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0 Arco e a Cesta

O capítulo trata da análise social de uma tribo indígena com características nômades
chamada de Guayaki. Pelo fato desta tribo habitar em uma floresta que é relativamente
pobre em recursos naturais, o ambiente " foi moldando" a economia e as relações sociais
da tribo de maneira diferente de outras tribos indígenas. Se em grande parte das
comunidades indígenas há uma ambiente econômico-social "sedentário": aldeia, hortas e
floresta para a qual os índios vão, caçam e voltam, e as mulheres se ocupam com o
cuidado com as hortas e recolhimento de frutas e verduras, este caso é bastante diferente.
Nesse, os índios são nômades, permanecem no máximo 3 dias em cada local, montam um
acampamento provisório no meio da floresta, com abrigos de ramos de palmeiras. As
mulheres são as maiores controladoras da rotina cotidiana, da preparação de comida, da
confecção de utensílios, principalmente a cesta¹, e da criação da família. O autor, em uma
análise socio-econômica, às classifica, sem maldade, como parte "consumidora" da tribo
enquanto que considera os homens como elemento "produtor" desta sociedade.
Isso ocorre, visto que neste meio-ambiente pobre de recursos, as mulheres são poupadas
da luta especialmente penosa pela busca de alimento. Aqui os homens caçam e também
coletam. Não há aqui os frutos mais comuns em florestas como bagos, frutos, raízes e
insetos, então, a atividade de coleta, normalmente feita também por mulheres, não é
exercida por elas. Além disso, atividades relacionadas a sementes na agricultura, feitas por
mulheres ao lado das dos homens, não podem ocorrer aqui pelo simples fato de que o solo
não é propício para plantar. As atividades de coleta possíveis são extremamente difíceis,
como, por exemplo, a detecção de enxames de abelhas e coleta de mel, também coleta de
larvas e extração da medula da palmeira Pindo. Pela própria diferença biológica entre os
homens as mulheres, os primeiros assumiram integralmente (também) a coleta de
alimentos, além da caça, que são os dois tipos de "produção" de alimento que os Guayaki
podem prover. Se cabe às mulheres, por força das circunstâncias, a responsabilidade por
cuidar das crianças, pela preparação da comida e pela manufatura de diferentes utensílios,
atividades normalmente feitas no acampamento, é na floresta, local da caça, que o homem
se realiza através desse ato. A sua percepção de masculinidade e a sua validação como um
bom membro da tribo passa pelo seu desempenho como caçador². Pode até se dizer que
essa é sua razão de ser. Daí que o arco, o instrumento de caça, assume uma conotação
maior que da função básica de matar o animal. Ele é quase uma parte integral do homem
pleno da tribo. Desde pequeno, o índio vai recebendo um arco compatível com a idade. Ele
vai treinando e entendendo que trazer a caça em abundância, com frequência, entregá-la a
sua mãe é uma amostra de seriedade e sinal que pode vir a ser um bom marido.
As mulheres têm outras funções que não a caça, em parte já citadas. Fabricar e carregar,
em cestas, os utensílios pela floresta até o estabelecimento do acampamento é uma delas.
Essa responsabilidade se manifesta pela maneira como elas colocam a faixa auxiliar no
corpo e posicionam a cabeça durante o carregamento que é exclusivo "delas", já que os
homens, quando precisam, passam a faixa pelo peito.
Em função dessa separação tão marcada entre sexos na economia da tribo, se
desenvolveu um tabu: Os arcos dos homens não podem ser tocados por mulheres, sob o
risco de recair sobre o dono a maldição do azar na caça, o "pané", conseqüência que teria
repercussão negativa a toda tribo.
Por outro lado, os cestos das mulheres também não podem
ser tocados pelos homens. Também sob risco de um pané, uma maldição semelhante, mas
menos rigoroso e sujeito a exceções³. Outros utensílios são neutros, mas estes
permanecem como símbolos relacionados à natureza do gênero e tem implícito neles a
razão de ser de cada um na tribo.
Outro Tabu encontrado é a proibição de cada caçador de consumir a caça que provê para a
sua esposa preparar. Os homens não comem a sua caça. Eles consomem a caça dos
outros. Essa regra propícia uma interdependência entre os caçadores que, por um lado,
serve como uma motivação externa para um bom desempenho na caçada, para obter
respeito dos demais, já que o resultado de cada um se reflete no que os outros vão
consumir. Por outro lado, impede o caçador de adotar uma atitude individualista focada
somente em seu núcleo familiar mais próximo. Assim, é reforçada a coesão social da tribo
pela força da interdependência no sustento.
Essa interdependência social-econômica entre os membros da tribo, é entendida por todos
como uma necessidade indispensável para a preservação da cultura e modo de viver da
Tribo. Porém, por alguma razão desconhecida, a tribo sofre de uma anomalia na proporção
entre homens e mulheres ( evidenciada já há 400 anos atrás). Há uma mulher para cada
dois homens. Para manter condições minimamente suportáveis no que tange à qualidade
de vida e emocional, para os membros da tribo que caçam, se arriscam e provêem, as
mulheres assumem um segundo marido. O autor coloca que trazer mulheres externas à
tribo não é uma opção⁴ factível.
Esse fato, sana um problema maior e predomina o entendimento racional entre os
caçadores, para o bem da tribo, da necessidade de compartilhar a esposa de forma análoga
ao compartilhamento da caça. Mesmo assim, por mais necessária que essa situação seja e
por mais complacente e "civilizado" que o primeiro marido seja, há tensões e ciúmes entre
os esposos, que para o bem geral e para a manutenção da cultura, são reprimidos e
suportados.
Os caçadores aproveitam o descanso no retorno da caçada, no acampamento, à noite, ao
redor da fogueira, para extrair de uma cantoria ritual individualmente, porém em grupo de
caçadores, o máximo de alento para suportar as difíceis condições materiais e emocionais
de sua vida. Cada um em seu tempo pessoal e individual, mesmo que ao lado dos outros e
simultaneamente, começa a entoar um canto pessoal, com inspiração e imbuído de espírito
de glória, enaltece a si mesmo e ao seu fazer na floresta até atingir um climax libertador.
Dessa forma, pelo meio da Arte, da Cantoria ele faz o uso poético da linguagem⁵. No lugar
de usar a linguagem como um instrumento limitante e condicionante das trocas e
concessões do dia a dia, ele pode usá-las de uma forma criativa⁶, individual e imaginativa
gerando em si mesmo uma sensação de liberdade e plenitude de viver, que apenas o
momento artístico possibilita.

Notas:
1. (Clastres,  pg. 104, 2012 )Por volta dos 12 ou 13 anos, com a primeira menstruação,
a moça guayaki passa por um ritual de iniciação à maioridade, é chamada de "daré",
virgem, fará uma cesta pequena e estará logo pronta para ser uma esposa de
caçador
2. (Clastres  pg. 104 )O caçador Guayaki é chamado de "kybuchuété"  faz, mais ou
menos, aos 15 anos sua iniciação, seu lábio inferior é perfurado e recebe o
ornamento "beta".
3. (Clastres  pg. 108 )  Há o caso de dois homens, de ambos serem "pané"
(amaldiçoados), um, "Chachubutawachugi", caçador inapto, mas que não perdeu
sua masculinidade se bem que obrigado a renunciar parcialmente
determinaçõesções masculinas, continuava a ser um homem, enquanto que o outro,
"Krembêgui", havia assumido até às suas últimas consequências a sua condição de
homem-não caçador, por ser homossexual, «tornando-se» uma mulher. Este último
querendo e podendo fazer as atividades femininas e até confeccionar/usar a cesta.
4. (Clastres,  pg. 117) Se os Guayaki negassem a poliandria a sua sociedade não
sobreviveria. Não podendo, por causa da sua fraques numérica, arranjar mulheres
atacando outras tribos, encontrar-se-iam colocados frente à perspectiva duma
guerra civil entre celibatários e possuidores de mulheres, quer dizer, frente a um
suicídio colectivo da tribo. A poliandria suprime deste modo a oposição.

5. (Clastres,  pg. 122) com efeito, vimos já que para lá do contentamento que lhes
proporciona, o canto fornece aos caçadores e, sem que o saibam, o meio de
escapar à vida, social recusando a troca que a fundamenta. O mesmo movimento
pelo qual ele se separa do homem social que é, leva o cantor a saber-se e a dizer-se
enquanto individualidade concreta absolutamente fechada sobre si. O mesmo
homem existe pois como pura reação sobre o plano da troca dos bens e das
mulheres,
e como mônada, se assim se pode dizer, sobre o plano da linguagem. É pelo canto
que ele acede à consciência de si como Eu e ao uso a partir de então legítimo desse
pronome pessoal, o homem existe para si em e pelo seu canto, ele é o seu próprio
canto, "canto logo existo ".

6. ( Lagrou, 16 , 2009) Um outro exemplo (que traz  para o universo possível de


linguagem a manifestação de um desejo reprimido) análogo ao da arte da cantoria
Guayaki, pode de ser encontrado no livro Arte Indígena no Brasil. ".... arte agir
sobre e dentro da sociedade, sendo um discurso silencioso sobre a condição
humana e sua relação com os mundos naturais e sobrenaturais, ou sobre a própria
sociedade. Um exemplo da arte como reflexão sobre, em vez de reflexo da
sociedade, pode ser encontrado na análise de Lévi-Strauss da "representação
desdobrada" nas pinturas faciais kadiwéu'' que será retomada adiante. Em vez de
refletir uma estrutura social de metades, este estilo imaginaria uma possibilidade
cognitiva de organização social não realizada na vida cotidiana. O estilo desdobrado
nos informaria sobre o desejo dos Kadiwéu de superar a tensão social inerente ao
seu sistema de três castas, uma tensão temporariamente dissolvida pela imaginação
artística ".

Bibliografia.

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São


Paulo: CosacNaify, 2012. ISBN 9788540501874.

LAGROU, Els. Arte indígena no Brasil. Belo Horizonte: C/Arte, 2009. ISBN 9788576540861

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