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LIVROS E MULTIMÉDIA

páginas Web directamente ligadas por cimentos medianos de probabilidade e A FÍSICA DA MÚSICA
links de hipertexto. E são exactamente as estatística e, acompanhados das devidas
propriedades topológicas destas redes referências, podem ser facilmente
que reúnem vários sistemas biológicos e adaptados para um curso de tópicos de
tecnológicos numa mesma categoria: mecânica estatística.
sítios que não estão directamente ligados
estão separados por um número muito Outra questão importante discutida
pequeno de conexões e alguns (poucos) pelos autores no capítulo 6 é a da
sítios possuem um número grande de robustez de tais redes frente a falhas
conexões, enquanto muitos outros são aleatórias ou ataques a sítios específicos.
pouco conectados. Espera-se, por exemplo, que sistemas
biológicos sejam resistentes a falhas,
A verificação experimental de que vários como a morte de um neurónio no
sistemas possuem tais propriedades levou cérebro ou a deficiência na produção de
a uma revolução no estudo de redes um determinado metabolito. A resi-
complexas, devidamente documentada liência de tais redes face a falhas alea-
por dois dos mais activos participantes tórias deriva da estrutura topológica das
desta revolução: José Fernando Mendes, redes associadas com tais sistemas e
da Universidade de Aveiro, e Sergei acarreta invariavelmente uma fragilidade
Dorogovtsev, do Instituto Ioffe, em São de tais sistemas face a ataques a sítios
Petesburgo. O livro "Evolution of altamente conectados, como mostra a Luís L. Henrique, "Acústica Musical",
Networks: From Biological Nets to the teoria de percolação em redes. Outros Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa,
Internet and WWW" constitui actual- tópicos abordados neste capítulo envol- 2003
mente a melhor referência no tema, vem a transmissão de informação em
contendo uma bibliografia bastante redes - importante para o estudo da As relações entre arte e ciência são
completa, documentação das observa- propagação de doenças em redes sociais e muitas e variadas. O praticante de qual-
ções empíricas mais relevantes e um vírus de computador na Internet - e o quer uma delas procura a harmonia. A
desenvolvimento matemático cuidadoso comportamento crítico do modelo de prática de cada uma delas exige criativi-
dos modelos propostos para a criação e Ising em redes complexas. dade. Mas, se há uma arte em que a har-
evolução de tais redes - muitos deles monia e a criatividade aparecem muito
desenvolvidos pelos próprios autores. Especulações acerca da relação entre evo- claramente, essa arte é a música. E, se há
lução de redes, criticalidade auto-orga- uma ciência em que a harmonia e a cria-
Após uma introdução ao conceito de nizada e processos estocásticos com tividade dão o "tom", essa ciência é a física.
redes e definição concisa das proprie- ruído multiplicativo encerram o livro, Não admira por isso que haja relações es-
dades topológicas de interesse, os autores deixando o leitor com uma mensagem peciais entre a música e a física.
expõem uma lista extensa de sistemas final: vivemos num mundo repleto de
naturais e tecnológicos que podem ser redes - sociais, económicas, biológicas ou A parte da física que trata a música é a
mapeados em redes e suas respectivas tecnológicas - e a identificação de prin- "acústica musical". A acústica é o capí-
propriedades topológicas. Os capítulos 4 cípios organizacionais comuns repre- tulo da física que estuda o som (o nome
e 5 constituem o cerne do livro, com senta um passo importante para o seu vem da palavra grega "akouein", que sig- 43
entendimento.
GAZETA DE FÍSICA

uma descrição detalhada da teoria nifica ouvir). E a acústica musical é o


matemática de redes. Usando ferramen- capítulo da acústica que se debruça sobre
tas da mecânica estatística, como teoria Este livro representa para a comunidade o som musical, o som harmonioso, o som
de ensembles, equações-mestras e teoria da Física uma referência indispensável que não é ruído, embora a distinção entre
de escala, os autores chegam a resultados no assunto. esse som e os outros não seja tão clara
gerais para as propriedades topológicas quanto à primeira vista possa parecer.
de redes cuja evolução se dá somente Márcio Argollo Ferreira de Menezes
pela adição e remoção de ligações Departamento de Física, Universidade Foi Pitágoras, o grande sábio grego en-
(chamadas redes em equilíbrio, por de Notre Dame, EUA, volto em lenda do qual nenhum escrito
analogia com sistemas em equilíbrio mdemenez@nd.edu nos chegou, quem terá realizado as
termodinâmico) e redes cuja evolução primeiras experiências com cordas vi-
inclui também a adição de novos sítios brantes, usando o chamado monocórdio.
no sistema (chamadas redes de não- Terá verificado que, quanto mais pe-
-equilíbrio, por analogia com sistemas quena fosse a corda, mais agudo era o
onde não se atinge o equilíbrio). A lei- som e terá até chegado a uma relação
tura dos capítulos 4 e 5 requer conhe- quantitativa entre o tamanho da corda e
a altura do som. Pitágoras foi mais longe: esforço fora do comum para "entrar" na seguir ao índice geral (no fim há utilís-
os números estão por todo o lado do Física dos sons, em particular dos sons simos índices de nomes e de assuntos),
Universo (nisso antecipou Galileu) e a emitidos pelos vários instrumentos mu- em que se afloram questões como o even-
música é uma representação da har- sicais. Começa no capítulo 2, depois de tual aperfeiçoamento de um Stradivarius
monia do Universo (um tema que viria a ter definido a acústica musical e ter abor- (talvez não...), se é ou não possível ouvir
ser glosado por Kepler). dado a sua história, por descrever siste- a forma de um tambor (isto é, se o
mas vibratórios simples, dando exemplos espectro dos sons emitidos permite
Pitágoras foi pois o avô da acústica mu- de relevo para a arte musical (o diapasão). inequivocamente determinar a fronteira
sical. Seguiu-se uma longa história, que Depois passa para os sistemas vibratórios da membrana, um problema matemá-
ainda decorre. Com efeito, a investi- complexos, para as ondas, para a análise tico que já deu pano para muitas man-
gação sobre acústica musical mantém-se de sons e instrumentação acústica e vi- gas), a questão se o ouvido humano é
actual. Essa história vem contada no pri- bratória. A partir do capítulo 7, fazem-se sensível à diferença entre analógico e
meiro capítulo de um extraordinário ouvir os instrumentos musicais (o fazer- digital (entre o LP e o CD, ou ainda en-
livro: "Acústica Musical", de Luís L. -se ouvir é literal por causa do CD): os tre um amplificador a válvulas ou um
Henrique. O livro é extraordinário em cordofones, friccionados ou dedilhados amplificador a transístores: a discussão
vários sentidos: em primeiro lugar pelo ou de tecla, os membrafones, os idiofo- permanece), qual é o melhor piano do
seu volume (e peso!). O autor abarca nes, os aerofones (flautas, palhetas, metais, mundo (desfaça-se já o mistério: para o
todos os domínios da Acústica Musical órgão, voz) e os modernos electrofones. pianista Cláudio Arrau, é um Steinway,
nas 1130 páginas da obra. Em segundo Os capítulos finais tratam da experimen- que se encontra na Salle de Musique da
lugar, vem acompanhada de um disco tação e inovação em instrumentos cidade suíça de La Chaux-de-Fonds) e se
compacto, com exemplos vários de sons musicais, da acústica de salas - um ramo a orquestra deve ou não afinar pelo oboé
musicais (aparecem, entre outros, os sons da acústica muito complexo e com co- (em resposta à questão; já houve tenta-
da guitarra de Pedro Caldeira Cabral). E, nhecidas aplicações (nos exemplos, o autor tivas de afinação por uma fonte electrónica
em terceiro lugar, embora dirigindo-se não se esquece de incluir o Grande Au- mas os músicos não gostaram!)
preferencialmente, aos praticantes de ditório da Gulbenkian), o sistema
música, o autor não foge à matemática, o auditivo humano, a percepção de sons Por falar em erros, este livro tem muito
que está certo porque, como Pitágoras e musicais, o registo e reprodução de sons poucos para o tamanho e para a com-
Galileu afirmaram, a matemática está (cujas aplicações, que vão das gravações à plexidade dos assuntos tratados. Tem de
por todo o lado do mundo e, portanto, reprodução doméstica de som num se reconhecer o cuidado que o autor e a
está também nessa parte do mundo que aparelho de alta fidelidade, são também editora colocaram na revisão. Há pe-
é o som. bem conhecidas), os intervalos e a afina- quenos erros, que poderão ser emendados
ção dos instrumentos e as escalas e tem- se esta edição, como merece, se esgotar e
É a primeira obra alargada em português peramentos (voltando, como que em o público exigir uma outra. Assim, só pa-
sobre a acústica musical. O autor, que fez fecho de círculo, a Pitágoras e ao dia- ra dar alguns exemplos, o ponto aparece
uma ampla consulta bibliográfica na pasão). Alguns apêndices destinam-se a em vez da vírgula na notação de núme-
preparação do livro, refere apenas dois ajudar o leitor menos familiarizado com ros com decimais, o símbolo de graus
livros anteriores do mesmo género: Luís a Física e a matemática, tratando de Celsius aparece mal grafado (a bolinha e
de Freitas Branco, "Elementos de grandezas, unidades e dimensões, con- o C de Celsius têm de estar juntas), a
Sciências Musicais. Vol. I, Acústica, ceitos físicos da acústica, noções de ma- equação (2-17) não descreve o estado
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Lisboa, edição do autor, 1929, e Pedro temática, etc. (o último apêndice enumera dos gases mas sim uma transformação
Martins da Silva, "Elementos de Acús- e descreve os exemplos musicais do CD). adiabática, etc. Mas eles não desafinam o
GAZETA DE FÍSICA

tica Musical", Lisboa, Laboratório Na- som geral da orquestra que é bastante
cional de Engenharia Civil, 1989. O É, sem dúvida, um grande livro, que se afinado.
primeiro desses autores era músico e o recomenda não só aos profissionais e
segundo é físico. Mas repare-se que ne- amadores da execução musical, mas Caros leitores que gostem de música e
nhuma dessas edições está facilmente também a todos, e são muitos, interes- queiram saber mais sobre a ciência e a
disponível. Pelo contrário, o livro de sados pela música - os melómanos - que técnica por detrás dela: têm ao seu al-
Luís Henrique está facilmente disponível passaram a dispor de um elemento de cance em língua portuguesa um recurso
pela edição cuidada da Fundação consulta precioso para esclarecer as suas incontornável.
Gulbenkian, à qual não se devem rega- dúvidas sobre a ciência e tecnologia
tear elogios pelo seu plano de edições, musical. Alguns ficarão intimidados pela Carlos Fiolhais
que tem uma extraordinária relação matemática e pela física, mas esses, além tcarlos@teor.fis.uc.pt
qualidade-preço para professores e alunos. de ouvirem o CD, podem sempre ler as
pequenas caixas, que em profusão,
Luís Henrique é músico e professor de aparecem por todo o livro e que contêm
música no Porto. Ao folhear o seu algumas curiosidades na área da acústica.
volume forçoso é deduzir que fez um Há um índice de caixas, logo no início, a

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