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“A História do Homem Calado”

De Valter Hugo Mãe

Na primeira casa de uma rua vivia um homem muito calado sobre quem
não se sabia quase nada. Era um homem muito especial, achavam as pessoas
só de olharem de longe. Especial porque, mesmo muito calado e sem
conversas, se distinguia facilmente de todos os vizinhos: ao invés de ter dois
olhos, tinha apenas um, e ao invés de ter dois braços, não tinha nenhum e
vestia umas roupas lisas que pareciam camisolas estragadas.

Nas outras casas da rua, achavam todos que viviam pessoas mais
faladoras. Caminhavam pelos passeios, juntavam-se aqui e acolá e punham a
conversa em dia sobre assuntos pequenos e grandes.

Falavam da felicidade dos filhos, dos casamentos e das escolas, ou da


compra de parafusos para os armários da cozinham, ou até faziam o tradicional
pedido de açúcar porque, à última hora, sentiam vontade de fazer um bolo e a
despensa estava meio vazia.

Era uma vizinha muito ativa, sempre de um lado para o outro entretida
com a vida e, na maior parte das vezes, ninguém se lembrava daquele homem
muito calado que, tão diferente, fazia o seu caminho até à primeira casa da rua.

A verdade era que, quanto menos se lembrava dele, mais ele parecia
ficar calado. Ia pelo passeio metido nos seus pensamentos e entrava em casa
tantas vezes sem sequer levantar a cara do chão.

Quem pensava sobre ele, pensava que estranho homem havia de ser.

Mais até do que por ter apenas um olho, ou não ter braços, mas porque
era tão calado que parecia comer palavras por alimento.

Seria possível que comesse palavras como quem come a sopa ou um


prato de arroz?, ponderavam os seus vizinhos. Comentavam em surdina que
ele era esquisito e punham-se do outro lado do passeio a fazer de conta que
nem reparavam quando ele passava.
Um dia, uma senhora não se apercebeu de que ele vinha no seu
caminho de sempre e, descuidadamente, esbarraram os dois. O homem ficou
um pouco encostado ao muro e, ao contrário do que a senhora esperava
quando notou quem era, ele não fez cara feia. Sorriu e disse:

– Boa tarde.

A senhora sorriu também, um pouco envergonhada, e respondeu:

– Estava tão distraída. Peço desculpa.

E ele acrescentou:

– É perfeitamente normal. Não se preocupe.

Seguiram depois como se nada fosse, mas a senhora não resistiu a


olhar para trás uma e outra vez, muito impressionada com o sorriso tão
simpático do vizinho.

Em pouco tempo todos sabiam que aquela senhora tinha esbarrado


contra o homem calado e que ele fora simpático e sorria.

Queriam saber mais, todos queriam saber mais.

Perguntavam o que disse ele, que outras coisas dissera, insistiam. A


senhora dizia que não houvera grande conversa, apenas o que já se sabia, e
que, além de não ser mudo, o homem tinha um sorriso bonito e nada
agressivo.

Ficaram todos muito irrequietos com aquele acontecimento.

Depois de tanto tempo a pensarem que o vizinho não seria nada


amistoso, coçavam a cabeça intrigados com aquela novidade e pareciam
ansiar pelo momento de o encontrarem novamente no passeio a caminho de
casa.

Um outro vizinho, na discussão que tiveram todos entre si, garantiu que
arranjaria maneira de começar conversa com o homem e saberia mais sobre
ele, para se assegurar de que era mesmo a boa pessoa que parecia ser.

Assim foi. Quando avistaram ao fundo o homem da primeira casa da rua,


naquele passo de sempre, metido nos seus pensamentos enquanto olhava
para os jardins floridos da Primavera, o vizinho mais corajoso pôs-se no seu
encalço e depressa apareceu diante dele.

– Bom dia, vizinho – disse o curioso.

– Bom dia – respondeu o homem calado.

– Está uma manhã muito agradável e sabe bem um passeio – continuou


o primeiro.

– Sim. Foi o que acabei de fazer. E agora vou preparar um chá e


cozinhar o almoço – acrescentou o homem calado.

O vizinho curioso torceu a expressão. Ficou muito confuso subitamente.


Era indelicada a sua atitude, sem dúvida, mas pensou que o homem calado
não tinha braços e não conseguiu perceber como poderia ele fazer um chá. A
surpresa era tão grande que lhe ficou estampada no rosto ao ponto de obter
uma explicação sem perguntar nada:

– Não se admire, caro vizinho, é que faço todas as coisas com os pés,
como se fossem as mãos, e se quiser ver tenho muito gosto em convidá-lo
para partilhar comigo umas ervas de cidreira numa água quentinha que já
ponho a ferver.

Nunca ninguém teria imaginado que o homem muito calado fizesse com
os pés aquilo que parecia apenas possível fazer-se com as mãos.

Era impressionante vê-lo a bulir aqui e ali sem hesitação dentro da sua
casa. Havia desenvolvido uma capacidade admirável e, sem que se dessem
conta de atrasos, o chá estava pronto e sabia maravilhosamente à maneira
cidreira de todas. O vizinho curioso sentava-se confortavelmente numa cadeira
da cozinha e sorria contente.

Demorou pouco tempo até que todos visitassem a sua casa e


provassem o seu chá e os seus cozinhados tão saborosos. As pessoas
daquela rua, que já eram muito ativas, não esperaram mais e quiseram todas
conhecer melhor o vizinho, convidando-o também para jantares e serões de
convívio onde riam e discutiam ideias acerca de tudo.
Assim começaram a fazer, até que já ninguém reparava que o homem
da primeira casa da rua não tinha braços ou que tinha apenas um olho e, mais
incrível, já ninguém se lembrava de ter julgado que era mudo e com estranhos
hábitos.

Chamava-se Gabriel.

Chegavam o pé dele e diziam:

– Bom dia, Gabriel. Esta noite temos jogo de cartas. Tens de aparecer.

O senhor Gabriel sorria como sempre, parava de ver as flores e


respondia:

– Claro. Ainda quero a desforra e hoje sinto-me com sorte e sei que vou
ganhar.

À noite, todos se divertiam durante horas sem pensarem em mais nada


senão naquela sensação boa de se fazerem felizes uns aos outros.

Ficou tão diferente aquela rua.

Quando antes todos pareciam apressar o passo em corrida, como a fugir


de alguma coisa, agora iam com mais calma e não atravessavam de um
passeio para o outro a fazerem-se de desentendidos. Lembravam-se mal
desses tempos e, quando se lembravam, tinham até vergonha das figuras que
tinham feito.

A rua estava melhor do que nunca.

A dona Matilde, que tinha noventa anos e ainda tricotava, até fez uma
camisola de lã para o senhor Gabriel, ali mesmo à chegada do Inverno. Era a
camisola mais fácil de fazer, confessara ela. Como não tinha braços, poupava
muito na lã e tinha poucas costuras. Ficou toda encantada quando o vizinho a
vestiu e saiu todo vaidoso de bonito à rua.

Numa noite de festa, alguém se lembrou uma última vez de como as


coisas eram antigamente e do preconceito tolo que sentiam em relação ao
senhor Gabriel. Riam-se todos a recordar os disparates que pensavam e de
como imaginavam a sua vida. Depois, alguém disse que já não percebia a
diferença e que, verdadinha, eram todos diferentes e engraçados.

– Eu tenho um nariz com um metro – dizia alguém brincando com o seu


nariz particularmente grande.

– E eu tenho uma orelha muito maior do que a outra – dizia outro


vizinho.

– Pois eu, quando me rio muito, pareço uma avestruz – dizia uma
senhora.

– Mas melhor ainda sou eu, que, não parecendo ter nada de estranho, a
andar entorno para o lado esquerdo como se fosse cair. Nunca repararam? –
perguntava um outro senhor, muito divertido.

Naquela rua, como no mundo inteiro, as pessoas eram todas diferentes


e, vistas com atenção, tinham mil e uma divergências que, por serem tantas, só
ajudavam a que ficassem mais iguais.

Sim, é assim mesmo: o ser toda a gente tão diferente só prova que isso
não importa para a amizade ou para o amor.

Aos olhos dos outros, quando não nos conhecemos, todos podemos
parecer, num dado momento, monstros coloridos de feitios esquisitos e até
impossíveis.

O senhor Gabriel pôs um chá a fazer e, esta noite mesmo em que te


conto a sua história, recebe os amigos da rua para mais uma grande festa.

Estão todos muito felizes com isso.

Fim.

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