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SINCRETISMO E IDENTIDADE AFRICANA NO TAMBOR DE MINA DO

MARANHÃO1

Mundicarmo M.R. Ferretti (GPMina/UFMA)

A pesquisa em terreiros afro-brasileiros tem chamado a atenção para a preservação


de tradições religiosas africanas e para a existência de sincretismos com outras tradições
culturais. Encarado frequentemente como imposição do colonizador, o sincretismo tem
sido negado e ocultado em muitas casas de culto e muito se tem feito para a sua
eliminação. Apesar do esforço para essa eliminação a presença de elementos provenientes
do catolicismo e de outras tradições culturais não africanas continua forte e em muitos
casos parece não abalar profundamente a identidade africana nas casas de culto. Na Casa
das Minas (São Luís-MA), considerada o terreiro de Mina mais tradicional, os voduns
são ‘devotos’ dos santos e as vodunsis, embora se orgulhem de sua origem africana e
sejam apegadas as tradições herdadas de suas fundadoras, realizam rituais católicos em
sua homenagem, como pretendemos mostrar nesse trabalho.
***
Tambor de Mina é a denominação religiosa afro-brasileira tradicional do
Maranhão. Organizada na primeira metade do século XIX, adota principalmente o
modelo da Casa das Minas, consagrada a Zomadônu, e da Casa de Nagô, consagrada a
Xangô, ambas de chefia feminina e com entidades espirituais recebidas apenas por
mulheres. O Tambor de Mina é também muito conhecido em Belém no Pará, em outros
estados do norte, e em estados de outras regiões que receberam grande número de
migrantes do Maranhão e do Pará, como São Paulo.
No Tambor de Mina as entidades espirituais africanas são geralmente
denominadas vodum, organizadas em família e relacionadas a santos canonizados pela
Igreja Católica (Santa Bárbara, São Sebastião, São Lázaro, São João Batista, São
Benedito, Santa Luzia e outros). Na Casa de Nagô, além de voduns, são recebidas
algumas entidades não africanas, geralmente nobres, como Dom Luís Rei de França, Rei
Sebastião; Rei da Turquia, Caboclo Velho - denominado por alguns ‘Rei dos Caboclos’
ou conhecido como o índio Sapequara -, e outras.

1
Encaminhado para apresentação na 32ª Reunião Brasileira de Antropologia (virtual) – 30/10 a 6/11/2020;
Mesa Redonda nº35: Sincretismos, africanismos e religiões afro-brasileiras no século XXI.
Nos terreiros de Mina a integração do catolicismo ao Tambor de Mina é muito
antiga, generalizada e costuma ser encarada pelos terreiros como algo natural, que não
compromete sua autenticidade e sua identidade africana, inclusive porque para muitos
’mineiros’ que são também devotos dos santos, a sua religião é a católica, onde foram
batizados e casados; a Mina é frequentemente apresentada por eles como uma obrigação
passada de geração em geração por ancestrais africanos, que não conflita com o
catolicismo, embora tenha sido rejeitada muitas vezes por padres e outros membros
daquela Igreja. Por essa razão as vodunsis, se não eram devotas do santo associado ao seu
vodum, ao recebe-lo tornam-se devotas dele, como aconteceu com dona Lúcia, a
penúltima chefe da Casa de Nagô, que era devota de Santo Antônio e que depois da vinda
de Xapanã (aos 56 anos?) passou a festejar também São Sebastião. Na Casa das Minas,
sua coirmã, a festa de São Benedito que até pouco tempo era realizada por dona Maria
Celeste Santos, que recebia o vodum Averequete, nos oferece um bom exemplo de
integração entre Mina e catolicismo e de afirmação de identidade africana por uma
vodunsi católica, como veremos a seguir.
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A Casa das Minas, embora se orgulhando de sua origem africana e cumprindo
suas obrigações para com os voduns, pode ser encarada como uma Casa de religião afro-
brasileira “católica”, não apenas porque suas vodunsis e outros membros da comunidade
foram batizados naquela Igreja e praticam o catolicismo, mas também porque seu
calendário ritual obedece ao da Igreja Católica, daí porque na Casa os toques de tambor
e a “descida” de voduns eram suspensos durante a quaresma (por 40 dias - da 4ª feira de
cinzas até o domingo de Páscoa), tempo em que as vodunsis deveriam se dedicar
inteiramente ao catolicismo. Assim, em 1993, quando a Casa foi convidada para participar
no Benin do festival do vodum “Ouidah 92”, na delegação de Pierre Verger, dona Celeste
Santos, a vodunsi que representou a Casa, teve que solicitar autorização dos voduns para
viajar e que planejar detalhadamente a sua participação, pois a visita ao Benin ia ser
realizada na quaresma, o que a impossibilitava de receber Averequete no Benin e a
impedia de cantar a maioria das músicas de voduns da Casa das Minas. Por isso, durante
a preparação da viagem, ouvimos mais de uma vez de dona Celeste e de dona Deni (que
se encontrava na chefia da Casa) a seguinte explicação: “eles lá podem não ser católicos,
mas nós somos”.
Embora a Casa das Minas goze de elevado conceito no meio religioso afro-
brasileiro, o seu catolicismo continua a ser criticado por muitos pesquisadores, líderes
religiosos e militantes do movimento negro. Contudo, essa atitude parece não ter abalado
a convicção de suas vodunsis que continuavam a afirmar o seu catolicismo e a sua
devoção às entidades africanas e aos santos. Um exemplo dessa integração religiosa pode
ser encontrado na participação de dona Celeste e do vodum Averequete no festejo de São
Benedito organizado em São Luís pela Igreja Católica.
***
No 2º domingo do mês de agosto, quando se comemora no Brasil o dia dos pais,
no Maranhão é também celebrada a festa de São Benedito – santo negro, canonizado pela
Igreja Católica, que possui grande número de devotos na capital maranhense. O ponto
alto daquele festejo é a procissão organizada por sua irmandade, que percorre as ruas do
centro da cidade, acompanhada por grande número de devotos, alguns descalços, outros
de roupa marrom, em pagamento de promessa. Algumas pessoas, principalmente as mais
idosas ou com problema de locomoção, preferem aguardar na igreja a chegada da
procissão, anunciada por palmas e foguetes, trazendo a imagem do santo em um andor
ricamente decorado. Durante muitos anos nesse momento ocorria também ali a chegada
do vodum Averequete, recebido por dona Maria Celeste Santos, da Casa das Minas -
terreiro jeje fundado no século XIX por uma sacerdotisa de Zomadônu - possivelmente
pela rainha Nan Agontime escravizada após a morte do rei Agonglô (1797) ou por outra
pessoa ligada a família real do antigo reino do Dahomé (Benin).
Averequete é possivelmente o vodum mais conhecido e cultuado em terreiros
maranhenses (de Mina, Terecô, Umbanda e de Curador/Pajé) e em terreiros do Norte do
Brasil, onde é amplamente conhecido como ‘devoto de São Benedito’ – daí porque em
muitos terreiros a festa daquele vodum é realizada no 2º domingo de agosto (dia de São
Benedito no calendário católico) – e onde é apresentado como ‘grande apreciador do
Tambor de Crioula’ - dança folclórica, realizada pela população negra do Maranhão desde
a época do cativeiro-, que costuma ser dançado em sua homenagem por pessoas da
comunidade do terreiro e por integrantes de grupos folclóricos convidados ou que dela
participam em pagamento de promessa.

Até 2010, ano do falecimento de dona Celeste, Averequete costumava ser


recebido por ela na igreja de São Benedito na chegada da procissão, o que era do
conhecimento de muitas pessoas presentes que, ao perceberem a sua chegada,
procuravam cumprimentá-lo beijando a mão de sua vodunsi. Após aquele cumprimento
e da benção dada pelo padre, Averequete, ainda em dona Celeste, costumava ir a pé para
a Casa das Minas onde era recebido ritualmente ao entrar com água jogada na soleira da
porta. Nos últimos anos, aceitando o convite do professor Ferretti (assissi de vodum da
Casa), passou a ir de carro para a Casa das Minas, onde ele e São Benedito deveriam ser
homenageados.

No dia de São Benedito, por volta das 20h, costumava ser realizada na Casa das
Minas uma reza na sala de visita, diante do altar católico com imagens dos santos de
devoção na Casa, tendo à frente a do homenageado naquele dia. Depois da ladainha de
Nossa Senhora, cantada em latim, e de alguns hinos cantados nas igrejas ou em rituais do
catolicismo popular, eram rezadas algumas orações católicas e, sempre que a reza era
acompanhada por músicos contratados, a reza era encerrada com uma valsa. Após a reza
católica era cantada pelas vodunsis que já estavam em transe, uma outra ‘ladainha’, desta
vez na língua das fundadoras do terreiro, fazendo referência a voduns da Casa e a santos
católicos, especialmente ao festejado naquele dia. Mais tarde, depois de servido aos
presentes doces e refrigerantes e obtida a autorização dos voduns que estavam em Terra,
ocorria na guma/barracão o tradicional toque de Tambor de Mina, com os voduns
cantando e dançando em homenagem aos presentes e aos assentados no terreiro. Ao final,
depois de cantadas as músicas de encerramento, os voduns deixavam a guma e se dirigiam
a sala de visita do terreiro onde passavam a conversar e a cantar com os acovilés (outros
voduns da Casa) e depois ficavam à disposição das pessoas presentes que desejassem
falar com eles. Depois de algum tempo, os voduns deixavam a sala de visitas e entravam
no vandecome (quarto de santo) e de lá ’subiam’, deixando fora do transe as vodunsis que
os receberam.

Nos últimos anos, com o falecimento de várias vodunsis, muitos rituais deixaram
de ser realizados na Casa. Mesmo assim, em 2020, apesar da suspenção de atividades e
do isolamento exigido, pelo combate ao Coronavírus, Averequete e São Benedito foram
homenageados na Casa com uma reza e almoço ao meio dia. Infelizmente já não se ouve
mais na Casa das Minas o som dos tambores e nem a ‘ladainha dos voduns’, pois além de
suas últimas vodunsis residirem em cidades diferentes (uma em São Luís e outra no Rio
de Janeiro) já não podem mais realizar suas obrigações na Casa, devido a sua idade
avançada e a problemas de saúde. Mas, apesar dessas limitações, a Casa continua
cultuando os voduns e a sua Festa do Espirito Santo continua crescendo, graças ao
empenho do tocador chefe (huntó) que, após o falecimento de sua última chefe (Deni,
28/2/2015), passou a zelar pela Casa e a realizar os rituais que estão ao seu alcance.

O africanismo e o declínio da Casa das Minas

A origem africana da Casa das Minas e a sua ligação ao Benin, reconhecidas em


1985 por sacerdotes de voduns e por pesquisadores do Benin que participaram de
Colóquio da UNESCO realizado em São Luís (UNESCO, 1986), foram reafirmadas em
1993 por Pierre Verger, comentando a ida de dona Celeste ao Benin, que transcrevemos
a seguir:

Entre os momentos mais comoventes que tive oportunidade de presenciar, na


República do Benin, ex-Daomé, em 1993, gostaria de citar os que assisti em
Ouidah, durante as celebrações realizadas neste lugar para comemorar as antigas
relações estabelecidas entre a África e o Novo Mundo na época do tráfico de
escravos.
Entre os participantes dessa manifestação figurava Sergio Ferretti e Mundicarmo
Ferretti, acompanhados de dona Celeste, da Casa das Minas de São Luís do
Maranhão.
Durante nossa visita ao monumento elevado, no percurso do caminho que liga a
cidade à praia de embarque dos infortunados escravos, dona Celeste teve a
inspiração de cantar certos hinos africanos conhecidos na Casa das Minas de São
Luís do Maranhão.
Um milagre aconteceu, pois, a gente de Ouidah conhecia essas cantigas e se
juntou em coro a ela, com acompanhamento de palmas e bailados. Era o
reencontro, após dois séculos, de irmãos e irmãs que foram separados.
Essa manifestação só foi possível graças aos minuciosos e sábios estudos de
Sergio Ferretti, o scholar que melhor conhece a Casa das Minas.
Numerosos pesquisadores tiveram a curiosidade de fazer curtas aparições a São
Luís, para estudar a Casa das Minas. Porém Sergio Ferretti teve a sorte de
conviver com a gente dessa Casa durante anos.
Temos assim uma visão de dentro dessa instituição que existe há quase dois
séculos. Ademais, é um estudo realizado, ao mesmo tempo, com uma inteligência
aguda e um coração terno, o que dá uma vida excepcional e simpática à Casa das
Minas (VERGER In: FERRETTI, 1996-2ª ed.; e 2009-3ª ed. contracapa).
Depois daquele contato com o Benin, a Casa, que há muito não preparava novas
vodunsis com iniciação completa e que já vinha em declínio, perdeu várias de suas
vodunsis (com idade entre 70 e 90 anos) e teve que parar de realizar toques de mina nos
dias de obrigação. Depois foi deixando de fazer a obrigação de Acossi (para os voduns
ligados a São Lázaro, São Roque e São Sebastiao), o Arrambã/Bancada (na 4ª feira de
cinzas), o Tambor de Choro (ritual fúnebre) e outros rituais tradicionais. Em 2020 esse
quadro se agravou ainda mais, devido ao isolamento exigido pelo combate ao
Coronavírus. E, embora nos últimos anos tenha havido até um crescimento da Festa do
Espirito Santo, o declínio da Casa continua acelerado, deixando mais visível o seu lado
católico e a possibilidade de sua transformação em um museu de religião afro-brasileira.

Voltando à nossa questão inicial, para concluir, gostaríamos de lembrar que o


declínio da Casa das Minas não poderia ser atribuído pura e simplesmente a integração
do catolicismo ao culto dos voduns e nem à catolização do Tambor de Mina. Não se
poderia também deixar de se reconhecer que esse declínio foi motivado por muitos
fatores, inclusive pela decisão da Casa de deixar de realizar iniciações completas de suas
vodunsis, analisada por Sergio Ferretti em vários de seus trabalhos, algumas vezes
indagando se não se poderia encara-la como um suicídio cultural (FERRETTI, 2013).

Bibliografia consultada e referências bibliográficas:

BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das


interpenetrações de civilizações. São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1971, 2v.
FERRETTI, Mundicarmo. Desceu na guma: o caboclo do tambor de mina no processo
de mudança de um terreiro de São Luís – a Casa Fanti-Ashanti. São Luís: SIOGE, 1993.
2 ed. revista, São Luís: EDUFMA, 2000.
FERRETTI, Sergio. “O longo declínio da Casa das Minas do Maranhão: Um caso de
suicídio cultural?” In: Douglas Rodrigues da Conceição e Manoel Ribeiro de Moraes
Junior, (Orgs.). Religião no Brasil: Ciência, Cultura Política e Literatura. Belém:
Fonte Editorial. 2013.
FERRETTI, Sergio. Querebentã de Zomadônu: etnografia da Casa das Minas do
Maranhão. 3ª ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2009.
RODRIGUES, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Nacional, 1977.
(Coleção Brasiliana, 9).
UNESCO. Culturas africanas: documentos da reunião de peritos sobre “As
sobrevivências das tradições religiosas africanas nas Caraíbas e na América Latina”. São
Luís, 24-29 de junho de 1985. Paris [s.n.], 1986.
VERGER. Pierre. Uma rainha mãe-de-santo em São Luís. São Paulo: Revista USP, n.6,
p. 151-158. jun-ago. 1990.

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