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Junho de 2007
Introdução:
Creio que não. Creio até mesmo que, apesar de sua brevidade, o artigo em questão
pode ser de enorme valia, não apenas para avaliarmos a distância que une e separa os dois
pensadores no que tange às questões do engajamento e da literatura, como também para
melhor compreender uma série de detalhes da filosofia deleuzeana.
Esta é a motivação deste pequeno estudo. Basicamente, pretendo construir um
caminho em quatro etapas, indo do elogio de Deleuze ao intelectual Sartre (1) até a
posição deste último acerca do engajamento na literatura (2); para em seguida passar a
uma análise do modo quase implícito como Deleuze aborda a relação entre engajamento
e literatura (3). A última etapa constitui apenas um esboço para trabalhos futuros de
maior fôlego e envolve os pressupostos filosóficos subjacentes a cada uma das duas
abordagens (4).
Na realidade, o objetivo é dar seqüência a uma pesquisa que venho desenvolvendo
desde 2002 e que já rendeu duas participações em colóquios. A primeira, nos EUA
(outubro de 2002), por ocasião do 28o encontro anual da Southern Comparative
Literature Association, que teve exatamente por tema o texto de Sartre intitulado “O que
é a literatura?”. A segunda, no Brasil (2005), no “Colóquio Internacional Jean-Paul Sartre
– 100 anos”, realizado na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Da primeira
vez em que apresentei as idéias centrais que aqui volto a expor, procurei manter o foco
sobre a questão literária vista sob as duas perspectivas (de Sartre e de Deleuze) uma vez
que se tratava de um encontro de profissionais de literatura comparada. Na segunda
oportunidade, porém, enfatizei a proximidade entre as duas perspectivas. A intenção
agora é começar a mostrar como as diferenças de abordagem acerca do engajamento e da
literatura se enraízam em diferenças filosóficas mais profundas.
1. Sartre e Deleuze
O primeiro passo para uma compreensão das possíveis relações entre as duas
filosofias em questão é recusar uma dupla hipótese: a de que o artigo-homenagem citado
seja um mero texto de circunstância ou de que, mesmo que o pensamento sartreano tenha
exercido algum tipo de influência sobre Deleuze, ela tendeu a desaparecer nos anos
subseqüentes. Contra tais hipóteses podemos, antes de qualquer coisa, voltar a destacar o
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título do artigo, que fala em “mestre”. Todavia, se isso não for suficiente, há ainda uma
passagem capital dos diálogos entre Deleuze e Claire Parnet (de 1977), em que o filósofo
volta a destacar o papel de Sartre na sua formação:
Sartre era o nosso Fora, (...) a lufada de ar que vinha do fundo do pátio (...).
Dentre todas as possibilidades oferecidas pela Sorbonne, ele era a única
combinação capaz de nos dar força para suportar a restauração da ordem. Sartre
nunca deixou de ser isto: não um modelo, método ou exemplo, mas um pouco de
ar puro (...), um intelectual que mudava de maneira singular a situação do
intelectual (DELEUZE & PARNET, 1977, pp. 18-19).
a arte literária e outros meios artísticos. Eles diferem tanto em termos de forma como em
termos de matéria. Os elementos constituintes da literatura são signos que sempre se
referem a algo de exterior a eles. Por outro lado, cores, formas e sons são coisas que
existem por si mesmos. Ainda que reconheçamos certa significação em uma melodia ou
em uma pintura, o fato principal é que ela não pode existir fora da melodia ou da tela. A
fim de melhor esclarecer seu argumento, Sartre emprega o vocabulário existencialista.
Em uma canção de lamento, por exemplo, a lamentação já não existe, ela é. O que Sartre
está dizendo é que a idéia original que anima a obra se encontra completamente absorvida
na obra. O pesar tornou-se uma coisa musical, ele já não existe enquanto tal. É a mesma
situação do Gólgota pintado por Tintoretto. O amarelo no rasgo do céu, acima do
Gólgota, não teria sido escolhido para significar angústia ou mesmo para provocá-la, mas
seria a angústia tornada coisa, a angústia como rasgo amarelo no firmamento (cf. Ibid.,
p. 15)
Em contraste com isso, Sartre afirma que o escritor lida primordialmente com
significados. Eis porque ele deverá se engajar. Nesta altura da sua argumentação, a
reivindicação sartreana de engajamento surge como uma exigência de tomada de posição
diante dos significados sugeridos (ou situações descritas) na obra. Entretanto, mais
adiante no ensaio, Sartre tenta mostrar que o engajamento deve ir além. Trata-se,
sobretudo, de visar às próprias condições de possibilidade da significação, isto é, de
afirmar e se engajar pela liberdade que é o próprio requisito do ato criador. Mas, antes de
chegar a isso, o filósofo enfatiza a necessidade de se distinguir prosa de poesia. O
verdadeiro império dos signos é a prosa, já que a poesia no fundo não se serve das
palavras. Ao contrário, segundo a fórmula sartreana, a poesia serve as palavras (cf. Ibid.,
p. 18):
aquém (...). Para o primeiro, as palavras são convenções úteis, como ferramentas
que se desgastam aos poucos, que jogamos fora quando já não servem; para o
segundo, elas são coisas naturais que crescem naturalmente sobre a terra, como a
grama e as árvores (Ibid., pp. 18-19).
Não se é escritor por se ter escolhido dizer certas coisas, mas sim por se ter
escolhido dizê-las de certa maneira. É claro que é o estilo que dá valor à prosa.
Mas ele deve passar despercebido. Uma vez que as palavras são transparentes e o
olhar as atravessa, seria absurdo fazer deslizar entre elas vidros foscos. A beleza
não é aqui senão uma força doce e insensível [itálicos meus] (Ibid., p. 30).
Uma vez mais, o que temos aqui é a idéia de que o estilo é um meio para se
chegar ao significado, um mero instrumento ou, segundo a metáfora que Sartre toma
emprestada a Brice Parain, “pistolas carregadas” que devem ser usadas com
responsabilidade, isto é, em alvos específicos e não aleatoriamente (cf. Ibid., p. 29) Estes
alvos estão relacionados à luta de cada um pela liberdade. Mas, para Sartre, a liberdade
não é um fim abstrato, como o escritor Julien Benda parece defender em sua obra La
Trahison des clercs (1927) ou mesmo Gyorgy Lukács em seus ensaios sobre literatura.
Nos termos do existencialismo, só há liberdade em situação. Nesse sentido, engajar-se é
sempre engajar-se diante do estado de coisas atual – não exatamente pela liberdade, mas
a partir dela.
Com isso, Sartre responde a pergunta que propõe logo no título da segunda seção
de seu ensaio (“por que escrever?”). Basicamente, escrevemos para nos posicionarmos
em face da atualidade, para exercermos nossa liberdade. O erro dos estilistas da
literatura deriva precisamente de sua má-fé (conceito-chave do existencialismo), ou seja,
de sua recusa em assumir a condição livre de consciência reveladora do mundo. Pois
escrever é um modo de reivindicar liberdade. Além disso, como ato de desvelamento do
mundo, o ato criador de significados necessariamente inclui os leitores. Daí a necessidade
de uma terceira seção para o ensaio: “para quem escrevemos?”.
O veredicto de Sartre a respeito da literatura está quase pronto. O escritor deve se
engajar pela liberdade que é condição de possibilidade do próprio ato criador (1). Esta
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liberdade inclui, porém, a liberdade dos leitores, aqui e agora, em situação (2): “quanto
mais experimentamos nossa liberdade mais reconhecemos a liberdade do outro” (Ibid., p.
58).
Na realidade, segundo Sartre, é a escolha do leitor que determina a escolha do
tema (e da situação) sobre o qual se deve escrever. O engajamento é, assim, engajamento
pela situação retratada, dirigida aos seus contemporâneos e irmãos de classe ou de raça,
no sentido de sua liberdade. Enfocar as palavras (caso de Flaubert) ou escrever para que
não se experimente a liberdade (caso de Drieu la Rochelle em seu apoio ao fascismo do
regime de Vichy) é se desengajar, e com isso, trair a própria arte de escrever.
Apesar da revisão de alguns dos argumentos – em ensaios posteriores e,
sobretudo, nos livros escritos sobre Genet e Flaubert –, a base a partir da qual eles se
articulam permaneceria a mesma no pensamento de Sartre. Trata-se de uma base
existencialista. O engajamento é engajamento por uma liberdade que é a própria
subjetividade no ato criador. A liberdade deve se atualizar nos temas significados no
interior da obra literária. A língua é vista como transparente, sendo-lhe reservado um
papel secundário como língua. Eis a razão pela qual o estilo deve passar despercebido:
precisamente para permitir que as idéias associadas à situação descrita possam ser
transmitidas.
Em semelhante contexto, a única possível especificidade conferida ao
engajamento literário reside na capacidade de conduzir o leitor na trilha que o levará a
tomar consciência de sua situação, e que irá prepará-lo para lutar por sua liberdade.
Afora isso, a literatura parece compartilhar com a história ou com a filosofia a mesma
meta de veicular uma mensagem, devendo ser fiel a tal objetivo. Para parafrasear Sartre,
o escritor deve praticar uma literatura de situações, iniciando por um processo de
conceituação que se dirige a grupos específicos. O estilo é um meio para descrever as
situações de liberdade dos grupos em questão, sem possuir em si mesmo o poder de
transformá-las.
Como Kafka corresponderia a essa visão? Numa obra como a Metamorfose, por
exemplo, podemos detectar o tipo de engajamento sugerido por Sartre? O autor tcheco é
um escritor de situações? O que o motiva a escrever? A quem ele se dirige? Como
funciona o seu estilo?
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Mas seria assim também para Deleuze? Até que ponto as visões de literatura dos
dois pensadores convergem? O que há de novo na abordagem deleuzeana sobre Kafka
que permitiria distinguir suas idéias de engajamento daquelas de Sartre?
Em sua última obra (Crítica e clínica, 1992), Deleuze é mais explícito. Ele afirma
a necessidade de “esburacar” as línguas pretensamente estabelecidas a fim de descobrir
por detrás delas novas possibilidades lingüísticas que permanecem inseparáveis de novas
possibilidades de existência. Estão aí os dois aspectos que já definiam o procedimento da
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Para Deleuze, o escritor está sempre em busca de uma fuga ativa, para se tornar
outro com o movimento (devir) minoritário da vida. É claro, porém, que a fuga nunca é
da vida, mas para a vida – trata-se de uma escapada rumo a uma vida anônima, que
subjaz às nossas estratificações e naturalizações diárias; uma vida “lisa”, que perpassa
todos os eventuais estratos que a ocupam, vida de personagens como Bartleby (Herman
Melville) ou Riobaldo (Guimarães Rosa):
Partir, escapar, é traçar uma linha. O mais elevado aspecto da literatura segundo
Lawrence é “partir, partir, escapar... atravessar o horizonte, penetrar noutra vida...
É assim que Melville se encontra no meio do Pacífico. Ele realmente cruzou a
linha do horizonte”. A linha de fuga é uma desterritorialização (...). O grande e
único erro seria crer que a linha de fuga consiste em fugir da vida; a fuga para o
imaginário, fuga para dentro da arte. Ao contrário, fugir é produzir o real, criar
vida, encontrar uma arma (DELEUZE & PARNET, 1977, pp. 36 e 49)
Deleuze enfatiza que não fica aí nenhum idealismo (nenhum espaço para os
estilistas, advogados da “arte pela arte”, já criticados por Sartre) no primado da
expressão sobre o conteúdo. Pois a expressão é ela própria determinada pelos
“agenciamentos coletivos de enunciação”, isto é, pela conexão desejante e política que
liga o escritor aos devires minoritários que necessariamente o (e nos) constituem (como
diziam os estudantes de 68 em Paris após a afirmação de De Gaulle de que o governo não
queria judeus alemães “atrapalhando” a sociedade: “Somos todos judeus alemães”). Não
há sujeito; há somente agenciamentos coletivos de enunciação.” (Ibid., p. 33).
O escritor é um “inventor de agenciamentos”, um homem político na exata
medida em que se abre para experimentações lingüísticas que desarticulam a ordem da
representação. Ele é uma “máquina literária” que consegue se “plugar” ao mundo e
extrair dele uma pequena variação ou diferença:
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O escritor emerge, então, não como alguém engajado pela liberdade dos povos e
elaborando uma literatura capaz de descrever suas situações, mas sim como alguém que
se engaja pelo devir da vida que é também social e político, encarnando-o na literatura. O
povo ao qual ele se dirige ainda não existe, está permanentemente por vir. E é porque não
há nenhum povo pronto em sua luta por liberdade que não há idéias específicas a serem
expressas. O estilo não é mais um meio passivo e transparente para transmitir idéias. Em
Deleuze, o estilo é inseparável do não-estilo (cf. DELEUZE, 1970, p. 199). Ele é um rio
que carrega todos os materiais, incluindo os leitores, varridos pela força de uma língua
desterritorializada, aberta para todos os fluxos, como os gritos e sopros de Artaud.
Estendendo as metáforas utilizadas por Sartre: há sem dúvida uma realidade “às
margens do rio”, mas ela é imediatamente afetada pelo fluir do rio. A vidraça está
rachada, os cacos estão no meio do rio. Como em Sartre, evita-se a ênfase na beleza
frígida das palavras (o lirismo oco), mas o que toma a dianteira é a conexão entre as
palavras, o ritmo da língua quando já não se trata mais de representar nada, de assegurar
nenhuma ordem “natural” das coisas, na vida, na sociedade e na política. É este ritmo
sempre desviante com relação as nossas representações e ordens “naturais” que faz a
idéia na literatura.
4. Quase-conclusão
Na obra de Deleuze, tudo o que foi exposto acima parece tornar possível
estabelecer uma distinção entre filosofia e literatura – distinguir sim, mas em hipótese
alguma estabelecer domínios estanques de pensamento, e muito menos lugares
institucionais onde se pode praticar uma e outra. A literatura, por ser arte antes de
qualquer outra coisa, possui inevitavelmente um aspecto maneirista. Ou seja, nela, o
estilo não pode passar despercebido sob pena de se perder o próprio caráter de literatura.
Entretanto, certa sobriedade é necessária para que o leitor possa “esburacar” a língua-
padrão que é também língua de representação social. O que está em jogo é um
maneirismo sóbrio. Ao invés de fazer proliferar símbolos e alegorias que teoricamente
seriam capazes de traduzir analogias entre situações e estados de coisas, o escritor busca
uma zona de indiscernibilidade entre as situações e estados de coisas, uma zona a partir
da qual é possível devir ou gerar algo de novo (cf. DELEUZE & GUATTARI, 1975, p.
143).
O caso da filosofia seria distinto. Para utilizarmos os próprios termos de Deleuze-
Guattari, o devir conceitual ou filosófico “é o ato pelo qual o acontecimento comum
esquiva o que é”; sendo este acontecimento “heterogeneidade compreendida numa forma
absoluta”; ao passo que o devir sensível é o acontecimento como alteridade, “engajado
numa matéria de expressão” (DELEUZE & GUATTARI, 1991, p. 168). Somente no caso
da filosofia a questão fundamental envolve um processo de conceituação em que algo é
colocado sob uma forma absoluta. Isto não quer dizer que esse processo esteja à parte do
devir sensível das artes em que são produzidos agregados materiais que valem por si
próprios. Como podemos ver por meio da análise estilística que Deleuze faz da Ética de
Spinoza, o longo e tranqüilo “rio” de noções comuns correspondendo à formação de
nossos conceitos é constantemente sacudido pelas “formações vulcânicas” de seu fundo
afetivo e pelas “condições atmosféricas” perceptivas que ele próprio ajuda a engendrar
(cf. DELEUZE, 1992, p. 187). Há um só mundo do devir, mas ele é muitos, engendrando
por isso diversos modos possíveis de acompanhamento (artes, filosofia, ciências).
Para Sartre, porém, filosofia e literatura estão perto justamente em virtude da
distância que o filósofo estabelece entre as artes em que os agregados valem por si
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mesmos e o domínio da significação em que remetemos sempre a algo exterior por meio
dos signos.
Na realidade, as diferenças entre Sartre e Deleuze parecem residir em diferentes
pressupostos filosóficos que resultam em compreensões divergentes do próprio fenômeno
lingüístico. Para o primeiro (“mestre”), o ideal da prosa permanece conceitual na medida
em que a língua lida com significados. Neste sentido, literatura e filosofia caminham
juntas. Para Deleuze, por outro lado, o conceito é uma possibilidade entre outras de
experimentação da língua, talvez até mesmo um esforço para prescindir dela, como atesta
a idéia de “forma absoluta” em contraste com a “matéria de expressão” da palavra
concreta. A literatura aqui vai de par com as demais artes. O domínio do “sub-
representativo” é afirmado em ambos os casos, mas sem passar necessariamente por
significados prévios, como parece propor Sartre.
Enfim, a chave do problema das diferenças entre Sartre e Deleuze acerca do
engajamento e da literatura pode ser encontrada por meio de uma análise das duas
diferentes concepções ontológicas que animam cada um dos empreendimentos
filosóficos. Assim, embora tanto Sartre quanto Deleuze tenham uma clara dívida para
com a filosofia de Bergson, a afirmação que este último filósofo faz do puro devir tendeu
a separá-lo de Sartre, ao mesmo tempo em que permaneceu um ponto central para
Deleuze. Como ressaltou Alain Badiou, em seu ambicioso e apressado estudo sobre
Deleuze, um dos méritos deleuzeanos consiste em ter assumido e modernizado a filiação
bergsoniana, fora da influência fenomenológica encampada pelo existencialismo
sartreano (cf. BADIOU, 1998).
Ao contrário de Bergson, Sartre enfatiza o papel da consciência a fim de
transcender o que vê como sólida imanência do ser. Nossa relação com o mundo é dada
fenomenologicamente pela consciência. Já em Bergson e Deleuze, o ato de tomada de
consciência é secundário. É a relação imediata entre cada coisa como devir que permite
que uma consciência venha a se desenvolver. Eis o sentido da oposição sugerida por
Deleuze entre a tendência fenomenológica – em que “toda consciência é consciência de
algo” – e o bergsonismo, em que “toda consciência é algo” (cf. DELEUZE, 1986, pp. 89-
90).
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Em vista disso, o escritor pode surgir, para Sartre como consciência reveladora de
um mundo de situações e, para Deleuze, como uma “máquina literária” – segundo os dois
modos de engajamento discutidos aqui.
Pode-se deixar aqui uma pista para uma análise comparativa futura numa quase-
conclusão. Trata-se de dar uma resposta mais direta às perguntas feitas ao final da seção
segunda deste breve ensaio.
As conclusões sartreanas a respeito de certa preeminência do pensamento
(consciência reveladora) sobre a expressão (estilo) implicam talvez uma diferença de
grau entre literatura e filosofia. Se este for o caso, não deve haver um tipo de
engajamento específico para o escritor. Trata-se, invariavelmente, de se manter
comprometido com idéias, escrevendo para um determinado povo de acordo com sua
situação concreta.
Para Deleuze, porém, há uma diferença de natureza entre conceitos, perceptos e
afetos. Ainda que eles coexistam sempre, na filosofia e na literatura, o que os anima não é
igual. Assim, o engajamento se dá sempre por devires, mas podemos nos engajar
seguindo a cadência regular das palavras-conceito ou de acordo com os movimentos mais
bruscos e ocultos dos sons e feições das palavras (cf. DELEUZE, 1992, pp. 181-186). De
um modo ou de outro, a “forma absoluta” da filosofia e as “matérias de expressão”
literárias apontam ambas para a exterioridade absoluta do plano de vida, anterior à
consciência – ou, nos termos de Crítica e clínica, para visões e audições que ultrapassam
todos os possíveis modos de consciência e até mesmo as formações sociais.
Eis porque o engajamento sartreano ainda não é o engajamento deleuzeano, por
mais que Deleuze possa admirar o próprio engajamento de Sartre. E quem sabe a
admiração do “discípulo” Deleuze pelo “mestre” Sartre soasse estranha aos ouvidos deste
último... De um modo ou de outro, a questão do engajamento e da literatura em Sartre e
em Deleuze exigem, talvez, um mergulho mais profundo em cada uma destas filosofias.
O caminho pode ser o sugerido por Badiou: partir de Bergson, de sua influência sobre
Sartre e Deleuze, analisar o papel da consciência e algumas de suas intuições
fundamentais sobre matéria e memória, sobre as multiplicidades qualitativas, sobre o
virtual, sobre o devir etc... Mas isto é matéria para outro trabalho.
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5. Bibliografia citada:
5. ---.“Il a été mon maître”, in L’Île déserte et autres textes: textes et entretiens 1953-
1974, édition préparée par David Lapoujade. Paris: Minuit, 2002.
7. Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. Kafka: pour une littérature mineure. Paris: Minuit,
1975.
10. Deleuze, Gilles & Parnet, Claire. Dialogues. Paris: Flammarion, 1977.
12. ---. Qu’est-ce que la littérature?. Paris: Gallimard, collection Folio Essais, 1948.