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Capít ulo 2

Ética, ontologia e práxi s

1. Particularidades da ética

Embora não tenha consumado seu projeto de sistematização de uma


1
ética marxista, Lukács nos deixou várias indicações a respeito desse tema.
Segundo Tertulian (1999, p. 133): "a reflexão ética do último Lukács gira sem
cessar em tomo dos problemas do direito, ~a moralidad e e da vida ética, com
uma ênfase particular nesta última (Sittlichkeit) como solução de contradiç ões
surgidas em outras esferas".
Afirma.Tertulian que, em Estética, Lukács procura estabelecer o campo
de mediações entre as normas abstratas do direito e as exigências da consciên-
cia moral individual, circunscrevendo-as no plano categorial da generalid ade
do direito, da singularidade da moral e da particular idade da ética. A ação
ética seria, assim, a mediação entre o singular (moral) e o genérico (direito),
constituindo-se como particularidade (síntese entre o genérico e o singular).

A ação ética ultrapassa, ao mesmo tempo, a norma abstrata do direito e a irre-


dutibilidade das aspirações individuais à norma, pois ela implica, por definição,
levar em conta o outro e a sociedade[...] A ação ética é um processo de 'gene-
ralização', de mediação progressiva entre o primeiro impulso e as determinações
externas; a moralidade toma-se ação ética no momento em que nasce uma

1. Consultar Lukács (2014) e a Apresentação de Sergio Lessa.


BRITES• BARROCO
SERVIÇO SOCIAL EtTICA PROFISSIONA~ FUNDAMENTOS EINTERVENÇÕES CRITICAS 31
JO
'd de entre a singularidade individual e a
, . treoeueaaten 1 a , [...]_ as.~ais an~gas realizações do trabalho, as consequências mais prinútivas
convergenc1a ~n da articularidade exprime justamente esta zona
da_mc1p1ent~ _divisão do trabalho já propõem tarefas aos homens, cuja execução
totalidadesoaal[...] o~ampo p _ é . a (TERTULIAN, 1999, p. 134).
de mediações onde se illSCreve a açao tic exige e mobiliza forças psíquicas de feitio novo, diferentes das mobilizadas pelo
processo propriamente dito do trabalho (pense-se no papel da coragem pesso-
. - d éti' como ação e sua configuração como particula- al, da sagacidade inventiva, da cooperação desprendida no caso de alguns
A conce1tuaçao a ca . ,
. . fundamentá-la como práxis. Nesse sentido, tambem trabalhos executados coletivamente) (LUKÁCS, 2013, p. 484).
ndade nos autonzam a . ,, , .
• Luk'cs (2007 p 72 grifos nossos), que afirma: a etzca é
nos apmamos em a , · , . ,,
uma parte, um momento da práxis humana em seu con;unto . Quando o sujeito do trabalho põe em dúvida suas escolhas, evidencia-
-se uma situação primária motivada pela intenção de que sua atividade dê
Com O apoio dessa concepção, consideramos que a é~c~ é um mo~o de
certo, ou seja, que atinja a finalidade projetada idealmente. Ninguém deseja
objetivação humana que não pertence a uma esfera esp~ca da totalidade
social, mas sim ao conjunto das formas de práxis, em que realiza uma mediação que seu trabalho dê errado, ninguém escolhe a pior opção, daí o seu ques-
tionamento: "será que as escolhas foram as melhores? As mais acertadas?".
de valor ou, como diz Lukács, onde se objetiva como um momento da práxis.
Essa dúvida contém uma preocupação que, por um lado, decorre do
Nessa perspectiva, toda práxis2 tem um momento ético, ou seja, um
momento em que os homens assumem posicionamentos, fazem escolhas, fato de que o sujeito não pode ter controle absoluto do processo de trabalho,
projetam finalidades, influenciam-se mutuamente, orientados por valores mas, por outro, pode indicar a origem de uma relação de comprometimento
do sujeito com a sua práxis. Com o desenvolvimento de práticas sociais não
que afirmam a humanização e a emancipação do ser social.
econômicas mais complexas, no campo de mediações entre o sujeito e a prá-
A objetivação do ser social como um ser ético guarda particularidades
xis, surgem exigências de valor conflituosas, como a responsabilidade e o
postas pela natureza dessa intervenção, pela especificidade de suas categorias,
compromisso em sua relação com a intencionalidade do sujeito e com os
por seus objetivos e valores, que não se confundem com outras formas de
resultados de suas práxis.
valor, como os econômicos, científicos, filosóficos, estéticos etc.
O trabalho põe certas exigências que incidem sobre o comportamento
Vunos que o trabalho exige o desenvolvimento de certas capacidades
do sujeito, ou seja, no trabalho, homem e natureza se transformam. Um dos
humanas essenciais à sua execução: o sujeito que trabalha projeta idealmen-
efeitos produzidos no homem pelo trabalho é a necessidade de seu domínio
te o resultado de sua atividade, o que demanda uma escolha entre as alter-
sobre si mesmo, numa luta constante com seus instintos, que devem ser
nativas existentes, gerando avaliações de valor.
dominados pela consciência. Nesse sentido, a consciência toma-se domi-
No trabalho, a referência valorativa é dada pelo valor de uso do seu nante sobre o instinto, e o conhecimento sobre a emoção (LUKÁCS, 2013,
produto. Portanto, quando o sujeito põe em dúvida se suas escolhas foram p. 484).
as melhores, se foram certas ou erradas, está estabelecendo um julgamento
Para Lukács, o autodomínio passa a ser "o problema fundamental de
de valor ~bre as suas decisões em função da utilidade do seu produto final.
qualquer disposição moral, desde os costumes e a tradição, até as formas
.Assdun, ~~smo que na origem do trabalho ainda não tenham se desen- mais elevadas de ética: [... ]o trabalho também obriga o trabalhador a dominar seus
vo1VI o as. atividades sociais, cUJas .
· a ltemativas e escolhas estejam conectadas afetos. Ele pode sentir medo, cansaço, mas deve dominá-los para atingir suas finali-
a outros tipos de valor ' é possív l Ob servar que o trabalho mobiliza forças
h e dades" {LUKÁCS, 2013, p. 81, grifos nossos).
umanas que ultrapassam as requ •d
serão valoradas • . en as pe1o trabalho, entre elas, as que A ética se desenvolve conservando esta exigência originária do trabalho:
no âmbito das relações ético-morais:
o domínio da consciência sobre as paixões, em outras palavras, a ética requer
o autodomínio, ou o distanciamento necessário dos comportamentos iine-
2. Nio f8tamot lllll referindo à práxis
' •
negativa, ou seja, alienada. diatos, pragmáticos, instintivos, e sua substituição por atos conscientes.
BRITES• BARROCO
SERVIÇO SOCIAL E~TICAPROFISSIONAL: FUNDAMENTOS EINTERVENÇÕES CRITicAs

n •b'lidades para o desenvo1vunento


·
• diversas poss1 I mentam sua liberdade social. Consideramos tudo aquilo que impede ou obs-
Assim O trabalho poe , derá se objetivar como um modo de taculiza esses processos como negativo, ainda que a maior parte da sociedade
' é. Masestesopo l .
d comportamento ttco. d • social quando as a temativas e as lhe empreste um valor positivo (HELLER, 2000, p. 78).3
o sso de repro uçao . d l
ser específico no proce - dos homens entre s1, e es com a
bJ'eto da re1aça0
escolhas de valor forem O • m seu conhecimento e suas formas Como práxis, a ética se dirige à dimensão humano-genérica do ser social,
sociedade, com suas representaçoes, co
objetivando-se teórica e praticamente de formas particulares, como conexão
de vida. f • . ontoló<Yico-social, buscada em Marx e entre o indivíduo singular e as exigências sociais e humano-genéricas
m nossa re erenc1a o· .
De acordo co ·entam as escolhas éticas e os Julgamentos (BARROCO, 2016b, p. 29). As objetivações éticas reproduzem as exigências
• , · de valor que on universalizantes da práxis, motivando a relação consciente dos indivíduos
Lukács, os cntenos . . ntolo'uicos pois se referem ao ser huma-
- hl t' ·cos objetivos e o o· ' com os valores e as conquistas humano-genéricas, visando à humanização e
de valor sao : on , lid d de suas forças e capacidades emancipatórias.
no e à afinnaçao da tota a e 'al .. à emancipação do ser social. Enquanto a arte e a filosofia atingem a huma-
• humana· a riqueza maten e espmtua1cons-
Para Marx, trata-se da nqueza . nização, respectivamente, pela criatividade, pela emoção, e pela busca das
truída pelo ser social historicamente. raízes da existência humana, a ética desperta o pertencimento dos indivídu-
os ao gênero humano pela radicalidade de suas indagações de valor e pelas
[...] se despojada da estreita forma burguesa,.º Jue é a riqueza se~ão a univer-
salidade das necessidades, capacidades, fruiçoes, forças produtivas etc., dos respostas capazes de orientar valorativamente a conduta humana na direção
indivíduos, gerada pela troca universal? [O que é senão o] pleno desenvolvi- de suas possibilidades emancipatórias.
mento do domínio humano sobre as forças naturais, sobre as forças da assim Como dissemos, a ética tem sua gênese no processo de constituição
chamada natureza, bem como sobre as forças de sua própria natureza? [O que ontológica do ser social pelo trabalho, mas seu desenvolvimento ocorre com
é senão a] elaboração absoluta de seus talentos criativos, sem qualquer outro a ampliação das capacidades humanas que a sustentam, quando a relação
pressuposto além do desenvolvimento histórico precedente, que faz dessa to- entre os homens passa a demandar posicionamentos e finalidades de valor
talidade do desenvolvimento um fim em si mesmo, i. é., do desenvolvimento dirigidos a influenciar a subjetividade e o comportamento ético dos indiví-
de todas as forças humanas enquanto tais, sem que sejam medidas por um
duos, e a objetivar projetos cujos valores afirmem a riqueza humana.
padrão predeterminado? [O que é senão um desenvolvimento] em que o ser
não se reproduz em uma determinabilidade, mas produz sua totalidade? Em A ação ética é universalizante e dirigida à totalidade social, pondo em
que não procura permanecer como alguma coisa que deveio, mas é no movi- movimento categorias éticas específicas, como: a alteridade (o respeito ao
mento absoluto do devir? (MARX, 2011, p. 399-400). outro), a responsabilidade em face das decisões de valor, a capacidade de
discernimento entre valores, o autodomínio (o domínio da consciência sobre
Ariqueza humana corresponde, portanto, ao domínio do homem sobre as paixões), a constância (firmeza de caráter), entre outras (HELLER, 1998).
a natureza e sobre si mesmo, ao desenvolvimento universal livre e cons- Ser capaz de discernir entre valores, ou seja, deter a capacidade de re-
ciente da totalidade de suas forças e capacidades desenvolv:das historica- conhecer a existência de pares de valor positivos e negativos (bom ou mau,
mente com~ a ~ase fundante de sua reprodução em múltiplas e ilimitadas
formas e direçoes' e da criação de novas poss1'b'lid
1 ades. necessidades e
formas de satisfação Essa ref • · f 3. Utilizamos as seguintes obras de Heller: O cotidiano e a história (lançada em 1970), Socio/agill
. _ ,. · erencra ornece uma medida' de valor para as da vida cotidiana (lançada em 1970) e O homem do Renascimento (cuja edição portuguesa data de 1982,.
avaliaçoes eticas:
não constando a data de sua edição inicial). Tais obras pertencem à fase marxista da autora que, após
os anos 1980, afastou-se do marxismo mudando radicalmente de perspectiva teórica e politlca, as-
São de valor positivo as rela ões _ sumindo posições direitistas. Segundo Lessa, Njá nos anos imediatamente anteriores ao falecimento
fornecem aos homens . ç '~ -~rodutos, as açoes, as ideias sociais que de Lukács, os antigos membros da Escola de Budapeste, Agnes Heller à frente, iniciaram um mo,i-
IJla]ores possibilidades d Ob' ·
sociabilidade, que configuram . . e Jetivação, que integram sua mento de afastamento de Lukács que culminou, na década de 1980, com o abandono completo e
tnaJS universalmente sua consciência e que au- explícito da filiação à obra marxiana, e, consequentemente, à de Lukics• (U3SSA. 2002, p. 20).
1111 a
BRITI:S • BARROCO
SERVIÇO SOCIAL EÉTICA PROFISSIONAL: FUNDAMENTOS EINTERVENÇÕES CRfncAS J5

.
M tituir como um ser éti'co, pois a
to para se cons d
A •
dade social, sustentam a capacidade humana de orientar eticamente a exis-
justo, injusto etc.), é supos inde endentemente da concor ancia ou tência do ser social.
ética implica julgamentos de valor ( p
A constância ou coerência em termos da práxis ética, o que Heller (1998,
não com os valores). . _ . , dio etc.) é também uma exigência
, . d pa1xoes (raiva, o , . d p. 138) trata como "firmeza de caráter", reside na vida orientada continua-
O autodommio as 'vência ética democrahca, onde
. , . para uma conv1 mente por motivações humano-genéricas, que se elevando acima da singu-
da sociabilidade; prmapio. . fundamental: a alteridade, ou o respeito laridade, trabalha regularmente de modo consciente para reforçar seu próprio
a relação com uma categoria é~ca à tegoria ética responsabilidade, uma caráter (BARROCO, 2016b, p . 78).
i se também, ca
ao(s) outro(s)• Re e~ ' d _ e'ti'cas na medida em que eles assu-
. diví uos sao , Portanto, a relação ética entre consciência, liberdade, sociabilidade e
vez que as escolhas d oS m . .
- A nsequências sociais. . _ alteridade objetiva-se na responsabilidade do indivíduo, cuja práxis gera
mem que suas açoes tem co
_ 'ti' exige que O indivíduo ultrapasse a dimensao alternativas de valor e exige escolhas conscientes em face das finalidades e
Dessa forma, a açao e ca . .
. 'd d lt d xclusivamente ao atendimento das necessida- dos riscos envolvidos nas decisões de valor. Segundo Heller (2000, p. 25), é
de sua smgulan a evo a ae . d
· com O "nós" a exemplo de atitu es como o necessária "a concentração de todas as nossas forças na execução da escolha
des do "eu" para se relaaonar '
· d d companheirismo etc. (BARROCO, 2016b, p. 58). (ou decisão) e a vinculação consciente com a situação escolhida e, sobretudo,
altruísmo, asolidane a e, O
, · 'ti' a a soo'abilidade é mediada pela liberdade. No,,entanto, com suas consequências".
Napraxise c, .
com isso não estamos afirmando o princípio liberal segundo o qual a minha A práxis ética é dirigida à universalidade dos valores, sendo motivada
liberdade termina onde começa a do outro",4 pois esse princípio supõe uma por exigências humano-genéricas. Isso quer dizer que a práxis supõe a sus-
liberdade individualista, ou seja, uma liberdade que não pode ser comparti- pensão da dimensão singular do indivíduo -mergulhada nas exigências da
lhada com ninguém. Isso significa que o egoísmo presente no individualismo cotidianidade - para o estabelecimento de objetivações orientadas por va-
nega a própria ética, pois ela supõe a sociabilidade, ou seja, a coexistência lores que representam conquistas emancipatórias do gênero humano, a
soáal e a alteridade. exemplo da liberdade.
A ética supõe que - nas escolhas entre alternativas de valor - o in- Tendo a liberdade e a emancipação humana como fundamentos, a
divíduo não seja coagido, isto é, deve ter um mínimo de participação cons- ética alimenta as escolhas de valor voltadas à ampliação e à liberação de
ciente nas escolhas, pois, no caso de o indivíduo ser obrigado a decidir pelo forças e capacidades humanas essenciais, e à superação dos impedimentos
uso da força, psicológica ou física, ele não executaria uma escolha conscien- à sua manifestação. ·
te e livre. Essa questão é complexa no contexto da alienação, em que as
escolhas são perpassadas por influências ideológicas, determinações socio-
econômicas e pela luta de classes. Ao mesmo tempo, sendo histórica, a li- 2. Ética e política
berdade não é absoluta e, nesse caso, ela se realiza em graus de menor ou
maior objetividade. Com o desenvolvimento histórico do ser social e a constituição das
. ~ atributos h~os essenciais construídos a partir do trabalho - a sociedades de classe, fundadas na propriedade privada dos meios de pro-
~ d e , a consoencia, a teleologia, a universalidade e a liberdade - , d ução, na divisão social do trabalho e na exploração do trabalho, os valores
aliceiçad~ no caráter alternativo das ações humanas, nas escolhas de valor ético-morais desenvolvem-se em face de relações complexas e contraditórias.
e na capacidade humana de objetivar valores que visam interferir na totali- Na sociedade capitalista, o valor de troca adquire uma dimensão universal
e uma função de guia das relações entre os homens. · · ·
Esse aspecto é determinante para a configuração das objetivações que não
'-Sable • lhnllde libenl. ver Marx (2010). pertencem à esfera econômica, mas passam a se apoiar no critério de troca para
• mfii&JtilF

Ih Editorial de Serviço Social


denadora do Canse o . CrlsUna Maria Britas
Coar . Lºduína de Oliveira e Silva
Mana 1 Maria lllcla SIiva Banoco
Conselho Editorial de Serviço Social
Ademir Alves da Silva .
Dilséa Adeodata Bonetti (in _memoriam)
Elaine Rossetti Behnng
Ivete Simionatto
. L, ·a Carvalho da Silva (in memoriam) i
Mana uo
Maria Lucia Silva Barroco
SERVIÇO SOCIAl EÉTICA
PROFISSIONAl: FUNDAMENTOS
Dados Internacionais de catalogação na Publ!cação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) EINTERVENÇÕES CRÍTICAS
Brites, Cristina Maria . _ ,.
Serviço Social e ética profissional : fundamentos ~ mtervençoes criticas /
Cristina Maria Brites, Maria Lucia Silva Barroco. - Sao Paulo : Cortez, 2022.
- (Biblioteca básica de serviço social ; v. 9)

BIBLIOTECA BÃSICA DE SERVIÇO SOCIAL


Bibliografia.
ISBN 978-65-5555-344-4

-l
1. Assistentes sociais - Ética profissional 2. Serviço social I. Barroco, Maria
Lucia Silva II. Título. m. Série. VOLUME9
22-129338 CDD-361.3

lndlces para caúlogo sistemático:


1. Assistência social : Serviço social 361.3

Cibele Maria Dias- Bibliotecária - CRB-8/9427

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