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Aula 27 de fevereiro

Psicologia e Políticas Públicas

Prof. Dr. Rafael de Oliveira Rodrigues


E-mail: rafael.rodrigues@uca.edu.br.
A Grande Internação no século XVII e seus
Reflexos no Brasil em Formação
A Grande Internação no século XVII e seus
Reflexos no Brasil em Formação

A Era Moderna (1453-1789), compreendida entre os séculos XV e


XVIII, caracterizou-se pela mudança radical do processo de
acumulação capitalista mercantilista para o industrial. Assim,
segundo Paulo Amarante (2003), essa fase se distinguiu por três
fenômenos indissociáveis:
1. A estruturação do Estado;
2. A urbanização;
3. E a industrialização.
A Grande Internação no século XVII e seus
Reflexos no Brasil em Formação

1. A estruturação do Estado: Para enfrentar os problemas sociais


(pobreza, mendicância, vagabundagem), o Estado passou
disseminar por todo o seu território instituições que tinham como
seu objetivo final abrigar as pessoas desempregadas, os doentes e
os inválidos para o processo produtivo.
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2. A urbanização: A pobreza e a mendicância passaram a fazer parte


da vida nas cidades europeias e brasileiras da época. Diante de
tamanho crescimento populacional nos centros urbanos, o que
determinava uma internação no Hospital Geral não era
propriamente uma patologia, mas a carência de meios de suprir a
sua própria subsistência.
Detalhe do pátio da Estação da Luz (SP) nos anos
1960/1970. A Estação foi inaugurada em 1867 (séc. XX).
A Grande Internação no século XVII e seus
Reflexos no Brasil em Formação
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3. A industrialização: o avanço do capitalismo deu um novo sentido


ao indivíduo, que nesse momento foi conquistando gradualmente
a condição de cidadania, ainda que frágil e incipiente, cobrando do
Estado respostas para o agravamento da questão social.
A indústria brasileira tem
sua origem remota nas
oficinas artesanais datadas
do início do século XIX. A
maior parte dos
estabelecimentos
industriais surgiram no
Sudeste brasileiro
(principalmente na
província do Rio de
Janeiro, Minas Gerais e
mais tarde, São Paulo), e
de acordo com a Junta de
Comércio, Agricultura,
Fábricas e Navegação, 77
estabelecimentos foram
registrados entre 1808 e
1840 e receberam a
classificação de "fábricas"
ou "manufaturas".
Fábrica de Ferro de São João de Ipanema, em Iperó, na então província de
São Paulo, em 1884.
Catete é um bairro da
Zona Sul do município do
Rio de Janeiro, no estado
do Rio de Janeiro, no
Brasil. Tradicional e
histórico, o bairro já
sediou a presidência da
república brasileira, que
ficava localizada no
Palácio do Catete

Catete - 1825
A Grande Internação no século XVII e
seus Reflexos no Brasil em Formação
A Grande Internação no século XVII e
seus Reflexos no Brasil em Formação
A Grande Internação no século XVII e
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Praça da Bandeira, SP, 1860 Largo São Bento, SP, 1860


A Grande Internação no século XVII e
seus Reflexos no Brasil em Formação

A pacata vila, cresce e se industrializa com o trabalho dos


imigrantes
A Grande Internação no século XVII e seus
Reflexos no Brasil em Formação

Os mecanismos de apartação
social tinham como finalidade de
prestar “assistência” aos
necessitados e de sanear a
cidade, poupando os mais
abastados do convívio social
com os considerados marginais e
desajustados.
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Hospital D. Pedro II

Quem eram os internos? Os


marginalizados das cidades, os vadios,
os arruaceiros, os sem-trabalho.
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Reflexos no Brasil em Formação

Assim, a segregação e a exclusão


dos segmentos indesejados
passaram a ser vistas com
naturalidade,
desresponsabilizando a
sociedade pelos maus-tratos que
ocorriam no interior dos
hospitais gerais.
Paulatinamente, a loucura foi
assumindo a conotação de
periculosidade/agressividade.

O Hospício Pedro II, inaugurado no Rio de Janeiro em 1852, foi o


primeiro hospital psiquiátrico do Brasil e o segundo da América
Latina.
Hospital D. Pedro II 🡪 UFRJ
Nas décadas de 30 e 40 o então
Hospital da Praia Vermelha estava
superlotado e decadente, e os
pacientes foram gradualmente
transferidos para a Colônia Juliano
Moreira e o Hospital do Engenho
de Dentro. Em setembro de 1944
concluiu-se a transferência de
todos os pacientes e o hospital foi
desativado e entregue à
Universidade do Brasil.
Atualmente esse local é o campus
da Praia Vermelha da
Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
Hospital D. Pedro II 🡪 UFRJ

Detalhes arquitetônicos do
Salão Dourado, localizado Salão Dourado com estátua de D.
no Palácio Universitário da Pedro II, ao fundo, ao lado do piano.
Praia Vermelha, antigo Localizado no Palácio Universitário,
Hospício Pedro II. Ao fundo antigo Hospício Pedro II, na Praia
a estátua de Pedro II. Vermelha.
Hospital D. Pedro II 🡪 UFRJ

Salão Vermelho no segundo andar do


Palácio Universitário, antigo Hospício
Pedro II, na Praia Vermelha.
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Av. Paulista, SP, 1905.


A Grande Internação no século XVII e
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“Em 1907, no dia 1º de maio, irrompe uma


greve , em São Paulo, em defesa das oito
horas de trabalho e que vai atingir as cidades
de Santos, Ribeirão Preto e Campinas. A
greve é desencadeada na construção civil, na
indústria metalúrgica e da alimentação. Logo
aderem os gráficos, os sapateiros e os têxteis.
São intensas as intervenções policiais. A
greve é dramática para os operários e para os
patrões, um caso de polícia”.
A questão social é um caso de polícia.
A Grande Internação no século XVII e
seus Reflexos no Brasil em Formação
A Grande Internação no século XVII e
seus Reflexos no Brasil em Formação

A multidão constitui a principal ameaça a ser enfrentada: ela encarna


o medo físico da violência, da irracionalidade, é o abrigo do seu
anonimato. A metáfora médica do contágio – risco imediato, que
torna a multidão em si mesma um perigo iminente – é largamente
utilizada aí, a indicar a necessidade de esquadrinhar, conhecer e
organizar a população da cidade, definindo lugares e destinos para
cada categoria, estabelecendo disciplinas e rotinas, criando regras
capazes de transformar a multidão disforme e ameaçadora em um
laborioso e pacificado formigueiro humano.
A Grande Internação no século XVII e
seus Reflexos no Brasil em Formação
De uma população de pouco mais de 30.000 pessoas em 1872, a cidade de São Paulo
apresentará, em 1910, uma população de 357.324 habitantes:

• Em pouco mais de trinta anos, um crescimento de 403%.


• Como explicação, a rápida industrialização e a imigração massiva, transformaram a
antiga e pacata vila em uma espécie de Babel moderna, repleta de línguas e costumes
diferenciados e, sobretudo, povoada por novos personagens sociais: o operário e o
industrial, o imigrante estrangeiro, o negro liberto, ex-escravos subempregados – que
ocupam rapidamente novos espaços de moradia, vida e trabalho.
• Cada uma dessas figuras tem um recorte e merece um tratamento específico por parte
dos agentes do poder.
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Em 1852, no ano da fundação do Hospício Provisório de Alienados de São Paulo, assim se referia
o presidente da província de São Paulo à presença de alienados nas cadeias:
“(...) estabeleci nesta capital uma casa provisória para os alienados (...); (...) esta despesa, Srs., e
aquela que d´ora em diante se fará com a sustentação desse estabelecimento é muito insignificante
se vos penetrardes do horror que a todos inspirava a barbaridade com que eram tratados esses
infelizes até agora lançados nas cadeias até morrerem, e metidos sem culpa no lugar de criminosos
e, entre eles, sofrendo violências que revoltam à humanidade." (Presidente José Tomás Nabuco de
Araújo, 1852).

Cerca de 30 anos depois, a situação parecia não ter mudado muito: "(...) É de urgente
necessidade a conclusão destas obras, a fim não só de modificar a aglomeração dos doentes,
como também, de atender-se a muitos pedidos de admissão de infelizes alienados, que existem
pelas cadeias da Província, por não haver mais acomodações no Hospício." (presidente
Francisco de Carvalho Soares Brandão, 1883).
A Grande Internação no século XVII e seus
Reflexos no Brasil em Formação
As autoridades policiais eram as principais fontes de encaminhamento de
alienados do interior paulista para o Hospício da capital:
"(...) a polícia remete para o Hospício os alienados que lhe são enviados pelas autoridades do
interior, as quais, muitas vezes, nem o próprio nome do enfermo sabem, visto aparecerem eles
vagando pelas ruas ou estradas e são completamente desconhecidos no lugar." (Presidente
Barão do Parnaíba, 1887).

Reconhecia-se que aqueles considerados enfermos mentais deveriam ser internados no


Hospício, e para ali eram encaminhados de diversas instituições:
"(...) o Hospício recebe os enfermos de toda sorte de moléstias mentais, pela mor parte
incuráveis. Assim, os caducos, os paralíticos, os idiotas, os epilépticos, os afetados de delirium
tremens e delírio alcoólico em último grau, enfim, todos os alienados que lhe são remetidos do
Asilo de Mendicidade, dos Hospitais de Misericórdia, Penitenciária, quartéis e cadeias de toda a
Província." (presidente Pedro Vicente de Azevedo, 1889).
Francisco Franco da Rocha
Francisco Franco da Rocha
“Entre os imigrantes abundam os desequilibrados, sonhadores de
riquezas, que imaginam com os olhos na América, um infinito de
prosperidade e fortuna. Aqui chegados, vendo em pouco tempo
desfeitas suas ilusões, esbarrando com a dura realidade da luta pela
vida, longe da terra em que nasceram, oprimidos pela saudade,
recorrendo ao álcool como consolo, lá vão a caminho do hospício,
aumentar os detritos da sociedade recolhidos àquela casa”.
Franco da Rocha, “Causas da Loucura”, 1901.
Francisco Franco da Rocha nasceu em Amparo, em 23 de agosto de 1864, e
morreu em 8 de novembro de 1933, na cidade de São Paulo. Foi um médico
psiquiatra brasileiro.
Francisco Franco da Rocha
O alienismo acha seu espaço e define a sua “causa’ para além das necessidades de curar
estados mórbidos de indivíduos doentes: tratava-se de livrar a sociedade dos degenerados
que a contaminavam.
O combate, entretanto, deve travar-se em várias frentes.
O alienismo deve estar instrumentado para enfrentar as problemáticas do crime, da moral
familiar e individual, da imposição de disciplinas para o trabalho, de revigoramento dos
hábitos sociais e de práticas culturais, da higiene social – do aproveitamento integral do
tempo para as rotinas requeridas para a nova figura do trabalhador urbano.

Por esta via, ele integra-se ao esforço disciplinador da medicina, do direito, da engenharia
sanitária, da arquitetura, da pedagogia, das instituições penais e correcionais, da polícia e
assim por diante, no sentido de forjar uma sociedade organizada, asséptica, livre da ameaça.
Francisco Franco da Rocha

“Ao grupo de degenerados vêm juntar-se, muito naturalmente, os


desclassificados da sociedade. Denominamos desclassificados a uma
série de tipos especiais que não cabem nem na sociedade nem no
hospício (...). Eles estão na rua, por toda a parte. Agite-se um pouco a
sociedade por qualquer motivo, e eles surgirão logo. São candidatos
constantes ao hospício”. Franco da Rocha, “Causas da Loucura”, 1901.
Em 1892, Franco da rocha é convidado para organizar a reforma na
assistência aos alienados do Estado de São Paulo.
Em fins de 1895, tem início a construção do Hospício de alienados de
Juqueri.
Hospital Psiquiátrico do
Juqueri (1898)
Hospital Psiquiátrico do Juqueri (1898)
Hospital Psiquiátrico do Juqueri (1898)

O Hospital Psiquiátrico do Juqueri é uma das mais antigas e maiores colônias


psiquiátricas do Brasil, localizada em Franco da Rocha (antigo município de
Juqueri), na região metropolitana de São Paulo.
Inaugurado em 1898 pelo psiquiatra paulista Francisco Franco da Rocha, o Asilo
de Alienados do Juqueri passa a denominar-se Hospital e Colônia de Juqueri em
1929. Enfrentou a explosão migratória dos anos 1960 provocada pelo
desenvolvimento industrial, que contribuiu para o aumento do desemprego,
mendicância e marginalidade.
Em 1958 chegou a ter mais de 14 mil internados. Um pavilhão para menores foi
inaugurado em 1922 e em 1957, do total de doentes 3.520 eram crianças. Num
só ano a população de pacientes aumentou em quase quatro mil pessoas,
passando de 7.099 em 1957 para 11.009 em 1958.
Hospital Psiquiátrico do Juqueri (1898)

“O estabelecimento central compõe-se de duas secções, a de homens e de


mulheres. Cada seção tem quatro pavilhões que permitem a separação dos
insanos de acordo com as conveniências indicadas pelas formas de moléstia.
Há, além disso, mais dois pavilhões que contém as celas para a recepção e
exame preliminar dos doentes no momento da entrada. Esta seção é anexa as
salas de hidroterapia”
“Cada pavilhão tem seu refeitório, sala de permanência, jardim e dormitórios;
estes são salões no primeiro andar, e no andar térreo, um salão dividido em
pequenos quartos, mas com atmosfera comum. Nestes pernoitam os doentes
que por qualquer motivo não deixam os companheiros dormir em sossego”
ROCHA, Franco Hospício e Colônias de Juqueri: vinte anos de assistência aos alienados em São Paulo, 1912.
Reforma na Assistência aos Alienados: Hospital
Psiquiátrico do Juqueri

“Um bom asilo deve ter seções diversas nas quais a liberdade se gradue pelo estado
mental dos pensionistas. O excesso de zelo pela liberdade dos loucos pode
facilmente degenerar em futilidade”.
ROCHA, Franco. Hospício e Colônias de Juqueri: vinte anos de assistência aos alienados em São Paulo, 1912.

1889 - Congresso Internacional de Alienados (Paris, França): define novo modelo de


assistência baseado em asilos e colônias agrícolas.
1892 - Reforma do Modelo de Assistência: O então presidente de São Paulo, Cerqueira César,
convida o médico psiquiatra Franco da Rocha para orientar a reforma da assistência aos
doentes mentais.
1898 (18 de maio) – Inauguração da 1ª Colônias Agrícolas: Inaugura-se a 1ª colônia agrícola
do Brasil, o “Asilo de Alienados do Juqueri”, com 80 pacientes.
Colônia Agrícola: Asilo de
Alienados do Juqueri
Colônia Agrícola: Asilo de Alienados do Juqueri
COLÔNIAS AGRÍCOLAS:
• “Inaugurada a primeira colônia agrícola (1898) começaram logo a organizar-se as dependências
agrícolas: plantação de um pomar, criação de vacas de leite, de porcos e de galinhas, bem como a
plantação de forragem para a criação. Foi tudo iniciado modestamente, sem pompas, sem
espalhafatosas despesas, tendo-se sempre em vista o fim econômico desta instituição, isto é,
transformar-se em trabalho útil a enorme força viva que até então só era um pesado ônus para o
Estado”.
• “Em todos os serviços (...) os grupos de insanos, (...) são sempre acompanhados por empregados (..)
Nunca permiti que diante dos enfermos um empregado tomasse ares de feitor de fazenda. Trabalham
os enfermos que querem e quando querem. Ninguém os obriga. É natural que se procure sempre, como
temos feito, atraí-los ao serviço por meio de regalias, não só relativas a alimentação, mas também a
outros gozos: como o fumo, a liberdade de passear, etc.”
• “A maneira de convidá-los para o serviço as vezes tem importância decisiva. O que não se consegue por
meios autoritários, obtém-se frequentemente por um delicado pedido.”
Colônia Agrícola: Asilo de Alienados do Juqueri

“Dentro em pouco tempo alguns enfermos, dos que entraram a gozar das regalias
relativas ao seu trabalho, perderam de todo a ideia de prisão ou hospício, que
muito constantemente vexa os insanos crônicos e raciocinantes. A prova mais
evidente do que acabamos de dizer é o seguinte episódio:
Assistia eu, há tempos, a uma remoção de terra em que trabalhavam diversos
insanos e um empregado. O empregado atirou por brincadeira uma pá de terra nas
pernas de um dos doentes; este, sem zangar-se, retrucou-lhe, com estas palavras:
Não comece a me provocar, que perco a cabeça e vou para outra vez no hospício.
(...) tais palavras valem, mais que um livro para demonstrar as vantagens do open-
door. Aquele doente não se julgava mais recluso; supunha-se em plena liberdade.
O hospício a que ele se referia era o antigo casarão da cidade.”
Colônia Agrícola: Asilo de Alienados do Juqueri
“Não se deve, entretanto, olhar somente o valor a produção (que é grande), mas o lado
moral da questão. O insano que trabalha e vê o resultado de seu suor, sente – se mais digno;
sai da condição ínfima de criatura inútil e eleva-se a seus próprios olhos; adapta-se a um
modus vivendi que lhe suaviza grandemente a desgraça. A consciência do próprio valor
pessoal revive no indivíduo, que, de outro modo, seria uma carga pesada e inútil para a parte
sã da sociedade”.
“Nas proximidades do Juqueri, num raio de 15 km em redor do Hospício, encontram-se
habitações esparsas, cujos donos vivem modestamente de sua pequena lavoura; há entre
eles, pessoas educadas, de boa índole, capazes de preencher as funções de nutrício tão bem
como os melhores da Escócia.
Ora, como os nossos insanos pobres em geral são de origem rústica e por isso mais ou menos
afeitos a lavoura, a tal ponto que até nem lhes convém outro gênero de trabalho, é de crer
que as condições existentes ofereçam franca possibilidade de resultado.”
Colônia Agrícola: Asilo de Alienados do Juqueri
O tratamento da loucura nessas instituições, uma vez que as sangrias e vomitórios da
medicina da época não se adaptavam bem a esse novo domínio, ficava circunscrito às
práticas de coerção, contenção e punição. Tais métodos, coadjuvados à imposição do
trabalho forçado nas colônias agrícolas, iriam constituir a base do tratamento moral nas
instalações brasileiras, fazendo um eco um tanto agrário a sua matriz europeia. Repetiam-se,
contudo as bizarrices consideradas terapêuticas à época:
• Banhos quentes e frios;
• Banhos quentes com aplicação de capacetes de gelo;
• Malarioterapia: que consistia na inoculação da malária no organismo de pacientes para que suas crises
afastassem a loucura,
• Trepanação: consiste na abertura de um ou mais buracos no crânio, através de uma broca neurocirúrgica.
• Insulinoterapia: aplicação de injeções de morfina e de outras substâncias sedativas para provocar o estado de
coma;
• Traumaterapia: macabra conquista da psiquiatria brasileira – “orgulhosamente” descoberta pelo médico
Franco da Rocha –: consistia em uma violenta pancada na boca do estômago do paciente, imobilizando-o.
O Espelho do Mundo:
Juqueri
O Espelho do Mundo: Juqueri

“Quando comecei a trabalhar pela reforma da assistência aos alienados em São


Paulo (...) divisei claramente os dois problemas que se me antolhavam: o
problema científico e o problema social (...) Estávamos ainda no período da
detenção dos alienados, depois de ter passado o período de completa
negligência; tínhamos de entrar no período de tratamento. Este período de
tratamento consta de duas partes: o asilamento racional e a investigação
científica (...) o asilamento racional já era um programa para uma geração; era o
problema social de que falei há pouco (...) O que consegui em 25 anos de
trabalho forte está lá, no Juqueri. O problema social está resolvido, e com ele a
parte mais importante da terapêutica”.
Trecho de Franco da Rocha, por ocasião da inauguração do curso de psiquiatria e moléstias nervosas. Extraído
de Cunha, M. C. P., "O Espelho do Mundo: Juqueri, A História de um Asilo", 1988, p. 37.
O Espelho do Mundo: Juqueri

O Hospício do Juqueri vem para equacionar, pela via cientifica e sob o signo
reconciliado da “cura” e da “assistência”, uma questão política fundamental:
conferir legitimidade à exclusão de indivíduos ou setores sociais não totalmente
enquadráveis nos dispositivos penais.

Além disso, ele permite a guarda, e quiçá a regeneração ou disciplinarização de


indivíduos resistentes às disciplinas do trabalho, da família e da vida urbana;
reforçar papéis socialmente importantes para o resguardo da ordem e da
disciplina, medicalizando comportamentos desviantes – como as perversões
sexuais ou a vadiagem – e permitindo que sua reclusão possa ser lida como um
ato em favor do louco, e não contra ele.
O Espelho do Mundo: Juqueri
Cronologia das Fases do Juqueri:
1. 18 de maio de 1898 – Colônia agrícola.
2. 1901 – Hospital central.
3. 1903 – Instalação dos pavilhões femininos.
4. 1907 – Com 800 leitos, superlotado, inicia-se a ampliação.
5. 1908 – Implantação da assistência familiar.
6. 1916 – Capacidade física esgotada – nova ampliação.
7. 1921 – Pavilhão para alcoólatras e toxicômanos.
8. 1922 – Pavilhão para menores anormais; laboratório histoquímico – fase anátoma-patológica.
9. 1927 – Inicia-se a construção do manicômio judiciário (inaugurado em 1934).
História(s) e Casos do
Juqueri
História(s) e Casos do Juqueri
Em 1928 Juqueri contava com:
• quase 2000 internos
• 04 alienistas ( jornada de 04 horas de trabalho diárias)
• 02 internos
• 01 cirurgião
Caso Ronsina
Paciente italiana, internada em 1908, falecida no hospício em 1940. 1ª observação clinica data de 1911 – paciente fala
o dialeto italiano, sendo difícil a compreensão do médico. Chegou ao Brasil com 17 anos para trabalho em uma
fazenda de café. Anos depois foi trabalhar em uma fábrica de charutos até ser internada. Médico observa que
desconhece a razão de sua vinda e de sua permanência.
Segunda observação realizada em 1938. “ Apesar de estar internada neste hospital há quase trinta anos (...) até a
presente data não foram tomadas anotações no decurso de sua moléstia. (...) Assim é que, tendo dado entrada aos 35
anos, mostra-se atualmente toda encanecida, com estigmas evidentes de senilidade, justificáveis pelos seus 65 anos
atuais na condição de reclusão”.
Caso Ronsina

Ronsina em 1908 Ronsina em 1938, 02 anos antes de seu falecimento


História(s) e Casos do Juqueri
“O doente teve fortuna e esbanjou-a. Desde então teve uma vida
de boêmio, sem destino, ora com um irmão, ora com um cunhado,
esquecido da mulher e filhos; às vezes tornava-se valente contra
parentes que o queriam corrigir (...). É de se crer que já se vai
estabelecendo gradualmente um estado análogo à demência, sem
delírio algum bem caracterizado. Diagnóstico: Degenerado. Fraco
de espírito”.
Anotação do prontuário de Antonio A.S.B., 49 anos, branco,
casado, procedente de São Paulo, em 1901, assinado pelo
próprio Dr. Franco da Rocha.
A esta primeira observação, (...) segue-se, oito anos depois, uma
revisão do alienista responsável, o qual limita-se a assinalar a
lentidão em que o caminho do paciente para o estado demencial
evolui – mas ainda assim ele é mantido, até sua morte, recluso
no pavilhão de pensionistas do Juqueri.
História(s) e Casos do Juqueri

“ Os estimas de degeneração física que apresenta são os comuns da sua


raça: lábios grossos, nariz emborrachado, seios enormes, pés chatos”.

Na base da pirâmide, ocupando a posição de mais radical aniquilamento,


estão as mulheres negras. Portadoras desta dupla condição, são vistas e
tratadas pela medicina alienista como portadoras de uma dupla
inferioridade que as torna mais próximas da natureza que da condição
humana.
História(s) e Casos do Juqueri

Mulher casada, 28 anos, principal


Jovem de 17 anos: erótica e pornográfica.
sintoma é “anesthesia sexual”.
História(s) e Casos do Juqueri
Vestir-se de homem, viajar só. Recusar o
casamento, a maternidade, a família. Manifestar
uma independência essencialmente estranha
àquela sociedade. No caso da loucura feminina, a
transgressão não atinge apenas as normas sociais,
senão à própria natureza, que a destinara ao papel
de mãe e esposa. (...) a sanção e a condenação
para comportamentos anômalos acabam
assumindo, no caso das mulheres, o caráter de
julgamento muito mais profundo, e o
comportamento “estranho” aparece aí como
muito mais transgressivo: não o antissocial, mas o
Fotografia de prontuário (1918): mulher antinatural. (...) a loucura – doença terrível – não
internada por viajar só. Vestia-se como deixa de aparecer como uma vingança da
homem. natureza contra a violação de suas leis.
História(s) e Casos do Juqueri

Archangelo, aos dezessete aos de idade, é internado pelo pai após


“reincidência” em práticas homossexuais.

Em seu prontuário não consta nenhuma observação além daquelas referentes à sua condição
sexual: “(...) desenvolvimento excessivo do membro viril. Desde os dezesseis anos é pederasta
passivo. Nunca praticou o coito normal com mulher”, assinala o alienista.
Segundo suas indicações, o jovem ainda “masturbava-se em excesso” e estava acometido de
doença venérea. Tinha, é verdade “orelhas mal conformadas” e uma certa “assimetria na
cabeça”, que reforçam a visão de que sua homossexualidade estava associada à degeneração.
Conclusão
Conclusão
O Juqueri constitui a instauração de um espaço médico para quem já não dispõe
de espaço social, ou para indivíduos por razões diversas incapazes de adaptação
às disciplinas exigidas pela vida e pelo trabalho urbano.
Neste sentido, seus maiores contingentes populacionais são fornecidos pelos
resíduos da força de trabalho da cidade de São Paulo. Eles: “(...) ocupam os
pavilhões e enfermarias [...] muitos vadios e prostitutas ou mulheres “promiscuas”
das ruas, trazidas pela polícia; mas também operários, caixeiros, copeiros,
cozinheiras e criadas, barbeiros, alfaiates, soldados, guarda-livros, etc”.
Nos alojamentos dos pensionistas, onde predominam os “loucos morais”,
degenerados “superiores” e histéricas, estão outros personagens: professores e
professoras, negociantes, advogados, militares, mulheres solteiras “de família”,
donas-de –casa e outras que merecem, no interior da vida asilar, um tratamento
diferenciado.
Conclusão

Desde os anos 30 o Juqueri tem sua história marcada por crises sucessivas, onde
despontam denúncias sobre as condições degradantes em que vive a população
internada.
Pensado no final do século XIX, ele já se debatia, em suas origens, no interior de
uma contradição que atravessa todo o pensamento médico sobre a loucura:
“curar” ou “assistir”, sequestrar ou tratar, fundar um hospital ou um asilo.
A partir dos anos trinta a psiquiatria buscará estender seu campo: a intervenção
deverá ser a da profilaxia social através das Ligas de Higiene Mental.
Ao Juqueri restará o papel de instituição para seres sem saída. Pacientes
terminais.
Juqueri (1900)
Juqueri (2005)
Em 2005 um incêndio atingiu o
setor administrativo do prédio do
Hospital. As seis horas de fogo
destruíram o prédio de dois
andares tombado pelo
Condephaat, sua biblioteca (a
mais completa em livros e
periódicos de psiquiatria da
metade do século XIX até metade
do século XX) e 100 anos da
memória do Hospital. Do edifício
sobraram apenas as paredes
estruturais e uma parte da
cobertura do piso inferior em uma
de suas laterais. O prédio havia
acabado ser restaurado, com
reforma do telhado, do piso,
vitrais e da estrutura elétrica.
Fórum Mineiro de Saúde Mental - Franco Basaglia e
a Reforma Psiquiátrica

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