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Revista Comunicação e Política

Junho de 2007

A questão da literatura engajada nas filosofias de


Sartre e Deleuze

Paulo Domenech Oneto

Introdução:

Na primeira das coletâneas de textos avulsos de Gilles Deleuze publicadas após


sua morte – intitulada L’Île déserte et autres textes (2002) –, há um artigo dedicado a
Jean-Paul Sartre que merece destaque por diversas razões. Em primeiro lugar, por se
tratar do único texto em que Deleuze aborda diretamente as posições daquele que foi o
mais influente pensador francês do século XX. Em seguida, por consistir numa grande
homenagem, justamente a alguém cuja filosofia parecia ser de importância menor para os
desenvolvimentos próprios das questões deleuzeanas. Assim, como explicar um elogio de
tal magnitude a um pensador sem maior relevo para o seu trabalho? Enfim, em terceiro
lugar, por um aspecto que pode talvez explicar a aparente contradição: por se tratar de um
dos poucos lugares (senão o único) da obra deleuzeana em que a questão do engajamento
intelectual é levantada de modo explícito.
O artigo homenageia Sartre por sua atitude de recusa do Nobel de literatura
naquele ano (1964). Uma vez que o ensaio de Deleuze é extremamente breve (apenas
cinco páginas) e não faz referências diretas à filosofia sartreana, poder-se-ia descartá-lo,
reduzindo-o a um mero texto de circunstância e resolvendo a contradição sugerida acima.
Contudo, o problema em proceder desse modo está no título do artigo: “Il a été mon
maître” (“Ele foi meu mestre”). A contradição parece, portanto, aumentar de tamanho:
como Sartre poderia ser mestre de Deleuze se a filosofia (existencialista) de um está
ausente da obra do outro? Como reduzir um artigo com esse título a um mero texto de
circunstância? Será que é suficiente dizer que Sartre é mestre de Deleuze apenas em
termos de exemplo de intelectual engajado?
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Creio que não. Creio até mesmo que, apesar de sua brevidade, o artigo em questão
pode ser de enorme valia, não apenas para avaliarmos a distância que une e separa os dois
pensadores no que tange às questões do engajamento e da literatura, como também para
melhor compreender uma série de detalhes da filosofia deleuzeana.
Esta é a motivação deste pequeno estudo. Basicamente, pretendo construir um
caminho em quatro etapas, indo do elogio de Deleuze ao intelectual Sartre (1) até a
posição deste último acerca do engajamento na literatura (2); para em seguida passar a
uma análise do modo quase implícito como Deleuze aborda a relação entre engajamento
e literatura (3). A última etapa constitui apenas um esboço para trabalhos futuros de
maior fôlego e envolve os pressupostos filosóficos subjacentes a cada uma das duas
abordagens (4).
Na realidade, o objetivo é dar seqüência a uma pesquisa que venho desenvolvendo
desde 2002 e que já rendeu duas participações em colóquios. A primeira, nos EUA
(outubro de 2002), por ocasião do 28o encontro anual da Southern Comparative
Literature Association, que teve exatamente por tema o texto de Sartre intitulado “O que
é a literatura?”. A segunda, no Brasil (2005), no “Colóquio Internacional Jean-Paul Sartre
– 100 anos”, realizado na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Da primeira
vez em que apresentei as idéias centrais que aqui volto a expor, procurei manter o foco
sobre a questão literária vista sob as duas perspectivas (de Sartre e de Deleuze) uma vez
que se tratava de um encontro de profissionais de literatura comparada. Na segunda
oportunidade, porém, enfatizei a proximidade entre as duas perspectivas. A intenção
agora é começar a mostrar como as diferenças de abordagem acerca do engajamento e da
literatura se enraízam em diferenças filosóficas mais profundas.

1. Sartre e Deleuze

O primeiro passo para uma compreensão das possíveis relações entre as duas
filosofias em questão é recusar uma dupla hipótese: a de que o artigo-homenagem citado
seja um mero texto de circunstância ou de que, mesmo que o pensamento sartreano tenha
exercido algum tipo de influência sobre Deleuze, ela tendeu a desaparecer nos anos
subseqüentes. Contra tais hipóteses podemos, antes de qualquer coisa, voltar a destacar o
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título do artigo, que fala em “mestre”. Todavia, se isso não for suficiente, há ainda uma
passagem capital dos diálogos entre Deleuze e Claire Parnet (de 1977), em que o filósofo
volta a destacar o papel de Sartre na sua formação:

Sartre era o nosso Fora, (...) a lufada de ar que vinha do fundo do pátio (...).
Dentre todas as possibilidades oferecidas pela Sorbonne, ele era a única
combinação capaz de nos dar força para suportar a restauração da ordem. Sartre
nunca deixou de ser isto: não um modelo, método ou exemplo, mas um pouco de
ar puro (...), um intelectual que mudava de maneira singular a situação do
intelectual (DELEUZE & PARNET, 1977, pp. 18-19).

Cabe observar que Deleuze volta aqui a ressaltar a diferença na atitude do


intelectual Sartre sem discutir literatura ou quaisquer conceitos do existencialismo. E se
observarmos que no artigo-homenagem as únicas citações extraídas da obra de Sartre são
trechos do seu ensaio Qu’est-ce que la littérature? (1948), sem que Deleuze trate
propriamente do fazer literário, podemos talvez tender para a tese de uma influência
restrita ao domínio do engajamento.
O ensaio de Sartre é, acima de tudo, um texto em defesa de uma literatura
engajada. Entretanto, o mais interessante é ver que, em sua leitura, Deleuze parece se
esforçar para ampliar o escopo do problema na direção do engajamento em geral. E, mais
interessante ainda, é notar que ele procura fazê-lo de uma maneira que permite vincular a
questão, aparentemente pontual, a uma das intuições de seu pensamento, que diz respeito
ao próprio exercício do pensamento.
Assim, por meio de um contraste entre “pensadores privados” e “professores
públicos”, Deleuze aponta para uma noção que perpassa toda a sua obra: a afirmação do
pensamento como enraizado na vida, vinculado a uma esfera que escapa ao domínio da
representação da realidade. Aqui, no artigo sobre Sartre, essa esfera é denominada “sub-
representativa”:

Desde o início Sartre concebeu o escritor sob a forma de um homem como os


outros, se dirigindo aos outros do ponto de vista de sua liberdade. Toda a sua
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filosofia se inseria num momento especulativo que contestava a noção de


representação; a própria ordem da representação: a filosofia mudava de lugar,
deixava a ordem do juízo para se instalar no mundo mais colorido do “pré-
judicativo”, do “sub-representativo” (DELEUZE, 2002, pp. 110-111).

Na filosofia de Deleuze, tal como se desenvolve desde Diferença e Repetição


(1968), o “mundo do sub-representativo” nada mais é do que o domínio de um
pensamento sem imagem; pensamento que não pretende começar pelos “fatos que todos
devemos reconhecer” para se voltar para o seu solo impensado – este solo em que ainda
não sabemos bem o que é e nem como pensar. Esse “solo” será chamado mais tarde de
“plano” e consiste basicamente num tipo de disposição que nos permite pensar o que
pensamos. A filosofia, por exemplo, consiste na criação de conceitos, mas estes são
motivados por questões que devem ser colocadas segundo um contexto e que não existem
antes do ato de pensar (cf. DELEUZE & GUATTARI, 1991, pp. 40-43). No campo da
literatura e das demais artes, traça-se um plano próprio, algo distinto do plano filosófico.
Deleuze-Guattari o chamam de “plano de composição de sensações” (cf. Ibid., p. 186).
Contudo, de um modo ou de outro, o pensamento se faz sempre a partir de forças “pré-
lógicas” que nos tomam e forçam a pensar. Essas forças que desencadeiam o pensamento
podem ser vistas como algo a ser afirmado ou exorcizado (cf. DELEUZE, 1968, pp. 182
e 192-193).
Nos termos do artigo sobre Sartre: podemos mergulhar no mundo mais colorido
da sub-representação e do impensado ou então escamoteá-lo através de uma naturalização
de certos mecanismos que envolvem o ato de pensar, mas que estão bem longe de
caracterizá-lo. “Pensadores privados” – não obviamente no sentido de isolados do mundo
que os cerca, mas sim como aqueles que conseguem pensar fora ou no limite do senso
comum em que “todos sabem muito bem que...”, “todos devem reconhecer que...”... – são
os que sabem questionar a ordem representativa, mantendo com isso “o grão da revolução
permanente” (DELEUZE, 2002, p. 111). “Pensadores públicos” – cuja proliferação nos
dias de hoje parece inegável por razões as mais diversas – tendem por sua vez a se
confinar à esfera do juízo e aceitar suas convenções com vistas a ocupar um lugar e,
então, justificá-lo e legitimá-lo (vide o Brasil hoje).
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Dessa forma, a indagação sartreana em torno do que devemos esperar do escritor é


reconduzida por Deleuze: a rigor, só no primeiro caso podemos falar em engajamento,
pois só ali ocorre uma completa afirmação do pensamento como “subjetividade em
construção”. O pensamento (filosofia, literatura ou o que for) se engaja quando se volta
para aquilo que o anima “de fora”, isto é, para as forças que nos fazem pensar além da
ordem naturalizada dos fatos.
É provavelmente aí que convergem o “mestre” Sartre e o “discípulo” Deleuze. É,
aliás, revelador notar que a segunda passagem de Qu’est-ce que la littérature?, citada por
Deleuze, remete a Kafka, um escritor que desempenhará um papel fundamental em sua
abordagem sobre a literatura, precisamente por sua vocação política: “a obra de Kafka é
uma reação livre e unitária ao mundo judaico-cristão da Europa. Seus romances são a
ultrapassagem sintética de sua situação de homem, de judeu, de tcheco, de noivo
recalcitrante, de tuberculoso etc.” (SARTRE, 1948, p. 293).
Deleuze utiliza o trecho para falar de Sartre, mostrando quão próximas estão as
duas concepções de engajamento. Kafka é um escritor engajado para Sartre, assim como
Sartre é um filósofo engajado para Deleuze. Mas é possível utilizar o mesmo trecho para
irmos além. Podemos indagar ainda o quanto o modo de engajamento literário proposto
por Sartre efetivamente converge com o modo de engajamento que estaria nas entrelinhas
da abordagem deleuzeana.
Podemos supor um ponto pacífico para a questão do engajamento tout court. Mas
existiria um modo especificamente literário de engajamento para cada um dos filósofos?
Em caso afirmativo, quais seriam esses modos? E mais: que diferenças importantes na
própria noção de engajamento poderiam ser reveladas a partir dessa diferença primeira,
entre os modos de engajamento literário?

2. Sartre: uma literatura de situações

Analisemos inicialmente o célebre ensaio de Sartre.


“Qu’est-ce que la littérature?” se inicia com uma discussão acerca da
especificidade da literatura diante de outras formas artísticas, como a pintura, a escultura
ou a música. Segundo o filósofo, praticamente nenhum paralelismo pode ser traçado entre
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a arte literária e outros meios artísticos. Eles diferem tanto em termos de forma como em
termos de matéria. Os elementos constituintes da literatura são signos que sempre se
referem a algo de exterior a eles. Por outro lado, cores, formas e sons são coisas que
existem por si mesmos. Ainda que reconheçamos certa significação em uma melodia ou
em uma pintura, o fato principal é que ela não pode existir fora da melodia ou da tela. A
fim de melhor esclarecer seu argumento, Sartre emprega o vocabulário existencialista.
Em uma canção de lamento, por exemplo, a lamentação já não existe, ela é. O que Sartre
está dizendo é que a idéia original que anima a obra se encontra completamente absorvida
na obra. O pesar tornou-se uma coisa musical, ele já não existe enquanto tal. É a mesma
situação do Gólgota pintado por Tintoretto. O amarelo no rasgo do céu, acima do
Gólgota, não teria sido escolhido para significar angústia ou mesmo para provocá-la, mas
seria a angústia tornada coisa, a angústia como rasgo amarelo no firmamento (cf. Ibid.,
p. 15)
Em contraste com isso, Sartre afirma que o escritor lida primordialmente com
significados. Eis porque ele deverá se engajar. Nesta altura da sua argumentação, a
reivindicação sartreana de engajamento surge como uma exigência de tomada de posição
diante dos significados sugeridos (ou situações descritas) na obra. Entretanto, mais
adiante no ensaio, Sartre tenta mostrar que o engajamento deve ir além. Trata-se,
sobretudo, de visar às próprias condições de possibilidade da significação, isto é, de
afirmar e se engajar pela liberdade que é o próprio requisito do ato criador. Mas, antes de
chegar a isso, o filósofo enfatiza a necessidade de se distinguir prosa de poesia. O
verdadeiro império dos signos é a prosa, já que a poesia no fundo não se serve das
palavras. Ao contrário, segundo a fórmula sartreana, a poesia serve as palavras (cf. Ibid.,
p. 18):

Na realidade, o poeta se retirou de uma só vez da linguagem-instrumento; ele


escolheu de uma vez por todas a atitude poética que considera as palavras como
coisas e não como signos. Pois a ambigüidade do signo implica que se possa
atravessá-lo à vontade, como uma vidraça, e perseguir através dele a coisa
significada; ou virar seu olhar em direção à sua realidade, considerando-o como
objeto. O homem que fala está além das palavras, próximo do objeto; o poeta está
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aquém (...). Para o primeiro, as palavras são convenções úteis, como ferramentas
que se desgastam aos poucos, que jogamos fora quando já não servem; para o
segundo, elas são coisas naturais que crescem naturalmente sobre a terra, como a
grama e as árvores (Ibid., pp. 18-19).

Embora reconheça que em toda poesia podemos encontrar elementos de prosa e


que, mesmo a mais árida prosa contém um pouco de poesia, Sartre oferece aqui uma
linha demarcatória bastante clara que permite desenvolver sua argumentação ao mesmo
tempo em que esclarece a distinção precedente, estabelecida entre as diferentes formas
artísticas. A partir daí, o filósofo insistirá na necessidade de algum grau de conceituação
como condição para a criação literária, destacando um conteúdo que estaria em busca de
sua melhor forma de expressão.
Não é tanto a metáfora do vidro que se faz problemática na medida em que supõe
certa transparência da linguagem, mas a observação complementar segundo a qual a
prosa é “essencialmente utilitária” (Ibid., p. 25). Pois mesmo que admitamos alguma
utilidade para a linguagem falada do dia-a-dia, podemos ainda duvidar que este seja o
objetivo da prosa. Ao menos podemos duvidar que o efeito procurado pelo escritor seja
efetivamente a comunicação direta de idéias. Seria a função primeira da língua, informar
e comunicar?
Não obstante, este parece ser um dos argumentos centrais do ensaio de Sartre.
Nele jaz uma concepção de linguagem como meio originalmente transparente. A
substância da prosa é apresentada como significativa e o processo de significação é quase
reduzido à designação (cf. Ibid). O problema central da literatura é saber como o escritor
pode encontrar os melhores meios para exprimir idéias já elaboradas.
Para abrandar esse primeiro veredicto de que Sartre acaba por separar pensamento
e expressão de maneira quase irreversível, poderíamos observar que “Qu’est-ce que la
littérature?” foi escrito como uma espécie de panfleto contra a famosa e renitente tese da
“arte pela arte”. Aos puros estilistas que vêem na palavra uma brisa suave “que corre
sobre a superfície das coisas, aflorando-as sem alterá-las” (Ibid., p. 27), Sartre tentaria
opor uma visão segundo a qual nossos modos de falar e escrever são atos expressivos
capazes de alterar o meio em que se inserem.
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A manobra é, de fato, importantíssima. Ao enfatizar a literatura como forma de


ação, o filósofo consegue refinar seu argumento sobre a preeminência do conteúdo sobre
a expressão. Mas é novamente a obsessão pela transparência que ameaça comprometer
sua argumentação:

Não se é escritor por se ter escolhido dizer certas coisas, mas sim por se ter
escolhido dizê-las de certa maneira. É claro que é o estilo que dá valor à prosa.
Mas ele deve passar despercebido. Uma vez que as palavras são transparentes e o
olhar as atravessa, seria absurdo fazer deslizar entre elas vidros foscos. A beleza
não é aqui senão uma força doce e insensível [itálicos meus] (Ibid., p. 30).

Uma vez mais, o que temos aqui é a idéia de que o estilo é um meio para se
chegar ao significado, um mero instrumento ou, segundo a metáfora que Sartre toma
emprestada a Brice Parain, “pistolas carregadas” que devem ser usadas com
responsabilidade, isto é, em alvos específicos e não aleatoriamente (cf. Ibid., p. 29) Estes
alvos estão relacionados à luta de cada um pela liberdade. Mas, para Sartre, a liberdade
não é um fim abstrato, como o escritor Julien Benda parece defender em sua obra La
Trahison des clercs (1927) ou mesmo Gyorgy Lukács em seus ensaios sobre literatura.
Nos termos do existencialismo, só há liberdade em situação. Nesse sentido, engajar-se é
sempre engajar-se diante do estado de coisas atual – não exatamente pela liberdade, mas
a partir dela.
Com isso, Sartre responde a pergunta que propõe logo no título da segunda seção
de seu ensaio (“por que escrever?”). Basicamente, escrevemos para nos posicionarmos
em face da atualidade, para exercermos nossa liberdade. O erro dos estilistas da
literatura deriva precisamente de sua má-fé (conceito-chave do existencialismo), ou seja,
de sua recusa em assumir a condição livre de consciência reveladora do mundo. Pois
escrever é um modo de reivindicar liberdade. Além disso, como ato de desvelamento do
mundo, o ato criador de significados necessariamente inclui os leitores. Daí a necessidade
de uma terceira seção para o ensaio: “para quem escrevemos?”.
O veredicto de Sartre a respeito da literatura está quase pronto. O escritor deve se
engajar pela liberdade que é condição de possibilidade do próprio ato criador (1). Esta
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liberdade inclui, porém, a liberdade dos leitores, aqui e agora, em situação (2): “quanto
mais experimentamos nossa liberdade mais reconhecemos a liberdade do outro” (Ibid., p.
58).
Na realidade, segundo Sartre, é a escolha do leitor que determina a escolha do
tema (e da situação) sobre o qual se deve escrever. O engajamento é, assim, engajamento
pela situação retratada, dirigida aos seus contemporâneos e irmãos de classe ou de raça,
no sentido de sua liberdade. Enfocar as palavras (caso de Flaubert) ou escrever para que
não se experimente a liberdade (caso de Drieu la Rochelle em seu apoio ao fascismo do
regime de Vichy) é se desengajar, e com isso, trair a própria arte de escrever.
Apesar da revisão de alguns dos argumentos – em ensaios posteriores e,
sobretudo, nos livros escritos sobre Genet e Flaubert –, a base a partir da qual eles se
articulam permaneceria a mesma no pensamento de Sartre. Trata-se de uma base
existencialista. O engajamento é engajamento por uma liberdade que é a própria
subjetividade no ato criador. A liberdade deve se atualizar nos temas significados no
interior da obra literária. A língua é vista como transparente, sendo-lhe reservado um
papel secundário como língua. Eis a razão pela qual o estilo deve passar despercebido:
precisamente para permitir que as idéias associadas à situação descrita possam ser
transmitidas.
Em semelhante contexto, a única possível especificidade conferida ao
engajamento literário reside na capacidade de conduzir o leitor na trilha que o levará a
tomar consciência de sua situação, e que irá prepará-lo para lutar por sua liberdade.
Afora isso, a literatura parece compartilhar com a história ou com a filosofia a mesma
meta de veicular uma mensagem, devendo ser fiel a tal objetivo. Para parafrasear Sartre,
o escritor deve praticar uma literatura de situações, iniciando por um processo de
conceituação que se dirige a grupos específicos. O estilo é um meio para descrever as
situações de liberdade dos grupos em questão, sem possuir em si mesmo o poder de
transformá-las.
Como Kafka corresponderia a essa visão? Numa obra como a Metamorfose, por
exemplo, podemos detectar o tipo de engajamento sugerido por Sartre? O autor tcheco é
um escritor de situações? O que o motiva a escrever? A quem ele se dirige? Como
funciona o seu estilo?
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A resposta a estas perguntas autoriza a avançar um pouco mais na comparação


entre as concepções de Sartre e Deleuze acerca do engajamento na literatura. Afinal de
contas, o mais importante trabalho sobre literatura deste último, ao lado de Félix Guattari,
é dedicado precisamente a Kafka (Kafka, por uma literatura menor).
Nas palavras de Sartre, o que o autor da Metamorfose promove por meio de sua
literatura é uma “reação livre e unitária” aos limites do seu próprio mundo – o mundo
judaico-cristão da Europa central. Assim, escrever é encarado como um ato sintético de
projeção para além de sua situação no mundo (cf. Ibid., p. 293). Isto explica em que
sentido Kafka pode aparecer para Sartre como um escritor engajado. Entretanto, o
filósofo é, ainda aqui, bastante prudente em suas considerações. A fim de rechaçar o
dualismo entre realidade conceptualizada (pensamento) e expressão, o filósofo insiste que
o realismo e a verdade de Kafka nunca são dados como “constituídos” ao leitor. É preciso
que este último invente tudo numa perpétua ultrapassagem da coisa escrita. O autor é
apenas um guia: as balizas com que ele marca o terreno “são separadas por um vazio, é
necessário uni-las” (Ibid., 52).
Ora, ao utilizar semelhante terminologia, Sartre parece mais uma vez manter uma
concepção em que o estilo (“terreno”) é um simples suporte para determinadas idéias
(“balizas”). O leitor não ultrapassa as idéias preconcebidas de seu mundo movido pelo
estilo como uma força positiva. Ao contrário, o estilo deve permanecer neutro. Sua
função é auxiliar a conectar as idéias. O estilo pode eventualmente reforçá-las, mas tentar
fazê-lo é um risco. O melhor é evitar exercícios de estilo.
Parece, enfim, que a ênfase que Sartre dá à significação acaba por arrastá-lo para
uma situação em que é preciso escolher entre ser fiel a determinadas idéias associadas à
liberdade (engajamento) ou enfatizar os meios de expressão. Deste ponto de vista, algum
engajamento (mesmo em detrimento da chamada “beleza”) é melhor do que nenhum.
Uma conexão balizada por idéias em nome da liberdade é melhor do que uma livre
conexão (cf. Ibid., 29-30). Sartre confirma aqui o princípio que norteou sua crítica
literária, desde as críticas de seu Situations I. Contra o cuidado com as palavras, presente
na obra de um escritor como Jules Renard, por exemplo, ele postulava a necessidade de
certa concisão em prol das idéias a serem exprimidas (cf. SARTRE, 1942, p. 273).
Somente assim seríamos efetivamente engajados.
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Mas seria assim também para Deleuze? Até que ponto as visões de literatura dos
dois pensadores convergem? O que há de novo na abordagem deleuzeana sobre Kafka
que permitiria distinguir suas idéias de engajamento daquelas de Sartre?

3. Deleuze e a máquina literária

Curiosamente, Deleuze utiliza o termo “sobriedade” que se aproxima muito da


“concisão” sartreana. Mas é essencial determinar o sentido próprio do termo na obra
deleuzeana. À primeira vista, atingir a sobriedade é uma simples questão de ser capaz de
rarefazer ou saturar por eliminação todo excesso, como na obra de Virginia Woolf (cf.
DELEUZE & GUATTARI, 1980, p. 343). Todavia, um olhar mais atento revela que o
método que Deleuze propõe não é propriamente aquele da concisão sartreana. Pois o
objetivo não é mais abrir espaço para idéias de situação ou mesmo pôr o leitor em contato
com a experiência do “vivido” (vivência fenomenológica), mas permitir que as coisas
(língua, escritor e leitor) continuem a devir. De acordo com Deleuze, esta é a tarefa de
toda atividade artística. A arte compõe sensações (“perceptos e afetos”) que excedem
nossa vivência ou campo perceptivo-afetivo (cf. DELEUZE & GUATTARI, 1991, pp.
154-155). A diferença entre a literatura e outras artes reside apenas nos materiais (meios)
usados. O estilo desempenha um papel positivo, como força propulsionadora no processo
de devir. No caso da literatura, o estilo é visto como invenção de uma nova sintaxe, capaz
de desarticular formações lingüísticas canônicas e enrijecidas:

O objetivo da arte é arrancar o percepto das percepções de objetos e dos estados


do sujeito percipiente, arrancar o afeto das afecções (...). Em relação a isto, a
posição do escritor não é diferente daquela do pintor, do músico ou do arquiteto.
Os materiais específicos do escritor são as palavras e a sintaxe (Ibid., p. 198)

Em sua última obra (Crítica e clínica, 1992), Deleuze é mais explícito. Ele afirma
a necessidade de “esburacar” as línguas pretensamente estabelecidas a fim de descobrir
por detrás delas novas possibilidades lingüísticas que permanecem inseparáveis de novas
possibilidades de existência. Estão aí os dois aspectos que já definiam o procedimento da
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literatura menor deleuzo-guattariana, cujo maior representante é Kafka: decompor as


conexões das línguas-padrão (1), inventar uma nova língua dentro da língua como
sistema estável e homogêneo, por meio da elaboração de uma nova sintaxe (2). Um
terceiro aspecto ajuda a compreender o que tudo isso tem a ver com engajamento. Trata-
se da abertura imediata da literatura sobre o universo. Quando a língua é escavada para
dar lugar à outra língua, somos confrontados com seus limites não-lingüísticos, com o seu
fora. Deparamo-nos com visões e audições que, na realidade, não pertencem a nenhuma
língua (3) (cf. DELEUZE, 1992, p. 16). Este “Fora”, que nada mais é do que o limite
interno de qualquer forma ou o campo genético que permite que as formas venham a ser,
é precisamente o domínio do “sub-representativo”. O engajamento se torna então
engajamento pelo limite que, justamente por ser limite de uma realidade, não pode estar
dado e é irrepresentável.
Eis o grande e verdadeiro mérito de Kafka: ter desenvolvido ao longo de sua obra
um método de escavação da língua alemã que pode ser denominado processo de
“minorização literária”, cujo alcance é, imediatamente e em si mesmo, lingüístico e sócio-
político. Deleuze e Guattari já resumiam naquela ocasião (1975) os três aspectos de uma
“literatura menor”: desterritorialização da língua-padrão (1), conexão política imediata
(2) e agenciamento coletivo de enunciação (3) (cf. DELEUZE & GUATTARI, 1975, p.
33).
O terceiro ponto mostra que a abertura diante do horizonte passa necessariamente
pelo meio social. Não há mais distinção entre posição / estilo do autor e abordagem do
tema. Os sujeitos de enunciação e de enunciado se embaralham e dissolvem os papéis
sociais e políticos nas conexões estabelecidas com o não-representado. A literatura já não
deve se empenhar em exprimir idéias bem concebidas, mas sim expressar atos coletivos
de enunciação que o autor consegue extrair das representações socialmente construídas
da realidade. Ao fazê-lo, a ordem da representação se desarticula. A separação entre
conteúdo e expressão é abolida, assim como a distância que se supõe entre o escritor e o
povo ao qual se dirige. O que efetivamente funda conteúdo e expressão é um fluxo
expressivo (Wörterflucht) movido por uma tendência à fuga dos modelos-padrão que
nunca são lingüísticos sem serem, ao mesmo tempo, sociais e políticos.
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Para Deleuze, o escritor está sempre em busca de uma fuga ativa, para se tornar
outro com o movimento (devir) minoritário da vida. É claro, porém, que a fuga nunca é
da vida, mas para a vida – trata-se de uma escapada rumo a uma vida anônima, que
subjaz às nossas estratificações e naturalizações diárias; uma vida “lisa”, que perpassa
todos os eventuais estratos que a ocupam, vida de personagens como Bartleby (Herman
Melville) ou Riobaldo (Guimarães Rosa):

Partir, escapar, é traçar uma linha. O mais elevado aspecto da literatura segundo
Lawrence é “partir, partir, escapar... atravessar o horizonte, penetrar noutra vida...
É assim que Melville se encontra no meio do Pacífico. Ele realmente cruzou a
linha do horizonte”. A linha de fuga é uma desterritorialização (...). O grande e
único erro seria crer que a linha de fuga consiste em fugir da vida; a fuga para o
imaginário, fuga para dentro da arte. Ao contrário, fugir é produzir o real, criar
vida, encontrar uma arma (DELEUZE & PARNET, 1977, pp. 36 e 49)

Como Melville ou D.H. Lawrence, Kafka também é avaliado e valorizado em


termos de seu engajamento diante da vida como devir desmesurado (a-cronológico). E se
Deleuze prefere falar de fuga de que de liberdade é para evitar as oposições ainda
abstratas que parecem dominar o existencialismo. Oposições como aquela entre real e
imaginário, que mantém toda a problemática dentro do terreno da representação (será
preciso esperar o estruturalismo...). Os efeitos políticos disto são evidentes, através da
redução da esfera micropolítica à esfera dos poderes (macro-política): o lugar do poder,
sua posse etc. (será preciso esperar Foucault...).
Há duas conseqüências a tirar da abordagem deleuzeana. Primeiramente, a noção
de “engajamento” deixa de remeter a um povo ou grupo específico, mesmo que em
situação. O conceito deleuzeano de “menor” não se refere a nenhum grupo social situado
historicamente, como era o caso no contexto da análise sartreana. Como Deleuze adverte:
“uma minoria nunca existe pronta”. (Ibid., p. 43) A rigor, há uma diferença essencial
entre processo minoritário como devir e minoria como grupo social. Um devir-
minoritário não é o estado atual de um grupo oprimido, dado em algum tempo-espaço,
mas designa a capacidade que, de um momento a outro, irrompe em cada grupo ou
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indivíduo não-ajustável a um padrão ou modelo, permitindo que se mergulhe na


dimensão “sub-representativa” na qual paramos de passar de sujeitos de enunciação
(objetos) a sujeitos enunciantes (sujeitos) e simplesmente enunciamos...
A segunda conseqüência diz respeito ao estilo. O engajamento não se dá na
literatura por uma situação descrita e nem tampouco pelas idéias que animam a descrição.
Ele diz respeito ao estilo. Não se trata de conceptualizar primeiro para, só então, escrever
e transformar. Numa literatura menor, a expressão que resulta da escavação de uma
língua-padrão nunca vem após o conteúdo:

Uma língua maior ou estabelecida segue um vetor que vai do conteúdo à


expressão: dado um conteúdo, numa certa forma, trata-se de descobrir ou divisar a
forma de expressão que lhe convém. O que se concebe bem, se enuncia... Mas
uma literatura menor ou revolucionária começa por enunciar, e só vê ou concebe
depois (“A palavra, eu não a vejo, eu a invento”). A expressão deve romper com
as formas, marcar as rupturas (...). Quando uma forma se parte, trata-se de
reconstruir o conteúdo que estará necessariamente em ruptura com a própria
ordem das coisas (DELEUZE & GUATTARI, 1975, pp. 51-52).

Deleuze enfatiza que não fica aí nenhum idealismo (nenhum espaço para os
estilistas, advogados da “arte pela arte”, já criticados por Sartre) no primado da
expressão sobre o conteúdo. Pois a expressão é ela própria determinada pelos
“agenciamentos coletivos de enunciação”, isto é, pela conexão desejante e política que
liga o escritor aos devires minoritários que necessariamente o (e nos) constituem (como
diziam os estudantes de 68 em Paris após a afirmação de De Gaulle de que o governo não
queria judeus alemães “atrapalhando” a sociedade: “Somos todos judeus alemães”). Não
há sujeito; há somente agenciamentos coletivos de enunciação.” (Ibid., p. 33).
O escritor é um “inventor de agenciamentos”, um homem político na exata
medida em que se abre para experimentações lingüísticas que desarticulam a ordem da
representação. Ele é uma “máquina literária” que consegue se “plugar” ao mundo e
extrair dele uma pequena variação ou diferença:
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Kafka não se toma, evidentemente, por um partido. Sequer pretende ser


revolucionário, quaisquer que sejam suas simpatias socialistas. Ele sabe que todos
os laços o amarram a uma máquina literária de expressão. Ele é simultaneamente
suas engrenagens, o mecânico, o funcionário e a vítima. (...) Como fazer a
revolução? Ele agirá sobre a língua alemã tal como usada na Tchecoslováquia: já
que se encontra desterritorializada (...), levará mais longe esta desterritorialização
(...) A expressão varrerá o conteúdo; é preciso fazer o mesmo com a forma
[itálicos meus]. (Ibid., 106)

O escritor emerge, então, não como alguém engajado pela liberdade dos povos e
elaborando uma literatura capaz de descrever suas situações, mas sim como alguém que
se engaja pelo devir da vida que é também social e político, encarnando-o na literatura. O
povo ao qual ele se dirige ainda não existe, está permanentemente por vir. E é porque não
há nenhum povo pronto em sua luta por liberdade que não há idéias específicas a serem
expressas. O estilo não é mais um meio passivo e transparente para transmitir idéias. Em
Deleuze, o estilo é inseparável do não-estilo (cf. DELEUZE, 1970, p. 199). Ele é um rio
que carrega todos os materiais, incluindo os leitores, varridos pela força de uma língua
desterritorializada, aberta para todos os fluxos, como os gritos e sopros de Artaud.
Estendendo as metáforas utilizadas por Sartre: há sem dúvida uma realidade “às
margens do rio”, mas ela é imediatamente afetada pelo fluir do rio. A vidraça está
rachada, os cacos estão no meio do rio. Como em Sartre, evita-se a ênfase na beleza
frígida das palavras (o lirismo oco), mas o que toma a dianteira é a conexão entre as
palavras, o ritmo da língua quando já não se trata mais de representar nada, de assegurar
nenhuma ordem “natural” das coisas, na vida, na sociedade e na política. É este ritmo
sempre desviante com relação as nossas representações e ordens “naturais” que faz a
idéia na literatura.

4. Quase-conclusão

To conclude, I announce what comes after.


WALT WHITMAN
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Na obra de Deleuze, tudo o que foi exposto acima parece tornar possível
estabelecer uma distinção entre filosofia e literatura – distinguir sim, mas em hipótese
alguma estabelecer domínios estanques de pensamento, e muito menos lugares
institucionais onde se pode praticar uma e outra. A literatura, por ser arte antes de
qualquer outra coisa, possui inevitavelmente um aspecto maneirista. Ou seja, nela, o
estilo não pode passar despercebido sob pena de se perder o próprio caráter de literatura.
Entretanto, certa sobriedade é necessária para que o leitor possa “esburacar” a língua-
padrão que é também língua de representação social. O que está em jogo é um
maneirismo sóbrio. Ao invés de fazer proliferar símbolos e alegorias que teoricamente
seriam capazes de traduzir analogias entre situações e estados de coisas, o escritor busca
uma zona de indiscernibilidade entre as situações e estados de coisas, uma zona a partir
da qual é possível devir ou gerar algo de novo (cf. DELEUZE & GUATTARI, 1975, p.
143).
O caso da filosofia seria distinto. Para utilizarmos os próprios termos de Deleuze-
Guattari, o devir conceitual ou filosófico “é o ato pelo qual o acontecimento comum
esquiva o que é”; sendo este acontecimento “heterogeneidade compreendida numa forma
absoluta”; ao passo que o devir sensível é o acontecimento como alteridade, “engajado
numa matéria de expressão” (DELEUZE & GUATTARI, 1991, p. 168). Somente no caso
da filosofia a questão fundamental envolve um processo de conceituação em que algo é
colocado sob uma forma absoluta. Isto não quer dizer que esse processo esteja à parte do
devir sensível das artes em que são produzidos agregados materiais que valem por si
próprios. Como podemos ver por meio da análise estilística que Deleuze faz da Ética de
Spinoza, o longo e tranqüilo “rio” de noções comuns correspondendo à formação de
nossos conceitos é constantemente sacudido pelas “formações vulcânicas” de seu fundo
afetivo e pelas “condições atmosféricas” perceptivas que ele próprio ajuda a engendrar
(cf. DELEUZE, 1992, p. 187). Há um só mundo do devir, mas ele é muitos, engendrando
por isso diversos modos possíveis de acompanhamento (artes, filosofia, ciências).
Para Sartre, porém, filosofia e literatura estão perto justamente em virtude da
distância que o filósofo estabelece entre as artes em que os agregados valem por si
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mesmos e o domínio da significação em que remetemos sempre a algo exterior por meio
dos signos.
Na realidade, as diferenças entre Sartre e Deleuze parecem residir em diferentes
pressupostos filosóficos que resultam em compreensões divergentes do próprio fenômeno
lingüístico. Para o primeiro (“mestre”), o ideal da prosa permanece conceitual na medida
em que a língua lida com significados. Neste sentido, literatura e filosofia caminham
juntas. Para Deleuze, por outro lado, o conceito é uma possibilidade entre outras de
experimentação da língua, talvez até mesmo um esforço para prescindir dela, como atesta
a idéia de “forma absoluta” em contraste com a “matéria de expressão” da palavra
concreta. A literatura aqui vai de par com as demais artes. O domínio do “sub-
representativo” é afirmado em ambos os casos, mas sem passar necessariamente por
significados prévios, como parece propor Sartre.
Enfim, a chave do problema das diferenças entre Sartre e Deleuze acerca do
engajamento e da literatura pode ser encontrada por meio de uma análise das duas
diferentes concepções ontológicas que animam cada um dos empreendimentos
filosóficos. Assim, embora tanto Sartre quanto Deleuze tenham uma clara dívida para
com a filosofia de Bergson, a afirmação que este último filósofo faz do puro devir tendeu
a separá-lo de Sartre, ao mesmo tempo em que permaneceu um ponto central para
Deleuze. Como ressaltou Alain Badiou, em seu ambicioso e apressado estudo sobre
Deleuze, um dos méritos deleuzeanos consiste em ter assumido e modernizado a filiação
bergsoniana, fora da influência fenomenológica encampada pelo existencialismo
sartreano (cf. BADIOU, 1998).
Ao contrário de Bergson, Sartre enfatiza o papel da consciência a fim de
transcender o que vê como sólida imanência do ser. Nossa relação com o mundo é dada
fenomenologicamente pela consciência. Já em Bergson e Deleuze, o ato de tomada de
consciência é secundário. É a relação imediata entre cada coisa como devir que permite
que uma consciência venha a se desenvolver. Eis o sentido da oposição sugerida por
Deleuze entre a tendência fenomenológica – em que “toda consciência é consciência de
algo” – e o bergsonismo, em que “toda consciência é algo” (cf. DELEUZE, 1986, pp. 89-
90).
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Em vista disso, o escritor pode surgir, para Sartre como consciência reveladora de
um mundo de situações e, para Deleuze, como uma “máquina literária” – segundo os dois
modos de engajamento discutidos aqui.
Pode-se deixar aqui uma pista para uma análise comparativa futura numa quase-
conclusão. Trata-se de dar uma resposta mais direta às perguntas feitas ao final da seção
segunda deste breve ensaio.
As conclusões sartreanas a respeito de certa preeminência do pensamento
(consciência reveladora) sobre a expressão (estilo) implicam talvez uma diferença de
grau entre literatura e filosofia. Se este for o caso, não deve haver um tipo de
engajamento específico para o escritor. Trata-se, invariavelmente, de se manter
comprometido com idéias, escrevendo para um determinado povo de acordo com sua
situação concreta.
Para Deleuze, porém, há uma diferença de natureza entre conceitos, perceptos e
afetos. Ainda que eles coexistam sempre, na filosofia e na literatura, o que os anima não é
igual. Assim, o engajamento se dá sempre por devires, mas podemos nos engajar
seguindo a cadência regular das palavras-conceito ou de acordo com os movimentos mais
bruscos e ocultos dos sons e feições das palavras (cf. DELEUZE, 1992, pp. 181-186). De
um modo ou de outro, a “forma absoluta” da filosofia e as “matérias de expressão”
literárias apontam ambas para a exterioridade absoluta do plano de vida, anterior à
consciência – ou, nos termos de Crítica e clínica, para visões e audições que ultrapassam
todos os possíveis modos de consciência e até mesmo as formações sociais.
Eis porque o engajamento sartreano ainda não é o engajamento deleuzeano, por
mais que Deleuze possa admirar o próprio engajamento de Sartre. E quem sabe a
admiração do “discípulo” Deleuze pelo “mestre” Sartre soasse estranha aos ouvidos deste
último... De um modo ou de outro, a questão do engajamento e da literatura em Sartre e
em Deleuze exigem, talvez, um mergulho mais profundo em cada uma destas filosofias.
O caminho pode ser o sugerido por Badiou: partir de Bergson, de sua influência sobre
Sartre e Deleuze, analisar o papel da consciência e algumas de suas intuições
fundamentais sobre matéria e memória, sobre as multiplicidades qualitativas, sobre o
virtual, sobre o devir etc... Mas isto é matéria para outro trabalho.
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5. Bibliografia citada:

1. Badiou, Alain. Deleuze: “la clameur de l‘être”. Paris: Hachette, 1997.

2. Deleuze, Gilles. Cinéma 1: L’Image-mouvement. Paris: Minuit, 1983.

3. ---. Critique et clinique. Paris: Minuit, 1993.

4. ---. Différence et répétition. Paris: P.U.F., 1968.

5. ---.“Il a été mon maître”, in L’Île déserte et autres textes: textes et entretiens 1953-
1974, édition préparée par David Lapoujade. Paris: Minuit, 2002.

6. ---. ---. Proust et les signes. Paris: P.U.F., 1970.

7. Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. Kafka: pour une littérature mineure. Paris: Minuit,
1975.

8. ---. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Minuit, 1991.

9. ---. Mille Plateaux. Paris: Minuit, 1980.

10. Deleuze, Gilles & Parnet, Claire. Dialogues. Paris: Flammarion, 1977.

11. Sartre, Jean-Paul. Situations 1. Paris: Gallimard, 1947.

12. ---. Qu’est-ce que la littérature?. Paris: Gallimard, collection Folio Essais, 1948.

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