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N
o mundo da edição popular que per-

siste em nosso continente, universo

contíguo à moderna e profusa edição de mas-

sas – construção do que denominei de Cultura

das Bordas –, nota-se que os antigos livros de

magia continuam a ter um papel muito forte.

Continuam sendo publicados, por editores po-

pulares, os Livros de Sonhos, numa gradação

infinita, os de São Cipriano e os de Bruxas de

Évora, da Cruz de Caravaca, ou As Clavículas de

Salomão. Alguns deles terminam se aglutinan-

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JERUSA PIRES FERREIRA

LIVROS E LEITURAS
DE MAGIA

JERUSA PIRES
FERREIRA é
professora do
Programa de
Comunicação e
Semiótica da PUC/SP,
onde dirige o Núcleo
de Poéticas de
Oralidade. É autora
de, entre outros, O
Desenho que Livro de São Cipriano
ilustra a capa de El (Perspectiva)
e Fausto no Horizonte
Libro de S. Cipriano (Hucitec/Educ).

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do, formando uma espécie de colagem que algumas dificuldades muito sérias ocorrem.
nos leva a pensar num grande texto mágico São livros de magia, trazendo sua carga de
que permeia o mundo das práticas e crenças maldição e interdição e, mais ainda, livros
populares. Estes livros são egressos de uma populares. Com essas características, têm sua
espécie de fundo de antigos saberes mágicos, produção, circulação e consumo regulados
heréticos ou perseguidos que podem tomar por certos princípios e tabus.
nossos rumos, a qualquer momento que uma Nos sebos, espécimes antigos não são
compatibilidade os requisite. Daí que conde- encontrados, senão muito rara e ocasional-
nar esta literatura e considerá-la apenas im- mente, porque quem os teve ou tem não os
posta é proceder como os positivistas, que passa adiante, sendo considerada uma viola-
exilavam as “bárbaras crenças” das práticas ção vendê-los ou descartá-los.
científicas. Quanto a bibliotecas públicas, há dois ti-
Temos de entender, de um lado, a “tra- pos de impedimento. Ou o livro pertence
móia”, presente nas edições populares, toda a àquele estrato cultural que não merece a ne-
aturdidora fragmentariedade, mas também cessária credibilidade para figurar no fundo
observar que comparece nesses textos um geral de leitura de uma biblioteca municipal,
acervo de formulações, que têm agora a ver estadual ou nacional, e não se adquiriu para
com as religiões populares das massas urba- compor o acervo ou se, por acaso foi adqui-
nas, como tão bem nos apresentou Cândido rido, corre o risco de ser roubado. Tenho
Procópio. Constatamos que esses conjuntos colecionado alguns episódios bem interessan-
ainda respondem pela permanência de um tes. Por exemplo, tendo localizado na Bibli-
repertório da tradição popular dos causos e oteca do British Museum um precioso exem-
dos contos, de uma oralidade que ainda se faz plar de As Clavículas de Salomão, encontro
presente, e com muita força, em nossos âm- dentro do livro um papelzinho dizendo que o
bitos populares, de uma visualidade que traz mesmo fora resgatado e devolvido às prate-
dentro de um amplo processo mistificatório leiras da biblioteca por intervenção da
os ícones mais diversos: figuras, segmentos Scotland Yard. Vamos também nos situar
de imagem, fragmentos de geometria e nú- diante de um novo conceito de leitura. O lei-
meros mágicos. Difícil será dizer onde tudo tor ou consulente segue suas lições como as
começou, o que existe de falso ou verdadeiro, de um acreditado mestre, exercita sua
de “imposto” ou resgatado. psicoterapia como se estivesse num consul-
A este respeito, as observações de Paolo tório, aproveitando também de suas suges-
Carile combinam exatamente com as minhas, tões para conquistar e prender um homem ou
e ele, de certo modo, responde às críticas que mulher. As fórmulas e conselhos, que às vezes
se possam fazer ao fato de não pensar a nos parecem ridículos, canhestros, arcaicos,
“Bibliothèque Bleue”, a literatura francesa conservadores, imobilistas e imobilizantes
de colportage como coisa imposta. Comenta nos processos da emancipação social, têm,
que o livreto de colportage fornece uma cul- no entanto, muito a ver com as razões cotidi-
tura aceita, dirigida, assimilada, durante sé- anas dos grupos sociais e das pessoas que
culos, pelos meios populares. utilizam esses textos. É muito sugestivo o fato
Em meu estudo sobre o Livro de São de nunca se dizer que o consultou ou dele se
Cipriano apresento uma espécie de jornada serviu. Aparece sempre uma irmã que o tem
heurística por esse universo do livro popular. e o consulta, uma irmã que é perturbada e não
Procuro então mostrar a permanência dessa o dispensa, mas a mãe não sabe... e muitas
espécie de colagem viva que se assenta num outras escapatórias para compor uma espécie
contínuo mediúnico (recepção e demanda) e de espaço secreto.
num continuum textual (operação criativa e O objeto é que vai em busca de tudo o que
aglutinadora). poderá explicá-lo, signos verbais ou visuais,
Quando se sai a campo para pesquisar ou símbolos e marcas, produção de uma
recolher exemplares de livros como estes de narratologia que aproxima linguagens arcai-
São Cipriano ou As Clavículas de Salomão, cas a procedimentos que o mundo popular

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obteve e resguardou, e que se ajusta e trans- para designar livros ou partes de livros de
forma, continuamente, a diversas formas de artes mágicas e ciências populares. O contato
ver e de dizer, no mundo popular contíguo ao com textos brasileiros e portugueses mostra-
da cultura de massas. nos que a palavra “engrimanço”, que se rela-
O levantamento feito não é nem poderá ciona intuitivamente com a sonoridade das
ser exaustivo, funcionando como uma amos- etimologias populares, é usada como sinôni-
tra do que foi possível encontrar até agora. mo de “grimório”. Grimoire procede ou liga-
Aparecem surpresas a cada momento: um tí- se diretamente a Grammaire, designando a
tulo recriado, um simplesmente transcrito a gramática latina, incompreensível para o vul-
partir do texto de outra editora ou mesmo go, tendo também o sentido de livro de magia
“maquilado”, modificado em pequenos deta- para uso de feiticeiros, obra ou discurso obs-
lhes, para dar a impressão de um outro livro. curo, indecifrável. Localizam-se sempre cor-
Estes conjuntos parecem atender a dife- respondentes, a partir do latim Grimorium e
rentes segmentos, dentro do público-alvo. É às vezes Grimorium Verum, e passa-se a sa-
uma espécie de resposta a diversas solicita- ber que esses livros recebem também o nome
ções de grupos que, se têm a unidade de um de “alfabetos do diabo”. Chamam a atenção
todo, têm diferentes graus culturais e aquisi- por contar os segredos maravilhosos, entre os
tivos. Põe-se ênfase especial em determina- quais os mais importantes são: fazer aparecer
dos aspectos do conjunto, e isso significa atin- e obedecer os maus espíritos, evocar os de-
gir vários tipos de leitor ou até mesmo o “lei- mônios, descobrir tesouros escondidos, etc.
tor fiel”, consumidor habitual desse tipo de Os engrimanços têm o caráter da ciência
livro, em diferentes momentos de sua trajetó- mágica e um conjunto de propostas concretas
ria, e de acordo com suas necessidades. para atuação, em que a invisibilidade é um
A partir destes textos, de cada um deles, dos temas centrais. Espera-se por esses signi-
vão se acompanhando as possibilidades es- ficados que o mago aja como um taumaturgo,
colhidas e ricas de sugestões de cada um. e este poder é conferido ao livro ou a quem o
Impossível deslindar cada fragmento, frase traz, procurando nele aprender lições, as
ou símbolo. A seqüência dos próprios escri- mais secretas.
tos vai ditando a escolha dos mais importan- Num livro sobre mágica, feitiçaria e pa-
tes, as entrelinhas vão revelando pistas e te- ganismo na América, abre-se o capítulo “Os
mas, por onde enveredar na explicação do Grimórios”, realçando-lhes o caráter prático:
possível, mas o mistério permanece. Misté- “[...] necessário na biblioteca do mágico, o
rio de um tema como este, tão complexo, de grimório contém as fórmulas e rituais pelos
repertório infinito, de alcance enciclopédico, quais o mágico é mágico... Há um grande
encampado na produção editorial, com todos número de velhos grimórios, a maioria escri-
os recursos possíveis, e visando a públicos ta em alemão, latim ou hebreu e que circulava
cada vez maiores. entre os monges medievais”.
Podemos situar esses livros como Uma firme sustentação desses textos se-
grimórios, como fez a pesquisadora inglesa ria também o pacto com o diabo, encontran-
E. M. Butler, ou como engrimanços, possível do-se nos engrimanços ou grimórios todos os
corruptela popular. detalhes e procedimentos para a formulação
Engrimanço é uma palavra muito estra- do pacto. Um grimório implica em ação e aí
nha aos nossos ouvidos, até que se começa a não se trata de rezar e de esperar, mas está em
encontrar, com freqüência, menção aos causa toda a eficácia dos ritos; concede-se
Engrimanços de São Cipriano. Em dicioná- também o poder de exorcizar e de
rios se encontra para esse vocábulo a signifi- instrumentar. Neles encontramos sempre e
cação de discursos obscuros, modo explicitamente referências à cabala e à tradi-
ininteligível de falar, que se liga ao italiano ção judaica, misturando-se à magia um apelo
grimo (mísero, enredo, artimanha, logro). a escrituras indecifráveis. Estão aí contidos
“Grimório” é palavra menos corrente em princípios de “diabolismo”, materiais reco-
português, mas que se usa em outras línguas lhidos a partir de toda uma tradição da

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Teufelliteratur, e como seria de se esperar, há pacto e várias operações mágicas e
nos novos grimórios a evocação das narrati- transformadoras, apresenta receitas para bem
vas célebres e lendárias de Johanes Faust. viver, promessas a se cumprirem em países
Nesse grande texto que conduz apocrifias, de fartura e de abundância, alvo das utopias
fragmentos rituais ou simples mistificações populares.
que jogam um jogo próprio, comparecem Estudando a Coena Cypriani, sugere
presságios, aparições, possibilidades de sa- Bakhtin que é muito significativo o seu
ber o futuro, de descobrir as coisas mais se- universalismo histórico e que seus traços se
cretas; também a proximidade com os espíri- encontram em grandiosa obra do século XVI,
tos, diabinhos familiares (famaliás) e vampi- que trata do Banquete: O Modo de Vencer na
ros, encantamentos, talismãs, parcelas de um Vida.
universo comum. Os amantes se reunirão, E é exatamente neste mundo em que o
terão lugar os filtros de amor e as evocações mágico prático e os ritos diabólicos oferecem
para retorno de afeição, embora alguns livros certezas de uma vida melhor que circulavam
ou partes deles se dediquem a fazer o mal. e ainda circulam os grimórios, os
Mas os grimórios podem trazer também a engrimanços, os enchiridions....
alegria de uma felicidade inesperada, o fer-
vor diante do milagre, a assistência de uma
corte de espíritos, de santos, de arcanjos e até AS CLAVÍCULAS DE SALOMÃO E
a submissão de Satã. A CHAVE DOS MAGOS
Observa-se então a estreita ligação des-
ses textos, apoiados no ofício e na operação Este rei, ao qual Deus tinha dado a sabe-
mágica, com a Igreja. O autor de um desses doria, tem todo um poder sobre o mundo e em
compêndios pede mesmo que se preste aten- particular sobre os demônios da tradição po-
ção ao sentido profundamente religioso des- pular. Atribui-se a ele a redação desse famo-
ses textos e ao fato de serem eles atribuídos so livro das clavículas, sem o qual não se
a santos ou a papas. Entre os mais famosos poderiam invocar os demônios. Ele é a Chave
grimórios existentes estão, por unanimida- dos Magos.
de: As Clavículas de Salomão (presente em Numa editora que tem muitos títulos do
nosso conjunto de edição popular, hoje), O Livro de São Cipriano encontram-se edições
Grimório do Papa Honório, O Enchiridion de O Verdadeiro Livro de São Cipriano de
do Papa Leão, Os Segredos do Grande e do Salomão, que possuo na 6a. edição e que,
Pequeno Alberto, que tanto circulou nas segundo aí se diz, é publicado em razão de
edições francesas. intensas solicitações: “Os constantes pedidos
A preferência por papas é também uma que temos recebido de todos os pontos do
questão de legitimar a magia em personagens país e do mundo são a prova mais evidente de
poderosos, sendo os mais visados Santo Leão, que o mesmo é conhecido e apreciado por
o Grande, e Silvestre II, qualificados de gran- todos”.
des mágicos. Haveria mesmo uma efetiva Quanto a Salomão, aí conta o autor-edi-
cisão entre a Igreja e a Magia? E será que o tor, para os seus leitores, que existem dois
clero mantinha-se afastado do encanto, mis- personagens, que não devem ser confundi-
tério, perplexidade e divertimento desses dos, a saber, Salomão, o rei dos hebreus, e o
grimórios? sábio Salomão, mago da Caldéia, divisão
Conforme lembra Bollème, esses opús- curiosa que faz seguir esse texto bizarro:
culos faziam a alegria e descontração dos “Alguns personagens que desempenharam
conventos. O ambulante, o colporteur, o tra- suas atividades com grande brilhantismo no
zia com sua mercadoria e, desde sua partida, setor do bem têm um xará, que alcançou ce-
se ensaiavam as receitas da felicidade: “Se o lebridade em terreno completamente oposto,
padre promete a felicidade para o outro mun- ou ao menos diferente. Esta introdução tem a
do, não nos resta mais do que bem morrer”. O finalidade de explicar a diferença que existe
livrinho mágico, ao contrário, sugerindo o entre Salomão, o Rei dos Hebreus, e o Sábio

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Salomão, o mago da Caldéia”, sendo que este
texto fica sendo como do segundo.
No entanto, a tradição corrente passa para
todos, em lenda, rituais e disputas de sabedo-
ria, a figura do rei Salomão.
Em 1456, diz-nos E. M. Butler, aparece,
num panfleto de advertência ao duque de
Burgúndia, uma listagem que apresenta as
Clavículas e o Sigilum de Salomão como as
obras de nigromancia mais correntes naquele
tempo, sendo que a primeira ocupou o lugar de
honra nas mentes dos praticantes de magia, do
século XIV em diante, havendo inúmeras ver-
sões de muitos manuscritos existentes.
Ao longo dos séculos teria havido uma
verdadeira indústria de forjar manuscritos,
sendo que as Clavículas vão incluindo as
Conjurações. Butler afirma que os grimoires
franceses, muitas vezes provenientes da Itá-
lia, são firmemente baseados nelas. Aponta-
nos o Grimorium Verum como dos mais apro-
vados e o Grand Grimoire para a descoberta
de tesouros escondidos. Interessante é que, a
certa altura, a pesquisadora inglesa acha por
bem explicar que as “clavículas” não têm nada
a ver com ossos; acrescenta que, mesmo em
suas versões abreviadas, estéticas e espiritu-
ais, foram prolíficas ao extremo e tiveram um
enorme prestígio, principalmente nos países
latinos. algo de fundamental: a preservação de co-
Para Eliphas Levi, segundo a tradição nhecimentos que não se perderam e que se
popular, o possuidor das Clavículas de apresentam ou reapresentam contendo
Salomão podia conversar com espíritos de fabulações e delírios inventivos.
toda espécie e se fazer obedecer por todos os Também Menéndez y Pelayo cita As Cla-
poderes naturais: vícula de Salomão como um célebre tratado
de invocação de demônios, muito corrente na
“Estas Clavículas, várias vezes perdidas e Espanha:
depois reencontradas, não são outra coisa que
os talismãs dos 72 nomes e os mistérios das “Sobre este livro discorre assim o doutíssimo
32 vias (Cabala), hieroglificamente Bispo de Segóvia, D. Juan Baptista Perez,
reproduzidas no Tarot. Com a ajuda desses em memorável parecer, escrito em 1595: ‘Os
signos e por meio de suas combinações infi- nigromânticos têm um certo livro de conjuros
nitas, como a dos números e das letras, pode- com caracteres incógnitos, o qual chamam
se com efeito chegar à revelação natural e de Clavicula Salomonis e que está proibido
matemática de todos os segredos da natureza em todos os Catálogos da Inquisição, e os
e entrar em comunicação com toda a hierar- mágicos fingem que o escreveu Salomão’.
quia das inteligências e gênios”. No Malleus Maleficarum, o inquisidor diz
que os nigromânticos usam um livro que
Note-se que há, nesse mundo mistificador chamam de Salomão, escrito em língua ará-
da edição popular, informações e soluções bica, e que o achou Virgílio numa cadeia de
que nos são passadas, permanecendo porém montes da Arábia”.

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Atesta-se que o livro circulou com força Cascudo nos fala da presença atuante desse
no século XVI e que continha certas figuras conjunto de narrativas na tradição popular
e orações que deviam ser recitadas nos sete nordestina.
primeiros dias de lua nova, ao apontar o sol Trata-se de uma recolha de vidas de san-
pela manhã, e que o homem, observando es- tos de acordo com suas datas, estabelecidas
ses rituais, se acharia, de súbito, cheio de ci- pela Igreja, e que teve sucessivas edições. É
ência. usado na produção dos livros de São Cipriano,
Não podemos deixar de mencionar a an- ora como texto, ora como menção obrigató-
coragem de livros como este e o de São ria. Diz-se sempre: extraído do Flos ou Flor
Cipriano, por exemplo, nos atos de mártires, Sanctorum.
vidas de santos e outros compêndios e cole- Tive em mãos duas edições muito anti-
ções religiosas. gas. A primeira delas preparada pelo padre
A Legenda Áurea ou Legenda Dourada é Pedro de Ribadeneyra, religioso da Compa-
uma recolha de vidas de santos, escrita, a partir nhia de Jesus, traduzida da língua castelhana
de uma tradição do relato popular e do (sic) e que traz no 2o volume a história de São
martirológio cristão, pelo monge dominicano Cipriano.
e arcebispo de Gênova, Jacopo da Voragine, Quanto a Pedro de Ribadeneyra, trata-se
por volta de 1300. Foi um texto que teve de um autor ascético espanhol e “magnífico
incontáveis edições, publicado em inglês em prosista”. Nasceu em 1526 em Toledo, mor-
1483 como Golden Legend e na França como rendo em 1611 em Madri. Entrou na Compa-
Legend Dorée, contando com inúmeras adap- nhia de Jesus, sendo o discípulo predileto de
tações, ampliações, numa rede muito profusa Santo Inácio de Loyola, e em 1542 foi envi-
de textos. Se não há narrativa inocente, aque- ado a Paris para completar seus estudos.
la sobre santos é a menos inocente que há, Menciona-se entre as obras ascético-mo-
conforme comenta Le Goff. Comprova-se que rais do autor o Libro de las Vidas de los San-
as recolhas hagiográficas representavam uma tos (Madri, 1599 e 1601) em duas partes, e
das malhas da prodigiosa rede de vulgariza- que tudo indica seja o Flos Sanctorum.
ção dominicana, estendida por vários autores
no começo do século XIII, tendo o texto da
Legenda merecido acolhida imediata. Cons-
ta que seu autor, Voragine ou Varagine, en-
trou para a Ordem de São Domingos e foi
provincial da Lombardia pelo espaço de 18
anos, tendo feito sua celebridade, a partir do
texto que era originalmente em latim: Historia
Lombardica Sanctorum. Daí viria o sucesso
e a difusão. Mil manuscritos conservados, 70
e 80 edições antes de 1500: dos séculos XIII
a XV, por exemplo, contaram-se sete versões
francesas, sendo inumeráveis as traduções,
adaptações e versões ampliadas.
Todo este mencionado universo compa-
rece no Flos Sanctorum, que é o texto-base
para o mundo luso-brasileiro na difusão da
legenda de São Cipriano. É um livro muito
popular no sertão. Meu pai, Celso de Carva-
lho (1901-86), sempre falou desse livro con-
tando que seu padrinho, o vigário Cupertino
de Lacerda, grande orador sacro da Bahia,
não o dispensava e que também o via
freqüentemente em mãos de leigos. Câmara

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Vai-se percebendo como o núcleo narra- O interessante é que a ciência “culta” foi
tivo de um livro como o de São Cipriano se expulsando tudo isso, a dos doutos foi expe-
engasta na tradição de vida de santos, da Le- lindo para as classes populares mezinhas e
genda Dourada ao Flos Sanctorum, e que o panacéias que, apesar da fragmentariedade,
eixo principal dessa narrativa se constrói em têm sua lógica própria, proveniente de anti-
torno das idéias de martírio e conversão. gos rituais, de usos empíricos comprovados,
Essas recolhas são tão oficiais no mundo de antigos conhecimentos depositados e que,
ibérico que, entre as condenações impostas a ao longo dos tempos, foram levando a se for-
“hereges” pelo Santo Ofício, está a obriga- mar o que se chamou de um “verdadeiro ar-
ção, como indulgência, de ler diariamente o senal curandeiro”.
Flos Sanctorum. Ora, estes textos de pleno A transcrição deste texto de Henrique de
reconhecimento popular contêm ingredien- Villena nos põe diante de uma complexa di-
tes daquilo que se apontava como heresia, visão da ciência, que nos deixa perplexos, tal
como é o caso de nossa história de São a sofisticação e detalhamento de categorias,
Cipriano, artes mágicas, pacto com o demo, e que continua a existir nos livros populares
etc. Assim se remetia diretamente às de feitiçaria de forma difusa:
heterodoxias difusas, aos aspectos mágicos
pré-cristãos, e usava-se para combatê-las, “A cabeça e totalidade das ciências proibidas
curiosa e sutil ironia, o veneno do próprio é a magia, da qual saíram quatro principais
corpo. que são matemática, prestígio, malefício,
Em sua História dos Heterodoxos Espa- encantação. Das matemáticas saíram nove
nhóis, Menéndez y Pelayo aponta para as artes que são hidromancia, piromancia, geomancia,
mágicas dos muslins ibéricos e diz que copi- espatulmancia, fulgurária, ciromancia,
osa biblioteca se formou (a crer nos arabistas) tremulária, sonorítica e auspício. Do prestí-
com obras de mouros e judeus, concernentes gio saíram seis que são absconsória, pulsória,
às artes mágicas, à astrologia judiciária, aos congregatória, transformária, passionária,
dias natalícios, à interpretação dos sonhos. ludíbria. Do malefício saíram dez que são
Só desta matéria, diz ele que se catalogaram mediária, sopniária, invocatória, nigromancia,
7.700 escritores. Cita o poema de Aben Rangel estricatória, fíbrica, extrária, sortilégio,
de Córdoba sobre astrologia judiciária, uma amatória e vastatória. Da encantação saíram
demonologia e os prognósticos sobre figuras três que são empérica, imprecatória, ligatória.
e contemplações celestes; juízos sobre ciên- De nigromancia saíram quatro que são:
cia arenária ou geomancia e a quiromancia do astromancia, conomancia, pedoxomancia,
cordobês Al Said ben Ali Mohamed. etc.; de estricatória saíram duas, que são:
Menciona a tradição corrente dos livros cursória e fascinatória. De conomancia saiu
de esconjuros e os tratados de astrologia judi- uma que é a litomancia, e assim são cumpri-
ciária, de quiromancia, de fisiognomia, etc. das as 43 artes proibidas”.
Passa-nos a idéia da transmissão de todo
um conjunto de saberes, que incluem os mais Levemos em conta uma época, que revive
diversos conhecimentos, contando, natural- agora e traz a voga de certos fenômenos, como,
mente, as medicinas e seu exercício prático. por exemplo, a proliferação de textos ligados
Há, no aglutinado que comparece até hoje ao ocultismo. O “culto” e o popular se apro-
nestes livros populares, a idéia de uma junção ximam, e creio que os séculos XVIII e XIX na
de todas essas coisas, verdadeiros almanaques, Europa foram a grande sementeira desse con-
que contêm ensinamentos próprios, resgata- vívio, que resultaria na produção de livros
dos desse fluxo vivo de tradição. populares e semipopulares.
Circulam adivinhações, fórmulas mágicas A moda do ocultismo, por exemplo, teria
e práticas em alternância. Magia e Medicina, sido reforçada pelas obras de um seminarista
antigas companheiras, fórmulas e receitas para francês, Alphonse Louis Constant, nascido
sanar dificuldades, purgantes e sangrias for- em 1810 e conhecido como Eliphas Levi.
mando um conjunto que não se interrompe. Segundo Mircea Eliade, ele seria o responsá-

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vel até pela criação do termo “ocultismo”. uma incursão pelo Livro de São Cipriano, de
Teria tido grande influência sobre a sua obra onde retira uma seqüência de horóscopos:
a leitura da Kabala Denudata de Christian
Rosenroth, assim como as obras de Jacob de “Deixo Espady no seu lar
Boheme, de Swedenborg, de Louis Claude Vou falar em São Cipriano
de Saint-Martin (o filólogo desconhecido) e Lendo o livro do signo
outros teósofos do século XVIII. Seus livros explicado sem engano”.
Dogma e Ritual da Alta Magia; A História da
Magia e a Chave dos Grandes Mistérios co- Segue por signos e horóscopos, histórias
nheceram um enorme sucesso. de bruxas e águas mágicas, num folheto não
Os neo-ocultistas da geração seguinte fi- bem resolvido, antes uma seqüência de frag-
zeram grande conta de Eliphas Levi, e o mais mentos recriados e colados.
notável de seus discípulos, dr. Encausse, es- Um outro folheto, Luta e Vitória de São
crevia sob o pseudônimo de Papus, tão pre- Cipriano contra Adrião Mágico, tem como
sente em publicações nossas de hoje, da Edi- autor Joaquim Batista de Sena e editor Manoel
tora Pensamento, por exemplo. Caboclo (Juazeiro do Norte, Ceará, 1974).
O texto repete as “mocedades” de São
NOS FOLHETOS POPULARES Cipriano, como ele estudou feitiçaria:

O tema de São Cipriano se faz presente na “na cidade de Alexandria


literatura de folhetos nordestinos, conhecida foi nascido e criado
como de cordel. Essa literatura tem também seu pai mandou educá-lo
a ver com o conhecimento e conservação do e criou-o muito privado
antigo repertório ligado à magia e às artes mas ele com 12 anos
mágicas, mas o próprio Livro de São Cipriano começou ser depravado”.
geraria práticas de adaptação, que fariam
possível o folheto. No enredo, Cipriano se finge de analfabe-
São Cipriano e a Bruxa Espady é produ- to e se emprega na livraria do mago Adrião
zido, escrito e ilustrado por Dila (Caruaru, para aprender seus livros de magia:
1976), um dos mais originais xilógrafos, dos
mais verdadeiros intérpretes das tradições “ganhando certa quantia
populares nordestinas, sobretudo aquelas que para arrumar e zelar
apontam para um universo mítico e sua grande livraria”.
messiânico. Proveniente do mundo do
cangaço, sua criação visionária propicia mui- Todo o desenvolvimento do folheto gira
to bem a conservação da figura do santo bru- em torno da transformação, como no Asno de
xo; parece, no entanto, que alguma edição ou Ouro de Apuleio. O santo se transforma num
fragmento de edição do Livro teria feito deto- cavalo, depois num peixe pequeno, em pás-
nar seu texto mais imediato. O poeta mistura saro, em caroço de milho.
o santo-bruxo a uma fada, ao iniciar assim o Finalmente Cipriano sai vencedor, vence
seu relato, dando a entender que o livro tem o bruxo numa seqüência que se conta assim:
bases concretas e históricas:
“Cipriano aí tomou
“Deus entregou ao poeta sua grande livraria
O dom da inspiração e ficou considerado
São Cipriano e Espady como rei da bruxaria”.
É uma mistificação
Porém o livro não vem Não se menciona a conversão nem o
Do mundo da criação”. martírio; aí, neste mundo do folheto popu-
lar, vencem a magia e o mistério imemorial,
Atravessando um certo non sense, ele faz do mesmo modo que alguns outros folhetos,

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como Plantas Medicinais e Encontro de postos” que vão sendo editados, continua-
Lampião com uma Negra de um Peito Só, mente, e que têm o seu espaço em nossos
trazem referências ao Livro de São Cipriano. meios populares. Localizá-los e desvendá-
Quando se está diante do conjunto apa- los será sempre um desafio que poderá trazer-
rentemente heteróclito e desarrazoado do Li- nos o que nem somos capazes de suspeitar.
vro de São Cipriano, é preciso lembrar que
nada daquilo foi simplesmente inventado; NOTA
não se trata de uma pura e simples forjação
de temas, ao contrário, tudo tem aí sua pro- Em O Livro de São Cipriano: uma Legen-
funda razão de ser. da de Massas, apresento uma extensa biblio-
Neste “composto”, para além de todas as grafia, que inclui indicações de um corpus
“mancias”, tem muita importância a astro- desses livros e todas as indicações bibliográ-
logia, em todas as suas formas. Compare- ficas contidas neste artigo.
cem os tratados de ciência medieval, da mais Aí remeto a uma grande quantidade de
diversa proveniência, as anatomias que obe- livros de São Cipriano editados no Brasil e no
decem a critérios próprios e mágicos, e ain- México, além de El Libro Infernal, Tratado
da todos os repertórios de augúrios e adivi- Completo de Ciências Ocultas (nueva edición
nhações, as formas próprias para fazê-los, ilustrada, s.d., 432 p.).
desde o uso de vísceras até o pó de café.
Descrevendo o repertório destes livros, O Legítimo e Único Livro do Boi da Cara
fala-nos ainda Pelayo de um caderno de liga- Preta; Livro do Touro Negro ou a Cara Ne-
duras e desligaduras e das obras de Henrique gra. Rio de Janeiro, s.d., 228 p. e índice (Série
Villena, entre as quais se encontra um tratado “São Cipriano”). Note-se que não traz indi-
de “Aojamiento” ou Fascinologia, dirigido cação de editora e diz-se trasladado em lín-
em forma de carta a Juan Fernandes Valera. gua portuguesa e atualizado por Sirih
A chamada alta magia foi incorporando Bakkatuyu, natural de Goa e Cavaleiro da
conhecimentos astronômicos e astrológicos, Ordem de Belém (!).
inclusive técnicas de adivinhação. A astro- O Breviário de Nostradamus. São Paulo,
logia judiciária foi se confundindo com a Editora do Brasil, 1964, 231 p.
magia cerimonial. Foi ocorrendo a incorpo- O Verdadeiro Livro das Clavículas de
ração da medicina, a luta contra a doença e Salomão. 6a ed. Rio de Janeiro, Espiritualista,
contra a morte, a instituição de preces e de s.d., 104 p.
sacrifícios, noções provenientes da cabala O Livro Completo das Bruxas, por A.
hebraica, do simbolismo dos alquimistas, etc. Schoked. São Paulo, Publicações Brasil, 239
A chamada baixa magia faz menção a pode- p. Refere-se a direitos autorais e de tradução
res infernais, aos demônios, aos espíritos devidos ao Instituto Internacional de Ciênci-
maus, sendo que a força dos talismãs e as Ocultas do México.
amuletos é princípio de todas as práticas O Legítimo Livro da Cruz de Caravaca. Rio
mágicas. de Janeiro, Didática e Científica, s.d., 127 p.
Foi ocorrendo uma nova explosão do Los Grandes Secretos de Alberto el Grande.
ocultismo, o satanismo e os ritos satânicos México, Nueva Xochitl, s.d., 207 p.
trazidos em suas muitas gradações. Os cul-
tos de fertilidade evoluíram, por exemplo, Depois de publicado meu livro, tomei
em sociedades secretas voltadas a fins conhecimento de um colóquio na Sorbonne,
destrutivos, práticas orgiásticas, sacrifícios Magie du Livre, Livres de Magie, cujos tex-
de crianças. Há, como lembra Eliade, uma tos têm uma relação direta com o que discuto
identificação secular das sobrevivências mas que até agora não foram por mim utiliza-
mítico-rituais pré-cristãs com processos sa- dos. Há aí o catálogo da exposição organiza-
tânicos. da na Biblioteca Sainte-Geneviève (Paris),
Tudo isso, em seu complexo trânsito, vai por ocasião deste colóquio. Cf. o volume que
se aglutinando e transmitindo nesses “com- tem o nome do colóquio (Paris, Aries, 1993).

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