Você está na página 1de 57

Resumo: Neve é um ser fantástico criado pelos Deuses para controlar o inverno.

Um dia,
entretanto, um poderoso inimigo tenta introduzir seu deus pagão na cultura das pessoas, o
que acarretaria na morte dos deuses e na morte de todas as suas criações (ou seja, no mundo).
Neve precisa agir rápido se quer proteger seu povo, seu reino e seu mundo antes que o último
floco cai no planeta, ou será o fim.

Neve Rubra
O último floco é o ultimato

Prólogo
Os Quatro Reis
Primeiro os olhos. Bem redondos, expressivos, intensos... Érica acreditava
que os olhos de uma pessoa eram um pedacinho da alma que ficava do lado de fora
para expiar o mundo. Por isso, os olhos precisavam ser perfeitos e apaixonantes.
Depois o rosto. Linhas fortes e másculas. Cada curva muito delicada e
vigorosa, demonstrando a pessoa forte que deveria ser. Na face, encaixou um nariz
longo, uma boca sensual, maçãs firmes, um testa lisa... Na cabeça, encaixou as
orelhas redondas e o cabelo.
O cabelo foi certo problema: não estava ficando de seu agrado. Tentou um
estilo mais soldado, cortado rente para o elmo, mas não queria que o belo rosto e os
belos olhos que construíra fossem cobertos por uma armadura. Tentou um estilo
nobre, com longas madeixas lustrosas caídas pelos ombros, mas aquilo parecera
ridículo e desleixado. Tentou até mesmo o estilo aldeão, com um cabelo crespo e
sujo, mas o corte acabara com a imagem potente que queria criar. Decidiu então por
criar uma mistura dos três: cabelos curtos e desgrenhados, porém brilhantes e
asseados. Obteve o resultado esperado e isto a deixou muito orgulhosa de si.
Continuando sua obra, Érica moldou o pescoço rígido, logo em seguida os
ombros e o peitoral. Tomou extremo cuidado nesta arte, pois era a que mais
admirava em um homem. Para o ombro, tomou como medida a palma de sua mão,
deixando-o bem arredondado e firme. Imaginou-o em uma reluzente armadura, o
que a encheu de um orgulho materno, porém ainda não queria vê-lo sob os metais da
guerra, por isso moldou o peito como a um tórax armado. Depois do peitoral,
modelou as costas rígidas e o abdômen “acentuado”.
Logo em seguida, modelou os braços, tornando-os fortes e redondos. Refletiu
sobre a moça de sorte que seria tomada por aqueles braços e decidiu que deveria
torná-los bem quentes e confortáveis. As mãos não foram diferentes, pois queria que
ele tivesse muita habilidade com os dedos. Fez estes bem longos, mas não finos –
não queria que parecesse uma donzela – com unhas bem grossas, mas afiadas. Bem
selvagem.
Em seguida, chegou ao sexo. Quando se ajoelhou para modelar esta parte,
ficou subitamente vermelha e pensou se não seria melhor começar de novo, mas
agora fazendo uma mulher. Mas concluiu que, se desfizesse, jamais alcançaria um
resultado melhor. Sem jeito de desviar-se desta parte, respirou fundo, engoliu o
orgulho e, com muita força de vontade, modelou o membro. No começo, fizera-o
pequeno e enrugado, uma coisinha feia por entre as estacas que o mantinham em pé,
porém, pensando em seu marido, resolveu torná-lo algo mais interessante de se
observar.
E por fim, chegou às pernas. Fez seus músculos bem definidos, capazes de
transportá-lo para qualquer lugar que quisesse. O longo arco da coxa, os joelhos
proeminentes, o vão atrás destes, a panturrilha elevada, o tornozelo grosso, os pés
longos, os dedos encolhidos.
Assim que finalizou sua obra, resolveu expiar como os outros iam. Heitor
modelava um homem também, porém achou-o muito semelhante ao seu criador.
Também tinha uma barba espessa e era forte como um touro (a criação de Érica era
de uma força mais delicada do que aquele brutamontes). Se conhecia bem o marido,
Érica tinha certeza que Heitor faria de sua obra alguém carismático e nascida para a
liderança.
Depois, virou-se para Noam e levou um susto quando ele deu um soco no
rosto de sua obra, destruindo sua face. Pobre Noam, pensou Érica, sempre emotivo.
Sua obra aparentava ser um homem, mas ainda estava um pouco deformado e sem
finalização. Pelo visto, Noam não conseguia alcançar o resultado que desejava.
Afastou o olhar de Noam e virou-o para Yael que, graciosa como só ela sabia
ser, dava os últimos retoques em sua obra. Era a única que fazia uma mulher e
estava fazendo-o muito bem por sinal. Fez longos cabelos ondulados que deslizavam
pelas suas costas, um rosto bem alongado e doce, um corpo invejável, mas os olhos
da obra expressavam um orgulho que desagradou a Érica.
Ela voltou-se para sua obra e contemplou-a um pouco mais. Era um homem
bonito, alto e forte. Estava perfeito...
Pensou em como seria a personalidade dele. Queria que ele fosse uma pessoa
boa, humilde e justa. Mas olhando para ele, via-o com um ser arrogante e orgulhoso.
Queria também que fosse alguém que sempre abrisse sorrisos e abraços, mas notou
que ele parecia mais com aquelas pessoas que se cansam ou se zangam fáceis dos
assuntos que são discutidos. Tocando seu rosto, ela fez uma prece silenciosa: Por
favor. Como sua criadora, quero que seja amável, inteligente, corajoso e um amigo
para quem precisar. Não me decepcione. Era pouco, mas preferiria que ele, sozinho,
criasse sua personalidade com o tempo.
-Acabei. – anunciou.
-Eu também. – retrucou Yael, aproximando-se levemente.
Ela estudou a obra de Érica.
-Ele é bonito... – disse, dando risinhos.
Heitor também se aproximou e estudou a obra da esposa.
-Jovem demais... Deveria fazer alguém mais maduro.
Noam veio logo em seguida, resmungando como sempre.
-E você gostaria que todos fizessem um velho como o seu?
Heitor virou-se indignado, bufando.
-Pelo menos, a minha obra está terminada! E a sua, que tem apenas um rosto
socado?
-O meu problema se resolve fazendo de novo... – retrucou Noam, com os
olhos baixos, indiferente. – O seu é uma questão de egocentrismo da sua parte.
Heitor agarrou o pescoço de Noam e o chacoalhou. O rapaz riu.
-Seu moleque atrevido! – trovejou Heitor – Vou colocar respeito em você!
-Vai fazer isto me batendo? Muito respeitador...
O agressor já levantava o punho fechado quando entraram os outros. Milene
guiava o grupo, seguida por Paul, Ronit, Noa, Shimon e Alon. Ao ver a confusão,
Milene adiantou-se e segurou o braço de Heitor.
-Não faça besteiras, Heitor. Por que está se rebaixando ao nível de Noam?
Ele grunhiu e soltou o pescoço do outro, mas continuou a resmungar
ameaças. Noam apenas massageou o pescoço, sorrindo.
-Bem... – disse Milene, dando um passo à frente – Quais foram os resultados?
Todos analisaram as obras, concordando ou discordando dos rendimentos.
Érica ficou muito feliz quando todos elogiaram a sua obra, dizendo que era muito
jovial e atlética, o que causava uma impressão positiva.
-Agora – continuou Milene, olhando demoradamente para os quatro criadores
– Dêem vida a eles.
Érica virou-se para sua obra e a encarou, receosa. E se ele não fosse como
queria? Se fosse alguém ruim? Ou se se desviasse do objetivo pelo qual fora criado?
E se não gostasse de sua criadora? Porque, apesar de não ter admitido até agora,
Érica sabia que criara aquela sua obra como se fosse um filho e amava-a muito.
Tinha medo do que poderia acontecer com ele, preferira mantê-lo assim... Uma
estátua.
Ela ouviu um estalido e viu que o homem de Heitor acordara. Ele teve um
sobressalto e olhou à sua volta, perturbado. Parecia menos potente assim, com medo.
Não passava de um recém-nascido que sabia andar e pensar.
Érica inspirou fundo e novamente encarou sua obra. Não havia jeito... E
quem sabe ele não fosse melhor do que imaginava? Com este pensamento positivo,
Érica tomou o rosto dele nas mãos e soprou levemente em sua face.
Enquanto se afastava, sua obra se movimentou com brusquidão. Ela
arregalou os olhos para Érica e a encarou. Não sabia dizer se era desconfiança,
interesse ou susto.
Agora que ele adquiria cor, Érica viu que ele tornava-se mais bonito do que
antes: seus olhos eram muito azuis, como o mar, e sua cor era apenas mais destacada
pelos cabelos escuros. Sua pele era de um dourado quente, não para o tom do
amarelo, mas para o tom do bronze. Não era uma cor muito comum, mas era bonita.
Seus lábios eram mais marrom ao invés de vermelho ou rosa, o que deixou Érica
feliz, pois não queria que ele tivesse uma boca de menina.
Ele inspirou fundo e estendeu as mãos para observar. Girou-as no ar,
estudando-as, com uma expressão estranha no rosto. Estaria maravilhado com o que
via ou apenas curioso?
Um estalido fez com que ele esticasse-se ao máximo e olhasse à sua volta,
intrigado. Érica viu que seus olhos não demonstravam o que ele estava pensando,
expunham apenas um divertido interesse no que acontecia à sua volta.
Quem despertava desta vez era a mulher de Yael, que tremia violentamente e
olhava para todos com a mesma fúria assustada de um animal. Ela abraçava o
próprio corpo e, com os pés trôpegos, tentava colocar-se longe de todos.
Ele observava a mulher com um interesse demoníaco, como um lobo observa
sua caça. Érica notou que ele estava enrijecendo todo o corpo e teve medo que ele
pudesse atacar a mulher de Yael. Seus olhos estavam muito abertos e ele respirava
com força, mas não fez nenhuma menção de se aproximar.
A mulher notou que estava sendo observada com intensidade e encontrou o
olhar dele. Ambos se encararam, ela demonstrando medo e ele... Impassível, apenas
com aquela curiosidade incomum no rosto. Conforme se encaravam com o passar do
tempo, a mulher foi soltando-se, ficando mais confiante. Ela endireitou-se e soltou o
corpo, contudo não desviou os olhos dele. Pareciam hipnotizados um pelo outro.
Outro estalido fez com que eles se esquecessem e estremecessem. A obra de
Noam se remexia como um cachorro se mexe para livrar da água. Era um homem
esbelto e charmoso, com um bigode sobre os lábios finos e um longo cabelo sobre os
ombros. Ele passou a mão pelas madeixas e sorriu com a sensação. Érica não
simpatizou com a figura.
-Eles... – a voz de Milene foi a primeira coisa a ser ouvida depois que as
quatro obras passaram a viver. – Eles são... Incríveis! – ela bateu palmas como uma
menina – Vejam como eles são precisos e delicados! São magníficos!
Todos concordaram e aproximaram-se. Érica virou-se para o seu homem e
viu que ele encarava tudo sem demonstrar absolutamente nada.
O homem de Heitor observava tudo com o queixo empinado e as mãos nas
costas. Como eu disse, pensou Érica torcendo o nariz, um líder. O homem de Noam
sorria amavelmente para todos que se aproximavam dele e, quando Shimon chegou
perto, ele até estendeu a mão para um cumprimento. A mulher de Yael olhava todos
com desconfiança e, ora ou outra, Érica notou que ela novamente procurava o olhar
intenso de seu homem.
-Bem. – disse Ronit – Como os nomearão?
Érica virou-se para seu homem com a respiração suspensa. Oh, não! Esqueci
de dar um nome a ele! Seu homem notou sua apreensão e virou o rosto inexpressivo
para ela, encarando-a firme.
-O meu chamará Vesúvio, pois é um nome poderoso e sensato! – disse
Heitor. Vesúvio cumprimentou-o com a cabeça.
-O meu chamará Octávio... – disse Noam – Porque... Bem, porque eu gosto
deste nome... – isto fez Octávio sorrir com jovialidade.
-A minha chamará Rosácea, pois ela é linda como uma rosa... – Yael tocou
no ombro de Rosácea que sorriu corada.
Érica sentia o coração bater desesperado. Um nome! Um nome! Quanto mais
pensava, menos idéias vinham-lhe à cabeça. Nenhum se encaixa! Todos os outros
observavam suas costas, esperando, mas o que realmente estava deixando-a nervosa
era a falta de expressão no rosto de seu homem. Oh, por favor... Como você é frio...
-Neve... – sussurrou.
E pela primeira vez, Neve demonstrou alguma emoção: surpresa.

-Neve, Érica? – perguntou Ronit. – Mas neve é um substantivo feminino. Ele


não é um homem?
-Será Neve, porque ele é bonito como ela, mas também é frio. Não me
importa que seja a neve, ele será o Neve.
Neve continuava a encará-la, com as sobrancelhas suspensas no meio da
testa, os olhos procurando alguma coisa dentro dela.
-Que seja Neve então... – ele disse.
Era a primeira vez que as obras falavam. Neve tinha uma voz grave,
contradizendo a pouca idade que aparentava.
-Eu gostei... – retrucou Octávio, com uma voz galante de cantor – Demonstra
a sua personalidade...
-Como sabe como é a minha personalidade sendo que nem eu a conheço? –
Neve virou os olhos para Octávio e neles via-se uma fúria gélida. Octávio obteve um
leve estremecimento e resmungou de volta:
-Por que me ataca, jovem colega? Não me lembro de ter sido mal-educado
para contigo...
Uma risada angelical acabou com o ambiente frio que estava se tornando.
Rosácea olhava divertida para os dois jovens que brigavam.
-Como podem já estar brigando? Acabamos de nascer...
Yael passou levemente a mão sobre os ombros de Rosácea.
-Não ligue minha querida... Esta é a natureza dos homens.
Rosácea riu novamente e, por um breve segundo, encarou novamente Neve,
que a observava com uma das sobrancelhas arqueada.
-Ora, jovens rapazes e doce donzela! – disse Vesúvio abrindo os braços –
Não vamos começar a criar intrigas entre nós logo no início de nossas vidas! Tenho
certeza que nossos criadores tinham algo em mente quando nos geraram e posso
apostar que não era para criarmos brigas entre nós...
Heitor inflou o peito de orgulho com as palavras de Vesúvio, mas Neve
retrucou:
-Não há brigas. Apenas uma constatação.
Vesúvio abriu novamente os braços e começou:
-Meu caro amigo...
-Por favor, fique quieto! – Neve cruzou os braços sobre o peito e fechou os
olhos – Não continue com seus discursos moralistas. Estou ficando entediado.
Vesúvio arregalou os olhos e sua boca formou um “O” de incredulidade.
Aparentemente, ele pensava que todos sempre o ouviriam com louvor. Entretanto,
um rapaz o desmoralizava na frente de um grupo de pessoas e isto o irritou
amargamente. Ele avançou no pescoço de Neve e segurou-o firme enquanto gritava:
-Moleque atrevido! Vou colocar um pouco de respeito em ti! – se alguém
tivesse dúvidas de que Vesúvio era uma criação de Heitor, agora não as tinha mais.
Érica segurou a respiração, apavorada. Neve! Precisava libertá-lo. Mas como?
Vesúvio era o dobro de seu tamanho e Heitor poderia ficar muito ofendido se sua
obra fosse atacada.
Subitamente, Neve não estava mais ali. As mãos de Vesúvio agarravam o
nada e ele tombou para frente, já que perdera seu apoio. O homem ruivo ficou
estatizado no mesmo lugar, parecendo atordoado com o desaparecimento repentino.
Para onde ele foi?
Neve reapareceu às suas costas com uma expressão homicida no rosto. Ele
levantou o punho e golpeou a nuca de Vesúvio, fazendo-o cair de joelhos com um
grito aflito. Neve logo depois segurou o maxilar e o alto da cabeça do oponente com
ambas as mãos bem firmemente e puxou-a. O pescoço esticou-se ao máximo e por
trás da barba ruiva de Vesúvio, seu rosto ficou vermelho e sua respiração pesada.
Ele tentou livrar-se de Neve com alguns socos direcionados para suas costas ou
arranhões em seus braços, mas o rapaz permaneceu firme... Impassível como
sempre. Seus braços começaram a enrijecerem-se e ele preparou-se para quebrar um
pescoço.
Neve! Pare com isto agora mesmo! Érica queria poder gritar esta ordem, mas
a voz sumira no fim da garganta. Ela tentou mover-se em sua direção, mas seus
movimentos também estavam comprometidos.
Neve levantou os olhos e a fixou rancorosamente, para logo em seguida
soltar Vesúvio. Ele colocou o corpo ereto com uma longa inspiração e levantou o
queixo, ainda olhando para sua criadora.
Senhora... A voz grave de Neve ecoou em sua mente e Érica congelou. Ele
ouve meus pensamentos!
Neve virou as costas para Vesúvio e dirigiu-se em sua direção com as mãos
nas costas e o queixo bem levantado. Ele parou às suas costas como um segurança.
-Bem... – disse Shimon – Está claro que ele é bem rápido.
-Até demais! – brandiu Heitor, girando o punho no ar – Como ele ousa atacar
a minha criação? Érica, eu exijo que o puna agora mesmo!
Érica abriu a boca para retrucar, mas viu que não tinha palavras para
comentar sobre o incidente. Ela olhou para Neve, porém ele fingia que não estava
envolvido no problema.
-Ora, por favor, Heitor... – Noam veio em seu socorro – Você só está bravo
porque o seu “poderoso e sensato” Vesúvio perdeu a sua primeira briguinha boba...
Deixe o rapaz, ele apenas mostrou do que ele é capaz... – e virou-se para Neve –
Muito bom aquele golpe com o punho, rapaz. – ele fechou a mão e a brandiu,
repetindo o golpe – Foi muito admirável. Mostra que você é um bom guerreiro.
Talvez devêssemos duelar algum dia... – e deu uma piscadela com um forte sorriso
no rosto – O que me diz?
Uma leve sombra de um sorriso apareceu no canto dos lábios de Neve. Gosta
de brigas então... Érica aquiesceu contente. Pelo menos tem algum gosto...
-Você só o defende, porque não foi a sua criação que foi humilhada! – disse
Heitor – Queria ver estas palavras saindo de sua boca se tivesse ocorrido com
Octávio!
-Pois é, não sairiam da minha boca. – Noam suspirou cansado –
Provavelmente sairiam da sua. Mas como não aconteceu comigo, vou defendê-lo. –
ele abriu os braços, num sinal de impotência – Ora, Heitor, sejamos razoáveis:
admita que Neve foi incrível nesta luta!
Heitor resmungou, mas não retrucou, o que divertiu Noam.
-Que seja. – ele disse – O que mais será que eles sabem fazer?
Érica pensou em dizer que eles podiam se comunicar mentalmente, mas
resolveu ficar em silêncio: seria um segredo somente dela e de Neve.
-Querem saber o que podemos fazer? – falou Rosácea com um tom
impertinente, abraçando o próprio o corpo novamente – Nós podemos sentir frio.
Quando colocaremos algumas roupas?
Todos riram.
-Claro... – disse Ronit – Os criadores devem ter pensado em criar roupas para
suas criações não é?
Érica novamente arregalou os olhos. Roupas!
-Claro. – ela disse, com um sorriso amarelo – Venha, Neve querido. – ela
segurou seu braço e começou a arrastá-lo para fora – Vamos pegar roupas para você.
Os dois afastaram-se dos outros e dirigiram-se para os aposentos de Érica.
Assim que chegaram, Érica começou a revirar os armários e as gavetas à procura de
algo decente para ele vestir, mas apenas encontrava roupas femininas.
-Você não disse que já havia pensado em roupas? – perguntou Neve olhando
para os montes de roupas que se formavam no chão.
Érica virou os olhos para ele e viu-o sentado sobre sua cama. Ele estava
apoiado sobre os joelhos, os dedos cruzados, o pé esquerdo batendo impaciente no
chão, as pernas separadas... Subitamente, uma sensação quente começou a subir por
seu corpo e Érica começou a ficar exasperada. Não! Você o criou na imagem de um
filho! Um filho que você tanto deseja... Não era culpa de Heitor se eles não podiam
ter filhos, mas nem era sua como o marido costumava dizer. Logo ela, que tanto
ansiava por um bebê! E agora, que tinha o mais próximo disso, não poderia...
Subitamente, Neve estava bem à sua frente, encalçando sua cintura. A
sensação foi ficando mais forte...
-Não posso... – ela sussurrou, mas a voz pareceu tão distante e impotente.
Porém, Neve pareceu não ouvi-la e cobriu sua boca com a sua. Ela pode
sentir a ponta da língua dele sobre seus lábios, mas recusou-se a abri-los.
Pare, Neve! Eu não posso...
Ela deixou-se levar pelos instintos e abriu a boca naquele beijo.
Mas quer. Ele respondeu.
Ela abraçou seu pescoço e estremeceu com o contato de seus corpos.
Neve...
Ele passou a mão para debaixo de sua saia e colocou os dedos naquele lugar
proibido. De repente, Érica sentiu uma forte repulsa de si mesma e empurrou-o para
longe. Ela limpou a boca com as costas da mão.
-Pare com isto! – desta vez, a voz saiu mais firme, porém ainda a traía com
uma pitada de desejo no timbre – Eu não quero e você também não!
Neve suspirou e tornou a se sentar, olhando para os montes de roupas no
chão. Érica virou-se de costas e voltou a procurar por alguma peça.
Eu tinha que fazê-lo ereto! Eu tinha!
Vendo que não encontraria nada, Érica pegou algumas peças de montaria que
tinha guardada e sentou-se na roca.
-Vai demorar um pouco. – ela disse seca – Se estiver com frio, é melhor se
enrolar no cobertor.
Neve não respondeu e, como não produziu nenhum som, também não se
mexeu. Érica começou a customizar as peças que tinha para transformá-las em um
belo traje casual.
-Do que eu fui feito? – a pergunta repentina de Neve soou muito indiferente
para seu significado.
-De argentumn. – disse Érica.
-Continuei na mesma...
Ela sorriu.
-É uma espécie de argila, porém ela é mais rara... É um material celestial,
somente pertencente aos Deuses...
Neve aquiesceu.
-O que me faz supor que você seja uma Deusa...
Érica sorriu.
-Da família e do amor.

Depois de muito cortar aqui e costurar ali, ela conseguiu um resultado


incrível: um elegante sobretudo totalmente de couro que passava de seus joelhos, um
colete também de couro forrado com lã, um camisa muito suave, uma calça de couro
forrada com algodão e botas de couro. Como as peças da montaria eram de cores
diferentes, Érica resolveu tingir todas as peças em tons de cinza e preto.
-Vista-as! – Érica estendeu as roupas.
Neve analisou-as de longe antes de pegá-las. Ele as vestiu com uma
velocidade incrível e olhou-se no enorme espelho de bronze ao lado da cama.
-Como estou? – perguntou, virando-se para Érica e estendendo os braços.
-Elegante... – ela respondeu, colocando a mão no queixo – Mas ainda falta
um pouco de riqueza em você. – ela virou-se para uma cômoda e de lá tirou uma
enorme caixa de ouro. Quando a abriu, jóias brilhantes e enormes cintilaram.
-O que gostaria de usar? – Érica revirou um rubi do tamanho de uma ameixa
na mão.
-Uma espada.
Érica virou-se para Neve.
-Isto você pode arranjar depois. Precisamos ver o que usará agora como
acessório.
-Não quero acessórios. – ele cerrou os olhos – Quero uma espada.
Ela suspirou.
-Você fala como se fosse uma criança mimada. – ela estendeu a mão e
acariciou seu rosto – Terá uma espada, meu querido, mas no momento, temos outras
coisas para decidir.
Neve aproximou-se da caixa e pegou uma corrente formada por diamantes
grandes como pitangas.
-Estas coisas são de donzelas. – e atirou a corrente de volta à caixa – Se terei
jóias, que tenha pelo menos alguma digna de um homem.
-E o que sugere?
Neste momento, entrou Shimon.
-Érica, Heitor está chamando todos para o salão principal. Ele quer começar
as explicações.
-Já estamos indo. – respondeu Neve. E virou-se para Érica – Devemos deixar
estes detalhes para mais tarde, minha senhora. Vamos. – ele estendeu o braço para
que ela o tomasse – Os outros nos aguardam.
De braços dados, eles foram ao salão principal onde todos os outros
esperavam. Érica notou como as outras criações estavam elegantes e glamorosas:
Vesúvio estava inteiramente de roxo, Octávio tinha tantos diamantes e outras pedras
presas à roupa que parecia uma árvore coberta de orvalho e Rosácea... Bem, ela
estava Rosácea, com toda a beleza de uma dama da corte. Perto dos outros três,
Neve parecia pobre e indigno de estar no mesmo cômodo, mas, quando olhou para
seu rosto, ele não parecia estar se importando.
Os dois sentaram-se em cadeiras bem à frente de todo o grupo. Quando todos
estavam bem acomodados, Heitor levantou-se e tomou a palavra:
-Meus caros amigos, estamos aqui...
Érica sabia que o discurso iria longe, pois seu marido gostava de alongar os
mais simples assuntos. Ela afundou na cadeira e começou a brincar com as fitas de
seu vestido.
-Heitor é deus do que? – perguntou Neve em um sussurro.
Érica olhou para o marido. Ele era alto, um pouco barrigudo, tinha algumas
rugas no canto dos olhos e na testa, uma barba espessa e um jeito de comandar a
todos que a irritava.
-Deus dos deuses e dos homens...
-Ele é seu marido? – a palavra marido foi pronunciada com certo desgosto e
isto fez Érica olhar para ele. Neve estava inclinado em sua direção e seu rosto estava
perigosamente próximo ao seu. Ela sentiu um forte impulso de beijar Neve
novamente.
-Sim... Meu fiel marido.
Ele sorriu maliciosamente.
-Acredita nisso?
-No que?
-Que ele seja fiel?
Érica desviou os olhos.
-Claro que sim. Ele diz que é fiel e eu acredito nele.
-Você não é. Por que ele deveria ser?
Érica colocou-se ereta na cadeira e olhou à sua volta, com medo que alguém
tivesse ouvido, porém estavam todos prestando atenção em Heitor. Ela virou-se
furiosa para Neve.
-Fale baixo, Neve! – ela inclinou-se mais em sua direção e seus rostos
ficaram quase colados. Ela podia sentir a respiração voluptuosa dele em seu próprio
rosto – E aquilo foi um erro. Não acontecerá novamente. – e olhou a volta. Deparou-
se com o olhar de Rosácea cravado em suas costas. Quando foi descoberta, Rosácea
virou o olhar para Heitor e fingiu estar interessada. Érica virou-se para Neve – Por
que não presta atenção ao que Heitor está dizendo? Ele pode esclarecer dúvidas.
-Eu já sei tudo o que ele está dizendo. – Neve sorriu e voltou a encostar-se à
cadeira, olhando fixamente para frente.
Quando Érica resolveu escutar o que o marido dizia, viu que Neve tinha
razão:
-... Nós, Deuses, controlamos o céu, a terra, os mares e o submundo...
Ela voltou a mexer nos vestido, com o cheiro acre-doce de Neve em suas
narinas.

-Agora, sei que vocês devem estar se perguntando: “Por que nós fomos
criados?”. Pois então, eis a resposta: o mundo precisa de mudanças. Nós temos
exatas doze horas de luz e doze horas de escuridão. O sol sempre nasce e se põe no
mesmo lugar. Precisamos de ordem e desordem no nosso lar. Precisamos de vocês.
Uma explicação bem razoável, pensou Érica. Digna de Heitor.
-Não entendi qual será nossa função. – disse Neve, levantando as
sobrancelhas.
Heitor virou-se para ele. Pelo seu olhar, ele guardava certo ressentimento de
Neve.
-Imagine a seguinte situação: um reino é criado. Existe o povo, a igreja, a
nobreza, o exército, o comércio, o futuro... Mas para que o reino tenha uma ordem, é
preciso um soberano, um rei para controlá-lo. Agora imagine que o mundo seja um
grande reino recém-construído. Ele precisa de reis. É aí que vocês entram. – ele
virou-se para os outros presentes – Criamos vocês para serem os reis do mundo.
Vesúvio inclinou-se para frente ainda mias interessado, Octávio segurou a
respiração surpreso, Rosácea soltou um gritinho e Neve virou o rosto para o outro
lado e coçou a orelha.
-Como são quatro – continuou Heitor – vocês terão épocas... Melhor dizendo,
estações para cada um governar. A primeira estação será de Vesúvio, a estação mais
quente, com dias mais longos, as árvores estarão mais verdes, será de muita alegria.
A estação seguinte será de Octávio, onde os dias vão ficando um pouco mais curtos,
será uma época de frutas bem maduras e muita colheita para o que virá em seguida.
A estação que o sucederá será de Neve, a estação mais fria do ano, onde os dias
serão mais curtos e escuros, os animais se recolherão em suas tocas, as árvores
perderão suas folhas, as pessoas se recolherão para suas casas, a neve fria cobrirá a
terra... – um rancor ácido era lançado na direção de Neve pelos olhos de Heitor –
Uma época triste eu diria. E a última estação – Heitor virou-se sorridente para
Rosácea – será da encantadora Rosácea, a estação do renascimento, das belas flores,
os dias voltam a se alongar, a temperatura a aumentar e a vida renascer. Trará a
alegria que o mundo perdeu na última estação.
Érica levantou-se, incrédula. Como Heitor poderia fazer isto com Neve? Com
ela? Como pode colocá-lo na estação mais triste do ano? Ele prometera colocar a
sua criação na época mais feliz!
-Gostei.
Todos viraram a cabeça para a voz grave. Érica virou-se lentamente,
descrente em seus ouvidos. Mas fora Neve.
-Como assim gostei? – disse Érica – Você foi posto na estação mais perversa
que criamos! Como pode gostar?
Neve sorriu jovialmente para ela.
-Parece ser a época mais difícil de controlar. Um desafio. Gosto de desafios.
Não ficaria contente em uma época feliz, alegre e fácil. Não tem emoção nenhuma.
Minha vida não poderia ficar melhor...
Ele voltou sua atenção para algo que estava sob sua unha.
Neve, o que você está armando?
Ele levantou os olhos para ela e voltou a sorrir.
Não vou me deixar abalar por coisas tão hipócritas. O que eles querem fazer
é me deixar constrangido e triste. Se eu me mostrar contente, vou desmoralizá-los.
Vou acabar com o plano deles.
Érica voltou a se sentar, mas continuou a encará-lo.
Você não vai pegar uma estação boa...
Ele voltou a olhar para Heitor, como se esperasse mais explicações.
Mas vou pegar com o queixo erguido enquanto eles baixam a cabeça e
colocam o rabo entre as pernas.
Érica sorriu, satisfeita com a sagacidade dele.
Ah, meu belo rapaz... Gosto desta sua lógica rápida...
Ele sorriu de volta.
Ah, minha bela senhora... Gosto de você...
Érica enrubesceu.
-Ótimo! – disse Heitor. Ele parecia desconcertado. – Assim todos ficam
felizes, mas vocês não podem comandar o mundo daqui. Precisam criar reinos. – ele
parou para uma longa inspiração e passou os olhos por todos os presentes –
Precisam descer para o mundo dos homens.

Érica arrumou a gola do sobretudo de Neve pela terceira vez.


-Está confortável? Vai ficar quentinho só com estas roupas? Você é o rei da
estação mais fria, não seria melhor outro casaco?
Neve sorriu com jovialidade e afastou as mãos de Érica.
-Ficarei bem, minha senhora.
Érica assentiu, mas continuou a engomá-lo.
-Sabe o que fazer quando chegar lá não sabe?
-Sim. – suspirou Neve. Ele parecia cansado de responder as mesmas
perguntas repetidas vezes – Heitor falou isto três vezes: devemos criar um palácio,
um vilarejo, um exército e nomear nossa estação. Tudo isso em um prazo de mil
anos. – ele sorriu para si mesmo – E eu criarei a minha própria espada. Será que
você poderia me emprestar aquela tal de argentumn?
Érica consentiu enquanto tirava um fio solto da camisa.
-Grandes espadas têm nomes. – ela disse – Como chamará a sua?
-Eu não decidi. Acho que nomearei primeiro meu reino, depois minha espada
Érica concordou com a cabeça.
-É um pensamento lógico...
Neste momento, Heitor apareceu acompanhando por Vesúvio. Ele dirigiu-se
para todos os presentes.
-Espero que os nossos reis estejam prontos. Que eles reinem justamente e
sejam prósperos!
Todos aplaudiram. Érica sentiu uma lágrima se prender no canto de seu olho.
Neve virou-se para ela e abraçou sua cintura. Ela sentiu o calor voltar, mas
também o desespero. Olhando à sua volta, viu que os outros deuses os observavam.
Neve, não!
Ele baixou a cabeça e deixou um beijo carinhoso em sua bochecha.
-Sentirei sua falta, minha senhora. Foi muito boa para comigo até agora.
Nunca a esquecerei...
Todas as expressões tornaram-se de pura ternura e uma ou outra deusa, de
inveja. Érica abraçou os ombros de Neve e também beijou seu rosto.
-Também nunca o esquecerei, meu querido...
Os quatro reis foram instruídos a subir em um palanque. De lá, os outros três
acenavam alegremente, mas Neve apenas continuava a encarar Érica.
Sentirei sua falta, meu filho, meu amor.
Os quatro sumiram.

Capítulo Um
Treze montanhas para um rei
Estavam os quatro em uma clareira. O céu estava prateado e o vento, gelado.
As árvores à volta pareceram assustadoras demais com suas formas escuras e
retorcidas.
Neve sentia-se um perfeito idiota ali no meio do nada, sem saber o que fazer.
Vesúvio, com seu rosto de líder, parecia ainda mais patético com sua expressão de
incompreensão. Octávio, com sua face de galante, parecia ter sido dispensado por
uma garota feia. E Rosácea parecia uma gazela encurralada.
Se eu não tomar uma atitude, vamos ficar parados aqui até eles nos levarem
de volta.
Ele de repente se deu conta de que não se lembrava direito das coisas que
vira antes: não se lembrava de como era o lugar, as pessoas, a sua missão...
Recordava vagamente de uma linda mulher chamada Érica que o fizera sentir-se
quente e ousado. Recordava de estar com ela em um quarto e acabara beijando-a,
mas ela o repudiou, o que apenas deixou-o ainda mais excitado. Rememorava
também uma missão que fora entregue a ele: “crie um reino em mil anos e domine o
mundo”. Sabia que tinha que dividir este reinado com os outros três e que ele
governaria na época mais difícil.
-Muito bem. – disse, aproximando-se dos outros – Como vocês devem se
lembrar, nós temos que construir reinos. Por que não começamos escolhendo um
lugar para cada um de nós?
-SILÊNCIO! – gritou Vesúvio, avançando. Neve recuou. Mas o que é isso? –
Eu sou o líder! Eu que tomo as decisões!
-Quem disse que você é o líder? – disse Octávio, cruzando os braços.
-Lembro-me vagamente de meu criador dizendo isto... – ele adquiriu uma
expressão nostálgica, para logo em seguida remexer a cabeça e recomeçar a
discursar – Como vocês devem se lembrar, nós temos que construir reinos. Por que
não começamos escolhendo um lugar para cada um de nós?
Neve revirou os olhos. Estou rodeado de tapados!
-Acho a ideia incrível! – disse Rosácea – Eu gostaria de um lugar claro e bem
fresco para construir meu reino... – ela olhou para o horizonte coberto pela bruma. –
Em algum lugar naquela direção.
Neve encarou as costas de Rosácea. Por algum motivo, ela o intrigava. Sentia
um frenesi intenso dentro do corpo quando seus olhares se encontravam e tinha uma
vontade doentia de agarrá-la para... Bem, ele não sabia bem ao certo o que queria
fazer, mas pressentia que estava louco para realizá-lo.
-Ótimo! – disse Vesúvio, batendo palmas – Por que cada um não segue a sua
intuição e se dirige para o lugar que achar mais apropriado? Tenho certeza que
encontraremos o lugar certo. – ele tornou a adquirir um olhar nostálgico – Lembro
que temos mil anos para fazer isto. Por que não nos encontramos aqui mesmo depois
deste prazo?
Todos concordaram. Vesúvio virou as costas para os outros e seguiu
confiante pela floresta sem olhar para trás na direção norte. Octávio começou indo
pelo oeste, mas na última hora, decidiu virar um pouco para o sul.
Ficaram Neve e Rosácea. Ele sentia que ela o observava com ardor e isto fez
com que se sentisse ligeiramente desconfortável. Inspirou fundo e virou-se para ela:
-Pois bem, minha bela donzela... É aqui que nos separamos. – ele colocou em
seu rosto o sorriso mais sedutor que encontrou – Desejo-lhe... – esperou que a frase
tivesse um sentido malicioso. Quando as bochechas dela começaram a corar, ele
fingiu parecer ter se lembrado do resto da frase – Desejo-lhe sorte no caminho e
espero que encontre esse lugar especial que tanto quer. – ele aproximou-se e
entreabriu a boca, voluptuoso. Ela inspirou fundo, empinando os seios redondos e
firmes – Aguardarei ansioso para que estes mil anos passem logo e eu possa
reencontrá-la – ele pegou sua mão e inclinou-se sobre ela, mas não desviou o olhar
lascivo. Viu o quanto ela estava se “derretendo” – Afinal, sua beleza me encanta a
tal ponto que não consigo desviar os olhos dela... – ele depositou um beijo
apaixonante nas costas da mão, que ficou rígida e quente.
Ele colocou-se ereto com uma inspiração e sorriu bondosamente. Rosácea
tinha a respiração acelerada, mas não deixou de retribuir o sorriso.
-Desejo-lhe sorte também e que encontre um lugar maravilhoso. – ela
pigarreou e tentou encontrar palavras – Agradeço os elogios. O senhor é muito
nobre, e também muito bonito. – ela aproximou-se com uma coragem súbita e
inclinou-se sobre seu peito. Coma boca úmida e entreaberta, ele viu um convite para
um beijo – Estarei ansiosa por nos reencontrarmos, meu gentil cavaleiro.
Neve abraçou sua cintura e aproximou o rosto. Um cheiro delicado de rosas e
de sensualidade inundou seu nariz. Rosácea colocou-se nas pontas dos pés para
alcançar seu rosto, mas ainda assim não conseguiu. Ele inclinou-se mais, porém não
a beijou com o mesmo fervor com que beijara Érica. Deixou os lábios encostados na
boca tenra de Rosácea, aproveitando o gosto suave que vinha deles. Ela, por outro
lado, se remexia freneticamente em seus braços, como se pedisse mais.
Acalme-se, minha doce donzela. Ainda não está na hora...
Ele afastou-se delicadamente, não sem dar um suspiro relaxado. Gostava da
coisa, do beijo... Era gostoso ter alguém nos braços, sentir aquele calor subindo,
pressionar o rosto e o corpo da companheira contra o seu. Isto era bom...
Neve acariciou o rosto de Rosácea e sorriu.
-É melhor partirmos, minha singela dama... Temos apenas mil anos para
construir um reino que controle o mundo.

Não olhe para baixo. Sob hipótese nenhuma, olhe para baixo.
Neve não ousou parar a escala, porque, se parasse, sentir-se-ia tentado a olhar
o tanto que escalara e isto o faria perder o equilíbrio.
Vesúvio dissera para seguir a intuição e achar o lugar ideal. Neve fizera isso:
caminhou sem descansar por uma semana, somente parando para caçar alguma coisa
ou para dormir por algumas breves horas (lembrava-se de um dia caçar um bicho
peludo, gordo, com uma galhada sobre a cabeça e um focinho comprido que tinha
uma carne dura e borrachuda, mas a pele serviu como cobertor por vários dias até
começar a feder). Ele atravessara um longo mar clandestinamente em um barco de
pesca até ser descoberto e atirado em uma praia deserta de uma ilha. Por algum
motivo, aquilo até o agradou, pois sentia que estava no lugar certo. Andara pelo
lugar até chegar ao pé de uma montanha gelada. Estava tão exausto que decidiu
passar dois dias acampado ali quando algo extraordinário aconteceu.
Neve observava o fogo chiando sobre as toras de madeira. Fora incrivelmente
difícil encontrar lenha nesta região gelada, pois tudo parecia úmido demais para
fazer uma fogueira. Ele estava quase dormindo sentado quando ouviu o barulho de
algo se partindo. A princípio pensou se tratar de um dos galhos que se contorcia sob
as chamas, porém o barulho se repetiu e ele constatou se tratar de algo no meio das
árvores.
Sutilmente, ele pegou um longo galho fino e comprido que achara no
primeiro dia e que, usando uma pedra, lixara sua ponta em forma de lança. Ele
segurou o galho com firmeza e esperou. O barulho se repetiu e foi mais alto.
Um vulto mexeu-se por entre as árvores. Neve permaneceu imóvel,
encarando a sombra com o canto dos olhos. Movia-se rápido, os movimentos bem
calculados, como em um balé, aparecendo e desaparecendo.
Depois deste jogo de esconde-esconde, o vulto arriscou uma aproximação e
Neve teve um vislumbre de sua face. Um belo lince cinzento, com olhos azuis, um
focinho repuxado pelos rosnados silenciosos, as orelhas abaixadas, os pelos
eriçados, a mente raciocinando rápido.
O animal provavelmente pensava quais eram suas chances contra o oponente,
pois ficou por alguns segundos encarando Neve sob a luz da fogueira e depois
voltou para as sombras. Por um breve instante, Neve achou que ele tinha ido
embora, mas de repente tornou a ver a sombra se movendo novamente por entre as
árvores.
O que você quer?
O lince voltou a aparecer na luz, agora sem mostrar os dentes. Ambos se
encararam e Neve hesitou. Será que o lince o ouviu?
Pare de ficar me perseguindo. Venha para perto do fogo e diga o que quer.
O animal aproximou-se lentamente, desconfiado. Encarava a lança que Neve
tinha na mão.
Eu solto a arma, mas você tem que relaxar. Não estou gostando deste seu
pescoço curvado para frente.
O lince colocou-se ereto, exibindo todo o seu esplendor. Tinha um tórax
exuberante cheio de pelos brancos, patas fortes e um olhar sereno. Neve jogou a
lança para longe, fora de seu alcance.
Pronto, eu larguei. Agora venha até aqui.
O lince foi com a cabeça erguida. Ambos se encaravam nos olhos.
Assim que chegou perto da fogueira, o lince deitou-se e encostou a cabeça
nas patas. Neve o observou por um tempo, mas resolveu deixar o bicho ali. Deve
estar com frio... Ele decidiu que deveria dormir um pouco sobre o cobertor que
fedia. Neve levantou-se para apanhá-lo, mas sentiu de súbito uma tonteira que o fez
perder as forças da perna e cair.
O lince levantou a cabeça e começou a rosnar assustado. Neve ficou no chão
e começou a sentir que a cabeça queimava terrivelmente. Ela deve estar sobre as
brasas! Neve tentou se mexer para afastar-se do fogo, mas não conseguia mover
nenhum membro. Socorro! A voz não saia. O fogo começou a tomar conta de todo o
seu rosto e Neve quis abrir a boca para gritar de dor, mas conseguiu apenas gemer.
Ele suplicava com o olhar para o lince, mas este apenas o encarava sem se mover.
O calor foi descendo pelo pescoço, tórax, braços, abdômen, bacia, pernas,
pés. Cada parte do seu corpo queimava dolorosamente sem piedade. Neve já não
tinha forças para gritar. Acabou perdendo os sentidos.
Não deveria ter ficado inconsciente por mais de cinco minutos, porque,
quando acordou, o lince continuava na mesma posição à sua frente. Neve piscou e
constatou que a sensação horrível havia passado. Ele tentou se levantar.
A primeira impressão era que seu corpo havia sido achatado e ele estava
compactado dentro de algo minúsculo, por isto seus movimentos foram desajeitados
e estranhos. A segunda impressão era que seu corpo havia se deformado e ele não
conseguia mais se mover como antes. E a última (e mais assustadora) foi que ele já
não estava mais com seu corpo humano.
Neve ficou com a cabeça encostada no chão frio, respirando calmamente.
Não poderia entrar em pânico, caso contrário, somente pioraria sua situação. Deveria
pensar com cautela e decidir o que fazer.
Olhe... Disse uma voz estranha dentro de sua cabeça.
Neve novamente encarou o lince, que o farejava de longe. A voz que ecoara
em sua cabeça era diferente de todas as que já ouvira em sua curta vida: era algo
cantado, um longo lamento macio.
Olhar o que?
O lince parou de farejar o ar e aproximou-se.
Você.
Neve constatou que podia mover o pescoço com uma flexibilidade incrível e
levantou-o até poder enxergar o corpo. Mas, ao contrário do sobretudo de couro, o
que viu foi um casaco de pelos cinza com quatro patas e uma longa causa de pelos
escuros. Os ossos salientes subiam e desciam com a respiração e os músculos
estavam rígidos. Não havia o que argumentar: ele era um lince cinzento.
Ele voltou-se para o lince à sua frente.
Como isso aconteceu?
A cabeça do lince tombou.
Eu não sei. Você começou a se transformar de repente...
Neve voltou a se estudar. Agora notara seu focinho, um curto ponto escuro à
sua frente. Ele sugou o ar e uma lufada de cheiros penetrou seu nariz: o cheiro das
folhas, da terra, do fogo, da montanha, do frio... Puxando o ar com mais força, Neve
conseguiu sentir cheiros distantes, como a casa de um lenhador, um veado voltando
para sua toca, um rio que corria lentamente, uma coruja que defecava sobre uma
árvore. O mundo era muito diferente visto com o nariz.
Neve concentrou toda a sua atenção nas patas. Precisava colocar-se em pé.
Primeiro colocou-se deitado sobre as patas, deixando os músculos das costas bem
contraídos. Depois, com muita força de concentração, forçou as juntas das patas a se
esticarem e colocá-lo em pé.
No começo, não funcionou, porque não tinha força suficiente. Porém, após
várias tentativas, buscou deixar os esforços no que seriam os joelhos e nos cotovelos
e a se “jogar” para ter impulso. Assim, finalmente, Neve se levantava.
Ele esperou até suas patas estarem acostumadas a manter o peso do corpo
para tentar alguns passos. Não chegou a cair, mas sentiu-se como um bêbado,
andando de um lado para outro sem avançar muito. Conseguiu aproximar-se do
outro lince, que o fitava com... Surpresa?
O lince o farejava com ardor. Neve apenas concentrou-se em aprender seus
novos movimentos.
Precisa me ensinar. Disse Neve para o lince.
Ensinar o que?
A ser um lince.
Um lampejo de sorriso atravessou a face do lince.
Em poucas horas, Neve já corria mais rápido que o outro lince, cavava,
esgueirava-se, nadava, escalava. Ele chegou a caçar um coelho azarado que
resolvera sair de sua toca na hora errada. Matou o animal com uma única mordida.
Ele e o outro lince, depois do longo treino, sentaram-se em uma clareira e
observaram a lua alaranjada. A noite estava escura, mas seus olhos estavam agora
acostumados a pouca luz e ele podia enxergar a mesma coisa que via no crepúsculo
quando era homem.
Ela é bonita. Disse Neve, referindo-se à luz.
O outro lince não respondeu, apenas continuou olhando o céu. Após vários
minutos de silêncio, ele disse:
Preciso voltar.
Neve virou-se para ele.
Tem uma família?
O lince baixou a cabeça.
Não.
Ele se levantou e virou-se para Neve.
Muito interessante encontrar você. Espero vê-lo novamente um dia.
Neve consentiu com a cabeça e viu o outro lince partir, correndo, para o meio
das árvores e desaparecer. Sentiu seu cheiro por muito tempo, até ele começar a se
confundir com os aromas da floresta.
Uma criatura estranha. Apareceu do meio do nada e sumiu no mesmo
lugar...
Repentinamente, uma ideia lhe ocorreu: e se os Deuses tivessem mandado o
lince? Talvez, algum dos outros três reis tivesse tido contato com algum animal e se
transformado nele. E agora Neve tinha a habilidade de virar um lince. Era uma boa
teoria...
Mas como voltar a ser homem?
Ele farejou o ar e encontrou o lugar onde antes estava acampado. A fogueira
já se extinguira, mas suas coisas permaneciam ali, intocadas. Com seu novo nariz,
Neve viu que seu cobertor fedia mais do que o suportável, por isto decidiu jogá-lo
fora assim que resolvesse a sua situação.
Eu me transformei em lince depois que o vi. Teoricamente, eu tenho que
fazer o processo contrário. Mas onde vou achar um humano?
Ele sentou-se sobre o traseiro e põe-se a pensar. Um humano... Duas pernas,
dois braços, um tronco, uma cabeça oval. Como somos seres simples... De repente,
flagrou-se pensando em Rosácea e em seu corpo. No momento em que a vira pela
primeira vez, ficou fascinado. As memórias eram turvas, mas ele ainda podia
vislumbrar todas as suas formas, curvas e detalhes. Ah, ela era linda, uma mulher
incrível, com um corpo incrível. E o jeito como olhava para todos, como uma tigresa
perigosa... Isto ele admirava, esta ferocidade.
Oh, minha bela donzela... Você ainda será minha...
Saboreou a imagem de seu corpo nu colado ao dele. Ele sentiu um arrepio.
Ah, vai... Vai ser minha. Custe o que custar.
Ele sentiu uma fisgada nas costas e levantou-se em um pulo. O que foi isso?
De repente, seu corpo começou a formigar e Neve começou a rosnar para o nada. O
que está acontecendo? A sensação dominava até mesmo sua língua e ele começou a
se sentir desesperado.
Acalme-se Neve. Entrar em pânico não resolverá nada.
A sensação então foi passando e Neve foi ficando mais calmo. Ele deitou-se,
encostou a cabeça sobre as patas, respirando pesadamente. Quando a sensação
finalmente passou, Neve fechou os olhos. Viu? Acabou! Porém, ele tornou a abri-
los. Algo estava errado...
Neve sentiu que suas costas estavam doendo. Ele virou o rosto para seu
corpo, mas não via mais os pelos cinzentos: via um sobretudo de couro preto, pernas
encolhidas sobre um tronco e suas costas retorcidas naquela posição. Assustado, ele
colocou-se ereto e estudou as mãos: cinco dedos e uma palma. Voltara a ser homem.
Tão rápido!
Neve colocou-se em pé e analisou-se. Pés, canelas, joelhos, coxas, quadril,
abdômen, mãos, braços, cotovelos, antebraços, ombros. Estava tudo ali novamente.
Ele apalpou a cabeça e constatou que tudo voltara: a testa, os olhos, o nariz, a boca,
o cabelo, as orelhas. Neve remexeu nas roupas, impecáveis como antes. Ele
continuava do mesmo jeito que antes, como se toda a sua aventura na forma de lince
não passasse de um sonho.
Mas foi tão real...
Ainda podia sentir o vento no rosto, a terra sob seus pés, o sangue do coelho
na boca...
E novamente, a sensação de formigamento voltou. Espera, é isto! Enquanto a
sensação foi crescendo, Neve viu a luz. São as sensações! As lembranças! Elas me
fazem transformar! A primeira vez foi apenas pelo contato com o lobo, mas quando
voltara a ser homem, Neve pensava no corpo de uma mulher, uma humana. E sentira
uma sensação humana. E agora, sentira a sensação de um lince.
O formigamento desta vez passou mais rápido e pela segundo vez, Neve era
um lince.
Isto é fantástico!
Ele riu como uma criança.

A partir daquele momento, Neve começou a procurar um lugar para construir


seu reino na forma de lince. Com seu potente nariz e seus olhos, conseguia orientar-
se melhor. Sem contar que na forma de lince, Neve sentia-se invencível,
inalcançável e livre.
Ele corria ao pé da montanha por volta do meio-dia quando uma pedra caiu
quase atingindo sua cabeça. Neve parou e olhou para cima: bem no alto, uma bela
águia levantara vôo e agora voava em círculos ao redor de seu ninho. Subitamente,
Neve sentiu uma imensa vontade de agarrar a ave, não para comê-la, apenas pelo
prazer de estraçalhá-la.
Cuidadosamente, ele começou a saltar de pedra em pedra para subir até o
ninho. Ele farejou o aroma podre do ninho, de seus pequenos galhos cheios de fezes,
dos ovos recém-abertos...
Neve parou. Agora que estava à apenas dez metros de distância, podia ouvir
os pios fracos das aves recém-nascidas. O cheiro asqueroso das cascas quebradas
confundia-se com o odor fétido que o ninho exalava, por isto somente agora notava
o que havia acontecido. A águia está comemorando o nascimento de seus filhotes.
Ele pensou, sentindo uma alegria súbita. Como é belo o mundo... Pode imaginar as
avezinhas depenadas, abrindo suas asas retorcidas e olhando o grande mundo a ser
descoberto.
Sentiu-se arrependido de em determinado momento ter desejado mal à mãe
das beldades da natureza. Coitadas! Mal nasceram e quase perderam a mãe...
Sentiu-se mal consigo mesmo e resolveu voltar.
Entretanto, sua presença já havia sido detectada pela águia-mãe. Sentindo que
seus filhotes eram ameaçados, a águia soltou um guincho agudo e mergulhou sobre a
cabeça de Neve, cravando suas garras enormes em seu pescoço.
Neve berrou de dor e jogou-se no chão de barriga para cima para livrar-se da
ave. A águia, por outro lado, apenas soltou sua nuca e agora enfiava as presas em
sua barriga.
Merda de águia!
Ele abriu a bocarra e agarrou a pequena cabeça da águia. E, com uma única
mordida forte, estourou o crânio da ave como uma laranja. Miolos, penas e sangue
escorreram por seu pescoço peludo enquanto a águia se imobilizava. Neve sentiu
muita culpa por matar uma mãe, mas não tinha escolhas: poderia ser mortalmente
ferido.
Os filhotes continuaram a piar e Neve levantou a cabeça para encarar o
ninho. Sinto muito... Ele saltou as últimas pedras que faltavam e chegou ao lar das
aves.
O ninho era imenso, mas abrigava apenas três minúsculos passarinhos
amarronzados. Quando viram aquele lince gigantesco, as aves intensificaram seus
protestos pela mãe, soltando guinchos finos e longos, tão dolorosos que fizeram o
coração de Neve quebrar-se ao meio. Perdoem-me, criaturinhas... Não foi a minha
intenção... Ou foi? Neve suspirou em sua mente e pulou para dentro do ninho. As
avezinhas pularam para o canto mais afastados, gritando, mas Neve alcançou-as com
duas passadas. Sinto muito... Ele abriu a boca e agarrou o primeiro passarinho, que
bicava sua língua, porém ele mal sentia. Sinto muito mesmo...
Ele mastigou e engoliu a primeira águia e fez a mesma coisa com as outras
duas.

Neve ficou deitado dentro do ninho até o sol se pôr. Ele observava as cascas
dos ovos e as penas minúsculas ao seu redor. Tinha uma sensação horrível dentro do
peito.
Mas que droga! Eram apenas águias! Bichinhos insignificantes! Por que me
sinto tão culpado?
Mas não conseguia parar de imaginar aquelas aves crescendo, aprendendo a
voar, caçando, tornando-se belas águias rápidas e ferozes. Não queria ter feito
aquilo, porém como aquelas avezinhas iriam sobreviver sem a mãe? E fora ela quem
o atacou, ele já estava voltando.
De repente, ele lembrou-se de sua missão: construir um reino. Sentiu um
súbito desânimo, mas mesmo assim forçou-se a levantar-se. De cabeça baixa,
caminhou até a ponta e olhou para baixo.
Uma sensação de acrofobia tomou conta de sua cabeça quando ele via a
altura em que estava e ele sentiu-se muito tonto. Neve pulou para trás e deitou-se de
barriga para cima, buscando o ar desesperado. Seu estômago se remexia loucamente
e sua garganta se fechou.
Quando se sentiu um pouco mais forte, Neve colocou-se em pé. Estava com
as patas bambas, mas ainda assim ficou em pé. Voltou novamente para a borda, mas
desta vez mais lentamente e muito cauteloso. Ele chegou à murada e olhou para
baixo.
Devia estar a uns sessenta ou setenta metros do solo. As árvores pareciam
pequenos pontos verdes como ervilhas, o rio que passava ao norte parecia uma linha
de costura azul e viu um cervo correndo pela clareira ao pé da montanha parecendo
apenas um vulto marrom.
Como é que eu vou descer?
Se antes ele estava com pena das águias, agora estava com ódio delas. Por
que eu tinha que subir aqui? Ele deu um passinho a mais até ficar debruçado sobre a
beirada e procurou se havia alguma beirada na qual pudesse pular para começar a
descer, porém a mais próxima estava a dois metros abaixo. Como é que eu consegui
pular daquela saliência até aqui?
Neve voltou para o meio do ninho. Não posso descer, pensou. Ele olhou para
cima, para onde a montanha terminava. Então devo subir.
Ele não conseguia ver seu cume, por isto soube que estava muito alto. Não
tenho outra opção, tenho que subir. Ele procurou outra saliência no qual pular, mas
já era noite e estava muito escuro.
Subirei amanhã e em seu topo construirei o mais forte dos reinos.

Neve acordou com o primeiro raio de sol que surgiu. O céu estava em um
azul intenso, sem nuvens, e prometia ser um grande dia. Ele levantou-se e,
inspirando fundo, olhou para cima.
A montanha estendia-se por metros e mais metros, numa interminável parede.
Levarei o dia inteiro até chegar ao seu cume. Analisou todas as pedras, traçando o
caminho mais seguro até uma gruta que havia cem metros acima. Subo até lá e
descanso, depois continuo traçando o caminho.
Neve já estava em sua forma humana, alongando as pernas, os braços e a
mente para a escalada. Um passo em falso, uma mão no lugar errado, e eu morro.
Não era o pensamento mais animador do mundo, obviamente, mas ele precisava ser
realista.
Ele agarrou a primeira pedra e colocou o pé em um vão e se impulsionou
para cima. Começou a subir.

Os primeiros quinhentos metros foram fáceis. Neve achava com facilidade as


grutas onde descansava por dez minutos e as pedras no qual se segurava para a
escalada. Porém, quando começou a se aproximar dos picos mais pontudos, as
grutas começaram a ficar rarefeitas e as pedras de apoio começaram a se tornar
traiçoeiras (por três vezes, Neve segurou em pedras soltas e quase caiu, mas por
muita sorte, conseguia se segurar em alguma pedra mais resistente). Quando não
achava em um lugar para se segurar, ele tinha que chutar ou arrancar com as unhas
as rochas para abrir espaços, mas isto era muito arriscado e Neve quase sempre
perdia o equilíbrio em todas as vezes que tinha de abrir caminho. Em algumas
ocasiões, a curiosidade de Neve era grande e ele acabava olhando para baixo para
saber o quanto havia escalado, porém, ao ver o chão tão distante, sentia sue
estômago se contraindo e ele ficava por muito tempo parado até recuperar o ar para
voltar a subir com as pernas bambas.
Falta pouco. Não olhe para baixo. O pico está chegando. Não olhe para
baixo. Vou conseguir. Não olhe para baixo.
Neve agarrou a última pedra e içou-se para a última gruta. O sol já estava se
pondo e seu estômago já reclamava por comida. Sentia-se tonto, fraco e muito
cansado, mas ainda assim obrigou-se a escalar aquele último trecho. Seus braços
tremiam enquanto puxava todo o corpo para a caverna e ele cerrou os dentes para
ignorar a dor de todos os seus músculos. Tinha ido longe demais para deixar-se levar
pela exaustão e cair.
Assim que entrou na gruta, Neve deixou-se cair no chão com o rosto colado
na rocha aquecida pelo sol. Ficou ali, estirado, até o anoitecer, exausto e faminto,
respirando com dificuldade o ar parco da montanha.
Estou quase lá. Falta pouco. Apenas mais alguns metros e eu estarei lá.
Construirei o maior, mais poderoso, mais maravilhoso reino das quatro estações.
Serei invencível, temido, idolatrado. Serei o maior dos quatro reis. Serei o rei da
estação mais perigosa e todos os reis mortais irão curvar a cabeça perante o meu
poder. Serei rei da estação escura, fria, solitária... Quando todas as folhas caem, a
neve cobre tudo e animais e pessoas se recolhem para suas tocas para dormir,
hibernar... Serei rei deste sono, deste hibernu... Rei do Inverno...
E ele adormeceu.

O sol já estava a pino quando Neve reuniu forças para se levantar. Os


músculos de seus bíceps e tríceps queimavam dolorosamente, enquanto ele mal
sentia suas coxas e panturrilhas. As solas de seus pés e as palmas de suas mãos
estavam cheias de bolhas, o que seria um problema para subir naquele momento. E
para piorar, seu estômago estava dobrando-se em dois por comida, causando uma
tontura insuportável e demoníaca.
Não desista agora... Falta tão pouco.
Neve colocou as mãos sobre as rochas e impulsionou-se para cima. Neste
momento, três bolhas da sua mão direita estouraram e a pele abriu-se. A ardência foi
intolerável, mas ele não parou a escalada.
Conforme subia, mais bolhas iam explodindo nas mãos e nos pés, causando
extraordinário ardor, contudo em nenhum momento ele desistiu, independente de
tudo o que sentia.
Aqueles últimos duzentos metros foram a primeira vitória que Neve
conquistaria. Debaixo da fome, da sede, do ar escasso, das dores musculares, das
bolhas estouradas, da tontura, da acrofobia, do sol escaldante, Neve escalou uma
montanha sem segurança alguma, apenas com mãos, pés e força de vontade. E assim
que agarrou a última saliência e alcançou o cume, Neve por um momento esqueceu-
se de tudo.
Ele equilibrou-se sobre as pedras pontudas e olhou a sua volta, certo de que
valera a pena quase morrer. A vista era simplesmente inestimável.
Neve escalara uma montanha, mas ela não estava sozinha: havia uma
cordilheira a sua volta, formada por outras doze montanhas. Elas estavam dispostas
em uma formação pomposa: doze montanhas de inacreditável mesmo tamanho e
forma alinhadas em duas arestas de seis ao lado uma décima terceira, maior e mais
imponente de todas, formando um triângulo. Apesar da cor acinzentada, elas
resplandeciam com o sol, formando belos arco-íris em suas rochas sem tonalidade.
Do alto da montanha, Neve tinha a impressão de poder ver o mundo inteiro: o
pequeno rio que vira antes desaguava no mar de onde ele viera; a floresta onde
ficara estendia-se como um grande tapete verde estendido; o sol se punha no mar,
como uma pedra vermelha afundando em um aquário lentamente. Acima de tudo
isso, um céu colorido nos tons de laranja, rosa, lilás e azul, tornando-se, bem no alto,
negro cheio de estrelas e uma lua cheia. Aqueles últimos raios de sol iluminavam a
cordilheira, deixando-a com toda a sua magnitude e perfeição. Os Deuses
construíram este lugar suntuoso por algum motivo, pensou Neve, colocando as
mãos na cintura. Eis o motivo: meu ESCOLHER DEPOIS.
O barulho de seu estômago com fome desviou sua atenção. Preciso de
comida... Neve olhou à sua volta, mas apenas encontrou pedras, gelo e altura. A
comida está lá embaixo, mas eu não conseguirei mais descer, a menos que pule.
Neve visualizou rapidamente a distância em que se encontrava do chão, mas
encolheu-se quando mal conseguiu distinguir as árvores umas das outras. Deveria
ter me prevenido e pego algo antes de subir. Lembrou-se das águias. Malditas
sejam!
Ele olhou para cima e viu as nuvens deslizando no céu como cisnes em um
lago. Bem, se não posso descer, tenho que continuar subindo...

Érica mantinha-se equilibrada sobre uma rocha como se fizesse parte da


montanha e observava enquanto Neve chupava um osso e sorvia vinho sentado no
chão aos seus pés.
-Irresponsabilidade, é como isto se chama. Escalou uma montanha apenas
com os dedos e sem trazer provisões. Poderia ter morrido!
Neve jogou o osso no precipício e chupou os dedos.
-Mas não morri. – e sorriu maliciosamente para a deusa – A minha senhora
não deixaria. – ele passou a mão para debaixo de sua saia e acariciou sua perna. –
Não é verdade?
Érica retirou a perna e pisou em sua mão. Neve a retirou e agarrou-a com
força, formando uma careta de dor e gemendo. Érica permaneceu impassível.
-Não se atreva ou você voltará a ser uma estátua.
Neve sorriu.
-Como a minha senhora desejar.
Érica virou o rosto para outra direção, analisando o lugar. Neve viu o quanto
ela reprovava o local que escolhera.
-Não havia um lugar mais baixo?
-Não. – ele respondeu, levantando-se – Quero uma fortaleza impenetrável e
para isto preciso de um local onde ninguém me alcançará.
Érica sorriu, irônica.
-Dragões o alcançariam.
Neve não respondeu. Ainda faltavam alguns ajustes aqui e ali na sua maquete
do reino e um destes ajustes era sobre ataque de criaturas voadoras. Malditos bichos
com asas! Por que não poderiam ser simples galinhas, todos eles?
-O que você quer exatamente que eu faça?
Neve estendeu o braço e o passou pelo ar como uma faca, mirando o topo das
montanhas.
-Quero que corte os picos e deixe-as planas para começar a construir meu
reino sobre elas. Quero todas exatamente do mesmo tamanho. – depois pensou
melhor – Menos a do meio. Nela, construirei meu palácio. – e estalou os dedos ao se
lembrar – Ah sim! E quero uma fonte aqui em cima, uma cachoeira que nasce daqui.
Meu povo precisará de água. – ele virou-se para ela – Uma fonte em cada montanha,
que escorre nos túneis em seu interior. Fontes quentes que formam belas piscinas
naturais dentro da montanha. – ele voltou a analisar a cordilheira – Quero que
construa estradas nas paredes. – ele estremeceu – Não quero ficar escalando esta
porcaria o tempo inteiro. E claro, muitas galerias dentro da cordilheira. – ele virou-
se sorrindo – Mas não se esqueça de me passar o mapa. E por último – ele inspirou
fundo – Quero livros que falem tudo o que tenho que saber sobre reinos. Muito e
muitos livros.
Érica assentiu.
-Mais alguma coisa?
Neve ainda avaliava sua morada.
-Sim. Quero aquele seu argentumn. Muito argentumn...

Érica explicou como funcionava o argentumn. Ele era uma espécie de


gordura azul-piscina, mole como larvas e oleosa como rãs. Não era uma argila,
como ela explicara, mas tinha os mesmo princípios: moldar. E também não era algo
humano, era celestial, por isto funcionava na base da magia.
-A primeira coisa que deve saber sobre o argentumn é que ele tem
sentimentos. Por isto, se ficar irritado com sua obra, nunca culpe o argentumn, ou
ele parará de funcionar.
Neve levantou uma sobrancelha.
-Sei...
Érica riu.
-Entendo que neste primeiro momento você pense que isto é inconcebível,
mas vai entender depois de te explicar. – ela colocou a mão no bolso e de lá tirou o
produto. Ele tinha o tamanho da palma de sua mão. – Aqui está tudo o que você vai
precisar.
Neve analisou de longe aquela... “Meleca”.
-Minha senhora, eu não sei se você me entendeu da última vez que nos
falamos, mas eu disse que pretendia construir meu reino inteiro com o argentumn. –
ele apontou para a “coisa” azul – Com isto, não construo nem o primeiro tijolo.
Érica sorriu como se guardasse um lindo segredo.
-Não tenha pressa, meu filho. Você ainda não sabe como manejar o
argentumn.
Ela pegou a substância com as duas mãos e começou a puxá-lo, mas, ao invés
de se partir ao meio, a substância começou a se alongar, mais e mais, conforme
Érica puxava. A deusa puxou o argentumn até a largura de seus braços e em nenhum
momento ele se partiu, apenas alongou-se.
Érica soltou uma ponta da substância e a balançou no ar.
-O argentumn é divino porque ele não quebra, se multiplica. – ela encarou
Neve nos olhos, mas não via nenhuma reação da parte dele. – É assim que construirá
seu reino apenas com um pedacinho. Multiplicando-o.
Neve pegou a substância e a mexeu no ar como a deusa havia feito. Parecia
uma cobra morta e asquerosa. Faça um teste, disse para si mesmo. Ele puxou as
pontas do argentumn para alargá-lo e, quando este último ficou mais comprido,
sentiu seus dedos formigarem. Deveria ter deixado isto transparecer (ou Érica
simplesmente também sentia), pois ela disse que era normal sentir os dedos
coçarem.
-Há um livro ai. – ela apontou para uma das setenta e quatro pilhas de livros
que estava no chão – Que te ensinará vários modos de alongar o argentumn mais
rápido e várias dicas de como modelar as mais diversas criaturas.
Neve observou as pilhas: setenta e quatro de cento e cinqüenta livros cada
uma. Levaria muito tempo para ler todos. Não tenho pressa, disse para si mesmo,
tenho mil anos para acabar tudo. Ele virou-se para ela com uma grande incerteza
(mas não deixou que ela visse).
-Pensa que conseguirei terminar tudo a tempo?
-Se começar agora, sim. E agora – Érica aproximou-se e deu-lhe um beijo no
rosto – já que não precisa mais de mim, partirei. – Érica sumiu no ar.
Como a bela deusa que ela é... Irreal.

Neve encarava a pilha de livro, com o argentumn pequeno novamente entre


seus dedos. Depois fitava as montanhas: Érica já havia cortado seus cumes (como,
ele não fazia ideia. Uma hora, estava tentando se equilibrar sobre as rochas
traiçoeiras e, depois de piscar, viu que já estava sobre uma planície de pedra)
diminuindo seu tamanho em oitenta metros, mas ainda assim as montanhas ficavam
muito longe uma das outras. A estrada que ela construíra era bem larga, suficiente
para três carroças passarem uma ao lado da outra sem problemas, mas ela era
extensa e ele viu que demoraria muito tempo subindo e descendo pela cordilheira
para alcançar um topo. Era muita perca de tempo. Neve precisava de asas e não
patas de lince.
Foi quando ele se lembrou do argentumn na sua mão. Claro, posso construir
qualquer coisa! Ele mexeu na pilha que Érica havia dito e encontrou o volume que
explicava sobre a substância.
Era um livro velho, com capa verde-musgo desbotada. O nome
ARGENTUMN estava em letras garrafais e na cor dourado, mas as letras “e”, “t” e
“m” já haviam sumido e a letra “g” era a próxima. As páginas estavam gastas, sujas,
amareladas, fedidas e quebradiças, mas Neve abriu o livro na primeira página
mesmo assim. Um “Introdução” iniciava a página um.
Bem-vindo ao guia de como usar o argentumn. A primeira coisa que deve
entender...

-Multiplicar-te. – disse Neve, e o argentumn começou a tremer em sua mão.


Bolhas estouraram de sua superfície, fazendo Neve pensar se ele não estava fazendo
algo de errado, mas depois uma lasca do argentumn pulou dele e caiu no chão. O
que estava em sua mão acalmou-se, mas o que caiu continuou a tremer e a aumentar
do tamanho. Depois de algum tempo, havia dois pedaços idênticos de argentumn
consigo.
Neve pegou o que estava no chão e guardou-o no bolso do sobretudo. Com o
outro, ele sentou-se no chão e começou a puxar, puxar, puxar... Até o argentumn
ficar comprido e largo. Depois, com as estacas de madeira que havia pego (levou
muito tempo para descer, achar a casa do lenhador que farejara, roubar o machado,
cortar as árvores e modelar as estacas), encaixou a “argila” sobre elas, mantendo-a
em pé.
Muito bem, relaxe. Ele fechou os olhos e jogou a cabeça de um lado para
outro, alongando o pescoço. Tome cuidado para não fazer besteira. Se você errar...
Ele não terminou a frase, apenas limpou a mente e começou a trabalhar.
Começou pela cabeça: um comprido triângulo de quase cinqüenta
centímetros com as pontas de formas arredondas. Fez a curva da testa bem quadrada,
os olhos redondos e arregalados, os maxilares poderosos e curvos, a boca longa com
lábios firmes, as narinas dilatadas e assustadoras e a longa curva destas últimas até
voltar à testa. Não queria um rosto descarnado, mas ainda assim deixou à mostra os
contornos de um crânio.
Depois puxou o argentumn até formar longas orelhas compridas e eretas.
Abaixo delas, moldou o pescoço, um cano longo e cheio de músculos que se
alargava até chegar ao dorso. Por cima da nuca, puxou longamente os cabelos até
terem o tamanho de sua mão e, quando os terminou, emaranhou-os para tornar sua
aparência mais... Livre e selvagem.
Desceu para o tórax, desenhando-o bem forte e redondo, como um barril. Ou
um aríete para barrar os adversários. Passou para o resto do corpo: as costas na
forma de “S”, assim como do peito para o abdômen. Na lateral, se olhasse
profundamente, poderia enxergar suas costelas até terminarem na barriga fina. Ao
final desta última, o longo membro encolhido. O traseiro era redondo e alto,
empinado como o de uma senhora. Saindo do seu meio, um rabinho bem curto e
minguado, mas, após puxar os pelos, tornou-se uma longa cauda exuberante.
E por fim as pernas. Lindas, fortes, rápidas, incansáveis... Eram longas e
cheias de músculos, tão esbeltas quanto de donzelas, mas tão vigorosas quando de
guerreiros. Tomou extremo cuidado nos joelhos, tornozelos e todas as outras juntas e
extremidades, pois elas eram essenciais.
Neve afastou-se, suado e cansado, mas orgulhoso. Alcançara seu objetivo e
com muito louvor.
Agora, o sopro.
Neve aproximou-se da cabeça e a pegara nas mãos. Deixe toda a sua energia
fluir, toda a sua força, todo o seu espírito, toda a sua vida... Dizia o livro. Parecia
ser algo inalcançável, mas Neve precisou apenas fechar os olhos para sentir-se leve
com tudo o que havia dentro de si fluindo como o vento fraco no céu. Depois de
alcançado este estado de torpor, deixe que tudo corra pelos seus pulmões e libere o
ar. A vida que há dentro de você passará para o seu ser. Mas tome cuidado para
que você seja a primeira coisa que ele veja.
Sua boca formou um bico e por ele saiu o ar. Neve pode sentir que ele era
diferente, mais consistente, mais energético. Os fios sobre os olhos de sua obra
tremularam leves como seda e sua criação piscou vigorosamente. Neve puxou o
rosto da criação mais para perto do seu e encarou-a profundamente.
Seu cavalo finalmente criava vida.

O cavalo era inteiramente negro. Até dentro das orelhas, dentro das narinas,
sobre os lábios, os olhos, os pelos, os cascos... Tudo de um negrume assustador. Mas
quando o cavalo começou a galopar à sua volta, Neve viu o quanto era brilhante. Os
pelos por todo o seu corpo adquiriam, quando estavam contra a luz, a cor cinza-
prateado, mais bela do que todas as cores do arco-íris juntas. Neve passou a mão
contra aquele brilho e sentiu a leveza, a maciez e o calor de seu cavalo. Este último
cavalgava ao seu redor e por toda a extensão da montanha em um trote contínuo e,
ora ou outra, relinchava e empinava-se sobre as patas traseiras. Era uma visão
estonteante.
Às vezes, o cavalo aproximava-se e passava a comprida cabeça no tórax de
Neve. Este respondia coçando atrás de suas orelhas eretas e o cavalo retrucava
soltando um bufar mais semelhante a um suspiro. Neve percebia nestes momentos
que o cavalo o amava e sentia-se muito feliz com isto. Ele faria qualquer coisa por
mim pelo simples fato de eu tê-lo criado. Neve lembrava-se de Érica e sentia que a
amava também, mas não tanto quando ela o amava. Talvez Érica tenha razão: eu
sou frio... Mas logo esquecia esta tristeza e sorria ao ver o cavalo em seu trote
informal e sossegado.
Precioso nomeá-lo. Pensou enquanto o cavalo fazia uma curva fechada e
depois se empinava. Somente naquele momento Neve percebeu que o cavalo não
parara nem um segundo, sempre saltando e correndo e mexendo-se. Ser-me-á muito
útil para subir e descer estas intermináveis montanhas.
Notou também que o cavalo corria tão suavemente que ele mal podia ouvir
seus cascos batendo nas pedras. Como um sussurro... Ele era gracioso, mas os
movimentos contínuos de seu pescoço e o peito empinado tornavam-no um ser
perigoso e incontrolável. Os pelos negros do cavalo eram envolventes e luminosos,
mas assemelhavam-se às trevas profundas e obscuras. Ele era irresistível e
pecaminoso, delicado e devastador, lindo e perigoso... Não produzia sons, indo de
um lado para outro em um silêncio medonho. Correndo de orelha a orelha. Como um
mistério que podemos sentir ao nosso redor, mas não podemos ouvir ou ver ou
solucionar... Um mistério negro e lindo, mas terrível e rápido e liquidante... Um
mistério que passa por todos, mas ninguém consegue solucioná-lo...
-Segredo! – Neve gritou e o cavalo parou. Este o encarou por instantes e logo
em seguida aproximou-se a galope. Neve passou a mão por suas orelhas, sorrindo. –
Segredo... Este é o seu nome...

Com uma mão, Neve segurava a crina de Segredo e com a outra, o mapa das
galerias dentro das montanhas.
Érica, minha senhora, você é muito eficiente.
Neve conseguira contar cento e trinta e sete túneis, setenta e quatro grutas e
oito passagens secretas que saiam para a floresta dentro de uma montanha. Todos os
túneis eram longas linhas que se cruzavam e Neve precisou fazer tintas coloridas
para marcar todos eles (havia um livro nos montes que indicava como fazer tintas
das mais diversas cores. Claro que ele não conseguiu alcançar mais de cem tons
diferentes, mas procurou repetir as cores nos tuneis que não se cruzavam). As oito
passagens secretas estavam nas oito extremidades da montanha e seriam usadas
somente em emergências – ou quando Neve quisesse sair de fininho para visitar
alguém. Uma rosa talvez... – Por fim, bem ao centro da montanha havia a maior
gruta de todas, tão alta, larga e majestosa quanto à própria montanha. Todos os
túneis, em determinado momento, passavam por ela.
Era para lá que se dirigia.
Segredo fez uma curva fechada na estrada com uma velocidade incrível, mas
em nenhum momento quase perdeu o equilíbrio. Ele corria com muita precisão,
como se já conhecesse o caminho a ser percorrido há muito tempo, mantendo a
mesma velocidade o tempo inteiro. Ás vezes, quando a estrada tornava-se mais
estreita e Segredo aproximava-se muito da beirada, um frio tomava contada da
barriga de Neve e ele temia que o cavalo tropeçasse e caísse montanha abaixo,
porém Segredo continuava inalterado seu caminho.
Como Neve já dissera antes, Érica era muito eficiente: as estradas que
construíra para descer das montanhas eram engenhosamente lindas e eficientes.
Eram longos túneis que passavam na extremidade das rochas com as paredes laterais
voltadas para fora abertas. Os tetos das estradas tinham quase quatro metros de
altura e desciam até o chão em um longo arco redondo. Em determinados trechos, as
estradas entravam nas montanhas para descer alguns metros e faziam longas curvas
dentro destas últimas, porém elas eram iluminadas por alguma coisa dentro das
rochas que provocava um brilho fantasmagórico azul, como se suas paredes fossem
uma contínua lâmpada de neon. Quando passavam dentro da rocha, era possível ver
a gruta maior.
Neve puxou a crina de Segredo quando pela nonagésima vez entraram na
montanha. O cavalo relinchou, protestando ao puxão, e foi parando aos poucos com
um trote suave. Antes mesmo que o cavalo ficasse imóvel, Neve saltou de seu dorso
e andou até a beirada da estrada, encarando a gigantesca e fabulosa gruta gigante.
A caverna deveria ter nada mesmo do que sessenta metros de diâmetro e cem
de altura (não chegava nem perto de todo o esplendor e altura da própria montanha,
mas ainda assim era pasmosamente grande). Ela subia em forma de cone e em sua
ponta, uma enorme pedra azul brilhava intensamente, iluminando-a.
Neve abriu o mapa e leu o nome da pedra: lápis-lazúli. Abaixo, entre
parênteses, a perfeita letra de Érica dizia “é cor de seus olhos”. Por instinto, Neve
tocou uma pálpebra, tentando recordar como era sua aparência, mas a imagem que
formava em sua mente era sempre de uma linda donzela de cabelos castanhos cheios
de ondas e uma boca com gosto de cereja.
Ele enrolou o mapa e soltou um longo suspiro.
-Bem, Segredo, vamos começar a construir o ESCOLHER DEPOIS.
Neve disse aquilo apenas para ter uma frase de efeito. Enquanto ele tirava o
sobretudo e preparava-se para o trabalho árduo que teria, Segredo desceu o resto da
montanha e começou a pastar por ali.
Ele novamente pegou seu argentumn e começou a puxar. Vou levar dias até
terminar tudo isto... Puxou e puxou, e continuou puxando por horas a fio, até que o
argentumn ocupasse tudo ao seu redor.
Ele se enrolou um pouco no começo para se organizar, mas logo começou a
apertar a argila para ela subir. Quando já não conseguia mais alcançar, fez uma
escada, subiu e continuou a puxar o argentumn. Fez e refez o processo dezenas de
vezes, até que o topo do argentumn estivesse a menos de vinte metros do lápis-
lazúli. Depois desceu e começou a modelar.
Vou levar o resto da minha vida.

Fora mais difícil do que pensara. A escultura era grande demais e ele
precisou de um semestre para terminá-la. Mas o resultado final foi compensador.
Um lobo, pensou Neve sorrindo, enquanto observava a enorme estátua azul.
O animal estava sentado sobre as enormes patas traseiras e mantinha
estendidas perante o corpo as dianteiras. Tinha o peito peludo empinado e o queixo
erguido como um impertinente. Os olhos eram bem serenos, mas as presas que
estava aparecendo levemente sob os lábios não tinham nada de serenas, mas eram
sinistras. O nariz triangular parecia farejar a montanha sem mover as narinas, as
orelhas com capacidade de captar qualquer som estranho estavam bem eretas e
atentas, o pescoço parecia rígido, enquanto as costas pareciam relaxadas. Já a causa,
como um fino estandarte, pendia de seu traseiro confortavelmente, enrolada em
volta das pernas. Naquela posição, o lobo de quase oitenta metros parecia a estátua
divina de um Deus místico.
Neve pegou o grosso volume do livro ARGENTUMN e abriu-o.
“Capítulo 435: A proteção de pedra. Se você quer algo, alguém ou alguma
coisa para estar sempre zelando seu sono, deve criar os Vip: Vigilantes de Pedra. Ao
contrário das outras criações, os Vip não podem viver, por isso passam a maior parte
da vida congelados, o que os permite gerar e guardar muita energia. Os Vip são
ligados ao seu criador pelos sentidos deste último, ou seja, os Vips vêem, ouvem,
sentem e tocam tudo o que o seu criador toca.” (esta última parte não agradou em
nada Neve) “Quando o criador corre perigo, os Vip acordam e lutam para protegê-
lo. Eles também podem acordar sendo convocados – caso o criador precise de
auxilio – ou quando precisam gastar as energias acumuladas (vá para o capítulo 873
para mais informações). Os Vip são criaturas desprovidas de vontade própria, mente
ou sentimentos e ‘vivem’ apenas pelo seu criador. Se este último morrer, os Vip
permanecerão congelados por toda a eternidade.”
Neve partiu para o capítulo 873.
“Capítulo 873: A energia e o poder dos Vip. Os Vip são criaturas protetoras
que existem apenas por seus donos. Eles não vivem, permanecem congelados e só
saem deste estado quando é necessário. Eles são famosos por sua força e velocidade,
porém ATENÇÃO: os Vip não podem permanecer descongelados por muito tempo,
graças à sua energia, que lhes dá a força e agilidade. Esta energia é gerada a partir
do longo repouso dos Vip, conseqüentemente eles não tem necessidades básicas.
Entretanto, assim que o Vip acorda, esta energia vai se consumindo até chegar ao
momento em que ele não a tem mais. Assim que não a tiver, o Vip congela na exata
posição em que estiver, mesmo que seja no meio do calor da batalha, e somente
acorda depois que tiver recuperado o suficiente para permanecer em pé (caso seja
necessário). Para dar vida a um Vip, volte para o capítulo 23 e veja em tópicos.”
Neve folheou, voltando as páginas. “Capítulo 23: O sopro da vida”. Neve
desceu toda a extensão da folha, ignorante os passos básicos. Depois chegou até
“Tópicos”. Havia como dar vida a todos os seres possíveis de serem criados, desde
móveis até pessoas. Quando chegou ao Vip, viu que ele estava escrito em vermelho.
“Vips: consomem muita energia. Quanto mais forte é o Vip, mais força será
consumida do criador. Às vezes, se o criador não tem muito experiência e não sabe
como controlar suas descargas de energia, pode perder a vida. Portanto, cuidado
antes de criar seu primeiro Vip.”
O texto continuava, mas Neve parou para pensar um pouco, observando seu
enorme lobo. Perder a vida... O lobo tinha como objetivo ser forte e rápido o
suficiente para parar um exército ou até mesmo um dragão, mas Neve não tinha
certeza se conseguiria dar vida a ele sem perder a sua.
Arriscado. Neve fechou o livro e levantou-se. Preciso de mais prática.
Construirei a cidade antes de dar vida a ele. Ele deu as costas para o lobo e
assobiou alto e longamente. Ao longe, ouviu u relincho doce em resposta e, logo em
seguida, Segredo apareceu, galopando em sua direção. Mas tenho que criar os
outros animais, um para cada montanha. Deixá-los prontos para quando eu estiver
pronto.

Quando Neve finalmente saiu da última montanha, exaurido dos esforços,


quarenta anos haviam se passado. Conforme os anos iam se arrastando, Neve
começou a se preocupar consigo mesmo. Terei a mesma força de quando era recém-
criado? Ele criou um espelho e observava-se nele a cada animal que terminava.
Continuo a mesma coisa. Nem um fio branco, nem uma ruga, nem uma pele flácida
e caída. Continuo o mesmo homem forte. Pensava com orgulho, enquanto observava
o próprio corpo. Depois de alguns anos, constatou que ele realmente não
envelheceria. Isto é um pouco óbvio. Concluiu outro dia. Se eu fosse envelhecer, por
que me dariam mil anos para erguer meu reino? Se tivesse mil anos, não
conseguiria nem erguer meu traseiro!
Ele sentou-se no topo da montanha que subira pela primeira vez muitos
anos antes e acendeu uma fogueira. Sobre ela, girou um coelho que ele mesmo
caçara com os dentes. O cheiro era uma dádiva depois daqueles anos em que caçava
e comia a refeição crua para não perder muito tempo. Segredo estava deitado ao seu
lado, olhando o vazio. Está dormindo...
Cada montanha tinha seu próprio animal: a primeira era um lobo, a segunda
era um urso-polar, depois uma raposa, uma coruja-das-neves, um alce, um tigre-
branco, um babuíno, uma lontra, uma águia, um cisne, uma lebre e por fim um
guaxinim. Já a montanha do centro era ocupada por um grande lince, maior até
mesmo que o urso polar. Neve pretendia, inicialmente, nomear as montanhas, porém
agora as conhecia por cada animal que a ocupada.
Neve inspirou o ar escasso do alto da montanha, sentindo-se leve como uma
pena. Meu reino está protegido, antes mesmo de existir, ele está protegido. Ele
analisou as treze montanhas. Agora só tenho novecentos e sessenta anos para
construir todo o resto.

Capítulo Dois
Presentes para um reino de gelo
Conforme o tempo ia passando, Neve adquiriu um hábito que o deixaria
famoso mais tarde: ele não dormia. Quando os Reis das Estações já eram
conhecidos, Neve seria lembrado como Rei Desperto, por vigiar seus domínios à
noite (tinha outros nomes, mas aparecerão em outros momentos). Conforme
construía os edifícios e o tempo passava rápido, Neve começou a achar que certas
atividades eram dispensáveis como dormir, comer e “aliviar-se”. Comer mostrou-se
essencial, pois Neve ficava tonto e com fortes dores de cabeça quando pulava
refeições ou quando diminuía a quantidade do que comia, começou a ficar fraco e
sem resistência alguma; “aliviar-se” também era indispensável, porque, depois de
certo tempo se segurando, Neve também começou a ter calafrios, suava muito e
sentia um constante mal-estar que não o permitia ficar em pé muito tempo. Por outro
lado, Neve dormia cada vez mesmo entre os dias conforme o tempo passava e,
depois de alguns anos, começou a ficar dois dias seguidos sem dormir, depois três,
depois quatro... Até chegar o momento que ficava uma semana totalmente desperto.
E por poupar seu tempo de cochiladas, ainda faltavam três anos para o fim do
prazo quando finalmente o ESCOLHER DEPOIS ficou pronto.
O reino era estrategicamente distribuído, para tornar-se quase impenetrável.
As doze montanhas externas possuíam três muralhas de gelo e rocha branca: a
primeira, de quinze metros de altura e um de largura, rodeava a cadeia inteira a trinta
metros de distância dela; a segunda, de vinte metros de altura e três de largura,
rodeava cada montanha individualmente a vinte metros de distância; e a última,
passava por cima das montanhas em suas extremidades, ligando-as umas as outras
pelas pontes de gelo e vidro. Esta última muralha possuía trinta metros de altura e
cinco de largura. Os portões das muralhas eram feitos com aço, gelo, madeira e ferro
fundido.
Sobre as três montanhas da frente (as montanhas de Sigma, Épsilon e
Upsilon), ficavam todas as áreas voltadas para comércio e... “Turismo”. Desde
barraquinhas para vender peixes até hotéis para hospedar mercadores ricos, as três
montanhas eram uma mistura de cores, utilidades e poderes financeiros. A montanha
de Sigma tinha as lojas e hotéis mais bem apessoados e modestos das três, como
simples hospedarias, estábulos para vender animais e lojas coloridas com alimentos
comuns. Sobre a montanha de Épsilon, estava a parte mais nobre e rica, com lojas de
alimentos caríssimo, hotéis para mercadores ricos, joalherias e tecelagens. Já a
montanha de Upsilon, estava a parte mais suja e pobre – e com certeza a mais
procurada, com seus bordeis e cabarés, mercados negros, tavernas escuras e edifícios
que pareciam abandonas onde mercenários assassinos seriam contratados às
escondidas (Neve pensou muito antes de construir esta parte em especial. Sabia que
todo reino teria seus podres, então ele preferiria deixá-los em um local que ele
conhecesse e não espalhados pela cidade inteira). Todas as construções eram
reforçadas contra o frio: primeiro, a parte de fora era feita de pedras polidas cinza-
chumbo com cristais de gelo mais por uma questão de estética – muito bem
escolhida, diga-se de passagem – do que de proteção, pois dava uma aparência
rústica aos edifícios; depois, Neve canalizara as águas quentes da montanha para
passarem atrás destas pedras e aquecerem-na; depois destas fontes, outra camada de
pedras mais fina, porém com rochas mais firmes; depois vinha toda a parte de
madeira de carvalho, já que era um isolante térmico; e por fim, três camadas de pele
de alce esfoladas, lixadas e besuntadas. Quando Neve entrou em uma das casas,
precisou tirar o sobretudo graças ao ar abafado. Todos os edifícios tinham lareiras,
pouquíssimas janelas – apenas o essencial para entrar luz, porém com vitrais
reforçados e grandes – e seus telhados eram caídos para que a neve escorresse e não
os afundasse. As ruas eram bem largas, todas de terra batida com muitas pedras
salgadas para derreter a neve. As calçadas possuíam largas árvores brancas sem
folhas com seus galhos cruzando-se sobre as ruas e formando lindos arcos de
madeira com mais de cinco metros de altura. Sobre estes arcos, Neve pendurou
lampiões redondos e gordos que jamais se apagavam (agradecimentos ao
argentumn) e emitiam uma luz branca para iluminar eternamente as ruas. Estas
regiões foram projetadas para receber milhares de pessoas.
A montanha de Lambda possuía uma das partes na qual Neve mais se
empenhara: o quartel. Em primeiro lugar, Neve escolheu construir o local onde seus
soldados seriam treinados sobre a montanha protetora das famílias para que estes
últimos nunca se esquecessem que deveriam proteger suas famílias. Toda a lateral
da montanha era rodeada por um belo castelo de pedra escura muito semelhante às
guaritas das muralhas (que eram ligadas somente à montanha de Lambda). Era uma
construção baixa, com apenas dois andares e o porão, divididas em seis setores:
Cavalaria, Arqueiro, Infantaria, Espionagem, Estratégia e Forja. A Cavalaria era a
segunda maior parte, onde estavam os estábulos e onde seria treinada a parte de
ataque do exército; o Arqueiro era uma parte mais fechada, pois Neve temia que os
novatos começassem a errar os alvos e acertar s soldados; a Infantaria era o maior,
pois toda a base do exército seria treinada ali; a Espionagem era a menor parte do
castelo, porém a mais confortável, pois seus discípulos ficariam a maior parte do
tempo lendo, escrevendo e quebrando códigos; a Estratégia era a parte mais
longínqua, onde Neve se reuniria com seus generais para cuidar dos planos de
ataque e defesa; e a Forja seria o local onde as armas seriam construídas, desde arcos
e flechas até as catapultas e bigas. Ao centro do castelo, no grande espaço vazio,
seriam realizados torneios para estimular a competitividade e a melhoria dos
soldados e encontrar os heróis de guerra.
A montanha de Zeta, ao lado da de Lambda, fora escolhida para Neve
construir as masmorras. Era um castelo largo, mas baixo, cheio de torres finas e
compridas. O térreo tinha apenas o local para refeições (um quarto grande com cinco
mesas, uma cozinha e duas lareiras), um pátio grande (todo mundo precisa de sol) e
o salão para visitas (todo mundo tem família). Neve construíra noventa e três torres
(o exato número de dias do inverno) que continham as celas minúsculas, com espaço
apenas para uma cama e um local para dejetos num canto, mas que possuíam uma
janela grande com barras grossas e sem vidro, o que deixava o vento frio do alto das
montanhas penetrar no pequeno cômodo. Era um local para ficarem loucos, assim,
todos pensariam duas vezes antes de cometer um delito no ESCOLHER DEPOIS.
Ao redor do castelo, havia uma muralha baixa e larga, cheia de armadilha para os
engraçadinhos que tentariam fugir.
A montanha de Ômicron era voltada para a cultura. Bem ao centro, estava a
academia, local para se descobrirem novas tecnologias e estudar as áreas de
matemática, astronomia, ciências e artes. Seria também na academia que uma
parcela relativamente pequena dos jovens seria ensinada a ler (Neve teve muito
cuidado em escolher esta função. Se fizesse de seus súditos pessoas muito
inteligentes, elas poderiam se rebelar. Por outro lado, se os mestres sempre
ensinassem o quanto ele era justo e bom com todo o Inverno, poderia até melhor sua
imagem para o povo. Precisava tomar muito cuidado com isto, pois o terreno da
educação era muito traiçoeiro). Ao redor, havia outros edifícios menores, como
bibliotecas, laboratórios, estufas e observatórios. Porém, o marco da montanha de
Ômicron estava sobre a academia: o teatro. No último andar, arquibancadas em
semicírculo estavam voltadas para um majestoso e moderno palco ao estilo grego. O
teatro era protegido por um grande teto de madeira sustentado por colunas de
mármore, pedra e aço. Suas paredes eram todas de vidro aquecidas pela água quente
das montanhas. Assim, elas pareciam cachoeiras suaves que escorriam em um
campo invisível. Todas as construções eram brancas, cremes ou cor de gelo e a larga
rua que passava ao redor da academia era inteira de mármore.
Depois que terminou esta primeira parte do reino e começou a segunda, Neve
não encontrou nenhuma relação entre os lobos das montanhas e as finalidades delas.
Por isto, construiu os edifícios apenas por uma questão de proteção do reino.
A montanha de Gama e a montanha de Iota tinham a mesma função, mesmo
estando em lados opostos da cadeia: serviam para o cultivo e criação. Esta foi a parte
mais complicada de todo o processo de construção, porque, para Neve tornar a
região própria para criar animais (montanha de Gama) e cultivar plantas (montanha
de Iota), ele precisou modificar todo o terreno das montanhas. Primeiro, precisou
multiplicar o argentumn milhões de vezes e embutir cada pedaço quinze metros
abaixo do solo. Depois de seis horas, o argentumn florescia em uma pequena árvore
não maior do que um esquilo. Neve recolhia então as inúmeras sementinhas e,
depois de arrancar as arvorezinhas, rogava-as pelo chão. Depois de uma semana,
Neve finalmente podia soprar vida no chão e nele crescia uma rasteira camada de
grama verde. Parecia um trabalho simples, mas exigia muito tempo e paciência,
além de ser muito cansativo. Ao fundo da montanha de Gama, havia um poderoso
estábulo com capacidade para vinte mil animais de grande porte, com toda a infra-
estrutura necessária para mantê-los aquecidos e vivos. Ao fundo da montanha de
Iota, havia um armazém para cuidar das plantas colhidas e transformá-las em
material “utilizável” (como alimento ou tinta). As duas montanhas eram protegidas
por um muro alto que protegia os campos dos ventos correntes e exalavam um calor
confortável que se espalhava por toda a grande extensão dos campos, deixando
assim a probabilidade de morte por frio muito pequena.
Quando chegou à montanha de Delta, Neve quase construíra uma parte da
vila, porém, quando se dirigia a ela, escorregou do dorso de Segredo e torceu o
pulso, causando uma dor foi dilacerante. De tanta raiva pelo tempo que precisou
consultar os livros e curar seu pulso, Neve resolveu deixar toda a montanha voltada
para a saúde de seus súditos: casa de banho, termas, tratamentos de esgoto (alguma
coisa devia ser feita com toda aquela merda) e, principalmente, hospitais e
curandeiros. Os hospitais não eram grandes edifícios brancos com macas para todos
os lados e médico andando de um lado par outro, mas sim inúmeras casas pequenas
e isoladas para que as pessoas de quarentena repousassem e ficassem excluídas da
sociedade até melhorarem para não contagiar o resto da população. Estas casas
receberiam doentes dos mais diversos casos, desde ferimentos leves até tuberculose.
As casas eram uma mistura das celas na montanha de Zeta e os hotéis na montanha
de Sigma: casas revestidas para proteger do frio, mas muito pequenas. A montanha
de Delta vista de longe era uma pequena cidade de casinhas com ruas estreitas,
muito bem arborizadas e calmas (pelo menos, Neve pretendia mantê-las assim).
As montanhas de Ômega e Theta eram um espelho uma da outra: seriam as
vilas. Havia um motivo em especial para estarem nas montanhas mais afastadas da
entrada: se Inverno fosse invadido, a população seria a última a ser atacada, dando
assim a oportunidade de Neve e seu exército protegerem-nos. As casas também
eram fortemente revestidas para proteger do frio, porém eram construções menores e
mais simples: tinha entre dois ou três cômodos (alguns chegava a ter quatro, as casa
mais chiques), não tinham mais de dois andares (térreo e sótão), cada uma tinha
apenas uma lareira para a casa inteira e duas ou três janelas. As ruas eram mais
estreitas e as árvores que carregavam os lampiões eram mais baixas. Todas as casas
tinham um moderno sistema de encanamento que levava água aquecida para todas as
casas (outro orgulho de Neve). As montanhas também tinham uma grande muralha
ao redor, porém não eram tão altas quando as que rodeavam as montanhas de Zeta,
mas também não eram tão baixas quanto às da montanha de Sigma.
Por fim, a montanha de Beta guardava a maior das construções entre as doze
montanhas: o templo voltado à Deusa Érica. Bem na estrada, havia uma estátua da
deusa inteira feita de mármore. Neve modelou com muito gosto cada parte de seu
corpo, pensando: espero que esteja vendo isto, minha senhora. A senhora e seu
marido. A estátua trajava um lindo vestido de gelo, quase transparente, que se
modelava perfeitamente em seu corpo esbelto e era esplendidamente simples. O
cabelo que Neve se lembrava tão bem deixou para fazer também com gelo,
deixando-os assim em destaque. Sobre eles, colocou uma linda coroa em forma de
cristais de neve de lápis-lazúli. Em uma das mãos, modelou uma rosa com pétalas de
lápis-lazúli e caule de gelo. Na outra, deixou-a repousada sobre a cabeça de um
magnífico lobo com as tonalidades de seu pelo em diversos materiais como o lápis-
lazúli, a safira, a água-marinha e o gelo. Sua expressão era serena e doce, como
Neve se lembrava de sua gentil senhora. Ela estava com os braços ligeiramente
abertos, em um convite para que seus fieis entrassem em seu templo e recebessem o
conforte de seu abraço. Como eu recebi. Esta posição era como a Deusa Érica era
retratada nos livros e seu animal sagrado era o lobo. Coincidência? O templo tinha
colunas de pedra e prata que sustentava o teto de mármore e suas paredes ora eram
de pedra revestida, ora eram de vidro com água. Dentro, havia toda a habitação para
os sacerdotes viverem e os locais para idolatrarem Érica. Em um local mais ao
fundo, havia um grande espaço para a criação de lobos. Dentro, nas paredes, Neve
dedicou-se por quase sessenta anos a pintar vários retratos da deusa nas mais
diversas posições e contextos. Ao redor do templo, um grande jardim de rosas azuis
espalhava um aroma esplêndido. Havia apenas um muro baixo ao redor, que mal
chegava à sua cintura (Neve não queria passar a impressão de uma fortaleza) apesar
de o templo ser o ambiente mais ricamente feito de todo o complexo.
Todas as montanhas eram ligadas por pontes de vidro, gelo, madeira e pedra
que se cruzavam. Fora incrivelmente difícil construir estas pontes e colocá-las entre
as distantes montanhas, porém Neve ia aos poucos, construindo os pilares e
colocando um pedaço da ponte de cada vez. Depois de soprar, os pilares tornarem-se
quase invisíveis sob as sombras das montanhas e as pontes tornarem-se quase
refletores dos raios de sol. Por uma questão de acrofobia, Neve não deixou que as
pontes mostrassem a distância que se encontrava do chão, por isto as pontes eram de
um tom escuro de azul-acinzentado e tinha parapeito de pedra cinza-claro na altura
de seu peito ao estilo barroco. Neve também instalou um avançado mecanismo nos
pilares das pontes que impediam que eles balançassem com o vento, a nevasca ou a
chuva (o que o tranqüilizou muito). Para testar a resistência, Neve cavalgou com
Segredo sobre a ponte em um dia de muito vento: quase foi arrastado pela ventania,
mas a ponte permaneceu firme o tempo inteiro. As pontes ligavam as montanhas
menores à montanha do centro.
Porém, nem toda a atividade da cidade se concentraria sobre as montanhas.
Na floresta ao redor da cadeia, Neve implantou sua produção de matéria-prima
como madeira e minérios. Não era algo grande, mas o suficiente para manter o
reino.
No centro das montanhas, ficava toda a sustentabilidade do reino: era onde se
transformavam as matérias-primas em material para consumo e comércio (lã em
tecido, toras em madeira, minérios em ferro, animais em comida). Também ficavam
os encanamentos que levavam a água quente das montanhas para todas as
construções e os encanamentos que levavam os desejos para transformar em adubo
(Neve tinha pena das pessoas que trabalhariam ali). As grutas onde o povo seria
abrigado pareciam-se com os hotéis na superfície – a ideia era passar para os
abrigados que estava tudo bem, que estava em um local conhecido. Neve também
resolveu melhorar os tuneis que cruzavam o interior da montanha, dando um pouco
de cor neles e deixando-os ambientes mais confortáveis. O local onde todos os
túneis se encontravam para sair para a superfície era apenas um grande buraco no
chão, porém Neve construíra um grande cômodo de vidro com água para deixá-lo
mais apresentável (era incrivelmente semelhante a uma estação de transporte
metropolitano).
E, finalmente, resta o Palácio de Gelo sobre a maior das montanhas, a
montanha de Alfa. O castelo inteiro era feito com gelo azul externamente, porém,
na parte de dentro, era feito de pedra revestida como os outros edifícios (este efeito
de “construção de gelo” deve-se ao argentumn). Possuía doze torres, cada uma
voltada para uma montanha, e uma maior bem ao centro. As pontes de vidro e gelo
paravam e cruzavam-se no térreo aberto do palácio e, bem ao centro, uma poderosa
escada-caracol levava para o interior. No primeiro andar, havia apenas a sala do
trono, com um trono todo de gelo em forma de cristal de neve, as colunas em forma
de lobos sentados e o teto decorado como uma noite de nevasca. Nas paredes azuis e
gelo, havia doze portas que levavam a doze salões e estes levavam às torres. Cada
salão tinha uma finalidade, assim como cada torre. Já o acesso para a torre no centro
somente se localizava no terceiro andar de cada torre, onde uma rampa cruzava o
teto da sala do trono e levava-a à central. Havia ao todo setecentos e quarenta e
cinco cômodos (excluindo a sala do trono e o térreo), mil, quatrocentos e noventa
lareiras, duas mil, novecentos e oitenta janelas e sessenta e nove passagens secretas
(como já dito antes, Neve pretendia dar umas escapadas). O palácio era inteiramente
azul, cinza, preto e branco, porém, os cômodos de muito convívio (como quartos e
salões) eram em tons quentes como laranja e vermelho, para transmitir mais
conforto e calor.
E o último cômodo a ser construído: o quarto real. Ocupava toda a cobertura
da torre central e, com seu teto de gelo azul-royal, permitia uma grande iluminação.
Uma escada caracol brotava do meio do quarto no meio do tapete rubro, porém um
alçapão permitia que se fechasse esta passagem (Neve não queria ser interrompido
em um momento inapropriado). A cama de três metro por três ficava no canto oeste
do quarto, com um colchão de plumas de avestruz, cobertores de pele de lobo e
travesseiros forrados com penas de pavão, tudo nas cores vermelho, preto e cinza.
No canto leste, atrás dos biombos, existia um labirinto de guarda-roupas espelhados.
Eram feitos com madeira de cerejeira, porém seus interiores ainda estavam vazios.
Encostado nesta parede, uma grande escrivaninha também de cerejeira com os livros
que Érica lhe presenteara espalhados por sobre as estantes. Ao canto sul, uma lareira
com quase a altura de Neve estava embutida na parede, feita com tijolos de barro,
mármore, prata e, sobre o batente, lobos feitos com rubis, ametistas e ágapes corriam
por uma campo de neve feito com berilos. Já ao canto norte, uma linda varanda com
mesas e cadeiras para chá da tarde permitia uma visão do reino e do mar ao longe
com uma grande cortina de veludo que impediria a entrada de luz e de vento dentro
do aposento. Graças ao teto e esta bela varanda, não havia janelas, porém Neve teve
certeza que seu quarto era o cômodo mais bem iluminado de todo o reino.
Assim que Neve acabou, deitou-se na cama de veludo e começou a rir
histericamente. Acabei. Lágrimas começaram a escapar de seus olhos enquanto ele
dobrava-se ao meio. Não acredito, eu realmente acabei! Neve passou a mão pelo
macio cobertor peludo, imaginando qual seria o próximo passo. Eles mandaram-me
construir um reino para controlar o mundo. Fiz mais do que isto: fiz um reino capaz
de dominar o mundo! Ele levantou-se e acendeu a lareira. O quarto foi rapidamente
inundado pelo calor e brilho das chamas. Gostaria de ver como os outros estão se
saindo...

Para Neve, os três anos seguintes demoraram mais do que todos os outros
anos. Para passar o tempo, Neve fazia revisões pelo reino inteiro, ajustava aqui e ali,
modificava uns pedaços, deslocava casas inteiras de lugar, porém estava tudo pronto
e suas reformas não demoravam mais do que uma semana. Tentou também fazer um
reconhecimento da área, porém Segredo jamais se cansava e, em pouco mais de um
mês, já conhecia cada centímetro quadrado de toda a floresta ao redor das
montanhas. Quando já não tinha mais o que fazer, transformava-se em lobo e saía
correndo por entre as árvore, vigiando o reino. Por três vezes, um grupo de viajantes
aproximou-se das montanhas. Na primeira vez, Neve não se aproximou, ficou
vigiando os dois andarilhos das sombras.
-Eu disse que havia alguma coisa ali em cima! – disse um dos viajantes,
apontando para as torres. – Quando vi a muralha, sabia que alguma coisa não estava
certa.
-Quem você acha que mora lá? – perguntou o segundo viajante.
-Não sei e nem quero. O que quer que seja, é grande e forte. – eles foram
embora.
Na segunda vez, uma grupo de cinco aproximou-se do portão. Neve rosnou
em seu esconderijo, esperando. Mas os cinco desistiram quando não viram vigias.
Porém, na terceira, Neve teve problemas. O grupo que se aproximava devia
ter quarenta ou mais homens, todos armados e carregados de saque. Assim que se
aproximaram, um deles disse:
-Um reino! Lá em cima! – todos olharam – Acham que podemos invadi-lo?
-Deixe de ser bobo, Demétrio! – respondeu o outro – Não está vendo a altura
desta coisa? Os guardas vão nos jogar montanha à baixo quando chegarmos perto.
-Que guardas? – perguntou o terceiro. – Não vejo soldados andando pelas
guaritas.
-Certamente nos viram e esconderam-se. – retrucou um quarto – Estão
esperando uma reação nossa.
-Ou está abandonado. – disse o terceiro.
-Alexander, acha mesmo que uma construção desta magnitude ficará
abandonada? – disse o segundo. – Concordo com Sandro, acho que estão esperando
uma reação nossa. Devíamos partir.
-Bem – disse o que se chamaria Alexander – Se há alguém ai, não negará um
pouco de vinho para viajantes guerreiros não é?
Alexander aproximou-se da porta e desembainhou a espada. Neve rosnou
alto, porém sem sair do lugar. O som deixou os cavalos nervosos e os homens
inquietos.
-Ouviram isto? – perguntou Demétrio.
Neste instante, Segredo apareceu galopando veloz ao longo da muralha. Neve
rosnou outra vez. Seu idiota, saia daqui! Eles vão te pegar! Segredo aproximou-se
dos homens e empinou-se sobre as patas, relinchando. Os outros cavalos recuaram,
apavorados com a ferocidade, mas seus cavaleiros os controlaram.
-Que belo cavalo negro! – disse Sandro. – Gostaria de domá-lo.
Idiota! Fuja!
-Só se tentar depois que eu tomá-lo para mim! – disse Alexander, descendo
do cavalo e afastando-se do portão.
Imbecil! Eu disse para fugir!
Neve não teve alternativa a não ser sair dos arbustos e avançar contra o
homem. Em um único salto, ele alcançou a orelha do homem e arrancou-a com uma
dentada.
-Alex!
Neve saltou para o lado de Segredo e rosnou ferozmente enquanto babava
sangue e carne. Alexander estava no chão, segurando a cabeça que transbordava de
sangue.
-De onde este bicho saiu? – gritou Demétrio desmontando e correndo para
socorrer o companheiro.
-Não sei! – disse o segundo que ainda não fora nomeado – Mas vou fazer
uma capa com sua pele! – ele puxou a espada e avançou cautelosamente.
Os dois analisaram-se, andando em um espaçoso círculo. O homem esperava
o lobo abaixar a guarda e o lobo buscava uma forma de sair daquela cilada.
Cavalo estúpido! Se não tivesse aparecido, eles teriam ido embora!
O homem ameaçou golpeá-lo com a ponta da espada, mas Neve restringiu-se
a um latido e afastar a arma com uma leve patada. Ficou atento para não dar as
costas aos outros homens, ou receberiam um punhal nas costas.
O homem deu uma passo à frente. Espere... Ameaçou novamente com a
ponta da espada. Espere... Deu outro passo e outra estocada. Espere... O homem
investiu, girando a espada por cima da cabeça e descendo-a em forma de meia-lua.
Neve afastou-se com um pulo para trás e o homem tentou alcançá-lo, porém perdeu
o equilíbrio e tombou para frente, deixando à mostrar seu lindo pescoço pulsante.
Agora! Neve saltou novamente para frente, abrindo bem as mandíbulas e
encaixando-as na jugular do homem como os lábios de sua amante. Seus dentes
afundaram-se na pele áspera e começaram a cruzar as artérias e a garganta. Neve
sentiu o gosto do sangue, da carne e do medo. O homem tentou gritar, porém Neve
mantinha sua garganta tão bem apertada que um sussurro foi tudo o que conseguiu
pronunciar. Aos poucos, conforme o homem lutava para livrar-se do lobo e buscar
ar, foi afogando-se no próprio sangue e quando finalmente ficou imóvel, Neve
soltou-o.
Os outros homens permaneceram no lugar, imóveis e boquiabertos, olhando o
cadáver. Neve lambeu o focinho sujo, mas não rosnou. Isto pode irritá-los e terei
que lutar contra todos. Por isto esperou. Segredo. Vire-se lentamente e saia com
muita calma. Pareça despreocupado. Agora!
O cavalo desta vez obedeceu: virou-se e saiu em uma galope lento para
dentro da floresta, sumindo em suas sombras. Neve permaneceu no lugar, encarando
o grupo. Quando finalmente Alexander ficou em pé e lançou-lhe um olhar medonho,
o lobo virou-se para a floresta e sumiu nas sombras.
-Peguem-no! Vamos ter carne de lobo no jantar!
Escutou os cavalos sendo incitados a penetrar na floresta e sair em sua
perseguição, mas Neve era menor e mais rápido, por isto em poucos segundos
deixou-os para trás. Quando estava finalmente a uma boa distância, o lobo
transformou-se em homem, subiu em uma árvore e escondeu-se por entre os ramos.
Viu com calma enquanto os alvoroçados cavalos e os homens furiosos passavam
como relâmpagos por sob seu esconderijo e Neve teria rido alto, se isto não atraísse
novamente os viajantes.
Quando voltou para a muralha, em uma macabra brincadeira, Neve fez vinho
com o argentumn e colocou-o em uma jarra ao lado do morto que já estava sendo
atacado pelos abutres. Em um bilhete (pelo menos ele esperava que os viajantes
soubessem ler) escreveu: Devia tê-lo escutado e se afastado. Queriam vinho? Aqui
está, mas peguem o morto e a bebida e afastem-se ou mais mandarei outros lobos
atacarem seus companheiros enquanto dormem.
Ele mantinha novamente nas sombras e esperou os viajantes. Quando eles
viram o bilhete e um leu para os outros em voz alta, Demétrio chutou a jarra. Neve
sorriu em sua mente, porém rosnou o mais alto que pode. Os viajantes saíram
correndo e quase esqueceram o corpo do amigo.
Não houveram mais aparições.

Depois deste triste incidente, Neve resolvera que precisava de uma arma mais
potente para protegê-lo do que seus dentes. Precisava construir uma espada.
-Mas não a farei inteira de argentumn. – disse para Segredo, que estava
estirado ao sol no pátio do quartel – Construí-la-ei com meu próprio suor.
Depois de passar algumas horas extraindo carvão de uma mina na montanha,
Neve colocou-os na forja e aqueceu-a. O calor que tomou conta do lugar foi tão forte
que ele precisou ficar somente de calça. Assim que o fogo estava na temperatura
ideal, aqueceu o aço e colocou o líquido em que ele se transformou no molde. Neve
não conseguiu ficar mais do que vinte minutos no calor e precisou sair um pouco,
todo suado e sujo. Segredo relinchou, com se risse de seu estado.
-Você não é um cavalo, é um burro.
Neve voltou para a forja e (sempre com a proteção de luvas) tirou o modelo
de seu molde e o mergulhou na água. Um nuvem de vapor subiu chiando e cobriu
seu rosto. Merda. Praguejou, enquanto tentava livrar os olhos do ar quente. Quando
tirou o pedaço de metal da água, analisou-o: deveria ter um metro e cinqüenta de
comprimento, era irregular, torto e áspero. Não pare ou o metal vai esfriar. Ele
pousou a placa sobre a bigorna e com o martelo, começou a esmurrá-la.
O som produzido foi ensurdecedor e Neve quase desistiu, porém continuou a
martelá-la. Segredo sentiu-se muito inquieto com o som e saiu para cavalgar pelas
ruas.
Depois de um minutos exasperantes, Neve colocou novamente a placa no
fogo, depois voltou a depositá-la sobre a bigorna, dobrou-a em duas e voltou a bater,
bater, bater... E somente depois, colocou-a na água.
Repetiu o processo tantas vezes que perdeu as contas. Quando finalmente
terminou, sua cabeça ainda pulsava no ritmo das batidas e ele sentia-se zonzo com o
esforço e calor. Ele deixou a espada sobre a mesa e sentou-se do lado de fora, com a
cabeça entre as mãos, até a dor passar.
Definitivamente, isto não é para mim.
Neve voltou para dentro e pegou a lâmina. Desta vez, ela estava mais regular,
mais achatada, mais firme e mais atraente. Neve sentou com ela sobre o colo, pegou
uma pedra de molar e começou a lixá-la. O som fino e agudo que fazia fez seus
ouvidos zumbirem, mas ele não deu importância e continuou a lixar, lixar, lixar...
Até possuir uma forma alongada e suave, porém afiada e pontudo como uma espada
deve ser.
Chegou a etapa da magia. Neve pegou o argentumn em seu casaco,
multiplicou-o e colocou a réplica dentro de um fundo balde. Afastou-se e disse:
-Colores a mágica.
Ele voltou a se aproximar e, dentro do balde, havia um denso líquido negro
borbulhante. Seja o que a minha senhora quiser. Neve soltou a lâmina dentro do
líquido e esperou como dizia o livro ARGENTUMN. Somente quando todo o
líquido foi absorvido pela lâmina, ele pegou-a novamente. Porém, assim que a
tocou, sua mão queimou-se.
-Maldito! – ele berrou, enfiando a palma por entre os joelhos. Segredo
aproximou-se trotando, preocupado. – Mas que merda! Mil vezes merda!
Ele estendeu a mão na sua frente e avaliou-a. Sua palma e seus dedos
estavam carne viva e três bolhas haviam se formado. Quando tentou dobrar os
dedos, uma delas estourou e Neve precisou deitar-se para aguentar a dor.
-Puta que o pariu! – ele rolou pelo chão, contorcendo-se – Não havia nada
disso nas instruções!
Quando se sentiu um pouco melhor, Neve enfaixou a mão e pegou o livro,
abrindo-o com brusquidão na página.
“Capítulo 289: coloração de espadas” Neve pulou toda a parte teórica e
instrutiva e chegou ao fim das linhas. “Quando for retirar a espada, é normal que ela
queime-o, porém deve segura-lá até o ardor passar. Somente assim, a espada saberá
que pertence somente a você e servirá somente a você”.
Neve praguejou um pouco mais, porém reuniu todas as suas forças que ainda
tinha e agarrou a lâmina.
Se Neve alguma vez já sentira ou sentirá dor (física) na sua vida, nada jamais
se comparará com o que ele sentiu naquele momento. Se lhe arrancassem um braço
lentamente, não sentiria tanta dor como aquela que subia pela sua mão, penetrava
em suas costas e dilacerava sua coluna. Nunca gritou e nunca gritaria tanto quanto
gritou enquanto sentia a lâmina perfurando sua palma e arranhando os ossos. Pode
sentir o cheiro de carne queimada, o cheiro de sangue borbulhante, o cheiro de sua
própria urina que escorrera em algum momento que não se lembrava. Ouviu quando
sua voz foi perdendo a potência e sumindo em uma grito mudo, os relinchos de
Segredo, o aço que chiava em sua mão. Porém, apesar de tudo o que passou, ele não
caiu e não soltou a lâmina.
Os mil anos em que ficara construindo ESCOLHER DEPOIS talvez tivessem
passado mais rápido do que aquele infinito tempo em que ficou segurando a lâmina.
Mas ele acabou, como prometido no livro. E quando isto aconteceu, Neve ajoelhou
no chão, jogou a lâmina prateada longe e começou a chorar de dor.
Minhas mãos... Minhas mãos... Ele queria poder dizer em voz alta para
aliviar-se um pouco, mas não a encontrou.
Neve estendeu a palma para frente de seu nariz e esperou o pior. Se não perdi
os cinco dedos, cheguei bem perto. Porém, assim que a aproximou dos olhos
embaçados, a palma continuava rosada como sempre fora, sem um arranhão, uma
queimadura ou uma bolha. Só pode estar de brincadeira.
Neve novamente abriu o livro e leu a última linha.
“Apesar de toda a dor que será ocasionada, suas mãos ficarão intactas, a
menos que solte a lâmina antes do fim. Esta falta de machucados é a primeira prova
de fidelidade que sua espada mostrará para você: ela machucará a todos, menos o
seu criador”.
Ele jogou o livro para o lado e apoiou-se nos joelhos. Que ótimo! Não teria
ficado tão nervoso se tivesse perdido os dedos. Segredo aproximou-se dele e tocou
seu rosto com o focinho. Neve acariciou-o, mas logo se levantou para continuar seu
trabalho.
A lâmina parecia não ter sofrido nenhum dano depois de ter sido mergulhada
no argentumn, apenas parecia mais fina, polida e afiada do que antes. Neve tocou
levemente com o dedo sobre o aço para ver se estava em uma temperatura muito
elevada, mas o metal estava novamente frio. Com um suspiro de alívio, ele pegou-a
e levantou-a.
Subitamente, o prateado deu lugar a um azul-royal e branco-madrepérola que
se misturavam por sobre sua superfície em longas ondulações vivas. Neve
movimentou suavemente a espada no ar e o azul e branco enrolavam-se como se um
pingo de tinta se espalhasse sobre a água. Era quase um lago de duas cores.
-Segredo! Veja isto!
O cavalo bufou quando o brilho móvel das cores refletiu-se em seu rosto
negro. Fixou bem os olhos nas ondulações, fascinado.
-Não é lindo? – Neve também estava fixo nas cores vibrantes se
movimentando. – É perfeita... – a forja inteira era iluminada pelo esplendor da
espada.
Neve deixou a lâmina sobre a mesa e voltou-se para fazer o punhal. Era a
parte mais fácil e rápida. Ele pegou um grosso cabo de madeira com dois palmos de
comprimento e poliu-o para torná-lo redondo e firme. Depois, com o molde e prata
derretida, modelou a cabeça de um lobo que encaixou em uma das pontas do cabo.
Logo em seguida, modelou a parte de cima do punhal, onde se encaixaria a lâmina.
Em cada extremidade, havia uma cabeça de lobo. Assim que ficou pronto, Neve o
movimentou pelo ar, golpeando um inimigo imaginário.
-Falta pouco, Segredo. – disse animado.
Neve encaixou a lâmina brilhante no punhal e um estalo agudo foi produzido
quando eles se adaptaram perfeitamente. Neve novamente movimentou a lâmina no
ar. O equilíbrio era perfeito.
Ele estava ansioso para testar em alguém ou alguma coisa, mas primeiro
resolveu fazer a bainha. Demorou alguns dias para ficar pronta, mas ficou quase tão
linda quanto à própria espada. Ela era forrada com couro e no exterior, Neve bordara
uma luta entre uma alcatéia de lobos vermelhos e uma alcatéia de lobos azuis. Os
animais enrolavam-se uns nos outros, babando, rosnando e mordendo, enquanto uma
suave neve caía por sobre suas cabeças e era lança ao alto pelas brigas. Os bordados
eram feitos com fios de metais e os olhos dos lobos eram feitos com pepitas de ouro.
Neve embainhou sua nova espada e sentou-se à frente de Segredo, que
novamente estava atirado no meio do pátio do quartel para tomar sol.
-Vamos escolher um nome, Segredo. Todas as grandes espadas têm nome. –
o cavalo não se mexeu, apenas se limitou a uma piscada de olhos – O que você acha
de Mortífera? – o cavalo relinchou alto e virou para o outro lado – Está bem! Você
não gostou! Não precisa caçoar! – o cavalo voltou – Bem, eu preciso de um nome
forte, que apavore meus adversários, mas que tenha relação com minha estação, meu
reino e comigo. Tem alguma ideia? – Segredo levantou-se e andou em círculos à
volta de Neve, trotando. – O que você está querendo me dizer? – Neve acompanhou-
o por alguns minutos, depois começou a ficar tonto. – Segredo pare com isto! Vá
direto ao ponto!
Subitamente, Neve foi atingido por algo extremamente gelado no nariz.
Quando olhou para cima, viu que minúsculos pontinhos brancos caíam do céu como
chuva, porém bem mais lentos e balançavam no ar. Isto é... Não pode ser! Pela
primeira vez, Neve via a neve.

O cavalo empinou-se e Neve caiu de seu dorso, para bater com as costas no
chão fofo, rindo. Ele estendeu sobre o manto branco, sentindo a neve entrando em
sua nuca e dando-lhe calafrios, porém ele continuou no chão, sorrindo como uma
criança. Ela é tão bonita. Estou aqui há mil anos, mas nunca nevara antes. Será um
presente da minha senhora?
Ele levantou-se depois de um tempo e começou a correr com muita
dificuldade, pois seus pés afundavam e ele por muitas vezes perdia o equilíbrio.
Segredo saltava para poder sair do lugar.
-Volte aqui! – gritava seu dono, rindo, mas o cavalo afastava-se mais,
relinchando alto. – Eu vou te pegar, pode correr o quanto quiser!
Segredo afastava-se, parava, esperava Neve alcançá-lo e depois voltava a
correr para longe. Quando se sentiu muito exausto da corrida tola, Neve
transformou-se em lobo e, com suas patas mais resistentes e feitas para aquele tipo
de situação, saiu em disparada atrás do cavalo. Agora, Segredo tinha dificuldades
em afastar-se.
Os dois continuaram com suas brincadeiras até a noite cair e a temperatura
também. Quando não estava mais agüentando, Neve deixou Segredo em seu
estábulo quentinho sob a montanha de Alfa e subiu para seu quarto. Com os dedos
dormentes, acendeu a lareira, tirou as roupas molhadas e enfiou-se nu sob as
cobertas. Não demorou muito até pegar no sono e sonhar...
...com Rosácea. Ela estava no meio de um campo coberto por neve em um
lindo vestido púrpura com uma capa preta e vermelha. Seu capuz estava coberto
pelos cristais branco e seu rosto estava rosado de frio. Estava linda ali, sorrindo para
ele. Neve pensou em correr em sua direção, porém seus pés escorregavam e ele
permanecia no mesmo lugar. Somente naquele momento, notou estar sobre um
plataforma de gelo. Não se lembrava como fora parar ali, afinal, não havia locais
cobertos por gelo em ESCOLHER DEPOIS. Não era um local glacial... Glacial...
Glacial.
Neve acordou sobressaltado, com uma ideia. Minha espada chamará
Glacial!

-Preciso que fique aqui para cuidar do meu reino enquanto eu estou fora,
Segredo. – disse Neve, acariciando e alisando a crina negra do cavalo – Você não
poderá me acompanhar para onde vou. – o cavalo soltou um bufar choroso e tocou o
rosto de Neve com o focinho – Mas eu prometo voltar logo. Será bonzinho enquanto
não estou? – Segredo mordeu sua franja e puxou-a – Levarei isto como um “sim”.
Neve desceu a montanha a pé, fingindo não ouvir os relinchos tristes de
Segredo. Faltavam três horas para o sol nascer. Estava um pouco temeroso, mas
controlado. Amadureci, disse para si mesmo. E realmente havia.
Um barba rala cobria seu rosto, mas ele sentia que, com ela, aparentava ser
um homem mais velho e experiente, e isto fortaleceria sua imagem. Notara que seus
ombros e tórax haviam se alargado com o tempo e ele estava ligeiramente mais alto
(nada que pudesse notar). Tinha um rosto mais cansado pela falta de sono que
adquirira, mas não estava disposto a ficar dormindo muito mais do que estava
acostumado. Quando se olhara no espelho, entretanto, notara que seus olhos azuis
haviam adquirido um brilho mais intenso, um brilho de... Poder, de capacidade, de
virilidade e deixara aquela sombra juvenil e entusiasmada para trás. Era um homem
agora. Um rei.
Neve ajeitou a enorme capa de pelos de lobo por sobre os ombros.
Finalmente, arranjara tempo de fazer outra roupa: uma capa negra peluda, um
sobretudo com o desenho de cristais de neve caindo por sobre um fundo azul-
turquesa e reunindo-se em um chão acinzentado, um colete preto sobre uma camisa
fina cinza e uma cota de malha por baixa de tudo. As calças continuavam pretas,
porém agora tinham o forro de malha. Assim como as botas, que agora eram de
couro fervido. Glacial, por ter quase um metro e quarenta de comprimento, vinha
presa às suas costas. Estava digno de um rei. Ele pegou o capuz da capa e colocou
sobre a cabeça para proteger as orelhas do frio.
Neve, assim que saiu pela última muralha, transformou-se em um lobo,
chacoalhou a neve de seu pelo e põe-se em uma corrida frenética em direção ao
nada. Glacial continuava presa em suas costas, atrapalhando um pouco seus
movimentos, mas ele não parou.
Há exatos mil anos, Neve encontrava-se em uma clareira e depois saíra
andando, seguindo seu instinto. Achar o lugar novamente seria um pouco
complicado, ainda mais com a neve para atrapalhar as trilhas e os cheiros, mas agora
Neve não precisava ficar fazendo curvas ou mudando de direção quando sentisse
vontade: precisava andar em linha reta.
Em um determinado momento, sentiu o cheiro de uma alcatéia a dois
quilômetros de distância e perguntou-se se não seria o grupo do lobo que encontrar
no começo de sua jornada. É claro que não! Pensou Neve. Foi há mil anos. Seus
ossos já devem ter virado pó!
O sol já estava a pino e a neve já cessara quando Neve encontrou a clareira.
Fui rápido. O ar estava um pouco abafado, mas Neve não voltou a sua forma
humana, resolvendo deitar-se e esperar pelos outros na forma de lobo.
Já estava se perguntando se terei aparecido no dia certo quando escutou um
par de asas batendo. Ele levantou a cabeça e viu, ao longe no céu, um ponto branco
que se aproximava. O ponto foi aumentando, até tomar a forma de uma grande ave.
O que é isto? Neve estreitou os olhos, mas sua visão era prejudicada pela forma de
lobo. Quando finalmente estava perto da clareira, Neve viu que se tratava de um
enorme cisne branco. Este foi diminuindo a velocidade com que se aproximava da
clareira e, assim que estava perto do chão, transformou-se em sua forma original.
As longas asas caíram ao chão na forma de seda e veludo e os ossos que
surgiram embaixo alongaram-se e adquiram a corpo rosada da pele. O pescoço
engrossou, a cabeça aumentou, o abdômen diminuiu, o peito estufou-se. Tudo
coberto por um longo vestido branco e preto de seda. Assim que o cisne sumiu, uma
longa cabeleira castanha derramou-se sobre os ombros magros e as costas de
Rosácea e ela a mexeu de um lado para o outro para ajeitá-la. Assim que estava de
volta à sua forma original, reparou no lobo ao seu lado.
-Quem é? – ela sorriu.
Rosácea também havia amadurecido. O sorriso era mais voluptuoso, a voz
mais feminina, curvas mais delgadas, um jeito todo charmoso de jogar a cabeça para
o lado, um olhar sensual... Neve não pretendia voltar a ser lobo, porém, quando viu
seus seis apertados sob o vestido, sentiu um sensação quente de humano e, antes
mesmo que notasse, já estava sobre as duas pernas.
-Minha bela donzela. – Neve sorriu e fez um mesura.
Os olhos de Rosácea se arregalaram quando o viu e ela deu dois passos em
sua direção como que para se jogar em seus braços, porém ela parou e fez uma
expressão de dúvida. Neve tocou sua mente e ouviu o que ela pensava.
Yael me avisou que eles têm segundas intenções. Mas Neve não parece este
tipo de homem... Deixe de ser boba! Yael avisou que os que menos se parecem, são
os piores... Oh, mas ele é tão lindo! Não há como não se sentir quente perto dele!
Neve precisou rir. Então a minha singela donzela sente-se quente perto de
mim. É bom saber... Rosácea entortou as sobrancelhas.
-Por que ri, meu gentil cavaleiro?
Neve inspirou fundo, sorrindo.
-Queira perdoar este simples homem, minha donzela, porém a expressão de
dúvida que fez agora lhe deixou ainda mais bela e não consegui controlar meu riso.
– ele abriu os braços, como se estivesse impotente – Como é possível, minha
donzela? Até em uma careta, fica linda! Poderia explicar a seu tolo cavaleiro como
consegue?
Rosácea sorriu bondosamente, mas Neve sentiu-se tentado a ouvir sua mente
novamente.
Oh, Deuses! Quase não me agüento aqui, quero entregar-me a ele! Por
favor, dêem-me forças! Oh, deuses... Eu serei sua, meu quente cavaleiro, serei sua!
SUA, SUA, SUA!
Neve segurou-se para não rir novamente. Será, minha donzela. Será minha...
Mesmo a distância, ele podia sentir a pulsação acelerada dela. Minha...
Um galho se partiu ao meio, desviando a atenção de ambos. Os arbustos se
mexeram violentamente de súbito e Neve desembainhou Glacial. Com passos
cautelosos, andou na direção de Rosácea e puxou-a para trás de si.
-Fique aqui, minha donzela. Protegê-la-ei.
As mãos de Rosácea apertaram seus braços com força e Neve preferiu estar
virado em sua direção ao invés de estar de costas.
Um sombra vermelha passou correndo na sua frente e Neve desceu a espada
na forma de um círculo. A ponta da espada arranhou a coisa, que se jogou no chão e
começou a ganir. Uma raposa.
Era baixa, porém longa, com o pelo marrom-terra e a ponta da cauda branca.
Tinha orelhas enormes, um focinho comprido e negro, dentes pequenos e pontudos,
olhos negros suplicantes. Sua pata dianteira exibia um profundo corte
ensangüentado onde Glacial havia encostado. A raposa contorceu-se mais um pouco
antes de transformar-se.
O pelo marrom deu lugar a uma longa capa de camurça da mesma cor,
enquanto as patas engrossaram e se alongaram em pernas cobertas por uma meia-
calça verde-musgo e em braços com uma casaca laranja e vermelha de sangue. O
cabelo castanho escuro estava penteado para trás com grande esmero, porém havia
alguns galhos da clareira que se enrolavam nos fios, dando a Octávio a aparência de
um louco.
O homem colocou-se em pé, segurando o braço ferido. Octávio estava
completamente mudado: o queixo se tornara quadrado, o nariz curvo, os olhos
ferinos, mais alto e mais forte. Parecia mais ameaçador do que o galante Octávio que
vira pela última vez, porém o bigode fino continuava o mesmo.
-Maldito seja, Neve! Feriu-me!
Neve embainhou Glacial.
-Um golpe merecido. Não devia ficar esgueirando-se por entre os arbustos
como um gatuno.
Octávio soltou uma risada maldosa.
-Estava apenas procurando uma posição melhor para assistir enquanto você
usava toda a sua lábia sensual para roubar o presente da virgindade de Rosácea,
Neve.
Rosácea afastou-se abruptamente, enrubescida. Neve sorriu para Octávio.
-Jamais faria isto com uma donzela tão doce, Octávio, ela merece algo
melhor do que ser tratada como uma plebéia.
-Não era exatamente isto o que se escondia por trás de seus planos era?
Neve perguntou-se se Octávio também poderia ler mentes, mas algo dizia a
ele que não. Ele deve ter algum dom especial...
-Meus planos estão voltados totalmente para meu reino, Octávio, e os de
Rosácea estão voltados para o dela. Estávamos apenas sendo cordiais um com o
outro.
Ele virou o rosto para a moça e sorriu. Rosácea retribuiu, porém era um
sorriso falso, fechado por trás de uma máscara de indignação e raiva. Ela está
magoada com o que eu disse, concluiu Neve.
-Acho que ela está magoada com o que você disse. – falou Octávio por cima
de seu ombro como um papagaio empoleirado.
Neve encarou o outro com um olhar gelado, deixando-o com uma expressão
um tanto assustada. Ele tocou sua mente.
Pode ler mentes?
Octávio sorriu.
Sabe, eu estava me perguntando qual seria seu dom. Já havia descoberto
qual era o de Rosácea e o de Vesúvio na última vez que nos vimos, mas o seu era um
mistério. Ler mentes é muito útil, Neve. Com o tempo, talvez aprenda a manipulá-
las.
Neve aumentou o gelo de seus olhos, amedrontando ainda mais Octávio.
Posso muito bem arrancar seu braço, desgraçado. Qual é o seu poder? E o
dos outros?
Octávio, por mais assustado que estivesse, alargou o sorriso.
Eu sou como você, um telepata. Porém não escuto o que você pensa, apenas
os seus desejos.
Neve levantou as sobrancelhas.
Como assim?
Octávio tentou limpar o sangue da roupa que havia secado.
Lembra do motivo para o qual fomos criados? Eu sabia dele antes mesmo
que Heitor nos dissesse, pois ouvia o objetivo na mente dos deuses. Neste momento,
ouço sua mente clamando pelo corpo de Rosácea assim como a dela clama pelo seu.
É um poder útil para um rei, ele sabe quem são os aliados e os interesseiros.
Octávio sorriu. Neve apenas cerrou os olhos.
E os dos outros?
O outro olhou brevemente para Rosácea e depois voltou a olhar para Neve.
Vesúvio tem o poder de mandar sua mente para outras pessoas, ou seja, pode
sair do próprio corpo e invadir o de outro alguém, mas não pode controlar suas
ações. É útil quando se está em um campo de batalha e quer ver o que o inimigo
planeja. E sua amante tem o maldoso poder da verdade através do toque. Apenas
por tocar em você, ela fará com que conte todos os seus mais íntimos segredos,
intenções, objetivos, sonhos, planos, tramóias...
Neve novamente levantou as sobrancelhas.
É quase igual ao seu. E ao de Vesúvio. E ao meu...
Octávio sorriu e negou com a cabeça.
Não... Rosácea pode conseguir extrair qualquer coisa de você, eu posso
apenas ouvir suas intenções, Vesúvio pode olhar através de outros olhos e você...
Neve, você entende que é o mais forte? Se você conseguir manipular a mente das
pessoas, terá todos os poderes dos outros três reis juntos. Será imbatível!
Neve fitou fundo os olhos alaranjados de Octávio.
Seu poder é ver as intenções dos outros. Mas quem verá as suas intenções?
Neste momento, o sorriso do outro sumiu.
Novamente os galhos se remexeram e Vesúvio apareceu em sua forma de
homem. Será que ele não teve contato com nenhum outro animal? Pensou Neve. Ou
ele se transforma em um animal simples como um inseto? Vesúvio engordara
consideravelmente, adquirindo a forma de um barril. Cortara a barba e deixara o
cabelo crescer. Usava uma roupa laranja, azul e bege, tão rica quanto era típico do
rei.
-Ora, ora, ora... – disse, quando viu os outros três – Achei que você, Neve, só
chegaria amanhã.
-Neve foi o primeiro a chegar. – veio Rosáceo em seu socorro. Vesúvio
virou-se para ela e tornou-se todo sorrisos.
-Ah, minha belíssima Rosa... Está radiante neste vestido. Parece bem
confortável!
Rosácea olhou incerta para o vestido, pensando se estava sendo caçoada ou
se estava recebendo um elogio.
-Sim, é confortável.
-Pois deveria ir com ele visitar-me me meu reino. – ele aproximou-se e olhou
com fome para Rosácea – Talvez devêssemos tirá-lo e ver o que tem por baixo.
Neve desembainhou a espada por reflexo, atraindo o olhar de todos. Vendo
que não havia volta, colocou a ponta na garganta de Vesúvio.
-Respeite a donzela Vesúvio, ela merece alguém mais decente do que você...
-Por exemplo... Você?
Neve pressionou a ponta contra o queixo e Vesúvio deu um passo para trás,
sem equilíbrio.
-Não sou digno dela, mas você também não é. Enquanto este homem de sorte
não aparece, vou garantir que ela tenha sua honra preservada.
Vesúvio cuspiu no chão e empurrou a lâmina para o lado com um tapa,
entretanto ela era tão afiada que fez um corte em sua mão. O homem soltou um grito
e afastou-se, segurando a mão sangrenta. Octávio riu.
-Outro que é atingido pelo gelo de Neve!
Rosácea tocou seu braço gentilmente e, quando a olhou, viu que ela estava
enrubescida.
-Agradeço o que fez, meu gentil cavaleiro. É muita bondade sua.
-Não se preocupe, minha doce donzela. Enquanto seu homem não estiver ao
seu lado, eu a protegerei.
Rosácea mordeu o lábio e retrucou:
-E se ele já estiver ao meu lado protegendo-me?
Neve sorriu.
-Então posso guardar minha espada.
-Mas como o meu homem me protegerá com a espada embainhada?
Neve encarou-a fundo nos olhos, observando suas emoções. Tocou sua
mente.
Por favor, diga que também me quer. Diga! Diga! Pensava a moça.
Ele tocou seu rosto.
-Posso ser este homem, minha doce donzela?
Subitamente, Neve sentiu algo golpear seu interior e tudo ficou escuro.

Neve abriu os olhos lentamente e encontrou um teto branco. Onde estou? Ele
sentou-se e viu-se em uma grande cama quadrada. O que aconteceu? Levantou e
olhou para um grande espelho de bronze. Já estive aqui... De súbito, lembrou-se. O
quarto de Érica! Olhou a volta e viu-a sentada em uma poltrona, encarando-o sem
expressão. Neve sorriu e fez uma mesura.
-Minha senhora.
-Neve, qual é o seu problema? – foi a resposta.
Ele colocou-se ereto e encarou-a, sem entender.
-Senhora?
Érica levantou-se, furiosa.
-Por que matou o homem que eu te enviei?
-Que homem? – Neve afastou-se um passo quando ela chegou perto.
-O homem que você matou mordendo sua garganta! Eu envie-o para povoar
seu reino e você o matou! E agora? Os viajantes não passam mais por ali com medo
dos “lobos que comem gargantas”! Como vai povoar ESCOLHER DEPOIS?
Neve ficou mudo. Aqueles viajantes eram seu povo?
-Mas, minha senhora, como eu saberia?
-Neve... – Érica colocou a mão na testa e pressionou-a, como se estivesse
com uma terrível dor de cabeça – Como você pode ser tão burro para algumas coisas
e tão esperto para outras? Por que acha que as pessoas só começaram a aparecer
depois que seu reino ficou pronto?
Ele não tinha resposta para aquilo, por isso ficou em silêncio.
-Era uma questão de bom senso! – ela levantou os braços – Heitor está
furioso comigo! Fica gritando: “Por que você criou um monstro?” ou “Ele é tão
arrogante quanto estúpido!”, mas tenho certeza que só diz isto porque Vesúvio não
fez um reino tão magnífico quanto o seu! – ela balançou a cabeça, descontente –
Todos os outros entenderam que os viajantes começariam a colonizar seus reinos,
menos você! Por que, eu te pergunto.
-Minha senhora... – começou Neve, escolhendo as palavras com calma.
Burro, burro, burro! – Eu acreditava que o processo de colonização somente
começaria depois dos mil anos e não neste percurso. Além do que, você me manda
viajantes? Como eu confiaria neles?
-E você acha que eu mandaria ladrões e assassinos para você? – Érica
colocou as mãos na cintura e então Neve reparou em sua barriga.
-Está grávida. – disse, sem emoção.
Pela primeira vez, ela sorriu. A deusa acariciou a barriga enorme e os olhos já
se encheram de lágrimas.
-Sim... Acredito que desta vez nascerá... E será um menino.
-Como o chamará?
-Quero chamá-lo de Calaáde...
-Como? – Neve arregalou os olhos.
Érica riu.
-Calaáde. Significa “sangue dos anjos” na língua dos deuses.
-Hum... – fez Neve – Diferente...
Érica sorriu-lhe.
-E você conseguiu sua tão sonhada espada. Glacial... É um lindo nome.
-Eu sei. – sorriu de volta Neve, mas ele não tirava os olhos da barriga
enorme. Quando já não agüentava mais segurar, fez uma expressão de dor – Minha
senhora... Não posso crer que esteja grávida! – ele aproximou-se e abraçou sua
cintura. Érica deixou e olhou fundo nos olhos, assustada – Deveria ser eu o pai de
seu primeiro filho. Eu... – Neve beijou-a.
A deusa contorceu-se em seus braços, mas não tentou interromper o beijo.
Neve tentou pressioná-la a abrir a boca com a língua, mas ela não o deixou entrar.
Tentou movimentar os lábios para fazê-la movimentar-se junto, mas ela permaneceu
firme. Tentou até mesmo passar uma mão para debaixo da saia, mas ela tinha as
pernas bem fechadas.
Ele afastou o rosto e bufou de frustração. Érica sorriu para ele, maldosa.
-Pode conquistar Rosácea com estes beijos quentes, meu amor, mas não me
fará abrir as pernas assim tão facilmente.
Ele devolveu um olhar carrancudo.
-Veremos.
Érica sorriu e afastou-o com um empurrão.
-Chega de aproveitar-se de mim, meu querido. Precisamos resolver sua
situação.
-O que faremos?
Ela suspirou.
-Precisarei descer para ajudá-lo a escolher algumas famílias para começar a
povoar ESCOLHER DEPOIS. Mas antes, Heitor nos espera para explicar o próximo
passo.

O enorme deus encontrava-se sobre um grande arco de ferro pintado de


branco. Ele observava enquanto todos se sentavam à sua frente, com Vesúvio ao seu
lado. Neve sentou-se ao canto mais afastado com Érica, enquanto Rosácea, que não
desviava o olhar sobre si, sentou na primeira carteira. Em determinado momento, já
cansado de ser vigiada, Neve virou-se para a moça, deu-lhe uma piscadela e soprou
um beijo em sua direção. Rosácea ficou vermelha e virou-se para frente, não
voltando mais a se virar.
-Você chega a ser cruel, Neve. – sussurrou Érica, enquanto o marido dava as
boas-vindas aos reis – Brincando com os sentimentos da moça.
-Assim como a minha senhora brinca com os meus?
Érica riu baixinho e passou uma mão sob seu queixo.
-Não estou brincando com ninguém. Você que está se iludindo.
Neve aproximou a boca de seu ouvido.
-Você ainda me dará seu coração, minha senhora. – mordeu a orelha de Érica
e depois lhe beijou o pescoço. Sentiu Érica ficar arrepiada e gemer baixo. Ele se
afastou no exato momento em que Heitor começara a falar coisas importantes.
-Só posso elogiar os reinos construídos e...
Milene o interrompeu.
-E elogiar principalmente Neve, pelo reino mais bonito, elegante e
estrategicamente protegido de todos. – ela puxou uma salva de palmas que foi
acompanhada por todos os deuses com exceção de Heitor, Noam e Yael, que o
olhavam carrancudos.
Neve fez um aceno breve agradecendo a todos.
-Milene. – Heitor levantou a mão e fez o silêncio – Eu já ia elogiá-lo, mas
você me interrompeu. – Neve escutou a mente de todos os deuses repetindo a
mesma palavra ao mesmo tempo: Mentiroso. – Que seja! – disse sorrindo – Vamos à
parte que realmente interessa: a troca de estações. Estão vendo este arco? É ele que
os farão trocar de postos. Por favor, venham os reis até aqui. – ele saiu de debaixo
do arco e acenou.
Neve não se levantou, apenas olhou para Érica esperando a confirmação
desta. Ela empurrou seu braço para sair, mas Neve estava desconfiado. O que
estavam pretendendo? Quando finalmente levantou-se e andou até o arco de dois
metros de altura, um e meio de largura e cinqüenta centímetros de profundidade,
Neve permaneceu o mais longe sem parecer covarde. Rosácea parou ao seu lado e
deixou que seu braço nu roçasse levemente contra sua palma. Octávio parou do
outro lado do arco, ao lado de Vesúvio, que quase estava sob o arco, de tanta intriga
que sentia.
-Muito bem. – disse Heitor – Será mais fácil mostrar do que explicar.
Vesúvio, poderia, por favor, parar sob o arco?
O homem alto fez o comando antes mesmo que acabasse. Subitamente,
folhas verde-bandeira começaram a subir “sabem-os-Deuses-da-onde” pelo arco.
Elas enrolaram-se por entre os canos e quando se encontraram sob o topo, formaram
o desenho de uma sereia com seus galhinhos verdes.
Neve, quando viu as folhas escalando sozinhas pelo arco, em um reflexo não
pensado, agarrou o cabo da espada e puxou-a cinco centímetros para fora da bainha
antes de se controlar. Rosácea agarrou seu braço e soltou um grito de susto. Octávio
deu um salto para trás e colocou as mãos na frente do corpo. E Vesúvio permaneceu
estranhamente calmo, como se já soubesse.
-Estão vendo? – disse Heitor, apontando para as folhas – Este arco
denominará que estação está reinando. É muito simples: quando um rei acaba seu
reinado e o outro começa, ambos devem passar por ob o arco ao mesmo tempo,
andando em direções opostas. Assim que passarem, o arco mudará a forma e
indicará que o rei seguinte poderá reinar.
-Para que devemos fazer? – perguntou Neve – Não seria mais fácil
simplesmente dizer: “Olha! Acabei! Pode vir o próximo!”?
Heitor balançou a cabeça, irritado.
-Não seja hipócrita. Um rei pode querer o poder inteiro para si mesmo e
recusar-se a passá-lo para o próximo. O arco é programado para ficar na mesma
forma por três meses, mas, se ao fim deste processo, ninguém passar, o rei perde a
sua estação.
-Só por que não passou por debaixo de uma arco de ferro?
O pescoço de Heitor ficou vermelho.
-Este arco se chama Solstício e Equinócio. Ele movimentará a terra inteira,
inclinando-a. Assim, em determinadas épocas, estaremos mais inclinados na direção
do sol, em outras menos e em outras, como sempre fora. É isto o que vocês devem
controlar: a terra enquanto ela está inclinada em determinada posição em relação ao
sol. Entendeu?
Neve encarou-o.
-Não.
Heitor bufou e virou-se de costas. Alguns risinhos escaparam, mas logo
foram contidos. Neve sorriu quando Heitor virou-se novamente para ele. Porém,
antes que o deus dissesse alguma coisa, Rosácea disse:
-Você está querendo me dizer o seguinte: nós, os quatro reis, passaremos por
debaixo deste Solstício e Equinócio e ele inclinará a terra em direção ao sol ou o
contrário. Assim, nós controlaremos o mundo enquanto a terra está nesta posição. É
isto?
-Sim. – responderam Heitor e Vesúvio juntos.
-Controlaremos exatamente como? – Neve cruzou os braços e fez um rosto
de cético.
Desta vez, Heitor sorriu infantilmente.
-Isto vocês descobrirão sozinhos.
Neve não retrucou o sorriso e virou-se para Érica. Ela estava muito entretida
acariciando a barriga.
-Ótimo! Espero que não tenham mais nenhuma dúvida! – Heitor bateu as
palmas – Os outros reis gostariam de passar pelo arco para vê-lo melhor?
O primeiro foi Octávio. Quando ficou sob o arco, as folhas verdes
começaram a rachar e tornaram-se marrons, amarelas e laranjas. A sereia no alto
desmanchou-se e deu lugar a uma raposa. Quando viu o animal, Neve começou a rir.
Quer dizer que a nossa forma animal aparece sobre Solstício e Equinócio? Isto
significa que Vesúvio transforma-se em uma sereia! Ah, eu gostaria de ver como ele
é com seios e cabelos longos de alga!
Neve foi o seguinte. As folhas caíram e galhos brancos cobertos por cristais
brilhantes de neve tomaram seu lugar. O ferro do arco ficou ligeiramente cinza. A
raposa também se desmanchou e deu lugar a um a lobo que rosnava.
Rosácea foi a última. Dos galhos cheios de neve, flores vermelhas e brancas
floresceram e um cisne tomou o lugar do lobo. Um aroma gostoso espalhava-se ao
redor.
Quando os reis saíram, Vesúvio voltou a ficar sob Solstício e Equinócio e
este tomou sua forma de folhas verdes. Heitor sorriu e disse:
-Como Vesúvio é rei da primeira estação, já deixaremos o arco assim.
Solstício e Equinócio permanecerá na clareira onde vocês começaram. – ele
observou os quatro reis. – Se não têm nada a acrescentar, já podem voltar.
Neve olhou com expectativa para Érica, mas ela já não estava mais sobre sua
cadeira.
O mundo girou à sua volta e ficou negro.

Neve sentia-se um pouco enjoado, mas não deixou que isto transparecesse
para os outros. Novamente na clareira, eles fintavam o aço cheio de folhas.
-O que será que acontece se um de nós passarmos agora sob o arco? –
perguntou Octávio.
-Eu não sei. – respondeu Neve – Por que você não faz um teste?
Octávio olhou-o surpreso, mas não respondeu. Rosácea soltou um suave
risinho, enquanto Vesúvio olhava para o céu.
-Controlar o mundo... – disse o homenzarrão para as nuvens – Tenho apenas
três meses para descobrir como. – ele voltou-se para os outros – Se me dão licença,
senhores, preciso aprender a dominar o mundo. – ele sorriu com jovialidade e
estendeu o braço para Rosácea – Minha senhora.
Rosácea encarou o braço, sem entender exatamente o que deveria fazer.
Vendo a incerteza da moça, Vesúvio disse:
-Por que não me acompanha até meu castelo, minha senhora?
Rosácea riu com desprezo.
-Não sou sua senhora. E além do que – ela pegou o braço de Neve, que a
olhou surpreso – Neve já me convidou para ir ao castelo dele!
Ela virou-se para ele, esperando que ele concordasse.
-Sim. – disse Neve, depois de algum tempo – Eu a convidei.
Vesúvio o olhou com nojo e bufou.
-Você não perde tempo hã? – disse, com asco – Mas não pense que eu
deixarei passar, Neve. – cuspiu o nome como se fosse uma praga – Terei meu troco.
Ele virou as costas e sumiu por entre as sombras das árvores. Octávio ficou
algum tempo a observá-lo, mas depois virou para o casal sorrindo:
-Seria uma visão bem interessante, minha cara Rosácea, vê-la amando um
peixe.
Os dois riram menos Neve que ainda se perguntava por Érica. Ah, minha
senhora... Terá me enganado? Depois, Octávio se despediu, dizendo que precisava
fazer alguns ajustes no seu reino. Quando a raposa vermelha desapareceu no meio
das sombras, Neve soltou-se de Rosácea e fez um mesura seca.
-É aqui que nos separamos pela segunda vez, cara donzela. Preciso resolver
um problema em meu reino e deixei um... Amigo muito querido sozinho, e ele pode
estar muito inquieto sem mim.
-E por que não me leva junto, meu amado cavaleiro? – ela abraçou seus
ombros.
Neve não resistiu e abraçou sua cintura.
-Não posso, minha donzela. Levá-la-ia de bom grado, mas somos de reinos
diferentes e é nosso destino governar separados. – ele passou um dedo sobre seu
rosto – Perdoe este fiel cavaleiro, minha donzela, mas não podemos ficar juntos. –
ele levantou os olhos, pensativo – Ainda não. – e deixou um doce beijo sobre seus
lábios.
Rosácea deitou a cabeça em seu ombro e suspirou.
-Eu entendo, meu cavaleiro. Devemos nos separar?
-Sim. – ele alisou seus impecáveis cabelos.
Ela afastou-se de seus braços e sorriu.
-Então... Até o dia em que você me aceitar. – deixou um beijo seco em seu
rosto, virou as costas e transformou-se em um cisne branco.
Neve transformou-se em lobo quando o cisne partiu e preparava-se para
partir quando sentiu o cheiro de alguém estranho. Ele rosnou.
-Isto são modos de receber sua senhora, meu querido?
Neve virou-se de costas e deparou com Érica parada à borda da floresta.
Estava coberta por montes de peles vermelhas e pretas, os cabelos negros escorrendo
pelas costas, as mãos pousadas sobre a barriga. Quando a viu, Neve voltou a ser
homem e correu para abraçá-la.
-Pensei que tivesse me abandonado!
Érica retribuiu o abraço, mas logo se afastou.
-Não temos tempo para isto, meu querido. Precisamos resolver esta questão
de seu reino.
-E o que faremos?
-Vamos até os doze reinos mais fortes que existem atualmente e você
escolherá doze famílias para serem os clãs principais de sua família.
Neve cruzou os braços e encarou o rosto bondoso de sua senhora.
-Tão simples assim? E elas virão de boa vontade?
Érica tombou a cabeça para o lado, como um passarinho.
-E alguma vez você ouviu sobre alguém que desrespeitou o pedido de um
deus?
Neve, sorrindo com entusiasmo, abraçou a cintura de sua senhora e levantou-
a do chão.
-O que eu seria sem você, minha senhora?
-Uma estátua. – ela contorceu para sair de seu abraço – Já disse que não
temos tempo para isto, Neve. Chame seu corcel.
Neve encarou-a, perplexo.
-Segredo? Mas ele está longe, no ESCOLHER DEPOIS.
Érica estudou com um olhar indignado.
-E qual o problema? Assobie alto, ele o ouvirá.
Neve ainda não estava completamente confiante, porém fez o que lhe foi
ordenado. Assobiou o mais alto e longamente que conseguiu, até perder o fôlego.
-E agora? – perguntou.
-Espere. – respondeu a deusa, alisando a saia.
Pouco mais de um minuto depois, Neve ouviu um relincho correndo com o
vento. E no instante seguinte, Segredo saltou por sobre os arbustos e cavalgou em
sua direção.
-Mas... Como?
-Ele foi criado para obedecê-lo, Neve. – respondeu Érica, aproximando-se do
corcel negro – Quando você precisar dele, ele virá, não importa onde você esteja.
Neve passou a mão sobre o longo focinho de Segredo e este bufou. Incrível...
-Ajude-me a subir, Neve. – disse Érica, com as mãos sobre o dorso de
Segredo – Você pode correr na forma de lobo, mas eu terei que ir montada.
Ele aproximou-se e empurrou a deusa com uma única mão para cima de
Segredo. Ela tentou se ajeitar o melhor que pode, mas aparentemente a grande
barriga e a falta de uma cela estavam atrapalhando-a. Neve fingiu não vir seu
desconforto e voltou para a forma de lobo.
-Partimos, meu querido. ESCOLHER DEPOIS precisa de clãs.

Capítulo Três
Estandartes ao vento

Você também pode gostar