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Ensino de latim e educação linguística: reflexão sobre materiais e método.

Prof. Dr. João Batista Toledo Prado1 (FCL-UNESP-CAr)

Resumo: revisões críticas de métodos de ensino de línguas antigas têm-se tornado cada vez

mais frequentes, em particular quando se trata do ensino de latim, cujos métodos mais

recentes propõem atualizações formais e de estratégias didáticas, como, por exemplo,

aqueles criados para funcionar em plataformas eletrônicas, instalados em

microcomputadores ou acessíveis em sistemas on-line através da Internet, e os que

pretendem empregar formulações didático-pedagógicas típicas do ensino de línguas

modernas, como são os assim chamados métodos calcados na abordagem comunicativa do

idioma. No Brasil e em particular na Unesp de Araraquara, o ensino de latim conta já há

décadas, com propostas de descrição e ensino pautadas no aporte de idéias tomadas à

Linguística saussureana e pós-saussureana, de que muito se têm beneficiado as línguas

modernas, mas não, em geral, as línguas antigas, provavelmente devido a não mais serem

atualizadas no presente. Após tantos anos de pesquisa e experimentação do método

desenvolvido na FCL-Unesp de Araraquara, este texto proporá discutir alguns dos

instrumentos que se mostraram relevantes e necessários para implementar um método de

ensino de latim apoiado na formação linguística do candidato a latinista, como, por

exemplo, a formulação de exercícios e de um dicionário adequados a esse tipo de enfoque e

orientação.

1
Professor de Língua e Literatura Latinas do Departamento de Linguística, Faculdade de Ciências e Letras
(FCL), Universidade Estadual Paulista (UNESP), Araraquara-SP-Brasil. Email do autor:
jbtprado@uol.com.br. Dos grupos acadêmicos cadastrados no CNPq de que participa, o autor destaca: a)
“LINCEU” - Visões da Antigüidade Clássica (UNESP); b) Tradução e Estudo da Literatura Técnica e
Didática Romana (UFMG); c) Verve: Verbum Vertere - Estudos de Poética, Tradução e História da Tradução
de Textos Latinos e Gregos (USP).
2

Palavras-Chave: conceitos de linguística saussureana; didática do latim; metodologia de

ensino; normalização de enunciados; dicionários de latim.

Abstract: critical reviews of ancient language teaching methods have become increasingly

common, particularly when it comes to the teaching of Latin, whose most recent methods

propose both formal and didactic strategy updates, such as those developed for electronic

platforms, installed on computers or accessible online through the internet systems, and

those willing to apply didactic and pedagogical formulations typically used in the teaching

of modern foreign languages, as those methods based on the so-called communicative

approach to language teaching are. In Brazil, specially at FCL-UNESP-Araraquara, a

method for Latin teaching, based on the description and methods of analysis guided by the

ideas taken from the Saussurean and post-Saussurean Linguistics, has been developed. The

modern language teaching has greatly benefited from the modern Linguistics, but not

generally the ancient languages, probably due to the fact that they being not spoken in the

present. After many years of research and experimentation of the method developed in

FCL-UNESP-Araraquara, this text proposes the discussion of some of the necessary and

relevant tools to implement a Latin teaching method endorsed by the concepts of

Linguistics being acquired by the student of the Latin language, such as the formulation of

learning exercises as well as a new dictionary suitable for this kind of approach and

orientation.

Keywords: Saussurean Linguistics concepts; teaching of Latin; teaching methodology;

utterance standardisation; Latin dictionaries.


3

Eu sei quem tem composto uma Gramática, pouco diferente da ideia


que propusemos, e tem composto outro particular escrito com que
se aprende Gramática mais fàcilmente e em menos tempo, os quais
podia publicar para utilidade deste Reino [Portugal]. Dois nossos
amigos lhe pediram instantemente que a imprimisse; mas ele
desculpa-se sempre com dizer que é mais fácil conquistar um novo
mundo, do que despersuadir os Velhos da antiga Gramática.2

Contam-se já muitos séculos da prática do ensino-aprendizagem de língua latina

àqueles que só a podem aprender como língua estrangeira – condição comum a todos os

que vieram a estudá-la em Período posterior aos presumidos últimos falantes da língua de

Roma – daí, a necessidade de revisão dos (quase imutáveis) métodos de ensino desse

idioma. Isso já era assim desde pelo menos o século XVIII, quando o humanista português

Luis Antonio Verney, radicado na Itália, escreveu e publicou o seu Verdadeiro Método de

Estudar3, em que criticava duramente as formulações e estratégias de ensino adotadas em

Portugal para lecionar diversas matérias (entre elas, o Latim), objeto de duas das 16

“cartas” que compõem a obra (são elas as de número II e III)4.

Embora servissem de modo genérico a tantas gramáticas latinas quantas se

adotassem até então, suas críticas foram endereçadas à Gramática Latina do Pe. Manuel

Álvarez, cuja edição primeira datava do século XVI, portanto, cerca de duzentos anos antes

de seu tempo. A principal crítica que lhe fazia Verney era a de que o volume de Álvarez era

obscuro e grande demais, o que suscitava outras obras menores que a comentassem e

explicassem, além de ser escrita em latim uma obra destinada justamente a ensinar latim

2
Verney, L. A. (1746) apud GALLEGO MOYA, 2006: 246.
3
Trata-se do Verdadeiro Metodo de Estudar. Cartas sobre Retórica e Poética. Introdução e notas de M. L.
Gonçalves Pires, Lisboa, 1991. A edição original é de Nápoles e traz o título: Verdadeiro Metodo de Estudar
para ser util a Republica e a Igreja, proporcionado ao estilo e necessidade de Portugal, exposto em varias
cartas, escritas pelo R.P. *** Barbadinho da Congregacao de Italia, ao R.P. *** Doutor na Universidade de
Coimbra, 2 vols., Nápoles, 1746: informações colhidas passim em GALLEGO MOYA, 2006, p. 237-246.
4
GALLEGO MOYA, 2006: 240.
4

aos que o desconheciam. Uma de suas críticas mais frequentes e incisivas, porém, recai

sobre o exagerado número de “regras inúteis – em verso, em prosa latina e em prosa vulgar

– e a quantidade de versos ardilosos em latim que aparecem nessa obra e que o estudante

deve memorizar”5.

Não é sem mais que o autor estima ser muito difícil persuadir os mestres de então6 a

adotarem práticas renovadas em seu ensino de latim, o que está demonstrado pelo teor das

palavras que dedica ao tema, e que serviram como epígrafe a este texto. Espera-se, ao

menos, que os “mestres” e estudantes do início deste século XXI possam experimentar um

tempo em que tais resistências já tenham sido há muito vencidas, e em que todos tenham já

boa disposição e vontade de sempre rever práticas e avaliar eficácia e pertinência dos

métodos empregados.

Como quer que seja, Verney propõe um modo de vencer as dificuldades impostas ao

aprendizado de um idioma que, por sua contingência de língua do passado e não mais

atualizada no presente, conta, como é natural, com consideráveis dificuldades para o

ensino. Tal modo, ele o definiu como segue:

E isto [o ensino da gramática do latim] deve-se fazer com a maior clareza


e mais breves regras que se puderem excogitar. O que certamente não se
consegue com a Gramática usual; porque não há coisa mais confusa, nem
mais cheia de excepções, que a dita Gramática [especificamente a do
jesuíta Manuel Álvarez, do século XVI, chamada De Institutione
Grammatica libri tres].7

O método de ensino criado por Lima, cujos princípios são descritos em seu livro

Uma estranha língua? Questões de linguagem e de método (1995), e cuja prática tem

5
GALLEGO MOYA, 2006: 245. Trad. deste autor.
6
As críticas de Verney dirigem-se às práticas da pedagogia do latim fundamentalmente em terras
portuguesas, mas, por tomar em consideração outras gramáticas produzidas na Europa, seu alcance passa a ser
mais vasto e generalizante.
7
Ibidem; v. também n. 47 à mesma pág.
5

norteado o ensino da língua de Roma nos cursos de Latim do Curso de Letras da Unesp de

Araraquara8, tem como pressuposto básico postura crítica semelhante à de Verney, ou seja,

a de que é possível recopilar e reduzir o número de regras essenciais para descrever de

modo compreensivo a língua dos antigos romanos. Mais que isso, para Lima, é possível

chegar uma tal economia, aplicando certos princípios elementares da Linguística

saussureana – como, por exemplo, o de um de seus pilares fundamentais, que é a distinção

entre langue e parole – para compreender o funcionamento do sistema linguístico do latim

por trás da variabilidade mórfica do uso, de tal modo a identificar e separar unidades

morfossintáticas em paradigmas de classe, muitos deles invariáveis e agrupáveis em

pequeno número, de sorte que o número de unidades a serem controladas por meio de que

expediente se deseje – seja a memória, seja outro suporte qualquer – veja-se reduzido a um

mínimo de esforço e de recursos.

Tal idéia levou, por exemplo, à identificação de uma unidade de base do sistema da

língua latina, apta a funcionar como matriz geradora de unidades lexicais: o tema,

sobretudo o nominal (mas de existência claramente constatável também na classe dos

verbos, o que lhe pressupõe semelhante tratamento descritivo). O tema será, assim, o termo

com que se designará uma entidade formal da estrutura linguística, constituída de raiz (ou

radical) acrescida de uma vogal, que servirá para classificá-lo em paradigmas sujeitos a

receber um conjunto finito e pouco numeroso de morfemas relatores de função gramatical9,

8
Outros materiais que com ele se relacionam diretamente são: a) em matéria de teoria e discussão de práticas
pedagógicas no ensino do latim: LIMA, A.D., PRADO, J.B.T. et al. Latim: da fala à língua. Araraquara:
FCL-UNESP, 1992; b) uma aplicação prática do método discutido por Lima e voltada ao ensino-
aprendizagem propedêutica da língua latina nos Cursos de Letras: PRADO, J.B.T. Língua Latina I:
anotações de aula. Araquarara: FCL-UNESP, 2007 (versão 2.2, divulgada em meio digital, aos estudantes
que iniciam o estudo do latim no Curso de Letras da UNESP-Araraquara).
9
Por isso mesmo chamados, na aplicação prática do método de Lima (sc. Língua Latina I: anotações de
aula; q.v. nota anterior), morfemas funcionais (mas também seria possível designá-los por casuais, se se
6

e que, por essa razão, será chamada vogal temática (ex.: leaena-, palavra de tema -a-; oui-,

palavra de tema -i-; lupo-, palavra de tema -o-; e assim por diante).

Como nem todas a unidades lexicais da língua latina exibem cabalmente os

elementos previstos na formação global do vocábulo, e, de fato, são muito numerosos os

itens que não o fazem – ocorrências em que inexiste vogal indexadora do paradigma de

classe – nos casos em que venha a faltar essa vogal, dizia-se, o tema será identificado ao

radical (ou raiz); vale dizer, tema e radical serão idênticos. Nesses casos, por oposição aos

temas propriamente ditos – todos vocálicos por natureza e definição – esses itens serão

identificados por suas consoantes de fechamento, o que produzirá um tema, por assim dizer,

consonantal.

Quanto à natureza conceitual de semelhante unidade estrutural da língua,

aproveitando nomenclatura e descrição sugeridas por Carvalho (1973: 596), pode-se definir

tema como uma palavra puramente semântica, isto é, uma palavra teórica,

desgramaticalizada, portadora de significado invariável mas que não se identifica

plenamente com qualquer das realizações concretas do léxico, muito embora esteja ela

presente de forma virtual num dado conjunto de realizações. A palavra semântica que é o

tema é dedutível a partir de seu contraste e oposição com uma palavra lexical, que é uma

unidade concreta, completa e funcional do léxico, e em que, por sua vez, estão presentes,

virtualmente, palavras semânticas que são os temas. Um tema será, desse modo, uma

unidade da estrutura linguística do latim, fato que impõe uma nova abordagem na descrição

do idioma latino, bem como – e em decorrência disso – de uma nova forma de organizar as

entradas de dicionários de latim, questão que será abordada mais adiante.

pretende fazer referência aos casos latinos de que eles fazem parte e, ao mesmo tempo, indicam; ou, ainda,
flexionais, para indicar que funcionam por mecanismo de flexão léxico-vocabular).
7

O ponto alto da reflexão de Lima, no que respeita à organicidade reclamada pela

necessária renovação da didática do latim, e que vai conduzir à proposta de uma solução

para a fixar elementos do sistema da língua latina, funda-se no privilégio atribuído ao

estudo da forma que a Lingüística, na esteira de Saussure, confere ao estudo das línguas

particulares:

[Por oposição a filologia], a linguística, tendo por objeto a forma, aquilo


que, em cada realização pode ser transferido na qualidade da competência
criativa, por outras palavras, aquilo que é o sistema interiorizado de
regras que cada locutor possui e lhe permite produzir em número não
limitado de enunciados dessa mesma estrutura, quer por simples
reiteração aleatória, nos discursos, dos mesmos esquemas frásicos, quer
por recursividade.10

No que respeita à recursividade, será ela estimulada através de exercícios de

reenunciação de enunciados escritos em latim, produzidos por legítimos falantes do idioma,

que foram os autores latinos. Tais reenunciações tornam-se necessárias à correta

aprendizagem dos elementos do sistema, identificados e explicados conforme os princípios

requeridos pela abordagem linguística da descrição do idioma, bem como a sua

sedimentação pelo uso, trabalho empreendido por parte do estudante. Cumpre acrescentar

que, embora haja que se reconhecer a existência de vários latins (i.e., os que emergem de

diversos gêneros literários e, sobretudo, produzidos nas várias sincronias do idioma), da

perspectiva de quem trabalha qualquer aspecto linguístico, mesmo que de idiomas

10
LIMA, 1995: 114. Nessa passagem, a partir da oposição metodológica, teórica e de objeto entre filologia
clássica e linguística saussureana, Lima funda seu argumento definitivo para o emprego de textos latinos
legítimos no ensino-aprendizagem do latim, legitimidade verificável na condição de cada autor antigo como
falante nativo do idioma de Roma; ao fazê-lo, também “une pólos opostos”, por assim dizer, numa elegante
proposta de reencontro entre ambas disciplinas, uma vez que quede claro o lugar ocupado por cada uma no
processo. A irreconciliabilidade entre elas, de que ali fala Lima, é questão de método, objeto e teoria, mas não
de “produto”: o texto recuperado pelo filólogo é o terreno sobre o qual se debruça o linguista e, por
conseguinte, o professor de latim na preparação de seu material didático.
8

modernos, o latim que serve de suporte e veículo à cultura dos antigos romanos é aquele

cujas falas só chegaram aos tempos modernos através dos textos que o melhor trabalho

filológico foi capaz de recompor e apresentar.

Assim sendo, não há senão que começar por eles, o que implicará sempre um

recorte na linha do tempo, o que privilegiará determinada sincronia; o ensino do latim

clássico já determina qual seja tal sincronia: o dos textos produzidos no período chamado

clássico da literatura de Roma antiga. Ainda assim, o campo de escolha é demasiado

amplo, por isso, não é ocioso sublinhar que é bem razoável conceber que o melhor começo

seja empreendido por aqueles textos que, embora investidos de graus variados de outros

níveis possíveis de leitura – sc. retórico, poético, político, filosófico etc. – remetem, pelo

menos em seu nível mais superficial e imediato, a significados e sentidos o mais possível

concretos, para não sobrecarregar o esforço de abstração que se supõe o aprendizado de

toda e qualquer idioma já requeira. Dessa forma, e procedendo de forma a pensar numa

progressão metodológica que se inicia sempre com aquele aluno que deve aprender as

primeiras oposições estruturais do sistema dessa língua antiga, poder-se-á tomar a cada vez

pequenos textos, como, por exemplo, o de Fedro, II, 1, 1-2 conforme segue:

Sobre um novilho abatido

Super iuuencum stabat deiectum leo. deitado estava um leão.

Praedator interuenit partem postulans.11 Um caçador interveio,

dele querendo uma parte.12

11
PHAEDRUS, 1969.
12
Trad. do autor, em redondilha maior.
9

Seguindo a proposta, um pequeno texto como esse, tomado aleatoriamente da obra

do célebre fabulista latino, poderia produzir um resultado de real interesse de emprego

linguístico, mas só no limite do que é dado simular de falas latinas legítimas, ou seja,

daquelas que tenham sido enunciadas no longínquo passado em que o latim era língua

materna de romanos e romanizados, bem como língua de comunicação oral dos aculturados

e colonizados, de modo a permitir que nele se expressasse, por exemplo, esse escravo

liberto da Macedônia, dela tornado senhor, que foi Fedro, de tal forma que tal maestria lhe

permitiu vir a ser o maior dentre os fabulistas latinos. Em outras palavras, se esse pequeno

texto for recortado por um aparato interrogativo de pronomes, advérbios e locuções, a fim

de conferir-lhe estatuto de simulacro de comunicação oral, mas com o propósito de

explicitar, analisar e sedimentar aquele sistema de flexões nominais do latim, a que a

tradição atribuiu o nome declinação. Logra-se isso, por exemplo, da forma como sugere o

já citado Lima (1995: 128-9), e cujo exemplo, atualizado neste texto, pode ser

acompanhado a seguir, na reelaboração interrogativa dos enunciados constantes do pequeno

texto de Fedro13, que formam um singelo, porém não por isso menos eficiente diálogo:

1) Quis super iuuencum stabat? Leo [super iuuencum stabat]14


2) Quomodo stabat leo? Super iuuencum deiectum [stabat leo]
3) Quomodo iuuencus erat? Deiectus [iuuencus erat]
4) Quid agebat leo? Stabat super iuuencum deiectum [leo]
5) Quis interuenit? Praedator [interuenit]

13
Lima indica esse mesmo procedimento na passagem referida, valendo-se, porém, de outra passagem de
texto latino (extraída do De Agri Cultura, de Catão).
14
Os colchetes pretendem indicar, aqui, a porção de enunciado que pertence à “resposta completa”, ou seja,
àquela porção do enunciado que retoma e refaz os mesmos componentes morfossintáticos já contidos no
enunciado interrogativo. Fora dos colchetes, portanto, figura a “resposta essencial”, ou seja, o termo ou
sintagma sobre o qual recai e interrogação inicial e que é seu alvo principal.
10

6) Quid praedator agebat? Praedam postulabat [praedator]


7) Quid postulabat praedator? Praedam [postulabat praedator]
8) Quid praedator egit? Interuenit [praedator]

Com tal procedimento, auferem-se ambas vantagens há pouco apontadas, sem o

desdouro de cometer falsidades ideológicas sobre o que se conhece da Roma antiga, e isso é

assim porque a matéria do discurso simulado será tomada de um recorte referencial

referendado pela cultura e por um de seus lídimos e competentes usuários. Assim, a

performance equivalerá, aqui, à recorrência estimulada, de sorte que, dedutiva e

paulatinamente, se chegue à competência desejada15.

Enfim, há que se refletir em que um método se escolhe e torna-se adequado ao

momento e ao sujeito propiciados por cada situação, mas sempre de acordo com certos

pressupostos mínimos de observância a dados históricos e culturais que podem ser

determinantes para uma dada contingência linguística, como é o caso da do latim na

contemporaneidade. Tudo o mais é possível ensinar.

Embora para o projeto de aprender um idioma concorram vários fatores, costuma-se

admitir que nada substitui a motivação pessoal, com a qual se superam barreiras e se

vencem obstáculos, motivo pelo qual se admite que, a isso, se submetem os métodos de

ensino. Assim também se torna válida sua recíproca: sem a concorrência da vontade, nem o

melhor método já concebido para uma dada situação poderá aplacar eventuais

descontentamentos e produzir o conhecimento linguístico e a competência textual e

15
O conceito gerativo de competência é uma concepção dinâmica do conceito saussureano de língua, que, por
isso, passa a ser concebida não mais como estado, mas já como processo. O aspecto competência encara a
língua como a instância responsável pela capacidade de, a partir de um conjunto finito de regras – sua
gramática – codificar e decodificar um número potencialmente infinito de enunciados. Desse ponto de vista,
que é mais sintagmático que paradigmático, a performance é entendida como a atualização desse processo, ou
seja, é o fazer que, de fato, produz os enunciados de forma potencialmente inesgotável (cf. GREIMAS, A.;
COURTÉS, A., 1983: 61-4, s.v. Competência).
11

discursiva que ele pretende gerar, pois, dessa forma, valerá para o estudante – qualquer

estudante – o que Apuleio afirma a respeito de certo jovem que, tendo perdido os pais, foi

criado por um tio, de quem sofreu uma deletéria influência, a ponto de só falar cartaginês,

apenas “arranhar”, a custo e por reminiscências da influência materna, algumas poucas

palavras em grego e, principalmente, a despeito de viver numa província tributária da Roma

imperial, não ser capaz nem mesmo desejar aprender a falar latim16.

Assim, ao estudante das séries iniciais de latim bastará apresentar tais dados,

organizados desta ou de maneira ainda mais sintética e em que se insista ainda mais na

unidade formal que as flexões exibem entre si, com o fito de evidenciar as matrizes

temáticas dos itens lexicais e estudar-lhes o sistema mórfico-declinatório, de modo a levar

os estudantes a perceberem as regularidades subjacentes à aparente diversidade mórfico-

flexional, como se empreende, por ex., na descrição do sistema desinencial do nome latina,

contido nas lições da aplicação prática das lições teóricas de Lima (1995), que vem a ser o

método Língua Latina I – Anotações de Aula (PRADO, 2007).

Já no que respeita aos dicionários de uso do latim, as entradas, responsáveis pela

indicação e descrição de todas as classes flexionais, quais sejam, pelo menos a dos nomes

substantivos e adjetivos, bem como a dos verbos17, precisam ser revistas e reelaboradas, de

16
Cf. APULEYO, Apologia, 98: Loquitur nunquam nisi Punice et si quid adhuc a matre graecissat; enim
Latine loqui neque uult neque potest. “Ele nunca fala senão cartaginês e, se ainda sabe algo de grego, veio da
mãe; de fato, não sabe nem quer aprender falar em latim.” (Trad. e grifos do autor deste artigo).
17
Os verbos não se incluem, é óbvio, nos mesmos paradigmas flexionais dos nomes, embora funcionem a
partir do mesmo sistema de flexão alternante (morfemas distribuídos em conjuntos de “conjugações”, com
variantes de modo-tempo e pessoa-número) em base semântica estável (tema). É oportuno mencionar que se
excluíram desse rol os pronomes porque, por pertencerem, ao mesmo tempo, às dimensões textual e
discursiva da língua, deveriam ter tratamento privilegiado, compatível com seu papel de agentes coesivos e
articuladores de sentido. Além disso, constituem uma classe de itens em que o uso tanto mesclou variantes
12

modo a abandonar a tradicional (porém de todo arbitrária) descrição – praticada pela forma

do nominativo singular, em geral seguida da porção radical de cada item, terminada pelo

morfema de genitivo singular – em favor de uma forma mais consentânea à realidade e

natureza estrutural do sistema da língua latina.

Com o se sabe, esse método de composição do lema ou entrada dos itens lexicais,

constantes da totalidade dos dicionários de latim, foi adotado devido à observação da

existência do fenômeno declinatório nesse idioma antigo.

Uma das implicações lógicas da declinação (note-se que as gramáticas tradicionais

de latim empregam esse termo sempre no plural para etiquetar grupos de variações formais,

o que gera uma confusão entre níveis descritivos, já que a declinação é propriedade da

língua latina, ao passo que as variantes morfêmicas são dados do uso do idioma), por

exemplo, é que os termos do léxico não podem ser evocados por uma única configuração

mórfica estática, já que tais configurações assumirão formas variadas de acordo com o

valor expressivo que um termo tiver em relação ao contexto frasal em que vier a ocorrer.

Em razão disso – e segue-se, aqui, a solução para a questão declinatória, sem a necessidade

de adotar convenções distantes da realidade sistêmica do latim – haverá a necessidade de

elencá-los através de uma unidade abstrata estrutural, vale dizer, o tema, virtualmente

presente em cada realização sua.

mórficas, oriundas de temas nominais – aqueles em -o-/-a- e também -i- – como também conservou flexões
de sincronias anteriores àquela do período clássico (e.g., o morfema -ius, relator de genitivo singular); q.v.
PRADO, 2013. A solução será, por exemplo, proceder à descrição deles por meio de macro-lexias, de forma a
que todas as variantes mórficas possíveis fossem assinaladas em entradas independentes, para, por mecanismo
de remissão, apontarem o signo de cobertura lexical máxima – a ser consignado, idealmente, pelo tema,
como o deveriam ser, aliás, todos os signos latinos de categorias flexivas, devido à natureza declinatória do
idioma. Um tal signo comportaria a descrição dos traços sêmicos mais relevantes, sem dispensar, no presente
caso, ponderações acerca de seu emprego, sem as quais a descrição dicionarizada dos pronomes, dado o seu
caráter único dentro dos sistemas linguísticos, quedaria incompleta e, portanto, estéril.
13

Idealmente, os dicionários de latim deveriam estar organizados dessa maneira. Em

termos históricos, no entanto, ocorreu que somente foi possível chegar a semelhante

concepção depois do advento da linguística moderna e, logicamente, muito tempo depois de

terem sido organizados os primeiros dicionários de latim, que fundaram uma tradição

perpetuada após as primeiras práticas adotadas e reproduzidas ao longo dos séculos. Por

esse motivo, e também devido ao fato de já os gramáticos latinos terem fixado uma das

formas desinenciais – a de nominativo singular – para figurar como lema (rótulo) formal

dos nomes e pronomes, os dicionários de uso da língua latina convencionaram descrever

tais entradas por meio da forma de nominativo singular, seguida de uma porção do tema da

palavra, flexionada no caso genitivo – é preciso refletir sobre a absoluta casualidade da

espantosa conveniência de que os morfemas do genitivo singular tenham sido manifestados,

pelo uso do idioma latino, com diferentes substâncias da expressão, na quase totalidade dos

paradigmas temáticos – a fim de que o usuário pudesse identificar e deduzir intuitivamente

o tema do signo em questão (esse é o caso, p. ex., de lupus, -i, s.m., “lobo”, que serve a

identificar o grupo temático -o-, por oposição, por exemplo, a manus, -us, s.m., “mão”, que

identifica o grupo temático -u-).

Por essa razão e em respeito: a) ao sedimentado hábito de consulta dos dicionários

de uso do latim; b) à forma histórica com que gramáticos latinos pensaram a lematização

dos itens nominais do léxico; c) ao fato de que, em geral, as formas de nominativo singular

podem apresentar diferença considerável em relação ao tema mais produtivo de cada termo,

existe uma vantagem estratégica em que cada item nominal do léxico seja descrito também

por meio da forma de nominativo singular, como o fazem correntemente os dicionários de

latim, porém, de forma diferente da deles, cada entrada no nominativo deveria ser seguida

de elemento indicador de seus temas e/ou radicais próprios, da seguinte forma:


14

1. para os temas vocálicos, com o nominativo singular seguido de vogal temática. Por

exemplo: ancilla (-a-), s.f.: “criada”; acies (-e-): s.f.: “ponta, gume”; ouis (-i-), s.f.:

“ovelha”; dominus (-o-), s.m.: “patrão”; manus (-u-), s.f.: “mão”, etc.;

2. para os temas consonantais (“temas” que equivalem aos radicais), nominativo

singular seguido do tema (radical) propriamente dito. Por exemplo: princeps

(princĕp-), s.m.: “príncipe” (o primeiro cidadão à frente do governo, como ensinam

os melhores dados filológicos, relacionados em dicionários de uso e manuais de

cultura romana); miles (milĕt-), s.m.: soldado; dux (duc-), s.m., “general”; plebs18

(pleb-i-), s.f.: a plebe romana; fraus (fraud-), s.f..: engano, trapaça; rex (reg-), s.m.:

rei; e assim por diante.

Uma possibilidade alternativa e complementar a tal sistema de descrição léxico-

vocabular consiste em registrar a forma alotemática dos itens lexicais que tenham sofrido

“erosão” fonética ao longo da sucessão das várias sincronias do latim, de tal forma a

assinalar tais variações mórficas diretamente na informação do tema que vem descrita entre

parênteses, por exemplo desta forma: princeps (princĭp-), s.m.: “príncipe”; miles (milĭt-),

s.m.: soldado; caput (capĭt-), s.n.: cabeça; corpus (corpŏr-), s.n.: corpo; uellus (uellĕr-), s.n.:

velo, tosão, e assim por diante. Tal procedimento descritivo também representa uma útil

18
Está claro que plebs e assemelhados merecem tratamento descritivo diferenciado, já que: a) de acordo com
dados de fonética histórica, sabe-se ter sido pronunciado pleps – forma, aliás, atestada em fontes escritas (p.
ex.: em Sal., Rep. 1.7.2; em Liv., A.V.C., III.27; em inscrições, como no C.I.L. II.34.53, etc.) – porque, em
latim, quando um fonema sonoro é seguido de outro surdo, acaba por ter seu traço sonoro neutralizado, o que
resulta no surgimento de seu homorgânico surdo (dessa forma, o fonema /b/ passa a /p/ em presença do /s/ de
nom. sg.). Em algumas sincronias do latim, plebi- foi empregado como vocábulo de tema -i-, fato atestado
pela forma do genitivo plural plebium (cf. ERNOUT, 1974, p. 39 para o ensurdecimento do fonema sonoro;
também p. 37, para o gen. pl. -ium). A fim de registrar a flutuação da vogal temática -i-, que sofreu síncope
sistemática na forma de nominativo singular, a adoção de uma forma convencionada na descrição do tema
bastará para indicar esse e demais fatos correlatos, por exemplo, desta forma: pleb-i- , ou seja, com o destacar
a vogal temática da raiz por meio de hífen. O caso de pleb-i-, entretanto, é algo particular, porque, a partir de
determinada época, o tema cindiu-se nas variantes plebe-/pleb-i- (ibid. p. 68). Sendo assim, os casos mais
típicos e que melhor ilustram tal fenômeno pertencem ao grupo dos antigos temas -i- que sofreram síncope da
vogal temática nas flexões de singular (e que deveriam vir representados da forma como aqui se indica),
como, p. ex.: ment-i- (nom. sg. mens); mort-i- (nom. sg. mors); part-i- (nom. sg. pars), etc. (ibid. p. 55).
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estratégia para a descrição funcional do dado léxico-vocabular a ser controlado pelo

estudante propedêutico do latim, já que a possibilidade de incidência textual do alotema,

dessa forma indicado, é potencialmente muito superior à do tema histórico inicial (presente,

de modo geral, apenas na forma de nominativo singular), embora, a rigor, o melhor

procedimento – porque mais consistente e embasado nos dados tornados disponíveis pelo

esforço da melhor filologia – consiste em indicar apenas o tema nos dicionários de latim,

subministrando e ensinando os (relativamente poucos) dados de transformação fonética,

que os fizeram evoluir até as formas “desviantes” (a maioria presente no nominativo

singular), com que frequentam os textos do período clássico do idioma da Roma antiga.

Sublinhe-se também que, sobretudo nos temas consonantais, suas formas rádico-

temáticas, ou seja, aquelas que, na proposta de lematização aqui veiculada, figuram entre

parênteses, são as que maior probabilidade têm de ocorrer nos enunciados, simplesmente

porque o número de formas que é possível gerar a partir delas é muito superior à da

ocorrência do nominativo singular, numa razão de, aproximadamente, 9:2 (nove formas

rádico-temáticas para cada duas de nominativo singular), aí computadas as formas de

singular e plural dos cinco casos funcionais do latim, descontada a forma do nominativo

singular (2 x 5 = 10 -1 = 9), bem como a forma do nominativo singular das palavras de

gênero neutro, porque se reduplicam no acusativo singular (1 X 2 = 2).

Por último, resta observar que, à semelhança de como se procedeu neste artigo com

a seleção e exemplificação de certo conjunto de itens vocabulares, o léxico de base com

que deve trabalhar um método de latim deve, idealmente, ser constituído a partir do

conceito de investimento lexical mínimo, a ser incrementado pouco a pouco, no decorrer

das lições. O fundamento para sua constituição e incremento deverá proceder da fonte

textual escolhida para a formação da propedêutica do latim. Dessa forma, se a seleção do(s)
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texto(s) inicial(is) for balizada pelo critério de menor índice de abstração, em favor da

maior concretude de situações narradas, de modo a não provocar dispersão de esforço do

aluno que inicia seus estudos em latim19, o vocabulário das seções do material deverá ser

constituído por itens que frequentem e integrem o córpus escolhido e ser incrementado aos

poucos e na medida da introdução de novos níveis da descrição gramatical, que solicitarão,

por consequência, uma natural expansão dos dados léxicos com os quais trabalhe o

estudante, sob a supervisão do professor de latim.

Referências Bibliográficas:

1. APULEYO. Apologia o discurso sobre la magia en defensa propria (Apuleii

apologia siue pro se de magia liber). Introducción, traducción y notas de Roberto

Heredia Correa. Ciudad de México: UNAM, 2003 (Biblioteca Scriptorum Graecorum et

Romanorum Mexicana).

2. BRUNO, H; DEZOTTI, J.D.; FIORIN, J.L.; LIMA, A.D.; PRADO, J.B.T. Latim: da

fala à língua. Araraquara: FCL-UNESP, 1992.

3. CARVALHO, José G. Teoria da Linguagem. Natureza do Fenômeno Linguístico e a

Análise das Línguas. Coimbra: Atlântida, 1973. Tomo II.

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Convém, neste ponto, sinalizar que NADA impede, a rigor, que seja escolhido qualquer texto latino, desde
que, pelas razões já apontadas anteriormente, a seleção seja feita com base no critério de legitimidade
linguística do autor que o escreveu, pautada na condição de ter sido ele falante de latim, por oposição, por
exemplo, àqueles que o aprenderam nos bancos da escola e que já não se exprimiram nesse idioma como
língua natural de comunicação, mas, se o fizeram, foi como resultado de convenção comunicativa adotada em
determinados momentos da história. Esse, sem dúvida, será também um dos latins de que se dispõe, mas um
outro, cuja alteridade e natureza não chegam a qualificá-lo para servir de base ao estudo do idioma dos
antigos romanos e latinos, embora ele possa oferecer, é claro, outros interesses que motivem estudos de outras
ordens, em momentos posteriores a do estudo propedêutico desse idioma.
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4. ERNOUT, A. Morphologie historique du latin. 3ème ed. revue et corrigée. Paris:

Klincksieck, 1974.

5. GALLEGO MOYA, E. La enseñanza del latín en el Verdadero metodo de estudiar de

Verney. In: E. CALDERÓN, E.; MORALES, A.; VALVERDE, M. (eds.). KOINOS

LOGOS. Homenaje al profesor Jose Garcia Lopez. Murcia: Universidad de Murcia,

Servicio de Publicaciones, 2006. 2 v. p. 237-246. v. 1.

6. GREIMAS, A.; COURTÉS, A. Dicionário de Semiótica. Trad. A. D. Lima et al. São

Paulo: Cultrix, 1983.

7. LIMA, A. D. Uma estranha língua? Questões de linguagem de método. São Paulo:

EdUNESP, 1995.

8. PHAEDRUS. Fabulae Aesopiae Phaedri Augusti Liberti Liber Fabularum. A.

Guaglianone (ed.), 1969. In: PHI 5.3. Latin texts and Bible versions. The Packard

Humanities Institute, 1991. CD-ROM.

9. PRADO, J.B.T. Língua Latina I - Anotações de aula. Araraquara: FCL-UNESP,

2007 (versão 2.2: texto em meio digital).

10. PRADO, J.B.T. El sistema pronominal latino: su descripción y cómo enseñarlo. In:

SALAS, O. D. A; VALENCIA, A. V. (Org.). Cultura clássica y su tradición: balance

y perspectivas actuales. Cidade do México: Universidad Nacional Autónoma de

México, 2013, v. 1, p. 427-438.

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