridge tivesse realmente entrado, para a segurança do homem,
Titus precisaria demiti-lo imediatamente, para que ele pudesse se
esconder da ira da Inquisidora.
— Não, — Fairfax disse. — Os agentes dela entraram primeiro
quando a ouviram gritar. No entanto, o capitão Lowridge seguiu atrás.
Ele franziu a testa. — O que a fez gritar, então?

***

Iolanthe contou sua tática, apenas prestando atenção em sua


própria história, ainda se afastando da revelação de que o príncipe havia
planejado a parte do sangramento.
Ela deveria estar mais preocupada com o fato dele tentar fazê-la
se apaixonar por ele, mas tudo o que poderia pensar era no menino cujo
gato foi morto em seu colo, e que cresceu aterrorizado com o dia em que
estaria sujeito ao poder desse mesmo mago mental.
Ela lembrou a precisão de seus feitiços, o resultado de uma
prática infinita e febril. O que dizer desse feitiço, essa pretensão de
sangramento? Quantas vezes ele ensaiou com os extratores em suas
mangas, caindo no piso frio de granito do mosteiro, esperando que se
uma Inquisição fosse realizada, ele teria uma possibilidade de salvar sua
mente?
— Movi o candelabro. As esferas de elixir de luz caíram. Meus
olhos estavam fechados, mas acredito que uma das esferas caiu bem em
cima da cabeça da Inquisidora... eu ouvi um baque antes dos agentes
chegarem. E então foi tudo crédito do Capitão Lowridge por afastá-lo do
Inquisitório.
Ela não esperava a gratidão dele, mas esperava que ele estivesse
satisfeito. Afinal, ele continuava preocupado com a sua incapacidade de

234
controlar o ar. Agora, ela não só o salvou, mas revelou-se uma das
criaturas mais raras, um mago elementar que controlava todos os quatro
elementos.
Mas a expressão dele, depois de um choque inicial, ficou sombria.
Ele afastou o lençol e lutou para se levantar. — Por que você não me disse
mais cedo?
Ela agarrou o braço dele para estabilizá-lo. — Pensei que você
estivesse extraindo seu último suspiro.
Ele balançou, mas seu cenho foi feroz. — Compreenda isso: você
nunca mais se preocupará se eu viver ou morrer, não quando sua própria
segurança está em perigo. Meu objetivo é guiá-la e protegê-la enquanto
eu puder, mas, no final, apenas um de nós importa, e não sou eu.
Ele estava tão perto, seu calor parecia inundá-la. Havia uma
pequena mancha de sangue seco que ele ainda não conseguiu lavar, uma
mancha de forma irregular na base do pescoço. E onde ele abriu as
mangas, ela podia ver uma marca de punção no interior de cada pulso,
onde o extractor havia passado na pele.
Uma dor brilhante queimava em seu coração. Ela ainda poderia
se salvar de se apaixonar por ele, mas nunca mais poderia realmente
desprezá-lo.
— Nós devemos tirá-la do Domínio neste instante, — ele disse, —
Antes que a Inquisidora perceba que alguém estava na Câmara da
Inquisição – alguém com poderes elementais.
Ele já estava caminhando... cambaleando. Ela colocou um braço
ao redor da cintura dele.
— Preciso voltar ao meu apartamento no castelo. A poção de
transmogrificação está na minha bolsa. Leve-me para a banheira no
andar de cima. Em seguida, venha aqui e remova todas as evidências que
possam levar alguém a detectar sua presença. A Inquisidora ousou
invadir minha mente; ela também poderia invadir o monastério.
Ela assentiu com firmeza e caminhou mais rápido, puxando-o.
Na banheira, ele se abaixou para abrir as torneiras. — Vá. E volte
rápido.

235
Ela correu e fez o que ele pediu. Voltando para o andar de cima,
ela alcançou a banheira enquanto ele se materializava, desta vez
molhado, não segurando um frasco, mas o que parecia ser uma garrafa
de tônico.
— Onde está a poção?
Ele saiu da banheira e apontou sua varinha para o tônico do
cabelo. — In priorem muta.
A garrafa se transformou em um frasco pequeno. Ela agarrou-o.
Bebendo a poção em grandes goles, ela apontou a mão livre para ele e
evaporou toda a água de sua roupa encharcada – a noite estava fria e ele
começava a tremer. Então ela dissolveu toda a água que gotejava no chão
enquanto bebia a segunda solução.
— Pensamento claro sob pressão, como sempre, — ele murmurou.
A forma de pássaro de ensaio não era apenas desagradável, mas
desorientadora, tudo ao seu redor rapidamente se transformando para
tamanhos montanhosos.
Ele a pegou na mão. — Hora de ir.

***

— Você deseja estar em um trem que não se encaminhe para


Slough, mas para Londres, majestade? — Dalbert perguntou, parecendo
duvidoso.
— Precisamente. — Titus verificou sua pessoa, suas roupas e seus
pertences, aplicando um feitiço para revelar a presença de rastreadores
e outros feitiços escondidos. Ele estava limpo.
— Mas senhor, em sua condição...
— Mais uma razão para sair sem demora. Você viu o que a
Inquisidora fez comigo. A casa de Elberon não significa nada para ela.
Quanto mais longe eu estiver dela, mais seguro estarei.
Dalbert ainda não parecia convencido, mas ele concordou e
levantou o manto de Titus.
Uma batida alta sacudiu a porta do quarto de Titus.

236
— Sua Alteza, Lady Callista está aqui para vê-lo, — Giltbrace
anunciou de fora.
Exatamente o que Titus temia. Ele pegou a gaiola de Fairfax e fez
um gesto para que Dalbert ficasse quieto e o seguisse.
— Sua Alteza, — veio a voz de Lady Callista. — O regente e eu
ficamos muito angustiados ao ouvir sobre a convulsão que você sofreu
inesperadamente enquanto visitava o Inquisitório.
— Depressa, — Titus sussurrou para Dalbert. — Eles tentarão
confiscar meu transporte.
Eles entraram na passagem secreta acessada do quarto de vestir
de Titus e correram, Titus desejando que seu estômago não se rebelasse
novamente até mais tarde. A passagem secreta terminou em algum lugar
abaixo do sótão. Ele subiu três degraus a cada vez, ficando mais tonto
com cada volta. Abaixo veio o som de perseguição.
Por fim, o sótão. Eles se jogaram no trem ferroviário, Titus abriu
a porta enquanto Dalbert se dirigia aos controles. Assim que a mão de
Dalbert se ajustou ao redor da alavanca, um grupo de guardas explodiu
pela porta.
— Vá! — Titus ordenou.
Dalbert puxou. O trem ferroviário estremeceu e se inseriu com
força na corrente sanguínea que era o trilho inglês.
O som das rodas de aço rangendo sobre os trilhos metálicos
nunca soaram tão doces.
Fairfax estava segura. Por agora.

237
Capítulo 17
O trem os levou para a estação ferroviária de Charing Cross. Titus
decidiu que um dos grandes e novos hotéis perto de Trafalgar Square
frequentemente utilizados por turistas americanos serviria muito bem a
seu propósito.
Ele enfeitiçou brevemente uma senhora de meia-idade e sua
criada. Enquanto as duas seguiram atordoadas e obedientes, ele se
apresentou ao funcionário do hotel como o Sr. John Mason de Atlanta,
Geórgia, viajando com sua mãe. Logo que ele estava com a chave na mão,
ele caminhou até a senhora e sua empregada numa porta diferente,
liberou-as do enfeitiço, e deu-lhes um boa noite cordial.
Em seus quartos, ele aplicou camada sobre camada de feitiços
anti-intrusão, sem sentir nenhum remorso ao usar os feitiços mais
mortíferos conhecidos no mundo mágico. Considerando que era seguro o
suficiente para que Fairfax retonasse à forma humana, ele a deixou no
quarto com uma túnica de sua mochila e um par de calças inglesas.
Ela saiu do quarto bem quando o dumbwaiter52 soou.

52 Pequueno elevador que antigamente entregava as refeições em cada quarto nos


hotéis.

238
— Seu jantar, — ele murmurou de onde estava deitado no sofá,
seu braço sobre os olhos.
Ela encontrou a porta do dumbwaiter. O aroma de caldo de frango
e torta de carne bovina fluiu no quarto. Ela colocou a bandeja de comida
na mesa baixa ao lado dele. — Você está bem?
Ele grunhiu.
— Você não quer comer nada?
— Não. — Ele não queria impor nada ao seu estômago nas
próximas doze horas.
— E agora? Nós vamos fugir?
Ele tirou o braço do rosto e abriu os olhos. Ela estava sentada no
tapete diante da mesa baixa, vestindo sua túnica cinza com capuz, mas
não a calça dele. Suas pernas estavam nuas abaixo da metade da coxa.
A visão o sacudiu de sua letargia. — Onde sua calça?
— Ela não tinha cinto e não se ajustava. Além disso, está quente
o suficiente aqui.
Ele estava com muito calor. Não era incomum ver garotas com
vestes curtas no verão Delamer. Mas na Inglaterra as saias sempre iam
até o chão e os homens ficavam loucos por um vislumbre de tornozelos
femininos. Com tanta pele – os garotos na escola desfaleceriam por
excesso de excitação.
Ele poderia ter ficado um pouco instável se não estivesse deitado.
— Você não respondeu minha pergunta, — ela disse, como se a
visão de suas pernas longas e bem formadas não devessem mexer com
os pensamentos dele. — Nós vamos fugir?
— Não, voltaremos para a escola amanhã.
— O quê?
— Se eles tivessem conseguido capturá-la antes de deixar o
Domínio, você teria sido condenada. Mas agora esse perigo é passado,
devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para preservar sua
identidade atual. Enquanto isso permanecer intacto, Atlantis pode
suspeitar de mim tanto quanto quiser, mas não pode provar nada.

239
— Mas você disse que não conseguiu convencer a Inquisidora de
nada. Ela virá atrás de você novamente.
— Sim, mas não imediatamente. Essa sua interrupção foi um
golpe para ela. Ela precisará de algum tempo para se recuperar. Além
disso, não posso desaparecer assim. É a lei da terra que o trono não pode
ser deixado desocupado. Alectus seria nomeado príncipe governante.
E esse seria o fim da Casa de Elberon.
Ela serviu uma tigela de sopa e comeu a torta de carne. —
Portanto, não temos escolha senão continuar na escola?
— Durante o tempo que pudermos.
— E quando não pudermos mais?
— Então veremos.
Isso lhe valeu um olhar quase estoico – a não ser por um lampejo
de tristeza. Ela tinha olhos tão bonitos, esta garota e...
Seus pensamentos enfraqueceram ao perceber que os olhos dela
poderiam ser a última coisa que veria antes de morrer.
— Você não teria se envolvido com isso se não fosse pela sua mãe,
— ela disse, puxando-o de volta ao presente. — E se a Inquisidora estiver
certa?
E se a Inquisidora estiver certa? Grande parte da breve vida de
sua mãe era um mistério para ele, assim como muitas de suas visões.
— Tenha em mente que a Inquisidora queria desestabilizar minha
mente tanto quanto possível.
— Seu avô matou sua mãe?
Seu rosto queimou. — Sim.
Seu olhar estava firme. — Por quê?
— Para preservar a Casa de Elberon – ele se recusou a ser o último
príncipe da dinastia.
Quando Atlantis ofereceu a escolha de abolir a coroa ou oferecer
sua filha como um sacrifício pela participação ativa na Revolta de
Janeiro, o príncipe Gaius escolheu o último. Não foi o ato mais
vergonhoso da longa história da Casa de Elberon, mas chegou perto o
suficiente.

240
— Sua mãe realmente previu sua própria morte quando era
criança?
— Não sei.
— Ela lhe contou algo antes de morrer?
— Só que se eu quisesse ver o meu pai, eu teria que derrubar
Bane.
Ele nunca teria trazido seu pai à discussão, mas o juramento de
sangue o obrigou a contar a verdade.
Ela mastigou contemplativamente. — Se você não se importa com
minha pergunta, quem é seu pai?
Suas bochechas ficaram mais quentes, se possível. — Eu também
não sei.
— Sua mãe nunca o mencionou?
— Ela o mencionou muito. — O amor dele pelos livros, a bela voz
ao cantar, os sorrisos que poderiam levantar o sol à meia-noite. — Mas
nada que possa ser usado para identificá-lo.
Quão excitado ele estivera com a possibilidade que a pergunta de
sua mãe implicava. Você quer ver seu pai? Ele pensou que era uma
pergunta como, Você quer uma fatia de bolo? – com o bolo a ser produzido
dentro de um minuto.
Fairfax girou uma colher na tigela da sopa. — O que você disse
quando ouviu que precisaria derrotar Bane?
Ele não conseguiu dizer muito pelo medo e desapontamento que
se enrolou dentro dele. E a raiva – por sua própria mãe enganá-lo assim.
— Eu disse que não lutaria contra Bane porque eu não queria
morrer.
Sua mãe se desfizera, lágrimas escorrendo pelo rosto, salpicando
seu xale azul celeste. Ele nunca a tinha visto chorar antes.
— Mas você concordou, eventualmente, — Fairfax disse em voz
baixa, com os olhos quase suaves.
Ele ainda podia ver o rosto cheio de lágrimas de sua mãe. Ainda
ouvia sua voz abafada quando ela respondeu sua pergunta preocupada.
Por que você está chorando, Mama?

241
Porque eu me odeio pelo que pedi a você, querido. Porque nunca me
perdoarei, nesta vida ou na próxima.
Algo nele quebrou com essas palavras.
— Eu tinha seis anos, — ele disse. — Eu teria feito qualquer coisa
por ela.
Existia algo neste mundo que ligava um mago mais forte do que
um juramento de sangue: o amor. O amor era a cadeia final, o chicote
final e o último escravo.

***

Ele alcançou sua valise, a qual colocara no chão ao lado da


espreguiçadeira, e tirou um livro grosso.
— Eu vi esse livro. Você trouxe todo o caminho da escola? —
Fairfax perguntou.
— In priorem muta53, — ele disse. O livro se desvendou e tornou-
se um livro simples e de couro. — O diário da minha mãe. Ela registrou
todas as suas visões aqui.
— Está em branco, — Fairfax disse após ele virar trinta ou
quarenta páginas.
— Só mostrará o que eu devo ver.
O diário foi deixado para ele quando sua mãe morreu, com a
inscrição: Meu querido filho, eu estarei aqui quando você realmente
precisar de mim. Mamãe.
Ele abriu o diário e não encontrou absolutamente nada. Só após
descobrir a verdade da morte dela – que foi assassinato e não suicídio –
que apareceu o primeiro registro. Aquele sobre ele, na varanda,
testemunhando o fenômeno que mudaria tudo.
Ele continuou virando as páginas, mas elas ficaram teimosamente
em branco. Algo frio e terrível corroeu suas entranhas.
Eu preciso de você agora. Não me abandone. Não.

53 Forma anterior.

242
Poucas páginas no final do diário finalmente apareceram escritas,
com sua caligrafia familiar e inclinada. Sua mão apertou a encardenação
para que seus dedos não tremessem de alívio.
— Você pode muito bem ler junto comigo, — ele disse a Fairfax.
— Muitas das visões dela têm haver com a nossa tarefa.
Fairfax deixou a mesa baixa e agachou-se ao lado dele.

4 de Abril, AD 1021
Enquanto Titus e eu estávamos nos jardins superiores esta manhã,
tive uma visão de uma coroação – não se podia confundir os estandartes
particulares do Angelic Host, transportados apenas em coroações e
funerais cerimoniais. E, a julgar pela roupa colorida dos espectadores que
atravessavam a rua, eu não assistia a nenhum funeral.
Mas, de quem é essa coroação? Vi três minutos de um longo desfile
apenas.
Voltei quando Titus puxou minha manga. Ele encontrou uma
joaninha que queria que eu admirasse. Pobre criança. Não sei por que ele
me ama. Sempre que ele quer minha atenção, eu sempre pareço estar presa
em outra visão.

— A data... é logo após o fim da Revolta de Janeiro, não é? —


Fairfax perguntou.
Titus assentiu. A baronesa Sorren foi executada no dia anterior.
Eles continuaram lendo.

10 de abril, AD 1021.
A visão retornou54. Desta vez eu pude ver, no final da Avenida do
Palácio, a chegada da carruagem cerimonial. Mas não consegui distinguir
seu ocupante, exceto para ver o sol refletindo sobre a sua coroa.

54 Como qualquer um que tenha lido uma história de mal-entendido sabe, ouvir parte
de uma conversa sem o contexto apropriado pode levar a conclusões devastadoras e
equivocadas. Por essa razão, entre os videntes, aqueles que vêem o futuro em trechos
longos e ininterruptos são considerados muito mais superdotados do que aqueles a
quem apenas flashes rápidos são revelados, já que vislumbres curtos e caóticos são

243
Pelo resto do dia não consegui me concentrar em mais nada. Pobre
Titus me trouxe um copo de suco de pompea. Após segurá-lo por algum
tempo, devolvi sem tomar um gole.
Preciso saber. Eu devo saber. No dia seguinte a que esta visão
ocorreu pela primeira vez, o meu pai pediu que eu trocasse minha vida pelo
futuro de Titus no trono. Pedi tempo para considerar. Ele me deu três
semanas.
Se eu for a pessoa na carruagem do estado, então pegarei Titus e
me esconderei. As Montanhas Labyrinthine estão cheias de passagens e
vales impenetráveis. O mundo não-mágico oferecia muitos meios para
desaparecer.
Mas e se eu não for a pessoa na carruagem?

12 de abril, AD 1021
Não sou eu na carruagem.
É Titus. E ele está jovem, pouco maior do que é agora.
Desta vez, a visão durou e durou. Eu vi toda a coroação dele, bem
como a cerimônia que investiu Alectus com os poderes da regência.
Ou eu fui para o exílio sozinha, ou estou morta.
Como Titus é tão jovem, muitas festividades que de outra forma
aconteceriam foram adiadas até ele tivesse idade. Ainda assim, por horas
a fio, ele recebeu felicitações. Meu filho, pequeno, solene e sozinho no
mundo.
Finalmente, ele está sozinho. Ele tira uma carta de dentro de sua
túnica, abre e lê. Não consegui ver a escrita na carta, mas o envelope
descartado é meu selo pessoal. A carta tem um efeito dramático sobre
Titus. Parece que ele foi chutado no peito. Ele leu novamente, então corre
para tirar algo da gaveta. Meu diário.

muito mais propensos a má interpretação, se puderem ser decifrados absolutamente.


Ainda mais raros são os videntes que podem ver repetidamente o mesmo conjunto de
eventos futuros, permitindo uma maior textura e detalhes a cada interação. Tais visões
se tornam as indicações mais inequívocas ao longo da estrada de outra forma
imprevisível que é o avanço do tempo.
– De quando vai chover e quanto: Visões brilhantes e ordinárias.

244
Este diário, que nunca deixou o meu lado. Ele abre o diário.
Na primeira página ele lê, Meu querido filho, eu estarei aqui quando
você realmente precisar de mim. Mamãe. A data abaixo da inscrição é de
duas semanas a partir de hoje.
Ele folheia as páginas.
Choque. Meu diário está em branco – páginas e páginas de nada.
Quando algo finalmente aparece na página, eu estou chocada
novamente. Foi a visão sobre o jovem em uma varanda, de costas,
testemunhando algo que o atormenta. Experimentei a visão várias vezes,
mas nunca percebi nenhum significado.
Aparentemente, eu me sentirei bem diferente no futuro próximo. A
descrição da visão, menos de metade de uma página quando a adicionei
pela última vez, agora se estende por quatro páginas completas, o que eu
atribuo a qualquer visão. Até as margens estão repletas de palavras.
A visão em si começou a desaparecer neste ponto, mas eu consegui
ler pedaços de escrita, que dizem respeito à magia elementar, de todas as
coisas. Nos parágrafos abarrotados refiro-me a outras visões, que parecem
não ter nada a ver com essa, até mesmo relatando a conversação com
Callista, durante a qual ela me disse em estrita confiança o que havia
descoberto sobre o interesse de Atlantis em magos elementais, com o então
Inquisidor que estava muito cativado por sua beleza e charme.
A visão desapareceu completamente. Já passa das cinco da
manhã. O céu fora da minha janela mostra o menor vestígio de laranja. Eu
percebo com uma dor dolorosa no meu coração que meus dias estão
contados.
Mas não há tempo para se revoltar em autopiedade. Nas próximas
duas semanas escreverei apaixonadamente sobre a magia elementar, mas
quase não sei nada sobre isso.
Devo descobrir rapidamente não só muito mais sobre a magia
elementar, mas sei que devo ter cuidado.
Mas primeiro eu choro... porque não verei meu filho crescer. Eu nem
vou vê-lo no seu próximo aniversário. E ele só se lembrará de mim como a

245
mulher esquisita que não tomou o suco que ele trouxe especialmente para
mim.

A Inquisidora foi a mentirosa, e não a mãe dele.


Uma vergonha intensa agarrou Titus, por ele ter duvidado de sua
mãe com tanta dureza. Por ele odiá-la com tanta frequência.
Ele se desculpou e correu para o reservado, onde perdeu sua
batalha contra as lágrimas. Ele ainda as limpava quando Fairfax gritou:
— Venha aqui. Encontrei outra visão!

***

— Você tem certeza? Nunca vi mais de uma vez por vez, — o


príncipe disse.
Seus olhos estavam vermelhos, como se ele estivesse chorando.
Ela imediatamente voltou a olhar para o diário. — Eu estava
aleatoriamente folheando as páginas. Tenho quase certeza de que essas
páginas estavam vazias antes, quando você olhou atentamente, mas não
estão mais.
Ele sentou ao lado dela. — Esta é de quase uma década antes da
outra.
Ele começou a ler. Ela olhou para ele, então fez o mesmo.

7 de maio de 1012.
Uma nova visão hoje.
A visão é de uma biblioteca ou de uma livraria. Uma mulher, de
costas para mim, percorria as prateleiras e parecia estar à procura de um
título específico.
Ela para e alcança um livro que exige as duas mãos para levantá-
lo. O título na lombada lia-se, A poção completa.
(Eu conheço este livro – um volume detestável, cheio de pretensão
e notavelmente inútil nos estudos reais. Meu tutor costumava me
atormentar com ele.)

246
A mulher na visão, com alguma dificuldade, levou o livro para uma
mesa e fica ao lado de um calendário que mostrava a data, 25 de agosto.
Ela abre o livro e acha rapidamente o que está procurando. O
assunto é elixires de luz. Há uma caneta na mesa. Ela pega a caneta e
escreve na extremidade de uma página: Não há elixir de luz, por mais
estragado esteja, que não possa ser revivido por um relâmpago.

Iolanthe recuou. Estas foram as fatídicas palavras que mudaram


tudo.
— Este é o conselho que você recebeu na terça-feira? — O príncipe
perguntou.
Terça-feira. Menos de uma semana e parece que foi há uma vida.
Ela assentiu.
— Acho que estamos prestes a descobrir quem escreveu, — ele
disse.

5 de agosto de 1013.
Uma repetição da visão do ano passado, sem novas informações.

11 de agosto de 1013.
Vi essa visão três vezes nos últimos dois dias. Ontem perguntei ao
meu tutor se um relâmpago poderia ser usado para consertar um elixir. Ele
riu até sufocar.

12 de agosto de 1013.
A mesma visão. Isso está ficando enfadonho.

15 de agosto de 1013.
Finalmente algo novo.
Conforme a mulher na visão se inclina em direção ao apoio da
caneta, pude descobrir, na base do apoio, a inscrição: Oferecido ao meu
querido amigo e mentor, Eugenides Constantinos.

247
16 Agosto 1013
Descobri que Eugenides Constantinos é dono de uma livraria na
intersecção da avenida Henry e University Avenue. Passarei e darei uma
olhada na próxima vez que eu estiver na área.

Iolanthe sugou uma respiração.


— O quê?
— Conheço esse lugar – meu guardião costumava me levar lá o
tempo todo. Havia se tornado uma loja de doces até então, mas ainda
tinha alguns dos velhos livros. O que eu gostava mais dizia algo nos
moldes do Livros de Artes Obscuras podem ser encontrados no porão
gratuitamente. E se você localizar o porão, gentilmente alimente o gigante
fantasma lá dentro. Saudações, E. Constantinos.
— A vida e a trama do destino tecem de maneiras misteriosas, só
em retrospectiva alguém vê os termos da sorte tomar forma, — ele citou.
Ela expirou lentamente e continuou.

31 de agosto de 1013.
Um dia mais fantástico.
Sai de uma performance de comando de Titus III, evitei minhas
damas de companhia e me precipitei até o Empório do Bom Conhecimento
e Curiosidades, a loja de Constantinos. Ao entrar na loja, a visão se repetiu
uma sétima vez sem precedentes.
Desta vez eu vi claramente o anel distintivo na mão empunhando a
caneta.
Quando a visão desapareceu, levantei minha mão em estado de
choque. No meu dedo indicador direito havia um anel idêntico ao que foi
forjado para Hesperia, a Magnífica. Não há outro desse em todos os reinos
mágicos.
A mulher sou eu.

Iolanthe levou a mão até a garganta.

248
Eu ri. Bem, então.
Uma vez eu tive uma visão de mim mesma dizendo ao meu pai que
uma garota Atlante seria a pessoa mais poderosa do Domínio. Então,
quando eu vi a garota de fato, eu disse a ele que eu vi a mim mesma
contando para ele – uma vez que não se pode mudar deliberadamente o
que foi visto. Ele ficou terrivelmente desagradado por enfrentar a
possibilidade de que ele, um descendente direto de Titus, o Grande, um
dia não seria mais o Mestre absoluto desse Domínio.
Mas desta vez eu não ofendi ninguém.
Achei o livro, arrastei-o até a mesa, levantei a caneta do seu apoio
e escrevi no livro como eu fiz na visão.
Logo quando terminei, lembrei do calendário da mesa. Na visão é
sempre 25 de agosto. Mas hoje é 31 de agosto. Olhei para o calendário na
mesa. 25 de agosto! O dispositivo parou de funcionar há uma semana.
Na maioria das vezes eu não fico animada por quão certa estou: a
capacidade de ter vislumbres do futuro é frustrante e horripilante. Mas
naquele momento, fiquei muito emocionada.
Por impulso, abri o livro novamente, voltei para a seção para
esclarecer rascunhos e rasguei as últimas três páginas. As receitas
fornecidas nessas páginas estão cheias de erros. Eu não queria deixar que
algum outro pobre aluno sofra com eles.

Eles viraram a página, mas não havia mais nada. Eles


continuaram virando páginas. Nada ainda. O príncipe fechou o diário e
colocou-o de volta em sua valise.
Ele olhou para Iolanthe.
Ela percebeu que deveria dizer algo, mas não se atrevia a falar em
voz alta seus pensamentos – por medo de encontrar verdadeiramente o
longo braço do destino apertado sobre ela.
Por medo de poder aceitar a ideia de que seu destino e o do
príncipe estavam entrelaçados, desde muito antes de seus nascimentos.

249
***

— Fale sobre a visão em que ela viu você morrer, — Fairfax disse,
voltando ao jantar. — Você também leu nesse diário?
Titus lentamente se deitou novamente. Maldito soro da verdade.
E o maldito juramento de sangue que o impedia de mentir. Pode-se
também cegar um pintor ou cortar os dedos de um escultor – ele era um
artista com suas mentiras.
— Sim.
— Quando isso acontecerá?
— Foi descrito como no final da minha adolescência. Assim –
qualquer dia agora.
Ela piscou algumas vezes, olhou para a comida e voltou para ele.
— Por quê?
— Não há por quê. Todo mundo morre.
— Você disse que o diário apenas mostra o que você precisa saber.
Por que é necessário que você saiba que vai morrer jovem?
— Para que eu me prepare de acordo. Concentrar a mente
sabendo que meu tempo é limitado.
— Poderia ter tido o efeito oposto. Outro garoto poderia ter
abandonado todo o empreendimento.
— Esse garoto não deveria se preocupar em ver sua mãe na vida
após a morte sem nada realizado nessa. Além disso, você não pode
escapar do seu destino. Olhe para quanto esforço foi gasto em ajudá-la a
escapar do inevitável... e olhe para onde você está agora.
Um bule de chá veio com a bandeja do jantar. Seu olhar caiu no
bule de chá. O chá jorrou fora dele sozinho, arqueando em um arco
gracioso no ar antes de encher um copo sem derramar uma gota. Ela
esquentou suas mãos em torno do copo, como se sentisse frio e
precisasse de uma fonte de calor. — Então eu posso estar sozinha no
final, enfrentando Bane.

250
O pensamento o assombrou quase mais do que sua morte
iminente. — Enquanto eu viver e respirar, estarei com você. E vou te
proteger.
Seus dedos flexionaram, depois apertaram a xícara de chá. —
Nunca pensei que diria isso, mas eu quero que você viva para sempre.
Ele não precisava viver para sempre, mas gostaria de viver tempo
suficiente para esquecer o gosto do medo. — Você poderia viver para
sempre por mim.
Seus olhares se encontraram – e seguraram. Ela levantou, entrou
no quarto e voltou com um cobertor. Quando colocou o cobertor ao redor
dele, o sempre se tornou um pensamento distante – ele gostaria de trocá-
lo por uns momentos mais parecidos com isso.
— Durma, — ela disse. — O grande mago elementar do nosso
tempo ficará de guarda sobre você.

***

Algumas faíscas de fogo flutuavam abaixo do teto, fornecendo


apenas iluminação suficiente para ver. Iolanthe olhou para a forma
adormecida do príncipe, um braço pendurado sobre a cabeça, o outro
mantido perto de sua pessoa, sua varinha na mão.
Aproximando as faíscas, ela pegou o diário da mãe dele e folheou
a página. Nada, exceto uma página particular que tinha uma pequena
marca de caveira no canto inferior direito que ela não notou antes.
Quando chegou ao fim do diário, ela virou as páginas para trás.
Nada ainda. Ela suspirou e recolocou o diário na valise.
Em seu coração ela começava a entender que seu destino estava
realmente escrito nas estrelas. No entanto, parecia impossível que ela
tivesse a audácia de enfrentar Bane, ela que viveu uma vida tão simples,
tão concentrada apenas no bem-estar de sua própria família.
Especialmente se o príncipe tiver razão sobre a morte dele.

251
Com a morte dele, o juramento de sangue deixaria de ser
vinculativo. Ela estaria livre para se afastar daquela aventura louca,
libertar o Mestre Haywood, se pudesse, e desaparecer para se esconder.
Não haveria nada para detê-la.
Exceto o conhecimento de que ele dera a vida dele à causa, e ela
teria abandonado todo o fundamento que ele havia construído.
Sem mencionar a questão que começava a ficar em sua mente: se
ela tivesse o poder de derrubar Bane, ela poderia viver sem tentar, apenas
mantendo a si mesma e ao Mestre Haywood seguros em algum lugar das
Montanhas Labyrinthine, enquanto a Sra. Needles e o país apodreciam
nas prisões de Atlantis?
Ela poderia viver consigo mesma, escondida, enquanto o mundo
queimava?

252
Capítulo 18
Iolanthe acordou sibilando de dor. Como se seus dedos estivessem
inchados e três vezes o tamanho normal, sua pele estava prestes a romper
pela pressão.
Mas eles não pareciam diferentes. Ela encarou as mãos com
perplexidade. Quando fechou as mãos, os nódulos protestaram. Ela abriu
e fechou as mãos mais algumas vezes. O desconforto desapareceu bem
rápido, deixando-a desconcertada.
— Qual é o problema? — O príncipe perguntou de onde estava
deitado, sua voz áspera com o sono.
— Você está acordado. Como está a sua cabeça? Quer que eu peça
um pouco de café da manhã?
— Não quero café da manhã, obrigado. E minha cabeça está
terrível, mas isso é esperado. Qual é o problema com você?
— Não sei. Minhas mãos doeram há um minuto, mas não mais. É
um efeito colateral da transmogrificação?
— Não, mas pode ser um efeito colateral da quebra do feitiço.
— Que quebra de feitiço?
— Aquele que foi colocado sobre você quando pequena, para fazer
você acreditar que não poderia manipular o ar.

253
— Talvez eu estivesse atrasada no desenvolvendo dele.
Ele balançou a cabeça. — Eu li a carta do seu guardião para você
e...
Ela franzia a testa. Ela nunca ofereceu a carta para ele ler.
— Bem, você já sabe que eu não tenho escrúpulos.
Ela suspirou. — Continue.
— Estas são as palavras exatas: Não posso deixar de me perguntar
como seu poder teria se manifestado. Fazendo o Rio Delamer fluir em
sentido inverso? Ou cortando o ar de um dia ensolarado com um ciclone?
O que me diz que você tinha poder sobre o ar quando criança.
— Mas eu achei que você não poderia aplicar um feitiço de
bloqueio em alguém que já conhece alguma coisa.
— O poder sobre o ar é o mais fácil de disfarçar. Você não pode
explicar a aparência repentina do fogo ou da água, ou pedras que voam
de uma parede. Mas sempre pode se culpar uma brisa vinda da janela
pelo movimento do ar. E assim ele poderia passar você como um mago
elementar III – muito menos perceptível.
— Ainda não vejo por que minhas mãos devem doer agora, após
eu romper o feitiço de bloqueio, se for isso.
— Faça algo com o ar. Faça a cortina vibrar.
Ela tentou, mas a cortina se moveu apenas um pouco. — Não
entendo. Eu balancei o lustre ontem à noite.
— Agora você não está mais no meio de circunstâncias
extraordinárias55. Um feitiço de bloqueio não é fácil de descartar
completamente, considerando que a controlou por tanto tempo. Mas você
já está muito melhor do que costumava ser... a dor é provavelmente uma
manifestação física do potencial que você desbloqueou lutando contra o
que resta do feitiço de desbloqueio.

55 É difícil prever quão poderoso um jovem mago elementar se tornará. Um jovem mago
elementar que pode mudar a fundação de uma casa quando bravo pode ser capaz de
levantar não mais do que um bloco de pedra com um quarto de tonelada quando adulto.
Às vezes o inverso é verdadeiro. Um mago elementar que não pode mover mais do que
um bloco de pedra de um quarto de tonelada em circunstâncias normais, pode muito
bem conseguir levantar algo vinte vezes mais pesado quando sua vida depende disso.
– Das vidas e ações dos grandes magos elementares

254
Ela tentou movimentar a cortina novamente; o resultado não foi
muito mais impressionante. Era desanimador.
Ela pensou que seu controle sobre o ar seria fácil e absoluto a
partir desse momento. — Então, o que eu faço agora?
— Treine mais. Toda a magia elementar é a mente sobre a matéria.
Você deve continuar se esforçando. — Ele levantou e estremeceu de dor.
— Todos nós devemos continuar nos esforçando.

***

O sorriso da Sra. Hancock era tão agradável como sempre, seu


vestido do dia era marrom e sem graça. — Sua Alteza, poderia me seguir
para o meu salão.
Titus apoiou a mão no corrimão – ela o pegou enquanto ele subia
as escadas. — O que há com você, Atlantes? Não vê que eu estou com
uma dor de cabeça forte?
Ele não estava mentindo: o interior do seu crânio parecia uma
demolição não mágica, todas as pás e marretas batendo. Ele também
estava fraco de fome, tendo tido nada mais do que uma xícara de chá
desde a sua Inquisição.
— Eu não sonharia em incomodar Sua Alteza, a menos que fosse
de vital importância, — a Sra. Hancock serenamente disse.
— Quem quer me ver?
— O Inquisidor interino, majestade.
— Quem diabos é o Inquisidor interino?
— O nome dele é Baslan.
Baslan não era habitualmente referido como o Inquisidor interino,
mas como vice-procônsul ou algo assim. Titus esfregou as têmporas. —
O Mestre do Domínio não é suficientemente importante para o lacaio de
Bane? Agora tenho que ver o lacaio do lacaio?
— Você é sempre tão gracioso, Sua Alteza, — a Sra. Hancock
murmurou enquanto estendia a mão e endireitava um quadro de íris
bordada que foi entortado por um menino descuidado.

255
Ela o conduziu a uma sala de estar austera de chão nu e cadeiras
não acolchoadas, e não havia uma pétala ou caules de flores impressas,
as tão amadas pela Sra. Dawlish. A imagem espectral de Baslan – uma
peça de magia atlante que os grandes magos do Domínio ainda não
duplicaram – passeava no salão da Sra. Hancock, ignorando as paredes
e móveis.
Ele viu a entrada de Titus. Titus mergulhou no assento mais
próximo e protegeu os olhos com a mão – a luz do sol que entrava da
janela da Sra. Hancock queimava suas retinas como um ácido. — O que
você quer?
— Preciso de uma explicação das ações de Sua Alteza na noite
passada dentro da Câmara da Inquisição.
Uma pergunta que não envolvia a Senhorita Buttercup de forma
concebível não era o que Titus esperara. — Minhas ações? Sangrei de
todos os principais orifícios e sofri danos horríveis à minha visão, minha
audição e minhas habilidades cognitivas.
— Você parece extremamente saudável para todas as aflições que
listou, — Baslan disse.
Titus tossiu. Ele virou o rosto para o lado e cuspiu sangue por
toda a saia da Sra. Hancock, um bom truque por dizer assim. A Sra.
Hancock gritou – finalmente uma reação genuína – e acenou loucamente
com sua varinha para se livrar das manchas.
Ele olhou para Baslan. — O que você disse?
Baslan pareceu desconcertado. Ele abriu a boca e a fechou
novamente.
— O Inquisidor interino não precisa hesitar, — a Sra. Hancock
disse. — Se Sua Alteza não sabe o que aconteceu, ele irá muito em breve.
Baslan ainda vacilou.
Titus fez como se estivesse se levantando. — Você desperdiçou o
suficiente do meu tempo.
— A Inquisidora está inconsciente desde a noite passada. — A voz
de Baslan era estridente. — Exijo saber o que você fez com ela.

256
Titus sabia que os magos mentais abominavam interrupções
durante uma sondagem, mas ele não tinha ideia de que uma ruptura
poderia ser tão catastrófica. Ou era porque o que Fairfax achou serem
esferas de luz não eram tão delicadas? E se uma dessas luzes caindo de
uma grande altura teria dado à Inquisidora uma concussão mesmo em
circunstâncias normais?
— A mente dela se foi? — Ele perguntou, sabendo que era bom
demais para ser verdade.
— A mente dela não se foi, — Baslan grunhiu. — Ela está
temporariamente incapacitada.
— Isso é muito ruim. Teria sido a justiça dos Anjos para todas as
mentes que ela destruiu.
Baslan apertou a mão, respirando com dificuldade. — Você vai me
dizer o que fez para a Senhora Inquisidora.
Titus o olhou impassível. — Então essa foi a razão pela qual você
enviou Lady Callista para o castelo na noite passada. E aqui eu pensando
que ela finalmente começou a se preocupar com minha saúde.
E foi por isso que eles tentaram impedir que ele partisse. Não
porque quisessem pegar seu canário, mas porque os médicos precisavam
saber o que causou a inconsciência da Inquisidora antes que pudessem
formular um tratamento.
Ele sorriu e puxou sua varinha, adornada com sete coroas com
incrustações de diamantes ao longo de seu comprimento. — Esta é
Validus, a varinha que pertenceu a Titus, o Grande. Eu sei que os
Atlantes estão isolados culturalmente e, em grande parte, não conhecem
as histórias além das próprias, mas confio que você, Inquisidor interino,
tenha ouvido falar de Titus, o Grande.
Os lábios de Baslan diminuíram. — Estou ciente de quem ele era.
— Titus, o Grande, deixou para trás um Domínio unificado. Mas
para a família dele, ele também deixou a Benção de Titus, uma tremenda
proteção aliada ao poder de Validus, que não deixaria nenhum dano
acontecer com o herdeiro da Casa de Elberon.

257
Ele tocou a varinha duas vezes contra a palma da mão. A Sra.
Hancock se levantou, Baslan deu um passo atrás, ambos olhando para a
luz que agora emanava das sete coroas.
— Sim, você vê uma das últimas lâminas da varinha. Uma varinha
de lâmina desembainhada é um dos objetos mais poderosos ao redor. E
Validus carrega a Bênção de Titus – a qual eu invoquei antes de cair
inconsciente. Depois disso, tudo o que a Inquisidora pretendia fazer
comigo teria se desviado para ela.
Baslan ainda olhava para Validus enquanto Titus a guardava.
Titus se levantou. Com toda a altivez que conseguiu reunir – não muito,
pois mal conseguia permanecer em posição vertical – ele zombou dos
atlantes.
— E é por isso que você não deve incomodar o Mestre do Domínio.

***

Iolanthe colocou seu braço em volta dele quando ele estava


prestes a subir as escadas.
Sua reação foi um grunhido baixo. — Eu disse para você não
voltar até que eu lhe desse o sinal.
Ele estava pálido, e havia gotas de sangue na manga. Mesmo
sabendo que o sangue era um truque, seu coração ainda se encolheu. —
Você poderia ter precisado de ajuda.
— Eu também não te disse para nunca se preocupar comigo?
Garoto estúpido e teimoso. — Se eu não tivesse interferido mais
cedo, você seria um imbecil babando agora. Então feche a boca e me deixe
tomar minhas próprias decisões.
Ele quase sorriu. — Isso não soa bem. Eu sou o cérebro da
operação. Você deveria fornecer apenas o músculo.
Ela queria tocar a bochecha dele, mas não fez isso. — Quando há
músculo suficiente, a mente se desenvolve sozinha.
Birmingham, o capitão da casa, desceu as escadas. — Qual é o
problema, Titus? Parece que você está prestes a virar um fantasma.

258
Iolanthe não lembrava de ouvir o príncipe sendo chamando pelo
nome. Ela quase grunhiu por Birmingham ser tão familiar. — Ostras
ruins na recepção diplomática, — ela disse, em vez disso.
Birmingham aspirou. — Isso pode ser mortal. É melhor você
desejar que o perigo tenha passado.
— Eu acho que vou vomitar de novo, — o príncipe murmurou.
— Vamos. Vou garantir que chegue ao vaso do aposento. — Ela
encontrou um no hotel. O príncipe teve que explicar para que era o objeto.
A própria ideia disso. — Adeus, Birmingham.
Logo que estavam no quarto, ela pegou a varinha dele emprestada
e a agitou. Surgindo o som inconfundível de alguém vomitando em seco.
O príncipe estremeceu, embora parecesse impressionado ao
mesmo tempo. — O que foi isso?
— Aprendi com um aluno em Little Grind. Foi assim que ele
convenceu a mãe a não fazer mais nabos para o jantar. — Ela colocou
um círculo de som e devolveu a varinha para ele. — Agora você se deita.
— Eu preciso ver que notícias Dalbert poderia ter enviado.
— Deite-se. Eu farei isso para você.
— Eu...
— Se Dalbert envia informações, preciso saber como recebê-las.
Lembre-se, você nem sempre estará aqui.
Você pode viver para sempre por mim. A melancolia nessas
palavras, a calma aceitação do que não poderia ser mudado. Não havia
glória para ele em perseguir o impossível, nenhuma recompensa além de
uma promessa mantida.
— Você deveria me lembrar? — Ele se esticou na cama. — Coloque
um pedaço de papel sob a máquina naquele armário perto da minha
mesa.
Ela não teve problemas para encontrar o dispositivo parecido com
um porco-espinho e colocou com êxito o papel sob a bandeja abaulada
em sua segunda tentativa. O dispositivo clamou. Quando parou, ela tirou
o papel e trouxe para ele.

259
— Que notícias poderia ter Dalbert? E o que a senhora Hancock
fez com você? Ela pediu que você mostrasse a Senhorita Buttercup?
— Ninguém perguntou sobre a Senhorita Buttercup. — Ele tirou
o relatório da mão dela e o examinou. Um pouco de cor voltou ao seu
rosto. — Então é verdade: a Inquisidora permanece inconsciente.
— Ela está?
— Desde a noite passada.
— Pelo que eu fiz?
— Pelo que você fez, exceto que eles pensaram que eu era o
responsável por isso, então eu disse a eles um conto de fadas sobre os
poderes da minha varinha.
Ele ainda estava olhando o relatório, inconsciente do que acabou
de dizer. Ela reprimiu o desejo de rir. — Eles acreditaram em você? Todos
os meninos contam histórias sobre suas varinhas.
Ele olhou para cima, seus olhos primeiramente em branco, depois
acesos com malícia. — Talvez contem, mas eu realmente possuo uma
varinha superior... a melhor de seu tipo, nada menos. O tipo de fogos de
artifício que minha varinha pode produzir deixaria uma garota sem
fôlego.
Ambos explodiram rindo. Todo o seu aspecto foi transformado,
como a visão de um deserto depois da tempestade. Ela teve que se afastar,
seus olhos enchendo de lágrimas abruptamente.
Você pode viver para sempre por mim.
Ela olhou pela janela, de costas para ele. Era uma tarde
ensolarada. O pequeno prado atrás da casa estava cheio com calouros
em seus vários jogos; bolas, palitos e uma pipa, três dos meninos estavam
tentando subir nas árvores.
Uma vida simples, pacífica e bucólica ao seu redor – e ela só
contemplaria através de um espelho.
— O regente não irá contradizer sua narrativa? — Ela se ouviu
seguindo a discussão, como se o seu perigo fosse o único que importava.
— Sua varinha é uma herança familiar. Se tem poderes especiais, ele
também saberia disso, não é?

260
— Tudo o que Alectus pode dizer é que ele não sabe. Ele será o
primeiro a admitir que há um monte de conhecimento que só é
transmitido pela linha direta de herança.
— Então estamos seguros, desde que a Inquisidora permaneça
inconsciente?
— Parece que sim.
— O que acontecerá quando ela acordar?
— Alguma coisa acontecerá.
Ela se virou. — E será?
— O tempo dirá, — ele disse com uma calma que não era
resignação, mas uma vontade feroz. — Nós assumiremos o pior e nos
prepararemos adequadamente.

***

O quarto estava decorado com cortinas carmesim e tapeçarias de


um azul escuro. Os vasos de rosas gelo douradas floresciam quase perto
do teto pintado. No centro da parede distante, sob uma janela tripla, a
princesa Aglaia ocupava seu trono encravado de joias.
Cada sala de aula de ensino nos recantos do Crucible foi decorada
com o gosto do príncipe ou princesa que o criou. Princesa Aglaia, bisavó
de Titus, gostava de usar cores dramáticas e ostentação. A princesa
Aglaia também foi uma das mais sábias herdeiras da Casa de Elberon.
Titus se sentou num banco baixo diante do trono. — Busco seu
conhecimento, Sua Alteza.
A princesa Aglaia acariciou o gordo gato persa no seu colo. —
Como posso ajudar?
— Gostaria de saber se um mago pode ter uma visão, como um
vidente, pela primeira vez aos dezesseis anos de idade.
O espetáculo dos wyverns e os carros blindados tecendo no céu,
ameaçador e intencional, já não mais aparecia em sua mente tão
vividamente quanto antes. Mas ainda assim ocorria, desbotado e borrado
em torno das bordas.

261
Princess Aglaia bateu um dedo indicador contra a bochecha. —
Seria muito incomum, mas não inédito. Quando a primeira visão ocorre
após o início da adolescência, no entanto, geralmente é seguida por uma
sucessão de visões adicionais a cada hora, se não mais frequente. Seu
mago experimentou isso?
— Não. — Ele não sofreu nada do tipo. — E se a primeira visão
ocorresse em uma situação de grande sofrimento? Isso tornaria visões
adicionais menos prováveis?
— Descreva a situação de grande angústia.
— Uma Inquisição proibida em total progresso.
O gato ronronou. A princesa Aglaia o arranhou entre as orelhas,
parecendo pensativa. — Curioso. Não sei se uma visão possa acontecer
quando a mente está sob tanta coação. E como o mago em questão
emergiu de uma Inquisição proibida com lucidez suficiente para recordar
a visão?
— A Inquisição foi interrompida.
— Quando?
— Muito possivelmente no momento da visão, se não logo depois.
— Ah, — a princesa Aglaia disse. — Agora faz sentido.
— Como assim?
— Não acredito que seu mago tenha tido uma visão. O que ele teve
foi uma visão de ruptura. Veja... — a Princesa Aglaia se inclinou, ansiosa
para compartilhar sua erudição, -— Os magos da mente são uma raça
curiosa. Você simplesmente não paga magos mentais para fazer seu
trabalho sujo. Eles tem que querer participar. Os talentos dos magos são
inatos, mas o poder que eles conseguem é diretamente proporcional à
sua dedicação à uma causa.
A Inquisidora era certamente devotada fanaticamente ao Bane.
— Os magos da mente temem a interrupção durante seu trabalho
por dois motivos. Um deles, sua mente totalmente estendida é vulnerável
a danos permanentes. Dois, os pensamentos que eles usam para entrar
em um poder de frenesi podem tornar-se visíveis como uma visão de

262
ruptura. Seu mago não teve um vislumbre do futuro, mas, em vez disso,
uma imagem do funcionamento interno do mago mental.
Esta era uma revelação muito inesperada. Mas a emoção de Titus
durou apenas um segundo.
— A ruptura ocorre apenas de um jeito, ou é mútua?
— É, com toda a certeza, mútua. Houve casos em que o mestre de
um mago mental escolheu interromper uma Inquisição deliberadamente,
quando ele acreditava que o mago da mente talvez não fosse
suficientemente forte para quebrar a pessoa, para obter uma visão de
ruptura.
O que significava que a Inquisidora, quando recuperasse a
consciência, teria a imagem da princesa Ariadne e o canário impresso em
sua mente. Ela não demoraria muito tempo para descobrir que a Princesa
Ariadne nunca possuiu um canário em sua vida.
E então ela lembraria que ela e Titus não estavam inteiramente
sozinhos na Câmara de Inquisição.

***

Era apenas Kashkari, Wintervale e Iolanthe para o chá.


— Sua Alteza ainda está vomitando? — Wintervale perguntou.
— Não mais, — Iolanthe disse. — Mesmo assim, ele não quer
sentir o cheiro salsichas fritas. Ele comerá algumas bolachas e água em
seu quarto.
Wintervale gesticulou para a comida em sua mesa. — Bem, então,
vamos comer.
— Como foi sua viagem para casa, Fairfax? — Kashkari
perguntou. — E sua família virá para o quatro de junho?
Iolanthe tomou um gole de chá, comprando alguns segundos para
pensar. Pelo menos ela sabia com certeza que sua família não chegaria
para o quatro de junho, seja lá o que fosse.
— Eles irão para Bechuanaland essa semana, na verdade. E
vocês, senhores, como é a vida longe de casa?

263
— Eu sempre estou a favor da vida longe de casa, — Wintervale
respondeu com um suspiro.
— O que você faz nas férias então?
— Aguardo que a escola recomece.
Por que alguém diria algo assim? — É tão ruim para você,
Kashkari?
— Não, sinto falta de casa, uma viagem de ida e volta para a Índia
leva seis semanas, então é só durante o verão que eu recebo a minha
família. Eu queria não ter que frequentar uma escola tão longe.
— Por que você decidiu frequentar uma escola tão longe de casa?
— Ela viu alguns outros indianos de uniformes, pelo menos ele não era o
único.
— O astrólogo disse que eu deveria.
— Astrólogo?
Kashkari assentiu. — Nós temos mapas complicados elaborados
quando nascemos. Para cada decisão importante na vida, nós
consultamos um astrólogo – de preferência aquele que elaborou o mapa
– e ele diz os caminhos auspiciosos, e às vezes os necessários a seguir.
Soou notavelmente como o que os magos faziam com suas cartas
de nascimento. — Então você não está aqui porque quer, mas porque
estava nas estrelas.
— Não se discute com o que foi pré-ordenado.
Algo na voz de Kashkari lembrou-lhe o príncipe, quando ele falou
da futilidade de tentar escapar do destino.
Wintervale alcançou um pedaço de salsicha. — Eu acho que você
coloca muita expectativa nas estrelas.
O cotovelo dele derrubou a xícara de chá. Todos pularam.
Kashkari pegou uma toalha ao lado do reservado de Wintervale. Iolanthe
levantou uma pilha de livros do caminho.
Atrás dos livros, havia uma imagem pequena e emoldurada – um
retrato de família; um homem, uma mulher e um jovem entre eles.
Iolanthe quase deixou os livros caírem. O garoto era, obviamente,

264
Wintervale há nove ou dez anos. Seu pai parecia vagamente familiar, mas
o rosto de sua mãe ela reconheceu instantaneamente.
A louca que tentou sufocá-la no baú do portal.
— Sua família? — Ela perguntou, esperando que seu tom não
fosse muito agudo.
— Exceto que meu pai não está mais. E minha mãe não foi a
mesma desde que ele morreu.
Essa era uma maneira de dizer que sua mãe era uma lunática
assassina. — É por isso que você não gosta de feriados?
— Ela está realmente bem na maioria das vezes. Eu nunca sei
quando não estará. — Wintervale pegou a toalha de Kashkari e limpou o
chá derramado. Ele jogou a toalha, derramou mais chá e sentou. — Eu
acho que devemos fazer algo sobre sua técnica de cricket, Fairfax. Você é
um grande atacante, mas seu braço e ombro não se alinham bem como
deveriam.

***
Através da porta meio aberta de Titus, o barulho de trinta e
poucos meninos no seu tempo livro entrava de onda em onda: botas e
pés pisando e descendo as escadas; calouros transportando bandejas de
pratos sujos, prataria e talheres se chocando; os capitães da casa em sua
sala comum do outro lado do corredor, debatendo as diferenças entre o
jogo de futebol de Eton e o jogo de futebol de Winchester.
Ele sentou na cama, de costas contra a parede. O Crucible aberto
no seu colo, e o rosto de um estranho o encarava. Se ele já tivesse
duvidado da eficácia do Feitiço Irreproduzível lançado em Fairfax, aqui
estava sua prova. Ele costumava ser competente com caneta e tinta, mas
a versão que ele tentara de seu rosto era totalmente irreconhecível.
Ele tocou sua varinha na página. A tinta saiu da ilustração em
um redemoinho e voltou para o reservatório de sua caneta-tinteiro. A Bela
Adormecida agora deitava-se na cama sem um rosto, em meio a todos os
detalhes de poeira e teia de aranha que ele acrescentou ao longo dos

265
anos. Ele tocou sua varinha novamente, e suas feições originais voltaram,
bonitas e insípidas.
Uma batida em sua porta. Ele olhou para ver Fairfax fechando a
porta. Ela fez um círculo com a mão. Ele colocou um círculo sonoro.
— Quando você me falaria que a mulher que tentou me matar é a
mãe de Wintervale?
Ele gostou de vê-la no caminho da guerra, seus olhos se
estreitando de indignação – uma menina que emanava poder com sua
própria presença.
— Eu não queria que sua opinião sobre Wintervale, que é
perfeitamente corajoso, fosse tedenciosa pelo que você pensa da mãe dele.
— O que teria acontecido se eu a encontrasse?
— Você não faria isso. Ela não vem à escola, e nenhum de nós é
convidado para visitar a casa dele. Além disso, mesmo se encontrar, ela
não tem ideia de como você é.
Ela estava longe de se acalmar. — Não é algo que você gostaria de
saber caso estivesse no meu lugar?
— Sim, — ele tinha que admitir.
— Então estenda a mim a mesma cortesia.
Ele suspirou. Era difícil para ele, tendo por tanto tempo segurado
tudo perto do peito, compartilhar todos os segredos e inteligência
conquistada. Mas ela tinha um bom argumento – e nem tudo precisava
esperar até que ele estivesse morto.
— Além disso, você me dá muito pouco crédito se acha que vou
julgar um menino por sua mãe. Se eu posso aturar um poço de simpatia
como você, Wintervale não tem nada a temer.
Calor subiu pela sua nuca. — Você me vê com um poço de
simpatia?
Ela recuou e lançou-lhe um olhar de desprezo. — Às vezes. Não
agora.
Ele acariciou a cama. — Venha aqui. Deixe-me fazer você mudar
de ideia.

266
Ela fez uma careta. — Com mais contos de fadas sobre os poderes
da sua varinha?
Ele sorriu. A chegada dela pode ter virado a ampulheta sobre o
que restava de sua vida, mas antes dela chegar, ele nunca sorriu. Ou riu.
— Você ainda é minha súdita, então sente-se sob o comando de
seu soberano. Ele irá mostrar-lhe o seu domínio.

***

Ele a ensinou a entrar e navegar o Crucible sozinha – não só nos


campos de treino, mas também os campos de ensino, que ela sequer
sabia que existiam.
O campo de ensino era um pequeno palácio construído de
mármore rosa claro, com janelas claras e largas e arcadas recuadas
profundamente. No interior, uma escada de duas curvas levava a uma
galeria que cercava o salão de recepção. Ao longo da galeria, abriam-se
portas de diferentes tamanhos, cores e ornamentos.
A primeira que eles viram era preta e vidrada, uma laje inteira de
obsidiana que brilhava com diamantes do tamanho de uvas dispostas
como constelações.
— Esta é a sala de ensino de Titus, o Terceiro.
— Titus, o Terceiro, ele está mesmo lá dentro?
Titus III era classificado como um dos governantes mais notáveis
da Casa de Elberon, ao lado de Titus, o Grande, e Hesperia, a Magnífica.
— Um registro e uma semelhança dele. Foi ele quem construiu o
Crucible, então dele é o primeiro quarto.
Ao lado da porta de obsidiana havia uma placa que registrava o
nome de Titus III. E abaixo disso, uma lista de tópicos que se estendia
até o chão.
— Ele era um especialista em todos esses assuntos?
— A maioria deles – ele era um homem instruído. Mas o
conhecimento dele era para o seu tempo. — O príncipe tocou na lista, e

267
um emaranhado de anotações espalhou sobre as letras gravadas
originais.
Iolanthe olhou mais atentamente. Sobre o assunto de Poções,
uma série de comentários foram deixados.

Receitas arcaicas. Vá para Apollonia II para receitas mais simples


e mais eficazes. – Tibério.
Não vá para Apollonia II para receitas, a menos que você pretenda
arrancar os olhos de animais vivos. – Titus IV
Eu sei, chocante, tem uma série de receitas muito confiáveis. –
Aglaia.
Aglaia adaptou as receitas de Titus IV para ferramentas e métodos
de processamento mais modernos. – Gaius.

— Então é assim que você foi educado em magia sutil, pelos seus
antepassados.
— Muitos dos quais eram magos capazes, embora apenas alguns
deles sejam também bons professores.
A galeria virou. E virou novamente. Ela parou de prestar atenção
às portas individuais e estudou o garoto ao lado dela. Ele parecia um
pouco menos devastado, embora continuasse caminhando
hesitantemente, como se estivesse preocupado com seu equilíbrio.
E tudo ficaria cada vez mais difícil.
Por isso ele queria que ela o amasse, porque o amor era a única
força que poderia atraí-la para esse caminho – e mantê-la com ele.
Ela sentiu uma sensação de picada no coração, um peso com
espinhos.
Eles estavam se aproximando das escadas novamente. As duas
últimas portas pertenciam ao príncipe Gaius e ao príncipe Titus VII,
respectivamente. — Sua mãe não tem um lugar aqui?
— Ela nunca esteve no trono. Apenas um príncipe ou uma
princesa governante tem um lugar no campo de ensino.

268
A porta do príncipe Gaius era um gigantesco bloco de basalto 56
densamente espelhado com rubis do tamanho de um punho, apresentava
uma semelhança incompreensível com a de Titus III – exceto que tudo foi
feito em uma escala mais pretenciosa. Na sua placa, ele listou uma de
suas áreas de especialização como Atlantis. — Você passou muito tempo
aqui?
O príncipe lançou um olhar gélido para a porta do avô. — Não o
invoco.
Às vezes ele tinha dezesseis anos. E às vezes ele tinha mil, tão frio
e orgulhoso como a disnatia que o gerou.
Ela bateu na porta da sala de aula dele. — E o que você ensina?
Ao lado do príncipe Gaius, sua porta era quase ridícula, e parecia
exatamente a mesma que a porta do quarto dele na casa da Sra. Dawlish.
— Eu ensino sobrevivência... para você. Quando eu for embora, é aqui
que você virá, se ainda tiver dúvidas.
De repente, ela sentiu o medo em seu coração. Se a profecia da
morte dele tiver sido devidamente interpretada, isso significaria que ele
tinha muito pouco tempo. Um ano, talvez. Um ano e meio, na melhor das
hipóteses. Como se sentiria ao abrir essa porta, sabendo que ele havia
morrido, para falar com um registro e uma semelhança dele?
Ela se fez dizer algo sensato. — Você se importaria se eu fizesse
ao seu avô algumas perguntas... no caso dele saber algo sobre Atlantis
que poderia nos ajudar a liberar o Mestre Haywood?
— Vá em frente. Embora...
— O que?
Ele não olhou para ela. — Eu acho que primeiro você deveria
consultar o Oráculo das Águas Paradas.

***

56 Rocha vulcânica.

269
Um caminho pavimentado conduzia a um pavilhão por detrás do
palácio de mármore rosa, flanqueado de cada lado por árvores altas e
majestosas com casca que era quase sedosa ao toque. As flores de azul
claro derramavam-se dos ramos, girando como pequenas guarda-chuvas.
Iolanthe pegou uma das flores azuis. — Ainda estamos nos
campos de ensino?
O príncipe acenou. — No campo de treino, toda vez que você sai,
é como se você nunca estivesse aqui. Mas o Oráculo irá aconselhá-la
apenas uma vez na sua vida, e até que a história deles fosse transferida
para os campos de ensino, onde há continuidade, meus antepassados
nunca poderiam obter respostas significativas a ela.
— E ela só irá ajudá-lo se for para ajudar alguém, certo?
— Certo – e ela pode ver através de você. Quando fingi que queria
ajudar Bane a permanecer no poder, ela riu. Quando eu disse que queria
proteger meu povo, ela riu novamente. E quando perguntei como eu
poderia ajudá-la a chegar até mim, ela me disse para me ocupar das
minhas coisas, porque você não tinha nenhum interesse em meus
esquemas.
Ele poderia brincar sobre isso agora, mas ela se perguntou como
as respostas contundentes e inúteis do Oráculo deveriam tê-lo atingido
quando ele precisava desesperadamente de orientação e segurança.
O caminho os levou a uma clareira. O Oráculo, no centro de uma
clareira, não era uma lagoa, como Iolanthe pensava, mas uma piscina
redonda de 1,8 metros de comprimento, construída com mármore fino e
cremoso. A água era tão clara quanto o elixir de luz que ela fez com o
relâmpago.
— Incline-se sobre a borda e olhe para o seu reflexo, — o príncipe
disse.
Enquanto ela fazia isso, a água ondulou. Uma voz agradável e
feminina a cumprimentou. — Iolanthe Seabourne, bem-vinda.
Iolanthe recuou surpresa. — Como você sabe o meu nome,
Oráculo?

270
A água dançou como se estivesse rindo. — Eu não seria boa se
não soubesse quem veio pedir ajuda.
— Então você também sabe por que eu vim.
— Mas há mais de uma pessoa que você deseja ajudar.
Iolanthe olhou por cima do ombro. O príncipe estava à beira da
clareira, fora do alcance da voz.
— Pense com cuidado. Posso ajudá-la apenas uma vez.
Ela esfregou o polegar ao longo da borda levantada. — Então me
ajude a ajudar aquele que mais precisa.
A piscina acalmou uma suavidade quase espelhada. Nem uma
ondulação distorceu o reflexo de Iolanthe. De repente, seu reflexo
desapareceu, assim como o reflexo do céu sem nuvens acima. A superfície
da água adquiriu uma cor escura e aumentou como uma maré crescente.
A voz do Oráculo tornou-se profunda, áspera. — Você irá ajudá-
lo, buscando auxílio dos fiéis e corajosos. E do escorpião.
— O que você quer dizer? — Mas é claro que não era possível fazer
uma pergunta para os oráculos.
A piscina ficou clara novamente. A água recuou da borda,
sibilando com vapor. O mármore embaixo da mão, frio ao toque há um
minuto, agora estava quente, como se estivesse no sol por horas.
— Quanto ao seu guardião, ele não permanecerá sob a custódia
da Inquisidora durante muito tempo, — o Oráculo disse, sua voz baixa.
— Adeus, Iolanthe Seabourne.

***

Eles entraram no Crucible sentados a uma distância respeitável


na cama. Mas Titus abriu os olhos para encontrar a cabeça dela no seu
ombro, a mão segurando a dela na capa do livro.
Ele não soltou a mão dela imediatamente. Ele deveria ter feito,
mas, de alguma forma, ele permaneceu exatamente como estava. A
respiração dela veio superficial, quase irregular. O cabelo roçou seu
queixo, como se ela estivesse inclinando o rosto para olhar para ele.

271
Um desejo quente pulsava em suas veias. Um segundo. Dois
segundos. Três segundos. Se ele contasse até cinco, e ela ainda não se
movesse...
Quatro segundos. Cinco segundos...
Os dedos dela apertaram os dele. Mas no momento seguinte, ela
já estava levantando e se afastando. Na parede oposta, ela se virou e
cruzou os pés nos tornozelos, como se nada tivesse acontecido. Nada
aconteceu, mas quase cinco segundos era um tempo muito longo para
hesitar na borda.
Ele se endireitou. — O que o Oráculo disse sobre seu guardião?
— Que ele não estará no Inquisitório por muito mais tempo.
— Como ele vai escapar?
— Os oráculos já responderam tais perguntas?
Uma batida alta veio, não na porta dele, mas na dela. — Você está
aí, Fairfax? — Cooper perguntou. — Preciso de ajuda com o meu artigo
crítico.
— Meu rebanho balindo. É melhor eu pastorear. — Ela abriu a
porta. — Cooper, meu velho. Você sentiu minha falta?
Titus já sentia a falta dela. Quando ela saiu, ele abriu o Crucible
para a ilustração de O Oráculo das Águas Paradas. Seu rosto olhou para
ele da superfície da piscina. Como esperava, a habilidade da lagoa para
capturar a semelhança de qualquer pessoa que olhava para dentro era
imune ao alcance do feitiço irreproduzível.
Titus VI havia construído o truque na lagoa porque queria que
todos os grandes e terríveis magos que habitavam dentro do Crucible se
assemelhassem a ele. Titus VII sequer gostava de olhar para o seu próprio
rosto no espelho, mas estava imensamente grato pelo fato de seu grande
tataravô, bisavô-bisavô, ter sido bastante bobo.
Agora ele poderia trabalhar a semelhança dela em qualquer
história de sua escolha.
Agora ele poderia lutar contra dragões por ela.
E agora ele poderia beijá-la novamente.

272
Capítulo 19
Parte da educação de um menino britânico consiste em
memorização. Na aula de repetição os alunos tiveram que recitar os
quarenta versos latinos que foram designados para memorizar.
Titus raramente via qualquer coisa através do mesmo prisma que
seus colegas de classe. Mas nesse exercício mental, ele e os outros
estavam de acordo: era um mau uso colossal de tempo. Para piorar as
coisas, embora um garoto pudesse sair logo que recitasse seus versos,
sair da sala de aula como um filhote de cachorro que ficara preso no canil
por um longo tempo, ele não podia dizer esses versos até que fosse
chamado para fazer isso. E Frampton invariavelmente mantinha Titus
aguardando até quase todos os outros terem saído.
Contudo, no dia em que Titus voltou à aula depois de uma
convalescença de uma semana, Frampton o convocou em segundo,
imediatamente após Cooper, que sempre forneceu um recital perfeito
para definir o padrão para o resto da aula.
Titus, que se apoiou em simplesmente ouvir as linhas repetidas
dezenas de vezes durante a aula para memorizá-las, gaguejou feio.

273
Frampton fez um som de desaprovação. — Sua Alteza, você está
prestes a assumir as rédeas de um antigo e magnífico reino. Certamente
o pensamento deve obrigar você a fazer melhor.
Isso era novo. Frampton poderia ter ficado encantado em fazer
Titus esfriar os calcanhares, mas nunca foi abertamente antagônico.
— O sucesso da minha regência não depende da minha
capacidade de recitar sombrios versos latinos, — Titus disse friamente.
Frampton não mostrou nenhum sinal de estar humilhado pela
repreensão. — Não falo da memorização e recitação de linhas específicas,
mas da compreensão do dever. De tudo que eu vi em você, rapaz, você
tem uma má compreensão de obrigação e responsabilidade.
Ao lado dele, Fairfax respirou fundo. Ela não estava sozinha. Toda
a classe arquejou.
Titus fez um show de examinar seus botões de punhos. — É
irrelevante o que um lacaio como você pensa da minha peesoa.
— Ah, mas os tempos mudam. Atualmente, os príncipes de casas
de mil anos podem muito bem se encontrar sem um trono, — Frampton
disse suavemente. — Próximo, Sutherland. Espero que você tenha se
preparado melhor.
Titus não demorou a sair. Assim que voltou ao seu quarto na casa
da Sra. Dawlish, ele inseriu um pedaço de papel sob a bola de escrita.
Nenhuma notícia nova o aguardava. Não muito surpreendente, pois
apenas três horas atrás Dalbert relatou que houve poucas mudanças na
condição da Inquisidora.
Mas se a Inquisidora permanecia inconsciente, por que Frampton
foi à ofensiva? Simplesmente para lembrar a Titus que ele agora era
persona non grata nos círculos dos atlantes por ter incapacitado um dos
tenentes mais capazes de Bane?
Ele estava nervoso. Fazia mais de uma semana desde a
Inquisição, e ainda não tinha ideia de como interpretar a visão de ruptura
sobre um céu de wyverns e carros blindados soltando fogo. A marcha de
Fairfax para a grandeza estava paralisada desde o seu desbloqueio do ar.
O único progresso concreto que ele poderia apontar era a preparação de

274
uma mochila para fuga que eles arrumararam e guardaram no celeiro
abandonado.
Eles não podiam continuar assim, à mercê de eventos além do
controle deles. Precisava encontrar uma maneira de neutralizar a
Inquisidora, explorar a visão de ruptura, e estimular Fairfax a dominar
cada vez mais seus poderes.
Ele voltou-se para o diário de sua mãe, esperando orientação. Se
houve uma coisa boa que saiu da nuvem negra da Inquisição, era que
sua fé nela foi totalmente restaurada. Os fios do destino se entrelaçavam
misteriosamente, mas ele ficou convencido de que a princesa Ariadne,
entretanto, pouco teve sua mão no tear.
Ele virou as páginas com cuidado, uma a uma, sentindo aquela
peculiar sensação de ansiedade no estômago. Não demorou muito para
chegar a uma página que não estava em branco.

26 de abril, AD 1020

Exatamente um ano antes da morte dela.

Uma visão estranha. Não sei o que fazer com isso. Titus, com a
mesma idade que tinha quando viu aquele fenômeno distante em uma
varanda, mas vestindo uma roupa estranha – não maga? – está inclinado
em uma janela de um quartinho. Não é um quarto que eu já vi no castelo,
na Cidadela, ou no mosteiro, simples, mas com uma bandeira estranha na
parede – preta e prata, com um dragão, uma fênix, um grifo e um unicórnio.

A bandeira inventada de Saxe-Limburg. Até onde Titus sabia,


somente uma existia.

À noite, ou talvez ao escurecer, está bastante escuro lá fora. Titus


se virou da janela, claramente indignado. — Bastardos, — ele amaldiçoa.
— Eles precisam de suas cabeças empurradas no seu... — ele congela.

275
Então corre para tirar um livro da estante, um livro em alemão com o nome
de Lexikon der Klassischen Altertumskunde.

Não havia mais nada.


Titus leu a entrada duas vezes mais. Ele fechou o diário. O feitiço
de disfarce retornou. O Diário mudou de tamanho, sua capa de couro
simples metamorfoseando em uma ilustração de um antigo templo grego.
Sob a figura, as palavras de Lexikon der Klassischen
Altertumskunde.
Um Dicionário de Antiguidades Clássicas.
Então, uma noite em um futuro não muito distante, ele
amaldiçoaria da janela, depois se apressaria a ler o Diário novamente. No
entanto, esse conhecimento fez pouco para tirá-lo do seu desânimo atual.
Três batidas em rápida sucessão – Fairfax, de volta da aula.
— Entre.
Ela fechou a porta e se inclinou contra ela, um pé no painel da
porta. Ela aprendeu a caminhar e ficar em pé com arrogância em seus
quadris. Ele teve que se controlar para que seu olhar não se desviasse
constantemente para lugares inadequados à sua pessoa.
— Você está bem? — Ela perguntou.
— Não há mais notícias sobre a Inquisidora. Mas isso não significa
que eles não conseguem apertar o laço enquanto isso. — Ele tirou a
jaqueta do uniforme e o colete. — Preciso ir a prática de remo.
Um menino bem o suficiente para participar das aulas estava bem
para praticar esportes. Manuseando o botão superior da camisa, ele
esperou que ela saísse.
Ela olhou para ele como se não tivesse ouvido, como se ele não
fosse por algumas horas ao rio, mas para algum destino distante e
perigoso.
Todo o ar ao seu redor parecia brilhar.
Então, abruptamente, ela se virou e abriu a porta. — Claro, você
deve se preparar.

276
***

A Sra. Hancock estava no corredor, certificando-se de que os


meninos estavam na cama para apagar as luzes, quando Titus colocou
um último pedaço de papel sob a bola de escrita. A máquina clamou. Ele
esperou com impaciência para as teclas pararem de bater.
O relatório dizia:

A Inquisidora ainda não recuperou a consciência, mas de acordo


com a última notícia, ela tem respondido melhor aos estímulos. Os médicos
atlantes estão otimistas, ela continuará liderando. Baslan diz que já
agendou um dia de ação de graças no Inquisitório, tão confiante ele está
da recuperação iminente de sua superior.

Ele saltou com a batida em sua porta.


— Boa noite, Sua Alteza, — a Sra. Hancock disse.
Ele mal conseguiu não rosnar. — Boa noite.
Claro que a melhora na condição da Inquisidora e a nova
beligerância de Frampton estavam relacionadas. Claro.
Ele olhou para o diário de sua mãe novamente, mas estava em
branco. Ele caminhou por alguns minutos em seu quarto, zangado com
ele mesmo por não saber o que fazer. Então ele estava dentro do Crucible,
andando pelo caminho que levava ao Oráculo.
Era noite. Dezenas de lanternas suspensas de árvores no limite
da clareira iluminavam a piscina.
— Você novamente, Sua Alteza, — a piscina disse, nada satisfeita
com a presença dele. Salpicos de luzes douradas dançavam em sua
superfície escurecida.
— Eu novamente, Oráculo. — Ele a visitou muitas vezes, mas ela
ainda não lhe dera nenhum conselho.
Seu tom suavizou ligeiramente. — Pelo menos você parece
sincero... por uma vez.
— Como posso mantê-la segura, minha maga elementar?

277
A piscina ficou prateada, como se um alquimista tivesse
transmutado a água para o mercúrio. — Você deve visitar alguém que
você não deseja visitar e ir à um lugar ao qual você não deseja ir.
A mensagem do Oráculo permanecia enigmática até que ela fosse
entendida. — Minha gratidão, Oráculo.
A piscina ondulou. — E não pense mais na hora exata da sua
morte, príncipe. Esse momento deve chegar a todos os mortais. Quando
você tiver feito o que precisa fazer, terá vivido o suficiente.

***

À distância, obscurecido pelo aumento da poeira, um exército de


gigantes avançava, como se toda uma cordilheira estivesse escorrendo
pela planície. O chão embaixo dos pés de Iolanthe estremeceu. Os
pedregulhos balançavam, os seixos pulavam como se fossem gotas de
água no óleo quente.
A parede que ela estava construindo, de blocos de granito
inicialmente destinados a criação de um templo, teria permitido que as
pessoas da cidade atacassem os pontos vulneráveis nos crânios dos
gigantes. Mas a parede não estava perto da conclusão.
Os gigantes gritavam e batiam martelos enormes contra seus
escudos. Ela já havia enchido seus ouvidos com algodão, mas o clangor
ainda a assustou. Ignorando o barulho o melhor que podia, ela pensou
no próximo bloco de granito. Não parecia particularmente impressionante
em tamanho, mas pesava cinco toneladas. Com muita dificuldade, ela
conseguiu rolar uma extremidade de bloco de três toneladas até o final
da base da parede. Mas sequer conseguiu levantar um canto deste bloco
do chão.
O príncipe havia designado suas três histórias. Em uma, ela
precisava produzir um ciclone para proteger a colheita de uma família
pobre contra uma tempestade de gafanhotos – mas ela só conseguiu criar
brisas. Em outra, ela conseguiu separar as águas de um lago para
resgatar magos que estavam presos no fundo em uma bolha de ar – se

278
fosse real, ela teria perdido muitos magos sob seu cuidado. E a parede –
essa era a sexta tentativa de erguer a parede; ela ainda não parou os
gigantes.
Agora, quando ela acordava pela manhã, a dor em suas mãos se
estendia até os cotovelos. Ela tentou não imaginar o que sentiria quando
aquela mesma sensação de inchaço assumisse todo o seu corpo.
Ela continuou obstinadamente sua tarefa até que um gigante
ergueu o mesmo bloco de granito acima de sua cabeça e o jogou na feira,
lançando uma longa cadeia de gritos.
Ela suspirou. — E eles viveram felizes para sempre.
Não havia mais gigantes. Não havia mais pedregulhos. Em vez do
rugido ensurdecedor da batalha, a chuva caía de forma constante e
suavemente. Ela estava de volta ao quarto do príncipe e...
A mão dele estava presa sobre a dela no Crucible. Sua cabeça
descansava em seu outro braço, o rosto virado para ela com os olhos
fechados. Na luz cinza e aquosa, ele parecia tão cansado quanto ela se
sentia. E esguio, todos os ângulos de sua face. É verdade que ele tinha
uma estrutura óssea notável – esculpida, pode-se dizer – mas ninguém
tão jovem deveria estar preocupado até o ponto de exaustão.
Sem perceber o que fazia, ela estendeu a mão e tocou a bochecha
dele. No instante em que a ponta dos dedos entrou em contato com sua
pele, ela afastou a mão. Ele não reagiu. Ela lambeu o lábio inferior,
estendeu a mão novamente e passou um dedo ao longo da sua
mandíbula.
Quando tirou a mão dessa vez, viu uma nota ao lado do cotovelo
dele.
Estou na sala de leitura.
Os campos de ensino consistiam em mais do que as salas de aula.
No piso térreo também tinha uma enorme biblioteca, referida como a sala
de leitura. Ele passava todos os minutos de repouso lá.
Ela olhou para ele, essa criatura linda e ligeiramente distorcida.
— Eu não me importo com o que as visões dizem, — ela sussurrou, — Eu
não vou deixar você morrer. Não enquanto eu estiver respirando.

279
***

Ele estava entre as estantes, sentado com as pernas cruzadas no


tapete, três livros abertos diante dele em um semicírculo, outra dúzia em
uma pilha alta ao seu lado.
Iolanthe pegou o livro no topo da pilha. As sobrancelhas dela
quase se encontraram com o cabelo ao ler o título: Como matar um mago
à sete quilômetros: Um guia sobre a magia de lançamento à distância. —
Eu me perguntava o que você lia no seu tempo de lazer.
— Um pouco de leitura leve, — ele disse sem olhar para cima, —
Antes de voltar às Propriedades Mágicas de um Coração Ainda Batendo.
Ela sorriu acima da cabeça dele. — Então, o que você está
procurando?
— Algo que me permitirá colocar a Inquisidora em um coma
permanente. Ela acordará. Ela me colocará novamente sob a Inquisição...
sem você ao meu lado. Minha única esperança é encontrar uma maneira
de atacar enquanto a mente dela está estendida e vulnerável.
Quão rápido ela havia endurecido – ela mal piscou diante da
resposta dele. — Você estará na mesma sala com ela. Como ajudará saber
Como matar um mago à sete quilômetros?
— Eu gosto de lê-lo – algo que não posso dizer sobre livros que
lidam com a magia mental. E esse título é figurativo, por sinal. O
espetáculo de magia à distância é um esporte perfeitamente legítimo em
muitos reinos mágicos.
— Então o livro não te ensina a matar?
— É como um tiro ao arco. Se você atacar alguém à distância e
velocidade corretas, sua flecha matará, mas não é por isso que as
senhoras inglesas apreciam isso nas festas da casa de campo. — Ele tirou
o livro dela. — Como foi a parede, a propósito?
— Não foi construído.
Ele balançou a cabeça. — Não é bom. Você deve ser capaz de
apanhar Bane, e eu devo ser capaz de derrotar a Inquisidora.

280
Esses, em poucas palavras, eram os problemas deles. — Posso
voltar novamente depois do jantar, mas agora preciso escrever um artigo
crítico.
— Você pode escrever um para mim também? Não precisa ser
bom.
— Aposto que a maioria dos outros fugitivos da Atlantis não
precisa escrever dois artigos críticos.
Ele sorriu. — Obrigado.
Seu coração saltou uma batida, como sempre acontecia quando
ele sorria. — Só dessa vez. E você me deve.
Quando ela se virou para sair, ele disse: — Revistas inglesas de
gestão doméstica.
— Perdão?
— É o que eu leio no meu tempo de lazer.
— Você gosta de gerenciamento doméstico?
— Eu gosto das respostas autoritárias que as revistas dão.
Querida Sra. SoSo, tudo o que você precisa para ter um cabelo brilhante
como a lua é misturar azeite e espermacete 57 em uma proporção de 8:1 e
aplicar generosamente. Querida Sra. SoSo, não, você não vai querer servir
sopa no café da manhã do seu casamento. Um ou dois pratos quentes, se
precisar, o resto deve estar frio.
Problemas solucionáveis, era o que ele gostava. O prazer das
preocupações comuns. A falta resoluta de perigo real.
Algum dia, pensou. Algum dia.

***

Iolanthe sentiu-se como uma semente após um bom banho de


primavera, tão encharcada que estava prestes a estourar, mas de alguma
maneira incapaz de passar através da casca. Sua capacidade de magia

57 Mistura de substâncias gordurosas extraídas da cabeça de baleias, constituída


de palmitato de cetila e usada em cremes, ceras, emulsões, na fabricação de velas,
sabões, emolientes etc..

281
elementar podia ser grande, mas sua habilidade obstinadamente se
recusava a melhorar.
Pelo menos, as últimas notícias ofereceram algum consolo. Depois
de um breve intervalo durante o qual ela parecia estar à beira da
consciência, a Inquisidora permaneceu em seu coma profundo.
Iolanthe entrou em uma rotina familiar de aulas e esportes, um
ritmo do qual ela sentiu falta em Little Grind. Às vezes, era quase possível
acreditar que ela estava vivendo apenas uma versão ligeiramente
distorcida da vida normal.
Com o prolongamento dos dias, o toque de recolher acontecia
mais tarde, e os meninos foram autorizados a ficar fora enquanto um
último brilho do sol ainda permanecesse acima do horizonte. Durante
horas do dia, ela ficava com os meninos no campo – onde aparentemente
não fazia nada errado.
Esta habilidade atlética ganhou-lhe um nível ridículo de
aprovação. Ela sempre teve o cuidado de se encaixar onde quer que fosse.
Mas era mais do que um pouco irônico que ela nunca tivesse sido tão
popular como uma garota como era agora como um menino, como alguém
que tinha pouca semelhança com seu eu verdadeiro.
Esta noite em particular, após o treino, muitos garotos ficaram
para assistir a um jogo entre os dois melhores clubes escolares. Iolanthe
pegou seu equipamento e começou a se dirigir para a casa da Sra.
Dawlish. Ela gostava da camaradagem de seus companheiros de equipe,
mas era sempre a primeira a sair do campo no final de um treino: tanto
quanto se recusou a acreditar na profecia da morte do príncipe, de
alguma forma ela parecia mais ameaçadora quando estava longe dele.
Kashkari caminhou ao lado dela. Eles caminharam juntos,
discutindo uma tarefa grega que aconteceu pela manhã. Ela permanecia
um pouco cautelosa com Kashkari, mas já não se sentia nervosa na
presença dele – ele provavelmente não era um espião de Atlantis, apenas
um garoto perspicaz e observador.
— E quanto ao dativo ou locativo? — Kashkari perguntou.

282
— Você pode usar o acusativo, já que eles estão indo para Atenas
– faz a defesa de Atenas, — Iolanthe respondeu.
Ela descobriu que sua compreensão do grego, inferior aos seus
próprios olhos, era considerada bastante proficiente pelos outros
meninos.
— Acusativo, é claro. — Kashkari sacudiu a cabeça um pouco. —
Eu me pergunto agora como nós conseguimos nos virar quando você não
estava aqui.
— Não tenho dúvidas de que a devastação foi generalizada, o
sofrimento universal.
— Na verdade, era a Idade das Trevas nos anais da casa da Sra.
Dawlish. A ignorância era espessa no chão, e a insensatez obscurecia
todas as janelas.
Iolanthe sorriu. Kashkari sorriu para ela. — Se alguma vez eu
puder fazer algo por você, me avise.
Você pode prestar menos atenção em mim. — Tenho certeza que
estarei batendo na sua porta assim que eu fizer uso do sânscrito.
Eton não tinha tal curso, mas os magos das academias superiores
geralmente precisavam dominar a linguagem clássica indo-europeia.
Iolanthe, em seus dias antes do relâmpago, havia aspirado ao sânscrito
para conseguir sua bolsa de estudos.
— Ah, sânscrito. Ouso dizer que o meu sânscrito é tão bom quanto
o seu latim... minha família me fez aprender quando eu estava com cinco
anos, — Kashkari disse, rolando a mão para verificar o cotovelo, o qual
ele raspara no chão em uma queda durante o treino.
No braço direito, logo abaixo do cotovelo, ele apresentava uma
tatuagem na forma da letra M – para Mohandas, seu nome, ela supôs.
— E o latim? Seu latim é bom. Você teve um tutor para isso antes
de vir para a Inglaterra?
Ele assentiu. — Desde os dez anos.
— Foi quando você soube que seria enviado para esta escola para
estudar?

283
— No meu décimo aniversário, na verdade. Lembro daquele dia
porque meus pais continuaram falando sobre a noite do meu nascimento,
e todas as estrelas cadentes.
— O quê?
— Eu nasci no meio de uma tempestade de meteoros.
— A que aconteceu em novembro de... — ela ainda tinha
problemas com a forma como os ingleses contavam os anos, — 1866?
— Sim, isso. E então eles me disseram sobre a tempestade de
meteoros ainda maior em 33.
— Houve uma em 1833?
— A tempestade de meteoros mais magnífica de todas, de acordo
com...
— Olhe, é o menino turbante e Bumboy.
Iolanthe olhou para o outro lado da rua para ver Trumper e Hogg
rindo um para o outro.
— Alguém deveria dar uma surra neles, — ela disse sem se
preocupar em manter sua voz baixa.
— Você bateu por seu príncipe todas as noites? — Hogg disse,
movendo os quadris obscenamente.
Outros garotos de cada lado da rua estavam parando para ver o
que estava acontecendo.
— Ignore-os, — Kashkari disse calmamente.
— Vá para casa, para sua família incestuosa, — Trumper disse.
— Nós não queremos o seu tipo aqui.
Era isso. Iolanthe agarrou seu taco de cricket e atravessou a rua.
— Que grande vara você carrega, — Hogg zombou. — É isso que
o príncipe gosta de usar com você?
Ela sorriu. — Não, apenas o que eu gosto de usar em seu amigo.
Ela balançou o taco. Não muito forte, já que não queria matar
Trumper, mas ainda assim ele acertou o nariz dele de uma maneira muito
gratificante.
Sangue escorreu das narinas de Trumper. Ele uivou. — Meu
nariz! Ele quebrou o meu nariz!

284
— Você também? — Perguntou a Hogg. — Que tal isso?
Hogg deu um passo atrás. — Eu... eu tenho que ajudá-lo. Mas
você se arrependerá disso pelo resto de sua vida.
Vários meninos de casas próximas colocaram suas cabeças para
fora das janelas. — O que está acontecendo? — Perguntaram. — O que
foi isso?
— Nada, — Iolanthe disse. — Algum idiota deu de cara com o
poste de ilminação.
Trumper e Hogg decolaram em meio a uma risadas – ninguém, ao
que parece, gostava deles.
Quando Iolanthe voltou para o lado de Kashkari, ele a olhou com
algo entre o alarme e a admiração. — Muito bom da sua parte.
— Obrigado. Espero que eles pensem duas vezes antes de insultar
meus amigos na minha presença. Agora, o que você me contou sobre a
chuva de meteoros em 1833?
***

Titus estremeceu enquanto se afastava do remo em que passou


as últimas três horas remando para cima e para baixo no Tâmisa. Fairfax
estava no cais, esperando por ele.
— Tem alguma coisa errada? — Ele perguntou quando eles saíram
do alcance da voz dos outros remadores.
Ela geralmente não entrava no cais. Ela bateu seu bastão de
cricket contra o lado de sua panturrilha em uma cadência agitada. —
Trinta e três anos antes de eu nascer houve outra tempestade de
meteoros, não é, ainda mais espetacular? Não houve profecias sobre um
grande mago elementar?
— Houve. Os videntes caíram sobre eles mesmos prevendo o
nascimento do maior mago elementar de todos os tempos.
— E?
— E ele nasceu em um pequeno reino no Mar da Arábia. Quando
tinha treze anos, ele fez um vulcão subaquático, inativo há muito tempo,
entrar em erupção. — O fogo era um poder extravagante – como era o

285
relâmpago. Mas a capacidade de mover montanhas e criar novas terras
do mar era um poder de uma magnitude diferente.
Ela emitiu um assobio baixo, devidamente impressionada. — O
que aconteceu com ele?
— O reino já estava sob o domínio de Atlantis. O pai e a tia do
menino morreram enquanto participavam de um esforço de resistência
local. Quando os agentes de Atlantis chegaram para pegar o menino, a
família dele decidiu que nunca permitiriam isso. Eles o mataram em vez
disso.
Desta vez, sua resposta foi um longo silêncio.
— Quais foram as consequências para a família do menino? —
Ela perguntou, sua voz tensa.
— Para a família, especificamente, não sei. Mas o
descontentamento de Bane foi vasto, e o reino todo sofreu uma série de
medidas de retaliação. Minha mãe acreditava que o fracasso de Bane em
capturar o menino causou uma perda de vigor de sua parte, o que, por
sua vez, levou a um afrouxamento do controle de Atlantis em seus reinos.
Os magos não notaram no início, não por anos, mas quando perceberam,
eles começaram a testar as trelas. Houve infrações menores, que se
tornaram rebeliões, que se tornaram levantes em grande escala.
— A Revolta de Janeiro.
— A baronesa Sorren cronometrou para aproveitar o caos geral.
O Juras já era um banho de sangue, com fortes baixas em ambos os
lados. Atlantis também estava tendo problemas com a Inter-Dakotas e os
reinos do subcontinentes. E houve rumores de descontentamento na
própria Atlantis. Os líderes da Revolta de Janeiro pensaram que eles
seriam a palha que quebraria as costas do camelo.
— Mas eles mesmos foram esmagados, em vez disso. Atlantis deve
ter encontrado uma maneira de aproveitar um novo poder.
— Ou um antigo. Minha mãe acreditava que Bane teve que esgotar
sua própria força vital, algo que ele cuidara em preservar durante os
longos séculos de sua vida. O que explicaria por que está tão desesperado
para localizá-la.

286
Ela virou o bastão de cricket algumas vezes, seu movimento mais
firme e deliberado. — Não sou dele para ser possuída. E algum dia, ele
pode simplesmente se arrepender de vir atrás de mim... atrás de nós... e
não se sair suficientemente bem sozinho.
Não foi até Titus estar no seu quarto, se trocando, que ele se
atentou para o significado do que ela havia dito: ela pretendia envolver
as mãos sobre as rédeas de seu destino. Ao redor das rédeas do destino
deles.
Uma emoção desconhecida surgiu em seu peito, cálida e suave.
Ele não estava mais completamente sozinho no mundo.

***

Titus permaneceu por muito tempo longe da porta do príncipe


Gaius. Além dela, aguardava o assassino de sua mãe, que morreu
confortavelmente em sua cama, em plena velhice.
Mesmo agora, raiva e ódio ferviam nele. Mas o Oráculo havia dito
que ele deveria visitar alguém que não queria visitar, e ele não podia
pensar em ninguém, além da Inquisidora, cuja presença o repelia mais.
Ele abriu a porta pesada. Música transbordou para fora, notas tão
doces e suculentas quanto os melões de verão. Um jovem bonito estava
sentado em um divã branco baixo, cercado por almofadas azuis e fofas,
tocando as cordas de um alaúde.
— Onde está o príncipe Gaius? — Titus exigiu.
— Eu sou ele, — o jovem respondeu.
Mas você deveria ser um homem velho. Todos os outros príncipes
e princesas pareciam estar perto do final de suas vidas. Hesperia, em
particular, embora o brilho nos olhos dela permanecesse, estava tão
enrugada quanto uma noz descascada. — Quantos anos você tem?
— Dezenove.
Apenas alguns anos mais velho do que Titus. — E você está
qualificado para ensinar tudo o que você listou do lado de fora da sua
porta?

287
— Claro. Eu sou um prodígio. Terminei com o volume dois de
Melhores Magos antes de completar dezesseis anos.
Titus ainda não passou da metade do volume um de Melhores
Magos, o texto definitivo sobre magia superior. Gaius tocou outras
poucas notas de música de seu alaúde, cada acorde melhor do que o
último.
— Como posso ajudá-lo? — Gaius perguntou, claramente
acreditando em sua própria superioridade, mas não sendo
particularmente tedioso sobre isso. Na verdade, havia um glamour em
sua arrogância – um charme até.
O velho duro e sombrio do qual Titus se lembrava já fora este
jovem alegre e despreocupado.
— Você sabe alguma coisa sobre sua filha, Ariadne?
— Por favor, — Gaius riu, — Ainda não sou casado. Mas Ariadne
é um nome adorável. Eu gostaria de ter uma filha algum dia. Vou
prepará-la para ser tão grande quanto Hesperia.
Ele odiava as petições que pousavam anualmente na sua porta
para que ele abdicasse a favor da sua filha. Havia um grande abismo
entre pai e filha.
— Você sabe alguma coisa do seu futuro?
— Não, exceto que estou pronto para bater Titus, o Terceiro, para
fora do triunvirato dos grandes. Não há nada que qualquer um possa
fazer para desalojar o primeiro Titus ou Hesperia, mas devo ultrapassar
facilmente as realizações de Titus, o Terceiro. Como você acha que eles
me chamarão? Gaius, o Grande? Ou talvez Gaius, o Glorioso?
Eles o chamavam de Gaius, o Desastroso. E ele sabia disso.
— Quer ouvir uma peça que eu escrevi? — Gaius perguntou.
Ele começou sem esperar por uma resposta. A peça era muito
bonita, tão suave e doce como uma brisa de primavera. Seu rosto brilhava
de prazer, felizmente ignorante de que mais tarde ele proibiria a música
na corte e destruiria seus instrumentos inestimáveis, um a um.
Quando terminou, olhou com expectativa para Titus. Titus, depois
de um momento de hesitação, bateu palmas. Isto era boa música.

288
O príncipe – que algum dia não teria música, nem filhos, e apenas
farrapos de seus sonhos juvenis – inclinou a cabeça, reconhecendo os
aplausos.
— Agora, Sua Alteza, — Titus disse, — Eu gostaria de lhe fazer
algumas perguntas sobre Atlantis.

289
Capítulo 20
À distância, espadas, maças e grupo de feitiços da Feiticeira de
Skytower continuavam avançando em direção ao Baluarte de Redoubt.
Titus passou por uma cascata de feitiços para bloquear, estabilizar,
amplificar e concentrar seu objetivo. Os mísseis deveriam ser abatidos
quando estavam a mais de quatro quilômetros de distância, além das
paredes exteriores defensivas do baluarte. Quando atravessavam as
paredes, eles mergulhavam para o chão, causando estragos em vidas e
propriedades.
Era divertido, a repetição dos feitiços. Seria meditativo se o seu
objetivo fosse perfeito. Mas seu sucesso com os objetos em movimento
pairava obstinadamente em 50 por cento. Ele atingia alguns alvos
seguidos, depois perdia os próximos.
— Esse é o último bando, — o capitão gritou. — Coma algo rápido
caso precise. Visite o reservado. O próximo bando não estará aqui por
um tempo.
Fairfax apareceu ao lado dele na muralha, prestando pouca
atenção aos soldados que se aproximavam.
— Lamento ter demorado tanto tempo. Os versos de Rogers
estavam terríveis.

290
Ele havia ouvido a educação de Eton ser descrita como algo que
ensinava garotos a escrever versos ruins em Latim e uma prosa em inglês
tão horrível quanto.
— Você deveria cobrar uma taxa pela sua ajuda.
— No próximo semestre eu vou. Você queria me ver?
Ele sempre queria vê-la. Mesmo quando ambos estavam no
Crucible juntos; a triste verdade era que eles se viam muito pouco, com
a maior parte do tempo dela gasto nos campos de treino, e a maioria do
tempo dele nos campos de ensino.
Ele pegou o cotovelo dela e saiu do Crucible. — Lembra-se do que
eu lhe falei sobre a visão de ruptura?
Ela assentiu. — A imagem de wyverns e carros blindados que você
viu quando interrompi a Inquisidora.
— Não posso estar completamente seguro, mas depois de falar
com meu avô, acho que são as defesas externas do Palácio do
Comandante em Atlantis.
— O de Lucidias?
Lucidias era a capital da Atlantis. Ele balançou sua cabeça. —
Esse complexo é chamado Royalis – costumava ser o palácio do rei,
quando Atlantis ainda tinha reis. O Palácio do Comandante está nas
terras altas. Meu avô tinha um espião que conseguiu enviar uma
mensagem em uma garrafa que viajou por dois mil quilômetros no oceano
aberto. Ele indicou a difícil localização do palácio e notou que tinha vários
anéis de defesa com wyverns esguios e velozes, um de carros blindados,
e outro de carruagens enormes que levavam dragões.
— Você não viu os dragões sendo transportados.
— Não, minha visão foi muito breve para notar todos os detalhes.
Eu sabia que o fogo saía de algumas das carruagens, mas não sabia o
que estava produzindo o fogo. Faz sentido – várias espécies de dragões
incendiários não podem voar ou não podem voar bem. Ao colocá-los em
veículos aéreos, Atlantis pode explorar melhor o fogo deles.
Ela se levantou da cadeira, foi até o armário do chá e tirou a
pequena embalagem de macarons de chocolate que ele comprou

291
recentemente na High Street. Lentamente, ela comeu três macarons, um
depois do outro.
— Parece que você quer dizer que teremos que ir ao Palácio do
Comandante. Não seria melhor para nossa vantagem atrairmos Bane
para um local menos hostil?
Ele estendeu a mão para ela – ele precisava de algo para fortalecê-
lo também. — Quais são as nossas chances nesse local menos hostil?
Ela colocou alguns macarons na palma da sua mão. — Ao lado de
zero.
Ele deu uma mordida em um macaron. — E você pensa assim,
porque?
— Ele é invencível. Ele não pode ser morto – ou pelo menos é o
que os magos dizem.
— E eles estão certos – pelo menos por uma vez. Por duas vezes
Bane foi morto diante de testemunhas oculares. Uma vez no Cáucaso,
onde magos são especialistas em feitiço à distância. A segunda vez
quando ele estava no subcontinente para reprimir uma revolta.
— Em ambos os casos, ele foi dado como morto – cérebro e
entranhas espalhadas por todo o lugar. Em ambos casos, no dia seguinte,
ele estava caminhando ao redor, assim como a chuva. E em ambos os
casos, o Domínio enviou espiões para verificar os relatos; eles voltaram
desconcertados, porque as testemunhas diziam a verdade.
Ela voltou para o assento. — Ele ressuscitou?
— Ou assim parece. Essa foi a razão pela qual meu avô estava
interessado nas defesas do Palácio do Comandante. Se Bane fosse
verdadeiramente invencível, ele poderia dormir ao ar livre e não temer por
sua vida. Mas Bane tem medo de algo. E também a Inquisidora – ou ela
não teria pensado nas defesas do palácio, que são vulneráveis a grandes
poderes elementais.
Ela inclinou a cabeça.
Às vezes, quando se deitava na cama à noite, ele imaginava um
futuro para ela além de seu eventual confronto com o Bane. Uma
professora popular e respeitada no Conservatório de Artes e Ciências

292
Mágicas – ela mencionou o objetivo várias vezes nos registros escolares
que Dalbert havia descoberto para Titus – ela tentaria viver uma vida
tranquila e modesta.
Mas onde quer que fosse, os aplausos estrondosos a
cumprimentariam, a grande heroína de seu povo, a maga mais admirada
em sua vida.
Esse era um futuro que não o incluía, mas deu-lhe coragem de
pensar que ao fazer o máximo, talvez ele ainda pudesse fazer isso se
tornar realidade para ela.
Hoje, no entanto, seu futuro estava mais obscuro e distante do
que nunca.
Ela ergueu o rosto. — É no Palácio do Comandante que você cairá?
Ele morrerá, ela quis dizer.
Ele engoliu em seco. — É possível. Minha mãe viu uma cena
noturna. Havia fumaça e incêndio, uma quantidade impressionante de
fogo, de acordo com ela... e dragões.
— Quais histórias no Crucible têm dragões?
— A metade delas, provavelmente. Lilia, o ladrão inteligente,
Batalha pelo bastião negro, A Princesa Dragão, Lorde de...
— E quanto a A Bela adormecida? Na minha primeira vez no
Crucible, você disse que me levaria ao castelo dela algum dia para lutar
contra os dragões.
Ele deliberadamente não mencionou a Bela Adormecida. —
Dragões são brutais. Coloco os mais pequenos como parte do meu
treinamento. E ainda me machuco, apesar de fazer isso durante anos.
— Eu quero ir depois do jantar, — ela disse.
— Você já fez duas sessões no Crucible hoje; você não estará na
melhor forma para os dragões.
Sua voz não provocou dissidência. — Imagino que quando chegar
ao Palácio do Comandante, eu também ficarei bastante cansada. Eu
também poderia me acostumar a usar meus poderes em condições
inferiores às ótimas.

293
Ele vacilou. Ele não tinha motivos para recusá-la, mas se ela
conseguisse...
Ele estava sendo irracional. Na sua primeira vez, ela nem
conseguiria passar pelos portões do castelo, muito menos alcançar o
sotão.
Ele não tinha nada a temer. — Tudo bem, — ele disse, — Se você
insiste, iremos depois do jantar.

***

Um anel espesso de roseira envolvia o castelo da Bela Adormecida.


O príncipe apontou sua varinha e explodiu um túnel de cinquenta metros
de comprimento através do espinheiro.
O mármore branco das paredes do castelo, iluminado por
lâmpadas e fogo, brilhava no final do túnel. Entretanto, no lado oposto
ao túnel, apenas sombras de forma fantasmagóricas tremeluziam.
Iolanthe criou bolas de fogo para flutuarem diante dela, iluminando o
caminho.
Seu batimento cardíaco estava em uma velocidade quase dolorosa
– ela não era naturalmente corajosa. Ela respirou profundamente e
tentou se distrair. — Por que você coloca os dragões mais brutais aqui,
em vez de uma história diferente? — Ela perguntou.
Ele piscou, como se a pergunta o tivesse assustado. — É
conveniente.
Tanto quanto ela sabia, cada história era igualmente conveniente
para acessar no Crucible. — É porque você pode beijar a Bela Adormecida
depois?
Ela estava apenas brincando. Ou, pelo menos, meio brincando.
Mas ele abriu a boca... e não disse nada.
Ela parou, admirada por sua admissão implícita. — Então... você
quer que eu me apaixone por você enquanto você troca beijos com outra
garota?

294
Era a primeira vez que ela havia mencionado esse esquema
particular dele ao ar livre.
Ele engoliu. — Eu nunca fiz nada do tipo.
Como ele não se dobrou com dor, ela teve que aceitar a resposta
dele como verdadeira. Mesmo assim, o que ele não lhe disse?
Um grito sobrenatural dividiu a noite, quase arrebentando seus
tímpanos. — Eles nos cheiraram, — o príncipe disse com a voz tensa.
No alto, uma chama rugiu, um cometa de fogo que derramou
fagulhas alaranjadas através do espesso emaranhado acima. O calor da
chama a fez afastar o rosto para protegê-lo com os braços.
— O que eles são, exatamente? — Perguntou, esquecendo a Bela
Adormecida por um momento.
— Um par de Colossus cockatrices58.
Ela viu dragões no Zoo de Delamer algumas vezes. Viu dragões no
circo. E quando foi a um safari com o Mestre Haywood no arquipélago de
Melusine para ver dragões selvagens em seus habitats nativos. Ainda
assim, sua mandíbula caiu ao emergir do túnel. Parados diante dos
portões do castelo, havia dois dragões com cabeças semelhantes a um
galo, cuja dimensão se comparava a dos muros do castelo.
— Eles são um par acasalado?
Os Colossus cockatrices, sem asas, tinham ninhos terrestres.
Para proteger seus ovos, o fogo combinado do par acasalado, graças a um
processo que ainda não era claramente entendido, tornava-se uma das
substâncias mais quentes conhecidas no mundo mágico.
O príncipe não precisava responder. Os cockatrices diante do
castelo entrelaçaram seus longos pescoços – exatamente o que um par
acasalado faria – e gritaram novamente.

58

295
Uma explosão de fogo surgiu, sua massa maior e mais quente do
que qualquer coisa que ela já conheceu. Instintivamente, ela retrocedeu.
Seu grito quase rivalizava com o dos cockatrices. A agonia nas
suas palmas era como se ela tivesse mergulhado as mãos no óleo em
ebulição.
— Fiat praesidium maximum! — O príncipe gritou. — Você está
ferida?
O fogo parou abruptamente, barricado a uma centena de metros
de distância. Ela olhou para as mãos, esperando ver bolhas do tamanho
dos pires. Mas suas palmas sequer ficaram avermelhadas pelo calor. —
Estou bem!
— Este escudo pode suportar mais dois golpes. Devo formar outro
escudo?
— Não, eu quero ver o que posso fazer.
Os dragões ficaram quietos por quinze segundos e depois
atacaram novamente. Ela tentou impedir o fogo de alcançar o escudo,
mas falhou miseravelmente. O escudo rachou, distorcendo sua visão de
tudo por trás dele.
Quinze segundos. Ataque. O escudo bloqueou o fogo, mas se
dissipou na sequência. Ela se lembrou de que estava lidando com ilusões.
Mas o cheiro dos cockatrices, o barulho das roseiras queimando atrás
dela, as tochas que se afastavam do fogo do dragão, com medo – eram
muito reais.
Ela ergueu uma parede de água enquanto os cockatrices gritavam
de novo. A água evaporou antes que o fogo a tocasse.
Gelo. Ela precisava de gelo. Ela não era adepta do gelo, mas para
sua surpresa, um iceberg substancial materializou-se ao seu comando.
O gelo derreteu imediatamente.
Mudando de tática, ela usou ar para tentar desviar o fogo. Mas
tudo o que fez foi dividir a massa de fogo em duas, e ambas as metades
se precipitaram diretamente para eles.
Agora, ela não tinha escolha senão cavar um poço diretamente
contra os dragões.

296
O fogo comum era tão flexível quanto a argila. Mas este fogo era
feito de facas e unhas. Ela gritou novamente com dor. Mas estava fazendo
alguma coisa com o fogo? Estava diminuindo a velocidade? Ou
simplesmente pareceu chegar a um ritmo mais tranquilo porque a agonia
em suas mãos distorcia sua percepção do tempo?
Lenta ou rápida, ela atacou violentamente. — Corra! — Ela gritou
para o príncipe.
Pela primeira vez em sua vida, ela fugiu perante o fogo.

***

Ela abriu os olhos para encontrar-se de volta no quarto do


príncipe, sentada diante de sua mesa, com a mão no Crucible. O odor da
carne carbonizada permaneceu nas suas narinas. A pele de suas costas
e seu pescoço sentiam-se incrivelmente quentes, como se estivessem sob
o sol durante muito tempo.
O príncipe ajoelhou-se diante dela, uma mão apertada em seu
ombro, a outra no seu queixo, os olhos escuros e ansiosos. — Você está
bem?
— Eu… acho que sim.
Ele colocou dois dedos contra o pulso ao lado de sua garganta. —
Tem certeza?
De modo nenhum. — Eu vou voltar.
Ela pode não ter nascido com coragem natural, mas odiava o
fracasso.
Não havia fogo queimando no emaranhado de roseiras e nenhum
túnel para atravessarem: o Crucible sempre retornava ao seu estado
original. As luas haviam aumentado, gêmeas crescentes, uma pálida,
uma mais pálida.
— O seu feitiço de escudo tem uma contra-senha? — Ela
perguntou ao príncipe.
Ele hesitou, como se não quisesse contar para salvar os dragões
por mais um dia. Ele deu-lhe a contra-senha. Ela praticou o feitiço.

297
Quando pensou que seu escudo era suficientemente robusto, ela
explodiu um caminho pelo espinheiro.
Atravessando o túnel, eles discutiram táticas e concordaram que
para finalmente conter o fogo ela deveria alcançar a segurança primeiro.
— Vamos colocar os escudos, o meu na parte externa do seu, —
ela disse. Dessa forma, se seu escudo não fosse tão resistente, eles ainda
teriam o dela para proteção.
— Boa ideia.
— Mas se meu escudo for bom o suficiente, então vou continuar.
Ele assentiu. — Eu vou ficar desse lado e distrair os cockatrices –
se eles alternarem o fogo entre nós, isso nos dará mais tempo para
descobrir o que fazer. Mas por agora, não vá além dos degraus do castelo.
— Por quê? — Mas então ela se lembrou. — É porque você não
quer que eu veja a Bela Adormecida?
— Isso não é ...
— Ela é bonita?
— Ela não existe.
— Ela está aqui. Ela é bonita? — Ela não gostava das perguntas
incômodas, mas não podia parar.
— Bonita o suficiente. — Ele parecia tenso.
— Você gosta de beijá-la?
Mais do que você gosta de me beijar?
— Não a beijei desde que eu te conheci. — De repente, ele era o
Mestre do Domínio falando, seu tom duro, seus olhos mais duros.
Tristeza e emoção colidiram dentro dela. Ele declarou que desistiu
de outras garotas por ela? Ou será que ela estava sendo uma completa
idiota?
— Agora você se concentrará na tarefa em questão? — Ele
continuou com impaciência.
Ela respirou profundamente e contou até cinco. — Vamos lutar
contra alguns dragões.

***

298
Os colossus cockatrices, enlouquecidos pelo cheiro dos intrusos,
cuspiram fogo.
Iolanthe e o príncipe ergueram cada um o seu escudo. Eles
aguentaram. Ela convocou mais escudos, marchando para os
cockatrices. Eles estavam acorrentados ao portão do castelo e não
podiam avançar nem recuar. Assim que passasse pela faixa de fogo deles,
ela ficaria segura.
O portão do castelo apareceu. Ela começou a correr. Os
Cockatrices tinham pouca visão com seu fogo bloqueando. Eles tentariam
atacá-la com garras e caudas, mas por não serem predadores, seriam
desajeitados.
O chão tremeu quando os Cockatrices açoitaram, mas ela passou
por eles. De algum lugar atrás, o príncipe gritou para ela ter cuidado. Ela
atravessou o amplo pátio e subiu os degraus. Mas não parou por ali como
ele havia solicitado. Em vez disso, ela abriu as portas grandes e
densamente reforçadas do castelo e entrou no grande salão.
O interior do castelo estava sombrio. Algumas tochas lançavam
fracos círculos de luz, deixando grandes faixas do grande salão
obscurecidas e sinistras.
As sombras podem se mover contra as sombras? Ela apertou os
olhos, apertando os dedos na varinha de reposição do príncipe. Atrás
dela, surgiu um som suave como cortinas batendo diante de uma janela
aberta.
Antes que pudesse virar, algo pesado e com pontas de ferro
atingiu a lateral de seu crânio, um esporão particularmente afiado
enterrando-se profundamente em sua têmpora. Seu rosto se contorceu.
Seus músculos convulsionaram. O grito dela subiu para a garganta.
Ela caiu com um baque ressoante. Uma criatura negra e reptiliana
pousou ao lado dela, dobrando suas asas com apenas um sussurro. Uma
garra afiada se estendeu e cortou sua garganta.
Mas ela já estava morta.

299
***

Titus gritou as primeiras três palavras da senha de saída antes de


perceber que foi ela quem os levou ao Crucible. Para tirá-la agora, ele
deveria estar em contato físico.
Ele jogou uma série de feitiços no wyvern, afastando-o do corpo
dela. Um segundo wyvern atacou violentamente. Ele mergulhou até ela,
agarrando sua mão assim que a cauda da criatura avançou contra ele.
Eles estavam de volta ao quarto dele. Seus olhos se abriram, mas
eram os olhos dos possuídos. Ela estremeceu, o tipo de convulsão
frenética que faria com que parasse de respirar antes que ele pudesse
chegar ao laboratório e encontrar um remédio adequado.
Ele bateu as mãos no Crucible e rezou freneticamente.

***

Iolanthe olhou fixamente para o céu escuro e polvilhado de


estrelas com suas duas luas. Quem era ela? Onde ela estava?
Por vontade própria, suas mãos agarraram sua garganta. Ela foi...
ela estava...
Terror a dominou, uma maré negra e sufocante. Ela gritou.
E foi instantaneamente jogada na água mais fria que já conheceu,
o choque como facas na sua pele. Ela ofegou, seu terror esquecido. Tão
frio, um gelo congelante queimava seu corpo.
Alguém a tirou da água e a segurou. Ela começou a tremer. Seus
dentes batendo. Ela nunca mais ficaria quente novamente.
Ele esfregou a mão ao longo de suas costas, o contato aquecendo
alguns pontos. — Desculpe, eu tive que fazer isso. Você estava entrando
em convulsão.
— O que... o que aconteceu?

300
Ele massageou seu braço. — Você morreu no Crucible. Há dois
wyverns no grande salão – tentei te avisar, mas você não me ouviu 59.
Sinto muito. Eu deveria ter contado antes.
A culpa não era dele; ela era uma idiota que se fixou na história
da Bela Adormecida e não a largava. — Onde estou agora? — Ela
perguntou, ainda tremendo.
— Ao lado de Ice Lake.
— Não é onde o kraken vive?
— Sim. Temos que ir logo. Ele já teria sentido o...
O lago ondulou atrás dela.
— E eles viveram felizes para sempre! — Eles gritaram juntos.
A última coisa que viu foi um tentáculo enorme e manchado,
espirrando em direção a ela.

***

Seu coração ainda estava batendo.


Ela tirou a mão do Crucible. — É um livro perigoso.
— Você não sabe nem a metade, — o príncipe disse. — Pelo menos
você parece melhor agora.
Ela se sentia mais ou menos normal. — Então, se eu sobreviver
às convulsões, morrer no Crucible não tem nenhum efeito?
— O que você acha dos wyverns?
No momento em que ele disse a palavra, suas mãos tremeram. Ela
as apoiou contra a borda da mesa, mas o tremor só se transferiu para
seus braços.

59 O Wyvern é um carnívoro raro que aceita ser domesticado. Mas wyverns nascidos
em cativeiro tendem a ser mais lentos e menos ferozes. Isso é bom para magos que
desejam manter wyverns como animais de estimação, mas insatisfatório para magos
que desejam Wyverns para competições ou para aqueles que procuram um dragão de
guarda feroz. Wyverns nascidos e criados na natureza, e subsequentemente
domesticados, são portanto muito mais desejáveis. Isso tornou recorrente a prática de
esconder ovos de wyverns para ter wyverns domésticos, e depois rastrear os wyverns
juvenis, pouco antes da fase de maturidade para domá-los e trazê-los de volta para o
rebanho.
– Do Guia de Campo do Observador de Dragão.

301
— Esse é o efeito de morrer no Crucible. Nunca voltei ao Bastião
Negro. O mero pensamento de Helgira ainda me deixa... — ele respirou
fundo -— Bem, incoerente, para dizer o mínimo.
Ela mordeu o interior da bochecha. — Eu vou voltar.
— O quê?
— Não posso ter medo de wyverns. Eu não posso entrar em pânico
em frente ao Palácio do Comandante.
— Pelo menos aguarde até amanhã.
— Não terei menos medo amanhã. — Ela tocou a mão dele. —
Você vai me ajudar?
Não posso ser fraca quando chegar a hora. Não posso deixar você
cair.
— Claro. — Ele suspirou. — Claro que vou ajudá-la.

***

Ela ficou de pé, com as mãos apoiadas nas pesadas portas do


grande salão, o príncipe ao seu lado. Atrás deles, os cockatrices berravam
impotentemente. Dentro, aguardava os wyverns que a mataram apenas
alguns minutos atrás.
Ele segurou a mão dela. — Eles já sentiram nossos cheiros.
Wyverns são rápidos e astutos. Eles não precisam esperar entre
respirações. E, como você já sabe, os que estão lá não estão acorrentados.
Ela assentiu.
— Entraremos no três.
Ela assentiu de novo, quase incapaz de respirar.
— Um, dois, três.
Ele abriu as portas. Ela disparou uma explosão de chamas que
iluminou todos os cantos do salão, privando os wyverns de sombras para
se esconderem.
Eles lutaram costas contra costas. Apenas remotamente, ela
prestou atenção ao que ele fazia, sua mente inclinada a controlar o fogo
dos dragões. Os wyverns atacaram sem cessar, mas seus incêndios eram

302
menos quentes. O escudo corpóreo em que o príncipe a envolveu reduziu
ainda mais o calor.
Ainda doía. Mas a sensação era mais como a abrasão de pedras
ásperas do que a facada quentes. Ela acolheu a dor – se estivesse com
dor, então ainda estava viva.
Por fim, ela conseguiu fazer com que a chama de um wyvern
atacasse o outro. O wyvern queimado gritou e devolveu o favor. À medida
que os dragões ficaram envolvidos em sua própria disputa, o príncipe
agarrou sua mão. Eles correram pela grande escadaria, criando escudos
atrás de seus ombros, e fecharam as portas abençoadamente fortificadas
que levavam à galeria.
Ela ofegou com as mãos nos joelhos. Não era uma vitória
incondicional, mas pelo menos ela não ficaria irracionalmente
aterrorizada com os wyverns – apenas racionalmente com medo.
— Há mais perigos no castelo?
— Não, é isso. — Ele a alcançou. — Agora podemos voltar.
Ela recuou. — Considerando que já estou aqui, eu também
poderia dar uma olhada na Bela Adormecida.
Mesmo a exaltação da vitória não conseguiu dissipar a acidez do
ciúme.
— Não! — Para um menino que tinha tanto autocontrole, ele
estava praticamente gritando.
— Por que não?
Ele ruborizou? Era difícil dizer. Ambos estavam quentes do calor
da batalha. — Meu castelo, minhas regras, — ele declarou
terminantemente.
Ela franziu os lábios. — Tudo bem.
Tensão escoou de seus ombros. Ela explorou seu momento de
desatenção e correu, jogando o fogo atrás dela.
— Pare!
Ele praguejou. Ela correu a meio caminho da longa galeria de
retratos e subiu o próximo lance de escadas, três degraus de mármore de
cada vez.

303
Ela estava sendo estúpida, é claro. Mas não podia evitar. Ela
queria ver a garota que ele costumava beijar antes dela aparecer. E ele
parou de beijá-la? Ou ele fez muito mais com aquela garota bonita,
agradável e maleável?
As escadas levaram a um patamar dourado – o ouro mal visível
sob a poeira – que se abriu para um salão de baile com cortinas de veludo
com traça. Uma fila de criadas, roupas polidas ainda na mão, dormia
pacificamente. Este lugar era onde a festa à fantasia para celebrar o
aniversário da Bela Adormecida teria acontecido.
Passou uma sala em que um mestre roncava gentilmente em uma
grande pilha de cabelos, e outro quarto que continha dezenas de
manequins de moda, cada um com um traje diferente. Ela correu pelas
escadas.
O castelo era infinitamente vertical. Corredores enormes, janelas
caindo das dobradiças, pinturas sujas pela idade. Ela correu por todos
eles, dirigindo-se cada vez mais alto.
Uma porta se abriu. Antes que pudesse recuar em alarme, o
príncipe disparou e a atacou. Eles caíram em um tapete grosso, erguendo
uma nuvem de poeira. Ela o empurrou.
— Não, — ele disse, seus olhos inflexíveis.
Ela queria fazer com que ele saísse do caminho. Por ter outra
menina – mesmo ficcional – diante dela. Por não viver para sempre. E por
tirar sua liberdade ao fazê-la se apaixonar depois de tudo.
Exceto, que de alguma forma, seus dedos se espalharam pelo
rosto dele. Seu polegar encontrou uma mancha de sujeira escondida,
seguiu uma gota de suor que escorreu pela têmpora, depois no canto dos
lábios, esvaporando pelo calor da chama do dragão.
Pouco tempo. Tinham tão pouco tempo.
Olhando para ele, ela o beijou. Ele ficou imóvel com o choque. Ela
enfiou as mãos em seus cabelos e o beijou com mais fervor.
De repente, ele a beijava com uma fome que a emocionava e
assustava.

304
E assim, de repente eles estavam de volta ao quarto dele, sentados
nos dois lados de sua mesa, tocando em nenhum lugar.
— Não podemos, — ele disse calmamente. — Pensei que o amor
nos uniria em um único propósito. Eu estava errado. A situação é mais
complicada do que isso. Você deve me deixar em algum momento, quando
eu não tiver mais uso. E essa não é uma decisão a ser feita ou desfeita
sob a influência de emoções desnecessárias.
Emoções desnecessárias.
Calor aqueceu suas bochechas e cobriu seus ouvidos. Sua
traquéia queimou, como se alguém tivesse empurrado uma tocha em sua
garganta.
A humilhação absoluta disso, ser rejeitada assim, tudo em nome
da missão...
Mas ainda pior era a certeza absoluta na voz dele. Ele viveu a vida
considerando o fim. Ela podia muito bem ter se apaixonado por alguém
em seu leito de morte.
— Por favor, — ela se ouviu falar apesar do nódulo na garganta,
— Não seja tão melodramático. Não confunda um simples beijo com
adoração eterna. Estou cercada por meninos bonitos, você percebeu quão
lindo Kashkari é? – mas você é o único que posso beijar sem entrar em
problemas. Além disso, você esqueceu que é meu captor? Nunca posso te
amar enquanto não for livre. Que você pense que eu poderia, só mostra
o pouco entendimento que você tem do amor.
Ela se levantou. — Agora, se você me desculpar, preciso estar no
meu quarto antes das luzes serem apagadas.

***

Os colossus cockatrices rugiram inutilmente do lado de fora. Os


wyverns estavam contidos em um canto do grande salão. Titus fez a
longa, longa subida até o sotão do castelo, seus passos pesados com
fadiga e abatimento.

305
A Bela Adormecida dormia profundamente. Ele afundou em um
joelho e segurou suas bochechas com as mãos.
Muito gentilmente, inclinou a cabeça e a beijou.
Ela abriu os olhos; eles eram da cor da meia-noite. Seu cabelo
também era pura sombra.
Ele conhecia a textura do cabelo dela, porque ele mesmo o cortara.
Ele sabia o gosto de seus lábios porque a beijara – e a partir de hoje, foi
beijado por ela.
— Iolanthe, — ele murmurou.
Ela sorriu. — Você sabe meu nome.
— Sim, eu sei o seu nome. — E aqui, dentro do Crucible, era o
único lugar onde ele ousou chamar – até mesmo pensar nela – com esse
nome.
— Eu senti sua falta, — ela sussurrou, erguendo os braços para
envolver seus ombros. — Beije-me agora.
Ele mudou o diálogo dela antes de entrar no Crucible. Estas eram
as palavras precisas que ele queria ouvir. Mas elas ecoaram
violentamente contra as paredes do sotão, sons sem sentido que não o
acalmaram nem tranquilizaram.
— Ignore o que eu disse antes quando estava irritada, —
continuou, seus dedos penteando o cabelo dele.
Mas ele não podia. Ele sabia quanto tempo ela passava com
Kashkari – eles sempre caminhavam para o treino de cricket juntos. E
quão estúpido ele supôs que ela poderia esquecer, mesmo por um
momente, que ela estava aqui contra a vontade dela.
— E eles viveram felizes para sempre, — ele disse.
Agora ele estava de volta ao seu quarto vazio. Ele se levantou da
cadeira e colocou uma mão sobre a parede entre seu quarto e o dela,
como se isso pudesse impulsionar seus pensamentos em tudo o que os
separavam, e fazê-la entender que não foi seu beijo que o assustou, mas
sua própria reação a ele.
Porque se a amasse, ele nunca seria capaz de levá-la para um
perigo mortal.

306
No entanto, ele deveria, ou teria vivido toda a sua vida em vão.

307
Capítulo 21
No campo de futebol, um jogo de cricket estava em pleno
progresso, observado por uma multidão. West, o futuro capitão da equipe
da escola, jogou uma bola diretamente fora dos limites, dando ao seu
time seis corridas. Os espectadores rugiram com aprovação.
— Johnny, você precisa me apresentar ao West, — uma garota à
direita de Titus disse ao seu irmão. — Você simplesmente precisa.
— Mas eu nunca estive a uma centena de metros dele, — Johnny
protestou, um calouro corpulento.
— Johnny, meu querido, — disse sua mãe severa, — Essa é toda
a iniciativa que você possui? Se sua irmã deseja conhecer o West, então
você se esforçará para que isso aconteça.
O quatro de junho era a maior festa anual de Eton, uma
celebração de um dia marcado por discursos de manhã, um jogo de
cricket pela tarde, uma procissão de barcos à noite, e uma exibição de
fogos de artifício à meia noite, completamente assistido por ex-alunos de
Eton e pelas famílias dos alunos atuais.
Titus havia esquecido que uma horda de irmãs e mães sempre
desciam, inundando a escola em uma onda de tons pasteis. Pregas, fitas,
saias bufantes abundavam. Milhares de chapéus de seda e flores

308
balançavam e agitavam. O ar estava carregado com perfumes de rosa e
lírios.
Tanta feminilidade para ele era algo exagerado, quase caricato.
Hoje em dia, uma menina era mais bonita para ele com cabelos curtos,
um uniforme, um chapéu coco e uma série de opiniões joviais.
Ele examinou a multidão. Fairfax não retornou. Ela se juntou a
Kashkari e Wintervale, que também não tinham a família presente, para
um piquenique. Titus poderia ter se juntado a eles, mas não o fez.
Ele e Fairfax não se evitavam exatamente. Eles falavam
diariamente sobre notícias do Domínio, o treinamento e a busca por um
feitiço para incapacitar permanentemente a Inquisidora. Mas a interação
entre eles tornou-se formal, estruturada, perguntas que mudavam pouco
de um dia para o outro, e respostas que variavam ainda menos.
Provavelmente era o melhor.
Mas ele não podia deixar de desejar o contrário. Ainda mais com
Dalbert de licença – sua mãe moribunda desejava que ele a
acompanhasse em um retiro espiritual na Ondine Island, perto de seu
local de nascimento. Sem os relatórios diários de Dalbert, Titus sentia
como se estivesse com os olhos vendados num campo minado.
Pelo menos a última notícia que Dalbert relatou antes de ir era
ainda mais bem vinda: a Inquisidora foi transferida para Atlantis,
provavelmente devido a uma maior deterioração de sua condição.
Uma agitação atrás de Titus o fez virar. Um grupo de homens
empurrava a multidão, para a consternação daqueles que foram
afastados. Para o seu descontentamento, Titus reconheceu o brasão de
armas na libré dos homens que se aproximavam dele como a heráldica
inventada de Saxe-Limburg, seu lugar de origem fictício. Atrás dos
homens vinha Greencomb, secretário de Alectus, vestido em um traje não
mago.
— Sua Alteza. — Greencomb se inclinou. — O regente e Lady
Callista humildemente imploram a honra da sua presença.
— Eles estão aqui?
— Sim. É um dia para a família, senhor.

309
Alectus e Lady Callista nunca compareceram nos quatro de junho
anteriores. Titus franziu a testa. Isso era exatamente o tipo de mina
terrestre que explodia no rosto quando dava licença para o indispensável
espião-mestre. Qual o novo plano de Lady Callista?
Greencomb indicou um grande dossel branco erguido na borda do
campo. Com os servos separando a multidão diante dele, Titus dirigiu-se
para o dossel, Greencomb seguindo-o. Murmúrios eram ouvidos com a
sua passagem. Ele nunca foi o centro das atenções em Eton, mas agora
os garotos que o conheciam há anos davam o segundo e o terceiro olhar.
Os ocupantes do dossel vieram à vista. Havia Alectus, parecendo
tão ansioso e inútil como sempre. Lady Callista, à sua esquerda, reunia
uma multidão de admiradores. E a direita de Alectus...
Estava a Inquisidora.
Como todos os outros, ela usava roupas não mágicas. Camadas
de saia de seda volumosas, um chapéu de penas e um guarda-chuva com
franjas, tudo em preto. Ela parecia ridícula, mas perfeitamente saudável.
Seus olhos se encontraram. Ela sorriu, o sorriso de um predador
pronto para atacar. Ela se recuperou. Ela sabia que ele teve a ajuda de
um mago elementar. E ela veio para levá-lo sob Inquisição novamente.
O medo o estrangulava. Mas seus pés continuaram levando-o
para a frente. Ele era o herdeiro da Casa de Elberon, e não perderia sua
compostura em público.
O regente trouxe um séquito de vinte, e a Inquisidora quase tantos
agentes. Perguntas sussurradas passavam entre os espectadores sobre a
origem de Titus e a verdadeira posição social. Ele teria rido de Ele é o
próximo Kaiser? se suas entranhas não estivessem atadas em um nó.
Quando se aproximou, o regente e a Inquisidora se curvaram,
Lady Callista fez uma reverência. Titus inclinou a cabeça. Os murmúrios
dos espectadores subiram uma meia oitava. Eles esperavam que ele fosse
mostrar obediência, e não o contrário.
— Palavras não podem expressar meu deleite, — ele disse. —
Vocês partirão logo?

310
Isso silenciou a multidão. No silêncio, surgiu o sussurro alto de
Cooper. — O que eu sempre te falei, Rogers? Ele não é um príncipe
insignificante. Ele é um grande príncipe.
Lady Callista riu suavemente, como se Titus tivesse dito algo
engraçado. — Sua Alteza, de fato, todos iremos embora logo. Portanto,
devemos aproveitar ao máximo o tempo que temos juntos. O regente e eu
– e também tenho certeza da Inquisidora – estamos ansiosos para
conhecer seus amigos.
Somente então, Titus notou Nettle Oakbluff em meio aos agentes
da Inquisidora. Ela examinou a multidão com ganância em seus olhos
curiosos, pronta para encontrar a única pepita que a levaria para
riquezas e glórias. Próximo a ela estava Horatio Haywood, pálido e
instável em seus pés.
Titus começou a suor frio. A Inquisidora percebeu que ele deveria
manter Iolanthe Seabourne próxima a ele. O Feitiço Irreproduzível
impedia que a imagem dela fosse esboçada e fixada. Mas não poderia
impedir que ela fosse reconhecida por aqueles que a conheciam.
Graças a Deus, ela estava ausente em seu piquenique com
Kashkari e Wintervale.
Essa distância seria suficiente para mantê-la segura?
— Recebemos uma lista de todos os seus companheiros
conhecidos, majestade, — Lady Callista disse, sorrindo. — Estamos
determinados a cumprimentar a todos.

***

Iolanthe e Wintervale deitaram-se em um pequeno monte perto do


Tâmisa. Kashkari estivera com eles mais cedo, mas saiu para uma
caminhada.
As nuvens fofas e leves flutuavam através de um céu azul perfeito.
O rio corria e sussurrava contra as margens. A luz do sol quente caía
suavemente sobre a pele de Iolanthe.

311
Ela abriu os olhos, fazendo uma careta. Ela deve ter adormecido.
E mesmo depois de uma soneca tão curta, suas mãos – seus braços
inteiros, de fato – doíam. Ela tentou dizer a si mesma que era uma coisa
boa – mais dor provavelmente implicava em uma luta mais feroz entre
seu potencial e o que restava do outro feitiço. Mas demorava muito e seu
domínio sobre o ar ainda era questionável.
— Porra, — Wintervale exclamou, surpreendendo-a.
— Qual o problema?
Ele sentou. — Lembra-se do que Kashkari disse sobre o torneio
de tênis?
— Que hoje é o clima perfeito para saltar uma bola de borracha
vulcanizada na grama?
— Isso, e ele quer fazer isso no próximo domingo, — Wintervale
disse com tristeza. — Esqueci que eu preciso sair um pouco nesse dia.
O pé de Iolanthe se contraiu – os meninos costumavam tirar
licença para visitar suas famílias.
— Pensei que sua mãe estava em Baden-Baden.
— Não, ela voltou na semana passada. Eu não disse nada sobre
isso... idiotas como Cooper não entenderão por que ela escolhe
permanecer em casa no quatro de junho.
— Oh, — ela disse.
— Você não precisa ficar tão alarmado, Fairfax, — Wintervale
disse parecendo um pouco chateado. — Na maioria das vezes, ela está
bem. Na verdade, ela... já voltou, Kashkari? Você não foi longe.
Kashkari sentou entre eles. — A coisa mais estranha aconteceu.
Não fui por cinco minutos antes de alguém aparecer do nada e dizer que
eu saí dos limites da escola, e preferi voltar. Caminhei para o norte por
alguns minutos, depois voltei para o oeste; uma pessoa diferente
apareceu para dizer que eu não poderia passar.
Iolanthe franziu a testa. As casas residentes dependiam de uma
série de verificações diárias para garantir que os meninos não estivessem
ausentes sem licença, mas ninguém patrulhava os limites mal definidos
de Eton.

312
— Isso é ridículo, — Wintervale bufou. — Esta é uma escola, não
uma prisão.
— Cavalheiros! Você foram convocados.
Eles viraram ao ouvir a voz em expansão de Sutherland. Ele não
viera sozinho; com ele estava Birmingham, o capitão de sua casa.
— Nunca vi tanta pompa e circunstância na minha vida, —
Birmingham reclamou, um garoto de dezenove anos com um bigode bem
desenvolvido. — Frampton me fez vir pessoalmente, no caso de
Sutherland não ser o suficiente para buscar vocês.
— Buscar para o quê? — Kashkari perguntou.
— Para a corte móvel de Saxe-Limburg, — Sutherland respondeu.
— Sempre pensei que Titus era um príncipe com um acre para governar.
Acho que eu estava errado.
— A família dele veio? — Iolanthe ficou alarmada. Ele não havia
mencionado nada.
— O quê? — Wintervale gritou ao mesmo tempo. Ele também
sabia que não havia tal corte móvel de Saxe-Limburg. Ou Saxe-Limburg,
absolutamente.
— Apenas um tio-avô, mas que dama ele trouxe, — Sutherland
disse. Ele se virou para Birmingham. — Eles alguma vez disseram se
Helena de Tróia é a esposa do tio-avô?
— Aposto que ela é apenas a amante dele – europeus. —
Birmingham lembrou a si mesmo e virou para o Wintervale, que, como o
príncipe, também tinha um pequeno principado europeu. — Sem ofensa.
— Nenhuma, — Wintervale disse, ainda parecendo espantado.
— Vamos, cavalheiros, — Sutherland disse. — Demorou um
tempo para encontrá-los. Sua Alteza deve estar ficando impaciente.

***

A pele de Titus se arrepiou.


A Inquisidora não estava conduzindo uma Inquisição – o tamanho
da multidão apresentava um obstáculo a um mago da mente que

313
desejava examinar uma determinada mente detalhamente. Mas sentar-
se ao lado dela ainda o deixava nervoso. Meia dúzia de seus agentes
tinham os olhos fixos nele, certificando-se de que ele não tentaria nada
que pudesse impedir a busca.
Mas ele poderia ter suportado se Fairfax estivesse em algum lugar
da Sibéria.
Em vez disso, ela deveria estar no caminho até ele, escoltada por
Sutherland e Birmingham.
O dia ficou mais quente; sua camisa grudava nas costas. A
natureza humana era o que era, a fila de pessoas que esperavam ser
apresentadas à corte de Saxe-Limburg cresceu exponencialmente,
meninos e idosos que tinham conexões com Titus, esperando se
aproximar da beleza estonteante que era Lady Callista. As irmãs e as
mães – as mulheres inglesas geralmente não se importavam com os
príncipes continentais? - No entanto, elas ficaram pacientemente na fila,
seus guarda-sóis brancos, com muitas pérolas e fitas.
Infelizmente, o comprimento da fila não importaria quando
Fairfax chegasse. Ela seria instantaneamente trazida à frente.
Se seu coração batesse com mais força, ele quebraria uma das
suas costelas.
Esse Cooper voltou ao início da fila? Ele não foi apresentado? Isso
era divertido para Cooper. O idiota ostentativo estava se divertindo.
Titus queria estrangulá-lo.
Ou – talvez ele pudesse fazer uso do idiota.
Quando Cooper se curvou diante de Lady Callista novamente,
Titus falou alto: — O que você está fazendo aqui, Nettle Oakbluff? E você
também, Haywood. O Inquisitório dá férias aos seus detentos agora?
Então ele zombou de Cooper. — Pare de ser um idiota inútil,
Cooper. Você está tomando o lugar de outra pessoa. Suma. Não, espere.
Vá encontrar Birmingham e Sutherland. Por que eles ainda não
voltaram? Eles estão me insultando com a incompetência deles.

***

314
Sutherland não conseguiu parar de falar da beleza de Lady
Callista. Birmingham não ficou impressionado com a efusividade de
Sutherland.
— Não vou negar que ela é linda, mas ela deve ter a idade de
nossas mães e provavelmente mais.
— Então, o quê? — Iolanthe disse, dando um empurrão em
Sutherland. — Enquanto ela não for minha mãe.
— Exatamente. — Sutherland riu. — Fairfax aqui é um homem
segundo meu próprio coração. Embora eu desejasse que eles não se
sentassem ao lado daquela bruxa. Aquela mulher esfria as solas dos
meus pés.
Iolanthe quase parou. Aquela mulher. — Você fala da ama de leite
do príncipe?
Birmingham e Sutherland riram. — Uma pedra daria leite antes
dela, — Birmingham disse.
— Minhas bolas ficariam permanentemente secas se eu tivesse
que beber de seus seios, — Sutherland declarou.
Iolanthe se juntou ao riso. A Inquisidora. Quando ela se
recuperou? E o que ela fazia em um lugar tão público, recebendo os
amigos do príncipe, não menos? Será que ela poderia entrar na mente
dele quando havia milhares de pessoas rodeando?
Cooper entrou à vista. — Ah, vocês estão aí. Fui encarregado de
encontrá-los.
— Frampton também te enviou? — Birmingham não pareceu
muito satisfeito com este embuste novamente implícito contra sua
competência.
— Não, o próprio príncipe me enviou, — Cooper disse
orgulhosamente.
O alarme de Iolanthe triplicou instantaneamente. O príncipe
nunca fazia nada sem um motivo. Ele deveria estar bem ciente de que
Sutherland e Birmingham já haviam sido despachados. Por que Cooper,
além disso?

315
— Um grande dia para você, Cooper, — ela disse. — Você sempre
gostou que ele fosse principesco.
— Palavras não podem descrever quão distinto ele tem sido. O
homem nasceu para reinar sobre outros.
Birmingham bufou.
— Alguém mais veio da corte de Saxe-Limburg além de seu tio-
avô, a bela dama e a ama de leite? — Iolanthe perguntou.
— Sim, hordas de lacaios. — Cooper pensou sobre isso. Iolanthe
quase podia ouvir as engrenagens de seu cérebro chacalhar. — Talvez
nem todos sejam criados. O príncipe dirigiu-se a dois deles pelo nome e
disse algo como: O Inquisitório dá férias aos seus detentos agora? Você
acha que alguns deles poderiam ser prisioneiros políticos?
— Você é um idiota. — Birmingham tivera o suficiente do
murmurar de Cooper. — Quem traz prisioneiros políticos para uma
função escolar? E o que no mundo é Inquisitório, de qualquer maneira?
— Eu apenas estou falando o que ele disse.
Iolanthe não conseguiu ouvir mais nada sob o rugido em sua
cabeça. Esta era a mensagem do príncipe: o Mestre Haywood e a Sra.
Oakbluff foram trazidos a Eton para identificá-la. E no momento em que
seu disfarce fosse desmascarado, ela seria levada embora.
Corra! gritou sua voz de autopreservação. Desmaterialize em
algum lugar. Qualquer lugar. Afaste-se.
Mas o que aconteceria com ele se ela corresse? Se o seu amigo
mais próximo desaparecesse da face da Terra, bem quando as
testemunhas chegaram para identificar Iolanthe Seabourne, até mesmo
o príncipe Alectus poderia juntar dois mais dois. Seria levada ao
Inquisitório com ele. E desta vez não haveria ninguém para intervir
quando a Inquisidora começasse a penetrar sua mente.
A menos...
Não. A própria ideia era insana.
Mas ela precisava fazer. Ela não tinha outra escolha. Não havia
mais ninguém para ajudá-la.
— Ahhh! — Ela gritou, e segurou seu abdômen com as duas mãos.

316
— O quê? — Os meninos disseram simultaneamente.
— Meu estômago. Eu não deveria ter tomado aquela cerveja de
gengibre. Aposto que a mulher usou a água da vala.
— Corra para o banheiro, — Birmingham recomendou. — Quando
a cerveja de gengibre cai mal, ela se torna difícil.
— Quer que eu vá com você? — Cooper perguntou alegremente.
— E fará o quê? Limpar minha bunda? Você é o enviado pessoal
do príncipe, então você deve enviar minha mensagem pessoalmente para
ele. Diga que irei assim que sair do toilet.
Ela começou a correr antes de terminar de falar.

***

Apenas para dar de cara com Trumper e Hogg um minuto depois,


bloqueando o caminho.
— Oh, olha quem não tem amigos ou tacos de cricket hoje? —
Trumper disse.
Hogg fez uma careta, esmagando um punho contra a palma de
sua outra mão. — Você pode dar adeus a sua linda cara, Fairfax. Depois
de terminar com você hoje, você ficará como fígado picado.
Ela praguejou... e deu uma pancada no estômago de Trumper. Ele
uivou. Hogg se atirou nela e fechou seu braço ao redor de sua garganta
em um estrangulamento. Ela bateu o cotovelo no rim dele. Ele gritou de
dor e tropeçou para trás. Trumper, novamente juntou-se à briga, e ela
deu uma joelhada na virilha dele. Trumper emitiu um grito agudo e
desabou em uma pilha.
Ela correu novamente e mergulhou em um beco vazio entre duas
casas. Com as mãos apoiadas contra a parede áspera atrás das costas,
ela desmaterializou.
Apenas para abrir os olhos e ver que não se movera uma polegada.
Seu destino estava dentro do alcance de sua desmaterialização.
Não havia nenhuma razão pela qual ela deveria ter falhado. Ela tentou
de novo. E de novo. E de novo.

317
Não funcionava.
Atlantis transformou a escola inteira em uma zona sem
desmaterialização.

318
Capítulo 22
Iolanthe correu.
Se Kashkari tiver dito a verdade – e ela não tinha motivos para
duvidar dele – então Atlantis não apenas estabeleceu uma zona sem
desmaterialização, mas também assegurou que ninguém pudesse
simplesmente sair.
Mas nem todas as zonas sem desmaterialização eram criadas
igualmente. Permanentes, como a que o príncipe estabeleceu em seu
quarto, levava um tremendo tempo e esforço. Uma zona completamente
nova, e provavelmente temporária, às vezes tinha áreas de negação
incompleta que poderiam ser exploradas – ou assim ela recentemente
aprendeu nos campos de ensino60.

60 A criação da uma zona sem desmaterialização permanente requer um investimento


inicial pesado de tempo – não pode ser apressada. A criação de uma zona sem
desmaterialização temporária, no entanto, requer não o tempo, mas o trabalho. Alguns
amigos em uma viagem de acampamento pode gerenciar uma zona sem
desmaterialização temporária ao redor de suas tendas em cerca de uma hora. Algumas
dezenas de amigos podem fazer o mesmo em um pequeno parque público, em uma festa,
desde que primeiro tenha garantido as licenças, é claro. Exércitos, com o seu número
muito maior de Magos, têm sido conhecidos por transformar pequenas cidades em zonas
sem desmaterialização temporárias durante a noite.
– Da arte e ciência da magia: A Cartilha

319
Ela não parou até estar diante do guarda-roupa no quarto de
Wintervale. Portais emparelhados, a menos que especificamente
permitidos, não funcionavam dentro de uma zona sem desmaterialização.
Quando um estava dentro e o outro fora, no entanto, às vezes eles eram
negligenciados por uma zona da primeira interação, especialmente uma
que cobria uma área tão grande.
Ela abriu o guarda-roupa, afastou os casacos de Wintervale,
apertou-se e fechou a porta. Mas quando abriu a porta novamente, ela
ainda estava no quarto de Wintervale na casa da Sra. Dawlish.
Seus dedos tremiam.
A menos que... a menos que o portal tenha uma senha. A maioria
não tinha: os portais mágicos e aquilo que governava o uso de senhas
não eram extremamente compatíveis. Mas o príncipe definitivamente
usou uma para os portais da banheira, conectados ao castelo e ao
mosteiro.
Mas como ela deveria descobrir a senha agora? O príncipe estava
fora do alcance. E se ela fosse buscar Wintervale, haveria todas as
chances de ser vista e levada até a Inquisidora antes que pudesse voltar
e usar o portal.
Ela transpirava – estava escuro e abafado dentro do guarda-
roupa. Seus pulmões pareciam prestes a colapsar. Suas mãos, apoiadas
em ambos os lados, mal a mantinham na posição vertical.
Como um clarão iluminando a noite, o conselho da Oráculo veio
até ela. Você irá ajudá-lo, buscando auxílio dos fiéis e corajosos. Ela
pensou nessas palavras diariamente e nunca fizeram sentido.
Agora elas fizeram.
— Fidus et audax, — ela disse em latim para fiel e corajoso.
E desta vez, quando abriu a porta do guarda-roupa, ela estava na
casa de Wintervale em Londres.

***

320
Iolanthe saiu. O papel de parede azul escuro e o rico tapete
oriental pareciam estranhos – ela lembrava-se muito pouco da decoração.
O espaço atrás do guarda-roupa onde o príncipe a empurrou quando
Wintervale chegou pela convocação de sua mãe era pequeno. Ela e o
príncipe deveriam ter ficado pressionados juntos, como duas camisas
passando por um espremedor de roupas.
Mas a janela e a sua elevação profunda estavam exatamente
corretas – exceto que ela pensou que ficasse de frente para a rua, quando
de fato, dava a um pequeno jardim nos fundos da casa.
O corredor do lado de fora estava densamente encarpetado, as
paredes cobertas com uma seda dourado-claro, Havia vários outros
quartos no andar, mas todos estavam vazios.
— Lee, é você? — Veio uma voz feminina atrás dela. — Qual é o
problema? Por que você está em casa?
A louca. Wintervale continuou insistindo que ela só era louca as
vezes. Iolanthe rezou para que hoje fosse um de seus dias mais lúcidos.
Ela se virou lentamente, as mãos levantadas, as palmas
estendidas. A mãe de Wintervale estava com outro vestido inglês
apertado. E apesar do tempo que passara em uma cidade termal, ela não
parecia rejuvenescida: seus olhos estavam afundados, suas bochechas
vazias, sua pele tão fina e frágil quanto cascas de ovos.
Contudo, no momento em que percebeu que não era seu filho
diante dela, seu olhar ficou feroz. Ela apontou sua varinha para Iolanthe.
— Quem é você? O que você faz aqui?
— Eu sou aquele por quem você jurou em um juramento de
sangue que iria proteger, desde o momento em que me viu, — Iolanthe
empurrou as palavras, as quais passaram por sua garganta se fechando
rapidamente. — Na última vez que estive aqui, você tentou me matar.
Desta vez, você me ajudará.
O canto do olho da louca se contraiu. — Eu disse que me pediram
para fazer um juramento de sangue. — Ela riu suavemente, o som dos
pesadelos. — Eu nunca disse que o fiz.

321
***

Titus rezou.
Ele quis que ela fugisse e, a julgar pelo que Cooper disse, ela faria
isso. Mas ela foi longe o suficiente? Ele a queria do outro lado do mundo
quando a Inquisidora o quebrasse.
A Inquisidora o quebraria. Apesar dos dias em coma, ela parecia
estar melhor do que nunca. Seus olhos eram afiados, sua pele brilhando,
sua atenção tão focada quanto um feixe de luz que passara através de
uma lupa.
A Sra. Hancock chegou com a equipe da casa da Sra. Dawlish:
cozinheiros, criadas, lavadeiras e diaristas. Muito para as queixas dos
que estavam na fila, eles vieram para a frente da fila.
A Inquisidora se inclinou em antecipação.
É claro que uma menina que vivia na casa da Sra. Dawlish seria
sujeita mais suspeita do que um garoto. E várias das criadas e lavadeiras
tinham a idade certa.
Aconteceu que uma empregada de cozinha tinha o dia de folga
para visitar uma irmã doente em Londres. A Inquisidora estava
descontente. — Pedimos que todos os membros da equipe fossem
contabilizados.
— Eles foram na última noite, Sra. Inquisidora, — a Sra. Hancock
disse calmamente. — Mas a menina recebeu um telegrama no início desta
manhã, e a Sra. Dawlish, minha superiora, deu-lhe licença sem me
consultar antes. Tenha certeza de que ela retornará em tempo útil.
Sra. Hancock reuniu a equipe da Sra. Dawlish. Cooper gritou: —
Lá vem ele, nosso Fairfax, fresco como um toucador, como prometido.
O quê? Titus se sentiu como se tivesse sido chicoteado. Por quê?
Da beira da multidão, Fairfax caminhou com seu jeito alegre em
direção a ele, a cabeça erguida, o chapéu ajustado em ângulo arrojado,
assobiando.
Assobiando. Ela perdeu a cabeça? Corra, sua idiota. E não olhe
para trás.

322
Culpa o dominou: ela veio por causa do juramento do sangue. Não
poderia haver outra explicação. Ele rezou novamente – orações
desesperadas e confusas – para que a multidão fechasse as fileiras e a
mantivesse fora. Em vez disso, ela cortou a multidão sem esforço, como
um divisor em um oceano aberto.
Você é a garota mais estúpida do mundo.
Sra. Oakbluff olhou para ela. Haywood olhou para ela. A
Inquisidora olhou para eles. O menor reconhecimento...
Ela continuou avançando, mais bonita do que todas as irmãs
vestidas de seda. Era uma maravilha que ela conseguisse se passar como
menino por tanto tempo; ela não os enganaria por mais um minuto.
Talvez ela não quisesse. Talvez quisesse compelir seus poderes
contra a Inquisidora aqui e agora. Ela não teria chance. Entre os agentes
da Inquisidora, estavam os magos elementares endurecidos por batalhas
com uma experiência muito maior do que ela.
Ela só parou quando alcançou o secretário Greencomb. Um
segundo depois, Greencomb anunciou: — Sr. Archer Fairfax.
Fairfax avançou diante de seus maiores inimigos e se curvou.
A descrença de Titus atingiu um pico excruciante. Como era
possível que ela ainda não tivesse sido identificada? O que estava
acontecendo? No entanto, ele não ousou olhar para Oakbluff ou
Haywood, por medo de se entregar.
— Eu entendo que você é o fiel companheiro de Sua Alteza, Sr.
Fairfax, — Lady Callista disse.
Ela já havia sorrido muito hoje. Sua expressão tornou-se dura e
tingida de fadiga.
— Sou um beneficiário frequente da generosidade de Sua Alteza,
— Fairfax disse. — Parece apenas apropriado que quando ele exija
companheirismo, eu esteja lá para fornecê-lo.
Os olhos de Lady Callista se arregalaram ligeiramente pela
declaração neutra de Fairfax sobre sua amizade.
Fairfax se inclinou novamente e se preparou para render seu lugar
para a próxima pessoa na fila.

323
— Quem são seus pais? — A Inquisidora, que não falara com
nenhum dos meninos apresentados até agora, perguntou.
— Sr. e Sra. Roland Fairfax de Bechuanaland, senhora.
— Onde em Bechuanaland, precisamente?
— A duzentos mil quilômetros de distância de Kuruman. Você já
foi a Bechuanaland, senhora?
— Não, — a Inquisidora disse. — Mas, se a oportunidade surgir,
certamente ligarei para seus pais.
Titus sentiu como se uma aranha gigante estivesse rastejando
pela sua coluna vertebral. Se a Inquisidora fosse montar uma
investigação pessoal, então o feitiço de ilusão de Titus não teria chance.
O sangue-frio de Fairfax não hesitou. — Eles terão a honra de
recebê-la, senhora.
— Veremos, — a Inquisidora disse.
Fairfax se inclinou mais uma vez e saiu.
Seguro por agora.

***

Quando Iolanthe partiu, ela deu uma olhada na direção do Mestre


Haywood. Ele parecia atordoado e exausto, e levou tudo para não jogar a
cena no caos e desaparecer com ele.
A casa da Sra. Dawlish estava deserta. Mas a mãe de Wintervale
estava no quarto dele, de pé diante da mesa, escrevendo algo.
Foi um momento de gélido horror na casa de Wintervale quando
Iolanthe percebeu seu erro. Então a mãe de Wintervale disse: Não tentarei
matá-la novamente. Que ajuda você precisa?
Iolanthe ficou atordoada. Mas não houve tempo para fazer
perguntas. Ela exclamou suas necessidades rapidamente, trouxe a mãe
de Wintervale para a casa da Sra. Dawlish e a enviou com uma descrição
dos dois magos a quem ela deveria apontar um ataque de feitiços
invalidante, de modo que enquanto Iolanthe permanecesse diante do

324
Mestre Haywood e da Sra. Nettle, eles não fossem capazes de acessar
memórias antigas, nem ganhar novas, enquanto estivessem sob o feitiço.
Ela bateu muito suavemente. A mãe de Wintervale se virou. — É
você.
— Obrigada por me ajudar, — Iolanthe disse. E, por favor, não
perca sua sanidade agora.
— É melhor eu ir, — disse a mulher não tão louca. — Me perdoe.
E, por favor, não se importe com o que eu disse antes... as escolhas dele
não são culpa sua.
— Escolhas de quem?
Mas a mãe de Wintervale já entrava no guarda-roupa, um pedaço
de papel na mão. Quando Iolanthe abriu novamente o guarda-roupa,
estava vazio, exceto por uma nota no interior da porta.
Querido Lee, estou bloqueando este portal por enquanto, até
encontrar um meio mais seguro para você acessar a casa. Amor, Mãe.

***

Como se mostrou, Fairfax não era o último garoto da casa da Sra.


Dawlish a ser levado perante a Inquisidora, nem o penúltimo. Um menino
calouro havia fugido para comprar tabaco na cidade. Um garoto em seu
último ano foi encontrado em uma posição comprometedora com uma
empregada na casa do diretor e se arrastou para sua inspeção.
Mas mesmo depois de todos os garotos terem sido contabilizados,
a espera continuou enquanto a lavadeira continuava ausente. Lady
Callista viera preparada com lençóis brancos como neve e um piquenique
grandioso para um banquete real. Titus não tocou nada, nem mesmo
uma gota de água.
Às seis horas, ele se levantou para se juntar aos outros remadores
para a procissão de barcos que aconteceria. Uma companhia dos agentes
da Inquisidora o seguiu, caminhando pela margem, nunca deixando-o
fora da vista.

325
Mais tarde, os barcos foram puxados para a praia e os remadores
seguiram para um jantar especial. Titus forçou-se a comer, de modo a
parecer indiferente diante de seus observadores. Depois, os remadores
novamente levaram as embarcações em fila pelo rio abaixo. Ao retornar,
os fogos de artifício começariam.
A noite havia caído. As árvores ao longo de ambos os lados do rio
foram iluminadas com velas em miniatura; a água brilhava com seus
reflexos. Teria sido uma linda vista se ele estivesse com vontade de
apreciá-la.
No meio do rio, percebeu que os magos que o seguiam foram
embora. Ele viu entre um alívio em seus ossos e uma forte suspeita de
que este era o início de uma nova armadilha.
Apenas quando viu que o dossel branco também desapareceu, ele
se permitiu exalar. Se a Inquisidora planejasse levá-lo nesta noite, ela
teria esperado por ele.
Atravessando a multidão de espectadores reunidos para os fogos
de artifício, ele voltou para a casa da Sra. Dawlish.
Fairfax não estava no quarto dele. Todo o andar estava vazio. Mas
ela deixou uma nota na mesa. Fomos ver os fogos de artifício. Os meninos
insistiram.
Ele voltou para seu próprio quarto, colocou a chaleira para ferver,
tirou uma lata de biscoitos do armário, e deitou na cama.
Por agora, ele estava seguro. Mas a próxima Inquisição
aconteceria mais cedo ou mais tarde. Para proteger Fairfax, ele deveria
fugir. A única questão era saber se ela seria mais segura com ele ou
ficando em Eton.
A chaleira ferveu. Ele olhou em seu armário para a sua folha
favorita, que crescia nas montanhas cobertas de névoa de West Ponives,
um reino mago no Mar da Arábia, e se lembrou de que ele já havia
acabado com seu estoque. Em um dia normal, ele teria usado um pouco
do Earl Grey de Fairfax. Mas esta noite ele queria – precisava – do conforto
familiar antes de tomar decisões que afetariam o que restava de sua vida.

326
Ele foi ao quarto de Fairfax para desmaterializar em seu
laboratório – e não conseguiu. Seu choque foi quase tão grande quanto o
que ela deveria ter sentido quando ele a jogou no Ice Lake. Indo à sala
comum da casa vazia, ele tentou novamente – e novamente encontrou-se
no mesmo lugar. Ele correu para o andar de baixo e para rua – e ainda
não podia desmaterializar.
Isso foi feito por Atlantis. Não era preciso dizer que se conseguisse
encontrar o limite desta nova zona, ele estaria fortemente guardado. E
seu tapete voador foi embalado com o kit de sobrevivência de Fairfax,
agora fora de seu alcance.
Ele respirou fundo e disse a si mesmo que não tinha necessidade
de perder a esperança. Havia sempre o guarda-roupa no quarto de
Wintervale.
Mas quando abriu a porta do guarda-roupa, viu uma nota colada
no interior. Querido Lee, estou bloqueando este portal por enquanto, até
encontrar um meio mais seguro para você acessar a casa. Amor, Mãe.
Sua última opção, arrancada dele. Ele cambaleou de volta para o
seu quarto, entorpecido pelo pânico.
À distância, surgiu o som de fogos de artifício explodindo e
aplausos entusiasmados. Como um sonâmbulo, ele foi à janela, apenas
para ver Trumper e Hogg na grama, cada um com um tijolo na mão,
preparando-se para jogá-los na janela dele e de Fairfax.
Sua raiva fervendo, ele golpeou sua varinha no ar. Eles logo
caíram. Ele apertou sua mão, disposto a não fazer mais nada. Em seu
estado de espírito atual, ele poderia mutilá-los permanentemente.
Ele se virou. — Bastardos. Eles precisam de suas cabeças
empurradas no...
Ele congelou. Era exatamente o que ele havia dito na visão de sua
mãe. Ele correu para a cópia do Lexikon der Klassischen
Altertumskunde. Em suas mãos, voltou a ser o diário da princesa
Ariadne. Quase imediatamente, ele localizou o resto da entrada.

327
À noite, ou talvez ao escurecer, está bastante escuro lá fora. Titus
se virou da janela, claramente indignado. — Bastardos, — ele amaldiçoa.
— Eles precisam de suas cabeças empurradas no...
Ele congela. Então corre para tirar um livro da sua prateleira, um
livro em alemão com o nome de Lexikon der Klassischen Altertumskunde.
Tudo estava borrado.
Quando consegui fazer imagens claras novamente, eu não estava
mais olhando para o mesmo quartinho, mas para a biblioteca da Cidadela.
É a mesma noite? Não tenho certeza. Titus aparece novamente, desta vez
em uma túnica cinza e encapuzada, movendo-se furtivamente pelas
estantes. (Algum dia será o Mestre do Domínio. Por que andar furtivo em
seu próprio palácio?)
Novamente tudo se dissolve – para se unir novamente no interior
da biblioteca da Cidadela. Muitos magos estão presentes, a maioria
soldados em uniformes atlantes – até que ponto a Sorte da Casa de Elberon
caiu – em torno do que parece ser um corpo no chão. Alectus e Callista
também estão lá.
— Não posso acreditar, — Callista murmura.
Alectus parece ter perdido a própria irmã. — A Inquisidora, morta.
Não é possível. Não é possível.

Isso significava que se Titus fosse à cidadela esta noite, de alguma


forma resultaria na morte da Inquisidora? A perspectiva era vertiginosa.
O que o Oráculo disse? Você deve visitar alguém que não deseja
visitar e ir a um lugar ao qual você não deseja ir.
Para ir até a Cidadela, ele teria que passar pelo Bastião Negro, a
fortaleza de Helgira.
Minhas visões geralmente não são tão desarticuladas. Neste ponto,
não tenho certeza se esta é uma visão ou três separadas. Vou escrevê-las
como uma por agora e esperar esclarecimentos.

328
Ele virou uma página. Não havia mais texto. Ele virou outra
página e congelou. No canto inferior direito desta página, havia uma
pequena marca de crânio.
Ele viu essa marca, na página que trazia a visão de sua morte.
Essas duas visões eram parte da mesma visão maior? Ao ir à
Cidadela esta noite, ele encontraria seu fim?
Não pense mais na hora exata da sua morte, príncipe. Esse
momento deve chegar a todos os mortais. Quando você tiver feito o que
precisa fazer, você terá vivido o suficiente.
Ele colocou a mão no Crucible, inclinou a cabeça e falou a senha.

329
Capítulo 23
Iolanthe foi arrastada para fora da casa da Sra. Dawlish pelos
meninos que voltaram à casa para jantar. Eles não poderiam entender
por que ela queria ficar no quarto, e ela, preocupada, não se queixara
inicialmente de dores de cabeça ou fadiga.
Ela se certificou de sempre estar de pé ou caminhar por onde
estava mais escuro, mantendo um olho cauteloso pela presença de
atlantes, e ainda mais cautelosa para a possibilidade de que o Mestre
Haywood e a Sra. Oakbluff fossem conduzidos como um par de
sanguessugas.
Mas ninguém a prendeu. Ela voltou para a casa da Sra. Dawlish
e se dirigiu diretamente para o quarto do príncipe.
Ele não estava lá. Ela passou um momento congelada pensando
que ele havia sido levado depois de tudo, até que notou a jaqueta do
uniforme dele na parte de trás de uma cadeira – e a chaleira ainda quente
ao lado da grelha.
Então ele voltou, tirou a jaqueta, ferveu água para o chá e então...
ela sentiu a chaleira novamente, entre uma hora e meia hora, ele foi a
outro lugar.

330
Mas onde? Ele não podia desmaterializar em lugar nenhum.
Atlantis monitorava os limites da zona sem desmaterialização. E Lady
Wintervale bloqueou o portal do guarda-roupa, afinal.
A voz de Birmingham soou no corredor, lembrando aos garotos
que era hora de se preparar para a cama. Logo a Sra. Hancock viria bater
em todas as portas dos meninos, certificando-se de que estavam em seus
quartos, com as luzes apagadas.
Ela verificou a sala comum; ele não estava lá. Os banheiros
públicos já estavam trancados. Restava apenas o lavatório.
Espere, ela disse a si mesma. Mas meio minuto pareceu uma
década. Ela praguejou e foi até o lavatório, uma instalação que ela usava
apenas quando estava inteiramente, ou na maior parte, desocupada.
Agora era pouco antes das luzes serem apagadas: o lugar não estaria
vazio.
Ela respirou profundamente antes de entrar, e ainda assim ela
quase acabou gritando. A calha estava lotada de ombro a ombro com
meninos esvaziando suas bexigas – a última coisa que ela queria
testemunhar, mesmo que por trás.
— Você quer meu lugar, Fairfax? — Cooper perguntou enquanto
se afastava da calha, arrumando as calças.
— Não, obrigado! Estou procurando Sutherland. Ele está com
meu livro de geografia clássica. — Ela bateu nas baias. — Você está aí,
Sutherland?
— Bom Deus, um homem não pode mais entrar na privada em
paz? — Veio a resposta mal-humorada de Birmingham da última baia.
Todos os meninos riram. Iolanthe contribuiu com sua gargalhada
nervosa e escapou com uma tremenda pressa.
Em uma noite diferente, ela talvez não estivesse preocupada
demais – se o príncipe não tivesse algum plano segredo em fabricação,
ele não seria Titus VII. Mas neste dia, eles enfrentaram seu inimigo e
escaparam por pouco. Ele deveria estar morrendo de vontade de
descobrir como ela fez a façanha. Sem mencionar que eles precisavam

331
desesperadamente encontrar uma estratégia coerente, em conjunto, para
combater o próximo movimento da Inquisidora.
Ela voltou ao quarto do príncipe. Havia um lugar que não havia
verificado, os campos de ensino. O Crucible estava na mesa dele; ela
colocou a mão sobre ele. Assim que chegou ao palácio de mármore rosa,
ela correu para a sala de aula.
Uma nota na porta dele dizia: F, eu irei por um curto período de
tempo. Não precisa se preocupar comigo. E não precisa se preocupar com
as luzes apagadas. T.
Em vez de tranquilizá-la, a imprecisão quanto ao destino dele e
finalidade a deixou ainda mais desconfortável.
Ela abriu a porta e parou no limiar. Dentro da sala de aula,
iluminada por uma dúzia de tochas, um emaranhado de vinhas rosa e
grossas cresciam das aberturas no chão, entrelaçavam em nós e
arabescos nas paredes e se abriam no teto. Ramos de pequenas flores
douradas ficaram pendentes desse dossel. Um conjunto de portas
francesas se abriam para uma grande varanda e um céu escuro e
estrelado.
Não havia mesas ou cadeiras sobre o tapete de grama viva, mas
dois elegantes balanços estabelecidos em ângulos oblíquos em cada lado.
O príncipe estava em um desses balanços, em seu uniforme de Eton, seus
braços apoiados na parte de trás do banco.
— Diga o que eu gosto de ler nos meus tempos de lazer, — ele
disse.
— Que droga! Onde você está?
Como se ele não a tivesse ouvido, ele repetiu sua demanda.
Com uma dor no coração, ela lembrou que não era ele mesmo,
apenas um registro e uma semelhança. — Revistas femininas inglesas.
— Onde você me beijou por último?
A memória ainda queimava. — Dentro do castelo da Bela
Adormecida.
Ele assentiu. — O que posso fazer por você, meu amor?

332
Ele nunca a chamou disso antes. Seu peito estremeceu. Ele estava
guardando todo esse carinho para depois da morte dele?
— Diga para aonde você foi.
— Você está, presumivelmente, falando de um momento no meu
futuro. Não tenho conhecimento das especificidades do futuro.
— Onde está sua varinha de reposição? — Ela esperava que não
precisasse tomar as coisas em suas próprias mãos. Mas ela planejou,
como ele a ensinou, assumir o pior e se preparar de acordo.
— Em uma caixa no meu armário de chá, a mesma caixa que eu
pedi para você passar para mim antes da nossa primeira sessão no
Crucible. Ela será aberta somente com o seu toque ou o meu. Senha:
Bela Adormecida. Contra-senha: Nil desperandum61.
— Em uma emergência, o que devo tirar do seu quarto além do
Crucible e da varinha de reposição?
— O diário da minha mãe, atualmente disfarçado de Lexikon der
Klassischen Altertumskunde. Senha: Melhor pela inocência do que pela
eloquência. Contra-senha: Consequitur quodcunque petit62.
Ela pediu para ele repetir todas as senhas e contra-senhas,
guardando-as na memória.
No quarto dele, ela acabava de encontrar a varinha de reposição
quando a Sra. Hancock chamou: — Luzes apagadas, cavalheiros, Luzes
apagadas.
Ele havia dito a ela para não se preocupar com as luzes apagadas,
mas precisava de um plano, caso ele estivesse errado. Ela podia imitar a
voz do príncipe, e então esperar que a Sra. Hancock acreditasse em sua
imitação, apagar as luzes, marchar e entrar em seu próprio quarto antes
da Sra. Hancock bater.
Exceto que ela não era boa em imitar.
A batida veio na porta do príncipe. Antes que Iolanthe pudesse
fazer um som de sua garganta, de repente a voz do príncipe soou. — Boa
noite.

61 Nada de desespero.
62 Devemos fazer tudo o que exige.

333
Seu coração quase saltou pela boca. Ela girou ao redor. Ele não
voltou. Ela não podia ter certeza, mas o busto de pedra que ele mantinha
na estante pareceu ter respondido por ele.
— Você não apagará suas luzes, Sua Alteza? — A Sra. Hancock
perguntou enquanto Iolanthe empurrava a varinha na manga e agarrava
o Crucible e Lexikon der Klassischen Altertumskunde da mesa. A
lâmpada de gás apagou sozinha.
Iolanthe abriu a porta apenas o suficiente para se deixar ver. —
Eu também vou apagar as luzes agora, senhora, — ela disse à Sra.
Hancock, sorrindo.
— Acho bom mesmo, Fairfax. Boa noite.
— Boa noite, senhora.

***

O coração dela ainda batia enquanto apagava as luzes do quarto,


fechava a cortina e convocava uma bola de fogo, colocando-a na
depressão de um castiçal. Sentada em sua cama, ela abriu o diário
primeiro: então saberia se ele tinha alguma coisa a lhe dizer.
O que achou a deixou aterrorizada – e enfurecida. Sua mãe
mencionava especificamente os soldados de Atlantis e a presença de Lady
Callista, conhecida agente de Atlantis. E ele saiu sem dizer nada para ela.
Era quase como se quisesse marchar para sua desgraça.
Ela invadiu sua sala de aula nos campos de ensino e repetiu
tensamente as respostas para as perguntas destinadas a verificar sua
identidade.
— Se eu precisar ir à Cidadela, agora mesmo, e não tiver outros
meios de transporte, o que deveria fazer?
Seu registro e semelhança franziu a testa. — Nenhum outro meio
de mobilidade?
— Nenhum. Estou em uma zona sem desmaterialização. E não
tenho veículos, tapetes voadores, feras de carga ou portais.
— E você deve ir em absoluto?

334
— Absolutamente.
— Você pode usar o Crucible como um portal, mas somente se for
uma questão de vida e morte, e só depois de ter esgotado todas as outras
opções.
— Você me disse que o Crucible não é um portal.
— Eu disse que não é usado como um. E com razão. Porque usar
o Crucible como um portal requer que um mago entre fisicamente na
geografia do Crucible. Quando se machuca, você se machuca. Quando é
morto, você morre. É possível, mas eu aconselho vigorosamente contra
isso.
Ela queria arrancá-lo de seu balanço e agitá-lo. — Se você
aconselha vigorosamente contra isso, por que o fez mesmo assim,
imbecil?
Ele estava perfeitamente imperturbável. — Não acredito que eu
tenha me preparado para essa pergunta. Reformule a frase ou pergunte
a outro.
Ela se forçou a se acalmar. — Diga como o Crucible funciona como
um portal.
— Ele serve como entrada em outras cópias do Crucible. Foram
feitas quatro cópias. Uma que eu mantenho comigo em todos os
momentos, uma está no mosteiro nas Montanhas Labyrinthine, uma na
biblioteca da Cidadela, e a quarta foi perdida.
— Então você entra nesta cópia do Crucible, diz uma senha e
invade a cópia do Crucible na Cidadela. Então, você apenas diz E eles
viveram felizes para sempre e você está de pé na própria Citadela?
— Eu queria que fosse tão simples. Quando Hesperia transformou
as cópias do Crucible em portais, ela tentou fazer passagens seguras,
mas uma grande parte da estrutura original não poderia ser substituída.
As localidades da história do Crucible são normalmente acessíveis
instantaneamente, como gavetas em um baú. Mas quando o Crucible é
usado como um portal, os locais se juntam a um terreno contínuo.
Apenas um ponto de entrada e saída existe no centro deste terreno, no
prado, não muito longe do castelo da Bela Adormecida. Para chegar a

335
qualquer outro ponto, você deve viajar, a pé, em feras de carga, ou através
de meios mágicos, desde que esses meios fossem conhecidos no momento
da criação do Crucible – o que significa nenhuma desmaterialização. Para
piorar as coisas, Hesperia, preocupada de que os perseguidores
pudessem segui-la até o Crucible, colocou os portais reais em alguns dos
lugares mais perigosos do Crucible: Abismo de Briga, Ilha Proibida e
Bastião Negro.
Bastião Negro, onde ele foi morto pelo relâmpago de Helgira.
— Qual vai para a Cidadela?
— Bastião Negro.
Bem, é claro. — Em todo o Bastião Negro ou em um lugar
específico?
— A alcova de oração, dentro do quarto de dormir de Helgira.
Ela já sentia náuseas. — Como faço para ir ao Bastião Negro?
— O mapa na parte frontal do Crucible deve dizer-lhe o layout da
terra quando é usado como um portal. Do castelo da Bela Adormecida,
Bastião Negro fica a cerca de sessenta quilômetros a norte-nordeste.
Ela esfregou a garganta. O colarinho de sua camisa ficou restritivo
demais de repente. — Tudo bem, me dê a senha e a contra-senha para
usar o Crucible como um portal.
Ele deu os dois, mas acrescentou: — Você deve jurar para mim,
pela vida do seu guardião, que você não usará o Crucible desta forma, a
menos que realmente esteja em perigo mortal.
Ela hesitou.
Ele levantou e pegou as mãos dela. As mãos dele eram calejadas
por inúmeras horas no rio, eram quentes e persistentes. — Peço-lhe, não,
não coloque a sua vida em perigo, particularmente não por mim. Nunca
me perdoarei. A única coisa que torna essa loucura inteira suportável é
a esperança de que você ainda possa sobreviver, que um dia você possa
viver a vida que sempre quis.
As lágrimas queimavam na parte de trás de seus olhos. Ela
desviou o olhar e disse: — E eles viveram felizes para sempre.

336
***

Titus estremeceu. Ele se amaldiçoou, mas o tremor não parou.


Ele tinha doze anos, arrogante sobre sua proeza no Crucible
depois de ter vencido o Monstro da Belle Terre, a Torre Guardiã de Toro
e a Hidra de Sete Cabeças do Lago Dread. Sua morte na mão de Helgira
havia aniquilado quaisquer outros pensamentos de invencibilidade. Na
verdade, levou dois meses antes de poder usar novamente o Crucible e,
mesmo assim, apenas para participar das missões mais fáceis e simples.
Nos anos seguintes, ele conquistara seu medo do Crucible, mas
nunca seu terror do Bastião Negro.
O wyvern abaixo dele sentiu seu pânico crescente e decidiu se
aproveitar. Rolou e levantou, tentando sacudi-lo de cima dele.
Praticamente alegre pela distração, ele apontou sua varinha no pescoço
do animal. Ele gritou com dor.
— Voe adequadamente ou farei isso novamente.
Na última vez, sua abordagem foi flagrante, na vanguarda de uma
multidão de atacantes. Ele não repetiria esse erro. A saga de Helgira
começava com um de seus tenentes chegando ao Bastião Negro em um
wyvern. Titus capturara um wyvern do castelo da Bela Adormecida e
tentou se passar como um soldado vindo para alertar Helgira de um
ataque iminente.
A silhueta iluminada pela tocha do Bastião Negro começava a ser
visível, uma fortaleza sólida e quadrada que coroava o sopé da Montanha
Roxa. Ele murmurou uma oração de gratidão pela escuridão – ele ainda
não podia ver Helgira. A última coisa que ele lembrava de sua incursão
anterior era de uma pessoa magra e branca, de pé no alto do forte,
levantando o braço para convocar o relâmpago que o atingiria.
Depois disso, suas convulsões quebraram sua coluna vertebral.
Até o pensamento disso fez com que ele se mexesse novamente.
Bastião Negro se aproximava cada vez mais.
Desta vez, se ele fosse morto, ele ficaria morto.

337
A plataforma de pouso estava a cento e cinquenta metros de
distância. O wyvern não foi treinado para transportar cavaleiros e não
tinha rédeas. Ele envolveu seus braços ao redor do pescoço dele e puxou.
Ele revirou, mas desacelerou para uma velocidade mais adequada para
aterrisagem.
Soldados o cercaram no momento em que seus pés tocaram a
plataforma. — Nós fomos atacados! — Ele exclamou. — O Feiticeiro Louco
de Hollowcombe prometeu aos camponeses da terra e riquezas em troca
de nossas vidas.
Dezenas de armas foram desembainhadas. O capitão da guarda
segurava uma longa lança – que poderia seguir um oponente fugitivo por
um quilômetro – na garganta de Titus. — Você não é Boab.
— Boab está morto. Eles mataram quase todos nós.
— Como eles poderiam matar Boab? Boab é – era um grande
soldado e um mago ainda melhor.
A boca de Titus estava seca, mas repetiu obstinadamente o enredo
da história. — Traição. Eles nos deram vinho drogado.
— Por que você não estava drogado?
— Eu não estava na celebração. Uma camponesa, você vê. Pensei
que ela gostava de mim, mas ela me enganou. Eu a ouvi falar com as
pessoas que vieram me matar, então roubei a roupa do irmão dela e esse
wyvern para avisar a minha senhora.
Ele mostrou a túnica cinza e encapuzada que sua mãe havia
especificado, a que às vezes ele usava para dormir, antes de entrar no
Crucible. Ele esperava que passasse por vestuário camponês.
O capitão não confiava nele, mas também não se atrevia a não
levar Titus para Helgira. Com oito lanças sobre ele, Titus marchou pela
rampa até o pátio e entrou no grande salão do Bastião Negro.
O salão estava lotado. Havia canto e dança. Helgira, com o vestido
branco, sentava-se no centro de uma longa mesa sobre um grande
estrado, bebendo de um cálice de ouro.
Ele ficou paralisado. Quatro lanças pressionaram forte nas suas
costas. Ainda assim, ele não conseguiu mover um único passo.

338
Em vez de se irritar, o capitão riu. — Deixa-os cada vez mais
abobados, ela sempre faz isso.
Mas Titus não foi derrubado pela beleza de Helgira, nem ficou
petrificado novamente pelo medo. Ele ficou petrificado porque Helgira era
Fairfax.
Ela tinha vinte anos de idade, mas em seus traços ela era idêntica
a Fairfax. Seus lábios eram o mesmo tom de rosa profundo, seus cabelos
com a mesma cascata negra que ele lembrava tão bem.
Esta era a razão pela qual Fairfax parecia terrivelmente familiar
quando se conheceram pela primeira vez.
Helgira percebeu a chegada dos soldados e sinalizou para os
músicos pararem. Os dançarinos enfileraram-se para ambos os lados do
corredor, limpando um caminho.
Titus sorriu, olhando para Helgira. Só depois que o capitão o
golpeou no lado da cabeça e gritou com ele por falta de respeito que ele
abaixou a cabeça.
Diante do estrado, ele afundou de joelhos, manteve os olhos no
chão e repetiu seu conto. Os dedos de Helgira em delicados chinelos
brancos – bordados com relâmpagos em fio de prata – entraram em sua
visão.
— Estou satisfeita com você, guerreiro, — ela murmurou. — Você
receberá uma bolsa de ouro e uma mulher que não mentirá para você.
— Obrigado, milady. Mllady é poderosa e magnânima.
— Mas você cometeu uma violação grave de etiqueta, jovem. Você
não sabe que ninguém pode me olhar sem minha permissão?
— Perdoe-me, milady. A beleza de milady roubou meu sentido.
Helgira riu. Sua voz era alta e aguda, completamente diferente da
de Fairfax. — Eu gosto destas... palavras tão bonitas. Muito bem, de
agora em diante, concedo-lhe o privilégio. Mas saiba disso: sempre exijo
o castigo por qualquer transgressão.
Com isso, ela desembainhou a faca em seu cinto, e abaixou-a
sobre ele.

339
***

Iolanthe, sentada em sua cama no escuro, quase gritou. Era como


se alguém tivesse cortado seu braço com uma faca. Ela agarrou o braço.
Não havia sangue, mas a dor ainda estava lá, fazendo-a ranger os dentes.
O que estava acontecendo? Ela poderia estar sentindo novamente
a dor do príncipe?
Um cheiro afiado, quase metálico, atingiu suas narinas. Não, não
poderia ser. Sua agitação deve ser um truque para ela.
Alguma coisa pingou no chão.
Um som estrangulado rasgou sua garganta. Ela convocou uma
faísca de fogo. Bem diante dela, sangue derramava do Crucible, formando
uma poça negra que arrastava firmemente da mesa para o chão.
Ela gemeu novamente. Um segundo depois, ela saltou da cama.
Com um aceno da varinha de reposição do príncipe, ela limpou o sangue
– todas as meninas magas acima de doze anos sabiam como limpar
sangue dessa quantidade. Pelo menos o livro em si não foi manchado,
suas páginas estavam secas e limpas.
Um estrondo estridente veio da sua esquerda. Instintivamente, ela
ergueu um escudo – e salvou-se dos cacos de vidro voando e do tijolo que
foi jogado em seu quarto.
Ela olhou para o tijolo por um momento antes de roubar um olhar
pela janela. Ela poderia apenas ver as duas figuras atrás da casa. Sua
mente estava tão ocupada com coisas que não eram remotamente
relacionadas com a escola que ela teve dificuldade em entender o que via.
O príncipe estava sangrando em algum lugar lá fora, e aqui, Trumper e
Hogg querendo uma pequena vingança.
O próximo tijolo quebrou a janela do príncipe. Logo todos iriam
correr, incluindo a Sra. Hancock. A última coisa que Iolanthe queria, na
noite em que o príncipe foi à Cidadela para fazer travessuras, era tê-lo
denunciado como desaparecido da escola exatamente no mesmo horário.
Ela atordoou Trumper e Hogg, que rapidamente esmoeceram na
grama. Em seguida, ela aplicou um feitiço de levitação. Quando sua

340
magia elementar se revelava insuficiente em rochas em movimento, às
vezes ela trapaceava com a ajuda de feitiços de levitação. Como resultado,
sua autoridade sobre a pedra permaneceu discutível, mas agora ela
poderia suspender sem esforço dois meninos robustos por noventa
centímetros acima do chão e manobrá-los para a talhadia na borda do
pequeno prado.
Com alguns chutes, ela redistribuiu os fragmentos de vidro que
caíram no chão diretamente contra seu escudo, em um padrão mais
irregular. Com o Crucible na mão, ela saiu correndo de seu quarto logo
quando as portas começaram a se abrir no corredor.
— Você ouviu isso? — Garotos assustados perguntaram um ao
outro. — O que aconteceu? Alguém mais ouviu vidro quebrando?
Ela acendeu as luzes no quarto do príncipe e sacudiu a cama.
Infelizmente, o Crucible estava limpo como novo, sem outra gota de
sangue para dar. Ela pegou um pedaço de caco de vidro, cortou a ponta
do dedo indicador esquerdo e apertou algumas gotas de sangue nos
lençóis do príncipe. Então, fez uma mancha de sangue em seu próprio
rosto, e empurrou o Crucible para o cinto de sua calça – ela ainda
precisava vestir a camisola – e colocou um feitiço para mantê-lo no lugar.
Então, com a porta bem aberta, ela berrou no topo de sua voz: —
Mais rápido, Titus. Pegue aqueles bastardos!
Como ela esperava, os meninos da Sra. Dawlish vieram correndo.

***

A faca de Helgira cortou o braço esquerdo de Titus. A dor o


atordoou.
— Onde está Mathi? Dê a esse homem uma atenção médica. —
Helgira o acariciou levemente sob o queixo. — Observe que eu poupei seu
braço da varinha.
Titus engoliu em seco. — Minha senhora é magnânima.
Ela já estava se afastando. — Eu quero ver Kopla, Numsu e Yeri.
O resto de vocês preparem o bastião para a batalha.

341
Ele encarou furioso a mancha vermelha em sua manga. Ele não
pensou nisso. O que aconteceria se seu sangue fosse derramado
enquanto usava o Crucible como um portal?
Mathi, uma mulher gorda e de meia-idade, adiantou-se e puxou
Titus para se levantar. Com sua mão apertando o corte em seu braço, ele
a seguiu até uma pequena sala com cataplasmas de cheiro amargo
cozinhando no fogo lento. Um estrado estava no canto. Frascos de ervas
de tamanho irregular estavam alinhados nas prateleiras.
Quando Mathi virou as costas, Titus a deixou inconsciente. Ele a
pegou com o braço bom e a pousou no estrado. Mathi provavelmente era
uma boa curandeira, mas ele não desejava sua medicina primitiva.
Apertando os dentes, ele limpou a ferida. Então pegou os remédios
e os elixires de emergência que trouxe com ele, e derramou dois frascos
diferentes em sua ferida e um pacote de grânulos na garganta.
A ferida começou a se fechar. Ele jogou uma série de feitiços em
sua túnica para limpá-la e desodorizá-la. Não poderia chegar à Cidadela
parecendo e cheirando como um massacre.
Quando ficou mais apresentável, ele estabeleceu um feitiço de
retenção na porta da dispensa e partiu para a alcova de oração de Helgira.
Ele perguntou o caminho para os aposentos de Helgira, usando a
promessa de uma mulher oferecida a ele como desculpa. As piscadelas
bem-humoradas acompanharam seu progresso por muito tempo. As
servas de Helgira, no entanto, se recusaram a deixá-lo entrar em seus
aposentos pessoais. Então ele puxou a varinha e lutou no caminho.
A alcova de oração estava localizada no quarto de dormir de
Helgira. Ele acabava de atravessar o limiar quando Helgira apareceu nos
seus calcanhares. Havia duas alcovas na cama, ambas curvadas. Ele não
tinha tempo para descobrir qual era a alcova de oração, mas saltou pela
cama para aquela que tinha a cortina mais elaborada, murmurando a
senha enquanto se precipitava para ela.
Se escolhesse a errada, ele se esmagaria em uma parede com
noventa centímetros de espessura e morreria nas mãos de uma mulher
que tinha o rosto de Fairfax.

342
Ele não se esmagou em uma parede de noventa centímetros de
espessura.
A outra extremidade do portal era, é claro, a alcova de oração no
quarto de Helgira – na cópia do Crucible na Cidadela. Se Titus não tivesse
corrido pela vida dele, ele teria se lembrado de ser mais lento e mais
cauteloso.
Sendo assim, ele pulou da alcova de oração no meio do aposento
de Helgira.
E Helgira ergueu a varinha.

***

— Cuidado com os pés! — Iolanthe gritou quando Wintervale e


Kashkari chegaram à porta.
Eles se cruzaram no vão da porta e se seguraram quando foram
derrubados por trás pela chegada de Sutherland, Cooper e Rogers.
Mas a maioria dos meninos estava de chinelo, e Cooper, vindo
com os pés descalços, foi atingido por um par de sapatos do príncipe
jogado por Rogers, e tropeçou atrás dos outros.
Exclamações de desgosto e indignação encheram a sala.
— Meu Deus, há sangue, — Rogers gritou.
— Eles o feriram, — Iolanthe disse. — E eu pensei que era ruim o
suficiente, eles quase quebraram a minha cabeça.
Mais exclamações de desgosto e indignação irromperam. —
Bastardos! Não vamos deixar ninguém se afastar com algo assim! Você
viu quem fez?
— Trumper e Hogg, é claro... o príncipe foi atrás deles, — ela disse.
— Eles tentaram me atacar mais cedo hoje, mas eu dei uma sova neles.
— Ouça, ouça, — Cooper disse.
— Eu não ficarei parado sem fazer nada — Kashkari disse,
enrolando as mangas.

343
Quando ele fez isso, a tatuagem no interior do braço direito ficou
totalmente visível. Não era a letra M, mas o símbolo ♏, para Escorpião,
seu signo de nascimento de acordo com a astrologia ocidental e védica.
Você irá ajudá-lo, buscando auxílio dos fiéis e corajosos. E do
escorpião.
Kashkari abriu o que restava da janela do príncipe e içou-se pelo
peitoril da janela. Sua ação quebrou a porta de contenção. Iolanthe teve
que lutar por sua vez para descer o tubo de drenagem. Mais sete meninos
os seguiram, dois deles saindo de suas próprias janelas; vários sequer
usaram o tubo, mas pularam no chão, suas longas camisolas parecendo
velas – antes que a Sra. Hancock pegasse alguém ainda no peitoril da
janela.
— Para que lado eles foram? — Cooper perguntou.
— Por ali, — Iolanthe disse, apontando para uma direção oposta
ao da talhadia, onde havia colocado Trumper e Hogg. — Vamos buscá-
los antes que eles voltem para a casa deles.
Ignorando os gritos da Sra. Hancock para eles voltarem, ela e os
meninos começaram a correr.
Quando estavam a uma certa distância da casa, ela parou a todos
e dividiu todos os meninos em duplas, ostensivamente para que eles
tivessem uma chance maior de encontrar Trumper e Hogg, e uma
pequena chance de serem descobertos pelos observadores da noite.
Kashkari, ela emparelhou com ela. Enviou os outros meninos
para várias direções com instruções para esperarem atrás da casa de
Trumper e Hogg caso não pudessem localizá-los em outro lugar. Ela
bateu no ombro de Kashkari e voltou para a Sra. Dawlish.
— Eu pensei que você tivesse dito que eles foram na direção
oposta, — Kashkari disse.
Ela rezou muito para que o Oráculo estivesse certo mais uma vez.
— Longa história. Lembra quando você disse que se eu alguma
vez precisasse de ajuda poderia pedir a você?
— Claro. Qualquer coisa.

344
— Eu preciso de sua total discrição. O que você ver esta noite,
você nunca repetirá a outra alma. Eu tenho sua palavra?
Kashkari hesitou. — Vou prejudicar alguém?
— Não. E você tem minha palavra sobre isso.
— Tudo bem, — Kashkari disse. — Eu confio em você.
E eu estou colocando nossas vidas em suas mãos. — Ouça com
atenção. Isto é o que eu preciso que você faça.

***

Antes que Helgira pudesse pulverizá-lo, Titus se ajoelhou. —


Milady, eu envio uma mensagem do meu senhor Rumis.
Ele estudou atentamente a história de Helgira antes de começar
a batalhar. Após sua morte iminente na mão dela, ele tentou esquecer
tudo sobre ela. Agora, no entanto, alguns detalhes importantes voltaram
em sua cabeça.
Como que, durante anos, Helgira manteve um caso de amor
secreto e platônico com o grande mago Rumis.
A expressão de Helgira tornou-se divertida. — Meu senhor Rumis
tem bastante senso de humor então, enviando seu criado para o meu
quarto sem aviso prévio.
— Ele tem um pedido urgente e não há tempo a perder.
— Fale.
— Ele pede que milady me equipe com um corcel e me envie no
caminho.
Já que ele entrou nesta cópia do Crucible através de um portal,
aplicavam-se as mesmas regras. Ele deveria viajar fisicamente até a
saída. Um wyvern garantiria velocidade.
Helgira suspirou. — Diga ao seu mestre que embora o pedido dele
tenha pouco sentido, confio nele demais para atrasá-lo com perguntas.
— Obrigado, milady.
— Você pode se levantar. Terei um wyvern esperando por você. —
Removendo um cordão de seu pulso, ela o colocou em torno do dele. — E

345
esse símbolo lhe concederá uma passagem segura através das minhas
terras.
Titus se levantou. — Obrigado, milady. Agradeço sua permissão.
Quando ele chegou à porta, ela perguntou: — Seu mestre está
bem?
Ele se virou e curvou. — Muito bem, milady.
— E a esposa dele, saudável como sempre, eu suponho?
A mulher de Rumis, segundo dizem, sobreviveu à Helgira e Rumis.
— Sim, milady.
Ela desviou o olhar. — Vá então. Que a Sorte esteja com você.
A expressão dela lembrou-lhe tanto de Fairfax que ele não pode
deixar de olhá-la por mais um momento. — Meu mestre envia seus
cumprimentos mais fervorosos, milady.

***

O wyvern era rápido – muito rápido.


Em poucos minutos, Titus chegaria ao seu destino. E talvez em
mais alguns minutos, ele usaria a maldição de execução na Inquisidora.
Um príncipe governante era obrigado a dominar a maldição de
execução. Se ele condenasse qualquer súdito à morte, ele deveria realizar
a própria ação, de modo que deveria olhar o mago condenado na cara
quando tomasse a vida deste último.
Titus nunca pensou que usaria a maldição. Ele era um mentiroso,
um intrigante e um manipulador, mas não um assassino.
Não como seu avô.
Pela segurança de Fairfax, ele estava disposto a desistir de sua
vida. Mas também estava disposto a desistir do que restava da sua alma?
O wyvern pousou no prado. Ele afastou sua agitação para se
concentrar no que precisava ser feito. Em circunstâncias normais,
quando um mago saía do Crucible, não importava se ele tivesse enchido
os bolsos de objetos das histórias. Nada poderia ser trazido para fora; o
quadro era limpo. Mas usar o Crucible como um portal mudava todas as

346
regras. O livro não se fecharia, por assim dizer, se ele partisse com algo
que pertencesse lá.
Ele já havia decidido que manteria o cordão de Helgira em sua
pessoa. Caso escapasse ileso da biblioteca da Cidadela, ele precisaria de
uma saída rápida, e não conseguiria encontrar uma melhor que o de
Helgira. Tudo o que ele precisava fazer era manter o wyvern no lugar e
esperar, um criado o informou que bastava pegar a estaca no final da
longa corrente anexada à perna do animal e fincá-la no chão.
O wyvern, no entanto, não pareceu gostar do local que Titus
escolheu, à beira do fluxo que cortava o prado. Ele berrou queixosamente,
suas garras apertadas nas bordas da túnica de Titus.
— Qual é o problema? Você cheira alguma coisa?
Wyverns tinham narizes extraordinariamente sensíveis e podiam
cheirar presas a quilômetros de distância.
— Você não pode estar com fome, pode? Pensei que eles os
alimentassem com carne fresca o tempo todo.
O wyvern sibilou.
— Eu não me preocuparia. Nada ameaçador vem ao prado. Não
que eu tenha visto, em qualquer caso.
Então, novamente, ele nunca habitara fisicamente o Crucible, e
não sabia como ele se encontrava nesse estado. Ele olhou em volta. Tudo
era bastante familiar, incluindo o castelo da Bela Adormecida na colina.
Ou era? O castelo não brilhava com a habitual luz de tochas e
lâmpadas, mas com algo parecido com a luminescência azul-verde de
criaturas do mar profundo. Esta cópia do Crucible era do avô dele.
Aparentemente, o príncipe Gaius fez mudanças. Embora não se
pudesse alterar o impulso subjacente de uma história – a Bela
adormecida, por exemplo, nunca desceria as escadas sozinha e ajudaria
seu salvador a enfrentar os dragões – quase todos os eventos de uma
história poderiam ser modificados.
Transformar a Bela Adormecida em Fairfax era apenas a última
das mudanças que Titus fez em sua cópia particular do Crucible. Não
havia wyverns no grande salão quando o Crucible veio para ele. Nem o

347
par de dragões que guardavam o portão do castelo eram colossus
cockatrices.
As mudanças que o Príncipe Gaius fizera, no entanto, pareciam
mais perturbadoras. Mas Titus não podia prestar muita atenção – não
quando ele tinha assassinato em sua mente.
Ou deveria, em qualquer caso.
— E eles viveram felizes para sempre.
Ele estava agora na Cidadela, ao lado da cópia do Crucible da
Cidadela, que estava em um pedestal exatamente no centro da biblioteca
mal iluminada. Ele escorregou entre as estantes.
As portas se abriram e veio a voz de Alectus. — E aqui estamos, a
biblioteca. Iluminação muito suave, exatamente como a Sra. Inquisitora
pediu.
Titus prendeu a respiração.
— Isso bastará, — a Inquisidora friamente disse. — Você pode nos
deixar.
Quem era nós?
Titus se escondeu atrás do final de um conjunto de estantes. Ele
olhou ao redor da borda, mas só podia ver Alectus curvando-se e se
encaminhando para sair.
— Você não deveria ter sido tão solícito, senhor, — a Inquisidora
disse, seu tom tão suave e deferente. Titus mal a reconheceu. — Eu teria
tratado da Inquisição no Inquisitório em si.
— Mas nós dois sabemos quão sensível é um mago da mente para
o seu entorno, minha querida Fia, — respondeu uma voz masculina
extremamente suave. — O Inquisitório ainda tem muita dor e medo por
você.
— Mas é um lugar muito mais seguro para você, meu Senhor
Comandante Supremo.
Os joelhos de Titus se curvaram. Meu Senhor Comandante
Supremo. O homem era Bane.
— Já estou completamente em dívida com meu Senhor
Comandante Supremo por me arrancar da morte e me restaurar para a

348
saúde total. Como posso me perdoar expondo meu Senhor Comandante
Supremo aos prováveis perigos deste lugar? Hesperia o construiu – deve
estar cheio de armadilhas e ardis.
— Fia, Fia, não tenha medo. Nossos magos já inspecionaram a
biblioteca de cima a baixo – às vezes um quarto é apenas um quarto.
Agora, pare de se preocupar e se concentre. Pense, todos esses anos,
aplicamos mal os seus talentos raros e maravilhosos, usando você como
um martelo quando você é um bisturi fino. Não vamos perder mais tempo.
Hoje à noite, cortaremos todas as camadas mágicas de Haywood para
ocultar suas lembranças. Amanhã, será nosso jovem príncipe.
Titus estremeceu.
— Mal posso esperar, meu senhor. E pensar que, já que a mente
dele estará perfeitamente recuperada depois disso, ele sequer será capaz
de provocar um escândalo diplomático.
Titus inclinou-se contra a estante, incapaz de suportar seu
próprio peso. As portas da biblioteca se abriram novamente. — Você não
oferecerá algumas bebidas ao meu Senhor Comandante Supremo, Sra.
Inquisidora? — Lady Callista disse.
Ela segurava uma grande bandeja estendida para Bane e a
Inquisidora. — Acabamos de desfrutar de seu banquete generoso – meus
cumprimentos, Lady Callista, a Cidadela tem os melhores cozinheiros do
mundo. Podemos precisar de um pouco de tempo para recuperar nossos
apetites.
Bane era o convidado ideal, encantador e educado, não era o que
Titus esperava.
— Se ao menos tivéssemos um pouco de aviso sobre a visita do
Senhor Comandante Supremo, teríamos feito uma festa maravilhosa.
Bane provavelmente não chegou até que a Inquisidora enviou
notícias de que ela não conseguiu garantir a paz com a emboscada de
Seabourne. Entre os dois, eles estavam determinados a não falhar
novamente.

349
— Colocarei a bandeja aqui, — Lady Callista disse, — E deixarei
meu Senhor Comandante Supremo e a Sra. Inquisidora continuarem sua
preparação.
Ela se retirou. Nem um minuto depois, um soldado atlante entrou
e deu dois passos dentro, se ajoelhando. — Meu Senhor Comandante
Supremo, Sra. Inquisidora, temos o detido Horatio Haywood.
O Oráculo anunciara que Haywood não ficaria por muito tempo
ao alcance de Atlantis. Isso significava que deveria ser Titus quem o
levaria à liberdade? Mas então, quem mataria a Inquisidora? Ele não
podia fazer ambos ao mesmo tempo.
O juramento de sangue exigia que ele fizesse todo o possível para
ajudar Fairfax em seu objetivo de libertar seu guardião.
Ele apertou os dentes. A duração do feitiço de congelamento
diminuía abruptamente quando mais de um mago o recebia. O que
duraria três minutos em uma pessoa, duraria apenas trinta segundos,
abrangendo três magos. E se tivesse que congelar quatro magos, ele teria
no máximo dez segundos.
Será que teria tempo suficiente para arrastar Horatio Haywood
para o Crucible e desaparecer lá dentro?
Haywood entrou com dois guardas. Quatro magos para congelar.
A varinha de Titus tremia. Ele se atreveria?
Será que apesar de sua intrepidez, ele seria capturado e resultaria
em que Fairfax fosse arrancada de sua cama no meio da noite?
Titus viu sua varinha levantar. Ele não podia acreditar no que
estava prestes a fazer. Um. Dois. Trê...
Haywood desapareceu diante de seus olhos.

350
Capítulo 24
Iolanthe bufou com impatiência.
O castelo da Bela Adormecida não parecia terrivelmente distante
do prado, mas alcançá-lo a pé, mesmo correndo a toda velocidade,
demorava muito. E ela já havia desperdiçado muito tempo antes,
procurando um local seguro, preocupando-se que o Crucible
possivelmente sangrasse novamente, antes de perceber que, a esta hora
da noite, o Crucible poderia sangrar um balde e ninguém notaria um livro
deitado na grama alta.
Mas quando o castelo se aproximou, sua impaciência se
transformou em medo. O pensamento de enfrentar os wyverns sozinha
enfraquecia seus pulmões – e a única lua no céu era um lembrete
implacável de que isso não era uma simulação. Mas ela precisava ter um
corcel. Ou então, levaria um dia inteiro para chegar ao Bastião Negro.
À beira da floresta de Briar, ela viu o túnel que o príncipe deixou
para trás. Então ele esteve aqui. Ele também pegara um wyvern?
Nenhum rugido cumprimentou seus ouvidos enquanto ela
passava pelo túnel. Nenhum sinal de advertência de fogo passando sobre
a sua cabeça. Até o ar não apavorava tanto. No outro extremo do túnel,

351
viu o motivo. Os colossus cockatrices se foram, as torres que ancoravam
suas correntes destruídas.
Ela hesitou apenas um momento antes de continuar a correr. As
portas do grande salão estavam bem abertas. Ela entrou criando feitiços
de escudo diante dela, mas nada a atacou. Apenas um wyvern estava lá
dentro, caído no chão de mármore.
Seu peito subia e descia. Ou ele estava dormindo, ou muito mais
provável, o príncipe o deixara inconsciente.
Ela estava fraca de alívio.
Agora ela poderia se preocupar em sobreviver ao Bastião Negro.

***

Demorou a Titus um surpreendente segundo para perceber o que


aconteceu.
Tempus congelet, ele falou o feitiço de congelamento do tempo.
Toda a Cidadela era uma zona permanente sem
desmaterialização. Com o desaparecimento de Haywood, a biblioteca
seria revistada de cima a baixo. Ele deveria sair agora.
Ele correu. Rápido. Mais rápido. Ainda assim, não era rápido o
suficiente, era como fugir de monstros em pesadelos. E então ele estava
fora das estantes, e no meio de um bizarro quadro de magos congelados.
Ainda correndo, ele apontou sua varinha para a Inquisidora. —
Mens omnino vastetur63!
Era o feitiço mais forte e ilícito de destruição cerebral que ele
conseguiu encontrar, além da maldição de execução. Provavelmente ele
se arrependeria de sua indulgência mais tarde, mas ele não era um
assassino. Ainda não.
Quando parou diante do suporte que segurava a cópia do Crucible
da Cidadela, ele estava a apenas dois metros de Bane, que parecia ter

63 Mente completamente destruída.

352
cinquenta anos, não duzentos. Suas características eram confiantes,
atraentes... e familiares, de alguma forma.
Não havia tempo para a longa senha usual do Crucible.
Felizmente, ele não precisava proferi-la quando o Crucible já estava
aberto, por assim dizer. — Eu sou o herdeiro da Casa de Elberon, e estou
em perigo mortal.
No instante seguinte, ele estava de volta ao prado, sob um céu
noturno que desaparecia rapidamente atrás das nuvens. Em seu monte,
o castelo da Bela Adormecida brilhava, estridentemente fosforescente.
Ele ofegou com alívio. Mas o ar que ele respirava – ele fez uma
careta com a pungência disso. Sangue. Ele murmurou um feitiço para a
luz. No mesmo instante, ele viu uma estaca fina e afiada que foi
arrancada de sua amarração, uma corrente comprida anexada a ela.
A estaca que ele usara para manter o wyvern de Helgira esperando
por ele. Ele aumentou a intensidade da luz e ampliou seu raio. Algo
escuro estava na grama. Ele correu em direção a ele e parou em seu
caminho, seu estômago revirando. Não era um wyvern inteiro, apenas
uma asa sangrenta, amassada como uma jaqueta velha.
Os wyverns eram criaturas terrivelmente ágeis, tanto no corpo
quanto na mente. Tinham dentes fortes, garras fortes e espigões fortes –
e poderiam voar por horas a velocidades superiores a cento e sessenta
quilômetros por hora, com rajadas de mais de duzentos e vinte por hora.
Titus não conseguia pensar em um único animal rápido e brutal o
suficiente para caçar wyverns.
No entanto, um havia feito.
Ele começou a correr para o castelo da Bela Adormecida. Ele
precisava de outro corcel imediatamente. Com o desaparecimento de
Haywood, Atlantis poderia muito bem não esperar até amanhã para vir
atrás dele. Ele deveria voltar à escola o mais rápido possível, avisar
Fairfax sobre o que aconteceu, confiar o Crucible a ela, e se esconder no
Crucible até o momento em que ela pudesse movê-lo para algum lugar
mais seguro. Ele só poderia rezar para que sua própria cópia do Crucible
não fosse um lugar tão perigoso como este estava provando ser.

353
O chão estava inclinado. Ele corria demais para manter a
velocidade. Suas pernas protestaram. Seus pulmões também. Na noite
quase escura, o cheiro grosso e rico do sangue de wyvern continuou em
suas narinas, alimentando sua náusea.
Ele pisou em algo ao mesmo tempo duro e macio. Instintivamente,
ele se afastou. O cheiro de sangue se intensificou. Ele estava quente de
correr; agora ele estava frio, suor de medo escorrendo por seu pescoço.
Ele tocou sua varinha. Uma luz acendeu, brilhando sobre um
membro preto na grama – a porção mais baixa de um perna de wyvern.
Da direção do castelo surgiu um rugido sobrenatural. O chão
tremeu, uma vibração que ele sentia em suas canelas. Seu coração correu
como se pudesse escapar; suas respirações ofuscaram todos os outros
sons da noite.
Se esta fosse uma sessão regular no Crucible, ele teria se
apressado a descobrir que criatura temível agora rondava o castelo. Mas
isso era real. E ele não podia se dar ao luxo de terminar em pedaços em
toda a paisagem.
No caminho do Bastião Negro ao prado, ele passou por uma cidade
de mercado não muito distante do norte. Se não estivesse enganado, era
o cenário para Lilia, o ladrão inteligente.
Ele não praticava nessa história em particular há anos, mas se
lembrava que havia uma cidade sendo aterrorizada por um wyvern
indomável. Não era o que ele precisava nessa conjuntura, mas como
diziam os não magos, melhor o diabo que você conhece.

***

O wyvern não respondia.


Ela subiu até a sala de vestir ao lado do salão de baile, encontrou
um vestido branco que parecia ter sido usado em tempos de antiguidade
e deslizou sobre suas roupas não magos. Então pegou uma peruca preta
por debaixo do mestre da peruca dormindo e colocou-a na cabeça com

354
uma aplicação pesada de feitiços adesivos, para que não voasse quando
ela estivesse no ar.
Ela leu A Batalha pelo Bastião Negro. Sabia que Helgira havia
pedido um apoio em algum ponto. Ela fingiria ser um dos magos vindo
para ajudá-la.
Com seu disfarce no lugar, ela se aproximou do wyvern com
extrema cautela, saltou sobre ele, agarrou seu pescoço magro e escamoso
e se preparou para ser violentamente jogada.
Apenas para ter o wyvern babando um pouco.
Este não era um problema pelo qual ela se preparara. Por um
lado, ela estava emocionada pelo fato de que ele usara os feitiços mais
fortes. Por outro lado, ela se deparou com um corcel em coma quando
precisava de um vivo, que voaria rápido o suficiente para arrancar tudo,
exceto as perucas mais meticulosamente aderidas.
— Revisce.
Nada.
— Revisce forte.
Mais do mesmo. — Revisce omnino!
Nada ainda. Este último deveria ser um feitiço para quem acabou
de morrer.
Ela bateu a palma da mão contra a testa dele. No próximo
segundo, o wyvern soltou um guincho estridente e disparou. Ela gritou e
jogou os braços em volta do pescoço dele.
O wyvern escoceou pela grande sala com ela pendurada no
pescoço. Ela não sabia se ele estava traumatizado pelos feitiços do
príncipe ou se era seu peso que o deixava frenético. De qualquer forma,
ele estava fazendo o melhor para jogá-la longe.
Ela puxou uma perna. O wyvern virou de cabeça para baixo. Ela
gritou e perdeu a calma.
O wyvern, uma das bestas mais ferozmente inteligentes, deve ter
percebido como as pernas dela saíram enquanto ele fazia uma curva
rápida. Ele se atirou em um pilar, afastando-se apenas no último

355
segundo possível. Ela teve que puxar as pernas para o peito para evitar
esmagá-las no pilar – e perder o controle sobre o wyvern.
O animal tentou novamente. Ela colocou-se em posição fetal e ele
passou o pilar em menos de uma polegada.
De repente ela lembrou que agora controlava o ar – como poderia
ter esquecido? Hora de tornar essa luta um pouco menos unilateral.
Ela criou uma rajada de vento na frente. O wyvern não esperava
isso. Com as asas abertas, ele foi empurrado pela corrente para uma
posição quase vertical.
Ela enganchou as pernas ao redor do corpo dele – finalmente, uma
posição melhor. Agora, como tirar a criatura das portas sem rédeas – não
que ela soubesse como trabalhar um conjunto de rédeas, em qualquer
caso.
Bem, o príncipe continuou chamando-a de a grande maga
elementar de seu tempo. É melhor ela pensar em alguma coisa.
Uma vez que o wyvern havia nivelado, e uma vez que ela tinha
certeza de que seu assento estava seguro, ela bateu no wyvern com uma
corrente forte que o obrigou a ir para a esquerda. Então, em uma
abordagem tripla, arremessou mais ou menos a besta para as portas da
frente do grande salão.
Os esforços dele eram imprecisos. O wyvern dirigiu-se na direção
das portas, mas atravessou a grande janela acima, em vez disso, saindo
do grande salão em uma chuva de madeira estilhaçada e vidro quebrado.
Um negócio bagunçado, resgatar príncipes.

***

Deveria ser a fadiga de correr oito quilômetros no final de um dia


durante o qual ele comeu apenas um pedaço de biscoito desde o café da
manhã. Não havia outra razão para Titus não ter vencido o wyvern depois
de quinze minutos.
Ele se abaixou em um beco. Isso não era bom. Em vez de lutar
contra o wyvern, ele estava fugindo. Então conseguiria recuperar o fôlego,

356
disse a si mesmo. Não podia ser por ele ter medo. De morrer inutilmente.
Estupidamente. De nunca mais ver Fairfax.
Ele se arrastou ao longo da borda do beco. Nenhum som emanava
da população encolhida, ou do wyvern. Ele estendeu a mão para sentir o
seu caminho – o céu se tornou completamente nublado, a escuridão
impenetrável. Seus dedos entraram em contato com outra parede.
Ele estava em um beco sem saída.
Ele mal conseguiu erguer um escudo antes de uma bola de fogo
ir direção a ele – o wyvern o encuralara. Ele praguejou. Ele não cometia
esse tipo de erro desde os treze anos, há uma vida atrás.
— Aura circumvallet.
O wyvern lançou mais fogo, mas seu feitiço atuou como um curral
para o fogo. Ele disparou dois jatos de fogo na barriga do wyvern. A magia
sutil não equiparava a escala da magia elementar, mas ela era decente.
O wyvern voou para evitar seu fogo. Ele correu. Mas a besta
novamente bloqueou seu caminho na entrada do beco. Ele disparou mais
duas bolas de fogo. Desta vez, o wyvern estava preparado e protegido com
a parte exterior de suas asas. O fogo do dragão poderia chamuscar suas
asas, mas o fogo comum não tinha esse poder.
Ele mergulhou sob uma asa. A cauda inclinada do wyvern veio até
ele. Ele se jogou no chão e rolou. Ainda assim, a ponta do final abriu um
corte desagradável na sua lateral.
Ele gritou de dor. E com essa dor veio uma corrida de energia
irritada. — Flamma caerula.
Uma luz azul disparou da varinha para a barriga do wyvern. A
fera se contraiu e rugiu. O impulso da luta finalmente mudou em favor
de Titus. Vários minutos depois, o wyvern o levava em direção ao Bastião
Negro, enquanto ele aplicava um feitiço em si mesmo para parar o
sangramento.
Ele desejava que sua lesão não tivesse acontecido. Se você for
cortado, você sangra, Hesperia lhe havia dito há muito tempo nos campos
de ensino. Ele só podia esperar que seu sangue não saísse da cópia da
Cidadela. Todos aqueles magos lá, procurando a causa do

357
desaparecimento de Haywood – um livro sangrento no meio deles não
passaria despercebido.
O wyvern não podia voar rápido o suficiente para ele. Ele
continuou olhando para trás, procurando por perdedores. Teoricamente,
ele sabia que não tinha motivo para se preocupar: o conhecimento de que
o Crucible poderia ser usado como um portal foi transmitido apenas para
aqueles na linha direta de sucessão. Mas, às vezes, outros na família
recolhiam tais informações por truque ou por acidente – o Usurpador, o
mais famoso deles.
O clima estava ficando desconfortável. Fortes ventos atingindo-o.
As correntes de ar levando o wyvern para a esquerda e direita. Então veio
uma rajada de vento de cima tão vigorosa que o wyvern quase retrocedeu.
Titus voou mais baixo, procurando por um ar mais calmo. Ele não
encontrou isso. Nem o encontrou a uma altitude maior. Uma enxurrada
de palavrões deixou sua língua, apenas para se afogada por um rugido
que sacudiu cada osso em seu corpo – exatamente o mesmo rugido que
o fez fugir do castelo da Bela Adormecida.
O wyvern gritou. Apesar dos ventos não cooperativos, ele acelerou,
como se fosse conduzido por um medo repentino. Titus puxou o capuz de
sua túnica sobre a cabeça, cobriu a maior parte de seu rosto com as
bordas do capuz e se virou.
O céu noturno estava vazio, exceto por um ponto luminescente.
Ele proferiu um feitiço de longa distância. De repente, uma enorme
criatura alada apareceu – tão monstruosamente grande que faria com
que as colossus cockatrices parecessem pardais. Tornando-a ainda mais
grotescamente, a besta brilhava contra o turbulento céu acima.
Um espectro gigante, o corcel dos anjos.
Foi essa a mudança que o príncipe Gaius fez na história da Bela
Adormecida?
Os espectros gigantes não eram reais. Concluiu-se há séculos que
eram criaturas de lendas, nascidas do espanto e do susto dos magos ao
testemunhar as cockatrices pela primeira vez. Mas quando um mago
usava o Crucible como um portal, tudo dentro tornava-se real.

358
Ele cancelou o feitiço de longa distância. O espectro gigante
desapareceu novamente para um ponto no céu. Ainda havia quilômetros
atrás dele.
O animal rugiu mais uma vez. As maiores criaturas aladas nem
sempre voavam mais rápido. Mas, julgando pelo rugido, o espectro
gigante estava se apoximando com tanta rapidez que Titus poderia
também estar correndo a pé.
Ele virou e tentou ver se o espectro gigante carregava um
cavaleiro. Uma criatura menor estava amarrada a ela, um peregrino
gigante – que parecia uma pulga ao lado do espectro gigante. O peregrino
certamente carregava um cavaleiro. No brilho estranho do espectro, os
olhos do cavaleiro eram absolutamente incolores.
A Inquisidora!
E o cavaleiro que se sentava na enorme cabeça do espectro, com
o rosto bonito e estranhamente familiar, não era outro senão Bane.

***

Iolanthe não sabia como conseguiu pousar o wyvern na


plataforma de desembarque do Bastião Negro sem matá-los.
Mas seus pés estavam em pedra sólida, e o wyvern sendo
habilmente conduzido por um par de servos, sem entrar em uma fúria
que matasse os magos em um raio de trinta metros.
Ela esperava ser desafiada imediatamente, mas todos na
plataforma de pouso que não estavam ocupados com o wyvern
afundaram em um joelho, com murmúrios de Milady.
Quem sabia que a ajuda era tão desesperadamente necessária no
Bastião Negro?
Ela pousou na muralha. Mais pessoas fizeram reverência a ela. E
ainda mais caíram em seus joelhos enquanto ela passava pelo grande
salão. Quem eles pensaram que ela era? Helgira?

359
Ela continuou caminhando para o forte. Cada vez que era
confrontada com a escolha de uma instrução, ela escolhia a que parecia
mais suntuosa.
A oposição veio sob a forma de uma criada. Quando Iolanthe
entrou no apartamento ricamente decorado de Helgira, a criada gritou:
— Essa não é nossa senhora!
— Não? — Iolanthe levantou uma sobrancelha. Ela estalou o dedo
e um relâmpago iluminou do lado de fora da janela.
A criada pareceu horrivelmente confusa.
Iolanthe simplesmente voltou a estalar o dedo, fazendo um
relâmpago ainda mais impressionante atravessar o céu.
— Perdoe-me, milady. — A empregada afundou de joelhos,
tremendo.
Iolanthe a ignorou. Dentro do quarto, ela atravessou a alcova de
oração para o Bastião Negro na cópia do Crucible da Cidadela.
Este Bastião Negro estava muito mais calmo, seus habitantes se
preparavam para a cama e não para a guerra. Iolanthe pensou que a
dona estivesse longe de casa até ver uma mulher de pé diante de uma
janela, seus longos cabelos negros tremulavam com a brisa forte.
Helgira.
Uma mulher que vivia em tempos de guerras deveria estar mais
atenta ao seu ao redor. Iolanthe podia ser um assassino, esperando nas
sombras. Helgira, no entanto, permaneceu indiferente à presença de
Iolanthe, enquanto suas respirações emergiam em uma série de suspiros
tremulos e arfadas. — Um anjo... Eu fui abençoada. Eu tenho sido
abençoada.
Ela provavelmente era uma religiosa obsessiva. Mas, por
curiosidade, Iolanthe usou um feitiço de longa distância para olhar pela
janela.
A sola de seus pés formigaram. Um espectro gigante. Não admira
que Helgira ficou atordoada. Em cada capela e catedral que Iolanthe já
visitara, foram pintados no teto os corcéis dos anjos.

360
Mas espere. Havia um wyvern, alguns quilômetros mais perto
dela, e carregava um cavaleiro. Ela redobrou o feitiço. As características
do cavaleiro ainda eram muito indistintas, mas ela reconheceu a túnica
cinza e encapuzada que a princesa Ariadne especificara em sua visão.
Titus.

***

Demorou a Titus um momento para lembrar que ele havia dirigido


o feitiço de destrição da mente para a Inquisidora enquanto ela estava
sob o período de congelamento do tempo. Os magos sob feitiços de
congelamento do tempo estavam seguros da maioria dos feitiços. Não era
de admirar que a Inquisidora estivesse suficientemente bem para
acompanhar seu mestre em busca de Titus.
Ele pediu que seu wyvern voasse ainda mais rápido, desejando ter
trazido um óculos. Seus olhos queimavam pelo vento implacável, suas
orelhas doíam.
No próximo segundo, a dor se transformou em agonia, como se
alguém tivesse enfiado uma agulha entre suas orelhas. Ele gritou. Então
sentiu isso, uma sensação como um dedo cutucando dentro de sua
cabeça, esfregando-se contra os distúrbios e as dobras de seu cérebro.
Era disso que Bane e a Inquisidora falavam, uma maneira mais
sutil de usar os talentos da Inquisidora? Era obsceno.
Que ela conseguia fazer isso de vários quilômetros atrás dele, o
assustou. Sua saúde não era a única coisa melhorada por sua viagem à
Atlantis. Seus poderes também.
Ele poderia adivinhar o que ela queria. Por enquanto, não seus
segredos enterrados, apenas a sua identidade, não podendo ver o rosto
dele. Mas uma vez que o tivesse, o que a impediria de ir mais
profundamente naquele momento e espremer tudo dele?
Era agora ou nunca.

361
Ele bateu duas vezes a varinha, desembainhando – ele não mentiu
sobre o fato de que ela era realmente uma varinha com lâmina. Então,
envolvendo sua manga ao redor da varinha, para que a luz das coroas
não pudessem ser vistas, ele se virou, a outra mão segurando o capuz
fechado abaixo de seus olhos.
Os feitiços deixaram seus lábios como um hino para os Anjos,
sílabas em cascata com uma beleza mortal. Tal feitiço não era útil diante
dessa distância, era como tentar derrubar alguém com uma pena. Mas,
enquanto ele endireitava o braço e apontava, uma lufada deixando sua
varinha reunia força e impulso, até que se tornou uma força imparável,
ainda mais letal por sua invisibilidade.
Ele envolveu seus braços ao redor do pescoço do wyvern. No
momento crítico do tempo – uma nova turbulência virou o animal de
cabeça para baixo. Ele gritou. Titus pendia, apenas mal se segurando,
com os dedos escorregando das escamas suaves. O wyvern caiu por uma
eternidade antes de se endireitar, os dois agitados com o susto.
Um tornado se materializou diretamente em seu caminho. Isso
não era clima natural. Um mago elementar incrivelmente poderoso estava
fazendo o trabalho.
Bane.
Por que Titus não sabia que Bane era um mago elementar?
Ele puxou o wyvern para a esquerda, logo quando um segundo
tornado apareceu, também à esquerda. Ele praguejou. Instigando o
wyvern à direita, ele ajustou-os estreitamente entre os dois tornados,
esquivando-se enquanto pedaços de detritos se precipitavam a poucos
centímetros de sua cabeça.
Fairfax poderia ser algum dia o maior mago elementar do mundo,
mas hoje esse título pertencia a Bane, que se deleitava em brincar com
ele.
O dedo cutucando dentro de sua cabeça desapareceu
abruptamente. Ele olhou por cima do ombro e implantou um novo feitiço
de longa distância, apenas a tempo de ver a Inquisidora cair de seu
peregrino gigante.

362
A boca de Bane arredondou com um grito. O corpo da Inquisidora
parou de cair e subiu, em vez disso, até os braços de Bane. E então
desapareceu.
O que acontece se você morrer enquanto está usando o Crucible
como um portal? Seu corpo não apodreceria por dentro, já que você não
pode sair? Ele perguntou uma vez a Hesperia nos campos de ensino. O
Crucible o mantém morto, Hesperia respondeu. Ele expulsará o corpo.
A visão da sua mãe se revelou verdadeira novamente. Na
biblioteca da Cidadela, os soldados da Atlantis cercariam o cadáver do
seu superior enquanto Alectus e Lady Callista falavam palavras chocadas
pela morte dela.
Ele havia feito isso. Ele matou a Inquisidora, afinal de contas. Ele
se endireitou, alívio e náuseas subindo até ele, entrelaçadas. Ele não
sabia se chorava ou vomitava.
No entanto, um ruído sibilante retumbou atrás dele, fazendo com
que esquecesse dos dois. Ele direcionou o wyvern mais alto e quase não
evitou uma bola de fogo tão larga quanto uma estrada.
O espectro gigante ainda estava um quilômetro atrás dele.
Nenhum dragão real lançava seu fogo tão rápido. Mas essa era a
vantagem das criaturas mitológicas: eram uma lei para si mesmos.
O fogo caiu como uma tempestade de meteoros. A pastagem
abaixo queimando. A fumaça subindo o fazia tossir e fazia seus olhos
lacrimejarem. Foi só por causa da audição que ele se esquivou do próximo
tornado; e apenas pelos cabelos que ficaram arrepiados na sua nuca, de
alguma maneira ele evadiu uma bola de fogo mais silenciosa que passou
por ele.
Na frente e em ambos os lados, paredes de tornados se elevavam,
uivando com violência. Atrás de si, uma montanha de fogo, tão quente
que era como se uma porção do sol estivesse solta.
Era isso, fogo, fumaça e dragões? Ele chegaria ao fim, como a mãe
havia previsto?
Ele fez o que precisava fazer. Ele viveu o suficiente.
Esteja segura, Fairfax. Viva para sempre.

363
***

O espectro gigante cuspiu fogo! A magnitude era atordoante. A


beleza. O esplendor. Como um amante do fogo, Iolanthe nunca viu algo
tão encantador. Ou seja, até perceber que o fogo estava direcionado a
Titus, seu Titus. O wyvern dele entrelaçava entre as correntes furiosas,
agarrando-se à segurança por um fio de cabelo.
Helgira se ajoelhou. — A vontade dos Anjos é uma alegria de
contemplar, — ela murmurou.
Você é primitiva como um comedor de lama! Isso não é um anjo;
isso é Atlantis.
Iolanthe não disse nada; apenas levantou a varinha para deixar
Helgira inconsciente.
Não te deixarei morrer. Não enquanto eu estiver respirando.
Grandes tornados criaram o equivalente a um penhasco,
obscurecendo sua visão dele. O espectro gigante emitiu um rugido que
fez as janelas tremerem, depois cuspiu fogo o suficiente para derreter a
Montanha Roxa.
Ela caminhou para o terraço ao lado do quarto de Helgira e ergueu
as mãos. Todo o poder que estivera se construindo dentro dela correu em
direção a ponta de seus dedos.

***

O fogo prejudicaria irremediavelmente as asas do wyvern, levando


a uma morte certa. Os tornados? Quase morte certa, mas as pessoas
sabiam sobreviver a tornados.
Titus exortou o wyvern para a frente. Talvez encontrassem uma
lacuna.
Ou talvez não: os tornados formaram uma barreira ininterrupta.
E então a barreira já não era tão ininterrupta. Um tornado enfraqueceu,

364
então se dissipou completamente, deixando uma nuvem de detritos
caindo.
Ele conduziu o wyvern para a abertura.
Não, eles não passariam antes que o espaço fosse fechado. Um
vento traseiro – tão estranhamente forte que quase o tirou do wyvern –
jogou-os através da lacuna.
Outro mago elementar estava fazendo o trabalho.
Helgira.
Ele reaplicou o feitiço de longa distância. Lá estava ela, com o seu
longo vestido branco, de pé no terraço em seu forte, seu cabelo preto
chicoteando no vento. À luz das tochas do forte, ela lembrava-lhe
exatamente de Fairfax.
Ele conduziu o wyvern em direção a ela.
O ar assobiou. Pedras do tamanho de casas voaram até ele. Eles
já deveriam estar no sopé da Montanha Roxa, não muito longe dali. Mas
as pedras eram implacáveis, uma tempestade vindo de todos os lados.
Ele dirigiu o wyvern cegamente, confiando mais na intuição do que na
visão.
Estou tão perto. Ajude-me!
Algo atingiu o wyvern na cabeça, uma pedra menor, mas o
suficiente para derrubá-lo, e ele junto.

***

Eu não te deixarei cair.


Ela não deixou. Ela segurou o wyvern no ar e o impulsionou com
um vento a favor que os Anjos ficariam satisfeitos por respirar.
Quanto ao espectro gigante e ao suposto assassino sentado sobre
ele – já era o suficiente.
Ela ergueu a mão em direção ao céu nublado. As nuvens
crepitavam com carga elétrica. relâmpagos azuis saltavam de nuvem para
nuvem. Do horizonte mais distante, as linhas de energia se precipitavam

365
para a Montanha Roxa, encontrando-se no apogeu do céu, fervendo,
rolando.
Esperando por ela.
Ela apontou o dedo para o espectro gigante.
Depois, o relâmpago caiu, além de bonito, poderoso64.
As pedras no ar caíram. O espectro gigante caiu, golpeando a terra
com uma força que sacudiu tudo.

***

Depois de mais um minuto, o pequeno wyvern destemido


recuperou a consciência e, encontrando-se ainda no ar, começou a bater
as asas novamente.
Titus pousou no terraço de Helgira, beijou o pescoço escamoso do
wyvern e desmontou. Helgira, ofegante, o encarou com ternura e fúria.
De repente, ele soube que não era Helgira, mas Fairfax. Ela veio, sua
melhor amiga, e ela o salvou.
Ele fechou a distância entre eles e a abraçou. — Obrigado.
Obrigado. Obrigado. Achei que era a noite em que a profecia se tornaria
realidade.
— Não, não esta noite. — Uma de suas mãos estava no cabelo
dele, a outra rastreando sua mandíbula. — Nunca, se eu puder evitar.
Mas não esta noite, pelo menos.
Ele não podia começar a descrever a sensação de estar vivo, estar
seguro e estar aqui, com ela.
Seus lábios pairavam apenas a um centímetro acima dos dela.

64 Acredita-se que a idade de ouro da magia elementar tenha terminado quase um


milênio atrás, com a morte de Leopold Sidorov e Manama Kaneshiro, que viveram suas
vidas em uma rivalidade virulenta e morreram em um duelo que matou ambos, junto
com um número de espectadores infelizes. Centenas de anos se passaram sem que o
próximo verdadeiramente grande Mago Elementar surgisse. Tornara-se sábio aceitar
que outro nunca seria visto, quando Hesperia, a Magnífica apareceu com seus poderes,
um dos maiores entre os grandes. É algo que nos dá esperança de que ainda possamos
ver um Mago Elementar imensamente formidável em nossa vida.
– A partir das vidas e ações do grande Mago Elementar

366
As suas respirações se misturaram. — O amor te tornará fraco e
indeciso, lembra? — Ela murmurou.
Que tolo ele foi. Para uma jornada como a deles, o amor era o que
os tornariam fortes o suficiente.
— Nunca ouça um idiota como eu, — ele respondeu.
— Bem, — ela disse, — Acho que não conta se aconteceu no
Crucible.
Com isso, ela o puxou para ela e o beijou. Lágrimas picavam seus
olhos. Ele sobreviveu. Eles sobreviveram. Ele a segurou firmemente,
como a própria vida.

***

Titus gostaria de permanecer para sempre – ou pelo menos por


mais um minuto – nesse estado de euforia. Mas com um suspiro, Fairfax
o soltou. — Tenho garotos correndo por toda a Eton para cobrir nossas
aventuras. Preciso levá-los de volta à cama.
Titus se certificou de deixar o cordão de Helgira. E apenas para
ter cuidado, após voltarem para o Bastião Negro em sua cópia do
Crucible, ele selou o portal: ele ainda preferia errar pela cautela a arriscar
sua vida.
Nesta fortaleza, onde ele causara tal comoção, houve
consternação em seu reaparecimento, seguido por olhares assustados
quando Fairfax subiu em um wyvern atrás dele. Mas essa era a vantagem
de ser confundida com a Senhora do relâmpago do Bastião Negro: ela não
precisava se explicar a ninguém.
Ainda melhor, quando o wyvern foi ao ar, ela o abraçou e pousou
a cabeça em seu ombro.
Era assim que a felicidade parecia?
Ela contou como conseguiu passar ilesa diante da Inquisidora e
que Kashkari era o escorpião. Ele contou o que viu e ouviu na Cidadela,
incluindo o misterioso desaparecimento de Horatio Haywood.
— Obrigada, — ela disse, abraçando-o mais forte.

367
— Por quê?
— Por estar disposto a resgatar meu guardião.
— Agora não sabemos onde ele está.
— Vamos descobrir, — ela disse, sua voz arranhada com fadiga.
Ela agitou o cabelo. — E você... você está bem por ter matado a
Inquisidora?
— Eu preferiria que alguém tivesse tirado a vida dela. Mas não
sentirei falta dela.
Eles desmontaram no prado diante do castelo da Bela
Adormecida. Ela tirou a peruca e o vestido que pegara emprestado e
voltou a se transformar em um menino magro e convencido.
Ele a atraiu para ele e descansou a bochecha contra seus cabelos.
— É verdade que o que acontece no Crucible não se conta?
Ela o apertou. — Meu resgate, minhas regras.
Ele beijou a concha de sua orelha. — Então, deixe-me te dizer
isso: eu vivo para você, e somente para você.

368
Capítulo 25
Kashkari seguiu as instruções de Fairfax perfeitamente. Ele
amarrou, vendou e amordaçou Trumper e Hogg com tiras das próprias
roupas. Então, uma vez que recuperaram a consciência, ele falou em
alemão com eles, como Fairfax pediu, para fazê-los pensar que ele era
Titus, geralmente conhecido por ser um falante nativo do alemão.
Quando Fairfax e Titus chegaram à cena, ele apertou as mãos
deles e depois partiu com Fairfax para se juntar aos outros meninos.
Titus fez o mesmo após deixar Trumper e Hogg inconscientes novamente
e deixá-los na frente da casa deles, despojados de suas roupas.
Todos os meninos estavam juntos e admiravam a obra dele. Agora
que a tarefa da noite – e diversão deles – estava feita, eles começaram a
voltar para suas próprias camas, bocejando.
Na Sra. Dawlish, a porta da frente estava aberta, as luzes do andar
de baixo acesas, a Sra. Dawlish e a Sra. Hancock aguardando.
Sra. Dawlish cansada assaltou-os. — Vão para cama, agora.
Vamos lidar muito com vocês amanhã.
— Exceto você, Sua Alteza, — a Sra. Hancock disse. — Você se
importaria de vir comigo ao meu escritório?

369
Fairfax pisou na frente dele. — Todos nós fomos. O príncipe não
deveria ser identificado.
Titus descansou brevemente a mão no ombro dela. — Eu irei.
Ficarei bem.
No escritório da Sra. Hancock, estava a projeção espectral de
Baslan novamente, passeando por entre estantes e prateleiras.
— Você pode nos deixar, — Baslan disse à Sra. Hancock.
— Gostaria de lembrá-lo, senhor, de que sou uma enviada
especial do Departamento de Administração de Países Estrangeiros, não
sua subordinada, — a Sra. Hancock disse, sorrindo.
Baslan deu um olhar gélido à Sra. Hancock.
Titus sentou na melhor cadeira da Sra. Hancock. Ele gozava de
assistir disputas entre agentes de Atlantis. — O que você quer desta vez,
Baslan?
— Você deverá se dirigir a mim como o Inquisidor, Sua Alteza.
Inquisidor. Então a inimiga de Titus estava verdadeiramente
morta. Ele deu ao seu estômago um instante para se acomodar. —
Inquisidor,
Baslan? Todos os inquisidores chamam-se Inquisidor atualmente?
Baslan estremeceu com a sugestão de Titus. — A senhora
Inquisidora não pode mais cumprir seus deveres. Ela partiu desta terra.
Titus descobriu que não precisava fingir ficar chocado. Ele ainda
ficou chocado. — Isto não pode ser verdade. Eu a vi pela última vez há
apenas algumas horas. Aqui em Eton. Ela não mostrou sinais de morte
iminente.
— Para o nosso arrependimento eterno, é verdade.
— Como isso aconteceu?
— Isso é estritamente privado. Preciso que Sua Alteza me diga seu
paradeiro hoje a noite.
— E isso não é estritamente privado?
— Não, — Baslan disse sem qualquer ironia.
Titus cruzou os braços diante de seu peito. — Depois dos seus
finalmente me deixarem, retirei-me para o meu quarto para desfrutar de

370
um pouco de paz e tranquilidade. Eu estava lá até as luzes serem
apagadas. Pouco depois das luzes apagadas, dois meninos jogaram um
tijolo na minha janela. Eu os persegui, dei-lhes o que mereciam, e
arrastei-os para a porta da frente da casa deles.
— Há testemunhas oculares corroborantes?
A pergunta era para a Sra. Hancock. — O príncipe estava no
quarto dele com as luzes apagadas – eu bati. As janelas do príncipe e do
vizinho estavam quebradas. Quanto ao resto, irei verificar agora.
— E você confiscará todos os livros do príncipe, — Baslan
ordenou.
A Sra. Hancock revirou os olhos, mas não o lembrou novamente
de suas jurisdições separadas.
Titus exalou. Uma coisa muito boa que Fairfax tinha o diário de
sua mãe. E que ele guardara sua cópia do Crucible disfarçada como um
volume de poesia devocional em francês medieval na biblioteca da escola,
até que pudesse movê-la para o laboratório.
Baslan levantou a cópia do Crucible da Cidadela. — O que você
sabe sobre este livro?
— Oh, isso. Eu jogo Chapeuzinho vermelho e o Lobo mau. Ela
gosta de brutalidade, sabia? Eu nem tanto.
— Perdão?
— O que mais você fará com essa geringonça? É claro que a Bela
Adormecida é provavelmente mais bonita, mas não lutarei contra dragões
por qualquer garota. E a garota que vive na floresta é simpática, mas
aqueles anões na casa dela são pervertidos. Eles sempre querem assistir.
O rosto de Baslan corou. — Você usou um livro como um portal
para entrar na Cidadela esta noite e retirar Horatio Haywood?
Titus riu. — Ouça-se, Baslan. Você está louco?
A garganta de Baslan trabalhou. — Como você está sem dúvida
consciente, Atlantis está procurando uma jovem que possa convocar
relâmpagos. Nós a encontramos hoje à noite.
— Por que você não a levou à custódia?
— Ela estava neste livro. Queremos saber onde ela está agora.

371
— Ainda lá, obviamente. Você nunca ouviu falar de Helgira?
— Quem?
Titus revirou os olhos. — Helgira, a Implacável, uma das mais
famosas personagens mitológicas e folclóricas conhecidas no mundo
mágico. Ah, eu esqueci, os Atlantes não sabem nada.
Baslan apertou os dentes. — Os Atlantes não são ignorantes, mas
não damos atenção a histórias de terras menores.
— Bem, então você gostou do seu encontro com Helgira?
Baslan se irritou, mas não tinha mais nada para perguntar a
Titus. A Sra. Hancock voltou logo com Trumper e Hogg, ainda na maior
parte desnudos.
Seguiu-se uma cena de grande comédia, ao menos para Titus.
Trumper e Hogg, meio assustados, meio oportunistas, nem percebendo
que falavam com uma projeção fantasma, acusaram Titus não só de
rapto, mas de inúmeros atos de violência e crueldade perversa sobre suas
pessoas e, portanto, fornecendo provas incontestáveis de que, se alguém
tivesse matado a Inquisidora, não poderia ter sido Titus.
Sra. Hancock voltou mais uma vez, trazendo uma grande
quantidade de livros. — Eu tenho a coleção de Sua Alteza aqui,
Inquisidor. Você enviará um mensageiro para eles ou eu devo?
Titus se levantou. — Deixarei vocês discutindo os detalhes. Boa
noite, Inquisidor. Boa noite, Sra. Hancock. E boa noite, Srs. Trumper e
Hogg – foi um prazer.

***

A zona sem desmaterialização desapareceu na parte da manhã. E


quando o espião mestre do príncipe voltou, os relatórios saíram da bola
de escrita.
A Inquisidora estava realmente morta. Assim como,
aparentemente, Bane – embora não tivesse conhecimento sobre se ele
morreu por meio do relâmpago de Iolanthe ou pela queda subsequente.
As mortes duplas causaram pânico e alegria na Cidadela – que se

372
transformaram em medo e cinzas logo depois, quando Bane voltou à
Cidadela parecendo mais jovem e mais vibrante por ter ressuscitado pela
terceira vez.
O pessoal do Inquisitório inicialmente acusou Lady Callista de
adulterar provas – o sangue que saiu do Crucible foi limpo até o momento
em que eles chegaram. Mas ela chorou demais pelo horrível sangue que
caiu no chão, e de repente, todos concordaram que claro, ela tinha todo
o direito de manter sua própria casa livre de uma visão tão
perturbadoras.
A notícia que mais interessava a Iolanthe, no entanto, dizia
respeito aos castigos que foram dados aos meninos que deixaram a casa
da Sra. Dawlish naquela noite: vinte chicotadas para Titus, cinco para os
demais. E se ela fosse obrigada, como já ouviu rumores às vezes, a ter
que abaixar as calças durante a punição? Ela durou tanto tempo; não
queria ser descoberta como uma menina por uma razão tão boba.
Mas Titus saiu de sua punição sorrindo. Birmingham não só não
exigiu a remoção das calças, como nem mesmo atingiu Titus – as
chicotadas foram dadas a um tapete em vez disso. Além disso,
Birmingham o parabenizou calorosamente por fazer com que Trumper e
Hogg fossem ridiculizados diante de toda a escola.
Entretanto, Iolanthe praticava seus encantos de memória e
confusão. Mas seu tempo com Birmingham resultou ser muito agradável.
Eles tomaram uma xícara de chá juntos e tiveram uma conversa animada
sobre épicos homerianos – algo próximo e querido ao coração de
Birmingham.
O resto do trimestre passou agradavelmente. A equipe de cricket
da casa não ganhou a taça da escola, mas rivalizou pela primeira vez em
anos. Wintervale fez o registro da partida da escola contra Harrow, que
emocionou toda a casa. Iolanthe, para espanto do príncipe, ganhou dez
libras por escrever o melhor ensaio em língua latina em toda a escola. Ela
gastou rapidamente o dinheiro em sorvetes e bolos extravagantes para
todos – e um conjunto de barbear com monograma muito bonito para
Kashkari, pelo qual o príncipe desembolçou a metade do valor.

373
No último domingo antes do final do semestre de verão, Kashkari
finalmente organizou o torneio de tênis, sobre o qual falou por um tempo,
em homenagem a Birmingham e alguns outros veteranos que sairiam
para frequentar a universidade.
Havia um troféu para os meninos calouros e outro para os
veteranos. Um grupo de amigos de Iolanthe assistiu os calouros de seu
quarto. Quando chegou a hora dos veteranos competirem, eles deixaram
a casa em massa, ansiosos para derrotar um ao outro.
O príncipe foi a última pessoa a permanecer.
Ela inclinou a cabeça para a porta. — Nós vamos?
Ele fechou a porta e tirou um prato do armário. — Flamma nigra,
— ele disse. Uma chama negra crepitou.
— O que é isso?
— Me dê sua mão.
Ele mergulhou suas mãos unidas na chama negra. A chama
estava com a temperatura de uma pedra exposta ao sol, lambendo sua
pele como se fosse um cachorrinho. Após alguns segundos, tornou-se
roxa, depois azul profundo, depois azul-céu, depois o azul claro de uma
veia vista através da pele. Por fim, tornou-se transparente e se dissipou.
Ela olhou para sua mão, depois para ele. — Isso foi... isso foi o
juramento do sangue?
Ele abaixou a cabeça, quase como se estivesse tímido. — Sim.
Você está livre.
— Você entende o que fez? — Ela perguntou, sua voz instável.
— Como não posso entender? Não tenho pensado em nada mais
por semanas. A enormidade disso ainda está além do meu entendimento.
— Então por quê? É porque fizemos uma tentativa contra a vida
de Bane?
Esse tinha sido os termos do acordo, uma e somente uma
tentativa. Mas certamente isso não contava, já que Bane não permaneceu
morto.
— Isso é parte disso.
— Qual é o resto?

374
Ele hesitou brevemente. — A escolha foi feita para mim. Nunca
me perguntaram se eu estava disposto a seguir esse caminho. Não quero
tirar essa escolha de você – amigos não escravizam amigos. Você deve
decidir sozinha.
Seus olhos formigaram com o início das lágrimas. — E se eu
decidir ir embora?
Ele afastou os olhos por um momento. Quando voltou a olhar para
ela, o menino que lhe dissera que vivia para ela e sempre para ela, seu
olhar não estava sem medo, mas também não sem esperança. — Esse é
o seu direito.
Abaixo, os meninos chamavam seus nomes. Como uma
sonâmbula, ela foi até a janela aberta. — Vamos sair em um minuto.
Lá fora, tudo parecia o mesmo, céu de verão, grama de verão,
meninos de verão. No entanto, tudo era diferente. Sua vida era sua mais
uma vez, para fazer o que desejava. Ela se virou para o menino que
acabava de se tornar seu mais verdadeiro amigo no mundo.
— Preciso decidir agora?
— Não, — ele disse. — Tome seu tempo.
— Venha, Fairfax. Você também, príncipe — Wintervale gritou. —
Estamos esperando vocês para o sorteio.
— Estamos indo! — Ela gritou. Então, mais suavemente, — É
melhor irmos jogar tênis.
Na porta, ele colocou uma mão em seu ombro. — Não importa o
que você decida, saiba que você tem sido a maior honra da minha vida.
Ela fechou a mão sobre a dele e piscou as lágrimas. — Igualmente,
príncipe.
— E apenas para que você saiba, eu vou aniquilá-la no tênis.
Ela riu enquanto limpava seus olhos. — Você pode tentar, Sua
Alteza. Você sempre pode tentar.

375
Epílogo
Titus esperou.
Cape Wrath era linda nesta época do ano. O sol brilhava o
suficiente para transformar o mar do seu cinza temperamental usual em
um azul intenso e escuro. Algumas ovelhas, a lã de cor de biscoito ainda
curta após o
corte de primavera, pastoreavam no promontório verde. O farol brilhava,
branco e sereno.
Mas ele não era mais capaz de apreciar a beleza do seu entorno.
Ela estava atrasada.
Ela deixou a escola dois dias antes dele. Ela sabia a hora exata
em que deveria encontrá-lo aqui, na única entrada restante para o seu
laboratório. Agora já passava da hora.
Se não partisse agora, ele perderia o trem.
Ele continuou esperando, uma dor sombria estrangulando seu
coração. Ele não podia mais imaginar a vida sem ela.
Faltavam trinta segundos.
Vinte.
Quinze.
Dez.

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— Desculpa! Desculpa! Não vá sem mim!
Era ela, valise na mão, avançando para ele. Seu coração estava
cheio de alegria, ele agarrou a mão dela. Eles correram juntos em direção
ao farol.
Explicações derramavam dela. O trem de Edimburgo para
Inverness mudou de rota porque uma seção dos trilhos foi coberta por
um deslizamento de terra em pequena escala. Ela, a grande maga
elemental da época deles, que agora podia mover toneladas de solo em
um piscar de dedos, teve que permanecer no assento enquanto os
trabalhadores ferroviários limpavam os trilhos com pás. Pás!
Mas tudo o que ele ouviu era poesia, versos de esperança, amizade
e coragem, e tudo mais que fez com que a vida valesse a pena viver. Ela
estava aqui. Ela estava aqui. Ela estava aqui.
Ela ofegou com esforço. — E não pude sair do trem, já que eu
tinha que chegar dentro de duzentos quilômetros de Cape Wrath antes
de poder desmaterializar. Mais do que isso em um único dia pode me
matar.
— Você não pode desmaterializar centenas de quilômetros de
distância.
— Eu dividi a distância em quatro segmentos, e fiz uma
desmaterialização cega no meio.
Ele abriu a porta para o laboratório e empurrou as poções para
ela. Ele a transformaria em uma pequena tartaruga desta vez – apenas
no caso de alguém ainda querer confiscar seu canário. —
Desmaterialização cega, você está louca?
Ela soltou a valise e engoliu as poções. — Claro que estou. Estou
aqui, não estou?
Ele ficou sufocado. — Eu estou... estou feliz que você esteja aqui.
Ela sorriu para ele. — Pronto?
Talvez ela só tenha perguntado se ele estava pronto para que ela
se transformasse. Mas quando respondeu, ele respondeu por todos os
possíveis futuros que os aguardavam.
— Sim, — ele disse. — Estou pronto.

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