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Entradas e bandeiras:

a conquista do Brasil
pelo futebol
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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Ricardo Vieiralves de Castro

Vice-reitor
Paulo Roberto Volpato Dias

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Conselho Editorial
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Erick Felinto de Oliveira
Flora Süssekind
Italo Moriconi (presidente)
Ivo Barbieri
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves
Gilmar Mascarenhas

Entradas e bandeiras:
a conquista do Brasil
pelo futebol

Rio de Janeiro
2014
Copyright  2014, Gilmar Mascarenhas.
Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade do Estado do Rio de Janei-
ro. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou de parte do mesmo, em quaisquer
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC

M395 Mascarenhas, Gilmar


Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo Futebol /
Gilmar Mascarenhas. – Rio de Janeiro : EdUERJ, 2014.
256 p.

ISBN 978-85-7511-320-2

1. Futebol – Brasil - História. 2. Brasil – Geografia


histórica. I. Título.

CDU 796.332(81)(091)
A Cláudio Moisés, o abraço certo em cada gol.
A Edinélia Souza, o gol certo em cada beijo.
Aos filhos Paula, Cecília e Rodrigo, meus gols,
abraços e beijos.
...
Aos olhos marejados de Moisés, que, diante
dos olhos fascinados de seu filho, despertou
nele a magia do esporte-rei ao lhe narrar
façanhas improváveis de Didi, Garrincha
e Nilton Santos. Por tudo que me ensinou.
À mãe Idalice, que traz no olhar (e em tudo
vê) o brilho da Estrela Solitária. E aos olhos
do netinho Victor Hugo, que sempre me
desconcertam com a pureza, a simplicidade e
o esplendor de um drible de Mané Garrincha.
Sumário

Prefácio: primeiro tempo...................................................................................9


Roberto Lobato Corrêa

Prefácio: segundo tempo................................................................................. 13


Odette Carvalho de Lima Seabra

Agradecimentos................................................................................................. 17

Apresentação....................................................................................................... 19

Introdução........................................................................................................... 23

Parte I – Outras “raízes do Brasil”

Capítulo 1 – A “bola nas redes”: uma novidade aporta


nos trópicos......................................................................................................... 39
Capítulo 2 – Uma “retranca” para a adoção do football:
o legado colonial................................................................................................ 59
Capítulo 3 – A modernidade calça chuteiras: o futebol no
ritmo da industrialização................................................................................. 79
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol

Capítulo 4 – Retratos de um Brasil: rumo à


Copa de 1950...................................................................................................105
Capítulo 5 – Abrindo estradas e vencendo o localismo:
a lenta integração nacional...........................................................................135
Capítulo 6 – Uma nova paisagem urbana:
o gigantismo dos estádios...............................................................159

Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol

Capítulo 7 – A metropolização do futebol: concentração de


capital e poder.................................................................................................173
Capítulo 8 – O torcedor em “impedimento”:
2014 e as novas territorialidades.................................................................209

Considerações finais.......................................................................................225

Posfácio: a bola que enredou o Brasil........................................................233

Referências........................................................................................................241

Sobre o autor....................................................................................................255
Prefácio: primeiro tempo

Processos e formas produzidos tanto pela natureza como


pela ação humana estão necessariamente inscritos no tempo e no
espaço, exibindo uma temporalidade e espacialidade, isto é, ori-
ginam-se, desenvolvem-se e transformam-se em um tempo mais
ou menos longo, a partir de certos locais de onde se espraiam até
certos limites espaciais. A espacialidade e a temporalidade estão
em toda a parte e em todos os momentos, ocorrendo simultane-
amente, ainda que as relações entre elas sejam muito complexas.
Incluem todas as esferas da vida, mesmo aquelas que aparente-
mente não as exibam. Não é de se estranhar que o futebol exiba
uma espacialidade e temporalidade que hoje se tornam globais,
universais.
Temporalidade e espacialidade expressam-se por meio de
duração, frequência, sequência e ritmos, de um lado, e por loca-
lização, extensão, concentração, configuração e periferização, de
outro. Período, foco inicial, região, território e lugar, por sua vez,
são termos que denotam temporalidades e espacialidades. As no-
ções de genius tempori (espírito do tempo) e genius loci (espírito
do lugar), adicionalmente, vinculam-se às temáticas da tempora-
lidade e espacialidade numa perspectiva de intersubjetividade em
torno do tempo e do espaço.
A geografia histórica, cultivada com paixão, entre nós, por
Maurício de Almeida Abreu, constitui-se no campo da geografia
10 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

que analisa a temporalidade e a espacialidade, procurando vê-las


conjuntamente. De modo geral, há duas possibilidades de se fazer
uma análise em geografia histórica. De um lado, considera-se certa
duração do tempo em dada área e realiza-se uma análise diacrôni-
ca. Processos e formas mutáveis são o interesse maior por parte do
pesquisador. Mudanças e permanências devem ser evidenciadas,
pois a análise diacrônica admite a premissa da heterogeneidade do
tempo. De outro, situa-se a análise sincrônica na qual determina-
da seção do tempo é analisada, vendo-se as combinações de con-
figurações que produzem uma relativa homogeneidade. Trata-se
da análise de um “presente no passado”, um “presente de então”,
diria Maurício de Almeida Abreu. Mas ressalta-se que diacronia e
sincronia devem ser vistas de modo relativo, levando-se em conta
a escala temporal considerada pelo pesquisador. Ambas as pers-
pectivas são úteis e os resultados de uma alimentam a outra.
Este livro aborda o espaço-temporalidade do futebol no
Brasil do último quartel do século XIX ao ano de 2014, quando
no país realiza-se uma Copa do Mundo. Trata-se de uma análise
na perspectiva diacrônica, na qual a origem, a difusão e a con-
solidação do esporte bretão no país se efetivam. Há uma enor-
me originalidade no texto de Gilmar, este geógrafo botafoguense
apaixonado pelo futebol. Originalidade porque aborda uma ati-
vidade esportiva (e também econômica, política, social e cultu-
ral) na perspectiva do espaço e do tempo. Evidencia, assim, como
afirmou Denis Cosgrove, que a geografia está em toda a parte.
Nós, parafraseando Bruno Latour, é que nem sempre somos su-
ficientemente geógrafos para isso perceber. O livro do professor
Gilmar valoriza a geografia e particularmente a geografia históri-
ca, subcampo ainda pouco cultivado no Brasil.
Entradas e bandeiras são uma significativa metáfora que
descreve muito bem os caminhos percorridos pelo futebol no
Brasil, também conquistado por esse esporte. Conquista que o faz
estar presente em muitas e muitas esferas da vida nacional, envol-
Prefácio 11

vendo interesses diversos, associado ao Estado, ao grande capital


e a uma crescente multidão de fervorosos torcedores. É relevante
lembrar, como faz Gilmar, que o primeiro Campeonato Brasileiro
de futebol ocorreu apenas em 1971, refletindo a integração terri-
torial do Brasil após a realização do Plano de Metas da segunda
metade da década de 1950. Foi possível realizar um campeonato
com clubes paulistas, cariocas, mineiros, gaúchos e de outras uni-
dades da Federação.
A integração territorial do Brasil, no entanto, produz uma
diferenciação entre áreas, a qual se expressa, entre outros modos,
pela concentração de atividades industriais, renda e diversos in-
dicadores associados à qualidade de vida. Expressa-se também
na distribuição espacial dos times de futebol da primeira divisão,
concentrados massivamente no centro-sul. Então, cidades como
Campinas e Florianópolis são mais expressivas em termos de fu-
tebol que as metrópoles regionais de Fortaleza, Belém e Manaus.
Desenvolvimento desigual e combinado também do futebol.
O futebol conquistou o país e contribuiu muito para a uni-
dade nacional. Mas o futebol brasileiro, como o de outros países,
seria absorvido pela globalização, claramente identificada por uma
instituição supranacional de regulação em escala global e mais de
uma centena de países a ela vinculados. A globalização, da qual a
FIFA e a CBF são expressões e agentes, inclui poderosas empre-
sas de material esportivo, a participação de empresas de serviços
e a ação de poderosas máfias globais – de um lado, lavagem de
dinheiro e, de outro, torcedores lumpen organizados em gangs e
locutores patriotas. Negócio e espetáculo globais.
Esta publicação fala de tudo isso e muito mais utilizando
uma linguagem rica de metáforas de toda ordem. Seu trabalho é
exemplar, ainda, por não ser um condensado de sua tese, defen-
dida no Programa de Geografia Humana da Universidade de São
Paulo (USP). Além de sua tese, o autor deu continuidade à sua
pesquisa ampliando a temática a respeito de futebol brasileiro.
12 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Trata-se, efetivamente, de uma contribuição para o conhecimento


não apenas do futebol no Brasil, mas do próprio país. Se a geogra-
fia está em toda a parte, o futebol também está, fazendo parte des-
sa geografia e povoando os corações de flamenguistas, corintianos,
atleticanos e colorados, para mencionar apenas algumas das tribos
do futebol do Brasil. Este volume deve ser lido por geógrafos e
não geógrafos, torcedores ou não de futebol.

Roberto Lobato Corrêa


Professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGG/UFRJ) e coordenador
do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço e Cultura da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NEPEC/UERJ)
Prefácio: segundo tempo

A institucionalidade alcançada pelo futebol em um século


não deixa de ser surpreendente. Da origem modesta dos clubes
enraizados na cultura do povo, que deu ensejo à formação de um
patrimônio material próprio, à hierarquização e distinção entre
clubes pobres, clubes ricos e os clubes super-ricos, tem-se um pro-
cesso que acompanhou e espelhou, pari passu, o processo de urba-
nização e industrialização moderno, motor do desenvolvimento
da formação econômica e social capitalista, em escala planetária.
É exatamente nesses termos que se lê, em Entradas e ban-
deiras, a difusão do futebol a partir da presença de seus criadores,
os ingleses, inseridos nas engrenagens do imperialismo. Mas tal
difusão não é exclusivamente explicada pelas redes do Império
Britânico, pois a informação futebol, no dizer do autor, terá sido
veiculada também por outros nexos articuladores de princípios
e práticas fortemente inseridos na vida social. Tal foi o papel da
Igreja, instituição milenar que, após abominar o jogo de futebol,
acabou por difundi-lo, adotando-o nos colégios católicos, inserin-
do-o nas práticas paroquiais e organizando disputas.
O futebol, como um ingrediente da cultura moderna, che-
gou a integrar, naturalmente, a espontaneidade do povo, expres-
sando-se no conjunto das habilidades de fazer. Como tal, aden-
trou pelo território seguindo a presença inglesa, como ocorreu,
sobretudo, nas localidades de construção e manutenção de ferro-
14 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

vias e em áreas portuárias. As cidades portuárias têm sido larga-


mente admitidas como a porta de entrada dessa inovação, já que
a Inglaterra era a rainha dos mares. Entretanto, é inegável que os
investimentos britânicos no Brasil fizeram aportar “ilhas” de ope-
rários especializados, técnicos e gerentes, todos embebidos de uma
cultura absolutamente autorreferenciada, alheia à possibilidade de
intercâmbio. Mesmo assim, em sua expansão horizontal, o fute-
bol, a partir de certo momento, alcançou as elites locais, sendo
que o passo seguinte foi seu aprofundamento, imiscuindo-se nas
coisas do povo.
Porém, o autor afirma que o efetivo advento do futebol de-
pendeu de condições locais. Portanto, de uma conjunção favo-
rável a tal desenvolvimento como fora aquela dos primórdios da
industrialização e urbanização em curso, que deslocava uma massa
de população de um continente a outro, de uma região a outra,
mas sempre do campo para a cidade.
Nas cidades, essa inovação se mostraria capaz, desde o
primeiro momento, de mobilizar as energias do povo, para, em
seguida, mobilizar negócios até integrar as estruturas financeiras
da sociedade.
Mas há algo interno ao futebol que catalisa as energias do
povo e se realiza no plano da existência imediata dos sujeitos,
capaz de mobilizar todos os seus sentidos e de arrebatá-los em
paixão. Na transição do rural ao urbano-metropolitano, o fute-
bol acabou por ser um ingrediente da mobilidade territorial do
trabalho, uma força indispensável na integração dos migrantes,
essencialmente por balizar e lastrear um pertencimento até então
difuso. No universo do migrante, o ideário de nação teria ainda
de ser cultivado.
Os atributos diferenciais do espaço condicionam, de certa
forma, a territorialização das práticas. É por isso que, no início
do século XX, as cidades nas quais tem lugar o ainda incipiente
processo de industrialização brasileira, a institucionalização do fu-
Prefácio 15

tebol segue a passos largos, configurando já a relação do futebol


com a economia e a política.
Num primeiro momento, políticos populistas procura-
ram o povo nos campos dos arrabaldes, mas com a crescente
importância adquirida pelo futebol, em certos momentos cru-
ciais da história política do Brasil, o futebol foi tomado por
estratégias de Estado em busca de apoio popular, como ocorreu
nos anos 1970.
Desde os anos 1930, seguiram-se iniciativas no sentido de
institucionalização do futebol no Brasil, quando, então, a organi-
zação clubística do futebol passaria a comportar mais claramente
a segmentação entre o profissionalismo e o amadorismo, sendo
destacados os quadros profissionais, o que tornaria possível a co-
mercialização de atletas. Mas diz o autor que, nos anos 1950, a
realização da Copa do Mundo em território nacional represen-
tou a afirmação do Brasil como potência emergente no futebol e,
também, na engenharia, em virtude da construção do Maracanã,
naquele momento o maior do mundo. Além disso, a Copa de
1950 consolidou a onipresença do futebol em todo o território
como uma incontestável paixão nacional. O grande desafio era a
integração nacional, pois aquele evento concentrou 2/3 da com-
petição em duas cidades.
Gilmar constata que a metropolização do futebol é um fe-
nômeno em curso e tem resultado no aniquilamento de clubes e
em fusões entre clubes. Observa ainda que a concentração metro-
politana dos interesses do futebol expressos na riqueza, no poder
e no domínio da informação é traduzida como potência de nego-
ciação sobre um território. Trata-se da nova economia do futebol,
que está a exigir base espacial dotada de características essencial-
mente metropolitanas: um espaço de fluxos de alta densidade e
um espaço efetivamente organizado em rede, de forma a possibili-
tar plenamente a regular realização de competições esportivas que
integrem clubes e cidades de distintos países.
16 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Os estádios novos, grandes e espetaculares, servem de palco


às competições e parecem responder ao que o autor denomina
reinvenção do futebol nessa nova economia, porque implica mu-
dança de atitude tanto dos atletas como dos torcedores.
Este belo livro está aqui para ser lido e estudado. Ele fala
de coisas nossas. Percorreu uma bibliografia extraordinária e rara,
entrevistou pesquisadores em diversos países, quis sempre com-
preender e explicar para todos nós as metamorfoses do futebol
brasileiro. Como diz ele, estamos todos diante de “outras ‘raízes
do Brasil’”.

Odette Carvalho de Lima Seabra


Livre-docente, professora do Programa de Pós-Graduação em
Geografia Humana da Universidade de São Paulo (USP) e
coordenadora do grupo de pesquisa Geografia e Modernidade
Agradecimentos

Antes de tudo, devo a Odette Carvalho de Lima Seabra


(USP) não apenas a consistente orientação da tese de doutoramen-
to, mas um conjunto de ensinamentos, vivências, reflexões que
marcaram para sempre meu modo de pensar a cidade, o mundo
e o próprio futebol. Devo também ao eminente geógrafo Roberto
Lobato Corrêa (UFRJ), entusiasta do tema, as inúmeras conversas
que tivemos antes do doutorado e durante sua realização. Daí o
privilégio de contar com ambos para prefaciarem esta obra.
No plano institucional, não poderia deixar de citar o
CNPq, pelo recente pós-doutorado (Université Paris I, 2012-
2013), ocasião em que pude, embora me dedicando a outro
projeto, encontrar tempo curto, porém suficiente, para reler a
tese e reunir vários outros artigos e reflexões para começar a
compor este livro. Na pesada rotina acadêmica de nossos dias,
tal empreitada torna-se praticamente impossível, de forma que
um ano de estágio pós-doutoral dedicado ao estudo das “cidades
festivas” acabou propiciando o tempo que me faltava para “dar
uma arrancada”.
Vários amigos, por meio de diálogos e/ou parcerias acadê-
micas, no campo e nas arquibancadas, muito enriqueceram mi-
nha perspectiva sobre o futebol, dentre os quais devo destacar,
apesar do eterno e terrível risco da ingratidão involuntária: o vas-
caíno Mauricio Murad (fundador do saudoso Núcleo de Pesqui-
18 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

sas em Sociologia do Futebol, na UERJ), que alimentou minhas


primeiras reflexões em 1994; o gremista Arlei Sander Damo (an-
tropólogo, UFRGS), que considero tributário das mais profundas
contribuições ao tema; o vascaíno norte-americano Christopher
Gaffney (UFF), parceiro de bola, de arquibancada e de artigos
sobre os estádios; Julio Frydenberg (historiador, Universidad de
La Plata, e torcedor do Independiente); a equipe do NEPESS,
então sob a batuta do rubro-negro Marcos Alvito (UFF), e, mais
recentemente, a boa turma do GEFUT (UFMG), sob a liderança
vascaína de Silvio Ricardo da Silva; o botafoguense Marcelo Pro-
ni (UNICAMP); o rubro-negro José Sergio Leite Lopes (Museu
Nacional/UFRJ); o geógrafo Loïc Ravenel (Université de Fran-
che Comté, França); os colorados Cesar Guazzelly e Paulo Soares
(UFRGS); o vilanovista Alexsander Silva (UEG); o historiador
tricolor Eloy Ferreira Brito; e, para fechar a lista, outro historia-
dor muito competente: o corintiano Plínio Negreiros. Dentre os
alunos, bolsistas e orientandos de ontem e de hoje, a quem sempre
devemos muito, elejo um único representante deste vasto conjun-
to, por sua extrema competência e seriedade: o geógrafo vascaíno
Fernando da Costa Ferreira. E, pelos mapas elaborados para este
livro, não poderia deixar de citar o brilhante ex-bolsista de inicia-
ção científica Gustavo Gil Monteiro Pereira, que coleciona habi-
lidades e dezenas de camisas do glorioso alvinegro carioca.
Apresentação

Como em outros casos, motivações e percalços se conjugaram


no processo de construção desta obra. Em se tratando do desafio de
trazer o futebol para a geografia, os percalços sobressaem, mas são
vencidos pela paixão. Por um lado, particularmente na primeira par-
te, o livro apresenta desdobramentos do que elaboramos por ocasião
de nosso doutoramento na Universidade de São Paulo (USP), reali-
zado entre 1996 e 2001, quando o tema da difusão e da adoção do
futebol norteou nossas pesquisas. Por falta de tempo para promover
os ajustes então solicitados pelas editoras, a tese jamais foi publicada,
embora tenha sido aprovada com nota máxima, louvor e distinção.
Desde então, mesmo sem ocupar um lugar central em nossa
vida acadêmica, o futebol continuou despertando em nós interesse
profundo e diverso. No ano seguinte à defesa da tese, já apresentáva-
mos um trabalho inédito sobre estádios de futebol, tema que seguiu
merecendo razoável investimento ao longo de uma década. Também
o tema da “metropolização e integração nacional” nos mobilizou e
resultou em trabalho publicado em 2004. Por fim, a história da Copa
do Mundo se insere em nossa principal linha de pesquisa – sobre
“cidades e megaeventos esportivos” – nos últimos dez anos. Tais abor-
dagens não fizeram parte da tese doutoral supracitada.
Há mais de 15 anos, tratar geograficamente o futebol e
os esportes em geral tem sido um grande desafio para nós. Em
1998, criamos na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
20 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

(UERJ) a disciplina eletiva Geografia dos Esportes, em caráter


pioneiro (e talvez até hoje exclusivo) no Brasil. A escassez de
interlocutores nos levou a buscar diálogo com geógrafos de ou-
tros países, como Espanha, Inglaterra e França. Neste último,
tivemos a oportunidade de avaliar tese de HDR (Habilitation
a Dirigir les Recherches) em Geografia dos Esportes em 2009,
de Loïc Ravenel, na Université Franche-Comté, em Besançon,
e de atuar como professor visitante, em 2011, na Université
Michel de Montaigne, em Bordeaux, a convite do professor
Jean-Pierre Augustin, um dos mais importantes geógrafos do
esporte na atualidade.
Em Barcelona, a estadia sob orientação do professor Hora-
cio Capel, entre 1999 e 2000, rendeu frutos: artigos, resenhas e
até a honrosa participação dele em nossa banca de doutorado. Na
revista Biblio 3w (19 jul. 2001, n. 301), Capel resenhou a tese:

La Tesis de Gilmar Mascarenhas es un trabajo profundamente


geográfico donde están muy presentes la dimensión espacial y
las escalas, aunque ha sido elaborada con una bibliografía muy
variada procedente del campo de la antropología, la sociología,
la historia social y otras disciplinas, además de la geografía. [...]
es indudable que su Tesis se convertirá en un clásico sobre el
tema, ya que abre vías muy sugestivas para el estudio del fútbol.
A partir de ella se tiene un marco general para situar las inves-
tigaciones sobre la difusión de este deporte. Estoy convencido,
además, de que el mismo autor realizará en el futuro nuevas y
valiosas aportaciones a este importante tema de estúdio [...] La
Tesis fue aprobada por unanimidad, y el tribunal recomendó
calurosamente su publicación.1

1
A tese de Gilmar Mascarenhas é um trabalho profundamente geográfico, em
que estão muito presentes a dimensão espacial e as escalas, ainda que tenha sido
elaborada com uma bibliografia muito variada procedente do campo da antro-
Apresentação 21

Embora forneça um olhar panorâmico sobre o Brasil e as


redes globais de difusão, a tese concentra seu foco no Rio Grande
do Sul, e seu recorte temporal não ultrapassa a década de 1950.
Portanto, para reunir o material contido neste livro, que abran-
ge desde as primeiras experiências futebolísticas até o presente e
busca, nos limites do possível, abordar o Brasil em seu conjunto
e diversidade, foram necessários vários outros estudos posteriores.
Em suma, este livro pretende oferecer um olhar eminentemente
geográfico, por isso inovador, sobre o processo histórico de for-
mação do chamado “país do futebol” – com todas as dificuldades
inerentes a essa ousada empreitada. Que seja um convite ao deba-
te, a novas reflexões e um encorajamento aos geógrafos.

pologia, da sociologia, da história social e de outras disciplinas, para além da


geografia. [...] sem dúvida sua tese se converterá em um clássico sobre o tema, já
que abre vias muito sugestivas para o estudo do futebol. A partir dela, tem-se um
marco geral para situar as investigações sobre a difusão deste deporte. Estou con-
vencido de que o mesmo autor realizará, no futuro, novas e valiosas contribuições
a esse importante tema de estudo [...] A tese foi aprovada por unanimidade, e a
banca examinadora recomendou calorosamente sua publicação.
Introdução

Novembro de 1930. As ruas e as praças centrais de nossas


principais cidades estão bem mais agitadas que de costume. As ce-
lebrações em homenagem ao aniversário da República transcorrem
em clima tenso, tão recente fora a abrupta mudança na composição
do bloco de poder, respingando violentamente em cada estado da
Federação. O gaúcho Getúlio Dorneles Vargas mal se acomodara
no Palácio do Catete, e os cariocas ainda resmungavam contra os
cavalos amarrados ao obelisco da nobre Avenida Central; mas o
campeonato de futebol da cidade, indiferente à atmosfera geral de
incertezas, continuava seu animado calendário. Tanto que, no dia
seguinte aos “festejos” patrióticos, os vários jogos previstos transcor-
reram normalmente, dentre eles a goleada de 5 a 1 que os rapazes do
Botafogo, clube que seria campeão naquele ano, impuseram ao An-
darahy, no pequeno e elegante estádio da Rua General Severiano.
O futebol era, portanto, no Rio de Janeiro e em praticamente todas
as demais capitais e principais cidades do país, um fato consolidado.
Mas o Brasil é extenso demais, de forma que, para o futebol, havia
ainda muito território por conquistar.
Naquele mesmo novembro de 1930, muito longe de todas
aquelas intemperanças e jogadas, nascia Moisés José de Jesus, em
Taboleiros do Castro, um tranquilo e remoto lugarejo no muni-
cípio de Castro Alves, limiar do Recôncavo Baiano. Sexto filho de
família de pequenos proprietários rurais, para o menino Moisés a
24 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

bola de meia para se jogar futebol ocupava um lugar bastante se-


cundário no vasto leque de possibilidades lúdicas oferecidas pelos
riachos, árvores, pastagens, animais e plantações, sendo ampla-
mente preterida pelos banhos de rio e pela correria zigue-zague-
ante por entre os pés de mandioca, fumo e café. Parecia vigorar
a profecia de Graciliano Ramos, que na década anterior afirmara
que o futebol, para ele um estúpido modismo inglês, jamais vin-
garia no interior do Nordeste:

Pensa-se em introduzir o football nesta terra. [...] Vai ser, por


algum tempo, a mania, a maluqueira, a ideia fixa de muita gente
[...] um entusiasmo de fogo de palha capaz de durar bem um
mês. [...] Temos esportes em quantidade, para que metermos o
bedelho em coisas estrangeiras? O football não pega, tenham a
certeza (1990, pp. 24-5).

Hoje sabemos que nas décadas seguintes a profecia do sau-


doso escritor sofreria implacável erosão, mas aqueles meninos de
Taboleiros do Castro o futebol ainda não seduzia. Era mesmo
uma vaga referência, e os clubes dos grandes centros pertenciam
de fato a outro universo, já que as fronteiras do mundo de então
não ultrapassavam limites precisos: uma serra de mata fechada a
oeste, onde os adultos caçavam pacas e inspiravam histórias fan-
tásticas de lobisomens que animavam os “causos” em torno do
candeeiro; a vila de Varzedo ao sul; a cidade de Castro Alves ao
norte (duas horas no lombo de burro, para a missa e a feira domi-
nicais); e a longínqua Nazaré das Farinhas a leste, abrindo cami-
nho por mar para alcançar a velha “Bahia” nunca visitada, cercada
de lendas e grandezas seculares.
No ermo envolvente daquelas terras, nascia em 1941 Idali-
ce Moura Mascarenhas, 12a filha de pequenos lavradores caboclos.
O centro da vida rural ainda era o povoado de Taboleiros, já com
quase uma centena de almas, a capela, cinco casas de farinha, al-
Introdução 25

gum comércio e, mais tarde, uma escola, enfim erguida em 1947.


E o povoado tornara-se ainda mais “culto” com a chegada de um
misterioso objeto falante a que chamavam de “rádio”, instalado na
residência de grande proprietário local. Repentinamente, as fron-
teiras do mundo habitado se expandiram a ponto de incorporar a
longínqua Cidade Maravilhosa, capital de uma entidade um tanto
abstrata denominada Brasil. Para a gente simples do lugar, o tal
objeto falante suscitava menos crédito que espanto, e mesmo o no-
ticiário da Segunda Guerra Mundial causava indiferença, visto que
nada alterava os ritmos articulados da natureza e do trabalho, o do-
mínio mágico das crenças ou o calendário anual de festas católicas.
Em duas ocasiões, entretanto, o curioso objeto parece ter
abalado o equilíbrio emocional do lugar. Em 1950, com a derrota
do Brasil na Copa do Mundo, e em 1954, com o suicídio do pre-
sidente da República. Da Copa de 1950, Idalice, criança e alheia
àquele circuito, nada lembra, mas Moisés, jovem adulto, custava
a crer no noticiado clima de profundo luto nacional e que alguém
tivesse sofrido ataque cardíaco fatal pelo insucesso esportivo de
outrem.1 Olhava para os meninos das redondezas correndo atrás
da bola de meia com muito mais frequência e entusiasmo que os
de sua geração. Começavam a chegar da velha Bahia notícias de
empolgantes duelos no estádio da Fonte Nova (inaugurado em
1951), assistidos por dezenas de milhares de pessoas. Reconhecia,
portanto, a expansão do futebol, mas, definitivamente, este era
apenas um esporte, não mais que isso. Profundo engano, que só
o tempo e a futura vivência metropolitana haveriam de remover.
O tempo passava, e o lugar não prosperava. Ao contrário, a
exportação do fumo decaía. As terras mostravam-se esgotadas pelo
manejo precário, e a fragmentação fundiária por herança fami-

1
O sargento da Marinha João Soares da Silva, 58 anos, caiu fulminado logo após o
segundo gol uruguaio, na tarde histórica de 16 de julho de 1950 (Moura, 1998,
p. 118).
26 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

liar ameaçava a sobrevivência campesina. Moisés via seus irmãos


e amigos partindo, alguns tentando a sorte na cidade grande, sem
imaginar ser aquele o mesmo destino de outros milhões de brasi-
leiros naquele período. A “Bahia” não soava como boa opção: a
cidade de Salvador, então sinônimo de pobreza e atraso, vivia a
culminância de muitas décadas de prolongada decadência. Entre
os “eldorados do sul”, São Paulo e Rio de Janeiro, Moisés optou
pelo último.
Em 1956, nosso ex-lavrador enfim realizou seu êxodo,
desembarcando atônito no então movimentado porto da Praça
Mauá. Após transitar brevemente por ocupações diversas (desde
o brutal desmatamento a golpes de machado para expansão de lo-
teamentos urbanos na periferia metropolitana, em Nova Iguaçu,
até o “elegante” e honrado posto de guarda-noturno da cerveja-
ria Antarctica, na Rua do Riachuelo, passando pelas veredas do
comércio ambulante), acabou se inserindo, como tantos outros
conterrâneos, na feira livre, atividade próspera numa cidade que
ainda desconhecia o supermercado.
Na metrópole, tudo lhe era, obviamente, muito estranho:
as falas, os ruídos, a paisagem, as técnicas e as relações humanas.
Como também eram estranhos a euforia e o fanatismo daquela
gente pelo futebol. Debates acirrados em qualquer lugar, sobretu-
do na feira, nos bondes e nos botequins que frequentava, lugar de
destaque no rádio (aqui onipresente) e nas manchetes dos jornais
(outra novidade).
Lembrava Moisés que, em sua terra natal, quando eventu-
almente se visitava algum outro centro urbano, de imediato se
procurava saber do mercado e da igreja, seu porte, sua ostenta-
ção, e a partir daí se tinha um parecer sobre a importância e a
prosperidade do lugar. Imaginava encontrar, na capital, igrejas
imensas e glorificadas. Vã ilusão: o templo maior da cidade nada
tinha de santificado e levava o estranho nome de Maracanã,
assustador gigante de concreto, Meca de cânticos profanos, do
Introdução 27

obscuro culto à bola e a seus efêmeros artistas. Desconjuro, me-


lhor manter distância disso!
Com o passar do tempo, entretanto, tornara-se impossível
permanecer indiferente ao futebol. Os colegas insistiam em in-
dagar-lhe o clube pelo qual “torcia”. Soava-lhe estranho que não
interessasse a ninguém saber qual seu santo protetor, mas sim o
clube ao qual deveria se ligar de forma intensa, definitiva, fiel,
para o qual deveria implorar sucesso aos céus, viver suas glórias
e amargar seus infortúnios. Não ter um clube era como estar
ausente, não fazer parte da cidade para a qual Moisés viera em
definitivo. Para quem estava timidamente chegando e tentan-
do se “acomodar” (se territorializar) naquela selva de símbolos
desconhecidos, a omissão pouco a pouco se revelava uma opção
equivocada.
Em 1959, já estabelecido, Moisés resolve se casar. Não há
de confiar, obviamente, nas moças ruidosas que usam batons
e biquínis, e vai a Taboleiros rever familiares, amigos e, sobre-
tudo, buscar uma jovem laboriosa e recatada para matrimônio.
Idalice, que ele apenas conhecera a distância, mas com as me-
lhores referências, já era moça e preenchia bem os requisitos.
Para ela, um convite irrecusável, porta que se abria para fugir
da pobreza reinante no lugar e, sem saber, cumprir seu desti-
no traçado pelos fios invisíveis das macroestruturas sociais. E
foi assim que se instalaram no modesto bairro do Encantado,
subúrbio ferroviário da capital, para iniciar vida nova. Sem pa-
rentes numa cidade imensa, de códigos estranhos e terrivel-
mente impessoais, adotar um clube de futebol parecia ser uma
via garantida para criar novos vínculos, reais e imaginários,
um passo certeiro no lento e sempre incompleto processo de
reterritorialização do migrante.
Naquele início da década de 1960, felizmente, não era difí-
cil para Moisés e Idalice escolherem um clube no Rio de Janeiro,
pois finalmente o poderoso esquadrão santista de Pelé tinha um
28 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

rival à altura, o Botafogo do inigualável Garrincha.2 De Garrincha


e muito mais: Didi, Nilton Santos, Amarildo e Zagallo. Botafogo
e Santos parecem sintetizar o melhor período do futebol brasileiro
de todos os tempos e, quando se enfrentaram no Maracanã, em ja-
neiro de 1962, na mais apurada exibição de talentos futebolísticos
que já se viu,3 o casal baiano lá estava, experimentando no estádio
a essência da urbanidade e comungando com 95 mil “vizinhos”
aquela confortante sensação de finalmente pertencer à gigantesca
comunidade metropolitana. Vibraram, cantaram, abraçaram es-
tranhos e saltitaram intensamente com a vitória carioca, a despei-
to de Idalice estar no quarto mês de gestação de seu segundo filho.
Em 17 de junho daquele ano, o Brasil conquistava o bicam-
peonato mundial de futebol. Três dias depois, ainda no calor das co-
memorações, nascia o segundo filho do casal, que, sendo homem,
deveria indubitavelmente homenagear pelo nome um dos gloriosos
atletas do selecionado nacional. Entretanto, o astro Pelé era na verda-
de Edson; o fabuloso Garrincha se chamava Manuel; o mestre Didi
era Waldir; e Mário era o primeiro nome de Zagallo. São denomi-
nações que, a despeito do gosto de cada um, em nada lembravam os
pretensos homenageados. Ao fim de breve rastreamento, entre Nilton
(do zagueiro Nilton Santos) e Gilmar (o grande goleiro), prevaleceu

2
Segundo Joel Rufino dos Santos, “no interior de Alagoas viveu, muitos anos
atrás, uma aldeia de índios chamada fulniôs. Como não davam trabalho a índios,
os fulniôs foram se transformando em negros. Adotaram seus hábitos, fizeram
filhos com eles. Uma família assim (meio índia, meio negra) veio morar em Pau
Grande, uma aldeia do estado do Rio de Janeiro. Na verdade, a aldeia era uma fá-
brica inglesa de tecidos [...] O maior jogador brasileiro de todos os tempos (pelo
menos o mais artístico) era um preto fulniô que praticava um esporte inglês. Seu
nome: Mané Garrincha” (1981, p. 32).
3
Nas palavras de João Havelange, então presidente da Confederação Brasileira de
Desportos (CBD), aquelas equipes eram “disparadíssimas” as duas melhores do
Brasil e deveriam formar a seleção que iria ao Mundial do Chile em junho, “pois
teríamos uma equipe perfeita com a inclusão de um ou outro elemento de outros
clubes” (Jornal dos Sports, 5 jan. 1962). E assim se fez.
Introdução 29

o último. Aqueles migrantes que outrora ignoravam o futebol tinham


doravante um filho com nome de jogador. E flâmulas do Botafogo
nas paredes da casa. E, muito mais, tinham o espírito embebido de
nova devoção. Na transição do rural para o urbano-metropolitano, o
futebol parece ter sido um ingrediente indispensável na vida de Moi-
sés e Idalice, e de tantos outros de semelhante aventura.

***

Em um retângulo gramado e plano medindo pouco menos


de um hectare, duas equipes de 11 atletas se confrontam, no empe-
nho obstinado por tomar e conduzir um disputado objeto esféri-
co, com a única finalidade de introduzi-lo na defendida “cidadela
adversária”. Esta, uma grande porta de 7,32 m de largura por 2,44
m de altura, duplicada e situada nos dois extremos do campo, é
guarnecida pelo único atleta (o guardião ou goal-keeper) que pode
tocar voluntariamente com as mãos na referida pelota. Decorridos
noventa minutos de ação aparentemente descoordenada e impro-
cedente (correria, trombadas e pontapés), considerar-se-á vitoriosa
a equipe que mais vezes atingir a supracitada finalidade (o goal).
Em síntese, essa simulação de uma batalha campal é uma
tentativa de descrever um jogo de futebol. Trata-se de uma moda-
lidade de esporte coletivo moderno, codificada pelos ingleses em
1863, que, em linhas gerais, muito pouco se modificou desde sua
onda de difusão mundial a partir de 1890. Muito estranhamente,
essa forma insólita de diversão foi, sem dúvida alguma, o mais dura-
douro, disseminado e bem-sucedido produto de exportação da sisu-
da Inglaterra vitoriana, a grande potência mundial do século XIX.
O duelo que transcorre no âmbito do gramado, ainda que am-
plificado por multidões nos estádios, não representa mais que umas
poucas letras minúsculas de um gigantesco texto polissêmico que
(d)escreve o fenômeno social chamado futebol. Um amplo aparato
institucional envolve cada partida; cifras astronômicas são contabi-
30 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

lizadas; paixões identitárias e interesses políticos em diversas escalas


são mobilizados. Concordamos com o sociólogo Mauricio Murad
(1996): existe uma profunda diferença entre o jogo do futebol e o jogo
de futebol. E o jogo do futebol (ao contrário do jogo de) transmutou-
-se profunda e incessantemente desde sua codificação em 1863, rede-
finindo e enriquecendo seu conteúdo e sua espacialidade, ao interagir
com tempos e lugares os mais diversos. O jogo do futebol é o tema
deste livro, que tenta abordá-lo geograficamente, no sentido de vis-
lumbrar seus caminhos de desbravamento e conquista do Brasil.
Para aquilatar um pouco da importância e da ubiquidade que
o futebol alcançou no Brasil, basta um mirar panorâmico sobre qual-
quer porção de seu vasto território. Nos menores sinais de aglomera-
ção humana, mesmo nas mais remotas regiões, notar-se-á que dois
objetos na paisagem caracterizam o essencial de nosso ecúmeno: um
pequeno templo católico e um campinho de futebol. Costuma-se di-
zer que a capela pode eventualmente faltar, pois haverá sempre aque-
la outra do povoado mais próximo. Mas não o campinho, lugar de
animado encontro regular domingueiro, centralidade que comparece
como unidade básica referencial na vida de relações.4
Ao longo da primeira metade do século XX, o futebol se disse-
minou completamente pelo Brasil, tornando-se ingrediente indelével
da integração territorial e um dos mais poderosos elementos definido-
res da nacionalidade. Já onipresente em torno de 1950, como se uma
espécie de monocultura intensiva do futebol passasse a ser praticada
em toda a extensão de nossas terras, o Brasil tornou-se um amplo e
produtivo celeiro de talentos e por isso não tardou a ser reconheci-

4
Em maio de 1993, o Núcleo de Sociologia do Futebol da UERJ encaminhou
uma consulta a todos os municípios brasileiros então existentes, indagando sobre
a disponibilidade de equipamentos de uso coletivo, inclusive nas sedes distritais.
Tal levantamento revelou o “campinho” de futebol como elemento da paisagem
mais frequente que a igreja ou qualquer equipamento de uso coletivo. E como o
espaço mais importante da vida comunitária, onde se realizam reuniões diversas
(incluindo assembleias) e os eventos do calendário festivo, social e até religioso.
Introdução 31

do no exterior como a superpotência do futebol, pátria de Pelé e dos


maiores estádios.5 Assemelhando-se a uma rentável monocultura de
exportação, o requisitado futebol brasileiro espalha hoje milhares de
atletas em todo o planeta.
Não surpreende, pois, que na mente da maioria dos brasileiros
a primeira imagem suscitada ao se ouvir o hino nacional seja a da se-
leção de futebol postada solenemente no gramado, diante de mais um
confronto internacional, a colocar em jogo o valor da “raça” e a honra
da nação.6 Os quase esquecidos símbolos oficiais da pátria não cor-
porificam melhor o sentido popular da nacionalidade que o futebol.
Não há dúvidas de que, durante a realização de uma Copa do Mun-
do, o combalido espírito patriótico emerge e se agiganta, colorindo os
espaços públicos e mobilizando a sociedade em todos os níveis.
Um livro sobre futebol deve explicitar de “qual” futebol está
falando, pois o substantivo abriga um vasto sistema de práticas
e significados, envolvendo diversos agentes e escalas. A literatu-
ra em geral tende a dividir esse sistema em dois grandes grupos
ou circuitos: o futebol “oficial” e o “informal”, com suas distin-
tas espacialidades (o estádio e o “campinho”, respectivamente).
Nesse universo complexo, de extrema heterogeneidade, o antro-

5
Segundo a FIFA, o Brasil possuía cinco dos dez maiores estádios do mundo em
1990 (Murray, 1994, p. 193). Em 1978, sua participação era ainda mais significativa,
apresentando sete estádios nesse seleto grupo (Mason, 1995, p. 64), o que muito bem
reflete o “boom” de construção de estádios gigantes patrocinado pelo regime político
instalado em 1964. Por meio do subsídio para manter ingressos baratos aos estádios
e da política de retenção no país dos grandes ídolos nacionais (como Pelé), o futebol
desempenhou relevante papel na sustentação do regime de exceção no Brasil.
6
Segundo Roberto DaMatta (1982, pp. 33-4), as vitórias em Copas do Mundo são
apropriadas como um ritual de “vingança nacional”, ao reverter momentaneamente
uma visão de que o Brasil seria, no cenário mundial, um país menor ou destina-
do ao fracasso, condicionado pelas mazelas históricas do colonialismo português,
da escravidão, do analfabetismo etc. A vitória numa Copa do Mundo pode ainda
exaltar a valentia, o espírito de luta, a habilidade corporal e a lealdade patriótica do
povo mestiço representado no campo de jogo, herói do triunfo internacional, em
detrimento da incompetência burocrática de nossas elites encasteladas no poder.
32 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

pólogo Arlei Damo (2007) foi mais além e percebeu a existência


de quatro distintas “matrizes”, configurações ou modos de prati-
car o futebol, operação que consideramos muito oportuna.7 São
elas: escolar, bricolada, comunitária e espetacularizada.
A matriz escolar seria aquela praticada no âmbito do sis-
tema de ensino, sobretudo na disciplina Educação Física, o que
aporta ao jogo um conteúdo técnico-científico.
A matriz bricolada seria o que se consagrou chamar de “fu-
tebol de pelada”, o nível mais informal possível de organização,
com ampla margem de improviso, de flexibilização das regras, dos
espaços e tempos de sua prática.

Foto 1 – Matriz bricolada em ação: meninos jogando futebol em


ruelas da Medina de Marrakech. Fevereiro de 2011.

Autor: Gilmar Mascarenhas.

7
Embora o autor tenha deixado claro que tais tipologias possuem conotação estra-
tégica para sua pesquisa, não devendo, por isso, ser utilizadas como “ferramentas
classificatórias com um fim em si mesmas” (2007, p. 48).
Introdução 33

A matriz comunitária estaria entre duas matrizes, a brico-


lada e a de espetáculo, por ser mais padronizada que a primeira
(organizam-se campeonatos, como os “de várzea”) e bem menos
condicionada que a segunda. Talvez possamos defini-la como
uma espécie de circuito superior do futebol informal.
A matriz espetacularizada seria a de formidável apelo mi-
diático, amplamente globalizada, intensamente mercantilizada
e inteiramente controlada pelo sistema FIFA/IB (International
Board). Nessa matriz, há grande divisão social do trabalho (inú-
meros “especialistas”) e exigem-se do atleta altas performances fí-
sicas e técnicas (Damo, 2007, pp. 42-3). Conquanto seja de nos-
so intento incorporar neste livro, em determinado grau, o rico
universo do futebol informal (em suas duas matrizes, na versão
de Damo), devemos admitir que é o futebol de espetáculo que
concentra o eixo de nossa análise. Primeiro, nossa escolha se deve
à sua poderosa espacialidade. Em segundo lugar, justifica-se pela
maior disponibilidade de dados, elemento essencial para uma obra
que pretende abarcar um recorte espaço-temporal muito amplo.
Por fim, porque é este o único circuito que se organiza em escala
nacional, compondo um sistema integrado, gerido pela CBF.8
Uma indagação norteou nossa pesquisa: como o futebol
adquiriu tamanha envergadura no Brasil, contribuindo para a
própria formação da nação, influindo nas estruturas da vida co-
tidiana, impregnando o espaço urbano com objetos (estádios) e
usos “futebolísticos”? Como podemos, a partir de um enfoque
geográfico, apreender facetas do “advento do futebol” no Brasil?
Pensando, claro, o advento como longo processo que envolve des-
de a disponibilidade e captura da informação “futebol” nas redes

8
Acreditamos que estudar o futebol informal brasileiro dentro de um recorte espa-
cial que compreenda todo o território nacional é uma tarefa praticamente impos-
sível, considerando a imensa diversidade de formas que tal modalidade assume.
34 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

internacionais, passando pela inovação sob o enredo do lugar, e


culminando com sua popularização e difusão espacial.
Aquilatar o papel de diversos atores sociais no advento do
futebol no Brasil significa superar a repetida retórica empobrece-
dora, um bordão segundo o qual coube apenas a ingleses9 e jovens
bacharéis em retorno da Europa a tarefa semeadora da inovação.
Cumpre ainda superar a infundada versão de que foram as duas
metrópoles nacionais os polos de adoção e de difusão do futebol
no Brasil, interpretação que é fruto da ignorância generalizada
acerca de outras realidades regionais. Revelar outras vias, lugares
e agentes significa mergulhar na complexidade de um processo
de difusão. Complexidade amparada na diversidade de atores, de
redes em ação e na própria complexidade da configuração terri-
torial brasileira, em diversos pontos e de diversas maneiras aberta
à influência do mundo exterior. Afinal, uma novidade circulava
pelas redes internacionais. Cabe indagar que localidades se inse-
riam nessas redes e, dessas localidades, quais estavam habilitadas a
adotar a inovação.
Há, pois, uma geografia balizando o advento do futebol
no Brasil. Este é o tema tratado na primeira parte, dividida em
três capítulos, que abordam: as redes internacionais de difusão
do futebol, as estruturas coloniais de resistência à adoção e, por
fim, a assimilação e popularização desse esporte ao ritmo da
industrialização.
Se a primeira parte abrange as últimas décadas do século
XIX e as três primeiras do século XX, a segunda situa-se aproxi-
madamente entre as décadas de 1930 e 1980 e se destina a recom-
por elementos essenciais para o processo de formação da pátria

9
Utilizaremos propositalmente como sinônimos os termos “inglês” e “britânico”,
tal qual fez o historiador inglês Aidan Hamilton (que mora no Brasil), na versão
portuguesa de seu livro, alertando-nos: “Eu tenho seguido amplamente a con-
venção brasileira de considerar britânico como inglês, ou seja, incluindo esco-
ceses e galeses” (2001, p. xvii).
Introdução 35

de chuteiras. Nesse período, foi crucial o papel do Estado e de


seus regimes ditatoriais (1937 e 1964) na formulação de políti-
cas de massas, bem como o contexto de urbanização acelerada.
Começaremos tratando do caminho percorrido pelo Brasil para
alcançar a condição de sede da IV Copa do Mundo, em 1950.
Retomaremos o processo de popularização analisado no capítulo
anterior, mas, desta vez, focando outras dimensões, em especial
a espacialidade do espetáculo esportivo: os estádios. A seguir, no
capítulo 5, trataremos de um tema caro à organização do futebol
no Brasil: a força do localismo e a lenta integração nacional. Por
fim, vamos abordar a formidável febre de construção de grandes
estádios no Brasil, elemento que marcou definitivamente nossa
paisagem urbana.
Na terceira e última parte, dividida em dois capítulos, con-
centramo-nos na contemporaneidade, isto é, na profunda transfor-
mação em curso no futebol brasileiro nas últimas duas décadas.
Primeiro, abordamos o processo de concentração de poder e capital.
A concentração oligopólica no futebol, ao mesmo tempo que enri-
quece um pequeno grupo de clubes, condena ao fracasso a maioria
dos demais. Antes, cada campeonato nacional ou regional tinha
seu público garantido, na forma de um mercado local para os es-
tádios locais. Em cada país, dezenas de clubes podiam sobreviver e
remunerar seus jogadores. Com o advento da transmissão televisi-
va planetária, uns poucos eventos passam a monopolizar a atenção
mundial, esvaziando o interesse por campeonatos “menores”. Surge
então uma “elite de clubes” milionários. Os demais clubes, em sua
maioria, tornam-se desprestigiados e, logo, empobrecidos.
Por fim, analisamos a Copa do Mundo como um fenôme-
no acelerador de processos já em curso, que culminam em uma
nova espacialidade do futebol brasileiro, bem menos inclusiva que
a anterior, porque expressão de grandes interesses capitalistas, na
feição globalizada e neoliberal que vem assumindo o futebol.
Parte I
Outras “raízes do Brasil”
Capítulo 1
A “bola nas redes”:
uma novidade aporta nos trópicos

Parece-nos desnecessário argumentar sobre o imenso pode-


rio da Inglaterra, centro do mais vasto império de então, na se-
gunda metade do século XIX. Ele pode ser aquilatado em imagens
que sugerem ser Londres uma reedição ampliada da antiga Roma
(Marx, 1993). Outra expressão reveladora é o fato de, entre 1881
e 1901 – em plena onda da difusão do futebol –, aproximada-
mente cinco milhões de pessoas terem deixado o Reino Unido
para iniciar nova vida no exterior (Birley, 1995, p. 153), levando
consigo uma cultura e a convicção de pertencer ao povo mais ci-
vilizado e progressista do planeta.
Essa quase onipresença da civilização britânica pelo mundo
favoreceu amplamente a difusão dos esportes modernos por ela en-
gendrados, conferindo um traço de unidade cultural ao vasto im-
pério, conforme observou o geógrafo francês Albert Demangeon
(1938, p. 148) em seus estudos de geografia colonial. É notável
que a liderança inglesa nesse processo tenha levado à difusão de
todo um vocabulário próprio que se impôs nos demais países.1
Era assim que, já em 1844, um alemão escrevia sobre a novidade
1
Na França, em particular, a expressão sporstman se introduz em 1823, e somente
em 1889 aparece sportif/ve para designar na língua pátria alguém que pratica
esportes (Grand Larousse de la langue français, 1997, p. 5685, v. VI).
40 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

dos sports: “Não temos palavra para isso, e somos quase forçados a
introduzir o termo em nossa língua”. Mais tarde, a expressão sport
estará consagrada não apenas na Alemanha, mas em todo o plane-
ta: “A terminologia inglesa se difundiu tal qual os termos técnicos
italianos no campo da música” (Elias e Dunning, 1985, p. 188).
O geógrafo Loïc Ravenel (1998, pp. 68-72) identificou três
tipos básicos de difusão do futebol: 1) por transplante (ingleses
vivendo em outros países criam clubes de futebol); 2) por relação
(contatos privilegiados de nacionais com ingleses permitem a ino-
vação); e 3) por imitação (quando nacionais aderem ao futebol
após assistir a ingleses praticando-o seguidamente em praias, par-
ques etc.). Em todos, notamos a participação inglesa. Desejamos,
porém, ultrapassar a simplicidade dessa tipologia básica e estabele-
cer algumas diferenciações internas no leque de agentes de difusão
quanto às rotas utilizadas e à contribuição efetiva destes no pro-
cesso de adoção do futebol, o que certamente variou de um lugar
para outro, conforme a combinação de agentes e fatores locais.
Os ingleses que migraram para trabalhar no setor de merca-
do interno (ferrovias, empresas de serviços urbanos), em minas e
em fábricas, por sua atitude às vezes arrogante e decerto cultural-
mente autorreferenciada (“fechada em clubs”), pouco difundiram
o futebol em terras estrangeiras (relativamente falando, conside-
rando-se sua presença expressiva).2 Os marinheiros britânicos,
por seu turno, entretinham-se pelos portos do mundo praticando
informalmente o futebol. Gozavam, portanto, de maior visibilida-
de, fazendo as cidades portuárias serem, amiúde, as primeiras a to-
mar contato com a novidade. Mas dispunham, aparentemente, de
menor “credibilidade” e, assim, na percepção nativa, alinhavam-

2
A tradicional atitude britânica de autossegregação quando em terras alheias é
reconhecida até por estudiosos ingleses, como Tony Mason, que admite, sem
surpresa, a certeza britânica de “superioridade moral” (1995, p. 15) e o desprezo
pelos costumes locais.
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 41

-se aos agentes anteriormente citados, sendo vistos como “ingleses


loucos” apaixonados por um jogo violento e sem sentido.
Apesar de tais ressalvas quanto à imagem dos ingleses e à sua
escassa interação com os “nativos”, sua presença numericamente
expressiva acabou deixando frutos indeléveis: são formados majo-
ritariamente por ingleses os primeiros clubes de futebol criados na
Itália (Brera, 1975), na França (Delaunay et al., 1982, p. 12), na
Espanha (Terrachet, s. d.), na Argentina (Frydenberg, 1996a), no
Chile (Santa Cruz, 1996), no Uruguai, no Brasil e em vários ou-
tros países.3 A partir da existência dessas agremiações estrangeiras,
foram sendo formados, mais tarde, os primeiros clubes nativos,
quase sempre com o intuito de desafiar os times ingleses. Regis-
tre-se, entretanto, que a formação desses clubes não foi resposta
imediata, pois em diversas localidades os ingleses permaneceram
por muito tempo isolados em sua inusitada e exclusiva prática
futebolística.
Antes de mergulhar no caso brasileiro, apresentaremos um
quadro mais global do processo de difusão do futebol nas malhas
do imperialismo inglês, com relativo destaque para o caso platino,
que muito nos influenciou historicamente.

Em cada porto um amor. E uma bola

Le Havre na França, Gênova na Itália e Rotterdam na Ho-


landa. Bilbao na Espanha e Bremen na Alemanha. Belém no Bra-
sil, Callao no Peru e Valparaíso no Chile, sem citar os casos notó-
rios de Montevidéu e Buenos Aires. São inúmeros os exemplos de
cidades portuárias que, a partir da exibição informal de marinhei-

3
A intensidade dos fluxos comerciais no Atlântico Norte levou o futebol preco-
cemente aos Estados Unidos: em 1867 surge o Harrow School Team, que Kane
e Rote (1978, p. 39) consideram o mais antigo clube de futebol criado fora da
Grã-Bretanha.
42 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

ros britânicos, tiveram contato precoce com o futebol, quase sem-


pre antes de qualquer outra localidade em seus respectivos países.
As zonas portuárias cumpriram papel primordial nesse processo
de difusão, mas houve, sem dúvida, outros caminhos, como os
investimentos ingleses de ultramar em infraestrutura e serviços ur-
banos, ou em mineração, conforme abordaremos adiante.
A difusão planetária do futebol está intrinsecamente rela-
cionada ao imperialismo inglês e à sua vasta área de influência,
condição que lhe permitiu êxito muito superior ao de outras mo-
dalidades de esporte coletivo também detentoras de grande apelo
popular, como o beisebol norte-americano.4 Lembremos que das
Ilhas Britânicas partiu mais de 1/3 da volumosa onda migratória
europeia entre 1850 e 1890 (Said, 1995; Hobsbawm e Ranger,
1984). E que, considerando-se o chamado “império informal”,
aquele formado por Estados independentes porém subalternos
economicamente à Inglaterra, no final do século XIX, “talvez 1/3
do planeta fosse britânico em sentido econômico e, na verdade,
cultural” (Hobsbawm, 1988, p. 111).
As redes de suporte desse vasto império ofereceram as ro-
tas fundamentais de difusão de inovações como o futebol. Seus
agentes de difusão foram, além de marinheiros, os migrantes bri-
tânicos trabalhando em empreendimentos imperialistas, conhece-
dores daquele esporte que se popularizou amplamente no Reino
Unido a partir de 1880. Curioso observar que o próprio domínio
da prática esportiva parecia ser um atributo desejável aos que dei-

4
O beisebol adquiriu grande popularidade nos Estados Unidos, antecipando-se,
nesse aspecto, em uma ou duas décadas em relação ao futebol na Inglaterra. Sua
difusão, contudo, restringiu-se a alguns poucos países, sobretudo caribenhos, e à
região noroeste do México (Rivera, 1999; Arbena, 2000; Zavala, 2000). Tal fenô-
meno se explica e se delimita, em grande medida, pela área de efetiva influência
norte-americana no final do século XIX.
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 43

xavam as Ilhas Britânicas em busca de trabalho em algum ponto


do extenso domínio territorial inglês.5
Evidentemente, nem todas as regiões “importadoras” do fu-
tebol são colônias inglesas, mas em praticamente todos os países
com os quais mantinham relações comerciais os ingleses aporta-
ram esse jogo como mais um produto de sua vigorosa “indústria”.
Não é por acaso que a fundação do primeiro clube de futebol
formado no continente europeu, além dos limites das Ilhas Bri-
tânicas, ocorreu em Le Havre, na França, em 1872. Trata-se de
uma cidade portuária da Normandia estreitamente conectada à
Inglaterra (Mercier, 1966).
A Espanha se apresenta como um caso revelador desta
equação “ingleses + porto = informação futebol”. No final do
século XIX, o país não apresentava numerosos ou expressivos
centros industriais, mas oferecia às redes internacionais um am-
plo conjunto de portos, e esse aspecto de sua configuração ter-
ritorial será decisivo no padrão polinucleado de introdução do
futebol, semelhante ao brasileiro, pois a presença de numerosas
zonas portuárias assinalava a dispersão espacial de contatos com
a poderosa frota mercante inglesa. Quando um porto se locali-
zava junto a atrativos outros, como minas de ferro, a atração de
capitais ingleses se fazia inevitável.
Outro fator a condicionar o processo de adoção do futebol
é o fato de que, quando este inicia sua grande onda de difusão
mundial, já se nota, em alguns países, um avançado processo de

5
No final do século XIX, o futuro pai de Eric Hobsbawm, quando muito jo-
vem, foi convidado por seu irmão, que trabalhava nos “correios e telégrafos” do
Egito (país ocupado pela Grã-Bretanha em 1882), a migrar para aquele país,
pois ali encontraria excelentes perspectivas, sendo um sujeito inteligente e “bom
esportista versátil” (além de “pugilista de nível de campeonato”). “Era exata-
mente o tipo de inglês que encontraria e manteria um cargo num escritório de
navegação muito mais facilmente nas ‘colônias’ que em qualquer outro lugar”
(Hobsbawm, 1988, p. 15).
44 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

esportização,6 a ponto de este ter elevado alguma outra modali-


dade esportiva à condição de esporte nacional. Além do supra-
citado beisebol nos Estados Unidos, podemos exemplificar com
o críquete no subcontinente indiano, o rugby na África do Sul e
a força de ambas as modalidades na Oceania. Tais esportes já se
encontravam por demais consolidados naquele momento para se-
rem substituídos pelo futebol. Por essa via, James Walvin (1975)
procura entender a razão pela qual o futebol não foi plenamente
adotado nas principais colônias inglesas, um aparente paradoxo. A
América do Sul não apresentava naquele contexto nenhuma mo-
dalidade esportiva plenamente consolidada, de forma que pôde
abraçar o futebol como seu esporte predileto.
Em síntese, a grande extensão do Império Britânico pro-
piciou a larga difusão da informação “futebol”, mas seu efetivo
advento dependeu de fatores locais, de modo que somente uma
abordagem geograficamente fundada pode dar conta dos diferen-
tes ritmos de adoção da inovação. A poderosa frota mercante in-
glesa percorria os portos de quase todo o planeta, e enquanto os
navios descarregavam os produtos de sua indústria e se abasteciam
de matéria-prima barata, os marinheiros se entretinham com mu-
lheres, bebidas e faziam, com inusitada euforia, a bola correr nos
arredores do porto, capturando olhares locais. Assim ocorreu em
inúmeras cidades portuárias brasileiras no final do século XIX.
Mas a aceitação desse novo divertimento “inglês” foi, não obs-
tante seus apelos “coloniais”, um processo lento, gradual e confli-
tuoso, por motivos socioculturais intrinsecamente associados ao
contexto da dinâmica urbana e territorial.

6
Conceito utilizado por Norbert Elias para definir as mudanças sociais nas quais
as tradicionais atividades lúdicas (jogos) tornam-se (ou são substituídas por) “es-
portes modernos”, isto é, dotadas de princípios de competitividade, medição
precisa do tempo, organização burocrática etc. Cf. Elias e Dunning (1985).
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 45

No alvorecer do século XX, poucas cidades no Brasil co-


nheciam o association football, e um número ainda menor delas
o praticava com alguma regularidade. Levantamentos que reali-
zamos em livros, arquivos e jornais de diversas cidades do país
revelam o estranhamento que tal esporte poderia causar até nas
capitais. A rigor, em 1900 não existia no Brasil nenhuma liga de
futebol e, portanto, nenhum campeonato. Em toda a América do
Sul, com exceção do Chile, ao que parece, somente o próspero
eixo do Prata (Buenos Aires e Montevidéu) realizava regularmente
eventos futebolísticos naquela virada de século.7 Tal precocidade
guarda relação direta com a expressiva presença inglesa: segundo
Allen Guttmann (1994, p. 56) e Hobsbawm (1988, p. 14), Ar-
gentina e Uruguai eram praticamente colônias de um “Império
Britânico informal”.
Já em 1806, os ingleses ocuparam militarmente a cidade
de Buenos Aires durante 45 dias. Nas horas de folga, os soldados
se dedicavam à prática do críquete, então o esporte mais popular
na Inglaterra. Nas palavras de Allen Guttmann (1994, p. 57), as
tropas se foram, os comerciantes chegaram, e um deles fundou,
além de uma biblioteca e um colégio britânicos, um clube de
críquete em 1919. Iniciava-se um ciclo de pioneirismo esportivo
de Buenos Aires no contexto sul-americano: o primeiro clube de
golfe, a primeira quadra de tênis e os primeiros clubes de futebol

7
A título de ilustração, na Bolívia, a primeira liga de futebol foi criada somente
em 1914, a La Paz Football Association (Penaloza, 1993, p. 23). Em seu livro
sobre o futebol na América do Sul, Tony Mason (1995) praticamente restringe-
se a Brasil, Argentina e Uruguai. Guttmann (1994), ao tratar do mesmo con-
tinente, cita esses países e inclui o Chile. Tais restrições revelam o peso, no
futebol sul-americano, desses quatro países, que juntos formam, nas palavras de
Santa Cruz, o “bloco pioneiro” (1996, pp. 49-50) na adoção do futebol no con-
tinente. Não por acaso, são eles os fundadores da liga sul-americana (a CON-
MEBOL), em 1916.
46 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

são todas elas iniciativas vinculadas à presença de numerosa co-


lônia inglesa na cidade.
No último terço do século XIX, expandiu-se brutalmente
a exportação de capitais ingleses, que se dirigiam não apenas às
tradicionais possessões do império, mas às suas “colônias de po-
voamento branco” “e aos que podem ser chamados de ‘domínios
honorários, como a Argentina e o Uruguai’” (Hobsbawm, 1988,
p. 100). Na América do Sul, os interesses britânicos, apesar de
territorialmente difusos, encontravam grande concentração no
rico comércio platino. A propósito, H. Ferns afirma que entre
1880 e 1914 – período crucial para a difusão do futebol – a cone-
xão econômica da Grã-Bretanha com a Argentina foi maior que
aquela com China ou Egito e, “talvez, maior até que com a Índia
enquanto fonte de alimentos e matéria-prima” (apud Mangan,
2000, p. 80), podendo ser equiparada, como frente de investi-
mentos, a domínios formais como Canadá e Austrália.
A cidade de Buenos Aires, grande porto escoador e cabe-
ça de ampla rede ferroviária, apresentava vertiginoso crescimen-
to econômico e demográfico, alcançando a marca dos 950 mil
habitantes em 1904. Suas ferrovias desbravavam o “deserto” do
pampa e acumulavam centralidade e riqueza na capital argentina,
que vivia sua “década de ouro” em 1880 (Vasquez-Rial, 1996, p.
160). O afluxo de migrantes era imenso: dos 600 mil habitan-
tes existentes em 1895, metade era composta por italianos, e os
estrangeiros ao todo somavam 3/4 da população portenha, con-
formando um ambiente urbano cosmopolita, de intensas trocas
culturais, propício à adoção de inovações. Ademais, as novas elites
(os industriais e grandes comerciantes) adotam o ideário europeu
“civilizador” em detrimento do arcaísmo caudilhesco (Vasquez-
-Rial, 1996).
Viviam na próspera capital argentina do final do século XIX
nada menos que 40 mil ingleses, e a maioria dos primeiros clubes
de futebol era formada no interior dos estabelecimentos de en-
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 47

sino (como o famoso clube “Alumni”, do Buenos Aires English


High School) para filhos de altos funcionários membros da colô-
nia inglesa, onde o futebol era praticado sistematicamente (Rey,
1948; Sebreli, 1981, p. 20; Archetti, 1995, p. 203; Frydenberg,
1996b). Não por acaso, o primeiro campeão argentino foi o time
do colégio St. Andrews (Guttmann, 1994, p. 59), e a primeira liga
de futebol argentina foi fundada por um cidadão britânico (esco-
cês), congregando equipes formadas e dirigidas por conterrâneos
e tendo seus eventos divulgados também pela imprensa de língua
inglesa na cidade.8 Até 1905, este será o idioma oficial das atas
da Argentine Association Football League (Cerutti, 1990). Em
1893, quando se funda tal liga, esta conta com aproximadamente
20 “teams”, originados, em sua maioria, em escolas inglesas.
Esta seria uma das principais singularidades platinas: a pre-
sença de numerosa colônia inglesa fomentou a criação de estabeleci-
mentos educacionais próprios, e nestes o futebol foi sistematicamen-
te praticado a partir de 1870 (Archetti, 1995, p. 203). Neste caso, os
agentes de difusão não são apenas marinheiros, técnicos de ferrovias
ou operários de minas, mas sobretudo professores. Trata-se de uma
variação no padrão clássico de difusão, decorrente do elevado grau
de conectividade da região com os negócios ingleses. Em 1907, ha-
verá mais de dez ligas de futebol em Buenos Aires, reunindo 350
clubes aproximadamente (Frydenberg, 1998).
O Uruguai viveu processo muito semelhante (Mason,
1995, p. 7). Tal qual Buenos Aires, porém em escala bem menor
(são apenas 33 mil habitantes em 1852), Montevidéu e suas elites
escolheram o futebol como via privilegiada de “exercício atlético”
e como forma de a “raça latina” adquirir força e confiança (Rocca,
1990, p. 9). Antes, em 1893, o reitor Alfredo Vázquez já dizia

8
O escocês Watson Hutton, fundador da liga, migrou para Buenos Aires em 1882
para fundar mais um estabelecimento escolar britânico e nele introduziu o fute-
bol (Cerutti, 1990, p. 12).
48 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

que por meio do futebol a raça saxônica seria enfim superada pela
latina (Morales, 1969, p. 25). Não por acaso, parte de acadêmicos
de medicina a ideia de fundar em 1899 um clube nativo para en-
frentar os times ingleses, com o revelador nome de Club Nacional
de Football.
Com tamanha precocidade e rápido desenvolvimento, o
futebol platino se destacava no início do século com ampla su-
perioridade técnica. Certamente, em nenhuma cidade brasileira
houve uma concentração espacial de firmas britânicas tão ele-
vada como a que se verificou em Buenos Aires naquele período.
No Brasil, os ingleses fundaram clubes e em determinadas loca-
lidades colaboraram decisivamente para a criação de ligas, mas
não chegaram jamais a monopolizar o futebol por tanto tempo
ou de forma tão contundente,9 conforme trataremos especifica-
mente no próximo segmento.

As “portas” do Brasil: as redes e o território

Em linhas gerais, disseminou-se a avaliação superficial de


que o caso brasileiro segue o clássico processo de introdução e di-
fusão do futebol, isto é, aquele vinculado ao imperialismo britâni-
co, que penetra pelo porto principal para depois se espraiar pelo
conjunto do território nacional. Entretanto, a existência de vários
portos distantes entre si e a dispersão espacial dos investimentos

9
Segundo Allen Guttmann (1994, p. 60), ainda em 1914 os sobrenomes britâni-
cos superavam os hispânicos na extensa lista de jogadores em atividade na Argen-
tina. Frydenberg (1996b), ao estudar a origem das denominações de clubes de
futebol em Buenos Aires, verifica não apenas a forte influência da língua inglesa
(que perdura ainda hoje: River Plate, Racing, Newell Old Boys etc.), mas tam-
bém um movimento, entre 1900 e 1910, de adoção do termo “argentinos”, dife-
renciando-se da terminologia inglesa predominante e expressando o que Cerutti
(1990, p. 28) e Bayer (1990) identificam no início do século como uma luta pela
castellanización e acriollamiento do futebol portenho.
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 49

ingleses conformaram no Brasil um quadro peculiar, muito distinto


daquele verificado na Argentina, no Chile e no Uruguai. Aliás, ao
contrário do que afirmou Janet Lever (1983, p. 64) ao sugerir um
modelo comum para a América do Sul, não podemos localizar um
único ponto no território do Brasil a partir do qual o futebol, como
inovação, tenha se introduzido e se difundido espacialmente, em-
bora reconheçamos a primazia paulistana no processo de adoção.10
Verifica-se, então, um caso atípico, no qual o futebol penetra no
território nacional quase simultaneamente por vários pontos desco-
nectados entre si (mas conectados com o exterior), como incursões
independentes no movimento conjunto da difusão.
Tratar das primeiras ondas de difusão do futebol requer a
verificação da presença inglesa, e sem dúvida o Brasil esteve en-
volvido nas malhas desse grande império do século XIX. Entre
1808 e 1924, excetuando-se os anos da Primeira Guerra Mundial,
os ingleses efetivamente dominaram o comércio exterior brasilei-
ro: ao longo do século XIX, o porto do Rio de Janeiro avistou
mais bandeiras inglesas que as de todas as demais nacionalidades
somadas, inclusive portuguesas e norte-americanas (Manchester,
1973, p. 261). E pelo litoral do Brasil penetraram não apenas os
numerosos produtos da poderosa indústria inglesa, mas também
os valores e comportamentos considerados civilizadores, entre os
quais a prática esportiva, principalmente a partir de 1850.
A presença constante nos portos, associada à implantação
concomitante de ferrovias e diversos outros equipamentos em
nosso território (exportação de capitais britânicos destinados ao
setor de mercado interno), viabilizou relativo contato com diver-

10
Podemos admitir um processo bem mais simplificado em países como Uruguai e
Argentina, nos quais o território nacional encontrava-se já em fins do século XIX
polarizado por um único grande centro portuário e capital da República. Em
outras palavras, Buenos Aires e Montevidéu dispunham de grande capacidade de
penetração no interior do território por meio da malha ferroviária radiocêntrica.
Sobre a primazia paulistana, ver Mascarenhas (1999c).
50 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

sas práticas socioculturais inglesas, entre elas o futebol, conforme


atestam inúmeros registros na historiografia. No Paraná, consi-
dera-se como introdutor do futebol o inglês Charles Wright, que
atuava em Ponta Grossa na construção da ferrovia (Chrestenzen
e Machado, 1991). Em Fortaleza (CE), a primeira partida de fu-
tebol oficialmente reconhecida foi o desafio da juventude local
ao time inglês da The Gaz Company (Maia, 1956, pp. 13-4).
Em São Paulo, os três primeiros campeonatos foram conquista-
dos pelo time de ingleses São Paulo Athletic. Em Niterói (RJ), o
primeiro clube de futebol foi o Rio Football Club, fundado por
Mr. Makintosch, “evidenciando de forma direta sua ligação com
os ingleses do Rio Cricket and Athletic Association”, fundado em
1896 (Pereira, 2000, p. 28). Em Salvador (BA), era formado intei-
ramente por ingleses o primeiro clube campeão baiano, em 1905.
Quanto ao processo de assimilação do futebol, nosso levan-
tamento permite afirmar que somente nos locais em que a colônia
inglesa era mais expressiva numericamente, e de presença mais
duradoura, houve precisamente transmissão cultural. Já vimos o
caso do Prata, exemplo extremo de elevada conexão inglesa, com
resultados condizentes. No Brasil, sobretudo nas localidades em
que a presença britânica foi mais discreta (pelo curto tempo de
permanência na implantação de uma ferrovia, ou pela rarefeita
presença de pequeno grupo de funcionários em empresas de in-
fraestrutura urbana), o futebol não deixou sementes promissoras.
Em João Pessoa (PB), por exemplo, desde o final do século XIX,
os poucos ingleses da Great Western (companhia ferroviária) pra-
ticavam o futebol de forma esporádica. Entretanto, somente em
1908 há um primeiro impulso local mais efetivo pela adoção desse
esporte, justamente quando um animado grupo de universitários
retornava, em férias, à sua cidade natal, trazendo do Rio de Janei-
ro (onde estudavam, em maioria) a prática do futebol, exibindo-o
então em praça pública. Isolados, os ingleses e seus hábitos eram
aparentemente tomados como alienígenas na capital paraibana.
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 51

Foi preciso o aval de um grupo de “nativos” (e de prestigiada


posição social) para que a comunidade local começasse a admi-
tir a possibilidade de praticar o “esporte inglês” (Marques, 1975;
Mascarenhas, 1999c).
Poderíamos listar vários outros exemplos. Mais vale enfa-
tizar, todavia, que a tendência supracitada não se explica apenas
pela natureza ou pelo porte da presença britânica no lugar, pois
o próprio lugar cumpre papel relevante, conforme procuraremos
ressaltar e argumentar neste estudo. Nas cidades maiores e mais
“modernas”, o ambiente cosmopolita gerou um quadro particu-
larmente promissor, que conciliava disponibilidade de informa-
ção e desejo de inovação. Nesse sentido, cidades como Rio de
Janeiro e São Paulo foram privilegiadas no contexto brasileiro.
Não foi unicamente por meio do imperialismo britânico que
o futebol se difundiu mundialmente. Sua influência deve ser re-
lativizada, pois os ingleses, além de socialmente autossegregados,
espacializam-se no Brasil com certa discrição, dentro dos conheci-
dos limites de nossa dinâmica territorial e de nosso grau de inserção
na economia mundial.11 Nesse sentido, os tradicionais agentes de
difusão mundial do futebol não poderiam alcançar no Brasil plena
cobertura do território, deixando, ao contrário, extensas zonas de
sombra. O cenário em questão abre, desse modo, plenas possibilida-
des para a atuação de outros agentes difusores de inovações.
No caso do futebol, as localidades que não atraíam investimen-
tos ingleses (ou que simplesmente não estavam na rota desses capi-
tais) provavelmente mantiveram-se, de início, alheias àquela novidade
esportiva. Entretanto, aquelas não eram as únicas formas de cone-
xão com o “mundo civilizado”. Outras redes internacionais atuavam

11
Segundo Richard Graham (1968), a presença inglesa no território brasileiro no
final do século é bastante seletiva, concentrando-se fundamentalmente nas zonas
portuárias (comércio) e grandes cidades (firmas de infraestrutura e serviços urba-
nos), conformando, assim, conexões pontuais e isoladas.
52 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

no território brasileiro, muitas vezes atingindo localidades remotas.


Uma delas era a congregação católica marista e seus estabelecimentos
educacionais. O fato de essa instituição privilegiar a prática esportiva
em sua pedagogia propiciou a muitas localidades um contato positi-
vo com os esportes, entre eles o futebol, sendo os maristas particu-
larmente decisivos na introdução deste em cidades como Uberaba
(MG) e Santa Maria (RS) (Mascarenhas e Silva, 2000).
Também os estabelecimentos jesuítas prestaram grande
serviço à difusão do futebol, fato registrado na literatura desde
Mazzoni (1950), como os casos de Itu (SP, Colégio São Luiz,
caso de adoção muito precoce) e Nova Friburgo (RJ, Colégio
Anchieta). Percebemos ainda a influência determinante de edu-
candários jesuítas em Florianópolis (SC), quando em 1906 fa-
zem aportar na cidade as primeiras bolas e as regras do futebol
(Borges, 1996).
Na pequena cidade mineira de Uberaba, no início do sécu-
lo, praticamente inexistia vida esportiva. Entretanto, no Ginásio
Diocesano (colégio marista), desde 1903 os alunos praticam um
misto de rugby e association. Numa época em que equipamentos
esportivos eram raros e muito caros, aqueles rapazes tiveram o
privilégio de dispor de uma bola de futebol trazida da França.12
Havia ainda a influência dos jovens que estudaram no supracita-
do Colégio São Luiz, em Itu (SP), onde aprenderam o futebol; e
é sintomático da contribuição marista que o primeiro clube lo-
cal tenha sido o Diocesano FC, fundado em 1909. Desse ano até
1913, surgiram várias outras agremiações, num surto futebolís-
tico que obrigou a Câmara Municipal de Uberaba a regulamen-
tar a prática do futebol em espaços públicos, impondo severas

12
Segundo Mazzoni (1950), mesmo em São Paulo, até 1900 não havia nenhum
estabelecimento comercial de produtos esportivos que vendesse bolas, chuteiras
etc., daí a importância dos equipamentos trazidos por jovens como Miller, Cox
e outros indivíduos de mobilidade internacional, como os sacerdotes.
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 53

restrições.13 No mesmo período, surge a primeira liga, que logo


entra em crise por causa de conflitos profundos e insanáveis, que
levam à sua imediata extinção. O futebol local entra em declínio
(talvez como efeito também das restrições oficiais), e a partir de
1915 não há mais partidas, sobrevivendo apenas o pioneiro Dioce-
sano FC, durante dois anos, até 1917, quando novos clubes surgem
e se consolida paulatinamente a prática futebolística em Uberaba.14
Ter resistido à onda de desânimo que se abateu sobre a ju-
ventude de Uberaba em meados dos anos 1910 mostra a força e
a estabilidade do Diocesano FC. Estar vinculado a um estabele-
cimento consolidado, estável, firme em seus propósitos de manu-
tenção da prática esportiva, certamente contribuiu para sua per-
sistência no frágil cenário esportivo local. Os colégios religiosos
não eram apenas instituições dotadas de conexões internacionais,
mas, sim, estabelecimentos sólidos, que desfrutavam de respeito
e grande ascendência sobre a comunidade local. Nesse sentido,
posicionaram-se como poderosos agentes de transformação cultu-
ral. No Rio Grande do Sul, ao que tudo indica, também contribu-
íram para a difusão do futebol (Urbim, 1999, p. 137).
Cidades como Uberaba, Santa Maria, Florianópolis e Nova
Friburgo têm em comum, do ponto de vista do espaço de fluxos
no início do século XX, o fato de estarem todas relativamente
isoladas dos eixos dinâmicos da economia agroexportadora e, por-
tanto, das redes internacionais. Nem a (supostamente privilegia-
da) condição portuária da capital catarinense foi suficiente para
inserir a localidade nas redes em pauta: seu porto é então basica-
mente de alcance regional, navegação de cabotagem, dedicado aos

13
Restrições relacionadas à distância mínima (no caso, 20 m) em relação a edifica-
ções privadas e bens públicos, proibição do exercício em praças e obrigação de
uso de arame farpado em torno dos campos de futebol.
14
Todas as informações sobre a história do futebol em Uberaba foram colhidas por
Hildebrando Pontes (1972). Trata-se de valioso material redigido originalmente
nos anos 1920.
54 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

pequenos núcleos costeiros de pescadores, competindo ainda com


outros portos regionais em ascensão (Itajaí e São Francisco).
Nos complexos caminhos de difusão do futebol, mais im-
portantes que a via religiosa foram os vínculos estabelecidos com o
Velho Mundo por meio de suas tradicionais universidades. Todavia,
somente Rio de Janeiro (com duas instituições), São Paulo, Recife e
Salvador (com uma cada) possuíam instituições de ensino superior
no final do século XIX. Face à escassez de estabelecimentos univer-
sitários no Brasil até o início do século XX, da Europa retornavam
nossos jovens bacharéis, bem informados quanto aos modismos eu-
ropeus e desejosos de atuar como vanguarda civilizatória. Muito
mais que os “alienígenas” agentes britânicos, os ilustrados filhos da
aristocracia desfrutavam do suficiente reconhecimento da sociedade
brasileira para legitimar inovações no plano cultural.
As localidades que dispunham de condições de enviar seus fi-
lhos privilegiados para estudar na Europa obtiveram, por esse canal,
uma via para estabelecer contato direto com as novidades da “civi-
lização”. Contato que se tornava ainda mais importante quando o
lugar carecia de outras formas de conexão com o exterior, como a já
citada via inglesa. Nesses casos, quase sempre, coube aos bacharéis a
missão de portadores das últimas novidades do Velho Mundo, en-
tre elas o futebol. Nesse sentido, várias cidades brasileiras excluídas
da zona de interesse e atuação do capital britânico conheceram o
futebol por intermédio de sua juventude aristocrática em retorno da
Europa. Em Salvador, por exemplo, coube a um filho de banqueiro,
em retorno de seus estudos na Inglaterra, trazer, em 1901, as regras
e uma bola de futebol (Mazzoni, 1950, p. 36). Em São Luís do Ma-
ranhão, coube a Joaquim Moreira Alves dos Santos, ao regressar de
Liverpool, em 1905 – onde fora estudar, tornando-se um ardoroso
praticante do football –, a introdução desse esporte.15

15
O jovem maranhense não se esqueceu, obviamente, de trazer em sua bagagem
os apetrechos necessários à prática futebolística: chuteiras, apitos, bolas etc.
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 55

Outro caso ilustrativo da influência dos bacharéis é o da


cidade de Recife. A capital pernambucana comanda na virada
do século uma vasta hinterlândia e a conecta com o exterior
por meio de seu porto, cuja função principal é a exportação de
açúcar. Tal conexão implica razoável presença de ingleses já em
1885: toda a rede ferroviária, dois bancos, duas companhias te-
legráficas, grandes casas exportadoras e empresas de transporte
urbano (Manchester, 1973, pp. 276-7). Funcionários de firmas
como a Great Western e a Western Telegraph eventualmente
praticam seu futebol, porém “num círculo muito fechado”.16
Assim, em 1905, os brasileiros finalmente organizam seu pró-
prio clube de futebol para um duelo contra o time dos ingleses.
Toda a iniciativa no sentido de sensibilizar os nativos e con-
vencer os ingleses a um confronto coube a Guilherme Fonseca,
que estudou na Inglaterra e regressou a Recife em 1903 com
todos os equipamentos necessários para fundar um clube de
futebol. Ele distribuiu cópias das regras e empenhou-se com
obstinação.17 Sem o empenho e a informação privilegiada de
um brasileiro cosmopolita, a cidade certamente teria levado
mais tempo para admitir e assimilar aquele estranho jogo.
Percebemos em nosso levantamento um quadro comple-
xo de difusão do futebol, que entendemos como reflexo da vas-
tidão e diversidade de situações vividas no território nacional.

De seu empenho surgiu, em 1907, o primeiro clube local, o Fabril Athletic


Club. Na primeira partida oficial, dos 22 jogadores em campo, apenas quatro
eram ingleses, funcionários da Mala Real e da companhia de navegação. Ha-
via ainda na cidade o Bank of London, mas seus funcionários não se interes-
savam pelo futebol. Enfim, cumpre lembrar que nem todo inglês é necessaria-
mente um esportista, quanto menos precisamente um futebolista. Diante da
incipiente presença britânica na cidade, coube a um brasileiro bem informado
o papel de difusor da inovação. Sobre a introdução do futebol no Maranhão,
ver Leopoldo Vaz (2000).
16
Revista Sport Club do Recife, 1992.
17
Jornal Grandes Momentos do Sport, Recife, mai. 1995, p. 4.
56 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Um exemplo da diversidade de agentes possíveis é a cidade de


Campos (RJ), onde há duas versões para a introdução desse
esporte. Uma delas, sem surpresa, sugere a atuação de um en-
genheiro inglês da Leopoldina Railway. A outra, mais aceita e
difundida, identifica como agente introdutor da novidade um
“circo de cavalinhos”, cujos artistas se divertiam nos intervalos
jogando futebol, em 1907 (Ourives, s. d., p. 51). Podemos citar
ainda o caso de Mossoró (RN), onde o futebol foi impulsiona-
do por escoteiros a partir de 1917, gerando, dois anos depois, o
primeiro clube local (Lima, 1982, pp. 25-6).
Em síntese, quando o futebol inicia sua larga difusão
planetária (1880-1900), encontra no Brasil um território frag-
mentado e com uma diminuta base urbana: menos de um dé-
cimo da população brasileira vivia em cidades em 1900. Se-
gundo Milton Santos, “o Brasil foi, durante muitos séculos,
um grande arquipélago formado por subespaços que evoluíam
segundo lógicas próprias, ditadas em grande parte por sua rela-
ção com o mundo exterior” (1993, p. 26). O autor afirma que
a mecanização do território nacional a partir de meados do sé-
culo XIX aumentou a fluidez interna, mas somente a partir de
1930 o território conheceria o início de sua integração efetiva,
com uma urbanização cada vez mais envolvente. A adoção do
futebol acompanha, em grande medida, essa lógica territorial
em evolução.
Tentamos argumentar neste capítulo que a conformação
do território, ainda fortemente marcado pela herança colonial,
condicionou o processo de difusão do futebol. Mas as limita-
ções não terminam aí. Uma vez conhecido o novo esporte, suas
regras e seus significados, associados ao nobre cosmopolitismo
e a modismos europeus, havia ainda algumas barreiras cultu-
rais à sua adoção. Entendemos tais obstáculos como elementos
de outra face do legado colonial, ligada diretamente à dinâmi-
ca interna do espaço urbano, mais precisamente aos modos de
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 57

uso do corpo e dos espaços públicos, âmbitos essenciais para se


praticar o futebol. Assim adentraremos no próximo capítulo,
mergulhando no cotidiano da cidade colonial.
Capítulo 2
Uma “retranca” para a adoção do
football: o legado colonial

Segundo Allen Guttmann (1994, p. 174), são múltiplas as


motivações que envolvem a adoção de uma novidade esportiva.
Adicionamos que o processo de adoção tende a apresentar dis-
tintas etapas. No caso do futebol, seu completo advento perfaz
diferentes momentos, ou níveis de adoção, variando do mais in-
formal (práticas espontâneas, sem rigor espaço-temporal) ao mais
“oficial” (realização de campeonatos programados por ligas orga-
nizadas, nos estádios, objetos geográficos especificamente criados
para essa finalidade).
Nesse sentido, numa mesma localidade, o futebol pode
apresentar ou percorrer distintas etapas de inovação, conforme
nos foi possível observar examinando ampla literatura sobre a his-
tória desse esporte não só em diversas localidades no Brasil, mas
também em países como Argentina, Uruguai, Espanha, Portugal,
França e Itália. Geramos, assim, o seguinte roteiro hipotético, que
contém dez etapas:

a. a observação involuntária e casual (a princípio com re-


púdio e estranhamento) de ingleses (marinheiros, mi-
neiros etc.) informalmente jogando futebol em suas ho-
60 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

ras de folga; trata-se, geralmente, da primeira aquisição


da informação;
b. a observação interessada e sistemática (com certa admi-
ração e curiosidade) dos fatos supramencionados; início
da aceitação da novidade, antes repudiada como aliení-
gena, violenta, insana e ilógica;
c. o primeiro contato direto com a pelota e as regras do
jogo; aquisição de informações minuciosas, visando à
correta operacionalização da prática esportiva;
d. o primeiro duelo informal, quase sempre em local im-
provisado, reunindo geralmente ingleses praticantes
radicados no lugar e nativos interessados em aprender
o futebol (exceção para as localidades que conheceram
mais tarde o futebol por meio de colégios religiosos ou
agentes nativos);
e. a formação/oficialização do primeiro clube de futebol
nativo, que se propõe a promover a prática regular, a
difundir/ensinar o esporte inglês e a realizar partidas,
quando possível, entre seus dois quadros internos; a in-
formação começa a se expandir para além dos jovens
esportistas;
f. imediatamente após a formação do primeiro clube,
ocorre a escolha/conquista de lugar específico e apro-
priado para a prática contínua do novo esporte: uma
praça a ser demarcada, um terreno baldio a ser aplai-
nado ou, em cidades maiores, uso dos equipamentos
esportivos já existentes e de grande extensão, como hi-
pódromos e velódromos; a inovação começa a adquirir
espacialidade própria;
g. a formação de novos clubes, permitindo o surgimento
de incipientes rivalidades locais e nova motivação para
a prática do futebol; a inovação inicia sua consolidação;
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 61

h. a criação da primeira liga e, consequentemente, a rea-


lização do primeiro campeonato local; a inovação ad-
quire regularidade (treinamento e preparação tática das
equipes) e reconhecimento social, integrando-se à vida
cotidiana;
i. a construção do primeiro estádio, demarcando na pai-
sagem urbana uma centralidade associada exclusiva-
mente ao futebol, expressão de sua força econômica,
política e social, o que facilita a participação em certa-
mes extralocais;
j. a formação das torcidas, massas de indivíduos anôni-
mos que prestigiam determinado clube e garantem arre-
cadação regular na venda de ingressos para as partidas;
assim, o futebol se consolida como lucrativa indústria
do entretenimento e como base de apoio para formas
populistas de projeção política individual.

Certamente, essa evolução não foi seguida a rigor em todas


as localidades, apresentando eventuais inversões ou supressões na
ordem dos acontecimentos. Ela vale, sobretudo, para zonas por-
tuárias e locais que receberam significativo aporte de investimen-
tos ingleses (implantação de ferrovias, fábricas, minas etc.) e que,
ademais, apresentavam escassa “base esportiva” (caso contrário,
saltaríamos a primeira etapa). Nos locais em que não havia forte
conexão inglesa, adquiriram relevo outros agentes, conforme vi-
mos no capítulo anterior.
No tocante ao ritmo de sucessão dessas fases, as circuns-
tâncias de cada lugar pesaram consideravelmente, não apenas va-
riando na intensidade da presença dos agentes mencionados, algo
diretamente relacionado ao nível de inserção de cada localidade
nas redes, mas também variando na reação dos habitantes diante
62 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

da novidade que se apresentava. Adotar o futebol significa aceitar


novos usos do corpo. E esses usos são públicos.
Nesse sentido, quando foi fundado em 1872, na cidade por-
tuária de Le Havre, o primeiro clube de futebol da França, seus
praticantes eram ridicularizados e chamados pela comunidade lo-
cal de “palhaços de circo”. O uso de trajes estranhos ao cotidiano
de então e os atos de saltar, correr desajeitadamente atrás de uma
bola, tropeçar e cair como crianças causavam reações de espanto e
troça (Mercier, 1966, p. 10). De fato, a comunidade local não es-
tava habituada à virilidade dos “esportes modernos”, que implicam
confronto corporal direto em condições pouco previsíveis, expondo
seus praticantes a situações inusitadas para o universo moral provin-
ciano. Reações como essa ocorreram em diversas cidades brasileiras,
especialmente além dos grandes centros cosmopolitas.
A adoção do futebol no Brasil não foi simplesmente uma
resposta mimética da periferia em relação ao centro “civilizador”.
Verificamos um conjunto de condicionantes, um panorama com-
plexo de assimilação e aceitação, que ousamos denominar, apoia-
dos na terminologia popular, de “retranca”, ou seja, de bloco de-
fensivo compacto a dificultar a investida do adversário, conforme
trataremos a seguir.

Resistências a uma nova corporeidade

Hägerstrand (1967, p. 149) já alertava para o fato de que


a adoção de uma inovação no plano cultural não se realiza de
forma simples e imediata, estando plenamente sujeita à ação de
“mecanismos retardadores”.1 Concordamos com essa premissa,
mas a deslocamos da variável “padrão comportamental do in-
divíduo” para a consideração do papel relevante do “lugar” (o

1
A aplicação dessa noção de “barreiras” à propagação dos esportes modernos en-
contra-se na obra do geógrafo John Bale (1989).
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 63

contexto local). De fato, os levantamentos já realizados testemu-


nham que, em regiões ou cidades onde preexistia a prática es-
portiva, a adoção do futebol realizou-se sem maiores percalços,
pois se tratava simplesmente de mais uma modalidade a ser pra-
ticada, com os então já reconhecidos benefícios físicos e morais
do esporte. Barreiras culturais relacionadas à exibição pública de
corpos e músculos já haviam sido trabalhadas, por ocasião da
adoção de práticas esportivas.
No Brasil, é evidente o ritmo diferenciado de adoção do fu-
tebol quando comparamos a zona de colonização alemã no sul (já
habituada aos exercícios físicos e à prática esportiva) com o sertão
do nordeste, onde a atitude de correr atrás de uma pelota de couro
era vista com muito estranhamento, sobretudo quando realizada por
adultos, trajados também de forma insólita, levando o escritor Graci-
liano Ramos a apostar que o futebol ali não vingaria: “O football não
se adapta a estas boas paragens do cangaço; é roupa de empréstimo
que não nos serve” (1990, p. 26). Na mesma crônica, de 1921, o
autor sugere que a resistência sertaneja à novidade europeia poderia
estar relacionada à força de suas tradições culturais, ao contrário da
maleabilidade das populações urbanas litorâneas:

Pensa-se em introduzir o football, nesta terra [...] Vai ser, por


algum tempo, a mania, a maluqueira, a ideia fixa de muita gente
[...] um furor dos demônios, um entusiasmo de fogo de palha
capaz de durar bem um mês. [...] As grandes cidades estão no
litoral; isto aqui é sertão. As cidades regurgitam de gente que pre-
tende ser de outras raças; nós somos mais ou menos botocudos,
com laivos de sangue cabinda e galego. [...] Estrangeirices não
entram facilmente na terra do espinho (pp. 23-6).

Descontando os formidáveis “excessos” literários de Graci-


liano, de fato, o futebol encontrou maior resistência nas pequenas
povoações interioranas, ao menos enquanto este não havia ainda
64 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

se tornado a “paixão nacional”. Sua adoção nos pequenos povo-


ados seria, na terminologia de Hägerstrand, uma “inovação drás-
tica” (1967), isto é, em desarmonia com os valores e estruturas
do ambiente receptor.2 Em Montevidéu, por exemplo, em 1899,
La Revista publica uma crítica ao futebol, acusando-o de absurdo
“triunfo dos pés sobre a cabeça”, por “roubar tempo de leitura”,
já que “poesia e chutes são incompatíveis” (Rocca, 1990, pp. 11-
9). Tratando do advento do futebol na França, Bernand Gillet
(1961, p. 85) observou que,

numa época em que a opinião pública era hostil a esses novos


jogos, fez especial escândalo ver-se a elite da juventude se apai-
xonar por um desporto que apenas parecia ser um regresso às
selvagens partidas de soule ainda não esquecidas.3

A resistência a essa nova corporeidade se abriga em longo


processo histórico. Richard Sennett (1997) assinala a profunda
transição do uso do corpo, transcorrida entre o Império Roma-
no e o medievo: da orgia pública pagã às renúncias corporais do
espaço cristão. Foi justamente o imperador romano Teodósio, no
ano de 349, portanto já em plena vigência da hegemonia cristã,
quem proibiu a continuidade dos Jogos Olímpicos, que existiam
há mais de mil anos. O corpo deveria resignar-se aos imperativos
da alma, que se quer purificar pelo controle severo dos impulsos
carnais. Nesse sentido, encontram-se facilmente registros policiais
2
Na Espanha, “algunos se escandalizaban al ver en los descampados a unos cuan-
tos muchachos en calzoncillos detrás de una pelota de cuero” (Ramos, 1994, p.
8). Na Argentina do final do século XIX, percebendo os constantes acidentes
e agressões entre estudantes praticando futebol, os educadores condenam esse
esporte, afirmando que “el fútbol no es educativo, que es peligroso, violento” (Di
Giano e Frydenberg, 2000).
3
O soule é uma modalidade de jogo coletivo medieval em que duas numerosas
equipes disputam violentamente a posse de uma “bola”, sendo, portanto, uma
modalidade do chamado “futebol ancestral”.
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 65

de perseguição implacável às práticas esportivas populares nas ci-


dades medievais, como o futebol ancestral ou folk football (Elias e
Dunning, 1985); a movimentação descontrolada de centenas de
homens em luta por uma “pelota” provocava nas estreitas ruas
medievais confusão, delitos, gestos considerados imorais e danos
à propriedade privada.4
Com o advento da era renascentista, os estudos sobre o cor-
po, a biomecânica e uma filosofia de apoio à “educação física”
começam a se expandir, ocupando mentes privilegiadas como
Leonardo da Vinci, Montaigne e Francis Bacon, que estabelece-
ram exercícios físicos como ideal de uma educação cortesã (Olivei-
ra, 1994, pp. 36-7). Dessa maneira, alguns ideais greco-romanos
relacionados ao uso do corpo são retomados, instaurando-se uma
nova fase de desenvolvimento da cultura física.
Todavia, mesmo no Renascimento, os esportes que exigiam
grande aplicação de força e/ou atritos corporais se mantiveram
desprestigiados, dada a grande importância atribuída pelos huma-
nistas à erudição, em detrimento da atividade muscular. Também
o zelo moralista e o severo intelectualismo da Reforma e da Con-
trarreforma, segundo o estudioso Huizinga (1996), investiram
contra a prática esportiva. Somente no último quartel do século
XVIII, já no contexto do Iluminismo, efetivamente se expandem
as ideias de resgate e revalorização dos exercícios físicos, tendo em
vista agora o desenvolvimento individual.
No Brasil, vale rever o depoimento de Charles Miller (que
ampla literatura elege como o introdutor do futebol no Brasil),
em entrevista à Gazeta Esportiva, no ano de 1944, em alusão ao
ocorrido em 1902:

4
Folk football é uma expressão muito corrente na literatura inglesa. Augustin
(1995, p. 21) prefere conceituar como football préindustriel, e há quem utilize a
designação “futebol pré-moderno”.
66 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Calculem os senhores que quando realizamos o primeiro jogo


interestadual no Rio, em 1902, de volta a São Paulo solicitei dos
jornais de então que dessem curso à notícia do prélio realizado,
cuja vitória nos pertenceu. Pois a resposta do O Estado de São
Paulo, Correio Paulistano, Plateia e Diário Popular foi uma só:
‘não nos interessa semelhante assunto!’. E hoje em dia como é
diferente... (Hamilton, 2001, p. 37).

A alusão à virilidade extrema do futebol também se veri-


ficou com frequência no Brasil no início do século. Em Porto
Alegre, podia-se ler num jornal no momento em que a cidade iria
realizar sua primeira partida de futebol: “Disseram que era violen-
to. Só violento, não: disseram que era um massacre”.5

Quando os moradores de Porto Alegre leram pela primeira vez


sobre o futebol, a descrição não era de gols, dribles ou jogadas de
efeito. Era de uma pancadaria. Na edição do dia 5 de setembro
de 1903, o jornal A Federação reproduziu uma reportagem do
francês Le Figaro sobre uma partida. Socos, cotoveladas e gritos
de guerra faziam uma síntese do esporte que era sucesso na Eu-
ropa e começava a atrair interesse no Brasil.
[...] Figuraram-se dois campos de 11 adversários, que, segundo
as regras estabelecidas, devem esforçar-se para atirar, no campo
inimigo, uma grande bola de pau coberta de couro. Tem havido
partidas célebres de futebol na Inglaterra, algumas vezes mesmo
na França, às quais assisti, mas o que se vê excede, como bru-
talidade, a tudo quanto a mente humana pôde imaginar. Não
descreverei, por ser isso impossível, as peripécias da partida. Des-
de que ela começa, só se veem braços e pernas enrolados uns
nos outros, socos, empurrões, rasteiras, pontapés, gente que cai

5
Jornal Zero Hora, 20 set. 1999. Série comemorativa do Centenário do Sport
Club Rio Grande.
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 67

enovelada, tudo isso numa confusão indescritível, prodigiosa,


ardente! O entusiasmo do público sublima todas as peripécias
de combate, com os gritos que já citei; respira-se uma atmos-
fera elétrica, saturada de força e ardor guerreiro. Os olhos dos
partidários fuzilam, lançam chispas, muitas mãos se crispam nas
balaustradas, muitos punhos são apontados aos lutadores, e algu-
mas vezes escapam gritos como estes: kill him! (mata-o!) ou então
break his neck (quebra-lhe o pescoço!).6

No Rio de Janeiro, podemos recorrer às palavras afiadas de


Lima Barreto, que encarava o futebol como atividade alienante,
embrutecedora e desprovida de elementos autóctones, além de
provocar dissensão, referindo-se à liga oficial carioca como “Liga
Metropolitana dos Trancos e Pontapés” (1990, p. 8). Sobre a ati-
tude do escritor, assim comentou Joel Rufino dos Santos, que
estuda o futebol desde a década de 1970:

Ali por volta de 1910, quando Lima Barreto estreou como ro-
mancista, o subúrbio em que morava, Todos os Santos, já tinha
três ou quatro ‘grounds’. Campos enviesados e carecas, mas sufi-
cientes para fascinar os amanuenses, empregadinhos do comér-
cio, do Foro, da Central do Brasil, da Marinha, vagabundos e
modinheiros das vizinhanças. Afonso Henriques de Lima Barre-
to, uma espécie de Fausto da literatura brasileira, talvez o maior
escritor de seu tempo, foi seguramente o maior inimigo que o
futebol brasileiro teve em seus começos (1981, p. 107).

Rufino revela também a precoce popularização do futebol


no Rio de Janeiro, alastrando-se pelo subúrbio. Não obstante essa

6
Reportagem publicada originalmente no jornal gaúcho A Federação (5 set. 1903)
sobre uma partida de futebol nos Estados Unidos, transcrita em Zero Hora (20
set. 1999).
68 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

expansão, poderíamos ainda citar, no coro dos adversários do es-


porte inglês, o movimento operário, ao menos até a década de
1920, conforme veremos no próximo capítulo.
Logo, em diversas regiões do mundo, foi comum, num pri-
meiro momento, tomar a movimentação estranha e ruidosa de uma
partida de futebol como um distúrbio.7 Para que praticá-lo, enfim?
Somente adicionando ao jogo um conjunto de sentidos e significa-
dos nobres, trabalho cultural realizado por bacharéis, educadores
laicos e missionários, conforme apontamos anteriormente.
Concordamos com Lawrence Brown (1968, p. 11), quando
este critica o princípio de Hägerstrand segundo o qual a inten-
sidade do fluxo de informação determina o ritmo do processo
de adoção da inovação ao minar gradativamente as resistências
locais. Tal princípio se apoia na noção (aparentemente herdada
de teorias evolucionistas) de que determinada racionalidade “su-
perior”, oriunda dos países desenvolvidos, acaba se impondo a
todos os indivíduos, mesmo nas localidades mais “atrasadas”. Em
outras palavras, a difusão da inovação é tomada como um pro-
cesso inevitável, variando geograficamente apenas em velocidade,
sendo esta determinada pela intensidade do fluxo da informação.
Contrariando esse princípio, verificamos, em nosso levantamen-
to, que no início do século XX o pleno acesso à informação não
foi condição suficiente para a adoção do futebol. Em determinado
contexto local, a informação pode operar como uma semente em
solo infértil. Um ambiente cosmopolita e industrial, aliado a um
desejo de modernidade, foi ingrediente fundamental para que o
futebol germinasse velozmente em São Paulo, ao contrário de Be-
lém do Pará, a despeito da abundância de informação propiciada

7
Allen Guttmann (1994, p. 45) cita uma intervenção policial na Bélgica em 1880
e traz alusões à suposta “insanidade mental” dos primeiros futebolistas em di-
versos países. A expressão “ingleses loucos” se popularizou no Prata por volta
de 1880 como reação às incompreensíveis práticas de entretenimento destes em
espaços públicos de Buenos Aires (Sebreli, 1981) e Montevidéu (Capelán, 1990).
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 69

pela intensa conexão dessa cidade com a Inglaterra, como anima-


do porto exportador da borracha.
Um elemento de resistência à adoção do futebol reside em
sua própria origem britânica. Países que, por meio de guerras pre-
téritas, historicamente desenvolveram relações de rivalidade com
a Inglaterra tenderam, no início, a rejeitar o futebol. França e Ale-
manha são dois conhecidos exemplos (Guttmann, 1994). Já nos
Estados Unidos temos outras vias de anglofobia. A condição de
ex-colônia candidata a potência internacional (e que se libertou
da Inglaterra em circunstâncias particulares) promoveu a forma-
ção de um sentimento nacionalista radical, refratário sobretudo às
novidades inglesas. Esse mesmo nacionalismo promoveu, em de-
trimento do futebol, a ascensão e posterior hegemonia de moda-
lidades esportivas consideradas genuinamente norte-americanas,
como o beisebol, o “futebol americano” (embora derivados res-
pectivamente do críquete e do rugby) e, mais tarde, o basketball,
este sim uma genuína invenção americana, produzida nos labora-
tórios da YMCA.8
Interessante notar que nos Estados Unidos o rejeitado fu-
tebol inglês ressurgiu mais tarde, porém como prática popular de
imigrantes pelas ruas das cidades industriais do nordeste do país.
Tais imigrantes (italianos e escoceses, em sua maioria) eram acu-
sados de antiamericanismo: sua incorrigível devoção pelo futebol
inglês era vista como “a pretty good measure of their refusal to beco-
me Americans” (“um evidente indicador de sua recusa em se tornar
americanos”) (Gardner, 1976, p. 168).
O primeiro clube de futebol nos Estados Unidos foi criado
em 1867. A precocidade do caso norte-americano revela o alto
grau de conectividade do nordeste industrial daquele país com
os negócios britânicos. A posterior condenação do futebol revela

8
Young Men Christian Association. No Brasil, Associação Cristã de Moços
(ACM).
70 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

uma reação política do lugar, contrário à adoção de inovação pro-


veniente do ex-colonizador, no esforço de construção da identi-
dade nacional. Revela ainda que a heterogeneidade cultural local
permite que a adoção seja socialmente realizada de forma parcial e
marginalizada, por pobres migrantes. Trata-se de algo que a teoria
de difusão espacial de inovações de base neopositivista não pode-
ria captar, pois aqueles geógrafos, diferentemente dos sociólogos,
eram pouco atentos para distinguir num mesmo lugar os diferen-
tes grupos sociais, detendo-se na dimensão puramente espacial do
curso da difusão (Harvey, 1973, p. 40).
Analisando o caso brasileiro, percebemos que não se deve
traduzir diretamente presença inglesa por transmissão de valores
culturais ingleses. Observou Gilberto Freyre (1948) que determi-
nados setores da sociedade brasileira ofereceram grande resistência
à adoção de hábitos dos ingleses, que especialmente nas pequenas
cidades eram tomados como “invasores”, às vezes repelidos da co-
munidade mediante o uso da violência física.9 O autor presume
que um dos fatores a explicar a atitude cautelosa ou refratária de
brasileiros em relação aos ingleses seria o autoisolamento destes:
“Repugna-lhes criar amizade nova no estrangeiro ou adquirir há-
bito/palavra exótica [...] inteiramente ingleses, impermeáveis às
civilizações alheias” (1948, p. 36). A mesma atitude que os levou
a criar clubes exclusivos, em que praticavam esportes.10
Evidentemente, a obra de Gilberto Freyre não deve ser lida
fora do contexto de seu peculiar projeto de construção da na-

9
Freyre considera diversos âmbitos nos quais a cultura inglesa foi rechaçada no
Brasil, destacando o protestantismo com ênfase em Jesus Cristo e a igualdade de
direitos políticos e civis entre os sexos.
10
Tal “arrogância imperial” seria vingada, no anedotário dos cafés, por expressões
depreciativas que se popularizaram, do tipo “catinga de inglês” (para cheiro de
bebida alcoólica), e pela difusão de estereótipos como “frios”, “alcoólatras” e “im-
potentes” (com mulheres) (pp. 53-5). No imaginário popular, os navios ingleses
“roubaram o mar do domínio de Iemanjá” (p. 55).
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 71

cionalidade brasileira. Certamente, o autor superdimensionou


a resistência de nossa “cultura luso-brasileira mestiça” quanto à
adoção de costumes ingleses, embora autores menos comprome-
tidos com esse ideário tenham também observado a “anglofobia”
no Brasil, sobretudo na elite imperial agrário-escravista, ferida em
seus interesses.11 No entanto, é inegável que os investimentos bri-
tânicos no Brasil fizeram aportar “ilhas” de operários especializa-
dos, técnicos e gerentes, todos embebidos de uma cultura absolu-
tamente autorreferenciada, alheia à possibilidade de intercâmbio.
O tempo livre era geralmente dedicado a atividades fechadas em
seus clubs: à literatura, ao piano, ao consumo de bebidas, aos jogos
de mesa etc. Registre-se que a prática de esportes ao ar livre, por
exigir espaços abertos, faziam-nos frequentemente recorrer a pra-
ças, parques, praias e terrenos baldios, tornando a atividade visível
à comunidade local e, portanto, passível de assimilação.
Na América do Sul, de modo geral, ao contrário do que
se verificou nos Estados Unidos e na Europa, o produto inglês
foi tomado pelas elites locais como símbolo da modernidade e
do progresso industrial. Particularmente entre segmentos da eli-
te mais “europeizados”, aspectos do estilo de vida importado de
Londres eram vistos como elementos civilizadores. No Brasil, con-
tudo, outros mecanismos de resistência à inovação se mantinham
de prontidão, como a incipiente urbanização, a modernização
incompleta e sua seletividade espacial, além de outros elementos
vinculados à herança colonial. Gostaríamos de adicionar, ainda,
um fator específico, de caráter cultural e completamente asso-
ciado às estruturas reinantes: a inexistência do hábito de praticar
exercícios físicos e esportes em geral. Tal atitude está relacionada
a uma concepção negativa de esforço muscular, própria de uma

11
Cf. Singer (1977, p. 154). Determinado grau de aversão ou rejeição à cultura
inglesa no Brasil se pode notar pela extrema influência francesa em nossa intelec-
tualidade e nas artes em geral.
72 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

sociedade escravista e inerente a uma espacialidade que restringe


determinadas sociabilidades lúdicas, razão pela qual trataremos a
seguir da cidade colonial.

A cidade colonial

Operar uma distinção absoluta entre um urbano colonial


e outro que lhe é consecutivo e “moderno” é reconhecidamen-
te uma tarefa arriscada. A vida urbana encerra facetas diversas,
e cada uma delas pode apresentar um movimento relativamente
diferenciado do conjunto. No plano político-administrativo, por
exemplo, a cidade no Brasil “perde” sua condição colonial em
1822, com a proclamação formal da independência nacional. No
plano econômico, todavia, as estruturas de dominação e explora-
ção colonial persistiram, agora sob a égide do Império Britânico,
visto que, segundo os termos talvez exagerados de Gilberto Freyre
(1948, p. 15), Portugal já não passava de um vinhedo dos ingle-
ses. Se observarmos por outro lado a forma urbana, podemos con-
cordar com Maurício Abreu (1994, p. 67) e supor que a herança
colonial-escravocrata na fisionomia da cidade só é removida defi-
nitivamente da paisagem carioca com a radical reforma de Pereira
Passos, já no início do século XX, quando o traçado irregular e
acanhado de vielas, largos e becos da área central cede a preferên-
cia aos amplos e retilíneos bulevares de arquitetura monumental,
símbolos da modernidade capitalista.
No plano de sociabilidades e usos dos espaços públicos,
talvez seja prudente basear-se num longo processo de transição das
estruturas da vida cotidiana, que vai se consolidar já em plena Belle
Époque, quando finalmente novas possibilidades de experiência
encontram um cenário urbano propício. Esta é a dimensão que nos
interessa: a passagem gradual de uma cidade vigiada e de escassa
sociabilidade ao ar livre para outra, em que o espírito laico e hedonista
da modernidade subverte e dessacraliza os espaços públicos.
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 73

Carlos Delgado de Carvalho (1994, p. 105) comenta a falta


de dinamismo social nas ruas, ao apontar para o fato de inexistir
nas elites e classes médias do Rio de Janeiro, até meados do século
XIX, o hábito de sair de casa, exceto a frequência socialmente
obrigatória à missa dominical. A atitude das classes dominantes é
bastante clara nesse aspecto: deixar evidente a profunda diferença
para com aqueles que, desprovidos de qualquer nobreza, necessi-
tam trabalhar com base no esforço muscular. Tal atitude deixará
profundas marcas nos espaços públicos de nossas cidades: durante
a maior parte do tempo, estes serão povoados quase exclusivamen-
te pelas massas de negros escravos em sua pesada labuta cotidiana:
o varejo ambulante, a coleta de água, o transporte de pessoas e
mercadorias etc.
Gilberto Freyre, em seu clássico Sobrados e mocambos (1951,
pp. 171-2), faz referência a essa aversão da sociedade patriarcal
brasileira aos exercícios físicos, recorrendo às palavras do médico
Lima Santos:

[...] metidos em casa, e sentados a mor parte do tempo, entre-


gues a uma vida inteiramente sedentária, não tardam que não
caiam em um estado de preguiça mortal [...] sahir à rua o menos
possível, ser visto o menos possível, e se confundir o menos pos-
sível com essa parte da população que chamam de povo e que
tanto abominam.

Sobre a atitude sedentária predominante, podemos recorrer


novamente ao texto inusitado de Graciliano Ramos:

A cultura física é coisa que está entre nós inteiramente descura-


da. [...] Somos, em geral, franzinos, mirrados, de uma pobreza
de músculos lastimável. [...] Fisicamente falando somos uma
verdadeira miséria. Moles, bambos, murchos, tristes – uma lás-
74 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

tima! Pálpebras caídas, beiços caídos, um caimento generalizado


(1990, pp. 24-5).

A cidade colonial brasileira, quase privada de dinamismo e


vida cultural, pouco contribuiu para o desenvolvimento de uma
rede de sociabilidades sobre a qual pudessem mais tarde germinar
as associações esportivas. Debret deixou registrado que o único es-
porte praticado no Brasil colonial era a caça. Fernando de Azeve-
do, influenciado pelo nacionalismo de seu tempo, procurou negar
a influência inglesa e tentou acrescentar outras modalidades (que
Gilberto Freyre trataria apenas como nossos quase esportes ru-
rais), como a cavalhada, espécie de mimetismo da guerra, heran-
ça da cavalaria medieval. Havia ainda a eventual tourada, mas o
próprio Azevedo (1930, p. 25) admite que até 1888 nossa prática
esportiva era ínfima, pois “a vida social, tolhida de preconceitos,
não estimulava os exercícios físicos”.
Abreu nos alerta para o fato de que, “na verdade, o Estado
português se insinuava por todas as dimensões da vida urbana, e
muito especialmente nas cidades reais” (1994, p. 155). Trata-se
de um mundo de pouca flexibilidade no domínio da “economia
de gestos”, para utilizar a expressão criativa e muito apropriada de
Margareth Rago (1987).
As limitações de sociabilidade não se restringem a praças,
rossios e largos da cidade colonial: as ruas, segundo Reis Filho
(1968, pp. 130-1), não apenas apresentavam o por demais conhe-
cido aspecto medieval de escassa largura e grande irregularidade,
como também não tinham, na maior parte dos casos, qualquer
significado como local de permanência. Nas palavras de Sílvio
Zancheti,

não se vivia, definitivamente, dentro dos perímetros urbanos, com


exceção dos administradores da Coroa ou dos artesãos [...] muitos
viajantes estrangeiros, que cruzaram o interior do país (foram le-
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 75

vados) a interpretar as cidades brasileiras como simples pontos de


reunião dominical dos latifundiários da área (1987, p. 13).

No urbano colonial brasileiro, a disponibilidade de espa-


ços abertos para as manifestações coletivas era muito pequena.
Ademais, muitos desses espaços estavam associados diretamente
à Igreja e seu consistente aparato de vigilância, sendo o adro “o
único largo generoso ou capaz, ainda que modesto, de abrigar to-
dos do lugar e das redondezas”, segundo Murilo Marx (1991, p.
54). Em síntese, “o catolicismo atuou como uma força monolítica
na fase urbana do Brasil que antecedeu o advento da indústria. A
passagem do sino das igrejas aos apitos das fábricas constitui um
capítulo quase não explorado” (Seabra, 1999, p. 4).
A vigilância cotidiana também se realizava por forte controle
do poder estatal: somente a presença ameaçadora do pelourinho,
instituição medieval portuguesa que dotava o espaço circundante
de silêncio e terror, poderia elevar um povoado brasileiro à con-
dição de vila ou cidade. Richard Graham (1968, p. 127) salienta
as impressões de um viajante que, em 1865, notara a inexistência
de esportes praticados ao ar livre, algo tão difundido na Inglaterra
vitoriana. Segundo o próprio Graham, preocupado em detectar e
dimensionar a forte influência inglesa no Brasil, “antes de 1880
ou 1890, um jovem de boa família não dava nenhuma atenção
aos esportes e exercícios físicos, tendendo muito mais para a po-
esia e política ou aventuras amorosas com atrizes de companhias
visitantes” (p. 127).
Para se engajar no modismo europeu das práticas esportivas,
a sociedade brasileira precisou superar paulatinamente seu forte
preconceito em relação às atividades que exigem esforço muscu-
lar.12 Apenas nos grandes centros urbanos, mais cosmopolitas, ha-

12
Segundo Azevedo (1930), quando Rui Barbosa, na condição de chefe de uma
comissão estadual de ensino, propôs, em 1882, a introdução do exercício físico
76 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

via um arremedo de vida esportiva, base para a receptividade de


inovações como o futebol.
Entendemos, pois, que a preexistência de práticas e equipa-
mentos esportivos cumpriu papel fundamental na adoção do fu-
tebol, e tendemos a conceituar esse conjunto de condições como
“base esportiva”. Podemos defini-la inicialmente como o resulta-
do local de determinado acúmulo de condições gerais de exercício
corporal favoráveis ao advento de inovações esportivas.
A base esportiva pode se manifestar em três níveis, todos
imbricados com o lugar:

1. físico (material ou espacial): disponibilidade de objetos/


equipamentos destinados à prática esportivo-recreativa
(guarda relação com a capacidade do mercado consu-
midor local); em velódromos (como em São Paulo) e
hipódromos (Pelotas, Curitiba etc.), mas também em
parques parcialmente “adaptados” (Porto Alegre);
2. social: existência de instituições promotoras de esportes;
tais associações definem uma rede social na qual circu-
lam informações esportivas (inovações como o futebol)
e pessoas interessadas na prática esportiva. Notemos
que a primeira agremiação de futebol gaúcho nasceu
entre sócios do clube Germânia, em Rio Grande;13

no currículo escolar, baseado na crença de que a debilidade física comprometia


o desempenho intelectual, “não foi levado a sério” (pp. 15-6). Mas o futebol no
Brasil sobreviveu apesar da resistência cultural e da falta de apoio governamental:
“[...] prevaleceu a todos os preconceitos da sociedade esta agitação rumorosa de
vitalidade e energia” (p. 30).
13
Observemos que muitos clubes de futebol no Rio de Janeiro se originaram de as-
sociações esportivas preexistentes, sejam de regatas (CR do Flamengo, CR Vasco
da Gama), de críquete (o Paissandu), ou mesmo até de extintos clubes excur-
sionistas, como o Botafogo FC (Mattos, 1997, p. 46).
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 77

3. simbólico: presença de valores que definem o esporte


como prática positiva, isto é, benéfica, moderna, civi-
lizada etc. Aspecto fundamental para que as iniciativas
e eventos sejam bem recebidos no lugar. Do contrário,
temos reações de desprezo ou até ridicularização.

Em síntese, o lugar atua como condicionador de todo o


processo – tanto no poder de atrair informações, em função do
grau de conectividade, quanto na capacidade de transformar a
informação em experimentações, e, ainda, na forma específica
de incorporá-la em sua prática cotidiana. A novidade do futebol
inglês, como informação, circulou pelo mundo com grande se-
letividade espacial, submetendo-se aos imperativos das redes do
imperialismo britânico. Para se incorporar à vida cotidiana das di-
versas localidades por onde foi “anunciado”, o futebol necessitou
contar com condições especiais: em cada lugar, um ritmo distinto
de adoção, definido por diferentes graus de rejeição e receptivida-
de. E até a forma que assumiu variou conforme as especificidades
de cada lugar, sendo a cidade colonial um cenário repelente a de-
terminadas inovações.
Veremos, a seguir, que o futebol superou as resistências e
se difundiu amplamente no Brasil. A adesão maciça aos esportes
responde a um conjunto geral de profundas transformações na
vida urbana, relacionadas ao advento da modernidade. Tal pres-
suposto nos guiou na elaboração do próximo capítulo.
Capítulo 3
A modernidade calça chuteiras: o
futebol no ritmo da industrialização

Temos argumentado que o futebol encontrou barreiras à sua


adoção, mas que também constituía veículo sedutor de promessas
civilizatórias e libertadoras. Promessas de modernidade e de pro-
gresso. Nesse sentido, missionários e jovens bacharéis trouxeram
da Europa não apenas a prática de um novo esporte, mas, sobre-
tudo, sua dimensão simbólica: o futebol como atividade portado-
ra de benefícios incontestes por ser oriundo da “boa” civilização
europeia. Em suma, bacharéis e missionários empenharam-se em
difundir o futebol, tomando-o como atividade saudável e capaz
de aprimorar a inteligência, o caráter e outros atributos morais.
Um debate foi travado nas duas primeiras décadas do século
XX, no Brasil, em torno da aceitação do futebol e de seus impac-
tos na sociedade e, em particular, na juventude. Esse esporte era
encarado negativamente por diversos setores, ora como diversão
violenta, causadora de distúrbios, ora como atividade embrute-
cedora, a roubar da juventude preciosas horas que poderiam ser
dedicadas às artes e à ciência; era ainda acusado pelos nacionalistas
de atividade alienígena e pelos comunistas de invenção burgue-
sa e imperialista. Tentaremos demonstrar neste capítulo como o
futebol superou tais resistências, e o quanto essa superação se in-
sere no contexto da modernidade urbana capitalista. Conquistou
80 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

nossas elites e a seguir se popularizou amplamente, colonizando


ruas, becos, praças, praias e qualquer outro terreno disponível e
relativamente plano, e lançando as bases geográficas para a con-
formação do que se convencionou chamar “país do futebol”.

O lugar e o papel das elites

Um indivíduo que tivesse nascido por volta de 1830, em


São Paulo ou no Rio de Janeiro, e alcançado os oitenta anos de
idade, teria diante de si cenários urbanos completamente distintos
daquele de sua juventude. A começar pelo porte demográfico1 e
pela extensão física dessas duas cidades, ambos multiplicados de
forma absolutamente inédita no período. O grau de mobilidade
urbana também fora profundamente alterado: dos percursos pre-
dominantes a pé, a cavalo ou em lentos veículos de tração animal,
passamos aos trilhos e, mais tarde, à eletrificação destes, sem falar
no advento do transporte motorizado. A circulação intraurbana
foi igualmente ampliada pela movimentação relacionada ao di-
namismo gerador de fluxos das fábricas. Da precária, manual e
irregular iluminação pública, com escassos lampiões a gás, à ele-
trificação do sistema. Em síntese, da cidade colonial, escura e aca-
nhada, passamos, no curso de tão somente uma existência huma-
na, à cidade moderna, iluminada e feérica.
A noção de modernidade urbana aqui tomada (e, conse-
quentemente, a de cidade moderna) vai ao encontro das reflexões de
Marshall Berman (1986), que as desenvolve no sentido da concep-
ção marxista de moderna sociedade burguesa. Trata-se de um quadro
alarmante, formado por extremos contrastes materiais de condições
de vida, envolvendo a experiência inédita das multidões, o que com-
põe um ambiente propiciador de imensas possibilidades.

1
O Rio de Janeiro abrigava 137 mil habitantes em 1838, e mais de um milhão em
1910. Em São Paulo, o salto demográfico foi ainda mais expressivo.
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 81

Mas havia, conforme argumentamos no capítulo anterior,


um legado colonial persistente. Em suma, o sedentarismo e o re-
colhimento aos aposentos sendo confundidos com status de no-
breza. A casa senhorial ainda se impondo como espaço de ordem
e moralidade, de portas fechadas e gelosias, como refúgio da rua e
oposição a esta, tomada como suja, pestilenta, onde trafegam ani-
mais e negros. Também as praias e os terrenos baldios se agregam
ao conjunto de espaços repelentes à alta sociedade: os banhos de
mar para fins lúdicos (e não estritamente terapêuticos, sob ordem
médica) somente se difundirão a partir do final do século XIX.
Nesse panorama, compreende-se por que o primeiro esporte a se
consolidar no Brasil foi o turfe: trata-se de uma corporeidade que
não ofende os padrões coloniais, pois implica atitude elegante e
senhorial do esportista, bem-vestido e comportado, e não produz
em seu corpo a musculatura que até então era particularidade dos
escravos e dos rudes trabalhadores braçais, sendo, assim, um atri-
buto indesejável. Ademais, dominar cavalos potentes como dese-
jada capacidade masculina já fazia parte do universo cultural de
nossa aristocracia rural.
O turfe e o remo se destacam como os primeiros esportes a
conquistar maior efetividade em nossa vida urbana, ambos a par-
tir da segunda metade do século XIX. Diversas cidades terão suas
pistas de corridas de cavalo. O remo, por sua vez, ganhará expres-
são em cidades costeiras, e ainda em São Paulo, navegando-se pelo
Rio Tietê. O sucesso do remo corresponde a uma primeira vitória
substantiva sobre a austera corporeidade colonial, pela aquisição
de músculos e por sua exibição pública, conforme argumenta con-
sistentemente a contribuição de Victor Melo (2001) sobre os pri-
mórdios da vida esportiva carioca.
O ciclismo, que já se difundira na Europa a ponto de ser
considerado o primeiro esporte de massa na escala continental
(Hobsbawm e Ranger, 1984, pp. 188-9), gozou também de enor-
me popularidade no Brasil no final do século XIX. Os fabricantes
82 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

de bicicleta na Europa conseguiram alçá-la à condição de um dos


símbolos máximos da liberdade individual, baseados em sua gran-
de mobilidade. Também investiram na promoção de corridas,
para fins de publicidade, edificando no Rio de Janeiro do final do
século XIX o Velódromo Nacional.
Também o críquete, embora mais circunscrito à comuni-
dade inglesa, foi praticado no Brasil muito antes do futebol. Em
1865, por exemplo, o Cricket Club solicita à Câmara Municipal
do Rio de Janeiro permissão para praticar no Campo da Acla-
mação (futuro Campo de Santana) um divertimento inglês, “não
necessitando para tal fim mais do que alisar o terreno que lhe
for demarcado”. Interessante notar que as expressões utilizadas
pela associação inglesa Cricket Club denotam a necessidade de
explicações (sobre as condições de terreno, por exemplo) ao po-
der público, até então completamente alheio àquela novidade. No
tramitar do processo, aliás, um vereador solicitou esclarecimentos
sobre o que seria esse tal “divertimento inglês”, algo realmente
desconhecido.2
A progressiva aceitação do futebol, evidentemente, insere-se
nessa onda de adesão a uma vida supostamente atlética e sã. Mas,
diferentemente das demais modalidades esportivas aqui citadas,
implica, além de músculos e corpos suados, um conjunto de mo-
vimentos imprevisíveis e descoordenados, geradores de choques
entre corpos. Um esporte muito distante da elegância da esgrima
e do golfe, considerados “nobres” há séculos. Por isso, sua ado-
ção se realiza em momento posterior ao remo, pois dele dependia
para a consolidação de um ideário favorável às práticas corporais
abruptas.
Assim, importa notar que muitos clubes de futebol no Bra-
sil se originaram de associações esportivas preexistentes. Alguns
nasceram de clubes de regatas, como o Clube do Remo, em Be-

2
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, códice (1730) 45-2-44.
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 83

lém; o CR do Flamengo e o CR Vasco da Gama no Rio de Ja-


neiro; o Clube Náutico Capibaribe, no Recife. Outros nasceram
de ciclismo e corridas a pé (América FC no Rio de Janeiro). Na
capital baiana, o atual Esporte Clube Vitória se originou do Club
de Cricket Victoria, criado em 1899. O mesmo ocorreu em São
Paulo, onde o São Paulo Athletic Club foi criado em 1888 por
ingleses, para a prática do críquete, e sete anos mais tarde adotou
o futebol, realizando a mais antiga partida de que se tem registro
no Brasil, contra outra agremiação inglesa, The Gaz Company.3
Sem a presença desse movimento esportivo anterior ao futebol,
sua adoção encontraria obstáculos ainda maiores.
Ainda no campo das corporeidades, outros âmbitos, relacio-
nados aos discursos eugênicos, de higienismo, ordem e progresso,
foram alvo de disputas no processo de aceitação do futebol, pois
estavam articulados com determinado discurso esportivo que se
empoderava rapidamente desde as últimas décadas do século XIX.
Talvez o mais importante, senão o mais famoso, agente promotor
do esporte como regenerador da humanidade tenha sido o Barão
de Coubertin, que logrou ressuscitar as Olimpíadas a partir de
1896. O neo-olimpismo de Coubertin conquistou ampla adesão
entre as elites de diversas nações e, posteriormente, entre os go-
vernos, configurando, antes mesmo da Segunda Guerra Mundial,
uma formidável articulação em escala planetária.
Tais ideologias em favor do esporte se difundiam pelas re-
des globais, sob impulso do avanço dos capitais. No plano inter-
nacional, um processo de “ocidentalização” do mundo, a partir
do modelo europeu, encontrava-se no auge e atingia, naquele mo-
mento, até culturas tradicionais, como as do Japão e do Oriente
Médio. O mais importante é notar que esse processo era condu-

3
Segundo Mazzoni (1968), a primeira partida de futebol realizada no Brasil den-
tro das regras oficialmente estabelecidas na Inglaterra em 1863 ocorreu na Várzea
do Carmo, entre essas “equipes inglesas”, em 14 de abril de 1895.
84 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

zido em parceria com as elites locais, desejosas de cosmopolitismo


e modernidade. Segundo Hobsbawm, “o mundo estava dividi-
do entre uma parte menor, onde o ‘progresso’ nascera, e outras,
muito maiores, aonde chegavam como conquistador estrangeiro,
ajudado por minorias de colaboradores locais [...] grupos de pala-
dinos dos novos hábitos” (1988, p. 53). Aqueles jovens bacharéis
praticantes de futebol podem ser enquadrados nesse grupo.
Chancelado pelas elites pretensamente modernas e “cosmo-
politas”, o futebol no Brasil adquire, então, outros conteúdos sim-
bólicos, distintos dos vigentes na metrópole imperial; conteúdos
que potencializam essa inovação, por se revestir de europeização
civilizadora e justo no momento em que as elites querem investir
abruptamente na ruptura com o passado colonial. Cria-se um ca-
samento entre o futebol e o progresso, o futebol e a necessária mo-
dernidade. Intelectuais como Monteiro Lobato apostavam nessa
modernidade trazida pelo futebol: a intensa prática esportiva de
nossa mocidade como via civilizadora. Vale citar um trecho de seu
apaixonado discurso de 1905, após assistir a um acirrado duelo
futebolístico entre ingleses e jovens da elite paulistana:

A população eletrizada viu-se colocada diante de uma nova questão


social. Tratava-se de verificar se o paulistano tinha capacidade para
sair vitorioso ante a enorme oposição dos filhos de Albion. O povo
compreendeu de imediato o extraordinário alcance deste duelo [...]
Essa luta tinha para a população de São Paulo um significado moral
dez vezes maior que a eleição de um presidente do Estado. Parava
nas ruas para apontar com os dedos os jogadores, esses renovadores
de nosso sangue. São Paulo reconhece que cada um desses jovens
é socialmente mais importante que todos os deputados estaduais e
federais somados, multiplicados e elevados à sétima potência [...]
Esta é uma perspectiva consoladora [...] É desta espécie de homens
que precisamos. Menos doutores, menos bajuladores, menos pa-
rasitas e mais ‘struggle-for-life’. Mais homens, mais nervos, mais
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 85

corpúsculos vermelhos, para que um Camilo Castelo Branco não


possa repetir que ele tem sangue corrompido nas veias e farinha de
mandioca nos ossos (apud Rosenfeld, 1993, pp. 79-80).

Em cada cidade, os primeiros praticantes do futebol busca-


vam superar o isolamento e incentivar a adesão de novos pratican-
tes. No Rio Grande do Sul, o SC Rio Grande, mais longevo clube
brasileiro de futebol, quando era ainda uma novidade na cidade
homônima, estabeleceu uma política de doar a instituições edu-
cacionais rio-grandinas as bolas de futebol já muito usadas, a fim
de estimular a prática entre os meninos. Daqueles primeiros anos,
o pesquisador Miguel Ramos encontrou uma carta assinada pelo
secretário do clube, Sr. Gustavo Pook (de família de industriais
de origem hamburguesa), endereçada ao comandante da Escola
de Aprendizes da Marinha, não apenas ofertando o então ainda
caro equipamento importado, como também disponibilizando o
Sr. Arthur Lawson (inglês fundador do clube) como instrutor de
futebol. Consta que o comandante da escola (capitão-tenente P.
Frontin) havia sido indicado e aceito como sócio do clube por
unanimidade, provavelmente envolvendo na “cortesia” prévios
interesses de difusão do futebol. Seguem trechos do documento:

O Sport Club Rio Grande, que se dedica com especialidade ao


‘FOOTBALL’ e de cujo jogo faz propaganda, sabendo que V.S.
se interessa por este gênero de sport, toma a liberdade de oferecer
a V.S. uma bola usada, mas em perfeito estado, para exercício
dos menores aprendizes de marinheiros [...] contribuindo desta
forma para a divulgação do ‘football’ e concorrendo, assim, para
a agilidade dos meninos que se preparam para a defesa da Pátria
(2000, p. 33, grifo nosso).4

4
Notemos que o objetivo de “propaganda” está explícito na carta, e que o futebol
era concebido não como um fim em si mesmo, mas como meio de adquirir habi-
86 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

O clube visitou várias cidades (Pelotas, Porto Alegre, Bagé)


com a missão de difundir o futebol e garantir sua continuidade,
em vez de deixá-lo perecer como outras modalidades que foram
consideradas modismo. Enquanto promovia a difusão do futebol
pelo estado, o clube expandia seu prestígio na elite local, anga-
riando paulatinamente como sócios e simpatizantes elementos
situados nas mais diversas instâncias do poder político e econô-
mico de Rio Grande e deles adquirindo favores e benesses.5 Essa
intimidade com os círculos do poder permitiu ao clube, em 1904,
a concessão provisória, por parte da Intendência Municipal, de
terrenos na Cidade Nova para a construção de seu ground, o Es-
tádio das Oliveiras.
A expansão do futebol e de outras modalidades exigia de
nossas cidades novos espaços. A forma urbana, conforme já regis-
tramos no capítulo anterior, não estava preparada para abrigar o
amplo leque de novos eventos sociais decorrentes do advento da
prática esportiva e de seu forte apelo ao espetáculo. Nesse sentido,
Sevcenko atesta que,

como tudo aquilo era uma absoluta novidade na cidade, não ha-
via locais ou pistas especiais construídas especificamente para a
prática e o divertimento com o esporte. Assim, tudo era feito nas
ruas e em outras áreas públicas, sobretudo no centro da cidade

lidades atléticas, a serviço da pátria. Por outro lado, esse é o único vestígio de uma
atitude que não sabemos até que ponto foi desenvolvida de forma sistemática,
por quanto tempo, nem seu alcance concreto.
5
Para não estender a lista de favorecimentos ao clube, citaremos apenas o amplo
apoio da imprensa local, os descontos especiais para deslocamento ferroviário
ou lacustre fornecido pelas empresas responsáveis, a linha telefônica doada pela
empresa Telephonica Ganzo e a oferta de cerveja, charutos e outros produtos
para consumo em cerimônias realizadas quando em recepção a clubes de outras
cidades (Ramos, 2000). A Cia. Viação prometera que uma nova linha de bondes
passaria aos fundos do terreno escolhido pelo clube para erigir seu estádio (Ra-
mos, 2000, p. 47).
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 87

[...] a Avenida Paulista, com toda a sua centralidade, imponên-


cia, visibilidade e conotações heroicas, era obrigatória quando o
assunto eram corridas, qualquer que fosse o tipo (1993, p. 83).

Outro aspecto essencial para a geografia do futebol é o sur-


gimento e a expansão dos estádios, fenômeno que reflete a ação de
empresários no ramo da nascente “indústria” do entretenimento.
Logo após a codificação de suas regras, em 1863, em Londres,
o futebol já se revelava um atraente espetáculo: alguns jogos na
década de 1870 já atraíam público superior a 10 mil pessoas,
principalmente nos acirrados confrontos entre as seleções nacio-
nais de Inglaterra e Escócia.6 O futebol estava iniciando sua longa
transição do ideal atlético clássico para ingressar em definitivo no
circuito da mercadoria. Esse tema, crucial para o estudo geográ-
fico desse esporte, será debatido no próximo capítulo, quando, a
propósito da Copa de 1950, abordaremos os estádios brasileiros
em suas primeiras fases.
A ritualização (e mercantilização) do futebol, convertido
em espetáculo esportivo, é ingrediente da modernidade urbana.
Nesse sentido, a partir de 1880, o futebol inglês e o beisebol nos
Estados Unidos cumprem papel de oferecer diversão, na forma
de gigantescos estádios. Em 1888, uma multidão compareceu ao
duelo de beisebol entre as equipes de Nova York e Pittsburgh, e
muitos tiveram de ficar do lado de fora, outros tantos amontoa-
dos à beira do campo, contornando-o como uma cerca humana.
Segundo Barth (1980, p. 148), aquela multidão vibrante “expe-
rienced in the ball park the quintessence of urban leisure: watching
others do things” (“experimentou no estádio a quintessência do
lazer urbano: assistir aos outros fazendo algo”). Para o autor, um
estudioso da cultura urbana que emerge nas grandes cidades do

6
Cf. Tony Mason (1980, p. 139), que dedica um capítulo inteiro de seu livro ao
estudo da multidão no futebol inglês, desde 1871 até 1915.
88 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

século XIX, a formação de grandes plateias é um dado que trans-


cende o universo específico dos esportes.
Ao se tornar uma lucrativa e promissora indústria de entre-
tenimento passivo para multidões, o futebol passou a aglutinar
poderosos interesses comerciais que logo lhe atribuíram sentidos
muito distintos daqueles até então vigentes, associados a uma pe-
dagogia “mens sana in corpore sano”. Com o advento do futebol-
-espetáculo, entra em cena um novo tipo de atleta, adestrado, que
se dedica exclusivamente ao futebol, vivendo-o como profissão
remunerada e socialmente cobiçada, e, por isso, encara cada parti-
da como uma batalha. Esses novos protagonistas ajudarão a tornar
o futebol uma verdadeira paixão popular na Inglaterra no final do
século XIX7 e, certamente, impulsionarão sua popularização, já
que passou a representar uma nova forma de sobrevivência para os
que não possuíam escolaridade.
Apesar de ser introduzido no circuito exclusivo das elites
locais, e de consistir em entretenimento de alto custo,8 o fute-
bol tendeu a se popularizar velozmente por motivos já bastante
estudados. Trata-se, em primeiro lugar, de uma modalidade es-
portiva de muito fácil improvisação, pois a bola de couro pode
ser substituída por bexigas, meias recheadas de trapos e outros

7
Tony Mason (1980, p. 32), estudioso no assunto, mostra a preocupação de um
jornal, em 1888, que reconhece que “os requisitos para o jogo são tão poucos e
baratos que dele pode participar até o homem mais miserável”. De fato, improvi-
sando facilmente as condições mínimas necessárias, as massas pauperizadas pelo
capitalismo industrial se dedicaram com alegria ao futebol, e logo surgiram os ta-
lentos individuais, que despertariam interesse econômico nos agentes envolvidos
com essa florescente indústria do entretenimento. Registremos que em 1885 já
existiam mais de mil clubes de futebol na Inglaterra (Mason, 1980, p. 13).
8
A prática do futebol sob condições estritamente oficiais (e “burguesas”) reque-
ria a importação de bolas inglesas, calçados especiais e confecção de balizas e
uniformes para os times. Não podemos esquecer que a sociedade brasileira de
então abrigava uma maioria de indivíduos cuja pauta de consumo restringia-se à
subsistência mais rudimentar.
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 89

objetos de duvidosa esfericidade, com grande variação do grau


de tamanho, peso etc. O “campo” de jogo pode ser improvisado
em qualquer terreno de topografia não muito acidentada, um
baldio, uma rua ou praça, na areia da praia ou em pastagens.
Os limites horizontais das balizas podem ser demarcados com
pedras, deixando ao limite vertical (a altura) o critério livre, de
uma linha imaginária sujeita a eternas e animadas controvér-
sias entre os praticantes. Não existem, portanto, equipamentos
insubstituíveis ou de difícil improvisação, como a cesta (em
posição elevada) do basquetebol, as redes suspensas do voleibol
(ambos, ademais, exigem bolas que quicam) e, menos ainda, a
conjugação de raquete (e/ou bastão) e bola do tênis, do golfe e
do críquete; para não mencionar modalidades que dependem
de equipamentos motorizados (automobilismo, motociclismo,
aeromodelismo) ou deslocamento a áreas naturais remotas com
instrumentos de alta tecnologia.
Vários autores trataram do assunto, nem sempre com a de-
vida seriedade, e levantaram inúmeras outras razões para a fácil
assimilação do futebol. Concordamos apenas com algumas delas:
trata-se de um jogo simples, com somente 17 regras, todas de fácil
entendimento;9 e, no caso do Brasil, o clima tropical favorece
o entretenimento ao ar livre o ano inteiro. Admitimos também
que nas cidades brasileiras não faltaram espaços livres para o jogo
(aliás, abundavam, até recentemente, por retenção especulativa de
terrenos), nem praticantes em potencial, pelo grande contingente
de crianças e jovens ociosos sem oportunidades de escolarização
ou usufruto de lazer organizado. No mais, ao contrário do que
afirma a literatura apologética, o futebol desfruta basicamente

9
A exceção, em termos de facilidade de assimilação, é a regra do off-side ou “im-
pedimento”, mas esta é tradicionalmente abolida nas “peladas”, isto é, nos jogos
informais.
90 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

dos mesmos apelos de outros esportes coletivos,10 sobretudo os


de base territorial, isto é, os que se fundamentam na conquista do
território inimigo, à semelhança de uma batalha campal, podendo
assim mobilizar paixões e sentimentos de alteridade e identidade
local: o “nós” contra “eles”.
Enfim, são inúmeras, quase inesgotáveis, as motivações pas-
síveis de serem elencadas para explicar a difusão e a popularização
do futebol. Passemos, então, ao fato em si e, ao que mais nos
interessa, sua espacialidade: como a popularização do futebol pro-
duziu novos lugares e momentos na cidade.

Nos becos, várzeas e fábricas: o futebol se populariza

Desde os primeiros anos deste século, uma febre invadiu todas


as ruas, quintais, portas de fábrica, terrenos baldios, e o que mais
houvesse. Era o futebol. Esta foi a primeira grande festa do povo,
fora da perspectiva da Igreja. [...] A sociabilidade de bairro foi
enormemente enriquecida com o futebol (Seabra, 2000, p. 14).

Para inferir as condições de apropriação do futebol pelos


indivíduos da classe operária, é preciso, antes, reconhecer alguns
elementos fundamentais da formação histórica desse segmento so-
cial que emerge no cenário urbano brasileiro na virada do século
XX. A industrialização produziu uma nova classe social, atraindo
novos habitantes, provenientes do interior e, sobretudo, de países
europeus, como Itália e Espanha. Em tais países, no final do sé-
culo XIX, o futebol era ainda notoriamente uma prática elitista,
alheia aos círculos operários. Estes, ao contrário, e em função do

10
Os esportes coletivos dependem da existência de instituições (clubes) permanen-
tes, organizadoras da prática, e estas adquirem enraizamento local e densa carga
simbólica, ao possuir um escudo, uma bandeira, um hino etc. Tendem a tornar-
se entidades tradicionais, fator de identidade social, com legiões de seguidores (as
torcidas).
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 91

peso de ideologias anarquistas e comunistas, pregavam a negação


desse esporte “imperialista” e propunham outras formas de asso-
ciação para o uso do tempo livre, como as bibliotecas e os debates
políticos. Veremos, mais adiante, como, num primeiro momento,
os interesses empresariais se chocaram com as ideologias presentes
na classe operária em formação.
Cumpre frisar que a classe empresarial estava preocupada
com o intenso movimento sindical do período e, por isso, interes-
sada em novos meios de controle das camadas populares. Não foi
difícil visualizar no futebol os elementos ou ingredientes de uma
eficiente “pedagogia da fábrica”: trabalho em equipe, obediência
às regras, especialização nas tarefas, submissão ao cronômetro etc.
Além disso, a formação de equipes corporativas, especialmente os
chamados “times de fábrica”, significa fazer o operário vestir a ca-
misa da empresa e disputar campeonatos com outros operários de
outras fábricas, direcionando, desse modo, o conflito essencial de
classes para confrontos no seio da própria classe trabalhadora, ou
entre bairros populares – um desvio de foco bastante interessante
para a reprodução social da cidade dentro dos interesses capita-
listas. Foi assim que as empresas do setor elétrico ingressaram no
circuito do futebol tão logo se estabeleceram.
Examinando as regras do futebol, podemos detectar em
sua configuração vários aspectos que o aproximam daquele nas-
cente mundo fabril. Primeiro, o trabalho em equipe, que, grosso
modo, diferencia a fábrica moderna da velha produção artesanal.
Outra característica, resultante da ação articulada coletivamen-
te, é a especialização individual. Um jogador de futebol assume
determinadas funções relacionadas à sua posição no time e no
campo de jogo, e deve nela se especializar, tal qual o operário
numa linha de montagem.11

11
Cada uma das 11 posições numa equipe de futebol pressupõe, para ser bem de-
sempenhada, um conjunto específico de habilidades e atributos. Nesse sentido,
92 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

A propósito, observando as premissas do taylorismo (os


princípios de “administração científica” de F. W. Taylor, para
suprimir qualquer gesto inútil e otimizar a produção industrial),
o sociólogo João Boaventura (s. d.), em artigo sugestivo, aponta
quatro elementos seus presentes no futebol: a ênfase na veloci-
dade, na especialização de poucas mas decisivas habilidades, na
cronometragem e no trabalho em equipe.12
Eric Hobsbawm nos ajuda quando constata que “o mapa da
Federação de Futebol era praticamente idêntico ao mapa da In-
glaterra industrial” (1987, p. 285). Tomando, a partir das contri-
buições da nova história social inglesa, o universo da fábrica como
pedagogia autoritária da valorização racional do tempo, podemos
reencontrá-lo em diversos aspectos do futebol. Os jogadores de-
vem obedecer estritamente às instruções do treinador (ter “dis-
ciplina tática”), sob pena de perder a vaga na equipe, pois trata-

um goleiro deve possuir elevada estatura, elasticidade, reflexo e concentração;


um defensor (zagueiro) deve possuir força física, estatura, capacidade de prever
as jogadas do ataque adversário e de se antecipar a elas e, sobretudo, bom senso
de colocação no campo; um lateral-direito não pode, obviamente, ser canho-
to (um lateral-esquerdo o deve), necessita vigor físico (para auxiliar o ataque) e
mais habilidade que o zagueiro (a quem cabe basicamente “destruir” as investidas
do adversário) para avançar com frequência e fazer “cruzamentos”, e a estatura
não compromete seu desempenho; um jogador de meio-campo, que também
prescinde da estatura, deve possuir boa visão de jogo, espírito de liderança, sa-
ber conduzir a bola e possuir excelente “passe”, para armar com inteligência e
precisão as jogadas de ataque (pois atua na chamada “zona de raciocínio”); por
fim, um atacante deve reunir velocidade, boa pontaria, estatura, força física (para
disputar com os defensores adversários as “bolas aéreas”) e, principalmente, frieza
e capacidade de resolução, pois, ao contrário do meio-campista, deve definir a jo-
gada em fração de segundos. Defensores e atacantes devem “resolver” as situações
rapidamente, mediante a escassez de tempo e espaço, ao contrário dos jogadores
de meio-campo.
12
O autor salienta que Taylor tinha 29 anos quando o futebol inglês foi profis-
sionalizado, em 1885. Curiosamente, compara ainda o estádio à fábrica, o clube
à gerência fabril e os operários aos jogadores, sendo os gols seus produtos e os
espectadores, os consumidores (p. 9).
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 93

-se de um empregado empenhado em produzir ao máximo e em


respeitar a hierarquia dentro do clube, para manter seu provisório
posto de trabalho, por muitos disputado. Sobre o uso racional do
tempo, a velocidade é fundamental para superar o adversário e,
por um instante, abrir valiosos “espaços” num campo ocupado
estrategicamente por 22 atletas de alta mobilidade. Ainda o fator
tempo se revela importante quando se sabe que, numa partida de
futebol, ao contrário do basquetebol ou do futebol americano,
os cronômetros funcionam sem interrupção, não se submetendo
ao andamento do jogo. A duração de uma peleja não depende
de contagem de pontos (como no voleibol, beisebol ou tênis),
mas exclusivamente do frio e implacável cronômetro, tal qual na
fábrica.13 Talvez toda essa “pedagogia fabril” se manifeste mais
concretamente no fato de inúmeros clubes terem surgido, desde o
início da história do futebol, por iniciativa da gerência industrial.
Havia, portanto, muitas razões para que o empresariado fa-
bril se interessasse pela criação de “times de fábrica”. Ademais, nos
campeonatos ou jogos avulsos, estavam colocando operários em
disputa com outros operários, desviando o foco do confronto de
classes. O trabalhador vestindo a camisa da empresa para jogar fu-
tebol significaria, muito mais que fazer sua propaganda, assumi-la
como “sua” instituição, um grau inequívoco de pertencimento.
Pouco a pouco, as resistências do movimento operário fo-
ram sendo superadas. Determinadas correntes do debate anarco-
-sindicalista foram reconhecendo que não haveria como evitar o
futebol, em virtude de sua crescente popularidade, passando tal
esporte a compor a programação cultural associada à militância
(Antunes, 1992, p. 108); algo que Eric Hobsbawm (1991, p. 262)
classificou como uma espécie de “religião leiga da classe operária”,

13
Segundo Juan Villoro, no futebol, “el tiempo conserva su insistente capacidad de
menguar el destino […] ni siquiera un decepcionante 0x0 garantiza una prórroga”
(1998, p. 59).
94 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

o tópico principal na conversa social de bar, uma “língua franca”


para todos os operários. O autor sustenta ainda que o futebol se
aproveitou do vácuo deixado pelas esferas comunitárias (a aldeia,
a família, o bairro, a paróquia) em desagregação na cidade mo-
derna (p. 170). São, enfim, as novas condições da vida urbana,
a demandar novas tradições e a incorporar uma nascente classe
operária, que contribuem para a popularização do futebol.
Antunes (1992, p. 106) salienta que, no início do século,
anarquistas e comunistas se uniram para acusar o futebol de esporte
burguês, alienígena e ópio do povo, que rouba do trabalhador horas
e energia que poderiam ser empregadas na luta de classes, além de
fazê-lo vestir a camisa da fábrica na hora de disputar uma partida
contra seus “companheiros” de outra unidade fabril. Somente a par-
tir dos anos 1920, no Brasil, é que se pode falar de adesão do mo-
vimento operário ao futebol.14 O mesmo pode ser afirmado quanto
ao cenário europeu. De acordo com William Baker,15

hostis ao elitismo, chauvinismo militarista e exploração


comercial do esporte burguês, sindicalistas europeus e es-
portistas de esquerda estimularam na classe trabalhadora a

14
Talvez por tal rejeição (e/ou pressão) tenha desaparecido precocemente em Cam-
pinas a Liga Operária de Futebol, que, conforme Rossi (1989, p. 75), surge e
desfalece no mesmo ano de 1912. Ao perceberem que o futebol já havia conquis-
tado plenamente a paixão popular, os sindicatos e partidos operários resolveram
aceitar e inclusive incentivar a formação de clubes com nomes e cores associados
aos ideais revolucionários, como o Clube Esportivo Dínamo Paulista, no Alto da
Mooca (Dínamo é o nome de importante clube de futebol da cidade de Kiev,
na Ucrânia, então república soviética). Segundo Eduardo Dias (1983, pp. 60-1),
operário militante comunista e membro do clube, “essa organização explodira
como força arregimentadora, dando nova motivação a muitos companheiros e
amigos [...] com a movimentação constante do clube, muitos quadros para o
partido foram recrutados”.
15
Naquela época, havia duas organizações internacionais rivais: a Internacional
Esportiva Vermelha (comunista) e a Internacional Esportiva dos Trabalhadores
Socialistas.
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 95

formação de clubes, a realização de eventos e a absorção de


valores esportivos. [...] De 1921 a 1937, numerosos festivais
operários e olimpíadas ocorreram em locais como Leipzig,
Nuremberg, Paris, Frankfurt, Berlim, Praga, Viena, Antuér-
pia e Moscou (1994, tradução nossa).

Em todas as cidades brasileiras que vivenciaram com maior


intensidade o processo de industrialização, foram formados “clu-
bes de fábrica”. Pelotas (RS), que no início do século XX se au-
todenominava a “Manchester do Sul”, por seu destacado parque
industrial, foi pródiga na popularização do futebol (Mascarenhas,
2001a). Em 1911, foi criado nessa cidade o Grêmio Sportivo Bra-
sil, fundado por funcionários e operários da Cervejaria Haertel
(Alves, 1984, p. 28), indústria de propriedade alemã. Em 1919,
foi disputado pela primeira vez o Campeonato Gaúcho de fute-
bol, conquistado facilmente pelo GS Brasil de Pelotas, ao golear
por 5 a 1 o Grêmio (campeão porto-alegrense) em plena capital.
Poucos anos depois, um clube do subúrbio carioca (o CR Vasco
da Gama) repetiu a estratégia, e sob os auspícios da rica colônia
portuguesa forjou uma vitoriosa equipe de negros e brancos po-
bres para alcançar a liga principal e a seguir tornar-se campeão
carioca em 1923. Tal façanha, que a literatura consagrou como
“Revolução Vascaína”, não possui, portanto, o caráter pioneiro
que a crônica esportiva lhe atribui quase em uníssono.16

16
A contribuição capital de Leonardo Pereira (2000) permite constatar que era prá-
tica comum em clubes suburbanos cariocas a aceitação de atletas negros e pobres,
e que muitos desses clubes formaram equipes fortes a ameaçar a hegemonia dos
clubes de elite. O mérito do Vasco da Gama foi ter reunido interesses econômi-
cos, repetindo, então, com eficácia o modelo do GS Brasil de Pelotas. O insus-
tentável discurso da “democratização” do futebol por essas vias (pois os brancos e
ricos permanecem na direção desses clubes tidos como “revolucionários”) é ques-
tionado com pertinência por Proni (2000, pp. 115-21) e Damo (1998, p. 105),
que consideram a inclusão de negros e pobres uma “democratização funcional”
que apenas redefine o racismo e atende aos interesses hegemônicos. O mito do
96 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Na cidade de Rio Grande, o ambiente industrial parece


haver cumprido seu papel nesse processo de popularização do
futebol. Já em 1912, havia pelo menos duas agremiações explici-
tamente fabris (SC Fábrica Túlio e SC União Fabril, da Rhein-
gantz, ambos fundados em 1910) entre as oito fundadoras da liga
municipal (Alves, 1984, p. 30). Mesmo o SC São Paulo, que foi
fundado em 1908 e sempre disputou partidas com as principais
agremiações de Pelotas e Rio Grande, compunha seu time “unica-
mente de trabalhadores manuais” (Oliveira, 1912, p. 88).
Diversos autores já realçaram o papel do futebol na for-
mação e submissão da classe operária como eficaz dispositivo no
sentido de imbuir o trabalhador de senso de coletividade, especia-
lização, disciplina, hierarquia, competitividade e valorização do
tempo. O futebol efetivamente participa da reprodução social da
cidade e mantém com a industrialização (em sentido amplo) ne-
xos incontestáveis.17
Pelas razões supracitadas, é notável a participação do setor
industrial na popularização do futebol no Brasil. No Rio de Ja-
neiro, ao mesmo tempo que se formavam os primeiros clubes de
rapazes da elite na Zona Sul (Fluminense, Paysandu, Botafogo),
o “futebol de fábrica” também se estruturava. No distante subúr-

pioneirismo vascaíno no contexto nacional, no tocante à aceitação de negros e


pobres, nasce na obra clássica de Mario Filho (magnífico romance épico – inspi-
rado na “democracia racial” de Gilberto Freyre – dedicado ao futebol carioca e
sem pretensões de fonte documental).
17
Certamente, não apenas a presença ostensiva da fábrica no mundo do traba-
lho justifica a popularização do futebol naquele contexto histórico. Hobsbawm
(1989, p. 58) adverte que a segunda metade do século XIX foi extremamente
rica em inovações na cultura popular inglesa e inclui o futebol no leque de novas
possibilidades de “entretenimento profissional” para o pobre trabalhador urbano.
Em outra obra (1987, p. 288), o historiador inglês afirma que o hábito de torcer
pelo clube de sua cidade (uma necessidade de novos vínculos identitários, em
cidades com elevados índices de desenraizada população imigrante) propiciou a
emergência de uma sólida “cultura masculina do futebol”.
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 97

bio de Bangu, localizava-se a Companhia Progresso Industrial, do


setor têxtil. Nela foi fundado o Bangu Athletic Club, em 1904.
Um pouco antes, em 1902, em Sorocaba, a fábrica de tecidos
Votorantin criava o Votorantin Athletic Club (Antunes, 1992).
Clubes corporativos de trabalhadores já haviam se dis-
seminado no eixo Buenos Aires-Montevidéu, onde a popula-
rização do futebol antecede a experiência brasileira (Masca-
renhas, 2001a). Um dos mais famosos clubes sul-americanos,
o Peñarol, de Montevidéu, surgiu em 1890 como agremiação
de trabalhadores da companhia ferroviária uruguaia. Na ca-
pital argentina, em 1907, empregados de uma firma inglesa
detentora de um clube de futebol se revoltam e fundam o hoje
famoso Independiente, adotando abertamente a cor vermelha
no uniforme (Bayer, 1990, p. 28). Nessa cidade, o movimento
anarquista também funda seu próprio clube, o Chacarita Ju-
niors, em 1906, no interior de uma biblioteca libertária (Bayer,
1990, p. 24). Simultaneamente, multiplicam-se os campos de
futebol em terras ociosas na capital argentina (são 15 ligas in-
dependentes e mais de trezentos clubes em 1907).18
Como no caso argentino, com o avançar do processo, os
trabalhadores brasileiros passaram a criar seus próprios clubes; to-
davia, amiúde demandando apoio aos “patrões”, fosse por forneci-
mento de material esportivo, fosse por ajuda pecuniária para alu-
guel de terreno para jogar, quando não a própria cessão provisória
deste (Antunes, 1992, p. 105). Interessados na publicidade da em-
presa e na “integração” do trabalhador com esta, os pedidos eram
atendidos. E adquirir um terreno livre era também uma forma
garantida de especulação imobiliária para a burguesia industrial.

18
Essa formidável cifra resulta do levantamento minucioso de Frydenberg (1999),
em sua pesquisa sobre futebol e espaço urbano na construção da Buenos Aires
moderna (1880-1920).
98 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Na cidade de São Paulo, a companhia Light and Power


se destacou precocemente nesse processo de difusão e popula-
rização do futebol. Já em 1903, presenteava com medalhas im-
portadas os vencedores do campeonato citadino e formou suas
próprias equipes entre os funcionários, várias, de acordo com
diferentes seções ou departamentos no interior da empresa, já
que esta era grande demais para se resumir a um único clube.19
Somente em 1930, atendendo à pressão de seus empregados,
aceitou a criação da Associação Atlética Ligth and Power, quan-
do esta já abrigava mais de 7 mil funcionários (Antunes, 1992,
pp. 52-3). Sendo uma “seleção” de atletas dentro da grande em-
presa, tal clube disputava a “primeira divisão” do Campeonato
Paulista. Ao mesmo tempo, os funcionários mais qualificados se
dedicavam ao tênis e a outros esportes, numa evidente segrega-
ção interna (Antunes, 1992, p. 56).
Além do circuito corporativo (fabril e comercial) que mo-
bilizou milhares de trabalhadores em torno do futebol, outro cir-
cuito vicejou no mesmo processo de formação urbano-industrial
brasileiro. Trata-se do chamado “futebol de várzea”, assim de-
nominado por sua preferência locacional pelos terrenos baldios
(amiúde encharcáveis) ainda não tomados pela construção civil.
Tal circuito se desenvolve informalmente, mobilizando milhares
de desempregados ou trabalhadores precarizados em seus mo-
mentos de folga.
Em 1902, a cidade de São Paulo organiza o primeiro cam-
peonato de futebol no Brasil. No mesmo ano, surgem os primei-
ros campos de várzea, que logo se espalham pelos bairros operários
(Antunes, 1992, p. 19). Já em 1908-1910, a várzea paulistana
congregava vários e concorridos campeonatos, de forma que São
Paulo não é apenas pioneira nacional no futebol “oficial”, mas
também no “futebol popular”. É nessa cidade que, não por acaso,

19
Como exemplos, havia o Bonde Team, o Medidores Team e o Oficinas Team.
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 99

surge em 1910 aquele que, entre os grandes clubes do futebol bra-


sileiro, foi o primeiro a se formar a partir de uma base popular: o
Sport Clube Corinthians Paulista (Negreiros, 1998).
Inicialmente, o futebol varzeano era tomado como desor-
dem, encontro de vadios a ser disciplinado ou até perseguido pela
polícia. A imprensa da época estabelece uma clara distinção entre
o futebol das elites, elegante e bem organizado, e o futebol varzea-
no, como se fossem modalidades e práticas sociais completamente
diferentes e até opostas. O próprio Corinthians encontrou grande
resistência para ingressar na liga oficial da cidade. Por volta de
1920, entretanto, a atividade já havia se disseminado a tal ponto
que não havia como reprimi-la.
A difusão do futebol como prática popular de entreteni-
mento se insere na própria formação da classe operária paulistana
como elemento de sua cultura. Certamente, o grande número de
imigrantes e operários contribuiu para a rápida popularização do
futebol em São Paulo. Nas palavras de Fátima Antunes,

da Várzea do Carmo, os campos se alastraram por toda a ci-


dade, sobretudo nos bairros operários, situados ao longo das
estradas de ferro [...] A cidade vivia intensamente a experiên-
cia do trabalho fabril e passava a conhecer a necessidade im-
perativa de sociabilidade e lazer, sobretudo aos domingos. Os
clubes de várzea mantinham equipes de futebol e promoviam
atividades sociais [...] Além destes, tornavam-se comuns os
clubes formados a partir de empresas, fábricas ou grupos pro-
fissionais (1996, p. 92).

Estudo realizado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio


Histórico (CONDEPHAT, 1994) sugere que, a partir da década
de 1930, os bairros da cidade se relacionavam, sobretudo, por
meio do futebol. Estudando o futebol varzeano, Odette Seabra
(2000) colheu depoimentos que garantem a existência de muitas
100 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

dezenas de campos de futebol na várzea paulistana por volta de


1940 e 1950, e todos intensamente utilizados, enredando ampla
sociabilidade entre os bairros. São Paulo parece ter sido a primeira
cidade brasileira a se aproximar da impressionante febre futebo-
lística que se espraiou no início do século em Buenos Aires (Fry-
denberg, 1999) e Montevidéu (Buzzetti, 1969), cidades pioneiras
no futebol sul-americano, e em menor grau em Santiago do Chile
(Santa Cruz, 1996).
Vale registrar que esse pujante “futebol informal” des-
pertou interesse no geógrafo francês Pierre Monbeig, na dé-
cada de 1940, e este bem reflete a preocupação das elites e
seu discurso de ordem em relação aos numerosos campos de
várzea. Referindo-se, em tom de lamentação, ao mato que cres-
ce rápido nos terrenos baldios (“à espera dos urbanistas”), es-
pecialmente nas várzeas da capital paulista, que “resistem ao
loteamento”, afirma que tais zonas são “sobretudo paraíso de
cães vadios [...] refúgio para cabanas de miseráveis, terreno do
futebol improvisado para moleques [...] verdadeiras zonas entre
os bairros residenciais” (1943, p. 66).
A cidade de São Paulo parece ter sido pioneira na pro-
liferação de espaços densos de práticas do futebol informal,
mas seguida de perto por Rio de Janeiro, Porto Alegre e outras
capitais. É possível afirmar que, entre 1930 e 1940, o futebol
já era praticado em todo o Brasil urbano. Evidentemente, com
diferentes níveis de intensidade e aceitação local. Num país
com reduzida tradição esportiva, se comparado à América do
Norte e à Europa, o futebol se tornara uma modalidade mais
praticada que a soma de todas as demais, mesmo sem estímulo
de políticas públicas, fosse no sistema educacional, fosse por
iniciativas de governos locais.
Ao se tornar uma paixão ou “mania” nacional, o fute-
bol despertava interesse político. Sua capacidade de mobilizar
as massas não poderia passar incólume, e será precisamente o
Parte I – Outras “raízes do Brasil” 101

Estado Novo que tomará as primeiras medidas de intervenção


severa em sua organização – sobretudo para assegurar o provei-
to político a partir do imenso potencial do esporte, como por
meio do financiamento público de grandes estádios. Esse novo
cenário será o tema central da segunda parte deste livro.
Parte II
Política e multidões:
a invenção do país do futebol
Capítulo 4
Retratos de um Brasil:
rumo à Copa de 1950

Comparado com outros megaeventos esportivos de seu


tempo, realizados em outros países, muito pouco se estudou e se
publicou sobre a Copa do Mundo de 1950. Em parte, podemos
entender esse relativo silêncio pelo lado trágico que representou
a derrota inesperada da seleção brasileira, quando todas as come-
morações já estavam prontas (senão já em plena execução), tama-
nha a confiança e certeza de todos na grande vitória nacional. De
forma inconteste, a principal referência bibliográfica daquele cer-
tame continua sendo Anatomia de uma derrota (Perdigão, 1986),
título sugestivo de uma obra que esmiuçou a tragédia daquele 16
de julho de 1950, em detalhes e distintos ângulos. No cinema,
destaca-se o premiadíssimo curta Barbosa, de Julio Furtado, igual-
mente focado num instante que se eternizou na memória nacional
como grande tragédia.
Há muito que se investigar acerca desse episódio recente da
história do Brasil. Uma Copa do Mundo, como qualquer outro
grande ritual coletivo, pode servir de porta de entrada para aces-
sar determinados aspectos de uma sociedade em certo momento
histórico. Sendo um ritual esportivo, agrega uma dimensão de
drama, de feitos heroicos, épicos. Nesse sentido, a Copa de 1950
106 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

foi uma das mais “trágicas” da história, e, por isso, ainda hoje, os
registros que temos daquele certame se concentram na dramati-
zação da derrota inesperada de uma “raça”, de uma nação que
queria apostar em seu futuro grandioso, seu “destino manifesto”,
determinada a provar ao mundo a superação do atraso colonial e
de suas desprezadas raízes “tupiniquins”.
Do ponto de vista essencialmente geográfico, uma Copa
pode servir para ajudar a desvendar variados aspectos de determi-
nada formação territorial e sua rede urbana, bem como da natu-
reza (e conteúdos) da urbanização, além de refletir sobre os regio-
nalismos e tantos outros temas. O próprio universo das cidades
escolhidas para sediar os jogos serve como “retrato” da hierarquia
urbana em determinado contexto histórico, assim como pode nos
falar do padrão de ocupação demográfica do território nacional –
a revelar, em nosso caso, imensos “vazios”: todo o Centro-Oeste e
Norte foram excluídos do evento, além do vasto semiárido, o que
nos fez ter, então, uma Copa quase “litorânea”. Pode ainda revelar
anseios geopolíticos de projeção internacional: tal qual a Itália fas-
cista, com a Copa de 1934, e a Alemanha nazista, que realizou em
1936 a maior Olimpíada jamais vista até então, o governo Vargas
pretendeu também realizar uma Copa do Mundo em 1942 como
genuína propaganda do Estado Novo, mas teria sido contido pela
eclosão da Segunda Guerra Mundial (Drumond, 2007).
Ainda numa abordagem específica da geografia do futebol,
tomando agora a escala planetária como referência, um megae-
vento como esse pode elucidar elementos do panorama geopo-
lítico mundial: a Copa como vitrine das nações mais poderosas,
com poucos e pauperizados representantes africanos, por exem-
plo. Para Ignacio Ramonet (1998, p. 55), a Copa do Mundo é
uma autêntica guerra ritualizada, que reafirma o futebol como o
melhor revelador das virtudes de uma nação. Também pode ex-
por a dimensão atual da migração internacional para o continente
europeu, por meio de suas seleções, que se tornaram, nas últimas
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 107

duas décadas, multirraciais (ou majoritariamente afro-caribenhas


e “latinas”), como a da França.
O estudo da Copa centrado no espaço intraurbano, por
sua vez, investigará fundamentalmente a espacialidade futebolís-
tica existente e o impacto do evento sobre o parque de estádios.
Este será o foco deste capítulo, embora não deixemos de tecer
observações e comentários sobre a rede urbana brasileira e sobre
como esta foi acionada para dar suporte a esse megaevento. Para
aquilatar o peso do impacto da Copa em nossa espacialidade
futebolística, começaremos apresentando o quadro preexistente,
ou seja, como eram nossos estádios quando o Brasil decidiu or-
ganizar o certame.

Como eram nossos primeiros estádios?

Desnecessário repetir que o futebol se introduziu no Brasil


principalmente como modismo europeu com traços higienistas,
moralistas, cosmopolitas e de distinção social, bem mais adequa-
do, portanto, aos jovens da elite. Em nossas terras, o processo
de popularização do futebol apresentou ritmo próprio, condizen-
te com os limites de uma sociedade sobejamente rural e ainda
herdeira de traços coloniais, com sua rigidez, hierarquias e forte
índice de exclusão das camadas empobrecidas, conforme apresen-
tamos no capítulo 2.
Nesse sentido, nossos primeiros estádios eram destinados
exclusivamente às elites. Sua geografia é inequívoca: localizados
nos bairros mais nobres, e como equipamentos de pequeno por-
te (geralmente uma única estrutura edificada que sequer cobria
toda a extensão de um dos quatro lados do campo), apresentavam
uma arquitetura mais assemelhada a um confortável teatro, po-
rém, a céu aberto. Como os atletas eram igualmente egressos das
camadas sociais privilegiadas, eram seus familiares e amigos que
compareciam para assistir às exibições do novo sport inglês que
108 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

fazia sucesso na Europa. O estádio era, então, um ornamento da


onda civilizadora de cunho eurocêntrico, e de acesso muito restri-
to. Verdadeiro espaço de fruição das elites.
Inúmeros exemplos atestam esse momento inicial da his-
tória dos estádios no Brasil. Em Porto Alegre, o Grêmio Football
Porto-Alegrense ergue em 1904 seu primeiro estádio, o primeiro
de toda a Região Sul, um majestoso pavilhão social com apenas
quinhentos assentos e situado em zona nobre (bairro Moinhos
de Vento),1 tendo como vizinho imediato o elegante hipódromo
da cidade.2 Em São Paulo, as primeiras partidas aconteceram no
final do século XIX, no Velódromo, em terreno pertencente à
poderosa família Prado, no bairro da Consolação, quando essa
zona estava sendo ocupada por mansões no contexto de expansão
urbana de cunho burguês-higienista, para fora do velho centro
e longe da cidade que se industrializava para além da Várzea do
Carmo, no sentido leste. Já em 1902, a Companhia Antarctica,
que acolhia partidas de futebol em seu parque destinado ao lazer
dos funcionários, será o palco dos jogos do primeiro Campeonato
Paulista de futebol, resultando, a seguir, na edificação do Estádio
Parque Antarctica, provavelmente o primeiro estádio de futebol
na história do Brasil.
Não obstante o engajamento da mocidade aristocrática, a
espacialidade do futebol brasileiro em seus primórdios era marca-
da pela improvisação. Sendo uma atividade ainda incipiente, com

1
Segundo Jean Roche (1969, p. 194), os bairros Moinhos de Vento e Independên-
cia formavam a zona mais nobre da cidade, moradia de empresários, engenheiros
e diretores de fábricas, em sua maioria alemães.
2
Desde que o Barão de Hausmmann edificou no Bois de Bologne o majestoso
Hipodromme de Auteuil, conferindo “glamour” ao turfe (tradicional espetáculo
popular), estabeleceu-se a correlação entre tal objeto e a Belle Époque, difundindo
internacionalmente esse modelo, de forma que a presença física de um impo-
nente hipódromo passou a ser instrumento de valorização do solo urbano, ten-
dendo a localizar-se em bairros de elite. A esse respeito, ver Mascarenhas (1999a).
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 109

poucos jogos ao longo de cada ano, e atraindo ainda um público


reduzido, não havia justificativa para investir na construção de
equipamentos específicos. O resultado foi a adaptação de espaços
(nobres, claros) para o jogo. Edificar um estádio presume elevado
investimento, que em casos raros poderia ser proveniente de um
rico mecenas, como a família Guinle, no Rio de Janeiro.
Em São Paulo, como vimos, havia um equipamento espor-
tivo, o Velódromo, que serviu para abrigar os primeiros movi-
mentos do cenário futebolístico local. Em Recife, as partidas de
futebol eram disputadas na “Campina do Derby”, espaço adapta-
do de um dos antigos hipódromos da cidade. O uso de tais espaços
decorria sobretudo da existência de superfícies extensas e planas o
suficiente para se jogar o futebol, além da disponibilidade prévia
de setor de assentos para a seleta assistência. Mas, além da pratici-
dade, havia o significado simbólico a referendar o novo esporte: o
futebol sendo uma modalidade aceita no círculo privilegiado das
elites, que se incluía no rol das modalidades já consolidadas na
vida social e esportiva local.
Na ausência de equipamentos esportivos, os primeiros
praticantes do futebol recorriam a espaços livres. Na Paraíba,
os primeiros jogos ocorreram em 1908, na Praça Independên-
cia, na capital, tomando de empréstimo algumas cadeiras do
Teatro Santa Rosa (Marques, 1975, p. 15). O mesmo ocor-
reu em Salvador, onde o Campo da Pólvora serviu como palco
das primeiras exibições do football, para mais tarde se instalar
no Hipódromo do Rio Vermelho. Em Porto Alegre, o Parque
Farroupilha também acolhia jogos, mesmo quando já existia o
estádio da Baixada, em virtude da multiplicação de clubes na
cidade por volta de 1909. Em Curitiba, a primeira partida teria
ocorrido em 1905, no Bosque da Rua Marechal Deodoro, mas
a seguir se definiu o Jóquei Clube Paranaense como local pre-
ferido dos jogos, que contavam ainda com o campo do Quartel
da Força Pública.
110 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Segundo o almanaque de Klein e Audinino (1996), na cida-


de de Manaus, os primeiros jogos de futebol ocorreram no prado
do Dispensário Maçônico, mas contavam também com espaços
na Praça da Saudade e no Bosque Municipal. Em Fortaleza, o
espaço utilizado pelos primeiros footballers situava-se em frente
ao Gasômetro, a partir de 1904. Mais tarde, com a atividade con-
solidada, os clubes dispunham do Stadium do Prado. Em Flo-
rianópolis, improvisava-se na Praça General Osório. E a capital
goiana, em 1907, conhecia o futebol por um grupo de rapazes que
se exibiram no Largo do Chafariz. Nesse caso, há uma nota que
revela o grau de incipiência e improvisação: apenas seis jogadores
em cada time.
Em suma, diversos foram os expedientes dos interessados
em praticar o futebol para encontrar um espaço plano, amplo e
compatível com as regras vindas da Inglaterra. Notamos o uso de
praças e parques, mas, sem dúvida, os hipódromos foram espaços
privilegiados para abrigar a nova modalidade. No entanto, esse
equipamento era restrito às cidades em que o turfe estava consoli-
dado, como em Recife, Fortaleza e Curitiba. São Paulo dispunha
de um velódromo, e o Rio de Janeiro contou com o mecenato
para erguer um estádio para seu primeiro clube de futebol.
Da primeira geração de estádios, poucos sobreviveram,
como o do Fluminense FC, no Rio de Janeiro. De refinada ar-
quitetura, e situado no bairro de Laranjeiras, reduto bucólico e
inconteste das elites quando foi criado, na primeira década do
século XX, o estádio foi patrocinado pela família Guinle, então
uma das mais ricas e influentes do Brasil. Situados em zonas no-
bres, geralmente as de maior valor imobiliário, que mais tarde
se submeteriam a processos de verticalização, tais estádios, uma
vez substituídos por equipamentos maiores e situados em locais
menos valorizados, tenderam à demolição, para abrigar lucrativos
projetos imobiliários. No caso de Porto Alegre, o estádio Moi-
nhos de Vento, que sobreviveu até 1954, deu lugar ao requintado
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 111

parque homônimo, garantindo assim a valorização do bairro, que


se manteve como o mais nobre da capital até aproximadamente a
década de 1990, quando se consolidaram novos bairros no mes-
mo vetor leste, dotados das novas amenidades requisitadas pelo
mercado. Mas o Moinhos de Vento continua sendo um dos mais
prestigiados bairros porto-alegrenses.
Esse modelo de estádio se repetiu por várias cidades impor-
tantes. A elite de Salvador, desde 1920, orgulhava-se do Estádio da
Graça, situado na Graça, vizinho ao bairro Vitória, com ele forman-
do a zona mais nobre da cidade no início do século XX. Em meio
a modernas mansões senhoriais, o bairro representava a essência da
modernidade soteropolitana, higienista, que recentemente abando-
nara o núcleo histórico da capital, insalubre e de vielas acanhadas,
para se instalar em zona mais arejada, dotada de vias mais largas e
retilíneas, ensolaradas, conforme os princípios do novo urbanismo.
Daquela geração de estádios, foi um dos que mais resistiram às pres-
sões imobiliárias, sendo demolido finalmente em 1970, para dar
lugar a quatro edifícios residenciais. Lamentável aniquilamento de
um belo capítulo da história do futebol baiano.
Curitiba, desde 1924, contava com o elegante estádio Joa-
quim Américo, cultuado símbolo da modernidade e da civilidade
do povo curitibano. Reformado inteiramente em 1999, sendo o
pioneiro na nova onda de “arenas” no Brasil, resiste em seu lugar
de origem. Recife, por sua vez, edificou, em 1916 o estádio da
Liga Sportiva Pernambucana, para abrigar os jogos do campeo-
nato local, iniciado em 1915. Em 1939, inaugurou-se um estádio
situado no tradicional bairro dos Aflitos, pelo Clube Náutico Ca-
pibaribe, que resiste aos dias de hoje, embora sob intenso debate
acerca de sua provável demolição, por se situar em zona valorizada
da cidade. Em 1930, com apoio governamental, a então peque-
na cidade de Florianópolis inaugurou o estádio Adolfo Konder.
Situado em zona litorânea privilegiada, a Praia de Fora, próxima
ao centro, foi demolido em 1982 para abrigar o Beira-Mar Shop-
112 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

ping. Seguindo a nova tendência locacional dos estádios, seu pro-


prietário, o Avaí FC, construiu a nova sede no distante subúrbio.
O processo de popularização do futebol, inevitavelmente,
tornaria esses estádios anacrônicos. Por um lado, sua reduzida
capacidade de público não comportaria mais o afluxo de inte-
ressados em assistir aos jogos. Por outro, a ampliação desses equi-
pamentos encontrava obstáculos físicos, pois geralmente estavam
inseridos em zonas de densa ocupação, bairros tradicionais. Ao
mesmo tempo, o fato de estarem situados em zonas nobres en-
carecia qualquer projeto de ampliação que requisitasse aquisição
de terreno para sua expansão. Por fim, o próprio afluxo maior e
mais ruidoso de torcedores não interessava aos habitantes desses
bairros nobres, pois comprometia suas valiosas amenidades. Ade-
mais, conforme o futebol ia deixando de ser o esporte dos jovens
aristocráticos, não seria mais interessante comportar nesses bair-
ros um estádio, ao contrário dos hipódromos e, mais tarde, dos
campos de golfe, que permanecem como equipamentos esportivos
valorizadores das imediações. Em suma, a evolução social do fute-
bol e sua espetacularização demandavam uma nova espacialidade,
tratada a seguir.

A necessidade de novos e maiores estádios

Antes de tratar especificamente dos estádios, cumpre re-


gistrar que, antes de o futebol se popularizar, já existia em algu-
mas cidades brasileiras um expressivo público para espetáculos
esportivos, com destaque para o remo e o turfe. Portanto, eram
amplas as possibilidades de o futebol se inserir nessa próspera e
nascente indústria do entretenimento urbano. Todavia, o pro-
cesso foi retardado por pelo menos dois fatores: por um lado, a
faceta elitista que nossos primeiros footballers fizeram questão de
estabelecer para manter a aura prestigiosa dessa modalidade; e,
por outro, a própria natureza do futebol, para evitar confrontos
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 113

(e choques potencialmente violentos) com indivíduos de classes


sociais desfavorecidas.
Em 1850, já existia no Rio de Janeiro uma pista situada
entre Benfica e a Quinta da Boa Vista, na qual se realizam espetá-
culos turfistas com movimento de apostas, promovidos por ricos
comerciantes, eles mesmos proprietários dos cavalos. A atividade
evolui rapidamente e em 1868 é edificado por iniciativa priva-
da um verdadeiro hipódromo (pista dotada de arquibancadas), o
Prado Fluminense, próximo à estação ferroviária de São Francisco
Xavier (Ribeiro, 1944). Já no ano seguinte, são ali realizadas cor-
ridas que atraem até 4 mil pessoas e toda a elite imperial. Segundo
Renault (1982, p. 200), em 1886 já existiam na cidade quatro
hipódromos, com 63 páreos e grande movimento de apostas,
além de uma revista especializada, O Jóquei. Simultaneamente, a
prática da equitação também se difunde na cidade: em 1877, por
exemplo, um particular solicita autorização para estabelecer uma
escola de equitação na Rua do Riachuelo.3 A culminância desse
processo é a edificação do majestoso Hipódromo Brasileiro, ou
“hipódromo da Gávea”, em 1926. Com capacidade para 80 mil
pessoas, pode ser considerado o primeiro grande equipamento de
espetáculo esportivo no Brasil, somente superado pelo Maracanã,
em 1950.
Temos visto que o movimento esportivo de determinada
cidade, quando alcança certa popularidade, resulta em grandes
objetos geográficos destinados a exibir e a “vender” o espetáculo,
com destaque para hipódromos, velódromos, ginásios cobertos e
estádios de futebol. Mas nem sempre tais objetos têm existên-
cia duradoura na paisagem urbana, uma vez que dependem da
permanência das condições históricas que os geraram. No caso
do turfe, houve grande sucesso em diversas capitais brasileiras no
final do século XIX, mas parece que o futebol conquistou muitos

3
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, códice 42-4-66.
114 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

de seus admiradores, transferindo para os estádios parte expressi-


va do público que frequentava as corridas de cavalo. Recife, por
exemplo, chegou a contar com três prados em 1901, mas todos
foram abandonados pela queda no movimento de apostas.4
O futebol, ao contrário do turfe, do ciclismo e do remo, se-
guiu seu curso evolutivo numa ascendente constante, adquirindo
níveis de popularidade que desafiavam a base geográfica existente.
Em suma, aquele modelo de estádio, reduto exclusivo da elite e
de seus rituais de modernidade, não poderia sobreviver ao cresci-
mento do interesse pelo futebol, que se expande e se populariza
na segunda e na terceira décadas do século XX, tampouco aos
interesses comerciais envolvidos com a formação de uma nova e
promissora vertente da indústria do entretenimento urbano.
Para corresponder ao aumento do afluxo de visitantes, al-
guns estádios foram alvo de seguidas ampliações, como o do Flu-
minense, que abrigou em 1919 a primeira competição futebolística
internacional no Brasil. Trata-se do Campeonato Sul-Americano
de Seleções Nacionais de Futebol, mais tarde denominado Copa
América. Fora instituído em 1916 e é considerado a mais longe-
va competição futebolística internacional. Na verdade, naqueles
primórdios, o certame reunia apenas quatro nações, Brasil, Ar-
gentina, Uruguai e Chile, pois nos demais países sul-americanos
o futebol se encontrava em estágio incipiente de organização e
inserção na sociedade local.
Cumpre registrar que, numa época profundamente distinta
da atual, em que ainda não havia no Brasil apoio governamen-
tal aos esportes e a seus eventos, coube ao Fluminense Football
Club, agremiação mais bem-dotada de recursos financeiros (com
o suporte de setores da elite, como a poderosa família Guinle),
não apenas reformar e ampliar seu estádio, mas também custear a
hospedagem das delegações visitantes. Em 1922, apenas três anos

4
Revista Sport Club do Recife, 1992.
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 115

mais tarde, com o Brasil visando realizar mais um Campeonato


Sul-Americano de Seleções Nacionais de Futebol, novamente o
Fluminense FC reforma e amplia seu estádio, elevando a capaci-
dade de 18 mil para 25 mil espectadores. Todos compareciam em
trajes finos, mas, certamente, pelo próprio quantitativo humano
envolvido, o ambiente ia se distanciando do pequeno reduto aris-
tocrático de 1906, quando apenas algumas centenas de indivíduos
prestigiaram o primeiro campeonato de futebol da cidade.
O futebol já se encontrava plenamente consolidado na vida
urbana carioca, tendo ultrapassado o remo em popularidade ao
longo daquela década de 1910, quando também proliferaram os
chamados “clubes suburbanos” (Pereira, 1996). Nesse contexto,
estavam garantidos dois quesitos fundamentais para o êxito do
evento: o entusiasmo da sociedade local e a aura higiênica e cos-
mopolita, promotora da imagem de um Brasil civilizado. Não por
acaso, no dia 16 de abril de 1919, o jornal A Noite informava:

‘POLYANTHEA SPORTIVA’ – logo que se encerrar o Cam-


peonato Sul-Americano de Football como nos annos anteriores
será publicado o terceiro número dessa revista. Onde se encon-
trarão compediadas as descripções de todos os matches, acom-
panhada de instantâneos das peripécias dos jogos. Caricaturas e
biographias dos jogadores. Esse número porém, sairá em edição
especial destinada a venda, não só no Brasil, como no Chile,
Uruguay e Argentina. E os directores da revista citada, valendo-
-se dessa opportunidade, pretendem, segundo o programa que
temos em mãos, fazer a propaganda não só dos nossos productos
da nossa civilisação, da nossa natureza como também do nosso
Sport (grifo nosso).

Sobre a atmosfera da cidade em relação ao evento, o en-


tusiasmo citado pode ser aferido na matéria abaixo, colhida no
116 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

mesmo jornal, quando o evento é tomado como o Grande Cam-


peonato Sul-Americano:

Passando a outra ordem de considerações sabe qual a renda


produzida por ocasião dos campeonatos realisados em 1916 na
Argentina e em 1917 no Uruguay? Cerca de oitocentos contos
de réis! É facto fácil de comprovar aqui está o segundo nume-
ro da minha POLYANTHEA SPORTIVA publicada em 1917.
Lea a transcrição que fiz de La razon: – A Associação Uruguaya
conquistou um triumpho financeiro no encontro de hontem.
Entre brasileiros e uruguayos. A venda de entradas ascendeu a
24.368 assim distribuídas: geraes 11.000; tribunas 5.868; plateia
1.500 produzindo um rendimento total de 89.147.60. Segundo
a Uruguaya Sport o record de entradas em matchs de football
que pertencia a Argentina com 15.000 entradas vendidas para
o match uruguayus-argentinos. Em 1916, ficou então perten-
cendo ao Uruguay com 21.368 afóra os convidados. Eu tenho
fé em que conseguiremos bater esse ‘record’. Agora um cálculo
interessante: os preços que vigorarão para o campeonato deste
mez são os seguintes: geraes 3$: archibancadas 5$000: cadeiras
10$000. tome-se por média o preço de 5$000. O stadium com-
porta mais de 20.000 pessoas. Supponhamos que a frequencia
média de espectadores pagantes seja de 14.000, commummente
temos conseguido esse número. [...] o reverso da medalha e terás
despesas avultadíssimas que a C.B.D. a está fazendo com a esta-
dia das embaixadas estrangeiras, etc. mas as importancias dessas
despesas ficam no paiz... (A Noite, 1o mai. 1919, grifos nossos).

Dois aspectos nos suscitam interesse nessa matéria. Primei-


ro, a declarada disputa entre os três países pela obtenção do “re-
cord” de público nos jogos. O esporte, no caso o futebol, além do
aspecto comercial emergente que acabamos de realçar, já adqui-
rira então esse vínculo com a nacionalidade, num contexto histó-
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 117

rico acentuadamente nacionalista (envolvendo a Primeira Guerra


Mundial e todos os movimentos nacionalistas que a antecederam
e que se desdobrariam com vigor no fascismo da década de 1920).
Sobre o nacionalismo naquele contexto, Eric Hobsbawm (1991,
p. 171) afirmou que a nação, essa imaginária comunidade de mi-
lhões, esse exercício de abstração difícil para as camadas popula-
res, parece bem mais “real” na forma de um time com 11 pessoas
e com um nome. Logo, estava em jogo no certame de 1919 não
apenas a disputa em campo, pelos atletas, mas a que envolvia toda
a sociedade, para demonstrar sua capacidade de valorizar e presti-
giar aquela atividade representante da modernidade e da civilida-
de dos povos. As rivalidades nacionais no contexto sul-americano
já se resolviam no campo esportivo e, vale frisar, não se resumiam
à performance atlética dos jogadores, mas se estendiam ao conjun-
to da sociedade.
O segundo aspecto que desejamos frisar é a composição in-
terna do estádio que abrigou tal certame: três segmentos, com
preços distintos, definem não apenas o advento de uma bem-
-demarcada hierarquia social dentro do estádio, mas também a
presença de indivíduos que não pertencem à elite da cidade. O
próprio pedido de feriado ou dispensa de servidores públicos e
trabalhadores do comércio, mesmo considerando que naquela
época a maior parte das “lojas” era de maior refinamento (pela
exclusão de acesso ao consumo por parte da maioria da popula-
ção), reflete a produção do estádio como um novo espaço social,
um pouco mais diversificado, entre “plateia”, “geral” e “tribuna”.
No processo de popularização do futebol, que se consolida
nas décadas de 1920 e 1930, um marco importante não apenas
para o Rio de Janeiro, mas também para o conjunto da nação, é
a inauguração do estádio São Januário, no Rio de Janeiro, pelo
CR Vasco da Gama, em 1927. De grande porte para a época (o
maior da América do Sul até a inauguração, no ano seguinte, do
estádio argentino do clube Independiente), dotado de linhas ar-
118 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

quitetônicas imponentes, o equipamento estava localizado em


zona industrial e de média-baixa renda, estabelecendo uma rup-
tura acentuada com o padrão locacional até então vigente para
os estádios brasileiros. Segundo Fernando Ferreira, alguns fatores
básicos intervieram na escolha do local:

O bairro de São Cristóvão perdera definitivamente qual-


quer resquício do outrora bairro imperial, aristocrático [...]
assumira o papel de bairro industrial e proletário, passando
a ser ocupado por uma população predominantemente de
origem operária, com as antigas propriedades, anterior-
mente pertencentes aos nobres e aos cidadãos mais abas-
tados, sendo gradativamente substituídas por indústrias e
pela população com menos recursos. A combinação entre a
disponibilidade de grandes terrenos a preços acessíveis, nos
‘ fundos’ do bairro, com a facilidade de acesso proporciona-
da pelo transporte feito por bondes, somado à sua grande
infraestrutura, a nosso ver, parecem ter sido fatores deter-
minantes para a escolha de São Cristóvão como sede para
o imponente estádio do clube. [...] a relativa proximidade
com o antigo campo da Rua Morais e Silva e com a zona
portuária, parte da cidade onde o clube fora fundado; a
existência de uma numerosa colônia portuguesa em São
Cristóvão, composta tanto por moradores quanto por
comerciantes e industriais; a identificação do bairro com
Portugal, construída desde a chegada da Família Real à
Quinta da Boa Vista, na primeira década do século XIX
(2004, pp. 73-4).

Com capacidade para 50 mil pessoas, o estádio viria a ser,


imediatamente, uma espécie de palco e vitrine para o populismo.
Diversos políticos, com destaque para Getúlio Vargas, utilizaram
o estádio para grandes manifestações cívicas. No âmbito do fu-
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 119

tebol, representava a inédita ascensão e poderio de um clube su-


burbano, o Vasco da Gama. Esse clube, como os demais clubes
suburbanos dos anos 1920, recrutava atletas entre as camadas po-
pulares, ao contrário dos tradicionais clubes da Zona Sul carioca
(Fluminense, Botafogo, Flamengo e mesmo o América, de um
bairro da Zona Norte, mas de classe média-alta, a Tijuca). Desde
meados da década anterior, essas agremiações suburbanas, “mo-
renas”, frequentavam a divisão principal da liga, mas sem o êxito
alcançado pelo Vasco, campeão carioca de 1923. Uma conquista
que abalou os alicerces do sistema futebolístico de então.
A chave do sucesso desse clube estava precisamente no ele-
vado investimento financeiro da colônia portuguesa, que escolhia
os melhores jogadores do subúrbio e os recompensava financei-
ramente. Dessa maneira, o clube desafiava o discurso amadorista
reinante, segundo o qual o atleta praticava esportes por prazer,
sociabilidade e princípio moral, mas nunca por dinheiro, de acor-
do com o amadorismo. Nas palavras de Arlei Damo, “o Vasco da
Gama escancarou o mecenato” (2007, p. 78). Este já existia, mas
de forma camuflada, discreta. O desejo de obter vitórias para sa-
tisfazer inclusive o nascente público torcedor impunha aos clubes
a necessidade de exigir mais de seus atletas, em técnica e esforço.
“Contratar” jogadores, ou estimulá-los financeiramente, ia se tor-
nando a melhor solução para aprimorar o desempenho do time.
Assim, os clubes, que originalmente eram uma associação de
indivíduos, por livre iniciativa de cada um e totalmente isenta de
interesses materiais, reunindo jovens mobilizados para desfrutar
dos benefícios do esporte e da vida associativa, além de conquistar
notoriedade e prestígio no restrito circuito das elites, foram pau-
latinamente se transformando. Tornaram-se entidades dispostas a
vencer, mais que jogar ou se exibir. Isso implicava maior organiza-
ção, cobrança interna, tensões, exercícios físicos, disciplina tática
e, sobretudo, privilegiar os atletas mais “competentes”, indepen-
dentemente de sua cor ou origem social. Trata-se, nas palavras de
120 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Elias e Dunning (1985), que observaram esse “mesmo” processo


na Inglaterra no final do século XIX, de uma democratização me-
ramente “funcional”. Vale descrever brevemente o processo vivi-
do no Campeonato Inglês, que de alguma forma se reproduziu no
Brasil e em outros países em que o futebol se organizou, inicial-
mente, com claras feições elitistas.5
Estando o futebol de elite concentrado em Londres, na
década de 1870 as cidades industriais e mineiras do norte (Lan-
cashire) e região central (Midlands) criaram suas ligas locais e pro-
duziram seus clubes de feição operária, muitos deles populares,
outros criados e dirigidos por capitalistas – mas que se mantive-
ram inicialmente alijados da elegante liga principal, organizadora
da Copa da Inglaterra. As equipes dirigidas por empresários eram
semiprofissionais, isto é, muitos de seus atletas recebiam, extra-
oficialmente (under the table), algum incentivo material ou até
remuneração regular para atuar, além de cada time contar com
custeio garantido de viagens para competição. Impulsionados fi-
nanceiramente e empolgados pelo prazer do futebol, esses clubes
de trabalhadores braçais foram obtendo êxito e progressivamente
conquistando espaço na liga nacional.
A exemplo do que ocorreria mais tarde com o Vasco da
Gama no Rio de Janeiro (guardadas as proporções e diferenças
contextuais), no campeonato de 1882-1883, uma dessas equipes
do norte surpreende e conquista a Copa da Inglaterra, derrotando
o tradicional time do Old Etonians e quebrando a hegemonia
dos nobres times do sul. Trata-se do Blackburn Olympic, clube
patrocinado por um empresário de minas de ferro (Mr. Sydney
Yates) e basicamente formado por tecelões e mineiros, além de
um encanador e um operador de fundição de ferro. São trabalha-

5
Nem todos os países adotaram o futebol pela via exclusiva dos circuitos aris-
tocráticos. A Alemanha parece ser um exemplo de assimilação concomitante do
futebol por distintas classes sociais, com forte ênfase no operariado.
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 121

dores humildes que recebiam como poderoso incentivo vantagens


pecuniárias e ainda foram dispensados da exaustiva jornada de tra-
balho na semana anterior à decisão do campeonato para se dedi-
car exclusivamente à preparação física e tática (Mason, 1980, pp.
32-4). A partir desse momento, os aguerridos clubes operários do
norte passaram a dominar o cenário futebolístico inglês, forçando
os clubes londrinos a modificar sua atitude amadorista e fazendo
a liga nacional adotar oficialmente o profissionalismo já em 1885.
O futebol inglês acabava de ingressar em definitivo no circuito da
mercadoria.
Desse modo, a partir daquela década de 1880, os campeo-
natos ingleses e escoceses passaram a atrair verdadeiras multidões
aos estádios de futebol, que por isso sofrem ampliações contínuas.6
Em 1891, a partida final do Campeonato Inglês reuniu 80 mil
pessoas. Aglomerações humanas desse porte para presenciar um
evento esportivo eram bem factíveis numa sociedade que era pre-
dominantemente urbana desde 1850, num país que fechava o sé-
culo XIX com pelo menos trinta cidades com população superior
a 100 mil habitantes.7
O crescente público espectador (o exigente consumidor
desse novo produto) almeja assistir simultaneamente a uma vi-
6
Em determinadas ocasiões, a solução foi edificar um novo estádio, como ocorreu
por volta de 1890 quando se inaugurou o Crystal Palace, em Londres, com capa-
cidade inédita para 100 mil espectadores, a maioria em pé. O gigantesco estádio,
na forma de uma grande cratera, localizava-se junto à conturbada área central
(a City), aproveitando terreno aberto pelas escavações necessárias à implantação
da primeira linha do transporte subterrâneo (o metrô londrino) e utilizando o
grande entulho gerado para fundar as elevadas vertentes em torno do campo,
destinado à aglomeração do público de baixa renda. Esse modelo arquitetônico
barato foi reproduzido no estádio Stanford Bridge (erigido em 1901), de pro-
priedade do Chelsea FC, e na construção do Hampden Park (em 1903), ambos
também na rota das obras do metrô (Mason, 1980; Inglis, 1989).
7
A cidade de Londres, a gigantesca metrópole imperial, atinge a marca surpreen-
dente de quatro milhões de habitantes no momento em que o futebol se profis-
sionaliza e se consolida como espetáculo de massas. Cf. Roland Marx (1993).
122 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

brante batalha campal, a uma atuação orquestrada da equipe e a


uma exibição de habilidades no manejo da bola, o que somente se
adquire com treinamento contínuo (individual e coletivo) e he-
roico esforço face à necessidade imperiosa de obter vitórias.8 Den-
tro do espírito amadorista (o chamado fair play), ao contrário, a
competição era desprezada em favor da prática pacífica e saudá-
vel do exercício físico (um fim em si mesmo), e um verdadeiro
sportsman deveria se dedicar a vários esportes, sem especialização
e, logo, sem aprimoramento.
Após esse relato, parece que temos elementos sólidos para
relativizar o discurso que visualiza no êxito vascaíno uma “revolu-
ção” no sentido de democratizar o acesso ao futebol para negros
e pobres. Tal acesso se fazia sem retirá-los de sua condição subal-
terna, uma vez que esses indivíduos eram remunerados (muito
precariamente) pela mesma elite que ia deixando o futebol para
praticar outros esportes que se mantinham como reduto exclusi-
vista, como o tênis. Elite que mudara sua inserção no futebol: de
atleta a dirigente. Paulatinamente, a elite sai de campo para assu-
mir postos de comando na organização dos clubes, já que estes
perderam a aura aristocrática para se tornarem entidades promo-
toras do lucrativo espetáculo esportivo.
Esse processo de mudança no futebol foi gradual. Imedia-
tamente após a façanha vascaína, os grandes clubes cariocas re-
agiram e impuseram normas que restringiam a permanência do
Vasco da Gama na divisão principal. Não enumeraremos tais me-
didas, amplamente disponíveis na literatura, desde o clássico de
Mario Filho ao trabalho de Caldas (1990) e tantos outros. Apenas
frisaremos que elas tentavam impedir a presença de atletas pobres,

8
Segundo Mason (1980, p. 229), o típico cidadão de classe média inglesa, após
um período de resistência preconceituosa, acatou, como consumidor, a partici-
pação de trabalhadores braçais nos times de futebol pelo prazer de assistir a uma
partida competitiva e bem jogada.
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 123

exigindo que tivessem vínculo empregatício formal, escolaridade


mínima e outros requisitos. Do Vasco, exigiram também um es-
tádio decente. E a colônia portuguesa respondeu vigorosamente,
erigindo um gigantesco equipamento. Não havia mais lugar para
o amadorismo, que, após intensos debates e conflitos, foi final-
mente abolido, seis anos mais tarde, no Rio de Janeiro e em São
Paulo, em favor do “profissionalismo”.
A década de 1930 também assistirá à difusão do rádio e,
com ele, à propagação do futebol – sobretudo a partir de 1938,
quando o governo Vargas, por meio de discursos inflamados, es-
tabelece vínculos doravante consagrados entre o futebol e a pátria,
fazendo desse esporte a verdadeira “paixão nacional”. As redes e
transmissões radiofônicas já vinham se expandindo e estimulando
a geração de equipes de futebol nas cidades do “interior”. A partir
dos anos 1940, já se praticava o futebol nas mais remotas aglome-
rações humanas deste país.
Outro marco importante desse período é a construção do
estádio do Pacaembu, em São Paulo, inaugurado em 1940. Con-
soante com o espírito de Revolução de 1932 e com o discurso
bandeirante ufanista de “locomotiva do Brasil”, a municipalidade
paulistana erigia o primeiro estádio de futebol estatal do Brasil.
Todavia, ao contrário do Vasco, o faz em zona nobre da cidade,
repetindo a tendência locacional da primeira geração dos estádios.
Tratava-se de um monumento cívico, que, como tal, exigia uma
localização “condizente” com sua importância e centralidade na
vida social e cultural da cidade. E não havia apenas o campo de
futebol, mas instalações para outras modalidades, como atletismo
e natação (piscina olímpica), além de um ginásio poliesportivo,
já que o objetivo divulgado era a promoção de uma juventude
mais saudável, vibrante e, por isso, presumivelmente patriota. Nas
palavras de Vargas, imbuído de ânimos fascistas, por ocasião do
discurso de inauguração do estádio, projetava-se uma mocidade
com “elevado índice eugênico” (Negreiros, 1998, p. 87).
124 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Um ano depois, o governador fluminense Amaral Peixoto,


genro de Getúlio Vargas e por ele nomeado interventor federal,
inaugurava na capital, Niterói, o estádio Caio Martins. Guardadas
as devidas proporções, seguia os mesmos princípios que formata-
ram o projeto do Pacaembu: a localização nobre (em Icaraí), as li-
nhas sóbrias, a existência de um verdadeiro complexo esportivo, o
controle estatal e seu uso para manifestações cívicas pró-governo.
Em linhas gerais, no âmbito da espacialidade do futebol-es-
petáculo, este era o Brasil às vésperas da Copa de 1950. Vejamos,
doravante, como esse evento impactou a espacialidade futebolísti-
ca em plena expansão.

Impactos da Copa sobre nossos estádios

O grande legado físico de 1950, o complexo esportivo do


Maracanã, é um objeto geográfico que pode ser lido como a sín-
tese de uma combinação peculiar de fatores. Um deles, a intensa
rivalidade com São Paulo,9 a produzir nos cariocas o sentimento
de insatisfação por, mesmo sendo a mais importante urbe nacio-
nal, não possuir estádio maior – e, importante frisar, por não ter
ainda edificado um estádio público (estatal) a simbolizar o valor
do esporte para o conjunto da sociedade, isto é, para o projeto de
nação civilizada. Estádios privados, sendo propriedade de clubes,
eram considerados na época um paradoxo, em relação aos elevados
princípios esportivos de equidade de condições entre oponentes.10

9
Tal rivalidade se expressou em diversos momentos, desde que o futebol começou a
adquirir relevo nessas cidades. Em 1915, por exemplo, os paulistas ousaram criar a
Federação Brasileira de Futebol, ignorando a capital do país, que dois meses depois
fundou a Federação Brasileira de Esportes, com o mesmo objetivo de gerir o futebol
em nível nacional. Somente em dezembro de 1916 as duas entidades se fundiram na
Confederação Brasileira de Desportos (CBD) (Santos Neto, 2002, p. 93).
10
Em 1948, diante das incertezas em relação à construção do Maracanã, um grupo
privado liderado por Fausto Matarazzo anuncia intenção de construir o Estádio
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 125

Outro fator essencial é o crescimento do afluxo de torcedores,


evidenciando a necessidade de maiores estádios no Rio de Janeiro.
Não por acaso, em 1941, muito pouco depois da inaugura-
ção do Pacaembu, o governo federal, por intermédio do ministro
da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, lançou concurso para
escolha do melhor projeto para o futuro Estádio Nacional no Rio
de Janeiro. A iniciativa, entretanto, naufragou diante das disputas
políticas entre esferas de governo, já que a municipalidade imedia-
tamente declarou interesse e determinação em construir o grande
estádio da capital (Moura, 1998, p. 24). Ao mesmo tempo, os
principais clubes da cidade vinham cogitando ampliar seus está-
dios, planejando equipamentos com capacidade para 100 mil pes-
soas, mas estancaram seus projetos diante do anúncio do interesse
estatal em edificar uma grande arena de uso comum.
Outro fator a se destacar na produção do que seria o maior
estádio do mundo é o momento histórico do país, embalado pelo
desenvolvimentismo e pela perspectiva de se alinhar às grandes
nações “operosas” e civilizadas. A industrialização movida pela
substituição de importações, a velocidade do êxodo rural e a
conformação de uma máquina estatal cada vez mais atuante
delineavam um quadro otimista e, nesse otimismo, a aceitação
de projetos monumentais que viessem exibir ao mundo nossa
grandeza e capacidade técnica. Assim, edificar o maior estádio do
mundo estaria em plena consonância com o futuro imediato do
“gigante adormecido”.
Criticou-se o projeto do estádio, sob alegação de prioridade
de investimento público em setores básicos, como saúde e educa-
ção (Moura, 1998, p. 28). Mas os argumentos em contrário reve-

Nacional Sociedade Anônima (ENSA), no subúrbio de Irajá, com capacidade


para 100 mil pessoas. O projeto foi duramente criticado pelo Jornal dos Sports,
que o acusou de estar em desacordo com os princípios fundamentais da política
nacional de esportes.
126 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

lam outro fator conjuntural a favorecer a construção do estádio:


a vigência do discurso regenerador do esporte (que remonta ao
século XIX, mas foi reanimado pelo nazifascismo) e sua paradoxal
atribuição à modalidade “futebol”, que, por suas características
intrínsecas (de choques imprevisíveis, de variações constantes de
batimento cardíaco e esforços exagerados), não é bem acolhido
pela medicina como promotor de saúde, tampouco recomendado
como ingrediente formador do caráter. Outra contradição nesse
discurso que associa construção de estádios com saúde pública é o
fato de esse equipamento estimular a passividade, e não a prática
esportiva. A vitória desse frágil argumento revela a força da ideo-
logia do esporte como formador de um novo homem no contexto
do Estado Novo e do Maracanã como símbolo de uma nova era
de civilidade e engrandecimento da nação.
Por fim, vale citar a rivalidade entre Brasil e Argentina. Am-
bos disputaram a condição de sede da Copa de 1950, mas vence-
mos não obstante as melhores instalações e infraestrutura geral do
país vizinho, que dispunha de melhor nível de desenvolvimento
material e maior estágio de evolução da “cultura futebolística”,
além de estádios bem maiores que os nossos. Mediante os cons-
tantes atrasos e hesitações brasileiras, os argentinos, inconforma-
dos com a derrota, reafirmavam seu interesse em sediar a Copa
(Moura, 1998, p. 33), de forma que assegurar a realização do cer-
tame tornara-se uma questão crucial de orgulho nacional. Enfim,
o gigante de concreto era também uma vitória sobre o pretensioso
rival do sul, a nação que presumivelmente se julgava superior ao
Brasil (e de fato apresentava indicadores socioeconômicos muito
superiores), inclusive racialmente no discurso de então.
Além do Rio de Janeiro, foram sedes da Copa as cidades de
São Paulo (com o Pacaembu, de 1939), Curitiba (estádio Durival
Brito e Silva, de 1947), Porto Alegre (Estádio dos Eucaliptos, de
1931), Recife (estádio Ilha do Retiro, de 1937) e Belo Horizon-
te (estádio Independência, de 1950), este último sendo o único
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 127

construído especificamente para esse evento. Explica-se a excep-


cionalidade mineira: por um lado, Belo Horizonte, cidade inteira-
mente planejada, era o ostentado símbolo maior da modernidade
urbana nacional (antes da construção de Brasília) e capital de uma
das mais importantes unidades da Federação, política, histórica e
economicamente falando. Essa cidade em crescimento vertigino-
so, símbolo do progresso, que caminhava velozmente no sentido
da polarização das diversas bacias urbanas de Minas Gerais, con-
formando paulatinamente um único sistema urbano para conso-
lidar sua centralidade (Singer, 1977), não dispunha ainda de um
estádio compatível.
O futebol ainda se encontrava em estágio relativamente
atrasado de desenvolvimento na capital mineira. Notemos que em
1929 se inaugurou um estádio com capacidade para apenas 5 mil
pessoas, pertencente ao clube mais popular do estado, o Atlético-
-MG (Ziller, 1974, p. 26). A almejada afirmação de Belo Horizonte
no contexto das nascentes metrópoles nacionais implicava seguir o
exemplo então recente de São Paulo (e já em curso no Rio de Janei-
ro) e assim erigir um “grande” estádio municipal, equipamento que
iria se alinhar com outras obras monumentais, dignas de um centro
urbano moderno e civilizado. A Copa do Mundo foi, sem dúvida,
um grande pretexto e fato impulsionador do projeto.
Antes de tratar das demais sedes, cabe citar o estádio Fonte
Nova, em Salvador. O atraso nas obras impediu, infelizmente,
sua participação na Copa de 1950, sendo inaugurado apenas seis
meses após sua realização, em janeiro de 1951. A Bahia seguiria
os mesmos passos do Pacaembu, de Caio Martins e do Maracanã,
ao inaugurar o monumental estádio estadual Otavio Mangabeira,
dotado não apenas de complexo esportivo, mas também de esta-
belecimento escolar público. De linhas modernistas, sua localiza-
ção é central e emblemática, ao lado do Dique do Tororó.
Os demais estádios da Copa apenas sofreram adaptações,
como colocação de alambrados e eventual criação de túneis e es-
128 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

paços apropriados para jornalistas, equipamentos básicos exigidos


pela FIFA, que, ao que consta, teria feito uma única visita prévia
de vistoria em cada um dos seis estádios. O Estádio dos Eucalip-
tos, excepcionalmente, sofreu ampliação significativa, passando
sua capacidade de público de 10 mil para 30 mil espectadores, e
trocando setores de arquibancada ainda de madeira por estrutu-
ras de concreto. Mas tal reforma se explica não exatamente pela
realização da Copa, e sim pelo rápido crescimento do clube pro-
prietário, o SC Internacional, fenômeno que merecerá atenção
nos próximos parágrafos, por ser representativo do contexto de
popularização do futebol e de formação das grandes torcidas.
O Internacional de Porto Alegre surgiu em 1909, como
iniciativa de indivíduos de classe média para desafiar o Grêmio,
então principal força do nascente futebol gaúcho e representante
das elites alemães que então controlavam importantes setores da
economia. Desde o início, portanto, o Internacional procura se
impor como o “clube nativo”, representante dos segmentos luso-
-brasileiros, contra o clube dominante, “estrangeiro”. Na década
de 1930, esse clube investiu no processo de popularização de sua
imagem, com êxito peculiar.
Em 1931, ao inaugurar seu novo estádio (o Estádio dos Eu-
caliptos), o Internacional dava um passo importante na afirma-
ção de sua popularidade, pois localizava-se no subúrbio Menino
Deus, enquanto seu rival mantinha-se em zona nobre, conforme
acabamos de demonstrar. Já em 1935, um Gre-Nal decisivo reali-
zado no estádio lotado da Baixada registrou que 2/3 dos presentes,
ainda que em “território inimigo”, eram torcedores do Internacio-
nal. Evidenciava-se no “clube nativo” o pleno potencial de tornar-
-se um “clube do povo” (Coimbra e Noronha, 1994).
De posse de novas perspectivas, o Internacional resolve ab-
sorver os “ventos populares da Campanha Gaúcha”. Na década
de 1930, os clubes de Pelotas, Rio Grande, Livramento e Bagé
conquistaram sete dos dez campeonatos estaduais disputados
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 129

anualmente.11 A razão principal para essa incômoda superiorida-


de “latifundiário-pastoril” sobre o futebol da capital se amparava
na forte influência platina, além, é claro, do poder econômico dos
latifundiários da Campanha. Aderindo ao modelo “profissionalis-
ta” já consolidado no Prata desde o final da década anterior, tais
clubes investiam abertamente na contratação de jogadores talen-
tosos, sem qualquer restrição relacionada a raça ou origem social
do atleta. Contando com financiamento dos grandes pecuaristas,
o futebol da Campanha estendia sua base de recrutamento para
além da fronteira, inserindo em suas equipes jogadores uruguaios
(e eventualmente argentinos) de excelente nível técnico.12
Em Porto Alegre, o futebol se mantinha estruturado em
ligas diferenciadas que operavam como circuitos independentes,
reproduzindo a rígida hierarquia socioeconômica vigente na cida-
de. A liga principal funcionava dentro dos princípios “amadorís-
ticos”, mas a pressão crescente dos novos torcedores desejosos de
vitórias já orientava no sentido da incorporação de outros valores.
Como bem percebeu Arlei Damo (1998, p. 109), o prestígio de
um clube começava a ser aferido por critérios de ordem quanti-
tativa (triunfos e quantidade de torcedores), e não mais pela dis-
tinção de seus partícipes. Progressivamente, as massas urbanas da
metrópole em formação se interessam pelo futebol e o redefinem.
Não somente a Campanha Gaúcha oferecia alternativas ao
modelo amador vigente na capital. Na década de 1930, conso-

11
A primeira vez em que uma cidade da metade norte do estado (com exceção
óbvia da capital) colocou um clube na decisão do Campeonato Gaúcho foi em
1942, por meio do EC Floriano, de Novo Hamburgo. Um bem documentado
relato da história do Campeonato Gaúcho de futebol se encontra em
Dienstmann (1987).
12
Poderíamos examinar o empenho da elite pecuarista em superar os clubes do fute-
bol da capital como uma faceta do regionalismo gaúcho estudado por Haesbaert
(1988): diante da inevitável decadência econômica, restava lutar pela preservação
da tradicional hegemonia da Campanha em outros setores, e entre eles sugerimos
o futebol. Trata-se de um tema possível para futuras investigações.
130 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

lidava-se a inserção do negro nos grandes clubes de futebol de


Rio de Janeiro e São Paulo. O maior ídolo brasileiro, consagrado
na Copa do Mundo de 1938, era então Leônidas da Silva, não
apenas um jogador de cor negra, mas um cidadão de índole rebel-
de que resistia a negar sua origem humilde e negritude. Abria-se
progressivamente um novo horizonte para os atletas negros no
futebol brasileiro.
Bem menos atrelado a valores elitistas que seu rival, coube
ao Internacional, mais precisamente a partir de 1937, a iniciativa
de recrutar maciçamente jogadores negros e pobres para reforçar
sua equipe. O resultado óbvio é um verdadeiro “massacre” em seu
adversário, ao conquistar ao longo da década seguinte nove dos dez
campeonatos citadinos disputados. Ao adotar jogadores negros e
pobres, o clube rapidamente se tornou, nos anos 1940, o “clube
do povo” de Porto Alegre. Outros símbolos viriam endossar essa
nova imagem: o famoso Rei Momo Vicente Rau tornou-se líder
da torcida, animando as arquibancadas em tom carnavalesco; um
animal desprovido de qualquer nobreza, como a cabrita, tornou-
-se “mascote” do time, acompanhando-o em todos os jogos, en-
trando em campo e tornando-se popularmente conhecido com o
nome de “Chica” (Coimbra e Noronha, 1994, p. 51). O negrinho,
expressiva figura do folclore regional, expressão da humildade – e,
posteriormente, em 1968, o saci, representando a malícia e os po-
deres obscuros de uma negritude excluída –, foi adotado nos anos
1950 como símbolo máximo do clube.
E assim o futebol porto-alegrense ingressou em novo perío-
do, distanciando-se radicalmente do obsoleto tom aristocrático e
elegante, expressão da modernidade europeia (excludente), para
“carnavalizar” os estádios e neles inserir definitivamente o anoni-
mato ruidoso das multidões.13 Parecia seguir as novas tendências

13
Em uma de suas provocativas avaliações, o filósofo e cronista esportiva Ruy
Carlos Ostermann (apud Sport Club Internacional, 1969, p. 129), quando da
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 131

estruturais, que apontavam a transição, no sentido de uma cultura


urbana de massas. Nas palavras de Sandra Pesavento (1991, p.
72), até a década de 1940, a cidade (herdada da modernidade bur-
guesa) mantém-se cindida no âmbito das formas de sociabilidade
e de entretenimento: de um lado, o Jockey Club, o Yacht Club, os
cafés, cinemas e teatros; de outro, o botequim, os banhos no Gua-
íba, as rinhas de galo e o carnaval de rua. Nesse cenário segrega-
do, apenas “as programações radiofônicas congregavam boa parte
desses segmentos, transformando-se em veículos de uma cultura
nacional-popular”.
Acreditamos que o futebol, por sua capacidade de atravessar
as diferentes camadas sociais, também se insere nesse contexto de
transformações. Na medida em que os estádios vão se preenchen-
do de gente que trabalhava nas fábricas, na construção civil e no
mercado informal da metrópole em construção, esta efetivamente
vai incorporando o futebol em seus novos e complexos mecanis-
mos de reprodução social.
Retomando as estratégias e os contornos simbólicos da riva-
lidade Gre-Nal, mantendo-se fiel a seus estatutos, o Grêmio per-
siste em recusar a inclusão de atletas negros até 1952, quando já
não mais suporta o acúmulo de vitórias do inimigo direto. Nesse
ínterim, o Internacional redimensionara no plano simbólico o
confronto com seu rival, que passa a ser visto como um clube
branco de elite e sobretudo racista, encastelado na área nobre ci-
dade, contra o adversário popular e negro, o carnavalesco “clube

inauguração do estádio Beira-Rio, em 1969, afirma que, nos novos e gigantescos


estádios destinados às massas, o indivíduo não pode mais, pela distância física e
pelo ruído da multidão, comunicar-se diretamente com os jogadores em campo,
exceto se o fizer como coletividade em uníssono, sob o comando de seus reais
líderes. Uma “readaptação orgânica e mórfica” do ato de assistir a uma partida e
participar opinando ou incentivando o time, fazendo-o como coletivo organiza-
do. A única forma, aliás, de o trabalhador urbano se expressar politicamente na
grande metrópole.
132 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

das massas” democraticamente instalado no subúrbio Menino


Deus. Essa redefinição do confronto chega, nesse momento, a
esboçar contornos de luta de classes. Com a reestruturação do
Grêmio, entretanto, essa conotação classista vai gradativamente se
esvaindo. Na atualidade, ambos os clubes possuem, igualmente,
adeptos nas camadas sociais desfavorecidas.
Mas a década de 1940 foi marcante na história do futebol
gaúcho, cunhando a simbologia e o folclore de seus dois maiores
clubes. Em suma, abundam indícios de que a reforma ou amplia-
ção do Estádio dos Eucaliptos aconteceria mesmo sem a Copa do
Mundo, tendo em vista o processo de popularização e sucesso do
clube naquela década.
Pela própria natureza relativamente modesta dos mega-
eventos esportivos anteriores ao advento da nova economia do
futebol, a realização da Copa do Mundo não apresentou impacto
expressivo em nossos estádios. Além disso, conforme argumenta-
mos aqui, já estava em curso um processo acelerado de consoli-
dação do futebol como paixão e identidade nacionais e, com ele,
uma política voltada para a construção de estádios maiores. Nossa
hipótese é de que, até sem a Copa, o Brasil teria seguido o mesmo
curso de evolução, no sentido de se tornar o detentor do maior
parque de estádios do mundo nos anos 1970.
Mas acreditamos também que a Copa representou, no ce-
nário internacional, a afirmação do Brasil como potência emer-
gente no futebol, na engenharia civil e na economia. O desen-
volvimentismo que caracterizou a década de 1950 não pode ser
desvinculado desse evento e, em especial, da construção de um
estádio que, por muitas décadas, manteve-se como o maior do
mundo. Também no contexto nacional, essa Copa representa a
consolidação do futebol como instituição onipresente no terri-
tório e como incontestável paixão nacional. Pode ser lida como
o autêntico desfecho da política “esportiva” do Estado Novo,
que a concebeu dentro do espírito do fascismo italiano: futebol
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 133

como elemento crucial de fomento do patriotismo e de mobili-


zação das massas.
Havia um desafio para o Brasil: a difícil integração nacional.
A própria inscrição espacial da Copa de 1950 revelava o panorama
territorial de então, ao concentrar dois terços da competição em
apenas duas cidades. Além da exclusão absoluta das regiões Nor-
te e Centro-Oeste, outros elementos atestam o precário estágio
de integração nacional: o Nordeste compareceu “simbolicamen-
te” com uma única cidade (Recife), com um estádio improvisado
(Ilha do Retiro), que acolheu uma única partida, do total das 22
disputadas. A Região Sul contou com duas cidades (Porto Alegre
e Curitiba) e acolheu apenas quatro partidas, ou seja, teve redu-
zida participação no certame. O Sudeste, representado por três
cidades (Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte), reuniu 17
partidas, sendo que a maioria (14) no eixo metropolitano Rio-São
Paulo e oito na capital federal. Portanto, eram seis cidades-sede,
mas com extrema concentração espacial dos jogos.
Na edição anterior, a Copa de 1938, a França contemplara
nove cidades-sede, que recobriam o conjunto do território na-
cional de norte (Le Havre e Lille) a sul (Marseille e Antibes), de
leste (Strasbourg) a oeste (Bordeaux). Notemos uma ligeira con-
centração espacial no norte industrializado. Evidentemente, mais
que uma decisão política, a distribuição das sedes expressa a capa-
cidade de um território que alcançara um nível razoável de inte-
gração mesmo antes do intenso planejamento territorial colocado
em marcha após a Segunda Guerra Mundial. Expressa, também,
uma rede urbana de alta complexidade, apesar da macrocefalia
parisiense, que, aliás, diferente da exagerada supremacia do eixo
Rio-São Paulo na Copa de 1950, não incidiu tão fortemente so-
bre o evento: Paris acolheu cinco das 16 partidas da competição.
A edição de 1934, na Itália, contou com oito cidades. Como
reflexo das profundas desigualdades socioeconômicas entre o nor-
te e sul do país, o primeiro concentrou a maior parte de evento,
134 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

com seis cidades. As demais sedes foram Roma e Nápoles. Mas


vale mencionar que esta última acolheu um evento importante, a
decisão do terceiro lugar da competição, vencida pela Alemanha
nazista. A rigor, apenas o extremo sul foi excluído da Copa de
1934. E, ao contrário da edição brasileira, a distribuição espa-
cial dos jogos foi bastante equilibrada: Roma, Milão e Florença
acolheram, cada uma, três partidas; dois jogos ocorreram em Bo-
lonha, Turim e Nápoles; e apenas uma partida foi realizada em
Trieste e Gênova.
Apesar dos problemas aqui elencados, podemos afirmar
que, a partir da Copa, por ela ou a despeito dela, pouco importa
neste momento, montava-se um novo cenário, uma espacialidade
futebolística nascente e marcada pela monumentalidade dos está-
dios, que seguiria se implantando em outras cidades brasileiras nas
três décadas seguintes. De alguma forma, o Maracanã sinalizava
o nascimento de uma era de estádios gigantes. Este será o tema
do capítulo 6. Antes, é preciso compreender outro processo que
permitiu e financiou a construção de grandes estádios por todo o
Brasil: a política de integração nacional pelo futebol.
Capítulo 5
Abrindo estradas e vencendo o
localismo: a lenta integração nacional

O fato de o Brasil ter, ao mesmo tempo, sediado a quar-


ta Copa do Mundo de futebol, construído o maior estádio do
planeta e apresentado uma seleção de incontestável nível técnico
consagrou-nos como uma das grandes potências mundiais desse
esporte, ao lado de Uruguai, Argentina, Itália, França, Alemanha
Ocidental e Inglaterra. E nos fazia acreditar que já éramos o “país
do futebol”. Sem dúvida, tal esporte alcançara entre nós enorme
importância sociocultural, econômica e, sobretudo, política.
A propaganda estadonovista, conforme salientamos no ca-
pítulo anterior, contribuíra para o quadro alcançado. O futebol,
de fato, disseminara-se amplamente pelo território, vencendo as
resistências que elencamos no capítulo 2. Povoados e fazendas
possuíam seus times e estes animavam os encontros dominguei-
ros. O conto de Orígenes Lessa exprime um pouco dessa condição
alcançada pelo futebol nos mais remotos lugarejos:

Era o orgulho de Buritisal. Resumia-lhe a vida e as esperanças.


Marcava o seu lugar entre os povoados da zona. E na vila, desde
o garoto engatinhante até os mais velhos e respeitáveis persona-
gens, toda a gente sentia o peito cheio ao pensar no ‘Esperança
Football Club’ (1990, p. 42).
136 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Todavia, a geografia vem apontar lacunas no tom ufanista


que se disseminava. O exame do território em 1950 revela um
país de imensidões ainda em pleno processo de ocupação, no bojo
do movimento que alguns definiram como a nossa “marcha para
o oeste”. Nesse processo de povoamento, estando já o futebol na
condição de principal modalidade esportiva nacional, a cada nova
aglomeração humana, teremos o “campinho” figurando imedia-
tamente entre outros equipamentos básicos de uso coletivo. Mas
a relativa incipiência desse mesmo processo de ocupação, somada
à debilidade da rede de comunicações, revela um território ainda
em estágio inicial do processo de integração.
A própria Copa do Mundo, conforme demonstramos no ca-
pítulo anterior, era uma expressão inequívoca do grau de concentra-
ção espacial da população e das atividades econômicas no território
brasileiro. E também espelho de nossa maritimidade, herança do
passado colonial agroexportador: Belo Horizonte, a sede mais “in-
teriorizada” da Copa, dista menos de quinhentos quilômetros do
Oceano Atlântico, algo irrelevante para as dimensões continentais
do país. Em outras palavras, o almejado campeonato nacional de
clubes, já consolidado em diversos países (Inglaterra, França, Ar-
gentina, Uruguai, Itália, Espanha, Alemanha etc.), teria ainda mui-
tos obstáculos “geográficos” para se efetivar no Brasil.

Futebol e rede urbana: a condição espacial

Antes de mergulhar nas concretudes do caso brasileiro,


cumpre frisar que campeonatos de futebol de caráter interurbano
dependem sempre de condições geográficas básicas para se efe-
tivar. Tais condições são de um grau de exigência muito supe-
rior ao de outras modalidades esportivas, em função do elevado
custo de deslocamento do coletivo de atletas. Torneios de tênis,
natação, ginástica olímpica, judô, golfe ou de outras modalidades
individuais se realizam a custos bem inferiores de deslocamento.
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 137

O futebol implica gastos que envolvem, no mínimo, a viagem e


a hospedagem de 15 a vinte esportistas, o que compromete ou
retarda a realização de certames de maior alcance espacial. No
Brasil, conforme veremos, o papel do Estado será fundamental
para apoiar e subsidiar economicamente a integração nacional.
Outro fator essencial para a expansão geográfica dos campe-
onatos são a disponibilidade e a qualidade das redes de comunica-
ção entre as cidades. O exemplo inglês é notável, pois sua malha
ferroviária não apenas viabilizou competições nacionais, como
propiciou a criação do futebol tal qual o conhecemos. Por volta de
1850, as diversas universidades e colégios ainda praticavam esse
esporte segundo suas próprias regras, que variavam de uma cidade
para outra e até de uma instituição para outra. Apenas para citar
um indicador de diferença, as equipes poderiam contar com sete,
dez, 11, 15 ou mais jogadores, dependendo de cada localidade.
Também variavam as dimensões físicas do campo de jogo, para
não citar a polêmica maior: poder ou não usar as mãos.
A disponibilidade de uma densa malha ferroviária, que vi-
nha se desenvolvendo desde os anos 1830, favorecia as viagens
de equipes entre as cidades inglesas, situadas a distâncias relati-
vamente curtas. E, certamente, já havia o interesse em vivenciar
o confronto de tais equipes, num quadro habitual de profundas
rivalidades históricas. Tais confrontos demandam, porém, o es-
tabelecimento de regras únicas, “universais”, que vão além das
idiossincrasias locais (Mason, 1980, p. 9). Quando se pensou em
aproveitar as facilidades de locomoção advindas da era ferroviária
para a realização de competições futebolísticas, reunindo diferen-
tes cidades, esbarrou-se, obviamente, nesse “localismo”: afinal,
que regras deveriam prevalecer? As de Cambridge? Eton? Har-
row? Westminster? Oxford? Nenhuma cidade (ou instituição de
ensino) aceitou, de início, abrir mão de suas regras, tão cuidadosa
e “cientificamente” elaboradas pelo corpo docente, amparadas nas
condições objetivas de cada estabelecimento ou na tradição fol-
138 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

clórica regional; enfim, objeto de orgulho para seus praticantes.


Mas a nova dinâmica espacial de fluxos pressionava pelo fim do
localismo (Bale, 1989).
Esse debate levou pelo menos 15 anos, a partir de 1948
(a famosa reunião de Cambridge), e, após extensas negociações,
chegou a termo em 26 de outubro de 1863, na cidade de Londres.
Ainda assim, em meio a opiniões divergentes, somente em 1870
se ratificou a quantidade de 11 jogadores por equipe. Outras re-
gras foram sendo progressivamente criadas ou reformuladas até
1888, quando se fundou a Liga da Inglaterra. A pequena extensão
territorial do país e sua densa malha viária favoreciam a realização
de campeonatos nacionais com ampla possibilidade de envolvi-
mento de todas as suas regiões.
Vale registrar que processo muito semelhante se passou
nos Estados Unidos, em relação ao beisebol, transformando-o no
principal esporte nacional. Como produto norte-americano resul-
tante da evolução de antigos jogos com bastão e bola, o base and
ball foi regulamentado em 1846, em Nova York, já no bojo da
frenética expansão da malha ferroviária no nordeste dos Estados
Unidos. Em 1860, essa densa rede alcançou Chicago e o sul do
país (American Geographic Society of New York, 1932, pp. 138-
40), e a difusão espacial do beisebol alimentou-se claramente des-
sas frentes. Em 1857, foi fundada uma liga no nordeste, com 16
clubes; dez anos depois, já se disputava um campeonato nacional,
e existiam 237 clubes de beisebol nos Estados Unidos (Nemek
e Wisnia, 1987). Alen Guttmann (1978, p. 98) confirma que a
liga nacional norte-americana de beisebol foi possível graças ao
advento e à expansão das ferrovias, que permitiram a competição
interurbana.
Podemos afirmar o mesmo em relação ao futebol inglês.
Devemos, entretanto, salientar que havia na Inglaterra grande he-
terogeneidade de jogos com bola, de longa tradição, e cuja difícil
superação política e cultural, no sentido do estabelecimento de
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 139

regras unificadas, dependeu diretamente da integração territorial.


Nos Estados Unidos, tal integração serviu mais propriamente
para difundir no território uma nova modalidade esportiva já for-
matada. Na Inglaterra, tratou-se de redefinir, em processo políti-
co lento e conflituoso, a forma e os sentidos de jogos populares
de origem muito remota. E não devemos perder de vista que, se
nos Estados Unidos as ferrovias desbravam e organizam o vasto
território para o oeste, levando à fronteira de expansão o beisebol
e outros produtos da “cultura norte-americana” gestada no nor-
deste industrial, na Inglaterra elas se implantam sobre uma rede
urbana já consolidada, colocando em confronto diferentes e arrai-
gados hábitos locais. Cumpriram, portanto, um papel distinto e
bem mais complexo.
Em termos culturais, o futebol no Brasil enfrentou uma si-
tuação semelhante à norte-americana: nossas duas metrópoles já
haviam chancelado integralmente a nova modalidade, que, por
isso, passara a dispor de amplas possibilidades de “conquistar”
o conjunto da nação e se tornar um dos elementos centrais da
identidade pátria. A diferença que guardamos em relação aos Es-
tados Unidos reside na velocidade do processo de integração do
território: sem o dinamismo da economia norte-americana, nossa
marcha para o oeste será mais lenta. E condicionará profunda-
mente não apenas o curso de difusão espacial do futebol, mas,
especialmente, a possibilidade de confrontos esportivos regulares
entre cidades de distintas regiões.
Podemos também tecer breves comparações entre o caso
brasileiro e o espanhol, visto que, embora sejam países muito dis-
tintos em sua história e seu porte territorial, aproximam-se em
determinado momento no tocante ao nível de industrialização
incipiente e geograficamente concentrado, com evidentes desi-
gualdades internas ao território, e, em geral, no grau de desenvol-
vimento socioeconômico alcançado na primeira metade do século
XX. A própria posição geográfica espanhola favoreceu conexões
140 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

mais intensas e precoces com o “berço do futebol” e com o movi-


mento esportivo europeu, de forma que em alguns aspectos o país
se antecipou ligeiramente ao Brasil no processo de assimilação do
futebol. Mas veremos que, no geral, as etapas foram concomi-
tantes, com evidentes paralelismos entre cidades de similar porte
demográfico, composição do tecido social e inserção na divisão
internacional do trabalho.
Madri e Rio de Janeiro, as respectivas capitais nacionais,
apresentavam, curiosamente, o mesmo porte demográfico quan-
do acolheram o futebol no início do século. E São Paulo situava-se
demograficamente entre Barcelona e Bilbao, apresentando ain-
da semelhante nível e velocidade no processo de industrialização.
Não por acaso, esses três vibrantes centros industriais, de marcan-
te presença britânica, conhecerão igualmente o futebol por inter-
médio dos ingleses e suas firmas. E concomitantemente: na última
década do século XIX.
Várias outras semelhanças e coincidências são passíveis de
nota. Tal como o pioneirismo de Barcelona, que em 1903 orga-
nizou a Copa Barcelona, com oito clubes (Artis, 1949), São Paulo
organizou o primeiro torneio de futebol em seu país, apenas um
ano antes dos catalães e com cinco clubes – ambos com a presença
de times formados por indivíduos diretamente relacionados ao
capital inglês instalado nessas cidades. Já o Rio de Janeiro fundou,
em 1902, seu primeiro clube, gestado no seio de sua fidalguia,
com maioria de sobrenomes luso-brasileiros. No mesmo ano, a
capital espanhola cria, nas mesmas bases sociais privilegiadas, o
clube Real Madri, de maioria castelhana e de ricos comerciantes.
Outros paralelismos entre tempos e lugares podem ser
mencionados. São Paulo abrigou, em 1895, o que se considera a
primeira partida de futebol no Brasil, pois realizada estritamen-
te segundo as regras e condições estabelecidas na Inglaterra. Esse
jogo, organizado por Charles Miller, filho de ingleses, reuniu ma-
joritariamente a comunidade britânica em São Paulo (funcioná-
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 141

rios de companhias inglesas de gás e ferrovias), já familiarizada


com essa modalidade esportiva. Por sua vez, um ano antes, Bilbao
promoveu o “primeiro desafio futebolístico de relevo” na Espanha
(Terrachet, s. d., p. 13), reunindo bilbaínos, escoceses e ingleses.
Vimos que a sociedade brasileira ofereceu resistência cultu-
ral à adoção do futebol, em virtude do que chamamos de legado
das estruturas coloniais e do sentimento nacionalista de aversão às
“estrangeirices”. Na Espanha, também emergiram vozes contrárias
ao futebol: em 1898, um cronista do jornal Los Deportes afirmou
que os esportes importados, como o futebol, o tênis e o críquete,
ainda que “higiênicos e aceitáveis”, não haveriam de aclimatar-
-se na região por não se adequarem aos costumes locais (Ramos,
1994, p. 6). Em ambos os países, prevaleceu, a médio prazo, a
força implacável da globalização. Mas aqui devemos registrar uma
diferença significativa: a Espanha, desde o século XVIII, possuía
seu “esporte nacional”, a tauromaquia, tradição que resultou num
parque de mais de quinhentas arenas espalhadas pelo território
nacional (Maudet, 1999). Após décadas de disputas culturais, o
futebol finalmente triunfou, a despeito do franquismo, que natu-
ralmente estimulava e financiava as “nativas” touradas, mas não o
futebol (Shaw, 1987). Não por acaso, os próprios clubes constru-
íram seus estádios, com recursos privados, ao contrário do Brasil,
onde houve, desde o Estado Novo, uma política de forte investi-
mento governamental no futebol.
Como Rio de Janeiro e São Paulo, serão pioneiras no fute-
bol espanhol as cidades de Madri, Barcelona e Bilbao, igualmente
proeminentes no cenário econômico e político nacional de então.
As três juntas organizarão, com dois clubes de cada cidade, o que
consideram ser o primeiro Campeonato Espanhol de futebol, em
1902. O “concurso de futebol”, como fora denominado, foi re-
alizado nas dependências do hipódromo da capital, com ampla
cobertura da imprensa, venda de ingressos e grande assistência.
No Brasil, o primeiro confronto entre cariocas e paulistas se rea-
142 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

lizou em 1901, e três anos mais tarde as duas cidades já reuniam


ao menos dez agremiações capazes de se envolver em competições
como aquela de 1902 em Madri. As razões da não realização de
um “campeonato” naquele contexto histórico, que seria precursor
no Brasil, jamais foram alvo de estudo.
Propomos um caminho. Nacionalismos à parte (que são
deveras importantes, mas preferimos omitir neste momento), a
progressista, industrial e cosmopolita Barcelona rivalizava com a
“senhorial”, castelhana e centralista Madri, num confronto clássi-
co do tipo capital econômico versus capital político; tanto quanto
São Paulo em relação ao Rio de Janeiro, por motivos bastante
similares, embora São Paulo não dispusesse ainda dos índices in-
dustriais e do cosmopolitismo de Barcelona, e sendo o Rio de
Janeiro ainda o maior centro industrial do Brasil naquele início de
século. Mas os catalães, não obstante estarem mais adiantados no
desenvolvimento esportivo, acataram a capitalidade madrilenha,
aceitando que sua municipalidade organizasse e sediasse a compe-
tição “nacional”.
Talvez a condição da monarquia explique um pouco a obe-
diência a essa “ordem”, a esse centralismo. No Brasil, paulistas e
cariocas se mantiveram num confronto que os primeiros defini-
ram como entre “iguais”, a despeito do porte e da capitalidade
do Rio de Janeiro. Até no momento de fundação da federação
nacional para gerir o futebol houve profundo dissenso entre ca-
riocas e paulistas (Sarmento, 2006). Estávamos em plena “Repú-
blica Velha”, num país de oligarquias e burguesias regionais em
disputa, num jogo político assentado na descentralização ou na
“alternância de centralidade”, que somente seria substituído pelo
centralismo com a Revolução de 1930. Afinal, o Torneio Rio-São
Paulo, que já era viável desde 1904, somente em 1933 tem sua
primeira edição, o que não nos parece mera coincidência.
No Brasil, conforme demonstraremos a seguir, a criação de
uma liga nacional deveria atravessar uma lenta construção histórica,
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 143

considerando não apenas as dimensões territoriais do país, mas


também sua precária rede de comunicações a dificultar o confronto
regular entre equipes de futebol provenientes de diferentes regiões.
Prevaleceu, durante muito tempo, o que chamamos de “localismo”.
Uma alternativa para a redução de gastos num certame
de alcance “nacional” foram os confrontos entre seleções esta-
duais, pelo elementar princípio da redução do número de times
em confronto. Nesse sentido, um primeiro esboço de integração
nacional por meio de certames futebolísticos começa em 1923,
com a criação do campeonato de seleções estaduais. Mas poucas
unidades da Federação apresentavam condições para participar,
fosse por falta de estrutura de financiamento das viagens, fosse
pelo próprio estágio incipiente do desenvolvimento do futebol
em determinados estados.1
Esse campeonato, uma peculiaridade brasileira, era realiza-
do anualmente, mas passou a ter caráter bianual nos anos 1950 e
se encerrou definitivamente em 1962, quando, enfim, as perspec-
tivas de organização de uma liga nacional de clubes eram mais ob-
jetivas. Vejamos, agora, como nosso futebol se organizou a partir
de uma forte base territorial local.

A força da base local

Como geógrafos, insistimos que a difusão e a estruturação


do futebol, em cada país, obedecem aos condicionantes da confi-
guração e da dinâmica do território. Na Espanha, como vimos, o
primeiro campeonato de futebol foi realizado em 1902 e reuniu
seis clubes das três mais importantes cidades espanholas, Madri,
Barcelona e Bilbao. Na Itália, clubes de Gênova (porto introdutor
do futebol) e Turim (importante centro industrial) organizaram o

1
Participaram do certame: Pará, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul, Paraná,
Pernambuco, São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal (Caldas, 1990, p. 118).
144 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

primeiro campeonato em 1898, incluindo, dois anos mais tarde,


a cidade de Milão (Brera, 1975, pp. 20-8). Trata-se, novamente,
de uma perspectiva nacional, de confronto entre importantes ci-
dades para definir quem seria o “campeão italiano”. Na França,
o campeonato se iniciou em 1894 e, após restringir-se aos clubes
de Paris durante os primeiros cinco anos (Delaunay et al., 1982,
pp. 20-9), tornou-se paulatinamente uma competição nacional.
Países como Uruguai e Argentina, que, mais ainda que a França,
apresentam um sistema urbano com elevado grau de primazia
(Montevidéu já concentrava metade da população uruguaia),
desde o início entenderam que suas competições futebolísticas,
embora restritas a essas cidades, tinham um caráter nacional: em
sentido figurado, a própria “nação” cabia dentro delas. No Brasil,
o sistema urbano de maior complexidade não facilitava o caminho
trilhado pelos vizinhos platinos.
Vimos que o futebol aportou em nossas terras no final do
século XIX. Naquele momento, prevalecia efetivamente no terri-
tório brasileiro a herança do sistema colonial, no qual as diferen-
tes regiões mantinham-se praticamente isoladas no plano interno
(Santos, 1993). Tal configuração territorial, ainda baseada nessas
“ilhas produtivas” do modelo agroexportador (Singer, 1977), não
abrigava evidentemente a possibilidade de conformação de uma
rede urbana integrada em escala nacional.
Em linhas gerais, disseminou-se a avaliação superficial de
que a introdução e a difusão do futebol no Brasil repetem o clás-
sico processo, isto é, aquele no qual a inovação penetra pelo porto
principal para, a seguir, espraiar-se pelo território.2 No entanto, a
existência de vários portos distantes entre si e a dispersão espacial

2
Tal avaliação é recorrente sobretudo em publicações estrangeiras sobre o futebol
brasileiro. Uma avaliação crítica da obra da socióloga norte-americana Janet Le-
ver e de outros “brazilianistas”, à luz de novos levantamentos sobre a difusão do
futebol no Brasil, encontra-se em Mascarenhas (2002, mimeo.).
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 145

dos investimentos ingleses pelo território nacional conformaram


um quadro peculiar, muito distinto daquele verificado na Argen-
tina, no Chile e no Uruguai. Ao contrário, aliás, do que afirmou
Janet Lever (1983, p. 64), ao sugerir um modelo comum para a
América do Sul, no Brasil não podemos localizar um único ponto
no território a partir do qual o futebol, como inovação, tenha se
introduzido e se difundido espacialmente, embora reconheçamos
a primazia paulistana no processo de adoção. Verifica-se, então,
um caso atípico, no qual o futebol penetra no território nacional
quase simultaneamente por vários pontos desconectados entre si
(mas conectados com o exterior), como incursões independentes
no movimento conjunto da difusão.
As razões para essa particularidade residem na forma como
o sistema colonial se organizou no território brasileiro. A metró-
pole mercantil portuguesa, carente de recursos materiais e hu-
manos diante de tão vasto território, apenas logrou empreender
incursões pontuais nessa sua principal colônia de exploração. A
partir do tradicional modelo agroexportador, foram estabeleci-
das paulatinamente algumas “ilhas” de produção primária, que
escoariam seu produto pelos diversos portos ao longo do extenso
litoral brasileiro. Tal configuração territorial, ainda baseada nas
“ilhas produtivas” do herdado modelo colonial agroexportador,
não abrigava, evidentemente, a possibilidade de conformação de
uma rede urbana integrada em escala nacional.
Diante desse quadro, o futebol penetra no território a partir
de várias localidades distintas e nelas se desenvolve sem que exista
a possibilidade de maior interação entre elas, pela supracitada di-
ficuldade para vencer as distâncias. Exceção para estados vizinhos
e com capitais dinâmicas, como Rio de Janeiro e São Paulo, cujos
confrontos entre equipes são notáveis desde a primeira década
do século XX. Foi preciso esperar algumas décadas para que, por
exemplo, os paraenses conhecessem o futebol paulista, ou que os
gaúchos pudessem disputar uma partida contra equipes pernam-
146 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

bucanas. Esse relativo isolamento está na base para a construção


daquilo que se convencionou chamar de distintas “escolas” de fu-
tebol no Brasil.
Naquele contexto nacional de débeis conexões territoriais
internas, Rio de Janeiro e São Paulo ainda não poderiam, portan-
to, exercer efetivamente o papel de metrópoles nacionais que hoje
conhecemos.3 Tal papel somente se evidenciou a partir de 1930,
resultado dos esforços da política de integração do território na-
cional, do advento de novas formas de comunicação (como a ra-
diodifusão) e da expansão da malha viária. Nesse sentido, diversas
localidades mantiveram-se em relativo isolamento em relação aos
grandes centros urbanos nacionais, ratificando o tradicional loca-
lismo. No âmbito do futebol, tal situação propiciou o surgimento
de rivalidades locais (os chamados “clássicos”).4 Ao mesmo tem-
po, as principais cidades mantinham relativo isolamento entre si,
de forma que os principais confrontos futebolísticos se davam no
nível intraurbano, e não interurbano, como se pode notar comu-
mente no caso europeu.5

3
Naquele contexto, nossas metrópoles “apenas comandavam uma fração do ter-
ritório, sua chamada zona de influência” (Santos, 1993, p. 89).
4
Poderíamos citar inúmeros exemplos, além dos famosos confrontos metropoli-
tanos: Comercial x Botafogo (o tradicional “Come-Fogo”), em Ribeirão Preto
(SP); Brasil x Pelotas (“Bra-Pel”), em Pelotas (RS); Caxias x Juventude (o “Ca-
Ju”), em Caxias do Sul (RS); CSA x CRB, em Maceió (AL), etc.
5
A título de ilustração: na Espanha, o principal confronto nacional se dá entre
o “centralista” Real Madri e o catalão Barcelona; em Portugal, entre o Porto e o
Benfica (de Lisboa); na Inglaterra, entre o Manchester United e o Liverpool, das
cidades homônimas, ou Arsenal, de Londres; na Itália, entre a Internazionale de
Milão e o Juventus de Turim. Nos campeonatos nacionais europeus, de modo
geral, cada clube pertence a uma cidade distinta. Na Espanha, o rei Alfonso XIII
incentivou ou promoveu a fusão entre clubes rivais numa mesma localidade,
criando, por exemplo, o Real Unión de Irún (em 1915, o próprio nome guarda
a estratégia da união), o Real Club Celta de Vigo (1923), o Real Valladolid De-
portivo (1928), entre outros. Cf. Mascarenhas (2001b).
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 147

As razões do território ainda não integrado imprimiram ao


processo de adoção do futebol no Brasil outro arranjo, multipo-
larizado e de forte base local, de modo que transcorreram muitas
décadas até que fosse possível a realização de um campeonato de
alcance nacional. Para demonstrar o quanto o localismo tem sido
persistente, a seguir apresentaremos uma sinopse da evolução de
nossas competições futebolísticas até os dias atuais.
Os primeiros campeonatos de futebol no Brasil ocorreram
no início do século XX, em São Paulo (1902), Bahia (1904) e
Rio de Janeiro (1906), e, embora fossem competições reunindo
clubes de uma única cidade, autodenominavam-se eventualmente
“campeonatos estaduais”.6 Nos anos 1920, a maioria dos estados
brasileiros já possuía um campeonato de futebol, mas quase sem-
pre concentrado na capital estadual.7 O que podemos chamar de
processo de “estadualização” dos certames, isto é, sua expansão
para o conjunto do território estadual, será lento e gradual e com
grande variação entre as unidades da Federação.
São Paulo e Rio Grande do Sul apresentaram maior êxito
no alcance espacial de seus campeonatos. O primeiro pelo dina-
mismo de sua economia, que impulsionou a “marcha para o oes-
te” na forma de uma frente pioneira que contou com a expansão
da densa malha ferroviária para se efetivar. O segundo contou
com um processo peculiar de integração territorial, que se ini-
ciou com as políticas migratórias do império (visando, geopoliti-
camente, reduzir a força da “fronteira” e da campanha pecuarista
e povoar o “norte” do estado) e se consolidou com as políticas de
transporte no governo estadual Borges de Medeiros (duas gestões

6
Porto Alegre (1910) batizou de torneio “citadino” e apresenta-se como uma ex-
ceção, justificada pelo elevado grau de difusão do futebol em outras cidades gaú-
chas, como Rio Grande, Pelotas e Bagé, fruto da decisiva influência do Prata, sem
dúvida, o berço desse esporte na América do Sul (Mascarenhas, 2001a).
7
Na Paraíba, o campeonato restringiu-se à capital até a década de 1950, quando,
enfim, incorporou clubes de Campina Grande (Mascarenhas, 1999c).
148 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

entre 1898 e 1928). O Campeonato Gaúcho já iniciou, em 1919,


contando com três cidades (Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande)
e logo se expandiu para abraçar Bagé, Santana do Livramento e
outras cidades, conforme a figura a seguir:

Figura 1 – Cidades participantes do Campeonato Gaúcho de Fu-


tebol em 1920.

Autor: Gilmar Mascarenhas.

O caso gaúcho, tratado em nossa tese (Mascarenhas, 2001a),


é excepcionalmente bem-sucedido em termos de difusão do fute-
bol e organização de um campeonato de ampla cobertura espacial.
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 149

As outras unidades da Federação apresentaram processo mais lento


de extrapolação dos certames para além das capitais estaduais e suas
vizinhanças imediatas. O Campeonato Mineiro, por exemplo, du-
rante décadas se resume a Belo Horizonte e a cidades vizinhas, do
“Quadrilátero Ferrífero”, como Nova Lima e Sabará. Juiz de Fora
possuía sua própria liga “sul-mineira” de futebol. Na Bahia, o Re-
côncavo por muito tempo concentrou todas as equipes do campeo-
nato estadual, que foi lentamente se expandindo para acolher clubes
de Jequié, Vitória da Conquista, Ilhéus e Itabuna.
Logo, antes de se iniciar o lento processo de integração na-
cional do futebol, este enfrentou a difícil integração no âmbito
das escalas estaduais. Tais processos apresentam grande hetero-
geneidade de ritmo e alcance espacial, sendo determinantes dois
aspectos: o grau de êxito ou popularidade do futebol na sociedade
local e o nível de articulação interna da rede urbana em cada uni-
dade da Federação.

A integração nacional tardia

Já se encontrava em curso, principalmente desde o Estado


Novo (1937-1945), um processo de integração do território na-
cional que fatalmente atingiria o universo futebolístico. A partir
do Estado Novo, a tutela política sobre o futebol estabelecerá um
formato organizativo centralizador em nível nacional e completa-
mente enquadrado pela malha política federativa. As velhas ligas
citadinas terão de se submeter às federações estaduais, e estas ao
Conselho Nacional de Desportos. Mas no plano empírico preva-
lecem ainda a dinâmica espacial da rede urbana e a configuração
do território como elementos condicionantes da evolução de cada
campeonato.
Em 1950, começou uma primeira reação ao localismo vigen-
te no futebol brasileiro. Inaugurou-se um torneio regular entre os
principais clubes do Rio de Janeiro e de São Paulo (evento que antes
150 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

conhecera uma única edição, em 1933). Todavia, cumpre realçar


que se tratava das duas únicas metrópoles nacionais, cuja proximi-
dade física (450 km), aliada à tradicional rivalidade entre ambas
(fenômeno anterior ao advento do futebol), propiciou tal iniciativa
de ligeira ruptura com o modelo reinante. De modo geral, quase
todas as demais cidades brasileiras persistiam, naquele momento
histórico, com seus campeonatos de pequeno alcance espacial.
Em 1959, surgiu, enfim, uma competição de caráter nacio-
nal, a Taça Brasil. Contudo, como forma de reduzir os custos de
um evento ainda sem maiores atrativos para o público torcedor,
interessado basicamente nas tradicionais rivalidades futebolísticas
locais, esta se define pelo sistema de eliminação progressiva por
confronto direto (vulgo mata-mata) e restringe-se aos clubes cam-
peões de apenas alguns estados da Federação. Trata-se, assim, de
um evento de duração e alcance espacial reduzidos. Devemos ain-
da realçar que o motivo fundamental dessa iniciativa é totalmente
externo à dinâmica do futebol brasileiro: ocupar as duas vagas
anualmente oferecidas para a recém-criada Taça Libertadores da
América (cuja primeira edição ocorreu em 1960).
Em 1967, no bojo de uma conjuntura política repressiva e
de plena manipulação do sentimento patriótico por meio do fute-
bol, o governo federal, que já começava a financiar parcialmente a
construção de grandes estádios, promoveu um torneio que seria o
embrião do futuro campeonato nacional. Foram reunidos inicial-
mente 15 clubes, de cinco cidades concentradas na região centro-
-sul.8 No ano seguinte, foram incorporados os clubes campeões da
Bahia e de Pernambuco.
Finalmente, em 1971, no auge da ditadura militar – e
por ela financiado, com seus elevados custos operacionais, face

8
São elas: Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre.
Com esse novo certame, então denominado Torneio Roberto Gomes Pedrosa,
ficou extinto o Torneio Rio-São Paulo.
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 151

às imensas distâncias físicas a serem percorridas pelos clubes – e


no embalo da conquista definitiva da Taça Jules Rimet, surgiu o
campeonato nacional, substituindo a Taça Brasil no papel de de-
finir anualmente os participantes brasileiros na Taça Libertadores.
Inicialmente com a presença de vinte clubes, o certame apresen-
tou rápida expansão: no ano seguinte, já eram 26 participantes,
passando a quarenta no terceiro ano. A perspectiva de integração
nacional pelo futebol tornava-se explícita política do regime mi-
litar no Brasil.
O aumento de clubes a cada edição foi uma constante na
segunda metade da década de 1970: eram 54 clubes em 1976, 62
no seguinte e 74 em 1978. Quando parecia esgotada qualquer
possibilidade de seguir em expansão o número de competidores,
o governo anunciou para 1979 o recorde de 94 equipes em dispu-
ta. Nesse contexto de inclusão generalizada, de forma inédita em
muitos casos, puderam participar do certame cidades com escassa
expressão futebolística (ou de nível inferior de inserção na rede
urbana), como Itumbiara (GO), Colatina (ES), Itabaiana (SE),
Poços de Caldas (MG), Novo Hamburgo (RS) e Chapecó (SC).
Os três mapas a seguir, relativos aos campeonatos de 1975, 1976
e 1977, revelam a presença de clubes oriundos de todos os estados
da Federação (vale frisar que Tocantins e Mato Grosso do Sul
ainda não existiam naquele ano, e que quatro unidades federativas
ainda eram “territórios federais”).
152 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

MAPA 1 (1975)
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 153

MAPA 2 (1976)
154 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

MAPA 3 (1977)
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 155

A ampliação exagerada do campeonato se explica pelo con-


texto político. Por meio de manobras político-partidárias, facilita-
das pelo regime de exceção, muitas cidades e clubes de menor ex-
pressão ingressaram na competição sem qualquer mérito técnico.
Trata-se da gestão (1975-1980) do almirante Heleno Nunes na
presidência da Confederação Brasileira de Desportos (CBD, enti-
dade máxima do futebol brasileiro até 1979). Ao mesmo tempo, o
almirante era também o presidente da ARENA (Aliança Renova-
dora Nacional, partido que sustentava o regime militar) no estado
do Rio de Janeiro. O critério para inclusão de novos clubes a cada
ano era basicamente de cunho político-partidário: por meio do
futebol, buscar apoio popular para o governo. Tornou-se notório,
na época, o ditado: “Onde a ARENA vai mal, mais um clube no
[campeonato] nacional”.
A edição deveras “inchada” do Campeonato Brasileiro de
1979 registrou, como não poderia ser diferente, a menor média
histórica de público nos estádios. Críticas diversas e pressões dos
grandes clubes, conjugados ao processo de distensão e abertura
política (era o ano da anistia), compunham o contexto de funda-
ção da CBF em setembro de 1979. No ano seguinte, como resulta-
do das pressões, o campeonato foi reduzido a quarenta clubes em
sua divisão principal, sendo criadas outras duas divisões inferiores.
Em 1981, mantidos quarenta clubes em disputa, surgiu
um critério objetivo ou “técnico” para enfim substituir decisões
políticas de convidar este ou aquele clube: os campeonatos esta-
duais passaram a definir os participantes. Ainda que com pesos
distintos: seis vagas para clubes paulistas; cinco para cariocas;
dois para gaúchos, paranaenses, mineiros, goianos, pernambu-
canos, cearenses e baianos; e uma para o campeão dos demais
estados da Federação. Até 2003, quando finalmente o Campe-
onato Brasileiro atingiu um padrão definido e relativamente
consensual, diversas fórmulas foram testadas, variando segundo
interesses e pressões em jogo.
156 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

O que nos cabe frisar é a natureza autoritária do processo


de formação de um certame nacional de futebol, conduzido com
grande influência do Estado, em favor da política de “integração”,
a despeito de uma configuração territorial pouco favorável e da
concentração de poderio econômico e futebolístico em determi-
nados centros.
Vários indícios sugerem que já estava em curso nos anos
1960 um processo de crise nos chamados “clubes pequenos”. Os
grandes estádios, nova fonte de receitas, iam promovendo a con-
centração de renda em favor de poucos clubes de maior torcida e
gerando um “abismo” entre estes e os demais. Economicamente
desfavorecidos, os clubes pequenos foram se conformando com o
papel de bacia coletora ou fornecedor de talentos para os grandes,
que recrutavam os melhores atletas logo após seu aparecimento no
cenário local. O exame dos campeonatos estaduais demonstra que
os clubes pequenos foram paulatinamente perdendo força entre
as décadas de 1950 e 1970, tornando tais certames um verdadeiro
“monopólio” de uma elite local de clubes. Apenas no século atual,
mediante a enorme desvalorização dos certames estaduais (consi-
derados um fardo e prejuízo para os grandes clubes), os pequenos
voltaram a disputar títulos, simplesmente em virtude de menor
investimento dos grandes nesses campeonatos.
Por exemplo, o Campeonato Gaúcho, antes de se tornar
“presa” da dupla Gre-Nal, teria um Rener (clube de fábrica de te-
cidos) campeão estadual em 1944. O mesmo ocorreu com o des-
conhecido Siderúrgico, de Sabará, campeão mineiro de 1964. No
Rio de Janeiro, o América, em 1960, e o Bangu, em 1966, foram
campeões, mas parecem ter se despedido definitivamente da espe-
rança de novas conquistas. Em Pernambuco, desde 1945, apenas
três clubes se alternam na disputa do título estadual. No futebol
baiano, tivemos cinco clubes campeões na década de 1960, mas
nos trinta anos seguintes a dupla Ba-Vi estabeleceu completa he-
gemonia. No Campeonato Cearense, hoje dominado pela dupla
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 157

Ceará e Fortaleza, a mesma década de 1960 ainda assistiu a quatro


distintos clubes campeões, e a cinco outros nos anos 1950. Em
linhas gerais, o período 1970-2000 atesta o processo de falência
dos pequenos clubes, que persiste ainda hoje, porém “camuflado”
por eventuais performances nos certames estaduais, o que revela
muito mais o abandono destes pelos clubes “grandes”.
Havia no projeto de integração um esquema economica-
mente insustentável, sobretudo na década de 1980, o da moder-
nização do futebol europeu, que promoveu um inédito êxodo de
talentos brasileiros para a Europa. Com estádios vazios e com-
petições pouco lucrativas, em 1987 ocorreu a “primeira” grande
reação política de descontentamento por parte dos grandes clubes
brasileiros. Essa elite do futebol se reuniu e criou o Clube dos
Treze, que realizou então um campeonato independente, à revelia
da CBF, reunindo exclusivamente seus membros (Helal, 1997).
As pressões exercidas pelo Clube dos Treze, no sentido da
proclamada “modernização do futebol brasileiro”, promoveram
imediata redução do número de clubes no certame nacional. Com
tal redução, a nova via de “integração” nacional se realizaria a
partir de 1989, na forma de uma competição no formato elimina-
tório (vulgo mata-mata): a extinta Taça Brasil “ressurgiria” como
Copa do Brasil. A proposta se afirmou, estando hoje em sua 25a
edição consecutiva. Atualmente, reúne 86 equipes (edição 2013),
aproximando-se, desse modo, do auge do número de competido-
res nos tempos ditatoriais. Cada unidade da Federação tem direito
a pelo menos um clube participante (como vem ocorrendo com
Amapá, Roraima, Rondônia e Tocantins), sendo este o campeão
estadual do ano anterior.
Todavia, essa aparente política de inclusão não favorece os
pequenos clubes do interior, pois, em sua maioria, participam de
apenas um ou dois jogos, despedindo-se precocemente da com-
petição, uma vez que esta se organiza no formato eliminatório.
158 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Esse processo de reorganização do futebol brasileiro favorece os


grandes clubes, em detrimento dos demais.
Congregando um número crescente de clubes e estados da
Federação, as competições de escala nacional (incluindo a Copa
do Brasil, a partir de 1989) comprimiram os campeonatos estadu-
ais, dividindo definitivamente o calendário futebolístico brasileiro
em dois segmentos: um para os certames estaduais e outro, bem
mais extenso, para o nacional. Esse encurtamento dos campeona-
tos estaduais, conjugado ao processo de metropolização do fute-
bol (tema do capítulo 7), contribui para dificultar a sobrevivência
dos pequenos clubes.
Em síntese, esse turbulento processo de integração nacio-
nal pelo futebol interessava a regimes ditatoriais e garantiu uma
sobrevida aos pequenos clubes. Obviamente, as desigualdades
inter-regionais eram e ainda são imensas, considerando o nível
de desenvolvimento do futebol e a capacidade de mercado local,
de forma que o projeto de integração exigiu investimentos públi-
cos na construção de estádios, palcos do espetáculo da integração
nacional promovido pelo regime de exceção. Surgia uma nova
espacialidade do futebol, tema do próximo capítulo.
Capítulo 6
Uma nova paisagem urbana:
o gigantismo dos estádios

Em nossa memória coletiva, a década de 1950 representou


para o Brasil o advento da era do desenvolvimentismo. A constru-
ção de uma capital monumental na vastidão silenciosa do cerrado
figurava como um dos símbolos de um novo tempo, de grandezas
e mudanças estruturais. O êxodo rural persistia em seu grande
fluxo rumo às novas metrópoles, que, por sua vez, reluziam em
grandes obras públicas e no início do processo de verticalização
imobiliária e de difusão em massa do automóvel. A malha rodo-
viária se expandia ao sabor dos discursos ufanistas. Sendo o fute-
bol a consagrada paixão nacional, dificilmente escaparia ao vigor
construtivo e ao monumentalismo daqueles tempos.
No rastro do Maracanã, um dos símbolos da grandeza na-
cional, outras cidades foram projetando seus “gigantes de concre-
to”. Havia um contexto favorável, reflexo da ascensão das mas-
sas urbanas a determinados bens de consumo e serviços. Gente
também advinda do mundo rural que pretendia se territorializar,
sentir-se pertencente ao “urbano”, compartilhar os rituais coleti-
vos identitários, por meio da adoção de um time “do coração”.
O processo de urbanização em si mesmo e o contínuo cres-
cimento do futebol como espetáculo de massas já eram suficientes
para promover ampliação progressiva dos estádios, como pude-
160 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

mos observar em vários outros países. Mas o que se verificou no


Brasil ultrapassou as expectativas: uma febre de novos e imensos
estádios, que no transcorrer de duas décadas mudou completa-
mente a paisagem urbana e gerou novos espaços de sociabilidade
e expressão popular. Antes de adentrarmos no universo empírico,
vale tecer algumas considerações gerais sobre a natureza desse ob-
jeto geográfico peculiar.

O estádio de futebol como objeto geográfico

Por seu porte e centralidade, os estádios constituem a prin-


cipal expressão visível da magnitude que alcançou o futebol no
Brasil. Entretanto, muito pouco se estudou geograficamente so-
bre esses monumentais objetos, não obstante sua ubiquidade no
mundo contemporâneo. O maior estudioso do assunto ainda é
o geógrafo inglês John Bale, ora analisando a inserção dos está-
dios no espaço urbano (1993), ora aplicando princípios da topo-
filia para estudar a experiência humana em seu interior (1994),
ou, ainda, fazendo sombrias projeções para o futuro dos estádios
(1998). Antes dele, Armand Frémont (1980) foi um dos poucos
geógrafos que trataram efetivamente dos estádios de futebol, re-
correndo a uma análise da configuração de seu espaço interno
como lugar.
Na geografia brasileira, há um inexplicável silêncio. Pelo
levantamento (não exaustivo) que realizamos no final da década
de 1990 sobre a presença dos estádios em estudos de geografia ur-
bana (Mascarenhas, 1999c, 2002), detectamos raras alusões, com
destaque para as curiosas passagens em obras de Pierre Monbeig
(anos 1940 e 1950, sobre a paisagem urbana e a cidade de São
Paulo) e uma discreta menção em Milton Santos (1996).
Ao que tudo indica, o primeiro esforço de estudo geográfico
dedicado essencialmente aos estádios de futebol no Brasil se reali-
zou em 2002, por ocasião do III Simpósio Nacional de Espaço e
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 161

Cultura (Mascarenhas, 2002), seguido de outras poucas iniciati-


vas (Ferreira, 2004; Gaffney e Mascarenhas, 2006; Mascarenhas
e Oliveira, 2006). Aparentemente, está em curso uma “onda” de
estudos na geografia brasileira, movidos por ocasião da Copa do
Mundo, a qual certamente alterará o estado da arte nesse micro-
campo específico de estudos.
O que é um estádio de futebol? Geograficamente, um edifí-
cio ou equipamento de acesso coletivo que se comporta como uma
centralidade física e simbólica no espaço urbano-metropolitano.
No plano operacional urbanístico, funciona como uma centrali-
dade periódica, capaz de acionar grande afluxo de visitantes em
dias de jogos, forçando um reordenamento na gestão pública de
seu entorno (para garantir segurança e acessibilidade) e gerando
fugazes oportunidades comerciais e de serviços ao setor informal.
Apesar de tal periodicidade, que condena ao silêncio, e ao desper-
dício de recursos, na maior parte do tempo, a imensa estrutura de
concreto, do ponto de vista político e simbólico, o estádio é uma
centralidade constante, permanente na paisagem física e cultural.
Espaço vivido e lugar de referência, o estádio alimenta o sen-
tido de pertencimento e a constante fabricação das identidades cole-
tivas (Gaffney, 2008), sejam elas clubísticas (e intraclubísticas, con-
siderando facções de torcidas de um mesmo clube), locais, regionais
ou nacionais. Em suma, o estádio, além de sua função econômica
de abrigar e comercializar espetáculos, pode e deve ser considerado
um “território usado” (Santos, 1996). Em outras palavras, como es-
paço apropriado pelos usuários, que não querem se reduzir a meros
consumidores e passivos observadores, mas participar ativamente
da festa, inclusive expressando coletivamente suas opiniões e reivin-
dicações. O rico movimento de apropriação do estádio faz dele um
elemento singular na reprodução social da cidade.
Os estádios são memória acumulada, vivida coletivamente.
Gigantescos templos de concreto, nos quais Freud já havia de-
tectado uma dimensão “sagrada”. O formato “circular” das gran-
162 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

des arenas nos evocaria o eterno retorno dos tempos, exercício


facilmente associado ao ciclo das temporadas esportivas. Meca de
cânticos profanos, ao ingressar nesse recinto o indivíduo vivencia
a suspensão do tempo externo (Morris, 1981). Os estádios são, as-
sim, portadores de memória e importantes conotações simbólicas,
conforme percebeu Costa (1987), que os definiu como “novos
espaços institucionais” capazes de mobilizar uma nação inteira e
cada indivíduo a seu modo. O autor, estudando os estádios de
futebol em Portugal, chega a sugerir que estes cumprem papel
de espaço efêmero de comunhão da coletividade, semelhante ao
exercido pela igreja nas pequenas vilas de outrora.
Para ocupar esse lugar na experiência coletiva e individual,
o estádio descreveu ao longo dos séculos uma peculiar trajetória
na civilização ocidental, e a ela dedicaremos alguma atenção. Sua
origem remonta à Grécia Antiga e ao Império Romano. Roma abri-
ga o Coliseu, monumental estrutura com capacidade para 50 mil
espectadores, espaço central na reprodução social da pujante capital
de um vasto império. Os rituais públicos que ali se realizavam regu-
larmente consistiam no momento festivo oferecido pelos governan-
tes às massas. Ainda hoje podemos constatar vestígios de estádios e
estruturas similares nas diversas cidades que foram conquistadas ou
criadas pelo Império Romano, o que também ocorre na América
Central (Gaffney, 2008). Ao associarmos seu porte colossal e sua
localização privilegiada à carnificina e às punições aos rebeldes ali
realizadas, podemos tomar o Coliseu como um verdadeiro espaço
de concentração, expressão e exercício do poder.
Com o declínio do império e a conformação do medievo, as
cidades perderam sua expressão econômica, política e demográfi-
ca, e os estádios desapareceram como uso social específico do en-
tretenimento. Muitos foram apropriados como moradia coletiva
de baixa renda, outros serviram como depósito de entulhos. Qua-
se todos foram dilapidados, para reaproveitamento dos materiais
em outras construções, como as igrejas medievais.
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 163

Com o advento da era renascentista, os estudos sobre


o corpo, a biomecânica e uma filosofia de apoio à “educação
física” começam a se expandir, instaurando-se uma nova fase de
desenvolvimento da cultura física. Já no contexto iluminista, a
educação física encontra-se plenamente inserida nas public schools
inglesas, na busca do corpo disciplinado e são. Entre 1820 e
1870, tais escolas funcionaram como verdadeiros laboratórios de
invenção dos esportes modernos (Augustin, 1995, p. 20). Esses
esportes logo ultrapassaram os muros escolares para conquistar
os amplos espaços abertos criados pelo urbanismo vitoriano
e largamente disseminados a partir de 1880, conhecidos como
recreation grounds (Lavery, 1971, p. 112).
Uma vez consolidadas na sociedade inglesa, essas práticas
esportivas, com destaque para o futebol, serão facilmente difun-
didas nas extensas malhas do imperialismo britânico, conforme
destacamos no capítulo 1.
Ao longo do século XX, e mais incisivamente entre as déca-
das de 1920 e 1970, os estádios apresentaram expansão contínua
em escala planetária (Ásia e África com certo atraso em relação à
Europa e à América). Após uma primeira fase impulsionada quase
exclusivamente pelo setor privado, o poder público vai paulatina-
mente tomar a iniciativa de patrocinar o esporte como política de
bem-estar social.
O primeiro grande envolvimento estatal se deu por ocasião
do movimento nazifascista, quando os esportes foram efetivamen-
te acionados para simbolizar vigor nacionalista e capacidade de
realização de uma raça. Os Jogos Olímpicos de Berlim (1936) fo-
ram um reconhecido marco desse processo. Mas já na década an-
terior Mussolini disseminou pela Itália seus estádios “comunales”,
estruturas neoclássicas padronizadas, símbolos do novo regime e
da herança poderosa do velho império. Conforme vimos aqui, o
governo brasileiro, no âmbito do Estado Novo, não foi insensível
a essas tendências.
164 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

O período de prosperidade econômica (os “trinta glorio-


sos”) que emergiu após a Segunda Guerra Mundial registrou, na
Europa Ocidental, um surto inédito de criação de grandes estádios
ou ampliação dos já existentes. A Espanha, por exemplo, assistiu
à construção de gigantescas “catedrais de concreto” (Lanfranchi,
1994), como o Santiago Bernabéu, cuja ampliação, em 1955, fez
dele o maior estádio europeu, com capacidade para 124 mil as-
sistentes. Dois anos depois, a cidade de Barcelona inaugurou o
Camp Nou, para 90 mil espectadores. Este último, no auge do
período franquista, converteu-se no único espaço coletivo em que
o povo catalão poderia, regularmente, não apenas falar sua língua,
mas também expressar críticas ao governo central, especialmente
nos duelos contra o Real Madri (Shaw, 1987).
Queremos registrar que o grande estádio de futebol, tra-
dicionalmente considerado lugar de alienação das massas, pode
também se converter em espaço de expressão política contesta-
tória. Veremos no capítulo 8 que esta e outras formas de apro-
priação popular do estádio serão inibidas com o advento da onda
neoliberal de reelitização dos estádios pós-1990. Antes, porém,
cumpre mergulhar no caso brasileiro, para averiguar como se deu
a formação de seu fabuloso parque de estádios.

O país dos grandes estádios

Comecemos definindo o “grande” estádio. Não existe qual-


quer medida de referência universal que estabeleça os limites de
grandeza entre estádios. E, mesmo se existisse, deveria prevalecer
em qualquer estudo geográfico outros parâmetros, mais específi-
cos, inscritos no processo histórico e no contexto socioespacial.
Para o caso brasileiro, podemos estabelecer como limite mínimo o
patamar de capacidade de público de 50 mil pessoas, para definir
o que significou, a partir das décadas de 1940 e 1950, o porte de
estádio que os governos passaram a almejar e que resultou numa
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 165

constelação de “arenas” sem igual na escala mundial, ao menos até


a década de 1980. Em Maceió, por exemplo, o estádio Rei Pelé
abrigava 45 mil pessoas, mas, considerando o porte demográfico
da cidade quando de sua inauguração, em 1971, pode ser incluído
na lista do gigantismo. A cidade possuía então 160 mil habitantes,
de forma que quase toda a “população adulta”, de 20 a 50 anos
de idade, caberia no estádio. O atributo de gigantismo também se
sustenta na diferença em relação ao porte do principal estádio da
cidade até então, que poderia acolher apenas 10 mil torcedores.
Vimos em capítulos anteriores que, antes do Maracanã, dois
estádios se destacaram no cenário nacional: São Januário (Rio de
Janeiro, 1927) e Pacaembu (São Paulo, 1940). Assim que inaugu-
rado, o estádio do Vasco da Gama assumiu a condição de maior
estádio sul-americano, sendo, porém, quase imediatamente ultra-
passado pelo congênere argentino Avellaneda. A iniciativa vigo-
rosa da comunidade luso-brasileira foi, senão o ponto de partida,
certamente o gesto precursor da política de estádios gigantes no
Brasil. O Pacaembu, por sua vez, inaugura a tradição de estádios
estatais em nosso país, peculiaridade marcante de uma forma de
regulação social e de controle das massas.
Para a série evolutiva que apresentaremos a seguir, tomare-
mos o ano de inauguração do estádio. Mas cumpre registrar que a
construção de um equipamento desse porte exige o transcurso de,
no mínimo, dois ou três anos, e que alguns consumiram período
muito maior. Ademais, há o lapso muito variável de tempo entre
a concepção da ideia ou do projeto e o início de sua execução.
No caso do Vivaldão, em Manaus, transcorreram 15 anos entre o
projeto original e sua inauguração, em 1970.
Um primeiro momento de concepção e construção de gran-
des estádios foi iniciativa dos próprios clubes, mas alguns já com
alguma benesse do poder público: Olímpico Monumental em
Porto Alegre, em 1954 (embora ainda numa estrutura mais mo-
desta, apenas com o anel inferior); o Estádio Cícero Pompeu de
166 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Toledo, ou “Morumbi”, em São Paulo, em 1960; e o Beira-Rio,


em Porto Alegre, cuja obra iniciou em 1959, mas somente foi
inaugurada dez anos mais tarde. Nos dois últimos, houve algum
apoio financeiro governamental. O Morumbi, que hoje abriga
apenas 67 mil torcedores, é o maior estádio privado do Brasil e
nasceu com impressionante capacidade para 120 mil espectado-
res, em terreno presumivelmente negociado pela municipalidade
em cobiçada zona de expansão imobiliária. O Beira-Rio, por sua
vez, foi construído em terreno doado em 1956 pela prefeitura, em
futuro aterro sobre as águas do Guaíba, quando Leonel Brizola era
o prefeito de Porto Alegre.
Em 1965, foi inaugurado outro estádio colossal, e agora
inteiramente público, o Governador Magalhães Pinto, ou Mi-
neirão, em Belo Horizonte (MG), hoje com capacidade para 76
mil, mas que já acolheu 132 mil pagantes. Situado na vastidão
da Pampulha e em harmonia com as linhas modernistas do en-
torno, o novo estádio representou um salto evolutivo formidá-
vel na capital mineira, já que os demais se situavam no interior
do espaço original da urbe planejada, àquela altura já bastante
adensado.
Estando os quatro principais centros futebolísticos dota-
dos de grandes arenas, iniciamos outro período, marcado pela
construção de grandes estádios nas demais capitais. Como vi-
mos no capítulo anterior, havia o projeto político de aprofun-
dar os vínculos do futebol com o regime militar e de propiciar
plena massificação desse esporte, considerado por muitos um
meio de alienação, a desviar a atenção dos principais proble-
mas sociais. Ao mesmo tempo, surgia em 1971 o campeonato
nacional, com amplas perspectivas de integração do território.
Nesse novo contexto, o governo investirá fartamente na produ-
ção de novas arenas.
Já em 1971, o Estádio Otavio Mangabeira, ou Fonte Nova,
patrimônio estadual, em Salvador, cuja capacidade de público era
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 167

de 50 mil pessoas, foi ampliado com a construção do anel supe-


rior, atingindo a capacidade de 110 mil, passando a se alinhar
com as demais metrópoles.
Em 1970, surgiu o Vivaldão, em Manaus, ou Vivaldo Lima,
para acolher 57 mil pessoas. A população urbana somava 470 mil
habitantes.1 Em 1972, foi inaugurado o Mundão do Arruda, ou
Estádio José do Rego Maciel (nome do pai do ex-presidente da
República Marco Maciel), ex-governador, que doou o terreno nos
1950 e ajudou na construção, embora seja propriedade privada do
clube. O estádio abrigava 110 mil pessoas (hoje, apenas 60 mil) e
representava a adequada inserção de Recife no cenário nacional.
Ainda em 1972, no contexto da febre de grandes estádios
nordestinos, Natal (RN) apresentou o Castelão, dotado para 53
mil assistentes quando a população urbana não alcançava 300 mil
habitantes, e que depois teve o nome alterado para João Cláudio
de Vasconcelos Machado, ou Machadão. No ano seguinte, foi a
vez de Fortaleza concluir o ciclo das grandes capitais nordestinas,
com o Estádio Governador Plácido Aderaldo Castelo, ou Caste-
lão, que chegou a receber 118 mil pagantes.
Em suma, em apenas dois anos, de 1971 a 1973, o Nordes-
te inaugurou três imensos estádios em suas três principais metró-
poles regionais.
Em 1975, chegou a vez do Centro-Oeste, com o Serra
Dourada, em Goiânia (GO). Em 1978, surgiu o Mangueirão, em
Belém (PA), ou Estádio Olímpico Edgar Proença. Em 1982, com
atraso em relação aos demais, e quando o projeto de integração
nacional pelo futebol apresentava claros sinais de falência, surgiu
o Estádio Governador João Castelo Ribeiro Gonçalves, ou Cas-
telão, em São Luís (MA), para 75 mil assistentes. Como tantos

1
Como os demais estádios, teve reduzida sua capacidade. Mas para a Copa do
Mundo de 2014 sofreu reforma que amplia para 47 mil seus lugares, sendo agora
a Arena da Amazônia.
168 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

outros, um equipamento superdimensionado e condenado à ob-


solescência e à subutilização.
No mesmo ano de 1982, uma iniciativa pouco justificá-
vel, na esteira da febre supracitada: a inauguração do estádio
Parque do Sabiá (Estádio Municipal Doutor João Havelange),
em Uberlândia (MG), para quase 80 mil assistentes, numa ci-
dade sem tradição futebolística à altura. Mas a “febre” já havia
passado. O apogeu do ciclo construtivo, sem dúvida, ocorreu
entre 1970 e 1978, situado entre o auge e o início do declínio
do regime militar no Brasil.
Com o recuo do alcance espacial do Campeonato Bra-
sileiro a partir de 1980, as construções se estancaram com-
pletamente (exceto para o modesto Ressacada, na capital ca-
tarinense, em 1983, mas por motivos econômicos internos ao
clube: venda do velho estádio situado em zona urbana muito
valorizada, deslocando-se o clube para o subúrbio).
Outros fatores podem explicar o fim desse ciclo. Um de-
les é a transição política nacional, ou a “redemocratização”, que
resultaria no fim dos grandes subsídios governamentais ao fu-
tebol, somente retomados recentemente, em função dos gran-
des eventos esportivos. Outro aspecto a considerar é a recessão
econômica que se abateu sobre o país na década de 1980, re-
duzindo o afluxo de público aos estádios (Helal, 1997; Proni,
2000). Por fim, a ampliação do acesso da população à televisão
e o próprio aumento de transmissão televisiva de jogos de fute-
bol contribuíram para reduzir o público nos estádios.
Em 1995, vislumbramos o início de uma nova fase na
história dos estádios brasileiros. Começam as reformas no sen-
tido de redução da capacidade, e, logo a seguir, uma nova gera-
ção de equipamentos, inaugurada com a Arena da Baixada, em
Curitiba, em 1999. Essa nova geração de estádios, expressão
da nova economia do futebol e de um processo de reelitização,
será tema de nosso último capítulo.
Parte II – Política e multidões: a invenção do país do futebol 169

Em suma, a primeira metade da década de 1970 correspon-


de ao auge da febre de construção de grandes estádios no Brasil;
na década seguinte, é notável a desaceleração abrupta desse pro-
cesso, que se estanca ainda na primeira metade dos anos 1980.
Podemos analisar esse ciclo por diversos ângulos, sendo o primei-
ro e mais expressivo a coincidência nada casual com o período
crítico do regime de exceção no Brasil. Outro ângulo pertinente é
o da consolidação do processo, que teria se esgotado ao concluir a
construção de grandes estádios em praticamente todas as capitais
estaduais, conformando o parque de estádios suficiente para as
aspirações de um espetáculo de massas (o Campeonato Brasileiro)
que recobrisse todo o território. Por fim, diversos autores já apon-
taram uma crise no futebol como reflexo da recessão econômica
brasileira, que reduziria as aspirações de clubes e municipalidades
em construir ou expandir estádios.
Esse modelo de estádio, “popular” ou “de massas”, pode ter
servido aos interesses políticos durante determinado período, mas
estava na contramão de um processo de implacável esvaziamento
do poder econômico dos clubes situados fora dos grandes cen-
tros urbanos no país, de acordo com um processo que chamamos
de “metropolização do futebol”, tema do próximo capítulo. Esse
processo determinou a falência do campeonato nacional “inclu-
sivo”, conforme vimos no capítulo anterior, resultando na exclu-
são de diversas capitais estaduais do circuito superior do futebol
brasileiro e, por conseguinte, na condenação de seus estádios a
“elefantes brancos”.
Por fim, podemos apontar ou sugerir outro “problema” ou
inadequação do estádio popular à nova economia do futebol. A
crescente mercantilização e circulação de jogadores entre diferen-
tes agremiações (reduzindo a “fidelidade” ao clube) e a própria
supervalorização do atleta, tornado “artista milionário” ou “super
star”, colocam em confronto agudo o torcedor (ávido de vitórias e
ciente da possibilidade de exigir daquele que é muito bem remu-
170 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

nerado) e o jogador. Segundo Damo, os jogadores realizam vários


rituais antes de entrar em campo e “enfrentar o público” (2007, p.
51). Tal enfrentamento é desgastante emocionalmente. E, certa-
mente, num estádio popular, a cobrança do torcedor é maior, seja
pela maior quantidade de espectadores, seja pela atitude ruidosa
própria do indivíduo das camadas populares. Um público menos
apaixonado, menos “viril” e mais comportado, típico dos moder-
nos estádios, é certamente mais adequado aos grandes interesses
envolvidos no novo formato do futebol de espetáculo. Mas esse
debate sobre a contemporaneidade do futebol está reservado para
os próximos capítulos.
Parte III
Espetáculo global e negócios:
a reinvenção do futebol
Capítulo 7
A metropolização do futebol:
concentração de capital e poder

A metrópole de nossos dias é o maior produto socialmente


construído de todos os tempos, conforme asseverou Milton San-
tos (1996). Ou, como sugere Di Méo (2008), a metrópole se des-
taca das outras cidades por reunir paradoxalmente “le plus ancien
et le plus neuf, le plus fixé et le plus dynamique”.1 Por isso, tratar
de fatos e processos metropolitanos é sempre um grande desafio.
Mais ainda quando se tenta lançar novos olhares, no sentido de
captar a dimensão metropolitana do futebol.
Em certa medida, os anos 1990 foram marcados pelo de-
bate em torno da desconcentração e “involução” metropolitanas,
sobretudo a partir das contribuições de Milton Santos (1993).
Em síntese, a crise do fordismo propiciara a ascensão de novas di-
nâmicas espaciais, calcadas na flexibilização da produção e na iné-
dita extensão da cadeia produtiva industrial, favorecendo, assim,
a desconcentração espacial das atividades. O desdobramento dos
debates acabou ratificando o peso da metrópole, ao sinalizar que
as atividades podem se espraiar amplamente pelo território sem
que esse processo represente redução do poder metropolitano, de

1
O mais antigo e o mais recente, o mais enraizado e o mais dinâmico.
174 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

sua função de comando, liderança e inovação. Ao contrário, a des-


concentração em pauta expressa o aumento de sua área de influ-
ência e a intensidade de sua ação de comando, pois a nova lógica
produtiva adensa o espaço de fluxos, que tem como nó central a
metrópole, agora ainda mais “dissolvida”, quase onipresente. Em
outras palavras, na profunda reestruturação contemporânea do
território, em que se separam cada vez mais os “espaços de fazer”
(produzir) dos “espaços de reger”, a velha metrópole industrial
cede lugar à nova metrópole informacional (Santos, 1996, s. p.).
Tentaremos demonstrar neste capítulo que é possível (e re-
velador) estudar o futebol sob o prisma da metropolização. Desde
as primeiras décadas do século XX, as nascentes metrópoles no
Brasil contribuíram para a difusão desse esporte pelo território na-
cional, no tradicional modelo de “difusão hierárquica” no interior
da rede urbana,2 atingindo principalmente cidades com menor
nível de conexão com o exterior. Nas últimas décadas, elas desem-
penham um papel cada vez mais importante na dinâmica espacial
desse esporte, concentrando os atuais clubes “hegemônicos” e os
grandes confrontos, em detrimento das agremiações menos rentá-
veis, pertencentes às demais cidades da rede urbana, condenadas
ao processo de periferização. Chamamos esse conjunto de fenô-
menos de “metropolização do futebol”.
A nova economia do futebol requer uma base espacial dota-
da de características essencialmente metropolitanas: um espaço de

2
Em João Pessoa, não obstante a presença de ingleses (da companhia ferroviária
Great Western) praticantes de futebol, foi por intermédio de estudantes paraiba-
nos em regresso de férias no Rio de Janeiro que o futebol se introduziu efetiva-
mente na cidade, a partir de 1908. Os rapazes da elite local exibiam a novidade
“civilizadora” em praça pública, em eventos cuidadosamente planejados e presti-
giados, inclusive, pelo então presidente da Paraíba (Marques, 1975, p. 15). Em
Goiás, foi um engenheiro proveniente de São Paulo o principal introdutor do
futebol, em 1907. Em Florianópolis, foram também estudantes provenientes de
Rio de Janeiro e São Paulo os pioneiros do futebol.
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 175

fluxos de alta densidade e um espaço efetivamente organizado em


rede, de forma a possibilitar e regular plenamente a realização de
competições esportivas que integrem clubes e cidades de distintos
países. Para sustentar essa argumentação, utilizaremos inicialmen-
te o caso europeu, por constituir o mais acabado grau de evolução
dessa economia do futebol. Não nos furtaremos a tecer considera-
ções sobre o contexto sul-americano, a título de comparação. Para
o caso brasileiro, tentaremos argumentar que a metropolização do
território, que se acentua a partir da década de 1960, afetou inten-
samente a base territorial futebolística produzida ao longo da pri-
meira metade do século XX. Antes, cabem algumas considerações
gerais e teóricas sobre o fenômeno metropolitano e o conceito de
metropolização.

Sobre metrópoles e metropolização

Muito já se teorizou e se escreveu sobre o fenômeno metro-


politano. A volumosa produção acadêmica não pode mesmo arre-
fecer diante das mudanças e do papel crescente das metrópoles do
mundo contemporâneo como uma rede globalmente articulada
de centros de decisão. Um dos temas relacionados, que emergiu
no debate científico mais efetivamente no final dos anos 1980
(Lacour, 1999, p. 64; Claval, 2001), é o processo de metropo-
lização, que nos interessa diretamente neste momento. Segundo
Lencioni,

quando falamos de metropolização, estamos falando de um


processo socioespacial, de um processo que imprime ao espaço
características metropolitanas; por exemplo, alta densidade,
em termos relativos, de fluxos imateriais e frequentes e signi-
ficativas relações com outras metrópoles, mormente chama-
das cidades globais. Ou seja, falamos tanto em processos que
transformam cidades em metrópoles como de um processo
176 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

socioespacial que impregna o espaço de características metro-


politanas (2006, p. 47).

Corroborando as reflexões de Lencioni, pretendemos jus-


tamente captar processos socioespaciais que impregnaram e vêm
impregnando de características metropolitanas a espacialidade
do futebol.
Diante do volume de estudos e da própria complexida-
de do fenômeno em tela, não se poderia evitar certa dispersão
e pluralidade conceitual em torno do tema. A metropolização,
assim, tem sido definida de diferentes maneiras, segundo o ân-
gulo e a escala da abordagem. Antes de nos aproximarmos de
uma proposta de definição de metropolização do futebol, cum-
pre percorrer o eixo da construção teórica desse conceito e suas
principais variações.
Segundo Di Méo (2008), o termo “metropolização” faz re-
ferência a processos e caracteriza tanto as formas quanto as fun-
ções e as dinâmicas dos maiores agrupamentos humanos de nosso
tempo. Tais processos, todavia, são de natureza muito diversa.
Inicialmente, tomando a escala global como referência, podemos
afirmar que a metropolização corresponderia ao processo de afir-
mação de determinados “centros urbanos” como privilegiados nós
ou polos de força no contexto da globalização. Em outras pala-
vras, esses centros teriam um papel preponderante na organização
dos fluxos globais, sejam esses fluxos de matéria ou de energia, de
mercadorias ou de ordens e informações.
Já no final do século XIX, no alvorecer da “era dos im-
périos” (Hobsbawm, 1988), Londres exerceu grande influência
global, tornando o mundo mais metropolizado. A definição dos
fusos horários, tendo Greenwich como referência, vem expressar
ao mesmo tempo o poder metropolitano londrino e seu efeito
no processo de mundialização. Além dos fluxos econômicos e
políticos, podemos estender a área de influência de Londres ao
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 177

domínio da cultura: o futebol, que se tornou o mais difundido


esporte do planeta (Murray, 1994; Guttmann, 1994). No século
XX, Nova York assumiu papel semelhante, difundindo mun-
dialmente, por meio do cinema, o “american way of life”. Em
suma, temos a metropolização concebida numa escala mundial,
como crescimento do poderio das metropóles sobre os espaços
do planeta, influenciando a criação de novas atividades econô-
micas e outros modos de vida.
Bassand (1997) e Lacour (1999, p. 70) salientam, senão ou-
tro conceito, certamente outra dimensão do processo de metropo-
lização: a conformação de uma rede global “superior” de interação
entre as grandes metrópoles, de modo que a relação entre esses
novos polos mundiais vai se tornando por vezes potencialmen-
te mais intensa que a própria relação entre as metrópoles e suas
tradicionais áreas de influência. No caso dos Jogos Olímpicos, é
evidente o empenho em criar espaços de consumo para world class
clients (Horne e Whannel, 2012, p. 181), bem como a atração (e
atenção) global que as cidades-sede alcançam. No caso do futebol,
também se delineia a conformação de uma elite mundial de clubes
poderosos, a maioria com sede nas grandes metrópoles.
Independentemente da perspectiva teórica assumida, a con-
dição de funcionamento de uma metrópole é a existência de uma
vasta área de influência e sua capacidade de incidir sobre ela, ex-
plorando seus recursos e impondo seus ditames. Na escala da rede
urbana, esse é o movimento da metrópole, e devemos também
chamar de metropolização o efeito de sua influência e poder sobre
os territórios. Metropolizar como sinônimo de dominar, exercer
controle, influência. Existiriam, então, as forças centrípetas (de
concentração de riqueza, poder, informação) e as centrífugas, rela-
cionadas à capacidade metropolitana de estender seu raio de ação
e influenciar outras localidades. Sob essa perspectiva, as forças
centrífugas são fundamentais para o entendimento do processo
de metropolização.
178 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Nesse sentido, um território metropolizado é aquele cuja di-


nâmica está condicionada pela influência metropolitana (Santos,
1996), seja ele fornecedor de matérias-primas (e assim pagando o
elevado custo ambiental) para a indústria situada na metrópole;
seja ele comprador forçado de seus bens e serviços, a exemplo de
ferrovias e outras infraestruturas (como fez a Inglaterra na Améri-
ca do Sul na segunda metade do século XIX); seja, ainda, um con-
sumidor ritual de seus bens simbólicos, ato que valoriza a cultura
e os valores da metrópole em detrimento da periferia. A adesão a
clubes metropolitanos por parte de habitantes de centros urbanos
de médio e pequeno porte são facetas e indícios desse processo.
Esse conceito de metropolização se articula com algumas
reflexões recentes sobre o esgarçamento do tecido metropolita-
no, isto é, a chamada “urbanização dispersa”, sua expansão de
forma descontínua no espaço, fenômeno beneficiado pelas mo-
dernas tecnologias de comunicação. Mas não se confunde com
ele; apenas coincide no que tange à constatação da presença da
metrópole além do “espaço metropolitano” stricto sensu. Como se
a metrópole passasse a crescer por metástases, espaços exteriores a
ela onde as atividades estariam fortemente integradas à dinâmi-
ca metropolitana (Ascher, 1995). Sugere-se a produção recente
de uma nova morfologia da metrópole, caracterizada pela des-
continuidade. Assim, terminologias metafóricas e adjetivações se
multiplicam na busca da compreensão das novas tendências da
metropolização: “arquipélago urbano” (Pierre Veltz, 1996), “pós-
-metrópole” (Edward Soja, 2002), “cidade reticular” (Dematteis,
1998), “metápole” (Ascher, 1995), entre outras.
Além das diferenças internas entre os autores e as vertentes
analíticas, o que importa registrar é que essa forma de conceitu-
ar metropolização está inteiramente fundamentada nos processos
que ocorrem fora do espaço jurídico-político estritamente metro-
politano, ou seja, o que ocorre em sua área de influência. A metro-
polização do território, conforme a entendemos aqui, expressa-se
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 179

nas mais diversas facetas da vida de relações, inclusive no âmbito


dos esportes. Refletindo sobre a rede urbana, o futebol-espetáculo
dos grandes clubes pode ser incluído na lista de serviços exclusivos
que a metrópole oferece à sua região: um bem simbólico consu-
mido basicamente através dos meios de comunicação de massa.
No bojo desse processo, os clubes metropolitanos se agi-
gantam e dominam amplamente as competições nacionais. Na
Espanha, os clubes de Barcelona e Madri, cidades principais, do-
minam o cenário nacional, tal qual Porto e Lisboa em Portugal.
Na Argentina e sobretudo no Uruguai, a absoluta hegemonia dos
clubes da capital reflete a tradicional macrocefalia urbana nesses
países. No Brasil, verificamos o mesmo processo, inclusive na es-
cala estadual, apresentando amplo predomínio dos clubes da ca-
pital, com exceção de Santa Catarina, o que pode ser explicado
pela própria natureza de seu sistema urbano, mais equilibrado e
multipolarizado, com várias cidades de médio porte: Florianópo-
lis, Joinville, Itajaí, Blumenau, Criciúma, Chapecó etc. É o tempo
da metrópole se impondo ao conjunto do território, como diria
Milton Santos. E a expansão dos grandes clubes metropolitanos
reflete a área de influência da metrópole sobre o território nacio-
nal. Veremos a seguir situações concretas.

O caso europeu (e a América do Sul)

A historiografia do futebol, como tantas outras historiogra-


fias setoriais, tende a ignorar o papel da dinâmica espacial, mas,
como geógrafos, queremos insistir que a estruturação desse espor-
te se submete aos condicionantes da configuração e dinâmica do
território. Desde suas origens na Inglaterra, o processo de difusão
global dessa modalidade esportiva, incluindo a formação de clu-
bes e ligas e a organização dos campeonatos, ampara-se plena-
mente nas lógicas do território, especialmente na rede urbana e
no espaço de fluxos.
180 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Contando com reduzida extensão territorial e densa rede


urbana, na maioria dos países europeus os primeiros campeona-
tos futebolísticos tinham já a ambição de constituir-se como de
âmbito nacional. Na década de 1930, de modo geral, todos esses
campeonatos já estavam consolidados em seus países. O próximo
passo seria uma competição em escala continental, o que se viabi-
lizou no contexto de estabilidade política e prosperidade econô-
mica do pós-guerra. Surge, assim, em 1955, a Taça dos Campeões
Europeus, embrião da futura Taça da UEFA.3
Um fato a distinguir Brasil e Europa é, obviamente, a uni-
formidade jurídica de um Estado nacional de modelo federativo
em contraste com a diversidade de modelos políticos de um con-
tinente, isto é, de um conjunto de Estados nacionais indepen-
dentes e soberanos. Todavia, essa diferença significativa começa
a desaparecer com o advento da União Europeia, que facilita a
circulação de pessoas e bens e tende a unificar as regras da vida
social e econômica. É no bojo desse processo de transformação
que, a partir de 1995, com a Lei Bosman, liberaliza-se o merca-
do de atletas e amplia-se radicalmente a mobilidade de jogadores
de futebol pelo continente europeu. Tal mobilidade favorecerá
amplamente os clubes mais ricos, que doravante poderão adqui-
rir talentos individuais de qualquer nacionalidade e reforçar suas
equipes. Trata-se de um novo contexto, que favorece os clubes
metropolitanos, pois o nacionalismo cede lugar ao princípio neo-
liberal da eficiência econômica sem fronteiras.
Sem dúvida, a concentração metropolitana no âmbito do
futebol antecede o novo regime legal europeu. Os dados a seguir
comprovam a força dos clubes das principais cidades europeias:
entre 1975 e 2005, 744 clubes de 525 cidades participaram, ao
menos uma vez, de uma das três competições continentais. No
mesmo período, entretanto, somente 44 privilegiados clubes, per-

3
A UEFA (“Union of European Football Associations”) foi criada em 1954.
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 181

tencentes a 38 cidades, alcançaram os títulos desses certames. A


Lei Bosman tão somente ratificou e fortaleceu a tendência à con-
centração metropolitana.
Para facilitar a comparação com o panorama europeu, po-
demos trazer à tona o universo futebolístico sul-americano, verifi-
cando a semelhança de medidas “neoliberais” na organização dos
certames continentais.
Vimos que a Taça Libertadores existe desde 1960, para
indicar anualmente ao mundo o clube campeão sul-americano.
Em 1998, todavia, surgiu a Copa Mercosul, organizada não pela
confederação esportiva competente, mas por uma empresa de te-
lecomunicações. O continente sul-americano passou, então, a ter
dois certames, sendo este último totalmente mercadológico, pois
o convite à participação estava diretamente relacionado à rentabi-
lidade de cada clube. Participavam, portanto, sempre as mesmas
agremiações, com raras exceções de troca por mérito técnico, ain-
da assim para renovar a atração do “produto”, mas sempre esco-
lhendo clubes de grande torcida. O futebol metropolitano efeti-
vou, desse modo, sua força no cenário continental.4
Até mesmo a tradicional Taça Libertadores se modificou
em favor da força metropolitana, isto é, do mercado: a partir de
1999, países como Argentina e Brasil passaram a ter pelo menos
o dobro de vagas de seus vizinhos (até então, cada país sul-ame-
ricano contava igualmente com duas vagas, independentemente
de seu nível técnico), garantindo maior atrativo e rentabilidade
à competição. Desde seu início, em 1960, a Libertadores reunia
21 clubes, ampliando agora esse número para 32 participantes,
dentro do espírito comercial de expansão dos certames interna-
cionais, valorizados pelas redes de TV. A inédita inclusão de clu-

4
A Copa Mercosul, alvo de muitas críticas, foi extinta em 2002, dando lugar a um
novo torneio continental, a Copa Sul-Americana.
182 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

bes mexicanos5 também expressou o desejo de realizar um evento


mais lucrativo, considerando o México com seu imenso mercado
consumidor.
Analisando ainda o contexto sul-americano, podemos
igualmente notar a ascensão metropolitana quando comparamos
Montevidéu e São Paulo. Nos primeiros trinta anos (1960-1989),
ainda marcados por reduzido patrocínio e visibilidade da com-
petição, a capital uruguaia colecionou oito títulos, contra apenas
dois conquistados pelos paulistas. Uma situação absolutamente
insustentável no novo cenário neoliberal. No período seguinte,
1990-2012, a supremacia metropolitana se impôs de forma avas-
saladora: cinco campeões paulistas contra nenhuma conquista
uruguaia. Ao mesmo tempo, os clubes de Buenos Aires conquis-
taram sete edições continentais, de forma que as duas principais
metrópoles sul-americanas concentraram mais da metade dos tí-
tulos disputados nesse último período analisado.
Na Europa, a ação das mesmas forças liberais voltadas para
a valorização mercadológica das competições resultou na decisão
de transformar, na temporada 1992-1993, a antiga Copa dos
Campeões em Liga dos Campeões. Não se trata de mera questão
semântica: o formato “Copa” significa uma competição definida
por confrontos diretos, nos quais um clube é eliminado a cada
rodada; ao passo que na “Liga” formam-se grupos de quatro equi-
pes, que jogam entre si, classificando os melhores ao final de uma
série de confrontos.
A revogação do formato “Copa” multiplicou o número de
partidas para cada clube, promovendo maior retorno financeiro.
Ao transferir o sistema mata-mata (eliminação sumária e defini-
tiva pelo confronto direto entre duas equipes) para as rodadas fi-

5
País ligado à Confederação de Futebol da América do Norte e Caribe (CONCACAF),
e não à CONMEBOL, entidade máxima do futebol sul-americano.
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 183

nais da competição,6 a UEFA reduziu para os clubes a incerteza,


própria do futebol.7 Incerteza que gera um atrativo especial para o
espectador, um cabedal de emoções, mas que no plano da gestão
empresarial significa grande desconforto. Por fim, o novo sistema
favorece a permanência de clubes tradicionalmente mais fortes,
que antes corriam o risco de eliminação precoce, na primeira ro-
dada. Essa permanência resulta em maior eficácia mercadológica,
pois tais clubes atraem muito mais espectadores.
Cinco anos após essa modificação decisiva, os grandes clu-
bes europeus ainda não estavam satisfeitos com o retorno finan-
ceiro. Pressionaram a UEFA no sentido de obter vaga cativa no
rentável certame, já que esta seguia dependendo da performance
de cada clube nos certames nacionais: somente os dois primei-
ros colocados (campeão e vice-campeão) tinham direito a dis-
putar a Liga dos Campões. A exemplo do já citado movimento
reivindicativo do Clube dos Treze no Brasil, a elite dos clubes
europeus criou o G-14 e ameaçou criar, a partir desse poderoso
núcleo econômico, uma liga privada, independente da UEFA,
que, na busca do acordo, resolveu então propiciar privilégios aos
cinco países de maior rentabilidade no futebol continental: Itá-
lia, Alemanha, França, Inglaterra, Espanha e Holanda. Assim,
a partir da temporada 1999-2000, tais países passaram a dispor
de quatro vagas no tão cobiçado certame. Tal alteração ampliou
o número de participantes, de 24 para 32 clubes, tornando a
competição ainda mais poderosa economicamente. Vale lembrar
a clara semelhança com a já citada transformação sofrida pela
Taça Libertadores da América.

6
Passa a ocorrer somente a partir das quartas de final.
7
Ao contrário de modalidades de esporte coletivo como o basquetebol, o beisebol,
o futebol americano e o voleibol, no futebol nem sempre a melhor equipe vence.
O fator sorte prepondera, bem como o equilíbrio emocional, em momentos de-
cisivos de cada partida.
184 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

A ampliação da Liga dos Campeões em 1999 se deu pa-


ralelamente à extinção da velha Copa das Copas, cada vez me-
nos valorizada no mercado europeu, em virtude da ausência dos
grandes clubes do continente. Mais uma vez, o princípio do mé-
rito esportivo cedeu lugar à racionalidade empresarial. Temos
agora apenas duas competições na escala continental, a Liga Eu-
ropa e a Liga dos Campeões, e entre elas um “abismo econômi-
co”. Na temporada 2006-2007, por exemplo, enquanto a primei-
ra distribuiu 34 milhões de euros para 43 clubes participantes, a
fabulosa Champions League repartiu 579 milhões para apenas 32
privilegiadas agremiações. A cada ano essa receita aumenta, ape-
sar da crise econômica do bloco europeu em 2008. Atualmente,
essa liga milionária distribui em torno de 1,3 bilhões de euros
na temporada.
A UEFA congrega 52 federações nacionais de futebol, e
muitas delas correspondem a minúsculos países, como Mônaco,
Luxemburgo e Andorra. Todos têm direito a “sonhar” com os mi-
lhões de euros da Champions, disputando esse direito em rodadas
eliminatórias, de pouco retorno financeiro. Ao final de três ro-
dadas no implacável sistema mata-mata, a maioria dos pequenos
clubes terá sido eliminada. Em teoria, a competição é democráti-
ca, pois a possibilidade está aberta a todos os países. Na prática,
porém, somente a elite do futebol europeu alcança as 32 cobiçadas
vagas. Nos últimos dez anos, os vinte clubes mais ricos da Europa
lograram 65% da volumosa receita da Liga. No mesmo período,
os já citados cinco países de maior “potência econômico-futebo-
lística” detiveram ¾ de todo esse montante. O processo é inapela-
velmente concentrador: quanto maior a receita, maior a condição
de esses privilegiados clubes adquirirem os melhores jogadores.
A já citada Lei Bosman, ao liberar a mobilidade internacional de
atletas, facilitou a formação de verdadeiras potências clubísticas.
O que esse conjunto de informações tem a ver com a temá-
tica metropolitana?
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 185

Ao observar a cidade de origem dos clubes participantes,


Helleu (2007) verificou a crescente presença das maiores aglome-
rações urbanas. Confrontando o período decenal 1985-1995 com
1995-2005 e atribuindo pontuação a cada clube conforme seu
desempenho na competição, percebeu um crescimento de 161%
das cidades com mais de dois milhões de habitantes, enquanto o
crescimento relacionado às cidades de 1 a 2 milhões de habitantes
foi de apenas 51%. Há um claro processo de concentração dos
clubes e fases mais rentáveis da competição nas cidades situadas
no topo da hierarquia urbana europeia.
Outros dados ratificam tal constatação: entre 1975 e 1992
(portanto, ao longo de 18 temporadas), 53 cidades viram seus
clubes alcançar as quartas de final. Desde então, apenas 32 cidades
tiveram tal privilégio. Mapeando o processo, verificamos que a
maior parte desse grupo de cidades recém-excluídas possui menos
de dois milhões de habitantes e pertence ao Leste Europeu (Cra-
cóvia, Belgrado, Bucareste, Sofia, Praga...), isto é, à porção menos
dinâmica da economia continental. Em contrapartida, as gran-
des aglomerações (Londres, Madri, Frankfurt, Barcelona, Milão,
Paris) consolidaram sua presença na Liga. Nelas são realizados o
maior número de eventos e os principais jogos.
Segundo Ravenel (1998), os campeonatos nacionais euro-
peus, outrora celebrados, foram muito prejudicados, pois o claro
desequilíbrio entre os clubes hegemônicos e os clubes restantes
tornou esses certames desmotivados. Em Portugal, por exemplo,
todos sabem que apenas o Benfica e o Porto têm reais condições de
vencer o Campeonato Português. O mesmo ocorria com Celtic e
Rangers no contexto escocês (até a falência do segundo em 2012):
não existiam mais adversários à altura. Pior a situação do Ajax,
que reina absoluto na Holanda, pouco lhe interessando disputar
o certame nacional. Vale registrar a justificativa de seu presidente,
inteiramente pautada no princípio geográfico da prevalência das
metrópoles no espaço estruturado em rede: “Estamos a duas horas
186 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

de Barcelona por avião, enquanto gastamos três horas de ônibus


para alcançar Maastricht ou Sittard” (Ravenel, 1998, p. 120).
Favero (2009, pp. 46-7), ao estudar a globalização do fu-
tebol, corrobora a argumentação de Ravenel ao notar que, na
Inglaterra, seis equipes diferentes foram campeãs nacionais entre
1985-86 e 1994-95, enquanto somente três o foram no decênio
seguinte. E justamente as mais ricas do país: Manchester United,
Arsenal e Chelsea. Na Itália, comparação semelhante revelou cin-
co clubes campeões no primeiro decênio e quatro no segundo,
sendo esses quatro pertencentes ao norte “rico” do país. Portanto,
o processo de metropolização está em curso, concentrando poder
e renda em seleto grupo de clubes de futebol.
Na Alemanha, a primeira divisão concentra apenas clubes
do antigo lado ocidental. A Federação Alemã tentou reduzir esse
desnível esportivo, que reflete o panorama econômico territorial
e “mancha o sucesso da unificação” (Favero, 2009, p. 51), mas as
tentativas de apoio financeiro aos clubes pobres do lado oriental
encontraram resistência dos poderosos clubes da liga.
As metrópoles europeias concentram hoje, mais do que em
qualquer outro período da história do futebol, os clubes mais ricos
e gloriosos. Se esses clubes emergiram historicamente contando
com o decisivo fator da ampla base de apoio (torcida) propiciada
pelo porte de sua cidade (o que significa estádios grandes e lota-
dos), possuem hoje “torcedores” em todo o planeta, num processo
de globalização de suas bases geográficas. Em outras palavras, se
antes dependiam de sua cidade, hoje é a cidade que depende de-
les para atrair torcedores-turistas e movimentar elevadas cifras a
cada temporada. O caso de Barcelona é exemplar: historicamente,
como qualquer outro clube, o Barcelona FC deve seu crescimen-
to ao porte e ao dinamismo econômico de sua cidade e, no caso
específico, ao forte regionalismo catalão. Atualmente, a cidade é
que deve parte das arrecadações e de sua projeção internacional ao
famoso clube.
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 187

Evidentemente, o cenário europeu é distinto do brasileiro,


por motivos diversos, sejam históricos, culturais ou “geográficos”.
Mas ambos estão sujeitos a princípios muito semelhantes de ges-
tão empresarial do futebol, à lógica da rentabilidade dos campeo-
natos continentais, à concentração de recursos em poucos clubes e
a outros processos que vêm incidindo sobre o território brasileiro
e que serão alvo de nossas reflexões no próximo segmento.

O Brasil

Os primeiros campeonatos de futebol no Brasil ocorreram no


início do século XX, em São Paulo (1902), na Bahia (1904) e no
Rio de Janeiro (1906). Uma pequena reação ao localismo vigente no
futebol brasileiro se iniciou em 1950, no contexto da realização de
uma Copa do Mundo, que consolidou esse esporte como fenôme-
no cultural de massas e importante veículo de integração nacional.
Trata-se da inauguração de um bem-sucedido torneio regular entre
os principais clubes do Rio de Janeiro e de São Paulo, não por acaso
as duas metrópoles nacionais, dotadas de grande mercado interno
e proximidade física (450 km), permitindo tal iniciativa. Tratava-
-se de um quadro de lenta evolução no sentido da formação de um
futuro certame nacional, de forma que entre as décadas de 1930 e
1960 os campeonatos estaduais floresceram francamente, abrigan-
do os clubes das pequenas cidades interioranas. Nos demais estados,
como não havia outra competição a ser disputada, esses campeona-
tos ocupavam praticamente todo o calendário futebolístico anual.
Vimos no capítulo 5 que em 1959 surgiu a Taça Brasil,
e a seguir o governo federal financiou a construção de grandes
estádios, promovendo em 1967 um torneio que seria o embrião
do futuro campeonato nacional. O advento desse campeonato re-
duziu e marginalizou os certames estaduais, mas ainda havia con-
dições de sobrevivência para os pequenos clubes, pois a ditadura
militar persistiu até 1984, e por meio de tradicionais manobras
188 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

político-partidárias de cunho “eleitoreiro” cidades e clubes de


menor expressão ingressaram no certame nacional, que chegou a
reunir mais de noventa equipes e apresentou o recorde histórico
de menor média de público por jogo: 9.136 pagantes (Dienst-
mann e Denardin, s. d., p. 58). O governo recuou diante das
críticas e pressões, mantendo o total de competidores entre 44 e
48 clubes até 1986. Porém, essa situação ainda não agradava aos
clubes “metropolitanos”, desejosos de certames mais rentáveis, o
que eclodiu na reação do Clube dos Treze, também tratada no
capítulo 5, que reduziu o número de clubes participantes para a
metade, mantendo, na década seguinte, a média de 24 clubes a
cada edição do campeonato nacional.
Em 1989, no contexto da nova ordem econômica do fu-
tebol, a extinta Taça Brasil “ressurgiu” como Copa do Brasil.8
O torneio começou timidamente, apenas reunindo os campeões
e vice-campeões estaduais, a exemplo da antiga Taça Brasil, que
existiu entre 1959 e 1968. A partir de 1996, porém, passou a con-
vidar regularmente os grandes clubes metropolitanos, atendendo,
assim, à demanda destes, desejosos de mais confrontos diretos en-
tre si ou com outros importantes clubes sul-americanos. Confron-
tos mais rentáveis, sem dúvida.
A segunda metade da década de 1990 apresentou uma sé-
rie de mudanças na organização e gestão do futebol brasileiro,
todas no sentido de reforçar a centralidade metropolitana. Em
1997, o Torneio Rio-São Paulo, desativado desde 1966, quando
se esboçou o movimento precursor do campeonato nacional, foi
retomado, garantindo confrontos lucrativos aos grandes clubes
dessas cidades.9

8
Dessa forma, o país passou a adotar o atual modelo europeu, de dois certames
nacionais paralelos e de formatos distintos.
9
O modelo será copiado em todo o país: a partir de 1999 e 2000, suas cinco
regiões terão campeonatos similares, reunindo apenas os clubes principais,
gerando falência nos clubes pequenos ainda sobreviventes. Esses certames de-
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 189

A partir de 2003, finalmente a Confederação Brasileira de


Futebol estabeleceu um calendário nacional com regras perenes e
obediência integral ao princípio do mérito técnico. Longe, por-
tanto, do esquema vigente desde os tempos da ditadura militar,
em que os clubes eram convidados a participar do campeonato
nacional por motivos diretamente políticos. Transitamos de uma
lógica política para uma lógica econômica. O futebol, que antes
servia ao Estado autoritário, hoje serve às grandes empresas.
Por isso, temos hoje na primeira divisão do campeonato na-
cional, ou Campeonato Brasileiro Série A (a chamada “divisão de
elite”), uma predominância de clubes metropolitanos e das regiões
mais ricas e dinâmicas. Nesse sentido, é sintomático que durante
o período 1971-198610 os clubes nordestinos tenham mantido a
impressionante média anual de 30% do total dos participantes no
campeonato nacional (era a região com maior número de clubes
no certame). Em contraste, no período atual (2003-2013), sua
participação se reduziu à média anual de 11 pontos percentuais,
ou seja, pouco mais de um terço que habituara a desfrutar no pe-
ríodo anterior. O Centro-Oeste, que detinha em média 10% das
vagas na competição, mantém hoje apenas um clube, isto é, redu-
ziu sua presença a 5% do conjunto, o que representa precisamente

finiam os participantes da Copa dos Campeões, criada em 2000, uma espécie


de campeonato nacional de curta duração, bem remunerado, que indicava
uma das vagas para a Taça Libertadores. A partir de 2003, com o advento do
novo modelo de Campeonato Brasileiro, extenso e por pontos corridos, essas
competições foram abolidas.
10
Embora a CBF tenha decidido, em 2012, que todas as competições “nacionais”
realizadas a partir de 1959 (a Taça Brasil) até 1970 (Taça de Prata) seriam con-
sideradas “campeonatos nacionais”, temos claro que tal equalização no plano ju-
rídico não corresponde à realidade geográfica. A maioria desses certames contou
com número reduzido de estados da Federação, não tendo o real alcance terri-
torial dos campeonatos realizados a partir de 1971, que fizeram justiça desde o
início à denominação “campeonato nacional”. Em suma, utilizar como base o
período 1959-2013 distorceria o conjunto dos dados.
190 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

a metade de sua inserção no período anterior. Por fim, a Região


Norte encontra-se integralmente excluída nos últimos anos, mas
contava com posições cativas durante o regime militar, quando
mantinha em média 7% das vagas.11 No lado oposto, somente os
estados de São Paulo e Rio de Janeiro reúnem a metade dos clubes
participantes e concentram a maioria dos títulos. Outra região
“ganhadora” foi o Sul, que ocupa, em média, um pouco mais do
que a quarta parte das vagas do campeonato, contra apenas 14%
no período crítico (1971-1979) de intervenção da política federal
integracionista. Os três mapas a seguir demonstram a concentra-
ção geográfica no “centro-sul” de clubes na Série A nos anos de
2011, 2012 e 2013.

11
O último clube nortista a participar, e solitariamente, da primeira divisão nacio-
nal foi Paissandu, em 2006, quando foi rebaixado para a segunda divisão.
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 191

Mapa 4 (2011)
192 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Mapa 5 (2012)
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 193

Mapa 6 (2013)
194 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Essa redução do número de clubes participantes benefi-


ciou as regiões Sul e Sudeste, que são, com efeito, as de maior
produto interno bruto (PIB). A força de seu mercado consu-
midor interno garante maior aporte de investimentos de propa-
ganda nas camisas, bem como maior consumo de produtos dos
clubes, maior cota da televisão etc. Por isso, o Sudeste participou
com 27,5% das vagas no grande campeonato de 1979 e, atual-
mente (desde 2003), se mantém com o dobro desse percentual.
De todas as regiões, a maior “perdedora” foi a Nordeste, o que
se explica por duas razões fundamentais: no plano político, a
fragmentação da malha federativa favorecia a maior presença de
clubes pelo sistema de representação; no plano econômico, a de-
bilidade do mercado local dificulta, atualmente, a formação de
equipes competitivas.
As duas metrópoles nacionais, Rio de Janeiro e São Paulo,
detêm 31 dos 41 títulos disputados, desde o advento do cam-
peonato nacional de futebol, em 1971. Esse índice, por si só,
salienta o poderio metropolitano no conjunto da rede urbana.
No entanto, devemos realçar que esse poderio foi crescendo ao
longo de três décadas. Entre 1971 e 1979 (nove temporadas),
os clubes do eixo Rio-São Paulo conquistaram apenas quatro
títulos, contra três de Porto Alegre, um de Belo Horizonte e
outro de Campinas. Na década seguinte, das dez disputas, seis
ficaram com clubes das duas metrópoles nacionais e, entre 1990
e 1999, tal participação seguiu crescendo, atingindo 90% dos
títulos (nove dos dez disputados). Para a primeira década do sé-
culo XXI, 80% dos títulos estão concentrados no eixo Rio-São
Paulo. E as últimas nove edições (2004-2012) foram conquista-
das por clubes dessas duas cidades.
Em suma, inúmeros clubes de capitais de porte médio
(João Pessoa, Maceió, São Luís, Vitória, Manaus, Cuiabá etc.)
e cidades interioranas (Uberlândia, Itabuna, Feira de Santana,
Campos, Pelotas, entre tantas outras), que antes disputavam o
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 195

principal campeonato brasileiro, hoje se conformam com par-


ticipação nas séries C e D nacionais e em obscuros certames
locais, de escasso interesse para a população e sobretudo para
as empresas, por isso desprovidos de receitas financeiras, num
caminho que tem levado os clubes à falência e, muitas vezes, ao
desaparecimento.
Como diria Milton Santos (1996), são as metrópoles que
desorganizam e reorganizam o território nacional em seu con-
junto. Nesse sentido, boa parte dos brasileiros que nasceram em
meados do século passado, em cidades de pequeno e médio por-
te, teve orgulho de seus animados clubes locais e deles partici-
pou intensamente como atleta amador ou torcedor.
O processo de metropolização se beneficia também do
novo formato de disputa do campeonato nacional. A partir de
2003, instaurou-se o regime de “pontos corridos”, isto é, todos
os clubes participam de todo o certame e disputam igual núme-
ro de partidas, sendo campeão aquele que somar maior número
de pontos. Esse formato beneficia os clubes mais fortes, mais
ricos, com elencos mais estruturados. O outro formato, em sis-
tema eliminatório a cada confronto, permite surpresas, isto é,
a eventual derrota do clube “rico” para o pequeno clube. Nos
“pontos corridos”, os grandes clubes dominam cada vez mais o
cenário nacional.
A Copa do Brasil, por sua vez, apesar do sistema elimina-
tório a permitir surpresas – como em 2005 e 2006, quando os
clubes Santo André e Paulista foram campeões ao obter vitórias,
respectivamente, sobre Flamengo e Fluminense –, tende tam-
bém a comprometer a economia dos pequenos clubes, já que
metade dos participantes é forçada a abandonar o certame na
primeira rodada. E outros 25% serão eliminados na segunda.
Hoje, para a população de quase toda a rede urbana, resta pou-
co mais que assistir pela televisão aos hegemônicos confrontos metro-
politanos, pois o futebol local se esvaiu. Em síntese, parece ser cada
196 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

vez menor o número de sergipanos que torcem por clubes sergipanos


ou paraibanos que torcem por clubes paraibanos,12 em favor da ex-
pansão das torcidas dos grandes clubes do eixo Rio-São Paulo.
Tomando a Região Nordeste como exemplo da força das
metrópoles nacionais, seus quatro clubes de maior popularidade
(Bahia, Vitória, Sport e Santa Cruz), somados, detêm apenas 15%
da preferência dos torcedores nordestinos, enquanto um número
quase três vezes maior manifesta ser torcedor de um dos quatro
clubes do eixo Rio-São Paulo: Flamengo, Corinthians, São Paulo
e Vasco da Gama. Nas regiões Norte e Centro-Oeste, a hegemo-
nia dos clubes metropolitanos é ainda maior, em função da debi-
lidade dos clubes locais.13 A Região Sul apresenta-se como a me-
nos atingida pelo eixo Rio-São Paulo. Ainda assim, o Corinthians
surge como a terceira maior torcida sulista, perdendo apenas para
a famosa dupla Gre-Nal.
No bojo desse processo de concentração espacial, temos
acompanhado desde os anos 1970 inúmeros casos de clubes
que, para sobreviver a essa nova etapa, resolveram se fundir para
aumentar seu poderio político e econômico. Em alguns casos,
tais fusões foram tomadas como um imperativo de sobrevivência
que superou mesmo as rivalidades preexistentes. Na cidade de
Joinville (SC), por exemplo, duas agremiações rivais, o América
FC e o Caxias FC, viveram essa experiência em 1976, formando
o Joinville EC. Foi um processo tenso, mas necessário, pois
ambos estavam gravemente endividados. Ademais, com excelente
resultado: participação do novo clube no campeonato nacional
e conquista do campeonato estadual catarinense por oito anos
consecutivos, de 1978 a 1985 (Lima, 1997, pp. 135-6).

12
Da mesma forma, poderíamos citar amazonenses, alagoanos, potiguares, ron-
donienses, mato-grossenses etc.
13
Dados colhidos a partir de levantamento disponível em http://globoesporte.globo.
com/platb/olharcronicoesportivo/category/pesquisas/ (acesso em 18 abr. 2013).
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 197

No interior fluminense, a cidade de Itaperuna pode ser to-


mada como exemplo de como a metropolização do futebol esva-
ziou conteúdos da urbanização e laços comunitários e destruiu
para sempre fabulosos espaços de convivência. Nos anos 1920
e 1930, o município estava entre os maiores produtores de café
do Brasil, mas o imediato esgotamento do solo gerou uma pai-
sagem desoladora. A economia local passou, então, a se basear
na pecuária extensiva, e, aproveitando-se da produção leiteira, foi
instalada uma planta industrial na cidade em 1961: a empresa
norte-americana Fleischmann Royal, produtora de leite em pó.
Contingentes de trabalhadores rurais e camponeses, herdeiros dos
tempos do café, migraram para o pequeno núcleo urbano, que se
expandiu rapidamente em sua nova fase econômica (Mascarenhas
e Nacif, 1992). Dentre eles, estava o Sr. Paulo Dias, de origem
rural (localidade de Pau Branco, no distrito de Itajara), então com
18 anos, que imediatamente ingressou como operário da Fábri-
ca Leite Glória. A ele recorreremos mais tarde para, pelo registro
oral, recuperar momentos pretéritos do futebol itaperunense.
Itaperuna, situada no noroeste fluminense, era relativamen-
te mais “distante” da então capital da República: 11 horas em
transporte ferroviário. De certa forma, distando 60 km de Murié
(MG), expressivo centro regional, a cidade estava mais inserida no
contexto da Zona da Mata Mineira. O sotaque de sua gente não
esconde os traços da mineiridade. Por outro lado, considerando
a área de influência de cada metrópole (implicando o alcance dos
meios de comunicação) e a supremacia do futebol carioca em re-
lação ao de Belo Horizonte até a década de 1960, foram os clubes
da capital federal que conquistaram maior espaço no universo cul-
tural itaperunense.
O futebol carioca era atraente, mas não a ponto de so-
brepujar o pertencimento clubístico local. Além disso, o Cam-
peonato Carioca se restringia ao Distrito Federal, solapando
qualquer pretensão de inclusão no certame dos clubes dos de-
198 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

mais municípios fluminenses.14 Em suma, Itaperuna, tal qual os


demais municípios, manteve-se isolada “futebolisticamente” da
capital durante muitas décadas, organizando, assim, seus anima-
dos campeonatos locais.
Três clubes possuíam estádios próprios em Itaperuna: Atlé-
tico, Unidos e Porto Alegre.15 Também a Fábrica Leite Glória
e outras entidades possuíam times e organizavam campeonatos.
Paulo Dias, jovem torneiro mecânico da empresa, dotado de bom
porte físico, mesmo sem ser apaixonado pelo esporte, praticava-o,
pois “todos os colegas jogavam”. Pouco técnico, era um vigoroso
zagueiro do time da fábrica. Naquela época, não participar do
futebol local era recusar uma rede de sociabilidades essencial, que
costurava os diversos bairros e segmentos da cidade em uma ma-
lha contínua e poderosa de laços e significados.
O futebol metropolitano chegava apenas timidamente pe-
las ondas do rádio. A televisão, nos anos 1960, era privilégio de
poucos em Itaperuna. Eram muito poucos também os que even-
tualmente se deslocavam para assistir aos jogos na capital. Desse
modo, a cidade e sua região possuíam seu próprio universo fute-
bolístico, fonte inesgotável de paixões, alegrias, anedotas, trajetó-
rias individuais de sucesso, prestígio e reconhecimento no âmbito
da comunidade. Nas cores das camisas do Unidos, do Atlético ou
do Porto Alegre, ou ainda vestindo outras cores, da Associação

14
Situação que perdurou até 1975, com a fusão da Guanabara e do Rio de Janeiro.
Ainda assim, o interesse dos clubes cariocas em evitar a inclusão dos clubes “flu-
minenses” permitiu manobras políticas até que, em 1978, finalmente as duas
entidades “estaduais” fossem definitivamente fundidas, por ordem direta da enti-
dade nacional, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD).
15
O Porto Alegre FC foi o pioneiro local, fundado em 1919 por rapazes membros
da pequena elite itaperunense. O Comércio e Indústria Atlético Clube surgiu
em 1943, na esteira da expansão do futebol “corporativo” que citamos no capí-
tulo 3. Por fim, o Unidos Atlético Clube foi fundado em 1948. Disputava-se
regularmente um campeonato municipal, organizado pela Liga Itaperunense de
Desportos, filiada à Liga Fluminense de Desportos (Henriques, 1956).
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 199

Comercial ou da Fábrica Leite Glória, aqueles homens dos anos


1950 e 1960 vivenciaram o futebol de forma muito diferente da-
quela que seus filhos e netos teriam como opção.
As décadas seguintes, marcadas pela metropolização paula-
tina e implacável, agora são marcadas pela transmissão televisiva.
Na década de 1980, os três clubes, diante das dificuldades de so-
brevivência, fundiram-se em uma única agremiação (o Itaperuna
EC), que, fortalecida, alcançou a primeira divisão do campeonato
estadual. O clube viveu bons momentos, como a festejada vitória
de 3 a 1 sobre o Flamengo, em seu pequeno estádio Jair Biten-
court. Mas foi breve a passagem pela divisão principal, pois são
pequenas as chances de uma cidade de 80 mil habitantes, e sem
uma economia dinâmica, sustentar um clube em determinadas
condições. São essas as novas regras da economia do futebol.
Ao mesmo tempo, o estádio Monte Líbano, do Unidos,
palco de tantas emoções e sociabilidades, foi demolido para abri-
gar um projeto habitacional privado.16 Para fins de lucro, ruas e
casas de arquitetura ordinária substituíram um patrimônio socio-
cultural regional e apagaram definitivamente parte da memória
social itaperunense e daquele futebol comunitário. Resta na ci-
dade um único estádio, cada vez mais abandonado e sujeito às
pressões imobiliárias. Sem dúvida e sem motivos para festejar, é a
cidade cumprindo seu devir capitalista.
Os filhos e netos de Paulo Dias não jogam futebol regular-
mente, mas o acompanham pela televisão e internet. Mais uma
vez sem dúvida e sem motivos para festejar, é a metropolização
cumprindo sua insaciável capacidade de devorar territórios e con-
vertê-los ao sabor de seus interesses capitalistas.

16
Em 1996, tivemos a oportunidade de registrar imagens da demolição do estádio.
Percorremos o campo e as arquibancadas de cimento, já em ruínas, imaginando
animadas situações de outrora, de gols e euforia, tentando escutar algum eco
daquelas festas e cantorias, momentos de uma cidade que, sem televisão, produ-
zia densos espaços públicos de convivência.
200 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Aos 71 anos, Paulo Dias exibe ainda seu porte atlético e


um invejável condicionamento físico. Teve o privilégio de com-
por uma geração que, além de nadar livremente num rio ainda
pouco poluído, desfrutou o futebol ativamente, e não como mero
espectador diante da televisão, aquilo a que os ingleses e norte-
-americanos chamam “couch potato” ou “batata de sofá”: o indiví-
duo que, sedentário e viciado em ver televisão, engorda, estático
como uma batata no sofá. Não por acaso, nas estatísticas de au-
mento dos índices de obesidade na população brasileira a partir de
1970, destaca-se o segmento masculino, resultado de vários hábi-
tos e de circunstâncias problemáticas, incluindo o incremento do
automóvel. O sedentarismo se alimenta também da nova forma
passiva de vivenciar o futebol. Esta, por seu turno, é imposta pela
mercantilização das imagens e redução dos espaços livres para a
prática desse esporte nas cidades.
Observando o caso específico do Rio Grande do Sul, alvo
de nossas investigações por ocasião do doutorado, verificamos
também fortes evidências do processo de metropolização do fute-
bol na escala estadual. A partir de meados da década de 1940, os
clubes da capital (leia-se Grêmio e Internacional) assumem abso-
luta liderança no cenário estadual, conquistando todos os campe-
onatos disputados até 1998.17 Evidentemente, tal hegemonia foi
facilitada pela irreversível decadência econômica da Campanha,18
resultando diretamente na perda do poder aquisitivo de seus clu-

17
Nesse período, a hegemonia da dupla Gre-Nal foi interrompida uma única vez,
em 1954, assim mesmo sendo campeão estadual outro clube da capital, o GE
Renner, pertencente à homônima empresa industrial.
18
Em 1939, ano que encerra a fase gloriosa dos times da metade sul do Rio Grande
do Sul, essa região participava com 38% do PIB estadual, contra apenas 16% em
1998, o que revela contínua decadência no período, em razão inversa da expan-
são da metade norte. Também no item produção industrial podemos visualizar
o mesmo processo: foi reduzida de 35% para 10%, no período 1939-1998, a
participação da metade sul no conjunto da produção estadual (“Sul gaúcho tem
IDH semelhante ao NE”, O Globo, 25 jul. 1999).
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 201

bes, outrora grandes contratadores de talentos individuais. Nessa


nova etapa, em que Porto Alegre se afirma como metrópole regio-
nal, e seus clubes, como poderosas entidades, a região pecuarista
vai deixar de ser a zona vitoriosa para se converter paulatinamente
em mera bacia coletora de talentos individuais para suprir as de-
mandas imediatas da dupla Gre-Nal, reproduzindo, no futebol,
os circuitos de exploração capitalista que submetem a hinterlândia
aos interesses do centro e que reduziram a Campanha a um espaço
subsidiário na economia regional (Haesbaert, 1988, p. 72).
O fator principal dessa hegemonia Gre-Nal é, sem dúvi-
da, o agigantamento econômico-demográfico de Porto Alegre no
contexto regional. No plano empírico, é muito fácil constatar que
existe uma relação diretamente proporcional entre o porte de uma
cidade e o poderio esportivo de seu(s) principal(is) clube(s). Tais
evidências levaram o geógrafo John Bale a aplicar a teoria das lo-
calidades centrais ao estudo das relações entre a performance dos
clubes de futebol ingleses e as cidades em que se localizam, com
resultados obviamente positivos: a hierarquia esportiva reflete em
grande medida a hierarquia urbana.19 Basicamente, tal relação se
explica por duas razões: a maior arrecadação financeira decorrente
do grande número de sócios e torcedores (fator demográfico local
e área de influência da cidade); e a possibilidade de patrocínio das
empresas (fator econômico) ou de agentes políticos locais.
A metropolização não apenas concedeu incomparável pode-
rio econômico aos dois clubes aqui estudados. Considerando que
a crescente capacidade de comando sobre sua área de influência é
um dado do processo de constituição da metrópole, constatamos
que Grêmio e Internacional ampliaram progressivamente sua base

19
Mesmos resultados alcançou Loïc Ravenel (1998), ao desenvolver um estudo
sobre a particularidade francesa em relação ao modelo geral europeu, segundo o
qual o “poder esportivo” de cada clube é reflexo do porte de sua cidade: os maio-
res centros urbanos concentram os grandes clubes e maior número de conquistas
esportivas nacionais e continentais.
202 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

territorial de adesão. Em outras palavras, esses clubes há muito se


beneficiam da condição metropolitana para conquistar torcedo-
res em todos os rincões do Rio Grande do Sul, em detrimento
dos clubes locais.20 Nesse sentido, o clássico confronto Gre-Nal
pode ser incluído na lista de serviços exclusivos que a metrópole
oferece à sua região: um bem simbólico consumido basicamente
pelos meios de comunicação de massa. Em síntese, esse clássico,
na forma pela qual se vivencia e se entende hoje, simplesmente
não existiria sem o advento da metrópole, que o viabiliza como
instituição da cultura gaúcha.
A partir da “diáspora dos gaúchos” pelo território nacio-
nal (Haesbaert, 1997), podemos verificar que a base territorial
extralocal desses clubes ultrapassou amplamente as fronteiras es-
taduais.21 Logo, retomamos a argumentação anterior: a grandeza
e o prestígio da dupla Gre-Nal derivam diretamente do êxito par-
ticular de Porto Alegre. Tais clubes não teriam a mesma trajetó-
ria triunfal se fundados fossem em qualquer outra cidade gaúcha.
São, a nosso ver, produtos da metropolização.
Por fim, citaremos ligeiramente o caso baiano, que pare-
ce apresentar um exemplo interessante de sobreposição histó-
rica de áreas de influência de distintas metrópoles, a regional
20
Embora exista a possibilidade do “duplo-torcedor”, aquele que concilia um clube
local com outro da metrópole, a tendência inexorável é o abandono da agre-
miação local, e entendemos que essa é uma faceta da “dissolução da metrópole”
de que nos fala Milton Santos (1993). Talvez a única exceção nesse processo de
redução do apoio aos clubes locais em favor da dupla Gre-Nal seja o já citado
GE Brasil, de Pelotas, cuja apaixonada torcida é reconhecida na crônica esportiva
como a mais vibrante e “fiel” do interior do estado. Sem pretender justificar tal
fenômeno, parecem existir ingredientes relacionados ao tradicional orgulho pelo-
tense e à gloriosa trajetória desse clube, já analisada aqui.
21
No oeste catarinense, por exemplo, Grêmio e Internacional prevalecem sobre
todos os clubes daquele estado na preferência local, bem como se notam núcleos
de torcedores gremistas e colorados no oeste da Bahia, em Tocantins, Rondônia,
Mato Grosso e outros estados, mantendo tais clubes entre as dez maiores torcidas
do Brasil.
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 203

(Salvador) e as duas metrópoles nacionais. Conforme Milton


Santos (1993), o Recôncavo Baiano é o mais antigo sistema
urbano criado no Brasil: Salvador, Cachoeira, São Felix, San-
to Amaro, Nazaré das Farinhas e outras cidades situadas no
entorno da Baía de Todos os Santos e nas margens de seus
afluentes, como o Rio Paraguaçu, conformaram desde os pri-
meiros séculos da colonização uma vida de relações, fundada
na produção canavieira e, mais tarde, já no século XIX, na
indústria fumageira. Então, quando Salvador organiza seus
primeiros campeonatos de futebol, a partir de 1904, seus prin-
cipais clubes contam com essa rede historicamente integrada
para conquistar adeptos no Recôncavo.
Ao longo do século, essa enraizada base geográfica de
suporte aos clubes da capital resistirá às ondas de influência
das metrópoles nacionais. Ainda hoje, é notável o prestígio das
duas grandes forças do futebol soteropolitano no Recôncavo,
a despeito do poderio econômico crescente dos grandes clubes
das metrópoles nacionais.22 A fotografia a seguir expressa esse
movimento de metropolização, ao retratar a preferência clubís-
tica em duas gerações no universo popular de uma feira livre
no Recôncavo Baiano. Dois feirantes com camisas diferentes,
ambos trabalhando na mesma barraca. O mais velho, de apro-
ximadamente 40 anos, é torcedor do Vitória, time da capital.
O mais jovem, que aparenta menos de 20 anos de idade, porta
a camisa do São Paulo Football Club. Trata-se de uma cena
que vem se tornando mais comum na região, onde é crescente
o número de jovens que abdicam de clubes locais em favor dos
“grandes” clubes do eixo Rio-São Paulo.

22
É tão intensa a vida de relações ainda existente no Recôncavo, perceptível pelo
volume de deslocamentos cotidianos ou de final de semana, que talvez possamos
aplicar a esse conjunto o supracitado conceito de metrópole esgarçada.
204 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Foto 2 – Feira Livre em Cachoeira (BA), 2011.

Autor: Gilmar Mascarenhas.

No Recôncavo, muito mais que em outras regiões do esta-


do, persiste a força da capital baiana. A região sul, por exemplo
(gostaríamos de contar com levantamentos que atestassem essa
impressão produzida em viagens e conversas pela Bahia), apre-
senta forte influência do Rio de Janeiro: Ilhéus e Itabuna, desde
o apogeu do cacau, estabeleceram densas relações com a então
capital da República, o que pode explicar essa relativa preponde-
rância dos clubes cariocas. O oeste baiano, por sua vez, sendo de
ocupação mais recente, em bases empresariais, tende a ser afeta-
do pela expansão financeira de São Paulo, mais do que qualquer
outra parte do território baiano. A Bahia parece apresentar um
mosaico futebolístico, na forma de um mapa de preferências clu-
bísticas que refletem diferentes processos de formação territorial e
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 205

as dinâmicas de funcionamento das redes urbanas, sendo a “onda


paulista” a mais recente.
Assim, podemos tecer considerações sobre a força crescente
de São Paulo no contexto nacional. O Rio de Janeiro ainda detém
o clube de maior torcida do país, fenômeno que, como vimos,
foi produzido no contexto histórico da condição de capital e sua
incomparável capacidade de incidir em vastos espaços por meio
de jornais e da radiodifusão. Até a década de 1950, basicamente,
os clubes paulistas contavam apenas com uma mídia de alcance
regional, situação muito desfavorável em relação aos clubes cario-
cas, que por isso contavam até recentemente com a primeira e a
terceira maiores torcidas do país.
Mas nas últimas cinco décadas é inconteste o declínio eco-
nômico carioca diante de São Paulo, em diversos setores, não obs-
tante a recuperação da economia fluminense nos últimos anos.
No âmbito futebolístico, a concentração de recursos financeiros
propiciou em São Paulo a formação das duas equipes de maior
êxito na década de 1990 (São Paulo, bicampeão da Taça Liberta-
dores, e Palmeiras, bicampeão brasileiro com o elenco mais caro
da década) e na década seguinte (São Paulo, tricampeão brasilei-
ro). Por fim, em 2012, o Corinthians conquistou a Taça Liberta-
dores de forma invicta e, ainda, o Mundial de Clubes.
Examinando o confronto direto, cariocas e paulistas se
equiparavam nas décadas de 1970 e 1980, mas nas duas décadas
seguintes os paulistas se impuseram, vencendo ao todo 11 edições
do Campeonato Brasileiro contra apenas cinco conquistas cario-
cas. No mesmo período, considerando a cobiçada Taça Liberta-
dores, os paulistas a conquistaram em quatro edições (com dois
títulos mundiais), contra apenas um êxito continental carioca,
sem sucesso no Mundial de Clubes. Isso contrasta com a ligeira
supremacia carioca nas décadas de 1970 e 1980. São fatos que
incidem na dinâmica das preferências clubísticas, que atestam o
veloz crescimento das torcidas de Corinthians e São Paulo.
206 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

No modelo neoliberal vigente, é muito pouco provável a


ocorrência de alterações significativas no ranking das torcidas,
pois é justamente a dimensão de cada uma que define o aporte de
recursos provenientes da publicidade e do pagamento de direitos
de transmissão televisiva. Dotados de maiores recursos que seus
rivais, tais clubes tendem a apresentar boa performance nos cam-
peonatos e, assim, conservar sua base de apoio popular. Mesmo se
não apresentar performance compatível com elencos mais caros,
a simples presença de grandes ídolos garante a permanência dos
vínculos do torcedor com o clube. Apenas a reincidência de desas-
trosas gestões no interior de um clube “de massas” poderá levá-lo
a perdas expressivas de torcedores. Apesar dessas forças inerciais,
não parece impossível imaginar que, em duas ou três décadas, o
Corinthians (cuja torcida cresce em ritmo superior à do Flamen-
go) possa se tornar o clube de maior torcida no Brasil. Afinal,
seria tão somente mais uma faceta da implacável consolidação da
metrópole paulista no cenário nacional.
Os efeitos da metropolização, como qualquer outro proces-
so social hegemônico, encontram resistências. No Centro-Oeste
e em vários estados do Nordeste, é notável o movimento recente
de contestação da filiação clubística exógena, ou seja, a adesão aos
clubes do centro-sul, em especial do eixo Rio-São Paulo. No Nor-
deste, onde o Flamengo atinge hoje a marca impressionante de
22% de adesão23 no conjunto da população, cresce a reação contra
esse clube, representante máximo da capacidade metropolitana de
fazer prevalecer (ou mesmo impor, segundo alguns) seus “produ-
tos culturais” sobre regiões periféricas. Nas redes sociais, cresce a
denominação irônica de “Flamídia”, que salienta a forte ligação
desse clube com a grande mídia, em especial com a Rede Globo
de Televisão, cujo criador e proprietário, Roberto Marinho, até

23
Dados colhidos com base em levantamento disponível em http://globoesporte.glo-
bo.com/platb/olharcronicoesportivo/category/pesquisas/ (acesso em 18 abr. 2013).
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 207

falecer, aos 98 anos, jamais escondeu sua paixão pelo clube cario-
ca. No bojo dessa reação, nos estádios nordestinos espalham-se
cartazes que anunciam: “Eu escolhi meu clube, a mídia escolheu
o seu”. Na cidade de Campina Grande (PB), sobretudo em 2013,
quando o Campinense sagrou-se campeão da Copa do Nordeste,
na euforia local se difundiu o slogan “Campina Grande tem time
para torcer”. Na cidade de Goiânia (GO), notamos nas arquiban-
cadas o cartaz que afirma: “Sou goiano, meu time também”. Em
suma, podemos discorrer sobre velhos regionalismos que emer-
gem na atualidade, mas é saudável esse movimento de negação do
poderio midiático das duas principais metrópoles nacionais.
Capítulo 8
O torcedor em “impedimento”:
2014 e as novas territorialidades

Estamos diante de mais uma Copa do Mundo, que, sem


dúvida, será profundamente distinta da edição de 1950. O impac-
to econômico e territorial é incomparavelmente maior, a conside-
rar desde o simples fato de termos agora o dobro de cidades-sede
ao fabuloso investimento em estádios. Mas não porque o futebol
seja hoje mais presente ou mais importante em nossa sociedade e
cultura do que naquela época. Já éramos apaixonados pelo “espor-
te bretão” e, como vimos anteriormente, este já era amplamente
praticado, mesmo nos mais remotos lugarejos. A grande diferença
entre 1950 e 2014 reside na forma como se organiza (e se con-
some) o futebol. Mais precisamente, a novidade reside nos novos
parâmetros capitalistas que fecundaram âmbitos diversos desse
complexo universo de práticas e significados – parâmetros que
estabeleceram a “nova economia do futebol”, pautada em pode-
rosos estímulos de marketing, difusa base midiática e nova gestão
empresarial de clubes e até das carreiras dos atletas (Proni, 2000;
Giulianotti, 2002).
Neste capítulo, nosso intuito é identificar determinados as-
pectos da dimensão espacial dessa nova etapa do futebol “globali-
zado” e empresarial no Brasil. Diante da amplitude do tema, nos
reportaremos mais detidamente ao espaço vivido e, nesse âmbito,
210 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

à profunda reforma sofrida pelos estádios nos últimos anos, que


afasta um conjunto de torcedores em função do encarecimento do
valor do ingresso e dos novos dispositivos de controle e vigilância.
Ainda no campo do vivido, gostaríamos de poder oferecer
um panorama das transformações operadas na espacialidade do
futebol informal, caracterizada pela redução, periferização ou mer-
cantilização de espaços disponíveis para sua prática. Esse tema é
da maior importância para o estudo da geografia social do futebol
brasileiro, mas ficará aguardando futuras investidas acadêmicas.
A Copa do Mundo será tratada como fenômeno acelera-
dor de tendências neoliberais já em curso no futebol brasileiro;
particularmente, como evento que inscreverá em nosso territó-
rio uma nova paisagem futebolística, por meio de novas “arenas”.
Tais objetos não são absoluta novidade em nosso país, conforme
apontamos no capítulo 6, já que desde o final dos anos 1990 ini-
ciamos nossa onda de “modernização” dos estádios, seguindo os
ditames da FIFA e as novas tendências de converter o público
ruidoso, móvel e imprevisível em massa comportada, fixada em
seus assentos.
Argumentaremos que nesse processo de reforma dos está-
dios se quer trocar a figura do “torcedor” (emocional, intenso, ex-
citado, agressivo, viril) pelo “consumidor” (ou pós-torcedor, diria
Giulianotti), geralmente de média ou alta renda, mais sereno, que
aporta nos estádios em família, disposto a assistir passiva e con-
fortavelmente a um “espetáculo” repleto de “astros” midiáticos.
O torcedor sofre, grita, reclama, reivindica, ameaça e se articula
coletivamente com estranhos. Ele quer ser protagonista do even-
to, com o qual contribuiu com sofrido dinheiro e paixão fiel ao
seu clube. O consumidor, solitário ou imerso em seu pequeno e
“fechado” grupo, contempla, aplaude, filma e fotografa o cenário.
Uma experiência sem riscos, sem incertezas, adequada e altamente
lucrativa para os donos do espetáculo.
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 211

Esses novos objetos geográficos trazem não apenas uma ar-


quitetura pujante e monumental, alvo de ufanismo e novo cartão-
-postal em nossas metrópoles. Trazem em si novos conteúdos da
urbanização, ao propor e impor suas novas formas de vivenciar
a vida pública e o futebol. Num trabalho genuinamente antis-
séptico, busca-se afastar dos estádios indícios de uma “cultura”
fermentada no Brasil ao longo de pelo menos quatro décadas.
Essa cultura, ou forma de vivenciar o futebol, conforme aponta
aquele que consideramos seu maior especialista, o antropólogo
Arlei Damo (1998, 2007), consiste na fabricação de uma experi-
ência única de “pertencimento clubístico”: modalidade de vínculo
identitário intenso e imutável para com o clube, gerador de um
“segmento de público militante”, com grande engajamento emo-
cional (condição para viver plenamente a excitação futebolística) e
capaz de atitudes tidas como irracionais (2007, pp. 51-3).
Essa irracionalidade, produtora de gestos considerados
agressivos e imprevisíveis, não interessa à moderna indústria do
espetáculo. Esta prefere um consumidor sóbrio. Ademais, um
consumidor de maior poder aquisitivo, de forma que nossos no-
vos estádios tendem a expulsar o pobre e o torcedor apaixonado,
categorias que muitas vezes se confundem no mesmo indivíduo,
já que o “pertencimento clubístico” está enraizado na cultura po-
pular urbana.
Os novos estádios impõem, por assim dizer, uma nova ter-
ritorialidade, caracterizada basicamente por:

1. limitação de acesso ao recinto, seja pela sensível redu-


ção da capacidade dos estádios, seja pelo encarecimento
extremo dos ingressos, seja, ainda, pelas restrições de
portabilidade de inúmeros objetos e adereços, incluin-
do faixas e cartazes com conteúdo “político”. Em ou-
tras palavras, o cidadão está impedido de protestar nos
212 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

estádios contra a Federação, a CBF ou qualquer outra


entidade pela qual ele se sinta lesado;
2. limitações severas de comportamento dentro do está-
dio, pela imposição de normas e vigilância onipresen-
te por meio de câmeras filmadoras. Processo agudo
de disciplinarização e constrangimento que estuda-
mos anteriormente (Gaffney e Mascarenhas, 2005-
2006).

Para descrever esse processo, e nele situar a Copa de 2014,


precisamos, inicialmente, tecer considerações sobre a natureza
atual desse megaevento e sua excludente espacialidade, para, a se-
guir, mergulhar no espaço vivido dos estádios.

Um novo formato de Copa do Mundo

Os grandes eventos esportivos da atualidade se definem por


um conjunto de competições periódicas, geralmente quadrienais,
que vêm apresentando há décadas crescimento constante e eleva-
da capacidade de impactar as cidades em que são realizados. Nesse
sentido, conferem ao pesquisador a oportunidade de refletir sobre
temas mais amplos, como globalização e guerra dos lugares, mo-
vimentos sociais e territorialidades, cidadania e gestão urbana, city
marketing, entre outros.
Atualmente, realizar megaeventos esportivos implica a arti-
culação de complexo concerto logístico e ampla coalizão política.
Para conquistar o direito de se tornar provisoriamente o grande
“centro midiático global”, cidades se esmeram na construção de
projetos fabulosos, com inquestionável poder de transformação
sobre os espaços em que são realizados. Como grandes projetos
de desenvolvimento urbano que buscam legitimação ao construir
um legado, também representam uma oportunidade para pensar
e enfrentar crônicos problemas da cidade.
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 213

Desde a última década do século XX, o governo brasilei-


ro demonstrava um empenho cada vez mais claro no sentido de
atrair e realizar grandes competições esportivas internacionais. Tal
movimento culminou com resultados positivos: em 2002, o país
conquistou o direito de ser sede dos Jogos Pan-Americanos de
2007, realizados na cidade do Rio de Janeiro; cinco anos depois,
atingiu a tão almejada condição de país-sede da Copa do Mundo
de 2014; e, em outubro de 2009, confirmou-se a realização da
Olimpíada de 2016 no Rio de Janeiro. Sem dúvida, organizar
megaeventos esportivos tornou-se uma meta explícita de política
pública e externa no Brasil. Cumpre refletir sobre essa decisão go-
vernamental (que envolve as três esferas de governo), seus custos,
formatos organizativos e efeitos na sociedade e no território.
Guy Debord (1992) já havia profetizado que a cultura teria
papel central na próxima etapa do capitalismo, a exemplo do pa-
pel cumprido em etapas anteriores pela ferrovia e pelo automóvel.
Infelizmente, a cultura em questão não é aquela produzida histo-
ricamente pelos segmentos populares, fermentada nos espaços de
sociabilidade, coletivamente engendrada no “espaço banal”, como
diria Milton Santos, mas, sim, aquela cuidadosamente planejada
e produzida nos circuitos da mercadoria, com o poderoso recurso
da tecnologia midiática. Sociedade do espetáculo, do simulacro,
das representações. O futebol se insere nesse movimento como
espetáculo produzido e alimentado em consonância com grandes
interesses capitalistas.
Sendo a Copa do Mundo o momento ápice do futebol-es-
petáculo, não poderia estar isenta dos mecanismos e interesses
que conformam a produção espetacular do futebol. Nas últimas
duas décadas, é notável o processo de transformação desse even-
to, no tocante à sua espacialidade. Na escala planetária, depois
de quase oitenta anos, desde sua primeira edição, limitando-se
a dois continentes (Europa e América), extrapolou seu espectro
para abranger Ásia e África. Já na escala da cidade-sede, passou
214 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

a constituir um evento de grande impacto, a demandar novas


infraestruturas (sobretudo aeroportuária), com destaque para os
estádios. Estes apresentam um novo modelo, um novo design e
destinam-se a um novo público. Uma nova exigência da FIFA.
Cara e excludente.
Não faz muito tempo, a situação era bastante diferente da
atual. Lembremos, a título de ilustração, a famosa “tragédia de
Sarriá”, na Copa de 1982, realizada na Espanha. Na ocasião, a
seleção brasileira foi eliminada pela Itália numa vibrante parti-
da que se realizou no acanhado estádio Sarriá, num subúrbio de
Barcelona, equipamento que nem mais existe e que hoje não ser-
viria sequer para treinos preparatórios de seleções. Aquele jogo
emocionante não transcorreria em palco tão modesto nos dias de
hoje, em que abrigar uma Copa implica investimentos fabulosos,
mormente em futuros elefantes brancos. A Alemanha, em 2006,
gastou 12 vezes mais do que na Copa de 1974 (em valores corrigi-
dos, evidentemente). A África do Sul gastou mais do que o dobro
dos alemães. Gastaremos para 2014, no mínimo, o quádruplo da
edição de 2010.
Não obstante todas as mazelas que assolam a população sul-
-africana, o país edificou cinco novos estádios e reformou outros
quatro, ao custo de quatro bilhões de dólares. Alguns desses está-
dios encontram-se totalmente subutilizados, como equipamentos al-
tamente deficitários que sobrecarregam os cofres públicos, como no
caso das cidades de Iokkane e Mpulanga, cujos governos locais não
têm recursos (mesmo se os tivessem, seria uma completa inversão de
prioridades) para manter os novos elefantes brancos em sua paisagem.
Esse novo formato de Copa do Mundo se efetivou no iní-
cio do século XXI. A França organizou o evento em 1998, eri-
gindo um único estádio novo, o Stade de France, em Paris. Na
edição anterior, dos Estados Unidos, o país simplesmente ade-
quou os campos dos estádios de futebol americano, com gasto
bastante reduzido.
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 215

A primeira Copa do Mundo do terceiro milênio, realizada


conjuntamente entre Japão e Coreia do Sul, em 2002, inaugurou
o modelo pautado em volumosos investimentos nos estádios, sem
previsão de aproveitamento regular posterior. Em 2004, Portugal
organizou a Eurocopa e cumpriu rigorosamente a tarefa de er-
guer belos estádios. Atualmente, seu primeiro-ministro reconhece
que, para alguns deles, não resta outra opção senão sua completa
demolição, para eliminar uma despesa governamental inútil. Os
estádios de Braga, Leiria, Coimbra, Aveiro e Faro, juntos, geram
aos respectivos municípios um custo de 13 milhões de euros ao
ano, somando o pagamento da dívida assumida quando de sua
construção e a manutenção dessas arenas. Especialistas afirmam
que o custo médio anual de manutenção de um moderno estádio
equivale a 10% de seu valor integral. Em outras palavras, gasta-se
muito para construir, e ainda se herda um passivo imenso, no caso
de cidades sem mercado local consistente para garantir afluência
regular e maciça de espectadores.
O Brasil caminha para repetir os mesmos erros. Cidades
como Natal, Manaus, Brasília e Cuiabá, cujos clubes se encon-
tram tradicionalmente muito distantes da Série A, terão erguido
seus estádios sem a menor garantia de sustentabilidade econômi-
ca. Médias de público de 2 a 3 mil espectadores por jogo são
habituais nessas cidades, e não será um novo estádio que alterará
radicalmente esse quadro, e sim a qualidade técnica dos times e o
prestígio de seus clubes. Algo muito difícil no contexto da metro-
polização do futebol, que impõe, nessas regiões, o culto a clubes
de Rio de Janeiro e São Paulo, enfraquecendo a identidade local,
conforme vimos no capítulo anterior.
Cumpre registrar que a FIFA estabelece exigências diver-
sas, mas não obrigou propriamente o país a construir tantos es-
tádios. De acordo com seus critérios, dez cidades-sede (ou até
oito cidades seriam suficientes, uma para cada um dos oito gru-
pos de seleções) seria o número mais adequado. Foi o governo
216 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

brasileiro, premido por pressões internas ao pacto federativo, e


agindo a favor das empreiteiras, que demandou a expansão do
número de sedes para 12, quando poderíamos ter seguido o cau-
teloso exemplo da África do Sul. A rigor, das 12 sedes eleitas,
não mais que cinco cidades brasileiras têm condições de efetiva-
mente sustentar um novo e sofisticado estádio sem incertezas e
riscos de prejuízo.
Desde 1974, quando o brasileiro João Havelange assumiu a
presidência da FIFA, tal entidade iniciou um processo de profun-
da reestruturação na economia e gestão do futebol mundial, im-
plantando padrões gerenciais que culminaram no quadro atual: a
competição movimenta cifras colossais e exige dos países-sede ele-
vado investimento em estádios, sem o devido compromisso com
sua sustentabilidade futura. Após o megaevento, o equipamento
permanece na paisagem e nas contas governamentais, a despeito
do desencontro com as necessidades locais, condenado à exposi-
ção pública, símbolo da irresponsabilidade fiscal.
Além do elevado comprometimento do erário, a Copa do
Mundo introduz em nossas cidades um novo tipo de estádio, so-
bre o qual teceremos algumas considerações a seguir.

Territorialidades excludentes

O atual “modelo FIFA” concebe o moderno estádio como


equipamento destinado a um público específico, seleto, disposto a
pagar caro por tecnologia, conforto e segurança. Um público “fa-
miliar”, “ordeiro”, que vai ao estádio consumir o espetáculo, e não
buscar tradicionais formas de protagonismo que não interessam ao
novo modelo de futebol-espetáculo. A importação desse modelo
world class já está em curso no Brasil há mais de uma década, num
evidente processo de elitização de nossos estádios. A remoção de-
finitiva da lendária “geral” do Maracanã e da Coreia do Beira-Rio
(em Porto Alegre) faz parte de um movimento de reelitização de
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 217

nossos estádios. Movimento que adquire maior densidade e acelera-


ção mediante a realização de uma Copa do Mundo.
Não vamos aqui debater a complexa questão da violência
nos estádios, com suas inúmeras acepções. No Brasil e em diver-
sos países, acidentes graves colocaram em xeque esse modelo de
estádio “de massas” que vigorou por quatro décadas a partir de
1950, conforme analisamos no capítulo 6. O principal motor da
reforma dos estádios parece não ter sido propriamente o risco de
vida em espaços de multidão presumidamente “difícil de ser con-
trolada”. Conforme diversos estudos assinalam, uma nova eco-
nomia do futebol emergiu a partir da década de 1980, e nela a
receita principal dos clubes deixou de ser a afluência maciça de
indivíduos de baixa renda aos estádios. Opulentos contratos de
transmissão televisiva e patrocínios de marcas passaram a definir a
economia dos clubes. A valorização extrema dos atletas (os novos
“stars”) não era mais condizente com estádios que os colocavam
vulneráveis à fúria da multidão. Ao mesmo tempo, essas novas
“estrelas” midiáticas despertam interesse numa classe média-alta
disposta a pagar caro para frequentar os estádios, desde que em
condições de conforto e segurança. Estes e vários outros fatores
contribuíram para a falência do grande estádio popular, em fa-
vor de um novo modelo, nitidamente elitizado,1 num processo
que já definimos como uma nova anatomia política dos estádios
(Gaffney e Mascarenhas, 2005-2006).
Para esse novo contexto econômico, esboça-se uma “nova
cultura do futebol”, que Giulianotti (2002) define como a do “pós-
-torcedor” (o espectador pós-moderno, com mais dinheiro e menos
identificação e paixão pelo clube, consumidor passivo do espetá-

1
O combate ao “hooliganismo”, principalmente a partir da “tragédia de Hillsbor-
ough” (1989), recrudesceu e produziu a criminalização das torcidas. Aparatos de
controle e punição dentro e ao redor dos estádios se espalharam, produzindo,
inclusive, constantes violações ao direitos civis daqueles que procuram o estádio,
conforme estudos de Tsoukala (2008).
218 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

culo). No Brasil, essa nova “cultura” começa a se espacializar nas


reformas dos estádios no final da década de 1990, com destaque
para a Arena da Baixada, em Curitiba (criada sobre o antigo estádio
João Américo), o Maracanã e o Beira-Rio, que perderam definiti-
vamente suas “gerais”. No plano jurídico, o Estatuto do Torcedor,
implementado em 2003, prevê punição severa para transgressores:
estes podem ser banidos dos estádios por longa temporada. Esse
processo de aumento do controle e punição sobre os frequentadores
de estádios adquire, com a Copa do Mundo, um recrudescimento
inédito, anulando a criatividade coletiva e reduzindo ao mínimo
possível e possibilidade de expressão individual.
A Copa de 2014 vem, em suma, acelerar um processo pre-
existente de remodelação dos estádios. Acelerar e também radi-
calizar, pois sob forte impulso econômico (com maciço subsídio
estatal) e em contexto narrativo de necessidade de garantir con-
forto e segurança e de promover uma “boa imagem” da nação.
Interessante que não apenas as novas “arenas”, como são cha-
mados os estádios emergentes (o léxico quer demarcar a radica-
lidade da mudança), cumprirão o receituário da modernidade
excludente e elitista. Vide o caso do Grêmio, em Porto Alegre,
que (em parte como resposta à escolha do estádio de seu grande
rival como sede da Copa) resolveu construir um novo estádio,
dentro dos atuais “padrões de qualidade” da FIFA, inaugurado
em dezembro de 2012.
O mais importante a registrar no caso do Grêmio é o duelo
entre tradição e modernidade, entre liberdade e controle, entre
coletivo e individual no debate sobre o estádio. Sua torcida, re-
conhecida internacionalmente pela postura atuante, reivindicou
a permanência da “geral”, setor popular em que tradicionalmente
se realiza a famosa “avalanche” a cada gol de sua equipe. Após he-
sitar, o clube atendeu e destinou no projeto um pequeno espaço
para essa coreografia espetacular. Um acidente, embora sem mor-
tes, ocorrido um mês após a inauguração do estádio, foi suficiente
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 219

para recolocar o tema em debate, com forte argumentação a favor


da “ordem” e contra a “selvageria” da “perigosa” e “anacrônica”
atitude inscrita na “avalanche”. Por fim, vale frisar que a própria
existência de um setor planejado e destinado a uma coreografia
coletiva já porta em si a natureza autoritária de estabelecer preci-
samente onde e o que será realizado pelos torcedores “rebeldes”.
Pressupõe um estádio de setores e usos congelados no tempo, ao
contrário da dinâmica inerente aos processos sociais, especialmen-
te quando as torcidas dispõem de liberdade para recriar suas ati-
tudes. A avalanche, que é um fenômeno histórico recente (menos
de dez anos), torna-se, então, “naturalizada” e, ao mesmo tempo,
domesticada pelos gestores do estádio.
Em suma, emerge mundialmente um novo conceito de es-
tádio, endeusado pelos grandes meios de comunicação e intei-
ramente adequado aos interesses do grande capital. Esse novo
estádio agrada a segmentos sociais economicamente capazes de
consumi-lo, ou que não sustentem críticas ao modelo disciplinar
e à supressão de práticas populares. Muitos se sentem plenamente
satisfeitos com a segurança, a previsibilidade e a serenidade do
novo ambiente e não escondem a satisfação de este ser frequen-
tado por indivíduos de melhor estrato socioeconômico, como
ocorre em shopping centers, clubes e resorts – espaços insulares,
como enclaves que evitam a presença dos indesejáveis segmentos
excluídos (Bidou-Zachariasen e Giglia, 2012). Os novos estádios
parecem se inserir nesse rol de territorialidades excludentes, redu-
tos da passividade e do consumo.
A imposição de assentos individuais sobre as antigas arqui-
bancadas de cimento (os “all-seater stadiums”) privou o torcedor
da liberdade de movimentação corporal coletiva, que propiciava
ruidosa carnavalização no ambiente colorido dos estádios. Vivo,
Michel Foucault talvez dissesse se tratar da aplicação, aos estádios,
de dispositivos de controle e docilização dos corpos, verificados
em outros âmbitos da vida social e suas instituições. As câme-
220 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

ras por toda a parte, vigilantes panópticos, também chamariam a


atenção do filósofo: vigiar e punir.
Tomemos um único exemplo dentre os estádios da Copa
de 2014. Vimos que em 1970, na febre de estádios gigantes e de
integração nacional pelo futebol, foi inaugurado o Vivaldão, em
Manaus, evidentemente superdimensionado e subutilizado, de
forma que sua capacidade de público foi posteriormente reduzida
para 31 mil assistentes. Assim como o regime militar, a Copa de
2014 garantiu grande aporte de recursos estatais para um estádio
de baixa afluência de público. Reforma radical que amplia para
47 mil sua capacidade, passando o mesmo a se chamar Arena da
Amazônia. Um novo cartão-postal da cidade. Mas quem serão os
habilitados a pagar para se sentar nas confortáveis cadeiras?
No Rio de Janeiro, foi edificado para os Jogos Pan-Ameri-
canos de 2007 o Estádio Olímpico João Havelange, equipamento
de alto custo que correspondia plenamente aos modernos pre-
ceitos arquitetônicos e tecnológicos. O estádio foi construído no
subúrbio carioca, em terrenos pertencentes à União, que durante
muitas décadas (desde o final do século XIX) abrigaram atividades
de reparo e depósito de materiais da rede ferroviária: eram as “ofi-
cinas” da Estrada de Ferro Central do Brasil. Os novos processos
industriais tornaram obsoletas as técnicas de reparo e manutenção
de peças, de modo que as oficinas se tornaram espaço praticamen-
te ocioso a partir de 1970.
Mas o terreno em pauta, um vasto quarteirão, não se res-
tringia às oficinas. Havia instituições, como o Museu Ferroviário
e a Escola Técnica Silva Freire, o primeiro desativado e a segunda
transferida, privando assim a população local de equipamentos
culturais e de formação humana, num bairro eminentemente ha-
bitado por trabalhadores de média-baixa renda e inúmeros apo-
sentados das antigas oficinas ferroviárias. No âmbito do futebol
informal, havia um campo, ou melhor, um pequeno estádio, já
que dotado de alguns assentos para a assistência. Localizado na
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 221

Rua Doutor Padilha, há indícios (relatos orais) de ter abrigado


jogos da antiga Liga Suburbana, entre 1916 e 1920, e, mais tar-
de, da Federação Atlética Suburbana. Certamente, foi palco de
animados campeonatos de “pelada” no transcorrer do século XX.
Esse espaço social que consideramos um patrimônio histórico
também foi eliminado quando se construiu o estádio olímpico.
Naquela rua, no início dos anos 1970, foi morar o recém-
-casado José Moura Mascarenhas. Nascido em 1942, na zona
rural do Recôncavo Baiano, migrou aos 12 anos para Salvador,
para trabalhar como ajudante de padaria, no denso bairro popular
da Liberdade. Até os 24 anos de idade, quando migrou para o
Rio de Janeiro, ocupou parte expressiva das poucas horas de lazer
com os “babas”, forma como a população soteropolitana designa
as partidas de futebol informal. Para sua sorte, o Rio de Janeiro
ainda oferecia generosos espaços ao futebol de base comunitária.
Estabelecido como feirante, José desfrutou a intensa sociabilidade
produzida pelo futebol amador, em famosos campos em bairros
vizinhos, como o do Everest (Inhaúma), o do Manufatura (Del
Castilho)2 e certamente o do Engenho de Dentro.
Tal como relatamos no capítulo 3, a partir da década de
1910, o setor fabril (e mais tarde o comercial, em menor escala)
impulsionou a formação de times e campeonatos de fábrica, o que
demandou a criação de inúmeros pequenos estádios suburbanos
ou meros campos de futebol. Tais espaços foram também am-
plamente cedidos e ocupados como lazer pelo futebol informal.
No Rio de Janeiro, a partir do decreto n. 6.000, de 1937, uma
política de zoneamento urbanístico definiu como área prioritaria-
mente industrial os subúrbios da Leopoldina, da Linha Auxiliar

2
Em 1932, o grupo privado Klabin investiu na Manufatura Nacional de Porcela-
na, que viria ser a maior fábrica de azulejos do Brasil, ocupando 3 mil operários.
Tornou-se um dos mais movimentados espaços do futebol suburbano carioca.
Lamentavelmente, deu lugar ao Norte Shopping, inaugurado em 1986.
222 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

e do “lado direito” da ferrovia Central do Brasil. Nesse “miolo”


da Zona Norte, concentrar-se-ão o parque fabril carioca e, não
por acaso, a maior densidade de clubes e espaços para o futebol
informal. O processo de desindustrialização, a partir da década
de 1980, ao converter alguns desses estabelecimentos – como a
Fábrica de Tecidos Nova América e a Manufatura Nacional – em
grandes centros comerciais, desarticulou o associativismo e com-
prometeu a sobrevivência do futebol informal suburbano.
O advento do estádio João Havelange correspondeu, sob
essa perspectiva, a mais um capítulo da história social do futebol
suburbano carioca e de suas perdas contínuas de espaços livres.
Na Rua Doutor Padilha, nos anos 1970 e 1980, assim como o
feirante José, os homens jogavam no campo, e os meninos, na rua.
Aos domingos, havia a tradicional ida ao Maracanã, nos tempos
de “geral” e ingresso muito barato. Hoje não há mais o campo, e a
rua está deserta de brincadeiras, entregue ao monopólio da circu-
lação motorizada. Os moradores, despossuídos de espaços francos
para jogar futebol, agora podem ir ao estádio em sua própria rua,
mas bem poucos dispõem de recursos para adquirir um ingres-
so, que, nos últimos dez anos, em todo o Brasil, sofreu reajuste
médio de 300%, contra apenas 73% da inflação geral, e 84% de
aumento da cesta básica.3 Apesar dos estádios vazios, os ingressos
continuam apresentando aumento de preço, numa clara política
de “seleção de clientes”.
Em síntese, o tradicional torcedor brasileiro, de modestos
rendimentos, imbuído de engajamento emocional por seu clube,
não interessa mais à indústria do futebol, gananciosa de consumi-
dores passivos e abastados. Produzido no contexto de nossa urba-
nização acelerada e excludente – que abrigou e formatou extensos
contingentes egressos do mundo rural entre as décadas de 1930 e

3
Dados disponíveis em http://www.espbr.com/noticias/inflacao-ingressos-fute-
bol-preco-aumentou-300-ultimos-10-anos (acesso em 21 abr. 2013).
Parte III – Espetáculo global e negócios: a reinvenção do futebol 223

1970 –, esse indivíduo, que em seu processo de territorialização


na metrópole se entregou à paixão clubística e pendurou flâmulas
nas paredes encardidas do barraco, não pode mais compor um
dos espetáculos centrais da cultura brasileira. Na linguagem do
futebol, encontra-se em “impedimento” (a regra do off-side, que
“estraga a festa”, odiada e abolida no futebol informal).
Na Rua Doutor Padilha, Engenho de Dentro, Zona Norte
do Rio de Janeiro, o futebol deixou de ser corpo, suor, cerveja,
sociabilidade e festa coletiva, para se tornar um espetáculo tele-
visivo, mormente individual. Como sugeriu Guy Debord, todos,
passivamente, assistem aos mesmos programas, mas separadamen-
te, cada indivíduo com seu aparelho de televisão. Unidos e pro-
fundamente separados.
Considerações finais

Foi longa a viagem da bola. Trafegou nos primeiros trens


ingleses, ainda no debate em busca das regras de consenso para
o que viria a ser o onipresente futebol moderno. Realizou infi-
nitas travessias pelo Atlântico, animou a brincadeira de marujos
no cais, bem como o passatempo de técnicos britânicos em terras
estrangeiras. Esteve nas malas de nobres estudantes em retorno da
Europa, no entusiasmo da juventude cosmopolita. E, mais tarde,
no chão da fábrica, nos intervalos do trabalho pesado. Os espaços
foram se multiplicando, tanto quanto se multiplicavam os atores.
Definitivamente, um jogo se tornou nada menos que o mais
duradouro, disseminado e bem-sucedido produto de exportação da
grande potência mundial do século XIX. Na ultrapoderosa Ingla-
terra de então, a “criança” escolheu lugar e momento certos para
nascer, espalhando-se oportuna pelos parques vitorianos e fecun-
dando uma nascente cultura operária, à qual serviu como eficiente
“pedagogia da fábrica”: trabalho em equipe, obediência às regras,
especialização nas tarefas, submissão ao cronômetro etc. Além das
Ilhas Britânicas e a serviço destas, milhares de homens singravam os
oceanos, disputando “peladas” pelos portos do mundo. Enquanto
alimentavam com suor e sofrimento os circuitos imperialistas, se-
meavam com suor e prazer a vigorosa semente do futebol.
Nesse jogo, encontramos o poder mágico do acaso (o tão ci-
tado “mar de imponderabilidades”), derivado sobretudo da pecu-
226 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

liar proibição de se controlar a bola com as mãos; a simplicidade


das regras (a única de complicada execução, o “impedimento”, é
sumariamente abolida no futebol informal); a fácil assimilação e a
improvisação: pés descalços, “bolas” de meia, pedras demarcando
balizas (lembremos que outras modalidades de esporte coletivo
dependem de equipamentos especiais: basquetebol e voleibol de-
mandam objetos que quicam, além de cestas ou linhas suspensas
no ar; beisebol e críquete requerem bastões etc.).
Todavia, se é verdade que o association football possui no-
tórios ingredientes sedutores, sua difusão e incontestável êxito
planetário também se devem a fatores externos ao jogo em si: o
futebol encontrou impulso e abrigo nos diversos movimentos na-
cionalistas então em voga, na constante expansão do mundo fabril
e na própria urbanização, que privou grandes contingentes popu-
lacionais do vasto leque de opções lúdicas do campo. Gente pobre
que preenchia seus tempos e carências divertindo-se no anonima-
to dos terrenos baldios com um jogo simples e totalmente gratuito
em sua fácil improvisação.
No Brasil, em sua ascendente trajetória rumo ao patamar
de paixão nacional, o futebol criou seus espaços, improvisando-
-se inicialmente em locais adaptados: velódromos, prados, praças,
parques. O modismo foi crescendo, atraindo curiosos interessa-
dos no novo esporte. Surgiram os primeiros estádios, que, como
vimos, eram reduto da elite, verdadeiros enclaves em bairros no-
bres. Mas, ao mesmo tempo, o futebol ia colonizando as várzeas e
subúrbios. As massas urbanas não tardariam a pressionar a seleta
liga e a bater na porta dos estádios, reclamando seu lugar na festa.
Criou-se, no bojo do processo de progressiva mercantiliza-
ção das partidas de futebol, um segundo circuito espacial, o cir-
cuito “espetacular”. O primeiro circuito, que se estrutura infor-
malmente a partir dos interesses de divertimento de praticantes
voluntários, geralmente em bases comunitárias, vai gerar uma es-
pacialidade própria e amplamente disseminada, além das quadras
Considerações finais 227

escolares, praças, ruas, praias e parques: no Brasil, tais espaços são


chamados de “campinhos de pelada”. Tal circuito, fundado no
valor de uso (Seabra, 1988), representa uma poderosa máquina
de socialização, compondo elemento fundamental na estrutura-
ção dos significados atribuídos à masculinidade em nossa cultura.
A produção capitalista do espaço urbano no Brasil vem re-
duzindo os espaços disponíveis para esse circuito, que parece ter
vivido seu apogeu entre as décadas de 1930 e 1960 (nas metró-
poles) e 1940 e 1980 (no conjunto do sistema urbano). A super-
fície ocupada pelos terrenos de uso comunitário se reduziu pelos
mecanismos de especulação e apropriação privada do solo urbano.
Simultaneamente, a difusão do automóvel, símbolo inconteste da
cidade capitalista, eliminou da via pública de forma violenta (li-
teralmente) usos coletivos e festivos diversos, entre eles o futebol
informal. Nas últimas décadas, a expansão do consumo passivo
do futebol através dos meios de comunicação consolidou o pro-
cesso de profunda transformação da forma pela qual vivenciamos
tal esporte: assistir mais e jogar menos.
Concomitantemente, o torcedor vem perdendo a chance
de contar com seus ídolos e com boas equipes, já que, desde a
década de 1980, o Brasil se tornou o maior exportador mundial
de jogadores de futebol. O mercado europeu absorve todos os
nossos melhores talentos, alguns mesmo antes de despontar no
time profissional. E essa conversão para mero exportador de ma-
téria-prima para uma indústria global do espetáculo futebolístico
não recompensa devidamente, pois reproduz a assimétrica relação
centro-periferia e remunera mal o fornecedor: o Brasil movimenta
apenas 2% da economia mundial do futebol, em sua condição de
produtor e exportador de atletas (Franco Junior, 2007, p. 180).
Vimos que nossos estádios surgiram como espaço exclusi-
vo das elites e progressivamente se popularizaram, expandindo-se
em número e porte, contando com efetiva atuação interessada do
Estado de exceção. Assim, o Brasil se tornou o maior detentor
228 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

de grandes estádios do mundo, quando findava o regime militar.


Nos últimos 15 anos, todavia, assistimos a um processo evidente
de “reelitização” dos estádios, seja pela via da majoração exagerada
dos ingressos, seja pela aniquilação dos espaços populares pree-
xistentes, seja, ainda, pelos dispositivos de controle e repressão a
comportamentos diversos. Argumentamos que a Copa de 2014
vem acelerar e generalizar esse processo.
Buscamos, neste livro, avaliar a “geografia preexistente” so-
bre a qual vêm se desenhando os novos espaços. Em outras pa-
lavras, conhecer melhor o parque de estádios que herdamos de
outros períodos, sua natureza, seus usos, seus significados. Esse
“patrimônio material e imaterial”, tal qual se referiu Augustin
(2005, p. 118), ao recuperar o processo evolutivo dos “lugares es-
portivos” na França. Pois é justamente sobre essa territorialidade
e essa concreta materialidade que vem incidir a aceleração da nova
onda de modernização do futebol brasileiro.
Os estádios propiciavam, nas arquibancadas, um fenômeno
de carnavalização, pela livre expressão coletiva de movimentos e
coreografias, favorecidos então pela ausência de barreiras físicas
que hoje ocorrem pela colocação de cadeiras e outros dispositivos
exigidos pela FIFA. Toda essa alegria – esse protagonismo do tor-
cedor que não quer ser mero espectador passivo, que almeja dan-
çar, cantar e expor coletivamente suas opiniões e demandas – foi
considerada elemento “perigoso” e inconveniente pela autoridade
máxima do futebol.
Evidentemente, tínhamos (e temos) alguns problemas no
antigo modelo de estádio. Mas seu proclamado anacronismo se
manifesta, a nosso ver, não exatamente na falta de conforto e mo-
derna tecnologia. O anacronismo reside principalmente nas es-
truturas de escoamento e suporte para as massas, que, a partir dos
anos 1970, inventaram novas dinâmicas, exigindo do estádio uma
arquitetura e uma engenharia mais adequadas à festa e ao prota-
gonismo do coletivo. Foi a ausência de uma estrutura compatível
Considerações finais 229

e de necessários investimentos na manutenção física que con-


duziram a acidentes como os ocorridos no Maracanã em 1992,
com três mortes, e, o mais trágico de todos, o da Fonte Nova, em
2007, com sete mortes, estando comprovada a deterioração das
estruturas de concreto das arquibancadas.
O discurso vigente do “anacronismo” dos estádios ataca
outras questões, nem sempre explicitando o profundo desejo de
produzir mais um espaço segregado, como os shopping centers e
os condomínios fechados. O novo estádio tende, assim, a se inse-
rir no processo mais geral de produção capitalista da cidade, que
gera espaços “insulares”, autossegregados.1 Por essa via de análise,
pretendemos continuar a desenvolver uma geografia do futebol
que dialogue com a cidade, com a cidadania e com os processos
cruciais de produção capitalista do espaço.
A nova geografia do futebol no Brasil, além das questões
aqui trabalhadas, envolve também um custo elevado aos cofres
públicos. A Alemanha, em 2006, gastou 12 vezes mais do que na
Copa de 1974 (em valores corrigidos, evidentemente). A África
do Sul, apesar de todas as limitações, gastou mais do que o dobro
dos alemães, e gastaremos, no mínimo, o quádruplo dessa edição
de 2010. Há um enorme processo de encarecimento dos grandes
eventos esportivos, associado a interesses privados e a exigências
crescentes da FIFA e do COI.
Outro problema se relaciona às cidades escolhidas como se-
des da Copa. O nível de exigência da FIFA quanto aos estádios
implica escolhas que suportem o alto investimento. Vimos, por
exemplo, os casos de cidades como Natal, Manaus e Cuiabá, que
terão construído seus novos estádios sem qualquer garantia de sus-
tentabilidade econômica.

1
Sobre a “urbanização insular”, ver a contribuição recente de Bidou-Zachariasen e
Giglia (2012).
230 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Somente após a Copa poderemos avaliar como serão utili-


zados os novos estádios, e por quem. Também poderemos avaliar
a situação dos estádios não submetidos à modernização, para veri-
ficar se, persistindo em sua antiga arquitetura, serão desprezados.
Quiçá, resistirão como espaços alternativos, para outra vivência
do futebol. Estamos nos referindo ao Barradão (Salvador), Arruda
(Recife), São Januário (Rio de Janeiro), Pacaembu (São Paulo),
Presidente Vargas (Fortaleza) e tantos outros “sobreviventes” de
sua geração.
Indiferentes aos protestos, o discurso tecnocrático e a gran-
de mídia saúdam a modernidade e execram o “velho estádio”
como anacrônico, feio e defasado. O modelo FIFA de “all-seater”
e “world class stadium” se impõe como pensamento único. E na
cidade do pensamento único, ao que tudo indica, aos desempre-
gados e sem-teto parece que já vêm se somar os sem-estádio, nova
condição excludente em nossa precária cidadania.

***

O barco navegava repleto de jogadores, um time inteiro de fute-


bol, o da Carauari, município encravado em plena selva amazô-
nica. Quase uma semana antes, ele deixara a cidade, as margens
do Rio Juruá, e já se aproximava de Manaus. A viagem estava
prevista para sete dias, até a equipe chegar à capital para disputar
a semifinal da Copa dos Rios. Mas a embarcação, um tanto en-
velhecida, avançava tropegamente e naufragou. Desesperados, os
atletas pularam nas águas do Rio Solimões [...] A Copa dos Rios é
assim: as grandes façanhas ocorrem fora dos campos, em viagens
fluviais acidentadas, de até 15 dias só de ida, tudo por um jogo
de futebol. Herdeira do tradicional Intermunicipal Amazonense,
é a maior competição futebolística do mundo, considerando as
distâncias percorridas nos rios (Magalhães, 1998, p. 19).
Considerações finais 231

Existem outros circuitos, outras espacialidades em que o fu-


tebol, longe dos holofotes, ainda pode apresentar momentos de
liberdade, congraçamento e laços comunitários, sem exclusão ou
controle de torcedores.
Eram 48 seleções municipais a disputar, em 1997, a Copa
dos Rios. O número se mantém estável até hoje, apesar das difi-
culdades. O prêmio concedido pela Federação Amazonense de
Futebol ao campeão de 2012 foi de 5 mil reais, muito menos do
que o clube terá gastado apenas nos deslocamentos. No total, os
quatro primeiros colocados receberão 10 mil reais, montante total
destinado aos prêmios.
Na Liga dos Campeões da Europa, ao vencedor final
cabe o prêmio em torno de 72,5 milhões de reais. Cada um
dos 32 clubes recebe, no mínimo, 17 milhões de reais apenas
pela participação. Uma única participação nessa liga garante
ao clube, mesmo sendo eliminado na primeira fase (de grupos),
o equivalente ao que receberia se fosse campeão da Copa dos
Rios durante 3.400 anos seguidos. É muito profundo, mais
do que em qualquer outra época, o abismo que hoje separa os
dois circuitos do futebol. Duas geografias, uma residual, outra
emergente.
Mas aqueles rapazes amazônicos não desistem. Apesar de
toda a precariedade, preferem a aventura de lançar seus corpos
e esperanças pelos rios e campos de várzea a abandoná-los ao
marasmo do sofá, diante de mais um jogo dos “ricos” na TV.
Tal escolha, aparentemente insólita, encontra eco e razão
de ser nas profundas raízes que o futebol inscreveu em nos-
so território. No exato segundo em que se lê esta frase, talvez
milhares de chutes estejam sendo desferidos em alguma bola,
Brasil afora. Menos que outrora, decerto. Mas com a mesma
alegria e sensação de estar fazendo algo muito natural, como
se o jogo preexistisse a tudo. A longa formação desse território
usado e dessa “pátria de chuteiras” merece e possibilita inúme-
232 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

ros aportes e leituras, como este que agora acabamos de apre-


sentar, e que se quis o mais geográfico possível. Esse jogo não
termina, tampouco o debate.
Posfácio:
a bola que enredou o Brasil

Neste livro, percorremos aspectos que julgamos essenciais


acerca do longo processo de “conquista” do Brasil pelo futebol.
Este se expandiu por todo o território e extrapolou largamente os
sentidos e significados habitualmente restritos a uma mera moda-
lidade esportiva, tornando-se “muito mais que um esporte”.
Em se tratando de uma “atividade esportiva” (melhor falar
num “complexo sistema de práticas e representações”) amplamen-
te vitoriosa, enfrentamos o risco inexorável de reproduzir uma
indesejada “história dos vencedores”. Não obstante tenhamos
lutado contra essa versão no decorrer do texto, desejamos, neste
breve posfácio, minimizá-la, contrapondo de forma mais incisiva
tal versão vitoriosa com a dos “vencidos”; quiçá esboçando um
pouco de tudo aquilo que perdemos ao assumir o futebol como
modalidade dominante e um dos símbolos máximos de expressão
da nacionalidade. Nossa premissa é a seguinte: para que certa geo-
grafia seja triunfante, outras “geografias” precisam ser derrotadas,
algumas, até, abortadas na raiz. E tendem a ser apagadas por com-
pleto na memória coletiva.
O livro aborda um processo de conquista territorial; por-
tanto, de colonização. O princípio legitimador de qualquer em-
presa colonial é a noção de sua presumida superioridade sobre os
espaços colonizados, seja ela moral, técnica ou intelectual. Sendo
234 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

o futebol algo “inglês” de berço, e justo no contexto histórico


de ampla supremacia britânica no mundo, este nos chegou como
promessa de redenção ao persistente atraso colonial: um presente
luxuoso trazido nas malas da promissora juventude aristocrática,
na benção dos missionários ou no receituário civilizador dos pró-
prios ingleses. Outra premissa recorrente do colonizador é a pers-
pectiva, geralmente falsa, de que ele está diante de um “vazio” a
ser preenchido. O que havia antes do futebol, e como era ou como
seria o Brasil sem o futebol, é uma pergunta que desconcertaria a
maioria daqueles habituados a viver e consumir esse esporte como
um dado natural de suas vidas.
A conquista do Brasil pelo futebol, como qualquer outro
processo colonizador, estabelece ou mesmo impõe modos de ser,
glorificando os vencedores e deixando um rastro de vencidos. Mas
o futebol não se inscreve no vazio: sua adoção maciça substituiu
um contexto anterior de muitos usos e sentidos e, provavelmen-
te, impediu o florescimento de outros usos, outras possibilidades.
Então, se queremos escovar a contrapelo essa história dos vence-
dores, precisamos sondar as virtualidades e latências vencidas, ou
seja, as “invisibilidades” desse processo. Em suma, “tudo aquilo
que ficou para trás”. Uma tarefa para outro livro, mas que aqui
podemos e devemos ao menos registrar.
Para conquistar territórios (o que implica necessariamente
a conquista de corpos, corações e mentes), o futebol invadiu ter-
renos então preenchidos com outros usos, modos de ser e fazer
do corpo e dos espaços. O caso da capoeira no Rio de Janeiro
parece consistir num exemplo interessante, embora não satisfa-
toriamente estudado, pela dificuldade imensa de acesso a dados
confiáveis. No alvorecer da República, no bojo da construção de
um projeto civilizatório, o discurso em favor do “branqueamen-
to” do Brasil promovia um acirramento do racismo. Portador de
conteúdos “civilizatórios” europeus, modismo burguês, carregado
de termos ingleses, imbuído de regras essencialmente modernas,
Posfácio 235

o futebol se afirmava como o uso legítimo e higiênico do corpo


lúdico, ao contrário da capoeira. O historiador Joel Rufino dos
Santos (1981) nos fala da severa perseguição às maltas de capo-
eira; por isso alguns times, então formados por negros e pobres,
eram egressos das próprias maltas (quando não eram elas mes-
mas), os quais encontravam aí, no contexto policialesco e quase
inquisitorial daquela modernidade, uma forma legal de sociabili-
dade para sobreviver como grupo social constituído. Em algumas
localidades, esses negros jogavam apenas entre si, numa espécie de
futebol “quilombola”, num cenário de “apartheid futebolístico”.1
É fato que nas décadas de 1920 e 1930 o contingente negro con-
quistou gradativamente seu espaço nas principais ligas de futebol
comandadas pelos brancos, e, nas palavras de Gilberto Freyre,
Mario Filho e outros narradores da apologia da democracia racial
no futebol, aqueles rapazes trouxeram para nosso estilo de jogar
elementos coreográficos, uma enaltecida “ginga” especial que teria
contribuído para “arredondar” o apolíneo esporte bretão, tornan-
do-o mais “dionisíaco”. A tese é sedutora e polêmica, mas certa-
mente um conjunto de práticas corporais foi sendo marginalizado
em favor do triunfo do futebol.
Também o escritor Graciliano Ramos citou inúmeros jogos
populares, que provavelmente iriam perecer ou se ocultar na onda
fulminante de penetração do futebol pelos sertões do vasto Brasil.
Não há, pois, gratuidade nesse processo: a aquisição de um siste-
ma de práticas e significados sociais tende a se sobrepor a modos e
costumes preexistentes. E não raramente de forma violenta, ainda
que tal violência nem sempre seja explícita, e seja até bastante
prazerosa para seus atores e espectadores.

1
Em Porto Alegre, havia a Liga Nacional de Football Porto-Alegrense, que os jor-
nais conservadores apelidaram de Liga da Canela Preta. Também nas cidades de
Pelotas (Liga José do Patrocínio) e Rio Grande (Liga Rio Branco) funcionaram
ligas exclusivas para jogadores negros (Cf. Mascarenhas, 1999b). Em outros esta-
dos da Federação, há indícios de ligas “negras” aguardando futuras pesquisas.
236 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

Estamos nos restringindo ao universo das chamadas “prá-


ticas e tradições populares” de uso do tempo livre, mas podemos
também enveredar pelo mundo técnico e racional do conjunto de
modernas modalidades esportivas que aqui não tiveram maiores
oportunidades em função do exercício quase monopolístico do
futebol. Afinal, quantos brasileiros já experimentaram o hande-
bol, o rugby, o tênis, o golfe, o beisebol, para citar apenas algumas
das modalidades mais disseminadas pelo mundo? Não estamos
falando do esqui ou de qualquer outra modalidade incompatível
com nossa realidade geográfica. A propósito, o Brasil é dotado
de condições climáticas, hidrográficas e geomorfológicas extrema-
mente privilegiadas: além de a atividade ao ar livre ser viável em
quase todo o território nacional no decorrer do ano inteiro, um
vasto conjunto de práticas esportivas de montanha, de rios ou no
mar poderia ser muito mais acionado.
Essa perda cultural produzida pelo “quase monopólio” do
futebol em nossas terras resultou de vários fatores, dos quais dois
sobressaíram: a falta de informação, decorrente especialmente da
precariedade (de métodos, de infraestrutura e de cobertura terri-
torial) de nosso sistema educacional; e o uso político reiterado do
futebol, sobretudo em regimes ditatoriais, como o Estado Novo
(que estabeleceu as bases perenes da chamada “pátria de chutei-
ras”) e o regime pós-1964.
O violento processo aqui estudado atingiu o próprio fu-
tebol, em determinados âmbitos sociais de sua prática. Entre os
“invisibilizados” pela força crescente da dimensão espetacular e
mercantilizada desse esporte, estão os pequenos clubes, como evi-
dentes “perdedores” na história do futebol. Cidades como Rio
de Janeiro e São Paulo chegaram a abrigar centenas deles, como
células vivas da sociabilidade de bairro, entre as décadas de 1930
e 1960. O automóvel foi paulatinamente dominando a rua, im-
pondo um uso monopólico em detrimento de numerosas práticas
de lazer, como o futebol informal.
Posfácio 237

Vimos aqui como o implacável processo de metropolização


promoveu a falência de “pequenos clubes” (não gostamos desse
termo consagrado pela mídia e fundado em modelos econômicos
gerenciais de apreciação das instituições; uma agremiação pode ser
pequena em suas finanças e número de sócios, mas muito grande
em seu significado para determinada comunidade). As pequenas
cidades do interior foram se convertendo em lugares em que o
futebol sobrevive mais no espaço privado do sofá (diante do apa-
relho televisor) do que nos espaços da vida coletiva.
Ao mesmo tempo, o chamado “futebol varzeano”, por de-
pender de vastas superfícies, foi prejudicado pela urbanização
selvagem capitalista, promotora da especulação. Por sua própria
natureza como modalidade esportiva, o futebol entra em conflito
com o modus capitalista de apropriação dos espaços. Daí o cresci-
mento de modalidades que economizam espaço, como o basque-
tebol e o futsal. Ou melhor, como o futevôlei, já que este “usa”,
isto é, apropria-se dos espaços apenas provisoriamente, sobre a
areia, sem territorialização perene, mantendo o espaço praiano em
sua condição de multiuso.
Na onda de “modernização” do futebol, vimos a emergên-
cia de um novo modelo de estádio, elitista e disciplinador, de
forma que o mais recente capítulo da história dos vencedores se
realiza no âmbito interno ao estádio, dele excluindo severamente
os pobres e as atitudes consideradas inconvenientes. O mercado
quer do torcedor um amor clubístico “controlado”, civilizado,
mas como controlar a paixão? Vimos que os pobres no início do
século XX estavam vetados de jogar, e agora até de torcer, diante
do custo do pay per view e do encarecimento extremo da camisa
oficial do seu clube.
Para tentar concluir essa lista que poderia se estender por
muitas páginas, não podemos ignorar os milhões de indivíduos
“vencidos” dentro do universo do futebol, na tentativa de “ven-
cer na vida como jogador”. São inúmeras as histórias individu-
238 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

ais de talentos desperdiçados, por motivos os mais diversos, que


acabam se fundindo numa causa essencial: os limites e as vicissi-
tudes de um mercado capitalista do espetáculo. Profundas frus-
trações pessoais foram produzidas em trajetórias dramáticas que
se apagaram para sempre na grande história do futebol, mas que
revivem no anedotário de cada localidade deste imenso Brasil.
Em Dom Macedo Costa, vilarejo situado no Recôncavo Baia-
no, ainda ecoam nas conversas de botequim, sobretudo entre
os mais velhos, as façanhas “milagrosas” de um tal Mundinho.
Nos anos 1970, ainda menino, Mundinho produzia verdadeiras
perplexidades no campinho local. No alvorecer de sua mocida-
de, recebeu o tão esperado convite para treinar no Esporte Clube
Vitória, de Salvador, que com o Esporte Clube Bahia divide as
atenções no cenário estadual. Ele e todos à sua volta já imagina-
vam façanhas reluzentes numa Fonte Nova lotada, e o desdobra-
mento natural de ser solicitado pelos clubes do “centro-sul” e até
do exterior. Fama, dinheiro, mulheres, a glória máxima para o
mulato de origem pacata.
Mundinho, que driblava a tudo e a todos que tinha pela
frente, só não driblou a própria sorte. Mala arrumada para a ca-
pital, peito erguido, cabeça nas nuvens e sorriso no rosto, o rapaz
caminhava pela cidade de Santo Antonio de Jesus, o centro co-
mercial mais próximo de seu vilarejo. Feliz e certamente embria-
gado, dizem alguns, pois era dia de festa na cidade: agitação nos
espaços públicos, alcoolismo e alegria reinando, os condutores de
automóveis bem menos prudentes que de costume e Mundinho
com o pensamento na Fonte Nova, ou no dinheiro e na fama que
lhe batiam à porta, ou, quiçá, no automóvel bonito que em breve
seria seu, quando foi atropelado pelo objeto de desejo. Fratura
exposta, cirurgias, fim dos sonhos, início de nova vida, de um
“manco” a mais no Recôncavo Baiano. Ainda assim, Mundinho,
agora com uma perna maior que a outra, mancando, seguiu sua
“carreira” local, com dribles ainda mais humilhantes e gols de bi-
Posfácio 239

cicleta a cada jogo, sendo ovacionado como o melhor jogador de


todos os tempos em Dom Macedo Costa.
A história de Mundinho se perde na escuridão mais remota
do cenário futebolístico nacional e tende ao esquecimento, mesmo
no vilarejo que se espantou e se regozijou com suas performances
fabulosas. Seu nome e sua história não estão no Google. Como
qualquer outro setor hegemônico e de forte apelo midiático, a in-
dústria do futebol engendra seu próprio regime de visualidade, e
nele não há lugar para “derrotados Mundinhos da vida”. Mas os
“Mundinhos” se multiplicam no anonimato e atingem a casa dos
milhares, ou muito mais. Cada imensa geração de meninos no Bra-
sil, país de 200 milhões de habitantes, promove intensa dedicação
diária ao aprendizado dessa modalidade esportiva quase monopóli-
ca. Impossível estimar a quantidade valiosa de horas e dias e meses
e anos que uma multidão de crianças e adolescentes consagra a essa
prática, muitas vezes em total detrimento de sua formação escolar.
Essa fábrica de potenciais atletas profissionais é das mais cruéis:
produz sonhos e promessas, gera entrega e dedicação total por parte
daqueles que parecem ser os novos agraciados pela Deusa Bola, mas
99% deles não conhecerão senão a decepção, a frustração, a derrota,
a pobreza e o esquecimento. Mesmo aqueles que conseguem contra-
to profissional, em sua maioria, não vencerão a barreira do salário
mínimo e do subemprego no futebol.
Na linguagem fria da racionalidade capitalista, esses mi-
lhões de “derrotados” formam o bagaço, a sobra do processo in-
dustrial de transformação da matéria-prima em produto final.
Uma estranha indústria na qual a quantidade de matéria-prima
utilizada é amplamente desproporcional ao minúsculo resultado
final, ou seja, os poucos craques que são aproveitados. O baga-
ço, o rejeito, a sobra formam, assim, um volume gigantesco, no
sentido diametralmente oposto do discurso contemporâneo da
sustentabilidade. Seria um grande desperdício, não fosse gratuita
essa matéria-prima. Pior de tudo: tal indústria mexe com vidas,
240 Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol

com trajetórias, com sonhos e promessas reluzentes e termina por


formar um contingente humano de frustrados e desiludidos, que
não investiram em outra profissão até atingir os 25 ou 30 anos de
idade, momento crucial na formação de cada um de nós.
Para colonizar nossas terras com o apaixonante esporte bre-
tão, foi preciso sufocar, minimizar ou redefinir inúmeras outras
práticas corporais. Foi preciso silenciar, com a ruidosa euforia dos
estádios, tradições, movimentos e grupos sociais. E até o futebol,
como um universo à parte, promove internamente o aniquila-
mento de uns tantos, em favor de tão poucos, para o triunfo do
espetáculo.
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Sobre o autor

Gilmar Mascarenhas, com raízes no Recôncavo Baiano,


é carioca do subúrbio. Já viu a bola rolar em mais de sessenta
estádios em 12 países, mas gosta mesmo é da riqueza inesgotá-
vel do universo peladeiro. Ao reunir geografia e futebol, publicou
dezenas de artigos desde 1997. É professor associado e membro
permanente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e procientista
e pesquisador CNPq-2. A geografia corre e pulsa em suas veias,
em eterna renovação, mas com o futebol aprendeu que a vida sem
paixão vale muito pouco, e que é nas tramas do coletivo que se
constroem as estratégias, e assim as vitórias têm muito mais sabor.
Formato 14 x 21
Tipologia: Garamond (texto) Gill Sans (títulos)
Papel: Pólen Soft Natural 80 g/m2 (miolo)
Supremo 250 g/m2 (capa)
CTP, impressão e acabamento: Gráfica Millennium

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