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RESENHA
150p.
cesso de forja de extensão do trabalho. Os relatos
apresentados consubstanciam essa ideia, pois se
mostra recorrente nos discursos o ideário organi-
Bruno Stramandinoli Moreno zacional permeando objetivos, vida pessoal, famili-
ar e social.
Num primeiro momento do livro, tem-se
a elucidação da tarefa a que a autora se propõe:
O feitiço das organizações é uma obra que construir o arcabouço teórico e metodológico para
contempla o entendimento de sistemas imagi- buscar entender e analisar o fenômeno, dispon-
nários no âmbito das relações de trabalho den- do-se a discutir as organizações, o imaginário e as
tro do contexto organizacional de uma grande relações engendradas nesse cenário. Inicialmen-
corporação. A presente discussão é fruto de um te, ela recorre à perspectiva antropológica de
estudo realizado no ano de 1995 junto a trabalha- Mounier para fundamentar suas discussões e se
dores demitidos de uma grande fabricante de avi- munir de instrumentos para avaliar o impacto
ões, de capital nacional, mas de âmbito global. das políticas praticadas pelas organizações.
Articulando análises teóricas e relatos dos Essa construção teórica perpassa o esta-
próprios demitidos ou de terceiros, a pesquisa- belecimento dos níveis de análise em que a pes-
dora vai tecendo o sustentáculo de suas concep- quisa se foca. Foi na literatura de Enriques que a
ções sobre a relação desses profissionais e a autora elencou as seguintes instâncias de análi-
corporação – até então amparo de suas subjeti- se: mítica, sócio-histórica, institucional, organi-
vidades –, tendo como pano de fundo as pre- zacional, grupal, individual e pulsional. Esse pas-
missas do professor Eugène Enriquez acerca do so lhe possibilitou alçar um próximo degrau, o
feitiço que as organizações estabelecem por meio do estabelecimento do espaço dos sistemas ima-
de suas relações com os funcionários. ginários de Enriquez e seu impacto nas relações.
A partir de uma análise mais acurada e Partindo da fundamentação conceitual e de sua
tendo como referência o trabalho de Enquiez, a interpretação de análise sobre organizações, a
autora apresenta suas constatações sobre a pre- autora se baseia na compreensão das situações-
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Num segundo momento da obra, susten- pessoal. Os relatos apresentados mostram indi-
tada por uma gama de pensadores, Schirato es- víduos infantilizados, inseguros, numa relação
tabelece um percurso que contempla instantes de dependência limitante no tocante à perspec-
da vida dos sujeitos pesquisados, ainda dentro tiva de mundo que constroem.
da organização (abarcando desde o ingresso até Os efeitos apontados pela autora, oriun-
o desligamento). A partir desse ponto do livro, é dos da consubstanciação da relação entre orga-
possível dimensionar o impacto que as políticas nização e trabalhador, mostram-se nefastos para
de Recursos Humanos – expressões materializa- esse último. Schirato entende que ele perde a
das do inefável envolvimento dos indivíduos capacidade de direcionar a própria vida, de cons-
pelas organizações – têm, por meio de processos truir sua identidade para além sua condição de
de integração ao cotidiano da corporação, o que trabalhador da organização. À medida que essa
imbrica o imaginário do profissional, transcen- relação se torna “pseudofamiliar” e as situações,
de as paredes da organização e alcança o cotidia- os eventos e os indivíduos assumem um ar “do-
no pessoal e íntimo desses trabalhadores. méstico”, “de casa”, a preocupação com a quali-
A autora, com intuito de dimensionar dade do trabalho e a reciclagem profissional as-
para o leitor o drama do processo de desliga- sumem uma importância secundária. É nesse
mento junto aos sujeitos- alvo da pesquisa e o momento que a autora preconiza a discussão so-
seu impacto no cotidiano desses indivíduos, in- bre os valores praticados, bem como o código de
sere vários relatos das experiências coletadas. Ao ética vigente, aludindo ao nível de análise
invés de estabelecer relação concreta entre o seg- organizacional em si.
mento teórico-reflexivo e o concreto-real, têm- Schirato encerra o livro alinhando os ele-
se, ao longo dessa segunda parte, a proposição mentos apresentados até então num tom de de-
de o próprio leitor buscar as aproximações que núncia e aponta a para um horizonte caracteri-
julgar adequadas. O que torna a proposta inte- zado pela necessidade de se perpetuar tal refle-
ressante é o fato de os casos serem relatados exa- xão, de modo a transformá-la em ação efetiva de
tamente como foram descritos. intervenção junto à equivocada relação entre or-
No decorrer dessas descrições, tem-se a ganização e trabalhador, no que se entende como
percepção de que as intenções e promessas o modelo tradicional de gestão.
concernentes à política de pessoal estabelecem Em síntese, a presente obra consegue al-
CADERNO CRH, Salvador, v. 23, n. 60, p. 655-656, Set./Dez. 2010
uma relação de perversidade, pois tais intenções cançar o objetivo a que se propôs: desvelar o
e promessas se efetivam nas vivências cotidia- “feitiço” que os sistemas imaginários erigidos
nas. Essa perversão é demonstrada na apresen- pelas organizações, por meio das Políticas de
tação das falas dos sujeitos, na medida em que Recursos Humanos, praticam nos seus corredo-
eles relatam a desapropriação de suas vidas pes- res e destacar a necessidade de se resgatar a pri-
soais e demonstram como são explorados para mazia do reconhecimento em prol do humano,
muito além de sua força de trabalho, sendo atin- nessa relação.
gidos, em termos afetivos, até em sua agenda
Bruno Stramandinoli Moreno - Mestre em Ciências da Motricidade pela Unesp. Especialista em Psicologia
Organizacional e do Trabalho pela UEL. Psicólogo pela UEL. Professor Assistente II da Faculdade Integrado
de Campo Mourão para cursos de graduação e pós-graduação. bstram@gmail.com
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A HISTÓRIA DE UMA CIDADE FILOSÓFICA ideia de que um filósofo possa se interessar pela
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história e um historiador pela filosofia tem por
vezes dificuldades para vingar.” (p. 38). Toda-
VIDAL-NAQUET, Pierre. Atlântida – Pequena via, o domínio metodológico da disciplina histó-
história de um mito platônico. Trad. L.A.
Watanabe. São Paulo: Unesp, 2008. (214 p.) rica e documental dos textos que dão continui-
dade, muitas vezes de forma fantástica, ao mito
platônico, aliado a uma grande erudição por parte
do historiador francês, permite o sucesso dessa
Rafael Salatini interessante pesquisa (se me é permitida essa
expressão) histórico-filosófica.
O problema todo nasce quando a influên-
cia platônica se torna tão grande, que sua descri-
ção fictícia e inacabada da cidade de Atlântica
O filósofo italiano Norberto Bobbio dis- se transforma, século após século, num mito. O
tinguia quatro modalidades de filosofia política, mito não é uma mera ficção, mas uma mistura
entre as quais a descrição – que só pode ser feita de ficção e realidade; na verdade, uma ficção
em termos ideais – da melhor organização polí- que se toma por realidade, mesmo se sabendo
tica. Pode-se, sem dúvida, considerar Platão como que não passa de ficção: algo que não existe, mas
o pai dessa modalidade filosófica, com sua Re- se cconsidera que deveria existir e se age como
pública, cuja influência pode ser medida pelas se, de fato, existisse. Objeto tradicional de estu-
inúmeras descrições de cidades ideais que se do dos etnólogos (de Frazer a Lévi-Strauss), a
podem contar, desde A cidade de Deus (413- mitologia ganhou contemporaneamente, na cha-
426) de Santo Agostinho até a Viagem a Icária mada nouvelle histoire, status de objeto digno
(1842) de E. Cabet, passando pela Utopia (1516) de pesquisa pelos historiadores (e eminentes his-
de T. More, A cidade do sol (1602) de T. toriadores!). A força do mito de Atlântica é tão
Campanella, a Nova Atlântida (1627, póstumo) grande, que todo o oceano Atlântico recebeu esste
de F. Bacon e a República de Oceana (1656) de nome pela crença de que a cidade platônica ha-
J. Harrington, para citar apenas as mais famo- via submergido em suas águas.
sas, todas inegavelmente espelhadas na cidade Vidal-Naquet emprega sua erudição e de-
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Muitos deviam simplesmente rir dela.” (p. 49). ano e britânico, do bispo P.D. Huet a J.
Analisando textos que vão de Teopompo de Harrington, passando pelo conde G.R. Carli, seja
Quios, contemporâneo de Platão, até Proclo, oito em discussões históricas, destacadas em repre-
séculos depois, passando por Aristóteles – que, sentantes holandeses, franceses e italianos, com
diz o historiador, “neste ponto, [...] se deixou relevo para o engenheiro francês N. Boulanger,
enganar por Platão” (p. 52) –, entre uma grande descrito como, “com a imensa curiosidade que o
quantidade de escritores menores, cujos textos possuía, um [historiador] amador” (p. 117), e o
não recebem uma pesquisa menos minuciosa, professor de literatura italiano G. Bartoli, des-
Vidal-Naquet dá conta de como o mito, de texto crito como um historiador que “estava à frente
em texto, perpassa a cultura helênica e ecoa pela de seu século e do século seguinte.” (p. 120).
cultura romana e mesmo bizantina, espraiando- Se o século XVIII foi um século
se pela cultura antiga até o tardar do crepúsculo racionalista, o século XIX será historicista, o que,
do império romano. sob o ponto de vista do mito atlântico, servirá
Pulando (como é costumeiro, infelizmen- de farto terreno para a inserção de Atlântida nas
te, na historiografia ocidental), como dito, todo grandes descrições da história da humanidade,
o período medieval, ao qual não são dedicadas ainda que imaginárias (mas, pode-se perguntar,
mais que 21 linhas no início do capítulo tercei- também não eram imaginárias as histórias uni-
ro, é nos textos renascentistas que a investigação versais de Vico ou Hegel, que – ao menos Vidal-
do mito prossegue: “Ressoam as três batidas – Naquet não o diz – não mencionam Atlântida?),
afirma Vidal-Naquet – e as cortinas se abrem mencionadas com grande riqueza no livro. E se,
uma primeira vez em Florença, em 1485, quan- no século anterior, a confabulação atlântica pas-
do o humanista neoplatônico renascentista sou da filosofia à história, no século do Roman-
Marsílio Ficino traduziu o Crítias, além do res- tismo, passará da história ao romance, sendo
tante da obra de Platão. Decretou que o relato encontrada, entre outros, nas histórias de Júlio
era verdadeiro, mas verdadeiro no sentido pla- Verne, autor descrito como “representativo da
tônico do termo, o que não abre a possibilidade Atlântida romanesca não apenas na França, mas
de inscrever Atlântida numa mapa” (p. 80), coi- também no mundo.” (p. 142).
sa, contudo, que não deixou de ser feita, como Por fim, se o mito de Atlântida havia sido
as ricas imagens presentes na obra comprovam. objeto de manipulação nacionalista na Espanha
CADERNO CRH, Salvador, v. 23, n. 60, p. 657-659, Set./Dez. 2010
Nesse ínterim, são analisados diversos textos (de renascentista ou na Suécia iluminista, no século
procedências diversas: viajantes, padres, natu- XX também o será, perceberá o historiador fran-
ralistas, humanistas, etc.), em que se destacam cês, na Alemanha nacional-socialista, onde, nas
duas questões: a descoberta da América, que diversas obras de ideólogos racistas, a cidade in-
reaviva a lembrança da cidade platônica, e a ventada por Platão se transforma no berço da
mobilização do mito de Atlântida para fins polí- raça ariana!
ticos e ideológicos, seja pelo nacionalismo da Uma questão simples pode ser colocada
coroa espanhola, com interesses de possessão ao trabalho de Vidal-Naquet, sobre a utilidade
sobre as novas terras descobertas, seja pelo na- (ainda que essa mesma questão possa ser inú-
cionalismo escandinavo, pelo efeito da curiosa meras vezes subdividida): qual a utilidade de se
obra do médico sueco O. Rudbeck. pesquisar passagens menores de textos esqueci-
Reavivada modernamente pelos escrito- dos de autores medíocres, colocadas lado a lado
res renascentistas, Atlântida seria iluminada pe- com passagens de grandes textos de grandes au-
los pensadores do Século das Luzes, seja em dis- tores (questão metodológica)? Qual a utilidade
cussões filosóficas, destacadas pelo historiador de pesquisar a reprodução, por séculos a fio, de
em representantes do Iluminismo francês, itali- uma ideia que, por mais persistente que se mos-
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tre, não passa de uma ideia falsa (questão subs- pode sugerir que não apenas a razão, mas tam-
tantiva)? Penso que as respostas a esstas ques- bém a “desrazão”, não somente a verdade, mas
tões brotam facilmente das páginas de Atlânti- igualmente a falsidade, etc. possuem algum re-
ca. Primeiro, não somente os grandes autores, levo na história da humanidade. Daí a grave im-
mas igualmente os pequenos, fazem parte dos portância de sua perscrutação. O que transparece
grandes diálogos intelectuais que perpassam os com nitidez na obra aqui resenhada, quando se
séculos, algo que, se um estudioso de filosofia mostram as interessantes e vívidas maneiras como
pode se permitir ignorar, nenhum historiador o a mitologia serve, em diferentes séculos, para a
pode, como vêm demonstrando com sucesso di- formulação de discursos religiosos, geográficos,
versos historiadores contemporâneos. Também históricos, nacionalistas, etc.
a importância dos mitos não está no fato de que Tem-se aqui um livro interessante sob
eles são falsos (qualquer cientista consegue de- qualquer ponto de vista, que mostra simultanea-
monstrar com facilidade a falsidade de um mito, mente a sutileza da nouvelle histoire, a atualida-
quando o identifica como tal), mas sim no fato de dos estudos helenistas e a importância dos
de que, ainda assim, as pessoas insistem em acre- estudos sobre os mitos. Em suma, poder-se-ia
ditar neles (vide a persistência do racismo, mes- descrever essa obra de Vidal-Naquet como feita
mo décadas após a ciência ter demonstrado a por mãos delicadas (as mãos de um historiador
inexistência de raças na espécie humana). O que interessado em filosofia).
Rafael Salatini - Bacharel em Ciências Sociais pela FFLCH-USP (2003). Licenciado em Ciências Sociais
pela FE-USP (2007). Doutor em Ciência Política pelo DCP-FFLCH-USP (2009). Professor da Unesp-
Marília, São Paulo. Departamento de Ciências Políticas e Econômicas. Unesp - Campus de Marília.
Faculdade de Filosofia e Ciências. Av. Hygino Muzzi Filho, 737. Cep: 17525-9000. Marília - São
Paulo. Caixa postal 181. rafaelsalatini@marilia.unesp.br.
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