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ELIANE QUINELATO
A FIGURATIVIZAÇÃO DO TRABALHO
NAS FÁBULAS DE ESOPO
ARARAQUARA
2009
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
JÚLIO DE MESQUITA FILHO
ELIANE QUINELATO
A FIGURATIVIZAÇÃO DO TRABALHO
NAS FÁBULAS DE ESOPO
ARARAQUARA
2009
Para Amélia dos Santos, minha mãe,
que nunca se esqueceu de mim em suas orações.
AGRADECIMENTOS
Ainda que faltem palavras para expressar toda a gratidão e carinho que sinto por essa
amiga, agradeço, especialmente à Profª. Drª. Maria Celeste Consolin Dezotti, orientadora
desta pesquisa, por ter acreditado em todos os meus sonhos - a iniciação científica, o mestrado
Mestra ímpar.
“A fábula não é, então, uma historieta sem importância, mas um sério estudo sobre o que
Guimarães Rosa definia como o ‘homem humano’.” (FIORIN, 1999, p. 399)
RESUMO
Nas fábulas, observamos que poucas são as personagens que têm consciência da
necessidade do trabalho para a sobrevivência, pois a maioria dos textos explicita uma visão
disfórica sobre esse tema. O tipo de trabalho que aparece elogiado por algumas personagens é,
sobretudo, o trabalho agrícola e as demais atividades ligadas ao campo, mas essa visão não é
compartilhada por todos os atores que compõem o mesmo espaço narrativo. Chama a atenção
o fato de a maioria das personagens atribuírem valores disfóricos ao trabalho que realizam por
diversos motivos: muitas delas são exploradas por um opressor que as fazem trabalhar
incessantemente, sem direito a qualquer tipo de lazer; outras não recebem o alimento, que
sempre aparece figurativizado como recompensa pelo trabalho; há ainda aquelas que
rivalizam com outras personagens por desqualificar a profissão do outro e atribuir qualidades
forma, esses atores nunca estão satisfeitos com o trabalho que executam e tentam libertar-se
Dans les fables, nous observons que peu sont les personnages qui ont conscience de la
nécessité du travail pour la survie, car la plupart des textes explicite une vision dysphorique
sur ce thème. Le type de travail qui se présente loué par quelques personnages est, surtout, le
travail agricole et les autres activités concernant la campagne, mais cette vision n´est pas
partagée par tous les acteurs qui composent le même espace narratif. Il nous fait remarquer le
fait que la plupart des personnages attribue des valeurs dysphoriques au travail qu´ils realisent
par des motifs divers: beaucoup d´eux sont exploités par un oppresseur qui les fait travailler
continûment, sans droit à n´importe quel type de loisir ; autres ne reçoivent pas la nourriture,
ceux qui rivalisent avec les autres personnages car ils disqualifient la profession de l´autre et
n´attribuent que des qualités à ses propres activités et se jugent être les seuls qui méritent la
récompense. De toute façon, ces acteurs ne sont jamais satisfaits du travail qu´ils exécutent et
ils essaient de s´en libérer de n´importe quelle manière, même si ses attitudes subissent un
échec.
alliera aux études des mécanismes linguistiques-discursifs, l´étude d´autres textes de la culture
INTRODUÇÃO ................................................................................................................10
CAPÍTULO I
A FÁBULA GREGA: DA TRADIÇÃO ORAL AO GÊNERO LITERÁRIO ...........18
1.1 A fábula como prática oral ...........................................................................................20
1.2 A fábula como gênero literário ....................................................................................25
1.3 A estrutura do discurso narrativo .................................................................................28
1.4 A problemática da moralidade .....................................................................................31
1.5 O objeto de análise e a temática do corpus ..................................................................37
CAPÍTULO II
CONSIDERAÇÕES SOBRE A NOÇÃO DE TRABALHO ........................................46
2.1 A ideologia grega de trabalho........................................................... ...........................48
* Xenofonte.........................................................................................................................50
* Platão................................................................................................................................54
* Aristóteles........................................................................................................................60
2.2 As reflexões modernas sobre o trabalho na Grécia Antiga.......................................... 64
2.3 O trabalho compulsório na Grécia Antiga: breves explanações...................................77
2.4 As concepções modernas de trabalho compulsório na Grécia Antiga..........................81
CAPÍTULO III
O TRABALHO RETRATADO NA LITERATURA GREGA .................................. 91
3.1 A sociedade na época homérica ...................................................................................91
3.2 Formas de trabalho representadas por Homero ............................................................93
3.3 A sociedade na época de Hesíodo ..............................................................................100
3.4 O trabalho retratado por Hesíodo ...............................................................................102
3.5 Lazer: privilégio dos nobres .......................................................................................110
CAPÍTULO IV
O TRABALHO NAS FÁBULAS ESÓPICAS..............................................................115
4.1 O Instrumental teórico................................................................................................116
4.2 O percurso gerativo de sentido ...................................................................................117
4.3 Figurativização e fábula .............................................................................................119
4.4 A configuração discursiva e o percurso figurativo ....................................................122
4.5 O conceito de isotopia.................................................................................................123
4.6 Análises.......................................................................................................................125
CAPÍTULO V
REFLEXÕES SOBRE A ENUNCIAÇÃO..................................................................162
5.1.Enunciação e fábula....................................................................................................163
5.2 Semântica e sintaxe discursiva das fábulas ................................................................172
5.3 Enunciação e polifonia................................................................................................176
5.4 A práxis enunciativa ...................................................................................................183
CONCLUSÃO.................................................................................................................188
BIBLIOGRAFIA............................................................................................................192
Introdução
INTRODUÇÃO
Desde nossa graduação, detivemo-nos no estudo das fábulas esópicas, sempre com o
apoio financeiro do CNPq. Embora seja um gênero pouco estudado, as fábulas mostraram-nos
Nossa primeira pesquisa foi A tradição da fábula grega: Esopo e Babrius. Esse estudo
fabulista Esopo, e de fábulas escritas em versos por Babrius, autor menos conhecido entre
personagens assíduos no palco das fábulas. Por meio do discurso narrativo, que figurativizava
compreender os motivos pelos quais certos humanos ora podem ser denominados “raposa”,
ora “leão”, pois, como é sabido, a fábula coloca em cena animais, seres mitológicos, objetos,
etc., que representam ações tipicamente humanas1. O enunciador, ao atribuir ações humanas a
feminino: Esopo e Babrius, a pesquisa objetivou desvendar os motivos que levavam os gregos
feminino, como a cadela, a doninha, etc., enquanto reservava ao sexo masculino, atributos
misógina contra a mulher estimulou-nos a buscar, em outros textos da cultura, subsídios que
comprovassem nossa suposição. Assim, aliamos ao estudo das fábulas o estudo de um poema
1
Este trabalho foi publicado nos Anais do XIV Celip, em outubro de 2001.
10
Introdução
de Simônides de Amorgos, denominado Jambo das mulheres, que faz uma sátira ao feminino
dissertação denominada Investigações sobre a rivalidade nas fábulas gregas tinha como
objetivo desvendar a rivalidade, motivada, na maioria das vezes, pelas paixões da inveja e do
ciúme. Modalizadas por essas paixões, as personagens rivalizam em busca de glória e honra
pessoal, sem se importar com a conseqüência de seus atos. O exame do corpus mostrou que o
enunciador prima por valores caros à aristocracia, pois figurativiza como “inferiores” as
doutorado, compreender o motivo pelo qual a representação do trabalho nas fábulas de Esopo
se faz de forma tão negativa, pois notamos a grande aversão das personagens ao trabalho.
A visão grega de trabalho é, até hoje, objeto de estudo e reflexões entre os estudiosos
devido ao fato de este tema aparecer retratado em vários gêneros literários e oscilar no que se
Na Antigüidade, o trabalho aparece sempre sob duas vertentes – uma positiva e outra
negativa – e vários são os estudos que apontam essa dualidade. A visão positiva aparece, na
maioria das vezes, associada ao trabalho agrícola, enquanto a visão negativa está atrelada ao
trabalho técnico. Trabalhar para outra pessoa também implica rejeição, pois é um tipo de
trabalho que assemelha-se ao trabalho escravo. O ideal para os gregos era que o homem
2
O desenvolvimento deste trabalho juntamente com nossa orientadora, além de muito prazeroso, foi de suma
importância em nossa jornada acadêmica, pois recebeu o título Menção Honrosa no Congresso de Iniciação
Científica, realizado na cidade de Bauru, em 2001, e é um dos capítulos que compõem a obra Amor, desejo e
poder na Antigüidade: relações de gênero e representações do feminino, organizado pelo Profº. Dr. Pedro Paulo
A. Funari, e publicado pela Editora Unicamp, em 2003.
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Introdução
possuísse muitos escravos trabalhando em suas terras e fazendo crescer o seu patrimônio,
enquanto ele, o senhor, ia às assembléias tratar dos assuntos políticos de sua comunidade.
Essa visão é bem difundida nos estudos críticos e alguns aspectos dessa postura podem
ser observados, também, na literatura. Homero descreve muitas cenas de trabalho em suas
epopéias, que podem ser observadas nos momentos em que o poeta coloca seus mais caros
Nos poemas homéricos não encontramos hostilidade nas referências ao trabalho. Isso é até
compreensível, uma vez que a preocupação do poeta é retratar o lado nobre de seus heróis
aristocratas e não a vida cotidiana dos gregos pobres. Já o poeta Hesíodo, caracteriza-o ora
como essencial para que o homem esteja em comunhão com os deuses, ora como um castigo
divino.
Entretanto, essa dualidade não é uma regra fixa em outros gêneros literários.
Encontramos, nas fábulas esópicas, rejeições até mesmo em relação ao trabalho com a terra,
que, culturalmente, estava ligado às questões de caráter religioso. Nas fábulas em que há duas
ou mais personagens por exemplo, ao menos uma delas é movida pela paixão da insatisfação
em número bem reduzido e esse grupo é composto por aqueles que lidam com a terra,
personagens que compõem o mesmo espaço narrativo não trabalharem em igual proporção,
mas receberem a comida, vista sempre como recompensa pelo trabalho. Há ainda os que
12
Introdução
esópicas por meio da análise de um corpus constituído por 18 textos.3 São eles: Hermes e a
jumento que transportava sal, A mulher e suas criadas, Os dois cães, O jumento e o mulo
maioria delas a rejeitá-lo e uma minoria a enaltecê-lo. Por este motivo, independentemente de
discurso figurativo de cada fábula, pois acreditamos que é através do exame dessa porção de
Quanto à metodologia, embora não sejamos semioticistas, sempre vimos com bons
olhos a teoria semiótica greimasiana por ser um arcabouço teórico que abre amplo leque de
possibilidades ao analista, permitindo sua aplicação a uma variada gama de textos: verbais,
teoria e de todas as dificuldades que permeiam a assimilação de seus conceitos. Ainda assim,
faremos uso de parte de seu complexo teórico como apoio à análise da construção do sentido
dos textos, sobretudo no que diz respeito ao nível discursivo, local privilegiado para o
3
Todas as fábulas foram extraídas da edição bilíngüe de Manuel Aveleza de Souza. As fábulas de Esopo. Rio
de Janeiro: Thex, 1999.
4
A moralidade dos textos será mencionada em nota de rodapé a fim de que o leitor tenha acesso ao texto
completo.
13
Introdução
especializados sobre o assunto, por julgarmos necessário um estudo que concilie a análise dos
percursos temáticos e figurativos – com o exame das relações contextuais e dialógicas que as
Nesse sentido, é possível fazer uma análise contextual das fábulas que tematizam o
trabalho desde que, como entende a semiótica, “o contexto seja entendido e examinado como
uma organização de textos que dialogam com o texto em questão” (BARROS, 2001, p.83).
Há vários textos que dialogam com as fábulas dentro da cultura grega. Seguramente
podemos nos reportar, na literatura grega, ao poeta Hesíodo, que em sua obra Os trabalhos e
os dias, faz uma ode ao trabalho. Nesta obra é possível apreender o incentivo ao trabalho
agrícola, que “enche o celeiro, pois a fome é sempre do ocioso companheira”. (HESÍODO,
1990, vv.301-302). Entretanto, nota-se, no poema, certa dualidade: ao mesmo tempo que é
de Prometeu e Pandora que o trabalho é um “mal”, um castigo aos homens aplicado por Zeus
devido às desavenças que o Cronida teve com Prometeu, quando este zombou de Zeus na
divisão de um sacrifício e depois lhe roubou o fogo e o deu aos homens. Como punição a
Prometeu, Zeus acorrentou o Titã em um rochedo para que uma ave lhe comesse o fígado e
vêem-se fadados ao trabalho, pois, ao contrário da idade de ouro em que a terra brotava
espontaneamente, agora os humanos deveriam sofrer e obter o sustento com o suor do próprio
Esse texto dialoga, quanto aos valores culturais, com as fábulas de nosso corpus:
“zangões sem dardo, que ao trabalho das abelhas, ociosamente destroem”(HESÍODO, 1990,
14
Introdução
vv.304-305). O poeta alerta sobre o dever do trabalho que veio como um castigo e
que Xenofonte nos legou, denominado Econômico. Este escrito socrático dramatiza os
cidadão afamado entre os gregos por ser considerado o ideal de homem: “um homem belo e
agrícolas, pois até mesmo um nobre, cujas lavouras estão repletas de escravos, não deixa de
realizar, ele mesmo, os trabalhos com a terra. Também não deixa de estar presente em
Econômico a aversão ao trabalho técnico, que não exige do homem esforços, sacrifícios e
suor, já que aqueles que praticam esse tipo de trabalho ficam ao abrigo do sol e vivem uma
vida sedentária.
Assim, dividimos nossa tese da seguinte forma: o primeiro capítulo tem como objetivo
mostrar os caminhos que a fábula grega percorreu até consolidar-se como gênero literário
estruturais até ser veiculada em coletâneas da forma como a conhecemos hoje. Os chamados
promítios e epimítios – termos usados para denominar a moralidade das fábulas gregas – são
alguns dos aspectos estruturais incorporados ao texto escrito. Algumas reflexões sobre essa
15
Introdução
porção de texto também estarão inseridas neste capítulo com a finalidade de explicar os
pensamento de Xenofonte, um importante historiador grego, que trata das diferenças que
concernem aos dois tipos de atividades mais comuns no mundo grego: a agricultura e o
trabalho manual. Também pretendemos mostrar como dois dos principais filósofos da
ao trabalho na Grécia serão explanadas, no decorrer do capítulo, por meio das reflexões que
alguns estudiosos modernos fizeram acerca do tema, mostrando a divergência de opiniões que
permeia o tema. Há que se ressaltar, também, o tipo de vocabulário utilizado para expressar a
idéia de “trabalho”, pois os gregos não têm um termo específico para denominá-lo; podemos,
contudo, apontar os vocábulos encontrados com maior freqüência na literatura para expressar
esta noção. Ainda neste capítulo, falaremos das formas de trabalho compulsório que sabemos
haver existido, tais como o trabalho escravo. Os apontamentos gerais sobre o trabalho escravo
têm como objetivo mostrar o modo de vida e os tipos de atividades que eles realizavam, além
de conter uma breve reflexão sobre o vocabulário grego utilizado para denominá-los. Ser
reduzido à condição de escravo era humilhante para os gregos e isso ajuda a explicar a
aversão que os cidadãos sentiam pelo trabalho, pois trabalhar o dia todo era semelhante a ser
escravo.
agrícola, trabalhos de carpintaria realizados pelos próprios nobres etc. Um olhar sobre o lazer
também será contemplado nesta seção, uma vez que esse era um privilégio exclusivo dos
16
Introdução
figurativa por meio da qual o enunciador constrói seu discurso, na maioria das vezes,
vozes veladas no próprio discurso figurativo das fábulas, cerne de nosso trabalho.
V a partir dos estudos semióticos sobre a enunciação. Outras reflexões sobre a sintaxe e a
semântica das fábulas serão explanadas no mesmo capítulo, a partir dos estudos de Lima
(1984).
reflexões sobre a enunciação e falar acerca das vozes presentes no discurso das fábulas. Ainda
nesta parte do trabalho, faremos menção aos estudos de Cascajero (1991) por seguirem a
analítica e temos consciência de que elas não são definitivas. Devido à complexidade do tema,
muitas foram nossas inquietações, pois há contradições insolúveis dentro das próprias fontes
Optamos, então, por priorizar os estudos que possuíam uma linha de raciocínio comum
aos demais, e relacioná-los ao nosso objeto de estudo. A nossa leitura centrou-se tão somente
nas fábulas anônimas atribuídas a Esopo, sem analogia com diferentes versões do mesmo
texto, construída por outros fabulistas da Antigüidade, o que poderia gerar outros resultados.
venham somar aos poucos trabalhos, no Brasil, sobre a fábula no mundo antigo. Temos
consciência de que essa não é a única leitura possível, mas foi a que nos pareceu mais sensata
nestemomento.
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A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
CAPÍTULO I
É sabido que a maior parte da herança cultural literária que a Grécia nos legou é de
Para Havelock (1996, p.15), o que contribuía para que o mecanismo poético garantisse
a transmissão de valores às gerações posteriores era a forma por meio da qual o assunto era
apresentado: havia uma estreita associação entre as imagens e o assunto a ser comunicado e
“nesta ação lingüística todos os sujeitos do enunciado têm de ser narrativizados, isto é,
agentes que fazem alguma coisa independentemente de serem pessoas reais ou personagens
enunciador ilustrava comportamentos e ações humanas que deveriam ser imitadas ou evitadas,
sempre adaptados a determinado contexto social ao qual se desejava fazer referência. Com
O autor ressalta ainda que os contadores de histórias orais não tinham o assunto como
fim último, e sim a preocupação com a instrução que projetavam em suas histórias, com o fato
de elas estarem unidas à memória social e traduzidas por meio de exemplos. Cumpriam essa
18
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
dos gregos. Por outro lado, não podemos deixar de ressaltar que essa preocupação didática
estava presente também nos textos em prosa, pois havia outros tipos de narrativas orais com a
cuja origem remonta à tradição oral deixada pelos helenos e, por meio delas, os gregos
Pode-se afirmar seguramente que a maior parte dos estudos sobre a cultura ou sobre a
literatura grega não inclui as fábulas dentro de um contexto literário privilegiado, lugar esse
encontrar, dentro da poesia antiga, fábulas ajustadas na forma poética sendo utilizadas como
exemplo, podemos citar a presença da mais antiga fábula O rouxinol e o falcão presente na
poesia hesiódica. No contexto citado, a fábula é proferida pelo próprio poeta Hesíodo que,
fato de a fábula fazer parte desse contexto, discorreremos sobre o caminho que a fábula grega
fábulas enquanto prática discursiva, ou seja, quando o enunciador fazia uso dessas narrativas
apoiaremo-nos nos estudos de Adrados (1982) para discorrer sobre como as fábulas, coligidas
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A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
conhecemos hoje: uma narrativa figurativa seguida por um discurso temático/moralizante que
Este capítulo ainda contempla uma breve explanação de como se estrutura o modelo
típico do discurso narrativo das fábulas gregas e a principal temática veiculada por essas
narrativas. Ainda que nosso objetivo não seja privilegiar a análise do discurso moral, uma
breve reflexão sobre as possibilidades de origem e fixação dessa porção de texto no final de
cada narrativa, nos auxiliará na compreensão dos valores ideológicos subjacentes ao elo que
Por fim, há de se esclarecer qual será nosso objeto de estudo e o motivo que nos levou
que ela não é um gênero genuinamente grego. De acordo com as informações de Dezotti
(2003, p. 21), há textos sumerianos oriundos do século XVIII a.C, que veiculam narrativas
figurativizar determinado tema, uma vez que todo discurso é permeado por aspectos culturais
Importa, pois, esclarecer que nos apoiamos nos estudos de Dezotti (1988, p. 107) ao
atribuir o rótulo “fábula” a um conjunto muito mais amplo de narrativas do que as que
conhecemos por meio de coletâneas de caráter literário. Para a autora, “o que confere a uma
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A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
No que toca às fábulas veiculadas pelos gregos, a autora postula que, inicialmente, ela
era utilizada como prática discursiva5, como forma alternativa de alguém estruturar seu
discurso, pois o locutor poderia utilizar-se de uma narrativa ficcional ou de uma história
verídica para concretizar seu argumento. Para citar um exemplo de argumento sustentado por
um discurso ficcional, podemos nos reportar à conhecida fábula O rouxinol e o falcão, parte
integrante do poema Os trabalhos e os dias, do poeta Hesíodo, que teria vivido no século VIII
a.C.
Nesse período, a fábula é um ai^no9, palavra grega que costuma ser traduzida por
“história”, e era usada pelos poetas arcaicos para referir-se a uma pequena narrativa, conforme
mostra o poema de Hesíodo (vv.202): Nu~n d’ ai^vnon basileu~si ejrevw fronevousi kaiV
aujtoi~9, que pode ser traduzido por: “Agora uma história falo aos reis mesmo que isso
saibam6.” A seguir Hesíodo utiliza-se de uma fábula para ilustrar sua fala:
A história que o poeta conta é uma fábula em que a lei do mais forte prevalece e
governa a vida, pois um falcão, ao segurar um rouxinol que implora para não ser devorado,
não se condói dele, dizendo-lhe, perante suas súplicas, que, por ser mais forte, agirá como lhe
aprouver. O pássaro deve manter-se calado, pois somente os iguais devem discutir, enquanto
os inferiores devem permanecer quietos para que não sejam humilhados. De acordo com a
5
DEZOTTI, Maria Celeste C. “A fábula grega: da prática discursiva ao gênero literário”. Organon
(UFRGS), v.13, n. 27, pp. 137 a 146, 1999.
6
Tradução de LAFER, Mary de Camargo Neves, 1990.
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A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
Entretanto, inserida num contexto de desavença fraternal, esta fábula é proferida por
Hesíodo ao seu irmão Perses, acusado de escamotear a divisão de uma herança deixada pelo
pai. Na realidade o poeta constrói sua própria moralidade e dá outra finalidade a esta
narrativa: ele a profere com a intenção de aconselhar seu irmão Perses a não agir como o
falcão da fábula.
Este é um modelo clássico de narrativa que viria a se consolidar como “fábula” nos
narrativa conta com animais que dramatizam situações, interesses, sentimentos e paixões
determinada situação.
ilustração para censurar ou aprovar determinadas atitudes dos seres humanos, e isso dependia
do contexto e da intenção daquele que proferia a fábula, pois o discurso moral era construído
A outra forma de o locutor sustentar seu argumento, conforme postula Dezotti (1990),
é usar histórias exemplares de caráter real, que poderiam ser contadas com a finalidade de
exortar alguém a fazer algo. Um exemplo deste tipo de narrativa pode ser encontrado em uma
passagem da Odisséia (XIV, 462-507), na qual Odisseu, com a finalidade de colocar à prova o
porqueiro Eumeu no que se refere à hospitalidade grega, diz que vai proferir um ai^vno9:
eujxavmenov9 ti e!po9 ejrevw ai^no9 gaVr ajnwvgei hjleov9, cuja tradução pode ser: “acabo de
fazer minhas preces e deu-me na veneta de contar-lhes uma história”7. E Odisseu, disfarçado
numa noite muito fria, sem um cobertor para proteger-se do inverno. Ao findar a história,
7
Nota-se, quanto ao termo grego, o uso da palavra ai^no9 traduzido por “história”, por Donaldo Schüler.
Odisséia, v.3: Ítaca. Porto Alegre: L&PM, 2007
22
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
Eumeu deu-lhe um manto, pois compreendeu que a intenção do forasteiro ao contar narrativa,
Heródoto8 recompõe uma situação enunciativa entre o rei Ciro e os povos jônios e
eólios. O historiador documenta uma fábula que Ciro narrou aos mensageiros desses povos
quando estes chegaram em sua corte oferecendo ajuda militar. Disse Ciro:
Certa vez um flautista, vendo peixes no mar, começou a tocar sua flauta,
imaginando que os atrairia assim para a terra. Decepcionado em sua esperança ele
apanhou uma rede, lançou-a e capturou uma grande quantidade de peixes; ao vê-los
saltando ele disse aos peixes: “Parem de dançar agora, pois vocês não saíram para
vir dançar ao som de minha flauta”. (ESOPO apud DEZOTTI, 1988, p. 114)
Ciro narra esta fábula a eles porque, certa vez, ao pedir-lhes apoio contra Cresos, teve
seu pedido recusado. A intenção de Ciro era revidar, agindo da mesma maneira que eles
típico do período arcaico, mas que não perdeu essa finalidade em séculos posteriores. Ao
Pouco se sabe sobre a vida de Esopo, mas de acordo com a tradição, ele fora um
escravo que viveu, provavelmente, no século VI a.C., e destacou-se por ser considerado muito
hábil em proferir fábulas, fato que fez com que os gregos o intitulassem “Pai da fábula”. Daí
em diante, a maioria das fábulas que circulavam na Grécia foi atribuída a Esopo e seu nome
Filocleão: Escute menininha; vou lhe contar uma história muito bonita.
Padeira: Não quero ouvir história nenhuma!
8
Cf. Heródoto. História. I, 141.
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A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
Filocleão: Um dia Esopo, voltando de um jantar viu-se perseguido por uma cadela
indecorosa e bêbada que não parava de latir. “Cadela”, disse ele, “você faria melhor
negócio trocando sua má língua por um pedaço de pão.”
(ARISTÓFANES, vs. 1400-1405)
No contexto ilustrado acima, bem típico da comédia, a fábula foi utilizada de forma
muito grosseira pela personagem Filocleão, com a finalidade de ofender uma padeira que lhe
cobrava pelos pães que ele a fizera derrubar. O maldoso Filocleão, que faz uma analogia entre
dizendo que assim como os latidos de uma cadela são inúteis, as reivindicações da moça
também seriam.
Nesse mesmo período, afloram os estudos filosóficos e largo uso desse tipo de
discurso também fizeram os retores gregos, que usavam as fábulas como exercício
“As fábulas convém ao discurso e têm a vantagem de que, sendo difícil encontrar
no passado, acontecimentos inteiramente semelhantes, é muito mais fácil inventar
fábulas. Para imaginá-las, assim como as parábolas, basta reparar nas analogias,
tarefa essa facilitada pela Filosofia. É pois mais fácil encontrar argumentos pelas
fábulas (...)” (RETÓRICA, XX,4)
Mais adiante, no capítulo dedicado aos exemplos, o filósofo faz referência a Esopo e
Essas referências mostram que, por mais obscuras que sejam as informações a respeito
da origem da fábula grega e do fabulista Esopo, essas narrativas fixaram-se sob seu nome e
foram veiculadas por toda a Grécia, adquirindo a popularidade que permanece até nossos dias.
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A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
Não pretendemos, aqui, discutir questões teóricas relacionadas ao estudo dos gêneros
do discurso. Nossa intenção é mostrar, a partir do trabalho de Adrados (1986) de que forma e
De acordo com o autor “todo aquele que deseja escrever um texto literário, consciente
coleções, tal qual as conhecemos hoje sob o título de “Fábulas de Esopo”. Na realidade trata-
animais, plantas, objetos, deuses, homens tipificados em certas profissões, etc. Pode-se variar
ideológicas distintas, de acordo com a época e condição histórica à qual pertence, mas a
um texto temático/moral, que retoma o conflito instaurado na narrativa para extrair dele uma
lição.
9
O autor faz referência ao fato de uma mesma obra poder se enquadrar num gênero em determinado momento
histórico e pertencer a outro em época posterior.
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A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
século VI a.C., e, conforme dissemos anteriormente, ela está associada à chegada de Esopo na
Grécia.
tomam o lugar do ai^no9 e passam a circular na moralidade das fábulas através da seguinte
fórmula “oJ lovgo9 dhloi~ o@ti”, costumeiramente traduzida por “A fábula mostra que (...)”,
seguida, posteriormente, da mensagem que se quer enfatizar. O uso de tais termos contribuiu
para que, entre os gregos, Esopo fosse citado como um logopoiov9 - um contador de fábulas
em prosa.
Por volta do século II e III a.C., surge uma coleção de fábulas coligida por Demétrio
135), Demétrio compilou cerca de cem fábulas atribuídas a Esopo e chamou-a Esopéia. Essa
e inspirou futuros autores, como Fedro, Bábrio, Aviano, Aftônio, etc., a reescrever esses
a.C.; a Acursiana, escrita por volta do século III d.C., e a Vindobonense, um pouco mais
tardia, pertencendo ao século VI d.C; essas duas, oriundas da Augustana, são igualmente
inseridas nessas coleções porque é possível encontrar nelas textos que precedem a existência
do fabulista. Além disso, ao serem transportadas para o texto escrito, as fábulas perderam
26
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
Para o autor, essas coleções não são puras, ou seja, elas são mesclas umas das outras,
muitas vezes contaminadas por outros manuscritos, que poderiam trazer narrativas escritas
pelos próprios compiladores. Ele acredita que todas essas questões dificultam o trabalho
daqueles que pretendem estudar o gênero, pois ao tomarmos diferentes coleções com o
propósito de analisá-las, nunca saberemos o que são versões da mesma fábula e o que são
fábulas diferentes.
Assim também, entre os homens, são insensatos aqueles que, na esperança de bens
maiores, deixam escapar os que têm nas mãos. (ESOPO apud SOUSA, 1999, p.
333)
Vê-se que esta narrativa está estruturada em prosa e possui um discurso moral que se
particular exposta pela fábula, pois aconselha aos homens ficarem com o que há de seguro,
ainda que em pouca quantidade. Embora a moralidade da fábula da coleção seja distinta da
que Hesíodo propôs em sua versão (“Insensato quem com mais fortes queira medir-se, de
vitória é privado e sofre, além de penas, vexame”, 1990, v. 210-211), nota-se, em ambas, a
discurso figurativo permite que se faça mais de uma leitura, possibilitando ao enunciador, a
27
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
afirmar.
Nesse sentido, a enunciação ganha relevância, pois é o contexto que vai determinar a
anônimo da narrativa, que aprova a atitude do falcão, e o próprio poeta Hesíodo, que se
posiciona como enunciador desta narrativa, mas lhe confere nova interpretação e censura a
atitude do falcão. No texto das coleções esópicas, o enunciador reafirma a ideologia do falcão,
Conforme Adrados, em seu estudo La fabula griega como genero literário, os gregos
não possuem o mérito de serem os inventores das fábulas, mas, ainda que não tenham sido
Quando fala em forma, Adrados (1982, p. 34) refere-se aos elementos formais do
gênero, que podem variar em certa medida, mas que estabelecem certa uniformidade
estrutural, que permite a esses textos serem incluídos dentro do gênero fabular.
relativamente fixa: apresenta uma situação inicial, um conflito, que também pode ser
chamado de enfrentamento (físico ou verbal) e uma conclusão, tal como vimos na ilustração
28
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
Nas palavras de Adrados (1982, p. 39), essa estrutura de texto pode ser considerada
um “tipo central”, privilegiado nas coleções. Entretanto, outras variações formais podem ser
encontradas, como por exemplo, as narrativas em que há um conflito entre duas personagens,
mas que acaba sendo resolvido entre elas próprias, por meio do debate, como se pode
Uma leoa era censurada por uma raposa pelo fato de dar à luz um só filhote de cada
vez. “Um só”, respondeu ela, “porém leão.”
Eis que o mérito não deve ser medido em razão da quantidade, mas tendo em vista
a qualidade. (ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 219)
Vê-se que não houve um confronto físico entre as personagens, mas pode-se afirmar
que a leoa vence o debate, uma vez que deixa a raposa sem palavras devido ao fato de impor
Outras tipologias de atores podem ser observadas, como por exemplo, nas fábulas
constituídas por três personagens, em que o terceiro interfere no conflito, seja como mero
interferindo no conflito pode ser encontrado na fábula A águia de asas podadas e a raposa
(ESOPO apud SOUZA, 1999, p. 9), em que uma águia, tendo sido capturada por um homem
que lhe corta as penas e a põe num galinheiro, passa a viver triste e desolada. Entretanto,
comprada por outro homem que lhe proporciona tratamento adequado para o nascimento e
crescimento de novas penas, a águia, agradecida, arrebata lebres e o presenteia. Uma raposa
observadora faz uma crítica à atitude da águia dizendo-lhe que ela não deveria presentear ao
segundo dono, visto que ele já é bom por natureza, mas ao primeiro, pois, sendo perverso,
águia, o gaio e o pastor, em que um gaio, tomado de emulação por uma águia que abate uma
ovelha, tenta imitá-la sobrevoando um carneiro, mas acaba enredado em suas lãs e capturado
pelo pastor, que lhe corta as asas e o dá de presente aos seus filhos. O pastor é o julgador da
29
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
ação do gaio, pois quando os filhos lhe indagam sobre qual seria a espécie da ave capturada, o
pai lhes responde “Pelo que sei, com certeza é um gaio; mas segundo sua pretensão, é uma
águia”. (ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 15). Esta narrativa mostra que o pastor manipula a
Outras personagens podem agir sozinhas e sofrer um dano por meio de suas próprias
ações, como a doninha, que se põe a lamber uma lima na oficina de um ferreiro e tem sua
constituição do gênero porque, segundo Adrados (1982, p. 34) os elementos que não podem
faltar são os que caracterizam propriamente a fábula como, por exemplo, o fato de ela
autor:
A fábula é um exemplo que mostra algo que se sucedeu no passado como protótipo
de alguma coisa que pode repetir-se a qualquer momento. Atua, assim, como
advertência, crítica ou ensinamento dirigidos por um ‘eu’ a um ‘tu’. (ADRADOS,
1982, p. 35)
O mesmo pode-se afirmar quanto à variação do conteúdo desses textos, que engloba a
temática figurativizada. Como a fábula coloca em cena personagens que dramatizam ações
humanas, ela incluirá nessas ações as paixões e sentimentos negativos e positivos, que
permeiam as atitudes dos humanos. Apenas para citar alguns temas contemplados pelas
fábulas, podemos começar pela condenação às paixões excessivas, como o orgulho da beleza
ou da força física, a inveja, a jactância, o ciúme, a gula, etc. Pode-se, ainda, encontrar severas
críticas aos tolos, que se deixam enganar devido a sua ingenuidade perante os mais
audaciosos, cujo exemplo típico é a raposa astuta. As personagens que desejam alterar sua
30
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
posição social ou condição natural também são passíveis de punições, pois a maioria das
fábulas defende que o homem deve contentar-se com aquilo que é ou com aquilo que tem.
podem advir de diferentes momentos históricos, pois ainda que se trate de um texto ficcional
possível refletir, através da análise discursiva, sobre as ações tipicamente humanas que ora
aparecem exaltadas, ora condenadas. Tais ações podem denunciar aspectos padronizados do
comportamento humano, dos valores culturais e das relações sociais entre os gregos.
Um dos aspectos mais intrigantes e que inquieta a maioria dos estudiosos das fábulas
diz respeito à moralidade acoplada ao texto figurativo. É que, muitas vezes, encontramos
versões de uma mesma fábula com variações na moralidade, como pudemos observar, mais
uma vez, na versão hesiódica de O rouxinol e o falcão em comparação com a versão esópica.
Esta fábula mostra que nada é tão perfeito que não possa, absolutamente,
comportar alguma censura. (ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 369, grifo nosso)
31
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
sente das criações feitas pelas outras divindades. O enunciador utiliza-se do verbo grego
fqonevw, que, juntamente com outros termos correlatos, tem as piores conotações quando
conotações negativas, este verbo se traduz por “invejar”, no sentido de “prejudicar alguém por
causa da inveja”. Zeus interpreta os defeitos apontados por Momo como o resultado de um
sentimento de inveja, que fica claro por meio da frase: “(...) então Zeus, indignado com a
Como a maioria das fábulas costuma punir aquele que teve um comportamento
inadequado, é lícito pensar que Momo mereceu o castigo, pois estava movido pela inveja, que
narrativa. No entanto, o enunciador optou por fazer uma crítica às divindades, que, julgando-
Essa quebra de expectativa dá outra direção à interpretação do leitor, que pode passar a
considerar os apontamentos de Momo como pertinentes, já que tinha sido atribuída a ele a
função de árbitro, é justo que tivesse liberdade de julgamento e expressasse seu parecer.
Em grande parte das fábulas esópicas a moralidade também pode ser antecipada na
voz de uma personagem dentro do próprio discurso narrativo, dispensando o discurso moral.
Um caranguejo tendo subido do mar para a praia, pastava solitário. Uma raposa
faminta avistou-o e, como não tinha o que comer, correu sobre ele e agarrou-o.
Então o caranguejo prestes a ser devorado, exclamou: “Eu, de fato, mereço isto
que me acontece, visto que, sendo marinho, quis tornar-me terrestre.”
32
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
reconhece estar em local impróprio e que, portanto, merece sofrer o dano. A moralidade
generaliza tal atitude e a aplica à vida cotidiana dos homens, mas não deixa de reforçar o
merecimento da punição.
próprio narrador a respeito das ações da personagem, como na fábula As abelhas e Zeus:
As abelhas, ciumentas do seu próprio mel em relação aos homens, foram até Zeus e
rogaram-lhe que lhes concedesse força para ferirem, com seus ferrões, aqueles que
se aproximassem dos favos para os saquear. Então Zeus, indignado com elas por
causa dessa maldade, preparou-as para perderem o ferrão sempre que picassem
alguém, e para serem, logo após, privadas da vida.
Esta fábula pode ser aplicada aos homens demasiados ciumentos que acabam
por se prejudicar a si mesmos. (ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 5, grifo nosso)
o fato de as abelhas perderem o ferrão e serem levadas à morte após picar um humano. O
enunciador da moralidade estende a lição aos homens ciumentos, advertindo-os de que podem
Variações dessa natureza são comuns nas coleções de fábulas que nos chegaram sob o
nome dos mais diversos coligidores – Esopo, Fedro, Bábrio, etc., e sempre geram análises
divergentes.
antes da narrativa, recebe o nome de promítio, e é muito comum nas fábulas atribuídas ao
escritor latino Fedro, responsável por introduzir o gênero fábula na literatura romana. Sua
obra é constituída de cerca de cem fábulas escritas em versos, e todas são transcrições das
33
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
Vejamos, a título de exemplo, a fábula fedriana O cão que levava um pedaço de carne
por um rio.
A frase que destacamos no texto serve para ilustrar o modelo estrutural da narrativa,
que coloca a moralidade antes de iniciar a história. Dessa forma, o poeta norteia a leitura, pois
o leitor da fábula é induzido a pensar que o dano sofrido pela personagem é merecido. O uso
palavra “gula”, que significa “desejo ardente”, “sofreguidão”. Pensamos que o uso de tais
termos não é ingênuo, pois induz o leitor a pensar na ansiedade pela comida como um vício,
agente da ação é o próprio culpado pelo dano sofrido. Dessa forma, não sobraria ao leitor a
possibilidade de condoer-se pelo cão devido ao fato de ele ter se enganado. Como se pode
notar, o discurso da moralidade, sobretudo este, que vêm antes mesmo de o leitor efetivar a
leitura e refletir sobre ela, impõe a leitura que se deve fazer do texto.
Também não é muito diferente no que diz respeito à intenção do fabulista, a estrutura
das fábulas construídas com epimítios. Epimítio é a moralidade instalada depois da narrativa
figurativa e é o único tipo usado nas fábulas de Esopo. Vejamos a mesma história contada
34
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
abocanhar o do outro cão. Ocorreu então que ele ficou sem ambos os pedaços: um
deles não foi alcançado porque nem sequer existia, e o outro, porque fora arrastado
pela correnteza.
Nota-se que a versão esópica não traz, no corpo do texto narrativo, adjetivos que
caracterizam o cão como “ávido”, nem acrescenta, na moralidade, juízo de valor, como
esópica limita-se a narrar os fatos com mais objetividade, mas direciona a história, na
desfecho do discurso figurativo, já é possível extrair uma moral da história. Nesse sentido,
mensagem que o fabulista deseja transmitir? Qual a finalidade deste acréscimo? Esse discurso
moral teria sido acrescentado posteriormente por autores que primavam pela permanência de
A resposta a essas questões está longe de ser respondida seguramente, mas um estudo
denominado The origin of the epimythium, feito por Perry (1940), procura clarificar essas
questões.
O autor aborda a história literária da fábula baseando-se nos três períodos em que,
comumente, se costuma dividir a literatura grega, afirmando que cada um deles marca a
Como já foi dito, no período arcaico, os escritores relatavam a fábula com referência a
situações específicas, quando, por exemplo, o narrar um conto pode ilustrar uma situação que
o próprio autor deseja expressar. Pode-se ainda considerar que, nesta época, o uso da fábula
como prática discursiva era o único meio de veicular a fábula dentro da literatura. Outro fator
35
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
a ser destacado é que, quando autores usavam a fábula como prática discursiva, ela tinha uma
aplicação específica e, muitas vezes, Esopo era mencionado como tendo sido o orador daquela
fábula que conseguiu convencer o ouvinte em dada situação. Assim, o epimítio era oral e
essas fábulas foram recolhidas e compiladas pelos oradores para usá-las como ilustração em
seus discursos. Nota-se que ela continuava sendo usada como exemplo, com a diferença de
que esses compiladores escolhiam as fábulas que eram convenientes a eles para ensinar aos
estudioso afirma que esses autores tinham pretensões literárias e acabavam escrevendo seus
textos para beneficiar aqueles que desejavam fazer uso de seus materiais, endereçando-os para
podem ser explicados através do fato de esses autores terem compilado essas coleções sob seu
próprio nome. A partir de tais reflexões, Perry (1940) afirma ser possível pensar que o
acréscimo do epimítio ou promítio em todas as fábulas era usado como um tipo de explicação,
possam ser explicados avaliando-se que, quando usados em situações específicas, não se
encaixariam fielmente nas fábulas das coleções porque elas não eram capazes de fornecer o
cenário e o contexto em que eram ditas. No entanto eles foram mantidos e podem ter
36
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
moralidade já está claramente definida no discurso narrativo. Ele explica que a moralidade
explícita ou implícita, sempre esteve atrelada ao final da narrativa, mesmo num contexto de
explicação adicional, pois achavam que apenas o final da história não estava suficientemente
firmado a ponto de transmitir o ensinamento que desejavam. Dessa forma o uso do epimítio
relacionada ao fato de este tema ser bem freqüente na literatura grega e possuir características
gregos a respeito do trabalho, pois, ora ele é retratado positiva, ora negativamente.
sociais em que o trabalho aparece documentado, mas também na forma em que ele aparece
retratado ao ser transportado para o ambiente literário, nos mais variados gêneros que o
trabalho. Crémilo, um agricultor pobre e dono de um único escravo denominado Carião, que o
acompanha por toda a parte, consulta o oráculo do deus Apolo porque anda preocupado com o
futuro do filho. O que Crémilo buscava saber era se, para vencer na vida, seu filho deveria ser
bom ou mau.
10
ARISTÓFANES. Pluto (a riqueza). Tradução de Américo da Costa Ramalho. Coimbra: Centro de Estudos
Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 1982.
37
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
homem que encontram à saída do templo e o persuadem a ir até a casa de Crémilo, pois este
acreditava que naquele homem estaria a resposta a todas as suas aflições. O homem cego e
cegado por Zeus devido ao fato de beneficiar somente os homens justos. De acordo com os
desígnios de Zeus, Pluto, estando cego, não veria a quem favorecer com seus tesouros.
Crémilo promete a Pluto que o levará ao templo de Asclépio para que este o cure da
vontade de Zeus. Pouco antes de saírem, encontram uma mulher magra, pálida e desanimada,
dizendo ser a Pobreza. O diálogo que segue após esse encontro é muito instigante,
Pobreza, quando esta tenta justificar os benefícios de sua presença na terra e os malefícios que
Pluto traria aos humanos, caso voltasse a enxergar. A conversa começa com a fala do
agricultor:
38
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
provocaria a falta de mão-de-obra para o trabalho. Nota-se uma rejeição à mobilidade social
trabalhar, cada um teria de produzir o essencial até mesmo para a própria sobrevivência.
Nesse sentido, podemos pensar que a Pobreza era essencial para manter os serviços que os
mais pobres prestavam à camada social mais abastada e, por que não dizer, beneficiada, pelo
deus da Riqueza.
econômicas que Pluto provoca ao recuperar a visão. Uma personagem identificada como
homem Justo traz as vestes rasgadas e sujas em oferecimento ao deus, em gratidão por ter sido
39
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
causava malefícios às pessoas de bem, torna-se pobre e sofre vexames quando é despido, em
praça pública, e abandonado pela testemunha que outrora o apoiava. Uma idosa rica e
possuidora de um amante jovem e bem apessoado, que antes ficava ao seu lado apenas em
troca de alguns presentes, agora é abandonada pelo rapaz, pois este, tendo se tornado rico,
enamora-se de uma bela jovem e desdenha da falta de dentes da velha, expondo-a ao ridículo.
reclama que está faminto e que não recebe mais oferendas depois que os homens
enriqueceram, já que eles não necessitam mais do auxílio dos deuses para obter algum
benefício. O caos provocado por Pluto é tamanho, que o próprio Hermes abandona seu posto
situação econômica na terra está melhor que no Olimpo. Outra situação inusitada é o fato de o
próprio sacerdote de Zeus, tendo ido conversar com Carião sobre a situação dos deuses, diz :
“Portanto, também eu creio que vou mandar passear Zeus Salvador e ficar aqui mesmo”. (vs.
1186-1187). Por fim, todos decidem pelo retorno de Pluto ao seu lugar de origem – o templo
da deusa Atena12.
Embora o caráter cômico da peça seja inegável, ela pode apontar duas noções
indesejável, é com o trabalho que a ordem social e econômica se estabelece, pois cada qual
cumpre sua função quando desenvolve alguma atividade. De acordo com a Pobreza, a riqueza
até mesmo o essencial. Nesse sentido, podemos pensar que o trabalho é um círculo vicioso,
pois, mesmo estando ricos, os homens teriam de trabalhar da mesma forma ou mais do que
11
De acordo com os gregos, o sicofanta era um delator ou acusador, mas tem seu sentido estendido aos
caluniadores, mentirosos, e aos que prestam informações falsas à justiça para beneficiar-se.
12
Era neste templo, o Pártenon, que ficava guardado o tesouro público. (Cf. Pluto, p. 108)
40
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
trabalhavam antes, quando eram pobres, denotando a permanência do trabalho. A nosso ver, a
noção de castigo está implícita aqui, pois mesmo que enriquecessem os homens estariam
fadados ao trabalho13.
Hesíodo para que os argumentos favoráveis que profere sobre o trabalho convençam seu
irmão Perses a trabalhar, já que, nesse contexto, o trabalho é uma forma de manter-se em
comunhão com os deuses. Em outros momentos, o poeta atribui valores disfóricos ao ato de
trabalhar, pois figurativiza-o, mitologicamente, como um castigo enviado aos homens por
Zeus.
O exame das epopéias homéricas também chama a atenção, pois o poeta figurativiza
várias formas de trabalho e trabalhadores ao longo das cenas que descreve, ainda que o olhar
homérico seja voltado às riquezas e belezas de reis, deuses e heróis. Há cenas que descrevem
o trabalho escravo sendo executado nos palácios, mas também podemos encontrar nobres e
caráter ambíguo do tema, já que essas personagens não necessitam trabalhar para sobreviver
são consideradas, indubitavelmente, importantes fontes históricas. O relato desses poetas está
valores inaugurais da cultura, que podem diferir dos valores e modelo de homem de séculos
posteriores.
No que toca às fábulas, como foi explanado no decorrer deste capítulo, há narrativas
muito antigas, como por exemplo, O rouxinol e o falcão, fábula citada anteriormente e que
13
A noção de castigo encontra-se documentada por Hesíodo e será explorada no capítulo III.
41
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
aparece inserida na poesia de Hesíodo, cuja origem remonta ao período arcaico. Outro
exemplo é a fábula O pescador que tocava flauta14, mencionada pelo historiador Heródoto,
Estimamos que tanto essas narrativas que remontam ao período arcaico como as
posteriores podem deixar entrever, através da figurativização discursiva e dos valores que o
enunciador atribui a seus atores, aspectos sociais de momentos distintos da civilização grega.
A título de exemplo, podemos citar as próprias fábulas que tematizam o trabalho, pois ora elas
apontam elementos que remetem ao trabalho agrícola, tipo de trabalho comum de ser
encontrado em qualquer período do mundo antigo, ora indicam situações de trabalho que
remetem a certas profissões e formas de trabalho que não sabemos ao certo em que período
narrativas deixam transparecer por meio das ações e pensamentos das personagens envolvidas
Assim, pensamos que as fábulas, ainda que sejam ficcionais e construídas sob o crivo
A leitura atenta das fábulas mostra que todos os textos que tematizam o trabalho
possuem ao menos uma personagem que se posiciona contra o ato de trabalhar. Muitas vezes,
esse posicionamento não é apenas verbal, uma vez que as personagens agem, tomando alguma
atitude que possa libertá-las dos seus afazeres. Normalmente, as personagens que se rebelam
transportadores de cargas, vigias, caçadores, etc.; mas qualquer que seja a atividade que
venham a realizar, elas procuram livrar-se do trabalho a qualquer preço, solicitando auxílio
divino ou tomando atitudes próprias. Raras são as personagens que revelam simpatia pelo
trabalho, e quando isso acontece, geralmente elas representam “aqueles que trabalham para
14
HERÓDOTO. História. I, 141.
42
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
si” na própria lavoura ou no próprio negócio, ou podem, ainda, figurar como opressoras de
como recompensa pelo trabalho, ora como a figurativização do próprio trabalho. No primeiro
caso é o prêmio pelo trabalho executado em outros setores que não o agrário; no segundo
caso, que representa o setor agrícola, o alimento é trabalho e recompensa ao mesmo tempo.
Outro aspecto interessante é que todas as personagens que consideram o trabalho o pior dos
males e agem por conta própria para livrarem-se dele, sempre sofrem danos maiores no final
da narrativa. Esses danos podem aparecer figurativizados pela morte, violência física, pelo
aumento de trabalho como forma de punição, pela privação de alimentos, etc. Tais
por ter prejudicado a si mesma; já nos casos em que há morte, outras personagens figuram na
figurativo, reforçando que não se deve nem deixar de trabalhar, nem tomar qualquer atitude
para livrar-se do trabalho. O enunciador do discurso moral sequer menciona os motivos que
levaram as personagens a tomar atitudes, muitas vezes, extremas contra o trabalho, ainda que
moralidade, por meio dos estudos de Perry, nos levaram a decidir privilegiar a análise do
discurso narrativo. Em primeiro lugar porque, como já dissemos, muitas moralidades não
completamente dela; em segundo lugar porque, partindo da premissa de que se assentam nas
43
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
nota-se que o enunciador recorta do discurso figurativo apenas as conseqüências sofridas pela
dano numa lição de caráter geral, uma espécie de aviso para os que praticarem a mesma ação.
transportado, tematicamente, para o final dela, não explica a aversão das personagens pelo
trabalho e, conseqüentemente, não permite que o leitor, desatento, pondere as razões pelas
quais o trabalho é renegado. Esse jogo discursivo faz com que o leitor reduza o discurso
figurativo a segundo plano, já que ao ler o par – narrativa/moral – contenta-se com a lição que
Esclarecemos que o estudo do trabalho nesta tese centra-se nos textos das fábulas
esópicas, tal qual eles aparecem registrados nas coleções. Dentre as edições que circulam
entre nós sob o nome de Esopo, pode-se afirmar que a edição crítica de Émile Chambry,
Aesopi fabulae, publicada em 1925 pela Société d’Édition “Les Belles Lettres”, com o texto
grego e tradução francesa é a mais completa. A segunda versão da mesma obra é uma redução
entre as duas versões é que a segunda foi despojada do aparato crítico que contém a primeira,
contém uma única versão de cada fábula e foi acrescida de informações importantes acerca da
bilíngüe grego-português, traduzida pelo Prof. Manuel Aveleza de Sousa, publicada em 1999.
Esta edição intitulada Fábulas de Esopo integra todas as fábulas da segunda versão francesa e
nos pareceu bastante criteriosa em relação à tradução do texto grego para o português,
mantendo-se o mais fiel possível ao texto original. Por esta razão, optamos pelo exame dos
44
A fábula grega: da tradição oral ao gênero literário
Antes de explorarmos as formas pelas quais a literatura grega retrata o trabalho, faz-se
necessário o exame de estudos filosóficos, sociais e históricos sobre o tema, pois eles podem
45
Considerações sobre a noção de trabalho
CAPÍTULO II
É digno de nota que os gregos, por várias vezes, exprimiam de forma dual seu
explícita quando determinados textos, sejam eles de críticos, filósofos ou poetas, contrapõem
verdade que o trabalho com a lavoura era normalmente elogiado, respeitado e considerado
digno, enquanto o trabalho técnico era constantemente rejeitado e visto, sobretudo pelos
Contudo, não era apenas o trabalho técnico que os gregos viam com maus olhos. O
trabalho forçado das classes inferiores também era objeto de discriminação e repulsa.
Referimo-nos, especialmente, aos tipos de trabalho compulsório que sabemos ter existido
sobretudo em Atenas: o trabalho escravo, o dos servos, o dos homens livres, os escravos por
dívidas, etc. Os gregos evitavam, a qualquer custo, serem reduzidos a alguma dessas
condições, pois elas lhes denegriam a imagem e lhes roubava o tempo e a liberdade. Trabalhar
o dia todo ou estar sob o domínio de outrem era não apenas vergonhoso, mas também indigno
de um cidadão que almejava altas posições sociais e participações na vida política de sua
comunidade.
Antiga.15
15
Cabe salientar que nossas reflexões sempre estarão embasadas nos estudos sobre a cidade de Atenas devido ao
fato de termos maior quantidade de documentos sobre esta comunidade.
46
Considerações sobre a noção de trabalho
autores gregos, possível de ser recuperada através do exame de textos em que alguns tipos de
Aristóteles. Num segundo momento, traçaremos um panorama geral sobre a forma pela qual
esses escritos gregos foram interpretados por estudiosos modernos, já que suas reflexões
apontam duas vertentes sobre o trabalho - uma positiva e outra negativa. Exporemos, então, as
principais reflexões feitas por especialistas no assunto, tais como Moreau-Christophe (1849),
Glotz (1920), Mondolfo (1954), Balme (1984), Vernant (1989) e Arendt (1997).
humanas entre o escravo e seu senhor, enfatizando as reflexões aristotélicas que provocaram
tanta polêmica em torno da escravidão, uma vez que o filósofo dedica um capítulo de sua
também serão examinadas devido ao caráter social e histórico que permeiam seus escritos.
Ressaltamos, entretanto, que a maior dificuldade deste estudo está no fato de haver,
quando fazem distinções entre os diferentes períodos – época homérica, período arcaico e
período clássico - em que se costuma dividir a civilização grega para fins analíticos. Contudo,
ainda que essa divisão tenha sido meramente didática, ela nos ajudou a compreender não
somente as transformações sociais ocorridas ao longo dos séculos, mas, também, as mudanças
todos procuraram desvendar a dualidade que permeia o tema do trabalho e forneceram a nós
47
Considerações sobre a noção de trabalho
importância para o desvelamento das várias facetas do trabalho na Grécia antiga, pois cada
ainda que partindo do exame de textos genuínos não é tarefa fácil. O que chamou nossa
sobre o trabalho, pois não há uma unidade de pensamento entre os estudiosos. Alguns autores,
que dizem embasar-se em fontes gregas, afirmam que o trabalho era mal visto e rejeitado pela
cultura; outros, por meio de exemplos retirados da literatura e também de fontes antigas,
as de maior confiabilidade, a fim de verificar em que medida esses estudos contribuíram para
trabalho que aparecem documentadas nesses textos e verificar se, mesmo nos escritos dos
No que se refere à estrutura social, parece certo que a Atenas Clássica era uma
de vastidões de terras, cujas plantações eram capazes de sustentar sua família e um grande
número de escravos por uma geração inteira. Esses latifundiários reservavam os trabalhos na
lavoura aos escravos, pois, dessa forma, eles teriam liberdade o suficiente para se engajar em
48
Considerações sobre a noção de trabalho
grega16.
Camponeses mais pobres poderiam até ter um ou dois escravos para ajudá-los na lida
com a terra, mas poderia ser necessário que ele colocasse mais de seu próprio tempo no
trabalho agrícola. Alguns poderiam até mesmo ter que praticar outros ofícios ou manter um
pequeno negócio em adição ao trabalho com a terra, já que este não lhes rendia o suficiente;
outros tomavam arrendadas pequenas extensões de terras para o plantio com a finalidade de
sustentar sua família. Este último era o tipo menos almejado, pois recebia o estigma de
“servidor de outrem”, já que teria de dividir suas rendas com o proprietário real das terras e,
camponeses mais pobres tinham menos liberdade para exercer as funções sociais e políticas
Além das atividades agrícolas, as pessoas que não possuíam terras exerciam outros
tipos de trabalho. Os oleiros, sapateiros, ferreiros, comerciantes, artesãos, etc. são exemplos
de profissionais que pertencem à classe dos demiurgos (dhmiourgov") ou seja, aqueles que
exercem uma profissão manual ou que produzem algum tipo de produto. Essas profissões
poderiam ser exercidas tanto por cidadãos livres e sem muitos recursos quanto por
economia da cidade, costumavam ser mal vistos pela sociedade de forma geral, já que o
trabalho tomava-lhes todo o tempo livre e não lhes permitia tomar parte na vida política e
16
É interessante salientar que os gregos, tanto os da classe alta quanto os mais pobres, sabiam lidar com a terra e
dela tiravam o sustento de toda a sua família. Isso pode ser observado não só através dos estudos sobre os
aspectos sociais e econômicos do mundo antigo, mas também nos registros literários. Podemos observar nobres
trabalhando em terras próprias sobretudo nas descrições que Homero faz de seus heróis, conforme se verá no
capítulo seguinte.
49
Considerações sobre a noção de trabalho
tipo social do homem antigo: embora pudesse praticar outras atividades, ele era, na maioria
das vezes, um lavrador típico e isso pode explicar a valorização da agricultura em detrimento
de outras atividades.
determinados tipos de trabalho na Grécia antiga, partiremos dos escritos de Xenofonte, Platão
temas, enfatizamos que nos interessa apenas as questões que tenham ligação direta ou indireta
*Xenofonte
diferença que o homem grego estabelecia entre o trabalho agrícola e o trabalho manual, pois
essas são as duas formas de trabalho que mais aparecem em seus relatos.
juntamente com Heródoto e Tucídides. Mas, de acordo com Anna Lia Amaral de Almeida
Prado, tradutora de Econômico, não se pode estabelecer com propriedade a cronologia, nem
definição de Prado:
50
Considerações sobre a noção de trabalho
sobre o valor do trabalho agrícola e sobre como ser considerado kaljoV" kaiV agaqov"17 entre
os gregos.
de forma geral e a economia doméstica, mas a ênfase recai sobre o fato de, mesmo sendo um
rico proprietário de terras, o homem ter de adquirir conhecimentos que o ajudem na gestão de
seus bens. É nesse sentido que o trabalho agrícola, enaltecido por Xenofonte, se faz
primordial ao homem grego. Diz Prado em relação aos ensinamentos que Sócrates buscou em
Nesse ínterim, Xenofonte (V, 1) faz grande elogio à agricultura e à vida no campo,
dizendo que nem os mais ricos devem se manter afastados da agricultura, pois “esse trabalho,
penso eu, é o mais fácil de aprender, o mais agradável de ser realizado, torna mais belos e
robustos os corpos e ocupa as almas durante tempo mínimo, deixando-as com lazer para
primeiro é o vigor físico do corpo, que não permite aos homens tornarem-se indolentes; ao se
exercitarem, tornam-se viris e não temem o frio ou o calor excessivo. Arar, lavrar a terra e
semear são ações que exercitam o corpo, não permitindo que ele se entregue à preguiça e à
boa vida como, costumeiramente, faz o trabalho realizado no lar. O segundo fator é a guerra,
uma vez que a agricultura ensina os homens a se ajudarem mutuamente, a defenderem seus
17
A tradução dessa expressão é “belo e bom”, adjetivos reservados ao ideal de homem grego e almejados por
todos os cidadãos.
51
Considerações sobre a noção de trabalho
terrenos e a serem disciplinados; da mesma forma como os generais conduzem seus soldados
contra os inimigos, o bom agricultor deve “comprar escravos preparando-os, desde meninos,
para serem agricultores” (III, 10), deve fazer com que todos caminhem juntos, corajosamente,
a fim de defender suas terras quando necessário, pois “os deuses não têm menos em suas
Para sustentar a analogia entre a agricultura e a guerra, Sócrates cita a atenção que o rei dos
persas dá aos assuntos da guerra, oferecendo, aos aliados que vivem em seus territórios, os
suficiente a todo o exército. Da mesma forma o rei age em relação aos assuntos agrícolas:
Além dos aspectos citados acima, Sócrates acrescenta que os reis costumam cuidar
para que haja jardins nas regiões em que residem ou passeiam, a fim de que possam estar em
contato com tudo o que é belo e bom. E termina seu argumento com uma frase dita pelo rei
Ciro: “Por justiça eu deveria receber os dois gêneros de prêmios. Sou o melhor para tratar a
O terceiro fator é o aspecto religioso, pois assim como os homens devem pedir
proteção aos deuses quando vão para a batalha, devem solicitar bonança para suas lavouras:
“sendo uma deusa, a terra ensina também a justiça aos que podem aprendê-la, pois aos que lhe
52
Considerações sobre a noção de trabalho
agricultura em contraposição aos trabalhos manuais18. O autor acrescenta uma hipótese que
sustenta seu argumento quando supõe que, numa invasão inimiga, os lavradores optariam por
defender suas terras, enquanto os artesãos optariam por “não lutar, mas fazer aquilo para o
que tinham sido educados, isto é, ficar em seu canto, sem labutar, sem correr riscos (VI, 6, 7).
Ainda nesta primeira parte da obra, chamam a atenção as várias referências aos nobres
que sabem realizar todos os tipos de trabalhos. A título de exemplo, podemos citar o rei Ciro,
que se orgulhava de ter sido ele mesmo quem plantara as árvores de seu palácio. Disse o rei
Ciro a Lisandro19, certa vez, enquanto este admirava a minuciosidade com que fora calculado
Bem Lisandro! Tudo isso foi eu que plantei e dispus. Algumas árvores, disse, eu
mesmo plantei (...)
(...) Estranhas isso Lisandro? Juro-te, por Mitra! Quando estou bem de saúde jamais
vou jantar antes de suar fazendo um exercício de guerra ou um trabalho agrícola ou
então esforçando-me para conseguir algo (...) (IV, 23-24)
O fato de os nobres saberem realizar bem qualquer tarefa é mais evidente na segunda
parte da obra, quando Sócrates, agora discípulo de Iscômaco, dialoga com ele a fim de receber
ensinamentos sobre como ser um homem belo e bom. Iscômaco narra a rotina que faz desde
seu despertar, tais como: cuidar dos negócios na cidade, fazer caminhada até o campo para
inspecionar a plantação e sugerir mudanças, montar o cavalo como se estivesse saindo para
um combate, etc. Mas, além desses deveres, quando Sócrates lhe pergunta como escolhe seus
18
Na comédia Pluto, o camponês Blepsidemo, também mostra ojeriza ao artesão. Quando constata que há
possibilidade de ele ficar rico, diz: “Sim, por Zeus, eu quero enriquecer e viver regaladamente com filhos e
mulher e, depois de tomar banho, sair reluzente do balneário, a dar peidos para os artesãos e para a Pobreza.” (vs.
614-616)
19
Lisandro era um general lacedemônio aliado de Ciro que, nesta ocasião, havia ido a Megara presentear o rei.
53
Considerações sobre a noção de trabalho
escravos, ajudantes, ou mesmo um carpinteiro, Iscômaco diz que, ao escolher seus escravos
ou qualquer pessoa para trabalhar em seus domínios, ele mesmo ensina o que deve ser feito:
Por Zeus, Sócrates! Disse. Procuro eu mesmo formá-los. Quem deverá estar apto a
cuidar de meus negócios em meu lugar quando me ausento, o que deverá saber
senão o que eu sei? Se sou capaz de ficar à frente dos trabalhos, é claro que posso
ensinar a um outro aquilo que eu próprio sei. (XII, 4)
Nota-se, por meio desta passagem, que um nobre era capaz de realizar qualquer tipo
políticos a serem cumpridos, incumbia as tarefas da casa e do campo aos seus funcionários.
Em suma, Xenofonte (XI) afirma que um homem, para ser considerado kaloV" kaiV
ajgaqov", deve honrar aos deuses para que lhe dêem proteção nas guerras e bonança nas
lavouras, trabalhar na agricultura para retirar dela o sustento de sua família e manter o corpo
saudável e robusto, honrar a cidade, ser benevolente com seus concidadãos, ter consciência
dos deveres a cumprir, enriquecer honestamente, etc. Tais conselhos parecem permanecer
*Platão
perfeita que se conhece. Escrita na forma de diálogos e tendo Sócrates como protagonista,
expõe várias idéias que, em conjunto, irão compor uma cidade ideal.
personagem Sócrates discorre sobre uma particularidade da natureza humana que é o fato de o
homem depender de auxílio material e moral de outros homens. É aqui que Sócrates se
20
Platão. República. Tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1983.
21
Alguns desses discípulos, tais como Lísias, mantém-se mudos, apenas ouvindo Sócrates; enquanto outros
participam ativamente do diálogo, como Trasímaco. Embora não vamos comentar a genealogia e historicidade
de cada figura, vale registrar os nomes: Polemarco, os irmãos Lísias e Eutidemo, Trasímaco, Carmantidas,
Clitofonte, Adimanto e Nicérato.
54
Considerações sobre a noção de trabalho
ocupará da investigação do conceito de justiça e da forma pela qual ela aparecerá refletida no
homem e na cidade que idealiza. De acordo com o filósofo, “uma cidade tem sua origem no
fato de cada um não ser auto-suficiente, mas precisar do outro para sobreviver.” (II, 369b).
suprir essas necessidades – o lavrador, o pedreiro, o tecelão e o sapateiro (II, 369d,e). Aqui,
em primeira instância, temos uma referência ao valor social do trabalho, já que o homem
precisará de alguém que construa sua casa, que lhe forneça os alimentos e lhe confeccione as
artífices, comerciantes, médicos, etc., como sendo parte integrante da cidade. Nota-se que,
neste momento, Platão assegura a importância dessas classes trabalhadoras e reconhece que o
homem necessita executar uma função, pois “cada um de nós não nasceu igual ao outro, mas
com naturezas diferentes, cada um para a execução de sua tarefa” (II, 370b).
segundo o qual “cada um deve ocupar-se de uma função na cidade, aquela para a qual a sua
guerreiros e a dos artífices (os produtores). À primeira, composta pelos próprios filósofos,
cabe o dever de dirigir a cidade, já que eles se consideram à altura de orientar racionalmente
perfeitos da cidade, afirmação confirmada pelos seus próprios dizeres: “(...) será por natureza
22
Cf. os livros II e III, onde Platão critica a imitação, referindo-se sobretudo às obras dos poetas Hesíodo e
Homero.
55
Considerações sobre a noção de trabalho
filósofo, fogoso, rápido e forte quem quiser ser um perfeito guardião da nossa cidade” (II,
376c). A segunda classe representa a força militar e deve cuidar da defesa da cidade segundo
a ordem e escolha dos próprios filósofos, que educaram esses guerreiros; a terceira classe – a
dos trabalhadores - ainda que seja a responsável pelo sustento da economia do Estado ideal,
não ocupa o topo da pirâmide platônica. Ao contrário, reserva-se a ela o mais ínfimo lugar, e
nela estão inseridas todas as profissões citadas anteriormente e vistas como essenciais à
platônico sobre o trabalho. Se os trabalhadores são essenciais e satisfazem tanto o lado social
quanto o econômico de uma cidade, por que o filósofo lhes atribui o último lugar na
pirâmide?
de justiça, nota-se que ele insere a sabedoria, primeira virtude, dentre as qualidades que
concernem aos governantes. Diz Platão: “é à mais diminuta classe e setor, e à ciência que
encerra, ao que ocupa a sua presidência e chefia, que uma cidade fundada de acordo com a
natureza pode ser toda ela sábia.” (IV, 328e). A segunda virtude é a coragem, atribuída tão
somente aos guerreiros da segunda classe, escolhidos e educados pelos filósofos: – “(...) é,
pois, a uma força desta ordem, salvação em todas as circunstâncias de opinião reta e legítima,
relativamente às coisas temíveis e as que não o são, que eu chamo de coragem e tenho nessa
conta, se não tens nada a opor.” (IV, 430b). A terceira é a temperança, virtude que ele atribui
a toda a cidade, sem ser atributo de uma classe específica, definindo-a como “(...) a concórdia,
quem deve comandar, quer na cidade, quer num indivíduo.” (IV, 432a). Por último, enfatiza-
se a mais importante das virtudes e desencadeadora das demais - a justiça – que consiste,
56
Considerações sobre a noção de trabalho
basicamente, no pensamento de que cada um deve ocupar-se da função para a qual sua
natureza é mais adequada e ter apenas a posse do que lhe pertencer de direito. (IV,
433a,b,c,d,e)
trabalhadora inicia-se na cidade ideal e nas atribuições pessoais das virtudes que o filósofo
atribui para cada classe. Além disso, ele relaciona a divisão de classes com o conceito de
justiça e com o fato de cada um ter de desenvolver a atividade que lhe pertence. Diz ele:
Fica claro, por meio do excerto, que a mobilidade social é vista como um dano
irreparável por Platão. Para ele, a mudança de esfera, sobretudo a de um artífice, que exerce
trabalhos manuais, para a esfera intelectual, que compreende o trabalho do governante, deve
Vejamos, a título de exemplo, um excerto que diz respeito às críticas do filósofo à imitação:
- Portanto, se a alguém compete mentir, é aos chefes da cidade, por causa dos
inimigos ou dos cidadãos, para benefício da cidade; todas as restantes pessoas não
devem provar deste recurso (...)
- Logo, se apanhar alguém a mentir na cidade daqueles que são artífices, ou
adivinho, ou médico que cura os males, ou construtor de lanças, castigá-lo-á, a
57
Considerações sobre a noção de trabalho
título de que introduz costumes capazes de derrubar e deitar a perder uma cidade,
tal como se fosse um navio. (III, 389b,c,d)
É interessante atentar para esse discurso que não condena a mentira quando ela é dita
por algum representante da classe governante porque, segundo o filósofo, ele certamente
mentiria para o bem da cidade. Mas os homens comuns seriam castigados se utilizassem esse
recurso, pois, a mentira contada por um trabalhador de classe inferior não seria de modo
algum útil à cidade (ou aos governantes?). Nas entrelinhas, extrai-se uma visão
preconceituosa e elitizada, já que, até na prática de vícios, apenas a classe dos governantes é
favorecida. Entendemos, assim, que os trabalhos dos guardiões, executados pelo intelecto –
estabelecimento das leis e cuidados com as questões políticas – são superiores aos dos demais,
responsáveis pelos trabalhos manuais, fato que fortifica uma ideologia hostil em relação a
Outra rejeição explícita se faz presente no livro II, quando Platão fala sobre o trabalho
- Mas há pessoas que, ao verem isto, se colocam neste serviço. Nas cidades bem
administradas, são geralmente os mais débeis fisicamente, e inúteis para qualquer
outro trabalho. De fato, têm de permanecer ali pela praça pública para comprar, por
dinheiro, aos que precisam vender alguma coisa, e novamente para vender, por
dinheiro, aos que necessitam fazer alguma compra (...)
(...) - Há ainda uns outros servidores, segundo julgo, que, pelo seu intelecto, não
seriam muito dignos de serem admitidos em nossa comunidade, mas são
possuidores de uma força física suficiente para trabalhos pesados. Esses vendem a
utilidade de sua força e, como chamam ao seu preço “salário”, designam-se, julgo
eu, por assalariados. Não é assim? (II, 371c,d,e)
que exija esforço e é adjetivado pelo filósofo como tendo um “corpo inútil”. No segundo
23
Platão difere um do outro. O comerciante vende os produtos no comércio local, em praça pública; o negociante
viaja por outras cidades para vender produtos.
58
Considerações sobre a noção de trabalho
excerto a crítica tem a ver com o fato de esses trabalhadores receberem dinheiro pelo trabalho,
Até aqui, exploramos alguns aspectos da obra platônica que deixam transparecer uma
inferir a partir de outros excertos, uma visão positiva. É possível extrair um olhar benevolente
do filósofo sobre o carpinteiro, tomado como modelo de progresso, no momento em que narra as
diferentes reações sentidas pelas pessoas mais abastadas e pelas pessoas pobres, quando elas adoecem.
seus males físicos para dedicar-se ao trabalho. A viver doente, o trabalhador prefere a morte.
Outro exemplo pode ser retirado do livro VII, momento em que o diálogo volta-se aos
pré-requisitos que os estudantes de filosofia devem ter para serem escolhidos como chefes.
o estudo. “Tem de se procurar também a memória, a força e gosto pelo trabalho (filovponon)
- Em primeiro lugar, quem empreende este estudo não deve claudicar no amor ao
trabalho, sendo em metade das coisas esforçado, e na outra metade inativo. Isso
acontece quando alguém tem gosto pela ginástica e pela caça, e faz de boa vontade
todos os esforços físicos, mas não gosta de aprender, nem de escutar, nem de
investigar, antes, detesta os esforços desta espécie. Claudica também aquele cujo
amor pelo trabalho (filoponiva/) tomou a direção oposta. (VII, 535d)
Os últimos excertos apontam que, mesmo tendo enfatizado a oposição entre a vida
59
Considerações sobre a noção de trabalho
conhecimento humano. O modelo do carpinteiro mostra que a vida não é digna de ser vivida
Platão como essencial à convivência entre os membros da comunidade, pois ele é necessário
para satisfazer as necessidades mais urgentes da vida, sem a qual o homem não evoluiria para
estágios superiores. Por outro lado, nota-se uma supervalorização do trabalho intelectual em
detrimento do trabalho manual, já que o filósofo afirma, em um dos excertos citados (IV,
334a), que uma mudança extrema de classes (de artífice a guerreiro ou governante) causaria
*Aristóteles
Diferentemente de Platão, Aristóteles não vislumbra uma cidade ideal, mas reflete
sobre uma cidade real, a pólis grega, onde os indivíduos são considerados seres políticos. No
“Fica evidente, pois, que a Cidade é uma criação da natureza, e que o homem, por
natureza, é um animal político (isto é, destinado a viver em sociedade), e que o
homem que, por sua natureza e não por mero acidente, não tivesse sua existência na
cidade, seria um ser vil, superior ou inferior ao homem.” (POLÍTICA, I,1)
Essa condição de “ser político” do homem reforça a oposição entre política e trabalho,
livres, etc., e Aristóteles acrescenta que são profissões em que o homem dedica-se o tempo
60
Considerações sobre a noção de trabalho
todo a um ofício, não tendo tempo disponível, portanto, para os assuntos relacionados à
permitido a essas classes participar do governo. É a partir deste momento que a oposição entre
“(...) quando a classe dos agricultores e a dos que têm poucos bens possui o poder
supremo, o governo é administrado de acordo com a lei, pois os cidadãos têm de
viver pelo seu labor (ejrgazovmenoi), e não podem dedicar-se ao ócio (scolavzein).
Assim, eles se sujeitam à autoridade da lei e reúnem-se em assembléias só quando
necessário. Todos obtêm o direito de participar do governo quanto atingem a
qualificação pela posse de bens fixada por lei (...) mas o ócio necessário à
participação constante nas assembléias não é possível ao cidadão que não tem
posses (...)”
“(...) Uma outra espécie vem da distinção que se segue em uma ordem natural; nela,
cada um que tenha direito, por nascimento, é elegível, mas, na verdade, só participa
do governo aquele que tem recursos para poder se dedicar ao ócio (...)”
“(...) Um terceiro tipo é quando todo homem livre tem direito de participar do
governo, mas não participa dele efetivamente pelos mesmos motivos que dissemos
antes (...)” (POLÍTICA, IV, 6)
que, para ele, faltava virtude nos trabalhadores manuais, pois todos aqueles que trabalhavam
(...) os cidadãos não devem viver de trabalhos manuais ou de comércio, pois esse
tipo de vida é ignóbil e contrário à virtude. Nem devem ser agricultores, já que o
ócio é necessário, tanto ao desenvolvimento da virtude quanto à prática dos deveres
políticos. (POLÍTICA, VII, 9)
Devemos considerar que, quando o filósofo inclui os agricultores neste excerto, não
está referindo-se aos grandes latifundiários, que possuíam muitos escravos para o serviço nos
campos. Trata-se, na verdade, dos pequenos proprietários de terras que, muitas vezes, não
possuíam ao menos um escravo para ajudar-lhes na lavoura. Esses camponeses que produziam
apenas o necessário para sua sobrevivência eram classificados como “escravos do trabalho.”
61
Considerações sobre a noção de trabalho
tipo ideal de cidadão e exclui os artesãos de seu conceito de cidadania. Ele diz que, em
tempos mais antigos, a classe dos artífices era constituída de escravos e estrangeiros e é por
esta razão, por estarem sujeitos a trabalhar por necessidade, que não deveriam ser
“(...) A melhor forma de Cidade não deverá admitir os artífices como cidadãos, mas
se forem admitidos, então nossa virtude não se aplicará a todo cidadão e homem
livre, mas apenas aos cidadãos isentos de atividades servis. Aqueles que prestam
serviços nas necessidades da vida aos indivíduos são escravos, e os que trabalham
para o público são artífices ou assalariados (...) nenhum homem poderia praticar a
virtude tendo uma vida de artífice ou assalariado (...)” (POLÍTICA, III, 5)
além do preconceito nítido contra os trabalhadores manuais, ele reprovava qualquer tipo de
trabalho por meio do qual o homem recebesse um salário, pois este faria com que os homens
Ele afirma que havia várias formas de constituição e poderia ser que algumas cidades
ricos. No entanto, o filósofo nos dá como exemplo a cidade de Tebas, na qual “havia uma lei
pela qual nenhum homem que exercesse o comércio poderia exercer alguma magistratura; só
o poderia fazer se estivesse afastado daquela atividade há pelo menos dez anos.” (L.III, Cap.
V)
Em linhas gerais, pelo menos nas referências sobre a cidade de Atenas, um cidadão era
uma pessoa de posses de terras consideráveis, nascido de pai e mãe atenienses, provido de
virtudes cívicas e com tempo livre para participar do governo, das questões que envolviam a
justiça e as magistraturas (MOSSÉ, 1999, p. 33-45). Havia, porém, cidadãos menos abastados
que, por serem filhos legítimos de atenienses, também recebiam essa titulação. Contudo, a
rotina de um cidadão nobre era muito diferente daquela de um cidadão comum. O nobre
62
Considerações sobre a noção de trabalho
possuía escravos para os trabalhos domésticos e a lavoura, já que, em sua maioria, eram
grandes proprietários de terras; conseqüentemente, esses homens tinham tempo livre para a
para sobreviver e, muitos deles, não possuíam escravos, sendo impedidos, assim, de participar
Mas não era apenas por roubar o tempo livre e impedir que o homem tomasse parte
nas decisões políticas que o trabalho era mal visto por Aristóteles. Em Ética a Nicômaco, o
filósofo diz que o trabalho impedia, também, que o homem buscasse a felicidade, objetivo
principal do ser humano. Em sua concepção, a felicidade era uma atividade do espírito que
tempo livre: “Ademais, pensa-se que a felicidade depende do lazer (scolavzein), pois
trabalhamos para poder ter momentos de ócio, da mesma forma que fazemos a guerra para
assuntos relacionados à guerra, que se distinguem das demais atividades por sua nobreza e
grandeza:
associa com o conceito de felicidade. A atividade intelectual não é cansativa, permite o lazer e
o tempo livre para o ócio. Implicitamente, percebe-se uma referência à infelicidade do homem
63
Considerações sobre a noção de trabalho
comumente utilizados para denotar o lazer ou o tempo livre. As palavras ajergiva e scolhv -
não são a mesma coisa. A ajergiva significa “inércia”, “preguiça”, assim como o adjetivo
ajergov9, que quer dizer “ocioso”, “preguiçoso”, “insolente” e tem as mesmas conotações que
a palavra “preguiça” tem para nós. Já o termo scolhv significa “lazer”, “tempo livre”,
O verbo scolavzw parece exprimir melhor as idéias do filósofo, pois significa “ter
tempo para”, “estar livre de algo”, “descansar de uma ocupação”, “dedicar-se”, “consagrar o
tempo a algo”, “ser discípulo de”, “estar desocupado”. Portanto, uma vida de scolhv não era
considerada uma vida de preguiça, mas uma vida em que se reservava tempo livre para
dedicar-se a outras ocupações que não o trabalho. E é este termo grego que encontramos nos
Nota-se que, pelo menos nas duas obras aristotélicas examinadas, não há elogios ou
preceitos positivos sobre trabalho, e seu discurso não polemiza com o de seu antecessor no
que se refere ao trabalho assalariado, pois tanto Platão quanto Aristóteles repudiam qualquer
A nosso ver, Aristóteles enfatiza, de forma mais agressiva, que o trabalho priva o
Dentre os estudos que serão citados aqui, é possível apreender um consenso entre os
períodos históricos por meio dos quais a história da Grécia é comumente dividida, e aparece
64
Considerações sobre a noção de trabalho
mais nitidamente com a ruptura entre cidades de regime agrícola e comercial. Comecemos
civilização ter sido retratada por Homero nos poemas Ilíada e Odisséia.
De fato, nesse período a economia era essencialmente agrícola e a terra era o bem
econômico de maior prestígio no que se refere a poder político e social. É provável que o
trabalho com a terra fosse, em sua maior parte, realizado por populações escravas
possuíam escravos.
Quanto a outros tipos de atividades que não a agrícola, não possuímos, neste período,
muitas informações. O que podemos afirmar é que Homero descreve cenas em que outros
Moreau-Christophe (1849, p. 6-7) e merece ser explanado. Diz o autor que, nos tempos de
degradantes. Ao contrário, vários deles asseguravam, aos homens livres, certa distinção entre
construção, sobretudo aqueles que trabalhavam com madeiras ou com metais, que davam aos
É de Homero que o autor extrai essas informações. Homero24 diz: “como uma torre era
o escudo que Ájax sobraçava, todo ele de couro e bronze, composto que fora por Tíquio, o
mais hábil dos correeiros, que em Hila morada opulenta possuía”. (Ilíada, VII, vv 219-221).
24
As citações foram retiradas, em sua totalidade, de HOMERO. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de
Janeiro: Ediouro,1996.
65
Considerações sobre a noção de trabalho
Posidão (Ilíada, VII, vv. 452-453) pergunta a Zeus se “as muralhas construídas com tanto
exemplo de homem que queria recuperar sentimentos heróicos em favor do trabalho para
institui-los em sua cidade. Ele afirma que este legislador foi o primeiro a incentivar a prática
do comércio, das artes e profissões manuais na intenção de melhorar a vida da classe baixa e
enriquecer a cidade-estado pela indústria. Para isso, edita várias leis contra a ociosidade,
considerando-os inúteis e perigosos à sociedade. Ele fazia com que cada um conhecesse os
uma refeição gratuita no Pritaneu e lhe cedia uma cadeira de honra nas assembléias públicas.
Glotz (1920, p. 196-197) compactua desse aspecto favorável explanado acima e fala
sobre uma lei que dizia que “os filhos não teriam que alimentar os pais se estes não o tivessem
feito aprender uma profissão26.” O autor cita idéias positivas em relação ao trabalho também
no governo de Péricles, que afirmava não ser a pobreza uma desgraça, mas nada fazer para
afastá-la é que era desgraça maior. Nessa lei dos homens havia interesses ao mesmo tempo
públicos e privados, interesses de profissão e de cidade. Era através desse jogo de interesses
apenas a cidade, mas, também, formava-se uma nova classe, que poderia obter o título de
25
É possível encontrar, tanto na Ilíada quanto na Odisséia, referências a ferreiros, dançarinos, adivinhos,
cantores, arquitetos, etc. Tais profissionais são mencionados quando prestam algum serviço nos palácios. Cf.
Adrados. R. Introducción a Homero.Barcelona: Editorial Labor, 1984.
26
A referência ao fato de alguém ter de aprender uma profissão também aparece documentada na comédia Pluto,
no diálogo entre Justo e Sicofanta, quando o primeiro, indignado, interroga o segundo sobre seu trabalho,
dizendo com espanto: “(...) afinal, o quê? Não aprendeste um ofício?” (PLUTO, vs. 904)
27
MOSSÉ (1993, p. 44) afirma que era comum, em Atenas, o acesso à cidadania pela via ilegal. As pessoas que
enriqueciam compravam o depoimento de alguns atenienses que se deslocavam para os tribunais com a
finalidade de declarar-se parentes desses novos ricos. Com isso, faziam-se admitir no corpo cívico e eram
considerados cidadãos.
66
Considerações sobre a noção de trabalho
afirma que, na Grécia antiga, havia uma atitude positiva e outra negativa em relação ao
trabalho e pontua os períodos dizendo que, de Hesíodo a Sócrates, a consciência pública grega
O estudioso afirma que esta atitude positiva continuou a exercer tal força que mesmo
Platão era incapaz de libertar-se completamente desta influência, uma vez que é possível
apreender, dos escritos platônicos, tanto o valor econômico quanto a consciência do valor
moral do trabalho. Enquanto valor econômico, permanece a visão de que somente através dele
o homem pode suprir todas as suas necessidades, e, enquanto valor moral, postula-se que o
trabalho é um dever que o homem deve cumprir em sua vida para ter justiça e dignidade. Seu
estudo ainda aponta várias pessoas afamadas que insistiam no valor do trabalho. Dentre elas,
(MONDOLFO,1954, p. 1-5).
trabalho. Ele afirma que, no início da tradição, o trabalho era virtuoso e necessário e há
evidências históricas que confirmam tal asserção, pelo menos na maioria das cidades. A título
de exemplo, também cita Tales de Mileto, para o qual a preguiça era uma dor e, mesmo
O autor também cita Sólon, dizendo que ele era maníaco por trabalho. Ele acrescenta
que, na época de Sólon, o trabalho não era uma vergonha e não havia distinções entre os
comerciantes e artesãos. Em alguns de seus poemas, o legislador grego não nega que gostaria
de ser rico, mas rejeita os ganhos desonestos porque acredita que Zeus pune os injustos. Ele
lista várias profissões por meio das quais os homens podem adquirir riqueza justa. Dentre elas
67
Considerações sobre a noção de trabalho
distinção de valor entre as profissões. O trabalho dos artesãos é tão honrado quanto o dos
Para ilustrar tal afirmação, Balme (1984, p. 142), assim como Moreau-Christophe,
parte de Homero. Para ele, as atitudes de Homero em relação ao trabalho dos artesãos estão
muito longe de serem vistas como reprovadoras. O poeta considerava os artesãos como
demiurgos, homens que trabalhavam para outras pessoas, mas afirma que havia algo de
honroso neles: estavam incluídos entre médicos, cantores e adivinhos. O estudioso afirma não
haver dúvida, para Homero, de que esses profissionais eram ensinados e patrocinados por
deuses como Atena e Hefesto, assim como os cantores eram ensinados pelas musas, e os
adivinhos por Apolo. Homero parece ter grande admiração pelos artesãos porque são
(...) Entrou
em ação Palas Atena. A arte divina robusteceu-lhe
os membros. Os cabelos encaracolados pareciam
jacintos. Tomemos um escultor, um que, discípulo de
Hefesto e Atena, produz estátua de prata revestida
de ouro. Instruído no segredo das artes saem-lhe
das mãos obras maravilhosas. Com a mesma sedução
revestiu a Deusa a cabeça e os ombros de Odisseu (...)
(Odisséia, VI, v. 228-235)
Como pudemos notar, os estudiosos citados afirmam que o artesão era tido em alta
estima por Homero, o que sugere que, no início da tradição, o trabalho não tinha um caráter
plenamente depreciativo.
visões positivas em relação ao trabalho, agora mostram os preceitos negativos em torno dessa
questão. Para eles, tais preceitos estão ligados às novas ideologias do período clássico e à
68
Considerações sobre a noção de trabalho
noção de cidadão, fortemente marcada neste período. É o trabalho manual seguido do trabalho
considerado contrário aos dogmas da liberdade e condição de cidadão. Todo cidadão era
soldado, vivia num acampamento. Esparta era uma nação distante do trabalho pela própria lei.
profissional, mas a uma arte qualquer, como o trabalho de um cantor ou de um poeta, por
exemplo. Diz terem desdenhado do próprio Hesíodo, chamando-o de “poeta dos hilotas” por
afirmando que lá, os lojistas que tivessem se dedicado a qualquer tipo de negócio na ágora
eram excluídos das magistraturas e só poderiam retornar a essas atividades depois de dez
anos. Ele acrescenta que essa prática não era estendida apenas aos que fabricavam, mas a
todos os que compravam os produtos dos lojistas com a finalidade de revendê-los, pois o
título de cidadão era incompatível com o exercício de qualquer profissão. Nesse sentido,
aquele que comprava para revenda caracterizava outra profissão, logicamente, condenada por
envolver dinheiro.
O autor continua dizendo que, mesmo em cidades que vigoram idéias mais
classe mais confortável não tinham profissão. Um cidadão era um verdadeiro nobre que
nobres eram livres todo o tempo para velar por sua força corporal e intelectual e pelos
interesses da cidade.
69
Considerações sobre a noção de trabalho
É certo que havia profissões exercidas por cidadãos menos abastados, mas estas eram
compartilhadas com os escravos, o que fazia com que esses cidadãos sentissem vergonha em
Um homem que trabalha, que faz um serviço manual, é um ser degradado e sem
valor. A vida sedentária, longe da atmosfera dos encontros políticos, deformava-lhe
o corpo sobre os balcões de seu comércio. A paixão pelo lucro impede que o
espírito seja cultivado e o hábito de se executar pequenos serviços reduz o homem
apenas ao ganho sórdido, à submissão da vontade do outro.
(MOREAU-CHRISTOPHE, 1849, p. 196)
Essas idéias parecem ter sido comumente veiculadas do final do séc. VI a.C até o séc.
IV a.C em Atenas, pois havia uma incompatibilidade radical entre o exercício de uma
profissão manual e o dever de um cidadão. “E como um homem de profissão não pode ser um
homem de bem, é necessário que o homem de bem guie o homem de profissão” (Moreau-
Balme (1984, p. 141) também destaca os aspectos negativos do trabalho, dizendo que
havia uma crença comum, no período clássico, de que os escravos faziam o trabalho pesado
enquanto a maioria dos cidadãos tinha tempo livre para desfrutar de atividades de lazer e,
alguns deles, sobretudo aqueles que cuidavam de questões administrativas da cidade, viviam
às custas do Estado.
cidadão exercesse as atividades políticas porque não restava ao homem o tempo livre
necessário para exercer sua cidadania. Diz-se que o desprezo pelo trabalho manual era
oriundo da nobreza aristocrática que desdenhava da classe trabalhadora por julgar o trabalho
autor para enfatizar a ojeriza do governante Licurgo pelos trabalhos manuais, semelhantes ao
trabalho escravo.
Para Mondolfo (1954, p. 5) “Aristóteles foi responsável por fortificar a atitude hostil
70
Considerações sobre a noção de trabalho
mero trabalho rude dos escravos.” O autor afirma que a maioria dos preceitos filosóficos
negativos em relação ao trabalho até parecia ser, inicialmente, uma orientação comum a todos
os cidadãos atenienses, mas, na realidade, acabou por estimular apenas os nobres, que eram
Os cidadãos comuns, que precisavam trabalhar e não tinham tempo livre para
freqüentar a ágora, foram excluídos socialmente das atividades que envolviam os interesses
políticos da comunidade como um todo, fato que contribuiu para aumentar o preconceito em
relação à sua classe. Na opinião do autor, foram essas expressões de desprezo pelo trabalho
trabalho, mas também aponta os diferentes momentos que podem ter gerado essa divisão de
civilização grega, que compreende o período arcaico, e reservam ao período clássico, atrelado
responsabilizá-lo por ter sido o principal divulgador dos aspectos disfóricos sobre o trabalho.
Talvez os escritos de Aristóteles, por serem mais agressivos, tenham contribuído para a
legadas pelos gregos, sobretudo na filosofia, para formularem suas reflexões críticas. Dessa
forma, concluímos que o aspecto dual que aparece retratado na literatura depende do tipo de
focalização que o enunciador deseja enfatizar e do contexto histórico do qual ele participa,
71
Considerações sobre a noção de trabalho
mas que não deixa de estabelecer relação contratual com a visão de trabalho documentada
mundo antigo, voltam-se para a relação entre o trabalho agrícola e a guerra. O autor faz uma
reflexão sobre a prática dessas duas atividades e postula que, na Antigüidade, “a agricultura
terra é sempre valorizado e está ligado à vida prática, ao esforço do agricultor; é uma forma
O mesmo autor observa que esse tipo de trabalho não faz com que o homem aja sobre
cultua aos deuses para que lhe recompensem com uma boa colheita.
Nesse contexto, a agricultura tem uma ligação estreita com outra atividade que
trabalhos também são denominados érga. Este par – agricultura e guerra - tem a ver, não
apenas com questões de esforço físico, mas está ligado a questões religiosas, muito mais
profundas:
(...) a agricultura e a guerra ainda têm em comum o fato de que nelas o homem
sente sua dependência das forças divinas cujo auxílio é necessário para o êxito de
sua ação. O poder dos deuses é tão absoluto nos trabalhos dos campos quanto nos
da guerra. Não se concebe empreendimento militar sem consultar os deuses por
sacrifícios e oráculos: também não é possível começar trabalhos agrícolas sem
conciliá-los a eles. (VERNANT, 1989, p. 17)
por sua areté, seu esforço e dedicação. Esses dois tipos de trabalho – agricultura e guerra –
72
Considerações sobre a noção de trabalho
aos trabalhos daqueles que vivem uma vida de moleza e despreocupação, que pode ser
figurativizado por outras atividades profissionais, como a dos artesãos, por exemplo, que
realizam um trabalho técnico. Para Vernant (1989, p. 18) “a atividade do artesão pertence a
um campo onde já se exerce na Grécia um pensamento positivo”, o que pode explicar o fato
Dessa forma, tanto a profissão dos artesãos quanto as que surgiram posteriormente,
permitiam aos homens trabalharem sentados e terem uma vida sedentária, ao abrigo do sol,
obrigando-os a cobrar pelo trabalho. Como lhes tomava o tempo livre, essas atividades eram
vistas com desdém e, normalmente criticadas por aqueles que valorizavam apenas o trabalho
Em relação ao vocabulário, Vernant (1989, p. 10) afirma que “o grego não tem um
termo que corresponda a trabalho”, mas algumas palavras são aplicadas para denominar as
um sentido mais amplo de trabalho. Seu uso pode ser encontrado referindo-se às atividades
agrícolas, aos trabalhos nos campos, atividades financeiras, ou, de maneira geral, referindo-se
“ao produto da virtude de cada um, de sua areté – e!rgon. (VERNANT, 1989, p. 10). Esse
termo é freqüentemente encontrado nos Erga, de Hesíodo, poema que atribui um sentido
religioso ao trabalho.
Vernant (1989) também destaca a palavra povno9, aplicada a qualquer esforço penoso
que pode ser sentido como trabalho. A família semântica deste termo traz em si uma carga
negativa, que também pode ser observada na tradução do verbo ponevw, que significa
28
De acordo com Balme (1984, p. 1445), mesmo os filósofos da época clássica, como Platão e Aristóteles,
contrários aos trabalhos que privavam o homem do lazer, viam na agricultura um tipo de trabalho respeitado e
admirado, assim como na guerra.
73
Considerações sobre a noção de trabalho
mal”, “ser malvado”, ou, ainda, através do adjetivo ponhrov9, cuja tradução é “maligno”,
Outros termos citados pelo estudioso são as palavras que designam a produção de algo
exterior, como as atividades do artesão, por exemplo, que podem ser exemplificadas por
termos que possuem a raiz – tek. Como exemplo, podemos citar o verbo tektaivnomai, que
favor”, “ocupar-se dos próprios afazeres”, etc., refere-se “a atividades cuja intenção é
desenvolver uma atividade por si mesma, sem outro objetivo que não seja o exercício de sua
um muro ou uma estátua”; é um fazer criativo ou inventivo, e ainda se estende àquele que
constrói um discurso, uma narrativa. O poeta, por exemplo, é um poihthv9, já que ele constrói
uma poesia.
Tais termos podem ser encontrados em grande parte da literatura grega e nos fazem
refletir sobre as diferenças de sentido que eles podem provocar nos textos, pois o exame dos
estudo posterior, feito por Hannah Arendt, em A condição humana. Um dos objetivos da
74
Considerações sobre a noção de trabalho
Para argumentar essa diferença, Arendt (1997) parte dos Erga, de Hesíodo. Ela
investiga a oposição entre os termos pónos e érgon, previamente estabelecidas por Vernant
(1989). O trabalho da autora ainda nos fornece diversos exemplos que ilustram como as
línguas antigas e modernas faziam esta distinção. A partir de seus estudos, podemos constatar
que outras línguas também possuem pelo menos duas palavras de etimologia diferente para
designar o que para nós, hoje, é a mesma atividade – trabalho - e são usadas como sinônimas.
LABOR TRABALHO
GREGO ponevw ejrgazomai
LATIM laborare facere ou fabricare
FRANCÊS travailler ouvrer
ALEMÃO arbeiten werken
Segundo Arendt (1997, p. 90), nas línguas acima, somente os termos equivalentes a
“labor” têm conotação de dor e atribulação. Ela postula que o desdém dos gregos era pelo
labor e não pelo trabalho. Explica que o labor compreende todas as atividades exercidas com
Assim, todas as ocupações posteriores que eram exercidas para suprir necessidades vitais
também passaram a ser consideradas como labor e, conseqüentemente, vistas com desprezo.
No que toca aos termos gregos, a autora observa que há uma diferença entre o
não designa o produto final, o resultado da ação de laborar. É a palavra ejrgon que originou o
75
Considerações sobre a noção de trabalho
nome do próprio produto do trabalho, como por exemplo, qalavssia e!rga, que significa
“trabalhos do mar”. Para ela, o motivo desta distinção resulta do fato de:
A autora continua dizendo que as exigências do novo tipo de vida consumiam ainda
Historicamente, pode-se afirmar que há uma diferença entre o desprezo com que, nas cidades-
estados gregas eram vistas todas as ocupações não políticas e o desprezo anterior e mais
antigo. O primeiro era resultante do fato de os cidadãos dedicarem todo o seu tempo e energia
à pólis e o trabalho impediria que o fizessem; o segundo tem a ver com as atividades que eram
Os estudos acima mostram que a ausência de um termo único e específico não exclui a
planos ou oposições entre atividades, denunciando possíveis critérios de valor para os tipos de
trabalho realizados.
uso da palavra e!rgon para referir-se ao trabalho, independentemente de ser trabalho agrícola
ou o trabalho dos artífices, mas reserva-se o termo filoponiva/, que pode ser traduzido por
“amor ao trabalho” , em sentido amplo, tanto para os trabalhos intelectuais como para os
manuais.
Do exposto, é possível pensar que, se a literatura faz uma representação dúbia sobre o
trabalho, ora enfatizando os aspectos positivos, ora os negativos, é porque a visão de trabalho
na Grécia antiga não era única, mas dependia da focalização do enunciador. O que parece ter
ficado claro é que as referências à época homérica e ao período arcaico enfatizam sobretudo o
76
Considerações sobre a noção de trabalho
trabalho intelectual.
ideológica que permeia a representação do trabalho na literatura, pois acreditamos que essa
divergência está estritamente ligada às formas de trabalho que eram aceitas ou rejeitadas pela
cultura.
Dentro dos critérios de valor apontados acima, menos espaço social e político há para
as pessoas que praticam o trabalho involuntário, marcado pela escravidão por dívidas, pela
É de Aristóteles que devemos partir, já que o filósofo também causou grande polêmica
ao falar do trabalho escravo. Das questões discutidas por ele no livro I da Política, interessa-
nos refletir sobre a relação entre o escravo e seu senhor. Ele diz que “(...) o senhor é o
proprietário de seu escravo, mas não é parte deste; enquanto o escravo não somente é
destinado ao uso do senhor, mas é parte deste” (I,IV).29 Mais adiante, o filósofo segue dizendo
homem é composto por um corpo e uma alma, sendo esta destinada a comandar e aquele a
A esta questão está associada a analogia entre o escravo e o animal, que, ao ver de
animais, ele considera que o homem é superior aos animais porque estes são suscetíveis de
29
Essa afirmação parece retomar a idéia do escravo-mercadoria, propriedade separável do senhor apenas pela
venda. O senhor tem poder absoluto sobre seu escravo e pode fazer dele o que bem quiser.
77
Considerações sobre a noção de trabalho
Onde quer que se observe a diferença que há entre a alma e o corpo, entre o homem
e o animal, verificam-se as mesmas relações: aqueles que não têm nada de melhor a
oferecer do que a sua força corporal são destinados, por natureza, à escravidão, e
para eles é vantajoso estar sob o comando de um senhor. Por natureza é assim o
escravo: pode pertencer a um senhor (e de fato pertence), e não participa da razão
mais que o grau necessário para modificar sua sensibilidade, mas não possui a razão
em sua completude. Quanto aos outros animais, eles não participam de nenhum
modo da razão; sua sensibilidade não é dirigida pela razão, mas são conduzidos
unicamente pelas impressões que recebem do exterior.
De resto, o uso dos escravos (douvleio") e o dos animais não é muito diferente: com
seu corpo, ambos atendem ao serviço das necessidades da vida. (POLÍTICA, I, V)
Nota-se que ambos – escravos e animais – são comandados pelo mestre, um ser “com
alma”, enquanto os animais e escravos, “seres sem alma”, fornecem assistência corporal para
repudiadas por estudiosos da escravidão. Para Arendth (1997, p. 95), a teoria de Aristóteles
sobre a natureza inumana do escravo foi mal interpretada por muitos estudiosos, que criticam
seus escritos, equivocadamente. Ela diz que, para os gregos, tudo o que os homens tinham em
comum com outras formas de vida animal, era considerado inumano. Ela interpreta o filósofo
como alguém que nega a palavra “homem” para membros da espécie humana que estão, todo
o tempo, sujeitos à necessidade. Se ele não possui a faculdade de deliberar, decidir, prever e
Bradley (2000) observa que a aproximação aristotélica entre o escravo e os animais foi
78
Considerações sobre a noção de trabalho
do ser humano o motivo pelo qual Aristóteles faz essa analogia. Os escravos realizavam, na
maior parte das vezes, trabalhos braçais que exigiam força; por sua vez, os animais de carga,
como cavalos, jumentos e burros, também realizavam atividades pesadas, tais como o
Mas Aristóteles não carrega sozinho a responsabilidade por ter feito analogia entre
escravos e animais. Xenofonte também tem sua parcela de contribuição quando, por meio da
Por meio deste excerto, nota-se o quão familiar era a analogia entre animal e escravo
nos escritos de autores antigos. Além disso, é possível observar, nas palavras do historiador,
que a obediência estava associada à alimentação, uma espécie de recompensa para aqueles
que eram obedientes. Mais adiante, Xenofonte faz uma relação de presentes oferecidos aos
que trabalhavam corretamente, como mantos e calçados: para os que trabalhassem a contento,
menos, ou eram trabalhadores ruins, os artigos eram de qualidade inferior. Tudo de acordo
para se referir aos escravos. Eles costumavam aplicar os termos douvlo9 para “escravos” e
79
Considerações sobre a noção de trabalho
Arendt (1997, p.91) estabelece uma diferença de vocabulário. Para a autora, a palavra
douvlo9 era reservada aos escravos inimigos vencidos em guerra, já que o verbo doulovw
significa “vir a ser escravo”, “viver como escravo”, “estar submetido a algo ou alguém30.”
para o próprio sustento e o de seu amo eram os oijketaiv - criados domésticos, termo cognato
do verbo oijkevw, que significa “habitar”, “morar”, “passar a vida”, “ser governado” ou “ser
dirigido”. Outro verbo do mesmo campo semântico – oijkeiovw – acopla, em seus significados,
“apropriar-se”, “unir intimamente”, “ganhar para si”, “fazer-se amigo”. Tais correlatos
mostram a relação semântica que existe entre os termos citados e a palavra oij~ko9, que
significa “família”, “casa”, no sentido amplo do termo, que engloba até mesmo os escravos:
pertinentes aos escravos domésticos, que estavam mais próximos de seus senhores.
Para a autora, “os gregos achavam necessário ter escravos em virtude da natureza
(ARENDT, 1997, p. 94). E com isso justificavam e defendiam a escravidão: ela era uma
forma de excluir o labor das condições da vida humana e jamais foi uma forma de obter mão-
(apud Bradley, 2000, p. 100) ordena ao seu camponês que se desfaça de todas as coisas
supérfluas que possui: bois exaustos, sem condições de trabalho, gados e ovelhas inferiores,
escravos velhos e doentes, pois todos constituem uma categoria comum; Varrão (apud
30
Ao conferirmos o registro do termo douvleio9 no dicionário, não encontramos o vocábulo explicitamente
traduzido por “escravos de guerra”, mas apenas por “servo” ou “escravo”. No entanto, pudemos constatar que o
dicionário registra o verbo doulovw com os seguintes significados: “tornar alguém escravo”, “subjugar”,
“submeter ao próprio poder”, “escravizar para si” (BAILLY, 1901, p. 158). Esses significados podem ter levado
a autora a concluir que o termo era reservado aos cativos de guerras devido ao fato de o vocábulo sugerir que a
pessoa não nasceu escravo, mas tornou-se um deles.
80
Considerações sobre a noção de trabalho
Bradley, 2000, p. 100) define a forma como a terra é trabalhada e distingue escravos e animais
pela habilidade que os escravos têm de falar, mas ainda percebe um laço comum entre eles
Bradley (2000, p.112) salienta que, tanto para os gregos quanto para os romanos, a
associação entre escravo e animal tinha relação estreita com a forma pela qual essas
sociedades eram organizadas hierarquicamente: “(...) o escravo, por definição, era inferior ao
mestre e mais próximos a outras formas de vida”. Além disso, ressalta-se em seus escritos o
equívoco, pois não há um critério formal, apontado pelos estudiosos, que permita uma
uma dada sociedade e de suas transformações sociais, sejam alguns dos fatores responsáveis
pela ausência de critérios mais específicos que permitam o aprimoramento das reflexões já
Assim, no presente contexto, faremos uso tão somente das fontes comuns a vários
estudiosos no que concerne aos aspectos essenciais para a compreensão do trabalho forçado e
do trabalho escravo. Para tanto, elegemos os estudos de Finley31 (1991) e de Cardoso (1984).
31
Tradução do original inglês Ancient slavery and modern ideology, feita por Norberto Luiz Guarinello. A
obra original data de 1912, razão pela qual a citamos antes de Cardoso (1984).
81
Considerações sobre a noção de trabalho
De acordo com Finley (1991, p. 70), toda vez que uma dada sociedade acumula
riquezas, recursos e poder, e os concentra nas mãos de uma minoria – reis, tribo dominante ou
que esses nobres não realizam: trabalhos na agricultura, na mineração, fabricação de armas,
etc. Na Antigüidade, essa ‘força de trabalho’ acabou sendo obtida tanto pelas forças das
armas, quanto da lei e dos costumes, pois quando não se consegue a cooperação voluntária,
parte-se para o trabalho forçado, que obriga as pessoas de classe inferior a submeter-se às de
O autor prossegue fazendo uma distinção entre trabalhar para si e trabalhar para
outrem:
‘Para si’ não deve ser entendido em sentido estritamente individual, mas
englobando a família, nuclear ou extensa, segundo o caso de cada sociedade
específica. Isso implica que o trabalho das mulheres e crianças dentro da família,
não importa quão autoritária seja sua estrutura, não entra na categoria de trabalho
para outrem, e tampouco a atividade cooperativa interfamiliar, como nos períodos
de colheita. ‘Trabalho para outrem’ implica que não apenas o ‘outro’ se aproprie de
uma parte do produto, mas também que costumeiramente controle, de forma direta,
o trabalho a ser feito e o modo de fazê-lo, seja pessoalmente ou por meio de seus
agentes e administradores. (FINLEY, 1991, p. 69-70)
E foi dessa maneira que o trabalho compulsório assumiu uma variedade de formas,
sempre executado por pessoas escravizadas por dívidas, servos, escravos-mercadorias, hilotas,
A divisão tradicional costuma se dar entre escravo, servo e homem livre, sendo que os
que não são claramente livres ou escravos, costumam ser rotulados de servos, como os hilotas
Quanto aos escravos, é sabido que, sobretudo em Atenas, a escravidão ocupou papel
de destaque na vida econômica e social dos gregos. No período arcaico havia grandes
domínios rurais cultivados apenas por escravos. Em sua maior parte, os cativos eram espólios
de guerra ou escravizados por dívidas; normalmente, haviam perdido suas raízes, amigos,
82
Considerações sobre a noção de trabalho
etc., facilitando, assim, a vida do seu senhor. Nota-se que, neste período, não era a
gregos buscavam segurança e rendimento regular e a escravidão parece estar mais ligada a
juntamente com outras formas de trabalho compulsório. Finley (1991, p. 75) fala do escravo-
dominium de outrem e de sua vida estar condicionada ao controle total do seu senhor. Esse
controle não era apenas em relação ao trabalho, mas à pessoa do escravo e personalidade
também: “o que há de único na escravidão é o fato de o trabalhador ser uma mercadoria, e não
deve ser entendida como uma escravidão plenamente desenvolvida, que funcionava como
principal meio de produção. Em sua concepção, esse tipo de escravidão tornou-se o modo de
produção básico das regiões mais desenvolvidas da Grécia, sendo mais documentada em
Atenas.
Considerados bens móveis, sem nenhum direito dado pela lei, “na concepção grega, o
escravo era um ser humano, mas ao mesmo tempo um objeto de propriedade, que podia ser
Somado a isso, o escravo ainda tinha sua vida sexual submetida a controle. Poderia
casar-se, mas sua família não dispunha de fundamentos legais e seus filhos fatalmente seriam
escravos. Suas punições e castigos eram incumbidos aos seus próprios donos, que nem sempre
obedeciam aos limites fixados pelas leis e exageravam demasiadamente nos castigos.
83
Considerações sobre a noção de trabalho
Entretanto, esses excessos eram realidades corriqueiras e encaradas com naturalidade entre a
comunidade. No que se refere à justiça, não podia mover qualquer processo; caso fosse
testemunha de crime praticado contra seu dono, isso era feito sob tortura.
Quanto às atividades que exerciam neste período não havia um nível de trabalho
apenas para os escravos. Eles poderiam realizar todas as tarefas – das mais banais às
mas merece destaque o trabalho nas minas, exercido exclusivamente por escravos. Dentre
todos, eram os que tinham a pior situação: um trabalho duro e miserável, no qual morria a
maioria dos cativos. Os que trabalhavam nas lavouras também exerciam um trabalho árduo,
de sol a sol. Já os que trabalhavam em serviços domésticos poderiam ter mais sorte. Neste
tipo de trabalho, alguns escravos poderiam ser considerados privilegiados por gozar da
eram servidores de senhores que os tratavam “como da família” e gozavam de proteção, boa
Isso aparece documentado pela literatura homérica. Homero delineia com grande
carisma a forma como Telêmaco trata a ama Euricléia, chamando-a de “mãezinha” (Odisséia,
II, v.349). Referindo-se ao porqueiro Eumeu, Homero diz que “esse cuidava do seu serviço
melhor do que os outros escravos”. (Odisséia, XIV, vs. 03-04). É provável que esses escravos
domésticos tivessem uma vida melhor do que os que trabalhavam nas lavouras ou nas minas,
Também havia escravos estabelecidos por conta própria, que pagavam, aos senhores,
cotas fixas ou proporcionais ao seu ganho; alguns eram alugados, tais como alguns
somente a serviço do proprietário e estes quando alugados, rendiam aos proprietários salários
84
Considerações sobre a noção de trabalho
como os artesãos, por exemplo, eram considerados relativamente privilegiados, pois poderiam
até ser instalados em oficinas independentes em troca de porcentagem nos ganhos. Era um
tipo de escravo que, provavelmente algum dia, conseguiria comprar sua liberdade.
Outros trabalhavam para o Estado e recebiam uma diária do governo em dinheiro por
A aspiração maior de um escravo era obter a alforria. Através desse sistema, o escravo
pagava seu preço ao seu dono com recursos próprios, ou seja, dinheiro acumulado em suas
atividades autônomas, quando ele tinha direito ao peculium32, uma espécie de bens ou
dinheiro que permitia a alguns escravos, trabalhando como artesãos, lojistas, homens de
Outra forma era emprestar dinheiro do próprio senhor, através de uma associação
privada criada para tal – e!rano9 - uma espécie de contribuição voluntária, um compromisso
de contribuir com certa quantia de dinheiro em vista de um bem comum. A alforria também
Em relação aos escravos do Estado, documenta-se que não eram libertados facilmente. O
Mas, mesmo estando libertos, os escravos ainda deviam respeito e às vezes tinham que
condições de escravo.
32
O autor esclarece que o termo é de origem romana e que não há essa definição no mundo grego.
33
Vale lembrar que a propriedade legal de tal peculium era sempre do senhor e cabia a ele a autonomia de ceder-
lhe ou não.
85
Considerações sobre a noção de trabalho
produção mercantil (rural e urbana) e no comércio varejista. Também se podia alugar uma
mão-de-obra ocasional, paga por dia, que poderia ser livre, escrava ou ambas. Em todas as
demais áreas, o trabalho livre e o escravo coexistiam, como nos trabalhos rurais, domésticos e
artesanais que poderiam ser compartilhados com homens livres, que prestavam serviços por
De acordo com as informações do autor, além do trabalho escravo havia outras formas
de trabalho compulsório de grande relevância no mundo antigo. Estas formas são diferentes
por serem capturados ou por nascimento, ou seja, seu destino era individual; já as demais
formas de trabalho.
A primeira é resultante do próprio seio de uma dada coletividade e, mais uma vez, é
nos dado o exemplo de Atenas. Compreende, antes das reformas de Sólon (séc. VI a.C), os
camponeses pobres que, em função de dívidas, caíam sob o domínio dos aristocratas
juntamente com suas esposas e filhos a serviço desses credores e deviam lhes entregar uma
acordo com Finley (1991), esses trabalhadores costumavam provocar conflitos civis unidos à
comunidade e suas pretensões eram de libertar-se en bloc, diferentemente dos escravos, que
86
Considerações sobre a noção de trabalho
Depois que Sólon proibiu que pequenos camponeses fossem escravizados por dívidas,
como ocorria no período anterior, a maior parte dos escravos passou a ser adquirido por
outros meios. A guerra resultante do conflito entre gregos e bárbaros era uma das formas
escravos porque necessitava de venda rápida devido ao grande número de escravos que os
soldados teriam que capturar e alojar; a pirataria, povos da Ásia menor, como os fenícios, os
etruscos, os cretenses, etólios, etc., também raptavam pessoas para vendê-las nos portos.
Isso também pode nos ajudar a entender o preconceito em relação ao trabalho na época
para outras pessoas e aceitavam somente o trabalho assalariado por tempo fixo e curto por
que:
Como vimos, qualquer semelhança com o trabalho escravo era, para os gregos,
insustentável, pois queriam deixar claro, a todo custo, a diferença entre escravos e homens
livres.
subjugada e explorada por outras a pagarem tributos ou exercerem trabalhos forçados. Uma
coletividade era diferente da outra em cada cidade-estado e poderiam ter direitos e deveres
diferenciados. Além desse traço comum, o autor estabelece diferenças tipológicas entre três
87
Considerações sobre a noção de trabalho
Não eram considerados propriamente escravos, mas dependentes coletivos, pois uma
população inteira era submetida à dependência. Eles deviam trabalhar em terras pertencentes
aos esparciatas e entregar, aos proprietários dos lotes, certa quantia em cereais, frutas e
legumes, que correspondia a grande parte de sua colheita, muitas vezes a metade dela. Dentre
espartanos, trabalhos com artesanatos, oficinas públicas do estado, comércio, etc. Eram eles
que acabavam por garantir a subsistência dos cidadãos espartanos que passavam o tempo todo
lei familiar. De acordo com Finley (1991, p. 74), os hilotas costumavam reproduzir-se
eram temidos pelos seus senhores por serem potencialmente revoltosos enquanto grupo, o que
Para Cardoso (1984, p. 49) o status de um hilota era o de escravo do estado espartano
a nativos livres.
88
Considerações sobre a noção de trabalho
Já no período helenístico (fim do séc. IV a fim do séc. I a.C), na Ásia menor, aparecem
os camponeses não gregos que viviam em aldeias, possuíam bens e direitos de posse sobre as
terras que cultivavam, mas deveriam pagar tributos. Também havia os camponeses de terras
reais pertencentes aos reis. Mesmo quando estes vendiam as propriedades, os camponeses
Analisando este quadro poderíamos nos perguntar: esses escravos ou servos não se
Na verdade, enquanto para nós, não-gregos, a escravidão parece ser um grande mal,
para os gregos antigos, ela permitia que os cidadãos tivessem liberdade para gozar de
É claro que, do ponto de vista dos escravizados, o trabalho servil ou escravo era
muito pobres preferiam entregar seus filhos como escravos a vê-los passar fome e
necessidades.
duramente castigadas quando malogravam, mas poderia acontecer de alguns escravos obterem
êxito nas fugas e refugiarem-se em santuários, quando muito maltratados. Nesses casos,
sacerdotes intervinham para que eles fossem vendidos a outro senhor. Já os trabalhadores
Pelo exposto, conclui-se que, por estarem sujeitos à necessidade da vida, os homens só
podiam conquistar a liberdade subjugando outros que eles, à força, submetiam à necessidade.
89
Considerações sobre a noção de trabalho
Ter escravos era dominar a necessidade e ser escravo era um fado pior do que a morte, por
No plano literário, embora o foco desta pesquisa sejam as fábulas, o exame de outros
documentada em outros textos da cultura ora de forma similar, ora de forma bastante adversa
à que assume nos relatos fabulísticos. Optamos, pois, por permanecer no limiar das primeiras
representação do trabalho na literatura e a diversidade de situações por meio das quais ele
qualquer aspecto da cultura grega: a incursão essencial pelas obras dos poetas Homero e
Hesíodo.
cada narrativa possuírem objetivos distintos, pois enquanto Homero volta-se para a nobreza,
deuses.
90
A representação do trabalho na literatura grega
CAPÍTULO III
As páginas que seguem serão destinadas ao exame das diferentes formas de retratar o
Ilíada quanto na Odisséia, no que concerne à vida social dos gregos. Essas informações nos
ajudarão a reconstruir a visão - não apenas mitológica, mas ideológica - que o homem
pretendemos refletir sobre três poemas – As duas lutas, O trabalho e Prometeu e Pandora.
Tais poemas apresentam variações na forma de versar sobre o tema do trabalho. Nos dois
a sua prática. No terceiro poema, o discurso construído mostra que o trabalho é um mal,
denominada “época das trevas” por meio dos relatos homéricos aliados às grandes
muitas dicas sobre o funcionamento da casa dos nobres e dos proprietários de terras.
91
A representação do trabalho na literatura grega
organizada enquanto cidade, ou seja, a famosa pólis grega democrática, que irá se sedimentar
mais tarde e atingir seu apogeu no séc. V a.C., está em fase de desenvolvimento e passará por
estava estruturada em um espaço denominado oikos, cujo principal objetivo era prover seus
por “casa”, na verdade é muito mais do que isso: pode ser definida como uma instituição
social e econômica que era auto-suficiente, pois sua sobrevivência era assegurada pelos
próprios membros que a compunham. O oikos é composto não apenas pelo chefe guerreiro
que o defende, mas por toda a sua família, incluindo os escravos e todos os bens pertencentes
ao grupo.
Todos trabalhavam em prol de seu oikos, mas os chefes que detinham maior poder de
decisão eram os aristocratas, reconhecidos tanto por suas habilidades guerreiras quanto pela
sabedoria e riqueza. Eram de linhagem nobre, o que se fazia notar pelo grau de parentesco do
Enriqueciam não apenas com o trabalho escravo na lida com a terra, mas suas riquezas,
obviamente, se faziam aumentar com os espólios de guerra que eram trazidos das cidades
saqueadas pelos chefes guerreiros – os reis, cuja descrição é farta em Homero. Quanto mais
terras, mais ricos tornavam-se os reis e maior poder e prestígio traziam para seu oikos.
Contudo, é possível pensar que já havia uma organização política, um espaço urbano
pertinentes ao seu reino. Homero fornece exemplos dessa organização política quando narra
momento em que Telêmaco debate com os pretendentes de sua mãe a respeito da devastação
92
A representação do trabalho na literatura grega
do solar de Odisseu; ou ainda, no mesmo poema, quando a deusa Atena disfarçada no arauto
do rei Alcínoo, dizia: “Chefes e conselheiros feácios, o rei vos convoca para uma assembléia
urgente. Como sabeis, às portas do palácio do nosso sábio rei um estrangeiro bateu há pouco”.
(VIII, v.11-14)
Nota-se, por meio dessas passagens, que Homero retrata apenas os nobres tomando
parte nas decisões mais importantes da comunidade: é Telêmaco quem convoca os aqueus
anciãos de sabedoria notável; assim como é o rei Alcínoo quem ordena ao arauto que
convoque os chefes e conselheiros para sua assembléia. Mas ainda que o poeta da Ilíada e da
Odisséia não voltasse totalmente seus olhos para os demais membros da comunidade, e
estivesse preocupado em narrar as guerras e a vida luxuosa dos nobres, não podemos deixar
de notar que os poemas retratam muito do trabalho escravo, além de mencionar alguns
exemplo. Vejamos, então, quais são os tipos de trabalho que o poeta privilegia em suas
atividades agrícolas, fazia parte do contexto social do qual participavam seus personagens
XVIII, vv. 541-572) apresenta um contexto indubitavelmente agrário, com cenas de bois no
93
A representação do trabalho na literatura grega
poeta conta que cada arador recebia um copo de vinho muito agradável, que era oferecido por
um criado. Novas descrições mostram que há alguns meninos jogando braçadas de molho nos
Essas cenas, tão amplas, descritas por Homero podem ser um indício de formas
organizadas de arar a terra; mostram que a economia, além de ser essencialmente agrícola,
conta com o trabalho de servos para sua realização efetiva, que pode ser comprovada através
No excerto acima aparece ampla figurativização das frutas e a facilidade com que elas
abundam no palácio de Alcínoo. Nosso grifo pretende mostrar, que nas narrativas homéricas,
os alimentos também são considerados dons divinos, como postula também o poeta Hesíodo
nos Erga. Observamos, entretanto, que a descrição corresponde à cultura arbustiva, aquela em
que as árvores dão frutos de acordo com as estações, sem que o trabalho humano seja fator
essencial para a frutificação. Ainda assim, as estações parecem não negar frutos em época
Há ainda outra cena em que Eurímaco, filho de Pólibo, questiona Odisseu, ainda
disfarçado de mendigo, se ele estaria disposto a trabalhar, em sua fazenda, juntando pedras na
sapatos:
Esta passagem dá indícios da existência da classe dos thêtes34, pois Eurímaco oferece
vestimenta. Por sua vez, Odisseu, sem qualquer tipo de preconceito ou aversão ao trabalho,
mostra conhecer todo o processo da lida com a terra, comparando o trabalho agrícola com a
atividade guerreira – as duas funções que um nobre provavelmente deveria conhecer muito
bem.
porcos constituíam a maior parte do patrimônio dos gregos, já que os campos destinados aos
pastos eram muito mais extensos do que os cultivados, devido à aridez do solo grego.
34
Cf. Glotz, Gustave. A cidade grega. São Paulo: Edifel, 1980 (p. 30-31)
95
A representação do trabalho na literatura grega
homérica, podemos visualizar outros tipos de atividades mais ou menos sentidas como
trabalho.
Com efeito, o transporte pelo mar era rudimentar e, nos períodos de guerra em que
ficavam acampados, os próprios heróis supriam suas necessidades construindo seus barracões,
cuidando dos cavalos e preparando a própria comida. A título de exemplo, a Odisséia narra
Ulisses construindo a balsa que o tiraria da ilha de Calipso e o levaria à ilha dos feácios.
Depois que a deusa o autoriza a partir, leva-o até um local onde há muitas árvores, dá-lhe um
que herói possui habilidade própria do carpinteiro, classe que domina a técnica de trabalhar a
madeira. Homero também relata que Odisseu construiu o próprio leito que compartilha com
Penélope (Odisséia, XXIII, v. 184-201) a partir de trabalhos realizados com a madeira de uma
35
Enxó era um instrumento feito de chapa cortante, especialmente usado para alisar peças grossas de madeira.
96
A representação do trabalho na literatura grega
relação ao trabalho. Quando Odisseu parte para encontrar o pai Laertes, encontra-o em sua
bela fazenda, que Homero diz ter sido adquirida após muita labuta. Odisseu questiona o pai por estar
hortaliças. Ele é um agricultor que trabalha sua terra juntamente com seus escravos, fato que
Entretanto Odisseu questiona o fato de o pai, já velho, trabalhar. Ele atribui este tipo de
trabalho apenas aos escravos e chega a fazer comparações entre o porte físico de um escravo e
tempo que esses heróis mostravam-se habilidosos em certas atividades, atribuíam certos
Mas Laertes não é o único nobre a trabalhar. A princesa Nausícaa (Odisséia, VI, v. 56-
65) lava as próprias roupas em companhia de escravas por influência da deusa Atena que,
num sonho, a chama de negligente, por descuidar das roupas de suas bodas. É óbvio que a
intenção da deusa era que a princesa encontrasse Ulisses na praia, mas o fato a ser destacado é
que Nausícaa realiza uma atividade manual, que poderia ser feita pelas servas que a
97
A representação do trabalho na literatura grega
425-427) quando Nestor pede aos filhos que chame o bronzista Laertes para dourar os cornos
de uma novilha que será imolada para um jantar em homenagem à deusa Atena. O bronzista
representa a classe dos artesãos ou homens livres, como são chamados. Alguns gozavam de
posição privilegiada entre os nobres e, por isso, alguns reis exigiam seus serviços.
menções de que Páris construiu seu próprio palácio, juntamente com esses trabalhadores,
Também surpreendemos Aquiles (Ilíada, XXIII, vv. 831-835) oferecendo uma certa
quantidade de ferro nos jogos fúnebres em honra a Pátroclo. O herói acentua que o vencedor
do jogo receberá ferro para cinco anos, quantia suficiente para que não necessite comprá-lo.
Esta atitude demonstra que o vencedor, tendo o ferro, ele mesmo o forjaria para suprir suas
Zeus convoca os demais deuses para uma assembléia a fim de determinar a proibição de
auxílio divino aos guerreiros aquivos e troianos. Vemos o Cronida atrelar seus próprios
98
A representação do trabalho na literatura grega
procuramos ressaltar as atitudes que são “mais ou menos sentidas como trabalho”. O
comportamento de Zeus provoca estranhamento porque ele é o deus supremo, que todos
obedecem; e o mais comum seria o deus permanecer no ócio e solicitar este serviço a outros
Outro trabalho manual pode ser relembrado no episódio em que Hera pretende seduzir
Zeus. A deusa vai até o aposento que o filho Hefestos construiu, enfeita-se com todos os
adornos que possui, unge seu corpo com óleo e “cinge, depois, as magníficas vestes que
Atena lhe havia com diligência tecido, adornando-a com muitos recamos”. (Ilíada, XIV, vv.
178-180).
A roupa tecida por Atena e dada de presente a Hera para seduzir e ludibriar Zeus, nos
faz lembrar Penélope, outra personagem nobre que fazia do trabalho manual uma estratégia
agora realizadas até mesmo pelos deuses no ambiente celeste que nos fazem supor que o
trabalho, dentro desse contexto e para esse tipo de sociedade que Homero retrata, não era algo
Deve-se notar, por conta do gênero, que Homero ressalta apenas os grandes artífices,
aqueles que possuíam fama dentre os nobres. Na verdade, essa condição social dos
trabalhadores denominados “demiurgos”, não era uma condição de escravo, pois gozavam de
uma situação social mais privilegiada. Nota-se ainda, que o poeta nada fala dos que não
possuíam brilho na profissão, dos que não freqüentavam os palácios para realizar um feito
majestoso.
99
A representação do trabalho na literatura grega
A época em que viveu Hesíodo opõe-se, em muitos aspectos, à época que lhe
antecedeu, que foi a época homérica. Segundo Florenzano (s/d, p. 24-25), por volta do séc.
um regime econômico bem diferente daquele da época homérica, em que as relações sociais
alimentos para a própria sobrevivência. O trabalho passa a ser o principio norteador dessa
nova sociedade que abandona as riquezas adquiridas por meio de espólios de guerra, porque
orgulho de ser guerreiro pelo orgulho de ser agricultor e o homem sabe que necessita trabalhar
para sobreviver.
É nesse contexto que se encaixa Hesíodo. De acordo com Aubreton (1956, p. 79-84),
as informações que temos sobre a vida do poeta decorrem mais do que ele mesmo escreve em
suas obras do que de documentos autênticos. Ainda assim, não podemos atribuir uma data
precisa a seus escritos, mas é certo que a popularidade do poeta é atestada desde o século VII
a.C, o que nos faz supor que ele pode pertencer tanto ao final do século VIII ou começo do
A própria história de vida do poeta ilustra o contexto social em que viveu. Hesíodo era
filho de um camponês que veio da Eólia e fixou-se em Ascra, ao sul do Hélicon, por conta de
dificuldades financeiras. Essa era uma região estéril e de difícil cultivo, o que contribuía para
a vida pobre dos camponeses que trabalhavam arduamente para conseguir o sustento. Hesíodo
100
A representação do trabalho na literatura grega
deuses, pois sabe que é através do suor do seu rosto que alcançará bem estar financeiro.
Aubreton (1956, p. 85) nos diz que “em tudo, ele vê a necessidade de relacionar a ação com a
divindade. Assim, o trabalho tem sua razão de ser na independência e segurança que dá ao
homem”.
No meio familiar, entrou em desavenças com o irmão Perses por conta da divisão de
uma herança deixada pelo pai. Perses é descrito como preguiçoso, ocioso; alguém que
mantém relações duvidosas com os juízes que deram sentenças favoráveis a ele na divisão da
herança, que não parece ter sido dividida justamente entre as partes. O poeta revolta-se contra
Hesíodo acusa o irmão de corromper reis e juízes com presentes para facilitar o
acúmulo de riquezas. A essas críticas está ligado, também, o conceito de Justiça do qual o
caráter do poeta não lhe permite enriquecer ilicitamente, mas pelo trabalho, que tem um papel
Fica claro, através deste exerto, a diferença entre os homens e os animais. No reino
animal, os mais fortes devoram os mais fracos porque impõem sua força. Tal pensamento é
reforçado pela fábula do rouxinol e do falcão, narrada nos versos 207-211 dos Erga, em que
101
A representação do trabalho na literatura grega
um falcão, tendo aprisionado um rouxinol e ouvindo-o lamentar-se por estar preso, diz-lhe
que, sendo mais forte, fará dele o que bem quiser, tomando-o como alimento ou dando-lhe a
liberdade. O discurso do falcão acentua a insensatez de quem procura medir-se com os mais
Hesíodo usa a fábula com a intenção de aconselhar o irmão a não agir como o falcão,
pois deve haver igualdade entre pessoas, sejam elas reis, príncipes ou juízes. Nota-se que o
poeta não se intimida em falar aos “grandes” e compará-los às aves de rapina porque fala em
nome da justiça.
camponês que Hesíodo retrata os homens e as relações sociais de uma época, que vê no
trabalho não apenas a possibilidade de ascensão social, mas, sobretudo a chance de alcançar a
que ele se diferencia do mundo celeste. O tema do trabalho permeia toda a obra revelando a
Como foi dito na introdução, ao lermos o poema notamos certa dualidade na posição
do poeta: ora ele refere-se ao trabalho euforicamente, incentivando não só Perses, mas todos
atribui uma referência positiva ao trabalho. Comentaremos As duas lutas. É nesse relato que o
poeta discorre sobre a necessidade humana do trabalho, que permeará todo o poema. O
102
A representação do trabalho na literatura grega
trabalho passa a ser a fonte de felicidade e uma forma de os homens estarem em contato com
as divindades:
significados: “luta, combate, disputa, rivalidade ou discórdia.” Quando o poeta diz que uma é
a Éris má, pois semeia a discórdia e o desentendimento, está referindo-se aos combates de
guerra, às lutas propriamente ditas, que trazem morte e destruição aos vencidos. Para os
vitoriosos aprisionam as esposas e filhas dos derrotados, enriquecendo com a fortuna alheia.
O outro tipo de Éris que “louvaria quem a compreendesse”, refere-se à luta com a
terra, ao trabalho agrícola por meio do qual os homens também podem enriquecer e alimentar-
se37. É esse tipo de trabalho que o poeta considera justo e honesto porque a riqueza não é
36
De acordo com a Teogonia (HESÍODO, 1996, p. 26), Éris é filha da Noite e gerou Pena, Esquecimento, Fome,
Dores lamentosas, Conflitos, Combates, Homicídios, Morticínios, Querelas, Palavras mentirosas, Disputas,
Anarquia, Desastre e Juramento. Como se pode notar, a deusa possui uma descendência bem nefasta, com as
quais os humanos têm que conviver.
37
Pode-se pensar que o fato de os homens verem o trabalho como uma luta incompreensível, que necessita de
certo esforço físico, deve-se ao fato de em tempos remotos o trabalho inexistir e a terra produzir frutos
espontaneamente, sem que o homem fizesse qualquer esforço.
103
A representação do trabalho na literatura grega
acompanhada da palavra grega zh~lo9, que significa emulação, admiração pelo outro, num
sentido positivo.39 Hesíodo acredita que os homens devam sentir-se estimulados ao trabalho
ao ver as riquezas dos vizinhos que prosperam: a riqueza alheia, oriunda da lida com a terra,
Nesse sentido, o homem possuído pela boa Éris torna-se apto ao trabalho, disciplinado
e cobiçoso de bens semelhantes ao de seu vizinho, enquanto aquele que é dominado pela Éris
má é dominado pelo aspecto negativo dessa divindade e semeia apenas a discórdia entre seus
semelhantes.
O trabalho retoma o aspecto positivo visto na narrativa As duas lutas, mas apresenta
certas figuras discursivas, como por exemplo, as palavras “alimento”, “celeiro”, “rebanhos”,
etc., que permitem identificar a que tipo de trabalho o poeta refere-se. Vejamos um excerto:
Sempre que Hesíodo aconselha o irmão a trabalhar, há uma relação entre o trabalho
com o alimento retirado da terra; um tipo de atividade que deve ser realizada não apenas
38
Cabe ressaltar que este termo não pode ter seu sentido reduzido apenas a este significado. A palavra é
demasiado complexa e comporta outras traduções, como veremos posteriormente.
39
Em língua grega esse termo opõe-se a fqovno9, que significa inveja no mau sentido, ou seja, a sensação de que
o outro não é merecedor do bem que possui. Cf. Quinelato, Eliane. Investigações sobre a rivalidade nas
fábulas gregas. Dissertação de Mestrado. Unesp. Araraquara, 2005.
40
Acrescentamos, em nossa citação, o vocábulo grego usado pelo poeta e traduzido por “trabalho” (Lafer, 1990)
com a finalidade de verificar a presença de tais termos nos textos das fábulas e seus respectivos significados.
104
A representação do trabalho na literatura grega
devido ao fato de Hesíodo e o irmão serem agricultores, mas está relacionado, sobretudo, à
Como Hesíodo narra a vida camponesa da Grécia arcaica, anterior ao regime das
cidades41, seu vocabulário não poderia ser diferente daquele ligado à agricultura. Quando o
poeta refere-se a este tipo de trabalho usa o substantivo e!rgon e o verbo ejrgavzomai, palavras
que, normalmente, aparecem aplicadas à atividade agrícola e aos trabalhos ligados ao campo,
Inferimos que a atividade agrícola praticada por Hesíodo seja a cultura de cereais,
trigo e cevada, que necessita do esforço humano para trabalhar a terra, combinada com a
criação de animais. Nesse sentido, muda-se a relação do homem com a própria natureza
porque ele participa com seu esforço para que a terra dê o alimento. Ele acaba sendo
recompensado pelos deuses, sobretudo Deméter, tão citada em seu poema quando diz que se
deve trabalhar para que “Deméter encha o celeiro de alimentos”(HESÍODO, 1999, v.301).
É aqui que se encontra o aspecto psicológico do trabalho. O homem sabe que entrará
em contato com as potências divinas através do seu esforço e dificuldades na lida com a terra.
Esse esforço pode ser observado na analogia que o poeta faz entre trabalho e areté:
Ao chamar o irmão de “tolo”, o poeta parece estar seguro de que não há outro caminho
que não seja o do esforço para conseguir benefícios junto aos deuses, e o trabalho com a terra
41
De acordo com vários historiadores, o regime das cidades-estado na época de Hesíodo já existia, mas não
estava completamente consolidado. O momento histórico vivido por Hesíodo pode ser considerado um período
de transição entre uma sociedade pautada basicamente no coletivo (homérica) e uma sociedade pautada na
propriedade privada.
105
A representação do trabalho na literatura grega
é um desses caminhos. Pensamos que o trio - trabalho agrícola, deuses e areté - seja o ideal
moral de Hesíodo.
106
A representação do trabalho na literatura grega
Como nos conta o poema, o trabalho origina-se da punição que Zeus dá aos homens
por conta da astúcia de Prometeu. Antes de Zeus entrar em desavença com o Titã, permitia
que os homens ficassem no ócio, longe dos males, das doenças e dos difíceis trabalhos
(calepoi~o povnoio). Em troca, os humanos deveriam fazer sacrifícios e libações aos deuses
Mas Prometeu quis enganar os deuses e dar mais aos homens do que Zeus achava
montes, separa, em uma das partes, carne e gordas vísceras com banha, cobrindo-o com o
couro do boi; na outra, maldosamente, coloca ossos descarnados e recobre-os com gordura
brilhante. O Titã, astuto que era, pede para que Zeus escolha uma das partes e jura ter feito
uma divisão muito honesta. Zeus, embora soubesse do ardil, escolheu o monte sedutor de
gorduras e viu somente ossos descarnados. Muito colérico, Zeus guarda rancor e, como
Mais uma vez Prometeu usa de artimanhas, rouba o fogo e dá aos mortais fazendo
com que Zeus castigasse não apenas a ele, que havia roubado o fogo, mas também os
humanos.
107
A representação do trabalho na literatura grega
Quanto a Prometeu, o Cronida acorrenta-o ao alto de uma montanha de modo que uma
ave coma-lhe o fígado42. Aos homens dá um castigo mais doce: fabrica a formosa Pandora, a
primeira mulher moldada pelas mãos de todos os deuses, e a envia ao irmão de Prometeu –
Epimeteu. Sua formosura vem acompanhada de um jarro repleto de bens e males que se
espalhariam pelo mundo dos humanos assim que a Curiosidade visitasse a moça e ela o
destampasse.
A partir do momento em que Pandora abre a tampa do jarro, espalha-se todo seu
conteúdo pelo mundo, sobretudo os males, que faria com que os homens estivessem fadados
ao trabalho penoso, o calepoi~o povnoio ao qual nos referimos antes, que lhes traria muitas
Entretanto, Zeus não finalizou seu castigo em Pandora ou nos males do jarro. Para
completar o ardil, fez com que o sexo masculino dependesse unicamente das mulheres para
procriar. Elas e seus filhos viveriam do trabalho dos homens, consumindo tudo o que eles
conseguissem com seu suor. Assim, a idéia do sustento está intimamente ligada não apenas à
pudesse honrar a mesa da família com o alimento, sem o qual a sobrevivência estaria
comprometida. Se, mesmo sabendo de todos os malefícios que estavam contidos na figura
solitária e sem herdeiros, pois sem a mulher, não haveria procriação. Diante disso, parece que
Como pudemos notar, o mito não apresenta os aspectos positivos que o trabalho
recebeu nas narrativas anteriores. A referência eufórica ao trabalho por meio do termo e!rgon
42
Embora o fígado seja um órgão que se regenera, a ave vem todas as noites para comê-lo, fazendo com que o
sofrimento de Prometeu seja infindável.
108
A representação do trabalho na literatura grega
aparece somente nos versos “oculto retêm os deuses o vital para os homens; senão
verbo ejrgavzomai, cognato da palavra e!rgon que vimos aparecer em As duas lutas, usado
Imaginamos, pelo fato de o poeta ter usado os termos da mesma família semântica
de e!rgon, que o trabalho citado por meio dele era aquele que enriquecia, enobrecia e não
lesava – nem física, nem moralmente os humanos – já que eles estavam longe dos males,
da mesma família do verbo ponevw, que também costuma ser traduzido, em língua portuguesa,
por “trabalhar”, mas significa, dentre outras coisas, “fadigar”, “cansar-se”, “realizar algo com
Para Vernant (1989, p. 32) povno9 - “aparece como uma submissão a uma ordem,
alheia à natureza humana, como pura obrigação e servidão”, e não aparece nos poemas de
Estas questões de vocabulário permitem pensar que Zeus deu aos homens algo para
comparar: o trabalho de antes, sem fadigas, executado em apenas um dia, tendo os homens
o restante do tempo para gozar do ócio; com o trabalho lançado como castigo devido às
desavenças que o pai dos deuses teve com Prometeu – um trabalho pesado, que eles jamais
cessariam de realizar.
Dá para termos uma idéia da dimensão do poder de Zeus nesse contexto. É ele quem
domina os homens e os próprios deuses que estão sempre ordenados ao seu redor. E às suas
ordens de fabricar Pandora, os deuses Atena, Afrodite, Hefesto e Hermes obedecem sem
109
A representação do trabalho na literatura grega
questionar. Também é ele quem preside os destinos dos mortais, cria as raças e lhes dá as
vontade dele, o homem deve estar atento porque qualquer transgressão acarreta um castigo.
Ele é um deus justiceiro e o trabalho está, a partir de agora, estritamente ligado à noção de
justiça. Qualquer resistência dos homens ou dos deuses em cumprir suas ordens, fazia com
que fossem levados a males maiores, pois “da inteligência de Zeus não há como escapar”
Nesse sentido, parece que, assim como o poeta estabelece dois tipos de Éris – uma boa
e outra má, analogicamente temos dois termos para trabalho: e!rgon e povno9. O primeiro
resume o aspecto positivo que Hesíodo via no trabalho, sobretudo o trabalho com a terra, que
ocupações servis, um tipo de trabalho maléfico realizado incessantemente pelos homens, mas
literárias de épocas posteriores retomam aspectos dos mitos gregos e os colocam em outro
patamar. Muitas vezes, elas estabelecem com eles uma relação contratual, reafirmando o mito;
outras vezes, polêmica, indicando uma nova posição ideológica, que só se afirma na
atividade era tão exaltado pelos gregos quanto a nobreza e a virtude. Obviamente, só tinham
tempo para o lazer aqueles que não trabalhavam, já que um dos maiores males do trabalho era
110
A representação do trabalho na literatura grega
consumir do homem todo o tempo livre, privando-o tanto da prática da política, quanto da boa
exercício de qualquer trabalho, uma ‘ociosidade cidadã’, a única, a seu ver, que se constitui
como um direito entre os cidadãos mais abastados. Para o autor, em uma sociedade que
poupava seus cidadãos mais caros da fatalidade do trabalho, “aqueles que não podiam
grega e mais intimamente ligado à noção de riqueza, pois apenas os cidadãos mais abastados
Um bom exemplo desse deleite em festas pode ser extraído da Odisséia, mais
precisamente no Canto VIII (vv. 110-119), quando o rei Alcínoo dá início às festividades em
apreciarem o canto de Demódoco, eles participariam de provas esportivas. Mas o que nos
competir. Ergueu-se Acrôneo, Ocíalo e Elatreu (...)”; e segue uma lista generosa de rapazes e
suas respectivas paternidades nobres, citadas pelo poeta. Nota-se a participação ativa apenas
dos nobres, que se estende ao longo do canto através de várias modalidades esportivas:
Quanto ao povo, às pessoas comuns, o rei ordena que fabriquem uma nau para que
Odisseu regresse à sua pátria: “Escolham-se dois e mais cinqüenta entre o povo que, embora
De acordo com as informações de Finley (1986, p. 46-47) “a riqueza era vista como
uma necessidade entre os gregos, indispensável para uma boa vida”. Gabavam-se de suas
111
A representação do trabalho na literatura grega
fortunas e estavam sempre aptos a adquirir mais bens, quer seja saqueando novas cidades e
pilhando bens alheios, quer seja explorando pequenos proprietários de terras que lhes deviam
É interessante que “numa sociedade como a da Grécia, onde em geral, não havia
estatísticas, haver citações de números precisos das fortunas individuais” (FINLEY, 1986,
p. 44-45). Tal asserção pode ser exemplificada por meio de várias passagens da Odisséia,
em uma delas, o porqueiro Eumeu discrimina as riquezas de seu amo ao forasteiro, que ele
ainda desconhece ser Odisseu (XIV, vv.95-108); outra, aparece no episódio em que
Odisseu diz a Alcínoo, que esperaria um ano pelos presentes que lhe fora prometido, para
Para o autor, essa era a forma mais óbvia de os gregos demonstrarem suas riquezas. O
fato de ter muitos bens e possuir terras fazia com que esses nobres expandissem seus desejos e
militares e as religiosas. Uma vez cumpridas essas obrigações, esses nobres podiam entregar-
É claro que até mesmo no lazer havia distinções sociais e não eram todos que
112
A representação do trabalho na literatura grega
De acordo com as informações de Fisher (2002, p. 268) havia formas de lazer coletivo
e individual. O lazer coletivo, aquele a que todos podiam ter acesso, era promovido pela pólis
e realizado por meio de cerimônias religiosas e competições. Esse tipo de atividade era visto
como uma forma de aumentar a coesão cívica e o patriotismo entre os cidadãos. Podemos
Panatenéias, por exemplo. Esses festivais permitiam que muitos cidadãos comuns
participassem de várias atividades que eram oferecidas, tais como as competições atléticas, os
etc.
vida”, pois em alguns deles, havia recompensas altas em dinheiro, gerando fama aos
vencedores, ainda que fossem pobres. Era provável que as competições musicais e teatrais
ofereciam grandes noites de festas a grupos de amigos que trabalhavam juntos na política ou
no campo militar, formando um círculo cada vez mais fechado aos interesses comuns da
classe alta. Lá esses homens bebiam confortavelmente sobre almofadas, faziam libações aos
homossexuais.
Segundo Fisher (2002, p. 294-296) os atenienses de classe média também faziam seu
residenciais tinham uma longa sala repleta de sofás, semelhante a um ambiente típico de
113
A representação do trabalho na literatura grega
banquete. Tais festas foram propiciadas aos “mais pobres” devido ao baixo preço dos artigos
de luxo e das iguarias utilizadas nesse tipo de festa. Ainda inseriam-se nessas festas as brigas
de galo, muito valorizadas devido ao fato de o galo ser visto como símbolo da
promovidas pela pólis, mesmo daquelas em que sua presença era permitida. Já os escravos
eram ainda mais excluídos das atividades de lazer e saíam apenas para acompanhar suas
114
O trabalho nas fábulas esópicas
CAPÍTULO IV
Os diferentes textos que tematizam o trabalho têm em comum o fato de, ao menos um
trabalho ao qual está subjugado, seja por um opressor concretizado figurativamente, seja por
um opressor cognitivo.
A manipulação para que os atores executem o trabalho pode ser por intimidação ou
responsável pelo sustento do homem. Além de executarem suas tarefas, esses representantes
dos trabalhadores tentam convencer os demais a trabalharem de bom grado, mas nunca
conseguem persuadi-los.
sempre tentam livrar-se do trabalho de alguma maneira, seja através das próprias atitudes ou
da crença de que alguma divindade irá livrá-lo do sofrimento. Há personagens que não
reclamam especificamente do trabalho que realizam, mas questionam o fato de aqueles que
não trabalham, além de sobreviverem do trabalho alheio, receberem a comida, fato que
permite que eles sobrevivam sem trabalhar. Dentro dessa variedade de situações, ainda há os
o trabalho alheio.
pelo enunciador das fábulas esópicas. Assim, passaremos a analisar o discurso figurativo das
115
O trabalho nas fábulas esópicas
fábulas com a finalidade de refletir sobre a forma pela qual o trabalho aparece figurativizado.
Essa análise poderá deixar entrever os motivos que levam as personagens a sustentar tamanha
dos textos, sobretudo no que diz respeito ao nível discursivo, local privilegiado para o
pertinentes tanto à semântica fundamental, quanto à semântica narrativa devido à conexão que
se estabelece entre esses níveis, pois quando dizemos que o percurso gerativo de sentido é
uma superposição de níveis, não podemos pensar uma cisão entre os patamares, mas na
ocupa dos estudos de qualquer tipo de linguagem - oral, verbal, gestual, pictorial, etc., de
determinados efeitos de sentido sobre seu enunciatário. Ela também é definida como uma
teoria preocupada com a construção de um modelo teórico de grande rigor científico, que
concepções antigas permitem que a chamemos de um ‘projeto em construção’, uma vez que
os novos caminhos teóricos atualmente trilhados por ela estão diretamente ligados às
116
O trabalho nas fábulas esópicas
Seu objeto é a significação, cuja apreensão não é imediata, mas resulta da construção
fundamental, narrativo, e discursivo. Cada patamar é constituído por uma sintaxe e uma
Conforme dissemos, a semiótica pretende elaborar uma teoria do sentido que abranja
sucessivas pelas quais passa o sentido para se enriquecer e, de simples a abstrato, tornar-se
complexo e concreto.”
fundamentação metodológica, todo objeto deve ser definido segundo o seu modo de
essas virtualidades, as organiza e concretiza. As duas instâncias ainda comportam uma sintaxe
e uma semântica, como nos mostra o Dicionário de Teoria Semiótica, de Greimas e Courtés:
117
O trabalho nas fábulas esópicas
Discursivização: Tematização
Actorialização,
Figurativização
Temporalização,
Espacialização
Percurso gerativo.Fonte: GREIMAS, J. A., COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. (1979, p. 209).
Um resumo do percurso pode ser explanado por meio das explicações de Barros
(2001) para quem a construção do sentido do texto obedece a três etapas concernentes ao
percurso gerativo do sentido: a primeira etapa, mais simples e abstrata, é denominada nível
mínima. O nível das estruturas fundamentais - considerado o lugar do qual emerge o mínimo
de sentido de um texto, estabelece uma relação de oposição ou diferença entre dois termos no
interior de um mesmo eixo semântico. Os termos dessa categoria semântica fundamental são
valores ditos axiológicos, virtuais em relação à semântica narrativa; eles são valores apenas
virtuais porque ainda não estão relacionados a um sujeito. É neste nível que verificaremos se
semântica narrativa, quando a atualização se realiza ora como a inscrição dos valores em
objetos, ora pela junção dos objetos de valor com os sujeitos. Esse é o segundo patamar,
denominado nível narrativo, que organiza a narrativa sob o ponto de vista de um sujeito.
Esses valores, agora ideológicos porque foram assumidos por um sujeito, são escolhidos pelo
sujeito da enunciação de acordo com o discurso que deseja produzir. Entramos, então, no
nível discursivo, estamos muito mais próximos da manifestação, que é o texto. Essa última
etapa é mais concreta e complexa, pois é nesse nível que os valores disseminados no patamar
118
O trabalho nas fábulas esópicas
de estudiosos como Greimas (1979), Barros (2001), Fiorin (2001), Floch (2001), Bertrand
(2003), entre outros, serão retomados aqui com a finalidade de demonstrar a funcionalidade e
Antes de tudo, importa esclarecer que, para este trabalho, propomos o estudo do
e as do mundo natural.
enunciação combinará as figuras com o valor que ele visa enfatizar: “dir-se-á que o discurso
119
O trabalho nas fábulas esópicas
figuras, que tem como finalidade produzir efeitos de realidade, “produzir ilusões referenciais
que transformariam essas figuras em imagens do mundo.” (GREIMAS & COURTÉS 1979,
p. 187)
Para Bertrand (2003, p. 159), quando se fala em ‘imagens do mundo’ não se pode
permeada por variações culturais e pela forma com que cada leitor constrói, lê e interpreta o
mundo.
Barros (2001, p. 116) postula que a correspondência exata entre as duas semióticas não
deve ser estabelecida porque as figuras discursivas pretendem criar ‘efeitos de realidade’
sentido efetuada pelo sujeito da enunciação (...) e o discurso não é a reprodução do real, mas a
enunciação.”
Para a autora, a interpretação dos efeitos de realidade tem a ver com o contrato
fiduciário estabelecido entre enunciador e enunciatário. Esse contrato pode ser definido como
Em outras palavras, podemos dizer que o enunciador cria certos ‘efeitos de realidade’ que
120
O trabalho nas fábulas esópicas
podem ser exemplificados através dos elementos da sintaxe discursiva43 (as projeções da
grau, que instalam atores no discurso, etc.) e através da semântica discursiva por meio,
Bertrand (2003, p. 161-162) acrescenta que a veridicção são jogos de verdade que
podem produzir efeitos dos mais variados tipos por ocasião da leitura. “Trata-se de estratégias
figurativos permitem que o leitor desenvolva um raciocínio de ordem analógica, porque nele
instalam-se tempo, espaço, atores e valores para que se concretize o mundo que se deseja
mundo representado.
O discurso narrativo das fábulas, por exemplo, permite que entremos em contato com
um mundo figurativizado, em geral, por animais que não apenas falam, mas mostram-nos, por
meio de suas ações, atitudes peculiares ao ser humano. Pelo procedimento de figurativização,
discurso este efeito de sentido particular que consiste em tornar sensível a realidade sensível e
uma de suas formas é a mímesis”. Nesse sentido, é possível dizer que a dimensão figurativa é
uma das características primordiais das fábulas que, por meio de sua escrita, persuadem o
43
Trataremos deste tópico mais adiante.
121
O trabalho nas fábulas esópicas
leitor fazer a analogia entre as atitudes praticadas pelos animais no discurso figurativo e as
narrativo daquele que sofre um dano devido às ações precipitadas, às possíveis falhas de
lexemas se tornem “imagens” aos olhos do enunciatário e explicita sua ideologia. Ele controla
e determina o plano de leitura que deve ser feito, sobretudo através da moralidade: ele faz
com que o leitor creia que foi o comportamento inadequado da personagem que a levou ao
malogro.
primeiro lugar, os valores virtuais inseridos nos objetos e actantes narrativos, que, quando
trabalho e o rejeita, nos ajudará a compreender quais valores esse sujeito atribui ao trabalho.
vocabulário grego que compõe esse processo de figurativização. Ao lidarmos com textos de
outra cultura, sobretudo a cultura grega, o estudo dos termos gregos selecionados pelo
compreensão desse universo figurativo, moldado, muitas vezes por fatores culturais.
fundamentais para estudo da figuratividade. De acordo com Fiorin (2001, p. 76) “uma
percursos temáticos e diferentes percursos figurativos.” Dito de outro modo, uma configuração
122
O trabalho nas fábulas esópicas
pode estabelecer um núcleo sêmico comum entre os textos, e percursos temáticos, figurativos
e narrativos diferentes.
Para aclarar tais conceitos, falaremos das peculiaridades das fábulas de forma geral,
pois esses conceitos se tornarão mais claros posteriormente, através das análises. As fábulas
qual o núcleo sêmico comum dessa configuração e as variantes figurativas e temáticas que
permeiam esse núcleo. A demonstração será feita por meio da análise e da divisão das fábulas
em três grupos. O primeiro grupo opõe dois valores – o gosto pelo trabalho por parte de uma
personagem e a repulsa da parte de outro; o segundo grupo trata tão somente da rejeição às
rejeição pelo trabalho, intrigas entre os atores por conta da divisão de tarefas e da recompensa,
podem ser explorados das mais diversas formas. Sendo através do discurso figurativizado que
apreendemos, mais enfaticamente, o caráter ideológico dos discursos, torna-se inevitável falar
tornou-se um aspecto de suma importância para o estudo da figuratividade, pois é através dela
123
O trabalho nas fábulas esópicas
Para Bertrand (2003, p. 188) esse conceito moderno de isotopia permite distinguir
primeira concerne aos atores, tempo e espaço projetados no discurso, e a segunda são
De acordo com Greimas (1979, p. 247) “a isotopia constitui um crivo de leitura, que
torna homogênea a superfície do texto, uma vez que ela permite elidir ambigüidades.”
Embora diferentes leituras sejam possíveis, seu número não é infinito, mas está ligado “ao
caráter polissemêmico dos lexemas, cujas virtualidades de exploração são em número finito”.
Nesse sentido, a escolha de uma ou várias isotopias de leitura será feita pelo leitor para
que ele imprima sentido ao texto; é o leitor quem vai escolher e valorizar as isotopias em
função de seu modo de ver e construir o mundo. Em outras palavras, os lexemas inseridos em
Dicionário de Semiótica por Greimas (1979, p. 246). Ele chama de bi-isotópicos os discursos
em que aparecem categorias classemáticas diferentes, como por exemplo, o tipo humano e o
Floch (2001, p.28) classifica as fábulas como discursos bi-isotópicos porque contam
histórias de animais para falar da sociedade humana. No discurso figurativo a fábula coloca
isotópico, substituindo o traço não-humano pelo humano, referindo-se aos animais como “os
124
O trabalho nas fábulas esópicas
4.6 Análises
em comum.
pelo menos, uma figura discursiva – o ator - que concretiza euforicamente o trabalho,
sobretudo o trabalho com a agricultura. Ao acoplarmos quatro textos neste grupo, partimos
do princípio de que eles apresentam um núcleo sêmico comum – neste caso é a valorização
do trabalho agrícola por uma das personagens - seguido de variantes figurativas e actoriais
– o agricultor, ator que sabe reconhecer o aspecto positivo da lida com a Terra. Observe:
Certo lavrador (gewrgov9), estando prestes a terminar sua vida e querendo que os
seus filhos adquirissem experiência na agricultura (gewrgiva9), mandou chamá-los e
disse-lhes: “Meus filhos, eu estou deixando esta vida, porém vós procurareis aquilo
que eu escondi na minha vinha, e achareis tudo”. Então os filhos, imaginando que o
pai tinha enterrado um tesouro em algum lugar, reviraram (katevskayan) todo o
solo da vinha depois da morte dele. Ora, de tesouro nada descobriram, porém a
vinha, minuciosamente revolvida, teve a sua produção multiplicada44.
(ESOPO apud. SOUSA, 1999, p. 187, acréscimo nosso)
transmissão dos valores positivos em relação ao trabalho, tema que é figurativizado pela
narrativa com uma singularidade que não se pode deixar de notar: ela demarca a morte, a
44
Moral: “Esta fábula mostra que, para os homens, o trabalho (kavmato9) é um tesouro. É digno de nota que a
palavra kavmato9, denota um trabalho penoso, resultado ou fruto do esforço, labuta, fadiga.”
125
O trabalho nas fábulas esópicas
descontinuidade, a ruptura. Se o lavrador estava prestes a morrer, subentende-se que ele era
um ancião – gevrwn - detentor do saber e da experiência, tanto na lida com a terra quanto em
relação aos seus filhos, pai~de9. Além disso, o desenvolvimento das ações das personagens
mostra que a temporalidade marca, também, diferença de valores entre pai e filhos. Estes
valores relacionados à conquista de seus ideais. Essa observação pode ser comprovada através
do próprio discurso da fábula no momento em que o pai, por meio de uma debreagem
enunciativa, assume a postura de um profeta, que profere um enigma para que os filhos
encontrem a solução através de suas próprias ações. Ele diz para os filhos procurarem o que
A palavra grega pavnta, que em língua portuguesa traduz-se pelo pronome indefinido
“tudo” assume dois sememas diferentes para os atores “pai e filhos”. Podemos dizer que este
termo é um conector de isotopia figurativa que assume um aspecto dual dentro do próprio
texto, na concepção de atores distintos. Para o lavrador, esse “tudo” é a terra, a agricultura que
traz riquezas e benefícios ao ser humano, e é essa a experiência que ele têm e quer transmitir;
já os filhos interpretam esse “pavnta” como algo diferente, que estaria escondido na terra.
A experiência e sapiência do pai fazem com que seu discurso argumentativo atinja o
resultado esperado, pois, ao ocultar dos filhos o que seria o tesouro - qhsaurov9, consegue
fazer com que eles revolvam a vinha. O pai parece ter consciência de que os valores dos filhos
não são os mesmos que os seus, mas consegue transmitir seu ensinamento quando manipula
Essa ação, além de garantir a continuidade do trabalho que havia sido interrompido
pelo pai, também não pode deixar de ser vista como um trabalho, já que aparece expressa pelo
126
O trabalho nas fábulas esópicas
A partir desta atitude inconsciente praticada pelos filhos houve uma reação da terra,
positivamente, mostram que mesmo um trabalho tão valorizado como a agricultura, não é
realizado sem sacrifícios. Essa valorização não significa, e nem a configuração discursiva
mostra isso, que o trabalho seja fácil. Ao contrário, as figuras denotam esforço e ação, pois a
terra precisou ser revolvida para dar produção. Assim, à figura do trabalho estão ligadas as do
esforço e do sofrimento.
Ao partirmos para o estudo dos demais textos deste grupo, notamos que há
Outras, não se negam ao trabalho, mas questionam o tempo e a forma de trabalho que
realizam. Observe:
A formiga e o escaravelho
“na estação do verão” - e coloca em cena um sujeito “formiga” que reconhece a condição de
trabalho a que está submetido e exerce a função de “fazer”. A estação do verão tem relação
com a modalização do sujeito do fazer que teme pelo inverno e por suas conseqüências
45
Moral: “Igualmente aqueles que, nos tempos de fartura, não se previnem para o futuro, caem em miséria
extrema quando as circunstâncias mudam.”
127
O trabalho nas fábulas esópicas
sullevgw, que pode ser traduzido por “apanhar”, “recolher”, ou “reunir”, e ao verbo
ajpoqhsaurivzw, traduzido por “armazenava”, mas que na realidade significa mais do que
armazenar: significa “guardar como se fosse um tesouro, como reserva de recursos”. Esses
verbos produzem o efeito de ação contínua e têm o tema do trabalho como elemento
semântico comum.
que a partir do papel actancial “daquele que faz”, assume o papel temático “daquele que
trabalha” e assim, a figura do ator. A formiga é classificada como “tão laboriosa” e esse
ejpiponwvtaton, que tanto pode dar idéia de excesso, quanto de excelência ou mérito. O uso
desse superlativo não é ingênuo, uma vez que o verbo ejpiponevw, que é da mesma família
“esforçar-se grandemente”. A tradução “persistir no trabalho” vem expressa por outro verbo
grego que também dá a idéia de trabalho penoso e contínuo: mocqevw significa “trabalhar,
Ao mesmo tempo que esse fazer narrativo da formiga converte-se, no nível discursivo,
“armazenar” configuram-se no texto como produtos agrícolas e contribuem para que se forme
uma isotopia figurativa que recobre semanticamente a ordenação narrativa que tematiza o
trabalho. Há uma relação de força entre os lexemas “grão, trigo e cevada” que faz com que o
128
O trabalho nas fábulas esópicas
nos reporta ao mundo rural, com atividades ligadas à terra e, conseqüentemente, ao trabalho
duro do agricultor.
Entretanto, a formiga tem suas atividades vigiadas por um segundo ator, que, apesar de
não se colocar como anti-sujeito, de não impedir que esse trabalho se realize, coloca-se na
posição de observador e mais ainda, de admirador, como mostra a frase “vendo-a tão
laboriosa, admirou-se de ela persistir no trabalho”. Esse segundo ator, o escaravelho, parece
não ter suas predicações exploradas pelo enunciador do texto, mas podemos inseri-lo, mesmo
que discretamente, no grupo dos outros animais que se entregavam ao repouso depois de
haverem cumprido suas tarefas. A admiração por ver a formiga trabalhando provém do fato de
eles atribuírem valores eufóricos ao lazer e preferirem o ócio ao trabalho. Esclarecemos que o
verbo qaumavzw traduzido por “admirar” também tem o significado de “estranhar”, “perguntar
algo a alguém por admiração ou curiosidade”, o que nos leva a pensar que o ator
então, pensar num sentido ambíguo para o verbo qaumavzw, uma vez que a formiga recebe o
elogio disforicamente, como uma repreensão, enquanto percebemos que houve uma
recuperar-se, de estar melhor, mas deve ter sido interpretada por “moleza” pelo sujeito
formiga, já que esta não cessa seu trabalho e, naquele momento, preocupada com o futuro,
uma razão para que ela receba essa admiração por ofensa. A seqüência narrativa mostra que o
escaravelho sofrerá uma mudança de estado que coincide com a mudança temporal da
129
O trabalho nas fábulas esópicas
narrativa (quando chegou o inverno), mudança temida pela formiga. No entanto será esta
mudança que fará com que ela exerça o papel de destinador-julgador para o qual está
excrementos e faz com que ele passe do estado de conjunção com o objeto-valor “alimento”
Subjacente ao universo narrativo aparentemente simples que a maior parte das fábulas
denota, é possível perceber um universo tensivo que perpassa o texto e incide sobre a figura
trabalho da formiga, (como podemos constatar, por meio dos termos “vendo-a tão laboriosa,
do sujeito elogiado: “naquela ocasião, a formiga nada respondeu; porém mais tarde...”. Como
foi dito, é possível pensar que este sujeito tenso recebe esta admiração disforicamente e
aguarda o momento exato de revelar o motivo de ela estar em conjunção com o trabalho,
mesmo na estação do verão. É neste momento da narrativa que ela exerce o papel de
destinador-julgador46: aqui, temos um estado de espera que gera a tensão para a formiga que
aguarda a mudança de estação para poder negar a recompensa – comida – que só ela tem. A
A cigarra e as formigas
Era inverno, e as formigas secavam (e!yucon) o trigo molhado. Uma cigarra com
fome pediu-lhes um pouco de comida. Então as formigas lhe disseram: “Por quê,
durante o verão, não ajuntaste (ouJ sunh~ge9) provisões (trofhvn) também tu?” Ao
que a cigarra respondeu: “Não tive tempo (oujk ejscovlazon), pois cantava
46
A formiga cumpre um papel muito semelhante ao de Zeus nas fábulas “O jumento e o jardineiro” e “Os
jumentos recorrem a Zeus”, em que o deus, mesmo sabendo que não seria possível alterar o destino de cada um,
permite as mudanças desejadas e os deixa descobrir por eles mesmos a impossibilidade de mudança.
130
O trabalho nas fábulas esópicas
coloca na “estação do inverno”, do mau tempo, pois já havia chovido e as formigas “secam” o
trigo molhado. Veja que o tema do trabalho permanece figurativizado por meio das ações
praticadas pelas personagens formigas – ação de secar (e!yucon) o trigo, formando uma
isotopia que aponta para o trabalho agrícola, um trabalho árduo que a formiga não cessa de
realizar.
Ela é um sujeito que está o tempo todo em conjunção com dois elementos que são
valores para ela: o alimento e o trabalho. Ela não realiza o trabalho para depois receber o
recompensa, pois, na verdade, ela trabalha armazenando o próprio objeto-valor, sua própria
recompensa.
A cigarra, do ponto de vista da formiga, não é um sujeito do fazer, mas é aquele que
espera dela a doação do objeto-valor “comida”. Na interrogação “Por quê, durante o verão,
trabalhar para ajuntar o alimento. O termo “ajuntaste” aparece expresso pelo mesmo verbo
grego que aparece na fábula “A formiga e o escaravelho” – sullevgw – que sugere a idéia de
A cigarra, por sua vez, quando se vê interpelada pela formiga sobre o que fazia no
verão e responde “não tive tempo, pois cantava melodiosamente”, notamos que outros valores
perpassam a fala desse sujeito. A expressão grega “oujk ejscovlazon”, traduzida por “não tive
47
Moral: “Esta fábula mostra que, em todo e qualquer assunto, ninguém deve ser negligente, a fim de não sofrer
desgostos nem correr perigos.”
131
O trabalho nas fábulas esópicas
tempo”, quer dizer, mais precisamente “não estive ocioso, desocupado”. É o imperfeito do
com arte” e euforiza o canto da cigarra. Ela não cantou qualquer canto, mas cantou “com
arte”, não estava “ociosa”; é como se este actante assumisse a posição de um sujeito do fazer,
como se sua melodia fosse um trabalho não menos árduo que o da formiga, pois não lhe
inverno, vemos que o primeiro é marcado euforicamente porque é um tempo que permite
trabalhar, enquanto o segundo recebe uma conotação disfórica - é um mau tempo - e todos
Há uma clara oposição de valores entre sujeitos no texto: as formigas atribuem valores
positivos apenas para o seu fazer, e não consideram que a cigarra também esteve ocupada
com o trabalho de cantar no verão, ou seja, para as formigas, cantar não é trabalho. Para as
cigarras, ao contrário, seu trabalho não tinha menos importância do que o das formigas.
inverno dança”. Nesta debreagem de segundo grau, que caracteriza a voz das formigas,
ressaltamos que, apesar de algumas figuras como “cantar”, “flautear” e “dançar” formarem
uma isotopia do lazer e o verbo “flautear” receber, em língua portuguesa, uma conotação
disfórica por ter seu sentido estendido a “conduzir a vida despreocupadamente”, “vadiar”; o
verbo grego aujlevw não traz o sentido de vadiar, mas de cantar, ou tocar flauta (instrumento).
O mesmo acontece com o imperativo “dança”, que tem um significado conotativo, pois o que
132
O trabalho nas fábulas esópicas
as formigas querem na verdade é que a cigarra “se vire” para conseguir alimento. Em grego, o
Assim, pensamos que o que está evidente nesta narrativa é o confronto de valores e a
idéia de que cantar não era uma atividade conveniente naquele momento, já que o mau tempo
cantar está relacionado ao lazer e, antes do lazer, vem a necessidade na vida das formigas.
cada um.
A novilha e o boi
O estado inicial da narrativa mostra que quem exerce a função predicativa “daquele
que faz” é o boi, que está em plena conjunção com este fazer e, pelo menos a princípio, não
há evidências de que este sujeito do fazer esteja descontente com sua função.
O vocábulo “trabalho” vem expresso pelo particípio grego ejrgazovmenon, que denota
vários tipos de atividades: trabalhos agrícolas, domésticos, etc. Podemos dizer que a novilha
exerce a função daquele que observa, condoído, pois o verbo grego talanivzw significa
“julgar alguém infeliz, coitado ou desgraçado”. Dessa forma, podemos inferir que o trabalho
não tem valor positivo para a novilha, já que ela sente pesar pelo boi e considera o trabalho
um infortúnio.
No entanto, a mudança de estado provocada pela solenidade religiosa faz com que se
qual a novilha foi submetida: agora ela é o sujeito digno de pena porque está com sua
48
Moral: “Esta fábula mostra que o perigo espreita o ocioso.”
133
O trabalho nas fábulas esópicas
sentença de morte decretada. A partir deste ponto da narrativa podemos inferir que o boi
recebeu disforicamente o olhar da novilha, pois ao expressar o verbo sorrir por meio do
imperfeito ejmeidivase na frase “Então o boi, vendo isso, sorriu (...)”, o enunciador deixa
evidente o estado passional de angústia pelo qual ele passava. Esse verbo, que significa “sorrir
maldosamente ou sarcasticamente” reforça a idéia de que o boi não gostou do olhar lastimável
da novilha quando ela o observava porque ele sabia que estava praticando um trabalho duro e
sofrível.
Podemos inferir que houve uma mudança de estado no interior da personagem boi,
pois ele passa a compreender que ela só não trabalhava, porque seria imolada – “Ó novilha,
por isso tu não trabalhavas, pois estavas destinada a ser imolada dentro em pouco tempo”.
Essa debreagem de segundo grau soa como um alívio para o actante do fazer, uma vez que o
trabalho, neste contexto, deve ser entendido como uma função comum a todos e, se ela não
exercia esse fazer, era porque mal maior estava por vir: ela seria imolada.
A partir de tal raciocínio é possível afirmar que o boi também não olhava
euforicamente para o trabalho, mas mantinha-se resignado porque mesmo sendo um castigo
quadro sintético que pretende ilustrar os aspectos semânticos semelhantes que esse primeiro
grupo apresenta em relação às ações vistas como trabalho e os respectivos termos que o
expressam.
134
O trabalho nas fábulas esópicas
esforço.
A formiga e o ação de ir e vir: povnon: tarefa, trofhvn Formiga: valoriza
escaravelho peripatevw; trabalho árduo. o trabalho
reunir, recolher, agrícola.
juntar : sullevgw; Escaravelho:
guardar e valoriza o
armazenar: descanso.
ajpoqhsaurivzw;
trabalhar: mocqevw
A cigarra e as ação de secar o trofhvn Formigas:
formigas trigo: yuvcw; reunir valorizam o
e recolher: trabalho agrícola
sullevgw incessante.
Cigarras:
valorizam o canto.
A novilha e o ação de trabalhar: sobrevivência Novilha: valoriza
boi ejrgavzomai o descanso.
Boi: valoriza o
trabalho e,
conseqüentemente,
a própria vida.
apenas aspectos disfóricos em relação ao trabalho. Suspeitamos que a insatisfação dos atores
com as condições de trabalho a que estão submetidos, seja o motor das ações das personagens
e faz com que elas cheguem a atitudes extremas para livrarem-se dele.
articulação do sentido.
A fábula que abre o segundo grupo retoma aspectos da mitologia para dar uma
explicação para a instituição do trabalho entre os homens e tem a particularidade de, mesmo
sendo um trabalho agrícola que deve ser realizado, ter a conotação de dor e sofrimento.
Observe:
Hermes e a Terra
135
O trabalho nas fábulas esópicas
Zeus, ela replicou: “Então, que eles escavem quanto quiserem, mas pagarão tudo
isso gemendo e chorando.”49
(ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 137, acréscimo nosso)
interferiam nas atitudes dos humanos e demais deuses. Os atores são seres também
mitológicos, figurativizados por Zeus, Hermes e pela Terra, além das figuras humanas –
homem e mulher. O papel que tais deuses exercem no texto está em conformidade com o que
conhecemos sobre a genealogia dos deuses gregos, conforme os dizeres de Hesíodo50: Zeus é
aquele que cria e que dá ordens; Hermes é o deus mensageiro e a Terra é o lugar de onde os
deuses e homens e não havia a noção de trabalho porque a Terra produzia espontaneamente.
Depois das desavenças entre Zeus e Prometeu, houve mudanças significativas para os
humanos: a criação do homem (a!ndra) e da mulher (gunai~ka) implica uma nova concepção
de mundo – a separação entre deuses e mortais. Como nos dizia o poeta Hesíodo51, a partir da
origem da primeira mulher – Pandora – o homem teria que garantir seu próprio sustento,
figurativizado pelo alimento, em grego trofhvn, e é por meio da Terra que ele o fará,
Há uma interdiscursividade entre os textos da cultura que pode ser observada através
sido efetuada num espaço celeste, pois o discurso mostra que foi apenas depois da criação do
homem e da mulher que Zeus ordenou a Hermes levá-los a Terra, que denota, num primeiro
49
Moral: “Esta fábula é oportuna para aqueles que, tomando emprestado facilmente, só com dificuldade
reembolsam.”
50
Hesíodo. Teogonia. Rio de Janeiro: Eduff, 1996.
51
Cf. Hesíodo. Os trabalhos e os dias. São Paulo: Iluminuras, 1990. (vs 42-105)
136
O trabalho nas fábulas esópicas
Na esfera narrativa Zeus sincretiza várias funções em seu papel actancial: ele dá a vida
humanos por intimidação e é, também, o julgador de todas as suas ações. O vocabulário grego
utilizado pelo enunciador denuncia a posição privilegiada do ator Zeus: ele não pede, mas
ordena, exige, faz com que se cumpram seus desígnios porque possui o saber e o poder, como
podemos observar pelo uso do aoristo do verbo keleuvw - ejkevleusen, que quer dizer
ampliando a dimensão dos poderes de Zeus, que pode ser benevolente e conceder favores aos
humanos.
É ele quem distribui as tarefas até mesmo no mundo divino, pois Hermes também
exerce um fazer – o de levar as mensagens do Pai dos deuses52. Para os deuses não há a
possibilidade de não cumprir uma ordem de Zeus: Hermes cumpre a tarefa de levar os
humanos a Terra e esta, mesmo ressentida, tem que aceitar ser escavada. O trabalho que os
humanos devem realizar aparece figurativizado pela ação de escavar, em grego expresso pelo
verbo ojruvssw, que denota as ações de escavar, revolver a terra e extrair do solo.
Com efeito, a Terra parece assumir, junto com Zeus, o papel de destinador-julgador:
ao aceitar ser escavada, diz que eles o farão “gemendo e chorando”, que em grego é expresso,
respectivamente, pelos verbos stevnw e klaivw. O uso de tais termos nos dá uma idéia do
quanto esse trabalho com a terra seria árduo para os humanos, que a partir de agora, tornam-se
aqueles que “devem-fazer” e são operadores da ação de trabalhar. Os humanos estão fadados
ao mundo do trabalho na lida com a terra, pois o alimento é, ao mesmo tempo, a recompensa e
o sacrifício.
52
É digno de nota que, em toda a mitologia, Hermes aparece sempre com esse afazer - levar mensagens, o que
poderia ser considerado um “trabalho”, já que ele, o tempo todo, exerce uma função. O mesmo podemos afirmar
em relação a Hefestos, que forja o ferro e produz armas. Isso nos faz pensar que os dois deuses – Hermes e
Hefestos – podem, em segundo plano, ser considerados deuses “trabalhadores”, uma vez que estão sempre
cumprindo um afazer: o primeiro leva mensagens continuamente para os demais deuses e o segundo trabalha na
lida com o ferro.
137
O trabalho nas fábulas esópicas
Os menagurtes53
discursiva que dissemina os valores da oposição liberdade x trabalho escravo, associado, neste
“ter, “possuir” confirma essa posse e afirma o papel opressor do grupo. Por sua vez, o
percurso figurativo do jumento que, tematicamente, assume a figura “daquele que trabalha”,
cuja função é carregar bagagens, está associado a outras figuras que reafirmam o trabalho
contínuo, como por exemplo, a expressão grega eijwvqesan taV skeuvh ejpitiqevnte9, traduzida
pela locução verbal “costumavam carregar com bagagens”. O sujeito dessa frase são os
menagurtes, são eles que costumavam sobrecarregar o jumento com seus pertences de
viagem. Tais termos confirmam a posição de opressores que eles exercem, pois o ator
jumento não tem como livrar-se do trabalho e pratica essa ação continuamente, todas as vezes
53
Segundo Souza (1999, p. 372), menagurtes eram sacerdotes de Cibele, deusa da Frígia, que realizavam uma
viagem a cada mês a fim de angariar esmolas.
54
Moral: “Assim também alguns servos (oijketw~n), mesmo quando liberados da escravidão (douleiva9), não se
livram dos encargos da servidão (doulikw~n).” Esta moralidade reintegra ao discurso as noções de servidão –
douleiva – que aparece seguida do termo oijkevth9, que significa “criado”, “servo”, e está relacionado à figura do
jumento; a palavra ajrcov9 também aparece na moralidade e significa “amo”, “senhor”, reforçando a
figurativização do discurso narrativo e comprovando as relações servis.
138
O trabalho nas fábulas esópicas
figura da morte, cuja causa é a fadiga e o cansaço, como podemos ver no léxico selecionado.
pode levar o sujeito à exaustão fatal. Entretanto, a morte não impede que os opressores
retirem do jumento algo a mais: eles ainda o esfolaram e retiraram sua pele, ações grafadas
com o verbo e!kderw, que resume os dois atos – o de esfolar e o de tirar a pele.
A exploração do sujeito até mesmo depois de sua morte denota uma continuidade na
servidão: quando vivo, o jumento prestava serviços aos menagurtes carregando bagagens e
agora, morto, continua a prestar-lhes outro tipo de serviço, relacionado ao prazer: com a sua
pele eles fabricam tamborins, objetos próprios ao universo do prazer, que é a dança e a
trabalho. Mas há neles uma singularidade a ser observada: não há a passividade do sujeito
vista na fábula anterior, pois, ao sentir-se explorado, recorre a auxílio divino para aliviar seus
sofrimentos.
O jumento e o jardineiro
Certo jumento estava ao serviço (uJphretouvmeno9) de um jardineiro. E, como comia
pouco e trabalhava (ejmovcqei) muito, implorou a Zeus livrá-lo do jardineiro e fazer
com que ele fosse vendido a um outro senhor (despovth/). Então Zeus atendeu-o, e
fez com que ele fosse vendido a um oleiro. Contudo, novamente ele ficou
descontente, porque o sobrecarregavam ainda mais do que anteriormente, fazendo-o
transportar (ajcqoforw~n) argila e os vasos de louça. Portanto, mais uma vez ele
suplicou mudar de dono (despovthn), e foi vendido a um curtidor de peles. Assim
ele caiu sob o domínio de um dono pior do que os anteriores. E, olhando para os
produtos do trabalho dele, o jumento disse gemendo: “Ai de mim, como sou
desgraçado! teria sido melhor para mim ter ficado com os meus primeiros donos
(despovtai9); pois este, pelo que estou vendo, acabará curtindo também a minha
pele!”55
(ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 165, acréscimo nosso)
55
Moral: “Esta fábula mostra que os servidores (oijkevtai) têm saudades dos primeiros donos (despovtai9),
principalmente depois que experimentam os posteriores.”
139
O trabalho nas fábulas esópicas
figurativizado pelo “jumento”, que está em conjunção permanente com o objeto “trabalho” e
Esse actante tem uma concepção disfórica a respeito dessa conjunção, sobretudo porque
realiza uma atividade contínua, que pode ser apreendida por meio dos lexemas “comia pouco
e trabalhava muito”. O termo usado para figurativizar esse trabalhar muito é o verbo grego
moFqevw que denota o trabalho pesado, pois significa “trabalhar”, fadigar-se”. Outras
figurativizações de trabalho podem ser apreendidas por meio dos verbos gregos uJphretevw,
que significa “prestar serviço”; ajcqoforevw, que significa “transportar cargas”, “carregar
algo” e o verbo komivzw que também possui, entre seus significados, o sentido de “transportar
alguma coisa”.
Modalizado pela insatisfação e descontentamento com seu fazer, esse sujeito deposita
suas esperanças em uma divindade, figurativizada por Zeus. Na esperança de se ver disjunto
do objeto que repulsa, estabelece um contrato fiduciário com essa divindade porque acredita
que só ela pode alterar sua condição de sofrimento. Zeus cumpre o contrato estabelecido e
descontentamento: implora a Zeus (hu!xato tw~ Diiv) para mudar sua condição. O destinador
Zeus atende ao seu pedido e o coloca a serviço de um oleiro (kerameuv9), mas essa mudança
de estado exterior não modifica o estado passional do sujeito que fica descontente também
com o segundo dono. Esse descontentamento é expresso, em grego, pelo verbo dusforevw,
que significa “suportar com dificuldade”, “estar desolado”, “aflito”, “inquieto”. A insatisfação
é porque o novo opressor o faz levar cargas, ajFqoforevw, nesse caso figurativizada pelos
lexemas “transportar argilas” e “vasos de louça”. A terceira mudança de estado pela qual o
140
O trabalho nas fábulas esópicas
jumento implora junto a Zeus faz com que ele caia no domínio de um curtidor de peles
(bursodevyh9). Essa última mudança gera o estado passional do medo, pois o jumento teme
jardinagem, olaria, curtidor de peles – figuras discursivas que revestem o tema do trabalho. A
maneira fluente com que cada programa narrativo é transformado não deixa dúvidas em
relação ao trabalho executado. Os verbos são sempre usados no gerúndio: “comia pouco e
trabalhava muito”, “sobrecarregavam-no ainda mais que anteriormente”, mostrando uma ação
ininterrupta, que reafirma o trabalho contínuo e pesado. Veja que o sujeito parece estar
privado do lazer, pois, dentre suas queixas, está o “comer pouco”, que é um fazer relacionado
ao universo do prazer.
figura do jumento. Podemos exemplificar essa disforia através do estado passional tenso que o
sujeito vive por estar conjunto a um objeto que ele repulsa – o trabalho. O não-poder-fazer
mostra a fraqueza do sujeito nos três estados pelo qual ele passa e culmina com a pena de si
Outro ponto interessante a ser destacado diz respeito à figura de Zeus. Ele promove as
mudanças desejadas pelo sujeito, mas essas mudanças não alteram a condição social do
mesmo. Podemos pensar em Zeus como uma figura dúbia: ao mesmo tempo que satisfaz o
desejo de seu servo e promove as mudanças desejadas, é deus sancionador que contribui, o
tempo todo, pela manutenção tanto do estado passional do jumento, que permanece tenso nos
três tipos de atividade que realiza, quanto na condição penosa a que é submetido. Se
observarmos com atenção as mudanças promovidas por Zeus, veremos que elas tendem a uma
ainda mais do que anteriormente” e a última mudança gera tensão e medo porque o sujeito
141
O trabalho nas fábulas esópicas
“caiu sob o domínio de um dono pior do que os anteriores”. Essa frase nos faz perceber que o
sujeito está próximo da aniquilação e reconhece que o primeiro, o jardineiro, era o melhor dos
senhores.
Não nos parece ingênuo o uso da palavra grega despovth9 todas as vezes que o
enunciador faz referência aos senhores para os quais o jumento fora vendido. Tal termo, que
Para o jumento, sofrer penosos trabalhos é preferível a ser aniquilado e ele parece
compreender isso depois de experimentar as mudanças solicitadas. Podemos inferir que Zeus
para que houvesse, da parte do jumento, o reconhecimento da condição a que ele estava
submetido.
Vejamos outra fábula em que o sujeito necessita de auxílio divino para alterar seu
Diferente da fábula anterior em que havia apenas um sujeito descontente com sua
condição de serviçal e com o estado conjunto com um objeto que repulsa, esta narrativa
56
Moral: “Esta fábula mostra que é inalterável o decretado pelo destino para cada um.”
142
O trabalho nas fábulas esópicas
actantes do fazer e a relação com o trabalho aparecem marcadas no texto quando o enunciador
verbaliza que eles carregavam fardos, grafado por meio do verbo grego ajcqoforevw - e
perdura por todo o tempo e que, por sua vez, reforça a paixão da angústia e aflição que o
Essa aflição vem marcada pelo particípio plural ajcqovmenoi, que corresponde a “estar
desgostoso”, “aflito”, “angustiado”. Esse sujeito quer entrar em disjunção com esse fazer
obrigatório e contínuo, tematizado pelo trabalho. O lexema “trabalho”, que em grego vem
expresso pelo termo povnon, normalmente aparece traduzido por “trabalhos pesados e
árduos”.
modalização desses actantes do fazer, sobretudo porque estimulam-nos a tomar uma atitude
que pode mudar a condição penosa a qual se os jumentos julgam estar submetidos: eles
resolvem pedir o auxílio de Zeus, divindade que se torna esperança de mudança. Eles
estabelecem um contrato fiduciário com ele porque crêem que o deus é o único capaz de
ajudá-los. Por sua vez, Zeus finge cumprir o acordo e estabelece uma condição absurda aos
desgostosos: eles deveriam, urinando, formar um rio para que fossem liberados de seu
sofrimento, que em grego expressa-se por meio do termo, kakopaqeiva9 e, neste contexto,
refere-se ao trabalho. Também é digno de nota que esse conselho dado pela divindade tinha a
finalidade de mostrar que era impossível (ajduvnaton) e, portanto, eles recebem um conselho
que os coloca novamente numa situação de atividade continua: urinar até formar um rio.
Por acreditarem que esse estratagema imposto pelo deus os libertaria do trabalho, cumprem
seus desígnios. Além de não terem entrado em disjunção com o objeto-valor que tanto
143
O trabalho nas fábulas esópicas
Tanto na fábula anterior quanto nesta, a figura de Zeus é digna de maior atenção. Ao
mesmo tempo que se mostra adjuvante, doador do objeto modal que fará com que os sujeitos
mudem sua condição, ele é um destinador-julgador na medida em que camufla, por meio de
seu auxílio, uma punição: ele sabe que os jumentos não ficarão livres porque é esta a condição
Agora, vejamos duas fábulas em que os actantes do fazer tomam iniciativas para se
livrarem do trabalho.
sobrecarregado”, conta com a figura do jumento para fortalecer seu significado, uma vez que
O jumento é o sujeito do fazer, que tem competência para realizar a ação e, a princípio,
não apresenta indícios de descontentamento com seu fazer. Mas um acontecimento repentino -
estado inicial que era um estado de peso devido ao carregamento, agora o sujeito sente uma
leveza, figurativizada pelos temos “levantando-se mais leve”, já que a carga de sal se dispersa
nas águas do rio. Juntamente com a mudança de estado, que de pesado passa a ser leve, muda,
57
Moral: “Assim também certos indivíduos não percebem que, por causa das suas próprias astúcias, eles
mesmos se precipitam na infelicidade.”
144
O trabalho nas fábulas esópicas
também, o estado passional do sujeito, que passa a atribuir valores eufóricos à leveza, como
podemos constatar por meio dos termos “mais leve”, “mais ligeiro”, e se consolida
efetivamente na atitude do jumento, que continua a exercer a função predicativa de fazer, mas
agora esse fazer volta-se para seus próprios interesses – “resvalou de propósito” - quando
anteriormente experimentada.
Esse sujeito, modalizado pelo acontecimento “caiu na água”, passa a considerar outros
enunciador coloca o jumento como sujeito “encantado” com o acontecido. Esse encantamento
é confirmado por meio do verbo h@domai que significa “comprazer-se, sentir gosto ou prazer,
alegrar-se”.
próprios malogra, uma vez que o sujeito crê no parecer: a carga de sal que derreteu e tornou-
se leve fez com que o sujeito acreditasse que, se repetisse a mesma ação, aconteceria o mesmo
conjunção absoluta com o objeto-valor “trabalho”. Esse sujeito vê o trabalho como eufórico,
58
Moral: “Da mesma forma, para muitas pessoas, as suas próprias resoluções tornam-se a causa de seus
infortúnios.”
145
O trabalho nas fábulas esópicas
pois aparece caracterizado, no texto grego, pelo adjetivo fivlergo9, que quer dizer “amante
do trabalho”. Embora a viúva seja caracterizada como “trabalhadeira”, ela não exerce
termo grego usado para “criada” é a palavra qerapainiv9, uma espécie de serva, escrava
muito jovem que trabalha em casa de família realizando serviços domésticos, bem
Para que a manipulação seja eficaz, a viúva conta com o auxílio do objeto-modal
“galo” que também exerce a função predicativa do fazer: ao cantar de madrugada ele desperta
as criadas para os trabalhos domésticos. Por sua vez, as criadas que realizam o fazer
extenuadas pelo trabalho”, nos faz pensar numa ação contínua que culmina na modalização
das criadas a querer livrar-se de suas árduas tarefas e realizarem uma ação definitiva:
reforça o estado de insatisfação vivido pelos actantes e contribui para sua posterior
As criadas crêem no parecer e, ao julgar que o galo era a causa de seus infortúnios,
esgotamento emocional dos sujeitos, que obviamente, está num grau bem elevado. Ao
falta do galo faz com que sejam despertadas mais cedo para o trabalho.
146
O trabalho nas fábulas esópicas
prazer, como o dormir, que aparece negado neste texto. O acordar de madrugada nega o
narrativa, que após realizarem seu intento, “a situação tornou-se ainda mais penosa para elas:
é que a patroa, desconhecendo a hora dos galos, as fazia levantarem-se ainda mais cedo para
oriundo do adjetivo calepov9, que significa “difícil de suportar”, “penoso demais”. Tais
figuras reforçam que, se a situação inicial era ruim, a posterior, provocada pela
Assim como fizemos no grupo anterior, sintetizamos os aspectos mais relevantes dos
textos do segundo grupo, procurando enfatizar, novamente, as ações que denotam o trabalho.
Devido à particularidade que os textos apresentam em relação aos opressores, que ora estão
explícitos, ora implícitos, julgamos pertinente destacar, uma vez que tematizam papéis
sociais, como por exemplo, o dos escravos e os do senhor, referências mais claras na
moralidade. Também acrescentamos entre aspas as principais queixas que podemos extrair em
147
O trabalho nas fábulas esópicas
mas foram agrupadas por enfatizarem o alimento como recompensa pelo trabalho. Contudo,
foi necessário fazer uma subdivisão que aponta as diferentes argumentações que as
As três fábulas que seguem mostram que o alimento é uma recompensa pelo trabalho
realizado, mas não pode ser um prêmio para qualquer trabalho: deve haver esforço, dedicação
e trabalho duro por parte daquele que recebe o alimento. Também é comum a desqualificação
do trabalho do outro, visto sempre como inferior por uma das personagens, acentuando a
diferença de valores.
Os dois cães
Certo homem tinha dois cães e adestrou um deles para caçar (qhreuvein) e fez do
outro um sentinela (oijkouroVn) da casa. Ora, toda vez que saía para a caça e pegava
alguma, o homem atirava uma parte dela ao outro cão também. Um dia, o cão de
caça, descontente, censurou o outro: só ele é que saía e trabalhava (mocqei~) pesado,
enquanto o outro, sem nada fazer (oujdevn poiw~n), limitava-se a gozar dos frutos do
seu trabalho (povnoi9)! O cão de guarda respondeu: “Não me repreendas a mim,
mas ao nosso dono (despovthn), que não me adestrou para trabalhar (ponei~n), e
sim para viver do trabalho (povnou9) alheio.”59
(ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 95, acréscimo nosso)
59
Moral: “Da mesma forma, também as crianças preguiçosas não merecem censura, quando são os seus pais que
as educam assim.”
148
O trabalho nas fábulas esópicas
despovth9, e dois actantes que cumprem a função predicativa “daquele que faz”,
predicativas distintas: um dos cães é o caçador, qhreuthv9, , cuja função é figurativizada pela
atividade da caça, que tematiza o trabalho; o outro cão não deixa de ser um sujeito do fazer,
mas com responsabilidade diferente daquela do primeiro actante – ele é um oijkourov9 - e sua
função é vigiar, cuidar, e figurativiza-se sob a forma de sentinela da casa. Essa palavra
também tem o sentido de “preguiçoso”, “sedentário”, o que nos permite pensar nos preceitos
culturais dos gregos que conhecemos: o trabalho que é realizado no lar, sem que o sujeito saia
caça”, triunfo do primeiro actante, responsável por esse fazer. É interessante salientar que o
A frase “Toda vez que saía para a caça e pegava alguma, o homem atirava uma parte
dela ao outro cão também”, denota uma ação contínua e, por meio dela, podemos apontar os
verbo ajganaktevw significa “irritar-se, indignar-se contra alguém”, e comprova o estado tenso
e angustiado que vive este sujeito. Uma das formas de demonstrar a insatisfação é a censura
que ele dirige ao outro quando diz que “só ele trabalhava pesado” e usa o verbo mocqevw, que
encontrarmos este último termo traduzido por “executar algo com trabalho de pena ou fadiga,
149
O trabalho nas fábulas esópicas
trabalho em excesso, labuta”. Sob seu ponto de vista, o outro não fazia nada -oujdevn poiw~n –,
mas gozava do trabalho alheio, que vem marcado pelo substantivo povnoi9, que reafirma um
trabalho árduo. O olhar disfórico do cão de caça sobre o fazer do outro é reafirmado pela fala
adestrou para trabalhar”, mas para viver do trabalho alheio. Neste contexto, trabalho vem
marcado pelo substantivo povnou9 e pelo verbo ponevw, cuja carga semântica assemelha-se ao
do verbo mocqevw.
É interessante notar que o próprio cão sentinela contribui para que sua função seja
desqualificada pelo outro, pois diz que “não fora adestrado para trabalhar”, o que confirma a
visão disfórica da cultura em relação a todas as atividades que não denotassem esforço físico.
Com isso, é possível compreender que o universo passional que permeia o texto incide
sobre a figura do cão de caça, que não aceita que o outro receba o alimento como recompensa
porque ele não realizou o povnou9: aquele que se subordina a um trabalho ligado ao esforço
físico, o faz como uma atividade contínua e tende a considerar-se prejudicado quando vê
outros sujeitos que não realizaram o esforço que ele realizou, receberem a mesma
recompensa.
150
O trabalho nas fábulas esópicas
cima do mulo. Então o mulo, fixando o olhar no jumento, disse-lhe: “E agora, meu
camarada, não te parece justo que me distingam com uma ração dupla?”60
(ESOPO apud SOUZA, 1999, p. 167, acréscimo nosso)
hJmivono9, animais ligados ao transporte de cargas. Ambos realizam a mesma atividade que
podemos considerar como trabalho e confirmar através do verbo grego bastavzw, que
significa: “carregar peso”, “transportar”, “levar”, mas também tem seu significado estendido a
“sofrer” e “suportar”. Nota-se que os dois sujeitos estão sob um estado de peso e a princípio,
como pagamento por esse transporte: o jumento julga que, se transportam a mesma carga,
devem receber recompensas iguais, fato que não ocorre porque o mulo é distinguido com uma
ração dupla. Esse questionamento é expresso por meio do verbo ajganaktevw, que significa
“indignar-se’, “irritar-se”, “perder a paciência”. O uso deste verbo denota que a insatisfação
gerou uma reação no sujeito jumento, que não se mostrou passivo perante seu
mostram o verdadeiro motivo de o mulo ser tratado com mais alimento: o jumento não é
capaz de realizar seu trabalho até o final devido ao cansaço físico que apresenta e têm sua
carga reduzida por completo antes do fim da jornada. Já o mulo, mesmo recebendo toda a
carga excedente do jumento, cumpre sua jornada até o fim o que o faz julga-se merecedor do
alimento dobrado.
O advérbio dikaivw9, que significa, “com justiça”, “com direito”, “com razão”, foi
usado com muita propriedade no texto, na fala do mulo “E agora, meu camarada, não te
60
Moral: “Realmente, também nós não devemos julgar pelo começo, mas pelo resultado, o merecimento de cada
um.”
151
O trabalho nas fábulas esópicas
parece justo que me distingam com uma ração dupla?”, reafirmando os valores contidos na
Certo ferreiro (calkeuv9) tinha um cão. Ora, quando ele forjava (ejcalkeuen), o cão
dormia (ejkoima~to); porém, quando ele comia, o cão ia postar-se ao seu lado. Um dia
o ferreiro, atirando-lhe um osso, disse-lhe: “Miserável! Dorminhoco! Quando eu
bato na minha bigorna, tu dormes; mas quando eu dou ao dente, tu logo acordas!”61
(ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 109, acréscimo nosso)
forjar o ferro. O verbo grego calkevw recebe a tradução de “trabalhar o bronze, o cobre e o
trabalho como forjador que o ferreiro consegue alimentar-se e alimentar seu cão.
portanto, senhor e dono do cão, o ferreiro não exige, por métodos opressivos, que o cão
realize algum trabalho. Ao contrário, enquanto o dono trabalha, a atividade realizada pelo cão
começa a reparar que o comportamento do animal muda quando ele está se alimentando: ele
perceber que o cão, não só vê o seu trabalho de forjador como disfórico, bem como ignora a
sua atividade, já que dorme o tempo todo. A debreagem de segundo grau, realizada pelo
ferreiro, mostra sua ira quando o chama de uJpnwvdei9 e ajrgouv9, que significam,
respectivamente, “dorminhoco” e “aquele que não trabalha, ocioso”. Neste sentido, o fato de
dormir tem um aspecto disfórico para aquele que trabalha porque é uma figura relacionada ao
universo do lazer, basta lembrarmo-nos da análise da fábula A mulher e suas criadas, em que
61
Moral: “Esta fábula refere-se às pessoas dorminhocas (uJpnwvdei9) e preguiçosas (ajrgouV9), que vivem do
trabalho (povnwn) alheio.”
152
O trabalho nas fábulas esópicas
as criadas eram despertadas muito cedo para trabalhar e resolvem matar o galo, julgando que
apenas mediante o esforço de seu dono, ele não se preocupa em trabalhar ou retribuir o
alimento. Entretanto, é acrescida de um dado novo: a paixão da inveja sentida por uma das
A cabra e o jumento
actante do fazer e pelas isotopias de trabalho de carga. Seu trabalho é árduo e pesado: ele é
um carregador de cargas e faz girar a mó, pedra grande e dura com que se trituram os grãos no
moinho. Ele não parece estar descontente porque seus afazeres são recompensados pela
excelente alimentação – toV perissoVn th~9 trofh~9 - que recebe de seu senhor, despovth9, e
Entretanto, seu modo de vida é vigiado por um segundo ator “cabra”, que não exerce
nenhum fazer, mas passa o dia a observar, com inveja, a alimentação que o jumento recebe
62
Moral: “Eis que todo aquele que trama patifarias contra outrem torna-se a causa primeira de seus próprios
infortúnios.”
153
O trabalho nas fábulas esópicas
por trabalhar. O termo grego usado para grafar a paixão da inveja é o particípio fqonhvsasa,
movido por este tipo de inveja, não apenas deseja o que é do outro para si, como também não
quer que o outro seja possuidor do objeto de seu desejo. A cabra, que vê o trabalho
disforicamente, neste caso, assume o papel de anti-sujeito e faz com que o jumento creia que
seu fazer é muito ruim, um “castigo sem fim”, em grego, a!peira kolavzh. A força do lexema
grego a!peira, cujos significados também podem ser “infinito”, “imenso”, “inumerável”
num buraco para conseguir o descanso, figura relacionada ao universo do prazer. O termo
grego utilizado para descanso é ajnapauvsew9, que significa, também, “pausa” o que nos leva
a pensar que o trabalho do jumento era contínuo, sem interrupções. Ao julgar verdadeiro o
discurso da cabra e aceitar a persuasão, o jumento machuca-se, mostrando, com esta atitude,
que nunca havia feito isso antes, ou seja, nunca havia tido uma pausa nem mesmo por vontade
própria.
destinador-julgador das ações da cabra; ela acaba sendo imolada para curar o jumento,
Segue, no quadro abaixo, uma síntese dos termos que denotam o trabalho e a
154
O trabalho nas fábulas esópicas
Nas duas fábulas que seguem, muda-se o foco enunciativo e o alimento passa a ser o
O cavalo e o soldado
Certo soldado (stratiwvth9), enquanto durara a guerra, tinha nutrido com cevada
(ejkrivqizen) o seu cavalo, companheiro de tribulações. Todavia, depois que a guerra
terminou, o cavalo foi empregado em trabalhos servis (douleiva9) e no transporte de
pesadas cargas, sendo alimentado apenas com palha (ajcuvrw/) Entretanto, uma nova
guerra foi anunciada e, ao apelo da trombeta, o dono (despovth9) colocou a sela no
seu cavalo, armou-se ele próprio, e montou-o. Porém o cavalo, enfraquecido, caía
(katevpipte) a cada passo, dizendo afinal para o seu dono (despovth/): “Agora vai
alinhar-te entre os soldados de infantaria (oJlitw~n), pois de cavalo (i@ppou) tu me
transformaste em jumento (o!non); como queres agora obter de um jumento,
novamente um cavalo?”63
(ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 67, acréscimo nosso)
Ao contrário das demais narrativas em que o dano incide sobre a figura daquele que
trabalha, nesta fábula quem sofre o dano devido à sua negligência é o próprio soldado.
63
Moral: “Eis que na época de segurança e relaxamento, convém não esquecer o tempo das dificuldades.”
155
O trabalho nas fábulas esópicas
serviços de seu cavalo, o soldado - stratiwvth9 - alimentava-o muito bem, com a cevada64.
A cevada é a recompensa pelo trabalho bem executado e figurativiza o alimento. Por sua vez,
o cavalo cumpre suas atividades e auxilia seu dono nas guerras, pois possui condições para
Entretanto, quando a guerra cessa, o soldado emprega o cavalo em atividades que não
inferiorizar o trabalho do cavalo que passa de trabalho de guerra para trabalhos servis, reduz
palha (ajcuvrw/). Mas a imprudência do soldado não tarda a ser castigada, pois vem uma nova
guerra e o cavalo é selado e montado, mas devido ao fato de ter sido mal alimentado e usado
em trabalhos que não lhe cabiam, acaba caindo e não é capaz de realizar as atividades
A lição que o soldado recebe acaba por reduzir também suas funções predicativas, pois
reduziu ambos – soldado e cavalo – a uma hierarquia social inferior a que tinham antes, pois o
cavalo, que era símbolo de nobreza, foi reduzido a jumento, assim como o soldado foi
reduzido à infantaria.
64
Faz parte da cultura grega manter os cavalos sempre bem alimentados já que a guerra era uma atividade de
elite e somente os nobres possuíam cavalos.
156
O trabalho nas fábulas esópicas
O cavalo e o palafreneiro
função é cuidar do palafrém, cavalo nobre, elegante e adestrado devido aos bons tratos que
recebe. A isotopia do trabalho é afirmada pelos de escovar e esfregar, atividades que fazem
parte do tratamento dado ao animal, mas não é o suficiente para que ele se torne belo e tenha
É possível pensar que o palafreneiro não é o dono do cavalo, já que ele tem de cuidar
do animal o dia todo. Essa suposição pode ser confirmada através do fato de o palafreneiro,
usando de desonestidade, roubar e vender a cevada do cavalo, mostrando que ele atribui
valores eufóricos a um rendimento financeiro maior, que só pode ser obtido através da venda
da cevada. Com isso, inferimos que ele tratava o animal com alimento impróprio, inferior à
mas mal alimentado, associa a sua beleza à alimentação, pois sem o alimento não poderá
manter-se belo. Esta narrativa coloca em evidência não só a atitude desonesta daquele que
trabalha bem como a função do alimento enquanto mantenedor da força física e da boa
aparência. Nesse sentido, o bom alimento é essencial para manter um padrão elevado de
157
O trabalho nas fábulas esópicas
As duas fábulas seguintes mostram a admiração que uma das personagens sente em
relação ao alimento farto que o outro recebe. Contudo, esse alimento é a recompensa pela
bem alimentado e bem cuidado. Ele atribui valores eufóricos em relação à recompensa que o
O olhar sobre a vida do cavalo faz com que ele reflita e compare a recompensa que o
cavalo recebe – a fartura de alimento - com a sua, pois “ele próprio não tinha sequer palha
negativos de sua função: ele é submetido a numerosos trabalhos, que em grego aparece
grafado por meio dos termos plei~sta talaipwrw~n. O verbo talaipwrevw significa
jumento vive.
66
Moral: “Esta fábula mostra que não se deve invejar os chefes nem os ricos, mas pensar nas rivalidades e nos
perigos que os cercam, e resignar-se com a pobreza.”
158
O trabalho nas fábulas esópicas
prêmio que faz com que o jumento reflita sobre o excesso de valor que atribuiu a ele. A
mudança temporal da narrativa culmina com a transformação interior pela qual passou a
personagem: ao chegar a época de guerra, viu que o cavalo foi ferido e caiu por terra e que de
nada adiantou ter sido bem alimentado. O jumento se dá conta que o parecer não era
verdadeiro quando vê que o cavalo pagava um preço muito alto para obter o objeto-valor
“alimento” e muda seu estado de modalização – deixa de felicitá-lo e passa a lamentar sua
condição de vida.
oposições de valores e são freqüentes nas fábulas. O enunciador associa à figura do cavalo o
bom tratamento, a beleza e o alimento farto, cuidados pertinentes aos nobres, além de
relacionar o animal aos perigos da guerra, outra atividade praticada por membros de classes
superiores. Ao jumento, faz-se analogia com os mal alimentados e mal tratados, mas que
A diferença figurativa entre os dois sujeitos começa com a distinção entre jumento
selvagem - o!no9 a!grio9 - e jumento doméstico - o!non h@meron. Os selvagens vivem livres,
mas têm que buscar sozinhos o próprio alimento, sem a mediação dos humanos. Nesse
sentido, o valor da liberdade é eufórico para ele. Já os jumentos domésticos devem prestar
67
Moral: “Assim, não são nada invejáveis os proveitos acompanhados de perigos e sofrimentos.”
159
O trabalho nas fábulas esópicas
serviços ao dono, que em troca lhes dá alimentação e abrigo. Para esses o alimento é eufórico,
recebia ao do cavalo, que era farto, nesta narrativa a comparação parece resultar da reflexão
que o jumento selvagem faz entre uma vida de liberdade e outra de servidão.
A princípio ele o felicita pela comida, que, conseqüentemente traz boa aparência, mas
reconsidera sua opinião quando vê o jumento doméstico carregado com fardos e exercendo o
trabalho com o transporte de cargas, além de apanhar de seu senhor – o arrieiro - com um
bastão.
Para o jumento selvagem, não vale a pena uma vida de abundância se ela for vivida à
custa de grandes males, que, neste caso, refere-se ao trabalho que o jumento doméstico deve
realizar. A palavra “males” é registrada, em grego, pelo adjetivo kakov9 que denota grande
relacionado ao trabalho e aos maus tratos que o jumento doméstico recebe é o substantivo
“trabalho”.
Essa oposição de valores pode explicar a aversão que algumas personagens sentem
pelo trabalho, já que ele priva-os da liberdade, ainda que estejam cercados de boa
alimentação. Estar submetido a outrem é pior do que ter uma alimentação regrada.
Vejamos uma síntese dos elementos principais das duas narrativas no quadro abaixo:
160
O trabalho nas fábulas esópicas
fábulas e outros textos da cultura. O fato de o trabalhador ter o alimento como recompensa
pelo trabalho e queixar-se quando o outro, que não trabalhou, receber a mesma recompensa,
pode ser recuperado nos escritos de Xenofonte. A personagem Iscômaco diz: “(...) Estou
convicto, Sócrates, disse ele, de que os bons trabalhadores sentem desânimo quando vêem que
foram eles que fizeram o trabalho e que obtêm o mesmo que eles os que não quiseram labutar,
Nota-se, por meio dessa associação, que os valores contidos nos discursos das fábulas
dialogam, o tempo todo, com os demais textos da cultura, mostrando que, de alguma forma, a
ideologia da classe trabalhadora, ainda que não seja a predileta, se faz presente.
figuratividade como essencial para a compreensão dos valores ideológicos que permeiam esse
ainda mais relevantes, que podem nos auxiliar a desvendar a ideologia imanente nas fábulas.
161
Reflexões sobre a enunciação
CAPÍTULO V
REFLEXÕES SOBRE A ENUNCIAÇÃO
enunciado das fábulas que compõem nosso corpus de pesquisa. O estudo da enunciação pode
dar maior sustentabilidade à nossa análise, pois, através do exame da fala daquele que
(2003).
Acrescentamos, também, o estudo feito pelo Prof.º Alceu Dias Lima, estudioso de
fábulas antigas, que, na esteira da semiótica, faz importantes observações acerca da sintaxe e
da semântica das fábulas. Seu estudo também contribui para que reconheçamos que, embora
explicitados, neste trabalho, através da retomada que Barros (1991) e Fiorin (1991) fazem dos
russo é o de Cascajero (1991), para quem a fábula é um discurso permeado de vozes que não
se deixam entrever em primeira instância, mas que podem ser recuperadas numa análise mais
minuciosa.
162
Reflexões sobre a enunciação
desvelamento da ideologia que permeia cada voz que fala sobre o trabalho na ficção
fabulística.
acima de tudo, das estratégias discursivas utilizadas pelo enunciador e da ideologia da qual ele
participa.
às análises psicológicas e ontológicas sobre o sujeito enunciador, que, até então, permeavam
os estudos literários.
enunciação a partir de pistas que o enunciador projeta no enunciado, tais como as projeções
163
Reflexões sobre a enunciação
deixa pistas de sua presença no texto, estas pistas só podem ser recuperáveis no patamar das
linguagem biplana: num primeiro plano, temos um discurso figurativo que nos conta uma
história de animais. Esta história está atrelada a um segundo plano – o discurso da moralidade,
que pode ser considerado o plano de leitura orientado por um enunciador, mas que deve ser
Esse fenômeno singular da fábula faz com que tenhamos de apreender o “parecer do
especial sobretudo porque, muitas vezes, é possível observar discrepâncias entre a mensagem
164
Reflexões sobre a enunciação
mas que adota um suporte concreto de linguagem: delineia-se a imagem do mundo através de
situações que poderiam ser reais e instalam-se, no discurso, tempo, espaço, objetos e
enunciador pode instalar interlocutores em seu discurso, fazendo uso de uma debreagem
interna a fim de obter um efeito de realidade, que pode ser observado quando se introduz um
Era inverno, e as formigas secavam o trigo molhado. Uma cigarra, com fome, pediu-
lhes um pouco de comida. Então as formigas lhe disseram: “Por quê, durante o
verão, não ajuntaste provisões também tu?” Ao que a cigarra respondeu: “Não tive
tempo, pois cantava melodiosamente”. E as formigas, rindo, replicaram: “Pois se no
verão flauteavas, no inverno dança!”
Esta fábula mostra que, em todo e qualquer assunto, ninguém deve ser negligente, a
fim de não sofrer desgostos nem correr perigos.
(ESOPO apud SOUSA, 1999, p.73, acréscimo nosso)
através da estação do inverno, e insere os atores – formigas e cigarra - para comunicar seus
valores. A fim de conferir credibilidade ao seu discurso, ele faz uso da debreagem interna,
165
Reflexões sobre a enunciação
transmitindo ao leitor o diálogo entre os atores, como podemos observar através da fala das
formigas: “Por quê, durante o verão, não ajuntaste provisões também tu?”, e da resposta da
fábulas de nosso corpus. Essas marcas podem ser exemplificadas por meio de projeções
actoriais, temporais ou espaciais que o enunciador instala no discurso. O uso constante dos
verbos no pretérito também pode ser considerado uma marca enunciativa, pois confirma a
debreagem interna será marcada com um “x”, e a ausência com o símbolo “”.
166
Reflexões sobre a enunciação
167
Reflexões sobre a enunciação
enunciador projeta um narrador que observa os fatos e os relata tal como eles aconteceram,
além de fazer uso de debreagens internas para garantir a veracidade do discurso que
pronuncia.
Com efeito, não há dúvida de que, em todo ato de comunicação oral ou escrito,
sobre a verdade do discurso que profere, fazendo-o crer que aquilo que se diz é verdadeiro.
Entretanto, essa “verdade” tencionada pelo enunciador aparece de uma forma muito
peculiar nas fábulas esópicas, sobretudo no que se refere às diferentes posições enunciativas
moral.
que aparece atrelado à narrativa das fábulas, como tivemos oportunidade de observar na
moralidade quando narra a história com a intenção de alertar o irmão a não agir como o
falcão, ainda que o animal, sendo mais forte que o frágil rouxinol, vença o debate verbal.
Com isso, pode-se afirmar que, nas narrativas da tradição, o discurso figurativo servia
intenção daquele que proferia a fábula no momento em que ela era dita.
Nas coleções, a moral desta fábula é “Assim também, entre os homens, são insensatos
aqueles que, na esperança de bens maiores, deixam escapar os que têm nas mãos.” (ESOPO
apud SOUSA, 1999, p. 333). Além de a moralidade retomar o discurso figurativo e concordar
68
Cf. Cap. I.
168
Reflexões sobre a enunciação
com a atitude do falcão, ela aparece descontextualizada e a narrativa deve ser interpretada
Como se pode notar, o discurso figurativo permite que se faça mais de uma leitura,
De acordo com as informações de Fiorin (1999, p. 102), há textos que podem ser
interpretados sob outro plano de leitura, mas “é a recorrência de traços semânticos que
esse aspecto, pois notamos que havia certa polifonia em relação à posição ideológica do
Foi dito que, nas fábulas do primeiro grupo, há um enunciador que se posiciona
favoravelmente ao trabalho, fato confirmado por meio da figurativização escolhida por ele.
figurativo, pois aquele que não trabalha é condenado pelo enunciador. A título de exemplo
podemos citar a fábula A formiga e o escaravelho (ESOPO apud SOUSA, p. 115), em que o
enunciador figurativiza o trabalho da formiga por meio de vários termos que remetem ao
trabalho agrícola, como por exemplo os termos “rondar pelo campo”, “apanhar grãos de
Nesta narrativa, a formiga tematiza o homem trabalhador que se previne para o futuro
escaravelho, por não trabalhar como ela e posicionar-se como admirador de seu trabalho,
tematiza o homem imprudente, que não possui reservas para o futuro, já que, quando chega o
mau tempo, recorre a ela para solicitar o alimento. O enunciador da moralidade parece
compactuar com as atitudes da formiga quando diz: “Igualmente aqueles que, nos tempos de
169
Reflexões sobre a enunciação
fartura, não se previnem para o futuro, caem em miséria extrema quando as circunstâncias
formiga é apoiada pelo enunciador da moralidade, pois este critica o fato de ele não ter se
Entretanto, é no conjunto de fábulas do segundo grupo que podemos ver com mais
tipo de trabalho penoso, em que os atores, tematizados pelos trabalhadores sofrem pelo
excesso de trabalho, falta de comida e de lazer, entre outras queixas. Vimos que a própria
Assim, julgamos pertinente pensar que, num primeiro plano de leitura, o discurso
desse grupo de narrativas denuncia os maus tratos e o trabalho humilhante a que esses atores
estão submetidos. Dessa forma, poder-se-ia esperar uma moralidade que condenasse a atitude
dos opressores, já que a principal função da fábula é aconselhar os homens a terem uma boa
conduta.
natural a situação lamentável dos trabalhadores, pois os condena por tentarem mudar sua
A narrativa conta a história dos jumentos que recorrem a Zeus para que ele coloque
fim aos penosos trabalhos que eles vêm sofrendo, pois se queixam de carregarem fardos e
jumentos, acaba por dar-lhes outro trabalho: urinar até que se formasse um rio. Ainda que a
170
Reflexões sobre a enunciação
diz: “Esta fábula mostra que é inalterável o decretado pelo destino para cada um” (ESOPO
apud SOUSA, 1999, p. 177). Nesse sentido, discurso narrativo e moral parecem estabelecer
diferentes vozes, já que uma denuncia o trabalho penoso e a outra afirma que se deve
recebido como recompensa, a falta do alimento após a realização do trabalho, etc. Contudo, o
enunciador da moralidade mantém a postura de um observador que apóia aquele que trabalha
mais, julgando-o digno de maior quantidade de alimentos, ou ainda, condena o opressor que
nega o alimento àqueles que trabalham. É possível notar que esse enunciador não polemiza
com o do discurso figurativo, o que nos permite ver discurso figurativo e temático sob o
mesmo plano.
Isso pode ser observado através da fábula O jumento e o mulo transportando a mesma
carga (ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 167), em que um jumento fica indignado quando
percebe que o mulo, seu companheiro de jornada, recebe ração dupla, enquanto ele recebe
menos comida, mas trabalha em igual proporção. Entretanto, tendo percorrido um pequeno
trecho da viagem, ambos carregados com a mesma carga, o arrieiro percebe que o jumento
está fadigado e o alivia de parte da carga, passando-a para o mulo. Percebendo, novamente, a
fadiga do jumento em outro trecho do caminho, o arrieiro o alivia de toda a carga, colocando
tudo sobre o mulo, que termina a viagem carregando a carga toda sozinho.
enunciador, pois ele parece julgar merecido contemplar com mais alimento aquele que
trabalha mais: “E agora, meu camarada, não te parece justo que me distingam com uma ração
171
Reflexões sobre a enunciação
mesma posição ideológica, pois reafirma que “não devemos julgar pelo começo, mas pelo
doméstico (ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 175). O discurso figurativo mostra que o jumento
doméstico apanha com um bastão para realizar o trabalho de carregar fardos, o que denota um
trabalho árduo. Aqui, o enunciador do discurso moral julga esse trabalho “perigoso” e
trabalho árduo.
É de suma importância a contribuição que Lima (1984) prestou aos estudos sobre a
fábula, onde o autor lança questões complexas e pertinentes a quem desejar aprofundar-se no
estudo do gênero.
respondem por ações não-humanas; no discurso moral, temos o contrário, atores humanos que
atores da história, ainda que, nessas histórias, atuem animais. O efeito de sentido oriundo
dessa oposição é denominado pelo autor “desumanização”. De fato, mesmo que os atores
sejam animais, eles trazem traços humanos quer seja nas ações, quer seja em certas
172
Reflexões sobre a enunciação
dos fatores responsáveis pelas ações das personagens. Outras fábulas possuem o sema
humano no próprio título, caracterizando, muitas vezes, algumas profissões, como por
Alguns menagurtes tinham um jumento que eles costumavam carregar com suas
bagagens sempre que viajavam. Ora, certo dia, tendo o jumento morrido de fadiga,
eles o esfolaram e fizeram da sua pele alguns tamborins, que utilizavam bastante.
Então outros menagurtes, encontrando-se com eles, perguntaram-lhes onde estava o
jumento, ao que eles responderam: “Morreu, mas recebe tanta pancada, como
jamais apanhou enquanto viveu”.
Na história, atuam os menagurtes, que são sacerdotes da deusa Cibele e, portanto, são
atores humanos, e o jumento, ator não-humano. Nesta narrativa, o jumento não age de forma
humana, pois carrega as bagagens dos sacerdotes, atividade comum a este tipo de animal.
palavra “servos”. O enunciador associa o jumento aos servos, fazendo uma analogia, pois o
menagurtes como instrumento musical. O exemplo acima torna mais claro os dizeres de Lima
primeiro a resgatar a idéia de fábula como sinônimo de fala, afirmando que este tipo de
173
Reflexões sobre a enunciação
narrativa possui um terceiro elemento, além do texto narrativo e da moralidade, que ele
É necessário que se leve em conta este terceiro elemento para que o trabalho de análise
do discurso seja completo, tanto em sua expressão quanto em seu conteúdo, pois a
enunciação, pressuposta no enunciado, uma vez que esse discurso que introduz a moral das
fábulas, é uma das marcas da enunciação, e a própria presença da palavra “moral”, denuncia
que existe um narrador projetado no texto. Como exemplo, vejamos a aplicação desses
Esta fábula mostra que não se deve invejar os chefes nem os ricos, mas pensar nas
rivalidades e nos perigos que os cercam, e resignar-se com a pobreza.
(ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 171, acréscimo e grifo nosso)
humano) à figura dos chefes e ricos (atores humanos). O enunciador pretende mostrar que,
embora seja tratado com fartura, é o cavalo que tomará a linha de frente nos combates,
enquanto o jumento, associado à figura do homem pobre, não necessita de alimentação farta,
seguido por um texto moral que é uma interpretação da narrativa. Como já mostramos em
análises anteriores, o narrador faz uso da debreagem enunciva, que apaga as marcas da
174
Reflexões sobre a enunciação
destacada em negrito, é uma porção de texto que encontramos acoplada no início do discurso
moral. Pode ser representado, em língua portuguesa, pelos termos: “a fábula adapta-se”, “a
fábula mostra”, “a fábula ensina”; no texto grego, pode vir expressa por vários sintagmas,
como por exemplo - oJ mu~qo" dhloi~ o@ti69 - o mais comum de ser encontrado nas fábulas
esópicas; ou, ainda, pelo próprio tom de voz para mais baixo ou para mais alto, que se dá na
(...) qualquer que seja a maneira pela qual manifeste o discurso representado, o
discurso metalingüístico é exterior tanto à história quanto à moral. Sem o recurso
aos conceitos postos à disposição pela teoria da enunciação, não há nenhuma
possibilidade de explicação metodológica desse discurso na economia de uma
fábula. (LIMA, 1984, p. 63-64)
Esse fragmento pressupõe que temos um locutor que se utiliza de uma narrativa para
alocutário. O enunciador quer que o enunciatário decodifique o que foi relatado no discurso
anterior e podemos dizer que é por meio desse discurso moral que o locutor faz um recorte da
Para Lima (1984, p. 65), o analista da fábula que pretende dar conta de um estudo
completo, deve levar em conta os três elementos, deve atentar para os conceitos de debreagem
instalação no discurso dos termos categoriais apropriados que podem ser sintetizados em “eu-
aqui-agora”.
69
Pode-se encontrar um estudo completo sobre essas partículas em, Maria Celeste Consolin Dezotti. A
significação das estruturas formulares dos epimítios da fábula esópica anônima. Clássica, São Paulo: 5/6: 117-
132, 1992/1993.
175
Reflexões sobre a enunciação
Nesse sentido, a fábula faz uso das duas categorias enunciativas propostas pela teoria
terceira pessoa, que esbanja objetividade, e a segunda, quando faz uma espécie de retorno à
instância enunciativa, explicitando essas marcas por meio do discurso metalingüístico, pois
temos a impressão de que alguém está nos apontando o que deve ou não deve ser feito.
Julgamos, assim, que esse retorno à instância da enunciação pode ser um dos
articuladores da polifonia existente nas fábulas, já que parece ser o próprio enunciador a
recortar a mensagem que ele deseja transmitir. Nessa embreagem há uma ilusão de identidade,
Esse mecanismo revela que o enunciador parece não incomodar-se com o fato de as
árduo que, muitas vezes, podem levá-las à morte, mas ele se preocupa em destacar que toda
O trabalho de Lima (1984) contribuiu para que, ao levarmos em conta este terceiro
cujos interesses são contrários aos interesses daqueles que tematizam os trabalhadores. É por
este motivo que a moralidade não pune os responsáveis pelo sofrimento dos que executam o
trabalho árduo: a voz privilegiada da moralidade das fábulas do corpus é a desse enunciador,
que compactua com valores de outra classe social, que não a dos trabalhadores.
176
Reflexões sobre a enunciação
Embora seja verdade que as obras de Bakhtin tratam de uma complexidade de temas,
devemos levar em conta que esses conceitos são desdobramentos de um único tema que
sentido, quando discursamos, estamos sempre recuperando outros discursos que fazem parte
privilegiado na constituição do sentido do texto porque “nenhuma palavra é nossa, mas traz
exame da enunciação ocupa espaço privilegiado nas reflexões de Bakhtin, mas sempre
partindo do pressuposto de que se assentam no discurso outras vozes, que contribuem para a
construção de um discurso que tem apenas a aparência de ser individual. Na visão do autor,
não há discursos monofônicos. O que ocorre é que a polifonia pode estar, muitas vezes,
Há que se acrescentar que, nos discursos poéticos, o enunciador lança mão de várias
estratégias discursivas para que o leitor acredite num discurso monofônico, como por
177
Reflexões sobre a enunciação
exemplo, o uso dos conceitos semióticos de debreagens e embreagens, sobre o qual falamos
anteriormente e exemplificamos.
dos discursos individuais sem desprezar a relação entre a linguagem e o contexto sócio-
histórico, que é sempre permeada por discursos dialéticos e antagônicos. De acordo com
Barros (1999, p. 8) “as classes sociais utilizam a língua de acordo com seus valores e
O jumento e o jardineiro
Esta fábula mostra que os servidores (oijkevtai) têm saudades dos primeiros donos
(despovtai9), principalmente depois que experimentam os posteriores.
(ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 165)
enunciva para obter o efeito de objetividade, e faz uso de debreagens internas, que instalam a
voz da própria personagem - “Ai de mim, como sou desgraçado! teria sido melhor para mim
ter ficado com os meus primeiros donos (despovtai9); pois este, pelo que estou vendo,
178
Reflexões sobre a enunciação
discurso, esta fábula mostra que não se deve reclamar do trabalho prestado a um senhor e
desejar mudar de patrão porque pode ser que o novo chefe seja pior que os anteriores.
recorta do discurso figurativo apenas o fato de o jumento ter-se dado mal com a troca de
patrões. Esse enunciador usa a fábula para ilustrar o que ocorre com alguém que age como o
exploração vivido pelo jumento no transporte das cargas, já que no primeiro trabalho ele
comia pouco e trabalhava muito e, no segundo, ele era sobrecarregado com cargas mais
pesadas. Esse “trabalhador” solicita uma mudança que ele tem direito de almejar, mas acaba
relegado a funções cada vez piores, o que passa a impressão de que cada mudança é uma
punição. Esta é a voz “daquele que trabalha” e que clama por condições melhores de trabalho,
Assim, parece não haver dúvida de que temos um discurso polifônico, mas que se
encontra mascarado em monofônico porque apenas a voz do enunciador, que prima por
assegura que cada qual deve manter-se na posição em que se encontra a fim de evitar danos
maiores, e a outra deseja mudar sua condição devido à insatisfação com as condições de
trabalho a que determinado sujeito está submetido. Esta fábula pode ilustrar o que ocorre com
os demais textos analisados no que se refere à dialética interna instaurada no discurso. São
vozes inconciliáveis porque produzem discursos ideologicamente opostos, ainda que passem a
179
Reflexões sobre a enunciação
É por este motivo que voltamos a afirmar que o estudo da moralidade não se faz
narrativo estabelece uma relação contratual com a moralidade interna a esse discurso, ou seja,
o castigo recebido pelo jumento na história é retomado na moralidade porque esse enunciador
quer fazer com que o leitor creia que a mudança de patrão ou atividade não deve ser
concretizada.
pode ser considerado um dos recursos utilizados pelo enunciador para reafirmar a sua voz,
que pretende ser incontestável, já que forja um discurso único, aparentemente monofônico.
esópica como fuente histórica, de Juan Cascajero (1991), o autor também reflete sobre o fato
de outras vozes estarem subjacentes ao discurso figurativo das fábulas gregas, mas
encontrarem-se abafadas porque nem sempre condizem com a ideologia dominante, que
De fato, por serem oriundas de uma tradição oral, as fábulas cumpriam a função de
propagar valores e educar. Obviamente, era o enunciador da fábula quem decidia o valor que
desejava transmitir e escolhia o tipo de narrativa que melhor se encaixasse em suas intenções
enunciativas.
Assim, essa transmissão oral pressupunha a aceitação pelo coletivo e estava interligada
aos interesses axiológicos das pessoas que promoviam, dirigiam ou orientavam o sentido dos
É preciso deixar claro desde o princípio que, dentro de uma tradição oral, é
necessário distinguir entre a cultura oral, os valores, a sensibilidade, os interesses
em suma, das pessoas comuns, e a cultura oral para as pessoas comuns,
proporcionadas por outras pessoas, com propósitos específicos e respostas a seus
interesses particulares. (CASCAJERO, 1991, p.15)
180
Reflexões sobre a enunciação
Parece claro que esses “interesses particulares” acabaram sendo sedimentados nos
textos escritos que chegaram até nós, denotando concepções ideológicas condizentes com a
De acordo com Cascajero (1991, p.25), na maioria das vezes, as obras escritas são de
produções intelectuais reservadas à classe dominante, “que se mantinha sempre numa posição
contribuíam para a permanência dos pontos de vista e interesses de determinado grupo social.
Pode-se pensar, então, que o enunciador privilegia um tipo de discurso que está em
harmonia com os interesses das classes dominantes, ou seja, o discurso é destinado às pessoas
próprios limites, tanto os físicos quanto os ditados pelo poder econômico e político.
Do mesmo modo, no caso das fábulas que tematizam o trabalho, a violência aparece
ou moral, que incita os mais humildes à resignação, mostrando que o inconformismo atrairá
apenas desgraças.
181
Reflexões sobre a enunciação
e denota uma tensão entre a fábula e a moral. “É no enfrentamento entre a fábula do povo e a
fábula para o povo que surgem moralidades díspares, segundo diferentes versões da mesma
resignação e a submissão, pois nada impede a um redator que tenha coligido e divulgado as
dominante. Nesse sentido, seu discurso favorece aqueles que se beneficiam, de alguma forma,
Porém, mudando o ponto de vista da análise, é possível encontrar, nas fábulas, outros
condizentes com a representação que os animais fazem dos trabalhadores e das pessoas
proprietários rurais.
como um campo em que se desenvolve o conflito ideológico de classes. A voz da classe social
menos abastada, que necessita trabalhar para sobreviver, não se faz ouvir pela moralidade
ressaltá-la.
que ele enriquece figurativamente seu discurso, acaba por matizar as condições de trabalho
penosas das personagens, explicando a aversão que elas sentem pelo trabalho.
Esperamos ter mostrado que o embate entre diferentes vozes está presente no discurso
das fábulas que tematizam o trabalho e aponta ideologias distintas na construção do discurso.
182
Reflexões sobre a enunciação
As diferentes vozes observadas nos textos das fábulas podem estar associadas às
O uso pode ser entendido como “o conjunto dos hábitos lingüísticos de uma dada
o autor, muito do que está contido no interior da atividade enunciativa individual está
arraigado no que vem da práxis social e cultural e que está sedimentada na linguagem.
Dessa forma, ainda que pareça individual, a enunciação é cerceada por práticas
coletivas que a antecederam e a liberdade do enunciador reside apenas no fato de ele poder
reatualizar, recusar ou transformar seu discurso, embora não se desvincule das enunciações já
sedimentadas.
183
Reflexões sobre a enunciação
Hermes e a Terra
cultura. A título de exemplo, podemos citar a criação da mulher que, de acordo com o mito
Prometeu e Pandora, documentado pelo poeta Hesíodo, foi plasmada por vários deuses,
enviada a Terra por Hermes, o deus mensageiro, e acolhida por Epimeteu, irmão de Prometeu.
Como explanamos anteriormente, o castigo enviado por Zeus aos homens por conta da
astúcia de Prometeu foi o trabalho e a mulher, pois, a partir da inserção do sexo feminino na
terra, o homem estaria fadado ao trabalho, sobretudo ao trabalho agrícola, para poder
Nesse sentido, o trabalho surge como um mal e podemos pensar que, no texto citado, o
fato de a Terra dizer que o homem escavará gemendo e chorando remete ao trabalho árduo do
Outra fábula em que pode ser observada uma situação semelhante é O lavrador e seus
filhos, em que um lavrador, estando à beira da morte e querendo que seus filhos se
conscientizem da importância da agricultura para a sobrevivência, faz com que eles revolvam
a terra em busca de um tesouro que na verdade não existia, pois era a própria terra que, sendo
revolvida, estaria preparada para fazer brotar o alimento. Nesta narrativa a oposição de
valores é nítida, pois enquanto os filhos do lavrador valorizam o tesouro material, o pai
valoriza o trabalho com a terra, pois sabe que é apenas através dele que os filhos obterão o
sustento.
Nesse sentido, podemos afirmar que as fábulas citadas são reatualizações de ideologias
184
Reflexões sobre a enunciação
Nota-se que posições ideológicas distintas sobre o trabalho agrícola podem ser
atualizadas na mesma narrativa. Ao mesmo tempo que o trabalho é figurativizado como árduo
por aqueles que o realizam, a lição que extraímos das narrativas conserva uma posição
figurativizados como árduos e, normalmente, são rejeitados pelos que os praticam. É por meio
da figurativização que podemos constatar novas ideologias sobre o tema. Numa explanação
do texto. Temas como “liberdade”, “igualdade”, “justiça social”, etc., emergem das figuras
Para Fiorin (1988, p. 21) “(...) é no nível superficial, isto é, na concretização dos
ideológicas”.
Define a primeira como “a visão de mundo de uma determinada classe social, isto é, um
conjunto de representações, de idéias que revelam a compreensão que uma dada sociedade
tem do mundo”, e a segunda, como “um conjunto de temas e figuras que materializa uma
185
Reflexões sobre a enunciação
Para ele, essa ‘visão de mundo’ está vinculada à linguagem, já que esta é um
sociedade à qual pertence, adquire uma formação discursiva que será, inevitavelmente,
próprio discurso. É nesse sentido que “a cada formação ideológica corresponde uma formação
Em nosso corpus, a ideologia da classe trabalhadora pode ser recuperada por meio das
fábulas que denunciam a exploração sofrida pelos trabalhadores, como podemos constatar na
Uma viúva trabalhadeira tinha criadas muito jovens, que ela costumava despertar de
madrugada, com o canto do galo, para os trabalhos domésticos. Então as criadas,
permanentemente extenuadas pelo trabalho, acharam ser necessário matar o galo da
casa, pois acreditavam ser ele a causa dos seus males, ao despertar a patroa durante
a noite. Ora ocorreu que, após terem elas executado esse seu intento, a situação
tornou-se ainda mais penosa para elas: é que a patroa, desconhecendo a hora dos
galos, as fazia levantarem-se ainda mais cedo para trabalhar.
Da mesma forma, para muitas pessoas, as suas próprias resoluções tornam-se a
causa de seus infortúnios.(ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 257)
actante do fazer, ou seja, ela não realiza o trabalho doméstico, mas possui criadas para fazê-lo.
pois chegam a atitudes extremas – matam o galo – para livrarem-se de suas atividades.
rejeitado pelos gregos devido ao fato de ser um trabalho penoso, que privava o homem de
todo o tipo de lazer. Nesta fábula o lazer de que as criadas se privam aparece figurativizado
pelo “dormir”, pois elas eram despertadas muito cedo para executar as atividades domésticas.
Nesse sentido, o enunciador da fábula parece reatualizar um discurso que mostra o quão
186
Reflexões sobre a enunciação
negativos do trabalho, mas o que faz toda a diferença é a focalização que o enunciador dos
No que toca ao corpus analisado, notamos que os aspectos negativos são bem
evidentes nos textos das fábulas, ainda que mascarados por uma focalização favorável ao
trabalho.
187
Conclusão
CONCLUSÃO
sobretudo aquelas apontadas nos estudos sócio-históricos, permite concluir que a literatura
questão através das ideologias distintas que o enunciador delineia em cada personagem.
proporciona.
que ele não fala de qualquer trabalhador, mas do “mais hábil dos artífices”, ou ainda, retrata
alguns nobres realizando atividades consideradas como trabalho, mas que não lhes
agrícola, por exemplo, fazia do nobre um exemplo para seus servos, que, obviamente
aspecto religioso ao trabalho, mas não deixa de enfatizar seu aspecto disfórico: o trabalho
agrícola é fonte de virtudes, mas também é um sacrifício e uma labuta. Ao mesmo tempo é
As fábulas de Esopo parecem apontar a dualidade de forma mais explícita, mas não
deixam de enfatizar o aspecto disfórico do tema. Nas fábulas do primeiro grupo, ambientadas
em um cenário rural, onde pelo menos um ator é favorável ao trabalho, é evidente que se
acentua o “trabalhar para si”, e o percurso figurativo enfatiza pelo menos uma personagem
trabalho não exclui a noção de dificuldade em realizá-lo, pois o trabalho é, ao mesmo tempo,
188
Conclusão
a recompensa e o esforço. Tais fábulas reafirmam o discurso que Hesíodo profere em As duas
lutas: condenáveis são as riquezas oriundas de espólios de guerra, que trazem destruição, mas
o tipo de éris que “louvaria quem a compreendesse” engloba o trabalho com a terra, que não
deixa de ser uma luta, mas uma luta digna e que aproxima o homem dos deuses. Além disso, o
trabalho bem realizado está associado ao conceito grego de areté. A formiga e o lavrador das
fábulas parecem figurativizar essa areté: eles cumprem os desígnios de Zeus, pois trabalham e
enchem seus celeiros, ao mesmo tempo que se irritam com aqueles que vivem ociosos.
Analogicamente eles cumprem a função do ator Zeus, que, em termos mitológicos, pune os
queixas fazem com que os atores ajam de alguma forma para tentar libertar-se do trabalho ao
qual estão subjugados por um opressor, figurativizado na maioria das vezes. As isotopias
figurativas delineadas nos textos mostram que as personagens vêem o labutar como inútil,
pois nada recebem em troca do trabalho árduo que realizam. Elas primam pelo lazer, pelo
tempo livre, pela comida farta, vantagens que o trabalho constante não proporciona. Mesmo
trabalhando, não se vive bem, já que não se tem um padrão de vida digno, com fartura,
descanso e lazer.
O quadro que resume os termos gregos para figurativizar o trabalho neste grupo
vocábulos que disforizam o trabalho, denotando o trabalho árduo, realizado com muito
esforço e sem pausas. Em tais textos também aparecem referências a diversas profissões
urbanas, que podemos classificar como trabalho técnico: as atividades do jardineiro, do oleiro,
189
Conclusão
trabalho escravo por meio dos termos despótes, “senhor”, e oikétai, “escravos”. Ainda que
denuncie a presença dessa classe trabalhadora e da exploração a que está submetida, esse
grupo de textos mostra a impossibilidade de mudança, pois qualquer reação praticada pelas
àqueles que trabalham mais, concluímos que fazem referência ao trabalho escravo, pois a
única recompensa que recebem é o alimento. Os atores trabalham em troca da comida e, ainda
forma de estabelecer uma recompensa para o trabalho ganham relevo neste grupo, pois a idéia
de igualdade está implícita aqui. Na verdade, não se questiona o trabalho em si, como no
segundo grupo, mas a forma como a recompensa por ele é dividida entre os pares.
textos da cultura grega e mostrar como ela materializa uma dada visão de mundo – a do
trabalho. Pensamos que as fábulas não retratam, em momento algum, o tema do trabalho no
que ele tem de positivo; ao contrário, evidenciam seus aspectos negativos, pois mesmo nos
textos em que alguma personagem se mostra apta ao trabalho, não nega o esforço e a
dificuldade em realizá-lo.
A partir das reflexões sobre a enunciação, notamos que o enunciador das fábulas
reatualiza os discursos já consagrados pela cultura, em que o trabalho é visto tanto negativa
quanto positivamente. Concluímos que as fábulas sustentam uma polifonia discursiva que se
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Conclusão
uma visão ideológica de acordo com os preceitos aristocráticos, pois enfatiza que todos
atentarmos para a moralidade da maioria das fábulas que tematiza o trabalho e a tomarmos
como uma forma de “educar”, reconheceremos nela uma perspectiva axiológica condizente
com a da classe privilegiada da Antigüidade, que impingia a essa porção de texto, valores
voltados aos interesses particulares daqueles que proferiam as fábulas. Assim, a moralidade
acompanha a visão da classe patronal, pois pune quem tenta alterar sua condição.
Por outro lado, ao figurativizar com tanta perfeição as atividades de trabalho a que
essas personagens estão submetidas e ao narrar as explorações sofridas por aqueles que
trabalham, esse mesmo enunciador dá vida a outra voz, provavelmente ligada à classe
trabalhadora. Pensamos que essa voz possa aludir à vida das pessoas comuns e às condições
Esperamos ter mostrado que o trabalho figurativizado nas fábulas reflete a visão
disfórica que a maioria dos gregos tinha a respeito da noção de trabalho e polemiza
discursivamente com o aspecto religioso que Hesíodo atribui a ele. De qualquer forma, as
vozes enunciativas parecem denunciar que o trabalho não favorece os trabalhadores, pois não
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