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LIA TOMÁS (Org.

SÉRIE PESQUISA EM MÚSICA NO BRASIL – VOLUME 6

FRONTEIRAS DA MÚSICA:
FILOSOFIA, ESTÉTICA, HISTÓRIA & POLÍTICA

1ª edição

São Paulo
ANPPOM
2016
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
EM MÚSICA

Diretoria 2015-2017
Sonia Regina Albano de Lima (UNESP), Presidente
Martha Tupinambá de Ulhoa (UNIRIO), 1ª Secretária
Fernando Lacerda Simões Duarte, 2º Secretário
Marcos Fernandes Pupo Nogueira (UNESP), Tesoureiro

Conselho Fiscal:
José Augusto Mannis (UNICAMP), Titular
Angela Elisabeth Luhning (UFBA), Titular
Sonia Ray (UFG), Titular
Lucyanne de Melo Afonso (UFAM), Suplente
João Gustavo Kienen (UFAM), Suplente
José Soares de Deus (UFU), Suplente

Editora de Publicações da ANPPOM


Marcos Holler (UDESC)
FRONTEIRAS DA MÚSICA:
FILOSOFIA, ESTÉTICA, HISTÓRIA & POLÍTICA

SÉRIE PESQUISA EM MÚSICA NO BRASIL


VOLUME 6

ANPPOM
© 2016 os autores
FRONTEIRAS DA MÚSICA:
FILOSOFIA, ESTÉTICA, HISTÓRIA & POLÍTICA

CAPA:
XiloWeb (Verlaine Freitas)
Reproduzido sob permissão

FORMATAÇÃO E MONTAGEM
João Paulo Costa do Nascimento

Catalogação da Publicação
Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e
Documentação do Instituto de Artes da UNESP

F935 Fronteiras da música : filosofia, estética, história e política /


organizadora, Lia Tomás. São Paulo : ANPPOM, 2016.
472 p. - (Série Pesquisa em Música no Brasil; v. 6)

ISBN: 978-85-63046-05-5

1. Política. 2. Estética musical. 3. Filosofia da música.


4. História da música. I. Título.

CDD 780.1

ANPPOM
Associação Nacional de Pesquisa e
Pós-Graduação em Música
www.anppom.com

Printed in Brazil
2016
SUMÁRIO

Apresentação 05

Fronteiras entre música e filosofia

Expressividade e articulação formal na música 09


de Schönberg, segundo Theodor Adorno
Verlaine Freitas

Músicas sem fronteiras: música e antropologia - 22


Luciano Berio e Claude Lévi-Strauss; música e filosofia -
Wolfgang Rihm e Friedrich Nietzsche
Ivanka Stoianova

Alexander Scriabin: convergências e divergências 54


Marcos Mesquita

Prolegômena: Gadamer e a música como modelo 84


para as ciências interpretativas
Raimundo Rajobac

Corpo e sociabilidade na experiência musical: por 96


uma estética da heteronomia
Rainer Patriota

Etnicidade e antropofagia cultural: dois temas 112


recorrentes nos estudos da música brasileira
no exterior
Silvano Fernandes Baia

Fronteiras entre música, estética, história e política

Música e multissensorialidade à luz de três 130


abordagens filosóficas: Dewey, Merleau-Ponty
e Serres
Alexandre Siqueira de Freitas
O papel do charme na estética musical de 143
Vladimir Jankélévitch
Clovis Salgado Gontijo Oliveira

A concepção de obra musical em Ingarden 163


Glaucio Adriano Zangheri

Música 1941: crítica e história 176


Danilo Pinheiro de Ávila

A literatura e a música como formas de resistência 190


Estefânia Francis Lopes

Montagem da forma: a relação entre crítica 207


estética e crítica social na música popular
brasileira a partir do pensamento de Walter Benjamin
Guilherme de Azevedo Granato

Paralelismos entre música, antropologia e história 216


José Calixto Kahil Cohon

Em torno do inconsciente musical: a noção de 224


Formgefühl em Harmonielehre de Schoenberg como
operador de crítica à normatividade tonal
Igor Baggio

A estética hanslickiana no cinema 233


Jalver Bethônico / Rafael Sodré de Castro

Adès, para onde vão as notas? 250


Lucas Paolo Sanches Vilalta

Música e filosofia em Noites Florentinas de Heine 286


Marcos Branda Lacerda

Música e sacrifício 301


Luigi Antonio Irlandini

Apresentação do inapresentável, ocorrência e 324


presença da matéria no sublime musical de Lyotard
João Paulo Costa do Nascimento
SUMÁRIO

Música e cartesianismo 344


Flávio Silva

Uma estética do gosto: a ópera francesa do 371


século XVIII em Grandval, Bollioud-Mermet
e Blainville
Rodrigo Lopes

O músico prático no Compendium Musicae 386


de Descartes
Tiago de Lima Castro

A biografia de Francesco Geminiani (1687-1762) 397


e sua relação com a música inglesa no século XVIII
Marcus Held

A Metáfora da Coisa: inflexões heideggerianas 417


na canção de Gilberto Gil
Paulo Tiné

A (re)composição do material musical em 428


Musik für Renaissance-Instrumente
de Mauricio Kagel
Rafael Ramalhoso Alves

John Cage e Música Antiga: indeterminação 443


nas práticas composicionais e interpretativas
Renato de Carvalho Cardoso

Sobre os autores 453


Apresentação

Filosofia da Música é um campo de pesquisas que vem se


A organizando em torno da reflexão filosófica a respeito de
conceitos centrais que estruturam a Estética Musical. Área em
ascensão nos campos das pesquisas em filosofia e música no
Brasil, a filosofia da música relaciona-se ainda com questões
mais amplas vinculadas à música, tais como o pensamento e a
natureza, a subjetividade, a organização do tempo, a função
histórica e política na sociedade, entre outros.
Visto que os pesquisadores desse campo têm se
reunido e publicado com regularidade suas pesquisas, sejam
essas no formato de dissertações, teses, artigos ou coletâneas
de congressos, os capítulos que compõem o livro “Fronteiras da
Música: Filosofia, Estética, História & Política” são a
reformulação dos textos apresentados no IV Encontro Nacional
de Pesquisadores em Filosofia da Música, evento realizado no
Instituto de Artes da UNESP em outubro de 2015, e que contou
com o apoio do Programa de Pós-Graduação e Departamento
de Música da instituição e também da FAPESP.
"Fronteiras da Música”, livro cuja amplitude se adequa
a perspectivas interdisciplinares, intersecciona a própria
música com outros campos do conhecimento, transpassando os
limites existentes e criando espaços intermediários e diálogos
que naturalmente se instalam entre os saberes: literatura,
crítica musical, política, antropologia, teoria, análise musical,
história, sociologia, para citar alguns. Entretanto, não apenas
as fronteiras para o diálogo foram estendidas mas também os
autores contemplados: Gadamer, Scriabin, Wolfgang Rihm,
Jankélévitch, Serres, Ingarden, Adès, Heine, Grandval, Blainville,
Geminiani, Maurício Kagel.....compositores, filósofos e
pensadores raramente prestigiados em publicações nacionais.
Assim, parece ser oportuno também recordar uma
citação do musicólogo Carl Dahlhaus, o qual nos adverte que
toda a reflexão que se atrela à música, sejam essas de áreas
FRONTEIRAS DA MÚSICA

afins ou mais distantes, não podem ser consideradas estranhas


à própria música, visto serem pertinentes a ela como objeto
histórico ou mesmo perceptivo: afinal, o que se percebe ou o
que pensa sobre a música depende, em parte, do que tivermos
lido a seu respeito.
A todos, uma boa leitura!

Lia Tomás

6
Fronteiras entre
música e filosofia
Expressividade e articulação formal na música de
Schönberg, segundo Theodor Adorno

VERLAINE FREITAS

osso objetivo é fazer uma leitura de alguns dos ensaios


N iniciais da obra Filosofia da nova música, de Theodor
Adorno, agrupando-os sob as temáticas da expressividade —
que se liga às de sujeito, inconsciente e linguagem —, e da
articulação formal — referente aos vínculos entre particular e
universal, entre formas musicais e eventos sonoros singulares.
Em linhas gerais, trata-se do modo como a música de
Schönberg se apresenta como uma proposta radical de
expressão objetiva do sujeito, mediante uma unificação
ascensional, em que a forma estética adquire sua legitimidade
compositiva atravessando os eventos musicais tomados como
fragmentos, como materiais descontínuos, não mais
entrelaçados previamente pelo fundamento unificante da
tonalidade.

I
Toda a arte moderna se inicia com uma crítica não
apenas ao conceito de obra como totalidade, mas também à
própria realidade extensiva, material e concreta. O novo —
fundamento de tudo o que se pretende “moderno” — se institui
como um movimento de abstração, de negação da aparência de
significado pleno, coincidindo com o abandono da figuração nas
artes plásticas e de recusa da distensão simétrica do som no
tempo. Nesse sentido, as peças extremamente curtas de
Webern podem ser lidas como uma crítica a toda concepção de
mundo como inteireza, como algo dotado de sentido,
evidenciando de forma negativa a própria negatividade da vida
em seu núcleo individual, a saber: o sofrimento. A concisão e
densidade próprias dessa música de preenchimento mínimo do
tempo pretendem fazer justiça à impossibilidade de uma
narrativa que ultrapasse a concretude vivencial do indivíduo;
FRONTEIRAS DA MÚSICA

em outras palavras: ela quer ser anti-ideológica, quer


contrariar um discurso que se firma como capaz de aprender o
sentido da vida, como uma visão macro de mundo. A música
nova almeja uma “expressão negativa”, ou seja, aquela que
surge em virtude de recusas, esvaziamentos, mutilações,
incompletudes, dissonâncias etc.

Uma das críticas que pretendem desautorizar a força


da música de Schönberg consiste em identificá-la como ligada
ao movimento da música expressiva, dramática, tal como
podemos ver desde os primórdios do romantismo,
principalmente em Beethoven. Para realizar sua defesa, não é
necessário negar alguma continuidade entre a expressividade
romântica de Wagner, tanto na música inicial, quanto na
madura de Schönberg, sendo mais importante demonstrar o
movimento de ruptura. A expressividade romântica era
marcada pelo aspecto ficcional, no sentido de que toda
emotividade dependia do posicionamento aparente de uma
10 totalidade, que transpunha para o âmbito contínuo da
representação musical as emoções a serem figuradas. A
diferença fundamental para com a música de Schönberg
consiste em que os elementos miméticos, os choques, os
traumas, as contradições e as rupturas da unidade egóica e de
consciência são trazidos à tona de forma não-suavisada pela
ficção de uma aparência mediada pela homogeneidade global
da forma. Os elementos mimético-expressivos deixam de ser
domesticados por uma lógica de aceitabilidade através de sua
encenação como em um palco musical, passando a eclodir como
manchas, nódoas, cesuras, fendas, coágulos musicais, de modo
que, se ainda se pode falar de uma unidade (o que se mostrará
como verdadeiro), ela é alcançada pela radical mediação desses
elementos mimético-expressivos brutos, refratários a uma
narrativa musical prévia, fazendo com que ela deixe de
configurar um todo. O senso de totalidade antecipadora do
sentido de cada particular na música é tão negado quanto a
prioridade da consciência perante os impulsos inconscientes. A
concretude do sofrimento é trazida à tona como
particularidade conflituosa, na condição de índice do quanto a
autonomia da aparência estética é em grande parte ficção,
inverdade, mentira, ideologia.
Expressividade e articulação formal

A arte tradicional-romântica teve sua vida e sua força


ao celebrar a conciliação entre o universal e o particular. Cada
obra bem-sucedida deveria ser a confirmação de princípios
universais na medida em que estes se cristalizavam em cada
particularidade. O elemento singular era vivido como anúncio
de uma universalidade ainda a ser decifrada, ao mesmo tempo
em que as formas prévias abrem um horizonte de
determinação não completamente especificado. O estético
configurou-se, assim, como este campo de indeterminação, ou
melhor: de semi-determinação, em que a prioridade das formas
abria espaço para a concretude dos particulares, e a eloquência
destes confirmava a vitalidade das formas, sem se deixar
amordaçar por elas. Isso significou a constituição de uma
linguagem musical com todos os seus movimentos semânticos
e sintáticos, em que a ornamentação, os acentos, os diversos
graus de ênfase, de relaxamento e de tensão constituem um
plano que projeta uma aparência reconciliadora do único e
irrepetível, por um lado, e do universalmente já provido de
significado, por outro. A nova música de Schönberg tem muito 11
de seu sentido no esforço de negar essa aparência de
reconciliação, tensionando ao máximo a disparidade entre
esses dois polos, criticando o ornamento, as convenções e seu
caráter de linguagem comunicativa.
Na medida em que os princípios formais garantiam
uma unidade total para os eventos musicais particulares, esses
adquiriam uma liberdade comparável ao jogo, podendo mover-
se com certa liberdade no interior de esquemas tonais de
progressão harmônica, de repetição, de integração dentro de
períodos e frases, de antecipação de resoluções etc. Isso se dá
pelo fato de que cada particular já possuía uma inteligibilidade
razoavelmente garantida, mesmo que não de forma plena (pois
se isso ocorresse significaria um enrijecimento excessivo, como
na cultura de massa). Em franco contraste com isso, a música
de Schönberg estabeleceu um campo em que nada pode mais
ser diferente, nada pode jogar dentro de espaços de
inteligibilidade previamente demarcados, pois cada elemento
particular aparece como irracionalmente único. Qualquer
significação deverá ser-lhe atribuída a posteriori, mediada pela
relação sintática constituída de forma singular com todos os
outros eventos musicais correlatos.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

É precisamente em virtude dessa irracionalidade, afim


ao movimento cru e não-mediado do inconsciente, que a
materialidade musical da nova música soa como primitiva,
primária, bruta e, assim, regressiva e infantil. Ela pode ser
facilmente assimilada como tosca e bárbara, negando a
sofisticação e progresso cultural refinado. Isso possui sua
contraparte no cubismo e no dadaísmo, em que o princípio de
montagem é exercido sobre materiais primitivos, tal como as
máscaras africanas e dejetos da vida cotidiana. Nesse momento,
o progresso da consciência estética se move como a percepção
de Schönberg de que a música não deve ser bela, mas sim
verdadeira, anunciando uma verdade obscurecida pela
consciência falsificada de conciliação do indivíduo com a
cultura.

II
A arte é conhecimento como expressão, como
12 linguagem do sofrimento, que quer tornar evidente, na
singularidade contraditória do seu não-sentido, a eloquência
possível do que subjaz a toda consciência de mundo. De um
ponto de vista psicanalítico, este fundo do qual emerge o
sofrimento é, propriamente, o dos conflitos sexuais
inconscientes, tornados visíveis na música de Schönberg, como
na expressividade da angústia, da premonição, na ruptura
desesperada em relação ao objeto de amor. O que se pode
chamar de “forma” é polarizado entre choques involuntários e
irrupções brutas, por um lado, e a paralisia diante de uma
angústia inominável. Em ambos os casos, está em jogo a ênfase
no que é mimeticamente intraduzível, passível apenas de uma
documentação por assim dizer sismográfica. À maneira de um
mosaico que não admite uma distância segura para sua
inteligibilidade, essa profusão mimética de conteúdos
inconscientes é avessa à continuidade e ao princípio do
desenvolvimento, tal como na forma sonata. Nesse momento,
torna-se evidente a imbricação entre o conteúdo expressivo e o
invólucro da forma, tornados substancialmente indistintos na
construção radicalmente ascensional da unidade da obra. Essa
indistinção é que fornece a base para a muito frequente crítica
de formalismo para a nova música, uma vez que ela, desprovida
de cânones formais preestabelecidos, deverá se tornar
Expressividade e articulação formal

integralmente forma pelo modo com que, paradoxalmente,


transforma-se em um documento protocolar dos conteúdos
miméticos brutos. Por outro lado, não se trata de mero
formalismo auto-satisfeito já em virtude do princípio geral de
que toda a dimensão formal da música (e das artes em geral) é
um conteúdo social sedimentado, especialmente dos rituais
religiosos, simbólicos e da dança. Os princípios formais
artísticos codificam vivências recalcadas e relegadas à
insignificância pelo progresso material, as quais adquirem uma
eloquência ulterior pelo modo com que são rememoradas.

Além de formalista, a música nova é acusada de


individualista e hermética, por recusar uma comunicação
direta com a sociedade. É como se cada indivíduo fosse instado
a transitar com a obra por si mesmo, em quase total isolamento
perante todos os outros. Essa crítica é falha, porém, ao não
considerar que esse individualismo possui origem social,
tornada evidente na medida em que sujeito e sociedade se
comunicam nos pontos de falha da integração de ambos os 13
polos, ou seja, na angústia diante da frustração erótica e
econômica. Isso implica dizer que a música nova, em contraste
com a avaliação corrente de ser um puro jogo esteticista, possui
um significativo impulso de crítica social.
Dentre os mecanismos de dominação na sociedade
burguesa, um consiste na produção da aparência de um sistema
caótico, impossível de ser alterado, ao mesmo tempo em que
tudo aparece como resultado da ação não-coordenada de cada
indivíduo. Trata-se do contexto de ofuscação
[Verblendungszusammenhang], que impede a cada indivíduo ter
uma visão suficientemente clara dos mecanismos de
manutenção da ordem e de produção do aspecto de
contingência radical. Em termos afetivos, o que se tem é a
angústia e o medo como elementos que paralisam as ações
reflexivamente orientadas. É óbvio que o sistema social não é
caótico em si mesmo, sendo regido por forças sociais,
econômicas e políticas especificáveis em grande medida, mas
ele se dá a conhecer como se situando para além de toda
vontade consciente de seus membros.
Contra esse estado de coisas, porém, a arte é impotente
para lutar dentro de seu próprio âmbito estético. A arte radical
FRONTEIRAS DA MÚSICA

de vanguarda, extremamente individualizada, concentrando-se


no esforço de instaurar e seguir sua própria lei de movimento,
somente tem a si mesma como objeto, girando de forma
tautológica ao redor de seu próprio núcleo monadológico. Este
auto-centramento não significa, no entanto, uma mera
alienação, pois, diante de um mundo radicalmente
racionalizado segundo princípios de heteronomia e de
subjugação do outro a relações fim-meio, somente a insistência
em seu ser-próprio possibilita à arte exercer a crítica do
sistema em sua totalidade. Esse individualismo da arte, ao
mesmo tempo em que nega a aparência de sentido tradicional,
institui uma de direito próprio, transformando-se em ilusão na
medida em que a raiz do movimento expressionista, a
individualidade, também é mera aparência, apenas aponta do
iceberg de forças inconscientes e sociais.

III
14 O expressionismo tem como seu conteúdo mais
próprio algo que não existe em si, absoluto. O sujeito, o núcleo
do que deverá ser “expresso”, tanto mais é universal, quanto
mais recusa camadas superficiais de universalidade
socialmente determinada. Essa dialética se reproduz na própria
forma da música expressionista; na medida em que ela se fecha
em seu ser-assim-e-não-de-outro-modo, dá testemunho do que
ultrapassa seu fechamento estético. Essa ultrapassagem,
entretanto, jamais é possível de se realizar para além do
próprio movimento estético da obra. Nesse sentido, para que
esta seja mais do que ela mesma, precisa renunciar a uma
comunicação direta com a realidade, fechando-se
obstinadamente em seu ser-posto. A música expressionista
consiste, em grande medida, nessa tentativa um tanto
desesperada e contraditória de extrair uma significação
universal de sua extrema concentração no que é meramente
pontual, microscópico.

Cada elemento expressivo é tomado por Adorno como


um componente “protocolar”, algo programaticamente inserido
na obra como testemunho direto de uma expressão crua, não
mediada. A música expressionista de Schönberg toma o
princípio da expressão romântica de forma literal, concreta,
Expressividade e articulação formal

tornando-se, assim, “objetiva” ou “concreta” (sachlich). Em


virtude disso, ela não é expressiva no sentido tradicional do
termo, como veiculação de sentimentos, emoções, experiências,
memórias etc. Trata-se de uma expressividade material, uma
subjetividade pontualmente concreta e pouco reconhecível
segundo os critérios de uma subjetividade pessoal. A dimensão
expressiva da nova música corrói, ao mesmo tempo, tanto o
sujeito quanto tudo o que convencionalmente deveria exprimi-
lo. Isso significa, de forma paradoxal, tanto negar uma
aparência de totalidade capaz de figurar o sujeito, quanto a
necessidade de aglutinar todos esses elementos pontualmente
concretos em uma nova espécie de totalidade formal, extraída
dessa concretude dos elementos mimético-expressivos.
Há que se levar em conta, porém, que nem o indivíduo
nem a sociedade são lugares-tenente da verdade, mas
tampouco significam a pura mentira. Se a obra tradicional, em
sua totalidade, anunciava uma reconciliação possível, isso não
significava a simples falsidade perante o indivíduo, pois 15
testemunhava algo que ultrapassa a contingência e o
fechamento monadológico do indivíduo. Por outro lado, o
indivíduo também representa uma crítica a essa totalidade
estética e social por meio de sua singularidade não-
inteiramente dissolvível no plano universal. Somente a obra
expressionista é capaz de ultrapassar as vicissitudes de
verdade e falsidade no sujeito e na objetividade social. Para
conseguir isso, ela precisa tanto negar a ideia de totalidade
quanto estabelecer uma concepção de obra a partir da
coagulação de seus elementos concretos pontuais. Ela não
renunciou, e nem poderia, a uma dimensão orgânica, de
linguagem e também subjetiva, o que a impulsiona a instituir
uma unidade minimamente necessária.

IV
O sistema tonal dispõe de diversos mecanismos de
estruturação da música que deixam muito pouca liberdade ao
singular se fazer como tal no contexto da totalidade da obra.
Inúmeras variáveis condicionam o modo com que cada evento
musical deverá ser equacionado. O tempo todo o músico é
levado a tentar produzir uma obra singular em meio a uma
FRONTEIRAS DA MÚSICA

multiplicidade de elementos universalmente preestabelecidos.


A música atonal libertou o compositor dessas amarras,
possibilitando o uso de acordes e eventos sonoros cuja
legitimidade é extraída da suficiente racionalidade no instante
em que é empregado. Proporcionais a essa liberdade do que é
específico na ocorrência na totalidade da obra estão as
possibilidades técnicas ao lidar com o material sonoro, pois o
que antes era delineado como legítimo dentro de um horizonte
de princípios gerais é relegado agora à singularidade do som
quando da necessidade de articulá-lo tecnicamente. A
emancipação experimentada pelo compositor é proporcional à
exigência de assumir que a musicalidade não está inscrita
previamente na materialidade tonal do som, devendo ser
alcançada pela lógica de articulação entre o particular que não
é já-validado e uma universalidade que não apenas não é
preestabelecida, quanto também não será confirmada de forma
transparente no modo com que cada elemento particular será
articulado e “domado” tecnicamente.
16
As diversas dimensões da música tonal ocidental —
ritmo, harmonia, melodia, contraponto, cromatismo etc. — não
se desenvolveram segundo lógicas próprias derivadas da
correlação entre elas. Em vez de cada uma delas surgir segundo
uma necessidade inerente à outra, de modo a se
complementarem em uma totalidade que alcance, por si, um
sentido necessário, uma derivou da outra como se fosse algo
“natural”, como a melodia a partir da harmonia, ou situou-se de
forma descompassada em relação a outras, como é o caso do
contraponto da música romântica, em que cada uma das vozes
muitas vezes foi concebida de forma homofônica, e não como
voz principal e secundária. Em seu conjunto, isso significou
inconsistências no conjunto da produção musical, uma espécie
de cegueira para com o que sempre foi demandado por cada
um desses valores composicionais. Foi necessário, assim,
conceber princípios de articulação, ao mesmo tempo
específicos para cada dimensão e de integração na totalidade
compositiva.
Essa é a origem do dodecafonismo, que provém da
consciência altamente desenvolvida no romantismo da
necessidade de tornar a música um evento global, fundado no
Expressividade e articulação formal

esforço de síntese, de aglutinação. A ópera de Wagner, pautada


em sua concepção de obra de arte total, demonstra
precisamente isso. No dodecafonismo de Schönberg, todos os
valores composicionais são por assim dizer destrinçados, lidos
em sua lógica imanente, para então poderem ser mesclados e
fundidos em um movimento de integração que se recusa a
perceber uma relação de naturalidade entre quaisquer dos
valores musicais. A contraposição fundamental da música do
ocidente, a fuga polifônica e o princípio da sonata homofônica,
é equacionada em uma lógica geral dispersa que não mais se
contenta com “feudos” legais, que poderiam ditar as leis de um
outro, ou garantirem-se de forma independente. A função do
contraponto da música nova significa essa tentativa de
orquestração multilateral das diversas dimensões
composicionais, ao mesmo tempo em que abandona a relação
hierárquica entre o cantus firmus e as vozes subalternas.

V 17
A música de Schönberg funda-se na ideia de um
“desenvolvimento total” (como se aplicasse à música toda o
princípio intermediário da sonata), que, associada a uma
organização plena do material musical, faz convergir o ímpeto
para uma objetividade global da obra e uma subjetividade
formante, ao redor da qual tudo gira. A nova objetividade,
representada por Stravinsky e Hindemith, apresenta-se como
reacionária, porque quer frear o progresso do senso de
composição integral da obra, ao mesmo tempo em que quer
retirar do sujeito o centro de importância na composição da
obra. Para essa corrente musical, o sujeito é algo contingente,
arbitrário, devendo ser substituído por formas canônicas pré-
burguesas. Ao mesmo tempo em que exibem a consciência da
necessidade de ultrapassar as vicissitudes da subjetividade,
oferecem uma resposta que retroage perante o que poderia
superá-las.

Para se compreender a noção de desenvolvimento total


na música nova progressista, é preciso considerar que as
formas convencionais da música não foram apenas princípios
externos, impostos à organização da música a partir de seu
princípio formativo mais íntimo e interno. Ao mesmo tempo em
FRONTEIRAS DA MÚSICA

que predeterminavam muito do decurso dos eventos musicais,


permitiam que estes obtivessem uma legibilidade própria.
Além disso, tais formas sofreram mutações ao longo do tempo,
não apenas umas em relação às outras, mas também
internamente: tanto pelo modo com que se impuseram sobre
cada elemento particular, quanto também pela importância e
papel que obtiveram como elemento constitutivo da totalidade
da obra. Nesse sentido, o componente formal do
desenvolvimento na sonata é paradigmático. Em Beethoven, ele
representa aquele momento em que a orquestração prévia da
obra é produzida mais uma vez sob o influxo e sob os auspícios
da subjetividade, tornando-se o momento mais relevante da
obra. O elemento constitutivo para esta libertação subjetiva
perante o enclausuramento do esquema geral da sonata é o da
variação, retomada da música barroca, como em Bach, e
colocada em um novo registro da relação entre identidade e
diferença que preenche o decurso temporal.

18 A variação antes de Beethoven teria como sentido


primordial a manutenção da igualdade ao longo da repetição.
Como constituinte do desenvolvimento na sonata, ela passou a
acentuar o diferente perante o igual, realizando concretamente
a dialética entre o idêntico e o não-idêntico. A fidelidade ao
tema inicial é realizada precisamente pelo vigor da variação,
fazendo com que o igual e o diferente adquiram sua
legibilidade própria pelo preenchimento temporal, escapando
de uma identidade mascarada por seus desvios. É como se o
tema fosse sempre negado e mantido, atravessando as
sucessivas diferenças em cada instante. Em virtude dessa
dialética, o desenvolvimento apresenta uma significativa
diferença em seu vínculo com a totalidade da obra e o tempo:
este é, ao mesmo tempo, assumido em sua distensão, e
contraído na perspectiva sincrônica daquela.
Quanto mais os resíduos das convenções e das formas
musicais preestabelecidas perdem a força, mais é necessário
haver a intervenção subjetiva de cunho propriamente
expressivo. Uma das consequências disso é que o próprio
decurso temporal se torna ameaçador, pois deixa de ser
previamente domesticado por princípios de sua estruturação e,
portanto, de sua antecipação. O sujeito passa a experimentar a
irrupção de seus elementos miméticos inconscientes na obra,
Expressividade e articulação formal

exigindo a disseminação absoluta do princípio do


desenvolvimento, da variação que desafia a identidade, fazendo
convergir os polos subjetivo e objetivo, como se toda a
inteligibilidade da obra devesse ser produzida novamente a
cada vez que um particular se apresenta. Claro está que uma
outra convergência eclode de forma sumamente dialética, a
saber: da suprema necessidade de articulação e da experiência
da liberdade intrinsecamente associada ao caráter obrigatório
de universalização do que resulta dos múltiplos vínculos entre
cada evento sonoro. Quanto mais liberdade subjetiva, quanto
menos trilhamento já estabelecido à atividade composicional,
mais se exige ceder à exigência objetiva dos materiais musicais.
Em termos da estrutura da peça, a consequência é que nada
mais será supérfluo ou apenas uma variação de um tema
principal, pois tudo é, ao mesmo tempo, tema e variação, como
também deixará de ser tanto um quanto a outra.
Schönberg faz uma apropriação por assim dizer
materialista do princípio subjetivo da música romântica, 19
tomando o sujeito em sua face mais historicamente real, a
saber, tanto emancipado quanto isolado de todos os outros. Na
medida em que o sujeito se exprime na música, esta é tomada
em sua dimensão de linguagem, que se equilibra entre a
arbitrariedade subjetiva e a objetividade dos cânones formais
de composição. Em virtude disso, quanto maior a interferência
subjetiva na música em sua totalidade, mais a estabilidade
objetiva da gramática musical é colocada em xeque. Isso
ocorreu de forma enfática na música de Wagner, mediante seu
procedimento do Leitmotiv e de seu cromatismo. Schönberg
radicaliza a atomização por assim dizer anti-linguística da
música operada por Wagner, fazendo com que toda a superfície
musical se torne uma linguagem de direito próprio, para além
de uma gramática preestabelecida.
A linguagem musical romântica vivenciou seu
tensionamento exemplar no vínculo entre os planos harmônico
e polifônico. A estruturação dada pelos princípios da
progressão dos acordes foi colocada em xeque pela condução
múltipla das vozes, desde o Beethoven tardio, passando por
Brahms até chegar a Wagner, na medida em que cada nota
musical somente se legitimava em virtude dessa linearidade
das vozes, e não apenas por sua colocação no esquema
FRONTEIRAS DA MÚSICA

harmônico preestabelecido. O tecido polifônico configurou-se,


assim, como o testemunho da música romântica de que a
armadura da progressão harmônica tornou-se fraca e por
demais abstrata, distante das exigências internas de articulação
dos eventos sonoros.
Na música de Schönberg, porém, a polifonia não é um
elemento a ser conciliado com a harmonia, pois toda a música
se torna polifônica, entretecendo a harmonia a partir da
pluralidade de vozes ínsita em cada acorde dissonante. Em vez
da harmonia preestabelecida entre os sons no acorde
consonante, agora são exploradas as diversas camadas
heterogêneas dos sons no acorde dissonante, de modo que cada
nota levanta uma pretensão de identidade, exigindo princípios
próprios de sua articulação, ou seja, uma racionalidade de
síntese para essa divergência. Nesse sentido, a harmonia
consonante é menos racional, em virtude do fato de já
constituir uma unidade preestabelecida que não precisa refletir
20 internamente os princípios de sua lógica imanente. Articulando
os elementos protocolares da expressão não-mediada do
sujeito em uma racionalidade sui generis, a música submete
cada evento sonoro a uma subjetividade que interfere em toda
a extensão musical.
Embora ainda haja momentos de tensão e resolução,
deixou de haver na música nova de Schönberg diferenças de
importância construtiva e constitutiva para o sentido de
unidade da obra, no sentido de que todos os eventos musicais
situam-se a igual distância de um ponto médio, deixando de
haver um tema a ser desenvolvido, pois, como dissemos, tudo é
ao mesmo tempo tema e variação, bem como não é mais nem
um nem o outro, pois toda a música se distende
horizontalmente sobre o tempo. Essa horizontalidade significa,
também, que a música se tornou uma congregação de
elementos contraditórios, de choques, de materiais brutos,
fazendo com que o tempo seja domado não apenas em virtude
de seu preenchimento material-sonoro, mas também pela
própria suspensão do decurso temporal. Nesse momento, de
forma paradoxal, a música nova de vanguarda se aproxima do
jazz e da música seria regressiva, que não conhece
propriamente o desafio do preenchimento temporal
desenvolvido musicalmente. Essa convergência, entretanto,
Expressividade e articulação formal

resulta da extrema divergência, uma vez que a suspensão


temporal da música nova advém da radicalização do princípio
de desenvolvimento, ao passo que na música leve e na séria
regressiva ela se dá pela anulação deste mesmo princípio.

Referências Bibliográficas

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Regression des Hörens”. In: Gesammelte Schriften, vol., Frankfurt am
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21

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130, No. 1754, 1989, p. 198-201.
Músicas sem fronteiras: música e antropologia:
Luciano Berio e Claude Lévi-Strauss; Música e
filosofia: Wolfgang Rihm e Friedrich Nietzsche1

Ivanka Stoianova

evolução da música do século XX coloca em evidência o


A esfacelamento dos limites entre as linguagens estéticas
estabelecidas. Ao menos desde Varèse e mais ainda depois dos
debates das músicas concretas e eletrônica, a distinção som –
ruído não é mais pertinente. As músicas múltiplas utilizam
várias mídias que no decorrer dos anos 50 impuseram a
extensão da própria noção do material musical. A estética da
obra aberta que se afirmou no decorrer dos anos 60 contribuiu
consideravelmente ao esfacelamento das fronteiras entre as
linguagens estéticas que fazem par – antes inimagináveis – com
a abertura das novas tecnologias, mas também aos diferentes
domínios das ciências humanas: não somente com a literatura,
por tradição, mas ainda com outros domínios como a filosofia,
a história, a política, etc.

Tomando o exemplo de dois importantes compositores


– o italiano Luciano Berio e o alemão Wolfgang Rihm – esta
conferência se propõe a evidenciar a interação da escritura
musical sinfônica com a etnologia estruturalista, no primeiro
caso, e do gênero ópera-fantasia com o pensamento filosófico
de Nietzsche, no segundo caso. Sinfonia (1968) para 8 vozes e
orquestra de Berio utiliza fragmentos do texto da obra capital
de Lévi-Strauss, O cru e o Cozido (1964), e transporta o
pensamento estruturalista no estudo dos mitos em um domínio
renovado do gênero na sinfonia. A música-teatro da fantasia
operística Dionysos (2009) de W. Rihm é a transcrição de
espaços interiores em contato com o pensamento filosófico de
Nietzsche e alguns elementos de sua biografia. As interações

1 Tradução do francês por Lia Tomás. Os comentários da tradutora e


referências em português, quando necessários, serão indicados pela
sigla NT.
Música sem fronteiras

diferentes domínios das ciências humanas e sua integração


com a composição musical engajam o ouvinte-espectador
atentivo em um trabalho colaborativo de produção de sentido
em benefício de uma construção de si.

1. Música e antropologia: Luciano Berio e Claude Lévi-


Strauss

No que se refere a sua Sinfonia (1968)2 por 8 vozes e


orquestra com textos de L. Berio, S. Beckett e C. Lévi-Strauss e
no espírito vanguardista da época, Berio afirmava: “Sinfonia
não tem nenhuma relação os movimentos da sinfonia clássica,
apesar da semelhança. O título deve ser entendido segundo seu
sentido etimológico designando as vozes e os instrumentos (8
vozes e orquestra) tocando juntos. Mesmo que seus caracteres
expressivos sejam muito diferentes, as seções são unificadas
pela participação de um desenho comum que se encontra
explicitado no último movimento, o quinto” (STOIANOVA, 23
1980, pp. 108-118). A Sinfonia em 5 movimentos é centrada em
torno do terceiro movimento Scherzo que se tornou o exemplo
clássico da colagem das citações sobre citação integral, a saber,
o terceiro movimento Scherzo da Segunda Sinfonia
Ressurreição de G. Mahler. A estrutura simétrica deste ciclo
sinfônico em 5 movimentos colocou em evidência, pela
presença de dois movimentos líricos, lentos em torno do
movimento mais longo, o Scherzo central – o segundo O King e
o quarto – e dois movimentos rápidos – o primeiro e o quinto –
com referências aos mitos, retirados da obra de Lévi-Strauss, O
Cru e o Cozido (1964)3. Essa simetria concêntrica reúne a

2 Universal Edition, Wien N°13783. Cf BERIO, L. Sinfonia / Ekphrasis.


CD. Göteborgs Symfoniker. Dir. Peter Eötvös. Berlin: Deutsche
Grammophon, 2005. Criação dos 4 primeiros movimentos em
10/10/1968 por Swingle Singers e a New York Philharmonic sob a
direção de L. Berio em New York. Criação integral dos 5 movimentos
em 18/10/1969 a Donaueschingen por Swingle Singers e l’Orchestre
de Südwestfunk sob a direção de Ernest Bour.
3 Esse é o primeiro volume de Mythologiques que também compreende

compreendendo também vol. 2, Du miel aux cendres (1967), vol. 3,


L’origine des manières de table (1968) e vol. 4, L’Homme nu (1971),
todos editados pela Editora Plon. NT : A série Mitológicas foi traduzida
FRONTEIRAS DA MÚSICA

preocupação dos sinfonistas da tradição ocidental na pesquisa


da unidade fechada e o equilíbrio perfeito da obra-objeto.

Fiel à sua natureza de artista, sempre curiosa e aberta


a todas as pesquisas da vanguarda de seu tempo, Berio
escreveu sua Sinfonia como um tipo de homenagem ao
antropólogo estruturalista Lévi-Strauss, cujas obras
Antropologia Estrutural I e sobretudo O Cru e o Cozido,
publicadas respectivamente em 1958 e 1964, o impressionam
fortemente pela aproximação do mito e da música por conta de
sua profunda “afinidade”4 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 23). “A
música é uma forma de mito, não é? – dizia Berio, ainda sob a
impressão da teoria de Lévi-Strauss em uma entrevista de
1978. - É um instrumento muito eficaz para designar o mito.
Wagner mostrou isso a todo mundo”5 (STOIANOVA, 1985, p.
135).

No O Cru e o Cozido, Lévi-Strauss tenta mostrar que as


24 qualidades puramente sensíveis e empíricas, como o cru e o
cozido, deixam-se articular em um lugar abstrato de relações,
comumente binários, e que formam um sistema. Ele propõe a
pesquisa “de uma via intermediária entre o exercício do
pensamento lógico e a percepção estética” que “devia
naturalmente inspirar-se no exemplo da música, que sempre a
praticou”6 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 22). Segundo o autor, o
caráter comum entre o mito e a obra musical é definido pelo
fato de que elas são “linguagens que transcendem, cada uma a
seu modo, o plano da linguagem articulada, embora requeiram,
como esta, ao contrário da pintura, uma dimensão temporal
para se manifestarem. Mas essa relação com o tempo é de

em português pelas Editoras Brasiliense (anos 90) e Cosac Naify (anos


2000), e compreende quatro tomos, a saber: O cru e o cozido (I), Do
mel às cinzas (II), A origem das maneiras à mesa (III) e O Homem nu
(IV). Quando da citação de O Cru e o Cozido nesse texto, usaremos a
edição da Cosac Naify (2011), trad. de Beatriz Perrone-Moisés, e serão
incluídas as páginas citadas dessa edição.
4 NT: 2011, p. 34.
5 Entrevista concedida a I. Stoianova em 31/01/1978 na cidade de

Roma.
6 NT : 2011, p. 33.
Música sem fronteiras

natureza muito particular: tudo se passa como se a música e a


mitologia só precisassem do tempo para infligir-lhe um
desmentido. Ambas são, na verdade, máquinas de suprimir o
tempo”7 (LÉVI-STRAUSS, 1964, pp. 23-24). Efetivamente, a
musicologia teórica da análise musical sempre distinguiu dois
aspectos opostos da obra musical: o aspecto temporal,
processual e o aspecto arquitetônico estático; a forma musical
enquanto processo temporal e a forma musical enquanto
arquitetônico, esquema ou local de relações fora do tempo.

É sabido que Lévi-Strauss era um melômano muito


preparado, admirador fervoroso da música da grande tradição
ocidental. Ele dedicou sua obra O Cru e o Cozido “à música” e
destaca um excerto da partitura homônima de E. Chabrier para
voz feminina com texto de E. Rostand8 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p.
5). Suas referências musicais são, sobretudo, Wagner9,
Debussy, Chabrier e mesmo Stravinsky10. Lévi-Strauss mostra
uma simpatia particular à ópera, mas sobretudo às óperas que
se ocupam de incestos: a tetralogia O Anel dos Nibelungos e 25
Tristão e Isolda de Wagner, Pelléas et Melisande de Debussy.
Uma boa parte dos títulos dos capítulos e dos subcapítulos no O
Cru e o Cozido são inspirados por, ou emprestados da
terminologia musical, sem que haja uma verdadeira relação
com os procedimentos formais precisos na música: Abertura,
Tema e variações, Sonata das boas maneiras, Sinfonia breve,

7 NT: 2011, p. 35.


8 NT : 2011, p. 15 : “A la Musique” : “Mère du souvenir et nourrice du
rêve. C’est toi qu’il nous plait aujourd’hui, d’invoquer sous ce toit!”.
9 Admirador exagerado em relação à Wagner, Lévi-Strauss fala

do “Deus Richard Wagner” e afirma : “Pois, se devemos reconhecer em


Wagner o pai irrecusável da análise estrutural dos mitos(...) é
altamente revelador que essa análise tenha sido inicialmente feita em
música. Consequentemente, quando sugeríamos que a análise dos
mitos era comparável à de uma grande partitura (1958, p. 234) apenas
tirávamos a consequência lógica da descoberta wagneriana de que a
estrutura dos mitos se revela por meio de uma partitura.” Cf. (1964, p.
23). NT : 2011, 34-35].
10 Na terceira subdivisão “Bodas” da quinta parte intitulada “Sinfonia

Rústica em três movimentos", Lévi-Strauss destaca um fragmento da


partitura de Les Noces de Stravinsky. - Cf. (1964, p. 23). NT: 2011, p.
363.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Fuga dos cinco sentidos, Ária em rondó, Invenção a três vozes,


Duplo cânon invertido, Tocata e fuga, etc11. Mas o antropólogo
não é efetivamente um teórico da música e seus títulos são, em
seu contexto, bem mais fórmulas metafóricas que têm pouco a
ver com a significação precisa desses termos na música e na
musicologia. Elas são o suporte de uma competência musical
praticamente ausente e que ninguém ousou ver e comentar à
época.

Nessa obra, Lévi-Strauss insiste no fato que, como a


obra musical, o mito opera a partir de um duplo contínuo: um
externo, cuja matéria é constituída de ocorrências históricas a
partir das quais cada sociedade extrai um número restrito de
acontecimentos pertinentes, e outro, interno: está sediado no
tempo psicológico do ouvinte. Ou a partir de dois pontos: “um é
psicológico, portanto, natural. O outro é cultural”12 (LÉVI-
STRAUSS, 1964, p. 24). Para Lévi-Strauss, a música possui um
status muito particular: ela é “um tipo de natureza cultural, de
26 cultura naturalizada. A música é o próprio lugar da mediação:
mediação entre a alma e o corpo, entre a extensão e o tempo, o
sensível e o inteligível, a metáfora e seu significado” (BACKÈS-
CLÉMENT, 1974, p. 56). No quarto volume de Mitológicas, O
Homem Nu, Lévi-Strauss propõe a hipótese de que a música e o
mito desempenharam papéis complementares na história da
humanidade e que o papel preponderante do mito dos tempos
antigos foi assumido, desde o Renascimento, pela música. –
Uma hipótese que poderíamos, talvez, defender ainda hoje.

A admiração extática de Lévi-Strauss pelo compositor-


criador e pela música parecem muito exageradas e às vezes
prestes a sorrir, mas ela se inscreve perfeitamente na linhagem
da tradição filosófica do século XX. Lembremo-nos dos
trabalhos de Ernst Bloch e sua teoria da música-utopia que pré-

11 Segundo o testemunho de Jean-Jacques Nattiez, isso explica a


dolorosa frustração de Lévi-Strauss de ser incapaz de compor música
(1973, pp. 3-9). Certos subtítulos de Lévi-Strauss assemelham-se aos
títulos de Erik Satie.
12 NT: 2011, p. 35.
Música sem fronteiras

programa a sociedade do futuro13. Berio é, certamente, muito


sensível ao interesse do grande antropólogo pela música e
verdadeiramente interpelado pela aproximação possível do
pensamento estruturalista na música – essa, proveniente da
Segunda Escola de Viena – e a análise estrutural dos mitos. A
dupla articulação no discurso mítico e, sobretudo, as oposições
binárias reversíveis, tão caras para Lévi-Strauss e a semiologia
dos anos 60, em seguida as variações-transcrições no discurso
mítico e a leitura-interpretação pelo ouvinte são as grandes
ideias do antropólogo que chamam a atenção de Berio em
relação com suas próprias pesquisas composicionais.

As oposições binárias ocupam um lugar importante no


pensamento de Lévi-Strauss. Segundo o autor, do ponto de
vista formal, os mitos indígenas do Brasil que ele estudou são
muito diferentes na aparência, mas se reportam todos a uma
vida breve, transmitem a mesma mensagem e só se distinguem
pelo código empregado. Os códigos são do mesmo tipo: eles
repousam sobre oposições entre qualidades sensíveis. O 27
homem possui cinco sentidos e os códigos são cinco. Um desses
códigos é prioritário, é o código gustativo14 (LÉVI-STRAUSS,
1964, p. 172). De onde o cru e o cozido. Mais ainda, por
extensão, a água e o fogo, a água criativa celeste e a água
destrutiva terrestre, o fogo destrutivo celeste e o fogo criador
terrestre, o animal e o humano, a madeira dura e a madeira
apodrecida, o novo e o corrompido, o apelo ruidoso e o apelo
doce, vida e morte, homem e mulher, alto e baixo, moderado e
imoderado, etc. O melômano Lévi-Strauss sabe, certamente,
que o contraste, desde o classicismo, é o princípio formador
preponderante na música. Lembremo-nos, de outro lado, que
Berio escreveu várias obras para piano que reenviam aos
elementos principais, a terra, o fogo, o ar e a água: Erdenklavier
(1969), Feuerklavier (1989), Luftklavier (1985) e Wasserklavier
(1965). A oposição água – fogo, diretamente explícita na obra
de Lévi-Strauss, será muito importante no Primeiro movimento
da Sinfonia.

13 Lembremos das obras de Ernst Bloch, O Espírito da Utopia e O


Princípio Esperança, que foram muito lidas nos anos 60 e que
verdadeiramente influenciaram as pesquisas em música dessa época.
14 NT: 2011, p. 197.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Berio é particularmente tocado pelos procedimentos


variacionais das transcrições musicais que Lévi-Strauss coloca
em evidência no funcionamento do discurso mítico com as
diferentes versões do mesmo mito, com suas transformações,
simetrias, inversões, permutações, homologias e isomorfismos
que reenviam aos procedimentos conhecidos da escrita musical
através dos tempos. Os mitos dos índios Bororo do Brasil
central indicados por Lévi-Strauss como “mito de referência”
M1, “são apenas uma transformação mais ou menos indicadas
de outros mitos, sejam da mesma sociedade, sejam de
sociedades próximas ou longínquas”15 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p.
10). Ele explica “a origem do vento e da chuva”, enquanto que o
segundo mito Bororo M2 fala da “origem da água, dos
ornamentos e dos ritos fúnebres”16 (LÉVI-STRAUSS, 1964, pp.
58, 56). “A água da chuva transforma-se portanto, no segundo
mito, também em oposição binária da água de proveniência
celeste e da água de proveniência terrestre, em água celeste
maléfica e água terrestre benéfica”17 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p.
28 58).

Nos diferentes mitos estudados por Lévi-Strauss, mas


também em música, os elementos comuns têm diferentes
modos de realização nos diferentes contextos. Eles podem ser
invertidos, completados, dotados de significações opostas. O
etnólogo destaca a semelhança das diversas versões, das
variações, ou de transcrições no discurso mítico. Os mitos se
parecem, às vezes, “ao ponto de se confundirem”18 (LÉVI-
STRAUSS, 1964, p. 84). A ideia das transformações no discurso
mítico, segundo Lévi-Strauss, é certamente muito atrativa para
o mestre das transcrições Berio: entre os compositores de sua
geração, foi ele quem mais transcreveu os outros, mas também
a si mesmo.

O etnólogo afirma ainda que, em todos os casos, trata-


se do mesmo mito, e que as divergências aparentes entre as
versões devem ser tratadas como transformações que se

15 NT: 2011, p. 20.


16 NT: 2011, p. 73, 71.
17 NT: 2011, p. 73.
18 NT: 2011., pp. 101-102.
Música sem fronteiras

operam no seio de um grupo19 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 146).


O mito bororo de referência seria, ele mesmo, um mito de
origem: nome do fogo, mas também da chuva e do vento, que
são opostos ao fogo pois o apaga20 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p.
147). Porém “todos os mitos possuem seu lugar em um
conjunto coerente”21 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 143). Analisando
a Sinfonia, poderíamos dizer que em Berio, trata-se do mesmo
mito em versões diferentes: o herói de vida curta cujas ideias
sobrevivem a ele. Berio pensará também sua Sinfonia enquanto
conjunto coerente de seus mitos, esparsos em vários pontos da
memória coletiva musical e literária, mas também na
antropologia estrutural de Lévi-Strauss.

A ideia de transcrição de um mesmo mito centralizador


define o projeto global da Sinfonia centrada em torno da vida
do herói, cuja vida de peripécias é bem curta. Como também
aquela de Martin Luther King, os heróis do segundo movimento
da Sinfonia. Lévi-Strauss observa que mitos muito diferentes
em aparência se dirigem todos à origem da vida breve e 29
transmitem a mesma mensagem. E esse grupo de mitos
relativos à vida breve projeta aqui dois aspectos, um
prospectivo, e outro retrospectivo: dito de outra forma, no
sentido de evitar a morte ou de ressuscitar22 (LÉVI-STRAUSS,
1964, p. 170-171). A palavra é dita e “o fluxo da consciência”
(Berio) conduz naturalmente o compositor à Resurrection-
Symphony de Mahler e as peripécias do herói através de toda a
história da música no Scherzo da Sinfonia.

Lévi-Strauss considera o discurso mítico com sua


pluralidade de níveis enquanto empreitada coletiva de
significação. “As transformações míticas requerem dimensões
múltiplas, que não podem ser todas exploradas ao mesmo
tempo. Qualquer que seja a perspectiva em que nos

19 NT: 2011, p. 166.


20 NT: 2011, p. 167.
21 NT: 2011, p. 163.
22 NT: 2011, p. 194-195. “Retardar a morte”, “ressuscitar” são as

palavras de Lévi-Strauss retomadas no quinto movimento da Sinfonia


(p. 113) onde o compositor retorna à problemática da imortalidade e
da ressurreição.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

coloquemos, algumas transformações passam para o segundo


plano, ou se perdem ao longe. São perceptíveis apenas de
tempos em tempos confusas e embaralhadas”23 (LÉVI-
STRAUSS, 1964, p. 126). É uma ideia similar que guia as
diferentes estratégias composicionais de Berio em suas obras
sempre múltiplas, plenas de referências culturais que cobrem
séculos de evolução cultural. A gestão composicional de uma
multiplicidade de matéria e/ou de estratos de enunciação em
Berio define a complexidade e a densidade da mensagem,
sempre a redescobrir durante a escuta. Pois uma escuta não
pode jamais esgotar ou capturar a mensagem em toda sua
diversidade.

“É inútil tentar isolar nos mitos os níveis semânticos


privilegiados” – afirmava Lévi-Strauss24 (LÉVI-STRAUSS, 1964,
p. 347). Berio, ao contrário, dispondo dos privilégios da música
com sua dupla articulação, reserva-se o direto de escolher o
essencial para ele, de propor nomes e palavras-chave
30 carregadas de sentido para fazer passar uma mensagem
precisa e poder guiar a escuta-interpretação de seu ouvinte
atentivo. Efetivamente, a música, um pouco como o discurso
mítico, é um todo significante: o compositor reenvia também ao
todo – à totalidade da obra de matérias múltiplas – a tarefa de
significar. Mas no discurso musical politicamente responsável
de Berio, existe obrigatoriamente marcos de orientação, pontos
de referência, palavras-chave visando integrar o ouvinte atento
no momento da escuta, aqui e sempre, em uma empreitada
coletiva produtora de sentido.

O primeiro movimento da Sinfonia aparece


retrospectivamente como um vislumbre do futuro. Condensado
particular do pensamento transformacional dos mitos, este
movimento integra trechos de texto que fazem parte dos mitos
indígenas analisados por Lévi-Strauss: as palavras “água”,
“chuva doce”, “sangue", “tempestade”, etc, tornam-se palavras-
chave para o desenvolvimento ulterior na Sinfonia. Assim, a

23 NT: 2011, p. 146.


24 NT: 2011, p. 386.
Música sem fronteiras

palavra “sangue”25, por exemplo, reenvia ao assassinato de


Martin Luther King e, portanto, ao segundo movimento. Mas
também ao assassinato de Marie e às citações provenientes de
Wozzeck de Berg no Scherzo; ou ainda à “Rosa de Sangue”, o
início do quarto movimento, etc.

No primeiro movimento, Berio usa exclusivamente o


texto de dois mitos analisados por Lévi-Strauss: o mito Bororo
de referência (M1)26 (LÉVI-STRAUSS, 1964, pp. 43-45) e
sobretudo o mito Xerente: a história de Asaré (M124)27 (LÉVI-
STRAUSS, 1964, pp. 206-207). Segundo o antropólogo, o mito
de referência é um mito de origem do fogo travestido em mito
de origem da água. “Bem que, por sua estrutura social
matrilinear e matrilocal os Bororo se opõem aos Xerente
patrilineares e patrilocais, observa-se uma notável simetria
entre os mitos desses dois grupos, onde o herói é um caçador
de pássaros”28 (LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 196). Os dois mitos
podem ser considerados como simétricos e derivados deles
mesmo ou como versões do mesmo mito: tratam 31
simultaneamente da água e do fogo; o herói dos dois mitos
afirma-se como trapaceiro, e nos dois casos de vida breve, a
morte do herói será seguida pela ressurreição29 (LÉVI-
STRAUSS, 1964, p. 201). “Os Bororo e os Xerente acentuam a
ressurreição e não a vida breve” – constata Lévi-Strauss30
(LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 201). E esta crença positiva
“confirmará”, de algum modo, a afeição de Berio à ideia de
imortalidade ou da ressurreição das ideias, aquelas
personificadas por Martin Luther King na Sinfonia.

O texto falado por uma voz masculina e facilmente


compreensível no primeiro movimento da Sinfonia provém do

25 Essa palavra é também presente, de modo mais raro, nas análises de


Lévi-Strauss: Cf. “filhos do sangue”, mito bororo sobre a origem do
tabaco (1964, p. 111-112). NT: 2011, p. 131-132.
26 NT: 2011, p. 57-59.
27 NT: 2011, p. 234-235.
28 NT: 2011, p. 223.
29 NT: 2011, p. 229.
30 NT: 2011, p. 229.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

mito Xerete M124, a história de Asaré31 (LÉVI-STRAUSS, 1964,


p. 206-207): O compositor retoma exatamente o início da
primeira frase e a versão resumida do último parágrafo. “Era
uma vez um índio, casado e pai de vários filhos adultos, com
exceção do último que se chamava Asaré. Um dia quando esse
índio estava caçando, seus irmãos...” – É o começo da
declamação, cuja primeira frase não será enunciada até o final,
encontraremos seu fim com o motivo de incesto no último
quinto movimento da Sinfonia. A declamação interrompida
termina, no primeiro movimento, pelas últimas frases da
declamação: “Quando o oceano se formou, os irmãos de Asaré
vieram rapidamente se banhar. E ainda hoje, no final da estação
das chuvas /.../, vemo-los aparecer no céu limpo e renovado,
sob a aparência das 7 estrelas da Plêiade”32 (LÉVI-STRAUSS,
1964, p. 207). Depois desse primeiro atalho do mito, a voz
masculina falada anuncia: “Esse mito nos deterá por muito
tempo”, uma frase também retomada da obra de Lévi-Strauss33
(LÉVI-STRAUSS, 1964, p. 207), se referindo ao mesmo mito
32 Xerente da história de Asaré, que restitui fielmente, ao preço de
certo número de transformações que afetam tanto a mensagem
(o conteúdo do mito particular) quanto o código (o sistema das
funções), o mito Bororo da referência do caçador de pássaros.
Efetivamente, todas as proliferações semânticas desenvolvidas
na sequência da Sinfonia explicitam elementos do mesmo
universo mítico ou deles derivados por associações
relativamente livres.

No primeiro movimento, Berio reduz enormemente o


texto falado e sempre utiliza as repetições imediatas de certos
fragmentos: “havia”, “vários”, “um dia”, “os irmãos”, “as
chuvas”, “os sete”, “a Plêiade”. O compositor utiliza também o
material vocal indiferenciado, cantado em boca chiusa se

31 NT: 2011, p. 234-235. Cf. pp. 1-2 da Sinfonia.


32 NT: 2011, p. 235. Cf. pp. 4-5 da Sinfonia.
33 NT: 2011, p. 235: “Dedicaremos bastante tempo a esse mito” (Berio,

Sinfonia, p. 6.) Encontramos quase a mesma frase “Esse mito merece


nossa atenção por várias razões”, à p. 118 [NT: 2011, p. 138] da obra O
Cru e o Cozido (1964) , onde se destaca a questão do mito warrau sobre a
origem das estrelas e que é estreitamente aparentada a outros mitos.
Música sem fronteiras

integrando ao material instrumental. As partes vocais cantadas


usam exclusivamente o material fônico proveniente das
palavras-chave “água”, “fogo”, “sangue”, “chuva”, “vida”, ou as
mesmas palavras-chave, assim como as fórmulas de oposição
binárias “doce chuva”, “doce apelo”, “apelo ruidoso” (p.9), “água
celeste”, “água terrestre”, “doce chuva da estação seca”, “chuva
tempestiva da estação das chuvas”, “água terrestre”, “água
celeste” (p. 12-13), “madeira podre”, “madeira dura” (p. 13-14),
“um filho privado da mãe”, “um filho privado de alimentação”,
“heróis que matam”, “heróis que são mortos”, “herói
envergonhado”, “herói furioso” (p.14). São os fragmentos
textuais que reenviam aos mitos estudados por Lévi-Strauss34 e
constituem uma transcrição musical sintética – resumida no
que se refere à declamação do texto, mas poetizada,
musicalizada, transcrita em música vocal-instrumental – do
mito. Esse condensado de mitos de Lévi-Strauss ou essa síntese
do modo de pensar do etnólogo é também, simultaneamente e
de acordo com a estratégia da grande tradição sinfônica
ocidental, “a Página na qual se começa o Livro”, de acordo com 33
a célebre fórmula de Mallarmé35(1945): o primeiro movimento
comporta o enunciado dos elementos essenciais, que serão
desenvolvidos na sequência e em outros movimentos do ciclo.
Berio retomará esta declamação do mito Xerente no
movimento final da Sinfonia e provará a seu modo, sua
imaginação transbordante ao longo de sua obra nas peripécias
de seus heróis.

A forma musical do primeiro movimento é constituída


de duas partes direcionais, dois crescendi formais efetuados
com todos os meios de densificação da textura. A primeira
parte desse movimento ( até J, p. 1-16), ancorada em um

34 Encontramos o tema das chamadas no O Cru e o Cozido (1964), pp.


161, 166 [NT : 2011, p. 184,189]; o tema da madeira dura – madeira
podre na p. 15 [NT : 2011, p. 35], os heróis que matam e heróis que
são mortos na p. 215 [NT : 2011, p. 244], a chuva tempestiva e a chuva
calma e doce na p. 219[NT : 2011, p. 248], a água celeste e a água
terrestre na pp. 195-196, 217[NT : 2011, pp. 228-229, 245], etc.
35 Lembremos que no decorrer dos anos 50-60, a vanguarda musical

europeia escontrava-se muito interessada e influenciada pelas


pesquisas malarmaicas e seu projeto do Livre.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

complexo quase ininterrupto de sons estáveis, iniciando sobre


a ressonância de 3 tam-tams (compasso 1), prefigura a textura
das notas longas na variação tímbrica dos movimentos líricos
do ciclo, mas também as intervenções pontuais onde a textura
densa dos acordes repetidos, retomam também a sequência.

A segunda parte desse movimento (J-L, pp. 16-22)


desenvolve, amplificando progressivamente com todos os
meios instrumentais, uma textura sonora que lembra a
escritura quase pontilhista da geração pós-serial. O piano, a
harpa, o órgão elétrico, o cravo elétrico, o vibrafone e a
marimba têm no início um papel preponderante. A densificação
orquestral progressiva trás a inserção da escritura vocal no fim
do movimento (pp. 21-22): é uma lembrança condensada da
textura vocal do início da primeira parte – com os mesmos
acordes e do material fônico que conduz aqui à fórmula textual-
chave “que matam”-“que são mortos” – que efetua a transição
nas variações tímbricas do segundo movimento O King.
34
O quinto movimento da Sinfonia retoma à distância o
discurso mítico interrompido: as referências ao mito de Asaré e
a estratégia composicional do primeiro movimento,
diretamente inspirado pela interpretação dos mitos por Lévi-
Strauss, reenviando – segunda a tradição do grande sinfonismo
ocidental – a todos os movimentos anteriores. A escrita densa
desse último movimento pode ser considerada como uma
encenação em música-teatro ou como o processo aberto de
uma prova de parentesco e/ou da derivação dos mitos segundo
a teoria lévi-straussiana. A mistura de textos provenientes de
diferentes mitos coloca em evidência a flexibilidade nômade no
interior de um mesmo campo mítico e , simultaneamente, dos
aspectos essenciais da teoria da Lévi-Strauss.

O quinto movimento se define como uma verdadeira


análise da Sinfonia, conduzida com a linguagem da própria
obra. A função conclusiva desse movimento enquanto
comentário ou ainda síntese final, define a presença no texto de
referências a todos os movimentos precedentes e à
condensação máxima dos momentos de referências textuais. As
“peripécias” anteriores são aqui “colocadas em texto” e em
perspectiva concreta: o tema central do mito brasileiro, o do
Música sem fronteiras

incesto praticamente ausente no primeiro movimento, é


apresentado de modo completo ao fim da declamação: a frase
interrompida da história da Asaré no primeiro movimento (p.
2) é enunciada inteiramente pela primeira vez no Final (p.
117). O compositor retoma as peripécias entrelaçadas da
viagem do herói que reenviam ao primeiro movimento
segundo as declamações míticas (os diferentes textos falados,
constantemente superpostos, correspondem aos diferentes
momentos da mesma declamação ou a declamações diferentes
– pp. 117-120). Mas no Final, encontramos também o texto e o
universo lírico do quarto movimento “Rosa de sangue, apelo
ruidoso, apelo doce” (pp. 105-106), assim como os fragmentos
do texto em inglês que se refere à Beckett no Scherzo (pp. 121-
123). O compositor acrescenta ainda um nível ausente até o
momento, o teórico-observador36 que enuncia os fragmentos
de textos também retirados da obra de Lévi-Strauss: “Parcial ou
provisório, este último comentário não convence, pois deixa de
lado importantes aspectos de nossos temas”)(V movimento, p.
110); “mas os temas são os que afirmam a prioridade da 35
descontinuidade universal...”(pp. 111-112,115); “Em outros
lugares, os temas invertem o valor de seus termos, os quais
procuram retardar a morte ou de assegurar a ressurreição” (p.
113)37 (LÉVI-STRAUSS, 1964, pp.155, 330, 168, 171). As
fórmulas “peripécia”, “herói morto” nas partes vocais no final
tornam-se emblemas da vida, sinônimos da ressurreição.
Realizado pelo cenário literário e espaço intertextual denso de
sua sinfonia múltipla, Berio dá livre curso à sua imaginação no
tratamento da voz e da orquestra. As partes vocais utilizam
todo o conjunto de possibilidades: a rica melodia solista do
soprano para “Rosa de sangue” no início ou “um filho privado
de sua mãe”, o coral relativamente estático de todas as vozes
em vogais ou sobre texto, os clusters de material ruidoso e/ou
percussivos se integram perfeitamente às partes da orquestra,
as superposições de enunciações verbais, as intervenções
vocais de fórmulas melódicas em sobreposições de vozes

36 Cuja função e a postura lembram aquelas dos recitativos de


Laborintus II com um texto retirado, em grande parte, de Il Convivio de
Dante.
37 NT : 2011, pp. 173, 350, 188, 192.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

faladas, as texturas em figuras rítmicas rápidas e materiais


fônicos sem texto que juntam suas cores às partes
instrumentais. Obviamente, a compreensão de todo o texto não
é a prioridade de Berio, mas ele está longe de ser
desinteressado em relação à palavra: as palavras-chave, os
momentos carregados de mensagens agem através da música,
mas também através da significação das palavras38.

Tipo de síntese dos desenvolvimentos precedentes, o


quinto movimento da Sinfonia é a condensação final de todas as
referências semânticas importantes, dos materiais sonoros e
procedimentos formais fundamentais para a escritura de Berio
nessa obra. Este movimento que desenvolve no início o
material sonoro do quarto movimento “Rosa de sangue” (p.
105-106) e, na sequência um fragmento do segundo
movimento O King em um tecido muito mais complexo (cf. p.
112-113, sopranos, violinos, comp. 44-55) efetua também a
fusão dos fragmentos ilógicos, reproduzindo de certo modo à
36 distância, o princípio citacional do Scherzo: encontramos as
citações do Violinkonzert de Hindemith, de Urlicht da Segunda
Sinfonia de Mahler, do Concerto para violino de Berg, de La
Valse e de Daphnis et Chloé de Ravel, do Scherzo da Segunda
Sinfonia da Mahler, de Agon de Stravinsky e La Mer de
Debussy39.

A função conclusiva desse movimento determina, de


acordo com a estética da obra-objeto, a síntese resultante de
todos os materiais e procedimentos composicionais
fundamentais, o resultado esperado de uma obra teleológica
múltipla e coerente.

Segundo J.-J. Nattiez, Lévi-Strauss não via a verdadeira


relação entre sua obra e a música de Berio: “Se a Sinfonia de

38 Sinfonia conheceu execuções e mesmo registros nos quais o maestro


consideravaa os textos falados como preenchimentos fônicos sem
pertinência semântica e, relegados completamente ao último plano,
são muito pouco audíveis e praticamente incompreensíveis. Não é, em
absoluto, a ótica de Berio.
39 Para os detalhes sobre as citações no último movimento da Sinfonia,

cf. a obra de ALTMANN, P. Sinfonia von L. Berio.


Música sem fronteiras

Berio usa passagens do O Cru e o Cozido, nosso autor (Lévi-


Strauss, IS) tem a impressão que seu texto foi escolhido por
acaso, que não há parte dele na obra” (1973, p. 6). Berio
certamente não tinha certamente a intenção de colocar em
música os mitos analisados por Lévi-Strauss ou uma
transposição musical de sua teoria – isso teria sido uma ideia
absurda. Seu projeto é, visivelmente, muito mais ambicioso:
criar um mundo complexo e carregado de sentido – uma
“sinfonia”, uma representação sintética de sua época – com os
meios da obra múltipla, no contexto histórico preciso, levando
em conta toda a herança cultural, musical, literária, e também
das pesquisas de vanguarda em ciências humanas de seu
tempo. As estratégias composicionais de Sinfonia são marcadas
pelas experiências de Dante, Joyce, Beckett, pelas colaborações
com Sanguinetti, Eco. Berio ignora as fronteiras, mas
certamente não pegou por acaso as palavras provenientes dos
mitos analisados por Lévi-Strauss: ele utiliza os fragmentos
carregados de sentido e centrados em torno da vida breve em
peripécias do herói e em torno da ideia da imortalidade com 37
seu impacto no contexto histórico contemporâneo. O
compositor certamente não compartilhava a atitude bem
negativa de Lévi-Strauss em relação à música serial e à música
concreta. “Eu estava muito impressionado pelo estudo dos
mitos no O Cru e o Cozido de Lévi-Strauss e seu modo de
escrever – dizia ele, - ao contrário, seus julgamentos no que se
refere à música ressaltam uma ausência de perspectiva e de um
estreitamento de visão40”(STOIANOVA, 1985, p. 136).

A oposição som-ruído, muito pertinente para o


defensor das oposições binárias Lévi-Strauss, não é relevante,
pelo menos desde Varèse e nos anos 20-30 do século XX, para
nenhum músico evoluído. Lévi-Strauss, amante apaixonado da
música – aquela de Wagner, Debussy, Chabrier – que foi
certamente muito importante para a elaboração de sua

40 E ele continua brincando: “Isso me faz pensar no homem que


sempre consome a música: aqueles, por exemplo, para os quais é
necessário haver um soar de violinos quando ele faz amor. E ele, eu
creio, escuta música enquanto datilografa na máquina de escrever”.
(Entrevista de L. Berio a I. Stoianova em Roma na data de
31/01/1978).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

antropologia estrutural – não podia certamente compreender e


apreciar suficientemente a música de Berio que efetuava em
sua Sinfonia, uma síntese única da grande tradição sinfônica e
das pesquisas da modernidade, ignorando intencionalmente as
fronteiras. E ele fazia brilhantemente a demonstração – no
contexto vocal-instrumental e musical-literário de sua Sinfonia
– dessas qualidades intrínsecas da arte dos sons que
determinaram o interesse de Lévi-Strauss pela música
ajudando a construir, em parte inconscientemente, seu modelo
de análise estrutural. E também se inspirando na pesquisa de
Lévi-Strauss que Berio tornou-se o compositor-contraventor
dos sentidos, um dos músicos de vanguarda mais atraído pela
densidade do sentido, pela importância da mensagem e pela
claridade das tomadas de posições ideológicas.

2. Música e filosofia: Wolfgang Rihm41 e Friedrich


38 Nietzsche

A “fantasia operística”/”Opernphantasie” Dionysos –


“cenas e ditirambos a partir de textos de Friedrich Nietzsche”
para solistas, coro e orquestra42 - do compositor alemão
Wolfgang Rihm (1953) é um exemplo do tipo de interação do
gênero carregado de história da ópera e do pensamento
filosófico de Nietzsche, ou do apagamento das fronteiras entre

41 W, Rihm nasceu em 1952 em Karlsruhe onde ainda mora. Estudou


composição com K. Stockhausen, Kl. Huber, W. Fortner e H. Searle.
Autor extremamente prolífico, W. Rihm compôs dezenas de obras
instrumentais e vocais-instrumentais, para conjuntos de câmara,
orquestra sinfônica e óperas. Desde 1985 é professor de composição
na Escola Superior de Música de Karlsruhe. Suas obras são publicadas
pela Universal Edition em Viena.
42 RIHM, W. Dionysos, Szenen und Dithyramben nach Texten von

Friedrich Nietzsche, Libretto von Komponisten, Wien: Universal


Edition, 2009-2010. Agradecemos a Universal Edition por sua ajuda
nesse trabalho. Primeira apresentação mundial em 27/07/2010 no
Festival de Salzbourg, sob a regência de Ingo Metzmacher, com a
direção de Pierre Audi e cenário de Jonathan Meese. Cf . RIHM, W.
Dionysos, eine Opernfantasie. DVD. Salzburger Festspiele / Ich bin dein
Labyrinth, filme de Bettina Ehrhardt, Unitel Classica, 2013.
Música sem fronteiras

o pensamento composicional e pensamento filosófico. Esta


obra capital no enorme catálogo de Rihm está na sequência de
suas duas óperas de câmera Faust und Yorick (1976), a partir
do texto de J. Tardieu, e Jacob Lenz (1977-78), a partir da
novela homônima de G. Büchner, ao “poema dançado” Oedipus
(1986-87) com textos de Sófocles, Hölderlin, Nietzsche e H.
Müller, e Die Eroberung von Mexiko / A Conquista do México
(1987-91), com textos de A. Artaud, O. Paz e cantos mexicanos
antigos. O compositor pratica, portanto, desde sempre, o
apagamento das fronteiras e interações dos gêneros literários e
musicais, compondo ele mesmo na maior parte dos casos, os
textos destinados à cena.

Dionysos não é uma ópera no sentido tradicional do


termo, pois a obra renuncia completamente a narrativa e toda
evolução direcional de seus acontecimentos cênicos. É uma
não-narrativa aberta, uma fantasia plural de música-teatro com
várias dimensões, constituídas de “cenas e ditirambos”.
39
As cenas de Dionysos correspondem aos diferentes
lugares de ação cênica e aos componentes delimitados na
dramaturgia do espetáculo músico-teatral estruturado em
“quatro planos” ou “lugares”43: Um mar, Na Montanha, Espaços
Interiores 1-3, Um lugar. Tratam-se de cenas musicais abertas
que reenviam aos momentos importantes da vida de Nietzsche,
mas antes de tudo às ideias universais de sua filosofia: as
relações homem-mulher, masculino-feminino, apolíneo-
dionisíaco, divino-humano, indivíduo-massa, vida-morte, etc.
De onde a possibilidade de impacto sobre todo o público
interessado no teatro musical contemporâneo.

Os ditirambos são os momentos de reflexão coral com


suporte orquestral denso. Na Grécia antiga, o ditirambo era um
gênero da prática coral dos hinos que glorificavam o deus
Dionysos. Os poemas de Nietzsche intitulados Dionysos
Ditiramben/Ditirambos à Dionysos têm pouco a ver com o
gênero antigo da poesia hínica e referem-se muito pouco ao
deus grego. Apenas o poema Die Klage der Ariadne / A

43Na Idade Média chamava-se “mansion” o lugar do teatro no qual se


passava uma cena.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

lamentação de Ariadne e alguns elementos temáticos – a ideia


do labirinto e a ideia de laceração (que Rihm religara aos
personagens de Apolo e Marsyas) aludem aos mitos ligados à
Dionysos. Os Ditiramben /Ditirambos na obra de Rihm são
comentários corais cuja função é comparável àquelas dos
poemas nos escritos filosóficos de Nietzsche (que também
praticava o apagamento das fronteiras dos gêneros em suas
obras).

A estratégia composicional em Dionysos se situa na


linhagem de Abgesangzenen (1979-1981) de Rihm, na qual já
se observa a anulação das fronteiras dos gêneros estabelecidos
– um pouco no caminho deixado por G. Mahler, mas também de
Nietzsche, e a interação sinfônica de peças orquestrais e peças
cantadas (também nos textos de Nietzsche) em um tipo de
gênero misto onde interagem o Lied sinfônico, a cena de ópera
e a peça para orquestra sinfônica (RIHM, 1997, p. 316-319).

40 O primeiro ato, bastante longo, constituído de dois


quadros – Um mar – e o curto quarto e último ato – Um lugar –
repousam sobre os desenvolvimentos dramatúrgicos explícitos,
mas bem concisos, que se organizam em quadros ou em
momentos musicais muito estáticos, fixos, mas muito atuantes
que reenviam a importantes momentos da biografia de
Nietzsche:

• No primeiro ato, Ariadne implora seu salvador ou seu


deus-carrasco Dionysos, com alusão à “luta” de
Nietzsche por Cosima (lembremos que em suas cartas
tardias à Cosima Wagner, a qual Nietzsche estava
apaixonado e a chamava de “Ariadne” e assinava
“Dionysos”);

• O último ato representa o célebre episódio da vida de


Nietzsche, pouco antes de seu colapso psíquico trágico:
em Torino, em 1889, vendo um cocheiro que batia
cruelmente em seu cavalo, Nietzsche, muito
emocionado, se ajoelha em frente ao animal, envolve
carinhosamente seu pescoço com seus braços e chora
copiosamente, tomado por uma compaixão indizível.
Música sem fronteiras

• O segundo ato comporta duas cenas – Na montanha –


representa a relação complementar e atormentada
entre N. – Nietzsche (mas também Niemand/ninguém
ou qualquer um) e Ein Gast / Um Hóspede, seu duplo
bem mais coroado de sucesso onde N. falhou.

• O terceiro ato é o mais denso, o mais movimentado,


com um verdadeiro desenvolvimento teatral de
acontecimentos nas três partes que o constituem: a
primeira, intitulada Innenraum 1 / Espaço Interior 1 –
apresenta o encontro de dois personagens – N. e Um
Hóspede – errantes entre os homens, os dois à procura
de um amor.

• A segunda parte – Innenraum 2 / Espaço Interior 2 – se


desenvolve em um bordel: dois homens – N. e Um
Hóspede – se confrontam na procura de suas próprias
verdades. Aqui escutamos o Lied de Wanderer /o Lied
do Viajante, do Errante, aquele que erra através do 41
mundo sem nunca encontrar a paz. N. acaba por ser
amarrado por Ariadne, enquanto que Um Hóspede é
mordido pelas mulheres que se chamam Esmeralda; e
a terceira parte Innenraum 3/ Espaço Interior 3,
apresenta N. que se fecha cada vez mais em sua vida
interior, até que o deus Apolo retira a sua pele, como
ele havia feito outra vez, segundo a lenda, com seu
concorrente, o flautista Marsyas, bem mais virtuoso
que ele em sua arte dos sons. Escoriado, esfolado vivo,
N. sabe que é vítima do ciúmes e se obstina a procurar
o amor.

Apenas o primeiro e o último ato reenviam de modo


explícito aos elementos conhecidos da biografia de Nietzsche.
Em verdade, todos os atos – compreendendo o Segundo que
expõe os dois personagens principais N. e Ein Gast, e claro, o
Terceiro – são, antes de tudo, colocados em evidência, sonora e
cênica, os espaços interiores do universo de Nietzsche onde
cada qual pode se encontrar. Parece evidente que o compositor
atribui muito mais importância, não aos eventos cênicos
exteriores, mas aos estados emocionais e aos movimentos dos
FRONTEIRAS DA MÚSICA

afetos nos espaços interiores que se tornam teatro musical


expressivo44.

A fantasia operística de Rihm é, na verdade, uma


transcrição músico-cênica densa da experiência pessoal do
compositor com as obras filosóficas e poéticas de Nietzsche,
assim como também com a personalidade excepcional do
filósofo através de momentos-chave de sua biografia45. Em seu
Dionysos, Rihm compõe seu próprio caminho com Nietzsche,
suas próprias viagens nos espaços interiores despertos quando
em contato com o universo do filósofo. O desenvolvimento
cênico de Rihm ignora todo o argumento operístico
convencional, todo desenvolvimento linear em proveito de
situações sonhadas que se submetem unicamente à lógica
dramatúrgica relativamente livre na “fantasia operística”46. O
não-argumento ou o anti-argumento é constituído de
diferentes “ espaços interiores” que ignoram a teleologia típica
da ópera. Esses espaços emergem enquanto campos de
42 associações livres e pluridimensionais submetidos à única
lógica do sonho, ou de outro modo, segundo a lógica da
errância de Wanderer/do Viajante sem objetivo preciso47, que
evolui em aparições acústicas cada vez mais expressivas e

44 Lembremos que o primeiro quarteto de cordas de W. Rihm


intitulou-se “Im Innersten” / “Au plus profond, intérieur, intime”
(1976).
45 Nietzsche é um dos autores preferidos de Rihm. Várias de suas

obras tomaram como base os textos de Nietzsche, entre as quais sua


Terceira sinfonia (1976) para soprano, barítono, coro misto e grande
orquestra, a Segunda Abgesangsszene (1979) para voz e orquestra, a
Quarta Abgesangsszene (1979-80) para mezzo-soprano e orquestra, a
Quinta Abgesangsszene (1979-83) para mezzo-soprano, barítono e
orquestra, Klangbeschreibung 2 (1986-87) para 4 vozes, 5
instrumentos de sopro e seis percussões.
46 A noção de fantasia na música instrumental do classicismo e do

romantismo sempre se direciona a uma liberdade formal. Lembremos


as Fantasias para piano de Mozart. A noção de “fantasia operística” de
Rihm é um neologismo que procura definir a especificidade da
dramaturgia musical e cênica dessa obra de “música-teatro”.
47 A tradução para o francês para “excursionista”, “viajante” ou

“turista” é certamente imprecisa e muito pouco poética, e em todo


caso, estrangeira ao espírito do romantismo.
Música sem fronteiras

cativantes. Trata-se de uma avalanche mais ou menos livre ou


ocasional de ideias musicais, de momentos sonoros e cênicos,
inspirados nos poemas de Dionysos-Dithyramben de Nietzsche,
escritos um pouco antes de seu colapso psíquico. Durante mais
de trinta anos, Rihm viveu com o projeto de Dionysos, a
mitologia grega e a obra filosófica e poética de Nietzsche. É o
próprio compositor que é “o pensador em cena” (SLOTERDIJK ,
1986), em meio de suas vagabundagens no universo do
filósofo. O processo composicional – Rihm escreveu
simultaneamente a música, o texto e os quadros cênicos - é
uma invenção contínua da linguagem musical, que ignora as
fronteiras convencionais. Não se trata, portanto, de uma música
com texto, nem de música que acompanha a dramaturgia
cênica, mas de uma invenção permanente da linguagem
múltipla e polivalente se desenvolvendo no espaço e no tempo,
apelando para todo tipo de expressão da atividade psíquica –
em palavras, sons-ruídos, imagens, gestos, ações, etc. –
tornando-se escritura musical múltipla dos “espaços
interiores”. 43

Os personagens da obra de Rihm têm pouco a ver com


os personagens habituais da ópera. Se as cenas ou os quadros
são “os recipientes” (Rihm) dos desenvolvimentos músico-
cênico múltiplos, os personagens são os espaços flexíveis,
moventes, variáveis, com papéis plurais em transformação
permanente. As fronteiras entre os personagens tornam-se
permeáveis e reconhecemos facilmente os papéis principais
que guardam suas integridades em todas as circunstâncias.

N. é, claro, Nietzsche, mas também Dionysos, o


dionisíaco em Nietzsche e em geral, a filosofia dionisíaca, o
artista, o errante, Marsyas, A Pele, Nescitur, Nobody e
Everybody, ou seja, também vocês e eu.

Ein Gast é o duplo de N., o apolíneo nele, depois o


próprio Apolo, mas também o homem que maltrata o cavalo.

N. e Ein Gast são, de fato, dois aspectos, opostos e ao


mesmo tempo complementares do personagem principal N.
Trata-se de uma iluminação musical-cênica dupla – ”Doppel-
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Belichtung” (RIHM, 2010, p. 39) – do papel que se encontra


teatralizado, multiplicado, espacializado, colocado em música-
teatro. O monólogo interno – ou seja, o movimento do
pensamento, o caminho de um processo mental que, mesmo
interiorizado, é sempre um affaire de corps, como Nietzsche
sempre procurou de provar em sua filosofia – está apresentado
sob a forma de diálogo e, assim, exteriorizado, tornado audível
e visível, colocado em cena nas ações dos personagens.

Ariadne – a bem amada abandonada – é o amor


impossível, inatingível por N., eterno feminino, a mulher, a mãe.
Ela aparece também em Innenraum 2, no bordel do Terceiro
ato, mas também no final da fantasia operística, em um quadro
cênico de uma Pietá bem cristã na qual N. (ou A Pele) cai nos
braços, depois dos braços de Ariadne – Maria, sempre à
procura do amor.

As ninfas da primeira cena se transformam em


44 golfinhos, depois em personagens que se chamam Esmeralda,
depois em mênades – mulheres míticas no Terceiro ato.
Compõem um tipo de personagens fluido, fugidio, variável e
inatingível de Mulher, da feminilidade, do feminino que
procura desesperadamente N. e Ein Gast.

Os personagens emblemáticos perfeitamente


despersonalizados de Rihm agem em espaços proteiformes48
ou corpos de ressonância para conteúdos semânticos múltiplos.
O redobramento e a multiplicação dos personagens criam
figuras espaciais, variáveis e pluridimensionais que são mais
adaptadas ao fluxo associativo do pensamento ou do sonho, do
que os papéis operísticos individualizados da ópera tradicional
com seu desenvolvimento teleológico. É bem conhecido que na
euforia de seus problemas psíquicos, Nietzsche mudava
frequentemente suas máscaras, assim como seu modelo
Dionysos: ele se via como Cesar, Shakespeare, o Rei da Itália ou
Richard Wagner. Nos escritos filosóficos de Nietzsche, as
metamorfoses, as mutações, os desenvolvimentos não são
raros: lembremo-nos de Assim falava Zaratustra onde

48Proteus é o deus do mar que herdou de seu pai Poseidon, o dom da


profecia e era capaz de mudar sua forma à vontade.
Música sem fronteiras

observamos a metamorfose do espírito enquanto camelo, leão e


criança. As transformações ou a fluidez do sentido praticado
por Nietzsche é um dos aspectos mais atraentes para Rihm.
Cada cena e cada faceta de suas figuras cênicas pertencem
simultaneamente a vários níveis de enunciação musical-cênica
múltipla em Dionysos, este “drama imaginário em torno de N.
que é um homem, que é Dionysos, que é o Crucificado, que é
Marsyas, que é o Artista, que é...” – como explica o compositor.

Enquanto concentrado aberto de diversos conteúdos


semânticos, cada personagem ou bem mais figura cênica de
Rihm é composto segundo princípios fundamentais de artes
fundadas sobre a gestão do tempo: “o princípio da ação
múltipla e concentrada” e o princípio da “interação das
funções”49: segundo o primeiro, um objetivo estético é
esperado com a ajuda de vários meios diferentes; de acordo
com o segundo, um meio é usado para servir vários objetivos.
Esses dois princípios que gerem a constituição dos
personagens contribuem à construção de uma obra unificada e 45
coerente, apesar da diversidade de seus componentes.

Segundo o primeiro princípio, vários personagens,


aspectos, detalhes, facetas respondem ao mesmo objetivo
unificador: assim N., Ein Gast, der Gott-Henker/ o Deus-
carrasco, Dionysos, Marsyas, a Pele estão todos presentes,
reunidos na figura, particularmente importante para Rihm, de
Wanderer / o Errante, que tem a vantagem de ser, para todo
espectador, um personagem mais familiar do que o filósofo
Nietzsche.

De acordo com o segundo princípio, os meios


expressivos específicos são utilizados para responder aos
diferentes objetivos artísticos: assim, a vocalidade feminina, as
vozes das mulheres e, mais precisamente, os sopranos agudos

49A teoria estética que nos anos 40-70 do século XX desenvolveu esses
princípios essenciais em musicologia teórica, sobre a base da tradição
do sinfonismo ocidental e na sequência da teoria cinematográfica de S.
Eisenstein, pertence ao musicólogo soviético Lev A. Mazel. Cf. MAZEL,
1982, p. 3-54.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

caracterizam Ariadne, as ninfas, os golfinhos, as Esmeralda, as


mães arcaicas.

Na interação desses dois princípios, a obra se constrói


como “organismo vivo” (2010, p. 24), concentrado pleno de
energia corporal, intelectual e emocional. A descoberta artística
de Dionysos de Rihm consiste, precisamente, nessa interação
particularmente eficaz dessas duas linhas de força de sua
estratégia composicional que atribui à obra – digamos, segundo
os princípios de Nietzsche – mais energia, mais movimento,
mais vida. Elas regem a constituição de todas as cenas, assim
como a elaboração de todos os personagens no fluxo
relativamente livre de uma “tematização da imaginação”
(RIHM, 2001, p. 53) que torna-se música-teatro.

Para suas obras “Musick-Theater” / “Música-Teatro”50,


Rihm compõe sempre “uma música constituída de palavras, de
ação, de sons, de imagens, de melodias, de ruídos, de luzes.
46 Tudo o que aparece nesse desenvolvimento é da música”
(RIHM, 2002, p. 194). O impulso inicial que vêm com
frequência de um ou vários textos é particularmente
importante. Em Dionysos são utilizados fragmentos
provenientes dos Dionysos Dithyramben (1888-89) Ditirambos
de Nietzsche (2010, p. 58-87), que ele recompõe e ordena
livremente: “Minha base são os Dionysos Dithyramben de
Nietzsche no interior do qual eu li, por assim dizer, um texto – a
partir do qual eu subtrai um texto. Exprimo isso do seguinte
modo: o libreto é meu, mas cada palavra é de Nietzsche”51.
“Cada palavra cantada é de Nietzsche, mas apesar disso, o texto
é meu” (RIHM, 2010, p. 20).

50A noção “música-teatro” de Rihm não é o mesmo que “teatro


musical”, muito pouco precisa no contexto das pesquisas
composicionais depois dos anos 60 dno século XX, que conheceram o
teatro instrumental, o happening, os espetáculos multimídias de todos
os gêneros, a ópera. A noção de Rihm insiste sobre a multiplicidade
dos materiais utilizados, livres de toda narração direcional e
tornando-se todas em música-teatro.
51“Ich will nichts erklären”, entrevista de W. Rohm com W.
Schreiber e B. Ehrhardt sobre a criação de Dionysos em Salzburg,
publicada no Süddeutsche Zeitung, Munich em 27/07/2010.
Música sem fronteiras

Os nove poemas que Nietzsche preparou para a


publicação em 1888, mas que não puderam ser publicados por
ele por conta do súbito agravamento de sua doença mental, são
constituídos de textos-fragmentos: alguns, já publicados em
Also sprach Zarahtustra / Assim falou Zaratustra (1883-85), são
transplantados aqui. Novos textos se ajuntam. Sabe-se que,
desde a sua juventude, Nietzsche escrevia poemas: a arte
poética é um aspecto essencial de sua produção literária e uma
parte constitutiva de seus escritos filosóficos. Na A Gaia Ciência,
Além do Bem e o Mal, Nietzsche contra Wagner, o filósofo incluiu
poemas. Sua obra mais conhecida, Assim falava Zaratustra
abole, de modo explícito, as fronteiras entre a linguagem
filosófica e a linguagem poética. A estreita ligação e a fusão
orgânica da poesia e filosofia em Nietzsche exercem uma
influência insuspeitável sobre o modo de pensar do compositor
Rihm. Um exemplo convincente neste sentido é a integração
orgânica do Lied para voz e piano Der Wanderer, escrito por
Rihm sobre um poema homônimo de Nietzsche alguns anos
antes do contexto sinfônico e músico-teatral de Dionysos 47
(Terceiro quadro, Innenraum 2).52

“Seu texto (Dionysos Dithyramben – IS) é uma


compilação e eu tomo-o como uma base, um fundo” (RIHM,
2010, p. 20-21)53. Efetivamente, podemos compreender a
fantasia operística Dionysos enquanto reescritura múltipla,
enquanto Übermalung54 musical e cênica de fragmentos
poéticos de Nietzsche. Os Ditirambos à Dionyso do filósofo são
considerados por Rihm como “perfeitamente apropriados para
a música-teatro” (RIHM, 2010, p. 21), pois o texto fragmentário

52 RIHM, W. Dionysos. Partitur. UE Wien. 35190B, 3. Und 4. Bild, p. 234-


241. Lembremos que o mesmo poema - Der Wanderer – da época de
Zaratustra de Nietzsche, é utilizado na última peça do ciclo de
Schœnberg Acht Lieder für Gesang und Klavier Op. 6 / Huit Lieder pour
chant et piano Op. 6 (1903-05). Em 2001 Rihm escreveu seus Sechs
Gedichte von Fr. Nietzschee para barítono e piano: Der Einsamste, Der
Herbst, Der Wanderer (I), Der Wanderer (II), “Der Wanderer und sein
Schatten, Venedig.
53 “Grundierung” significa uma primeira demão em pintura.
54 Übermalung é a pintura sobre outra pintura. Lembremos que o

mestre da Übermalung, o pintor austríaco Arnulf Rainer é um dos


artistas preferidos de W. Rihm.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

é, em essência, aberto e convidativo ao jogo com seus excertos.


A interação dos fragmentos do texto permite uma densificação
ou, ao contrário, uma rarefação de níveis de sentido que se
completam mutuamente (RIHM, 2010, p. 21)55. E esse jogo que
fica aberto, mas jamais deixado ao acaso, chama a música, torna
necessária sua intervenção com sua capacidade específica de
produzir sentido.

O compositor utiliza relativamente pouco do texto, em


especial os fragmentos particularmente densos e carregados de
sentido, como “Mich willst Du?/ “É a mim que você quer?” ou
“Ich Bin dein Labyrinth”/”Eu sou seu labirinto” no primeiro
ato; ou ainda “Gott als Schaff” /”Deus como cordeiro”,
“lachen”/rir”, “Ich bin deine Wahrheit... Wahrheit... Wahrheit”/”
eu sou sua verdade...verdade...verdade” no Quarto ato. Ele
repete esses fragmentos: imediatamente – para comentar ou
criar um tipo de corpo de ressonância em expansão no tempo
amplificando uma situação ou uma emoção: ou à distância no
48 tempo, em contextos músico-cênicos diferentes para realizar
um espaço intertextual, para amplificar a direcionalidade no
desenvolvimento musical-cênico, de crescendo emocional a
forte impacto e contribuir à organização da obra enquanto
totalidade coerente.

O compositor pode também renunciar completamente


à palavra. A música vocal sem palavra é sempre utilizada
enquanto comentário musical ou desenvolvimento espacial da
significação linguística: lembremo-nos o centro não-verbal dos
três golfinhos (três vozes femininas) endereçadas à Ariadne no
primeiro ato. No terceiro ato (Innenraum 3), onde N. é
maltratado por Apolo, ouvimos o canto sem palavras do
coração das ninfas ou das mênades56. Enfim, nos seis últimos
compassos da fantasia operística, ouvimos novamente
vocalizações não verbais dos dois sopranos agudos como
reminiscência longínqua do feminino.

55 “Evidentemente, eu brinco com os textos que, como dizemos, se


completam maravilhosamente, como se eu tivesse pensado sobre
isso”.
56 W. Rihm – Dionysos, partitura, p. 332-337.
Música sem fronteiras

A figura emblemática dissimulada atrás de N. e seus


duplos é, sem dúvida, Wanderer/O Errante. Não foi por acaso
que Rihm retoma, no contexto de Dionysos, seu Lied escrito
anteriormente Der Wanderer sobre o poema homônimo de
Nietzsche na época de Zaratustra (1833-1885). Não foi por
acaso que em 1997, ele escreveu também um texto com o título
programático “Eine Wanderer-Phantasie”57. No mesmo ano,
Rihm transcreveu para voz e orquestra o conhecido Lied de
Schubert Der Wandere (op. 4/1, D489, 1816) sobre o texto de
Georg Philipp Schmidt Von Lübeck. O viajante errante é para
ele a figura da viagem interna, a “divagação interior” (RIHM,
2002, p. 87), do comportamento do pensador/compositor
sobre a cena de sua música-teatro. A fantasia operística é
constituída de cenas e de ditirambos pensados como
representações musicais-cênicas dos espaços interiores dessas
divagações internas, onde seguimos os movimentos
associativos ocorrem do pensamento. O Errante, como todos os
personagens em Dionysos, não é um personagem histórico ou
psicológico. Ele é “presença, movimento incorporado do 49
pensamento” (RIHM, 2002, p. 88), “homem do aqui e do agora.
Totalmente não teleológico. Em verdade, ele é intrinsecamente
sem objetivo”(RIHM, 2002, p. 87) 58. É a “a representação da
fantasia de seu caminhar” (RIHM, 2002, p. 90)59. E a música –
sobretudo aquela de Rihm - é sempre caminhar, fluxo, fluir de
acontecimentos seguindo livremente os movimentos
frequentemente impulsivos do pensamento.

O errante, como o filósofo, o poeta, o louco e/ou o


compositor, é “abandonado sem defesa na realidade” (RIHM,
2002, p. 91)60. “A cabeça do errante fica inclinada para frente.
Ele deixa penetrar em si a imagem do caminho, consome o
caminho por seu olhar”(RIHM, 2002, p. 87-88)61. No final da
fantasia operística de Rihm, todos os participantes que

57 O texto foi publicado na Offene Enden, 2002, p. 87-91.


58 “Mensch des Hier und Jetzt. Gänzlich unteleologisch. Eigentlich ist er
der genuin ziellose.”
59 “Er ist der Stellvertreter der Phantasie auf dem Weg.”
60 “Ungeschützt der Wirklichkeit ausgesetzt”
61 “Der Kopf des Wanderers bleibt geneigt. Er lässt das Bild des Weges

in sich ein, er isst den Weg durch seinen Blick.”


FRONTEIRAS DA MÚSICA

percorreram os caminhos de N., inclinam-se “calmamente” em


direção ao público62: são todos os viajantes errantes que já
percorreram um caminho, como todos os espectadores na sala.
O gesto modesto do corpo inclinado para frente é o emblema da
errância e, simultaneamente, um convite a outras viagens: nos
espaços interiores já apresentados da fantasia operística que
fazem um rizoma, que se entrelaçam com os nossos.

Dionysos de Rihm é uma obra forte que apresenta os


movimentos do pensamento com os meios da música-teatro.
Filho de sua época, inventando a música segundo o
dodecafonismo e a vanguarda serial dos anos 50-60 do século
XX e contemporâneo à corrente espectral dos anos 70-80, Rihm
sempre compôs sem sistema rígido, tendo apenas como
método – sua própria intuição e sua própria vontade como
compositor. “É uma verdade de La Palice63, mas repleta de
consequências, se pensarmos quanto tempo precioso foi
desperdiçado na loucura, inventar um método, nada mais que
50 um método, e para compor com ele!” – indigna-se Rihm (2002,
p. 97). Nesse sentido, ele também é nietzschiano: Lembremos
Nietzsche: “Eu desconfio de todos os realizadores de sistemas e
me afasto de seus caminhos. O espírito do sistema é uma falta
de probidade” (1974, p. 15). Nietzsche queria um homem livre,
“um homem para o qual nada é proibido”. “Um tal espírito
liberto se coloca no centro do universo com um fatalismo alegre
e confiante, com a convicção profunda de que apenas o
individual é condenável, mas que tudo será salvo e reconciliado
na Totalidade, - ele não diz não....Mas uma tal fé é a mais
elevada de todas as fés possíveis: eu o batizei com o nome de
Dionysos.” (1974, p. 94). De onde também, certamente, o título
da fantasia operística de Rihm.

62 Na última didascália da partitura Dionysos, podemos ler: “Im rasch


einbrechenden Dunkel sieht man gerade noch, dass sich alle auf der
Bühne versammelten Figuren und Gestalten sehrt ruhig zum Publikum
hin verneigen.”, p. 369
63 NT. Uma lapalissade (ou verdade de La Palice) é uma afirmação em

face a uma evidência imediatamente perceptível, um sinônimo de


truísmo.
Música sem fronteiras

A linguagem múltipla de Dionysos de Rihm, mas


também a Sinfonia de Berio, testemunha o esfacelamento das
fronteiras entre as diversas atividades humanas e traduz um
comportamento fundamental da psique humana que cada um
pode explorar individualmente, segundo sua própria
sensibilidade e sua própria cultura. O ouvinte-espectador
encontra-se colocado no cérebro do artista, do “pensador sobre
a cena” (SLOTERDIJK, 1986) / do “pensador em música-teatro”
ou em “sinfonia”, no meio dos meandros de sua fantasia, de
seus espaços internos variáveis que são todos, dizemos
novamente, uma linguagem do corpo. A obra em cenas e
ditirambos de Rihm, mas também a Sinfonia de Berio com sua
escritura citacional da história da música e sua síntese do
pensamento da antropologia estrutural, demanda aos ouvintes
um esforço intelectual e uma nova escuta atentiva: ela repousa
sobre uma abertura total às errâncias do pensamento, requer
uma reflexão ativa e contínua dos materiais ou personagens
variáveis e situações flutuantes derivadas. “Eu acho que a
compreensão da música, é uma abertura infinita. – escreve 51
Rihm -. Compreendemos a música na medida em que nós nos
abrimos mais e mais, até a possibilidade da desaparição”
(RIHM, 2010, p. 20). As obras da tradição culta que praticam a
abertura das fronteiras e a síntese única de materiais
disparatados e gêneros estabelecidos nos convidam a esta nova
experiência com a obra de arte: a experiência do errante – do
Wanderer – ao interior dos espaços múltiplos e moventes à
procura de sua e de nossa verdade em um movimento de
construção de si, sempre a recomeçar.

Nas conhecidas obras Geist der Utopie / Espírito da


utopia e Das Prinzip Hoffnung / O princípio Esperança, o filósofo
da música-utópica Ernst Bloch afirmava que os compositores
prefiguravam, em suas músicas, a sociedade do futuro. O
esfacelamento das fronteiras entre as diferentes linguagens
estéticas, entre os diferentes domínios das ciências humanas,
entre artes e tecnologias pelos artistas da segunda metade do
século XX prefiguram – esperemos - um novo humanismo
fundado na abolição das fronteiras, sobre os sincretismos e as
misturas produtoras de novas sínteses carregadas de sentido.
Que a filosofia da utopia de Bloch não tenha se equivocado e
que sua teoria – apesar dos muros que continuamos a erguer a
FRONTEIRAS DA MÚSICA

despeito do atual bom senso em todo o mundo – não seja


apenas uma bela utopia humanista, varrida para sempre por
uma inundação ameaçadora de nacionalistas intolerantes e
nocivos.

Referências Bibliográficas

ALTMANN, P. Sinfonia von Luciano Berio. Eine Analystische Studie.


Vienna: Universal Edition, 1977.

BACKÈS-CLÉMENT, C. Lévi-Strauss. Paris: Seghers, 1974.

LÉVI-STRAUSS, C. Le Cru et le Cuit. Paris: Plon, 1964.

_____. Anthropologie structurale. Paris : Plon, 1958.

_____. Antropologia Estrutural I. Trad. B. Perrone-Moisés São Paulo:


Cosac Naify, 2008.
52
_____. O cru e o cozido. Trad. B. Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify,
2011.

MALLARMÉ, S. Œuvres complètes. Paris : Gallimard, 1945.

MAZEL, L. A. Estetika i analyz. In : Stat’i pó teorii i analizu muzyki,


Moscou: Sovetskij kompozitor, 1982.

NATTIEZ, J.-J. Rencontre avec Lévi-Strauss. Musique en jeu N° 12. Paris:


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NIETSZCHE, F. Gedichte, Stuttgart: Reklam, 2010.

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Paris, 1974.

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2010.

_____. Offene Enden, München, Wien: Akzente Hanser, 2002.

_____. Ausgesprochen, Schriften und Gespräche. Band 2. Winterthur:


Amadeus, 1997.
Música sem fronteiras

STOIANOVA, I. Luciano Berio Chemins en musique. La Revue musicale,


nn. 375-376-377. Paris : Éditions Richard Masse, 1985.

_____. Les voies de la voix. Traverses, 20, Centre Pompidou, Paris, 1980,
pp. 108-118.

SLOTERDIJK, P. Der Denker auf der Bühne: Nietzsches Materialismus.


Frankfurt: Suhrkamp, 1986.

53
Alexander Scriabin: convergências e divergências1

MARCOS MESQUITA

Um fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades,


outro devassa o futuro com todas as suas auroras.

(Machado de Assis)

I. O artista republicano

N o decorrer do século XIX, vê-se uma profunda


transformação nas relações de trabalho e opções
profissionais para artistas em geral e músicos em particular. Os
principais mecenas da história da música até então, religiões e
nobreza, abandonam gradativamente sua função financiadora e
assiste-se ao surgimento de um novo tipo de artista, que eu vou
chamar aqui de artista republicano. Trata-se de uma nova
categoria de profissional liberal que, a partir de agora, tem que
se impor em uma sociedade e em um mercado de trabalho em
transformação. Nesta sociedade, ele estava diante, entre outros:
1) De instituições governamentais – orquestras, teatros de
ópera ou balé etc. – que podiam encomendar-lhe obras
mediante um pagamento negociado segundo as obscuras
leis de mercado.
2) De subvenções que podiam ser obtidas também de
instituições governamentais, mais tarde de instituições
privadas ou mistas.
3) Da possibilidade de divulgar seu nome através da venda de
partituras, desde que encontrasse uma casa editora que se
dispusesse a publicá-las ou se associasse a uma editora já

1Todas as traduções são de nossa autoria, exceto aquelas indicadas na


bibliografia.
Alexander Scriabin

existente – como foi o caso de Muzio Clementi (1752-1832)


ou Anton Diabelli (1781-1858).
4) Da opção de trabalhar como professor particular ou de
alguma instituição de ensino musical.
5) Da possibilidade de atuar como instrumentista solista ou
de orquestra, como regente, como articulista ou crítico
musical.
6) De um público que tinha diferentes níveis econômicos e
diversas expectativas em relação à arte musical:
entretenimento, catarse, passatempo em saraus,
confraternização, representação ou ostentação social,
vivência estética, acompanhamento para cerimônias
religiosas, música para danças ou bailes etc.
7) Da mediação com a opinião pública através de jornais e
periódicos, órgãos estes que podiam eventualmente fazer
aquela oscilar conforme modas e humores quase que
imponderáveis. 55
As novas classes sociais urbanas participam
ativamente nesse processo. Comentando a vida musical de
Londres e Viena, John Rink afirma que “os mais importantes
patronos na primeira metade do século [XIX] vieram da classe
média que incluía numerosos ‘públicos de gosto’ [‘taste-
publics’] com orientações culturais diversas, variando da baixa
à alta, e ocupando posições variadas na escala social” (2004, p.
58).
Ludwig van Beethoven (1770-1827) pode ser citado
como um caso limítrofe entre a antiga e a nova fase
profissional: residindo em Viena desde 1792, não tivera
patrões religiosos ou nobres nesta cidade, mas recebera, a
partir de 1800, um “salário” de seu mecenas, príncipe Karl
Alois Johann Nepomuk Vinzenz Leonhard Lichnowsky (1761-
1814) e, de 1809 até sua morte, uma pensão de alguns de seus
admiradores nobres: o arquiduque Rudolph Johann Joseph
Rainer da Áustria (1788-1831), Franz Joseph Maximilian,
príncipe de Lobkowitz (1772-1816) e Ferdinand Johannes
Nepomuk Joseph, príncipe Kinsky de Wchinitz e Tettau (1781-
1812). Além disso, destacava-se como pianista (até que os
efeitos da surdez gradativa o impedissem de tocar em público),
FRONTEIRAS DA MÚSICA

dava aulas para membros da aristocracia e empenhou-se na


publicação de suas obras, dirigindo-as a vários “nichos de
mercado” de então:
1) Ao músico amador que cultivava a Hausmusik (música
doméstica) nos saraus pela Europa a fora. Típicos
exemplos aqui, entre outros, seriam a Serenata op. 8, o
Septeto op. 20, a Serenata op. 25, as Bagatelas op. 33 e as
Variações opp. 105 e 107.
2) A um público amante de música que freqüentava os
concertos sinfônicos, sendo as sinfonias e os concertos os
melhores exemplos dessa categoria.
3) A um público especializado de músicos profissionais ou
diletantes com boa formação que acolheram, não sem
espanto, suas sonatas e quartetos de cordas.
Pode-se dizer, então, que Beethoven representou o
estágio intermediário entre os antigos e diversos tipos de
56 prestadores de serviços musicais do longo período que vai pelo
menos da Baixa Idade Média até o início do Romantismo e o
novo profissional liberal de uma sociedade que, aos poucos, e
não sem conflitos e derramamento de sangue, implantava
modelos administrativos e políticos republicanos.
No decorrer do século XIX, assiste-se também a uma
gradativa revalorização da herança musical europeia, tendência
esta que se reflete no repertório de inúmeras instituições
corais, orquestrais e de concerto da época. Entre muitas outras,
podem ser citadas em ordem cronológica de fundação ou
reabertura:

• 1801 Restabelecimento da Chapelle Royale (Capela


Real) em Paris;
• 1809 Berliner Liedertafel (Clube de Canto Coral
Masculino de Berlim);
• 1811 Singverein (Assossiação de Canto) em
Heidelberg;
Alexander Scriabin

• 1812 Gesellschaft der Musikfreunde (Sociedade dos


Amigos da Música) em Vienna;
• 1813 Philharmonic Society (Sociedade Filarmônica)
em Londres;
• 1815 Handel and Haydn Society (Sociedade Händel
e Haydn) em Boston;
• 1820 Musical Fund Society (Sociedade de Fundos
para Música) na Filadélfia;
• 1823 Sacred Music Society (Sociedade de Música
Sacra) em Nova Iorque;
• 1832 Sacred Harmonic Society (Sociedade
Harmônica Sacra) em Loncres;
• 1833 Italian Opera House (Teatro de Ópera Italiana)
em Nova Iorque; Orphéon (Orfeão) em Paris
• 1836 Copenhagen Musikforening (Sociedade de 57
Música de Copenhague);
• 1837 Reconstrução do teatro de ópera La Fenice (A
Fênix) em Veneza;
• 1842 Philharmonic Symphony Society (Sociedade
Sinfonia Filarmônica) em Nova Iorque; Wiener
Philharmoniker (Filarmônica de Viena);
• 1851 Crystal Palace (Palácio de Cristal) em Londres;
• 1852 New Philharmonic Society (Nova Sociedade
Filarmônica) em Londres;
• 1854 Tonkünstlerverein (Sociedade de Artistas da
Música) em Dresden;
• 1857 Sociedad Euterpe em Barcelona; Teatro Colón
em Buenos Aires;
• 1858 Wiener Singakademie (Academia Coral
Vienense);
• 1859 Sociedade Musical Russa de São Petersburgo;
FRONTEIRAS DA MÚSICA

• 1860 Séances Populaires de Musique de Chambre


(Apresentações Populares de Música de Câmera) em Paris;
• 1866 Sociedad de Conciertos em Barcelona;
• 1870 Sociedade Musical de Varsóvia;
• 1878 People’s Concert Society (Sociedade de
Concertos do Povo) em Londres 2.

Também no Brasil, podem ser observadas iniciativas


semelhantes:
• 1808 Capela Real no Rio de Janeiro;
• 1813 Real Teatro de São João no Rio de Janeiro;
• 1815 Assembleia Portuguesa no Rio de Janeiro;
• 1831 Sociedade Filarmônica no Rio de Janeiro;
58 Sociedade de Beneficência Musical no Rio de Janeiro;

• 1857 Empresa de Ópera Lírica Nacional no Rio de


Janeiro;
• 1860 Sociedade Particular de Música Prazer da Nova
Aurora no Rio de Janeiro;

• 1867 Clube Mozart no Rio de Janeiro;


• 1863 Clube Haydn em São Paulo;
• 1882 Clube Beethoven no Rio de Janeiro;

• 1883 Sociedade de Concertos Clássicos no Rio de


Janeiro; Sociedade de Quarteto Paulistano em São Paulo;
Sociedade Coral Clube Mendelssohn em São Paulo.

2A respeito desse assunto, ver também o capítulo 18, “O advento do


concerto público”, em RAYNOR (1981).
Alexander Scriabin

A partir da segunda metade do século XVIII, há uma


abordagem diferenciada em relação à estética que busca uma
liberação de seus laços com a metafísica. E, nesse sentido, a
contribuição de Immanuel Kant (1724-1804) é determinante
para as discussões sobre esse tema no século seguinte:

A concepção de Kant sobre experiência legitimou uma


abordagem ao conhecimento que tratava a ciência natural,
moral e estética como domínios separados, cada qual com
sua própria lógica interna, cada qual requerendo uma forma
de averiguação especializada que era autônoma das outras
(ADAMSON, 2007, p. 29).

Isso reflete “o declínio de um modo hierárquico,


religioso e metafísico de organizar e legitimar a ordem
cultural” ((ADAMSON, 2007, p. 29).
A valorização do passado musical, por seu turno, 59
contribui para o desenvolvimento da noção de autonomia em
música, especialmente da música instrumental, ou seja, uma
gradativa liberação de suas atribuições retóricas ou descritivas
e de suas funções sociais previamente estabelecidas. Nesse
contexto, quatro aspectos devem ser ressaltados:
1) A disseminação de concertos públicos com obras
instrumentais de diversos períodos da história cria um
ambiente específico para a música, liberado, pelo menos
teoricamente, de quaisquer aspectos extramusicais, ou
seja, o ouvinte vivencia a música em si, sem que ela esteja
associada a uma função predeterminada – a função passa a
ser o concerto em si como evento social. Mesmo levando-
se isso em consideração, vê-se a consolidação social e a
eventual conscientização individual da função
eminentemente estética da música. Obviamente, isso não
quer dizer que o ouvinte não possa criar suas próprias
projeções extramusicais a partir da obra escutada e
projetar na música alguma interpretação desde
meramente descritiva a transcendental.
2) A valorização do compositor e da obra musical passa por
uma profunda transformação. Como escreve Jim Samson,
FRONTEIRAS DA MÚSICA

o projeto de autonomia também encontrou expressão e apoio


no mundo das ideias, inicialmente através da ascenção da
estética [...] e, mais tarde, através de um crescimento
exponencial da crítica musical – uma resposta direta e
imediata à substituição de julgamentos funcionais pelos
estéticos. Basicamente, isso resultou em dois
desenvolvimentos relacionados: uma progressiva
centralização no compositor e um foco crescente na obra
musical (2004, p. 11-12).

3) Assiste-se, no decorrer do século XIX, a vários embates


entre tendências de exegese expressiva e formalista da
música. Na primeira metade do século XIX há,
indubitavelmente, um predomínio de teorias estético-
musicais que se centralizam nas questões da expressão de
sentimentos. Entre muitas outras especulações, vale a
pena relembrar a pouco conhecida de Jean François Le
Sueur (1760-1837) que desenvolveu a noção de “música
60 hipocrítica”, retomando e expandindo um conceito que
Jean-Baptiste Dubos, ou Du Bos (1670-1742), explanara na
seção XIII do terceiro volume de suas Réflexions critiques
sur la poesie et sur la peinture. Segundo o escrito de
Dubos, o termo hipócrita designava, na antiga Grécia, o
comediante de teatro e a música hipocrítica tinha como
função acompanhar a sua pantomima (1719/1740,
passim). A visionária teoria de Le Sueur, por seu turno,
previa que, em breve, o desenvolvimento da música se
subordinaria a uma temática literária (LAMY, 1912,
passim). Essa teoria estimulou definitivamente um aluno
de composição de Le Sueur, Hector Berlioz (1803-1869), à
busca de uma música que receberia posteriormente o
epíteto de programática. Na segunda metade do século
XIX, entretanto, a tendência de exegese formalista ganha
fôlego, especialmente a partir de teoria de Eduard
Hanslick, apresentada em seu Vom Musikalisch-Schönen
(Do belo musical)3, do qual pode-se relembrar o muito
citado trecho:

3Para a questão da teoria da autonomia da música de Michel-Paul Guy


de Chabanon (1730-1792), ver TOMÁS (2011).
Alexander Scriabin

Pergunte-se, agora, o que deve ser expresso com este


material sonoro [melodia, harmonia, ritmo e timbre], e a
resposta diz: ideias musicais. Mas uma ideia musical trazida
integralmente à manifestação já é o belo autônomo, é
finalidade em si e, por sua vez, de maneira alguma, meio ou
material da representação de sentimentos e pensamentos.
O conteúdo da música são formas sonoras movidas (1989, p.
59).

4) Observa-se, no decorrer do século XIX, uma escalada do


estranhamento do público em relação a determinadas
obras musicais contemporâneas. Este estranhamento,
aliado a uma disponibilidade cada vez maior do repertório
histórico e de obras mais próximas ao gosto do ouvinte
“médio”, faz crescer a distância entre a criação musical do
momento e o público. Como consequência, começam a se
formar grupos de artistas empenhados na discussão
pública de seus objetivos estéticos e na busca de espaços 61
para divulgação de sua produção artística. Tais grupos
reproduzem, de certa maneira, as estratégias de grupos
políticos da época que agiam em defesa de ideais
republicanos e, em um segundo momento, esquerdistas. É
um fenômeno que se tornará a estratégia básica em uma
etapa posterior que se convencionou chamar de época das
vanguardas heróicas. Como precursores desse fenômeno
podem ser citados dois grupos que se formaram na
Alemanha. O primeiro, literário, foi chamado Junges
Deutschland (Alemanha Jovem), nome popularizado por
um escrito de 1834 de Ludolf Wienbarg (1802-1872). Em
1835, a câmara federal alemã proibiu a publicação de
escritos de vários membros deste grupo – entre outros,
Heinrich Heine (1797-1856), Theodor Mundt (1808-1861)
e Karl Gutzkow (1811-1878). O segundo, musical, foi
chamado de Neudeutsche Schule (Nova Escola Alemã),
título criado em 1859 por von Franz Brendel (1811-1868),
crítico e musicólogo, editor da Neue Zeitschrift für Musik
(Nova Revista de Música) para designar o grupo de
compositores em torno de Franz Liszt, entre outros, os
hoje esquecidos Richard Pohl (1826-1896), Hans von
Bronsart (1830-1913), Alexander Ritter (1833-1896),
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Felix Draeseke (1835-1913) e Carl Tausig (1841-1871).


Diga-se, de passagem, que este grupo foi mais uma
invenção jornalística do que uma real iniciativa dos
compositores mencionados.
Não há dúvida que os vários fenômenos sociais e
culturais comentados acima condicionaram muitos dos
aspectos que podem ser observados ainda hoje na vida e na
atuação profissional do artista republicano.

II. O Simbolismo, um movimento internacional


Já há várias décadas, a crítica enfatiza a relação estreita
entre os movimentos impressionista, decadentista e simbolista.
Não é o caso de discutir esse tópico aqui, mas espero que o
leitor leve em consideração que as elisões e eventuais lacunas
que ocorrem a seguir devem ser preenchidas pelo seu
conhecimento prévio ou por suas pesquisas posteriores.
62
Clive Scott, em artigo intitulado “Simbolismo,
decadência e impressionismo”, comentando a sintaxe de
Stéphane Mallarmé, menciona aquela que pode ser considerada
uma das principais características do movimento simbolista: “A
sintaxe excêntrica, mas extremamente meticulosa, de Mallarmé
descentraliza a frase, mais desafiando do que pronunciando
uma solução” (1998, p. 167). Ao mencionar essa recusa em
pronunciar uma solução, o autor nos remete ao fato de que a
arte simbolista mais sugere do que expõe, abrindo amplos
espaços interpretativos para o fruidor. O próprio Mallarmé
estava consciente dessa característica quando escreveu:
“Evocar, numa sombra deliberada, o objeto silenciado, por
palavras alusivas, nunca diretas, reduzindo-se a um silêncio
igual comporta uma tentativa próxima do criar ...” (apud
SCOTT, 1998, p. 169). A sugestividade das artes simbolistas
desencadeou diversas tendências, formalistas, míticas, místicas,
propiciando ao movimento uma ampla gama de possibilidades
que seduziu artistas em várias regiões da Europa e das
Américas.
No texto “O simbolismo” de Jean Moréas (1987, p. 62-
65), pseudônimo de Ioannis Papadiamantopoulos (1856-1910),
Alexander Scriabin

considerado um manifesto simbolista, percebem-se algumas


estratégias discursivas que se tornarão distintivas de vários
manifestos posteriores de outros movimentos:
1) A validação estética pelo estabelecimento de uma
linhagem, eventualmente fictícia, de criadores
considerados precursores do movimento. Nesse sentido,
Moréas menciona os nomes dos poetas Charles Baudelaire
(1821-1867), Théodore Banville (1823-1891), Stéphane
Mallarmé (1842-1898) e Paul Verlaine (1844-1896) (1987,
p. 63).
2) O reconhecimento do esgotamento das formas de
expressão da arte: “[...] toda manifestação da arte chega
fatalmente a se empobrecer, a se esgotar; então, de cópia
em cópia, de imitação em imitação, o que foi pleno de seiva
e de frescura se desseca e se encarquilha; o que foi o novo e
o espontâneo se torna o vulgar e o lugar comum” (1987, p.
62). Tal processo de esgotamento, que em épocas
anteriores poderia se manifestar no decorrer de várias 63
gerações, sofre uma clara aceleração no decorrer do século
XIX e faz surgir um discurso enfático em defesa dos
conceitos de progresso ou avanço em arte e de tabula rasa
– que não serão discutidos aqui.
3) Uma avaliação negativa da crítica e do público fruidor de
arte:

Uma nova manifestação de arte era portanto esperada,


necessária, inevitável. Esta manifestação, preparada desde
muito tempo, acaba de aparecer. E todos os anódinos
gracejos dos jornalistas confiantes da imprensa, todas as
inquietações dos criticos graves, todo o mau humor do
público surpreendido na sua indolência imitadora, não fazem
senão afirmar cada dia mais
a vitalidade da evolução atual nas letras francesas [...] (1987,
p. 62-63).

Percebe-se claramente um tom de confrontação com a


crítica e o público em geral, considerados agora inimigos da
FRONTEIRAS DA MÚSICA

mensagem artística de grupos que, no decorrer do século XIX,


foram sendo colocados à margem dos circuitos de divulgação
artística tradicionais. Vê-se aí uma das causas da criação de
espaços alternativos para a divulgação de tais grupos, sejam
novas galerias, novas mostras de arte, novos periódicos, busca
de novos espaços para apresentações, novas séries de
concertos etc.
Dois aspectos do Simbolismo relevados por Scott
devem ser relembrados aqui:
1) O despertar de uma aguda consciência da
linguagem:

A linguagem deixou de ser tratada como um afloramento


natural da pessoa, sendo agora vista como um material com
suas leis próprias e suas formas específicas de vida. A
plausibilidade da poesia simbolista estabelecida deve muito à
64 nossa percepção de que a distância reflexiva entre o poeta e a
linguagem é escrupulosamente percorrida (SCOTT, 1998, p.
171).

Apesar das diferenças entre a linguagem poética e a


linguagem musical e do perigo de comparações superficiais,
pode-se transferir essa noção de despertar da consciência da
linguagem para a criação de dois dos mais simbolistas dos
compositores: do francês Claude Debussy (1862-1918),
especialmente a partir do Prélude à l’après-midi d’un faune, e
do russo Alexander Scriabin (1872-1915), de seu segundo
período criativo em diante, a partir de 1903. A renúncia à
sintaxe musical tonal tradicional, especialmente no que se
refere à fraseologia, às técnicas de desenvolvimento, aos
encadeamentos harmônicos e à forma espelha claramente o
grau de conscientização que eles alcançaram em relação a essa
sintaxe e ao esgotamento de suas possibilidades expressivas.
2) A expressão da profundidade no Simbolismo: “É
claro que existem técnicas literárias disponíveis. Talvez a mais
corrente seja a repetição, com a qual uma palavra, uma
sensação, torna-se um sortilégio, conferindo a si e ao seu
contexto um caráter abstrato misterioso” (SCOTT, 1998, p. 175).
Alexander Scriabin

Novamente, há um paralelo possível com a criação musical de


Debussy e Scriabin. Devido a seu afastamento das técnicas de
desenvolvimento consagradas pela tradição musical austro-
alemã, com seus grandes arcos melódicos, percebem-se
inúmeras nuances de repetição em suas obras, geralmente de
motivos ou ideias rítmico-melódicas de pequena duração que,
submetidos a procedimentos contínuos de justaposição, criam
um decurso sonoro absolutamente inédito para a época.
Entre os precursores do Simbolismo mencionados por
Moréas, está Baudelaire4. De maneiras similares, Baudelaire e
Arthur Rimbaud (1854-1891), aquele em seu poema
Correspondências, escrito por volta de 1855, e este em seu
texto Alquimia do verbo, de 1873, apelam para imagens
sinestésicas. Em Baudelaire, lê-se “as cores e os sons se
correspondem” (1987, p. 45) e, em Rimbaud (1987, p. 48), “Eu
inventei a cor das vogais! – A negro, E branco, I vermelho, O
azul, U verde”. Tais analogias, primárias e absolutamente
subjetivas, vão ser um elemento recorrente em escritos e obras 65
de vários simbolistas de décadas posteriores em diversos
países. Os títulos sugestivos de Debussy e Scriabin, os deste
último tendendo a imagens místicas, são um apelo sinestésico à
fantasia do ouvinte, um estímulo a uma fruição não somente
abstrata das estruturas sonoras ouvidas. Mas a tendência de
uma escuta formalista convive simultaneamente com esta
tendência sinestésica, como pode ser constatado nesta
assertiva de 1912 feita por Arnold Schoenberg (1874-1951): “A
suposição de que uma peça musical deveria despertar ideias de
qualquer natureza – e se não o faz, ela não teria sido
compreendida ou não valeria nada – é tão difundida como
somente o falso e o banal conseguem ser” (2013, p. 69).
Voltando a Baudelaire, também se deve mencionar seu
empenho, na década de 1860, na defesa da música de Richard
Wagner (1813-1883). Em 1861, Paris assistiu à conturbada
apresentação de seu drama musical Tannhäuser, muito mal
recebido pelo público e pela crítica em geral, mas que
desencadeou uma verdadeira febre entre intelectuais da

4A relação estética entre Edgar Allan Poe (1809-1849) e Baudelaire


não será discutida aqui. Para isso, ver PHILIPPOV (2004).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

cidade. Não se pode desprezar a contribuição dos conceitos


dramático-musicais de Wagner para o Simbolismo francês. Seu
longo ensaio Ópera e drama, escrito entre 1850 e 1851,
apresenta o seu programa para a criação da Gesamtkunstwerk
(obra de arte total) em três partes:
Na primeira parte, “A ópera e a essência da música”, é
feito um ataque à ópera da época e um esclarecimento sobre a
diferença entre poesia e música, sendo esta definida como a
mais perfeita linguagem humana. A segunda parte, “O teatro e a
essência da poesia dramática”, dedica-se ao exame da função da
poesia no drama musical. “Poesia e música no drama do
futuro”, última parte, sintetiza o que seria o drama musical
idealizado pelo autor (MESQUITA, 2015, p. 30).
Nesse programa criativo, vê-se uma tendência de
interação entre as diversas artes, lembrando-se que Wagner,
com o apoio do rei Ludwig II da Baviera, fez inclusive construir
o Festspielhaus de Bayreuth, inaugurado em 1876,
66 especialmente para seus dramas musicais, ou seja, o
compositor acrescentou a seu plano, exposto em Ópera e
drama, a concepção arquitetônica que ele achava adequada
para a representação de suas obras.
Outro aspecto da reflexão wagneriana que deve ser
mencionado nesse contexto é a sua busca de um modelo ideal
para a relação entre teatro e público. Ele encontra tal modelo
“no teatro da antiga Atenas, lá, onde o teatro só abria os seus
recintos em dias sagrados específicos, onde o deleite da arte
era simultaneamente celebrado com uma cerimônia religiosa”
(WAGNER, 1873, p. 136). Nessa unificação do teatro com a
religião, Wagner vislumbrava a possibilidade de “revelar de
maneira compreensível a todo o povo os objetivos mais
sublimes e profundos da humanidade” (WAGNER, 1873, p.
137). Como fonte dramática para o poeta, ele escolheu o mito,

pois nele desaparece, quase que completamente, a forma


convencional do comportamento humano, explicável apenas
pela razão abstrata, para mostrar somente o eternamente
compreensível, puramente humano, mas na inimitável forma
concreta mesma que confere a cada autêntico mito a sua
Alexander Scriabin

forma individual, rapidamente reconhecível (WAGNER,


1873, p. 143).

Para as gerações de simbolistas que buscavam


caminhos para além dos realismo e naturalismo literários, essa
era uma opção que devia ser levada seriamente em
consideração.
A difusão de ideias e obras simbolistas, bem como de
outras manifestações da arte e da ciência a partir da segunda
metade do século XIX, se beneficiaram dos aprimoramentos
dos meios de comunicação impressos de então. Lembrem-se,
entre outros, o aperfeiçoamento da prensa móvel feito por
Isaac Adams (1802 ou 1803-1883), em 1830, e a invenção da
prensa rotativa por Richard March Hoe (1812-1886), em 1843.
Aliada a isso estava uma distribuição mais ágil de jornais e
revistas graças às inúmeras linhas férreas e marítimas
regulares já em funcionamento. Com isso, a influência 67
simbolista se faz internacional e pode ser detectada em vários
países da Europa e das Américas. Sem dúvida, uma das
vertentes mais curiosas é a do Simbolismo russo, pois ela se
reveste de aspectos místicos e religiosos, caros à tradição russa.
O Realismo literário russo havia dado destaque ao país
no panorama europeu aproximadamente a partir da terceira
década do século XIX, sendo Eugene Onegin, um romance em
versos de Alexander Pushkin (1799-1837), a primeira obra a
abrir esse caminho internacional. Seguiram-se outros grandes
nomes, como Nikolai Gogol (1809-1852), Ivan Turgueniev
(1818-1883), Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e Liev Tolstói
(1828-1910). A década de 1880, entretanto, assiste a um
declínio com a morte de Dostoiévski e Turgueniev, e a
preferência de Tolstói pela escrita de ensaios sobre diversos
temas, estéticos, sociais e religiosos entre outros. Além disso,
“críticos de esquerda exigiam [...] obras literárias socialmente
relevantes e ‘progressistas’. Seus oponentes do lado
conservador queriam literatura útil, escritos que expusessem o
bem moral” (PETERSON, 1993, p. 2). Os simbolistas russos
foram os primeiros a propor novas possibilidades após o
predomínio de várias décadas do Realismo em seu país. E essas
FRONTEIRAS DA MÚSICA

possibilidades se revelaram especialmente originais, pois,


enquanto

os franceses eram algo limitados em sua concepção do


Simbolismo, vendo-o no máximo como um caminho para a
escrita, alguns simbolistas russos queriam fazer de seus
conceitos simbolistas um sistema filosófico inteiro, uma visão
de mundo que poderia abarcar todo o pensamento
(PETERSON, 1993, p. 6).

Dentre vários literatos que são considerados


precursores do Simbolismo russo, dois podem ser destacados:
1) O poeta Afanasi Fet (1820-1892). Seus poemas ganharam
notoriedade a partir de 1842, ao serem publicados em revistas
como Moskwitjanin (O Moscovita) e Otetschestwennye Sapiski
(Anais da Pátria). Sua obra é lírica e impregnada por
68 melancolia e tragédia. Em um ensaio de 1867 sobre música e
poesia, escreveu:
As palavras “poesia é a linguagem dos deuses” não são uma
hipérbole vazia, mas adequadas para uma compreensão clara
da essência da questão. Poesia e música são não somente
relacionadas, mas também indivisíveis. Todas as obras
poéticas eternas dos profetas Goethe e Pushkin são, inclusive,
obras musicais em sua essência – canções. Todos esses
gênios de profunda clarividência abordam a verdade não
através da ciência, não através da análise, mas através da
beleza, através da harmonia. Harmonia é idêntica à verdade.
Onde quer que a harmonia seja rompida, a realidade também
é rompida e, com ela, a verdade (Apud DAMARÉ, 2008, p. 12).

Percebe-se aqui um mesmo intuito de interação entre


artes, nesse caso poesia e música, interação que foi cultivada
por inúmeros simbolistas. Uma tradição que pode nos remeter
novamente à Antiguidade grega, com o seu conceito de
unificação entre poesia e música que se manifestava no
ditirambo, na comédia, na tragédia e entre os rapsodos.
2) Vladimir Solovyov (1853-1900), poeta e filósofo. Ele
articulou
Alexander Scriabin

a imagem mística de uma “Sophia Divina” tanto em conceitos


teóricos como símbolos poéticos. Sua ênfase no papel
humano no “processo humano-divino” que cria ambos os
seres cósmico e histórico, levou a acusações de heresia por
parte de tradicionalistas ortodoxos russos (KLINE, 1999, p.
862).

Filho do historiador Sergei Solovyov (1820-1879), ele


defendia uma filosofia da unidade total influenciada pelo
pensamento europeu, especialmente Baruc Spinoza (1632-
1677), Friedrich von Schelling (1775-1854) e Arthur
Schopenhauer (1788-1860)5 e fé ortodoxa. Ele profetizava que
“o artista do futuro invocaria “forças sobrenaturais” para
transfigurar o mundo existente; ele havia definido beleza
artística como “a transfiguração do material através da
incorporação nele de algum outro princípio mais elevado que o
material” (BROWN, 1979, p. 48). Percebe-se, aqui, um intuito
de transformar o resultado artístico em algo permeado por
69
uma função mística – ou mistificadora... Veremos, adiante, que
este será um conceito fundamental para Scriabin.
Sua filosofia da história é marcada pela proposta de um
estado teocrático sob a égide de uma igreja cristã reunificada.
Ele compreendia a unidade total no pensamento como a
essência do cosmo, tanto na vida individual como social. No
correr dos anos, ele reconhece cada vez mais que a igreja
ortodoxa russa não estava em condições de cumprir a sua
missão profética, especialmente devido à sua relação estreita
com o Estado russo. A partir de 1881, ele se aproxima
gradativamente da igreja católica romana, na qual ele via a
força moral e os princípios cristãos mais claramente
representados que na ortodoxia e no protestantismo. Nos anos
que se seguiram, entretanto, seus pontos de vista se tornaram
mais e mais sombrios, até que

5Para uma exposição de ideias de Schopenhauer sobre música, ver


MESQUITA (2015).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

[...] no final de sua vida, Solovyov ofereceu (em Três palestras


sobre guerra, progresso e o fim da história, 1900) uma visão
apocalíptica contrastante de desastre histórico e cósmico,
incluindo a aparição, no século XXI, do Anticristo (BROWN,
1979, p. 48).

Segundo Peterson, é costume assinalar o início do


Simbolismo russo em 1892, ano em que Dmitri Mereshkovski
(1866-1941)

publicou um volume de poesia entitulado Símbols e


ministrou palestras em São Petersburgo e Moscou sobre “As
razões do declínio e as novas correntes na literatura russa
contemporânea”. Em setembro de 1892, um grande artigo
sobre poetas simbolistas da França foi publicado em Vestnik
Evropy (O mensageiro europeu) e, mais tarde naquele ano,
uma série de artigos sobre [Friedrich] Nietzsche [1844-
70 1900] começaram a aparecer em um jornal dedicado a
filosofia e psicologia (1993, p. 13).

A obra de Mereshkowski é impregnada pela ideia do


conflito entre o Cristo e o Anticristo, bem como por elementos
do misticismo ortodoxo grego. Ele também ficou conhecido
pelas biografias escritas sobre grandes personalidades, entre
outras, Joana D’Arc, Dante, Leonardo Da Vinci, Napoleão e Adolf
Hitler, cujo governo ele apoiava. Sua esposa, Zinaida
Nikolaevna Hippius (1869-1945), considerada “uma melhor
poeta do que seu marido” (1993, p. 16), viveu para apoiar seu
marido e assinava seus ensaios com pseudônimo masculino ou
com S. Hippius para ocultar o sexo do autor. Críticos admiram o
acabamento e o laconismo de sua poesia.
No ano seguinte, 1893, o poeta Valery Briusov (1873-
1924), publicou a antologia Simbolistas russos. Briusov
estudou história e filosofia na Universidade de Moscou.
Traduziu autores simbolistas franceses e belgas. Ele é
considerado o líder dos simbolistas de primeira hora, enquanto
Mereshkowski é considerado seu ideólogo.
Alexander Scriabin

Já na virada do século XIX para o XX, destaca-se a figura


do poeta e ensaísta Viacheslav Ivanov (1866-1949). Nessa
época ele elaborou sua visão da missão spiritual de Roma e do
antigo culto grego a Dionísio. Reuniu suas idéias dionisíacas no
tratado A religião helênica do deus do sofrimento (1904), que
segue o curso das raízes da literatura em geral e em particular
da arte da tragédia, seguindo O nascimento da tragédia de
Nietzsche, até os antigos mistérios dionisíacos.
Citando Bernice Rosenthal, Damaré esclarece outra
influência sobre o Simbolismo russo, a de Nietzsche:

O simbolismo russo deriva de muitas fontes [...] Mas


Nietzsche foi mais importante. Sua filosofia forneceu ao
simbolismo russo a sua ala combatente; ela possibilitou a
seus admiradores amalgamar uma miscelânea de atitudes em
uma doutrina militante.” O fato de Nietzsche classificar a
música como a representação da arte dionisíaca, ajuda a
explicar o seu status elevado, senão idealizado, entre os 71
simbolistas russos (2008, p. 23).

Já na primeira década do século XX, podem ser


distinguidas duas tendências no movimento simbolista russo.
Uma formalista, defendida por Briusov, prega a poesia pela
poesia. Outra, mística, concebida a partir de conceitos de
Solovyov, permeia a poesia de Andrei Biély, pseudônimo de
Boris Nikolaevich Bugaev (1880-1934), e o já citado Ivanov,
que considerava a poesia ancilla theologice, serva da teologia
(BROWN, 1979, p. 48).
Se no decorrer da primeira metade do século XIX havia
se desenvolvido um conceito de autonomia estética, como
discutido na primeira seção deste artigo, vê-se que no decorrer
da segunda metade do mesmo século ocorre uma gradativa
confluência da arte e da religião ou da arte e do misticismo em
alguns movimentos artísticos e determinadas teorias estético-
filosóficas. E, nesse contexto, a facção mística dos simbolistas
russos é um dos exemplos mais significativos. Tal confluência é
um reflexo da perda de poder e importância das instituições
religiosas estabelecidas, bem como sua cada vez mais
FRONTEIRAS DA MÚSICA

reconhecida incapacidade de dar respostas satisfatórias para


seus adeptos que vivenciavam – e vivenciam –, nem sempre
sem sofrimento e estupefação, um mundo em profunda
mudança. Como resume Adamson: “intelectuais [...] buscaram
um novo refúgio espiritual para si mesmos sob o estandarte do
Romantismo em uma religião da arte quase secularizada, uma
que, não infrequentemente, serviria como estação temporária
no caminho de um reencontro com o mundo que eles haviam
perdido” (2007, p. 46). O que devemos nos perguntar é se essa
“estação temporária” seria um reencontro ou se se tratava de
um refúgio.

III. Alexander Scriabin e o Simbolismo russo

Ralph Matlaw relata que o Poema do êxtase op. 54 de


Scriabin “devia ser transmitido [pelas rádios e TVs soviéticas]
72 quando Yuri Gagarin fez o primeiro voo ao espaço e,
novamente, quando ele foi recepcionado na Praça Vermelha,
em 15 de abril de 1961” (1979, p. 2). Essa curiosidade histórica
comprova que a música do compositor russo ainda podia
causar impacto e servir de trilha sonora para um momento tão
especial para o povo e a política da extinta União Soviética.
Além disso, demonstra o processo de redescoberta e
reavaliação do compositor nesse Estado, especialmente após a
morte de Josef Stalin (1878-1953).
Scriabin faz parte de uma geração pós-Grupo dos
Cinco6, juntamente com Alexander Glazunov (1865-1936),
Sergei Rachmaninoff (1873-1943), Nicolai Tcherepnin (1873–
1945) e Reinhold Glière (1875-1956), entre outros. Isso quer
dizer que esta geração não estava mais tão empenhada na

6Este grupo, patroneado pelo crítico musical Vladimir Strasov (1824-


1906), era constituído pelos compositores Alexander Borodin (1833-
1887), César Cui (1835-1918), Mily Balakirev (1837-1910), Modest
Mussorgski (1839-1881) e Nicolai Rimsky-Korsakov (1844-1908). O
nome do grupo em russo, Moguchaya Kuchka, significa “poderoso
montinho”.
Alexander Scriabin

utilização de elementos folclorísticos russos em sua criação


para consolidar uma música nacional russa e procurava se
estabelecer profissionalmente no contexto cultural europeu
sem elementos musicais que pudessem ser classificados de
exóticos. Obviamente, tal projeção internacional só foi possível
com o prestígio granjeado pelas gerações anteriores dos
pioneiros da música russa, como Alexander Aliabiev (1787-
1851), Alexander Varlamov (1801-1848), Alexander Guriliov
(1803-1858), Mikhail Glinka (1804-1857) e Alexander
Dargomyski (1813-1869), do próprio Grupo dos Cinco e de
compositores que não estavam ligados a este grupo, como
Anton (1829-1894) e Nikolai Rubinstein (1835-1881) e Piotr
Ilitch Tchaikovsky (1840-1893), por exemplo.
Nascido em uma família de militares aristocratas,
Scriabin frequentou uma escola de cadetes em Moscou, cujo
diretor era um tio seu, enquanto recebia ensinamento musical
no próprio círculo familiar e com professores particulares.
Estudou piano e composição no conservatório de sua cidade 73
natal entre 1888 e 1892. Em 1894, conheceu Mitrofan Belyayev
(1836-1904), que se tornou seu editor e mecenas e organizou
sua primeira turnê internacional em 1895-1896. Em suas
apresentações como pianista, o compositor apresentava quase
que exclusivamente suas próprias obras. Por intermédio do
diretor do Conservatório de Moscou, Vassili Safonov (1852-
1918), Scriabin passou a frequentar, no inverno de 1895-1896,
a residência do riquíssimo homem de negócios Mikhail
Morozov (1870-1903), o qual se tornou seu mecenas. Entre
1898 e 1903, o compositor foi professor de piano no
Conservatório de Moscou e, para complementar a enda
familiar, era inspetor de música no Instituto Santa Catarina da
mesma cidade. O apoio financeiro de Mikhail Morozov teve seu
prosseguimento, após a morte deste, por parte de sua viúva,
Margarita Morozowa (1873-1958). Graças a uma pensão anual
de 2 milhões de rublos concedida por ela entre 1904 e 1908, o
compositor pôde viver sem dificuldades na Suíça7, Bélgica,

7 Neste país, frequentou o Congresso Internacional de Filosofia


ocorrido em Genebra entre 4 e 8 de setembro de 1904, revelando seu
interesse em aprofundar seus conhecimentos nessa área
(TAGLIATELA, 1994, p. 25).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Itália e França. Diga-se, de passagem que a senhora Morozova


apoiou financeiramente membros da família de Scriabin após a
morte deste. Por este resumo biográfico, pode-se concluir que o
compositor russo ainda se encontra em um estágio
intermediário de atuação profissional, tal como o caso de
Beethoven havia sido classificado na primeira seção deste
artigo, com duas diferenças principais:
1) Os mecenas daquele eram ricos negociantes e os deste,
aristocratas, o que reflete a transformação sócio-
econômica sofrida pela Europa, através da qual a burguesia
assumia cada vez mais o comando das atividades
comerciais e financeiras de seus respectivos países.
2) Embora algumas das peças curtas para piano de Scriabin
pudessem ser tocadas por um pianistas diletantes, as obras
musicais publicadas por ele não faziam concessões ao
gosto do público “médio” de sua época e não eram
adequadas à prática da Hausmusik, como aquelas de
74 Beethoven listadas na primeira seção.
Muito se menciona a ligação de Scriabin com a teosofia.
De fato, ele frequentou reuniões da Sociedade Teosófica Adyar
na Bélgica dirigida pelo pintor belga Jean Delville (1867-1953),
o qual, diga-se de passagem, fez o desenho de capa da primeira
edição da partitura do poema sinfônico Prométhée. Le poème
du feu (Prometeu. O poema do fogo) op. 60 (1908-1910),
publicada em 1911. Em carta de 8 de maio de 1905 à sua então
amante Tatiana de Schloezer (1883-1922), irmã do musicólogo
Boris de Schloezer (1881-1969), pode-se ler: “A chave da
Teosofia [de Helena Blavatskaya (1831-1891)],é um livro
notável, você ficará surpreendida como ele está próximo de
meu pensamento” (Apud BROWN, 1979, p. 42). Mas este
mesmo autor adverte que
seu envolvimento com a Teosofia parece ter desviado a
atenção de outra influência mais imediata e [...] mais
profunda para o desenvolvimento pleno de suas noções
idiossincráticas sobre música: o movimento no pensamento
russo do século XIX tardio conhecido como Simbolismo
(BROWN, 1979, p. 42).
Alexander Scriabin

Sriabin foi amigo de vários artistas simbolistas, entre


outros, os poetas Jurgis Baltrusaitis (1873-1944), Constantine
Balmont (1867-1942) e Vyacheslav Ivanov, o qual conheceu em
1909. Em relato ao musicólogo e compositor Leonid Sabaneyev
(1881-1968), Scriabin teria declarado: “Ele [Ivanov] está tão
próximo de mim e de meu pensamento, como ninguém mais”
(BROWN, 1979, p. 43). O compositor fez suas incursões
poéticas, buscando expressar suas convicções místicas.
Percebe-se a influência de Friedrich Nietzsche, especialmente
na incorporação dos conceitos de liberdade artística e do
super-homem. As incursões poéticas de Scriabin não serão
discutidas aqui, mas uma pequena amostra de seus versos,
usados como epígrafes de obras instrumentais ou como base
para obras vocais, demonstra que ele não ultrapassou o nível
de um diletante de pouco talento e de um misticismo crasso, se
é que todo misticismo não é crasso. Até mesmo um scriabinista
confesso como Sabaneyev escreveu: “Seus escritos insensatos
podem ter estimulado sua criatividade em música, mas eu devo
confessar que tudo que ele deixou no campo do verso ou textos 75
para música não alcançou muito artisticamente” (SABANEEFF,
1966, p. 264). O sexto movimento, Andante, da Sinfonia nº 1 op
26, de 1900, apresenta as seguintes duas primeiras estrofes,
cantadas respectivamente pelos meio-soprano e tenor:

Símbolos puros do Deus vivo,


Sublimes leis da harmonia,
Nós vos entregamos nossos corações fervorosos
E vossas maravilhas são abençoadas!

Oh, tu, esplêndida visão,


Que nos exaltas, nos serena,
Nenhum dom sobre a terra onde reinamos
Vale teu sonho nem tua graça! (SCRIABIN, 1900, p. 102-103)

Enquanto que a última estrofe é confiada ao coro:

Vinde, então, povos deste mundo,


Cantai um hino santo à Arte!
Glória à Musa, triunfo e glória!
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Sim, glória à Musa, triunfo e glória! (SCRIABIN, 1900, p. 120-


131)

Na Sonata nº 5 para piano op. 53, de 1907, o


compositor apresenta a seguinte epígrafe, retirada de seu
Poema do êxtase, título, aliás, de seu poema sinfônico
orquestral, op. 54, composto entre 1905 e 1908:

Eu vos invoco à vida, oh forças misteriosas!


Submersas nas obscuras profundezas
Do espírito criador, tímidos
Esboços de vida, eu vos trago a audácia. (SCRIABIN, 1971, p.
93)

Por volta de 1909, uma outra fonte de inspiração


simbolista, a sinestesia, o estimula. Não há certeza se o
compositor de fato “sofria” de sinestesia, tal como a psicologia
76
a define. Seja como for, ele começa a fazer suas especulações a
respeito da relação entre tonalidade musical e cor, para as
quais ele tinha, entre outros, o antecedente histórico dos
conceitos que o jesuíta e matemático Louis-Bertrand Castel
(1688-1757) havia desenvolvido a partir de 1725. Existem,
entretanto, três diferenças fundamentais entre as ideias de
Castel e Scriabin:
1) Castel associou cores a notas da escala cromática, enquanto
Scriabin associou-as a centros tonais, sendo que, em suas
tabelas, ele não usou a “extensão ‘dur’, isto é, maior. [...]
porque em Prometeu [op. 60], a harmonia de Scriabin já
estava praticamente além da moldura do sistema
tradicional maior/menor” (GALEYEV; VANECHKINA, 2001,
p. 259).
2) Enquanto Castel apresenta a relação entre notas e cores
cromaticamente de dó a si, Scriabin usa o círculo de
quintas: dó, sol, ré etc.
3) Além de uma cor, Scriabin associou a cada centro tonal um
sentimento, uma característica humana etc.
Alexander Scriabin

Segue-se uma tabela comparativa entre as concepções


de Castel (COTTE, 1990, p. 30) e Scriabin (1911, p. 2):

Nota/Centro Castel Scriabin


tonal
Dó azul vermelho – vontade
Sol vermelho laranja – jogo criativo
Ré verde amarelo – júbilo
Lá violeta verde – matéria
Mi amarelo azul celeste – sonhos
Si azul com azul – contemplação
leve toque
de
vermelho
Fá # / Sol b laranja azul claro ou violeta –
criatividade
Ré b / Dó # verde- violeta ou roxo – vontade do
77
mar espírito criativo
Lá b carmesim violeta ou lilás – movimento do
espírito para a matéria
Mi b oliva brilho do aço – humanidade,
carne
Si b ágata rosa ou aço – luxúria ou paixão
Fá laranja vermelho escuro – diversificação
claro da vontade
Figura 1. Tabela comparativa de cores

Desta comparação depreende-se que no reino da


sinestesia impera mais a subjetividade do que qualquer
fundamento que possa ser levado a sério de fato. Scriabin
colocou sua concepção em prática no poema sinfônico
Prométhée. Le poème du feu op. 60, que previa a utilização de
uma tastiera per luce (teclado para luz). Alexander Mozer
(1879-1958), amigo, discípulo e professor de engenharia
elétrica, construiu o teclado original que, diga-se de passagem,
não foi utilizado na primeira audição da obra em Moscou em
1911, regida por Sergei Koussevitsky (1874-1951),
provavelmente devido à sua limitação técnica (TAGLIATELA,
FRONTEIRAS DA MÚSICA

1994, p. 42)8. A utilização de tal teclado era prevista também


no Mysterium, a obra monumental que ele deixaria inacabada.
Foi por intermédio de Ivanov que o compositor teve
acesso aos conceitos wagnerianos sobre o drama musical que
seriam extremamente importantes para suas reflexões e que
ele expandiria para a concepção do Mysterium. O ensaio de
Ivanov, Wagner e o ato dionisíaco, de 1905, era permeado pela
ideia da arte como celebração: “Pintura almeja os afrescos,
arquitetura almeja reuniões do povo, música almeja coro e
drama, drama almeja música; o teatro aspira unir-se em um
‘ato’ único, a multidão toda congregada para a celebração de
um júbilo coletivo” (Apud BROWN, 1979, p. 48). Este mesmo
autor compara o trecho de Ivanov com a descrição do
Mysterium feita por Scriabin a Sabaneyev em 1911:

Não haverá nenhuma possibilidade para o aspecto individual


no Mysterium. Ele será uma criação coletiva [sobomyi], um
78 ato coletivo. Ele será como uma individualidade toda-
abarcante, multifacetada, como o sol refratado em milhares
de gotas de água (BROWN, 1979, p. 49).

E ainda, com anotações do diário de Anna


Goldenweizer (1881-1929) de 1913: “Não haverá um único
espectador nesse evento artístico. Todos serão participantes”
(BROWN, 1979, p. 49).
Tanto em Wagner e o ato dionisíaco como em um
artigo de 1906, Premonições e augúrios, Ivanov critica a
fórmula proposta por Wagner para a síntese artística, pois ela
não soluciona a lacuna entre audiência e palco. Nesse artigo,
Ivanov aponta que

8Uma versão com luzes desta composição, feita a partir da pesquisa de


Anna Gawboy, da Universidade de Yale, pode ser ouvida em
<https://www.youtube.com/watch?v=V3B7uQ5K0IU>.
Alexander Scriabin

O hierofante Wagner não dá uma voz coral ao público. Por


que não? Ele tem o direito a essa voz, porque não se supõe
que ele seja uma multidão de espectadores, mas um grupo de
orgiastas. [...] Wagner se deteve a meio caminho e não
pronunciou a última palavra. Sua síntese das artes não é nem
harmoniosa nem completa (Apud BROWN, 1979, p. 50).

Seis anos depois, quase que parafraseando Ivanov,


Scriabin diria a Sabaneyev que “o palco é uma barreira entre o
espectador e o intérprete – ele tem que ser abolido”. E
esclareceria:

A audiência, os espectadores, está separada pelo palco ao


invés de estar comungada [com os intérpretes] em um ato
único. Eu não terei nenhum tipo de teatro.
Wagner (e ele com todo seu gênio) não poderia jamais
suplantar o teatral – o palco – nunca, porque ele não
compreendia qual era a questão. Ele não compreendeu que
79
todo o mal nessa separação está no fato de que não há
unidade, nenhuma experiência [genuína], mas somente a
representação da experiência. [...] A verdadeira erradicação
do palco pode ser efetuada somente no Mysterium (BROWN,
1979, p. 50).

O Mysterium foi concebido como uma gigantesca


cerimônia mística que duraria sete dias, culminando com uma
dança orgiástica e o êxtase que significariam o fim da vida e da
civilização existentes até então e sua transfiguração em algo
superior. Com o auxílio de seus colegas da Sociedade Teosófica,
o compositor planejava apresentá-lo na Índia. Percebe-se
claramente, nesse contexto, a tentativa de transpor para a
prática aquilo que Solovyov profetizara ao dizer que “o artista
do futuro invocaria ‘forças sobrenaturais’ para transfigurar o
mundo existente” (BROWN, 1979, p. 48), como mencionado na
seção II acima. Dessa obra, entretanto, Scriabin deixou somente
cerca de 70 páginas de esboços para o “Ato preliminar” que,
FRONTEIRAS DA MÚSICA

várias décadas depois, receberia uma versão por parte do


compositor russo Alexander Nemtin (1936-1999)9.

Devido à sua natureza intrínseca, o Mysterium só poderia ser


apresentado uma vez. O “Ato preliminar”, entretanto, ainda
estava no domínio da arte e poderia ser apresentado várias
vezes. Ele deveria guiar para uma catarse espiritual, unindo
pessoas e arte em um ato místico que as prepararia para o
Mysterium final. Na verdade, Scriabin primeiramente
objetara o termo “preliminar” (predvaritel’nyj) e preferira o
termo “preparatório” (pregotovitel’nyj […]) (MATLAW, 1979,
p. 19).

O regente Koussevitsky teria dito que Scriabin “é tão


ingênuo a respeito de seu Mysterium, que ele pensa que o
mundo inteiro sucumbirá pelo fogo com sua música. Mas o que
acontece, na verdade, é que nós tocamos o Mysterium e depois
80 vamos a um bom restaurante para comer um delicioso jantar”
(Apud SABANEEFF, 1966, p. 263).
Esse projeto é fruto de um místico ingênuo ou de um
psicótico megalomaníaco? É um diagnóstico que vamos deixar
para algum psicólogo estudioso do assunto... Seja como for, o
Mysterium de Scriabin é um monumento inacabado, apontando
para uma aurora que talvez sequer possa existir.

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9 Esta versão pode ser escutada em <


https://www.youtube.com/watch?v=V4YSysUn-Bk>.
Alexander Scriabin

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83
Prolegômena: Gadamer e a música como modelo para
as ciências interpretativas

RAIMUNDO RAJOBAC

El entender no es un método, sino una forma de


convivência entre aquellos que se entienden. Así se
abre una dimensión que constituye la práctica de la
vida misma. La hermenéutica no pretende la
objetivación, sino el escucharse mutuamente.
(Gadamer, Introducción a la hermenéutica filosófica de
Grondin)

I
ensaio pretende apresentar a concepção de música
O gadameriana e a maneira como ela integra os problemas
da compreensão e interpretação na tradição hermenêutica.
Trata-se, portanto, do passo inicial de um processo
investigativo que busca explorar o conceito de música que
perpassa a obra do filósofo. A hipótese básica que conduz
nossas preocupações é a de que discutir música a partir de
Gadamer compromete-nos com o âmbito maior da crítica
epistemológica às ciências da natureza ao passo que nos
possibilita uma revisão conceitual a respeito da música capaz
de nos colocar em diálogo com a tradição e as diversas
experiências musicais do contemporâneo. O ensaio será
conduzido a partir de dois movimentos. Partiremos de algumas
proposições gerais intuídas em Verdade e método, seguidas da
reconstrução interpretativa do escrito Música e tempo.1 A

1 Este ensaio deve ser compreendido a partir de um esforço


interpretativo e introdutório que busca explicitar o papel que a música
ocupa no todo do projeto filosófico gadameriano. Trata-se de fato de
prolegômenos ao problema da música em Gadamer e caracteriza-se
como o primeiro passo de um processo investigativo que demandará a
investigação da obra completa do filósofo, passando por textos
Prolegômena: Gadamer e a música

produtividade de tais preocupações justifica-se, ainda, por se


tratar de um tema pouco explorado: o da música em Gadamer,
bem como pela possibilidade de lançar mão de um conceito
hermenêutico de música capaz de fazer frente a tradições e
perspectivas científico-tecnicistas em música.
O que a experiência com a música pode nos ensinar e
de que maneira ela integra o âmbito maior do estatuto
epistemológico gadameriano? Qual a produtividade de tal
especulação e de que maneira podemos encontrar em Gadamer
não apenas uma preocupação com a música em si, mas uma
investigação conceitual capaz de nos colocar em diálogo com as
experiências musicais do contemporâneo? Essas questões
apresentam-se como fundamentais para a condução da
argumentação pretendida com este ensaio. De maneira
propositiva, abre-se aqui uma exigência dialógica gadameriana,
base fundamental para a hermenêutica. Em Musik und Zeit,
texto de 1988, Gadamer apresenta a seguinte afirmação: “o que
leva adiante o inspirado maestro – e, em princípio, qualquer 85
um de seus músicos [...] – só pode ser, a fim de contas, um
modelo para nós e para as ciências interpretativas” (GADAMER,
1998, p. 92). Com o argumento que segue essa afirmação, o
filósofo procura mostrar que o principal objetivo da
compreensão reside em deixar falar a obra que se nos
apresenta, e não necessariamente a fixação na interlocução dos
intérpretes ou em produções analíticas que comentam tal
interlocução (GADAMER, 1998, p. 92). A opção por tomar como
ponto de partida esse momento do texto adquire forte acepção,
ao passo que o diálogo hermenêutico com a obra de arte
musical torna-se uma dimensão que nos oferece as condições
para pensar o problema da interpretação no contexto da
epistemologia contemporânea, no qual a hermenêutica ocupa
posição de destaque, com a crítica ao método das ciências da
natureza. Em sentido estrito, a reflexão gadameriana sobre a
música mostra-se produtiva, ao tomá-la como problema de
racionalidade capaz de nos conduzir para além do âmbito
técnico-interpretativo fundado na esteira do tecnicismo

específicos sobre problemas musicais e demais referências feitas à


música em diversos outros momentos.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

aplicado, filho da ciência positiva, ou no âmbito racionalista e


subjetivo que confere ao intérprete o poder sobre a obra.
Para chegar à ideia de música como modelo para as
ciências interpretativas, Gadamer parte da relação entre
música e tempo. Já é bem conhecido o papel determinante que
a experiência da arte ocupa no todo do projeto filosófico
gadameriano. Arte, história e linguagem compõem três grandes
partes de Verdade e método, sua obra principal. Mas como
interpretar o papel da música nesse contexto? Ou de forma
mais específica: em que medida a música pode ser
compreendida a partir da crítica gadameriana ao método? É
possível encontrar em vários textos da obra gadameriana
momentos nos quais o hermeneuta lança mão da música como
dimensão capaz de tornar claro seu problema filosófico. Já em
Prefácio à 2ª edição de Verdade e método essa problemática
está bastante clara. A maneira como é posta, além de justificar
o interesse do filósofo pela experiência da arte, vincula-a ao
86 todo de seu projeto entendendo ser a experiência com a obra
de arte musical um exemplo fundamental. Uma boa
compreensão da música vinculada ao todo do projeto
gadameriano passa pelas intenções do filósofo, as quais deixam
claro que sua “[...] investigação coloca a questão do todo da
experiência humana de mundo e da práxis da vida [e,] falando
kantianamente, ela pergunta como é possível a compreensão”
(GADAMER, 2007, p. 16). Nesse contexto, a música converte-se
em problema de racionalidade, ao passo que integra o todo de
nossa experiência de mundo, vinculada à pergunta sobre as
possibilidades da compreensão. O filósofo quer mostrar com tal
argumento que “essa é uma questão que precede a todo
comportamento compreensivo da subjetividade e também ao
comportamento metodológico das ciências da compreensão, as
suas normas e regras” (GADAMER, 2007, p. 16).
Como crítica ao modelo interpretativo herdeiro da
relação dicotômica entre sujeito e objeto, a hermenêutica
gadameriana tem como objetivo mostrar “que a compreensão
jamais é um comportamento subjetivo frente a um ‘objeto’
dado, mas pertence à história efeitual, e isto significa, pertence
ao ser daquilo que é compreendido” (GADAMER, 2007, p. 16).
Daí nosso interesse em buscar na obra gadameriana reflexões e
Prolegômena: Gadamer e a música

considerações sobre a música, integrando-a a seu projeto


filosófico mais amplo, pois, como afirma Gadamer (2007, p. 16),

não posso dar-me por convencido quando me objetam que a


reprodução de uma obra de arte musical é interpretação em
sentido diferente do que, por exemplo, a compreensão que se
dá na leitura de uma poesia ou na observação de um quadro.
Toda reprodução já é interpretação desde o início e quer ser
correta enquanto tal. Nesse sentido, também ela é
‘compreensão’.

Dessa passagem, podem se desdobrar questões


diversas. Para a discussão proposta aqui, cabe observarmos a
posição em que a obra de arte musical se encontra e como
decorre daí o conceito de interpretação. A experiência com a
reprodução da obra de arte musical justifica a ideia de
interpretação que em si já é compreensão. Em sentido
epistemológico-musical, “vale dizer que todo aquele que faz a
87
experiência da obra de arte [musical] acolhe em si a plenitude
dessa experiência, e isto significa, acolhe-a no todo de sua
autocompreensão, onde a obra significa algo para ele”
(GADMAER, 2007, p. 16).
A argumentação conduzida até aqui nos ajuda a
compreender em torno do que giram as preocupações deste
ensaio e, de maneira produtiva, a entender que discutir sobre
música e tempo em Gadamer vincula-nos à tradição
hermenêutica que, de Schleiermacher, passando por Dilthey e
Heidegger, até Gadamer, apresentou uma crítica
epistemológica ao problema do método e da compreensão no
qual o tema da verdade ocupou lugar central. Além das muitas
referências feitas à música em vários momentos de seus
escritos, compõem as Obras Completas de Gadamer três
importantes escritos sobre música. São eles: Goethe und
Mozart – das Problem Oper (1991), Bach und Weimar (1946) e
Musik und Zeit (1988).2 Vale considerar que muitos outros

2
Aqui, não nos deteremos ainda na análise e reconstrução
interpretativa desses escritos. Esse esforço comporá um momento
posterior da pesquisa.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

problemas musicais podem ser encontrados no todo da obra.


Principalmente quando se leva em conta a melodia da
linguagem e a poesia, que não terão nossa atenção durante este
ensaio, embora componham núcleos de interesse no
desenvolver da pesquisa. O caráter introdutório deste ensaio
exige-nos agora uma delimitação. Assim, reconstruiremos
interpretativamente os problemas apontados por Gadamer no
escrito Música e tempo de 1988.

II
A forma como o filósofo introduz o problema passa
pela reposição de algumas tarefas da filosofia, a qual tem como
objetivo entender o pensar, o aspirar e o perguntar humanos e
tornar novamente compreensível o que está aí naturalmente.
Nessa perspectiva, tal tarefa adquire vasta abrangência, de
forma que poucas coisas são capazes de oferecer resistência à
88 insuperável tarefa filosófica do questionamento. Isso já nos é
conhecido na experiência da linguagem, que, levada adiante
por nós, está sempre a ultrapassar barreiras na concepção dos
conceitos. Impõem-se, portanto, como problemática à tarefa do
filosofar toda e qualquer experiência que sugere a nós limites
da linguagem. Para Gadamer (1998, p. 90), é justamente nos
limites da linguagem que se nos apresentam “dois grandes
enigmas que nos atormentam, que são repetidamente
apresentados ao filosofar sem vermos via de solução”: a música
e a matemática. Esses dois campos da formação cultural do
mundo europeu encontram-se, portanto, estreitamente ligados,
de forma quase inseparável durante a história, a ponto de tal
estreiteza poder ser identificada tanto nos pitagóricos quanto
hoje.
No que diz respeito à matemática, o desafio filosófico
está ligado ao fato de o enigma dos números residir apenas em
nossa ação pensante, realidade independente e absolutamente
alheia a nosso domínio. A perplexidade que surge aqui liga-se,
como afirma Gadamer (1998, p. 90), ao fato de estarmos diante
de algo que obedece a sua própria lei. Na mesma condição que
os números se encontra o espaço. Ambos sem aparo no
universo da linguagem. Nesse âmbito, afirma Gadamer (1998,
Prolegômena: Gadamer e a música

p. 90), “os sistemas simbólicos de signos, com cuja ajuda se


articulam, conduzem ao um enigmático apeíron, com que, ao
final das contas, provavelmente inicia-se o pensar humano”. Em
todo caso, o pensar que acompanha a linguagem e nossa
vinculação ao conceito e ao uso de signos revela o desejo
humano em iluminar um mundo inacessível, que está sempre a
se ocultar.
Para Gadamer, a matemática está para além de um
sistema instrumental, o qual por meio dos signos se fixa o
mundo das concepções. Mas o que são os números, a
matemática? E como esse problema pode ser levado a sério a
partir do outro mundo da linguagem que Heidegger denominou
a casa do ser?3 Essa colocação, como é próprio da hermenêutica

3
Para Heidegger (1973), de acordo com a sua Essência, a linguagem é
a casa do Ser, edificada em sua propriedade pelo Ser e disposta a
partir do Ser. Por isso urge pensar a Essência da linguagem numa
correspondência ao Ser e como uma tal correspondência, isto é, como 89
a morada da Essência do homem. Segue a isso a ideia de que o próprio
ser delimita sua circunscrição, que é circunscrita pelo fato (temmein,
tempus) de ele se manifestar fenomenologicamente na palavra. A
linguagem é a circunscrição (templum), quer dizer, a casa do ser. A
essência da linguagem não se esgota na significação, nem é ela apenas
algo que se apresenta como sinal e cifra. Porque a linguagem é a casa
do ser, nós atingimos os entes passando constantemente por essa casa.
Quando vamos ao poço, quando percorremos uma floresta, já sempre
estamos passando pela palavra “poço” e pela palavra “floresta”,
mesmo quando não pronunciamos essas palavras nem pensamos em
algo que se refere à linguagem. Pensando a partir do templo do ser,
podemos presumir aquilo que ousam aqueles cuja ousadia vai além do
ser dos entes. Eles ousam a circunscrição do ser. Eles se aventuram
com a linguagem (HEIDEGGER, 2002). Cabe ainda considerarmos que
uma das originalidades de nossa época é haver descoberto na
temporalidade e historicidade a morada de toda a existência. Em
consequência, o problema do tempo deixa de ser considerado apenas
como o de uma “propriedade” das coisas. Temporalidade e
historicidade são a estrutura do ser do homem e de todo o mundo
humano. Não apenas enquanto ato e dinamismo mas também como
conteúdo, a existência é o vigor de uma configuração histórica. Em
cada momento da vida está em jogo toda a vida no sentido de o sujeito
empenhar a vida inteira durante toda a sua vida. Em cada um de seus
momentos se “com-plicam” todos os demais; os momentos do futuro e
passado se “im-plicam” no presente e o curso histórico não é senão a
FRONTEIRAS DA MÚSICA

gadameriana, põe em xeque a pretensão das ciências da


natureza em traduzir a linguagem de fórmulas em palavras e
conceitos em busca da perda da aparência de univocidade
(GADAMER, 1998). Partindo desse ponto, chega-se ao
problema da “linguagem dos sons” e à “música da linguagem”.
Dessa forma, o ideal heideggeriano de linguagem enquanto
casa do ser serve a Gadamer como caminho de crítica a toda e
qualquer pretensão de univocidade no âmbito da linguagem.
Se, entende o hermeneuta, as ciências naturais precisam
reconsiderar suas pretensões positivistas; à música essa
mesma tarefa se apresenta, quando em um outro
questionamento, o filósofo afirma que o mundo dos sons não é
como o mundo da matemática, “um mundo tão completamente
distinto do mundo interpretado pelos sons naturais da
linguagem humana” (GADAMER, 1998, p. 91). O filósofo segue
com a defesa, ao afirmar que, mesmo os que não estão
familiarizados com a notação musical, percebem sua
autonomia, a qual é muito distinta do jogo das fórmulas
90 matemáticas, que também possuem seus próprios encantos. O
problema que se ergue daqui se dá por meio dos seguintes
questionamentos: “acaso é a linguagem dos sons uma
linguagem real, como a linguagem da arte poética? Acaso não
está em jogo, quando se ‘faz música’, uma audição parecida com
a da classe de leitura?” (GADAMER, 1998, p. 91). Está referida
aqui a melodia da linguagem que perpassa a poesia, inclusive
durante a leitura silenciosa. Há, para o filósofo, uma distância
intransponível entre a forma do sentido e o som que se ouve
quando se lê, mesmo a qualquer som audível, embora seja o da
própria voz. Com essa perspectiva, somos conduzidos a uma
das teses centrais que perpassam o estudo – e que alude à
novidade filosófica apresentada: “ao deixar que um texto fale, e
este o poder fazer, o chamamos interpretação. Parece ser o
mesmo que acontece com quem faz música e o mesmo que faz o
leitor quando ler com compreensão” (GADAMER, 1998, p. 92).
Ergue-se daqui a exigência do olhar crítico aos que
atribuem um sentido secundário à interpretação musical, uma

“ex-plicação” objetiva desse movimento de “com-plicação” e “im-


plicação” (HEIDEGGER, 2006).
Prolegômena: Gadamer e a música

atitude comum ao comportamento científico-tecnicista, para


quem a interpretação deve levar a marca da objetividade
científica. Para Gadamer, no acontecimento da compreensão a
marca da cientificidade deve se constituir em ‘secundário’.
Dado que no processo da interpretação as experiências nunca
são, de todo, repetíveis, o ouvinte-leitor de uma poesia nunca
voltará a lê-la como da outra vez, embora sempre lhe
compreenda em seu todo (GADAMER, 1998). Assim, quando
afirma o filósofo que “nenhum intérprete, seja da classe que
seja, deveria desejar existir de outro modo que desaparecendo
[diante da obra]” (GADAMER, 1998, p. 92), ele confere à obra
autonomia, esclarecendo que os sentidos existentes aí devem
surgir de uma relação hermenêutico-dialógica. Aqui chegamos
ao ponto do qual partimos: a ideia central gadameriana,
segundo a qual a experiência com a música contribui para se
pensar os caminhos das ciências interpretativas. Mas como se
pode levar adiante tal tarefa?

91
III
No que diz respeito ao projeto filosófico-hermenêutico
gadameriano, a ideia de música como modelo para as ciências
interpretativas oferece-nos as condições de tematizar música
enquanto problema de racionalidade e ajuda-nos no
questionamento crítico de processos demasiados cientificistas
que norteiam concepções de interpretação e no trato com o
texto musical, seja quando nos referimos à poesia, seja quando
nos referimos à partitura. A obra musical que se nos apresenta
exige que levemos a cabo a interpretação. Dada tal exigência,
nos deparamos com o conceito de tempo. Para tornar claro o
problema do tempo, o hermeneuta lança mão da palavra
Vollzug (levar a cabo), peculiar e assombrosa, por sua tensão
dialética. Para Gadamer (1998, p. 92), “toda Zug (tendência) é
um transcurso no tempo e todo transcurso no tempo deixa
atrás de si o tempo transcorrido, deixando vazio o local que
alguém acaba de atravessar a toda pressa”. Aqui repousa uma
ideia mecânica de tempo, a que seguiu a modernidade nas
trilhas de Galileu e Newton. Contra a ideia de tempo como
tendência, o hermeneuta apresenta o interpretar, “que é
FRONTEIRAS DA MÚSICA

compreender e não deixa nada vazio, nem atrás de si, nem a


sua frente” (GADAMER, 1998, p. 92). Continua:

É verdade que a dialética do tempo que transcorre e se


consome rege tudo. E quando alguém compreende algo, o
tem detido. Quem compreende algo, o retém em uma
configuração do tempo no meio de uma tendência, [...] a que
damos o nome de vida e que não termina em uma duração
permanente. Porém, o que está detido não é célebre nunc
stans como instante de inspiração. É, antes, [...] o tempo
mesmo. Temos conhecimento dele. Quem se abandona a algo,
esquece o tempo (GADAMER, 1998, p. 93).

O compreender surge como uma sorte de demora, que


não se mede em horas por ser o tempo ele mesmo. Ao chegar a
esse momento, Gadamer (1998, p. 93) entende ter podido
explicitar o “‘enigma da música’ e o que a distingue de todas as
92 demais artes”. Música define-se, portanto, como um levar a
cabo: “é certo que nas demais artes o ‘compreender’ há de ter a
mesma configuração de tempo [...] porém só na música discorre
como pura prolongação”4 (GADAMER, 1998, p. 93). Essa
perspectiva presenteia-nos, consequentemente, com um novo
sentido de tempo e uma abertura em relação ao conceito de
música. Esta se define, portanto, como “a verdade do levar a
cabo” (GADAMER, 1998, p. 93), uma vez que detém em si
mesma a própria prolongação. Nesses termos, assim como
afirma o filósofo, a abertura da ideia de música enquanto
prolongação confunde-se com o conceito de jogo (Spiele).5

4
Para Gadamer (1998), em qualquer outro lugar sempre há algo que
está detido dento dessa prolongação, seja o significado estrito das
palavras, seja o sentido perceptível do discurso. Assim ocorre na
poesia e também na prosa do pensamento. Também há algo na
sequência das figuras da dança, e inclusive na sequência estruturada
do quadro, da escultura, da obra arquitetônica.
5
O Conceito de jogo constitui-se num conceito fundamental no todo do
projeto filosófico gadameriano. Considera Gadamer (1985): quando é
que se fala de jogo e o que está implícito nisso? Certamente de início, o
ir e vir de um movimento que se repete constantemente, um
movimento que não está ligado a uma finalidade última. O especial do
Prolegômena: Gadamer e a música

Gadamer assume a possiblidade de crítica em relação


ao problema que propõe, uma vez que sempre será possível
questionar se a música não se encontra limitada a proporções e
formulações matemáticas. Temos como exemplo o classicismo
vienense, o qual pode ser compreendido, na tradição ocidental,
como a expressão mais madura de tal perspectiva. Por outro
lado, um olhar atento conseguirá perceber, “tanto na música
como nas demais artes, que nosso século tem reconhecido
novos impulsos de outros mundos culturais – pensem na
violência desenfreada do ritmo e nos estimulantes efeitos que
exerce a retórica estrangeira do som, vocal e instrumental”
(GADAMER, 1998, p. 93). Essa experiência enigmática é o que
nos permite entender também a ideia de música como pulso
vital que nos entusiasma, pois “são, novamente, configurações
do tempo” (GADAMER, 1998, p. 93).
O encaminhamento conclusivo de Gadamer dá-se com
a ideia de que todo o impulso musical de outras culturas
93
jogo humano é que o jogo tanto pode incluir a razão, essa
característica tão própria do homem, de poder dar-se objetivos e
tentar alcançá-los conscientemente, como também anular a
característica distinta da razão de impor-se objetivos. Outro aspecto
importante é que o jogo seja nesse sentido um fazer comunicativo. Ele
desconhece a distância entre aquele que joga e aquele que se vê
colocado na frente do jogo. Para Gadamer (2007), quando falamos de
jogo no contexto da experiência da arte não nos referimos ao
comportamento nem ao estado de ânimo daquele que cria ou daquele
que desfruta do jogo e muito menos à liberdade de uma subjetividade
que atua no jogo, mas ao modo de ser da própria obra de arte. O
movimento que é jogo não possui nenhum alvo em que termine, mas
renova-se em constante repetição. O movimento de vai e vem é
obrigatoriamente tão central para a determinação da essência do jogo
que chega a ser indiferente quem ou o que executa esse movimento. O
movimento do jogo como tal também é desprovido de substrato. É o
jogo que é jogado ou que se desenrola como jogo; não há um sujeito
fixo que esteja jogando ali. O jogo é a realização do movimento como
tal. Assim, o jogo da arte é muito mais um espelho que sempre emerge
novamente através dos milênios diante de nós, um espelho no qual
olhamos para nós mesmos – com frequência de maneira por demais
inesperada, com frequência de maneira por demais estranha –, no qual
olhamos como somos, como poderíamos ser, o que acontece conosco
(GADAMER, 2010).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

coincide com a rápida expansão cultural, científica, técnica e


industrial europeia. Isso, de fato, nos apresenta aspectos que
precisam ser interpretados, pois trata-se de um fenômeno
planetário em que se apresentam infinitas questões. Por outro
lado, é como se estivéssemos abrindo espaço para uma
comunicação planetária “que não é uma espécie de sopro
imaterial do espírito, mas se deve a uma ação corporal, um
fazer música, sempre a mesma e sempre nova” (GADAMER,
1998, p. 90). Nesse texto em específico, o filósofo está
convencido de que essa é uma reflexão que deve ser levada
adiante: o que fica claro com o aspecto inconclusivo com que o
texto se encerra. Pensar a música a partir de Gadamer
compromete-nos, portanto, com sua decidida posição em não
tematizar a arte como forma de definição do belo ou de
conceituar diferentes formas de arte, mas em demonstrar que a
arte, em nosso caso, a música, é uma forma de verdade sobre o
mundo, e não um estado alterado de sentimentos individuais:
um ponto crucial de acesso às verdades fundamentais sobre o
94 mundo (LAWN, 2007).
Acreditamos apresentar com este ensaio um passo
significativo para desdobramentos futuros sobre a música em
Gadamer. Na perspectiva hermenêutica, somos impelidos a
dialogar com o conceito de música e sua carga histórica de
sentidos. Abertos ao diálogo, tal perspectiva não só nos
possibilita investigar a tradição musical, mas, sobretudo,
dialogar com novas experiências de nosso tempo. Em sentido
filosófico, a concepção gadameriana de música a vincula a
problemas fundamentais da epistemologia moderna e
contemporânea e, com isso, possibilita-nos entender a música e
as experiências que nesse universo podem ser desenvolvidas a
partir de conceitos filosóficos fundamentais, tais como tempo,
interpretação, linguagem, verdade, historicidade e
compreensão. Por isso a ideia gadameriana que perpassa nosso
ensaio, a de que as experiências com a música são de
fundamental importância para se discutir os caminhos das
ciências interpretativas.
Prolegômena: Gadamer e a música

Referências bibliográficas
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Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
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GRONDIN, J. Introducción a la hermenéutica filosófica. Trad.: A. A.
Pilári. Barcelona: Herder, 2002.
HEIDEGGER, M. Caminhos de Floresta. Trad.: I. Borges-Duarte e F.
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______. Sobre o humanismo.(Coleção Os Pensadores). Trad. E. Stein. São
Paulo: 1973.
LAWN, C. Compreender Gadamer. Trad.: H. Magri Filho. Petrópolis:
Vozes, 2007.
RAJOBAC, R. Experiência hermenêutica e formação para o
reconhecimento em Gadamer. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, n.
134, jul. 2012, p. 1-8.
Corpo e sociabilidade na experiência musical: por
uma estética da heteronomia

RAINER PATRIOTA

Não se sabe se a arte pode ainda ser possível; se ela,


após a sua completa emancipação, não eliminou e
perdeu os seus pressupostos.
Adorno, Teoria Estética

o final do século XVIII em diante, a ideia da autonomia da


D arte converte-se num problema estético central. Do
ponto de vista sociológico, o advento da “arte autônoma”
coincide com o fim da sociedade de corte e a consolidação dos
valores racionalistas propagados pelo Iluminismo burguês. No
quadro da nova racionalidade, a dignidade do artista consiste
não em atender a demandas funcionais (serviço religioso,
divertimento público ou privado etc.) de setores e classes
sociais, mas antes em se dirigir aos interesses superiores do
espírito e da razão. No plano conceitual, o pensamento de Kant
será o grande divisor de águas. Para este filósofo, o homem é
dotado de três faculdades espirituais: a faculdade moral, a
faculdade intelectual e a faculdade estética. A cada uma
corresponde um princípio exclusivo e a priori. Isso significa
dizer que o domínio da arte deixa de ser encarado como uma
esfera menor, um tipo inferior – ainda que útil – de
conhecimento, tornando-se um campo de valores autônomos,
fundados em si mesmos (LUKÁCS, 1974, p.71).
Mas foi sobretudo no campo da música que a ideia de
autonomia surtiu efeitos transformadores. Até meados do
século XVIII a música instrumental encontrava-se nos degraus
inferiores do sistema das belas-artes. Com o advento do
romantismo, a música instrumental passa a ser reverenciada
como um tipo privilegiado de linguagem. A criação da forma-
sonata no último terço do século XVIII foi um evento decisivo
Corpo e sociabilidade

nesse sentido. A despeito da presença ativa de elementos


tomados de empréstimo à dança, ao léxico retórico do barroco
e a outras fontes extramusicais (RATNER, 1980, p. 3-29;
HARNONCOURT, 1998, p. 165-174), é através das funções
harmônicas do sistema tonal – portanto, de um elemento
estritamente sonoro-musical – que a forma sonata estrutura
seu discurso e define sua peculiaridade formal e estilística (cf.
ROSEN, 1997). Daí a pertinência da colocação de Fubini (1987,
p.103):

Talvez seja na forma sonata que a música pela primeira vez


se organiza numa linguagem sintaticamente complexa e não
presa ao prestígio de outras linguagens; a suíte era
estruturada segundo o modelo das danças, e portanto de uma
cerimônia social; o concerto grosso e aquele solístico
tripartido de tipo vivaldiano, embora se aproximem do
processo de formação de uma linguagem musical autônoma,
refletem as formas e os estilos do teatro melodramático. Só a
forma sonata realiza pela primeira vez completamente a 97
aspiração a uma música que fala a sua linguagem em um
âmbito propriamente seu; para usar uma metáfora literária,
se poderia dizer que, se a invenção da harmonia lançou as
bases de uma gramática da linguagem musical, a forma
sonata criou não só uma sintaxe, mas uma estrutura
narrativa comparável ao romance moderno.

Se a forma-sonata possibilitou a noção de um discurso


musical autônomo, Beethoven a realizou do modo mais pleno,
dela extraindo consequências sociais e políticas. Ainda que a
sua formação escolar tenha sido breve, já que não foi além do
ensino fundamental, deixando-lhe inclusive algumas lacunas
significativas (KERMAN, 1989, p.14; STANLEY, 2000, p. 25),
Beethoven não apenas viria a manifestar um grande interesse
pelos mais elevados produtos da cultura alemã de seu tempo,
como a poesia de Goethe, Schiller e a filosofia de Kant1, como

1
É famoso o trecho de seu diário do ano de 1820 que reproduz o
clássico aforismo kantiano: “A lei moral em nós; o céu estrelado acima
de nós – Kant!!!” (BEETHOVEN apud STANLEY, 2000, p.25).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

também se colocaria orgulhosamente no mesmo patamar de


importância desses autores. E mesmo tendo sido beneficiário
de muitos patronos, Beethoven, coerente com sua autoimagem,
jamais se eximiu de afirmar sua independência artística e
profissional, a ponto de, em certas ocasiões, desperdiçar
oportunidades economicamente vantajosas junto às esferas de
poder da aristocracia alemã (STANLEY, 2000, p.14-15). Seu
senso de dignidade era de uma suscetibilidade extrema.
Ora, é inegável que a autonomia da música
instrumental foi uma conquista histórica das mais importantes,
quer em termos sociais, quer estéticos. No entanto, seu
desenvolvimento ao longo de todo o século XIX e da primeira
metade do século XX foi também um paulatino processo de
alienação, com efeitos colaterais perversos para a experiência
musical. Efeitos que, em grande medida, seriam motivados por
uma desconsideração crescente – e metafisicamente orientada
– da dimensão lúdica e material da música, então contraposta
98 ao que seria a verdadeira essência dessa arte. Para Schelling,
por exemplo, “a música é a arte que mais se desprende do
elemento corporal, pois apresenta um movimento em si
mesmo, despojado de todo objeto, sustentado por asas
invisíveis, quase espirituais (SCHELLING apud BONDS, 2014, p.
70)”. Mas é Hoffmann quem redefine o marco estético da nova
música. Nas palavras de Evan Bonds:

Hoffmann imprime um novo giro à imagem tradicional da


música como linguagem: nas mãos de Beethoven, a música
instrumental havia se convertido em algo parecido com um
código secreto, compreensível apenas para uma elite de
iniciados” (BONDS, 2014, p.104-105).

E o musicólogo prossegue mais adiante:

A Quinta Sinfonia de Beethoven e outras obras similares já


não são consideradas [por Hoffmann] como simples meios de
entretenimento, mas como veículos da verdade. A escuta se
converte em uma forma de conhecimento (BONDS, 2104,
p.106).
Corpo e sociabilidade

Daí que, a partir do romantismo, a obra musical tenha


sido revestida de uma sacralidade até então desconhecida. De
agora em diante, a obra possuirá uma identidade em si mesma,
acima das suas possíveis interpretações. A música “séria”
desfaz o antigo amálgama entre compositor e intérprete,
privilegiando a “obra do gênio”, aquela que é fruto exclusivo do
compositor e que, no limite, apenas ele é capaz de representar.
Assim, a liberdade criativa do intérprete “ficará limitada
radicalmente pelo estilo autobiográfico da composição”
(HARNONCOURT, 1998, p. 43). Isso explica porque o próprio
Beethoven, apesar de ter sido um ardoroso improvisador, se
opunha de modo intransigente a que os intérpretes
improvisassem em suas peças (ROSEN, 1997, p. 101). Os
românticos inauguram a ideia de que a obra de um compositor
não deve sofrer nenhuma interferência. Nesse sentido, como
bem observou Nikolaus Harnoncourt (1998, p.35), a notação
posterior a 1800 se distingue do que era hábito no passado
pelo fato de ser uma indicação não apenas da obra, mas
também de sua execução. “Os detalhes da interpretação eram 99
fixados tão precisamente quanto possível, cada nuance, cada
pequeno ritenuto, a menor modificação de tempo, tudo estava
prescrito” (HARNONCOURT, 1998, p. 43).
A consequência mais grave dessa estética, e que, no
limite, implica uma enorme contradição, é a eliminação do
intérprete e, com ele, do som. Thomas Mann, em seu Doutor
Fausto, que expõe brilhantemente o espírito do romantismo
musical alemão, não teme em apontá-la.

Talvez – disse Kretschmar – seja o mais íntimo desejo da


Música não ser ouvida, nem tampouco ser vista ou sentida, e
sim, se possível, ser percebida e enxergada unicamente num
além dos sentidos e até da alma, numa região
espiritualmente pura (MANN, 1984, p.84).

Na verdade, como em tantos outros momentos desse


romance, também aqui é crucial a influência de Theodor
Adorno, cujas ideias foram largamente aproveitadas por
Thomas Mann para a composição do perfil intelectual do
professor Kretzschmar. Nesse sentido, não é casual que
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Adorno, em nome da integridade da composição, tenha ido tão


longe a ponto de ressaltar as vantagens de uma “escuta” que
prescinda de qualquer execução. Num ensaio a propósito de
Schoenberg, dirá:

Uma silenciosa e imaginativa leitura da música poderia fazer


a execução sonora tão supérflua como a leitura pode tornar
supérflua a fala, e isso ainda poderia libertar e sanar a música
do mal que hoje quase toda execução faz ao conteúdo
compositivo (ADORNO, 1969, p.183).

Adorno mostra-se aqui não apenas um continuador da


tradição romântica, mas também aquele que a levou às suas
últimas consequências em termos estéticos. Sua teoria repõe, a
partir de seu alinhamento com Escola de Viena e de uma teoria
crítica das sociedades industriais, as premissas centrais da
100 autonomia da música formuladas no interior dessa mesma
tradição. Para Adorno, a arte autônoma possui uma relação
essencialmente negativa com o mundo que a gerou,
constituindo sua contraimagem “irracional”, mas por isso
mesmo crítica, subversiva e utópica. Nas suas palavras

O obscurecimento do mundo torna racional a irracionalidade


da arte: mundo radicalmente ensombrado. O que os inimigos
da arte nova, com instinto mais sagaz do que os seus
apologistas ansiosos, chama a sua negatividade é a própria
substância do que foi recalcado pela cultura estabelecida
(ADORNO, 2004, p.31).

Ora, o postulado adorniano da negatividade e da


autonomia radicaliza, com um forte acento sociológico, a ideia
romântica da música como conhecimento, como verdade. E,
como não podia ser diferente, ela impõe restrições tão severas
à música que finda por atentar contra aquilo que constitui seus
mais elementares pressupostos – coisa que, aliás, o próprio
Adorno reconhece, como se pode ler na frase pungente de sua
Teoria estética reproduzida, aqui, como epígrafe. Pressupostos
que remetem diretamente ao corpo e à sociabilidade, ou seja,
Corpo e sociabilidade

justamente àquilo que Adorno, por sua visão crítica da cultura


de massa, rechaça como elementos de regressão e
inautenticidade. Ora, em nome do que defendia como música
avançada, Adorno vituperou a música popular, o jazz
(sobretudo aquele tocado em bailes nos anos 1930), a música
barroca e as correntes neoclássicas do século XX, a exemplo de
Stravinsky e Hindemith; ao eleger a música de Schoenberg e de
sua escola como as únicas realmente aptas a representar o seu
tempo e a combater o espírito adoecido da sociedade
massificada, Adorno rejeitou qualquer outra forma de
expressão musical, sobretudo aquelas pautadas em finalidades
sociais, como dançar, divertir, ambientar, gerar sentimentos
agradáveis.
Mas antes de serem meros sintomas de alienação e
regressão, esses usos da música parecem estar arraigados em
nossa natureza mais profunda e ancestral, constituindo modos
de manifestação de nossos afetos e de nossa relação vital com o
mundo. E essa tem sido a tônica das ideias que, desde o fim da 101
Segunda Guerra Mundial e da hegemonia do modelo austro-
germânico, vêm sendo propostas em frontal oposição à
concepção romântica da música autônoma. Essas ideias surgem
de fontes diversas, como a antropologia, a arqueologia
cognitiva, a psicologia do desenvolvimento etc. De fato, de lá
para cá, encontramos um conjunto de conceituações e ideias
que tentam apreender o fenômeno musical à luz de suas
múltiplas relações com a vida, sem distinções hierárquicas
rígidas entre o que seriam suas formas superiores e as
inferiores, a música “séria” e a música “ligeira”.
***
Nos anos 1950, o músico e antropólogo John Blacking
conviveu por quase dois anos com o povo Venda no sul da
África. O relato e a síntese teórica de sua aventura vieram a
público duas décadas depois no livro How musical is man? No
prefácio, o autor chama a atenção para o que julga essencial:

O povo Venda me ensinou que a música não pode ser nunca


uma coisa encerrada em si mesma, e que toda música está
radicada no povo, ou seja, que nenhuma música pode ser
FRONTEIRAS DA MÚSICA

transmitida ou fazer sentido sem a associação entre as


pessoas. As diferenças de complexidades e de estilos e
técnicas não dizem nada de útil sobre a finalidade e o poder
expressivo da música, ou sobre a organização intelectual
envolvida em sua criação. A música está profundamente
relacionada com os sentimentos e as experiências [dos
homens] em sociedade...Muitos, senão todos os processos
essenciais da música podem ser rastreados na constituição
do corpo humano e nas formas como esse corpo interage
socialmente. Daí que toda música seja, em termos de
estrutura e funcionalidade, música do povo. Aqueles que
fazem música “artística” não são mais sensíveis ou mais
inteligentes que o músico popular: as estruturas de sua
música simplesmente expressam, por processo similares ao
da música Venda, os sistemas mais numerosos de interação
das pessoas com sua sociedade, as consequências de uma
divisão mais extensiva do trabalho, e uma tradição de
acumulação tecnológica (1973, p.XI).

102 Essas palavras de Blacking traduzem a consciência de


um músico educado numa sociedade em que a música
considerada autêntica não é aquela fruída e feita pela maior
parte das pessoas, mas sim por um pequeno e seleto grupo de
músicos profissionais e ouvintes iniciados que se reúnem em
ambientes solenes para realizar um ritual cheio de tensão e
distância entre atores e expectadores; sociedade na qual a
música muitas vezes é tomada mais pelos seus aspectos
técnicos e formais – “como uma coisa encerrada em si mesma”
– que por aquilo que possa dizer ao corpo e aos sentimentos,
uma vez que a música não está associada a uma
espontaneidade natural dos seres humanos, mas a um talento
especial e a uma formação especializada.
A experiência antropológica de John Blacking com os
Vendas, bem como as conclusões que viria a partilhar em seu
livro, seriam paradigmáticas para futuras gerações de músicos
e pesquisadores ocupados em ampliar sua compreensão do
fenômeno musical para além do modelo legado pela tradição
clássico-romântica e disseminado não apenas musicalmente
nos conservatórios e salas de concerto, mas também por vias
teóricas sedimentadas numa vasta literatura musicológica e
estética. Ao deslocar o foco da investigação musical para a
Corpo e sociabilidade

“diferença”, estabelecendo uma relação mais empática e


horizontal com aqueles que outrora eram vistos como
inferiores e exóticos, a etnomusicologia, superando suas
origens como subdisciplina da musicologia, possibilitou a
revisão de muitos conceitos e lançou novas luzes sobre as
origens da música e suas formas de objetivação e recepção
(MEYERS in CRUCES, 2001, p.19-35). Embora fortemente
comprometida com o discurso da diferença, alicerçada na ideia
de que cada cultura forma seu próprio horizonte de sentido, a
etnomusicologia não deixou de apontar para o fato de que, nas
mais diversas regiões habitadas pelo homem, a música é um
fator de comunhão e encantamento, envolvendo o físico e o
psíquico numa teia vivencial altamente significativa e
comunitária.
Fundamental para essa discussão seria, numa outra
frente, a contribuição da musicologia cognitiva. Buscando
entender os processos psicológicos relativos à experiência
musical, ela ajudou “a destruir os velhos preconceitos da 103
etnomusicologia” (BALL, 2010, p.17), ou seja, a aproximar as
culturas, destacando suas semelhanças. Um dos mais ativos e
influentes musicólogos da cognição, o americano David Huron,
por exemplo, chamou a atenção para o fato de que, nas mais
diversas culturas do mundo constatam-se determinados
padrões de associação afetiva ou psicológica presentes na
experiência musical. Assim, por exemplo, uma linha melódica
qualquer normalmente é entendida como mais afetuosa
quando executada numa região mais aguda, pois o grave, nas
mais distintas culturas, costuma estar associado a ameaça e
agressividade (HURON, 2014). Também em termos de
organização do material musical, notam-se certas constâncias.
Examinado melodias folclóricas dos cinco continentes, Huron
verificou que os saltos intervalares de maior abertura ocorrem
mais frequentemente em movimentos ascendentes que
descendentes e que os intervalos mais recorrentes nos casos
dos saltos ascendentes são os de quinta justa e sexta maior;
também constatou a tendência a se compensar os saltos
ascendentes com movimentos contrários em grau conjunto (Cf.
HURON, 2012, p.23-24)
E o que parece ser mais relevante: os estudos
cognitivos vêm reforçando a tese acerca da origem comum
FRONTEIRAS DA MÚSICA

entre música e linguagem. Pelo menos desde Rousseau,


especula-se em torno dessa hipótese. O próprio Darwin se
mostrou favorável a ela. Ian Cross observou que uma das
funções da comunicação é apenas promover interação social,
fortalecer vínculos. É o caso daqueles encontros perfunctórios
do dia a dia em que, de passagem, perguntamos a alguém “olá,
como vai”? e o outro responde, “vou bem, obrigado, e você?”
(CROSS in CLAYTON, 2012, p.25). O caráter informativo é aqui
apenas aparente, pois na verdade o que estamos fazendo é uma
vocalização amigável com o objetivo de estabelecer ou
confirmar um vínculo social. Vocalização que poderíamos
considerar como uma espécie de protoforma da música. De
fato, sob esse ângulo, a música “nada mais é” que uma extensão
complexa de vocalizações originárias do intercâmbio afetivo
entre os seres humanos. Para Ian Cross, é perfeitamente
possível que nos começos evolutivos da humanidade

104 algo parecido com a música” possa ter contribuído para que
nossos ancestrais estabelecessem vínculos uns com os
outros...Com efeito, num cenário evolutivo em que a
capacidade para criar e manter relações sociais é tão
importante para a sobrevivência quanto qualquer outro
atributo individual como força, velocidade, acuidade
perceptiva etc., o poder da música para estimular e
consolidar a formação de acordos sociais deve ter tido um
valor adaptativo considerável no repertório geral das
condutas humanas (CROSS in CLAYTON, 2012, p.25).

Promover a socialização de nossos ancestrais numa


época crucial de sua evolução – teria sido esse o papel da
música em seus começos. Essa tese não é exclusiva de Ian
Cross; muitos pesquisadores vinculados à teoria da evolução
hoje entendem que a ancestralidade e ubiquidade da música
derivam fundamentalmente de seu impacto socializante.
O estudo mais fascinante a esse respeito foi
empreendido pelo arqueólogo cognitivo Steven Mithen em seu
livro The singing Neanderthals. Munido de um aparato teórico
multidisciplinar manejado com rigor e muita criatividade,
Mithen procura reconstruir o cenário em que o embrião da
Corpo e sociabilidade

música e da linguagem teria coevoluído. Essa “musilinguagem”,


nos termos de Steven Brown (BROWN apud MITHEN, 2006,
p.26), é um sistema de comunicação holístico, manipulativo,
multimodal e mimético. Sistema que seria um tipo de
protolinguagem, mas que no fundo é muito mais música que
linguagem, na medida em que não se constitui de elementos
referenciais estruturados semântica e sintaticamente, tratando-
se antes de um modo de comunicação vocal com impacto
emotivo e manipulativo, organizado em alturas e padrões
rítmicos (acompanhados de gestos corporais e expressões
faciais). Esse sistema teria atingido seu ápice com os
neandertais, evolutivamente próximos do homo sapiens, mas
ainda carentes de linguagem e representações simbólicas.
A “musilinguagem” dos neandertais não só explicaria a
sobrevivência desse ancestral, na medida em que teria
fomentado relações de cooperação frente a condições
ambientais adversas (os Neandertais viveram num período de
drásticas oscilações climáticas), mas também representaria 105
uma prova suficiente acerca do caráter adaptativo da música,
posto em questão pelo linguista Steven Pinker, para quem a
música não passaria de um subproduto da linguagem sem
nenhuma serventia adaptativa (cf. MITHEN, 2006, p.11). Na
mesma linha de raciocínio de Ian Cross, Mithen procura
mostrar que a música surgiu das necessidades de socialização
do homem, decorrentes de desafios práticos que exigiam
sólidos vínculos comunais e ações coordenadas numa época
anterior ao desenvolvimento da linguagem. A cena imaginada
por Mithen para esse processo de evolução do “hummm” é uma
reconstrução bastante verossímil.
Os hominídeos deviam examinar meticulosamente as
prováveis intenções, crenças, desejos e sentimentos dos outros
membros de um grupo antes de decidir cooperar ou não com
eles. Mas em outras ocasiões, simplesmente confiar neles seria
mais eficaz, especialmente quando as decisões fossem
urgentes. Em consequência, aqueles indivíduos que superavam
sua própria identidade individual para forjar uma identidade
de grupo partilhando movimentos e vocalizações “hummm”, de
conteúdo altamente emocional e portanto musical –, estes
teriam prosperado...Fazer música em grupo serviu para
facilitar o comportamento cooperativo, na medida em que
FRONTEIRAS DA MÚSICA

permitiu a expressão da vontade de cooperar, criando estados


emocionais comuns, gerando uma preferência pela eliminação
das fronteiras, pela afirmação do “nós”, do agrupamento. Com a
evolução do homo ergaster e do pleno bipedalismo, o
“hummmm” ganhou novas qualidade musicais, enquanto novas
pressões seletivas de evolução surgiam da necessidade de
transmitir informações sobre o mundo natural, de competir
pelo acasalamento e de cuidar dos bebês. Quando os primeiros
humanos colonizaram o norte, desenvolvendo formas de caça
coletivas, lidando com as dramáticas condições ambientais do
Pleistoceno, a necessidade de cooperação se fez ainda maior.
Então o fazer musical coletivo no sentido do “hummm” deve ter
se espalhando por toda a sociedade humana (2006, p.217-18).
Mithen substancia sua teoria com base nos estudos
cognitivos sobre o desenvolvimento da criança. Operando num
terreno mais firme que o da reconstrução arqueológica, os
estudos cognitivos também mostram que os antigos não
106 estavam errados ao relacionar geneticamente a música à voz,
às suas inflexões veiculadoras de afetos. Convém, a propósito,
recordar o que disse Aristóteles sobre isso:

O discurso é não o referir-se com a voz, mas pelas afecções da


voz, e não só para dizer que se sente dor ou alegria. As letras
são moduladas pela voz. E, de uma maneira semelhante os
bebês e os animais revelam suas afecções, embora os bebês
não sonorizem letras (ARISTÓTELES apud CHASIN, 2009, p.
35).

As observações de Aristóteles, genialmente simples,


antecipam a conclusão dos psicólogos acerca da prioridade do
fator musical sobre o linguístico na comunicação e no
desenvolvimento cognitivo e emocional da criança. No livro de
Steven Mithen, aprendemos que a chamada IDS (Infant-direct
Speech), ou seja, a fala direcionada a bebês, praticada em
diversas culturas, repousa sobre o fato intuitivamente
percebido e confirmado pela experiência de que os bebês são
extremamente sensíveis e responsivos aos sons, já que os sons
são o seu principal meio de comunicação. Por um lado, a IDS
pavimenta o caminho para a aquisição da linguagem, pois os
Corpo e sociabilidade

bebês são especialmente hábeis em discernir no fluxo contínuo


da fala padrões prosódicos particulares (2006, P.69-84). Por
outro, esse falar cantante é um modo de transmitir afeto à
criança, complementando, assim, o contato físico, pois, como
bem disse Aristóteles, “os sons da voz são reflexos das afecções
da alma” (ARISTÓTELES apud CHASIN, 2009, p.37).
Neste sentido, as canções de ninar, um fenômeno que
também transcende as fronteiras culturais, seriam apenas
formas mais complexas do aspecto manipulativo – retórico – da
IDS. A canção potencializa o aspecto tonal da voz natural,
sendo, pois, um procedimento artístico, procedimento que,
como já sabiam os antigos, consiste numa elaboração formal e
de caráter mimético de materiais da realidade, no caso, as
modulações da fala.
Os estudos cognitivos corroboram, assim, uma teoria
que norteou hegemonicamente o pensamento e a prática
musical durante muitos séculos no Ocidente: a de que a música
é a arte das emoções, na medida em que explora artisticamente 107
o vínculo natural entre voz e afeto. Nesse sentido, a diferença
essencial entre linguagem e música é que esta, em virtude de
seu propósito estético-manipulativo, se apropria da
elasticidade vocal a fim de que as emoções aflorem com mais
vigor e clareza, seja em associação com a palavra, seja de modo
independente, como na música instrumental.
Não é de modo algum casual que, nas mais distintas e
remotas culturas antigas, a música tenha sido revestida de uma
aura mítica, exaltada em seus poderes mágicos sobre o destino
dos homens. Orfeu é uma síntese eloquente dessa experiência
antiquíssima. Acompanhando de sua lira, esse herói mítico é
capaz de amansar as feras mais selvagens, e as próprias pedras
dançam sob o efeito de seu canto. E como lembra Ted Gioia
(2006, p.20), cantar e encantar – na acepção mágica do termo –
compartem a mesma raiz etimológica. Nas culturas antigas e
primitivas são muitas as formas de exaltação dos poderes da
música. Na tradição hindu, Narada, Shiva e Krishna estão todos
associados à música. Na cultura sufi, a música também é vista
como uma arte divina (KHAN, 1996).
Para os antigos, tamanha era a força da música, que até
mesmo os doentes podiam encontrar nela um bálsamo
FRONTEIRAS DA MÚSICA

revigorador e uma fonte de cura. Na Grécia, o caráter


terapêutico da música foi racionalizado pela tradição pitagórica
com o conceito de catarse (FUBINI, 1976, p.23). Em tempos
mais recentes, o historiador da música Ted Gioia procurou
resgatar essa dimensão terapêutica da música em seu livro
Healing Songs. E conforme documentado no livro de Steven
Mithen, estudos e testes científicos vêm demonstrando que a
música pode de fato auxiliar no tratamento de doenças as mais
diversas, melhorando o estado emocional dos pacientes, mas
também agindo em nível fisiológico, como, por exemplo, no
aprimoramento do controle motor sobre pacientes portadores
de Parkinson (MITHEN, 2006, p.151). De fato, o efeito da
música sobre o estado físico e mental das pessoas há muito não
é mais encarado pela ciência como uma especulação de épocas
míticas e mentes supersticiosas. Diversas áreas da ciência
avançada colaboram para entender os princípios e mecanismos
dessa interação já amplamente comprovada e documentada em
boletins terapêuticos.
108
Mas foi principalmente Oliver Sacks que, em vários
trabalhos importantes, divulgou a informação de que a música
pode ser um instrumento eficaz no processo de retardo de
doenças degenerativas e na melhora significativa da memória
nos pacientes com demência. Isso porque a música é ao mesmo
tempo emoção e abstração, pondo em conexão as partes mais
primitivas e mais desenvolvidas do cérebro, aquelas
responsáveis pela memória motora, afetiva e pelas funções do
raciocínio e da linguagem (SACKS, 2013, p.12-13;342ss).
Assim como a música unifica os afetos e propicia a
formação de vínculos sociais, ela promove uma unificação e
uma vivificação das faculdades anímicas, em termos fisiológico
e neuronais. Nesse sentido, se o projeto romântico esteve
centrado na excepcionalidade dos grandes gênios, dos grandes
mestres, bem como na constituição de um cânone altamente
seletivo de “obras-primas”, que se destacam pela sua
complexidade e originalidade, condição sine qua non de uma
fruição intelectualmente densa, a orientação fundamental que
surge após o fim da era romântica e pós-romântica se dá em
torno da ideia de que a música pode e deve ser entendida
também em sua dimensão coletiva e pragmática, onde o corpo
e a sociabilidade comparecem como pressupostos
Corpo e sociabilidade

irrenunciáveis de uma experiência estética cuja legitimidade


não deriva de nenhum desvelamento de verdades metafísicas
ou sociológicas, mas sim de seu poder para fortalecer nos
sujeitos a integração de suas faculdades motora, afetiva e
intelectual, promovendo aquilo que Kant chamou de
“sentimento de vida”. É o que se depreende das sóbrias
palavras de Oliver Sacks:

Anthony Storr, em seu excelente livro A música e a mente,


ressalta que, em todas as sociedades, a música tem uma
função primordial coletiva e comunal, que consiste em juntar
e unir as gentes. As pessoas cantam e dançam juntas em
todas as culturas, e é de se imaginar que já o fizessem ao
redor das primeiras fogueiras há mais de cem mil anos. Hoje
em dia esse papel primordial da música até certo ponto está
perdido, pois contamos com uma classe especializada de
compositores e intérpretes, e os demais apenas escutam de
modo passivo. Temos de ir a um concerto, a uma igreja ou a
um festival musical para experimentá-la como atividade 109
social, para recuperar o entusiasmo coletivo e o vínculo que a
música cria. Em tais situações, a música é uma experiência
comunitária e parece existir, em certo sentido, um autêntico
vínculo ou “matrimônio” dos sistemas nervosos, uma
“neurogamia” (para utilizar uma palavra muito apreciada
pelos primeiros mesmeristas) (SACKS, 2013, p.294).

A título de conclusão, convém deixar claro que propor


a discussão de uma concepção “heterônoma” da música não
implica em declarar guerra às salas de concerto nem muito
menos fechar-se à escuta das grandes obras da tradição
europeia. O que se pretendeu aqui foi tão somente
problematizar os aspectos ideológicos que, dentro dessa
tradição, contribuíram e contribuem até hoje para fomentar
percepções distorcidas e parciais do fenômeno musical. Ora, no
intuito de dignificar a música, os porta-vozes da tradição
romântica e pós-romântica (incluindo diversas vertentes
vanguardistas), colocaram uma ênfase demasiado unilateral e
muitas vezes epistemologicamente idealista na dimensão
intelectual da música, subestimando – quando não
desprezando de modo pedante e preconceituoso – uma gama
FRONTEIRAS DA MÚSICA

de outros aspectos seus (emocional, motor, lúdico, terapêutico,


social). E por elegerem um cânone altamente restrito de obras
e gênios2, eles promoveram uma redução inadmissível de
horizontes, ignorando a multiplicidade de estilos e formas que
caracteriza um mundo de culturas musicais cada vez mais
integradas, miscigenadas e plurais.

Referências Bibliográficas
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Sacristán. Barcelona: Ediciones Ariel, 1969.
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2006.
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1998.
HAYNES, B. The End of Early Music: a period performer’s history of
music. New York: Oxford University Press, 2007.

2
Sobre o fenômeno do “canonismo” na música de concerto, cf.
HAYNES, 2007.
Corpo e sociabilidade

HURON, D. Música e Mente: fundamentos da musicologia cognitiva.


Em Pauta, v. 20, nº 34-35, 2012, p. 5-47.
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Etnicidade e antropofagia cultural: dois temas
recorrentes nos estudos da música brasileira no
exterior

SILVANO FERNANDES BAIA

Introdução

xiste no exterior um campo de estudos sobre problemas


E brasileiros envolvendo política, sociedade e cultura,
denominado Brazilian studies, que vem se estruturando desde
os anos 1960, embora as iniciativas voltadas ao país ocorram
desde a década de 1930. De início, tais pesquisas se
concentraram nos Estados Unidos e foram impulsionadas por
aspectos geopolíticos do pós-guerra; porém, certamente,
também contribuiu a singularidade da cultura brasileira. Não
chega a ser uma exclusividade, pois outros países são objeto de
estudos. Mas a existência desse campo indica a importância do
Brasil e a relevância de sua cultura. Atualmente, em
universidades de vários países, há departamentos e cursos
dedicados aos estudos brasileiros; há até um nome – não
universalmente aceito – para os pesquisadores desse campo:
brasilianistas. No Brasil, o termo tem, em algumas
interpretações, uma conotação desfavorável e distinta do seu
sentido no hemisfério norte, uma vez que ficou associado aos
acadêmicos estadunidenses cujas investigações dos problemas
brasileiros eram, em geral, financiadas por agência de fomento
de seu país. Essa depreciação do termo talvez seja decorrência
de certo antiamericanismo ideológico que, se vem perdendo
força, ainda é muito presente em setores da nossa sociedade.
Os estudos da música brasileira desenvolvidos no
exterior, em especial por pesquisadores de língua inglesa, têm
se adensado e constituído uma bibliografia relevante. Por um
lado, podem ser considerados como parte dos Brazilian studies;
por outro, apresentam especificidades e se relacionam com o
campo dos estudos musicais como um todo. Embora alguns
artigos esporádicos tenham sido publicados antes dos anos
Etnicidade e antropofagia cultural

1960, podemos localizar o surgimento de uma pesquisa mais


consistente no exterior sobre a música do Brasil a partir dos
trabalhos de Gerard Béhague, precursor nesse campo. Em sua
atividade acadêmica, ele dedicou atenção a diversas
sonoridades brasileiras, transitando entre o erudito, o
tradicional e o popular urbano; a maior parte dos verbetes
sobre música brasileira presentes no New Grove dictionary of
music and musicians (ROOT, D.; BOHLMAN) é de sua autoria. A
partir da década de 1980, desenvolve-se uma linha de estudos
da música popular do Brasil com o trabalho de um conjunto de
pesquisadores não centralizados cujas pesquisas vão dialogar
entre si e com aquelas realizadas no Brasil. Nesses estudos,
foram pioneiros os trabalhos de Charles Perrone, cujos textos
motivaram outros pesquisadores. O objeto foi logo adotado por
acadêmicos no Reino Unido e nos Estados Unidos, a exemplo de
David Treece e Brian McCann, respectivamente, e por
publicações de caráter mais jornalístico, como a de McGowan e
Pessanha 1 (1991).
113
Essa literatura escrita por pesquisadores estrangeiros
em língua inglesa – em livros, artigos em revistas ou coletâneas,
teses e comunicações em congressos – já constitui um conjunto
significativo de trabalhos; como é natural, não formam um
corpo homogêneo de qualidade e relevância, bem como
apresentam temas e abordagens diversos e, muitas vezes,
conflitantes. Para os pesquisadores brasileiros, o conhecimento
dessa bibliografia é fundamental, por três aspectos: 1) ela
cumpre um papel decisivo na divulgação e no conhecimento da
música brasileira no exterior, dado o alcance restrito da língua
portuguesa no cenário internacional; 2) teoricamente, esses
trabalhos tendem a não estar diretamente orientados pelas
estéticas, poéticas e ideologias em luta no campo dos estudos

1 Gerard Béhague (1937–2005), etnomusicólogo, nasceu na França,


estudou e morou no Brasil e desenvolveu carreira acadêmica nos
Estados Unidos; Charles Perrone é professor no Department of
Spanish and Portuguese Studies, University of Florida, USA; David
Treece é professor no Department do Spanish, Portuguese and Latin
American Studies, King’s College London; Brian McCann é professor na
Georgetown University, Washington, DC, no departamento de História;
Chris McGowan (estadunidense) e Ricardo Pessanha (brasileiro) são
jornalistas.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

da música no país; 3) se desejarmos dialogar com as ideias que


circulam no mundo acerca da música brasileira, então é
imprescindível conhecer as concepções já estabelecidas.
Neste texto, são observados alguns dos conceitos e das
teorias recorrentes nessa bibliografia, com destaque para duas
questões que ocupam papel central nessa literatura: 1) a
formação étnica do Brasil e as tensões dela decorrentes; 2) a
proposição da antropofagia cultural como abordagem para a
incorporação de influências culturais estrangeiras. As reflexões
aqui apresentadas emergiram da leitura de um corpus de 30
livros dedicados à música do Brasil, todos listados nas
referências, embora nem todos diretamente mencionados2.

A questão étnica nos estudos acadêmicos


estrangeiros acerca da música brasileira
114 Pode parecer surpreendente à primeira vista, mas
nessa bibliografia o grande assunto que tange a música é a
questão étnica no Brasil. Em alguns livros, o foco na questão já
se depreende do próprio título: The colour of sound: race,
religion and music in Brazil (BURDICK, 2013), Rhythms of
resistance: African musical heritage in Brazil (FRYER, 2000),
The berimbau: soul of Brazilian music (GALM, 2010), Making
samba: a new history of race and music in Brazil (HERTZMAN,
2013), Let’s make some noise: Axé and the African roots of
Brazilian popular music (HENRY, 2008), Domination and
resistance in Afro-Brazilian music (SWANSON, 2015). Outro
exemplo é o artigo Songs of Olodum: ethnicity, activism, and art
in a globalized carnival community, de Pier Armstrong, que se
encontra na coletânea Brazilian popular music and citizenship
(AVELAR; DUNN, 2011). Também pode ser mencionado Samba:
resistance in motion (BROWNING, 1995), trabalho na área de
dança com conexões com a música, que assim como dois dos
outros livros citados, tem a palavra “resistência” no título.

2 Este estudo é parte de pesquisa pós-doutoral realizada no King’s


College London e foi viabilizado pelo apoio financeiro da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Etnicidade e antropofagia cultural

Além destes, existem outros livros onde a questão


étnica tem lugar central. Em Brazilian jive: from samba to bossa
and rap (TREECE, 2013), ao longo de todo o texto está presente
a concepção de que, em gêneros de música popular do Brasil,
sobretudo no samba, na bossa nova e no rap, existiria um
fundamento cultural e filosófico de origem africana.3 Outro
exemplo é Choro: a social history of a Brazilian popular music
(GARCIA; LIVINGSTON-ISENHOUR, 2005), no qual as tensões
étnicas emergem em diversos momentos da narrativa. Os
autores desenvolvem uma linha de pensamento que associa a
valorização da miscigenação étnica a uma proposição racista e
preconceituosa, o que – é evidente – não dá conta de toda a
complexidade da questão. Para Larry Crook (2005), a música
no Brasil tem sido usada tanto para suportar como para
contestar a ideia de que o país seria uma sociedade
etnicamente igualitária.
A expressão “mito da democracia racial” está presente
na maioria dos trabalhos, e Gilberto Freyre é citado em quase 115
todos eles, muitas vezes de um ponto de vista muito
desfavorável, como em Shaw (1999). A expressão “democracia
racial” é entendida, em geral, como consolidação da visão do
Brasil como um lugar sem preconceitos e de convivência
harmoniosa entre grupos étnicos distintos; e muitos desses
pesquisadores se propõem a confrontar tal concepção. Por
vezes, a expressão aparece vinculada a Gilberto Freyre; e, em
alguns casos, são até mencionadas e embaralhadas na
discussão, de maneira inapropriada, as teorias do
“branqueamento” vigentes no início do século XX, como em
Garcia/Livingston-Isenhour (2005). O fato de que o tema da
formação étnica do país e o lugar do negro na sociedade
brasileira sejam a questão principal que mobilizou esses
pesquisadores da música brasileira é um indicador da
percepção do país no exterior, ao menos nos meios acadêmicos,
e dá uma dimensão de como ela está colocada na agenda de
estudos brasileiros. Com nuanças de interpretação, uma
parcela significativa desses estudos converge para uma

3Sobre o livro de Treece, ver: BAIA, S. F. Resenha: Brazilian jive, de


David Treece. Cf. Referências Bibliográficas.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

narrativa que considera as ideias favoráveis à miscigenação


étnica no Brasil como forma de mascaramento do racismo
existente no país.
Segundo Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, a origem e
disseminação da expressão “democracia racial” sempre
intrigou os estudiosos da questão étnica no Brasil, “a começar
pelo simples fato de que a expressão, atribuída a Gilberto
Freyre, não é encontrada em suas obras mais importantes”
(GUIMARÃES, 2001, p.147); segundo o autor, ela surgiu entre
os intelectuais brasileiros na conjuntura dos anos 1937–44
(GUIMARÃES, 2006). A expressão “mito da democracia racial”
tem um autor mais claramente identificado: Florestan
Fernandes, que quase não é citado nesses textos que estamos
analisando. O significado e o uso político de ambas as
formulações mudaram ao longo do tempo como parte das
estratégias dos atores sociais envolvidos no debate. Segundo
GUIMARÃES (2006, p. 269), “denunciada como mito e
116 transformada, nos anos 1980, no principal alvo dos ataques do
movimento negro, como sendo uma ideologia racista, a
‘democracia racial’ passou na última década a ser objeto de
investigação mais sistemática de cientistas sociais e
historiadores”.
Gilberto Freyre se destaca na formação do pensamento
sobre a questão étnica no Brasil, daí ser natural que suas
proposições sejam submetidas à análise crítica. Mas a formação
étnica do Brasil é um debate extenso e complexo, com
contribuições de muitos intelectuais de projeção no Brasil e no
exterior; é um dos aspectos centrais de um estudo histórico-
sociológico do Brasil. Alguns dos autores desses estudos da
música brasileira têm bagagem suficiente para discutir esse
assunto com propriedade; outros, porém, parecem sucumbir às
dificuldades metodológicas da interdisciplinaridade. Por vezes,
em que pesem o alto nível acadêmico dos autores na sua área
de proficiência e seu esmero na pesquisa, fica a impressão de
que enveredaram de maneira muito destemida por um
território desconhecido e sem o equipamento necessário.
O próprio conceito de “raça” – este sim, poderia ser
entendido como um “mito social” – que está presente em
muitos dos trabalhos, precisa ser submetido à revisão crítica.
Etnicidade e antropofagia cultural

Em artigo com o sugestivo título de “O nocivo conceito de raça,


pressuposto do racismo”, Peter Fry discute a contradição
presente no Relatório Brasil PNDU 2005 de combater o racismo
usando o conceito de “raça”. Segundo ele, o relatório reconhece
o conceito de “raça” como historicamente construído e
pressuposto do racismo, mas considera que deve ser usado,
uma vez que o conceito se perpetua como construção social e
afirma “a necessidade de mantê-lo vivo nos estudos
demográficos e nos movimentos de identidade étnica”; desta
forma, nos termos de Fry, “o relatório propõe o paradoxal
caminho de lutar contra o conceito de raça, utilizando-o” (2006,
p.135).
Parece que, com o emprego do conceito de “raça” na
literatura em foco neste artigo, acontece algo semelhante. Não
resta dúvida de que seus autores são críticos contumazes do
racismo, abominam sua existência lamentável e pretendem
contribuir para sua extinção. Entretanto, ao abraçarem o
conceito de “raça” estão caminhando em sentido contrário, 117
reforçando a visão racializada da sociedade e contribuindo,
involuntária e inadvertidamente, para um processo em
andamento que segue na direção de uma cisão do país em duas
“raças”.
Outro aspecto a ser observado é o emprego
generalizado no mundo anglo-americano da expressão “afro-
brasileiro”, tanto para designar um grupo étnico específico
quanto para se referir a certa cultura, a gêneros musicais ou
mesmo a indivíduos. O emprego do termo “afro-brasileiro”
para denominar gêneros musicais é relativamente recente nas
pesquisas sobre música popular realizadas no Brasil; começa a
aparecer com mais frequência por volta dos anos 1990 e, desde
então, ganha terreno no país. Assim, é possível historicizar sua
utilização neste campo de estudos. É provável que esse
aumento na recorrência do termo se relacione com os debates
em torno do tema propostos a partir da década de 1970 com a
formação de agrupamentos negros como o Movimento Negro
Unificado, cuja constituição foi impulsionada por organizações
de esquerda, no plano da ação política, e pelos blocos afro na
Bahia, no plano cultural.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Crook chega ao exagero de afirmar que “falar de


música brasileira atualmente é falar de música afro-brasileira”.
Essa assertiva – é claro – não faz jus à diversidade musical do
país; ou se trata de uma utilização extremamente flexível do
termo “afro-brasileiro”, que, nesse caso, carece de sentido.
Conforme observou Alexander Dent em seu estudo da música
caipira/sertaneja, River of tears: country music, memory and
modernity in Brazil (2009), uma movimentação da identidade
brasileira em direção ao interior do Centro-Sul impõe uma
revisão das concepções predominantes em torno da
composição étnica. Os modelos dominantes de identificação
nacional, centrados no Rio de Janeiro e no Nordeste, dão um
grande destaque para o elemento africano na mistura étnica no
país; mas no Centro-Sul a principal mistura seria entre índios e
portugueses. Dessa forma, os modelos centrados no discurso
em torno do “afro-brasileiro” não servem para explicar a
música caipira e sertaneja; em interpretações mais
radicalizadas, podem levar a um esquecimento ou mesmo uma
118 desvalorização dessa produção. Uma reflexão nesse sentido
poderia ser desenvolvida, também, em torno das músicas da
região Sul e de outras manifestações musicas no país, uma vez
que a miscigenação étnica no Brasil é mais complicada do que
“preto no branco”. Portanto, a concepção da música brasileira
como manifestação “afro-brasileira” é indissociável da
valorização de alguns gêneros e de certo repertório como
sendo a música do Brasil.
Uma hipótese – não descartável a priori – é a de que se
trata de um conceito adaptado de outra realidade sociocultural.
É possível que Afro-American seja mais coerente para a
realidade dos Estados Unidos4 do que a utilização generalizada

4 Recentemente, tem se esboçado nos Estados Unidos um novo debate


em relação à expressão Afro-American, uma vez que muitos filhos de
imigrantes negros de Cuba e do Haiti, por exemplo, ficam excluídos no
uso de tal terminologia, ainda que sejam negros, afro-descendentes e
estadunidenses. Por outro lado, é interessante observar que também é
comum nos Estados Unidos a utilização de termos como Italian
American, Japanese American, Chinese American, Jewish American, etc.
Esses termos não fariam sentido no Brasil; mesmo em uma São Paulo
lotada de imigrantes não é usual denominar os descendentes de
Etnicidade e antropofagia cultural

de afro-brasileiro. Talvez o termo afro-brasileiro seja mais


adequado para se falar das culturas negras no Brasil no período
colonial em processo de adaptação ou aculturação, ou mesmo
para certas manifestações culturais como o Candomblé, a
culinária baiana e a capoeira, nas quais os traços da cultura
africana estão bastante delineados e são os essenciais. Mas
aplicar essa expressão para toda a música brasileira produzida
por setores sociais nos quais é expressiva a presença negra soa
exagerado. Por exemplo, não creio ser adequado dizer que o
samba é afro-brasileiro. Não resta a menor dúvida de que é um
gênero musical em cuja formação concorreu fortemente, e de
maneira decisiva, a musicalidade trazida pelos negros para o
Brasil. Mas o samba é, também, uma música que incorpora
elementos da música europeia. É uma música tonal, em
compasso binário – ainda que com o tratamento rítmico que
chamamos de síncope – e na qual se usam instrumentos
melódicos e harmônicos de origem europeia, tais como o
cavaquinho e o violão; mesmo na percussão, encontramos
alguns instrumentos também derivados de similares europeus. 119
Então, teríamos de dizer que o samba é afro-euro-brasileiro.
Dentro dessa lógica, no caso de alguns gêneros, para não
cometer uma injustiça com o elemento indígena, teríamos que
dizer afro-euro-indígena-brasileiro. Parece ser mais razoável
pensar que somos apenas brasileiros e que a música feita no
Brasil é música brasileira. Essa questão tem a sua importância
porque conceitos são teorias condensadas, e o tensionamento
da questão étnica no Brasil precisa ser enfrentado com
seriedade. Por outro lado, os estudos acerca da música
brasileira podem, no lugar de simplesmente emprestar
terminologias e conceitos advindos de outros campos e
formulados para outro contexto sociocultural, fornecer um rico
material para que essas elaborações sejam repensadas à luz
das especificidades da experiência brasileira. É certo que essa
discussão é longa e ficará aqui apenas esboçada; mas são
necessárias mais algumas palavras sobre esse assunto, pela
dimensão que tem nesses estudos.

imigrantes de árabe-brasileiro, nipo-brasileiro, coreano-brasileiro ou


italiano-brasileiro.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Muitos desses discursos não dão a devida dimensão


ao esforço de uma grande parcela de brasileiros – várias
gerações de brancos, negros, indígenas e mestiços de todos os
matizes – em prol da construção de um país plural onde todos
possamos nos reconhecer como cidadãos e onde as diferenças e
a mistura étnica sejam vistas com orgulho e como nossa
singularidade. No combate ao racismo, infelizmente ainda
presente no país, é preciso valorizar a forte tendência contra a
discriminação que existe no Brasil no plano institucional e na
sociedade como um todo. São numerosos os exemplos de
reação contundente da sociedade contra as manifestações de
racismo, que ainda acontecem de maneira frequente e
lamentável, por exemplo, em estádios de futebol e nas “redes
sociais” na internet. Sem desconsiderar a atuação fundamental
e decisiva dos agrupamentos negros na afirmação da sua
cidadania, é preciso ver também que uma parcela expressiva de
brancos – ou melhor, não negros – considera um absurdo
valorizar diferenças de pigmentação da pele e não aceita viver
120 numa sociedade que discrimine seus semelhantes. E a
participação desse agrupamento é imprescindível no
questionamento e na superação do racismo. Noutros termos, a
crítica a uma visão idílica do Brasil como paraíso de harmonia
multiétnica não pode desprezar os esforços da sociedade em
prol da igualdade. Parece que os discursos que
superdimensionam os conflitos étnicos no Brasil minimizam o
papel da sociedade como sujeito da história e concebem o
processo histórico como conduzido de cima para baixo. O
importante nessa linha seria o papel dos políticos, das “elites
brancas”, dos grupos de pressão negros e dos intelectuais e
artistas; nesses casos, quando se olha para a sociedade, é
sempre nas situações mais tencionadas e radicalizadas, no
discurso de brancos e negros racistas. Enquanto isso, no
cotidiano da sociedade brasileira, brancos, negros e mestiços
convivem há muitos e muitos anos e vão construindo – com
tensões, conflitos e contradições – uma sociedade que, embora
não tenha superado plenamente o pesadelo da escravidão, deu
passos importantes rumo à tolerância e convivência
harmoniosa entre diferenças; isso não deve ser desprezado.
Enfim, é necessário pontuar que, ao enfatizarem a
“afro-brasilidade”, por exemplo, os estudos de música por
Etnicidade e antropofagia cultural

vezes centram-se nos aspectos sociais e/ou formais em torno


da música. No entanto, as tradições africanas em geral
carregam outras concepções de música e da natureza da
experiência estética. Uma forma mais equilibrada de tratar tais
matizes étnicas exige uma análise que vá além da forma ou do
contexto dissociado da forma, que identifique, de fato, quais
são as influências concretas que se agregam em uma concepção
de música esteticamente pluricultural.

Antropofagia cultural e nacionalismo musical:


Oswald de Andrade e Mário de Andrade
Outra formulação predominante sobre a cultura
brasileira nessa bibliografia é aquela desenvolvida por Oswald
de Andrade, que se sintetiza na expressão “antropofagia
cultural”, também presente em quase todos os textos. O
exemplo mais interessante nesse tema é o livro de Frederick
Moehn, Contemporary Carioca: technologies of mixing in a 121
Brazilian music scene (2012). Nesse livro, o discurso
antropofágico encontra-se nas falas de produtores musicais
cariocas dos anos 1990, que o autor traz para o primeiro plano
e as quais traduzem uma leitura da cultura no país que, em
busca de uma “brasilidade” – no sentido de uma sonoridade
que possa ser identificada como brasileira –, rompeu com os
pressupostos e as proposições estéticas do populismo
nacionalista e do nacional-popular referenciado em Gramsci.
Nessa perspectiva, esses produtores foram precedidos e
tiveram como referências os tropicalistas, bem como Chico
Science e o mangue beat, que, contemporâneos dessa cena
musical carioca, compartilhavam de concepções estéticas afins.
Embora haja uma presença marcante do discurso
antropofágico oswaldiano no projeto estético dos tropicalistas,
segundo Moehn, a década de 1990, ao menos no plano musical,
foi o ápice dos discursos “canibalistas” inspirados nas
proposições de Oswald de Andrade. Isso se explicita, por
exemplo, no título do LP de Lenine Falange canibal ou na
canção “Urbano canibal”, de Fernanda Abreu e Lenine. Também
muitas canções misturam, com naturalidade, palavras
estrangeiras com brasileiras e sugerem tal canibalismo
cultural, como “Rios, pontes & overdrives”, do disco Da lama ao
FRONTEIRAS DA MÚSICA

caos, de Chico Science e Nação Zumbi; além de apresentarem


hibridismos de ritmos tradicionais brasileiros com o rock, a
música eletrônica e outras sonoridades internacionais.
É notável que um programa cultural apresentado em
1928, no Manifesto antropófago, que foi referência fundamental
para o tropicalismo, nos anos 1960, e para uma parcela da
produção musical dos anos 1990, inspire até hoje setores do
campo de produção e esteja em pauta em numerosos textos
acerca da cultura brasileira. Isso, por certo, resulta das
questões que o motivaram, as quais permanecem em aberto.
No contexto de sua formulação – momento de renovação das
linguagens artísticas no Brasil que teve um forte impulso com o
modernismo nos anos 1920 –, a proposição de Oswald de
Andrade apresentou uma abordagem arejada na incorporação
das influências externas na cultura brasileira. No caso
específico do campo musical, essa proposição da antropofagia
cultural não teve, até os anos 1960, repercussão comparável à
122 das elaborações de Mário de Andrade em torno do
nacionalismo musical, presentes em vários textos seus e
sistematizadas no Ensaio sobre a música brasileira (1928).
Porém, em que pese a incidência marcante de Mário de
Andrade e da corrente nacionalista na musicologia brasileira
no campo de produção erudito ao longo do século XX, sua
influência nos rumos da música popular urbana no Brasil não
foi determinante e sua incidência sobre a música popular é
indireta. Para a música erudita, os escritos e as elaborações de
Mário de Andrade constituíram um programa que foi
implementado na construção de uma escola de composição que
se tornou hegemônica a partir da década de 1930 até meados
dos anos 1960; no campo musical popular, suas elaborações
não influenciaram diretamente os rumos da produção, mas
estão presentes no pensamento sobre essa produção, pois seus
textos foram – e são – considerados no debate.
Após um período de ostracismo, o programa e o
discurso da antropofagia cultural foram retomados pelas
vanguardas e pelos tropicalistas na segunda metade dos anos
1960. Se, a partir de então, não chegou a sair de cena, foi mais
uma vez colocado no centro do debate na década de 1990, por
músicos como Chico Science, Lenine, Fernanda Abreu, Marcos
Etnicidade e antropofagia cultural

Suzano e outros (MOEHN, 2012). Possivelmente, a agenda de


pesquisas, os objetos escolhidos e as abordagens favoreçam um
olhar para aspectos identitários e de hibridismos na produção
musical popular brasileira, no qual tem destaque a
antropofagia; porém, ao contrário do que ocorre nas pesquisas
no Brasil, a antropofagia cultural tem, nesses estudos em inglês,
um destaque bem maior do que o nacionalismo musical de
Mário de Andrade. Em alguns casos, parece um tanto forçada e
exagerada essa onipresença da menção ao projeto
antropofágico. De toda forma, talvez um balaço de seu real
alcance e influência na cultura brasileira e na música em
particular ainda esteja por se fazer.

Discussões políticas que emergem dos textos


Outro conceito bastante mencionado nesta bibliografia
analisada é o de “neoliberalismo”, termo cujo sentido exato
carece de definição. É curiosa a profusão com que essa palavra 123
é empregada no Brasil, e replicada no exterior, para
caracterizar o período dos governos Itamar Franco e Fernando
Henrique. É tanto mais curioso seu uso generalizado, uma vez
que não existe, na teoria econômica, nenhuma corrente ou
programa que se intitule “neoliberal”; no campo da Economia,
não há “neoliberalismo” enquanto escola, como técnica especial
de produção de conhecimento ou como paradigma científico.
No máximo, neoliberalismo pode ser um estilo de conduzir
políticas econômicas de inspiração liberal. O termo foi aplicado
para os governos Thatcher (Reino Unido) e Reagan (Estados
Unidos). Mas as políticas econômicas que caracterizaram esses
governos não foram aplicadas no Brasil. Aqui, o que ocorreu, no
governo Itamar Franco e nos dois mandatos de Fernando
Henrique Cardoso, foi um ajuste econômico e a estabilização da
moeda, combinados com a abertura econômica no período de
redemocratização. Ainda que tenha havido privatizações –
corretas, no meu ponto de vista –, o estado continuou muito
grande e detentor de muitas empresas e bancos. Entretanto,
essas medidas foram chamadas de “neoliberais” como forma de
associação com políticas econômicas no hemisfério norte, como
parte da propaganda do então oposicionista Partido dos
Trabalhadores (PT).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

À parte essa observação sobre a utilização da


expressão “neoliberal”, que carece de melhor definição, em
geral o posicionamento político apresentado nesses textos,
ainda que com certa inclinação à esquerda típica das Ciências
Humanas, tende a buscar um equilíbrio e uma neutralidade em
relação à polícia interna no Brasil. Isso é notório no
reconhecimento, quase generalizado, do governo Fernando
Henrique Cardoso como o responsável pela estabilização
econômica, por ter colocado o Brasil num circulo virtuoso e por
ter reposicionado o país no cenário internacional, o que
contrasta com muitos dos discursos produzidos no país.
Entretanto, por vezes vazam, em alguns discursos, um
alinhamento à esquerda com elogios ao PT, ao Movimento Sem
Terra (MST) e à Central Única dos Trabalhadores (CUT). Talvez
isso possa ser compreendido se historicizarmos a produção,
uma vez que muitos desses textos foram escritos por volta dos
anos 1990; dito de outra forma, no século passado. Se
considerarmos a história recente do país, o processo de
124 redemocratização, a crítica às desigualdades sociais e o
discurso pela ética na política que esses grupos verbalizavam
antes de o PT chegar ao poder, é compreensível que muitos
setores tivessem certa expectativa – ou ilusões – na ascensão
desse partido e nesses movimentos que orbitavam em torno
dele. Tais discursos soam muito defasados na atual conjuntura
política e econômica do país; quando os discursos ficam
datados, torna-se mais evidente que estavam guiados por
pressupostos ideológicos. Como costuma ocorrer nesses casos,
ao enveredar por considerações políticas, muitas vezes esses
textos falam mais do posicionamento dos autores do que do
contexto sociocultural, político e econômico da produção
musical que pretendem discutir.

Considerações finais
Os conceitos observados neste artigo – raça,
democracia racial, afro-brasileiro, antropofagia cultural,
nacionalismo – são centrais nos estudos da cultura brasileira
em geral e da música em particular. Estamos – ou deveríamos
estar – familiarizados com eles. No entanto, para o olhar
exterior, os debates que esses conceitos incorporam ganham
Etnicidade e antropofagia cultural

ainda maior relevância porque estão intrinsicamente ligados ao


que significa “brasilidade” ou “ser brasileiro”, algo difícil de
apreender. São temas que se abrem para muitas – por vezes,
apaixonadas e ideologizadas – polêmicas, bem como para
interesses de agendas políticas. Ainda assim, esse é um desafio
que se coloca àqueles pesquisadores advindos de outra cultura
que se interessam pelos problemas brasileiros.
Se, por um lado, a presença desses temas nos estudos
da música do Brasil realizados no exterior parece exagerada e
desproporcional; por outro, mostra que temos de enfrentar
essas questões e termos posicionamentos claros sobre esses
temas. Com o crescimento dos programas de pós-graduação em
Música no Brasil, é necessária uma compreensão equilibrada
do que significa a internacionalização no campo de produção
intelectual. O intercâmbio se inicia com a mútua capacidade de
compreender as agendas e as ideias que embasam interesses
em torno de um mesmo objeto de pesquisa. Se desejarmos
dialogar com esses estudos acerca da música brasileira 125
produzidos no exterior, então o conhecimento e a reflexão
sobre as ideias que sustentam esses debates são fundamentais.

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Fronteiras entre música, estética,
história e política
Música e multissensorialidade à luz de três
abordagens filosóficas: John Dewey, Maurice
Merleau-Ponty e Michel Serres

ALEXANDRE SIQUEIRA DE FREITAS

uando criança, Orfeu não falava, nem cantava e muito


Q menos criava poemas e música. Incomodava-se
profundamente com o barulho que vinha do mundo e buscava
um lugar verdadeiramente silencioso. Inconformado, o futuro
músico e poeta, por meio de gestos, recorre a sacerdotisas e a
profetizas no templo de Delfos. Sibilas, Pítia e as Bacantes
fazem-no perceber que tal silêncio pleno não existe.
Confrontando-se com sua mudez, aconselham o jovem herói a
escutar os sons do próprio corpo, a pulsação, a respiração, os
soluços do desejo e, mais ainda, a atentar-se ao som do entorno,
aos gemidos de uma mãe em trabalho de parto, ao grito do
recém-nascido.

O ruído de fundo do mundo


É preciso que Orfeu abra todo o seu corpo ao “ruído de
fundo do Mundo, incessante, contínuo, no qual o translado [la
navette] tece a cadeia e a trama do tempo” (SERRES, 2011, p.
13). Na infância de Orfeu, narrada por Michel Serres em
Musique (2011, p. 9-47), antes de poder soltar a voz em
sonoridades intensas, de propagar a emoção pelas canções ou
pela linguagem, o jovem aprendiz teve de entrar em contato
com o caos do universo, com os ruídos que veem de toda parte.
Tinha que escutá-los na totalidade de sua pele, fazê-la vibrar
como um grande tímpano. Foi-lhe solicitado uma escuta
corporal, para além da especificidade do ouvido: à beira do
sentido. “Estar à escuta é sempre estar à beira do sentido, ou no
sentido de borda ou extremidade (...)” (NANCY, 2014, p. 19).
Esta borda, para Orfeu, é todo seu corpo. Sua pele abre-se ao
Música e multissensorialidade

barulho caótico das cidades, das batalhas, aos zumbidos e ao


tilintar sem sentido de seu próprio ouvido.
Todos os eventos sonoros, segundo o texto de Serres,
inscrevem-se nessa base comum, nesse ruído de fundo do
mundo. Criança, Orfeu penetrava as entranhas do caos sonoro
originário. Era preciso, no entanto, ir mais além, entender
melhor essa realidade, que ele conhecia sem conhecer: intuía.
Por isso, continua seu périplo, errando nas imediações do mar
Mediterrâneo, quando encontra, próximo ao monte Parnaso,
uma velha feiticeira, sábia e cheia de ressentimentos:
Mnemósine. É ela quem detém todas as lembranças do mundo
e quem mais entende do seu ruído de fundo. Titânide, filha de
Urano e Gaia, Mnemósine diz a Orfeu que, em meio ao caos,
existe uma ordem sutil para a qual é necessário atentar-se.
Nossos corpos reverberam sem cessar três ruídos de fundo
distintos, porém inextricavelmente misturados. O primeiro e
permanente: o ruído do mundo. Mais intenso e raro: aquele dos
vivos. E, finalmente, o ruído das sociedades, que busca sentido, 131
cegamente, por todo lado. “Essa tripla sucessão assegura uma
primeira grande harmonia nessa suntuosa desordem” (SERRES,
ibid., p. 15)1. A feiticeira da memória tece assim uma primeira
ordenação a esse estado sonoro inicial.
Na história de Orfeu, toda expressão intensa de som e
poesia é precedida por esta escuta ampliada. Seu canto
inscreve-se em um contexto mais amplo, indefinido, ainda que
passível de ser ordenado. “A qualidade penetrante e indefinida
de uma experiência é aquilo que vincula todos os elementos
definidos, os objetos dos quais temos consciência focal,
transformando-os em um todo.” (DEWEY, 2010, p. 350). Para
sua voz fluir potente, foi preciso Orfeu sentir o todo, extenso e
subjacente, contexto de qualquer experiência. Se persistisse na
busca pelo silêncio, sua sanidade estaria em jogo.
John Dewey trata desse contato inicial com o mundo, o
qual aproximamos com o ruído de fundo da narrativa do

1Esta e as próximas citações retiradas do livro “Musique”, de Michel


Serres, além daquelas provindas de “Fenomenologia da Percepção”, de
Maurice Merleau-Ponty”, foram traduzidas pelo autor deste artigo.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

aprendizado de Orfeu por Michel Serres. Para o pensador


estadunidense, tanto o artista quanto o espectador partem de
um estado de captação total, em que um todo qualitativo, ainda
não articulado, serve de substrato, base, para a inscrição de
uma experiência (DEWEY, 2010, p. 346-347). Vivenciamos as
coisas como partes de um todo maior inclusivo, quer estejamos
conscientes disso ou não. Orfeu sabia, sem saber. O fato de não
ser intelectualmente apreendido não significa a inexistência de
algo sentido e intuído com intensidade. Por ser tão completa e
disseminada, essa condição de possibilidade para experienciar
o mundo é, na maioria das vezes, subestimada. O ruído das
sociedades, com suas linguagens e ciências, encobre os ruídos
de fundo do mundo e dos vivos. É impossível, entretanto,
livrar-se da sensação de algo que está mais além, como Dewey
deixa explícito em seus escritos, convergindo com o
aprendizado de Orfeu. Por mais que expandamos nosso campo
de percepção e nos abramos às experiências, nunca
atingiremos esse todo, cujas margens diluem-se em um
132 expansão infinita. “Sem um contexto indefinido e
indeterminado, o material de qualquer experiência é
incoerente”. (2010, p. 351). O todo é sentido como expansão de
nós mesmos e dialoga ininterruptamente com o que a
inteligência distingue. Desta última depende a inteligibilidade
das coisas, mas não deve, por isso, descartar o pano de fundo
que sempre persistirá no que quer que seja: o contexto
indefinido e potente no qual inscrevem-se nossas vivências.
A síntese que se faz, a cada momento, entre as
especificidades e a totalidade das sensações é, contudo, sempre
inacabada, indefinidamente feita e desfeita ao longo do tempo.
Ainda assim, – recorrendo agora a Maurice Merleau-Ponty –
existe uma unidade como pressuposição no horizonte da
experiência (1945, p. 265). Na obra Fenomenologia da
percepção, de Merleau-Ponty, há um grande esforço que
consiste em identificar o núcleo de um “já” (déjà), chamado por
vezes de pré-história, que precede toda reflexão predicativa e
sobre o qual se estabelece a relação explícita que temos com o
mundo (LYOTARD, 1986, p. 57). O fenomenólogo francês incita
a busca por uma “camada primordial”, onde nascem as ideias e
as coisas. Para Orfeu, como músico e poeta, tal camada pode ser
caracterizada pelo conhecimento do persistente e incômodo
Música e multissensorialidade

ruído de fundo do mundo. “Toda percepção se dá em uma


atmosfera de generalidade e se apresenta como anônima.”
(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 260). Quando vemos um objeto,
experimentamos também a existência de um ser que está além
do que vemos, segundo Merleau-Ponty. Esta e qualquer outra
sensação comporta um “germe de sonho ou de
despersonalização” e é, literalmente uma comunhão, uma
coexistência com aquilo que se está em contato (ibid.).
Portanto, não deveríamos dizer “eu percebo a cor azul” e sim
“percebo em mim a cor azul”. Além disso, uma experiência
nunca será absolutamente clara porque existe, entre minha
sensação e mim, a espessura de um saber originário, a camada
primordial e presente: o “já”.

Música
Acabara, nosso herói, de abrir seu corpo aos ruídos que
precediam e condicionavam as vozes humanas. Antes de falar, 133
raciocinar, calcular, as profetisas o haviam ensinado a escutar o
vento, o som ritmado das marés, o ruído de fundo do mundo.
“Mas como passar do ruído à música?” – pergunta
Orfeu a Mnemósine.

Como Afrodite, mãe de toda beleza, nasce de um golpe de


espuma, emerge subitamente do mar caótico do barulho: a
Música. (...) Bem antes que a cabeça a transforme em voz, em
sentido e em língua, antes de pensar, de dizer e de significar,
seu corpo vibra com essa música, integrada por ele a partir
de todos os ruídos do mundo. (SERRES, 2011, p. 20 -21).

“Quem comporia tal música?” – insiste Orfeu. “Minhas


nove filhas” – responde Mnemósine. São as nove musas. Todas
juntas, na concepção de Michel Serres, fazem com que nasça a
música, primeira arte humana, sem a qual ninguém pode
acessar à beleza. Sendo difícil, delicada e perigosa tal empresa,
a feiticeira teve de agrupar suas filhas: primeiramente as
musas-música e, em seguida, as musas-línguas. O filósofo
francês apresenta o primeiro grupo composto por cinco musas.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

As duas primeiras, Políminia e Terpsícore, ligam-se mais


intensamente ao movimento do corpo e ao ritmo, como
elemento essencial da vida. Políminia, musa da pantomima,
toca percussão, reproduz, imita, acompanha. Terpsícore expõe
em sua dança todo o repertório de condutas corporais: mil
movimentos. “A dança inventa o corpo porque lhe dá
adaptabilidade.” (SERRES, 2011, p. 25). Vendo e ouvindo os
ritmos dessas musas, Orfeu busca compreender a cadência
cacofônica do mundo. As duas musas seguintes são mais
especializadas. Euterpe toca a flauta inventada por Pan, que
simboliza todos os instrumentos capazes de produzir sons.
Erato dirige o coral que reuni mil vozes em uma harmonia de
raros uníssonos e de acordes complicados. Temos então, por
enquanto, musas corporais e musas musicistas. A elas une-se a
poderosa Urânia, que compõe, calcula e contempla a harmonia
dos céus. Emerge a dimensão técnica. “Eu suavizo,
antecipadamente, todo o barulho do Mundo, para podermos
ouvir, sob a Grande Narrativa, uma imensa rapsódia.” (2011, p.
134 32). Urânia é musa do saber rigoroso, preciso e universal. As
quatro últimas musas são as responsáveis por fazer emergir as
significações. São as musas-línguas. Melpômene apresenta a
tragédia, Tália a comédia, Calíope a poesia épica e, finalmente,
Clio expõe a história e a mentira de seus heróis, completa
Serres (2011, p. 36).
Todas as linguagens, neste resumo das descrições do
filósofo, são precedidas pela música. Embora tenha cada uma
seus próprios atributos, todas juntas criaram a música, como
primeira manifestação humana de ordem expressiva e sonora.
“A música inventa a linguagem (...)” (2011, p. 25). Orfeu, antes
de falar, aprende com as musas a compor. Deu-se conta de que
as linguagens humanas poderiam impedi-lo de ouvir o ruído de
fundo do mundo. A música compreende as linguagens, mas as
linguagens não a compreendem. Ela acolhe os ruídos do mundo
e transforma-os em universais que precedem os discursos.
Antes de serem palavras, os sons eram tons, “variações
das sensações de dor e prazer, surpresas... ais e uis
melodicamente articulados... poemas arcaicos da invenção do
ser. Dias melodias da história humana”, disse José Carlos
Capinan, poeta, letrista, parceiro de inúmeros compositores da
música brasileira (2014, p. 10). O poeta reafirma a relação
Música e multissensorialidade

música-palavra como expressão complexa, “reconstituição dos


signos primais da expressão”, quando “as palavras eram apenas
sons ou quando deles não se haviam separado” (2014, p. 10).
A caracterização feita por Capinan do estágio inicial da
música como surpresa e variação de sensações converge com a
descrição da arte dos sons feita por Dewey e também por Jean-
Luc Nancy.

A música, portanto, tendo o som por veículo, expressa


necessariamente, e de maneira concentrada, os choques e as
instabilidades, os conflitos e resoluções que são as mudanças
mais dramáticas, impressas no pano de fundo mais
duradouro da natureza e da vida humana. (DEWEY, 2010, p.
416).

A música tece sua trama a partir das descargas de


energia, da luta, do movimento. O frêmito, as particularidades e 135
contingências da vida expressas na música, segundo o
pensador, encontram-se entranhadas na natureza e são típicas
da experiência em suas constantes estruturais. O movimento da
grande estrutura da vida acontece em ritmos seculares,
enquanto o que capta nossos ouvidos são eventos súbitos e de
rápida mudança. (DEWEY, 2010, p 416).

(...) a escuta ocorre ao mesmo tempo que o evento sonoro,


disposição claramente distinta da da visão (para a qual, de
resto, também não há “evento” visual ou luminoso em um
sentido absolutamente idêntico ao termo: a presença visual
já ali está disponível antes que eu veja, enquanto a presença
sonora chega: comporta um ataque, como dizem os músicos e
os especialistas em acústica). (NANCY, 2014, p. 31).

As coisas visíveis não são, em si, perturbadoras, pois a


visão, como sentido da distância, nos liga ao que está longe. Ela
nos proporciona a cena na qual ocorre a mudança. Na audição,
o som vem de fora, mas é muito próximo e íntimo e o sentimos
por todo nosso corpo. O som relata mudanças e, dessa forma,
FRONTEIRAS DA MÚSICA

incita mudanças. “O som transmite o que é iminente, o que está


acontecendo como indicação do que provavelmente virá.”
(DEWEY, 2010, p. 417). E, ainda nas trilhas de John Dewey, a
iminência do som carrega sempre uma aura de indeterminação
e incerteza, por isso os sons criam condições favoráveis a
intensas agitações emocionais.
A dimensão imaterial da música, sua conexão imediata
com os afetos, assim como sua ligação íntima com os números,
na cultura ocidental, deu a ela status de arte liberal na Idade
Média e na Renascença. Inseria-se no chamado quadrivium, ao
lado da aritmética, da geometria e da astronomia. As artes
liberais gozavam de maior prestígio social em detrimento das
artes mecânicas ou servis, associadas às atividades manuais
(FREITAS, 2012, p. 45). Curioso notar que a música incluía-se
entre as artes liberais somente em sua forma idealizada, na
associação com os números, com a harmonia, na educação
musical no interior de uma ordem superior. Estaria, digamos,
136 sob a égide de Urânia, a musa dos astros. Em sua forma
instrumental e prática, porém, a música não era uma arte
liberal e não era sequer mencionada entre as artes mecânicas.
Sua presença instaurada como pensamento e memória
sobrepõe-se aos gestos instrumentais ou vocais, intimamente
conectados à dimensão temporal. A música real, com sua
sucessão de surpresas e de choques, tem, por séculos, algo de
incômodo. Sua nobreza levantava suspeitas.
Filhas da titânide que se liga à memória, as musas
criadoras da música frequentam tempos de todas as ordens,
nem sempre submetidas à linearidade. A música insere passado
e futuro no presente, lembranças e esperança, como nos
mostrou Santo Agostinho em suas Confissões (AGOSTINHO,
1996). Contrai, dilata, paralisa o tempo. “(...) eu não sei se a
Música segue ou produz o tempo...” (SERRES, 2011, p. 45).
Se como expressão ou linguagem a música é
predominantemente temporal, como sensação ela é, antes de
tudo, espacial. Toda sensação, no contato primordial com o ser,
é retomada de uma forma de existência indicada pelo sensível,
como coexistência de quem sente e do sensível (MERLEAU-
PONTY, 1945, p. 262). A música, embora não esteja no espaço
visível, ela o mina, o desloca, abala o chão daqueles que se
Música e multissensorialidade

entregam, “como uma tripulação sacudida na área de uma


tempestade” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 271). Logo, de acordo
com o viés observado, a música modula o tempo e o espaço. Por
qualquer viés, entretanto, a potência de sua ação é irrefutável.
A música antecede as linguagens, como percebeu
Orfeu, inclusive a linguagem matemática e das ciências: ela
“conta por meio de números sem nome”. (SERRES, 2011, p. 44).
Quando liberta de definições adquiridas com o contato da fala,
possibilita a retomada de uma qualidade passional primordial,
com alto grau de desvinculação de objetos e de acontecimentos
particulares, observou Dewey (DEWEY, 2010, p. 419). Orfeu
toma o material bruto, o ruído do mundo, tria, tece conexões,
ordena, reconfigura e o converte em um veículo intensificado e
concentrado, construtor de experiências.
Na apresentação de Serres, o aprendizado de Orfeu foi
uma descida ao inferno do caos aleatório dos ruídos para, em
seguida, com ajuda das musas, emergir como músico, expert
em cantos, palavras e razões. Salvo de todo mal, vem suavizar a 137
cólera e o desamor dos humanos. A música é caracterizada por
Serres como interseção (coloca em contato ciência rigorosa e
caos), encarnação (transita por corpos e instrumentos),
completude (depositório de equivalentes sonoros antecessores
das linguagens), origem, reunião e universal (SERRES, 2011, p.
45). “A Música não é um saber, e sim um poço por onde
despontam todas as invenções possíveis. Assim, a filosofia.”
(SERRES, 2011, p. 45.).
Embora liberta do inferno, a música pode sempre
retornar ao caos de onde saiu. Persistem, como partes
integrantes da experiência, os ruídos de fundo propostos por
Serres, neste texto associados ao “contexto indefinido e
indeterminado” de Dewey e a “atmosfera de geralidade”, o “já”
sempre presente na fenomenologia de Merleau-Ponty2.

2 Essa associação entre os três filósofos foi sugerida primeiramente na


tese de doutorado: FREITAS, Alexandre Siqueira de. Ressonâncias,
Reflexos e confluências: três maneiras de conceber os encontros entre
as semelhanças entre o sonoro e o visual em obras do século XX. Cf.
Referências Bibliográficas.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Multissensorialidade
Como vimos, o aprendizado de Orfeu abriu-se a uma
escuta corporal, transformando a pele de todo seu corpo em
um grande tímpano, sensível ao mínimo movimento de ondas
sonoras. Tais pequenos movimentos constituem, de algum
modo, uma comunicação entre um lado perceptivo e um lado
motor. John Dewey afirma que as conexões dos tecidos
cerebrais com o ouvido são maiores que as de qualquer outro
sentido e, ainda, as ligações da audição com todas as partes do
organismo fazem com que o som tenha mais reverberações e
ressonâncias que qualquer outro sentido (DEWEY, 2010, p. 416
e 419). Os órgãos dos sentidos atuam, em um primeiro
momento, como instrumentos de excitação corporal ou
“tentáculos” por meio dos quais tocamos o mundo, para utilizar
um termo de Dewey (DEWEY, 2010, p. 352). Os sentidos, no
entanto, não são a própria percepção, como fica claro no
pensamento desse pensador. Tampouco na compreensão de
138 Merleau-Ponty, na qual cada sentido é um pequeno mundo no
interior do grande, que é a percepção. Embora o pensamento
objetivo – sobre o qual funda-se a ciência, no seu entendimento
mais específico e difundido – propague a crença em uma certa
autonomia sensorial, a fenomenologia crê no sentir como
comunhão com o mundo e modalidade de existência. Seria
impossível desconectar do corpo uma experiência de um só
órgão, pois a percepção é sempre uma síntese inscrita em um
esquema corporal feito de equivalências e transposições. Não
existe pureza sensorial, já que o corpo inteiro comunica-se com
o mundo e seus objetos. O que existe são certas “vocações de
registros sensoriais”:

Ao mesmo tempo em que essa unidade/totalidade do


sensível aparece para o sentinente, a especificidade, a
vocação de cada registro sensorial não é negada. Pensa-se o
corpo inteiro como engajado no funcionamento de um dos
sentidos – o surdo pode ter perdido o uso de seus órgãos,
mas seu corpo continua investido da dimensão sonora, ele
não deixa de escutar o mundo, não é totalmente surdo.
(CAZNOK, 2008, p. 129).
Música e multissensorialidade

O som, na sua “impureza”, evoca densidades, texturas,


luminosidades, talvez sabores e odores. O saber científico, no
pensamento de Merleau-Ponty, perturba nossas experiências
reais, pois não se trata, por exemplo, de um vago exercício de
abstração pensar no quanto o ruído de um automóvel pode nos
dizer sobre a dureza do chão ou a desigualdade do calçamento
da estrada (1945, p. 276).
Os músicos, vale lembrar, são completamente
habituados a ouvir expressões que fazem menções a outros
sentidos na condução de suas escolhas interpretativas: sons
doces, secos, leves, pesados, brilhantes, fechados, abertos etc.
Aqueles mais ligados às músicas contemporâneas e
eletroacústicas, que enfocam o timbre, podem acrescentar
ainda: sons rugosos, estriados, lisos, densos, nuvens de sons
etc. O vocabulário musical está repleto de alusões sinestésicas,
que são bem mais que simples metáforas.

139
A percepção sinestésica é a regra e, se nós não a percebemos,
é porque o saber científico desloca a experiência e nós
desaprendemos a ver, ouvir e, em geral, sentir, para deduzir
de nossa organização corporal e do mundo, tal qual o
concebe o físico, aquilo que devemos ver, ouvir e sentir.
(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 275).

Para a fenomenologia, todos somos potencialmente


sinestetas, pois admite-se “uma unidade primordial do sentir e
uma indiferenciação também primordial do sensível (...)”
(CAZNOK, 2008, p. 132).
Outras áreas do saber aludem também a existência de
uma sinestesia generalizada. Desde convincentes insinuações –
como as do artista e professor Julio Plaza quando sugere a
existência de leis neuropsicológicas que suscitam a conexão de
sentidos (PLAZA, 2003, p. 60) – até todo o histórico das últimas
décadas de pesquisas neurocientíficas que associa fatos
artísticos e multissensorialidade, por vezes inseridos no
território da neuroestética, da neurociência cognitiva das artes
FRONTEIRAS DA MÚSICA

ou, de maneira geral, em recentes estudos das interseções


entre arte e tecnologia3.
Dewey, sem negar a vocação sinestésica da percepção,
observa que – no interior do permanente diálogo entre a
especificidade dos órgãos dos sentidos e a unidade da
percepção do mundo – os objetos artísticos acentuam a
especialização de um sentido. Segundo ele, pelo fato de as
obras de arte atuarem por meios específicos, como faz a música
com os sons, a estrutura especial de um sentido assume a
liderança no encaminhamento da percepção e reduz a sensação
de dispersão difusa (2010, p. 356). A arte toma um material
bruto e, mediante seleção e organização, transforma-o em um
veículo intensificado e concentrado para construção de uma
experiência (2010, p. 420). Supõe-se, no entanto, que, embora o
autor fale de experiência artística como um todo, essas
considerações reportem-se às modalidades artísticas que
endereçam-se a sentidos precisos, como a pintura ou a música.
140 Em outras práticas, como teatro, cinema, artes literárias ou em
formas artísticas mais recentes, como performances ou
instalações, a consideração de Dewey sobre a condução da
percepção por um sentido em especial deve ser vista com
algum cautela4.
A “qualidade penetrante e indefinida”, em todo caso,
persiste nos objetos artísticos e em nossas relações com eles. A
percepção inscreve-se na “atmosfera de generalidade” e a
unidade dos sentidos é, para Merleau-Ponty, somente a
expressão formal de uma contingência fundamental: o fato de
estarmos no mundo (1945, p. 266). Tanto a unidade dos
sentidos, quanto suas especificidades são ambas verdades com
o mesmo estatuto, são mundos particulares inseridos no
mundo mais amplo de nossa experiência integrada (1945, p.
266).

3Cf. LEOTE, R. Multisensorialidade e Sinestesia: Poéticas Possíveis?.


4 Os textos organizados na obra “Arte como experiência”, de John
Dewey, foram escritos ente 1925 e 1953. Portanto, há alguma chance
de que os capítulos estudados (“A substância comum das artes” e a “A
substância variada das artes”) tenham sido escritos antes do
surgimento de certas modalidades artísticas já incorporadas na
contemporaneidade.
Música e multissensorialidade

Na compreensão de Merleau-Ponty, reflexões mais


profundas, incluindo aquelas provindas das ciências, tornam
obscuro o que achávamos claro. Ouvir, ver, sentir são palavras
probleméticas. Por isso, Orfeu, no seu aprendizado, é convidado
a voltar sua audição – na verdade, todo o seu corpo – para os
sinais mais fundamentais desse nosso mundo. Sinais que, na
narrativa de Serres, precedem toda linguagem humana.
Vibra o corpo de Orfeu. Ele assim o sente, e “a sensação
é, literalmente, uma comunhão” (1945, p. 257). Quando doou
seus ouvidos, o sensível apossou-se de todo o seu corpo e todo
ele vibrou à maneira dos “ruídos de fundo do Mundo”.

Toda sensação comporta um germe de sonho ou


despersonalização, como o experimentamos por este tipo de
estupor em que ela nos coloca quando vivemos
verdadeiramente em seu plano. (1945, p. 260).

141
A fenomenologia de Merleau-Ponty, os ensinamentos
de Dewey e o percurso de Orfeu, na narrativa de Serres, são
como convites para retornarmos às experiências primordiais,
acolhermos o aparente caos instalado no seio de nossa
percepção e renovarmos a cada “agora” nossas experiências, de
todas as naturezas.

Referências bibliográficas
AGOSTINHO. Confissões. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural,
1996.
CAPINAN, J.C. Vinte canções de amor e um poema quase desesperado.
Salvador: Caramurê, 2015.
CAZNOK, Y. B. Música: entre o audível e o visível. São Paulo: Unesp,
2008.
DEWEY, J. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
FREITAS, A. S. de. Ressonâncias, reflexos e confluências: três maneiras
de conceber as semelhanças entre o sonoro e o visual em obras do
FRONTEIRAS DA MÚSICA

século XX. Tese (Doutorado em Artes/Música. Universidade de São


Paulo e Paris-Sorbonne (cotutela). São Paulo, Paris, 2012. Disponível
em: http://www.e-sorbonne.fr/sites/www.e-orbonne.fr/files/theses/
Siqueira_De_Freitas_Alexandre_2012_these_0.pdf

LEOTE, R. Multisensorialidade e Sinestesia: Poéticas Possíveis?.


Revista Ars. vol. 12, n. 24, 2014, p. 44-61.
LYOTARD, J.-F. La phénoménologie. Paris: PUF, 1986.
MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception. Paris:
Gallimard, 1945.
NANCY, J-L. À escuta. Belo Horizonte: Edições Chão de Feira, 2014.
PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.
SERRES, M. Musique. Paris: Le Pommier, 2011.

142
O papel do charme na estética musical de Vladimir
Jankélévitch

CLOVIS SALGADO GONTIJO OLIVEIRA

O je-ne-sais-quoi, o indizível... Deve ser isso o que


chamam de Encanto (Charme)
Jankélévitch, De la musique au silence

Introdução

aseando-se na metafísica da música schopenhaueriana,


B Richard Wagner (1813-1883), no ensaio comemorativo
aos cem anos de nascimento de Beethoven (1770-1827),
compreende a beleza como categoria estética particularmente
aplicável ao âmbito das artes plásticas. Segundo o compositor
de Bayreuth, na língua alemã, “o conceito de beleza [Schönheit]
(...), segundo a raiz da palavra, relaciona-se claramente com a
aparência (como objeto) [Schein] e com a contemplação (como
sujeito) [Schauen]” (WAGNER, 2010, p. 22). Se nos recordamos
que, de acordo com Schopenhauer, a música não se constrói
dentro do reino das aparências, graças à sua constitutiva
separação do mundo fenomênico, a “transposição” da categoria
de beleza para todas as artes, incluindo a arte sonora, seria
bastante imprecisa.
Esta dimensão antes plástica que musical da beleza,
observada por Wagner, é desenvolvida por Friedrich Nietzsche
(1844-1900) em O nascimento da tragédia (1872). Logo após
afirmar a valorização schopenhaueriana da música como o
“mais importante [reconhecimento] de toda a estética”, o jovem
filólogo destaca a continuidade de Wagner às ideias
apresentadas em O mundo como vontade e representação,
FRONTEIRAS DA MÚSICA

quando no Beethoven estabelece que a música deve ser


medida segundo princípios estéticos completamente
diferentes dos das artes figurativas e, desde logo, não
segundo a categoria da beleza: ainda que uma estética
errônea, pela mão de uma arte extraviada e degenerada,
tenha se habituado a exigir da música, a partir daquele
conceito de beleza vigente no mundo figurativo, um efeito
parecido ao das obras da arte figurativa, a saber, a excitação
do agrado pelas belas formas (NIETZSCHE, 1992, p. 98).

O questionamento da aplicabilidade da categoria de


beleza à música persiste no século XX, até mesmo em um autor
que, apesar de também exaltar a experiência musical, se afasta
consideravelmente da perspectiva metafísica de Schopenhauer
e da grandiloquência exaltada pela poética wagneriana. Trata-
se do filósofo francês Vladimir Jankélévitch (1903-1985), que,
nas suas reflexões sobre a música, chega a nomear e examinar a
“categoria” que lhe parece mais consentânea à arte sonora. E
144 qual seria ela? Responde o filósofo, em La musique et l’ineffable
(1961), que

o encanto (charme) é o poder específico da música. Se a


Beleza consiste na plenitude intemporal, no cumprimento e
no arredondamento da forma, na perfeição estática e na
excelência morfológica, o encanto possui algo de nostálgico e
precário, um não-sei-quê (je-ne-sais-quoi) de insuficiente e
inalcançável que se exalta sob o efeito do tempo
(JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 121-122).

Como verificamos desde esta primeira citação, o


charme, que aqui traduzimos por encanto, é intrinsicamente
inapreensível, indefinível, impalpável, atributos partilhados, de
acordo com Jankélévitch, pela manifestação artística com a qual
mais se conecta. Contudo, isto não nos impede de reconhecer
algumas particularidades do conceito em foco, capazes de
garantir tal conexão. Para tanto, traçaremos, antes de nos
dirigir à obra de Jankélévitch, uma pequena genealogia do
encanto, que nos permitirá visitar alguns dos autores que
influenciarão a concepção jankélévitchiana do charme.
O papel do charme

Uma genealogia do charme


Em Charis: essai sur Jankélévitch, Enrica Lisciani-
Petrini esclarece que o conceito jankélévitchiano de encanto
carrega consigo dois termos de origens remotas e distintas (cf.
LISCIANI-PETRINI, 2013, p. 24). Por um lado, remete ao termo
latino carmen, do qual, segundo a etimologia mais frequente, o
charme francês descenderia. Carmen refere-se a “tudo que é
escrito em verso, fórmula ritmada, fórmula mágica, fórmula
solene (religiosa ou jurídica)”, assim como, de modo mais
específico, a uma composição poética, “especialmente poesia
lírica ou épica” (FARIA, 1956, p. 153). Por outro lado, ao longo
da sua obra, Jankélévitch também associa o encanto a um
conceito explorado pelo neoplatonismo, a graça (kháris)
plotiniana. É a este segundo termo que dedicaremos a presente
genealogia, reservando para a segunda parte deste trabalho
uma breve menção à fórmula carmen, que, provavelmente
devido ao seu teor de irracionalidade, tenha sido
desconsiderada e, até mesmo, evitada pela tradição estética. 145
Raymond Bayer, na sua História da Estética, detecta a
presença da graça já na Grécia pré-clássica, especialmente nos
poetas líricos eróticos que, quando entoam os seus encômios às
figuras femininas, tendem a privilegiar mais a graça que a
beleza. Segundo Bayer, “a graça, que implica o movimento e o
sentimento interior, não está necessariamente ligada à beleza e
sempre possui algum matiz espiritual. É, portanto, a primeira
interiorização e espiritualização da beleza” (BAYER, 2012, p.
26).
Estas características essenciais da graça permanecem
em Plotino, desenvolvendo-se em sintonia com a sua proposta
ontológica. Contrariando tendência recorrente à estética
clássica, de influência pitagórica, o filósofo neoplatônico
observa que o seguimento de determinados cânones e
proporções, assim como do ideal da taxis kai symmetria
(“ordem e simetria”), nas obras artísticas e nas formas naturais,
é insuficiente para nos atrair e cativar. Após observar que a
justificativa da beleza pela simetria incorreria no absurdo de
excluir o potencial estético das formas simples, das quais não
FRONTEIRAS DA MÚSICA

participa o ajuste harmônico entre partes1, Plotino questiona:


“E se é notório que quando um rosto, cujas proporções
permanecem idênticas, mostra-se às vezes belo, às vezes feio,
podemos ter alguma dúvida de que a beleza seja algo mais que
a simetria dessas proporções, de que a causa da beleza do rosto
bem proporcionado seja outra?” (PLOTINO, 2000, p. 20-21,
Eneada I, 6, 1).
Cotejando esta a outras passagens das Eneadas,
poderíamos afirmar que a beleza, para ser efetiva, precisa
contar com a participação de outro componente estético. Caso
contrário, como Jankélévitch tantas vezes recorda2, tornar-se-ia
uma “beleza preguiçosa”, argon kallos (cf. Eneada VI, 7, 22, 10-
15). Este componente é justamente a graça, que, como nos
indica a passagem supracitada, se distingue da beleza formal,
por não residir em fatores fixos e assinaláveis, o que lhe
concede certo ar de mistério.
Enquanto localizamos de modo preciso os critérios e as
146 razões – tanto como números quanto como explicações – da
beleza, a graça não se detecta, nem se concentra em algo
determinado. Vai e volta, como o rosto, ora trivial, ora atraente
ou, seguindo a sugestiva linguagem coloquial, ora sem graça,
ora cheio de graça... Fugidia, a kháris também não é localizável
por ser manifestação difusa. É como a luz, elemento em certa
medida impalpável, que, além de nem sempre estar presente
realçando as cores, descortinando as formas, permeia e recobre
todo um objeto e toda uma atmosfera. Recorrendo às palavras
do próprio Plotino, o encanto, que “se encontra mais na luz que
brilha sobre a simetria que na simetria mesma” (PLOTINO,
1999, p. 145, Eneada VI 7, 22, 24-25), é “graça cintilante
envolvendo a beleza” (Eneada VI 7, 22, 23-24).
A partir destas considerações, constatamos a inegável
conotação espiritual da graça. Observa Jankélévitch que, pelo
seu caráter não localizável, o encanto plotiniano se assemelha à

1 É interessante observar, neste contexto de um encontro em Filosofia


da Música, que um dos exemplos de belezas simples dado por Plotino
é o som isolado, que, como hoje sabemos, se constitui de uma
composição de harmônicos.
2 Como, por exemplo, em JANKÉLÉVITCH, 1980b, p. 113.
O papel do charme

“alma que exala, como um perfume, da presença carnal em


geral e que, no entanto, se evade de toda a topografia”
(JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 70). Nesta perspectiva, a graça se
identifica ao sopro da vida, o que justifica a seguinte conclusão
de Plotino: “o esplendor da beleza está sobre um rosto vivo que
resplandece no mais alto grau, enquanto sobre um rosto morto
não se vê mais que o vestígio, mesmo se esse rosto não está
ainda destruído na sua carne e simetria” (PLOTINO, 1999, p.
145, Eneada VI 7, 22, 25-30).
A vitalidade exigida à graça conecta este
imprescindível componente estético a um aspecto apontado
por Bayer no início desta genealogia. Ausente do cadáver ou
das formas simétricas de uma beleza estática, a graça costuma
incluir a participação do movimento. Em Plotin et la simplicité
du regard, Pierre Hadot, referindo-se ao mestre de Henri
Bergson, Félix Ravaisson, declara :

147
A graça, segundo ele [F. Ravaisson], é “eurritmia”, isto é,
“movimento que faz bem”. Nós a reconhecemos nos
movimentos que exprimem o abandono, a condescendência,
a descontração. Os pintores procuram apreendê-la nas
inclinações da cabeça, no sorriso feminino. Mas também se
pode pressenti-la nos movimentos fundamentais da natureza
viva que são a pulsação e a ondulação: “Observe”, diz
Leonardo da Vinci, “o serpenteio de todas as coisas”, isto
quer dizer, observe em todas as coisas, se você quiser
conhecê-las e representá-las de maneira adequada, a espécie
de graça que lhe é própria (HADOT, 1963, p. 76-77).

Relacionada ao motor da vida, às disposições


interiores, ao mistério que recobre e anima, mas não
alcançamos tanger ou dissecar, a graça plotiniana também
manifesta a sua dimensão espiritual no que concerne à sua
origem. Explica Plotino que a beleza será inoperante se não
receber a irradiação, o “calor” ou o “eflúvio” proveniente do
Bem, fundamento da realidade. Ao contrário, quando recebe a
sua luz, “retoma o seu vigor, desperta, torna-se
verdadeiramente alada” (PLOTINO, 1999, p. 144, Eneada VI 7,
22, 15-18), comovendo-nos de tal modo que nos sentimos
FRONTEIRAS DA MÚSICA

impulsionados a percorrer um caminho ascendente rumo à


fonte do ser.
A tematização de um encanto imensurável e
indemarcável é retomada na Modernidade, especialmente na
França dos séculos XVII e XVIII, onde se entrelaça com novos
termos, dentre os quais se destacam o charme e o je-ne-sais-
quoi. De acordo com o jesuíta Dominique Bouhours (1628-
1702), que dedica um dos capítulos de Les entretiens d’Ariste et
d’Eugène ao je ne sçay quoy (1671), este conceito diz respeito a

um atrativo (agrément) que anima a beleza e as outras


perfeições naturais, que corrige a feiura e outros defeitos
naturais: é um encanto (charme) e um ar (air) que se mistura
a todas as ações e a todas as palavras; que penetra o
caminhar, o riso, o tom de voz e até os menores gestos da
pessoa que agrada (BOUHOURS, 1671, p. 261).

148
Como em Plotino, o atrativo reconhecível, mas de
causas irreconhecíveis, responsável tanto pela comoção
estética quanto pelas afinidades afetivas, aparece associado ao
movimento, às inflexões do espírito e a uma presença que,
como o ar, se revela simultaneamente totalizante e impalpável.
Estes dois predicados favorecem a permanência da analogia
plotiniana anteriormente citada, posto que o desconhecido
encanto “assemelha-se à luz que embeleza toda a natureza e
que se faz visível a todos, sem que saibamos o que seja”
(PLOTINO, 1999, p. 262). Portanto, percebemos que, embora o
religioso francês afirme não ser o je-ne-sais-quoi “propriamente
nem a beleza, nem a bela fisionomia, nem a graça favorável
(bonne grâce), nem a predisposição ao humor, nem o espírito
brilhante” (PLOTINO, 1999, p. 260), nele estão contidas as
ressonâncias da graça plotiniana, confirmando a absorção da
kháris pela acepção moderna do charme.
Por fim, devemos destacar que, no texto de Bouhours,
o componente estético indefinível adquire algumas
características mantidas pelo inefável, pelo je-ne-sais-quoi e
pelo charme jankélévitchiano. Em contraste com outro conceito
de natureza estética igualmente reelaborado nos séculos XVII e
O papel do charme

XVIII, a saber, o sublime, no qual também se encontra implícito


o reconhecimento dos nossos limites verbais e cognitivos, o je-
ne-sais-quoi não evoca o grandioso, o excesso de força ou de
potência. Poderíamos dizer que, o charme e os seus correlatos,
embora imensuráveis, não são incomensuráveis. Segundo
Bouhours, o je-ne-sais-quoi é “algo tão delicado e imperceptível,
que escapa à inteligência mais penetrante e sutil” (PLOTINO,
1999, p. 262). E, em outro momento, sugere explicitamente a
maior adequação da categoria do encanto às obras que
cultivam a discrição e o velamento, ao contrapor as “grandes
belezas nos livros de Balzac” aos textos de Voiture, que
“possuem encantos (charmes) secretos, estas graças finas e
escondidas sobre as quais falamos e que agradam infinitamente
mais” (PLOTINO, 1999, p. 273-274). O jesuíta parece antecipar,
assim, outro conceito fundamental do pensamento
jankélévitchiano: o presque-rien. E, no contexto dos Entretiens,
o quase-nada se manifesta não só no porte delicado, mas
também na brevidade temporal: “pois enfim, de todos os
aspectos, aquele que vai mais depressa é o que fere o coração, e 149
o mais curto de todos os momentos, se assim puder dizer, é
aquele no qual o ‘não-sei-quê’ exerce o seu efeito” (PLOTINO,
1999, p. 264).
Quase um século após Bouhours, Montesquieu (1689-
1755) também examina especificamente o je-ne-sais-quoi na
sua última obra, o Ensaio sobre o gosto (1757). No início do
texto, o autor enumera, dentre os diferentes “objetos do gosto”,
“o belo, o bom, o agradável, o ingênuo (naïf), o terno, o
gracioso, o je-ne-sais-quoi, o nobre, o grande, o sublime, o
majestoso”. (MONTESQUIEU, 1964, p. 845). Embora separe,
neste momento, o je-ne-sais-quoi do gracioso, percebemos que
ambos se conectam na seção dirigida ao primeiro,
compreendido não só como “uma graça natural que não se
pode definir”, mas também como “um encanto (charme)
invisível”.
Em continuidade com aspectos verificados na kháris
plotiniana e no je-ne-sais-quoi de Bouhours, em Montesquieu,
“a graça encontra-se menos nos traços do rosto que nas
maneiras”, liga-se ao movimento e à leveza, o que explica a sua
particular manifestação no domínio da dança. Como o seu
antecessor francês, o filósofo iluminista também associa o
FRONTEIRAS DA MÚSICA

encanto à simplicidade, ao estabelecer a seguinte


contraposição: “Os grandes conjuntos de joias raramente
possuem graça, enquanto, com frequência, o traje das pastoras
é gracioso. Admiramos a magnificência dos bordados de Paul
Veronèse, mas somos tocados pela simplicidade de Rafael e
pela pureza de Correggio” (MONTESQUIEU, 1964, p. 849).
Assim, o je-ne-sais-quoi vem acompanhado de uma qualidade
própria, de certa ingenuidade que contrasta com a gravidade
do majestoso. E o ingênuo inclui o espontâneo: os movimentos
graciosos, que costumam trazer consigo algum grau de
surpresa, não podem ser premeditados e calculados, nem
tampouco frutos de um esforço. A partir deste ponto,
identificamos especial afinidade entre Montesquieu e a reflexão
estética e moral jankélévitchiana, na medida em que o
valorizado je-ne-sais-quoi possui como pré-requisito uma
qualidade impossível de se exercitar.
A menção ao elemento de surpresa leva-nos a uma
150 última consideração referente ao Ensaio sobre o gosto,
fundamental para a sequência deste estudo. Aquilo que nos
surpreende é, com frequência, o oculto que vem à tona ou uma
novidade que se manifesta. É assim que “a graça se encontra, de
costume, mais no espírito que no rosto: pois um belo rosto
aparece de início e quase nada esconde; mas o espírito só se
mostra pouco a pouco, quando quer e quanto quer” (idem).
Montesquieu reforça, portanto, que o encanto não se aplica aos
traços fixos, às formas congeladas. Esta categoria intangível,
que, ademais, se identifica estreitamente ao gênero feminino,
no qual se veem reforçados o mistério, a discrição e o pudor, só
se efetiva sob a ação do tempo, que renova as “maneiras”.

O charme musical em V. Jankélévitch


Examinemos agora de que modo esta genealogia
repercute e se desenvolve na Filosofia da Música elaborada por
Jankélévitch. Antes disso, faz-se necessário ressaltar que, na
obra do filósofo francês contemporâneo, a referência ao
encanto ultrapassa em muito o âmbito musical. “Marca de
fábrica” do pensamento jankélévitchiano (LISCIANI-PETRINI,
O papel do charme

2013, p. 163), juntamente com o je-ne-sais-quoi e o presque-


rien, o charme possui conotação ontológica.
A ontologia proposta pelo filósofo põe em xeque uma
concepção que se baseia num princípio previamente
estabelecido, estável e imutável, independente da existência
cotidiana e, por conseguinte, de igual modo independente da
ação temporal. Segundo Jankélévitch, influenciado pelo mestre
Henri Bergson, a duração, intrínseca à experiência humana,
deveria estar contida no que se concebe como o elemento
essencial da realidade. Assimilar ontologicamente o tempo, não
mais compreendido dentro de uma “interpretação
progressista-linear”, mas “como a eflorescência imprevisível de
eventos não pré-determinados, ‘rapsódica’” (LISCIANI-
PETRINI, 2013, p. 147), significa acolher o inapreensível, ter
como horizonte um fundamento que sempre se desloca e nos
escapa. Neste sentido, considerando as prerrogativas da
ontologia platônica, o Ser jankélévitchiano é uma espécie de
não-ser ou, a partir de uma apropriação da terminologia de 151
Jacob Boehme, é fundamento sem fundo (Ungrund), insondável
não só por não se fundar em nenhuma determinação fora dele
(JANKÉLÉVITCH, 1986, p. 102), mas também por não se
encontrar em repouso, por não subsistir e não possuir ponto
fixo de localização.
No entanto, é importante observar que, nesta
concepção, não repousa absolutamente uma perspectiva
niilista. A ontologia do não-ser (meontologia) jankélévitchiana
não conduz ao nada, mas sim a um quase-nada (presque-rien)
ou, até mesmo, a um Sobrenada (Übernichts)3, pois do fluxo
impalpável do real, “movimento contínuo, produtor de
‘maneiras’ e de ‘modos’” (LISCIANI-PETRINI, 2013, p. 44),
provém uma riqueza inesgotável, inefável e ainda cativante. O
“Ser” jankélévitchiano assume, portanto, diversas
características constitutivas ao encanto: não se encaixa em
definições precisas nem se situa em coordenadas geográficas
bem delimitadas, incorpora o tempo e o movimento (e, assim, é

3Este termo, utilizado por Angelus Silesius em O peregrino querubínico


(Cf. livro I, aforismo 111), é citado por Jankélévitch em La mort (1966,
p. 61) e em Philosophie première (1986, p. 182).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

menos um “Est” que um “il y a”4), produz acontecimentos


efetivos e eficazes (cf. JANKÉLÉVITCH, 1980b, p. 113), opera
um encanto que, como a magia (carmen) destituída de
substância, se forma, se transforma e nos transforma no
próprio momento em que é exercido ou pronunciado.5 No
próprio momento, vale completar, em que é cantado ou
tocado...
Isto porque, para o discípulo de Bergson, o encanto se
expressa, sobretudo, musicalmente. E, assim, a arte sonora, do
mesmo modo que a categoria analisada, revela-se como “lugar”
privilegiado para uma reflexão que excede a esfera estética ou
musicológica. Como sustenta a estudiosa italiana Lisciani-
Petrini, o filósofo identifica na música “todos os traços
essenciais da sua meontologia” (LISCIANI-PETRINI, 2013, p.
142), dentre os quais se destaca o fundamento encantador
(charmant) da realidade. Segundo a estudiosa italiana,

152
a música é o maior reflexo deste fluxo insubstancial que já é,
desde sempre, o movimento vital do próprio real: pivô (...) do
pensamento e do discurso de Jankélévitch. Neste sentido, ela
não possui nenhuma Substância interna ou ‘profunda’ que
deveria trazer à superfície e revelar. A música é exatamente
como essa ‘efetividade’ epidérmica e superficial, que é a
própria vida das coisas: nada além de movimento
diferenciando em si por si. E como tal – como virtualidade
insubstancial – é produtora de todas essas ‘formas’
(musicais) que, longe de ‘exprimirem’, portanto, uma
Substância subjacente, são as suas ‘atualizações’
imprevisíveis e ‘gratuitas’. Eis porque a música, de acordo
com Jankélévitch, é propriamente charme: ‘circulação de
graça’ que encanta e opera a feitura dos cantos – mas que,
justamente, não se pode nem situar nem apreender, como
todo o verdadeiro encanto ou sortilégio. Numa palavra: ela

4 Cf. JANKÉLÉVITCH, 1980a, p. 68.


5 No capítulo de Fauré et l’inexprimable dedicado à presença do
encanto na obra do compositor francês (“Du charme”), Jankélévitch
sintetiza este modo particular pelo qual o encanto opera: “Carmen é
essencialmente uma operação, como a factura dos mágicos: não é
nada, mas faz” (JANKÉLÉVITCH, 1974, p. 347).
O papel do charme

não possui fundamento – é totalmente gratuita. (LISCIANI-


PETRINI, 2013, 149)

Esta passagem fornece alguns dos principais pontos


que justificam o elo entre a música e o encanto. Em primeiro
lugar, segundo Jankélévitch, a arte sonora é “virtualidade
insubstancial”. Como o “fundamento sem fundo”, uma
composição musical não se apoia em algo externo, ou seja, não
traduz um sentido preexistente, não reproduz um modelo
suprassensível (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 37). Uma obra se
forma no próprio fazer do compositor (JANKÉLÉVITCH, 1983,
p. 38-41) e se realiza no próprio fazer do intérprete. Assim, à
semelhança da graça, não se localiza, na sua totalidade, nem na
mente criadora, nem na “mão que toca um violão”, nem em
qualquer fonte sonora (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 115). É, como
carmen, “fazer sem ser” (JANKÉLÉVITCH, 1980a, p. 43). Cabe
aqui frisar que tal insubstancialidade e independência do
charme diferem da graça plotiniana. Apesar de também 153
“circular” pelo objeto e, assim, possuir um caráter
“epidérmico”, esta última, como vimos, é “o ‘eflúvio’ que vem do
Bem” (PLOTINO, 1999, p. 144, Eneada VI 7, 22, 8), ou seja,
possui procedência transcendente.
Em segundo lugar, como expõe Lisciani-Petrini, o
caráter insubstancial da música, que o entrelaça ao encanto,
vincula-se, em Jankélévitch, à sua relação com o fluxo da
temporalidade. Retomando a primeira citação do filósofo
francês apresentada na introdução deste trabalho, a música
depende intrinsecamente do tempo, que, à semelhança do que
ocorre num “tema com variações”, modifica sem cessar a
matéria sonora, impedindo que ela se “modele” num “objeto
plástico” arredondado e estático (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 118-
119; 1980a, p. 30), perceptível numa única “tomada” e, assim,
apreciado na sua simetria. Inscrito no “fluxo insubstancial”, o
encanto do melos se afasta da categoria da beleza e se aproxima
da graça, cintilação nem sempre presente (Plotino), atrativo
que ora se esconde, ora se revela (Montesquieu).
Poderíamos completar que não é apenas devido à sua
radical inscrição no tempo, fator de intensificação do seu
caráter insubstancial, que a música nos oferece algo distinto de
FRONTEIRAS DA MÚSICA

uma “beleza de exposição” (JANKÉLÉVITCH, 1986, p. 172).


Como explica o próprio filósofo, contrapondo a apreciação
musical a uma percepção “sinóptica” (JANKÉLÉVITCH, 1978, p.
201; 1988, p. 242), “o universo musical não é algo que se
exponha diante do espírito ou se proponha ao espírito: a
música, por mais objetiva que pretenda ser, habita a nossa
intimidade. Vivemos a música como vivemos o tempo, numa
experiência fruitiva e numa participação ôntica de todo o nosso
ser” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 120). Talvez pela própria
dinâmica da percepção auditiva e pela natureza algo imaterial
da “matéria” sonora que, permeável, nos invade, a relação
distanciada entre sujeito e objeto, implícita no conceito de ex-
posição, deixe de ser aplicável à música. E esta “invasão”, esta
“inundação”, que se dirige “não à parte lógica e reta do espírito,
mas à existência psicossomática como um todo” (ibidem, p. 8),
reforça a proximidade entre a música e o encanto. Este,
aparentado com a magia, não nos convence, mas nos persuade,
“nos invade atraindo-nos a si, encantando-nos” (LISCIANI-
154 PETRINI, 1985, p. XLIII), cativando-nos, em certa medida, como
Carmen, pássaro livre que aprisiona Don José por meio da sua
seguidilha sedutora.
A menção à consagrada personagem de Bizet permite-
nos registrar duas características fundamentais da Filosofia da
Música jankélévitchiana. Em primeiro lugar, ao contrário do
que ocorre na ópera em questão, o charme não poderia se
personificar na obra do filósofo francês, para quem esse
componente mais que estético é “como o sorriso ou o encanto,
cosa mentale: não sabemos em que se sustenta, nem em que
consiste, nem mesmo se consiste em algo, nem onde o situar.
Não está nem no sujeito, nem no objeto, mas, como um influxo,
passa de um ao outro” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 131). Deste
modo, retomando aqui a dicotomia sujeito-objeto, o charme se
oferece como via para se superar tanto uma estética subjetiva
quanto outra objetiva, posições tradicionalmente excludentes
nas reflexões ocidentais sobre a arte e o belo em sentido amplo.
Em segundo lugar, é importante ressaltar que, embora
resguarde algo da magia, não só na sua origem etimológica,
mas no seu modo de operação e nos seus efeitos sem causas
substanciais, o charme, quando aplicado à música, afasta-se do
regime da irracionalidade “que subjuga, desestabiliza e chega a
O papel do charme

inquietar a razão” (LISCIANI-PETRINI, 2013, p. 163). De acordo


com a concepção do filósofo, em continuidade com Henri
Bremond (1865-1933), “o Encanto (Charme) é magia no
sentido figurado, operação mística e não mágica”
(JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 155). Tal distinção não se justifica
somente pelo fato de a música e também a poesia não
propiciarem uma transformação palpável e duradoura,
constituindo-se, assim, como “uma ação inalcançada” (ibidem,
p. 156). A própria “tonalidade” inefável que recobre a música
no corpus jankélévitchiano a extrai da irracionalidade do
sortilégio e até mesmo do dionisíaco, conduzindo-a a um
campo “suprarracional”6, igualmente habitado pelo silêncio
plotiniano que caracteriza a contemplação de um fundamento
que em muito excede o logos (cf. ibidem, p. 181). Especifica
Jankélévitch que o encanto musical não é, como tantas vezes
apregoou e temeu a metafísica ocidental, procedimento
hipnótico, “operação indevida, trapaça pérfida e embriaguez
cega”, uma vez que “opera na lucidez dos sentidos e da razão”
(JANKÉLÉVITCH, 1974, p. 355). E este cativar que não equivale 155
a uma “captação fraudulenta” (JANKÉLÉVITCH, 1974, p. 356)
favorece não mais a inquietação, a euforia ou a anestesia, mas
sim a pacificação, a consolação e a reconciliação do espírito.
Sob este prisma, o charme musical jankélévitchiano, mais
propriamente encantamento (enchantement) que feitiço ou
encantação (envoûtement, incantation) estaria em maior
sintonia com kháris que com carmen...
Esta segunda consideração leva-nos ao tema do
inefável, cuja íntima conexão com a música também concorre
para que esta arte seja mais bem avaliada por meio da
categoria estética do encanto que da beleza. Como observamos

6 Neste estatuto “suprarracional“ da música que cremos implícito na


estética do inefável jankélévitchiana também poderiam ecoar, sob
nova roupagem, algumas ideias de Henri Bremond, para quem “o
conhecimento particular que estudamos no poeta ou no místico não é
infra, mas suprarracional; razão superior, mais razoável que a outra
(...), na medida em que a sua experiência propriamente poética lhe
permite ultrapassar a ordem abstrata das noções e raciocínios e
alcançar o concreto, o próprio real até onde possa ser alcançado aqui
em baixo” (BREMOND, 1947, p. 80).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

desde Plotino, para o receptor, o esplendor da graça, apesar de


experimentável, é intangível, indecifrável e indemarcável. E,
segundo Bouhours, o je-ne-sais-quoi, cujos efeitos sentimos
vivamente, possui uma natureza “incompreensível e
inexplicável” (BOUHOURS, 1671, p. 259). Na perspectiva
jankélévitchiana, como o charme, “je-ne-sais-quoi ativado”
(JANKÉLÉVITCH, 1980a, p. 89), a música reveste-se de especial
mistério. Este, por um lado, verifica-se no próprio modo pelo
qual a música se expressa. Ao contrário de um texto verbal de
caráter demonstrativo, uma composição musical não se
constrói a partir de referências precisas a um território de
significações existente fora dela. A expressão musical é, de
acordo com Jankélévitch, uma expressão em certo ângulo
inexpressiva, uma vez que não transmite conteúdos unívocos,
ou uma expressão grosso modo, cujo teor vago e até mesmo
ambíguo propicia fecunda plurivocidade, nomeada pelo filósofo
como “expressividade ao infinito” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p.
93). Assim, a música nos comove intensamente sem que
156 possamos delimitar e decodificar os seus conteúdos
expressivos.
Por outro lado, focalizando mais a estrutura da obra
que a sua possível “mensagem”, poderíamos dizer que o
mistério musical também se justifica pela dificuldade em
decifrarmos as razões do seu encanto. Como a rosa no célebre
aforismo de Angelus Silesius7, tantas vezes citado ao longo do
corpus jankélévitchiano, a música nos toca “sem porquê”.
Enquanto as razões de uma beleza formal são identificáveis
pelo seguimento de cânones pré-estabelecidos, de justas
proporções ou da seção áurea, critérios que também poderiam
ser absorvidos por uma concepção espacializada da música
(JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 114-118), as razões do encanto de
uma composição específica não são demarcáveis para a estética
jankélévitchiana. É o que nos mostra Lisciani-Petrini, ao
apresentar este aspecto como um dos motivos determinantes
para a afinidade entre a arte sonora e a categoria estudada:

7 “Die Rose ist ohne warum, sie blüht weil sie blüht.” (“A rosa é sem
porquê, floresce porque floresce.”) O peregrino querubínico, I, 289
(SILESIUS, 2005, 95).
O papel do charme

A música é, portanto, um ‘encontro com o charme’, pois é um


evento ‘não localizável’. Isto significa que não o podemos
explicar como um produto técnico-racional, localizando a sua
significação numa estrutura melódica particular, num timbre
específico, numa altura determinada dos sons ou em certa
tipologia sintática – reduzindo-o a tudo isso ou, ao menos,
somente a isso. (...) Certamente, isso não significa que estes
aspectos não sejam essenciais – simplesmente, não esgotam
a sua razão de ser. E é por isso que a música leva ao fracasso
cada uma das nossas tentativas de a apreendermos ou a
apropriarmos para nós (LISCIANI-PETRINI, 2013, p. 164).

Inapreensível e não localizável é o encanto,


especialmente, o encanto musical. Vale acrescentar que, assim
como a inexpressividade possui uma compensação, também o
fato de o encanto não residir num ponto composicional
específico favorece a presença totalizante, “profusa e difusa”
(JANKÉLÉVITCH, 1980a, p. 93), que o caracteriza.
Constatamos, na nossa breve genealogia, que a graça e o je-ne- 157
sais-quoi são como uma “aura mágica” (JANKÉLÉVITCH, 1974,
p. 345) ou uma irradiação que envolve e permeia todo um
objeto. E a música, talvez mais que as demais artes, destaca-se
como criadora de climas e atmosferas, termos que remetem,
até mesmo na linguagem cotidiana, a uma conjuntura
identificável, mas impalpável e evanescente.
Segundo Jankélévitch, esta dimensão totalizante e
“indivisível” (idem) do encanto musical evidencia-se quando
contrapomos a música a outros modos de expressão,
frequentemente descritos pelo senso comum como formas de
“linguagem”. Enquanto o sentido de um discurso em prosa se
constrói paulatinamente, uma peça musical, como uma canção
de Gabriel Fauré, frequentemente dotada de homogeneidade
em termos expressivos, “exala”, desde o primeiro compasso, o
seu sentido atmosférico, que permeará toda a obra e
“climatizará” o poema (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 71). Este, ao se
afastar de um sentido referencial preciso, é compreendido
como o “sentido do sentido, que é charme” (JANKÉLÉVITCH,
1983, p. 70), enquanto a música, de expressão ainda mais
totalizante, é descrita como o “charme du charme”
(JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 71). Tais locuções, mais que um jogo
FRONTEIRAS DA MÚSICA

poético de palavras, podem refletir algo da perspectiva


ontológica do filósofo. Assim defende Lisciani-Petrini, que, na
introdução à sua tradução de La musique et l’ineffable, relaciona
a identidade entre o “sentido do sentido” e o charme ao fato de,
em outros momentos da obra jankélévitchiana, o nosso objeto
de estudo, especialmente quando se manifesta na sua
quintessência musical, ser apresentado como capaz de revelar
“o sentido mais íntimo do inefável sentido do real” (LISCIANI-
PETRINI, 1985, p. XLIV).
É importante ressaltar que o sentido totalizante e
cativante verificado na música, embora não resida nos
procedimentos específicos adotados numa composição, precisa
de cada um deles para garantir a sua efetividade. Aplicando à
música as considerações de Henri Bergson e Henri Bremond
sobre a poesia, Jankélévitch destaca que a mera elevação do
sétimo grau numa peça de Fauré, como Le plus doux chemin,
seria suficiente para dissipar o seu “divinum nescioquid”
158 (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 135). “O sabor indefinível e
irredutível” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 134) é uma resultante de
fatores insubstituíveis e irremovíveis, como a opção pela
modalidade (idem), conjugados dentro de um fazer único e
autêntico. Caso se situasse nas escalas de tons inteiros ou nas
sétimas paralelas que, no contexto de uma obra de Debussy,
tanto nos embevessem, o encanto seria facilmente
reproduzível. No entanto, não é isso o que ocorre: quando
utilizada de modo premeditado e não integrado a uma poética,
determinada técnica composicional se converte em “um clichê
para os imitadores ou um procedimento mecânico para os
industriais da fabricação em série” (JANKÉLÉVITCH, 1983,
132). Menos que dos aspectos técnicos tomados isoladamente,
o encanto depende, portanto, das maneiras, “do momento, do
contexto, da ocasião e de mil condições que podem fazer de
uma novidade uma engenhosidade afetada ou pedante e de um
acorde banal um achado genial” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 131-
132). Reencontramos aqui a ideia, já presente em Montesquieu,
de que o je-ne-sais-quoi só se realiza quando aliado à
espontaneidade. Segundo Jankélévitch, “não há receitas para
encantar (charmer), mas há receitas para ser um encantador
(charmeur), isto é, um histrião” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 112).
E, no que se refere especificamente à música, este pré-requisito
O papel do charme

do encanto não se restringe ao compositor, mas também se


aplica ao ouvinte de uma obra musical, posto que uma
apreciação estritamente norteada por critérios técnicos “é um
meio de se recusar este abandono espontâneo à graça que o
encanto (charme) nos exige” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 128-
129).
O tema da espontaneidade permite-nos recordar outra
qualidade diretamente associada ao encanto e ao je-ne-sais-
quoi não só no ensaio de Montesquieu, como também no
diálogo de Bouhours: a simplicidade. Estaria ela também
contida no charme jankélévitchiano? A resposta parece-nos
positiva, se observarmos a significativa coincidência de este
termo ter sido recuperado e destacado justamente por um
autor – e pianista – que privilegia momentos musicais, “cenas”
impressionistas e canções, enquanto praticamente
desconsidera, como já anunciamos na introdução, as grandes
formas cultivadas pela música germânica. Valoriza o encanto
aquele que se sensibiliza pela poética miniaturista de Federico 159
Mompou, compositor catalão que, sugestivamente, criou uma
série de seis pequenas “encantações” musicais, batizadas de
Charmes (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 158-159).
Assim, como último ponto a ser abordado nesta seção,
cabe observar que a presença de uma preferência poética,
patente ao longo da estética-musical jankélévitchiana, parece
contribuir para a ênfase por ela concedida ao charme. E isto
não só pelo fato de o filósofo do presque-rien admirar o
fragmento musical e, com ele, obras que, como o improviso e a
rapsódia, potencializam o encanto ao evitar previsíveis formas
estabelecidas a priori. No livro-entrevista Quelque part dans
l’inachevé, Jankélévitch admite ser tocado de maneira especial
por uma música de ricordanza (JANKÉLÉVITCH, 1978, p. 215-
216), que, curiosamente, poderíamos exemplificar pelo quinto
Charme de Mompou, em cujo subtítulo se lê: “para evocar a
imagem do passado”... E, para além desta “encantação”
específica, um pathos evocativo e melancólico se desprende da
própria concepção jankélévitchiana do charme musical. Este é
fruto de uma “temporalidade encantada” (JANKÉLÉVITCH,
1983, p. 122) que, embora possibilite a retomada de temas e
seções, ainda lida com a dinâmica da sucessão: o acesso ao
FRONTEIRAS DA MÚSICA

evento sonoro presente implica a inexorável perda ou


metamorfose de um evento anterior (cf. idem).

Conclusão
Coincidentemente, encerramos tanto o nosso percurso
pelo charme musical jankélévitchiano quanto a genealogia do
conceito em questão abordando um mesmo ponto, a partir do
qual teceremos esta conclusão. Como indica Montesquieu, à
diferença da beleza estática, a graça se efetiva pela surpresa,
por um processo de velamento e desvelamento, que pressupõe
a participação do tempo e, até mesmo, recordando o diálogo de
Bouhours, do “mais curto de todos os momentos”. Por
conseguinte, constatamos, já no Iluminismo, indícios de uma
revalorização positiva da temporalidade, que passa a ser
associada a um je-ne-sais-quoi de conotação “espiritual”.
No discípulo de Bergson tal revalorização em muito se
160 aprofunda, como se observa pela aplicação de um conceito,
diretamente vinculado à temporalidade, tanto à (me)ontologia
quanto à estética do autor, cuja protagonista é uma arte
constitutivamente temporal. Constatamos que, no seu
pensamento, estas duas áreas se interceptam: uma categoria
proveniente da estética, no sentido baumgartiano, como
disciplina que abrange não só o “conhecimento” do belo, mas
intuições e inclinações, torna-se uma espécie de fundamento
(me)ontológico. Fundamento que, como “encanto inefável”, a
música nos permite, de certo modo, entrever.
Apesar da precariedade da sucessão temporal, a
música nos encanta. Mais correto seria dizer que apesar e em
razão de tal precariedade há encanto. Caso este se perpetuasse,
não mais seria “experiência insubstituível de uma coisa
incomparável” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 105): graças à sua
“caducidade”, o encanto não apenas suscita “uma poética
melancolia” (ibidem, p. 149), mas se destaca e se potencializa
como “acontecimento relâmpago” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p.
152), fruto de uma confluência irrepetível de eventos (occasion,
kairós). Portanto, há encanto, quando o objeto, o sujeito, o
espaço e o tempo são “coloridos” por uma luz (PLOTINO, 1999,
Eneadas VI, 7, 22, 34) que nem sempre está presente, fazendo
O papel do charme

daquele momento “simples furo”, evasão fugidia


(JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 157). Sob este aspecto, o encanto
musical identifica-se com a experiência mística, de cujo léxico a
graça – assim como a centelha (das Fünkchen)! – também
participa.
Por conseguinte, nem todo tempo é encantado, mas a
possibilidade de encantá-lo, ainda que por breve lapso de
tempo, mostra que o conceito de charme, especialmente na
abordagem jankélévitchiana, é capaz de elevar, de modo
significativo, o estatuto da temporalidade. E, com este, o
próprio estatuto da música, arte que, além de se oferecer como
especial imagem e via de acesso para o fluxo constitutivo da
realidade, é interpretada não mais como encantação irracional,
mas como encantamento eminentemente inefável.

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A concepção de obra musical em Ingarden

GLAUCIO ADRIANO ZANGHERI

Introdução

presente artigo pretende abordar algumas das ideias


O que o fenomenólogo polonês Roman Ingarden (1893-
1970) desenvolve nas três primeiras partes de um ensaio
intitulado The work of music and the problem of its identity (A
obra musical e o problema de sua identidade). Em princípio, este
ensaio – ainda tão pouco conhecido pelos leitores brasileiros
(tanto quanto o seu próprio autor)1 – fora pensado como parte
de um apêndice de outra obra (esta mais conhecida): A obra de
arte literária2. Este apêndice, que além de conter o ensaio sobre
música também contém outros três ensaios (sobre pintura,
arquitetura e cinema, respectivamente), acabou por tornar-se
um tanto volumoso e Ingarden, em virtude de uma série de
situações imprevistas, só pode publicá-lo aproximadamente
trinta anos após a data inicialmente pretendida3. No entanto,
apesar de a parte que trata sobre a música fazer integrar este
apêndice e de estar contextualizada numa discussão mais
ampla acerca do modo de ser de cada manifestação artística,
ela foi parcialmente publicada, na forma de um ensaio

1 Até o momento temos conhecimento de que há apenas dois textos de


Ingarden traduzidos para o português: A obra de arte literária (cf.
INGARDEN, 1973) e as Observações do Professor Dr. Roman Ingarden –
Cracóvia, publicadas como apêndice na tradução brasileira das
Meditações cartesianas de Husserl (cf. HUSSERL, 2012).
2 Publicado pela primeira vez em 1930 (em alemão).
3 Em 1958, em polonês, no segundo volume de seus Studia z estetyki

(Estudos em estética), e em 1961, numa versão alemã, preparada pelo


próprio Ingarden, intitulada Untersuchungen zur Ontologie der Kunst:
Musikwerk. Bild. Architektur. Film. (Investigações sobre ontologia da
arte: Obra musical. Pintura. Arquitetura. Filme). Cf. INGARDEN, 1989, p.
ix-xi; JAGANNATHAN et al.,1985, p. 197 e 211.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

independente, pouco tempo depois da primeira publicação de A


obra de arte literária4 (o que nos faz especular que a música
talvez tenha sido a primeira tentativa de Ingarden de expandir
as suas teorias estéticas para além da literatura). E foi
justamente essa relativa “independência” deste ensaio que fez
com que ele pudesse novamente, e postumamente, ser
publicado de forma autônoma em sua versão definitiva5. Sendo
assim, o texto é hoje acessível em duas versões: como parte
daquele apêndice, e como um ensaio relativamente autônomo.
Ambas foram traduzidas para o inglês e foi por meio destas que
pudemos realizar o presente estudo6.
O ensaio de Ingarden tem como principal objetivo
compreender o modo de ser específico de uma obra de arte
musical e é composto por oito partes. Nas três primeiras, a obra
musical será distinguida de três coisas intimamente ligadas a
ela, mas que, de forma alguma, poderiam ser confundidas ou
tomadas no lugar dela. Desse modo, a primeira parte distingue
164 a obra musical de sua performance; a segunda, de uma
experiência da consciência; e, a terceira, de sua partitura. Feitas
estas distinções de base, Ingarden poderá então a caracterizar
com maior precisão o que é uma obra musical. Assim, a quarta
parte irá descrever algumas de suas características e
argumentará que a obra não é um objeto “real”; a quinta irá
debater os elementos acústicos e não-acústicos; a sexta
aprofundará as discussões acerca de seu modo de ser e de
“existir”; a sétima discutirá a questão de sua unidade e

4 Em 1933, em polonês. Cf. INGARDEN, 1989, p. ix; JAGANNATHAN et


al, 1985, p. 188.
5 Em 1973, em polonês. Na verdade, esta versão é apenas uma

reimpressão do texto já publicado em 1958 junto com os Estudos em


estética – cf. a nota de rodapé no. 3 acima.
6 O apêndice foi publicado em inglês com o título The ontology of the

work of art: The musical work. The picture. The architectural work. The
film., e consiste numa tradução de Untersuchungen zur Ontologie der
Kunst: Musikwerk. Bild. Architektur. Film. A versão autônoma foi
publicada com o título The work of music and the problem of its identity
e consiste numa tradução do ensaio publicado no segundo volume de
Studia z estetyki. Ou seja, temos uma tradução inglesa tanto da versão
alemã como da versão polonesa do texto. Cf. INGARDEN, 1989;
JAGANNATHAN et al., 1985.
A concepçãoo de obra musical em Ingarden

totalidade; e, finalmente, a oitava debaterá o problema de sua


identidade, bem como de sua historicidade. De nossa parte,
como já foi dito acima, temos como principal objetivo
apresentar e comentar as três primeiras partes deste
interessante ensaio.

1. A distinção entre obra musical e performance.


Para demonstrar que a performance é distinta da obra
musical Ingarden afirma:

A tese de que a obra musical não é idêntica à sua


performance justifica-se pelo fato de que certos juízos
válidos para performances específicas tornam-se falsos em
relação à obra musical em si (por exemplo, a Sonata em Si
menor de Chopin) e vice-versa – aqueles juízos
aparentemente verdadeiros acerca da sonata tornam-se
falsos em relação às suas performances específicas 165
(INGARDEN, 1986, p. 9).

E será justamente esse método que será usado para


distinguir a obra musical da performance. Ingarden fará uma
série de seis afirmações acerca da performance que se tornam
falsas ou sem sentido quando aplicadas à obra musical. Assim:
1. “Cada performance de uma determinada obra musical é uma
determinada ocorrência individual (processo)7 que se localiza e
se desenvolve no tempo univocamente” (INGARDEN, 1986, p.
10). Ou seja, cada performance começa, dura e termina em um
dado momento específico do tempo e, como processo, ocorre

7 Sobre o termo “processo” Ingarden esclarece: “Há três tipos de


objetos que são determinados temporalmente: objetos que subsistem
no tempo (coisas, pessoas), processos (corrida, guerra, o
desenvolvimento de um organismo), e finalmente, eventos (a morte de
alguém, o início de uma performance específica da Sonata em Si
menor). Esses três tipos de objetos determinados temporalmente
diferem entre si tanto por seus modos de existência e por suas formas,
quanto por suas propriedades possíveis”. (IGARDEN, 1986, p. 10, nota
de rodapé 1).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

apenas uma vez. Não há como repeti-lo, pois não podemos


voltar no tempo para apreciá-lo novamente. Uma vez
terminado o processo, ele simplesmente deixa de existir.
Outrossim, uma performance não se distingue de outra apenas
por estar situada num determinado momento do tempo, mas
também pelos detalhes musicais. Um músico, mesmo que seja
extremamente habilidoso e se esforce para isso, nunca
conseguirá tocar uma mesma obra duas vezes de uma forma
exatamente igual. Diferente disso, uma obra musical
permanece no tempo e continua existindo mesmo que o
processo da performance termine. Ela não é “temporal” no
mesmo sentido em que uma performance o é8. E apesar de os
momentos de uma obra se sucederem uns aos outros na obra
em uma determinada ordem, eles existem todos
simultaneamente e como um todo. Ou seja, quando estamos
escutando o início de uma obra, o seu final já existe
previamente e vice-versa.

166 2. “Cada performance é sobretudo um processo acústico”


(INGARDEN, 1986, p. 10). Ela é um complexo de coisas que
ocorrem no mundo físico “real”9 – desde o aspecto mecânico
dos instrumentos, do meio aéreo de propagação sonora, até a
reação do intérprete frente àquilo que ele está executando. Ao
contrário disso, nenhuma obra está condicionada por um
processo acústico ou psicofísico. A causa de sua existência não
depende de tais eventos. Quando, por alguma razão, aquele
processo é interrompido, o que se interrompe é a performance,
não a obra. Aliás, em sentido estrito, seria um contrassenso
afirmar que “a obra” foi interrompida.
3. “Cada performance está univocamente localizada no espaço –
tanto objetivamente quanto fenomenalmente” (INGARDEN,
1986, p. 11). Uma performance está “objetivamente” localizada
no espaço no sentido em que as ondas sonoras se expandem

8 Em verdade, a obra musical será definida como uma “estrutura


quase-temporal” (cf. INGARDEN, 1986, p. 16-17).
9 Cumpre observar que Ingarden distingue quatro categorias de

objetos: Absolutos, Reais, Ideais e Puramente intencionais. Conforme


veremos mais adiante, uma obra musical será compreendida por ele
como um objeto puramente intencional. Sobre isso cf. THOMASSON,
2012.
A concepçãoo de obra musical em Ingarden

espacialmente a partir de um determinado ponto abrangendo


uma determinada área etc. “Fenomenalmente”, uma
performance também estará localizada no espaço, pois os sons
produzidos serão percebidos pelo ouvinte como tendo sua
origem num certo lugar do espaço. Podemos, portanto, nos
aproximar da fonte sonora ou nos afastar dela, e disso resultará
a possibilidade de escutarmos uma mesma performance modos
diferentes. Ora, nada disso tem sentido quando nos referimos à
obra musical, pois uma obra musical simplesmente não está
localizada no espaço.
4. “Toda performance de uma obra musical nos é dada
auditivamente, ou seja, numa multiplicidade percepções
auditivas que se sucedem continuamente uma à outra”
(INGARDEN, 1986, p. 11). O que ocorre é que estas percepções
– os dados sonoros e os próprios aspectos auditivos
experienciados (a gestalt que distinguimos num conjunto de
sons) – mudam de uma performance para outra, de um ouvinte
para outro e até mesmo da localização espacial em que nos 167
encontramos. Além destas, Ingarden (1986, p. 13) também
sublinha que a nossa experiência com uma performance muda
em razão de nossa concentração, atenção ou atitude emocional.
Prova disso é que podemos ter várias reações diferentes ao
escutar uma mesma obra por meio de uma mesma gravação.
Mais uma vez, nada disso se aplica à obra musical em si. Uma
obra não varia em razão de modo como experienciamos os
aspectos auditivos dela.
5. Performances de uma mesma obra não diferem entre si
apenas por serem tocadas por diversos intérpretes (ou pelo
mesmo intérprete, como já foi assinalado), ou por sua
localização no tempo e no espaço, mas também em razão de
suas propriedades qualitativas. Entre tais propriedades,
Ingarden (1986, p. 13-14) destaca o timbre das notas, os
tempos, os detalhes dinâmicos ou a clareza como uma
determinada passagem é executada. Tais diferenças são
impossíveis de serem completamente erradicadas. Além disso,
uma performance que nos é dada diretamente à percepção não
depende apenas de condições objetivas, mas também de
condições subjetivas (que influem em suas propriedades
qualitativas) e até mesmo de elementos não sonoros. Ao
contrário disso tudo, a obra musical permanece sempre a
FRONTEIRAS DA MÚSICA

mesma. “Ela permanece incólume a todas as diferenças que


necessariamente ocorrem entre performances particulares”
(INGARDEN, 1986, p. 20-21).
6. Toda performance é um objeto individual que, em último
caso, é determinado univocamente e positivamente pelas
“menores variações possíveis – aquelas que não permitem
qualquer diferenciação adicional” (INGARDEN, 1986, p. 14).
Com relação à obra musical, Ingarden irá concordar que
podemos legitimamente questionar se uma obra é
“univocamente, e em última instância, determinada por estas
‘menores’ propriedades que não permitem diferenciação
adicional” (INGARDEN, 1986, p. 22). Segundo ele a resposta a
essa questão irá depender se a obra musical for identificada
com: “(1) o produto exclusivamente determinado pela
partitura; ou (2) o produto equivalente de uma percepção
estética adequada” (INGARDEN, 1986, p. 22). Essa questão será
respondida ao longo do ensaio, contudo Ingarden nos adianta
168 que:

Por enquanto, devemos aceitar que uma obra musical


contém características que não são univocamente
determinadas por qualidades que não permitem uma
diferenciação adicional (INGARDEN, 1986, p. 22).

O timbre das notas, e pequenas variações de afinação


são exemplos disso.
Em suma, uma performance se distingue da obra,
fundamentalmente, por ser algo que está situado no tempo e no
espaço, e portanto, radicalmente diferente da obra. Além disso,
as duas possibilidades de definição da obra musical (como
produto de uma partitura ou como o produto de uma
percepção estética) acabam por se revelar como os verdadeiros
problemas a serem enfrentados por Ingarden.
A concepçãoo de obra musical em Ingarden

A distinção entre obra musical e experiência da


consciência.
A segunda parte do ensaio é totalmente dedicada ao
combate do psicologismo. Segundo Ingarden (1986, p. 24-25),
teóricos, musicólogos, físicos e psicólogos, quando não têm
interesse em discussões filosóficas, acabam por ter uma visão
demasiado simplificada do que é uma obra de arte. Segundo
eles:

parece quase óbvio que uma obra de arte, e especialmente


uma obra musical, é algo “mental”: um conjunto de
imaginações ou experiências auditivas. [...] Uma obra musical
é, sobretudo, certo conjunto de sons com o qual se associam
pensamentos, sentimentos e imaginações. E, conforme
aprendemos com os físicos e psicólogos, sons não são nada
além de experiências sensíveis e, portanto, experiências
mentais (INGARDEN, 1986, p. 24).
169

Dessas premissas seguir-se-ão uma série de


consequências: uma mesma obra musical nunca será a mesma
na mente de diferentes indivíduos ou de um mesmo indivíduo
ao escutá-la mais de uma vez; a experiência do ouvinte se
reduzirá a respostas a estímulos causados em terminações
nervosas por ondas sonoras produzidas por uma determinada
fonte; a obra musical será uma seleção de fatos mentais
condicionados por estímulos físicos e a sua identidade nada
mais será do que uma imprecisão do senso comum e da
linguagem.
Para enfrentar essas consequências Ingarden irá
argumentar que, em primeiro lugar, é preciso compreender o
que se entende por “mental”. Ao que parece, segundo aquelas
teorias, o termo “mental” se refere a tudo aquilo que não é
físico e que não pode existir independentemente das
experiências da consciência. Tais coisas são também
designadas “subjetivas”, e o subjetivo é imperceptivelmente
identificado com essas experiências e suas partes constituintes.
Ingarden concorda que uma obra musical possa ser “subjetiva”,
mas não no sentido em que ela seja identificada com uma
FRONTEIRAS DA MÚSICA

experiência interna da consciência ou de seus elementos


constituintes. Isso se dá porque todas as experiências e seus
elementos são acessíveis ao conhecimento apenas por meio de
atos de reflexão (na medida em que são inerentes à
consciência), e ninguém poderá conhecer uma obra musical por
meio de tais atos (fosse assim a obra já deveria estar “contida”
nela). Ou seja, é preciso manter a distinção categorial entre ato
e objeto.
Seria possível então afirmar que a obra é um
“conteúdo” das experiências da consciência? Aqui também será
preciso por em questão o vocabulário e compreender o que se
pretende pelo termo “conteúdo”. Segundo Ingarden (1986, p.
27), ele é entendido de maneira tão ampla pelos psicólogos que
qualquer coisa que não for nem uma coisa material nem um ato
de consciência se torna conteúdo de uma experiência
consciente. Nesse sentido, um “conteúdo” pode se referir tanto
a um objeto experienciado sensivelmente, quanto a uma obra
170 musical. Ou seja, é um “conceito que explica tudo, mas que, com
a sua ajuda, nada pode ser negado” (INGARDEN, 1986, p. 27).
Assim, se a obra for um “conteúdo” das experiências da
consciência, ou seja, um elemento que forma uma parte dela,
nós devemos, em primeiro lugar, investigar o que efetivamente,
ocorre nesta experiência. O que, objetivamente, chega aos
nossos ouvidos? Que elementos constituem a audição de uma
obra musical? Nas palavras de Ingarden: “O que então, na
percepção auditiva, constitui o efetivo elemento de nossa
experiência de escuta?” (INGARDEN, 1986, p. 28).
Ingarden irá reconhecer que responder a esta pergunta
não é tão fácil e tão simples (como o psicologismo pretende) e,
para que a investigação não se torne uma análise das
estruturas e dos processos da experiência sensível, seja
suficiente dizer, provisoriamente, que:

as assim chamadas percepções não são nem os objetos que


nos são doados na experiência sensível nem as suas
características qualitativas doadas diretamente, mas sim
certos dados qualitativos que experienciamos quando
estamos objetivamente lidando com coisas ou outros objetos
que foram qualitativamente determinados. Em particular,
A concepçãoo de obra musical em Ingarden

“percepções” auditivas não são sons, notas, acordes,


melodias, ou então as suas características qualitativas como a
altura ou o timbre, a qualidade harmônica de um acorde ou o
perfil de uma melodia (INGARDEN, 1986, p. 29)10.

Ou seja, a experiência da escuta não nos fornece


melodias, harmonias e coisas do gênero, mas apenas certos
“dados sonoros”, e ao que tudo indica, esses dados sonoros
estarão na base daquilo que será compreendido como nota,
acorde, melodia, timbre, qualidade harmônica, etc. Será preciso,
portanto, uma espécie especial de “reflexão” para apreendê-los
sem, por outro lado, falsearmos o seu modo de existir
específico. É através dessa reflexão que perceberemos que os
produtos sonoros (melodias, acordes, etc.) são radicalmente
diferentes dos dados sonoros experienciados (“percepções”).
Além disso, nós atingimos essa “reflexão” sem pararmos de
escutar uma performance que se desenrola atualmente à nossa
frente. Ou seja, os produtos sonoros não são as próprias 171
“percepções”, no sentido de serem uma parte efetiva da
multiplicidade dos dados sonoros efetivos, mas algo que as
transcende. Ao escutarmos uma música não estamos diante de
uma multiplicidade desconexa de sons, mas sim de melodias,
notas, acordes etc. Escutamos uma obra, não um conjunto de
sons. A obra transcende, portanto, os simples dados sonoros
perceptivos. E é também por esta razão que não se pode
considerar a obra como um “conteúdo” de uma experiência da
consciência. Além disso, Ingarden (1989, p. 31) irá prever a
possibilidade de haver uma “correlação” entre os dados
sonoros e os produtos sonoros, mas à época em que ele
escrevia o ensaio, estas correlações não ainda haviam sido
explicitadas e desenvolvidas adequadamente11.

10 Como se pode observar, a concepção de “percepção” apresentada


nesta passagem por Ingarden é um tanto genérica e difere da de
Merleau-Ponty.
11 Esta possibilidade de correlação entre “dados sonoros” e os

“produtos sonoros” permite uma aproximação entre o pensamento de


Ingarden e o de Pierre Schaeffer. Nesse sentido, poderíamos pensar
que o objeto musical de Schaeffer seria equivalente aos “produtos
sonoros” de Ingarden, e o sinal acústico equivalente dos “dados
FRONTEIRAS DA MÚSICA

A distinção entre obra musical e partitura.


Desta vez os adversários de Ingarden são os
positivistas. Segundo Ingarden (1986, p. 34), estes últimos,
buscando evitar uma assim chamada “hipóstase metafísica”
tentavam reduzir todos os tipos de objetos a coisas materiais,
processos ou processos mentais. A consequência disso é que
uma partitura acabava por se tornar um simples objeto físico
que nada mais era do que “uma folha de papel com manchas de
tinta impressas espalhadas sobre sua superfície de um
determinado modo” (INGARDEN, 1986, p. 35). Ingarden
reconhece que os positivistas talvez não aceitassem a
afirmação que identifica a partitura com um simples objeto
físico. Contudo, para escapar mais uma vez de uma “hipóstase
metafísica” eles iriam afirmar que:

a partitura é apenas um sistema de propriedades


172 selecionadas ou uma determinada parte de um papel
impresso, a saber: um sistema acordado convencionalmente
sobre formas coloridas no papel (INGARDEN, 1986, p. 36)

O problema é que esta definição exclui a função


decisiva de uma partitura: “simbolizar determinados objetos ou
processos” (INGARDEN, 1986, p. 36, grifo do autor).
Um “signo” musical não é apenas uma mancha de tinta
sobre um papel ou qualquer outro material. Justamente por ser
um signo ele designa funções. Um objeto físico não é capaz de
designar, por conta própria, a função de um signo. Ele apenas é
uma espécie de suporte que em si mesmo é o produto de uma
consciência subjetiva que permite que ele desempenhe uma
função intencional de signo.
“Uma partitura é sistema de signos de tipo particular”
(INGARDEN, 1986, p. 37). Ela não é um simples objeto físico –
apesar de ela ter como suporte o papel, por exemplo. No

sonoros”. O terceiro Livro do Traité de Schaeffer será justamente


dedicado à discussão das correlações entre o sinal acústico e o objeto
musical. Cf. SCHAEFFER, 1977, p. 157-258.
A concepçãoo de obra musical em Ingarden

entanto, isso de forma alguma nos autoriza a afirmar que a


partitura seja algo mental. Os signos que criamos por meio de
operações subjetivas são produtos que transcendem essas
operações. Eles são, portanto, objetos transcendentes e, nesse
sentido, são meios de comunicação intersubjetiva para que
várias pessoas possam tocar uma mesma obra musical.
Como se pode observar, nada disso se aplica a uma
obra musical propriamente dita. E isso se dá por duas razões
bem específicas.
1. “Nem toda obra musical foi notada” (INGARDEN,
1986, p. 38). Muitas músicas puderam existir mesmo sem a
notação, pois muitos compositores criavam as suas obras
simplesmente improvisando-as. Se tais obras continuaram a
existir depois de sua improvisação é uma questão difícil de
decidir, mas tal dificuldade não reside na distinção entre
partitura e obra musical.
2. “Uma partitura consiste num arranjo “imperativo” 173
de símbolos que nós registramos com a ajuda de vários meios
técnicos” (INGARDEN, 1986, p. 38). Ou seja, podemos registrar
tais símbolos utilizando alguma notação musical, ou um
gravador. Há várias maneiras de registrar uma música, basta
que se conheça um sistema de signos e suas convenções para
que possamos empregá-lo. Mas o papel de uma partitura não
termina em designar o modo como uma obra deve ser. Ela
também consiste num conjunto de “instruções de como
proceder para alcançar uma performance fiel de uma dada
obra” (INGARDEN, 1986, p. 39, grifo do autor).
Assim Ingarden (1986, p. 39) irá concluir que do
mesmo modo que “um signo é diferente do objeto que ele
designa, uma partitura é diferente da obra designada por ela”.
Há apenas uma espécie de correlação entre ambas que,
entretanto, não é isomórfica, pois uma obra pode ser registrada
por meio de diferentes sistemas. Além disso, nem todas as
propriedades uma obra são definidas pela partitura. Numa
partitura não há propriamente sons, timbres, harmonias etc.
Finalmente, quando o compositor não registrou sua obra, esta
derivou diretamente de seus atos intencionais criativos que, em
certos casos, concretizou-se numa performance do próprio
autor.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Conclusões.
Como se pode observar Ingarden começa o seu ensaio
oferecendo uma série de três teses negativas acerca da obra
musical. Mas, sendo assim, com o quê exatamente elas
contribuem? Em verdade, elas fazem com que fique mais fácil
compreender o modo de ser específico de uma obra musical.
Conforme será explicitado nas partes seguintes do ensaio, uma
obra musical será definida como um objeto puramente
intencional. Ou seja, algo que não é um objeto real, na medida
em que não é uma coisa que esteja situada no tempo e no
espaço, não é ideal, na medida em que ela não é algo imutável e
atemporal (como o são, por exemplo, os objetos matemáticos
ou geométricos, pois uma obra musical foi criada por alguém
em algum determinado momento histórico), e que, tampouco, é
um objeto absoluto (como o é, por exemplo, Deus). Ela é,
finalmente, um objeto intencional puro no sentido específico
que a fenomenologia confere a este termo – ou seja, um objeto
174 subjetivo cuja identidade nos é doada por meio de várias
perspectivas12.
Outro aspecto digno de nota neste ensaio é a
constatação de certa tensão entre posições que poderíamos
classificar, de um lado, como sendo “antiquadas”, e de outro,
como sendo “avançadas”. Elas seriam antiquadas na medida em
que teríamos certas dificuldades em empregá-las em alguns
casos da música dos séculos XX e XXI, bem como de algumas
músicas populares, e até mesmo de certas músicas extra-
européias. Mas elas se mostram avançadas justamente por
buscar precisar conceitualmente o que é uma obra musical e,
por isso mesmo, permite que possamos repensar em que
sentido este conceito poderia ser recusado em favor de outras
propostas como “arte sonora”, “improvisação musical”,
“performance audiovisual” etc. Como se sabe, estas propostas
buscam, justamente, atender a outras formas de arte que
também lidam com “sons”, mas que não poderiam, com justiça,
ser pensadas nos mesmos termos daquilo que é chamado,

12Sobre os diversos modos de ser dos objetos em Ingarden cf.


THOMASSON, 2012.
A concepçãoo de obra musical em Ingarden

genericamente, de “música tradicional”. E é justamente por nos


convidar a repensar o que compreendemos por música, ou obra
musical, que este texto ainda nos apresenta algo de promissor.
Mas tudo isso já consiste numa outra discussão.

Referencias bibliográficas
HUSSERL, E. Meditações cartesianas e Conferências de Paris. Trad. P. M.
S. Alves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
INGARDEN, R. A obra de arte literária. Trad. A. E. Beau, M. da C. Puga e
J. F. Barreto. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1973.
____. Selected papers in Aesthetics. Trad. A. Czerniawski, [et al].
Washington D. C.: The Catholic University of America Press, 1985.
____. The work of music and the problem of its identity. Trad. A.
Czerniawski. London: The MacMillan Press, 1986.
____. Ontology of the work of art: The musical work. The Picture. The
architectural work. The film. Trad. R. Meyer e J. T. Goldwait. Ohio: Ohio 175
University Press, 1989.
JAGANNATHAN, R.; MCCORNICK, P. J.; POŁTAWSKI, A.; SIDOREK, J.
Roman Ingarden Bibliography. (Ed. Peter J. McCornick). In:
INGARDEN, R. Selected papers in Aesthetics. Traduções: A.
Czerniawski, [et al]. Washington D. C.: The Catholic University of
America Press, 1985, p. 181-223.
SCHAEFFER, P. Traité des objets musicaux : Essai interdisciplines. Paris :
Seuil, 1977.
THOMASSON, A. "Roman Ingarden". The Stanford Encyclopedia of
Philosophy (Fall 2012 Edition), E. N. Zalta (ed.), 2012. Disponível em: <
http://plato.stanford.edu/archives/fall2012/entries/ingarden/ >.
Acessado em 20/10/2015.
Música 1941: história e crítica

DANILO PINHEIRO DE ÁVILA

N este texto tratarei de um breve momento da trajetória


inicial de Hans Joachim Koellreutter no Brasil,
precisamente entre os anos de 1939 e 1944. Fundador do
Grupo Música Viva, o músico alemão passou a desenvolver uma
série de atividades (concertos, audições, publicações, aulas,
palestras) que portavam claramente o intuito de divulgar as
músicas “menos conhecidas” de todas as tendências artísticas,
sendo louvado em diversos momentos por críticos musicais da
época pelos seus empreendimentos musicais “bem
intencionados” que visavam a renovação musical do cenário
carioca. Entre as principais contribuições do grupo nestes
primeiros anos de atuação (a saber, 1939-1941), estão os onze
números da Revista Música Viva, que projetaram Koellreutter
no cenário carioca como um grande divulgador da música
produzida pelos novos compositores (nacionais e
internacionais), assim como as composições menos conhecidas
do passado.
Koellreutter chega ao Rio de Janeiro em 1937, exilado
pelo regime nazista, como um virtuoso flautista e compositor
advindo dos cursos alemães e tendo fundado os “Círculos de
Música Nova” em seu país de origem, onde também travava
conhecimento com as técnicas “de vanguarda”, se ligando
diretamente ao maestro Hermann Scherchen, com quem
apenas tivera cursos extracurriculares, mas que, segundo o
compositor, exercera influência determinante sobre o seu fazer
artístico (KATER, 2001, p. 179). Primeiramente recebido aqui
por Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, então bibliotecário da
Escola Nacional de Música e contribuinte crítico da Revista
Brasileira de Música, este irá apresentar Koellreutter a uma
parcela de músicos que tinham certa representatividade dentro
do cenário musical carioca como Otávio Bevilacqua, Andrade
Muricy, Luiz Cosme, Egídio de Castro e Silva. É interessante
notar que todos estes músicos e críticos ocupavam posições de
Música 1941

renome no meio musical, a maioria como contribuintes da


Revista Brasileira de Música, publicação cientifico acadêmica
de música no Brasil criada e mantida pela então Escola
Nacional de Música. Além disso, aderiam a posições distintas no
projeto do incentivo à música nacional, constituindo uma ala
minoritária que procurou-se filiar à Koellreutter naquele
momento e incentivar as novas ideias trazidas pelo compositor.
Sendo assim, podemos afirmar que a recepção de Koellreutter
no Brasil não é de inicio conflituosa, começando a lecionar no
Conservatório Brasileiro de Música e fundando o grupo Música
Viva, ambos em 1938, ano em que são realizadas as primeiras
audições e concertos.
No entanto, é só em 1940 que será criada a Revista (ou
Boletim) Musica Viva, que publica seu primeiro número tendo
no corpo editorial Koellreutter como fundador, Octávio
Bevilacqua como diretor; Egídio de Castro, Luiz Heitor e
Brasílio Itiberê como redatores. Número este que dá
reconhecimento público as audições e concertos organizados 177
pelo Música Viva no ano de 1939, com um balanço dos
compositores que foram escolhidos, assim como uma relação
da quantidade de reproduções de cada um, mostrando que a
grande maioria dos compositores ouvidos eram
contemporâneos, sendo apenas uma pequena parcela
compositores “clássicos”. Entre os compositores
contemporâneos brasileiros podemos notar a presença de:
Ernâni Braga, Lorenzo Fernandes, Radamés Gnatalli, Camargo
Guarnieri, Brasílio Itiberê, Francisco Mignone e Heitor Villa-
Lobos. Os compositores estrangeiros são de maioria francesa,
com algumas exceções. Os “clássicos”, alemães: Bach, Brahms e
Beethoven (MUSICA VIVA, maio/1940, p. 1). A Fundação do
grupo foi celebrada por Andrade Muricy, tecendo comentários
sobre a iniciativa de um “musicista excepcionalmente culto,
informadíssimo e recém- chegado de centros de alta atividade
musical”, em crítica intitulada “Um Recital de Música de
Câmara” (02/02/1939) no Jornal do Comercio, atestando que as
atividades do compositor são “da mais nobre intenção”
(MURICY, 1939, p. 1).
Os desenvolvimentos iniciais dos primeiros boletins
produzidos pelo Música Viva entre 1940 e 1941 devem ser
destacados. Dos três primeiros volumes (lançados em
FRONTEIRAS DA MÚSICA

maio/junho/julho de 1940, respectivamente) constam


apenas dois textos publicados originalmente por
Koellreutter e nenhum deles têm como objeto principal o
atonalismo ou a música serial. No texto “Cravo ou piano
moderno?”, lançado ao terceiro volume do Boletim, o
compositor procurará levantar apontamentos sobre os
debates acerca da predileção dos músicos entre os referidos
instrumentos, afirmando basicamente que cada um destes
instrumentos tem uma demanda especifica de seu tempo e
que esta comparação não encontra sentido sê pensada
historicamente (KOELLREUTTER, julho/1940, pp. 3-4).
Análise que deriva de um mote que Koellreutter prolongaria
para a maioria de suas contribuições escritas: a música como
“uma expressão viva de seu tempo”.
Podemos ver que ao longo das críticas feitas por
João Itiberê da Cunha junto à sua coluna “Correio Musical”
no periódico carioca Correio da Manhã a nuance inicial, pois,
178 em um primeiro momento (1940-1941), o crítico apenas
louvara os empreendimentos do grupo, afirmando que esta
agremiação de músicos deve ser conhecida e protegida.
Itiberê da Cunha, notado defensor da estética nacional na
música, é um dos poucos a descrever detalhadamente as
atividades do grupo neste momento, que é visto como um
dos polos aglutinadores da música brasileira
contemporânea, já tendo lançado em seus boletins a respeito
de compositores “nacionalistas” como Camargo Guarnieri
(número 4) e Frutuoso Vianna na (número 1), na seção
organizada por Luiz Heitor chamada “Compositores de
Hoje”.
Ao dedicar o boletim de número 7/8 para Heitor
Villa-Lobos e declarar este como um presidente honorário
do grupo, que acaba de criar no seu interior a Seção
Brasileira da Sociedade Internacional de Música
Contemporânea (SIMC), Koellreutter assume uma posição
que, até então, contradiz o caráter emergente do grupo ao se
vincular a figura de Villa-Lobos – cabe lembrar que este não
é um fato isolado, sendo recorrentes os artigos de
Koellreutter sobre Villa-Lobos na sua coluna junto a revista
Leitura, com elogios em relação não apenas a suas
composições, mas a sua pedagogia musical desenvolvida em
Música 1941

volta do canto orfeônico. Quem inaugura o volume do


boletim dedicado a Villa-Lobos (n.7/8) é o próprio
Koellreutter, narrando que tomara ciência da obra do
compositor brasileiro em sua ida a Paris, especificamente
com o “Choro no. 2”, obra que imediatamente remeteu ao
produtor do programa de rádio que participava na Radio
Nationale de Paris, em 1934 (KOELLREUTTER, jan.
fev./1941, p. 1). Nesta “Homenagem à Villa-Lobos” de
Koellreutter, o compositor tece elogios a educação musical
proposta por Villa, atividade do compositor brasileiro que
ele não conheceu quando travou relação com a sua obra em
Paris: “Não imaginaria, no entanto, que seu campo de
trabalho fosse tão vasto, pois além de compositor é
educador, realizando um programa educativo de música
como talvez haja poucos iguais no velho mundo”
(KOELLREUTTER, jan.fev. 1941, p. 1)
Na publicação em homenagem a Villa-Lobos, o
boletim e o grupo Música Viva já obtém uma recepção que 179
relata os ímpetos “militantes” dos envolvidos, como se pode
ver na crítica de João Itiberê da Cunha “'Música Viva' em
Homenagem a Villa-Lobos”, que mostra como o grupo segue
em direção a práticas mais engajadas com relação a música
contemporânea:

“Música Viva é um simbolo. Agrupa uma Associação e uma


Revista (ou Boletim, como quiserem) ambas doutrinantes,
militantes, nacionalizantes, ainda não agressivas por que
os que convivem nelas são pessoas educadas… Sente-se,
contudo, latente, o prurido da luta, o desejo de matar
muita gente, pelo menos os que possam divergir das suas
diretrizes “avançadas”… É justo que a gente nova se
divirta… (…) E lucramos também ficar sabendo, com a
leitura desse introito, que a finalidade principal da
agremiação ou melhor do grupo “Música Viva” - não é o
mesmo das outras sociedades musicais que possuímos e
que “realçam o virtuose e o concerto”, enquanto a
“Vivíssima Musica” pretende divulgar “ o compositor e a
obra e principalmente a música contemporânea” (CUNHA,
fev./1940, p. 21)
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Como podemos perceber o grupo agora é visto não


apenas como “bem intencionado”, mas portando um
engajamento “militante”, além de diretrizes “avançadas” e
“doutrinantes”, o que guarda um reflexo no interior da
revista com a publicação de textos contundentes como os de
Sílvia Guaspari a respeito da relação da música com os meios
de comunicação “Música Mecânica e Rádio” (número 6) ou a
seção inaugurada com traduções dos artigos de Nícolas
Slonimsky feitas a partir do IV Boletim Latino-Americano de
Música (números 5, 6 e 9), onde, em sua segunda aparição
no boletim, o musicólogo se presta a narrar relatos das
reações que se seguiram a estreia do Pierrot Lunaire de
Schoenberg (SLONIMSKY, nov./1940, p. 11). Movimento que
também se percebe em textos posteriores a crítica de Itiberê
da Cunha, como a crítica de Claúdio Santoro, “Considerações
em torno música brasileira contemporânea” (número 9), que
demonstra como o folclore tem de ser pensado em um
registro lógico e não temático, postulando o que o diferencia
180 do nacionalismo que percebe ou na entrevista reproduzida
com Alban Berg, “Que é a Atonalidade?”, mostrando como
este é um conceito que não é fundado por Schoenberg, mas
antes uma produção da imprensa da época que correspondia
o ímpeto de classificar esta música que era então
desconhecida e causava certo incômodo. Esses
desenvolvimentos da revista são resultados de uma
autonomia barganhada não somente pelas posições sociais
que ocupavam os músicos relacionados ao grupo, mas
também pela inserção cordial de Koellreutter junto ao
contexto, possibilitando a difusão destes temas que
encontravam claramente opositores.
Nos anos que se seguem até 1944, ano da publicação
do primeiro manifesto do grupo e desenvolvimento de
programas radiofônicos junto a PRA-2, é grande o rol de
atividades que realizou o compositor alemão. Temos relatos de
uma tournée com a harpista Mirella Vita financiada pela
instituição “Pro Arte Brasil”, entre 1941-1942, aonde
Koellreutter é visto pela crítica como “quem agitou a modorra
musical do nosso meio criando a revista Música Viva”, além de
notado “discípulo de Schoenberg, conservando muito de suas
predileções. Compreende-se desde logo o seu amor pelo
Música 1941

atonalismo” (CUNHA, jan./1942, p. 11). É documentada


também sua participação na fundação da Orquestra Sinfônica
Brasileira, aonde ingressou como o primeiro flautista e foi
diversas vezes instrumentista dos programas organizados pela
OSB na Rádio Nacional em “horário nobre”, próximo horário
depois do programa “A Hora do Brasil”. Ministrara alguns
cursos de Composição e Contraponto no Instituto Musical de
São Paulo. Em 1943, o Conservatório Brasileiro de Música
convida Koellreutter para ser diretor da Orquestra de Câmara ,
“destinado a tornar conhecida a vasta literatura dos séculos
XVII e XVIII e as obras originais para orquestra de câmara (…)
especialmente as dos jovens compositores brasileiros”. Além
dessas atividades integradas a instituições, esse período entre
1943-1944 é marcado por artigos e entrevistas publicados
tanto em jornais de grande circulação como o Diário, o Correio e
O Globo, quanto em revistas de coloração comunista como a
Diretrizes e a Tribuna Popular - espaços que Koellreutter
transitará até o fim da década de 40. Todas estas atividades,
juntamente com a repercussão “bem intencionada” da crítica 181
musical da época, garantiram a Koellreutter um relativo
reconhecimento e uma margem de autonomia que lhe garante
novas possibilidades para o desenvolvimento de suas práticas
musicais.
No entanto, essa autonomia social barganhada a partir
de suas atividades musicais iniciais na cena carioca será
tensionada a partir de um dado musical: a publicização da obra
Música 1941, editada em 1943 pelo Editorial do Instituto
Interamericano de Musicologia no Uruguai. Essa tensão entre a
autonomia social conquistada e o dado musical negativo que
queremos explicitar nesta comunicação fica clara na crítica da
Música 1941 feita por João Itiberê da Cunha a respeito da
recepção desta música por escrito, o que mostra a nuance no
tom do crítico em comparação relatos feitos anteriormente
sobre Koellreutter. Vale conferir o conteúdo da crítica pelo seu
tom irônico e agressivo:

Se Hans Joachim Koellreutter nos tivesse dito que descobriu


habitantes na Lua, ficaríamos menos surpresos…......É curioso.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Resolver o problema dos 12 sons não é nada. Encontrar


quem aguente semelhante achado é que é difícil! (…)
Koellreutter que tenha paciência. Música é música. Notas
esparsas, por mais bem arrumadas que sejam, constituindo
apenas ruídos musicais – ou anti-musicais – não podem ter a
pretensão de ser música” (CUNHA, 1943, p. 9)

Dessa maneira, essa afirmação de Itiberê da Cunha


respalda a narrativa que associa o termo atonalismo ao
desenvolvimento de elementos sonoros que se contrapõe a
tudo que pode se denominar música. A partir daqui,
Koellreutter despe-se da sua vestimenta de “bem intencionado”
frente ao crítico para ingressar paulatinamente na construção
de “dodecafonista ortodoxo”, jargão que reflete pouco suas
atividades musicais neste momento, pois constantemente o
flautista enfatizava seu objetivo de divulgar musica de todas as
tendências. Atitudes estas que denotam certo interesse da
182 crítica na identificação da sua trajetória ao termo referidos,
promovendo um antagonista ideal a se colocar frente aos
desenvolvimentos da música nacional. Como consequência
desse acirramento, Koellreutter decide ministrar uma palestra
sobre os “Problemas da música contemporânea”1, anunciando
que nesta conferência debaterá os artigos produzidos por seu
atual crítico (J.I.C). Empreendimento de Koellreutter que
dissolve fronteiras que se impunham entre compositor e crítico
musical, ocupando ambos até então sua função especifica na
dinâmica social da música2. Cabe nos atentar para o fato de que

1 Conforme relata e anuncia João Itiberê da Cunha no Correio da


Manhã em 18 de Dezembro de 1943, dia em que se deu a conferência,
que é aproximada novamente da escola schoenberguiana: “o assunto é
vastíssimo. Mas supomos que o apreciado virtuose se atenha apenas a
uma das modalidades da música: a da defunta escola de Schoenberg.
Em todo caso, veremos com prazer o que for. Se for para enterrar a
escola, tanto melhor...”. (CUNHA, 1943)
2 No primeiro anuncio da conferência, 6 dias antes da sua realização

no Conservatório Brasileiro de Música, “J.I.C.” atenta para o despeito e


vê com certo desconforto a arrogância da proposta do compositor
teuto de comentar artigos produzidos por ele como crítico musical:
“Agora Hans Joachim Koellreutter anuncia uma conferência:
“Problemas da Música Contemporânea”, em que nos traz
Música 1941

este reconhecimento musical que Koellreutter recebe e a


margem de possíveis que se abrem a ele para realização de
conferências desta natureza é devido a constante barganha por
autonomia social que suas práticas disputam.
Para divulgar essa palestra, também ao dia 18 de
Dezembro de 1943, Koellreutter confere uma entrevista ao
Diário da Noite exposta em forma de artigo, intitulada “O
Futuro Terá Uma Nova Expressão Musical” fazendo questão de
ressaltar que a conferência a ser proferida se deve aos recentes
artigos publicados por “seu maior oposicionista” que
“manifestou-se inteiramente contrário á técnica do jovem
professor e condenou-a”, fruto dos debates surgidos com a
publicação da “Música 1941”. Nesta entrevista, imbuído de
vocabulário quase-wagneriano3 que coloca a então
denominada “música nova” como uma “nova expressão do
futuro”. Neste artigo, Koellreutter se presta basicamente a
esclarecer algumas incompreensões que percebe serem
recorrentes, como a confusão entre os termos “atonalismo” e 183
“dodecafonismo”.

Música atonal e a técnica dos 12 sons schoenbergiana, não


são sinônimos (idênticas). A música atonal é uma linguagem
sonora e a técnica dos 12 sons uma técnica de composição
com a finalidade de resolver o problema formal da música
'atonal'; como cadência e funções harmônicas resolveram o
problema formal da música 'tonal'.

pessoalmente à bulha, por que vai fazer considerações a respeito de


artigos nossos como crítico musical!… Que virá por aí, Santo Deus?”
(CUNHA, dez/1943)
3 Torna-se perceptível este apontamento com a leitura do seguinte

trecho que é colocado como se fossem palavras do Koellreutter: “-


Creio que a linguagem sonora atonal será a expressão musical do
futuro (…) Achamo-nos atualmente, talvez na maior transformação
pela qual o mundo jamais passou. Somos testemunhas de uma
gigantesca transformação social que não ficará, certamente, sem
influência sobre a expressão artística de nossa época. Infelizmente,
uma grande parte da humanidade se recusa a reconhecer esta
transformação global, não conseguindo compreender assim os
problemas intelectuais do mundo” (KOELLREUTTER, dez./1943, s.p.).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Uma obra pode ser atonal sem ser escrita na técnica


schoenbergiana, e vice-versa; uma composição pode ser
tonal, porém, composta na técnica dos 12 sons
(KOELLREUTTER, dez/1943, s.p.)

Não podemos aqui concordar com Leandro Souza, em


sua dissertação de Mestrado Incomunicação ou
Cosmopolistismo? H.J Koellreutter e os Debates sobre a
comunicabilidade artistica, ao concluir dessa entrevista “o
marco definitivo da nova projeção pública assumida por
Koellreutter como polemista, séquito do seu intuito
permanente de renovação musical” (SOUZA, 2009, p. 71),
refletindo sobre a postura assumida por Koellreutter como
substrato de suas intenções exclusivamente, desconsiderando
as pressões por explicação que sofriam suas composições.
Partindo de um reconhecimento disputado constantemente, as
práticas de Koellreutter aqui apontam antes para a vontade de
184 participação na recepção de suas composições frente às
demandas colocadas por seu crítico, assim como uma
“aclimatação” de suas propostas estéticas que se inscrevem em
um cenário onde a progressiva racionalização do material
musical não é um dado estruturante.
Apontamentos estes que se verificam no relato sobre a
conferência de João Itiberê da Cunha, contrariando a
expectativa gerada em função dos relatos anteriores, ao dizer
que esta fora “a mais interessante e instrutiva das
conferências”, onde o compositor “não propriamente para
responder artigos nossos, mas para explicar a gênese de certos
movimentos revolucionários musicais”. Inclusive, relativizando
a opinião do crítico que gostaria de sepultar a escola de
Schoenberg, com relação ao “Pierrot Lunaire” de Schoenberg,
obra que foi reproduzida durante a conferência4. Neste sentido,

4 “A audição (realmente muito má) do “Pierrot Lunaire”, de


Schoenberg fez-nos, contudo, compreender que o espírito, nessa
música, toma a dianteira sobre o sentido ou o sentimento, mas que as
audácias de escrita se resolvem, em suma, em combinações sonoras
muito menos agressivas do que pensavamos, e que é possível descobrir
até uma nova espécie de emoção nessas elocubrações” (CUNHA,
dez/1943) (grifo nosso). Também foram reproduzidos nesta
Música 1941

podemos até aferir que tenha se desenvolvido uma polêmica a


partir destas novas atividades, pois inauguram uma tensão na
condição de autonomia alcançada pelo compositor, mas ela é
antes fruto de um processo relacional entre o compositor e a
formação institucional provisória.
Em seus aspectos técnicos, a Música 1941 é uma peça
para piano dividida em três movimentos (Tranquilo, Muy
expressovo, Muy ritmado y destacado) que, segundo Adriano
Braz Gado, trabalha em cima de uma série de doze sons, mas
“utiliza diferentes processos no tratamento da série. Entre eles,
destacam-se as alteraçõs no ordenamento das alturas: 1) a
omissão de alturas da série no interior do segmento; 2) a
permutação de alturas da série; 3) a repetição de elementos no
interior da série”
Em seus aspectos técnicos, a Música 1941 é uma peça
para piano dividida em três movimentos (Tranquilo, Muy
expressivo, Muy ritmado y destacado) que, segundo Adriano
Braz Gado, trabalha em cima de uma série de doze sons, mas 185
“utiliza diferentes processos no tratamento da série. Entre eles,
destacam-se as alterações no ordenamento das alturas: 1) a
omissão de alturas da série no interior do segmento; 2) a
permutação de alturas da série; 3) a repetição de elementos no
interior da série” (2005, p. 66). Esse conjunto de
procedimentos confere à utilização da série um caráter
heterodoxo, adequando a estrutura serial às necessidades
expressivas do compositor.
Pelo trabalho de permutação e flexibilização da série,
podemos aproximar esta experiência de Koellreutter a alguns
procedimentos seriais levados a cabo por Berg que, por
exemplo, em seu Concerto para Violino propõe alguns
encadeamentos tonais a partir de triades derivadas de uma
série base. No entanto, é importante notar que o uso de tríades
derivadas da série no contexto da Música 1941 não implica em
relações tonais como pretende o Concerto de Berg, mas apenas

conferência o “Choro Bis” de Villa-Lobos e a Sonatina para Oboé e


Piano de Claudio Santoro, conforme consta na entrevista-artigo de
Koellreutter (dez./1943).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

a referência isolada de tríades em estilo atonal livre. Portanto,


podemos atribuir a Koellreutter uma determinada afinidade
eletiva, pois ao dedicar sua atenção aos problemas da estrutura
serial visando à flexibilidade dessa estrutura – em beneficio de
suas intenções composicionais -, e não a adequação do
propósito de ambos ao constructo da série, podemos
aproximar suas propostas aos impasses na técnica
dodecafônica às soluções berguianas.
A partir dessa solução proposta pela Música 1941,
podemos pensar que se desenvolve um determinado estilo
composicional koellreutteriano que deixará legado nas
composições dodecafônicas de Cláudio Santoro, como em
Sonata 1942 e Guerra Peixe, em Música no. 1, ambas também
peças para piano onde utilizarão procedimentos semelhantes
aos de vosso orientador. Além disso, Música 1941 utiliza-se de
um procedimento que alicerçará a proposta estética futura de
Koellreutter, fundada a partir da década de 60, nomeada de a
186 Estética do Impreciso e do Paradoxal, conforme o mesmo relata
no encarte do disco em que essa peça é gravada. No mais, há
que nos atentarmos para a historicidade dos processos e
perceber que essa mudança de paradigma musical tenta, por
vezes, ressignificar estas obras da década de 40 em função do
aparato conceitual formado a posteriori, dando a soar que a
trajetória do compositor é um todo contínuo e desprovido de
nuanças ou incoerências. Como podemos perceber no relato do
compositor alemão, publicado posteriormente no encarte do LP
lançado pelo selo Tacape em 1983 sobre a referida Música
1941:

A forma da Música 1941 para piano nasce da seguinte série


de 12 sons, geradora de unidades estruturais submetidas a
um processo de transformação permanente
O principio de estruturação, no entanto, não é o ortodoxo da
composição dodecafônica. Assim tirei proveito, por exemplo,
de uma série derivada, que está para a original como a escala
cromática para o circuito das quintas. Acontece, porém, que
essa série nunca aparece na integra.
Em Música 1941 tudo é diferente e, ao mesmo tempo, igual. A
composição consiste de três movimentos; no fundo, planos
Música 1941

ondulatórios, nos quais o contraste tradicional entre os sons


e o espaço em que estes ocorrem parece ser superado. É que
a série, presente nas três partes, atua como um medium
contínuo, igualando em nível e unificando as unidades
estruturais (gestalten). Estes surgem como matéria sonora
acidentalmente condensada num vaivém constante, evitando
qualquer tipo de individualização, dissolvendo-se na
atmosfera que os cerca, e tendendo a um idioma de caráter
elementarista – que caracterizaria meus trabalhos
posteriores – e aos principios de uma estética relativista do
impreciso e do paradoxal que alicerçaria tudo o que escrevi a
partir de 1960 (KOELLREUTTER, 1983)

Koellreutter utiliza, nesta breve análise de sua peça


para piano, uma gama conceitual ('gestalten', 'planos
ondulatórios', 'matéria sonora acidentalmente condensada',
'elementarista', 'relativista') que jamais fora utilizada por ele
nos anos de sua composição e que, provavelmente, não está
dentre os possíveis do cenário musical carioca da época. 187

Referências bibliográficas
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188
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189
A literatura e a música como formas de resistência

ESTEFÂNIA FRANCIS LOPES

endo em vista a musicalidade da prosa do escritor


T angolano Boaventura Cardoso, a ligação entre a
literatura daquele país e a cultura brasileira, nomeadamente a
nossa música popular e, por fim, a questão da produção
cultural em países sob severa repressão, a comunicação
proposta visa a analisar o conto “Meu Toque!”, do primeiro
livro do autor, Dizanga Dia Muenhu (1977), propondo uma
análise comparativa com a letra da canção “Pivete” (1978), de
Chico Buarque de Hollanda. Ao relacionar os temas
preponderantes do conto aos da canção da Música Popular
Brasileira, procuraremos refletir sobre a linguagem na
construção das narrativas, com especial atenção para o ritmo e
por fim apontar o engajamento artístico e político de ambos os
criadores.
Ainda que estejamos conscientes que entre a violenta
opressão colonial sofrida por Angola e a do Brasil sob a
ditadura militar haja diferenças bastante marcantes, dentre as
quais devemos salientar o fato colonial e todo o largo arco de
violência por ele engendrado, cremos ser possível aproximar
produções em que a denúncia, ou a “linguagem da fresta”, para
usarmos uma expressão de Gilberto Vasconcellos (1977), esteja
presente.
O que nos interessa principalmente é pensar como em
momentos de exceção intelectuais e artistas procuram saídas
seja por meio de reflexões ou através de ações propriamente
ditas, e de como essas obras artísticas acabam por revelar as
tensões sociais.
Dessa forma, a partir das vozes sociais presentes nas
respectivas obras, propomos uma forma especial de
intertextualidade, que por meio de uma relação dialógica
constitui “uma classe específica de relações entre sentidos,
A literatura e a música

cujos participantes podem ser unicamente enunciados


completos, ou vistos como completos, e por trás dos quais estão
os sujeitos discursivos” (BRAIT, 1994, p. 25). Nas relações
dialógicas definidas por Mikhail Bakhtin há diferentes graus e
especificidades, possibilitando estabelecer uma relação entre
dois autores que jamais se leram, mas que construíram obras
que podem ser confrontadas. Nosso principal interesse é,
justamente, a “intencionalidade dialógica” proposta por quem
estabelece a relação, o que não implica o dialogismo “nato”
entre as obras aqui analisadas.

1. A forja das escritas: Os princípios constitutivos em


Boaventura Cardoso e em Chico Buarque

Percebemos correspondências em alguns elementos-


chave que constituem as narrativas do contista Boaventura
Cardoso e do cancionista Chico Buarque, são eles: o retorno à
191
tradição não como algo estático, e sim, como elemento
transformador; nas obras transparecem preocupações tanto
políticas e sociais, por meio dos espaços narrativos e das vozes
sociais que os compõem, quanto estéticas, na elaboração
linguística. Destacamos a utilização da linguagem popular, no
caso do escritor angolano, a exploração do quimbundo, e em
Chico, uma aproximação com a fala do povo, acrescentando
que, ambos os autores, empregam muitas vezes ditos
populares, provérbios, entre outros exemplos, afastando-se das
normas e apresentando uma linguagem padrão, mais próxima
do coloquial; e finalmente, o ritmo da prosa e da música. Esses
elementos que desenvolveremos melhor a seguir, perpassam
tanto a forma e o conteúdo do conto quanto da canção
selecionada para o diálogo e, por não apresentarem fronteiras
rígidas, são intercambiáveis.
Para darmos início à abordagem sobre tradição
trazemos as reflexões de Ecléa Bosi sobre memória e
sociedade, "na maior parte das vezes, lembrar não é reviver,
mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de
hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é
trabalho” (BOSI, 1994, p. 55) Estas palavras sintetizam o fazer
FRONTEIRAS DA MÚSICA

artesanal em Boaventura e em Chico, que forjam em suas


escritas a tradição como reinvenção, como uma ligação com o
passado, não no sentido de cristalizá-lo, e sim, em constante
movimento para uma melhor compreensão do presente.
Podemos dizer que, nos respectivos processos artísticos, a
tradição como base fundamental agrega as elaborações
estéticas e sociais, a linguagem e o ritmo.
Vale referir que, segundo entendemos, nos contos de
Boaventura, a tradição vem revestida de uma linguagem e um
ritmo próprios, conjugada com a modernidade, segundo
Benjamin Abdala Jr.,

Entre as múltiplas estruturas geradoras populares, os contos,


em especial, colocam em evidência as estratégias discursivas
subjacentes ao projeto literário de escritores que, como
Boaventura Cardoso, procuram estabelecer imbricações
literariamente produtivas entre a tradição popular e a
192 modernidade citadina (ABDALA JR., 2003, p. 249).

A prosa boaventuriana acarreta marcas estruturantes


de uma recriação linguística a partir de recordações das
tradições orais angolanas. Em seus contos a oralidade está
presente na escrita, na voz do narrador, que muitas vezes
mistura-se à fala dos personagens, gerando uma polifonia.
1
Ocorre em seus “exercícios de estilo” , reconstruções de ordem
morfológica e sintática, em que o quimbundo é alternado ao
português, dando lugar às vozes não autorizadas e, portanto,
marginalizadas, tornando o povo angolano como sujeito da
história. Verificamos desse modo, no processo da escrita de
Boaventura, forma e conteúdo como um corpo indivisível. Nas
palavras do próprio autor,

Ligado a essa questão da tradição há o problema da


linguagem, a forma como as pessoas se expressam. É uma

1Emprestamos o termo do subtítulo da segunda coletânea de contos


de Boaventura Cardoso, O Fogo da Fala (Exercícios de Estilo), de 1980.
A literatura e a música

preocupação que também me mobiliza: não pretendo


transcrever para a minha ficção o modo de falar, mas o
trabalho de recriação que faço. Ou seja, a tradição entra no
texto enquanto forma e não apenas tema (CARDOSO, 2005, p.
30).

A tradição no compositor Chico Buarque está atrelada


às novas formas de expressão, na formulação de canções que
apresentam características tanto dos sambas da década de
1930, portanto anteriores a sua época, como da concisão e da
moderna batida da bossa nova. Porém, essa aproximação do
gênero samba nem sempre foi bem aceita. No final da década
de 1960 o jovem compositor escreve um artigo no Jornal
Última Hora, como “resposta” às críticas que o associavam à
imagem de passadista, e do qual transcrevemos alguns trechos,
a seguir, por revelar o pensamento do próprio compositor
sobre a tradição,
193

(...) O importante é ter Mutantes e Martinho da Vila no


mesmo palco. (...) se conclui como precipitada a opinião,
entre nós, de que estaria morto o nosso ritmo, o lirismo e a
malícia, a malemolência. É certo que se deve romper com as
estruturas. Mas a música brasileira, ao contrário de outras
artes, já traz dentro de si os elementos de renovação. Não se
trata de defender a tradição, família ou propriedade de
ninguém. Mas foi com o samba que João Gilberto rompeu as
estruturas da nossa canção (MENESES, 1980, p. 30).

Compreendemos que tanto a linguagem trabalhada nos


contos e nas composições, assim como, os temas desenvolvidos
em ambos os gêneros, acabam por revelar situações extra-
textuais a partir da elaboração artística dos respectivos
autores. Seguindo a reflexão de Abdala Jr., por meio de uma
nova norma linguística a escrita materializa-se, pois, ao somar
a ênfase social a “uma apropriação democrática da cultura
popular”, legitima a linguagem considerada marginal
apresentando como protagonistas das narrativas tanto os
personagens deixados à margem da sociedade como os espaços
pelos quais vivem e transitam.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Por sua vez, o espaço narrativo somado a outros


elementos estruturais da narrativa (como as vozes sociais que
o compõem, o tempo histórico e/ou o foco narrativo) nos
auxiliarão nas reflexões sobre a relação entre literatura e vida
social, bem como, sobre a tradição atrelada à modernidade,
tanto em Boaventura Cardoso, quanto em Chico Buarque. Esse
espaços, seja no conto, como na canção aqui analisados,
correspondem aos musseques de Luanda, em Boaventura, e à
experiência urbana brasileira da cidade do Rio de Janeiro em
Chico. E são concretizados por meio de personagens
marginalizados que vivenciam tensões num meio urbano, na
maior parte das vezes, hostil. No caso dos contos de Dizanga
dia Muenhu, soma-se à díade cidade e literatura, um terceiro
elemento: o fenômeno do império, tríade necessária, segundo
Tania Macêdo, “para auxiliar nosso entendimento e atuação no
mundo contemporâneo” (MACÊDO, 2008, p. 26).
Não por acaso Luanda torna-se o espaço da denúncia e
194 futuramente da liberdade. Enquanto “a população negra é
deslocada cada vez mais para longe da ‘Baixa’, o centro
urbanizado”, e é colocado “à margem do processo urbano”,
servindo “de mão-de-obra barata ao crescimento colonial”, por
outro lado, os metropolitanos tomam “as melhores terras e os
melhores postos de trabalho” (MACÊDO, 2008, p. 115). A
cidade além-asfalto é constituída pelos bairros conhecidos
como musseques, espaços sociais que levam o nome da areia
vermelha sobre a qual as cubatas (casas de teto de zinco e
paredes de barro) são erguidas para servirem de moradia. Nos
contos de Dizanga, são referenciados pelo Marçal, Golfe,
Rangel, Cazenga, Eucaliptos, além do Sambizanga, “famoso
Sambila, ‘capital das conspirações’ nacionalistas”, local para
onde se dirige o personagem central Mano Zeca, do primeiro
conto da coletânea, “A Chuva”,

As nuvens, cada vez maiores, humanizavam-se nas formas,


pareciam estranhos animais. Mano Zeca estava a ver a chuva
a vir mesmo na zuna [depressa] elá! Olhando no céu, punha
nas kinamas [pernas] a pressa de chegar, Sambila está longe!
A literatura e a música

E a chuva veio com muita raiva. Os tetos frágeis das cubatas


tremiam e, nos lares, as águas que entravam dentro faziam
atrapalhação nas pessoas (CARDOSO, 1982, p. 6).

Este foi o impacto da modernização sofrido por Luanda


no final da década de 1940, com o aumento da produção
cafeeira, muito próximo do vivenciado por moradores pobres
do Rio de Janeiro, entre as décadas de 1920 e 1930, que se
vêem cada vez mais afastados do centro, sendo “empurrados”
para os morros ou subúrbios da cidade em nome de um
“processo civilizador”. Segundo Santuza Naves, “o Rio se
moderniza no sentido indicado pelo ‘progresso’ econômico,
tecnológico e cultural”, sem deixar de cultivar “estilos de vida
associados ao ‘arcaico’ e/ou a um registro ‘primitivo’”,
possibilitando dessa forma, “uma interação vital entre tradição
e novidade, ‘primitivo’ e ‘civilizado’, ‘antigo’ e ‘moderno’”
(NAVES, 2004, p. 82).
195
Na canção popular, Noel Rosa, “originário das camadas
médias com formação universitária e fortemente ligado à vida
popular da cidade”, dá início a um projeto que “faz da música
popular um lugar (...) de expressão da livre opinião e de
encontro dos intelectuais com o povo, isto é, dos compositores
que pensam a sua experiência com a cidade” (VIANNA, 2004, p.
74). Para Maria Alice Carvalho, Noel resgata o “idioma musical
do Rio” em suas letras que narram “de forma simples e direta, a
marginalização dos pobres, a vida nas favelas e nos cortiços”
CARVALHO, 2004, p. 46). A crítica “à uma modernização que
apenas reproduzia os padrões hierárquicos da sociedade”, teve
continuidade mesmo no “período mais repressivo da ditadura
militar” (CARVALHO, 2004, p. 63), com uma resistência cultural
com aprofundamento estético e crítico.
Nas canções de Chico Buarque a cidade é um elemento
presente, seja de maneira concreta nas ruas, praças e becos,
como por meio dos personagens, na maioria das vezes,
marginalizados, que vivenciam e dão forma a esses espaços
urbanos. Em “A Volta do Malandro”, de 1985, o personagem
tipicamente urbano, volta para a praça, “caminhando na ponta
dos pés / como quem pisa nos corações / que rolaram dos
cabarés”. Nos dois locais citados, o malandro se encontra entre,
FRONTEIRAS DA MÚSICA

“deusas e bofetões / entre dados e coronéis / entre parangolés


e patrões”, personagens e situações que caracterizam os
espaços. E a música tem como frase final, ironicamente, o
malandro como “o barão da ralé”, identificando, dessa forma, o
local social da personagem.
Dentro da relação entre narrativa e cidade,
estabelecemos um diálogo entre a composição “Pivete” (de
1978, sobre música de Francis Hime), e o conto “Meu Toque!”.
A canção apresenta espaço e personagem como elementos
constitutivos do universo urbano e marginalizado. Um garoto
que vende chicletes no sinal, “capricha na flanela”, “batalha
algum trocado” e “aponta um canivete”, transita por locais
cariocas, como a rua Frei Caneca, a Carioca, o bairro da Tijuca, a
praia do Recreio e o morro do Borel. Muito próximo do
universo de Kaprikitu, personagem do conto “Meu Toque!”, que
“no pensamento kandengue um dia veio virar engraxador”. O
título do conto é o próprio grito dos engraxates para chamar os
196 fregueses, “o grito da fome, a luta dos homens pequenos
empurrados cedo na vida dura” (CARDOSO, 1982 p. 9).
Neste conto são usadas muitas palavras em
quimbundo, como kandengue e/ou miúdo, que em português
significa criança. Assim, sabemos que o personagem começa
cedo na luta pela sobrevivência. Logo no primeiro parágrafo do
conto nos é apresentada a difícil vida do personagem. A mãe de
Kaprikitu “munhungava”, ou seja, prostituía-se no Marçal
(primeira referência espacial luandense) para sustentar a
família,

Mulato filho de pula [branco] pai dele está onde? Mãe negra é
mãe é pai. Munhungar o corpo é pelejar contra a fome
(CARDOSO, 1982, p. 8).

As frases acima deflagram a vida colonial com suas


profundas fissuras entre o colono branco e o colonizado negro.
A denúncia dessa divisão é aprofundada no decorrer da
narrativa. Os espaços luandenses pelos quais Kaprikitu circula
ao tentar ganhar kumbu (dinheiro) como engraxate demarcam
os espaços sociais, como o pivete da música de Chico. O
A literatura e a música

kandengue começa sua jornada pelos Eucaliptos, zona da


cidade onde circulam os engraxates. Depois, decide ir para a
Baixa, “experimentar outra sorte na vida”, e “se abancou no
fresco da Portugália”, bar luxuoso, “visionando sempre os
fregueses com sapato no pé” (CARDOSO, 1982, p. 11).
A estrutura do conto direciona a narrativa para um
sentido crescente dos acontecimentos, aprofundando a
denúncia da violência do estado colonial, até a frase final. Os
dois primeiros parágrafos apresentam a vida familiar de
Kaprikitu e a decisão de virar engraxate como outros miúdos do
musseque. Na sequência a luta de Kaprikitu em aprender o
ofício e na conquista de um espaço entre outros engraxates, até
deparar-se com a arrogância de um freguês da Baixa, expõe
plenamente as contradições e tensões do mundo colonial. A
condensação do tempo e do espaço, tanto neste, como nos
outros contos da coletânea, demonstra o “essencial do método”
do contista, para usar um termo de Julio Cortázar (2004).
O contista Boaventura trabalha “em profundidade, 197
verticalmente”, eliminando elementos gratuitos ou meramente
decorativos, revelando assim, o ofício do escritor que, segundo
Cortázar, se traduz na hábil conjugação da intensidade da ação
com a tensão interna da narrativa. Podemos dizer que o
escritor angolano forja artesanalmente “um estilo baseado na
intensidade e na tensão”, no qual a combinação entre os
elementos formais e expressivos dão ao conto uma “forma
visual a auditiva penetrante e original” (CORTÁZAR, 2004, p.
157). Vejamos a seguir como o ritmo e a tensão são trabalhados
na narrativa de “Meu Toque!” e como também estão presentes
na canção “Pivete”.
O grito da luta que dá título ao conto aparece sempre
em caixa alta, trazendo, dessa forma, a voz dos meninos para a
narrativa, misturada à fala do narrador, como mostra o trecho a
seguir,

Alguém pé calçado passava, passo apressado, os graxas


gritavam MEU TOQUE! Berridavam [afugentavam] atrás do
sapato que dava o pão. MEU TOQUE! era o grito da fome, a
luta dos homens pequenos empurrados cedo na vida dura.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

MEU TOQUE! era a agonia dos explorados. MEU TOQUE!


Quem qui gritou primeiro fui eu! Sueu quin graxo, mé! MEU
TOQUE! Por que estás minguiçar [enguiçar-me]? Para ganhar
a vida precisa um gajo lutar com os outros, se agarrar mesmo
(grifo nosso)(CARDOSO, 1982, p. 9).

Chico Buarque, na música “Pivete”, em regravação no


cd Paratodos, de 1993, adiciona na abertura a frase: “ah...
Monsieur have money per mangiare?”, correspondente ao “grito
da fome” do conto, pois, “Chico tomou essa expressão
emprestada aos garotos que viviam sob as marquises da igreja
da Candelária em seu singularíssimo modo de pedir dinheiro
aos turistas” (GANDRA, 2010, p. 22). A fala em língua
estrangeira é pronunciada como se ouve, assim a frase italiana
per mangiare, vira pra manjar, na voz dos meninos, como nas
frases do conto grifadas acima, “Quem qui gritou primeiro fui
eu! Sueu quin graxo, mé!”, que trazem o uso do português fora
198 da norma culta esperada na escrita.
Além do ritmo da fala coloquial dos garotos
marginalizados que não têm acesso ao aprendizado escolar,
outros ritmos aparecem tanto no conto como na música.
Boaventura, por exemplo, faz uso de onomatopéias trazendo
uma forma “auditiva e visual”, como vimos em Cortázar, tanto
para o ritmo do “mestre” engraxate: “Kaprikitu virou mestre
engraxista pouco tempo, sapato fica bem limpo, o pano até
dizia nheque-nheque” (CARDOSO, 1982, p. 9), como para o
ritmo das ruas da cidade: “Um dia tal qual os outros, com o Sol
a estalar quenturas, os carros vum-vum sempre, as pessoas
todas também com as corridas” (CARDOSO, 1982, p. 10).
Também há o uso de interjeições próprias da fala, como, “poça!,
mé!, hem!”.
O ritmo dos africanos (presente na escrita de
Boaventura, como observado pelo próprio autor, tem a ver com
a “maneira de estar” dos angolanos, que enquanto africanos
têm a vida muito ritmada, “seja o ritmo na narrativa, ou o andar
das pessoas, enfim, o ritmo da vida, a nossa vida. Nós temos
muito ritmo mesmo! Então, é essa cadência rítmica que eu,
talvez, de forma consciente ou inconsciente acabo por imprimir
nos textos” (CARDOSO, 2005, p. 29) é um dos elementos da
A literatura e a música

formação da nossa música. Segundo Luiz Tatit, o ritmo do


lundu de origem “fincada nos batuques e nas danças que os
negros trouxeram da África e desenvolveram no Brasil” (TATIT,
2008, p. 70), somado à melodia que “evocava trechos de
operetas européias” e à letra (componente vital) formam os
três elementos da canção brasileira do século XX.
Quanto à música “Pivete”, podemos dividi-la em duas
partes: primeiramente em quarenta versos (com uma estrutura
que pode ser dividida em oito e doze frases, que seguem o
estilo da rima imperfeita), e uma parte final em oito versos. Na
letra são descritas as malandrices do pivete pela cidade, como
nos oito versos iniciais: “No sinal fechado/ Ele vende chiclete/
Capricha na flanela/ E se chama Pelé/ Pinta na janela/ Batalha
algum trocado/ Aponta um canivete/ E até” .
O garoto dribla as situações de quem vive na e/ou da
rua, como no jogo de futebol o fazem os craques brasileiros. As
referências são dadas nos possíveis nomes do “pivete”, que
pode se chamar Pelé, ou ter as pernas tortas como Mané 199
Garrincha. Nas dozes frases finais do que chamamos de
primeira parte, a referência se faz com outros ídolos do esporte
brasileiro, pois “agora ele se chama/ Emersão (Airtão)”, como
os pilotos de fórmula 1, Emerson Fittipaldi e Ayrton Senna,
justamente quando o garoto rouba carro,

Dobra a Carioca, olerê/ Desce a Frei Caneca, olará/ Se manda


pra Tijuca/ Na contramão/ Dança para-lama/ Já era para-
choque/ Agora ele se chama/ Emersão (Airtão)/ Sobe no
passeio, olerê/ Pega no Recreio olará/ Não se liga em freio/
Nem direção.

Porém, nas oito frases finais ele volta a chamar apenas


pivete, um entre tantos que na mesma situação de abandono e
marginalidade da cidade, “capricha na flanela/ descola uma
bereta/ batalha na sarjeta/ e tem as pernas tortas”.
O léxico traz tanto elementos das ruas da cidade: sinal,
flanela, locais (como já tratamos) do Rio de Janeiro, prancha e
parafina, que remetem às praias da cidade conhecida como
“Maravilhosa”, passeio. Como também do universo marginal no
FRONTEIRAS DA MÚSICA

qual o garoto está inserido: sarjeta, trocado, maloca, ligação


direta, contramão; armas, como: canivete e bereta e do
universo das drogas: boca, mutuca e papel. Assim como os
verbos que trazem uma imagem visual desse universo das ruas:
vende, capricha, pinta (coloquial para aparecer, próprio das
gírias), batalha, agita, descola, fatura, arromba, se manda. Como
as ações de quem circula: dobra, desce, sobe e zanza.
Segundo Carlos Rennó, o letrista carioca convoca “as
gírias mais atuais e próprias” para as ações do “pivete” nesta
canção “em que assistimos a um verdadeiro show de poesia de
rua, ágil e lépida como o personagem em foco” (RENNÓ, 2014,
p. 129). Como a sensibilidade dos versos a seguir que formam
uma sequência do sonho para a difícil realidade em se manter
acordado: “Sonha aquela mina, olerê/ Prancha, parafina, olará/
Dorme gente fina/ Acorda pinel”.
Voltando para a conclusão da análise do conto, a
tensão aprofunda-se em “Meu Toque!”, como referimos acima,
200 quando a divisão entre a Baixa e o musseque ganha nítidos
contornos no contato entre os brancos e os negros ou mulatos
nativos, quando a “fronteira do asfalto”, expressão de Tania
Macêdo, é ultrapassada. Essa zonas não são complementares
uma à outra, como lembra Frantz Fanon, “estas duas zonas se
opõem, obedecem ao princípio da exclusão recíproca” (FANON,
1979, p. 29). Ao aproximar-se de um possível freguês, Kaprikitu
não só é ofendido verbalmente, como tem sua caixa de
engraxate destruída por um chute. A violência do domínio
colonial é denunciada na arrogância e estupidez do homem
branco diante do menino engraxate,

Pergunta que perguntava a todos os fregueses de manhã até


à noite. (...) Pula [homem branco] deu a resposta vai engraxar
teu pai. Meu pai cara dele nunca lhe vi, mas é meu pai. Vai
engraxar teu pai não, mé! (CARDOSO, 1982, p. 10).

Sobre esta passagem do conto, Carmem Secco, observa


o “discurso crítico e cortante” da linguagem de Boaventura,
pois, além de Kaprikitu ter seu instrumento de trabalho
destruído, o homem ainda toca numa “ferida funda: o pai
A literatura e a música

desconhecido” e diante da humilhação “sentimentos de ódio e


revolta transbordam” nas interjeições e exclamações que
“marcam o ritmo da fala rebelde” (SECCO, 2005, p. 108).
Porém, diante da cena sofrida por Kaprikitu ocorre a
união entre os meninos engraxates contra o homem branco.
Quando o miúdo “viu no chão a caixa que lhe agüentava a vida,
pôs o desafio: vem cá s’és home!” (CARDOSO, 1982, p. 10), e foi
logo acompanhado pelo coro dos outros kandengues.
Boaventura traz à cena a imagem da ameaça da luta: “Os
punhos dos engraxadores no ar. Ameaça. Silêncio. Ameaça”
(CARDOSO, 1982, p. 10), assim como, o ritmo, ao intercalar as
palavras “ameaça” e “silêncio”, como se fossem o avanço e o
recuo do corpo dos meninos diante do inimigo.
Segundo Frantz Fanon, “o colonialismo é a violência
em estado bruto e só pode inclinar-se diante de uma violência
maior”, que seria neste caso, a luta pela libertação, quando o
colonizado “de quem sempre se disse que só compreendia a
linguagem da força, resolve exprimir-se pela força” (FANON, 201
1979, pp. 46 e 65). E é justamente pela independência total e
imediata que Kaprikitu espera para o confronto de uma luta
franca: “E amanhã? Quando vier a Totalimediata se te acaço...”
(CARDOSO, 1982, p. 10).
O mundo colonizado cindido em dois, como observa
Fanon, que mantém a cidade do colono “saciada”, enquanto a
do colonizado é uma “cidade acocorada”, nutre um ódio
recíproco. Somente a “descolonização unifica este mundo,
exaltando-lhe por uma decisão radical a heterogeneidade,
conglobando-o à base da nação, às vezes da raça” (FANON,
1979, p. 34), como prenuncia a frase final do conto: “O ódio não
cresce se lhe cortarem a raiz” (CARDOSO, 1982, p.10).

2. Considerações finais
As preocupações políticas e sociais não prescindem do
estético tanto em Angola como no Brasil. O como fazer, é um
dos pontos de intersecção que estabelecemos entre a escrita de
Boaventura e a canção brasileira, em que forma e conteúdo,
FRONTEIRAS DA MÚSICA

teoricamente distintos, revelam uma unidade. Uma


preocupação com a maneira de contar revelada pelo escritor,

O importante é saber como vou contar a história e, portanto,


não devo estar atento apenas à atualidade em si: deve
preocupar-me primeiramente a forma que vou dar ao texto
para contar cenas do século XIX ou princípios do século XX,
por exemplo (CARDOSO, 2005, p. 33).

E o modo de dizer no chamado gesto cancional, que


segundo Luiz Tatit, se resume em

uma espécie de oralidade musical em que o sentido só se


completa quando as formas sonoras se mesclam às formas
lingüísticas (...). Tudo ocorre como se as grandes elaborações
musicais estivessem constantemente instruindo um ‘modo
202 de dizer’ que, em última instância, espera por um conteúdo a
ser dito (TATIT, 2008, p. 69).

Na canção de Chico Buarque há o minucioso trabalho


de artesão da escrita em que o jogo das palavras enriquece o
som e o sentido. Ao musicar em 1965 a peça de João Cabral de
Melo Neto: Morte e Vida Severina, o compositor carioca relata
que com essa experiência percebeu que melodia e letra formam
um só corpo. Segundo Carlos Rennó, são exploradas nas
canções de Chico “as imensas possibilidades sonoro-criativas
da nossa língua, o português brasileiro” (RENNÓ, 2014, p. 111).
Já nos contos de Boaventura ocorre “a apropriação de uma
arma-palavra, arma-cultura”, que segundo Benjamin Abdala Jr.,
não é portuguesa e nem mesmo quimbunda, e sim, “a
angolanidade, em termos linguísticos e de linguagem literária”
(ABDALA JR., 2003, p. 256) que forja a narrativa.
O engajamento político e social de Boaventura e Chico,
está presente na forja de suas escritas, a partir das escolhas
formais e temáticas. O autor angolano ao dar o título de seu
primeiro livro em quimbundo marca o lugar de onde fala, bem
A literatura e a música

como, quem fala, “no jogo ético que propõe, o escritor


radicaliza o discurso, convocando a subversão” (PADILHA,
2005, p. 204). Para Maria Aparecida Santilli, o título Dizanga
dia Muenhu (A Lagoa da Vida, em português) “é adequado a
esse conjunto de estórias que lembram rios de marcha lenta,
embora devam chegar em alguma foz, como fazem
habitualmente os cronistas”, em favor de um discurso narrativo
que “espraia-se na procura de sentidos para as circunstâncias
da vida angolana”(SANTILLI, 2005, p. 130), que vale lembrar, é
antes de tudo, ritmo, para o escritor.
Ao escolher não calar-se diante da censura imposta no
período ditatorial no Brasil, Chico Buarque posiciona-se como
um artista engajado com as questões de seu tempo. Adélia de
Meneses, credita essa perseguição política ao compositor, ao
“poder inquietante” que ele detém em lidar com as palavras.
Vale lembrar, que até 1978, Chico foi um dos artistas mais
visados pela censura no país, como também, proibido na
Argentina durante o governo de Jorge Videla (1976-1981). 203
Sobre a tensa relação com os censores, declara ao jornalista
Tárik de Sousa que,

uma época, lá no Rio, me chamavam todo dia, eu já não


agüentava mais. Uma noite tomei um porre no show do Jorge
Bem no Flag, chorei e contei tudo que estava acontecendo
pelo microfone. Não sei, mas aí a coisa diminuiu um pouco
(HOLLANDA, 1979, p. 97).

A partir de algumas análises que desenvolvemos neste


texto, foi possível identificar nos contos e nas canções
características de escritas de resistência presentes nos
respectivos criadores. Boaventura Cardoso a partir de uma
nova escrita, no uso do vocabulário e no novo ângulo
discursivo, trazendo a colônia como sujeito, revela um mundo
colonial repressivo e uma esperança utópica, em relação ao
novo que virá, após a conquista da independência do país. A
partir de uma escrita crítica, por meio da negatividade, da
ironia e da recusa, rompe com o silêncio sobre um período de
“sofrimento de um duradouro processo histórico, cuja
FRONTEIRAS DA MÚSICA

metrópole ignora o fenômeno de dissolução dos impérios


coloniais europeus e o ciclo descolonizador do século XX,
levando a um conflito armado sistemático e revolucionário”
(TUTIKIAN, 2005, p. 173).
O compositor Chico Buarque, retém, o que Heloísa
Starling, chama de pragmática do saber narrativo, ou seja, “a
extraordinária capacidade de uma narrativa gerar condições de
compartilhamento de memória, palavra e prática política ao
contar uma história (...), em ritmo análogo ao dos
procedimentos poético-melódicos” (STARLING, 2003, p. 151.)
Adélia Bezerra de Meneses, em Desenho Mágico, Poesia e
Política em Chico Buarque, aborda a canção do compositor
como “poesia de resistência”, por configurar elementos de
ruptura, dissonância e ironia.
Como procuramos apontar nesta comunicação, a arma
crítica de Chico é a sua palavra-ação que recusa calar-se, e a
“arma-palavra” do escritor angolano Boaventura, age ao
204 desvendar tensões sociais. Podemos dizer que, ambos realizam
a partir de suas obras artísticas e críticas a fusão de duas
forças, levantadas por Cortázar, “a do homem plenamente
comprometido com sua realidade nacional e mundial, e a do
escritor lucidamente seguro do seu ofício” (CORTÁZAR, 2004,
p. 160). Como o escritor engajado, nas palavras de Sartre,

Ao falar, eu desvendo a situação por meu próprio projeto de


mudá-la; desvendo-a a mim mesmo e aos outros, para mudá-
la; atinjo-a em pleno coração, traspasso-a e fixo-a sob todos
os olhares; passo a dispor dela; a cada palavra que digo,
engajo-me um pouco mais no mundo (SARTRE, 2004, p. 20).

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Discografia
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Malandro. RJ: Polygram, p1985. LP. Faixa 1. Lado 1.
HOLLANDA, C. B. e HIME, F. [compositores]. “Pivete”. In. Paratodos,
Abril coleções. SP: Abril, sob licença, RJ:Sony Music, (1993) / (Coleção
Chico Buarque; v. 7), p2010. 1 CD. Faixa 11.
Montagem da forma: a relação entre crítica estética e
crítica social na música popular brasileira a partir do
pensamento de Walter Benjamin

GUILHERME DE AZEVEDO GRANATO

filósofo Walter Benjamin, em sua análise do drama


O barroco alemão ressuscita a alegoria do ostracismo
imposto pelo Romantismo. Os românticos entendiam o símbolo
como manifestação sensível e imediata de uma totalidade ideal,
tal definição é vista por Benjamin como não dialética e
decorrente de uma oposição prévia entre sensível e supra-
sensível. A alegoria benjaminiana é um modo de representação
que, ao contrário do símbolo, resiste às categorias totalizadoras
transcendentes, denunciando a falsa aparência de totalidade e
remetendo aos vestígios de uma unidade que se perdeu. O
poeta Baudelaire, na filosofia de Benjamin, representa o
ressurgimento da alegoria na modernidade. Sua figura
melancólica, perdida no turbilhão da cidade, à caça de uma
imagem poética sempre desatualizada, dialoga com a condição
precária do homem barroco, desprovido de ideais eternos.
Como apontou Gagnebin, a alegoria aponta para uma tripla
morte: da identidade do sujeito, da estabilidade dos objetos e
do próprio processo de significação No entanto, além do luto,
também sugere a liberdade lúdica, para aqueles dispostos a
criar novos sentidos fugazes em meio à transitoriedade radical
(GAGNEBIN,1999, p 39).
O contexto do surgimento dos movimentos de
vanguarda é marcado por uma forte heterogeneidade,
sugerindo a perda dos horizontes normativos de compreensão
e produção das obras. Seguindo a análise de Peter Bürger do
conceito de alegoria aplicado à obra vanguardista, pode-se
constatar as suas características singulares no campo da
produção e da recepção. Na produção da obra,
FRONTEIRAS DA MÚSICA

O alegorista arranca um elemento à totalidade do contexto da


vida. Ele o isola, priva-o de sua função. Daí ser a alegoria
essencialmente fragmento e se situar em oposição ao
símbolo orgânico... o alegorista junta os fragmentos da
realidade assim isolados e, através desse processo, cria
sentido. Este é, pois, um sentido atribuído, não resulta do
contexto original dos fragmentos (BURGER,2008, p.127).

A criação de sentido a partir dos estilhaços delega ao


expectador uma ampla possibilidade interpretativa. Diante da
precariedade dos elementos aparentemente carente de
sentidos, tanto se pode captar melancolia como ludicidade.
O principal recurso técnico que difere a obra orgânica
da alegórica aponta Burger, é a Montagem. A técnica da
montagem tem origem nas obras produzidas por Picasso e
Braque antes da Primeira Guerra Mundial, ela difere das
demais técnicas pictóricas anteriores por inserir fragmentos da
208 realidade, elementos não elaborados pelo autor na composição,
destruindo a unidade do quadro enquanto produto
exclusivamente da subjetividade do artista. O artista “orgânico”
manipula o seu material como algo vivo, que tem relação com a
realidade concreta. Sua obra não procura chamar a tensão para
o meio, ao contrário, deseja escamotear o seu caráter de obra e
assemelhar-se a um produto da natureza. O significado é
construído através da coerência estabelecida entre parte e
todo, os momentos individuais apontam para o todo da obra,
estabelecendo uma unidade. Já a obra alegórica (inorgânica),
construída a partir da montagem, o artista não
necessariamente associa o material a algo vivo. “Onde o
clássico, no material, reconhece e respeita o portador de um
significado, o vanguardista vê tão somente o signo vazio, ao
qual ele se acha habilitado a emprestar significado.” (BURGER,
2008, p. 129) A relação entre o todo da obra e suas partes
também se altera, estas se emancipam da condição de elemento
necessário à construção do todo, assim como o todo não se
traduz na concordância das partes, dessa forma a negação da
síntese se institui como princípio orientador da obra. A relação
com a realidade se diferencia na medida em que o vanguardista
reconhece sua obra como artefato, composta de refugos e
Montagem da forma

fragmentos, estabelecendo uma relação com a realidade menos


mimética e mais crítica.
Na recepção da obra montada reside a possibilidade de
intervenção na práxis vital almejada pelos vanguardistas. O
receptor, diante da não linearidade, percebe que seu aparato de
apreensão, moldado pelas obras orgânicas, não é adequado
para a fruição. Dito de outra maneira, a não lógica da
construção da obra questiona os princípios naturalizados da
percepção, dessa forma, a atenção, que antes visava o sentido,
detém-se no princípio construtivo. A relação contraditória
entre as partes sugere uma harmonia discordante, uma
“unidade que absorveu a contradição”, atribuindo à obra um
caráter enigmático. A impossibilidade de extrair um sentido
pleno é recebida como choque, daí provém o estimulo para
uma mudança da práxis vital do receptor. “Este choque é
intencionado pelo artista de vanguarda, que mantém a
esperança de, graças a essa privação de sentido, alertar o
receptor para o fato de a sua própria práxis vital ser 209
questionável e para a necessidade de transformá-la.” (BURGER,
2008, p. 142).
O tipo de fruição que a obra orientada pelo choque
instaura, sua força “tátil”, seu caráter fragmentado e a relação
“dispersa” que estabelece com o público, marcam a passagem
do quadro para o cinema. No ensaio “A obra de arte na era da
reprodutibilidade técnica” (1936), Benjamin analisa o impacto
dos novos meios técnicos sobre a natureza da obra de arte. O
autor via no dadaísmo uma espécie de prenuncio das
transformações que se estabeleceriam a partir da invenção do
cinema. Não à toa, depositou consideráveis expectativas no
potencial revolucionário da nova forma de arte. A obra de arte
tecnicamente reprodutível compensaria a perda do caráter
aurático pela ampliação de seu potencial político. Se o
apreciador da obra aurática se dirige a ela de forma
concentrada, mergulhando em seu interior, o público do
cinema dirige-se ao filme distraidamente. A aura da arte
remete ao seu passado ligado aos fins religiosos, assim como a
uma postura contemplativa reservada. A obra reprodutível
emancipa-se da tradição religiosa ao perder a condição de
exemplar único, assim como suscita outras formas de fruição,
não individuais, mas coletivas. Justamente a condição coletiva
FRONTEIRAS DA MÚSICA

do cinema, tanto na produção quanto na exibição,


potencializaria seu poder político no contexto da sociedade
urbana-industrial.
O cinema surge como o meio mais eficaz para
comunicar-se com as massas. Sua organização formal, a partir
de seqüências de imagens justapostas, rompe as estruturas
associativas padronizadas do expectador, impondo uma
sucessão de choques, que simula a condição do homem
inserido na metrópole, em meio ao tráfico e a multidão. Dessa
forma ele acompanha as metamorfoses do aparelho perceptivo
humano, que, assim como as formas de existência, não
permanece o mesmo ao longo da história.

Tropicalismo e a era da obra montável na música


popular
210 O movimento Tropicália surgiu no ano de 1967 em
meio a um fervilhante cenário cultural e político aonde a
canção popular ganhava status de ferramenta ideológica. O
tropicalismo reformulou os critérios de apreciação da forma
canção ao propor uma relação entre fruição estética e critica
social, em que esta é transposta do tema para os processos
construtivos. O movimento se insere em um período de
transição social, cultural e política, caracterizado pelo fim da
mentalidade desenvolvimentista e da estética nacional-popular
atrelada a ela. Nesse ambiente, emergiam novas perspectivas
artísticas, preocupadas em equacionar no plano estético as
contradições nacionais. È sabido que a palavra Tropicália, antes
de batizar o movimento musical, foi título de uma instalação do
1
artista plástico carioca Helio Oiticica . Este juntamente com
outras figuras proeminentes, como o crítico Mario Pedrosa e o
poeta Ferreira Gullart, foi protagonista de um novo impulso na
arte nacional, que visava redimensionar a relação entre
experimentalismo formal e crítica social. Mais do que isso,
buscava repensar o papel do expectador em relação à obra,

1A obra foi exposta pela primeira vez em Abril de 1997, no Museu de


Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Montagem da forma

delegando a ele um vasto campo de interação e interpretação


sensível e semântica. As reflexões de Oiticia são válidas para
compreender a estética Tropicalista em seu apelo crítico e no
uso que fez dos novos recursos de manipulação sonora, no
intuito de desalojar o ouvinte de seu lugar habitual.
Tal como consta no “Esquema geral da nova
2
objetividade” , redigido por Oiticica, as novas diretrizes da arte
vanguardista nacional deveriam partir da necessidade de
romper com os protocolos tradicionais de apreciação artística,
oferecendo ao expectador uma “ proposição criativa vivencial”.
Partindo de uma noção de antiarte, a obra deveria
proporcionar uma experiência aberta, realizando-se a partir da
interação do objeto artístico com o público. Negando a postura
passiva-contemplativa associada ao esteticismo burguês, cujo
ambiente natural é o Museu, Oiticica propõem “ programas
abertos de realização” onde os significados são extraídos a
partir da interação do autor-expectador. A inspiração do artista
provinha em parte do contato com festas e ambientes 211
populares, tais como feiras livres e escolas de samba. Daí, numa
postura desmistificadora, buscava distanciar-se do
intelectualismo aristocrático, desfazendo a aura da arte e
aproximando-a do jogo. Seu viés lúdico, capaz de suscitar
múltiplas interpretações semânticas e interações sensíveis,
aponta para novas estruturas de organização da linguagem
artísticas e formas alternativas de engajamento critico,
baseadas não em meta-esquemas ideológicos ou políticos, mas
em experiências subjetivas transformadoras.
O movimento Tropicália, mergulhado no fluxo que
movimentava a reflexão artística na arte brasileira, concretizou
no campo da música popular as demandas por novas
formalizações estéticas que atualizassem a expressão e
recolocassem certas questões diante das transformações que se
impunha na época. Essas transformações espelhavam a
complexificação do cenário político, que não comportava mais

2Texto escrito a propósito da exposição Nova Objetividade Brasileira,


ocorrida no Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, de 6 a 30 de
abril de 1967.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

o esquematismo de certas polarizações e as transformações


impostas è sensibilidade pelos meios de comunicações de
massa. Nesse contexto, o movimento se inscreve em um
período em que a canção popular, no Brasil e no mundo,
começou a flertar de forma criativa com novos recursos
técnicos de gravação, amplificação e manipulação sonora,
assimilando certas experiências da música de concerto do
século XX. Os Tropicalistas foram pioneiros na assimilação
dessas novas influencias, realizando um gesto de devoração, tal
como pleiteava Oswald, integrando o novo material na
construção de uma nova identidade estética para a música
popular.
Como escreve Molina (MOLINA, 2014, p. 14), é possível
localizar nos anos 60 uma transformação fundamental nas
práticas composicionais de música popular cantada. O inicio da
utilização dos procedimentos de exploração sonora a partir de
recursos oferecidos pelas tecnologias de gravação tem nos
212 Beatles a sua referencia inicial. A partir do álbum Revolver
(1966) e ostensivamente no álbum Sgt. Pepper´s lonely heart
club band (1967) a criação de “sonoridades” em estúdio passou
a ser utilizada de forma mais ambiciosa pelo grupo. O
protagonismo da tecnologia nas composições dos Beatles
resultou em obras com um formato notoriamente distinto da
canção tradicional. Como coloca Richard Taruskin:

Esses aparatos (técnicos) agregaram à canção qualidades que


não podem ser capturadas (...) na partitura vocal (produzida,
como todas as “partituras populares”, depois do fato), (...) Em
certo sentido os Beatles não estavam mais escrevendo
canções. como alguns ícones da música de vanguarda da
época, eles estavam criando colagens – obras de arte
acabadas, artefatos em fita que não poderiam ser
adequadamente reproduzidos em outra mídia” (TARUSKIN
apud MOLINA,2014, p. 20).

A montagem de uma obra musical em estúdio, nos


moldes dos álbuns da banda inglesa, guarda muitas
semelhanças com o processo de produção do cinema e insere-
se em um movimento cultural onde vanguarda e cultura pop
Montagem da forma

pareciam flertar. O aparato de gravação não é utilizado apenas


para registrar a performance dos músicos, os próprios recursos
sonoros do estúdio integram o arranjo numa sintaxe própria,
resultando em sonoridades e estruturas peculiares, impossíveis
de serem atingidas sem esses recursos. A elaboração de
sonoridades com atenção especial ao timbre e a textura, a
incorporação do ruído, o flerte com a improvisação e a
aleatoriedade, o interesse pelas sonoridades não ocidentais e a
edificação da forma através dos processos de montagem, fusão
e sobreposição indiciam esse influencia. No Brasil, o
movimento Tropicália foi percussor na assimilação dessa
tendência.
O momento de eclosão do movimento era marcado
pela efervescência dos festivais da canção. Estes contavam com
uma forte presença da juventude universitária, identificada
com uma estética que articulava elementos reconhecidos como
autênticos da cultura nacional com um discurso político
engajado. A chamada canção de protesto seguia uma receita 213
que buscava, através do emprego de ritmos, instrumentações e
temáticas próprias da cultura brasileira, vincular um discurso
revolucionário, no intuito de educar as massas para a tomada
do poder. Tal formato, apesar de em certo momento ter gerado
uma produção interessante, já mostrava sinais de desgaste.
Muitas vezes a dimensão estética era colocada em segundo
plano em prol da mensagem política, que por sua vez era
articulada de forma ingênua e esquemática a partir de uma
idéia fetichizada de “povo” e um conceito simplista de
“revolução”. Dentro de tal perspectiva, que buscava empregar a
canção como ferramenta revolucionária, também se ignorava o
fato de esta já ser um objeto de consumo e dos festivais serem
organizados por redes de televisão dentro de esquemas
comerciais. O Tropicalismo escancarou as contradições deste
formato ao propor uma crítica alternativa ao modelo
esquemático da canção de protesto. Contrariando o modelo
conteudista, aonde o arranjo servia de suporte para a
mensagem política, o movimento articulou a crítica ao processo
construtivo. Assim, manipulando elementos da cultura nacional
e internacional, alegorizava os símbolos de brasilidade
empregados pela canção de protesto, explicitando as ruínas do
imaginário nacionalista. Além disso, buscava uma ocupação
FRONTEIRAS DA MÚSICA

consciente dos canais de massa, assumindo o caráter


mercadológico da canção e buscando, de maneira astuta e
perigosa, utilizar-se dessa condição para realizar uma crítica à
cultura de massa a partir dela mesma.

Conclusão
Trilhando um longo trajeto que foi do barroco alemão
aos portais da pós-modernidade, buscamos neste texto
demonstrar, ainda que de maneira panorâmica , uma possível
abordagem do movimento musical conhecido como Tropicália
a partir de reflexões do filósofo alemão Walter Benjamin. Os
eixos centrais para esta abordagem foram o conceito de
alegoria e algumas questões contidas no ensaio sobre a obra de
arte na reprodutibilidade técnica. Mostramos como o
tropicalismo desconstruiu o significado de alguns símbolos
pertencente ao imaginário nacionalista. Tais símbolos
214 funcionavam como uma representação imediata de um ideário,
totalizações que buscavam capturar uma essência imaterial. A
alegoria, como mostrou Benjamin, desconstrói essa identidade
imediata, denunciando o caráter histórico das atribuições de
sentido. O potencial crítico da interpretação e da representação
alegórica foi explorado pelo Tropicalismo através de um
procedimento de manipulação, análogo àquele apontado por
Bürguer em relação à obra de arte vanguardista. A montagem é
o procedimento padrão neste caso, onde o choque resultante
da justaposição de elementos heterogêneos relativiza o seu
significado original. Neste ponto, algumas questões a respeito
da obra de arte na era da reprodutibilidade técnica vêm à tona.
Os tropicalistas utilizaram-se de recursos técnicos para
potencializar o efeito crítico de suas construções alegóricas. Em
sintonia com as técnicas de manipulação sonora, no intuito de
gerar novas sonoridades e amplificar o estranhamento do
ouvinte. Aqui, outro elemento apontado por Benjamin se soma
à questão do procedimento alegórico, o efeito do choque.
Inicialmente identificado com as montagens cinematográficas,
foi visto pelo filósofo alemão como potencialmente
revolucionário. O apelo tátil da tela de cinema, a apreensão
coletiva da obra e o caráter fragmentado da linguagem teriam o
potencial de atingir as massas de forma diferenciada,
Montagem da forma

rompendo com os hábitos tradicionais da apreciação artística.


Tal como mostramos, a música popular na década de sessenta
flertou com técnicas de manipulação do som similares aquelas
empregadas pelo cinema, abrindo um novo campo de
exploração expressiva. No contexto da arte brasileira da década
de sessenta, vimos como Helio Oiticica também articulava
novas formas expressivas, que apelavam para a experiência
sensorial e atribuíam ao expectador certo protagonismo. O
Tropicalismo, alegorizando as imagens-ruína do imaginário
nacional e utilizando-se dos novos recursos tecnológicos de
manipulação sonora, assim como dos meios disponibilizados
pelos canais de massa, buscava uma convergência entre crítica
estética e crítica social de alcance amplo, sem filiação a
nenhuma vertente ideológica específica e que rompesse com os
resguardos dentro da música popular brasileira.

Referências bibliográficas
215
BENJAMIN, W. Origem do drama barroco alemão. Trad., apres. e notas
S. P. Rouanet. São Paulo: 1984.
BÜRGER, P. Teoria da Vanguarda. Trad. J. P. Antunes; São Paulo: Cosac
Naify, 2008.
GAGNEBIN, J.-M. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo:
Perspectiva, 1999.
HOLANDA, H. B. de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde:
1960-70. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
MOLINA, S. A composição de música popular cantada: a construção de
sonoridades e a montagem dos álbuns no pós-década de 1960. Tese de
Doutorado. Escola de Comunicação e Artes. Universidade de São Paulo,
2014.
VASCONCELLOS, G. Música Popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro:
Graal, 1997.
XAVIER, I. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense,
1993.
Paralelos entre música, antropologia e história

JOSÉ CALIXTO K. COHON

reflexão sobre o conceito de paralelo pode parecer


A imediata, afinal trata de duas linhas retas que nunca se
tocam. Mas vejamos outras figurações do paralelo: linhas que
se inserem em uma perspectiva e lá se encontram como em um
ponto; linhas estas que não são necessariamente retas e podem
ser diferentes uma da outra, contanto que certo sentido seja
mantido e nunca se toquem; repetição de linhas lado a lado
criando um campo; séries repetidas; intervalos em sequência;
gestos simultâneos; ideias paralelas.

1. Imagens de José Calixto, 2015

Não é a toa que uma pesquisa em torno do tema leva


aos mais distintos campos do saber, por exemplo: na gramática,
onde a repetição de um modo de conjugação verbal deve ser
seguida, como por exemplo, falta de paralelismo: Ele vive
comendo, bebendo e dorme. E um exemplo com paralelismo:
Ele vive comendo, bebendo e dormindo. Da gramática à
retórica, onde o exemplo se faz ver aqui no próprio escrever,
onde o a repetição paralela de termos leva à ênfase de sentido;
da retórica aos negócios, existe o conceito de paralelismo
consciente, onde empresas se associam criminosamente e
manipulam os preços conjuntamente; da economia à evolução,
o paralelismo evolutivo, quando duas linhagens diferentes que
Paralelos entre música, antropologia e história

não se cruzam descendem de um mesmo antecessor, ou o


próprio modo como as linhagens repetem padrões em
sequência; da evolução à tecnologia, o paralelismo na
computação que baseia toda a computação moderna, na
medida em que ele consegue conduzir diversas ações e cálculos
em paralelo, simultaneamente; da tecnologia ao espirito, a
teoria cristã sempre buscou estabelecer a relação paralela
entre corpo e alma, como em Leibniz com sua Monadologia,
onde uma unidade singular se reflete e se desdobra em todo o
universo de maneira paralela entre os mundos possíveis; da
metafísica à música é só mais um passo. E na música, por sua
vez, podemos encontrar diversos exemplos de paralelismo.
O paralelismo mais básico da música é o cantar junto
em uníssono. Duas vozes distintas que caminham
paralelamente, duas fontes sonoras projetando o som em
paralelo. Existem milhares de exemplos de cantos feitos em
uníssono e oitava. Se nos adentrarmos em análises
etnomusicológicas reconheceríamos em diversas 217
manifestações musicais do mundo a presença de paralelismo.
Para citar alguns exemplos temos aqui canções indígenas
coletadas pelo projeto “A Música das Cachoeiras”1. A faixa
“Instrumentos aerófonos do Alto do Rio Negro” apresenta
alguns exemplos de paralelismo. O primeiro exemplo da faixa
onde uma flauta soa uma melodia cíclica e em paralelo um
entoar-cantar-falado-recitado; o segundo exemplo da faixa
onde uma flauta de série harmônica entoa uma melodia e que
se sobrepõe na sequência a um pulso marcado com chocalhos;
e o terceiro exemplo com uma poliritmia entre dois “trombones
harmônicos” com certo paralelismo entre si e estes em paralelo
com o chocalho. Também podemos lembrar-nos dos cantos
polifônicos dos Pigmeus AKA onde é possível reconhecer ciclos
de frases repedindo-se enquanto outras vão entrando em
paralelo acrescentando camadas mais ou menos heterogêneas
formando um tecido poliritmico. Essa simultaneidade é a base
do paralelismo em música. Ela nos liga de maneira anímica a
dimensão da alteridade, tornando o outro que canta em
paralelo a mim, um outro eu. Esta zona de indistinção do
sujeito estabelece também um paralelo entre dois planos, um

1
http://www.musicadascachoeiras.com.br/
FRONTEIRAS DA MÚSICA

externo ao tempo do acontecimento musical e outro dentro do


acontecimento musical. Daí a música de rito ser repleta de
paralelismo. Ela duplica o mundo em um duplo, em uma dobra
universal, onde todos se integram num campo de paralelas com
uma perspectiva comum e abstrata.
Na história da música é possível encontrar muitas
formas e tipos de paralelismo. Nas poéticas e escritas antigas os
exemplos são muitos, mas ficam quase totalmente paralelos ao
pensamento literário. Aqui nos focaremos no paralelismo
estritamente musical. É certo que o homem harmoniza e cria
paralelismo de maneira oral, mas para fins de análise vale ir de
encontro com ao nascimento da escrita musical. A voz
organalis, que origina o organum, surge como a capacidade de
sobrepor vozes distintas de maneira organizada. O intervalo de
quinta e oitava, intervalos que ressoam paralelamente no
espectro da ampla maioria dos sons de altura definida, foram
os primeiros a serem registrados enquanto prática escrita,
218 muitas vezes apenas pressuposto, apenas realizado na
execução. Um exemplo fortuito é o da Musica Enchiriadis - Rex
Caeli Domine do século IX, anônima:

2. Rex Caeli Domine (TARUSKIN, 2005, p. 79)

O modo de notação deste canto é chamado de Daseian,


inspirado na notação grega que fazia referência ao conceito de
“canto áspero”, rough breathing, um sistema de entoação das
Paralelos entre música, antropologia e história

palavras gregas que anotavam símbolos sobre as letras para


indicar modulações. Aqui nós vemos quase um gráfico
cartesiano de distribuição espacial do campo de tessitura. As
linhas paralelas contemplam formações derivadas de
hexacordes. Abaixo a transcrição citada por Taruskin, na sua
História da Música Ocidental (vol. 1, p. 79) da editora Oxford:

3. Transcrição de Rex Caeli Domine (TARUSKIN, 2005, p. 79)

Essa peça pode ser considerada como um exercício de 219


paralelismo. Partindo do uníssono a voz superior canta a
melodia original do Rex Caeli, enquanto a inferior realiza o
organum. Quartas paralelas são usadas em abundância e
movimento, em contraposição ao uníssono inicial e final.
A técnica de paralelismo se ampliou e outro caso
relevante é o fabordão, ou fauxbourden. O fabordão é
basicamente uma prática oral de cantar uma voz abaixo da voz
principal em movimento paralelo. Ela era usada como
ornamentação de melodias em canto conjunto e muitas vezes
improvisada. Não é a toa que há extensa bibliografia e sempre
repleta de indefinições a respeito desta prática. Por volta de
1300 ela começa a aparecer notada:

Com o desenvolvimento da escrita próxima dos moldes


estandardizados em nossa história, o cânone e a imitação em
paralelo, surgem como o grande avanço no domínio da
manipulação das alturas no sistema ocidental. Após o apogeu
FRONTEIRAS DA MÚSICA

do paralelismo no fim do medievo para a renascença, o


paralelismo seria relegado na música a certa pobreza
composicional. O tonalismo buscava atenuar seus paralelismo
em terças e sextas, afastando as oitavas, quintas e quartas
paralelas. No tonalismo as vozes caminham ligadas uma nas
outras, se tocando a todo momento. O domínio do paralelo
passa à forma geral no clássico ABA. Vai ser no seu limiar da
superação do sistema tonal, naquele último Beethoven, que a
dimensão do timbre do paralelismo será recuperada ainda de
maneira rudimentar. Mas é na aurora do século XX que o
paralelismo ressurge como imensa força composicional.
Primeiramente vale lembrar de Debussy que
certamente se inspira no paralelismo da música de Gamelão
usando de escalas de tons-inteiros, pentatônicas, para produzir
harmonias que escapam à sensação funcional tonal. É comum o
uso da suspensão da sonoridade de acordes meio-diminutos
(3b 5b 7b) encadeados paralelamente, criando uma espécie de
220 plano de paralelo, reproduzindo o domínio espacial no seio da
temporalidade musical. Um exemplo clássico deste interesse de
Debussy se manifesta em seu preludio do primeiro livro La
cathédrale engloutie.

4. Debussy, La Cathédrale engloutie, (Schirmer's Library of Musical


Classics, 1990)

Neste exemplo vamos o uso de quartas paralelas


idênticas que parecem representar a dimensão interna de uma
catedral submersa. Essa espécie de timbre gerado na
gestualidade da peça nos lembra imediatamente a sequência de
registros de uma catedral em diversos momentos do dia feito
por Monet da catedral de Rouen, uma espécie de pintura
paralela.
Paralelos entre música, antropologia e história

5. Monet, Catedral de Notre-Dame de Rouen, 1890

Messiaen possui muitos exemplos de paralelismo


diretamente como regressões e manifestações do espírito 221
religioso. O paralelismo retomado como ressoar do mito. Neste
sentido Stravinsky também se expressa em regressões ao
passado. Sacre é o exemplo, mas é simbólico o paralelismo de
Petruska. Dialeticamente, Petruska, usando um recurso arcaico,
marca a abertura do mundo que vivemos hoje: a praça de feira,
com seu paralelismo de multi-músicas, soando em simultâneo –
paisagem retratada também por Ives e Mahler.
Por fim, se aproximando de nosso tempo, vale lembrar
o paralelismo de Ligeti. Poderíamos elencar vários exemplos
em sua música ricercata, mas é nos estudos de piano que
podemos ver a ideia de paralelismo se manifestando de
maneira mais singular. Ligeti, buscando estabelecer uma
espécie de ilusão rítmica, claramente identificável em
Continuum e Monument, na qual o compositor sobrepõe séries
rítmicas diferentes que produzem uma textura polirítmica
terceira assimétrica. Alguns anos depois destas peças ele
descobre a música da África central e a música de Nancarrow.
Na música africana é claro o estabelecimento de paralelismo:
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Um tipo diferente de ambiguidade métrica se manifesta na


música africana. Aqui não há compassos como em sentido
europeu, mas sim um evento rítmico formado por dois
níveis: um nível básico formado de uma série de pulsações
iguais e rápidas que não são contadas como tais, mas bem
sentidas, e um nível superior que consiste em modelos
simétricos – fundados sobre um numero de tempos inteiros e
pares -, mas cuja a articulação rítmica resulta da justaposição
de durações divergentes e que mesmo assim são todas
múltiplas do valor mais curto, o que da lugar a uma estrutura
interna assimétrica.” (Ligeti , 1988)

É estabelecendo níveis que se relacionam, mas correm


em paralelo e em acentuações que se desencontram que Ligeti
consegue inovar de maneira profunda a rítmica moderna. Isso é
facilmente notável em seu estudo para piano n.1 Désordre,
aonde o deslocamento tempo de colcheia em colcheia de uma
mão em relação a outra vai gerando um efeito de desordem de
222 acentuação crescente.
No início do segundo sistema já é possível identificar a
defasagem entre a acentuação de uma mão e outra que gerará a
ilusão de desordem. Nota-se na armadura de clave outro tipo
de idéia de paralelismo: a divisão da mão direita nas teclas
brancas e da esquerda nas pretas, o que cria dois campos
harmônicos que não se tocam caminhando lado a lado.
Paralelos entre música, antropologia e história

6. Ligeti, Études pour piano (1986)(Schott Musik International) 223

Por fim, a ideia de paralelo na música mostrou grande


fortuna e interesse. Valeria se debruçar ainda mais sobre as
consequências expressivas de seu uso e coletar materiais ainda
mais variados de sua aplicação.

Referências bibliográficas
TARUSKIN, R. The Oxford History of Western Music: 5 vols. Oxford;
Oxford University Press, 2005.
LIGETI, G. Mes études pour piano (premier livre): polyrythmie et
création. In : Analyse Musicale, Paris, S.F.A.M., Avril 1988, n.11, pp. 44-
45.
Em torno do inconsciente musical: uma leitura
cruzada de Schoenberg e Rancière

IGOR BAGGIO

m seu pequeno livro de 2001, O inconsciente estético, o


E filósofo francês Jacques Rancière mostrou como
podemos localizar no âmbito da literatura, das obras literárias
e das obras de arte em geral, bem como no âmbito da reflexão
filosófica sobre a arte, isto é, no discurso da Estética, uma
formulação precisa e insistente de uma noção de inconsciente
que não apenas anteciparia o conceito psicanalítico homônimo
em Freud, como, acima de tudo, o prefiguraria concretamente,
tornando-se assim uma fonte de revelação maior do fenômeno
visado pela psicanálise. Como deixa muito claro o filósofo
desde o início de seu livro, com a demonstração de um
inconsciente especificamente estético não se trata
simplesmente de aplicar o conceito freudiano à interpretação
das obras de arte e a seus criadores ou mesmo aos conceitos da
Estética, mas apenas de seguir os rastros na arte dos:

(...) testemunhos da existência de certa relação do


pensamento com o não-pensamento, de certa presença do
pensamento na materialidade sensível, do involuntário no
pensamento consciente e do sentido do insignificante
(RANCIÈRE, 2009, p. 10-11).

Ademais, em sua formulação da noção de inconsciente


estético trata-se para o filósofo francês de assumir uma:

(...) ancoragem da teoria freudiana nessa configuração já


existente do “pensamento inconsciente”, nessa ideia da
relação do pensamento e do não-pensamento que se formou
e desenvolveu de modo predominante no terreno do que se
chama estética(RANCIÈRE, 2009, p. 11).
Em torno do inconsciente musical

Rancière possui uma maneira determinada de situar


historicamente a emergência de um regime propriamente
estético das artes na modernidade, uma maneira que nos deixa
bastante claro o porquê de sua concepção da arte moderna e do
discurso estético reservar à noção de inconsciente um lugar de
destaque. Segundo o filósofo, as artes e o discurso da Estética
passam a figurar a relação entre o pensamento e o não
pensamento, e, portanto, entre o consciente e o inconsciente a
partir do momento em que a época clássica, ciosa do
mecanismo especular da representação do real, passa a ceder
espaço ao mergulho na interioridade do sujeito e na
consubstanciação deste com os impulsos afetivos. Nesse
sentido, a passagem do classicismo ao romantismo artístico e à
filosofia idealista alemã é compreendida por Rancière como
uma deposição de um marco estético calcado na representação
intelectualista do real por outro fundado no reconhecimento de
uma certa lógica imanente aos próprios afetos e paixões. Essa
passagem marca para Rancière o advento do que ele chama de
“revolução estética”. 225
Trata-se, em última análise, da superação de uma
submissão do horizonte das ações e suas motivações afetivas
ao horizonte do pensamento, que determinava o regime
representativo, em direção à afirmação do enraizamento do
pensamento no âmbito do pathos e de sua indissociabilidade
com a ação. O advento dessa revolução estética teria na
formulação kantiana do gênio um ponto alto:

O gênio kantiano resume essa dualidade [entre ação e


pensamento]. Ele é o poder ativo da natureza que opõe sua
potência a qualquer modelo, a qualquer norma, ou melhor,
que se faz norma. Mas, ao mesmo tempo, ele é aquele que não
sabe o que faz, que é incapaz de prestar contas. No regime
estético, essa identidade de um saber e de um não-saber, de
um agir e de um padecer, que radicaliza em identidade de
contrários a “claridade confusa” de Baumgarten, constitui-se
no próprio modo de ser da arte (RANCIÈRE, 2009, p. 27).

Dado que o objetivo central do livro de Rancière pode


ser visto como explicitar a estreita relação desse inconsciente
FORNTEIRAS DA MÚSICA

estético com o inconsciente psicanalítico freudiano, as obras de


arte sobre as quais a reflexão do filósofo acaba se detendo ao
longo do livro são aquelas mesmas referidas por Freud em seus
ditos “escritos sobre arte”. Nosso propósito aqui, após nos
utilizarmos das formulações de Rancière como introdução, será
distinto. Gostaríamos apenas de mostrar como o caso de
Schoenberg, mais especificamente como certa filosofia da
composição que comparece em meio ao seu Tratado de
Harmonia constitui mais um caso exemplar daquilo que
Rancière analisou sob a rubrica de inconsciente estético.
Portanto, não haverá em nossa exposição nenhuma tentativa de
relacionar o pensamento composicional de Schoenberg com a
psicanálise, mas sim com o que acabamos de dizer brevemente
a respeito do regime estético da arte fundado na relação do
pensamento com o não-pensamento. Para tanto, precisaremos
nos valer de uma brevíssima reconstrução dos passos
fundamentais de tal filosofia da composição em Schoenberg.

226 Ao nos referirmos a uma filosofia da composição


entremeada ao pretenso discurso didático do Tratado de
Hamornia, temos em mente aquelas diversas passagens do
livro que se aventuram em especulações sobre o processo
criativo composicional, especulações essas que Schoenberg
escreve essencialmente sob a influência de duas fontes, a
metafísica da arte de Schopenhauer e o ideário expressionista
calcado sobre o imperativo maior da expressão pura da
interioridade, com efeito, cabe lembrar, duas fontes que
também são costumeiramente elencadas como precursoras ou
paralelas à elaboração do inconsciente freudiano. Será em
torno dessas passagens, portanto, que poderemos detectar em
Schoenberg um exemplo típico do regime estético da arte
centrado no jogo do inconsciente estético nos termos de
Rancière.
Um dos aspectos fundamentais para um bom
entendimento do projeto maior do Tratado de Harmonia de
Schoenberg diz respeito à crítica que o compositor faz à função
representada pelos juízos estéticos no interior das teorias
tradicionais da harmonia. Ou seja, segundo Schoenberg, os
conceitos harmônicos fundamentais de consonância e
dissonância, que a princípio deveriam ser apreciados
teoricamente apenas a partir de uma descrição sistemática das
Em torno do inconsciente musical

relações sonoras naturais, passam, nas teorias tradicionais a


ser pensados implicitamente como dicotomias estéticas
carregadas de valor subjetivo. De conceitos teóricos,
consonância e dissonância passam então a significarem valores
estéticos opostos. Será em larga medida contra isso que
Schoenberg irá divisar seu ideal de apresentação da harmonia
não como um sistema de explicação teórico da natureza do som,
mas como uma exposição artística (prática) do material básico
da música tonal e de suas potencialidades construtivas.
Contudo, e essa é uma peculiaridade extremamente
significativa, ao retirar o estudo da harmonia do âmbito de uma
determinação teórico-sistemática da natureza do som
Schoenberg não abre mão totalmente da base pretensamente
objetiva daquelas teorias tradicionais precedentes que visa
criticar: a série harmônica. Não obstante, o estatuto desta passa
a ser largamente relativizado em seu tratado, o que não impede
Schoenberg de ainda reservar a mesma um papel importante
em suas especulações sobre o processo criativo.
227
Para Schoenberg, a Harmonia é um ramo do ensino da
composição musical e não uma matéria meramente teórica, e
tendo isso em vista, o estatuto da serie harmônica em seu livro
passa de fundamento natural das tentativas de descrição
sistemática do som e da harmonia para substrato material da
percepção dos compositores. Uma grande diferença que nem
sempre é ressaltada adequadamente. Disso decorre que as
tentativas em se fundar uma teoria sistemática da harmonia
sobre a estrutura acústica da serie harmônica passam a dar
lugar em seu tratado a uma reflexão sobre as possibilidades de
exploração artística dos meios musicais fornecidos pela
mesma. Provém daí o sentido de afirmações como as seguintes
em relação ao papel da série harmônica para Schoenberg: “O
realmente importante é basear-se em pressupostos que, sem
pretenderem serem leis naturais, satisfaçam nossa necessidade
formal de sentido e coerência” (SCHOENBERG, 1999, p. 57).
Bem entendida, essa passagem do ponto de vista dos
teóricos e dos sistemas para o ponto de vista da atividade
criativa marca, no interior do discurso do Tratado de Harmonia,
a passagem de uma posição que pretende situar os
fundamentos da harmonia exclusivamente no âmbito da
natureza e na relação não problematizada de mútua adequação
FORNTEIRAS DA MÚSICA

entre os pretensos dados naturais e a estrutura perceptiva e


representativa dos sujeitos, para outra que salientará a relação
problemática entre natureza e história como constituindo o
fator determinante. Ou seja, temos aqui já um primeiro indício
de uma passagem do âmbito de um regime teórico-
representativo para outro propriamente estético em termos
muito semelhantes aos destacados por Rancière.
Schoenberg acusa as teorias tradicionais da harmonia
de subjetivismo, devido ao fato de que nenhuma experiência
empírica do som nos obriga a admitir que o material sonoro da
música traga inscrito em si mesmo a exigência teórica de
sistematização. O principal problema desse subjetivismo
representativo das teorizações sobre o material harmônico da
música para Schoenberg será sua visão limitada a respeito das
sonoridades harmônicas ditas dissonantes, que ao serem
encaradas sempre desse ponto de vista, que tinha por objetivo
remetê-las à natureza do som pretensamente descrita pela
228 série harmônica, um ponto de vista que acabava sempre por
falhar, resultava necessariamente na submissão teórica e
estética das dissonâncias às resoluções consonantes.
Contra essa submissão, Schoenberg mobiliza um
enfoque empírico composicional do material musical, um
enfoque que fornece uma outra ideia acerca da “natureza” das
dissonâncias. De início, dirá Schoenberg, provavelmente as
dissonâncias teriam ocorrido na prática casualmente, como
notas de passagem, por exemplo como um ornamento em uma
melodia executada sobre um acorde maior. Depois,
provavelmente tencionou-se anotar esse fenômeno, o que
possibilitaria a repetição do mesmo efeito sempre que
desejado, e não mais como uma ocorrência casual. Através
dessa passagem da ocorrência casual das dissonâncias para seu
manejo possibilitado pela escrita é que Schoenberg situa um
impulso decisivo em direção ao estabelecimento de uma
explicação sistemática do material pelas teorias harmônicas:
“Posto frente ao dilema de escolher entre a repetição e a
renovação das sensações, o espírito humano decidiu-se,
também aqui, pelo agarrar-como-posse [Besitzergreifen]: e
fundou um sistema (SCHOENBERG, 1999, p. 94-5).”
Em torno do inconsciente musical

Pode-se entender, portanto, em que sentido os


pressupostos fundamentais da compreensão do material
musical relevada pelas teorias sistemáticas da harmonia tonal
seguiam um regime claro de representação subjetiva e em que
medida o mesmo encontrava-se divorciado da prática real da
composição musical para Schoenberg.
Dito isso, a questão fundamental para os compositores
no início do século XX deveria ser a seguinte no entender de
Schoenberg: o que seria uma dissonância, para além da imagem
limitada que nos é dela fornecida pelas teorias tradicionais da
harmonia? O que seria uma dissonância na prática? Ora, do
ponto de vista que encara a série harmônica como base
material para a percepção e formalização artística do som, mas
não necessariamente como sentido último da natureza do som,
Schoenberg oferece argumentos para a expansão da visão
tradicional sobre a distinção entre consonâncias e dissonâncias
sobre a qual repousavam as tradicionais teorias harmônicas.
Isso é feito em seu tratado através de considerações amplas 229
sobre a natureza do processo criativo em música e será a partir
desse ponto de seu argumento que o papel de um inconsciente
musical, que faz lembrar em muito os contornos do
inconsciente estético de Rancière passa a comparecer em seu
discurso. O mais notável, contudo, é que dado o caráter não
representativo da própria música, Schoenberg não precisa
abdicar totalmente da noção de imitação para articular sua
versão propriamente estética da relação entre o pensamento e
o não-pensamento em música.
Para a concepção presente no Tratado de Harmonia, a
evolução da criação artística e da arte em geral consistiria no
caminho que leva da imitação do exterior à imitação da
natureza interna do próprio material, caminho que coincidiria
necessariamente com o aprofundamento da expressão dos
impulsos inconscientes do sujeito. No que compete à música,
segundo Schoenberg, a natureza exterior do som, sua aparência
sensível mais imediata nos é dada pelos primeiros harmônicos,
que compreendem o substrato material da música tonal.
Contudo, os harmônicos superiores, apesar de estarem mais
“escondidos” à percepção humana, sempre teriam fornecido à
FORNTEIRAS DA MÚSICA

percepção inconsciente dos compositores o fundamento das


distinções timbrísticas. 1 Assumindo a hipótese de que todos os
aspectos que compreendem o processo da composição musical
no fundo podem ser entendidos como uma tentativa de sempre
produzir imitações e apresentações cada vez mais completas
do espectro sonoro, Schoenberg argumentará que à admissão
dos harmônicos superiores como alturas reais em uma obra
(em uma peça atonal) corresponde à percepção de que, do
ponto de vista do objeto, o som, a distinção entre consonâncias
e dissonâncias nada mais é do que uma que diz respeito a
diferenças de grau, e não de essência; uma distinção que
repousa, portanto, sobre o maior ou menor grau de penetração
na materialidade do som impulsionada pela capacidade
perceptiva e pela ação criativa dos sujeitos.
Nessa passagem do ponto de vista meramente
subjetivo, que se atém à ilusão da explicação representativa e
teórico-sistemática da harmonia com a ajuda das valorações
230 estéticas sobre as consonâncias e dissonâncias, para aquele da
relação dos sujeitos com o material na prática real da
composição desponta o papel ocupado pelo conceito de gênio
na reflexão schoenberguiana. O compositor genial e não o
teórico é quem pode nos levar a conhecer o interior profundo, a
porção inconsciente do material musical ao nos fornecer obras
que almejam a veracidade [Wahrhaftigkeit] de sua essência. O
nome dado a essa modalidade de relacionamento do gênio com
a essência da natureza do som por Schoenberg é o sentimento
da forma [Formgefühl], noção esta cuja melhor formulação nos
é fornecida quando o compositor se refere a seu próprio
processo criativo junto ao material no limiar da tonalidade:

1 SCHOENBERG, 1999, p. 58. “Os harmônicos mais distantes são


registrados pelo subconsciente e, quando afloram à consciência, são
analisados e relacionados ao complexo sonoro total.” Apesar de
utilizar o termo subconsciente nessa passagem, em outros momentos
em que é questão o mesmo fenômeno descrito aqui Schoenberg se
refere ao mesmo objeto com o termo inconsciente. Como o restante do
argumento do compositor deixa claro, essa inconsistência
terminológica teria origem no próprio fenômeno, como pretendemos
que fique claro ao final desse texto.
Em torno do inconsciente musical

Ao compor, decido-me somente através do sentimento, por


meio do sentimento da forma. Este me diz o que devo
escrever, e tudo o mais fica excluído. Cada acorde que
estabeleço corresponde a uma obrigação, a uma coação de
minha necessidade expressiva; mas também, talvez, à
constrição de uma lógica inexorável, ainda que inconsciente,
da construção harmônica. Tenho a sólida convicção de que
essa lógica existe também aqui, ao menos na medida em que
existia nos terrenos da harmonia outrora cultivados. Como
prova disso, posso alegar o fato de que a correção da ideia
repentina [Einfall] por escrúpulos formais externos, correção
à qual se inclina frequentemente a consciência desperta, na
maioria das vezes corrompe a ideia. Para mim, isto prova que
a ideia já era uma necessidade, que as harmonias ali
estabelecidas são partes integrantes da vida, onde nada se
pode modificar (SCHOENBERG, 1999, p. 574).

A imbricação do pensamento com o não-pensamento


que Rancière situa no centro de suas reflexões sobre o
inconsciente estético e sobre o regime estético da arte
231
encontram nessas formulações de Schoenberg sobre o processo
criativo guiado pelo sentimento da forma uma confirmação
exemplar. Implícito nessa concepção schoenberguiana do
gênio, que concebe a composição musical como um processo de
conhecimento e de expressão do som e da interioridade
profunda do sujeito através de seu sentimento da forma está a
ideia de que a natureza segue em seu desvelamento para o
sujeito alguma medida de razão e de necessidade que, do ponto
de vista do sujeito do gênio, corresponde a sua necessidade
inconsciente de expressão. Ou seja, aquilo que é tomado como
natureza se manifesta no gênio como criação inconsciente. O
senso formal ou sentimento da forma corresponderiam,
portanto, à coincidência do racional na natureza com o natural,
não conhecido ou inconsciente no sujeito, correspondência esta
que engendraria a ideia inspirada [Einfall]. O fato de esta, por
sua vez, não ser comumente passível de melhoramentos por
parte do uso consciente do entendimento, como alega
Schoenberg, daria mostras de que a criação a partir do
sentimento da forma estaria pautada pela lógica da própria
natureza do som, sua essência oculta, que transcende a
FORNTEIRAS DA MÚSICA

capacidade de representação parcial fornecida pelas teorias da


música tonal e pela própria música tradicional.
Mas isso não significa que a criação a partir do
sentimento da forma deva ser entendida como algo restrito à
composição no âmbito da música que visa romper com os
limites da tonalidade. Fica claro que no entender de
Schoenberg todo grande compositor da tradição o possuía.
Decorre disso que o próprio processo histórico de
conhecimento e expressão do material sonoro pela composição
musical seria impulsionado pelo sentimento da forma dos
compositores. Mais do que isso, Schoenberg afirmará que essa
tentativa sempre renovada do sujeito em aproximar sua
percepção ao substrato “natural” do som é o que fornece a cada
época seu senso formal característico. Portanto, ao fim e ao
cabo, o processo de desvelamento do substrato material que se
pretendia natural do som acaba por descrever os contornos
gerais de uma história da composição musical e de um material
232 que poderíamos qualificar, como o fará mais tarde Adorno,
como história natural. Uma história e um material estético que
não deixa de cumprir um papel tão importante ao longo do
regime estético da arte na modernidade quanto às obras
literárias com respeito às quais Rancière elaborara sua noção
do inconsciente estético.

Referencias bibliográficas
ADORNO, T.. La idea de historia natural. In: Obra completa 1. [s.t].
Madrid: Akal, 2010.
____. Philosophie der neuen Musik. Frankfurt: Suhrkamp, 1978.
RANCIÈRE, J. Aisthesis: escenas del régimen estético del arte. Trad. H.
Pons. Buenos Aires: Manantial, 2013.
____. O inconsciente estético. Trad. M. Costa Netto. São Paulo: Editora
34, 2009.
SCHOENBERG, A.. Tratado de Harmonia. Trad. M. Maluf. São Paulo:
Unesp, 1999.
A estética hanslickiana no cinema

JALVER MACHADO BETHÔNICO


RAFAEL SODRÉ DE CASTRO

música pode ser considerada como um dos fundamentos


A do drama grego (CARRASCO, 2003, p. 33-34) e a
essência da tragédia nos seus primórdios (NIETZSCHE, 1992, p.
90), antes do desenvolvimento da ação dialogada, na qual
música e texto logram independência através da especialização
de cada uma das partes. Pode-se dizer que um dos principais
papéis desempenhados pela música no drama grego até então
era potencializar o páthos1 do texto através de declamações
melódicas, servindo de elo afetivo entre as representações e o
espectador. No drama antigo, a ligação do drama com a música
é tratada por um viés sofisticado: longe de figurar com a mera
finalidade de descrever, redundar ou ilustrar, o que move a
música aqui é uma força criadora de mitos que visa algo de
caráter eminentemente sugestivo que está além da
representação das aparências, ampliando o espaço imaginativo
a partir da torrente dionisíaca musical sobre o mundo
imagético apolíneo.
Dessa maneira, a música não buscava valorizar a
aparência da representação, mas era ela mesma o impulso
interno que alimentava a fantasia e exigia do homem sua
máxima capacidade simbólica (NIETZSCHE, 1992, p. 34-35,
101, 105-108). Mesmo em um momento posterior, após a
separação entre música e dramaturgia oriunda da
especialização e autonomia de ambas as partes, esses dois

1Esta palavra grega que designa, entre outras coisas, emoção, é referida
em Retórica como método de convencimento destinado a exaltar as
emoções do público. Ainda que o vocábulo pudesse ser substituído
neste texto por afeto (derivado do correspondente latino affectus),
optou-se por manter a palavra original como forma de preservar toda
a abrangência e carga histórica presentes na mesma.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

elementos que antes foram indissociáveis ainda conservavam a


característica mimética que possuíam no teatro grego. Esse
atributo se manifesta tanto em peças de naturezas apenas
musical e apenas dramática quanto em obras que combinam os
dois elementos (CARRASCO, 2003, p. 34).
Assim, a música foi predominantemente vista ao longo
da história como um meio de enfatizar algum aspecto narrativo
ou dramático, sendo a expressão musical frequentemente
conformada à representação ou à efusão de sentimentos. A
música, quase sempre ligada ao texto, seria considerada em
vista dos sentimentos que ela seria capaz de provocar e do seu
poder de representação, deixando as articulações puras2 dos
sons musicais em um segundo plano.
Esse papel secundário normalmente ofertado à música
em sua ligação com outros elementos fez com que a música
fosse vista como algo menor, subordinado a outras expressões,
de forma que o significado da música era lastreado no texto -
234 seja letra, título ou outra referência externa - ou relacionado às
inflexões das palavras do canto. Em meados do século XVIII
tanto ocorre a ascensão da música instrumental, quanto a
música deixa de ser um ofício e assume um lugar entre as artes.
No Romantismo, a expressão de aspectos figurativos,
narrativos e miméticos através da música ganha novo fôlego e
não são raras as composições instrumentais denominadas
programáticas, cujo intento era oferecer aos ouvintes uma
narração de um evento ou uma descrição de algum fenômeno.
A disputa que envolvia a música de programa ocorreu entre os
séculos XVIII e XX com argumentos que se modificaram com o
tempo, apoiados em razões que também se alteraram com o
passar dos anos (DAHLHAUS, 1999, p. 126). No final do século
XVIII, a ideia de uma música que representasse uma cena foi
rejeitada ou pelo menos reprimida em detrimento da música
ligada ao sentimento (DAHLHAUS, 1999). Assim, ainda que a
ideia de música enquanto elemento retórico tenha persistido
no século XIX, esta visão somou-se então à influência crescente

2
Que se relacionam apenas por suas características sonoras, sem
qualquer tipo de intertextualidade.
A estética hanslickiana no cinema

da Estética, disciplina que almejava uma avaliação mais precisa


sobre o objeto belo na busca de parâmetros de avaliação para
as obras de arte (DAMMAN apud LUCAS, 2010, p. 1).
A publicação em 1819 de O mundo como vontade e
representação, do filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860)
representa um grande passo em direção à construção de uma
filosofia da música. Ainda que esta obra seja em essência uma
teoria geral sobre tudo, a visão de Schopenhauer sobre tópicos
específicos - em especial a sua visão da música perante às
outras artes - apontou um novo caminho estético no qual a
música seria, então, protagonista entre as artes românticas
(KIVY, 2002, p. 20-21).
A teoria de Schopenhauer considera as artes enquanto
cópias de ideias. A música, no entanto, é chamada por
Schopenhauer algumas vezes de “cópia direta” da vontade
(KIVY, 2002, p. 21), e denota um reflexo ou representação da
própria vontade cósmica. Ela é “a có pia de um modelo que ele
mesmo nunca pode ser trazido à representaçã o” 235
(SCHOPENHAEUR, 2005, p. 338). Essa concepção eleva o status
da música e a coloca em uma posição acima de todas as outras
artes (KIVY, 2002, p. 21). Dessa maneira, a música instrumental
pura deixa de figurar como mera arte agradável, que apenas
apraz os sentidos, e se transforma em uma arte profundamente
significante (KIVY, 2002, p. 22).

A estética de Hanslick
Se a teoria de Schopenhauer trouxe a primeira
transformação na relação entre música e emoções do século
XIX, a segunda apareceu com a figura de Eduard Hanslick
(1825-1904) (KIVY, 2002), crítico musical defensor da “música
absoluta3” - ou “música pura” - termos utilizados em oposição à

3 O musicólogo Carl Dahlhaus (DAHLHAUS, 1999) faz um rico


apanhado acerca da ideia de música absoluta e uma ferrenha crítica à
estética defendida por Hanslick, apontando inconsistências e
comparando o seu formalismo a ideias dos neo-alemães acerca do
“espírito na música". Um dos pontos assinalados pelo autor trata de
trechos que existiram apenas na primeira edição do livro Do Belo
FRONTEIRAS DA MÚSICA

”música de programa” para designar a música instrumental que


tinha como objetivo a expressão musical sem outra referência
narrativa ou descritiva. As convicções estéticas Hanslick (1825-
1904), rompem com o pensamento corrente da estética do
sentimento e defendem a música enquanto uma arte autônoma,
cujo ideal de beleza deveria estar presente única e
exclusivamente no próprio material musical e não nos efeitos
causados aos ouvintes. Dessa forma, Hanslick desvincula a
música de qualquer parâmetro dramático e se vale
estritamente de parâmetros musicais, relacionados apenas à
combinação artística dos sons, para valorar o seu objeto. No
ensaio “Do Belo Musical”, publicado pela primeira vez em 1854,
Hanslick elabora duas proposições, sendo a primeira negativa e
a segunda positiva:
1- Não há emoção literal ligada à música;
2- A beleza na música consiste na combinação artística dos
elementos musicais.
236
Dessa maneira, uma música que buscasse ser
valorizada enquanto música deveria centrar-se nos seus
próprios materiais sonoros e não na intenção de representar
ou despertar emoções. Não se deve, para Hanslick, valorar a
música pelas emoções que desperta ou que intenta representar
ou expressar, mas apenas por suas articulações sonoras. O
conteúdo e a forma da música seriam, assim, a própria música e
nunca algo alheio à expressão musical.
Ainda que a relação entre música e emoção não seja
consenso na filosofia da música contemporânea, há atualmente
quem defenda um posicionamento hanslickiano acerca do
tema. Para o professor de estética N. Zangwill da Universidade
de Hull, no Reino Unido, a experiência da música pode causar
ou ser causada por emoções, mas a experiência musical não é
uma emoção per se, uma vez que a música não pode
literalmente conter uma emoção em si. Da mesma forma, as

Musical que ligariam a ideia de Hanslick de música absoluta a uma


concepção do absoluto universal semelhante ao que é defendido por
Schopenhauer ou por Moritz, quem considera a interpretação da obra
de arte enquanto metáfora do universo (DAHLHAUS, 1999, p. 31),
abordando dessa maneira uma metafísica da música instrumental.
A estética hanslickiana no cinema

ideias mais importantes envolvidas no ato da realização


musical, seja composição ou execução, não são emoções
(ZANGWILL, 2004, p. 42). De fato, as discussões
contemporâneas sobre o que a música pode significar possuem
suas raízes no trabalho desenvolvido por Hanslick. Para
Alperson:

A sombra que Hanslick lança sobre discussões filosóficas


contemporâneas de música é tão grande que seu ponto de
vista pode ser razoavelmente considerado como um modelo
contra o qual visões contemporâneas de música podem ser
situadas (ALPERSON, 2004, p. 257).

É importante ressaltar que o livro "O Belo Musical" não


nega que o ouvinte possa emocionar-se ao ouvir alguma
música. A recusa de Hanslick trata essencialmente em opor-se
ao emprego do sentimento enquanto princípio estético musical, 237
baseando o belo musical na música em si. Hanslick busca
oferecer outras ferramentas conceituais para que se possa
pensar na música a partir de elementos fundamentados na
natureza do próprio objeto musical, em substituição à resposta
afetiva do ouvinte.
Dada a recusa expressa na proposição negativa, na
qual o sentimento não estaria relacionado à obra de arte, os
próprios sons que compõem o material musical deveriam então
desempenhar o papel de conteúdo da música. Na visão de
Hanslick, portanto, a música poderia apenas ser música,
enquanto sua beleza reside apenas em suas próprias
características. Nas palavras de Hanslick:

É um belo especificamente musical. Com isto, entendemos


um belo que, sem depender e sem necessitar de um conteúdo
exterior, consiste unicamente nos sons e em sua ligação
artística. As engenhosas combinações de sons encantadores,
seu concordar e opor-se, seu afastar-se e reunir-se, seu
elevar-se e morrer - é isto que, em formas livres, se apresenta
à contemplação de nosso espírito e dá prazer enquanto belo
(HANSLICK, 1992, p. 61).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Como parâmetros próprios para a construção de uma


estética musical, Hanslick elenca a eufonia - sucessão de sons
harmoniosos, agradáveis - e elementos próprios da música, tais
como a melodia, a harmonia, o ritmo, os timbres e a forma da
música, que deveriam exprimir somente ideias musicais
através do seu próprio material. "[…] Uma ideia musical
perfeitamente expressa já é um belo independente, é uma
finalidade em si mesma, e não só um meio ou um material para
a representação de sentimentos e ideias" (HANSLICK, 1992, p.
62).
Hanslick reconhece que a música, no entanto, é capaz
de aderir a outras linguagens, como o drama e a palavra, de
forma a ambientar e enfatizar o que está sendo expresso pela
outra parte. Este uso menor da música é impreciso, uma vez
que a mesma música pode ajudar a construir significados
distintos de acordo com o conteúdo ao que ela se une. A
música, assim, teria o papel de apenas “colorir" o desenho
238 imposto pelo conteúdo do texto/drama. O crítico musical
sugere ainda que, no que tange às expressões artísticas mistas,
tal como a ópera, o ideal estético seria justamente satisfazer em
proporções idênticas as exigências da música e do drama
(HANSLICK, 1992, p. 55-56).
A primazia musical defendida pelo autor em sua
proposição positiva pode levar ao falso entendimento de que a
beleza musical seria o suficiente na produção de artes mistas.
Para esclarecer esta imprecisão, Hanslick aponta um erro
cometido por “todos os compositores": "tentar criar, com textos
e situações medíocres, música não medíocre e, do mesmo
modo, cometemos grave injustiça apreciando essa música”
(HANSLICK, 1992, pp. 59-60). Esta sentença coloca em
evidência o critério da unidade enquanto determinante de
valoração estética. A música bela, constituindo uma unidade
feia, torna-se desprovida de sua beleza. Sua contribuição com
seus próprios elementos belos se diluem e se perdem se não
constituírem unidade. A situação contrária, em que a música é
medíocre e as situações e o texto não o são, por extensão,
também resulta em um todo medíocre. Assim, é necessário que
as obras que envolvam música e outras linguagens sejam
expressivas em todos os aspectos enquanto estabelecem uma
unidade.
A estética hanslickiana no cinema

Hanslick e a música do cinema


A música do cinema desenvolveu-se paralelamente à
música durante o século XX e estabeleceu-se como meio efetivo
de agradar e “colorir”, habitualmente negligenciando outras
potências da própria natureza musical. A prática
cinematográfica, no geral, parece ter pouco do pensamento
hanslickiano: destaca-se aqui o uso corrente de música que
adere ao drama, ambientando afetivamente as cenas e
seguindo a temporalidade já estabelecida em termos de
duração, fluxo, velocidade, continuidade e linearidade. Ao
contrário da ópera e do balé, cujas músicas eram - e ainda são
muitas vezes - compostas segundo a vanguarda musical
estilística de cada época, grande parte da produção da música
de cinema ainda parece estacionada na estética musical do
século XIX, recusando de forma veemente o uso de
dissonâncias e ruídos que marcaram o desenvolvimento da
estética musical do século XX. Concomitantemente, a música
não raras vezes é produzida após a cena seguindo os desígnios 239
narrativos e temporais já estabelecidos pelas outras partes do
filme, como um elemento menos relevante da montagem.
Levando isso em conta, como conceber uma música
plenamente autônoma no cinema?
Com efeito, qualquer ideia de autonomia pressupõe a
existência de outro, um primeiro que foi apartado e um
segundo que ficou alheio ao processo de autonomização. Logo,
a ideia de autonomia não pode pressupor algo que está de fato
sozinho. O editorial da revista A! (2015) cuja temática foi a
autonomia na arte, coloca: “paradoxalmente, a autonomia não é
autônoma”. Tendo isso em vista, conceber uma ideia de
autonomia de um elemento artístico é uma tarefa distinta a
cada articulação proposta em cada um dos contextos e objetos
possíveis (REVISTA A!, 2015). Um possível modo de conceber a
autonomia na arte seria, desse modo, "pela via da oposição,
observando como cada um esboça sua ideia de autonomia na
construção de um modelo que se deve abandonar. Se os
opostos engendram a dita autonomia, podem ser lidos então
como contextos que lhe configuram” (REVISTA A!, 2015). A
partir dessa caracterização é possível conceber uma música
autônoma do cinema, reconhecendo que, não obstante,
FRONTEIRAS DA MÚSICA

qualquer tentativa de separação de um componente integrante


da totalidade do filme apenas evidencie a existência do todo e
suas heterogeneidades.
A música de cinema deveria ser compreendida em
termos de emoção? Há espaço no cinema para uma música que
possui valor autônomo da própria expressão musical? A
expressão musical no cinema não trata do ideal da “música
absoluta” desvinculada de todo aspecto extra-musical, mas de
uma autonomia da linguagem, das contribuições musicais à
construção do filme e da expressão sonora no contexto do
audiovisual, à semelhança do ideal hanslickiano para artes que
envolvem duas ou mais expressões artísticas diferentes.
Reivindica-se aqui a música de cinema enquanto música, mas
não destituída da sua ligação com o todo.
É possível constatar em algumas obras
cinematográficas uma presença musical que agrega ao filme um
valor de natureza musical. Isso é particularmente importante
240 para filmes que pressupõem algum interesse explícito na
música que os acompanha, tal como aqueles cuja temática
envolva música ou músicos, ou ainda apresentem certa
musicalidade, oriunda de uma montagem que valoriza o
sonoro. Quando se analisa filmes como Canon (1964, dir.
Norman McLaren) é impossível se abster de uma análise da
forma musical homônima, assim como ignorar os movimentos
sonoros e toda carga de conteúdo que as imagens conseguem
conferir à forma: aqui, as imagens são produzidas de forma
análoga ao que ocorre no espectro musical, jogando com as
regras estabelecidas pelo campo sonoro (BETHÔNICO e
CASTRO, 2015).
Pode-se citar como outro exemplo uma cena4 presente
no filme Ama-me esta noite (Love me tonight, 1932, dir. Rouben
Mamoulian), na qual os ruídos vão progressivamente surgindo
da cidade que desperta: o sino que toca - e orienta os cortes de
planos - um homem que trabalha, o ronco de um sujeito que
dorme na rua, a mulher varrendo a calçada, as pessoas

4 Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=VinvK-xEhBg>
(Visualizado em 30 de junho de 2015).
A estética hanslickiana no cinema

começando a trabalhar, janelas se abrindo e outros sons


urbanos. De maneira peculiar, todo som que aparece é
explicado dentro da diegese e nunca fora de campo. Da mesma
maneira, todos os sons desdobram-se com constância rítmica,
somando-se uns aos outros dentro da mesma pulsação e
clamando por serem ouvidos como música. Um gramofone é
ligado e sua música mescla-se aos sons urbanos fundindo-se a
eles e transformando o emaranhado de sons em uma única
pista sonora. Aqui, a música orienta o desenvolvimento da
narrativa, o ritmo dos cortes de câmera, o que está sendo
mostrado. Os elementos relevantes são, além da relação entre
som e imagem, o próprio desenvolvimento dos padrões
rítmicos musicais, elementos de interesse da esfera musical.
Não obstante, se a construção do filme pode ser
também orientada pela música, por que os métodos de leitura
da obra cinematográfica precisam ser primordialmente
imagéticos? As análises fílmicas são processos bem próximos às
análises musicais: as duas partem da descrição do que se 241
percebe para então categorizar e sintetizar a ação dos
elementos visuais/sonoros, relacionando os signos que
ocorrem simultaneamente ou que, mesmo com um lapso
temporal, apresentam significativas relações, como por
exemplo um tema musical que se repete ou se desenvolve.
Em Whiplash - em busca da perfeição (2014, dir.
Damien Chazelle), faz-se necessário criar interseções entre os
processos de análise fílmica e musical, bem como oferecer
ferramentas conceituais capazes de considerar o valor musical
como parte intrínseca de filmes dotados de expressão musical.
Neste filme, a música age como elemento aglutinador, cenário
temático que suporta as questões humanas que são levantadas
na narrativa, como a busca em ser o melhor e o tênue limite da
pressão psicológica entre o que estimula, constrói, e o que
aniquila. Para além de figurar enquanto eixo no qual se assenta
a trama, o fato de os personagens estarem em torno da música
apresenta-se como um convite ao desenvolvimento de uma
abordagem efetivamente musical dos elementos narrativos.
Ainda que uma análise habitual do filme com foco na
relação entre música e narrativa seja necessária para tratar de
Whiplash, esta exploração, nestes termos, demonstra ser
FRONTEIRAS DA MÚSICA

insuficiente para abordar os últimos 9 minutos do filme. Neste


trecho, Andrew, baterista empenhado que se dedica ao seu
limite físico, é surpreendido por uma música maliciosamente
incluída pelo professor Fletcher que não constava em seu
repertório e, consequentemente, fracassa no palco na ocasião
que seria a sua grande chance. Em seguida, Andrew causa
espanto ao iniciar a música que ele próprio escolheu e assim
desafiar o professor. Ao longo da última música, Fletcher passa
a demonstrar respeito pela performance do baterista, mas essa
mudança não é, de fato, a razão pela qual o filme se estende
pela primeira vez por toda a música, da introdução ao último
acorde no último compasso. Como justificar, somente através
da relação entre música e diegese levada em conta nessa
análise até o momento, a ação narrativa que poderia ser
desenvolvida com a metade do tempo ser submetida à duração
total da última música? Após o término da última peça, o filme
ainda possui pendências narrativas: não se sabe se professor e
aluno se acertaram, de fato, se a carreira do baterista sofreu
242 qualquer impacto com o fiasco da primeira música ou o sucesso
da segunda. Ainda assim, Chazelle optou por encerrar o filme
junto à música, o que pode, talvez, sugerir um desfecho através
de uma metáfora: a performance impecável que deu certo
implicaria, então, em um final que deu certo.
Em um filme, quando a música é exibida apenas
parcialmente ela é destituída de uma parte estrutural
importante: a forma. Este uso da música é amparado apenas no
aspecto vertical da montagem e ignora a horizontalidade da
obra musical em si, o que usualmente em filmes simplesmente
não interessa. Mesmo em endoclipes, trechos audiovisuais em
que todos os outros sons se emudecem e a música aparece em
primeiro plano, assemelhando-se a um clipe musical mas
produzido no contexto do filme (VIDIGAL, 2011), são raras as
ocasiões em que a música aparece íntegra, preservando sua
estrutura original com suas repetições. Os exemplos em que
isso ocorre com música instrumental são ainda mais raros.
Importante ressaltar que a música apresentada encontra-se
desvinculada de qualquer tipo de texto verbal, de forma que o
que ela significa é apenas seu próprio conteúdo musical, ainda
que também se articule ao drama e construa um sentido
A estética hanslickiana no cinema

narrativo próprio do cinema, sem no entanto ter que abdicar


do valor da própria música.
Há aqui claramente uma reivindicação do domínio
musical: a música apresenta-se inteira porque deve ser
contemplada inteira. Subverte-se a ordem habitual dos filmes:
na última cena, é a narrativa quem acompanha a música, presa
ao tempo musical. Da mesma forma, o drama se curva à música
ao abandonar suas questões e encerrar-se junto à performance
musical. Assim, o valor da cena é também o valor da música, de
forma que todos os elementos se integrem na narrativa.
Whiplash: em busca da perfeição poderia ser
considerado apenas sob o seu aspecto dramático: a estória da
obsessão pela perfeição técnica e a relação com o professor são
suficientes para sustentar a narrativa. No entanto, abrir mão
dos aspectos musicais representa uma grande perda para uma
obra audiovisual: a narrativa poderia abdicar-se da música; o
filme, não. A música aqui é um elemento que constitui com
autonomia a partir dos seus próprios materiais sonoros, não 243
cabendo a ela o papel secundário de complementar e preencher
as lacunas deixadas pelas imagens. A autonomia da música no
cinema reivindica o valor musical enquanto elemento
constituinte, não a redução dos demais elementos que
compõem a obra: trata-se de um valor autônomo - musical, não
apenas fílmico - em uma obra multifacetada com inúmeras
partes que se articulam entre si.
A última cena mostra um duelo entre a música
autônoma e o drama, mergulhando nos significados dispostos a
partir da relação entre música e narrativa. O foco está, a
princípio, na própria música, mesmo que algumas ações
desenvolvidas durante a cena reclamem a atenção do
espectador de volta para a estória. Eduard Hanslick diz que no
que tange às artes que envolvem várias linguagens artísticas, a
música ainda seria capaz de preservar sua independência
estética conforme o autor considere as decisões a favor da
música em detrimento aos outros elementos envolvidos. O
filme que termina junto à música representa, nesse âmbito,
uma vitória da expressão musical aliada à construção do
cinema, sobretudo após a performance integral de uma música
longa: não se trata de uma cena com uma música entranhada
FRONTEIRAS DA MÚSICA

ou de uma cena que mostra a música que possui um drama


como acessório, mas de uma expressão musical genuína que se
integra à narrativa e multiplica os significados.
A articulação entre som e imagem pode ser
enriquecida com conteúdos musicais estruturados,
relacionados diretamente à forma e variações de execução de
uma música. Em Festim Diabólico (Rope, 1948, dir. Hitchcock)
uma das cenas5 de maior tensão se desenvolve dramaticamente
através da música que o personagem Phillip toca ao piano. O
mouvement perpetuel número 1 de Francis Poulenc, peça
executada por Phillip, sofre ligeiras variações de hesitação e
repetição, manifestas sobretudo no início e final das frases
musicais, conforme o professor Rupert Cadell o pressiona a fim
de descobrir informações sobre o desaparecimento de uma
terceira pessoa. Algumas notas erradas também são tocadas,
mas isso só se faz notar em uma escuta mais atenta: a tensão
concentra-se nos diálogos enquanto a música parece servir
244 apenas como elemento de contraste, como se estivesse em
desacordo com o que está sendo mostrado. Tal “desacordo" na
verdade oferece um jogo rico de possibilidades: as variações
musicais são utilizadas aí não apenas para potencializar a
tensão da cena de um modo peculiar, mas também para criar
mais sentidos fílmicos.
O mouvement perpetuel de Poulanc possui um
andamento moderado e se caracteriza, entre outras coisas, por
um movimento cíclico e por um ostinato da mão esquerda que
serve de base tanto para a tranquila melodia descendente em
tom maior quanto para uma segunda melodia, cujo
estranhamento harmônico contrasta com a primeira parte.
Neste filme, as partes da música não obedecem estritamente ao
que estabeleceu Poulenc em sua composição, mas
transformam-se em pequenos graus, de acordo com o sentido
fílmico, de forma que os "erros" funcionam como um jogo de
“quente-frio” que se estabelece conforme Rupert se aproxima
ou se afasta de hipóteses verdadeiras sobre o crime cometido.

5
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=pMidjL1GAw8>.
Acessado em 30/09/2015.
A estética hanslickiana no cinema

Em determinado momento, Rupert pega um


metrônomo e utiliza-o em andamento elevado como forma de
coagir o pianista. O jogo se dá nesse momento pela resistência
de Phillip em se submeter ao andamento e por ondas de
accelerando, com a segunda melodia. Quando o professor faz
um questionamento distante do caso, Phillip irrompe com uma
gargalhada e recomeça a primeira melodia em tom maior no
andamento moderado, ignorando a imposição de tempo do
metrônomo. O jogo recomeça, a música também sofre pausas
que direcionam a atenção para alguma resolução do drama,
mas retorna à situação de tensão. A aflição se manifesta
também com a primeira melodia em tom maior, indicando que
essa relação não se constrói apenas sob a dualidade desgastada
entre tons maiores e menores, mas se ajusta ao drama sob
diferentes formas: o sentido do todo fílmico é muito mais rico
do que a histórica relação entre modos maiores e menores e
afetos.
Enquanto filmes eminentemente musicais podem 245
provocar uma experiência musical, há trilhas sonoras que
escondem um conteúdo musical que merece ser compreendido
também em si mesmo. A apreciação musical pode trazer à luz
elementos a serem valorados nos filmes. Entretanto, é preciso
que o espectador se proponha, em primeiro lugar, ser também
ouvinte. Em obras audiovisuais musicais, é necessário perceber
a música para poder perceber o todo. Quanto mais signos são
compreendidos, mais relações são feitas e mais significados
surgem.

Considerações finais
A transposição de uma concepção de autonomia da
música para o contexto do cinema deixa lacunas que este
trabalho busca apontar. A hipótese de uma autonomia da
música no cinema apresenta problemas em uma definição
estrita de autonomia: o cinema não comporta a ideia de um
descompasso absoluto entre o que se vê e o que se ouve. Mais
do que isso, pensar em relações audiovisuais descarta a
possibilidade de independência pura, sem qualquer
relacionamento: o que se vê pode discordar do que se ouve,
FRONTEIRAS DA MÚSICA

mas isso seria apenas o que caracterizaria esta relação. Há


várias possibilidades de articulação entre som e imagem que
vão muito além do concordar e discordar entre si, atuando de
fato na produção de novos sentidos. Dessa forma, o
relacionamento entre imagens e sons possui a potência
necessária para criar um resultado distinto do produzido por
sons e imagens separadamente, de maneira a configurar uma
junção cujo total é mais do que a simples soma das parcelas.
Assim, pouco interessa a música do filme desvinculada do
mesmo, transformada em “música pura”: o valor musical deve
ser pensado a partir do filme, com todas suas conexões e
hibridações.
A autonomia da música pode ser pensada sob o prisma
das artes mistas. De acordo com Hanslick, tais artes
apresentam critérios estéticos especiais: eles não são
exclusivamente musicais, embora também incorporem os
elementos musicais como parte integrante relevante. Assim, é
246 necessário que os critérios musicais se integrem aos aspectos
estéticos da outra expressão mista que é também composta por
música, a fim de estabelecer unidade que contemple a trilha
sonora. Para Eduard Hanslick, a relação da música com o drama
é uma metáfora de guerra: o equilíbrio entre música e drama se
dá através de uma "luta constante de dois poderes legítimos"
(HANSLICK, 1992, p. 56). Neste trabalho, entretanto, conclui-se
que a noção de embate entre os dois campos é problemática: é
preciso que o valor musical e as contribuições do campo
autônomo da música - bem como de outros meios - sejam
pensados enquanto elementos constituintes. Dessa maneira,
essa relação precisa ser pensada por uma outra ideia geral, que
se aproxima mais de uma dança ou de um jogo do que de um
conflito entre as partes. Não pode ser “uma batalha de um
contra o outro”, mas uma dança, na qual todos fazem parte e,
em determinados momentos, um dos elementos conduz os
passos ou reivindica atenção através de um movimento mais
ousado, ainda que contrarie a tradição que defina apenas um
condutor. O que importa neste caso não é o movimento isolado,
mas a dança como um todo e como cada um dos movimentos
contribui para a totalidade. Uma dança que possui vários
personagens mas que na qual apenas um deles efetivamente
A estética hanslickiana no cinema

atua comporta um jogo mais pobre do que uma dança na qual


as partes se alternam na condução.
A autonomia do valor musical em uma obra
cinematográfica é uma possibilidade de enriquecimento do
cinema na medida em que a obra ganha uma nova dimensão.
Ganha-se com o dizer musical mas não apenas com ele:
conforme concebem-se mais elementos enquanto parte da
obra, há mais leituras, mais significados, mais relações, mais
possibilidades.
Nesse âmbito, busca-se valorizar um outro olhar - ou
um outro ouvir - capaz de realmente abarcar a música de
cinema realizada por autores musicais, ressaltando os aspectos
eminentemente musicais, também trazendo consigo os
problemas da estética da música: a ligação entre música e
afetos ainda é discutida na filosofia da música contemporânea
e, dada esta observação, é importante trazer esta reflexão sobre
o tema para o contexto da música de cinema, historicamente
construída em termos afetivos. A formação de novas poéticas 247
musicais baseadas em critérios distintos do uso emotivo traz
consigo possibilidades que ainda são pouco exploradas no
cinema.
A questão da autonomia da música pode ser pensada
meramente como um exercício de variação de procedimentos
cuja finalidade é obter novos resultados, mas também baseia-se
em uma opinião sobre a natureza da música. Eduard Hanslick e
o contemporâneo Nick Zangwill (2004) desenvolvem em seus
trabalhos de estética musical a hipótese de que as emoções não
são componentes artísticos da música e não devem orientar o
trabalho do compositor, do ouvinte/espectador e, por extensão
que aqui se reivindica, do diretor de cinema. Os exemplos
referidos ao longo do texto demonstram que é possível que a
música de cinema se desenvolva também em termos musicais,
bem como possa contribuir com seus próprios meios nos
processos de criação e percepção do filme. Conclui-se que, sob
este mesmo prisma, o filme cuja música é pensada em termos
musicais (e não afetivos), tem mais a contribuir para a própria
música e para o filme como um todo do que o filme cuja música
parece vir desprovida de expressão musical. Assim, é possível
FRONTEIRAS DA MÚSICA

buscar novas soluções para as velhas perguntas do cinema,


longe dos clichês musicais.

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A estética hanslickiana no cinema

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Música: John Leipold/Richard Rodgers. EUA: Paramount Pictures,
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CANON. Direção: Norman McLaren. Música: Eldon Rathburn. Canadá:


Office national du film du Canada, 1964. Filme (9 min.), son., color.,
35mm. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=2VrnXw9waJI>, visualizado em
10 de setembro de 2015.

FESTIM diabólico (Rope). Direção: Alfred Hitchcock. EUA:


Transatlantic Pictures, 1948. Filme (80 min.), son., color., 35mm.

WHIPLASH - Em busca da perfeição (Whiplash). Direção: Damien


Chazelle. EUA: Bold films, 2014. Filme (107 min.), son., color.. 249
Adès, para onde vão as notas?

LUCAS PAOLO S. VILALTA

Introdução
ostaria de partir de algumas afirmações do compositor
G britânico Thomas Adès presentes no livro de entrevistas
Thomas Adès: full of noises: conversations with Tom Service,
publicado em 2012, primeiro a apresentar um conjunto de
reflexões de Adès sobre a composição musical e sobre suas
obras.

THOMAS ADÈS – Eu tenho um problema – bem, não é um


problema para mim, mas pode fazer a vida ficar confusa para
alguém – que é eu não acreditar nenhum um pouco na
distinção oficial entre música tonal e atonal. [...]Isso era outro
problema para mim: eu não via a distinção entre música
abstrata e música de programa. Eu literalmente não fazia a
menor ideia do que isso significava, porque para mim toda
música é metafórica, sempre (ADÉS & SERVICE, 2012, p. 3-
5).1
TOM SERVICE - Eu me pergunto: o que aconteceria se você
passasse por todas as portas que você tem disponíveis para
você, todas as portas até o infinito que você descobriu em sua
música?
THOMAS ADÈS – Bem, você não pode, você tem que abrir uma
por uma - você não pode apenas sair por aí abrindo todas as
portas. Pense em Alice. Você provavelmente terá que voltar
para a mesa e comer um pouco de bolo ou beber um pouco de
bebida para ter o tamanho certo (Id. P. 177).
THOMAS ADÈS – Se um grande compositor prenuncia a era
de alguma forma, Ligeti foi um grande compositor. Ele foi o

1 Todas as traduções apresentadas no presente texto são de minha


responsabilidade.
Adés, para onde vão as notas?

primeiro a trazer a morte térmica do universo2 para a


musica, a ideia da entropia total. Suas peças todas tendem a
essa direção.
TOM SERVICE – Peças como os Estudos para piano assim
como o Réquiem, você diz?
ADÈS – Com certeza. Eu penso que isto tende a ser o ponto de
fuga de qualquer peça de Ligeti: a morte térmica do universo.
Elas tem uma espécie de desespero cósmico total, um
absurdo sobre eles, o que é inteiramente uma coisa século-
vinte-tardio.
[...]
SERVICE – Você quer dizer que a maneira como essas peças
configuram padrões de ritmo e sons como espirais fora de
controle que se dirigem ao infinito. Tecnicamente, você poderia
dizer que a sua própria música faz coisas semelhantes, de certo
modo, como aquela quase-série gigante no final de Tevot, que
você inclusive já descreveu como algo que poderia seguir para
sempre, que poderia ser infinito.
251
ADÈS – Mas não se trata do mesmo, porque não se dirige à
extinção. A de Ligeti tem um ponto de fuga e a minha não (Id.
P. 139).
O fato é que a harmonia tem sido sempre irracional. Então,
isto significa que ela nunca foi estável. (Id, p. 146)

Quero comentar um pouco essas afirmações de Adès


com o intuito de apresentar os dois problemas que desejo
abordar aqui. Primeiramente, o modo como Adès se afirma no
cenário musical contemporâneo. O compositor se insere de
forma irreverente com atitudes e utilizações do material

2 “A morte térmica é um possível estado final do universo, no qual ele


"cai" para um estado de nenhuma energia livre para sustentar
movimento ou vida. Em termos físicos, ele terá alcançado entropia
máxima. A hipótese de uma morte térmica universal surgiu das ideias
dos anos 1850 de William Thomson (Lord Kelvin), que extrapolou a
visão da perda de energia mecânica na natureza da teoria do calor,
como as englobadas nas primeiras duas leis da termodinâmica, a uma
situação universal”. Cf: http://pt.wikipedia.org/wiki/Morte_térmica_do_universo.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

musical que não mais se enclausuram em dicotomias maiores


que parecem ter animado as reflexões da Estética Musical que
se abrem no século XIX e se consolidam no século XX.
Polarizações como música tonal e atonal, serial e pós-serial,
música abstrata e música de programa, entre outras, não se
configuram como limites para sua composição. Isto foi
interpretado como uma adesão ao “poliestilismo” de Alfred
Schnittke e tachado como uma verve ecletista, pós-moderna,
ingênua e até descompromissada do compositor. Surgem,
então, as mais diversas críticas a tal posicionamento. Desde
Richard Taruskin que afirma que Adès viria resgatar uma
corrente do modernismo musical esquecida, podendo “resistir
a uma utopia estéril, evitando também, por outro lado, a
armadilha oposta do pastiche irônico” (TARUSKIN, 2011, p.9);
como também a crítica de Vladimir Safatle da utilização cínica
dos materiais:

252 Essa forma consegue absorver sua própria desestruturação,


sem com isso colocar em questão a noção de que só há ordem
através de materiais fetichizados. Dessa maneira, ela flerta
com o informe sem abandonar a sustentação de um princípio
de organização a respeito do qual ela faz toda questão de
enfatizar sua descrença. Como já foi dito, mesmo o informe
pode servir para sustentar uma Ordem que vigora por meio
de sua própria descrença (SAFATLE, 2008, p. 200).

Para além da questão de se realmente Adès


conseguiria recuperar certa tradição surrealista que foi
ofuscada pelas tradições de Schönberg, Stravinsky e Debussy,
como o quer Taruskin; ou se ele é apenas mais uma
manifestação mais complexa do cinismo contemporâneo de
compositores como John Adams, como sugere Safatle;
poderíamos procurar, primeiramente, qual a posição singular
que caracteriza o compositor em relação à tradição. Esta me
parece claramente enunciada no que o compositor denominou
de “harmonia irracionalmente funcional” (ADÈS & SERVICE,
2012, p. 141). Este termo - como poderia parecer - não quer
dizer que o tratamento composicional da harmonia deve ser
irracional, mas que o próprio material é uma realidade tensa
Adés, para onde vão as notas?

que não pode ser circuscrita a outra dicotomia, a saber, a de


material estável ou inestável. Para uma concepção que pensa o
material a partir dessa dicotomia, ou para certa concepção de
racionalidade harmônica, o material concebido como uma
realidade metaestável é irracionalmente funcional. Não se trata
do que fez Debussy, pois como sugere Adès, a descoberta de
outras funcionalidades harmônicas ou o rompimento com a
racionalidade das funções harmônicas tradicionais, não traz
como correlato um tratamento do material em seu aspecto
instável. Debussy apesar de inscrever seu material em outra
forma de organização da racionalidade harmônica, ainda o faria
postulando a estabilidade do material. Por outro lado, algo
similar ocorreria com Ligeti, na visão de Adès, apesar dele
submeter o material a um processo de dissolução, a uma
entropia total, o resultado de tal trabalho com o material seria
a subsunção das tensões que lhe são internas a um processo de
estabilização dissolutivo. Dito de maneira resumida, se por um
lado, Debussy aponta para um tratamento irracionamente
funcional da harmonia, ele o faz concebendo o material musical 253
como uma realidade estável; por outro lado, Ligeti concebe o
material como pura instabilidade e a confluência inevitável
seria, então, um processo de dissolução do material em uma
linha de fuga de estabilização em uma entropia total. Nesse
sentido, a apreciação que Adès faz dos procedimentos
composicionais de Berg é reveladora – bem como seu elogio a
outro compositor húngaro, György Kúrtag. Adès se vê como um
filho ilegítimo de Berg, isto porque se os materiais do
compositor tendem a um movimento de estabilização entrópica
– como ocorreria com Ligeti – a implicação expressiva dele com
os materiais faria com que essa entropia se realizasse de modo
imperfeito. “Lulu é muito melhor que perfeição” (ADÈS &
SERVICE, 2012, p. 129). A implicação subjetiva de Berg
funciona como uma resistência objetiva à tendência de seus
materiais à dissolução.
Formulemos, assim, o primeiro problema que me
interessa abordar aqui. Para Adès, não existe algo como uma
divisão entre o material puro (frequências, vibrações, ondas) e
o material tratado pelo compositor (notas, sons),
consequentemente, mesmo concebendo o material enquanto
realidade instável, a relação do compositor com esse se dá
FRONTEIRAS DA MÚSICA

como uma realidade metaestável. Realizarei uma aproximação


com o conceito de metaestabilidade do filósofo francês Gilbert
Simondon para analisar este aspecto na consitência dos
procedimentos composicionais de Adès.
Em segundo lugar, com relação à consistência dos
procedimentos composicionais empregados por Adès,
podemos iniciar pela seguinte constatação: Adès aproxima a
lógica de suas composições à lógica de Lewis Carrol em Alice
(ADÈS & SERVICE, 2012, p. 144). Isto porque as funções que
estruturam a composição não são imanentes ao material. Do
ponto de vista das tensões imanentes ao material, a harmonia e
as funções utilizadas pelo compositor surgem com irracionais
ou como exteriores - no entanto, essas funções são
estruturantes. O que Adès rechaça é que exista uma estrutura
imanente ao material que garanta a inteligibilidade ou a
racionalidade dos procedimentos composicionais e das
funções. Para Adès, são as funções e os procedimentos que
254 estruturam e dão consistência ao material de um ponto de vista
que não lhe é imanente, que lhe é exterior. Isto é o que me
parece que está em jogo quando Adès reitera constantemente a
afirmação de que para ele toda música é metafórica.
Abordemos com calma este ponto.
Inicialmente, para a tradição que se acostumou a
pensar a autonomia das formas musicais com relação a todo e
qualquer contéudo ideológico ou representativo, a afirmação
de Adès soaria como uma aberração anacrônica. Também em
relação a filosofias imanentistas que recham veemente
qualquer tipo metaforização do concreto, tal afirmação soaria
como a incapacidade de conceber as potências próprias ao
material musical. No entanto, acredito que o que Adès está
afirmando é bem mais complexo que isso. Há um respeito à
imanência metaestável do material por parte do compositor,
contudo, o que Adès afirma é que o sentido da composição com
o material é sempre metafórico. Isto não significa, de modo
algum, que a música tenha como função última a representação
de conteúdos; nem tampouco que ela opere de modo simbólico,
como restituição ou projeção de “outra coisa” que estaria
ausente. Como diz Safatle:
Adés, para onde vão as notas?

Nenhuma metáfora é “mera” ilustração. Ela é uma forma de


relacionar sistemas de referências distintos que dévem,
porém, ser conjuntamente articulados para que um
fenômeno determinado possa ser apreendido de modo
adequado (SAFATLE, 2015, p. 23).

Assim, o que nos parece que Adès afirma ao dizer que


toda música é metafórica é que ela é um fenômeno complexo
que relaciona sistemas de referências distintos, por exemplo, as
tensões internas ao material musical, a consistência da
estruturação da composição por meio das funções e os sentidos
que o compositor almeja produzir com seus procedimentos.
Desse modo, parece que o que Adès pretende afirmar não que é
a música seja em si metafórica – o constituiria aliás um
contrasenso, algo que seja em si metafórico -, mas que a música
sempre é apreendida de modo metafórico, ou seja, como um
conjunto de relações entre sistemas de referências distintos.
Isto nos leva a uma afirmação de Adès que trouxemos 255
inicialmente e que ainda não abordamos diretamente. A
metáfora das portas. Elas não estão ali simbolizando outra
coisa que o compositor queria dizer e não disse. Elas são uma
imagem do sistema de relações que Adès está tentando
estabelecer. Frente à simbolização proposta por Tom Service, a
saber, das portas como as possibilidades infinitas abertas pelas
música de Adès; este responde com uma metáfora: as portas
em Alice. Relendo a pergunta de Service podemos dizer que ela
se resume ao seguinte: o que aconteceria se você se utilizasse
de todos os procedimentos, das infinitas possibilidades que
você descobriu com sua música? Ao invés de responder que
todos os possíveis para se configurarem enquanto
procedimentos musicais consistentes necessitam estar
inscritos num trabalho com o material que produz resistências
e que cada procedimento exige uma disposição singular do
compositor; Adès responde com a metáfora das portas. Na cena
em questão de Alice no país das Maravilhas (CARROLL, 2009, p.
17-23.), as experiências de Alice para sair da situação em que
se encontra, para avançar, são sempre frustradas pois o
tamanho de seu corpo nunca coincide com o tamanho da porta.
Interpretar uma metáfora é remetê-la a outro conjuto de
relações. Assim, podemos dizer que as potências inscritas na
FRONTEIRAS DA MÚSICA

imanência metaestável do material, as portas, sempre excedem


os procedimentos, os tamanhos ou as formas, que o compositor
possui para articulá-las. Esse processo que tentei captar a
partir da metáfora das portas quero pensá-lo - e este é nosso
segundo problema - a partir do conceito de transdução de
Simondon. Comecemos nossa análise para pensarmos em que
medida a obra de Adès consegue articular um material
concebido em sua metaestabilidade a partir de um processo
composicional transdutivo.

Entre a metaestabilidade do material e a operação


composicional transdutiva
Explicarei muito resumidamente os conceitos de
metaestabilidade e transdução de Simondon para que
possamos pensá-los em relação às composições de Adès. Sobre
o conceito de metaestabilidade, precisamos inicialmente fazer
256 duas ressalvas. A primeira, é que não tratarei o material sonoro
“puro” – por assim dizer – enquanto sistema metaestável; isto
porque o material musical com que trabalha um compositor
nunca é um sistema de relações do qual está excluído a
historicidade perceptiva. O conceito de material que tenho em
vista aqui é um sistema tenso de relações, nem natural, nem
artificial, prenhe de historicidade. A segunda ressalva, é que
não se trata de um conceito que produz uma síntese dialética
entre estabilidade e instabilidade, o conceito de sistema
metaestável surge, a partir das descobertas da termodinâmica,
como um sistema carregado de potenciais internos e que,
portanto, pensá-lo a partir de dualismos como estabilidade e
instabilidade, movimento e repouso, ou síntese dos contrários,
seriam apenas abstrações imprecisas. Estas ressalvas me
parecem relavantes, pois, como ficará evidente daqui em
diante, minha principal dificuldade constirá em estabelecer
autênticas analogias entre o que pensou Simondon ao formular
seus conceitos para produzir uma nova filosofia da
individuação e o que apresentarei aqui para pensar os dois
problemas com relação a consistências dos procedimentos
composicionais de Adès. Tenho tomado contato com alguns
trabalhos que tentam pensar a música a partir dos conceitos
simondonianos e que fazem uma passagem muito rápida, a
Adés, para onde vão as notas?

saber, tomam a composição musical como um processo de


individuação e saem aplicando inadivertidamente os conceitos
de Simondon como se pudéssemos pensar a obra musical da
mesma forma que o filósofo pensa o indivíduo físico, ou o
indíviduo vivente, ou o indíviduo psicossocial, ou o objeto
técnico. Isto significaria perder de vista um dos aspectos
centrais da filosofia de Simondon, a saber, que a ontogênese é
anterior a toda ontologia e toda lógica possíveis, isto porque
dos tipos ontogenéticos, dos diferentes tipos de individuação, é
que podemos derivar respectivas ontologias e lógicas. Gostaria
de insistir que a composição musical provavelmente pode ser
pensada como um processo de individuação, no entanto, fazê-lo
exigiria um trabalho minucioso de análise das especificidades
desse processo, do tipo de ontogênese em questão. Acredito
que as reflexões que apresento aqui podem se configurar como
um primeiro ensaio de tal análise, contudo, faço aqui a ressalva
mais importante: nosso objeto de análise aqui são as obras de
Thomas Adès e não a composição musical em geral ou a
ontogênese da obras musicais. 257
Simondon apresenta a noção de sistema metaestável
como um indicador da mudança de paradigma epistemológico
para a teoria da forma (SIMONDON, 2013, p. 26). A teoria da
individuação que Simondon formula está construída a partir de
duas teses críticas centrais:

1. Os processos de individuação sempre foram pensados a


partir do indivíduo constituído e disso resoltou nossa
incapacidade de conhecer o indivíduo como mais que uma
unidade e um identidade autoidênticas. Devemos, então,
inverter esse movimento e buscar o conhecimento do
indivíduo a partir de uma teoria da individuação. Apenas
desse modo, poderemos perceber que o indivíduo é apenas
um momento de maior estabilidade da unidade e da
identidade de um processo de individuação.
2. O ser é uma realidade polifasada que comporta em si uma
realidade individuada, mas também cargas pré-indivuais.
Há uma parte do ser que não possui fases, é uma realidade
sem fases, um conjunto de virtualidades e pontencialidades
não individuadas que impulsionam novos processos de
FRONTEIRAS DA MÚSICA

individuação. O devir dos processos de individuação, são


assim, uma articulação entre realidade individuada e
cargas pré-individuais.

Estas duas teses críticas (SIMONDON, 2013, p. 23-5.)


tem como alvo as concepções hilemórficas e substancilistas do
ser. Estas tradições não conseguem produzir um conhecimento
satisfatório dos processos de inviduação, pois ignoram que o
ser não é apenas composto de realidades individuadas e por
não conseguirem captar as energias potenciais, as informações
e as tensões internas ao sistema metaestável que opera em um
processo de individuação. Para o que nos interessa aqui, essa
noção de metaestabilidade serve para marcar que a realidade
do material musical precisa ser pensada a partir das noções de
matéria ou conteúdo (hylé), forma (morfé), mas também de
energia, potencial ou informação. O material musical não é
apenas uma realidade que possui uma matéria que possui
258 tendências formais e que pode ser informada, mas também é
uma realidade rica em potenciais e tensões. Espero que a
análise das composições de Adès possa oferecer maior
concretude para esta tentativa de pensar o material como
sistema metaestável.
O conceito de transdução, ou operação transdutiva,
Simondon o define da seguinte forma:

Entendemos por transdução uma operação física, biológica,


mental, social, pela qual uma atividade se propaga
progressivamente no interior de um domínio, fundando esta
propagação sobre uma estruturação do domínio, operada
aqui e ali; cada região de estrutura constituída serve de
princípio de constituição à região seguinte, de modo que uma
modificação se estende assim progressivamente ao mesmo
tempo que a operação estruturante. (SIMONDON, 2013, p.
32)

A operação transdutiva é uma individuação em


progresso que sedimenta regiões estruturadas ao mesmo
tempo em que avança em novas estruturações. A imagem mais
Adés, para onde vão as notas?

simples que Simondon encontra para esta operação é a do


cristal. Os estudos de cristalografia demonstram como o cristal
não é um indivíduo, nem uma estrutura prévia a seu processo
de individuação, às operações que engendram seu crescimento
e estruturação. A partir de uma solução salina, que é um
conjunto de potenciais, forma-se um precipitado, que é um
germe cristalino muito pequeno, que crescerá por capas
moleculares em todas as direções. As orientações de
crescimento e as estruturas próprias ao sistema de
cristalização não estavam contidos previamente no germe,
apenas os potenciais de crescimento que orientaram as
operações. O cristal é para Simondon uma imagem simples de
como funciona a operação transdutiva, mas também é um dos
seres físicos que mais se aproximaria da caracterização de uma
individualidade estável e, no entanto, é um sistema metaestável
que, mesmo em velocidades muito lentas, nunca cessa de
individuar-se. No entanto, para o que nos interessa aqui, o
importante será marcarmos como a operação transdutiva
permite uma concepção metafísica e lógica (SIMONDON, 2013, 259
p. 25-6.) que dá conta da gênese do indivíduo (ontogênese)
enquanto realidade processual e sistema metaestável. Aqui a
crítica de Simondon visa tanto à dedução, quanto à indução
como modelos insuficientes para a compreensão da
individuação (SIMONDON, 2013, p.34). Tentarei abordar este
aspecto a partir da composição musical.
A pergunta que temos que propor é: o que seria a
operação composicional dedutiva, a indutiva e a transdutiva?
Aqui é importante inserir mais uma ressalva. Não se trata de
responder essa pergunta com aproximações fáceis como
serialismo e operação composicional dedutiva, e
impressionismo e operação composicional indutiva. Ou avaliar
nos modelos de variação em desenvolvimento ou justaposição
maiores ou menores proximidades com a dedução ou a
indução. Trata-se de pensar a partir de tipos ou modelos
abstratos. Isto porque talvez não exista nenhuma composição
que seja em si dedutiva, indutiva ou transdutiva. A
diferenciação que faz Simondon entre estruturação e operação
nos auxilia. Uma operação produz e/ou pensa estruturações e
dispara novos processos estruturantes. Assim, podemos dizer
que um compositor ao deduzir os parâmetros a partir de uma
FRONTEIRAS DA MÚSICA

série, está operando dedutivamente, mas talvez a estrutura


resultante de tal operação não se esgote e não esgote o sentido
musical produzido.
Como modelo abstrato, gostaria de propor, então, que
a operação dedutiva consiste em partir de generalidades para
estruturar particularidades. Algo como partir de séries, formas
musicais, conjuntos instrumentais para daí estruturar as
melodias, os temas, os timbres. Já a operação indutiva
consistiria em partir desses para estruturar aqueles.
Evidentemente, a decisão do que constituem as
particularidades e generalidades, bem como se é possível fazer
esta separação, já dizem respeito a um posicionamento com
relação à estruturação do material. De todo modo, em
contraposição a essas operações, a transdutiva procederia de
modo a não separar avanço composicional e estruturação3. Não
se faria a distinção entre particularidade e generalidade, pois
todo momento do processo transdutivo é, simultaneamente,
260 um conjunto de aspectos do material estruturado e tensões
internas a estruturação que projetam novos processos
estruturantes. Poder-se-ia dizer que isto é exatamente a
descrição de uma operação composicional que parte das
resistências e tendências imanentes ao próprio material. Isto
estaria adequado, desde que especificássemos a que tipo de
imanência nos referimos. Assim como a imanência possui
sentidos distintos em Hegel e Spinoza, precisaríamos ser
capazes de descrever um tipo de imanência própria à operação
transdutiva. Deixemos isto como um problema aberto que

3 “Não há tal coisa como ‘pré-composição’: assim que você começa,


você realmente já está compondo. Eu não faria a distinção entre um
estágio ‘pré-composicional’ e um estágio ‘durante-composição’. E se
você tem que voltar para o "estágio pré-composicional", o que muito
provavelmente vai acontecer? Você estará lidando com algo que é
cronicamente volátil. É como lava, excetuando-se que o meu material
na verdade não existe na realidade física. São sons evanescentes. Estas
notas não são objetos que estão na frente de vocês - embora em outro
sentido possa ser útil tratá-los dessa maneira; talvez eles sejam, na
verdade, uma espécie de objeto invisível. Mas essa invisibilidade é
frustrante, porque seu cérebro não pode necessariamente defini-los
claramente em primeiro lugar.” (ADÈS & SERVICE, 2012, p. 4).
Adés, para onde vão as notas?

poderá ganhar alguns delineamentos na análise das


composições de Adès.

A consistência metaestável dos procedimentos


composicionais transdutivos de Adès
“THOMAS ADÈS - Isto é o que movimenta tudo em
música – estabilidade e instabilidade. Eu tenho perguntado a
mim mesmo: há algo como estabilidade absoluta na música; ou
em qualquer coisa? Eu cheguei a conclusão de que a resposta é
não: onde há vida, não há estabilidade” (ADÈS & SERVICE,
2012, p. 1-2). Esta constatação de Adès não nos deve levar a
acreditar que, portanto, em sua visão “tudo é instabilidade”.
Adès falará mais adiante que o compositor precisa lidar com o
“desejo do material” (ADÈS & SERVICE, 2012, p.8). Tal
tratamento não é uma simples adesão às tendências do
material. “Para realmente descobrir o que as notas desejam
fazer, você deve ir contra aquilo que primeiramente elas 261
parecem querer fazer, e daí elas começam a resistir e você tem
que usar outros imãs para ver o que elas estão realmente
sentido” (ADÈS & SERVICE, 2012, p.3). Esta afirmação de Adès
não deve ser tomada como uma personalização das notas, antes
se trata de dizer que o próprio “desejo do material” é instável.
O que Adès parece sugerir é que, se o compositor adere
facilmente a instabilidade do material, o que restará é uma
abordagem estabilizante dos desejos do material. Antes seria
melhor, instabilizar o própio desejo instável do material
produzindo-lhe resistências – isto é tratar o material enquanto
realidade metaestável. É preciso seguir o desejo do material
imantando-o, polarizando-o, tratando-o, isto porque é preciso
resistir a tratar o material como metaestável em si, pois isto
seria estabilizar a composição em uma mera tentativa de
adivinhação dos desejos do material. O que Adès parece ter em
mente é que o desejo do material realmente aparece quando
ele se configura como uma realidade que se configura entre as
tendências do próprio material e o tratamento que é dado pelo
compositor a tais tendências.
Assim, podemos dizer que a metaestabilidade do
material se configura como um sistema de relações entre o
FRONTEIRAS DA MÚSICA

desejo instável do material e o tratamento que o compositor vai


descobrindo momento por momento da composição. Podemos
denominar este último como a criação de procedimentos
composicionais transdutivos. Isto porque cada estruturação do
desejo do material deve ser abordado como um instante de
sedimentação e projeção de novas estruturações. Entretanto,
esse sistema de relações pode ser analisado em sua
consistência. Penso a consistência aqui como um valor que nos
permite avaliar em que medida os procedimentos
composicionais desdobram possibilidades de criação e de
escuta que não se fecham em si, mas se abrem a criação de
novos sentidos e práticas. Assim, os procedimentos
composicionais poderiam, por exemplo, ter uma consistência
estável, ou seja, a lógica ou a organização do material se
desdobraria em um resultado composicional que almeja a
conformidade do material ao tratamento dado; a escuta ou a
análise estariam de acordo com essa consistência estável se
seguissem a conformidade planejada e encontrassem na
262 composição a organização pretendida. Eles poderiam ter
também uma consistência instável, ou seja, a organização do
material está sempre em desconformidade com o material. O
tema do erro ou da incosistência seriam aqui facilmente
convocados, no entanto, vale lembrar que muitas
inconformidades ou incosistências são muitas vezes errâncias e
aberturas com relação às formas e procedimentos
historicamente configurados. Acredito que podemos pensar a
consistência estável e instável como limites ideiais que surgem
da tentativa de circuscrever às relações com o material como
apenas produtivas ali onde há determinação. A consistência
metaestável surgiria, então, como nem estável, nem instável,
mas como um tipo de conformidade singular que permite que
as indeterminações na organização do material possam ser
valoradas como produtivas. A consistência metaestável seria
uma perspectiva para a qual coexistem no tratamento do
material momentos de determinação e indeterminação. Minha
questão central pode assim ser formulada: Adès consegue
constituir uma consistência metaestável no tratamento dos
materiais com a utilização de procedimentos composicionais
transdutivos? Ou, dito de outro modo, qual a consistência do
campo problemático formado pelos problemas da
metaestabilidade do material e da transdutividade dos
Adés, para onde vão as notas?

procedimentos composicionais na obra de Adès? Comentemos


algumas obras agora com o intuito de formularmos, mesmo que
provisoriamente e de modo incompleto, uma possível resposta
para essa questão.
O opus 1 de Adès – Five Eliot Landscapes - aparece
como a tentativa de um jovem compositor de construir
paisagens (landscapes) feitas de materiais não-estruturados
previamente na tradição musical ocidental. Porém, o que
decorre dessa tentativa é a impressão de que as paisagens
musicais compostas se configuram como paisagens não-
estruturadas. Não se trata de um “ambiente desestruturado”,
no caso do opus 1, pois não há estruturas prévias reconhecíveis
as quais poderíamos dizer: “muito bem, já ouvi isso em algum
lugar, mas o que eu ouço aqui parece ser apenas os destroços
ou restos daquilo que já ouvi outrora.”. Ou seja, tudo se passa
como se o gesto do compositor de buscar procedimentos não
sedimentados na tradição produzisse como resultado
inequívoco uma composição que não possui capacidade de se 263
sedimentar. Uma composição cuja consistência não se
estabiliza.
Esse flutuar em que as cinco peças do opus 1 se
encontram apenas é conseguido por duas ações: a primeira,
conseguir um solo intersubjetivo através de uma configuração
formal dada, digamos, por aquilo que é exterior à composição,
ou seja, o opus 1 poderia ser caracterizado com um conjunto de
Lieder que não quer ser visto como um conjunto de Lieder;
nisto consiste a segunda ação, compor cinco peças para soprano
e piano, nas quais diferentemente da tradição de composição de
Lied voz e piano soam como se não se relacionassem por
determinações e aspectos musicais, mas simplesmente por
ocuparem o mesmo espaço sonoro, constituindo uma paisagem
indeterminada. Assim, começamos a ouvir e podemos dizer:
“certo, vamos lá, trata-se um conjunto de Lieder” e acabamos
por nos perguntar: “mais isso foi um Lied, eram peças para
piano e voz?”. Em suma, Adès compõe um espaço sonoro
musical no qual não podemos quase reconhecer estruturas
musicais que sustentariam a composição e, mesmo assim, a
composição se sustenta sem apelar para o artifício da ironia e
da desestruturação; conseguindo por fim inquietar o ouvinte
para a questão: “como eu devo ouvir esta peça?”. Isto fica
FRONTEIRAS DA MÚSICA

evidente em uma possível abordagem do opus 1. O que parece


que podemos fazer é descrever os materiais utilizados e, no
meio dessa descrição, permitir que a indagação pela relação
entre a parte do piano e a da voz surja e percebamos: há uma
possível descrição para a relação entre voz e piano, ou temos
que primeiramente sentir o que ainda não pode ser pensado,
não pode ser estruturado ainda? Isto na primeira peça do opus
1, New Hampshire, é facilmente observável.
O piano começa com um motivo que se repetirá ao
longo de toda peça e que consiste em uma passagem das notas
do extremo agudo ao grave do piano, em pianissíssimo quase
inaudível, no qual apenas se pode perceber o contorno rítmico
sincopado, e a passagem flutuante do agudo ao grave. Tal
motivo funciona apenas como efeito e é estranhamente esse
efeito que se repetirá incansavelmente, e que pode nos dar a
sensação de que esse ambiente preenchido de atmosfera é o
mesmo sempre, pois a reiteração desse efeito que nos coloca
264 em um lugar comum. Esse motivo é seguido por contornos
ascendentes que se articulam com um contraponto com uma
voz que chega até as notas mais graves do piano oscilando
ritmicamente entre mínima e semínima.
Esse motivo que parte das notas mais agudas até
chegar as mais graves, parece trazer a configuração de um 6/8
que é contraposto a essa outra voz que surge no agudo quando
o motivo já se encontra nas notas graves que poderíamos dizer
que se estruturaria em um 3/4; Adès consegue com isso criar
um ambiente flutuante, pois a peça está a todo momento
passando do agudo ao grave e do 6/8 ao 3/4, sem que
possamos estabelecer uma identidade para as vozes, do tipo
uma voz se articula em ambiência grave e em 6/8 em
contraponto com a voz aguda que se articula em 3/4. E esse
desencontro ficará ainda mais evidente no momento da
entrada da soprano (Comp. 11). A voz entra subitamente
interrompendo a terceira repetição do motivo, que fica pela
metade, mas que nem por isso deixa de ter a caracterização de
motivo; fica como um motivo atrofiado. Essa atrofia se produz
na inesperada estabilização da música em acordes de mínimas
pontuadas configurando um elementar 3/4. O movimento
inicial da peça assim interrompido dá a impressão de que com
a entrada da voz se terminaria um introdução mal construída. A
Adés, para onde vão as notas?

voz e o piano passam a executar tríades iniciadas em um quase


acorde de lá maior. A voz então caminha por graus conjuntos
na amplitude peculiar de uma terça. Na verdade há um
movimento quase tosco nos primeiros compassos de entrada
da voz. A voz grave do piano faz o movimento Lá-Fá#-Ré#-Fá#-
Lá; a voz aguda do piano Dó#-Si-Lá-Si-Dó#; enquanto a voz
executa Mi-Ré#-Ré-Mib-Mi. Esse movimento que desestabiliza
completamente uma análise tonal desse momento, parece ser
intensificada na negação da identidade daquilo que repete,
quando em vez de outra tríade Fá#-Si-Ré#, aparece um Mi
bemol sem nenhuma justificativa harmônica para tal
modificação. A voz acaba sua frase e o piano reinstaura o
motivo e a construção que já havia sido apresentada com
algumas pontuais modificações. E desta vez, a voz só retornará
interrompendo novamente o motivo após duas repetições.
Desta forma, podemos eliminar aquela hipótese inicial
de uma introdução mal construída, neste momento parece que
há um motivo no piano que é a base da peça e que a voz estaria 265
em contraponto com esse motivo, submetendo-o a se
configurar de acordo com o ritmo e o movimento diatônico da
voz. Porém, essa expectativa é quebrada, pois agora apenas os
dois compassos de entrada da voz se articulam pelas
características da voz. Depois desses dois compassos, vemos
até o compasso 65 uma sobreposição de voz e piano que
parecem completamente desarticuladas, a voz em sua
enunciação fixa em mínimas e semínimas em 3/4 e o piano
repetindo seu motivo sincopado em 6/8. A partir do compasso
65, a reiteração de um Si# em colcheia e semicolcheia, prepara
um momento de semi-estabilidade até o compasso 98. A partir
daqui, o piano repetirá seu motivo fazendo a sobreposição do
motivo propriamente dito com os materiais que configuravam
o que se seguia ao motivo, mas organizado em movimentos
descendentes e ascendentes mais delineados; enquanto a voz
abandona o movimento que a havia caracterizado, em oposição
ao piano, dos compassos 65-98. Tudo isso confluirá para um
momento final em que o piano retoma a repetição de colcheia e
semicolcheia em stacatto, mas também executa esboços do
motivo que o caracteriza, sendo que para a repetição em
stacatto é indicado na partitura uma letra que designaria o que
as notas estariam cantando. Essa sobreposição entre dois
FRONTEIRAS DA MÚSICA

conteúdos cantados, o da voz e o do piano (no caso, sem a


emissão das palavras) ganham vida a partir do compasso 116,
com a sobreposição dos dois cantos e do motivo do piano.
Entretanto, tanto o motivo do piano, quanto a voz vão sendo
abandonados em ppppp até só restar o piano repetindo notas ré
em semínima e stacatto quase inaudíveis que ainda possuem
paradoxalmente a indicação na partitura da letra que
corresponde à melodia que o piano está tocando. Esse final
articula uma dupla impossibilidade, tanto o motivo quanto a
voz parecem ter sido meros acontecimentos que não souberam
ganhar prevalência nem se articularem como estruturas, e ao
piano, que coube expressar esse clímax lírico da peça que
estaria indicado pela letra “O my little Alabama darling, do you
want the stars to play with, the moon to run away with, O my
little Alabama dool?”, só resta soçobrar os esforços diante das
notas inaudíveis e sem possibilidade de pronunciar as palavras.
Esse silêncio suspensivo do final é marcado como algo que deve
ser percebido, pois Adès coloca uma fermata sobre a barra
266 dupla, o que indica que não se deve entrar na segunda peça do
opus 1, sem que esse final estranho da peça seja plenamente
sentido.
No entanto, podemos dizer que a transdutividade dos
procedimentos composicionais é alcançada por meio de uma
exterioridade à metaestabilidade dos materiais empregados;
isto porque a estruturação se dá por uma negação dos
momentos estruturantes. A estruturação se dá por uma
negação das determinações próprias à tradição do Lied. As
estruturas avançam por meio de uma indeterminação que
apenas se consegue como negação dessas determinações
tradicionais. A questão que se configura desde o opus 1 pode
ser enunciada da seguinte forma: como conseguir um
tratamento transdutivo da metaestabilidade dos materiais sem
que isso seja apenas uma negação cínica dos modelos de
estruturação da tradição musical? Neste sentido, vale lembrar
que na primeira peça do opus 1 produz-se uma atrofia
melancólica das possibilidades expressivas quando, ao final da
peça, o piano parece surgir como o emissor nostálgico da
expressão de afecções por um espaço idílico e tal conteúdo
expressivo evidencia seu limite aterrador completamente
atrofiado: o piano deve expressar esse conteúdo (lembramos
Adés, para onde vão as notas?

que há uma letra indicada para as notas do piano na partitura)


sem palavras e em uma intensidade de som inaudível.
De todos os modos, tomei a peça do opus 1 mais
extrema nesse aspecto, pois é ela que me parece melhor se
relacionar com a questão supracitada. No entanto, poderíamos
dizer que majoritariamente o que prevalece nas cinco peças do
opus 1 são tentativas experimentais com uma multiplicidade de
materiais. Todas as outras quatro peças ilustram isso bem,
particularmente a última peça Cape Ann - uma peça que bem
poderia ser escutada como uma homenagem a ária da Rainha
da Noite da Flauta Mágica de Mozart -, na qual se evidencia
uma maior complementaridade entre a parte do piano e a da
voz. Porém, no ritmo frenético e onomatopaico em que se
desenvolve a peça, com seus súbitos momentos lentos, o
“quick” (rápido) que é tão repetido pela soprano parece não
dominar o piano que articula seus motivos de forma gradual,
apesar de acelerada; mesmo quando o piano produz apenas
glissandos como efeitos para acompanhar a voz, esta 267
desaparece logo em seguida e adere ao tom lúgubre que o
piano irá impor. Mesmo com essa adesão final, podemos dizer
que voz e piano aparecem como puras intensidades que não
respeitam uma estrutura que lhes é dada e nem conformam
uma estrutura em sua relação. Enfim, o que todas as peças do
opus 1 irão buscar é impingir ao material, enquanto um
conjunto de multiplicidades, uma inserção em um espaço
sonoro que resiste às estruturações.
Algo similar ocorre em seu opus 4, Catch. Adès o
caracteriza como uma peça de estudante, no qual o assunto que
o preocupava era “porque as pessoas simplesmente não
abandonam o palco?” (Ib, p. 54). O que é produzido com essa
peça é uma encenação anacrônica da desestruturação que
acomete não apenas a composição musical, mas às próprias
convenções sociais da execução e configuração da música de
câmara. Piano, violino e violoncelo encenam a tentativa de
capturar o clarinete. As aparições instáveis dos quatro
instrumentos articulam uma disputa irônica entre clichês
musicais que termina com a domesticação do clarinete, sua
captura. O clarinete é absorvido para a estrutura de música de
câmara do trio quando já nada acontecerá, nem nada
aconteceu, além de uma encenação da desestruturação. Outro
FRONTEIRAS DA MÚSICA

exemplo de transdução abortada ou autoimplodida em


procedimentos composicionais que constituem “ambientes
desestruturados” por desagregação da metaestabilidade do
material, pode ser encontrada em seu opus 2, Sinfonia de
Câmara. No primeiro movimento, os pratos parecem convidar
os sopros e as cordas para uma atmosfera jazzística
desestruturada; no segundo movimento, os sopros não se
caracterizam por motivos, melodias ou escalas jazzísticas ou
esteriotipadas, apenas criam uma textura instável.
Já o terceiro movimento, uma espécie de scherzo,
parece exibir a esquizofrênia decorrente da tentativa de
conjunção dos dois primeiros movimentos, ou de dois impetos
composicionais distintos. Por um lado, a absorção de materiais
fetichizado e clichês para subjulgá-los e submetê-los a um
ambiente desestruturado que tende a uma organização do
informe, por outro lado, o trabalho com materiais tentando
impedir a tendência interna desse materiais de se
268 estabilizarem, seja em clichês, em estruturas tonais, ou em
repetições que produziriam uma falsa coerência. A Sinfonia de
Câmara parece encenar essa questão que animou as obras
inicias de Adès: como desestruturar as formas e modos de
organização do material que animaram a tradição, ao mesmo
tempo, negando ou colocando em curto-circuito os
procedimentos que produziriam tal desestruturação? Como
experimentar novas possbilidades composicionais das
multiplicidades do material se tudo parece soçobrar à
desestruturação de um cinismo melancólico? Até este ponto
tenho concordância com a crítica de Safatle. Penso que apesar
das tentativas altamente inventivas de Adès de produzir
problematizações e instabilidade nos “ambientes
desestruturados”, subsiste um cinismo composicional que
mantém a “Ordem” e tende a uma organização convencional
apesar da descrença manifesta.
O material é almejado em sua metaestabilidade, mas os
procedimentos composicionais beiram uma consistência
niilista, ou seja, podemos dizer que Adès apenas consegue
tratar, inicialmente, a metaestabilidade dos materiais com
procedimentos desestruturantes. Uma descrença generalizada
que, apesar de produzir experimentações interessantes e
relevantes, não consegue afirmar as potências estruturantes da
Adés, para onde vão as notas?

metaestabilidade do material – uma perspectiva digna dos


piores momentos de Stravinsky. Assim, podemos mencionar
rapidamente que algo similar ocorre em outras peças de Adès.
Em seu opus 6, Under Himelin Hill, no qual tenta forçar o órgão
a produzir sonoridades e construções irônicas que
desestruturem os tratamentos historicamente convencionais
dos timbres desse instrumento. Em seu opus 9, Living Toys, em
que a descrição metafórica de Safatle me parece precisa:
“formas que são destruídas da mesma maneira que uma
criança destrói brinquedos e depois tenta remontá-los à força”
(SAFATLE, 2008, p. 200).
Em Arcadiana, na qual aparecem muitos fragmentos
que serão recuperados e reconfigurados em obras posteriores,
mas que mais parece uma sistemática ironização destrutiva de
motivos rítmicos e melódicos que configuram as estruturas da
barcarolla, da valsa, do tango e do adágio. Em Darknesse
Visible, um belo esgarçar do material produzido no piano com
base na canção In darkenesse let me dwell de John Downland. Já 269
Life Story, seu opus 8, parece uma homenagem destrutiva à
tradição de canções de Gershwin e dos musicais
estadunidenses, um distanciamento humorístico dos
personagens que enunciam suas situações melodramáticas –
nesta composição já podemos notar um trabalho de passagem
da encenação da desestruturação dos instrumentos para os
personagens que culminará em sua primeira ópera Powder her
face (1995) que comentaremos adiante. Neste conjunto de
obras anteriores a 1997 – o que poderíamos chamar de um
primeiro grande momento composicional de Adès, anterior a
Asyla – se encontram também, por um lado, obras com um
sabor neoclássico pós-moderno – se é que esta expressão tem
algum sentido - como Sonata da Caccia, opus 11, e The Origin of
the Harp, opus 13; por outro, ...but all shall be well e These
Premises are Alarmed, peças que se configuram como
interessantes experimentações com a metaestabilidade do
material, mas ainda procedendo por justaposição de elementos
que mais demonstram uma desestruturação entre si do que um
estruturação transdutiva, como ocorrerá com algumas obras
dos anos 2000.
Entretanto, vale destacar aqui duas coisas: primeiro, é
digno acentuar o caráter altamente inventivo e as buscas
FRONTEIRAS DA MÚSICA

experimentais que configuram as primeiras composições de


Adès; além de conseguirem resultados interessantes, servem
para o compositor se desafiar, pensar e inventar novos modos
de trabalhar com a instrumentação e, principalmente, com a
textura do material - desde a composição para coro e órgão em
seu opus 3, Grefiolsae me, até todas as formações com as mais
distintas configurações instrumentais. Em segundo lugar, vale
salientar que, se nos mais diversos conjuntos instrumentais
Adès está buscando modos de trabalhar com a
metaestabilidade do material sem sucumbir a clichês e a usos
irônicos e meramente negativos de procedimentos
desestruturantes – como é o caso evidente das modificações do
uso dos sopros -, em suas composições para piano –
instrumento com o qual inclusive Adès começa como solista –
há um domínio de procedimentos mais criativos, no sentido de
uma trabalho próprio e não cínico, para trabalhar com o
material.

270 Podemos dizer que a transdutividade buscada por


Adès – enquanto maneira de descobrir o tratamento dado aos
materiais processualmente - é, de certa forma, alcançada em
composições como Still Sorrowing e Traced Overhead. Still
Sorrowing, seu opus 7, uma peça para piano preparado - com a
particularidade de que os objetos colocados sobre as cordas,
para produzir a alteração da sonoridade e criar o efeito
percussivo, são trocados de lugar durante a execução da peça
pelo assistente do pianista – se configura como uma
composição na qual Adès conseguiu trabalhar com os materiais
de um forma inteiramente nova, inclusive não utilizando
possíveis gestos típicos de composições para piano preparado.
O mesmo ocorre com Traced Overhead, seu opus 15, esta peça
para piano consegue diluir certos clichês comuns à composição
serial para piano, principalmente em seu primeiro movimento
de menos de um minuto. Já o terceiro movimento, apesar do
uso ocasional de escalas impressionistas, se caracteriza por
meio de um procedimento que será chave para os resultados
texturais das composições de Adès, principalmente em suas
peças para piano. Este procedimento - que pode remeter suas
origens ao Estudo para sonoridades opostas de Debussy -
trabalha nos âmbitos extremamente grave e agudo do piano
fazendo com que a instabilidade interna ao sistema temperado
Adés, para onde vão as notas?

de afinação ganhe pujança. Isso somado ao uso constante de


pianíssimos no agudo e no grave que tornam as notas
inaudíveis quase entregues à pressuposição; procedimento que
também se afasta das mudanças abruptas de intensidade
características da justaposição dos materiais.
Por outro lado, o quarto movimento de seu opus 2 e
alguns momentos de seu Concerto Conciso já apontam para uma
mudança de perspectiva no trabalho com os procedimentos
composicionais. Podemos dizer que nas obras iniciais o
compositor ainda se encontra “colado” a metaestabilidade dos
materiais. Adès - como eu trouxe no início do ensaio - não
aceita se filiar a uma escola composicional, a uma linha com
pressupostos estéticos e poéticos rígidos, a um estilo que se
sobrepõe a imanência do material. Interpreto isto como um
paradoxal respeito aos desejos do material, isto porque, ao
mesmo tempo em que Adès parece submeter o material aos
seus mais diversos ímpetos inventivos, ele também não aceita
que a consistência de suas composições se dê a partir de 271
concepções que sejam exteriores ao material e que, de algum
modo, estabilizem-o. Serão dois procedimentos que permitirão
a Adès descobrir modos transdutivos para trabalhar com o
material. Por um lado, o 4° mov. da Sinfonia de Câmara parece
apontar um procedimento que irá imperar em muitos dos
movimentos lentos e finais de composições da primeira década
do século XXI (ADÈS & SERVICE, 2012, p.44). Trata-se de uma
estruturação como um zoom out, uma visão áerea que vai se
afastando de uma perspectiva localizada dentro do conflito (3°
movimento), quase como um discurso indireto livre, para
perceber a fragilidade da estruturação do material. Tudo se
passa como se Adès começasse a descobrir que as tendências
do material metaestável podem apontar para uma estruturação
que não se fecha em si mesma, mas que é, ao mesmo tempo,
sedimentação e projeção de um avanço de novas estruturações.
É como se Adès, descolando-se minimamente da imanência
metaestável do material, percebe-se ali sua potência
transdutiva. Como se, paradoxalmente, os desejos do material
fossem contrapostos a suas próprias tendências imanentes
para que pudessem produzir modos de avançar em uma
processualiade não mais desestruturante. Por outro lado, os
três movimentos do Concerto Conciso parecem encenar uma
FRONTEIRAS DA MÚSICA

mudança de tratamento do material. Se assim como em outras


composições, Adès se serve de clichês, principalmente nos
sopros, sua justaposição desestruturante se dissolve na textura
musical. Como diz João Rizek: “A textura muda mais rápido que
o ritmo (a arma secreta do compositor) que se constrói das
métricas mais inusitadas” (2012, p. 244)4. O trabalho com a
textura será o que paulatinamente o compositor descobrirá
para mudar de perspectiva com relação ao tratamento da
metaestabilidade do material. Para obter complexidade
textural Adès tem que se distanciar do material para poder
abordá-lo de uma perspectiva suficientemente exterior,
impingindo a ele funções e procedimentos que não são
imanentes aos seus desejos, às suas tendências, mas que o
permitem se estruturar de maneira transdutiva.
Asyla é, a meu ver, a obra na qual essa mudança de
perspectiva se efetua propriamente. A terceira obra pra
orquestra do compositor, de uma complexidade orquestral
272 imensa, insere o compositor na tradição sinfônica de maneira
bastante singular. O modelo dos quatro movimentos de uma
sinfonia é, no geral, seguido. O 1° mov. é uma curiosa tentativa
do compositor de compor uma chacona inspirada em Couperin
e em Bach. Adès diz que nesse movimento ele parte da
composição da melodia das tubas e na sequência, ao ir
avançando na harmonização, vai descobrindo que o trato com o
movimento do material melódico impedia que a composição se
tornasse uma chacona. Frente a essas inadequações, ele não as
abandonas mas vai produzindo uma complexidade textural que
capture a instabilidade surgente, não mais da justaposição de
materiais que não se adequam, mas de inadequações que
existem na simultaneidade do material em sua composição
textural. Adès afirma: “Eu respondia a uma instabilidade com

4
Um exemplo claro disso é o 1° mov. dessa obra. Nela podemos
afirmar que as modificações na textura impedem que os clichês, ou
quase-clichês, apresentados pelos metais se estabilizem configurando
um “ambiente desestruturado”. [Agradeço a João Rizek por preciosas
conversas, nas quais pudemos discutir muitos dos pontos abordados
na primeira versão deste ensaio – de 2012. Uma troca de impressões,
percepções e análises orientadas pela inquietação de novas
possibilidades sensitivas que acreditamos estarem abertas para
algumas das composições de Adès.]
Adés, para onde vão as notas?

outra, e isto poderia assemelhar-se a um salão de espelhos”


(ADÈS & SERVICE, 2012, p. 9). O material é posto no meio
desse “salão de espelhos” e seu desejo metaestável produz
imagens instáveis que são capturadas pelo compositor como
uma textura que une consistentemente essa multiplicidade
reflexiva; os ritmos, efeitos e motivos ficam como um resto
latente que não foi determinado nesse jogo de espelhos, eles
ficam como um conjunto de potenciais não captados pela
textura e que fazem avançar novas estruturações; este
descompasso entre a sedimentação dos desejos do material
metaestável em uma textura complexa, ao mesmo tempo, em
que um resto, um conjunto de potenciais, impulsiona novas
produções texturais – a tudo isto podemos chamar de um
procedimento composicional transdutivo.
O 2° mov. que, segundo Adès, está baseado na Sinfonia
em ré menor de Cesár Franck (ADÈS & SERVICE, 2012, p. 34),
consiste basicamente em uma melodia principal que efetua
uma longa descida alternando intervalos grandes e pequenos 273
tocados pelo obóe baixo ou heckelfone. Aqui se configura outro
procedimento que será muito utilizado nas composições
subsequentes, trata-se de construir melodias a partir de
sonoridades que soam artificialmente na estruturação da
textura5. Como se, na nossa metáfora do salão dos espelhos,
entrasse um material que os espelhos não conseguem capturar
e que, no entanto, altera a própria textura, pois soa como um
resto interno à própria configuração textural. Podemos dizer
que Adès o toma como um procedimento composicional em
analogia ao funcionamento do piano preparado. Adès, ao
escolher certos instrumentos para a orquestração, prepara-a
para produzir sons artificiais na própria configuração textural
que produz. A ideia de “orquestra preparada” poderia parecer

5Esta formulação parte das impressões tão distintas que tal uso do
oboé baixo produziu em Richard Taruskin e no maestro Simon Rattle.
Acredito que Taruskin exagera ao sugerir que tal sonoridade artificial
produziria certa descontinuidade temporal que remete aos
procedimentos da produção surrealista (TARUSKIN, 2011, p.9). Se tal
procedimento é capaz de produzir uma atmosfera onírica, as texturas
que ele compõe não estariam próximas às imagens bem comportadas
de Dali em Persistência da Memória, mas, sim, às de O Jovem Homem
Triste num Trem de Duchamp.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

absurda se esses efeitos que são obtidos fossem apenas efeitos


e não se inserissem como sonoridades artificiais que
desestabilizam a composição textural.6
O 3° mov., Ecstasio, causou polêmica pelo compositor
utilizar um tecno como forma de composição para o scherzo de
uma sinfonia. No entanto, para além da inventidade orquestral
surpreende – influenciada por Wagner e Mahler (ADÈS &
SERVICE, 2012, p. 58) -, uma crítica poderia ser feita com
relação à perda de complexidade textural e a estabilização
produzida ali. Não se trata de problematizar a euforia da peça
que representaria um ambiente de balada londrino de modo
fetichizado, primeiramente, porque descrições dessa natureza,
como a do crítico musical Alex Ross são normalmente
apressadas e acabam transformando a composição em uma
reprodução de um ambiente no qual começam a surgir “ritmos
marcantes, corporais, apupos, assobios, o ruído de multidão, a
emoção e o perigo do contato corpóreo” (ROSS, 2009, p.560)
274 que dificilmente são encontrados na peça. O crítico parece ter
mais vontade de estar numa balada do que numa sala de
concerto. Por outro lado, críticas como a de Safatle (2008)
perdem de vista que, se há utilização de materiais fetichizados,
ela não produz em Ecstasio um ambiente desestruturado, pelo
contrário, produzem um ambiente demasiadamente
estruturado. Minha crítica à consistência desse movimento diz
respeito à perda da metaestabilidade do material. Aqui a
textura está estruturada a partir do ritmo, não há a defasagem
que encontramos nos dois primeiros movimentos, e isto
produz uma estabilização no material. Na verdade, aqui
encontramos um dos poucos momentos em que Adès se cola ao
material fetichizado com euforia na estruturação. Até mesmo a
artificialidade das sonoridades surge como esperada e
previsível aqui, e totalmente inserida na textura.

6 Deleuze e Guattari oferecem preciosos apontamentos para


pensarmos essas questões, principalmente nos capítulos sobre o
Ritornelo e no sobra a Máquina de Guerra de Mil Platôs. Para uma
versão resumida e mais propriamente musical, ver: DELEUZE, 2005, p.
319-381.
Adés, para onde vão as notas?

O 4° mov. ainda me é bastante enigmático, não consigo


compreender muito bem sua função no interior da composição.
De todos os modos, uma possível interpretação seria a de que
Adès está buscando produzir um movimento de síntese
dissolutiva a maneira de algumas sinfonias de Mahler. No
entanto, aqui, Adès não produz uma complexidade textural
como a do 4° mov da Quinta Sinfonia de Mahler, mas uma
justaposição como a de quem passeia por uma exposição de
quadros, de sonoridades – impressão que poderia ser balisada
pelos usos de materiais provenientes dos Quadros de uma
Exposição de Mussorgsky, por exemplo, a citação literal do
intervalo característico do The Gnome no compasso 60. De
todos os modos, os dois últimos movimentos de Asyla parecem
perder a consistência transdutiva alcançada nos dois primeiros
e com isto a metaestabilidade do material tem, de certo modo,
sua potencialidade estabilizada. Veremos agora como essa
vacilação caracterizará muitas das obras subsequentes de Adès.
Concentrar-me-ei agora em composições que podem 275
nos apontar para possíveis respostas para a questão que
propus no início desta seção. São estas: Tevot, Polaris, In the
Seven Days e Concerto para Violino. Assim como esta última, há
ainda outras composições nas quais Adès retoma formas e
formações da tradição, são elas Quinto para piano, Mazurkas e o
quarteto de cordas The four quarters. Juntamente com as duas
óperas que comentaremos no excurso e a sinfonia Asyla, todas
estas composições marcam um curioso retorno do compositor
às formas tradicionais. No caso do Quinteto para Piano, a forma
sonata volta a estruturar completamente os materiais, que
parecem buscar em toda peça o que Adès chamou de nota
fetiche (Ib, p. 47-51), no caso um Mi#. O violino inicia a peça
perdido nessa nota fetiche, quando o piano entra, é a chance de
o conjunto organizar a exposição. Essa grande forma sonata
que ocupa três movimentos, teria a particularidade de possuir
dois desenvolvimentos. Todavia, a inserção dessa alteração não
faz com que a peça seja sentida como desestruturada, pelo
contrário, intensifica a sensação de que mesmo escapando a
estrutura tradicional da forma, esta rebeldia já está estruturada
de antemão, já é antevisto no trabalho com o material um
segundo desenvolvimento. A peça apenas se torna mais
caricata com a justaposição de uma espécie de intermezzo
FRONTEIRAS DA MÚSICA

completamente desestruturado entre os desenvolvimentos. Já


nas Mazurkas o modelo de Adès, como este mesmo afirma, é
Chopin: “Eu tentei fazer com o ritmo o que Chopin faz todo o
tempo com a harmonia e a melodia; ele está sempre deslizando
para longe de você” (RIZEK, 2012, p. 244). Resultam três peças
muito similares entre si, caso raro nas obras de Adès, em que as
melodias deslizam configurando texturas que se dissolvem.
Antes de abordarmos brevemente as principais obras
da primeira década do século XXI – Concerto para Violino,
Tevot, In the Seven Days e Polaris – retomemos a questão que
nos propusemos inicialmente: Adès consegue constituir uma
consistência metaestável no tratamento dos materiais com a
utilização de procedimentos composicionais transdutivos? Ou,
dito de outro modo, qual a consistência do campo problemático
formado pelos problemas da metaestabilidade do material e da
transdutividade dos procedimentos composicionais na obra de
Adès? Resumindo o que vimos até agora, podemos dizer que
276 Adès, desde suas primeiras obras, possui a preocupação de
garantir que os desejos do material não se estabilizem em sua
imanência, mas sejam magnetizados, instabilizados, tornando-
se assim um sistema de relações metaestável. Dito de modo
muito geral, o problema inicial é que Adès não consegue
abordar a metaestabilidade do material sem proceder por
justaposição criando ambientes desestruturados. Como se
necessariamente, frente à metaestabilidade do material, as
estruturações possíveis apenas pudessem ser destrutivas,
irônicas ou caóticas – obtém-se a ordenação consistente dos
materiais por meio da desordem. No entanto, por meio de dois
procedimentos – um distanciamento da imanência metaestável
do material e a composição de texturas transdutivas – o
compositor consegue uma nova consistência para o tratamento
com o material. Podemos descrevê-la da seguinte forma: a
composição de texturas transdutivas com a metaestabilidade
do material permite que um resto de indeterminação imanente
ao momento estruturante seja o impulsionador de novas
estruturações. A textura não forma imagens estáticas, mas é,
ao contrário, uma imagem em movimento. Entretanto, se
podemos responder nossa questão dizendo que Adès encontra
uma consistência metaestável com os procedimentos de
composição de texturas transdutivas, temos ainda que nos
Adés, para onde vão as notas?

perguntar se o campo problemático configurado por essa


consistência não se estabiliza na repetição de procedimentos
que constituem uma imagem estática – o cosmos como Tom
Service surgere (Ib, p.171.). Como pretendo defender na
sequência, Adès encontra imagens que conformam a
transdutividade dos procedimentos texturais e, com isto, perde
a metaestabilidade do material. A música enquanto realidade
metafórica – um conjunto de sistemas de referências distintos –
cede lugar à predominância de um sistema de referencia: a
consistuição de imagens que descrevam e sejam o cosmos, sem
movimento.
No Concerto para Violino, o arpejo domina quase toda a
peça, enquanto a orquestra parece produzir efeitos de fundo
sempre organizando uma imagem sonora circular. Já em Tevot –
obra pensada a partir da estória da Arca de Noé -, Adès
descreve seu procedimento chave da seguinte forma:

277
Eu gostei da ideia de que as barras de compasso estavam
carregando as notas como uma espécie de família através da
peça. E elas fazem, porque sem barras, você provavelmente
teria um caos musical. Mas eu estava pensando sobre a arca,
o navio, na peça como a terra. A terra poderia ser uma
espaçonave, um barco que nos transporta – e várias outras
espécies! – através do caos do espaço em segurança... é a
ideia do navio do mundo.7

Analisando a peça podemos perceber que os materiais


permanecem avançando em sua processualidade transdutiva,
mas, isto, apenas se submetidos a efeitos para conformarem
certas imagens ou narrativas. Essa estabilização imagética
ganhará seu correlato harmônico. “O mundo está em Lá Maior”
(Ib, p. 161). Adès faz esta afirmação no seguinte contexto: Tom
Service sugere que a música final de Caliban8 em The Tempest e

7
Citação de Adès no texto de Tom Service para o encarte do CD – Adès
– Tevot – Violin Concert. (EMI Classics).
8 Personagem que na ópera de Adès fica sozinho quando no final todos

abandonam a ilha, conseguindo assim realizar seu desejo mais


profundo de ser o rei da ilha.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

o momento de maior estabilidade do Quinteto para Piano se


estabilizam em um Lá Maior; Adès, então, diz que o mesmo
acontece no final de Tevot e Polaris.
Em In The Seven Days e Polaris, os procedimentos e a
consistência metaestável que antes produziam texturas
instáveis são tematizados nas obras e passam a configurar a
própria imagem sonora dessas composições. Nada mais
improdutivo estética e politicamente do que se circunscrever e
se submeter a uma autoimagem. Em Polaris, o magnetismo –
nome que Adès dá muitas vezes para seu tratamento com os
desejos do material - é o procedimento que organiza a peça,
mas é também aquilo que parece querer apreender a textura e
a metaestabilidade do material em uma imagem.

Essa peça de Thomas Adès foi escrita para orquestra de


maneira a incluir naipes de metais que podem ser isolados do
palco. Esses instrumentos tocam em cânone, uma vez em
278 cada uma das três seções da peça, entrando na ordem do
mais agudo (trompete) ao mais grave (tuba). Essas melodias,
assim como tudo nessa obra, derivam de uma série-
magnética – um dispositivo musical ouvido aqui pela
primeira vez – na qual todas as doze notas são gradualmente
apresentadas, mas de maneira persistente retornam a uma
nota de apoio, como que magnetizadas. Com a aparição da
décima segunda nota, claramente marcada pela entrada dos
tímpanos, os polos são invertidos. No início da última seção,
um terceiro polo é descoberto, estabelecendo um equilíbrio
estável com o primeiro. (JONES, 2011, p.11)

Essa descrição de Jones nos faz perceber que o que


antes organizava texturalmente o material se transforma em
dispositivo central que configura a totalidade de sentido da
obra. Os “objetos magnéticos” vêm à frente da cena e
estruturam a obra, estabilizando-a.
No caso de In The Seven Days, o surgimento do material
como algo metaestável que tende à estabilização ou a total
organização é tematizado. “Eu estava simplesmente contando
aquela história – a história dos materiais e também do
‘material’, tudo isto, no mundo. Isto é um ponto de encontro
Adés, para onde vão as notas?

entre ciência e religião” (ADÈS & SERVICE, 2012, p. 31). Aqui


poderíamos dizer que temos um procedimento paranoico que
quer contar a estória do surgimento do material para garantir
que ele realmente se configura enquanto realidade
metaestável. Nessa obra, acreditamos que Adès chegou ao
limite do paroxismo, ao fazer com que sua composição seja
uma metacomposição, ou seja, que sua composição retome um
procedimento típico de certa forma crítica moderna, a saber,
fazer com que a estrutura apareça, ganhe relevo. Porém, o
paroxismo encontra-se no fato de que aquilo que se pretende
como metaestável coincida com a estabilidade que configura a
obra, e, neste contexto, só podemos dizer que a estrutura da
peça é negação da estrutura, que a estabilidade é a negação da
metaestabilidade, e só podem coincidir em uma autoimagem
espúria.9 Sintomático também é o fato de que Polaris e In The
Seven Days são obras não apenas musicais, mas também
realizadas com vídeo. Ambas se constroem de música e
imagem. E nesse sentido não creio ser difícil afirmar que essas
obras de Adès encontraram exatamente o que estavam 279
buscando: a estabilização de seu sentido em imagens, mesmo
que abstratas. O que para Adès é justamente a vitalidade de
suas peças, o fato de a metaestabilidade do material advir
intuitivamente imagens e sensações, é o que paralisa a
processualidade transdutiva que podia garantir a
metaestabilidade do material de modo consistente.
Curiosamente, a música deixa de ser metafórica quando uma
imagem fixa suas possíveis apreensões de sentido. O que
podemos perceber é que a configuração de uma textura
transdutiva é confundida com a configuração de um espaço
visual e isso faz com o fluxo produtivo de um devir metaestável
se estabilize em algo que poderíamos chamar de uma imagem
sonora totalizante. Veremos que o impulso por configurar
imagens, que já se anunciava na coincidência – que
abordaremos no excurso - entre personagem e material em The
Tempest (2003), fará com que Adès acabe antecipando o
impulso formal ao desejo dos materiais, criando assim
fotografias desbotadas.

9Não me parece sem relevância dizer que esta talvez seja a obra em
que Adès mais se aproxima de um minimalismo de compositores como
Philip Glass.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Gostaria de concluir dizendo que me parece que Adès


constituiu um campo problemático muito relevante com suas
composições. Tentei me aproximar desse campo problemático
por meio de dois aspectos que me pareceram fundamentais ali:
a metaestabilidade do material e os procedimentos
composicionais transdutivos. Creio que com a efusiva
inventividade de suas composições Adès produziu, em seus
melhores momentos, um tipo de tratamento do material, por
meio de um trabalho transdutivo com as texturas, que aponta
para possibilidades consistentes que não mais se enclausurem
em dicotomias como música tonal e atonal, serial e pós-serial,
etc., que pareceram dominar o debate da composição e da
Estética Musical da segunda metade do século XX. Acredito que
quatro aspectos que abordei neste ensaio possam ser
produtivos para que encontremos na música novos potenciais
de transformação das sensibilidades e das relações sociais, são
eles: o material tratado enquanto sistema metaestável; a busca
de procedimentos transdutivos que forcem o pensamento
280 composicional a não se fixar em lógicas dedutivas ou indutivas,
mas que criem uma lógica transdutiva consistente para cada
obra; a aposta na textura como uma das maneiras de conjugar
consistentemente os dois aspectos anteriores; por último, e
talvez o mais importante, que o compositor não se feche em uma
autoimagem, mas se abra ao gesto ético de apostar todos os
possíveis, em cada composição, em transformar suas formas de
sentir e de pensar.

Excurso: duas óperas

Por fim, gostaria de contrapor as duas óperas de Adès:


The Tempest e Powder her face. Se naquela, a crítica que
construí anteriormente pode se exacerbada, pois ela encena a
configuração da ópera com o material transformado em
personagem, na qual cada personagem passa a ser uma imagem
sonora, um conjunto funcional que produz a organicidade da
obra como um corpo construído a partir de seus personagens-
funções; em Powder her face, surge a possibilidade de uma
forma crítica das relações sociais por meio de um potencial
mimético de exibir a aparência dos personagens como um
Adés, para onde vão as notas?

exagero de aparências que soçobram, desamparados na


composição e na vida social.
Em The Tempest, “os personagens não existem sem o
material” (ADÈS & SERVICE, 2012, p.11), pois a ópera é
construída pelo seguinte procedimento: se designa um
complexo harmônico para cada personagem, e se compõe a
partir da interação desses complexos. Dessa forma, tanto os
personagens, quanto os materiais tornam-se “cascas vazias”.10
Então, poderíamos dizer que, na verdade, é o material que não
existe sem os personagens. É criada uma imagem sonora para
cada personagem e a ópera seria, então, a dramatização estéril
desses fluxos de intensidades. Nesse sentido, a reconciliação
dos personagens no fim da ópera não é uma mera reconciliação
no assunto, mas é também uma estabilização dos materiais
através de uma reconciliação dos complexos harmônicos.
Se a lógica de tratamento do material em The Tempest
é a da consolidação de complexos harmônicos que sejam
próprios aos personagens que são usados como funções 281
composicionais, em Powder her face, a lógica do empréstimo, da
constituição de um material e de personagens para os quais
parece que nada lhes é próprio, configura outra lógica de
estruturação.

Havia um sentimento de Alice no País das Maravilhas,


naquela ópera [Powder Her Face]. Eu ia escrever alguma
coisa, que sugeriria empréstimo, eu iria forçar aquele
empréstimo a aceitar meu próprio idioma e levá-lo a um
ponto absurdo de distorção e de lá, ainda outra música
poderia irromper. É uma lógica de sonho, eu suponho. (ADÈS
& SERVICE, 2012, p. 27)

Adès explicita nessa citação o que caracterizou seu


trabalho com os materiais. Se muitos materiais seriam
roubados – há todo o tipo de empréstimos desde um tango e

10Devo a uma conversa com Lorenzo Mammì a bela expressão “cascas


vazias” para descrever os personagens desta ópera. Também gostaria
de tornar manifesto meu agradecimento a ele por tornar possível meu
contato, em 2012, com partituras do compositor.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

uma canção melosa dos anos vinte, até passagens de O


Cavaleiro da Rosa de Strauss, do The Rake-‘s Progress de
Stravinsky, da Flauta Mágica de Mozart, entre vários outros –,
no entanto, eles receberiam um tratamento que os submeteria
às vontades do compositor. É o que ocorre, por exemplo, com o
Tango que se apropria de um tango de Gardel alterando
completamente a harmonia que o informa, ou, no caso da
canção dos anos vinte cujo modelo é uma canção de Jack
Buchanan, completamente alterada. Contudo, quando o
compositor submete o material emprestado às suas vontades
ele não o faz produzindo estabilidade, transformando o
material em um complexo sonoro que seria próprio a cada
personagem. Ele o faz levando-o ao limite da distorção, da
desestruturação, isto porque para aqueles personagens toda
fala é um empréstimo, é um conjunto de aparências que só
podem resultar em mais aparências. O mundo para esses
personagens só pode ser uma realidade ilusória que aparece
distorcida e se propaga em novas aparências que vão
282 sustentando seus paulatinos desabamentos – a música tem a
potência mimética de captar essa situação. Esses aspectos
ficam evidentes no assunto da ópera:

Powder Her Face, por exemplo, é sobre alguém que se


entregou a reclusão, porque em sua vida uma porta foi se
fechando em seguida da outra e a Duquesa aprisionou-se a si
mesma em todo apartamento, então, ela se retira para um
mundo de perfume e fantasia e memória. A instabilidade na
peça vem de uma lacuna entre o que ela quer lembrar e o que
realmente aconteceu, porque ela vê tudo como um glorioso
espetáculo, mas esta não é a verdade. Sua estrutura de
negação, a mentira que ela construiu, começa a desabar
enquanto a noite decorre. A ópera é uma forma enfadonha de
transmitir isto, mas a extravagância é o ponto. Eu acho que
na época eu estava fascinado pela gratuidade da música.
(ADÈS & SERVICE, 2012, p. 60-1)

Adès constrói a ópera submetendo todos os materiais a


um uso extravagante e enfadonho. As falas das personagens
normalmente são exageradas e grotescas, Adès obtém esse
efeito da seguinte forma: são quatro personagens, a duquesa
Adés, para onde vão as notas?

sempre entoa melodias lentamente com passagens do grave ao


agudo em uma voz que aparenta ser a voz de alguém que está
em outro mundo; a empregada possui uma voz caricata com
chilreios agudos e com uma risada descontrolada que em
vários momentos aparece na ópera, contaminando a orquestra;
o eletricista sempre terá uma voz melosa que se quer sedutora
e carregada como se apresenta no momento em que esse
executa a canção de amor dos anos vinte; e o gerente do hotel
terá a voz explorada em notas graves que muitas vezes mal
podem ser emitidas sem parecerem um grotesco arroto, e
quando está representando o juiz tem um emissão carregada
de força excessiva e de uma variação entre agudos e graves que
torna seu discurso mais caricato ainda. Apenas a duquesa
possui o que poderíamos entender como uma “identidade fixa”,
apesar de ser uma identidade que tenta, a todo momento, se
afirmar em um retorno nostálgico a um passado que nunca foi
da maneira como ela o recorda. Os outros três personagens se
encontram, por assim dizer, em função da duquesa, se não
estão designados no libreto da seguinte forma “Emprega como 283
Garçonete”, “Eletricista como Garçom”, “Gerente de Hotel como
Duque”, eles já são apenas os funcionários do hotel que na
perspectiva da duquesa (e é exatamente isso que vemos na
última cena) nunca deixaram de ser meros serviçais que
tiveram a honra de servi-la. O universo todo da ópera é
construído como se todos fossem meras aparências para a
duquesa, sendo essa também uma mera aparência da imagem
que ela possui de si própria.
A ópera começa como uma paródia e termina com
aspectos trágicos, mas sem nunca perder a extravagância –
mimese de nossa realidade social. O que começa com o
“Eletricista como Duquesa”, ele se pintando e cantando
melodramaticamente sobre como foi traída e sobre o tempo em
que todos a amavam e compunham canções para ela, termina
com o trágico destino de uma personagem, agora a própria
“Duquesa” que, apartada de tudo e de todos, não consegue se
livrar da fantasia que criou para si mesma de glamour e beleza.
Tanto na música como na dramaturgia o que temos são
personagens desconectados das imagens que tem de si,
músicas desconectadas de suas estruturas e de seus contextos
próprios, resultando em personagens e materiais que não são
FRONTEIRAS DA MÚSICA

mais do que meros reprodutores de estruturas sociais já


determinadas. Isso faz com que toda a ópera seja composta de
aparências, mas aparências que se manifestam como
aparências que estão no limite do instável e de revelar a
instabilidade que configura sua realidade social. Essa ópera
consegue alarmar sensibilidades críticas para a monstruosa
racionalidade que sustenta a sociedade cínica em que vivemos,
na qual todos só podem ser apenas aparências das aparências
que desejam ser11.

Referências bibliográficas
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Tom Service. New York: Farrar, Straus and Giroux Books, 2012.
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DELEUZE, G. Derrames - Entre el capitalismo y la esquizofrenia. Buenos
284 Aires: Editorial Cactus, 2005.
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia v.
3 e 5. São Paulo: Ed. 34, 1999.
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ROSS, A. O resto é ruído – escutando o século XX. São Paulo: Companhia
das Letras, 2009.
SAFATLE, V. O esgotamento da forma crítica como valor estético. In:
Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.

11 Remeto aqui a um ensaio de Vladimir Safatle que pensa, de modo


mais geral, algumas das questões que tentei trazer com as óperas de
Adès. Podemos dizer que o filósofo aborda três afetos como núcleos de
organização política da vida social: a angústia sem objeto (muito
similar a que acomete aos personagens de Powder her Face), a
insegurança social e civil (que produz a sujeição de boa parte dos
indivíduos em nossa sociedade) e o desamparo como insegurança
ontológica que abre os corpos para processos de transformação por
incorporação do que é indeterminado. Cf.: SAFATLE, 2015, p. 47-97.
Adés, para onde vão as notas?

____. O circuito dos afetos – corpos políticos, desamparo e o fim do


indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
SIMONDON, G. L’individuation à la lumière des notions de forme et
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____. Cours sur la perception : 1964-1965. Chatou: Éditions de la
Transparence, 2006.
TARUSKIN, R. Um compositor surrealista vem resgatar o modernismo.
In: Revista OSESP – Especial Thomas Adès, 2011, p. 5-9.

285
Música e filosofia em Noites florentinas de Heine1

MARCOS BRANDA LACERDA

o contrário de outras nações da Europa, a Alemanha


A carecia nos tempos de formação da modernidade de um
centro prevalente de irradiação de valores culturais.
Equipamentos e atividades artísticas diversas eram
distribuídos por suas várias regiões e cidades do território
germânico que, com exceção da Áustria, compunham as nações
que viriam a passar pelo processo de unificação no Século XIX.
Desta maneira, formaram-se centros relativamente equânimes
em importância cultural de acordo com a independência de
unidades administrativas menores, como principados,
condados, bispados etc. Tem lugar aí um sistema baseado na
concorrência entre pequenos centros de poder, ao qual Norbert
Elias atribui grande importância para a formação do volume de
práticas musicais na Alemanha de séculos passados. Ao ser
posto para fora de Salzburgo, Mozart, por exemplo, não teve
problema em dar continuidade a seu trabalho, já que aquela
autoridade tinha alcance administrativo limitado. Isso se
estendeu por quase todo século XIX. Se Schoenberg se referiu
certa vez à “supremacia da música germânica”, isto tem como
pano de fundo as relações econômicas estabelecidas nos
séculos XVIII e XIX a partir dessa realidade. Em outras palavras:
é real um certo tipo de superioridade alemã sobre os demais
países da Europa (e do Ocidente em geral) no que tange às
práticas musicais eruditas do século XVIII ao XIX. Esse fato
parece justificar o imenso esforço que faz o Estado alemão para
sustentar ainda hoje o que é certamente um dos maiores e mais
dispendiosos aparelhos de ensino musical devotado à prática
erudita, tradicional e contemporânea.
Perguntamos se essa práxis traz junto de si também o
conjunto de ideias que formaram o espectro filosófico que

1
Todas as traduções são de responsabilidade do autor, salvo as
indicadas nas referências bibliográficas.
Música e Filosofia em Noites Florentinas

acompanhou o surgimento do espírito romântico, quando a


atividade musical na Alemanha se tornou particularmente
aguda. Após a formação de um conjunto razoavelmente
articulado de ideias representado pelo Sturm und Drang ao
final do século XVIII, desfila no campo filosófico uma série de
conceitos explicativos de uma cisão com a materialidade das
coisas e da arte com aquilo que é exterior ao sujeito. Está por
trás disso uma justa crítica à sobreposição de valores
iluministas para o exercício das artes. No pensamento radical
de Fichte dá-se valor agora a conceitos como intuição
intelectual, imaginação produtora; um individualismo (o Eu
Absoluto, o Ser Incondicionado, isto é a individualidade não
influenciada pela experiência no mundo real) passa a ser
invocado como forma de acesso ao conhecimento verdadeiro,
independente das realidades empíricas. Menciono aqui a
apresentação desse estado de coisas realizada por Bornheim:

Na Teoria da Ciência”, a mais importante obra de Fichte, “o 287


que mais apaixonou os românticos foi a explicação de toda a
realidade a partir de um princípio único, fazendo-os aderir
mesmo ao idealismo exacerbado a que conduzia o sistema de
Fichte. Os dualismos kantianos pareciam definitivamente
superados; Fichte tivera a audácia de reabilitar a intuição
intelectual contra as duas fontes do conhecimento, de reduzir
o mundo extramental à subjetividade, o Não-eu ao Eu,
rompendo assim não só com o quebra-cabeça do dualismo
fenômeno-númeno, mas principalmente com a oposição
irredutível entre o sensível e o espiritual. E este Eu se
apresenta com traços simpáticos aos românticos em muitos
de seus aspectos: um Eu dotado de enorme força criativa, a
ponto de fazer do mundo exterior um derivado da
imaginação produtora do homem; um Eu no mais que vence
resistências, obstáculos por ele mesmo produzidos, em sua
marcha para o infinito definitivamente distante - uma
marcha, contudo, redentora do homem. (BORNHEIM, 1978,
p. 92).

E também por força da presença dos românticos de


primeira hora, Schelling acrescenta a isto uma divisão clara do
FRONTEIRAS DA MÚSICA

papel abstrato da filosofia e do poder realizador da arte.


Seguimos com Bornheim:

Tanto o pensamento reflexivo como a natureza e o espírito


movem-se em um mundo de sombras, cujo sentido último
está no [Eu-] Absoluto (ou Incondicionado), único ser dotado
de substancialidade. Todo o mais são ideias ou arquétipos na
mente divina. E assim, o mundo numenal, das coisas em si,
que Kant situava além do fenômeno e interpretava como seu
pressuposto necessário, é transferido por Schelling para a
mente divina. Compreender esse platonismo idealista é
missão da vida filosófica; revelá-lo concretamente, próprio
do gênio artístico, casando-se assim a intuição intelectual
com a estética. (BORNHEIM, 1978, p. 104)

Há uma integração da arte ao sistema filosófico, cuja


discussão passa a superar o espaço ocupado pelos filósofos.
288 Estão entre os diversos formuladores de uma nova função para
a arte F. Schlegel, Schiller e Goethe entre outros. Em linhas
muito gerais, Schlegel define a criação artística como algo que
parte do mundo sensível para espiritualizar-se na forma de
obra de arte; nessa operação confluem portanto o real, que
parte da materialidade do signo artístico, ao ideal. Também
Schiller via a obra de arte entre estes dois mundos como uma
forma de superação do dualismo real/ideal. (BORNHEIM, 1978,
p. 93)

Heine
Mas vejamos a percepção que teve Heinrich Heine da
doutrina idealista dos filósofos alemães. Como é sabido, trata-
se de um dos poetas mais apreciados pelos compositores
românticos alemães. Ele procura dar forma ao entendimento
crítico do universo conceitual de filósofos e homens de letra da
Alemanha do final do século XVIII e das primeiras décadas do
século XIX. Escreve em 1934 o extenso trabalho “Zur
Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland” (“Para
a História da Religião e da Filosofia na Alemanha”) endereçado
Música e Filosofia em Noites Florentinas

ao público francês. Não lhe faltam ironia e mordacidade para


tratar também destes assuntos.
Após traçar uma fascinante e bem humorada visão do
estilo e dos hábitos pessoais supostamente insossos de Kant,
Heine escolhe também sua filosofia como introdução às ideias
desenvolvidas na virada dos séculos XVIII e XIX. Através da
oposição entre fenômeno e númeno apresentada na “Crítica à
razão pura” é introduzida uma discussão sobre a existência de
deus. “Deus é, para Kant, um númeno. Como consequência de
sua argumentação, aquele ser ideal que chamávamos até então
de ‘deus’, não é outra coisa senão uma invenção” (HEINE, 1834,
p. 107). Segundo Heine, qualquer demonstração da existência
de deus estaria destinada ao fracasso, já que partiria do mundo
físico para extrapolar às mais elevadas esferas fora deste
mundo, ou partiria de discutíveis conceitos apriorísticos
abstratos. Mas essa discussão é dramaticamente interrompida
em sua narrativa, quando se insinuam as consequências da
irracionalidade da crença na existência de deus. A presença de 289
deus estaria assegurada em Kant apenas por uma reconhecida
necessidade do homem mediante o desenvolvimento de uma
razão prática.
Heine passa então a considerar as ideias de Fichte e
Schelling munido de um pensamento crítico exacerbado. Para
ele, a filosofia de Fichte resume-se na seguinte questão: “Que
razões temos para aceitar que as ideias que temos sobre as
coisas equivalem a estas mesmas coisas? E a essa questão ele
dá a resposta: todas as coisas possuem realidade apenas em
nosso próprio espírito” (HEINE, 1935, p. 116). As coisas
existiriam apenas a partir de ideias desenvolvidas pelo espírito
humano. Como resultado disso, o Idealismo, um conceito ligado
à operação mental implicada nas ideias de Fichte, é visto como
equívoco na medida em que representa a negação absurda da
realidade das coisas que se encontram fora do sujeito. E no que
tange ao idealismo preconizado em seguida por Schelling,
Heine reconhece o procedimento inverso: “Partindo-se do
fundamento que pensamento e natureza seriam uma mesma
coisa, Fichte chega ao mundo real através de operações do
espírito; do pensamento ele cria a natureza, do ideal ele chega
ao real; para o Sr. Schelling, ao contrário, ainda que partindo do
mesmo fundamento, o mundo real transforma-se numa
FRONTEIRAS DA MÚSICA

infinidade de ideias, a natureza torna-se para ele pensamento,


o real torna-se ideal” (HEINE, 1935, p. 139). Heine se contradiz
aqui em parte quando vê uma relação de complementaridade
entre os dois filósofos, já que também atribui as duas posições
seguintes à Schelling: à operação que transforma o mundo das
ideias na realidade das coisas estariam implicadas a
justificativa das ciências naturais; o inverso corresponderia ao
“Sistema do idealismo transcedental”, título de um trabalho de
Schelling de 1800.
Não há dúvida que a intenção de Heine com sua obra é
a de marcar uma posição de oposição aos dois filósofos aos
quais são atribuídas colaborações importantes à arte
romântica. Em suas observações sobre Fichte, Heine
acrescenta com ironia: “Perguntariam as damas: não
acreditaria ele ao menos na existência de sua própria esposa?”
(HEINE, 1935, p. 117). No entanto, em razão das postulações
desafiadoras de uma teologia deísta implicada nas políticas de
290 Estado, e também da perseguição que sofreu, Fichte ganha uma
longa e positiva apreciação a partir de remissões às memórias
de Goethe e Herder, de narrativas próprias sobre o convívio
com Kant etc. Schelling tem menor sorte. Ele é impiedosamente
criticado de maneira implacável por sua escrita, que se
dividiria contraditoriamente entre a fria objetividade filosófica
e uma incipiente representação poética de ideias. Schelling
teria criado uma horda de seguidores que não se orientariam
por princípios ou por uma disciplina definida, mas apenas por
se abrirem às emanações de espíritos difusos; a filosofia
naturalista decorrente de suas ideias nada mais seria do que
uma cópia da teoria de Espinoza, assim como sua defesa da
existência de deus estaria baseada em argumentações
presentes igualmente no sistema daquele filósofo. (HEINE,
1935, p. 141-44)2.
Nesse contexto, interessa a Heine a crítica ao
cristianismo em benefício do panteísmo. Ele atribui a
impressionante força das religiões cristãs à ideia nelas contida
da oposição entre o bem e o mal. Ele localiza a origem das
crenças católicas e da importância destas crenças nas práticas

2 Cf. também BORNHEIM, 1978, p. 104.


Música e Filosofia em Noites Florentinas

maniqueísta e gnosticista da Idade Média, que teriam se


disseminado como “doenças contagiosas por todo o império
romano.” Heine enumera provas disso em toda cultura do norte
europeu; surge nesse contexto a interpretação da Venus de
Tannhäuser como a “filha de Belzebú,” de forma muito
semelhante como construída por Wagner uma década mais
tarde (HEINE, 1935, p. 15). Heine assenta a natureza panteísta3
dos povos do norte da Europa em sua condição original: “Seus
mistérios e símbolos relacionavam-se às coisas naturais, em
cada elemento celebravam-se seres excepcionais, em cada
árvore respirava uma divindade, toda realidade era dominada
por um deus, mas o cristianismo inverteu essa lógica.” No lugar
de uma natureza perpassada por deus criou-se a imagem desta
mesma natureza submetida à influência demoníaca (HEINE,
1935, p. 16). O cristianismo seria responsável ainda pela
destruição da sensualidade e o catolicismo não passaria de um
compromisso entre deus e o diabo, isto é entre o espírito e a
matéria (HEINE, 1935, p. 25). Ele afirma também a
importância e genialidade de Lutero, mas, bem entendido, 291
quando serve ao desenvolvimento da língua e do pensamento
alemães e não da religião. Com relação ao protestantismo, ele
dirá que a doutrina gerou uma divisão entre místicos sem
fantasia - os pietistas -, e ortodoxos destituídos de espírito
(HEINE, 1935, p. 60 e 77).
Aqui está uma definição de Heine para panteísmo tão
objetiva quanto possível. Nota-se nela também a tendência à
superação da dualidade kantiana entre fenômeno e númeno ou
das coisas em relação ao homem e entre si mesmas.

Deus é idêntico ao mundo. Ele se manifesta nas plantas que


teem uma vida inconscientemente cósmica e magnética. Ele
se manifesta nos animais, que em sua sensual vida de sonhos
possuem uma existência mais ou menos baça. No entanto, o
mais bonito é sua manifestação no homem, que ao mesmo
tempo sente e pensa, que sabe individualmente diferenciar-

3 A ideia do panteísmo será entusiasticamente desenvolvida quando


ele abordar as ideias de Espinoza, ou como ele o chama, o “terceiro
filho” de Descartes - após Locke (materialismo) e Leibniz (idealismo).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

se da natureza e tráz em sua razão as ideias que estão


representadas no mundo exterior.

Não tenho condições de fazer objetivamente uma


comparação entre a formulação de Espinoza e do entendimento
de Heine do conceito de panteísmo. Porém, vale dizer que o
poeta identifica com entusiasmo a tendência panteista não
apenas nas ideias de Goethe, mas disseminada por toda a obra
deste autor. Ele faz referência a momentos específicos do
Werther e do Fausto, mas menciona também aquelas canções
mais simples, feitas na forma “mais pura e singela”. Segundo
ele: “A teoria de Espinoza liberta-se do casulo da matemática e
adeja para nós na forma de uma canção de Goethe. [...] Os
versos harmônicos entrelaçam-se em teu coração como a
amada suave; a palavra te abraça e o pensamento te beija”
(HEINE 1835, p. 68-9). Como se sabe, Goethe é pessimista em
relação à abordagem de fatos relativos ao mundo sensível em
292 bases exclusivamente objetivas. Na condição de artista, ele
refuta filosoficamente o conhecimento estabelecido pela via
mecanicista oferecida pela ciência e acaba ele próprio por se
dedicar ao estudo de vários sistemas naturais. O Fausto, já em
uma de suas primeiras versões, é na companhia da Divina
Comédia transportado à posição exemplar e redentora de obra
de arte e tem no próprio Schelling um de seus comentadores
que o erigem a essa condição (CAMPOS, p.133-34 e p.137).
*
Mas, em conformidade com as ideias produzidas pelo
Sturm und Drang, Goethe dá a entender que os pressupostos de
uma arte romântica são também um fato antropológico, um
traço de identidade. Ele afirma que a racionalidade dos
princípios iluministas e o equilíbrio poético alcançável pela
vontade de reproduzir princípios formais da antiguidade
grecolatina, não estariam mais disponíveis aos predestinados
povos do norte como os alemães (BORNHEIM, 1978, p. 84).
Essa perspectiva traz à tona uma oposição mais antiga, aquela
que se estabeleceu no campo das artes entre o idealismo
alemão e o materialismo francês, para usarmos uma expressão
de Heine. Nessa linha, ilustrando ainda o que poderia ser
entendido pela dicotomia entre valores relativos de uma
Música e Filosofia em Noites Florentinas

ciência empírica e os valores de um idealismo absoluto,


menciona-se anedoticamente que enquanto Gide tiraria uma
lente do bolso para conhecer com detalhes um determinado
objeto pelo qual tivesse interesse, Rilke experimentaria fechar
os olhos (BORNHEIM, 1978, p. 96). Nesse sentido, invocamos
também, aqui excepcionalmente, o pragmatismo dos Estados
Unidos que surge na virada dos séculos XIX e XX, justos cem
anos após a publicação dos primeiros trabalhos de Fichte.
Apesar da distância temporal, pode-se notar uma relação de
oposição entre as duas doutrinas quando filósofos ainda hoje o
apontam como o “centro nervoso da oposição ao idealismo
absoluto” (BLACKBURN, 1978, p. 237). William James,
fundador do pragmatismo e que o conceituara como um
“empirismo radical”, vê sua filosofia por um viés também
necessário aos idealistas, mas o de menor importância: o
caminho referente ao mundo exterior, sensível, não ideal - o
que Fichte denominara de Não-eu. A diferença expressa nas
duas escolas constituem certamente razões importantes da
diversidade na prática intelectual e nas formas de aproximação 293
à música desenvolvidas preferencialmente na Alemanha e nos
Estados Unidos.

Noites florentinas de Heine


Me parece ser nesse mesmo sentido que Heinrich
Heine cria em Noites florentinas a oposição entre um
comerciante e um narrador romântico sentados lado a lado em
um concerto em Hamburgo de ninguém menos que Paganini.
Ao comerciante, que também era violinista amador, cabe a
percepção objetiva do fenômeno musical. Ele busca o
entendimento dos fatos musicais atendo-se a aspectos
determinados da execução e lançando mão de alguns conceitos
tecnicamente precisos, embora limitados; faz observações
sobre a real condição de se chegar àquele nível de desempenho,
mas seu discurso é rapidamente superado pelas visões
extraordinárias do narrador.
A cena do concerto de Paganini adquire centralidade
na construção do relato. Ela é bastante longa e dá tempo ao
autor de analisar através da linguagem os aspectos musicais do
FRONTEIRAS DA MÚSICA

repertório em conjunção com a presença física e a


personalidade do artista que o produz. Certamente, Heine e
Paganini transformam o mundo exterior em “um derivado de
sua imaginação produtora”, conforme citação acima de
Bornheim sobre Fichte. Apesar das imagens impressionantes
suscitadas na mente do poeta, não se trata de alucinações:
Paganini transforma-se constantemente, mas nunca sai de
cena: é sempre ele quem está por trás de todo o disrcurso! O
realismo é mantido apesar da aparência onírica. A narrativa
sobre o concerto é precedida por uma discussão que poderia
ter sido derivada das ideias de Goethe, na qual o narrador
termina por afirmar e explicar o seguinte: “Há pessoas,” diga-
se: o próprio narrador, “para as quais os sons propriamente
não passam de sinais invisíveis nos quais elas escutam cores e
figuras” (HEINE, 1986, p. 41). É permanente o engajamento em
dar forma e movimento ao discurso, sabe-se lá se a partir de
estímulos musicais concretos ou imaginários. (Pessoalmente
não acredito que o escritor tenha prescindido aqui de estímulos
294 musicais bastante precisos). O elemento pictórico é marcante,
como demonstra esta passagem, relativa à terceira peça do
programa: “[...] O sábio rei mergulhou no mar aqueles vasos e
eu acreditava perceber as vozes dos espíritos neles
encarcerados, enquanto o violino de Paganini trovejava
coléricas notas de baixo profundo. Ao final, cri perceber algo
como júbilo da libertação e vi como emergiam das ondas
sangrentas as cabeças dos demônios desencadeados: monstros
de fabulosa feiúra, crocodilos com asas de morcego, serpentes
com aspas de veado, macacos com bonés de conchas, focas com
barbas patriarcalmente longas, rostos de mulher com peitos no
lugar das faces, cabeças verdes de camelo [...]”
A primeira peça contém alguns fatos supostamente
vividos por Paganini e descritos logo antes da primeira cena,
como se tratasse de distorções próprias de um sonho. O
narrador transmite por analogia sensações sugestivas da forma
das peças, dos tempos, de alguns aspectos texturais, do caráter
de cada parte e, sobretudo, da natureza da expressão dramática
e de características que se compõem da percepção simultânea
de elementos diversos. Tem-se uma ideia da sucessão de peças
de acordo com o tempo de cada uma delas, como se tratasse
dos movimentos de uma sonata. A narrativa se inicia pela peça
Música e Filosofia em Noites Florentinas

formalmente mais elaborada. É descrito um ambiente


romântico, o típico “camarim de uma prima dona”, no qual
surge também a figura de uma jovem criatura com a qual o
violinista dialoga alegremente para então, como em um surto
esquizofrênico, transformar-se subitamente e terminar por
assassiná-la. Na segunda peça o andamento cai subitamente e o
acontecimento passa a representar uma única atmosfera. Aí
reaparece a figura de Paganini: “as notas não se transfiguravam
em formas e cores claras; muito antes, a figura do mestre se
envolvia em sombras densas.” Na peça seguinte, as cores
mudam drasticamente: “[...] no momento em que, enfim as
águas alvorotadas assemelhavam-se a sangue do mais
escarlate, o céu adquiriu uma claridade espectral, uma
brancura cadavérica, e, grandes e ameaçadoras, brotavam nele
as estrelas [...]” Finalmente, a última peça é ainda mais
expressivamente dedicada à figura do artista que, após as
sucessivas referências à sua presença, é então colocado no
centro de uma celebração religiosa: “Os peregrinos giravam em
amplo círculo em torno do grande músico, e das notas de seu 295
violino brilhavam cada vez mais claros os castões dourados, e
os corais que ressoavam de seus lábios e que eu havia tomado
pela música das esferas eram apenas o eco perdido daquele
violino. Um fervor indizível e sagrado morava nesses sons...”
(HEINE, 1998, p. 55-65). Aqui alude Heine diretamente àquela
perspectiva panteísta que defende, em que, como dito abaixo,
“a partir de agora serão celebrados... os verdadeiros feitos do
verdadeiro heroísmo.”
*
Noites florentinas pode parecer uma tentativa da fusão
de dois mundos: de um lado a frívola atmosfera dos salões e do
gosto burguês, e, do outro, a prática de uma nova arte,
desenvolvida no seio deste ambiente, mas, quem sabe,
conceitualmente independente dele. Heine flana
assumidamente por aspectos deste universo que podemos
considerar superficiais: por exemplo, o cuidado excessivo com
a descrição de detalhes de aparência e o sensualismo quando
toca a questão feminina e as relações pessoais do narrador com
sua ouvinte Maria e com a ex-dançarina de rua e agora
próspera senhora, a Mademoiselle Laurence. No domínio da
música, suas escolhas se movem genericamente entre grandes
FRONTEIRAS DA MÚSICA

mestres, sem dúvida, mas bem inseridos socialmente por


corresponderem à moda mais do que outros; aqui, os mestres
de Heine são atualíssimos e indiscutivelmente afeitos ao
exibicionismo virtuosístico: o elogio a Bellini - o verdadeiro
instigador do bel canto -, se dá pelo frescor de sua aparência
física e por seu comportamento espontâneo frente à uma dama
em um conhecido salão de Paris; a admiração a Liszt é ornada
pela ironia também no contexto de uma de suas gloriosas
exibições privadas igualmente no meio burguês de um salão
parisiense (é feita referência à transcrição da Marcha ao
suplício de Berlioz além de uma suposta peça que o colocava na
proximidade do filósofo-escritor francês Ballanche). Somando-
se a isso está a arte indefectível de Paganini: ela é situada em
lugar público, desencadeia um igualmente virtuosístico surto
imaginativo e descritivo de Heine e termina por adquirir
centralidade na narrativa além de uma dimensão estética mais
elevada do que se reputa de maneira geral nos dias de hoje a
essas obras. Estamos por certo diante de hábitos claramente
296 inseridos em novos costumes burgueses e provavelmente
materialistas. O repertório referido é histórico e consistente; no
entanto, ele é inadequado para ilustrar uma visão de mundo
profunda, equivalente a uma arte imbuída do idealismo ou de
uma filosofia que mobilizaria a crítica alemã para além do
tempo de Heine.
Mas é Heine mesmo quem dá uma resposta a essa
ambiguidade. Em sua publicação sobre o pensamento alemão
ele deixa corresponder ao idealismo a imagem negativa que
traçou genericamente do cristianismo. Com isso cai não apenas
o conceito, mas também os objetos da arte que conviriam e
equivaleriam a este conceito. Ele identifica agora o panteísmo
quase como uma nova religião, manifestado nas ações humanas
extraordinárias, ainda que possa estar consciente de origens
sociais deste fenômeno muito diferentes da experiência alemã,
fundada na sobrevalorização da tradição popular. Certamente,
ele ignora preceitos desta tradição, que, por sinal, é a que mais
o influencia na construção formal de sua obra poética. O
homem aqui, como descrito abaixo, e o artista caracterizado em
Noites Florentinas correspondem muito mais à objetivação de
ideais burgueses do que a qualquer ideia mais abstrata
Música e Filosofia em Noites Florentinas

suscitada pelo discurso fundamentalmente filosófico ou à então


antiga ideologia do Sturm und Drang.

Pois o cristianismo, incapaz de destruir a matéria, provocou


distorções por toda parte; ele degradou os mais nobres
prazeres: com os sentidos obrigados a enganar surgem a
mentira e o pecado. Precisamos vestir nossas fêmeas com
roupas e pensamentos novos e insensar nossos sentimentos
como depois da peste vencida. O próximo objetivo de nossas
instituições é a reabilitação da matéria, a reconquista de sua
dignidade, seu reconhecimento moral, sua cura religiosa. [...]
É equivocado pensar que essa religião - o panteísmo - leve os
homens à indiferença. Pelo contrário, a consciência de sua
substância divina levará o ser humano à revelação
entusiástica de si mesmo, e a partir de agora serão
celebrados neste mundo os verdadeiros feitos do verdadeiro
heroísmo. A revolução política que se apoia nos princípios do
materialismo francês não encontrará adversário nos
panteístas, e sim correligionários, mas do tipo que formou
suas convicções a partir de uma fonte mais profunda, de uma
297
síntese religiosa. Nós propugnamos pelo bem estar da
matéria, pela sorte material dos povos, não porque, como os
materialistas, desprezamos o espírito, mas porque sabemos
que o espírito divino do ser humano revela-se também na
forma física; a miséria destrói e avilta o corpo - a imagem de
Deus - e, da mesma forma, deteriora o espírito. [...] Não
lutamos pelos direitos humanos do povo, mas sim pelos
direitos divinos do homem. Nisso e em outras coisas nos
diferenciamos dos homens da revolução. Vós exigis trajes
simples, hábitos recatados e prazeres insossos; nós, ao
contrário, queremos Nektar 35 e ambrosia, casacos na cor
púrpura, fragrâncias prazerosas, luxúria e esplendor, a
risonha dança das ninfas, música e comédia - por isso, não
fiqueis indignados, vós virtuosos republicanos! A vossas
ofensas e censuras retrucamos da mesma forma que o bobo
de Shakespeare: “tu pensas então que por seres virtuoso
deveriam deixar de existir sobre a terra as tortas saborosas e
a doce champagne?” (HEINE, 1935, p. 69-72)
*
Apresento a seguir a tradução do texto de Heine de
Noites florentinas. Trata-se do trecho final da primeira parte, no
qual a descrição física e realista de Paganini é seguida de sua
FRONTEIRAS DA MÚSICA

transformação fantasiosa e do encadeamento vertiginoso de


imagens despertadas pela primeira peça do concerto.

[...] Reinava um silêncio religioso em toda sala. Todos os


olhares estavam voltados para o palco; todos os ouvidos
armavam-se para ouvir. Meu vizinho, um velho corretor de
peles, tirou o sujo algodão do ouvido para em breve poder
absorver melhor os deslumbrantes sons que custaram dois
táleres de entrada. Finalmente surgiu uma escura figura
sobre o palco. Parecia vinda do submundo. Era Paganini em
seu traje negro de gala; o fraque negro e o colete negro de
corte horripilante, como prescrito talvez pela infernal
etiqueta dos jardins da côrte de Perséfone. A calça negra
tremulava timidamente em torno das pernas finas. Os braços
longos pareciam ainda mais alongados, já que segurava em
uma das mãos o violino e na outra o arco, ambos
direcionados para baixo, quase tocando o solo quando se
declinava exageradamente diante do público. Nas angulares
dobras de seu corpo transparecia uma horrível rigidez, ao
298 mesmo tempo que algo estúpido e animalesco nestes gestos
provocáva-nos uma estranha vontade de rir; mas sua face,
ainda mais alva e cadavérica sob a forte iluminação da
orquestra, possuía algo de suplicante, algo de uma tola
humilhação, que acabava por despertar em nós um cruel
sentimento de solidariedade e reprimia nossa vontade de rir.
Teria ele aprendido este cumprimento de um autômato ou de
um cachorro? Seria este olhar de súplica o olhar de um
morto, ou por trás dele estaria à espreita a zombaria de um
astuto avarento? Trata-se de um ser vivo em seus extertores
que precisa deleitar o público na arena da arte com os
espasmos de um lutador moribundo? Ou se trata de um
morto saído da sepultura, um vampiro com um violino que se
não nos suga o sangue do coração, pelo menos arranca-nos o
dinheiro do bolso?
Tais questões cruzavam nossas mentes no
momento em que Paganini parou com suas intermináveis
flexões; os pensamentos calaram-se no ato em que o
maravilhoso mestre levou seu violino ao queixo e começou a
tocar. Quanto a mim, a senhora sabe de minha dupla
personalidade musical, meu talento de vislumbrar uma
imagem sonora adequada a cada som que escuto; e assim foi
que Paganini fez desfilar figuras visíveis e situações diante de
meus olhos com cada movimento de seu arco; foi assim que
Música e Filosofia em Noites Florentinas

ele narrou em pictografias sonantes todo tipo de histórias


deslumbrantes; assim ele criava ilusões semelhantes ao jogo
de sombras coloridas, no qual ele próprio e seu violino
atuavam como protagonistas. Já no primeiro golpe de arco
transformaram-se os bastidores a seu redor; ele estava agora
com sua estante em um alegre e gracioso cômodo,
desordenadamente decorado com móveis floreados ao estilo
Pompadour: pequenos espelhos por toda parte, cupidos
dourados, porcelana chinesa, um caos de todo tipo de fitas,
guirlandas de flores, luvas brancas, pérolas falsas, diademas
em latão dourado e uma variedade de figuras recortadas em
sêda rasgada e de bugigangas mitológicas da forma como
normalmente encontramos na sala de ensaio de uma prima-
dona. Para sorte de Paganini, também ele se transfigurou:
vestia agora calça curta de cetim lilás, um colete branco
bordado com fios de prata, uma jaqueta de veludo azul claro
com botões revestidos de ouro; seu cabelo cuidadosamente
aparado em pequenos cachos circundavam seu rosto jovem e
rosado que reluzia de doce suavidade quando espiava a bela
garotinha sentada a seu lado na estante enquanto tocava o
violino. 299
De fato, a seu lado eu via uma bela e jovem criatura
vestida à moda antiga: o cetim branco armado abaixo dos
quadris de corte provocativamente pequeno, os cabelos
realçados e penteados para cima, o rosto belo e redondo que
fulgurava livre através dos olhos vivazes, das faces pintadas,
das discretas maquiagens e do doce e impertinente
narizinho. Ela trazia na mão um rolo de papel branco e, pelo
movimento de lábios e do vaivém coquete do pequeno busto,
parecia cantar; mas nenhum trino se fazia audível, a não ser o
toque do violino com o qual Paganini acompanhava a
graciosa criança e deixava pressentir o que ela cantava, além
do que ele próprio sentia em seu coração em razão de seu
canto. Oh, aquilo sim eram melodias, como que entoadas pelo
rouxinol à hora do crepúsculo, quando a fragrância das rosas
inebria-as de nostalgia o peito arfante de primavera! Oh,
aquilo sim foi um ardente e voluptuosamente lânguido
regozijo! Aquilo sim eram sons que se uniam em um beijo,
para então fugirem juntos, amuados, e, novamente
sorridentes, entrelaçarem-se, tornarem-se uno e finalmente
morrerem em extasiante unidade. Sim, os sons precipitavam-
se em um jogo alegre, como borboletas, quando uma desvia
graciosamente da outra, esconde-se atrás de uma flor, é
finalmente pêga e juntas voam distraídas e satisfeitas para a
luz dourada do sol. Mas uma aranha - uma aranha negra -
FRONTEIRAS DA MÚSICA

tem o poder de levar um destino trágico e repentino a


borboletas apaixonadas. Tal pensamento era parte da
premonição do jovem coração? Um som doloroso e
plangente, como o pressentimento de uma insidiosa
desgraça, penetrou sutilmente pelas fascinantes melodias
que resplandeciam do violino de Paganini... Seus olhos se
umedecem... Suplicante, ajoelha-se diante da amada... Mas,
ah! ao inclinar-se para beijar seus pés, ele avista sob a cama
um pequeno abade! Sabe-se lá o que poderia ter ele contra o
pobre homem, mas o genovês, pálido como a morte, toma o
homúnculo em suas mãos raivosas, aplica-lhe diversas
bofetadas e fartos pontapés, atira-o porta afora, retira então
um longo estilete do bolso e crava-o no peito da jovem e bela
mulher...
E neste instante ressoou de todos os lados: bravo!
bravo! [...]” (HEINE, 1935, p. 44-48, tradução do autor)

300
Referências bibliográficas
BLACKBURN, S. Dicionário de filosofia. Lisboa: Gradiva, 1997.
BORNHEIM, G. Filosofia do Romantismo. In: GUINSBURG, J. (Org.), O
Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978.
CAMPOS, H. de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo:
Perspectiva, 1981.
ELIAS, N. Mozart: Sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
HEINE, H. Zur Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland,
1835. Disponível em: http://www.digbib.org/Heinrich_Heine_1797/
Zur_Geschichte_der_Religion_und_Philosophie_in_Deutschland_.pdf
____. Florentinische Nächte [1836]. Frankfurt: Insel Taschenbuch, 1986.
____. Noites florentinas. Trad. M. Backes, Porto Alegre: Mercado Aberto,
1998.
Música e sacrifício

LUIGI ANTONIO IRLANDINI

ste artigo expõe as reflexões que levaram à composição


E da minha música1 Sacrifício, para coro a cappella. É, em
certa medida, um relato a respeito de uma poética musical, mas
não pretende fazer uma análise exaustiva da composição ou de
seus processos composicionais, nem esgotar o assunto das
relações sociais, antropológicas, religiosas, filosóficas,
imaginárias entre música e sacrifício. Pretendo explorar a
analogia entre música e cosmogonia, música e cosmologia, a
música como metáfora da criação, e explicar em que medida e
de que modo a referida obra celebra esta metáfora. Seguindo
Ernst Cassirer e Susanne Langer, pressuponho que não se
questiona mais a ideia de que a música é simbólica. Meu
objetivo é explicar de que maneira a música se comporta para
funcionar como símbolo da criação e, especificamente, de que
modo Sacrifício funciona como símbolo do mito cosmogônico
em que se baseia: o Puruṣa Sukta2, do Ṛg Veda. Trata-se de
descrever como esta música satisfaz sua vocação de “logos
simbólico, a ordem do sentido que é própria e específica da
música”. (TRÍAS, 2007, p. 20)
O processo composicional de Sacrifício foi longo,
iniciado em 1991 a partir de um estudo do hino védico Puruṣa
Sukta (Ṛg Veda, X.90), um poema muito antigo mas tardio
dentro da coletânea (saṁhitā) a que pertence. A estudiosa de
religião comparada Barbara Holdrege, em seu monumental
estudo Veda and Torah, data O Ṛg Veda entre 1500 – 800 AEC3

1 Uso os termos música, obra, e composição intercambiavelmente.


2 Para todos os termos em sânscrito, utilizo a transliteração em vigor
na literatura acadêmica de língua inglesa.
3 AEC = Antes da Era Comum (O conceito de “era comum” nos estudos

de religião comparada sob o ponto de vista laico propõe uma forma de


contagem do tempo laica, ou seja, não condicionada à contagem de
FRONTEIRAS DA MÚSICA

(HOLDREDGE, 1996, p. 30). O hino de Puruṣa descreve um mito


da criação dos Vedas segundo o qual o universo é criado pelo
sacrifício e desmembramento de Puruṣa, o Homem Cósmico.
Mas foi necessário que quatro anos de estudos e atividades de
pré-composição se passassem até que o projeto fosse colocado
“de molho”, pois, como não tinha terminado de compor
nenhuma música no período de 1991 a 1994, precisava dar
continuidade à produção de outras obras4. Estas, compostas a
partir de 1994, tiveram grande importância para o
amadurecimento dos processos composicionais de Sacrifício, e
foram escritas paralelamente à continuação de meus estudos
dos Vedas e concepções artísticas e filosóficas indianas até que
o projeto de Sacrifício chegou à sua forma final em 1998, uma
peça para coro a cappella cantada em sânscrito5.
É preciso olhar mais de perto o conceito de puruṣa
antes de passar ao de sacrifício e, finalmente, à música.

302
Puruṣa
O termo puruṣa denota tanto “homem” como “pessoa”.
Denota também o Homem6 cósmico, primordial, universal ou
arquetípico, assim como o Espírito ou Se (Self), consciência
pura.
Das diversas acepções do termo existentes na vasta
literatura filosófica e cosmológica indiana, as duas que mais
interessam aqui pertencem ao pensamento brahmânico dos
Vedas e Vedanta, pela sua dimensão macrocósmica e ligação
com a cosmogonia, antropogonia e sacrifício, e à filosofia não-

tempo do Cristianismo. No entanto, em termos de datação pura, o


início da era comum equivale ao nascimento de Cristo).
4 Matrimônio do céu e da terra (1995), Madrigal de fogo (1996), entre

outras.
5 A versão para dois pianos, de 2003, foi estreada na XV Bienal da

Música Brasileira Contemporânea em 2005 pelos pianistas Luciano


Magalhães e Marcelo Thys. A gravação desta performance esta
disponível em https://www.youtube.com/watch?v=n02lQMaYc-M
6 O uso do gênero masculino aqui não pode ser evitado, uma vez que,

no quinto verso do hino, o Ser primevo emana virāj, o princípio


feminino, tornando-o andrógino.
Música e sacrifício

védica, não-ariana do Sāṃkhya-Yoga, por oferecer uma visão


psicofisiológica e ontológica (HOLDREDGE, 1996, p. 74) do ser
humano como microcosmos. Em ambos os casos, puruṣa é uma
realidade ao mesmo tempo imanente e transcendente
(BAÜMER, 2001, p. 29).
O indólogo Heinrich Zimmer (1890-1943) traduz o
termo puruṣa como “mônada da vida” e o define, no contexto da
filosofia Sāṃkhya, como

a entidade viva escondida atrás e dentro de todas as


metamorfoses de nossa vida de servidão (...) o número de
mônadas da vida no universo é supostamente infinito, e sua
‘natureza propriamente dita’ (svarūpa) é vista como
totalmente diferente daquela da sua ‘matéria’ sem vida
(prakṛti) na qual elas estão engolfadas (ZIMMER, 1964, p.
285) (tradução do autor)7.

303
Parafraseio aqui, livremente, a descrição que Zimmer
oferece mais adiante no mesmo texto: a mônada da vida é da
natureza de pura luz (prabhāsa) e ilumina todos os processos
vitais da matéria física e sutil e da consciência individual; o
próprio puruṣa não tem forma nem conteúdo, nem começo nem
fim, não tem divisões ou partes, não tem atividade, não sofre
mudança, não está anexo nem em contato, não se envolve, não
se preocupa, nunca está em servidão; puruṣa permeia tudo e é
eternamente livre (ZIMMER, 1964. p. 286).
O dualismo puruṣa/ prakṛti mostra claramente uma
concepção do ser humano como um todo microcósmico que
envolve um aspecto matérico vivificado por um aspecto
espiritual, mas onde ambos estão separados um do outro. A
mônada da vida, esta centelha não-manifesta, transcendente
porém imanente, só pode ser percebida pelo indivíduo uma vez
que as agitações da mente (prakṛti) forem acalmadas pela
prática do Yoga.

7 Todas as traduções das citações foram feitas por mim.


FRONTEIRAS DA MÚSICA

A concepção brahmânica é não-dualista. Na formulação


do Vedānta8, explica Zimmer,

prakṛti é energia materializada (prāṇa, ṣakti), que, por sua


vez, é a manifestação temporal da essência incorpórea,
supra-espiritual, eterna que é o Se (Self) mais profundo de
todas as coisas. (ZIMMER, 1964, p. 242)

Mas, à parte este “detalhe”, encontra-se no


brahmanismo e, especificamente no mito cosmogônico em
questão, a figura macroscósmica e arquetípica desta Pessoa
Primordial, Puruṣa, como “origem e personificação do universo
e da sociedade que, coextensivo com o universo, mesmo assim
o transcende” (BAÜMER, 2001, p.32). Puruṣa é, ao mesmo
tempo, deus e matéria, pois doa o seu próprio corpo através do
sacrifício e desmembramento para que o mundo físico dos
304 fenômenos diferenciados possa existir, com seus elementos
cósmicos (terra, ar, água, etc), animais, seres humanos e astros
celestes, ao mesmo tempo em que a outra porção de seu corpo
permanece imortal, não afetada pelo sacrifício. Esta
imanência/transcendência é descrita nos quatro primeiros
versos do hino, onde se lê que a parte finita do mundo
corresponde a um quarto do seu ser, enquanto os outros três
quartos correspondem à sua imortalidade (amṛta) no céu
(HOLDREGE, 1996, p. 37). “Puruṣa é, de fato, este Todo, o que
tem sido e o que virá a ser” (Rg Veda X.90.2)9.
Seja como mônada da vida individual ou do inteiro
universo manifesto e não manifesto, puruṣa representa uma
totalidade primordial, Consciência Pura, “Aquele Um” (Tad
Ekam) (ver Ṛg Veda X.129) que, paradoxalmente, mesmo
sacrificando parte de si próprio, permanece pleno, “um
Pleroma não sujeito à diminuição pelo quanto exala, nem ao

8 O Vedānta é a parte mais recente do brahmanismo, e inclui, entre


outros textos, os Upaniṣads e o Bhagavad Gītā.
9 Os versos do Puruṣa Sukta que aparecem aqui em português são

minhas traduções da versão em inglês feita por Raimundo Panikkar


em PANIKKAR, 1977, p. 75 e 76).
Música e sacrifício

acréscimo pelo quanto inala. Ele é a Morte da qual depende a


nossa vida”. (COOMARASWAMY, 1987, p. 16).

Sacrifício
O motivo do sacrifício como base para a
criação do cosmos não é a única narrativa cosmogônica do Ṛg
Veda. Outras narrativas envolvem diferentes meios criativos
como o desejo, a austeridade (tapas), a procriação e o som, e
também outros princípios criativos tais como o ovo ou
embrião cósmico, as águas, um deus criador, ou um Absoluto
não-manifesto, demonstrando um complexo campo de
especulação deste assunto na cultura védica. (HOLDREGE,
1996, p.35).
Por outro lado, o motivo do sacrifício como base para a
criação do cosmos não ocorre apenas na cultura védica. Os
mitos do gigante Ymir (no Edda nórdico), de Tiamat (na
Mesopotâmia), do gêmeo Faro (Mande, África Ocidental), entre 305
outros, envolvem a morte ou mutilação para que se dê uma
reconstrução de outro nível (LONG, 1963, p. 223).
As narrativas mitológicas são estruturas ou padrões
simbólicos que vão se transformando ao longo do tempo,
gerando narrativas variantes muitas vezes intertextuais, isto é,
que podem fazer referências mútuas, umas com as outras,
mesmo que as culturas que as produziram estejam
inconscientes desta interrelação. Neste sentido, pode-se
colocar lado a lado a figura de Puruṣa com a ideia de asat, não-
existência, já presente no Ṛg Veda como o caos primordial
indiferenciado, a realidade última, Tad Ekam, representada por
mais um símbolo: o dragão Vṛtra. Mas o mito da criação que
narra a vitória do deus Indra sobre Vṛtra traz um aspecto
diferente ao Absoluto não-manifesto. Se Puruṣa simbolizava
este caos antropomorficamente, aqui o dragão, agindo
exatamente como um constrictor (a serpente píton indiana ou
sua parente brasileira, a jibóia, Boa constrictor) simboliza uma
“atividade de cobrir ou de não deixar existir aquilo que deseja
existir” (DE NICOLAS, 1976, p. 99). Esta conotação negativa
segue junto a outras imagens ṛgvédicas também assustadoras
FRONTEIRAS DA MÚSICA

como a de uma caverna sem fim, um abismo, um lugar de


escuridão e silêncio (DE NICOLAS, 1976, p. 98).
A não-existencia, asat, ou Todo Imanifesto,
representado pelo Dragão, é a morte para o mundo dos
fenômenos, sat, existência; por sua vez, a criação do mundo é a
morte de Vṛtra, asat. Esta é a reciprocidade característica do
sacrifício. O historiador e filósofo da arte indiana Ananda
Kentish Coomaraswamy (1877-1947) fala a este respeito
tomando o mito de Indra/Vṛtra como um dos mitos
fundamentais do hinduísmo. Na criação do mundo, Indra é o
sacrificador e Vṛtra é a vitima:

O Todo está contido no Princípio, o qual é designado com os


termos equivalentes de Personalidade, Ancestral, Montanha,
Dragão, Serpente sem fim. Unido a este princípio como um
filho ou irmão menor – como um alter ego e não como
princípio distinto – aparece o Matador do Dragão, aquele que
306 nasceu para substituir o Pai (...). Se, de fato, deve haver um
mundo, é preciso que a prisão seja destruída e suas potências
liberadas”. (COOMARASWAMY, 1987, p. 15-16)

O Todo imanifesto (Pai, e mais uma vez surge, aqui, a


imagem masculina da Pessoa cósmica) é a prisão que mantém
em potência aquilo que quer manifestar-se; no mito em
questão, trata-se das potencialidades do mundo dos fenômenos
e do ser humano. Indra é vṛtrahan, o Matador de Vṛtra, que as
livra do silêncio e da constrição do dragão. A matança do Pai
em combate é um sacrifício por se tratar da única maneira de
liberar a manifestação dos fenômenos e criaturas10.
É preciso lembrar que a religião védica está centrada
em complexas práticas ritualísticas sacrificiais, que incluem
desde oferendas simples até sacrifícios animais e também
provavelmente humanos, em períodos mais antigos, como
meios de regeneração da ordem cósmica (ṛta) “reavivando as

10 Com relação a este mito, ver a minha composição Vṛtrahan, para


trompete e percussão, composta em 2015.
Música e sacrifício

conexões (bandhus) entre as ordens humana, natural e divina”


(HOLDREGE, 1996, p.44).
Por este motivo, na cultura védica, o sacrifício ritual
segue o formato do sacrifício arquetípico, primordial de
Puruṣa. Nos versos 6 a 10 do Puruṣa Sukta verifica-se esta
relação de reciprocidade ou “sacrificialidade” entre as ordens
natural e ritual/litúrgica (HOLDREGE, 1996, p.37). Em Ṛg Veda
X.90.6) lê-se: “usando o Homem como oblação, os deuses
realizaram o sacrifício. A Primavera lhes serviu como a
manteiga concentrada, o Verão como combustível, e o Outono
como a oferenda”. Enquanto o sacrifício primordial faz uso das
estações do ano como materiais do ritual de sacrifício, o
sacrifício primordial dá origem a este universo que existe no
tempo das estações, e a criaturas tais como cavalos, gado,
cabras e carneiros, que são, aliás, oferendas primárias nos
rituais de sacrifício animal. Da mesma maneira, continua
Holdrege, assim como o sacrifício primordial cria os versos (ṛc-
s), cantos (sāman-s), fórmulas sacrificiais (yajus-s) e metros 307
poéticos (chandas-s) que compõem os mantra-s védicos,
conforme Ṛg Veda X.90.9, estes mesmos versos, cantos,
fórmulas e metros são entoados durante os rituais e constituem
oferendas sonoras essenciais para a correta performance dos
sacrifícios e manutenção do universo (HOLDREGE, 1996, p.37).
Portanto, a reciprocidade constitui a característica
essencial da doutrina do sacrifício. Ela implica na “descida do
divino ao mundo, a imanência, e também na ascenção do
humano ao divino, a transcendência” (BAÜMER, 2001, p.49).
Em seu aspecto de prática religiosa, trata-se de uma “troca de
bens mutuamente envigorantes” (DURKHEIM, 2001, p. 257)
entre o divino e o humano, conforme sugere a expressão da
antiga religião romana “do ut des”, “eu dou para que tu me dês”.
Entretanto, o sacrifício como cosmogonia inclui este aspecto de
prática religiosa11, muitas vezes reduzido na visão de alguns a
uma simples espécie de “contrato”, mas não se limita a ele. É a
energia vital da vítima que dará origem ao resultado
necessário e desejado com o sacrifício, num processo que Carl

11 Ou social, como os mecanismos de produção de um “bode


expiatório” de que nos fala René Girard (2011, p. 67-68).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

G. Jung descreveu como de transformação dos conteúdos


inconscientes para os conscientes:

Como ser primeiro, ele (Puruṣa) representa um estado inicial


da psique (...), um estado insconsciente, indiscriminado.
Como tal, este é um estado que precisa ser levado a termo, e
que, sendo ao mesmo tempo objeto de nostalgia regressiva,
precisa ser sacrificado para que possam originar-se
entidades distintas, ou seja, conteúdos conscientes.” (JUNG,
1992, p. 405)

Como se vê, o “resultado” do sacrifício é uma


reconstrução em um nível diferente, do inicial, mas a ele
recíproco. No caso de Puruṣa, que é ao mesmo tempo vítima e
sacrificador, sua auto-imolação tem como resultado desejado e
necessário a existência, sat; isto faz do próprio Puruṣa um
símbolo do sacrifício.
308
Uma importante elaboração posterior do mito do
sacrifício primordial de Puruṣa aparece nos Brāhmanas (ca.
900 a 650 AE), textos que se concentram na especulação
filosófica e prática dos rituais de sacrifício, e especialmente no
Śatapata Brāhmaṇa, onde puruṣa aparece como a figura do
deus criador Prajāpati, Senhor das Criaturas. O mito do
sacrifício de Prajāpati, equivalente ao de Puruṣa no Ṛg Veda,
enfatiza um aspecto novo da auto-imolação: tapas, a “prática do
acúmulo de calor interno gerado pela meditação e vários tipos
de práticas ascéticas por meio das quais o praticante acumula
poder espiritual e creativo” (HOLDREGE, 1996, p. 439). O
sacrifício do deus (devayajña) Prajāpati cria o mundo e suas
criaturas através do esforço e calor que ele excerce por meio da
prática das austeridades12. Seguindo os textos originais, o
indólogo Raimundo Panikkar atenta para a reciprocidade que
se cria entre o deus criador e as criaturas, bem como para a
continuidade perpétua do sacrifício cósmico. Ele relata que

12É possível nos reconhecermos em Prajāpati e seu esforço austero


quando dizemos “trabalhei, me sacrifiquei, para que isto pudesse
acontecer”.
Música e sacrifício

Prajāpati “cai em pedaços”, exausto, para que a vida seja


drenada dele para as criaturas. No processo, as criaturas
equivalem ao todo de Prajāpati inteiro, e elas o abandonam
justamente por este motivo: “porque ele deixa de existir”. As
águas, ouvindo o problema do deus morto, correm em sua
ajuda, e, oferecendo o sacrifício agnihotra13, recuperam sua
vida, juntando seus pedaços novamente.

É apenas pelo mesmo sacrifício na direção oposta, pelo


mesmo sacrifício em que ele próprio foi oferecido em
oblação, que Prajāpati é recuperado da morte. Ele foi
sacrificado e ele vive; foi desmembrado mas permanece igual
porque o sacrifício o recompôs (PANIKKAR, 1977, p.78).

O sacrifício é continuo e perpétuo: “o corpo de puruṣa é


constantemente desmembrado e reconstruído; o tempo real é
este processo” (PANIKKAR, 1977, p. 74). A transformação
309
operada pelo sacrifício é a mesma transformação operada pelo
devir temporal: cada instante se sacrifica para que o instante
seguinte o suceda.

Música
O etnomusicólogo Marius Schneider (1903-1982)
explicou a relação entre a doutrina do sacrifício dos Vedas e
Vedānta com a música numa linguagem muitas vezes poética e
simbólica, para grande aflição dos musicólogos positivistas. O
sacrifício, visto como o continuum perpétuo do processo de vir-
a-ser, o devir temporal, encontra sua analogia ou identidade
com a música:

13O agnihotra é um sacrifício diário oferecido em toda casa de família


das castas mais altas e consiste na oblação de leite respingado sobre o
fogo (PANIKKAR, 1977, p. 868). O importante elemento aqui é o Fogo
(Agni), que se torna o redentor de Prajāpati através deste sacrifício.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Estas frases14 refletem a fase da doutrina sacrificial sobre a


qual a antiga cosmogonia, as formas culturais e os ideais de
vida foram edificados15. A vítima é o veículo, a flecha
sibilante é a sílaba OṂ ou o caminho com o qual, mediante o
qual e que, ao segui-lo, o homem pode superar o dualismo do
mundo. Toda a distância que ele atravessa lhe é de vantagem
na medida em que a deixa para trás, assim como uma
melodia avança apenas na medida em que uma nota sufoca a
outra, que morre pelas outras (SCHNEIDER, 1970, p.25).

Neste sentido, toda música é naturalmente sacrificial,


pois é tempo que transcorre. Mas não só por isso, pois aquilo a
que chamamos música, o devir musical, é uma forma acústica
(e, portanto, física) de criação fenomênica, de acontecimentos
sonoros. Com a criação da música algo surge na existência
concretamente, mesmo que seja efêmero e invisível como o
som e suas vibrações.

310 A esta altura é possível retornar à obra musical de que


se falou no início, Sacrifício, para coro a cappella, cujo processo
criativo leva em consideração a doutrina védica do sacrifício na
estruturação de seu devir temporal, de seus materiais, e de sua
macroforma. Em diversos níveis macroformais e microformais
encontra-se uma relação de interdependência que “amarra”
dois elementos opostos numa reciprocidade que supera o
dualismo da própria oposição inicial, tornando-os parte de um
todo complementar ao qual dou o nome de “estrutura
sacrificial”.
Uma estrutura sacrificial em Sacrifício consiste numa
organização simétrica que coloca em relação de
interdependência os eventos que se localizam em suas posições
recíprocas. Em princípio, para que haja sacrificialidade, estas
posições podem estar ou não estar dispostas em torno a um
centro. Nesta composição, todas as estruturas sacrificiais são
simétricas em torno de um centro, porque este centro tem um
significado especial na própria composição e na cosmologia em

14 Schneider se refere às últimas linhas do trecho do Bṛhadāranyaka


Upaniṣad citado por ele mesmo.
15 Refere-se aqui também ao próprio mito cosmogônico do sacrifício

de Puruṣa e à cultura védica, mais antigos do que os Upaniṣad-s.


Música e sacrifício

que ela se baseia, como se verá mais adiante. Mas por que
motivo é preciso que haja simetria, quando já poderia bastar a
sacrificialidade “natural” (conforme foi visto acima) de toda
música como devir temporal?
Evidentemente, o simples devir musical não basta
como símbolo do sacrifício para o compositor em questão. A
questão da simetria é um vasto assunto que, infelizmente, não
cabe neste pequeno texto, mas é possível, a esta altura, sugerir
que o caráter sacro de Sacrifício alinha esta obra com as
estéticas de arquitetura religiosa indiana, tibetana e medieval
europeia, no sentido de que as toma como modelo em sua
expressão dos pensamentos cosmológicos em que surgiram.
Nelas, a simetria está presente como importante elemento
formativo de significação simbólica dos processos da criação, e
assim é, do mesmo modo, na música em questão. A simetria é
“símbolo da unidade através da síntese dos opostos. Ela
exprime a redução do múltiplo ao uno, que é o significado
profundo da ação criadora” (CHEVALIER, 1986, p. 389). A 311
síntese dos opostos caracteriza o sacrifício contínuo e perpétuo
como princípio cosmogônico.
A estrutura sacrificial é uma concepção de forte
componente espacial, uma vez que se descreve com “eventos
que se localizam em posições recíprocas”, mas ela se aplica
tanto à organização do espaço musical (alturas, harmonia,
timbre), como à do tempo (ritmo, morfologia). Eis um simples
exemplo teórico:
ABCDCBA

Três elementos contrastantes (A, B e C) se alojam em


torno do elemento central D de tal modo que o primeiro e o
último, o segundo e o penúltimo, e o terceiro e o antepenúltimo
(e assim por diante, se houver mais elementos) estão
construídos por uma relação mútua de reciprocidade ou
interdependência. Esta reciprocidade se verifica imediatamente
na equivalência de sua posição em relação ao centro. A
representação de letras escolhida sugeriria inicialmente
repetição idêntica ou literal, ou uma similaridade de material
ou de conceito (neste caso, uma repetição profunda, não
FRONTEIRAS DA MÚSICA

diretamente reconhecível através da audição). Na estrutura


sacrificial, as letras representam o fato de que existe uma
relação de interdependência entre os elementos recíprocos (o
primeiro A e o último A, o B com o B, e assim por diante), mais
do que simplesmente de repetição ou similaridade. Na verdade,
o efeito, comparando o primeiro A com o segundo A, por
exemplo, é de repetição ou inversão dos princípios formativos,
ou de como eles agem sobre um material que não é mais
exatamente o mesmo, como, por exemplo, a inversão de uma
série dodecafônica em relação à sua versão original.
As estruturas sacrificiais de Sacrifício podem
assemelhar-se ao princípio da forma em arco (exemplificado
por esquemas como ABCBA e semelhantes), muito usado na
composição musical ao longo dos séculos, tanto macroformal
como microformalmente. Neste último caso, os ritmos não
retrogradáveis, palindrômicos, de Olivier Messiaen vêm
facilmente à memória. Eles exemplificam o modo de como a
312 simetria produz unidade através de uma gestalt que se fecha
em si mesma, contribuindo na formação do seu sentido de
conclusão. Por outro lado, se todo ritmo não retrogradável é
sacrificial, mesmo que não tenha um centro, como na frase
“socorram-me subi no ônibus em Marrocos”, as estruturas
sacrificiais de Sacrifício são todas palíndromos com centro. O
elemento central não se repete, e faz com que a estrutura
sempre tenha um número ímpar de elementos, conforme
abaixo:

Palíndromo sem centro:

Palíndromo com centro:

Para encerrar esta discussão a relação entre a


estrutura sacrificial e os ritmos não retrogradáveis, é preciso
notar que uma estrutura sacrificial baseada no princípio “o que
é longo antes do centro se torna curto depois do centro e o que
é curto antes do centro se torna longo depois do centro” gera
uma estrutura rítmica que nem mesmo resulta num
palíndromo, pois este se baseia na repetição exata dos seus
elementos, e não na relação de inversão entre eles:
Música e sacrifício

Portanto, pelo menos teoricamente, o princípio de


estruturação sacrificial não resulta necessariamente num
palíndromo, ou nem mesmo numa simetria a nível superficial
(neste exemplo, a simetria termina por ser jogada para o plano
de fundo).
O Quarteto de Cordas no. 5 de Béla Bartók ou a
Sinfonia de Luciano Berio são exemplos recentes de forma em
arco onde a disposição de seus cinco movimentos consiste em
aninha-los em torno a um movimento central que funciona
como núcleo ou eixo principal da composição, enquanto os
movimentos em posições recíprocas tem conteúdos
interrelacionados. No entanto, Sacrifício, além de explicitar sua
relação com a cosmologia mítica dos Vedas, vai mais além e
com maior rigor do que a forma em arco na direção de criar 313
relações de interdependência, inversão e complementaridade
entre as partes recíprocas.
A macroforma de Sacrifício é um movimento único,
dividido em sete partes ou seções: ABCDCBA, (A: compassos 1 a
60; B: 61 a 104; C: 105 a 141; D: 142 a 240, C: 241 a 278; B: c.
279 a 322; A: 323 ao final). A seção central, D, intitula-se Axis
Mundi. O ponto central de D, e, consequentemente, da
composição toda, está indicado na partitura pela palavra bindu
e corresponde à pausa de semínima pontuada que preenche o
compasso 186. Bindu significa, literalmente, gota ou ponto
(drapsa em sânscrito védico). Também significa zero ou o
símbolo para zero, (śūnya, vazio/infinito no budismo), e
representa a Realidade Suprema.

Bindu é, não apenas, a origem, a base, o lar onde se descansa,


mas também pura iluminação, assim como som vibratório,
sempre se expressando em forma de conceitos (pratyaya) e
de objetos (bhūta) enquanto permanece em sua glória
primitiva de consciência (bhānapiṇḍa) condensada ou
incondicional (CHAKRAVARTY, 1992, p.1)
FRONTEIRAS DA MÚSICA

A pausa bindu é o centro do universo sonoro de


Sacrifício, o ponto sem dimensão do círculo, aquilo que em
música mais se aproxima à ideia de vazio ou de não
manifestação: o silêncio. Enquanto a primeira metade da
música, partindo da multiplicidade de cantos e sons, caminha
em direção a este silêncio, à unidade, a segunda metade parte
da unidade para a multiplicidade.
Em Sacrifício, as estruturas sacrificiais são todas
simetrias com centro porque seguem um princípio formativo
existente na estrutura dos rituais sacrificiais védicos. A
descrição do indólogo Jan C. Heesterman citada abaixo serviu
para mim como confirmação do procedimento já adotado na
composição da obra musical16 e torna clara esta relação entre a
estrutura da música e a liturgia védica, ambas refletindo o
próprio princípio do sacrifício como logos:

Cada sacrifício consiste numa sucessão linear de tais


314 unidades de ato e fórmula padronizados, primariamente o
ato sacrificial básico com ou sem as suas extensões. O
alinhamento dos atos novamente mostra o princípio de
“aninhamento” por meio de encaixotar uma unidade em
ambos os lados por duas outras unidades mutuamente
conectadas ou similares, como no caso da oferenda principal
(pradhāna), que é precedida pelas “oferendas anteriores”
(prayāja) e seguida das “oferendas posteriores” (anuyāja).
Deste modo, alcança-se uma complicada concatenação ao
longo de todo o sacrifício, onde seu início e seu final
espelham-se um ao outro como que para circundar o todo.
(HEESTERMAN, Jan C., p. 228)

Um simples exemplo de estrutura sacrificial (ou de


ninho, na terminologia de Heesterman) está na organização do
espaço de alturas em Sacrifício, à qual dou o nome de “campo
harmônico”. Até 1999 trabalhei com campos harmônicos

16Assim como na de outras obras; os estudos védicos que realizei


entre 1991 e 1998 foram aplicados de modo menos sistemático (ou
não sistemático) em composições que precedem Sacrifício, como por
exemplo Matrimônio do Céu e da Terra, como foi observado no início.
Música e sacrifício

simétricos formados em torno de um tom central em diversas


composições. O de Sacrifício é:

O campo harmônico existe em duas versões, I e II. Na


versão I, constrói-se em torno ao (ou acima e abaixo do) tom
central (Do3) um campo harmônico empilhando intervalos de
cinco e seis semitons alternadamente (intervalos-5 e
intervalos-6). Acima do Dó resultam os tons Fa, Si, Mi, e Sib,
enquanto abaixo do Dó, a mesma alternância de intervalos (5-
6-5-6) espelhados resulta nos tons Sol, Reb, Lab e Re. A versão 315
II é um campo harmônico recíproco ou interdependente a I,
pois resulta da inversão do posicionamento dos tons em torno
do mesmo Do central: os tons do registro inferior ao Do central
em I passam para o registro superior de II, e os do registro
superior de I passam para o inferior de II. Com isto, os
intervalos-5 se invertem em intervalos-7 (os intervalos-6, por
serem trítonos, não tem inversão).
O campo harmônico não se limita a funcionar apenas
como uma estrutura de alturas microcósmica, isto é, uma
estrutura de alturas local num trecho específico da composição.
O campo está sempre presente durante todo a macroforma
como espaço total do universo sonoro da composição, como
estrutura de fundo sobre a qual se apoiam as estruturas locais,
submerso pelas linhas vocais e suas resultantes verticais17. É

17A explicação de como isto funciona foge ao escopo deste artigo mas,
em linhas gerais, pode-se dizer que o campo harmônico é um espectro
simétrico formado por tons primários em torno a uma fundamental
central. Cada tom primário, por sua vez, é o centro de seu próprio
“subcampo” simétrico, e seus tons, na estrutura total, adquirem um
lugar secundário ou ornamental nesta hierarquia.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

apenas na seção central, Axis Mundi, que, trazido à superfície da


textura, ele se torna diretamente audível como “acorde”: a
versão I começa a formar-se no compasso 142 e se completa no
c. 156 (ver exemplo abaixo); a versão II começa a formar-se no
compasso 200 e se completa no c. 223.

316

1. Campo harmônico I em Axis Mundi como “acorde” de


superfície (c.156).

A própria macroforma de Sacrifício é outro exemplo de


estrutura sacrificial, que segue a forma do tambor damaru (ver
ilustração abaixo).
Música e sacrifício

2. Damaru tibetano feito de crânios humanos. Boston Museum of


Fine Arts. Foto de L. A. Irlandini.

O damaru, tambor ritual das culturas indo-tibetanas, é


rico de conteúdos simbólicos relacionados à cosmologia e 317
escatologia, tanto no hinduísmo quanto no budismo tibetano.
Com ele, o deus indiano Śiva, em seu aspecto de Senhor da
Dança ou Rei dos Atores (Śiva Naṭarāja) cria o universo,
conforme se lê em diversos textos tradicionais de arte indiana,
por exemplo, no Chidambara Mummaṇi Kovai, citado entre
outros textos, por Coomaraswamy: “Oh Senhor, Sua mão
segurando o tambor sagrado criou e ordenou os céus e a terra e
outros mundos e inúmeras almas.” (COOMARASWAMY, 1985,
p. 60) No contexto do budismo tibetano, o damaru “é uma
incorporação microcósmica da estrutura do universo e da vida
senciente” (ELLINGSON, 1979), e contém diversos níveis de
significação simbólica amplamente relacionados com a
meditação e filosofia do budismo.
O damaru, como todo membranofone construído
tradicionalmente, envolve o sacrifício de um animal para que
seja criado e possa criar sons. Mas, além disso, o uso frequente
de crânios humanos na sua construção evoca eloquentemente
não só a transitoriedade da vida e o dualismo entre
nascimento e morte, macho e fêmea, etc, como também a visão
de complementaridade que permite superar este dualismo: a
ideia de sacrifício cósmico. Marius Schneider comenta a
FRONTEIRAS DA MÚSICA

sacrificialidade do damaru ao apontar para sua forma de


ampulheta (mais um símbolo do tempo), com a qual ele
compartilha o mesmo significado:

O instrumento consiste, como a letra X e a figura do próprio


Śiva, de dois espaços vazios triangulares contrapostos e
iguais, e frequentemente é coberto de um lado com pele
masculina e do outro com pele feminina. Assim, Morte e Vida,
ou Céu e Terra, valem como valores opostos porém análogos,
de cuja constante união a vida sempre se renova no cadinho
do sacrifício. Aquilo que a lógica de hoje vê como contraposto
e inconciliável, no mundo arcaico constitui uma unidade não
só vital mas também conceitual. (SCHNEIDER, 1970, p. 28)

Aquilo a que tenho denominado “sacrificialidade”, a


saber, esta dinâmica de reciprocidade entre elementos opostos
que resulta em considera-los não mais como estando em
contradição ou contrariedade mas sim em complementaridade
318 e interdependência, torna-se o princípio formativo de
estruturas musicais, espaciais ou temporais. Em outras
palavras, o sacrifício, como princípio formativo de uma
composição musical, é o logos (λόγος), no sentido dado ao
termo por Heráclito (ca. 535 AEC), a ordem cósmica (ṛta) deste
universo acústico que é a música de Sacrifício. Aqui é preciso
observar com mais detalhe duas ideias que permaneceram até
agora ainda como que implícitas: a ideia de forma musical
como espaço/tempo, e a de música como cosmologia.
Em nossa tentativa de falar de música, vemo-nos
constantemente fazendo analogias, metáforas, comparações da
música com a forma, a linguagem, o tempo, o espaço, a
cosmologia. A ideia de forma muitas vezes leva a concepções
que esquematizam o fluir da música. Pensar numa sonata como
esquema formal risca, de certo modo, transformar o devir
sonata num quisto, algo rígido e que enquadra o livre
movimento dos tons e ritmos. A própria idéia de simetria pode,
no processo composicional, resultar em que a intuição e
imaginação do artista fiquem subjugadas a conceitualizações
ou racionalizações esterilizantes, motivo pelo qual Morton
Feldman preferia aquilo a que chamou de crippled symmetry,
uma simetria aleijada, imperfeita. O próprio uso da simetria
Música e sacrifício

poderia resultar num efeito de simples duplicação dos opostos,


ao invés da desejada síntese de opostos (CHEVALIER, 1986, p.
389). Penso que bastará aqui apenas sugerir que a estruturação
de simetrias em Sacrifício não reduziu a escrita composicional a
um automatistmo sistêmico. Mas a questão principal consiste
na possibilidade de considerar a música de diversos pontos de
vista, por diversas analogias, simultaneamente, na medida em
que todas contribuem e convergem na formação de um
entendimento, uma concepção a respeito da música. Portanto,
ao se pensar a macroforma como um damaru ou uma
ampulheta, não se trata, necessariamente de conformar o devir
sonoro a uma transcrição musical literal de uma imagem visual.
Trata-se de compreender a relação como sendo simbólica. Por
isso é possível ilustrar a macroforma de Sacrifício pela figura
abaixo, sem perda da concepção do sacrifício como logos
musical de um espaço/tempo, pois ela, justamente, ilustra, mais
uma vez, esta própria ideia.

319

Macroforma de Sacrifício

Vários são os símbolos arquetípicos da mônada da vida


(puruṣa), o vazio indiferenciado. Nas cosmologias antigas, Axis
Mundi, eixo do mundo, árvore da vida, skhamba (pilar cósmico,
pilar do sacrifício) toma uma acepção quase que geográfica,
FRONTEIRAS DA MÚSICA

indicando o espaço sagrado originário, como todo templo ou


altar simboliza. Na música, a seção central é este eixo cósmico
onde o campo harmônico, que anteriormente se mantinha
como estrutura de fundo, se revela à superfície, à audição
direta, pois o ouvinte chega às representações sonoras mais
próximas do silêncio, da sua própria absorção no vazio. Uma
vez que este “acorde” se manifesta assim claramente no espaço
textural, ele sofre um processo de contração (pralāya,
reabsorção do universo no absoluto, na concepção indiana),
onde as vozes superiores procedem por tons inteiros
descendentes e as inferiores por tons inteiros ascendentes até
atingirem o uníssono com o tom central, Do3, na sílaba OṂ, que
se extingue na pausa central, bindu. Em seguida, o uníssono
retorna àquilo que, conforme a cosmogonia sônica dos Vedas, é
a sílaba criadora do universo, OṂ, e, por um processo de
expansão, inverso àquele de contração, as vozes superiores ao
Do3 central procedem por tons inteiros ascendentes e as
inferiores por tons inteiros descendentes até formar o “acorde”
320 em sua versão II, gerando, assim, o campo harmônico sobre o
qual se apoiarão as linhas vocais da segunda parte.
Se este é o devir temporal indicado pela partitura de
Sacrifício, ao segui-la da primeira à última página, isto é, uma
estrutura macroformal sacrificial com um instante central em
silêncio, há, por outro lado, uma outra possibilidade para a
leitura da partitura e, portanto, uma outra alternativa para sua
criação na performance. Nesta, “inverte-se” a partitura, fazendo
a música começar no compasso 187, com o D3 central se
expandindo na versão II do campo harmônico. Uma vez que se
chega ao último compasso (c. 382), este é imediatamente
emendado ao primeiro compasso, sem qualquer interrupção,
de modo que a performance continua até terminar no
compasso 186, aquele com a pausa de semínima pontuada.
Nesta segunda opção de performance, bindu, o vazio
indiferenciado, equivale àquele tempo em que a música já
terminou ou ainda não começou: é o tempo em que se
desenrola a vida dos músicos, estes semideuses (demiurgos ou
tricksters) responsáveis pela criação de música. Pois este tempo
é, para a música, o seu silêncio. “Ele é a Morte da qual depende a
nossa vida”, diriam os próprios sons da música, parafraseando
Coomaraswamy (veja a citação que termina a seção sobre
Música e sacrifício

Puruṣa neste artigo). O compositor, sujeito da ação que inicia o


processo de criação musical, e que vive neste tempo “não-
musical” (o nosso quotidiano), vivencia a composição ainda não
criada como uma totalidade arquetípica, latente, em
potencialidade, ainda inexistente. Ele (ou ela), como um
demiurgo, entrega-se a ela, composição, entendida como
processo criativo e como objeto resultante deste processo, a
obra. O objeto é, nada mais nada menos, do que um universo
acústico, um cosmos sonoro que tem como logos os seus
próprios princípios formativos. Neste sentido, a música é uma
cosmogonia, uma cosmologia, uma ideia que desenvolvi mais
detalhadamente noutra sede (IRLANDINI, 2012).
Na primeira opção de performance, a macroforma de
Sacrifício é uma ampulheta, sendo a progressiva contração do
espaço textural correspondente ao caminho da morte ou
extinção, uma vez que o silêncio central, bindu, o ponto zero de
manifestação musical, é o objetivo teleológico da primeira
parte. Até aqui, a direção da música é a da expiração, como uma 321
espiral que se contrai em direção ao próprio centro. Na
continuação, o processo inverso, de inspiração, nascimento e
criação, consiste na expansão, a partir do silêncio e do tom
central, de um novo espaço harmônico, estruturalmente
recíproco ao primeiro, em progressivo acréscimo de
manifestação e multiplicidade, como uma espiral que se
expande a partir de seu centro.
A segunda opção de performance resulta na perda da
forma de ampulheta e na obtenção da forma de diamante ou
losango, que lhe é complementar. Inverte-se a ordem da
alternância do expirar/inspirar; partindo do Do central, a peça
se inicia com a expansão, inspiração, alcança em seu centro o
ápice de manifestação, muda bruscamente para o espaço
harmônico recíproco, e, expirando, segue rumo à contração
textural, ao uníssono e, finalmente, à extinção dos sons.
Se a direção da primeira possibilidade pode ser vista
como positiva, por terminar no auge do processo de
nascimento, a segunda pode ser vista como negativa, por
terminar no auge do processo de morte. Ambas são igualmente
representativas da obra, uma o alter ego da outra. Sacrifício é
uma peça sobre a vida e a ideia de que o universo está em
FRONTEIRAS DA MÚSICA

perpétua regeneração através do sacrifício. A obra reclama o


status da voz humana como o instrumento que melhor veicula a
relação entre criação musical e sacrifício, pois o ato de cantar é
o sacrifício de pneuma, respiração e espírito, a força vital do
musicista que canta que é sacrificada para que a música se
torne fenômeno acústico e, portanto, físico. A versão
instrumental para dois pianos retém esta idéia, pois, na música
instrumental, embora não vocal, requer-se quase do mesmo
modo o investimento da respiração, espírito, vontade e força
vital. Toda música e todo fazer música é uma oferenda.

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323
Apresentação do inapresentável, ocorrência e
presença da matéria no sublime musical de Lyotard

JOÃO PAULO COSTA DO NASCIMENTO

Introdução

reflexão estética de Jean-François Lyotard (1924-1998)


A constitui um setor privilegiado de sua filosofia que
impacta diretamente em seus domínios político e
epistemólogico. Seu primeiro texto mais dedicado a arte data
de 1969. Mas é no início da década de 1980 que podemos
observar uma transformação que divide tal produção em duas
grandes fases: a “estética libidinal”, composta por publicações
do final dos anos sessenta e dos anos setenta, e a “estética do
sublime”, composta pelos escritos dos anos oitenta e noventa
(AMEY, 2000; PARRET, 2012). A estética libidinal é
caracterizada, em linhas gerais, pelo uso de termos da
metapsicologia freudiana para o comentário da produção
estética, abordando-se as obras artísticas como dispositivos de
deslocamento das energias psíquicas – ou pulsões - e
analisando-as sob um ponto de vista da economia da libido. Já a
estética do sublime é marcada pela mudança conhecida como
“virada kantiana” (PARRET, 2012, p. 9), na qual Lyotard se
apropria do referencial teórico das faculdades, principalmente
o da Crítica da Faculdade do Juízo de Kant. No entanto, o
referencial freudiano não é completamente dispensado, mas
apenas enquadrado em uma nova síntese com os termos
kantianos, aos quais se adiciona a influência significativa de
Heidegger e de Merleau-Ponty. Esta formulação do sublime
delineia-se através dos seguintes conceitos subsidiários:
inapresentável, ocorrência, presença, matéria e obediência
(passibilidade). Teremos por objetivo, aqui, identificar e expor
alguns aspectos sobre o modo pelo qual tais conceitos se
assentam no terreno da música do século XX, conforme os
Apresentação do inapresentável

exemplos escolhidos por Lyotard para especificar sua estética


do sublime relativa à música.

O Sublime Kantiano de Lyotard


Lyotard assume o uso do termo sublime, pela primeira
vez, em seu texto Resposta à Pergunta: o que é Pós-Moderno?
(1993), fruto de uma conferência proferida no ano de 19821.
Lyotard define o termo sublime como “uma afecção forte e
equívoca [que] compreende ao mesmo tempo prazer e dor”,
obtida como resultado de um “conflito entre as faculdades de
um sujeito, a faculdade de conceber algo e a faculdade de
‘presentificar’ [ou apresentar] algo” (LYOTARD, 1993, p. 21):

Podemos conceber o absolutamente grande [infinito], o


absolutamente poderoso, mas qualquer ‘presentificação’ de
um objeto destinado a ‘fazer ver’ essa grandeza ou esse
poder absolutos surge-nos, ainda, como dolorosamente 325
insuficiente. Estas são ideias de que não há ‘presentificação’
possível, e portanto não fazem conhecer nada na realidade (a
experiência), proíbem também a concordância livre das
faculdades que produz o sentimento do belo, impedem a

1 Tal conferência responde a uma demanda de seus leitores e críticos


por uma explicação a respeito do que seria o pós-moderno no campo
específico da cultura e, em especial, da arte. Isso se deve ao fato de que
seu livro A Condição Pós-Moderna (2003), redigido em 1979, destina-
se a compreensão do fenômeno em termos filosóficos, porém mais
voltado ao campo da política, da epistemologia e da sociologia. Mas
como bem sabemos, o termo pós-moderno esteve, em suas origens,
muito mais ligado as artes do que qualquer outra área do saber. Assim,
o conceito de sublime adentra a filosofia de Lyotard afim de se fazer
tal ajuste e explanação da condição pós-moderna da arte. No entanto,
julgamos desnecessário abordar tal ideia aqui devido ao fato de que,
na medida em que a reflexão sobre o sublime cresce na obra do
filósofo, o termo pós-modernismo vai se mostrando inadequado ao
projeto filosófico e sede lugar a termo “reescrita da modernidade”,
com forte relativização da ruptura entre modernismo e pós-
modernismo (1997, p.33). Para o acesso de minha conclusões a
respeito do pós-moderno e a música, com alguns apontamentos sobre
o papel do sublime neste debate, ver Abordagens do Pós-Moderno em
Música (2010).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

formação e a estabilização do gosto. Pode-se dizer que são


‘impresentificáveis’ (idem, p. 22)2.

É necessário, portanto, que recuperemos alguns pontos


a respeito do sublime em Kant3. Na tarefa de investigar as
condições de possibilidade de um conhecimento, ele elabora
uma trama de faculdades subjetivas responsáveis por diversas
sínteses entre conceitos e intuições nas formações de juízos
teóricos (Razão Pura), prático-morais (Razão Prática), estéticos
e teleológicos (Faculdade de Julgar). O conceito de sublime só
pode ser compreendido dentro deste enquadre. Não seria
possível desenvolver aqui uma explanação satisfatória de todo
este mecanismo. Mas por ora, devemos ter em conta que Kant
buscava diferenciar a sensibilidade do entendimento e da razão
enquanto faculdades, ou seja, competências e poderes
diferentes na estrutura do sujeito.
A sensibilidade é entendida não apenas como uma
326 “tábula rasa passiva” de percepção confusa, mas sim como
possuidora de certos mecanismos “a priori” de sensação. Mas
“os objetos [de conhecimento] ‘são nos dados’ através da
sensibilidade e depois ‘pensados’ pela [faculdade do]
entendimento’” (CAYGILL, 2000, p. 284-285). Assim, “o
entendimento recebe da sensibilidade os materiais da
experiência, os quais processa mediante sua subsunção numa
lei”. Sua função seria “estabelecer ‘a lei de unidade sintética de
todas as experiências’” e estipular uma regra para cada
fenômeno e para a totalidade deles (CAYGILL, 2000, p.112-
113). Já a razão, tem a capacidade de unificar as regras do
entendimento mediante princípios. Mas a razão trabalha
através de conceitos puros, independentes das condições
concretas dos fenômenos, denominados Ideias. Uma Ideia é
“um conceito da razão cujo objeto não pode ser encontrado em
parte alguma na experiência”(CAYGILL, 2000, p. 178). Por isso

2 Tomamos os termos apresentar e presentificar, provenientes de


diferentes traduções de diferentes obras para o do termo francês
unpresentable, como sinônimosos. O mesmo se dá para os termos
impresentificável e inapresentável.
3 Para tal tarefa, apoiaremo-nos em Caygill (2000).
Apresentação do inapresentável

ela será chamada de “incondicionada”, pois independe das


condições possíveis de experiência sensível dos objetos. O
conceito de Ideia da razão possui uma importância capital na
filosofia kantiana, pois seria o caminho pelo qual a razão
poderia pensar algo sem depender da sensibilidade concreta,
ou seja, livre de toda determinação. Esta seria depositária das
expectativas por liberdade, uma vez que torna o pensamento
humano independente das limitações do concreto. Devemos,
ainda, acrescentar a faculdade da imaginação. Na obra de Kant,
ela figura ora como uma subdivisão da faculdade da
sensibilidade, ora como uma faculdade para além das demais
faculdades. Mas é importante seu papel de mediadora entre
sensibilidade e entendimento. É a faculdade da imaginação que
possibilita, por exemplo, a retenção de dados sensíveis de um
objeto que não está mais presente em forma de memória. Ela
possui a função de apresentar tais dados sensíveis para a
formulação de juízos do entendimento (CAYGILL, 2000, p. 188-
189).
327
Sobre a posição do sublime nesta trama, pode-se dizer
que ele está numa classe de conceitos parcialmente analisáveis,
assim como o belo, tratando-se de juízos estéticos – juízo de
belo ou juízo de sublime – e, portanto, juízos que não seguem
uma determinação lógico-dedutiva externa a eles próprios,
sendo juízos de reflexão. (KANT, 2010, p. 89-92). São
resultantes de uma espécie de mecanismo no qual o
pensamento se sente ou se pensa, por isso levam o nome de
juízos reflexivos. Isso corresponde a dizer que tais juízos não
podem ser explicados por um mecanismo lógico de causa e
efeito e deduzidos a partir de esquemas da faculdade do
entendimento. Eles não são conceitos do entendimento. São, na
verdade, juízos reflexivos resultantes da concordância ou da
discordância (harmonia ou desarmonia) entre as faculdades
diante de uma experiência do sujeito.
Pode-se, portanto, diferenciar o belo do sublime
através da relação mais ou menos harmoniosa e mais ou menos
prazerosa resultante do jogo das faculdades em questão. Em
um juízo estético, o sujeito pode experimentar um sentimento
de prazer ou desprazer mediante a presença de um objeto da
experiência. Em um juízo de gosto, como o belo, há um
aprazimento resultante de um jogo harmonioso entre a
FRONTEIRAS DA MÚSICA

faculdade da imaginação e a faculdade do entendimento. Aqui,


o entendimento reconhece nos dados apresentados uma forma,
mesmo que ela seja paradoxalmente sem conceito. Ocorre que
o entendimento não pode subsumir tais dados em uma lei ou
regra, o que faria deste juízo um conceito. No entanto, ele
reconhece uma ordem formal estética equivalente a pensar que
há uma regra, mas tal regra não se apresenta, não se pronuncia.
Este é o juízo estético do belo, um sentimento de prazer
proveniente da relação harmoniosa entre a faculdade da
imaginação e do entendimento (CAYGILL, 2000, p. 46)
No entanto, algo de uma ordem diferente acontece no
juízo do sublime. Este seria um sentimento vivido pelo sujeito
diante da falha da imaginação em apresentar dados sensíveis
que possam ser subsumidos pelo entendimento na formação de
um conceito ou que possibilitem o reconhecimento de uma
forma sem conceito, como ocorre no belo. Vejamos como Kant
aborda tais diferenças:
328
[...] saltam também aos olhos consideráveis diferenças entre
ambos. O belo da natureza concerne à forma do objeto, que
consiste na limitação; o sublime, contrariamente, pode
também ser encontrado em um objeto sem forma, na medida
em que seja representada ou que o objeto enseje representar
nele uma ilimitação, pensada, além disso, em sua totalidade;
de modo que o belo parece ser considerado como
apresentação de um conceito indeterminado do
entendimento, o sublime, porém, como apresentação de um
conceito semelhante da razão […] Enquanto o belo comporta
diretamente um sentimento de promoção da vida […], o
sentimento do sublime é um prazer que surge só
indiretamente, ou seja, ele é produzido pelo sentimento de
uma momentânea inibição das forças vitais e pela efusão
imediatamente consecutiva e tanto mais forte das mesmas,
por conseguinte enquanto comoção não parece ser nenhum
jogo, mas seriedade na ocupação da faculdade da imaginação.
[…] a complacência no sublime contém não tanto prazer
positivo, quanto muito mais admiração ou respeito, isto é,
merece ser chamada de prazer negativo.
Mas a diferença interna mais importante entre o sublime e o
belo é antes esta: [...] a beleza da natureza (autossubsistente)
inclui uma conformidade afins em sua forma, pela qual o
Apresentação do inapresentável

objeto, por assim dizer, parece predeterminado para nossa


faculdade de juízo, e assim constitui em si um objeto de
complacência; contrariamente, aquilo que, sem raciocínio,
produz em nós e simplesmente na apreensão o sentimento
do sublime, na verdade pode, quanto à forma, aparecer como
contrário a fins para nossa faculdade de juízo, inconveniente
à nossa faculdade de apresentação e, por assim dizer,
violento para a faculdade da imaginação, mas apesar disso e
só por isso é julgado ser tanto mais sublime (KANT, 2010, p.
90, §23) 4.

Do trecho acima, devemos ressaltar os seguintes fatos:


o sublime não é conforme afins, o que implica em dizer que está
associado ao sem forma, ao informe; ele proporciona um prazer
indireto, posterior a inibição das forças vitais (misto entre
prazer e desprazer), também chamado de prazer negativo; ele
se apresenta como inadequado a apresentação e violento a
faculdade da imaginação. Mas para Kant, enquanto a
imaginação não reconhece complacência em relação a 329
faculdade do entendimento, ela reconhece tal complacência em
relação à razão, ou seja, uma faculdade de nível superior
responsável por formular os princípios do entendimento.
Podemos aqui acrescentar que o sublime é um juízo que não se
encontra nos objetos ou na natureza, mas é resultado de um
certo tipo de disposição anímica do sujeito, tendo em vista o
entrelaçamento de suas faculdades diante de uma experiência;
ele não pode ser encontrado em nenhuma forma sensível,
sendo, portanto, uma “apresentação [presentificação] negativa”
segundo os termos de Lyotard (1993, p. 23; 1997, p.91). Para
Kant, ele se equipara a uma Ideia da razão devido a sua
inadequação à sensibilidade. A imaginação, ao invés de buscar
parceria com o entendimento na busca de uma conformidade
afins, uma forma sem conceito, troca de parceira e busca uma
Ideia incondicionada de apresentação sensível. A passagem
abaixo ilustra tais afirmações no texto da terceira Crítica:
[…]Não podemos dizer mais senão que o objeto é apto à
apresentação de uma sublimidade que pode ser encontrada
no ânimo; pois o verdadeiro sublime não pode estar contido

4 Grifos nossos.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

em nenhuma forma sensível, mas concerne somente a ideias


da razão, que, embora não possibilitem nenhuma
representação adequada a elas, são avivadas e evocadas ao
ânimo precisamente por essa inadequação, que se deixa
apresentar sensivelmente (KANT, 2010, p. 91; §23).

Lembremos que uma apresentação informe, ao afetar o


sujeito com o sentimento de que há algo impossível de ser
apreendido pela sensibilidade, dá testemunho da existência do
ilimitado ou do infinito. E este é o exemplo mais conhecido de
sublimidade retirado do texto kantiano: “denominamos
sublime o que é absolutamente grande”(KANT, 2010, p. 93;
§25). Assim, o sublime é a afecção causada no sujeito pelas
Ideias do absolutamente poderoso ou do absolutamente
grande, como é o caso da Ideia de infinito. Como uma Ideia da
razão, o infinito não pode ser deduzido a partir de dados
sensíveis, mas pode ser pensado como um conceito puro
330 incondicionado. O juízo estético diante da ideia de infinito é o
sublime.

O Sublime de Lyotard para além de Kant


Lyotard aceita, em parte, os termos kantianos5 e define
esta apresentação negativa como “inapresentável”. Localiza aí a
inspiração das vanguardas modernas ao dizer que a arte
moderna é aquela que “consagra o seu petit technique [...] a
‘presentificar’ [apresentar] o que há de ‘impresentificável’
[inapresentável]”(1993, p.22). Mas nos ensaios que compõe o
livro O Inhumano (1997), em meados dos anos oitenta, começa
a diferir-se do sublime kantiano. Pode-se dizer que a grande
diferença está na recusa da afirmação de um novo acordo entre

5 Lyotard escreveu um livro intitulado Lições Sobre a Analítica do


Sublime (1993). Trata-se de uma abordagem do sublime calcada
exclusivamente na analítica do sublime de Kant com maior interesse
na compreensão deste sistema do que na proposição de uma nova
teoria do sublime. No entanto, pode-se observar pequenos ajustes no
sistema kantiano que apontam para as adaptações que Lyotard fará de
tais enunciados nas demais obras.
Apresentação do inapresentável

imaginação e razão diante do conflito entre a primeira e o


entendimento. Privilegia-se, então, a abertura ou fratura do
sujeito e mantém-se a tensão de um conflito intransponível, de
uma diferença entre a sensibilidade e o pensamento que não
passa pelo privilégio do segundo. Trata-se da assunção do
sublime como um experiência de quebra da consciência
delimitada de um eu, do despojamento de suas capacidades de
pensamento e sensibilidade diante de algo que não pode ser
sentido (VALL, 2002; SAINT-GIRONS, 2005).
Lyotard afirma que, “com a estética do sublime, a
aposta das artes durante os séculos XIX e XX, é testemunhar do
indeterminado existente”(1997, p. 106). Mas a definição do que
seria o inapresentável tomo outro caminho:

As vanguardas pictóricas cumprem o romantismo, ou seja, o


modernismo, o qual representa num sentido forte e
purificador [...], a falha da regulação entre o sensível e o
inteligível. Mas, ao mesmo tempo, representam uma saída 331
para a nostalgia romântica porque não procuram o não
apresentável no mais longínquo, como na origem ou um fim
perdidos, a apresentar no tema do quadro, mas perto, na
própria matéria do quadro artístico (1997, p. 130).

Aqui o sublime se adequa melhora às coisas da arte, a


partir de princípios que não são transcendentes à própria
matéria artística. Não se tem alusões a princípios metafísicos
ou princípios de caráter essencialista, nem mesmo a aposta no
abstracionismo das Ideias da razão. Lyotard opera uma ligação
do termo inapresentável aos termos “inapreensível” e,
consequentemente, aos termos inaudível e invisível. Assim “o
inaudível e o invisível não pertencem a um substrato
suprassensível que escaparia inteiramente a condição
ordinária do tempo-espaço-matéria”, diferentemente do
sublime kantiano no qual apenas uma filosofia metafísica ou
crítica poderia dar conta: “o inaudível é um gesto dentro do
espaço-tempo-matéria do som, e ele faz sinal de sua presença,
mas como isso que o pensamento-corpo não pode mais sentir.
Ele faz sinal de uma presença que não é apresentável”(2012, p.
212). O que garante este distanciamento da metafísica é o
FRONTEIRAS DA MÚSICA

conceito de matéria que passa a ser o foco do sublime em


Lyotard. Portanto, o inapresentável é a “presença” da matéria,
cuja qual o pensamento-corpo não pode mais sentir. Mas o que
seria, então, matéria?
Matéria é, antes de tudo, diferente de material. O
material, seguindo uma tradição aristotélica de pensamento da
matéria, seria a “matéria que está esperando, em suspenso, por
uma forma que lhe dê acabamento e lhe admita, como uma
potência que não está ainda atualizada ou realizada”(2012, p.
216). O material seria um dado sensível, mas que, de alguma
maneira, já teria passado por um processo de identificação
apriorística que lhe confere destinação e direção no
pensamento-corpo. É como se este já estivesse preparado para
aquele através de seus mecanismos de percepção. Mas tornar a
matéria sensível ou pensada pressupõe que há algo de não
pensável ou não sensível nesta matéria, que não possuímos
uma antecipação de sua forma e que esse algo não obedece a
332 nenhuma finalidade. A advertência é para o fato de que mesmo
o que pensamos ser dados sensíveis, ou o que sentimos como
tal, sofrem a influência de mecanismos preestabelecidos de
sensação-pensamento, atuando como filtros. Mas há algo na
matéria que sempre escapa a tais pré-configurações. Segundo
Durafour, essa matéria “não é mais o dado sensível
exatamente”, e sim “o que Merleau-Ponty havia chamado de
‘forro do visível’, o qual acompanha todo o visível, melhor, que
o sustém, que é seu suporte” (2012, p. 250). E Parret afirma: é
uma “presença que excede a experiência concreta e as tensões
do sensível” (2012, p. 10). Essa matéria é “‘imaterial’, an-
objetável, já que só pode ‘acontecer ou ocorrer pelo preço da
suspensão desses poderes ativos do espirito”(1997, p. 144).
Assim, para que a matéria se faça presente, é importante que se
vislumbre seu caráter “imaterial”, ou seja, o que dela não se
converteu em códigos, nem mentais e nem corporais, e que não
pode, ainda, ser visto, ser ouvido ou ser sentido como um
material. Trata-se da matéria em seu sentido indistinto e
indiscreto e, por isso mesmo, ainda imperceptível, possível
apenas a uma pré-percepção.
Apresentação do inapresentável

Maurice Merleau-Ponty comentou o que chamou justamente


de ‘dúvida de Cézanne’, como se o objetivo do pintor fosse, de
fato, agarrar e restituir a percepção no seu início, a percepção
‘antes’ da percepção, poderia dizer: a cor, na sua ocorrência,
a maravilha sentida pelo fato de ‘ocorrer’ (algo: cor) pelo
menos a olho nu (1997, p. 107)

Até aqui, é possível afirmar que o sublime, em Lyotard,


é o sentimento que se experimenta diante da apresentação do
inapresentável, do testemunho da existência da matéria
imaterial. Mas outro ponto importante é a afirmação de que ele
é o sentimento de que “algo ocorre”: A “ocorrência”
(acontecimento ou evento), mais um aspecto que diferencia o
sublime lyotardiano em relação ao kantiano, é
proeminentemente uma questão do tempo:

[...] A questão do tempo, do Ocorrerá, não faz parte, pelo


menos de forma explícita, da problemática de Kant. [...] A 333
questão do tempo está no centro das [Investigações Filosófica
sobre a Origem de nossas Ideias de Sublime e de Belo], escrito
por Edmund Burke [...] Kant despoja a estética de Burke do
que penso ser o seu maior desafio: mostrar que o sublime é
provocado pela ameaça de nada ocorrer (1997, p.103-104)

E Lyotard continua:

[...] O belo dá um prazer positivo. Existe, porém, outro tipo de


prazer, ligado a uma paixão mais forte do que a satisfação,
que é a dor e a aproximação da morte. No entanto, a alma
pode também afetar o corpo, como se sentisse uma dor de
origem externa, pelo único meio de representações
conscientes associadas inconscientemente a situações de dor.
No léxico de Burke, esta paixão extremamente espiritual
chama-se terror. Ora, os terrores estão ligados à privações:
privação da luz, terror das trevas; privação do outro, terror
da solidão; privação da linguagem, terror do silêncio;
privação dos objetos, terror do vazio; privação da vida, terror
da morte. O que é assustador é que o Ocorrerá não ocorra,
cesse de ocorrer. (1997, p. 104)
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Este motivo, dado a Lyotard por Burke, é desenvolvido


sob a influência de Heidegger: “Um acontecimento, uma
ocorrência, o que Martin Heidegger chamava de ein Ereignis, é
infinitamente simples; contudo, esta simplicidade só se pode
tornar próxima na privação. O que chamamos pensamento
deve ser desarmado”(idem, p.96). Para exemplificar este
conceito, Lyotard recorre ao comentário das obras de Barnett
Baruch Newman (1905-1970)6, pintor nova-iorquino do círculo
do expressionismo abstrato. Lyotard se apoia em uma
afirmação de Newman de que seus quadros “não se prestam
nem à manipulação do espaço nem a da imagem, mas à
sensação do tempo” (NEWMAN apud LYOTARD, 1997, p. 92;
95), e completa:

Uma tela de Newman opõe às histórias a sua nudez plástica.


Está ali, dimensões, cores, traços, sem alusão. Ao ponto de ser
um problema para o comentador. O que dizer que não seja
334 dado? A descrição é fácil, mas monótona como uma
paráfrase. A melhor glosa consiste na interrogação: o que
dizer?, na exclamação: há!, na surpresa: e está! Todas
expressões de um sentimento que tem um nome na tradição
estética moderna (e na obra de Newman): o sublime. É o
sentimento: aqui está. Não há assim quase nada para
‘consumir’ [...] Não se consome a ocorrência, mas apenas seu
sentido. Sentir o instante é instantâneo (1997, p. 87)

Assim, experimentar a ocorrência seria experimentar


um instante no tempo no qual não se indaga sobre o que
ocorrerá - ou o que é isto, ou o que está ocorrendo - mas sim a
respeito de que algo ocorre, aqui e agora algo existe: “o que
acontece (quid) chega logo depois. O inicio é que há... (quid); o
mundo, o que existe” (1997, p. 89). O quadro “representa a
presença, o ser oferece-se aqui e agora”. Não interessa narrá-lo
ou interpretá-lo. Como observadores, somos um “ouvido aberto
ao som que chega do silêncio”(1997, p. 90). A obra interpela

6 Dentre as obras teóricas de Newman, podemos citar o ensaio O


Sublime é Agora (1992) de 1948. Para uma referencia de seus quadros
nos comentearios de Lyotard, nota-se a tela The Voice (1950)
Apresentação do inapresentável

seu espectador exigindo que ele “erga” a sua atenção para o


quadro: “erguer os ouvidos, escutar”. A pergunta principal,
diante desse quadro é: ocorrerá? Algo ocorrerá? E há um
‘milagre’ da criação, pois sente-se o instante em que algo
emana do nada e acontece, em contraposição ao terror
burkeano de que nada venha a ocorrer, pois “o sublime é que,
no meio dessa iminência do nada, aconteça alguma coisa apesar
de tudo”(1997, p. 91). Além disso, este instante de presença, o
“now [agora] puro e simples”, “desampara e destitui a
consciência, representa o que ela não consegue pensar, talvez
mesmo o que esquece para ela própria se constituir “(1997, p.
96). Vall ajuda-nos a compreender o elemento de sublimidade
contido em The Voice:

Sua sublimidade reside [...] na insistência da linha, uma


insistência que se faz sentida como um jogo temporal com
nossa atenção. Este jogo não é apenas prazeroso. Existe um
sentimento irritado, resultante da frustração do desejo por 335
uma impertubável e prazerosa experiência de sonhar, pela
presença cada vez mais forte e perturbadora do que no início
parecia um detalhe. Mas existe, também, um sentido de
permanecer acordado, de ser destinado ou chamado, ou
mesmo de ser guiado, por um recurso pictórico emergindo da
invisibilidade (VALL, 2002, p. 360)7.

Como podemos ver, as noções de inapresentável,


matéria imaterial e ocorrência são interdependentes, pois o
que se apresenta é está matéria que não pode ser apresentada,
pois está destituída de sua forma que nos possibilita
reconhecê-la, senti-la e pensá-la como material. E esta presença
se dá na forma de uma ocorrência, um acontecimento, um
vislumbre do impensável de que nada ocorrerá. Isso nos
aterroriza e o que era antes insensível dá-se a sentir neste
momento de tensão. A tensão se estabelece ao dar-se ouvido a
ocorrência, na tentativa paradoxal de se por a escutar antes
mesmo de se por a saber o que é que se escuta. A essa

7 Grifos nossos.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

prostração em escuta, Lyotard deu o nome de “passibilidade”


ou “obediência” ao acontecimento, à ocorrência.

Devemos sugerir, portanto, que haveria um estado do


espírito à espera da ‘presença’ (uma presença que não é de
nenhum modo apresentada no sentido do aqui e agora, isto é,
como o que designa as deíticas da apresentação), um estado
de espírito sem espírito, que é requerido do espírito não para
que a matéria seja percebida nem concebida, nem dada, nem
apreendida, mas para que haja alguma coisa. E digo matéria
para designar o “que há” o quod, porque essa presença, na
ausência do espírito ativo, é e não é timbre, tom, nuance,
numa ou noutra disposição da sensibilidade, num ou noutro
dos sensoria, numa ou noutra passibilidade, pela qual o
espírito é acessível ao acontecimento material e se sente
‘tocado’ (1997, p. 144-145).

336 O sublime na música contemporânea


Nos ensaios sobre música, pertencentes a essa estética
do sublime, alguns temas aparecem com constância como se as
mesmas ideias tivessem sido escritas e rescritas de forma
variada em cada texto, como um exercício de estilo. Seus
termos e assuntos são basicamente os mesmos, trocando-se a
ordem de aparecimento em cada um destes ensaios. A temática
das vanguardas musicais predomina e a discussão musical não
é simplesmente um terreno de exemplificação de um
pensamento estético retirado da literatura ou da pintura, mas
sim um campo potente de formulação, síntese e criação de tais
ideias. A música está presente na estética de Lyotard desde o
período libidinal, do qual destacam-se alguns ensaios mais
concentrados nas ideias e na música de Cage, Bério e
Schoenberg. Já sobre a estética do sublime, algumas de suas
definições e formulações mais condensadas acontecem nos
ensaios sobre música, uma vez que a música colaborou
contundentemente para a construção da teoria estética de
autores caros a ele, tal como é o caso de Adorno.
Mas a principal pergunta é: o que seria essa estética do
sublime na música? Como se daria uma apresentação do
inapresentável no campo do sonoro? O apresentável, em
Apresentação do inapresentável

música, é o inaudível: “a música trabalha para dar à luz o


audível do sopro inaudível” (1996, p. 202). E este é um “gesto”
no espaço-tempo-matéria do som, no “espaço-tempo-som”
(2012, p. 209). Mas este gesto “não é o feito do autor. O
trabalho do autor é de deixar o som fazer um gesto que pareça
exceder o audível e de registrar o traço dentro do espaço-
tempo-som que determina o campo do audível”(2012, p. 209).
Tais gestos não são nem os conteúdos nem as formas, mas sim
o poder absolutamente inovador da obra. O gesto é o
acontecimento que afeta a sensibilidade para além do que ela
pode sentir:

o gesto não é feito pelo compositor, ele não exprime alguma


subjetividade. A delícia que ele proporciona à subjetividade
do compositor ou do ouvinte supõe, ao contrário, um tipo de
suspenção ou decomposição dessa subjetividade. Porque a
‘presença’ do gesto dentro da apresentação das formas
adentra o desenlace da síntese sobre as quais a subjetividade
é construída. Seu tempo, seu espaço, a materialidade das 337
sensações que a afetam são suspendidos. A ‘presença’ não é
ela-mesma sentida já que ela não satisfaz às condições de
lugar, de momento e de sensorium que são aqueles da
sensibilidade subjetiva (2012, p. 212-213)

Podemos ver que a mesma suspensão do espirito


característica da passibilidade aqui é retomada como
suspensão ou decomposição da subjetividade. Lyotard
relembra Adorno e diz que “este gesto não é expressivo” - “a
expressão é um engodo”-, pois a arte não teria por destinação
exprimir o mistério da encarnação. Ela supõe um pensamento-
corpo e a capacidade de ser afetada pelo sensível. Ela não tem
nada a exprimir desta encarnação e sim deve excedê-la. O gesto
proporciona o sentimento de uma ocorrência, um
acontecimento, instaurado dentro do espaço-tempo-som.
Portanto, é no percurso de se definir o que é essa matéria som
que tais conceitos vão se delineando:

É igualmente óbvio que, de Debussy a Boulez, Cage e Nono,


passando por Webern ou Varèse, a atenção dos músicos
FRONTEIRAS DA MÚSICA

modernos está virada para essa passibilidade secreta em


relação ao timbre sonoro. É ela também que dá sua
importância ao jazz e a música eletrônica. Os músicos tem
acesso a um continuum infinito de matizes sonoros, com os
gongs e, em geral, com todas as percussões e os
sintetizadores. Além do mais, penso que seria necessário
reconsiderar, sob este aspecto, o da matéria imaterial,
algumas obras minimalistas ou ‘pobres’ e certas obras
expressionistas, abstractas ou não (1997, p. 145)

A passibilidade, voltada a matéria imaterial, é


associada diretamente ao timbre sonoro. Assim, os
compositores contemporâneos teriam realizado uma
“anamnese [...] do que lhes era dado sobre o nome de
música”(1997, p. 170). Tal anamnese é o processo pelo qual, na
história da música e através das investigações criativas dos
séculos XIX e XX, foi-se distanciando dos “constrangimentos”
que aprisionavam o som, “como se o som, através de más
338 pesquisas e invenções, procedesse a sua própria anamnese”.
Esses constrangimentos são os recursos de organização e
manipulação da linguagem musical, os quais a música teve de
respeitar para se tornar “apresentável”. Eles colocavam os
timbres sob o domínio da “instrumentação clássica, barroca e
moderna”; “as durações e o ritmos regulados pela medida e o
contraponto”; as alturas “definidas pelas gamas e pelos
modos”; e, por último, as intensidades traduzidas em “regras
transmitidas pelos conservatórios”(idem, p. 170). Eis que
sobra, ao final de tal anamnese, a concepção do som como
“vibração no ar”, decomponível em seus parâmetros de
frequência, amplitude, duração e intensidade. Esta narrativa é
também conhecida como emancipação do timbre ou do som.
Então Lyotard retoma o enunciado adorniano de que, “com a
libertação do material, a possibilidade de dominá-lo aumentou”
(1997, p.167; 2012, p. 204).
Primeiramente, ele se esmera em dizer que o que ele
pensa por “matéria” é diferente do que Adorno pensa por
“material”. A noção adorniana remontaria a tradição
aristotélica. Assim, esse material seria uma matéria
determinada por uma forma, já participante de um jogo de
destinação que possibilita sua reconhecibilidade, sua
Apresentação do inapresentável

sensibilidade e seu pensamento. No entanto, a tarefa de uma


arte sublime seria a de possibilitar um vislumbre da matéria
imaterial. Esse seria um ideal “aporético”: trata-se de assumir o
que há de paradoxal nisto, pois no momento em que tal matéria
é disponibilizada ao ouvinte, ela deixa de ser matéria e sobra
apenas o testemunho de que há algo de inaudível que não se
encontra disponível para as premontagens sonoras do corpo
humano, da natureza e da cultura:
Existem algumas premontagens sonoras do copo humano, da
natureza e da cultura, e a música tem sempre feito os esforço
de as exceder. Mas juntamente, e sobretudo, essa superação
em si mesma deve ser superada. Porque ele confina
novamente a matéria sonora na linguagem da harmonia, da
melodia, da retórica musicais, afim de a dirigir para os
ouvintes (os destinatários) que poderão escutá-la porque
eles podem decifrar os códigos, conscientemente ou não. Ao
se propor como ideal de fazer sentir ao ouvido a matéria-
som, o timbre, livre de qualquer destinação, os músicos
contemporâneos extremisam seu desafio até a aporia
constitutiva de toda a música: fazer-se ouvir isso que se
339
subtrai por si mesmo a toda escuta, dirigir [destinar] isso que
não é dirigido [destinável] (2012, p. 218)

Em outro techo, Lyotard escreve:


Se a matéria sonora não espera nada de sua formalização, é
necessário dizer, também, que ela não espera ser ouvida pelo
vibrar ou pelo soar. Esse ideal aporético da música se chama,
em alemão, tonkunst, uma arte do timbre. Essa matéria que
se subtrai à destinação não é o material, o qual é somente o
suporte de uma mensagem. Ela é imaterial. Os físicos [dizem]
que isso ao qual nós chamamos matéria é a energia
transformada em corpúsculos e em objetos. A obra de arte
carrega o testemunho de que os objetos não existem, que eles
são os traços filtrados, codificados e decodificados pela nossa
sensibilidade corporal e nossa língua, de um poder que os
excede. (1997, p. 220).

Assim, toda tentativa da música moderna e


contemporânea em expor o timbre, como se expusesse a
matéria sonora, tem validade não enquanto domínio técnico ou
FRONTEIRAS DA MÚSICA

tecnológico deste som, mas como uma tentativa de desarticular


os mecanismos de destinação dos sons na escuta, de tentar
desarticular os esquemas pré-concebidos de audição que
cristalizam o mundo como se ele já fosse completamente dado,
conhecido ou previsível. Esse passo é análogo à nudez plástica
reconhecida nos quadros de Newman. A aporia reside no por
em dúvida o que se ouve. E o paradoxo é que tal matéria
sempre escapa pois ela é um poder que está para além do
material, que o excede.
Podemos pensar que este desejo, no século XX, é
observável na obra de Varèse, o qual Lyotard compara com
Cézanne. Ambos tentaram fazer com que a forma de suas obras
emanassem da livre junção entre cores, no caso do pintor, e
timbres, entendidos como massas sonoras projetadas, no caso
do compositor. Aqui está uma rejeição do conceito clássico de
oposição entre forma - a construção pelo desenho - e matéria -
as cores aplicadas sobre as figuras desenhadas. Rejeição da
340 prioridade da primeira sobre a segunda. Tal qual Cèzanne,
Varèse projeta os planos e as massas sonoras, umas sobre as
outras, como rio escoando, sem a ideia de contraponto e
melodia. Cada timbre seria “tomado um a um” fazendo “corpo
com a forma”, com os sons “integrando a estrutura da
obra”(VARÈSE apud LYOTARD, 1997, p. 174). Isto significa a
libertação em relação as regras das formas clássicas. A busca de
Varèse era, portanto, por “ultrapassar o limite de audibilidade”
na expectativa de que as novas tecnologias do século XX o
possibilitassem a utilizar um “leque inteiramente novo de
sons”, ao qual ele chamou de “radical impensado das
resultantes inferiores e dos sons diferenciais e adicionais”. Para
Lyotard, este “’impensado radical’ é um impensado do ouvido,
um inaudível” (idem, p. 173).
Bem como Varèse, tanto partidários de Cage quanto de
Boulez operaram feitos composicionais na busca de ultrapassar
esse limite de audibilidade. Cage subtrai a articulação (e a
composição, que é sua forma suprema) recorrendo-se ao
‘silêncio’, ao contingente, ao evento (ocorrência?), ao encontro
imprevisível de uma peça de piano e um ‘ruído’ de metrô,
encarando o ruído como som musical bruto, não temperado –
fiel a Varèse. Boulez concorda com o som musical bruto, mas
crê que devemos sobre-articular todos os componentes da
Apresentação do inapresentável

linguagem musical para extrair sua matéria-som inaudível,


pois, deixar “estar os sons” apenas, não nos poupará de escutar
o continuum sonoro sob os filtros de nossa organização
fisiológica, psíquica e cultural. Assim Lyotard afirma: “Eu não
escolherei dentre essas duas filosofias da matéria sonora. É
certo que elas tem um projeto em comum: liberar essa matéria
sonora de seu envelope formal convencional” (2012, p. 216).
Em ambos os casos “trata-se de fazer sentir o insensível do
campo sensorial, [...] o inaudível” (1997, p. 177). E podemos
tentar alcançá-lo, “quer por defeito, quer por excesso,
dirigindo-nos para o que há de mais elementar [...], ou então
para o que há de mais complexo”.
Neste mesmo contexto da oposição entre Cage e
Boulez, Lyotard nos revela o que pensa a respeito do termo
ocorrência no domínio da música. “Aqui, agora um som soa,
desdobrando, no instante inapreensível, a sua fuga em espera”.
Trata-se do enigma da “Darstellung [figurabilização]
imediatamente transcrita em sentimentos antes de qualquer 341
objetivização [...] num sentimento sonoro que é talvez a
presença mais elementar do tempo ou ao tempo, [...] o estado
mais pobre do ser-tempo” (1997, p.178). Mas este ser-agora
seria rapidamente esquecido quando “apanhado na trama
apertada das retóricas musicais, as quais regulamentam e
determinam a sua ocorrência: de harmonia, de melodia, de
instrumentação [...]”. Assim, o sentimento de ocorrência seria
comum a todas as músicas contemporâneas, ou seja, a todas as
músicas que, de alguma forma, suspendem essa trama retórica:

Desfazemos, ou pensamos que desfazemos a trama que


entropece a escuta ao deixar os ‘sons existirem’, como diz
Cage, ou frustrando-a com tramas mais complexas, menos
retóricas do que cognitivas, frequentemente chamadas
‘estruturas’, onde as várias dimensões do som são
experimentadas para se tornarem ‘presentes’ em relação ao
sentimento sonoro [Boulez] (1997, p. 178)

Este é o acontecimento sonoro, a ocorrência sonora, a


libertação da escuta das tramas retóricas em busca do
sentimento de ser-agora – presença. Mas isso se dá como uma
FRONTEIRAS DA MÚSICA

tentativa paradoxal, um enigma que exige “doação” a um


“estado de espirito sem espirito” como se pudéssemos pensar-
sentir, ouvir, não sendo um eu, esquecendo-se o que uma
consciência subjetiva precisa para ter consciência de si. Trata-
se de dar voz, de dar audiência a alteridade, de ouvir sua voz
antes de se projetar na determinação do que ela é. Dar voz é
também “dar ouvidos a”, ou seja, o que anteriormente foi
definido por “passibilidade” a algo. Um sinônimo para essa
passibilidade é o termo “obediência”. Assim, uma das
conclusões mais significativas de Lyotard é a de que, o que está
de fato em jogo na “libertação do som”, não é exatamente a
libertação deste som enquanto material, mas sim a “libertação
da obediência ou, de preferência, o respeito pela
obediência”(1997, p.178). Importa, no sublime musical descrito
pela emancipação do timbre, a “doação ao acontecimento”, à
ocorrência sonora.

342 Conclusão
Como síntese, portanto, podemos reunir os termos
apresentação do inapresentável, passibilidade ao
acontecimento e matéria imaterial em um enunciado que
resumiria o sublime musical de Lyotard: trata-se de um
sentimento de presença ocasionado pela obediência (doação,
passibilidade) ao acontecimento sonoro como um gesto, da
obra, no espaço-matéria-som que dá a ouvir o som imaterial
inaudível. Assim, para Lyotard, o caminho de diversas
correntes de compositores contempâneos teria sido o de expor
e emancipar a nudez sonora, análoga a nudez plástica de
pintores como Newman, como estratégia de desmanche, tanto
da narrativa musical que impossibilita o vislumbre do que
ainda não se deu a ouvir – do inaudível – quanto de um eu
musical cristalizado que não pode ouvir o som a não ser através
de seus modos preconcebidos de escuta.

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Malden: Blackwell, 2002, p. 360-370
Notações e cartesianismo

FLÁVIO SILVA

ão sou especialista em paleografia musical. As ideias a


N seguir expostas resultam de confluências de
estranhezas envolvendo:

• as diferenças entre as músicas eruditas na Europa e em


outras partes do mundo;
• as diferenças entre as músicas eruditas consolidadas na
Europa a partir da Renascença e as outras músicas lá
praticadas;
• as diferenças entre músicas eruditas e folclórico/populares
em outras partes do mundo;
• a intervenção de um músico marroquino em ciclo realizado
em Paris, por volta de 1970, sobre as origens do flamenco
na música do Irã. Esse músico criticou a exaltação, por
compositores europeus, da improvisação na música árabe:
“Nós estamos improvisando a mesma música há
quinhentos anos, enquanto a de vocês, nesse mesmo
período, experimentou enormes mudanças”.
• o tipo de desenvolvimento social, econômico, tecnológico e,
mais geralmente, cultural que a Europa foi a única região
do mundo a experimentar

Creio ver no sistema de notação musical pautada


desenvolvido na Europa medieval uma raiz dessas diferenças e
um germe do cartesianismo.

Notações extra-europeias

O enorme esforço de abstração exigido pela invenção


da escrita resultou de questões práticas e objetivas: ao que
tudo indica, foram exigências de viajantes comerciando em
diferentes regiões que suscitaram necessidade de fixar
Notações e cartesianismo

informações em signos e em suportes variáveis de acordo com


as diferentes culturas e com os objetivos visados. Signos
indicando quantidades podem ter sido concebidos antes da
grafia de palavras; os chamados números arábicos foram
inventados na Índia. A escrita de narrativas épicas justificando
crenças político-religiosas parece ter sido posterior, e precedeu
a de textos profanos de caráter ficcional.

Notações musicais só aparecem em civilizações onde a


escrita literária já adquirira grande desenvolvimento e que
conheciam sistemas teóricos, inclusive musicais, formalmente
constituídos em textos escritos. Elas são, portanto, ligados a
músicas cultas, e não a práticas musicais de populações
iletradas, cujos sistemas musicais não conheciam a
formalização possibilitada pela escrita, embora tivessem pelo
menos uma teoria implícita.

As diferenças entre música erudita, folclórica e popular


não são invenção de elites europeias ou europeizadas; elas 345
aparecem em outras culturas. O termo japonês gagaku é
composto de dois ideogramas: ga significa refinado, nobre,
justo, e gaku designa música; gagaku é a música refinada, nobre
e culta, por oposição à música folclórica, considerada como
vulgar e primitiva (TAMBA: 82). No Tibet, a música “comporta
três aspectos: a música folclórica – tal como a encontramos na
vida corrente do povo tibetano; uma arte musical − cultivada
sobretudo por menestréis profissionais; o canto sagrado e a
música instrumental da liturgia budista e de outros ritos −
centrada em volta dos mosteiros” (CROSSLEY-HOLLAND). Na
China, “a expressão musical apela a qualidades de apreciação
que a distinguem das artes ordinárias, e fala-se de uma ‘música
virtuosa’, deyin, que não pode ser percebida nem realizada
pelas pessoas comuns: é necessário uma educação para amar e
compreender a música [...]. A partir dessa noção de música
elevada, yayue, reflexo da ordem universal, é operada uma
diferenciação com a música ‘vulgar’, suyue [...]. [...] era perigoso
realizar uma música elevada perante quem não tinha a virtude
necessária para ouvi-la” (RAULT: 77). “Nas principais regiões
islâmicas, havia uma ampla distinção entre a cultura da corte e
a cultura popular. A corte era o lar da poesia escrita, da música
e da dança clássicas [...]. Entre o povo, as artes mantiveram uma
FRONTEIRAS DA MÚSICA

tradição contínua, raramente perturbada pelas práticas


volúveis das elites.” (GOODY: 2011, p.144) As concepções
ligando determinados modos ou intervalos musicais, melodias
e mesmo instrumentos a determinados sentimentos, horas do
dia, estações do ano, deuses, status social são comuns à maioria
dessas culturas e estavam presentes na Grécia antiga, onde
Platão criticava os emolientes modos cromáticos e exaltava os
diatônicos. O prof. Tran Van Khê ensinava que na India a paixão
era expressa pelos modos cromáticos e a serenidade pelos
diatônicos.
A existência de corpus respeitáveis de textos religioso,
que também deviam ser cantados e exigiam grande esforço de
memorização, pode ou deve ter sugerido, por analogia ao texto
literário, a conveniência ou necessidade de algum tipo de
fixação gráfica de entonações ou de melodias. Assim como
textos sacros costumavam ser ditados por divindades, também
as melodias com que eles eram entoados tinham essa origem;
346 ambos, portanto, deveriam ser preservados da forma como
foram recebidos. As notações dessas melodias aparecem em
geral sob forma de signos descontínuos inscritos paralelamente
aos textos de extensos repertórios sacros, escritos vertical ou
horizontalmente, e indicam apenas alturas aproximadas; elas
ajudam a lembrar movimentos melódicos entonados ou
cantados e são lembretes ou aide-mémoires sem preocupação
maior com precisão. As notações puramente instrumentais,
mediante tablaturas, parecem surgir apenas em culturas que
desenvolveram concepções menos dependentes do sagrado.

Os exemplos a seguir são dados sem maior


preocupação cronológica, visando sobretudo mostrar grafias
musicais desenvolvidas em vários países ou regiões.

As primeiras escritas teriam sido registradas na


Suméria/Iraque, há cerca de 4000 anos; é razoável que 2000
anos depois tenham lá surgido inscrições cuneiformes que
poderiam indicar notas musicais (ex. 1).
Notações e cartesianismo

Ex. 1: Mesopotâmia: possível notação do sec. IX a.c., segundo Galpin


(MACHABEY p.11)

Desde 1500 a. C. há salmodias notadas com acentos,


cifras e neumas na Índia. Na China, onde o confucionismo
exibia uma faceta que pode ser vista como profana ou laica, há
inscrições mencionando escalas e transposições desde 433 a. C.
Composições musicais instrumentais surgem em mais de 3300
tablaturas na dinastia Ming (1360-1644).

Os casos de tablaturas parecem muito mais ligados a


músicas profanas do que a músicas sacras; eles podem ser mais
precisos na informação das alturas, em função de afinações
instrumentais. Na Ásia, apenas a Coréia teria conhecido um 347
sistema de notação definindo durações, organizado pelo rei
Sejong (1397-1451), que também teria melhor ordenado a
escrita literária e inventado tipos móveis para impressão, 215
anos antes de Guttenberg; Jack Goody refere a impressão de um
texto em um milhão de exemplares por esse processo coreano,
durante nossa Idade Média. São dados dois exemplos bem
diferentes de tablaturas para cítara, um na Coréia (ex. 2) e
outro no Japão (ex. 3); a tablatura japonesa para biwa é bem
anterior à coreana.

Ex. 2: Coréia – tablatura de cítara Ex. 3: Japão − tablatura biwa, 747


(JASCHINSKI, p. 279) d.c. (TAMBA, p.74)
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Na tablatura do ex. 3, os ideogramas alinhados


verticalmente indicam alturas com bastante precisão, mas o
Japão também conheceu notações onduladas indicando
movimentações vocais na música sacra shomyo (ex. 4),
necessariamente mais imprecisas do que as instrumentais;
ambas são lidas da direita para a esquerda.

Ex. 4: Japão 1240-1321 notação vocal para shomyo (JASCHINSKI, p. 271)

348 Outros exemplos de notações onduladas são


encontrados no Tibet. Assim como no caso japonês, a extensão
das linhas onduladas talvez corresponda à duração da emissão
vocal ou do sopro, seja no caso da notação instrumental, onde
algumas linhas terminam em forma de pavilhão (ex. 5), seja no
caso da música vocal (ex. 6). Esses exemplos tibetanos são lidos
da esquerda para a direita.

Ex. 5: Tibet – notação instrumental (JASCHINSKI, p. 281)

Ex. 6: Tibet − notação vocal (JASCHINSKI, p. 280)


Notações e cartesianismo

Arrolei a notação do ex. 7, da Grécia do sec. I, entre as


extra-europeias. A primeira linha sobre o texto indica alturas, e
a segunda as durações. Não referi outras notações praticadas
na Grécia antiga e que só se ocupam de alturas, a meu
conhecimento.

Ex. 7: Grécia, sec. I (MACHABEY, p. 18)

As únicas notações encontradas designadas como não-


europeias e que informam alturas e durações com boa margem
de precisão são as dos exemplos 2 para música profana e 7 para
música sacra.

As notações horizontal ou verticalmente alinhadas,


paralelas a textos sacros, lidas da direita para a esquerda ou
vice-versa e que utilizam signos descontínuos são bem mais 349
numerosas do que as onduladas. O predomínio parece ser o de
signos de entonação indicando movimentações da voz e tendo
muito mais função de lembretes do que de informação exata de
alturas, como as dos exemplos 8 a 10. O predomínio parece ser
o de signos de entonação indicando movimentações da voz e
tendo muito mais função de lembretes do que de informação
exata de alturas, como nos três exemplos a seguir:

Ex. 8: Al Kindi (JASCHINSKI, p. 230) Ex. 9: Cântico dos Cânticos,


Código de Aleppo, ca. 100 d.c.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Haveria alguma ligação entre os exemplos 11 e 12?


Processos musicais análogos ocorrem nas mais diferentes
regiões sem que haja qualquer indício de influências mútuas.
Em meados do sec. XVIII, o jesuíta francês Amyot publicou um
tratado sobre música chinesa em mais de 150 páginas, com
informações sobre sua história, teorias, teóricos e práticas,
além de detalhadas ilustrações de instrumentos musicais. Ele
também referiu uma possível origem indiana para as teorias de
Pitágoras e diferenças entre concepções chinesas e as de
Rameau. Observe-se que no ex. 11 os dedos trazem menos
informações do que no ex. 12.

350

Ex. 11: mão harmônica chinesa, Ex. 12: mão harmônica de Guido
sec. XVIII (AMYOT, p. s/n) d’Arezzo (GOLDRON, p. 38)

Notações neumáticas europeias

Nos exemplos 8 a 10, as notações aparecem horizontal


e paralelamente aos textos a que servem e utilizam signos
descontínuos, diferentemente do que ocorre nos exemplos 5 a
7, em linhas onduladas contínuas. Como antes sugerido, o
primeiro caso é o mais comum nas notações extra-europeias
ligadas a cânticos sacros, dos quais dão uma noção aproximada
da movimentação vocal. Como única exceção nos casos de
textos sacros, temos a notação grega do ex. 7, que também se
ocupa de durações, mas em duas linhas paralelas à do texto,
num processo de racionalização que é, de outra forma, refletido
na notação coreana para música profanas.
Notações e cartesianismo

As notações em linhas onduladas, contínuas ou


descontínuas, partem de uma ideia de representação espacial
da movimentação sonora, com os sons graves e agudos
aparecem grafados em posições diferentes. Na Asia, só
encontrei notações onduladas em linhas contínuas,
diferentemente das notações onduladas na Europa, em linhas
descontínuas. Creio que nenhuma notação extra-europeia,
horizontal, vertical ou ondulada, sobre textos sacros ou em
tablaturas instrumentais, em signos contínuos ou descontínuos,
possibilitou desenvolvimentos ou aperfeiçoamentos ou
modificações como os que puderam ser propiciados pelos
neumas em linhas onduladas descontínuas praticados na
Europa sobre textos sacros a partir do sec. IX.
Os neumas eram signos que representavam sons ou
agrupamentos de sons. O ex. 13 mostra neumas isolados, não
inseridos numa melodia.

351

Ex. 13: signos neumáticos de Saint-Gall (BEGUERMONT, P. 121)

A Europa conheceu vários sistemas neumáticos, que


aparecem inteiramente constituídos por volta do sec. IX, sem
que deles se conheça experimentos prévios. É certo que essa
FRONTEIRAS DA MÚSICA

constituição deve ter passado por muitas tentativas,


possivelmente elaboradas a partir de acentos bizantinos. A
febre neumática se alastrou em diferentes grafias pelos mais
diversos centros musicais europeus. No ex. 14, de notações
sobretudo francesas, pode-se notar uma quase horizontalidade
nos casos de Chartres e Mont-Renaud, contrastando com os
voos em Saint-Yrieix e Bénévent. Merece destaque o exemplo
de Montpellier, onde o texto sacro é encimado por uma notação
alfabética horizontal e por uma notação neumática ondulada.
Diferentemente das notações em linhas asiáticas
onduladas e contínuas dos ex. 4 a 6, foram esses signos
ondulados e descontínuos acrescentados a textos sacros que
forneceram a base para a revolução notacional que modificou
radicalmente a maneira de fazer música na Europa.

352

Ex. 14: notações neumáticas sobre um mesmo texto sacro


(BEGUERMONT, p. 108-109)

Notações pautadas

Os tratados Musica enchiriadis e Scolica enchiriadis, do


sec. IX, trazem proposta de notação musical radicalmente
diferente da neumática, onde os espaços entre linhas paralelas
Notações e cartesianismo

são atribuídos às diferentes notas de um sistema tetracordal,


cada uma com sua própria representação, ou seja: a cada
espaço é atribuído o que depois seria chamado de clave. Nesse
sistema, as sílabas do texto sacro a ser cantado são grafadas
nos espaços respectivos, de acordo com sua altura. O mais
importante, porém, é que esse sistema abre, ao que tudo indica
pela primeira vez na história da música, a possibilidade da
representação de duas e, portanto, mais melodias num mesmo
sistema de linhas paralelas. O exemplo mais emblemático dessa
notação parece ser o Rex Coeli domine, que Jacques Chailley
designou como o equivalente aos serments de Strasbourg para a
música europeia e que professor campineiro Yulo Brandão via
como a origem dessa música. O ex. 15 dá o primeiro verso
desse organum, com a grafia das palavras atualizada mas
trazendo os signos/claves originais atribuídos a cada espaço;
os dois versos são dados em tanscrição no ex. 16, que indica a
vox principalis e a voz organalis.

353

Ex. 15: Rex coeli domine (primeiro verso)

Ex. 16: Rex coeli domine (os dois versos)

Práticas tradicionais polifônicas ou heterofônicas,


instrumentais e/ou vocais, são mais do que vezeiras em todas
as partes do mundo, em músicas ligadas ou não a sistemas
FRONTEIRAS DA MÚSICA

teóricos formalmente constituídos. É mais do que possível que


tais práticas também ocorressem a partir da realização vocal
e/ou instrumental de melodias notadas, em culturas que
conheceram notações musicais; é certo que elas ocorreram na
Europa medieval. Pretende-se que a origem das notações
polifônicas europeias tenha raiz nessas práticas. Ora, em
nenhuma outra parte do mundo tais práticas levaram a
notações polifônicas. Não creio viável que a polifonia trazida
pelos dois exemplos acima, com a regularidade de seus
movimentos oblíquos, paralelos e opostos, possa ser entendida
como uma transcrição de polifonias orais, vocais e/ou
instrumentais, que certamente existiam na Europa, mesmo que
essas polifonias também se servissem de movimentos oblíquos,
paralelos e opostos.

O segundo verso desse organum, Te humiles famili, é


particularmente representativo do que sugiro. Começando da
mesma forma que o primeiro verso, a vox organalis usa o
354 intervalo de terça para fazer um notável malabarismo melódico
que evita o triton na sílaba “li” e conduz ao uníssono na sílaba
“mo”; essa utilização da terça nada tem a ver com a encontrada
na silaba “li” do primeiro verso. E é após o uníssono em “mo”
que pela primeira vez aparece no organum o intervalo de
quinta para depois tudo continuar como dantes, em quartas e
em uníssonos, como no final do primeiro verso. Vejo nessa
notação pioneira um sistema eminentemente teórico e
complexo, composicionalmente organizado por uma mão
criadora e mais acessível a doutos musicus do que a um simples
cantor. Mais, ainda: nela, vejo um primeiro exemplo de objeto
musical bem separado do observador, que passa a exercer um
controle visual sobre o que escreve, em vez de limitar-se a
transcrever o que pensa. É em função desse controle visual
sobre o texto musical objetivado que o observador pode
corrigir o que seria uma continuação natural na linha melódica
da voz organal e que levaria inevitavelmente ao intervalo
diabólico.

Vejo nessa notação, porém, muito mais uma profecia


do que poderia vir a ser uma notação musical objetiva do que o
motor da construção dessa objetividade. A notação que vai
realmente criar um objeto musical bem separado do
Notações e cartesianismo

observador será construída passo a passo, não a partir de


grandes edifícios teóricos, mas de um artifício cuja
simplicidade inicial não permitiria prenunciar a fantástica
revolução que possibilitaria. Lembro, agora, meu professor
Jacques Chailley para referir a notação mostrado nos ex. 17 e
18 como a que lança as bases do que viria a ser a música
europeia – e não só a erudita. Foi a partir da notação neumática
ondulada em signos descontínuos sobre texto sacro que algum
monge em algum mosteiro – em Saint Gall? − teve a ideia de
sobrepor a essa ondulação uma linha horizontal que receberia
o nome e o signo de uma nota – a nota fá, no caso −, de forma
tal que os signos indicando sons coincidentes com a essa linha
horizontal corresponderiam à nota fá e os signos acima e
abaixo dessa linha corresponderiam, respectivamente, aos sons
acima e abaixo do fá.

355

Ex. 17: neumas sobre uma linha (JASCHINSKI, p. 94

Ex. 18: Nevers, sec. XII (p. 51)


FRONTEIRAS DA MÚSICA

Ex. 19: Bruxelas, 1398 (BEGUERMONT, p. 139)

A partir do traçado de uma linha horizontal sobre


neumas ondulados e descontínuos, fica inteiramente lógico e
consequente traçar outra linha, que será atribuída à nota dó, o
que contribuirá para tornar mais preciso o entendimento da
altura dos neumas acima da linha do fá (ex. 19 e 20). Mais
356 linhas tornarão ainda mais localizáveisl as emissões vocais dos
diferentes neumas, sem o acréscimo de outras claves.

A expansão dessa invenção não modificou, alterou ou


eliminou, de saída, os vários sistemas neumáticos em vigor na
Europa, que continuaram a existir e a se modificar, nem
determinou evoluções lineares, cronologicamente ordenadas.
Assim, no ex. 19, de 1398, os signos neumáticos não aparentam
haver sofrido grande modificação pela superposição das quatro
linhas com suas duas claves , mas o ex. 20, de 1200, já aponta
para uma tendência cada vez mais explícita, de transformar os
arabescos neumáticos em punctus bem determinados,
tendência que se encontra bem mais afirmada no ex. 21.

Ex. 20: quatro linhas e duas claves em 1200 (GOLDRON, p. 164)


Notações e cartesianismo

Ex. 21, Limoges: quatro linhas e uma clave, entre 1304-1342


(BEGUERMONT, p. 175)

No ex. 15 era atribuída uma nota – uma clave − a cada


entrelinha; os exemplos 19 e 20 trazem apenas duas claves que
ordenam a distribuição das alturas nas quatro linhas e nas três
entrelinhas, mas essa dualidade é cancelada no ex. 21, com
apenas uma clave: a prática da leitura tornou a segunda clave
supérflua, inútil – bastava uma para sinalizar as alturas
relativas de todos os sons representados pelos signos dispostos
sobre as linhas paralelas e nos espaços entre elas 357
compreendidos.

Se o compositor dos ex. 15 e 16 podia, já no sec. IX,


superpor duas linhas melódicas para serem cantadas
simultaneamente, com seus movimentos oblíquos, paralelos e
contrários, o mesmo não ocorreu com os que, posterior-mente,
tateavam um sistema para clarificar a grafia neumática
superpondo aos neumas uma, depois duas e depois três e mais
linhas paralelas. Só quando essas tentativas alcançaram uma
relati- va precisão, no que concerne à notação de alturas e de
durações, é que foi possível notar duas e mais melodias numa
mesma pauta (ex. 22) e depois, em pautas diferentes (ex. 23 e
24).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Ex. 22: Perotin, Alleluia nativitas, sec. XII

358

Ex. 23: Moteto a três vozes, sec. XIII. As superiores ocupam as duas
colunas; o tenor aparece ao pé da página. (LEMOS, p. 168)

Ex. 24: partitura de Pierre de la Rue impressa por Petrucci (internet)


Notações e cartesianismo

Os signos pautados passaram por uma gradual e


constante simplificação e homogeneização relativas e acabam
incorporando procedimentos já desenvolvidos na notação
neumática tradicional, mediante os quais era possível aliar a
notação das alturas à das durações. Essas transformações não
ocorreram de forma simétrica ou linear em toda a Europa;
notações neumáticas sem a superposição de uma ou mais
linhas continuaram a ser utilizadas até as vésperas da
Renascença. As diferentes notações, porém, acabaram
confluindo para representações comuns que serão tornadas
obrigatórias com o desenvolvimento dos processos de
impressão de partituras, adaptados à edição musical a partir da
invenção de Guttenberg. Tanto a edição de livros como a de
partituras passou a exigir mercados cada vez mais amplos para
assegurar menores custos e tiragens maiores a seus produtos,
facilitando sua aquisição por classes médias emergentes. É essa
industrialização que operará uma simplificação e
homogeneização final nos signos notacionais, ampliando,
inclusive suas possibilidades de representação. 359

A meu conhecimento, a Europa só passou a usar


tablaturas após uma crescente autonomia da música
instrumental com relação à vocal, relacionada a uma vida cada
vez mais secularizada. As tablaturas para diversos
instrumentos (ex. 25 e 26) tiveram, porém, uma vida
relativamente breve: elas foram eliminadas pela expansão da
partitura impressa.

25: tablatura para órgão Ex. 26: tablatura para teclado


(JASCHINSKI, p. 191) (JASCHINSKI, p. 188)
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Conclusões, ou ilações

Retomo, agora, ideias já esboçadas para nelas ver uma


outra objetivação: a da definição de alturas do som, não no
sentido de sua grafia, mas da própria entonação, vocal ou
instrumental, do som grafado. Tudo parece ter se passado
como se aqueles signos cada vez mais claramente identificados
e tão simetricamente dispostos em linhas paralelas indicassem,
também, que suas entonações poderiam ou deveriam
corresponder à clareza com que passaram a ser grafados. As
infindáveis discussões sobre afinações pitagóricas, zarlinianas
e outras mais foram dando lugar à ideia segundo a qual era
muito mais razoável ter uma escala de sons ignorando
diferenças entre sustenidos e bemóis, isto é: que fosse
temperada. Evitava-se, assim, a complexidade exigida, em
especial, pela fabricação de instrumentos de teclado, com teclas
diferentes para esses cromatismos. O temperamento, porém, é
360 uma convenção tornada essencial para a música europeia, sem
o qual o sistema tonal é impensável, e que vale para a utilização
tradicional de instrumentos de sons fixos; os cantores
naturalmente cantarão notas mais para o agudo ou mais para o
grave de acordo com a movimentação melódica, e o mesmo
farão os cordistas.
Sem o temperamento, não teríamos o sistema tonal, de
cuja formulação Descartes pode ser visto como um dos
precursores, pelo status que conferiu ao acorde perfeito maior:

“Pour la première fois [no Traité de l’homme], l’accord


parfait s’y trouve légitimer par la science physique. Descartes
ouvre ainsi la théorie à des perspectives nouvelles: l’acord
parfait majeur est perçu comme une unité, et est justifié par
des données acoustiques. [...] Descartes est le premier à
donner une légitimation naturelle à l’accord parfait majeur,
lequel fonde notre système tonal. Il n’a hélas pas cru bon
d’exploiter davantage cette intuition, comme le fera Rameau
plus tard” (WYMEERSCH, 128, 130).

A racionalização na entonação das alturas – e não


apenas na sua grafia − teve como consequência uma drástica
redução na variedade de instrumentos musicais: as numerosas
Notações e cartesianismo

famílias de flautas, alaúdes, oboés etc., largamente praticadas


na Idade Média e na Renascença, foram reduzidas a um ou dois
modelos, quando não foram esquecidas. As entonações
‘imprecisas’ perderam espaço, ou passaram a não ser toleradas,
o que levou a modificações na fatura instrumental,
possibilitadas por aperfeiçoamentos tecnológicos tanto na
fabricação dos metais como no aperfeiçoamento de chaves e na
criação de válvulas para os sopros. As cordas, em particular,
ficaram reduzidas ao quarteto cuja artesania alcançou
patamares insuspeitados. As modificações que levaram do
cravo ao pianoforte corresponderam às exigências de maior
volume musical e de maior flexibilidade entre os ff e os pp. A
essa diminuição na quantidade dos sons e na variedade dos
instrumentos musicais correspondeu uma intensificação na
concepção de procedimentos formais que levou à forma sonata
e a uma nova profundidade para o pensamento musical, num
movimento análogo ao verificável no pensamento filosófico e
no científico.
361
Se as partes das suítes tinham nomes de danças, com a
sonata e a sinfonia essas partes passaram a ser designadas por
termos abstratos − allegro, adagio, vivace. A formação dos
conjuntos musicais ficou muito mais definida, com sua
associação em conjuntos bem estabelecidos – já foram
assinalados paralelismos entre a criação das orquestras e a de
fábricas. Todas essas modificações na prática e na concepção
de como fazer música, operadas num accelerando molto a partir
da Renascença e que motivaram o comentário do músico
marroquino citado no início desse texto, podem ser vistas, em
última análise, como tributárias daquele gesto solitário do
obscuro monge medieval que inventou traçar uma linha para
melhor identificar os sons com que deveriam ser cantadas as
melodias sacras. Pode-se estimar que essa procura de exatidão,
num material tão abstrato como o som, está na origem do
desenvolvimento de um racionalismo inédito na história da
humanidade, ou é, talvez, uma primeira manifestação ‘concreta’
do desenvolvimento dessa nova racionalidade.
Surge, agora uma pergunta que alguns julgarão
descabida, mas que faço, mesmo assim: qual a razão ou motivo
pelo qual não ocorreu a nenhum escriba japonês ou tibetano
FRONTEIRAS DA MÚSICA

traçar uma linha horizontal sobre suas notações onduladas em


linhas contínuas, como fez nosso monge medieval?
Uma primeira resposta reside no fato de que essas
notações eram onduladas em linhas contínuas e não poderiam
dar origem a notações pautadas, como os neumas medievais
notados em linhas descontínuas. Outra resposta possível e mais
discutível pode ser encontrada na diferença entre concepções
que entendem o universo como um contínuo indesmembrável,
deificado; não caberia, portanto, atentar contra sua unidade
essencial, inclusive no que se refere à unidade do som. Em
oposição, temos as concepções que estabelecem clara fronteira
entre o que é divino e o que emana de sua criação, de seu
poder. No primeiro caso, temos os politeísmos, em que deuses,
homens e natureza se misturam num contínuo indissociado; no
segundo, as religiões abrâmicas, do deus único, inicialmente
atrelado a um único povo, e depois anunciado para a
humanidade em geral. Parece, mesmo, haver uma lógica
362 segundo a qual os politeísmos só podem ser holísticos ou
monistas, enquanto os monoteísmos são dualistas por
conceberem seu deus como separado do que foi por ele criado.
Observo, porém, que o pretenso deus único é diferente de uma
religião para outra, e mesmo no interior de cada uma delas.
Algumas civilizações que conheceram a escrita
elaboraram sistemas teóricos e concepções musicais próprias
às camadas superiores de suas sociedades – o letramento era
privilégio dessas camadas – mas nem todas elaboraram
sistemas de notação para essas músicas ‘elevadas’. As
concepções musicais, da China à Índia, ao Japão e à Grécia,
estabeleciam ligações entre o comportamento do universo e as
realizações musicais, associando, inclusive, notas musicais a
planetas e a animais, e desenvolveram concepções segundo as
quais músicas licenciosas poderiam levar à ruína da cidade e de
impérios. Era corrente a atribuição de qualidades próprias aos
diferentes modos, escalas e/ou intervalos, que expressavam
tanto virtudes como depravações, bem como a assimilação de
certas práticas musicais a determinadas divindades, maléficas
ou benéficas. Judaísmo e islamismo, que eram religiões
abrâmicas, rejeitaram a representação pictórica ou escultórica
da figura humana, de animais e de plantas, na medida em que
essa representação significaria uma tentativa humana de
Notações e cartesianismo

assemelhar-se à divindade, ou de imitá-la. As uniões deificadas


entre as estruturas musicais e as do universo não podiam ter
grande acolhida na Europa medieval cristã, muito embora
resquícios desse pensamento tenham a ela chegado, através de
heranças de teorias gregas. Esses resquícios não chegaram a
ser prevalentes por muito tempo: se o criado está separado do
criador, não há como imaginar que entoar tal melodia ou modo
possa ameaçar o equilíbrio da natureza.
Resumindo: a evolução notacional trazida pela adição
de uma e mais linhas horizontais e paralelas às ondulações
neumáticas descontínuas exerceu-se em vários sentidos:

• progressiva unificação não linear ou concomitante nas


representações neumáticas, tendendo a assegurar uma
localização claramente definida e individualizada dos
signos musicais nas linhas e espaços da pauta; o
desenvolvimento da impressão musical sepultará as
diversidades ainda existentes; 363
• maior definição na emissão das alturas, como se à visão de
punctus bem definidos em espaços claramente delimitados
devessem corresponder sons de frequência claramente
definida;
• maior precisão na definição das durações, por um processo
análogo ao acima descrito;
• maior complexidade na escrita a várias vozes, pela relativa
simplificação e diversificação dos signos notacionais;
• redução da quantidade de modos, progressivamente
limitados a dois;
• entronização da figura do compositor, criador de melodias
ou de polifonias, que passa a ter nome;
• a partir do desenvolvimento da polifonia escrita,
progressiva definição do que viria a ser o sistema tonal;
• eliminação das tablaturas;
• abandono das várias afinações, substituídas pelo
temperamento, também de certa forma prefigurado pelo
esquematismo da pauta e pela regularidade dos signos nela
inscritos;
• enfim, constituição de uma linguagem musical
inteiramente nova no panorama da música mundial.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Num período mais avançado, e em função de


desenvolvimentos tecnológicos, ocorre uma progressiva
redução na variedade dos instrumentos musicais e uma maior
especialização na sua fatura, artesanal ou industrial, buscando
a definição mais precisa dos sons emitidos. As formas e gêneros
musicais tendem a se concentrar em uns poucos modelos; a
partir do sec. XVIII nota-se uma sistemática redução de nomes
de danças nas designações de movimentos de suítes, que
passam a ter cada vez mais nomes abstratos ou genéricos.
Pode-se ver nessas reduções de signos, de alturas, de durações,
de gêneros uma contração na extensão e uma expansão na
profundidade que acompanha as mutações no pensamento
científico e no filosófico – ou que as prenuncia?

Cartesianismos

As referências de J. Chailley e de Y. Brandão ao Rex


364 coeli domine ganham todo sentido com relação ao verso no ex.
17. O malabarismo da voz organal para evitar o tritom na sílaba
“li” só foi possível a partir da negação teórica desse intervalo e
da visualização da escrita das duas vozes sobrepostas que criou
um “objeto bem separado do observador”, graças ao qual o
compositor – e já é possível assim designar o autor desse
organum – foi confrontado com a necessidade de evitar o
intervalo diabólico modificando o que seria a condução natural
daquela voz. É possível, portanto, ver nesse organum a pedra
angular do que viria a ser a música erudita (e mais tarde a
popular) na Europa, e que a tornaria diferente da praticada em
todos os outros continentes. Se, como antes sugerido, a grafia
adotada nos dois Enchiriadis não prosperou, com suas
inúmeras linhas e claves e com o texto cantável escrito nas
entrelinhas, nem por isso ela deixou de apontar para um futuro
que seria realizado, linha a linha, nota a nota, pela gradual
construção de um novo sistema objetivo de representação dos
sons, onde o pensamento criador podia, cada vez mais, fazer
valer seus direitos e propósitos. É a partir dessa objetivação
que começam a surgir os nomes dos primeiros compositores
europeus, antes dos fantásticos arquitetos de catedrais.
Notações e cartesianismo

Desde Boecio, a teoria tradicional atribuía uma


diferença entre o musicus, aquele que conhece a essência da
música, as suas leis, e o cantor, que seguia o instinto e o não o
intelecto para fazer música. Não foram, porém, os grandes
teóricos e sapientes musicus que asseguraram a revolução
capital que deu à música erudita europeia a fisionomia que a
distingue de todas as demais, e sim um simples e anônimo
cantor que quis trazer maior clareza ao entendimento dos
neumas e sobre eles traçou a linha pioneira.

A separação corpo/alma é fundamental para o


cristianismo. Pode-se estimar que ela é essencial para
separação cartesiana entre sujeito e objeto e para o
desenvolvimento do pensamento científico, que demandaram,
porém, a separação prévia entre o tempo divino/cosmológico e
o tempo humano/natural. Esse tempo humanizado, afirmado já
no sec. XII, levou a uma separação entre teologia e ciência;
tornou-se possível trata-lo como grandeza mensurável,
puramente formal (BOUREAU, p. 38). A nova maneira de 365
entender o tempo também se reflete nas regularidades das
horas do dia, nos desenvolvimentos de mecanismos de
relojoaria e nos detalhamentos das medições nas durações dos
sons.

Essas questões, da forma como colocadas, podem


indicar uma espécie de cartesianismo avant la lettre presidindo
a evolução do pensamento técnico-científico europeu, mas
talvez seja mais razoável entender o cartesianismo como uma
consequência ou uma formalização possível de toda uma
experiência anterior. Elas também parecem indicar que um
pensamento monista não favorece o desenvolvimento do
pensamento científico.

Descartes não se ocupa de nenhuma das questões que


abordo. Em sua época, inexistia o conhecimento de músicas
extra-europeias, eruditas ou populares; o que se sabia de
música grega eram excertos de especulações filosóficas e de
teorias filtradas por pensadores posteriores, pagãos e cristãos.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Seu primeiro texto é um Compendium musicae, escrito


aos 22 anos e só editado após sua morte. É esse texto que
suscita as primeiras investidas teóricas do pensador, divididas
com o amigo holandês Isaac Beeckman, a quem a obra foi
dedicada, e que ele retomaria com Mersenne. O Compendium
“reprend l’essentiel des connaissances musicales de l’honêtte
homme de l’époque”. […]. Son intention, en rédigeant l’Abrégé
de musique pour son ami, est de lui exposer le système
traditionnel par sa méthode propre. Comme il l’affirme dans
des écrits ultérieurs, ce qui l’intéressait alors, c’était de
reconstruire le savoir par la seule logique de son esprit, en
l’appuyant sur quelques fondements solides. [...] La musique est
le premier domaine où Descartes exerce son esprit critique. [...]
La dissonance n’et plus l’ombre face à la lumière, l’imparfait
face au parfait, mais devient une donnée essentielle dans la
dynamique musicale [...] syncopes e diminutions, qui peuvent
engendrer des tritons et des fausses quintes, sont nécessaires
pour faire avancer le discours musical vers um point central, et
366 pour éveiller l’attention de l’auditeur” (WYMEERSCH, p.
9/100/120).

Uma das regras do método cartesiano consiste em


dividir uma dificuldade em tantas partes quantas forem
necessárias para resolvê-la. A linha sobre neumas ondulados
constitui uma primeira tentativa de melhor resolver a definição
das alturas, para só depois cuidar das durações. Essa trajetória
de certo modo refaz a de notações neumáticas que lograram
atingir razoável precisão na definição de alturas e de durações,
com a desvantagem, porém, de não possibilitar a escrita
simultânea de duas e mais melodias com seus próprios ritmos;
a notação do Rex coeli domine (ex. 16/17) parecia não
possibilitar ritmos diferentes nas duas linhas melódicas.

Não posso deixar de referir uma outra possível fonte


para a eclosão do pensamento do autor evocado. Vejo na
partitura a várias linhas uma antecipação das coordenadas
cartesianas, onde as abcissas representam as alturas e as
ordenadas as durações. Como sugere B. van Wymeersch: ”la
distance nous permet d’apprécier et de conceptualiser des
théories ou des représentations mentales qui solvente
Notações e cartesianismo

n’existaient que dans l’inconscient de leur auteur, tout en étant


la source constante de leur inspiration” (p. 11).

Coda

Em trecho anterior, referi o desenvolvimento de uma


nova racionalidade ocorrido na Europa. Cabe, agora, uma
explicitação: qualquer explicação ou tentativa de explicação da
realidade, ou do que se entenda como tal, passa pelo
estabelecimento de medidas, de critérios, e todas essas
medidas ou critérios são razões ou racionalizações que podem
ser de fundamentos ou origens diferentes. Assim, se quero
deslocar um armário de um lugar para outro, posso verificar se
esse deslocamento é possível apenas confrontando com o olhar
o espaço ocupado pelo armário e o que receberia esse móvel.
Em caso de dúvida, posso usar a palma da mão como medida: o
palmo pode ser um razão suficiente para determinar se o 367
deslocamento pretendido é possível. Mas se há alguma suspeita
de que essa medida não seja adequada, posso usar um barbante
ou um metro, caso seja adepto do sistema decimal, e chegarei a
uma medida bem mais precisa, que também é racional, embora
mais adequada. Supõe-se que não seja necessário usar um
microscópio ou telescópio para saber se o armário poderá ou
não caber num novo local; esse uso não seria racional. Ou seja:
as diferentes explicações para um mesmo fato, com a sucessão
dos dias e das noites, dependem de diferentes medidas ou
razões que terão diferentes fundamentos. O mais natural é
considerar que dias e noites se sucedem pelo movimento do sol
em torno da terra. Essa naturalidade, porém, foi contrariada
por outra racionalidade, o que coloca uma questão ética: há
razões melhores do que outras razões?

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370
Uma estética do gosto: a ópera francesa do século
XVIII em Grandval, Bollioud-Mermet e Blainville

RODRIGO LOPES

Introdução

té o século XVIII, a música e artes eram orientadas pelas


A teorias imitativas. Estas possuíam regras definidas que
davam forma e significado à música. A mesma deveria ser
pensada como um discurso racional e, assim, sua escuta
deveria ser uma escuta literária. Desta forma, a valorização da
razão estava sobre as sensações emocionais, pois estas eram
provocadas por meios pensados previamente.
A música era considerada um meio que apelava apenas
ao coração, e por esse motivo, já que a razão estava em
primeiro lugar, a poesia era atrelada a ela por ser uma
expressão da razão. O objeto da razão e, por sua vez, das teorias
imitativas, era a bela natureza, da qual todas as artes
derivavam, assim como as ciências. Na medida em que as
ciências e as artes se desenvolviam, a natureza ganhou
concepções diferentes no decorrer do tempo: a natureza foi
considerada, num primeiro momento, sinônimo de razão;
posteriormente, com as transformações da visão do conceito de
natureza, ela foi considerada sinônimo de sentimento, o que
não significava deixar de ser racional, mas, que os sentimentos
e paixões humanas derivavam dela, e por isso, a música deveria
de ser pensada de modo a despertar paixões humanas em seus
ouvintes.
Somente a palavra, a poesia, seriam capazes de
despertar as paixões humanas por meio da razão, e, por isso,
quando a natureza foi considerada sinônimo de sentimento, a
estrutura musical deveria estar alicerçada na linguagem verbal
como meio para se projetar, e somente assim a música vocal
poderia expressar sentimentos imitados de acordo com
FRONTEIRAS DA MÚSICA

modelos retirados da natureza: esta possuía todos os modelos


para a expressão das paixões humanas.
Para que a poesia e o meio verbal se expressassem
como razão na música, precisavam da literatura como veículo, e
as formas literárias usadas como modelos nos séculos XVII e
XVIII eram as formas da tragédia da Antiguidade Clássica e a
tragédia do Teatro Clássico Francês do século XVII. A expressão
musical se davam por esses meios literários, desenvolvidos
como um teatro cantado, ganhando o nome de ópera. A
linearidade racional era primeiramente demonstrada através
de um libreto de ópera ou peça de teatro, pois a música, isolada,
era considerada como um veículo que se dirigia somente às
sensações humanas, sendo, assim, desprezada.
Na ópera francesa, a linguagem verbal deveria ser
evidente e ela mesma ser capaz de criar uma representação dos
significados de sua poesia. E os textos deveriam ser bonitos,
agradáveis, tornando-se, assim, uma exigência de que sua
372 estética se aproximasse dos antigos clássicos, devido à sua
elegância.
Partindo desses pressupostos, autores franceses como
Grandval, Bollioud-Mermet e Blainville, em comparação a
Dubos e Batteux, tinham sua discussão estética na ópera
voltada para a imitação da natureza como sinônimo de
sentimento. A imitação para esses autores deveria realçar os
aspectos dramáticos relacionados com a realidade, pois as
paixões humanas eram consideradas os modelos retirados da
natureza, e, ao promulgar o uso desses recursos imitativos,
faziam críticas àqueles que não seguiam essas regras ou que
não as conhecesse.
Essas teorias representavam uma mentalidade
legitimada pela aristocracia francesa, representavam uma
leitura de mundo ao direcionar costumes e práticas
comportamentais em que a ópera era a representação desse
mundo de relações de mentalidades.
Uma estética do gosto

As discussões sobre ópera: Abade Dubos e Charles


Batteux
A ópera francesa era possível desde que em acordo
com as regras do bom gosto, do bom senso, num fazer poético
conforme a razão. Esse fazer poético era a teoria da imitação,
que retiraria modelos previstos da bela natureza, esta como
sentimento, usada como meio para mover as paixões humanas.
Ela era o princípio criador, e as artes e a música deveriam criar
como a natureza criava. A imitação da bela natureza era tida
como um princípio soberano e todas as belas artes se
submetiam a ela, pois se assim não fosse, sua valoração estaria
perdida. Os franceses privilegiavam o princípio da clareza
racional. Dessa forma, a beleza e a verdade eram uma única
coisa, e sua valoração se dava através do bom gosto.
Embora a natureza fosse o modelo para as criações em
música, o modo de imitá-la também era importante, e essa
forma eram as poéticas da Antiguidade Clássica e do
classicismo francês do século XVII. A forma da tragédia deveria 373
de ser imitada.
Eram exigidos da música um significado e
representação como ocorriam com a pintura e a poesia. Se
questionava se existia na música de ópera algum significado.
Ela, como objeto individual, sem o apoio das palavras, seria
incapaz de imitar, de acordo com a concepção da época, ou no
mínimo, teria seu propósito incompleto e não concretizado, já
que precisaria da linguagem verbal para se completar.
O que ocorreu com maior frequência, e isso se tornou
mais claro a partir da segunda metade do século XVIII, era a
visão de que o papel da música dentro da ópera havia se
limitado a adornar e realçar os conceitos atrelados às palavras,
a fim de agradar a razão, embora a música instrumental,
considerada destituída de significados, tomasse mais domínios
no campo operístico e mesmo fora dele. Mas era unânime o
pensamento de que esta música não tivesse um poder mimético
completo.
Nesse momento o Abade Dubos, com sua obra
Reflexões Críticas sobre a Poesia e a Pintura, de 1719, fez parte
de um movimento de reflexão sobre as artes que traria uma
FRONTEIRAS DA MÚSICA

nova definição de gosto; “um dos primeiros intentos


conscientes de se conferir à música dignidade de arte” (FUBINI,
2007, p. 183), uma reflexão sobre a percepção dos efeitos da
arte, fazendo a experiência do espectador para uma nova
definição de gosto.
Observava-se então a música e as artes do ponto de
vista do receptor que, embora com regras bem definidas
quanto aos aspectos literários, como o modelo da tragédia,
considerado um acontecimento externo, tinha agora nas
sensações os modificadores subjetivos da alma, e assim a ideia
de sentimento como julgamento para a obra de arte começaria
a se fazer presente, algo novo até então. Para justificar o uso do
sentimento pessoal como julgamento para a música, ele
colocou essa esfera nas origens da música no que compete ao
que se considerava ser a declamação dos antigos. Essa
declamação possuía esse sentimento, usado como meio de
imitação para a música:
374
Os sinais naturais das paixões que a música reúne e que
emprega com arte para aumentar a energia das palavras que
ela coloca em canto, devem, portanto, torná-las mais capazes
de nos tocar, porque os signos naturais possuem uma força
maravilhosa para nos emocionar. Eles a retiram da própria
natureza. Na verdade, nada há de mais comum em nosso
espírito que os ritmos e os sons que nos excitam, nos inflamam,
nos acalmam, nos adormecem, diz um dos judiciosos
observadores das afecções dos homens. É assim que o prazer
do ouvido torna-se um prazer do coração. Daí nascem as
canções e a observação que tínhamos feito, que as palavras
dessas canções tinham outra energia quando escutávamos
cantar, quando a escutávamos declamar, e deu lugar aos
recitativos em música nos espetáculos e sucessivamente a
cantar inteiramente uma peça dramática (DUBOS, 1993, I,
§45, p. 151)1.

1
Todas as traduções são nossas, salvo as indicadas nas Referências
Bibliográficas.
Uma estética do gosto

Dubos não pretendia uma especialização do leitor, mas


que, como um amador, o mesmo pudesse conhecer e falar
sobre ópera, teatro e artes em geral. Isso demonstrou uma
mudança do tipo de público, que começara a mudar nesse
época, e que já não era mais como o público aristocrático da
corte de Luís XIV.
Sua teoria imitativa interrogava as relações entre cópia
e original, produção e prazer estético. O original deveria
sempre despertar interesse no espectador, e o prazer gerado
pelas artes seria valorizado pela capacidade de não só imitar,
mas de produzir paixões, mesmo que estas fossem
essencialmente uma produção artificial.
Já Charles Batteux, com sua obra As Belas-Artes
Reduzidas ao Mesmo Princípio, de 1746, tinha como regra um
único princípio, que unificasse todas as artes, baseado na
imitação e que seria o único critério e julgamento para as artes.
Os princípios da imitação trariam consequências para a
instituição do bom gosto. 375
Assim como Dubos, para Batteux todo fazer artístico
partia da imitação da bela natureza, mas, diferentemente dele,
sua visão de mundo era comprometida com uma tradição
atrelada ao Antigo Regime, às suas aspirações heroicas, e
defendia aos antigos dentro de uma concepção hierarquizada
de mundo, fundamentada no decoro aristocrático.
Nele, o artista não inventava objetos, nem os
imaginava, mas que os encontrava na bela natureza, e que sua
criação estava apenas na observação, pois tudo o que
produzisse era somente fruto da imitação:

Assim, todas as artes, em tudo o que têm de verdadeiramente


artificial, são apenas coisas imaginárias, seres fingidos,
copiados e imitados segundo os verdadeiros. É por isso que
se coloca incessantemente a arte em oposição à natureza, que
se escuta em todo lugar apenas este grito, que é a natureza
que é preciso imitar, que a arte é perfeita quando a
representa perfeitamente, enfim, que as obras primas da arte
são aquelas que imitam tão bem a natureza que as tomamos
pela natureza mesma (BATTEUX, 2009, p. 28-29).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

A música era a bela natureza apreendida pelo ouvido,


considerada um canto, mas que deveria estar ligada à poesia
para ganhar status racional. Para ele, diferente de Dubos, a
música, mesmo sem as palavras, ainda assim, continuaria
sendo música, pois que sua natureza eram os sons.
Mas, para que a imitação ocorresse satisfatoriamente
como acontecia com as palavras na poesia, os significados dos
sons da música deveriam ter as mesmas qualidades da
elocução oratória, e ela deveria se exprimir em conformidade
com sua própria natureza; a “música imita o orador que
emprega todas as figuras e variações de sua arte sem mudar o
tom geral de seu estilo” (BATTEUX, 2009, p. 143).
A música apresentava certa autonomia porque era um
veículo para fazer sobressair os sentimentos, enaltecidos pela
imitação e que despertavam e excitavam as paixões humanas.
Em Dubos, quanto ao aspecto da música instrumental,
376 esta era apenas um recurso que reforçava a música vocal, a
linguagem verbal, a palavra; evidenciava o texto poético,
principalmente quando este se fazia ausente nos trechos
cantados da ópera. Já em Batteux, esse aspecto poderia
evidenciar significados, de forma mais flexível do que Dubos.
A partir de Dubos e Batteux fora estabelecido uma
concepção de sentimento como um conceito autônomo e
insubstituível, e a música passaria com o tempo a adquirir
status de linguagem do sentimento. Essa concepção aos poucos
se sedimentou, e a partir dela, a ruptura entre sentimento e
razão foi cada vez mais clara e profunda, separando-se tudo o
que pertencia ao coração e tudo o que pertencia à razão; aquilo
que correspondia ao coração era compreendido mais
prontamente, pois bastava sentir. A música se tornaria
posteriormente a linguagem universal do sentimento, sem a
necessidade de intermediários, livre de convencionalismos.
Uma estética do gosto

Grandval, Bollioud-Mermet e Blainville: a ópera


francesa e a música italiana
Grandval (1676-1753) em seu Ensaio sobre o Bom
Gosto em Música, de 1732, tinha muito em comum com Dubos.
Compartilhou da noção de sentimento em conformidade com
as regras, e estes promoveriam o julgamento natural para a
apreensão das belezas de uma obra de arte, assim como
gerenciar os efeitos passionais numa audiência:

Existe (segundo minha opinião) dois grandes modos de


conhecer as boas e as más coisas: o sentimento interior e as
regras. Somente conhecemos o bom e o mau senão que por
essas duas vias.
O que ouvimos, nos apraz ou nos desagrada. Quando
escutamos esse sentimento interior, dizemos: parece-me que
é bom, ou, parece-me que isso é ruim (GRANDVAL, 1732, p.
1-2). 377

O julgamento das coisas boas ou más seria decidido


através do conhecimento das regras, e nisso estava o prazer
advindo por esse conhecimento, e deveria ser sentido e
reconhecido pelo sentimento. Este sentimento, como em Dubos
e Batteux, deveria ser orientado, para que a apreensão dos
efeitos das paixões humanas pudesse ser eficaz.

O sentimento interior não é seguro porque devemos duvidar


de cada um deles. Quem ousa se vangloriar de ter uma
satisfação natural na qual as ideias do bem, do belo, do
verdadeiro sejam corretas e claras?
Podemos ter trazido ao mundo o fundo dessas ideias mais ou
menos claras; mas recebemos desde nosso nascimento mil
impressões falsas, mil prejulgamentos perigosos que podem
nos ter enfraquecido a voz da boa natureza (GRANDVAL,
1732, p. 3-4).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Para ele, o sentimento, sem a orientação do


conhecimento, prejudicaria o julgamento da música, e não se
apreenderia o verdadeiro bom gosto, pois sua construção se
daria através de sua purificação pelas regras. Para isso, era
necessário aprender e ter ouvido para música; sem a união
desses elementos, as regras seriam inúteis, e não se saberia
reconhecer os traços imitados da natureza.
Grandval também aceitou a música italiana, fruto de
muitas discórdias entre os franceses, principalmente a
instrumental, considerada sem significado e exagerada:

Ouvi dizer que, de todas as qualidades, a vivacidade é a mais


trivial e a mais cômoda. A erudição a mais palatável e a mais
perigosa; a retidão do julgamento a mais sólida e a mais útil,
e o bom gosto, o mais raro e o mais requintado.
Deve-se tornar o canto natural e ajustá-lo à expressão. A ele
se deve ao gênio que o toca, que para fornecê-lo, não
378 abandona jamais o verdadeiro. Caso contrário, por mais que
nos empenhemos, ele será um sussurro. Como é mais fácil
falar muito do que falar apropriadamente, é mais fácil
trabalhar muito do que trabalhar bem.
Deve-se, portanto, render justiça a todo mundo. Dizem que
entre os músicos da Itália são encontrados infinitos modelos
que souberam juntar à ciência (que a possuem em geral um
grau um pouco mais alto que a nossa) o bom canto e o
natural. Há neles, dentre outras coisas, sinfonias
encantadoras. Sempre as observo para pegar de sua música,
busco-as ansiosamente e as devoro com avidez (GRANDVAL,
1732, p. 24-26).

Grandval afirmou que os italianos tinham gosto,


mesmo que de outro modo, pois para ele os mesmos souberam
juntar a ciência com o canto e o natural, e isso não era aceito
por parte do gosto dos franceses. Denota-se assim uma
aceitação de uma música por si mesma, sem necessidade de
regras, e a música instrumental, até então considerada um
elemento de ênfase da música vocal ou de imitação de ruídos
da natureza, começava a ser vista com mais liberdade.
Uma estética do gosto

Porém, assim mesmo era preso às regras, pois as


mesmas eram meios de refinar a educação, o conhecimento e o
comportamento em público, já que as aparências geravam uma
preocupação cuidadosa na sociedade francesa desse período.
Assim, as regras também controlariam os costumes e os
comportamentos, e, mesmo apreciando uma música
instrumental sem o suporte vocal, a falta da palavra geraria
dúvidas quanto ao comportamento em sociedade, e isso não
deixou de ser uma preocupação para Grandval.
Bollioud-Mermet (1709-1796), em seu texto Da
Corrupção do Gosto na Música Francesa, de 1746, tratou da
existência de muitos artistas, de sua distância da verdade, que
os mesmos não estavam mais à altura dos grandes mestres e
que a música francesa estava em decadência. Para ele, o público
passou a ser menos exigente quanto à concretização das teorias
imitativas em música, e que isso também estava se afrouxando
no fazer musical de um compositor:
379
A primeira função do músico é a composição: se ele se
sobressair em sua arte, deve necessariamente ser harmonista
por regras e princípios. As qualidades as mais indispensáveis
do compositor são o gênio, o método e o gosto.
A meta a que deve se propor em seu trabalho é a de imitar a
natureza, de agradar ao ouvido, de tocar, de elevar o coração,
de excitar por sua vontade as paixões; de dar alma e
expressão aos seus cantos, de os fazer novos e variados pela
incursão, pela beleza escolhida dos acordes e temas; de
exprimir com exatidão, com elegância, os sentidos das
palavras. Assim se compõe música vocal: de emprestar, por
assim dizer, as palavras aos sons, e dar vida aos acordes; se
trabalha pelo instrumental, imitando pelos traços vivos e
animados, a ternura, o natural da voz.
Em uma palavra, seu objeto principal deve ser o de
emocionar e de agradar, de pintar depois da natureza os
movimentos da alma, as afecções do coração, de variar suas
modulações de tal sorte que sua harmonia satisfaça ao
ouvido, e seja confessada pela razão (BOLLIOUD-MERMET,
1746, p. 7-8).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Ao defender as teorias imitativas, Mermet tinha


consigo que os princípios deveriam ser conhecidos pelos
compositores e pelo público, e isso veio demonstrar que o
público estava se transformando, e que essas regras estavam
começando a deixar de ter importância nas representações de
ópera, pois prescrevia normas que eram conhecidas de sua
hierarquia social, e que se davam como prática no século XVII e
início do XVIII.
Para relembrar o que os compositores franceses de seu
tempo estavam fazendo com a música, trouxe o exemplo do
compositor Lully, que em sua concepção era um modelo para
música teatral, pois que sabia realçar o texto literário,
enfatizando as palavras em seus recitativos e que mesmo na
música instrumental usava de requinte de acordo com as
regras:

380 Tal foi a intenção dos grandes mestres neste gênero. Tais
foram os meios que eles empregaram para sobressair. Lully,
que nos propôs ousadamente o modelo da música teatral,
nos fez experimentar em suas obras os encantos sedutores
da harmonia. O belo volteio de seus cantos, a nobreza, a força
de sua expressão, sua maneira simples e natural de modular,
o caráter de suas sinfonias, a melodia de seus recitativos, as
graças ingênuas de suas arietas, a bela ordenação de seus
coros, o atraem como jamais o título de Orfeu de nosso século
(BOLLIOUD-MERMET, 1746, p. 8-9).

Demonstrou assim um saudosismo da era de Luís XIV,


assim como Batteux o demonstrou, salientando que a música
estava se degenerando, a ponto de afirmar que estava deixando
de ser francesa.
Bollioud-Mermet em suas manifestações chamou a
atenção para o que a imitação da bela natureza estava se
tornando. Ele afirmou que a mesma já era vista pelos
compositores como algo comum, e que ao se utilizarem das
teorias imitativas, o faziam de modo displicente, buscando, a
seu ver, aquilo que havia de feio na natureza, assim como de
bizarro. Os nobres procuravam, nas representações ao palco se
Uma estética do gosto

livrar de tudo o que havia de feio na sociedade, e projetaram


um mundo ideal como norma para os bons costumes. Então o
autor assinalou que o inverso ocorria, que se faziam más
escolhas para se executar essas teorias. Essas más escolhas,
segundo ele, estavam ligadas a um gosto dos franceses pela
música italiana, pois que os mesmos tinham uma febre em
imitar aos estrangeiros, e assim, transformando o gosto francês
em algo bizarro.
Próximo à metade do século XVIII francês a esfera do
sentimento foi se desenvolvendo mais e dominando o
julgamento estético da ópera. A perspectiva do gosto foi se
fazendo mais ainda pelo “sentir” em detrimento da “razão”. E o
discernimento do julgamento da música pela inteligência foi
ficando em segundo plano na sociedade francesa, que, com
frequentadores da ópera cada vez menos conhecedores de uma
cultura tradicional devido à ascensão da classe burguesa, se
contentava cada vez mais somente com os aspectos agradáveis
das óperas, e ávida por música “estrangeira” como era o gosto 381
pela incidência de música italiana na ópera francesa.
Charles Henri de Blainville (1711-1769), em sua obra O
Espírito da Arte Musical, de 1754, fez referências à incidência
de intermezzi italianos (ópera bufa) na ópera francesa, sendo
um fervoroso partidário da tradição clássica, e para defender
aos franceses, atacou a língua italiana:

Uma nação cujo teatro dramático seria reconhecido em toda


Europa como a escola da bela declamação só poderia ter uma
língua própria ao canto musical.
Os franceses podem, portanto, ter uma música, a menos que,
por uma doença singular, eles nos chegassem a se tornar
surdos e mudos, não vejo outro impedimento.
Em vão se nos vangloriará as vantagens da língua italiana: se
é questão de que venham as comparações, esta língua não faz
valer bem o nosso mutismo? O que é que [são] seus “u”, “z”,
“gn”, “ci”, etc., e todas as pronúncias que um francês não
poderia adquirir que por um exercício também penoso
quanto ridículo? (BLAINVILLE, 1754, p. 2-3).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Ele se referiu a um gosto refinado francês e à imitação


da natureza, mas, como a discussão sobre a língua apropriada
para a ópera estava em voga, o autor elogiou as vozes da nação
francesa, e que estas se adequavam a todos os gêneros. Mais do
que isso, que a beleza estava em se manter o gosto, ou seja, em
seguir as regras das teorias imitativas, já que a língua italiana,
segundo o autor, tinha na imaginação algo mais que suficiente
para compor música sem precisar de regras, além do uso
excessivo da extensão vocal.
Para Blainville, assim como o canto foi a manifestação
primeira da humanidade através da natureza, a mesma gerou
as árias francesas, por serem simples e frutos do cantabile, tal
qual a natureza, e apenas foram ditadas pelo gosto e, assim,
eram algo a ser destinado para poucos, ou seja, aos
conhecedores que reconhecessem sua origem e os modelos dos
quais elas foram cópias.
Ele era conhecedor da ópera bufa, assim como das
382 disputas da época, como podemos inferir no seguinte trecho,
quando se perguntou quais eram as disputas na ópera italiana,
demonstrando seu partido, que, sem dúvida, tinha nos
franceses como a melhor música existente:

Então começamos a perceber todas as riquezas musicais. Os


bufões acabaram de abrir a cortina, e nós nos convencemos
desta variedade pelos encantos de seus intermezzi. Mas,
quais são as disputas? Quais são os discursos que nada
concluem? Sem dúvida que tomamos a parte oposta de
qualquer palavra e as estudamos em segredo, e presume-se
que estas belezas nos agradariam mais quando um dia os
vermos vestidos à francesa (BLAINVILLE, 1754, p. 36).

Blainville tinha na língua francesa um exemplo de


gosto e requinte naturais, próprios do caráter nacional francês,
ordenado e condutor do gosto mais refinado e subserviente à
razão; por comparação, afirmou ser natural na língua italiana
uma desordem da imaginação, e que isto transpareceu na sua
ópera, desordem tal, segundo ele, que estava distante da língua
francesa, cujos sentimentos eram nobres e circunspectos,
Uma estética do gosto

condizentes com as próprias paixões humanas. Para ele, a força


da tradição clássica teatral em conjunto com a pintura na
formação de um quadro dos sentimentos era bastante
incentivada pelos seus partidários, e que deveria de ser
mantida.
Até a primeira metade do século XVIII a música ainda
era vista como uma representação teatral, e o gosto era
moderado pelo componente tradicional, cuja imitação da
natureza deveria sempre possuir os traços das formas poéticas
da Antiguidade Clássica e do teatro clássico francês do século
XVII.

Considerações finais
Observamos nos autores franceses dos séculos XVII e
XVIII que o dispositivo imitativo como prerrogativa para a
composição da ópera estava se modificando; demonstraram
383
pelos seus escritos como as composições e execução da ópera
se aproximavam ou de distanciavam dessas regras como
critério. Quando uma ópera era avaliada segundo as regras, ela
o era segundo a avaliação que se fazia ao texto literário e a
representação teatral, sendo muitas vezes a música avaliada
como sendo um desses dois aspectos, tomada por eles mesmos.
E assim o era porque a prerrogativa da imitação era reproduzir
em objetos não naturais cópias a partir de modelos retirados
da natureza, produzindo assim a ilusão de ser o próprio modelo
ali existente, mas aperfeiçoado, melhorado e controlado pelo
engenho da arte. A natureza era o modelo a ser imitado, ela era
sinônimo da razão, e a imitação deveria então realçar os
aspectos racionais para satisfazer essa condição, e o modo
como a razão era demonstrada na ópera o era pelo seu texto
literário, através da linguagem verbal.
O elemento permanente em fins do século XVII e no
decorrer do século XVIII como encontrados nos textos, e em
transformação, era o elemento imitativo. A teoria imitativa se
manteve como concepção para as artes até o fim da monarquia,
apesar de seu declínio. A partir dos autores mencionados,
percebeu-se em que medida a sociedade em transformação se
manteve ou se distanciou das regras das teorias imitativas, que
FRONTEIRAS DA MÚSICA

determinavam o bom gosto. O que se viu foi a modificação e


enfraquecimento gradativo dessas teorias a partir da aceitação
da ópera bufa italiana em seu meio.
Grandval, Bollioud-Mermet e Blainville tinham uma
espécie de descrição do dia a dia nas representações de ópera,
relatando aquilo que era esperado pela audiência quanto à
imitação e o cumprimento de suas regras, concordando em
maior ou menor grau com Dubos e Batteux, relatando aspectos
do tipo de público que assistia as representação de ópera,
assim como aquilo que era considerado correto e incorreto,
conforme o gosto, em relação ao texto, à representação teatral,
e mesmo à música. Eles demonstraram o quanto a tradição era
lembrada ou esquecida, e em que grau as teorias imitativas
satisfaziam ao gosto vigente. Verificou-se que havia um
estranhamento entre a música e a representação dramática, e
se muitas vezes a representação teatral da ópera satisfazia ao
esperado quanto ao gosto cumprido pelas regras, a música
384 deixava a desejar nesses aspectos, gerando uma espécie de
conflitos e não conciliação entre os aspectos verbais e musicais,
e o que se tentava, conforme os autores, era fazer a música se
modelar conforme a tragédia teatral. Essa disparidade entre os
dois elementos era constatada na medida em a interferência da
ópera bufa trazia apenas o poder de agradar, dirigindo-se às
sensações, sem os recursos das teorias imitativas, e agradava
mais ainda às classes não aristocráticas, que não conheciam e
não se fiavam pelas regras das teorias imitativas na ópera.

Referências Bibliografia
BATTEUX, C. As belas artes reduzidas a um mesmo princípio. Trad. M. A.
Werle. São Paulo: Humanitas/Imprensa Oficial, 2009.
BLAINVILLE, C. H. de. L'Esprit de l'art musical. In: L'Esprit de l'art
musical, ou réflexions sur la musique, et ses différentes parties. Genebra:
1754. Disponível em:
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em 26/03/2013.
BOLLIOUD-MERMET, L. De la corruption du goust dans la musique
françoise. In: Music and Theatre in France in the 17th and 18th
Centuries. An AMS Reprint Series. Lyon: Delaroche, 1746. Disponível
Uma estética do gosto

em:http://www.chmtl.indiana.edu/tfm/18th/BOLCOR_TEXT.html.
Acesso em 26/03/2013.
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FABIANO, A. La “Querelles des Bouffons” dans la vie culturelle française
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____. La estética musical desde a Antigüedad hasta el siglo XX. Madri:
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GRANDVAL, N. R. de. Essai sur le bon goust en musique. Paris: Pierre
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http://www.chmtl.indiana.edu/tfm/18th/GRANESS_TEXT.html
Acesso em 26/03/2013. 385
NEUBAUER, J. La emancipación de la música: el alejamiento de la
mímesis em la estética del siglo XVIII. Madri: Visor Dis., S.A., 1992.
RIBEIRO, R. J. A glória. In: NOVAES, A. (Org.). Os sentidos da paixão. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
ROVIGHI, S. V. História da filosofia moderna: da revolução científica a
Hegel. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
O Músico Prático no Compendium Musicae de
Descartes

TIAGO DE LIMA CASTRO

Introdução

o longo da história, a música ocupou um lugar


A peculiar ao pertencer, simultaneamente, às artes
liberais e às artes mecânicas, como se depreende da
obra De Institutione Musica de Boécio. Nesse contexto, o músico
prático, como executor e compositor da música como arte
mecânica, é inferior ao músico teórico, o qual reflete sobre a
música através da razão, portanto, atuando nas artes liberais.
Todo argumento gira em torno da ausência do uso da razão na
prática musical, sendo a razão parte da teorização sobre
música.
Esta divisão é influente sobre a escrita de tratados
musicais, onde geralmente as soluções composicionais eram
dadas como fórmulas a serem memorizadas pelos músicos
práticos, já que o pensamento musical não era sua tarefa. Tal
divisão será rompida por Jean-Phillippe Rameau na publicação
do Traité de l´harmonie em 1722, sendo também um músico
prático por ser instrumentaista e ter escrito diversas obras
musicais.
Porém, com a obra Compendium Musicae de René
Descartes (1596-1650), redigido em 1618 e publicado
postumamente em 1650, é proposta a possibilidade do músico
prático no uso da razão.
Assim, primeiramente, analisar-se-á a proposição de
Boécio em seu contexto histórico; em um segundo momento,
analisar-se-á o contexto em que a obra fora escrita de
Descartes e sua publicação póstuma; na sequência, o foco será a
proposição de Descartes no contexto do próprio compendio; e
O músico prático

finalizando, como o contexto da leitura das proposições


cartesianas colocam em dúvida as proposições boecianas.
Boécio e os tipos de músicos na Idade Média
Na Idade Média, a música ocupa um lugar específico
dentro da cultura geral, sendo ao mesmo tempo partes das
artes mecânicas, em seu aspecto prático de cantar, tocar
instrumentos e compor peças musicais; como pertence as artes
liberais, enquanto reflexão racional dos elementos musicais em
sua relação com o Todo e sua relação com a matemática.
O ensino medieval das artes liberais dividia-se em:
trivium (gramática, retórica e lógica) e quadrivium
(matemática, geometria, astronomia e música). A música está
do quadrivium por sua intrínseca relação com a matemática, já
que já influência da estética pitagórica e platônica entre os
autores (FUBINI, 1985).
Uma das grandes obras dessa época fora o De
Institutione Musica de Boécio (480– 524). Como assevera 387
Fubini: “Por toda a Idade Média, Boécio fora uma referência
capital e, durante os séculos, todos as teorias foram fundadas
sobre sua autoridade” (FUBINI, 1985, p. 41). Pode-se ver sua
influencia após o século IX e pelo fato de ter sido umas
primeiras obras que trata sobre música a ser impressa em
1491 e 1492 em Veneza (BOÉCIO, 2009). O foco dessa análise é
a maneira como compreende o músico.
Em sua argumentação, há uma clara deferência aos
executores de tarefas manuais, mecânicas. O trabalho do
artesão é tido com indigno em relação o qual pensa sobre esta
arte por não usar as mãos, mas a razão. Já que a razão é tida
como soberana as habilidades manuais, por estas servirem as
suas diretrizes. Como assevera o autor:

[...] toda arte, assim como toda disciplina, tem por natureza
um sistema teórico mais digno que a perícia artesanal
exercida pelas mãos e obra do artesão. Muito maior, em
efeito, e mais elevado é o saber pelo qual se põe em prática
aquele que sabe, pois, a habilidade física de um artesão é
erxercida como escrava; a razão, ao contrário, exerce
comanda, por assim dizer, como uma soberana. [...] Portanto,
FRONTEIRAS DA MÚSICA

muito mais admirável é a ciência da música ano plano do


conhecimento racional do que pela execução de obras e posta
em prática! (BOÉCIO, 2009, Mús. I 34, p. 224)

Sobre a égide dessa proposição, ele divide em três


grupos aqueles que lidam com a arte musical: os que se
dedicam aos instrumentos, os que compõe as canções e os que
julgam os trabalhos instrumentais e as canções.
Os que se dedicam aos instrumentos são tidos como
escravos, já que “[...] não fazem uso da razão e são totalmente
desprovidos de reflexão” (BOÉCIO, 2009, Mús. I 34, p. 224).
Boécio propõe que estes atuam somente como criados por
aquilo estabelecido pelos racionalmente pelos teóricos, daí
estarem afastados da reflexão, já que sua habilidade advém
somente da prática mecânica e obediência dos tratados.
Os que se dedicam a compor as canções, os poetas, o
388 fazem por “[..] não tanto pela especulação e pela razão, mas por
um certo tipo de instinto natural” (BOÉCIO, Mús. I 34, p. 225),
portanto, não utilizam a razão para este fim. Estes são o que se
podem chamar de músicos práticos, os quais não tem grande
valor, segundo Boécio, por não fazerem uso da razão para sua
atividade.
Já os tidos como efetivamente músicos por Boécio são
aqueles que realizam o julgamento sobre as obras musicais
através da faculdade racional.

E observando que a totalidade é fundada na razão e na


reflexão, esta classe é reconhecida como altamente musical, e
este músico é reconhecido como um músico que possui a
faculdade de julgar, acordando a reflexão ou a razão
apropriada e conveniente a música. (BOÉCIO, Mús. I 34, p.
224)

Este é o que se pode chamar de músico teórico, sendo


aclamado por Boécio exatamente por sua ação ser pautada na
razão e no pensamento, daí ser o único digno de ser chamado
de músico.
O músico prático

Tal concepção leva a uma compreensão do músico


prático enquanto inferior – Boécio nem o considera como
músico – devido a não usar da razão para suas tarefas, seja no
ato de execução musical ou de composição. Tal ideia
influenciou a escrita de tratados teóricos posteriores e na
própria prática de memorização das cadências musicais por
parte dos músicos, por exemplo, para sua correta execução,
pois como não utilizam da razão necessitam recorrer a
memorização dos procedimentos para sua prática.

Escrita e publicação do Compendium Musicae de


Descartes
Descartes escreve a obra no final de 1618 para seu
amigo físico e matemático Isaac Beeckman (1588-1637). É uma
obra de juventude, escrita quase que simultaneamente com a
obra Règles pour la direction de l'esprit (1619). Verifica-se o uso
no compendio dos procedimentos propostos na última obra 389
citada (JORGENSEN, 2012).
Descartes sempre teve interesse por matemática
durante sua formação no colégio de La Fléche, entretanto “[...]
Beeckman exerceu sobre ele um fascínio intelectual, dando à
sua atracção espontânea pelas matemáticas uma dimensão
científica” (RODIS-LEWIS, 1995, p. 46). O uso da matemática
para lidar com problemas de física atraiu o jovem Descartes, e
Beeckman tinha um interesse sobre música também,
utilizando-se do mesmo método. Entretanto, a composição do
compendio mesmo sendo uma homenagem ao seu amigo mais
velho, não aplica as ideias de Beeckman exatamente, pois “[...]
sua intenção, ao redigir o Compendium Musicae para seu amigo,
é de explicar-lhe o sistema tradicional por seu método próprio”
(WYMEERSCH, 1999, p. 100).
Não era uma obra a ser publicada, inclusive, Descartes
não retoma a problemática do compendio, somente a
preocupação com as paixões exposta neste, mantém-se durante
sua existência ao ponto de sua última obra, a Passions de l´âme
(1649), lidar diretamente com esse problema.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Mesmo o compendio já apresentando elementos


característicos ao futuro cartesianismo, ainda não se pode falar
dessa obra como exatamente cartesiana, sendo um tema
possível de amplas discussões (JORGENSEN, 2012;
WYMEERSCH, 1996).
A obra fora publicada postumamente em 1650,
gerando interesse ao ponto de já em 1653 receber uma
tradução inglesa – com o sugestivo título Renatus Descartes,
Excellent Compendium of Musick: With Necessary and Judicious
Animadversions threupon, by a Person of Honour –, em 1661
uma tradução flamenga, tradução francesa em 1668 (BUZON,
1987). Rameau além de interessar-se pela obra, influenciou-se
pelo cartesianismo (WYMEERSCH, 1999).
Tal interesse reflete o impacto do pensamento
cartesiano em sua época. O interesse pelo compendio tem
grande relação com esse impacto, não sendo absurdo conceber
que sua leitura teve primeiramente um viés cartesiano em sua
390 publicação. O furor causado por sua obra gerou um interesse
por tudo o que ele escreveu, tanto sobre obras de juventude
com de suas cartas.
Nesse momento, em que Descartes é dos autores mais
discutidos pelo impacto da emergênciada filosofia moderna em
sua obra, um escrito sobre música desperta interesse, pois não
se está falando de um autor qualquer, e sim de um dos
pensadores mais discutidos em sua época.

As proposições cartesianas sobre o músico prático


Primeiramente, tratando das maneiras de compor e da
origem dos modos, no quarto item discute sobre a necessidade
de passar de uma consonância imperfeita a uma perfeita,
escolher o alvo através da proximidade, exemplificando com o
caminho natural da sexta maior à oitava. Explica essa regra
como sendo devido a necessidade do ouvido de escutar sempre
uma consonância mais perfeita. Evitando entrar em uma
discussão acirrada sobre o tema, como ocorria em sua época
(PIRRO, 1907), escreve:
O músico prático

[...] Mas esta regra varia frequentemente; e não me recordo


agora a quais consonâncias chegar, a partir de quais e por
quais movimentos deve ser alcançado. Todas essas coisas
dependem da experiência e do uso dos práticos. Como é
conhecido, eu creio que que se pode facilmente deduzir as
razões pelo que foi dito, inclusive as mais sutis. (DESCARTES,
A.T., X, p. 133) 1

Além de sair de uma disputa dos processos


composicionais, a proposição coloca nos músicos práticos a
capacidade de pensar as razões de seu procedimento e
valorizando também sua própria experiência.
Ao tratar especificamente dos modos o autor propõe
que “este tratado é famoso entre os praticantes e conhecido de
todos: é por isso que seria supérfluo explicar plenamente”
(DESCARTES, A.T., X, p. 139). Pirro propõe que isso é devido a
paixão com que os músicos práticos discutem os modos em sua
época (cf. PIRRO, 1907), entretanto, como o foco da discussão 391
com Beeckman é epistemológico, estes aspectos mais práticos
seriam ignorados pelo próprio âmbito da discussão (cf.
WYMEERSCH, 1999).
Ao discorrer sobre a movimentação de afetos no
ouvinte graças ao uso dos modos, propõe-se que “[...] os
práticos falam muito, porém instruídos somente por sua
experiência” (DESCARTES, A.T., X, p. 139). Em seguida, dizendo
que se poderia deduzir diversas razões destes efeitos através
daquilo já apresentado em seu texto.

Um diálogo em torno do músico prático


Para pensar esse diálogo possível entre Boécio,
representando o pensamento tradicional sobre o músico
prático, e Descartes, é necessário considerar que sua obra fora
lida por seus contemporâneos, provavelmente, com uma lente

1 Essa maneira de citar os textos de Descartes é uma prática


internacional de sempre partir-se da paginação e volumes da edição
Adm-Tannery, normalmente apontada nas traduções.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

constituída das proposições de Descartes na fase madura de


sua produção, dessa forma, vendo o texto escrito pelo filósofo
do cogito, daquele que se contrapôs ao pensamento tradicional,
e aos argumentos de autoridade, através do racionalismo e da
dúvida metodológica e hiperbólica (SILVA, 2005).
É importante considerar a publicação póstuma do
texto, despertando o interessante de seus contemporâneos em
sua análise exatamente devido a fundação da filosofia moderna
feita por Descartes. Hipoteticamente, o interesse despertado
pelo texto advém da obra pela qual Descartes tornou-se o pai
da filosofia moderna, talvez mais do que o texto em si mesmo.
Esse contexto permite pensar a leitura do Compendium Musicae
dentro de uma ótima cartesiana, mesmo tendo em conta os
problemas dessa leitura.
Seguindo esse intinerário, na obra Discours de la
méthode (1637) o autor propõe seu método em torno do
princípio de clareza e evidência, o qual implica em não aceitar
392 nada que não seja evidentemente claro e distinto ao espírito,
através do uso da dúvida hiperbólica, quer dizer, tudo é
colocado em dúvida até que surja um elemento claro e evidente
para daí poder começar a afirmar algo partindo dessa
evidência, mesmo que seja a própria realidade a ser afirmada.
Nesse processo, o autor chega ao dito latino cogito, ergo sum,
traduzido normalmente como: penso, logo existo. Ao colocar
toda a realidade metodologicamente em dúvida, chego a uma
evidência clara e distinta de que enquanto penso não posso
duvidar que eu seja algo pensante, exatamente por estar
pensado. A partir daí o filósofo vai reafirmando toda a
realidade partindo deste princípio (DESCARTES, 1973a).
Na obra Meditationes de prima filosofia (1641), ele
aprofunda o mesmo percurso, sendo a metafísica o foco dessa
obra. Não é objetivo desse texto aprofundar esse percurso,
entretanto, nesta obra fica clara a separação entre alma e corpo
no pensamento cartesiano, mesmo que há certa sutileza em não
propor a alma como uma espécie de piloto do corpo. Essa
separação, em Descartes, é de grande radicalidade comparado
ao pensamento medieval, pois corpo e alma são ditos como
susbstâncias diferentes, ou seja, ambas existem em si e por si,
apresentando atributos diferentes, ou seja, a alma tendo o
O músico prático

atributo do pensamento e o corpo o atributo da extensão, o que


também problematiza essa união (ROCHA, 2006). É
característico do homem essa relação necessária entre alma e
corpo. Por mais que ambos estejam unidos, na obra cartesiana,
o pensamento é anterior as ações corporais, naquilo que é fruto
da vontade e da reflexão.
Ao longo do pensamento ocidental, houve intrínseca
relação entre o homem e a razão, seja no lógos grego ou na
ratio latina, entretanto, como Descartes, em sua dúvida
metodológica e hiperbólica, duvida da própria existência do
corpo, chegando a ideia de que o homem é alguma coisa que
pensa, para depois afirmar a realidade do corpo, essa
separação propõe uma nítida predominância da alma, do
pensamento, sobre a ação corporal. Numa concepção como
essa, seria impossível dizer que um músico prático que executa
instrumentos não pense, pois se compreende o homem como
essencialmente algo pensante, o que já coloca em dúvida a
divisão dos três grupos de pessoas que lidam com música, 393
como proposta por Boécio, pois o critério de divisão foi o maior
ou menor uso da razão para desenvolver sua ação. Numa
concepção em que há uma clara e radical divisão de alma e
corpo, tendo na alma certa predominância devido a ter como
atributo o pensamento, portanto, todos exercem o pensamento
antes de suas ações.
Torna-se insustentável dizer que o músico prático tem
toda sua ação pautada nas ações corporais, já que neste
contexto estas ações têm origem no pensamento. O compositor,
o qual Boécio atribuiu ua uma espécie de instinto natural no
processo composicional, também teria no pensamento o
fundamento de sua prática compositiva. Portanto, não somente
o teórico é que faz uso do pensamento para sua ação.
Nesse prisma, as afirmações comentadas do
Compendium Musicae ganham possíveis nuances ao lê-lo, como
provavelmente deve ter ocorrido na leitura de seus
contemporânos.
Ao discutir sobre as regras relativas a passagem de
uma consonância imperfeita à uma consonância perfeita o
autor diz:
FRONTEIRAS DA MÚSICA

[...] Mas esta regra varia frequentemente; e não me recordo


agora a quais consonâncias chegar, a partir de quais e por
quais movimentos deve ser alcançado. Todas essas coisas
dependem da experiência e do uso dos práticos. Como é
conhecido, eu creio que que se pode facilmente deduzir as
razões pelo que foi dito, inclusive as mais sutis. (DESCARTES,
A.T., X, p. 133)

Em uma época onde tratados partiam da ideia que


músicos práticos não pensam e, portanto, necessitam
memorizar os procedimentos de tratamento destas regras,
propor que o uso destas regras depende da experiência dos
práticos é valorizar a própria prática, pois poderia indicar
outro teórico ou dizer que isso depende do teórico que aborda
o tema, sendo a ênfase no prático aqui algo notável. Além disso,
ao sugerir que estes poderiam deduzir as razões deste uso
pelos princípios já exposto no compendio, ou seja, atribui a
possibilidade do uso da dedução, do uso do pensamento, ao
394 músico prático. Não é impossível imaginar que esse trecho
pudesse ser lido por músicos práticos como uma potencial
equiparação entre práticos e teóricos.
No trecho em discute os modos e seus procedimentos,
o autor indica a leitura da obra de Zarlino, dizendo que “este
tratado é famoso entre os praticantes e conhecido de todos: é
por isso que seria supérfluo explicar plenamente”
(DESCARTES, A.T., X, p. 139). Colocar um argumento de
autoridade, advindo dos músicos práticos, ao indicar a leitura
de Zarlino é, indiretamente, propor a estes a capacidade de
fazer juízos, ou seja, de avaliar a competência e relevância de
um tratado teórico. Tendo em conta que Boécio propôs, entre
outros elementos, que o músicop verdadeiro é o músico teórico
pela capacidade de fazer juízos, aqui há uma possível
equiparação entre o músico prático e o teórico.
Nestes últimos dois trechos analisados, ao lembrar que
o texto fora escrito para ser lido por um teórico somente,
Beeckamn, e traz-se uma autoridade da experiência do músico
prático tanto na indicação de um tratado como no uso das
regras é algo um tanto inusitado. Uma correspondência entre
O músico prático

teóricos trazendo os práticos na argumentação não é algo a ser


ignorado.
Quando passa a discorrer sobre os efeitos dos modos
sobre o ouvinte, enquanto movimentação de afetos, o autor
coloca que “[...] os práticos falam muito, porém instruídos
somente por sua experiência” (DESCARTES, A.T., X, p. 139).
Aqui está uma crítica as proposições dos músicos práticos
sobre o tema por serem instruídos somente por sua própria
experiência, ou seja, o problema não é os músicos práticos
falarem sobre isso, mas não embasar em algo além da
experiência, o que é muito diferente de dizer que sua prática
exclui a possibilidade da racionalização de suas proposições e,
por isso, não deveriam falar desse assunto. Inclusive, ao se ler a
obra tendo em vista a revolução no pensamento realizada por
Descartes, o trecho pode ser lido como um ensejo e impulso aos
músicos práticos trabalharem essa questão com maior rigor, ou
seja, tornarem-se também teóricos.
Essa leitura é somente uma leitura possível pautada na 395
proposição de que o texto de Descartes pode ter sido lido em
face de sua obra madura. Tendo em vista a forte presença do
pensamento musical de Boécio a época, suas proposições foram
utilizadas como um representante do pensamento musical
medieval, daí um diálogo possível entre os dois. Seria muita
ingenuidade passar a ver Descartes como uma figura
quixotesca, uma espécie de espadachim da razão lutando em
defesa dos músicos práticos, porém, todo o contexto de
estabelecimento da ciência e filosofia moderna, no qual
Descartes é um dos protagonistas, no qual a música caminhará
em busca de autonomia e a divisão entre músico prático e
teórico tenderá a ser superada, as proposições de Descartes
sobre o músico prático ganham relevância, mesmo a obra não
sendo escrita para ser lida por estes.

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FRONTEIRAS DA MÚSICA

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A Biografia de Francesco Geminiani (1687-1762) e
sua relação com a música inglesa do século XVIII

MARCUS HELD

escrita biográfica compreende-se como uma importante


A ferramente de compreensão histórica. Não somente com
a narração da vida de alguém, este gênero literário lida com o
compromisso de fundamentar e analisar historicamente o
biografado, assim como seus envolvidos, oferecendo, portanto,
o contexto cultural daquele momento registrado. Nesse
sentido, “Pierre Bourdieu falou acertadamente de ‘ilusão
biográfica’, considerando que era indispensável reconstruir o
contexto, a ‘superfície social’ em que age o indivíduo, numa
pluralidade de campos, a cada instante.” (cf. LEVI, 1989, p.
165). No entanto, tal compromisso possui seus custos: a
biografia, segundo Alberto Levi, é incapaz de captar a essência
do biografado (cf. LEVI, 1989).
Longe de estar diminuída, porém, perante os outros gêneros
literários, é inegável a importância que a escrita biográfica
possui para a já enunciada compreensão histórica. Sobre isso,
Levi explica, ainda, sobre sua tipologia Biografia e Contexto,
defendendo que, nessa utilização,

A biografia conserva sua especificidade. Todavia a época, o


meio e a ambiência também são muito valorizados como
fatores capazes de caracterizar uma atmosfera que explicaria
a singularidade das trajetórias. (...) A reconstituição do
contexto histórico e social em que se desenrolam os
acontecimentos permite compreender o que à primeira vista
parece inexplicável e desconcertante. ” (LEVI, 1989, p. 175)

Nesse viés, a presente pesquisa visa a narrar e


contextualizar a vida do violinista, professor e compositor
Francesco Geminiani, nascido na Itália do século XVII, berço da
FRONTEIRAS DA MÚSICA

profusão musical barroca, fundamentando-se em relatos e


pesquisas de estudiosos da música italiana e de Geminiani
especificamente, bem como ao acesso a fontes primárias, para,
por fim, compreender a cena musical britânica daquele
período. A General History of The Science and Practice of Musick
(1776) de John Hawkins, e A General History of Musick (1779-
1789), de Charles Burney, são as duas fontes primárias que
dialogam com o corpus teórico atual. Optou-se pela leitura do
artigo Geminiani in England and in Ireland (1910), do
musicólogo W. H. Gratan Flood, e da obra canônica do
pesquisador Enrico Careri, intitulada Francesco Geminiani
(1687-1762) (1993) para a elaboração da biografia do músico
italiano, que compreende a primeira seção deste artigo. Para
Chartier,

Toda reflexão metodológica enraíza-se, com efeito, numa


prática histórica particular, num espaço de trabalho
398 específico. O meu [de Chartier] organiza-se em torno de três
pólos, geralmente separados pelas tradições acadêmicas: de
um lado, o estudo crítico dos textos, literários ou não,
canônicos ou esquecidos, decifrados nos seus agenciamentos
e estratégias; de outro lado, a história dos livros e, para além
de todos os objetos que contém a comunicação do escrito;
por fim, a análise das práticas que, diversamente, se
apreendem dos bens simbólicos, produzindo assim usos e
significações diferenciadas. (CHARTIER, 1991, p. 178).

Assim, a partir do conhecimento da vida deste


compositor, será possível refletir sobre a música instrumental
em voga na Inglaterra na primeira metade do século XVIII, já
que sua atuação artística nos centros britânicos - Londres,
Dublin e Edimburgo, como constataremos a seguir, foi decisiva
para a formação do gosto musical inglês. Para tanto, será
elaborado um texto biográfico sobre Francesco Geminani; em
seguida, será observada sua produção musical e tratadística,
em especial o Treatise of Good Taste in the Art of Musick, e sua
posição no cenário musical inglês.
A biografia de Francesco Germiniani

Francesco Geminiani (1687-1762)


Francesco Saverio (Xaverio, Xavier, Zaverio) Geminiani
(Gemignani, Giomignani) foi um compositor, professor e
violinista setecentista renomado. Natural de Lucca, Itália, a data
de seu nascimento é assunto de discussão em virtude das
divergências encontradas em diversas fontes, primárias e
secundárias. Autor da primeira história da Música e conhecido
na musicologia histórica como referência em questões de dados
históricos em virtude de sua longa e laboriosa obra A General
History of Musick (1776-1789), Charles Burney (1726-1814)
conhecera Geminiani pessoalmente, e relatou que “[o
compositor] nasceu em torno do ano de 1666” (BURNEY, 1954,
p. 990). No entanto, o musicólogo W. H. Gratan Flood, em seu
artigo Geminiani in England and in Ireland (1910) defende 1674
como o ano de seu nascimento. Nesse artigo, está citada uma
carta de Mrs. Delaney (amiga próxima de Geminiani), datada do
dia quatro de março de 1760, sobre um concerto dado pelo
músico no dia anterior, ao qual ela esteve presente, o que 399
corrobora para a conclusão de Flood sobre a data de
nascimento de Geminiani:

“Ponho na minha manhã [o momento de] quando fui ao


grande monde, o que fiz ontem no concerto de Geminiani:
estava bastante cheio; cheguei em torno das dez [primeiras
pessoas]. A Duqueza de Bedford e a Dama Caroline Russel
estavam lá. A música começou à sete e meia. Fiquei
extremamente satisfeita: há um espírito de harmonia e
mesquinhez de fantasias que nenhuma outra música (além
da do nosso querido Händel) tem. Ele tocou um de seus
próprios solos maravilhosamente bem para um homem de
oitenta e seis anos de idade, e um de seus dedos machucou-
se, mas a doçura e a melodia do som de seu violino, seu gosto
encantador e refinado, bem como a perfeição do tempo e da
afinação fazem toda a reparação de alguma falha em seu
tocar ocasionada pela fraqueza de sua mão. (...).”1 (DELANEY
apud FLOOD, 1910, p. 111)

1Todas as traduções são de nossa autoria, salvo aquelas indicadas nas


Referências Bibliográficas.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Neste sentido, a constatação de que, em 1760,


Geminiani tinha 86 anos de idade traz a conclusão de que seu
nascimento tenha ocorrido, pois, em 1674. No entanto,
pesquisas mais recentes demonstram conclusões diferentes. O
longo e completo trabalho do pesquisador italiano Enrico
Careri, referência mundial em Geminiani, conclui que ele,
definitivamente, nasceu em dezembro de 1687, tendo seu
batismo sido realizado no quinto dia daquele mês (CARERI,
1993). Careri sugere que seu segundo nome, Saverio, tenha
sido escolhido com base na tradição existente naquele tempo:
batizar a pessoa com o nome do santo que é celebrado naquele
dia; no caso, dia de São Francisco Xavier. Logo, Geminiani
nasceu, possivelmente, dois dias antes de seu batizado, isto é, a
três de dezembro de 1687 (CARERI, 1993).
Segundo Careri, Francesco Gemininai, o quarto de onze
filhos de Signor Giuliano Geminiani e Signora Angela, teria sido
o único a seguir a profissão do pai. Tendo, possivelmente,
400 iniciado seus estudos musicais com Giuliano, que era violinista
da Capela Palatina (única instituição musical da cidade, à qual
foi nomeado ao cargo em 1681), Francesco teria, segundo
Burney,

recebido suas primeiras instruções no violino de Carlo


Ambrogio Lonati, de Milão, comumente chamado de Il Gobbo
(o Corcunda), um celebrado intérprete nesse instrumento...
Depois disto, estudou contraponto com Ales[sandro] Scarlatti
em Roma, onde tornou-se discípulo de Corelli no violino (...).
(BURNEY, 1954, p. 990)

Como seu pai era membro da Congregazione dei Musici


di Santa Cecila, sediada na capital italiana e, consequentemente,
muito ativo no cenário musical romano, crê-se que tanto
Arcangelo Corelli quanto Alessandro Scarlatti tenham sido
apresentados ao filho por seu intermédio. Giuliano manteve
seu emprego na Capela com um salário razoavelmente alto de
quatro ducados mensais até agosto de 1707 quando, no mesmo
mês, Francesco, logo após completar seus estudos em Roma,
assume o posto pelo salário de 2,45 ducados. Ao passo que seu
pai precisou de dez anos de ofício para conquistar tal quantia,
A biografia de Francesco Germiniani

Geminiani precisou não mais que dois, atestando, assim, sua


excepcional habilidade artística. Todavia, assim que recebeu o
aumento, optou por abandonar esse emprego seguro
(paralelamente aos 26 anos de serviço que seu pai prestara, o
filho permaneceu por apenas dois anos na orquestra), o que
levanta uma série de questões sobre o porquê de tal atitude.
Como atesta Careri,

suas habilidades no violino deveriam ser, certamente, muito


acima da média, e Lucca pode ter representado o fim para
ele, visto que uma carreira de virtuoso era uma preocupação.
Então, pode-se entender se ele se sentisse atraído a grandes
cidades e decidisse buscar sua fortuna em outro lugar.
(CARERI, 1993, p. 03)

Substituído, portanto, pelo violinista Francesco


Lombardi, o rastro de Geminiani entre 1707 a 1714 é
401
dificilmente traçado em vista da precariedade de
documentação. Aceita-se, atualmente, que o músico tenha
partido para Nápoles, cidade em que lideraria uma orquestra.
No entanto, essa nova experiência teria um resultado
catastrófico em sua carreira, como pode ser constatado em
Burney:

ele foi logo descoberto como sendo tão desabilitado e


impreciso em relação ao tempo que, em vez de regular e
conduzir o conjunto, largou-o à confusão, pois nenhum dos
executantes eram capazes de segui-lo em seu tempo rubato,
em outras acelerações inesperadas, bem como em
relaxamentos do compasso. (BURNEY, 1954, 1991)

Tendo isto ocorrido em 1711 (cf. FLOOD, 191), o


músico, que já havia demonstrado dificuldade de manter-se
regularmente em algum trabalho fixo sob a ordem de terceiros,
não permaneceu mais em Nápoles2. Como havia optado por

2 Sobre seu temperamento contrário ao trabalho servil, Geminiani


passaria, durante seu tempo em Londres, a ser conhecido também
FRONTEIRAS DA MÚSICA

seguir carreira de virtuoso itinerante, independentemente das


dificuldades financeiras que esta escolha poderia acarretar-lhe
(CARERI, 1993), Geminiani, em 1714, aos vinte e sete anos de
idade, parte para Londres, capital inglesa, para nunca mais
retornar à Itália.
A Inglaterra foi uma escolha acertada para um italiano
pupilo de Corelli. De fato, a técnica violinística corrente nesse
país era muito menos sofisticada em relação a países como
Itália e França. Além disso, a Itália era o país da moda, o que
denota que a música de Corelli estava em alta em todos os
países da Europa; naturalmente, Geminiani faria muito sucesso
com sua arte em sua nova pátria (CARERI, 1993). Embora
Burney relate que “Geminiani era raramente ouvido em público
durante sua longa residência na Inglaterra” (BURNEY, 1954, p.
992), o recém-chegado compositor logo atraiu a atenção do
ambiente musical britânico. Rapidamente, sua reputação
tomou grandes proporções enquanto professor (tendo em vista
402 sua vasta quantidade de alunos, alguns deles prodigiosos) e
compositor, e Geminiani passou a ser considerado, nos círculos
musicais ingleses, uma autoridade (CARERI, 1993).
Seus primeiros anos em Londres foram patrocinados
pelo Barão Kielmansegg, e a ele foi dedicada sua primeira
publicação (1716)3: doze sonatas para violino e baixo contínuo,
op. 1 (figura 1), cuja opinião de Burney é a de que, embora
poucos consigam tocá-las, são mais elaboradas e sofisticadas
que as sonatas de Corelli (BURNEY, 1954). Assim sendo, na
ocasião da publicação, foi organizado um concerto no palácio

como vendedor de quadros, ocupação esta que garantiria seu sustento


em tempos economicamente instáveis, ainda que “sem o
conhecimento e o gosto para pintura necessários” (BURNEY, 1954
[1779-89, ii, p. 993]. Há relatos, inclusive, de que ele tenha se
envolvido em casos de falsificação, tendo sido preso por um breve
período de tempo (HAWKINS, 1963 [1776], ii, p. 847).
3 Obviamente, a data de publicação não deve ser confundida com a de

composição. Certamente Geminiani já havia executado tais sonatas (e


publicações posteriores) anteriormente, inclusive em seus anos na
Itália. No entanto, o processo de edição, impressão e divulgação era
muito caro, e, na falta de capital, requeria patrocínio.
A biografia de Francesco Germiniani

de seu patrono com a presença do rei George I: seriam


executadas as sonatas com o próprio compositor ao violino,
como habitual, e ninguém menos que Georg Friedrich Händel, o
mais renomado compositor em solo britânico, ao cravo, para
executar o baixo-contínuo.

403

Fig. 1 Frontispício do op. 1 (1716), de Francesco Geminiani.

Essas sonatas (que seriam publicadas novamente em


1718 e, ao longo de muitos anos, extensivamente reeditadas) e
seus concertos grossos (opp. 2 e 3) publicados muitos anos
depois, foram seu cartão de visita como violinista virtuose e
representante da escola romana, discípulo do grande nome da
FRONTEIRAS DA MÚSICA

música naquela época, Arcangelo Corelli (CARERI, 1993).


Assim, como constatado que suas apresentações públicas eram
escassas, seus primeiros dez anos em Londres foram dedicados
ao ensino e à composição (FLOOD, 1910) até que, em fevereiro
de 1725, Geminiani tornou-se um dos oito membros
fundadores da loja maçônica Philo-Musicae et Archteturae
Societas. Essa loja, como comprovado por Careri, não foi a única
instituição maçônica da qual o músico fizera parte, tendo sido
membro da Academy of Vocal Musick (de 1726 a 1727)
(CARERI, 1993). Embora o propósito fundamental da Societas
seja desconhecido, a primeira decisão do grupo foi angariar
fundos e organizar assinaturas para a publicação dos concertos
baseados nas seis primeiras sonatas op. 5 de Corelli, compostos
por Geminiani. Assim, em agosto de 1726 foi publicado no
jornal Daily Courant sua nova publicação (pelo editor William
Smith). No mês seguinte, no mesmo jornal, uma nova edição
(por Walsh, um dos editores mais renomados da Inglaterra
setecentista) não autorizada foi anunciada, tendo sido taxada
404 de falsa imediatamente.
Ainda que o retorno financeiro com esses concertos
tenha sido insuficiente para Geminiani, o sucesso dessas
composições é incomparável. A partir de sua primeira
publicação, a obra foi copiosamente reeditada e vendida por
toda a Europa. Todo esse sucesso motivou-o a continuar o
projeto e a trabalhar nas últimas seis sonatas do mesmo opus
de seu mestre. Criados em 1727, com a expectativa de que o
sucesso se repetiria, as assinaturas dos novos concertos
desapontaram, e foi Walsh quem os publicou, apenas dois anos
depois (CARERI, 1993). Curiosamente, no mesmo ano, a Philo-
Musicae et Archteturae Societas encerrou suas atividades, o que
corrobora para a hipótese de que o principal projeto da
associação era garantir a publicação dessas orquestrações de
Geminiani.
Em 1728, William Capel, conhecido como Lord Essex
(1697-1743), que foi aluno de Geminiani, ofereceu o posto de
mestre e compositor da corte Irlandesa; posto esse que
garantiria seu futuro economicamente (HAWKINS, 1963
[1776]). Segundo Hawkins, outro grande expoente da história
da música, que o conhecera pessoalmente, assim como Burney,
Geminiani recusou o cargo por questões religiosas: para
A biografia de Francesco Germiniani

assumi-lo, o compositor deveria abandonar sua fé católica. No


entanto, Careri ainda defende a posição de que o músico,
avesso ao regime hierárquico de trabalho, tenha declinado para
não ser limitado em seu ofício (CARERI, 1993). Um outro
discípulo de Geminiani, Matthew Dubourg (1703-1767), que
tardiamente seria o responsável pela presença de seu mentor
nos círculos musicais irlandeses, assumiu o cargo ora deposto
(HAWKINS, 1963 [1776]).
Em oposição às suas raras aparições públicas nos
primeiros anos de residência na capital Inglesa, Francesco
Geminiani organizou, em 1731, uma série de vinte concertos
apresentados na Hickford’s Room todas as quintas-feiras
(FLOOD, 1910). Essa série, que teve duração de cinco meses (de
dezembro de 1731 a abril de 1732), foi financiada por
assinaturas, e marcou o ponto culminante de sua carreira
enquanto violinista virtuose: os concertos foram todos muito
bem sucedidos, e os lucros foram, segundo Careri, investidos
nas publicações de suas obras (CARERI, 1993): os concertos op. 405
3, de abril de 1732, e os concertos op. 2, de junho do mesmo
ano, ambos publicados por Walsh (vale lembrar que, apesar da
publicação ter ocorrido de maneira inversa – os concertos
posteriores publicados anteriormente, o fato não indica ordem
de composição, e sim estratégia de venda ou organização
empresarial por parte do editor). Seus concertos op. 2 e op. 3,
compostos e executados anos antes de suas publicações, foram,
após a série no Hickford's Room e a subsequente edição, os
responsáveis pela fama do compositor no território britânico
até o fim de sua vida, sendo obras paradigmáticas da linguagem
barroca italiana, muito em alta na Inglaterra setecentista,
intensamente copiadas, vendidas e executadas por todo o
continente europeu, atestando sua grande popularidade. Tal
sucesso não se repetirá com nenhuma outra composição
musical de sua autoria.
Na segunda metade de 1732, Geminiani deu início a
uma série de transcrições e revisões de suas obras anteriores, e
viajou a Paris, cidade em que era referência na tecnologia
editorial para obras musicais em sua época. No entanto, sua
partida fez com que alguns jornais da época anunciassem sua
morte (CARERI, 1993). Ainda que essa primeira visita tenha
durado um ano, retornando, portanto, a Londres em 1733, os
FRONTEIRAS DA MÚSICA

anos subsequentes foram marcados por inúmeras viagens


entre Londres, Paris e Dublin, cidades em que Geminiani era
considerado uma autoridade musical. Assim sendo, sua
primeira visita a Dublin, a convite do barão Charles Moore de
Tullamore (1712-1764), ocorreu em dezembro de 1733, e, no
mesmo mês, apresentou-se em um concerto público. Nessa
cidade, Geminiani abriu uma sala de concertos, utilizada,
também, para venda de quadros – Geminiani’s Great Room
(FLOOD, 1910). Após a apresentação de dois concertos em
Dublin em setembro de 1734, o músico retornou a Londres. Em
sequência,

Em 1737, sob pedido urgente de seu pupilo Douborg, ele


bancou uma segunda visita à Irlanda, e novamente capturou
o público amante de música de Dublin. Tão fenomenal foi seu
sucesso que ele foi induzido a reabrir sua Academia em
Spring Gardens, na Dame Street, novamente conhecida como
‘Geminiani’s Great Room’, onde deu concertos, assim como
406 aulas. Ele continuou em Dublin por mais três anos e retornou
a Londres em novembro de 1740. (FLOOD, 1910, p. 109)

Neste ínterim, embora a documentação histórica ateste


que Geminiani tenha divulgado sua nova coleção de peças –
doze sonatas para violino e baixo continuo op. 4 – em 1737, a
publicação ocorreu, apenas, em 1739, em Londres, embora o
autor estivesse ainda na Irlanda. De fato, Dublin era, como a
capital inglesa, um grande centro musical nos setecentos.
Segundo Careri, a música italiana era a moda, assim como o
culto a Corelli. Portanto, era natural que Geminiani faria
sucesso também nessa capital (CARERI, 1993). Logo, por
intermédio de seu aluno, Douborg, radicado em Dublin desde
1728, o renomado compositor pôde frequentar os círculos
musicais irlandeses, adquirindo enorme reputação.
O ano de 1740, como constatado em Flood, é a data em
que Geminiani parte de Dublin em direção a Paris, para fins de
publicações de suas obras: após ganhar um privilégio para
realizar impressões de suas composições, publicou, nessa
cidade, seus concertos opp. 2 e 3 e sua coleção Pièces de
Clavecin. Em 1741, retorna a Londres para diversos concertos
A biografia de Francesco Germiniani

e, dois anos mais tarde, publica, dedicado ao Frederico Príncipe


de Gales, transcrições em forma de concertos de suas sonatas,
sendo agora seu novo op. 4. Nesse meio tempo, foram
publicadas na Inglaterra a versão britânica de suas Pièces de
Clavecin, bem como reedições de trabalhos anteriores, além de
trabalhar em uma coleção de sonatas para violoncelo (op. 5) e
mais uma coletânea de concertos (op. 7), a serem publicados
anos depois, em 1748. Sobre a recepção dessas novas
composições, Careri atesta:

Nem os concertos, nem as sonatas para violoncelo


usufruíram muito da apreciação do público, e as altas
expectativas de Geminiani foram, certamente, desapontadas.
Suas falhas, talvez, convenceram-no de que seu estilo não
estava mais em moda. Consequentemente, de 1748 em
diante, Geminiani trabalhou principalmente em seus
tratados; se excluirmos as revisões de trabalhos anteriores e
The Enchanted Forest, pode-se dizer que sua atividade como
compositor poderia ter chegado ao fim. (CARERI, 1993, p. 38) 407

Com efeito, foram publicados, nos anos seguintes, não


menos que seis tratados de música: Rules for playing in a True
Taste (1748), A Treatise of good Taste in the Art of Musick
(1749), The Art of Playing on the Violin (1751), Guida
Armonica (1752), The Art of Accompaniament (1754) e The Art
of Playing the Guitar of Cittra (1760). Durante todos esses anos,
Geminiani viajou extensivamente a Paris, seja para a realização
de concertos, seja para acompanhar as edições de suas obras.
Após a publicação de seu último tratado, custeado pelo próprio
autor e impresso em Edimburgo, Geminiani faleceu em Dublin
no ano de 1762, o mesmo ano em que publicou uma segunda
coleção de peças para cravo (Pièces de Clavecin), aos 74 anos
de idade, tendo sido sepultado no adro do Parlamento Irlandês
(FLOOD, 1910).

Francesco Geminiani e o gosto musical inglês


Como foi possível notar na seção anterior, a obra
musical, tratadística e performática de Francesco Geminiani foi
FRONTEIRAS DA MÚSICA

constante ao longo de seu tempo enquanto radicado na capital


britânica, de modo que a recepção de sua obra era sempre
afirmativa. Uma consulta rápida na Biografia escrita por Careri
revela que sua primeira publicação, as sonatas op. 1, de 1716,
teve sucesso absoluto, considerando o número de edições e
reimpressões. Em relação aos concertos op. 2 e 3,

A fama de Geminiani na Inglaterra atingiu seu auge. Suas


habilidades como violinista, compositor e professor estavam
além de [qualquer] disputa. A crítica contemporânea, com
apenas algumas exceções, é geralmente bastante positiva –
não apenas em relação às qualidades da música em si, mas
também por Geminiani ser creditado por guiar o gosto
musical inglês na direção certa, por encorajar o estudo e a
performance da música de Corelli, bem como por contribuir
decisivamente para a formação de uma escola inglesa de
violinistas e compositores. (CARERI, 1993, p. 46)

408
Ou seja, a contribuição de Geminiani para o gosto
musical inglês é evidente, não só por esse país ter a música de
Corelli como referência, mas também pelo fato de que o
compositor formou dezenas de músicos - instrumentistas e
compositores. Comentários de sua época revelam, também, a
opinião de algumas pessoas em relação ao seu conhecimento
musical, como por exemplo em Serre: “é certo que o Sr.
Geminiani ganhou acertadamente sua reputação para com os
apreciadores da música por ser um dos artistas que, depois de
Corelli, teve o maior conhecimento dos diferentes caminhos da
harmonia, tendo observado suas várias regras muito
corretamente.” (SERRE, 1763, apud CARERI, 1993, p. 47).
Naturalmente, a relação de Geminiani com o gosto da
época é torna-se ainda mais forte quando o olhar se volta para
seus tratados, Rules for playing in a True Taste (1748), A
Treatise of good Taste in the Art of Musick (1749), The Art of
Playing on the Violin (1751), Guida Armonica (1752), The Art of
Accompaniament (1754) e The Art of Playing the Guitar of Cittra
(1760). Suas duas primeiras publicações textuais revelam, já no
título, o mote principal de sua produção. Seu principal objetivo
nesses trabalhos é o de mostrar as melhores soluções de
A biografia de Francesco Germiniani

ornamentação, seja em notas pontuais, seja ex tempore,


utilizando-se de canções populares inglesas, irlandesas e
escocesas. Analisar tais tratados não é o objetivo desta
pesquisa, mas vale notar o fato de Geminiani ter se utilizado
exclusivamente do repertório de raiz britânica para introduzir
a ornamentação em estilos francês e italiano, tendo o cuidado
de listar os ornamentos a serem trabalhados, mostrando várias
maneiras de executá-los e os respectivos efeitos que estes
causam no ouvinte. Portanto, é interessante para este trabalho
o conhecimento de sua concepção de “bom gosto”; para tanto,
segue a tradução de parte do tratado Treatise of Good Taste in
the Art of Musick:

INTRODUÇÃO PARA O BOM GOSTO EM MÚSICA


O que é comumente denominado bom gosto no cantar e no
tocar foi considerado, por alguns anos no passado, como
destruidor da verdadeira melodia e a intenção de seus 409
compositores. É suposto por muitos que o verdadeiro bom
gosto não pode ser adquirido por nenhuma regra da arte,
sendo ele um particular dom da natureza, concedido apenas
àqueles que têm naturalmente um bom ouvido. E como a
maioria se exibe por ter essa perfeição, por consequência,
aquele que canta ou toca pensa apenas em fazer
continuamente suas passagens e ornamentos favoritos,
acreditando que por isso será visto como um bom intérprete,
não percebendo que tocar com bom gosto não consiste em
frequentes ornamentações, mas em expressar com força e
elegância a intenção do compositor. Essa expressão é o que
todos devem se esmerar em adquirir, e pode ser facilmente
obtida por qualquer pessoa que não seja afeiçoada a sua
própria opinião e não resista obstinadamente à força da
verdadeira evidência. No entanto, não nego a poderosa
capacidade de um bom ouvido; percebi, em diversas
situações, quão grande essa força é; apenas aponto que
certas regras da arte são necessárias para um engenho
mediano, e podem melhorar e aperfeiçoá-lo. No final,
portanto, os que são amantes da música podem, com mais
facilidade e precisão, alcançarem a perfeição. Recomendo o
estudo e a prática dos seguintes ornamentos de expressão,
que são 14 em número; denominados,
FRONTEIRAS DA MÚSICA

1º, o trinado simples4 ; 2º, o trinado

composto5 ; 3º , a apojatura superior; 4º, a

apojatura inferior ; 5º, segurar a nota ; 6º,

staccato ; 7º, crescendo ; 8º, diminuendo


; 9º piano ; 10º, forte ; 11º, antecipação
; 12º, separação ; 13º, um mordente ; 14º,
o vibrato .
Por meio da explicação a seguir, podemos compreender a
natureza de cada elemento em particular.

(Primeiro) do Trinado Simples


O trinado simples é próprio para movimentos rápidos e ele
410 pode ser feito sobre qualquer nota, observando-se que deve
se prosseguir, imediatamente após ele, à nota seguinte.

(Segundo) do Trinado Composto


O trinado composto, sendo feito de forma rápida e longa,
serve para expressar alegria, porém, se o fizeres curto e
mantiveres o comprimento da nota contínua e suave, podes,
então, expressar algumas das mais ternas paixões.

(Terceiro) da Apojatura Superior


A apojatura superior deve expressar amor, afeição, prazer,
entre outros. Deve ser feita de forma bem longa, atribuindo-
lhe mais da metade do comprimento ou tempo da nota a qual
ela pertence, observando para que se aumente o som
gradativamente e, aproximando-se do fim, para que se force
um pouco o arco. Se for feito de maneira curta, ela perderá
muito das qualidades citadas, mas sempre terá um efeito
prazeroso e pode ser adicionada a qualquer nota que você
desejar.
A biografia de Francesco Germiniani

(Quarta) da Apojatura Inferior


A apojatura inferior tem as mesmas qualidades que a
precedente, exceto pelo fato de ser muito mais restrita, uma
vez que só pode ser feita quando a melodia ascende o
intervalo de uma segunda ou terça, observando para se fazer
um mordente na nota seguinte.

(Quinto) de Segurar a Nota


É necessário usar isto frequentemente, pois se tivéssemos
que fazer mordentes e trinados continuamente sem, às vezes,
trazer prejuízo à sonoridade da nota pura, a melodia seria
diversificada demais.

(Sexto) do Staccato
Expressa descanso, tomar fôlego ou trocar uma palavra e, por
essa razão, cantores devem tomar cuidado para respirar em
um lugar onde o sentido não seja interrompido. 411

(7º e 8º) do Crescendo e do Diminuendo


Esses dois elementos podem ser usados um após o outro,
produzindo uma grande beleza e variedade na melodia e,
quando empregados alternadamente, são próprios para
qualquer expressão ou medida.

(9º e 10º) do Piano e Forte


São ambos extremamente necessários para expressar a
intenção da melodia e, como toda boa música deve ser
composta em imitação de um discurso, esses dois
ornamentos são designados para produzir o mesmo efeito
que um orador produz ao levantar e abaixar seu tom de voz.

(Décimo Primeiro) da Antecipação


A antecipação foi inventada com vistas a variar a melodia,
sem alterar a sua intenção. Quando é feita com mordente ou
um trinado e aumentando o volume, terá um efeito maior,
especialmente se observares que deves fazer uso dela
FRONTEIRAS DA MÚSICA

quando a melodia ascende ou descende em intervalos de


segunda.

(Décimo Segundo) da Separação


A separação é utilizada apenas para dar variedade à melodia
e é aplicada mais apropriadamente quando a nota sobe uma
segunda ou terça; como também quando descende uma
segunda e, então, não será errado adicionar um batimento,
crescer a nota e fazer a apojatura para a nota seguinte. Assim,
ternura é expressa.

(Décima Terceira) do Mordente


É próprio para expressar diversas paixões, por exemplo, se
for executado com força e de forma contínua, expressa fúria,
raiva, determinação etc. Se tocado menos forte e mais curto,
expressa júbilo, satisfação etc. Entretanto, se o tocares bem
suavemente enquanto cresces a nota, o mordente pode,
412 então, denotar horror, medo, pesar, lamentação etc. Se
tocado de forma curta e com um gentil crescendo, pode
expressar afeição e deleite.

(Décimo Quarto) do Vibrato


Não pode ser descrito por meio de notas, conforme os
exemplos anteriores. Para executá-lo, deves pressionar teu
dedo fortemente sobre a corda do instrumento e mover o
punho para dentro e para fora, lenta e igualmente. Quando
uma nota longa com vibrato é acompanhada de um
crescendo gradual, do arco se movendo para perto do
cavalete e de uma terminação muito forte, o vibrato pode
expressar majestade e dignidade. Entretanto, ao fazê-lo de
forma mais curta [com menor amplitude], mais piano e mais
suave pode denotar aflição, medo etc. Quando é realizado em
notas curtas, [o vibrato] deixará seu som mais agradável e,
por esta razão, deverá ser usado o mais frequentemente
possível.
Pessoas com entendimento limitado e de meias ideias talvez
perguntarão se é possível dar sentido e expressão à madeira
e ao arame; ou conferir a eles o poder de elevar e acalmar os
sentimentos dos seres racionais. No entanto, toda vez que
A biografia de Francesco Germiniani

ouço tal colocação, seja por desinformação ou com o intuito


de ridicularizar, não tenho nenhuma dificuldade em
responder de forma afirmativa e sem investigar a causa
muito profundamente, por pensar que é suficiente apelar
para o efeito. Mesmo em um discurso comum, a diferença do
tom [de voz] proporciona à mesma palavra sentidos
diferentes. Assim, no que diz respeito à performance musical,
a experiência mostra que a imaginação do ouvinte está tanto
à disposição do mestre que ele, com a ajuda de variações,
andamentos, intervalos e melodias com harmonia, pode
quase estampar a expressão que lhe agrada na mente [dos
ouvintes].
Essas emoções extraordinárias são, de fato, mais facilmente
excitadas quando acompanhadas de palavras. Eu
aconselharia, ainda, tanto para o compositor como para o
intérprete que ambiciona inspirar sua plateia, estar
primeiramente inspirados eles mesmos. Isto certamente
ocorrerá se for escolhida uma obra engenhosa, se [o
intérprete] estiver totalmente familiarizado com todas suas
belezas, e se [ele] embeber sua própria performance do 413
mesmo espírito exaltado.

Percebe-se, após a leitura dessas instruções para “tocar


com bom gosto” (GEMINIANI, 1749), em especial a introdução
de seu capítulo e o décimo quarto exemplo, o cuidado que
Geminiani possuía em relação à performance musical, visto que
esta deve mover o ouvinte e provocar-lhe as mais ternas
paixões. Como Geminiani utiliza a bagagem cultural britânica
para a elaboração de todos seus exemplos musicais nos seus
tratados de ornamentação, nota-se claramente a inserção da
linguagem italiana na música de sua nova pátria, bem como a
absorção da estética de sua terra natal por parte dos ingleses,
da qual esse compositor, discípulo de Corelli, foi o principal
propagador.

Considerações Finais
Estudar – e escrever – a biografia de Francesco
Geminiani não se trata apenas de narrar a história de um
homem, mas sim de uma parte importante da música ocidental.
A vida do italiano, discípulo do maior compositor de seu tempo,
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Arcangelo Corelli, permite traçar diversas facetas dos hábitos


sociais daquela época, do cenário musical europeu setecentista,
bem como, tratando-se da era pré-iluminista, de mudanças na
mentalidade rumo ao romantismo.
Embora tenha sido fruto da tradição pai-e-filho na
educação musical, Geminiani foi o único, de onze filhos, a seguir
a profissão do pai. Uma análise cuidadosa da história de outras
famílias musicais, como as de Vivaldi, Bach e Benda, revela que
existiram, no comportamento familiar dos setecentos, uma
quantidade maior de contingentes seguindo a profissão
paterna. Com isso, conclui-se que não se trata de talento, mas
sim de trabalho. Após estudar na capital da música, Roma,
Geminiani retornou à sua cidade natal preparado para dar
seguimento ao legado de seu mentor. No entanto, não
permaneceu muito tempo, e logo sentiu a necessidade de algo
maior. Abandonar a estabilidade financeira e arriscar caminhos
incertos na Inglaterra denota muito mais que mera curiosidade
414 ou rebeldia jovial. Francesco, durante toda sua vida, recusou
cargos em cortes e patrocínios de longa data, dando
preferência a produzir seu sustento por meio de sua própria
criação musical, de suas habilidades ao violino, ainda que suas
apresentações tenham sido poucas, e de sua didática bem-
sucedida, que formou alunos prodigiosos como Charles Avison,
referência na Estética Musical. Embora a venda de quadros
tenha sido uma alternativa em tempos de dificuldades
financeiras, o compositor jamais se inclinou à submissão de
algum patrono, revelando uma mudança substancial no
comportamento social, anunciando o fim de uma era.
Na Inglaterra, Geminiani deu prosseguimento à
tradição musical italiana. Não só este era o gosto em moda no
país, como também o prodigioso compositor soube usufruir de
sua bagagem cultural. Ao compor sonatas – da chiesa e da
camara, concertos grossos, música incidental e tantos outros
gêneros instrumentais, Francesco Geminiani firmou-se como
um dos maiores compositores de seu tempo: as inúmeras
reedições, cópias e transcrições realizadas por ele e por outros
músicos revelam o grande sucesso que sua arte obteve em solo
estrangeiro. A era iluminista, questionadora por natureza,
proporcionou mais liberdade aos que nela viveram. No entanto,
tal liberdade teve um preço para Geminiani: o compositor teve
A biografia de Francesco Germiniani

obras roubadas, falsificadas e grandes prejuízos editoriais. No


entanto, além de nunca ter se abalado, foi audaz – e venturado -
o suficiente para custear algumas de suas próprias publicações,
bem como a inaugurar uma sala de concertos que levou seu
próprio nome: Geminiani’s Great Room.
Francesco Geminiani, pouco lembrado nas salas de
aula e de concerto da atualidade, é paradigma da tradição
italiana de violino e de composição, que transformou o
pensamento musical europeu, sobretudo na Inglaterra, país em
que colaborou para a construção de um gosto musical. Esse
país, que testemunhou o progresso de um músico outrora
desconhecido a um marco na história de seu instrumento,
tendo seu legado sido copiosamente reeditado e estudado
muitos anos após a sua morte, foi cenário de incomparável
florescimento cultural, tendo absorvido, em especial na música,
os estilos em voga no século XVIII, sobretudo o italiano.
Recordado atualmente como compositor de sonatas e de
concertos grossos (em especial os opp. 1 a 4) a exemplo de 415
Corelli, e como tratadista, principalmente como autor do
importante tratado The Art of Playing on the Violin, que
demonstra sua excepcional habilidade ao instrumento, o
compositor é síntese da longa tradição italiana, que guiou a
formação do gosto musical inglês.

Referências Bibliográficas
BURNEY, C. A General History of Music [London, 1776-1779]. New
York: Harcourt, Brace and Company, 1935.
CARERI, E. Francesco Geminiani (1687-1762). New York: Oxford
University Press, 1993.
CHARTIEU, R. O Mundo como Representação. Estudos Avançados 11
(5), 1991, p. 173 – 191.
DOLMETSCH, A. The Interpretation of the Music of the 17th and 18th
Centuries [London, 1915]. London e New York: Dover Publications,
2005.
FLOOD, W. G. Geminiani in England and in Ireland. Samelbände der
Internationalen Musikgeselchaft, 12. (out. – dez. 1910). pp. 108-112.
GEMINIANI, F. Rules for Playing in a True Taste. London, 1748.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

____. Treatise of Good Taste in the Art of Musick. London, 1749.


____. The Art of Playing on the Violin. London, 1751.
HAWKINS, J. A General History of the Science and Practice of Music
[London, 1776]. London: Dover Publications, 1963.
LEVI, G. Usos da Biografia. In: AMADO, J., FERREIRA, M. Usos & Abusos
da História Oral. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas Editora, 1996.

416
A Metáfora da Coisa: inflexões heideggerianas na
canção de Gilberto Gil

PAULO JOSÉ DE SIQUEIRA TINÉ

pequena crítica redigida por Dirceu Soares para o disco


A “Um banda um” de Gilberto Gil em 13 de agosto de 1982
publicada na edição do jornal A Folha de São Paulo ressaltava o
que chamava de “múltiplas faces” do compositor. Chamava
atenção em especial para duas canções do autor: “Metáfora” e
“Esotérico”, tendo a letra da primeira publicada em um box ao
lado da foto de Gil. A crítica foi feita a partir de uma fita, ou seja,
tratava-se de uma escuta realizada antes que o disco chegasse
às lojas. Trata-se do quinto disco da carreira do artista gravado
para a WEA, multinacional norte-americana que estava
instalada no Brasil desde 1976.

A WEA, (...), se instalou oficialmente em julho de 1976,


limitou-se a reproduzir suas matrizes estrangeiras até o final
do ano, conseguindo apesar disso conquistar 2,9% do
mercado. E, em 1977, embora tivesse lançado apenas 5 LPs
nacionais, previa-se sua participação para 5% das vendas
anuais do setor, ao mesmo tempo em que o presidente da
companhia dizia esperar para o ano seguinte a conquista de
8% do mercado, lançando apenas mais 12 LPs de seu
reduzido grupo de artistas brasileiros (MORELLI, 2009, p.
67).

Um desses artistas era Gilberto Gil. Apesar da


ascendência africana, os ritmos e a temática afro-brasileira não
integram as referências dos primeiros álbuns do compositor,
estando mais ligado às questões do tropicalismo e da música
popular nordestina de um modo geral. Segundo o
documentário de BIGAULT (2005), realizado na década de
1980, as questões ligadas à diápora africana, engajamento e
ativismo político, só passam a fazer parte do universo do autor
FRONTEIRAS DA MÚSICA

a partir do álbum Refavela (1977), após viagem ao continente


africano.
O texto “A Coisa” de Martin Heiddeger, por sua vez, fui
publicado pela primeira vez em 1954, em uma coletânea de
ensaios. Sobre esse ensaio comenta o filósofo luso-brasileiro
Eudoro de Souza em sua obra Mitologia na introdução de sua
tradução para o texto do filósofo alemão:

A atmosfera de “A Coisa” é de um interrogar insistente sobre


o ser da “proximidade”, (...). Heidegger dá a entender que
nada temos a recear de futuras explosões, posto que a mais
pavorosa já se deu muito antes de qualquer efetiva explosão
de bombas atômicas ou nucleares; as coisas, há muito que
residem no “sem distância”, igualmente distantes ou
próximas. (...) Heidegger quer saber da proximidade da “coisa
enquanto coisa”, e assim, todo o estudo que dedica seu
seríssimo jogo com a linguagem, é de uma consequência
418 inabalável. (...) Aquela interpretação da “cantaridade do
cântaro”, da coisidade da coisa-cântaro, como “unificidade”
do Quatro, o Quadrado, a Quadratura e a Circulatura do Jogo
de Espelhos, a ronda do Anel em que se “transpropria” o ser
de cada um (céu e terra, mortais e imortais) para ou pelo ser
do conjunto dos Quatro, a hábil insinuação de que cada coisa
não pode ser só ela, mas a emergência singularizada de um
objeto no trans-objetivo (...) e, portanto, que o “coisar” da
coisa é, de certo modo, o “mundar” de um mundo, traz-me a
lembrança o haver ensinado, por exemplo, que malentendido
é perguntar o que significa uma qualquer das obras de arte,
que verdadeiramente o sejam. (SOUZA, 1984, p. 237-239).

A “cantaridade do cántaro”, por exemplo, é apropriada


por Gil no sentido do canto mesmo, ou seja, da musa que
inspira o deus a derramar o bálsamo, ou seja, o canto
divinamente inspirado que canta a cura afugentando o “fogo do
inferno”, presente na canção Palco, lançada no disco “Luar”, um
anterior ao abordado. O conteúdo teológico não é explicito no
autor alemão mas SOUZA (1984), comentando o filósofo e a
relação de seu pensar com o do autor, assinala para essa
possibilidade. Contudo, não parece que Gil tenha se inspirado
exclusivamente no texto aqui seleccionado. A questão da poesía
A metáfora da coisa

é colocada noutro ensaio, da mesma coleção, intitulado


“…poéticamente o homem habita…” a partir da produção de
Friedrich Höderlin. Nele Heiddeger diz “A arte do poeta
consiste em desconsiderar o real. Em lugar de agir, os poetas
sonham. O que eles fazem é apenas fantasiar” (HEIDEGGER,
2001, 166).
A canção Metáfora, logo no seu início, insinua: “Uma
lata existe para conter algo, mas quando o poeta diz: Lata! Pode
estar querendo dizer o incontível” (GIL, 1982). Ao separar as
palabras “meta” e “fora” que, juntas, formam metáfora, o
compositor brasileiro define a meta do poeta como sendo
aquela que pode ser inatingível. Ao apontar para o tudo e o
nada que cabe na lata do poeta, a canção parece dialogar com
outra, “Copo Vazio”, composta para Chico Buarque, que a
gravou no antológico álbum Sinal Fechado, lançado em 1974.
Aquí também se encontram vestigios da leitura de Heidegger:
“o vazio, o nada da jarra é que faz a jarra ser um receptáculo,
que recebe” (HEIDEGGER, 2001, p.147) 419
Heidegger, em seu texto, descreve o oleiro como aquele
que, ao moldar o vazio, produz a jarra. Sabidamente, o oleiro é
um artesão e não artista. Nesse sentido, quando se pensa na
relação artista e artesão na produção de Gilberto Gil,
invertendo a abordagem até aqui insinuada, no sentido de
observar ecos dos escritos de Heidegger em Gilberto Gil, mas
procurando observar o modo de produção do compositor à luz
de certos entendimentos do filósofo alemão, observa-se uma
dicotomia ou fricção. A pesquisadora Thais Curi Beaini, ao
tentar descortinar uma estética heideggeriana, assim coloca:

A Estética é a época de esvaziamento da Arte, de


inautenticidade, posto que nela não há mais uma colaboração
do Homem para o des-velamento do Ser. (...)..., Heidegger cita
os cinco fenômentos básicos que caracterizam a
modernidade: a Ciência, a Técnica, a Arte enquanto estética, a
Cultura e o desaparecimento dos deuses. (...)... a Ciência
tecnicizada é uma espécie de modelo para a análise da obra
de arte, da Arte e da desdivinização elaborada pelo
Cristianismo. Todos levam a um ponto comum: a objetivação
do ente. (BEAINI, 1986, p. 23).
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Por um lado a canção de Gil é um artesanato: letra e


música realizadas com voz e violão. Assim deve ter sido
realizada a poiésis da canção: de uma forma íntima e solitária.
Por outro, do ponto de vista estésico e da recepção da obra, ele
passou pelo processo que o início desse texto começa
descrevendo: um processo industrial de produção que passa,
não só pelos arranjos e pela padronização da sonoridade
através das mixagens e equalizações - em parte caracterizada
pela época na qual foi realizada - como pela otimização de
custos e reprodução em larga escala com vistas a obter o lucro,
tendo como base um processo já ocorrido de legitimização e de
construção de um paradigma chamado MPB.1 De qualquer
forma, o compositor não parece permanecer acomodado nesse
processo, mas se inseri de maneira dinâmica realizando, como
colocado, nesse álbum, referências afro-brasileiras, do pop
internacional e alusões, além das heideggerianas, sobre o
sagrado a partir de óticas cristãs (“Drão”), místicas (“Esotérico”
e “Andar com Fé”) e afro-baianas (“Afoxé”). Por um lado, o
420 processo tecnológico reafirma a questão da “proximidade”
abordada logo no início de “A Coisa”:

O homem está superando as longitudes mais afastadas no


menor espaço de tempo. Está deixando para trás de si as
maiores distâncias e pondo tudo diante de si na menor
distância. E, no entanto, a supressão apressada de todo
distanciamento não lhe traz proximidade. Proximidade não é
pouca distância. (HEIDEGGER, 2002, p. 143).

Se a pouca distância é trazida pela ciência ambos,


Heidegger e Gil apontam para o vazio e, por consequência para
o nada, já que ele “é justamente rejeitado pela ciência e
abandonado como elemento nadificante” (HEIDEGGER, 1996,

1A padronização sonora do álbum se dá, ao meu ver, pela produção de


Liminha (Arnolpho Lima Filho), que após tocar com os Mutantes na
década de 1970, tornou se homem forte da WEA na década seguinte,
produzindo diversos discos do então emergente rock nacional.
A metáfora da coisa

53). Entretanto, ele está no centro da discussão do filósofo


sobre a metafísica (1996) e em sua metáfora na canção de Gil.
Para Benedito Nunes, comentando o texto de Heidegger, “o
nada não é um conceito oposto ao ente; pertence, de modo
originário, à mesma essência do ser” (NUNES, 2004, 40). Nesse
sentido, “na lata do poeta tudo nada cabe”.

Somente na clara noite do nada da angústia surge a


originária abertura do ente enquanto tal: o fato de que o ente
é ente – e não nada. (...) Ser-aí quer dizer: estar suspenso
dentro do nada. (...) O nada é a possibilidade da revelação do
ente enquanto tal para o ser-aí humano. (HEIDEGGER, 1996,
p. 58, 59).

Tais frases, retiradas do texto e, em parte, do contexto


do filósofo, se aproximam de algo poético, assunto importante
na sua produção, tal como no citado texto “...poeticamente o
421
homem habita...”. Segundo Nunes, comentanto o filósofo, “a
primeira relação do pensamento à luz do problema do sentido
do ser ali proposto se estabelecerá com a poesia e com a arte,
não com a ciência,...” (2004, 10). No posfácio ao “O que é isto a
Metafísica” (1943) o filósofo diz: “ O pensador diz o ser. O poeta
nomeia o sagrado” (1996, 72).
Assim, procurarei verificar a relação, não mais no
sentido do conteúdo da letra de Gilberto Gil com o filósofico,
mas a relação intrínseca da letra (poesia) com a fraseologia
musical, afim ressaltar alguns apontamentos.
O primeiro terceto estrutura o que poderíamos chamar
de seção A. É composto por antecedente e consequente de 4
compassos cada, mas com a extensão de um compasso entre
elas, perfazendo, assim o total de 9 compassos.

Letra Fraseologia Rima & Métrica


Uma lata existe frase x Antecedente a (11)
para conter algo
Mas quando o frase y b (8)
FRONTEIRAS DA MÚSICA

poeta diz: “lata”


Pode estar frase z Consequente c (12)
querendo dizer o
incontível
Quadro 1: 1º terceto (A) e fraseologia

O segundo terceto difere apenas no tocante ao


conteúdo literário, sendo estruturalmente e musicalmente
igual ao primeiro:

Uma meta existe frase x Antecedente a’(11)


para ser um alvo
Mas quando o frase y b’(8)
poeta diz: “meta”
Pode estar frase z Consequente c’(12)
querendo dizer o
inatingível
Quadro 2: 2º terceto (A) e fraseologia

A seção B é composta por cinco versos que não rimam


422 entre si, mas dialogam com as palavras de outras seções da
letra. Ela se assenta sobre uma estrutura ternária de 12
compassos divididos em dois antecedentes e um consequente o
qual o qual é composto de apenas uma frase.

Por isso não se frase x’ Antecedente 1 a (12)


meta a exigir do
poeta
Que determine o frase x” b (12)
conteúdo em sua
lata
Na lata do poeta frase x”” Antecedente 2 c (12)
tudo nada cabe
Pois ao poeta frase z d (9)
cabe fazer
Com que na lata frase z’ Consequente e (13)
venha a caber o
incabível
Quadro 3: Quintilha (B) e fraseologia.

Já a volta variada de A’ musicalmente se assenta


novamente em uma estrutura binária, também irregular, aqui,
com 10 compassos. Outro dado curioso reside no fato de,
A metáfora da coisa

poeticamente ter quatro e não três versos como nas repetições


de anteriores de A.

Deixe a lata do Frase x5 Antecedente(1’”) a (11)


poeta, não
discuta
Deixe a sua meta Frase x6 a’ (11)
fora da disputa
Meta dentro e Frase w Consequente (4) b (11)
fora, lata
absoluta
Deixe-a Frase k (cad.) c (8)
simplesmente
metáfora

Quadro 4: Quadra (A’) e fraseologia.

O que se constata, nessa breve abordagem da relação 423


da organização poética da letra com a da fraseologia musical é
que nela não há a habitual correspondência, verificadas em
outros estudos entre as estruturas. Via de regra, tercetos
correspondem a estruturas ternárias e quadras a estruturas
binárias do tipo período ou sentença, observadas em trabalhos
anteriores (TINÉ, 2013). Nesse sentido os versos “ao poeta
cabe fazer - Com que na lata venha a caber, o incabível” se
adequam ao que cabe ao cancioneiro musicar os versos de
maneira inusual. Outro ponto a se especular reside no fato de o
terceto de A apontar para a estrutura ternária de B e a
quintilha de B ser correspondida, posteriormente, pela
estrutura binária irregular de A’, formada por 10 compassos.
Voltando a Heidegger, para ele “a poesia ou bem é
negada como coisa do passado (...), ou então é considerada
como uma parte da literatura.” (2001: 165). A partir da
problematização dessas duas perspectivas possivelmente
vistas como inautênticas, o filósofo aponta para a poesia como
habitar, ou como deixar-habitar o mundo. Esse deixar-habitar
se dá através da linguagem verbal e, sendo o homem o único
animal dotado dessa capacidade, se ilude ao se pensar criador e
soberado dela quando, na verdade, ela mantem uma soberania
sobre o homem. Segundo o filósofo o homem cai em uma
FRONTEIRAS DA MÚSICA

“estranha mania de produção” quando se torna soberano da


linguagem e ela se torna apenas “expressão” para, então, na
contemporaneidade ser um simples meio de pressão.

A poesia constrói a essência do habitar. Ditar poeticamente e


habitar não apenas não se excluem. É mais do que isso. Ditar
poeticamente e habitar se pertencem mutuamente no modo
em que um exige o outro. “Poeticamente o homem habita”. E
nós habitamos poeticamente? Parece que habitamos sem a
menor poesia. Se é assim será mentirosa e não verdadeira a
palavra do poeta? (...)... um habitar só pode ser sem poesia
porque, em sua essência, o habitar é poético. (...) É possível
que nosso habitar sem poesia, que nossa incapacidade de
tomar uma medida provenha da estranha desmedida que
abusa das contagens e medições (HEIDEGGER: 2001, p.179).

Corroborando com essa ideia Ricardo Rizek (1987), a


partir de uma leitura heideggeriana particular, divide a
424 linguagem em dois níveis: o da nomeação e da nominação. A
primeira corresponderia ao que se poderia chamar de nível dos
poetas, que partejam a existência a partir da nomeação,
“devolvendo a linguagem ao seio do ser, como canais da
primordialidade da linguagem”, como filhos da linguagem. Ao
passo que ao nível da nominação, ao tentar escravizar a
linguagem, o homem se torna escravo dela e começa a
visualizá-la como um “conjunto de sinais auto-referentes”:
como um sistema!

Ela [a linguagem] tinha dois níveis, agora ela nomina. Sabe


qual é a diferença entre nomear e nominar? É que nominar é
a substantivação, é institucionalização, (...). Nominar é aquilo
que a gente faz todo momento. Sabe quando palavras surgem
por minuto? Só de sigla surgem umas dez, e todo mundo
lidando com elas: é “software”, é “ONU”, “Bradesco”, “Itaú”,
(...) e todo mundo usando violentamente, pois os meios de
comunicação não são mais expressão como foi no
romantismo, os meios de comunicação são [meios de]
pressão. Eles têm linguagem de manifesto e comunicam ao
homem o que se tornou público. (RIZEK: 1987, transcrição
do autor).
A metáfora da coisa

Mais uma vez chega-se na contradição do que o poeta


Gilberto Gil nomeia e, ao mesmo tempo, nomina ao transformar
sua obra em produto que, enquanto tal, passa, pelo menos na
sua forma de divulgação e, como colocado anteriormente de
produção, pela referida “linguagem de manifesto”. Apesar da
condução rítmica que remete às características da música pop,
as harmonias de Metáfora têm, nas seções A e A’
características, pode se falar assim, “bossanovisticas”: acordes
com extensões (as chamadas “dissonâncias” da bossa nova) e
processos cadenciais de tipo jazzístico. Como contraste, a seção
B é formada por acordes dominantes que sobem em intervalos
de tons inteiros do -III ao VI grau para finalizá-la com
características semelhantes às da seção A. Em B o caráter pop
se acentua o que pode remeter, musicalmente, às tensões entre
nomear e nominar: “bossa-nova versus iê-iê-iê”. Nesses ponto
ocorre exatamente aquela tensão que, de certa forma, o
movimento tropicalista, se dispôs, se não a dissolvê-lo, pelo
menos a conviver com os dois elementos em estado de fricção,
para usar a terminologia de PIEDADE (2004). 425
Em A Caminho da Linguagem HEIDEGGER (2004)
coloca que as definições correntes de linguagem não seriam
suficientes para delimitar sua essência, tais como “fala é
expressão”, “falar é uma atividade humana” ou ainda que “a
palavra da linguagem tem origem divina” (2004, p.10). Para ele,
“a linguagem fala” e “ao poetizar, o poema representa numa
imagem o que imaginou”. Assim seria a “imaginação poética
que se exprime na fala do poema” (2004, p.14). Isso traz,
novamente, o papel da nomeação do poeta: “... as coisas
nomeadas são evocadas em seu fazer-se coisa”. (2004, p.17)
Volta-se, assim, a temática da coisa e ao papel existenciador da
nomeação: “Somente quando se encontra a palavra para a
coisa, a coisa é coisa. Somente então ela é”. Para o filósofo é “a
palavra que confere ser a coisa” (2004, p.126). Não seria esse
dizer ao qual Gilberto Gil menciona na frase “mas quando o
poeta diz...” retirada dos versos?

O poeta, quando é poeta, não descreve o mero aparecer do


céu e da terra. (...)... o poeta faz apelo àquilo que no
desocultamento se deixa mostrar precisamente como o que
se encobre e, na verdade, como se encobre. Em tudo que se
FRONTEIRAS DA MÚSICA

mostra familiar, o poeta faz apelo ao estranho enquanto


aquilo a que se destina o que é desconhecido de maneira a
continuar sendo o que é – desconhecido. (...) Assim, e num
sentido muito privilegiado, as imagens poéticas são
imaginações. Imaginações e não meras fantasias ou ilusões.
Imaginações entendidas não como inclusões do estranho na
fisionomia do que é familiar, mas também como inclusões
passíveis de serem visualizadas. (HEIDEGGER, 2001, p.177).

Nesse sentido, a citação assobiada ao final de Metáfora


da canção Penny Lane de Lennon & McCartney2 parece
representativa. Segundo TURNER (2009), a letra descreve
locais na cidade de Liverpool que, de fato, não existiam. Algo
semelhante ao que ocorreu no Brasil no assim chamado Clube
da Esquina que, inicialmente canção, deu nome ao clássico
álbum da MPB e, por fim, passou a denominar um grupo de
músicos mineiros. Fato é que nunca houve clube nenhum, mas
a presença das tensões entre brasilidades e música pop
426 também pautou as escolhas daqueles músicos.
Por fim, a canção de Gilberto Gil parace versar sobre
ele mesmo, como uma metáfora do seu próprio ofício. Segundo
Heidegger, “fazer experiências com a linguagem é algo bem
distinto de se adquirir conhecimentos sobre a linguagem”
(2004, p.122). Nesse sentido, fazer metáforas é algo distinto de
metalinguagem, que seria a “...contínua tecnização de todas as
línguas, com vistas a torná-las um mero instrumento de
informação, capaz de funcionar (...) globalmente” (IDEM,
Ibidem). Como colocou o parceiro tropícalista de Gil, Caetano
Veloso na canção Lingua (1982):

Se você tem uma ideia incrível, é melhor fazer uma canção.


Está provado que só é possível filosofar em alemão

Parece que, assim, procedeu o compositor baiano


Gilberto Gil.

22 Lançada em 1967 no Reino Unido e Estados Unidos no álbum


“Strawberry Fields Forever”.
A metáfora da coisa

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TURNER, S. The Beatles: A história por trás de todas as canções. Trad.
Alyne Azuma. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
A (re)composição do material musical em Musik für
Renaissance-Instrumente de Mauricio Kagel1

RAFAEL RAMALHOSO ALVES

partir da análise de Musik für Renaissance-Instrumente,


A escrita em 1966, buscarei definir a relação que a peça
tece com o material musical do século XX, investigando o
sentido que Musik apresenta em relação aos paradigmas
estéticos das neovanguardas da segunda metade do século XX.
A significativa heterogeneidade estilística e formal da
obra de Mauricio Kagel nos atraiu para a tarefa de analisá-la e
buscar compreender seu sentido estético e filosófico. Björn
Heile (2006) salienta a dificuldade em se definir a estética
composicional de Kagel

A qual Kagel nos estamos referindo? Kagel, o aspirante


multiartista mergulhado na vanguarda influenciado pela
Bauhaus de Buenos Aires dos anos 1950? Kagel, o membro
da vanguarda europeia do pós-guerra, que esforçou-se para
integrar o serialismo com a técnica aleatória e live-
electronics? Kagel, o experimentalista, cujas criações
influenciadas pelo Fluxus questionavam os limites não
somente da música e da composição musical mas de tudo que
poderia ser considerado arte? Kagel, o dedicado a trabalhos
de teatro experimental, filme e multimídia, para quem o
termo ‘composição’ não se conecta exclusivamente ao
domínio acústico? Kagel, o pós-modernista que recombina
fragmentos descartados previamente, sejam estes de música
‘clássica’, ‘popular’ ou ‘folclórica’, em uma nova forma de arte
composta de diversas camadas? Ou Kagel, o compositor de
peças enganosamente simples de música de concerto que
parecem fazer uma paródia das complicações conceituais e
das refrações das perspectivas frequentemente associadas a
seu trabalho? (HEILE, 2006, p.1)

1
Todas as traduções são do autor, excetuando-se aquelas indicadas nas
Referências Bibliográficas.
A (re)composição do material musical

Considerando esse aspecto, nos parece adequado


tratar das peças em sua particularidade e não de sua obra como
um todo orgânico.
Apesar da grande quantidade de instrumentos antigos
requerida, a referência de Musik não é a da sonoridade habitual
ou convencional desses instrumentos, tampouco a das técnicas
de execução historicamente informadas. A composição propõe
ao intérprete explorar suas possibilidades sonoras e
organológicas, muitas vezes desconfigurando a sonoridade e os
modos tradicionais de relação entre intérprete e instrumento.
Entre tais propostas estão a da preparação do instrumento,
numa perspectiva análoga à desenvolvida por Cage, através
principalmente da inserção de materiais e objetos estranhos à
sua estrutura. Kagel propõe essa experimentação com
instrumentos até então desprezados por grande parte da
vanguarda musical.
Kagel integrou o meio sócio-musical dos Cursos de
Darmstadt, um dos principais pólos de produção musical de 429
vanguarda na segunda metade do século XX. O compositor
participou assim dos debates musicais da composição de
vanguarda, embora sua obra apresente elementos estranhos a
uma concepção progressista e positiva de produção musical.
Seus textos e comunicações expressam sua perspectiva crítica
daquele meio musical, sem no entanto invalidá-lo por
completo. Musik für Renaissance-Instrumente surge assim como
objeto estético que dialoga nesse debate. A peça parece mover-
se sobre a reflexão acerca do material musical e do debate
sobre o caráter progressivo ou regressivo da obra. Para isso
retomaremos brevemente a conceituação que fez Adorno, um
dos principais teóricos da música do período e participante
ativo dos Cursos de Darmstadt.

Conceito de material musical


Em Teoria Estética, Adorno define o material da arte
como:
FRONTEIRAS DA MÚSICA

aquilo que está à disposição dos artistas: o que se apresenta a


eles em palavras, cores e sons, em todas as suas
combinações, em todos os diferentes procedimentos técnicos
desenvolvidos; nesse sentido, as formas podem igualmente
se converter em material. (ADORNO apud OLIVE, 2009, p.86)

O material não deve ser compreendido e definido de


maneira fixa, imutável, mas caracteriza-se pela contínua
transformação pela qual passam técnicas e meios de produção,
articulando-se de maneira fundamental com o contexto sócio-
histórico em que surgem. Segundo Adorno (2004, p.35), “este
material é reduzido ou ampliado no curso da história e todos os
seus rasgos característicos são resultados desse processo.”
Nos anos 40 essa perspectiva buscava criticar a
retomada de elementos do tonalismo pelo neoclassicismo, já
que Adorno compreendia que essa intenção seria o de
reestabelecer uma organicidade e identidade na experiência
430 musical que teria sido abalada pelos choques e dissonâncias
das vanguardas do início do século. O paradigma historicista
servia assim para invalidar uma compreensão do tonalismo
como natureza.
No entanto, nos anos 60 Adorno diagnostica o
envelhecimento da música nova, a partir da constatação de sua
tradicionalização, acomodação e posterior integração a um
parâmetro que naturalizou o que haveria de mais moderno e
progressivo por meio de determinados meios de composição
ou técnicas, notadamente as que se compreendiam como
“extendidas” cada vez mais se tradicionalizavam, adquirindo
sentido oposto.
Dessa maneira, um dado material musical, em
diferentes períodos, apresentará sentidos diversos. As
transformações que observamos na sociedade manifestam-se
de maneira difusa e não-consciente na música e no tratamento
do material. Assim, a reflexão sobre o material musical é
também uma reflexão sobre seus paradigmas construtivos e os
meios sócio-históricos que o determinam.
Musik für Renaissance-Instrumente surge assim como
crítica à apropriação fetichizada de sons, formas e
A (re)composição do material musical

instrumentos musicais, buscando assim renovar tanto a


percepção da música composta para instrumentos antigos,
quanto criticar o novo convencionalismo advindo, malgrado
intenções, dos procedimentos serialistas e vanguardistas nos
anos 50 e 60.
Dessa maneira o uso dos instrumentos antigos não
determina a priori o caráter progressista ou regressivo da obra,
ou ainda, para colocar em termos menos absolutos, não
determina sua consistência ou valor estético. É a formalização
musical a partir dessas referências que constitui seu sentido e
potencial crítico.

O renascimento do Renascimento
Todos os instrumentos utilizados por Kagel estão
representados em Syntagma Musicum (1619), de Michael
Praetorius. O projeto de Musik teria sido iniciado em 1950 por
Kagel quando estudava musicologia na Argentina. No entanto, a 431
peça só pode ser concretizada a partir do “renascimento do
Renascimento”, ocorrido na Europa a partir da segunda metade
do século XX, quando a prática da interpretação historicamente
orientada se consolida como perspectiva interpretativa dos
repertórios anteriores ao período romântico. Com o
surgimento de grupos e intérpretes especializados em música
antiga, como o Concentus Musicus, Frans Brüggen, Anner
Bylsma e René Clemencic, o movimento adquire
reconhecimento artístico e mais espaço na indústria cultural da
música.
Na segunda metade do século XX, em The
Interpretation of Early Music (1963), Robert Donington
delineará o conceito de ‘autenticidade’ na interpretação da
música do passado, orientando e influenciando a perspectiva
dos intérpretes dessa música. Segundo Donington:

O primeiro pressuposto pelo qual podemos servir à música


antiga, conduzindo nossa interpretação moderna o mais
próximo possível ao que conhecemos da interpretação
original, pode ser chamado de doutrina da autenticidade
histórica. (DONINGTON, 1974, p.37)
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Esse pressuposto se caracterizaria pela aproximação


às práticas utilizadas no período de composição das obras,
compreendendo-as como a forma ideal de interpretação, a que
mais se aproximaria às intenções do autor. No entanto, teóricos
como Richard Taruskin, Eleanor Selfridge-Field e Neal Zaslaw
compreendem a importância da interpretação historicamente
orientada como sintoma do pensamento moderno, e será essa a
perspectiva que parece ter Kagel no uso destes instrumentos.
Essa perspectiva interpretativa então se delinearia
como um movimento musical de contraposição ao cânone
interpretativo clássico-romântico, “resgatando a virtude da
música que antes parecia sem importância e restaurando o
brilho de repertórios mais conhecidos entorpecidos pelo verniz
de técnicas de execução pós-wagnerianas” (SELFRIDGE-FIELD,
1994, p.XXV), ou como coloca Taruskin:

o que denominamos interpretação histórica é o som do


432 agora, não do então. Sua autenticidade advém não de uma
verossimilitude histórica, mas de ser, para o bem ou para o
mal, um verdadeiro espelho do gosto tardio do século 20.
(TARUSKIN, 1995, p.166)

Em um artigo a respeito do legado do movimento da


música antiga, Neal Zaslaw identifica aspectos interessantes
bastante específicos quanto às técnicas de interpretação
historicamente orientada e às técnicas desenvolvidas pelas
vanguardas do século XX, tais como a precisão rítmica e um
timbre mais brilhante, sem vibrato. Mais do que a referência
aos modos de execução da música do passado, passa a primeiro
plano agora, portanto, no movimento de interpretação histórica
da música antiga, sua profunda ancoragem no contexto sócio-
histórico e musical do século XX.
Em Kagel, o uso dos instrumentos antigos parece ter o
sentido de uma busca sonora que se apresenta também como
alternativa à sonoridade dos instrumentos da orquestra e da
tradição romântica. Com relação à produção musical de Kagel,
Musik é compreendida como parte de um conjunto de obras em
que a instrumentação é bastante experimental, entre as quais
se inclui Acustica e Der Schall, para fontes sonoras
A (re)composição do material musical

experimentais e fita magnética, e Exotica, para instrumentos


não europeus indeterminados.
Kagel, longe de esgotar-se na alusão ao passado, parece
situar assim os instrumentos antigos em sua potencialidade
criativa e especulativa para a composição, apropriando-se de
seus elementos técnicos e sonoros, reposiciona-os no espaço
contemporâneo.

Kagel e as vanguardas

Desde muito cedo Kagel participou na Argentina de


grupos (como o Agrupación Nueva Música) e eventos ligados à
música mais experimental e de vanguarda do período.
Ainda na Argentina, Kagel conhece Pierre Boulez,
quando este excursionava com uma companhia de teatro.
Boulez o encoraja a ir para a Europa, de modo que em 1957
Kagel se muda para Colônia. Foi nesse contexto que integrou 433
um conjunto de jovens compositores recém-imigrados para a
Alemanha e participou ativamente dos Ferienkurse de
Darmstadt, dedicados à Música Nova do período. Rapidamente
sua produção foi bem aceita e o compositor tornou-se, assim,
uma das referências de Darmstadt, sucedendo Stockhausen à
frente do Instituto de Música Nova de Colônia, em 1969. No
entanto, cumpre notar que, apesar de seu sucesso no meio
vanguardista europeu, sua obra apresenta elementos
dissonantes e críticos ao pensamento progressista estabelecido
e difundido no período.
A partir do final da década de 50 se expressa em
Darmstadt a construção de uma ideologia progressista que vê
somente no desenvolvimento dos meios e fontes sonoras o
desenvolvimento do pensamento composicional. Expressão
disso foi o de ver no serialismo integral e na música eletrônica
os meios mais avançados para a composição musical naquele
momento. A nosso ver o equívoco estaria em avaliar as obras a
partir de seus meios técnicos e formais de construção,
elementos que permanecem até hoje em muitos círculos que
fazem da tecnologia e da técnica composicional um fim em si, o
que se constituiria como um fetiche pela técnica.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Ainda em 1966 Kagel percebe a permanência dessa


ideologia e afirma que em Darmstadt o valor da obra ainda se
media pelo grau de manipulação da técnica serial. A crítica ao
tecnicismo formalista por Kagel se expressou na avaliação
positiva e provocativa que fez da visita de John Cage a
Darmstadt em 1958:

Cage removeu sensatamente a maioria dos conceitos sobre a


técnica de composição empregados até hoje por jovens
compositores europeus. Contribuiu assim, com um sentido
quase “aperspectivo”, para o desmoronamento dos modernos
mitos seriais, instituídos pelos acadêmicos do dodecafonismo
e os espíritos abjetamente sérios da publicidade. (KAGEL,
2011, p.172)

Apesar disso, Kagel nunca se considerou um


compositor ligado a uma estética da aleatoriedade ou
“cageana”. Ele na verdade criticou posteriormente o conteúdo
434 ideológico dessa concepção composicional: “as operações de
acaso em Cage são, de certa maneira, ideológicas porque ele era
da opinião que o verdadeiro acaso era o melhor caminho
possível para alcançar um nível filosófico e estético superior”.
Em entrevista a Werner Klüppelholz, o compositor desenvolve
a ideia:

Nos anos 60, quando o acaso começou a ser considerado a


única alternativa coerente à música serial, me pareceu claro
o risco que existia de que essa novidade fosse manipulada
dogmaticamente, como havia sido o caso do pensamento em
série que tinha um tom ideológico. Uma nova ideologia viria
a substituir a anterior. (KAGEL, 2011, p.195)

Os compositores da segunda geração de Darmstadt,


dentre os quais destacamos Ligeti, Berio, Pousseur e o próprio
Kagel, desenvolveram estéticas mais livres e abertas, sem no
entanto se vincularem à estética de Cage. Para Kagel o valor da
obra reside na esfera estética e não no desenvolvimento formal
de uma determinada técnica. “O objetivo de qualquer técnica é
aperfeiçoar os meios de expressão. Se uma técnica serve para
estancar e inibir a expressão, é inútil como técnica” (Cowell,
A (re)composição do material musical

1996, p. XII). É importante salientar que esse posicionamento


não invalida o uso dos progressos tecnológicos proporcionados
pelas pesquisas do período; para Kagel as inovações
tecnológicas devem ser incorporadas ao pensamento e à
formalização composicional2.
Dessa maneira, sem invalidar as pesquisas da
vanguarda, Kagel apropriará em boa parte de sua obra um
pensamento tecnomórfico de composição musical,
caracterizado pela influência da sonoridade eletrônica na
escrita instrumental.
Também se identifica com a perspectiva de vanguarda
ao pensar sobre novas formas de composição e de produção
sonora.
Dessa maneira, se expressa na perspectiva
composicional do período uma busca análoga ao do movimento
de interpretação histórica, o de buscar formas de criação e
interpretação musical alternativas ao cânone romântico, que se 435
expressou na consolidação e permanência do repertório
orquestral do período.

Análise de Musik Für Renaissance-Instrumente

Esta obra não contém nem previsões ou orientações para o


futuro, nem o consolo de uma retomada do passado: o uso de
instrumentos renascentistas não segue nenhuma intenção
programática que se entenda como geral. Foi determinante
apenas o motivo de que estes instrumentos correspondiam
melhor à minha imaginação timbrística que os instrumentos
atuais de corda ou sopro (KAGEL, 1998, p. 8)

O comentário de Kagel parece apresentar uma dupla


negação, dirigida tanto ao ímpeto progressista de discursos
prescritivos de vanguarda, quanto ao sentido nostálgico de
uma prática reconstrutiva da música do passado.

2 É o que afirma Kagel em palestra em 1966 em Darmstadt (KAGEL,


2011, p.113): “hoje em dia também devemos implementar todas as
inovações tecnológicas, sobretudo as da eletrônica”.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Musik está dividida em onze seções, de A a K, e pode


ser iniciada a partir de qualquer uma delas. As seções deverão
ser tocadas respeitando-se sua ordem cíclica (de D até K,
seguindo-se de A até C, por exemplo), permitindo que uma ou
mais partes sejam omitidas ad libitum.
Musik possui instrumentação flexível: linhas podem ser
dobradas, rearranjadas ou simplesmente omitidas, nesse caso
Kagel determina que a peça se intitule Kammermusik für
Renaissance-instrumente, sendo executada por um número de
dois até vinte e dois instrumentistas, em vez dos vinte e três
previstos para a peça integral.
A composição de Kagel apresenta assim aspectos de
indeterminação, o que a relaciona tanto à concepção mais
aberta e experimental do período quanto às práticas
interpretativas da música antiga, que tinham no manuscrito
original da peça diversos elementos de interpretação
indeterminada, tais como dinâmica, articulações e até
436 elementos rítmicos e melódicos. Cage, por exemplo, ressalta o
elemento de indeterminação na Arte da Fuga: a não definição
da instrumentação requerida, assim como podemos notar
também na Oferenda Musical, assim como nas sonatas barrocas
em que o instrumento solista não é definido com exclusividade,
ou mesmo na prática do baixo contínuo, que pode ser realizado
por diversos instrumentos. Da maneira análoga, em Musik:

o regente pode adicionar fermatas, rallentandos e


accelerandos sempre que desejar, se determinados sons ou
progressões o inspirarem a fazê-lo. (...)
Em "Música para Instrumentos Renascentistas" e nas versões
de música de câmara, os músicos podem adicionar à
interpretação alterações timbrísticas não prescritas. O texto
musical é, então, ornamentado com coloridos timbrísticos de
maneira semelhante à prática de grande parte da música
Renascentista e Barroca.” (KAGEL, 1970, p. V-VI. Bula da
partitura de Musik für Renaissace-Instrumente)

Apresento agora algumas das técnicas de execução dos


instrumentos antigos utilizadas na peça de Kagel, em que
tradição e experimentalismo se articulam de maneira original.
A (re)composição do material musical

Logo no início da obra, Kagel determina o uso de uma


folha de papel entre as cordas-bordão do instrumento, bem
como a scordatura específica requerida:

Fig. 1: Scordatura da Teorba (KAGEL, 1970, p. 2)

Considerando a relação que Musik für Renaissance-


Instrumente estabelece com o material musical do passado,
437
remetemos à prática bastante utilizada da scordatura na
música barroca, através da qual a afinação tradicional de um
instrumento é modificada. Um dos usos mais conhecidos desse
recurso é feito por J. S. Bach, em sua 5ª suíte para violoncelo
solo. A afinação da corda mais aguda é transposta de lá para sol,
conferindo uma tessitura mais grave ao instrumento assim
como uma sonoridade mais opaca e escura. Outro compositor
do período, Heinrich Ignaz Franz Biber (1644-1704), também
fez uso significativo desse recurso. Em suas Sonatas do Rosário
apresentou uma exploração bastante significativa da
ressonância de scordaturas alternativas. Abaixo temos a
afinação requerida para o violino em cada uma dessas sonatas:

Fig. 2: Scordatura das cordas do violino nas Sonatas do Rosário

No conjunto das dezesseis sonatas, com exceção da


primeira e da última, todas as outras requerem o uso da
scordatura. É sintomático que durante o romantismo muitas
edições da peça ignoraram essa determinação técnica e foram
FRONTEIRAS DA MÚSICA

transcritas para a afinação convencional do instrumento. De


fato, essa prática foi pouco explorada durante o período
romântico, sendo retomada no século XX através de uma
perspectiva de preparação e modificação da sonoridade
habitual do instrumento. Tal atitude talvez decorra do equívoco
em considerar essas scordaturas apenas como artifício externo
empregado com o intuito meramente virtuosístico ou
simbólico. Mas mais importante ainda é que cada scordatura
cria uma ressonância específica do instrumento, apresentando
uma interessante elaboração do timbre. É esse elemento de
pesquisa de timbres e técnicas, tão caro à composição
experimental do século 20, que podemos perceber também
presente em obras barrocas e renascentistas.
No exemplo retirado de Musik a prática da scordatura é
feita de maneira que se ressalta os intervalos mais dissonantes,
tão explorados no período. A ressonância da afinação proposta
por Kagel privilegia os intervalos de 7ª e 9ª, como se pode
438 observar entre os pares das cordas de 1 a 12.
Percebemos também a relação da preparação da
teorba, utilizando tiras de papel entre as cordas, com a peça
Battalia a 9 (1673), também de Biber, primeira peça a solicitar
esse uso em instrumentos de corda.
Outro aspecto inovador no uso dos instrumentos
antigos se apresenta na escrita para órgão em Musik. Kagel
estudou e praticou esse instrumento ainda na Argentina,
possuindo certa familiaridade com suas questões técnicas e
organológicas.
Gerd Zacher, um dos principais organistas ligados à
música experimental, considera Kagel, juntamente com Ligeti e
Hambraeus, um dos principais compositores a promover uma
renovação na escrita do instrumento depois do
desenvolvimento realizado por Messiaen. Já no título de seu
ensaio, L’orgue outil (ou O órgão-ferramenta), Zacher alude à
dimensão física e material do instrumento, sobre a qual se
debruçarão esses compositores. A diferença fundamental que
marca a nova perspectiva é a da compreensão do órgão
enquanto instrumento de sopro. Essa nova forma de abordá-lo
promoverá inovações como o uso de assistentes na
manipulação dos tubos, ou até mesmo na execução de grandes
A (re)composição do material musical

clusters. Na bula da peça, Kagel apresenta os meios de


preparação técnica para a execução do órgão regal, que possui
os tubos expostos e com fácil acesso para a manipulação:

439
Fig. 3: Preparação do Regal (KAGEL, 1970, p. VI)

Em Musik für Renaissance-Instrumente o acoplamento


de tubos suplementares aos tubos do instrumento aparece
como forma de transformação de seu timbre, através dessa
concepção salientada por Zacher:
Como podemos observar, tubos de diferentes materiais
e formas são requeridos como meio de desnaturalizar o som
convencional do instrumento, abordagem que perpassa grande
parte da obra de Kagel no período.
O que podemos notar é uma experimentação junto ao
órgão muito afim à perspectiva de Cage de preparação do
instrumento, gerando novos timbres e sonoridades sobre o
suporte do instrumento tradicional.
No trecho da peça em que Kagel requer o uso dos tubos
suplementares, a sonoridade que se produz torna-se muito
afim aos da síntese eletrônica, apresentando aspectos de
tecnomorfismo na produção musical. A perspectiva
tecnomórfica pode ser compreendida como a influência de
FRONTEIRAS DA MÚSICA

técnicas e recursos oriundos do desenvolvimento tecnológico


na forma e nas técnicas de execução e interpretação musical.
Um efeito característico desse conceito é o da
simulação do efeito doppler nas peças musicais do período e
consiste na percepção de alteração de determinada frequência
de onda proveniente de uma fonte, seja ela sonora,
eletromagnética etc. Essa percepção se dá, por exemplo, ao
observarmos a frequência sonora de uma sirene de ambulância
quando se desloca com relação ao nosso ponto de referência:
quando a fonte se aproxima a frequência sonora aumenta e
diminui quando a fonte se distancia.
Esse efeito de alteração perceptiva do som foi melhor
compreendido pela música através da tecnologia musical
digital, sendo bastante explorado também pela corrente
espectral, como demonstra Catanzaro ao analisar a simulação
desse efeito em peças de Stockhausen e Grisey.

440 Em Musik f. R.-Instr. essa simulação se dá de maneira


bastante particular, envolvendo apropriação inovadora dos
aspectos técnicos e organológicos dos instrumentos antigos.
Uma das propriedades organológicas do crumorne é a técnica
do underblowing, por meio da qual a frequência da nota pode
ser estendida até uma quinta abaixo. É justamente esse
instrumento que Kagel utiliza para simular o efeito doppler,
articulando a composição moderna e experimental ao uso de
técnicas próprias dos instrumentos antigos:

Fig. 4: Simulação do efeito doppler no Crumorne (KAGEL, 1970, p. 27)

O uso do crumorne para apresenta aspectos essenciais


para a formalização da ideia musical de metáfora do efeito
doppler. Possuindo um extenso âmbito de oscilação da afinação
que se pode manipular através da simples pressão do sopro, o
dedilhado não precisa ser modificado, propiciando uma
variação bastante orgânica da altura.
A (re)composição do material musical

Esse é uma das características fundamentais que


parecem reger a composição de Kagel, o de apropiar-se dos
instrumentos antigos em sua potencialidade de criar
sonoridades próprias do século 20, explorando os timbres e
seus sons, mais puros e precários, que os dos instrumentos
tradicionais românticos e modernos.
Conclusão

A perspectiva de Kagel, como pudemos demonstrar, é a


de “não tomar os instrumentos como algo dado mas operar
nesse campo de modo experimental”3. A atitude do compositor
diante da tradição é o de um radical questionamento de seus
pressupostos, por vezes operando num sentido de
esvaziamento de seu papel histórico. Essa perspectiva recoloca
a tradição em outro nível, que não o da ruptura, mas o de uma
abordagem que ressignifica sua funcionalidade.
Por fim, definiríamos a relação desta peça com o
material musical como uma relação tipicamente moderna, que 441
esvazia o significado original de determinado material para que
este seja reapropriado por uma visão moderna. No entanto,
essa ressignificação, mais do que uma prática estritamente
estética, pode aludir a uma perspectiva de atuação política,
crítica à determinadas visões e práticas da história musical.
Assim como parte do sentido das vanguardas do início do
século 20 foi o da crítica à institucionalização da arte, em Musik,
o sentido parece ser o da crítica às perspectivas artísticas e
estéticas que se delineavam nas práticas da interpretação
historicista e das vanguardas musicais, sem no entanto
deslegitimá-las.
Na obra de Kagel convivem múltiplos sentidos, que se
identificam e se distanciam, mas convergem em um aspecto:
seu caráter assistemático. Essa proposta de manter-se em
constante transformação pode constituir-se como prática de

3 “No tomar los instrumentos como algo dado sino operar en dicho
campo de modo experimental” (El sonido y sus consecuencias – Diálogo
con Matthias Kassel In: KAGEL, 2011, p. 223)
FRONTEIRAS DA MÚSICA

liberdade, geradora de sempre novas articulações, ideias e


sons.
Na relação com a história, que pode ser compreendida
como uma relação com a memória, Musik se distancia tanto de
um sentido nostálgico da música do passado, quando de um
sentido progressista que elimina a tradição e se orienta
principalmente por uma perspectiva de futuro. Musik opera
assim num espaço de convergência, que transfigura tanto o
material antigo com o qual trabalha, quanto o material
moderno que se associa a materiais a princípio estranhos a sua
prática.

Referências bibliográficas
ADORNO, T. W. Filosofia da nova música. Trad. M. França. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
COWELL, H. New Musical Resources. New York: Cambridge University
442 Press, 1996.
DONINGTON, R. The Interpretation of Early Music. London: Faber and
Faber, 1974.
HEILE, B. The music of Mauricio Kagel. Burlington: Ashgate, 2006.
KAGEL, M. Musik für Renaissance-Instrumente. Partitura. Londres:
Universal Edition, 1970.
____. Palimpsestos. Ed. Carla Imbrogno. Trad. C. Imbrono, F. Martin e P.
Gianera. Buenos Aires: Caja Negra, 2011.
____. Encarte do cd “1898 & Musik für Renaissance-Instrumente”. 1998.
OLIVE, J.-P. Material e música informal. Duas categorias determinantes
na autonomia do sujeito musical em Adorno. In: Artefilosofia n.7, Ouro
Preto, 2009. p. 86-95.
SELFRIDGE-FIELD, E. Venetian Instrumental Music from Gabrieli to
Vivaldi. New York: Dover Publications, 1994.
TARUSKIN, R. Text and act. New York: Oxford, 1995.
ZASLAW, N. Reflections on 50 Years of Early Music. In: Early Music v.
29 n.1. Oxford University Press, 2001. p. 5-12.
John Cage e Música Antiga: indeterminação nas
práticas composicionais e interpretativas

RENATO CARDOSO

John Cage

partir dos anos de 1950, na chamada música pós-guerra,


A começam a se formar dois movimentos que vão
influenciar largamente a música da segunda metade do século.
O primeiro, encabeçado por John Cage junto a outros
compositores situados em Nova Iorque, explorará os limites do
papel do compositor, tratando de temas como silêncio,
indeterminação, acaso e escuta do meio ambiente. O segundo,
proveniente da musicologia e das práticas interpretativas,
operará um revival da herança musical anterior ao classicismo
vienense, com grande ênfase em afinações e temperamentos de
época, instrumentos de época e tratados de época.
Apesar de ambos os movimentos serem frutos de um
desenvolvimento no pensamento musical do início do século, é
a partir dos anos de 1950 que começam a ganhar alguma
notoriedade e a formalizar aspectos técnicos e estéticos que se
tornarão referência no mundo da música. Nesse sentido, o texto
de 1951 de Theodor Adorno, Em defesa de Bach contra seus
seguidores (Bach defended against his devotees), antecede a
discussão sobre o tema proposto neste artigo, pois tem como
modelo musical o trabalho de Anton Webern em contraposição
com os primeiros ícones da ‘performance autêntica’ (Wanda
Landowska e Arnold Dolmetsch) (ADORNO, 1995).
Um pensamento em particular, que tomo como ponto
de partida para as considerações teóricas neste artigo, surge a
partir das considerações de John Cage sobre indeterminação e a
tentativa de identificar esse conceito no repertório histórico,
inclusive na Música Antiga.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Por um lado, é a partir da conceituação dos termos


acaso, aleatório e indeterminação na música que se percebe
explicitamente a divisão do que poderíamos chamar de música
conceitual, de John Cage e a música formal de Pierre Boulez.
Para Boulez, o acaso e o aleatório serviam como
desdobramentos formais, que permitiam ao compositor maior
complexidade em relação aos fenômenos sonoros, sem abrir
mão do controle autoral sobre a obra musical. Já para Cage, a
ideia era justamente subverter o processo composicional, de tal
forma que o compositor se dispusesse cada vez de menos
ferramentas de controle sobre o material (PRITCHETT, 1996;
NATTIEZ, 1993; TERRA, 2000).
John Cage entende indeterminação como “a habilidade
de uma peça em ser executada de maneiras substancialmente
diferentes – ou seja, a obra existe de tal forma que ao
performer é dado uma variedade de maneiras únicas de
executá-la” (PRITCHETT, 1996, p. 108). Esse termo se
444 diferencia de acaso, pois este se refere ao uso de
procedimentos aleatórios no ato de composição (PRITCHETT,
1996, p.108).
Esclarecendo ainda, na visão de Pritchett, John Cage
deixa claro que indeterminação e acaso não são conceitos
idênticos e que numa partitura indeterminada não se
pressupõe o envolvimento do acaso na sua composição ou
performance (Pritchett, 1996, p.108). Outra comentadora do
texto Indeterminacy, Vera Terra, no livro Acaso e Aleatório na
Música, explica a importância de discernir esses termos:

Cage não usa o termo acaso em sua conferência. Prefere falar


em indeterminação; Se considerarmos que a noção de acaso
é estranha ao universo clássico, fundado sobre os princípios
da causalidade e do determinismo, e que, portanto, seria
inadequado recorrer a esta noção para nos referirmos à
música do passado (segundo Boulez, a introdução do acaso
na música ocidental ocorre pela primeira vez no século XX),
então compreenderemos que o emprego da palavra
indeterminação permite a John Cage ampliar a esfera de sua
análise para além da época contemporânea. Permite-lhe, por
exemplo, identificar a presença de elementos
John Cage e a música antiga

indeterminados na música do período barroco e estender


este emprego até a música de nosso século (TERRA, 2000 p.
31).

Portanto, em nenhum momento aventuro a hipótese de


que haja no repertório barroco a presença de elementos
aleatórios, randômicos, provenientes do acaso enquanto
conceito norteador de uma obra. Mas parto da hipótese de que
inúmeras peças trazem em sua concepção a ideia de serem
executadas de maneira substancialmente diferente a cada
performance ou por cada performer, mesmo situados
interpretativamente na linha de performance historicamente
informada.
E, mesmo no universo em que encontramos o princípio
de causalidade e determinismo, que trazem ordem à noção de
música enquanto discurso, podemos encontrar a presença de
elementos indeterminados. Alguns destes elementos
precediam de especificação na medida em que sua execução 445
musical era um dado corrente da época em que foram escritos.
Outros elementos eram entendidos culturalmente como
indeterminados e era tarefa do intérprete viabilizar uma
execução de qualidade.
Como a escrita textual fez parte do desenvolvimento
estético e intelectual de músicos no último século, tais termos
se encontram fartamente documentados e comentados. Em um
desses textos, compilado no livro Silence (1961), John Cage
palestra sobre a indeterminação na música e se estende sobre
sete peças e suas particularidades, sendo cinco de caráter
indeterminado. Uma delas é a Arte da Fuga, de J. S. Bach. O
título da palestra é Indeterminação (Indeterminacy) e foi
proferida em 1958.

Na Arte da Fuga, estrutura, o qual é a divisão do todo em


partes; método, o qual é o procedimento nota a nota; e forma,
o qual é o conteúdo expressivo, a morfologia da
continuidade, estão todos determinados. Frequência e
duração, características do material também estão
determinadas. Timbre e amplitude característicos do
material, por não serem dados, são indeterminados. Essa
FRONTEIRAS DA MÚSICA

indeterminação cria a possibilidade de uma única estrutura


de harmônicos e extensão de decibéis para cada performance
da Arte da Fuga (CAGE, 1961, p.35).

Para o compositor, há quatro elementos principais a


serem analisados quanto a uma composição: estrutura, forma,
método e material. É desta forma que ele analisa e comenta as
sete peças musicais em sua palestra. A estrutura é a divisão do
todo em partes. No caso da Arte da Fuga, esse é um fator
determinado, já que as fugas tradicionalmente se dividem em
uma alternância entre exposição e episódio, finalizado por uma
coda. A forma é a maneira como se dá a continuidade entre as
partes. No caso da grande maioria da música ocidental até o
século XX, a forma é sempre determinada. Para clarificar a
distinção entre termos, John Cage observa que a Klavierstück
XI de Karlheinz Stockhausen, a estrutura está determinada,
pois há clareza na escrita sobre quais são as partes da música. A
446 forma não está determinada, pois o modo de se conectar cada
parte, assim como a ordem das partes não estão dados, e fazem
parte da elaboração de cada interpretação, produzindo sempre
resultados sonoros diferentes. Esse modo de entender forma e
estrutura se conceitua razoavelmente de modo independente
da literatura de análise musical, mas parece bastante coerente
quando se analisa peças de sua época. No caso do método,
ambas as peças de Bach e de Stockhausen estão determinadas.
O material é definido por Cage como composto por
frequência, duração, timbre e amplitude. Na verdade, trata-se
das quatro propriedades do som, em que o compositor se
utiliza de termos da física acústica, provenientes
provavelmente da sua vivência com a composição de música
eletroacústica. Assim, frequência está no lugar de altura, sendo
que para Cage, isso o permite refletir sobre frequências
tradicionais, como a oitava dividida em 12 semitons, e
frequências indeterminadas, provenientes da notação gráfica.
Outro termo emprestado da acústica é a amplitude, que no
vocabulário musical se coloca como intensidade.
Interessante notar que é nas propriedades do som que
se encontra, para o compositor, o fator de indeterminação da
Arte da Fuga. O timbre e a intensidade (amplitude) não são
John Cage e a música antiga

dados. Nesse caso, a função do intérprete não é de apenas


fornecer o timbre e a intensidade de maneira objetiva, racional.
Cage apresenta uma série de possibilidades, conforme segue:

A função do intérprete, no caso da Arte da Fuga, é


comparável à de alguém preenchendo as cores onde
contornos são dados. Ele pode fazer isso de uma maneira
organizada, o qual pode estar submetido com sucesso a uma
análise (transcrições de Arnold Schoenberg e Anton Webern
são exemplos pertinentes neste século). Ou ele pode executar
sua função de colorista de uma maneira não conscientemente
organizada (e consequentemente não sujeita à análise) –
tanto arbitrariamente, segundo seu jeito, seguindo os
ditames de seu ego; ou mais ou menos inadvertidamente, ao
se dirigir para dentro de si, com referência à estrutura da sua
mente até um ponto de sonhos, seguindo, como em uma
escrita automática, os ditames de sua mente subconsciente;
ou para um lugar do inconsciente coletivo da psicologia
analítica Jungiana, seguindo as inclinações da espécie e 447
fazendo algo mais ou menos de interesse universal para os
seres humanos; ou para o ‘profundo sono’ da prática mental
indiana – o chão do Meister Eckhart – identificando lá
quaisquer tipos de eventualidades. Ou ele pode executar sua
função de colorista arbitrariamente, ao se dirigir para fora
tendo como referência a estrutura da sua mente quanto à
percepção sensorial, seguindo seu gosto; ou mais ou menos
inadvertidamente ao empregar alguma operação exterior à
sua mente: tabelas de números aleatórios, seguindo o
interesse científico em probabilidade; ou operações ao acaso,
identificando lá quaisquer tipos de eventualidades (1961,
p.35).

O primeiro exemplo de Cage, da transcrição de


Schoenberg e Webern, evidencia o quão expandido pode ser
uma aplicação racional das propriedades de timbre e
intensidade. Ao distribuir em diversos instrumentos de uma
orquestra uma composição a seis vozes, Webern explora os
limites do Ricercar a 6 da Oferenda Musical de J. S. Bach, outra
obra em que a instrumentação é largamente deixada em aberto.
Do ponto de vista da subjetividade, Cage coloca uma
série de possibilidades que vão de encontro com suas próprias
FRONTEIRAS DA MÚSICA

pesquisas poéticas, não necessariamente refletindo


possibilidades interpretativas provenientes do modo de tocar
em sua época.

Música Antiga
É importante contextualizar como foi a consolidação
do movimento de Música Antiga, nos anos 1960, ainda sob a
alcunha de Movimento Autêntico. Segundo Bruce Haynes
(2007), no começo dos anos dessa década havia uma
preocupação com a performance estilística do repertório
antigo, mas os instrumentos de época não eram uma
prioridade, mas já no fim desta década a predominância das
réplicas já estava normatizada. Conforme aponta Haynes:

Um bom exemplo do estado da arte do Estilo de Época em


448 1962 é uma gravação do Concerto em Mi menor para flauta e
traverso de Telemann feito por Frans Brüggen e Frans
Vester, que na próxima década se tornariam ícones e gurus
em seus instrumentos. Em 1962, o grupo toca em A-440 em
instrumentos românticos; cordas estão reguladas em estilo
moderno, Brüggen toca num projeto moderno de flauta doce
(não uma cópia de um original antigo), e Vester no que ele
mais tarde chamaria de ‘flauta de ferro’ (2007, p.44).

A partir dos anos 1960, a base ideológica diretamente


vinculada ao Movimento Autêntico era a do reconstrucionismo
histórico. Esta é uma abordagem objetivista da música em que
a montagem de qualquer peça deve adotar o mais fielmente
possível os fatores de ordem histórica e indicações de execução
de fontes primárias na tentativa de emular performances de
época.
Esta base ideológica priorizou os aspectos científicos
da relação do músico com o repertório e possibilitou um
avanço significativo no conhecimento histórico e musicológico,
nos levantamentos de fontes materiais, na publicação de
periódicos musicais e proporcionou à área de Práticas
John Cage e a música antiga

Interpretativas um novo olhar mais científico e acadêmico


sobre interpretação musical.
Já em meados dos anos 1980, começa a surgir, a partir
de adeptos dessa prática, críticas contundentes ao modo de
conduzir tanto as investigações musicológicas como as práticas
interpretativas relacionadas a essa música. Alguns autores
importantes teceram comentários e críticas a esta abordagem,
atribuindo a ela diferentes nomes e implicações: Richard
Taruskin (1995) e Laurence Dreyfus (1983). Taruskin refere-se
ao reconstrucionismo como uma abordagem modernista,
despersonalizada, em que o músico é mais um executante do
que um intérprete. Em um evidente tom de crítica, o autor
comenta:

O que nós nos acostumáramos a considerar como


performance historicamente autêntica, eu comecei a ver,
representava nem um determinado protótipo histórico nem
qualquer reflorescimento coerente de práticas coetâneas 449
com os repertórios a que eles se dirigiam. Em vez disso, eles
incorporaram toda uma lista de desejos de valores modernos
(modernistas), validados na academia e no mercado
igualmente por uma visão eclética e oportunista da evidência
histórica (TARUSKIN, 1995, p.5).

Em seus artigos, Eithan Ornoy (2006, 2008) refere-se a


esta abordagem como ‘positivista’, já que os dados históricos a
que alude e ‘reconstrói’ são dados ‘positivos’, como afinação de
época, diretrizes interpretativas de tratados e instrumentos de
época. Para Dreyfus, chega-se à ‘autenticidade’ ou à
reconstrução histórica seguindo as regras do método científico.
Ele critica este “tratamento estritamente empírico para se
verificar práticas históricas” (DREYFUS, 1983, p.299). Para o
autor, esta é uma abordagem objetivista da música.
Taruskin defende que uma performance não pode ser a
demonstração do estado da arte, nem estar apenas embasada
em documentos históricos. Sob o viés historicamente
orientado, ele parte do princípio de que um grande
conhecimento funcional (histórico, porém prático) está nas
FRONTEIRAS DA MÚSICA

mãos do intérprete e será usado de acordo com suas escolhas


artísticas. O autor também defende que o uso de instrumentos
de época é em si mesmo de nenhum valor estético.

Práticas Interpretativas
É interessante notar como tanto a palestra de John
Cage como o Movimento de Música Antiga centraram parte de
suas considerações em torno da figura do compositor J. S. Bach.
Essa preocupação não é exclusiva desses dois casos, sendo que
na tradição clássico-romântica se tratou de fazer o mesmo, com
o agrupamento “Bach e Beethoven”, ao qual Carl Dahlhaus
atribui um fundamento histórico-filosófico (1999, p.116).
Para John Cage, a Arte da Fuga e indiretamente a
Oferenda Musical são os grandes exemplos históricos da
indeterminação no repertório ocidental. Ele usa esse conceito
para obras de épocas muitos anteriores à música de vanguarda
450 do séc. XX. E é até com base neste pressuposto histórico que ele
justifica um uso mais arrojado de processos randômicos na
concepção musical contemporânea (TERRA, 2000, p.32).
É possível adicionar inúmeros outros exemplos de
indeterminação do repertório barroco, em J. S. Bach assim
como em outras tradições instrumentais. As chamadas obras
para alaúde de Bach apresentam uma problemática quanto sua
instrumentação, por vezes indicadas para mais de um
instrumento (alaúde ou cravo na BWV998), ou sendo obras
transcritas a partir do violino (BWV1006a e Fuga BWV1000)
ou violoncelo (BWV995 a partir da BWV1011). Mais a fundo no
repertório alaudístico francês, encontramos peças
indeterminadas quanto à forma, em que as partes eram
apresentadas e sua disposição ou repetição ficava a cargo do
intérprete. Os préludes non mesuré de S. L. Weiss,
contemporâneo de Bach, são exemplos de peças
indeterminadas quanto à duração e até mesmo quanto ao
método, o procedimento nota a nota (Suíte n.1, em Fá maior).
Independentemente do componente histórico possível
de se atribuir ao conceito de indeterminação, ou da ênfase
documental da interpretação historicamente orientada, é
John Cage e a música antiga

importante a avaliação de que ambos são ideais de um tempo


presente, que se desenvolvem a partir do fim dos anos 1950 e
começo dos anos 1960 e se desdobram até os dias atuais. Em se
tratando de metanarrativa ou de metodologia, tais abordagens
são nada mais que poéticas típicas da segunda metade do
século XX, e sendo contemporâneas dialogam entre si, gerando
tensões para o âmbito da prática interpretativa. É fato que
pouco se aventurou em termos concretos nas abordagens
interpretativas possíveis aventuradas por Cage em sua
palestra. E que concretamente, não é possível apenas
reconstruir um passado em uma prática presente.
Assim, a prática instrumental condizente com o
elemento de indeterminação das obras, canalizada como
liberdade do intérprete, pode ser ensaiada das seguintes
maneiras no tempo presente:
• na possibilidade de usar poéticas do presente para
repensar obras do passado.
451
• no modo como o intérprete organiza o conhecimento
racional adquirido em sua formação técnica/reflexiva.
• nas especulações que é capaz de fazer e de articular.
• nas imposições concretas de sua técnica e de seu
instrumento.
• na construção social de sua prática com a recepção de
público especialista e não-especialista.

A indeterminação abre as potencialidades de uma obra


para além de uma visão tradicional de reprodução de um
conteúdo dado, pois nesse caso entende-se que o conteúdo
nunca é totalmente dado e que há um procedimento
interpretativo complementar necessário para dar vida a
qualquer obra. A prática interpretativa é uma atividade
intrinsicamente ligada ao tempo presente, dispondo no tempo
experiências concretas a partir de uma exploração das
potencialidades de uma obra.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Referencias bibliográficas
ADORNO, T. Bach defended against his devotees. In: Prisms.
Massachussets: MIT Press, 1995.
CAGE, J. Silence. Middletown: Wesleyan University Press, 1961.
DAHLHAUS, C. La idea de la música absoluta. Barcelona: Idea Books,
1999.
DREYFUS, L. Early Music Defended against Its Devotees: A Theory of
Historical Performance in the Twentieth Century. In: The Musical
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<http://www.jstor.org/stable/742175>. Acessado em 12 jul. 2013.
HAYNES, B.. The end of early music. Oxford: Oxford University Press,
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NATTIEZ, J.-J. (Org.) The Boulez-Cage correspondence. Nova York:
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PRITCHETT, J. The Music of John Cage. Cambridge: Cambridge
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TARUSKIN, R. Text & Act: Essay on Music and Performance. New York:
Oxford University Press, 1995.
TERRA, V. Acaso e aleatório na música; um estudo da indeterminação
nas poéticas de Cage e Boulez. São Paulo: Educ/Fapesp, 2000.
Sobre os Autores

Alexandre Siqueira de Freitas é pianista, professor da área de


Artes na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Doutor
em Artes/Música pela Universidade de São Paulo e pela
Universidade Paris-Sorbonne (cotutela), sob orientação de
Eduardo Monteiro (USP) e Michèle Barbe (Paris-Sorbonne). Foi
articulista cultural do site da revista Carta Capital e é autor do
livro Rencontre des arts (Harmattan, 2015).

Clovis Salgado é graduado em Música e Filosofia (Faculdade


Santa Marcelina - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia),
Mestre em Música (Texas Christian University) e Doutor em
Estética e Teoria da Arte (Universidad de Chile). Atua como
professor assistente e pesquisador na Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Além de seus trabalhos
acadêmicos, dirigidos sobretudo à Filosofia da Música, ao
pensamento de Vladimir Jankélévitch, às poéticas noturnas e às
interseções entre Mística e Estética, vem desenvolvendo
projetos ligados à formação de público e à arte-educação.

Danilo Ávila é mestrando em História e Cultura Social no PPG


em História da UNESP/Franca. Atualmente desenvolve a
dissertação "Hans Joachim Koellreutter: uma experiência de
vanguarda nos trópicos? (1939-1951)", com financiamento da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
Membro do Grupo de Estudos Culturais da UNESP (GECU).

Estefânia Francis Lopes é mestranda na área de Literaturas


Africanas de Língua Portuguesa, junto ao Programa de
Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, da
Universidade de São Paulo. Formada no curso de Letras na
mesma Universidade, com atuação profissional na área de arte-
educação.

Flavio Silva estudou piano com Milton Lemos, Hans Graff, Alda
Caminha e Homero de Magalhães. Bolsista do governo francês
de 1968 a 1971, permaneceu em Paris até 1974 estudando
musicologia e etnomusicologia no Institut de Musicologie, no
Musée des Arts et Traditions Populaires e na Faculté de
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Vincennes com Jacques Chailley, Tran Van Khê, Simha Arom e


Claude Laloum. Para a École Pratique des Hautes Études
preparou o memoire "Origines de la samba urbaine à Rio de
Janeiro", sob a direção de Claudie Marcel-Dubois e supervisão
de Luiz Heitor Corrêa de Azevedo. Voltando ao Brasil,
ingressou na FUNARTE, do MinC, onde exerceu várias funções,
em especial a de organizador das últimas Bienais de Música
Brasileira Contemporânea.

Glaucio Adriano Zangheri é bacharel em música pela ECA-USP


(2002) e licenciado em Filosofia pela Universidade Metodista
de São Paulo (2009). Sob a orientação do Prof. Dr. Mário
Videira Júnior (ECA-USP) concluiu o mestrado (2013) e
atualmente cursa doutorado na mesma instituição.
Profissionalmente, atua como arranjador e orquestrador, e
como professor do curso de música da Faculdade Mozarteum
de São Paulo (FAMOSP).

454 Guilherme Granato possui duas graduações em música:


Bacharel em Música - habilitação Guitarra, pelo Centro
Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas- FMU
(2003) ; Licenciatura em Educação Musical pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP (2009).
Atualmente realiza pesquisa de Mestrado em Estética e
Filosofia da Arte na Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP).

Igor Baggio é pianista, graduado em música pela UFRGS (2004),


mestre em música pela UNESP (2009) e doutor em filosofia
pela USP (2015). É autor do livro " O dodecafonismo tardio de
Adorno (EDUNESP, 2010). Como pesquisador, privilegia a
estética da música do século XX e questões oriundas ou ligadas
à teoria estética adorniana, bem como reflexões estéticas de
autores contemporâneos como Rancière e Badiou.

Ivanka Stoianova é musicóloga. Sua formação contempla a


Escola Nacional de Música de Sófia, Bulgária, o Conservatório P.
Tchaikovsky (Moscou), a Musik-Akademie, Universität Basel, a
Technische Universität, Berlin e a Université de Paris 8, em
Paris. Entre 75-81, foi Membro da Equipe do IRCAM, de 89-99
Sobre os autores

foi diretora artística das Edições Ricordi (Paris)e atualmente é


professora aposentada da Université de Paris 8. Com mais de
200 artigos publicados em diversos idiomas (francês, russo,
inglês, alemão, etc) e variados livros, suas área de pesquisa
compreende história, teoria, semiótica e filosofia da música
(sécs. XVII, XIX e XX).

Jalver Bethônico é doutor em Comunicação e


Semiótica. Professor de Design Sonoro e Sistemas Musicais
Interativos do CAAD - EBA - UFMG. Coordena as pesquisas
audiovisuais do Grupo de Pesquisa interSignos – EBA que
fundou em 2004. Criou e realizou a trilha sonora de animações
e vídeos premiados internacionalmente. Foi ganhador do
Prêmio da Música Brasileira de 2011. Atua nos
grupos “klang!” e “As Is” que trabalham no relacionamento de
música e imagem.

João Paulo Costa do Nascimento é Doutorando em Música pelo


PPG em Música da UNESP-Instituto de Artes. Possui graduação
455
em Música-Habilitação em Composição e Regência pelo
Instituto de Artes/UNESP (2004) e mestrado em Música pela
mesma instituição. Tem experiência na área de Artes, com
ênfase em Música, atuando principalmente nos seguintes
temas: música contemporânea, filosofia da música, Lyotard,
pós-modernismo e educação musical. É autor de “Abordagens
do Pós-Moderno em Música: a incredulidade das
metanarrativas e o saber musical contemporâneo” (Ed. Cultura
Acadêmica, 2010).

José Calixto Kahil Cohon é bacharel (2008) e mestre (2013) em


Filosofia pela FFLCH-USP, tendo como ênfase Estética e
Filosofia da Música. Tem formação musical na Escola Municipal
de Música de São Paulo (2009-2015) e na ECA-USP (2012-
2017). Atua como músico, violonista, teorbista, compositor,
regente e diretor da orquestra de música contemporanea
Camerata Profana. Leciona Estética, História da Música, Teoria
e Musicalização.

Lia Tomás é Livre-Docente em Estética Musical (UNESP, 2008),


e possui bacharelado em música (instrumento piano) pela
FRONTEIRAS DA MÚSICA

UNESP - Instituto de Artes (1985), mestrado e doutorado em


Comunicação e Semiótica pela PUCSP (1993 e 1998) e dois Pós-
Doutorados em Estética Musical (Université de Paris I - Institut
d'Esthétique et des Sciences de l'Art)(2001 e 2003). Coordenou
o Programa de Pós-Graduação em Música da UNESP - Instituto
de Artes de 2007 a 2013 (duas gestões) e foi 1ª Secretária da
ANPPOM (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
em Música), de 2008 a 2011. No Instituto de Artes (UNESP-IA),
coordena o DeMusica: Laboratório de Estudos em Estética
Musical e Filosofia da Música(Projeto CNPq) e é Bolsista de
Produtividade do CNPq - Nível 2

Lucas Paolo S. Vilalta é bacharel e mestrando em Filosofia pela


FFLCH/USP. Pesquisa no mestrado a relação entre ética e
ontogênese na filosofia de Gilbert Simondon. No campo da
Filosofia da Música desenvolve atualmente artigos e ensaios
que visam produzir uma reflexão sobre a ontologia das obras
musicais. Trabalha também como pesquisador para a
456 produtora Neoplastique Ltda. na série "13 canções essenciais
para compreender a História do Samba". É o atual diretor
executivo do Instituto Outubro que realiza pesquisas e projetos
em direitos humanos com o intuito do aperfeiçoamento das
instituições democráticas.

Luigi Antonio Irlandini, compositor e instrumentista (piano,


shakuhachi e percussão), é professor nos cursos de graduação e
pós-graduação da UDESC em Florianópolis. Sua pesquisa se
concentra no estudo da interação entre composição musical e
conteúdos não-europeus e antigos, principalmente da Índia e
Japão, tais como sistemas tonais, intonações, temporalidades
musicais, rítmica complexa, improvisação e concepções do
tempo filosóficas, cosmológicas e míticas.

Marcos Branda Lacerda nasceu em São Paulo em 1954. Estudou


composição com Osvaldo Lacerda e Hans Joachim Koellreutter.
Em Berlim realizou os estudos de Linguística e Musicologia
com um doutorado sobre estruturação na musica africana (Fon
e Iorubá). Aí manteve contacto com o compositor Nikolaus A.
Huber. Hoje é professor de História da Música e Análise no
Departamento de Música da Universidade de São Paulo e
participa regularmente como compositor de diversos
Sobre os autores

encontros de música contemporânea no Brasil. Recebeu


recentemente o prêmio Funarte de composição. Publicou em
2014 pela Edusp o livro Música instrumental no Benim:
repertório fon e música bàtá.

Marcos Mesquita é compositor, pesquisador, flautista e


arranjador. Estudos no Brasil, Áustria e Alemanha. PhD pela
Universidade de Kalrsruhe. Publicações no Brasil, na Alemanha,
Itália, França e nos Estados Unidos. Foi bolsista do DAAD, da
FAPESP, Capes, Fundação Paul Sacher, Fundação Vitae e
RioArte. Onze primeiros prêmios em concursos no Brasil e na
Itália. Professor do Departamento de Música do Instituto de
Artes da Unesp.

Marcus Held é Bacharel em Música pela Faculdade de Artes


Alcântara Machado (FIAM-FAAM) (2014), especializa-se em
Música Antiga - Violino Barroco sob a orientação de Luis Otávio
Santos, na Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP -
Tom Jobim). Atualmente, é membro da Orquestra Barroca da 457
EMESP e aluno do curso de Mestrado em Música - Musicologia -
no Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo (CMU-ECA-USP).

Paulo Tiné é Professor Doutor do Instituto de Artes da


UNICAMP desde 2012 e líder do grupo de pesquisa
“Transcriações Musicais”. Coordena os grupos musicais
UNICAMP Big Band e o ENSEMBLE BRASILEIRO e é autor dos
livros “Harmonia: Fundamentos de Arranjo e Improvisação”
(2011/14) e “10 Peças para Violão: Solo brasileiro, anos 90”
(2016), ambos pela editora “Rondó”.

Rafael Ramalhoso Alves Rafael Ramalhoso Alves é musicista e


mestre em Musicologia pela Universidade de São Paulo, com a
dissertação "A (re)composição do material musical em Musik
für Renaissance-Instrumente de Mauricio Kagel", concluída em
2015, sob orientação do Prof. Dr. Cesar Villavicencio. Como
violoncelista integra grupos de interpretação historicamente
orientada e de música experimental.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Rafael Sodré de Castro É doutorando em Artes pela


Universidade Federal de Minas Gerais. Possui mestrado em
Artes (2016, dissertação intitulada A trilha sonora do cinema a
partir de Hanslick) e graduação em Música pela Universidade
do Estado de Minas Gerais (2010). Tem experiência na área de
Artes, com ênfase em Composição Musical para Audiovisual e
em Educação, atuando profissionalmente como músico e
professor.

Raimundo Rajobac é professor efetivo no Departamento de


Música da UFRGS. Vice-diretor do Instituto de Artes da UFRGS
(2014). Mestre e Doutor em Educação, possui Graduação em
Música, Filosofia e Teologia. Seus estudos e pesquisas
concentram-se nas seguintes áreas: Estética e Filosofia da
Música; Filosofia da Educação Musical; Hermenêutica, Música e
Formação (Bildung).

Rainer Patriota é bacharel em música (violão) pela UFPB e


458 doutor em filosofia (estética) pela UFMG. Atua como músico,
tradutor e pesquisador no terreno da filosofia e da estética
musical. É professor pelo PNPD no Instituto de Filosofia, Artes
e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

Renato Cardoso é Doutorando em música pelo PPG em Música


da UNESP – Instituto de Artes. Mestre e bacharel em música
pela mesma instituição, período em que fez parte do Grupo
PET-Música, no qual desenvolveu inúmeras atividades de
ensino, pesquisa e extensão. Formado em guitarra elétrica pela
Universidade Livre de Música (ULM-SP). Apresenta-se em
recitais solo e em grupo de câmara como violonista e é
compositor e arranjador do grupo Espírito do Tempo.

Rodrigo Lopes é doutorando em Música pelo PPG em Música da


UNESP-Instituto de Artes. Graduado em Composição e Regência
pela UNESP – Instituto de Artes em 2010 e mestre em Música
(2014) pela mesma instituição, desde 2011 cursa a graduação
em Letras Clássicas - Grego Antigo - pela FFLCH/USP. De 2011
a 2013 estudou Cravo, Baixo Contínuo e Música de Câmara na
classe de Maria Eugênia Sacco no Conservatório Dramático e
Musical Dr. Carlos de Campos, de Tatuí (SP). É autor de “O
Sobre os autores

Conceito de Imitação na Ópera Francesa no Século XVIII” (Ed.


Cultura Acadêmica, 2015).

Silvano Fernandes Baia é doutor em História Social pela FFLCH-


USP (2010), mestre em Música pelo IA-UNESP (2005) e
bacharel em Música com habilitação em violão pela mesma
instituição (2001). Realizou estágio de pós-doutorado no King´s
College London (2014/2015). É professor no IA-UFU e autor do
livro A historiografia da música popular no Brasil: análise crítica
dos estudos acadêmicos até o final do século XX.

Tiago de Lima Castro é Graduado em filosofia pela Universidade


Metodista de São Paulo. É violononista e atualmente cursa o
mestrado em Música no PPG em Música da UNESP-Instituto de
Artes, sob a orientação da Profa. Dra. Lia Tomás.

Verlaine Freitas possui graduação (1994), mestrado (1996) e


doutorado (2001) em Filosofia pela Universidade Federal de
Minas Gerais; fez estágio de Pós-doutorado na University of 459
Windsor, Canadá (2011). Atualmente é professor associado da
UFMG e pesquisador do CNPq. É autor do livro "Adorno e a arte
contemporânea", além de organizador de outras obras sobre
estética. Traduziu textos de autores alemães e de língua inglesa.
Trabalha principalmente os temas: estética, psicanálise e
cultura de massa, abordando as obras de Immanuel Kant,
Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud e Theodor Adorno.
ISBN: 978-85-63046-05-5
ISBN: 978-85-63046-05-5

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