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30/03/2021 Ciência Hoje | Nossa vida com os microrganismos

NOSSA VIDA COM OS MICRORGANISMOS


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Bactérias, fungos e vírus estão entre nós, em nossas


residências, nas escolas, nos locais de trabalho e em outras
edificações, mas nem sempre são danosos à saúde. A
chamada microbiota de ambientes construídos convive com
os humanos há milhares de anos. Suas características, no
entanto, foram se modificando paralelamente às
transformações do estilo de vida das sociedades. Uma
pesquisa compara quatro diferentes ambientes – de uma
aldeia indígena a uma capital – para investigar as influências
dessas mudanças nos microrganismos que convivem conosco
todos os dias.

Estamos acostumados a pensar nos microrganismos como causadores de doenças. E, realmente,


algumas espécies podem provocar danos à saúde. Pesquisas recentes mostram, no entanto, que
muitos desses seres microscópicos vivem normalmente em contato conosco, no nosso corpo e no
ambiente que nos cerca.

Nossas residências, escolas, locais de trabalhos e outras edi cações são colonizados por uma grande
variedade de bactérias, fungos e até vírus que formam o chamado microbioma de ambientes
construídos. No mundo ocidental, estima-se que as pessoas passem em média 90% do seu tempo em
espaços internos. Assim, é de se esperar que os microrganismos que compartilham esses locais
conosco tenham in uência em nossa saúde.

Se o conjunto de microrganismos estiver em desequilíbrio,


podemos, realmente, desenvolver problemas de saúde
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Mas, a nal, quais as consequências desse convívio? Para começar, não vamos, necessariamente,
car doentes por causa disso. Muitas espécies são comensais: se bene ciam dos nossos ambientes,
obtendo alimento, por exemplo, sem causar prejuízo algum para nós. Outras podem até ter efeitos
positivos, como estimular o bom funcionamento do nosso sistema imunológico. Por outro lado, se o
conjunto de microrganismos estiver em desequilíbrio, podemos, realmente, desenvolver problemas de
saúde.

Microrganismos no túnel do tempo


O microbioma está em contato com os humanos há milhares de anos. Porém, nosso estilo de vida
atual é muito diferente daquele dos nossos antepassados. Alguns exemplos são alimentação, hábitos
de higiene, uso de antibióticos e outros medicamentos. As mudanças incluem também os locais que
construímos e a forma como nos relacionamos com esses espaços. O lugar onde vivemos, a
arquitetura das nossas residências, a ventilação, a luminosidade, os materiais usados nas
construções e a forma de limpeza podem afetar os microrganismos.

Mas como con rmar se realmente ocorreram mudanças no microbioma se não sabemos quais eram
os microrganismos que conviviam com os nossos antepassados? Uma possibilidade seria estudarmos
populações que mantêm, até hoje em dia, hábitos de vida tradicionais, como comunidades indígenas.
Comparar os microrganismos existentes no corpo e nas habitações indígenas com aqueles de
pessoas com hábitos modernos nos ajudaria a entender qual o efeito do estilo de vida no microbioma,
e quais as possíveis consequências para a saúde.

Comparar os microrganismos existentes no corpo e nas


habitações indígenas com aqueles de pessoas com hábitos
modernos nos ajudaria a entender qual o efeito do estilo de
vida no microbioma
Foto: Marcello Casal Jr – Agência Brasil

Qual microbiota mora com você?

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Para ajudar a esclarecer essas questões, em um projeto de pesquisa multidisciplinar, foram


estudadas quatro populações com diferentes estilos de vida, em quatro locais na Amazônia: uma
aldeia indígena, uma vila rural, uma cidade de médio porte (localizadas no Peru) e uma cidade de
grande porte (Manaus, no Brasil). Esses locais estão situados aproximadamente na mesma latitude,
para evitar diferenças climáticas que poderiam interferir nos resultados. Eles formam um gradiente
de urbanização, que começa na aldeia indígena e vai até a cidade de Manaus.

Em Manaus, foram incluídas famílias pertencentes a duas classes socioeconômicas. A diferenciação


em estratos sociais é um fenômeno típico do estilo de vida moderno: em uma aldeia indígena, todos
vivem de maneira semelhante. As diferenciações vão aumentando conforme caminhamos no
gradiente de urbanização.

O estilo de vida das pessoas nesses quatro locais foi comparado em relação a vários aspectos: como
se alimentam, como são suas casas, como fazem a limpeza dos ambientes, entre outros. Usando
métodos de análise de DNA, foram estudados os microrganismos nos vários cômodos das
residências, incluindo pisos, paredes, móveis e objetos. Foram investigadas também as substâncias
químicas nas amostras colhidas nas moradias.

As características das habitações e o uso dos espaços vão mudando conforme o grau de urbanização.
Nos locais mais urbanizados, as residências são maiores, com menos ventilação e maior separação
com o meio exterior. Entretanto, o número de pessoas morando em cada residência é pequeno. Há
mais divisões internas, formando cômodos, onde as pessoas se isolam umas das outras, buscando
privacidade. Esse estilo de vida contrasta bastante com os hábitos da aldeia indígena estudada:
muitas pessoas moram juntas, inclusive membros de famílias diferentes. As habitações não têm
divisões internas, e todos compartilham os mesmos espaços.

Microbiona marcado na pele


Acompanhando as mudanças nos hábitos de vida e na urbanização, os microrganismos são diferentes
nos quatro locais. Por exemplo, nas superfícies e nos objetos das residências dos locais mais
urbanizados, há mais microrganismos dos tipos que são encontrados no corpo, principalmente na
pele. De fato, milhões de microrganismos se desprendem do nosso corpo a cada hora. Nos locais
urbanizados, normalmente tem-se o hábito de passar grande parte do tempo dentro de casa, com
pouco contato com o ambiente externo e em espaços pouco ventilados. Assim, os microrganismos de
origem humana não se dispersam e cam retidos no lugar, o que pode inclusive facilitar a
transmissão de patógenos (microrganismos causadores de doenças) de uma pessoa para outra.

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Nas superfícies e nos objetos das residências dos locais


mais urbanizados, há mais microrganismos dos tipos que
são encontrados no corpo, principalmente na pele

Há diferenças também nas substâncias químicas encontradas nas residências. Em Manaus, foram
identi cados nas superfícies das moradias muitos produtos de limpeza e de higiene, além de
medicamentos. Apesar disso, há maior variedade de fungos nas casas de Manaus em comparação
com os outros locais estudados.

É surpreendente que, em uma cidade, possa haver mais fungos do que em uma aldeia no meio da
oresta amazônica. A explicação para isso pode estar, justamente, no uso de produtos de limpeza e,
também, de produtos de higiene e alguns medicamentos, como antifúngicos, que cam na pele das
pessoas e são transferidos para as superfícies das residências. Pode parecer uma contradição, mas
alguns fungos podem ser resistentes a esses produtos. Por efeito da seleção natural, os fungos
sensíveis vão morrendo e sobram apenas os resistentes, que proliferam. Outra possibilidade é a falta
de luminosidade dentro das casas, que geralmente favorece os fungos.

Uma casa doente


Se o microbioma das nossas residências e de outros ambientes construídos estiver ‘doente’,
possivelmente isso vai afetar negativamente a saúde dos moradores. A Organização Mundial da Saúde
reconheceu o que cou conhecido por ‘síndrome do edifício doente’: um conjunto de males causados
ou agravados por fatores físicos, químicos ou biológicos associados a edi cações.

Os microrganismos dos ambientes construídos podem entrar em contato direto com o nosso corpo
por meio de inalação, ingestão e contato com a pele. O próprio ar interno pode servir como fonte de
transmissão de patógenos, como a bactéria Mycobacterium tuberculosis, causadora da tuberculose, e
o fungo Aspergillus, que pode causar doenças pulmonares, além de diversos vírus causadores de
doenças respiratórias.

Os sistemas de encanamento e armazenamento de água também são possíveis fontes de


contaminação. A bactéria Legionella, que causa um tipo de pneumonia, é um exemplo de patógeno
transmitido pela água de edi cações. É geralmente transmitida por aerossol, e pode ser espalhada
por gotículas aspergidas por chuveiros, vaporizadores, banheiras de hidromassagem e sistemas de
ar-condicionado.

Design contra patógenos


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Uma possível abordagem para minimizar os efeitos negativos do estilo de vida moderno sobre
os microrganismos das residências e outros ambientes construídos é o planejamento da
arquitetura. O chamado design bioinformado considera, no projeto arquitetônico, os
elementos que poderiam favorecer um microbioma mais saudável. Por exemplo,
comparações do microbioma em vários projetos arquitetônicos mostraram que, quanto
menos ventilado o ambiente, maior a proporção de microrganismos patogênicos. A
luminosidade e os materiais utilizados na construção também poderiam ser considerados.
Porém, ainda carecemos de informações sobre qual seria o design ideal para a saúde do
microbioma dos ambientes construídos.

No caso de edi cações já construídas cujo microbioma esteja em desequilíbrio, os possíveis


prejuízos poderiam ser revertidos ou, pelo menos, minimizados, se interferíssemos
arti cialmente nas comunidades microbianas, restabelecendo o equilíbrio.

Para entender os probióticos


A manipulação de comunidades microbianas vem sendo feita, no caso do microbioma que coloniza o
corpo humano, por meio do uso de probióticos e prebióticos. Probióticos são, geralmente, de nidos
como microrganismos vivos que podem colonizar o corpo humano e resultar em benefícios para a
saúde. Já prebióticos são substâncias que não são digeridas pelo ser humano e que são utilizadas por
microrganismos, favorecendo espécies que trazem benefícios à saúde. Seu uso tem sido
recomendado principalmente para combate e prevenção de doenças gastrointestinais. Bactérias dos
gêneros Lactobacillus e Bi dobacteria são probióticos muito utilizados, disponíveis em vários
produtos à base de leite fermentado e em comprimidos. Recentemente, surgiram produtos
dermatológicos para tratamento de doenças in amatórias, como acne, dermatite atópica e psoríase,
e, também, para o controle do processo de envelhecimento da pele. Existem até pesquisas acerca dos
possíveis benefícios de probióticos e prebióticos como auxiliares no tratamento de câncer, doenças
neurológicas e autismo.

Um conceito análogo poderia ser aplicado aos ambientes construídos, introduzindo no local
microrganismos probióticos ou então compostos prebióticos que seriam capazes de restaurar o
equilíbrio do microbioma ‘doente’ e, com isso, favorecer a saúde dos ocupantes.

Para veri car essa possibilidade, três espécies de Bacillus foram testadas como probióticos para
limpeza de superfícies em três hospitais na Itália. Os hospitais também têm seu microbioma, apesar
de todos os procedimentos de limpeza. O microbioma de hospitais é composto também por
microrganismos típicos do corpo humano, principalmente da pele. Os hospitais podem ainda atuar
como reservatório de patógenos, não só pelo contato com os microrganismos dos pacientes, como
também pelo uso de antibióticos. Os resultados da pesquisa italiana mostraram que os probióticos
reduziram a quantidade de microrganismos associados a infecções hospitalares, incluindo
coliformes, Staphyloccus aureus, Clostridium di cile e Candida albicans.

Posteriormente, um estudo mais detalhado, utilizando técnicas de análise de DNA, avaliou o efeito de
probióticos sobre patógenos e sobre o microbioma residente em hospitais na África do Sul. Bacillus
foram aplicados a três tipos de superfícies hospitalares, e analisou-se seu efeito no microbioma
residente e em bactérias patogênicas introduzidas no ambiente. Os resultados foram comparados
com desinfetante e sabão comum. Nos locais limpos com sabão, os patógenos foram suplantados
pelo microbioma residente. Já no caso do desinfetante, surpreendentemente os patógenos ganharam
a competição com o microbioma. A aplicação do probiótico se mostrou tão e ciente para eliminação
de patógenos quanto o sabão; mas tem a desvantagem de reduzir a diversidade microbiana no local.
Os autores do estudo sugerem que poderiam ser utilizados como probióticos não uma espécie
microbiana única, mas sim misturas de diversas espécies, para garantir a manutenção da
diversidade.

Apesar dos resultados iniciais parecerem promissores, a manipulação do microbioma das residências
e outros ambientes construídos ainda não faz parte do nosso dia a dia. Para sabermos como restaurar
de forma e ciente o microbioma ‘doente’ seria fundamental compreendermos melhor como deveria
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ser o microbioma saudável. É necessário prosseguir com as pesquisas, buscando descobrir não
apenas quais são os microrganismos que compõem as comunidades, mas também como eles estão
agindo e como interagem com nosso corpo. Seria preciso ainda considerar diferenças geográ cas e
climáticas, características arquitetônicas das edi cações e utilização dos espaços, além de fatores
associados aos habitantes, como a concentração e circulação de pessoas, condições de saúde,
hábitos de vida e muitas outras variáveis.

A preservação dos microrganismos que convivem conosco


pode ser a chave para manter nossa saúde

As comunidades microbianas dos ambientes construídos são vulneráveis à ação humana, e a


manutenção de seu equilíbrio tem se mostrado um grande desa o. A preservação dos
microrganismos que convivem conosco pode ser a chave para manter nossa saúde. Paradoxalmente,
o estilo de vida tradicional pode estar em sintonia com o futuro. Talvez precisemos repensar nossos
hábitos, e aprender com as populações indígenas, veri cando quais elementos do seu estilo de vida
seria possível incorporar à vida moderna.

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Luciana Campos Paulino
Centro de Ciências Naturais e Humanas,
Universidade Federal do ABC

Matéria publicada em 20.01.2021

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