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Fundação Perseu Abramo

3 A Esperança Equilibrista – O governo Lula


em tempos de transição reúne ensaios
A Fundação Perseu Abramo publicados no boletim eletrônico
“ Este livro, lúcido, não nos oferece apenas parâmetros
foi criada em 1996 pelo Partido dos Periscópio da Fundação Perseu Abramo
Trabalhadores para desenvolver projetos para a avaliação política do governo Lula, mas também indica e da Secretaria Nacional de Formação
de caráter político-cultural. que limites esse governo precisa transpor para concretizar do Partido dos Trabalhadores
(www.fpabramo.org.br ou www.pt.org.br).

A Esperança Equilibrista
Recebeu o nome de Perseu Abramo a esperança nele depositada e de que saltos será
para homenagear o jornalista capaz para equilibrá-la, pois se o campo movediço Trata-se de uma publicação eletrônica
e professor universitário que participou mensal destinada a subsidiar as análises
da fundação do PT e sempre
e instável das circunstâncias ensina que o político navega sem
de conjuntura e, por extensão, a atuação
mapas, ensina também que uma política só é grande quando a Virtù

Fundação Perseu Abramo


trabalhou para a construção do modo política das lideranças petistas em suas
petista de refletir e atuar. dobra a caprichosa Fortuna – nome com que a tradição ético-política diversas frentes de lutas.
A Fundação é um espaço para o designou a contingência e a adversidade – e quando seu caminho Não sendo porta-voz oficial do PT (tarefa
desenvolvimento de atividades de que cabe a outras publicações nacionais),
tem rumo, guiando-se pela bússola da justiça
reflexão político-ideológica, estudos mas sempre à luz de seus objetivos
e pela estrela da emancipação.”

Cadernos da
e pesquisas, destacando a pluralidade históricos, Periscópio pretende contribuir
de opiniões, sem dogmatismos e com Marilena Chaui para o enriquecimento da reflexão
autonomia. Busca articular partidária baseando suas análises não
o diálogo do pensamento progressista apenas nas informações e debates
com a tradição do socialismo gerados pela grande imprensa, mas
democrático e com a cultura popular, também – e largamente – naqueles

3
contribuindo para a constituição materiais produzidos por entidades e
de uma nova cultura política brasileira. comentaristas independentes e por
investigadores universitários e de
A Fundação Perseu Abramo conta ainda
centros de pesquisa.
com um site na Internet, pelo qual o
usuário pode obter informações sobre Busca ser um espaço plural de reflexão, de

A Esperança Equilibrista
suas atividades, consultar publicações e informação e de análise. Representa
fazer pesquisas, além de ter acesso à também um esforço no sentido de trazer

Juarez Guimarães
Loja Virtual da editora. para a cultura partidária um conjunto de
O governo Lula em tempos de transição reflexões acadêmicas, realizadas nas
O endereço é: www.fpabramo.org.br
universidades brasileiras, em geral pouco
conhecidas e apropriadas para o
Juarez Guimarães
conhecimento do Brasil e sua
transformação.
Prefácio de Marilena Chaui
A publicação eletrônica está disponível
no início de cada mês, e é elaborada
por Juarez Guimarães, professor de
Ciência Política da Universidade Federal
de Minas Gerais, sob a responsabilidade
da Fundação Perseu Abramo e da
Secretaria Nacional de Formação Política
do Diretório Nacional do PT.
Fundação Perseu Abramo
3 A Esperança Equilibrista – O governo Lula
em tempos de transição reúne ensaios
A Fundação Perseu Abramo publicados no boletim eletrônico
“ Este livro, lúcido, não nos oferece apenas parâmetros
foi criada em 1996 pelo Partido dos Periscópio da Fundação Perseu Abramo
Trabalhadores para desenvolver projetos para a avaliação política do governo Lula, mas também indica e da Secretaria Nacional de Formação
de caráter político-cultural. que limites esse governo precisa transpor para concretizar do Partido dos Trabalhadores
(www.fpabramo.org.br ou www.pt.org.br).

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e professor universitário que participou mensal destinada a subsidiar as análises
da fundação do PT e sempre
e instável das circunstâncias ensina que o político navega sem
de conjuntura e, por extensão, a atuação
mapas, ensina também que uma política só é grande quando a Virtù

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tem rumo, guiando-se pela bússola da justiça
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e pela estrela da emancipação.”

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Secretaria Nacional de Formação Política
do Diretório Nacional do PT.
Coleção Cadernos da Fundação Perseu Abramo

A Esperança Equilibrista
O governo Lula em tempos de transição

A esperança equilibrista.p65 1 27/08/04, 16:58


Fundação Perseu Abramo
Instituída pelo Diretório Nacional
do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996

Diretoria
Hamilton Pereira – presidente
Ricardo de Azevedo – vice-presidente
Selma Rocha – diretora
Flávio Jorge Rodrigues da Silva – diretor

Editora Fundação Perseu Abramo

Coordenação editorial
Flamarion Maués

Editora assistente
Candice Quinelato Baptista

Assistente editorial
Viviane Akemi Uemura

Revisão
Maurício Baltazar Leal

Editoração eletrônica
Enrique Pablo Grande

Capa
Berenice Abramo

Ilustração da capa
Paulino NR Lazur

Impressão
Gráfica Bartira

A esperança equilibrista.p65 2 27/08/04, 16:58


A Esperança Equilibrista
O governo Lula em tempos de transição

Juarez Guimarães

EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO

A esperança equilibrista.p65 3 27/08/04, 16:58


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Guimarães, Juarez
A Esperança Equilibrista : o governo Lula em tempos de transição/ Juarez
Guimarães. – São Paulo : Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. – (Coleção
Cadernos da Fundação Perseu Abramo)

Bibliografia.
ISBN 85-7643-008-8

1. Brasil - História 2. Brasil - Política e governo 3. Silva, Luís Inácio Lula


da, 1945- I. Título. II. Título: O governo Lula em tempos de transição. II. Série.

04-5645 CDD-320.981093

Índices para catálogo sistemático:


1. Brasil: Política e governo, 2003- 320.981093

1a edição: setembro de 2004


Tiragem: 2.500 exemplares

Todos os direitos reservados à


Editora Fundação Perseu Abramo
Rua Francisco Cruz, 224
04117-091 – São Paulo – SP – Brasil
Telefone: (11) 5571-4299 – Fax: (11) 5571-0910
Na Internet: http://www.fpabramo.org.br
Correio eletrônico: editora@fpabramo.org.br

Copyright © 2004 by Juarez Guimarães


ISBN 85-7643-008-8

A esperança equilibrista.p65 4 27/08/04, 16:58


Ao Raul Pont, liderança de toda uma geração

À Ana e às crianças brasileiras

Ao José Maria Cançado, coração público

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A esperança equilibrista.p65 6 27/08/04, 16:58
Lista de siglas

ALCA – Área de Livre Comércio das Américas


Anatel – Agência Nacional de Telecomunicações
BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CEB – Comunidade Eclesial de Base
Cepal – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
CGT – Comando Geral dos Trabalhadores
CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas
CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil
Concut – Congresso Nacional da CUT
Contag – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
Copom – Comitê de Política Monetária
CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito
CPT – Comissão Pastoral da Terra
CUT – Central Única dos Trabalhadores
DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-
Econômicos
Edusp – Editora da Universidade de São Paulo
FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador
FGV – Fundação Getúlio Vargas
FHC – Fernando Henrique Cardoso

A esperança equilibrista.p65 7 27/08/04, 16:58


L ISTA DE SIGLAS

FMI – Fundo Monetário Internacional


INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
MDB – Movimento Democrático Brasileiro
Mercosul – Mercado Comum do Sul
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
OMC – Organização Mundial do Comércio
ONU – Organização das Nações Unidas
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PCdoB – Partido Comunista do Brasil
PIB – Produto Interno Bruto
PFL – Partido da Frente Liberal
PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira
PT – Partido dos Trabalhadores
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro
Secex – Secretaria de Comércio Exterior
Sudam – Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia
Sudene – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
SUS – Sistema Único de Saúde
UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Unicamp – Universidade Estadual de Campinas
URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
USP – Universidade de São Paulo

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Sumário

Prefácio, 11
Marilena Chaui

Apresentação , 19

Parte 1 – Fundação da esperança: as raízes republicanas, 21


A eleição de Lula e a história do Brasil, 23

Parte 2 – As razões da esperança: para uma


teoria política da transição, 31
Para onde transita o governo Lula? – Primeira parte, 33
Para onde transita o governo Lula? – Segunda parte, 43
A oposição programática de FHC ao governo Lula, 49
Uma nova reinserção do Brasil na ordem internacional?, 55
O caminho democrático da reforma agrária, 61
O governo Lula e a ética republicana, 67
Os intelectuais críticos e o governo Lula, 73
Os caminhos da transição, 79
Por que os economistas neoliberais erram tanto?, 89
Uma nova aposta no desenvolvimento?, 97

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SUMÁRIO

Parte 3 – O futuro da esperança:


um paradigma republicano para o Brasil, 103
A longa viagem do nacional-desenvolvimentismo, 105
Deus é brasileiro?, 115
A vocação republicana da CUT, 121
Luiz Inácio e Luiz Gonzaga, 129
O bardo mestiço e a revolução brasileira, 135

Sobre o autor, 143

10

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Prefácio

Não têm sido poucas nem brandas as críticas feitas ao gover-


no Lula. Como assinala Juarez Guimarães, não podemos deixar de
indagar por que o direito ao trabalho, tema central da campanha
eleitoral, ainda não foi afirmado com nitidez. Ou por que o Banco
Central julga que sua única meta é o controle da inflação e não o
crescimento da economia e do emprego. E, ainda, por que a idéia
de concertação nacional em torno de um crescimento econômico
com inclusão social só se implantou muito parcialmente? Por que
não foram levados em conta os efeitos danosos do ajuste fiscal em
curso? Por que a lentidão na institucionalização de programas como
Fome Zero, Bolsa Família e, sobretudo, da reforma agrária?
Na verdade, essas indagações retomam, no nível das ações
governamentais, a pergunta que, perplexa, a esquerda se fez quan-
do da “Carta ao povo brasileiro”, isto é, da afirmação de uma ges-
tão neoliberal da macroeconomia, e diante da ambigüidade que
perpassou a composição do novo governo, dividido entre ministé-
rios claramente neoliberais e antineoliberais, “numa áspera disputa
de espaços de poder”.
Sem dúvida, escreve o autor, se a posição liberal for vitoriosa
no interior do governo, “levará à destruição das melhores promessas

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PREFÁCIO

do petismo”. Todavia, não só essa vitória não está dada como tam-
bém é preciso compreender que “o liberalismo petista só pôde al-
cançar tal influência no governo Lula pela insuficiência das respostas
dos socialistas a que Estado queremos como alternativo ao Estado
burguês reformado pelos neoliberais”. É exatamente para estimular a
reflexão e a prática dos socialistas que este livro foi escrito.
Cabe, portanto, indagar: como acercar-se criticamente do go-
verno Lula sem criticá-lo com os argumentos que, hoje, são emprega-
dos pela direita – governo desordeiro e incompetente –, pela extrema
esquerda – governo conservador que abandonou a tradição e a pers-
pectiva socialistas – e pelo centro – governo sem rumo e autoritário?
A essa indagação, a resposta de Juarez Guimarães é clara: é
preciso tomar como critério da avaliação tanto o lugar desse go-
verno no interior da história política e cultural brasileira quanto sua
capacidade para realizar a transição republicana no momento de
crise do paradigma neoliberal. No seio daquela história, o governo
Lula significa a possibilidade da refundação republicana do país.
No epicentro daquela crise, o governo Lula significa “propor um
novo princípio de organização do Estado, sua legitimação e a coa-
lizão política que lhe pode oferecer as bases”. Dispomos, assim, de
um duplo critério para avaliar em que medida esse governo realiza
ou deixa de realizar sua tarefa histórica.
A riqueza e a amplitude das análises de Juarez Guimarães não
podem ser resumidas num prefácio. O leitor se verá diante de estu-
dos do pensamento econômico, jurídico, sociológico, político e cul-
tural que marcaram a teoria e a prática brasileiras no correr do século
XX, de sorte a apanhar simultaneamente a particularidade e a univer-
salidade de nossas conquistas e perdas, de nossas tragédias, dramas
e esperanças. Acompanhará a história e o significado do surgimento
do PT, da CUT e do MST. Lerá análises instigantes e profícuas sobre
as diferenças entre o governo Lula e o de FHC, assim como incisivas
ponderações às críticas feitas pela esquerda e pela direita. Sentirá,
comovido, o tom épico de algumas interpretações da história política
e o lirismo que envolve as análises da cultura brasileira.
Aqui, nos limitaremos a algumas considerações sobre o tema
central do livro – a refundação republicana –, acompanhando bre-

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

vemente as duas vertentes propostas pelo autor para a compreen-


são e a avaliação do governo Lula, isto é, a história política e cultu-
ral brasileira e o processo de transição que dará cabo do paradigma
neoliberal.
No campo da história política, Juarez Guimarães vai em bus-
ca das fontes da refundação republicana analisando o republica-
nismo como um esboço que ainda não alcançou a forma. Para
isso, assinala a universalidade de nossa particularidade, ou seja, o
impasse que atravessa a civilização do ocidente, na qual o libera-
lismo desfez a democracia e o marxismo cindiu-se entre uma ética
revolucionária e a soberania popular. Mas examina, sobretudo,
cinco tradições políticas brasileiras que apontam na direção do
republicanismo: o comunitarismo cristão, o nacional-desenvolvi-
mentismo, o liberalismo ético, o socialismo democrático e a tradi-
ção popular, apontando em cada uma delas as contribuições e os
limites a serem superados.
O comunitarismo cristão (de origem ibérica) afirma o primado
do bem comum e o senso concreto da justiça, traz para o
republicanismo a idéia e a prática da solidariedade, mas falta-lhe a
experiência do pluralismo democrático. O nacional-desenvolvi-
mentismo afirma uma perspectiva antioligárquica (mesmo que não
chegue a ser democrático), traz as idéias de autonomia e soberania
da nação e as de cidadania e inclusão social, mas seu limite encon-
tra-se no privilégio conferido ao Estado e não ao público e à unida-
de nacional e não aos conflitos. O liberalismo ético, cuja dimensão
dramática e, por vezes trágica, se exprime na obra de seu expoen-
te, Raymundo Faoro (e por isso, para Juarez Guimarães, o libera-
lismo não é uma “idéia fora do lugar”, seja no sentido de Oliveira
Vianna, seja no de Roberto Schwarz), traz as idéias dos direitos
civis e do pluralismo político, mas seu limite é dado pela incapaci-
dade para formular uma resposta à questão nacional e oferecer
uma concepção forte da justiça social. O socialismo democrático
traz a promessa laica de um novo princípio civilizatório, alternativo
ao capitalismo, afirmando o abandono da ordem mercantil por uma
lógica assentada na expressão do público e numa visão épica da
democracia participativa. A tradição popular traz a vida associativa

13

A esperança equilibrista.p65 13 27/08/04, 16:58


PREFÁCIO

e participativa, sedimentada no sentimento da solidariedade e no


senso da justiça. No campo da história da cultura participativa, Juarez
Guimarães retoma essas cinco tradições, assinalando a contribui-
ção de cada uma delas para a instituição de uma cultura democrá-
tica. O comunitarismo cristão, com o Vaticano II e a criação da
CNBB, enraizou-se socialmente com as CEBs e a opção preferencial
pelos pobres, e, politicamente, com a Teologia da Libertação e a
afirmação da autonomia e soberania nacionais. O liberalismo ético,
que culminou na reforma da Constituição, introduziu o dinamismo
constitucional e jurídico para o estabelecimento de novos direitos,
procedimentos e salvaguardas democráticos e o campo para o exer-
cício de uma ordem institucional em movimento. O socialismo de-
mocrático trouxe a recusa da dualidade entre sociedade civil e Es-
tado, ou entre movimentos sociais e institucionalidade, introduzindo
a dialética do social e do político. A tradição popular, por meio dos
movimentos populares e das formas associativas e cooperativas de
ação, dos movimentos sociais de saúde, educação, reforma urba-
na, políticas de gênero, meio ambiente, é considerada, hoje, aquela
de maior ação participativa no planeta (como atestam as reuniões
do Fórum Social Mundial) e, escreve o autor, fez culturalmente o
que a política ainda não fez: a republicanização do Brasil.
O Partido dos Trabalhadores formou-se com a reunião des-
sas cinco tradições políticas e culturais, tendo a seu favor uma cir-
cunstância histórica, qual seja, a de ser um partido de esquerda
tardio, nascido depois da crise definitiva da União Soviética e do
fim da Guerra Fria, e por isso mesmo pôde traçar um caminho
próprio, livre e independente, guardando a perspectiva marxista
graças à crítica das experiências totalitárias. A isso veio acrescen-
tar-se uma nova circunstância de importantes conseqüências: o
governo Lula nasce no momento da crise do paradigma neoliberal
e do fracasso da Terceira Via social-democrata, podendo desfa-
zer-se de um e não embarcar na outra.
A história político-cultural em que o PT foi gestado e as circuns-
tâncias históricas que lhe permitem assumir um perfil político inédito
no interior da esquerda determinam a tarefa que incumbem ao go-
verno Lula e pela qual podemos julgá-lo hoje e amanhã: sua tarefa é

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A esperança equilibrista.p65 14 27/08/04, 16:58


A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

completar a republicanização do Brasil, efetuada na sociedade pela


tradição popular, ou seja, cabe-lhe republicanizar o poder.
Por que o republicanismo? O autor avalia três atitudes possí-
veis para o governo Lula: a do socialismo imediatamente, a do libe-
ralismo economicista e a do republicanismo. A primeira atitude iso-
laria a esquerda e abriria espaço para uma poderosa coalizão de
centro-direita, que dominaria um Estado fragilizado por uma déca-
da de neoliberalismo. A segunda colocaria como aliadas do gover-
no as forças conservadoras, patrimonialistas, tecnocráticas e liga-
das aos interesses orgânicos do mercado. Somente a terceira pode
assegurar legitimidade ao governo Lula, permitindo-lhe realizar “sua
vocação largamente democrática e universalizante, uma direção e
sentido construtivo ao fundar a esfera pública, a simetria entre di-
reitos e deveres, a dimensão sistêmica da nação e, mais importante,
o ideal cívico da cidadania ativa e da democracia participativa”.
Para explicitar essa idéia, Juarez Guimarães opera com con-
ceitos da ciência e da filosofia políticas, da economia, do direito e
da história, oferecendo-nos cuidadosa análise da crise do paradigma
neoliberal, das fases da transição política e dos meandros percorri-
dos até agora pelo governo Lula.
Tomando como referência as análises de Francisco de Oliveira,
segundo as quais o paradigma neoliberal é dominante, mas não
hegemônico, pois está marcado pela impossibilidade de uma ação
inclusiva de vastos setores da sociedade, Juarez Guimarães situa a
crise desse paradigma em sua incapacidade para dar coesão ao blo-
co dominante e garantir a adesão da opinião pública. De fato, um
paradigma não é um simples modelo inerte e repetitivo, e sim, como
se depreende das reflexões do filósofo das ciências, Thomas Kuhn,
uma operação dinâmica que define uma problemática (ou uma agen-
da de prioridades) assim como a lógica do discurso e da argumenta-
ção, deslegitima perspectivas contrárias e estabiliza conceitos-chave
que tornam o sentido unívoco, impedindo a polissemia das significa-
ções. A crise do paradigma neoliberal se manifesta na perda de con-
trole sobre a problemática (a idéia de estabilidade é rompida pela de
crescimento econômico com inclusão social) e sobre a lógica e a
argumentação (a posição pró-mercado é rompida pela exigência de

15

A esperança equilibrista.p65 15 27/08/04, 16:58


PREFÁCIO

atuação e regulação estatais), bem como pela perda de eficácia dos


conceitos-chave (flexibilização, desregulação, privatização etc.).
O núcleo da argumentação do autor é a compreensão de que
o neoliberalismo não é apenas uma concepção macroeconômica,
mas “um princípio de organização do Estado”, que determina suas
instituições e regulações, suas hierarquias e relações com o merca-
do e o sistema financeiro internacional, seus padrões de soberania,
direitos e deveres. Superá-lo, portanto, significa formular um novo
princípio de organização do Estado. A transição é a construção
desse novo princípio, um processo de destruição e criação simultâ-
neas, momento em que as antigas regras devem deixar de funcionar
e as novas ainda não estão operando.
É preciso, portanto, construir o conceito de transição. Para
isso, cinco perspectivas são propostas como operações simultâ-
neas: a do “tempo prudencial de governo” – o tempo necessário
para definir a direcionalidade do governo ou “o sentido, a acumula-
ção e a coerência de seus atos” –; a da idéia do possível como
“capacidade para agir sobre as circunstâncias, a força das coisas”,
inventando um caminho para relações novas entre política e econo-
mia; a do “bom governo republicano”, isto é, o aumento da força
do governo sobre as circunstâncias contingentes – no caso, sobre
os poderes de mercado sobre os quais não tinha nenhum controle –
; a do poder democrático do governo (e não a pretensa soberania
decisionista) sobre as instituições e decisões econômicas, aumen-
tando a soberania do país e diminuindo sua vulnerabilidade em um
quadro internacional instável; e, finalmente, a idéia de crescimento
sustentado com inclusão social e distribuição da renda. Esse con-
ceito permite compreender que há um tempo da transição, desdo-
brado em quatro fases: a da governabilidade (conhecimento do
Estado e do manejo de seus instrumentos; gestão da herança), a da
introdução de novos parâmetros de regulação econômica, a da
passagem ao novo paradigma (sem caos sistêmico, porque foi pre-
parada pelas duas fases anteriores) e, por fim, o novo paradigma
implantado, depois de superados os constrangimentos estruturais e
institucionais para o crescimento sustentando com inclusão social e
distribuição da renda.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Qual o instrumento da ação governamental que permitirá a


transição, a implantação do novo paradigma e a refundação repu-
blicana do poder? A economia do setor público, inseparável do
processo histórico de construção das democracias modernas.
Isso significa, antes de mais nada, a necessidade de sedimen-
tação da noção de público em nossa cultura política, segundo três
critérios fundamentais: o da legitimidade democrática, o proce-
dimental e o universalista. A economia do setor público, capaz de
produzir um “choque de regulação” contra o malfadado “choque
de capitalismo” neoliberal, pressupõe a legitimidade do planeja-
mento público e participativo da economia e dela dependem as
inovações sistêmicas de longo prazo, isto é, o crescimento susten-
tado com inclusão social e distribuição da renda. Juarez Guimarães
expõe, juntamente com a crítica ao monetarismo neoliberal, um
conjunto de ações e procedimentos participativos e administrativos
para a instauração desse processo, incluindo as questões da refor-
ma agrária, da invenção científico-tecnológica e da inscrição deci-
siva da prioridade dos direitos sociais nos recursos destinados aos
serviços públicos.
Este livro, lúcido, não nos oferece apenas parâmetros para a
avaliação política do governo Lula, mas também indica que limites
esse governo precisa transpor para concretizar a esperança nele
depositada e de que saltos será capaz para equilibrá-la, pois se o
campo movediço e instável das circunstâncias ensina que o político
navega sem mapas, ensina também que uma política só é grande
quando a virtù dobra a caprichosa fortuna – nome com que a tra-
dição ético-política designou a contingência e a adversidade – e
quando seu caminho tem rumo, guiando-se pela bússola da justiça
e pela estrela da emancipação.

Marilena Chaui

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Apresentação

Como na canção de Aldir Blanc e João Bosco, a esperança –


para aqueles que querem construir um mundo novo – é equilibrista.
Não se nutre, como a fé, no que está além da razão. Nem pode
firmar-se apenas na vontade sem razões, porque, então, será ilu-
são. Por isso mesmo habita o contraditório, o terreno das incerte-
zas, do que ainda não foi mas poderá vir a ser.
Escrito no coração de um sentimento coletivo de esperança,
este livro não faz apologia do governo Lula nem se nutre de diag-
nósticos fechados sobre seu destino. Reúne ensaios escritos de
outubro de 2002 a junho de 2004, publicados no boletim eletrôni-
co Periscópio, da Fundação Perseu Abramo e da Secretaria Nacio-
nal de Formação do PT (www.fpabramo.org.br ou www.pt.org.br).
O campo analítico-normativo que unifica todos os ensaios é
que a eleição de Lula à presidência da República expressa a crise
do paradigma neoliberal de organização do Estado brasileiro e abre
um tempo histórico de transição, necessariamente pleno de ten-
sões, de sua potencial superação em direção a um paradigma repu-
blicano de Estado.
Quando a canção de Aldir Blanc e João Bosco soou eram
tempos de ditadura militar, o “irmão do Henfil”, assim como tantos

A esperança equilibrista.p65 19 27/08/04, 16:58


APRESENTAÇÃO

outros que tiveram “de partir em um rabo de foguete”, estava no


exílio. Depois, ele voltou e liderou uma memorável campanha pú-
blica de reposicionamento da solidariedade e da anima dos brasi-
leiros diante da fome. Hoje, esta anima tornou-se política pública
no governo Lula, sob a direção do cristão Patrus Ananias. A espe-
rança equilibrista fez a sua arte. Por que não nos fará outras?

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Parte 1
Fundação da esperança:
as raízes republicanas

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Periscópio, edição no 22, novembro de 2002

A eleição de Lula
e a história do Brasil

O calendário dos dias ou dos meses não decifra a dimensão histórica


da vitória de Lula à Presidência da República. Para melhor pensá-
la, é necessário visitar as temporalidades longas, que organizam a
continuidade e a mudança na sociedade brasileira.

Nem o mais sábio dos sábios, nem os búzios ou as cartoman-


tes, nem os profetas ou os orixás podem nos adiantar o que será
exatamente o governo Lula. Será um governo apenas ou o início de
um ciclo histórico, uma nova era? Conseguirá vencer as resistên-
cias à mudança ou será refém delas? Nos sonhos e na esperança
de dezenas de milhões de brasileiros, a resposta a estas perguntas
está projetada no futuro. Mas até o acaso, o fortuito e as conseqüên-
cias imprevistas dos atos podem cumprir o seu papel.
E, no entanto, o governo Lula por seu processo de formação,
pelas qualidades políticas que marcaram sua vitória eleitoral, pela
linguagem nova em que anunciou a resposta aos seus desafios mais
graves, está grávido de possibilidades futuras. Pensá-las não é espe-
cular ao acaso, mas concebê-las como resultado de uma força ativa,
democrática e cada vez mais consciente agindo na história brasileira.
A vitória de Lula ilumina o sentido da história do PT. Em um
certo sentido, até a derrota eleitoral de 1989 recebe uma nova sig-

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A ELEIÇÃO DE L ULA E A HISTÓRIA DO B RASIL

nificação. E, da mesma forma que o a ser vivido pode dar luz nova
à experiência, a história da sociedade brasileira pode nos ajudar a
compreender o campo de possibilidades do futuro governo Lula.
Basta ver as cenas expostas na TV nestes dias de celebração para
entender que “o passado não é passado e nem sequer passou”.
Vieram à tona os 56 anos da vida de Lula, seu caminho des-
de sempre dramático e criativo, as greves do ABC, a experiência
do cárcere e da morte da mãe, a campanha das Diretas, a Cons-
tituinte, 1989, as derrotas anunciadoras dos anos 1990. Foram
relembradas as figuras de Mario Pedrosa, Florestan Fernandes,
Henfil, Chico Mendes, Sérgio Buarque de Holanda e tantos ou-
tros que foram fundamentais para construir o que colhemos hoje.
Mas, se fôssemos fazer a biografia social de Lula, da formação de
sua personalidade de esquerda, o recuo histórico deveria ser ain-
da maior, no sentido de visitar as raízes da tradição socialista e
popular no Brasil.
Nelson Biondi, dirigente da equipe de marketing de José Ser-
ra, avaliou ao final: “Lutamos contra um mito”. Sim, mas não certa-
mente no sentido da ilusão ou da falsa imagem. E, além disso, um
“mito” democrático, isto é, que se faz estimulando a energia partici-
pativa dos cidadãos e não se propondo simplesmente a falar em
nome deles. O indivíduo Lula é hoje habitado por uma multidão de
seres, não necessariamente vivos, outros ainda que apenas estão se
formando para um tempo novo. O tempo da sua vida é agora, como
nunca, o tempo da História. E é a esta que é preciso interrogar para
discorrer sobre os futuros possíveis.

A tentação da analogia

Quando nos deparamos com uma situação inédita, a tentação


imediata é buscar o consolo e as certezas da analogia. Os jornais e
as televisões nestes dias estão cheios de lugares-comuns cuja raiz
última é a analogia.
“O PT repete hoje o caminho clássico da socialdemocracia
européia, da desradicalização e da viagem ao centro, da perda da
sua identidade socialista”, dizem muitos.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Em primeiro lugar, não há “um caminho clássico da social-


democracia européia”. Esta tem origens diversas (marxistas, traba-
lhistas ou diretamente da tradição socialdemocrata), bases sociais
heterogêneas, percorreu caminhos diversos (da cisão, da adapta-
ção, da descontinuidade histórica), chegou ao governo em épocas
muito diversas do desenvolvimento do capitalismo (entre as duas
guerras mundiais, após 1945, nos anos 1980) e promoveu refor-
mas de alcance muito diverso (a ação governativa da socialdemo-
cracia sueca, por exemplo, é muito diversa daquela de Tony Blair).
Em segundo lugar, é um erro crasso “europeizar” o Brasil. Lá
não houve a escravidão e suas heranças. A passagem histórica para
a civilização urbana foi muito diversa e a própria constelação das
cidades brasileiras é um outro universo. As tradições políticas são
profundamente diversas. José Dirceu não é um Friedrich Ebert (di-
rigente histórico da socialdemocracia alemã), assim como Celso
Furtado não é Keynes e nem Lula é Mitterrand.
Isto não quer dizer que as pressões visando à integração do
PT na ordem política e no sentido de domesticação de seu poten-
cial transformador serão pequenas. Significa apenas que é neces-
sário pensá-las nas dinâmicas brasileira e da sua inserção no con-
texto internacional.
A periferia ou semiperiferia do mundo não é o seu centro ou
um dos seus centros, já nos alertavam, com vivacidade e brilho, os
melhores intérpretes do Brasil. O Miami Herald, jornal diário da
Flórida, comparou a comemoração da vitória de Lula nas ruas do
país ao Carnaval e destacou o pleito como “a maior eleição eletrô-
nica de todos os tempos”. A urna eletrônica e o Carnaval, a inova-
ção e a tradição: pensando bem, isto é muito brasileiro.

A revolução de Caio Prado Júnior

Aquele que é considerado o maior historiador marxista brasi-


leiro, Caio Prado Júnior, era crítico daqueles que buscavam apre-
ender o Brasil por meio de esquemas conceituais previamente ela-
borados. A força do seu pensamento reside exatamente aí, no
antidogmatismo a partir do qual examina o Brasil.

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A ELEIÇÃO DE L ULA E A HISTÓRIA DO B RASIL

Para Caio Prado Júnior, a revolução brasileira não deveria ser


pensada como um episódio concentrado no tempo, mas encarnada
em todo um período de transformações históricas. O caráter desta
revolução foi projetado a partir da formação incompleta da nação
brasileira, que revelava as centenárias opressões do trabalho.
Com esses marcos, Caio Prado Júnior valoriza na história bra-
sileira o momento da formação do Estado nacional e da abolição
da escravatura. Esta última, na raiz da queda da Monarquia e da
instauração da República, criaria um novo dinamismo histórico.
Cioso da independência política de classe dos trabalhadores,
Caio Prado Júnior foi um crítico da tradição getulista e das alianças
que o maior partido de esquerda da época, o PCB, fez com esta
tradição. Esta posição crítica e a inserção de Caio Prado na cultura
paulista reduziram sua capacidade de dimensionar com justeza as
grandes transformações históricas operadas pelo ciclo Vargas. E,
em particular, obscureceram o fato histórico incontornável de que a
dinâmica do ciclo varguista era tendencialmente inclusiva das clas-
ses trabalhadoras, embora operasse com graves restrições a seus
direitos políticos e a sua autonomia organizativa.
Do ponto de vista da interpretação histórica de Caio Prado, a
vitória de Lula nas eleições presidenciais poderia ser entendida como
um momento decisivo do encontro de uma força política orgânica liga-
da às classes trabalhadoras com a ordem política, em torno a um pro-
jeto de construção da nação. Um novo período de grandes transfor-
mações históricas estaria aberto, tendo como um dos aspectos cen-
trais a reposição dos direitos de quem trabalha, de suas carências, mas
também de suas perspectivas na história brasileira. Um ex-torneiro
mecânico presidente: a síntese é típica da perspectiva de Caio Prado e
constitui uma grande novidade para um país cuja tradição sempre
deserdou, amesquinhou, oprimiu e excluiu a dignidade do trabalho.

Celso Furtado e a República

Para o grande reformador Celso Furtado, a perspectiva histó-


rica enfatizada, embora não oposta, é outra. Trata-se de revelar na
formação do Brasil, a partir de sua condição periférica, a natureza

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

de sua condição subdesenvolvida. O que marca o subdesenvolvi-


mento é a cisão social estrutural entre o “atrasado” e o “moderno”,
entre estruturas socioeconômicas que alcançaram níveis de produ-
tividade e modos de vida assimiláveis aos dos países centrais e
outras que se estagnaram na infraprodução, na marginalidade so-
cial, nas condições subumanas de existência. O epicentro desta con-
dição estrutural de atraso era o Nordeste brasileiro.
A superação do subdesenvolvimento para Celso Furtado po-
deria apenas ser produzida pela autonomia (não isolamento) do
Brasil diante dos grandes centros capitalistas, em uma dinâmica que
combinasse mercado interno e distribuição de renda. Esta autono-
mia, pensada a partir de um ponto de vista humanista e universalista,
seria construída por reformas de base e pelo alargamento da dinâ-
mica pública. Para Celso Furtado, 1964 significou, assim, a inter-
rupção de um processo de construção republicana do país.
Deste ângulo histórico, a vitória de Lula seria a possibilidade
de iniciar a superação da cisão social estrutural do Brasil. “O en-
contro dos dois Brasis”, como disse o sociólogo francês Alain
Touraine em recente artigo sobre a vitória de Lula. Este, vindo de
baixo para o centro do sistema político, retomaria a construção
republicana por intermédio de um novo contrato social.

Raymundo Faoro e “os donos do poder”

Na perspectiva de um liberalismo ético, Raymundo Faoro no


clássico Os donos do poder localiza o impasse brasileiro na formação
do Estado nacional, assentado em uma legitimidade patrimonialista, e
na permanência de um estamento que controla o poder, orientando
politicamente a economia para seus lucros artificialmente magnificados.
A herança patrimonialista dominaria a tradição política brasilei-
ra. Isto é, o Estado brasileiro, na maior parte de sua história, teria se
organizado e agido a partir do mando de um estamento privilegiado,
fatal para uma democracia verdadeira e para a expansão da cidada-
nia. Na afirmação muito enfática das linhas de continuidade deste
fenômeno, é ilustrativo que Raymundo Faoro, em sua crônica políti-
ca recente, tenha caracterizado o governo Fernando Henrique como

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A ELEIÇÃO DE L ULA E A HISTÓRIA DO B RASIL

neopatrimonialista. Ou seja, também ele teria sucumbido diante do


desafio de delimitar claramente a esfera do público em relação aos
interesses privatistas que se reproduzem em torno do poder estatal.
Foi, sem dúvida, um grande momento na vida de Raymundo
Faoro quando em setembro último, ao tomar posse na Academia
Brasileira de Letras, lembrou que o fundador da instituição, Ma-
chado de Assis, também não tinha diploma escolar. Machado, o
escritor brasileiro dileto de Faoro, seria, então, um “despreparado”.
Esta aproximação entre Lula e Machado de Assis chegou à matéria
central da revista Veja, de 30 de outubro (“Lula muda a história”):

“Como Machado de Assis, mulato, epiléptico, nascido pobre num morro


carioca e que se tornou o maior escritor brasileiro em todos os tempos,
Lula desafiou a história para chegar ao ponto máximo da atividade política.
Sua vitória representa o triunfo de uma idéia, de uma férrea vontade pes-
soal, mas é também o certificado de qualidade da democracia brasileira”.

Aqui, o que se exalta com a eleição de Lula é o antielitismo, a


impregnação popular, a quebra do círculo das elites que sempre
dominaram a tradição política brasileira.

A ética da compaixão

Esta reflexão sobre o significado histórico da vitória de Lula, a


partir das tradições republicanas de interpretação do Brasil, incorre-
ria em grave falta se não incorporasse a leitura do chamado comuni-
tarismo cristão. Esta tradição encontrou sua primeira grande síntese
nos anos 1950 com a exemplaridade da ação e do pensamento de
dom Hélder Câmara e corporificou-se na fundação da CNBB.
Menos do que uma leitura analítica original da história do Bra-
sil, esta tradição nos traz uma crítica ética e a condenação moral
dos padrões históricos do capitalismo brasileiro. Ciosa da afirma-
ção da transcendência humana em sua condição terrena, porosa e
capilar em relação aos sentimentos e à cultura popular, estimuladora
de uma fortíssima rede de solidariedade social, a tradição comuni-
tarista cristã recebe a eleição de Lula como a boa nova.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

A própria vida de Lula, sua origem humilde, seu caminho


sacrifical, sua espontânea compaixão para com os humildes encon-
tra eco nos símbolos e na melhor teologia desta tradição. Pelo que
se sabe, o sentimento cristão compõe a própria personalidade de
Lula, a partir da vida exemplar de sua mãe.
Para um país no qual a brutalidade e o cinismo se banalizaram,
é inestimável o sopro de fraternidade que vem desta tradição para
se pensar as transformações possíveis do país. As suas vozes
milenares, mais antigas que o próprio sentimento do Brasil, estão
na raiz de nossa civilização.
Para onde nos levará a estrela, perguntava algumas semanas
atrás o outdoor da revista Veja. E por que não lembrar, então,
dos versos finais de Morte e vida severina, de João Cabral de
Melo Neto:

“E não há melhor resposta


que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina”.

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Parte 2
As razões da esperança: para
uma teoria política da transição

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Periscópio, edição no 35, abril/maio de 2004

Para onde transita


o governo Lula?
Primeira parte

Para superar o paradigma neoliberal é preciso vislumbrar uma nar-


rativa que estabeleça plena inteligibilidade e sentido aos atos de
governo, integrando uma leitura do passado a uma imaginação de
futuro possível

Quando Lula tomou posse, um de seus primeiros atos foi o de


anunciar o Programa Fome Zero, que visa garantir a segurança ali-
mentar para cerca de 40 milhões de brasileiros desnutridos, subnu-
tridos ou famintos, que habitam os sertões nordestinos, os sertões
mineiros ou mesmo os sertões das grandes metrópoles.
Ao anunciar tal programa, o presidente Lula propôs de fato
uma revisão dos fundamentos ético-políticos do Estado brasileiro.
Isto é: não pode haver Estado democrático onde cidadãos morrem
por falta de alimentação suficiente. Ele está desnaturalizando nossa
compreensão e reposicionando nossa vontade, nossa anima, dian-
te da fome. Ele está afirmando exatamente o inverso de uma visão
liberal que prescreve para a fome as contingências do mercado ou
o remédio da caridade privada.
Por que o governo Lula não afirmou ainda com a necessária
nitidez o direito do cidadão a ter acesso ao emprego como um

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PARA ONDE TRANSITA O GOVERNO L ULA ? – P RIMEIRA PARTE

dever republicano do Estado brasileiro? Este direito tão caro aos


socialistas, já assumido pela tradição socialdemocrata após a Se-
gunda Guerra Mundial, instaurador da própria dignidade humana
para os cristãos? Este direito, poderíamos dizer, matriz de todos os
outros, já que sua ausência impugna o cidadão como membro ativo
da produção da vida social?
Por que entre nós, o presidente do Banco Central, apesar de
manejar variáveis tão decisivas para o emprego – os juros, o cré-
dito, a taxa de câmbio, a variação da dívida pública e, portanto, a
possibilidade dos gastos públicos –, tem a irresponsabilidade de
afirmar que a sua única meta é o controle da inflação, colocando-
se, deste ponto de vista, aquém do próprio Banco Central norte-
americano, o Federal Reserve, que em acordo com seus estatu-
tos, age ativamente em prol do crescimento da economia e do
emprego, em um país que nem sequer teve a honra de contar com
uma tradição trabalhista? Por que, para a macroeconomia do go-
verno Lula, o acesso ao emprego permaneceu até agora como
uma variável basicamente dependente das forças de mercado e,
pior ainda, do grau de confiança dos mercados financeiros cujos
interesses trabalham abertamente contra uma dinâmica de cresci-
mento do emprego?
Por que a criação de empregos ainda não se tornou uma agenda
prioritária do governo Lula se era este o tema central das eleições
de 2002 e se este continuou sendo o reclame principal em todas as
pesquisas de opinião feitas desde o início deste governo até agora?
A resposta que pode se dar a este paradoxo é que vivemos
uma época de transição de paradigmas de organização do Estado
brasileiro – de um paradigma neoliberal para a possibilidade de um
paradigma republicano – e o governo Lula é, ao mesmo tempo, o
principal sujeito e objeto, no sentido de sofrer as pressões desta
transição. Um período de transição é, por definição, um período
de choque de valores, racionalidades e projetos de país. Valores
da ordem estatal, cristalizados até em instituições, leis e procedi-
mentos, estão em questão; novas idéias, novos compromissos de
Estado que revisitam opressões seculares – como a reforma agrá-
ria e políticas públicas de ação afirmativa dos direitos dos negros –

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

conquistam a legitimidade democrática de seu exercício. E os direi-


tos do trabalho, com o direito ao emprego em seu núcleo, estão no
centro desta transição de paradigmas após uma década em que o
Estado brasileiro agiu, em todas as frentes, para degradá-lo.
Falamos centralmente de mudança de valores, racionalidades
e projetos do Estado para analisar e refletir sobre o impasse histó-
rico de três ou quatro décadas do desenvolvimento do Brasil. Isto
é correto metodologicamente? Não seria mais realista colocar no
centro da nossa análise a força das coisas – os constrangimentos
financeiros e sistêmicos, estruturais e conjunturais – para a retoma-
da do desenvolvimento? Este ensaio defende o ponto de vista de
que não. De onde vem a força das coisas senão das relações so-
ciais que somos capazes ou não de construir? A Petrobras, nossa
maior empresa, força econômica poderosa, existiria sem o senti-
mento de orgulho nacional que forçou sua criação? Da mesma for-
ma, pode-se dizer: os volumosos déficits da balança de pagamen-
tos do Brasil nos anos 1990 têm a sua origem nas derrotas do
ponto de vista nacional diante das perspectivas liberais que empal-
maram a condução do Estado após a Constituinte de 1988.
Do ponto de vista da filosofia política, trata-se de retomar os
ensinamentos dos humanistas cívicos do Renascimento. Não acu-
semos os deuses ou as estrelas pelos desastres, mas antes o que
fomos ou não capazes de fazer para evitá-los. E é por este caminho
que devemos refletir sobre o impasse histórico do nosso desenvol-
vimento. Ele é o resultado de duas derrotas político-culturais deci-
sivas: a derrota trágica das correntes políticas republicanas brasi-
leiras em 1964 e a vitória do liberalismo liberista, isto é, de linha-
gem e valores de mercado, no final dos anos 1980, início dos anos
1990. A tese que vai ser exposta aqui é a de que a superação do
impasse do desenvolvimento brasileiro depende fundamentalmente
da republicanização do Estado brasileiro, de sua capacidade de
regulação e planejamento econômico, e de sua base material de
expressão, a economia do setor público.
A exposição da tese se fará por meio da releitura de uma gran-
de polêmica que atravessa as quatro últimas décadas do país, aquela
entre Fernando Henrique Cardoso e um complexo de pensadores

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PARA ONDE TRANSITA O GOVERNO L ULA ? – P RIMEIRA PARTE

liberais, de um lado, e, de outro, Celso Furtado com a sua atualiza-


ção crítica e criativa pós-1964 feita principalmente pela professora
Maria da Conceição Tavares.
Por que Fernando Henrique Cardoso? Não apenas porque ele
foi presidente do país e por ter sido o verdadeiro criador e chefe
político do chamado malanismo (os princípios da gestão da econo-
mia estabelecidos por Pedro Malan) e dos que defendem a sua
continuidade. Mas porque ele foi o líder político-intelectual da trans-
formação da agenda democrática da Assembléia Constituinte de
1988 na pauta liberal dos anos 1990.
Por que Celso Furtado? Não apenas porque ele foi e continua
sendo o mais criativo dos economistas brasileiros e construtor, jun-
to com Raul Prebisch, o grande economista argentino, da tradição
da Cepal (desenvolvimentismo reformista latino-americano), mas
porque é o principal formulador de uma visão histórica, com pre-
tensões de totalidade, dos impasses do desenvolvimento no Brasil.
Por que Maria da Conceição Tavares? Porque ela, trabalhan-
do no campo analítico-normativo de Furtado, soube atualizar cria-
tivamente esta tradição no pós-1964, sendo a principal responsá-
vel pela institucionalização universitária da tradição nacional-
desenvolvimentista no Brasil. E, mais importante ainda, tornou-se,
nos anos 1990, a principal formuladora do encontro desta corrente
de pensamento com a tradição petista.

Força e limites da visão histórica de FHC

Fernando Henrique Cardoso é o grande maestro político-in-


telectual de uma grande narrativa, de fundamentos liberais liberistas,
sobre o impasse do Brasil. O que está se chamando de uma grande
narrativa? É fundamentalmente a produção de uma visão, com pre-
tensões de totalidade, do passado, do presente e do futuro e que
fornece o próprio sentido dos fatos e idéias, conferindo-lhes hie-
rarquia e significado.
Não é exata a noção de que ele, como político, apagou as
pegadas de seu passado intelectual. Aliás, desde o início dos anos
1980, ele já é, ao mesmo tempo, político e intelectual. Nem seria

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

exato afirmar que o Fernando Henrique Cardoso dos anos 1990 já


estava todo escrito em Dependência e desenvolvimento na Amé-
rica Latina, obra escrita em parceria com o sociólogo chileno Enzo
Faletto, na década de 1960. Houve mudança, mas é mais justo
chamá-la de um movimento no interior de um mesmo campo analí-
tico-normativo que veio sendo construído desde o famoso grupo
sobre O Capital (intelectuais da USP que se reuniram para organi-
zar uma nova leitura do marxismo no Brasil, diferente daquela do
PCB, considerada empobrecida e dogmatizada) e, mais precisamente,
desde que FHC definiu sua primeira identidade contra o seu grande
mestre, que foi o nosso companheiro Florestan Fernandes.
Correndo todos os riscos, após a leitura quase completa dos
mais de 40 anos de sua produção, procura-se sintetizar a seguir sua
grande narrativa histórica em quatro tópicos complementares:
1) A revolução de 1930 não foi uma revolução burguesa, mas
realizada contra as verdadeiras classes modernizantes do país, que
se reuniam em torno do complexo da cafeicultura paulista. O perío-
do Vargas, de industrialização, é um caso desviante do modelo li-
beral de desenvolvimento (na América Latina, representado pelo
caso argentino) e um intervalo entre dois momentos de desenvolvi-
mento dependente.
2) A chamada “revolução de 1964” teria sido a nossa “revo-
lução burguesa possível”, criando as condições políticas (de inter-
nacionalização, de concentração de renda, de alianças políticas)
para um relançamento do capitalismo dependente no Brasil. No
pacto de dominação estabelecido – entre empresários liberais, clas-
ses médias modernas e militares nacionalistas – haveria, no entanto,
projetos contraditórios de desenvolvimento para o país que termi-
nariam por condicionar a crise final do regime militar.
3) Para criar as condições de um novo ciclo de desenvolvi-
mento dependente-associado seria necessário fazer a crítica do
nacional-desenvolvimentismo, dominante na imaginação brasileira
de 1930 aos anos 1980, e promover uma ampla reforma do Esta-
do, superando a sua herança varguista, estatista e nacionalizante.
4) O governo Lula erra ao retomar o viés nacionalista e
centralista/estatista mas acerta na condução da macroeconomia,

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PARA ONDE TRANSITA O GOVERNO L ULA ? – P RIMEIRA PARTE

que mantém os princípios liberais de gestão de Malan. Seria neces-


sário, no entanto, que o governo Lula conformasse os seus proje-
tos de crescimento, emprego e distributivismo social ao realismo de
sua política econômica. Uma nova agenda liberal deve ser criada e
legitimada, a partir de um balanço crítico de seus dois mandatos,
do cerco e da oposição ao governo Lula, recuperando e concluin-
do o ciclo de reformas do Estado por ele iniciado.
De onde vem a força desta grande narrativa? Em primeiro
lugar, ela não é economicista, mas é um discurso sobre os funda-
mentos ético-políticos da economia. O centro de gravidade da dis-
puta está nos princípios de organização do Estado, que condicionam
todo o resto. Esta é uma vantagem analítica decisiva, inclusive so-
bre o método histórico estrutural típico dos nacional-desenvolvimen-
tistas, centrado nas dinâmicas longas do econômico e social e que
apenas conclui em direção ao problema do Estado.
Em segundo lugar, ela é um campo de renovação da síntese entre
liberais e conservadores, com a hegemonia dos primeiros. Isto é, não
é um discurso contra a democracia, mas uma redução da democracia
a seus princípios liberais. Assim, FHC, em sua trajetória, exerceu um
papel decisivo na passagem de muitos socialistas a liberais (o exemplo
talvez mais forte seja o de Francisco Weffort, fundador e ex-secretá-
rio-geral do PT) ou mesmo de nacional-desenvolvimentistas a liberais-
desenvolvimentistas (o exemplo maior sendo o de José Serra).
Em terceiro lugar, a força da narrativa de FHC reside no fato de
ser um projeto com forte carga realista (a “utopia do possível”),
adaptativa aos poderes do mundo (potência hegemônica e suas
instituições), aos que concentram capital e poder de mídia.
Há, no entanto, três grandes limites que foram responsáveis
pelo seu fracasso.
O primeiro deles é que o liberalismo periférico, isto é, profes-
sado na periferia ou semiperiferia do capitalismo, produz auto-ilu-
são. É funcional para os Estados Unidos, que estão no centro do
poder geopolítico, financeiro e que controlam a emissão da moeda
mais universal. Mas é regressivo para quem o segue. Contudo, se-
ria importante compreender que há sinceridade na auto-ilusão, isto
é, não seria necessário atribuir aos pensadores neoliberais a condi-

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

ção de mistificadores conscientes, embora haja muito de manipula-


ção em sua propaganda.
Em segundo lugar, o argumento é tautológico ou circular, pois
as suas conclusões estão pressupostas nas suas premissas. Assim,
depois de impugnar o sentido nacional e o papel ativo-chave do Es-
tado, conclui que o desenvolvimento depende dos mercados. O
mesmo ocorre com freqüência na discussão macroeconômica atual:
após se vender às teses da desregulação plena do fluxo de capitais
especulativos, da autonomia (institucionalizada ou prática) do Banco
Central e de se travar por todos os meios a força ativa do Estado na
economia e na regulação, conclui-se pelo “irrealismo” de toda medi-
da que afrontar a lógica dos mercados. A apologia das premissas
gera a resignação diante de suas lógicas resultantes.
Por fim, a terceira razão de sua fraqueza é o seu elitismo congê-
nito, que o torna inadaptável às democracias de massas, às culturas
participativas, comunitaristas, socialistas, solidaristas ou trabalhistas.
Os liberais liberistas da periferia sonham sempre com uma reforma institu-
cional que esterilize o potencial expressivo e representativo do voto.

A força e os limites do nacional-desenvolvimentismo

Entre os pensadores clássicos do Brasil, aqueles que pensaram


de forma original o nosso processo de formação histórica, foi Celso
Furtado quem construiu a visão mais integrada da republicanização
do Brasil. Isto é, a de como encontrar o caminho, a partir da leitura
dos impasses do país, de um destino que integrasse soberania nacio-
nal, inclusão social e democracia política. Deve a Caio Prado Júnior
uma parte importante de sua narrativa. Foi o pensador orgânico de
uma época (keynesianismo do pós-guerra, desenvolvimentismo lati-
no-americano) e de uma geração (o nacional-desenvolvimentismo
democrático do período 1945-1964, talvez o período mais criativo
de nossa história). É uma tradição do exílio, da descontinuidade, que
amadureceu sua capacidade crítica e analítica na derrota.
Apresentarei aqui uma grande narrativa do nacional-desen-
volvimentismo, a partir de uma fusão, não de todo arbitrária, entre
as contribuições de Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares:

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PARA ONDE TRANSITA O GOVERNO L ULA ? – P RIMEIRA PARTE

1) A revolução de 1930 significou pela primeira vez a interna-


lização do centro de decisões (produção para o mercado interno)
em um país de história colonial. O pragmatismo varguista criou as
bases de uma industrialização retardatária e periférica, sendo incapaz
de superar o subdesenvolvimento. Para superá-lo, seriam necessá-
rias reformas de base que criariam as condições de um desenvolvi-
mento capitalista autônomo, com democracia e inclusão social, de
ultrapassagem das desigualdades regionais (questão nordestina).
2) A incapacidade do sistema político conservador de pro-
cessar as reformas democráticas necessárias ao desenvolvimento
gerou o impasse, a radicalização dos conflitos e o golpe militar de
1964. Este não significou uma revolução burguesa mas uma con-
tra-revolução republicana (a construção interrompida da nação).
3) O modelo econômico imposto em 1964 tinha um fôlego
histórico limitado por sua dependência externa, desequilíbrios
cíclicos estruturais e problemas básicos de financiamento não re-
solvidos. Já em meados dos anos 1970, este impasse do financia-
mento torna-se crucial por meio do endividamento do Estado e, na
década seguinte, é exponenciado pela (re)centralização financeira
dos Estados Unidos e por uma nova conjuntura internacional hostil
ao desenvolvimento dos países periféricos.
4) A retomada da construção interrompida frustra-se na base
política movediça do governo Sarney. Inicia-se um novo ciclo libe-
ral que aprofundará os obstáculos estruturais ao desenvolvimento.
A retomada do desenvolvimento exigiria a conquista dos centros
de decisão do Estado e todo um processo histórico que combinaria
a recuperação de seu poder de coordenação, a reestruturação das
bases do financiamento doméstico, a indução de um ciclo baseado
na produção de bens públicos de uso universal e de bens básicos
de consumo popular, bem como a constituição de um “núcleo
endógeno de inovação tecnológica”. A forma de expressão política
deste novo “modelo de desenvolvimento” seria um novo contrato
ou pacto nacional entre classes trabalhadoras e empresariais, des-
dobrando-se inclusive em cadeias produtivas.
Qual é a importância desta grande narrativa para o Brasil? Em
primeiro lugar, ela formou entre nós a noção de “periferia”, estabe-

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

lecendo conceitualmente a incontornável consciência de nossas


particularidades advindas de nossa original inserção no “campo de
forças internacional”. Permitiu superar na cultura brasileira a imagi-
nação replicante dos intelectuais cosmopolitas que não conseguem
imaginar o Brasil senão segundo a matriz capitalista central. Esta-
beleceu assim uma imaginação própria de país, de soberania, de
amor-próprio sem o qual nada se constrói.
Em segundo lugar, a noção de subdesenvolvimento, ao diag-
nosticar uma desigualdade estrutural do país que não será vencida
pelas dinâmicas do mercado, desnaturaliza a miséria social brasilei-
ra e introduz um saudável espírito indignado, um voluntarismo cria-
tivo, a idéia de planejamento, uma esperança, enfim, de superar os
impasses fundamentais de nossa história.
Há, no entanto, duas grandes deficiências congênitas do nacio-
nal-desenvolvimentismo.
Seria injusto falar aqui de economicismo, pois trata-se de
uma linguagem da economia política, que incorpora a história, o
social, os interesses na narrativa. Mas pode-se falar em uma ca-
rência do desenvolvimento de uma teoria democrática do Estado,
capaz de fundamentar o público. Muitas vezes pensou-se o Esta-
do como um instrumento neutro, cedendo-se uma confiança ex-
cessiva às racionalidades do planejamento e seu poder de co-
mando. A redução do público ao Estado tornou o nacional-de-
senvolvimentismo muito vulnerável às críticas dos liberais, em um
país tão marcado pelas heranças patrimonialistas, pela corrupção
sistêmica e pelo clientelismo. Esta carência de desenvolvimento
das formas do público, em uma tradição submetida ao exílio e à
descontinuidade, exacerbou suas dimensões críticas e analíticas
em detrimento de suas capacidades propositivas. Estas deficiên-
cias certamente relacionam-se à instabilidade das bases político-
partidárias do nacional-desenvolvimentismo.
Em segundo lugar, houve decerto uma subestimação dos limi-
tes antepostos pelos interesses do capital, em particular em sua
fase de desenvolvimento atual, ao universalismo de suas propostas.
Há, no entanto, nas obras derradeiras de Raul Prebisch e Furtado
uma consciência mais nítida deste limite: as relações orgânicas en-

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PARA ONDE TRANSITA O GOVERNO L ULA ? – P RIMEIRA PARTE

tre capitalismo e subdesenvolvimento, a necessária base social


classista de sua superação. No período recente, esta limitação
manifesta-se na insuficiência da linguagem contratualista (de pac-
tos, contratos) para repor o público, os valores republicanos, dian-
te da brutal assimetria de poderes instalados e da agressividade
dos interesses particularistas, permanentemente renovados pela
vocalização que a mídia lhes dá.
Se é assim, a crítica frontal do liberalismo liberista e a autocrítica
dos limites do nacional-desenvolvimentismo convergem para um
mesmo campo: a instituição ainda frágil do público, dos valores e
procedimentos republicanos, para fundar uma nova lógica de de-
senvolvimento. A transição de paradigmas reside centralmente na
construção da legitimidade desta economia do setor público que
seria necessário retomar, criar e expandir.
Maria da Conceição Tavares, em sua tese para professora
titular de Economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro –
Ciclo e crise. O movimento recente da industrialização brasi-
leira (Campinas, Ed. Unicamp, 1999, Coleção IE 30 anos) – assim
concluía: “Só a esperança e a fé na capacidade de sobrevivência e
afirmação democrática e nacional do nosso povo permite ainda
esperar que se encontre novos caminhos que substituam aqueles
que se vão fechando com a crise da ‘velha ordem’”. A tese data de
dezembro de 1978. Muito já se percorreu desde então para a cons-
trução destes “novos caminhos”.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Periscópio, edição no 36, junho de 2004

Para onde transita


o governo Lula?
Segunda parte

É preciso problematizar a idéia corrente de que seria possível transitar


para um novo período de crescimento econômico sustentado criando
gradativamente novas dinâmicas no interior da gestão macroeconômica
herdada do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.

Na filosofia política moderna, o contratualismo aparece como


uma estratégia argumentativa apropriada pelo liberalismo em seu
nascimento. A noção de que a legitimidade da ordem política era
fruto de um pacto entre indivíduos atomizados é usada por diver-
sos autores clássicos que buscam fundamentar as bases do Estado
moderno. Foi também por meio desta linha argumentativa que
Rousseau fundamentou o seu projeto de um novo contrato social,
alimentado por uma ética cidadã e pela idéia da soberania popular,
que restauraria uma ordem capaz de conjugar liberdade e igualda-
de. Já no nascimento da filosofia hegeliana encontramos uma crítica
metodológica severa à idéia de que a noção de contrato seja capaz
de fundamentar a origem e a legitimidade da ordem política. Para
Hegel, é a noção de eticidade, o compartilhamento de alguns valo-
res básicos comuns que perpassa a família, toda a sociedade civil e
atinge a sua mais alta expressão no Estado que fundamenta a legiti-

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PARA ONDE TRANSITA O GOVERNO L ULA ? – S EGUNDA PARTE

midade da ordem política. A tradição marxista herdou, em seu cam-


po teórico próprio, este viés crítico ao contratualismo movimentan-
do de modo alternativo uma lógica de classes sociais.
Podemos dizer que o contratualismo chegou à tradição petista
por vários caminhos. Pela sensibilidade sindical, influenciada pela
tradição dos contratos coletivos da tradição socialdemocrata euro-
péia; pela influência de autores modernos que buscam na idéia de
um novo contrato social uma alternativa de inclusão à lógica de
apartheid social do neoliberalismo; pela necessidade de expressar
a idéia de conformar um pacto nacional com setores das classes
dominantes que firmasse as bases de um novo desenvolvimento.
Na campanha de 2002, esta noção de pacto expressou-se for-
temente nos programas, nos discursos de Lula, na propaganda elei-
toral e, no segundo turno, na idéia da formação de um Conselho de
Desenvolvimento Social que seria a expressão institucional deste novo
pacto. Configurava-se este pacto como nacional, produtivo, selando
estrategicamente alianças dos setores produtivos com interesses das
classes trabalhadoras, em uma dinâmica de inclusão social.
No entanto, um ano e meio após a posse do governo Lula,
esta dinâmica de uma nova contratação social em torno de um pla-
no de desenvolvimento com inclusão social apenas muito parcial-
mente implantou-se. Isto fica claro na própria trajetória do Conse-
lho de Desenvolvimento Econômico e Social, que ainda não
institucionalizou claramente o seu papel na formação e na definição
da agenda do governo. Por quê? A primeira resposta que se deu
no artigo anterior é que a assimetria da presença dos interesses
privatistas na ordem estatal brasileira, a agressividade e o poder de
vocalização por meio dos quais são defendidos impediam que as
demandas da maioria fossem devidamente contempladas. Seria
necessário firmar mais a noção de público, de capacidade de
regulação do Estado, para que um novo pacto social, de desenvol-
vimento e inclusão, conseguisse se implantar.
Esta resposta era correta, mas ainda parcial. Seria preciso iden-
tificar como o setor financeiro, camada líder nas classes dominan-
tes no Brasil, participa deste novo “contrato social”. Pois é nas
relações com este setor decisivo que a lógica contratualista de-

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

monstra mais precisamente a sua insuficiência. Como contratar com


um setor que tem permanentemente a possibilidade de romper sim-
plesmente o contrato e buscar outras praças especulativas? Como
contratar com aqueles cujo poder, interesse e lucratividade se ali-
mentam exatamente da instabilidade do contrato? Como afirmar
perante eles algum contrato se o Estado nos anos 1990 simples-
mente abriu mão em grande medida de seu poder de regulação e
controle sobre este setor tão decisivo?
Em suma, pode-se contratar com o capital produtivo, pois
este tem sua fixação, seus programas de investimento, sua depen-
dência sistêmica, isto é, depende inclusive de um mercado interno
em expansão para vender seus produtos. Não com capitais finan-
ceiros desregulados, a não ser na racionalidade de sua lógica
especulativa, isto é, liberalizando, cedendo terreno aos seus po-
deres de pressão. Mas, se se toma esta opção, é a própria idéia
de um contrato social, nacional, produtivista e de inclusão que
não tem espaço para se implantar no país. Deste ponto de vista, a
regulação seria uma condição necessária para estabelecer com
estes capitais algum pacto de convivência, para não dizer virtuoso
para o crescimento.

A transição em disputa

Ao tomar posse, em meio a um movimento internacional e


nacional de forte pressão dos mercados financeiros, o governo Lula
optou pela indicação de um representante dos meios financeiros
para o principal órgão (Banco Central) do ministério mais estraté-
gico de seu governo (Ministério da Fazenda) e pela adoção dos
marcos de gestão macroeconômica adotados na segunda gestão
de Pedro Malan. Ao fazer isso, trouxe para dentro de seu sistema
de forças, para permanente arbitragem, as duas grandes narrativas
de país – a neoliberal e a republicana –, prevendo uma transição
politicamente gradual e processual.
Certamente esta idéia de transição nunca se estabilizou concei-
tualmente no governo Lula. Para alguns, tratava-se simplesmente de
gerenciar os indicadores macroeconômicos em uma direção pro-

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PARA ONDE TRANSITA O GOVERNO L ULA ? – S EGUNDA PARTE

gressivamente virtuosa, sem alterar propriamente os grandes princí-


pios de regulação do Estado herdados do governo anterior; para
outros, tratava-se de ir alterando gradativamente os marcos neoliberais
de gestão do Estado, criando novas dinâmicas que fossem superan-
do a moldura mantida, por cálculo realista, da gestão macroeconômica.
Em quase um ano e meio de gestão, a realidade não parece
confirmar nenhuma das duas perspectivas. A direção progressi-
vamente virtuosa da economia não ocorreu em 2003: para uma
previsão até maio de crescimento de 2,4% do PIB, colheu-se uma
ligeira recessão. O desemprego cresceu, a renda dos trabalhado-
res caiu, os lucros dos bancos foram recordes. As previsões de
uma retomada consistente da economia desde o último trimestre
de 2003 ainda não se confirmaram plenamente: os sinais são mui-
to contraditórios. A grande e importante exceção está na perfor-
mance dos setores exportadores, que se beneficiam de uma con-
juntura internacional particularmente rica de oportunidades, de uma
política externa e de uma estratégia comercial agressiva e vêm
batendo recordes históricos.
Como afirmamos no Periscópio de outubro de 2003 (ver
página 47), a noção de uma retomada do crescimento para a estra-
tégia neoliberal esbarra em três fatores não devidamente contem-
plados nesta ótica: a compressão drástica dos gastos públicos, a
queda da renda dos trabalhadores, os níveis ainda escandalosa-
mente altos dos juros.
Quanto à segunda perspectiva, de uma transição progressiva
nos marcos da gestão macroeconômica mantida, subestimou-se
certamente o volume e os efeitos danosos do ajuste fiscal em curso.
Não se trata apenas da herança deixada por Fernando Henrique Car-
doso, mas da dinâmica perversa que ela desencadeia: exige-se cada
vez mais restrições aos gastos do Estado para pagar uma dívida finan-
ceira que não pára de crescer. Com isso, as restrições passam a con-
dicionar negativamente o trabalho de muitos ministérios da área so-
cial que se posicionaram para deslanchar programas de largo impacto.
É o caso de várias iniciativas decisivas tomadas pelo governo
que têm seu efeito amortecido ou até mesmo anulado pelos impasses
reiterados na retomada do crescimento. Três exemplos, entre mui-

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

tos: os programas Fome Zero e Bolsa Família, na proporção e no


enfoque que vêm sendo adotados, representam uma grande inova-
ção republicana no sentido de uma política pública contra a pobre-
za. Mas seus efeitos ficam amortecidos pela queda no consumo de
alimentos das famílias, como se verificou em 2003. Iniciativas de
microcrédito para consumidores e pequenos investidores são im-
portantes, mas uns utilizam créditos novos para pagar dívidas fi-
nanceiras (sem incidência forte sobre o consumo), enquanto outros
não vêem um bom ambiente econômico para investir. A iniciativa
de criação do Ministério das Cidades, com todo o seu potencial de
atendimento a demandas históricas na área da habitação e sanea-
mento, passou 2003 sem recursos suficientes. E assim por diante.
Esta situação, que poderíamos chamar de “transição bloquea-
da”, pode configurar uma conjuntura problemática para as próprias
bases políticas e sociais que sustentam a governabilidade da gestão
Lula. De um lado, as forças políticas que orbitam em torno dos inte-
resses do capital financeiro não tendem a apoiar o governo Lula, mas
seus adversários políticos; de outro, as bases políticas e sociais ori-
ginais do governo Lula tendem a diminuir seu ativismo de apoio dian-
te de um quadro que não confirma suas expectativas de mudança.

A transição e outubro de 2004

Vistas deste ângulo, as eleições de outubro de 2004 têm uma


incidência decisiva sobre o processo de transição de paradigmas
do qual o governo Lula é o principal ator e objeto.
O processo de formação da vontade política de um governo
não consulta apenas o seu núcleo decisório. Toda política de go-
verno depende da legitimidade e do sistema de forças que sobre
ele incide, para além dos seus núcleos estratégicos de poder.
A transição de paradigmas tem na força e nos direitos institu-
cionalizados do sistema financeiro o seu ponto de resistência e, na
força do mundo do trabalho, seus direitos e esperanças, sua ala-
vanca. Por meio das suas mediações políticas, nem sempre clara-
mente delineadas, as eleições de outubro de 2004 testarão o movi-
mento destas forças sociais.

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PARA ONDE TRANSITA O GOVERNO L ULA ? – S EGUNDA PARTE

A vitória do PT e dos partidos aliados ao governo Lula te-


rão, assim, um efeito dinâmico sobre a transição. Podem abrir
novos horizontes para uma vontade política de governo que ain-
da não reuniu clareza e impulso para afirmar plenamente sua
vocação transformadora.

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Periscópio, edição no 34, março de 2004

A oposição programática
de FHC ao governo Lula

A entrevista do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao jornal


O Globo tem o grande mérito de colocar no centro de suas divergên-
cias com o governo Lula a função histórica do Estado na construção
do país.

A entrevista de Fernando Henrique Cardoso ao jornal O Glo-


bo de 15 de fevereiro (“FH pede nova agenda para governo e opo-
sição”) é, sem dúvida, o pronunciamento mais programático desde
a eleição de Lula, proveniente do líder político e intelectual do libe-
ralismo liberista no Brasil, isto é, daquela tradição liberal exaltada
em sua dimensão de valores e perspectivas mercantis.
Na entrevista, o ex-presidente fixa como norte para o posi-
cionamento diante do governo Lula a concepção que fundamenta
os princípios de organização do Estado. São três os centros da
opinião de Fernando Henrique: a crítica ao retorno de uma visão
burocrática de Estado, a crítica ao retorno da noção de um projeto
nacional e a crítica ao discurso contraditório de Lula diante da ado-
ção de uma política liberista na condução da economia.

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A OPOSIÇÃO PROGRAMÁTICA DE FHC AO GOVERNO L ULA

A primeira crítica incide no risco de

“voltar a crer que, para avançar, o país precisa de um Estado


intervencionista. Não é um Estado ativo, competente, isso precisa
mesmo. Mas um Estado que substitua as forças da sociedade civil,
isso leva à burocratização e à outra idéia, muito comum no Brasil, de
que falta um projeto nacional. Por projeto nacional se entenda um
grupo de intelectuais, às vezes encastelado num partido e às vezes
não, que define um objetivo para o país e que substitui a dinâmica da
sociedade. Isso é arcaico. Tem que ter valores e interesses nacionais.
A idéia de ter um projeto que se incorpora numa burocracia, e essa
burocracia leva o país para frente, é bolchevique”.

Como exemplos, o ex-presidente cita a postura do governo


diante das agências reguladoras e da criação do Ministério das
Políticas Sociais.
A segunda crítica toma exatamente como foco a questão nacional.

“Temos hoje no Brasil dois riscos. Um é a volta à visão do período militar,


do Brasil potência, reinterpretada pela esquerda. Como se isto valesse a
pena para o povo. Em vez de canhão, manteiga. Isto é visto, por exemplo,
nas declarações do ex-ministro Roberto Amaral sobre a bomba atômica e
de alguns setores econômicos empresariais. A idéia de que o bom para o
Brasil é o país ter uma presença militar e ter uma atitude agressiva com
relação aos focos de poder. E isso vem junto com uma visão quase
mercantilista de que o bom é fechar e de que, na economia, quanto mais
você exportar e menos importar, melhor é. Isso é um perigo.”

Por fim, Fernando Henrique, após afirmar que “não me mo-


lesta Lula achar que é Pedro Álvares Cabral, falar em herança
maldita, está errado”, mas “pior se quisesse destruir a herança”,
explora a ambigüidade que julga central no governo: de praticar
uma gestão econômica “responsável” e prometer crescimento, com
geração de empregos e distribuição de renda. “Apostar só no cres-
cimento é cair numa armadilha. Lula está caindo na armadilha que é
julgar o governo dele pelo crescimento”. E justifica:

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

“Os governos em geral são reféns do mercado, principalmente do mer-


cado financeiro, o que é pior. Crescimento hoje depende mais do mer-
cado do que de políticas públicas nacionais. O crescimento pode vir
sem criação de emprego. O que não quer dizer que não tenha que ter
crescimento, o problema é apostar tudo nisso”.

Descontinuidades fundamentais

A clareza do posicionamento programático de Fernando


Henrique provém de duas fontes. A primeira: ela capta o movi-
mento de conjunto do governo Lula, para além de uma pauta ins-
trumental e arbitrariamente focada nos temas de ocasião. Além
disso, colocando-se propositalmente em uma posição de equilí-
brio entre o mundo conservador e o liberal, ele diagnostica a con-
tradição básica do governo Lula no que diz respeito aos funda-
mentos do Estado.
Para construir artificialmente o seu diagnóstico continuísta do
governo Lula em relação ao governo FHC, o jornal Folha de S.Paulo
tem de literalmente apagar ou colocar em plano secundário as gran-
des mudanças nos fundamentos de organização do Estado brasileiro
que vêm sendo gestadas pelo governo Lula em áreas estratégicas.
Para dar vazão ao seu plano editorial de apoio à continuidade das
diretrizes econômicas herdadas do período Malan, a imprensa con-
servadora tem de maximizar seus feitos e minimizar conquistas das
transformações que combate. Nas duas perspectivas editoriais, a ação
do governo Lula parece menos transformadora do que realmente é
ou até mesmo homogeneamente conservadora em relação à do go-
verno passado. Mas o enfoque programático de Fernando Henrique
ilumina os movimentos transformadores do governo por ele critica-
dos, partindo de uma perspectiva liberal no que diz respeito ao
reposicionamento do Estado brasileiro e à soberania nacional.
No que diz respeito ao reposicionamento do Estado, pode-
mos anotar as seguintes mudanças promovidas pelo governo Lula:
• retomada de funções estratégicas de planejamento pelo Minis-
tério das Minas e Energia e regulação estratégica do setor elé-
trico, em que o neoliberalismo provocou seus maiores danos;

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A OPOSIÇÃO PROGRAMÁTICA DE FHC AO GOVERNO L ULA

• superação do viés privatizante do BNDES e reorganização do


principal banco de fomento do país para uma agenda desen-
volvimentista, nacional e social;
• reorganização, por intermédio do Ministério das Cidades, da
Conferência Nacional realizada, de novos planos de financia-
mento do setor público para habitação popular e saneamento,
áreas praticamente abandonadas nos anos 1990;
• descriminalização do MST, extinção do Banco da Terra, finan-
ciamento à agricultura familiar e aprovação de um novo Plano
de Reforma Agrária que, se realizado, inicia o maior processo
de transformação agrária da história do país;
• contratação maciça de funcionários públicos por meio de con-
cursos, invertendo a lógica da terceirização e reorganizando
funcionalmente setores estratégicos do Estado brasileiro que
vinham sofrendo desmonte permanente;
• aprovação de uma política industrial que incidirá sobre seto-
res considerados estratégicos para o país, do ponto de vista
tecnológico e desenvolvimentista, rompendo com a omissão
do Estado nesta área tão decisiva;
• novas regras para as agências reguladoras (duas delas, inclu-
sive, Anatel e Agência Nacional de Saúde, tiveram seus presi-
dentes substituídos), tornando-as mais transparentes e capa-
zes de cumprir suas funções republicanas de controle;
• reposicionamento dos fundos de pensão para saírem da lógi-
ca da financeirização e se lançarem em investimentos estraté-
gicos no setor de infra-estrutura;
• ativação da função creditícia do Banco do Brasil e da Caixa
Econômica Federal, em particular na abertura aos correntistas
de baixa renda;
• lançamento de uma discussão ampla sobre as novas funções
da universidade pública, prevendo seu fortalecimento e sua
expansão, vinculada a um programa qualitativamente mais ri-
goroso de regulação das universidades privadas.

Todas essas mudanças, que são estruturais, articulam-se com a


nova postura do governo Lula de afirmação da soberania nacional,

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

que passa por vários caminhos articulados, como foi analisado no


ensaio “Uma nova inserção do Brasil na ordem internacional?” (Pe-
riscópio, edição número 30 – ver p. 47). São mudanças cuja dinâ-
mica permitirá ao Estado brasileiro alargar sua autonomia e dar um
sentido socialmente mais democrático às suas bases de contratação.

A contradição

Fernando Henrique incide em outra questão-chave ao cobrar


do governo Lula um “ajuste” entre as opções até agora predomi-
nantes da política econômica e o discurso anunciador de cresci-
mento econômico sustentado, criação maciça de empregos e dis-
tribuição de renda. No caso de seu governo, a fidelidade estratégi-
ca à gestão Malan foi amortecida pelo impacto do crescimento dos
primeiros anos do Plano Real, pela adequação a uma base política
de centro-direita, pelo insulamento burocrático do núcleo duro do
Ministério da Fazenda (isolando-o das pressões e resolvendo a seu
favor todas as disputas intragovernamentais) e, nos últimos quatro
anos, por meio de uma gestão compartilhada com o FMI.
A gestão macroeconômica do governo Lula tem optado por
princípios da relação Estado–mercado semelhantes aos seguidos
no segundo mandato de Fernando Henrique: veto a qualquer tipo
de controle de movimentos de capitais financeiros especulativos,
mesmo aqueles já aceitos pela ortodoxia do FMI; “autonomia práti-
ca” do Banco Central, dessolidarizando-o publicamente da meta
de crescimento ou de criação de empregos; compartilhamento da
gestão econômica com o FMI e exigências ainda maiores de superá-
vit primário.
Mas esta opção de continuidade, no quadro agravado das
heranças deixadas pela gestão ruinosa de Malan, não parece com-
patível com a própria governabilidade do governo Lula em três
dimensões essenciais: em relação à sua base política e social, as-
sentada fundamentalmente nos trabalhadores assalariados e seto-
res populares; em relação às decisões estratégicas de outras áreas
fundamentais de governo, que implicam confrontar, relativizar ou
simplesmente regular de modo forte os interesses mercantis; enfim,

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A OPOSIÇÃO PROGRAMÁTICA DE FHC AO GOVERNO L ULA

com a própria dinâmica de inserção soberana e competitiva do Brasil


em relação às grandes potências e aos mercados financeiros.
São, de fato, dois princípios de organização do Estado em
disputa: um que prevê a republicanização das instituições do Esta-
do brasileiro, avançando em seu sentido democrático, de universa-
lização e de regulação; outro que prescreve ao mercado uma posi-
ção de matriz e dinamismo, conduzindo o Estado a ser um agente
funcional aos mercados e um regulador discreto.
Atribuir a esta contradição um sentido paralisante é não ver que
a dinâmica de sua superação é o próprio trabalho da transição de-
mocrática de paradigmas do Estado brasileiro que norteia o poten-
cial histórico do governo Lula. Reduzi-la a um jogo de disputas
intragovernamentais é esquecer que ela mobiliza interesses, valores e
racionalidades do conjunto da sociedade brasileira. O PT e as forças
que dirige já mostraram ser capazes de derrotar eleitoralmente a
poderosa coalizão formada em torno a Fernando Henrique. O mo-
mento é, sobretudo, do que poderíamos chamar de autoconfiança
antagonista: a vontade e a esperança razoável porque firmada na
identidade de valores e nas possibilidades abertas de superar o
paradigma neoliberal de organização do Estado brasileiro.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Periscópio, edição no 30, outubro de 2003

Uma nova reinserção do Brasil


na ordem internacional?

O conjunto de valores, iniciativas e relações promovidos pela políti-


ca externa do governo Lula já instalou uma dinâmica que pode
requalificar a inserção soberana do Brasil no mundo. O aprofun-
damento desta dinâmica permitirá ao Estado brasileiro alargar sua
autonomia e dar um sentido socialmente mais democrático às suas
bases de contratação.

Como avaliar o significado histórico da nova política exter-


na brasileira?
Há três erros de interpretação muito disseminados na mídia
a evitar. O primeiro deles é atribuir à política externa do governo
Lula um padrão discursivo e retórico, distanciado de conseqüên-
cias práticas. Ora, o que ressalta em uma análise mais acurada é
exatamente a convergência entre valores anunciados, relações po-
líticas e diplomáticas novas e iniciativas econômicas inéditas no
campo internacional. É este conjunto articulado que dá base para
falar em uma nova dinâmica possível de inserção do Brasil na
ordem internacional.
Há cinco peças nesta composição. Em primeiro lugar, o novo
acento latino-americanista que prioriza o Mercosul, renova suas

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UMA NOVA REINSERÇÃO DO B RASIL NA ORDEM INTERNACIONAL ?

perspectivas atraindo novos países, redefine e obstaculiza a agen-


da da ALCA, reinsere Cuba na agenda democrática do continente
em uma dinâmica solidária, fortalece acordos de comércio e de
financiamento por intermédio do BNDES com países vizinhos e, en-
fim, oferece sua legitimidade para contribuir para a resolução de-
mocrática dos conflitos na Venezuela e na Colômbia.
Em segundo lugar, os firmes posicionamentos contra o unila-
teralismo de forte sentido bélico dos Estados Unidos e uma clara
afirmação do multilateralismo, em defesa de reformas democráti-
cas na ONU e pela criação de uma nova agenda internacional voca-
cionada para a paz e a justiça social.
Em terceiro lugar, a articulação de um eixo econômico, envolven-
do Brasil, México, África do Sul, Rússia, Índia e China, para fazer
frente ao chamado G-7, que reúne os países capitalistas centrais. Esta
articulação ganhou, sob a liderança do Brasil, uma dimensão nova e
decisiva com a formação do G-22 nas negociações durante a última
reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Cancún,
México. Uma interessante matéria da revista Carta Capital de 1o de
outubro de 2003, de autoria de Sérgio Lírio, intitulada “Pequim, Cabo,
Moscou”, dá notícia de uma expressiva diversificação dos produtos
nacionais exportados e da conquista de novos mercados consumido-
res em 2003. Neste ano, segundo dados da Secretaria de Comércio
Exterior (Secex), a China se tornou o segundo maior comprador de
produtos brasileiros. Em 2000, ocupava a 12ª posição.
Uma quarta dimensão é a diminuição da vulnerabilidade ex-
terna do país diante dos capitais financeiros, que, no entanto, con-
tinua elevada. As exportações previstas para este ano (69 bilhões
de dólares) e o superávit comercial (previsto em 22 bilhões de
dólares, em uma medida importante resultante do menor cresci-
mento da economia, que deprime as importações) recordes po-
derão gerar o primeiro superávit em conta corrente, que repre-
senta o conjunto das transações externas do país, desde 1992. O
BNDES recriou e tem ampliado as prioridades de financiamento para
indústrias nacionais, em particular para o Nordeste e o Norte.
Também diminuiu de forma significativa o percentual da dívida
pública atrelada ao dólar.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Uma última dimensão, não menos importante, é a construção


da expressão política internacional da liderança de Lula. Em seu
belo e memorável discurso na abertura da 58a Conferência Geral
da ONU, ele homenageou o brasileiro Sérgio Vieira de Melo, vitima-
do no Iraque:

“Exerceu, em nome das Nações Unidas, o humanismo tolerante, pacífi-


co e corajoso que espelha a alma libertária do Brasil. Que o sacrifício de
Sérgio e de seus colegas não seja em vão. A melhor forma de honrar
sua memória é redobrar a defesa da dignidade humana onde quer que
ela esteja ameaçada”.

O índice do potencial de expansão internacional da liderança


de Lula é a inclusão de seu nome entre os indicados para o Prêmio
Nobel da Paz de 2003.

Continuidades, rupturas e avanços

O segundo erro de interpretação a evitar é aquele expresso


nas páginas das revistas Veja, de 1o de outubro, e Época, de 29 de
setembro. Afirmam as duas, quase com as mesmas palavras, que
“concebida pelo Itamaraty, um dos núcleos de excelência da buro-
cracia estatal, a política externa brasileira tem uma agenda que muda
pouco em função do governante do momento. Altera-se o tom aqui
e ali, mas a essência continua a mesma”(“Meu caro amigo Fidel”.
Veja, edição 1.822, 1o de outubro de 2003). Afirmada a continui-
dade essencial, relativiza-se em seguida esta idéia reconhecendo-
se algumas mudanças e inflexões.
Trata-se aqui de dar a uma meia-verdade o sentido de uma
interpretação de conjunto que não se sustenta. É exato que a buro-
cracia estatal brasileira vem acumulando mais nitidamente desde o
período nacional-desenvolvimentista uma capacidade diplomática
própria, altamente profissionalizada no sentido de expressar e de-
fender interesses do Estado-nação. É altamente questionável, no
entanto, a noção de que esta capacidade burocrática tenha sido
exercida e potencializada para os mesmos planos estratégicos de

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UMA NOVA REINSERÇÃO DO B RASIL NA ORDEM INTERNACIONAL ?

governo. Durante o regime militar, ela foi mobilizada para um pro-


jeto expansivo de Estado-potência, que almejava ser poder domi-
nante no continente sul-americano e potência emergente no quadro
dos Estados-nações capitalistas centrais. Fazia parte deste proje-
to, inclusive, uma relativa autonomia diante dos Estados Unidos no
interior do campo dos países alinhados contra a liderança da URSS.
Já os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso clara-
mente deprimiram o grau de autonomia e capacidade de iniciativa
da política externa brasileira como subproduto de seu projeto
neoliberal de integração passiva na ordem econômica internacio-
nal. Na cultura política formada em torno a estes mandatos, a no-
ção de nação tornou-se quase um antivalor. O aprofundamento ex-
tremo da vulnerabilidade da economia brasileira neste período é
certamente a expressão maior do sentido antinacional de suas polí-
ticas externas, de regulação e de reformas estruturais. Daí que a
retórica crítica de Fernando Henrique às assimetrias da ordem in-
ternacional fosse, em geral, percebida como inautêntica em relação
a seus fundamentos programáticos de governo, ineficaz porque sem
conseqüências práticas, ou até mesmo acadêmica, no sentido de
descolada da vida prática dos povos.

A parte e o todo

O terceiro erro de interpretação é aquele sugerido pelo chefe


do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP, profes-
sor José Augusto Guilhon de Albuquerque, ao referir-se à postura
do Brasil nas negociações da OMC:

“Foi uma atitude simbólica de esquerda. Tinha de ser assim. Afinal,


este governo precisa ser radical em alguma coisa. Comportamentos
assim abalam um capital diplomático que o Brasil possui, que é o da
previsibilidade e da busca pragmática por condições que favoreçam o
desenvolvimento do país”.

O que está embutido na opinião do professor da USP é a no-


ção incorreta de que a política externa é uma parte do todo, um

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

trecho ou ramo setorial das políticas de um governo, gozando do


estatuto de uma autonomia em relação às demais ações e estraté-
gias governamentais. No caso, porém, a parte não é apenas um
pedaço, mas expressão e condicionante do todo.
É profundamente equivocado entender a política externa como
quer o professor. As dimensões éticas de um Estado-nação, seu
potencial democrático, sua autonomia para praticar determinadas
políticas dependem fortemente do grau e da qualidade de suas re-
lações com os outros Estados-nações e com a ordem econômica
internacional. Os fundamentos dos modernos Estados-nações, desde
o seu processo de formação desigual no tempo e no espaço, são
relacionais, isto é, dependem dos vínculos de autonomia, depen-
dência ou subordinação em relação àqueles que compõem, em cada
época, o núcleo do sistema mundial. As diversas ordens mundiais,
desde a formação do capitalismo moderno, são profundamente
assimétricas e estar no centro, na periferia ou na semiperiferia defi-
ne a problemática da própria identidade dos Estados-nações.
Por este ângulo, podemos identificar a novidade histórica da
política externa do governo Lula e o potencial de transformações na
vida ética, política, econômica e social do país que ela traz. Em ter-
mos republicanos, trata-se de um encontro inédito e renovado da
perspectiva democrática com o ponto de vista nacional. Este encon-
tro não foi possível em nenhum outro período republicano senão de
forma dramática e instável nos anos que vão de 1946 a 1964.
É este encontro que pode abrir o espaço histórico para as
grandes mudanças sociais que são o desafio ainda não equacionado
pelo governo Lula.

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A esperança equilibrista.p65 60 27/08/04, 16:58
Periscópio, edição no 28, agosto de 2003

O caminho democrático
da reforma agrária

A intolerância secular artificialmente instrumentalizada contra os


movimentos sociais no campo pretende interditar a reforma agrá-
ria – uma das mudanças que se encontram no topo das expectativas
da população brasileira – no governo Lula. Mas a democracia
brasileira, com a legitimidade já conquistada, sua capacidade de
pactuar e institucionalizar interesses conflitantes, seu poder de
agenda e inovação já reúne condições de processar pacificamente
as mudanças históricas ansiadas.

Há uma certa tradição do liberalismo brasileiro que, apresen-


tando-se desde sempre como cosmopolita e moderna, evidencia
dimensões regressivas e autoritárias quando se requer a democra-
tização dos fundamentos da ordem política. Os liberais paulistas,
por exemplo, postaram-se nas conjunturas críticas que levaram à
abolição da escravidão reivindicando a indenização dos donos de
escravos pelo Estado pelo desfalque em suas “propriedades”. Du-
rante toda a República Velha, de 1889 a 1930, foram incapazes de
absorver as mínimas reivindicações trabalhistas, como até mesmo
a proteção ao trabalho infantil, acenando sempre com a defesa do
“livre mercado”.

A esperança equilibrista.p65 61 27/08/04, 16:58


O CAMINHO DEMOCRÁTICO DA REFORMA AGRÁRIA

Agora, personagens e intelectuais contemporâneos desta mesma


tradição procuram, artificialmente, criar uma cena de intolerância
diante das demandas da reforma agrária.
No dia 3 de julho, o jornal Folha de S.Paulo estampou na
primeira página chamada ao artigo histérico de Jorge Bornhausen,
presidente do PFL, “O boné da insensatez”, acusando Lula de con-
temporizar com os “saques e desordens assumidamente realizados
pelo MST”, “embarcando na mesma nau insensata que inquieta a
Nação”. O artigo de Bornhausen faz lembrar um outro, do finado
Paulo Francis, publicado na primeira página do mesmo jornal no
dia da posse de Luiza Erundina como prefeita de São Paulo, vatici-
nando que a imponente avenida Paulista seria tomada por camelôs
nordestinos. A opção mais que editorial, partidária mesmo, do jor-
nal ficou evidente com os movimentos sincronizados da liderança
do PSDB no Congresso Nacional para colher assinaturas para uma
CPI do MST, explorando o episódio.
O Estado de S. Paulo, desde 13 de março de 2003, vem
reiterando a exigência de demissão do ministro do Desenvolvimen-
to Agrário, Miguel Rossetto, que teria entregue “o Incra ao MST e
seus companheiros de viagem”. Em um trecho que legitima ações
armadas, o jornal afirma: “Diante da evidência de que estão aban-
donados pelo Estado à própria sorte, os fazendeiros estão se mo-
bilizando para defender suas propriedades. Nas primeiras escara-
muças já houve tiros e feridos e há notícia de um morto”.
Outro não tem sido o tom do jornal O Globo e da revista
Época em relação ao tema. O jornal O Globo de domingo, 13 de
julho, por exemplo, trazia manchete na página 3: “Sob o domínio
do MST. Maioria de invasões de terras ocorreu nos estados onde o
Incra é dirigido por indicados pelo movimento”. A leitura da maté-
ria não sustenta a manchete: aliás, os superintendentes do Incra
indicados pelo MST nos cinco estados queixam-se da lentidão da
reforma agrária, por falta de dinheiro e infra-estrutura técnica. O
superintendente de Minas Gerais, Marcos Helênio, ex-deputado
estadual do PT e que chegou a ocupar o mesmo cargo durante o
governo Itamar, reclama que ainda não havia sido possível assentar
ninguém até então no estado. No canto inferior da página, uma

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

notícia de que o Ministério Público mineiro apurou que jagunços e


fazendeiros respondem por operações truculentas, torturas e tenta-
tivas de estupro contra sem-terra acampados.
Mais grave ainda, a revista Época, de 28 de julho de 2003,
trouxe a capa negra com a chamada “Chega!” e a frase “A convul-
são social se alastra e provoca um rastro de violência por todo o
país”. Apesar de provado pela polícia paulista que os assassinos
do fotógrafo Luís Costa, que fazia trabalhos para a revista, eram
assaltantes em fuga, na “Carta do editor”, Aluízio Falcão Filho,
diretor da redação, dizia:

“Não importa se foi um manifestante dos sem-teto ou um bandido comum.


O tiro que matou o repórter fotográfico Luís Antonio da Costa expôs a
falta de controle que o governo tem sobre os movimentos sociais”.

A opinião, no entanto, vem da alta cúpula da intelligentsia


do PSDB. Em O Globo de 27 de julho de 2003 (“Tensão social:
Lula, o PT e o discurso de campanha geram expectativa de solu-
ções rápidas, dizem especialistas”), o filósofo José Arthur Gianotti,
amigo íntimo de Fernando Henrique, que no ano passado havia
vindo a público para afirmar a existência de uma zona cinzenta
inevitável entre o governante e a moralidade pública, agora quer
pulso firme. Para ele, o governo Lula estaria se comportando como
movimento social, sendo conivente com ilegalidades cometidas
pelos movimentos populares. O governo Lula estaria deixando de
cumprir o decreto-lei de Fernando Henrique, do seu segundo man-
dato, que proíbe a desapropriação de áreas ocupadas por sem-
terra. Para ele, o governo Lula não pode sequer agir com media-
ções diante dos movimentos sociais no campo, como aliás tentou
fazer, de modo muito parcial e ineficaz, o governo Fernando
Henrique em seu primeiro mandato.
No caso, a opinião do filósofo é mais intolerante do que a do
general Jorge Armando Felix, do Gabinete de Segurança Institucio-
nal. Em entrevista à Folha de S.Paulo do mesmo dia 27 de julho de
2003, o general vê a situação no campo “dentro da normalidade”,
não havendo alterações nos números da violência no campo entre

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O CAMINHO DEMOCRÁTICO DA REFORMA AGRÁRIA

2002 e 2003 (“General vê situação no Campo ‘dentro da normali-


dade’”). Durante o último ano do governo Fernando Henrique acon-
teceram 20 mortes por conflito agrário no Brasil; até 15 de junho
deste ano, dez pessoas haviam morrido por conflitos agrários no país.
O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, afirmou no últi-
mo dia 29 que “a questão social não é uma questão de polícia. Essa
é uma idéia dos anos 1930. Não vamos agir assim, por mais que se
tente tirar proveito da situação, como se tenta tirar politicamente”.

Reforma agrária e democracia

Nos exemplos citados, o presidente do PFL, o editor do jor-


nal, o diretor de redação da revista, a liderança do PSDB e o filósofo
exponenciam e espetacularizam o conflito agrário como ameaça à
democracia. Ao procederem assim, estão apenas dando continui-
dade ao padrão de tratamento à questão agrária que prevaleceu no
segundo mandato do governo Fernando Henrique, marcado pela
opção de criminalizar o MST, pela redefinição dos marcos jurídicos
de relação com os movimentos sociais no campo e por uma brutal
redução do orçamento para a reforma agrária, no quadro do ajuste
fiscal promovido por Malan.
É interessante, no entanto, notar que esta crispação da retóri-
ca da intolerância em relação ao conflito agrário vale-se de uma
gramática e de termos aprimorados pelo pensamento conservador
brasileiro, por latifundiários e oligarquias, em particular nas conjun-
turas críticas do pré-1964. O que evidencia um problema real: a
ausência ou esterilização dos procedimentos e instituições demo-
cráticos capazes de processar o conflito agrário. A retórica da in-
tolerância age nas brechas e lacunas da não-republicanização das
relações econômicas, sociais e políticas no campo brasileiro. Nes-
te território da República onde a propriedade grilada defende-se
com jagunços, onde a Justiça tarda e a violência prospera com a
impunidade, onde a assimetria de direitos exclui da cidadania os
pobres do campo, a tradição da democracia ainda não criou raízes.
É neste território que a fala forte mas rouca dos injustiçados
do campo emite os sinais do inconformismo diante da violência se-

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

cular. Não apenas o MST e a Contag, mas os missionários da Igreja


por meio da CPT e um sem-número de movimentos sociais regio-
nais. Que a fala, o gesto, a imagem reproduzam, na língua dos opri-
midos, a dramaticidade e a radicalidade da situação não deveria
servir de pretexto, para quem adota uma perspectiva democrática,
para impugnar estes personagens como criminosos sociais. Não o
são e é preciso apostar, para além da circunstância e de algum
gesto extremado, no caráter profundamente civilizatório e demo-
cratizante das exigências inadiáveis que brotam no campo.
Em uma perspectiva histórica mais ampla e generosa, é preci-
so entender que a democracia brasileira já atingiu um grau de legi-
timidade e capacidade de inovação institucional para processar
democraticamente uma ampla e bem-sucedida reforma agrária. Vale
aqui a comparação com a conjuntura pré-1964, quando a questão
agrária incendiou a imaginação conservadora daqueles que conspi-
ravam a favor da quebra da legalidade.
Confrontado com a trajetória das Ligas Camponesas, que
evoluíram claramente para uma avaliação da inevitabilidade de
um conflito armado, o MST revela, como movimento social e polí-
tico, sensibilidade à participação institucional. As conjunturas de
sua maior expansão – no imediato pós-regime militar, nos primei-
ros anos do governo Fernando Henrique e agora no governo Lula
– coincidem com aberturas, retóricas ou reais, à agenda da refor-
ma agrária pelo Estado. Neste sentido, o MST tem combinado sem-
pre pressões com negociação.
Outra é hoje a estrutura social do país, após décadas de urba-
nização e modernização econômica. No pré-1964, a maioria da
população vivia no campo e o país ainda não havia construído sua
estrutura urbano-industrial. Outro também é o ambiente internacio-
nal, não polarizado pelo clima da “guerra fria” e seus campos dou-
trinários rigidamente conformados.
Mas, sobretudo, flagrantemente diversa é a aderência demo-
crática dos partidos da esquerda brasileira e mesmo das forças
conservadoras. A própria Igreja católica, com sua forte raiz social,
contribui hoje como grande força ativa de mediação e de inclusão
social. Há um enorme campo político possível de inovação institu-

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O CAMINHO DEMOCRÁTICO DA REFORMA AGRÁRIA

cional, aprimoramento e avanço jurídico, pactuação, controle da


violência e mobilização de instrumentos econômicos capazes de
dar formato e vida à reforma agrária. Há, inclusive, uma opinião
pública amplamente favorável a uma reforma agrária ampla, pacífi-
ca e legal.
O lema “Reforma agrária na lei ou na marra” traduzia bem os
impasses do pré-1964. Hoje seria necessário afirmar com limpidez
e a voz serena dos que têm o sentido da justiça e os valores huma-
nos mais altos: ou a reforma agrária será criação da democracia
brasileira ou ela não será.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Periscópio, edição nº 34, março de 2004

O governo Lula e a
ética republicana

Pensado para além da disputa partidária instrumental, o caso


Waldomiro Diniz revela uma face da republicanização incompleta
do país. Por sua história e seu compromisso com a ética republicana,
reconhecidos pela população brasileira, o governo Lula tem diante
de si o desafio histórico de superar as condições e os procedimentos
que perpetuam a corrupção sistêmica.

A amplificação do significado e o uso instrumental do episódio


de corrupção envolvendo o assessor da Casa Civil Waldomiro Diniz
pela oposição ao governo Lula são evidentes. Em um ano de elei-
ções decisivas, trata-se de desgastar ao máximo a identidade sim-
bólica do PT com a ética republicana, como diagnosticou com exa-
tidão o artigo de Marilena Chaui no jornal Folha de S. Paulo, de
18 de fevereiro (“A disputa simbólica”). Mais além de desgastar o
governo Lula, procura-se enfraquecer a liderança pública de José
Dirceu como coordenador político do governo.
O presidente do PSDB, José Serra, veio a público reclamar o
direito da minoria parlamentar de formar CPIs, exigindo do atual

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O GOVERNO L ULA E A ÉTICA REPUBLICANA

presidente do Senado, José Sarney, a instalação da CPI dos Bingos.


Ocorre que o presidente da Assembléia Legislativa de São Paulo,
o tucano Sidney Beraldo, engavetou em um ano e dois meses de
mandato 38 pedidos de instalação de CPI sobre irregularidades no
governo de Geraldo Alckmin. Entre elas, um pedido de CPI do depu-
tado Jorge Caruso (PMDB), que propõe investigações sobre as ca-
sas de bingo no Estado.
Tanta incoerência alcança também os intelectuais notoriamen-
te vinculados ao PSDB, como o cientista político Sérgio Abranches,
na revista Veja de 10 de março de 2004 (“A política do êxtase”).
Acusa indignado o PT de mostrar inédita “tolerância para com des-
vios de conduta no próprio meio”, após ter “contribuído para este
processo de destruição do capital cívico ao imolar, diariamente, o
governo Fernando Henrique no altar da moralidade pública”. Nem
uma palavra sobre as inúmeras CPIs sobre casos muito mais graves
e danosos ao orçamento público que o governo Fernando Henrique
trabalhou com eficiência para impedir.
Na tradição republicana brasileira, coube à UDN protagonizar a
utilização instrumental de denúncias de corrupção como forma de
desestabilizar governos. Depois de 1964, o regime militar utilizou-se
de procedimentos semelhantes para cassar líderes da própria UDN.
O fundamental no caso Waldomiro Diniz, na direção oposta
ao seu uso instrumental, é reconhecer que ele exibe faces muito
típicas da corrupção sistêmica no Brasil. A relação com um empre-
sário de uma atividade pública mas que atua na margem da legali-
dade (os jogos de bingo, que servem à “lavagem” de dinheiro); o
alegado recolhimento ilícito de dinheiro para financiamento de cam-
panha eleitoral (área que, já se diagnosticou, alimenta e perpetua
circuitos de corrupção do poder político); o uso de relações políti-
cas para intermediar contratos de interesse, para além do bem pú-
blico; um funcionário ganancioso que busca a sua “comissão” por
serviços prestados.
O que não é típico no caso e, pelo contrário, causa perplexi-
dade é constatar uma prática tão típica da corrupção sistêmica ter
como ator um funcionário de alto escalão da Casa Civil da Presi-
dência, responsável por atividades estratégicas, no governo Lula.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Mesmo que o ato tenha sido praticado em maio de 2002, na gestão


do governo Garotinho no Rio de Janeiro. O fato é que este funcio-
nário gozaria da confiança indevida do ministro José Dirceu, talvez
a liderança do PT que mais tenha se empenhado no combate públi-
co à corrupção sistêmica no Brasil, em construir um diagnóstico
sobre ela e buscar os caminhos de sua superação.
Na última pesquisa Datafolha, realizada no dia 1º de março,
apenas 1% da população escolheu a corrupção como o principal
problema para os brasileiros, enquanto 49% elegeram o desem-
prego. Dos brasileiros, 85% não ligam o PT a casos de corrupção.
O que evidencia o patrimônio ético acumulado pelo PT. É exata-
mente este patrimônio que deve ser mobilizado para nos retirar da
perplexidade inicial provocada pela denúncia envolvendo o asses-
sor da Casa Civil.

República e corrupção

Os autores da tradição republicana clássica trataram a cor-


rupção do regime sempre como uma possibilidade latente. Seja
como expressão da degradação dos padrões cívicos da socieda-
de, seja como instrumento do desejo de domínio de poder ou do
avanço de interesses particularistas sobre o público, a corrupção é
sempre uma ameaça aos sentidos virtuosos da República.
Em uma época política marcada pelo descenso do cívico e
pelo deslocamento das fronteiras do público pelos interesses
privatistas, os fenômenos vinculados à corrupção têm se tornado
endêmicos nas democracias liberais do Ocidente. O caso extre-
mado do italiano Berlusconi não deixa, por este ponto de vista, de
ser simbólico.
No Brasil, em que a construção do Estado nacional, bem
como o avanço de seus órgãos e funções, deu-se, em geral, em
períodos não submetidos ao controle democrático e em um pa-
drão republicano incerto e inacabado, pode-se falar certamente
em corrupção sistêmica. Isto é, certas culturas, certos procedi-
mentos e relações ilegais que permeiam as relações entre o priva-
do e o público estatal, quase sempre em detrimento deste último,

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O GOVERNO L ULA E A ÉTICA REPUBLICANA

de sua universalidade, de sua impessoalidade, de sua transparên-


cia e de suas regras legitimadas.
Esta corrupção sistêmica não é algo inerente ao Estado, como
quer a cultura liberal, mas à relação entre Estado e sociedade.
Dela também são atores empresários, lobbies e, por excelência,
os partidos políticos que vinculam sistema político e sociedade. A
expressão da corrupção sistêmica no sistema de partidos brasilei-
ros é o grau de fisiologismo dos partidos, isto é, de políticos que
só se perpetuam devido ao acesso que têm a interesses manipula-
dos pelo Estado.
A redemocratização brasileira, transcorrida em um processo
de transição conservadora, preservou em grande medida a
corrupção sistêmica. Mas viu tomar alento toda uma mobilização
cívica (cujo ápice foi o impeachment de Collor), iniciativas civis
(como as da CNBB, que resultaram em uma lei contra a corrupção
eleitoral), parlamentares (como a CPI do Orçamento), do próprio
aparelho do Estado (como a ação das procuradorias públicas), de
novos mecanismos de controle (como as ouvidorias).

Déficit real e simbólico

Como depositário da esperança de grandes mudanças, por


seus vínculos muito estreitos com os movimentos contra a corrupção,
por ter protagonizado experiências de gestão pública que são refe-
rência de ética republicana, a sociedade espera do governo Lula o
cumprimento de uma agenda contra a corrupção sistêmica.
Na experiência do primeiro ano de governo, tal agenda tomou
dois caminhos principais. A realização pela Controladoria Geral da
União de uma auditoria nos repasses do governo federal aos muni-
cípios, a qual constatou irregularidades em 75% das gestões
auditadas. E o reaparelhamento, centralizado pelo Ministério da
Justiça, dos meios de controle da “lavagem de dinheiro”, que municia
e reproduz o crime organizado e a corrupção sistêmica. Poderia
também ser enquadrado no contexto de uma ética republicana, com
grande repercussão na opinião pública, o estabelecimento de tetos
para os salários dos servidores estatais privilegiados.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Pode-se avaliar, no entanto, que tal agenda foi insuficiente e


ficou aquém do necessário. O governo Lula ainda não tornou pú-
blico o que tem feito e o que pretende realizar, de forma geral,
contra a corrupção sistêmica.
Foi neste contexto de déficit real e simbólico no combate à
corrupção sistêmica que eclodiu a denúncia contra Waldomiro Diniz.
É sempre arriscado governar com déficit simbólico neste campo
diante de forças de oposição conservadoras que têm, por sua pró-
pria irradiação nos meios de comunicação, ampla capacidade de
fazer uso instrumental de denúncias pontuais.
É este diagnóstico de um déficit real e simbólico que torna o
fechamento dos bingos, a apuração das denúncias pelos órgãos do
próprio Estado e o impedimento, por maioria parlamentar, do uso
instrumental das denúncias de corrupção por parte do PSDB e do
PFL insuficientes aos olhos da opinião democrática brasileira. Tal
procedimento de legítima autodefesa do governo e da sua capaci-
dade de agenda só ganhará legitimidade pública se o governo Lula,
no âmbito de suas atribuições e iniciativas, liderar uma agenda po-
sitiva de curto e médio prazos de combate à corrupção sistêmica.
Há três áreas que podem ser objeto de ação sistemática de
curto prazo. Em primeiro lugar, o período neoliberal marcou-se exa-
tamente pela exacerbação das ações dos lobbies privados nas insti-
tuições ou serviços estatais. É preciso, pois, dar visibilidade à defini-
ção do que são bens públicos e bens privados, readquirir o sentido
democrático de controle do Estado brasileiro e do bem comum. Trans-
parência orçamentária, instalação de ouvidorias com representação
da sociedade civil, repactuação de normas procedimentais, controle
público sobre concorrências: o governo Lula precisa dar ampla pu-
blicidade ao que tem feito e fará nesta área.
Em segundo lugar, é vital pactuar entre os partidos, como apon-
ta recente iniciativa do presidente do PT, José Genuíno, o financia-
mento público das campanhas com novos procedimentos e penali-
dades de controle e punição dos gastos ilegais. É importante lem-
brar aqui o livro Reforma política e cidadania, organizado por
Maria Victoria Benevides, Paulo Vannuchi e Fábio Kerche, edita-
do pela Editora Fundação Perseu Abramo (2003). Por fim, é im-

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O GOVERNO L ULA E A ÉTICA REPUBLICANA

prescindível institucionalizar — como propunha a candidatura de


Lula no fascículo “Combate à corrupção. Compromisso com a éti-
ca”, lançado durante a campanha de Lula em 2002 na OAB — um
órgão compostos pelos três poderes, o Ministério Público, o Tri-
bunal de Contas da União e representantes da sociedade civil para
coordenar todo o trabalho de prevenção à corrupção.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Periscópio, edição no 33, janeiro/fevereiro de 2004

Os intelectuais críticos
e o governo Lula

A necessária generosidade de horizontes históricos e uma compreen-


são rigorosamente democrática das contradições em que está inseri-
do devem levar o PT a reiterar o diálogo construtivo com os intelec-
tuais que, em nome dos valores do socialismo, acentuam a crítica à
experiência do governo Lula.

De forma diversa à experiência do governo Allende, que ge-


rou toda uma fortuna crítica sobre os erros que teriam levado a
uma radicalização não-sustentável, de acordo com a correlação
de forças, da luta de classes, o primeiro ano do governo Lula viu
crescer à sua volta, em diferentes tons e registros argumentativos,
uma crítica de “esquerda” da experiência. Esta crítica adquiriu
uma nitidez dramática em dezembro de 2003 passado com decla-
rações públicas de ruptura de intelectuais tão importantes para a
tradição petista como Francisco de Oliveira, Carlos Nelson Couti-
nho e Leandro Konder. Já antes, o filósofo Paulo Arantes havia
manifestado seu desacordo frontal e de princípios com os rumos
da experiência.
Há, de partida, três atitudes equívocas a evitar. A primeira
delas seria pretender submeter estes intelectuais, a partir dos recur-

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OS INTELECTUAIS CRÍTICOS E O GOVERNO L ULA

sos políticos e materiais muito poderosos que o PT hoje movimen-


ta, a uma espécie de “exílio” petista, opondo recusa à recusa, se-
lando com intransigência o curto-circuito dos canais de diálogo.
O segundo equívoco seria subestimar o valor destes intelectuais
críticos, prescindindo apressadamente de suas inteligências e cultu-
ras. Ora, cada um deles, em sua trajetória particular, representa dé-
cadas de trabalho e pesquisa que fazem parte da própria tradição
socialista democrática, da qual o PT é o mais legítimo representante.
Francisco de Oliveira, desde Crítica à razão dualista, de 1972,
é um elo fundamental do diálogo entre o marxismo brasileiro e a
tradição cepalina. A inteligência e o vigor de sua crítica ao neolibera-
lismo foram fundamentais nos anos 1990. Paulo Arantes, editor da
Coleção Zero à Esquerda, da Editora Vozes, a mais importante co-
leção de livros crítica ao neoliberalismo nos anos 1990, é hoje um
dos elos fortes e mais eruditos de ligação da inteligência brasileira à
grande tradição clássica e moderna da filosofia alemã. Carlos Nel-
son e Leandro Konder, petistas egressos da corrente renovadora e
democrática do PCB, foram fundamentais para defender e enraizar no
Brasil as obras de Lukács e Gramsci, com todo o seu efeito renova-
dor sobre a esquerda brasileira. A própria elaboração do socialismo
petista nutriu-se, em alguma medida, do diálogo com o justamente
famoso ensaio de Carlos Nelson A democracia como valor uni-
versal (Rio de Janeiro, Editora Salamandra, 2a edição, 1984).
Enfim, um terceiro equívoco seria dar o diálogo com eles como
concluído e resolvido. Isto seria justamente dar razão ao que há de
mais frágil na crítica de alguns destes intelectuais: pretender exaurir
conceitualmente ou em diagnósticos conclusivos, em um prazo de
meses, uma experiência cuja dramaticidade é histórica, inscreve-se
nos tempos longos da sociedade brasileira e é, por natureza, inven-
tiva, inédita e aberta em seu protagonismo transformador.

As tradições e a crítica

Seria possível identificar, pelo menos, cinco vertentes destas


críticas “de esquerda”. O primeiro conjunto de críticas, com uma
certa heterogeneidade e pluralismo das fontes, estabeleceu-se nos

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

marcos do debate sobre a política econômica predominante. Em


geral, elas se alimentaram das tradições nacional-desenvolvimentis-
tas, keynesianas ou pós-keynesianas, além da economia política
marxista. Estão gravadas nos artigos e entrevistas de Maria da Con-
ceição Tavares e Paul Singer, nos livros A economia política da
mudança. Os desafios e os equívocos do início do governo Lula
(organizado por João Antonio de Paula, Editora Autêntica, 2003) e
Agenda Brasil. Políticas econômicas para o crescimento com es-
tabilidade de preços (organizado por João Sicsú, José Luis Oreiro
e Luiz Fernando de Paula, Editora Manole, 2003) e nos dois núme-
ros do boletim Política Econômica em Foco, do Instituto de Eco-
nomia da Unicamp.
Uma segunda vertente de críticas foi formulada a partir de cer-
tas áreas do pensamento católico de esquerda. Concentrou-se no
tratamento avaliado como insuficiente do governo Lula em relação à
questão social, à reforma agrária, à problemática indígena e na con-
denação ética aos valores mercantis economicistas formulados por
setores do governo. Talvez os seus momentos mais fortes tenham
sido a entrevista de Fábio Konder Comparato, concedida à revista
Caros Amigos, de março de 2003 (“Uma aula de Democracia”), e a
carta aberta ao presidente Lula, publicada na Folha de S.Paulo, em
8 de dezembro passado (“Até quando companheiro?”).
Um terceiro pólo crítico foi formulado por intelectuais de es-
querda vinculados à USP, como Francisco de Oliveira e Paulo
Arantes. Esta crítica, a partir de grandes marcos analíticos das ten-
dências do capitalismo mundial e brasileiro, em um método históri-
co estrutural, buscou identificar o governo Lula como uma espécie
de agente funcional das dinâmicas mais profundas do capital, como
um continuum em relação à experiência dos governos de Fernando
Henrique Cardoso. A tentativa de dar a esta crítica um padrão
mais teórico está no ensaio de Francisco de Oliveira O ornitorrinco
(São Paulo, Boitempo Editorial, 2003).
Um quarto veio crítico, formulado por intelectuais socialistas
como Emir Sader, Luiz Werneck Vianna ou ainda outros orgâni-
cos às tendências do PT, enfatizaram a contradição a ser resolvida
entre os vetores predominantes na política econômica e os proje-

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OS INTELECTUAIS CRÍTICOS E O GOVERNO L ULA

tos de transformação da sociedade brasileira dos quais o governo


Lula é depositário.
Por fim, seria importante identificar um tipo de crítica que des-
cuida ou desvaloriza as dimensões analíticas, conceituais ou mes-
mo contraditórias do processo em curso, repondo no lugar os jar-
gões da “traição” ou de uma baixa sociologia dos interesses (a
microfísica dos cargos) para desqualificar moralmente e sem media-
ções a experiência do governo Lula.

Apologia da crítica

Esta identificação sumária e, portanto, necessariamente simpli-


ficada das vertentes da crítica “de esquerda” ao governo Lula vale
para indicar um fenômeno mais geral em curso na cultura política
brasileira: o reposicionamento histórico daquelas chamadas tradições
republicanas brasileiras, em particular dos socialistas democráticos.
Estas vivem hoje, de um ponto de vista rigoroso, o desafio da atua-
lização de problemática: não se trata mais apenas da crítica ao
paradigma neoliberal, mas de, como uma vez formulou Emir Sader,
elaborar o caminho teórico e prático de sua superação no contexto
histórico das contradições nas quais o governo Lula se insere.
Compreendida deste ângulo, o campo heterogêneo da crítica
“de esquerda” ao governo Lula é, ele próprio, expressão de suas
contradições históricas. Sem atribuir a ele um sentido banalmente
funcional de equilíbrio ou de compensação, a formação de um campo
crítico “de esquerda” foi, neste primeiro ano de governo, um
contraponto público ao esforço de pragmatismo (todo governo o
é, em certa medida) e de realismo (todo governo é obrigado a ser,
em forte medida) que mobilizou a primeira cena do governo Lula.
Congelar este espírito crítico, apontando-o para uma lógica
de ruptura com a experiência do governo Lula, é uma opção legíti-
ma de quem a exerce, mas significa, de fato, trabalhar contra o seu
sentido histórico mais profundo. Pois para justificar esta ruptura a
crítica tem de simplificar contradições, apressar juízos, descartar
hipóteses, generalizar indevidamente. Em suma, ela corre inevita-
velmente o risco de se dogmatizar, de se sectarizar, de se esterilizar

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

numa ausência de futuro, descolando-se do movimento real da po-


lítica e da sociedade e, principalmente, perdendo a capacidade de
exercer sobre si mesma a crítica.
Não se trata apenas de detectar o prematuro (no sentido mes-
mo de falta de maturidade histórica) de uma crítica que aponta logo
a ruptura. Mas também de revelar sua ausência de base social,
mesmo entre as lideranças mais radicalizadas da vanguarda social
do povo organizado. Este é um indicador fundamental que consulta
a consciência social do processo em curso: em geral, as demandas
e posicionamentos críticos dos movimentos, como por exemplo da
CUT e do MST, se exercem no interior mesmo da base histórica do
governo Lula.
“Era talvez a desesperança/ com seu cortejo de sonhos maus”,
dizem os versos do poeta simbolista Alphonsus de Guimarães. Pois
a tarefa primordial da crítica é, sobretudo, zelar pela renovação da
esperança coletiva do povo brasileiro.

Crítica da crítica

Do mesmo modo que a apologia da crítica “de esquerda” não


significa aderir sem mais a ela, a crítica da crítica não pode ser a
sua mera refutação ou negação. Uma experiência como a do go-
verno Lula requer a incessante capacidade de realizar sínteses, o
que pede disponibilidade para colher o que há de “verdade” até em
diagnósticos excessivos, o que existe de “positivo” ou mesmo de
antecipação de possibilidades futuras na crítica.
Assim, a melhor crítica da crítica ao governo Lula é exata-
mente o exercício mais pleno de suas potencialidades transfor-
madoras. O que equivale, em primeiro lugar, a clarificar o sentido
transitório ou de transição das suas primeiras opções, em particular
na política econômica, a ir abrindo caminho para o crescimento
com distribuição de renda, repondo agendas de sentido social e
transformador, isolando e diminuindo os pontos de resistência à
superação do neoliberalismo.
Em segundo lugar, renovando por meio das formas da demo-
cracia participativa, do debate público de suas decisões, do acio-

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OS INTELECTUAIS CRÍTICOS E O GOVERNO L ULA

namento de novos espaços de negociação e pactuação com os


movimentos sociais, os seus compromissos programáticos de fun-
do, como, por exemplo, em relação ao emprego, à reforma agrá-
ria, à superação da fome no Brasil.
Por fim, se um pragmatismo consciente, atento à correlação
de forças e aos limites de ação, é quase uma vocação de governo,
seria necessário estimular as vertentes utópicas dos atores políticos
que gravitam no centro e em torno ao governo Lula. Alimentar os
planos que extravasam o cenário do dia e alargam a imaginação
transformadora, enfim, dar carne e vida aos valores socialistas de
liberdade, igualdade e fraternidade que devem conferir o sentido
último da experiência de governo.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Periscópio, edição no 25, maio de 2003

Os caminhos da transição

Estabelecido no seu primeiro tempo de governabilidade, o governo


Lula tem diante de si o desafio de elaborar e construir o caminho
para o crescimento econômico sustentado, a inclusão social e a dis-
tribuição de renda.

Não podem ser banalizadas as imensas dificuldades postas e


muito menos as conquistas do primeiro tempo de governabilidade
do mandato de Lula.
No campo econômico, o contexto criado pelo governo Fer-
nando Henrique Cardoso impôs uma combinação perversa do fe-
chamento das linhas de crédito internacionais, uma elevação explo-
siva do risco Brasil medido pelas agências financeiras, uma escala-
da de desvalorização do real e uma tendência altista da inflação,
gerada em grande medida pela elevação do dólar e pelos reajustes
contratados das tarifas públicas.
O ano abriu-se com uma tentativa patrocinada pelo PSDB-PFL,
em parte estimulada pelas vitórias do primeiro em governos estaduais
importantes, de cristalizar no Congresso uma oposição parlamentar
forte ao governo. A coalizão reunida em torno da candidatura Lula,
por si só, não dispunha de maioria no Senado e na Câmara Federal.

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OS CAMINHOS DA TRANSIÇÃO

Além disso, a posse e os primeiros cem dias do governo Lula


coincidiram com o auge do processo de desestabilização do governo
de Hugo Chávez na Venezuela e a guerra contra o Iraque.
O governo Lula foi bem-sucedido nas três frentes cujas dificulda-
des, combinadas, poderiam criar constrangimentos a sua governabilidade.
Os riscos de uma crise cambial imediata foram afastados, projetou-se a
formação de uma maioria parlamentar tendencialmente estável, a
desestabilização de Chávez foi superada (graças, em grande medida, ao
protagonismo mais ativo do Brasil, isolando a conexão de setores da
oposição interna com os Estados Unidos) e o governo brasileiro inscre-
veu-se no amplo coro dos críticos à política bélica e unilateral de Bush.
Há um consenso, no entanto, sobre o fato de que a superação
destas dificuldades iniciais não é suficiente para remover os obstáculos
estruturais à realização do programa do governo Lula. E há uma polê-
mica pública na sociedade, nas bases do governo e no próprio PT
sobre os caminhos da transição do contexto atual para uma situação
que permita um novo ciclo de desenvolvimento, com distribuição de
renda e inclusão social.
Para que esta polêmica tenha um papel construtivo e enriqueça
o governo Lula, ao invés de ser fonte de paralisias e divisões, é im-
portante que ela cumpra três requisitos. Se cumpridos, a discussão
pública destas alternativas não deve ser vista como ameaça mas como
virtude de um governo cuja identidade está justamente vinculada à
sua capacidade nova de contratação política e pactuação social, de
valorização do público e do debate democrático. Compreendido
assim, longe de ser expressão de uma carência de governo, este de-
bate é essencial para o amadurecimento da própria legitimidade da
transição para um paradigma de Estado alternativo ao neoliberal. O
próprio Diretório Nacional do PT, ao definir a realização de dois
seminários, um sobre a política econômica e outro sobre as reformas
da Previdência, confere legitimidade e sentido a este debate público.

Três requisitos

O primeiro requisito é que o debate transcenda o sentido ape-


nas crítico ou negativo, de refutação, apresentando alternativas

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

concorrentes que podem se excluir totalmente ou mesmo ser com-


plementares em certos aspectos. Estas alternativas têm de procurar
mostrar sua viabilidade dentro das possibilidades inscritas no pro-
cesso em curso, considerando os constrangimentos e as potenciali-
dades abertas pela vitória eleitoral de 2002. Isto é, trata-se de um
debate de governo que reclama objetividade e viabilidade, não
podendo ser concebido como mera especulação sobre caminhos
futuros do desenvolvimento. A noção de transição enfatiza exata-
mente condicionamentos, temporalidades e dinâmicas próprias à
condição de governo.
O segundo requisito é que o debate, incorporando toda a
transparência possível de informação e as dimensões técnicas en-
volvidas, acolha também as dimensões éticas, os fundamentos
políticos e as conseqüências sociais das racionalidades econômi-
cas adotadas. As decisões econômicas articulam-se fortemente
com as bases e as alianças políticas do governo e condicionam
centralmente suas políticas sociais. Por sua vez, prioridades e
conteúdos conferidos às reformas estruturais dependem de diag-
nósticos e soluções apoiados em visões de mundo e do Brasil, em
valores e interesses.
O terceiro requisito é a necessidade de que as propostas e os
interlocutores não sejam caricaturados ou desrespeitados em sua
dignidade. Os primeiros meses do governo Lula mostraram algu-
mas atitudes, felizmente não dominantes no debate partidário, que
negam a própria possibilidade do debate. Em particular, vários ór-
gãos da imprensa conservadora ou colunistas neoliberais passaram
a adotar o duvidoso critério de rotular divergências públicas como
radicais, no sentido pejorativo de irresponsáveis, dogmáticas e
irrealistas. Ora, a economia, como a política, não é um lugar de
certezas incondicionadas, de simples oposição entre o certo e o
errado, o falso e o verdadeiro. O pluralismo partidário e das tradi-
ções intelectuais do país não cabe na bitola estreita de um debate
concebido de forma maniqueísta.
A seguir, propomos didaticamente refletir a partir destes
critérios sobre os campos de alternativas estratégicas propostas
ou esboçadas.

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OS CAMINHOS DA TRANSIÇÃO

A proposta do Ministério da Fazenda

O primeiro documento do governo, que traz uma estratégia glo-


bal e de longo prazo, tem o nome de “Política econômica e reformas
estruturais” e traz a assinatura do ministro Antonio Palocci, sendo di-
vulgado pelo site do Ministério da Fazenda (http://www.fazenda.gov.br/
portugues/releases/2003/Politica%20Economica.pdf). Longo, o do-
cumento pretende trazer um diagnóstico histórico dos impasses brasi-
leiros e propõe uma racionalidade econômica que faz projeções até
2011. Não desenvolve as dimensões políticas implicadas, mas englo-
ba em suas proposições não apenas a macroeconomia do governo
Lula, como também as suas políticas sociais. Sua leitura é indispensá-
vel para apreender com justiça toda sua trama argumentativa.
Após sua leitura, fica evidente que as opções macroeconômicas
até agora tomadas pelo governo Lula, a prioridade concedida às
reformas e o conteúdo conferido a elas coincidem com as proposi-
ções do documento. Os conceitos e os diagnósticos contidos nas
inúmeras entrevistas esclarecedoras do companheiro Palocci respal-
dam a convicção de que a estratégia traçada no documento funda-
menta as suas opiniões.
A seguir, sintetizamos em sete pontos as principais proposi-
ções do documento:

1 - Para retomar um crescimento sustentável que garanta a


inclusão social e enfrente os problemas urgentes da fome e da po-
breza é preciso um período de transição que envolva “um processo
de ajuste das condições macroeconômicas e a implementação de
reformas estruturais”.
2 - O principal entrave ao desenvolvimento sustentado é a
dívida pública, que esteriliza o investimento do Estado e mantém
o risco Brasil elevado em função do crescimento de 35% a 55%
da proporção dívida/PIB. Daí a âncora de toda a estratégia: a ga-
rantia de altos superávits primários ao longo dos próximos oito
anos. Estes poderiam variar entre 4,25% a 3,75% do PIB, cres-
cendo quando a economia acelera e diminuindo quando o ritmo
da economia cai (é a adoção de um movimento contracíclico se-

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

veramente limitado pela meta estratégica de garantir um elevado


superávit primário).
3 - O principal entrave à distribuição de renda no país é a
forma como o Estado recolhe e principalmente distribui os seus
investimentos sociais. Isto é, além da estrutura regressiva da tribu-
tação (peso pequeno do imposto de renda e pesada carga tributá-
ria indireta que incide proporcionalmente mais sobre a renda dos
mais pobres), as políticas sociais no Brasil beneficiam menos os
mais pobres. Além de melhorar a eficácia destas políticas sociais
(criando metas e variáveis de controle), seria necessário um esfor-
ço de focalização, priorizando as políticas sociais para os mais po-
bres. As políticas sociais compensatórias deveriam ser centraliza-
das sob um cadastro e uma coordenação únicos.
4 - A vulnerabilidade externa do Brasil pode ser relacionada à
sua pequena abertura ao exterior. Países com maior abertura so-
frem menos com os choques externos. Mais do que o superávit na
balança comercial, é a soma das importações e das exportações
que deve se elevar. A tutela do FMI não é tratada como constrangi-
mento à retomada do crescimento sustentado.
5 - A taxa básica dos juros reais permaneceria próxima aos
valores vigentes nos últimos anos (de 8% a 10% ao ano, além da
inflação). A diminuição dos altos spreads hoje vigentes seria
alcançada por meio do estabelecimento de novo quadro jurídico
(em particular, a Lei de Falências), dando maiores garantias aos
bancos credores. Cooperativas de microcrédito seriam estimula-
das para os pequenos negócios e para a população pobre.
6 - Aliadas a esta política macroeconômica viriam as reformas
estruturais. A prioridade concedida à reforma da Previdência ex-
plica-se pelo fato de ela incidir, ao mesmo tempo, sobre a econo-
mia dos gastos do Estado e sobre a injustiça na distribuição de seus
recursos. A autonomia operacional do Banco Central viria dar
confiabilidade à política cambial definida (livre flutuação do real em
relação ao dólar) e a sua exclusiva centralidade conferida ao con-
trole da inflação por meio dos juros. Da reforma tributária não se
espera um perfil agressivo de mudanças, já que não se pretende
aumentar a relação carga tributária/PIB (que foi elevada a 36% pelo

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OS CAMINHOS DA TRANSIÇÃO

governo FHC), nem se pode prescindir do volume de recursos arre-


cadados para viabilizar os superávits primários almejados. Ajustes
tributários ganhariam assim um perfil moderado, de racionalização,
de renovação do pacto federativo e de redução da regressividade
apenas na margem. Por fim, o documento enfatiza a necessidade
de políticas industriais sem, no entanto, desenvolver setores, metas
e instrumentos a serem mobilizados.
7 - Dois cenários de crescimento são previstos. O primeiro:
2,25% em 2003; 3,5% em 2004; 4% em 2005 e 4,5% em 2006.
O segundo cenário: 2,25% em 2003; 4% em 2004; 4,5% em 2005
e 5% em 2006. Assim, na melhor hipótese, a taxa atual de desem-
prego seria mantida, já que se estima que seja necessário um cres-
cimento anual em torno a 4% para absorver os novos contingentes
de mão-de-obra que aportam anualmente ao mercado de trabalho.
A redução da informalidade viria por meio de uma desoneração do
custo do trabalho. Políticas educacionais “agressivas” operariam
para melhorar a produtividade e alavancar a renda dos trabalhado-
res, embora não seja esclarecido como isto se daria em um quadro
de tão forte superávit primário.

Considerações gerais

A seguir, apresentam-se cinco considerações de ordem geral


sobre a proposta acima a partir do campo analítico-normativo que
vem sendo desenvolvido no Periscópio.
A primeira é que é simplificador classificar de mero continuísmo
a estratégia apresentada em relação à política econômica do go-
verno anterior. O mais rigoroso é dizer, como o próprio ministro
Palocci tem indicado, que se trata de um aprofundamento e de
mudanças no interior de uma mesma racionalidade, tomando como
base o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.
Trata-se da mesma racionalidade em um sentido profundo.
Isto é, o obstáculo central para a retomada do desenvolvimento
está no Estado brasileiro, em seu déficit e em sua estrutura de
privilégios corporativos. As reformas propostas visam criar um
ambiente macroeconômico seguro e virtuoso para as forças de

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

mercado, em um quadro de maior inserção na ordem econômica


internacional. A maior evidência desta continuidade profunda está
no convite a economistas de formação liberal para ocupar pos-
tos-chave na Fazenda, no Banco Central, na Secretaria de Políti-
cas Econômicas e na Secretaria do Tesouro Nacional. E não são,
pois, apenas retóricos os freqüentes elogios de Palocci a Malan.
As críticas importantes feitas à gestão Malan concentram-se no
primeiro mandato de Fernando Henrique, à valorização artificial
do real e ao fato de não ter sido adotada uma política de superávits
primários desde 1994.
Esta racionalidade tem a sua lógica aprofundada em aspectos
decisivos: maiores superávits primários, segunda etapa da Reforma
da Previdência, autonomia operacional do Banco Central. Ou ain-
da gerida de forma qualitativamente mais competente: as políticas
compensatórias introduzidas nos anos finais do governo Fernando
Henrique de forma pragmática e fragmentada segundo interesses
eleitorais passam a receber desde o início um tratamento sistemáti-
co, centralizado e potencialmente mais eficaz.
Há, no interior desta mesma racionalidade, duas mudanças
importantes e substantivas. Trabalha-se com uma pauta microeco-
nômica e com a necessidade de uma política industrial estratégica,
ainda a ser elaborada. Sabe-se que Malan sempre se opôs a isso,
desestabilizando vários ministros do Desenvolvimento.
Uma segunda apreciação diz respeito às evidências empíricas
utilizadas pelo documento para lastrear os seus diagnósticos. Elas
exigem seguramente maior comprovação, podem ser requalificadas
e até contestadas em aspectos decisivos. Os exemplos poderiam ser
multiplicados. A noção central, por exemplo, de que a diminuição da
concentração de renda exigiria focalizar os gastos sociais do Estado
para os mais pobres consta desde o início dos anos 1980 de estudos
e recomendações do Banco Mundial, tendo sido contestada por inú-
meros estudos acadêmicos qualificados. Será que a concentração
de renda no Brasil não tem nada a ver com o valor do salário míni-
mo, com a concentração da propriedade fundiária, com a estrutura
tributária regressiva, com os ganhos do capital diante do trabalho,
com os superlucros do sistema financeiro?

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OS CAMINHOS DA TRANSIÇÃO

O próprio teor argumentativo, a bibliografia utilizada e citada, a


construção dos dados revelam a característica fundamentalmente
monológica do documento, isto é, ele passa por alto pelos grandes
diálogos críticos, pelas grandes tradições interpretativas do Brasil,
clássicas e recentes, por escolas as mais variadas do pensamento
econômico internacional ou nacional. O seu grande diálogo é, na ver-
dade, consigo mesmo, isto é, com aquelas verdades enunciadas e
atestadas em um trecho de uma determinada escola de pensamento.
Uma terceira observação diz respeito aos silêncios do docu-
mento. Quais são as conseqüências do aprofundamento do supe-
rávit primário, estabelecendo-se como piso o máximo praticado na
era Malan? Há como se aumentar o salário mínimo substancial-
mente, enfrentar o arrocho do funcionalismo público, melhorar qua-
litativamente a saúde e a educação públicas, realizar uma reforma
agrária mais ampla ou atacar de frente o atraso nos investimentos
de infra-estrutura ou mesmo recuperar o atraso nos investimentos em
habitação e saneamento com um tal recuo nos gastos do Estado?
Qual destes objetivos seria possível? O documento deveria deixar
claro que tais objetivos não seriam alcançados no período abarca-
do ou teriam suas metas fortemente reduzidas.
Mais importante ainda: como os anos Malan deixaram claro,
aumentos no superávit primário não são garantia de redução da
relação dívida/PIB, que é o objetivo proposto (até 2011, redução
da dívida pública para 35% do PIB). Chega-se a um outro silêncio
espantoso do texto: nos anos 1990, o crescimento explosivo da
dívida pública deu-se basicamente a partir de sua dimensão fi-
nanceira (juros e amortizacão de dívidas); a maior parte do tem-
po houve superávit operacional, isto é, aquilo que o Estado arre-
cadou foi sistematicamente maior do que o montante que o Esta-
do gastou, excluídos seus gastos financeiros. A dimensão finan-
ceira da dívida nem sequer é mencionada no documento e esta
omissão é compatível com a idéia de que os juros reais devem
permanecer no mesmo patamar dos últimos anos.
Um terceiro silêncio: há um grande consenso entre economistas
de distintas tradições, após várias crises cambiais sofridas pelo país,
sobre a redução da vulnerabilidade externa da economia brasileira

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

ser um objetivo estratégico central a ser perseguido. O documento


nem sequer problematiza de forma mais profunda esta questão.
Uma quarta consideração, talvez a principal, diz respeito à
lógica política que fundamenta as opções do documento. Elas pre-
cisam ser esclarecidas e debatidas.
Certamente, a grande atração da estratégia do documento é
fundamentar a viabilidade, a necessidade e o sentido virtuoso de
um caminho de baixa intensidade de conflito com as forças políti-
cas e econômicas que sustentaram o governo Fernando Henrique.
Na estratégia proposta não há um conflito aberto com o FMI (ou
com as agências internacionais que se pautam hoje pelo chamado
“Novo Consenso de Washington”). Em relação ao capital financei-
ro, estabelecem-se as mais nítidas garantias de que os seus interes-
ses continuarão a ser contemplados e priorizados. Ao grande capi-
tal industrial, propõe-se uma linha de políticas desenvolvimentistas
mais ativas. Aos grandes proprietários do campo, compõe-se um
roteiro de uma reforma agrária em escala reduzida.
Além da governabilidade, parece-se por esta via garantir um
diálogo, sem grandes tensões, com os partidos de centro ou até
mesmo conservadores, no Congresso e nos governos estaduais.
Abre-se, inclusive, a perspectiva de ir desarmando a cada passo a
formação de um bloco oposicionista, incidindo mesmo sobre sua
própria identidade.
Estabilizado na sua macroeconomia e política, abrir-se-ia um
cenário propício a avanços setoriais-chave, obtidos pela melhor
administração e pela eficiência das estatais e dos fundos públicos,
de ministérios-chave. O caráter dialogal do governo, sua nova inser-
ção internacional e a superação dos quadros crônicos de corrupção,
uma política de comunicação consistente seriam mais ingredientes
no sentido de gerir a sua popularidade.
O grande problema a ser respondido por esta estratégia de
mudanças de “baixa intensidade” seria, de um lado, a administra-
ção das tensões internas ao PT, da base política mais próxima do
governo, dos movimentos sociais organizados e, de outro, das as-
pirações de mudanças profundas no país que se refletiram nas elei-
ções de 2002.

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OS CAMINHOS DA TRANSIÇÃO

Esta questão remete à última reflexão importante suscitada pelo


documento “Política econômica e reformas estruturais”. Há expe-
riências históricas de partidos de esquerda que foram derrotados
em função de planos voluntaristas de mudança. Mas, nas últimas
décadas, o mais comum é o fracasso de governos eleitos com pro-
messas de mudanças profundas e que foram sendo progressiva-
mente imobilizados por racionalidades continuístas.
Em uma passagem muito expressiva dos Cadernos do Cár-
cere, Antonio Gramsci afirma que “a reforma intelectual e moral é
sempre ligada a um programa de reforma econômica e, assim, o
programa de reforma econômica é o modo concreto através do
qual se apresenta uma reforma intelectual e moral”. Isto é, uma
política econômica dotada de fundamentos liberais é, a longo pra-
zo, incompatível com a própria natureza socialista ou mesmo so-
cialdemocrata de um partido no governo. Uma política econômica
de fundamentos liberais paralisaria o próprio ethos de mudança na
cultura política, a vontade das pessoas, suas crenças, suas espe-
ranças e, ao final, pressionaria para a mudança da própria identida-
de e das bases sociais do partido que a conduz.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Periscópio, edição no 31, novembro de 2003

Por que os economistas


neoliberais erram tanto?

Há razões teóricas de fundo que explicam por que os economistas


neoliberais erram tanto em suas previsões de crescimento econômi-
co. Confiar em suas metas não revela prudência.

Um documento muito citado, de modo referencial e elogioso,


pelo Ministério da Fazenda é a “Nota Técnica” número 25 do Banco
Central, de julho de 2002, de autoria do economista Ilan Goldfajn (www.
bcb.gov.br/pec/notastecnicas/port/2002nt25fiscalsustainabilityp.pdf),
ex-diretor da instituição na gestão Armínio Fraga e hoje seu colega
de trabalho na empresa privada fundada por ele. O documento tem
o nome “Há razões para duvidar de que a dívida pública no Brasil
é sustentável?” e faz prognósticos até 2011 para a economia brasi-
leira, defendendo altos superávits primários para os próximos oito
anos e relacionando-os a cenários de evolução das principais variá-
veis macroeconômicas. Nascido por inspiração de Armínio Fraga e
revisto, entre outros, por Pedro Malan e Joaquim Levy, atual secre-
tário do Tesouro na gestão Lula, a “Nota Técnica” número 25 tem o
interesse especial de ser uma expressão clara da continuidade da
influência do núcleo duro do pensamento da gestão de Fernando
Henrique no novo cenário histórico aberto após a vitória de Lula.

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POR QUE OS ECONOMISTAS NEOLIBERAIS ERRAM TANTO ?

O argumento principal do documento é a defesa da necessi-


dade de altos superávits primários para o público nacional e visa
claramente também convencer os credores internacionais do país,
a quem se procura garantir a sustentabilidade a médio e longo pra-
zos dos padrões da dívida pública. No seu objetivo de apontar ga-
rantias aos credores, chega inclusive a apontar que,

“em uma perspectiva de médio prazo, ativos menos líquidos devem


ser levados em consideração [simetricamente à contabilização de obri-
gações menos líquidas, ou seja, dívida governamental que não vence
no curto prazo] [...] Particularmente, os depósitos do sistema de Pre-
vidência Social, os impostos coletados por todos os níveis do gover-
no, mas ainda não transferidos aos tesouros, os depósitos de todos
os níveis do governo, inclusive depósitos do Tesouro no Banco
Central, totalizam mais de 10% do PIB e são muito líquidos. Natural-
mente, os investimentos de vários fundos constitucionais, os recur-
sos do Fundo de Assistência ao Trabalhador (FAT), outros créditos
governamentais e créditos às empresas públicas são menos líquidos,
mas não de menor qualidade”.

Deste ponto de vista, o trecho central do documento de 26


páginas é o que se segue:

“Desde 1999, o Brasil tem produzido superávits primários significati-


vos e consistentes. Pode-se perguntar se a política atual teria sido
suficiente para impedir o aumento recente da relação dívida/PIB. Uma
resposta positiva daria maior conforto de que a política fiscal atual
pode estabilizar a dívida, até sob condições desfavoráveis, como foi
caracterizado o período 1994-2002. Em uma política de geração de
superávits primários de 3,5% do PIB desde 1995, um pouco inferior
aos 3,75% praticados hoje, e mantendo-se os demais fatores como
observados, a relação dívida/ PIB teria mostrado trajetória declinante,
alcançando 27,8% do PIB em 2002. De fato, nesse contexto virtuoso,
poder-se-iam esperar taxas de juros mais baixas. Admitindo-se a mes-
ma política fiscal e uma redução de 5% nas taxas de juros básicas no
período 1995-1998, o resultado seria um declínio mais acentuado na

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

relação dívida/PIB. Esta relação teria alcançado 23% em maio de 2002,


uma redução de 7% do PIB comparado com o nível de 1995. Essa
trajetória reflete a incidência de uma taxa de juros mais baixa sobre um
estoque da dívida menor. [...] Se o passado for referência para o futu-
ro, esses exercícios sugerem que a ausência de novos ajustes signifi-
cativos na taxa de câmbio real, ou da necessidade de reconhecer quase
10% do PIB de ‘esqueletos’, e com a política atual de geração de
superávits fiscais significativos, a relação dívida/PIB provavelmente
declinará no futuro”.

Este argumento vem sendo repetido obsessivamente por eco-


nomistas liberais, dentro e fora do governo, em diversas circuns-
tâncias. Passa por ser uma verdade inquestionável. E, no entanto, é
escandalosamente frágil, do ponto de vista empírico e de sua coe-
rência interna.
Do ponto de vista factual, de 1999 até hoje a relação dívida
líquida do setor público/PIB tem crescido significativamente, apesar
de taxas crescentes de superávit primário. Entre 1999 e 2002, a
dívida pública teve um crescimento explosivo, passando de 37%
em 1998 para 57% do PIB em 2002. No ano de 2002, por exem-
plo, embora o superávit primário tenha sido de 3,36% do PIB, a
dívida aumentou em 3,96% do PIB, chegando a 56,5% do PIB. Em
2003, como indica o economista Paulo Nogueira Batista Jr. no en-
saio “Macroeconomia da (des)esperança” (Folha de S.Paulo, 30
de outubro),

“o déficit público total praticamente dobrou, passando de 2,75% do PIB


em janeiro/ agosto de 2002 para 5,2% do PIB. Apesar da acentuada apre-
ciação cambial, a dívida líquida do setor público aumentou de 56,5% do
PIB em dezembro de 2002 para 57,7% do PIB em agosto último”.

Isto mesmo considerando o superávit primário recorde de mais


de 5% no período!
Se todas as evidências empíricas contestam a tese neoliberal,
pior para os fatos. Teria sido pior se não tivéssemos feito superávits
primários tão altos nos últimos anos, argumentam. O problema,

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POR QUE OS ECONOMISTAS NEOLIBERAIS ERRAM TANTO ?

alega Ilan Goldfajn, foi que o governo Fernando Henrique não rea-
lizou superávits primários desde 1994. Mas este raciocínio tem al-
guma consistência?

Cinco erros

Há cinco razões fortes para negar consistência ao argumento


de Ilan Goldfajn.
Os três primeiros deles relacionam-se à condicionalidade ante-
posta por Goldfajn aos seus cálculos: “mantendo-se os demais fatores
como observados”. A relação dívida pública/PIB é uma fração. Quan-
to menor o denominador, maior o valor da fração. Ora, é evidente que
restrições severas aos gastos e investimentos públicos tendem a gerar
menor crescimento da economia e, portanto, um PIB menor. Assim, o
baixo crescimento do PIB nos últimos anos – e, em particular, neste
ano – contribuiu para elevar a fração dívida pública/PIB.
A segunda contestação à tese de Ilan Goldfajn vem do fato de
que um menor crescimento do PIB gera menos receitas tributárias, o
que, portanto, tende a aumentar o peso da dívida. Até setembro de
2003, por exemplo, apesar de uma melhoria neste último mês, a
arrecadação de impostos federais caiu 2,83% em relação a 2002.
O terceiro argumento diz respeito à natureza financeira da dí-
vida. O crescimento da relação impostos/PIB, que nas duas gestões
de Fernando Henrique foi de 26% para 35%, foi basicamente em
função da dívida financeira do governo. Ora, o Estado brasileiro
tem retirado uma massa crescente de recursos da economia e pra-
ticamente os tem esterilizado para o pagamento de sua dívida fi-
nanceira. Nada mais recessivo do que esta dinâmica.
O quarto argumento contrário à tese de Ilan Goldfajn refere-
se ao foco. O crescimento da dívida pública no Brasil nos anos
1990 claramente não pode ser explicado pelos gastos não-finan-
ceiros do Estado, sobre os quais incide o superávit primário. Como
afirma o ensaio “Globalização e integração perversa”, de Luiz
Gonzaga Beluzzo e Ricardo Carneiro, editado no boletim Política
Econômica em Foco (boletim quadrimestral do Centro de Estu-
dos de Conjuntura e Política Econômica do Instituto de Economia

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

da Unicamp, disponível em www.eco.unicamp.br/asp-scripts/


boletim_cecon/boletim1/02-Introducao.pdf),

“enquanto porcentagem do PIB, a dívida líquida do setor público prati-


camente dobrou entre junho de 1994 e dezembro de 2002, passando de
30% para 60% do PIB. Os fatores patrimoniais – renegociação de dívi-
das de esferas subnacionais e reconhecimento de esqueletos, descon-
tadas as privatizações – responderam por 37% desse acréscimo. A
maior parcela da ampliação deveu-se à política macroeconômica; altas
taxas de juro e desvalorização do câmbio responderam por 58% desse
aumento; enquanto os fatores fiscais propriamente ditos foram res-
ponsáveis por apenas 5%”.

Isto é, focar nos gastos primários do Estado não atinge o nú-


cleo da dinâmica da expansão da dívida pública. Atualmente, os
juros básicos reais, bastante elevados, aos quais parcela da dívida
pública é fixada, respondem pela continuidade de sua expansão.
Os juros reais fixados pelo Copom do Banco Central foram de
24,8% em 1994, 33,1% em 1995, 16,4% em 1996, 16,3% em
1997, 26,2% em 1998, 15,7% em 1999, 9,9% em 2000, 12,9%
em 2001, 11,1% em 2002 e cerca de 14% em 2003. Ilan Goldfajn
estabelece em seu argumento falacioso um automatismo entre a re-
lação dívida pública/PIB e juros reais menores. Mas em 1995, quan-
do a relação dívida/PIB era quase a metade da vigente, os juros
eram mais do que o dobro dos atuais.
O quinto argumento que problematiza o sentido virtuoso da
absolutização do superávit primário como mecanismo de redução
ou controle da dívida é exposto por Geraldo Biasoto Júnior em
“Limites e sustentabilidade da política fiscal” (Política Econômica
em Foco, mai.-ago. 2003, Unicamp, disponível em www.eco.unicamp.br/
asp_scripts/boletim_cecon/boletim1/06_secao_IV.pdf). Trata-se de um
problema de proporção: a política fiscal manipula fluxos de dimen-
são muito restrita ante os estoques da riqueza que estão em jogo na
dívida líquida do setor público. O imenso sacrifício do setor públi-
co e das políticas sociais afetam na margem o montante da dívida
acumulada. Apenas um exemplo: se nos nove primeiros meses do

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POR QUE OS ECONOMISTAS NEOLIBERAIS ERRAM TANTO ?

ano o superávit primário tivesse sido de 3,75% e não de 5,08% do


PIB, o governo teria mais 14,95 bilhões de reais para gastar. Ou
seja, oito vezes o orçamento previsto em 2003 para o Fome Zero,
o programa social definido como prioritário pelo governo Lula. Por
outro lado, 1% que se reduza na taxa de juros estipulada pelo Ban-
co Central permite, no prazo de um ano, uma economia ao Estado
de cerca de 3,5 bilhões de reais, o que seria, por exemplo, suficien-
te para resolver boa parte dos problemas das rodovias brasileiras
que se encontram em situação de calamidade.
Todos esses argumentos servem para interditar o sentido vir-
tuoso de uma opção que enfatiza unilateralmente a execução de
altas taxas de superávit primário como fator decisivo de controle
da dívida pública, subestimando seus danos imensos às políticas
sociais e ao próprio crescimento da economia.

Previsões erradas

Se o argumento falacioso e inconsistente em relação ao pas-


sado é usado para justificar os oito próximos anos de “vacas ma-
gras” no orçamento público, a expectativa de um futuro luminoso
para a economia brasileira funciona como permanente sinalização
de que o sacrifício imposto será recompensado.
Não se pretende que a ciência econômica seja uma ciência
exata, mas, pelo menos, que se estabeleçam trajetórias e campos
de previsão possíveis. O que espanta é como e tantas vezes os
economistas neoliberais e monetaristas incorrem em erros de pre-
visão sobre o crescimento da economia, caracterizando o que po-
deríamos chamar de verdadeira alienação em relação à dinâmica
de produção, renda e consumo.
O documento de Ilan Goldfajn é muito expressivo a este res-
peito. Tendo atrás de si anos de erros de previsão da equipe de
Malan, o ex-diretor do Banco Central estima como hipótese “bási-
ca” e “conservadora” um crescimento de 3,5% ao ano. Escrito em
julho de 2002, quando o país já estava ameaçado por uma grave
crise cambial, ele adota 2,4% de crescimento do PIB como hipóte-
se pessimista para 2003!

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Não é mera coincidência o fato de que o documento do Minis-


tério da Fazenda “Política econômica e reformas estruturais” (http://www.
fazenda.gov.br/portugues/releases/2003/Politica%20Economica.pdf),
de abril de 2003, tenha trabalhado com a hipótese básica aproxi-
mada de um crescimento de 2,25% do PIB em 2003. Até agosto,
ainda se falou em 2% de crescimento do PIB este ano; depois, 1,8%;
depois, 0,9% e a última previsão do IPEA trabalha com 0,5%. Um
erro de 300% ou 400% sobre a variável fundamental da economia!
Por que um erro tão grande? A resposta é que o campo de
visão dos neoliberais e monetaristas carrega pressupostos que lhe
tolhem fortemente a capacidade preditiva. Em primeiro lugar, su-
bestima a variável vulnerabilidade externa nos ciclos econômicos
dos países periféricos ou semiperiféricos. Em segundo lugar, é dou-
trinariamente avesso a reconhecer o papel dos gastos públicos em
uma lógica de crescimento, alimentados por uma cega ótica dos
mercados. Em terceiro lugar, desconsidera a importância decisiva
da elevação sustentada do emprego e da renda para um cresci-
mento continuado da economia. E, como superestima a função das
expectativas racionais dos agentes econômicos privados, incorpo-
ra o otimismo reiterado sobre um novo ciclo de crescimento como
variável operada pela política econômica.

Ritmo, qualidade e duração

Neste fim de ano de 2003, as autoridades econômicas e vá-


rias fontes do chamado mercado financeiro convergem para uma
estimativa de crescimento do PIB brasileiro da ordem de 3,5% em
2004. Como não se explicou as razões do erro de previsão em
relação a 2003, cabe discutir os condicionantes da previsão.
A questão é publicamente polêmica. Há, de um lado, econo-
mistas afirmando que as condições para um novo ciclo continuado
de crescimento foram já criadas com a dura reconquista da estabi-
lidade neste ano. Há, de outro, os que afirmam que tais condicio-
nantes são frágeis, contraditórios e insuficientes.
É possível traçar um campo consensual mínimo: o de que os
indicadores dos últimos meses do ano – como fruto da redução

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POR QUE OS ECONOMISTAS NEOLIBERAIS ERRAM TANTO ?

dos juros, das iniciativas de microcrédito, do estímulo ao consumo


de baixa renda via transferência direta de recursos, de estímulos
setoriais de emergências concedidos (eletrodomésticos, automó-
veis), do acréscimo sazonal de consumo da época natalina, soma-
dos ao crescimento das exportações – permitiram estancar a re-
cessão da economia e iniciar um crescimento lastreado no consu-
mo. Mas são incertos os ritmos do crescimento: a qual taxa cresce-
remos em 2003? O padrão de crescimento gerará empregos, signi-
ficará inclusão social e alguma distribuição de renda? E a susten-
tabilidade do crescimento? Ele será continuado ou se chocará com
as restrições externas, as carências de financiamento do investi-
mento ou de infra-estrutura?
O mais prudente é supor que tais dinâmicas dependem forte-
mente de decisões a serem tomadas pelo governo, do acordo com
o FMI, do grau de flexibilização do corte nos gastos públicos, da
taxa em que se estabilizar os juros básicos da economia, enfim, de
estratégias e políticas que gerem superávit comercial, mais empre-
gos, serviços essenciais e renda para os brasileiros.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Periscópio, edição nº 38, agosto de 2004

Uma nova aposta


no desenvolvimento?

Em meio a notícias que dão conta de uma nova conjuntura de recu-


peração econômica, o governo Lula cria a Câmara de Política de
Desenvolvimento Econômico, formada por 14 ministros e coordena-
da pelo ministro José Dirceu. Por seu peso e suas atribuições, a
Câmara pode vir a ser estratégica para a superação dos limites
estruturais impostos ao crescimento sustentado, com distribuição de
renda e inclusão social.

Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, de 17 de julho de


2004, a idéia de criar a Câmara de Política de Desenvolvimento
Econômico data do fim de janeiro, quando foi realizada a primeira
reforma ministerial do governo Lula, tendo sido interrompida pela
crise provocada pelo episódio Waldomiro Diniz (“Presidente cogi-
tou até dividir ministério”, matéria de Vera Rosa). Neste sentido,
ela pode ser entendida como a expressão possível de um retorno
ao centro do governo Lula da necessidade de transitar de um mo-
delo de gestão neoliberal para uma ação mais integrada, sistêmica e
atuante do Estado na economia brasileira.
Nos anos FHC, marcados pelo absoluto e incontrastável predo-
mínio do Ministério da Fazenda sob a gestão Malan, a estrutura de

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UMA NOVA APOSTA NO DESENVOLVIMENTO ?

poder e de decisões do governo central foi basicamente deslocada


para um centro de gravidade estritamente aproximado dos interesses
financeiros e do ajuste fiscal. Isto se manifestava, de um lado, no
isolamento dos centros de decisão do Ministério da Fazenda das
pressões da sociedade e dos ministérios da área social e, de outro,
no esvaziamento dos ministérios, bancos e órgãos estatais voltados
para uma postura desenvolvimentista ativa. A agenda do desenvolvi-
mento do país ficava, então, completamente subordinada à dinâmica
definida pela gestão monetarista da economia. Esta é a primeira ra-
zão da importância da Câmara de Política de Desenvolvimento: criar
um novo espaço institucional para operar a legitimidade de uma nova
agenda do desenvolvimento.
A segunda razão pela qual a Câmara de Política de Desenvolvi-
mento Econômico pode ser estratégica está no seu caráter integrador
e sistêmico. Compõem a Câmara os ministros do Desenvolvimento
Agrário, Minas e Energia, Relações Exteriores, Trabalho, Ciência e
Tecnologia, Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Integração
Nacional, Turismo, Planejamento, Fazenda, Secretaria de Coordena-
ção Política, Agricultura e Secretaria de Desenvolvimento Econômi-
co. Passa a ser o local por excelência da criação de coerência e sinergia
entre, por exemplo, os investimentos em reforma agrária e agricultura
familiar e o crescimento da economia, entre os investimentos em infra-
estrutura de energia do país e um novo plano de desenvolvimento. O
próprio conceito de desenvolvimento passa a ter um sentido menos
economicista e menos vinculado à dinâmica dos mercados.
A terceira razão reside, enfim, na estabilização e na legitimação
pública das funções de coordenação do ministro José Dirceu no
governo Lula. Neste último semestre, tornou-se muito visível uma
verdadeira campanha promovida por setores políticos, do PSDB e
do PFL, bem como por órgãos da mídia mais vinculados aos inte-
resses financeiros e à agenda neoliberal voltada a enfraquecer e, se
possível, obter a saída do ministro José Dirceu. A partir deste novo
posicionamento do ministro, podem ser restabelecidos e arejados
os canais de diálogo com os setores sociais e com economistas que
vêm defendendo desde o início de 2003 um novo modelo de de-
senvolvimento para o país.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Uma nova conjuntura econômica?

A criação da Câmara Política de Desenvolvimento Econômi-


co coincide com uma série de informações que dão conta de uma
nova conjuntura econômica do país. Após a recessão de 2003, a
maioria dos analistas trabalha hoje com um piso de crescimento
para este ano de 3,5%, basicamente apoiado na continuidade de
uma forte expansão das exportações e no início de uma recupera-
ção do mercado interno. A combinação destas duas dinâmicas pa-
rece indicar para os próximos meses alguma recuperação conjunta
do emprego e da renda.
A pergunta é: como pode se dar este crescimento do PIB em
meio a um ambiente ainda marcado por elevadas taxas de juros,
forte limitação dos gastos públicos e recuperação tímida do em-
prego e da renda após anos seguidos de deterioração? A resposta
é que ele é fundamentalmente devido ao crescimento das exporta-
ções e seus efeitos multiplicadores. As exportações não dependem
do mercado interno e contam com linhas públicas de financiamento
com juros menores (Banco do Brasil e BNDES). E é sobre esta dinâ-
mica nova que a análise deve se deter.
Várias fontes estimam que em 2004 as exportações devem
chegar a cerca de 88 bilhões de dólares, contra 73 bilhões do ano
passado (“O desafio é diversificar”, Valor Econômico, 16 de ju-
lho). Este crescimento de cerca de 20% em um ano em que as
exportações devem ultrapassar 15% do PIB esclarece que somente
as exportações serão diretamente responsáveis por um crescimen-
to do PIB este ano superior a 3%.
No ensaio “Os limites da inserção comercial da economia bra-
sileira” (Economia Política Internacional: Análise Estratégica,
no 1, jul./set. 2004, disponível em www.eco.unicamp.br/ceri/bole-
tim/boletim/04-prates.pdf), a professora da Unicamp Daniela Ma-
galhães Prates indica quatro variáveis explicativas deste boom ex-
portador. Os preços internacionais das commodities permanecem
em um patamar elevado e continua a haver uma dinâmica de cres-
cimento da economia mundial, especialmente nos principais países
de destino de nossas exportações (Estados Unidos, China e Ar-

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UMA NOVA APOSTA NO DESENVOLVIMENTO ?

gentina). Em terceiro lugar, o câmbio desvalorizado torna as expor-


tações brasileiras mais competitivas enquanto o mercado interno
continua limitado. Por fim, o dólar acima de três reais melhora a
competitividade dos produtos brasileiros.
De acordo com Júlio César Gomes de Almeida, diretor-exe-
cutivo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial
(IEDI), 77,3% das exportações de janeiro a maio de 2004 na com-
paração com o mesmo período de 2003 eram de baixa e média-
baixa intensidade tecnológica e 22,7% de média-alta e alta tecno-
logia. Segundo a classificação da Organização para a Cooperação
e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), commodities, aço, ves-
tuário, alimentos, têxtil e calçados são considerados de baixa e média
tecnologia; aviões, indústrias químicas, petroquímicas, automobi-
lísticas, materiais e equipamentos de precisão, bens de capital, ele-
trodomésticos e telecomunicações entram na classificação de média
e alta tecnologia. Apesar da alta concentração em baixa e média-
baixa tecnologia, houve neste primeiro semestre um crescimento de
53,1% das exportações de automóveis em relação a igual período
do ano passado.
Esta nova conjuntura econômica pode ser pensada como, ao
mesmo tempo, de mudança e de continuidade em relação aos anos
1990. A inovação fundamental é a da possível expansão do supe-
rávit comercial este ano, mesmo diante do crescimento das impor-
tações, para o recorde de 28 bilhões de dólares. Pelo segundo ano
consecutivo, tal superávit contrasta fortemente com os anos FHC de
reiterados e rombudos déficits da balança comercial brasileira. Este
superávit comercial é essencial para financiar o elevado serviço anual
do passivo externo brasileiro (remessa de juros, lucros e dividen-
dos), estimado em cerca de 20 bilhões de dólares. Isto é, ele dimi-
nuiu a dependência de capitais externos e, portanto, a vulnerabilidade
da economia brasileira.
A continuidade fundamental e grave em relação ao período
anterior está ainda no precário dinamismo do mercado interno e,
portanto, na queda de sua participação relativa no PIB brasileiro. O
consumo das famílias, substrato de nosso “mercado interno”, caiu
drasticamente de 62,7% em 1997 para 56,9% do PIB em 2003,

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

como mostra Adriana Nunes Ferreira no ensaio “O consumo das


famílias e a retomada do crescimento” (Política Econômica em
Foco, no 3, disponível em www.eco.unicamp.br/asp-scripts/bole-
tim-cecon/boletim 3/seção IV-final.pdf). Isto é, o padrão de ges-
tão macroeconômica ainda em vigor – baseado no tripé desregulação
de fluxos financeiros/câmbio flutuante, metas de inflação e superá-
vit primário – incentiva o crescimento da heterogeneidade e da de-
sigualdade da sociedade brasileira. Setores vinculados à exporta-
ção e ao consumo de alta renda tendem a crescer mais enquanto
aqueles ligados ao consumo de baixa renda e ao consumo de mas-
sa tendem a ficar estagnados ou ter baixo crescimento.

A opressão financeira

A grande maioria dos economistas críticos à continuidade dos


princípios de gestão macroeconômica do segundo governo FHC na
gestão Lula centrou-se nos limites estruturais externos à retomada
de um crescimento sustentado da economia brasileira. Apoiava-se,
de um lado, em um raciocínio analógico: as retomadas do cresci-
mento iniciadas em 1992, 1998 e 2001 foram barradas por crises
cambiais, que levaram inclusive à intervenção direta do FMI. E, de
outro, em elementos decisivos de avaliação: a dependência de ca-
pitais externos para fechar o balanço de pagamentos, a precarieda-
de das reservas internacionais, a exposição daí resultante aos flu-
xos especulativos internacionais dos capitais financeiros. O boom
das exportações brasileiras em 2003 e 2004 veio mudar parcial-
mente este quadro no curto prazo.
A relativa e mesmo provisória melhora da pressão externa
sobre a economia brasileira permite clarificar o fundamento do obs-
táculo central que permanece à retomada do crescimento sustenta-
do. Isto é, o governo Lula com seu protagonismo na agenda co-
mercial do país, favorecido por uma excelente conjuntura interna-
cional, tem conseguido aliviar a pressão externa sobre a economia,
devendo inclusive, pela primeira vez desde 1999, dispensar um
acordo com o FMI. Mas ele não tem sido ainda capaz de apontar
para a superação da financeirização do país, isto é, de superar aque-

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UMA NOVA APOSTA NO DESENVOLVIMENTO ?

las políticas e decisões que implicam um contínuo deslocamento de


renda para o setor financeiro em detrimento do investimento e do
consumo interno.
Em 2003, União, estados e municípios acumularam um supe-
rávit primário de 66 bilhões de reais, equivalente a 4,32% do PIB.
Mas a conta de juros chegou a 145,2 bilhões (9,49% do PIB), se-
gundo dados do Banco Central. Para 2004, o superávit primário,
equivalente a 4,25% do PIB, será de 70,8 bilhões de reais. Mas a
conta de juros, segundo estimativas do Banco Central, chegará a
120 bilhões de reais. Apenas com a decisão do Banco Central de
manter a taxa de juros básica em 16%, se estendida até o final do
ano como avalia o mercado, o governo gastará 15 bilhões de reais
acima do previsto no Orçamento. Apenas em junho, de acordo
com dados do Banco Central, a dívida líquida do governo federal
em títulos cresceu quase 10 bilhões de reais.
Esta verdadeira opressão financeira inibe os investimentos
do Estado, os investimentos privados e o consumo. É o núcleo da
continuidade da época neoliberal no governo Lula. Ela está na
raiz do impasse do desenvolvimento brasileiro e só pode ser
vencida por um grande pacto democrático que unifique todos os
setores interessados na superação dos anos de crescimento par-
co e lucros recordes daqueles que especulam com a renda e o
futuro dos brasileiros.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Parte 3
O futuro da esperança:
um paradigma republicano
para o Brasil

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A LONGA VIAGEM DO NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Periscópio, edição no 30, outubro de 2003

A longa viagem do nacional-


desenvolvimentismo

O encontro histórico do PT com a tradição nacional-desenvolvimen-


tista precisa ser justamente valorizado no governo Lula. Ela trouxe
para a experiência petista a força de raiz da identidade nacional, o
seu conhecimento amoroso do país, a cultura do reformismo desen-
volvimentista e a noção-chave da soberania nas relações com a or-
dem internacional. Por sua vez, o encontro com o PT tem permitido a
esta tradição de centro-esquerda reposicionar-se perante as forças
sociais e políticas do país, criando um espaço propício para a supe-
ração de suas históricas limitações.

Se não existisse, a crítica liberal ao governo Lula deveria ser


inventada. É que, mesmo em seu desequilíbrio, até em sua retórica
e em seus juízos desarrazoados, ela contribui para esclarecer os
dilemas e perspectivas da política brasileira.
Neste ano, a crítica liberal tem feito, quase como obsessão,
uma campanha sistemática contra as personalidades mais vincula-
das à tradição nacional-desenvolvimentista no governo Lula. O ar-
tigo de Luiz Carlos Mendonça de Barros, ministro das Comunica-
ções e presidente do BNDES no governo Fernando Henrique,
intitulado “Lula e seus dois governos” (Folha de S.Paulo, 5 de

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A LONGA VIAGEM DO NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO

setembro de 2003) é uma peça exemplar desta obsessão. Nela, o


articulista, que parece ter o desequilíbrio racional quase como uma
identidade de caráter, após localizar no BNDES, no Ministério das
Minas e Energia e na Eletrobrás os “bolsões de resistência” do
nacional-desenvolvimentismo, dispara:

“Alguns de seus marcos operacionais [do BNDES] são a reestatização e


a implementação de um sistema soviético de regulação do setor elétri-
co, a restrição a empréstimos do banco a empresas nacionais de con-
trole de capital estrangeiro e a utilização de empréstimos em países do
Mercosul como instrumentos de hegemonia política”.

Mendonça de Barros chega a afirmar que o BNDES está sufo-


cando a Eletropaulo! Aquela empresa que foi privatizada durante a
gestão tucana, passando a ser controlada pela empresa norte-ame-
ricana AES, a qual recebeu empréstimos de 1,2 bilhão de dólares do
BNDES para comprar a estatal, enviou lucros irresponsavelmente para
o exterior, declarou prejuízo, deu calote no BNDES e furtou-se à
cobrança judicial, acobertando-se em uma subsidiária fantasma re-
gistrada nas ilhas Cayman, por sua vez controlada por outras três
firmas sediadas em paraísos fiscais...
Isso não impede Mendonça de Barros de chamar a gestão
tucana anterior do BNDES de virtuosa e Carlos Lessa, o presidente
atual, de um homem “sem experiência bancária e administrativa”. A
revista Veja de 24 de setembro de 2003 chega a propor Henrique
Meirelles, ex-presidente do Banco de Boston e atual presidente do
Banco Central, para ocupar o posto do BNDES. Lessa, ex-professor
de economia da Unicamp e da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, por mais de 25 vezes patrono de formandos, já trabalhou
na ONU por dez anos, participou da criação do Pólo Petroquímico
de Camaçari, coordenou o Plano Estratégico do Rio de Janeiro de
1993 a 1995 e foi superintendente da área social do BNDES de 1985
a 1989. Para ocupar seu posto no BNDES, deixou a reitoria da UFRJ,
para a qual foi eleito com 85% dos votos.
Assim, a crítica liberal desvaloriza o que não tem preço e
enaltece personalidades sem experiência de gestão pública, sem

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

obras de pensamento e sem idéias originais, mas que têm seu preço
muito nítido no mercado financeiro. Estabelecer o valor de uma
tradição na cultura política significa atualizá-la diante dos desafios
do presente. Se ela é tradição, e não apenas passado, resta de-
monstrar o seu valor para o futuro dos brasileiros.

Juízo equivocado

O primeiro diagnóstico liberal a ser contraditado é que as con-


junturas brasileiras mais recentes vêm depreciando o legado nacio-
nal-desenvolvimentista. Uma apreciação isenta dos programas,
problemáticas e valores colocados dramaticamente nas eleições pre-
sidenciais de 2002 mostraria que os principais candidatos move-
ram-se em torno à crise do paradigma neoliberal e à retomada de
temas e soluções excluídos da agenda nos anos 1990. O próprio
candidato do PSDB, José Serra, que obteve 32,3 milhões de votos e
é até agora o candidato mais visível à presidência do PSDB, tem a
sua trajetória e a sua identidade vinculadas em alguma medida à
tradição nacional-desenvolvimentista.
A crítica à positividade atribuída à noção de nacional, a apo-
logia do sentido virtuoso dos mercados desregulados, a rejeição
aos papéis ativos do Estado na economia foram os eixos críticos
do neoliberalismo à tradição nacional-desenvolvimentista nos anos
1990. A cultura brasileira nos anos recentes tem revalorizado exata-
mente o que antes era criticado.
A recriação da Sudene e da Sudam, do planejamento regional
e a vitalidade e a nova dignidade conferidas ao Planejamento Plu-
rianual recolocam o tema do planejamento público na cena brasi-
leira. Um novo plano de investimentos sistêmicos em infra-estrutu-
ra, de longo alcance e maturação, foi lançado. O desafio de crescer
com inclusão social passa a ser decisivo. A força criativa da Petrobras,
aos 50 anos de sua fundação, está prestes a conferir ao país a
auto-suficiência no abastecimento de petróleo. O BNDES, outra ins-
tituição-chave criada no período nacional-desenvolvimentista, reor-
ganiza seus marcos de atuação de fomento à indústria a partir de
um plano estratégico e alimenta os programas de crédito com fina-

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A LONGA VIAGEM DO NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO

lidades mais diretamente sociais, prevendo um orçamento para o


próximo ano de 47 bilhões de reais.
E, principalmente, as iniciativas internacionais do Brasil – for-
talecendo o Mercosul, reorientando a dinâmica de negociação com
a ALCA, organizando uma poderosa e histórica frente de países
semiperiféricos ou periféricos nas negociações na OMC – alimen-
tam-se da tradição latino-americanista e terceiro-mundista dos anos
que precederam o regime militar.
O sentimento nacional, desenvolvimentista e distributivista dos
brasileiros encontra-se deprimido, desesperançado? A riqueza das
idéias que constituíram, no século XX, junto com o movimento mo-
dernista de 1922, nossa auto-estima e nossa identidade civilizatória
está extinta? Ou está irradiando-se, contraditoriamente e com me-
diações, até nos próprios arraiais da intelligentsia do PSDB? O nú-
mero da revista Primeira Leitura de setembro de 2003 traz na
capa a chamada “FGV, a boa teoria”. Na matéria, o economista
Yoshiaki Nakano, secretário de Fazenda de São Paulo na gestão
Mário Covas, fala da recém-criada Escola de Economia de São
Paulo, da Fundação Getúlio Vargas. A nova escola pretende reno-
var o ensino de economia no país. Nakano afirma: “No mundo da
teoria, o mercado é perfeito, o conhecimento é perfeito, o custo de
transação é zero. E no mundo real não existe isso”. E acrescenta:

“Em nenhum país no mundo o processo de desenvolvimento se deu


simplesmente com atração de capital estrangeiro como se o desenvol-
vimento fosse algo que viesse por geração espontânea. Tem de ter um
projeto nacional”.

E critica o governo Lula por não ter desenvolvido adequada-


mente, em sua opinião, este tema.

Uma história latino-americana

A presença mais nítida dos valores e idéias nacional-desen-


volvimentistas na cena brasileira deve ser entendida como parte de
um fenômeno latino-americano. De fato, embora tenha vivido uma

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

floração e uma maturação particulares no Brasil, o nacional-


desenvolvimentismo tem sua trajetória estreitamente vinculada à
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal),
fundada pelo economista argentino Raul Prebisch.
Em seu prefácio ao livro Cincuenta años de pensamiento en
la Cepal – Textos seleccionados (Fondo de Cultura Económica,
1998), o historiador das idéias econômicas Ricardo Bielchovski
periodiza sua evolução em cinco décadas desde 1948: de 1948 a
1960, defesa de políticas estatais ativas em favor da industrializa-
ção substitutiva de importações; de 1960 a 1970, reforma agrária e
distribuição de renda como requisitos para redinamizar a econo-
mia, defesa da integração latino-americana; de 1970 a 1980,
problematização da dependência, do endividamento financeiro, da
insuficiência exportadora; de 1980 a 1990, crise e necessidade de
combinar ajustes fiscais com crescimento; de 1990 a 2000, desafio
de fortalecer a transformação produtiva com eqüidade.
Após o seu auspicioso ciclo de formação e expansão até os
anos 1970, a história da Cepal nas últimas três décadas foi profun-
damente marcada por três grandes mudanças.
A primeira foi a emergência das ditaduras latino-americanas,
que minou a base política histórica reformista da Cepal. Em parti-
cular, entre 1973 e 1989, anos da ditadura Pinochet, como nos
lembra Bielchovski,

“a sede da Cepal no Chile perdia aquele que havia sido até então um de
seus principais ativos, o poder de convocatória da intelectualidade
latino-americana. Economistas, sociólogos, tecnocratas e políticos de
tradição democrática e progressista simplesmente deixaram de poder
ou querer circular no Chile”.

Abria-se uma importante brecha na história latino-americana


com a Argentina, o Uruguai e o Chile sendo submetidos a regimes
monetaristas esterilizadores da industrialização, ao contrário do
Brasil e do México, que mantiveram dinâmicas industrializantes.
A segunda grande mudança ocorreu na economia mundial, com
a crise de 1973-1974, indicadora do fim do longo ciclo expansivo

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A LONGA VIAGEM DO NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO

do pós-guerra e inauguradora de uma nova fase do capitalismo mun-


dial marcada pelas dinâmicas da financeirização. A continuidade da
expansão latino-americana nos anos seguintes apoiou-se em larga
medida no endividamento externo, que assumiria uma dimensão ex-
plosiva no início dos anos 1980, com as crises cambiais no México e
no Brasil. Desde então, as economias latino-americanas se viram,
em geral, envolvidas em padrões crônicos de estagnação ou baixo
crescimento, imersas em crises financeiras recorrentes. O pensamento
da Cepal adquiriu, nestas conjunturas históricas, um nítido caráter
defensivo e de ajuste, distante de suas raízes desenvolvimentistas.
A terceira grande mudança foi de ordem cultural, com a crise
das tradições keynesianas e o domínio apologético das teorias eco-
nômicas neoliberais, profundamente hostis à perspectiva cepalina.
Como mostra Flávio Versiani em “A Teoria Geral e a economia do
subdesenvolvimento” (In: Pesquisa e Planejamento Econômico,
vol. 16, no 2, agosto/1986), a expansão da cultura keynesiana no
pós-guerra, ao minar as bases do pensamento clássico econômico
liberal em aspectos fundamentais, como as teses da possibilidade
de situações de equilíbrio de mercado não-ótimas do ponto de vis-
ta social, como a racionalidade do protecionismo em certas cir-
cunstâncias, contribuiu de modo decisivo para a emergência de um
pensamento autônomo latino-americano. Com a crise do keynesia-
nismo, o próprio pensamento da Cepal chegou a procurar com-
patibilizar sua histórica vocação desenvolvimentista com teses do
chamado “Consenso de Washington”.
Na década de 1990, foram os trabalhos do economista Fer-
nando Fajnzylber que marcaram a tentativa de recolocar a proble-
mática desenvolvimentista no centro da agenda, com o tema “Cres-
cimento com eqüidade”. Em seu trabalho, “Industrialización en
America Latina: de la ‘caja negra’ al ‘casillero vacío’ – Compara-
ción de padrones contemporáneos de industrialización” (Nueva
Sociedad, no 118, março/abril 1992, p. 21-28; disponível em
www.nuevasoc.org.ve/upload/articulos/2086_1.pdf), ele mostrava
que, no continente, o quadro de crescimento com boa distribuição
de renda está vazio de exemplos. Centrado no tema do progresso
técnico como chave, o documento propõe estratégias de inserção

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

internacional, com um desenvolvimento teórico insuficiente das re-


lações entre progresso técnico, emprego e distribuição de renda.
É interessante registrar que tem havido sinais recentes de uma
retomada de temas estruturalistas. O estudo da Cepal publicado
em maio de 2002 Globalização e desenvolvimento, especialmente
o capítulo 3 (“Desigualdades e assimetrias da ordem global”), reto-
ma colocações clássicas do estruturalismo e enfatiza o aumento da
distância em termos de renda per capita entre o centro capitalista e
as zonas periféricas justamente nos anos de reformas neoliberais na Amé-
rica Latina e no mundo (ver www.eclac.org). Outro documento impor-
tante relacionado com as elaborações mais recentes da Cepal é o
balanço crítico das reformas neoliberais na América Latina. Está em
Crescimento, emprego e eqüidade: O impacto das reformas econô-
micas na América Latina e Caribe, de Barbara Stallings e Wilson
Peres (Editora Campus, 2002).

A economia política do desenvolvimentismo

Este panorama geral dos impasses do projeto desenvolvimen-


tista da Cepal no continente fornece uma contextualização para o
caso brasileiro. Por um certo ângulo de leitura, a história brasileira
desde 1964 pode ser interpretada a partir dos impasses do nacio-
nal-desenvolvimentismo.
Pode-se falar aqui, no plano da cultura política, de três mo-
mentos de desconstrução do nacional-desenvolvimentismo.
O primeiro foi operado a partir de dentro do regime militar,
cindindo a própria noção de desenvolvimento, separando crescimento
econômico de formação da Nação, em seu sentido social, distributivo
e inclusivo. Os grandes personagens desta operação de cisão no
plano da cultura foram Roberto Campos, Delfim Netto e Mário Hen-
rique Simonsen, que souberam pensar as sincronias da acumulação
capitalista com o projeto de fortalecimento do Estado nacional que
teve em Golbery do Couto e Silva seu principal formulador.
A segunda desconstrução foi operada pela esquerda, a partir da
crítica às insuficiências, ambigüidades e carências do nacional-
desenvolvimentismo. Seria necessário um estudo à parte para exami-

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A LONGA VIAGEM DO NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO

nar o que havia de correto, desproporcionado ou mesmo injusto nes-


tas críticas. Aqui, trata-se apenas de identificá-las: a desconsideração
histórica de haver industrialização latino-americana nos quadros da
dependência que veio junto à crítica da existência da possibilidade de
haver burguesias locais com projetos nacionais; a desconsideração do
grau de conflito distributivo de interesses inscritos nos projetos
desenvolvimentistas, em particular entre capital e trabalho, em nome
do sentido nacional; a não-superação teórica clara e definitiva de cer-
tos conceitos e raciocínios típicos das teorias liberais, o que impedia
os teóricos da Cepal de diagnosticar as dinâmicas cíclicas da acumu-
lação capitalista; o precário desenvolvimento de uma ciência política
democrática, abrindo o flanco para todo o tipo de distorções geradas
por um processo de expansão do Estado sem controle democrático.
Seria necessário, no entanto, distinguir claramente as duas
principais linhas de desenvolvimento desta crítica. A primeira, li-
derada por Fernando Henrique Cardoso, foi ganhando crescen-
temente uma identidade e uma direção liberais. Outra tem no es-
tudo de Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista (1972),
seu momento mais expressivo e mantém um diálogo importante
com a tradição das idéias encarnadas no Brasil por Celso Furta-
do. Seria importante nesta linha considerar todo o trabalho crítico
de reelaboração e atualização desta tradição irradiada pela pro-
fessora Maria da Conceição Tavares.
Sem dúvida, a geração e a expansão destas críticas tiveram
em certas dinâmicas de setores da intelectualidade universitária
paulista os seus grandes atores. A conseqüência desta desconstrução
foi a separação de mundos entre a esquerda classista nascente,
cujo tronco central é o PT, e a cultura nacional-desenvolvimentista.
Os seus intelectuais mais poderosos encontraram, então, abrigo no
MDB e, depois, no PMDB. E foi no governo Sarney, no solo minado
de um partido de centro passando por uma crise de identidade, que
economistas nacional-desenvolvimentistas, radicados na Unicamp,
fizeram sua aposta de estabilização e crescimento da economia por
intermédio do Plano Cruzado.
O sentido muito nítido de fracasso que se seguiu foi capitaliza-
do na terceira desconstrução do nacional-desenvolvimentismo. O

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

nascimento do PSDB, com sua crítica programática a essa tradição,


e o manifesto de lançamento da candidatura de Mário Covas, de-
fendendo um “choque de capitalismo” como saída para o Brasil,
construíram um caminho novo para o centro brasileiro, ao mesmo
tempo liberal e conservador. O intelectual central nesta operação
foi justamente Fernando Henrique Cardoso.

Resistência e utopia

“Escrever romances”, disse uma vez um escritor, “é como fa-


lar das pessoas que amamos e que correm risco de vida”. Aqueles
que analisam a cultura política como um espaço dos frios jogos da
razão nada sabem da dramaticidade deste território da vida social.
Ali também é o lugar de mortes e renascimentos, de amargura e
esperança, de resistência e utopia.
Quando escutamos a voz dramática de uma Maria da Concei-
ção Tavares dizendo “este é o meu governo mesmo que não concor-
de com o que vem predominando em suas políticas econômicas”, tal
frase tem o seu peso e a sua história. Há ali a expressão sincera e
derramada, visceral mesmo, de quem permanentemente conformou
o seu ser ao destino da nação brasileira. E que, depois de longos
anos de exílio, crê que o governo Lula seja, enfim, a sua casa.
Terá o nacional-desenvolvimentismo, amadurecido por sua
experiência histórica, encontrado realmente a sua casa? Ouçamos
a voz serena de Celso Furtado. Já em O mito do desenvolvimen-
to econômico, de 1974, ele lançava a hipótese de que no quadro
da industrialização dependente da periferia, em uma direção opos-
ta à das elites, a

“evolução das classes trabalhadores se [faria] no sentido de crescente


identificação com as sociedades nacionais a que pertence, ou melhor,
com um projeto de desenvolvimento social que pode ser monitorado a
partir do Estado de cujos centros de decisão participam”.

Em um livro de outubro de 1998, quatro anos antes da vitória


de Lula nas eleições presidenciais, Visões da crise (Rio de Janeiro,

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A LONGA VIAGEM DO NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO

Editora Contraponto), Carlos Lessa nos deu uma preciosa e pre-


monitória entrevista. Nela, diz:

“Estou envolvido, há três ou quatro anos, com questões completamente


novas para mim, que têm me custado muito esforço, mas estão situadas
fora do campo da economia. Tenho lido como um garoto de colégio.
Tudo porque cheguei à conclusão de que a construção de qualquer
projeto voltado para o futuro do Brasil precisa, como pré-requisito, reto-
mar duas questões fundamentais: a da identidade nacional e a da auto-
estima. Sem se reconhecer e sem se considerar capaz, um povo perde a
possibilidade de sonhar e ter utopias, deixa de ser sujeito de sua própria
história, e passa à condição, digamos, de material etnográfico. Quando
isso se instala, as grandes idéias desaparecem e, com elas, as grandes
opções, inclusive as de natureza econômica”.

Diagnosticava, então:

“Hoje não somos capazes de sustentar macroidéias. Caímos logo no


argumento do contador: não temos recursos, não temos competência,
falta isso, falta aquilo. E matamos tudo no nascedouro. Lamentavel-
mente, o discurso hoje dominante é o do fracasso e da culpa”.

E propunha:

“Ora, todas as sociedades precisam de uma noção de temporalidade


estendida, uma ligação entre o passado e o futuro. Essa necessidade é
especialmente viva no Brasil, porque aqui sempre convivemos com a
idéia de que o passado nos condenava, mas o futuro nos redimiria. A
sociedade brasileira nunca fundou sua legitimidade no passado, mas
numa dialética que apontava para o futuro”.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Periscópio, edição no 26, junho de 2003

Deus é brasileiro?

A fé, como força organizadora da visão de mundo, compõe o céu da


cultura dos brasileiros, de sua transcendência e de seu futuro.

Lula elegeu a Igreja Matriz de São Bernardo do Campo para


celebrar o dia do trabalho em seus anos de governo. Pela primeira
vez, uma Assembléia da Conferência Nacional dos Bispos do Bra-
sil (CNBB) abriu-se à visita de um presidente da República. Mais do
que atos simbólicos, trata-se da convergência profunda e de raiz
entre a tradição do socialismo democrático e o comunitarismo cris-
tão na nova cena histórica brasileira.
A 41a Assembléia da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, reunida nos primeiros dias de maio de 2003 em Itaici (SP),
pode ser pensada como uma atualização do posicionamento da
entidade mais importante dos católicos brasileiros para o novo pe-
ríodo histórico inaugurado pela vitória de Lula nas eleições de 2002.
Além de eleger uma nova diretoria, ela definiu as novas diretrizes
gerais para a atuação da entidade nos próximos quatro anos.
Menos do que revelar um ambiente de nítida polarização en-
tre “progressistas” e “conservadores”, a 41a Assembléia da CNBB
parece revelar dinâmicas unitárias mais profundas. O presidente

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DEUS É BRASILEIRO?

eleito, dom Geraldo Majella Agnelo, arcebispo de Salvador (BA),


era um nome comum às duas chapas. Foi eleito em terceiro escru-
tínio, com 207 votos ante 64, já que o estatuto da entidade estabe-
lece que o presidente deve ser eleito, no mínimo, por dois terços
dos votos. Nas duas votações anteriores, dom Cláudio Hummes,
arcebispo de São Paulo, havia obtido 102 e 93 votos, apesar de
não ter se candidatado oficialmente.
Dom Antônio Celso de Queirós, bispo de Catanduva (SP),
apresentado pela chapa considerada mais “progressista”, foi eleito
vice-presidente. E dom Odilo Pedro Scherer, bispo auxiliar de São
Paulo, apresentado pelos bispos mais moderados, foi eleito, com
200 dos 272 votos, para a secretaria-geral da entidade.
A primeira entrevista do novo presidente da entidade projeta
em perspectiva as linhas de sua atuação. Engajamento nos progra-
mas sociais do governo, em particular no Fome Zero; preocupação
especial com a causa indígena e com o andamento da reforma agrá-
ria; defesa de um caminho para a política econômica distante dos
interesses financeiros e voltado para a geração de empregos e a
inclusão social; cobrança da ética na política e nítido posicionamento
em favor da soberania nacional.

Força da tradição

A leitura da dissertação de mestrado Igreja, sociedade e po-


lítica no Brasil. Origem, força e permanência do “comunitaris-
mo cristão”, de Carmen de Brito Almeida Leal, fornece um qua-
dro analítico amplo para se entender a evolução da CNBB. O princi-
pal mérito do trabalho de Carmen Brito é identificar e nomear o
surgimento de uma nova tradição da Igreja Católica brasileira, que
teve na liderança de dom Hélder Câmara e na fundação da própria
CNBB em 1952 suas expressões mais visíveis. Esta tradição, que
adquiriu raiz no clero e na sociedade brasileira no rico período que
vai até 1964, alimentou-se das contribuições teológicas de pensa-
dores católicos franceses como Jacques Maritain, Louis Joseph
Lebret e Emmanuel Mounier e inseriu-se, a partir da sua identida-
de, nos movimentos camponês, operário e universitário da época.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Por intermédio de dom Hélder, a CNBB teve inclusive uma participa-


ção destacada na criação da Sudene.
Como diz Carmen Brito,

“nos anos 1960, a CNBB, tendo à frente dom Hélder Câmara, participou
ativamente do Concílio Ecumênico Vaticano II, inclusive na formulação
e aprovação da Constituição Pastoral Gaudium et Spes, documento
originalmente não previsto pelos organizadores. Este documento, ponte
fundamental para o mundo moderno, foi introduzido por pressão dos
cardeais e bispos centro-europeus e dom Hélder, assessorado em Roma
pelo padre Lebret, tomou parte ativa nas negociações que o tornaram
aceito. Com o padre Gauthier e vários bispos, redigiram o texto sobre a
Igreja dos pobres, documento que antecipa o que se tornou, anos
depois, na América Latina, a ‘opção preferencial pelos pobres’.
O concílio Vaticano II legitimou as novas experiências pastorais teoló-
gicas e institucionais, como as colocadas em prática pela CNBB, des-
centralizou a Igreja, incentivou a colegialidade entre os membros do
clero, consolidou a abertura da Igreja para o mundo moderno, autori-
zou as liturgias em línguas nacionais, ampliou a participação dos lei-
gos, entre outras mudanças relevantes”.

É a permanência desta tradição, que se expandiu e ganhou


substância nos anos do regime militar, que fornece o fundo teológi-
co comum do “centro” que dirige a CNBB. Ela combina, nos termos
desta tradição, a defesa da transcendência e da dignidade humana;
a função evangelizadora e a função social; a permanente busca de
expressar no mundo da política, sem se vincular a partidos, os seus
fundamentos éticos.
É este fundo teológico comum que tem permitido uma des-
dramatização das diferenças entre as correntes cristãs vinculadas à
teologia da libertação, em processo de mudança, e as correntes da
renovação carismática.
É a permanência desta tradição comunitarista que explica tam-
bém o papel decisivo da Igreja brasileira na deslegitimação do
neoliberalismo nos anos 1990, lançando mão do repertório crítico
contido na tradição tomista aos ganhos financeiros e ao espírito mer-

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A esperança equilibrista.p65 117 27/08/04, 16:58


DEUS É BRASILEIRO?

cantil. Isto apesar da crise das perseguições sofridas pelas lideranças


da teologia da libertação. Esta, inclusive, talvez deva ser entendida
como uma radicalização e um maior engajamento social e político do
que, imprecisamente, poderíamos chamar de ala esquerda do
comunitarismo cristão. Enfraquecida na instituição mas enraizada
socialmente, renovando sua visão de mundo em direção a uma pos-
tura cósmica, como aparece nos escritos recentes de Leonardo Boff,
esta ala esquerda do comunitarismo cristão tem seu dinamismo mul-
tiplicado pelo movimento histórico que levou Lula à Presidência.

João Paulo II

A Igreja brasileira nunca foi cismática, isto é, nunca pretendeu


ter um caminho próprio, alternativo ou desvinculado do Vaticano.
O novo estatuto da CNBB, aprovado em 2001, aliás, reforça este
vínculo ao privilegiar a relação direta do Vaticano com os bispos e
restringir a atuação de assessores.
Mas como compreender o significado da doutrina de João
Paulo II? O livro As idéias políticas contemporâneas, de Jean
Baudoin (Les idées politiques contemporaines, Presses Universi-
taires de Rennes, 2002), classifica o ideário de João Paulo II como
um pensamento neotomista, retomado da teologia de Santo Tomás
de Aquino, e crítico à modernidade liberal. Este neotomismo pre-
tende uma reinterpretação do Concílio Vaticano II, expurgando, de
seu ponto de vista, dois erros de sua interpretação: a idéia de que a
modernidade liberal seria “progressista” e levaria à “humanização”
do mundo e a independência das esferas temporal e espiritual.
A doutrina de João Paulo II, a partir daí, põe ênfase em três ques-
tões. Primeiro, se reconhece o direito de cada um à liberdade religiosa,
a renovação das práticas litúrgicas, a importância do laicato, o caráter
necessariamente centralizado e hierarquizado da Igreja Católica. Em
segundo lugar, se a implosão do sistema comunista e o avanço do
modelo liberal são saudados como avanços positivos, a denúncia dos
males do mundo moderno torna-se central. O economicismo e o
produtivismo, que pretendem organizar a vida social, degradam a con-
dição de vida de milhões e não cessam de agravar o fosso entre as

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

nações do Norte e do Sul. O materialismo e o hedonismo depreciam


o ser. O niilismo, o relativismo dos valores, conduz a uma “sociedade
absolutamente permissiva”. Enfim, reconhece-se certos méritos à de-
mocracia, não se ratifica a sua componente individualista.
Por fim, retoma-se o padrão tomista de se pensar a relação
entre esfera temporal e domínio espiritual. Nem confusão, nem se-
paração. Neste sentido, não há política cristã, mas exigências cristãs
à política. “É inadmissível e contrário ao Evangelho pretender cir-
cunscrever a religião à esfera privada da pessoa. É paradoxal esque-
cer sua dimensão política e social”, declara João Paulo II.
É aqui que intervém a doutrina comunitarista da Igreja, com
seu acento na função da família como “matriz da sociedade” (de
onde se extrai, muitas vezes, uma pauta moral conservadora como
a proibição do aborto e das relações homossexuais) e no trabalho
como sustentáculo e vivificador da dimensão comunitária. Não se
inova em relação à Rerum novarum do papa Leão XIII, que toma
distância do axioma liberal do livre jogo dos interesses e da utopia
socialista da coletivização dos meios de produção. Ao mesmo tempo
que se afirma os direitos básicos do trabalho, defende-se a função
social da propriedade privada.

Comunitarismo cristão e República

No ensaio síntese “Os Brasis da Igreja brasileira”, o professor


e sociólogo Pierre Sanchis lembra a presença culturalmente forma-
dora dos católicos. Da primeira imagem do Brasil-Trono ao Brasil-
Pátria e ao Brasil-Nação, correspondendo às diferentes épocas
históricas do Estado nacional, a Igreja havia chegado nos anos 1960
à síntese do Brasil-Povo. No período mais recente, após a demo-
cratização do país, esta idéia de povo vem se tornando concreta
(os índios, os desempregados, os encarcerados, os idosos etc.) e vin-
culada à defesa de seus direitos. É como se a força evangelizadora
da Igreja interrogasse a República brasileira imperfeita e incomple-
ta a partir de sua ética cristã.
Vista desta perspectiva, a tradição comunitarista cristã fermen-
tou as mudanças na cultura política brasileira que contribuíram para

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DEUS É BRASILEIRO?

formar o PT, enraizá-lo na sociedade brasileira e eleger Lula presi-


dente da República. Há, de fato, uma interação que precisa ser mais
bem estudada e entendida entre a cultura do socialismo democrático
e o comunitarismo cristão. Além do solidarismo de cunho popular
que está presente nas duas tradições, ambas coincidem em várias
dimensões críticas ao liberalismo econômico. A distanciá-las, a re-
cepção muito diversa das pautas libertárias originadas em 1968.
Na alta cultura brasileira, talvez a expressão maior desta tradi-
ção comunitarista seja a obra do erudito padre e filósofo mineiro,
recém-falecido, Henrique de Lima Vaz. No plano político, há mui-
tas lideranças nacionais emergentes, em particular no PT, cuja iden-
tidade se inscreve plenamente nesta tradição.
O que ela traz para o governo Lula é principalmente, como nos
afirma Patrus Ananias em sua palestra na abertura do II Encontro
Nacional de Fé e Política, uma “amorosa indignação diante do ser
humano impossibilitado de ser” e a reafirmação do tema “nuclear e
expansivo do direito à vida e da dignidade do povo brasileiro”.
Uma vez perguntado se acreditava na existência de Deus, o
cineasta italiano Michelangelo Antonioni respondeu de modo mag-
nífico: “Se chama-se Deus a uma idéia moral que nos conforta, nos
une e nos solidariza em torno à noção de bem comum, então eu
acredito”. “Deus é brasileiro”, afirma o nome do filme brejeiro de
Cacá Diegues, talvez identificando este magma impalpável de fé que
move a esperança dos brasileiros em direção a uma vida mais plena
e dotada de sentido, “a um porto a que talvez nunca se chega”.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Periscópio, edição no 28, agosto de 2003

A vocação republicana da CUT

O mais amplo e um dos mais unitários congressos nacionais da CUT


posicionou a mais representativa entidade dos trabalhadores brasi-
leiros no sentido de agir como uma poderosa força de apoio à repu-
blicanização das perspectivas do governo Lula.

Para quem vive, sofre e sonha a partir da perspectiva do tra-


balho, os seis primeiros meses do governo Lula foram marcados
por expectativa e preocupação.
De um lado, a inflação que vinha em uma trajetória fortemente
ascendente foi invertida em deflação. De outro, os instrumentos
postos em prática para controlá-la – forte elevação dos juros, uma
drástica redução dos gastos públicos – aprofundaram no curto prazo
as tendências recessivas em uma economia imersa em baixas taxas
de crescimento nos últimos anos. Aumento do desemprego, queda
da remuneração dos trabalhadores e da renda das famílias, amea-
ças de demissão em massa, como nas empresas automobilísticas
do ABC, passaram a compor um quadro depressivo. De acordo
com o DIEESE, a expectativa é que 2003 seja o pior ano para as nego-
ciações coletivas no período recente.

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A VOCAÇÃO REPUBLICANA DA CUT

Em um quadro de forte ajuste fiscal, o reajuste do salário


mínimo pouco mais do que recompôs o seu valor real no último
ano e os servidores públicos em geral tiveram que amargar um
reajuste dos seus salários bem aquém da inflação medida, após
uma década de arrocho.
A reforma da Previdência, com forte impacto sobre os direi-
tos e interesses dos servidores públicos, criou focos agudos de
tensão. E, além disso, por sua própria lógica e pelos argumentos
mobilizados para defendê-la, a unidade das entidades gerais de
representação dos trabalhadores passa por uma prova difícil.
Tudo isto poderia autorizar uma avaliação de que os direitos
do trabalho não sofrerão uma alteração de qualidade no governo
Lula em relação ao governo Fernando Henrique. Tal juízo não re-
siste, porém, a uma análise em perspectiva.
O primeiro ano de governo de Fernando Henrique foi marcado
por forte crescimento da economia, mas sintomaticamente pela re-
pressão aberta, com ocupação de refinarias por tropas do Exército, à
greve dos petroleiros. Sinalizava-se ali todo um padrão de não-nego-
ciação com o movimento sindical brasileiro que vigoraria nos dois
mandatos de Fernando Henrique. Ao mesmo tempo, o ministro do
Trabalho, Paulo Paiva, assinava a Portaria número 865, que impede o
fiscal do trabalho de multar uma empresa ao constatar incompatibili-
dade nas cláusulas de convenção e acordos coletivos com a Constitui-
ção ou com a CLT. O texto da portaria afirmava que o fiscal só pode
comunicar o problema a seu chefe imediato, que está encarregado de
apresentar denúncia ao Ministério do Trabalho. A portaria, na verda-
de, abria toda uma época de estímulo aos patrões e constrangimento
aos trabalhadores no sentido da flexibilização do trabalho.
O governo Lula até agora optou por negociar com os servido-
res em greve, com a CUT e as demais centrais sindicais, colocando-
se em uma perspectiva democrática diante do movimento sindical.
E o ministro do Trabalho, Jacques Wagner, revogou a Portaria nú-
mero 865, anunciando a revisão das dinâmicas de flexibilização do
mercado de trabalho.
É neste contexto de uma conjuntura ainda regressiva, mas
anunciadora de novas potencialidades políticas para os direitos do

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

trabalho, que se insere a importância histórica do 8o Congresso


Nacional da CUT.

Um congresso na história

Hoje, a CUT representa 3.350 entidades sindicais, com 22 mi-


lhões de trabalhadores na base, dos quais 7,5 milhões são sindicali-
zados. Do conjunto da base, cerca de 70% são trabalhadores da
iniciativa privada. Mas, como o percentual de sindicalizados e de
entidades quites é maior no setor público, a presença dos delegados
deste setor nos congressos da CUT é proporcionalmente maior.
O 8o Concut contou com 2.712 delegados. A chapa 1, en-
cabeçada por Luiz Marinho, dos metalúrgicos de São Bernardo,
somou 1.950 votos contra 661 conferidos à chapa 2. A chapa
vencedora reuniu a Articulação Sindical (ligada à corrente majori-
tária do PT), a Corrente Sindicalista Classista (PCdoB) e a CUT
Socialista e Democrática (vinculada à tendência Democracia So-
cialista do PT).
O mais amplo e um dos mais unitários congressos da CUT re-
vela todo o potencial de atuação da entidade nesta nova etapa histó-
rica do país. A seguir, identificamos seis posicionamentos estratégi-
cos da CUT que constam da resolução aprovada “Disputar a hegemo-
nia política visando à construção de uma nova sociedade”. Por sua
representatividade e seu significado político, por abrir um novo pe-
ríodo na história da CUT, este documento deve ser lido como um
dos mais importantes da história dos trabalhadores brasileiros.
A primeira conquista do 8o Concut é expressar com nitidez
uma perspectiva histórica socialista, diferenciada da socialdemo-
cracia e do stalinismo soviético. A resolução aprovada abre com
a afirmação:

“A CUT, desde a sua fundação, procura desenvolver a luta pelos


objetivos imediatos e históricos dos trabalhadores buscando, numa
perspectiva democrática, o alcance de uma sociedade socialista,
justa, fraterna e igualitária, fundada pela superação dos marcos
do capitalismo”.

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A VOCAÇÃO REPUBLICANA DA CUT

E mais adiante:

“A CUT, ao lado de outras organizações sociais como o Movimento


dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e o Partido dos Trabalhadores,
é parte de um processo histórico de constituição, em finais dos
anos 1970 com a crise da ditadura militar, e início da década de 1980,
de um sujeito político, coletivo e popular. Tais organizações evoluí-
ram de forma diferenciada dos modelos clássicos do movimento
operário, como a social-democracia e o stalinismo soviético. Assim,
na CUT não se desenvolveu o centralismo burocrático típico de
centrais sindicais ideologicamente monolíticas; ainda que ela tenha
sofrido um processo de burocratização sindical característico do
refluxo político nos anos 1990, caracterizado pela resistência ao
neoliberalismo”.

O segundo avanço contido na resolução é a reafirmação muito


expressiva da autonomia da CUT diante dos partidos e do governo:

“Com esta compreeensão, o sindicalismo cutista rejeita qualquer


tentativa de ingerência do governo na CUT e qualquer postura de
passividade e cooptação da direção da central. O caminho da institu-
cionalização da central seria trágico para a luta dos trabalhadores e
também não traria nenhuma vantagem para o governo Lula”.

E ainda:

“[...] a CUT não abdica do seu projeto de classe; não pode confundir
unidade nacional com a falsa conciliação de classes; não deve aceitar
pagar o ‘pacto’ da grave crise do capitalismo. Seu esforço é para que o
Brasil trilhe outro caminho, que de forma cautelosa, mas decidida, su-
pere o modelo neoliberal”.

Estes dois fundamentos políticos combinam-se para reposicionar


a central na nova conjuntura do país. “É possível afirmar que esta
vitória tem uma dimensão histórico-universal. Em todo o período
republicano, nunca o Brasil foi dirigido por forças tão nitidamente

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A esperança equilibrista.p65 124 27/08/04, 16:58


A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

identificadas com as lutas populares”. É interessante que esta cons-


ciência republicana, absorvendo e expressando a dimensão classista
em um projeto nacional, percorra como um fio condutor todo o do-
cumento. É muito expressivo, neste sentido, que o 8º Concut tenha
aprovado a proposta da construção de uma refinaria da Petrobras
no Nordeste, para incentivar o desenvolvimento da região.
Após identificar três fatores estruturais limitadores do governo
– o cenário mundial de crise, a herança do governo FHC, a continui-
dade de uma certa força política do neoliberalismo –, o documento
propõe que a CUT

“deve dialogar com o governo no debate concreto do projeto alterna-


tivo e utilizar sua capacidade de mobilização para pressionar desde a
base sindical e setores amplos da sociedade civil para que tal projeto
se realize, fortalecendo-se cada vez mais diante dos governos nacio-
nal, estadual e municipal; pavimentando um campo de pressão popular
para se contrapor ao brutal cerco das elites neoliberais”.

Identifica que a pressão dos mercados também se faz presen-


te “na própria composição do governo, com setores-chave pre-
gando a continuidade do perverso modelo neoliberal”.
Os conceitos de transição e governabilidade ampliada são
mobilizados para inscrever a ação da CUT no contexto:

“O governo tem apontado para uma governabilidade ampliada, na qual,


para além dos apoios alcançados no Congresso Nacional, se conquis-
te o apoio da sociedade civil organizada, em especial dos movimentos
sociais e populares que fazem parte do campo democrático-popular.
Consideramos que, para tanto, o governo deve anunciar claramente a
transição para um projeto nacional e popular”.

Nova política econômica

Chegamos ao quarto posicionamento decisivo do 8o Concut,


a crítica à financeirização e a afirmação da perspectiva de uma
macroeconomia do pleno emprego:

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A VOCAÇÃO REPUBLICANA DA CUT

“O projeto popular deve recuperar a capacidade do Estado brasileiro


de fazer política econômica, sob controle democrático da população.
Isso significa colocar limites à circulação de capitais internacionais, em
especial o capital financeiro, e rejeitar quaisquer acordos ou negocia-
ções internacionais no Fundo Monetário Internacional (FMI), Organi-
zação Mundial do Comércio (OMC), ALCA, dentre outros organismos
que submetam o país aos interesses desses capitais. Para reduzir o
poder dos mercados sobre a política econômica, o Banco Central deve
voltar a ser instrumento dos objetivos nacionais – o oposto à proposta
de um Banco Central do Brasil independente. A economia solidária
deve passar a ser parte do núcleo central da política de desenvolvi-
mento, organizando setores econômicos cada vez mais amplos com
uma lógica distinta da capitalista”.

E em uma dimensão positiva:

“A CUT já possui acúmulo no debate e formulações voltadas para a


democratização do Estado e das políticas públicas, como também ex-
periências concretas de gestão de políticas e de participação ativa em
diversos Conselhos Políticos – Emprego e Renda, Saúde, Saneamento,
Educação, dentre outros. Se, por um lado, democratizar o Estado signi-
fica interromper a lógica do financiamento da iniciativa privada em
detrimento dos cidadãos, do trabalho digno e do emprego e conferir
eficácia e execução das diversas políticas e serviços públicos; por
outro lado, significa colocá-lo a serviço da República e da democracia
em um compromisso radical com a defesa da coisa pública, da transpa-
rência, do efetivo acesso à informação”.

Particularmente importante é o capítulo dedicado às políticas


de emprego e renda e sistema público. Propõe-se

“coordenar, integrar e articular as políticas já existentes – intermediação


de mão-de-obra, seguro-desemprego, qualificação profissional, pes-
quisa sobre o mercado de trabalho, fomento às alternativas de trabalho
e renda – e os diversos atores organizados em torno delas. Trata-se,
portanto, de garantir que todos os trabalhadores possam ter acesso a

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

todas as políticas e que, ao mesmo tempo, o foco de cada política seja


bem delimitado, evitando-se dispersão de esforços e recursos”.

A noção central é a de romper, por meio de uma lógica coor-


denada de fundos públicos como o FAT, de câmaras setoriais e de
direitos trabalhistas, com as dinâmicas de informalização e precari-
zação incentivadas pelo governo Fernando Henrique. Trata-se, en-
fim, de

“defender e ampliar direitos sociais e trabalhistas, de aumentar a capa-


cidade de fazer políticas de desenvolvimento, de defender a economia
nacional no mercado mundial, de transferir renda para os setores mais
pobres, de distribuir riqueza”.

Um quinto avanço do 8o Concut foi a relevância adquirida pelo


tema da reforma agrária. Aliás, o congresso foi encerrado com um
discurso de um dos dirigentes centrais do MST, João Pedro Stedile. O
centro da resolução está em, por um lado, reconhecer o alcance cen-
tral e estratégico da reforma agrária e, por outro, indicar caminhos
para superar equívocos históricos que levam a pensar a reforma agrá-
ria isolada de um novo modelo de desenvolvimento para o país.
Por fim, devem ser anotadas como muito positivas as formula-
ções para a promoção da igualdade de direitos de gênero. As mu-
lheres compõem 42% do mercado de trabalho, são responsáveis
pelo sustento de um terço das famílias brasileiras, mas o rendimen-
to médio das trabalhadoras continua sendo cerca de 35% inferior
ao dos homens. Apesar do aumento da participação das mulheres
entre os sindicalizados e nas diretorias sindicais, é rara sua presen-
ça nos cargos diretivos mais importantes.

A utopia de Caio Prado Júnior

Lá, do céu das utopias dos pensadores clássicos do Brasil,


Caio Prado Júnior deve ter assistido ao 8o Concut com a alegria de
quem vê anunciado o sonho que lhe consumiu a vida de militante,
de historiador e publicista.

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A VOCAÇÃO REPUBLICANA DA CUT

No seu diagnóstico crítico do Brasil, formador de toda uma tra-


dição de pesquisas, Caio Prado Júnior encontrou na raiz da formação
do país duas maldições lançadas ao mundo do trabalho. O sentido da
colonização que centrava a dinâmica da economia para fora, para a
exportação, desfocando a construção sistêmica da Nação e desinte-
grando o mercado de trabalho em fragmentos descontínuos, inorgânicos
e não-solidários. E, em segundo lugar, a escravidão. Esta última foi
abolida no fim do século XIX, mas o sentido colonial, não.
Industrialização frágil, classes trabalhadoras inorgânicas, mer-
cado interno precário levavam a uma vida republicana incompleta,
sem a irradiação dos direitos do trabalho para o Estado e para o
sistema político. É deste ângulo, muitas vezes em juízos desequili-
bradamente críticos, que Caio Prado Júnior indicava o insuficiente
componente classista das organizações populares do pré-1964, do
PCB ao PTB, do CGT à imaginação agrária das Ligas Camponesas,
do ideário de uma aliança com uma pseudo “burguesia nacional” às
expectativas infundadas no governo João Goulart.
Agora, em uma outra época histórica, a CUT vem repor com
máximas vitalidade e nitidez o tema dos direitos do trabalho no
governo Lula. Outras são as condições históricas nacionais: o PT e
a CUT, por suas origens e trajetórias históricas, revelam mais orga-
nicidade, democraticamente amadurecida, ao mundo do trabalho
que o PTB e o CGT. Porém, muito mais poderosas são as forças do
mercado no Brasil e no mundo.
Até por se ver às voltas com uma transição difícil, sentindo ao
máximo sobre sua identidade as pressões do Estado e da força
inercial do neoliberalismo, o PT no governo tem extremado a sua
capacidade de realizar mediações, pactuar, ampliar seu diálogo
civilizatório com as forças conservadoras brasileiras. Daí a impor-
tância decisiva de a CUT exercer plenamente nesta conjuntura de
incertezas e esperanças a sua vocação republicana.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Periscópio, edição no 22, novembro de 2002

Luiz Inácio e Luiz Gonzaga

A cultura do nosso país já foi capaz de construir os fundamentos da


casa comum dos brasileiros, isto é, o tempo e o lugar nos quais o
sinal de pertencimento é mais forte que a distinção de raça, de classe,
de renda, de status ou de gênero.
A casa já está lá: só nos resta construí-la.

O que há de comum entre estes dois personagens da história


brasileira, o “rei do baião” e o que agora se tornou o presidente dos
brasileiros? Para responder a esta pergunta é necessário refletir
sobre as relações entre a cultura e a política no Brasil.
A cultura brasileira, em seu pluralismo universalista de raiz, já
cumpriu em seus fundamentos aquilo que a política brasileira ainda
não foi capaz de realizar, isto é, a republicanização plena do Brasil.
Esta afirmação, antes de ser defendida, deve ser explicada em
seus termos de composição. Será justo falar assim no singular –
“cultura brasileira” – quando temos diante de nós um cosmos tão
fraturado socialmente, tão descontínuo em sua construção históri-
ca, por momentos quase anulados em suas agônicas promessas de
civilização pelas reiteradas incursões da barbárie?
Sim, no sentido que lhe dava Machado de Assis em seu en-
saio crítico “Instinto de nacionalidade”, de 24 de março de 1873,

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L UIZ I NÁCIO E L UIZ G ONZAGA

referindo-se a um certo sentimento íntimo capaz de revelar uma


identidade brasileira, mesmo quando se trata de “assuntos remotos
no tempo e no espaço”. Já ele alertava que

“esta outra independência não tem Sete de Setembro nem Campo de


Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais dura-
doura; não será obra de uma geração nem duas; muitos trabalharão
para ela até perfazê-la de todo”.

Fala-se em seguida de um “pluralismo universalista de raiz”.


Ser pluralista é ser capaz de transformar até o que, no limite, amea-
ça cindir a personalidade em riqueza de possibilidades existenciais.
Ser universalista é ser capaz de compor na própria identidade as
contribuições milenares das civilizações. De raiz porque o pluralismo
para nós, brasileiros, nunca foi contenção de uma matriz agressiva
expansionista, como nos Estados Unidos, nem foi o universalismo
uma tardia conquista do espírito, como na Europa. Antes, estes
valores estão impregnados na nossa origem e na nossa formação.
Nem plenamente ocidentais nem orientais, americanos, mas
vindos dos povos ibéricos, ou, melhor ainda, luso-tropicais, no diag-
nóstico original de Gilberto Freyre. Nem brancos, nem tupis, nem
guaranis, nem negros, mas envolvidos desde sempre, para a nossa
bênção ou perversão, em violenta, inédita nas proporções e, de-
pois, magnífica miscigenação. O povo mais misturado do mundo,
dizem as últimas pesquisas de genética. Na esquina das civiliza-
ções, é preciso acrescentar.
Quando se disse na canção “Para Lennon e McCartney”, de
Lô Borges, Fernando Brant e Márcio Borges, cantada por Milton
Nascimento, “sou do mundo, sou Minas Gerais”, poderia ter-se
dito ainda: sou do mundo porque sou brasileiro. No Carnaval de
2002, George W. Bush e Osama Bin Laden dançavam fraternizados
e pacificados. A guerra, o conflito sem perspectiva de solução não
é da nossa natureza. Antes, a síntese, a pacificação, a busca do
leito comum onde Eros faça o seu trabalho.
A cultura brasileira, em seus fundamentos, já cumpriu sua mis-
são republicana. Isto porque ela já estabeleceu na nossa terra em

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

transe os alicerces da casa comum dos brasileiros, isto é, o lugar e o


tempo nos quais o sinal de pertencimento comum é mais forte que a
distinção de riqueza, de poder, de status, de raça ou de gênero.
Desde “As bachianas”, de Villa Lobos, somos todos alemães e, com
a pintura brasileira de Lasar Segall, somos também judeus. Desde
Aleijadinho somos irremediavelmente barrocos e, a partir de Oscar
Niemeyer, passeamos sem pânico por entre as formas estranhas do
futuro. O sentimento do mundo de Drummond é tão nosso como as
figurações da Pasárgada de Manuel Bandeira. Qualquer gaúcho é
nordestino depois de ouvir “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga, e con-
duzidos pela luz serena do samba de um Cartola somos todos cida-
dãos da Mangueira. Aliás, lá foi lançado o programa de saúde da
campanha “Lula presidente”. O sanitarismo, nossa primeira expe-
riência de políticas públicas. Mero acaso? Não é o samba o melhor
remédio para nossa alma brasileira? Em que a dor é remediada, su-
blimada, na fonte mesma do prazer, como já prescreveram os nos-
sos dois sempre novos baianos, Caetano e Gil?
A nossa casa já está lá. Falta construí-la.

O universalismo

Mas para construí-la é preciso aprender com a cultura brasi-


leira. O melhor ângulo para se analisar e prescrever a política é o
princípio de civilização, isto é, os valores fundamentais que organi-
zam a vida de um povo. E uma sociedade não é homogênea segun-
do os princípios da civilização, pode apresentar desenvolvimentos
históricos diversos em suas diferentes áreas. É neste sentido que a
cultura brasileira é anunciadora de uma verdadeira republicanização
do Brasil que ainda não se cumpriu política e socialmente.
A primeira cisão que coube à cultura brasileira superar foi sua
colonizada, periférica e dependente inserção na cultura ocidental.
É interessante lembrar aqui que o conceito de subdesenvolvimento,
elaborado por Celso Furtado, implica centralmente a idéia de divi-
são social estruturante da nação, alimentada pela lógica mercantil e
pela ação estatal a ela subordinada. Se Furtado elaborou, então, a
idéia de superação do subdesenvolvimento pela conquista da auto-

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L UIZ I NÁCIO E L UIZ G ONZAGA

nomia e do público, a cultura captou desde sempre o mesmo desa-


fio pelo ângulo da identidade. O que é, afinal, ser brasileiro?
Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, for-
nece-nos uma espécie de superconsciência, justa e erudita, de como
esta resposta veio se formando em nossas letras. Para Antonio Candido,
a tensão entre a cultura nacional e a ocidental é o melhor ângulo para
se compreender os passos da construção de nossa identidade literária.
Na polêmica entre as várias correntes literárias no século XIX, veio se
desenhando a justa solução para o claro enigma brasileiro. Nem exó-
tico nem cosmopolita, nem o culto do particularismo nem a perda da
identidade nas ondas da metrópole: nossa autenticidade é universalista,
isto é, não é um para si mesmo mas configura o seu rosto exatamente
na relação com as outras culturas.
A Semana de Arte Moderna de 1922, seja na fórmula “tupi tan-
gendo a lira” (um ser nacional tocando um instrumento europeu) de
Mário de Andrade ou na matriz antropofágica de Oswald de Andrade
(deglutimos criativamente o que vem de fora), estabeleceu este princí-
pio universalista, talvez de forma definitiva, na cultura brasileira. Em con-
tato com as vanguardas moderníssimas européias, a cultura do nosso
modernismo estendeu diante dos criadores das próximas décadas, vol-
tados para construir a nação, uma espécie de infinito céu da memória e
da transgressão, que a tudo e a todos acolhe. Tornou-se a sensibilidade
comum no período nacional-desenvolvimentista, no qual a nossa histó-
rica desvalia de amor-próprio diante de dois séculos de domínio anglo-
saxão (Inglaterra no século XIX e Estados Unidos no século XX) trans-
figurou-se em magníficas e duradouras obras da civilização brasileira.
Tudo é história e nada está escrito, continuou a nos dizer a
cultura brasileira nas últimas décadas. Nada que vai do mundo nos
é estranho porque somos este mundo, nos forjamos no desencontro
das civilizações. E só podemos ser plenamente no encontro delas.

Para todos

A segunda cisão que a cultura brasileira herdou, processou e


fez um arco foi a social, o país dos ricos e a terra dos pobres, o lugar
das elites sem pátria e a massa dos sem-mátria, os filhos de ninguém.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Expulso da comunidade política, não sendo reconhecida e pro-


tegida a dignidade de seu trabalho, o povo brasileiro refez-se na cul-
tura. E, como num empreendimento vertical civilizatório, de baixo
para cima, do caos para o cosmos, se impôs aos que do alto, por
“córnea insensibilidade” como nos disse Furtado, nem sequer os viam.
O ciclo desta passagem civilizatória é tão antigo como o Brasil,
como nos mostra Alfredo Bosi em “Anchieta ou as flechas opostas
do sagrado” (In: Dialética da colonização. São Paulo, Cia. das
Letras, 1992, p. 64-93). O catequizador em seu trabalho também
recebeu o impacto da cultura daqueles que pretendia converter ao
cristianismo. A casa-grande e a senzala, sobrados e mocambos, o
erudito e o popular, a cultura brasileira está repleta de exemplos des-
ta comunicação enriquecedora entre os de baixo e os de cima.
A miscigenação das raças e a proximidade que lhe é afim con-
formaram o terreno social desta volúpia do encontro para além das
diferenças. O morro e a cidade: as repúblicas livres dos bares e da
boemia carioca, uma sociologia da expansão do samba. Ali deu-se o
rito de passagem, o contágio que salva uma civilização, a peste be-
nigna da fraternidade. No ambiente saturado de nacionalismo da pri-
meira Era Vargas, o samba fez seu caminho para a identidade brasi-
leira. Tornou-se para todos: o brasileiro, o mulato inzoneiro, como na
“Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso. Da ideologia do branquea-
mento que alimentou a política de imigração oficial dos europeus,
que se assentava na idéia de que era preciso tornar o povo brasileiro
menos moreno e mestiço, apenas algumas décadas haviam se passa-
do. Mas a cultura já havia feito seu trabalho.
Hoje, a cultura brasileira amorosamente deslegitima o apartheid
social vigente e suas engenharias de reprodução.

Moinho não-satânico

O terceiro desafio da cultura brasileira foi resistir ao impacto


deformador da indústria cultural de massas, interessada mais em
vender o produto do que em sua qualidade.
O paradoxo brasileiro a uma visão simplista, cujo olhar veria ape-
nas a terra arrasada por detrás das vitórias da indústria cultural, explica-

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L UIZ I NÁCIO E L UIZ G ONZAGA

se por uma razão de sucessão histórica. A TV brasileira não desenvolveu


uma nova linguagem, com valores estéticos próprios, como a telenove-
la? O cinema nacional não mostra sua vitalidade? É que quando a
indústria cultural de massas implantou-se de modo mais pleno no país –
coincidindo e seguindo o ciclo da modernização conservadora dirigida
pela ditadura militar – a cultura brasileira já havia construído o seu
princípio de identidade e a componente popular de sua sensibilidade.
Se a tradição da cultura brasileira tornou-se um referente incon-
tornável da mídia de massas, a universidade pública e seu sistema, em
grande medida resistente à privatização, alimenta a mídia escrita.
São visíveis os sinais desta dialética incessante entre o princí-
pio do público e o princípio mercantil privado na indústria cultural
do país. Isto é, para ser de massas, tem de ser brasileiro e não há
como ser brasileiro sem a sensibilidade afetiva ao popular, mesmo
que sob o signo da caricatura e do popularesco.

Política e cultura

Talvez a política e a cultura estejam entre si assim como a prosa


está para a poesia. A uma compete uma prática reflexiva, que deve
sempre buscar o sentido das proporções e a justa síntese. À cultura
cabe o princípio da invenção do humano e da expansão do vivido, a
cuja criatividade não é razoável impor ou até prescrever limites.
Mas, no ponto em que nos encontramos de nosso dilema repu-
blicano, é vital restabelecer o diálogo, a interação, o fluxo vital entre a
cultura e a política dos brasileiros. A refundação dos espaços públicos
faria florescer todas as possibilidades já inscritas na cultura brasileira.
Esta, por sua vez, poderia alimentar a formação de uma vasta cultura
cidadã, com base em novos princípios civilizatórios. Caberia, então, a
uma política pública no terreno das comunicações tornar a política e a
cultura dois conjuntos porosos, embora ciosos de sua autonomia.
A cultura brasileira já firmou, em seus próprios termos, toman-
do de empréstimo as palavras do poeta Mário Faustino, o “nobre
pacto entre o cosmos sangrento e a alma pura”. Talvez um dia pos-
samos dizer do Brasil, ainda sob a dicção do poeta: “tanta violên-
cia... mas foi maior a ternura”.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Periscópio, edição no 32, dezembro de 2003

O bardo mestiço e a
revolução brasileira

A civilização brasileira, em sua plenitude emancipatória, não cabe


nos limites estreitos do liberalismo anglo-saxão.

Seria necessário constatar a presença assombrosa de Mário


de Andrade – no sentido próprio de assombrar, de ser pela ausên-
cia ou pela presença não justamente identificada – nestes inícios da
cultura brasileira do século XXI.
Em 2000, organizado por Marco Antonio de Moraes e edita-
do de forma plena pela Edusp, veio à luz o diálogo, que percorre as
fontes mais íntimas da criação à cosmogonia da cultura brasileira,
entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Na correspondência
de cartas mantida durante décadas entre o nosso poeta mais lírico
e o autor de Macunaíma está o documento mais alto de reflexão
sobre a nossa cultura.
Após a edição completa das cartas entre Drummond e Mário,
organizada por Silviano Santiago e editada em novembro de 2002,
é possível dizer, de forma segura, que sem a presença formadora
de Mário não haveria a obra daquele que Otto Maria Carpeaux
chamou uma vez de o maior poeta público do Brasil e um dos
maiores do Ocidente moderno. Esta não seria a mesma em traços

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O BARDO MESTIÇO E A REVOLUÇÃO BRASILEIRA

essenciais. E o mesmo pode ser dito em relação à monumental obra


musical de Villa Lobos.
Na reelaboração crítica, a de maior rigor e a mais generosa
até agora já produzida, da obra de Pedro Nava, escrita por José
Maria Cançado e recém-editada pela Editora da UFMG, Memórias
videntes do Brasil, a escavação do universo do grande escritor
mineiro chega à presença xamanista de Mário de Andrade. O
belíssimo CD de Maria Bethânia, Brasileirinho, traz na voz de
Ferreira Gullar um trecho de “O descobrimento” e na dicção de
Denise Stoklos “O poeta come amendoim”, de Mário.
O sociólogo Luiz Werneck Vianna lembrou que Luiz Carlos
Prestes considerava Mário de Andrade o maior intelectual brasilei-
ro da primeira metade do século XX. A obra mais alta de Antonio
Candido, Formação da literatura brasileira, é programaticamente
mariodeandradiana. Não deixa de ser perturbador este encontro
entre o “Cavaleiro da Esperança” e o intelectual mais representati-
vo da tradição do socialismo democrático brasileiro. Aliás, não se
reconhece hoje que o Ministério Capanema, agindo nos anos dolo-
rosos do Estado Novo, criou as bases de uma política de cultura
no Brasil? E o programa deste Ministério não devia sua essência a
Mário – inclusive o anteprojeto do Instituto do Patrimônio Históri-
co por ele escrito, a pedido de Rodrigo de Mello Franco –, este
homem sem posses e sem poder, quase um Francisco da cultura
brasileira?
Mas dar carne e vida ao fantasma de Mário é um empreendi-
mento de todos os riscos. Identificá-los, de antemão, é necessário.

Nem partido, nem passado, nem ícone

Há uma grave cisão nas leituras da cultura brasileira, que re-


sultou dos impasses do nosso republicanismo no pós-1964. Os
anos de formação e construção da identidade do PT deram-se em
meio a este herdado clima intelectual e cultural de cisão.
É possível captar várias linhas polêmicas resultantes desta cisão
de sensibilidades e racionalidades. Tropicalismo versus cultura nacio-
nal-popular, pop versus samba, concretistas versus historicistas,

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

vanguarda ou tradição, cosmopolitanos versus nacionalistas. Ver-


tentes culturais vindas de São Paulo versus tradições intelectuais ca-
riocas, partidários de Oswald de Andrade versus filiados ao cosmos
de Mário de Andrade, Caetano ou Chico Buarque: quem de nós já
não se viu instado a tomar posições diante destas disjuntivas, muitas
vezes apresentadas como em oposição ou até mesmo excludentes?
Evocar Mário de Andrade, fazer dele não apenas memória
mas presença, não é tomar partido ou escolher um lado. É melhor
ver Mário como propositor de uma síntese aberta e dinâmica, como
propugnador de uma estética livre (“o direito permanente à pesqui-
sa estética”), como aquele que, em seu balanço tardio do moder-
nismo, apesar dos desencontros com Oswald, reconhecia-o “como
a figura mais característica e dinâmica do movimento”.
Este que era “trezentos, trezentos e cinqüenta”, que se con-
fessava pan-erótico, plural e sintético, “bardo mestiço”, não é figu-
ra que se dá a uma escola ou partido estético. Neste sentido, Mário
é vanguarda e tradição, é tropicalismo e nacional-popular, é ele
próprio e também Oswald....
Mas evocar assim Mário não seria voltar os olhos para trás quando
os desafios do presente e do futuro nos agarram pelos colarinhos?
Como mostra Mário da Silva Brito (História do modernismo
brasileiro. Antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 1971), Mário de Andrade recusou
o nome de futurismo para o movimento de 1922. Reconhecia o
“novo” de Marinetti, o dirigente do futurismo italiano, mas guarda-
va uma distância crítica (como, aliás, sua correspondência com
Manuel Bandeira tão bem revela). Não seria bom para a vanguar-
da, pensava Mário, construir muros separando-a do passado, mas
apenas explodir suas formas mortas que teimavam escolasticamente
em existir: criar uma tradição, tradicionalizar o passado é referi-lo
aos dilemas do presente. Daí Mário, o vanguardista de Paulicéia
desvairada, ser também, e ao mesmo tempo, o cultor do simbolis-
ta Alphonsus de Guimaraens e responsável por recolocar o barro-
co de Aleijadinho no centro de nossa origem cultural.
A bela e pequena obra de Nelly Novaes Coelho Mário de
Andrade para a nova geração (São Paulo, Saraiva, 1970) iden-

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O BARDO MESTIÇO E A REVOLUÇÃO BRASILEIRA

tifica a consciência histórica, ordenadora e reflexiva de Mário, avesso


à apologia do desenraizamento, do sensitivo e circunstancial, da
radicalização do subjetivismo do inconsciente e do objetivismo das
formas, tão típicos dos modernismos europeus.
“Não imitamos Rimbaud. Nós desenvolvemos Rimbaud.” Se-
ria necessário não imitar Mário, mas desenvolver Mário. Seria um
outro erro construir um estatuário para Mário, torná-lo ícone,
reverenciá-lo como vitorioso, vê-lo como ponto de chegada e não
como estação de reencontros e novas viagens.
Este, que em um excesso autocrítico chegou a firmar “que o
passado não é mais meu companheiro”, este “uma lágrima apenas,
uma lágrima/ alga escusa nas águas do meu Tietê”, como diz em seu
poema testamento, não se presta à condição gelada do ícone.
Na segunda fase do modernismo, no Ensaio sobre a música
brasileira, de 1928, Mário de Andrade andava empenhado em
“desgeografizar” o Brasil, interessado em apanhar a unidade sob a
diversidade geográfica, aproximar as expressões culturais tão plu-
rais do Brasil. No sentido etnográfico dos seus estudos sobre o
folclore, em busca do símbolo totêmico unificador do Brasil, ele
chegou à figura do boi.
Propõe-se, em vez, que coloquemos o próprio Mário de An-
drade na condição de figura totêmica da moderna cultura brasileira.
Por quê?

A civilização brasileira

O diagnóstico/acusação de nacionalista não deixa de marcar


Mário. No belo prefácio de Silviano Santiago à recente edição
completa das cartas entre Mário e Drummond, Carlos & Mário,
ele é designado como “nacionalista pragmático”. Em entrevista,
editada postumamente no jornal Folha de S.Paulo, o grande
transcriador da língua portuguesa Haroldo de Campos chama-o
de “provinciano”.
Mário nacionalista, provinciano? Isto é um grande equívoco.
Desde a geração brilhante de 1870, liberais, positivistas, intelec-
tuais como Sílvio Romero, Alberto Torres, Euclides da Cunha, Oli-

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

veira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio


Prado Júnior e, algumas décadas depois, Celso Furtado e Raymundo
Faoro formularam respostas à problemática da constituição da
Nação brasileira. É um erro chamá-los simplesmente de naciona-
listas, homogeneizando mundos intelectuais tão diversos.
No caso de Mário de Andrade, há uma verdadeira reposição
dos termos da contradição: nem nacionalismo nem cosmopolita-
nismo, mas matriz civilizatória com identidade própria de relação
de mútua configuração com as civilizações do mundo;

“[...] enquanto o brasileiro não se abrasileirar é um selvagem. Os tupis


nas suas tabas eram mais civilizados que nós nas nossas casas de Belo
Horizonte e São Paulo [...] Nós, imitando ou repetindo a civilização
francesa, ou a alemã, somos uns primitivos, porque estamos ainda na
fase do mimetismo [...]. Nós só seremos civilizados em relação às civi-
lizações o dia em que criarmos o ideal, a orientação brasileira. Então
passaremos da fase do mimetismo pra fase da criação” (Carlos & Mário,
p. 70-71).

Ao repor a resposta ao enigma da Nação no plano civilizatório,


Mário de Andrade abre o caminho para resolver três disjuntivas
que se apresentavam à sua geração e aos que viriam depois.
Em primeiro lugar, o conceito de civilização brasileira, exata-
mente porque gerada no trânsito de civilizações (portuguesa, ibérica
cristã, africanas e ameríndias), explode qualquer intenção de xenofo-
bia, autarquizante ou mesmo imperialista. Trata-se, na verdade, de
uma civilização universalista de raiz e potencialmente disposta ao
convívio com a diferença, com o outro civilizatório. Escrevendo em
1929, diante da forma nascente do samba, Mário escreve:

“Sinhô é poeta e músico. Do Brasil? Me dá uma angústia atualmente


imaginar em Brasil... é uma entidade creio que simbólica este país. Real-
mente, não me parece que seja não e quanto mais estudo e viajo as
manifestações concretas no mito, mais me desnorteio e, entristecer, não
posso garantir que me entristeço: me assombro. Na verdade, na verdade
este nosso país inda pode dar esperança de si... Mas é simplesmente

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O BARDO MESTIÇO E A REVOLUÇÃO BRASILEIRA

porque arromba toda concepção que a gente faça dele” (Táxi e crônicas
no Diário Nacional. São Paulo, Duas Cidades, 1976, p. 103-104).

Em segundo lugar, Mário de Andrade foge à opção das raças e


repõe uma síntese possível no plano da cultura, como nos mostra
Eduardo Jardim de Moraes. Já Sílvio Romero havia descoberto que
“o mestiço é o produto fisiológico, étnico e histórico do Brasil; é a
forma nova de nossa diferenciação nacional” (História da literatu-
ra brasileira). Mas esta descoberta era quase anulada ainda pela
noção da superioridade da raça branca e pelo branqueamento pro-
cessual do Brasil que dela adviria. Gilberto Freyre só viria em 1933
com Casa-grande & senzala. Mas, antes dele e de sua formidável
narrativa, ao mesmo tempo senhorial e utópica, de nossa formação,
Mário de Andrade trabalhava a síntese no plano da cultura. Isto é,
não uma ontologia do ser brasileiro, não a fixação de um ser estático
e definido, mas um vir a ser, autocriação dos brasileiros.
A cor da pele, mais escura à medida que se descende a escala
social, deslocaria a identidade posta desde cima em um novo registro. O
sentimento do Brasil é tendencialmente popular, diz Mário de Andrade.
De novo, a fuga de polaridades antes e mal postas. Nem elites
nem povo-massa, mas erudito e popular, galvanizados no processo
mesmo da criação. A modinha portuguesa cantada nos palácios, co-
lhida no “ar dos serenos” pelo povo já não será mais a mesma.
Mas onde talvez o refinamento sintético de Mário de Andrade
tenha chegado ao extremo é na polêmica entre a função social da
arte e sua vocação estética. Nem esteta nem tribuno, pondo-se re-
solutamente em favor das dimensões expressiva e compromissada
com a vida, Mário de Andrade afirma, no entanto, que a arte apenas
pensada em sua função social deformaria a “individualidade do artis-
ta”. Daí o apelo à artesania individual do artista e sua função moralizante
na arte. Enfim, a moralidade da forma.

O bardo e o sardo

Civilização quer dizer experiência, sensibilidade e imaginação


da vida social de um povo. Foi para conhecê-la, em busca de uma

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

visão de totalidade, que Mário dotou-se de todos os instrumentos,


todas as bússolas. Não era por diletantismo, assim, a sua multipli-
cação cultural, a sua intimidade, com literatura, música, história,
folclore, pintura e arquitetura... Em uma carta, diz:

“Manuel Bandeira, uma feita, diante da minha maneira de ser que ana-
lisava, se viu atrapalhado para caracterizar esta parte de mim e acabou
dizendo que diante da multivariedade dos meus gozos, eu não tinha
um amor mais distinto por isto ou por aquilo, mas tinha o amor do todo.
Me descobri violentamente nesta frase do Manuel”.

Colocar no centro de sua pesquisa e visão de mundo a noção


de civilização aproxima Mário do campo teórico de Antonio
Gramsci. Também ele, em seus estudos sobre o subdesenvolvi-
mento de uma literatura italiana moderna, distinguia internacional de
cosmopolita não o opondo ao nacional. Também ele afirmava a
civilità como princípio hegemônico, necessário para criar um novo
Estado e uma nova sociedade alternativa ao capitalismo e ao mun-
do do liberalismo. Um partido só ganharia dimensão hegemônica
se organizasse o seu programa a partir da noção de civilização,
fugindo à mera proposição de um outro modo de produção ou de
um outro Estado.
Estará se forçando aqui a aproximação entre o “bardo mesti-
ço” e o sardo revolucionário, como fruto de uma obsessão antiga,
dramática e visceral de renovar o ponto de fusão entre cultura mar-
xista e cultura brasileira? Penso que não, já que foi o próprio Mário
quem disse: “Minha maior esperança é que se consiga um dia rea-
lizar no mundo o verdadeiro e ainda ignorado socialismo. Só então
o homem terá o direito de pronunciar a palavra ‘Civilização’” (Re-
vista do Arquivo Municipal de São Paulo, no 180).
Seria insensato e até anti-histórico negar que o liberalismo ins-
trumental e economicista foi um dos vetores formadores da moder-
na civilização brasileira. Seria sectário e menor negar que todas as
tradições republicanas brasileiras devem, em alguma medida, ao
liberalismo ético o gosto hoje irremovível pela liberdade e contra as
tiranias. Mas mesmo o liberalismo mais humanista e mais alto, como

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O BARDO MESTIÇO E A REVOLUÇÃO BRASILEIRA

aquele formulado por Raymundo Faoro, é incapaz de dar conta da


magnífica polifonia da civilização brasileira. Esta, em sua plenitude
emancipada, não será liberal em seus fundamentos.
“Os movimentos espirituais precedem sempre as mudanças
de ordem social”, dizia Mário de Andrade, relacionando o moder-
nismo à Revolução de 1930. A revolução brasileira pode e deve
ser entendida como a realização plena das dimensões emancipatórias
e universalistas contidas na civilização brasileira. A eleição de Lula
ajuda a esclarecer a posição totêmica de Mário de Andrade no vir
a ser da cultura brasileira.

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A E SPERANÇA E QUILIBRISTA

Sobre o autor

Juarez Guimarães é professor do Departamento de Ciência


Política da Universidade Federal de Minas Gerais e editor do bole-
tim eletrônico mensal Periscópio, da Fundação Perseu Abramo e
da Secretaria Nacional de Formação Política do PT.
Graduado em economia, fez mestrado em ciências sociais na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com a dissertação
Claro enigma: o PT e a tradição socialista e doutorado na mes-
ma instituição com a tese Democracia e marxismo: crítica à ra-
zão liberal (São Paulo, Xamã, 1998).
Foi durante 12 anos editor do jornal da imprensa alternativa
Em Tempo.

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Caso não encontre este livro nas livrarias,
solicite-o diretamente a:

Editora Fundação Perseu Abramo


Rua Francisco Cruz, 224
04117-091 – São Paulo – SP
Fone: (11) 5571-4299
Fax: (11) 5571-0910
Correio Eletrônico: editora@fpabramo.org.br
Na Internet: http://www.efpabramo.org.br

A esperança equilibrista foi impresso na cidade de São Paulo em setembro


de 2004 pela Bartira Gráfica. A tiragem foi de 2.500 exemplares. O texto
foi composto em Times New Roman no corpo 10,5/13,5. Os fotolitos da
capa e foram executados pela Graphbox. Os laserfilms do miolo foram
fornecidos pela Editora. A capa foi impressa em papel Supremo 250g; o
miolo foi impresso em Pólen Soft 80g.

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