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Sobre um “Credo tnomusicológico”, segundo Bruno Nettl

Climério de Oliveira Santos

Apesar de os etnomusicólogos serem relutantes em usar o termo


“etnomusicologia”, surgiu uma importante síntese que propôs uma matriz organizacional,
ou seja, uma ampla discussão sobre o escopo da área e, desta feita, intitulando o livro com
o nome da disciplina: The study of Ethnomusicoly: vinte e nove questões e conceitos, de
Bruno Nettl (1983). Nascido em Praga (Checoslováquia) e emigrado para os EUA em
1939, o próprio Nettl afirma que o seu trabalho é influenciado pelo de vários outros
autores, tais como, E. von Hornbostel, Curt Sachs, Fritz Bose e, principalmente, Alan
Merriam e Mantle Hood (NETL, 2015: 14). Atualmente, o citado livro de Bruno Nettl
encontra-se em sua terceira edição (2015), revista e ampliada. Até mesmo o subtítulo –
Trinta e três discussões – deixa entrever que o pesquisador vem atualizando o trabalho e
o olhar sobre a etnomusicologia. Ele traz uma ampla revisão de literatura da
etnomusicologia – embora concentrada nas escolas estadunidense e alemã –, discutindo o
escopo da disciplina e perfazendo a maioria das questões metodológicas mais importantes
da área. Apesar de o seu principal livro abordar alguns aspectos históricos da disciplina, o
autor também dedicou vários artigos e um livro exclusivamente à história da
etnomusicologia estadunidense, intitulado Nettl’s elephant: on the History of
Ethnomusicology (2010). Já o seu livro Heartland Excursions (1995) inusitadamente
focaliza a escola de música clássica que ele frequentou outrora, motivo pelo qual ele
apelidou a sua abordagem de “etnomusicologia em casa”. Este trabalho esboça uma
etnomusicologia que estava deixando de restringir-se ao “estudo das músicas não
ocidentais”, isto é, da “música do outro” – delimitação que historicamente vinha
caracterizando esse campo de estudo –, e estava passava a investigar também a música
dos próprios pesquisadores. Ao longo das duas últimas edições, Nettl aprofundou muitas
das questões abordadas na primeira, além de ter acrescentado novas discussões. Através
de autores como ele, a disciplina passou por uma maturidade em relação às suas teorias e
métodos, consolidando-se como campo de conhecimento que pode incluir também as
músicas ocidentais, músicas populares urbanas industrializadas, etc.
As asserções a seguir trazem alguns trechos literalmente traduzidos e outros
complementados, de modo a facilitar a compreensão. Estes foram depreendidas do
mencionado livro clássico de Nettl, que em sua terceira edição incluiu o tópico “Um
credo?” (A creed?) (2015: 16-17). A abordagem dele sustenta em cinco asserções (na
segunda edição do seu livro eram quatro) que ele considera uma espécie de “credo
etnomusicológico”, ou seja, cinco crenças que os especialistas partilham acerca de o que
vem a ser a etnomusicologia e qual é o ofício dos etnomusicólogos:

1. “É o estudo da música na cultura”, apesar do não acordo sobre o conceito de


cultura.
2. “[...] é o estudo das músicas do mundo de um ponto de vista comparativo e
igualitário”.
3. “Principalmente, etnomusicologia é o estudo com o uso de trabalho de campo”.
4. “[...] é o estudo de todas as manifestações musicais de uma sociedade” e ainda “de
todas as músicas do mundo”; seja ela considerada excelente, ordinária ou mesmo
inaceitável.
5. [...] “o nosso trabalho de algum modo vai beneficiar os músicos do mundo, em
última instância, ousamos dizer, os povos do mundo”.

Além disso, Nettl contorna tais premissas com outras duas teorias que as norteiam:
a) Os etnomusicólogos “tentam entender a música humana no contexto da cultura
humana, como um fenômeno unitário [...] esperando generalizar inteligentemente sobre
as maneiras em que as culturas do mundo constroem, usam e concebem música”. As
alegações sobre música devem estar relacionadas ao fenômeno musical humano como um
todo.
b) Cada música deve ser compreendida primeiramente e acima de tudo em seus
próprios termos. Música deriva o seu valor como atividade humana abordada como objeto
de estudo, não da complexidade de suas propriedades formais ou de sua associação com
grupos sociais e históricos privilegiados.

O discurso de Nettl muitas vezes é irônico, mas respeitoso. A sua ênfase na


“comparação” como um procedimento da etnomusicologia é provocativa e pode soar
estranho a quem não lê o seu trabalho mais detidamente. Como o primeiro nome da
disciplina foi “musicologia comparada” e o método dos musicólogos comparativos tinha
um forte viés positivista, evolucionista e etnocêntrico, o termo “comparação” (ou
comparar/comparativo) tornou-se um tanto estigmatizado e aparentemente obsoleto, uma
vez que a mudança de nome também ocorrera pela detecção de que a etnomusicologia
realiza muito mais do que comparação. Acontece que a etnomusicologia nunca deixou de
comparar. E além de Nettl deixar isso patente, ele também explica que o que mudou foi o
background da comparação: não compara diferentes músicas para julgar qual delas é
superior em qualidade estética (viés eurocêntrico), mas como fonte de insights para o
estudo dos significados musicais da cultura musical que está sendo estudada.

REFGERÊNCIAS

NETTL, Bruno. The study of ethnomusicology: Thirty-three discussions. 3.ed.


University of Illinois Press, 2015.

_____. The study of ethnomusicology: Thirty-one issues and concepts. 3.ed. University
of Illinois Press, 2010.

_____. Nettl’s Elephant: On the History of Ethnomusicology. Urbana: University of


Illinois Press, 2010.

_____. Heartland excursions: Ethnomusicological reflections on schools of music.


University of Illinois Press, 1995.

_____. The study of ethnomusicology: Twenty-nine issues and concepts. University of


Illinois Press, 1983.

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