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Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga

Professora Isabel Almeida


FCSH-UNL 2013-2014

O Homem, opera dos deuses


O Homem, operário dos deuses

A Criação do Homem na Tradição


Mesopotâmica

Trabalho realizado por:


Guilherme Borges Pires
2 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
Guilherme Borges Pires
 

Homem! Com esta pequena quantidade de matéria na qual é esculpida a tua forma,
tu resumes toda a história do mundo vivo!

Henri Laborit

Se o homem fosse feito de vidro,


em vez do barro com que Deus o formou,
nada se ocultaria da sua consciência
e tudo se reflectiria em absoluta transparência.

Deixar-se-ia ver com clareza,


reflectido em si e em outrem.
Ver-se-ia como uma frágil chama acesa
a sua diáfana alma a arder,
sem uma só sombra a obscurecer.

A sua alma não seria um sopro divino


mas sim uma luz ténue e hesitante.
O mistério estaria em sua total evidência
e na sua ingénua inocência.

Seria preciso esperar pela noite


para ver claramente essa estranha e translúcida humildade,
quase a extinguir-se,
ardendo sobre o fundo opaco e denso da realidade.

O homem de vidro,
quisesse ou não,
veria reflectida em si a imagem do outro.
Seria levado a ver como o outro,
a escutar como ele
e sentir como ele.

Felizmente, Deus fez o homem de barro.


A sua existência é efémera.
O tempo leva à erosão do corpo
e o barro de que é feito vai-se esboroando.
Se o homem fosse feito de vidro,
a sua natureza frágil estilhaçar-se-ia
e o seu destino quebrar-se-ia em fragmentos cortantes.

“O homem de vidro”, Francisco Caramelo


Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 3
Guilherme Borges Pires
 
Índice

Introdução......................................................................................................................4

O processo antropogónico mesopotâmico – diálogos e rupturas entre três fontes


textuais...........................................................................................................................8
a) Enūma eliš: o Homem como “maravilha”.........................................................8
b) Atrahasis: antes do Dilúvio eram os homens...................................................10
c) Epopeia de Gilgameš: um Homem para o rei de Uruk....................................14

Do barro ao Dilúvio: a natureza perecível do Homem mesopotâmico........................17

Conclusão.....................................................................................................................20

Fontes Analisadas.........................................................................................................22

Bibliografia Consultada................................................................................................22
4 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
Guilherme Borges Pires
 
Introdução

Quem somos? De onde vimos? Para onde vamos? Como fomos criados? Estas
e outras questões similares têm provocado e animado os espíritos dos homens de
todos os espaços e de todos os tempos. Em certo sentido, estas interrogações
epistemológicas unem toda a Humanidade em torno do pensamento sobre a sua
identidade e alteridade. Não é pois de estranhar que também os Mesopotâmicos –
conjunto de povos que se desenvolveram entre os rios Tigre e Eufrates – tenham
reflectido e produzido um pensamento a este respeito, arquitectado ao longo do
tempo. É justamente este o processo que aqui nos propomos a trabalhar e a pensar.
Procuraremos assim compreender de que forma o homem mesopotâmico
percepcionava a sua própria criação, fazendo por apontar os principais aspectos que
lhe estão inerentes.
Dada a amplitude da temática a que nos propomos, procedeu-se a um recorte
para o tratamento desta problemática. Neste sentido, trabalharemos a antropogonia
mesopotâmica a partir de três fontes textuais absolutamente decisivas no panorama
literário mesopotâmico1: Enūma eliš, Atrahasis e Epopeia de Gilgameš. A este título,
importa mencionar que estas fontes serão abordadas apenas no que a antropogonia diz
respeito – directa ou indirectamente – pelo que não apresentaremos uma descrição
completa da fonte, que incida sobre todos os elementos sobre os quais a mesma nos
sugere pistas de compreensão da civilização mesopotâmica. Posta a nossa
incapacidade de leitura e análise das referentes produções textuais no seu original
acádico, recorremos a traduções directas, que acreditamos serem de elevada
qualidade2.
Neste sentido, optámos por estruturar o trabalho em duas grandes secções.
Numa primeira, a que chamámos de “O processo antropogónico mesopotâmico –
diálogos e rupturas entre três fontes textuais”, procuraremos apresentar sumariamente

                                                        
1
Para se ter uma ideia global da produção literária e textual elaborada no contexto civilizacional
mesopotâmico veja-se B. Foster, From distant days – myths, tales and poetry from Ancient
Mesopotamia, Bethesda, CDL Press, 1995.
2
No caso de Enūma eliš fizemos uso da tradução de Federico Lara Peinado (Cf. F.L. Peinado, Enuma
Elish – Poema babilónico de la Creación, Madrid, Editorial Trotta, 2008). Relativamente às restantes
fontes textuais, optámos pela tradução de Stephanie Dalley (Vd. S. Dalley, “Atrahasis” in Myths from
Mesopotamia – Creation, The Flood, Gilgamesh, and Others, New York, Oxford University Press,
1989, pp.1-38; e S. Dalley, “Gilgamesh” in Myths from Mesopotamia – Creation, The Flood,
Gilgamesh, and Others, New York, Oxford University Press, 1989, pp.39-135.)
Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 5
Guilherme Borges Pires
 
o momento da criação do homem per si, apontando semelhanças e dissemelhanças
entre as três fontes textuais por nós estudadas, por forma a compreendermos os
trânsitos e diálogos na concepção antropogónica mesopotâmica. No segundo ponto,
intitulado “Do barro ao Dilúvio: a natureza perecível do Homem mesopotâmico”,
elaboraremos uma breve reflexão sobre os elementos que nos permitem – ou não -
avançar a explicação dos Mesopotâmicos face à sua finitude física, debruçando-nos
não tanto sobre a perspectiva da morte dos Mesopotâmicos, mas sim sobre a íntima
ligação entre os dois elementos do binómio criação-destruição, problematizando a
criação de um ser que é desde logo definido como finito, enfatizando, desta forma, a
natureza perecível do Homem mesopotâmico.
Antes de escalpelizarmos estes aspectos impõe-se, contudo, uma
caracterização sucinta das fontes a partir das quais trabalharemos, uma vez que, como
previamente referido, não as desenvolveremos para lá da sua esfera antropogónica.

Enūma eliš, em português, poderia ser traduzido como “Quando no alto”3.


Embora seja comummente referenciado como o “Poema Babilónico da Criação”4, por
ventura por um prosseguimento de uma lógica temática veterotestamentária aplicada
às fontes mesopotâmicas, que remonta ainda ao século XIX5, a verdade é que a
generalidade dos autores concorda que, mais do que apresentar uma cosmogonia, a
construção textual de Enūma eliš é arquitectada no sentido de enaltecer e justificar a
posição cimeira de Marduk no panteão babilónico 6 . Não obstante, “it is
unquestionable that the sense of creation – or better the recurrence of multiple
creations – occupies a fundamental place in the poem”7. De facto, o fenómeno de
criação é absolutamente central no poema: criação do cosmos (cosmogonia), criação
dos deuses (teogonia) e criação do Homem (antropogonia), o nosso objecto de
análise. Para lá dos actos criadores, devemos apontar como temas fortes em Enūma
eliš: o nascimento de Marduk; a Batalha Cósmica (travada entre Marduk e Tiamat); a
plena consecução da sobranceria de Marduk no panteão babilónico. Ainda que seja

                                                        
3
Cf. A. Seri, “The Role of Creation in Enūma eliš” in JANER, 12, 2012, p.5.
4
Veja-se, nomeadamente, o título escolhido por Federico Lara Peinado para a sua obra - Enuma Elish –
Poema babilónico de la Creación.
5
De facto, em 1873, quando George Smith anunciou a descoberta de Enūma eliš, apresentou-o como
um “Relato Caldeu de Génesis”, apenas publicado em 1876 (Cf. Seri, o.c., p.5).
6
Vd. Seri, o.c., p.5; Peinado, o.c., p.12; P. Michalowski, “Presence at the Creation” [artigo consultado
online em http://www.academia.edu/476346/Presence_at_the_Creation], p.383.
7
Seri, o.c., p.5. 
6 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
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muito difícil precisar com detalhe a datação deste poema, podemos afirmar que
muitas tabuinhas onde a produção textual se apresenta datam do I milénio a.C8.
Porém, devemos inscrever Enūma eliš num quadro cronológico mais amplo, visto que
a sua génese pode, eventualmente, remontar ao II milénio a.C.9, tendo o texto sido
fortemente trabalhado ao longo dos séculos subsequentes10.

Uma primeira leitura de Atrahasis sugere-nos que a sua temática central se


prende com a questão diluviana, hecatombe enviada por Enlil como forma de
resolução do problema de ruído causado pelo excesso populacional11. Contudo, para
este existir é forçosamente necessário que os homens tenham sido criados, pelo que é
pertinente a introdução do elemento antropogónico na narrativa, assumindo-se como
verdadeiramente relevante. Deste modo, em Atrahasis verificamos uma co-existência
de duas grandes realidades conceptuais: a criação e o Dilúvio – “Atra-hasis deals with
both creation and flood”12 – ou seja, criação, destruição e posterior re-criação13.
Importa mencionar o prestígio literário da figura de Atrahasis, monarca lendário de
Šuruppak a quem os deuses concederam, em exclusivo, a imortalidade14, ao longo de
grande parte da história mesopotâmica, uma vez que “the Atra-hasis epic flourished in
15
Babylonian civilization for over 1500 years” . Relativamente a questões
cronológicas, a versão paleo-babilónica – a qual olharemos sobremaneira - encontra-
se inscrita em tabuinhas datadas de cerca de 1700 a.C 16 . Não obstante, foram
encontradas algumas passagens na biblioteca do palácio real de Assurbanipal (século
VII a.C.), monarca neo-assírio17.

                                                        
8
Cf. Dalley, o.c., p.228.
9
A este título, escreve Peinado: “(...) razones de variada índole han permitido considerar que el Poema
sería elaborado muy probablemente durante el reinado de Nabucodonosor I (1124-1103 a.C.) (Vd.
Peinado, o.c., p.12)
10
Vd. Dalley, o.c., p.228. Para se ter uma noção da complexidade da elaboração, ao longo do tempo,
deste poema e dos vários elementos textuais e contextuais que a ele presidiram veja-se, entre outros, J.
Bottéro e S.N. Kramer, Lorsque les dieux faisant l’homme, Paris, Éditions Gallimard, 1989.
11
Como refere Battenfield: “Enlil has decided to reduce the noise by reducing the source, man” (Cf.
J.R. Battenfield, “Atra-Hasis: a survey” in Grace Theological Journal, 12.2, 1971, p.9)
12
Idem, p.3.
13
Para uma compreensão deste dinamismo em torno de criação, destruição e re-criação nas narrativas
diluvianas mesopotâmicas veja-se, nomeadamente, R.E. Simoons-Vermeer, “The Mesopotamian
Floodstories: A Comparison and Interpretation” in Numen, vol.21, Fasc.1, 1974, pp.17-34.
14
O Dilúvio e a posterior fixação da mortalidade como destino irremediável do Homem constituem
elementos fundamentais na economia da obra Atrahasis.
15
Battenfield, o.c., p.4.
16
Dalley, o.c., p.3.
17
Ibidem.
Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 7
Guilherme Borges Pires
 
A Epopeia de Gilgameš, “the longest and greatest literary composition written
in cuneiforme Akkadian”18 resulta da reunião de várias narrativas sumérias, cujo
protagonista é o rei-herói Gilgameš, primeiramente veiculadas por via oral e
posteriormente passadas a escrito. O primeiro momento de recensão textual terá
ocorrido por volta de 1700 a.C. por um autor babilónico que, a partir das várias
produções textuais, elabora uma narrativa unificada 19 . A versão standard, que
corresponde à adaptação dos contos sumérios com acrescentos literários ulteriores, foi
encontrada nas tabuinhas da biblioteca do palácio real de Nínive (iniciada por
Senaquaribe e finalizada por Assurbanipal), datada da primeira metade do século VII
a.C20. Como grandes linhas de leitura desta obra, para além da antropogonia (presente
na criação de Enkidu), devemos apontar: a ideologia real mesopotâmica (Gilgameš é
entendido como paradigma do monarca mesopotâmico), a busca pela fama e
imortalidade e o Dilúvio (num claro empréstimo a Atrahasis 21 ). A Epopeia de
Gilgameš acompanhou a evolução da Mesopotâmia, tendo sido continuamente
reescrita, traduzida e difundida22.

Concluído este voo rasante pelos aspectos gerais que nos permitem
caracterizar as três obras em análise, passaremos agora à explicitação, mais detalhada,
das especificidades inerentes ao processo antropogónico em cada uma delas.

                                                        
18
Idem, p.39. 
19
Cf. T. Abusch, “The development and meaning of the Gilgamesh epic: an interpretative essay” in
JAOS, vol.121, nº4, 2001, p.614.
20
Vd. Dalley, o.c., p.46.
21
Seri faz menção a esta intertextualidade entre as fontes: “This section is an adapted borrowing from
the Mesopotamian Flood Story as it appears first in Atra-hasis (...) and was later included in the XI
tablet of the Standard Babylonian Gilgameš” (Cf. Seri, o.c., p.17.)
22
A este propósito veja-se, por exemplo: Abusch, o.c.; A. George, The Epic of Gilgamesh, London,
Penguin Classics, 1999; J. Maier (ed.), Gilgamesh a reader, Illinois, Bolchazy-Carducci Publishers,
1997. 
8 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
Guilherme Borges Pires
 
O processo antropogónico mesopotâmico – diálogos e rupturas entre três fontes
textuais
a) Enūma eliš: o Homem como “maravilha”

Em Enūma eliš, a antropogonia encontra-se descrita na Tabuinha VI, linhas 1


a 38. Após um momento em que o tempo está suspenso – o tempo das origens, o
tempo prévio à criação, o tempo antes do tempo – a criação do Homem surge num
contexto de ruptura com este, iniciado pela cosmogonia, que encontra na mistura das
águas primordiais (Apsu e Tiamat) o seu primeiro momento.
Neste sentido, após ter saído vitorioso da batalha contra Tiamat e de ter
iniciado a sua actividade demiúrgica (criando, nomeadamente, o calendário), Marduk
decide, no seu coração, criar uma “maravilha” – o Homem – “so that people work
while the gods rest”23:

Cuando [Marduk] oyó las palabras de los dioses,


su corazón le empujó a crear maravillas;
y [abrien]do su boca dirige su palabra a Ea
para comunicarle en plan que había concebido en su corazón:
“¡Voy a condensar sangre y formar huesos;
haré surgir un protótipo humano que se llamará “hombre”!
¡Voy a crear este protótipo, este hombre,
para que le sean impuestos los servicios de los dioses y que ellos estén
descansados” 24

O propósito da antropogonia está assim claramente definido: o Homem foi


criado para servir os deuses. Podemos entender este “serviço aos deuses” como a
prática cúltica in stricto sensu; todavia, este pode outrossim ser perspectivado como o
trabalho agrícola ou pastoril25, visto que a labuta no terreno é sempre empreendida em
nome da divindade.

                                                        
23
Seri, o.c., p.17.
24
Peinado, o.c., VI, 1-6, p.77.
25
Estas realidades socioeconómicas são fulcrais para a identidade civilizacional mesopotâmica. O
primeiro remete para uma tradição suméria e o segundo para um legado semita. Ambos concorrem para
a elaboração ideológica de atributos do monarca mesopotâmico, nomeadamente, “O Jardineiro” e “O
Bom Pastor”.
Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 9
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Conforme podemos constatar pela leitura do excerto transcrito, embora
Marduk se assuma como demiurgo, afirmando “Voy a crear”, este delega a tarefa a
Ea/Enki, divindade que reúne as características necessárias ao processo antropogónico
– sabedoria e magia – revelando-se, na tradição mesopotâmica, bastante próximo da
Humanidade26.
Ora esta criação não é operada mediante uma abstração ou intelectualização
mas sim a partir de uma substância concreta, revelando-se um acto criador ex materia.
Com efeito, na tradição mesopotâmica, o acto de criar é acompanhado do de formar:
criar é dar forma. Seria pois preciso definir qual o suporte que constituiria a matéria-
prima para a criação do Homem. A decisão acaba por recair sobre o deus Kingu,
esposo de Tiamat e portanto malquisto por Marduk e Ea/Enki em virtude da Batalha
Cósmica. Neste sentido, podemos afirmar que o primeiro passo para a criação do
Homem é o sacrifício divino: é a partir do sangue de Kingu que o Homem é
formado27:

“Fue Kingu el que tramó el combate


y movió a rebelión a Tiamat y [or]ganizó la batalla”.
Le ataron y le mantuvieron cogido delante de Ea.
Se le infligió su castigo: se le cortó la sangre.
Y con su sangre (Ea) formó la humanidade.28

O facto do Homem ser criado, de acordo com o expresso em Enūma eliš, a


partir do sangue de um deus tido como nefasto levou a que alguns autores,
nomeadamente Peinado e Eliade, sustentassem a tese de que os Mesopotâmicos
desenvolveram uma “antropología claramente pesimista”29. No nosso entender, é
preciso relativizar e reconsiderar esta perspectiva. De facto, embora, tal como refere
Seri, a criação pressuponha a destruição30, é preciso não esquecermos que Marduk
concebeu a ideia da criação do Homem “no seu coração” colocando-lhe o rótulo de
                                                        
26
De facto, tradicionalmente Ea/Enki é a divindade associada à Humanidade. Repara-se que em
Atrahasis é este deus que avisa o protagonista da chegada da tempestade, ocorrendo um fenómeno
mimético na Tabuinha XI da Epopeia de Gilgameš.
27
Atente-se no paralelismo com o anterior momento demiúrgico de Marduk, no qual, a partir do corpo
de Tiamat, cria o céu e a terra, verificando-se aqui igualmente uma criação ex materia (Cf. Peinado,
o.c., IV, 129-138) .
28
Idem, VI, 29-33, p.78.
29
Idem, p.34.
30
Cf. Seri, o.c., p.17. 
10 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
Guilherme Borges Pires
 
“maravilha”. A criação do Homem é, a nosso ver, positiva, uma vez que é querida
pela mais importante das divindades do panteão babilónico. Na verdade, ainda que a
matéria que preside à génese do Homem provenha de um deus opositor a Marduk e
Ea/Enki, importa relembrar que este foi portador da Tabuinha dos Destinos, obtendo a
mais elevada posição no exército criado por Tiamat na Batalha Cósmica31, pelo que
nos reportamos a uma divindade com aspectos favoráveis ao Homem, mesmo que
tenha caído em desgraça.
Em Enūma eliš, a antropogonia é o culminar de um processo de criação que
não é apresentado de forma detalhada, dado que somente de forma indirecta se
inscreve no objectivo primordial do poema: a exaltação de Marduk. Neste sentido,
verificamos a omissão de elementos que encontramos noutras fontes textuais, de que a
presença de uma divindade feminina no processo antropogónico ou a questão da
mortalidade constituem exemplos significativos. Em Atrahasis, como veremos de
seguida, o cenário é diverso.

b) Atrahasis: antes do Dilúvio eram os homens

Simoons-Vermeer escreve que em lugar de Atrahasis – o único ser humano


que intervém directamente na narrativa, visto que os restantes personagens são deuses
– a produção textual a que agora nos reportamos poderia ter sido intitulada pelos seus
estudiosos de “The Story of the Revolt of the Gods and the Subsequent Creation of
Man”32.
De facto, embora a narrativa se inicie num tempo prévio à criação do Homem
– um tempo em que só os deuses habitam o universo33 -, a referência à Humanidade
ocorre logo no amanhecer do texto, antecipando o momento antropogónico:

When the gods instead of man


Did the work, bore the loads34

                                                        
31
Cf. Peinado, o.c., I, 147-149, p.51.
32
Simoons-Vermeer, o.c., p.17.
33
Cf. Battenfiled, o.c., p.7.
34
Dalley, “Atrahasis” in o.c., I, i, 1-2, p.9. 
Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 11
Guilherme Borges Pires
 
Atestamos assim, logo nas primeiras linhas da coluna primeira da tabuinha
inaugural do texto, uma alusão ao Homem, ainda que este só seja criado
posteriormente35.
Verificamos aqui uma diferença face a Enūma eliš, no sentido em que quando
o texto se inicia já a teogonia, ou seja, a criação dos deuses, ocorreu. Contudo, o
excerto transcrito aponta já uma semelhança muito forte entre as duas fontes textuais:
o Homem é criado com o intuito de servir os deuses, para aliviar o seu jugo. É por
serem os deuses “instead of man” a trabalhar que se decide a antropogonia. Podemos
denotar, deste modo, em Atrahasis um teor etiológico – “How did the man become as
he is?”36.
O Homem é assim criado na sequência de um “movimento grevista”37 por
parte dos deuses Igigi, após anos de subjugação aos Anunnaki38 , manifesto em
trabalho físico nos campos 39 . Na sequência desta atitude colectiva, Enlil, chefe
máximo do panteão a quem os deuses se queixam, chora40 e, conjuntamente com Anu,
Ea e a deusa-mãe, decide dar início ao processo de criação do Homem. Repare-se que,
em contraste com Enūma eliš, a divindade suprema do panteão não é Marduk – uma
vez que naquela fonte textual o propósito primordial é o de exaltar, num contexto
político específico, a divindade cimeira do panteão da cidade da Babilónia. Não
obstante, verificamos aqui uma zona de diálogo e continuidade entre os dois textos: é
a Ea/Enki que cabe criar a Humanidade, visto que este só elabora produtos “puros”:

The work is Enki’s:


He makes everything pure!
If he gives me clay, then I will do it.41

                                                        
35
Pedindo de empréstimo as palavras a Simoons-Vermeer: “When the story becomes readable there
seems to be an allusion to the annihilation of mankind, although it is only thereafter that mankind is
created” (Vd. Simoons-Vermeer, o.c., p.28).
36
Battenfield, o.c., p.7.
37
Cf. Dalley, “Atrahasis” in o.c., I, iii, 36-41, p.12.
38
Importa aqui elaborar uma breve nota para explicitar que o panteão mesopotâmico, em Atrahasis,
subdivide-se em duas categorias fundamentais, correspondentes a uma estrutura hierárquica: os deuses
superiores – Anunnaki; e os deuses inferiores – Igigi. Não obstante, devemos sublinhar que esta
hierarquização não é estanque, sendo distinta noutras fontes textuais.
39
Vd. Dalley, “Atrahasis” in o.c., I, i, 19-20, p.9.
40
Idem, I, iii, 56, p.13.
41
Idem, I, iv, 59-61, p.15. 
12 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
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O excerto apresentado encontra-se no discurso directo, na primeira pessoa,
referindo-se a palavras proferidas por Nintu, uma das deusas-mãe do panteão
mesopotâmico 42 , instigada a criar o Homem. Estamos, deste modo, perante um
elemento que se encontrava ausente em Enūma eliš: a presença de uma contraparte
feminina no processo criador. Esta introdução decorre, por ventura, da observação
directa do mecanismo biológico segundo o qual, como todos os Mesopotâmicos têm
possibilidade de constatar, os homens vêm ao mundo.
Simultaneamente, o excerto transcrito permite-nos compreender que em
Atrahasis a antropogonia se evidencia, tal como em Enūma eliš, como uma criação ex
matéria. Contudo, se na primeira fonte por nós analisada esse suporte material se
tratava do sangue de um deus, em Atrahasis este elemento está igualmente presente
mas encontramos também um outro: a argila. Desta forma, a ideia do sacrifício
divino, observada em Enūma eliš, encontra-se outrossim presente em Atrahasis, sendo
que o deus escolhido para o sacrifício, à semelhança de Kingu, é também um ser
divino com qualidades de liderança e inteligência: Ilawela. No entanto, e dado que em
Atrahasis a antropogonia ocupa uma extensão textual superior à de Enūma eliš, a
descrição do sacrifício divino surge acompanhada de menções a um longo ritual de
purificação:

He [Enki] made a purification by washing.


Ilawela who had intelligence,
They slaughtered in their assembly
Nintu mixed clay
With his flesh and blood
They heard the drumbeat forever after.
A ghost came into existence from the god’s flesh,
And she (Nintu) proclaimed it as his living sign43

Assim, a partir da mistura do sangue e carne de um deus com o barro, dado


por Ea/Enki, é formado um espectro que é um signo da divindade, para que nunca o
                                                        
42
No decurso do processo antropogónico em Atrahasis, observamos a menção a três nomes distintos,
referentes a deusas-mãe: Nintu, Mami e Belet-ili. Na nossa perspectiva, torna-se mais relevante
compreender a sua função transversal enquanto conjunto, isto é, a de criar, dar a luz, fazer surgir à
existência, do que propriamente aquilatar as especificidades individuais de cada deusa. Na Epopeia de
Gilgameš, como teremos ocasião de constatar, este papel é desempenhado por Aruru.
43
Dalley, “Atrahasis” in o.c., I, iv, 79-86, pp.15-16. 
Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 13
Guilherme Borges Pires
 
sacrifício divino seja esquecido. Paralelamente, o excerto apresentado remete-nos
para uma ambiência de ritual dada, não apenas pela purificação, como pelo
acompanhamento do momento antropogónico com o contínuo som do rufar dos
tambores44.
Posteriormente, o texto faz menção a um processo de encantação a partir do
qual surgem sete casais primordiais, cada um protegido no ventre de uma deusa-mãe.
Ao fim de dez meses45 de nutrição, o útero das deusas rasga-se, ocorrendo o momento
do parto. Neste ponto, são definidos os destinos da Humanidade: as mulheres devem
prestar culto a Belet-ili/Mami na gravidez (em virtude do seu papel fundamental no
processo antropogónico) e devem procurar casar com um homem, a fim de juntos
legaram geração:

In the house of a woman who is giving birth


The mud brick shall be put down for seven days.
Belet-ili, wise Mami shall be honoured.
(...)
A wife and her husband choose each other.46

Assim se teria processado, segundo Atrahasis, a génese da Humanidade. Neste


tempo mítico, distante, longínquo, os homens viviam muito tempo, apenas morrendo
como morrem os deuses47. Neste sentido, a multiplicação dos homens, e consequente
ruído, perturbará o sono de Enlil, móbil do envio do Dilúvio, fenómeno atmosférico
fundamental para a definição da mortalidade dos homens - como teremos ocasião de
abordar na segunda secção do presente trabalho – e que estabelece a fronteira entre o
tempo mítico e o tempo histórico. De facto, na Epopeia de Gilgameš, a antropogonia
ocorre já no tempo histórico. Se, em Atrahasis, “antes do Dilúvio eram os homens”,
na Epopeia de Gilgameš, o Homem – Enkidu - surge após o Dilúvio, no tempo em
que Gilgameš era soberano de Uruk.
                                                        
44
Em Atrahasis, é muito interessante observarmos a existência de um barulho ordeiro e organizado – o
rufar dos tambores – no momento da criação, que em tudo contrasta com o ruído caótico da destruição,
causada pelo Dilúvio. Mais ainda, a hecatombe diluviana é enviada por Enlil justamente devido ao
incómodo gerado pelo ruído dos homens, que perturba o sono do deus.
45
Atente-se na similitude face ao período normal de gestação de um ser humano – nove meses –
sobretudo se levarmos em linha de conta que, na Mesopotâmia, os meses contabilizavam-se de forma
distinta. 
46
Dalley, “Atrahasis” in o.c., I, v, 39-41; 50; p.17.
47
Cf. George, o.c., p.xlv.
14 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
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c) Epopeia de Gilgameš: um Homem para o rei de Uruk

Como já tivemos ocasião de mencionar, na Epopeia de Gilgameš, o momento


antropogónico é pós-diluviano, ou seja, ocorre no período histórico, ainda que esse
marco histórico se situe numa cronologia muito recuada: o tempo do lendário rei de
Uruk, Gilgameš, dois terços divino e um terço mortal48.
O épico inicia-se com uma elegia ao monarca, louvando-se os seus feitos, dos
quais se destaca a construção da muralha de Uruk e enfatizando-se a ideia de ninguém
lhe ser comparável, dadas as suas qualidades físicas e psicológicas de excelência, algo
fulcral no contexto da ideologia real mesopotâmica49. Porém, a determinada altura do
exercício da sua governação, em virtude da ausência de um rival ao seu nível,
Gilgameš afasta-se do ideal paradigmático do monarca mesopotâmico, exercendo
uma acção nefasta junto da população de Uruk, expressa, nomeadamente, na
convocatória dos jovens para a guerra e na perturbação das mulheres da cidade:

He had no rival (...)


His weapons would rise up, his comrades have to rise up.
The young men of Uruk became dejected in their private [quarters (?)]
Gilgamesh would not leave any son alone for his father.
Day and night his [behaviour (?)] was overbearing.
(...)
Gilgamesh would not leave [young girls alone],
The daughters of warriors, the brides of young men.
The gods often heard their complaints.50

A última linha patente no excerto acima exposto evidencia o


descontentamento populacional face às atitude de Gilgameš, que leva a população de
Uruk a queixar-se aos deuses51.
Atento às reclamações dos homens, Anu, em conjunto com a Assembleia
Divina, convoca Aruru para que esta crie um ser capaz de enfrentar Gilgameš, uma
                                                        
48
Cf. Dalley, “Gilgamesh” in o.c., I, ii, 1, p.51.
49
Idem, I, i, 1-55. 
50
Idem, I, ii, 9-13; 17-19; p.52.
51
Repare-se na intertextualidade latente entre Atrahasis e a Epopeia de Gilgameš. De facto, na segunda
fonte, os homens queixam-se aos deuses assim como na primeira os deuses inferiores – Igigi – se
lamentam ao divino do fardo laboral a que foram sujeitos pelos Anunnaki.
Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 15
Guilherme Borges Pires
 
vez que foi esta a deusa-mãe52 que presidiu à génese da Humanidade. Desta forma, tal
como em Atrahasis, a antropogonia pressupõe uma actuação feminina:

They called upon great Aruru:


‘You, Aruru, you created [mankind (?)]!
Now create someone for him, to match (?) the ardour (?) of his energies!
Let them be regular rivals, and let Uruk be allowed peace!53

Neste sentido, na Epopeia de Gilgameš, ao contrário de Enūma eliš e


Atrahasis, não registamos a intervenção de Ea/Enki no processo antropogónico. Não
obstante, importa não olvidar o parentesco próximo entre os deuses Anu e Ea/Enki,
para além de que certamente o segundo estaria presente e activo na Assembleia
Divina. Ainda assim, parece-nos relevante sublinhar um paralelismo muito forte entre
Atrahasis e a Epopeia de Gilgameš, no que a antropogonia diz respeito54 - a presença
da argila no acto de moldar, esculpir, formar, em suma, criar, o Homem:

When Aruru heard this, she created inside herself the word (?) of Anu.
Aruru washed her hands, pinched off a piece of clay, cast it out into open
country.
She created a [primitive man], Enkidu, the warrior:
(...)
He knew neither people nor country; he was dressed as cattle are55

Paralelamente, a presença implícita da água (Aruru lava as mãos antes de


proceder à criação de Enkidu), enquanto elemento de libação que antevê um ambiente
ritualístico, igualmente presente em Atrahasis, dado pelo rufar dos tambores e, de
forma mais directa, em Enūma eliš, posto que a antropogonia é precedida por um
momento de purificação das divindades, realidades previamente apontadas.

                                                        
52
Cf. Nota 42.
53
Dalley, “Gilgamesh” in o.c., I, ii, 32-35, p.52.
54
Estas duas fontes textuais têm sido grandemente alvo de estudos e análises comparativas. No entanto,
a produções académica, a este nível elaborada, tende a recair maioritariamente sobre a questão
diluviana, assumindo a antropogonia uma menor expressividade neste contexto científico. (Vd.
Battenfield, o.c.; J.R. Davila, “The Flood Hero as King and Priest” in JNES, vol.54, nº3, 1995, 199-
214; Simoons-Vermeer, o.c., entre outros)
55
Dalley, “Gilgamesh” in o.c., I, ii, 36-38; 41; pp.52-53.
16 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
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Conforme podemos concluir pelo passo acima transcrito, também na Epopeia
de Gilgameš se evidencia uma criação ex materia. É certo que, por oposição ao
expresso em Atrahasis, não encontramos a presença de um sacrifício divino. Todavia,
importa compreender que, na Epopeia de Gilgameš, a antropogonia traduz-se numa
evocação de um tempo imemorial – o tempo em que os homens teriam sido criados
pelos deuses para trabalharem em nome destes – e não tanto numa descrição
detalhada do processo de criação da Humanidade. Ainda assim, não deixa de ser
extremamente sugestiva a ideia de que Enkidu surja sem ser civilizado, um ser a
quem, como refere Keith Dickson, somos convidados a lançar um olhar de estranheza
e espanto56, tal como teriam sido os primeiros homens na noite dos tempos57. Diz-nos
Andrew George:

This innately rebellious and unruly nature of man encapsulated in this myth of his
creation also informs one tradition about early human history, first found in several
Sumerian literary compositions, that in the beginning the human race roamed the
land like the beasts of the field, naked but hairy, and for sustenance grazing on grass
(...) The creation of Enkidu in Tablet I of the Gilgamesh epic also alludes to this
tradition.58

A civilização de Enkidu59 deverá culminar com o início do seu serviço a


Gilgameš e, por extensão, aos deuses. De facto, foi com esse intuito que se procedeu à
criação do ser humano, pelo que só assim Enkidu poderá alcançar plenamente a sua
humanidade, passando de um estado selvático para um estado civilizado. Assim,
podemos alegar que, de alguma forma, o processo civilizacional de Enkidu permite
unir semanticamente as três narrativas antropogónicas que temos vindo a apresentar:

The essential duty of humanity, the reason for which humankind was created, is to
serve the gods, supplying them with ritual sacrifices, as we know from Enūma eliš

                                                        
56
Cf. K. Dickson, “Looking at the Other in Gilgamesh” in JAOS, vol.127, nº2, 2007, p.171.
57
Como refere J.H Tigay: “Enkidu’s creation was modeled on that of mankind in creation myths.
Mythical motifs about primitive man also supplied the model for the description of Enkidu’s early life”
(J.H. Tigay, “Summary: The Evolution of The Gilgamesh Epic” in J. Maier (ed.), Gilgamesh a reader,
Illinois, Bolchazy-Carducci Publishers, 1997, p.46). 
58
George, o.c., p.xl 
59
Cujos trâmites se encontram descritos em Dalley, “Gilgamesh” in o.c., I, iii-vi e II, i, 1-22, pp.53-60.
Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 17
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and the Atrahasis Epic (...) In service to the gods and to Gilgamesh, he [Enkidu] can
fulfill his humanity.60

Do barro ao Dilúvio: a natureza perecível do Homem mesopotâmico

Na primeira secção deste trabalho, procurámos elaborar uma descrição –


individual e comparativa – do processo antropogónico nas três fontes textuais que
propusemos para análise. Apontando as especificidades inerentes a cada produção
textual, tentamos sinalizar zonas de diálogo entre os textos mas também pontos de
discórdia, contradição ou mera omissão de elementos. De facto, a religião
mesopotâmica – à semelhança de qualquer outro sistema religioso – é construída
cumulativamente, acrescentando-se e complementando-se aspectos relativos a visões
e concepções epistemológicas, teológicas e antropológicas, entre as diversas fontes
que se vão, com o tempo, elaborando.
Num segundo momento, a que agora damos início, faremos por compreender
de que forma a criação do Homem se articula intimamente com o seu fim, ou seja, de
que modo a antropogonia, na tradição mesopotâmica, é arquitectada e alicerçada em
torno do pensamento de que o Homem, fundamental aos deuses porque lhes serve, é
sempre finito, ainda que contra isso intente esforços, como sucede na Epopeia de
Gilgameš.
Conforme se disse anteriormente, a religião mesopotâmica é cumulativa, pelo
que se afigura natural a não existência de uma omnipresença de todos os aspectos
entre as fontes. Dentro desta perspectiva, não nos deve ser hostil o facto de, em
Enūma eliš, a questão da mortalidade estar omissa. De facto, como já tivemos ocasião
de sublinhar, a antropogonia não é a temática central deste mito cosmogónico, pelo
que a sua descrição é mais curta e simultaneamente menos detalhada.
Em Atrahasis, ao invés, verificamos uma situação distinta. Com efeito, a
finitude do Homem encontra-se referida, implícita e explicitamente, em momentos
distintos da narrativa.
Na verdade, nesta narrativa, a criação do Homem a partir do barro61 - muito
natural em contexto mesopotâmico, uma vez que a generalidade das construções era
                                                        
60
D. Damrosch, “Gilgamesh and Genesis” in J. Maier (ed.), Gilgamesh a reader, Illinois, Bolchazy-
Carducci Publishers, 1997, p.200. 
18 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
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fabricada neste suporte – indica-nos, de forma indirecta, a perecibilidade do ser
humano, visto que tudo o que é feito de barro tem uma duração limitada. Contudo,
seria preciso clarificar melhor esta questão, pelo que se desenvolverão outros
dispositivos mitológicos e textuais para que assim aconteça.
De facto, o Homem do tempo mítico vive muito tempo62, apenas sucumbindo,
como anteriormente dissemos, do mesmo modo que os deuses, ou seja, mediante um
elemento que lhe é externo e hostil. Neste sentido, para solucionar o problema de
excesso populacional, que impede o sono de Enlil, este, com o auxílio de outras
divindades, envia um conjunto de elementos malfazejos à Humanidade, para que esta
conheça uma redução: a doença, a seca, a fome e, por fim, o Dilúvio63.
Após o Dilúvio64, que aqui não cabe descrever e analisar em profundidade, ao
aperceber-se de que nem toda a Humanidade foi erradicada – dado que Atrahasis
sobreviveu – Enlil, compreendendo ter sido Enki o ajudante do monarca terreno,
confronta-o. Enki, detentor dos ME65, assume que salvou a Humanidade66, explicando
que os deuses dependem dos homens, no sentido em que, se estes não laborarem, não
provêm ao sustento das entidades divinas, algo directamente observável e
compreendido por Enlil. É então neste momento que o texto nos apresenta os
mecanismos de regulação demográfica impostos pelos deuses – a mortalidade infantil,
a infertilidade feminina e a consagração de mulheres ao templo:

                                                                                                                                                               
61
De facto, a argila ou barro, enquanto suporte de criação, surge-nos em diversas geografias da
Antiguidade Pré-Clássica. Para além do contexto mesopotâmico, que aqui temos vindo a trabalhar com
detalhe, pensemos nomeadamente, no caso egípcio, mais especificamente na cosmogonia de Esna,
segundo a qual o deus Khnum procede à criação no seu torno de oleiro, ou seja, a partir do barro.
Simultaneamente, também em Génesis I atestamos uma antropogonia processada mediante o barro.
62
Repare-se que, em Génesis, até ao episódio de Noé, os homens também vivem por um período
dilatado de tempo.
63
Cf. Dalley, “Atrahasis” in o.c., II, pp.20-29. Importa mencionar que, no decurso deste processo,
Ea/Enki, deus par excellence próximo da Humanidade, intervém junto de Atrahasis, o monarca-
protagonista da narrativa, a fim que os problemas se vão solucionando. Este diálogo culminará no
plano de construção de uma barca que permitirá a salvação de Atrahasis, aquando do deflagrar do
Dilúvio.
64
Cuja descrição dos preparativos e da hecatombe em si pode ser conferida em Dalley, “Atrahasis” in
o.c., III, i-v, pp.29-34. 
65
Termo de difícil conceptualização e definição mas que pode ser entendido como os princípios
primordiais e fundamentais da existência do cosmos.
66
Neste processo salvífico, importa não esquecer a participação activa da deusa-mãe, que, tendo
presidido à criação do Homem, auxilia Enki nesta tarefa: “(...) the part played by Enki and Mother-
Goddess consolidates our interpretation. These two gods create man in the first tablet of the Atrahasis-
epic. Precisely, they choose the side of mankind in the flood-story (...) they are the ones who re-create
[man] in the third, because “creator of man” is their function” (Simoons-Vermeer, o.c., pp.33-34).
Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 19
Guilherme Borges Pires
 
In addition let there be one-third of the people,
Among the people the woman who gives birth yet does
Not give birth (successfully);
Let there be the pašittu-demon among the people,
To snatch the baby from its mother’s lap.
Establish ugbabtu, entu, egişītu-women:
They shall be taboo, and thus control childbirth.’67

A introdução, na narrativa, destes factores socio-biológicos da vida dos


homens – que aliás permite explicar a ocorrência de fenómenos como o aborto
espontâneo ou a esterilidade – espoleta a dinamização de um equilíbrio cósmico. Com
este excerto a mortalidade, até então obscuramente sugerida, passa a estar definida
com clarividência. Desta forma, segundo a concepção mesopotâmica, o Dilúvio
fractura o tempo: entre o mítico e o histórico, entre a indefinição da vida dos homens
e a fixação do seu destino irreversível, a explicitação clara da sua finitude física. Em
suma, “The floodstory tells of the one divine scheme of destruction and re-creation in
order to complete the world of man and its organisation” 68 . O Homem é
absolutamente vital para os deuses 69 mas o seu destino mortal é fixado como
irremediável e universal.
Não obstante, há quem escape a esse destino: em Atrahasis o protagonista é
como que “recompensado” pelo divino com a imortalidade. Num cenário diluviano
mimético70 na Epopeia de Gilgameš o nome do sobrevivente à hecatombe é Ut-
napištim. Ora o rei de Uruk, ao tomar conhecimento da existência de um imortal entre
os habitantes do “país de entre os rios”, empreende um árduo caminho para com este
entrar em contacto. A demanda pela imortalidade – tema central do épico – acentua-se
após a morte de Enkidu71 que, vivente num tempo pós-diluviano em que a mortalidade
foi já fixada como insofismavelmente pertencente à condição humana, sucumbe ao
destino de todos os homens. Este embate directo com a morte revivifica, em
Gilgameš, o desejo, já em si existente, de viver para sempre.

                                                        
67
Dalley, “Atrahasis” in o.c., III, vii, p.35.
68
Simoons-Vermeer, o.c., p.34.
69
“(...) although mankind must serve the gods, the gods also needed them” (Michalowski, o.c., p.388). 
70
Descrito em Dalley, “Gilgamesh” in o.c., XI, i-iv, 1-36, pp.109-116.
71
Idem, VII-VIII, pp.83-95.
20 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
Guilherme Borges Pires
 
A conversa com Ut-napištim é, no entanto, extremamente esclarecedora
quanto a este aspecto. Profere o “longínquo rei” ao soberano de Uruk:

The Anunnaki, the great gods, assembled;


Mammitum who creates fate decreed destinies with them.
They appointed death and life.
They did not mark out days for death,
But they did so for life.’72

O discurso de Ut-napištim é bastante assertivo: a vida eterna não está ao


alcance dos homens. O Homem é concebido, desde a génese, como servo finito e
perecível dos deuses; intentar contra este destino – definido explicitamente quando os
deuses decidem o Dilúvio - é travar um combate contra o impossível. Assim, no
término da narrativa épica, Gilgameš compreenderá que a única imortalidade a que
pode almejar é a da memória benéfica do seu nome, a que provém dos seus feitos,
regressando assim a Uruk e recuperando a sua posição de monarca benfazejo,
paradigmático do ideal de realeza mesopotâmico.
Neste sentido, se em Enūma eliš nos encontramos perante o silêncio quanto à
questão da finitude humana, em Atrahasis e na Epopeia de Gilgameš a noção da
mortalidade como fado indubitável do Homem é amplamente trabalhada, sobre
diferentes prismas, constituindo-se enquanto elemento fundamental inscrito no plasma
antropogónico mesopotâmico.

Conclusão

O vocábulo latino opera é polissémico, podendo ser traduzido por “trabalho”


mas também por “dor”, “esforço”, “amargura”, entre outros. Foi precisamente devido
à complexidade de que a palavra se reveste que a seleccionámos para intitular o
trabalho que agora concluímos. Esperamos, no decurso da nossa exposição, ter sido
felizes na sugestão de hipóteses de compreensão do fenómeno antropogónico
mesopotâmico segundo esta perspectiva: o Homem mesopotâmico é uma opera dos
deuses. Desde logo, este é produto de uma acção – “trabalho” – empreendida pelo

                                                        
72
Idem, X, vi, 35-39. 
Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 21
Guilherme Borges Pires
 
Divino. Contudo, este é-lhes também opera porque, como tivemos ocasião de
reflectir, por vezes se traduz no seu “incómodo”, na sua “amargura”, perturbando o
seu sossego e desequilibrando o cosmos. Com efeito, o Homem é criado pelos deuses
mas tal não é sintomático da assumpção de um carácter de perfeição73.
Embora as narrativas analisadas apresentem diferenças entre si, que fomos
oportunamente apontando, todas coincidem num aspecto: criar é dar forma. O
Homem é criado, nas três fontes textuais trabalhadas, a partir de um suporte físico –
criação ex materia. Ao mesmo tempo, “The second and first millennium
Mesopotamian accounts of the creation of man all agree on one thing: mankind was
created to labour for the gods”74. O Homem, operário dos deuses, que trabalha para
estes e do qual estes dependem, pode, não obstante, representar simultaneamente uma
fonte de preocupações. Ao incómodo causado pelo Homem os deuses responderão
com a instituição de mecanismos de regulação demográfica, fixando-se assim o
destino universal e incontornável de todos os homens: a morte. A (i)mortalidade
separa deuses e homens, fixando claramente os diferentes planos que compõem o
cosmos. Querer romper com esta visão – de que a busca da imortalidade pelos
homens constitui um exemplo – significa colocar em causa a ordem e equilíbrio do
cosmos. E fazê-lo seria como regressar ao tempo prévio às origens, ao dia antes da
criação e organização do mundo. Em suma, um retrocesso ao caos.

                                                        
73
“ (...) something [the creation of man], made by the gods for their own purposes was nevertheless a
very imperfective tool.” (George, o.c., p.xxxix)
74
Michalowski, o.c., p.388. 
22 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
Guilherme Borges Pires
 
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