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PRIMEIRO ATO

(Abre-se o pano: aparece a primeira fotografia do álbum de família,


datada de 1900: Jonas e Senhorinha, no dia seguinte ao casamento. Os
dois têm a ênfase cômica dos retratos antigos. O fotógrafo está em cena,
tomando as providências técnico-artísticas que a pose requer. Esmera-
se nessas providências, pinta o sete; ajeita o queixo de Senhorinha;
implora um sorriso fotogénico. Ele próprio assume a atitude alvar que
seria mais compatível com uma noiva pudica depois da primeiríssimo
noite. De quando em quando, mete-se dentro do pano negro, espia
de lá, ajustando o foco. E vai, outra vez, dar um retoque na pose de
Senhorinha. Com esta cena, inteiramente muda, pode-se fazer o pe-
queno balé da fotografia familiar. Depois de mil e uma piruetas, o fo-
tógrafo recua, ao mesmo tempo que puxa a máquina, até desaparecer
de todo. Por um momento, Jonas e Senhorinha permanecem imóveis:
ele, o busto empinado; ela, um riso falso e cretino, anterior ou não sei
se contemporâneo de Francesca Bertini1 etc. Ouve-se, então, a voz do
speaker2, que deve ser característica, como a de Dl\guiar Mendonça,
por exemplo. NOTA IMPORTANTE: o mencionado speaker, além do
mau gosto hediondo dos comentários, prima por oferecer informações
erradas sobre a família.)
(O speaker é uma espécie de Opinião Pública.)

SPEAKER (já na ausência do fotógrafo, enquan-


to Jonas e Senhorinha estão imóveis)
-Primeira página do álbum. 1900. 1° de
janeiro: os primos Jonas e Senhorinha,
no dia seguinte ao do casamento. Ele, 25

1. Francesca Bertini: nome artístico de E/ena Seraceni,


atriz do teatro e do cinema mudo italianos no começo do
século XX, nascida em Florença em 1892.
2. Speaker: Locutor. Na época era comum preferir-se
o termo estrangeiro bem como sua grafia na língua de
origem.

9 ÁLBUM DE FAMfliA
anos. Ela, 15 risonhas primaveras. Vejam TERESA -Você jura?
a timidez da jovem nubente. Natural- GLÓRIA -Juro.
trata-se da noiva que apenas começou a TERESA -Por Deus?
GLÓRIA -Claro!
ser esposa. E isso sempre deixa a mulher
meio assim. Naquele tempo, moça que
(NOTA IMPORTANTE: é preciso que se observe um desequilíbrio en-
cruzava as pernas era tida como assanha-
tre as duas: o sentimento de Teresa é mais ativo, mais absorvente; ao
da, quiçá sem-vergonha- com perdão da
passo que Glória, embora admitindo o idílio, resiste mais ao êxtase.)
palavra.
TERESA -Então, quero ver. Mas, depressa, que a
(Desfaz-se a pose. Jonas quer abraçar Senhorinha que, confirmando o
irmã pode vir.
speaker, revela um pudor histérico.)
GLÓRIA (erguendo a cabeça)- Juro que ...
TERESA (retificando)- Juro por Deus ...
SPEAKER (extasiado) - Tão bonito pudor em GLÓRIA -Juro por Deus ...
mulher! TERESA - ... que não me casarei nunca.. .
GLÓRIA - ... que não me casarei nunca.. .
(Formalizam-se os nubentes, porque ouvem barulho. Entram pes- TERESA - ... que serei fiel a você até à morte.
soas que, sem palavras, atiram arroz nos noivos. Jonas e Senhorinha GLÓRIA - ... que serei fiel a você até à morte.
saem.)
(Pausa. As duas se olham. Teresa encosta o nariz no rosto de Glória,
SPEAKER - Partem os românticos nubentes amassa o nariz no rosto de Glória.)
para a fazenda de Jonas, em S. José de
Golgonhas 3 • Longe do bulício da cidade, TERESA -E que nem namora.
gozarão a sua lua-de-melzinha. Good-bye, GLÓRIA -E que nem namoro.
Senhorinha! Good-bye, Jonas! E não es- TERESA (apaixonada) - Também juro por Deus
quecer o que preconizam os Evangelhos: que não me casarei nunca, que só amarei
"Crescei e multiplicai-vos!" você, e que nenhum homem me beijará.
GLÓRIA (menos trágica)- Só quero ver.
(Apaga-se o palco, emudece o speaker: ilumina-se uma nova cena TERESA (trêmula) - Segura minha mão assim.
- ângulo de um dormitório de colégio. Cama de grades; deitadas, (olhando-a profundamente) Se você mor-
lado a lado- Glória e Teresa, ambas em finíssimas camisolas, muito rer um dia, nem sei!
transparentes. São meninas que aparentam 15 anos. Há entre as duas GLÓRIA -Não fala bobagem!
um ambiente de idílio.) TERESA - Mas não quero que você morra, nun-
ca! Só depois de mim. (com uma nova
3. São José de Golgonhas: nome imaginário de cidade. expressão, embelezada) Ou então, ao mes-
Pela proximidade com Três Corações, mencionada mo tempo, juntas. Eu e você enterradas
adiante, a cidade se situaria na serra da Mantiqueira,
em Minas Gerais.
no mesmo caixão.

11 ÁLBUM OE FAMfLIA
1O NELSON RODRIGUES
GLÓRIA -Você gostaria? mano, um grito de besta ferida . Aparecem, a seguir, espantadas, duas
TERESA (no seu transporte)- Seria tão bom, mas mulheres que vêm espiar pelos vidros: D. Senhorinha, digna, altiva e
tão bom! extremamente formosa, tia Rute, irmã de D. Senhorinha, velha soltei-
GLÓRIA (prática) -Mas no mesmo caixão não dá rona, taciturna e cruel. D. Senhorinha mais madura do que no retrato,
-nem deixam! pois já se passaram vinte e tantos anos. Depois de algum tempo, ouve-
TERESA (sempre apaixonada)- Me beija! se o gemido constante de uma mulher que está com as dores do parto
numa dependência próxima da casa. Retrato de Jesus na parede.)
(Glória beija na face, com certa frivolidade.)
TIA RUTE (na janela, olhando para fora)- É Nonô,
TERESA -Na boca! outra vez!

(Beijam-se na boca; Teresa de uma forma absoluta.) (Com angústia, D. Senhorinha vai também espiar, enquanto tia Rute,
com crueldade bem perceptível, continua falando.)
TERESA (agradecida) -Nunca nos beijamos na
boca- é a primeira vez! TIA RUTE - Eu conheço o grito dele. Aliás, não é
GLÓRIA (como que experimentando o gosto do bei- grito, uma coisa, não sei. Parece uivo, sei
jo)- Interessante! lá. Se eu fosse você, tinha vergonha!
TERESA (um pouco inquieta) -Gostou, mas muito? o. SENHORINHA (com sofrimento) -Vergonha de quê?
GLÓRIA -Na boca é diferente, não é? TIA RUTE - De ter um filho assim - você acha
TERESA -Você vai-se esquecer de mim! pouco?
GLÓRIA (frívola) -Boba! o. SENHORINHA (com sofi·imento) - Uma infelicidade,
TERESA (arrebatada) - Você nunca encontrará ora, como outra qualquer!
ninguém que te ame como eu- duvido! TIA RUTE (castigando a irmã) - Imagine que en-
GLÓRIA -Então, não sei? louquece e a primeira coisa que faz é
TERESA (sempre com a iniciativa) -Me beija ou- tirar toda a roupa e viver no mato assim.
tra vez ... Como um bicho! Você não viu, outro dia,
da janela, ele lambendo o chão? Deve ter
(Depois do beijo longo.) ferido a língua!
o. SENHORINHA (dolorosa) - Às vezes, eu penso que o
GLÓRIA (sem saber se gostou ou não)- Teus lábios louco não sente dor!
são frios, quer dizer- molhados. TIA RUTE - Hoje, está rodando, em torno da casa,
TERESA (feliz) - Lógico. É a saliva ... como um cavalo doido!
o. SENHORINHA - Nonô é muito mais feliz do que eu
(Apaga-se a pequena cena do dormitório. Ilumina-se um espaço maior - sem comparação. (sempre dolorosa)
e mais central. Sala da fazenda de Jonas . Primeiro, a sala está deserta; Às vezes, eu gostaria de estar no lugar do
alguém chega à janela, por fora, e solta um grito pavoroso, não-hu- meu filho ...

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(Já sàíram da janela. D. Senhorinha, triste, digna, altiva, com uma dor MULHER GRÁVIDA (sempre numa voz grossa, pesada, de
bastante sóbria, procurando sempre ficar de costas para a irmã. Tia quem sofreu demais, gritou demais)
Rute com uma crueldade que não pode esconder.)
- ... Desgraçado- me aleijou ... Te amal-
diçôo... Tu vai pagar o que me fez ...
TIA RUTE (sardônica) - E... DESPIDA, natural-
mente.
D. SENHORINHA ( abstrata) - O meu consolo é que ele
(Os três olham na direção dos gemidos.)
não se esquece da família. Quase todos
os dias vem gritar perto daqui, como se JONAS (rísp ido) - O médico vem ou não vem?
chamasse alguém ... TIA RUTE (demonstrando solicitude e carinho quando
TIA RUTE (perversa) - Você, talvez? se dirige a Jonas)- Pois é. Foi para Três
D. SENHORINHA (com certa violência)- Nonô, quando era Corações5 atender a um parto.
bom, gostava de mim, tinha adoração JONAS (taciturno) -Coisa incrível!
por mim. ( abstrata outra vez) É saudade TIA RUTE (melíflua)- Só chega amanhã, ou, então,
que ele tem - SAUDADE! (taciturna) de madrugada.
Saudade da casa... JONAS (com sofrimento) - Eu acho que vocês
TIA RUTE (veemente) - Da casa o quê! Ele nunca duas é que têm que liquidar o caso.
gostou disso aqui, nunca pôde passar
D. SENHORINHA (sem virar o rosto na direção do marido)
meia hora numa sala, num quarto. Vivia
-Jonas.
lá fora!
D. SENHORINHA - Seria tão bom que fosse saudade, de
JONAS (como se despertasse, meio espantado)
mim, só de mim-de mais ninguém! -Eu!
D. SENHORINHA (máxima sobriedade) - Essa menina,
(Recomeçam os gemidos da mulher grávida, interrompendo a conver- Jonas ...
sa. Entra Jonas: tipo do homem nervoso, apaixonado, boca sensual, JONAS -Que é que tem?
barba em ponta. Cabelos à Bufallo Bill, quer dizer, meio nazareno 4 • D. SENHORINHA (dolorosa) -Quase uma criança ...
Vaga semelhança com Nosso Senhor.) JONAS (profundamente interessado com o que vê
lá fora)- Sei.
4. Cabelos a Buffalo Bill, meio nazareno: Buffalo Bill D. SENHORINHA - ... nem tem formas direito- vai fazer
(1846·1917), batizado William Cody, era o apelido de fa- ainda 15 anos. Não sabia como era esse
moso caubói norte-americano. Este apelido lhe veio de ter
sido caçador de búfalos, no período em que este animal negócio de filho.
foi praticamente exterminado nos Estados Unidos. Serviu JONAS (sem ligar à mulher)- Nonô está posses-
também como batedor do Exército norte-americano na so, hoje!
caça aos índios. Depois tomou-se dono e protagonista de um
circo temático sobre o faroeste. Virou personagem de
D. SENHORINHA - Por que é que você não escolheu
vários filmes . Tinlw cabelos loiros e longos, que caíam em outra?
cachos sobre seus ombros. Daí a denominação "nazare-
no': isto é, cabelos semelhantes aos com que a tradição
européia pintou a imagem de Jesus Cristo, também dito 5. Três Corações: cidade de Minas Gerais, na serra da
Jesus de Nazaré. Mantiqueira .

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JONAS (para tia Rute) -Aquele negócio, Rute? JONAS -Casada? Se for, não interessa!
TIA RUTE (acesa)- Resolvido. TIA RUTE -Casada o quê! Só noiva, mas o noivo...
n. SENHORINHA (sem notar que ninguém liga para ela) (com desprezo absoluto) Agora: é desbo-
-Você acha que está certo? cada como você não faz a menor idéia.
JONAS (para ela; cólera contida) - Acho. Diz cada nome! E aos berros, na frente de
todo mundo.
(D. Senhorinha estaca; parece cair em si; abaixa a cabeça, sem, toda- JONAS (sombrio de desejo) -Diz nome ... Idade?
via, perder a dignidade.) TIA RUTE (mudando de tom)- Novinha -16 anos.
Depois é dessas mulheres que dão em
D. SENHORINHA - Jonas, essa menina não podia ter homem. Bate no noivo; aliás, dizem que
filhos! ele gosta.
JONAS (sombrio) -Pode, sim. Você é que está JONAS -É "moça"?
com coisa. (violento) Esse médico, esse TIA RUTE (categórica) - Lógico! Tem esses modos
cretino! etc., mas com ela ninguém arranja nada.
Fica só na brincadeira- sabidíssima!
(Intervém tia Rute. Cariciosa, sedativa, querendo atenuar as reações JONAS -Essa história de dizer nomes feios sem
de Jonas. D. Senhorinha vai-se sentar junto à janela.)
quê, nem para quê? É maluca?
TIA RUTE -Maluca, coisa nenhuma!
D. SENHORINHA (sem aparente consciência do que está
TIA RUTE (misteriosamente) - Tenho outra. Você
dizendo) - Acho que o amor com uma
conhece.
pessoa louca- é o único puro!
JONAS (interessado)- Já veio aqui?
TIA RUTE (excitada)- Veio, sim-naquele dia! Até
(Diz isso olhando para fora, com uma certa doçura.)
você olhou muito para ela- eu notei!
JONAS (estica as pernas, sensualmente)- Como
JONAS (que olhou na direção de D. Senhorinha e
é, mais ou menos? parece impressionado; como se estivesse
TIA RUTE - Os homens andam assim atrás dela com medo) - Porque se for maluca, não
- se você visse!. .. (indicando o quarto quero! (como se falasse para si mesmo)
da mulher grávida) Só uma coisa: não é Aquela chegou. (com maior angústia)
como essa- estreita! Tem mais cadeiras, As loucas são incríveis (baixa a voz); no
mas deixa - não faz mal. Se eu fosse amor metem medo!. ..
homem, nem discutia. (confidencial) Vi
tomando banho na lagoinha! (Recomeça a mulher grávida; desta vez, falando também.)
JONAS (com certa decepção)- Grande de cadei-
ras- mas ... demais, grande demais? MULHER GRÁVIDA - ... me dêem uma coisa para eu tomar...
TIA RUTE (admirativa) - Um corpo, meu filho! Eu não posso, meu Deus do céu ... Minha
(com mímica) O peito, tudo! santa Teresinha!

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JONAS -E ela? apóia-se num bastão, porque tem uma das pernas enroladas em pano,
TIA RUTE (ávida)- Que é que tem? em virtude de uma aparente elefantíase6 .)
JONAS -Quer?
TIA RUTE -Claro! Todo mundo está de acordo- o TIA RUTE (recomeçando)- Rápido, hem?
avô- não tem mãe, nem pai-, o noivo. AVÔ (renitente)- Um instantinho só, dona.
(abaixa a voz) Prometi que você protegia
a família. Ela me disse que você era ho- (O velho faz logo um vasto e coletivo cumprimento.)
mem- HOMEM! E depois, o orgulho, a
vaidade. Sabe como é mulher! AVÔ -Muito boas-tardes. (ninguém responde)
JONAS (com sofrimento retrospectivo) - Nem to- JONAS (taciturno) - Que é que há?
das! Aquela - Açucena- não quis nada TIA RUTE -É o avô, Jonas. O avô da menina. A que
comigo! eu lhe falei.
TIA RUTE - Aquela é diferente: veio da cidade AVÔ - Vim só cumprimentar o senhor,
- instruída. Estou falando do pessoal "seu" Jonas. Aposto que nem se lembra
daqui (com ênfase) da terra. de mim; também era tão novinho! O
senhor, "seu" Jonas, fez muito xixi, em
(Durante o diálogo, D. Senhorinha em silêncio olhando para fora.) cima de mim, muito! Também montou
na minha corcunda. Cada judiaria! Pois
JONAS (em fogo) - Então, arranje isso. Mas o senhor querendo, não faça cerimônia
logo! -disponha! Quando quiser!
TIA RUTE -Chega, Tenório.
(Quebra-se a impassibilidade de D. Senhorinha.)
(Tia Rute quer puxar o patriarca.)
TIA RUTE -Vou dar uma espiada lá fora.
AVÔ - Trouxe minha neta. Sou homem de
(Sai tia Rute.) uma palavra só. Faz bem, "seu" Jonas,
em não querer nada com o pessoal da
o. SENHORINHA - Eu podia dizer que sou sua esposa ... Mariazinha Bexiga. Umas mulheres pe-
JONAS (sardônico, interrompendo)- Ia adiantar rebentas! Agora, minha neta- duvido!
muito! Me arresponsabilizo, tão limpinha, não
o. SENHORINHA - .. . podia reclamar que você botasse
uma mulher aqui para ter um filho seu ...
JONAS (ameaçador) - Se faça de tola! 6. Elefantíase: doença que bloqueia a circulação das par-
tes inferiores do corpo humano, provocando seu cresci-
mento desmesurado. Sua permanência crônica é comum
(Interrompe-se D. Senhorinha, porque acaba de entrar, atrás de tia em regiões pobres e carentes, sem atendimento médico e
Rute, o avô da nova conquista de Jonas. Um velho de barbas bíblicas; de saúde pública adequado.

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tem uma ferida. A não ser uma vez que o (Outra vez, para tia Rute, mas de uma incoerência absoluta.)
calcanhar postemou, mas faz tempo.
JONAS - Rute, quero a neta do velho, aqui,
(O patriarca não quer sair de jeito nenhum.) HOJE!
D. SENHORINHA (lacônica e gelada)- Hoje, não. Hoje não
AVÔ -Deus Nosso Senhor lhe dê muita saú- pode ser.
de. Para D. Senhorinha, também. Se mi- JONAS (aproximando-se de tia Rute) - Só você,
nha neta perder o respeito, o senhor não Rute, nesta casa! Você é a única pessoa
se avexe de me chamar. Dou de cinto! que me quer bem, que faz tudo, TUDO,
por mim!
(Puxado por tia Rute, desaparece o patriarcal avô.) TIA RUTE (a paixonadamente) - TUDO!
JONAS (com a mesma doçura quase musical)
JONAS (parece cair em transe; não se dirige a -Até infâmias - qualquer uma! Até um
ninguém; volta tia Rute, sem que ele per- CRIME! (volta-se para D. Senhorinha, com
ceba)- Gosto de menina sem-vergonha. súbito rancor) Mas a casa toda me odeia,
Mulher, não; menina. De 14, 15 anos. eu sinto! Esse meu filho doido, Nonô...
Desbocada. (com angústia) Aliás, não D. SENHORINHA (hirta)- Não toque em Nonô!
sei por que mulher não pode dizer nome JONAS (violentamente) - Completamente doi-
feio como nós, por quê, ora essa? (com do! Só tem de humano o ódio a mim,
ao PAI! Quando sai do mato e me vê de
absoluta dignidade, quase com sofrimento)
longe, atira pedras!
Numa conversa, durante a refeição; a
D. SENHORINHA - Quando ele era bom, você batia nele!
Ceia do Senhor, pendurada na parede, e
a dona da casa dizendo palavrões!
(Jonas aproxima-se de D. Senhorinha, que fica de perfil para ele, como
se não quisesse encará-lo.)
(Vo lta-se para tia Rute; parece louco.)
JONAS (surdamente) - Edmundo não me su-
D. SENHORINHA (veemente, má) - Glória não é desboca- porta ...
da! Glória não diz palavrões! É menina, D. SENHORINHA -Você não botou ele para fora de casa,
tem 15 anos ! três dias depois do casamento?
JONAS (caindo em si) - Glória é uma santa... JONAS (sem ligar à interrupção) - Nem Gui-
Uma santa de louça, de porcelana... lherme!. .. (violento, querendo encarar D.
TIA RUTE (como para despertá-lo)- E a menina? Senhorinha) E você também! Quando
JONAS (ainda na sua angústia)- Eu queria uma está cara a cara comigo, fica de perfil.
garota de 15 anos, pura, que nunca tives- Com esse ar de mártir, quando devia
se desejado ! Que nunca tivesse dito um estar de joelhos, aos meus pés, beijando
nome feio! meus sapatos!

20 NELSO N RODRIGUES 21 ÁLBUM DE FAMÍLIA


(Volta à tia Rute, que assiste à cena, fascinada .) TIA RUTE (cortante) -Não interessa.
o. SENHORINHA (entre autoritária e suplicante) - Quando
JONAS (inesperadamente doce) - Você não, mamãe morreu, ela pediu que você to-
Rute! Sempre firme. Eu tenho certeza masse conta de mim. Como minha irmã
de que, se eu ficasse leproso, talvez meus mais velha. Você prometeu, Rute, jurou!
filhos e minha mulher me matassem a TIA RUTE (dura)- E então?
pauladas. Mas você não teria nojo de o. SENHORINHA (suplicante)- Mande essa mulher, essa
mim. NENHUM! menina de volta. Deus lhe pode castigar!
TIA RUTE (persuasiva) - Não se excite, Jonas, lhe TIA RUTE - Tanto faz.
faz mal excitar-se. o. SENHORINHA (humilhando-se mais) - Só por hoje,
JONAS (gritando) - Mas ELES estão enganados Rute. Você sabe que eu não me inco-
comigo. Eu sou o PAI! O pai é sagrado, modo- já aturei tanto! Mas hoje, não,
o pai é o SENHOR! (fora de si) Agora eu porque Glória chega .. . Glória.
vou ler a Bíblia, todos os dias, antes de JONAS (em pânico) - Glória!
jantar, principalmente os versículos que o. SENHORINHA - .. . aconteceu uma coisa com Glória, no
falam da família! colégio, não sei. Ou hoje ou amanhã ela
está aí!
(A própria excitação parece esgotá-lo; cai numa cadeira, estirando as JONAS (levantando-se, perturbado)- Mas acon-
pernas.) teceu o quê? ... Diga!. .. Você está escon-
dendo de mim, o quê?
o. SENHORINHA (do seu canto) - A tal mulher não pode o. SENHORINHA - Não sei de nada. O telegrama só diz

vir, Jonas! que ela vem- telegrama da madre supe-


riora.
JONAS (atormentado) - O que terá havido, meu
(Está mortalmente fri a.)
Deus do céu!
o. SENHORINHA (como se falasse para si mesma) -Sempre
TIA RUTE (sardônica) - Minha irmã querendo dar
o~em! · que Glória está aqui, você se comporta.
Até me trata melhor, é outro. Ela é a
JONAS - Deixa ela comigo! (mudando de tom)
única pessoa no mundo que você res-
Faço questão que essa garota venha,
peita. (num transporte) Glória é tão pura,
Rute.
acredita nas pessoas, não vê maldade em
TIA RUTE (exu ltante) -Não se incomode.
nada! Nem sabe que existe amor, não faz
a mínima idéia do que seja amor. Pensa
(D. Senhorinha barra o cam inho de tia Rute, que se ia afastar.) que é amizade!
JONAS (c om sofrimento) - Ela não é deste mun-
o. SENHORINHA (humilhando-se um pouco) - Rute, você é do. Quando fez a primeira comunhão,
minha irmã. tive um pressentimento horrível!

22 NELSO N RODRI GUE S 23 Á LB UM DE FA MI UA


O. SENHORINHA (veemente) - Ela não precisa saber, não quero que saia outra briga por uma coisa
deve desconfiar de nada! (co m tristeza e semelhante. Se ele souber! Já desconfia!
doçura) Me disse uma vez que você, com a
barba assim, e o cabelo, se parecia com (D. Senhorinha dirige-se à tia Rute.)
Nosso Senhor!
JONAS (co mo que tocado por uma suspeita) o. SENHORINHA (selvage m) -Olha! eu estou pedindo, ou-
-Mas ela chega hoje ou amanhã? viu?- para evitar uma desgraça maior!
O. SENHORINHA ( perturbada)- Não sei direito, ou hoje TIA RUTE -Desgraça maior o quê? O que é que
ou amanhã! ele pode fazer em Jonas? Jonas é mais
JONAS (gritando) -Diga! homem do que ele, sem comparação.
O. SENHORINHA (baixando a cabeça, humilhada) - Parece Jonas naquele dia deu nele como nunca
que amanhã. vi nenhum homem dar tanto em outro.
JONAS (cruel, já com o desejo renascendo) Ele correu, na frente de todo mundo!
- Amanhã, hem? Então, Rute, pode
trazer a fulana! (muda de tom, enigmáti- (D. Senhorinha parece intimidar-se ante a violência da irmã.)
co) Glória vem. Agora mesmo é que eu
preciso de meninas! TIA RUTE (para Jona s) - Volto já com a moça,
O. SENHORINHA (interpondo-se outra vez)- Espere, Rute; Jonas!
há outra coisa, Jonas. O. SENHORINHA -Sem-vergonha!
JONAS -Há o quê? TIA RUTE (es pantada) - O quê?
O. SENHORINHA (humilhadíssima) - Edmundo está aí. O. SENHORINHA -Você!
Edmundo chegou hoje! JONAS -Não ligue, Rute!
JONAS (es pantado) - Sozinho ou com a mulher? TIA RUTE (dominada também pela raiva) - Quem
O. SENHORINHA -Sozinho. é a sem-vergonha, eu? Você é que é! Em
JONAS (num crescendo de raiva) - Se fosse com mim nunca homem nenhum tocou!
a mulher, eu ainda podia tolerar... Mas o. SENHORINHA (mais serena, cruel) - Porque nenhum
sozinho! Você não estava preocupada quis- você não é nem mulher!
com Glória, e sim com Edmundo. Quem TIA RUTE - Graças a Deus, ainda não fiz o que to-

deu licença para Edmundo entrar na mi- das fazem, ou querem! O que você fez!
nha casa? Eu disse que ele não voltasse o. SENHORINHA (exaltada, de novo) - Não tem cadeiras,
NUNCA! nem seios, nem nada! (co m uma mímica
O. SENHORINHA (humilhando-se) - Veio-me ver, Jonas, adequada) Uma tábua! Ser séria assim,
veio-te ver! minha filha!... Quero ver séria bonita,
JONAS (feroz) - Dispenso. desejada! Com todos os homens malu-
O. SENHORINHA - Da outra vez, a briga foi por minha cos em volta! Virtude assim, sim, vale a
causa, porque você me tratou mal. Não pena!

24 NELSO N RODR IGUE S 25 ÁLBUM DE FAMfLIA


JONAS (interpondo-se)- Pare com isso, Rute! JONAS (para D. Senhorinha, com rancor)- Você
TIA RUTE (por conta do despeito) - Primeiro, ela alguma vez me amou, assim? ... Houve
tem que me ouvir. .. (para D. Senhorinha) um momento que... Mas nem aí você
Você é que é a virtuosa? E aquela noite? seria capaz disso (a sério, como se estivesse
No mínimo, já se esqueceu, claro, daque- faz endo uma reclamação digna), de ir você
la noite! mesma buscar mulheres - sobretudo
virgens- para o homem que você amava
(D. Senhorinha guarda silêncio.) -EU. Nenhuma mulher faz isso.
D. SENHORINHA - Queria que eu fizesse?
TIA RUTE (inteiramente possessa) -Mas há uma
JONAS (aproximando-se da mulher) - E para
que você não sabe. Eu menti quando
que essa pose que você tem? ... (com uma
lhe disse que nenhum homem me tinha
raiva que aumenta) Você falou em sem-
tocado.
o. SENHORINHA (sardônica) -Ah, houve um que ... ? vergonha (com doçura sinistra) Agora
TIA RUTE (dolorosa, transfigurada pela recorda- vai-me dizer uma coisa; aqui há uma
ção grata) - Também foi só uma vez. sem-vergonha. Mas quem é?
Ele estava bêbado, mas não faz mal. D. SENHORINHA (perturbada)- Não sei.
NENHUM HOMEM ANTES TINHA JONAS (avançando, enquanto ela recua) - Sabe,
OLHADO PARA MIM. Ninguém, nem sim. Quem é?
pretos. Foi uma graça de bêbado que fi- D. SENHORINHA (evadindo-se) - Nós três.
zeram comigo- eu sei. Mas o fato é que JONAS -Diga direito.
FUI AMADA. Até na boca ele me beijou, D. SENHORINHA ( acuada) - Eu. A sem-vergonha - sou
como se eu fosse uma dessas mulheres eu!
muito desejadas. Esse homem (mudando
de tom, violenta) É SEU MARIDO! (Então, lentamente, saem os três da cena. Cai a luz. Fica o palco vazio.
JONAS (com certo rancor)- Não devia ter con- Começa a gemer e a falar a mulher grávida.)
tado!
TIA RUTE (sem ouvi-lo) -Por isso é que eu gosto MULHER GRÁVIDA - Eu fui atrás da conversa, acreditei ...
dele. Sabia que tinha sido aquela vez só Dei trela ... Ah, mas se eu soubesse que a
-que não voltaria mais, paciência. Mas
dor era tanta ... Tomara que te pegue uma
como foi bom! Agora, o que ele quiser eu
doença! ... E vem dor. Ahn!
faço. Quer que eu arranje moças, meni-
nas de 13, 14, 15 anos. Só virgens, pois
não! Para mim, é um santo, está acabado! (Apaga-se totalmente o palco central. Ilumina-se o álbum de família.
Segunda página. Mesmo fotógrafo, mais velho 13 anos. Mesma máqui-
(Tia Rute cobre o rosto com uma das mãos. D. Senhorinha está imó- na, mesma mise-en-scene. A família toda: Jonas e Senhorinha, agora,
vel, rígida. Jonas parece, afinal, impressionado com a confissão da com os quatro filhos: Guilherme, Edmundo, Nonô e Glória, esta última
cunhada.) no joelho de Senhorinha. Dois meninos de marinheiro; Guilherme, o

26 NElSON RODRIGUES 27 ÁLBUM DE FAMfLIA


ma'is velho, em uniforme colegial. Entra o speaker com a habitual (pára, num último palpite) A minha fa-
imbecilidade.) lecida dava-se muito com o senhor seu
pai ...
SPEAKER -Segunda página do álbum. 1913. Um JONAS (explodindo) - Velho safado! Desapareça,
ano antes do chamado "pandemônio antes que eu ... Bom!
louco" 7• Senhorinha não é mais aquela AVÔ (em pânico) - Às ordens ! Às ordens!
noiva tímida e nervosa; porém, uma mãe
fecunda. Do seu consórcio com o primo (Sai o avô.)
Jonas, nasceram, pela ordem de idade: (Entra D. Senhorinha com a sua bonita tristeza.)
Guilherme, Edmundo, Nonô e Glória. E
ainda há quem seja contra o casamento! JONAS (com irritação)- Esteve-me espionando?
o. SENHORINHA (irónica) -Eu? Me interesso muito pelo
(Desfaz-se a pose. Jonas beija a esposa na testa e, em seguida, pega a que você faz !
filha no colo.) JONAS (canalha) - Mas viu a menina?
o. SENHORINHA -Sem querer, de passagem.
SPEAKER -Uma mãe assim é um oportuno exem-
JONAS (aproximando-se de D. Senhorinha, jul-
plo para as moças modernas que bebem
gando-a como quem julga um belo animal)
refrigerante na própria garrafinha!
- Mais interessante do que você.
o. SENHORINHA (com ironia desesperada) - Lógico! Tem
(Ilumina-se a sala principal da fazenda. Está saindo de um quarto
mais cadeiras, mais busto... Transpira mais,
uma moça, tipo de beleza selvagem. Passa correndo, deixando a porta
aberta. Depois de um momento, maior ou menor, sai Jonas pela mesma eu quase não transpiro!. .. Anda imunda
porta, ainda apertando o cinto. Entra o avô da menina que fugiu.) e eu não! Mas você precisa, não é, de
mulher assim? Gosta!
AVÔ -Tudo bem, "seu" Jonas? Direitinho? JONAS (mudando de tom) -O pior é que eu não
JONAS (taciturno) -Mais ou menos. acho uma, não encontro... Tenho vonta-
AVÔ - É o que serve. Pois vá por mim, "seu" de de bater, até de estrangular! São umas
Jonas: não se meta com a gente da porcas e eu também! (cai em prostração)
Mariazinha Bexiga que se dá mal. o. SENHORINHA - Edmundo brigou com Heloísa- estão
separados. Receba seu filho, Jonas!
(Vai saindo de frente para Jonas: este não responde.)
(Entra Edmundo, quando D. Senhorinha começou a fi·ase anterior.)
AVÔ - Querendo, disponha. Lá na Mariazinha
Bexiga está dando alteração toda noite. o. SENHORINHA (patética) - E tomara que ele não tenha
visto a mulher sair daqui!
Z "Pandemônio louco": provável referência de época à
EDMUNDO (jovem, bonito, um certo quê de feminino)
Primeira Guerra Mundial, que começou em 1914. -Eu vi uma mulher. ..

28 NELSON RODRIGUES 29 ÁLBUM DE FAMfLIA


D. SENHORINHA (e m pânico) - Você me prometeu, (Pausa de Edmundo, que parece desorientado.)
Edmundo!
JONAS (sardônico) - E não é mulher: é menina... EDMUNDO (num súbito transporte) - Faço!
EDMUNDO (o bstinado para D. Senhorinha) - Quem é D. SENHORINHA (doce, olhando-o bem nos olhos) -Lembre-
essa mulher? se de quando era criança: vá tomar a bên-
D. SENHORINHA -Ninguém, Edmundo. ção do seu pai!
JONAS (berrando) - Eu estou falando. (novo EDMUNDO (recuando, com es panto) - Não, isso
tom) Considero falta de caráter, de vergo- não!
nha, que um sujeito expulso de uma casa, D. SENHORINHA (amo rosa) - Sou eu que lhe peço - eu!
CORRIDO, apareça, de novo, e COM O Vamos acabar com essa bobagem!
AR MAIS CÍNICO DO MUNDO! EDMUNDO (revoltado) -Está completamente louca!
EDMUNDO (se m ligar ao pai, como se este não existis-
se) -Mãe, quem é, mãe? (Jonas começa a ferver.)
D. SENHORINHA -Não tem importância- bobagem.
EDMUNDO (para D. Senhorinha) - Por que tolera JONAS (andando pela sala, de um extremo a ou-
ISSO? tro) - Expulsei-o daqui... Dei na cara ...
D. SENHORINHA (implorante) - Não se meta, Edmundo, Ele correu- não é homem ... (refere-se
deixe! evidentemente a Edmundo, que parece não
EDMUNDO -Antigamente eu via certas coisas, mas sentir as palavras paternas)

I era criança ... Então, tudo isso acontece


aqui, dentro de casa, na sua frente! Você (Entra tia Rute.)
vê tudo, suporta, não diz nada! E por quê
-isso é que me dana- , POR QUÊ? EDMUNDO - Isso ainda vai acabar mal!
JONAS (irânico, para a mulher) - Explique por TIA RUTE (sardônica) - Vai acabar mal o quê? O
quê! que é que vai acabar mal?
EDMUNDO -Eu não quero que isso continue, NÃO EDMUNDO (cortante) - Não quero conversa com a
QUERO! senhora. A senhora só me inspira repug-
D. SENHORINHA (d oce) - Edmundo, atende a um pedido nância, nojo!
meu? TIA RUTE (fremente) - É boa- "vai acabar mal". É
EDMUNDO - Estão fazendo com você o que não se ameaça para Jonas, é? Você já se esque-
faz com a última das mulheres! ceu das surras que apanhou?
JONAS -Deixe, Rute! Eu é que sou o pai! (su r-
(D. Se nhorinha abraça-se com Edmundo, sacode-o, como para des- damente) Me criticar- um sujeito que
pertá-lo.) acaba de largar a mulher! Por que não fez,
então, como Guilherme, que continua
D. SENHORINHA -Faz O que eu lhe pedir? Diga-faz? firme no seminário, estudando para pa-

30 N ELSO N RODRI GU ES 31 ÁLBUM OE FAM fliA


dre! Eu sei por quê: porque o Guilherme acidente, não foi doença- FOI MEU
é frio. Frio, não: feminino, até. FILHO QUE ME MATOU. (sem transi-
EDMUNDO -Eu também sou frio. ção quase) Mas você tem medo de mim
JONAS (enraivecido) - Frio, eu sei! (explodindo) - medo e ódio. Porém o medo é maior.
Fale comigo! Fale diretamente a mim, (com perigosa doçura) Não é, Edmundo, o
seja homem! (mudando de tom, direta- medo não é maior?
mente para Edmundo) Você é como eu
-pensa em mulher, dia e noite. Um dia (Edmundo parece fascinado.)
há-de matar alguém por causa de mulher!
EDMUNDO -Penso NUMA MULHER, o que é mui- JONAS -Vem cá, um instante.
to diferente! Numa só! D. SENHORINHA (em pânico)- Vá, Edmundo! Sou eu que
JONAS (exultante) -Confessou- pensa NUMA estou pedindo!
MULHER. (apaixonadamente) Tanto faz EDMUNDO (parado) -Isso, não! Nunca!
pensar NUMA, como em todas! JONAS - Venha tomar a bênção, Edmundo!
EDMUNDO - É outra coisa. (com ódio) Eu não ando (com hedionda doçura) do seu pai!
atrás de vagabundas do mato, que, ainda D. SENHORINHA (impressionada com a humilhação do filho)
por cima, devem ter doença, o diabo! - Mas se você não quer, meu filho, não
(gravemente) Só tenho e só tive um vá... Eu também não posso pedir que
amor! você se humilhe ... Edmundo, não vá!
JONAS (sardônico)- Não é sua esposa? Ou é?
(Edmundo luta contra a própria fraqueza; ainda assim, aproxima-se,
EDMUNDO -Não.
como se viesse do pai uma força maior.)
D. SENHORINHA (fascinada)- Então, quem?
JONAS -Diga!
EDMUNDO (sem se dirigir diretamente ao pai)
EDMUNDO (baixando a cabeça, com toda seriedade)
-Quando eu era menino, ele me humi-
- Não digo. (para D. Senhorinha, olhan-
lhava, me batia... Uma vez eu fiquei ajoe-
do-a bem nos olhos, baixando a voz) Talvez
lhado em cima de milho... (com desespe-
você saiba um dia! ro) Mas agora, não sou mais criança ...
JONAS (violento)- Você não me engana. Você
sempre teve ódio de mim- desde crian- (Lentamente, aproxima-se do pai.)
ça. Você sempre quis, sempre desejou
minha morte. Um dia, você vai-me ma- D. SENHORINHA (histérica, com as duas mãos tapando os
tar, talvez quando eu estiver dormindo. ouvidos)- ACABEM COM ISSO!
Mas vou tomar as minhas providências! JONAS -Vem ou não vem?
TIA RUTE -Quem é ele para te matar, Jonas? D. SENHORINHA (histérica)- Não, Edmundo, não!
JONAS - Vou avisar a todo mundo que se um EDMUNDO - Por que fazem meninos tomar a bên-
dia eu aparecer morto, já sabe: não foi ção do pai? ... Meninos só deviam tomar

32 NELSON RODR IGUES 33 ÁLBUM DE FAMfLIA


a bênção materna ... A mão da mulher é SEGUNDO ATO
outra coisa... Sua menos, não tem cabelo,
nem veias tão grossas.

(Como que inteiramente dominado, Edmundo curva-se rapidamente (Terceira página do álbum. Retrato de Glória, na primeira comunhão.
e beija a mão paterna.) De joelhos, mãos postas etc. O fotógrafo dá à adolescente uma idéia da
pose mística que deve fazer; para isso, ajoelha, junta as mãos, revira
EDMUNDO - Beijei a mão de meu pai em cima de os olhos. Depois do que, levanta-se e contempla o resultado de suas
suor. indicações. Já ia tirar a fotografia, quando bate na testa, lembrando-se do
livrinho de missa e do rosário; entrega um e outro à menina, que se põe
FIM DO PRIMEIRO ATO na atitude definitiva. D. Senhorinha está presente, mas não entra no
retrato; apenas acompanha a filha.)

SPEAKER - Menina e moça, como muito bem diz


o autor quinhentista8 , Glória recebeu
uma esmerada educação. A inocência
resplandece na sua fisionomia angelical.
Mãe e filha se completam.

(Desfaz-se a pose. Mãe e filha se abraçam, com extremo carinho.)

SPEAKER -Mãe é sempre mãe.

(D. Senhorinha paga o fotógrafo, o qual faz um amplo gesto de grati-


dão eterna. D. Senhorinha afasta-se.)

SPEAKER - Se Senhorinha é uma mãe extremosa,


Glória é uma filha obediente e respeita-
dora.

8. Menina e moça, como muito bem diz o autor qui-


nhentista: menção à novela Menina e moça, de autoria
do escritor português Bemardim Ribeiro (1500-1552) .
Nela Ribeiro narra os amores infelizes de dois jovens.
Dava nome, no Brasil, a uma célebre coleção de ro-
mances, contos e novelas dedicados ao público jovem e
feminino, a Coleção Menina e Moça.

34 NELSON RODRIGUES 35 ÁLBUM DE FAMÍLIA


(Apaga-se a cena do álbum. Sala da fazenda. Ninguém no palco. A (Entra Jonas. No rosto a habitual expressão de crueldade.)
mulher grávida recomeça a gemer.)
JONAS (aproximando-se de Edmundo) - Você
MULHER GRÁVIDA (com a voz rouca pelos berros anteriores) ainda não explicou por que se separou de
-Me acudam, que eu não posso mais! ... Heloísa.
Ai, Virgem Santíssima, minha santa Tere- EDMUNDO (com súbita vergonha)- Nosso gênio não
sinha! ... Desta vez, eu vou! ... Ahn! combinava.
JONAS (afastando-se e como para si mesmo)- Só
(Entram Edmundo e D. Senhorinha; parecem chegar de um passeio.) não compreendo Guilherme ... Não pode
ser frio- é filho de MINHA CARNE!
D. SENHORINHA (num transporte) -Guilherme era tão...
EDMUNDO -Você suporta tanta coisa- deve haver
(não sabe o que dizer) Desde menino, não
um motivo, um motivo qualquer, que eu
saía da igreja ...
não conheço!
JONAS -Tem que ser como eu!
D. SENHORINHA (dolorosa)- Motivo nenhum.
D. SENHORINHA (doce)- Sempre com livrinho de missa!
EDMUNDO - Seria tudo melhor se em cada família
JONAS -É impossível que não tenha desejo!
alguém matasse o pai!
D. SENHORINHA (feliz)- Ele adorava estampa de anjo!
D. SENHORINHA -Você queria que eu fizesse o quê?
JONAS (exultante)- Mas eu sei o que vai acon-
EDMUNDO (apaixonadamente) - Por que não se
tecer- APOSTO! Guilherme ainda vai
matou? aparecer aqui, vai dizer: "Larguei o semi-
D. SENHORINHA (patética) -Ainda está em tempo. (mu- nário!"
dando de tom) Quer que eu me mate?
EDMUNDO (com medo)-Não! (Entra Guilherme, em tempo de ouvir as últimas palavras do pai.)
D. SENHORINHA (meiga e triste)- Viu? Você parece que
fala sem refletir! GUILHERME -Larguei o seminário ...
EDMUNDO (obcecado)- Se você morresse, não sei! JONAS (espantado)- Ele! (pausa; possesso, para
Não quero que você morra, nunca! (mu- todo mundo) Eu não disse? Eu acabava de
dando de tom) Não posso imaginar você dizer... (ofegante) Deus confirmou as mi-
morta! (passa a mão no rosto materno) nhas palavras ... (apontando para o quadro
Prefiro você viva, mesmo que um dia de Jesus) Foi Deus! Deus, sim. Deus!
entre para a casa da Mariazinha Bexiga!
D. SENHORINHA -Que loucura! (Encaminha-se para Guilherme.)
EDMUNDO (doloroso, para si mesmo) - Às vezes, eu
penso, fico imaginando você entre as JONAS (segurando Guilherme pela gola do paletó)
mulheres da Mariazinha Bexiga! Sem -Eu sei para que você deixou o seminá-
um dente na frente! Bebendo cerveja! rio; por que desistiu de ser padre ...

36 NELSON RODR IGUES 37 ÁLBUM DE FAMfliA


(Para os outros, exultante.) JONAS (desorientado) -Glória não! Glória é a
única-compreendeu?-, a ÚNICA que
JONAS - Sei, sim!. .. Foi para ter liberdade - escapou! Glória é um anjo de estampa!
para dar em cima dalguma prostituta! ... D. SENHORINHA (irânica)- Sei lá!
D. SENHORINHA (num lamento)- Deus castiga, Guilher- JONAS (para Guilherme) - Que não te aconte-
me! Deus castiga! ça como a Nonô, que ficou maluco. Na
JONAS -Quem é ela? certa, foi de pensar demais em mulher!
GUILHERME (sombrio)- Não quero, não me interessa Agora lambe a terra, ama a terra com um
nenhuma prostituta! amor obsceno ... de cama! (enérgico, cara
JONAS (enche o palco com a sua voz)- Mentiroso! a cara com o filho) Só te quero avisar uma
E eu que sentia um certo respeito por coisa: Menina, não! Nem mulher muito
você! Que até me sentia incomodado na novinha- compreendeu? Nunca!
sua presença! PORQUE ACHAVA VOCÊ
O ÚNICO PURO DA FAMÍLIA! (A mulher grávida torna a gemer.)
GUILHERME -E Glória?
JONAS (retificando, rápido)- Quer dizer, o úni- JONAS -Esse cretino do médico que não vem!
co puro dos homens. (para os outros) Eu GUILHERME -Essa é das tuas, hem?
até não disse que ele era FRIO? Foi, não EDMUNDO (doloroso)- Mamãe tinha-me dito que
foi? não!
JONAS (rápido, para Edmundo) - Eu te deixei
(Guilherme, com as mãos entrelaçadas nas costas, parece não sentir a ficar aqui porque me tomaste a bênção ...
presença dos demais.)
Mas não se meta, porque expulso outra
vez!
JONAS (como para si mesmo) -Eu gosto de mu-
lher novinha, novinha (riso nervoso) e vo- (Novo gemido da mulher grávida.)
cês- ninguém- sabe POR QUÊ! (para
D. SENHORINHA (explodindo)- Coisa horrível!
Guilherme, agressivo) E seu gosto - qual
JONAS (agitado)- Também tu!
é? (mudando de tom) Você agora é como
D. SENHORINHA (sem perceber a interrupção) - Não tem
eu, como aquele ali (indica Edmundo),
bacia!. .. bacia de criança!. ..
que deixou a mulher...
JONAS (inquieto, com possível remorso)- Se não
fosse eu, seria outro!
(Aproxima-se de D. Senhorinha. Esta fica de perfil para ele.) D. SENHORINHA -Tão estreita!

JONAS -
.,
... como essa aqm.
JONAS - E eu com isso? Tenho culpa que não
tenha bacia?
EDMUNDO -Não meta minha mãe no meio!
D. SENHORINHA (sardônica)- Como Glória, também! (Guilherme vai até à porta do quarto da mulher grávida e fala de lá.)

38 NElSON RODRIGUES 39 ÁLBUM DE FAMfLIA


GUILHERME - O que eu devia fazer, eu sei: o que eu (Guilherme fala numa espécie de embriaguez. Interrompe-se, cansado
fiz daquela vez, com a muda!... (numa e espantado.)
alegria hedionda) Você se lembra, pai JONAS (com sofrimento) -Assassino!
-da MUDA? GUILHERME -Não faz mal!
JONAS (com certo medo) - Sei lá do que você
está falando? (Guilherme olha para o quadro de Jesus. Fala, subitamente grave e
GUILHERME -Sabe sim. Aquela que não falava, meio viril.)
idiota - estrábica!. .. (com alegria selva-
gem) Ah, é mesmo- ESTRÁBICA! GUILHERME -Deus é testemunha de que não me ar-
rependo! (com ferocidade) Eu devia fazer
(Tia Rute passa, levando uma bacia grande para o quarto da mulher a mesma coisa com essa que está aí!
grávida; olha um momento para a cena. Deixa a bacia lá e volta in- JONAS (obcecado) -ASSASSINO!
teressada.) GUILHERME -São umas cachorras!

GUILHERME - Todo mundo respeitava a muda... (Gemido da mulher grávida e fala.)


Ninguém mexia com ela ...
JONAS (com medo do filho) -Nem eu! MULHER GRÁVIDA -Vou morrer!. .. Minha Nossa Senhora
GUILHERME (violento) -Você, sim ... Nem a muda -vou morrer!
você perdoou .. .
JONAS (para os outros, como se defendendo) (Tia Rute tinha ido ao quarto da mulher; volta.)
-Mas por acaso muda não é mulher? Só
por causa de um defeito? D. SENHORINHA -E as dores?
GUILHERME - Depois, ela pegou gravidez. Durante TIA RUTE -Aumentando.
as dores, veio-se arrastando - QUERIA D. SENHORINHA -Vou ver O que é.
TER O FILHO AQUI... - Eu encontrei
ela no meio do caminho. (D. Senhorinha vai ao quarto da mulher.)

(Todos na sala parecem fascinados com a narração de Guilherme. Este JONAS (sombrio) - Meus filhos querem-me
baixa a voz, com uma expressão de sofrimento.) criticar! Se soubessem o motivo que eu
tenho - um grande MOTIVO - para
GUILHERME -Quando me viu, ela parece que adivi- fazer o que faço- ...e coisas piores!
nhou - teve medo de mim. (Guilherme D. SENHORINHA (aparecendo) - Rute, vem cá um ins-
muda de tom, implacável) Ainda quis fugir tante.
- mas eu, então, pisei o ventre dela, dei TIA RUTE - Depois.
' nos nns
pontapes . ....
I
D. SENHORINHA -Edmundo, quer-me ajudar aqui?

40 NELSON RODRIGUES 41 ÁLBUM DE FAMÍLIA


, I

(Edmundo sai.) gostou nunca de mim. Tudo era você,


você! Tinha uma admiração indecente
GUILHERME (para Jonas) - Acabou? Ou tem mais pela sua beleza. Ia assistir a você tomar
alguma coisa que dizer? banho, enxugava as suas costas! Quero
JONAS -Acabei, sim! Agora vou-me embora ... que você me diga: POR QUE É QUE ELA
De santos da tua marca, estou até aqui NUNCA SE LEMBROU DE ASSISTIR
-ATÉ AQUI! Adeus! AOS MEUS BANHOS?
o. SENHORINHA ( chocadíssima) -Você não está regulan-
(Quer-se afastar, meio trôpego, quando recebe a intimação do filho.) do bem!
TIA RUTE (num crescendo)- Ela, papai, todo mun-
GUILHERME -Adeus coisa nenhuma! Não sai! do! ... Ninguém gostou de mim, nunca! ...
TIA RUTE - Quem é você para dar ordens a seu
Uma vez em Belo Horizonte, eu saí com
pai? você ...
GUILHERME -Quem vai sair daqui, já, já, é você!
JONAS (espantado) -Mas o que é que ela fez?
(Guilherme, rápido, torce o pulso de tia Rute, que assim fica de costas
TIA RUTE (num lamento)-Eu não fiz nada - nada,
para ele.)
nada!
GUILHERME -Você é a alma danada aqui de dentro.
GUILHERME -Cale essa boca!
(mais agressivo) Não discuta: SAIA!
TIA RUTE (apesar da dor) - ... uma porção de su-
(D. Senhorinha aparece e aproxima-se.) jeitos sopravam coisas no seu ouvido
- às vezes cada imoralidade! Mas a mim
TIA RUTE -(recuando, com medo)- Só se ele qui- nunca houve um preto, no meio da rua,
ser, se ele mandar! que me dissesse ISSO ASSIM!.. . Você
GUILHERME (segurando-a pelos pulsos)- Ou prefere está-me quebrando o braço, ahn!
ir arrastada?
D. SENHORINHA (intervindo)- Vá, Rute, vá! (Guilherme solta a velha.)

(Tia Rute desprende-se violentamente.) TIA RUTE (possessa)-Querdizer, toda mulher tem
um homem que a deseja, nem que seja um
TIA RUTE (para D. Senhorinha) - Quem lhe pediu crioulo, um crioulo suado, MENOS EU!
opinião? o. SENHORINHA (saindo)- E eu tenho a culpa? Se você
o. SENHORINHA -Rute, lembre-se de mamãe .. . · não é mais bonita, eu é que sou culpada?
TIA RUTE (agressiva)- Mamãe o quê ... (mudando TIA RUTE -Desde menina, tive inveja de sua bele-
de tom) Eu prometi, jurei à mamãe ... za. (em tom de acusação) Mas ser bonita
(cínica) Mas o que é que tem? Ela não assim é até imoralidade porque nenhum

42 NElSON RODRIGUES 43 ÁLBUM DE FAMÍLIA


homem se aproxima de você, sem pensar POR ISSO DETESTEI SEMPRE MINHA
em você PARA OUTRAS COISAS! MÃE E MINHAS IRMÃS... (com sofri-
mento e a maior dignidade possível) Não
(Tia Rute pára, cobre o rosto com uma das mãos.) sei, não compreendo que um homem
possa tolerar a própria mãe, a não ser
GUILHERME (irónico) - Pode continuar! que ...
JONAS (num grito) -Basta!
GUILHERME -Pode continuar, porque depois vai sair (Virando-se , rápido, para tia Rute, sem dissimular seu rancor.)
daqui, para não voltar nunca mais!
TIA RUTE (meio histérica)- Vocês me põem para JONAS -Se você não fosse como é! Assim tão
fora? desagradável - com espinhas na testa!
GUILHERME -Pois é!
Pior do que feia - UMA MULHER
TIA RUTE -Mas eu não tenho para onde ir!. .. não
QUE NÃO SE DESEJA EM HIPÓTESE
tenho parente, nada!. .. Querem que eu
NENHUMA!
morra de fome?
GUILHERME -Tanto faz.
TIA RUTE (num crescendo) - Vocês não podem fa- (Tia Rute abraça-se ignobilmente às pernas de Jonas.)
zer isso comigo. (grita) EU CONHEÇO
SEGREDOS DA FAMILIA! SEI por que TIA RUTE -E eu tenho culpa- tenho?
Guilherme e Edmundo voltaram- SEI! JONAS (cruel) - A própria muda, com todo o
Sei por que Nonô enlouqueceu - por estrabismo, eu quis!
que mandaram Glória para o colégio TIA RUTE -Você uma vez também me quis!
interno!. .. JONAS (implacável) - Eu estava bêbado, com-
pletamente bêbado!
(Agan·a-se a Jonas que está impassível.) TIA RUTE (recuando)- Eu sei o que vocês querem
-que eu me mate! que eu me atire na la-
TIA RUTE -Jonas, não deixe, não consinta! goinha. (histérica) Mas se eu morrer, vou
JONAS - Se você falar de Glória, eu faço com lançar uma maldição para vocês todos,
você- assim, assim! Você é feia demais! para toda a família!
TIA RUTE (espantada) - Todos estão contra mim.
(baixando a voz) Contra mim e contra
(Aparece D. Senhorinha, quase histérica, também.)
você, Jonas. Você vai deixar, Jonas?
o. SENHORINHA -Rute! Ou você vem-me ajudar, ou lar-
(Segura-o desesperadamente pelos ombros, sem que ele reaja.)
go tudo, e deixo a mulher morrer!
TIA RUTE -Ao menos, fale! Fale!
JONAS -Não desejo você! (muda de tom) Nunca (D. Senhorinha volta rapidamente e tia Rute, como uma sonâmbula,
suportei as mulheres que não desejo... vai atrás.)

44 NELSON RODRIGUES 45 ÁlBUM DE FAMfliA


JONAS (numa es pecte de remorso retardado) JONAS (depois de um suspense, triunfante) -
-Nem tem conta as meninas que ela me Então, já sei o que eles CONCLUÍRAM!
arranjou! (iluminando-se) e VIRGENS! Eles e VOCÊ também! (terrível) Mas
como são indecentes - TODOS, uns
(Jonas levanta-se e apanha num móvel um pequeno chicote, grosso e indecentes!
trançado. Bate com o chicote nos móveis.) GUILHERME -Não podia haver dúvida- a coisa esta-
vaCLARA!
JONAS (como um pai à antiga)- Quando um fi- JONAS (agitado)- Não compreendem a inocên-
lho se revoltava contra meu pai, ele usava cia! São uns cachorros muito ordinários!
ISTO! Uma vez eu gritei com ele- ele, GUILHERME (outra vez informativo) - O padre disse,
então, me deu com esse negócio. Me então, que estava positivado o GÊNERO
pegou aqui - deixou na cara um vasto DE AMIZADE ... Que assim não era pos-
lanho, ROXO! sível... Que a solução era EXPULSAR AS
GUILHERME (lacônico)- Glória foi expulsa do colégio! DUAS!
JONAS (assombrado)- Glória foi o quê? Expul- JONAS -Por que não quebrou a cara dum?
sa? Você está louco! GUILHERME (sempre frio) - Trouxe um bilhetinho
GUILHERME (com absoluta dor) -EXPULSA! que eu roubei.
JONAS (tonto) -Mas ... que foi que ela fez? Que
(Tira o bilhetinho do bolso.)
foi?
GUILHERME (frio, apenas informativo) - Anteontem,
GUILHERME (lendo)- Diz coisas assim: "Glória, meu
me chamaram no colégio ... Então, o pa-
amor: foi tão bom ontem! Nem dormi,
dre me disse que Glória e uma menina
pensando! Sei que AQUILO é pecado,
lá ...
mas não faz mal etc." Como termina:
JONAS (exa ltadíssimo) - Deixe de insinuações!
"Daquela que te amará até morrer e que
Diga tudo claramente! nunca te trairá- Teresa".
GUILHERME (sem se alterar)- Ela e a menina man-
JONAS (como uma fera) -É sempre assim! Aliás,
tinham correspondência... Descobriram o que fizeram com Joana D'Arc!
uma porção de bilhetinhos ... GUILHERME - Agora o seguinte: eu vim na frente,
JONAS (sem entender) - Bilhetinhos? ... Glória chega a qualquer momento, hoje
GUILHERME - Andavam sempre juntas ... E trasante-
ou amanhã, não sei. Eu queria combinar
ontem, a irmã viu as duas conversando, justamente uma coisa. ELA NÃO VEM
fora de hora, no dormitório... Ouviu a PARA AQUI!
conversa toda! Falavam em morrer jun- JONAS -Não vem para aqui- como? ... por
tas e no fim ... quê?
JONAS -No fim o que é que tem? GUILHERME (veemente)- Porque esta casa é indigna
GUILHERME - ... se BEIJARAM NA BOCA! - PORQUE VOCÊ NÃO PODE TER

46 NELSON RODRIGUES 47 ÁLBUt-1 DE FAMfLIA


CONTATO NEM COM SUA PRÓPRIA não pertencesse à nossa família. (mu-
FILHA! (exaltadíssimo) Você mancha, dando totalmente de tom) Glória não pode
você emporcalha tudo - a casa, os mó- viver nesta casa!
veis, as paredes, tudo! JONAS (desorientado) - SUA MÃE TOMA
JONAS -E você? É melhor do que eu? Você, CONTA!
meu filho? Tão sensual como eu! GUILHERME - Nem minha mãe! É UMA MULHER
GUILHERME (triunfante) - Fui! Eu fui sensual como CASADA, CONHECE O AMOR- NÃO
você - era. Mas agora não sou mais É PURA. Não serve para Glória- só eu,
-nunca mais! depois do ACIDENTE!
JONAS - Que nunca mais o quê! A GENTE JONAS -Mas Glória é tudo para mim! É a única
NASCE ASSIM; MORRE ASSIM! coisa que eu tenho na vida!
GUILHERME - Se você soubesse o que eu fiz! (muda GUILHERME (sem ouvi-lo)- Fazes bem em humilhar
de tom) Escuta, pai, quando fui para o mamãe. Ela precisa EXPIAR, porque de-
seminário, era como você e como toda sejou o amor, casou-se. E a mulher que
a família; quase não dormia lá. Acabava amou uma vez - marido ou não - não
fugindo, não agüentava mais. deveria sair nunca do quarto. Deveria
ficar lá, como num túmulo. Fosse ou não
(Tia Rute sai do quarto com umas coisas; aproxima-se dos dois.) casada. Adeus!

TIA RUTE - Vocês vão-se morder, vão-se estraça- (Aparece D. Senhorinha na porta do quarto da mulher grávida.)
lhar uns aos outros, por causa de mulher.
(vai até à porta) Edmundo está lá, não sai o. SENHORINHA - Ela vai morrer, Jonas - estreita de-
de lá - deslumbrado com o espetáculo. mais!
Vocês são todos uns ...
(Apaga-se o palco central. Ilumina-se mais uma cena do estúdio fo-
(Sai e volta depois para o quarto da menina grávida.) tográfico. Senhorinha e tia Rute, numa pose falsa como as anteriores,
artificialíssima. Desta vez, não intervém o fotógrafo. Comentários
GUILHERME (como se não tivesse sido interrompido) sempre idiotas do speaker.)
- Uma noite, no seminário, fazia um
calor horrível. Então fiz um ferimento SPEAKER - Senhorinha não é apenas doublée de
- mutilante -, o sangue ensopou os esposa e mãe; é irmã, também, extremo-
lençóis. sa, como as que mais o sejam. Durante a
JONAS (sem compreender imediatamente)- Feri- doença de Rute, ela permaneceu na ca-
mento como? beceira da enferma, como um esforçado
GUILHERME (abstrato) - Depois desse ACIDENTE anjo tutelar. Nem dormia! Nós vivemos
VOLUNTÁRIO, eu sou outro, como se numa época utilitária, em que afeições

48 NELSON RODRIGUES 49 ÁLBUM DE FAMfLIA


assim, singelas e puras, só se encontram GLÓRIA (sempre impressionada com o falso Cristo)
alhures. Por sua vez, Rute, que é a mais - Nunca vi uma coisa assim! Que se-
velha das duas, não fica atrás. São resul- melhança! (continua com frio, os braços
tados da educação patriarcal! cruzados sobre o peito)
GUILHERME (chamando-a com angústia)- Vem, anda!
(Desfaz-se a pose das duas; apaga-se o palco. Ilumina-se uma nova Aqui detrás do altar- é oco! Você tira a
cena: interior da igrejinha local. Altar todo enfeitado. Retrato imenso roupa, deixa enxugar-depois veste!
de Nosso Senhor, inteiramente desproporcionado- que vai do teta ao GLÓRIA (só então compreendendo o que deseja o
chão. NOTA IMPORTANTE: em vez do rosto do Senhor, o que se vê é irmão) -Aí? (com um arrepio) Mas pode
o rosto cruel e bestial de Jonas. É evidente que o quadro, assim grande, entrar gente!
corresponde às condições psicológicas de Glória, que vem entrando GUILHERME -Que o quê! Com esse tempo!
com Guilherme. Primeira providência de Glória: olhar para a falsa GLÓRIA -Mas demora muito a enxugar!
fisionomia de Jesus. Caiu uma tempestade. Glória está ensopada e GUILHERME (agitado) - O que você não pode é ficar
Guilherme também.) (Glória é uma adolescente linda.) assim- molhada. DEPOIS VOCÊ VAI-
ME DANDO A ROUPA, EU TORÇO.
GLÓRIA (com surpresa e certo medo) - "Quedê"
NUM INSTANTE SECA!
papai? Você não disse que ele estava es-
GLÓRIA (entrando no oco do altar)- Estou com
perando- aqui?
uns arrepios!
GUILHERME -Vem já! Não demora!
GUILHERME -No mínimo, resfriou-se.
GLÓRIA -E papai que não chega!
(Glória está diante do quadro, deslumbrada. Ajoelha-se e reza.
GUILHERME -Daqui a pouco está aí!
Durante a reza, Guilherme, com a mão, esboça uma carícia sobre a
GLÓRIA - Essa igrejinha me faz lembrar tanta
cabeça da irmã, mas desiste em tempo.)
coisa!
GUILHERME -Você custou! GUILHERME -Glória, você precisa saber de CERTAS
GLÓRIA (com frio, sem ligar à observação)- Com COISAS ...
quem é que se parece ELE? GLÓRIA (sem ouvi-lo)- Mas você não nota nada
GUILHERME (perturbado) - Precisa tirar essa roupa -NADA?
-olha como está! Senão se resfria! GUILHERME - 0 quê?

GLÓRIA -Igualzinho! GLÓRIA -Olha bem para esse quadro... Não nota
GUILHERME - No ano passado, por causa de uma nada- não acha parecido?
chuva dessas, morreu aquela menina de GUILHERME -Como parecido?
pneumonia ... (mudando de tom) Olha GLÓRIA -Não é o mesmo rosto de papai, a mes-
-tem um lugar aqui! aqui detrás! ma expressão, DIREITINHO?
GUILHERME (depois de uma pausa) - Vai passando a
(Guilherme está ao lado do altar.) roupa para eu torcer.

50 NELSON RODRIGUES 51 ÁLBUM DE FAMfLIA


·· 11 1

(V~- se que Guilherme está possuído de uma grande agitação.) GLÓRIA -E papai?
GUILHERME - Como foi AQUILO? ... Com aquela
GLÓRIA -Não precisa! menina?
GUILHERME - Por quê? É uma coisa - TÃO NA- GLÓRIA (dolorosa) - Com Teresa?
TURAL! GUILHERME -Por que é que você fez ... AQUILO?
GLÓRIA -Deixa- eu mesma torço! GLÓRIA (com angústia) - Eu não fiz nada!
GUILHERME - Então, está bem... (baixando a voz) GUILHERME (suplicante) - Me conta... TUDO! Não
Mas não tinha nada demais. Eu não sou quero que você tenha vergonha de mim
como ELES. -NENHUMA.
GLÓRIA -Não ouvi direito. Que foi?
GUILHERME (voz baixa, para que Glória não possa (S egura as duas mãos de Glória . Parece um sátiro 9 .)
ouvi-lo) - Se ELES vissem o seu braço,
de fora, só o braço - NU - estendendo GUILHERME -Olha meu coração- como bate!
uma peça de roupa- iam-se impressio- GLÓRIA - Para que falar nisso?
nar. Sobretudo o pai! GUILHERME (fremente de cólera) - Conta!
GLÓRIA -Fale mais alto!
GLÓRIA (c horando) - Se você soubesse, a for-
GUILHERME (ainda baixo) - Mas eu sou diferente.
ça que eu tenho feito para não pensar
(elevando a voz) Glória, eu posso estar
NISSO! (com veemência) Eu tenho certe-
aqui - sozinho com você. Mesmo que
za, absoluta, que ela vai-se matar!
eu fosse o único homem e você a única
GUILHERME (baixando a voz) - Me diz - vocês fa-
mulher no mundo.
ziam aquilo- INOCENTEMENTE?
GLÓRIA -Que é que há, Guilherme?
GUILHERME (doloroso) - Sofri um ACIDENTE. GLÓRIA (como se falasse consigo mesma) - Ela
GLÓRIA -Você sabe que eu estou notando uma me pediu por tudo para nós morrermos
diferença em você? juntas. Queria que eu me atirasse com
GUILHERME - Estou mais gordo ... Me arredondan-
ela entre um vagão e outro. (doce e trans-
do ... (olha com asco as pró prias mãos) Suo portada) Depois o trem passava por cima
tanto nas mãos! da gente ...

(Glória sai do oco do altar. Com o vestido todo amarrotado.)


9. Sátiro: expressão muito encontrada no teatro de Nel·
son Rodrigues para caracterizar um homem que age com
GUILHERME (com despeito) - Mas você não enxugou segundas intenções de natureza sexual. Também se en-
nada! contra '[auno" ou "faunesco'~ Derivam estas expressões
GLÓRIA -O vestido! de divindades silvestres da antiga Grécia, representados
GUILHERME (angustiado) - Mas só? ... Você devia com chifres e patas de bode ou cabrito, e corpo peludo.
Eram associados à festa e à fertilidade. Os sátiros, em
enxugar tudo ... Tirar e enxugar direito ...
geral, são representados como crianças ou adolescentes
Assim, vai -se resfriar, no mínimo! e os fauno s como adultos.

52 NELSO N RO DRIGUE S 53 ÁLBUM DE FAMfliA


I
GUILHERME (espantado) -Deus não quer isso! GUILHERME -E é.
GLÓRIA (como que falando para si mesma)- Ficou GLÓRIA - Ela não sabe como há mulheres que
sentida- tão sentida! -porque eu con- gostam!
tei que ...
GUILHERME (desesperado) -Contou o quê? (Nova gargalhada de Nonô.)
GLÓRIA - .. . que toda vez que a gente se beijava,
eu fechava os olhos e via direitinho a fi- GUILHERME -A irmã me disse que, uma vez, vocês .. .
sionomia de papai. Mas direitinho como GLÓRIA (cortando)- Se você soubesse a inocên-
está ali. cia com que a gente fazia aquilo! (fre-
mente de cólera) Agora vem a irmã dizer
(Indica o falso quadro de Jesus.) que ... (tapa o rosto com uma das mãos) Ela
estava de ponta com a gente! Só gostava
GLÓRIA (com sofrimento) - Ela ficou! Deixou de de menina chaleira10 ! (com sofrimento)
falar comigo. Vai morrer com raiva de mim Se não fosse papai, se não precisasse ver
-tenho certeza. papai - eu a essa hora estaria debaixo
do trem. Juro que estava- dou a minha
(Ouve-se um grito, qualquer coisa de desumano, um grito de besta palavra de honra!
ferida, dentro da tempestade.) GUILHERME -Glória, temos que fugir daqui, depressa.
GLÓRIA (recuando) -Mas o que é que houve?
GLÓRIA -Você ouviu? Você está escondendo o quê?
GUILHERME -Não tem importância-é Nonô! GUILHERME (apaixonadamente) - Fugir para bem
longe! Tenho pensado tanto! Nada de
(Uma gargalhada soluçante, bem próximo da igrejinha.) casa, de parede, de quarto. Mas chão de ter-
ra! E não faz mal que chova!
GLÓRIA (numa es pécie de frio)- Tão triste um pa-
rente louco! Talvez seja melhor a pessoa (Muda de tom; parece falar para si mesmo.)
morrer.
GUILHERME - Ele está feliz com a chuva. Gosta da GUILHERME -Mesmo no amor! Quarto, não, nem
chuva- se esfrega nas poças de água ... cama! Terra, chão de terra!

(Sem transição, rosto a rosto com a irmã, nova expressão de sátira.) (Muda de tom; para Glória.)

GUILHERME - Você sabe que ele vive no mato GUILHERME Nós somos diferentes dos outros.
-DESPIDO? Deixa eu olhar para você.
GLÓRIA - Teresa me disse que o corpo do ho-
mem é uma coisa horrível! 10. Chaleira: aduladora, puxa-saco.

54 NELSON RODR IGUES 55 ÁLBUM DE FAMÍLIA.


:1' 1
GLÓRIA (querendo-se evadir) - Papai que não GUILHERME -Dou a minha palavra de honra!
vem! GLÓRIA - Eu nunca disse a ninguém, sempre
I
I I GUILHERME - Que é que tem papai? NUM LUGAR escondi, mas agora vou dizer: não gosto
DECENTE, PAPAI ESTARIA NUMA de mamãe. Não está em mim- ela é má,
JAULA. Papai até já matou gente! sinto que ela é capaz de matar uma pes-
GLÓRIA -Mentira sua! soa. Sempre tive medo de ficar sozinha
GUILHERME -Matou, sim. Matou ... uma mulher que com ela! Medo que ela me matasse!
havia aí- MUDA- estrábica! GUILHERME -Papai é pior!
GLÓRIA -Não acredito! GLÓRIA (transportada) - Papai, não. Quando eu
GUILHERME (rindo como um demónio)- Ela apanhou era menina, não gostava de estudar cate-
gravidez! Na época de ter filho, veio-se cismo ... Só comecei a gostar- me lem-
arrastando, gemendo.. . Papai, então, pi- bro perfeitamente- quando vi, pela pri-
sou o ventre da mulher. (exultante) Pisou meira vez, um retrato de Nosso Senhor. ..
a criança, mulher, tudo! Aquele que está ali, só que menor- cla-
GLÓRIA (encostada no altar)- Continue inven- ro! (desfigurada pela emoção) Fiquei tão
tando, continue! impressionada com a SEMELHANÇA!
GUILHERME (cruel)- A bota de papai ficou toda suja GUILHERME -Onde é que você viu semelhança?
de sangue. Ele teve que mandar limpar GLÓRIA (fechada no seu êxtase) - Colecionava
com benzina - um pano ensopado em estampas... O dia mais feliz da minha
benzina, mas a mancha não queria sair! vida foi quando fiz a primeira comunhão
GLÓRIA (feroz, acusadora) - Já sei o que você é: - até tirei retrato!
tão maldoso como a irmã! Põe malícia GUILHERME (rindo bestialmente)- Se a irmã soubes-
em tudo! se!. .. Se visse você falando assim ... IA
GUILHERME (arquejante) - O que ele faz com mamãe... VER QUE O CASO DA MENINA NÃO
GLÓRIA - Nunca notei nada! Papai sempre tra- TINHA A MENOR IMPORTÂNCIA jun-
tou mamãe direito ... ! to desse!
GUILHERME (rápido e irânico)- Na sua frente!. .. Se GLÓRIA (desesperada) - É uma coisa tão pura,
comporta mais ou menos, quando você tão bonita, o que eu sinto por papai, que
está na fazenda ... Você é ainda a única a irmã nunca compreenderia. Nem você,
pessoa que ele respeita, tem uma certa nem mamãe, nem ninguém!
consideração. Mas os outros! Faz as coi- GUILHERME (bestial) -Tem certeza?
sas mais sujas na frente de todo mundo. GLÓRIA (caindo em si, mudando de tom) - Não,
Parece que precisa se exibir! Mamãe tem não tenho certeza. Mas pode ser o que
visto cada uma! for, não faz mal. Não me interessa nem
GLÓRIA (dolorosa) -Vocês estão sempre do lado a opinião dos outros, nem a minha
de mamãe- mas, eu, NÃO! própria!

56 NELSON RODRIGUES 57 ÁLBUM DE FAMfLIA


GUILHERME - Eu tenho que salvar você - DE (baixa a voz) voluntário! Já não sou como
QUALQUER MANEIRA! antes ...
GLÓRIA -E mesmo que tudo seja verdade ... Que GLÓRIA (chorando) -Que ódio, meu Deus!
papai tenha pisado a mulher. .. Que faça GUILHERME - Não quero que ele te veja! Vem co-
isso ou aquilo com mamãe ... Que seja o migo! Eu te levo para um lugar bonito
-LINDO!
,, demônio em pessoa. (declina sua exalta-
ção; doce, outra vez) Mesmo assim, eu
gosto dele, adoro! (Guilherme avança para Glória, que recua quase até ao altar.)
GUILHERME (doloroso) - Só de uma coisa você não
sabe! GUILHERME - Ou, então, se você quiser, nós po-
GLÓRIA -Onde está papai? demos fazer aquilo que tua amiga que-
GUILHERME -Você sabe por que eu fui ser padre? ria, a gente se atira entre dois vagões,
Por que resolvi renunciar ao mundo? ABRAÇADOS!
GLÓRIA (recuando) -Não interessa! GLÓRIA -Papai não tem nenhum cabelo no pei-
GUILHERME (enérgico) -POR SUA CAUSA! to, nenhum!
GLÓRIA (baixando a voz)- Mentira! GUILHERME - Pela última vez - QUERES VIR
GUILHERME (selvagem)- Por sua causa, sim! (como COMIGO? Vem, sim, vem!
um sátira) Você era garota naquele tem- GLÓRIA -Não.
po... Mas eu não podia ver você, só pen- GUILHERME -Você não será dele, NUNCA!
sava em você ... (patético) Não agüentava,
não podia mais! (Puxa o revólver e atira duas vezes. Glória cai de joelhos, com as duas
GLÓRIA (com medo) - Agora estou vendo por mãos amparando o ventre.)
que é que você me mandou entrar ali ...
POR QUE QUIS QUE EU SECASSE A GLÓRIA (contorcendo-se de dor) - Quando eu
ROUPA E DESSE DEPOIS PARA VOCÊ era menina... pensava que mamãe po-
ESPREMER... dia morrer... Ou, então, que papai podia
GUILHERME (espantado) -Não foi por isso- juro! fugir comigo ... (revira-se) QUE DOR
AQUI!
(Gargalhada de Nonô, bem próxima.)
(Glória morre.)
GLÓRIA (com rancor) - Pensa que eu não no-
tei a expressão do seu rosto. OS SEUS FIM DO SEGUNDO ATO
OLHOS, quando você disse que Nonô
andava por aí - DESPIDO?
GUILHERME (apavorado) -Juro! Você diz isso por-
que não sabe que tive um ACIDENTE ...

S8 NELSON RODRIGUES 59 ÁLBUM DE FAMÍLIA


TERCEIRO ATO

(Começa o 3° ato com mais uma página do álbum, justamente a quin-


ta. Nonô é um menino taciturno, excepcionalmente desenvolvido. D.
Senhorinha, formosa e decorativa como sempre. Piruetas do fotógrafo
em tomo de Nonô, que demonstra hostilidade para com o conceituado
profissional. Discreto pânico do fotógrafo. Nonô lembra Lon Chaney Jr.n)

SPEAKER - Quinta fotografia do álbum. Nonô


tinha apenas 13 anos na ocasião, mas
aparentava muito mais. Tão desenvolvi-
do para a idade! Por uma dolorosa coinci-
dência, este retrato foi tirado na véspera
do dia em que o rapaz enlouqueceu. Um
ladrão entrou no quarto de Senhorinha,
de madrugada e, devido ao natural abalo,
Nonô ficou com o juízo obliterado. Que
diferença entre um filho assim e os nos-
sos rapazes de praia que só sabem jogar
voleibol de areia. Pobre Nonô! Hoje a
ciência evoluiu muito e quem sabe se ele
seria caso para umas aplicações de car-
diazol12, choques elétricos e outros que
tais?

11. Lon Chaney Jr. (1906·1973): ator de cinema que ficou


conhecido por suas atuações em filmes de terror, com
um olhar desvairado. Mais famoso ainda foi seu pai,
Lon Chaney (1883-1930), que atuou no cinema mudo
e no teatro.
12. Cardiazol: injeção na veia à base de cânfora, estimu-
ladora do coração e de efeito muito rápido. Antes da ado-
ção dos choques elétricos nos hospitais- o que no Brasil
aconteceu em 1938-. era usada para deixar os pacientes
psiquiátricos num estado de calma ou prostração.

61 ÁLBUM OE FAMÍLIA
(Ilumina-se a sala da fa zenda. Jonas está só em cena. Vai a um móvel, (Novo grito.)
apanha um revólver numa gaveta, examina o tambor e guarda a arma
no bolso. A mulher grávida grita.) D. SENHORINHA (para si mesma, com orgulho, acariciando
o próprio ventre)- O médico disse que as
JONAS (para si mesmo) - Eu sabia que, mais minhas medidas eram formidáveis .. . Que
cedo ou mais tarde... (com sofrim ento) eu tinha bacia ótima ...
MULHER GRÁVIDA - ..."Seu" Jonas ... Chamem "seu" Jonas ...
Mas ele pensa o que de mim?
JONAS (com espanto e medo) - Deve haver um
jeito. Aqui a coisa mais fácil do mundo é
(D. Senhorinha aparece, com certo medo e um ar de cansaço físico.
ter filhos ... Há gente que, em pé, traba-
Passa as costas das mãos na testa para enxugar o suor. Ouve as pala- lhando- TEM! Quase ninguém morre
vras de Jonas e enche-se de espanto; aproxima-se.) de parto!
D. SENHORINHA -Caso de cesariana!
D. SENHORINHA (procurando esconder o próprio sobressal- JONAS (com irritação) -Mania de cesariana!
to)- Que foi?
JONAS (saturado) -Aquele sujeito ... Mas ele vai (Jonas, mudando de tom, encarando a mulher.)
ver!
D. SENHORINHA -Estou com mau pressentimento! ... JONAS -Quer saber de uma coisa? Eu acho que
você está desejando a morte da pequena.
(Ouve-se um novo grito da mulher grávida. D. Senhorinha fica fora de D. SENHORINHA -Quem sabe?
si. Vira-se na direção do quarto; e, outra vez, para o marido.) JONAS (calcando bem as palavras, numa vontade
patética) - Mas eu não quero que ela
n. SENHORINHA -Ela está morrendo, Jonas! morra-NÃO QUERO!
JONAS (com um pouco de medo também) -Você
(Jonas muda de tom: doce e triste.)
também exagera!
D. SENHORINHA (cedendo mais ao desespero)- Desta vez
JONAS -Verdadeira menina- ossuda aqui, (in-
é. (mudando de tom) Ela não podia ser
dica o quadril) sem desejo absolutamente
mãe - de modo algum. Não tem bacia nenhum; apenas curiosa...
-quase não tem bacia.
JONAS (olhando na direção do quarto) - Como é (Edmundo deixa o quarto da mulher, que recomeça a gemer e a cha-
que com você nunca houve nada? mar Jonas.)
D. SENHORINHA (com espécie de vaidade)- Graças a Deus
sempre fui feliz nos meus partos ... MULHER (já com dispnéia) - "Seu" Jonas .. . "seu"
JONAS (agitado) -Pois é! Jonas!
D. SENHORINHA (transportando-se ao passado)- ... muitas
rasgam, levam pontos. Eu, nunca! (Jonas, numa decisão súbita, encaminha-se para o quarto.)

62 NELSON RODRIGUES 63 ÁLB UM DE FAMÍLIA


JONAS (simulando bom humor)- Que é que há, (D. Senhorinha exprime o maior desespero.)
Totinha?
TOTINHA (com dispnéia13) - Eu acho que desta vez, D. SENHORINHA -Eu preciso fazer uma coisa- será que
"seu" Jonas- VOU. .. posso?
JONAS (tentando sempre o bom humor)- Que o
quê, Totinha! Vai, não! (Os dois olham-se, mudos, espantados, com uma espécie de medo.
TOTINHA (num rancor de agonizante) - Eu não
Têm um sobressalto, porque tia Rute acaba de deixar o quarto, baten-
tinha precisão de estar aqui ... (pára, su-
do a porta com violência. Tia Rute passa por eles, com uma expressão
focada) ... sofrendo ...
fechada, de rancor.)
JONAS -Não diga isso!
TOTINHA - ... mas o culpado é o senhor!
TIA RUTE (passando por eles)- Trancou-se.
JONAS -Assim, você piora!
TOTINHA (num esforço supremo para articular uma
(Tia Rute passa e desaparece.)
frase completa) - "Seu" Jonas, escreva
DEUS HA-DE LHE CASTIGAR!
D. SENHORINHA -Será possível, meu Deus?
(Jonas , com o pé ou coisa que o valha, fecha violentamente a porta. EDMUNDO -E a senhora agüenta!
D. Senhorinha e Edmundo estavam virados para o quarto, atentos ao D. SENHORINHA (apertando o rosto do filho entre suas duas
diálogo.) mãos)- Tenho medo, Edmundo- que
você seja também assim.
D. SENHORINHA (numa súbita crise de desespero)- Eu não EDMUNDO -Assim, como?
agüento mais, Edmundo! não posso! D. SENHORINHA (hesitante, procurando palavras) -Quer
EDMUNDO (apaixonadamente, indicando o quarto) dizer, viva mudando, a toda hora, a todo
- Quando eu estava lá, me lembrei que instante, de mulher!
você também já passou por aquilo. (baixa EDMUNDO (numa queixa de namorado) -Faz esse
a voz) Tive a impressão de que não era juízo de mim?
Totinha, mas você quem estava lá com as D. SENHORINHA (vaga) -Tenho visto tanta coisa!
dores! EDMUNDO (veemente)- Eu sou o homem de uma só
D . SENHORINHA (depois de um silêncio)- Um dia, não sei! mulher! Até hoje, só gostei de uma mulher!
Ah, se eu não fosse religiosa! Se eu não
acreditasse em Deus. (parando diante (D. Senhorinha apóia-se, com verdadeira ânsia, nas palavras do filho.)
do filho) Há coisas que eu penso, que eu
tenho vontade, mas não sei se teria co- D. SENHORINHA -Jura?
ragem! EDMUNDO -Claro!
D. SENHORINHA (mergulhando o rosto entre as mãos)- Ah,
13. Dispnéia: respiração difícil, rápida e curta. se eu pudesse acreditar!

64 NELSON RODRIGUES 65 ÁlBUM DE FAMÍLIA


EDMUNDO -Jurei, não jurei? -eu tive o pressentimento de que ia ser
D. SENHORINHA -E essa mulher- quem é? minha inimiga. (com angústia) Acertei!
EDMUNDO (veemente) -Quer que eu diga? EDMUNDO -Glória não tem importância!
D. SENHORINHA (depois de uma hesitação) -Quero. D. SENHORINHA (incompreendido) - Isso é o que você
EDMUNDO (respondendo com outra pergunta) - E pensa!
adianta? EDMUNDO -Ele, sim. (aponta para o quarto)
D. SENHORINHA -Então, não diga! D. SENHORINHA - Üs dois!
EDMUNDO (veemente)- Mas sabe, não sabe? EDMUNDO - Mamãe, acabava havendo uma des-
D. SENHORINHA (como para si mesma, mas numa doçura graça aqui. Não posso nem olhar esse
incrível)- Imagino! (muda de tom) des- homem. Às vezes, eu penso que havia
confio, sempre desconfiei, mas talvez me uma solução!
engane!. .. D. SENHORINHA (em pânico) -Você está querendo o quê,
Edmundo?
(D. Senhorinha, num impulso inesperado, pega outra vez o rosto do
EDMUNDO (como se fala sse para si mesmo) - Não
filho, olha-o apaixonadamente. Com uma cólera brusca.)
é de hoje - desde menino! Uma vez,
eu me lembro - foi depois do almoço.
D. SENHORINHA -Não interessa!
Tinha visitas. Ele falou com você qual-
EDMUNDO -Duvido!
quer coisa baixo...
D. SENHORINHA (dolorosa e obcecada, apertando entre as
duas mãos o próprio rosto) - Você deve D. SENHORINHA (sem compreender)- Quando?
ser como ele!
(Edmundo como que vivendo da memória.)
(Olha na direção do quarto da mulher grávida.)
EDMUNDO (sem ligar à interrupção)- .. .falou qual-
EDMUNDO (lento) -E você? quer coisa. Depois se levantou - foi na
D. SENHORINHA (no medo instintivo da pergunta que pode frente, você acompanhou. (com sofrimento)
vir)- Eu o quê? Apesar de eu ser garoto, compreendi. Se
EDMUNDO -Gosta de alguém? soubesse a raiva que eu tive, a vontade! ...
D. SENHORINHA (fechando-se)- Sou casada! D. SENHORINHA (cobrindo o rosto com uma das mãos)
EDMUNDO -Isso é resposta? -Que coisa, meu Deus!
D. SENHORINHA -Não sei, não sei! (mudando de tom, pas- EDMUNDO -Me lembro que ainda não tinham ser-
sando a outro estado psicológico) Isso aqui vido a sobremesa. (com veemência) Foi na
agora vai ficar pior - Glória vem aí ... frente de todo mundo, porque o desejo
(num lamento) Ela nunca me tolerou, dele não espera!
Edmundo, nunca! (num terceiro tom)
Quando nasceu e disseram - MENINA (Começa a tempestade lá fora.)

66 NELSON RODRIGUES 67 ÁLBUM DE FAMÍliA


(d oce e enigmática) - Um dia, eu vou-lh; (tomando entre as suas as mãos do filho)
D. SENHORINHA
contar uma coisa... Então, nesse dia!. .. E Pelas costas- está ouvindo?
um segredo da minha vida. (lenta, inten-
cional) UMA COISA ÍNTIMA! (Ela mesma, a contragosto, se apaixona pela idéia; desenvolve uma
-Então, conte, já, agora! espécie de projeto do crime.)
EDMUNDO
D. SENHORINHA (em nova atitude, fazendo abstração do
D. SENHORINHA - Pelas costas e tem que ser um meio
filho) - O que eu tenho passado, aqui,
muito seguro- que ele não possa reagir.
nesta casa, com este homem!
Por exemplo: QUANDO ELE ESTIVER
EDMUNDO (olh a para o quarto) - Então, não estou
DORMINDO...
vendo?
D. SENHORINHA (para si mesma)- Outro dia, só porque
(Pára, cansada. Continua, cheia de fascinação pelo crime.)
eu disse-RESERVADO- uma coisa tão
natural, não é?- ele me obrigou a dizer
D. SENHORINHA -Dormindo, seria fácil. Ele não poderia
a outra palavra, que eu acho tão feia! Na
se defender! Não teria nem tempo de
frente de uma porção de gente! gritar!
EDMUNDO -Mãe, você tem que sair daqui!
D. SENHORINHA - Ah, se fosse possível! (Próximo, ouve-se o grito desumano de Nonô.)
EDMUNDO -Precisa deixar esse homem! (tomando
entre as suas as mãos maternas) A gente D. SENHORINHA (mudando de tom) - Nonô, outra vez!
podia ir para um lugar onde não tivesse (dolorosa, como a mais desgraçada da s
nenhum conhecido. Tem lugar assim! mulheres) Viu, Edmundo-não posso-,
D. SENHORINHA -Ele iria atrás! Não por amor, mas por não posso fugir com você!
maldade. EDMUNDO (s uplicante) -Pode, sim! Vamos!
EDMUNDO (l ento, num tom es pecial) - Só se a gente, D. SENHORINHA -Nunca terei coragem de deixar Nonô!
se eu ... Impossível! (mudando de tom , como que
enamorada) Não imagina como ele fica,
(Os dois se olha m; D. Senhorinha parece compree nder.) sempre que me vê, de longe! É uma coisa!
EDMUNDO -Você vê muito Nonô? Olha para ele?
D. SENHORINHA (dominada pelo m edo)- Não, Edmundo! D. SENHORINHA (fechando os olhos, sem perceber a angústia
Assim não quero! do filho)- Às vezes, quando saio. Ou, en-
EDMUNDO -Talvez fosse ESSE o único meio! tão, da janela!
D. SENHORINHA (dominada pelos nervos) - Você tem que EDMUNDO (co m rancor) - Eu não queria que você
me jurar que nunca, nunca, tentará ... visse, que olhasse para ele!
ISSO! (mudando de to m, como se, apesar D. SENHORINHA (se m compreender) - É meu filho!
de tudo, a idéia a fascinasse) Ou, se fizer, EDMUNDO (co m sofrimento) - Ele anda sem nada...
pela frente, não! ele pode-se defender! (faz um gesto signific ando des pojamento de

68 NE LS ON RO DRIGUE S
69 ÁlBUM DE FAMÍliA
roupa) E ele tem um corpo que impres- DETALHE IMPORTANTE: Jonas vem apertando o cinto e só termina
siona até um homem- quanto mais uma esta operação quando chega junto da esposa.)
mulher!
D. SENHORINHA ( abstrata) - Eu gosto que seja assim MULHER GRÁVIDA (na voz grossa de semp re) - Miserável.. .
-BONITO! queimado do sol! (com certa Tu me paga...
ferocidade) Perdeu o juízo-mas a beleza
do físico ninguém lhe tira. Nasceu com (Jonas vem com uma expressão de maldade. Pára, querendo ouvir a
ele! maldição da mulher.)
EDMUNDO - Você gosta mais de Nonô do que de
mim! MULHER GRÁVIDA (co m dispnéia) - Tu é ruim ...
D. SENHORINHA (sem ouvi-lo) - Não posso abandonar D. SENHORINHA -Viu?
Nonô! Não está em mim! MULHER GRÁVIDA -Vou-te rogar tanta praga!
EDMUNDO (mudando de tom, apaixonadamente) - D. SENHORINHA (para Jonas) -Que foi?
Mãe, às vezes eu sinto como se o mundo JONAS -Variando!
estivesse vazio, e ninguém mais existisse, MULHER GRÁVIDA -Tu e tua família!. ..
a não ser nós, quer dizer, você, papai, eu JONAS (com rancor) - Disse que eu tinha uma
e meus irmãos. Como se a nossa família filha; que minha filha havia de pegar
fosse a única e primeira. (numa es pécie de barriga... (mudando de atitude, selvagem)
histeria) Então, o amor e o ódio teriam de Então, eu dei na boca, assim ... (indica as
nascer entre nós. (cai ndo em si) Mas não, costas da mão)
não! (mudando de tom)- Eu acho que o
homem não devia sair nunca do útero (Passa tia Rute, hirta, a caminho do quarto. Entra.)
materno. Devia ficar lá, toda a vida, en-
colhidinho, de cabeça para baixo, ou para
JONAS (saturado) -Que morra!
cima, de nádega, não sei.
TIA RUTE (aparecendo, excitada) -Está toda torta,
torcida, com ataque!
D. SENHORINHA (lacónica) - Eclampsia14 !
(Ajoelha-se aos pés de D. Senhorinha.)
JONAS (si ntético) - Liquidada!
D. SENHORINHA -Vou ver!
D. SENHORINHA (com medo)-Não, Edmundo, não!
EDMUNDO - O céu, não depois da morte; o céu, (D. Senhorinha quer ir, mas Edmundo se insurge.)
antes do nascimento- foi teu útero.. .

(Sem pre de joelhos, Edmundo encosta o rosto- de perfil para a pla- 14. Eclampsia: nome dado a uma convulsão que contorce
téia- na altura do útero materno.) e paralisa todo o corpo da pessoa afetada, inclusive o
(Ed mundo levanta-se. A porta do quarto abre-se e vem saindo Jonas, rosto, que fica repuxado como num sorriso forçado. É
característica de estados de grande fraqueza física e é
ao mesmo tempo que se ouve a voz da mulher grávida, em maldições.
muito grave.

70 NElSON RODRIGUE S 71 ÁlBUM DE FAMfliA


EDMUNDO -Não vá! Não quero! JONAS (apontando para D. Senhorinha) - Te
JONAS -Não vai, por quê? chamou de santa!
EDMUNDO (histérico, sem ouvir Jonas, dirigindo-se a
D. Senhorinha)- Por que é que ELE não (Jonas corta o riso; selvagem, dirigindo-se a D. Senhorinha.)
vai?
JONAS -Você é uma santa? Diga; eu quero que
(Edmundo enfrenta o pai.) diga: é?
EDMUNDO (suplicante)- Responda, mãe! Diga: Sou!
EDMUNDO -Você, sim, senhor! Foi você o causador D. SENHORINHA (baixando a cabeça, com uma espécie de
(em tom especial, cara a cara com o pai, frio) -Sou!
exprimindo um duplo sentimento de ódio
e dor) E, ainda por cima, a menina nas (Jonas agarra D. Senhorinha.)
últimas. (baixa a voz, com espanto) Você
foi capaz! D. SENHORINHA (dominada pelo marido) -Não!
JONAS (sombrio)- Vá, Senhorinha, vá! JONAS (exultante) -Agora conte o que houve ...
EDMUNDO (quase histérico) - Se ela for, é porque (mudando bruscamente de tom, quase
doce) Seu filho precisa saber!
não tem mesmo vergonha!
EDMUNDO (desorientado) - Não se deixe dominar
por esse homem, REAJA!
(D. Senhorinha está diante do marido, acovardada.)
JONAS (doce como um demônio) - Conte que,
naquele dia - NAQUELA NOITE ...
D. SENHORINHA (baixando a voz)- Vou, sim, Jonas!
(sempre doce) conte!
EDMUNDO (para a mãe)- Se for, eu não falo mais
com você, nunca mais!
(D. Senhorinha não responde nada.)

(D. Senhorinha pára.) JONAS (falando pela mulher) - Eu tinha ido a


Três Corações - cheguei de surpresa.. .
EDMUNDO (surdamente) - Um homem que vive Vi um vulto saindo do nosso quarto.. .
depravando meninas... Ao passo que Ainda corri, atirei, mas ele fugiu. Entrei
mamãe é uma SANTA! no quarto, você confessou. Só não queria
dizer quem era. Dei em você, bati ...
(Jonas inicia um riso bestial.) D. SENHORINHA -Bateu!
JONAS - Só no dia seguinte me disse quem era.
JONAS -SANTA! (para o filho, mudando de tom) Imagine
quem?
(Cara a cara com D. Senhorinha; riso em crescendo.) EDMUNDO (com medo) -Não sei...
JONAS - Teotônio!

72 NELSON RODRIGUES 73 ÁLBUM DE FAMfLIA


li
EDMUNDO (com absoluto espanto) -O jornalista? (Edmundo está impassível.)
JONAS - 0 jornalista! O redator-chefe do Arauto
de Golgonhas!. .. O sujeito que tinha uma D. SENHORINHA (triunfante) - Era essa a confidência-a
corcunda que diziam que era artificial... COISA ÍNTIMA que eu ia lhe contar,
(Jonas dominado pela dor) Se fosse outro, meu filho, fui sempre FRIA!
mas logo esse! Esse eu não queria! JONAS (sardônico) - Posso ou não trazer mu-
D. SENHORINHA -Você nunca me teve amor! lheres para aqui?
JONAS (exaltado)- Tive, sim. Até aquela noite; EDMUNDO -Mãe, diga que tudo é mentira!
depois, não. Amor ou coisa parecida! D. SENHORINHA -Não posso desmentir. É tudo verdade!
D. SENHORINHA - Edmundo, ele me obrigou a chamar EDMUNDO -Negue, pelo amor de Deus!
Teotônio no dia seguinte (com profundo D. SENHORINHA (erguendo a cabeça, muito digna) - Tive
espanto) e o matou dentro do meu quar- um amante!
to! Como se fosse um cachorro!
JONAS -Matei. (Edmundo tem um gesto inesperado: curva-se rápido e beija a mão
paterna.)
D. SENHORINHA -Depois, começou o meu inferno. (para
Edmundo) Todo dia, na frente de outras
pessoas, seu pai batia nas minhas cadei- JONAS -Amor de fato, eu tenho um. Mas nesse
ninguém toca ...
ras- dizia- FÊMEA!
EDMUNDO -Eu fazia o mesmo!
(Os dois olham, com espanto, para todos os gestos de Jonas.)
JONAS - Mas nem isso - nem FÊMEA você
era... ou foi ...comigo. Nem você, nem ne-
JONAS (antes de sair) - Vou sair - para matar
nhuma mulher que eu conheci. (para si
um homem.
mesmo, numa insatisfação louca) Todas
me deixam mais nervoso do que antes
(Abandona a sala, com absoluta dignidade. NOTA IMPORTANTE: ou-
-doente, doente, querendo mais não sei vem-se dois tiros ao longe. Aparece tia Rute com alguma excitação.)
o quê. (numa afirmação histérica) Nem
FÊMEAS as mulheres são! TIA RUTE -Uma vela-ela está morrendo!

(Jonas dirige-se a Edmundo.) (Os dois parecem não ter escutado, absorvidos pelos próprios senti-
mentos.)
JONAS -O que mais me admira é que ela sem-
pre foi FRIA! Nunca teve uma reação, TIA RUTE (se m entender o alheamento dos dois)
nada. Parecia morta! -Uma vela- para ela segurar!
D. SENHORINHA (numa espécie de histeria, para o filho)
-Está ouvindo- o que ele disse? Que (Edmundo e D. Senhorinha não respondem. Tia Rute recua, olhando
eu era FRIA! para a irmã e o sobrinho, com uma expressão de espanto.)

74 NElSON RODR IGUES 75 ÁLBUM OE FAMfliA


D. SENHORINHA (sardônica, rosto a rosto c om o filho) (D. Senhorinha parece não ouvir nada; continua o seu caminho.
-Para que aquele fingimento? Ficam sós, tia Rute e Edmundo.)
EDMUNDO (d espertando) - Qual?
D. SENHORINHA (cru el)- De tomar a bênção do seu pai? TIA RUTE (s em um gesto)- Vou sair daqui, não sei
EDMUNDO (por sua vez, sardônico) - Você acha? para onde. Vou andar, andar, até cair.
D. SENHORINHA (frívola)- E não foi? Mas antes quero dizer a você uma coisa .. .
EDMUNDO (c om violência) -Não!
D. SENHORINHA (no mesmo tom de afirmação)- Foi, sim!
(Ti a Rute aproxima-se ainda mais de Edmundo.)
(rosto a rosto c om o filho) Entre você e ele
(lenta, calcando as palavras) não há nada
- não pode haver nada! (violenta) Só TIA RUTE - Ouvi tudo. Agora uma coisa que você
não sabe: desde aquela noite- portanto
ÓDIO!
EDMUNDO -Não passa de uma fêmea! há sete anos - Jonas nunca mais tocou
D. sENHORINHA -Então, por que você deixou tudo- es- nela.
posa- e veio para cá? EDMUNDO -Que importa?
EDMUNDO -Vou voltar para Heloísa! TIA RUTE - Ela espera você - está certa que você
D. SENHORINHA (desafiando) -Quero ver! vai. PODE IR.
EDMUNDO (lacônico) - Fêmea.
D. SENHORINHA (mudando de tom)- Quer dizer que você (Edmundo, c omo se não tivesse vontade própria, obedece. Tia Rute
não deu valor àquilo que ele disse? fi ca olhando, com uma expressão de triunfo. A porta do quarto se fecha
lentamente. Então, a luz se apaga sobre o final do primeiro quadro do
(Pausa, enquanto os dois se olham, c omo estranhos.) 3° ato.)
(Sexta página do álbum. Jona s numa pose, taciturno, c omo se estivesse
D. SENHORINHA (baixando a voz) - Que eu sempre tinha morto por dentro. O fotógrafo faz o diabo para co nseguir uma atitude
sido fria? condigna. Mas Jonas parece pétreo. O fotógrafo está justamente indig-
EDMUNDO (na sua obsessão) - FÊMEA!
nado na sua consciência artísti co-profissional. Finalmente, baterá a
chapa de qualquer maneira.)
(Tia Rute aparece; aproxima-se.)

TIA RUTE (fúnebre e lacônica) - Morreu. (pausa) SPEAKER -Sexta página do álbum. Último retrato
Nem coroou. de Jonas, datado de julho de 1924. Na
véspera, ele havia passado um telegrama
(D. Senhorinha, então muito digna e formo sa, vai a um móvel, apanha ao então presidente Artur Bernardes, ta-
uma vela e encaminha-se para o quarto da que morreu.) chando de reprovável e impatriótica are-
volução de São Paulo. Nada lhe entibiava
TIA RUTE (sem mover um dedo) - Agora vela não o civismo congênito. Dois dias depois, a
adianta. sorte madrasta arrebatava três filhos des-

76 NElSO N RODRIGUES 77 ÁLBUM DE FAMÍLIA


te Varão de Plutarco. Não resistindo ao HELOÍSA (depois de uma vacilação) -Por mim, ele
doloroso golpe, Jonas enforcou-se numa podia ter morrido quantas vezes quisesse!
bandeira de porta. Outros pretendem
que foi a própria mulher quem o matou. (Heloísa parece espantar-se com as próprias palavras.)
A maledicência lavrou infrene. É um
pessoal que não tem mesmo o que fazer. HELOÍSA (cobrindo o rosto com uma das mãos)
Justamente se cogitava da eleição de - Não sei mais o que digo, meu Deus do
céu!
Jonas para o Senado Federal na seguinte
D. SENHORINHA (com a maior economia possível de gestos;
Legislatura. Orai pelo eterno repouso de
voz ligeiramente rouca) - Edmundo
sua alma! morreu!
HELOÍSA (virando-se, rápida e agressiva) - E eu
(Apaga-se o espaço destinado ao álbum de família. Ilumina-se a igre- tenho alguma coisa com isso- tenho?
jinha da fazenda. O quadro de Jesus que, aos olhos de Glória, era tão D. SENHORINHA (como se falasse para si mesma)- Matou-
grande, ficou reduzido às suas verdadeiras proporções. Dois esquifes se, na minha frente.
em cena: um deles com o corpo de Edmundo; o outro com o cadáver HELOÍSA - Era um estranho, um desconhecido
de Glória. Círios acesos. D. Senhorinha está só, velando o filho. Muito para mim - sempre foi. Só vim, porque
linda na sua tristeza severa, no seu luto fechado. Depois de alguns minha família quis, pediu .. .
momentos, entra Heloísa, a esposa de Edmundo. Veste luto fechado,
também. D. Senhorinha, encerrada na sua dor, parece não sentir que (Continua, num tom de confidência.)
há mais alguém na igrejinha.)
HELOÍSA - Papai disse que ficava feio - que po-

HELOÍSA (depois de se ajoelhar diante do esquife de diam reparar.


Edmundo e de uma breve oração; fala com D. SENHORINHA (animando-se, patética) -Aqui ninguém
uma espécie de medo.) - Agora mesmo, repara nada. Isso aqui é o fim do mundo!
HELOÍSA (aproximando-se de D. Senhorinha, num
teve na estação um desastre horrível: um
tom de mistério e de provocação) - E quer
homem caiu entre dois vagões ...
saber de uma coisa que Edmundo tinha-
me dito?
(D. Senhorinha permanece imóvel e calada, como se estivesse a mil D. SENHORINHA (fechando-se) - Não quero saber de
léguas dali.) nada!
HELOÍSA (depois de vencer uma espécie de repugnân- HELOÍSA (numa espécie de triunfo) -Ah, está com
cia, beija rapidamente o rosto de Edmundo; medo?
parece arrependida do que fez) - Por que D. SENHORINHA (como se aceitasse um desafio) -Medo de
me mandou chamar? quê? Medo nenhum!

(D. Senhorinha continua impassível, não responde.) (Heloísa e D. Senhorinha, face a face.)

78 NELSON RODRIGUES 79 ÁLBUM DE FAMfliA


HELOÍSA -Ele me contou- TUDO! HELOÍSA - TUDO o que uma mulher pode fazer,
D. SENHORINHA (rápida e des perta) -Duvido! as coisas mais incríveis!
HELOÍSA (irânica) - Mas eu nem disse o que era! o. SENHORINHA (devorada pela curiosidade) - Fez .. . en-
D. SENHORINHA - Ah, pensei!. .. tão?
HELOÍSA (resoluta) - Pois me contou que tinha-se HELOÍSA (veemente) - Perdi inteiramente a ver-
casado comigo... (interrompe-se) gonha, não sei. Também, eu estava! A
o. SENHORINHA (com secreto medo) -Que mais? princípio, ele ficou assim ... Mas depois
HELOÍSA - .. . tinha-se casado comigo para fugir de a lembrança da "outra".. . Me senti tão
uma mulher, uma fulana aí. humilhada- mas tão! Engraçado é que
o. SENHORINHA (meio insegura) -Continue inventando. ele achava o meu corpo bonito!
HELOÍSA - Precisava esquecer essa fulana. Achou o. SENHORINHA (numa febre, sem se poder conter) - O da
que talvez comigo... "outra" podia ser mais!
o. SENHORINHA (fingindo a maior serenidade possível) HELOÍSA - Eu perguntei se era. Mas ele me res-
-Disse quem era? pondeu que não se tratava disso, não era
HELOÍSA (sardônica)- É isso que interessa a você questão de corpo.
-o nome? o. SENHORINHA -Corpo influi muito, mas muito!
o. SENHORINHA (com irritação) -Mas disse ou não disse? HELOÍSA -Me disse que tinha nascido para amar
HELOÍSA (torturando) -Propriamente não disse, essa mulher, só ela. Que não podia, nem
mas ... queria desejar outra.
o. SENHORINHA (com violência) - Não sabe de nada! o. SENHORINHA (agradecida)- Disse isso, foi?
(acrescenta, com desprezo) Nem desconfia!
HELOÍSA (abstraindo-se) - Três anos vivemos (D. Senhorinha tem um impulso inesperado: vai ao esquife do filho ,
juntos. (a paixonadamente) Três anos e beija o rosto de Edmundo.)
ele nunca- está ouvindo?- tocou em
mim ... o. SENHORINHA (voltando com uma espécie de fri o) - Os
o. SENHORINHA (fa scinada) - Quer dizer que nunca? cílios dele estão grandes!
HELOÍSA (baixando a cabeça, surdamente)
NUNCA! (Depois de uma pausa.)
o. SENHORINHA (aproximando-se da outra, olhando-a bem
nos olhos) - Nem na primeira noite? o. SENHORINHA -Ele tinha uma boca tão bonita, um há-
HELOÍSA (des prendendo-se como uma sonâmbula) lito de moça, bom mesmo, nunca fumou!
- Quando queria, e me procurava, a HELOÍSA (e vocativa) - Uma vez, Edmundo me
lembrança da "outra" IMPEDIA! Então, disse: "Só poderei me realizar sexual-
ele me dizia: "Heloísa, 'Ela' não deixa! " mente com essa mulher."Até achei inte-
Me lembro que uma vez, eu fiz tudo... ressante a maneira de dizer: ".. .realizar
o. SENHORINHA ( perturbada) - Tudo como? sexualmente."

80 NELSON RODRI GUE S 81 ÁLB U M DE FA M fLIA


o. SENHORINHA (nostálgica)- Ele tinha uns termos assim! (D. Senhorinha parece assustada diante da ferocidade de Heloísa.)
HELOÍSA (exaltando-se progressivamente) - Uma
noite, não pôde mais: me contou o segre- D. SENHORINHA (taciturna)- Nunca vi tanto despeito!
do, o nome da mulher, tudo! HELOÍSA (olhando bem a fisionomia de Edmundo)
o. SENHORINHA (exaltando-se também) -Mentira- isso - Não senti nada a morte de Edmundo.
ele não podia contar! (vacilante na esco- Senti muito mais a morte desse homem,
lha dos termos) Era SEGREDO. desse desconhecido que caiu debaixo do
HELOÍSA (rápida e cruel) - SEGREDO DE FA- trem!
MÍLIA! D. SENHORINHA (severa)- Não faz mal!
o. SENHORINHA (recuando com medo)- Não! Não! HELOÍSA (meio histérica) - Agora me explique
HELOÍSA (exultante) - Eu não existia para ele. por que você passa o tempo todo aí, com
Edmundo só podia amar e odiar pessoas seu filho, e larga sua filha, abandonada
da própria família. Não sabia amar nem assim?
odiar mais ninguém!
o. SENHORINHA (selvagem, deixando cair um pouco da más- (D. Senhorinha olha na direção do esquife de Glória com uma expres-
cara)- Isso eu também sabia. são cruel.)
HELOÍSA -E então?
D. SENHORINHA -Mas isso não quer dizer nada! HELOÍSA - Diga por quê? (violentíssima) - Só
HELOÍSA (categórica)- Quer dizer tudo! porque ele é homem?
D. SENHORINHA -Paciência! D. SENHORINHA (fechada) - Não digo nada!
HELOÍSA - A senhora não acha que essa mulher HELOÍSA - Seja ao menos hipócrita! Diga que
que Edmundo amava é muito baixa, mui- gostava de sua filha! Gostava?
to ordinária- ordinaríssima? o. SENHORINHA (positiva)- Não! (com súbita veemência)
D. SENHORINHA (irânica) -Quem sabe? Não gostei nunca! Nem ela de mim!
HELOÍSA (mu dando de tom)- Edmundo também HELOÍSA -Cínica!
me contou que a irmã ... o. SENHORINHA (baixando a cabeça) - Pois sou!
HELOÍSA -Ao menos, podia mentir.
(Indica o caixão de Glória.) o. SENHORINHA (como se fala sse para a filha morta) -Não
gostei, nem quando ela nasceu. Uma vez,
HELOÍSA - .. . aquela ali, achava o pai igualzinho há muitos anos, quase afogo Glória na la-
-mas igualzinho a Nosso Senhor! goinha. Mas na hora veio gente- faltou
pouco!
(Vai, em seguida, ao esquife de Edmundo.)
(D. Senhorinha parece agora dominar a nora.)
HELOÍSA - Calculo que meu marido achasse
você (alongando as palavras) MUITO o. SENHORINHA - Estou cansada, farta, de não falar, de
PARECIDA COM NOSSA SENHORA! esconder há tanto tempo as coisas que

82 NElSON RODRIGUE S 83 ÁlBUM OE FAMÍli A


eu sinto, que eu penso. Podem dizer o absoluta, o estado psicológico dos jovens esposos. Para ele, Edmundo e
que quiserem. Mas eu dei graças a Deus Heloísa vivem na mais obtusa felicidade matrimonial.)
quando minha filha morreu! ...
HELOÍSA - E toda a família é assim. Esse Nonô, SPEAKER - Sétima página do álbum. Lua-de-mel

esse doido, anda no mato, nu - como de Heloísa e Edmundo. Os divorcistas


um bicho. Apanha terra, passa na cara, que se mirem neste espelho: as fisiono-
no nariz, na boca!. .. mias dos nubentes espelham uma felici-
o. SENHORINHA (dolorosa)- Tem um corpo lindo! dade sem jaça. Só o matrimônio perfeito
HELOÍSA (desesperada, encaminhando-se para a por- proporciona tão sadia e edificante felici-
ta, de frente para D. Senhorinha)- Vou-me dade. Quando Edmundo faleceu minado
por insidiosa enfermidade, Heloísa qua-
embora- não agüento mais.
se enlouqueceu de dor. Só contraiu novas
núpcias três anos depois, aliás com um
(Chega na porta e de lá fala com o máximo histerismo possível.)
pastor protestante, batista, que fazia sua
oraçãozinha nas refeições.
HELOÍSA - Fique com seu filho - faça bom pro-
veito. (Apaga-se a página do álbum. D. Senhorinha diante do caixão de
Glória. Não sabe o que fazer. Entra Jonas: expressão de quem perdeu
(D. Senhorinha recupera a sua serenidade clássica. Pouco depois, en- tudo na vida.)
tram quatro homens. Cai a luz; os homens trazem tochas. Vão levar o
esquife de Edmundo. São pretos, de grandes pés, e nus da cintura para JONAS -Por que está aqui? Fazendo o quê?
cima. Calças arregaçadas até o meio das pernas. Funde-se a calma de o. SENHORINHA - Não sei, não sei. (mudando de tom,
D. Senhorinha. Ela parece dominada pelo medo e pela impaciência. depois de hesitação; mais resoluta) Estava
Comanda os pretos.) esperando você.
JONAS (como se falasse para o cadáver da filha)
o. SENHORINHA -Depressa, antes que ele venha! - Procurei Guilherme por toda parte.
Para matar. Mas não encontrei em lugar
(Antes de fecharem o caixão, D. Senhorinha beija a testa do filho. Os nenhum; disseram que tinha tomado o
homens vão levar Edmundo. Esta é uma cena de que se deve tirar o trem.
máximo rendimento plástico. Apaga-se a luz, quando o esquife sai.) D. SENHORINHA (com voz perfeitamente neutra) - Jonas,
(Última página do álbum de família: o velho estúdio do conceituado não suporto mais você.
fotógrafo; pose de Edmundo e Heloísa. É evidente que ambos não con- JONAS (sem ouvir a esposa) - Então, fui para
seguem simular um bem-estar normal. Heloísa, fria , dura, como se o a casa de Mariazinha Bexiga... Ela me
marido fosse realmente o último dos desconhecidos. Ele, fechado tam- arranjou a pior mulher de lá -uma que
bém, incapaz de um sorriso. Nesse ambiente conjugal é que o erradís- deve ter até moléstia de pele... (saturado,
simo fotógrafo tem que trabalhar. O speaker vai ignorar, de maneira aproximando-se da mulher, cara a cara

84 NELSON RODRIGUES Bs ÁLBUM DE FAMfLIA


com ela) Quis ver se esquecia, se parava parte ... "só você existe no mundo. Eu
de pensar, com a mulher mais ordinária queria tanto voltar a ser o que já fui: um
possível. (com ar de louco) Mas foi inútil! feto no teu útero".
Estou como Guilherme, depois do aci- JONAS -Porco!
dente! n. SENHORINHA (d efendendo) - Linda a comparação
D. SENHORINHA (serena) - Não vivo mais com você, - linda! Ele sempre teve queda para
Jonas! escritor.
JONAS - Nunca mais poderei desejar mulher
nenhuma! (Jona s aproxima-se, lento, de D. Senhorinha, que recua com um prin-
D. SENHORINHA (ásp era)- Você quer-me ouvir ou não? cípio de medo.)
JONAS (sem dar atenção a nada) - Desde que
Glória começou a crescer, deu-se uma JONAS - Pela primeira vez, estou notando em
coisa interessante: quando eu beijava
você uma coisa.
uma mulher, fechava os olhos, via o rosto
D. SENHORINHA -Em mim- O quê?
dela!
JONAS (transfigurado em sátira) -Senhorinha,
D. SENHORINHA (agressiva)- Jonas!
você se parece com Glória - lembra!
JONAS (despertando) -Que foi?
tem uns traços dela - o jeito da boca,
D. SENHORINHA (seca)- Vou deixar você.
uma maneira parecida de olhar...
JONAS (numa compreensão difícil) - Vai-me
deixar? (violento) Deixe, ora essa! Quem D. SENHORINHA (em pânico) -Não!
está lhe impedindo? A você, eu só devo JONAS (obcecado) -Tem, sim.
a filha!
D. SENHORINHA (rápida e terminante) - E eu a você- os (D. Senhorinha encostou-se no altar; não pode recuar mais.)
filhos- homens.
JONAS -Eu não devia ter feito questão de vestir
(D. Senhorinha parece concentrar-se.) Glória, depois que ela morreu. (num la-
mento) Por que é que eu fiz isso? (mudan-
n. SENHORINHA - Os filhos, homens - Edmundo, do de tom) Você se parece com Glória ...
Nonô... Menos Guilherme que aquela ali
roubou. (Jonas está no auge de sua tensão sexual. Aperta entre as duas mãos o
rosto de D. Senhorinha.)
(D. Senhorinha mete a mão no seio, tira um bilhete.)
JONAS -Você e as meninas que Rute arranjava
n. SENHORINHA - Edmundo me escrevia bilhetes, mas - só meninas, ainda sem desejo. Uma
tão bonitos! Esse aqui tem esse pedaço vez, morreu uma de 15 anos; o enterro
que diz assim- deixa eu ver, ah! -essa passou no meio do campo de futebol, o

86 NELSON RODRIGUE S 87 ÁLBUM DE FAMILIA


jogo parou ... Eu vi essa menina no caixão JONAS (gri tando por ela, querendo arrancá-la de
- era parecida com minha filha. Cada sua abstração) - Senhorinha, eu preciso
menina tem alguma coisa de Glória, mas de uma filha- PRECISO- ouviu?
é preciso que não seja larga de cadeiras ... o. SENHORINHA -Queres saber o nome do meu amante?
O verdadeiro nome?
(Jonas aperta D. Senhorinha nos braços.) JONAS (o bcecado) - Quero uma filha como
Glória!
JONAS - Quando ela começou a crescer, para
mim passou a existir só meninas no (Acaricia o corpo da mulher.)
mundo. Não mulher: meninas, mas tan-
tas! De 12, 13, 14, 15 anos! o. SENHORINHA ( abstrata) - Eu me senti tão feliz, quan-
do você matou Teotônio. Respirei: Nonô
(Quer beijar D. Senhorinha; esta resiste.) estava salvo! (doc e) Ele enlouqueceu de
felicidade, não agüentou tanta felicidade!
D. SENHORINHA -Não! JONAS (afirmativo) - Agora que Glória morreu,
JONAS - Você é parecida com Glória! que me importa o nome do teu amante?
o. SENHORINHA (desprendendo-se) - Eu devo ser sagrada
para você- depois que tive um amante! (Por um momento, diminui a tensão sexual de Jonas. Ele fala com a
JONAS -Não faz mal! voz velada e, nesse momento, vive em fun ção de uma lembrança.)
D. SENHORINHA - E não foi Teotônio!
JONAS (atormentado) - Foi, eu matei Teotônio! JONAS - Quando acabei de matar Teotônio
o. SENHORINHA - Matou à toa. Eu disse que era ele - olhei para você; e vi que você não era
porque não me lembrei de outro nome. mais nada para mim, coisa nenhuma.
E precisava- ouviu? salvar o verdadeiro Até a nossa cama parecia outra, não a
culpado! mesma - como se fosse uma cama es-
JONAS -Mentirosa! tranha, desconhecida - INIMIGA! Foi
o. SENHORINHA (caindo em abstração) - Contei a dali que comecei a te odiar, porque não
Edmundo quem tinha sido. Ele, quando te desejava mais ... (depois de uma pausa,
soube, me amaldiçoou ... (c rispando-se) apaixonadamente) - Mas eu devia ter
Me disse um nome pensando que me adivinhado, desde que Glória nasceu,
ofendia, mas eu gostei de ser chamada que você não era meu amor!
assim por ele! o. SENHORINHA (com a mesma paixão) - Pois eu
JONAS (co m D. Senhorinha nos braços) - Glória! ADIVINHEI o meu amor, quando nasce-
Glória! ram Guilherme, Edmundo, Nonô!
o. SENHORINHA (co m sofrimento) - Ele, então, se matou JONAS - Eu podia mandar buscar Glória no
na minha frente! colégio, mas ia adiando, tinha medo.

88 N ELSO N RODRIGUE S 89 ÁLBUM DE FAM f LIA


Quando se ama deve-se possuir e matar JONAS -Não adianta- é inútil!
a mulher. (com sofrimento) Guilherme ti- D. SENHORINHA -Mas que foi?
nha razão: a mulher não deve sair viva do JONAS (meio obscuro) -Minha filha morreu.
quarto; nem a mulher- nem o homem. (lento) PARA MIM ACABOU-SE O
D. SENHORINHA -Assassino! DESEJO NO MUNDO!
JONAS (sem ouvi-la, com uma espécie de medo
retrospectivo)- Eu não queria fazer isso (D. Senhorinha passa as costas da mão na boca com repugndncia.)
com Glória; tenho a certeza de que ela
pediria para morrer comigo. (numa espé- D. SENHORINHA (insultante) - Se você soubesse o nojo
cie de frio) Mas tive medo! que eu sempre tive de você, de todos os
homens!
D. SENHORINHA -Edmundo teve medo, e se casou; N onô
teve medo, e enlouqueceu ... (veemente,
(Mudando de tom, numa atitude de adoração.)
desafiante) Agora eu, não!
JONAS (num desespero sagrado)- Mas o pai tem
D. SENHORINHA (acariciando o próprio ventre)- Só tenho
direito. O pai até se quiser pode estran- amor para meus filhos!
gular, apertar assim o pescoço da filha! JONAS - Teve nojo de mim - e ódio! Sempre
D. SENHORINHA - Eu não quis esquecer; eu não quis desejou a minha morte, você e todos os
fugir; eu não tive medo, nem vergonha meus filhos, menos Glória! Por que não
de nada. (possessa) Não botei meus filhos me matou e por que não me mata agora?
no mundo para dar a outra mulher!
JONAS (mudando de tom)- Escuta; ouve o que (Aproxima-se de D. Senhorinha, que recua apavorada.)
eu vou te dizer: se a gente tiver uma fi-
lha, eu ponho o nome de Glória! JONAS -Quer? eu deixo! num instante! Olha, é
D. SENHORINHA -Outra mulher, não! Não quero! só você apertar o gatilho...
JONAS (dominando-a) - Se você não quiser, eu
mato você, aqui mesmo! Mato! (Tira o revólver com que deveria matar Guilherme. D. Senhorinha está
apavorada.)
D. SENHORINHA (dominada pelo terror) - Não, Jonas,
não!
JONAS -Glória!
D. SENHORINHA -Não, Jonas, não!
JONAS -Toma! segura!
D. SENHORINHA -Mas aqui, não!
JONAS - Aqui, sim! aqui mesmo! Ou lá fora!
(D. Senhorinha aceita o revólver, mas é como se a arma lhe desse
(acariciando bestialmente a esposa) Eu te náusea.)
chamando de Glória!
JONAS (gritando)- Agora, atira! (fora de si) ati-
(Aperta entre as mãos o rosto da mulher; tem, então, um gesto brusco, re! ande-está com medo? Pelo amor de
de repulsa.) Deus, atire!

90 NElSON RODRIGUES 91 ÁLBUM DE FAMfUA


(D. Senhorinha não se resolve, tomada de terror. Mas ouve-se, então, o ROTEIRO DE LEI TUR A
grito de Nonô, como um apelo.) FLÁVIO AGUIAR•

D. SENHORINHA - Nonô me chama - vou para sempre.

(D. Senhorinha puxa o gatilho duas vezes; Jonas é atingido. Cai mor-
talmente ferido.)

JONAS (num último arquejo) - Glória!

(D. Senhorinha parte para se encontrar com Nonô e se incorporar a


uma vida nova. Jonas morre.)

CORO -Suscipe, Domine, servum Tuum in locum


Sperandae sibi salvationis a misericordia
tua. Amen. Libera, domine, animan servi
tui ex omnibus periculis inferni, et de
laqueis poenarum, et ex omnibus tribula-
tionibus. Amen. Libera, domine, animan
servi tui, sicut liberasti henoch et eliam de
com muni morte mundi. Amen. 15

(O coro vai caindo, sem necessidade de completar a oração fúnebre.)

FIM DO TERCEIRO E ÚLTIMO ATO

15. Suscipe etc . .. Tradução livre: "Guardai, Senhor, Vos-


so servo onde espere sua salvação pela Vossa Misericór-
dia, Amém. Livrai, Senhor, a alma de Vosso servo de todos
os perigos do inferno e das suas penas e de todos os males.
Amém. Livrai, Senhor, a alma de Vosso servo, como li-
vraste Henoch e Elias da morte comum neste mundo".
* Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira da
Henoch e Elias são personagens bíblicos. O primeiro é o USP. Ganhou o Prêmio ]abuti em 1984, com sua tese de
pai de Matusalém e desapareceu, acreditando-se por isso doutorado A comédia brasileira no teatro de José
que tenha sido arrebatado pelo Senhor (Gênesis 5, 18-24) de Alencar, e em 2000, com o romance Anita. Atual-
em vez de ter morrido. Elias é o profeta que foi levado
mente coordena um programa de teatro para escolas
para os céus num carro de fogo e num turbilhão de vento da periferia de São Paulo, junto à Secretaria Municipal
antes da morte (Quarto Livro dos Reis, 2,1-14). de Cultura.

92 NELSON RODR IGUES

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