Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
FRONTEIRAS DA MÚSICA:
FILOSOFIA, ESTÉTICA, HISTÓRIA & POLÍTICA
1ª edição
São Paulo
ANPPOM
2016
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
EM MÚSICA
Diretoria 2015-2017
Sonia Regina Albano de Lima (UNESP), Presidente
Martha Tupinambá de Ulhoa (UNIRIO), 1ª Secretária
Fernando Lacerda Simões Duarte, 2º Secretário
Marcos Fernandes Pupo Nogueira (UNESP), Tesoureiro
Conselho Fiscal:
José Augusto Mannis (UNICAMP), Titular
Angela Elisabeth Luhning (UFBA), Titular
Sonia Ray (UFG), Titular
Lucyanne de Melo Afonso (UFAM), Suplente
João Gustavo Kienen (UFAM), Suplente
José Soares de Deus (UFU), Suplente
ANPPOM
© 2016 os autores
FRONTEIRAS DA MÚSICA:
FILOSOFIA, ESTÉTICA, HISTÓRIA & POLÍTICA
CAPA:
XiloWeb (Verlaine Freitas)
Reproduzido sob permissão
FORMATAÇÃO E MONTAGEM
João Paulo Costa do Nascimento
Catalogação da Publicação
Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e
Documentação do Instituto de Artes da UNESP
ISBN: 978-85-63046-05-5
CDD 780.1
ANPPOM
Associação Nacional de Pesquisa e
Pós-Graduação em Música
www.anppom.com
Printed in Brazil
2016
SUMÁRIO
Apresentação 05
Lia Tomás
6
Fronteiras entre
música e filosofia
Expressividade e articulação formal na música de
Schönberg, segundo Theodor Adorno
VERLAINE FREITAS
I
Toda a arte moderna se inicia com uma crítica não
apenas ao conceito de obra como totalidade, mas também à
própria realidade extensiva, material e concreta. O novo —
fundamento de tudo o que se pretende “moderno” — se institui
como um movimento de abstração, de negação da aparência de
significado pleno, coincidindo com o abandono da figuração nas
artes plásticas e de recusa da distensão simétrica do som no
tempo. Nesse sentido, as peças extremamente curtas de
Webern podem ser lidas como uma crítica a toda concepção de
mundo como inteireza, como algo dotado de sentido,
evidenciando de forma negativa a própria negatividade da vida
em seu núcleo individual, a saber: o sofrimento. A concisão e
densidade próprias dessa música de preenchimento mínimo do
tempo pretendem fazer justiça à impossibilidade de uma
narrativa que ultrapasse a concretude vivencial do indivíduo;
FRONTEIRAS DA MÚSICA
II
A arte é conhecimento como expressão, como
12 linguagem do sofrimento, que quer tornar evidente, na
singularidade contraditória do seu não-sentido, a eloquência
possível do que subjaz a toda consciência de mundo. De um
ponto de vista psicanalítico, este fundo do qual emerge o
sofrimento é, propriamente, o dos conflitos sexuais
inconscientes, tornados visíveis na música de Schönberg, como
na expressividade da angústia, da premonição, na ruptura
desesperada em relação ao objeto de amor. O que se pode
chamar de “forma” é polarizado entre choques involuntários e
irrupções brutas, por um lado, e a paralisia diante de uma
angústia inominável. Em ambos os casos, está em jogo a ênfase
no que é mimeticamente intraduzível, passível apenas de uma
documentação por assim dizer sismográfica. À maneira de um
mosaico que não admite uma distância segura para sua
inteligibilidade, essa profusão mimética de conteúdos
inconscientes é avessa à continuidade e ao princípio do
desenvolvimento, tal como na forma sonata. Nesse momento,
torna-se evidente a imbricação entre o conteúdo expressivo e o
invólucro da forma, tornados substancialmente indistintos na
construção radicalmente ascensional da unidade da obra. Essa
indistinção é que fornece a base para a muito frequente crítica
de formalismo para a nova música, uma vez que ela, desprovida
de cânones formais preestabelecidos, deverá se tornar
Expressividade e articulação formal
III
14 O expressionismo tem como seu conteúdo mais
próprio algo que não existe em si, absoluto. O sujeito, o núcleo
do que deverá ser “expresso”, tanto mais é universal, quanto
mais recusa camadas superficiais de universalidade
socialmente determinada. Essa dialética se reproduz na própria
forma da música expressionista; na medida em que ela se fecha
em seu ser-assim-e-não-de-outro-modo, dá testemunho do que
ultrapassa seu fechamento estético. Essa ultrapassagem,
entretanto, jamais é possível de se realizar para além do
próprio movimento estético da obra. Nesse sentido, para que
esta seja mais do que ela mesma, precisa renunciar a uma
comunicação direta com a realidade, fechando-se
obstinadamente em seu ser-posto. A música expressionista
consiste, em grande medida, nessa tentativa um tanto
desesperada e contraditória de extrair uma significação
universal de sua extrema concentração no que é meramente
pontual, microscópico.
IV
O sistema tonal dispõe de diversos mecanismos de
estruturação da música que deixam muito pouca liberdade ao
singular se fazer como tal no contexto da totalidade da obra.
Inúmeras variáveis condicionam o modo com que cada evento
musical deverá ser equacionado. O tempo todo o músico é
levado a tentar produzir uma obra singular em meio a uma
FRONTEIRAS DA MÚSICA
V 17
A música de Schönberg funda-se na ideia de um
“desenvolvimento total” (como se aplicasse à música toda o
princípio intermediário da sonata), que, associada a uma
organização plena do material musical, faz convergir o ímpeto
para uma objetividade global da obra e uma subjetividade
formante, ao redor da qual tudo gira. A nova objetividade,
representada por Stravinsky e Hindemith, apresenta-se como
reacionária, porque quer frear o progresso do senso de
composição integral da obra, ao mesmo tempo em que quer
retirar do sujeito o centro de importância na composição da
obra. Para essa corrente musical, o sujeito é algo contingente,
arbitrário, devendo ser substituído por formas canônicas pré-
burguesas. Ao mesmo tempo em que exibem a consciência da
necessidade de ultrapassar as vicissitudes da subjetividade,
oferecem uma resposta que retroage perante o que poderia
superá-las.
Referências Bibliográficas
Ivanka Stoianova
Roma.
6 NT : 2011, p. 33.
Música sem fronteiras
49A teoria estética que nos anos 40-70 do século XX desenvolveu esses
princípios essenciais em musicologia teórica, sobre a base da tradição
do sinfonismo ocidental e na sequência da teoria cinematográfica de S.
Eisenstein, pertence ao musicólogo soviético Lev A. Mazel. Cf. MAZEL,
1982, p. 3-54.
FRONTEIRAS DA MÚSICA
Referências Bibliográficas
___. Crépuscule des idoles, trad. J.- Cl. Hémery, Folio/Essais, Gallimard,
Paris, 1974.
_____. Les voies de la voix. Traverses, 20, Centre Pompidou, Paris, 1980,
pp. 108-118.
53
Alexander Scriabin: convergências e divergências1
MARCOS MESQUITA
(Machado de Assis)
I. O artista republicano
Referências bibliográficas
ADAMSON, W. L. Embattled Avant-Garde: Modernism’s Resistance to
Commodity Culture in Europe. Berkeley: University of California Press,
2007.
ASSIS, M. de. O alienista (1882). São Paulo: Princípio Editora, 1993.
BAUDELAIRE, C. Correspondências (1855). In: TELES, G. M.
Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. 10ª ed. Rio de Janeiro:
Record, 1987, p. 42-45.
83
Prolegômena: Gadamer e a música como modelo para
as ciências interpretativas
RAIMUNDO RAJOBAC
I
ensaio pretende apresentar a concepção de música
O gadameriana e a maneira como ela integra os problemas
da compreensão e interpretação na tradição hermenêutica.
Trata-se, portanto, do passo inicial de um processo
investigativo que busca explorar o conceito de música que
perpassa a obra do filósofo. A hipótese básica que conduz
nossas preocupações é a de que discutir música a partir de
Gadamer compromete-nos com o âmbito maior da crítica
epistemológica às ciências da natureza ao passo que nos
possibilita uma revisão conceitual a respeito da música capaz
de nos colocar em diálogo com a tradição e as diversas
experiências musicais do contemporâneo. O ensaio será
conduzido a partir de dois movimentos. Partiremos de algumas
proposições gerais intuídas em Verdade e método, seguidas da
reconstrução interpretativa do escrito Música e tempo.1 A
2
Aqui, não nos deteremos ainda na análise e reconstrução
interpretativa desses escritos. Esse esforço comporá um momento
posterior da pesquisa.
FRONTEIRAS DA MÚSICA
II
A forma como o filósofo introduz o problema passa
pela reposição de algumas tarefas da filosofia, a qual tem como
objetivo entender o pensar, o aspirar e o perguntar humanos e
tornar novamente compreensível o que está aí naturalmente.
Nessa perspectiva, tal tarefa adquire vasta abrangência, de
forma que poucas coisas são capazes de oferecer resistência à
88 insuperável tarefa filosófica do questionamento. Isso já nos é
conhecido na experiência da linguagem, que, levada adiante
por nós, está sempre a ultrapassar barreiras na concepção dos
conceitos. Impõem-se, portanto, como problemática à tarefa do
filosofar toda e qualquer experiência que sugere a nós limites
da linguagem. Para Gadamer (1998, p. 90), é justamente nos
limites da linguagem que se nos apresentam “dois grandes
enigmas que nos atormentam, que são repetidamente
apresentados ao filosofar sem vermos via de solução”: a música
e a matemática. Esses dois campos da formação cultural do
mundo europeu encontram-se, portanto, estreitamente ligados,
de forma quase inseparável durante a história, a ponto de tal
estreiteza poder ser identificada tanto nos pitagóricos quanto
hoje.
No que diz respeito à matemática, o desafio filosófico
está ligado ao fato de o enigma dos números residir apenas em
nossa ação pensante, realidade independente e absolutamente
alheia a nosso domínio. A perplexidade que surge aqui liga-se,
como afirma Gadamer (1998, p. 90), ao fato de estarmos diante
de algo que obedece a sua própria lei. Na mesma condição que
os números se encontra o espaço. Ambos sem aparo no
universo da linguagem. Nesse âmbito, afirma Gadamer (1998,
Prolegômena: Gadamer e a música
3
Para Heidegger (1973), de acordo com a sua Essência, a linguagem é
a casa do Ser, edificada em sua propriedade pelo Ser e disposta a
partir do Ser. Por isso urge pensar a Essência da linguagem numa
correspondência ao Ser e como uma tal correspondência, isto é, como 89
a morada da Essência do homem. Segue a isso a ideia de que o próprio
ser delimita sua circunscrição, que é circunscrita pelo fato (temmein,
tempus) de ele se manifestar fenomenologicamente na palavra. A
linguagem é a circunscrição (templum), quer dizer, a casa do ser. A
essência da linguagem não se esgota na significação, nem é ela apenas
algo que se apresenta como sinal e cifra. Porque a linguagem é a casa
do ser, nós atingimos os entes passando constantemente por essa casa.
Quando vamos ao poço, quando percorremos uma floresta, já sempre
estamos passando pela palavra “poço” e pela palavra “floresta”,
mesmo quando não pronunciamos essas palavras nem pensamos em
algo que se refere à linguagem. Pensando a partir do templo do ser,
podemos presumir aquilo que ousam aqueles cuja ousadia vai além do
ser dos entes. Eles ousam a circunscrição do ser. Eles se aventuram
com a linguagem (HEIDEGGER, 2002). Cabe ainda considerarmos que
uma das originalidades de nossa época é haver descoberto na
temporalidade e historicidade a morada de toda a existência. Em
consequência, o problema do tempo deixa de ser considerado apenas
como o de uma “propriedade” das coisas. Temporalidade e
historicidade são a estrutura do ser do homem e de todo o mundo
humano. Não apenas enquanto ato e dinamismo mas também como
conteúdo, a existência é o vigor de uma configuração histórica. Em
cada momento da vida está em jogo toda a vida no sentido de o sujeito
empenhar a vida inteira durante toda a sua vida. Em cada um de seus
momentos se “com-plicam” todos os demais; os momentos do futuro e
passado se “im-plicam” no presente e o curso histórico não é senão a
FRONTEIRAS DA MÚSICA
91
III
No que diz respeito ao projeto filosófico-hermenêutico
gadameriano, a ideia de música como modelo para as ciências
interpretativas oferece-nos as condições de tematizar música
enquanto problema de racionalidade e ajuda-nos no
questionamento crítico de processos demasiados cientificistas
que norteiam concepções de interpretação e no trato com o
texto musical, seja quando nos referimos à poesia, seja quando
nos referimos à partitura. A obra musical que se nos apresenta
exige que levemos a cabo a interpretação. Dada tal exigência,
nos deparamos com o conceito de tempo. Para tornar claro o
problema do tempo, o hermeneuta lança mão da palavra
Vollzug (levar a cabo), peculiar e assombrosa, por sua tensão
dialética. Para Gadamer (1998, p. 92), “toda Zug (tendência) é
um transcurso no tempo e todo transcurso no tempo deixa
atrás de si o tempo transcorrido, deixando vazio o local que
alguém acaba de atravessar a toda pressa”. Aqui repousa uma
ideia mecânica de tempo, a que seguiu a modernidade nas
trilhas de Galileu e Newton. Contra a ideia de tempo como
tendência, o hermeneuta apresenta o interpretar, “que é
FRONTEIRAS DA MÚSICA
4
Para Gadamer (1998), em qualquer outro lugar sempre há algo que
está detido dento dessa prolongação, seja o significado estrito das
palavras, seja o sentido perceptível do discurso. Assim ocorre na
poesia e também na prosa do pensamento. Também há algo na
sequência das figuras da dança, e inclusive na sequência estruturada
do quadro, da escultura, da obra arquitetônica.
5
O Conceito de jogo constitui-se num conceito fundamental no todo do
projeto filosófico gadameriano. Considera Gadamer (1985): quando é
que se fala de jogo e o que está implícito nisso? Certamente de início, o
ir e vir de um movimento que se repete constantemente, um
movimento que não está ligado a uma finalidade última. O especial do
Prolegômena: Gadamer e a música
Referências bibliográficas
GADAMER, H-G. A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
______. La música y el tempo. In: Arte e verdad de la palabra. Barcelona:
Paidos, 1998. p. 90-94.
______. O jogo da arte. In: Hermenêutica da obra de arte. Trad.: M. A.
Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 49-56.
______. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
______. Verdade e método II: complementos e índice. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 2004.
GRONDIN, J. Introducción a la hermenéutica filosófica. Trad.: A. A.
Pilári. Barcelona: Herder, 2002.
HEIDEGGER, M. Caminhos de Floresta. Trad.: I. Borges-Duarte e F.
Pedroso. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
______. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2006. 95
______. Sobre o humanismo.(Coleção Os Pensadores). Trad. E. Stein. São
Paulo: 1973.
LAWN, C. Compreender Gadamer. Trad.: H. Magri Filho. Petrópolis:
Vozes, 2007.
RAJOBAC, R. Experiência hermenêutica e formação para o
reconhecimento em Gadamer. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, n.
134, jul. 2012, p. 1-8.
Corpo e sociabilidade na experiência musical: por
uma estética da heteronomia
RAINER PATRIOTA
1
É famoso o trecho de seu diário do ano de 1820 que reproduz o
clássico aforismo kantiano: “A lei moral em nós; o céu estrelado acima
de nós – Kant!!!” (BEETHOVEN apud STANLEY, 2000, p.25).
FRONTEIRAS DA MÚSICA
104 algo parecido com a música” possa ter contribuído para que
nossos ancestrais estabelecessem vínculos uns com os
outros...Com efeito, num cenário evolutivo em que a
capacidade para criar e manter relações sociais é tão
importante para a sobrevivência quanto qualquer outro
atributo individual como força, velocidade, acuidade
perceptiva etc., o poder da música para estimular e
consolidar a formação de acordos sociais deve ter tido um
valor adaptativo considerável no repertório geral das
condutas humanas (CROSS in CLAYTON, 2012, p.25).
Referências Bibliográficas
ADORNO, T. Prismas. La critica de la cultura y la sociedade. Trad. M.
Sacristán. Barcelona: Ediciones Ariel, 1969.
____. Teoria estética. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2004.
BALL, P. The music instinct. How music works and why we can’t do
without it. Oxford, New York: Oxford University Press, 2010.
BLACKING, J. How musical is man?. Seattle and London: University of
Washington Press, 2000
110 BONDS, E. La música como pensamiento. El público y la música
instrumental em la época de Beethoven. Trad. F. L. Martín. Barcelona:
Acantilado, 2014.
CLAYTON, M./HERBERT, T/MIDDLETON,R. The cultural study of music.
A critical introduction. New York and London: Routledge, 2012.
CHASIN, I. Música serva d’alma: Claudio Monteverdi: Ad voce
umanissima. São Paulo: Perspectiva; João Pessoa: Universidade
Federal da Paraíba, 2009
FUBINI, E. L’estetica musicale dal settecento a oggi. Torino: Einaudi,
1987.
GIOIA, T. Healing Songs. Durhan and London: Duke University Press,
2006.
HARNONCOURT, N. O discurso dos sons: caminho para uma nova
compreensão musical. Trad. M. Fagerlande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.
HAYNES, B. The End of Early Music: a period performer’s history of
music. New York: Oxford University Press, 2007.
2
Sobre o fenômeno do “canonismo” na música de concerto, cf.
HAYNES, 2007.
Corpo e sociabilidade
Introdução
Considerações finais
Os conceitos observados neste artigo – raça,
democracia racial, afro-brasileiro, antropofagia cultural,
nacionalismo – são centrais nos estudos da cultura brasileira
em geral e da música em particular. Estamos – ou deveríamos
estar – familiarizados com eles. No entanto, para o olhar
exterior, os debates que esses conceitos incorporam ganham
Etnicidade e antropofagia cultural
Referências bibliográficas
ANDRADE, M. de Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: I.
Chiarato e Cia, 1928.
ANDRADE, O. de. A utopia antropofágica. São Paulo: Editora Globo,
2011.
AVELAR, I.; DUNN, C. (Eds.). Brazilian popular music and citizenship.
Durhan & London: Duke University Press, 2011.
APPLEBY, D. P. The music of Brazil. Austin: University of Texas Press,
1983.
______. Heitor Villa-Lobos: a life (1887–1959). Scarecrow Press, 2002..
BAIA, S. F. (2014). A linhagem samba-bossa-MPB: sobre a construção
de um discurso de tradição da música popular brasileira. Per Musi nº
29, 2014, p.155–169. Disponível em:
http://www.musica.ufmg.br/permusi/port/numeros/29/index.htm.
FRONTEIRAS DA MÚSICA
Música
Acabara, nosso herói, de abrir seu corpo aos ruídos que
precediam e condicionavam as vozes humanas. Antes de falar, 133
raciocinar, calcular, as profetisas o haviam ensinado a escutar o
vento, o som ritmado das marés, o ruído de fundo do mundo.
“Mas como passar do ruído à música?” – pergunta
Orfeu a Mnemósine.
Multissensorialidade
Como vimos, o aprendizado de Orfeu abriu-se a uma
escuta corporal, transformando a pele de todo seu corpo em
um grande tímpano, sensível ao mínimo movimento de ondas
sonoras. Tais pequenos movimentos constituem, de algum
modo, uma comunicação entre um lado perceptivo e um lado
motor. John Dewey afirma que as conexões dos tecidos
cerebrais com o ouvido são maiores que as de qualquer outro
sentido e, ainda, as ligações da audição com todas as partes do
organismo fazem com que o som tenha mais reverberações e
ressonâncias que qualquer outro sentido (DEWEY, 2010, p. 416
e 419). Os órgãos dos sentidos atuam, em um primeiro
momento, como instrumentos de excitação corporal ou
“tentáculos” por meio dos quais tocamos o mundo, para utilizar
um termo de Dewey (DEWEY, 2010, p. 352). Os sentidos, no
entanto, não são a própria percepção, como fica claro no
pensamento desse pensador. Tampouco na compreensão de
138 Merleau-Ponty, na qual cada sentido é um pequeno mundo no
interior do grande, que é a percepção. Embora o pensamento
objetivo – sobre o qual funda-se a ciência, no seu entendimento
mais específico e difundido – propague a crença em uma certa
autonomia sensorial, a fenomenologia crê no sentir como
comunhão com o mundo e modalidade de existência. Seria
impossível desconectar do corpo uma experiência de um só
órgão, pois a percepção é sempre uma síntese inscrita em um
esquema corporal feito de equivalências e transposições. Não
existe pureza sensorial, já que o corpo inteiro comunica-se com
o mundo e seus objetos. O que existe são certas “vocações de
registros sensoriais”:
139
A percepção sinestésica é a regra e, se nós não a percebemos,
é porque o saber científico desloca a experiência e nós
desaprendemos a ver, ouvir e, em geral, sentir, para deduzir
de nossa organização corporal e do mundo, tal qual o
concebe o físico, aquilo que devemos ver, ouvir e sentir.
(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 275).
141
A fenomenologia de Merleau-Ponty, os ensinamentos
de Dewey e o percurso de Orfeu, na narrativa de Serres, são
como convites para retornarmos às experiências primordiais,
acolhermos o aparente caos instalado no seio de nossa
percepção e renovarmos a cada “agora” nossas experiências, de
todas as naturezas.
Referências bibliográficas
AGOSTINHO. Confissões. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural,
1996.
CAPINAN, J.C. Vinte canções de amor e um poema quase desesperado.
Salvador: Caramurê, 2015.
CAZNOK, Y. B. Música: entre o audível e o visível. São Paulo: Unesp,
2008.
DEWEY, J. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
FREITAS, A. S. de. Ressonâncias, reflexos e confluências: três maneiras
de conceber as semelhanças entre o sonoro e o visual em obras do
FRONTEIRAS DA MÚSICA
142
O papel do charme na estética musical de Vladimir
Jankélévitch
Introdução
147
A graça, segundo ele [F. Ravaisson], é “eurritmia”, isto é,
“movimento que faz bem”. Nós a reconhecemos nos
movimentos que exprimem o abandono, a condescendência,
a descontração. Os pintores procuram apreendê-la nas
inclinações da cabeça, no sorriso feminino. Mas também se
pode pressenti-la nos movimentos fundamentais da natureza
viva que são a pulsação e a ondulação: “Observe”, diz
Leonardo da Vinci, “o serpenteio de todas as coisas”, isto
quer dizer, observe em todas as coisas, se você quiser
conhecê-las e representá-las de maneira adequada, a espécie
de graça que lhe é própria (HADOT, 1963, p. 76-77).
148
Como em Plotino, o atrativo reconhecível, mas de
causas irreconhecíveis, responsável tanto pela comoção
estética quanto pelas afinidades afetivas, aparece associado ao
movimento, às inflexões do espírito e a uma presença que,
como o ar, se revela simultaneamente totalizante e impalpável.
Estes dois predicados favorecem a permanência da analogia
plotiniana anteriormente citada, posto que o desconhecido
encanto “assemelha-se à luz que embeleza toda a natureza e
que se faz visível a todos, sem que saibamos o que seja”
(PLOTINO, 1999, p. 262). Portanto, percebemos que, embora o
religioso francês afirme não ser o je-ne-sais-quoi “propriamente
nem a beleza, nem a bela fisionomia, nem a graça favorável
(bonne grâce), nem a predisposição ao humor, nem o espírito
brilhante” (PLOTINO, 1999, p. 260), nele estão contidas as
ressonâncias da graça plotiniana, confirmando a absorção da
kháris pela acepção moderna do charme.
Por fim, devemos destacar que, no texto de Bouhours,
o componente estético indefinível adquire algumas
características mantidas pelo inefável, pelo je-ne-sais-quoi e
pelo charme jankélévitchiano. Em contraste com outro conceito
de natureza estética igualmente reelaborado nos séculos XVII e
O papel do charme
152
a música é o maior reflexo deste fluxo insubstancial que já é,
desde sempre, o movimento vital do próprio real: pivô (...) do
pensamento e do discurso de Jankélévitch. Neste sentido, ela
não possui nenhuma Substância interna ou ‘profunda’ que
deveria trazer à superfície e revelar. A música é exatamente
como essa ‘efetividade’ epidérmica e superficial, que é a
própria vida das coisas: nada além de movimento
diferenciando em si por si. E como tal – como virtualidade
insubstancial – é produtora de todas essas ‘formas’
(musicais) que, longe de ‘exprimirem’, portanto, uma
Substância subjacente, são as suas ‘atualizações’
imprevisíveis e ‘gratuitas’. Eis porque a música, de acordo
com Jankélévitch, é propriamente charme: ‘circulação de
graça’ que encanta e opera a feitura dos cantos – mas que,
justamente, não se pode nem situar nem apreender, como
todo o verdadeiro encanto ou sortilégio. Numa palavra: ela
7 “Die Rose ist ohne warum, sie blüht weil sie blüht.” (“A rosa é sem
porquê, floresce porque floresce.”) O peregrino querubínico, I, 289
(SILESIUS, 2005, 95).
O papel do charme
Conclusão
Coincidentemente, encerramos tanto o nosso percurso
pelo charme musical jankélévitchiano quanto a genealogia do
conceito em questão abordando um mesmo ponto, a partir do
qual teceremos esta conclusão. Como indica Montesquieu, à
diferença da beleza estática, a graça se efetiva pela surpresa,
por um processo de velamento e desvelamento, que pressupõe
a participação do tempo e, até mesmo, recordando o diálogo de
Bouhours, do “mais curto de todos os momentos”. Por
conseguinte, constatamos, já no Iluminismo, indícios de uma
revalorização positiva da temporalidade, que passa a ser
associada a um je-ne-sais-quoi de conotação “espiritual”.
No discípulo de Bergson tal revalorização em muito se
160 aprofunda, como se observa pela aplicação de um conceito,
diretamente vinculado à temporalidade, tanto à (me)ontologia
quanto à estética do autor, cuja protagonista é uma arte
constitutivamente temporal. Constatamos que, no seu
pensamento, estas duas áreas se interceptam: uma categoria
proveniente da estética, no sentido baumgartiano, como
disciplina que abrange não só o “conhecimento” do belo, mas
intuições e inclinações, torna-se uma espécie de fundamento
(me)ontológico. Fundamento que, como “encanto inefável”, a
música nos permite, de certo modo, entrever.
Apesar da precariedade da sucessão temporal, a
música nos encanta. Mais correto seria dizer que apesar e em
razão de tal precariedade há encanto. Caso este se perpetuasse,
não mais seria “experiência insubstituível de uma coisa
incomparável” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 105): graças à sua
“caducidade”, o encanto não apenas suscita “uma poética
melancolia” (ibidem, p. 149), mas se destaca e se potencializa
como “acontecimento relâmpago” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p.
152), fruto de uma confluência irrepetível de eventos (occasion,
kairós). Portanto, há encanto, quando o objeto, o sujeito, o
espaço e o tempo são “coloridos” por uma luz (PLOTINO, 1999,
Eneadas VI, 7, 22, 34) que nem sempre está presente, fazendo
O papel do charme
Referências bibliográficas
BAYER, R. Historia de la estética. Trad. J. Reuter. 13ª reimpresión. 161
México: FCE, 2012.
BOUHOURS, D. Les entretiens d’Ariste et d’Eugène. Amsterdam: Jaques
le Jeune, 1671.
BREMOND, H. La poesía pura. Trad. J. Cortázar. Buenos Aires: Argos,
1947.
FARIA, E. (Org.). Dicionário escolar latino-português. 2. ed. Rio de
Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Departamento Nacional de
Educação, Campanha nacional de material de ensino, 1956.
HADOT, P.. Plotin et la simplicité du regard. Paris: Plon, 1963.
JANKÉLÉVITCH, V. De la musique au silence: Fauré et l’inexprimable.
Paris: Plon, 1974.
_____. La mort. Paris: Flammarion, 1966.
_____. La musique et les heures. Paris: Seuil, 1988.
_____. La musique et l’ineffable. Paris: Seuil, 1983.
_____. Le je-ne-sais-quoi et le presque-rien: la manière et l’occasion. v. 1.
Paris: Seuil, 1980a.
_____. Le je-ne-sais-quoi et le presque-rien: la méconnaissance, le
malentendu. v. 2. Paris: Seuil, 1980b.
FRONTEIRAS DA MÚSICA
Introdução
work of art: The musical work. The picture. The architectural work. The
film., e consiste numa tradução de Untersuchungen zur Ontologie der
Kunst: Musikwerk. Bild. Architektur. Film. A versão autônoma foi
publicada com o título The work of music and the problem of its identity
e consiste numa tradução do ensaio publicado no segundo volume de
Studia z estetyki. Ou seja, temos uma tradução inglesa tanto da versão
alemã como da versão polonesa do texto. Cf. INGARDEN, 1989;
JAGANNATHAN et al., 1985.
A concepçãoo de obra musical em Ingarden
Conclusões.
Como se pode observar Ingarden começa o seu ensaio
oferecendo uma série de três teses negativas acerca da obra
musical. Mas, sendo assim, com o quê exatamente elas
contribuem? Em verdade, elas fazem com que fique mais fácil
compreender o modo de ser específico de uma obra musical.
Conforme será explicitado nas partes seguintes do ensaio, uma
obra musical será definida como um objeto puramente
intencional. Ou seja, algo que não é um objeto real, na medida
em que não é uma coisa que esteja situada no tempo e no
espaço, não é ideal, na medida em que ela não é algo imutável e
atemporal (como o são, por exemplo, os objetos matemáticos
ou geométricos, pois uma obra musical foi criada por alguém
em algum determinado momento histórico), e que, tampouco, é
um objeto absoluto (como o é, por exemplo, Deus). Ela é,
finalmente, um objeto intencional puro no sentido específico
que a fenomenologia confere a este termo – ou seja, um objeto
174 subjetivo cuja identidade nos é doada por meio de várias
perspectivas12.
Outro aspecto digno de nota neste ensaio é a
constatação de certa tensão entre posições que poderíamos
classificar, de um lado, como sendo “antiquadas”, e de outro,
como sendo “avançadas”. Elas seriam antiquadas na medida em
que teríamos certas dificuldades em empregá-las em alguns
casos da música dos séculos XX e XXI, bem como de algumas
músicas populares, e até mesmo de certas músicas extra-
européias. Mas elas se mostram avançadas justamente por
buscar precisar conceitualmente o que é uma obra musical e,
por isso mesmo, permite que possamos repensar em que
sentido este conceito poderia ser recusado em favor de outras
propostas como “arte sonora”, “improvisação musical”,
“performance audiovisual” etc. Como se sabe, estas propostas
buscam, justamente, atender a outras formas de arte que
também lidam com “sons”, mas que não poderiam, com justiça,
ser pensadas nos mesmos termos daquilo que é chamado,
Referencias bibliográficas
HUSSERL, E. Meditações cartesianas e Conferências de Paris. Trad. P. M.
S. Alves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
INGARDEN, R. A obra de arte literária. Trad. A. E. Beau, M. da C. Puga e
J. F. Barreto. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1973.
____. Selected papers in Aesthetics. Trad. A. Czerniawski, [et al].
Washington D. C.: The Catholic University of America Press, 1985.
____. The work of music and the problem of its identity. Trad. A.
Czerniawski. London: The MacMillan Press, 1986.
____. Ontology of the work of art: The musical work. The Picture. The
architectural work. The film. Trad. R. Meyer e J. T. Goldwait. Ohio: Ohio 175
University Press, 1989.
JAGANNATHAN, R.; MCCORNICK, P. J.; POŁTAWSKI, A.; SIDOREK, J.
Roman Ingarden Bibliography. (Ed. Peter J. McCornick). In:
INGARDEN, R. Selected papers in Aesthetics. Traduções: A.
Czerniawski, [et al]. Washington D. C.: The Catholic University of
America Press, 1985, p. 181-223.
SCHAEFFER, P. Traité des objets musicaux : Essai interdisciplines. Paris :
Seuil, 1977.
THOMASSON, A. "Roman Ingarden". The Stanford Encyclopedia of
Philosophy (Fall 2012 Edition), E. N. Zalta (ed.), 2012. Disponível em: <
http://plato.stanford.edu/archives/fall2012/entries/ingarden/ >.
Acessado em 20/10/2015.
Música 1941: história e crítica
Referências bibliográficas
ANDRADE, M. de. Ensaio sobre a música brasileira. Obras Completas
de Mário de Andrade, v. 6. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1962.
____. O Banquete. São Paulo: Duas Cidades, 1989.
____. Música, doce música. São Paulo: Martins Fontes, 1962.
ASSIS, A. C. “César Guerra-Peixe: entre músicas e músicos (1944-
1949)”. Revista do Conservatório de Música da Ufpel, Pelotas, n. 3, 2010,
p. 58-79
____. “Compondo a 'cor nacional': conciliações estéticas e culturais na
música dodecafônica de César Guerra-Peixe”. In: Per Musi, Belo
Horizonte, n.16, 2007, p. 33-41.
CONTIER, A. D. Memória, História e Poder: a sacralização do nacional e
do popular (1920-1950). Revista Música, Maio de 1991, São Paulo. p. 5-
36.
CONTIER, A. D. Modernismos e brasilidade: música, utopia e tradição.
In: NOVAES, A. (org.). Tempo e História. São Paulo: Companhia das
Letras/ Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p.259-287.
FRONTEIRAS DA MÚSICA
188
Fontes
Boletim Música Viva. Rio de Janeiro, do no. 1 (maio de 1940) ao
n.10/11 (março/abril de 1941). Publicado mensalmente.
CUNHA, J. I. da. “Agremiações novas, o grupo “Música Viva””. Correio
da Manhã, Rio de Janeiro, 16 de fevereiro de 1941.
____. “Concerto de cravo e flauta na Escola Nacional de Música”. Correio
da Manhã. Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1940.
____. “Música Viva”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1 de maio de
1940.
____. “Uma instituição nova e promissora”. Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 10 de janeiro de 1940.
____. “Recital de música de câmera do grupo “Música Viva””. Correio da
Manhã, Rio de Janeiro, 11 de maio de 1940.
____. “Três composições de H. J. Koellreutter. Correio da Manhã, 10 de
abril de 1941.
____. “Música Viva em homenagem a Villa-Lobos”. Correio da Manhã,
Rio de Janeiro, 1 de set. 1942.
____. “Uma conferência de H. J. Koellreutter”. Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 12 de dezembro de 1943.
Música 1941
Mulato filho de pula [branco] pai dele está onde? Mãe negra é
mãe é pai. Munhungar o corpo é pelejar contra a fome
(CARDOSO, 1982, p. 8).
2. Considerações finais
As preocupações políticas e sociais não prescindem do
estético tanto em Angola como no Brasil. O como fazer, é um
dos pontos de intersecção que estabelecemos entre a escrita de
Boaventura e a canção brasileira, em que forma e conteúdo,
FRONTEIRAS DA MÚSICA
Referências bibliográficas
ABDALA JR., B. “A ‘Lagoa da Vida’ da Angolanidade e os Signos do
Fogo”. In. ABDALA JR., Benjamin. De Vôos e ilhas, literaturas e
comunitarismos”. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, pp. 249-260.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. (9ª Ed.).
São Paulo: Hucitec, 1999.
A literatura e a música
Discografia
HOLLANDA, C. B. [compositor]. “A Volta do Malandro”. In. Ópera do
Malandro. RJ: Polygram, p1985. LP. Faixa 1. Lado 1.
HOLLANDA, C. B. e HIME, F. [compositores]. “Pivete”. In. Paratodos,
Abril coleções. SP: Abril, sob licença, RJ:Sony Music, (1993) / (Coleção
Chico Buarque; v. 7), p2010. 1 CD. Faixa 11.
Montagem da forma: a relação entre crítica estética e
crítica social na música popular brasileira a partir do
pensamento de Walter Benjamin
Conclusão
Trilhando um longo trajeto que foi do barroco alemão
aos portais da pós-modernidade, buscamos neste texto
demonstrar, ainda que de maneira panorâmica , uma possível
abordagem do movimento musical conhecido como Tropicália
a partir de reflexões do filósofo alemão Walter Benjamin. Os
eixos centrais para esta abordagem foram o conceito de
alegoria e algumas questões contidas no ensaio sobre a obra de
arte na reprodutibilidade técnica. Mostramos como o
tropicalismo desconstruiu o significado de alguns símbolos
pertencente ao imaginário nacionalista. Tais símbolos
214 funcionavam como uma representação imediata de um ideário,
totalizações que buscavam capturar uma essência imaterial. A
alegoria, como mostrou Benjamin, desconstrói essa identidade
imediata, denunciando o caráter histórico das atribuições de
sentido. O potencial crítico da interpretação e da representação
alegórica foi explorado pelo Tropicalismo através de um
procedimento de manipulação, análogo àquele apontado por
Bürguer em relação à obra de arte vanguardista. A montagem é
o procedimento padrão neste caso, onde o choque resultante
da justaposição de elementos heterogêneos relativiza o seu
significado original. Neste ponto, algumas questões a respeito
da obra de arte na era da reprodutibilidade técnica vêm à tona.
Os tropicalistas utilizaram-se de recursos técnicos para
potencializar o efeito crítico de suas construções alegóricas. Em
sintonia com as técnicas de manipulação sonora, no intuito de
gerar novas sonoridades e amplificar o estranhamento do
ouvinte. Aqui, outro elemento apontado por Benjamin se soma
à questão do procedimento alegórico, o efeito do choque.
Inicialmente identificado com as montagens cinematográficas,
foi visto pelo filósofo alemão como potencialmente
revolucionário. O apelo tátil da tela de cinema, a apreensão
coletiva da obra e o caráter fragmentado da linguagem teriam o
potencial de atingir as massas de forma diferenciada,
Montagem da forma
Referências bibliográficas
215
BENJAMIN, W. Origem do drama barroco alemão. Trad., apres. e notas
S. P. Rouanet. São Paulo: 1984.
BÜRGER, P. Teoria da Vanguarda. Trad. J. P. Antunes; São Paulo: Cosac
Naify, 2008.
GAGNEBIN, J.-M. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo:
Perspectiva, 1999.
HOLANDA, H. B. de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde:
1960-70. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
MOLINA, S. A composição de música popular cantada: a construção de
sonoridades e a montagem dos álbuns no pós-década de 1960. Tese de
Doutorado. Escola de Comunicação e Artes. Universidade de São Paulo,
2014.
VASCONCELLOS, G. Música Popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro:
Graal, 1997.
XAVIER, I. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense,
1993.
Paralelos entre música, antropologia e história
1
http://www.musicadascachoeiras.com.br/
FRONTEIRAS DA MÚSICA
Referências bibliográficas
TARUSKIN, R. The Oxford History of Western Music: 5 vols. Oxford;
Oxford University Press, 2005.
LIGETI, G. Mes études pour piano (premier livre): polyrythmie et
création. In : Analyse Musicale, Paris, S.F.A.M., Avril 1988, n.11, pp. 44-
45.
Em torno do inconsciente musical: uma leitura
cruzada de Schoenberg e Rancière
IGOR BAGGIO
Referencias bibliográficas
ADORNO, T.. La idea de historia natural. In: Obra completa 1. [s.t].
Madrid: Akal, 2010.
____. Philosophie der neuen Musik. Frankfurt: Suhrkamp, 1978.
RANCIÈRE, J. Aisthesis: escenas del régimen estético del arte. Trad. H.
Pons. Buenos Aires: Manantial, 2013.
____. O inconsciente estético. Trad. M. Costa Netto. São Paulo: Editora
34, 2009.
SCHOENBERG, A.. Tratado de Harmonia. Trad. M. Maluf. São Paulo:
Unesp, 1999.
A estética hanslickiana no cinema
1Esta palavra grega que designa, entre outras coisas, emoção, é referida
em Retórica como método de convencimento destinado a exaltar as
emoções do público. Ainda que o vocábulo pudesse ser substituído
neste texto por afeto (derivado do correspondente latino affectus),
optou-se por manter a palavra original como forma de preservar toda
a abrangência e carga histórica presentes na mesma.
FRONTEIRAS DA MÚSICA
2
Que se relacionam apenas por suas características sonoras, sem
qualquer tipo de intertextualidade.
A estética hanslickiana no cinema
A estética de Hanslick
Se a teoria de Schopenhauer trouxe a primeira
transformação na relação entre música e emoções do século
XIX, a segunda apareceu com a figura de Eduard Hanslick
(1825-1904) (KIVY, 2002), crítico musical defensor da “música
absoluta3” - ou “música pura” - termos utilizados em oposição à
4 Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=VinvK-xEhBg>
(Visualizado em 30 de junho de 2015).
A estética hanslickiana no cinema
5
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=pMidjL1GAw8>.
Acessado em 30/09/2015.
A estética hanslickiana no cinema
Considerações finais
A transposição de uma concepção de autonomia da
música para o contexto do cinema deixa lacunas que este
trabalho busca apontar. A hipótese de uma autonomia da
música no cinema apresenta problemas em uma definição
estrita de autonomia: o cinema não comporta a ideia de um
descompasso absoluto entre o que se vê e o que se ouve. Mais
do que isso, pensar em relações audiovisuais descarta a
possibilidade de independência pura, sem qualquer
relacionamento: o que se vê pode discordar do que se ouve,
FRONTEIRAS DA MÚSICA
Referencias bibliográficas
ALPERSON, P. The Philosophy of Music: formalism and beyond. In
KIVY, P. (Org.) The Blackwell Guide to Aesthetics. Oxford: ed. Blackwell,
2004.
BETHÔNICO, J.; CASTRO, R. S. A autonomia da música no audiovisual. In
Avanca | Cinema 2015. Avanca: Edições Cine–Clube de Avanca, 2015.
CARRASCO, N. Sygkhronos: a formação da poética musical do cinema.
São Paulo: Via Lettera, 2003.
DAHLHAUS, C. La idea de la música absoluta. Barcelona: Idea Books,
1999.
HANSLICK, E. Do Belo Musical. Um contributo para a revisão da
estética da arte dos sons. Trad. A. Morão. Covilhã: Universidade da
Beira Interior, 2011.
248
____. Do Belo Musical: uma contribuição para a revisão da estética
musical. Trad. N. Simone Neto. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.
KIVY, P. Introduction to a Philosophy of Music. Nova York: Oxford
University Press, 2002.
LUCAS, M. I. Emulação de retóricas clássicas no tratado Der
Vollkommene Capellmeister (“o mestre-de-capela perfeito”), de Johann
Mattheson (1739). São Paulo: CMU-ECA-USP, 2010. Disponível em:
<http://www3.eca.usp.br/sites/default/files/webform/projetos/proj
eto%20Monica%20Lucas1.pdf<. Acessado em 11/03/2015.
NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia. Trad., notas e posfácio J.
Guinsburg. Sã o Paulo: Companhia das Letras, 1992.
REVISTA A!. Ed. 2015/03. Editorial: autonomia(s) da arte, 2015.
Disponível em
<https://mundosdaarte.files.wordpress.com/2015/10/a-vol31.pdf>.
Acessado em 11/11/2015.
SCHOPENHAEUR, A. O Mundo como Vontade e como Representação. 2
ed. Trad. J. Barboza. Sã o Paulo: UNESP, 2005.
VIDIGAL, L. Outras relações entre música e território no audiovisual:
um discurso da mídia em Netos do Amaral e Documento Especial. In
Revista Brasileira do Caribe, São Luis, Vol. XI, número 22, 2011, p. 163-
184.
A estética hanslickiana no cinema
Referencias filmográficas
AMA-ME esta noite (Love me tonight). Direção: Rouben Mamoulian.
Música: John Leipold/Richard Rodgers. EUA: Paramount Pictures,
1932. Filme (104 min.), son., p&b., 35mm.
Introdução
ostaria de partir de algumas afirmações do compositor
G britânico Thomas Adès presentes no livro de entrevistas
Thomas Adès: full of noises: conversations with Tom Service,
publicado em 2012, primeiro a apresentar um conjunto de
reflexões de Adès sobre a composição musical e sobre suas
obras.
4
Um exemplo claro disso é o 1° mov. dessa obra. Nela podemos
afirmar que as modificações na textura impedem que os clichês, ou
quase-clichês, apresentados pelos metais se estabilizem configurando
um “ambiente desestruturado”. [Agradeço a João Rizek por preciosas
conversas, nas quais pudemos discutir muitos dos pontos abordados
na primeira versão deste ensaio – de 2012. Uma troca de impressões,
percepções e análises orientadas pela inquietação de novas
possibilidades sensitivas que acreditamos estarem abertas para
algumas das composições de Adès.]
Adés, para onde vão as notas?
5Esta formulação parte das impressões tão distintas que tal uso do
oboé baixo produziu em Richard Taruskin e no maestro Simon Rattle.
Acredito que Taruskin exagera ao sugerir que tal sonoridade artificial
produziria certa descontinuidade temporal que remete aos
procedimentos da produção surrealista (TARUSKIN, 2011, p.9). Se tal
procedimento é capaz de produzir uma atmosfera onírica, as texturas
que ele compõe não estariam próximas às imagens bem comportadas
de Dali em Persistência da Memória, mas, sim, às de O Jovem Homem
Triste num Trem de Duchamp.
FRONTEIRAS DA MÚSICA
277
Eu gostei da ideia de que as barras de compasso estavam
carregando as notas como uma espécie de família através da
peça. E elas fazem, porque sem barras, você provavelmente
teria um caos musical. Mas eu estava pensando sobre a arca,
o navio, na peça como a terra. A terra poderia ser uma
espaçonave, um barco que nos transporta – e várias outras
espécies! – através do caos do espaço em segurança... é a
ideia do navio do mundo.7
7
Citação de Adès no texto de Tom Service para o encarte do CD – Adès
– Tevot – Violin Concert. (EMI Classics).
8 Personagem que na ópera de Adès fica sozinho quando no final todos
9Não me parece sem relevância dizer que esta talvez seja a obra em
que Adès mais se aproxima de um minimalismo de compositores como
Philip Glass.
FRONTEIRAS DA MÚSICA
Referências bibliográficas
ADÈS, T. & SERVICE, T. Thomas Adès: full of noises: conversations with
Tom Service. New York: Farrar, Straus and Giroux Books, 2012.
CARROLL, L. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do
Espelho e o que Alice encontrou por lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
DELEUZE, G. Derrames - Entre el capitalismo y la esquizofrenia. Buenos
284 Aires: Editorial Cactus, 2005.
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia v.
3 e 5. São Paulo: Ed. 34, 1999.
JONES, P. Polaris: Viagem para Orquestra. In: Revista OSESP – Especial
Thomas Adès, 2011, p. 11.
RIZEK, J. Adès: Anthology. In: Música Hodie, Goiânia, V.12 – n.1, 2012,
p.243-245.
ROSS, A. O resto é ruído – escutando o século XX. São Paulo: Companhia
das Letras, 2009.
SAFATLE, V. O esgotamento da forma crítica como valor estético. In:
Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.
285
Música e filosofia em Noites florentinas de Heine1
1
Todas as traduções são de responsabilidade do autor, salvo as
indicadas nas referências bibliográficas.
Música e Filosofia em Noites Florentinas
Heine
Mas vejamos a percepção que teve Heinrich Heine da
doutrina idealista dos filósofos alemães. Como é sabido, trata-
se de um dos poetas mais apreciados pelos compositores
românticos alemães. Ele procura dar forma ao entendimento
crítico do universo conceitual de filósofos e homens de letra da
Alemanha do final do século XVIII e das primeiras décadas do
século XIX. Escreve em 1934 o extenso trabalho “Zur
Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland” (“Para
a História da Religião e da Filosofia na Alemanha”) endereçado
Música e Filosofia em Noites Florentinas
300
Referências bibliográficas
BLACKBURN, S. Dicionário de filosofia. Lisboa: Gradiva, 1997.
BORNHEIM, G. Filosofia do Romantismo. In: GUINSBURG, J. (Org.), O
Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978.
CAMPOS, H. de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo:
Perspectiva, 1981.
ELIAS, N. Mozart: Sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
HEINE, H. Zur Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland,
1835. Disponível em: http://www.digbib.org/Heinrich_Heine_1797/
Zur_Geschichte_der_Religion_und_Philosophie_in_Deutschland_.pdf
____. Florentinische Nächte [1836]. Frankfurt: Insel Taschenbuch, 1986.
____. Noites florentinas. Trad. M. Backes, Porto Alegre: Mercado Aberto,
1998.
Música e sacrifício
302
Puruṣa
O termo puruṣa denota tanto “homem” como “pessoa”.
Denota também o Homem6 cósmico, primordial, universal ou
arquetípico, assim como o Espírito ou Se (Self), consciência
pura.
Das diversas acepções do termo existentes na vasta
literatura filosófica e cosmológica indiana, as duas que mais
interessam aqui pertencem ao pensamento brahmânico dos
Vedas e Vedanta, pela sua dimensão macrocósmica e ligação
com a cosmogonia, antropogonia e sacrifício, e à filosofia não-
outras.
5 A versão para dois pianos, de 2003, foi estreada na XV Bienal da
303
Parafraseio aqui, livremente, a descrição que Zimmer
oferece mais adiante no mesmo texto: a mônada da vida é da
natureza de pura luz (prabhāsa) e ilumina todos os processos
vitais da matéria física e sutil e da consciência individual; o
próprio puruṣa não tem forma nem conteúdo, nem começo nem
fim, não tem divisões ou partes, não tem atividade, não sofre
mudança, não está anexo nem em contato, não se envolve, não
se preocupa, nunca está em servidão; puruṣa permeia tudo e é
eternamente livre (ZIMMER, 1964. p. 286).
O dualismo puruṣa/ prakṛti mostra claramente uma
concepção do ser humano como um todo microcósmico que
envolve um aspecto matérico vivificado por um aspecto
espiritual, mas onde ambos estão separados um do outro. A
mônada da vida, esta centelha não-manifesta, transcendente
porém imanente, só pode ser percebida pelo indivíduo uma vez
que as agitações da mente (prakṛti) forem acalmadas pela
prática do Yoga.
Sacrifício
O motivo do sacrifício como base para a
criação do cosmos não é a única narrativa cosmogônica do Ṛg
Veda. Outras narrativas envolvem diferentes meios criativos
como o desejo, a austeridade (tapas), a procriação e o som, e
também outros princípios criativos tais como o ovo ou
embrião cósmico, as águas, um deus criador, ou um Absoluto
não-manifesto, demonstrando um complexo campo de
especulação deste assunto na cultura védica. (HOLDREGE,
1996, p.35).
Por outro lado, o motivo do sacrifício como base para a
criação do cosmos não ocorre apenas na cultura védica. Os
mitos do gigante Ymir (no Edda nórdico), de Tiamat (na
Mesopotâmia), do gêmeo Faro (Mande, África Ocidental), entre 305
outros, envolvem a morte ou mutilação para que se dê uma
reconstrução de outro nível (LONG, 1963, p. 223).
As narrativas mitológicas são estruturas ou padrões
simbólicos que vão se transformando ao longo do tempo,
gerando narrativas variantes muitas vezes intertextuais, isto é,
que podem fazer referências mútuas, umas com as outras,
mesmo que as culturas que as produziram estejam
inconscientes desta interrelação. Neste sentido, pode-se
colocar lado a lado a figura de Puruṣa com a ideia de asat, não-
existência, já presente no Ṛg Veda como o caos primordial
indiferenciado, a realidade última, Tad Ekam, representada por
mais um símbolo: o dragão Vṛtra. Mas o mito da criação que
narra a vitória do deus Indra sobre Vṛtra traz um aspecto
diferente ao Absoluto não-manifesto. Se Puruṣa simbolizava
este caos antropomorficamente, aqui o dragão, agindo
exatamente como um constrictor (a serpente píton indiana ou
sua parente brasileira, a jibóia, Boa constrictor) simboliza uma
“atividade de cobrir ou de não deixar existir aquilo que deseja
existir” (DE NICOLAS, 1976, p. 99). Esta conotação negativa
segue junto a outras imagens ṛgvédicas também assustadoras
FRONTEIRAS DA MÚSICA
Música
O etnomusicólogo Marius Schneider (1903-1982)
explicou a relação entre a doutrina do sacrifício dos Vedas e
Vedānta com a música numa linguagem muitas vezes poética e
simbólica, para grande aflição dos musicólogos positivistas. O
sacrifício, visto como o continuum perpétuo do processo de vir-
a-ser, o devir temporal, encontra sua analogia ou identidade
com a música:
que ela se baseia, como se verá mais adiante. Mas por que
motivo é preciso que haja simetria, quando já poderia bastar a
sacrificialidade “natural” (conforme foi visto acima) de toda
música como devir temporal?
Evidentemente, o simples devir musical não basta
como símbolo do sacrifício para o compositor em questão. A
questão da simetria é um vasto assunto que, infelizmente, não
cabe neste pequeno texto, mas é possível, a esta altura, sugerir
que o caráter sacro de Sacrifício alinha esta obra com as
estéticas de arquitetura religiosa indiana, tibetana e medieval
europeia, no sentido de que as toma como modelo em sua
expressão dos pensamentos cosmológicos em que surgiram.
Nelas, a simetria está presente como importante elemento
formativo de significação simbólica dos processos da criação, e
assim é, do mesmo modo, na música em questão. A simetria é
“símbolo da unidade através da síntese dos opostos. Ela
exprime a redução do múltiplo ao uno, que é o significado
profundo da ação criadora” (CHEVALIER, 1986, p. 389). A 311
síntese dos opostos caracteriza o sacrifício contínuo e perpétuo
como princípio cosmogônico.
A estrutura sacrificial é uma concepção de forte
componente espacial, uma vez que se descreve com “eventos
que se localizam em posições recíprocas”, mas ela se aplica
tanto à organização do espaço musical (alturas, harmonia,
timbre), como à do tempo (ritmo, morfologia). Eis um simples
exemplo teórico:
ABCDCBA
17A explicação de como isto funciona foge ao escopo deste artigo mas,
em linhas gerais, pode-se dizer que o campo harmônico é um espectro
simétrico formado por tons primários em torno a uma fundamental
central. Cada tom primário, por sua vez, é o centro de seu próprio
“subcampo” simétrico, e seus tons, na estrutura total, adquirem um
lugar secundário ou ornamental nesta hierarquia.
FRONTEIRAS DA MÚSICA
316
319
Macroforma de Sacrifício
Referencias bibliográficas
BAÜMER, B. Puruṣa. In: BAÜMER, B. (Ed.) Kalātattvakośa: a lexicon of
fundamental concepts of the Indian arts. Vol. I Pervasive Terms Vyāpti.
Delhi: Motilal Banarsidass Publishers, 2001.
CHAKRAVARTY, H.N. Bindu. In BAÜMER, B. (Ed.) Kalātattvakośa: a
322 lexicon of fundamental concepts of the Indian arts. Vol. II Concepts of
Space and Time. Delhi: Motilal Banarsidass Publishers, 1992.
CHEVALIER, J., e GHEERBRANT, A. Dizionario dei simboli, miti, sogni,
costumi, gesti, forme, figure, colori, numeri. Milano: RCS ARizzoli Libri
s.p.A., 1986.
COOMARASWAMY, A. K. Induismo e Buddismo. Milano, 1987.
____. The Dance of Śiva. In: The Dance of Śiva: essays on Indian Art and
Culture. New York (NY): Dover, 1985.
DE NICOLÁS, A. T. Meditations through the Rg Veda: four-dimensional
man. York Beach: Nicolas-Hays, 1976.
DURKHEIM, E. The Elementary Forms of Religious Life. Oxford: Oxford
University Press, 2001.
ELLINGSON, T. Explanation of the secred Gcod Da Ma Ru: an
exploration of musical instrument symbolism. In: Asian Music, vol.
10/2, 1979, p. 63-91.
GIRARD, R. O sacrifício. Trad. M. M. Garcia Lamelo. São Paulo: É
Realizações Editora, 2011.
HEESTERMAN, J. C. Vedism and Brahmanism. In: ELIADE, M (Ed.)
Encyclopedia of Religion. New York: Macmillan Reference Books, 1987.
Música e sacrifício
Introdução
4 Grifos nossos.
FRONTEIRAS DA MÚSICA
E Lyotard continua:
7 Grifos nossos.
FRONTEIRAS DA MÚSICA
342 Conclusão
Como síntese, portanto, podemos reunir os termos
apresentação do inapresentável, passibilidade ao
acontecimento e matéria imaterial em um enunciado que
resumiria o sublime musical de Lyotard: trata-se de um
sentimento de presença ocasionado pela obediência (doação,
passibilidade) ao acontecimento sonoro como um gesto, da
obra, no espaço-matéria-som que dá a ouvir o som imaterial
inaudível. Assim, para Lyotard, o caminho de diversas
correntes de compositores contempâneos teria sido o de expor
e emancipar a nudez sonora, análoga a nudez plástica de
pintores como Newman, como estratégia de desmanche, tanto
da narrativa musical que impossibilita o vislumbre do que
ainda não se deu a ouvir – do inaudível – quanto de um eu
musical cristalizado que não pode ouvir o som a não ser através
de seus modos preconcebidos de escuta.
Referências bibliográficas
AMEY, C. L’Estétique Littérale de Lyotard. In : AMEY, C., OLIVE, J.-P.
(Eds.). À partir de Jean-François Lyotard .Paris; L’Harmattan, 2000, p.
51-74
Apresentação do inapresentável
FLÁVIO SILVA
Notações extra-europeias
350
Ex. 11: mão harmônica chinesa, Ex. 12: mão harmônica de Guido
sec. XVIII (AMYOT, p. s/n) d’Arezzo (GOLDRON, p. 38)
351
352
Notações pautadas
353
355
358
Ex. 23: Moteto a três vozes, sec. XIII. As superiores ocupam as duas
colunas; o tenor aparece ao pé da página. (LEMOS, p. 168)
Conclusões, ou ilações
Cartesianismos
Coda
Referências Bibliográficas
ANDRADE, M. de. Música Popular. In: Música, doce música. São Paulo:
Martins, 1963, p. 278-282.
FRONTEIRAS DA MÚSICA
370
Uma estética do gosto: a ópera francesa do século
XVIII em Grandval, Bollioud-Mermet e Blainville
RODRIGO LOPES
Introdução
1
Todas as traduções são nossas, salvo as indicadas nas Referências
Bibliográficas.
Uma estética do gosto
380 Tal foi a intenção dos grandes mestres neste gênero. Tais
foram os meios que eles empregaram para sobressair. Lully,
que nos propôs ousadamente o modelo da música teatral,
nos fez experimentar em suas obras os encantos sedutores
da harmonia. O belo volteio de seus cantos, a nobreza, a força
de sua expressão, sua maneira simples e natural de modular,
o caráter de suas sinfonias, a melodia de seus recitativos, as
graças ingênuas de suas arietas, a bela ordenação de seus
coros, o atraem como jamais o título de Orfeu de nosso século
(BOLLIOUD-MERMET, 1746, p. 8-9).
Considerações finais
Observamos nos autores franceses dos séculos XVII e
XVIII que o dispositivo imitativo como prerrogativa para a
composição da ópera estava se modificando; demonstraram
383
pelos seus escritos como as composições e execução da ópera
se aproximavam ou de distanciavam dessas regras como
critério. Quando uma ópera era avaliada segundo as regras, ela
o era segundo a avaliação que se fazia ao texto literário e a
representação teatral, sendo muitas vezes a música avaliada
como sendo um desses dois aspectos, tomada por eles mesmos.
E assim o era porque a prerrogativa da imitação era reproduzir
em objetos não naturais cópias a partir de modelos retirados
da natureza, produzindo assim a ilusão de ser o próprio modelo
ali existente, mas aperfeiçoado, melhorado e controlado pelo
engenho da arte. A natureza era o modelo a ser imitado, ela era
sinônimo da razão, e a imitação deveria então realçar os
aspectos racionais para satisfazer essa condição, e o modo
como a razão era demonstrada na ópera o era pelo seu texto
literário, através da linguagem verbal.
O elemento permanente em fins do século XVII e no
decorrer do século XVIII como encontrados nos textos, e em
transformação, era o elemento imitativo. A teoria imitativa se
manteve como concepção para as artes até o fim da monarquia,
apesar de seu declínio. A partir dos autores mencionados,
percebeu-se em que medida a sociedade em transformação se
manteve ou se distanciou das regras das teorias imitativas, que
FRONTEIRAS DA MÚSICA
Referências Bibliografia
BATTEUX, C. As belas artes reduzidas a um mesmo princípio. Trad. M. A.
Werle. São Paulo: Humanitas/Imprensa Oficial, 2009.
BLAINVILLE, C. H. de. L'Esprit de l'art musical. In: L'Esprit de l'art
musical, ou réflexions sur la musique, et ses différentes parties. Genebra:
1754. Disponível em:
http://www.chmtl.indiana.edu/tfm/18th/BLAESP_TEXT.html. Acesso
em 26/03/2013.
BOLLIOUD-MERMET, L. De la corruption du goust dans la musique
françoise. In: Music and Theatre in France in the 17th and 18th
Centuries. An AMS Reprint Series. Lyon: Delaroche, 1746. Disponível
Uma estética do gosto
em:http://www.chmtl.indiana.edu/tfm/18th/BOLCOR_TEXT.html.
Acesso em 26/03/2013.
BURY, E., LOPEZ, D., PICCIOLA, L., ZUBER, R. Littérature française du
XVIIe siècle. Paris: Presses Universitaires de France, 1992.
CASSIRER, E. A filosofia do Iluminismo. Campinas: Editora da Unicamp,
1994.
DUBOS, A. Réflexions critiques sur la poésie et sur la peinture. Paris:
École Nationale Supériure des Beaux-Arts, 1993.
FABIANO, A. La “Querelles des Bouffons” dans la vie culturelle française
du XVIII° siècle. Paris: CNRS Éditions, 2005.
FUBINI, E. Estética da música. Lisboa: Edições 70, 1993.
____. La estética musical desde a Antigüedad hasta el siglo XX. Madri:
Alianza Editorial, 2007.
GRANDVAL, N. R. de. Essai sur le bon goust en musique. Paris: Pierre
Prautl, 1732. Disponível em:
http://www.chmtl.indiana.edu/tfm/18th/GRANESS_TEXT.html
Acesso em 26/03/2013. 385
NEUBAUER, J. La emancipación de la música: el alejamiento de la
mímesis em la estética del siglo XVIII. Madri: Visor Dis., S.A., 1992.
RIBEIRO, R. J. A glória. In: NOVAES, A. (Org.). Os sentidos da paixão. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
ROVIGHI, S. V. História da filosofia moderna: da revolução científica a
Hegel. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
O Músico Prático no Compendium Musicae de
Descartes
Introdução
[...] toda arte, assim como toda disciplina, tem por natureza
um sistema teórico mais digno que a perícia artesanal
exercida pelas mãos e obra do artesão. Muito maior, em
efeito, e mais elevado é o saber pelo qual se põe em prática
aquele que sabe, pois, a habilidade física de um artesão é
erxercida como escrava; a razão, ao contrário, exerce
comanda, por assim dizer, como uma soberana. [...] Portanto,
FRONTEIRAS DA MÚSICA
Referencias bibliográficas
BOECIO. Sobre el fundamento de la música: Cinco libros. Trad. J. Luque,
F. Fuentes, C. López, P. R. Diáz e M. Madrid. Madrid: Gredos, 2009.
BUZON, F. État des sources : établissement du texte. In: DESCARTES,
Abrégé de musique: Compendium Musicae. Paris: Puf, 1987. p. 19-49
FRONTEIRAS DA MÚSICA
MARCUS HELD
403
408
Ou seja, a contribuição de Geminiani para o gosto
musical inglês é evidente, não só por esse país ter a música de
Corelli como referência, mas também pelo fato de que o
compositor formou dezenas de músicos - instrumentistas e
compositores. Comentários de sua época revelam, também, a
opinião de algumas pessoas em relação ao seu conhecimento
musical, como por exemplo em Serre: “é certo que o Sr.
Geminiani ganhou acertadamente sua reputação para com os
apreciadores da música por ser um dos artistas que, depois de
Corelli, teve o maior conhecimento dos diferentes caminhos da
harmonia, tendo observado suas várias regras muito
corretamente.” (SERRE, 1763, apud CARERI, 1993, p. 47).
Naturalmente, a relação de Geminiani com o gosto da
época é torna-se ainda mais forte quando o olhar se volta para
seus tratados, Rules for playing in a True Taste (1748), A
Treatise of good Taste in the Art of Musick (1749), The Art of
Playing on the Violin (1751), Guida Armonica (1752), The Art of
Accompaniament (1754) e The Art of Playing the Guitar of Cittra
(1760). Suas duas primeiras publicações textuais revelam, já no
título, o mote principal de sua produção. Seu principal objetivo
nesses trabalhos é o de mostrar as melhores soluções de
A biografia de Francesco Germiniani
(Sexto) do Staccato
Expressa descanso, tomar fôlego ou trocar uma palavra e, por
essa razão, cantores devem tomar cuidado para respirar em
um lugar onde o sentido não seja interrompido. 411
Considerações Finais
Estudar – e escrever – a biografia de Francesco
Geminiani não se trata apenas de narrar a história de um
homem, mas sim de uma parte importante da música ocidental.
A vida do italiano, discípulo do maior compositor de seu tempo,
FRONTEIRAS DA MÚSICA
Referências Bibliográficas
BURNEY, C. A General History of Music [London, 1776-1779]. New
York: Harcourt, Brace and Company, 1935.
CARERI, E. Francesco Geminiani (1687-1762). New York: Oxford
University Press, 1993.
CHARTIEU, R. O Mundo como Representação. Estudos Avançados 11
(5), 1991, p. 173 – 191.
DOLMETSCH, A. The Interpretation of the Music of the 17th and 18th
Centuries [London, 1915]. London e New York: Dover Publications,
2005.
FLOOD, W. G. Geminiani in England and in Ireland. Samelbände der
Internationalen Musikgeselchaft, 12. (out. – dez. 1910). pp. 108-112.
GEMINIANI, F. Rules for Playing in a True Taste. London, 1748.
FRONTEIRAS DA MÚSICA
416
A Metáfora da Coisa: inflexões heideggerianas na
canção de Gilberto Gil
Referências bibliográficas
BEAINI, T. C. Heidegger: arte como cultivo do inaparente. São Paulo:
USP/Nova Stella Editorial, 1986.
BIGAULT, A. Gilberto Gil: La Passion Sereine. [DVD] Jurubatuba-SP:
Editores Associados LTDA, 2005.
CHEDIAK, A. (Org.). Songbook Gilberto Gil. [PARTITURA]. Rio de
Janeiro: Lumiar Ed., 1992.
GIL, G. Um banda um [LP]. WEA discos, 1982.
HEIDEGGER, M. A Caminho da Linguagem. Trad. M. de S. C. Schuback.
Petrópolis-RJ: Vozes; Bragança Paulista-SP: Ed. Universitária São
Francisco, 2ª Edição, 2004.
____. Conferências e Escritos Filosóficos. Trad. E. Stein. São Paulo: Ed.
Nova Cultural, 1986.
____. Ensaios e Conferências. Trad. Trad. M. de S. C. Schuback, G. Fogel e
E. C. Leão. Petrópolis: Vozes, 2001.
MORELLI, R. Indústria Fonográfica: um estudo antropológico. 427
Campinas: Ed. UNICAMP, 2009.
NUNES, B. Heidegger & Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2004.
PIEDADE, A. Jazz, música brasileira e fricção de musicalidades. In:
Opus: Revista Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Música. Ano 11,
No 11. Campinas, ANPPOM, 2004.
RIZEK, R. Aula de Estética – 04/08/1987 . Disponível em
https://www.facebook.com/Ricardo-Rizek-325228884181558/.
Acesso em 27/10/2015.
SOARES, D. No novo Lp de Gil, suas múltiplas faces. Folha de São Paulo,
13/08/1982.
SOUZA, Eudoro. Mitologia. Lisboa: Guimarães Ed., 1984.
TINÉ, P. J. S. A estruturação poética da fraseologia em alguns exemplos
de música popular do Brasil. In: Anais do IX Simcam: Simpósio de
Cognição e Artes Musicais. Belém-PA: Escola de Música da UFPA,
Associação Brasileira de Cognição Musical, 2013.
TURNER, S. The Beatles: A história por trás de todas as canções. Trad.
Alyne Azuma. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
A (re)composição do material musical em Musik für
Renaissance-Instrumente de Mauricio Kagel1
1
Todas as traduções são do autor, excetuando-se aquelas indicadas nas
Referências Bibliográficas.
A (re)composição do material musical
O renascimento do Renascimento
Todos os instrumentos utilizados por Kagel estão
representados em Syntagma Musicum (1619), de Michael
Praetorius. O projeto de Musik teria sido iniciado em 1950 por
Kagel quando estudava musicologia na Argentina. No entanto, a 431
peça só pode ser concretizada a partir do “renascimento do
Renascimento”, ocorrido na Europa a partir da segunda metade
do século XX, quando a prática da interpretação historicamente
orientada se consolida como perspectiva interpretativa dos
repertórios anteriores ao período romântico. Com o
surgimento de grupos e intérpretes especializados em música
antiga, como o Concentus Musicus, Frans Brüggen, Anner
Bylsma e René Clemencic, o movimento adquire
reconhecimento artístico e mais espaço na indústria cultural da
música.
Na segunda metade do século XX, em The
Interpretation of Early Music (1963), Robert Donington
delineará o conceito de ‘autenticidade’ na interpretação da
música do passado, orientando e influenciando a perspectiva
dos intérpretes dessa música. Segundo Donington:
Kagel e as vanguardas
439
Fig. 3: Preparação do Regal (KAGEL, 1970, p. VI)
3 “No tomar los instrumentos como algo dado sino operar en dicho
campo de modo experimental” (El sonido y sus consecuencias – Diálogo
con Matthias Kassel In: KAGEL, 2011, p. 223)
FRONTEIRAS DA MÚSICA
Referências bibliográficas
ADORNO, T. W. Filosofia da nova música. Trad. M. França. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
COWELL, H. New Musical Resources. New York: Cambridge University
442 Press, 1996.
DONINGTON, R. The Interpretation of Early Music. London: Faber and
Faber, 1974.
HEILE, B. The music of Mauricio Kagel. Burlington: Ashgate, 2006.
KAGEL, M. Musik für Renaissance-Instrumente. Partitura. Londres:
Universal Edition, 1970.
____. Palimpsestos. Ed. Carla Imbrogno. Trad. C. Imbrono, F. Martin e P.
Gianera. Buenos Aires: Caja Negra, 2011.
____. Encarte do cd “1898 & Musik für Renaissance-Instrumente”. 1998.
OLIVE, J.-P. Material e música informal. Duas categorias determinantes
na autonomia do sujeito musical em Adorno. In: Artefilosofia n.7, Ouro
Preto, 2009. p. 86-95.
SELFRIDGE-FIELD, E. Venetian Instrumental Music from Gabrieli to
Vivaldi. New York: Dover Publications, 1994.
TARUSKIN, R. Text and act. New York: Oxford, 1995.
ZASLAW, N. Reflections on 50 Years of Early Music. In: Early Music v.
29 n.1. Oxford University Press, 2001. p. 5-12.
John Cage e Música Antiga: indeterminação nas
práticas composicionais e interpretativas
RENATO CARDOSO
John Cage
Música Antiga
É importante contextualizar como foi a consolidação
do movimento de Música Antiga, nos anos 1960, ainda sob a
alcunha de Movimento Autêntico. Segundo Bruce Haynes
(2007), no começo dos anos dessa década havia uma
preocupação com a performance estilística do repertório
antigo, mas os instrumentos de época não eram uma
prioridade, mas já no fim desta década a predominância das
réplicas já estava normatizada. Conforme aponta Haynes:
Práticas Interpretativas
É interessante notar como tanto a palestra de John
Cage como o Movimento de Música Antiga centraram parte de
suas considerações em torno da figura do compositor J. S. Bach.
Essa preocupação não é exclusiva desses dois casos, sendo que
na tradição clássico-romântica se tratou de fazer o mesmo, com
o agrupamento “Bach e Beethoven”, ao qual Carl Dahlhaus
atribui um fundamento histórico-filosófico (1999, p.116).
Para John Cage, a Arte da Fuga e indiretamente a
Oferenda Musical são os grandes exemplos históricos da
indeterminação no repertório ocidental. Ele usa esse conceito
para obras de épocas muitos anteriores à música de vanguarda
450 do séc. XX. E é até com base neste pressuposto histórico que ele
justifica um uso mais arrojado de processos randômicos na
concepção musical contemporânea (TERRA, 2000, p.32).
É possível adicionar inúmeros outros exemplos de
indeterminação do repertório barroco, em J. S. Bach assim
como em outras tradições instrumentais. As chamadas obras
para alaúde de Bach apresentam uma problemática quanto sua
instrumentação, por vezes indicadas para mais de um
instrumento (alaúde ou cravo na BWV998), ou sendo obras
transcritas a partir do violino (BWV1006a e Fuga BWV1000)
ou violoncelo (BWV995 a partir da BWV1011). Mais a fundo no
repertório alaudístico francês, encontramos peças
indeterminadas quanto à forma, em que as partes eram
apresentadas e sua disposição ou repetição ficava a cargo do
intérprete. Os préludes non mesuré de S. L. Weiss,
contemporâneo de Bach, são exemplos de peças
indeterminadas quanto à duração e até mesmo quanto ao
método, o procedimento nota a nota (Suíte n.1, em Fá maior).
Independentemente do componente histórico possível
de se atribuir ao conceito de indeterminação, ou da ênfase
documental da interpretação historicamente orientada, é
John Cage e a música antiga
Referencias bibliográficas
ADORNO, T. Bach defended against his devotees. In: Prisms.
Massachussets: MIT Press, 1995.
CAGE, J. Silence. Middletown: Wesleyan University Press, 1961.
DAHLHAUS, C. La idea de la música absoluta. Barcelona: Idea Books,
1999.
DREYFUS, L. Early Music Defended against Its Devotees: A Theory of
Historical Performance in the Twentieth Century. In: The Musical
Quaterly, vol.69, n.3 (Summer, 1983), p.297-322. Disponível em:
<http://www.jstor.org/stable/742175>. Acessado em 12 jul. 2013.
HAYNES, B.. The end of early music. Oxford: Oxford University Press,
2007.
NATTIEZ, J.-J. (Org.) The Boulez-Cage correspondence. Nova York:
Cambridge University Press, 1993.
ORNOY, E.. Between theory and practice: comparative study of early
music performances. In: Early Music, Oxford Journals, v.34, n.2, 2006,
452 p.233-248.
____. In Search of ideologies and ruling conventions among Early Music
performers. In: Min-Ad: Israel Studies in Musicology Online, vol.6, 2007-
2008. Disponível em: <http://www.biu.ac.il/hu/mu/min-
ad/index.htm>. Acesso em 10 jan. 2014.
PRITCHETT, J. The Music of John Cage. Cambridge: Cambridge
University Press, 1996.
TARUSKIN, R. Text & Act: Essay on Music and Performance. New York:
Oxford University Press, 1995.
TERRA, V. Acaso e aleatório na música; um estudo da indeterminação
nas poéticas de Cage e Boulez. São Paulo: Educ/Fapesp, 2000.
Sobre os Autores
Flavio Silva estudou piano com Milton Lemos, Hans Graff, Alda
Caminha e Homero de Magalhães. Bolsista do governo francês
de 1968 a 1971, permaneceu em Paris até 1974 estudando
musicologia e etnomusicologia no Institut de Musicologie, no
Musée des Arts et Traditions Populaires e na Faculté de
FRONTEIRAS DA MÚSICA