Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Homem! Com esta pequena quantidade de matéria na qual é esculpida a tua forma,
tu resumes toda a história do mundo vivo!
Henri Laborit
O homem de vidro,
quisesse ou não,
veria reflectida em si a imagem do outro.
Seria levado a ver como o outro,
a escutar como ele
e sentir como ele.
Introdução......................................................................................................................4
Conclusão.....................................................................................................................20
Fontes Analisadas.........................................................................................................22
Bibliografia Consultada................................................................................................22
4 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
Guilherme Borges Pires
Introdução
Quem somos? De onde vimos? Para onde vamos? Como fomos criados? Estas
e outras questões similares têm provocado e animado os espíritos dos homens de
todos os espaços e de todos os tempos. Em certo sentido, estas interrogações
epistemológicas unem toda a Humanidade em torno do pensamento sobre a sua
identidade e alteridade. Não é pois de estranhar que também os Mesopotâmicos –
conjunto de povos que se desenvolveram entre os rios Tigre e Eufrates – tenham
reflectido e produzido um pensamento a este respeito, arquitectado ao longo do
tempo. É justamente este o processo que aqui nos propomos a trabalhar e a pensar.
Procuraremos assim compreender de que forma o homem mesopotâmico
percepcionava a sua própria criação, fazendo por apontar os principais aspectos que
lhe estão inerentes.
Dada a amplitude da temática a que nos propomos, procedeu-se a um recorte
para o tratamento desta problemática. Neste sentido, trabalharemos a antropogonia
mesopotâmica a partir de três fontes textuais absolutamente decisivas no panorama
literário mesopotâmico1: Enūma eliš, Atrahasis e Epopeia de Gilgameš. A este título,
importa mencionar que estas fontes serão abordadas apenas no que a antropogonia diz
respeito – directa ou indirectamente – pelo que não apresentaremos uma descrição
completa da fonte, que incida sobre todos os elementos sobre os quais a mesma nos
sugere pistas de compreensão da civilização mesopotâmica. Posta a nossa
incapacidade de leitura e análise das referentes produções textuais no seu original
acádico, recorremos a traduções directas, que acreditamos serem de elevada
qualidade2.
Neste sentido, optámos por estruturar o trabalho em duas grandes secções.
Numa primeira, a que chamámos de “O processo antropogónico mesopotâmico –
diálogos e rupturas entre três fontes textuais”, procuraremos apresentar sumariamente
1
Para se ter uma ideia global da produção literária e textual elaborada no contexto civilizacional
mesopotâmico veja-se B. Foster, From distant days – myths, tales and poetry from Ancient
Mesopotamia, Bethesda, CDL Press, 1995.
2
No caso de Enūma eliš fizemos uso da tradução de Federico Lara Peinado (Cf. F.L. Peinado, Enuma
Elish – Poema babilónico de la Creación, Madrid, Editorial Trotta, 2008). Relativamente às restantes
fontes textuais, optámos pela tradução de Stephanie Dalley (Vd. S. Dalley, “Atrahasis” in Myths from
Mesopotamia – Creation, The Flood, Gilgamesh, and Others, New York, Oxford University Press,
1989, pp.1-38; e S. Dalley, “Gilgamesh” in Myths from Mesopotamia – Creation, The Flood,
Gilgamesh, and Others, New York, Oxford University Press, 1989, pp.39-135.)
Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 5
Guilherme Borges Pires
o momento da criação do homem per si, apontando semelhanças e dissemelhanças
entre as três fontes textuais por nós estudadas, por forma a compreendermos os
trânsitos e diálogos na concepção antropogónica mesopotâmica. No segundo ponto,
intitulado “Do barro ao Dilúvio: a natureza perecível do Homem mesopotâmico”,
elaboraremos uma breve reflexão sobre os elementos que nos permitem – ou não -
avançar a explicação dos Mesopotâmicos face à sua finitude física, debruçando-nos
não tanto sobre a perspectiva da morte dos Mesopotâmicos, mas sim sobre a íntima
ligação entre os dois elementos do binómio criação-destruição, problematizando a
criação de um ser que é desde logo definido como finito, enfatizando, desta forma, a
natureza perecível do Homem mesopotâmico.
Antes de escalpelizarmos estes aspectos impõe-se, contudo, uma
caracterização sucinta das fontes a partir das quais trabalharemos, uma vez que, como
previamente referido, não as desenvolveremos para lá da sua esfera antropogónica.
3
Cf. A. Seri, “The Role of Creation in Enūma eliš” in JANER, 12, 2012, p.5.
4
Veja-se, nomeadamente, o título escolhido por Federico Lara Peinado para a sua obra - Enuma Elish –
Poema babilónico de la Creación.
5
De facto, em 1873, quando George Smith anunciou a descoberta de Enūma eliš, apresentou-o como
um “Relato Caldeu de Génesis”, apenas publicado em 1876 (Cf. Seri, o.c., p.5).
6
Vd. Seri, o.c., p.5; Peinado, o.c., p.12; P. Michalowski, “Presence at the Creation” [artigo consultado
online em http://www.academia.edu/476346/Presence_at_the_Creation], p.383.
7
Seri, o.c., p.5.
6 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
Guilherme Borges Pires
muito difícil precisar com detalhe a datação deste poema, podemos afirmar que
muitas tabuinhas onde a produção textual se apresenta datam do I milénio a.C8.
Porém, devemos inscrever Enūma eliš num quadro cronológico mais amplo, visto que
a sua génese pode, eventualmente, remontar ao II milénio a.C.9, tendo o texto sido
fortemente trabalhado ao longo dos séculos subsequentes10.
8
Cf. Dalley, o.c., p.228.
9
A este título, escreve Peinado: “(...) razones de variada índole han permitido considerar que el Poema
sería elaborado muy probablemente durante el reinado de Nabucodonosor I (1124-1103 a.C.) (Vd.
Peinado, o.c., p.12)
10
Vd. Dalley, o.c., p.228. Para se ter uma noção da complexidade da elaboração, ao longo do tempo,
deste poema e dos vários elementos textuais e contextuais que a ele presidiram veja-se, entre outros, J.
Bottéro e S.N. Kramer, Lorsque les dieux faisant l’homme, Paris, Éditions Gallimard, 1989.
11
Como refere Battenfield: “Enlil has decided to reduce the noise by reducing the source, man” (Cf.
J.R. Battenfield, “Atra-Hasis: a survey” in Grace Theological Journal, 12.2, 1971, p.9)
12
Idem, p.3.
13
Para uma compreensão deste dinamismo em torno de criação, destruição e re-criação nas narrativas
diluvianas mesopotâmicas veja-se, nomeadamente, R.E. Simoons-Vermeer, “The Mesopotamian
Floodstories: A Comparison and Interpretation” in Numen, vol.21, Fasc.1, 1974, pp.17-34.
14
O Dilúvio e a posterior fixação da mortalidade como destino irremediável do Homem constituem
elementos fundamentais na economia da obra Atrahasis.
15
Battenfield, o.c., p.4.
16
Dalley, o.c., p.3.
17
Ibidem.
Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 7
Guilherme Borges Pires
A Epopeia de Gilgameš, “the longest and greatest literary composition written
in cuneiforme Akkadian”18 resulta da reunião de várias narrativas sumérias, cujo
protagonista é o rei-herói Gilgameš, primeiramente veiculadas por via oral e
posteriormente passadas a escrito. O primeiro momento de recensão textual terá
ocorrido por volta de 1700 a.C. por um autor babilónico que, a partir das várias
produções textuais, elabora uma narrativa unificada 19 . A versão standard, que
corresponde à adaptação dos contos sumérios com acrescentos literários ulteriores, foi
encontrada nas tabuinhas da biblioteca do palácio real de Nínive (iniciada por
Senaquaribe e finalizada por Assurbanipal), datada da primeira metade do século VII
a.C20. Como grandes linhas de leitura desta obra, para além da antropogonia (presente
na criação de Enkidu), devemos apontar: a ideologia real mesopotâmica (Gilgameš é
entendido como paradigma do monarca mesopotâmico), a busca pela fama e
imortalidade e o Dilúvio (num claro empréstimo a Atrahasis 21 ). A Epopeia de
Gilgameš acompanhou a evolução da Mesopotâmia, tendo sido continuamente
reescrita, traduzida e difundida22.
Concluído este voo rasante pelos aspectos gerais que nos permitem
caracterizar as três obras em análise, passaremos agora à explicitação, mais detalhada,
das especificidades inerentes ao processo antropogónico em cada uma delas.
18
Idem, p.39.
19
Cf. T. Abusch, “The development and meaning of the Gilgamesh epic: an interpretative essay” in
JAOS, vol.121, nº4, 2001, p.614.
20
Vd. Dalley, o.c., p.46.
21
Seri faz menção a esta intertextualidade entre as fontes: “This section is an adapted borrowing from
the Mesopotamian Flood Story as it appears first in Atra-hasis (...) and was later included in the XI
tablet of the Standard Babylonian Gilgameš” (Cf. Seri, o.c., p.17.)
22
A este propósito veja-se, por exemplo: Abusch, o.c.; A. George, The Epic of Gilgamesh, London,
Penguin Classics, 1999; J. Maier (ed.), Gilgamesh a reader, Illinois, Bolchazy-Carducci Publishers,
1997.
8 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
Guilherme Borges Pires
O processo antropogónico mesopotâmico – diálogos e rupturas entre três fontes
textuais
a) Enūma eliš: o Homem como “maravilha”
23
Seri, o.c., p.17.
24
Peinado, o.c., VI, 1-6, p.77.
25
Estas realidades socioeconómicas são fulcrais para a identidade civilizacional mesopotâmica. O
primeiro remete para uma tradição suméria e o segundo para um legado semita. Ambos concorrem para
a elaboração ideológica de atributos do monarca mesopotâmico, nomeadamente, “O Jardineiro” e “O
Bom Pastor”.
Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 9
Guilherme Borges Pires
Conforme podemos constatar pela leitura do excerto transcrito, embora
Marduk se assuma como demiurgo, afirmando “Voy a crear”, este delega a tarefa a
Ea/Enki, divindade que reúne as características necessárias ao processo antropogónico
– sabedoria e magia – revelando-se, na tradição mesopotâmica, bastante próximo da
Humanidade26.
Ora esta criação não é operada mediante uma abstração ou intelectualização
mas sim a partir de uma substância concreta, revelando-se um acto criador ex materia.
Com efeito, na tradição mesopotâmica, o acto de criar é acompanhado do de formar:
criar é dar forma. Seria pois preciso definir qual o suporte que constituiria a matéria-
prima para a criação do Homem. A decisão acaba por recair sobre o deus Kingu,
esposo de Tiamat e portanto malquisto por Marduk e Ea/Enki em virtude da Batalha
Cósmica. Neste sentido, podemos afirmar que o primeiro passo para a criação do
Homem é o sacrifício divino: é a partir do sangue de Kingu que o Homem é
formado27:
31
Cf. Peinado, o.c., I, 147-149, p.51.
32
Simoons-Vermeer, o.c., p.17.
33
Cf. Battenfiled, o.c., p.7.
34
Dalley, “Atrahasis” in o.c., I, i, 1-2, p.9.
Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 11
Guilherme Borges Pires
Atestamos assim, logo nas primeiras linhas da coluna primeira da tabuinha
inaugural do texto, uma alusão ao Homem, ainda que este só seja criado
posteriormente35.
Verificamos aqui uma diferença face a Enūma eliš, no sentido em que quando
o texto se inicia já a teogonia, ou seja, a criação dos deuses, ocorreu. Contudo, o
excerto transcrito aponta já uma semelhança muito forte entre as duas fontes textuais:
o Homem é criado com o intuito de servir os deuses, para aliviar o seu jugo. É por
serem os deuses “instead of man” a trabalhar que se decide a antropogonia. Podemos
denotar, deste modo, em Atrahasis um teor etiológico – “How did the man become as
he is?”36.
O Homem é assim criado na sequência de um “movimento grevista”37 por
parte dos deuses Igigi, após anos de subjugação aos Anunnaki38 , manifesto em
trabalho físico nos campos 39 . Na sequência desta atitude colectiva, Enlil, chefe
máximo do panteão a quem os deuses se queixam, chora40 e, conjuntamente com Anu,
Ea e a deusa-mãe, decide dar início ao processo de criação do Homem. Repare-se que,
em contraste com Enūma eliš, a divindade suprema do panteão não é Marduk – uma
vez que naquela fonte textual o propósito primordial é o de exaltar, num contexto
político específico, a divindade cimeira do panteão da cidade da Babilónia. Não
obstante, verificamos aqui uma zona de diálogo e continuidade entre os dois textos: é
a Ea/Enki que cabe criar a Humanidade, visto que este só elabora produtos “puros”:
35
Pedindo de empréstimo as palavras a Simoons-Vermeer: “When the story becomes readable there
seems to be an allusion to the annihilation of mankind, although it is only thereafter that mankind is
created” (Vd. Simoons-Vermeer, o.c., p.28).
36
Battenfield, o.c., p.7.
37
Cf. Dalley, “Atrahasis” in o.c., I, iii, 36-41, p.12.
38
Importa aqui elaborar uma breve nota para explicitar que o panteão mesopotâmico, em Atrahasis,
subdivide-se em duas categorias fundamentais, correspondentes a uma estrutura hierárquica: os deuses
superiores – Anunnaki; e os deuses inferiores – Igigi. Não obstante, devemos sublinhar que esta
hierarquização não é estanque, sendo distinta noutras fontes textuais.
39
Vd. Dalley, “Atrahasis” in o.c., I, i, 19-20, p.9.
40
Idem, I, iii, 56, p.13.
41
Idem, I, iv, 59-61, p.15.
12 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
Guilherme Borges Pires
O excerto apresentado encontra-se no discurso directo, na primeira pessoa,
referindo-se a palavras proferidas por Nintu, uma das deusas-mãe do panteão
mesopotâmico 42 , instigada a criar o Homem. Estamos, deste modo, perante um
elemento que se encontrava ausente em Enūma eliš: a presença de uma contraparte
feminina no processo criador. Esta introdução decorre, por ventura, da observação
directa do mecanismo biológico segundo o qual, como todos os Mesopotâmicos têm
possibilidade de constatar, os homens vêm ao mundo.
Simultaneamente, o excerto transcrito permite-nos compreender que em
Atrahasis a antropogonia se evidencia, tal como em Enūma eliš, como uma criação ex
matéria. Contudo, se na primeira fonte por nós analisada esse suporte material se
tratava do sangue de um deus, em Atrahasis este elemento está igualmente presente
mas encontramos também um outro: a argila. Desta forma, a ideia do sacrifício
divino, observada em Enūma eliš, encontra-se outrossim presente em Atrahasis, sendo
que o deus escolhido para o sacrifício, à semelhança de Kingu, é também um ser
divino com qualidades de liderança e inteligência: Ilawela. No entanto, e dado que em
Atrahasis a antropogonia ocupa uma extensão textual superior à de Enūma eliš, a
descrição do sacrifício divino surge acompanhada de menções a um longo ritual de
purificação:
When Aruru heard this, she created inside herself the word (?) of Anu.
Aruru washed her hands, pinched off a piece of clay, cast it out into open
country.
She created a [primitive man], Enkidu, the warrior:
(...)
He knew neither people nor country; he was dressed as cattle are55
52
Cf. Nota 42.
53
Dalley, “Gilgamesh” in o.c., I, ii, 32-35, p.52.
54
Estas duas fontes textuais têm sido grandemente alvo de estudos e análises comparativas. No entanto,
a produções académica, a este nível elaborada, tende a recair maioritariamente sobre a questão
diluviana, assumindo a antropogonia uma menor expressividade neste contexto científico. (Vd.
Battenfield, o.c.; J.R. Davila, “The Flood Hero as King and Priest” in JNES, vol.54, nº3, 1995, 199-
214; Simoons-Vermeer, o.c., entre outros)
55
Dalley, “Gilgamesh” in o.c., I, ii, 36-38; 41; pp.52-53.
16 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
Guilherme Borges Pires
Conforme podemos concluir pelo passo acima transcrito, também na Epopeia
de Gilgameš se evidencia uma criação ex materia. É certo que, por oposição ao
expresso em Atrahasis, não encontramos a presença de um sacrifício divino. Todavia,
importa compreender que, na Epopeia de Gilgameš, a antropogonia traduz-se numa
evocação de um tempo imemorial – o tempo em que os homens teriam sido criados
pelos deuses para trabalharem em nome destes – e não tanto numa descrição
detalhada do processo de criação da Humanidade. Ainda assim, não deixa de ser
extremamente sugestiva a ideia de que Enkidu surja sem ser civilizado, um ser a
quem, como refere Keith Dickson, somos convidados a lançar um olhar de estranheza
e espanto56, tal como teriam sido os primeiros homens na noite dos tempos57. Diz-nos
Andrew George:
This innately rebellious and unruly nature of man encapsulated in this myth of his
creation also informs one tradition about early human history, first found in several
Sumerian literary compositions, that in the beginning the human race roamed the
land like the beasts of the field, naked but hairy, and for sustenance grazing on grass
(...) The creation of Enkidu in Tablet I of the Gilgamesh epic also alludes to this
tradition.58
The essential duty of humanity, the reason for which humankind was created, is to
serve the gods, supplying them with ritual sacrifices, as we know from Enūma eliš
56
Cf. K. Dickson, “Looking at the Other in Gilgamesh” in JAOS, vol.127, nº2, 2007, p.171.
57
Como refere J.H Tigay: “Enkidu’s creation was modeled on that of mankind in creation myths.
Mythical motifs about primitive man also supplied the model for the description of Enkidu’s early life”
(J.H. Tigay, “Summary: The Evolution of The Gilgamesh Epic” in J. Maier (ed.), Gilgamesh a reader,
Illinois, Bolchazy-Carducci Publishers, 1997, p.46).
58
George, o.c., p.xl
59
Cujos trâmites se encontram descritos em Dalley, “Gilgamesh” in o.c., I, iii-vi e II, i, 1-22, pp.53-60.
Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 17
Guilherme Borges Pires
and the Atrahasis Epic (...) In service to the gods and to Gilgamesh, he [Enkidu] can
fulfill his humanity.60
61
De facto, a argila ou barro, enquanto suporte de criação, surge-nos em diversas geografias da
Antiguidade Pré-Clássica. Para além do contexto mesopotâmico, que aqui temos vindo a trabalhar com
detalhe, pensemos nomeadamente, no caso egípcio, mais especificamente na cosmogonia de Esna,
segundo a qual o deus Khnum procede à criação no seu torno de oleiro, ou seja, a partir do barro.
Simultaneamente, também em Génesis I atestamos uma antropogonia processada mediante o barro.
62
Repare-se que, em Génesis, até ao episódio de Noé, os homens também vivem por um período
dilatado de tempo.
63
Cf. Dalley, “Atrahasis” in o.c., II, pp.20-29. Importa mencionar que, no decurso deste processo,
Ea/Enki, deus par excellence próximo da Humanidade, intervém junto de Atrahasis, o monarca-
protagonista da narrativa, a fim que os problemas se vão solucionando. Este diálogo culminará no
plano de construção de uma barca que permitirá a salvação de Atrahasis, aquando do deflagrar do
Dilúvio.
64
Cuja descrição dos preparativos e da hecatombe em si pode ser conferida em Dalley, “Atrahasis” in
o.c., III, i-v, pp.29-34.
65
Termo de difícil conceptualização e definição mas que pode ser entendido como os princípios
primordiais e fundamentais da existência do cosmos.
66
Neste processo salvífico, importa não esquecer a participação activa da deusa-mãe, que, tendo
presidido à criação do Homem, auxilia Enki nesta tarefa: “(...) the part played by Enki and Mother-
Goddess consolidates our interpretation. These two gods create man in the first tablet of the Atrahasis-
epic. Precisely, they choose the side of mankind in the flood-story (...) they are the ones who re-create
[man] in the third, because “creator of man” is their function” (Simoons-Vermeer, o.c., pp.33-34).
Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 19
Guilherme Borges Pires
In addition let there be one-third of the people,
Among the people the woman who gives birth yet does
Not give birth (successfully);
Let there be the pašittu-demon among the people,
To snatch the baby from its mother’s lap.
Establish ugbabtu, entu, egişītu-women:
They shall be taboo, and thus control childbirth.’67
67
Dalley, “Atrahasis” in o.c., III, vii, p.35.
68
Simoons-Vermeer, o.c., p.34.
69
“(...) although mankind must serve the gods, the gods also needed them” (Michalowski, o.c., p.388).
70
Descrito em Dalley, “Gilgamesh” in o.c., XI, i-iv, 1-36, pp.109-116.
71
Idem, VII-VIII, pp.83-95.
20 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
Guilherme Borges Pires
A conversa com Ut-napištim é, no entanto, extremamente esclarecedora
quanto a este aspecto. Profere o “longínquo rei” ao soberano de Uruk:
Conclusão
72
Idem, X, vi, 35-39.
Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 21
Guilherme Borges Pires
Divino. Contudo, este é-lhes também opera porque, como tivemos ocasião de
reflectir, por vezes se traduz no seu “incómodo”, na sua “amargura”, perturbando o
seu sossego e desequilibrando o cosmos. Com efeito, o Homem é criado pelos deuses
mas tal não é sintomático da assumpção de um carácter de perfeição73.
Embora as narrativas analisadas apresentem diferenças entre si, que fomos
oportunamente apontando, todas coincidem num aspecto: criar é dar forma. O
Homem é criado, nas três fontes textuais trabalhadas, a partir de um suporte físico –
criação ex materia. Ao mesmo tempo, “The second and first millennium
Mesopotamian accounts of the creation of man all agree on one thing: mankind was
created to labour for the gods”74. O Homem, operário dos deuses, que trabalha para
estes e do qual estes dependem, pode, não obstante, representar simultaneamente uma
fonte de preocupações. Ao incómodo causado pelo Homem os deuses responderão
com a instituição de mecanismos de regulação demográfica, fixando-se assim o
destino universal e incontornável de todos os homens: a morte. A (i)mortalidade
separa deuses e homens, fixando claramente os diferentes planos que compõem o
cosmos. Querer romper com esta visão – de que a busca da imortalidade pelos
homens constitui um exemplo – significa colocar em causa a ordem e equilíbrio do
cosmos. E fazê-lo seria como regressar ao tempo prévio às origens, ao dia antes da
criação e organização do mundo. Em suma, um retrocesso ao caos.
73
“ (...) something [the creation of man], made by the gods for their own purposes was nevertheless a
very imperfective tool.” (George, o.c., p.xxxix)
74
Michalowski, o.c., p.388.
22 Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga
Guilherme Borges Pires
Fontes Analisadas
Bibliografia Consultada
BOTTÉRO, J., KRAMER, S.N., Lorsque les dieux faisant l’homme, Paris, Éditions
Gallimard, 1989.
DALLEY, S., Myths from Mesopotamia – Creation, The Flood, Gilgamesh, and
Others, New York, Oxford University Press, 1989.
DAVILA, J.R., “The Flood Hero as King and Priest” in JNES, vol.54, nº3, 1995, 199-
214.
Origem e Formação das Religiões na Ásia Antiga 23
Guilherme Borges Pires
DICKSON, K., “Looking at the Other in Gilgamesh” in JAOS, vol.127, nº2, 2007,
pp.171-182.
FOSTER, B., From distant days – myths, tales and poetry from Ancient Mesopotamia,
Bethesda, CDL Press, 1995.
SERI, A., “The Role of Creation in Enūma eliš” in JANER, 12, 2012, pp.4-29.
TIGAY, J.H., “Summary: The Evolution of The Gilgamesh Epic” in MAIER, J. (ed.),
Gilgamesh a reader, Illinois, Bolchazy-Carducci Publishers, 1997, pp.40-49.