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A RACIONALIDADE SUBSTANTIVA
DEMONSTRADA NA PRÁTICA
ADMINISTRATIVA
Maurício Serva
Doutor em Administração pela EAESP/FGV, Pesquisador
na École des Hautes Études Commerciales de Montréal,
Professor Associado do PPGAlUFRN e
Professor Associado da FACS - Faculdades Salvador.
RESUMO: Sob a perspectiva geral da emancipação do homem no âmbito do trabalho, este artigo trata do tema da
racionalidade em organizações produtivas, enfocando-o mediante a abordagem substantiva da organização, pro-
posta por Guerreiro Ramos. Empreende a complementaridade entre essa abordagem de Guerreiro Ramos e a
teoria da ação comunicativa, de Habermas, a partir da qual elabora um quadro de análise, examinando empiricamente
três empresas de Salvador, Bahia, com o intuito de demonstrar como a razão instrumental e a razão substantiva
se concretizam na prática administrativa. Daí, define organizações substantivas e estabelece uma escala de
intensidade de racionalidade substantiva, que, juntamente com o quadro de análise, pode ser utilizada para o
exame da racionalidade de qualquer organização produtiva.
ABSTRACT: Under the general perspective of human's emancipation at work, this article analyzes the rationality in
productive organizations through a substantive boarding, according to the proposal of Guerreiro Ramos. It shows
the complementarity between the Guerreiro's proposition and the theory of communicative action, created by
Habermas. It also propose an analytical board, that examines empiricaly three companies in Salvador, Bahia,
aiming to demonstrate how either substantive and instrumental rationalities came true. Finalr. the author defines
substantive organizations and establishes a scale of intensity, that jointly with the analytical board, could be useful
to examine the rationality of any productive organization.
18 RAE- Revistade Administração de Empresas São Paulo,v. 37, n. 2, p. 18-30 Abr./Jun. 1997
A RACIONALIDADE SUBSTANTIVA DEMONSTRADA NA PRÁTICA ADMINISTRATIVA
Por conseguinte, liberado das premissas paria de dar continuidade à tal proposta. théone. Paris: Librairie Larrousse, 1975.
© 1997, RAE - Revista de Administração de Empresas / EAESP / FGV, São Paulo, Brasil. 19
o PROBLEMA ENFOCADO POR ESTE percam-se em intermináveis discussões, repe-
ESTUDO: O "IMPASSE" tições, críticas sem propostas concretas e elo-
cubrações exclusivamente conceituais que ser-
As idéias de Guerreiro Ramos vêm tendo vem quase que somente aos acadêmicos, en-
grande ressonância nos meios acadêmicos, no- fraquecendo assim a potencialidade "explosi-
tadamente no Brasil, onde a abordagem subs- va" da proposta original de Guerreiro Ramos.
tantiva da organização tem muitos adeptos. Di- Os difusores da razão substantiva nas organi-
versos autores brasileiros vêm elaborando traba- zações precisam demonstrar a exeqüibilidade
lhos pautados na análise de organizações toman- dessa racionalidade na prática administrativa.
do como base a racionalidade substantiva, ense- Não podemos nos esquecer que atuamos num
jando gradativamente a criação de mais um tema dos campos mais pragmáticos da atualidade.
específico de estudos organizacionais no país. A teoria administrativa deve advir da prática.
Uma questão crucial é que Guerreiro Ra- Eis então, o problema central que aqui as-
mos ao propor a abordagem substantiva das or- sumimos enfrentar: o impasse representado
ganizações, o fez de maneira puramente con- pela ausência de evidências que demonstrem
ceitual, como ele próprio confessara. Menos do claramente a concretização da racionalidade
que fornecer ilustrações factuais de suas teses, substantiva nas práticas administrativas.
3. O próprio Guerreiro Ramos confirma
claramente esta opção, ao comentar ele preferiu, naquele momento, apresentá-las por
sobre o seu livro em: Minha dívida a meio de um discurso teórico por excelência, ela- DELINEAMENTO DA PESQUISA
Lorde Keynes. In: Revista de
administração pública. Rio de Janeiro: borado em alto grau de abstração.' Ao visitar os
FGV, v. 16, n.2, pp. 91-95, 1982.
estudos organizacionais sobre a racionalidade Para fazer face ao problema acima descri-
4. Ver VASCONCELOS, Flávio. substantiva elaborados após Guerreiro Ramos, to, evidentemente, teríamos que realizar um
Racionalidade, ética e organizações - uma
visão analítica. In: Anais do XVII
para termos uma idéia do "estado da arte" no meticuloso trabalho de campo. O primeiro pas-
ENANPAD,v. 9, Salvador, ANPAD, 1993; Brasil, constatamos que todos esses trabalhos,' so foi retomar ao estudo de Guerreiro Ramos,
TENÓRIO, Fernando. Tem razão a
administração? Op. cil.; PIZZA JÚNIOR. apesar de muito bem elaborados, não avançam de modo a retirar dali as diretrizes que poderiam
Razão substantiva. Op, cit.: CALDAS, sobre a prática administrativa, pois não conse- inicialmente orientar as decisões sobre o traba-
Miguel. Explorando outros viveres: ensaio
sobre a escolha e a diversidade em design guem sair do prisma conceitual. lho de campo a empreender. Reexaminando o
organizacional. In: Anais do XVIII Os autores brasileiros criticam e denunciam
ENANPAD, v. 8, Curitiba: ANPAD, 1994;
referido estudo, constatamos diversas referên-
BARRETO, César. Sobre a racionalidade a razão instrumental, opondo a ela a racionali- cias a um tipo de organização que o autor de-
humana: conceitos, dimensões e
tendências. Op. cit.; OLIVEIRA, Francisco.
dade substantiva. No entanto, não conseguem nominou isonomias. As isonomias foram des-
A teoria crítica e a totalização da comprovar empiricamente se esta última pode critas enquanto tipo ideal, embora o autor afir-
racionalidade instrumental ou o
pessimismo da Escola de Frankfurt. In: ser empregada na gestão de organizações pro- masse que nos Estados Unidos, país onde es-
Anais do XVII ENANPAD, v. 9, Salvador: dutivas. Em outras palavras, os autores não creveu o seu livro, havia muitas organizações
ANPAD, 1993.
demonstram claramente, por meio de exem- que se aproximavam daquele tipo ideal. Eis a
5. Ver ROTHSCHILD-WHITT, Joyce. The plos retirados de organizações reais, como se orientação que buscávamos para começar a pla-
collectivist organization: an alternative to
bureaucrartic models. In: Rothschild- concretiza a razão substantiva na tomada de nejar o trabalho de campo: se nos propomos a
Whitt, J. & Lindenfeld, F. (dirs.) Work-
place democracy and social change.
decisão, na divisão do trabalho, no controle, demonstrar a razão substantiva na prática, nada
Boston: Porter Sargent Publishers, no estabelecimento de normas, na comunica- mais evidente do que buscar organizações que,
1982; HUBER, Joseph. Quem deve
mudar todas as coisas as alternativas
ção e em outras variáveis tipicamente admi- supostamente, apresentassem traços em comum
do movimento alternativo. Rio de nistrativas. Decorridos 14 anos da morte de com o tipo ideal isonomias, pois, segundo
Janeiro: Paz e Terra, 1985; GAGNON, G.
& RIOUX, M. A prooos d'autogestion et Guerreiro Ramos, seus seguidores ainda não Guerreiro Ramos, a razão substantiva é predo-
d'émancipation. Ouébec: IORC, 1988; conseguem ilustrar factualmente aquilo que
DUPUIS, Jean-Pierre. Le ROCC de
minante nas isonomias.
Rimouski, la recherche de nouvettes defendem. Para nós, este é um grave proble- Examinando a literatura disponível, pude-
solidarités. Ouébec: IORC, 1985;
BHÉRER, H. & JOYAL, A. Le
ma para o avanço da teoria, uma substancial mos encontrar vários estudos' que dão conta
cheminement de I'entreprise altemative: lacuna nesse campo de estudos, que denomi- da existência de organizações assemelhadas às
mirages et réalités. Montréal: Albert-
Saint-Martin, 1987; DEFOURNY, J. Le namos impasse. isonomias em diversas partes do mundo. Res-
secteur de I'économie sociale en Entendemos que o desenvolvimento da abor- tava-nos, então, ir a "campo". Assim, dirigimo-
Belgique. In: CIRIEC Working paper.
Liége, Université de Liége, n. 92-05; dagem substantiva nas organizações produtivas nos a três pequenas empresas privadas, atuan-
HABERMAS, J. Teoria de la acción
exige imediatamente um redirecionamento no tes no setor de serviços (educação infantil, pro-
comunicativa. Madrid: Taurus, vols. I e
11, 1987; NERFIN, M. Ni príncipe ni foco das pesquisas. Este realinhamento signifi- dução artística, editora, clínicas médico-psi-
mercader, ciudadano: una introducción
ai Tercer Sistema. In: Socialismo e
ca dirigir o foco para a dimensão da prática ad- cológicas) na cidade de Salvador, na Bahia.
participação. Lima, CEDEP, n. 41,1988; ministrativa, da gestão propriamente dita. A Uma vez que tínhamos o interesse em analisar
TEMPLE, D. Les ONG's comme cheval
de Troie. In: IFDA Dossier. Nyon: IFDA, mudança de rumo é necessária e urgente a fim as práticas administrativas dessas empresas, as
n. 60, 1987. de impedir que os estudos dessa abordagem ações dos seus participantes, estabelecemos que
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A RACIONALIDADE SUBSTANTIVA DEMONSTRADA NA PRÁTICA ADMINISTRATIVA
a principal metodologia do trabalho de campo devem dar lugar especial aos fatores que de-
seria a observação participante. Durante oito terminam a identidade de uma organização e,
meses seguidos (abril a dezembro de 1993) rea- por conseqüência, as suas relações com o mun-
lizamos o trabalho de campo nas três empre- do"? Desde alguns anos, tentamos difundir no
sas, empreendendo um esforço etnográfico ba- Brasil o emprego dessa perspectiva para a aná-
lizado por variáveis tipicamente administrati- lise de organizações. 10
vas, isto é, as ações cotidianas dos membros A nossa intenção aqui é de aprofundar ao
das empresas ao implementar processos de to- máximo o estudo de cada empresa pesquisa-
mada de decisões, de es- da, desvelando a sua
tabelecimento de normas, lógica interna, a sua racio-
de divisão do trabalho, de nalidade predominante e
Se uma orgaJJização como ela se concretiza
gestão de conflitos, de co-
municação, dentre outros. produtiva consegur nos atos administrativos
Em suma, o trabalho de dos indivíduos que a
obter êxito sem seguir
campo implicava a parti- compõem. Varela e
cipação efetiva no "coti- preaominanremrnte as Maturana argumentam
que a autopoiesis é um
diano administrativo'" diretivas da
das empresas estudadas. bom caminho para ana-
Este é um estudo de rscionetktsde lisar e compreender a
natureza qualitativa. A Instrum eJJtal lógica interna de funcio-
sua perspectiva analítica namento e a identidade
segue uma orientação que
dominsntr. entôo ela dos sistemas que têm
poderíamos, por analogia, upresrntn um alto grau elevado grau de autono-
caracterizar como autore- mia, a ponto de produ-
ferencial. Tal analogia
de uutonomts e também zir a sua auto-organiza-
tem inspiração nos estudos de auto-orgsntzsção. ção; os seus parâmetros
de Francisco Varela e organizativos não são de-
Humberto Maturana.? finidos por modelos e im-
Nesses estudos, os autores posições externas, e sim
- reconhecidos pela comunidade científica pela autonomia dos seus fatores internos. Nós
como dos mais importantes no desenvolvimen- supomos que se uma organização produtiva
to do paradigma da complexidade' - ao exa- consegue obter êxito sem seguir predominan-
6. A riqueza contida no importante
minar as estruturas e o funcionamento do sis- temente as diretivas da racionalidade instru- conceito de cotidiano administrativo
tema nervoso central humano, estabeleceram mental dominante no mundo empresarial, en- deve-se ao seu idealizador, prol. Juvêncio
Braga de Lima. Um detalhamento desse
uma perspectiva analítica que busca exami- tão a organização em questão apresenta um conceito pode ser encontrado em LIMA,
nar o fenômeno que se quer conhecer, em si alto grau de autonomia, e conseqüentemente, Juvêncio & TEIXEIRA, A. "O cotidiano
administrativo de pequenos produtores
mesmo. Isto quer dizer que se opta por "pene- de auto-organização. Daí a analogia com a hortigranjeiros", in: Anais do XVIII
perspectiva auto referencial, contida na Teo- ENANPAD,v. 4. Curitiba, ANPAD, 1994.
trar" nas dimensões internas do fenômeno ou
sistema em análise, nas suas operações singu- ria da Autopoiesis. 7. Ver VARELA, Francisco. PrincipIes of
biological autonomy. New York: Elsevier
lares, visando desvelar a lógica interna e sua Prosseguindo nadémarche do delineamen- N. H., 1979; VARELA, Francisco. L'auto-
identidade, porém não desprezando o ambien- to da pesquisa, gostaríamos de detalhar os ob- organisation: de I'apparence au
mécanisme. In: Dumouchel, P. & Dupuy,
te, e sim examinando como o sistema integra jetivos aos quais nos propomos a atingir: Jean-Pierre (dirs.) Colloque de Cérisy:
em suas operações as variáveis ambientais. a) Fornecer um quadro de análise que permita /'auto-organisation, de la physique au
politique. Paris: Seuil, 1983; VARELA, F.
Essa perspectiva analítica autoreferencial identificar e demonstrar, a partir de dados & MATURANA, H. Autopoiesis and cog-
é mundialmente conhecida como a Teoria da empíricos, como a racionalidade substanti- nition. Boston: D. Reidel, 1980.
Autopoiesis, ou lógica dos sistemas auto-or- va se concretiza nas práticas administrati- 8. Conl. DUPUY, Jean-Pierre. Drdres et
vas de organizações produtivas, como ela désordres - enquête sur un nouveau
ganizados. Ela pode ser bastante útil no cam- paradigme. Paris: Seuil, 1982.
po da teoria organizacional, se bem emprega- se traduz nas ações cotidianas referentes à
tomada de decisão, ao controle, à comuni- 9. MORGAN, Gareth. Images de
da por meio de analogias ou de metáforas. I'organisation. Québec: ESKA, p. 278,
Gareth Morgan percebera essa possibilidade cação, e outras práticas administrativas; 1989.
quando declarou que "dentre outras conseqüên- b) a partir da operacionalização desse quadro, 10. Ver SERVA, Maurício. O paradigma da
cias interessantes, a autopoiesis nos ajuda a identificar e demonstrar também a concre- complexidade e a análise organizacional.
In: Revista de administração de
ver que as explicações da evolução, da mu- tização da razão instrumental, permitindo empresas. São Paulo: FGV, v. 32, n. 2,
dança e do desenvolvimento das organizações assim detectar qual dos dois tipos é predo- pp. 26-35, 1992.
mico dos êxitos e dos resultados esperados; cionais resultou o quadro de análise represen-
h) estratégia interpessoal - aqui entendida tado no quadro 1. Na primeira coluna estão
como influência planejada sobre outrem, a relacionados todos os processos trabalhados.
partir da antecipação das reações prováveis Observa-se que nas segunda e terceira colunas
desse outrem a determinados estímulos e faz-se uma distinção entre os dois tipos de ra-
ações, visando atingir seus pontos fracos. cionalidade que serão cotejados no estudo. En-
Definidos os tipos de ação racional e seus tão, para cada tipo de racionalidade faz-se cor-
respectivos elementos, partiremos para o rea- responder os seus respectivos elementos cons-
grupamento lógico desses elementos face a titutivos, alocados a cada processo.
cada processo organizacional, estabelecendo Uma vez que se esteja com os dados já agru-
dessa forma o quadro de análise. Os processos pados em função dos processos, pode-se pro-
organizacionais que em conjunto compõem a ceder à operacionalização do quadro de análi-
dinâmica cotidiana das empresas estudadas es- se, conforme as três fases abaixo descritas:
tão segmentados nas ru- • Fase I - Detecção
bricas que orientaram o dos indicadores: cada
trabalho de campo, guian- elemento constitutivo de
,\iio lui esctusi» id.ulc:
do os procedimentos da ação racional, conforme
coleta de dados. Por pro- dr l/1Il so tipo tk: definimos acima, consti-
cessos organizacionais en- tui um indicador de ra-
racioJliJlidildt> uns
tendemos aqueles nos cionalidade, seja subs-
quais os indivíduos defi- iJÇ(}(>,'"de tntti. útuos tantiva ou instrumental.
nem, mediante ações espe- Na primeira fase da aná-
que compocnt
cíficas, o caráter básico do lise, deve-se detectar to-
empreendimento grupal Of/fil/lizilçâf',., dos os indicadores pre-
do qual participam. As- produtlvus. sentes em cada situação
sim, os membros do gru- observada, nas situações
po delineiam seus padrões reconstituídas e opiniões
de interrelação e também expressas nas entrevis-
as fronteiras e limites da ação grupal perante tas, no exame de documentos etc., tendo em
a sociedade. Não é por outra razão que tais vista o desenrolar de cada processo organiza-
processos estão inseridos, há bastante tempo, cional. Passemos a fase seguinte.
no rol dos temas de estudo privilegiados pela • Fase fi - Mapeamento dos indicadores
maioria dos autores da teoria das organizações. predominantes: analisando-se um processo
Os processos organizacionais que nos propo- por vez, pode-se então reunir todos os indica-
mos a analisar são em número de onze, sendo dores detectados e verificar qual deles foi pre-
sete deles considerados como essenciais: hie- dominante ao longo do tempo naquele proces-
rarquia e normas, valores e objetivos, tomada so examinado. A predominância de um deter-
de decisão, controle, divisão do trabalho, co- minado indicador revela o elemento que mais
municação e relações interpessoais, ação social determinou as ações dos indivíduos e guiou as
e relações ambientais. Os outros quatro são de- práticas operativas da organização em cada
nominados complementares: reflexão sobre a processo. Numa visão de conjunto, pode-se
organização, conflitos, satisfação individual, afirmar que, durante o período de observação,
dimensão simbólica. os indicadores predominantes fundamentaram
Para a montagem do quadro de análise, em- a organização do trabalho, os objetivos orga-
preendemos o reagrupamento dos diversos ele- nizacionais, os interesses e decisões, os valo-
mentos constitutivos de racionalidade, obser- res, os modos de interação, o exercício do p0-
vando a correspondência de cada um deles com der, dentre outras dimensões importantes.
a natureza intrínseca de cada processo orga- Mapear os indicadores predominantes tra-
nizacional, de maneira que se possa verificar duz uma posição conceitual claramente defi-
claramente a influência dos elementos no de- nida: não há exclusividade de um só tipo de
senrolar dos processos, espelhando o mais racionalidade nas ações de indivíduos que com-
fielmente possível o cotidiano das empresas põem organizações produtivas. A nossa posi-
estudadas. Da adequação entre os elementos ção conceitual tem por fundamento a idéia de
de racionalidade e os processos organiza- que a dinâmica do cotidiano das organizações
Desempenho
Reflexão sobre Julgamento ético
Fins
a organização Valores emancipatórios
Rentabilidade
Julgamento ético Cálculo
Conflitos Autenticidade Fins
Autonomia Estratégia interpessoal
Hns
Satisfação individual Autorealização
Êxito
Autonomia
Desempenho
Utilidade
A utorealização
Dimensão simbólica Valores emancipatórios
Êxifo/resultados
Desempenho
produtivas implica a presença tanto da razão tados da análise deverão necessariamente aten-
substantiva, quanto da razão instrumental. Os der as condições seguintes:
comportamentos dos membros de um grupo a) os elementos de racionalidade substantiva
produtivo não são retilíneos, suas ações desen- devem ser majoritariamente predominan-
rolam-se por meio de trajetos tortuosos, isto é, tes levando-se em conta o conjunto total
de avanços e retrocessos nas direções substan- dos onze processos examinados;
tiva e instrumental, gerando contradições, es- b) os elementos desta racionalidade devem ser
tabelecendo contrapontos. À medida que tais também predominantes na maioria dos sete
contradições e contrapontos são enfrentados e processos organizacionais essenciais.
solucionados (ou não), novas questões que po- A seguir, apresentaremos a última fase, que
dem conduzir a outras contradições presentes constitui um complemento da análise realizada.
e/ou futuras são geradas. Eis aqui, em duas
palavras, nossa visão sobre a dinâmica das or- Fase III - Identificação da intensidade de
ganizações produtivas. Por conseguinte, iden- racionalidade substantiva: o cumprimento da
tificar a predominância é assumir que ambas fase anterior é também um pré-requisito para
as racionalidades podem estar presentes em inferir sobre o grau de intensidade da raciona-
todos os processos organizacionais, num dado lidade substantiva numa determinada organi-
período de tempo. zação. Na medida em que num processo já se
Assim procedendo, ao final da Fase TI será tem detectados todos os indicadores de racio-
possível identificar se a organização pode ser nalidades, bem como o que é predominante,
considerada substantiva. Para tanto, os resul- tal conjunto de indicadores formam uma con-
figuração singular, devido às especifidades da- fazendo parte da dinâmica daquela organiza-
quele processo, da empresa, das ações e dos ção. Seguindo esse princípio e transpondo-o
valores particulares dos seus membros. O exa- para um raciocínio lógico, cada ponto do
me minucioso dessa configuração - que im- continuum equivale ao seu inverso se quer
plica analisar cada indicador detectado, a com- medir a intensidade de razão instrumental, ou
posição total da configuração e a amplitude seja, a intensidade mínima de razão substanti-
da predominância daquele indicador sobre os va equivale à muito elevada de razão instru-
demais - conduz à identificação da inten- mental, ou ainda a intensidade baixa de razão
sidade da razão substantiva em cada processo substantiva equivale à elevada de razão ins-
organizacional, situando-a entre os graus mí- trumental, e assim por diante.
nima, baixa, elevada e muito elevada. Ao O continuum, visto unicamente em si mes-
final do estudo dos onze processos, poder-se-á mo, deslocado de todo o trabalho analítico que
também identificar a intensidade de razão o precede e o determina, não possui a essen-
substantiva para a empresa observada glo- cialidade e a profundidade que o exame mi-
balmente: basta situá-la na média entre as nucioso, a análise exigente e elaborada de to-
intensidades verificadas para cada um dos dos os tipos de dados disponíveis. Ocontinuum
processos. é apenas um instrumento auxiliar na avalia-
Com o intuito de obter uma melhor de- ção da racionalidade nas organizações. Trata-
monstração do grau de racionalidade substan- se de uma solução de sintetização das avalia-
tiva numa organização, estabelecemos uma ções meticulosamente efetuadas. Deve ser con-
escala de intensidades, dispostas num cebido apenas como um instrumento anexo
continuum, representado na figura 1. Nos pó- para facilitar a visualização da classificação
los extremos desse continuum aparecem inten- relativa das empresas estudadas. Se o continuum
sidades improváveis, que denotariam - tanto espelha razoavelmente a análise, ao passo que
pela exclusividade de racionalidade substan- adiciona uma informação visual qualitativa e
tiva, como pela sua ausência absoluta - a exis- útil, então ele cumpre o seu papel.
tência (igualmente improvável) de uma orga-
nização totalmente regida pela razão substan- AS EMPRESAS DA PESQUISA
tiva ou pela razão instrumental. Tais pólos têm,
apenas, um valor heurístico, eles complemen- O presente estudo comporta a análise de
tam o entendimento da proposta, possuem pu- três empresas de serviços, situadas na cidade
ramente um valor referencial, na medida em de Salvador. A seguir, faremos a descrição de
que permitem ao leitor exercitar teoricamente cada uma delas, retratando o design que apre-
hipóteses sobre no que resultaria uma progres- sentavam durante o período da pesquisa de
são retilínea na direção de quaisquer das ex- campo, o ano de 1993.
tremidades do continuum. A primeira empresa chama-se Casa Via
Em suma, a idéia de trabalhar com um Magia. Trata-se de uma empresa privada com
continuum corrobora a posição conceitual aci- dois sócios, criada em 1984. Em termos orga-
ma declarada. Queremos dizer que ao final da nizacionais, a empresa é composta de três
análise, realizada nos moldes propostos por subunidades semi-autônomas: uma escola in-
este estudo, identifica-se a intensidade de ra- fantil com cerca de 300 alunos; uma produto-
zão substantiva e situa-se a organização num ra de arte e uma clínica congregando 15 pro-
determinado ponto do continuum. Daí, seja fissionais que prestam serviços de psicotera-
qual for o ponto em que a organização esteja pia individual e de grupo, aulas de música, psi-
situada, isto é, da intensidade mínima à muito copedagogia, medicina naturista e homeopá-
elevada, significará sempre que a racionali- tica, ajustamento corporal, aulas de teatro, den-
dade instrumental também estará presente, tre outros. Cerca de 50 pessoas trabalham na
Julgamento
Tomada de decisão Entendimento Entendimento
ético
Comunicação e Valores
Desempenho
Autenticidade
relações interpes$oais emancipatórios
Intensidade de
Muito 13. Ver SERVA, Mauricio. Racionalidade
racionalidade Elevada Baixa e organizaçiíes: Q fentJmeno das
elevada
substantiva organizações substantivas. São Paulo,
EAESP/FGV, Tese de doutorado, 1996.
t t t
totalmente mínima
I
baixa média
I
elevada
I
muito totalmente
elevada elevada substantiva
trativa: justamente aqueles diretamente liga- conta que os valores emancipatórios são do-
dos à questão do poder, tais como a hierarquia, minantes no contexto normativo daqueles gru-
o estabelecimento de normas, a tomada de de- pos (predominam no processo "valores e ob-
cisões e o controle. As zonas mais estreitamente jetivos" em ambas organizações), então tive-
relacionadas ao poder são palco de exercício, mos a oportunidade de ratificar empiricamen-
nem sempre fácil e tranqüilo, do entendimen- te uma parte importante da proposição
to. A noção de entendimento é ampla. habermasiana: nela, autenticidade e correção
Habermas fala em "acordo racionalmente ob- são dois dos três fatores fundamentais da ação
tido" e elabora a teoria da ação comunicativa comunicativa, na qual correção é definida por
a partir dessa idéia, destacando no processo a Habermas como "uma ação correta com re-
correção, a verdade e a autenticidade dos indi- lação a um contexto normativo dado e reco-
víduos. Por sua vez, Guerreiro Ramos fala em nhecido no mundo da vida cotidiano, para
"boa regulação da vida humana associada", que se possa estabelecer entre ele [o emis-
ressaltando que ela é alcançada pelo debate sor] e o ouvinte uma relação inter pessoal tida
racional e a superordenação ética. O cotidiano como legitimá','?
de uma organização substantiva não correspon- A autonomia revelou-se importante no
de nem de longe a uma imagem irreal e adoci- processo de divisão do trabalho. Quanto mais
14. Alain Chanlat vem desenvolvendo um
profundo trabalho sobre a essencialidade cada da "harmonia" preconizada pela dita cor- autonomia se tem para assumir livremente tal
da palavra no processo de gestão, ver: rente "holista", muito badalada ultimamente ou qual atividade a desempenhar, ter viva voz
CHANLAT, A. & BÉDARD, R. La gestion,
une aflaire de parole. In: CHANLAT, Jean- no Brasil. As ações de entendimento compor- no debate que leva à distribuição das tarefas,
François. (dir) L'individu dans
/'organisation, les dimensions oubliées.
tam o debate racional, o qual muitas vezes acar- argumentar e ver os seus argumentos ser alvo
Québec: Les Presses de I'Université Lavai, reta as tensões próprias de uma ambiência de contra-argumentações autênticas, mais
pp. 79-99, 1990.
marcada pelas autenticidade, autonomia e li- engajamento com o trabalho é proporciona-
15. HABERMAS, J. Teoría de la ecctôn berdade de expressão. Além disso, voltamos a do. A natureza substantiva da organização
comunicativa: complementos y
estudios previos. Madrid: Cátedra, p. lembrar que os comportamentos dos membros emergiu também com grande intensidade des-
501,1989. de um grupo produtivo não são retilíneos; em se aspecto.
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A RACIONALIDADE SUBSTANTIVA DEMONSTRADA NA PRÁTICA ADMINISTRATIVA
A satisfação é o corolário, no nível indi- que já lhe oferece um modelo geral, as dire-
vidual, do esforço organizacional de cunho trizes de base e a lógica das ações, todos es-
substantivo. Há evidências de que a autorea- ses elementos fundantes intuídos de uma ra-
lização é o grande motivo da satisfação em cionalidade utilitária, instrumental. O dile-
participar daquelas organizações. A recom- ma entre ser empresa nos moldes tradicionais
pensa monetária existe (em geral não muito ou ousar uma práxis emancipatória é diário,
mais elevada do que em outras empresas do expressa-se no cotidiano, nas relações com
mesmo ramo), mas os indivíduos apontaram os colegas profissionais, com os empregados
como a fonte maior da sua satisfação a pos- se eles existem, na adoção ou não de hierar-
sibilidade de realização dos seus potenciais quia e em que grau, nas formas de comunica-
profissionais e pessoais. ção utilizadas, e em mui-
Aqui, vimos que a auto- tos outros aspectos de es-
nomia se complementa colha. O dilema é cons-
A5' ações de
com a autorealização, e a tante, no fundo é a pró-
divisão do trabalho com entendimento se pria expressão do dilema
entre a predominância
a satisfação. mostraram
Quanto a Espaço da razão substantiva ou
Aquarius, empresa que
indispcnstivels para da razão instrumental
não emergiu da análise dar o tom da nuüo nas organizações produ-
como organização subs- tivas contemporâneas.
tantiva, confessamos que
substantiva J]{Ni Um dilema que se nega-
nos sentimos extrema- rprocrssos duros" da do ou ocultado, pode
mente gratificados em aflorar em contradições
pnitic» administrativa: não assumidas e confli-
contar com ela na pesqui-
sa, uma vez que tal fato justamente aqueles tos não resolvidos, como
ensejou-nos uma grande no caso da empresa Es-
diretamente ligados à paço Aquarius.
chance de aprendizagem,
tanto para o aprofunda- questão do poder. Na nossa concepção,
mento do conhecimento para que uma organiza-
sobre organizações subs- ção seja realmente subs-
tantivas, como para o tes- tantiva é preciso que o
te do quadro de análise. Pudemos perceber que comprometimento com os valores emancipa-
mesmo apresentando predominância substan- tórios vá além da sua mera difusão; é neces-
tiva nas rubricas valores e objetivos, dimen- sário que tais valores comecem a ser pratica-
são simbólica, tomada de decisão, e controle, dos dentro da própria organização, principal-
a empresa não pode ser considerada por nós mente no desenrolar da prática administrati-
como substantiva. Nos demais processos pre- va. Observando os casos das empresas Casa
domina a razão instrumental. Esse caso faz Via Magia e Espaço Lumiar, constatamos que
emergir com toda a clareza (e os outros dois o comprometimento efetivo é justamente o fa-
casos assim o confirmam) uma das condições tor da ação que opera uma fusão entre os va-
sine qua non para a predominância da razão lores emancipatórios e as ações de entendi-
substantiva numa organização produtiva: o mento acima destacados. O que não aconte-
comprometimento efetivo dos seus membros ceu na Espaço Aquarius. Não se muda uma
com os valores emancipatórios. realidade complexa apenas portando signos
O fato de conduzir uma empresa que sobre- e professando valores, acima de tudo é preci-
vive bem num mercado competitivo e, parale- so comprometer-se efetivamente com eles nas
lamente, tentar concretizar uma práxis basea- ações cotidianas. A congruência de uma or-
da naquilo que nós acreditamos como razão ganização, face a racionalidade que lhe é sub-
substantiva, é o que melhor define a natureza jacente, não começa no produto ou tampouco
do desafio que os membros de tais empresas na imagem ao público; começa sobretudo nos
enfrentam em seu cotidiano. Vive-se permanen- seus processos administrativos internos. Ou
temente numa dualidade tensa, pois tenta-se seja, de dentro para fora da organização, e
construir uma empresa fundada numa ética não o contrário. Nesse cenário da vida hu-
"substantiva", mas no seio de uma sociedade mana moderna, o simulacro não é suficiente