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Prefácio a "Os Gaviões da Fiel : ensaios e etnografias de uma torcida


organizada de futebol", organizado por Bernardo Borges Buarque de
Hollanda & Plínio Negreiros Labriola.

Chapter · January 2015

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1 author:

Cláudio Gonçalves Couto


Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getu…
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Available from: Cláudio Gonçalves Couto


Retrieved on: 13 October 2016
Bernardo Borges Buarque de Hollanda
Plínio Negreiros Labriola
(Org.)

Os Gaviões da Fiel
Ensaios e etnograias de uma torcida
organizada de futebol

coleção VISÃO DE CAMPO


© 2015 Bernardo Borges Buarque de Hollanda e Plínio Labriola Negreiros

Este livro segue as normas do Acordo Ortográico


da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação editorial
Isadora Travassos

Produção editorial
Eduardo Süssekind
Rodrigo Fontoura
Victoria Rabello

coleção VISÃO DE CAMPO

“O esporte visto pelas lentes das ciências humanas e sociais”

Coordenacão
cip-brasil. catalogação na publicação Bernardo Borges Buarque de Hollanda
sindicato nacional dos editores de livros, rj
Victor Andrade de Melo
g243

Os Gaviões da Fiel : ensaios e etnograias de uma torcida organizada de futebol / organi-


Conselho editorial
zação Bernardo Borges Buarque de Hollanda , Plínio Negreiros Labriola. - 1. ed. - Rio de Profa. Dra. Simoni Lahud Guedes
Janeiro : 7Letras, 2015.
Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes
(Visão de Campo) Profa. Dra. Mary Del Priore
isbn 978-85-421-0405-9 Prof. Dr. João Malaia
Prof. Dr. Ronaldo Helal
1. Sport Club Corinthians Paulista - História. 2. Futebol - Brasil - História. 3.
Clubes de futebol - São Paulo (SP). I. Hollanda, Bernardo Borges Buarque de. II. Labriola,
Plínio Negreiros. III. Série.

15-27033 cdd: 796.3340981161


cdu: 796.332(815.6)

2015
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá, 580 sl. 320 – Ipanema
Rio de Janeiro rj – cep 22410-902
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br
Sumário

Prefácio
Cláudio Gonçalves Couto 13

Introdução
O rabo do foguete – civilização & barbárie
em uma torcida organizada de futebol
Bernardo Buarque de Hollanda 21

parte i: ensaios
Capítulo 1. Os Gaviões da Fiel: torcida
organizada do Corinthians
Sérgio Miceli 49

Capítulo 2. A organização cordial: ensaio de cultura


organizacional do grêmio Gaviões da Fiel
André Lucirton Costa 57

Capítulo 3. A torcida corinthiana e a ocupação do Maracanã:


Rio de Janeiro, 5 de dezembro de 1976
Plínio Labriola Negreiros 78

Capítulo 4. A Democracia Corinthiana e os Gaviões da Fiel


José Paulo Florenzano 95

Capítulo 5. Torcer – uma alegria tensa, uma diversão séria:


representações no ilme Gaviões
Victor Andrade de Melo 113

Capítulo 6. O jornal O Gavião e os sentidos de torcer


Camilo Aguilera Toro 122

Capítulo 7. Gaviões da Fiel na rede: pertencimento, violência


e consumo no ciberespaço
Ary José Rocco Jr. 134
parte ii: relatos etnográficos
Capítulo 8. Os Gaviões da Fiel e a águia do capitalismo
Benedito Tadeu César 157

Capítulo 9. Uma torcida que samba:


o Grêmio Recreativo Gaviões da Fiel
Arthur Bueno 219

Capítulo 10. Relato de campo: uma visita à sede


dos Gaviões no bairro Bom Retiro
Museu do Futebol 255

Capítulo 11. Viajando com os Gaviões: narrativas de


uma caravana do Movimento Rua São Jorge
Vítor Canale 267

parte iii: cronologia


Capítulo 12. Resumo da história dos Gaviões da Fiel
José Cláudio de Almeida Moraes (Dentinho) 291

Capítulo 13. Apontamentos históricos da torcida


corinthiana e dos Gaviões da Fiel
Raphael Piva 296

Sobre os autores 313

À memória de Flávio La Selva


É como uma colmeia: se cutucar, sai correndo porque o negócio vai icar preto.
A nossa ideia é manter a paz, mas quem mexer com a gente
vai conhecer a força dos Gaviões da Fiel.
paulo romano (jamelão)
Prefácio
Cláudio Gonçalves Couto
Cientista Político (Fundação Getúlio Vargas/FGV-SP)

Como se mede a grandeza de um time de futebol? Um critério aparente-


mente óbvio seria o do número de títulos conquistados, ponderados pela
sua importância relativa. Embora óbvia, essa métrica é insuiciente. Decerto,
grandes clubes precisam de títulos e é impossível não considerá-los, mas
eles não são fator suiciente para a mensuração da grandeza, o que se pode
notar intuitivamente quando se contabilizam as taças dos diversos times,
mas não se obtém uma resposta satisfatória com relação à importância per-
cebida de cada um.
Uma outra medida seria o tamanho de sua torcida. Embora também
relevante, igualmente se mostra insuiciente, pois a adesão do maior número
não basta para conferir grandeza a o que quer que seja. Mesmo porque, fosse
assim, nada superaria em grandeza, no mundo das seleções nacionais, o
time chinês, imbatível na demograia. Sabemos que a história é bem outra.
Parece-me que a medida dessa grandeza se dá mais qualitativa que
quantitativamente, pela narrativa, pela mística e – fundamentalmente – pela
rivalidade. Num âmbito da vida movido pela paixão e pela rivalidade espor-
tiva, é nelas que se deve buscar a grandeza. A paixão, contudo, embora fácil
de se notar, é difícil de se medir – e, sobretudo, de se comparar. Assim,
embora se possa detectar alguma predominância de um certo tipo de tor-
cedor nos diferentes times – uns mais inlamados, outros mais passivos –
sempre haverá casos que parecerão desmentir as impressões iniciais.
Já a rivalidade é mais claramente identiicável e permite até mesmo
alguma quantiicação. Ademais, pode ser tomada como um termômetro
da paixão – tanto a contrária como a favorável. Pode-se perguntar aos tor-
cedores dos mais variados times a quem identiicam como seus maiores
rivais. No futebol brasileiro, marcado historicamente pela disputa regional,
é ela que prevalece. Os campeonatos estaduais, hoje em franco declínio,
tiveram um papel histórico importante na constituição dessas polaridades.
Assim, no Rio Grande do Sul, nada supera o antagonismo entre Grêmio

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e Internacional – ao ponto de os papais-noéis gremistas se recusarem a da capital e do estado paulistas, entre os times dos dois parques, o São Jorge
usar roupas vermelhas. Em Minas Gerais é a polaridade entre Cruzeiro e e o Antárctica. Ademais, o Santos também teve no Corinthians um rival
Atlético que pontiica. Na Bahia, entre Vitória e Esporte Clube Bahia. acirrado (ou terá sido o contrário?) sobretudo pelos anos em que perdurou
A coisa se torna mais complexa em estados nos quais os grandes clubes o famoso tabu.
– amealhadores de títulos e de rivalidades – multiplicam-se. É o caso de Com a volta por cima do Corinthians a partir do mítico ano de 1977
Pernambuco, em que a disputa entre Sport, Náutico e Santa Cruz embara- e o fortalecimento do São Paulo a partir dos anos 80, cada vez mais a tra-
lha as coisas. O mesmo vale para o Rio de Janeiro e para São Paulo. No Rio, dicional polarização com os palmeirenses foi cedendo espaço à rivalidade
a rivalidade histórica mais signiicativa já foi entre Flamengo e Fluminense, corinthiana com os são-paulinos – enquanto a com os santistas minguava,
dando à expressão Fla-Flu, inclusive, um poder de metáfora que extrapola junto com a força do time antes tão poderoso, para recobrar alguma força
as disputas futebolísticas. Noutros momentos, contudo, foi a polaridade a partir dos anos 2000, quando o Santos retomou o ímpeto na esteira de
entre Flamengo e Vasco da Gama que se impôs. Mas não há como menos- uma nova safra de garotos bons de bola. O curioso é que mesmo durante o
prezar o antagonismo desses três clubes com o Botafogo, sobretudo se vol- período da longa estiagem dos vinte e três anos sem títulos, o Corinthians
tarmos aos anos de maior glória do time da estrela solitária, as décadas de não deixou de protagonizar a principal disputa do Estado com os alviver-
1950 e 60, quando envergavam sua camisa verdadeiros monstros-sagrados des. E, com a recuperação de sua vitalidade nos campos, tornou ainda mais
do futebol brasileiro – notadamente, Garrincha. marcada a rivalidade com os demais grandes clubes do Estado – inclusive
Essa maior complexidade também se faz presente em São Paulo, onde alguns do interior, como a Ponte Preta de Campinas.
ao protagonismo dos três grandes da capital – Corinthians, Palmeiras e São Hoje, indiscutivelmente, o Corinthians é o grande rival dos principais
Paulo – agregou-se a presença mais do que relevante do alvinegro praiano, times de São Paulo. E é, fora de seus estados, o principal rival nacional
o Santos – notabilizado principalmente pelo esquadrão dos anos 1950 e da maior parte dos grande clubes brasileiros. Eis aí a dimensão da gran-
60, liderado por Pelé. Qual deles seria o maior? O Santos, pelas glórias do deza do clube – do porquê do Corinthians se destacar dos outros, mesmo
tempo de Pelé? O São Paulo, pelos títulos internacionais e brasileiros? O quando porventura possui menos títulos do que eles em algumas compe-
Palmeiras, pelas muitas vitórias sobre os rivais, pelos muitos títulos e pela tições importantes. A supremacia corinthiana advém do fato de ser identi-
Academia? Ou o Corinthians, pelo maior número de conquistas estaduais, icado pelos demais (em particular por seus torcedores) como o seu maior
pela glória internacional recente e por deter a maior torcida? rival, aquele que precisa ser batido a qualquer custo, aquele cuja derrota é
Ora, mas se é pela rivalidade que se pode medir a grandeza dos times, mais desfrutada. Isso tudo dá ao Corinthians a primazia de possuir senão a
a pergunta que se faz necessária é: qual deles é o maior rival dos demais? maior torcida, a maior antitorcida.
Qual é o time escolhido pelos adversários como aquele sobre o qual uma Mas o que explica isso? Os resultados em campo são insuicientes
vitória tem mais sabor e, claro, para o qual uma derrota é mais dolorida? para compreender o fenômeno. Mesmo porque, se voltássemos ao longo
Ao longo da história, as rivalidades tiveram várias fases. A mais dura- e penoso período da “ila”, seria possível que a condição corinthiana, de
doura delas, atravessando décadas desde a fundação dos times e que até hoje rival predileto, tivesse se perdido. Contudo, o contrário se deu. Não só a
dá ocasião ao dérbi paulista, é entre Corinthians e Palmeiras. No período rivalidade aumentou, como a torcida cresceu. Seria a primeira causa da
dourado do futebol brasileiro, entre o im dos anos 1950 e o começo dos segunda? Ou seria o contrário?
1970, em parte essa polarização deu lugar à disputa entre o Santos de Pelé O tamanho da torcida (a maior do Estado e a maior em um Estado)
e o Palmeiras da Academia. Foi essa justamente a era da maior entressafra pode ser um dos fatores. A esse respeito, inclusive, a posição similar de que
corinthiana, bem como de um período nem tão alentado para o São Paulo, desfruta o Flamengo no Rio de Janeiro lança alguma luz sobre o problema.
mais ocupado da construção de seu imenso estádio. Mas mesmo a disputa Ainal, em função do grande contingente de torcedores corinthianos, é
entre palmeirenses e santistas foi incapaz de eclipsar a principal polaridade quase inevitável que os adeptos de outras agremiações deparem-se com

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os alvinegros a todo momento, aumentando as oportunidades para que a viajar a um lugar longínquo “só” para apoiar o time. Ainda mais correndo
rivalidade seja reforçada pela interação característica do encontro entre os riscos que uma empresa dessas enseja, como o enfrentamento violento
antagonistas. Quanto mais torcedores de um time há, mais se encontra com com os adeptos da agremiação adversária, a perda do emprego e o abalo
eles; e quanto mais se encontra com eles, mais se alimenta o antagonismo. das relações familiares. Pois os organizados não só encaram esse desaio,
Ser uma torcida imensa conta, mas não é tudo. Conta também o fato de como desfrutam-no. Não fossem eles, o time muitas vezes jogaria apenas
ser uma torcida apaixonada e capaz de transformar o seu próprio sofrimento para a torcida antagonista.
– alimentado pelos períodos de vacas magras – numa epopeia. E numa Por outro lado, o que motiva tamanha idelidade ao time não é só o
epopeia incômoda, pois o corinthiano típico não é apenas um torcedor, time, mas a própria torcida. O torcedor organizado mantém uma dupla
mas um torcedor persistente – o que atormenta os rivais. Diferentemente idelidade: ao time do coração e à torcida do coração. Como dentro dos
do são-paulino típico, leumático e que se esconde no momento de baixa, partidos políticos de vida interna mais intensa existem as facções e tendên-
o corinthiano dá as caras, mesmo que sujeito a gozações e achincalhes. cias, no âmbito dos clubes de futebol existem as torcidas organizadas. O
Ainal, o corinthiano é iel por deinição. Por isso, atiça ainda mais as pai- torcedor organizado divide entre ambos a sua lealdade, mas é com a facção
xões contrárias nos rivais, engrandecendo, por consequência, o próprio que se dá o seu vínculo imediato e cotidiano. É a ela que ele presta contas
time. Noutras palavras, a grandeza do Corinthians vem não só do número, diretamente, responsabilizando-se e sendo sancionado pela eventual falta
mas da postura de seus torcedores, dando razão à ideia de Wladimir (o de “procedimento”. Assim como é dela que recebe as recompensas indivi-
atleta que mais vezes jogou com a camisa corinthiana), de que se “todo time dualizadas mais claras em termos de seu pertencimento, prestígio no grupo,
tem uma torcida. O Corinthians é o inverso: é uma torcida que tem o time” posições na hierarquia e responsabilidades honrosas. Deste modo, quando
(FLORENZANO, 2009).1 viaja para ver o time, é com a torcida que ele vai. No estádio, senta-se com
E, nesse universo da inlamada torcida corinthiana, notabiliza-se indis- seus companheiros de facção, grita os seus brados de guerra particulares
cutivelmente a sua principal facção organizada, os Gaviões da Fiel, objeto e ostenta seus próprios símbolos – distintos dos que são compartilhados
deste livro. Se o corinthiano típico é iel porque não se esconde na adversi- pelos torcedores em geral, os torcedores comuns. É assim com as camisetas
dade do time, mas também porque comparece ao estádio, o torcedor orga- da torcida, seus emblemas e seus “bandeirões”. Pertencer à organizada, ai-
nizado se esconde ainda menos e comparece ainda mais. Primeiramente, nal de contas, é um signo de distinção.
comparece à casa do time. Só que, mais do que isto, viaja com a equipe, Como as tendências mais radicais, as torcidas organizadas apresen-
seguindo-a pelos quatro cantos do Estado, do país, do continente e, mais tam-se como guardiãs do “verdadeiro” sentido da organização maior.
recentemente, até fora do continente. Essa idelidade renitente, para além Quando opõem-se a seus dirigentes e mesmo prejudicam-lhe por seus
dos laços de solidariedade internos à torcida organizada, que lhe dão força atos, fazem-no porque acreditam-se defensoras do verdadeiro destino que
e viabilizam, torna-se um trunfo para o time, apoiado por um séquito leal à organização maior se reserva, mas do qual esta se desencaminhou pela
até nas paragens mais distantes e improváveis. incúria ou pela desonradez dos que dela se apossaram ilegitimamente, isto
Se da lógica apaixonada do torcedor de futebol ordinário, o corinthiano é, usurparam-na – seja pela forma como ascenderam ao poder, seja pela
típico (ou, talvez, estereotípico) parece se tornar uma versão exacerbada, maneira como conduziram o clube.
o torcedor organizado é uma versão exacerbada deste. Só que eivada de O caráter de um ativo intangível que é o sucesso esportivo do clube, ou
ambiguidade. Por um lado, é o mais iel e o que mais se sacríica pelo time. mais ainda, a identiicação com ele, confere à torcida a autoconcedida legi-
Ainal, são raríssimos os torcedores comuns – os não organizados – mesmo timidade para atuar como um iscal do que se passa no clube, muito embora
os mais apaixonados, que se dispõem a deixar o trabalho e a família para seja ela própria mais uma entidade de adesão voluntária, tal qual o clube.
Aliás, como suas próprias lideranças reconhecem, a torcida sequer existi-
1 Cf. a introdução de Bernardo Buarque de Hollanda. ria sem o clube (nos termos de um ex-presidente, “a única razão da nossa

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existência”)2 e perderia sua razão de ser na ausência dele. E isso não deixa Gaviões da Fiel também pareçam sofrer do problema do encastelamento
de ser verdadeiro nem mesmo com o reconhecimento de que a torcida, de seu grupo dirigente, pouco sujeito ao escrutínio do corpo de associados,
como organização, detém um sentido de pertencimento independente do ou à possibilidade de ser efetivamente permeado por ele, como indicam
clube. Caso este desaparecesse, mesmo que a torcida continuasse a existir, alguns dos estudos reunidos neste volume. E na tentativa de desincumbir-
tornar-se-ia outra coisa, radicalmente diferente do que é hoje. se dessa tarefa de guardiã, não raro seus membros se veem também no
Isto se torna ainda mais explícito na relação entre o time, a torcida e a direito de, por vezes, lançar mão da violência como forma de constranger a
escola de samba. Esta surge, inicialmente, apenas como um bloco, instru- dirigentes e jogadores – “ou joga por amor, ou joga por terror”.
mento para reforçar a coesão interna, oferecendo aos membros mais uma A violência não é um elemento a ser subestimado, ou simplesmente
atividade lúdica da qual possam se ocupar, sobretudo no período de rela- subsumido a uma subcultura especíica, naturalizando-o e despindo-o de
tiva inatividade no futebol, que antecede o Carnaval. Só que o bloco cres- seu caráter problemático, como se fosse uma mera peculiaridade cultural,
ceu e virou outra coisa, uma escola de samba (por mais que um dirigente axiologicamente indiferente. Ela é um aspecto importante dessa cultura de
insista em descrevê-la como “uma torcida que samba”).3 E na medida em “machos”, em que mesmo os membros da torcida são alvos, seja nos ritos de
que a dimensão sambista (ou “sambeira”) cresce, exacerba-se uma vez mais iniciação e de airmação dos mais velhos sobre os mais jovens, seja na cor-
o problema da dupla lealdade, que se torna aqui uma tripla lealdade – não reção da falta de “procedimento” ou, simplesmente, por diversão. “Dar por-
só mais ao time ou à torcida, mas ao time, à torcida e à escola de samba. rada”, até mesmo nos companheiros, dentro do ônibus em excursão, é parte
Ainal, “samba é samba e torcida é torcida”.4 do habitus da torcida. E isso apesar do posicionamento oicial dos dirigentes,
Da mesma forma, os dirigentes do Corinthians talvez dissessem, só que que é de condenação à violência e aos violentos. Esse discurso parece mais
com outro propósito: “clube é clube e torcida é torcida”. Ainal, os Gaviões ter o propósito de resguardar a torcida perante as autoridades e a opinião
da Fiel incomodam os dirigentes, algo de que podem com razão se jac- pública do que constituir-se propriamente numa atitude efetiva dos dirigen-
tar, pois nasceram mesmo para incomodar. Os Gaviões da Fiel nasceram tes da organização perante seus membros, incitando-os à moderação.
na oposição a uma oligarquia encastelada no clube (a de Wadih Helú) e O mesmo vale para algo que subjaz a violência física, que é a intolerân-
protagonizaram a oposição a outros oligarcas da longa história corinthiana cia com relação ao outro, seja ele o torcedor do time adversário (mormente
(como Vicente Matheus e Alberto Dualib). Mesmo que de fora do quadro de outra organizada), o membro da torcida rival do próprio Corinthians ou
associativo formal do clube (embora haja membros da torcida que sejam o homossexual. Em particular no que se refere a este último, a intolerância
sócios), os Gaviões, juntamente a outras torcidas organizadas e mesmo a ganha um signiicado todo especial, simbolicamente forte e aparentemente
torcedores comuns, exercem sobre o Corinthians um papel de pressão is- necessário para delimitar (deinindo-a) a própria subjetividade. Isso é evi-
calizadora. Pesa aqui novamente a dimensão de ativo cultural intangível do denciado não apenas nos gritos e xingamentos destinados a desmerecer
time, não só para os seus torcedores, mas para os aicionados do futebol de os adversários (como no grito de “bicha!” contra o goleiro adversário),
um modo geral. É o que permite à imprensa esportiva e à opinião pública
mas também, curiosamente, na diiculdade de conviver tranquilamente
em geral cobrar publicamente os dirigentes por suas ações, como se fossem
com eles na escola de samba – um âmbito em boa medida distinto do fute-
eles responsáveis por uma entidade pública – e não por um clube particu-
bol, no qual o machismo típico do esporte bretão poderia ser mais fraco.
lar, como é o caso do ponto de vista legal.
O problema é que esse machismo está no ethos das torcidas de futebol e
É desse contexto muito peculiar que a torcida retira a legitimidade para
transborda para as suas diversas dimensões – paradoxalmente, até na sua
reivindicar a sua condição de guardiã do time, muito embora os próprios
dimensão protetora em relação às mulheres Gaviãs, pois se trata de uma
2 Cf. o capítulo 12: “Resumo da história dos Gaviões da Fiel”. proteção que assume tons paternalistas.
3 Cf. o capítulo 9: “Uma torcida que samba: o Grêmio Recreativo Gaviões da Fiel”. Por meio dos diversos trabalhos que lhe compõem, este livro nos dá a
4 Ibid. oportunidade de conhecer melhor um objeto ao mesmo tempo fascinante

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e contraditório. Impossível de serem entendidos sem que se compreenda a Introdução:
dimensão e a grandeza do clube de futebol que lhes possibilitou vir à exis-
tência, os Gaviões da Fiel são ao mesmo tempo um alento e um transtorno
O rabo do foguete – civilização & barbárie
para o Corinthians. em uma torcida organizada de futebol
Por um lado, apoiam-lhe incessantemente e puxam consigo o apoio Bernardo Buarque de Hollanda
do resto da torcida nos jogos em casa ou alhures, bem como iscalizam
diligentemente os seus dirigentes, coibindo seus abusos. Também criam
um espaço de sociabilidade lúdica e identitária para jovens, ampliando sua
gama de atuação por meio do Carnaval. Por outro lado, afugentam, com
sua violência, o torcedor comum dos estádios – e mesmo do futebol –, além A presente coletânea é fruto de uma constatação: a existência de um
de perpetrar cenas de extrema agressividade contra os que lhe são diversos. número expressivo de estudos acadêmicos dedicados à torcida organizada
Certamente não esgotamos o assunto neste livro, mas damos um belo aqui examinada. Se monograias, dissertações e teses sobre agrupamentos
pontapé inicial para tentar compreendê-lo cada vez mais. de torcedores de futebol são crescentes no Brasil,1 os artigos focados no grê-
mio Gaviões da Fiel acumulam-se desde pelo menos o inal dos anos 1970.
Não por coincidência, no mesmo contexto de legitimação da temática do
referências bibliográficas
futebol nas Ciências Sociais brasileiras.2
FLORENZANO, José Paulo. A democracia corinthiana: práticas de liberdade no Tal constatação ocorreu-me durante o período de doutoramento
futebol brasileiro. São Paulo: EDUC; FAPESP, 2009. (2003-2008), quando levantava o material bibliográico para a redação de
uma tese que versou sobre as narrativas jornalísticas consagradas à forma-
ção das associações de torcedores de futebol proissional do Rio de Janeiro,
entre as décadas de 1940 e 1980.3
O levantamento permitiu perceber um primeiro inluxo de artigos de
jornal, de textos para periódicos cientíicos e de dissertações de mestrado
relacionados ao “efeito Corinthians”, entre ins do decênio de 1970 e prin-
cípios dos anos 1980. Na ocasião, jornalistas e intelectuais despertaram seu
interesse para o clube, à luz do impacto da conquista “dramática” do título
paulista de 1977, perseguido desde 1954, após mais de vinte anos de tenta-
tivas frustradas.
A produção não se relacionava apenas ao ambiente futebolístico e
àquele clube em particular. Os textos coadunavam-se ao processo de rede-
mocratização política que arejava a sociedade civil brasileira de então.
Lado a lado com sindicatos, partidos, associações de bairro e comunidades

1 Consulte-se, para tanto, o banco de dados montado pelo Laboratório de Educação e Patrimônio
Cultural (LABOEP-UFF) referente a pesquisas sobre torcidas organizadas. Disponível em:
<http://www.laboep.uf.br/banco-de-dados/torcidas-de-futebol>. Acesso em: 2/4/2015.
2 A referência seminal dessa legitimidade encontra-se no volume ensaístico Universo do fute-
bol, organizado pelo antropólogo Roberto DaMatta (1982).
3 Cf. HOLLANDA, 2010.

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