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Seletivo
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sensibilidade a barulhos e locais com demasiadas pessoas. São por norma tímidas,
inibidas, ansiosas, tendem a isolar-se, a ter uma reduzida autoestima, podendo ainda
apresentar comportamentos de compulsão e défice ao nível da cognição (Ribeiro, 2012).
Estas crianças por norma são bastante perfeccionistas, têm medo do fracasso, o
que as retrai, levando a que os outros as vejam como tristes e com maior propensão para
manifestações de raiva, birras e episódios agressivos. Apesar disso, parece ser mais
evidente a existência de comportamentos internalizantes ao invés de externalizantes
(Carpenter, Puliafico, Kurtz, Pincus, & Comer, 2014; Diliberto & Kearney, 2016).
Estas crianças por norma são extremamente curiosas, uma vez que, o facto de não
comunicarem as faz virar a atenção para a observação do que as rodeia, nomeadamente
aos sinais transmitidos pelos outros, sendo também bastante sensíveis ao criticismo e
avaliação que os outros fazem de si. (Capobianco & Cerniglia, 2018; Rodrigues, 2001
tal como citado em Galvão & Dourado, n.d.). Tendencialmente estas crianças tendem a
ver-se como incapazes e inadequadas e por essa razão não gostam de ser o centro das
atenções (Capobianco & Cerniglia, 2018). Existe ainda, por parte das mesmas, uma
grande dependência dos progenitores ou das pessoas que cuidam de si (Galvão &
Dourado, n.d.).
Crianças com Mutismo Seletivo têm, por norma, uma grande capacidade de
permanecerem concentradas e atentas, no entanto, apresentam habitualmente um
rendimento escolar pobre, muito associado às dificuldades de aprendizagem resultantes
da reduzida interação no contexto escolar. Neste contexto muitas crianças tendem a
sofrer de bullying ou a ser gozadas pelos seus colegas (Galvão & Dourado, n.d.).
Apesar de apresentarem um fraco rendimento, é comum nestas crianças a existência de
uma inteligência superior há esperada para a respetiva idade (Peixoto & Campos, 2013
tal como citado em Mello, 2016).
Apesar de muitos casos não serem reportados, segundo a American Academy of
Child and Adolescent Psychiatry estima-se que esta perturbação afete cerca de 7
crianças em cada 1000 e cerca de 1% ao nível da população psiquiátrica (Galvão &
Dourado, n.d.). Parece ainda haver um maior número de crianças do sexo feminino
diagnosticadas com esta perturbação (Peixoto, 2006).
É sabido que a linguagem desempenha um papel crucial na interacção com os
outros, sendo um elemento chave para a sobrevivência enquanto espécie, permitindo
que nos adaptemos ao meio que nos envolve. Deste modo, o silêncio por parte destas
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crianças tem consequências ao nível do seu desenvolvimento social, sobretudo no
contexto escolar, como já fora mencionado (Galvão & Dourado, n.d.)
No processo de adaptação à escola é fundamental que a criança seja capaz de se
expressar verbalmente, de modo a poder interagir com maior facilidade com os seus
colegas e docentes. O facto de as crianças não se expressarem verbalmente,
comprometendo as suas interacções, aumenta a probabilidade de estas ficarem mais
isoladas, podendo regredir e perder a noção de ser humano enquanto animal social, bem
como desenvolver doenças psicológicas (Mello, 2016).
Apesar de não existir uma intervenção exclusiva para o Mutismo Seletivo, torna-
se fundamental intervir de modo a aliviar a angústia e sofrimento que estas crianças
sentem e reduzir o impacto que esta perturbação tem em diversas áreas da sua vida
(Mello, 2016).
Neste sentido, as terapias psicodinâmicas interpretam o Mutismo como um
sintoma que reflete conflitos intrapsíquicos e, deste modo, o ato de falar adquire um
significado inconsciente (Yanof, 1996 tal como citado em Campos & Arruda, 2014).
Tendo isso em conta, é comum a utilização de terapias com base na brincadeira que
objetivam a resolução dos conflitos apresentados por crianças com esta perturbação
(Anstendig, 1998; Cohan, Chavira, & Stein, 2006).
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Desse modo, o psicanalista deve atuar tendo em conta que o fundamental é a
preservação do self do paciente e, para tal, é essencial que este saiba equilibrar
momentos em recorre a comunicação verbal e momentos em que não comunica. Assim,
permite ao paciente, neste caso à criança, a expressão livre de acontecimentos
significativos (Coelho Jr. & Barone, 2007). O terapeuta tem ainda de ser capaz de
interpretar as angústias da criança através da comunicação verbal e também não não-
verbal (Bicudo, 2003 tal como citado em Campos & Arruda, 2014).
Na intervenção, o terapeuta pode usar o silêncio como ferramenta, adquirindo
duas possíveis funções, ora como “figura do vazio” ora como “estratégia de calar-se”
(Green, 1979 tal como citado em Pereira & Reis, 2019). Ao adotar esta postura, ou seja,
a de não falar como estratégia terapêutica, o psicanalista está a equiparar a postura
silenciosa a uma escuta ativa, em que apenas intervém para encorajar a criança a falar
ou fornecer apoio verbal. No processo de escuta o terapeuta deve ter a capacidade de ser
surpreendido com os conflitos expressos pela criança, “devendo realizar um esquema,
ou seja, refletindo sobre os conflitos pulsionais, fazendo um desenho das fantasias
presentes no discurso” (Pokorski, 2018). Assim, o terapeuta deve reconstruir as
fantasias primitivas da criança, esquecer a reconstrução e deixar que esta atue, deixando
que seja uma manifestação por parte da criança a transformar essa reconstrução em
“imagens animadas” (Nasio, 2001, tal como citado em Pokorski, 2018).
A comunicação por meio de palavras e a fala são apresentadas como um objeto
capaz de ser manipulado em contexto terapêutico (Pereira & Reis, 2019). Assim, é dado
ênfase à compreensão da linguagem não verbal, analisando gestos e tentando codificar o
significado que tem o silêncio (Pokorski, 2018).
A Ludoterapia representa outra das propostas terapêuticas para casos de Mutismo
Seletivo, constituindo-se como uma ferramenta chave, visto que permite que as crianças
comuniquem os seus sentimentos, conflitos inconscientes e emoções de um modo
compatível com a sua idade desenvolvimental (Snow, Hudspeth, Gore, & Seale, 2007).
Através da brincadeira estas crianças podem explorar os acontecimentos significativos e
resolver as suas dificuldades, tendo sempre por base um ambiente seguro (Fernandez &
Sugay, 2016). Este ambiente faz com que a criança não se sinta pressionada a falar e,
desta maneira, sente-se confortável para se expressar de modo livre, independentemente
do modo como se expressa (Hultquist, 1995 tal como citado em Fernandez & Sugay,
2016).
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Contudo, apesar de poder ser livre e ausente de estrutura, a brincadeira pode
apresentar regras, tornando o ato de brincar um aspeto fulcral no desenvolvimento
infantil dado que, através dos “processos de simbolização e de representação” as
crianças passam a ser capazes de pensar de modo abstrato (Vygotsky, 1991 tal como
citado em Ribeiro, 2013). O brincar reflecte o modo como a personalidade da criança
está organizada no momento presente, funcionando como um meio de estruturação das
organizações futuras (Lebovici, 1985 tal como citado em Menicalli, 2002).
No entanto autores como Bettelheim (1979), acham essencial distinguir
brincadeira de jogo pois, apesar de usados no mesmo contexto, têm significados
distintos. Segundo este autor, na brincadeira apenas existem as regras que a própria
criança estabelece, que se caracterizam por serem mais flexíveis, não havendo um
objetivo pré-determinado no ato de brincar. Por outro lado, o jogo apresenta regras
previamente determinadas quanto há manipulação dos materiais, conferindo-lhe um
carácter competitivo. Assim, através do jogo, a criança está sujeita a uma maior
restrição ao nível na sua capacidade de imaginar. Ao contrário da brincadeira, o jogo
objetiva algo em concreto, neste caso, o objetivo é vencer o jogo. As regras surgem
como um modo de tornar a descarga de impulsos mais restrita, assumindo um carácter
de “imposição da realidade”, fazendo com que a criança assuma as consequências que a
sua jogada traduz (tal como citado em Menicalli, 2002).
Na Ludoterapia é fornecido à criança um conjunto de objetos que podem ou não
ter uma forma definida, de entre os quais podemos encontrar “bonecos, carrinhos,
guaches, massinhas de modelar, módulos de montar” entre outros (Menicalli, 2002). O
modo como a criança manipula os materiais e brinquedos é o fator primordial da
Ludoterapia uma vez que nos permite entender o modo de funcionamento da criança
bem como o significado simbólico associado à recusa da fala (Cohan, Chavira, & Stein,
2006). O significado simbólico associado ao ato de brincar e jogar está dependente do
contexto em que a criança se encontra, da sua idade, acontecimentos de vida e do modo
como se encontra no momento. Assim, de acordo com Melanie Klein a análise do jogo e
brincadeira deve ter em consideração os mecanismos de “deslocamento, condensação,
representação visual e simbolização” (Ribeiro, 2013).
O terapeuta fornece diversos jogos e atividades, permitindo à criança brincar
livremente, tendo esta o controlo sobre a temática, as histórias e respetivo enredo
(Fernandez & Sugay, 2016). Através do brincar e dos jogos, a criança pode expressar as
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suas fantasias e tentar alcançar a “satisfação dos desejos de forma sublimada”, o que é
essencial na manutenção de uma boa atividade mental (Menicalli, 2002).
A Ludoterapia pode ainda ser usada como forma de aceder a experiências do
passado que podem ter provocado sofrimento à criança (Campbell & Knoetze, 2010).
Através da brincadeira esta pode tomar consciência de que essas situações a magoaram,
tendo assim uma possibilidade de lidar com os seus medos e adquirir algumas
competências que futuramente lhe permitirão lidar de outra forma com determinadas
situações, antes receadas (Landreth, 2002 tal como citado em Fernandez & Sugay,
2016).
Para além disso, no decurso da sessão de Ludoterapia, é importante verificar se
estão presentes alguns aspetos, de entre os quais: reprodução de situações do quotidiano
da crianças, nomeadamente das suas rotinas; modificação do padrão de brincadeira ou
seja, se o tempo que permanece em cada atividade é equiparável ao de crianças da sua
faixa etária; assertividade no comportamento e respeito pelas regras instituídas; e, dados
fornecidos pela mãe acerca da autonomia da criança ao nível das tarefas do seu dia a dia
e ao nível relações interpessoais (Windholz, 1988 tal como citado em Ribeiro, 2013;
Bomtempo, 1992 tal como citado em Ribeiro, 2013).
O principal foco da Ludoterapia em crianças com Mutismo Seletivo é que estas
expressem os seus conflitos intrapsíquicos objetivando que deixem de permanecer em
silêncio, não pretendendo apenas eliminar o comportamento de mutismo (Cohan,
Chavira, & Stein, 2006).
Neste sentido, mais importante que incentivar a criança a falar é entender o que
significa o seu silêncio, podendo este estar presente como uma estratégia para “manter a
integridade egóica”. Desse modo, pressionar a criança a falar poderia afetar a estrutura
do ego ao diminuir as suas respetivas defesas (Weininger, 1987 tal como citado em
Campos & Arruda, 2014).
Tendencialmente, as crianças aderem bem à Ludoterapia, estabelecendo uma boa
relação terapêutica com o clínico. Apesar disso, quando são propostas atividades
projetivas, algumas crianças apresentam algumas reticências, o que não favorece a
interpretação das suas dificuldades e o diagnóstico de uma possível perturbação
(Ribeiro, 2013).
Apesar de a Ludoterapia apresentar bons resultados no tratamento do Mutismo
Seletivo, não existe um modo exclusivo para fazer face a esta perturbação, cabendo ao
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terapeuta ser criativo no modo como tenta estabelecer uma comunicação eficaz com a
criança.
Seja qual for o tipo de intervenção, o terapeuta deve ter respeito pelo tempo da
criança e pelas suas necessidades, tentando sempre ser genuíno com a mesma, prezando
a “sensibilidade, dedicação, carinho” (Menicalli, 2002).
Conclusão
O Mutismo Seletivo caracteriza-se por uma recusa na fala presente em diversos
contextos que, por norma estão associados a algum tipo de stress e, apesar de haver
recusa da fala, a capacidade de comunicar verbalmente está intacta. Esta perturbação
afeta maioritariamente crianças em idade escolar, estando por norma associada a um
comprometimento do funcionamento neste contexto.
O diagnóstico desta perturbação ocorre por norma dos 3 a 7 anos, no entanto,
muitos casos não são reportados, o que dificulta uma intervenção precoce. Assim,
muitos casos não são devidamente tratados levando a diversas consequências a nível
funcional e psíquico, de entre as quais, dificuldades na interacção social e elevados
níveis de angústia e sofrimento.
Deste modo, na tentativa de reduzir o impacto desta perturbação na vida da
criança e melhorar o seu funcionamento a diversos níveis, é importante intervir
adequadamente. Para tal, o mais importante é usar o silêncio como uma ferramenta
terapêutica e não como um impedimento à terapia.
A psicanálise e a Ludoterapia, utilizando métodos distintos, objectivam a
compreensão dos conflitos internos que estão inerentes ao Mutismo Por um lado, a
psicanálise foca a expressão livre desses conflitos tendo por base uma escuta atenta e
preservando sempre o self da criança. Por outro lado, a Ludoterapia recorre à
brincadeira e ao jogo como modo de expressão, permitindo que a criança espelhe no ato
de brincar situações do seu quotidiano e que podem estar na base do comportamento do
Mutismo.
As terapias psicodinâmicas apresentam-se assim como bastante eficazes na gestão
do silêncio característico do Mutismo Seletivo, focando-se sobretudo no significado que
está por detrás do mesmo e não apenas em extinguir esse silêncio.
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