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Paris e finalmente Londres, Marx experimentou uma série de mudanças emocionais

CAPÍTULO 10 de adesão, assim como uma ampliação de horizontes intelectuais.


Descendente de renomados rabinos, Karl Marx cresceu como crente luterano depois
A Tradição Marxista que seu pai Heinrich o convertera aos seis anos de idade.! Quando adolescente, Karl
aderiu ao liberalismo kantiano, assim como ao patriotismo nacional de seu pai. Em
um ensaio escrito para a escola, “Reflexão de um jovem sobre a escolha de uma
profissão”, declarou que a escolha da pessoa sobre a sua profissão devia ser orientada
por duas considerações, “o bem-estar da humanidade e a nossa própria perfeição” —
ideais gerais correntes na época, sem dúvida, mas que eram também os dois deveres
indeterminados que Kant especificou na Metafísica dos costumes. Do idealismo
alemão clássico, Marx absorveu o ideal de uma esfera de liberdade humana que
transcende o mundo de ocorrências meramente naturais — um ideal que ele, subse-
quentemente, transfiguraria repetidas vezes mas que nunca pôde abandonar.
Embora alguns pensadores alemães anteriores tivessem aceito determinadas idéias de Após um ano de farra em Bonn, Marx transferiu-se para a Universidade de Berlim
autores britânicose franceses, Karl Matx foi provavelmente o primeiro teórico a identifi- com o propósito de estudar direito mas, em vez disso, sentiu-se atraído para o estudo
car-se de maneira significativa com características importantes de todas as três tradições. de questões filosóficas. No começo, fez isso construindo o que chamou uma “rnetafi-
A jornada pela qual ele procurou integrá-las na década a seguir a 1836 é um dos mais sica do direito”, para a qual Fichte foi o seu modelo. Produziu um sistema que, embora
turbulentos e importantes episódios na história das idéias — turbulento pela maneira rápida diferindo de Kant em questões de detalhe, descreveu como “aproximado do kantiano
e frequente como ele mudou seu ponto de vista, importante porque envolveu as três (...) em seu esquema fundamental”. Descontente com o esforço, escreveu a seu pai,
tradições justamente após elas terem produzido amplos movimentos ideológicos. “Uma vez mais, dei-me conta de que não podia seguir o meu caminho sem filosofia
Na Inglaterra, no começo da década de 1820, James Mill surgia como lider de um (...) Escrevi um novo sistema metafísico básico [mas] depois de o concluir fui forçado
movimento empenhado em implementar os princípios utilitaristas codificados por a reconhecer de novo a sua futilidade e a de minhas prévias tentativas” ([1837] 1967,
Bentham, em boa parte através da mobilização de um partido político que se tornou 45).
conhecido como os Radicais Filosóficos. Aspirando a ser um “reformador do mundo”, Durante todo esse período, Marx «sentia-se profundamente perturbado pelo conflito
John Stuart Mill fundou em 1822 a Sociedade Utilitarista, um pequeno grupo que se entre o que é e o que deve ser, um conflito peculiar ao idealismo” (42) — um idealismo,
reunia para discutir princípios benthamistas. Alguns anos depois, o eminente matemá- assinalou ele, de que se nutrira em Kant e Fichte (46). Contrariado com as contínuas
tico Olinde Rodrigues fundou um movimernto para divulgar os ensinamentos de frustrações filosóficas, Marx abandonou esses guias e reformulou os termos de sua
Saint-Simon. Tendo Paris como centro, os saint-simonianos conquistaram adeptos por busca, “Uma cortina tinha caído, o meu sanctum sanctorum desmoronara em pedaços
toda a Europa — organizando reuniões, distribuindo jornais, enviando missões às classes enovos deuses tinham que ser encontrados.” Procurou-os “ao buscar a Idéiano próprio
trabalhadoras. Fourier e Proudhon inspiraram outras correntes do que velo a ser denomi- real, Se outrora os deuses tinham morado acima do mundo, eles tinham agora passado
nado um movimento socialista. No início da década de 1830, o movimento hepeliano aser o seu centro” (46). Isso significou a conversão à filosofia de Hegel (da qual antes
conquistou a adesão e as energias de numerosos intelectuais alemães. Quer orientadas para tinha desdenhado) e a associação com os jovens hegelianos do Clube dos Doutores.
os interesses e direitos individuais como na Inglaterra, para a solidariedade e o bem-estar O que fez Marx trocar Kant por Hegel foi, segundo parece, a capacidade de Hegel
coletivos como na França ou para as reivindicações do espírito ideal como na Alemanha, para fixar a esfera da liberdade humana has vicissitudes da história humana. Hegel
todas essas ideologias aceitaram o desafio de usar a razão não apenas para fundamentar encontrou um modo de fundamentar a noção deum Dever transcendental que era muito
uma ética secular mas a fim de estimular a reconstrução da sociedade, Raras vezes idéias pronunciado em Kant e Fichte. Fez isso ligando a transcendência humana a um
filosóficas estiveram tão diretamente vinculadas ao ativismo popular quanto durante os processo de revelação e expansão do Espírito Universal desencadeado pela inexorável
primeiros anos de atividade intelectual do jovem Marx — uma vinculação que ele for) aria interação das paixões humanas. Pelo caminho, como vimos, Hegel deslocou a preo-
de forma inquebrantável nas brasas incandescentes de sua paixão social, cupação de Kant com a moralidade individual para uma posição periférica, optando
por conceber as modernas constituições do Estado e doutrinas religiosas como
O ITINERÁRIO TRANSNACIONAL DE MARX supremas consubstanciações da razão e da liberdade.
Na época em que Marx se encontrava com os ensinamentos de Hegel, os seguidores
A carreira do jovem Marx tomou a forma de uma jornada pela Europa Ocidental que deste já tinham formado facções em disputa. A principal linha de divisão entre eles é
foi simultaneamente física, afetiva e cognitiva. Mudando de Trier para Berlim, daí para com frequência definida por referência ao famoso aforismo de Hegel: “O que é

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Racional é Real; o que é Real é Racional.” Os adeptos conservadores de Hegel Após esgotar os recursos da tradição alemã em sua busca por um instrumento
enfatizaram a segunda cláusula, interpretando-a no sentido de que as circunstâncias decisivo de emancipação humana, Marx voltou-se para a França. Em 1843, estudou e
históricas contemporâneas do Estado prussiano e sua religião cristã protestante for- aprendeu francês por conta própria e começou a ler avidamente os socialistas de Paris
mavam o pináculo da evolução da razão e da liberdade, Para eles, a tarefa do filósofo — Fourier, Proudhon, Dézamy, Cabet, Leroux. Ele já estivera exposto a idéias
. era apenas mostrar o caráter racional do mundo e assim reconciliar o pensamento com francesas na Alemanha — em sua cidade natal de Trier, onde encontrou, sem dúvida,
a realidade. Os hegelianos da “esquerda” destacaram a primeira cláusula, sustentando representativos seguidores de Saint-Simon; em um livro de Moses Hess (1837), cuja
que o entendimento do verdadeiramente racional fornecia uma base para montar uma combinação de messianismo judaico secularizado e socialismo francês apresentou
crítica da realidade contemporânea. Argumentaram que a realidade de certas condições idéias-chave de Fourier, Saint-Simon e Babeuf; e na análise de Lorenz von Stein dos
dependia da medida em que essas condições formavam uma totalidade racional. Nessa movimentos socialistas na França (1842), uma obra por cujo intermédio Marx ingres-
concepção, a razão podia ditar a necessidade de transformação radical de determinadas sou na tradição francesa e da qual pode ter recebido a noção de proletariado (Lobko-
instituições, não a acomodação a elas. wicz, 1967, caps.15, 19). Em fins de 1843, Marx viajou para Paris a fim de co-editar
Foi essa versão ativa; crítica, da filosofia de Hegel, que Marx expôs em sua uma revista, o Deutsch-Franzôsische Jahrbiicher, cujo objetivo era promover uma
dissertação de 1841. Defendeu a tese de que a tarefa apropriada para os filósofos, na síntese entre realidade política francesa e filosofia alemã. Em Paris, Marx devorou
esteira da culminação em Hegel da filosofia especulativa, era transformar espírito em escritos franceses inexistentes na Alemanha, aproximou-se de filósofos radicais como
energia, em uma expressão de vontade que teria impacto sobre uma realidade ainda Fourier, Bakunin e Proudhon, e andou na companhia de artistas e artesãos dotados de
desprovida de espírito, Em 1843, descreveu essa tarefa como a de “crítica irrestrita consciência de classe.”
(riicksichtslose) a todas as coisas existentes”: a crítica não deve furtar-se a estabelecer Em um ensaio (publicado no Jahrbiicher em 1844) escrito como introdução a uma
conclusões embaraçosas nem esquivar-se ao conflito com os poderes existentes. Tal crítica da Filosofia do direito de Hegel, Marx assinalou sua descoberta de um agente
crítica tem por missão esclarecer a consciência humana, Os objetos a que deve histórico para a emancipação universal no proletariado e sua adesão aos temas sociais
remeter-se incluem religião e ciência no lado teórico e, no lado prático, o Estado da tradição francesa. Se em 1842 se expressara como um nacionalista alemão mode-
político em todas as suas modernas formas (Tucker, 1978, 13). radamente cético a respeito dos franceses, no ano seguinte tornou-se um francófilo
Com essa fórmula, Marx entregou-se a um projeto de crítica do mundo social antigermânico. Nesse texto fundamental, Marx delimita sua missão critica. Comple-
que iria orientá-lo para o resto da vida. Depois de usar Hegel para completar sua tada a crítica das crenças religiosas, a tarefa consiste agora em criticar as condições
crítica de Kant, ele encontrou em Feuerbach um meio para desencadear uma crítica políticas, na verdade, em subverté-las. A crítica passa a ser “não um bisturi mas uma
de Hegel. Feúerbach tinha atgumentado que as concepções religiosas consistem arma (...) não visa refutar mas destruir” (Tucker, 1978, 55).Os recursos dos filósofos
em. uma-representação alienada das reais necessidades humanas projetadas em não podem produzir a revolução que parece ser reclamada. Uma revolução política
“ elaborados objetos simbólicos. Por analogia, Marx afirmou em 1843 que a concep- moderna requer a mobilização de toda uma classe social, uma que empreenda, a partir
ção idealizada de Hegel do Estado nada mais era que a projeção em um plano de sua situação particular, a emancipação geral da sociedade, Entretanto, a Alemanha
mítico, metafísico, de um anseio de solidariedade social em uma sociedade civil não tinha produzido nenhuma classe com suficiente generosidade de espírito para
atomizada. “O Estado é uma abstração: Somente as pessoas são concretas” (Tucker, identificar-se com o espírito popular, quanto mais que possuísse a lógica, a intuição,
1978, 18). Assim, ele se entregou à tarefa de inverter a concepção hegeliana a fim a coragem e a lucidez necessárias para enfrentar 0 status quo social (63). O que, então, -
de concentrar-se nos “elementos genuinamente ativos” do Estado: as famílias e a pode ser feito?
sociedade civil (16). A França aponta o caminho, Lá, escreve Marx, cada classe da população é po-
Nesse ponto, Marx acreditava que a. emancipação humana não podia continuar liticamente idealista e considera-se representante das necessidades gerais da socie-
sendo vista como a obtenção de autonomia através da adesão individual a máximas dade, E na França o proletariado emergiu como sucessor da burguesia — como aquela
morais autodeterminadas, como em Kant e Fichte ou, na esteira de Hegel, como a classe cujo impulso revolucionário pode ser empreendido no interesse da sociedade
triunfante ascendência do Espírito Universal, manifesto no Estado centralizado e na inteira. Aúnica esperança de emancipação na Alemanha consiste em formar uma classe
religião universal. As formas individuais e coletivas de idealismo eram projeções trabalhadora segundo o modelo francês. Seria um proletariado que possui caráter
imaginárias baseadas em uma consciência iludida a respeito das verdadeiras neces- universal porque seus sofrimentos são universais, uma classe “que só pode redimir-se:
sidades humanas. Por conseguinte, é preciso encontrar um meio concreto a fim de por uma total redenção da humanidade” (64).
mediar o salto transcendente para o domínio da liberdade humana. Depois de usar o Em suas considerações finais — “o dia da ressurreição alemã será proclamado pelo
tipo de crítica de Feuerbach para derrubar o que considerava agora serem as mis- cantar do galo francês” (65) — Marx afirmou que o movimento social na França era
tificações de Hegel, Matx passou a denunciar Feuerbach com base em uma concepção o admirável agente de emancipação pelo qual ele estivera procurando. Os franceses
de história mais completamente “materialista”, também lhe deram uma noção que ele podia usar para substituir os ideais hegelianos
etc, — em uma série de panfletos independentes. Marx acabou por nunca publicar
de Espírito Universal e de Estado: o ideal saint-simoniano de sociedade pan-humana, essas críticas. Em vez disso, dedicou-se daí em diante à elaboração do tema principal
que logo seria interpretado como “humanidade associada” (gesellschaftliche Mensch- dos MEF, uma critica da economia política. Essa crítica surgiu em cinco etapas —
heit). O associacionismo de Saint-Simon facilitou o caminho de-Hegel para o socia- Grundrisse (Fundamentos da crítica da economia política) de 1857-8; a Contribuição
lismo, Saint-Simon e Hegel tinham criticado o Iluminismo por seu hiper-racionalismo à crítica da economia política de 1859; e os três volumes de O capital: crítica da
e individualismo destrutivo; entretanto, ao invés dos conservadores que comparti- economia política, publicados em 1867 e (postumamente) em 1885 e 1894,
lhavam dessa crítica, eles expressaram otimismo e crença no progresso. Também Nos MEF, Marx afirmou as premissas básicas da economia política britânica. Isso
consideraram que a história se processa de maneira dialética, de tal modo que períodos significou o reconhecimento das realizações positivas da nova ordem comercial-in-
positivos se alternam necessariamente a períodos negativos, críticos. Com tudo isso dustrial e a aceitação da teoria de valor da força de trabalho articulada por Adam Smith
como base comum, o pensador social francês ajudou Marx a mudar da glorificação e David Ricardo. A inflexível lei dos salários — que a tendência da população para
germânica do Estado para uma visão do Estado como instrumento subordinado à aumentar até os limites fixados pelos meios de produção fornece uma virtualmente
sociedade humana, e de um ethos de conscienciosa subordinação para um ethos em ilimitada oferta de mão-de-obra que pode ser empregada a um salário real constante
harmonia com a solidariedade fraternal, — ajudou-o a encontrar a base para prever o futuro triunfo do proletariado. A partir
Mesmo assim, a tradição francesa carecia de recursos para garantir o triunfo das idéias de economistas britânicos — sobre as propensões dos agentes para se
redentor do proletariado com a mesma certeza que Hegel tinha atribuído à realização empenhar na realização de interesses individuais em uma situação de mercado, e sobre
salvadora do Estado moderno. Para consternação de Marx, os profetas franceses da a dinâmica de lucro, salários e renda e as distribuições sociais desiguais que eles geram
reconstrução social só podiam recorrer ao poder das idéias. Socialistas como Proudhon — Marx procurou desenvolver uma teoria que pudesse demonstrar como |
rejeitaram o mundo econômico burguês que se desenvolvia ao redor deles, a favor de o trabalhador é rebaixado ao nível de uma mercadoria e torna-se, com efeito, a mais
uma utópica ordem comunal e igualitária, Os saint-simonianos aceitavam o mundo infortunada das mercadorias; como o infortúnio do trabalhador está em proporção inversa
econômico burguês. Acreditavam que com a Revolução Francesa tinha ocorrido o ao poder e magnitude de sua produção; como o resultado necessário da competição éa
último grande conflito entre classes sociais e que tudo o que restava fazer era organizar acumulação de capital em poucas mãos (...) e como a sociedade toda deve tepartir-se entre
anova ordem convertendo pessoas a uma religião secular de humanidade.? Marx quis as duas classes — os donos da propriedade e os trabalhadores sem posses (Tucker, 1978,
ater-se à abordagem de Hegel para realizar o ideal de transcendência emancipatória. 70).
Isso envolveu um roteiro que evitou os impulsos morais idealistas, a favor da afirmação Em dezembro de 1847, Marx proferiu uma série de conferências, depois publicadas
de um processo inexorável de desenvolvimento histórico. Por conseguinte, Marx como Trabalho assalariado e capital, as quais apresentaram o núcleo da teoria que
precisava encontrar um meio de afirmar as realizações do capitalismo burguês como desenvolveria em críticas posteriores de economia política.* Em busca da realização
fundamentais para uma sociedade emancipada sem contar com a preponderância de de seus respectivos interesses individuais, os capitalistas trocam a forçade trabalho
ideais morais. Ele só poderia evitar o recurso a ideais utópicos se interpretasse as dos trabalhadores por salários; os capitalistas concorrem entre si por lucros, resultando
transformações que desejava como frutos de leis de mudança histórica cientificamente em uma produção cada vez mais eficiente através da crescente divisão do trabalho e
baseadas. Na busca por tais leis, voltou-se para a tradição britânica. mecanização da produção; a maior produtividade leva à maior competição entre
Em 1844, Marx começou a familiarizar-se com a economia política inglesa em trabalhadores, de tal modo que seu trabalho torna-se mais repulsivo e seus salários
maior profundidade — graças, sobretudo, a Friedrich Engels, cuja concepção da declinam. Com essa fórmula, Marx podia mostrar como as leis naturais que governam
economia como a força decisiva na história foi apresentada em um artigo do Jahrbii- o comportamento de indivíduos interagindo em um mercado causam a progressiva
cher que Marx considerou impressionante. E assim, meio ano após ter redigido o artigo indigência dos trabalhadores desprovidos de posses, colocando-os em tal desespero
que comparava a França com a Alemanha, Marx adicionou uma terceira nação ao seu que devem unir suas forças para derrubar a ordem capitalista burguesa e com isso
repertório. Em um ensaio para o jornal Vorwdrts, qualificou os ingleses como os impelir a humanidade para sua condição redimida,
“economistas” do proletariado europeu, juntando-se aos alemães como seus teóricos
e aos franceses como seus políticos (Tucker, 1978, 129). :
A SÍNTESE MARXISTA
Marx aprofundou seu entendimento da economia política britânica depois de sua
mudança da França em 1845, primeiro para Bruxelas e depois para-a Inglaterra, onde Na mesma época em que Marx se empenhava na exploração de sua própria visão,
passou o resto de sua vida, Entretanto, os principais elementos de seu programa pensadores das tradições britânica, francesa e alemã tinham cristalizado suas idéias
estavam devidamente estabelecidos por .volta do verão de 1844, Articulou-os em em duas linhas de oposição. Como vimos, a oposição entre os postulados centrais das
escritos não publicados que se tornariam conhecidos como os Manuscritos econômi- tradições britânica e francesa gravitava em torno das questões de individualismo
co-filosóficos de 1844 (doravante MEF). Ao prefaciar essa obra, ele anunciou sua metodológico e normativo versus realismo e normatividade sociais. A oposição entre
intenção de publicar uma crítica de diversos domínios práticos — direito, ética, política
.
a alemã e as duas outras tradições ficou em torno da questão de voluntarismo versus
meramente externas e passam a ser postulados como objetivos que o próprio indivíduo
paturalismo. No seio da tradição alemã, a oposição indivíduo-sociedade assumiu a estabelece — logo, como auto-realização, objetivação do sujeito; logo, liberdade
orma de contraste entre o individualismo de Kant e as teorias de Volksgeist de Herder
real”([1857-8] 1973, 611). °
e Hegel. As antinomias em questão podem ser representadas como na Figura 11.
Apresenta-se na produção final de Marx, o volume, 3 de O capital:
O domínio da liberdade só começa, realmente, quando o trabalho deixa de ser determinado
pela necessidade e conveniência externa (...) Aliberdade nesse campo somente pode existir
PRINCÍPIO DE ÉTICA RACIONAL quando a humanidade socializada, os produtores associados, regularizarem racionalmente
NATUREZA LIBERDADE seu intercâmbio material com a Natureza, colocando-a sob seu controle coletivo em vez de
sérem por ela governados como se por uma força cega (Tucker, 1978, 441; tradução
Voluntarismo modificada).
E apresenta-se, enfim, nós escritos de Engels, o alter ego de Marx, cuja entusiástica
Naturalismo Atômico Individual
LOCAL INDIVÍDUOS odiado Vereda
descrição da libertação humana após a revolução comunista conclui com a imagem
DE
REALIDADE
Smith Kant
perfeitamente kantiana da ascensão da humanidade do reino da necessidade para o
Ricardo (1844-) Fichte (até 1837) reino da liberdade.
E : Voluntarismo Ajornada de Marx, portanto, pode ser caracterizada como um esforço contínuo para
VALOR Naturalismo Social Coletivo radicar em realidades terrenas sua busca de liberdade transcendente, A primeira etapa
SOCIEDADES . e ee ERRAR dessa jornada envolveu um esforço para alicerçar 0 processo de obtenção da liberdade
"| Saint - Simon (1842 - 43) Hegel (1838 - 41) na dinâmica da história humana, quando Marx aceitou a história hegeliana da história
como a progressiva expansão da liberdade através do desenvolvimento coletivo. Ao
dar esse passo, ele sacrificou o princípio kantiano de autodeterminação ética individual
Figura 11. A jornada de Marx pelas três tradições. como fonte da moralidade.
Assim, ao procurar basear o processo de emancipação coletiva nos esforços de
O processo pelo qual Marx se defrontou sucessivamente com essas diferentes alguma classe social concreta identificada com as necessidades gerais da sociedade,
posições pode ser visualizado como um movimento no sentido dos ponteiros do relógio Marx aderiu ao ideal francês de humanidade associada e à concepçãode classes sociais
nessa figura, a partir da célula superior direita. Em cada etapa ele assumiu um como agentes históricos. Nesse processo, ele sacrificou os princípios hegelianos de
compromisso central mas substituiu uma ou mais crenças secundárias por caracterís- sanção coletiva da lei como fonte de moralidade e de autoconsciência madura como
ticas extraídas da nova posição. O compromisso essencial de Marx era, sem dúvida o indicador de liberdade coletiva.” Isso completou a decisiva transfiguração do
com a noção kantiana de garantir a dignidade humana através da transcendência de conceito alemão de liberdade: liberdade deixou de significar autonomia no sentido de
determinismos meramente naturais. Esse compromisso destaca-se como um dos mais subscrição de leis morais de criação (individual ou coletiva) própria, como em Kant |
constantes temas ao longo de toda a sua obra. Apresenta-se na linguagem dos MEF ou Hegel, para significar liberdade de produzir para as próprias necessidades, da
sobre a essência humana e em A ideologia alemã sobre a divisão de trabalho: maneira que for da escolha do próprio indivíduo.
Ps animais só produzem sob o domínio da necessidade física imediata, ao passo que os seres
Buscando alicerçar a realização da emancipação universal através da ascendência
umanos produzem até quando livres da necessidade física e, na verdade, somente produzem do proletariado, Marx aderiu às idéias dos economistas políticos britânicos sobre a
quando livres de tal necessidade (Tucker, 1978, 76;-tradução modificada). teoria do valor do trabalho e a dinâmica da interação no mercado de indivíduos em
busca de lucros. Embora retivesse a noção de determinismo social na medida em que
A divisão de trabalho oferece-nos o primeiro exemplo de como, enquanto o homem
sustentou que as condições sociais dão forma e conteúdo aos interesses individuais e
permanecer em sociedade natural (naturwiichsig) (...) enquanto, por conseguinte, sua
aos meios de realizá-los (1973, 66), durante esse processo confornou os argumentos
atividade não for voluntária (freiwillig) mas naturalmente (naturwiichsig) dividida, a própria
ação do homem converte-se em um poder estranho oposto a ele, que o escraviza, em vez de - dos realistas sociais franceses sobre interesses propriamente sociais, incluindo as
ser controlado por ele (160). necessidades da sociedade. de regulamentação e integração, assim como de elites
qualificadas para satisfazer essas necessidades.” Ao mesmo tempo, rejeitou as noções
Aparece nos Grundrisse, doze anos mais tarde, quando Marx descreve o que britânicas de propensões morais e direitos individuais naturais.
acontecerá quando a necessidade humana básica de ser ativa encontrar satisfação em
O método pelo qual Matx procurou integrar as três tradições pode, portanto, ser
trabalho que deixou de ser trabalho escravo, trabalho servo ou trabalho assalariado:
descrito como um método de progressiva substituição. Sua síntese final combinou a
Os objetivos externos ficam despojados da semelhança de premências naturais
noção de autodeterminação de Kant, a noção de desenvolvimento histórico coletivo
‘de Hegel, as noções francesas de humanidade associada e classes sociais, e a concepçã
o interessava-se, antes, em como produzir objetos orientados para a satisfação de .
britânica de esforço competitivo paraa realização de interesses individuais no merca- carências humanas. O
do. Uma vez que recorreu efetivamente a uma variedade de atraentes tradições Em uma de suas mais famosas asserções, Marx sugeriu que a filosofia tinha um
filosóficas, seu método de síntese produziu uma fórmula ideológica que provou ser único objetivo e que esse objetivo era mudar o mundo (Tucker, 1978, 145). Ele negou
poderosamente sedutora para os intelectuais. Não obstante, embora Marx realizass
e assim qualquer justificação para um corpo independente de conhecimento teórico, do
um esforço heróico para conjugar essas diversas tradições, não se pode dizer que
ele mesmo modo que seus apelos para se abolir a divisão do trabalho visavam desfazer a
tenha fornecido uma resolução estável das oposições entre elas. Com efeito,
a sua separação entre atividade intelectual e atividade prática. A direção para mudar o mundo
síntese refletiu uma contradição profunda entre os postulados do naturalismo
e do seria ditada pela estimulação sensorial humana. O socialismo científico, o veículo da
voluntarismo e rejeitou, na realidade, pressupostos sobre o papel da moralida
de e do autoconsciência positiva humana, “deriva da consciência prática e teoricamente
sentimento na ação humana que tinham sido compartilhados por todas as outras
sensorial do homem e da natureza como a essência”. Para Marx, a idéia de separar o
ncições, Antes de examinarmos essas questões, vejamos um outro aspecto de
sua conhecimento teórico dos requisitos da práxis introduz um elemento de alienação da
síntese.
atividade cognitiva da sua única base genuína na percepção sensorial humana. A
ciência é válida “somente quando promana da percepção sensorial na dupla forma de
A FUSÃO DE TEORIA E PRAXIS consciência sensorial e de necessidade sensorial”, Teoria e prática estão unificadas
porque ambas derivam de uma só fonte e visam um único objetivo: a experiência
Ao unir as tradições de naturalismo e voluntarismo, Marx também fundiu duas sensorial humana, Em última instância, a ciência da humanidade se fundirá com a
esferas ciência natural, e “haverá uma única ciência” (Tucker, 1978, 90-3),
intelectuais que pensadores antecedentes tinham contrastado de diferentes modos

as esferas do conhecimento teórico e da filosofia prática,
Aristóteles, lembremos, tinha considerado afilosofia prática diferente e, em grande ALGUMAS CONTRADIÇÕES DO MARXISMO
parte, independente da ciência teórica. As ciências práticas diferiam das
ciências
teóricas em seus objetos de estudo, princípios, objetivos e métodos. Hobbes Como um esforço para integrar tradições de pensamento que procuraram fornecer
e seus
seguidores procuraram superar o que Aristóteles pensou ser endêmico no conheci- alicerces racionais seculares para a moralidade de um modo que se tornasse fun-
mento prático, uma abordagem probabilística vinculada aos caprichos da deliberaç damental para a moderna ciência social, o marxismo gerou três espécies de contra-
ão
pública, ao obterem para o conhecimento prático uma sólida fundação na dições. Em vez de fundamentar um princípio de moralidade na natureza ou na
verdade
teórica. Para a maioria dos naturalistas modernos, a prioridade foi para o conhecim transcendência da natureza, Marx ofereceu, com efeito, uma orientação normativa

ia
ento
teórico adquirido pelos métodos da ciência natural moderna, pelo que o conhecim baseada simultaneamente na determinação natural e na transcendência da natureza,

meira
aa
ento
prático veio a ser a aplicação desse conhecimento teórico. Quando Kant embora negando o tempo todo que estivesse fornecendo quaisquer diretrizes norma-
passou a
acreditar que o determinismo do conhecimento teórico privava os seres humanos tivas, Em vez de localizar as fontes das disposições morais humanas ou nas proprie-
de
sua dignidade e liberdade mas não conseguiu fornecer uma base bastante segura dades de alguns fenômenos naturais ou na característica capacidade humana de
para
o entendimento prático, tentou um método diferente. Kant pressupôs então axtodeterminação, Marx prescindiu de um componente especificamente moral em seu
que a
filosofia prática podia desenvolver-se na base da razão especulativa pura, de um modo modelo de natureza humana plenamente realizada, contradizendo assim o adequado
que reafirmava a maravilhosa suposição de liberdade e autonomia humanas, deixando consenso de virtualmente todos os outros pensadores sociais acerca da proeminência
para a filosofia teórica a tarefa radicalmente diferente de entender as maravilh das disposições morais (apesar das amplas variações no modo como eles as explicam).
as do
mundo natural. : Em vez de formular tal ética de um modo que afirmasse o entendimento favorável de
. Os comentários de Marx sobre essa questão sugerem uma posição que diverge sociedades nacionais existentes, a tradição marxista era antinacional em sua orientação
de
todas aquelas que acabamos de mencionar. Em primeiro lugar, ele reelabor e, de um modo mais geral, estava disposta a minimizar o papel do sentimento na ação,
ou o
conceito de prático, de modo que não mais si gnificava qualquer coisa parecida contradizendo assim os fatos acerca da crescente proeminência do nacionalismo
com o
que Aristóteles e Kant desejaram definir com esse termo. Em vez da noção aristotéli durante a vida do próprio Marx, assim como o consenso da maioria dos outros
ca
de práxis, a qual se relacionava com o processo de escolha deliberada em ação, pensadores sociais sobre a importância dos sentimentos humanos.
Marx
mudou seu significado para o que Aristóteles tinha entendido por poesis, ou fazer,
isto
6, uma forma de atividade que se apoiava na fechne, ou arte. Ignorando a concepçã
o A moralidade do naturalismo emancipatório
kantiana do puramente prático como referente à formulação de deveres morais,
ele
restringiu o termo ao que Kant pretendera significar pot tecnicamente prático, Para
De Kant e Fichte, e sem dúvida de sua criação luterana, Marx absorveu um anseio de
Marx, um problema prático deixara de referir-se ao curso correto de transcendência de processos meramentre naturais, entendidos como um complexo de
ação mas
determinantes externas. Não obstante, sua atração pela ciência positiva, somada a uma sensibilidades morais biologicamente alicerçadas. Ainda outros, como Montesquieu .
viva compaixão pela humanidade sofredora, fizeram-no voltar-se para a condição e Rousseau, situaram-na em hábitos instilados pelos agentes da sociedade. Kant
humana de um modo que não levou em conta a exortação moral, Assim, sua retórica - localizou-a nas operações autodeterminantes da pura razão prática e Hegel identifi-
transformou-se com frequência na de um fervoroso naturalista. Ridicularizando ideais cou-a com a subordinação a normas legais coletivamente instituídas. Aristóteles
de Proudhon, como os de justiça e mutualidade, pergunta o que pensaríamos de um forneceu uma concepção complexa que localizou a moralidade em potencial natural,
químico que usasse idéias como a de “afinidade” em vez de estudar as leis que regem adestramento social, caráter habituado, capacidade intelectual e escolha deliberada.
as mudanças moleculares (citado em Lukes, 1985, 7). No prefácio da primeira edição O que distingue a abordagem marxista desse problema é o modo como deprecia
de O capital, Marx confessou uma ambição newtoniana: nada menos-que “desvendar toda a questão. Em sua apropriação seletiva de elementos das várias tradições, Marx
a lei econômica do movimento da sociedade moderna” (Tucker, 1978, 297).H rejeitou em cada caso as descrições da origem de genuínas disposições morais sem
De.um modo geral, Marx usou “natureza” para referir-se a processos de determi- substituí-las por uma descrição original sua. Para Marx, o que os filósofos morais
nação externa que não permitiam a intervenção da vontade humana; contrapôs descrevem como admiráveis faculdades ou idéias morais não passa de crenças
“natural” (naturwiichsig) a “voluntário” (freiwillig). Como Engels, ele manteve que tendenciosas a serviço de uma luta de classes. Assim, em À ideologia alemã, Marx e
toda a história humana até sua época tinha sido governada por tais processos naturais. Engels zombaram da noção de Kant de boa vontade como uma expressão da “impo-
Simultaneamente, a repetidas vezes expressa aspiração de ambos era ver a humanidade tência, depressão e mesquinhez dos burgueses álemães (...) de quem ele era o
ingressar em uma ordem em que a autodeterminação substituísse essa determinação coonestador porta-voz” (1965, 206 e seg,). Mais tarde, Engels resumiu a posição de
natural. A tensão entre essas duas crenças confundiu gerações de marxistas. Deveria ambos ao dizer que, como todos os credos morais são o produto de condições
o princípio de ação correta consistir em atuar de acordo com as leis da natureza? Se socioeconômicas e uma vez que a sociedade foi historicamente organizada através de
assim for, então renuncia-se à oportunidade de agir em conformidade com o reco- antagonismos de classes, “a moralidade foi sempre moralidade de classe; ou justificou
nhecido ideal de Marx de autodeterminação. Ou dever-se-ia atuar de acordo com o a dominação e os interesses da classe governante ou, toda vez que a classe oprimida
princípio de liberdade, transcendendo a natureza? Sendo assim, então corre-se o risco ficou suficientemente poderosa, representou sua indignação contra essa dominação e
de agir de um modo que ignora as limitações impostas pela natureza. os futuros interesses dos oprimidos” (Tucker, 1978, 726). Uma vez que as noções
À parte os problemas ontológicos envolvidos na explicação da transição de uma morais servem apenas como veículos para os interesses da classe exploradora ou da
condição determinada para uma indeterminada, asíntese. de Marx produziu uma insurgente, tão logo chegue a sociedade sem classes os seres humanos não precisarão
doutrina que não oferece bases coerentes para a ação moral no presente histórico. De mais de tais noções.
fato, em contraste com as tradições britânica, francesa e alemã, que em seus diferentes
modos não deixaram de fornecer recursos intelectuais para justificar a proteção dos
direitos humanos, Marx e Engels menosprezaram implicitamente todo o esforço. A rejeição da nacionalidade
Criticaram desde cedo noções tais como o preceito que interdita a prática do roubo e.
o direito à liberdade de expressão como outros tantos preconceitos burgueses que Marx foi um dos primeiros a acentuar o contexto prático da atividade intelectual e a
servem para ocultar interesses de classe (Tucker, 1978, 482). Em um de seus últimos influência das tradições nacionais em particular. Produziu alguns notáveis insights
pronunciamentos, Marx descreveu discussões sobre direito (Recht) como absurdas, sobre o que viria ser chamado caráter nacional. Em O manifesto comunista (1848), ele
verdadeiro refugo ideológico (531). Como Steven Lukes resumiu o assunto: e Engels afirmaram que o proletariado ficara desnacionalizado: “A moderna mão-de-
obra industrial, a moderna sujeição ao capital, tanto na Inglaterra como na França,
O marxismo expôs desde o início um certo enfoque das questões morais que o incapacitou tanto na América como na Alemanha, despojou [o proletariado] de todos os traços de
a oferecer resistência moral a medidas tomadas em seu nome; em particular (...) foi iincapaz
caráter nacional” (Tucker, 1978, 482). Apesar da simpatia pelos movimentos de
de oferecer uma adequada explicação de justiça, dos direitos e do problema de meios/fim,
libertação nacional na Irlanda e na Polônia, em seus últimos anos de vida, pode-se
logo, uma adequada resposta à injustiça, violações de direitos € 0 recurso a meios impermis-
siveis, no mundo em que devemos viver (1985, 141).12 cortetamente afirmar que Marx deu pouco lugar para sentimentos de nacionalismo em
suas previsões do futuro, Embora alguns marxistas austríacos, assim como Lenin,
manifestassem mais tarde uma nova apreciação de agrupamentos nacionais, a lógica
A rejeição de disposições morais da posição original de Marx foi bem compreendida por Rosa Luxemburgo quando,
em seu ensaio de 1908 sobre a questão nacional, declarou que “em uma sociedade de
Uma das grandes preocupações de caga uma das tradições que estivemos examinando classes, ‘a Nação”, como entidade política homogênea, não existe” (Anderson, 1995).
foi identificar a origem de uma disposição ou faculdade moral humana. Alguns, como . É difícil não ver na evitação por Marx de tais questões uma profunda ambivalência
Hobbes, localizam-na em uma faculdade calculadora ou previdente inerente à natureza a respeito de sua própria identidade étnica e nacional.!º Dado que iniciou sua carreira
humana, Outros, na esteira de Shaftesbury, localizaram-na em sentimentos sociais e - como um alemão positivamente auto-identificado, como surgiu essa ambivalência?
Uma explicação poderia relacioná-la aos acontecimentos políticos na Prússia no início
“subestimou sistematicamente a influência de forças não-racionais como o naciona-
da década de 1840, Aos 24 anos, ele parece ainda ser um sincero nacionalista alemão,
lismo e a solidariedade religiosa e racial”, com o resultado de a tradição marxista expor
alinhado com o patriotismo de seu pai. Sua fidelidade foi abalada por dois eventos.
uma “peculiar incapacidade (...) para explicar a etnicidade, o nacionalismo, o regio-
Por um lado, as rupturas sociais resultantes das medidas da Prússia no rumo da
nalismo, a religião e outros fenômenos culturais constituintes da identidade (exceto
modernização econômica — emancipação do campesinato, dissolução das guildas e
como produtos ilusórios, ideológicos, de sociedades de classes)” (Berlim, 1978, 22;
um aumento demográfico sem precedentes que sobrepujou o crescimento econômico
Lukes, 1985, 76). Marx adotou um modelo de ação humana em que não só as
— culminaram em uma concentração de população empobrecida que estimulou as
disposições morais mas também os vínculos afetivos significavam muito pouco.
simpatias de jovens liberais como Marx e alarmou a aristocracia prussiana. Por outro Portanto, ele contradiz o consenso de todas as outras tradições a respeito do papel que
lado, a aristocracia tradicionalista tornara-se cada vez mais hostil às reformas liberais a emocionalidade desempenha na conduta humana. Marx conheceu muitos dos outros
da década de 1830, aumentando o domínio de forças conservadoras no governo e nas autores que estudamos — Hume, Smith e Mill; Montesquieu, Rousseau e Saint-Simon;
universidades. Esse conservadorismo ressurgente frustrou as carreiras acadêmicas dos Kant, Herder e Hegel — mas ignorou deliberadamente a exploração de outros fatores
begelianos de esquerda e levou ao estabelecimento da censura e ao fechamento de na ação humana além da busca instrumentalmente racional de interesses ditados pela
jornais.!4 Marx, tal como seus camaradas, sentiu-se duplamente traído: pelas promes- percepção sensorial.!6
sas de idealismo hegeliano que o tinham levado a pensar que o Estado prussiano A tradição intelectual fundada por Marx e Engels pode ser agora representada no
encarnaria o liberalismo constitucional, e pelas ações repressivas das próprias autori- formato que usei para as outras tradições da seguinte maneira: à questão sobre como
dades, Esse sentimento de traição gerou uma intensa necessidade de repudiar por os fatos da experiência humana devem ser construídos e explicados, ela responde com
completo o legado de idealismo alemão. Marx sentiu-se ainda mais alienado quando o que pode ser chamado o Postulado do Materialismo Dialético: os fenômenos
as autoridades prussianas persuadiram o governo francês a expulsá-lo da França no humanos podem ser melhor entendidos analisando-se como o esforço racional para
início de 1845 e depois emitiu um mandado de prisão contra ele. No ano seguinte, a realização de interesses individuais é formado pela evolução conflituosa mas
Marx deu livre curso a uma explosão de sentimento antialemão no panfleto escrito progressiva dos meios de produção e das relações sociais de produção.
com Engels, que representou a filosofia idealista alemã como sendo nada mais que À questão sobre como o pensamento secular pode fornecer uma base racional para
uma ideologia e, no processo, caricaturou o caráter nacional alemão. os juízos morais, ela responde com o Postulado da Determinação Evolucionista: no
O sentimento de traição vivenciado por Marx e seus colegas da esquerda hegeliana lugar de juízos normativos, a análise científica fornece indicações das ações objeti-
pareceu a alguns ser explicação suficiente para essa representação (Mah, 1987). vamente apropriadas para um dado período histórico.
Entretanto, a biografia de Marx expõe certos aspectos que sugerem fortemente estarem À questão sobre a origem das disposições morais humanas, ela responde com o
também envolvidas motivações pessoais mais profundas. Marx experimentou dificul- Postulado da Moralidade Determinada pela Classe: as chamadas faculdades morais
dades crônicas em estabelecer vínculos sociais estáveis; manifestou repetidas vezes são simplesmente apologias ideológicas para os interesses repressivos ou insurgentes
um padrão de afeto seguido de repúdio. Não tardou em voltar-se contra a maioria de de determinadas classes em períodos históricos. Em uma sociedade sem classes, os
seus antigos colegas alemães e franceses: Passou à maior parte de seus anos adultos humanos não necessitarão de faculdades morais distintamente inculcadas.
vivendo em um país onde era triplamente alienado — da sociedade inglesa, dos Das muitas predições problemáticas na obra de Marx, a previsão do fim da alienação
companheiros radicais e do movimento dos trabalhadores. O seu distanciamento, além e da desigualdade social em uma sociedade sem classes tornou-se um importante ponto
disso, assumiu a forma não de um passivo recolhimento mas de uma combatividade de referência para a tradição sociológica que surgiu a seguir — em grande parte à
crônica, Nas palavras de Tucker, Marx “escreveu como se sua pena estivesse mergu- sombra do marxismo, na ensolarada Itália.
[hada em ira fundida” (1978, xxxviii). Polemizou contra todas as tradições a que tinha -
recorrido, não apenas as da Alemanha. Esses traços informam o perfil intelectual que
identificamos: uma agenda dedicada a vida inteira mais à crítica e à revolução do que
à investigação, e um modo de síntese a que chamei de substituição progressiva, o qual NOTAS
depende precisamente de uma sucessão de afeições e repúdios.!
Seja qual for a dinâmica subjacente, a alienação de Marx em relação às nações
1. Amie de Marx descendia de uma linha holandesa de famílias rabínicas, que inclufa um famoso
européias de seu tempo, conjugada com um temperamento impetuosamente combati-
professor da Universidade de Pavia. Seu avô paterno tinha sido rabino em Trier; sua avó materna
vo, predispuseram-no a rejeitar todas as sujeições a ordens nacionais e a interpretar as descendia de alguns eminentes rabinos, incluindo o reitor da Universidade talmúdica em Pádua. A
classes sociais e o padrão dialético de seus conflitos em grande escala como a única fim de escapar à severa legislação contra os judeus promulgada pelo regime prussiano que libertou
realidade histórico-social realmente significativa. De um modo mais geral, como tem a Renânia de Napoleão, o pai de Karl, Hirschel, converteu-se ao protestantismo e mudou seu nome
sido muitas vezes observado, Marx detestou o emocionalismo de toda espécie e para Heinrich no ano que antecedeu o nascimento de Karl, Somente após a morte de sua própria mãe
Heinrich conseguiu reunir coragem para providenciar a conversão também de seus filhos.

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