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SOBRE AS AUTORAS

Aline Layoun
é redatora publicitária, roteirista e coidealizadora da plata-
forma de ensino @osalto. Formada em Comunicação So-
cial, ela possui MBA em Marketing pela FGV e domina a
língua portuguesa como ninguém.

Vanessa Biondini
é formada em Letras pela UFMG, possui MBA em Gestão
Estratégica de Pessoas pelo SENAC e, atualmente, é me-
stranda em Educação e Formação Humana pela UEMG.

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ÍNDICE
SOBRE AS AUTORAS 2

CANAÃ 6
1. AUTOR 7
2. PERÍODO LITERÁRIO 8
3. OBRA 10
4. ENREDO 11
5. GÊNERO 15
6. ESPAÇO 16
7. NARRADOR 17
8. LINGUAGEM 18
9. TEMPO 19
10. TEMÁTICAS 20
10.1. REPRESENTAÇÃO DO BRASIL E BUSCA DE UMA IDENTIDADE NACIONAL 20
10.2. RACISMO CIENTÍFICO 21
10.3. MISCIGENAÇÃO 22
10.4. CORRUPÇÃO/ ABUSO DO PODER PÚBLICO 23
10.5. XENOFOBIA 23
10.6. ASSÉDIO SEXUAL 24
11. PERSONAGENS 26
11.1. NÚCLEO DE IMIGRANTES 26
11.1.1. MILKAU 26
11.1.2. LENTZ 26
11.1.3. MARIA PERUTZ 27
11.2. OS POVOS DA TERRA 27
11.2.1. PAULO MACIEL 27
11.2.2. AGRIMENSOR FELICÍSSIMO 28
11.3. O TRIO DE MAGISTRADOS 28
11.3.1. PANTOJA 28

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11.3.2. JUIZ ITAPECURU 28
11.3.3. PROMOTOR BREDERODES 28
12. GLOSSÁRIO 29

A ESCRAVA 32
13. OBRA 33
14. AUTORA 34
15. GÊNERO 35
16. LINGUAGEM 36
17. NARRADOR 37
18. TEMPO 38
19. ESPAÇO 39
20. ENREDO 40
21. PERSONAGENS 42
21.1. SENHOR TAVARES 42
21.2. FEITOR ANTÔNIO 42
21.3. JOANA 42
21.4. GABRIEL 43
21.5. CARLOS E URBANO 43
21.6. “UMA SENHORA” 43
22. TEMÁTICAS 44
22.1. INTERTEXTUALIDADE COM O DISCURSO BÍBLICO 44
22.2. ESCRAVIDÃO X ABOLICIONISMO 45
22.3. DISCRIMINAÇÃO RACIAL 46
22.4. PODER DE FALA/ COMPLEXO DO “BRANCO SALVADOR” 46
22.5. HUMANIZAÇÃO DOS ESCRAVIZADOS 47
22.6. PROTAGONISMO FEMININO 48
23. GLOSSÁRIO 50

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QUESTÕES AFINS ENTRE AS DUAS OBRAS 52
24. OPRESSÃO FEMININA (MATERNIDADE/ LOUCURA) 53
25. IDEAL DE SUPERIORIDADE DE RAÇAS 55
26. ORIGEM DOS AUTORES 57

REDAÇÃO-MODELO ESTILO UEMA 58


ENUNCIADO 58
DA EVOLUÇÃO À LIBERTAÇÃO: EXISTE DEMOCRACIA RACIAL NO BRASIL? 59

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 61

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CANAÃ

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ANÁLISE LITERÁRIA - UEMA 2022
Canaã - Graça Aranha

1. AUTOR

José Pereira da Graça Aranha nasceu em 21 de junho de 1868 em São


Luís, MA, filho de uma família abastada e culta, o que favoreceu o seu
desenvolvimento cultural. Ele formou-se em Direito em 1886 e exer-
ceu boa parte da sua magistratura em Porto do Cachoeiro, no Espírito
Santo, de onde suas experiências, mais tarde, dariam origem ao céle-
bre romance “Canaã”.

Graça Aranha foi um dos membros fundadores da Academia Brasileira


de Letras, em 1896, sem ter ainda publicado nenhum livro. Em seguida,
ele entrou para o Itamaraty, como diplomata, e desempenhou várias
missões em Londres, Oslo, Haia e Paris, entre os anos de 1900 e 1920.

Em 1920, Graça Aranha regressou ao Brasil, dotado do discurso de


que a literatura brasileira precisava mudar, o que o motivou a inte-
grar o movimento da Semana de Arte Moderna, ocorrida em 1922.
Foi ele quem proferiu o discurso inaugural desse movimento, “O Es-
pírito Moderno”, cujas palavras atacavam a literatura oficial. Por esse
descontentamento com os rumos que a literatura traçava no Brasil,
Graça Aranha rompeu definitivamente com a Academia Brasileira de
Letras.

José Pereira da Graça Aranha morreu no Rio de Janeiro, no dia 26 de


janeiro de 1931.

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Canaã - Graça Aranha

2. PERÍODO
LITERÁRIO
O Pré-Modernismo abrangeu o período literário compreendido entre
1902 - ano de publicação dos romances “Canaã”, de Graça Aranha, e
“Os Sertões”, de Euclides da Cunha - e a realização da Semana de Arte
Moderna, em São Paulo, em 1922. Nesse período, aconteceu a tran-
sição de escolas literárias, do Simbolismo para o Modernismo, o que
culminou em um sincretismo estético, com presença de característi-
cas neo-realistas, neo-parnasianas e neo-simbolistas.

“Canaã” é uma obra inspirada no naturalismo filosófico alemão e pert-


ence a essa fase pré-modernista brasileira, apresentando uma fusão
entre o Realismo e o Simbolismo. Seu caráter inovador reside na abor-
dagem de uma situação histórica inédita na literatura brasileira, ref-
erente à imigração alemã no Espírito Santo.

Do Simbolismo, podemos dizer que “Canaã” herdou a associação da


subjetividade literária à formas sensoriais, remetendo ao paladar, ao
olfato e à audição, como no trecho: “Misturado com o aroma da terra,
o cheiro das flores que as raparigas traziam ao cabelo e das roupas
domingueiras, guardadas longo tempo nos baús, amenizava o odor
forte das multidões.”

Já do Realismo, a herança ocorre por meio do uso extensivo das de-


scrições e a fixação pela paisagem humana, que podem ser percebidos
na seguinte passagem da obra: “O imigrante compadecido testemu-
nhava naqueles nove anos do desgraçado a assombrosa precocidade
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dos filhos dos miseráveis. O pequeno, animado pela conversa, alin-


hava-se garboso no velho cavalo, empunhava as rédeas com firmeza,
fincava as pernas de esqueleto e punha o animal num trote esperto.
Milkau acompanhava instintivamente essa atividade, e os dois, assim,
fugitiva ligação da piedade e da miséria, avançavam pelo caminho
afora.”

Apesar de o pré-modernismo contar com inúmeras produções artísti-


cas e literárias distintas, é possível destacar que, em meio a contur-
badas circunstâncias históricas do país, principalmente a transição
da República da Espada para a República Velha, marcada por even-
tos como a revolta da vacina, revolta da chibata, revolta da armada,
revolta de Canudos etc., os escritores pré-modernos assumiram uma
posição mais crítica em relação à sociedade e aos modelos literários
anteriores.

Essas ocorrências, por sua vez, foram responsáveis pela expansão do


regionalismo brasileiro, que enfatizou os diversos conflitos que surgi-
ram entre a classe dominante e a classe dominada, dando destaque
a autores que se voltavam para a realidade brasileira, com uma lin-
guagem mais simples e coloquial, resultando na produção de diver-
sas obras de caráter social.

Os principais pré-modernistas que se destacaram na produção lit-


erária em prosa foram Euclides da Cunha, Graça Aranha, Monteiro
Lobato e Lima Barreto, e na produção poética, Augusto dos Anjos.

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Canaã - Graça Aranha

3. OBRA

“Canaã” é considerada a obra mais representativa de Graça Aranha,


tratando-se de um romance de tese, pré-modernista e regionalista,
que retrata a imigração alemã no interior do estado do Espírito Santo,
no Brasil.

A narrativa desse romance permeia os conflitos vivenciados por dois


protagonistas, os jovens imigrantes alemães Milkau e Lentz, que vêm
para o Brasil, a terra prometida, em busca de progresso, e que po-
dem ser considerados arquétipos de diferentes linhas filosóficas e
ideológicas, principalmente no que se refere à colonização. Amigos
e antagônicos ao mesmo tempo, Milkau é pacífico, favorável à misci-
genação de raças e admirador desse Novo Mundo. Já Lentz é a per-
sonificação da guerra: afeito a pensamentos bélicos, ele acredita na
superioridade da raça alemã, que deveria dominar os nativos e tornar
a região uma colônia.

Entre os principais temas abordados pela obra, destacam-se o impe-


rialismo germânico, os olhares do colonizador, a formação do povo
brasileiro, o militarismo, a corrupção dos administradores públicos, o
ostracismo e a opressão feminina.

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4. ENREDO

Milkau é um jovem alemão recém-chegado a uma colônia de imi-


grantes europeus, no Espírito Santo, na cidade de Porto do Cachoei-
ro, onde é apresentado a outro imigrante, Lentz, filho de um general
alemão. Milkau deseja arrematar um lote de terras para se estabelecer
na região e conta com a ajuda do agrimensor, Sr. Felicíssimo, que está
para ir ao Rio Doce fazer medições de terra, convidando Lentz para
acompanhá-lo.

Pelo caminho, Lentz e Milkau discutem a paisagem e a raça brasilei-


ras. Milkau crê que o progresso só se dá quando os povos se mis-
turam. O jovem vê na fusão das raças adiantadas com as selvagens o
rejuvenescimento da civilização. Enquanto acredita na humanidade,
pensa encontrar no Brasil Canaã, “a terra prometida”. Lentz só se ocu-
pa da superioridade germânica, ficando enaltecido com o triunfo dos
alemães sobre os mestiços. Para ele, a mistura gera uma cultura infe-
rior, uma civilização de mulatos que serão sempre escravos e viverão
em meio a lutas e revoltas. Lentz acrescenta que veio para o Bras-
il, porque o estavam forçando a se casar com a filha de um general,
amigo do pai. Ele, então, preferiu começar uma vida nova longe dos
deveres e obrigações impostos por sua sociedade. Milkau conta-lhe
que também não encontrava graça no viver, ansiava por uma vida
mais independente, em que pudesse dar vazão à sua individualidade.
Os planos dos dois imigrantes diferem; Milkau deseja manter seu
pedaço de terra e anseia por uma justiça perfeita sem ganâncias ou
lutas. Lentz está determinado a ampliar sua propriedade, tendo mui-
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tos trabalhadores sob seu comando. Sonha com o domínio do branco


sobre o mulato, numa confirmação de seu poder.

Após as medidas tomadas por Felicíssimo, Milkau constrói sua casa


e Lentz deixa-se ficar, triste e angustiado, incapaz de abandonar o
companheiro, dedicando-se às viagens e compras da casa. No trajeto,
encontra-se sempre com um velho colono alemão taciturno, em com-
panhia de seus cães ferozes, mas fiéis. Mais tarde, encontrará esse vel-
ho morto em casa, guardado pelos animais e devorado pelos urubus.
Um dia, ao retornar de Santa Teresa, Lentz traz a notícia de que, em
Jequitibá, o novo pastor vai celebrar seu primeiro serviço. Os colonos
preparam uma festa e Milkau resolve juntar-se a eles como forma de
se familiarizar com os costumes do povo. Pelo caminho, os amigos
encontram famílias inteiras de colonos. As mulheres se vestem com o
modelo usado na partida para a nova terra, sendo possível fixar, pelo
vestuário, a época de cada imigração.

Felicíssimo os convida para, depois do culto, festejarem no sobrado


de Jacob Müller. Milkau diz a Lentz que era isso o que buscava: uma
vida simples em meio à gente simples, matando o ódio e esquecendo
da dor. Os homens de outras terras estavam possuídos pelo demônio,
devastando o mundo. Lentz vê em tudo aquilo uma existência vazia
e inútil.

Milkau conhece, nesse dia, no sobrado de Müller, a colona Maria Pe-


rutz, que não consegue mais esquecer o encontro com o rapaz. A
história de Maria é triste e solitária. O pai morreu antes que ela pu-
desse conhecê-lo. A mãe viúva, criada da casa do alemão Augusto
Kraus, logo falece e Maria fica sob os cuidados de Augusto, seu ver-
dadeiro amigo. Moravam com o velho, seu filho, a nora Ema e o neto,
Moritz Kraus. Repentinamente, Kraus falece e a situação na casa de
Maria se modifica. Ema e o esposo decidem separar a moça do filho,
temendo uma aproximação amorosa. A família quer ver Moritz casa-
do com a rica Emília Schenker e o enviam para longe de Jequitibá.
O rapaz parte com certa alegria, deixando Maria desgostosa, pois os
dois já eram amantes.
Franz Kraus é procurado por um Oficial de Justiça que, desejando
saber porque a morte do velho não foi notificada, passa-lhe um doc-
umento sobre a necessidade de arrolamento dos bens de Augusto
Kraus. Solicita que lhe prepare alojamento e comida para cinco pes-12

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soas, pois darão plantão em sua casa, recebendo todos os que estiver-
em na mesma situação de Franz. O grupo se instala na casa e passa
a chamar os colonos, amedrontando-os com extorsões e violências.
Após a visita, cobram de Franz Kraus a alta importância de quatro-
centos mil réis, além de assediarem Maria. A vida de Maria por essa
época piora, pois ela descobre estar grávida de Moritz.

Os pais do rapaz não tardam em perceber o que se passa. Vendo-a


mover-se pela casa languidamente, sentem ódio e temem pelo casa-
mento do filho. Passam o dia a cochichar, a tramar para se verem
livres dela. Tratam-na com mais rigor, não lhe dão quase comida, do-
bram-lhe os trabalhos. Resignada, Maria resiste para desespero dos
velhos. Uma manhã, trêmula e exausta deixa cair um prato. Encoler-
izada, Ema grita para que ela abandone a casa. O marido ameaça-lhe
com um pedaço de madeira. Amedrontada, Maria arruma uma trouxa
e sai, pedindo auxílio ao pastor, mas esse, dominado pela cunhada,
docemente afasta Maria que parte para a vila em busca de abrigo.

Ao verem a triste figura, os colonos tomaram-na por louca, enxotan-


do-a. Na floresta, seu único refúgio, cai prostrada e adormece. No dia
seguinte, encontra uma estalagem, onde empenha a trouxa de roupa
em troca de comida e abrigo. A dona do estabelecimento lhe dá dois
dias para encontrar um emprego, mas a busca é em vão. Certo dia,
na hora do almoço, Milkau reconhece Maria na estalagem. Ao saber
de sua história, prontifica-se a ajudá-la, levando-a para a casa de uns
colonos. A moça é aceita, mas tratada com desdém.

Um dia, trabalhando no cafezal, Maria começa a sentir as dores do


parto. Temendo retornar à casa e ser maltratada, resiste até cair e, es-
vaindo-se em sangue, dá à luz ao bebê. Alguns porcos, que estavam
nas proximidades, correram para lambê-los, mordendo o bebê que fa-
lece. A filha dos patrões chega nesse instante e, sem nada perguntar,
volta à casa, dizendo que Maria tinha matado o bebê e dado a criança
aos porcos. Dois dias depois, Perutz foi presa na cadeia de Cachoeiro.
A população germânica, horrorizada com o crime de Maria, prepa-
ra-se para a vingança, clamando pela punição da mãe assassina. O
procurador da cidade, ignorado por Maria na época, insiste em puni-
la para que aprenda a não ser tão orgulhosa.

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Canaã - Graça Aranha

Milkau fica sabendo do destino de Perutz e o encontro com ela em


Cachoeiro choca-o. Maria tinha a face lívida e os olhos cintilantes
dançavam ao sabor da loucura. Ele volta a vê-la dias seguidos, pas-
sando a ser olhado com desprezo e desconfiança, pois, talvez, fosse
o amante. Repelido pelos moradores, resigna-se com a condição de
inimigo, permanecendo ao lado de Maria.

Certa manhã, estando em companhia de Felicíssimo, Milkau encon-


tra Maria, sendo levada por dois soldados para o tribunal. Em cada
fase do julgamento, é apontada culpada. Milkau acompanha todas as
sessões, chegando a ficar amigo do juiz Paulo Maciel. Este lhe diz que
o final não será feliz, pois os depoimentos não deixam brecha para a
inocência. O imigrante e Maciel aproveitam os encontros para analis-
ar a justiça brasileira, os brasileiros e seu patriotismo.

A avaliação não é das melhores. O juiz impossibilitado de fazer justiça


por uma série de circunstâncias observa que a decadência ali existente
é um “misto doloroso de selvageria dos povos que despontam para
o mundo, e do esgotamento das raças acabadas”. Milkau crê que se
pode chegar a algo melhor. Entretanto, à medida que acompanha o
definhar da amiga, vai se deixando tomar pela tristeza.

Finalmente, numa noite, Milkau tira Maria da prisão e foge com ela,
correndo pelos campos em busca de Canaã, “a terra prometida”, onde
os homens vivem em harmonia.

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5. GÊNERO

A obra “Canaã”, de Graça Aranha, pode ser considerada, predominan-


temente, como um romance de tese, pois é uma ficção que dialoga
com o pensamento científico-filosófico. O romance de tese é aquele
que apresenta um ponto de vista e tenta demonstrá-lo por meio dos
fatos narrados, que “veicula uma doutrina tomada de empréstimo a
uma forma de conhecimento não-estético” (MOISÉS, Massaud, 2002).
Geralmente, nesses romances, o comportamento dos personagens é
determinado por influência do meio, da raça e do contexto histórico
em que eles se inserem. Em suma, são narrativas que focalizam o lado
patológico dos indivíduos ou da sociedade, ou seja, as piores situações
sociais, como: corrupção, traição, atentado ao pudor, exploração sex-
ual etc.

Ademais, há ainda, nessa obra, traços de outros dois gêneros. O primei-


ro deles é o ensaio, já que a obra oferece uma interpretação sociológica
do autor para as cenas da realidade brasileira. O segundo é a novela, o
que se justifica, sobretudo, pelo fato de o enredo ser desenvolvido de
maneira sequencial - embora, em determinados momentos da narra-
tiva, alguns recursos quebrem essa sucessividade de acontecimentos
podem ser empregados.

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6. ESPAÇO

A narrativa se desenvolve predominantemente em Porto do Cachoe-


iro, cidade localizada no interior do Espírito Santo, habitada por pes-
soas excessivamente conservadoras.

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7. NARRADOR

A obra é narrada em terceira pessoa do singular, com narrador onis-


ciente, preocupado em esmiuçar os detalhes do sentimento de cada
personagem para serem transmitidos ao leitor. É possível afirmar, ain-
da, que o autor, Graça Aranha, se metamorfoseia na figura desse nar-
rador onisciente para advogar sobre os seus ideais, o que resulta em
uma espécie de narrador intruso, que em certos trechos interrompe
a sequência da narrativa para explicitar o ponto de vista de alguma
teoria.

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8. LINGUAGEM

Toda a obra “Canaã” é marcada por um discurso polifônico - princi-


palmente nos extensos diálogos entre os imigrantes Milkau e Lentz.
Além disso, evidencia-se na obra o caráter amplamente descritivo e
realista, em que se destacam a fixação da paisagem, as impressões
visuais, tácteis e olfativas.

Com relação à escolha vocabular - apesar de Graça Aranha ser um


dos expoentes da Semana de 22, a qual defendia a busca incessante
pela construção de uma identidade genuinamente nacional, distante
dos moldes europeus -, Canaã foi considerada, por muitos críticos lit-
erários, a exemplo de José Veríssimo, como uma obra muito marcada
pela verborragia acadêmica e pelo excesso de manejos estrangeiris-
tas. Sobre isso, o autor se pronunciou, em carta, admitindo a verbor-
ragia:

“Ambos vocês têm razão quando fazem restrições sobre a pureza da minha língua e
do meu estilo. Sabes bem que não sou por índole um escritor correto, tenho medo
de me perder na língua clássica e prefiro adotar formas e expressões correntes, es-
trangeirismos mesmo, mas da compreensão geral das línguas, introduzidos não por
mim, porém por todos da nossa sociedade, que ir buscar o arcaísmo. Bem. Ainda as-
sim reconheço que Canaã tem máculas desnecessárias (...) É preciso confessar que o
livro está muito errado e consolemo-nos mutuamente (...) O defeito que tu (e o Herá-
clito também) notas de muito viço e superabundância que não posso remediar em
Canaã. É talvez um cunho da mocidade, que há de passar, como docemente esperas,
em outros livros”. (ARANHA, Graça)

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9. TEMPO

A ordem dos fatos apresentada no romance segue uma cronologia


temporal lógica e, por vezes, usa como recurso a volta ao passado
para complementar ou explicar algum fato presente, buscando aux-
ílio para a retomada de algum acontecimento relevante, recurso con-
hecido como flashback.

A obra se passa no Brasil de 1902, pós-abolição, período marcado por


eventos como os primórdios da República com a sua instabilidade, a
decadência de tradicionais propriedades agrícolas e o grande quan-
titativo de grupamentos imigrantes que chegavam ao país em busca
de trabalho, principalmente para abastecer a mão de obra nos cafeza-
is.

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10. TEMÁTICAS

10.1. Representação do Brasil


e busca de uma identidade nacional
“A obra de Graça Aranha é feita à imagem e semelhança do Brasil.
Palpitam nela, desde aquele primeiro grito de êxtase ante a formosu-
ra do ambiente natal, que foi Canaã, a exuberância, a majestade, a en-
ergia da Terra.” (Ronald de Carvalho, Revista Klaxon - Janeiro de 1923)

Na obra, o Brasil representa para os imigrantes alemães a “terra pro-


metida”, Canaã, região conhecida por ser a antiga denominação do
território onde hoje está situada a cidade de Israel, na concepção Bí-
blica, o espaço prometido por Deus ao seu povo, espaço de fartura e
estabelecido como terra prometida desde o chamado de Abraão.

Essa idealização do Brasil, presente na narrativa da obra, pode ser iden-


tificada como parte de um projeto da literatura brasileira que busca-
va compreender e representar a identidade nacional desde a inde-
pendência política do país. É nessa busca, inclusive, que a literatura
indianista do início do século XIX, ainda muito influenciada pelo olhar
europeu, passa a ser substituída, no século XX, pelas narrativas que
retratavam as políticas de estímulo à imigração no país, caso da obra
“Canaã”, que aborda os desafios da instalação dos colonos alemães
no interior do Brasil.

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Canaã - Graça Aranha

Sendo assim, como parte de um projeto de literatura que buscava


representar o Brasil, é possível afirmar que “Canaã” é um romance
que lida com questões ideológicas sobre o “ser brasileiro”.

10.2. Racismo Científico


Ao retratar as distintas visões de dois imigrantes alemães recém in-
stalados no Brasil, Graça Aranha tece uma crítica ao racismo científi-
co que pressupõe a eliminação das espécies consideradas inferiores,
mais fracas. Essa crítica, por sua vez, está representada, sobretudo,
pelo racismo agressivo do personagem Lentz, defensor de um pro-
cesso imigratório que aniquilaria o povo brasileiro que, fraco por sua
mestiçagem, não resistiria à concorrência dos povos superiores - como
os “puros” alemães.

Em análise sobre os retratos dos brasileiros em “Canaã”, Maria Clara


Marques Fagundes reitera que, para Lentz, sem a eliminação do mes-
tiço, a civilização “seria sempre um misterioso artifício, todos os minu-
tos rotos pelo sensualismo, pela bestialidade e pelo servilismo ina-
to do negro” (ARANHA, 2005, p. 38). Todavia, na obra, esse fatalismo
racista de Lentz é contraposto pelo viés esperançoso de Milkau, que
chega ao Brasil movido pelo ideal de fazer do país sua Canaã, sua ter-
ra prometida, onde, em meio à exuberância da natureza, ele poderia
encontrar uma vivência de paz. Para essa personagem, os desafios
de se instalar no Brasil não são motivadores de uma conduta racista
e aniquiladora dos povos locais.

É nesse contraste de olhares do colonizador, principalmente, que se


pode considerar que a obra “Canaã” buscou representar - e ao mes-
mo tempo desconstruir - o racismo científico altamente difundido à
época da sua escrita.

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Canaã - Graça Aranha

CURIOSIDADE
O racismo científico, crença pseudocientífica que defende a
existência de evidências científicas que justificam a discrim-
inação racial, tem como origem os primórdios da teoria da
evolução humana, de Charles Darwin, que atestou a existência
de raças inferiores, que poderiam evoluir com o passar do tem-
po. Na mesma perspectiva, o naturalista francês Georges Louis
Leclerc, ainda no século XVIII, defendeu a ideia de degeneração
para discutir as misturas raciais, sobretudo no Brasil, afirman-
do, por exemplo, que o negro e o branco eram duas espécies
distintas, sendo o negro uma espécie inferior.

10.3. Miscigenação
A miscigenação é apresentada, na obra, ora como possibilidade de
desenvolvimento, ora como fator de degeneração.

A crença de Milkau na emergência de novo homem através da mis-


cigenação, por exemplo, ilustra o viés desenvolvimentista da mistura
de raças, já que o personagem alimenta um inabalável otimismo que
neutraliza o temor de que a sobreposição de culturas brutalizasse o
caráter nacional. Por outro lado, o caráter degenerativo dessa mistura
pode ser representado por Lentz, que acredita que a imigração rep-
resentará não o acréscimo de novos elementos à fusão racial do país,
mas o declínio e extinção do brasileiro “fragilizado pela mestiçagem”,
que não resistiria à competição com povos “superiores”.

Ademais, essa mistura de raças aparece, ainda, em “Canaã”, como um


possível processo de branqueamento da população brasileira, o que
é ilustrado pelo pessimismo esperançoso de Maciel, que vê na misci-
genação a possibilidade de uma futura substituição da cultura tradi-
cional, “atrasada”, por um modo de vida mais adaptado à moderni-
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Canaã - Graça Aranha

dade – substituição esta que acarretaria mudanças tão radicais que


marcariam o fim da cultura brasileira.

10.4. Corrupção/ abuso do poder público


O comportamento caricatural dos personagens denuncia o aparelha-
mento da justiça e a corrupção no Brasil, em todos os níveis de poder.

Em “Canaã” temos alguns exemplo desse comportamento displis-


cente dos agentes do poder público, como é o caso do personagem
carcereiro, o qual não aparecia com frequência na cadeia, o que fica
explícito em passagens da obra, como: “tinham-lhe dado, como é de
hábito no país, o emprego para remunerar serviços eleitorais, em que
era excelente”. Outra ocorrência que ilustra a corrupção no livro é a
ascensão do mulato, mais autêntico brasileiro de Canaã, que aconte-
ce concomitante com abusos de poder e violência. No geral, obser-
vamos que os personagens mestiços ocupam cargos importantes na
política (capitão Pantoja) e no judiciário (promotor Brederores), porém
esse poder é utilizado para obter vantagens pessoais, sem qualquer
respeito ao princípio “republicano de igualdade”.

O rompimento desse padrão comportamental que naturaliza e fa-


vorece a corrupção está na personagem do juiz municipal, Paulo Ma-
ciel, que contrasta com a corrupção e a prepotência dos outros fun-
cionários, mas que não tem, porém, força para resistir à pressão dos
outros magistrados e do escrivão Pantoja.

10.5. Xenofobia
O promotor Brederodes é, dentre os personagens brasileiros de “Ca-
naã”, o que apresenta xenofobia mais agressiva. Para ele, a presença
dos estrangeiros parece ameaçar seus domínios e ele teme por sua
multiplicação, pela tomada do país. As manifestações xenofóbicas
desse personagem - que se diz nacionalista e que detesta os colo-
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nos - pode ser percebida nos momentos em que ele se refere aos es-
trangeiros como: “corja de alemães”, “velhacos” e “salteadores”.

Em “Canaã” também é possível perceber outros episódios de xeno-


fobia, por exemplo contra o cearense agrimensor Felicíssimo e con-
tra o mulato Joca. Em dado momento da obra, o narrador descreve
a aversão com que Lentz Lentz olhava as duas raças: “enquanto a
facúndia interminável e mole do cearense e do mulato lhe trazia a
sensação do enjoo de mar.”.

CURIOSIDADE
A palavra xenofobia tem origem grega e significa aversão ao
estrangeiro. A xenofobia é um tipo de preconceito contra quem
nasceu em um lugar diferente do seu. Normalmente, ela está
associada ao racismo e expressa-se, por vezes, por meio da
intolerância religiosa ou dos preconceitos acerca do local de
origem da vítima.

10.6. Assédio sexual


Na narrativa, a personagem Maria, uma jovem filha de imigrantes, é
assediada pelos soldados negros, bêbados, todas as noites, de quem
tenta se desvencilhar. Esse assédio é narrado em trechos como:

“As suas noites eram agitadas, escapando ela sempre de ser violada pelos soldados
assanhados e bêbados. Debatia-se nas mãos deles, e salvava-se, ou pela disputa sen-
sual da posse que entre os dois pretos se formava, ou pelo alarido levantado, diante
do qual se recolhiam cobardes e espavoridos.”

É possível perceber que uma série de fatores facilitam essa impor-


tunação - injustificável -, principalmente se observados sob a ótica
do tradicionalismo da sociedade patriarcal da época. Maria é uma
jovem sozinha, que não conta com a proteção de uma família, já que,
após a morte dos pais, passa a viver “de favor” na casa dos patrões,
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que não garantem a defesa dela. Essa desproteção, então, resulta em


uma vulnerabilidade, que a coloca em situação de exposição e risco
na presença de outros homens, como os soldados que a assediam.

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11. PERSONAGENS

11.1. núcleo de imigrantes


11.1.1. MILKAU
Grande herói romântico de “Canaã’’, chega ao Brasil em busca da ter-
ra de promissão, disposto a estabelecer-se como colono, numa ide-
alização da natureza, “expressão serena da arte”. Milkau é um jovem
alemão que, terminados os estudos universitários e após a morte dos
pais, se muda de Heidelberg para Berlim, onde se vira perdido em
sentimentos de vaga religiosidade e depressão, até partir para o Bra-
sil, onde desembarca inebriado diante da natureza luxuriosa, tal qual
o primeiro homem no Éden. Já em terras brasileiras, ele instalou-se
no Espírito Santo, onde os desafios de adaptação à nova morada não
abalaram a crença dele na terra prometida, no futuro do país, na cor-
dialidade do brasileiro e na emergência de novo homem através da
miscigenação.

11.1.2. LENTZ
Alemão e filho do general Barão von Lentz, chega ao Brasil “gover-
nado pelo imprevisto”. Envolvido amorosamente com uma jovem de
sua classe social, não suportou o desprezo da família e de seus com-
panheiros por ter se recusado a um casamento “reparador” e parte
em busca de um novo domínio, livre dos preceitos cristãos, onde se
pudesse erguer “o reino da força radiante e da beleza triunfal”. Em
Lentz, é bastante evidente a influência da moral nietzscheana, como
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a apologia da força e o desprezo pelos fracos e pela ideologia cristã


de redenção através do sofrimento. O jovem alemão crê que a cultura
é determinada por fatores raciais, admira a disciplina, a belicosidade
e a tendência imperial da Alemanha.

11.1.3. MARIA PERUTZ


Filha de imigrantes, Maria perdera o pai na travessia do Atlântico. A
mãe empregou-se na casa do velho colono Augusto Kraus e morreu
poucos anos depois. A menina, então, cresceu com a família de Kraus
– filho, nora e neto – em relativa harmonia. Maria e o jovem Mortiz, fil-
ho dos patrões, se enamoram às escondidas, e ela fica grávida, sendo
expulsa da casa onde havia vivido desde pequena. Depois de vagar
pelos campos e aldeias, Maria deu à luz, sozinha, um bebê, e desmaiou
após o parto. A criança foi devorada por porcos selvagens e ela, presa
por infanticídio.

11.2. Os povos da terra


11.2.1. PAULO MACIEL
É́ juiz municipal de Porto do Cachoeiro, mesmo cargo ocupado por
Graça Aranha na juventude. Ele é casado e pai adotivo de uma criança
espanhola. Em sua função de juiz, Paulo Maciel sustenta suas opin-
iões diante das críticas de Pantoja, porém, nas atitudes, revela o pod-
er que o Capitão exerce sobre ele. Quando Maciel, superior hierárqui-
co de Pantoja, tenta dispensar inventários dos colonos muito pobres,
não resiste à pressão do “chefe político, mandão da localidade”. No
decorrer do processo contra Maria, Maciel torna-se interlocutor fre-
quente de Milkau, que percebe em Paulo Maciel uma delicadeza de
espírito e inteligência mais fina que a dos outros brasileiros. Marcado
pela tristeza de assistir a província e a nação inevitavelmente transfor-
madas, transfiguradas pelos estrangeiros que não podem combater,
Maciel identifica o poder do mestiço com a situação de crise no país.
Para ele, no futuro, um novo povo, branco, poderia trazer ao país pos-
sibilidades de inserção na nova ordem – capitalista, industrial, urbana
e cosmopolita.

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11.2.2. AGRIMENSOR FELICÍSSIMO


É o responsável por demarcar o lote de terra de Milkau e Lentz,
e é quem os apresenta a terra, os costumes e as pessoas. Hospita-
leiro e alegre até a redundância, o cearense conquista a amizade
dos alemães.

11.3. O trio de magistrados


11.3.1. PANTOJA
Escrivão, conhecido como Capitão ou Maracajá, é um tipo malandro,
corrupto e escorregadio, figura emblemática do Brasil de Canaã – ma-
racajá (leopardus wiedi) é o popular gato-do-mato, conhecido felino
brasileiro. Chefe do partido político local, Pantoja é temido pelos mag-
istrados, e representa o verdadeiro senhor da terra, que defende com
um nacionalismo enraizado, intimidando o juiz de direito Itapecuru,
que lamenta seus comentários pessimistas sobre a índole brasileira
ao perceber a censura de Pantoja e tenta, “gaguejando, remendar o
pensamento”.

11.3.2. JUIZ ITAPECURU


É́, naturalmente, um acadêmico nacionalista. Nascido Manoel Antô-
nio de Sousa, o juiz de direito adotou o novo sobrenome durante a
onda nativista inspirada pelo indianismo de José de Alencar e Gon-
çalves Dias. Considera-se capaz de concluir com segurança quais os
sentimentos psicológicos de um indivíduo, estudando-lhe apenas os
hábitos: por exemplo, o que essa pessoa come.

11.3.3. PROMOTOR BREDERODES


Utiliza o cargo para obter vantagens pessoais. Sua “falsa posição” per-
mite que ele exerça livremente sua arrogância com os colonos, cuja
única função é, para ele, “sustentar e regalar a justiça”. Brederodes
personifica o suposto desequilíbrio de caráter do mestiço. Irascível, o
promotor se exalta facilmente quando contrariado, seja nas conver-
sas com Maciel, seja nas investidas sexuais à Maria - sua sexualidade
é exacerbada e, “agitado de desejos lúbricos”, tem frequentes delírios
sensuais na presença da menina. Detesta os imigrantes.
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12. GLOSSÁRIO

Aqui abaixo estão alguns termos recorrentes na leitura de Canaã e


que podem ser úteis na resolução de questões a respeito da obra.

ABLUÇÃO: ato de abluir(-se); lavagem. LITURG Cerimônia, durante a


missa, em que se faz a lavagem do cálice e dos dedos do sacerdote.

ÁLACRE: que tem ou manifesta alegria; alegre, animado, jovial.

AMOFINAÇÃO: aborrecimento, apoquentamento, incômodo.

ANCHO: que tem grande extensão; amplo, espaçoso, largo.

ARMINHO: no sentido figurado, diz respeito à qualidade ou condição


do que é alvo, branco; alvura, brancura.

ASCETISMO: moral filosófica ou religiosa baseada na autodisciplina e


no desprezo ao corpo e às sensações corporais e que tende a assegu-
rar, pelos sofrimentos físicos, o triunfo do espírito sobre os instintos e
as paixões.

BENFAZEJO: que é afetuoso; afável, generoso.

COIVARA: quantidade de galhos, gravetos ou ramagens a que se dei-


ta fogo, para limpar o terreno e adubá-lo com as cinzas, preparando-o
para a lavoura.
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Canaã - Graça Aranha

DIÁFANA: que, sendo compacto, dá passagem à luz e permite que se


distinga a forma dos objetos; translúcido, transluzente, transparente:

EMBORNAL: saco, geralmente de lona, onde se carrega a comida das


cavalgaduras

ENJEITAR: não aceitar; desprezar, recusar, rejeitar.

ENLEIO: qualquer coisa que prenda ou submeta; envolvimento, en-


redamento.

ESTRÉPIDO: rumor de vozes; alarido, algazarra, falatório.

GALHOFA: dito ou ato espirituoso, engraçado; brincadeira, folia.

HEDIONDEZ: procedimento considerado condenável ou repulsivo.

INANE: destituído de conteúdo; oco, vazio

INFRANGÍVEL: que não se pode quebrar.

LANGUIDEZ: condição de quem está muito fraco ou doente.

LÉPIDO: que demonstra jovialidade; alegre, jovial.

LETARGO: estado patológico de inconsciência, bastante semelhante


ao sono profundo e duradouro, do qual o paciente pode ser desperta-
do, porém, logo em seguida, retorna a ele.

LUDÍBRIO: ato ou efeito de ludibriar ou enganar alguém

MATREIRO: muito astuto; que sabe obter vantagens; que não se deixa
enganar.

MELÍFLUA: que corre ou desliza como o mel; meloso.

MIRÍADE: número correspondente a 10 mil unidades; quantidade in-


definida e muito grande.

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Canaã - Graça Aranha

MOTEJO: dito satírico que provoca risos; troça.

PATUSCADA: ajuntamento de pessoas, reunidas para comer e beber


festivamente.

PIGMEU: indivíduo de uma das diversas etnias que vivem na região


equatorial da África
Central e que apresentam em comum a baixa estatura.

PORFIA: discussão, polêmica.

PRÉDICA: pregação de conteúdo religioso; prática, sermão.

RECALCITRAR: não ceder ou não obedecer; resistir tenazmente.

SERÃO: tarefa ou trabalho noturno, como continuidade do trabalho


diurno.

SORUMBÁTICO: que ou quem está sempre triste ou de aspecto


sombrio.

SOTURNO: que denota melancolia.

TÉPIDO: que tem pouco calor; ligeiramente morno.

TRÊFEGO: que se agita incessantemente; desassossegado, irrequieto.

TRIUNVIRATO: magistratura romana desempenhada por três cidadãos


encarregados da administração pública.

VOCIFERAR: proferir em altas vozes queixas amargas, impropérios;


bradar, clamar, exclamar.

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A ESCRAVA

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A Escrava - Maria Firmina dos Reis

13. OBRA

“A escrava” é a terceira obra produzida pela escritora negra maran-


hense Maria Firmina dos Reis. Escrito em 1887 e publicado na Revista
Maranhense, periódico que circulou no Maranhão no século XIX, esse
conto é uma narrativa abolicionista, a qual se insere no contexto vivido
à época, no país, em que se debatiam assuntos em torno da abolição
do regime servil no Brasil. Lançado às vésperas da assinatura da Lei
Áurea, pela princesa Isabel, em 1888, “A escrava” se destaca por trazer
a voz do escravo no enredo de um episódio ocorrido em tempos de
regime escravocrata no Brasil.

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A Escrava - Maria Firmina dos Reis

14. AUTORA

Maria Firmina dos Reis (1822 – 1917) foi uma mulher negra, filha de
mãe branca e bastarda de pai negro, nascida na Ilha de São Luís, no
Maranhão, e é considerada a primeira romancista brasileira. Afrode-
scendente, ela vivia em um contexto de extrema segregação racial
e social e, ao ficar órfã, aos cinco anos, mudou-se para a vila de Gui-
marães, onde passou a residir com a tia materna, fator determinante
para a sua formação. Firmina formou-se como professora, chegando
a receber o título de “Mestra Régia” e, posteriormente, vencendo o
concurso público para a Cadeira de Instrução Primária da cidade de
Guimarães-MA. Firmina foi, também, a responsável pela fundação da
primeira escola mista do Maranhão.

A estreia de Firmina dos Reis na literatura aconteceu em 1859, com


a obra “Úrsula”, primeiro romance publicado por uma mulher negra
em toda a América Latina e primeiro romance abolicionista de auto-
ria feminina da língua portuguesa. Suas obras destacam-se por dar
voz aos escravos, apresentando-os de maneira nobre e generosa, em
posição de equivalência com os brancos.

Firmina faleceu em 1917, aos 95 anos, pobre e cega. O reconhecimento


da sua obra aconteceu tardiamente, quando foi recuperada, em 1962,
pelo historiador paraibano Horácio de Almeida em um sebo no Rio de
Janeiro. Até hoje, seu rosto é desconhecido, e as imagens atribuídas a
ela são a representação de uma mulher “embranquecida”.

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15. GÊNERO

O gênero conto é classificado como um gênero narrativo e tem como


principal característica ser um texto conciso, apresentando, em geral,
poucos personagens, espaço e tempo restritos e um conflito único.
De caráter ficcional, o conto tem estrutura fechada, desenvolve uma
só história e tem apenas um clímax.

Os historiadores afirmam que os ancestrais do conto são o mito, a len-


da, a parábola, o conto de fadas e mesmo a anedota. Hoje, é possív-
el encontrar vários tipos de contos, sendo os mais comuns: realistas,
populares, fantásticos, de terror, de humor, infantis, psicológicos, de
fadas. Entre os maiores contistas brasileiros estão: Machado de Assis,
Monteiro Lobato, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Ly-
gia Fagundes Telles e Luis Fernando Verissimo.

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16. LINGUAGEM

A narrativa de “A escrava” é marcada pelo uso recorrente de metáfo-


ras, fundamentais na marcação das características das personagens
do enredo, principalmente na dicotomia colonizado e colonizador
presente na obra. Esse uso metafórico pode ser subtraído de trechos
como “Aquele homem é um tigre, minha senhora, – uma fera.”, em
que fica evidente a representação do colonizador como uma figura
violenta.

Além disso, a autora recorre à intertextualidade com textos bíblicos


para, dentro do contexto narrativo, legitimar a voz da mulher branca
abolicionista, fazendo com o discurso dela seja escutado pelos seus
pares. Ainda, é possível depreender da narrativa um viés metalin-
guístico, quando, no voz e na fala da senhora branca declaradamente
abolicionista, a autora, Maria Firmina dos Reis, profere, no conto, um
discurso pró abolição do regime servil.

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17. NARRADOR

A obra é narrada em 1ª pessoa e é possível afirmar que o conto dispõe


de duas narradoras-personagens. A primeira delas, a qual inicia a nar-
rativa, é uma mulher branca, declaradamente abolicionista, que nar-
ra a história e participa dela - é importante perceber que a voz dessa
mulher é fundamental para que a história comece a ser contada, já
que, no século XIX, os povos negros escravizados não tinham poder
de fala na sociedade. Durante o desenrolar dos fatos, a voz do discur-
so é transferida para a segunda narradora, a protagonista Joana, uma
mulher negra, escravizada, que, um pouco antes de morrer, elucida
detalhes de sua vida de escravidão submetida ao branco opressor e
desleal.

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18. TEMPO

Pelo conteúdo, o conto se passa no século XIX, em um período de de-


bates acerca da abolição da escravatura no Brasil. Estruturalmente,
essa narrativa se divide em dois quadros de tempos curtos, como
ocorre, em geral, com os contos.

A priori, tem-se uma reunião de pessoas distintas da sociedade, na


qual é contada, brevemente, a história de Joana, uma mulher negra
escravizada. Dentro dessa narrativa, há o tempo do que se é contado,
o qual se inicia com a fuga - e consequente busca – de Joana e termi-
na pouco após a morte dela. Ademais, existem trechos em que a pro-
tagonista utiliza como recurso anacrônico o flashback, interrupção
de uma sequência cronológica narrativa pela interpolação de even-
tos ocorridos anteriormente.

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19. ESPAÇO

A narrativa apresenta, principalmente, dois espaços. O primeiro deles


é um salão onde estão “reunidas muitas pessoas distintas, e bem colo-
cadas na sociedade”, espaço utilizado pela personagem abolicionista
para, a partir da contação de um episódio o qual ela vivenciou, intro-
duzir um debate abolicionista. E o segundo espaço são os arredores
da fazenda de onde Joana fugiu, que abrange, sobretudo, o local da
fuga e a casa da senhora que acolhe e protege a mulher escravizada
e o filho dela.

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20. ENREDO

No conto “A escrava”, uma senhora branca, declaradamente abolicion-


ista, reunida com pessoas distintas da sociedade em um salão nobre,
narra a história de Joana, uma mulher negra escravizada, filha de pai
indígena e mãe negra, assim como ela, escravizada. No enredo con-
tado pela mulher branca, o pai de Joana, após uma negociação com
Tavares, um senhor de engenho e escravocrata, supostamente com-
pra a liberdade da filha, que, à época, tinha cinco anos. Porém, após
a morte dele, a menina é, novamente, colocada em condição de ex-
ploração, e a mãe dela percebe que a família, analfabeta, foi engana-
da, recebendo de Tavares uma falsa carta de alforria, que não possuía
valor legal algum. Desse modo, Joana segue trabalhando em regime
de servidão na fazenda, onde nasceram seus três filhos.

Passados muitos anos de violência sofrida cotidianamente, Joana en-


louquece, principalmente depois de ser separada de dois dos seus fil-
hos – os gêmeos, de oito anos, Carlos e Urbano -, violentamente reti-
rados dela e vendidos a um traficante de escravos que os levou ao Rio
de Janeiro, de onde nunca mais voltaram. Após esse episódio, Joana
seguiu tendo apenas a companhia do filho Gabriel, mas apresentan-
do quadros frequentes de insanidade, com constantes tentativas de
fuga.

Na sequência da narrativa, em sua última fuga, Joana é acobertada


por uma senhora branca, que a auxilia escondendo-a do feitor Antô-
nio, subordinado ao senhor Tavares, até que chega Gabriel, seu filho,
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A Escrava - Maria Firmino dos Reis

que também estava a sua procura. Essa senhora, então, lhes oferece
proteção e os leva para sua casa. Já sob a proteção da senhora, Joana,
à beira da morte, narra, em primeira pessoa, as memórias de sua vida,
por meio de cenas de escravidão. Após contar sobre sua vida, Joana
não resiste e morre. O conto se encerra no momento em que a senho-
ra branca compra a liberdade de Gabriel, e o senhor Tavares esbraveja
por perceber que não poderia mais levar o homem como cativo.

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21. PERSONAGENS

21.1. Senhor Tavares


Homem pertencente à elite dos senhores de engenho, representa a
ideologia do discurso do colonizador: escravocrata, racista e religio-
so. No conto, é desleal com o pai de Joana, vendendo uma falsa carta
de alforria, a qual deveria garantir a liberdade da jovem escravizada.
Mantenedor do sistema de servidão, o senhor Tavares atribui à Joana
características como deslealdade e imprestabilidade.

21.2. Feitor Antônio


É concebido pelo senhor Tavares como um homem bom e leal. Na
posição de feitor, Antônio representa o exercício do poder do colo-
nizador, e recorre a castigos físicos cruéis como forma de punição
aplicada aos negros fugitivos.

21.3. Joana
Mulher negra escravizada, representa o sujeito colonizado que foi
capturado e trazido contra a própria vontade, do continente africano,42

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A Escrava - Maria Firmino dos Reis

onde era livre, para o Brasil, onde passa a ser escravizado. Vítima de
inúmeras opressões, Joana enlouquece quando dois de seus filhos
são violentamente retirados dela e vendidos para o comércio de pes-
soas escravizadas, e morre na esperança de um dia encontrá-los.

21.4. Gabriel
Filho de Joana, já nasce na condição de homem escravizado. Diante
do quadro de insanidade da mãe, luta para protegê-la da crueldade
do colonizador. Finalmente, sob a proteção de uma senhora branca
abolicionista, tem a sua liberdade comprada e torna-se um homem
alforriado.

21.5. Carlos e Urbano


Filhos gêmeos de Joana, são violentamente separados da mãe, aos
oito anos de idade, e levados para serem vendidos no Rio de Janeiro,
de onde nunca mais voltam.

21.6. “Uma senhora”


(Não tem o nome revelado na trama) Mulher branca “de sentimen-
tos sinceramente abolicionistas”, é quem acoberta e protege Joana e
Gabriel, acolhendo-os em sua casa e, posteriormente, comprando a
alforria do jovem negro escravizado.

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A Escrava - Maria Firmina dos Reis

22. TEMÁTICAS

22.1. Intertextualidade com o discurso bíblico


“Levantai os olhos ao Gólgota, ou percorrei-os em torno da sociedade,
e dizei-me: Para que se deu em sacrifício, o Homem Deus, que ali ex-
alou seu derradeiro alento?”

Na narrativa, o discurso bíblico é usado para justificar o erro que era


a escravidão. Ao pedir que aqueles que estão presentes no momen-
to em que a senhora fala levantem “os olhos ao Gólgota”, ou seja, ao
calvário (local onde, segundo o cristianismo, Jesus Cristo foi crucifica-
do), Maria Firmina dos Reis recorre ao texto bíblico para demonstrar
a incoerência entre a existência do sistema servil e os propósitos de-
fendidos por Cristo.

Com essa proposta de intertextualidade, a autora indaga: como po-


dem cristãos defender um regime de trabalho que coloca outros in-
divíduos em condição de constante exploração e violência, quando
o “Homem Deus” orienta que se ame a todos sem distinção? Desse
modo, por meio da força desse discurso para aquelas pessoas que se
acreditam cristãs, a atenção para a fala que seria proferida a favor da
libertação dos povos escravizados é alcançada.

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22.2. Escravidão X Abolicionismo


“Por qualquer modo que encaremos a escravidão, ela é, e sempre será um grande mal
[...] não tem futuro; o seu trabalho não é indenizado; ainda dela nos vem o opróbrio, a
vergonha; porque de fronte altiva e desassombrada não podemos encarar as nações
livres”

Fica evidente, durante toda a narrativa, que Maria Firmina dos Reis uti-
liza a própria literatura como instrumento de luta contra a escravidão.
Com a personagem Joana, a autora denuncia os constantes abusos
que eram praticados contra os povos escravizados, no Brasil, e os efei-
tos disso, bem como destaca o atraso do país – principalmente se
comparado à Europa – em determinar o fim do sistema de trabalho
servil, sobretudo quando se avalia a perspectiva da humanidade com
que eram tratados os povos escravizados.

“Mas, deixar de prestar auxílio àqueles desgraçados, tão abandonados, tão persegui-
dos, que nem para a agonia derradeira, nem para transpor esse tremendo portal da
Eternidade, tinham sossego, ou tranquilidade! Não. Tomei com coragem a responsa-
bilidade do meu ato: a humanidade me impunha esse santo dever.”

Sendo assim, na obra, o discurso abolicionista gira em torno da pala-


vra “humanidade”, o que compreende uma crítica que extrapola os
vieses políticos e administrativos de uma nação. Afinal, a escravidão
anula os padrões de humanidade a que todos dever ter direito e afas-
ta o homem da sua verdadeira imagem.

CURIOSIDADE
A lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888, mais conhecida como Lei
Áurea, é o mais breve e famoso ato legal da história do Bras-
il e possui apenas dois artigos, nos quais se declarada extinta,
desde a data da Lei, a escravidão no Brasil e revogam-se as dis-
posições em contrário. Esses poucos artigos, enfim, cessaram,
legalmente, quase quatro séculos de escravidão no Brasil.

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22.3. Discriminação racial


“Esta negra, continuou, olhando fixamente para o cadáver – esta negra era alguma
coisa monomaníaca, de tudo tinha medo, andava sempre foragida, nisto consumiu a
existência. Morreu, não lamento esta perda; já para nada prestava.”

Na obra, a denúncia da discriminação racial acontece, principalmente,


por meio da dicotomia entre o colonizador e o colonizado. A relação
de soberania que se estabelece entre eles, sendo o colonizador uma
figura que se considera e se porta como superior ao colonizado, só
era possível devido à crença de soberania racial defendida à época do
período escravocrata.

Nesse contexto, figuras tais como os senhores de engenho sustenta-


vam um discurso depreciativo sobre a pessoa escravizada, entenden-
do que o corpo dela era apenas um instrumento para a sua condição
para o trabalho, em um viés absolutamente desumanizado, e que jus-
tificava as violências e a exploração praticadas contra esses povos.

22.4. Poder de fala/ Complexo do


“branco salvador”
“– Quem é vossemecê, minha senhora, que tão boa é pra mim, e para meu filho? Nun-
ca encon­trei em vida um branco que se compadecesse de mim; creio que Deus me
perdoa os meus peca­dos, e que já começo a ver seus anjos.”

No conto, o discurso abolicionista só consegue se concretizar, porque


surge na voz de uma mulher branca, a qual é ouvida por seus pares.
Apesar de a narrativa dar destaque à voz de Joana, mulher negra es-
cravizada e que narra, sem filtros, as violências sofridas durante toda
a sua vida servil, essas memórias tornam-se dependentes da repro-
dução de uma mulher branca (na obra, “uma senhora”), autodeclara-
da abolicionista, para alcançar outras pessoas.

Nota-se, assim, que é essa senhora abolicionista quem aparece como


núcleo inicial para o desenvolvimento da narrativa e quem é tida
como a responsável pelo resgate das pessoas escravizadas, um co-
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mum arquétipo nas narrativas que abordam a escravidão, como film-


es e novelas, por exemplo. Isso, por sua vez, pode ser entendido como
uma crítica ao “complexo de branco salvador” (do inglês “white savior
complex”), ou seja, à ideia de que é a caridade e a bondade da pessoa
branca que irão salvar os povos subjugados, principalmente os pretos,
o que, desse modo, mantém a imagem de superioridade racial difun-
dida há séculos e que coloca os brancos em condições de extremo
privilégio.

22.5. Humanização dos escravizados


Na narrativa, o tema “escravidão” é apresentado sob a perspectiva de
uma escritora preta. Isso fortalece a estética da escrita, uma vez que
a autora, Maria Firmina dos Reis, possui o que se denomina “lugar de
fala”, dando vida aos personagens e luz aos fatos. Sendo assim, ao
possibilitar que Joana narre a sua própria trajetória - e as dores decor-
rentes dela -, Firmina humaniza os povos pretos que foram retirados
de seu continente, África, e levados para outras nações em condição
de dominados.

Até mesmo o debate sobre a loucura, trazido pela obra, pode ser com-
preendido como parte da crítica feita a esse processo de desuman-
ização dos povos escravizados. Na narrativa, a loucura - ou alienação
- de Joana descende do processo colonial que a dispôs como uma
ferramenta de trabalho que, além de desumanizá-la, a submeteu a
situações em que lhe foram negadas todas as condições de digni-
dade, como no momento em que seus filhos são retirados à força de
seus braços e levados para serem comercializados como mercadori-
as. Desse modo, mais uma vez, permitir que Joana e Gabriel tenham
voz no enredo é dar a eles - e às vozes que eles representam - o direito
de se fazerem humanos.

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A Escrava - Maria Firmino dos Reis

CURIOSIDADE
A expressão lugar de fala, segundo a filósofa, feminista negra
e escritora, Djamila Ribeiro, está relacionada ao silenciamento
das minorias, que, por ocuparem poucos espaços políticos, são
pouco representadas e, consequentemente, pouco ouvidas.
Logo, a ideia do lugar de fala é oferecer visibilidade a quem
teve seus pensamentos desconsiderados durante muito tempo,
por exemplo para se falar de assuntos específicos a um grupo,
como racismo e machismo, sugere-se que pessoas negras e
mulheres falem, uma vez que podem oferecer uma visão que
pessoas brancas e homens podem não ter.

22.6. Protagonismo feminino


O protagonismo feminino em “A escrava” começa com a própria au-
toria da obra, já que Maria Firmina dos Reis se destaca na literatura
brasileira como pioneira na escrita de romances abolicionistas, além
de ter sido, ainda, a mulher responsável pela fundação da primeira es-
cola mista do Maranhão. Essas singularidades, além do fato de Firmi-
na ser uma mulher negra contemporânea do período escravocrata
no Brasil, fazem com que a obra dela seja compreendida como um
ato de ousadia e um importante registro histórico.

Não só, “A escrava” se destaca por apresentar duas narradoras-per-


sonagens, mulheres distintas, mas que trazem consigo importantes
questões a serem debatidas, como o protagonismo feminino. No caso
da senhora branca e abolicionista, é importante perceber o poder de
fala que é dado pela autora a uma mulher inserida em uma sociedade
patriarcal e que, no geral, negava ao sexo feminino o direito de pronún-
cia. Reconhecida a crítica feita à posição de salvador ocupada pelos
brancos, o fato de essa salvação vir de uma mulher também pode ser
considerada um rompimento com os padrões comportamentais da
época. Ademais, a voz de Joana no conto revela o protagonismo fem-
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inino, em especial das mulheres que ela representa, as negras que fo-
ram escravizadas - que eram ainda mais silenciadas e oprimidas que
as mulheres brancas, dadas as circunstâncias da interseccionalidade
entre gênero, classe e raça - e submetidas a situações traumáticas
relacionadas à maternidade, como a retirada forçada de seus filhos,
à objetificação de seus corpos, úteis apenas para a exploração, e ao
estigma da loucura, ignorando-se o fato de que elas, na verdade, con-
viviam com traumas e dores das violências cotidianamente sofridas.

CURIOSIDADE
O termo histeria deriva da palavra grega hystero, que significa
útero, e foi utilizado para caracterizar um conjunto de sinto-
mas nas mulheres, colaborando para a formação de um modo
prescritivo de ser mulher. Vista como uma ilusão ou uma ence-
nação, ainda que não intencional, a histeria foi definida como
uma forma de loucura de mulheres. A grande questão é que
esse diagnóstico, à época, ignorava os múltiplos fatores socio-
econômicos e historiográficos que, no final do século XIX, tor-
naram-se mecanismos de controle, modernos e capitalistas,
dos corpos femininos, submetendo as mulheres a situações de
opressão, estresses e traumas. Em suma, a histeria funciona-
va como uma espécie de comando de como as mulheres não
deviam se comportar e serviu para a desqualificação da liber-
dade expressiva delas, especialmente em seus comportamen-
tos e em sua linguagem. Ainda hoje, é comum que as mul-
heres, ao se expressarem ou manifestarem descontentamento
com questões abusivas e opressivas, sejam classificadas como
loucas e histéricas.

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23. GLOSSÁRIO

ANOSO: Que é muito antigo e que existe há anos; velho.

COR FUSCA: cor escura, parda.

DARDEJAR: Arremessar ou atirar dardos.

DEBUXADOS: desenhado, esboçado, delineado.

DESAZADAMENTE: que não tem cabimento; descabido.

DESDITOSA: que ou o que foi vítima de desdita; desventurado, infeliz,


mofino.

ENCETAR: começar a fazer algo; iniciar, principiar.

ESPASMÓDICO: da natureza de um espasmo (contração involuntária,


violenta e súbita).

GEMEBUNDAS: que têm o hábito de gemer ou de se queixar

HIRTA: tornar-se hirto; eriçar-se.

MONOMANÍACO: que ou aquele que sofre de monomania (forma de


loucura em que o paciente se concentra obsessiva e totalmente em
uma ideia).
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A Escrava - Maria Firmino dos Reis

OPRÓBIO: desonra pública extrema; degradação e rebaixamento so-


cial; ignomínia, vergonha, vexame.

PAROXISMO: a maior intensidade de um acesso, de uma afecção ou


de uma dor.

SENDA: o rumo que se segue na vida, quer praticando a virtude quer


o vício.

VERDUGO: indivíduo que executa a pena de morte ou outros castigos


corporais; algoz, carrasco, executor.

VINDITA: punição legal; castigo.

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QUESTÕES AFINS EN-
TRE AS DUAS OBRAS

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Canaã + A Escrava

24. OPRESSÃO
FEMININA
(MATERNIDADE/ LOUCURA)

As duas obras escolhidas para o vestibular da UEMA/2022 trazem im-


portantes questões sobre a maternidade e a loucura, inclusive, sendo
possível traçar um paralelo, não só entre as obras, mas também entre
essas duas temáticas.

Em “A escrava”, de Maria Firmina dos Reis, deparamo-nos com a per-


sonagem Joana, uma mulher negra escravizada que dá à luz três fil-
hos, os gêmeos Carlos e Urbano, e Gabriel. Cativos, ela e os filhos vivem
em uma fazenda, quando os gêmeos são, forçadamente, retirados de
Joana e entregues ao tráfico de pessoas escravizadas, sendo levados
ao Rio de Janeiro, de onde nunca mais voltaram. Desse momento em
diante, tem-se a dor de uma mãe cujos filhos lhes foram retirados -
o que é narrado pela própria personagem ao relembrar sua vida, na
véspera de morrer - e que almejou diariamente a oportunidade de
reencontrá-los, condição que era totalmente negligenciada pelos seus
“senhores” e os capatazes deles. Ainda sobre Joana, sabe-se que, des-
de a retirada dos filhos, ela passou a ser considerada louca (o que era
justificado pelas constantes tentativas de fuga da mulher, por exem-
plo), e essa suposta loucura era razão para desmerecer, ainda mais, a
dignidade dela. Todavia, uma análise um pouco mais crítica - e huma-
na - nos leva a perceber que os processos traumáticos resultantes dos
episódios vivenciados por essa mãe foram totalmente desconsidera-
dos e resumidos à acessos de loucura, síntese comum quando pen-
samos na trajetória das mulheres ao longo da história da humanidade.
Exemplo disso, são os primórdios dos estudos psiquiátricos sobre a
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Canaã + A Escrava

histeria, quando essa condição psíquica, caracterizada por ataques


exagerados, era atribuída à grande parte das mulheres que, por ven-
tura, apresentassem um comportamento enérgico, diferente daque-
le que se esperava do sexo feminino. Ou seja, toda e qualquer tentati-
va de manifestação de descontentamento poderia ser lida como um
caso de histeria, o que resultou no silenciamento de muitas mulheres.

Passando para a segunda obra, “Canaã”, de Graça Aranha, podem-


os subtrair, novamente, essa relação entre maternidade, opressão e
loucura. Na obra, a personagem Maria vive um romance escondido
com o filho dos patrões e, ao engravidar, é expulsa da casa deles sem
nenhum tipo de assistência. Submetida a condições extremas, como
fome, desabrigo e abandono, ela parte sozinha em busca de abrigo e
suporte, sendo tratada por muitos daqueles que a observavam, como
uma louca. Depois de conseguir se instalar com uma família de colo-
nos - e trabalhando na roça para retribuir o suposto acolhimento - ela
dá à luz ao filho, no meio do mato, atraindo a atenção de porcos que
devoram a criança recém-nascida. Essa fatalidade, então, é percebida
por uma colona, que denuncia Maria e faz com que a jovem seja pre-
sa acusada de matar o próprio filho e entregá-lo aos porcos. Depois
disso, e sem direito de defesa - por ter sua voz silenciada, afinal ela era
“louca” -, a jovem passa a aguardar, na cadeia, o seu julgamento, apre-
sentando um padrão comportamental de vazio, indiferença e apatia.

Em suma, o que podemos observar de semelhança nessas duas per-


sonagens é o negligenciamento das opressões sofridas por essas
mulheres, mães, e o simples - e comum - reducionismo das possíveis
manifestações traumáticas delas à loucura, estratégia que, há sécu-
los, silencia as mulheres no Brasil e no mundo.

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25. IDEAL DE SUPERI-


ORIDADE DE RAÇAS
“Desde o princípio houve vencedores e vencidos, sob a forma de senhores e escravos;
desde dois séculos estes lutavam por vencer aqueles. Todas as revoluções da história
brasileira têm a significação de uma luta de classe, de dominados contra domina-
dores. O povo brasileiro foi por longos anos apenas uma expressão nominal de um
conjunto de raças e castas separadas. E isso se manteria assim por muitos séculos, se
a forte e imperiosa sensualidade dos conquistadores não se encarregasse de demolir
os muros da separação, e não formasse essa raça intermediária de mestiços e mula-
tos, que é o laço, a liga nacional, e que, aumentando cada dia, foi ganhando os pontos
de defesa dos seus opressores.” (ARANHA, Graça)

O ideal de superioridade de raças, sustentado tantas vezes por teorias


e cientificismos que justificavam a opressão de povos (a exemplo do
racismo científico) é uma temática que pode ser percebida nas obras
“A escrava”, de Maria Firmina dos Reis, e em “Canaã”, de Graça Aranha.
Em “A escrava”, toda a trama revela o enraizamento desse ideal, por
se tratar de uma narrativa que tem como mote a escravidão, sistema
de exploração servil fundamentado pela ideia de supremacia branca,
ou seja, falsa noção da superioridade natural do homem branco. Essa
suposta supremacia foi a justificativa que naturalizou e validou a reti-
rada de pessoas do continente africano que eram levadas para serem
exploradas em países, como o Brasil, onde elas eram escravizadas e
mantidas cativas. No conto em questão, Maria Firmina dos Reis ilus-
tra bem as condições em que esses sujeitos escravizados viviam ao
retratar Joana e sua trajetória de vida ao lado dos filhos Carlos e Ur-
bano (que são retirados dela em uma episódio explícito de desuman-
ização) e Gabriel.

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Canaã + A Escrava

Analogamente, em “Canaã”, obra de Graça Aranha, também é possível


subtrair esse ideal de superioridade racial. A narrativa, que tem como
protagonistas dois alemães imigrantes no Brasil, é marcada por essa
noção de supremacia branca, manifestada principalmente por Lentz,
personagem que defende a supremacia da raça germânica sobre a
brasileira. Para ele, por ser miscigenado, o brasileiro torna-se incapaz
de civilizar-se, e a raça brasileira se extinguirá no contato com a raça
europeia, o que pode ser percebido em falas como: “o homem bra-
sileiro não é fator de progresso: é um híbrido. E a civilização jamais se
fará nas raças inferiores”.

Em geral, as duas obras revelam como, durante toda a história da hu-


manidade, o falso ideal de superioridade racial, sustentado por teori-
as científicas eurocentristas, justificou a opressão e a exploração de
povos cujas raças eram consideradas inferiores, caso que se aplica,
sobretudo, aos negros e aos mestiços.

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Canaã + A Escrava

26. ORIGEM DOS


AUTORES
Uma curiosidade sobre a escolha das obras para o processo seletivo
do PAES-UEMA 2022 é a origem dos autores. Como vimos nas biogra-
fias, tanto Maria Firmina dos Reis quanto Graça Aranha são escritores
maranhenses, originários de São Luís.

Todavia, apesar de conterrâneos, eles viveram realidades bastante dis-


tintas, o que se traduz nas obras produzidas por cada um deles. De
um lado, temos Maria Firmina dos Reis, mulher negra, filha bastarda,
cuja vida foi constantemente marcada pelas opressões do machismo
e do racismo. Fruto de sua vivência e da ligação com as suas origens,
ela produziu obras, como “A escrava”, que retratavam a exploração do
seu povo e a luta pelo fim da escravidão, dando voz e protagonismo à
figura da mulher negra escravizada. Do outro lado, temos Graça Ara-
nha, homem, escritor e diplomata, cujas experiências profissionais e
o contato com o imigrante deram origem à obra “Canaã”, a qual bus-
ca ilustrar a formação do povo brasileiro de uma forma original, mas
que, assim como admitiu o autor à época, ainda está impregnada de
alguns estrangeirismos.

O que se pode perceber com a leitura desses dois grandes clássicos


da literatura brasileira e nordestina é que há uma diferença no enfo-
que que é dado quando analisamos a relação entre opressor e oprim-
ido. Assim, podemos dizer que “A escrava” revela, sobretudo - e não
exclusivamente-, a voz do oprimido, e “Canaã”, a voz do opressor.

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REDAÇÃO-MODELO
ESTILO UEMA

Enunciado
A mistura de raças é apresentada em Canaã como possibilidade de
desenvolvimento da nação. É possível afirmar que a miscigenação
conduziu o Brasil a uma democracia racial?

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Da evolução à libertação:
existe democracia racial no Brasil?

A Teoria da Evolução das Espécies, de Charles Darwin, atestou a ex-


istência de raças inferiores, que poderiam evoluir com o passar do
tempo. A partir de proposições como essa, surgiu a ideia de superi-
oridade racial, que culminou no racismo científico, teoria que valida-
va, por exemplo, o ideal de supremacia branca. Toda essa convicção
hegemônica foi responsável pela escravização de povos, como os ne-
gros vindos da África, que, no Brasil, se misturaram com indígenas e
imigrantes, dando origem a uma nação amplamente miscigenada.
Com efeito, dessa mistura de raças surge uma importante indagação:
é possível afirmar que a miscigenação conduziu o Brasil a uma de-
mocracia racial?

A princípio, é crucial destacar que a formação do povo brasileiro é mar-


cada pela mistura de raças. Sobre isso, cabe lembrar que, durante o
Período Colonial, os portos brasileiros foram abertos para o comércio
com outras nações e pessoas de várias nacionalidades se estabelecer-
am em solo tupiniquim em busca de progresso. Exemplo disso são
os jovens alemães, Milkau e Lentz, personagens da obra “Canaã”, do
escritor maranhense Graça Aranha, que vieram para o Brasil atraídos
pelas oportunidades da terra prometida. Essa vinda massiva de imi-
grantes, no que lhe concerne, resultou no encontro de raças que deu
origem à mestiçagem do povo brasileiro manifestada não só no as-
pecto genético da população, mas no encontro de culturas, tradições,
línguas e religiões.

Todavia, essa reunião de raças não aconteceu de maneira harmônica


para todos os povos, principalmente para os negros africanos trazidos
para o país como escravos por serem considerados uma raça inferi-
or. Nessa perspectiva, esse ideal, sustentado pelo racismo científico
que legitimava a supremacia branca, foi responsável pelo tratamento
desumano dado aos negros - fato ilustrado pelo conto “A escrava”, de
Maria Firmina dos Reis. Tal desumanidade, por sua vez, só foi mini-
mizada com a assinatura da Lei Áurea, em 1888, a qual determinou o
fim do sistema escravocrata no país. Entretanto, essa garantia não foi
suficiente para mitigar o racismo no Brasil, visto que, ainda hoje, se-
gundo dados do Atlas do Desenvolvimento Humano, de 2020, os ne-
gros são mais pobres, morrem mais e ganham menos que os brancos
no país.
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Portanto, conclui-se que a miscigenação, responsável pela atual for-
mação do povo brasileiro, não foi suficiente para a promoção de uma
democracia racial. Sendo assim, é necessário que, cada vez mais, se
coloque em pauta debates sobre a permanência do racismo e da xen-
ofobia entre a população do Brasil, para que a reprodução do ideal de
supremacia branca seja findada em território nacional. Somente as-
sim, será possível pensar o estabelecimento de um país democrático
para todos.

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REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ARANHA, Graça. Canaã. São Paulo: Martin Claret, 2005 (Edição original: 1902). ARAUJO,
Barbara Del Rio. Estudo sobre a composição estética da obra Canaã. Disponível em:
https://1library.org/document/nzwv07lq-estudo-sobre-composicao-estetica-obra-ca-
naa-graca-aranha.html

BOTTON, Viviane Bagiotto. Histeria, mulher e feminino. Disponível em: https://www.


filosofas.org/post/histeria-mulher-e-femenino
CAMPOS, Leonardo. Canaã, de Graça Aranha. Disponível em: https://www.planocritico.
com/critica-canaa-de-graca-aranha/

D’ANGELO, Helô. Quem foi Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira romancista
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