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Sarilhos do Amarelo

Texto de Pedro Sales Luís Rosário,


José Carlos Núñez Pérez e Júlio António González-Pienda

Ilustração de Ricardo Roque Martins

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Título
Sarilhos do Amarelo

Autores
Pedro Sales Luís Rosário
José Carlos Núñez Pérez
Júlio António González-Pienda

Ilustração
Ricardo Roque Martins

Design
GSA Design

Editora
Porto Editora

© Porto Editora, Lda. – 2007


Rua da Restauração, 365
4099-023 Porto – Portugal

Reservados todos os direitos.


Esta publicação não pode ser reproduzida nem transmitida, no seu todo
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NOV/2013

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Há um menino especial na minha vida.
Um menino com o nome de Anjo Guerreiro, que procura um
Amarelo na sua vida sem parar para descansar, apesar de o corpo
exausto reclamar.
Quando o corpo está maçado, acredita que vai melhorar.
Quando está muito cansado, brinca para espantar o desagrado.
Quando as pernas estão marotas, enlaça o forte pescoço do pai.
Quando está triste, bebe alegria na luz quentinha do Sol.
Quando sorri, até o azul do céu lhe pisca o olhar.
Este menino de pijama com botões à homem ensinou-me com o seu viver
que todos procuramos um Amarelo e, para lá, “há sempre um caminho, quem
não desistir há de conseguir”.
Este menino de olhar irrequieto e transparente apontou-me o caminho com
o seu sorriso.
Obrigado, menino.

Outros meninos passeiam no meu sorrir, a Alice, a Lourinha, o Pelinho, o Tocas


e o Micos; esta estória nasceu com eles, esta estória crescerá com eles.
Por fim, mas os últimos são os primeiros, abraços e beijinhos que cheguem
para todos os meninos e meninas que seguiram no encalço do Amarelo quando
a estória era apenas um texto enxuto sem desenhos.
Esta estória nasceu amparada por mãos que acreditam no poder transformativo
das estórias, e teve uma infância muito feliz.
Foi alimentada por bocas generosas e olhares sorridentes,
e acarinhada por ouvidos ávidos de aventuras que adubem o crescer.
A todos, e são muitos, um abraço amigo que vos envolva como só os carinhosos
ramos das árvores sabem fazer.

Pedro Sales Luís Rosário


janeiro de 2007

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Com que então, Amarelinho, tu fugiste? Coisa feia...
Quer dizer: fugir às vezes até apetece, não é? E isto de
passar a vida inteira no arco-íris deve cansar! O pior é que
os teus amigos ficaram muito aflitos, e essas coisas não se
fazem aos amigos. Mas eles aprenderam muita coisa en-
quanto te procuraram, e conheceram muita gente, e ouvi-
ram muitas histórias, e ficaram a saber o que é preciso fazer
para se chegar onde se quer – mesmo que, à partida, tudo
pareça muito confuso e complicado.
Quer dizer: todos cresceram muito.
E os meninos que participarem nesta aventura de encon-
trar o Amarelinho, decerto vão também aprender muitas
coisas e entender que não há nada melhor do que trabalhar
com alegria para um dia sermos donos da nossa vida.
Donos do arco-íris.

Alice Vieira
julho de 2006

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Olá.
Eu sou o tio Jarbinhas, pelo menos é assim que todos
me chamam, e hoje vou contar-vos uma história tão an-
tiga que só a Pedra-do-Lagarto, a fiel guardiã das estó-
rias e dos acontecimentos importantes do bosque, co-
nhece. Por isso, meninos e meninas, muita atenção que
a estória vai começar.
O Sol voltava sempre ao bosque. Vestido de laranja ou
de uma mistura apetitosa de tons; o grande círculo rodo-
piava, rodopiava, rodopiava até ficar tonto, enquanto
cumprimentava os amigos. Abria generosamente os

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seus raios espreguiçando-se devagarinho e inundava o
bosque de luz, fazendo cócegas quentinhas em tudo o
que tocava.
De manhãzinha é sempre um corrupio no bosque.
Os coelhos fazem caretas cómicas quando o Sol se es-
frega nas suas compridas orelhas, e os esquilos correm
atrás dos irrequietos pontos de luz que insistem em
correr para cá e para lá, confundindo-os. Quando desis-
tem, de língua e vergonha de fora, escondem o focinho
na peluda cauda. No rio pintado de um transparente
azulado, os peixes cumprimentam o Sol espalhando bo-
linhas na água que se desfazem em círculos cada vez
maiores, ondulando um olá gigante na superfície. Os
passarinhos saúdam o nascimento do novo dia com tri-
nados afinados, disputando a atenção do Sol que, muito
orgulhoso e concentrado, orquestra o ruidoso concerto
das aves. As plantas, esticando-se em bicos dos pés, es-
preguiçam-se para receberem as carícias do amável
beija-flor. Neste mundo em tons de verde e castanho,
mesmo com as partidas brincalhonas do Sol, todos de-
sejam os seus calorosos bons-dias.
Apesar da aparente confusão, o Bosque-sem-Fim pa-
rece um relógio suíço sempre muito certinho. No seu
ritmo, cada um cumpre as suas tarefas, e, por isso,
tudo funciona. As plantas estendem as suas raízes ten-
tando beber a água que se esconde na terra profunda,
as abelhas farejam o pólen nas flores que se agitam ao

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sabor do vento, as esforçadas formigas, tostadas pelo
Sol, carregam sem distrações os alimentos recolhidos
para a sua despensa subterrânea. Os pássaros sabo-
reiam bagas deixando cair algumas, que outros, em
baixo, sorrateiramente aproveitam. Os peixes de cores
garridas nadam alegres ao longo do rio, deliciando-se
com o que a água lhes serve generosamente; os ursos
esfregam as suas costas nas gordas e rugosas árvores
enquanto se preparam para, sem dar nas vistas, reco-
lher uma mão-cheia de mel na colmeia das abelhas…
Todos estão ao serviço de todos. Juntos ajudam-se,

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juntos fazem maravilhas. Aprenderam isso há muito,
muito tempo, e não estão dispostos a mudar.
Ah, é verdade, já me esquecia, neste bosque também
vivem as cores do Arco-Íris. O Vermelho, rápido e deci-
dido, é o mais velho; seguido do Laranja, rechonchudo
e muito sábio; do Amarelo, um pouco tímido, mas sem-
pre pronto para se meter em trapalhadas; do Verde,
curioso e irrequieto sempre à espreita de uma aventura;
do Azul, brincalhão e distraído; do Anil, sempre muito
preguiçoso (dizem as más-línguas que já nasceu can-
sado) e, por último, mas os últimos são os primeiros,
do forte e corajoso Violeta. Sete amigos. Todos, quando
juntos, formam o Arco-Íris.

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A verdade verdadinha é que quando o tempo ainda
andava de calções, que é como quem diz, há muito,
muito tempo atrás, a calma habitual do bosque foi sacu-
dida por um grito assustado:
– O Amarelo desapareceu, o Amarelo desapareceu…
O Vermelho deu o alarme e a notícia espalhou-se ra-
pidamente. Num abrir e fechar de olhos, as cores do
Arco-Íris estavam reunidas e não queriam acreditar no
que ouviam. Não, não podia ser verdade! O Amarelo
não podia ter desaparecido, por certo tinha saído para
passear e estava apenas atrasado; logo, logo estaria de
regresso ao aconchego do Arco-Íris. Mas esta certeza foi
perdendo força, à medida que o tempo passava e o ner-
voso das cores aumentava.
“Talvez o Amarelo tenha mesmo desaparecido!”,
pensavam algumas cores com os seus botões, porque
não tinham coragem para o dizer em voz alta.
O Anil não aguentou a espera e começou a chora-
mingar:
– Nunca mais vou ver o Amarelo! – disse num tom
mimalho.
O Laranja deu-lhe um abraço para o confortar mas,
como era muito forte e redondo, ia esmagando o amigo.

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– Talvez o Amarelo tenha sido raptado – sugeriu o
Verde, sempre desejoso de aventura e perigo.
– Sim, deve ter sido isso. Rápido, temos de o salvar!
– O Amarelo deve estar sozinho e muito triste.
– Por certo, obrigaram-no a beber um líquido horrí-
vel para mudar de cor e não o reconhecermos.
Falavam todos ao mesmo tempo; todos queriam aju-
dar; todos queriam rever o Amarelo, mas no meio da-
quela confusão ninguém se entendia. Como costumava
dizer a Pedra-do-Lagarto: “Há um lugar para cada coisa
e cada coisa deve estar no seu lugar”, mas poucos en-
tendiam os seus sábios conselhos.
– Calma, calma – recomendou o Vermelho tentando
sossegar os amigos –, o Amarelo deve estar por perto,
alguém quer vir procurá-lo comigo?
A ideia do Vermelho foi bem acolhida e as cores co-
meçaram a procurar o Amarelo por todo o lado. Vascu-
lharam atrás das pedras, nas poças do caminho, nas
bolas de sabão, confirmaram se estaria a brincar com as
flores ou a tirar uma soneca junto dos pachorrentos la-
gartos. Passado algum tempo regressaram de braços e
ânimo caídos. Nenhuma tinha encontrado qualquer
pista.
O Amarelo tinha sumido sem deixar rasto. O que lhe
teria acontecido? Esta era a pergunta que todo o bosque
tinha na ponta da língua, embora ninguém falasse aber-
tamente do assunto.

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O silêncio triste foi interrompido pelo Azul:
– Sozinhos não conseguiremos resolver este pro-
blema. Para o encontrarmos precisamos de ajuda.
– Sim, mas ajuda de quem? – perguntou o Violeta
num tom aflito.
– Acho que devíamos ficar aqui sossegadinhos à es-
pera. É muito mais seguro e muito mais descansado –
respondeu o Anil, no meio de um prolongado bocejo.
– Não! Podemos pedir ajuda ao Rio-dos-Soluços, ele
saberá o que fazer – decidido, o Verde não esperou pela
resposta dos amigos e correu pelo vale tateando o som
da água.

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As cores seguiram-no sem hesitar e chegaram muito
rapidamente à margem do rio, mas, agora que ali esta-
vam, não sabiam bem o que dizer. Envergonhadas,
davam pequenas cotoveladinhas umas nas outras para
que alguma decidisse falar. Finalmente, o valente Verde
quebrou o silêncio:
– Olá, Rio-dos-Soluços. Bom-dia.
– O que é que se passa aqui? – perguntou o Rio-dos-
-Soluços com uma voz grossa.

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– Sou o Verde do Arco-Íris e queria falar contigo, isto
é, se não te incomodares… – a voz irregular denunciou
o nervosismo da cor.
– Olá, hipps, porque é que, hipps, estás a interromper,
hipps, o meu descanso? – respondeu o rio no meio de
muitos soluços.
Não havia dúvida: o nome daquele rio só poderia ser
Rio-dos-Soluços.
– Desculpa, Rio, mas temos um problema. O nosso
amigo Amarelo desapareceu sem deixar rasto. Conhe-
ces o Amarelo? Sabes onde ele está? Podes ajudar-nos
a encontrá-lo? – perguntou o Azul sem parar para res-
pirar.
– Olha, Rio-dos-Soluços, sabes para onde foi o Ama-
relo? – o Laranja estava tão preocupado que não conse-
guiu parar aquela pergunta precipitada.
Ignorando aquela agitação preocupada, o rio respon-
deu com uma pergunta, desta vez sem soluçar:
– Porque é que querem encontrar o Amarelo?
– Ora, porque ele é nosso amigo e está perdido – res-
pondeu o Verde sem hesitar.
– Sabes, Rio, somos as sete cores do Arco-Íris, e todas
somos importantes. Não podemos deixar o Amarelo
para trás – explicou o Violeta com convicção.
– Muito bem, muito bem, hipps – o Rio-dos-Soluços
fez uma pausa para refletir, e continuou. – Digo-vos ape-
nas que há um caminho, hipps, há sempre um caminho,

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hipps. Quem não desistir, há de conseguir, hipps. Podem
ter momentos difíceis, mas nunca se esqueçam disto, e
agora boa viagem, hipps. Espero que a planifiquem bem,
hipps. Até à próxima, adeus, adeus. Hipps!
O Rio-dos-Soluços despediu-se aos solavancos ao
longo do vale, deixando atrás de si um rasto molhado e
as cores com um ar espantado. Em silêncio, todos ten-
tavam entender a complicada mensagem.
– Grande ajuda nos deu o Rio-dos-Soluços... Eu não
entendi nada – disse o Azul sem disfarçar o seu aborre-
cimento.
O irrequieto esquilo Sarabico que acompanhava as
cores para todo o lado confirmou o desconforto do
amigo, agitando nervosamente a cauda peluda.
– Eu bem vos disse que devíamos ter ficado a descan-
sar, em vez de partirmos para atalhos e trabalhos… –
concluiu o Anil, sempre a arfar de cansaço.
– Planificar?! O que será “planificar”? – perguntou
curioso o Vermelho.
Como ninguém conhecia a resposta, as cores afasta-
ram-se em silêncio e, no caminho, só se ouviram os res-
mungos do Anil e os gemidos das pedrinhas que, aqui
e ali, eram pontapeadas por alguma cor para espantar o
seu aborrecimento.
– Planificar quer dizer pensarmos bem antes de fa-
zermos alguma coisa. Pensarmos quando, como e com
que materiais vamos fazer o que queremos – uma águia

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majestosa, com um sorriso rasgado, interrompeu os
cinzentos pensamentos das cores do Arco-Íris. – Por
exemplo, lá nas alturas, quando eu vejo um apetitoso
coelho correr entre as árvores, planeio o meu ataque,
apanho uma corrente de ar favorável e desço com velo-
cidade, caçando-o em movimento. Nunca gasto energia
voando à toa para lá e para cá; este é o segredo da minha
eficácia como caçadora. Mas, afinal, digam-me lá por-
que estão todos tão cabisbaixos?
– Estamos tristes. O Amarelo desapareceu. Águia­
‑Sorridente, sabes para onde foi o nosso amigo? – per-
guntou o Azul com o olhar a rastejar no chão.

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– Tenho pena, mas não posso ajudar-vos. Nos meus
voos nunca vi o Amarelo, e agora não posso procurá-lo,
estou ocupada com a alimentação dos meus filhotes.
Mas espero que tenham um bom plano para encontrar
o vosso amigo. Boa viagem – desejou-lhes a Águia­
‑Sorridente antes de se afastar nos braços do vento.
– E agora, o que vamos fazer? – perguntou, sem es-
perar resposta, o Violeta.
As cores do Arco-Íris estavam um pouco desmaia-
das, não sabiam por onde começar e sentaram-se a
descansar.

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O Vento brincava com as folhas levantando-as no ar,
e dobrava as copas das árvores obrigando-as a cumpri-
mentá-lo, o que as deixava um pouco aborrecidas; mas
as suas partidas eram engraçadas e, no fundo, no fundo,
ninguém se conseguia zangar com o Vento.
As cores ficaram despenteadas com tamanha venta-
nia, mas o ar foi também invadido por uma grande

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algazarra de sons, e, curiosas, as cores levantaram o
olhar para a copa das árvores. Num dos ramos, um
Pássaro-Professor treinava um pequeno grupo de pas-
sarinhos juvenis que arriscavam os seus primeiros
voos. Alguns, de peito feito, aproximavam-se da ponta
do ramo e atiravam-se sem hesitar, mas outros avança-
vam e recuavam tentando ganhar coragem para o as-
sustador salto no vazio. O Pássaro-Professor voava
perto, animando-os e corrigindo os seus movimentos,
mas todos os pássaros sabiam que, para aprenderem,
não bastava a ajuda do empenhado Pássaro-Professor;
era necessário que se esforçassem e trabalhassem

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muito. Aprender mais e melhor dependia, sobretudo,
do que cada um fizesse.
– De asas fechadas ninguém aprende a voar! – di-
zia-lhes o velho Pássaro-Professor, tentando equilibrar
os óculos que insistiam em escorregar durante as
acrobacias.
A meio da manhã, os passarinhos escutaram o dese-
jado: “Intervalo para descanso”. De língua à banda e
asas doridas, os alunos agradeceram em voz baixa
aquela pausa e acomodaram-se para ouvir a estória. O
Pássaro-Professor pousou num ramo baixinho, tossi-
cou para aclarar a voz, e começou mais uma das suas
magníficas estórias.
– Era uma vez, numa escola de veados – o tom era
grave e pausado –, um pequeno veado que se recusava
a correr e a saltar com os colegas. Apesar dos inúme-
ros alertas do Veado-Professor, este pequeno preferia
comer erva calmamente e descansar à sombra das ár-
vores em vez de treinar como os outros. Como não se
esforçava nem fazia exercício, ficou muito pesado, de-
masiado pesado para correr e saltar entre as árvores
do bosque. Preocupado com a sua saúde, o Veado­
‑Professor recomendou-lhe uma alimentação mais
equilibrada e uma lista de exercícios físicos, mas o
jovem veado, convencido de que sabia tudo, fez ouvi-
dos de mercador e continuou calmamente a mastigar
a sua erva preferida. Uns tempos depois, num riacho,

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o pequeno veado conheceu um gafanhoto que o convi-
dou para brincar. O saltitão verde era muito ágil e de-
safiou o veado para um concurso de saltos em compri-
mento, saltando primeiro. Orgulhoso, o veado não
quis ficar atrás do gafanhoto e imitou-o, mas, como
era inexperiente e muito pesado, caiu desamparado
magoando seriamente uma pata. O vitorioso gafa-
nhoto afastou-se sem olhar para trás e o veado, cheio
de dores, arrependeu-se de não ter seguido os conse-
lhos do Veado-Professor, mas já era tarde. Vitória…
O Pássaro-Professor parou por aqui, e os passarinhos
terminaram em coro:
– Vitória, vitória, acabou-se a estória. A lição que ouvi
vou tentar aplicar. A lição que aprendi vou tentar recor-
dar. Vitória, vitória, adeus linda estória.
Algumas das cores também conheciam o refrão e, lá
em baixo, repetiram-no com os passarinhos.

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– Olhem, olhem o que eu encontrei – gritava con-
tente o Laranja, levantando bem no ar um pequeno
papel amarelo dobrado em forma de galinha.
– É uma mensagem do Amarelo. Ele está sempre a
dobrar folhas de papel em formas de animais – gritou
o Verde de entusiasmo.
– Mas qual será o significado desta mensagem? –
perguntou o Vermelho, sempre muito realista.
– Galinha, galinha, deixa ver… o Amarelo estará
com medo? – perguntou o Violeta pouco convencido.
– Quando é que voltamos para casa? Estou exausto
– queixou-se o Anil que se cansava até a pestanejar.
– Não, com medo não! Acho que o Amarelo quer
dizer-nos que está perto de uma galinha. Deve ser
essa a mensagem – sugeriu o Azul, animado com a
ideia.
– Então, vamos! – disseram várias cores ao mesmo
tempo, prontas para partir.
– Mas vamos para onde? – perguntou o Vermelho,
tentando colocar alguma ordem naquele entusiasmo
desnorteado.
– Antes de partirmos, temos de elaborar um plano
– disse o Violeta.

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– Sim, temos de pensar bem no que vamos fazer e
no que precisamos de preparar antes de partir, como
nos ensinou a Águia-Sorridente – acrescentou o Verde.
Fizeram uma roda e juntaram as cabeças no centro,
como fazem as cores antes de tomar decisões e, depois
de muito falar, distribuíram tarefas: umas cores foram
procurar informações sobre galinhas e galinheiros das
redondezas, enquanto outras prepararam as mochilas e
os farnéis para a viagem. Atarefadas, as cores sorriam
de contentamento: estavam a planificar.

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Não havia tempo a perder, o Arco-Íris não podia
apresentar-se no bosque sem o Amarelo, e, logo, logo
todos dariam pela falta. Recolhidas as informações
sobre os galinheiros mais próximos e preparados os far-
néis, as cores puseram pés ao caminho. O objetivo es-
tava longe e tinham de o dividir em pequenas etapas.
– Para chegar ao topo de uma árvore, é preciso come-
çar a trepar, mas subindo um ramo de cada vez, era o
que nos ensinava o meu avô – disse o Sarabico aos ami-
gos, contente com o exemplo.
As cores subiram por caminhos íngremes, saltaram
poças, nadaram atrás dos peixes no rio e comeram mel
servido pelas diligentes abelhas. Muitas curvas depois
da partida pararam para descansar e beber água fres-
quinha numa fonte.

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No chão, o olhar atento do Violeta detetou um exér-
cito de formigas muito ordenadinho e chamou os ami-
gos. O Vermelho aproximou os olhos do chão, e diri-
giu-se à formiga que comandava aquela multidão de
patinhas.
– Olá, Formiga-General – a formiga parou, levantou
as antenas e tossiu com um ar importante, parecia ter
gostado da formalidade do cumprimento. – Desculpa a
interrupção. Estamos à procura do nosso amigo Ama-
relo que desapareceu sem deixar rasto. Nos vossos pas-
seios pelo bosque, por acaso não o viram, não?
A Formiga-General deu “alto” às tropas e respondeu
indignada:
– Ilustre Vermelho, nós não passeamos. Nós deslo-
camo-nos no terreno – se fosse possível o Vermelho
teria corado. – Como ia dizendo, somos um exército or-
ganizado e instruído na antiga tradição PLEA – o Ver-
melho fez um ar de espanto, felizmente a formiga não
reparou. – Antes de agir, antes de fazermos qualquer
coisa, planificamos (PLEA). Como nos ensinaram as
nossas avós formigas, em primeiro lugar estabelece-
mos um plano para as nossas deslocações no terreno, o
que quer dizer pensar antes…

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– Isso da planificação deve ser mesmo importante,
em tão pouco tempo já ouvimos falar dela duas vezes –
comentaram as cores em voz baixa para que a formiga
não escutasse.
– Como estava a dizer – continuou a formiga com
um tom militar –, para planificar, primeiro fazemos
uma lista daquilo que precisamos de saber e de fazer
para que tudo corra bem. Depois, para evitarmos pro-
blemas, distribuímos o tempo total pelas tarefas – im-
pressionadas, as cores acenaram positivamente com a
cabeça (elas perdiam tempo em cada esquina!). Se-
gue-se a segunda fase: a execução (PLEA), que quer
dizer pensar durante. Quando nos deslocamos, eu
coordeno as tropas para que tudo corra de acordo com
o previsto.

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A Formiga-General falava com muita segurança e
desembaraço, dava gosto ouvi-la. As cores uniram as ca-
beças para não perderem nenhuma das suas palavras,
até o Sarabico assistiu quietinho, espreitando pelo anel
que sobrou no meio das cabeças das cores, o que para
um esquilo irrequieto é uma grande façanha. Entusias-
mada com o interesse das cores, a Formiga­‑General,
tossicou novamente e continuou:
– Cada uma das nossas caminhadas envolve a deslo-
cação de muitos meios e esforços, temos de carregar
muito alimento para as nossas enormes despensas, res-
peitando os prazos previstos. Não nos podemos enga-
nar no caminho, nem desperdiçar energia a andar para
cá e para lá; por isso confirmo constantemente o nosso
rumo. No exército das formigas chamamos a esta ope-
ração ‘monitorizar’, que quer dizer confirmar se está
tudo a correr como previsto – as cores estavam pasma-
das com tanta sabedoria. – Por fim, entramos na ter-
ceira e última fase: a avaliação (PLEA), que quer dizer
pensar depois. Quando terminamos uma etapa temos
de avaliar se cumprimos o que tínhamos previsto, se
carregámos alimento suficiente, se nos atrasámos, se
nos afastámos do caminho da despensa… O ciclo PLEA
completa-se, estão a entender?
– Estamos. Muito obrigado pela brilhante explicação
sobre o ciclo PLEA, mas estamos mesmo muito preocu-
pados. Por acaso não viste o Amarelo? – perguntou o

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Verde, já um pouco cansado de tanta explicação com
tão pouca ação.
– Não, não o vi, sinto muito – respondeu a Formiga­
‑General, agora num tom mais humilde. – Mas posso
dizer-vos que o segredo de um qualquer final feliz é um
início bem pensado, um meio bem executado e um fim
bem avaliado. Adeus, adeus, boa viagem, amigas cores.
As cores despediram-se das organizadas formigas
um pouco desconsoladas com o resultado final, mas a
verdade é que tinham aprendido muitas coisas novas.
Quem diria que uma formiga tão pequena lhes podia
ensinar tanto.
– Afinal, aprender está à distância de um querer –
concluíram entre todas.
– E, como diz o Pássaro-Professor: de asas fechadas
ninguém aprende a voar – juntou o Violeta.
– É verdade, mas depois de todo este esforço intelec-
tual, podíamos aproveitar para descansar um bocadinho…
– queixou-se o Anil no meio de um enorme bocejo.
– Nãooo! – gritaram todos em simultâneo, rindo-se
de seguida.

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Pensativas, as cores continuaram o caminho. Muitos
passos depois, o Laranja começou a trautear uma can-
ção. Os irmãos juntaram-se à cantoria e o ambiente ani-
mou com o acompanhamento musical dos passarinhos.
Cada cor escolhia uma canção e todos cantavam.
Quando alguém se esquecia da letra, inventava uma
outra, ou substituía-a por “lá, lá, lá”. Todos se riram
muito, foi divertido. Ainda não tinham terminado a pri-
meira rodada de canções quando encontraram um pân-
tano de areias movediças.
– E agora, o que fazemos? – perguntou o Violeta sem
esconder o medo que sentia crescer no seu interior.
– Agora continuamos, porque para a frente é que é
o caminho – respondeu o Verde sempre a transbordar
esperança.
As areias borbulhavam soltando uns ploc assustadores
e as cores olhavam com receio aquela ameaçadora pasta
castanha. Antes de avançar, as cores decidiram preparar
um plano: definiram o objetivo, observaram bem o local,
pensaram nos recursos que tinham, mas também no
que precisavam para ultrapassar aquele perigoso obstá-
culo. Aquela era uma magnífica oportunidade para apli-
car o que tinham aprendido com a Águia­‑Sorridente e

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com a Formiga-General. Depois de estabelecido o plano,
as cores escutaram um suave murmúrio: “não se esque-
çam, há um caminho, hipps, há sempre um caminho,
hipps. Quem não desistir, há de conseguir”, sorriram e
agradeceram a confiança do Rio-dos­‑Soluços. Todas sen-
tiram crescer dentro de si a certeza de que em breve esta-
riam do outro lado sãs e salvas.
Para cumprirem o plano, as cores puseram em mar-
cha a seguinte estratégia: o Laranja colocou o Violeta
às cavalitas, que carregou o Azul nas suas e assim por
diante. Num instante, sem brigas nem quezílias, as

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cores estavam todas encavalitadas umas em cima das
outras e, como se fossem uma, dobraram-se para alcan-
çar um ramo espetado que atravessava quase todo o
pântano. As cores empoleiradas pareciam uma trupe
de circo, desviando-se para a frente ou para trás ao som
de um “ohhhhh” arrastado, que acompanhava o dese-
quilíbrio daquele tronco colorido. No meio da confusão,
a irrequieta e peluda cauda do Sarabico fez espirrar o
Violeta perturbando a manobra colorida. Quando tudo
parecia perdido, num movimento acrobático, o Anil
conseguiu segurar o ramo e evitar uma desgraça. As
cores puxaram o ramo com força prendendo-o na mar-
gem e respiraram de alívio. Esticado, o ramo serviria de
ponte sobre as horríveis areias movediças.
– Uff, por fim conseguimos – suspiraram de alívio o
Azul e o Violeta, os responsáveis por monitorizar os
passos daquela arriscada estratégia.
O ar encheu-se de sorrisos e gritinhos de vitória. Mas
eis senão quando, o Laranja, o último a fazer a traves-
sia, deu um passo em falso e caiu desamparado no pas-
toso pântano desejoso por engolir alguma coisa. Em
pânico, o Laranja tentou resistir esbracejando, mas a
força das areias movediças era muito grande, e a cor
estava a diluir-se no castanho. As outras cores ficaram
muito aflitas vendo o amigo desaparecer entre as areias,
mas não perderam a calma. Sem hesitar, o Vermelho
amarrou-se com força ao tronco da árvore e ofereceu a

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mão ao Verde iniciando um forte cordão que as outras
cores completaram. Puxando ao mesmo tempo, as
cores conseguiram tirar o Laranja daquela lama peri-
gosa, antes que fosse tarde de mais. Não foi fácil, mas o
esforço empenhado de todos conseguiu salvá-lo.
– Quando todos ajudam, tudo é muito mais fácil –
disseram animados e, relembrando o sábio conselho do
Rio-dos-Soluços, concluíram em uníssono. – Quem
não desistir, há de conseguir.
E, sem combinar, deram um soluço gigante, soltando
uma gargalhada no final. Já em chão firme, abraçaram-
-se com alegria.
No final de mais um pedaço de aventura estavam
todos muito cansados, mas mais perto do Amarelo, e
isso era o mais importante.

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Exaustas, depois de ultrapassado aquele difícil obstá-
culo, as cores deitaram-se no chão a descansar e os
olhos apontaram as estrelas.
– Estão a ver Cassiopeia? – perguntou o Laranja, en-
quanto desenhava um W gigante no céu estrelado.
– Eu vejo milhares de estrelas, a qual te referes? –
respondeu o Azul num tom de gozo.
– Àquele conjunto de estrelas que formam um W no
céu, ali ao fundo. Estão a ver? – continuou o Laranja
com a calma de um professor.

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– Sim. Mas, no meio de tantas, porquê essa? – per-
guntou curioso o Violeta.
– Porque atrás de uma grande estrela há sempre
uma grande estória – concluiu o Laranja com uma voz
de suspense.
– Conta, conta – pediram as cores todas ao mesmo
tempo.
O Laranja lia muito e por isso sabia umas estórias
deliciosas.
– Era uma vez – o Laranja começou como sempre –
uma rainha muito, muito bonita chamada Cassiopeia,
casada com o rei Cefeu. A rainha era muito vaidosa e
passava os dias a pentear-se e a gabar-se da sua beleza
junto das Nereides, umas divindades do mar. As capri-
chosas Nereides não gostaram das provocações da ra-
inha e pediram a seu pai Poseidon que castigasse dura-
mente a linguaruda Cassiopeia. Poseidon era um deus
dos mares muito poderoso, e, para agradar às filhas,
enviou um monstro marinho para devorar Andrómeda,
a filha de Cassiopeia e de Cefeu…
– Uuuuu – gritaram algumas cores condenando o
comportamento de Poseidon. – Sem dificuldade, o
horrível monstro prendeu a princesa Andrómeda a
uma pedra e preparou-se para a devorar. Encharcada
em lágrimas, a princesa pediu-lhe que a soltasse, mas
o insensível monstro não fez caso. Quando tudo pare-
cia perdido, anunciado por uma ruidosa trompeta,

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surgiu o cavaleiro Perseu montado no Pégaso, o seu
cavalo alado. Vestido com uma armadura reluzente e
armado com a cabeça da Medusa, uma cabeça horro-
rosa com uma cabeleira de serpentes que transfor-
mava em pedra tudo o que olhava, o corajoso Perseu
avançou sem medo disposto a salvar a princesa Andró-
meda. O pequeno guerreiro encarou o terrível mons-
tro de frente e apontou a cabeleira de serpentes na sua
direção. O monstro gemeu de dor e transformou­‑se
em pedra, ficando imobilizado para todo o sempre.

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A princesa estava salva. No final, tal como era espe-
rado, Perseu casou com Andrómeda (nesta altura as
cores começaram a bater palmas de alegria). Quando
morreu, reza a lenda grega que a rainha Cassiopeia
como castigo da sua vaidade ficou sentada no céu mas
de cabeça para baixo, talvez para que ninguém se es-
quecesse dos males que a sua vaidade poderia ter cau-
sado. A constelação em for… – o irrequieto Verde não
deixou o Laranja concluir.
– O que é uma constelação?

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– Uma constelação é um grupo de estrelas que apa-
recem próximas no céu, mas que estão muuuuito dis-
tantes. A constelação Cassiopeia, por exemplo, tem 30
estrelas em forma de W – o Laranja preparava-se para
continuar, mas foi envolvido por um coro com muitas
vozes.
– Vitória, vitória, acabou-se a estória. A lição que ouvi
vou tentar aplicar. A lição que aprendi vou tentar recor-
dar. Vitória, vitória, adeus linda estória – cantaram as
cores a uma só voz.
– Obrigado pela estória, Laranja. Gostei muito – agra-
deceu o Azul.
– Eu também gostei, sobretudo da parte da cabeça da
Medusa com uma cabeleira de cobras. Mas porque é
que a constelação Cassiopeia é importante? – pergun-
tou curioso o Verde.
– A Cassiopeia aponta o Norte, temos de a seguir se
queremos encontrar o Amarelo – respondeu com con-
vicção o Laranja.
– Há algo que não bate certo nesta lenda, como é que
o cavaleiro Perseu conseguiu apanhar a cabeça horrível
da Medusa sem ficar transformado em pedra? – pergun-
tou o Violeta, sempre muito atento aos pormenores.
– Sim, qual era o PLEA dele? – perguntou o Azul
num tom malandro.
– Isso é uma outra estória, mas, resumidamente,
Perseu sabia que não podia olhar nem ser olhado pela

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cabeça da Medusa, senão virava estátua de pedra, por
isso apanhou-a a dormir e, guiando-se pelo seu reflexo
no escudo e na espada, cortou-lhe a cabeça. Do sangue
da Medusa nasceu Pégaso, o magnífico cavalo com asas.
Como veem, Perseu tinha um objetivo, estabeleceu um
plano e seguiu uma estratégia. No final, talvez por isso,
a avaliação foi positiva – concluiu com calma e sabedo-
ria o Laranja.
– Uau! – responderam várias cores ao mesmo tempo.
– Saber ler permite conhecer estórias magníficas e
aprender muitas coisas. Aprender é muito bom – con-
cordaram todos.
– Agora vamos dormir que se faz tarde – sugeriu o
Vermelho, sempre preocupado com os amigos. Algu-
mas cores bocejaram um “boa-noite” arrastado e, como
sempre, o Anil queixou-se do cansaço e da dureza do
chão, mas ninguém lhe respondeu. Por certo já esta-
vam todos a dormir.

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Na manhã seguinte, o Sol escondeu-se e o dia acor-
dou triste; a ausência do Arco-Íris estava a esvaziar a
alegria do bosque.
O Azul esticava as pernas, ali perto, quando encon-
trou no chão a segunda mensagem do Amarelo, mais
um papel amarelo dobrado em forma de galinha. Gri-
tou de alegria e foi seguido pelos amigos. Estavam na
direção certa. De mochila às costas, as cores partiram
para mais uma caminhada com a alegria renovada.

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Mas as mensagens também engrossavam as preocu-
pações de todos. “Onde estará o Amarelo?” era a per-
gunta mais ouvida durante o caminho. Tanto que até
o pacato esquilo Sarabico respondeu já um pouco
aborrecido:
– Não sei, não sei, não sei!
As cores palmilharam muitas léguas. Já cansadas, e
depois de beberem água fresquinha numa fonte, para-
ram numa planície pintada em tons de verde à sombra
de uma grande árvore. Deitaram-se no chão de mãos
cruzadas debaixo do queixo e, de longe, espreitaram
os preparativos de um piquenique muito especial.
– Queridos amigos e amigas, o tão esperado pique-
nique, o piquenique-dos-problemas, vai começar –
anunciou com lentidão a Preguiça.
– Quem é que decidiu começar o piquenique?! Eu
não quero que comece já, mas só daqui a um bocadi-
nho – disse a Birra batendo o pé, para impressionar os
demais problemas.
– Sim, foi a Preguiça que começou, eu vi, eu vi –
disse o Queixinhas, sempre pronto a criar confusão,
lançando a intriga.
– Não, não, não! Como não fui eu a abrir o piqueni-
que, não quero que comece. Aliás, quero ir embora – o
Amuo cruzou os braços, baixou a cabeça e fez cara de
mau. Mas isso não perturbou os outros problemas, ha-
bituados a fazer fitas.

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– Eu não quero que o piquenique seja aqui, eu quero
que seja ali ao lado – gritava desesperadamente o Capri-
cho, como se os seus cabelos estivessem a arder.
Aquele era mesmo um encontro de problemas. Esta-
vam sempre prontos a discutir, a chorar ou a mentir,
tentando irritar os outros. Só acalmaram um pouco
quando começou o grande concurso.
“Qual o principal problema no comportamento dos
meninos?” Este era o grande desafio e muitos os con-
correntes ao título de Imperador-dos-Problemas, mas a
Mentira, a Preguiça, o Amuo, a Desobediência e o Medo
eram os principais candidatos à vitória. Cada problema
tinha de subir ao palco, apresentar o seu lema de vida e
explicar muito bem como tenta dominar a vida dos me-
ninos pequeninos.
A Mentira foi a primeira a tomar a palavra:
– O meu lema é: “Não fui eu.” Nunca tenho culpa
das asneiras que faço, nunca assumo a responsabili-
dade. É simples, os outros são sempre os culpados de
todo o mal que eu provoco. A minha estória preferida é
a do Pedro e o Lobo. Não conhecem? Eu conto-vos: o
pastor Pedro, enquanto guardava as ovelhas no cimo da
serra, para se divertir, gritava desesperadamente que
um lobo esfomeado o estava a atacar, rindo-se das pes-
soas que deixavam tudo e corriam para o ajudar. Até
que um dia o lobo apareceu mesmo. Nessa altura o pas-
tor gritou com todas as suas forças, pedindo socorro,

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mas ninguém o ajudou. O rapaz já tinha mentido mui-
tas vezes, demasiadas vezes! E naquele dia aconteceu
um desastre… – no fim desta estória, a Mentira conse-
guiu arrancar algumas palmas da assistência. – Quando
os meninos me usam muito, as pessoas deixam de
acreditar no que eles dizem, mesmo que seja verdade.
Com o passar do tempo os amigos afastam-se, os pais
zangam-se e as complicações crescem. Mais tarde,
quando se arrependem e se querem livrar de mim, têm
muita dificuldade. He, he, he, sou ou não o vencedor?
– perguntou a Mentira à assistência. No final, ouviu
poucas palmas, a Mentira não era muito popular entre
os outros problemas.

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O candidato seguinte foi o Amuo. Subiu ao palco
vestido de vítima com o olhar a rastejar no chão e con-
seguiu muitas palmas.
– Olá, sou o Amuo. O meu lema não tem palavras, só
gestos. Quando as coisas não correm como eu quero,
quando os crescidos ou os outros meninos não seguem
a minha vontade, cruzo os braços, faço cara de mau e
calo-me. Às vezes também faço birra, batendo com o pé
no chão ou chorando como se me estivessem a arrancar
dentes – nessa altura, a Birra mandou-lhe um beijinho
voador da assistência. – Com este comportamento,
obrigo os outros a prestarem-me atenção, e quase sem-
pre consigo o que quero, basta insistir. É o que vos digo,
funciona quase sempre.
– Viva, viva – gritaram da assistência, e o Amuo dei-
xou o palco sorridente.

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– UUUuuu – o Medo entrou no palco, tentando as-
sustar os outros problemas, mas sem grande sucesso.
– Como todos sabem, temos medo do que não entende-
mos e, nessas alturas, pensamos em coisas horríveis.
No escuro, basta um pouco de imaginação para trans-
formar um brinquedo, ou uma simples planta num
vaso em monstros horríveis. Como veem, a minha ta-
refa é muito fácil. Mas nem sempre é mau ter medo.
Eu, o Medo, impeço muitas vezes os meninos de faze-
rem asneiras que os magoariam muito, mas todos pen-
sam em mim como o mau da fita… Não faz mal, eu até
gosto de ser o mau da fita. Para acabar comigo, às vezes
basta falar e tentar esclarecer o que acontece, mas pou-
cos fazem isso, e eu vou crescendo, crescendo, assus-
tando-os muito. Sou terrível, não sou?
Nenhum problema respondeu, talvez estivessem com
medo… A Desobediência foi a concorrente seguinte.
– Tenho vários lemas, os mais usados são: “Já vou,
agora não.”, “Não quero fazer, não me apetece.”, “Não
saio, não saio, não saio.”. Contrariar os crescidos, às
vezes, dá mau resultado, e os meninos ficam de castigo,
mas por vezes os adultos esgotam a paciência e já não
ligam, porque estão cansados e não querem aborrecer-se.

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Quando os meninos desobedecem muito, irritam os
pais, mas vão fazendo o que querem. Claro que ficam
caprichosos e insuportáveis, mas os meninos desobe-
dientes só o sabem mais tarde, muito mais tarde. Vou
contar-vos uma estória… Era uma vez uma pequena
Lebre muito respondona. Não respeitava as ordens dos
pais porque não lhe apetecia, porque só fazia o que que-
ria. Um dia, na ausência da mãe, afastou-se da toca, ape-
sar dos inúmeros avisos dos irmãos. “Estas regras não
fazem qualquer sentido, qual é o mal de me afastar um
bocadinho? Aqui ao lado a erva é mais tenrinha. Que exa-
gero!”, pensou a pequena Lebre com os seus botões.
Quando levantou a cabeça, saboreando tranquilamente
uma erva viçosa, viu-se rodeada de animais com olhar

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esfomeado e dentes afiados. A pequena Lebre já não re-
gressou à toca, entendem?! A sua desobediência deu
mau resultado… – a Desobediência esfregou as mãos de
contentamento e piscou o olho para a assistência. – Que
tal? Sou ou não um problema a sério?
A Desobediência foi muito aplaudida, estava muito
presente na vida de muitos meninos e os outros proble-
mas sabiam disso. O último a apresentar-se foi a Pre-
guiça. Como é muito lenta, demorou muito tempo até
começar a falar.
– Ataco a vida dos meninos fazendo com que eles não
consigam ou não queiram fazer o que devem. Comigo,
demoram um tempo infinito a acordar, a comer, a lavar
os dentes, a arrumar os brinquedos, a vestir-se… Ficam
com a vontade mole como gelatina, e só fazem o que lhes
apetece. Só têm fome para doces e energia para brincar,
tudo o resto dá muito trabalho, custa muito, é muito difí-
cil… Os meus lemas preferidos são: “depois, depois”,
“não sei fazer” e “só mais um bocadinho”. A pouco e
pouco, tomo conta da vontade dos meninos sugando-lhes
a força. De vez em quando, alguns até querem fazer as
suas obrigações, mas a vontade está vazia.
As cores estavam espantadas com o que ouviram na-
quele piquenique. Primeiro deitadas no chão, depois,
mais perto, escondidas atrás de uma grande pedra, as-
sistiram a tudo em silêncio, e nem queriam acreditar
no que viam. Muitos daqueles problemas já as tinham

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atacado, mas nunca tinham pensado neles com vida.
Concluíram entre todas que, afinal, os problemas,
mesmo aqueles que têm raízes profundas, podem ser
combatidos. É possível evitar que os problemas tomem
conta das nossas vidas. Nem sempre é fácil, mas é sem-
pre possível.
Afastaram-se sem saber quem tinha ganho o con-
curso, mas, com tanta confusão, nem os próprios pro-
blemas devem saber.
– Talvez o mais importante seja que cada um de nós
conheça os seus problemas e tente lutar contra eles –
disse o Laranja.
– Talvez tenhas razão… – respondeu, pensativo, o
Vermelho.

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Perto daquele local, empoleirado numa pedra, o Vio-
-leta encontrou uma nova mensagem do Amarelo, mais
uma galinha dobrada em papel da sua cor. Todos ficaram
muito contentes com a nova mensagem do Amarelo.
– Esta galinha é mais pequenina do que a anterior –
disse o Anil, sempre atento aos pormenores.
– Que tal vai a vossa busca? – interrompeu a Águia­
‑Sorridente que aterrou sem que ninguém desse por isso.
– Ainda não encontrámos o Amarelo, mas temos
tido algumas aventuras incríveis – respondeu o Verde
entusiasmado.
– Sim, tenho assistido a algumas lá do alto. A propó-
sito, têm conseguido executar o vosso plano? Que tal
vai o vosso PLEA? – as perguntas da águia deixaram as
cores admiradas.
– Águia-Sorridente, também conheces o PLEA? – o
Violeta não conseguiu esconder o seu espanto.
– Sim, o PLEA pertence à real tradição das águias.
Fui ensinado pela minha avó que tinha aprendido com
a sua: o segredo de um final feliz está num início bem
pensado, num meio bem executado e num fim bem
avaliado – concluiu com voz solene a imponente águia.
– Fico contente por saber que estão na pista certa. Boa
viagem, só vim dizer-vos que tenham cuidado, muito
cuidado. O perigo espreita no vosso caminho. Adeus,
amigas cores.

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O aviso misterioso da Águia-Sorridente preocupou
um pouco as cores, mas o caminho para o galinheiro
estava traçado e era preciso continuar em frente. Vigi-
lantes, o Azul e o Violeta monitorizavam os avanços,
assegurando-se de que o plano era executado tal como o
previsto. De vez em quando, recordavam os conselhos
da Formiga-General e da Águia-Sorridente, e estas me-
mórias aqueciam-lhes o ânimo.
– Temos andado muito, não querem parar um pouco
e fazer uma dramatização? – perguntou o Laranja a pe-
dido do envergonhado Anil.
– Sim, sim – responderam todos batendo palmas, e
os passarinhos concordaram chilreando alegremente.
– Que conto tradicional escolhemos? – perguntou o
Vermelho aos amigos.
– Os Três Porquinhos. Os Três Porquinhos – repeti-
ram em coro as cores, mas também os coelhos, as lagar-
tixas, as borboletas, as abelhas e os passarinhos...
As atuações das cores eram famosas no bosque,
mas a mais aplaudida era, sem dúvida, a dos “Três
Porquinhos”.
Como habitualmente, o Vermelho distribuiu os pa-
péis. O Laranja o narrador, o Anil, o Verde e o Violeta os

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“porquinhos”, e o Azul e o Vermelho as “portas das casas
dos porquinhos”. O esquilo representava o papel de “lobo
mau”. Sarabico não queria ser o mau da fita, mas como
era o único que tinha pelo, não pôde protestar.
– Era uma vez – começou o Laranja com um ar grave
– três irmãos porquinhos que decidiram construir três
casas, uma para cada um. O primeiro gostava mais de
brincar e de se divertir do que de trabalhar, por isso
construiu uma casa de palha.
O Azul e o Vermelho apresentaram-se vestidos de
palha, levantaram os braços e uniram as mãos como se
fosse um telhado, e foram muito aplaudidos. O Anil,
grunhindo como um verdadeiro porquinho, dançava e
cantava em volta da casa, rodeado de passarinhos que o
acompanhavam nas suas canções.
– O segundo porquinho também preferia cantar,
comer e brincar a trabalhar e, por isso, também não
gastou muito tempo com a sua casa. Construiu-a de
madeira. Terminou rapidamente a tarefa, e ficou com
muito tempo livre para brincar e passear pelos montes.
O Azul e o Vermelho, agora cobertos de lascas de ma-
deira, voltaram a dar as mãos fazendo de conta que eram a
casa do segundo porquinho. O Verde e o Anil grunhiam
alegremente, dançando e cantarolando acompanhados
por um bando de passarinhos e de coelhos que só pensa-
vam em brincar. A assistência estava muito contente e
batia muitas palmas aos dois porquinhos mandriões.

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– Enquanto estes dois porquinhos brincavam e dan-
çavam despreocupados, o terceiro porquinho construía
uma casa sólida de tijolo.
O Violeta, o último porquinho, andava muito atare-
fado: primeiro desenhando no chão os planos da casa, e
depois colocando tijolos uns em cima dos outros, inter-
valados com cimento. Quando terminou a construção
da casa, o Azul e o Vermelho voltaram a aparecer fa-
zendo de porta de entrada, e o porquinho abanou-os
muito, testando a solidez da construção. A assistência
bateu novamente muitas palmas.
– A casa deste porquinho – continuou o Laranja – de-
morou mais tempo a acabar porque foi construída com
tijolo e cimento, mas os dois porquinhos, apesar de já

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terem terminado as suas casas, não ajudaram o irmão.
Pelo contrário, desafiaram-no para brincar, tentando dis-
traí-lo das suas tarefas. Diziam-lhe que não se preocu-
passe tanto com a construção da casa, que era melhor
aproveitar o tempo para comer, dormir e brincar… Assim
ia passando o tempo na vida daqueles porquinhos. Um
dia, apareceu naquelas bandas um lobo assustador – o ir-
requieto esquilo Sarabico vestiu a pele de lobo, mas pouco
tinha de assustador. – Aproximou-se da casa do primeiro
porquinho e, com uma voz gentil, pediu-lhe que o dei-
xasse entrar. Queria conhecê-lo melhor...
Nesta altura, a assistência começou a vaiar o lobo.
O Sarabico ficou com medo e quis abandonar o seu
papel de lobo mau, mas o Vermelho não deixou.
– O primeiro porquinho muito aflito recusou a en-
trada ao lobo, e o feroz animal soprou, soprou, soprou…
Como a casa era de palha não resistiu muito.
O poderoso sopro do Sarabico, ajudado por um em-
purrão oportuno, derrubou a porta da casa represen-
tada pelo Azul e pelo Vermelho. A assistência soltou
um “Ohhh” de aflição.
– O terrível lobo entrou no que restava da casa de palha,
mas o porquinho conseguiu escapar-se pelas traseiras –
relatou o Laranja com uma voz ofegante e nervosa.
A assistência assustada animava o porquinho a fugir
e só respirou fundo quando o viu em segurança em
casa do irmão.

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– Os dois porquinhos folgazões, protegidos na casa
de madeira, viram o lobo aproximar-se e fizeram-lhe ca-
retas feias. “Deixem-me entrar”, ordenou-lhes o lobo
com voz forte. Os dois porquinhos reforçaram a porta
com uma cadeira, mas o lobo tomou fôlego e recome-
çou a soprar, a soprar, a soprar… A casa de madeira, que
também tinha sido construída com pouco cuidado,
cedeu, acabando por cair.
O Azul e o Vermelho também ajudaram a soprar,
porque o esquilo já estava exausto, e voltaram a cair no
chão quando a casa ruiu.

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– Os dois porquinhos cheios de medo conseguiram
escapar e pediram ajuda ao irmão que lhes abriu a
porta. Muito irritado, o lobo tentou entrar na casa de
tijolo.
O esquilo Sarabico, com cara de poucos amigos, aba-
nou violentamente o Vermelho e o Azul, agora vestidos
de tijolo e cimento, tanto, tanto que as duas cores troca-
ram os olhos. A assistência riu muito com as palhaça-
das daqueles dois.
– Mas o terceiro porquinho tinha construído uma
casa sólida, à prova dos sopros danados do lobo – o
Laranja não se distraía com o ruído da assistência. –
Lá dentro, os porquinhos sentiam-se muito seguros e,
de mãos dadas, davam pulinhos de alegria. Mas o lobo
estava furioso e ainda não tinha desistido de comer
aqueles apetitosos presuntos.
Para tornar a cena mais realista, o esquilo Sarabico
lambeu os lábios de satisfação fazendo rir a assistência,
mas um grupo de passarinhos não gostou da gulodice
do lobo e castigou-o bicando-o na cabeça.
– O lobo subiu à chaminé – continuou o narrador
sem ligar ao desajeitado Sarabico, que tentava proteger
a cabeça das bicadas dos passarinhos, correndo no palco
para cá e para lá – … e atirou-se pela chaminé, tentando
apanhar os porquinhos desprevenidos. Mas, para sua
grande surpresa, dentro de casa esperava-o um caldei-
rão de água a ferver. O lobo ficou tão queimado que

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correu sem parar e nunca mais voltou. Depois de se
despedirem do lobo acenando com lencinhos, os três
porquinhos cantaram e dançaram abraçados, contentes
com o feliz final. Os dois porquinhos preguiçosos ti-
nham aprendido a lição. Há tempo para tudo, primeiro
trabalhar, depois brincar.
Quando as cortinas fecharam, a assistência bateu
muitas palmas e, em coro, gritou:
– Vitória, vitória, acabou-se a estória. A lição que ouvi
vou tentar aplicar. A lição que aprendi vou tentar recor-
dar. Vitória, vitória, adeus linda estória.
Depois de agradecerem, baixando a cabeça como
fazem os atores nos teatros, as cores sentaram-se no
chão a descansar e a saborear o momento. A Águia­
‑Sorridente chegou a meio da representação, mas, no
final, estava muito contente. Para refrescar os atores,
bateu as poderosas asas como se fossem um leque gi-
gante, e disse-lhes:
– Muito obrigada, gostei muito da vossa representa-
ção. O PLEA foi muito bem retratado. Vou usar esta es-
tória dos “Três Porquinhos” para ilustrar os três mo-
mentos da nossa tradição: a planificação, a execução e a
avaliação, na formação das jovens águias.
– É curioso, já a representámos tantas vezes, mas
nunca tinha reparado que ilustrava o PLEA – disse pen-
sativo o Vermelho, mas a Águia-Sorridente não o ouviu,
já voava longe, perto do Sol.

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– Eu, nem agora consigo ver o PLEA nesta estória,
talvez a Águia-Sorridente estivesse apenas a ser simpá-
tica – concluiu o Azul num tom desmaiado, acenando
adeus na direção das nuvens.
– Não. Não veem que o porquinho que construiu a
casa de tijolo foi o único que planificou as tarefas? Quis
construir uma casa sólida para poder estar seguro. Fez
um plano no chão para saber o que ia construir, depois…
– o Violeta não conseguiu terminar.
– Depois executou os planos colocando os tijolos bar-
rados com cimento uns em cima dos outros, e fez tudo
isto resistindo aos chamamentos dos irmãos para brin-
car – continuou o Verde.
– Verificou que a casa estava sólida, monit… – o Anil
não conseguiu terminar a palavra, mas foi ajudado pelo
Vermelho que a completou:
– … monitorizou; quer dizer, certificou-se de que o
seu plano estava a ser cumprido como o previsto.
– E a avaliação? – perguntou o Laranja, desafiando os
amigos a pensar.
– Os dois porquinhos folgazões tiveram de se escon-
der na casa de tijolo do irmão, porque as deles tinham
“voado” – respondeu prontamente o Verde, terminando
com uma gargalhadinha.
– Sim, valeu a pena o esforço do porquinho trabalha-
dor, foi ele que salvou os irmãos – completou o Anil, e as
cores ficaram espantadas com aquele seu entusiasmo.

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– Talvez haja muito mais para dizer sobre o PLEA,
mas agora temos de partir que se faz tarde – sugeriu o
Vermelho.
– Sim, temos um plano para cumprir – disse o Azul
com voz grossa imitando o Vermelho, o que fez rir as
outras cores.
– A verdade é que, como nos disse a Formiga-Gene-
ral, o final feliz na estória destes porquinhos teve um
início bem pensado, um meio bem executado e um fim
bem avaliado – concluiu com solenidade o Laranja.

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– Que é, que é, que quanto mais cresce, menos se vê?
Uma voz estranha obrigou as cores a pararem a sua
marcha. Olharam para um lado e para o outro procu-
rando o dono daquela pergunta, mas em vão.
– Estou aqui em cima – conduziu-os a voz.
As cores olharam para cima e encontraram uma ár-
vore enorme com uma pala negra no centro do tronco.
– És uma Árvore-Pirata? – perguntou o Violeta sem
papas na língua.
– Não. Sim. Quer dizer… tenho de usar esta pala, por-
que há quem não respeite a natureza e use facas para

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deixar mensagens de gosto duvidoso, não sei se me enten-
dem? Uso uma pala para tapar o pedaço que me arranca-
ram brutalmente e esconder um pouco a minha vergonha
– explicou a Árvore-Pirata, num tom perturbado.
– Estamos à procura do Amarelo, a cor que falta no
arco-íris, por acaso não a viste? – perguntou o Vermelho
que gostava pouco de perder tempo e oportunidades.
– Eu sei, eu sei, todos no bosque estão a par da vossa
desgraça. Aliás, eu tenho algures nos meus ramos uma
mensagem… – a Árvore-Pirata não conseguiu terminar a
frase.
– É mais uma mensagem do Amarelo. Por favor, diz­
‑nos onde está – pediu o Verde a transbordar de energia.
– Eu digo-vos onde está a mensagem, mas antes temos
de jogar às adivinhas. Têm de ganhar o direito à mensa-
gem – a cara de desagrado das cores não incomodou a
Árvore-Pirata. – Podem começar por responder à adivi-
nha, depois veremos o que acontece, he, he, he – a Ár-
vore-Pirata acabou a frase com uma risadinha provoca-
tiva e irritante.
As cores reuniram-se para conversar, como as cores
costumam fazer nos momentos importantes, juntando
as cabeças no centro.
– Esta árvore tem um aspeto e uns modos muito es-
tranhos, não confio nela – suspirou o Vermelho, como
se estivesse a falar para si próprio.
– Sim, não podemos confiar nela, acho que devemos
continuar o caminho – continuou o Azul.

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– E se a mensagem for importante? Não podemos
avançar sem saber o que contém. O conteúdo pode
obrigar-nos a mudar o plano – disse o prudente Violeta
e os irmãos aceitaram as suas razões.
Contrariadas, as cores concordaram em responder a
três adivinhas em troca da mensagem, e a Árvore­‑Pirata
repetiu a primeira:
– Que é que é que quanto mais cresce menos se vê?
O Violeta sabia a resposta, mas como era ponde-
rado não quis responder sem consultar os irmãos.
Depois de terem concordado com a sua resposta,
disse convicto:
– É a escuridão.
– Muito bem, muito bem – o tom da Árvore-Pirata
era irónico, não parecia muito contente com a resposta
do Violeta, e, sem parar para respirar, apresentou-lhes
uma nova adivinha. – Que é que é que sempre cai, mas
nunca se magoa?
– A minha amiga chuva – explodiu o Verde que não
se conseguia controlar como o irmão.
As cores começaram a bater palmas nervosas, só fal-
tava uma adivinha para conseguirem a mensagem do
Amarelo.
– Vamos lá ver se sabem esta: que é que é que bebe
pelos pés? – A Árvore-Pirata parecia irritada com o su-
cesso das cores, e não o escondia.
As cores olharam umas para as outras procurando
alguma pista, mas os encolheres de ombros e os abanos

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de cabeça negativos indicavam que nenhuma delas co-
nhecia a resposta.
– Assim não vamos conseguir ver a mensagem, vai
correr tudo mal… Eu bem sabia que não devíamos ter
partido – suspirou o Anil, sempre pessimista.
– Não, não podemos desistir! Temos de tentar. Temos
de pensar numa solução – respondeu-lhe o Verde que
nunca se rendia.
Para compreender melhor o problema, o Azul dese-
nhou-o no chão, tinha aprendido que os esquemas são ami-
gos das soluções. Riscou um traço horizontal para repre-
sentar a terra, uns pés por cima e umas gotas por debaixo, e
perguntou em voz alta como se falasse para si próprio:
– Quem pode beber pelos pés? Um animal?
Os demais responderam negando com a cabeça.
– Eu não conheço nenhum, e as pedras não bebem
– disse o Vermelho.
Calmamente, o Laranja que olhava pausadamente
para o esquema pegou no pequeno pau e completou o
desenho do amigo.
– Claro, claro! – exclamaram todos enquanto se abra-
çavam.
– As plantas. As plantas alimentam-se pelos seus pés,
mais propriamente pela raiz – respondeu o Laranja, olhando
a Árvore-Pirata nos olhos, que é como quem diz, no tronco.
Os ramos da Árvore-Pirata estremeceram de raiva,
há quem fique aborrecido com o sucesso dos outros,
mas a resposta estava certa.

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– Como já respondemos às adivinhas, podes dar-nos
a mensagem – pediu delicadamente o Vermelho quando
tudo acalmou um pouco.
Mas a árvore não respondeu, estava demasiado irri-
tada com a alegria que transpirava no ar. As outras cores
insistiram no pedido, mas receberam apenas sorrisos
irónicos como resposta até que, sem que a árvore o es-
perasse, o Verde retirou-lhe a venda do tronco.
– Devolve-me já a minha pala, não quero que nin-
guém veja a minha vergonha – gritou desesperada a ár-
vore. De facto, o espetáculo não era agradável de se ver.
O tronco tinha bem no centro um buraco fundo, feito
com uma faca maldosa ou um machado desastrado.
Talvez a Árvore-Pirata estivesse zangada com o mundo
e quisesse vingar-se do mal que lhe tinham feito. Tal-
vez; mas se assim era, não curava a ferida e amealhava
novos problemas.
Para reaver a pala, a Árvore-Pirata foi obrigada a con-
fessar que não tinha a mensagem. Para a conseguir, as
cores teriam de passar pelo estreito tronco oco que dor-
mia a uns passos dali: a mensagem estava escondida no
seu interior. As cores ficaram paralisadas com o que ou-
viram. Porque teria mentido a Árvore-Pirata? Porque

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diria agora a verdade? Como podemos confiar em quem
mente, em quem não cumpre o que promete? Todas
estas perguntas passaram pelos lábios das cores, mas
não encontraram resposta. As cores juntaram nova-
mente as cabeças para avaliarem a situação e decidiram,
depois de muito debater, que não lhes restava outra so-
lução senão tentar encontrar a mensagem no interior
do tronco.
Aproximaram-se para uma primeira inspeção; a boca
do tronco oco era larga e estava guardada por uma
enorme aranha peluda.

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– E agora como vamos conseguir passar pela aranha?
– perguntou o Azul. O Laranja encolheu-se com medo e
afastou-se do tronco o mais que pôde.
– Espero que todo este cansaço para encontrar o
Amarelo valha a pena… – resmungou o Anil.
– Temos de usar o PLEA, de certeza que encontra-
mos uma solução – sugeriu o Violeta.
Com o acordo de todos, o plano começou a ser elabo-
rado. Definiram as características da situação: tronco
largo e oco, lá dentro está a mensagem; e uma aranha
grande e peluda guarda a entrada. Para entrar tinham
de a distrair.
– Mas como vamos distrair a aranha? – perguntaram
as cores em simultâneo.
Um silêncio perturbado tomou conta do ambiente. Ao
longe, as cores conseguiram ouvir uma nova mensagem
do Rio-dos-Soluços que os animava como só os amigos
sabem fazer: “Há um caminho, hipps, há sempre um ca-
minho, hipps. Quem não desistir, há de conseguir.”
– Como é que o Perseu derrotou a Medusa? – per-
guntou o Verde como se soubesse a resposta.
– Perseu?! Medusa?! Verde, apanhaste assim tanto
sol na cabeça? – perguntou o Azul com ironia.
– Perseu usou o escudo como espelho para poder che-
gar à Medusa sem ficar petrificado – explicou o Laranja.
– Sim, e se seguíssemos o exemplo e distraíssemos a
aranha com uma luz intensa ou um reflexo, enquanto

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um de nós entrava no tronco para procurar a mensa-
gem? – sugeriu o Verde, terminando a ideia escondida
na sua primeira pergunta.
O plano foi aprovado com muitas palmas, agora só
faltava levá-lo à prática. O Sol ajudou e as cores con-
fundirama aranha de tal maneira que o Violeta conse-
guiu entrar e sair com mais uma mensagem, sem que
aquela carcaça peluda com patas pegajosas desse por
isso. O Violeta juntou-se vitorioso aos irmãos que o
receberam com abraços enquanto a aranha se tentava
desembaraçar da intensa luz que a cegou.
Desta vez a galinha de papel amarelo era claramente
mais pequena do que a anterior, e o Azul, enchendo a
boca com um sorriso malandro, perguntou:
– Acham que o Amarelo está com falta de papel?
– Engraçadinho, vê lá se te caem os dentinhos… –
responderam vários.
– É verdade que as galinhas de papel são cada vez
mais pequeninas, o que quererá isso dizer? – pergun-
tou o Vermelho quando o entusiasmo acalmou.
– Está a dizer-nos que foi transformado num pintai-
nho? Não! Isso não pode ser – perguntou e respondeu o
Verde.
Estavam todos muito cansados e, como não conse-
guiam chegar a conclusão alguma, decidiram descansar.
Umas horas de sono depois, tudo ficaria mais claro.

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– Azul, acorda, acorda – disse o esquilo em voz baixa
enquanto abanava o amigo.
As cores dormiam sossegadamente, descansando
das últimas emoções, mas o esquilo foi acordado por
um gemido surdo e não mais pregou olho. Depois de
alguns abanões vigorosos, o Azul, finalmente, abriu os
olhos. O Sarabico contou-lhe que tinha acordado com
um gemido suave.
– Pode ser o Amarelo a pedir ajuda – pensou.
Mas o Azul resmungou umas palavras incompreen-
síveis e virou-se para o outro lado, disposto a continuar
a dormir. O Sarabico não desistiu e beliscou-o repetidas
vezes, obrigando-o a acordar. Depois de uma breve con-
versa em surdina, decidiram partir sozinhos, sem avi-
sar os amigos. Voltariam com o Amarelo e seriam fa-
mosos, pensaram os dois.
A noite estava muito escura. A Lua tinha aproveitado
para se esconder e desligou a iluminação no bosque. Sem
outro guia, os dois amigos foram seguindo os pequenos
ruídos às apalpadelas. Afastaram-se primeiro para a di-
reita seguindo um caminho largo, mas escorregaram
descuidadamente por uma pequena encosta, assustando
um velho Mocho que os repreendeu severamente. Deram

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tantas voltas e reviravoltas às cegas que, quando pararam,
não sabiam onde estavam, nem qual o caminho de volta.
O medo começou a tomar conta do Azul, mas a cor ten-
tou mostrar-se forte, mal sabia que o amigo estava con-
centrado no mesmo esforço. Os gemidos desconhecidos
foram ganhando força e o ânimo dos dois cresceu. Cha-
mando em voz alta, seguiram os sons devolvidos e conse-
guiram chegar. Foram recebidos com um canto agrade-
cido, mas cansado.
– Olá, passarinho. Estás ferido? – perguntou o Sara-
bico tentando iniciar a conversa.
“Não, está apenas a testar o nosso sentido de orienta-
ção”, pensou o Azul para si próprio, um pouco aborre-
cido. Respondendo ao cumprimento simpático do es-
quilo, o passarinho começou a contar a sua aventura.
– Sou uma Cotovia e pertenço ao Real Coro das Aves
– a notícia não impressionou nenhum dos dois –, um
magnífico coro que depois de amanhã vai atuar no mais
importante casamento do bosque. Mas, como diz a
minha avó, sou um passarinho muito cabeça no ar – o
esquilo e a cor olharam um para o outro sem entender
qual o problema. “Um passarinho deve ter a cabeça no
ar, como poderia ser de outra forma”, pensaram com os
seus botões, mas não disseram nada para não perturbar
ainda mais a pequena ave.
– Saí há uns dias de casa para chegar com tempo e
poder ensaiar antes da grande festa, mas estava tão

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distraída com as minhas cantorias que nem vi onde
bati. Agora estou aqui sozinha, e ferida numa asa. Só
preciso de descansar, mas tenho medo de ficar aqui no
chão sozinha.
– Sozinha, não! – respondeu o Azul com cara de pou-
cos amigos. – Fizemos todo este caminho às cegas para
te ajudar.
Com muito cuidado, os dois amigos pegaram na pe-
quena Cotovia, que mal conseguiam ver no meio da-
quela escuridão, e deitaram-na numa cama de folhas
macias, num galho elevado. A Cotovia agradeceu com
um bonito canto, mas foi imediatamente repreendida
por uma família de coelhos, que protestou contra o
ruído noturno que incomodava o seu descanso.

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– Como eu ia dizendo – a Cotovia não se calava –,
somos cinco cotovias no Real Coro das Aves, e já estamos
a ensaiar a nossa peça há muito tempo. A peça é muito
difícil, mas como diz o Pássaro-Maestro: “Quando alcan-
çamos algo difícil, a alegria da conquista é maior.” A peça
foi dividida em partes para ser mais fácil aprendê‑la, e
treinámos muito bem cada uma – o Azul e o Sarabico não
pareciam muito interessados na conversa, mas isso não
desanimou a pequena Cotovia. – O Pássaro‑Maestro é
muito exigente, nos ensaios está sempre a insistir na im-
portância da colocação da voz, e com a sua batuta de car-
valho controla as notas e o ritmo do nosso canto. “A har-
monia é feita de pormenores. No canto e na vida, só os
pormenores fazem a diferença”, está sempre a dizer-nos.
Eu nem sempre estou atenta, e por isso os nossos ensaios
duram eternidades…
– E agora, o que fazemos? – perguntou o Azul,
olhando para o esquilo.
O encolher de ombros do Sarabico foi esclarecedor.
A Cotovia, intuindo que os dois amigos a poderiam
deixar ali sozinha, reiniciou a conversa, tentando entu-
siasmá-los.
– Conhecem a noiva? – e sem esperar pela resposta o
passarinho continuou. – É prima afastada de um rouxi-
nol que vive perto, a dois galhos da minha avó. Diz-se
que descende de uma família real que, em tempos idos,
cantou e encantou reis e imperadores. Um rouxinol das

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melhores famílias, é o que vos digo. Se vissem a coleção
de penas que a família guarda no ninho… é magnífica.
Eu não posso… – a Cotovia foi interrompida brusca-
mente pela cauda do Sarabico que lhe tapou o bico.
– Por favor, não fales tanto, deixa-nos pensar – pediu-
-lhe bruscamente o Azul.
– Não me deixem aqui sozinha, é só isso que vos
peço – choramingou a Cotovia.
O Azul acenou com a cabeça descansando a Cotovia.
Não sabia como voltar, isso é que verdadeiramente o
preocupava. Tinham de regressar ao local de partida,
antes de nascer o Sol para que ninguém desse pela falta
deles. E isso ia ser difícil…

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Entretanto, não muito longe dali, o Verde levantou­
‑se para beber água e tropeçou na roupa solta do Azul.
Preocupado, acordou as outras cores que protestaram
muito, mas acabaram por abrir os olhos. Sarabico tam-
bém não estava no seu lugar. Os desaparecimentos já
começavam a ser uma fatalidade naquele grupo. “Para
onde terão ido aqueles dois?”, “Como é que partiram,
sem nos avisar?”, “Será que encontraram o Amarelo?”,
as perguntas eram muitas e desorganizadas.
– Talvez se tenham apenas afastado e não consigam
encontrar o caminho de volta – sugeriu o Vermelho,
apesar de pouco convencido com a ideia.
Como estava muito escuro, o Laranja sugeriu que fi-
zessem como o Hansel e a Gretel.
– Quem? – perguntaram todos ao mesmo tempo.
Com a calma que lhe era característica, o Laranja
explicou que estes dois irmãos, heróis de um conto
tradicional, foram conduzidos no meio do bosque para
muito longe de casa, mas, para não se perderem no
caminho de volta, foram deixando pequenas pedras ao
longo do percurso. Os dois irmãos, depois de muitas
voltas e reviravoltas, foram abandonados no meio da
floresta. Quando, com fome e frio, quiseram voltar a

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casa, seguiram o trilho das pedras e regressaram sãos
e salvos.
– Sim, já entendi. Nós também devemos partir com
um plano. Como está escuro, podemos substituir as
pedras por pequenas tochas colocadas no chão ao longo
do caminho. Assim, regressamos sem nos perdermos
– propôs o Verde e todos concordaram. Prepararam os
paus, fizeram uma fogueira e partiram. Como nin-
guém sabia onde estavam o Azul e o Sarabico, o Vio-
leta pôs-se a gritar pelos dois. Ouviu muitos protestos
zangados vindos das árvores, das plantas e dos pássa-
ros ensonados. Mas a verdade é que a estratégia do Vio-
leta resultou. Para evitar que todo o bosque acordasse
estremunhado com tamanha gritaria, o velho Mocho
que já tinha sido incomodado pelo desnorte do Azul e
do Sarabico decidiu guiar o grupo pelo escuro da noite.
Com a ajuda daquele Mocho-Resmungão, as cores en-
contraram sem dificuldade o Azul e o Sarabico que os
receberam de cabeça baixa e vergonha levantada. O en-
contro não foi festejado. As cores estavam muito can-
sadas e um bocadinho zangadas com a imprudência
daqueles dois.
No arrastado e silencioso regresso, as cores foram
seguindo as tochas que iluminavam o caminho e,
pouco depois, estavam de volta sem mais sobressaltos.
Mais uma vez, o plano do Laranja e do Verde tinha re-
sultado. Cansadas, as cores deitaram-se rapidamente,

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e, quando se fez silêncio, o Azul e o Esquilo aproveita-
ram a oportunidade:
– Desculpem as trapalhadas em que vos metemos.
De noite ouvimos um barulho e pensámos que pudesse
ser o Amarelo a pedir ajuda. Não avisámos ninguém
porque queríamos ficar com os louros da descoberta,
queríamos ser famosos.
A voz do Azul era triste e arrependida. O esquilo Sa-
rabico continuou:
– Quando partimos, não pensámos no que nos pode-
ria acontecer. Agora que tudo acabou, sabemos que er-
rámos. Estamos arrependidos e um bocadinho enver-
gonhados. Obrigado por terem ido à nossa procura, por
não terem desistido.
Para amenizar o pesado ambiente, a Cotovia encheu
o ar com a sua voz bonita e todos adormeceram com o
coração mais quentinho. Desta vez, nem o Anil se quei-
xou. Todos podemos errar, o importante é conseguir-
mos reconhecer os nossos erros, pedirmos desculpa, e
tentarmos não voltar a fazer. Como diz o avó do Sara-
bico: “muitas vezes, um pequeno tropeço pode evitar
grandes quedas”. Deve ser verdade. Oxalá seja.

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O grupo foi acordado bem cedinho pela Águia-Sorridente.
– Que tal vai o vosso objetivo? – perguntou a águia às
ensonadas cores.
– Ainda não encontrámos o Amarelo. Temos conse-
guido vencer os obstáculos, e alguns bem difíceis, mas…
– o Vermelho não terminou.
– Sim, ainda não o encontrámos e estamos muito
cansados – interrompeu o Anil, sempre a bocejar.
– Viram as três mensagens do Amarelo? – o tom com-
prometido da águia anunciava que sabia algo mais.
– Sim, mas como sabes que são três? – perguntou o
Verde.
– Bem, a verdade é que tenho a última mensagem do
Amarelo – os gritos das cores não a deixaram terminar.
– Onde está o Amarelo? – perguntavam as cores todas
ao mesmo tempo, dando saltinhos em redor da águia,
que ficou um pouco tonta com tanta agitação.
– Sim, quer dizer, eu sei e não sei onde está o Ama-
relo. Temos de nos despachar, depois explico, agora não
temos tempo a perder – a Águia-Sorridente estava con-
fusa, e o que dizia não fazia muito sentido.
“Terá comido algum coelho estragado?”, pensou o
Azul com os seus botões. No meio de alguma atrapalha-
ção, a Águia-Sorridente disse-lhes que tinha descoberto o

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Amarelo escondido perto do acampamento das galinhas
do Vale-das-Pedras-Soltas. Guardou segredo porque que-
ria fazer-lhes uma surpresa, mas, entretanto, o Amarelo
desapareceu novamente sem a avisar – os olhos semicer-
rados da Águia-Sorridente espelhavam a sua tristeza.
– Não te aflijas, nós já estamos habituadas às graci-
nhas do Amarelo – descansou-a o Violeta.
– Vamos. De que estamos à espera? – perguntou o
Verde, já pronto para partir.
– Calma, temos de pensar no PLEA – sugeriu o Violeta.
Todos concordaram e começaram a elaborar um plano.
As galinhas corriam à solta num pequeno espaço e, ques-
tionadas pelo minucioso Azul, responderam que não sa-
biam nada desse tal Amarelo. Levavam uma vida tran-
quila, longe das confusões e trapalhadas do centro do
bosque. Bicavam migalhas no chão e aqueciam os ovos.
O branco era a única cor na sua vida.
– Logo agora que estávamos tão perto… – lamentou o
Anil.
As cores sentaram-se com o ânimo descolorido. Até a
Águia-Sorridente perdeu o sorriso. Nervoso, para se
distrair, o Violeta começou a assobiar uma canção.
– É isso – exclamou o Anil, que também tinha boas
ideias, quando não dormia em pé. Quando todos espe-
ravam mais um lamento, o Anil surpreendeu-os:
– Podias assobiar uma canção de que o Amarelo
goste. Se ele estiver por perto, responde – pediu o Anil
saboreando a sua sugestão.

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O Violeta acenou positivamente com a cabeça, e co-
meçou a assobiar enquanto se deslocava nas redonde-
zas do acampamento das galinhas. As outras cores dis-
tribuíram-se em leque e varreram a área tentando
escutar uma qualquer resposta com tom Amarelo.
Podia estar ferido, ou ter caído num buraco fundo, era
preciso ter cuidado. Desceram uma ravina, até que o
atento Laranja ouviu um som abafado que espreitava
através de uma apertada rede de espinhos.
– O que estará por detrás dos espinhos? Um bicho
terrível? – lamentou-se o Azul.
– Não me digam que vai começar tudo outra vez –
queixou-se o Laranja.

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– Ei! Não podemos deixar que o medo avance. Corta-
mos os espinhos e depois já se vê – sugeriu o Verme-
lho, logo apoiado pelo Violeta e pelo Verde, que coloca-
ram mãos à obra para retirar os espinhos.
As outras cores, até mesmo o Anil, espreitaram pelas
frinchas da rocha procurando outra entrada, e chama-
ram insistentemente pelo Amarelo. Um pequeno ge-
mido alertou o Azul. Sem pensar duas vezes, o Anil
calou o medo e a preguiça que o paralisavam constante-
mente e atirou-se para o interior do buraco à procura do
amigo. Tateando as paredes encontrou um pequeno
ovo que tremia com piparotes e solavancos vindos do
seu interior, como se algo estivesse preso e precisasse
de ajuda para sair. Animado com a descoberta, o Anil
puxou o ovo até à saída. O Violeta e o Verde pararam de
cortar silvas, e todos juntos subiram o Anil e o ovo com
cuidado. De mão em mão, o ovo foi inspecionado e
muito agitado junto de vários ouvidos. Todos confirma-
ram que os gemidos vindos do interior eram cada vez
mais leves.
– Talvez esteja enjoado com tanto movimento – su-
geriu o Azul, mas ninguém respondeu.
As cores juntaram a cabeça, como costumam fazer
antes de tomarem decisões, e saltaram ao mesmo
tempo sobre o ovo que se partiu em pedaços. Debaixo
das cascas brancas ouviram:
– Ei! Tenham cuidado, sou eu, o Amarelo. Estou
preso na gema do ovo.

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Ajudaram-no e abraçaram-se enquanto davam muitos
saltinhos de alegria. Estavam finalmente juntos e salta-
ram pela ordem devida, Vermelho, Laranja, Amarelo,
Verde, Azul, Anil e por último o Violeta, para o Arco-Íris
que já tinha saudades de os ver todos seguidinhos.
Partiram formando um arco magnífico e, a pouco e
pouco, tudo voltou a ser como antes no bosque. O irre-
quieto Sarabico despediu-se dos amigos e partiu à pro-
cura de nozes e de tempos mais calmos, porque acom-
panhar as cores do Arco-Íris é muito divertido, mas
muito desgastante.
Como é que o Amarelo ficou preso na gema do ovo?
Esse episódio terá de ficar para uma outra vez. Afinal,
estamos no Bosque-sem-Fim.
Agora, adeus, adeus, ou como dizem os pássaros e as
cores do arco-íris: “Vitória, vitória, acabou-se a estória.
A lição que ouvi vou tentar aplicar. A lição que aprendi
vou tentar recordar. Vitória, vitória, adeus linda estória.”

Fim

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adoro ler! adoro ler!
A PARTIR DOS 9 ANOS A PARTIR DOS 7 ANOS

adoro ler!
A PARTIR DOS 7 ANOS

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A PARTIR DOS 9 ANOS

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A PARTIR DOS 7 ANOS

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