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A POLARIDADE SAUDÁVEL DO PROCESSO DO ADOECER

Fabíola Mansur Polito Gaspar


(Trabalho apresentado no VII Encontro Nacional de Gestalt Terapia - IV Congresso Nacional da
Abordagem Gestáltica - De 8 a 12 de outubro de 1999 - Goiânia-GO - Publicado na Revista:
Abordagem Gestáltica - Ecologia Humana e o III Milênio em CD)

INTRODUÇÃO

No ano de 1992, na cidade de Juiz de Fora, interior de Minas Gerais, ingresso


na Faculdade de Psicologia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. O
interesse por tal área nasceu bem antes do próprio vestibular e foi se enraizando
e tomando maior consistência no decorrer dos estudos.

No segundo semestre do primeiro ano de curso, comecei a participar de


pequenos fóruns de Gestalt-Terapia, cuja motivação me proporcionou realizar,
posteriormente, o primeiro Curso de Formação em Gestalt-Terapia, contando
com aspectos teórico-clínicos, complementados com uma terapia em grupo. Na
verdade, esta abordagem chamava a atenção pela sua visão humanista do
homem, em constante integração com o meio ambiente, sem restringi-lo ao
individual, ao próprio "locus" terapêutico. O que mais permeava a curiosidade e
o desejo de aprofundamento nesta linha de trabalho era a possibilidade de
privilegiar o significado único e concreto da experiência de cada um. Neste
sentido, a abertura para um novo caminho pessoal e profissional foi sustentado
e transformado por esta configuração viva, dinâmica e processual da Gestalt-
Terapia.

Enquanto graduanda, tive o privilégio de realizar um dos estágios dos quais


considero de maior importância pelo aprendizado, empenho e interesse pela
área foi o do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Neste, prestei serviços no setor da Clínica Médica e Pediatria.

Ao terminar a faculdade, em dezembro de 1996, meu propósito de dar


continuidade ao estudo da Gestalt-Terapia se tornou mais forte, motivando a ida
para a cidade de São Paulo, a fim de realizar o Curso de Especialização no
Instituto Sedes Sapientiae. Confirmando a tendência e o interesse pela área
hospitalar, fui aprovada no concurso público do Hospital de Servidor Público
Estadual - SP. Nesta instituição, atendia pacientes de todas as idades, em
terapia e psicodiagnóstico e, por outro lado, pacientes com os mais variados
tipos de doenças, a partir dos pedidos de interconsultas.

Em razão de contar com um grande número de atendimentos a pacientes


terminais, algumas questões foram causando um desconforto, um incômodo,
culminando com o desejo de não se estagnar frente o vazio, o sofrimento
humanos decorrentes do adoecimento. Pessoal e profissionalmente, havia uma
forte impressão de que, muito mais do que escutar o paciente e tratá-lo
emocional e sintomaticamente, era possível levá-lo a descobrir o que sua
enfermidade significava, sem nos acomodarmos e fecharmos os sentidos para
tal fenômeno. Daí uma grande motivação para reflexão: como enxergar o
adoecimento como uma experiência de transformação ao próprio indivíduo? O
que se pode fazer para resgatar com estes sujeitos as suas potencialidades,
mesmo em situações de gravidade extrema? Como favorecer que o paciente,
principalmente o hospitalizado, reencontre um sentido para sua vida, mediante
a peculiaridade de seu diagnóstico?

A partir destes questionamentos é que a escolha da abordagem gestáltica toma


lugar, uma vez que ela permite "tocar" o ser humano, fundamentada num diálogo
sensível, cuja pretensão não é, absolutamente, fragmentá-lo em patologias, mas
sim, estar a serviço dos recursos que ainda são possíveis de se resgatar.

Neste sentido, tal trabalho não tem a intenção de ser romântico ou recheado de
esperanças irreais, vazias e de um otimismo ilusório. Muito pelo contrário,
objetiva, a partir da experiência em um hospital geral, sugerir a possibilidade de
oferecer ao paciente uma nova visão do processo do adoecer, aparentemente
desintegrador, percebendo-o, outrossim, como uma vivência transformadora.
Pode-se ainda dizer que este estudo é também um "grito de alerta", como uma
espécie de convocação a todos os profissionais da saúde, principalmente
psicólogos, para que reflitam sobre sua real postura de agentes ativos dentro do
contexto hospitalar, no sentido de reverter o significado restrito e precário que se
vem dando ao adoecimento.

Justifica-se também embasar este estudo com a teoria da Gestalt-Terapia, uma


vez que esta abordagem se fundamenta no existencialismo e na fenomenologia,
enfatizando profundamente a potencialidade humana, mesmo em situações de
grave acometimento. A compreensão do homem a partir de sua existência,
subjetividade e potencial de constante crescimento e autorregulação, favorece a
abertura para conceber o adoecer como uma etapa de ajustamento criativo
disfuncional, capaz de, muitas vezes, salvaguardar o indivíduo da
insuportabilidade de determinadas experiências.

Um outro objetivo que este estudo vem propiciar é o incremento das produções
gestálticas na área da saúde. A bibliografia neste contexto hospitalar é restrita,
sem oportunidade de mostrar o que se pode realizar na prática do atendimento,
principalmente com pacientes no leito. Aproveitando a leitura da Gestalt-Terapia,
deseja-se enfatizar que o estar doente, como a própria expressão indica, visa
um estado, um processo e, não, algo estático, sintomático e sem perspectiva de
transformação. O grande desafio é justamente ampliar este invólucro de ideias
limitadas. Embutida na patologia pode estar uma tensão emocional que, se não
cuidada, permite a supressão dos recursos próprios do indivíduo, tornando-o
"cego" às suas potencialidades e autossuporte. Se pudermos fazer uma
analogia, uma semente precisa apodrecer
e se desfazer, a fim de que dê frutos.

Caso isto não ocorra, ela perde a sua função. Assim também é o adoecer
humano: se um estado de debilitação não puder ser reconfigurado e reconhecido
como um percurso de crescimento, o homem fica desacreditado de si, fechando
suas fronteiras de contato, numa restrição e paralisação, muitas vezes, fatais.
Faz-se então urgente modificar o foco de apreensão deste processo,
decodificando a serviço do que ou de quem este ajustamento disfuncional está
tomando passagem. Para tanto, a instrumentalização gestáltica se mostra
eficaz, em sua abordagem prática e teórica, ao se aventurar a percorrer sempre
o limite daquilo que, em nenhum instante, o homem perdeu: sua liberdade de
ser!

DESENVOLVIMENTO

"Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento (...)


Tempo para nascer, e tempo para morrer;
Tempo para plantar, e tempo para arrancar o que foi plantado;
Tempo para matar, e tempo para sarar;
Tempo para demolir, e tempo para construir;
Tempo para chorar, e tempo para rir;
Tempo para gemer, e tempo para dançar;
Tempo para atirar pedras, e tempo para ajuntá-las;
Tempo para dar abraços, e tempo para apartar-se;
Tempo para procurar, e tempo para ceder;
Tempo para guardar, e tempo para jogar fora;
Tempo para rasgar, e tempo para costurar;
Tempo para calar, e tempo para falar;
Tempo para amar, e tempo para odiar;
Tempo para a guerra, e tempo para a paz".

A cronicidade de insatisfações, frustrações e sofrimento pelos quais vem


passando a sociedade como um todo tem impedido que o "tempo de construir, o
tempo de nascer e também de sarar" sejam vivenciados de forma satisfatória.
Por esta razão, a manutenção do isolamento pessoal e social, a obstrução da
rede de inúmeras relações possíveis entre os indivíduos e, consequentemente,
a restrição da expressão e disponibilidade de experimentar os conflitos de
maneira a retirar destas vivências um fio de crescimento e nutrição ao próprio
organismo têm perdido espaço assustadoramente.

Em instituições hospitalares nas quais ingressei, em particular, estas questões


ficam mais presentes, uma vez que a constante relação com o adoecer restringe
a viabilidade de uma visão mais dinâmica do mesmo, condicionando tal processo
a uma polaridade exclusivamente de desorganização e desequilíbrio bio-psico-
físico.

A partir daí, revela-se a importância de ressignificar estes olhares e


comportamentos à luz da Gestalt-Terapia, enfatizando que o processo do
adoecer deve ser visto como uma experiência peculiar do indivíduo e, segundo
o existencialismo, repleta de liberdade, ou seja, "a capacidade do indivíduo de
decidir sobre sua vida escolhendo-a e por ela se responsabilizando" (PENHA, J.,
1983, p.65).

Ampliando as Fronteiras na Instituição Hospitalar

Durante muito tempo, o hospital era visto unicamente como um lugar onde se
priorizava a gravidade dos casos e o contato incessante com a morte. Sua marca
era a eterna luta entre a vida e a morte, culminando no aprisionamento da
esperança e da "cura". Os significados relevantes que as doenças iam
ganhando, deixavam o homem no anonimato de suas potencialidades. Aliás, o
que é isto? Será possível falar de potencialidades humanas, de aspecto saudável
no processo de adoecimento em plena instituição hospitalar?

Este é um desafio que começa aqui e que prima por reconhecer que o grande
engano do sistema de saúde é acreditar que seus profissionais detêm o saber
sobre o outro - paciente. Muito pelo contrário, torna-se urgente apontar que "esta
verdade a priori" apaga a capacidade intrínseca do sujeito doente de validar o
conhecimento que tem de si mesmo e até de propor o que ele precisa, auxiliando
o manejo de seu tratamento.

Entretanto, na maioria das vezes, a atitude do profissional frente ao paciente


varia de acordo com sua visão de homem e com todo o aparato filosófico imbuído
nesta mesma concepção. Consequentemente, há uma interferência na forma
como esta relação vai se configurar. O que se pretende revelar com isto é que o
ranço da dicotomia entre mente - corpo, físico - psíquico, pensamento -
sensação, ainda estão presentes na prática cotidiana de alguns profissionais da
saúde, perfazendo a visão mecanicista de homem. E, na minha prática, pude
observar a dificuldade em resgatar do mecanicismo sua utilidade ao tratamento
das doenças e, ao mesmo tempo, relacionar esta visão com outras alternativas
de cunho mais humanizado, não se prendendo excessivamente a
generalizações, mas percorrendo e validando singularidades.

O importante a se perceber de tudo isto é que, em inúmeros momentos do


movimento médico-científico, o mecanicismo foi extremamente profícuo, tendo
fundamentado os meios necessários para o avanço e a expansão de
propriedades e métodos de "cura" para as doenças em geral. Este avanço é
imprescindível sim, mas acabou contribuindo para a dicotomização do indivíduo
e, muitas vezes, deixou, paradoxalmente, a pessoa, sua humanidade e história,
à margem de todo o tratamento.

Por outro lado, pode acontecer o perigo de se cair no extremo oposto; ou seja,
naquele onde há uma tal "psicologização" do adoecer e uma
categorização emocional das somatizações, que mais uma dicotomia se
manifesta. E, em consequência, o humano continua sendo distorcido em sua
totalidade. Por esta razão é que, neste trabalho, pretendo apresentar a visão
fenomenológico-existencial, como uma das alternativas possíveis de abarcar o
homem e seu adoecimento, privilegiando a integração de partes, até então vistas
como fragmentadas e de escassa potencialidade. Nesta visão, a patologia
precisa ser explorada sim, e até medicalizada; mas dentro de um contexto; como
um processo que, neste momento, vem bloquear a expressão e percepção do
indivíduo em sua forma mais produtiva. E é por este motivo que
se faz necessária uma ampliação das maneiras de abarcar o adoecer, na medida
em que é fundamental delegar ao próprio sujeito hospitalizado os poderes de
buscar um sentido para sua vida; de reconfigurar sua existência.

É neste aspecto que se fundamenta a conceituação de saúde para os


fenomenólogos e existencialistas: é a capacidade de "... estabelecer articulações
eficientes entre a amplitude e as restrições de nosso existir" (FORGHIERI, 1993,
p. 53), uma vez que participamos ativamente deste processo de crescimento. E,
aos olhos dos profissionais, isto só será possível quando o todo não for ignorado.
Ou seja, se os procedimentos médicos e psicológicos se restringirem às partes
- um órgão, um membro, uma dor - a integração das diferenças individuais estará
longe de ser alcançada e, por conseguinte, o processo de adoecimento não
poderá ser visto como "um período de ativo
crescimento e vir-a-ser" (LESHAN, 1992, p. 149).

Em contrapartida, é extremamente producente ressaltar que a proposta de uma


atitude mais humanizada por parte dos profissionais de saúde não significa
igualá-los em um só tipo de função. Ou seja, ser humano não implica em
exclusivamente ouvir o paciente. Não há como exigir que médicos cirurgiões, por
exemplo, fiquem escutando as questões existenciais dos pacientes. Por outro
lado, sua humanidade pode se fazer presente ao não esquecer uma agulha no
interior do corpo daquele a quem operou.

Um enfermeiro, por sua vez, também estará tendo uma atitude amorosa e
humanizada, na medida em que atentar para como está o soro ou um curativo
que está vazando, ao invés de, unicamente, preocupar-se com os sonhos,
medos e expectativas daqueles dos quais cuida. Torna-se claro que é muito
tênue a linha que separa as atitudes de cada profissional da área de saúde. Mas,
o importante é que cada um reconheça seus limites e capacidades no lidar com
o outro, dentro das condições de sua especialidade e levando em conta sua
singularidade enquanto pessoa.

Para alcançar este novo olhar e esta nova atitude frente o adoecer, é
imprescindível que se reavalie e se reconceitue a própria doença. Esta pode ser
entendida como uma parte estruturante da existência. E isto significa que a
doença também pode ser vista como "... um fenômeno do cotidiano" (KOVÁCS,
1992: 144), prescindindo de uma singularização, cujos contextos não se
fundamentem em polaridades fragmentadas, mas em polaridades que se
complementem, a fim de estarem a serviço da própria "cura", na medida em que
assumirem um sentido que esteja a serviço do próprio doente em si. Perceber o
processo de adoecimento como uma polaridade do estado saudável é uma
novidade, talvez pouco fundamentada até então.

Morte e Doença: Configurações de um Processo

'Houve um tempo em que nosso poder perante a Morte era muito pequeno. E,
por isso, os homens e as mulheres dedicavam-se a ouvir a sua voz e podiam
tornar-se sábios na arte de viver. Hoje, nosso poder aumentou, a Morte foi
definida como inimiga a ser derrotada, fomos possuídos pela fantasia onipotente
de nos livrarmos de seu toque. Com isso, nós nos tornarmos surdos às lições
que ela pode nos ensinar. E nos encontramos diante do perigo de que, quanto
mais poderosos formos perante ela (inutilmente, porque só podemos adiar...),
mais tolos nos tornamos na arte de viver. E quando isto acontece, a Morte que
poderia ser conselheira sábia transforma-se em inimiga que nos devora por
detrás. Acho que para recuperar um pouco da sabedoria de viver seria preciso
que nos tornássemos discípulos e não inimigos da Morte.

Mas, para isso, seria preciso abrir espaços em nossas vidas para ouvir a sua
voz...' (Rubem Alves, 1996, p. 73). Há algumas décadas atrás, a morte era aceita
como parte do desenvolvimento humano, onde os corpos eram capazes de
"...fertilizar a terra, acelerando o crescimento das plantas, sendo fonte de vida"
(KOVÁCS, 1992: 47). Por outro lado, nesta mesma época, o sacrifício de um
animal e posterior ingestão do seu sangue guardava a ideia de incorporação dos
elementos vitais do morto.

Assim, ao reconhecer a possibilidade da morte, ou seja, a íntima relação que


nutre e mantém com a vida, o que nos impede de realizar o mesmo com o
processo do adoecer? Mediante a observação de que o adoecimento sinaliza e
carrega consigo uma estreita proximidade em relação à finitude, faz-se
importante desmistificar a estranheza com que tal relação parece vir sendo
cristalizada. Isto em razão de que, muito freqüentemente, constrói-se um aparato
de causa e efeito para tentar explicar imediata e racionalmente a correlação que
adoecer e morte provocam.
A morte, por sua vez, é um fenômeno com o qual cada ser humano se defronta
dia-a-dia; entretanto, busca-se incessantemente postergá-la e impedir sua visita
até em pensamento, numa crença de que a própria finitude está longe, e ainda
de que a morte traz a sensação de anonimato, não podendo ou não sabendo
fazer dela sinônimo do ápice de uma construção de vida. Neste sentido, é preciso
trabalhar por uma conscientização que volte o olhar para a possibilidade de
tornar a morte singular, batizada pela história de vida de cada um, contando com
experiências particulares e significativas. E ainda procurar colher dela um fio
salutar de transformação e crescimento pessoal, podendo ser ampliado para o
cultural.
Uma expressão de HELOÍSA CHIATTONE (s/d, p.59) traduz belamente esta
concepção: "aquele que não 'morre' várias vezes, não 'nasce'. Por isso, onde
não há morte, não há vida pois a morte dá sentido à vida. Então, o indivíduo que
nega a morte, não é criativo e 'vivo'. A negação da morte leva o indivíduo à
autoalienação, a um estado de incompletamento pois não pode compreender-se
integralmente..." E esta morte da qual se fala não é a morte literal, obviamente,
mas carrega um sentido filosófico de que se tem a liberdade de matar tudo aquilo
que intoxica, que aliena. Mas somente na medida em que este "lixo" for
integrado, digerido e nutritivamente assimilado à totalidade do morrer, poderá
então, renascer.
Esta ideia é fundamental, pois, muitas vezes, experiências podem ser
permeadas de tentativas de se "matar" aspectos aparentemente tóxicos de si
mesmo, sem avaliar que este tóxico, ao ganhar uma nova configuração, pode se
transformar em um produto extremamente nutritivo. Esta é a chave para a
compreensão da polaridade saudável do adoecer e, consequentemente, da
morte. Infelizmente, a historicidade da cultura ocidental aponta para uma
dificuldade em integrar a mortalidade a um renascimento, o que a deixa "manca"
diante da riqueza que o contato com a morte no aqui-e-agora poderia oferecer.
Isto significa incluir a noção de morte como um fenômeno existencial, onde sua
percepção no agora é simultânea ao contato com a vida, na medida em que a
cada ciclo vital, uma gestalt se abre para dar lugar a outra que pede por
satisfação. Existencialmente, estes ciclos impulsionam o homem ao
crescimento, via experiência.
Neste sentido, é que o trabalho gestáltico pretende, aqui, propor-se ao resgate
da consciência da morte e do adoecer no aqui-e-agora, considerando sua direta
ligação com o ajustamento criativo e com o funcionamento saudável do
organismo.

Gestalt-Terapia: As polaridades do Processo do Adoecer

Não há como pensar no adoecer em Gestalt-Terapia sem relacionar este


processo com a saúde, pois um dos fundamentos básicos desta abordagem é
justamente o pensamento holístico. Mediante tal concepção, não há como
ocupar-se daquele processo, do paciente e do profissional que o acompanha
fora de um contexto que LATNER denominou de "campo integrado" (1987, p.02).
De acordo com a conceituação gestáltica do adoecer, é importante acrescentar
que esta abordagem imprime constantemente uma visão processual de todas as
circunstâncias vivenciadas pelo homem.

E este processo em si corresponde a um interminável fluir de formação e


destruição de figuras, ora experimentando a assimilação, ora a alienação daquilo
que entrar em contato, na fronteira. A partir desta crença, "... o contato tem de
ser uma transformação criativa. Por outro lado, a criatividade que não está
continuamente destruindo e assimilando um ambiente dado na percepção, e
resistindo à manipulação, é inútil para o organismo e permanece superficial,
faltando-lhe energia..." (PERLS, 1997, p. 211). Desta forma, ao buscar
fundamentar a polaridade saudável do processo de adoecimento, é essencial
não perder de vista que tal funcionalidade só será criativa, na medida em que
houver assimilação e crescimento.

Na linha desta polarização do adoecer, há um exemplo bastante ilustrativo em


que a palavra grega "pharmakon significa veneno e também remédio"
(DETHLEFSEN, 1997, p. 25). Dentro desta configuração o adoecimento pode
ser tanto um veneno quanto um remédio para o homem, dependendo de como
este experienciar tal processo. Caso não fique cristalizado apenas em uma das
polaridades mas, ao contrário, permita-se verter por quaisquer uma delas, obterá
uma visão e uma postura completamente diferentes diante de seus sintomas,
sofrimento e estados psíquico e clínico em geral.

Segundo DETHLEFSEN e DAHLKE (1997, p. 25), "a polaridade é como uma


porta em que num dos lados está escrito Entrada, e no outro Saída. Continua
sendo a mesma porta mas, dependendo do lado pelo qual nos aproximamos
dela, vemos apenas um de seus aspectos". Fazendo uma analogia com o
processo do adoecer, pode-se dizer que, se este for encarado exclusivamente
como instrumento disfuncional e estereotipado, a face de sua totalidade criativa
inerente à existência ficará oculta aos olhos cegos dos profissionais e seus
doentes que não se dispuserem a visitar o outro lado da porta. O mesmo pode
acontecer com relação à morte: "a morte pertence à vida, como pertence o
nascimento. O caminhar tanto está em levantar o pé, como em pousá-lo no chão"
(TAGORE - Pássaros Errantes, CCXVII).

É fundamental ressaltar que, deste outro lado, pode não estar a "cura" entendida
como a vitória sobre os sintomas, a saúde. Mas, mais importante que isto, pode
estar o amadurecimento, a transformação, a transmutação do adoecimento e o
consequente contato com os recursos pessoais. Aqui se encontra a grande
diferença entre "...lutar contra a doença e transmutá-la. A cura acontece
exclusivamente pela transmutação da doença e nunca pela vitória sobre um
sintoma, pois a cura pressupõe a compreensão de que o ser humano se tornou
mais sadio, ou seja, um todo se tornou mais perfeito" (idem, p.18).

Na linguagem gestáltica, esta transmutação pode também ser correlacionada à


expansão da "awareness" e do contato entre o indivíduo, seu ambiente e seu
adoecimento, pressupondo que o alcance do estado saudável implica a
mobilização de energia para satisfazer uma "necessidade-figura" e a
conseqüente troca intersubjetiva no campo vivencial, a fim de ampliar o potencial
de ação do indivíduo em seu diálogo consigo e com o meio.

Assim, quando os pacientes ousarem lançar mão de seus próprios recursos (que
pode ser a partir, ou não, do suporte proveniente dos atendimentos terapêuticos),
o adoecer ganhará um sentido de movimento, de expansão para um contato
funcional e dinâmico, num encontro que, provavelmente, possa vislumbrar um
propósito de vida e uma abertura de possibilidades. Eis aqui uma outra diferença
entre lutar contra tal processo, extirpar os sintomas e, ressignificá-los em prol de
um funcionamento saudável!

"A doença precisa ser vista como a 'abertura para novas possibilidades
existenciais a partir do confronto com determinados impedimentos'..."
(REHFELD, 1991, p. 28-29). Se o indivíduo não se permite mergulhar no próprio
adoecimento e perceber o que ele quer dizer, ou como vem fazendo parte de
sua vida, dificilmente poderá experimentar-se são. A exploração de si mesmo, o
confronto com toda a gama de bloqueios e cristalizações que participam do
contato e da relação sujeito-ambiente deve surgir como um processo ativo e
delineador de uma conscientização fluida, inteira da totalidade fenomenológico-
existencial.

E este mergulho implica também em reconhecer-se frágil, portador de limites


próprios; fruto de experiências "deformadas" na interação com o meio. Significa
ainda admitir que, inúmeras vezes, o que fez parte do desenvolvimento pessoal
foi uma sucessão de desconfirmações, desvalorizações e insatisfações que
culminaram numa opressão das habilidades em transformar o disfuncional em
funcional. O adoecer vem espelhar uma das facetas deste limiar entre a dor e a
realidade da condição humana.

Retomando e melhor refletindo sobre o funcionamento saudável, em Gestalt-


Terapia, este se refere ao "fluxo contínuo e energizado de awareness e formação
perceptual de figura-fundo, onde através de fronteiras permeáveis e flexíveis, o
indivíduo interage criativamente com seu meio ambiente, desenvolvendo
recursos novos para responder às dominâncias que se afigurem e usando
funções de contato para poder avaliar e apropriadamente estabelecer contatos
enriquecedores e interrompê-los quando tóxicos e intoleráveis" (CIORNAI, 1995,
p. 74).

Ao contrário, o funcionamento não saudável se caracteriza "por interrupções,


inibições e obstruções destes processos, com a conseqüente formação de
figuras fracas, desvitalizadas, mal definidas, nebulosas, confusas à percepção,
que ao não se completarem vão dificultando progressivamente as possibilidades
de contatos criativos, vitalizados e vitalizantes com o presente" (idem, ibidem,
p.74).

Muitas vezes, mediante o primeiro impacto de um diagnóstico ou de uma


hospitalização, o indivíduo pode carecer tanto desta fluidez, que acaba perdendo
o contato com seu querer e se distanciando de si mesmo (RIBEIRO, 1998). Com
a interrupção e a inibição do processo criativo, há uma irrupção de sintomas que
deixam o corpo como figura, enquanto os recursos se tornam nebulosos e
enfraquecidos psicoenergeticamente.
O que venho observando na prática hospitalar é que, no momento da notícia
diagnóstica por exemplo, é como se houvesse uma espécie de avalanche de
toxinas e lixos existenciais que cegam, enfraquecem e alienam quaisquer
produtos nutritivos que pudessem conduzir a um contato mais eficaz com a
polaridade saudável do adoecer. E, na grande maioria, são estas toxinas que
obstruem o fluir do processo de crescimento, tornando turva qualquer tentativa
de identificação da figura dominante, o que, consequentemente, afasta
articulações que ativem recursos e potencialidades.
É neste instante que a sintomatologia agride com força total, pois, de acordo com
FRAZÃO (ano, p.09), a compreensão de "sintoma é que quando um afeto, ou
necessidade, não pode se realizar, a Gestalt fica incompleta, causando
sofrimento e angústia. Com vistas a tornar estes sentimentos suportáveis, a
configuração original se deforma em busca de fechamento.
Cria-se assim uma nova forma, que na realidade é uma deformação" (Texto: 20
anos de Gestalt-Terapia: caminhos e caminhadas). Esta "deformação" pode ser
entendida como cristalizações que vão se solidificando e impedindo que o sujeito
disponha livremente de movimento e ação perante suas potencialidades. Assim,
se a Gestalt constata que a patologia é "produto de relações (...), em resposta a
contextos específicos" (RIBEIRO, 1998, p. 71), a busca da "cura" e da awareness
"pressupõe uma força integrativa para o cliente, no sentido de não permitir que
ele se coloque na posição de que 'façam por ele'; ele deve ultrapassar o nível
passivo do 'ser doente', passando a se perceber como participante ativo..."
(SOUTO, 1995, p. 47), deste processo de adoecimento.
O estado de adoecimento, assim, pode se revelar como fruto de relações
cristalizadas, ausência de autoconfiança e autoestima. Entretanto, é
fundamental que o paciente hospitalizado seja visto como portador de uma
história pessoal que antecede a própria internação. E, por esta razão, este
estado de crise deve ser compreendido a partir de todos os comportamentos e
crenças que a história daquele paciente refletir. Este lembrete se deve ao fato
de que possíveis modificações decorrentes do adoecer, como a restrição no grau
de investimento energético frente as atividades até então desenvolvidas pelo
paciente, pedem uma escuta mais apurada e cuidadosa. E esta escuta se dará
certamente na fronteira de contato entre o terapeuta e o paciente, presumindo
de uma gradual retomada da fluidez entre o indivíduo e seu meio, acrescida da
disponibilidade de tornar a crise uma oportunidade, gerando um sentido novo
para o adoecimento.

Este é um trabalho árduo para o terapeuta, uma vez que o paciente costuma
depositar naquele a autonomia e sabedoria de seu estado, culminando por
abortar uma via de diálogo produtivo ao seu desenvolvimento saudável.

A Relação Terapêutica: QUEM "CURA" QUEM?

"...Como cuidadores, somos atingidos por aqueles de quem cuidamos..."


(BROMBERG, 1996, p.62). Curamo-nos a nós mesmos e uns aos outros. Neste
aspecto, a função primordial do terapeuta é justamente a de facilitar o resgate
daquilo que ainda está vivo no paciente, encorajando-o a vivenciar a amplitude
de forças internas que lhe pertencem.
Por outro lado, não se pode perder de vista que, "às vezes, as pressões e cargas
negativas do meio são tão fortes que a pessoa desenvolve defesas que terminam
por limitá-la em sua existência" (CIORNAI, 1995, p. 73). E não é, absolutamente,
função do terapeuta, retirar esta "armadura defensiva", "o chão" do paciente, ou
tentar, mecanicista e insistentemente, enfatizar a importância da "awareness" e
do contato. Ao contrário, o terapeuta precisa atentar para o quão "deformada"
está a relação do paciente consigo mesmo e seu meio, percebendo suas
dificuldades, seu sofrimento e fragilidade, sem precipitar qualquer tipo de
mobilização que possa "atropelar" a experiência do mesmo.
Vale ressaltar que a própria "presença" já sensibiliza uma perspectiva de
awareness e crescimento para o indivíduo. E, no contexto da relação terapêutica,
é fundamental que "o fazer, o resolver, o salvar e curar" (RIBEIRO, 1998, p.52)
por parte do terapeuta não esvaziem a sabedoria da fluidez relacional do
processo. Priorizar, ilusoriamente, uma "cura imediata" pode ofuscar a hábil e
criativa oportunidade de o terapeuta "se encontrar" com seu cliente,
interessando-se por seu mundo, sua história.
A isto, a Gestalt-Terapia denomina de atitude terapêutica que, nada mais é do
que uma atitude amorosa, onde "o terapeuta (...) não só funciona como 'espelho'
dos aspectos conflitantes ou destrutivos do cliente. Obviamente reflete suas
capacidades e potencialidades, seus aspectos construtivos, belos e únicos..."
(CARDELLA, 1994, p.64).
Interessa então a todos nós, terapeutas, realizarmos uma revisão dos próprios
conceitos frente a vida e a morte, a saúde e o adoecer, dentro do processo
terapêutico, a fim de que nossa atitude preponderante inclua uma forma mais
humanizada perante o paciente e, não uma atenção voltada para o sentido de
"...fracasso, frustração, impotência..." (ANGERAMI, 1996, p.136).
E a abertura de espaço para o dividir-se e o renovar-se contém o desafio maior
da relação terapêutica em Gestalt-Terapia, na medida em que é, nesta
possibilidade, que o indivíduo vai tateando e experimentando o que lhe é nutritivo
e tóxico. Colocar-se presente e estar a serviço deste processo de construção
dialógica com o paciente é dispor-se a uma atitude amorosa, cuja tarefa é
propiciar a ampliação do campo afetivo-vivencial deste indivíduo em relação.

UM ENCONTRO ENTRE PERLS E KLÜBER-ROSS

"Custaria tão pouco lembrar-se de que o doente também tem sentimentos,


desejos, opiniões e, acima de tudo, o direito de ser ouvido" (KLÜBER-ROSS,
1996:20). Tomando esta via de reflexão, é que se propõe traçar algumas
correlações entre a visão gestáltica do ciclo de contato e os estágios pelos quais
os pacientes passam, a partir do estudo da autora anteriormente mencionada.
Da mesma forma que Frederick Perls e seus demais seguidores reconhecem
este ciclo de contato, ou curva organísmica como um dos pontos-chave da teoria
e abordagem gestáltica, Elisabeth Klüber-Ross, por outro lado, também propõe
uma outra configuração para compreender as experiências dos pacientes, após
a notícia de uma grave enfermidade. Na verdade, não há a intenção de se
aprofundar ou realizar uma comparação inteiramente fundamentada deste
assunto. Mas, em contrapartida, ressaltar certos aspectos, ilustrando-os com
casos clínicos atendidos na instituição hospitalar na qual trabalhei, será um
interessante percurso!

Tanto as necessidades fisiológicas quanto as psicológicas rondam e perfazem


quaisquer experiências do ser humano, num processo de homeostase. Este
processo homeostático se caracteriza por um "jogo contínuo de estabilidade e
desequilíbrio no organismo" (PERLS, 1988, p.20), almejando um estado de
satisfação. Entretanto, para atingi-lo, não há como pensar no indivíduo
isoladamente, mas sim, em constante relação com seu ambiente. É daí que
surge o próprio conceito de ajustamento criativo onde, a partir deste
relacionamento organismo-meio, "... a pessoa entra em contato
responsavelmente, reconhece e conduz (de maneira bem-sucedida) a sua vida
e toma a responsabilidade para criar condições vantajosas para o seu próprio
bem-estar" (YONTEF, s/d, p.40-41). É importante realçar também que a pessoa
pode se ajustar porém, dentro de uma conformidade com padrões externos e
isto invalida a noção de criatividade, segundo a teoria da Gestalt-Terapia.

Contudo, quando estas formas de contato entre o indivíduo e seu meio são
interrompidas e perdem a capacidade de transformar a situação em busca de
satisfação, diz-se que este ciclo apresenta bloqueios em sua dinâmica. O grande
desafio do trabalho gestáltico é justamente identificar onde e como estes estão
acontecendo, a fim de resgatar um "diálogo com nossos problemas,
reintegrando-os para iniciar um processo de cura" (HYCNER, 1995, p.139).

Klüber-Ross identifica a negação e o isolamento como a primeira reação do


indivíduo à sua enfermidade. Para esta autora, "a necessidade de negação vai
e volta, e o ouvinte sensível, perspicaz, ao notar isso, deixa que o paciente faça
uso de suas defesas..." (1996, p.54). Refletindo gestalticamente, a negação
pode, num primeiro momento, ser produtiva, na medida em que permite ao
paciente retrair e proteger-se na fronteira de contato, contra a dor e a angústia
iniciais. Observa-se que, mesmo na retração, há um acúmulo de energia
armazenada que, posteriormente poderá ser utilizada como uma via de ação e
conscientização do adoecimento.

A raiva é o segundo estágio apontado por Elizabeth; ela constata: "o pior é que
talvez não analisemos o motivo da raiva do paciente; nós a assumimos em
termos pessoais quando, na sua origem, nada ou pouco tem a ver com as
pessoas em quem é descarregada" (idem, 1996, p.65). As falas recheadas de
raiva, muitas vezes vêm carregadas de sentimentos de inconformismo e
fracasso: "por que isto aconteceu comigo?"; "como pode um dia de sol se
transformar neste dia de tempestade assim?" (SIC).

De acordo com a concepção gestáltica, a raiva é um sentimento muito profícuo,


a partir do instante em que se pode dar vazão a ele. A raiva também mobiliza
uma tomada de atitude e bloqueá-la é tornar algo indigesto, impedido de ser
processado sensorial e afetivamente.
É evidente como estas sensações não ficam confinadas exclusivamente aos
pensamentos dos pacientes. Muito pelo contrário, elas brotam de todo o corpo,
em cada gesto, em cada suspiro, em cada experiência. E, na grande maioria dos
casos, há uma luta desenfreada para controlar a difícil situação, onde as trocas
entre fronteiras vão ganhando uma conotação vitimizada e camuflada por
promessas de seguir o tratamento corretamente, tomar a medicação prescrita
por exemplo, compreendendo a barganha, enfocada por Elisabeth que, nada
mais é do que "uma tentativa de adiamento" (idem, ibidem, p.97). Um episódio
clarificador deste momento ocorreu com um garoto de doze anos que, após uma
série de quimioterapia e de seis meses ininterruptos de internação, dizia:
"prometo que volto para o hospital; só quero passar uns dias em casa" (SIC).
Este fato, se olhado do ponto de vista saudável, revela um pedido de resgatar
"as próprias coisas"; de se sentir singular, possuidor de uma história que
extrapola a realidade hospitalar. Neste sentido, percebe-se uma mobilização de
energia que prima por satisfazer uma necessidade emergente.
Neste caso, em especial, a equipe de saúde chegou a um acordo, permitindo
que o paciente ficasse em casa por uma semana, retornando então para outra
série do tratamento. A vitalidade e a disponibilidade após o retorno foram cruciais
ao bom prognóstico deste garoto. De um tumor no centro do cérebro, tendo seus
dias de vida "contados", hoje, este paciente experimenta o gosto pela vida!
Prosseguindo com estas comparações ilustrativo-teóricas, o estágio seguinte
seria o da depressão, no qual a autora distingue a depressão reativa (mediante
os limites trazidos pelo adoecer), e a depressão preparatória (KLÜBER-ROSS,
1996), onde na linguagem da Gestalt, seria vista como um momento de intensa
retração na fronteira e forte introspecção.
Fazendo uma analogia com a curva de contato, este momento pode configurar
uma verdadeira percepção e conscientização do processo de adoecimento, uma
vez que o paciente se dispuser a identificar e entrar em contato com a figura
dominante. Por fim, o último estágio é o da aceitação. Pode-se considerar que
esta aceitação é uma experiência de "awareness" ampliada, na medida em que
experienciando medos, dúvidas e impasses, chega a hora de agir e contatar os
recursos próprios diante do adoecimento. Existem três ilustrações bastante
oportunas e interessantes para serem realçadas. A primeira é de uma senhora
que teve de amputar o pé esquerdo em virtude de complicações decorrentes da
diabetes. Ao se permitir passar pela decepção, pela sensação de perda de uma
parte de seu corpo, ela se torna capaz de enfrentar os medos e as expectativas
diante da adaptação ao novo estilo de vida.
Um outro caso aponta que o trabalho gestáltico também viabiliza a "awareness
corporal", numa tal integração, que palavras e sentimentos podem se fazer
compreensíveis pela via dos gestos e movimentos. O exemplo é o de um senhor
que sofrera um acidente vascular cerebral, ficando tetraplégico e sendo também
traqueostomizado. Por isto, o contato expressivo era importantíssimo,
principalmente pelo olhar e movimentos faciais, onde alegria, insatisfação e
desconforto eram expressos.
À medida que este paciente ia ampliando seu campo de contato, sua força de
vontade foi tão enriquecedora que, na alta hospitalar, ele já conseguia mover as
mãos e um pouco dos braços, saindo satisfeito com a melhora. Na verdade, ele
"usou" seu processo de adoecimento como um aprendizado para um novo tipo
de comunicação, mobilizando-se e empreendendo significativas mudanças.

Enfim, a meta a que se deseja atingir é justamente mostrar que, separadamente,


o que é saudável e o que é doente podem guardar prejuízos e benefícios ao
ajustamento criativo do indivíduo, na medida em que ficarem ou não cristalizados
numa só polaridade, respectivamente. Entretanto, ao serem olhados como uma
totalidade, a nível processual e dinâmico, podem ampliar a gama de facilidades
perceptivo-sensoriais do indivíduo, favorecendo uma melhor qualidade do
diálogo entre ele e seu mundo, numa constante busca de auto-regulação
organísmica.

CONCLUSÃO

A partir de toda esta produção, embasada na literatura teórica e na prática


hospitalar, conclui-se que há muito o que se fazer para facilitar um diferente
experimentar do processo de adoecimento. A Gestalt-Terapia, fundamentada na
relação entre paciente e terapeuta, abre possibilidades para "cuidar" e
resignificar o estado do adoecer. Isto quer dizer que é viável favorecer um
transitar do paciente pelos "nós" deste processo e pelo encontro com suas
potencialidades, a fim de desatá-los. Para isto, a proposta gestáltica é a de
incentivar o auto-suporte, no sentido de que cada paciente se responsabilize e
escolha o que quer fazer ao se perceber "adoecido". É interessante apontar que,
principalmente em instituições hospitalares, os próprios terapeutas se
questionam sobre: "como é 'encontrar' alguém que não vai ao teu encontro?"

Remetendo às minhas experiências com pacientes hospitalizados, a questão


que se ressalta é: mas o que podemos "encontrar" naquele e com aquele que
não vem ao nosso encontro? Ou, o que podemos fazer junto àquele que,
inicialmente, nos dá a impressão de estar des-encontrado e des-encantado de
si, do mundo e de suas escolhas?

Assim, tomando a noção heideggeriana de liberdade, que implica em ter à frente


infinitas possibilidades, cabe ao gestalt-terapeuta, em especial, o desafio de
estar junto com o paciente, propiciando-o dar forma ao "sopro de vida" do homem
(que significa "alma" em hebraico), existente em cada um.

Este "sopro" pode ser comparado ao aspecto saudável do adoecer, capaz de ser
descoberto na medida em que o indivíduo puder vivenciar suas emoções polares
em meio a este processo. Enfim, estar disponível a traçar um caminho, a ser
presença no diálogo relacional, iluminando e sendo iluminado pelo encontro
inter-humano é a grande tarefa e o grande presente da terapia gestáltica. Nada
de facilidades; porém, extremo empenho e criatividade, numa construção
artesanal, onde paciente e terapeuta tecem um caminho possível, fazendo do
adoecer uma experiência transformadora.

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