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Na primeira casa de uma rua vivia um homem muito calado sobre quem
não se sabia quase nada. Era um homem muito especial, achavam as pessoas
só de olharem de longe. Especial porque, mesmo muito calado e sem
conversas, se distinguia facilmente de todos os vizinhos: ao invés de ter dois
olhos, tinha apenas um, e ao invés de ter dois braços, não tinha nenhum e
vestia umas roupas lisas que pareciam camisolas estragadas.
Nas outras casas da rua, achavam todos que viviam pessoas mais
faladoras. Caminhavam pelos passeios, juntavam-se aqui e acolá e punham a
conversa em dia sobre assuntos pequenos e grandes.
Era uma vizinha muito ativa, sempre de um lado para o outro entretida
com a vida e, na maior parte das vezes, ninguém se lembrava daquele homem
muito calado que, tão diferente, fazia o seu caminho até à primeira casa da rua.
A verdade era que, quanto menos se lembrava dele, mais ele parecia
ficar calado. Ia pelo passeio metido nos seus pensamentos e entrava em casa
tantas vezes sem sequer levantar a cara do chão.
Quem pensava sobre ele, pensava que estranho homem havia de ser.
Mais até do que por ter apenas um olho, ou não ter braços, mas porque
era tão calado que parecia comer palavras por alimento.
– Boa tarde.
E ele acrescentou:
Um outro vizinho, na discussão que tiveram todos entre si, garantiu que
arranjaria maneira de começar conversa com o homem e saberia mais sobre
ele, para se assegurar de que era mesmo a boa pessoa que parecia ser.
– Não se admire, caro vizinho, é que faço todas as coisas com os pés,
como se fossem as mãos, e se quiser ver tenho muito gosto em convidá-lo
para partilhar comigo umas ervas de cidreira numa água quentinha que já
ponho a ferver.
Nunca ninguém teria imaginado que o homem muito calado fizesse com
os pés aquilo que parecia apenas possível fazer-se com as mãos.
Era impressionante vê-lo a bulir aqui e ali sem hesitação dentro da sua
casa. Havia desenvolvido uma capacidade admirável e, sem que se dessem
conta de atrasos, o chá estava pronto e sabia maravilhosamente à maneira
cidreira de todas. O vizinho curioso sentava-se confortavelmente numa cadeira
da cozinha e sorria contente.
Chamava-se Gabriel.
– Bom dia, Gabriel. Esta noite temos jogo de cartas. Tens de aparecer.
– Claro. Ainda quero a desforra e hoje sinto-me com sorte e sei que vou
ganhar.
A dona Matilde, que tinha noventa anos e ainda tricotava, até fez uma
camisola de lã para o senhor Gabriel, ali mesmo à chegada do Inverno. Era a
camisola mais fácil de fazer, confessara ela. Como não tinha braços, poupava
muito na lã e tinha poucas costuras. Ficou toda encantada quando o vizinho a
vestiu e saiu todo vaidoso de bonito à rua.
– Pois eu, quando me rio muito, pareço uma avestruz – dizia uma
senhora.
– Mas melhor ainda sou eu, que, não parecendo ter nada de estranho, a
andar entorno para o lado esquerdo como se fosse cair. Nunca repararam? –
perguntava um outro senhor, muito divertido.
Sim, é assim mesmo: o ser toda a gente tão diferente só prova que isso
não importa para a amizade ou para o amor.
Aos olhos dos outros, quando não nos conhecemos, todos podemos
parecer, num dado momento, monstros coloridos de feitios esquisitos e até
impossíveis.
Fim.