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cadernos

Nietzsche
São Paulo – 2006

No 21ISSN 1413-7755

Os artigos publicados nos


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Nietzsche
são indexados por
The Philosopher’s Index,
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Nietzsche
no 21 – São Paulo – 2006
ISSN 1413-7755

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Scarlett Marton
Sumário

Nietzsche e a ironia em música 7


Vladimir Safatle

“O valor de um caracol”
ou “O nobre nietzschiano:
um elogio a Cálicles?” 29
Wilson Antonio Frezzatti Jr.

Kierkegaard, um leitor de
Nietzsche avant la lettre 47
Alvaro L.M. Valls

Heidegger e Nietzsche:
o conflito entre arte e verdade 63
Clademir Luís Araldi

Nietzsche e Heidegger:
a arte como vontade
ou fundada na origem? 77
Marco Aurélio Werle
Nietzsche e a ironia em música

Nietzsche
e a ironia em música
Vladimir Safatle*

Resumo: O artigo visa a comentar alguns aspectos do regime de recurso


filosófico à música operado por Nietzsche, em especial a presença, no
horizonte nietzschiano, de uma temática própria à noção romântica de
música absoluta. Trata-se de insistir que tal noção de música absoluta,
herança da metafísica do sublime de Schopenhauer, irá desdobrar-se,
principalmente depois da ruptura entre Nietzsche e Wagner, em impulso
em direção à noção de que a verdadeira forma musical é uma forma irônica.
Este desdobramento pode nos fornecer uma nova perspectiva de aproxi-
mação da leitura nietzschiana de Carmen, de Bizet. Do absoluto à ironia
ou A posição da ironia como figura do que se alojava na temática do abso-
luto em música: este é o trajeto que será desenvolvido através, principal-
mente, do comentário de três textos nietzschianos, a saber, O nascimento
da tragédia, O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner.
Palavras-chave: música absoluta – ironia – Wagner – Carmen – forma
musical – décadence

Somos a primeira época estudiosa em matéria


de “fantasias” (Nietzsche).

Prolegômenos ao recurso nietzschiano à música

Antes de entrar diretamente no texto nietzschiano, valeria a pena


tecer algumas considerações preliminares a respeito do problema
do recurso filosófico à música, problema central também para
*
Professor do Departamento de Filosofia da USP.

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 7


Safatle, V.

Nietzsche. Podemos falar aqui em “problema” porque a articula-


ção de uma reflexão filosófica sobre a forma musical, ou seja, a
defesa da possibilidade de uma “filosofia da música” traz uma série
de pressupostos. Por exemplo, assume-se que a música produz ques-
tões cuja articulação correta se dá fora do campo estritamente mu-
sical, ou seja, no campo propriamente filosófico. Como se as ques-
tões de técnica musical não fossem simplesmente questões de técnica
musical, mas dissessem respeito a algum problema estritamente fi-
losófico. Por outro lado, uma filosofia da música que não se reduza
a um mero exercício de diletantismo pressupõe a existência de cer-
tos problemas filosóficos que só podem ser abordados de maneira
adequada se levarmos em conta a necessidade de sustentar um cam-
po privilegiado de interfaces entre filosofia e música (um campo de
interface que deve ser inscrito no interior de um campo maior que
diz respeito aos sistemas de importação entre filosofia e arte).
De fato, uma perspectiva de tal natureza animou este momento
fértil para a discussão sobre a relevância filosófica da música que
se deu em volta do romantismo alemão e dos desdobramentos da
filosofia germânica no século XIX. Momento que marcou modos de
encaminhamento de questões que estarão ainda presentes na filo-
sofia nietzschiana da música. Herder, os irmãos Schlegel, Tieck,
Schelling, E.T.A. Hoffman são apenas alguns dos que tomaram a
música como objeto privilegiado de reflexão filosófica. Na verdade,
tal interesse tem uma razão clara: havia uma coesão em torno da
idéia da música como veículo estético privilegiado para a exposição
da metafísica do sublime. Compreendendo o sublime a partir da
noção kantiana de “conceito indeterminado da razão” (KANT 10,
§ 28)1, ou seja, uma Idéia da razão que não é adequada à particu-
laridade de nenhuma apresentação sensível, mas que pode ser rea-
vivada pelo espírito devido exatamente a esta inadequação. O roman-
tismo alemão encontrou, na ausência de determinação representativa
das formas próprias à música instrumental o melhor veículo para a

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Nietzsche e a ironia em música

exposição deste conceito de sublime. Contribuiu para isto uma cons-


ciência de época que afirmava ver a realização da essência da mú-
sica através de uma dinâmica puramente instrumental, desvinculada
de referências a textos, programas, funções rituais e, principalmen-
te, afastada de toda afinidade mimética com a fala e a linguagem.Tal
justificação do primado da música instrumental a partir de uma meta-
física do sublime permitiu a configuração de uma temática decisiva
para a estética musical do século XIX. Ela gira em torno da discus-
são sobre a “música absoluta”.
Grosso modo, podemos chamar de “música absoluta” uma certa
noção que via na música instrumental, desligada de textos, de pro-
gramas e de funções rituais específicas, o veículo privilegiado para
a expressão ou o pressentimento do “absoluto” em sua sublimida-
de e o estágio de realização natural da racionalidade musical. É a
proximidade com tal temática que permitirá a Schopenhauer, con-
cordando aqui com o espírito dominante da sua época, afirmar: “Não
podemos encontrar na música a cópia, a reprodução da idéia do
ser tal como se manifesta no mundo”, ela é “cópia de um modelo
que não pode, ele mesmo, ser representado diretamente”, pois “a
música, que vai para além das idéias, é completamente indepen-
dente do mundo fenomenal” (SCHOPENHAUER 20, § 51). Essa
indeterminação própria à forma musical em relação à determina-
ção da linguagem prosaica não é sinal de vazio, mas manifestação
deste sublime que “demonstra um poder do espírito que ultrapassa
toda medida dos sentidos” (KANT 10, § 25).
Mas tal autonomização da forma musical em relação a textos,
programas e em relação à linguagem prosaica deveria, necessaria-
mente, levar a uma profunda problematização da categoria estética
da expressão (Ausdruck). August Schlegel, por exemplo, defende
claramente a idéia da música instrumental como espaço privilegia-
do de expressão do que a linguagem prosaica vê como inefável, como
o que desconhece determinação conceitual precisa. No entanto, este

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Safatle, V.

recurso à categoria da expressão como elemento fundamental para


a compreensão da racionalidade musical pode soar estranho, já que
a expressão parece, normalmente, dependente de uma gramática
dos afetos, base para uma estética do sentimento razoavelmente
codificada. Isto quando ela não nos leva, diretamente, à posição de
uma afinidade mimética essencial com a potencialidade expressiva
da linguagem, fazendo assim com que a racionalidade da forma
musical apareça como dependente dos parâmetros do que é extramu-
sical. Mas a peculiaridade aqui consiste em não tentar recuperar
alguma versão de uma gramática dos afetos nem de recolocar a racio-
nalidade da forma musical nas vias de uma afinidade mimética com
a linguagem. Trata-se, ao contrário, de insistir que o aspecto abstrato
da música instrumental em relação à linguagem prosaica seria a
garantia de que os sentimentos representados musicalmente não
aderem mais às aparências empíricas do mundo.
É isto que permitirá a Schlegel afirmar que a música é a mais
filosófica das artes por purgar as “paixões de toda escória material”
(SCHLEGEL 19, p. 235) nos abrindo para a contemplação da es-
sência metafísica, do em-si por trás da aparência. Uma idéia parti-
lhada por Schopenhauer, que colocava a música no topo do seu
sistema das artes. Posição que se justifica se lembrarmos que, para
Schopenhauer, a música: “nunca exprime o fenômeno, mas a es-
sência íntima, o interior do fenômeno, a própria vontade. Ela não
exprime tal ou tal alegria, tal ou tal aflição, tal ou tal dor, terror,
encantamento, vivacidade ou calma de espírito. Ela pinta a própria
alegria, a própria aflição, e todos esses outros sentimentos, por as-
sim dizer, abstratamente. Ela nos dá a sua essência sem nenhum
acessório e, por conseguinte, sem seus motivos” (SCHOPENHAUER
20, § 51). Essência própria a uma vontade que nos leva à confron-
tação com: “aquilo que precede toda forma” (idem).
Não deixa de ter seu interesse encontrar no outro extremo, ou
seja, em Hegel, o mesmo modo de encaminhamento do problema

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Nietzsche e a ironia em música

das relações entre música, expressão e linguagem, entre forma


musical e conceito. Modo de encaminhamento que obedece agora a
sinais invertidos.
Partilhando o diagnóstico romântico a respeito da música, Hegel
afirmará a incompatibilidade fundamental entre a racionalidade in-
terna aos procedimentos formais da música e a lógica de produção
de sentido própria à exposição conceitual. A partir daí podemos
compreender a importância de colocações como: “o elemento mu-
sical do som e a da interioridade (Innerlichkeit) na qual se engaja o
conteúdo musical é tão abstrato e formal que só podemos passar ao
particular indo em direção ao comentário das determinações técni-
cas, das relações de proporção dos sons entre si, de diferença entre
os instrumentos, as tonalidades, os acordes etc. Mas eu sou pouco
versado neste domínio e devo, por esta razão, pedir desculpas por
me restringir a perspectivas mais gerais e a colocações parciais”
(HEGEL 9, p. 136). Ou seja, segundo Hegel, o conteúdo musical é
algo tão abstrato, o som é tão desprovido dos aspectos significativos
da linguagem e sua racionalidade é tão formal que ela perde toda e
qualquer relevância para a prosa filosófica do conceito. Daí porque
Hegel pode assumir sua indiferença absoluta em relação aos proce-
dimentos técnicos musicais. Hegel, o filósofo que nunca viu proble-
ma algum em adentrar os domínios mais especializados do saber
empírico, reconhece, de maneira sintomática, seu desconforto diante
do fato musical.
Vale a pena nos determos um pouco mais nesta indiferença
hegeliana, pois ela nos revela alguns aspectos arraigados a respeito
de uma certa maneira de conceber a racionalidade musical. Segun-
do Hegel, a música seria a mais subjetiva das artes, linguagem da
pura interioridade, já que seu conteúdo seria o puro Eu, inteira-
mente vazio de determinações objetivas. Lembremos, neste senti-
do, das conseqüências derivadas por Hegel do fato de a música não
produzir uma objetividade espacialmente durável. Pois o som é um

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Safatle, V.

processo de posição no qual o momento da exteriorização converge


com o próprio momento de seu desaparecimento. Com isto, a músi-
ca seria muito próxima deste elemento de liberdade formal para
não ser “de todas as artes, aquela que é mais apta a se liberar (...)
da expressão de todo conteúdo determinado (Ausdruck ingerdeines
bestimmten)” (HEGEL 9, p. 147). Ao contrário da poesia, onde o
significante fônico continua sendo a designação de uma representa-
ção e não aspira significação apenas por si mesmo, a música permi-
te à forma sonora transformar-se em fim essencial enquanto edifí-
cio sonoro. Mas ela perde a objetividade interior dos conceitos e
representações que a linguagem poética ainda é capaz de apresen-
tar à consciência. A música aparece assim como linguagem da inte-
rioridade subjetiva da sensação.
Fora da arte, o som (grito, exclamação etc.) já é exteriorização
imediata de estados de alma e de sensações. Mas, na sensação, a
distinção entre o eu e o objeto não pode ser posta. Desta forma, na
música, “a consciência, que não tendo mais nenhum objeto em face
dela, é tragada pelo fluxo contínuo de sons” (HEGEL 9, p. 153). A
música, e este seria o seu pecado maior, não permitiria com isto a
reflexividade que funda a consciência-de-si, ainda mais porque ela
levaria a consciência à percepção abstrata de si através do sentimento.
Carl Dahlhaus nos mostrou como esta noção da música como
espaço privilegiado da pura interioridade, partilhada por Hegel, era
tributária de uma noção de “música absoluta” que deve suas raízes
à metafísica do romantismo alemão cujas linhas gerais foram ante-
riormente esboçadas. Na verdade, este retorno da música à interio-
ridade do sentimento indeterminado seria o resultado final de sua
autonomização em relação a uma origem na qual o sentido do fato
musical não estava em si mesmo, sentido advindo dos modos de
organização funcional do material, mas era dependente da função
da música no interior de rituais ou da subordinação da música em
relação aos textos recitados ou cantados, ou seja, subordinação da

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Nietzsche e a ironia em música

linguagem musical à palavra (que é, para Hegel, o único meio de


posição da objetividade – o que é inefável não tem realidade). Daí
a necessidade da música romântica colocar em questão a solidarie-
dade irredutível já presente desde Platão, entre harmonia, rythmos
e logos. Assim, como bem sublinha Dahlhaus:

A fórmula simples da música absoluta que, precisamente devido ao


seu “desligamento” e a sua emancipação em relação à palavra, eleva-
se em direção ao “pressentimento do infinito” e que é a “língua para
além da linguagem”, devia ser profundamente estranha a Hegel e lhe
parecer uma espécie de divagação exaltada, logo ele que estava absolu-
tamente vinculado à tradição do espírito como “palavra” e indicava a
poesia como fim último da história filosófica da arte e a filosofia como
fim da Odisséia do espírito universal (DAHLHAUS 6, p. 88).

De qualquer forma, isto apenas nos lembra a perenidade de tal


estética musical na configuração do debate alemão do século XIX.
É a força de tal permanência que levou o mesmo Dahlhaus a afir-
mar, por exemplo:

Quando a música, na estética de Schopenhauer, Wagner e Nietzsche,


ou seja, nas estéticas dominantes da segunda metade do século, é consi-
derada como expressão da essência das coisas, enquanto que a lingua-
gem só apreenderia a aparência, vê-se aí o triunfo da idéia da música
absoluta até mesmo no interior da doutrina do drama musical (Idem,
p. 16).

Poderíamos ampliar tais considerações e afirmar, sem muita


dificuldade, a possibilidade de encontrar, ainda na filosofia da mú-
sica do século XX, em especial em Theodor Adorno, ecos dessa
maneira de compreender a música como dispositivo de formalização
que não se reduz à lógica de determinação de significado própria à

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Safatle, V.

linguagem prosaica. Basta lembrarmos de seu regime de compara-


ção entre música e linguagem:

A linguagem significante (meinende Sprache) gostaria de dizer o


absoluto de maneira mediada e este absoluto não cessa de lhe escapar,
deixando para trás cada intenção particular, devido a sua finitude. A
música, por sua vez, alcança o absoluto de maneira imediata mas, no
mesmo instante, ele advém obscuro, tal como o olho que se cega devido
a uma luz excessiva e não pode ver o que é perfeitamente visível (ADOR-
NO 2, p. 254).

Contribui para esta cegueira o fato de que “é específico à músi-


ca que seu caráter enigmático seja enfatizado pela sua distância em
relação à determinação visual ou conceitual do mundo dos objetos”
(ADORNO 3, p. 156)2. Claro que, em Adorno, a temática da músi-
ca absoluta parece encontrar um ponto de inflexão que a faz voltar-
se contra si mesma, até porque as condições históricas do material
musical não permitiam mais aspirações de posição de totalidades
funcionais capazes de satisfazer as exigências de reconciliação de-
positadas na música. A metáfora do olho e da luz excessiva serve
para ilustrar a autonegação necessária da posição das próprias ex-
pectativas de síntese da forma musical.
É neste ponto que podemos nos voltar a Nietzsche, a fim de
tentar melhor compreender sua posição no interior do debate ale-
mão a respeito do recurso filosófico à música.

A autonomia da forma

Embora não goste muito do termo e de suas ressonâncias pró-


prias à metafísica do sublime, Nietzsche parece mover, inicialmen-
te, sua reflexão sobre a música no interior do campo armado pela

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Nietzsche e a ironia em música

discussão a respeito da música absoluta3. Ao falar sobre a articula-


ção entre música, linguagem e imagem na forma-canção, Nietzsche
é claro: “A lírica depende tanto do espírito da música, quanto a
própria música, em sua completa ilimitação, não precisa da ima-
gem e do conceito, mas apenas os tolera junto de si” (GT/NT § 6).
Mais a frente, Nietzsche se levantará contra afirmações de Wagner
sobre a secundaridade do fato musical; afirmações como, por exem-
plo: “O erro no gênero artístico da ópera consiste em transformar
um meio de expressão (a música) em alvo e, reciprocamente, o alvo
da expressão (o drama) em meio” (VII, 32[52]). Para Nietzsche,
isto implicava em compreender a música como realização de uma
Idéia extramusical, como se a forma musical não fosse já, em si,
exposição do seu próprio objeto. Daí porque, por exemplo, o filóso-
fo alemão terminará por ver, na teatralização da música através da
“obra de arte total” wagneriana, um signo maior de decadência, de
impossibilidade de pensar o que é próprio à música.
Colocações dessa natureza apenas demonstram como Nietzsche
compreende a música como forma capaz de expor o que a imagem
e o conceito não dão conta. Nesse sentido, ele não esconde o peso
metafísico de seu referencial schopenhaueriano: “Esta imensa opo-
sição que se abre abismal entre as artes plásticas, como arte apolínea,
e a música, como arte dionísica, se tornou manifesta a apenas um
dos grandes pensadores, na medida em que ele reconheceu à mú-
sica um caráter e uma origem diversos do de todas as outras artes,
porque ela não é, como todas as demais, reflexo do fenômeno, po-
rém reflexo imediato da vontade mesma e, portanto, representa para
tudo o que é físico no mundo, o metafísico, e para todo o fenômeno,
a coisa em si” (GT/NT § 16).
No entanto, esse recurso à vontade como fundamento extramu-
sical do sentido da forma musical, essa compreensão da música como
“linguagem imediata da vontade” não leva Nietzsche a algo como a
entificação de uma gramática dos afetos (seguindo aí os mesmo pas-

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Safatle, V.

sos de Schopenhauer). Sabemos como Nietzsche, ao menos em O


nascimento da tragédia, está disposto a vincular o conceito de von-
tade à manifestação de estágios prévios a processos de individuação.
Nesse sentido, Nietzsche pode falar que “somente a partir do espí-
rito da música é que compreendemos a alegria pelo aniquilamento
do indivíduo” (idem). Mas nossa questão é: como tal vontade desar-
ticuladora de individuações pode manifestar-se no interior da for-
ma musical?
Antes de responder tal questão, vale a pena complexificar um
pouco nossa leitura de Nietzsche. Pois se, por um lado, Nietzsche
parece corroborar a visão da autonomia da racionalidade da forma
musical em relação a textos, programas e “paisagens sonoras”, por
outro lado ele não deixará de insistir no vínculo indissolúvel entre
música e mito. Proposição aparentemente paradoxal, pois significa-
ria submeter a música a funções e narrativas prático-finalistas. Sig-
nificaria assumir que, no lugar da submissão da música ao concei-
to, teríamos a submissão da música ao mito: maneira direta de
afirmar que a forma musical, em sua autonomia, não pensa.
Esta aparente ambigüidade no recurso nietzschiano à música
só pode ser resolvida se Nietzsche for capaz de mostrar como o
mito em questão, de uma certa forma, já é a forma musical, isto no
sentido de já estar articulado no interior da forma musical e não lhe
ser algo acrescido de fora. De fato, esta parece ser a posição de
Nietzsche. Lembremos, por exemplo, de como ele procura articu-
lar a relação entre música e drama (usando, erroneamente, Tristão
e Isolda como exemplo): “a música é a autêntica Idéia do mundo, o
drama é somente um reflexo, uma silhueta desta idéia” (GT/NT §
21). A ironia é que Nietzsche parece estar sendo guiado aqui pela
discussão de Eduard Hanslick a respeito da Idéia musical como
“pura forma sonora em movimento” (Hanslick, Do belo musical).
Hanslick: o antípoda de Wagner é usado para a compreensão de
Tristão e Isolda.

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Nietzsche e a ironia em música

Talvez o que está em jogo aqui fique mais claro se lembrarmos


a estrutura dos mitos que Nietzsche tem em vista na fundamenta-
ção da racionalidade do fato musical. Sabemos que são mitos trági-
cos que colocam em questão os processos de individuação tais como
são organizados em uma perspectiva apolínea. Isto fica claro quan-
do Nietzsche fala da gênese do mito trágico: “Ele compartilha com
a esfera da arte apolínea o inteiro prazer na aparência e na visão e
simultaneamente nega tal prazer e sente um prazer ainda mais alto
no aniquilamento do mundo da aparência visível” (GT/NT § 24). A
tragédia consiste em sustentar a ordem que se sabe insustentável.
Aplicado ao problema musical, podemos dizer que o mito trági-
co formaliza um processo de posição da forma, que sustenta a apa-
rência da organicidade funcional das obras, mas para negá-la atra-
vés da posição da imagem do aniquilamento da totalidade funcional.
Tal como o mito trágico dá forma ao que insiste para além da forma
(a fusão com o Um, o retorno à indiferenciação), a forma musical
deve ser capaz de sustentar-se na tensão entre processos construti-
vos e dissolução.
Dificilmente poderíamos imaginar exposição melhor do que está
em jogo no recurso wagneriano ao cromatismo4. Um cromatismo que
impede a individuação segura das funções e motivos no interior da
forma musical, forma de uma vontade que só se afirma através do
impulso em direção ao aniquilamento das individualidades. Assim,
podemos dizer que é na forma musical, muito mais do que na temá-
tica de seus textos e programas, que Wagner aparece à Nietzsche
como aquele que traz o retorno da música à sua razão. Desta manei-
ra inusitada, a temática da música absoluta pode ser conservada.
Por outro lado, se Nietzsche pode afirmar, ao final de O nasci-
mento da tragédia, que a dissonância musical é a matriz comum
que liga a música ao mito trágico, é porque, no cromatismo
wagneriano, não estamos mais falando de dissonâncias preparadas
que servem apenas para justificar e assegurar o centro tonal, mas

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Safatle, V.

dissonâncias sem telos que abrem o desenvolvimento para uma mul-


tiplicidade aparentemente infinita de desdobramentos cromáticos.
Há longas passagens de Tristão e Isolda nas quais temos dificulda-
de em encontrar uma tonalidade definida, o que embaralha a parti-
lha segura entre consonância e dissonância, abrindo, com isto, o
espaço para uma melodia infinita que se assemelha ao “lúdico cons-
truir e destruir do mundo individual”. Atividade sem fim que nos
remete à criança que “brincado, assenta pedras aqui e ali e cons-
trói montes de areia e volta a derrubá-los” (GT/NT § 24).

Teatralidade e décadence

Valeria a pena finalizar tecendo algumas considerações sobre o


desdobramento deste recurso filosófico à música operado por
Nietzsche. Todos sabemos da ruptura entre Wagner e Nietzsche.
Normalmente, ela parece ser motivada por uma questão extramusi-
cal: o retorno de Wagner ao catolicismo (Parsifal é um belo exemplo
aqui). No entanto, poderíamos levantar algumas questões formais.
Partamos de uma certa reversão de perspectiva que parece
determinar a leitura tardia que Nietzsche faz de Wagner. Se inicial-
mente Nietzsche parece afirmar a potencialidade aberta pelo cro-
matismo enquanto processo de composição que impede a indivi-
duação segura das funções e motivos no interior da forma musical,
em O caso Wagner, esta perda de organicidade funcional das obras
é ambiguamente deplorada. Servindo-se do conceito de décandence
tal como aparece inicialmente nos Essais de psychologie contempo-
raine, de Paul Bouget, conceito que visa a explicar um processo
pelo qual se tornam independentes e autônomas partes subordina-
das no interior de um organismo, Nietzsche irá procurar caracteri-
zar a música de Wagner como exemplo supremo desta impossibili-
dade de criar formas orgânicas. Em uma carta endereçada a Carl

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Nietzsche e a ironia em música

Fuchs, um wagneriano conhecido e influente, ele dirá a respeito da


música de Wagner: “A parte torna-se senhora do todo, a frase so-
bre a melodia, o instante sobre o tempo (também sobre o ritmo), o
pathos sobre o ethos e, o esprit sobre o ‘sentido’ (...) Vê-se o parti-
cular muito nítido, vê-se o todo muito embotado” (apud, MÜLLER-
LAUTER 12, p. 13). Isto o leva a falar de Wagner como “nosso
maior miniaturista musical”, responsável por um processo no qual
a soberania dos momentos particulares leva à dissolução da totali-
dade funcional, à criação de “um conjunto inteiramente desprovido
de vida, uma aglomeração, uma adição artificial, um composto
factício” (WA/CW § 7).
Tal crítica à perda da totalidade funcional das obras parece, à
primeira vista, anacrônica e conservadora. Pois poderíamos imagi-
nar que Nietzsche age como quem ainda acreditava na potenciali-
dade construtiva do tonalismo com suas estruturas harmônicas ca-
pazes de individualizar claramente momentos e processo, assim
como guiar desenvolvimentos e resoluções. Ainda mais se lembrar-
mos de sua contraposição de Wagner com Bizet, cuja opéra comique,
Carmen, seria “precisa. Constrói, organiza, perfaz; é por isso o oposto
do pólipo na música, da ‘melodia infinita’” (idem, § 1). Nietzsche
parece querer restaurar aquilo cuja inevitabilidade de seu esgota-
mento Wagner mostrara.
No entanto, há outra coisa que parece mover Nietzsche em sua
guinada contra o cromatismo wagneriano. Lembremos, por exem-
plo, do que significa este “perigo imenso absolutamente inimaginá-
vel” aberto pela melodia infinita wagneriana: “a degenerescência
do sentimento rítmico, o caos ao invés do ritmo” (NW/NW § 1).
Aqui, poderíamos insistir no fato de Nietzsche parecer partilhar uma
perspectiva que vê, como resultado do uso extensivo de procedi-
mentos cromáticos, a perda do princípio de estruturação de diferen-
ças no interior da forma musical. Quando Nietzsche afirma que o
ritmo, enquanto parâmetro organizador de tensão e duração que

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 19


Safatle, V.

transcende o instante musical, é perdido pelo fluxo contínuo da


melodia infinita, ele parece pensar, principalmente, na eliminação
de um princípio funcional de diferenciação que transcenda a
literalidade dos instantes. Ou seja, o motor de sua crítica a Wagner
não diz respeito a algum impulso de restauração de um sistema to-
nal já então combalido, mas visa combater a tendência da música
wagneriana em “literalizar o sentido do fenômeno musical”, em nos
levar a uma audição atomizada através da perda de um princípio
transcendente de estruturação de diferenças (que pode ser forneci-
do, entre outros, no nível das durações através da posição da regu-
laridade do ritmo). O que talvez nos demonstre, inclusive, a inade-
quação de um uso estrito de dicotomias como transcendência/
imanência no interior do pensamento nietzschiano.
Isto fica mais claro se lembrarmos do outro aspecto próprio à
décadence wagneriana, este que diz respeito à teatralização da mú-
sica em Wagner. Primeiro, é fato que a teatralidade do fato musical
em Wagner nunca poderia ser compatível com a exigência nietzschia-
na de autonomia formal da racionalidade das obras. Nietzsche che-
gará a dizer que a teatralidade é o inverso da música. No entanto,
mesmo em sua cruzada contra a teatralidade, Nietzsche não deixa-
rá de ver, em uma ópera (Carmen, de Bizet), a redenção do progra-
ma que procurara em Wagner. Podemos levantar aqui uma hipótese.
O que parece incomodar Nietzsche na teatralidade wagneriana
é, novamente, uma certa literalidade que faz com que o fascínio
com a cena, fascínio com o que se coloca como aparência, não per-
mita o desvelamento da aparência como aparência. A organicidade
da forma “apolínea”, organicidade que o próprio Wagner parecia
levar ao esgotamento, parece retornar através desta literalização
imanente dos instantes que torna obsoleta toda audição estrutural e
suporta uma cena teatral de reconciliação e perdão.
Neste sentido, podemos compreender o que Nietzsche tem em
vista ao falar, sobre o “ator” Wagner: “Alguém é ator pelo fato de

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Nietzsche e a ironia em música

ter uma percepção à frente dos outros homens: o que deve ter efei-
to de verdade não pode ser verdadeiro [o que aparece como
organicidade funcional das obras não pode ser posto sem aspas]
(...) A música de Wagner nunca é verdadeira. – Mas é tida como
verdadeira, e tudo está em ordem” (WA/CW § 8).
O problema está aí, na última frase. Se estivéssemos diante de
uma forma que põe a totalidade de seus momentos como aparência
que se afirma enquanto aparência, como fluxo contínuo de aparên-
cias e máscaras, então teríamos uma obra capaz de se afirmar como
potência de criação e destruição que Nietzsche compreende como
estetização de uma aliança com a vida enquanto jogo contínuo de
forças5. Esta forma capaz de não se perder no interior da literalidade
e de pôr processos sintéticos de construção sem naturalizá-los será
encontrado por Nietzsche quando se deparar com uma forma musi-
cal baseada na estetização da ironia. É neste sentido que devemos
compreender a afirmação: “se nós que nos curamos [de Wagner]
precisamos de uma arte, é de uma arte totalmente diferente – uma
arte zombeteira, leve, fugaz, serena como os deuses, de um artifício
divino” (idem, Epílogo).

Do absoluto à ironia

Neste ponto, faz-se necessário um esclarecimento. Como bem


nos lembra Ernst Behler, “Nietzsche evita o termo ironia que, para
seu gosto, guarda muito romantismo e prefere a clássica noção de
dissimulação, que é traduzida por ‘máscara’” (BEHLER 4, p. 93).
O próprio Nietzsche lembra que “a ironia só é adequada como ins-
trumento pedagógico”, mas fora da relação de formação entre mes-
tre e discípulos, ela é um “mal comportamento, um afeto vulgar”
(MA I/HH I § 372). Ou seja, nas mãos de um mestre que, através
da ironia, produz a formação em direção ao amor fati, a ironia é

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 21


Safatle, V.

adequada. Mas nas mãos de um desencantamento niilista, a ironia


nos tornará “iguais a um cão mordaz que aprendeu a rir, mas que
esqueceu de morder”. Desta forma, se afirmamos que a filosofia
nietzschiana da música caminha em direção à posição de um certo
uso da ironia na estruturação da forma musical, devemos poder
apreender de maneira determinada o que tal uso pode significar.
Partamos de uma afirmação de Para além de bem e mal que
servirá também para o encaminhamento de certos problemas musi-
cais: “a aparência para mim, é a realidade agente e viva que, na
sua maneira de ser irônica em relação a si mesma, chega a me fazer
sentir que só há aparência, fogo fátuo e dança de elfos” (JGB/BM §
40). Pois só uma escrita irônica é capaz de afirmar sem, com isto,
petrificar as afirmações em explicações sobre a positividade do es-
tado do mundo. Só a ironia coloca o mundo como uma ficção que se
afirma como ficção criadora. O riso aparece assim como nova alian-
ça estética com um mundo compreendido como jogo de forças em
contínua reconfiguração, em contínua “flexibilização” que dissolve
a literalidade natural de toda e qualquer determinidade. Riso que
dá forma à inadequação entre configurações determinadas do mun-
do e as multiplicidades possíveis dos jogos de força.
Dessa forma, podemos afirmar que o riso irônico reconcilia o
pensamento filosófico ao plano de imanência da vida como jogo de
forças, já que ele indica a distância que o enunciador toma em rela-
ção ao enunciado, mostrando assim que a enunciação não aspira a
naturalização alguma. “Tudo o que é profundo ama a máscara” dirá
Nietzsche. Mas é o riso irônico que melhor expressa esse amor pelo
jogo de máscaras; único jogo capaz de desvelar a força plástica da
vida e de afirmar a temporalidade radical de um mundo onde ne-
nhuma configuração deve subsistir de maneira perene. É neste sen-
tido que podemos compreender o parágrafo 294 de Além de bem e
mal, no qual Nietzsche sugere uma hierarquia dos filósofos confor-
me a qualidade de seu riso, colocando no topo aqueles capazes de

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Nietzsche e a ironia em música

uma risada de ouro. Risada que indica aqueles capazes de rir “de
maneira nova e sobre-humana – e à custa de todas as coisas sérias”
(idem, § 294).
Lembremos ainda como Nietzsche chega a compreender a mar-
cha da modernidade a partir de uma certa “ironização” dos modos
de vida na qual o filósofo vê mais um sintoma, para além da auto-
nomia crescente das particularidades e da teatralidade, do que ele
chama de décadence européia. “Ironização” deve ser compreendi-
da aqui como esta forma dos sujeitos transformarem-se em atores
que encenam seus próprios papéis sociais sem vincularem-se real-
mente a eles, instaurando, com isto, um jogo de máscaras sem ori-
ginal. Neste sentido, talvez não haja texto mais ilustrativo do que o
aforismo 223 de Para além de bem e mal: “Somos a primeira época
estudiosa em matéria de ‘fantasias’, quero dizer morais, artigos de
fé, gostos artísticos e religiões, preparada, como nenhuma época
anterior, para o Carnaval de grande estilo, para a mais espiritual
gargalhada e exuberância momesca, para a altura transcendental
da suprema folia e derrisão aristofânica do mundo. Talvez descu-
bramos precisamente aqui o domínio da nossa invenção, este domí-
nio em que também nós ainda podemos ser originais, como
parodistas da história universal e bufões do Senhor, quem sabe.
Talvez, se nada do presente existir no futuro, justamente a nossa
risada tenha futuro” (idem, § 223). Paródia da história universal,
bufonaria transcendental da suprema folia capaz de destruir toda
forma fixa que Nietzsche encontrará estetizada, enfim, em uma opéra
comique de Bizet: Carmen.
Deixemos de lado uma certa interpretação extramusical que ten-
de a centrar o interesse nietzschiano pela ópera na caracterização
de Carmen e de sua conduta no amor como exemplo de ação afir-
mativa animada pelo amor fati (SICA 21). Embora tal interpretação
tenha força, é em outro contexto que devemos compreender o que
está em jogo na guinada, operada por Nietzsche, de Wagner a Bizet.

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Safatle, V.

Inicialmente, vale a pena lembrar que, do ponto de vista do uso dos


materiais, poderia parecer que tal guinada indicaria uma regres-
são, já que a forma musical da ópera de Bizet pareceria anacrônica
mesmo para o estado histórico do material musical à sua época.
Bizet parece utilizar as funções construtivas do sistema tonal como
se não tomasse conhecimento das potencialidades abertas pelo uso
extensivo do cromatismo, como se ignorasse o esgotamento históri-
co do tonalismo trazido à consciência do tempo por Wagner.
No entanto, Nietzsche parece ser animado por uma intuição tam-
bém partilhada por Adorno: a de que as expectativas construtivas
postas pela ópera de Bizet são profundamente marcadas pela iro-
nia. Como se a ironia fosse outra maneira de afirmar tal esgotamen-
to. Vale para toda a ópera o que Adorno fala a respeito de um de
seus momentos: “A música adota a atitude do homem supersticioso
que nunca crê totalmente no que diz acreditar e que sucumbe à
ilusão na medida em que nega sua cegueira” (ADORNO 2, p. 202).
De fato, o caráter “paródico” de opera comique próprio à Carmen
permite ao compositor operar um jogo “livre” com clichês do fol-
clore meridional, vaudeville e figuras de música de programa, isto
ao ponto de compositores como Pierre Boulez afirmarem não en-
contrar, em Carmen, nada mais do que “uma opereta”. Mas sua
“leveza” de opereta, para usar um termo de Nietzsche, estaria no
fato de ela não se vincular totalmente à lógica dos materiais que
apresenta, de ela apresentá-los “de maneira irônica”. Pois “quan-
do Carmen flerta com a opereta, ao mesmo tempo em que conserva
a maior vigilância no plano da composição, tal concessão obedece a
um princípio de estilização (principium stilisationis) e serve, na
verdade, a uma seriedade que não precisa exaltar-se contra a fri-
volidade, uma pequena mudança de tom modifica o horizonte”
(ADORNO 2, p. 301).
Este princípio de estilização indica uma fazer composicional que
trabalha os materiais “à distância”, como quem se serve de figuras

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Nietzsche e a ironia em música

de estilo que podem ser revogadas por serem a afirmação de uma


subjetividade que vê toda determinidade como uma estilização, como
uma máscara que não esconde profundidade alguma. Coube à his-
tória da música dizer até onde esta leveza irônica de Carmen foi
capaz de nos levar.

Abstract: This paper aims to comment some aspects of the Nietzschean


philosophical use of music, particularly the presence, in his horizont, of a
thematic linked to the romatical notion of absolute music. It stresses that
such a notion, heired of Schopanhauerian metaphysics of sublime, will be
developed, after the rupture between Nietzsche and Wagner, in a drive to
the notion that the truly musical form is an ironic one. This development
might make us adopt a new aproach to the Nietzschean interpretation of
Bizet’s Carmen. From absolute to irony or to the position of irony as a
figure inserted in the thematic of absolute in music: this path will be fol-
lowed through the commentary of The birth of tragedy, The case of Wagner
and Nietzsche contra Wagner.
Keywords: absolute music – irony – Wagner – Carmen – musical form –
décadence

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 25


Safatle, V.

notas
1
Este mapa de um momento importante da reflexão filosófi-
ca sobre o fato musical já foi fornecido, de maneira deta-
lhada, por Dahlhaus em livros como A idéia da música
absoluta e Estética musical.
2
Podemos ainda lembrar de como esta temática da música
absoluta é reaproveitada no interior de uma crítica da
reificação: “A música contém algo que escapa à civiliza-
ção, algo que não se submete totalmente à ratio reificada
(vergegenständlichenden); enquanto que as artes plásticas,
que se vinculam a coisas (Dinge) determinadas, ao mundo
objetivo (gegenständliche) da práxis, mostram-se aparentadas
ao espírito do progresso tecnológico” (ADORNO 3, p. 175).
3
Como nos lembra Liébert : “Adepto não assumido da músi-
ca absoluta, Nietzsche continuava, no fundo, impregnado
pela metafísica romântica” (LIÉBERT 11).
4
Por outro lado, sempre é bom lembrar que “nas obras co-
rais de Bach – e antes dele, devemos citar a famosa
lamentação de Dido, em Dido e Enéas, de Purcell – o cro-
matismo é especialmente reservado à expressão do trágico
e do doloroso; ele se reveste de um caráter dramático”
(BOULEZ 5, p. 258).
5
Não deixa de ser extremamente sintomático encontrar tal
crítica à “teatralização” da forma estética mais à frente,
em um teórico-chave para o modernismo como Michael
Fried. Para Fried, o valor estético na modernidade é fun-
damentalmente vinculado à possibilidade de a obra servir
de palco para a posição do processo de clarificação pro-
gressiva dos mecanismos de produção do sentido. Lem-
bremos, por exemplo, do sentido de sua afirmação de que
“o teatro é a negação da arte” (FRIED 7, p. 125). O teatro
aqui não é o teatro brechtiano que transforma a cena em

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Nietzsche e a ironia em música

locus de manifestação de operações de distanciamento ca-


pazes de desvelar os modos de produção da aparência.
Teatro é, para Fried, o nome de uma imanência com a
literalidade que impede o sujeito de transcender a coisidade
(objecthood) em direção a uma Outra cena na qual os pro-
cessos construtivos poderiam ser revelados. Sem medo de
pecar por anacronismo, poderíamos dizer que o teatro que,
segundo Fried, nega a arte, não é outro que a “teatralidade”
wagneriana.

referências bibliográficas

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XVI, Digitale Bibliothek Band 97.
3. _________. Über das gegenwärtige Verhältnis von
Philosophie und Musik. In: Gesammelte Schriften XVIII,
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cadernos Nietzsche 21, 2006 | 27


Safatle, V.

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11. LIÉBERT. Nietzsche et la musique. Paris: PUF, 1995.
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panhia das Letras, 1993.
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Editores: G. Colli e M. Montinari. Berlin/Munique:
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20. SCHOPENHAUER, O mundo como vontade e represen-
tação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
21. SICA, La Carmen di Nietzsche in www.swif.uniba.it/lei/
scuola/saperi/musica1.htm, acesso em 25/08/2005.

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“O valor de um caracol” ou “O nobre nietzschiano...

“O valor de um caracol”
ou “O nobre nietzschiano:
um elogio a Cálicles?”
Wilson Antonio Frezzatti Jr. *

Resumo: No diálogo Górgias de Platão, Cálicles apresenta características


do modo de ser do aristocrata e do escravo que, aparentemente, coinci-
dem com aquelas atribuídas por Nietzsche aos tipos nobre e escravo. No
entanto, queremos alertar contra essa precipitação. Embora as caracterís-
ticas do homem fraco de Cálicles correspondam àquelas do escravo
nietzschiano, há uma grande diferença entre o forte do discípulo de Górgias
e o nobre do filósofo alemão.
Palavras-chave: cultura – hierarquia de impulsos – Sócrates – tipo es-
cravo – tipo nobre

O diálogo Górgias, escrito por Platão entre 395 e 376 a.C.,


tem como tema a definição de retórica ou oratória. O texto desenro-
la-se através do embate entre duas perspectivas de bem argumentar,
ou seja, entre a oratória e a dialética: estava em jogo a hegemonia
na racionalidade e na sabedoria. Embora, a rigor, a oratória (a arte
de falar em público, de persuadir) não se confunda com a sofística
(instrução de virtudes e aprimoramento de raciocínio e da linguagem
destinados a formar o bom cidadão), elas estão indiferenciadas no
discurso de Sócrates. Os argumentos do filósofo as igualavam por-

*
Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), professor dos
Cursos de Filosofia e Mestrado em Filosofia da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná (UNIOESTE).

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 29


Frezzatti Jr., W. A.

que elas não possuíam a principal característica da dialética: bus-


car a verdade imutável, mais especificamente dizer acerca do justo
e do injusto. A oratória e a sofística definiam o justo e o injusto
conforme as circunstâncias. Nessa disputa, são três os interlocutores
de Sócrates: 1. Górgias de Leontinos: professor de oratória e embai-
xador em Atenas, dono de um estilo muito elaborado, acreditava
que nenhum conhecimento poderia ser transmitido, a não ser a per-
suasão; 2. Polo de Agrigento: discípulo de Górgias; e 3. Cálicles:
personagem cuja existência não está comprovada, talvez esteja re-
presentando Isócrates, discípulo de Górgias e autor de Contra os
sofistas, livro no qual os filósofos são acusados de serem ignorantes
e de serem incapazes de bem falar, de dar conselhos e de persuadir
os jovens que a filosofia dá a bem-aventurança. Assim, o diálogo
Górgias pode ser considerado uma réplica de Platão a Isócrates, já
que a discussão mais ferrenha se dá entre Sócrates e Cálicles.
Questões metafísicas, epistemológicas e morais entrelaçam-
se no diálogo. Sócrates mostra que a oratória, por não tratar do jus-
to e do injusto como verdades imutáveis, é apenas um simulacro de
um ramo da política, ou seja, uma imitação da justiça. Portanto, a
oratória ou a retórica produz ilusões que buscam somente agradar,
e não conhecer, acerca do justo e do injusto. De forma geométrica
(Teorema de Tales), o filósofo estabelece as seguintes relações: a
ciência política (a filosofia dialética) está para a oratória assim como
o bem está para o prazer, a realidade para a aparência, a episteme
para a doxa e o verdadeiro para o simulacro. Os interlocutores de
Sócrates, um a um, são apanhados em contradição por meio da
dialética. Após afirmar que a oratória é a maior das artes porque
fala de forma mais convincente do que qualquer especialista, mas
que ela pode ser mal empregada por culpa de quem a utiliza (cf.
457c), Górgias declara ensinar sobre o justo e o injusto (cf. 460a).
Polo, indignado com a argumentação socrática, tenta socorrer seu
mestre. Entretanto, após dizer que é possível a felicidade do injusto

30 | cadernos Nietzsche 21, 2006


“O valor de um caracol” ou “O nobre nietzschiano...

(cf. 472d), tem que admitir com Sócrates que cometer uma injusti-
ça é um grande mal, mas que pior ainda é não expiar uma injustiça
cometida (cf. 479e). Cálicles, o adversário mais feroz e agressivo,
revolta-se contra a conclusão do filósofo ateniense, isto é, contra a
afirmação que, se a oratória serve apenas para evitar a expiação,
ela está associada a todo vício da alma (injustiça, ignorância, covar-
dia, entre outras). Se Sócrates tiver razão, a humanidade anda às
avessas (cf. 481c).
É neste ponto que incide nosso tema, a concepção do tipo
nobre de Nietzsche, pois Cálicles, ao tentar refutar Sócrates, apre-
senta como antagônicos os modos de vida do aristocrata e do escra-
vo (cf. 482c – 508e). Após acusar o dialético de ser orador e de ter
enganado Górgias e Polo, Cálicles aponta uma contradição no dis-
curso de seu adversário: Sócrates confunde os âmbitos da natureza
e da lei humana. Na natureza, o pior é sofrer uma injustiça enquan-
to que, para a justiça humana, o pior é cometer uma injustiça. Ain-
da mais: sofrer injustiça é algo próprio dos fracos e escravos, e a lei
é produto da união de homens fracos, ou seja, uma necessidade de
proteção da maioria. Em termos nietzschianos poderíamos dizer,
como o próprio Nietzsche faz, que a gregariedade dos homens, o
rebanho, ocorre devido a uma necessidade de conservação daque-
les que não podem ou não conseguem expandir sua potência. De
forma semelhante, para Cálicles, os fracos buscam proteção na lei.
A filosofia, afirma ainda o discípulo de Górgias, seria a responsável
pela confusão, pois os filósofos não teriam noções adequadas nem
de Estado, nem da linguagem, nem dos prazeres e das paixões hu-
manas, nem, enfim, da vida. Segundo ainda Cálicles, o uso da filo-
sofia deveria restringir-se à adolescência, não sendo ela adequada
para um homem adulto e livre, isto é, a filosofia não prestaria para
a política. O orador ainda “profetiza”: “se Sócrates fosse acusado
de algum crime, não saberia escapar da morte”. Guardados os de-
vidos contextos e conceitos, não poderíamos aproximar as críticas

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 31


Frezzatti Jr., W. A.

de Cálicles à nascente filosofia daquelas direcionadas por Nietzsche


contra a já bi-milenar tradição filosófica, especialmente o desconhe-
cimento do caráter agonístico da vida? Avancemos um pouco mais.
Cálicles considera que, na natureza, é justo que o melhor
prevaleça sobre o pior. Esta proposição é o ponto de partida para
Sócrates fazer seu interlocutor entrar em contradição por meio de
suas conseqüências. Mas, também, poderemos ver Cálicles explicitar
mais claramente suas idéias. Melhor tem o sentido de mais forte e
mais bruto. A maioria enquanto conjunto é mais forte que o homem
isolado e os preceitos da maioria são aqueles dos mais fortes ou dos
melhores. Portanto, esses preceitos são belos segundo a natureza
(cf. 488e). Uma primeira contradição: Cálicles havia dito anterior-
mente (cf. 483b) que a justiça humana consiste na igualdade e que
é pior ser autor do que vítima de injustiça; mas, agora, afirma que
isso também é assim por natureza. Para escapar dessa contradição,
o orador reformula suas palavras (cf. 489e-490a): a simples superio-
ridade numérica não faz o melhor, os melhores e os mais fortes são
os superiores, ou seja, aqueles de melhor entendimento – por nature-
za, o de melhor entendimento prevalece sobre os inferiores. Sócrates
quer saber o sentido de prevalecer: “Ao melhor sapateiro cabe cal-
çados maiores e mais abundantes?”. Cálicles responde que os mais
entendidos nos negócios públicos são também os mais bravos, pois
são capazes de levar a termo o que concebem. O filósofo ateniense
ainda quer saber: “Eles governam a si mesmos?”, eles têm tempe-
rança, domínio de si e são senhores de seus prazeres e paixões?
Neste momento, Cálicles irrita-se profundamente e afirma
que as idéias de Sócrates são imbecilidades, que não valem um ca-
racol (cf. 492c). Autodomínio é próprio de escravo. Belo e justo,
segundo a natureza, é saciar as paixões, o que é impossível para a
maioria. O forte não precisa da lei da maioria, para a qual felicida-
de confunde-se com virtude (este é o caso do próprio Sócrates). Vida
significa transbordar o máximo possível e viver feliz é sentir os de-

32 | cadernos Nietzsche 21, 2006


“O valor de um caracol” ou “O nobre nietzschiano...

sejos e poder satisfazê-los com prazer (cf. 494b). Bem é gozar de


todas as maneiras, não há diferença entre prazer bom e prazer mau
(cf. 495a-b). Sócrates vai mostrar novamente que o discípulo de
Górgias se contradiz. É impossível, ao mesmo tempo, ser feliz e
infeliz, mas podemos sofrer e gozar ao mesmo tempo, como ocorre
no beber com sede: sofremos com a sede, mas gozamos ao saciá-la
(cf. 496a-e). Portanto, gozar é diferente de ser feliz, sofrer é dife-
rente de ser infeliz e bem é diferente de gozo. Cálicles, para não
concordar com Sócrates, silencia e é repreendido por Górgias. Aca-
ba contradizendo-se mais uma vez ao afirmar que há prazeres pio-
res e melhores (cf. 499b). Assim, mais uma vez o prazer é diferen-
ciado do bem, este só é obtido pelo verdadeiro conhecimento, e a
oratória novamente classificada como lisonjaria e não como ciência
(cf. 500b).
Depois de uma nova desistência de Cálicles, Sócrates conti-
nua sozinho o processo dialético (cf. 506c-509c). Uma alma boa,
isto é, que possui o bem, é sábia e, por isso, possui ordem e pro-
porção. Uma alma desordenada é pior do que uma ordenada e é,
por isso, má. O homem bom é justo e feliz, foge daquilo que se
deve fugir e persegue aquilo que deve ser perseguido. O homem
mau é infeliz, desenfreado e não sábio, foge daquilo que deve ser
perseguido e persegue aquilo do qual se deve fugir. Se bem não é
igual a prazer, coincide com a felicidade. Para se atingir a felicida-
de, deve-se fugir do desenfreamento: nunca precisar de castigo, mas
aplicá-lo a quem venha precisar, seja ele quem for. Só agora temos
a refutação definitiva de Cálicles: a justiça humana tem a mesma
boa ordem que o Cosmos. Há uma igualdade geométrica entre os
deuses e os homens: ao maior, mais; ao menor, menos. Cálicles
passou por cima do Cosmos e da geometria. “Ser autor de uma injus-
tiça é pior do que ser vítima” é verdade tanto para a justiça humana
quanto para a natureza. Pior do que cometer uma injustiça é não
expiá-la, ou seja, pior do que desordenar a alma é não reordená-la.

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 33


Frezzatti Jr., W. A.

Após mais uma discussão, esta para saber como nos defen-
der de praticar e de não sofrer injustiças, e mais uma insistência de
Cálicles que a oratória é a arte sumamente bela e que é pior sofrer
uma injustiça do que cometê-la (cf. 509d-522d), Sócrates lança mão
de um mito para mostrar que é preferível a morte do que cometer
uma injustiça: o maior dos males é chegar ao Hades com a alma
carregada de iniqüidades (cf. 523a-527e). Ao fim, a reafirmação
que o homem não deve parecer ser bom, mas ser bom, e que isso
significa a felicidade na vida e na morte. A razão e não o prazer dos
sentidos nos indica esse caminho. Portanto, é o ideal de Cálicles
que não vale um caracol (cf. 527e), pois aquilo que ele indicou ser
próprio de um homem livre apenas ilude, não produzindo a verda-
de que coincide com a felicidade.
Aparentemente, a oposição de Cálicles entre o forte, capaz
de prescindir da maioria e obter a satisfação de seus desejos e pai-
xões, e o fraco ou escravo, incapaz de seguir seus desejos e depen-
dente da proteção da justiça humana, é semelhante à oposição
nietzschiana entre os tipos nobre e escravo. Em Crepúsculo dos ído-
los, “O problema de Sócrates” § 4, Nietzsche considera a equação
“Razão = Virtude = Felicidade” como a idiossincrasia mais bizar-
ra da doença de Sócrates, do seu cansaço vital, de sua anarquia de
impulsos. Essa equiparação é contrária aos mais fortes instintos gre-
gos, cuja equação mais própria seria a seguinte: “Virtude = Ins-
tinto = Inconsciência radical”1; portanto, mais próxima dos argu-
mentos de Cálicles. Entretanto, apesar de as características do
escravo de Cálicles coincidirem com as do tipo escravo nietzschiano,
nem todas as características do nobre de Cálicles estão presentes
no tipo nobre nietzschiano. Há entre eles uma diferença fundamen-
tal, que faz com que o primeiro se aproxime do organismo deca-
dente, ou seja, do tipo Sócrates. Queremos mostrar que o desenfre-
ado, aquele que corre atrás de todo e qualquer prazer não equivale
ao tipo nobre do filósofo alemão. Além disso, queremos indicar que,

34 | cadernos Nietzsche 21, 2006


“O valor de um caracol” ou “O nobre nietzschiano...

de forma semelhante a Sócrates, a dor e o sofrimento podem exer-


cer um papel importante na elevação nietzschiana do homem.
As características aristocráticas, para Nietzsche, são aquelas li-
gadas a um determinado e definido estilo: a precisão do sim e do
não do gosto; a repugnância facilmente provocada; o desprezo a
tudo que é heterogêneo; o medo da falta de gosto da própria curio-
sidade; a má vontade de confessar um novo desejo, uma insatisfa-
ção em si próprio ou a admiração ao estranho; indisposição contra
tudo que não lhe seja próprio ou que não possa dominar – enfim,
tudo isso é “bom gosto” (cf. JGB/BM § 224). A mistura de estilos
do passado e do presente é não-aristocrática porque nos dá percep-
ção para toda e qualquer coisa, gosto e paladar para tudo. Apenas
por essas características poderíamos afastar o nobre nietzschiano
daquele apresentado por Cálicles, pois elas impedem uma busca
desenfreada por todo e qualquer prazer: a nobreza nietzschiana é
altamente seletiva. Essa seletividade aristocrática, para nós, está
indissociada de uma capacidade que é fundamental ao grande ho-
mem, isto é, a criação de uma cultura elevada. Esse é o motivo
principal para o nobre nietzschiano não poder ser o desenfreado e,
portanto, não coincidir com a concepção de nobreza do interlocutor
de Sócrates.
Os homens de uma cultura nobre possuem uma crença resoluta
em si e um domínio de si, o que denota força e não exaustão. Seus
antípodas seriam sintetizados pelo cristianismo: maldição sobre o
prazer (como o fizeram Baudelaire e Schopenhauer), considerar o
gosto pela dominação como o maior dos vícios e perseguir a felici-
dade geral (cf. XI, 25 [178] da primavera de 1884). O interesse
cada vez maior pelo povo, pelos fracos, pelos pobres e pela arte
popular indica o abandono dos privilégios e o enfraquecimento do
mundo aristocrático, ou seja, a inviabilidade de uma cultura superi-
or (Über-Cultur) (cf. XI, 25 [200] da primavera de 1884).

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Frezzatti Jr., W. A.

A nobreza ou a aristocracia, própria de uma cultura elevada,


tem uma característica importante: a hierarquia2. Uma cultura ele-
vada (hohe Cultur), diz o filósofo, só pode basear-se em uma socie-
dade piramidal (cf. AC/AC § 57). O exemplo dado é o da socieda-
de indiana de castas: é uma pré-condição da cultura elevada a
existência de uma mediocridade sólida e organizada. A hierarquia
é o que torna possível o surgimento das exceções, dos não-medío-
cres, dos responsáveis pela criação das características culturais ele-
vadas. Ela segue o próprio funcionamento da vida: a hierarquia
permite o surgimento de características que possibilitam a supera-
ção das condições existentes e, para Nietzsche, o caráter fundamen-
tal da vida é a auto-superação. Assim, para o nobre nietzschiano,
não pode haver a equivalência entre todo e qualquer prazer.
Outra maneira do filósofo alemão referir-se à hierarquia de
uma sociedade é o termo “pathos da distância” (das Pathos der
Distanz). Sem esse sentimento, enraizado na diferença entre os gru-
pos sociais e na prática de mandar e obedecer, não haveria um outro:
o desejo de ampliar constantemente a distância dentro da própria
alma, a elaboração de estados sempre mais elevados, raros, distan-
tes, amplos, ou seja, a elevação (Erhöhung) do tipo “homem”, a
contínua “auto-superação do homem” (cf. JGB/BM § 257)3. Toda
cultura superior [höhere Cultur], afirma Nietzsche, tem que estar
fundamentada nessa diferença entre os homens4 – é esse um dos
significados principais do termo “aristocrático” na filosofia nietzschia-
na. Em outras palavras, esse pathos é o oposto daquele que atua na
domesticação ou civilização do homem, isto é, na doutrina da igual-
dade dos homens, presente principalmente no que Nietzsche deno-
mina de cristianismo e nas correntes políticas de sua época (demo-
cracia, socialismo e anarquismo). O cristianismo, segundo Nietzsche,
foi o grande disseminador da doutrina dos direitos iguais para todos.
A crença na imortalidade da alma transforma todos os indivíduos
em iguais, elimina o pathos da distância e a base da cultura elevada5.

36 | cadernos Nietzsche 21, 2006


“O valor de um caracol” ou “O nobre nietzschiano...

Devemos entender o aristocrático ou o nobre nietzschiano como


uma postura de aceitação do vir-a-ser e não como uma classe,
estamento ou grupo social. Entender a vida como um processo de
luta por mais potência e não participar da dicotomia metafísica cor-
po e alma, ou seja, da cultura cristã que nega a vida: é essa a ver-
dadeira postura aristocrática ou nobre para Nietzsche. Essa postura
de aceitação da vida, que por vezes é associada à “barbárie”6, é
identificada com certos comportamentos da Grécia e Roma antigas,
com a cultura moura (árabes na Espanha), com os renascentistas,
com os aristocratas franceses da corte de Luís XIV e com os sofis-
tas (cf. AC/AC §§ 58, 59, 60 e 61; XIII, 14 [116] da primavera de
1888 e XIII, 24 [1] 8 de outubro / novembro de 1888). Bárbaros,
porque se lançaram sobre povos domesticados, mais pacíficos, ou
seja, civilizados e, geralmente, os dominaram. Mas bárbaros tam-
bém em outro sentido: os homens superiores encontram felicidade
naquilo que os outros enxergam perdição, a saber, nas dificuldades,
na dureza para consigo e para os outros (cf. AC/AC § 57). É isso
que um organismo com impulsos saudáveis exige: obstáculos a serem
superados. Não é a satisfação de todo e qualquer desejo que causa
prazer, mas a superação desses obstáculos. Em outras palavras, a
possibilidade de criar culturas elevadas está nessa superação.
O modo aristocrático de pensar implica um pensamento cria-
dor que não propõe ao mundo, como fim supremo, a felicidade do
repouso e que honra a paz apenas como um meio para novas bata-
lhas (cf. XI, 37 [14] de junho / julho de 1885). Um pensamento
que, por amor ao futuro, trata duramente o presente e a si mesmo,
que quer desenvolver todas as qualidades humanas, ou seja, seus
impulsos e que coloca cada um em seu lugar. Esse pensamento é
considerado “imoral” pelos defensores do amansamento do homem.
Em seu século, afirma Nietzsche, esse pensamento não é encontra-
do, pois os impulsos estão “invertidos”: o século XIX quer a como-
didade (e não a luta), a publicidade (e não a ação), o tumulto dos

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Frezzatti Jr., W. A.

comediantes (e não os artistas criadores)7, a igualdade entre os ho-


mens (e não a diferença) e as virtudes igualitárias (e não a hierar-
quia). O século XIX é hostil para o filósofo proposto por Nietzsche:
filósofos potentes, astutos e audaciosos numa época enfraquecida,
medíocre e covarde. Onde o filósofo alemão encontra o tão almeja-
do alvo? Nas já citadas sociedades antigas. É na Grécia antiga –
anterior a Sócrates - que ele encontra uma estética trágica que não
recusa o caráter agonístico da vida.
É no contexto dessa mesma argumentação que devemos
entender a morbidade atribuída ao cristianismo: este nega a vida (o
vir-a-ser). O modo cristão de interpretar a vida pôs a perder as con-
dições da cultura elevada criadas por gregos, romanos e mouros,
entre outros8: “tudo posto a perder por invisíveis vampiros anêmi-
cos!” (AC/AC § 59).
Assim, apenas uma existência de caráter nobre, ou seja, o “bár-
baro” e não o “civilizado”, pode ser o construtor de uma cultura
elevada. Portanto, se a civilização (Civilisation), em seu procedi-
mento de domesticação dos impulsos humanos, tem como instru-
mento uma moral considerada absoluta, a base da cultura superior
(höheren Cultur), da elevação (Erhöhung) do homem é, na perspec-
tiva “civilizada”, a imoralidade (cf. XII, 2 [73] do outono de 1885
/ outono de 1886). Os grandes momentos da cultura (Cultur), se-
gundo Nietzsche, são as épocas de corrupção moral, enquanto que
as épocas civilizadas e domesticadas são momentos de desprezo
desses valores culturais superiores (cf. XII, 9 [142] do outono de
1887). Não apenas de desprezo, mas de escamoteamento: o filóso-
fo alemão aponta uma falsificação sistemática da história com o fim
de associar a elevação do homem com a elevação moral (cf. XII, 9
[142] do outono de 1887). A civilização faz crer que a virtude de
um povo, especificamente a moral cristã, está em razão direta com
seu apogeu. Quer-se fazer acreditar que essa crença moral seja a
marca dos grandes homens, dos grandes criadores e das grandes

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“O valor de um caracol” ou “O nobre nietzschiano...

épocas. Porém, afirma Nietzsche, a falta de escrúpulos, o ceticismo,


a licença de poder se esquivar de uma crença qualquer, enfim, a
“imoralidade”, são as características principais da grandeza. São
citados: César, Frederico (o grande), Napoleão, Homero, Aristó-
fanes, Leonardo e Goethe. Qual o ponto principal dessa “imorali-
dade”? A não domesticação dos instintos humanos. Nobres ou “bár-
baros”, livres de qualquer amarra moral, podem canalizar sua
potência para a criação de uma cultura superior. Ressaltamos: para
a criação de uma cultura superior e não para a satisfação de todo e
qualquer desejo. Essa independência moral (a não domesticação
dos impulsos), que coincide com uma superioridade no desenvolvi-
mento (Entwicklung) humano, é, aos olhos do moralista, o máximo
da corrupção. Assim é o julgamento de Platão sobre a Atenas de
Péricles, de Savonarola sobre Florença, de Lutero sobre Roma, de
Rousseau sobre Voltaire e da Alemanha sobre Goethe.
O grande homem, aquele capaz de criar novas culturas, deve
ser nobre, ou seja, estar além das questões morais vigentes. Sendo
um tipo oposto à civilização (Civilisation), o grande homem não é
aquele, como acreditavam por exemplo Darwin e Paul Rée, que
atingiu um grau de moral elevado, isto é, o grande homem não é o
“homem bom” (cf. GD/CI “Incursões de um extemporâneo”, § 44).
Assim, de uma perspectiva do processo civilizatório, os grandes
homens são considerados maus e mesmo criminosos. Todo grande
homem (grosser Mensch), por seu acúmulo de força hereditário, é
capaz de quebrar as tradições vigentes e criar novas. Ao comparar
o “melhoramento do homem” (Verbesserung des Menschen), ou seja,
sua suavização (Milderung), sua moralização pelo cristianismo, com
uma regressão fisiológica (cf. XII, 4 [7] do início de 1886 / prima-
vera de 1886), Nietzsche aponta um “princípio geral” sobre a rela-
ção entre o homem potente e esplendoroso e sua época: “quanto
mais um homem se sente saudável, forte, rico, fecundo, empreen-
dedor, mais se torna ‘imoral’”. E, nesse mesmo fragmento, pergun-

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Frezzatti Jr., W. A.

ta: “Todas as grandes obras e ações que permaneceram e não fo-


ram varridas pelas vagas do tempo – não eram todas elas, na acepção
mais profunda, grandes imoralidades?”. Sim, para a perspectiva da
civilização, da moral enfraquecedora dos impulsos humanos, a no-
breza, o gênio e suas obras são imorais. Portanto, tudo que é gran-
de e nobre inclui um grande crime, ou seja, a grandeza e a nobreza
são concebidas como uma atitude que exclui a relação com a moral
– especificamente a cristã, não há bem ou mal absolutos (cf. XII,
10 [53] do outono de 1887). Não apenas o grande homem, mas a
própria cultura (Cultur) resultante é “imoral” em relação à cultura
anterior.
Contudo, essa “imoralidade”, ou seja, esse desligamento da
moral vigente, qualquer que seja ela, que caracteriza o espírito aris-
tocrático nietzschiano não deve ser confundido com o vício e o de-
senfreamento, embora às vezes resultem nos mesmos atos (cf. XIII,
11 [153] de novembro de 1887 / março de 1888). O aristocrata
deve ter um impulso dominante que escravize os demais impulsos.
De outra forma, teríamos a anarquia de impulsos própria da deca-
dência, como atribuída a Sócrates em “O problema de Sócrates”
do Crepúsculo dos ídolos. É esse domínio que possibilita ao nobre
um estilo, um gosto, e, assim, a capacidade de uma criação eleva-
da, ou seja, que afirme a vida. A cultura nobre ou aristocrática, ou
seja, elevada é aquela que, devido a uma riqueza de forças, pode
ser exceção, pode experimentar e arriscar novos caminhos (cf. XII,
9 [139] do outono de 1887). O desenfreado não pode focar sua
força na construção de algo elevado, pois ele é típico da desagrega-
ção de impulsos. Portanto, o organismo nobre é aquele no qual há
uma hierarquia entre os próprios impulsos.
Aqui podemos aprofundar um pouco mais o modo que Nietzsche
entende a nobreza: os mesmos atos não devem ser considerados da
mesma maneira se forem praticados por tipos diferentes de homens.
A noção de “igualdade dos valores dos homens perante Deus” proíbe

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“O valor de um caracol” ou “O nobre nietzschiano...

aquilo que é prerrogativa dos fortes: não há nenhum comportamen-


to, segundo Nietzsche, que “em si” seja indigno do homem. Assim,
no grande homem (no homem forte), atos de domínio e de “injusti-
ça” não são ocasionados por falta de caráter, mas justamente por
ser constituído de um caráter forte e definido que lhe permite cana-
lizar uma grande força acumulada: o grande homem está acima e
além da moral cristã, além do bem e do mal, pois seus atos são a
própria grandeza se expressando. Esse é um dos principais motivos
da crítica avassaladora e insistente do filósofo alemão contra o que
chama de “cristianismo”: o domínio e a preponderância pretendem
ser exercidos pelo antípoda do elevado na concepção nietzschiana.
Lembremos que o grande homem é aquele que consegue dar uma
direção a seus imensos impulsos (“dominar os monstros”). Os vicia-
dos e desenfreados não têm domínio sobre seus impulsos.
Engana-se quem entende que essa “ação criminosa e imo-
ral” dirige-se apenas ao outro: ela é direcionada principalmente con-
tra o próprio grande homem.

Não será a “compaixão” que nos abrirá as portas para as espécies de


ser [Arten Sein] e de cultura [Cultur] mais longínquas e mais desconhe-
cidas; mas sim nossa acessibilidade e desenvoltura, as quais justamente
não “com-padecem”, mas, ao contrário, se deleitam com centenas de
coisas das quais se sofreu anteriormente (XII, 10 [119] do outono de
1887).

Nietzsche, na formação do grande homem e, conseqüentemen-


te, da cultura elevada, leva em conta o sofrimento, isto é, o atrito
com o mundo, ou ainda, o próprio viver, mas não o sofrimento que
transtorna, compadece, ou atraia amabilidades, mas aquele que nos
torna mais fortes e robustos: “nós queremos sensações fortes como
queriam todas as épocas e classes populares mais grosseiras... o que
se deve, sem dúvida, separar-se da necessidade dos fracos de ner-

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 41


Frezzatti Jr., W. A.

vos e décadents” (idem). Os decadentes – os representantes da moral


burguesa e da Igreja – na arte, na política, na filosofia devem ser
referência para o que interessa à cultura: o que proíbem e ao que
atribuem má reputação é aquilo que deve nos interessar. A estraté-
gia dos decadentes é, por sua fraqueza, evitar o que traz sofrimen-
to, ou seja, evitar a própria experiência do viver.
Apesar de Sócrates considerar a virtude como indissociável do
sofrimento, o filósofo grego busca mecanismos para evitá-lo. A vida,
isto é, a união corpo/alma, torna-se doença porque impede o co-
nhecimento das verdades imutáveis, da bem-aventurança junto ao
divino. Essa postura é denunciada pela oferenda do galo a Asclépio
(cf. FW/GC § 340). Esse afastamento da vida impede o acúmulo
de força necessário para destruir uma cultura e erigir outra. Enfim,
a civilização (Civilisation), entendida por Nietzsche como domesti-
cação do homem, impede o surgimento do artífice do desenvolvi-
mento cultural. E o que é pior: os decadentes pretendem ser os
únicos homens superiores, como é o caso de Sócrates e de Cálicles.
Enfim, o nobre nietzschiano enquanto expressão de uma
hierarquia potente de impulsos não pode ser confundido com o aris-
tocrata de Cálicles, cuja busca desenfreada por prazer revela ape-
nas anarquia dos impulsos e, portanto, cansaço da vida. Os impul-
sos nobres, no pensamento de Nietzsche, são potentes, mas
direcionados para a superação dos valores vigentes e não são des-
carregados aleatoriamente (o que caracterizaria decadência): a hie-
rarquia dos impulsos é uma característica axial da configuração
nobre ou potente. Talvez pudéssemos afirmar que, para Nietzsche,
tanto a filosofia de Sócrates quanto o nobre desenfreado de Cálicles
não valem um caracol.

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“O valor de um caracol” ou “O nobre nietzschiano...

Abstract: In Platos’ dialogue Gorgias, Callicles presents the characteris-


tics of the slave and aristocratic mode of being that, appearently, agree
with Nietzsche’s attribuition to noble and slave types. However, this
aproximation could be erroneous. Although the characteristics of the slave
according to Callicles correspond to Nietzschean slave, there is a huge
difference between their conceptions of strong man.
Keywords: culture – hierarchy of impulses – Socrates – slave type –
noble type

notas
1
Essa equação encontra-se numa variante do texto publica-
do apontada em nota da edição Colli-Montinari das obras
de Nietzsche. O manuscrito Mp XVI 4 acrescenta, entre
parênteses, ao final do § 4: “A equação mais antiga seria a
seguinte: Virtude = Instinto = Inconsciência radical” (Colli
e Montinari 1, p. 119).
2
Em trabalho anterior, mostramos a importância da hierar-
quia para a noção nietzschiana de luta (cf. Frezzatti 2, pp.
77-80).
3
“Toda elevação [Erhöhung] do tipo ‘homem’ foi até agora
obra de uma sociedade aristocrática – e assim será sem-
pre: porque é uma sociedade que acredita numa longa es-
cala de hierarquia e de diferença de valor entre os homens
e que, em certo sentido, necessita da escravatura” (JGB/
BM § 257).
4
A diferença é o próprio motor da luta entre as forças que
constituem o próprio mundo (cf. Frezzatti 2, pp. 78-79).
5
“A ‘imortalidade’ concedida a cada Pedro e Paulo foi até
agora o maior, o mais maldoso atentado contra a humani-

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Frezzatti Jr., W. A.

dade nobre. – E não subestimemos a fatalidade que, a par-


tir do cristianismo, se infiltrou até na política! Ninguém
hoje tem mais a coragem de ter direitos particulares, de ter
direitos de domínio, de ter um sentimento de veneração
por si e seus iguais, de ter um pathos da distância... Nossa
política está doente dessa falta de coragem! – O
aristocratismo dos sentimentos foi solapado da maneira mais
subterrânea pela mentira da igualdade das almas” (AC/AC
§ 43).
6
“[...] sua preponderância não residia primariamente na for-
ça física, mas na psíquica – eram homens mais completos
(o que, em todos os níveis, significa também ‘bestas mais
completas’ – )” (JGB/BM § 257).
7
Nietzsche distingue o Künstler, aquele artista capaz de criar
no âmbito cultural e mesmo individual, de levar uma exis-
tência estética e ter um entendimento estético da vida, do
Schauspieler, o artista de peças dramáticas, o comediante.
Este último pensa apenas no sucesso e na publicidade.
8
“O cristianismo frustrou-nos a colheita da cultura antiga
[antiken Cultur] e, ainda, nos frustrou o mesmo da cultura
islâmica [Islam-Cultur]. A maravilhosa cultura moura
[maurische Cultur] da Espanha, no fundo mais próxima de
nós, fala mais ao nosso sentido e ao nosso gosto que Roma
e Grécia, foi sobrepujada [...] Por quê? Porque devia o dia
aos instintos aristocráticos, aos instintos viris, porque dizia
sim à vida, com os refinamentos da vida moura. [...] uma
cultura [Cultur] em comparação com a qual mesmo nosso
século XIX pareceria pobre e atrasado” (AC/AC § 60).

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“O valor de um caracol” ou “O nobre nietzschiano...

referências bibliográficas

1. COLLI, G.; MONTINARI, M. “Notes et variantes”. In:


NIETZSCHE, F. Crépuscule des idoles. Traduits par
J.-C. Hémery. Paris: Gallimard, 1996.
2. FREZZATTI Jr., W. A. Nietzsche contra Darwin. São Paulo:
Discurso / UNIJUÍ, 2001.
3. GIACOIA JUNIOR, Osvaldo. “O Platão de Nietzsche. O
Nietzsche de Platão” in: Cadernos Nietzsche (3), 1997.
4. NIETZSCHE, F. W. Sämtliche Werke. Kritische Studien-
ausgabe. G. Colli e M. Montinari (Hg). Berlim: Walter
de Gruyter, 1980. 15 v.
5. PLATÃO. Górgias. 3ª edição. Tradução J. Bruna. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
6. _______ . Complete works. Edited by J. M. Cooper. India-
napolis: Hackett, 1997.

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 45


Kierkegaard, um leitor de Nietzsche avant la lettre

Kierkegaard, um leitor de
Nietzsche avant la lettre*
Alvaro L.M. Valls**

Resumo: O artigo estabelece comparações entre Kierkegaard e Nietzsche,


no que diz respeito à questão da religião e do cristianismo.
Palavras-chave: religião – cristianismo – filosofia

Heidegger anota que Kierkegaard (+1855) foi “um escritor


religioso”, aliás, “o único à altura do destino de sua época”: “ein
religiöser Schriftsteller und zwar nicht ein unter anderen, sondern der
einzige dem Geschick seines Zeitalters gemäss”1. Assim, ele teria es-
tado à altura de uma época que fundamentalmente foi de crítica à
religião cristã. Os anos 40 e 50, já antes da crítica marxista, saco-
dem os pilares religiosos da sociedade, buscando solapar “o altar e
o trono”. A crítica à religião, desenvolvida por Feuerbach, culmina
no discurso nietzschiano, provocando teoricamente a transformação
da cristandade em cristianismo de diáspora 2. Mas perguntar não ofen-
de: uma tal crítica não teria sido respondida, quiçá até superada
em radicalidade e verdade, pelos escritos do pensador dinamarquês?
Se comparássemos Kierkegaard com Feuerbach, um ponto em
comum ficaria logo evidente: ambos tomam como referência o “Cris-

*
Palestra proferida no XIX Encontros Nietzsche – Colóquio Pensar contra
Nietzsche, na USP, no dia 23 de agosto de 2005.
**
Professor de Filosofia da Univ. do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos-RS).

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 47


Valls, A. L. M.

tianismo do Novo Testamento”, mas o filósofo alemão logo o “inter-


preta”, transformando a teologia em antropologia e a religião em
relações humanas. Kierkegaard não faz o mesmo, mantém-se fiel à
religião na sua linguagem específica da representação, narrativa,
testemunho ou querigma, para trabalhar então filosoficamente a
partir daí. Feuerbach não “desencava conceitos cristãos”: transfigu-
ra-os. – Passemos, portanto, a uma outra comparação, qual seja,
com o trabalho de Nietzsche: não haveria semelhanças entre o au-
tor alemão do Antichrist e o crítico dinamarquês da cristandade?3
Gostaria de esboçar aqui alguns traços de paralelismo para caracte-
rizar um pouco a tarefa do pensador dinamarquês, contrastando-o
com Nietzsche. Além disso, gostaria de ver en passant se acaso o
texto deste não abre alguma exceção em suas críticas para um núcleo
que fosse mais autêntico do fenômeno que O Anticristo designa como
“Cristianidade” ou “Cristicidade”, o “ser-cristão” (Christlichkeit =
Christsein).
Kierkegaard, com efeito, usa como ferramentas uma tríade
conceptual: 1) cristianismo, 2) cristandade e 3) cristicidade ou cris-
tianidade (Christendom, Christenhed, Christlighed)4. Julga a cristan-
dade em nome do cristianismo, sem tentar “defender” este último,
já que escreveu, em 1847, em As Obras do Amor, que seria mais
importante defender a humanidade das enormes exigências especi-
ficamente cristãs. Um bom exemplo de juízo evangélico, crístico
sobre a cristandade podemos encontrar numa nota dos Papirer, de
1854 (Pap. XI¹A 375), quando, lembrando a imprecação de Cristo
a Pedro, de Marcos 8, 33,5 afirma, com todas as letras que “a cris-
tandade é invenção de Satanás”.
Nietzsche, ao que parece, não distingue os dois primeiros ter-
mos (cristianismo e cristandade); ataca e amaldiçoa o Cristianismo
de todas as maneiras, embora, surpreendentemente, no § 39 de O
Anticristo afirme que sempre haverá lugar para um tipo de vida que

48 | cadernos Nietzsche 21, 2006


Kierkegaard, um leitor de Nietzsche avant la lettre

ele supõe ser o do Crucificado (a quem, aliás, compara com o “Idio-


ta”, de Dostoévski).

É falso até ao contra-senso ver numa “fé”, por exemplo, a fé na sal-


vação por Cristo, a insígnia do cristão: unicamente a prática cristã, uma
vida como a viveu aquele que morreu na cruz, tem algo de cristão...
Hoje, uma tal vida ainda é possível e até necessária para certos ho-
mens: o Cristianismo autêntico, originário, será possível em todas as
épocas... Não uma fé, mas uma ação, um não fazer certas coisas, sobre-
tudo um diferente ser... (AC/AC § 39)6.

Nietzsche teria o apoio de Kierkegaard ao rejeitar a interpreta-


ção de Renan, que via em Jesus um gênio, pois gênio não deve ser
confundido nem com apóstolo, como explica um dos Dois Pequenos
Tratados Ético-Religiosos. E se Kierkegaard lesse Dostoévski talvez
aceitasse também a aproximação com a figura do Príncipe Míchkin,
de O Idiota:

E que mal-entendido não é a palavra “gênio”! (...) Com a lingua-


gem rigorosa do fisiólogo, estaria aqui melhor no seu lugar uma pala-
vra completamente diferente: a palavra idiota (AC/AC § 29)7.

Um teólogo americano mal-humorado contestou-me, recente-


mente, que Nietzsche não faz grande concessão, pois apenas teria
dito que cada um tem o direito de seguir a idiotia que quiser. No
entanto, estou convencido de que Kierkegaard aplaudiria, quase sem
restrições, o crítico alemão, sobretudo quando este enfatiza que o
Cristianismo é “prática”, um modo de ser, de agir, ou até mesmo
de deixar de agir de certas maneiras.

(...) uma prática nova, a prática genuinamente evangélica. Não é a


“fé” que distingue o cristão: o cristão age, distingue-se por um agir dife-

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 49


Valls, A. L. M.

rente. Ao que é mau para com ele, não oferece resistência nem por pa-
lavras nem no coração. (...) Uma nova conduta, não uma nova fé...
(AC/AC § 33)8.

Ora, se Kierkegaard introduziu um conceito crítico ao diferen-


ciar Christenhed e Christlighed, muito se alegraria ao ver Nietzsche
utilizar este último conceito (em ambas as formas, Christ-sein e
Christlichkeit!), para insistir sobre a “prática” da vida cristã.

Reduzir o ser-cristão, a cristianidade a um ter por verdadeiro, a uma


simples fenomenalidade de consciência significa negar a cristianidade
(AC/AC § 39)9.
Este “alegre mensageiro” morreu como viveu, como ensinara – não
para “redimir os homens”, mas para mostrar como se deve viver. A prá-
tica foi o que ele deixou à Humanidade (...) o seu comportamento na
cruz (AC/AC § 35)10.

Também para o dinamarquês, Jesus Cristo é antes o Modelo


que nos convida a segui-lo, servo sofredor que precisa ser imitado,
e não (dito agora de maneira crítica) aquele que um dia já nos sal-
vou, dispensando-nos de todo esforço de “apropriação” (Aneignung,
que em Lutero é uma atitude prática que consiste em imitatio ou
seguimento; na língua nórdica: Efterfølgelse.) O escritor dinamar-
quês, autor de um Evangelho dos sofrimentos (3ª seção dos Discur-
sos edificantes em diversos espíritos, de 184711) insiste em que al-
guém, a rigor, só segue o seu modelo (hans Forbillede) quando este
se ausenta, se esconde, ascende para outro lugar e deixa só o segui-
dor: “Cristo precisava ir embora, precisava morrer”, para que se
pudesse mostrar “se o discípulo iria segui-lo”12. Aliás, encontramos
um grande filão de pesquisa quando meditamos sobre o Evangelho
dos Sofrimentos. Se não há Cristianismo sem sofrimento, também
não precisa haver sofrimento sem alegria: esta é a Boa Nova, o Evan-

50 | cadernos Nietzsche 21, 2006


Kierkegaard, um leitor de Nietzsche avant la lettre

gelho, que segundo Nietzsche teria sido transformado pelo clero em


Dysangelium.

Já a palavra “Cristianismo” é um equívoco – no fundo, existiu apenas


um único cristão, e esse morreu na cruz. O “Evangelho” morreu na cruz.
O que desde este instante se chamou “Evangelho” era já o contrário do
que Cristo vivera: uma “má nova”, um dysangelium. (AC/AC § 39)13.

Nietzsche acusa fortemente, acidamente, o apóstolo Paulo, “o


verdadeiro inventor do Cristianismo”, por esta deturpação, junto
com o clero que teria tomado o poder ao longo da história. O cristia-
nismo primitivo não lhe parece nenhum tempo áureo, e os evange-
lhos não têm para ele valor de autoridade moral, apenas talvez como
documento histórico.

Os Evangelhos, como testemunho da corrupção já irresistível no seio


das primeiras comunidades, são inestimáveis. O que Paulo, mais tarde,
levou a cabo com o cinismo lógico de um rabino foi, não obstante, ape-
nas um processo de decadência, que começara com a morte do Redentor
(AC/AC § 44)14.

Em relação a Paulo é importante registrar como nossos dois


autores se afastam. O Apóstolo é uma autoridade para Kierkegaard,
assim como também um exemplo para sua vida pessoal, para seus
valores, um exemplo até jogado ironicamente, polemicamente, na
discussão com os supostos cristãos sérios, isto é, com os que se de-
claram tais.

São Paulo era funcionário? Não. Tinha algum meio de vida? Não.
Ganhava muito dinheiro? Não. Era casado e com filhos? Não. Mas então
São Paulo não era um homem sério! (Pap. VIII A 206).

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 51


Valls, A. L. M.

Quanto a Lutero, Kierkegaard lamenta que tenha sido pouco


dialético e que substituísse o Papa pelo “público”. Em relação ao
clero, Kierkegaard concordaria com Nietzsche num ponto: em que
seu Bispo deturpa o Cristianismo, suaviza-o, trai suas exigências,
retira o rigor e o vigor, leva-o a sério só até um certo ponto (ver o
discurso sobre a Pureza de Coração), transforma-o em cultura e pra-
zer, em consolo, enfim: falsifica-o reduzindo-o. (Por ex.: Pap. X³A
588 n. d., 1850). Os Diários retratam em detalhes toda a polêmica
com o bispo Mynster, e até pensamentos que era melhor não expor
publicamente. De qualquer modo, nosso pensador esteve sempre
disposto, até a morte de Mynster, a tolerar a religiosidade do seu
bispo, desde que este reconhecesse que pregava uma forma suavi-
zada, diferente da essencial, dos tempos áureos do Cristianismo,
como dizia Feuerbach15.
Há muito mais semelhanças entre os dois autores do que se
imagina, à primeira vista. Mas poderia haver até mesmo um diálo-
go, uma discussão, alimentada de entusiasmo e de ironia, entre es-
tes dois homens traspassados de polêmica (conforme a expressão
de P. M. Møller, cit. em Pap. VII A 221), se fossem contemporâ-
neos. – De que modo Kierkegaard, que se definia como o “exumador
dos conceitos cristãos”, teria lido, se tivesse vivido 75 e não 42 anos,
O anticristo, de Nietzsche? Temos que proceder inicialmente por
analogia. Sabemos, por exemplo, que Kierkegaard, bom conhece-
dor de Feuerbach, lia também com prazer o chamado “pessimista”
alemão Schopenhauer, chegando mesmo a comparar-se com ele
numa relação inversa, como nas respectivas iniciais: “A. S. e S. A.”
(Pap. XI¹A 144).
Antes, porém, de imaginar uma dessas discussões, citemos o
Dostoiévski de Joseph Frank, quando, numa nota de seu 2º volu-
me, informa que Nietzsche considerava a ética cristã de Dostoiévski
um exemplo da moral dos senhores (Herrenmoral). Eis que então o
crítico dinamarquês Georg Brandes, exatamente ele, observa a

52 | cadernos Nietzsche 21, 2006


Kierkegaard, um leitor de Nietzsche avant la lettre

Nietzsche que na verdade o Cristianismo do autor russo representa-


ria a tão odiada moral dos fracos e oprimidos. Ao que Nietzsche
teria respondido que isso até poderia ser verdade, mas que mesmo
assim Dostoiévski continuava a ser o melhor psicólogo, que mais o
interessava. – Quiçá em relação a Kierkegaard Nietzsche tivesse
reações semelhantes, de irritação e admiração. Mas queremos ima-
ginar um pouco mais, visualisar agora Kierkegaard lendo O an-
ticristo, e respondendo, provocadoramente. – Suponhamos que nos-
so autor lesse, com o maior interesse e compreensão, as três
seguintes passagens dos parágrafos 47, 49 e 50 de O anticristo:

Paulo quer reduzir a nada a “sabedoria do mundo”: os seus inimi-


gos são os bons filólogos e médicos da Escola Alexandrina – a eles faz
a guerra. Na realidade, não se pode ser filólogo e médico sem, ao mes-
mo tempo, ser também anticristo. Como filólogo, olha-se por trás dos
“livros santos”; como médico, por trás da decrepitude fisiológica do cris-
tão. O médico diz “incurável”, o filólogo “fraude”... (AC/AC § 47)16.

“Logo, é preciso tornar o homem infeliz” – foi esta em cada época a


lógica do sacerdote... (...) deve sofrer... E deve sofrer de maneira a pre-
cisar sempre do sacerdote. Fora com os médicos! Precisa-se é da salva-
ção. (AC/AC § 49)17.

Se bem compreendo, parece que entre os cristãos há uma espécie de


critério de verdade que se chama a “prova da força”. “A fé salva: logo é
verdadeira”. Poderia aqui objetar-se imediatamente que a salvação não
foi demonstrada, mas apenas prometida: a salvação está ligada à con-
dição da “fé” – deve conseguir-se a salvação porque se crê... Mas como
é que se demonstraria que o que o sacerdote promete ao crente, esse
“além” inacessível a todo controle, tem efectivamente lugar? A pretensa
“prova de força” é, pois, no fundo, de novo apenas uma fé em que não
deixará de realizar-se o que a fé promete. (AC/AC § 50)18.

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 53


Valls, A. L. M.

Compreendendo perfeitamente as razões de Nietzsche, mas ti-


rando as consequências do que o alemão diz (inclusive nas entreli-
nhas), Kierkegaard, irritante como Sócrates, provocante, implican-
te, poderia montar, ad hoc ou ad hominem, o seguinte argumento
(que de fato se encontra nuns discursos de 1847), utilizando como
elementos básicos: Paulo, o sofrimento, a fé e a imortalidade.
Kierkegaard relaciona o sacrifício do cristão, na formulação paulina,
e a necessidade de uma outra vida, garantida pela fé, certeza de
vitória. O autor dos Discursos faz uma curiosa e paradoxal paródia
do argumento kantiano, misturado talvez, para provocar a Profes-
sora Scarlett, com a “aposta” de Pascal, numa formulação que faz
sorrir quem está familiarizado com a ironia.
Eis o argumento:
Para poder criticar o mundo, o homem precisa de um lugar
arquimédico próprio, um refúgio e um apoio, nessa nova mecânica.
Precisa, portanto, de uma eternidade real.
Mas Paulo diz, na 1a Carta aos Coríntios 15,19: “Se é só para
essa vida que temos colocado a nossa esperança em Cristo, somos, de
todos os homens, os mais dignos de lástima”19. Perfeito! Magister
Kierkegaard prossegue, comentando: se alguém renuncia ao mun-
do e sofre todos os males, então, caso não houvesse uma felicidade
na outra vida, teria sido enganado de maneira terrível, revoltan-
te. Correto: sob a condição de que não houvesse depois uma bem-
aventurança!
E o escritor dinamarquês conclui (com ironia?) quanto à nova
vida: “parece-me que ela teria de tornar-se realidade somente por com-
paixão com um tal homem” 20. – Daqui tiramos a impressão de que
este Kierkegaard, que propõe que se invente (se preciso for) uma
segunda ou nova existência, por compaixão pelo mártir, já era um
leitor (provocante) de Nietzsche, avant la lettre...
O autor dos Discursos repete o argumento com outras palavras,
com significados obviamente distintos dos pressupostos de Nietzsche:

54 | cadernos Nietzsche 21, 2006


Kierkegaard, um leitor de Nietzsche avant la lettre

“A prova de que essa felicidade existe foi demonstrada por Paulo da


maneira mais gloriosa; pois não pode absolutamente haver nenhuma
dúvida de que, sem ela, ele teria sido o mais miserável de todos os
homens”21.
O argumento, – que a rigor se funda totalmente na fé concedi-
da ao testemunho do mártir (e assim concorda com a observação
do § 50 de O Anticristo), – supera em perspicácia o de Pascal, que
não chega a livrar o “apostador” da dúvida e da correspondente
angústia, pelo menos na hora da renúncia aos prazeres do mundo.
Esta “prova de que a felicidade existe...” ainda radicaliza o argu-
mento kantiano, já que este se baseia numa concepção genérica de
mérito do sujeito moralmente justo sem levar em conta o paradoxo
da cruz (exigência acima da razão). – A lógica kierkegaardiana in-
clui, é claro, e tem mesmo que incluir (como Nietzsche bem o sabe),
a “lógica” da fé. Somente um reparo: Kierkegaard não deixaria de
estranhar na citação de Nietzsche a expressão “apenas uma fé”:
Por que dizer “apenas”, como se fosse pouco, – e como se a con-
vicção ficasse mais verdadeira uma vez demonstrada racionalmen-
te, uma vez que então, evidentemente, cessaria de haver fé?

***

O autor dos Discursos não quer defender o Cristianismo, nem


pretende – se bem o entendemos – provar racionalmente sua ver-
dade22; ao contrário, defende-se com o Cristianismo, utilizando-o
como ele deve ser, ou seja, como um remédio, que não é inofensi-
vo, mas de alto risco, pois é remédio para a doença mortal. E a
conclusão é positiva, como convém a um anúncio de boa nova: quem
segue Jesus Cristo pode segui-lo “até o céu”.
Kierkegaard, que dá tanta importância ao sofrimento, a ponto
de escrever os sete discursos intitulados O Evangelho do Sofrimen-
to, não pára num momento masoquista, como muitos imaginariam

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 55


Valls, A. L. M.

ao ouvir falar de seu Cristianismo severo. Sua ética cristã (“segun-


da ética”) parte da idéia do pecado – mas também do perdão. Tal
ética não constitui uma triste ciência como aquela referida por Ador-
no nas Minima Moralia, mas sim, evangelicamente, uma gaia ciên-
cia, cujo estribilho é, em última análise: “alegria, alegria”23.

Abstract: This paper draws some comparisons between Kierkegaard and


Nietzsche, focusing on the question of religion and Christianity.
Keywords: Religion – Christianity – philosophy

notas
1
Holzwege. Frankfurt am Main: Klostermann, 1950, p. 230.
2
Ver Löwith, K. Von Hegel Zu Nietzsche. Der Revolutionäre
Bruch Im 19. Jahrhundert, Hamburg: F. Meiner, 9. Auflage,
1986.
3
De resto, no que toca a esta comparação entre os autores,
sentimo-nos confirmados pelo teólogo francês François
Bousquet, que escreve: “Il ne faut pas abuser de ce genre de
rapprochement, mais dans toute l’oeuvre de Kierkegaard, c’est
peut-être ici, plus encore que dans L’Instant, que se fait
entendre un ton nietzschéen, même si l’attaque contre la
chrétienté procède d’un tout autre esprit, de l’Evangile lui-
même. La vigueur du discours, la flamboyance du langage,
la force de l’apostrophe, laissent rêver de ce qu’aurait pu être
la rencontre des deux hommes, s’ils eussent été contemporains.
De la même manière que l’ont a pu présenter Kierkegaard
comme le plus hégélien des anti-hégéliens, ne pourrait-on

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Kierkegaard, um leitor de Nietzsche avant la lettre

voir en lui l’antidote le plus nietzschéen à Nietzsche,


precisement dans le régard porté sur le crucifié, et les exigences
qui en decoulent?” [Não se deve abusar deste tipo de apro-
ximações, mas em toda a obra de Kierkegaard, talvez seja
aqui, mais até que no Instante, que se faz ouvir um tom
nietzschiano, mesmo se o ataque contra a cristandade pro-
cede de um espírito completamente diferente, do próprio
Evangelho. O vigor do discurso, a exuberância da lingua-
gem, a força da apóstrofe, fazem sonhar com o que teria
podido ser o encontro dos dois homens, se tivessem sido
contemporâneos. Da mesma maneira que foi possível apre-
sentar Kierkegaard como o mais hegeliano dos anti-
hegelianos, não se poderia ver nele o antídoto mais
nietzschiano a Nietzsche, precisamente no olhar voltado
para o crucificado, e nas exigências que daí decorrem?]
(François Bousquet, Le Christ De Kierkegaard. Devenir
Chrétien Par Passion D’ Exister. Paris: Desclée, 1999, p.
224.)
4
Henri-Bernard Vergote, entre os franceses, tão ciosos da
pureza de sua língua, teve a coragem de diferenciar
christianité de chrétienté! Ver, por exemplo, Vergote, H.-
B. Kierkegaard – Philosophe de la Chistianité, publicado
por J. Message na KIERKEGAARDIANA, número 19, de
1998, p. 8, além da magnífica obra Sens et Répétition. Essai
Sur L’ironie Kierkegaardienne, Paris, Cerf/Orante, 1982.
5
Mc 8,33: Mas, voltando-se ele, olhou para os seus discípu-
los e repreendeu a Pedro: “Afasta-te de mim, Satanás,
porque teus sentimentos não são os de Deus, mas os dos
homens”.
6
NIETZSCHE, F. O Anticristo, trad. Artur Morão, edições
70, Lisboa, 1997. AC/AC, p. 59. – Na língua original,
conforme o 2º volume das Werke in Drei Bänden, seria: “Es
ist falsch bis zum Unsinn, wenn man in einem ‘Glauben’,
etwa im Glauben an die Erlösung durch Christus das

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 57


Valls, A. L. M.

Abzeichen des Christen sieht: bloß die cristliche Praktik, ein


Leben so wie der, der am Kreuz starb, es lebte, ist christlich.
Heute noch ist ein solches Leben möglich, für gewisse
Menschen sogar notwendig: das echte, das ursprüngliche
Christentum wird zu allen Zeiten möglich sein. Nicht ein
Glauben, sondern ein Tun, ein Vieles-nicht-tun vor allem,
ein andres Sein...” (Bd. II, S. 1200).
7
AC/AC, p. 47. – “Und was für ein Mißverständnis ist gar
das Wort Genie! (...) Mit der Strenge des Physiologen
gesprochen, wäre hier ein ganz andres Wort eher noch am
Platz: das Wort Idiot.” (Bd. II, S. 1191).
8
AC/AC, p. 52-53. – “(...) eine neue Praktik, die eigentlich
evangelische Praktik. Nicht ein “Glaube” unterscheidet den
Christen: der Christ handelt, er unterscheidet sich durch ein
andres Handeln. Daß er dem, der böse gegen ihn ist, weder
durch Wort, noch im Herzen Widerstand leistet. (...) Ein neuer
Wandel, nicht ein neuer Glaube...” (Bd. II, S. 1195)
9
AC/AC, p. 59. – “Das Christ-sein, die Christlichkeit auf ein
Für-wahr-halten, auf eine bloße Bewußtseins-Phänomenalität
reduzieren, heißt die Christlichkeit negieren” (Bd. II, S.
1200).
10
AC/AC, p. 55. – “Dieser “frohe Botschafter” starb wie er
lebte, wie er lehrte – nicht um “die Menschen zu erlösen”,
sondern um zu zeigen, wie man zu leben hat. Die Praktik ist
es, welche er der Menschheit hinterließ (...) sein Verhalten
am Kreuz” (Bd. II, S. 1197).
11
OPBYGGELIGE TALER I FORSKELLIG AAND, Bind 11
das SAMLEDE VÆRKER, 3. ed. Gyldendal, København,
1963. Sua 3ª seção, Lidelsernes Evangelium. Christlige Taler,
com sete discursos, inicia aí na p. 195. Abreviadamente:
Bind 11. – Indicamos as traduções alemã, americana e
francesa: ERBAULICHE REDEN IN VERSCHIEDENEM
GEIST 1847, 18. Abteilung das GESAMMELTE WERKE,
Eugen Diederichs, Düsseldorf/Köln, 1964. Das Evangelium

58 | cadernos Nietzsche 21, 2006


Kierkegaard, um leitor de Nietzsche avant la lettre

der Leiden. Christliche Reden inicia aí à p. 225.


UPBUILDING DISCOURSES IN VARIOUS SPIRITS, vol.
XV dos KIERKEGAARD’S WRITINGS, Princeton, 1993.
The Gospel of sufferings. Christian discourses a partir da p.
213. DISCOURS EDIFIANTS A DIVERS POINTS DE VUE.
Tome 13 das OEUVRES COMPLÈTES DE S. K., Éd. de
l’Orante, Paris, 1966, com L’Evangile des souffrances.
Discours chrétiens a partir da p. 205.
12
“at Christus maate gaaer bort, maatte døe... kunde vise sig,
om Discipelen vilde følge ham efter.” Bind 11, p. 205.
13
AC/AC, p. 59. – “Das Wort schon “Christentum” ist ein
Mißverständnis –, im Grunde gab es nur einen Christen, und
der starb am Kreuz. Das Evangelium starb am Kreuz. Was
von diesem Augenblick an “Evangelium” heißt, war bereits
der Gegensatz dessen, was er gelebt: eine “schlimme
Botschaft”, ein Dysangelium” (Bd. II, S. 1200).
14
AC/AC, p. 66. – “Die Evangelien sind unschätzbar als
Zeugnis für die bereits unaufhaltsame Korruption innerhalb
der ersten Gemeinde. Was Paulus später mit dem Logiker-
Zynismus eines Rabbiners zu Ende führte, war trotzdem bloß
der Verfalls-Prozeß, der mit dem Tode des Erlösers begann”
(Bd. II, S. 1206).
15
Ver, entre outras: Pap. X4 A 511 n. d., 1852; Pap. X3 A
59; Pap. XI 1 A 1.
16
AC/AC, p. 74. – “Paulus will ‘die Weisheit der Welt’
zuschanden machen: seine Feinde sind die guten Philologen
und Ärzte alexandrinischer Schulung –, ihnen macht er den
Krieg. In der Tat, man ist nicht Philolog und Arzt, ohne
nicht zugleich auch Antichrist zu sein. Als Philolog schaut
man nämlich hinter die ‘heiligen Bücher’, als Arzt hinter
die Physiologische Verkommenheit des typischen Christen.
Der Arzt sagt ‘unheilbar’, der Philolog ‘Schwindel’...” (Bd.
II, S. 1212).

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 59


Valls, A. L. M.

17
AC/AC, p. 76 – “Folglich muß man den Menschen
unglücklich machen – dies war zu jeder Zeit die Logik des
Priesters. (...) er soll leiden... Und er soll so leiden, daß er
jederzeit den Priester nötig hat. – Weg mit den Ärzten. Man
hat einen Heiland nötig” (Bd. II, S. 1214).
18
AC/AC, p. 77. – “Es scheint, wenn anders ich mich nicht
verhört habe, daß es unter Christen eine Art Kriterium der
Wahrheit gibt, das man den “Beweis der Kraft” nennt. “Der
Glaube macht selig: also ist er wahr.” Man dürfte hier
zunächst einwenden, daß gerade das Seligmachen nicht
bewiesen, sondern nur versprochen ist: (...) man soll selig
werden, weil man glaubt... Aber daß tatsächlich eintritt, was
der Priester dem Gläubigen für das jeder Kontrolle
unzugängliche “Jenseits” verspricht, womit bewiese sich das?
Der angebliche “Beweis der Kraft” ist also im Grunde wieder
nur ein Glaube daran, daß die Wirkung nicht ausbleibt,
welche man sich vom Glauben verspricht.” (Bd. II, S. 1215)
19
Lidelsernes Evangelium. Christelige Taler af S. Kierkegaard,
1º discurso: Hvad der ligger i, og hvad Glædeligt der ligger
i den Tanke at følge Christum efter, in SAMLEDE VÆRKER,
OPBYGGELIGE TALER I FORSKJELLIG AAND, Bind 11,
p. 213. Referências nas traduções: alemã, GW 18, op.
cit., S.240f.; francesa, OC 13, p. 224; americana, KW
XV, p. 228.
20
“mig synes den maate blive til, alene af Medlidenhed med et
saadant Menneske (...)” Id. p. 213.
21
“Beviset for, at denne Salighed er til, er ganske herligt f¢rt
af Paulus; thi derom kan aldeles ingen Tvivl være, at han,
uden den, havde været den Elendigste af Alle” Id., p. 213.
22
No Post-Scriptum Final Não-científico às Migalhas Filosófi-
cas, de 1846, o pseudônimo Climacus rejeita todos os ar-
gumentos históricos e especulativos que pretendam provar
a verdade do cristianismo. E em 1847 As Obras Do Amor

60 | cadernos Nietzsche 21, 2006


Kierkegaard, um leitor de Nietzsche avant la lettre

iniciam, por sua vez, com a tese de que é preciso “crer” no


amor (cristão).
23
“Há uma alegria indescritível que nos envolve de modo
tão inexplicável como o grito do apóstolo, ao explodir sem
que se saiba por que: ‘Alegrai-vos e eu vos direi ainda:
alegrai-vos’. Não de uma alegria disso ou daquilo, mas de
toda a alma, ‘com a língua e a boca e o fundo do coração’:
‘Eu me alegro de minha alegria, dela, nela, com ela, perto
dela, sobre ela, por e com minha alegria’ – refrão celeste
que interrompe, por assim dizer, subitamente o resto de
nosso canto. Alegria que acaricia e refresca com a brisa.
Golpe de vento que sopra das florestas de Mamré até as
moradoras eternas”. Diários, anotação com hora e data
assinaladas: 10:30 da manhã de 19 de maio de 1838,
Pap. II A 228.

referências bibliográficas

1. BOUSQUET, F. Le Christ de Kierkegaard. Devenir chrétien


par passion d’exister. Paris: Desclée, 1999.
2. _______. Kierkegaard et la joie, in: IDEM, Le Bonheur,
Paris: Beauchesne, 1996.
3. GIACOIA JUNIOR, O. O Anticristo e o Romance Russo.
In: PRIMEIRA VERSÃO, Campinas, 1994.
4. _______. Labirintos da alma. Nietzsche e a auto-supres-
são da moral. Campinas: Ed. Unicamp, 1997.
5. HEIDEGGER, M. Holzwege. Frankfurt am Main: Kloster-
mann, 1950.

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 61


Valls, A. L. M.

6. KIERKEGAARD, S. Samlede Værker. Copenhague:


Gyldendal, 1963./ Gesammelte Werke, Gütersloh/
Kierkegaard’s Writings, Princeton/ Oeuvres Complètes,
Paris.
7. KIRMMSE, B. H. Kierkegaard in Golden Age Denmark.
Bloomington & Indianapolis: Indiana U. P., 1990.
8. LÖWITH, K. Von Hegel zu Nietzsche. Der revolutionäre
Bruch im 19. Jahrhundert, Hamburg, F. Meiner, 9.
Auflage, 1986.
9. NIETZSCHE, F. Werke in drei Bänden, Hrsg. von Karl
Schlechta. München: C. Hanser Verlag, 7. Aufl., 1973,
2er. Band.
10. _______. O Anticristo. Tradução Artur Morão, Lisboa:
Edições 70, 1997.
11. VERGOTE, H.-B. Sens et Répétition. Essai sur l’ironie
kierkegaardienne. Paris: Cerf/Orante, 1982.
12. _______. Kierkegaard – Philosophe de la Chistianité,
publ. por J. Message na KIERKEGAARDIANA, n.
19 (1998).

62 | cadernos Nietzsche 21, 2006


Heidegger e Nietzsche: o conflito entre arte e verdade

Heidegger e Nietzsche:
o conflito entre arte e verdade*
Clademir Luís Araldi **

Resumo: São muitas as afirmações de Nietzsche acerca da incompatibili-


dade entre arte e verdade. A partir delas, Heidegger pondera que a filo-
sofia de Nietzsche significa a inversão do platonismo – não a sua completa
superação –, que no limite aponta para uma nova hierarquização do sen-
sível e do supra-sensível. Pretendemos mostrar que essa interpretação não
consegue dar conta de todos os aspectos da problemática da arte na filo-
sofia nietzschiana. Nesse sentido, o desacordo entre Heidegger e Nietzsche
reside, principalmente, no modo de compreender a aparência.
Palavras-chave: arte – verdade – Heidegger – metafísica

Através da relação entre arte e verdade, Heidegger quer de-


monstrar a “posição metafísica fundamental” de Nietzsche. O filó-
sofo da floresta negra não quer somente compreender o sentido
dessa relação no interior da filosofia nietzschiana, mas quer mos-
trar os limites desta – seu aprisionamento a uma interpretação “afir-
mativa” do sensível. Para além de Nietzsche, ele presume que seria
possível reconduzir arte e verdade para a unidade originária do ser.
Heidegger se apóia em duas afirmações do próprio Nietzsche:
1) sua filosofia seria um “platonismo invertido”, e 2) ele sentiria
um “horror sagrado” face à discordância entre arte e verdade.

*
Palestra proferida no XIX Encontros Nietzsche – Colóquio Pensar contra
Nietzsche, na USP, no dia 23 de agosto de 2005.
**
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas.

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 63


Araldi, C. L.

O esforço de Heidegger está em interpretar a filosofia de


Nietzsche inteira a partir de uma questão: a inversão do platonismo.
Desde seu pensamento juvenil, Nietzsche tenta “inverter” a prima-
zia platônica do supra-sensível em relação ao sensível. Mas será a
sua compreensão do sensível, da aparência, a mesma que nos es-
critos do último período? Será que Nietzsche não conseguiu supri-
mir a oposição entre verdade e arte na sua nova interpretação da
aparência sensível como única realidade?

1. O platonismo invertido

Num fragmento póstumo do final de 1870-início de 1871,


Nietzsche afirma:

Minha filosofia: um platonismo invertido (umgekehrter Platonis-


mus): quanto mais afastado do verdadeiramente existente, tanto mais
puro, belo e melhor ele é. A vida na aparência como meta (VII, 7[156])1.

Por “platonismo” Heidegger entende a teoria que afirma o su-


pra-sensível como o ente verdadeiramente existente. Em contra-
partida, o sensível seria o não-ente. Enquanto que no platonismo o
supra-sensível é a verdade, a inversão nietzschiana do platonismo
propõe o sensível – afirmado pela arte – como a verdade mesma.
Entre Nietzsche e Platão, contudo, há uma diferença fundamental:
o primeiro percebe uma discrepância; o segundo, uma distância
entre arte e verdade (cf. Heidegger 2, p. 165).
Segundo Heidegger, essa distância proposta por Platão tem o
sentido de uma hierarquização, qual seja, “a verdade tem mais va-
lor que a arte” (Heidegger 2, p. 165):

64 | cadernos Nietzsche 21, 2006


Heidegger e Nietzsche: o conflito entre arte e verdade

Na seqüência de degraus dos diferentes modos da presença do ente e,


com isso, do Ser, a arte está, na metafísica de Platão, abaixo da verda-
de (Heidegger 2, p. 191).

Platão afirmaria, nessa relação metafísica, na forma de uma hi-


erarquia, que a arte é mímesis. A primeira grande descoberta pla-
tônica consistiria em entender a essência da mímesis. Mímesis é a
representação fundamental do ente dos gregos e, no fundo, seu
entendimento do Ser. A presença, o que se presenta, é Ser. A arte
está distanciada do Ser, da verdade, da visão imediata e pura da
idéia, que reconduz o múltiplo ao Uno. A arte se prende apenas à
aparência da visão pura. Com isso, na interpretação platônica do
ser como idéia, e da mímesis como um distanciamento da contempla-
ção pura, está o conceito grego de verdade (alétheia, Unverstelltheit)
(idem, p. 185).
Nietzsche, por sua vez, inverte a hierarquia proposta por Platão,
ao afirmar que a arte possui mais valor que a verdade. Arte e ver-
dade estariam em oposição: acerca disso ele teria se apercebido,
desde seu pensamento juvenil, como ele reconhece em 1888:

Sobre a relação entre arte e verdade tornei-me sério desde muito cedo:
e ainda agora fico com um sagrado pavor diante dessa discordância.
Meu primeiro livro foi dedicado a ela; o Nascimento da tragédia crê na
arte, tendo como pano de fundo uma outra crença: que não é possível
viver com a verdade, que a vontade de verdade já é um sintoma de
degeneração... (XIII, 16[40] – 7).

A “verdade” é identificada nesse texto com o pessimismo, com


o conhecimento dionisíaco dos horrores e do absurdo em que a exis-
tência está imersa2. No conhecimento intuitivo e dionisíaco da natu-
reza, a “verdade” do fundo primordial caótico contrapõe-se à bela
aparência apolínea.

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 65


Araldi, C. L.

A discordância de que fala Nietzsche não seria uma divisão,


que na origem seria harmonia; essa divisão se torna discordância,
no sentido de uma ruptura, de uma incompatibilidade que não pode
ser superada. Arte e verdade, desse modo, estão relacionadas com
o sensível (aparente), única realidade. O dualismo essência-aparên-
cia seria superado quando a aparência mesma é compreendida como
a essência:

O que é agora, para mim, “aparência”! Na verdade, não o contrário


de alguma essência – o que sei eu dizer de qualquer essência, a não ser,
justamente, apenas os predicados de sua aparência! Na verdade, não
uma máscara morta, que se poderia pôr sobre um X desconhecido e que
também se poderia retirar! Aparência, para mim, é o próprio eficiente e
vivente, que vai tão longe em sua zombaria de si mesmo, a ponto de me
fazer sentir que aqui há aparência e fogo-fátuo e dança de espíritos e
nada mais (FW/GC § 54).

Após apresentar a História da metafísica – do platonismo até


ele mesmo (cf. GD/CI, “Como o ‘mundo verdadeiro’ acabou por se
tornar fábula”) – Heidegger conclui que apesar do abandono/su-
pressão do mundo supra-sensível, ainda permanece seu lugar va-
zio; ainda permanece a fissura que delimita um lugar mais alto de
um lugar mais baixo. Se o que era tido como superior foi esvaziado,
a inversão do platonismo (a supressão da distinção entre o mundo
verdadeiro e o aparente) implica também a necessidade de superar
o niilismo, através de uma nova hierarquia.
Heidegger questiona se Nietzsche destitui de fato os mundos
verdadeiro e aparente, em sua oposição, visto que “através da arte
permanece uma afirmação do mundo sensível” (Heidegger 2,
p. 212). A questão consiste em saber se a nova compreensão de
“aparência” proposta está presa ainda ao velho esquema hierárqui-
co verdade-aparência.

66 | cadernos Nietzsche 21, 2006


Heidegger e Nietzsche: o conflito entre arte e verdade

2. Aparência e realidade

O sensível, aparente, é a única realidade, afirmada e transfigu-


rada através da arte. Para provar isso, Nietzsche precisa transmutar
radicalmente o esquema hierárquico supra-sensível X sensível. As-
sim sendo, tanto a arte quanto a “verdade” estariam relacionadas
ao sensível (Heidegger 2, p. 200). A nosso ver, contudo, Nietzsche
não é muito claro nesse aspecto. A arte é sempre compreendida
como afirmação do sensível, das aparências, como transfiguração
do “real”. Em relação à verdade, Nietzsche é ambíguo: por um lado,
ele reitera que “não há verdade”, que “a verdade é uma espécie de
erro, sem o qual não conseguiríamos viver”. Nessa perspectiva, a
“verdade” seria uma espécie de ilusão, negativa no sentido de que
conduz a um auto-engano, à aparência enganadora de que à vontade
de tornar algo fixo, duradouro, imutável, corresponda algo de real.
O comentário de 1888 ao Nascimento da tragédia resume bem
a posição nietzschiana:

A vontade de aparência, de ilusão, de engano, de vir a ser e mudar


(de engano objetivado), é tomada aqui como mais profunda, mais ori-
ginária, mais “metafísica” do que a vontade de verdade, de efetividade,
de ser: – mesmo este último é meramente uma forma da vontade de
ilusão (XIII, 17[3] - 3).

Se Nietzsche se limitasse a tratar somente da “vontade de ver-


dade” como uma forma de ilusão, inferior à arte, ele teria de dar
conta das conseqüências de seu ceticismo extremo. A verdade não
seria o critério mais alto de valor, pois é uma forma fraca de ilusão:
o critério seria a intensificação da vida... Nesse sentido, ele se opo-
ria radicalmente à posição de Heidegger, de que “verdade e arte
estão essencialmente vinculadas ao Ser” (Heidegger 2, p. 200-202).
Ser, para o Nietzsche tardio, tem o sentido de ilusão, enquanto

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 67


Araldi, C. L.

Heidegger atribui ao Ser a determinação da essência e do destino


do homem.
Mas Heidegger questiona, de forma muito instigante, se
Nietzsche teria vencido a fatalidade que se oculta na palavra “apa-
rência” (cf. Heidegger 2, p. 218). Desde jovem, Nietzsche propôs
como meta “a vida na aparência”. Esse projeto seria aprofundado
na filosofia da vontade de potência, no perspectivismo a ela ineren-
te. Heidegger, com muita acuidade, aponta para as dificuldades
desse projeto. Nietzsche não conseguiria livrar-se da dicotomia ver-
dade – aparência, sucumbindo a ela.
É necessário que questionemos o que leva Nietzsche a dizer em
1888:

A verdade é feia: “nós temos a arte”, com isso não perecemos da ver-
dade (XIII, 16[40]).

Por que ainda em 1888, quase 17 anos após o Nascimento da


tragédia, ele afirma que “não é possível viver com a verdade”, verda-
de essa identificada com o pessimismo e, num sentido mais radical,
com o niilismo? Sigamos Nietzsche: o homem é um artista nato.
Moral, religião, arte, ciência, seriam aflorações dessa humana facul-
dade de artista, que consiste em falsear, mascarar a vida, o real. Os
homines religiosi também seriam uma espécie de artistas: sua embria-
guez artística, no fundo, é uma forma sutil do “temor à verdade”:

É o profundo e desconfiado temor a um pessimismo incurável, o que


obriga milênios inteiros a abraçar firmemente uma interpretação religi-
osa do existir: o temor daquele instinto que pressente que se poderia ter
a verdade cedo demais, antes que o homem se tenha tornado forte, duro
e artista o bastante (JGB/BM § 59).

68 | cadernos Nietzsche 21, 2006


Heidegger e Nietzsche: o conflito entre arte e verdade

A arte seria, então, o contramovimento à verdade pessimis-


ta/niilista. Heidegger compreende que é necessário ao projeto
nietzschiano que a arte se torne “a configuração suprema da vonta-
de de potência” (Heidegger 2, p. 70), o caráter fundamental do
ente, a condição para a criação de novos valores. Para tanto, ele
necessita reduzir o ser à aparência (Ser é apenas aparência). A arte
é a mais valiosa vontade de aparência, de ilusão, de engano de in-
tensificação da vida, contrapondo-se à forma mais fraca da verda-
de, vista como o tornar fixo, assegurar, eternizar.
A investigação heideggeriana busca provas de que Nietzsche
não abandona a “verdade”, em sentido platônico, mas apenas a
inverte. Entendemos que quando Nietzsche fala em “temor à ver-
dade”, “não é possível viver com a verdade”, ele não está se refe-
rindo à verdade do platonismo, a nenhuma forma de transcendên-
cia (no sentido metafísico tradicional), mas ao caráter abissal, caótico
e inacessível do mundo.
O mérito de Heidegger está em apontar para as dificuldades de
Nietzsche em afirmar a verdade como interpretação, em subsumir
a “verdade” à vontade de aparência. Tratar-se-ia de uma tarefa des-
comunal, do sim ao ser (da criação suprema), que somente o além-
do-homem poderia levar a cabo (idem, p. 224), mas à qual Nietzsche
teria sucumbido a caminho.
Para o jovem Nietzsche, a tragédia grega é a criação de um
mundo intermediário entre a verdade e a beleza (cf. DW/VD § 3).
Da luta entre os impulsos apolíneo e dionisíaco nasceria um novo
gênio artístico. É significativo que Nietzsche interprete a obra de
arte trágico-cômica como uma fuga e transfiguração da existência,
experimentada como terrível e absurda. O sublime na tragédia é a
“domesticação artística do terrível”; e o cômico “a descarga artísti-
ca do nojo do absurdo” (idem). Na filosofia dionisíaca tardia, o filó-
sofo solitário pretende afirmar irrestritamente a existência, inclusi-
ve no que ela tem de mais terrível, sem fugir dela ou mascará-la.

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 69


Araldi, C. L.

A afirmação do mundo não é algo constitutivo ou orgânico, mas


depende de um sim do homem. Assim sendo, não há uma unidade
entre homem e natureza, na qual o ser humano pudesse ser com-
preendido como uma expressão da auto-afirmação necessária do
mundo. O discurso consagrado ao “astro supremo do ser”, ao “sim
eterno do ser”, encobre uma cisão:

Escudo da necessidade!
Astro supremo do ser!
– que nenhum desejo atinge,
que nenhum não macula,
eterno sim do ser, eternamente serei teu sim:
pois eu te amo, oh eternidade! (DD/DD, “Glória e eternidade”, §4).

O ser humano que conhece, sente, afirma e nega, não tem um


acesso direto à vida natural; ele não está naturalmente imerso no
belo curso circular do cosmo antigo. Após o evento do niilismo, não
se poderia mais falar em harmonia com a natureza. Para o homem
moderno, o Trágico não é mais a clarificação apolínea do fundo
dionisíaco da natureza. Trágica é ausência de sentido num mundo
que passa a ser experimentado como caótico e estranho. O Trágico
tem a ver com a tentativa de afirmar incondicionalmente um mun-
do tecnicizado, que se fecha sempre mais às criações artísticas hu-
manas. Trágico é o ensaio de transpor a vontade humana de cria-
ção e de ultrapassamento de si ao mundo no seu todo, quando a
própria totalidade se revela uma noção ilusória e fictícia3.
A tragédia começa, quando o filósofo dirige o discurso elegíaco
ao grande astro, após ter declarado que ele – e todo o universo –
são indiferentes a nosso avaliar e inventar:

Mas como poderíamos censurar ou louvar o todo! Guardemo-nos de


lhe imputar falta de coração e irrazão ou seus contrários: ele não é per-

70 | cadernos Nietzsche 21, 2006


Heidegger e Nietzsche: o conflito entre arte e verdade

feito, nem belo, nem nobre, e não quer tornar-se nada disso, nem sequer
se esforça no sentido de imitar o homem! E nem é atingido por nenhum
de nossos juízos estéticos e morais! (FW/GC § 109)

Aqui está, a nosso ver, o ponto de discordância entre Heidegger


e Nietzsche. Heidegger remete arte e verdade à essência do ser, ao
desvelamento do ser do ente (cf. Heidegger 2, p. 200-202). O ser é
que confere unidade, suprimindo a discordância. Já Nietzsche vê
essa afirmação de que o belo e o verdadeiro são Um, como digna
de desprezo4. E aqui queremos voltar a Nietzsche, para pensar con-
tra Nietzsche.
Arte e verdade estão em oposição, discórdia, pois a verdade a
que Nietzsche se refere é propriamente o caráter caótico e inapreen-
sível do vir a ser. A vontade artística de aparência não está em har-
monia com a verdade (do caos). Enquanto “tornar-se senhor do caos
que se é”, a arte é uma contínua luta por transfigurar o caos em
formas, em aparências com as quais é possível viver. Mas a arte
não é apenas o prazer na criação de formas. Ela inclui também o
prazer na embriaguez. A embriaguez, segundo Heidegger, é “a
mais nítida vitória da forma”, o desdobramento da força em formas
belas passíveis de serem subjugadas (Heidegger 2, p. 120); ela
implicaria no duplo movimento de ir além de si mesmo e do retor-
no a si mesmo. Esse movimento é a própria beleza, o traço funda-
mental da efetividade. A embriaguez, no sentido proposto por
Nietzsche, inclui também o anseio ao feio, ao horrível, o prazer em
aniquilar as aparências. Esse sentido do trágico Heidegger não con-
sidera devidamente.
A “verdade” de fundo é indestrutível: o “mundo não é nenhum
organismo, mas o caos” (XIII, 11[74]). Caos é o nome para o caráter
total do ser. (Niilismo ocorre quando o ser humano não é mais ca-
paz de criar sentidos em meio à voracidade destruidora e criadora
do mundo) Ao ser humano não é possível conhecer o “fluxo absolu-

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 71


Araldi, C. L.

to e eterno do vir a ser” (IX, 11[162]). Condenado a viver no erro,


na limitação e na simplificação das coisas, ele só poderia pressen-
tir, intuir o caráter abissal do mundo.
A relação entre arte e caos, a nosso ver, permite elucidar me-
lhor o conflito entre arte e verdade. Concordamos com Heidegger
no sentido de que a arte significa para Nietzsche a abertura para o
abismo da vida. Com o ‘caos’, Nietzsche pretende evitar qualquer
tentativa de humanização do mundo. O todo caótico do mundo cria
e destrói a si mesmo, numa necessidade irracional. O caos oculta a
riqueza indômita do vir a ser (cf. Heidegger 2, p. 510); a arte é a
vitória sempre reconquistada sobre o caos, sobre a plenitude
inabarcável da vida (idem, p. 512).
Uma nova fissura se abre quando Nietzsche atribui ao caos dois
sentidos distintos:
I) O caos é o estofo insuprimível e necessário para a criação
artística, o elemento no qual se exerce a vontade de potência, como
um confronto incessante de forças. A arte humana visa imprimir
formas ao caos circundante; no fundo ela é uma falsificação do
mundo caótico do vir a ser. Se a arte é a configuração mais elevada
da vontade de potência, ela é também o triunfo supremo na imposi-
ção de ordem e formas ao caos. Mas o caos não se dissolve nesse
movimento;
II) O caos é visto também por Nietzsche como abismo que pode
destruir todas as formas e esquematizações da vontade artística de
potência. O mundo como caos possui um caráter insuprimível de
indeterminação e de indiferença aos impulsos artísticos humanos:

O caráter geral do mundo é, ao contrário, por toda a eternidade, o


caos, não no sentido da falta de necessidade, mas da falta de ordem,
articulação, forma, beleza, sabedoria, ou como se chamem todos esses
humanismos estéticos (FW/GC § 109).

72 | cadernos Nietzsche 21, 2006


Heidegger e Nietzsche: o conflito entre arte e verdade

Aquilo que para o jovem Nietzsche era o X desconhecido, o


Uno-Primordial, agora se chama “caos”. Ele é a “verdade”, o nome
para a corrente indômita do vir a ser (não mais como a origem das
aparências), do qual nós temos apenas uma ótica perspectivista e
falsificadora. Essa “verdade” inacessível pode, paradoxalmente, ser
nomeada e apontada como o fundo obscuro e como limite para toda
atividade humana, mesmo para a arte.
Após proceder à radical desumanização do homem no mundo
do caos, como compreender os esforços nietzschianos na constru-
ção de novas formas de humanização do mundo através da arte?
Será a arte o coroamento dos seus ensaios filosóficos, de viver na
aparência? A afirmação incondicional da vida significaria, assim,
criação e destruição sem fim de aparências, mesmo sabendo que
com essa arte não se altera a fisionomia do todo.
O caos como realidade fluida, inabarcável por conceitos ou es-
quemas projetados pelo entendimento, difere radicalmente das apa-
rências engendradas pela ótica falsificadora humana. A tentativa de
ordenar, fixar esse devir fluido em formas, em algo lógico, matemá-
tico, é considerada pelo filósofo solitário como arte superior.
As formas afirmativas mais elevadas da arte não expressam a
essência e o caráter “verdadeiro” do mundo. A arte é, como vimos,
muito mais mascaramento e transfiguração do abismo do vir a ser.
Um conhecimento imediato do fundo obscuro aniquilaria o ser hu-
mano. Ainda na época de Sobre verdade e mentira em sentido
extramoral, o problema consistia em como dar conta da visão que
vai além da superfície da consciência

... ai da fatal curiosidade que através de uma fresta foi capaz de sair
uma vez do cubículo da consciência e olhar para baixo, e agora pres-
sentiu que sobre o implacável, o ávido, o insaciável, o assassino, repou-
sa o homem, na indiferença de seu não-saber, e como que pendente em
sonhos sobre o dorso de um tigre (WL/VM § 1).

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 73


Araldi, C. L.

O foco dos últimos anos da filosofia nietzschiana não está mais


na vontade da natureza – no seu poder de iludir os homens para
garantir sua perpetuação –, mas na “vontade fundamental do espí-
rito humano”, no poder de criação de formas e esquemas afirmati-
vos da vida.
A “vontade fundamental do espírito” (der Grundwille des Geistes)
almeja a aparência, a superfície, a simplificação do múltiplo em for-
mas e esquemas. Desse modo, é possível ao ser humano incorporar
o novo, o estranho circundante, a antigas formas. Essas são as ‘ar-
tes de Proteu’ do espírito humano, suas artes de transfiguração da
crueldade efetiva: a vontade de iludir e de deixar-se iludir, fruindo
da arbitrariedade dessas ilusões, máscaras, véus, embelezamento e
estreiteza de perspectivas. Ou seja, a arte de fruir a ilusão como
potência humana. Mas não nos enganemos. A vontade de ilusão
não deriva da liberdade do homem de moldar a si mesmo. Trata-se
do “ímpeto e da pressão permanente de uma força criadora,
modeladora, mutável” (JGB/BM § 230), presente em todas as pro-
duções humanas, mesmo nas mais sutis e “espirituais”.
Querer conhecer as coisas de modo radical e profundo é um
pendor cruel do espírito humano. Entretanto, como artista nato, o
homem sempre será impelido a forjar novas ilusões, ficções e arti-
culações. O problema de Nietzsche é o de assegurar que esse ímpe-
to das forças configuradoras leve sempre à intensificação do poder.
Para que conhecimento, se com ele há a violação da vontade funda-
mental do espírito, de ilusão e de superfície? O mundo das formas
e das superfícies levaria sempre consigo a marca indelével de uma
falsificação. Mas é somente nele que o ser humano consegue forne-
cer sentidos à sua existência.
A vitória da arte sobre o caos pressuporia um ilusionismo total,
um apegar-se às aparências, às perspectivas humanas; pressupõe
um esquecimento do caos, do ímpeto de destruição a ele inerente.
Nietzsche não se limita a isso, e quer afirmar o mundo em sua du-

74 | cadernos Nietzsche 21, 2006


Heidegger e Nietzsche: o conflito entre arte e verdade

pla face: como caos, prazer de destruição, e como anseio de bele-


za. Essa dupla afirmação é uma tarefa sobre-humana. É um confli-
to trágico que está reservado até mesmo para quem pensa contra
Nietzsche.

notas
1
Nos escritos desse período, Nietzsche compreende o Uno-
Primordial como o “verdadeiramente existente”, “o abis-
mo do ser verdadeiro”, “o coração da natureza”, “o ser
em si”, de modo muito semelhante à terminologia
schopenhaueriana. Cf. também VII, 7[174], VII, 7[152] e
VII, 7[165].
2
Acerca dessa compreensão de “verdade”, confira GT/NT
§3 e DW/VD. A visão dionisíaca do mundo, §3.
3
Acerca desse sentido da tragédia e da cisão entre homem e
natureza na filosofia nietzschiana, confira Löwith 3, p. 148-
149 e Haar 1, p. 272 ss.
4
É bem ilustrativa a afirmação contida num póstumo do iní-
cio – verão de 1888: “Não é digno de um filósofo dizer: o
bom e o belo são uma coisa só: caso se acrescente a isso
‘também o verdadeiro’, então deve-se bater nele” (XIII,
16(40) – 6).

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 75


Araldi, C. L.

referências bibliográficas

1. HAAR, Michel. Nietzsche et la métaphysique. Paris:


Gallimard, 1993.
2. HEIDEGGER, Martin. Nietzsche (vol. I) Berlim: Günther
Neske Verlag, 1961.
3. LÖWITH, Karl. Nietzsche: Philosophie de l’éternel retour
du même. Trad. de Anne-Sophie Astrup. Paris:
Calmann-Lévy, 1991.
4. NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke. Kritische
Studienausgabe (KSA). 15 vols. Organizada por
Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim: de Gruyter,
1988.
5. _______. Obras incompletas. Coleção Os Pensadores. Trad.
de Rubens R. T. Filho. São Paulo: Abril Cultural,
1978.
6. _______. Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia
do futuro. Tradução, notas e posfácio de Paulo César
de Souza. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1992.

76 | cadernos Nietzsche 21, 2006


Nietzsche e Heidegger: a arte como vontade ou fundada na origem?

Nietzsche e Heidegger:
a arte como vontade
ou fundada na origem?*
Marco Aurélio Werle **

Resumo: Pretende-se fazer alguns apontamentos sobre o tema da arte na


obra de Nietzsche, segundo a leitura de Heidegger no primeiro ensaio da
coletânea Nietzsche, intitulado: “A vontade de potência como arte”. O
problema posto é o seguinte: em que medida a arte pode ser um âmbito
privilegiado e antiplatônico da vontade, tendo em vista o domínio e o apri-
sionamento exercidos sobre ela pela estética ocidental? Ou seja, pensando
com e contra Nietzsche, Heidegger vai procurar também em sua “filoso-
fia” uma relação positiva com a arte, indagando-a, entretanto, por sua
origem e no âmbito exterior ao das categorias estéticas, que para ele estão
contaminadas pelo discurso ôntico da metafísica ocidental.
Palavras-chave: arte – vontade – Heidegger – metafísica

Dentre os cursos universitários publicados por Heidegger sobre


Nietzsche, o do semestre de inverno de 1936/1937, intitulado: “A
vontade de potência como arte” parece ainda hoje possuir interesse
especial para quem procura compreender Nietzsche e, é claro,
Heidegger. Embora muitos dos aspectos da leitura de Heidegger
sobre Nietzsche1 sejam problemáticos, principalmente do ponto de
vista de uma compreensão interna da obra de Nietzsche, entretan-

*
Palestra proferida no XIX Encontros Nietzsche – Colóquio Pensar contra
Nietzsche, na USP, no dia 23 de agosto de 2005.
**
Professor do Departamento de Filosofia da USP.

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 77


Werle, M. A.

to, no que concerne à aproximação entre filosofia e arte, objeto desse


curso universitário, temos um ponto espinhoso que parece não ter
perdido sua atualidade. Poderíamos formulá-lo da seguinte manei-
ra: em que medida a arte, na época moderna (dos últimos duzentos
anos), é um campo no qual a filosofia pode apoiar-se para alcançar
um estatuto de verdade? Trata-se, com efeito, de uma questão que
emerge não somente nestes dois filósofos, em Heidegger e em
Nietzsche, mas que permeia a reflexão de alguns dos principais
pensadores do século XX, por exemplo, encontra-se em Adorno,
Walter Benjamin e Gadamer. Aliás, em termos históricos, esse as-
sunto anda rondando a filosofia dos últimos duzentos anos, desde a
Crítica do juízo de Kant.
Mas, como se articula inicialmente em Nietzsche esse encontro
entre arte e filosofia? Essa é a interrogação que orienta o curso uni-
versitário acima referido, explícito já no título: “A vontade de po-
tência como arte” (Der Wille zur Macht als Kunst). Heidegger con-
centra sua interpretação principalmente no A vontade de potência,
obra tardia de caráter fragmentário e polêmico, não publicada em
vida por Nietzsche, que teve várias reedições modificadas2 e na qual
a irmã de Nietzsche interferiu substancialmente, alterando seu con-
teúdo original. O foco de Heidegger não são as obras da juventude
de Nietzsche ou aquelas que tratam de questões predominantemen-
te estéticas, obras como o Nascimento da tragédia ou os textos so-
bre Wagner, e sim a obra tardia de Nietzsche, onde estaria de fato
colocado o ápice de seu pensamento. Também o Assim falava Zara-
tustra é uma peça chave na leitura de Heidegger.
O ponto de partida, não só nesse texto, mas em quase todos os
outros de Heidegger sobre Nietzsche, é a noção de vontade de po-
tência, e o seu correlato, a noção do eterno retorno do mesmo. Par-
tindo do fato de que Nietzsche ocupa uma posição fundamental na
história da metafísica ocidental, Heidegger considera que a vonta-
de de potência designa para Nietzsche o caráter fundamental do

78 | cadernos Nietzsche 21, 2006


Nietzsche e Heidegger: a arte como vontade ou fundada na origem?

ente, sua essência, ao passo que o eterno retorno se apresenta como


a existência dessa vontade de potência. O traço fundamental do ente,
o ser do ente, é por conseguinte a vontade de potência como querer
a si mesmo e um devir de si mesmo (§4). Em A essência do niilismo
(1946-48) esses dois conceitos são vistos como sustentando o nii-
lismo: “O niilismo pensado positivamente é a metafísica enquanto a
verdade do ente (do real) no sentido da vontade de poder a partir
do eterno retorno do mesmo. O que o ente é em seu fundamento
(princípio), a essentia do ente, é a vontade de poder enquanto a
vontade essencialmente instauradora de valores. Uma vez que a
vontade quer a si mesma enquanto comando, ela quer o mesmo em
cada um de seus diversos objetos. À medida que ela quer a si mes-
ma, ela sempre retorna a si, de cada vez, no mesmo. O fato de o
ente ser em meio ao modo do retorno constante do mesmo diz res-
peito ao ente enquanto tal. O eterno retorno do mesmo, de acordo
com o qual a vontade de poder é como ela é, caracteriza a existentia
do ente enquanto tal na totalidade” (Heidegger 2, p. 192).
A arte, por sua vez, ocupa um lugar estratégico na fundamenta-
ção da metafísica da vontade de potência. No arcabouço da obra A
vontade de potência temos inicialmente a crítica ao estabelecimento
dos valores vigentes até hoje (livro II: Crítica aos supremos valores
que se mantiveram até o momento), depois de ter sido feita uma ca-
racterização do niilismo enquanto o nome para a época do fim da
história ocidental, na qual todos os valores perderam seu valor (li-
vro I: O niilismo europeu). Diante desses dois livros essencialmente
negativos, apresentam-se então os livros III e IV, nos quais se arti-
culam propostas positivas: a do super-homem (livro IV: Criação e
cultivo (Zucht und Züchtung)), que será aquele que irá estabelecer
uma nova fundamentação dos valores, uma “inversão” (Umkehrung),
e a arte, que se situa no decisivo livro III, com o título: “Princípio
de uma nova valoração” (Prinzip einer neuen Wertsetzung). A arte
aparece aqui como o âmbito de uma nova valoração, a se funda-

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 79


Werle, M. A.

mentar na instância da vida. O capítulo IV deste livro III, precedi-


do por capítulos que tratam da vontade de potência como conheci-
mento na natureza e na sociedade, traz justamente o título: “a von-
tade de potência como arte” (§5)3.
Mas como a arte tem esse privilégio na fundamentação da nova
valoração dos valores? Heidegger apresenta cinco enunciados no §
12, enquanto perspectivas essenciais segundo as quais Nietzsche
questiona a arte, tendo como fio condutor a máxima de que “a arte
é o maior estimulante da vida”. E a passagem de Nietzsche que
inspira toda a leitura de Heidegger é, sem dúvida, a que se segue,
pois nela é indicada a síntese da arte diante das esferas do saber e
agir humano: “A arte e nada mais do que a arte! Ela é a grande
possibilitadora da vida, a grande sedutora para a vida, o grande
estimulante da vida. A arte como a única força reativa superior con-
tra toda a vontade de negação da vida, como o anticristo, o
antibudista, o antiniilista por excelência. A arte como a redentora
daquele que conhece, – daquele que vê o caráter assustador e
questionador da existência, que quer ver, do conhecedor trágico. A
arte como a redentora daquele que age, – daquele que não apenas
vê o caráter assustador e questionador da existência, mas vive, quer
viver, do homem guerreiro e trágico, do herói. A arte como a reden-
tora daquele que sofre, – como o caminho para estados nos quais o
sofrer é querido, redimido, transfigurado, onde o sofrer é uma for-
ma de um grande encanto” (Der Wille zur Macht, p.252). Desse
modo, (1) a arte é a mais clara figuração da vontade de potência;
(2) é apreendida a partir da atividade do artista e (3) é o traço es-
sencial, o acontecimento essencial de todo ente, o produzir como
traço do criar-se do ente, enquanto (4) o contramovimento do niilis-
mo e, por fim, (5) é mais do que a verdade (em sentido platônico).
Por meio da arte, opera-se uma crítica à desvalorização dos valores
e, ao mesmo tempo, erige-se um campo sensível propício para a
afirmação da vontade. Como arremata Heidegger em A expressão

80 | cadernos Nietzsche 21, 2006


Nietzsche e Heidegger: a arte como vontade ou fundada na origem?

de Nietzsche: Deus está morto: “A essência da arte é para Nietzsche


a criação de possibilidades da vontade, a partir das quais primeira-
mente a vontade de potência se liberta para si mesma” (Heidegger
6, p. 222).
Tendo seu domínio no sensível, é neste terreno artístico que
ocorre a embriaguez da vontade, que continuamente se supera e
cria novos valores, não mais como os anteriores, mas com o caráter
do devir e da vida. Ou seja, o domínio artístico é a única variante
possível ao platonismo, isso porque perfaz a mais clara estrutura da
vontade de potência que se determina como um estado corporal,
fisiológico do artista, enquanto embriaguez (§18)4. Na atividade cri-
adora do artista, a vontade de potência consegue alcançar sua
efetividade, sua auto-afirmação, de modo que Nietzsche elege a arte
como campo privilegiado porque nela se dá a única forma de “ver-
dade” alternativa à verdade dominante da metafísica ocidental, ou
melhor, a arte, enquanto o acontecimento fundamental no seio do
ente como um todo, é superior à própria noção de verdade (enten-
dida como algo supra-sensível): “a arte é mais divina que a verdade
... tem mais valor do que a verdade”, diz Nietzsche (A vontade de
potência, III, p. 253).
Entretanto, toda essa busca de Nietzsche pela arte é problemá-
tica, nas palavras de Heidegger. Por quê? Porque a reflexão de
Nietzsche, embora não questione a arte para descrevê-la apenas
como um fenômeno ou uma expressão da cultura, e sim pretenda
mostrar o que é a vontade de potência por meio da arte e pela ca-
racterização de sua essência, ainda “move-se no caminho tradicio-
nal. Esse caminho é determinado em sua peculiaridade por meio
do nome ‘estética’” (Nietzsche I, p. 91). Essa dependência do modo
tradicional de pensar a arte, por parte de Nietzsche, é o assunto do
§ 13 do ensaio A vontade de potência como arte, intitulado Seis fa-
tos fundamentais da história da estética, no qual é examinada a po-
sição de Nietzsche no contexto da reflexão sobre a arte desde o seu

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 81


Werle, M. A.

início com os gregos até os dias de hoje. Essa reflexão alcançou um


estatuto “científico” ao se cristalizar na expressão “estética”, en-
quanto disciplina que não trata do belo, como a lógica é o saber do
pensamento e a moral um saber do que é bom, do bem, e sim é o
questionamento do estado de sentimento (estética, que deriva de
aisthesis) causado no homem através do belo. Ou seja, do ponto de
vista heideggeriano, importa ficar atento tanto à origem da arte no
mundo antigo quanto ao seu desfecho na época moderna, quando o
pensamento ocidental sobre a arte desemboca numa problemática
afirmação da arte pelo efeito subjetivo que provoca no homem.
Vejamos então como se estrutura essa história heideggeriana
da estética que culmina em Nietzsche. Em primeiro lugar, afirma
Heidegger que (1) a grande arte grega não possuía estética e que
(2) quem fundamentalmente determina o modo de questionar da
estética é Platão e Aristóteles, já no fim da era do pensamento gre-
go. Embora neles a arte seja pensada no âmbito da téchne e da
physis, foram eles que cunharam as categorias dominantes do pen-
samento da estética ocidental posterior e do pensamento em geral,
que são o par matéria e forma. Um terceiro (3) fato fundamental
para o nascimento da estética constitui-se na modernidade, quando
a reflexão sobre o belo volta-se para o sentimento do belo, para a
aisthesis humana. Com isso, com a virada de perspectiva para o
homem (entendido agora como sujeito), acaba a grande arte (a
ontologia antiga). (4) A grande arte chega ao fim, ou melhor, a arte
perde a força ou cede seu lugar para o pensamento absoluto com a
estética de Hegel. A partir disso, nascem os esforços de trazer no-
vamente à arte sua dignidade antiga, principalmente com a (5) pro-
posta da “arte total”, de Richard Wagner que, entretanto, fracassa
na tentativa de apreender o absoluto perdido pela arte. A apreen-
são é indeterminada, dominada por um entorpecimento dos senti-
dos através da música. E é aqui que se insere Nietzsche, perfazen-
do justamente o sexto momento fundamental da história da estética

82 | cadernos Nietzsche 21, 2006


Nietzsche e Heidegger: a arte como vontade ou fundada na origem?

(6). Seu comprometimento com a arte, para além da fundamenta-


ção na vontade de potência, determina-se também pela lógica de
desenvolvimento da estética moderna: a arte como o contramovimen-
to da perda de sentido dos valores superiores. Isso redundará em
Nietzsche numa fisiologia da arte.
Dessa forma, Nietzsche radicaliza a idéia de estética, como ciên-
cia do conhecimento sensível, o que indica, porém, que ele ainda
se move segundo um dos capítulos centrais do racionalismo ociden-
tal. Heidegger inclusive traz à tona (§20-§24) a crítica platônica à
arte feita na República, livros II-III e X, com o intuito de indicar
que Nietzsche, ao acentuar o lado da arte, parece colocar-se direta-
mente contra Platão; entretanto, isso se mostra apenas no plano da
superfície, pois sua oposição não é exatamente um afastamento, mas
permanência no mesmo, na medida em que se apresenta como tor-
cedura ou torção (Umdrehung) do platonismo. A arte constitui um
valor, aliás, “ela é o supremo valor. Na relação com o valor ‘verda-
de’, a arte é um valor mais elevado” (Heidegger 6, p. 223). A im-
portância ou dignidade da arte (tema que ocupou tanto Platão quanto
Aristóteles) é algo que nasceu e se desenvolveu na metafísica e de
modo algum é uma região que se manteve pura ou incólume.
Esse problema de Nietzsche, porém, não é apenas dele, como
já se disse no início, mas também o de Heidegger e de muitos ou-
tros pensadores. Aliás, Heidegger pode justamente atacar essa ques-
tão por causa da filosofia de Nietzsche, que o ensinou, negativa-
mente, a ter cautela diante da arte. No prefácio ao primeiro volume
sobre Nietzsche, Heidegger afirma que sua ocupação com Nietzsche
se insere num percurso de pensamento que vem desde Sobre a es-
sência da verdade e A doutrina da verdade de Platão (surgidos em
1930/31) e passa pelos textos sobre Hölderlin (Heidegger 3, p. 10).
Num dos volumes sobre Hölderlin, lemos precisamente o seguinte:
“Na medida em que a arte, segundo o conceito rigoroso e ociden-
tal, apenas existe como arte metafísica, a poesia de Hölderlin, se

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 83


Werle, M. A.

ela não é mais metafísica, também não é mais ‘arte’. A essência da


arte e da metafísica não são suficientes para emprestar o espaço
essencial que é adequado a essa poesia” (Heidegger 7, I, p.30).
Trata-se de uma passagem da interpretação do hino de Hölderlin
intitulado O Istro, que é de 1943, no qual o ítem 3: A interpretação
metafísica da arte, se dedica ainda a uma crítica aos modos de in-
terpretar a arte (no que diz respeito ao conceito de símbolo), e de-
pois a arte enquanto tal (idem, p.17-19). A crítica à noção de arte
se anuncia assim em vários textos de Heidegger dessa época dos
anos 30 do século XX. Na conferência A época da imagem de mun-
do (Die Zeit des Weltbildes) (1938), lemos que um dos fenômenos
essenciais da modernidade é “o processo de a arte se deslocar para
o âmbito da estética” (Heidegger 8, p. 97). E no A Origem da obra
de arte (1936), procura-se, de um lado, livrar a arte da interpreta-
ção estética e, de outro lado, propor uma superação da arte pela
poesia, isto é, a essência da arte consiste em explorar a poesia en-
quanto poiesis5.
Assim, a arte não pode ser assumida simplesmente de modo
positivo como um setor alternativo à metafísica tradicional. Pelo
contrário, é necessário questioná-la em sua origem, e isso significa
enfrentar o problema da téckne e da poiesis, a partir do modo como
essas categorias se firmaram inicialmente com os gregos e foram
assumidas pela metafísica da subjetividade6. Somente assim será
possível restituir a força originária da arte como doadora de sentido
e, ao mesmo tempo, impedir sua usurpação pela subjetividade mo-
derna, da qual Nietzsche, ao associá-la à vontade de potência, ain-
da seria refém. Não obstante, o fato de a arte ser o último reduto de
manifestação do esquecimento do ser permite também pensá-la como
o lugar por onde será possível remontar ao fio perdido da metafísica
ocidental. Exatamente por isso Nietzsche é tão importante e talvez
tenha sido o principal responsável pelo encaminhamento dado ao
pensar de Heidegger rumo à arte e à poesia, logo após Ser e tempo.

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Nietzsche e Heidegger: a arte como vontade ou fundada na origem?

O que nos revela então essa leitura de Heidegger ou esse con-


fronto entre Heidegger e Nietzsche? Várias coisas: 1) demonstra
que Heidegger, ao interpretar Nietzsche, sempre está preocupado
com seu próprio pensamento, ou melhor, com o pensamento em
geral. Debruçar-se sobre Nietzsche não é uma “opção” que se colo-
ca para a filosofia no século XX, como se fosse uma mera escolha.
Pelo contrário, Nietzsche é um estágio necessário para o pensamento.
Nesse ponto, ao considerar Nietzsche um pensador metafísico,
Heidegger está lhe fazendo um grande elogio, ao contrário do que
muitas vezes se falou, a saber, de que Heidegger acaba com a radica-
lidade do pensamento nietzschiano7. Aliás, será que essa radicali-
dade, procurada a todo custo, mesmo pelos estudiosos de Nietzsche,
não enfraquece esse pensamento, muito mais do que o engrande-
ce? 2) Esse texto torna claro, mais uma vez, o duplo movimento do
pensamento de Heidegger junto a Nietzsche: de um lado, Nietzsche
é tido como o consumador da metafísica ocidental, de outro, ele é
justamente o primeiro a apontar para a superação da metafísica.
Sem Nietzsche, pode-se dizer, não haveria o problema do ser para
Heidegger. 3) um terceiro ponto que se depreende é que Heidegger
interpreta fortemente Nietzsche pelo viés da estética. Poderíamos
perguntar qual é o interesse de mostrar que o conceito de arte tem
de ser superado. Isso não significa requentar o velho tópico platônico
da desconfiança da filosofia diante da arte? Pelo contrário, as refle-
xões de Heidegger possuem uma outra sintonia, a saber, com a pró-
pria tendência da arte contemporânea, que é uma arte que se pro-
põe a uma abolição do próprio conceito de arte, desde os ready
made de Duchamp, passando pelos vários movimentos da anti-arte
(expressionismo abstrato, arte pop, arte conceitual, minimalismo,
etc.) e seus procedimentos (objet trouvé, desmaterialização, etc.) e
até as performances de Joseph Beuys.
Nesse sentido, pode-se dizer que o debate entre Heidegger e
Nietzsche, segundo o texto que analisamos, traduz uma das ques-

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Werle, M. A.

tões centrais da arte e da estética do século XX, a saber, a tensão


entre modernismo e pós-modernismo, sendo Nietzsche, no caso, o
grande guia do modernismo, ao afirmar o conceito de arte como
algo a ser cultivado (fato comprovado por sua presença, por exem-
plo, no expressionismo)8. Heidegger, por sua vez, parece surgir como
um dos intérpretes do pós-modernismo, ao insistir na superação dos
conceitos artísticos tradicionais, inclusive o de arte.

Abstract: This paper aims to make some remarks about the theme art in
Nietzsche’s work, in accord with the reading of Heidegger in the first essay
of his work Nietzsche, entitled “Will to power as art”. The problem here
is: how can art be a privileged and anti-Platonic realm of will, if it was
dominated and imprisoned by Western aesthetics? That is, thinking with
and against Nietzsche, in his “philosophy” Heidegger also looks for a
positive relation with art. In order to do that, he asks the origin of art from
a point of view external to that of categories of aesthetics, all of them, in
his vision, contaminated by the ontical discourse of Western metaphysics.
Keywords: art – will – Heidegger – metaphysics

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Nietzsche e Heidegger: a arte como vontade ou fundada na origem?

notas
1
Além dos dois volumes sobre Nietzsche, vale destacar os
textos: “A expressão de Nietzsche: Deus está morto” (1936-
1940) (In: Caminhos da floresta), “Quem é o Zaratustra de
Nietzsche” (1953) e “O que significa pensar?” (1954) (In:
Ensaios e conferências).
2
Cf. F. Würzbach em Nachbericht da edição da Musarion
Verlag, vol.19, p.404.
3
Esse modo de disposição que Nietzsche adota para os te-
mas do livro III lembra em muito os sistemas filosóficos
idealistas (na articulação entre teoria, prática e estética).
Talvez não seja à toa que Heidegger tenha sido levado a
interpretar Nietzsche no horizonte do conceito de vontade
do idealismo alemão.
4
Essa relação entre arte e embriaguez encontra-se também
no centro do Crepúsculo dos ídolos, no item 8 das Incursões
de um extemporâneo, intitulado Para a psicologia do artis-
ta: “Para que haja a arte, para que haja uma ação e uma
visualização estéticas é incontornável uma precondição fi-
siológica: a embriaguez ... nesse estado, tudo se enriquece
a partir de sua própria plenitude: o que se vê, o que se
quer, se vê dilatado, cerrado, forte, sobrecarregado com a
força. O homem que se encontra nesse estado transforma
as coisas até elas refletirem a sua potência: até elas serem
o reflexo de sua perfeição. Este precisar – transformar em
algo perfeito é – arte” (p.70-71).
5
A estética é a forma de saber que na época moderna captu-
ra a beleza, assim como a verdade pertence à lógica (cf.
Kant, Crítica do juízo, trad. port., p.28). Conferir também:
“A conversa com o professor japonês” em A caminho da
linguagem, em que se questiona o termo estética.

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Werle, M. A.

6
Neste contexto apenas podemos indicar, mas sem explorar
em detalhes, o ensaio A questão da técnica (In: Vorträge
und Aufsätze), no qual é abordado o modo como a técnica
moderna encaminha para si, enquanto Gestell que explora
e desafia a natureza, toda a essência do produzir, que en-
tre os gregos estava irmanada com a arte. Heidegger suge-
re que a arte, na época moderna, está determinada pela
técnica moderna enquanto deturpação do sentido grego da
téckne. A tarefa a ser levada adiante, juntamente com os
poetas como Hölderlin, Rilke e Trakl, consiste em restituir
à arte moderna seu sentido antigo de téckne enquanto
poiesis.
7
Heidegger nunca negou a grandeza de Nietzsche como pen-
sador; cf., p. ex. A essência do niiilismo, p.220.
8
Nietzsche é sem dúvida um antecipador do modernismo, se
pensarmos com Arthur Danto que a “história do modernis-
mo é a história da purgação, da limpeza generalizada, do
libertar a arte do que quer que lhe fosse acessório” (After
the end of art. Princeton/New Jersey: Princeton University
Press, 1997, p.70).

referências bibliográficas

1. DANTO, A. After the end of art. Princeton/New Jersey:


Princeton University Press, 1997.
2. HEIDEGGER, M. “A essência do niilismo”. In: Nietzsche
– Metafísica e Niilismo. Trad. de Marco Antônio Casa
Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
3. _______. “Der Wille zur Macht als Kunst (1936/37)” In:
Nietzsche (erster Band), Pfullingen, Neske, 1961.

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Nietzsche e Heidegger: a arte como vontade ou fundada na origem?

4. _______. “Der Ursprung des Kunstwerkes”. In: Holzwege


Frankfurt am Main: V. Klostermann, 2. Auflage, 1952.
5. _______. A questão da técnica. Trad. de Marco Aurélio
Werle. In: Cadernos de tradução/Depto. de Filosofia/
USP, n. 2, 1997.
6. _______. “Nietzsches Wort ‘Gott ist tot’”. In: Holzwege.
Frankfurt am Main: V. Klostermann, 2. Auflage, 1952.
7. _______. Hölderlins Hymne “Der Ister”, Freiburger
Vorlesung Sommersemester 1942, Band 53 – Gesamta-
usgabe, herausgegeben von Walter Biemel. Frankfurt
am Main: V. Klostermann, 2. Auflage, 1993 (1984,
erste Auflage).
8. _______. “O tempo da imagem do mundo” In: Caminhos
da floresta. Lisboa: Gulbenkian, 1989.
9. NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos (ou como filosofar
com o martelo). Trad. de Marco Antônio Casa Nova.
2a. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
10. ______. Der Wille zur Macht. Versuch einer Umwerthung
aller Werthe. München: Musarion, 1926, vol. 18
e 19.

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 89


Convenção para a citação das obras de Nietzsche

Convenção para a citação


das obras de Nietzsche

Os cadernos Nietzsche adotam a convenção proposta pela edição


Colli/Montinari das Obras Completas do filósofo. Siglas em português
acompanham, porém, as siglas alemãs, no intuito de facilitar o trabalho
de leitores pouco familiarizados com os textos originais.

I. Siglas dos textos publicados por Nietzsche:

I.1. Textos editados pelo próprio Nietzsche:

GT/NT – Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia)


DS/Co. Ext. I – Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss:
Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I:
David Strauss, o devoto e o escritor)
HL/Co. Ext. II – Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen
und Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneas
II: Da utilidade e desvantagem da história para a vida)
SE/Co. Ext. III – Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopen-
hauer als Erzieher (Considerações extemporâneas III: Schopenhauer
como educador)
WB/Co. Ext. IV – Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: Richard
Wagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV: Richard Wagner
em Bayreuth)

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 91


Convenção para a citação das obras de Nietzsche

MAI/HHI – Menschliches Allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiado


humano (vol. 1))
VM/OS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen
(Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e sen-
tenças)
WS/AS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und sein
Schatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua
sombra)
M/A – Morgenröte (Aurora)
IM/IM – Idyllen aus Messina (Idílios de Messina)
FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência)
Za/ZA – Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra)
JGB/BM – Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal)
GM/GM – Zur Genealogie der Moral (Genealogia da moral)
WA/CW – Der Fall Wagner (O caso Wagner)
GD/CI – Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos ídolos)
NW/NW – Nietzsche contra Wagner

I.2. Textos preparados por Nietzsche para edição:

AC/AC – Der Antichrist (O anticristo)


EH/EH – Ecce homo
DD/DD – Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso)

II. Siglas dos escritos inéditos inacabados:

GMD/DM – Das griechische Musikdrama (O drama musical grego)


ST/ST – Socrates und die Tragödie (Sócrates e a tragédia)
DW/VD – Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo)
GG/NP – Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensa-
mento trágico)
BA/EE – Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de
nossos estabelecimentos de ensino)

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

CV/CP – Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern (Cinco prefácios


a cinco livros não escritos)
PHG/FT – Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia
na época trágica dos gregos)
WL/VM – Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (Sobre ver-
dade e mentira no sentido extramoral)

Edições:
Salvo indicação contrária, as edições utilizadas serão as organizadas
por Giorgio Colli e Mazzino Montinari: Sämtliche Werke. Kritische Stu-
dienausgabe em 15 volumes, Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./
DTV, 1980 e Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe em 8 volumes,
Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./DTV, 1986.

Forma de citação:
Para os textos publicados por Nietzsche, o algarismo arábico indicará
o aforismo; no caso de GM/GM, o algarismo romano anterior ao arábico
remeterá à parte do livro; no caso de Za/ZA, o algarismo romano remete-
rá à parte do livro e a ele se seguirá o título do discurso; no caso de GD/
CI e de EH/EH, o algarismo arábico, que se seguirá ao título do capítulo,
indicará o aforismo.
Para os escritos inéditos inacabados, o algarismo arábico ou romano,
conforme o caso, indicará a parte do texto.
Para os fragmentos póstumos, o algarismo romano indicará o volume
e os arábicos que a ele se seguem, o fragmento póstumo.

cadernos Nietzsche 21, 2006 | 93


Convenção para a citação das obras de Nietzsche

Contents

Nietzsche and the irony in music 7


Vladimir Safatle
“The value of a snail”
or “the Nietzschean noble:
a compliment to Callicles?” 29
Wilson Antonio Frezzatti Jr.
Kierkegaard,
a Nietzsche’s reader avant la lettre 47
Alvaro L.M. Valls
Heidegger and Nietzsche:
the conflict between art and truth 63
Clademir Luís Araldi
Nietzsche and Heidegger:
art as will or founded in origin? 77
Marco Aurélio Werle

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES

1. Os trabalhos enviados para ser ordenados alfabeticamente


publicação devem ser inéditos, pelo sobrenome do autor e
conter no máximo 55.000 numerados em ordem cres-
caracteres (incluindo espaços) e cente, obedecendo às normas
obedecer às normas técnicas da de referência bibliográfica da
ABNT (NB 61 e NB 65) adapta- ABNT (NBR 6023).
das para textos filosóficos.
3. Reserva-se o direito de aceitar,
2. Os artigos devem ser acompa- recusar ou reapresentar o origi-
nhados de resumo de até 100 nal ao autor com sugestões de
palavras, em português e inglês mudanças. Os relatores de pa-
(abstract), palavras-chave em recer permanecerão em sigilo.
português e inglês e referências Só serão considerados para apre-
bibliográficas, de que devem ciação os artigos que seguirem
constar apenas as obras citadas. a convenção da citação das obras
Os títulos dessas obras devem de Nietzsche aqui adotada.

NOTES TO CONTRIBUTORS

1. Articles are considered on the the author’s last name, initials,


assumption that they have not followed by the year of publi-
been published wholly or in part cation in parentheses, should be
else-where. Contributions headed ‘References’ and placed
should not normally exceed on a separate sheet in alphabe-
55.000 characters (including tical order.
spaces).
3. All articles will be strictly refer-
2. A summary abstract of up to 100 eed, but only those with strictily
words should be attached to the followed the convention rules
article. A bibliographical list of here adopted for the Nietzsche’s
cited references beginning with works.

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

Os cadernos Nietzsche visam a constituir um forum de debates em tor-


no das múltiplas questões colocadas acerca e a partir da reflexão nietzschiana.
Nos cem anos que nos separam do momento em que o filósofo interrom-
peu a produção intelectual, as mais variadas imagens colaram-se à sua figu-
ra, as leituras mais diversas juntaram-se ao seu legado. Conhecido sobretudo
por filosofar a golpes de martelo, desafiar normas e destruir ídolos, Nietzsche,
um dos pensadores mais controvertidos de nosso tempo, deixou uma obra
polêmica que continua no centro da discussão filosófica. Daí, a oportunidade
destes cadernos.
Espaço aberto para o confronto de interpretações, os cadernos
Nietzsche pretendem veicular artigos que se dedicam a explorar as idéias
do filósofo ou desvendar a trama dos seus conceitos, escritos que se consa-
gram à influência por ele exercida ou à repercussão de sua obra, estudos que
comparam o tratamento por ele dado a alguns temas com os de outros auto-
res, textos que se detêm na análise de problemas específicos ou no exame de
questões precisas, trabalhos que se empenham em avaliar enquanto um todo
a atualidade do pensamento nietzschiano.
Ligados ao GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, que atua junto ao
Departamento de Filosofia da USP, os cadernos Nietzsche contam difundir
ensaios de especialistas brasileiros e traduções de trabalhos de autores es-
trangeiros, artigos de pesquisadores experientes e textos de doutorandos e
mestrandos ou mesmo graduandos.
Publicação que se dispõe a acolher abordagens plurais, os cadernos
Nietzsche querem levar a sério este filósofo tão singular.

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

Founded in 1996, cadernos Nietzsche is published twice yearly - ev-


ery May and September. Its purpose is to provide a much needed forum in a
professional Brazilian context for contemporay readings of Nietzsche. In par-
ticular, the journal is actively committed to publishing translations of contem-
porary European and American scholarship, original articles of Brazilian re-
searchers, and contributions of postgraduated students on Nietzsche’s
philosophy.
Cadernos Nietzsche is edited by Scarlett Marton with an internation-
ally recognized board of editorial advisors. Fully refereed, the journal has
already made its mark as a forum for innovative work by both new and estab-
lished scholars. Contributors to the journal have included Wolfgang Müller-
Lauter, Jörg Salaquarda, Mazzino Montinari, Michel Haar, and Richard Rorty.
Attached to GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, which takes place
at the Department of Philosophy of the University of São Paulo, cadernos
Nietzsche aims at the highest analytical level of interpretation. It has a cur-
rent circulation of about 1000 copies and is actively engaged in expanding
its base, especially to university libraries. And it has been sent free of charge
to the Brazilian departments of philosophy, foreigner libraries and research
instituts, in order to promote the discussion on philosophical subjects and
particularly on Nietzsche’s thought.

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