Você está na página 1de 10

Revista da Abordagem Gestáltica:

Phenomenological Studies
ISSN: 1809-6867
revista@itgt.com.br
Instituto de Treinamento e Pesquisa em
Gestalt Terapia de Goiânia
Brasil

Cardoso Andrade, Celana


A SOLIDÃO NA CONTEMPORANEIDADE
Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, vol. XII, núm. 1, junio, 2006, pp. 83-91
Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt Terapia de Goiânia
Goiânia, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=357735503007

Como citar este artigo


Número completo
Sistema de Informação Científica
Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal
Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto
A SOLIDÃO NA CONTEMPORANEIDADE 1

Celana Cardoso Andrade 2

Resumo: O texto pretende elucidar a questão da solidão, queixa permanente nos consultórios de
psicologia. Trata-se de uma solidão que reflete um homem que se perdeu na multidão, ao ver-se
privado do sentido de comunidade e comunhão. Para tanto, busca-se contextualizar o sentimento
de solidão do homem no mundo contemporâneo, discutindo os efeitos provocados pela sociedade
atual, uma época que paulatina e inexoravelmente se deixa tomar por um esquecimento sistemático
daquilo que é mais característico do homem – sua humanidade. O resgate do homem pode ser
alcançado na busca do sentido de sua existência, tão favorecida pelo processo psicoterápico.
Pressupõe-se que a nostalgia do humano possa instigar o homem a resgatar, na organização
societária em que vive, um modo de ser mais comunitário, e começar, assim, a sentir-se novamente
em casa, acompanhado de seus semelhantes e, conseqüentemente, menos solitário.

Palavras-chave: Martin Buber, solidão, contemporaneidade, existência, comunidade, Gestalt-terapia.

Abstract: This text intends to elucidate the issue of loneliness, a permanent complaint in
psychology offices. It is about a loneliness which reflects a man who has gotten lost in the crowd,
when noticing himself deprived from the senses of community and communion. On that matter
there is the urge to contextualize the feeling of loneliness of the men in the contemporary world,
arguing on the effects provoked by the current society, an age which slowly and in an inexorable
manner gives place to a systematic forgetting of what is most characteristic of a man: his humanity.
The ransom of the man may be achieved on the search of a sense for his existence, highly favored
by the psychotherapy process. We presuppose that the nostalgia of the humane might instigate men
to rescue, in the societal organization in which he lives, a more communitarian way of being, thus
beginning to feel ‘at home’ again, in the companion of his alike, and, hence, less lonely.

Keywords: Martin Buber, loneliness, contemporary, existence, community, Gestalt-therapy.

A solidão, condição imanente ao homem, vem sendo vivenciada de uma maneira


sofrida e profundamente aterrorizadora. Justifica-se, portanto, refletir sobre o que tem
acontecido com o homem na atualidade, época que tem apontado o fracasso no rela-
cionamento entre seres humanos. Esse tipo de fracasso pode ser apreendido mediante
o uso da categoria encontro, na perspectiva adotada por Martin Buber (1974/2001) –
a de relação autêntica.
1 Estudo apresentado em maio de 2006, no XII Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica e I Encontro
de Fenomenologia do Centro-Oeste, em Goiânia-GO.
2 Psicóloga, especialista em Psicologia Clínica, gestalt-terapeuta, formada pelo Instituto de Treinamento

e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia (ITGT). Professora e coordenadora do Curso de Especializa-


ção do ITGT. Organizadora dos Encontros Goianos da Abordagem Gestáltica e editora dos respectivos
anais. Mestranda em Psicologia pela Universidade Católica de Goiás (UCG). Psicoterapeuta na Alter –
Consultórios de Psicologia. E-mail: celana@terra.com.br.
Andrade, C. C. v. XII: pp. 83-91, 2006

Falar sobre a solidão, necessariamente, leva à reflexão acerca da relação. Em


decorrência deste estudo, para tratar da solidão na contemporaneidade busca susten-
tação nas idéias de Martin Buber (1942/1985, 1971, 1974/2001, 1982, 1987), reco-
nhecido como o filósofo do diálogo, bem como de autores que discutem suas obras,
dentre outros existencialistas.
A obra de Buber foi marcada por uma constante e incansável procura: o sen-
tido do humano, a fim de resgatar a dignidade da responsabilidade que lhe é inerente
na construção de um mundo mais humano. Essa preocupação levou Buber a dedicar
seus estudos a questões da existência humana, a problemática do ser humano, à bus-
ca de significados e ao sentido da existência, temas absolutamente atuais (Holanda,
1998 & Zuben, 2003).
A motivação em apresentar a questão da solidão decorre de esse tema ser uma
queixa permanente no consultório. Não se pretende, entretanto, aprofundar o estudo
da solidão existencial no sentido heideggeriano da palavra, mas da solidão emocional,
que tem deixado o homem solitário e triste – um homem que se perdeu na multidão ao
privar-se do sentido de comunidade e comunhão. Para tanto, é necessário contextua-
lizar o sentimento de solidão no mundo contemporâneo, para que se possa entender o
caminho percorrido pelo homem até então, o que não o satisfaz e, conhecida essa re-
alidade, conquistar autonomia para escolher a trajetória a ser seguida, mesmo lidando
com os limites criados pela circunstancialidade. Um campo propício para tal busca é
a psicoterapia.
Algumas questões clamam por resposta: o que tem promovido a solidão emo-
cional, psicológica? Como lidar com ela? A vivência comunitária, com o conseqüente
sentimento de pertinência ao grupo, pode minimizar a solidão? Que caminhos podem
ser buscados pelo homem como saídas ou alternativas para uma organização tão da-
nosa e causadora de sofrimento? A Gestalt-terapia pode contribuir para a construção
de um novo modo de organização que restaure a humanidade?
Considera-se importante lembrar que nem sempre a solidão é negativa. Essa
compreensão torna-se evidente ao entender o sentido, por exemplo, da solidão exis-
tencial em Heidegger (2003), aquela que se constitui pela percepção de que se está
só ante a finitude da existência, que aponta a individuação, com sua fonte produ-
tora de significados, enfim uma solidão criativa. Fernandes (2005) assinala que a
individuação

nada tem a ver com um fechamento egoísta e individualista no seu pequeno e


franzino eu. A individuação é, muito mais, um recolher-se no uno, um recon-
duzir a vida da sua dispersão para o recolhimento do único necessário. A isto
nós chamamos de solidão. Essa, contudo, mais uma vez, nada tem a ver com
um isolamento. Ao contrário, uma tal solidão é o modo originário de estar na
proximidade do essencial de todas as coisas, o modo primordial de ser-com-
-o-todo, de ser-no-todo. Na individuação, que se cumpre por meio da solidão,

84 ITGT
A solidão na contemporaneidade

o homem se torna singular. Entretanto, nesta singularização ele não se parti-


culariza, muito mais, ele se universaliza, pois torna-se uno com tudo, uno no
uno. E isto significa: estar em casa em toda a parte. (p. 150; grifo do original)

No entanto, o homem atual perdeu o sentimento de pertinência. Ele já não se


sente mais em casa, tornou-se um estranho. Buber (1987) compara-o a uma criança
abandonada pelo cosmos, não reconhecida por ele, sozinha na multidão. Em outras pa-
lavras, o homem vive em uma sociedade repleta de pessoas sem nenhuma intimidade
e perde, cada vez mais, o sentido do que seja gregário.
Um paradoxo evidencia-se. De um lado, em conseqüência de explosão demo-
gráfica e técnica, os homens estão cada vez mais próximos fisicamente uns dos outros.
De outro lado, inegavelmente, os homens também não cessam de afastar-se existen-
cialmente dos outros e de tornarem-se estranhos entre si. No meio das massas huma-
nas das grandes cidades, a maior parte dos homens sentem-se cada vez mais isolados
e separados de seus semelhantes. Ao contrário, em grupos menores, a solidão, embora
exista, é menor, e a diferença nítida entre o grande e o pequeno centro é a qualidade
da relação entre as pessoas (Boss, 1997; Rehfeld, 2001).
O pequeno centro tende a apresentar o sentido de comunidade defendido por
Buber (1987) e também por Fritz Perls, fundador da Gestalt-terapia. Suas teorias eram
nitidamente vivenciadas nos modos de vida comunitária que pretendiam alcançar, e ne-
las, os homens são menos estranhos uns aos outros e menos voltados para si mesmos.
Segundo Rehfeld (2001), a Gestalt-terapia “sempre esteve preocupada com o modo de
os homens se organizarem e se relacionarem. Desde o início, Perls se preocupou mui-
to em dar um caráter à Gestalt-terapia como um modo de vida, e não somente como
uma psicoterapia” (p. 11).
Oposto a esses princípios teóricos e de vida, vive-se em uma época na qual a
sociedade ocupou o espaço da comunidade e gerou a mais profunda solidão do homem,
com pessoas incapazes de ligarem-se e de estabelecerem vínculos. A sociedade busca
as ofertas materiais e tecnológicas e dispensa a presença do outro. Buber (1974/2001)
sintetiza: “a comunidade edifica-se sobre a relação viva e recíproca” (p. 53). O autor
(1987) enfatiza que o ser humano

se sente solitário como homem, em sua essência de homem, e além deste fato
fundamental é solitário como indivíduo no mundo humano. De fato, esta so-
ciedade na qual fala o coletivismo, não é aquela comunidade nativa que envol-
ve o homem e o abriga, protege e ampara, comunidade na qual o homem ainda
viveu há alguns séculos e talvez há algumas gerações. (p. 124)

Buber (1987) propõe a idéia de uma nova comunidade, em substituição a


uma sociedade que visa o proveito e o lucro. O autor postula que, para que isso
ocorra, é necessário que os homens e as multidões de homens se despojem de mui-

Revista da Abordagem Gestáltica – Volume XII 85


Andrade, C. C. v. XII: pp. 83-91, 2006

tas vantagens e privilégios particulares para o bem da comunidade. No lugar da


comunidade, encontra-se atualmente a sociedade de massa na qual cada ser hu-
mano está inserido.
É importante ressaltar que não há grupo humano que possa ser descrito pura e
simplesmente como comunidade ou como sociedade. Há sempre elementos comuni-
tários nas sociedades e vice-versa. Deve-se ficar atento que “o mais valioso e eficaz
elemento nas formas de interação humana é a ligação direta e concreta entre duas pes-
soas” (Buber, 1987, p. 22), visto que somente nessa forma de con-viver estabelece-se
uma relação viva e recíproca, em uma atitude autêntica entre os homens.
Buber (1971) esclarece:

O homem foi aumentando em ritmo crescente o que se costuma denominar de


seu poder sobre a natureza... Entretanto, enquanto passava por crise após crise
começou a sentir, cada vez mais profundamente, a fragilidade de sua grandeza
e, em horas de clarividência, conseguiu entender que, apesar de tudo o que se
costuma chamar de progresso da humanidade, não caminha absolutamente por
uma estrada aplanada, mas é obrigada a trilhar, pé ante pé, uma estreita cume-
ada entre abismo. (p. 174)

Nessa perspectiva, observa-se o decaimento progressivo da alma, a atrofia do


espírito e a solidão que têm levado as pessoas aos consultórios psicológicos. Trata-se
de uma solidão não-escolhida, pouco produtiva, difícil de com ela conviver, muitas
vezes transformada em desespero, sofrimento, falta de sentido, ou simplesmente, va-
zio – uma solidão decorrente do vazio do outro. Friedman (1955/2002) afirma que “a
solidão significa ausência de relação e manutenção do isolamento. Na solidão o ho-
mem conduz um diálogo com ele mesmo” (p. 85), o que acontece quando o homem
falha em sua tentativa de entrar em relação, e, em decorrência, a distância entre ele e
o outro aumenta e se solidifica. O estado de isolamento, porém, não corresponde à es-
sência relacional do homem.
Segundo Buber (1942/1985), o homem está “incapaz de dominar o mundo que
criou. Nossa época tem experimentado esta torpeza, dureza e fracasso da alma humana
na técnica, na economia e na política” (p. 77), o que significa que o homem está soli-
tário e que ele mesmo tem criado essa solidão. É esse homem sozinho que tem chega-
do ao consultório. O eixo da queixa do solitário é o fracasso no relacionamento entre
seres humanos – a falta de sentido do existir.
Percebem-se no consultório várias situações geradoras da solidão: a solidão
gerada pelo próprio poder, a solidão decorrente da riqueza, a solidão imposta pelo tra-
balho atomizado, a solidão da criança cujos pais não são afetivos, a solidão do velho
rejeitado com suas memórias e muitas vezes abandonado, a solidão das crianças órfãs,
a solidão proveniente da loucura, a solidão dos enfermos hospitalizados, a solidão do
cidadão que deixou a família para trabalhar na cidade grande, a solidão do estigma-

86 ITGT
A solidão na contemporaneidade

tizado, a solidão decorrente da idéia da morte. Somente a presença ativa do outro ser
humano pode dar sentido ao vazio da solidão, o que é descrito em linguagem poética
por Mendonça (2005):

A solidão da ausência de referencial humano para a minha inquietude e noites


mal dormidas... o sol nascendo antes de eu me refazer, o visceral desespero de
estar desapoiada quando a situação exige uma posição coletiva, a desconfiança
que me assola de me colocar uma presença autêntica e comprometida, temor
não mais somente da rejeição e da recusa, mas de ver traídas as minhas inten-
ções por esse outro, igual a todos, cuja competitividade agressiva e traiçoeira
ignora qualquer limite na escalada para ganhar a qualquer preço... a solidarie-
dade ignorada pela indiferença legitimada pela cultura da produtividade e do
individualismo... a servil, inadvertida e perfeita eficiência da curiosidade ao
aparelho do mercado... a descrença homocida que ameaça abater o último esteio
de fé da presença em desencanto, quando o discurso dos grandes humanistas é
degradado em fins utilitaristas, mercadológicos ou promocionais, tornando-se
objeto de consumo altamente oportunista, especialmente numa época em que o
humano está se perdendo na perda do Outro... o testemunho impotente dos me-
canismos de destruição das instâncias coletivas e individuais transformando o
estar-junto em meras posições paralelas, traindo assim a constituição essencial
da Presença no seu tocar e ser tocado...” (p. 48; grifos do original)

O olho clínico, atento, testemunha a falência das relações. A grande contri-


buição da Gestalt-terapia consiste em ajudar o cliente a descobrir a realidade vital
de sua existência e a abrir os olhos para a situação concreta que está vivendo e, as-
sim, fazer-se e ser responsável por suas escolhas. Esse objetivo tem sua fundamen-
tação na filosofia dialógica de Buber (1982), a qual afirma que a vida é realizada e
confirmada somente na concretude de cada-dia. A atitude do homem frente à vida
pode ou não contribuir para a descoberta do significado de sua existência e do sig-
nificado do mundo. Boss (1997) alerta que “é impossível transformar o mundo sem
transformar a concepção de mundo, isto é, sem transformar anteriormente a com-
preensão do mundo” (p. 42).
Yontef (1998) reflete sobre o homem e elucida que ele foi perdendo o próprio
referencial. As demandas fundamentais, que legitimam a sua existência, esvaíram-
-se e ele se questiona: o que justifica a minha vida? Qual o sentido da minha exis-
tência? Quem dirige a minha vida? Quem sou eu? Como tenho me relacionado com
os outros? Caso deixe de preocupar-se com essas questões, o homem corre o risco
de fragmentar-se e seguir a vida sem seu eixo de sustentação, que são suas crenças,
seus valores, sua ética. Ele perde-se como ser humano singular, sujeito de sua pró-
pria história e, com isso, deixa de ter, também, a capacidade de relacionar-se, desa-
parece na multidão.

Revista da Abordagem Gestáltica – Volume XII 87


Andrade, C. C. v. XII: pp. 83-91, 2006

A psicoterapia é um espaço propício ao encontro do ser humano consigo mes-


mo, mediante o encontro com um outro (Holanda, 1994; Ribeiro, 1994). A relação ge-
nuína do encontro terapêutico pode proporcionar à pessoa resgatar o sentido de sua
vida, começar a acreditar em si mesma, restabelecer o diálogo e passar a agir de forma
integrada e criativa. Einstein (apud Frankl, 1976) disse certa vez: “Qual o sentido da
vida humana? (...) O homem que considera sem sentido sua vida é, não somente infe-
liz, mas, também, incapaz de lutar para viver” (p. XVII). De acordo com Frankl (1976),
muitas pessoas sofrem, em razão de um sentimento de profunda falta de sentido. São
pessoas angustiadas e, por este motivo, impossibilitadas de viver com maior plenitude
sua humanidade. Percebem um vazio que as oprime e que lhes retira o sabor da vida,
o que, talvez, seja o grande mal do século.
Todas essas assertivas sugerem uma profunda ausência de sentido. Perde-se
o contato com o querer, perde-se o contato consigo mesmo e fica-se temeroso de en-
contrar um outro ser humano. Ao mesmo tempo, anseia-se por contato, por ser en-
contrado, por ser reconhecido em sua singularidade, em sua plenitude e vulnerabi-
lidade. Friedman (1985) cita Trüb, o qual salienta que “mesmo no retraimento mais
profundo existe uma vaga inquietação da alma que anseia pelo encontro genuíno
com o outro” (p. 78).
Vive-se atualmente a nostalgia do humano, e, por isto, o homem deve rever as
perspectivas sobre o sentido da sua existência. Minkowski (1966) ressalta que a nos-
talgia “refere-se à ‘perda’, à perda do que nos é caro e precioso” (p. 160) e o homem
precisa buscar a significação de sua existência. Dependendo da preocupação com o seu
estar-no mundo, de como está sendo-no-mundo, o ser humano desenvolve uma forma
predominante de lidar nesse mundo. Ao mesmo tempo em que se dirige ao homem o
apelo para que viva sua humanidade mais profundamente, exige-se dele a produção e
a realização material.
A mensagem buberiana evoca, no pensamento contemporâneo, um forte im-
pulso de restauração do humano. Sua voz ecoa exatamente em uma época na qual
paulatina e inexoravelmente o homem deixa-se tomar por um esquecimento siste-
mático daquilo que lhe é mais característico: sua humanidade. A mensagem huma-
na, dirigida ao homem contemporâneo, caracteriza-se por uma exigência de revisão
de perspectivas sobre o sentido da existência humana. Zuben (2003) alerta que, na
concepção de Buber,

a nostalgia que envolve uma conversão propõe um projeto de existência a ser


realizado e não uma simples volta a um passado distante numa postura de mero
saudosismo romântico, mas sim um projeto que envolve risco supremo da pró-
pria situação humana da reflexão. (pp. 60-61)

Pressupõe-se que o homem precisa sentir a nostalgia para viver sua humani-
dade mais profundamente. A nostalgia do humano, provocada por situações de pro-

88 ITGT
A solidão na contemporaneidade

funda crise no mundo dos homens, em que imperam controvérsias e cisões, alia-se a
uma profunda esperança no poder da relação, na força do diálogo, pois o homem atu-
al, tão abastado das coisas materiais, está desprovido da presença do outro. Vive-se
em uma sociedade individualista, na qual prevalece a solidão. Os sujeitos que sofrem
e se queixam da solidão estão, paradoxalmente, cultuando sua privacidade, sua per-
sonalidade, desvinculando-se da vida pública, ignorando a ética coletiva e, ao mes-
mo tempo, vivendo os infortúnios da falta desse espaço coletivo, o qual possibilita o
reconhecimento de si mesmo. Surge então o ideal de aprender a viver só no meio da
multidão, e o exercício da privacidade é entendido como a verdadeira liberdade. Hei-
degger (1953) aponta o dilema vivido pelo homem nessa passagem tão significativa:

Nenhuma época acumulou conhecimentos tão numerosos e tão diversos sobre


o homem como a nossa. Nenhuma época conseguiu apresentar seu saber acer-
ca do homem sob uma forma que nos afete tanto. Nenhuma época conseguiu
tornar esse saber tão facilmente acessível. Mas também nenhuma outra época
soube menos o que é o homem. (p. 266)

Buber, em 1923, já diagnosticara uma tendência de a sociedade contemporânea,


que ele chamava de doente, contribuir para uma degradação do sentido do humano. No
entanto, a vida do homem pode, pela conversão, orientar-se para o caminho de uma
nova era, graças a um novo sentido de comunidade. Buber (1974/2001) apela a cada
pessoa para que ouça o outro e esteja pronto para responder a ele. Em seu livro Qué es
el hombre?, Buber (1942/1985) mais uma vez resgata o tema solidão ao explicitar que

o encontro do homem consigo mesmo, só é possível, e ao mesmo tempo inevi-


tável, uma vez acabado o reinado da imaginação e da ilusão, não poderá veri-
ficar-se senão como encontro do indivíduo com seus companheiros, e terá que
realizar-se assim. Unicamente quando o indivíduo reconhece o outro em toda
uma alteridade como se reconhece a si mesmo, como homem, e caminha desde
este reconhecimento a penetrar em outro, terá quebrantado sua solidão em um
encontro rigoroso e transformador. (pp. 144-145)

É importante, nesse momento de crise e nostalgia, observar que o homem evo-


lui em seu poder sobre as coisas e involui no que concerne ao encontro com o outro.
Pressupõe-se, porém, que a nostalgia do humano possa instigar o homem a buscar, na
organização societária em que vive, resgatar um modo de ser mais comunitário, come-
çar a sentir-se em casa, acompanhado de seus semelhantes e, em conseqüência, tornar-
-se menos solitário. Buber (1987) aponta com esperança:

a solidão das mais calmas horas de contemplação e de criação, recobrará um


novo e mais rico colorido. Cada um viverá, ao mesmo tempo, em si mesmo e

Revista da Abordagem Gestáltica – Volume XII 89


Andrade, C. C. v. XII: pp. 83-91, 2006

em todos (...) assim a humanidade que teve sua origem em uma comunidade
primitiva (...) passou pela crescente escravidão da sociedade, chegará a uma
nova comunidade que, diferentemente da primeira, não terá mais como base
laços de sangue, mas laços de escolha. (p. 39)

Referências bibliográficas

Boss, M. (1997). Solidão e comunidade. Revista da Associação Brasileira de


Daseinanalyse, 1/2/4, 36-49.

Buber, M. (1942/1985). Qué es el hombre? México: Fondo de Cultura Economica.

Buber, M. (1971). O socialismo utópico. São Paulo: Perspectiva.

Buber, M. (1974/2001). Eu e tu (8ª ed.). São Paulo: Centauro.

Buber, M. (1982). Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva.

Buber, M. (1987). Sobre comunidade. São Paulo: Perspectiva.

Fernandes, M. A. (2005). “Mas nós, quando é que existimos?” Uma meditação


fenomenológica acerca da existência. Anais do XI Encontro Goiano da Abordagem
Gestáltica: Presença e Existência, 11 (1), 145-160.

Frankl, V. (1976). Psicoterapia: uma casuística para médicos. São Paulo: EPU.

Friedman, M. S. (1955/2002). Martin Buber: the life of dialogue (4ª ed.). New York/
London: Routledge.

Friedman, M. S. (1985). The healing dialogue in psychotherapy. New York/London:


Jason Aronson

Heidegger, M. (1953). Kant et le problème de la métapysique. Paris: Gallimard.

Heidegger, M. (2003). Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude,


solidão. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Holanda, A. F. (1994). Filosofia dialógica e Gestalt-terapia. Arquivos Brasileiros de


Psicologia, 46 (3/4), 139-151.

Holanda, A. F. (1998). Diálogo e psicoterapia: correlação entre Carl Rogers e Martin


Buber. São Paulo: Lemos.

90 ITGT
A solidão na contemporaneidade

Mendonça, M. M. (2005). A presença na existência contemporânea. Anais do XI


Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica: Presença e Existência, 11 (1), 33-51.

Minkowski, E. (1966). Traité de psychopathologie. Institut Synthélabo: Lê Plessis


Robinsom.

Rehfeld, A. (2001). Dois modos contemporâneos de malogro da relação. Boletim de


Gestalt-terapia, 9 (1), 9-11.

Ribeiro, J. P. (1994). O processo grupal: uma abordagem fenomenológica da teoria


de campo e holística. São Paulo: Summus.

Yontef, G. M. (1998). Processo, diálogo e awareness: ensaios em Gestalt-terapia.


São Paulo: Summus.

Zuben, N. A. von (2003). Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru, SP: Edusc.

Revista da Abordagem Gestáltica – Volume XII 91

Você também pode gostar