Você está na página 1de 98

Emilio Gennari (Org.

Traduções dos comunicados do


Exército Zapatista de Libertação Nacional
Janeiro a Dezembro de 2000

Ao reproduzir... cite a fonte.


2
Carta 6.a - 5.56 mm. NATO - O calibre da mentira
05 de janeiro de 2000

O tempo resvala das mãos


sem tempo dos homens.
Enche sua história, a contradiz,
a confunde ou a liberta.

José Revueltas

Para: Juan Gelman, América Latina


De: SupMarcos, México

Don Gelman:

Faz dias que esta carta anda coçando entre as mãos. Foi levada por um ou outro vento, mas não a levaram
muito longe. Parece que hoje, finalmente, ela se deixa escrever e, assim, como sua luta obstinada, com raiva e
digna teimosia, começam a sair as letras, as palavras, os sentimentos. Talvez se lembre: você me entrevistou
naqueles tempos do Encontro Intercontinental e me fez falar de poesias e outros anacronismos. Eu o conheci
através de seus poemas, num desses livros que costumávamos carregar nos primeiros solidários anos da guerrilha
que, em seguida, o mundo conheceria como Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Sei muito bem que o título soará estranho para muitos, mas não para você, provado como foi e está sendo
em seu longo ir e vir levando estas lembranças e memórias que alguns chamam notícias. Seja como for, parece
excêntrico colocar o tamanho de uma bala como título de uma carta: “5.56 mm. NATO”. Assim, permita-me
discorrer um pouco sobre o tema, afinal de contas sou apenas um soldado, um soldado muito diferente, mas, no fim
das contas, um soldado.
“5.56 mm. NATO” é a classificação militar para referir-se à bala que, entre outros, é usada pelo fuzil M-16
(e suas variantes A-1 e A-2), pelo AR-15 - ambos de fabricação norte-americana - pelo Galil israelense, a Steyr
Aug austríaca e outras armas. A classificação comercial é “calibre 223”. Sim, é a mesma bala, mas uma é para uso
militar, muito freqüente entre os exércitos da América Latina, e a outra é para as caçadas.
A história desta bala é a história de uma mentira. Quando as grandes potências militares caíram no
despropósito de humanizar a guerra (antes nas Convenções de Haia, depois na de Genebra), foi acordada a
proibição das balas expansivas, ou dum-dum. O raciocínio foi impecável: numa guerra, o objetivo é provocar
baixas ao inimigo, e por baixas se entendem mortos, feridos, desaparecidos e prisioneiros.
Logo, para humanizar a guerra o que deve ser feito é reduzir o número de mortos e feridos. Por isso, se
pronunciaram pelo uso de “balas duras”, que apenas perfuram a carne humana, mas não levam à morte quando não
atingem nenhum órgão vital, e se a provocam não causam “dor excessiva”. Daí que se proibiram as balas
expansivas que, ao perfurarem o corpo se abrem ou se fragmentam, ou seja, “se expandem”, e o estrago que
provocam é maior que o das balas simples, pois não afetam só o lugar por onde penetram, e sim uma área maior.
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO, em suas iniciais em inglês), encabeçada pelos
Estados Unidos, adotou a bala calibre 7.62 mm., que, desde então, ficou conhecida como “7.62 NATO”. O Pacto de
Varsóvia, encabeçado pela então URSS, adotou o mesmo calibre, 7.62 mm., mas com o cartucho mais curto que o
da 7.62 NATO (51 mm. o da NATO e 39 mm. o soviético). A arma básica de infantaria utilizada pelo Pacto de
Varsóvia foi o fuzil automático Kalishnikov (AK) cujo último modelo, o AK-47, prolifera no mercado negro. Por
sua vez, a OTAN (e os países periféricos) adotou diversas armas para o calibre 7.62 mm. x 51 mm., ou 7.62
NATO. Entre eles esteve o Fuzil Automático Leve (FAL), de fabricação belga, e, mais recentemente, o G-3, de
patente alemã. O Exército mexicano trocou o FAL pelo G-3 e chegou a fabricá-lo depois de adquirir os direitos.
Mas, no auge da Terceira Guerra Mundial (como a chamamos nós zapatistas) ou guerra fria (como é
conhecida na história atual), os norte-americanos procuraram a forma de tornarem suas armas mais letais, ao
mesmo tempo em que burlavam os tratados que eles mesmos haviam assinado. Foi assim que, entre os anos de
1957-1959 e a pedido do Comando da Armada Continental (EUA), nasceu a bala calibre 5.56 mm. (regularizada
em 1964).
Mais fina que a 7.62 mm. e muito mais rápida, a 5.56 mm. não apresentava vantagens só na hora de
carregá-la (um soldado de infantaria podia levar até o dobro de munições de 5.56 mm. do que de 7.62 mm., mas
com o mesmo peso e em menor espaço), mas significava também grandes lucros para as empresas bélicas norte-
americanas (tão inocentes como a General Motors, a General Eletric, a Ford, etc.), porque sua aprovação
3
significava substituir totalmente o armamento de infantaria dos Estados Unidos (que naqueles tempos era de
carabinas M-1 e M-2, o velho Garand e a Thompson), ou seja, mais vendas.
Una nova bala significava uma nova arma, e toda a indústria bélica se concentrou em demonstrar as
qualidades do novo calibre. Para convencer o Pentágono apresentaram a melhor característica da bala calibre 5.56
mm.: tinha uma ponta fraca. O que é que isso significa? Bom, que uma bala como a 5.56 mm., com ponta fraca, se
dobra ao entrar em contato com a carne e começa a girar de forma errática no interior do corpo. Resultado? Mais
terrível que a expansiva, pois, se o orifício de entrada da bala era, de fato, de 5.56 mm., o de saída (caso isso
acontecesse) era até 10 vezes maior. Quando a bala não saía, ela destruía ossos, músculos, órgãos. Conclusão: sem
usar balas expansivas, o exército norte-americano começou a utilizar uma bala mais letal, com maior capacidade de
matar e que deixava com menores chances de vida o alvo humano que a recebia (além de aumentar de forma
considerável o sofrimento do ferido).
Estou falando do auge da guerra fria. Naqueles dias, os Estados Unidos imaginavam o futuro cenário da
guerra mundial em terras européias e tendo como inimigos os exércitos do Pacto de Varsóvia. O futuro “teatro de
operações” estava perfeitamente localizado numa longa linha que separava a Europa Ocidental da Europa Oriental:
grandes cidades, amplas e rápidas vias de comunicação, muitos espaços abertos, etc. De acordo com esta visão, a
lógica do Pacto de Varsóvia era simples: lançar ondas e mais ondas de soldados e blindados até vencer a resistência
inimiga. Por isso, os exércitos dos dois pactos (de Varsóvia e da OTAN) substituíram suas armas básicas de
infantaria por fuzis de assalto (grande volume de fogo a um curto alcance, menos de 500 metros). A Guerra da
Coréia havia demonstrado os limites do M-14 (versão semi-automática do Garand M-1). Foi assim que nasceram os
protótipos do que, em seguida, seria chamado de M-16, fabricado pela Colt em Connecticut, Estados Unidos.
Mas tanto a bala como o fuzil de assalto precisavam ser testados “em condições reais”. Foi assim que o
governo norte-americano decidiu que seu quintal incluía o sudeste asiático e interveio militarmente no Vietnã. Com
os novos M-16 e sua reluzente calibre 5.56 mm., as tropas dos Estados Unidos invadiram o Vietnã, e os combates
provaram que o M-16 e a calibre 5.56 mm. não eram tão bons como diziam. A bala é extremamente veloz e leve,
assim que qualquer toque contra uma folha ou um graveto mudava radicalmente sua trajetória (e, como era de se
esperar, na selva asiática abundavam as folhas e os gravetos); além do mais, o fuzil era muito afetado pela
umidade, um mecanismo pouco eficiente do ferrolho provocava seu entupimento, com a conseqüente falha no
disparo.
Para os soldados norte-americanos não foi nada agradável ver chegar uma onda de vietcongs (como
chamavam os guerrilheiros vietnamitas), apontar contra eles seus M-16, disparar e ouvir só um “clic”. Para o
Pentágono não causava maiores preocupações que alguns de seus rapazes perdessem a vida e os combates nas
selvas vietnamitas. Afinal, nem a arma e nem a bala tinham como cenário esta guerra, e sim a guerra futura em
território europeu e contra o Pacto de Varsóvia.
O fuzil foi sendo modificado ao longo da guerra no Vietnã: reforçou-se a antecâmara para resistir à
corrosão da pólvora, instalou-se uma alavanca adicional ao ferrolho para garantir seu fechamento e ajustou-se a
mola de recuperação para reduzir a cadência de tiro. Assim nasceram o M-16 A-1 e o M-16 A-2. Com o calibre
5.56 mm. e o fuzil M-16 como arma básica de sua infantaria, o exército dos Estados Unidos já estava pronto para
uma nova guerra mundial.
Paralelamente ao M-16, foi desenvolvido o AR-15 (versão semi-automática daquele), que seria logo
exportado para os países da América Latina, mais concretamente para suas polícias e seus esquadrões de contra-
insurreição.
No México, o AR-15 é a arma predileta dos policiais da Segurança Pública estadual. Especializados em
assassinar camponeses e indígenas, a polícia de Segurança Pública de Chiapas experimentava alegremente os
efeitos da calibre 5.56 mm. nos corpos morenos de suas vítimas. Quando descemos das montanhas, no dia 1º de
janeiro de 1994, nos deparamos com muitos AR-15 que os valorosos policiais abandonavam em sua grandiosa
fuga; mas essa é outra história.
Quando o senhor Zedillo toma o poder no México, depois do assassinato de seu predecessor (Luis Donaldo
Colosio), e fracassa a sua tentativa militar de fevereiro de 1995, ele e o Exército federal decidem ativar grupos
paramilitares para combater o EZLN “sem o desgaste na opinião pública causado pela atuação direta das tropas
federais” (Memorando interno da presidência à SEDENA, documento classificado, março-abril de 1995). Os
detalhes foram resolvidos pelo especialista em contra-insurgência, o general Mario Renán Castillo, sob a
supervisão de seu superior, o general Enrique Cervantes Aguirre, pelo então governador de Chiapas (e hoje
agregado da embaixada do México em Washington), Ruiz Ferro, e o Partido Revolucionário Institucional (PRI).
O acordo era este: o Exército entraria com a instrução e a direção estratégica e tática, o PRI colocaria a
tropa e o governo estadual daria o armamento e os equipamentos. Assim que, logo, os novos grupos paramilitares
em Chiapas se viram dotados de fuzis de assalto AR-15 e AK-47 (conseguidos no mercado negro patrocinado
pelos militares).
Acteal é a palavra que define cabalmente a estratégia governamental em Chiapas. as balas que destroçaram
os 45 homens, mulheres e crianças nessa comunidade, no dia 22 de dezembro de 1997, eram, em sua maioria
4
calibre 5.56 mm., algumas 7.62 mm. e um ou outro 22 para fuzil de cano longo. As três crianças que, alguns
meses atrás, foram para os Estados Unidos para serem atendidas por cirurgiões especializados, apresentam os
efeitos do calibre da mentira: o 5.56mm.
Hoje, 05 de janeiro de 2000, 30 indígenas zapatistas do município de Chenalhó, Chiapas, sofreram uma
emboscada por parte de policiais da Segurança Públicas e de priistas. Foram atacados enquanto saíam para colher o
seu café. Após horas de tortura, o governo libertou 27 deles e deixou presos os outros três, acusados, diz ele, de
provocar a matança de Acteal. O papel ridículo do governo não se limita ao fato, conhecido por todos, de que foi
Zedillo que provocou a matança do dia 22 de dezembro de 1997, e tampouco ao despropósito de querer
responsabilizar os zapatistas, que são apenas vítimas dos paramilitares. Não, vai mais além, porque a detenção se
dá no contexto de uma suposta iniciativa de paz do governo federal que oferece, entre outras coisas, a libertação
dos zapatistas presos. E não só não os liberta, como aumenta o seu número com os pretextos mais ridículos. Uma
mentira faz com que hoje se somem mais três indígenas às centenas de zapatistas presos pelo simples e
imperdoável fato de serem isso mesmo: zapatistas.
Eu sei que a esta altura da carta você se pergunta porque ela tem você por destinatário. Bom, acontece que,
alguns meses atrás, li na revista Proceso que você derrubou um general argentino, coisa pouco freqüente, e que fez
isso com palavras (algo inaudito). A razão do seu empenho foi então ofuscada pelo escândalo do affaire Clinton-
Lewinski (não sei se é assim, o escrito pornô não é a minha especialidade). Mas agora, mais recentemente, ficou
mundialmente conhecida a sua campanha para encontrar seu neto(a). Agora, o mundo inteiro sabe que seu filho e
sua nora foram assassinados pela ditadura militar argentina (talvez com uma bala calibre 5.56 mm.), e que o
filho(a) de ambos foi vendido no mercado negro das crianças que, além da tortura, parece ser a especialidade dos
exércitos latino-americanos. E este negócio da compra-venda dos filhos dos desaparecidos políticos vem tendo o
mesmo efeito da 5.56 mm.: não só penetra ferindo, como começa a girar lá dentro causando mais e mais estragos. É
como se o desaparecido deixasse em herança a seus filhos a sua mesma condição. Ou seja, um crime sofrido pela
vítima... e por aqueles que seguem na sua descendência.
Vi a sua carta ao governo do Uruguai e li sua resposta à resposta desse governo (no La Jornada). Li ambas
e entendi porque havia caído aquele general argentino. Tenho certeza de que ele nunca imaginou que um dia teria
que enfrentar um poeta e, o que é pior, um poeta insensato. Porque você é isso mesmo, um poeta (ainda que, às
vezes, se disfarce de jornalista), e é insensato porque agora, nos dias de hoje, é assim que chamam aos que não se
rendem e nem se conformam.
Enfim, o que queria dizer-lhe é que nós zapatistas o apoiamos, que desejamos que o ou a encontre, que seu
neto ou neta (que já deve ser um homem ou uma mulher feita) merece saber que teve os pais que teve e a sua
história. E, sobretudo, merece saber que tem um avô que sempre o ou a procurou, que nunca se rendeu, que
derrubou um general com algumas palavras, que comoveu o mundo com sua causa e que o mate já não é tão
amargo quando se toma com alguém que queremos, e outras coisas que, com certeza, você vai querer que ela ou ele
saiba.
E isso de calibre 5.56 mm., Acteal, paramilitares e sua luta vêm ao caso porque, agora que foi colocada a
polêmica para ver se o segundo milênio já terminou em 1999 ou se não terminará até que acabe o ano 2000, algo
tem que ser dito.
E nós zapatistas dizemos que não, que nem o milênio e nem o século terminaram. Não acabarão até que
haja justiça, vida e liberdade. Não acabarão até que a justiça se cumpra, que se castiguem os verdadeiros culpados e
que outro Acteal seja assim impossível. Não acabarão até que você encontre seu neto ou neta. Não, nem o século e
nem o milênio podem dar-se por encerrados com estas pendências. É uma vergonha para a humanidade dizer que já
entrou num novo milênio enquanto Acteal continua pendente na memória e um poeta-avô procura seu neto
desaparecido. Nada terminará enquanto os calibres das mentiras deste século e deste milênio continuam dando
voltas dentro de nós, destroçando-nos, matando-nos.

Por isso, don Gelman, esta carta era só para dizer-lhe que, na verdade, esperamos poder-lhe dizer um dia:
Feliz Século Novo! Feliz Novo Milênio!

Valeu. Saúde e que o tempo liberte, enfim, a nossa história.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, janeiro de 2000.

P.S. ARMAMENTISTA. Obviamente, a arma que carrego é um fuzil AR-15, calibre 5.56 mm. O peguei
emprestado de um policial no dia 1º de janeiro de 1994. Claro, ele corria tanto que não cheguei a ouvir a sua
resposta. Tenho ele aqui, ontem servia para matar os indígenas, hoje serve para que não os matem, ou para que não
seja impunemente.
5

EZLN - Carta e dois comunicados

México, 02 de fevereiro de 2000.

À imprensa nacional e internacional.

Damas e Cavalheiros:
Com esta, envio a vocês dois comunicados sobre dois assuntos: o ataque à Preparatória N.º 3 e o ataque à
Escola Normal de El Mexe, Hidalgo. Em ambos os fatos se fez presente a “nova” polícia especializada em
estudantes: a federal preventiva. Aí vocês vão me desculpar se o nome está como “Wilfredo” e deveria ser
“Wilfrido” (sim, refiro-me ao senhor Robledo, chefe da PFP) 1. Acontece que eu e o Mar consultamos vários jornais
e num deles escrevem “Wilfrido” e em outros “Wilfredo”. Enfim, se é “Wilfrido” ou “Wilfredo” isso quem deve
saber é a mãe dele (se é que ele tem).
Por outro lado, estamos comovidos com a imagem de Zedillo de bicicleta, tanto que até nos esquecemos de
que somos apenas um “acidente a mais na história” 2. Já estávamos prestes a trocar os cavalos pelas bicicletas
quando tivemos uma dúvida: o “chapeuzinho” é para fazer de conta que alguém tem cérebro?
Valeu. Saúde e não sejam globofóbicos, como já disse o professor Efraín Huerta: “Fora do metro tudo é
Cuautitlán” (era assim?)3.

Das acidentais montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, fevereiro de 2000.

P.S.: PARA DIODORO. Isso de que “não tem nenhuma importância dialogar com o EZLN” (Zedillo dixit), é o
pós-escrito àquele “Mais um Passo”? Ou o pós-escrito será trazido novamente por “Wifrido”? (ou era Wilfredo?)... 4

P.S.: QUE SE EXPLICA POR SI MESMO. “Globofóbicos do mundo, suicidai-vos! (Ou seja: “Uni-vos!)

P.S.: PARA O ESTADO ESPANHOL. Não se deixem enganar: nem todos os mexicanos são como Zedillo, ou
seja, patéticos (ainda que Aznar não lhe peça nada).

P.S.: QUE TAMBÉM DÁ A SUA CONTRIBUIÇÃO À RENOVAÇÃO DA LINGUAGEM. Junte-se ao Clube dos
Zedillofóbicos! Já somos quase 100 milhões! (Em breve: Clubes nada exclusivos de PRIfóbicos, Labastifóbicos,
De La Fuentefóbicos, e o muito exclusivo Fobiafóbicos (?!)).

EZLN - Contra a repressão em Hidalgo

México, fevereiro de 2000.

Ao povo do México
Aos Povos e Governos do mundo

Irmãos e irmãs:
Dias atrás, como amostra de que a perseguição de jovens estudantes já faz parte da política de governo do
senhor Ernesto Zedillo Ponce de León, foram detidos com requinte de violência 64 estudantes da Escola Normal
Rural Luis Villareal de El Mexe, no município de Francisco I. Madero, Estado de Hidalgo.
As reivindicações dos estudantes normalistas rurais são racionais: que sua escola não desapareça e que os
que saem dela obtenham o cargo de professor a que têm direito.
Sem sequer tentar uma aproximação, o governo do Estado de Hidalgo e o governo federal atacaram os
normalistas, bateram neles, os fizeram desaparecer e logo os fizeram reaparecer sob a acusação de “roubo”.
1
PFP: Polícia Federal Preventiva.
2
Refere-se à declaração dada em Madri pelo presidente do México Ernesto Zedillo no dia 31 de janeiro de 2000 durante uma entrevista
coletiva com a imprensa,
3
Globofóbico: refere-se à globofobia, neologismo apresentado por Zedillo durante sua intervenção na reunião da Organização Mundial do
Comércio em Davos na Suíça.
4
Refere-se a uma carta aberta divulgada no início de setembro de 1999, na qual o governo Zedillo propunha ao EZLN a retomada dos
diálogos de paz suspensos desde 1996.
6
Participou da ação a inefável polícia federal preventiva que se especializa em perseguir, bater e deter jovens
estudantes para compensar sua inaptidão em combater o crime organizado.
Nós, homens, mulheres, crianças e anciãos do Exército Zapatista de Libertação Nacional manifestamos
nosso repúdio a este ataque, nos solidarizamos com os normalistas de El Mexe, Hidalgo, e convocamos os
hidalguenses em particular e os mexicanos em geral a exigir a libertação dos normalistas presos e o atendimento de
suas justas reivindicações.

Democracia! Liberdade! Justiça!

Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos
México, fevereiro de 2000.

EZLN - Sobre os acontecimentos da UNAM

México, 02 de fevereiro de 2000.

Ao Povo do México
Aos Povos e Governos do Mundo

Irmãos e irmãs:

Através de uma transmissão de rádio, nas primeiras horas da madrugada de hoje, 02 de fevereiro de 2000,
nos inteiramos de um novo ataque das forças armadas paramilitares do governo federal contra os estudantes
universitários, Desta vez na Escola Nacional Preparatória N.º 3 na Cidade do México.

Sobre este acontecimento, o EZLN diz a sua palavra:

Primeiro. Desde a sua chegada na reitoria da UNAM, o senhor Ramón De La Fuente cumpriu a missão da
qual havia sido encarregado pelo governo do senhor Ernesto Zedillo: simular uma abertura para o diálogo enquanto
estava sendo preparado o golpe repressor contra o movimento estudantil que, reivindicando educação pública e
gratuita, mantém em greve a máxima casa de estudos.

Segundo. Depois de fingir que dialogava com o Conselho Geral de Greve e de chegar a acordos com seus
representantes, o senhor De La Fuente desconheceu o que havia sido acordado e convocou a realização de um
plebiscito que havia sido preparado na Secretaria de Governo como ponta de lança para justificar, perante a opinião
pública, o uso da força na solução da greve dos estudantes (como foi mostrado pela revista “Proceso”).

Terceiro. Aproveitando da boa fé de muitos universitários que desejam o fim do conflito e o atendimento
das justas reivindicações do movimento estudantil, o senhor De La Fuente fez do plebiscito uma tramóia para que,
ao manifestar-se pela satisfação das exigências e, de conseqüência, pelo fim do conflito, se afiançasse o uso da
força pública contra os estudantes.

Quarto. Apesar da gigantesca e dispendiosa campanha na mídia eletrônica, a maioria da comunidade


universitária não atendeu ao plebiscito da reitoria. Como, há tempo, vinha sendo advertido por alguns universitários
de filiação perredista, o plebiscito do reitor seria usado como argumento para a repressão (caso fosse rechaçado
pelo CGH), ou como legitimação de um congresso universitário manipulado a seu bel-prazer pelas autoridades
(caso fosse aceito pelo CGH) 5. De acordo com destacados membros da comunidade universitária (que não só não
podem ser acusados de serem “ultras”, como permaneceram firmes em sua crítica ao CGH), o plebiscito foi
realizado com uma lista artificialmente inchada e falsificado no que diz respeito aos seus resultados, que foram
dados a conhecer pela imprensa e que, de maneira nenhum são verídicos.

Quinto. Apesar de apenas pouco mais de um terço da comunidade universitária ter se manifestado a favor
da proposta da reitoria, a mídia eletrônica manipulou dizendo que “a grande maioria dos universitários” exigia o
fim incondicional do movimento.

5
CGH: iniciais de Conselho Geral de Greve, em espanhol.
7
Sexto. Com a maquiagem dos grandes meios de comunicação e sem a legitimidade dos universitários, o
senhor De La Fuente impôs um ultimato aos estudantes em greve: a entrega incondicional das instalações. O CGH
rechaçou esta posição.

Sétimo. Conseguido o anterior, as autoridades convocaram os universitários que não concordavam com a
greve para que retomassem as instalações. Nos dias que seguiram à realização do plebiscito, foram freqüentes os
atos de flagrante provocação montados pelas autoridades, com destaque para os da faculdade de direito, do CCH
Naucalpan e da Preparatória N.º 3 (como foi noticiado pelos jornais “La Jornada” e “Milenio Diario”). O objetivo
era e é claro: jogar universitários contra universitários.

Oitavo. Mas, contrariando os planos das autoridades, a maioria da comunidade universitária não é
favorável a soluções de força e sim ao diálogo e aos acordos. Na maioria das escolas e faculdades onde foi possível
a realização de assembléias, grevistas e antigrevistas dialogaram com respeito e tolerância e foram chegando a
acordos. A estratégia do reitor se deparava com um novo fracasso: os universitários se reconheciam como tais
através do encontro e do diálogo, reconheciam que as reivindicações do movimento eram justas, e procuravam
soluções criativas e inteligentes para acabar com a greve. As assembléias por escola e faculdade estavam dando
oxigênio ao movimento e, o que é mais importante, estavam dando a ele um novo rumo. A solução estava próxima.
Ainda que contrariando as posições sectárias, a base do movimento estudantil universitário entendeu que as
assembléias não significavam uma derrota e sim a possibilidade de fazer com que o diálogo suplantasse a troca de
qualificativos.

Nono. O fracasso do senhor De La Fuente motivou o governo federal a precipitar o golpe que havia sido
preparado: através da publicação de um folheto assinado por alguns entre os mais poderosos homens do dinheiro,
pelos meios de comunicação e pelo alto clero, a direita fascista se outorgou a falsa legitimidade imposta pela força.
Aí os poderosos anunciavam que se renunciava à política (e, de conseqüência, ao diálogo) e deixavam a força bruta
como único recurso.

Décimo. O trabalho sujo foi encomendado a quem comanda um grupo paramilitar formado pelo atual
candidato do PRI à presidência da república, o senhor Francisco Labastida Ochoa. Trata-se do militar Wilfredo
Robledo, chefe da autodenominada “Polícia Federal Preventiva”. Desejoso de ocultar suas cumplicidades e
fracassos diante do crime organizado (particularmente diante do narcotráfico), o senhor Robledo planejou, com
requinte de detalhes, o ataque às instalações universitárias.

Décimo Primeiro. Novamente, foram vozes de alguns militantes perredistas e dos candidatos do PRD à
presidência da república e ao governo do DF (em contraste com as posições de alguns dirigentes nacionais e locais
do partido) os que advertiram que o governo federal, respondendo ao apelo da direita, havia optado por despir-se de
toda roupagem política e havia ficado com o garrote como argumento de governo. Na falta de legitimidade, o
governo federal e aqueles que o acompanham em sua campanha militar (meios de comunicação eletrônica, alto
clero, os senhores do dinheiro e os intelectuais de direita) pela “recuperação das instalações universitárias” se
escondem por trás desta falácia jurídica chamada “Estado de Direito”. O “Estado de Direito” é a forma pela qual se
disfarçam os crimes de Estado.

Décimo Segundo. No interior da comunidade universitária e entre as forças progressistas, é cada vez mais
claro que o dilema da “universidade fechada ou aberta” é falso. Todos os universitários e todos os mexicanos
querem a UNAM fazendo o seu trabalho de docência, pesquisa e cultura. O movimento estudantil universitário tem
sido claro em seu desejo de que o conflito termine e a universidade volte a trabalhar normalmente de acordo com
seu espírito. É falso o dilema pelo qual o problema se resolve com a universidade fechada ou aberta. Agora, não é
essa a questão fundamental, menos ainda quando existem 251 presos políticos 6. Agora o dilema está em saber se as
justas reivindicações dos estudantes se resolvem com o uso do diálogo ou com o recurso da violência.

Décimo terceiro. Diante do conflito da UNAM, a direita mostrou estupidez, cegueira histórica e
autoritarismo, se organizou e o enfrentou com seu único argumento: a violência. O que tem de mais atrasado no
país se pronunciou pelo não ao diálogo e pela violência contra aqueles que discordam do seu projeto político,
econômico e social. De acordo com esta concepção, toda tentativa de democratização, toda demanda de justiça,
toda luta pela liberdade, são “acidentes menores da história” cujos destinos devem ser a prisão, o túmulo ou o
esquecimento. No país da direita, todo exercício da política, incluindo aquele que se dá de acordo com suas regras,
se transforma num teatro de sombras.

6
Refere-se ao número de estudantes presos durante a desocupação da Preparatória N.º 3 ocorrida no dia 01 de fevereiro deste ano.
8
Décimo quarto. Diante das ações fascistas da direita, nós, as forças progressistas e de esquerda do país
temos que encontrar os pontos comuns diante da justa demanda de educação pública e gratuita. Para além da falsa
separação de que “apoiar as demandas do movimento equivale a apoiar a chamada “ultra” e criticar os métodos do
CGH é “ficar do lado do projeto neoliberal de educação superior”, está o opor-se à qualquer ação política que não
tem outros argumentos a não ser a violência, a perseguição e o encarceramento.

Décimo quinto. O governo federal e a direita, com sua posição diante do conflito da UNAM, conseguiram
definir o problema em sua justa dimensão: a repressão como único e supremo exercício da política. Hoje, como
ontem, os lutadores sociais são classificados como “terroristas” pelo “Estado de Direito”. Assim como acontece
com indígenas, camponeses, devedores, professores, colonos, religiosos honestos e militantes dos partidos de
oposição, todos os que lutam pelos direitos sociais, os jovens estudantes da UNAM são tratados como criminosos
da pior espécie.

Décimo sexto. A pérfida agressão do governo federal contra os estudantes não deve ser deixada passar
impunemente. Hoje, o importante não é estar concordando ou não com as reivindicações dos estudantes, se
concordamos ou não com seus métodos, se concordamos ou não com o Conselho Geral de Greve, se concordamos
ou não com a greve. Hoje o importante é que não podemos permitir que o uso da força seja o método para enfrentar
as demandas sociais.
As forças progressistas e de esquerda optam pelo diálogo, sem se importar com suas diferentes concepções
diante do poder ou diante das formas de luta.
O fim da política que Zedillo anuncia no dia de hoje é a promessa de um pesadelo para todos os mexicanos
no amanhã de Francisco Labastida.
O período eleitoral, suposta panacéia da democracia, começa com 251 presos políticos, jovens estudantes,
muitos deles menores de idade.

Décimo sétimo. Por tudo isso, o EZLN faz um chamado a todas as forças de esquerda e progressistas, aos
partidos políticos de oposição honestos, a todos os mexicanos e mexicanas para que, independentemente da nossa
posição diante do conflito da UNAM, nos manifestemos para parar o fascismo, pela liberdade dos 251 estudantes
presos políticos, para que o diálogo chegue a acordos e pelo cumprimento desses acordos. 7

Décimo oitavo. Hoje não estão em jogo só o futuro da UNAM e do movimento estudantil. O que está em
jogo é o futuro de um país que está em disputa entre aqueles que querem governá-lo na ponta das baionetas e
aqueles que o querem livre, democrático e justo.

Democracia! Liberdade! Justiça!

Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos
México, fevereiro de 2000.

EZLN - Convocação

México, Fevereiro de 2000.

Ao Povo do México
Aos Povos e Governos do mundo

Irmãos e irmãs:
Hoje, 09 de fevereiro deste ano, uma multidão de mexicanos e mexicanas unirá suas vozes e seus passos
para protestar contra a ocupação paramilitar da UNAM, para reivindicar a libertação de todos os estudantes presos,
para exigir a retomada do diálogo.
Nós zapatistas nos unimos a esta mobilização e dizemos a nossa palavra:

Primeiro. Mais uma vez, o governo de Ernesto Zedillo respondeu com o uso da força às legítimas
reivindicações de um grupo de mexicanos e mexicanas. Hoje, os presídios se enchem de lutadores sociais. Centenas

7
Este comunicado foi escrito quatro dias antes da ocupação da UNAM por milhares de militares e policiais de elite que prenderam mais 737
estudantes do Conselho Geral de Greve.
9
de jovens estudantes universitários têm sido feitos prisioneiros numa clara violação à lei, ao sentimento comum e
à razão. A Universidade Nacional Autônoma do México é transformada num quartel de paramilitares.

Segundo. O mês de fevereiro já é o símbolo de um governo. Como acontece hoje na UNAM, em fevereiro
de 1995 traiu a vontade de diálogo. Em fevereiro de 1996, fez de conta que assumia o seu acordo para o fim da
guerra no sudeste mexicano.8 Em fevereiro de 2000 se refugia no único argumento das cacetadas e da prisão. Os
fevereiros de Zedillo são os da simulação, da traição, do golpe repressor, do cárcere como política de Estado.

Terceiro. Os protestos não se fizeram esperar. Ninguém pode falar de democracia, de liberdade ou de
justiça neste país enquanto os estudantes enchem os presídios e não as salas de aula, enquanto os paramilitares
ocupam escolas, enquanto o diálogo se converte em sarcasmo e não há outra verdade a não ser a violência.

Quarto. Além da serena valentia dos estudantes que hoje estão presos, entre as reações populares devem ser
destacados o combativo apoio dos pais de família, que não só não abandonaram seus filhos como têm se mostrado
dignos e firmes, e a pronta reação das organizações políticas e sociais de esquerda e dos intelectuais progressistas
que, deixando de lado suas diferenças, se unem para exigir que se repare a injustiça cometida.

Quinto. Diante da justa indignação popular, o governo responde com a pretensão de desarticular as
mobilizações libertando alguns estudantes e deixando presos os que considera “menos populares”.

Sexto. De nossa parte, nós zapatistas nos unimos à convocação das forças progressistas do país para, a
partir de hoje, alimentar uma campanha permanente de mobilizações pacíficas em todo o país exigindo a liberdade
para todos os estudantes presos, a saída da polícia federal das escolas, a volta ao diálogo, que se pare a política
fascista e se expresse o repúdio à direita nacional. Levantemos uma mobilização nacional contra a agressão à
Universidade Nacional.

Sétimo. Não é o momento do silêncio. Não é o momento do imobilismo. Não é o momento do cinismo.
Não é o momento do desânimo. Não é o momento do desespero ou da derrota.

É a hora da palavra que se mobiliza. É a hora da unidade. È a hora da esperança e de lutar por ...

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos.
México, Fevereiro de 2000.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.

Fevereiro de 2000.

À IMPRENSA NACIONAL E INTERNACIONAL

Damas e Cavalheiros:

Seguem várias cartas que não se explicam por si só e que eu não entendo explicar aqui.
Toda vez que Zedillo vem para Chiapas, o exército aumenta os patrulhamentos aéreos e terrestres. É
lógico, já que este senhor não é e nem será bem-vindo a estas terras. No dia 20 de fevereiro, desfrutamos de um
intenso ir e vir de aviões, helicópteros, tanques, caminhões e tropas em toda aquela que o cinzento filhote de baleia
de Rabasa chama de “zona do conflito”. Pensávamos que se tratasse de outra visita conjugal de Zedillo ao Bolachas

8
No dia 09 de fevereiro de 1995, Zedillo apareceu na mídia anunciando que havia sido descoberta a verdadeira identidade dos dirigentes
zapatistas e que já haviam sido expedidas as ordens de prisão. Com base nesta declaração, anunciada justamente no momento em que se
empreendiam os esforços para o diálogo, o governo federal lançava uma ampla ofensiva militar contra as comunidades indígenas, bases de
apoio do EZLN, e prendia vários civis sob a acusação de pertencerem ao EZLN e de estar preparando ações de sabotagem. Em fevereiro de
1996, o governo Zedillo assinava os Acordos de San Andrés, referentes aos Direitos Indígenas, que serviriam de base para a reforma da
Constituição. Até o momento, o governo federal mexicano descumpriu o que havia acordado com o EZLN.
10
pra Cachorro, mas não era. O que aconteceu é que neste dia foi Labastida e não Zedillo quem chegou para
9

repetir os cinzas que o caracterizam.


Uma dúvida: a mobilização dos federais é porque já consideram Labastida como seu “chefe supremo”? É
porque Labastida é o candidato oficial? Ou é porque os militares não achavam onde se esconder para não ouvir os
discursos de uma campanha que anda como os aviões da Força Aérea Mexicana sobre as comunidades indígenas,
ou seja, rente ao chão?
Valeu. Saúde e que viva para sempre a bandeira na qual a águia devora a serpente neoliberal (pois, caso
tenham se esquecido, o dia 24 de fevereiro é o dia da bandeira. De nada).

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, fevereiro de 2000.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.


Carta 6.b

21 de fevereiro de 2000.

Para: Don Fernando Benitez


De: Subcomandante Insurgente Marcos

“Quando chega, a morte se designa como algo singular e não há maneira


de escapar dela... Eu tive um sonho muito estranho... como de diabos e
animais que nunca tinha visto... Mas não acredite que isso era mal... Eram
cavalos de ferro que aravam os campos. (...) Em seguida, umas cubas
grandes, de pedra, com uma água abundante no seu interior, para regar
uma infinidade de campos que você nem pode imaginar... umas cubas tão
grandes quanto morros, que me pareciam feitas para que se banhassem os
gigantes... E via que a terra era de todos... e que todos se olhavam
contentes... dizia a mim mesmo: pois, onde estou? Será que este é o México?
E era o México, era o México, era o México! Foi então quando você me
lembrou...”

“Zapata”
Roteiro cinematográfico de José Revueltas.

Don Fernando:
Foi com uma dor amarga que soubemos do seu falecimento. Alguns dias atrás havia lhe escrito uma carta
para felicitá-lo pelo seu aniversário. Janeiro estava apenas entrando quando o Mar me chamou a atenção para a
nota do jornal na qual o felicitavam pelo seu aniversário e, juntos, lembramos daquela carta do seu aniversário do
ano passado. Nesta que estou escrevendo agora, eu poderia reiterar aquilo que as pessoas mais próximas (e as
que não estão tão próximas) já deveriam ter-lhe dito, mas não vou cansar-lhe a vista com coisas que você já sabia
e conhecia. Inicialmente pensadas para felicitá-lo, estas linhas agora são também para desejar-lhe boa viagem.
Talvez me atreva a lembrar, a lembrar-lhe, que meus pais me ensinaram a ler (não falo de alfabetizar, e
sim de ler) com aquele “Sempre!” de Don José Pagés Llergo, e, concretamente, com aquele suplemento que você
dirigiu e que se chamou “A Cultura no México”. Aí aprendemos a ler Poniatowska, José Emilio Pacheco, o afiado
Monsiváis e muitos outros. Aí aprendemos. Em seguida, anos depois, encontramos suas páginas de “Os Índios no
México”, e seus passos em outros suplementos culturais. Eu não sei se ainda dá tempo, mas queria dizer-lhe
“obrigado” por ter-nos ensinado a ler. Alguma vez você se propôs de ensinar alguém a ler? Bom, mas é isso que
acontece, às vezes alguém faz coisas que não havia se proposto.
Don Fernando, nós queríamos dar-lhe algo de presente, algo simples, mas muito nosso. Nós não temos
muitas coisas, Don Fernando. De fato, o que temos é muito pouco. A memória é a única coisa que temos em
abundância, e com ela lhe enviamos este presente que tem a virtude de não ocupar muito espaço na sua bagagem.
Irá lhe servir para rir disso que alguns chamam de “morte”.

9
Bolachas pra Cachorro: apelido dado pelo Subcomandante Marcos a Roberto Albores Guillén, governador de Chiapas.
11
Para trazê-lo perto de nós, vai este relato com o qual procuramos lembrar também daqueles que hoje
não estão conosco, mas que estiveram antes e que tornaram possível que hoje nós estejamos aqui. Com ele, Don
Fernando, você também agora é nosso. Aqui vai:

NESSE DIA...
Para Pedro, 6 anos depois, 26 anos depois.

Lembro-me desse dia. O sol não caminhava direito, andava de lado. Quer dizer, ele ia sim de cá pra lá, mas
andava como que de lado, assim, sem defrontar-se com aquilo que agora não me lembro como se chama, mas do
qual o Sup nos falou uma vez. O sol estava frio. Bom, tudo nesse dia estava frio. Bom, nem tudo. Nós estávamos
quentes. É que o sangue, e seja lá o que for que temos dentro do corpo, estava com calor. Não me lembro o que é
que disse o Sup: “o zênite” ou algo assim, ou seja, quando o sol chega até o ponto mais alto. Mas nesse dia, não.
Melhor, ele ia pelas beiradas. Nós avançávamos do mesmo jeito. Eu já estava morto, deitado de barriga pra cima
via muito bem que o sol não estava caminhando direito e que estava andando de lado. Nesse dia já estávamos todos
mortos, mas, seja como for, avançávamos. Por isso, o Sup escreveu aquilo de “somos os mortos de sempre,
morrendo outra vez, mas agora para viver”. Quando foi mesmo que morremos todos? Para dizer a verdade não me
lembro, mas nesse dia em que o sol ia caminhando de ladinho já estávamos todos mortos. Todos e todas, porque
havia também mulheres. Acho que é por isso que alguém não tem medo de morrer, porque, por si só, já está morto.
Na manhã desse dia era um corre-corre de gente. Não sei se é porque começou a guerra ou porque viram tantos
mortos avançando, caminhando como sempre, sem rosto, sem nome. Bom, de início as pessoas corriam, mas, em
seguida, já não corriam. Logo em seguida paravam e se aproximavam para ouvir o que dizíamos. Que grande
acontecimento! Vi que eu estava vivo. Feito bobo ia me aproximar para ouvir o que dizia um morto! Como se
pensasse que os mortos não têm nada a dizer. Estão mortos, pois. Como se o trabalho dos mortos fosse de andar por
aí assustando e não falando. Lembro que na minha terra se dizia que os mortos ainda caminham, é porque têm
alguma pendenga e por isso não ficam quietos. Na minha terra se dizia assim. Acho que a minha terra se chama
Michoacán, mas não me lembro muito bem. Tampouco me lembro bem disso, mas acho que me chamo Pedro ou
Manuel ou não sei, acho que não importa como se chama um morto, porque já está morto. Talvez tem importância
como alguém se chama quando ele está vivo, mas quando já está morto não tem pra que.
Bom, o caso é que, depois do corre-corre, toda esta gente ia se aproximando para ver o que lhe dizíamos,
nós todos, os mortos que éramos. Então começamos a falar, assim como nós mortos falamos. Ou seja, conversando
com calma, assim, sem muito alvoroço, como se alguém estivesse conversando com outro sobre alguma coisa e
este alguém não estivesse morto e sim vivo. Não, tampouco não me lembro das palavras que falamos. Bom, um
pouco sim. Tinha alguma coisa a ver com isso de que estamos mortos e em guerra.
Havíamos tomado a cidade durante a madrugada. Ao meio-dia já estávamos preparando tudo para ir pra
outra. Ao meio-dia eu já estava deitado, mas vi claramente isso de que o sol não andava direito e vi que fazia frio.
Vi, mas não senti, porque os mortos não sentem, mas vêem. Vi que fazia frio porque o sol estava como que
apagado. Muito pálido, como se tivesse frio. Todos andavam de um lado pra outro. Eu não, eu fiquei deitado de
barriga pra cima, olhando para o sol e tratando de lembrar como é que o Sup havia dito que se diz quando o sol está
a pino, quando já acabou de subir e começa a deixar-se cair pra aquele lado. É como se o sol começa a ficar aflito,
caminha e se esconde por trás daquela encosta. Já nem me dei conta quando o sol foi se esconder. Do jeito que eu
estava eu não podia virar a cabeça, podia só olhar pra cima e, sem me virar, para o pouco que conseguia ver de um
e de outro lado. Por isso, vi que o sol não caminhava direito, mas que andava de lado, como se estivesse aflito,
como se estivesse com medo de defrontar-se com aquilo que agora não me lembro como o Sup disse que se chama,
mas que, talvez, logo, logo, vou me lembrar.
Acabei de lembrar agorinha mesmo porque a pedra ficou um pouco rachada e nela se produziu uma brecha
parecida com a ferida de uma faca, e então pude ver o céu e o sol caminhando outra vez de lado, como naquele dia.
Não pude ver outra coisa. Deitado como estou, consigo ver apenas o céu. Não têm muitas nuvens e o sol está
pálido, ou seja, está fazendo frio. E então me lembrei daquele dia quando os mortos que somos começamos esta
guerra para falar. Sim, para falar. Por que outra razão os mortos fariam uma guerra?
Dizia-lhe que por esta brecha se consegue ver o céu. Por ele passam helicópteros e aviões. Vão e vêm
diariamente, às vezes até de noite. Eles não sabem disso, mas eu vejo eles, os vejo e os vigio. Também começo a
rir. Sim, porque, no fim das contas, estes aviões e helicópteros vêm pra cá porque têm medo de nós. Sim, já sei que,
por si só, os mortos assustam, mas aquilo do qual estes aviões e helicópteros têm medo é de que nós, mortos que
somos, nos colocamos de novo a caminhar. E eu não sei o porquê de tanto alvoroço, se não nos poderão fazer nada
porque já estamos mortos. Mesmo assim, que nos matem. Talvez é porque querem dar-se conta e avisar a tempo
aquele que os manda. Não sei. Mas sei, sim, que o medo deixa rastros e o cheiro do medo do poderoso é assim
como de máquina, como de gasolina, óleo, metal, pólvora, barulho e... e... e de medo. Sim, o medo cheira a medo e
a medo cheiram estes aviões e estes helicópteros. O ar que vem de cima cheira a medo. O debaixo não. O ar que
vem debaixo deixa um rastro gostoso, como de coisas que mudam, é como se tudo melhora e se faz melhor. A
12
esperança, a isso cheira o ar debaixo. Nós somos os debaixo. Nós e muitos como nós. Sim, pois aí está a
questão: neste país os mortos cheiram a esperança.
Através da brecha eu vejo e ouço tudo isso. Penso, e meus vizinhos concordam (sei disso porque eles me
disseram), que não está certo que o sol caminhe de lado e que devemos endireitá-lo. Pois isso de caminhar assim,
de lado, tudo pálido e friorento não dá. O trabalho do sol é de dar calor, não de ter frio.
E me escolhem, pois para eles eu faço até o analista político. Veja você, eu digo que o problema deste país
é que ele só tem contradições. Pois aí está que carrega um sol frio e as pessoas vivas vêem e deixam fazer como se
estivessem mortas, o juiz é o criminoso e a vítima está na prisão, o mentiroso é o governo e a verdade é perseguida
como doença, os estudantes estão presos e os ladrões estão soltos, o ignorante dá aula e o sábio é ignorado, quem
não faz nada tem riquezas e quem trabalha nada tem, a minoria manda e a maioria obedece, quem tem muito vai ter
mais ainda e quem tem pouco não tem nada, premia-se o mau e castiga-se o bom.
Não só isso, além do mais, por aqui os mortos falam, caminham e se dedicam às suas coisas singulares
como essa de tentar endireitar um sol que tem frio e, parem de olhá-lo, anda de lado sem chegar naquele ponto que
não me lembro como se chama, mas que o Sup nos disse uma vez. Acho que um dia vou me lembrar.
-*-
Bom, Don Fernando, pois que faça muitos mais e mais felizes aniversários. Receba um abraço de todas e
todos nós, e um especial deste anônimo discípulo da janela que você foi e é na cultura do México. Esteja bem e
não se esqueça de nós. Terá sempre um cantinho pra você na nossa memória.
Valeu. Saúde e um dia as coisas andarão direito, pode ter certeza, os mortos as endireitarão.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, fevereiro de 2000.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.


Carta 6.c

Fevereiro de 2000.

Para: Don Pablo González Casanova.


De: Subcomandante Insurgente Marcos.

“Eu, que tenho uma juventude cheia de vozes,


de relâmpagos e artérias vivas,
que deitado nos meus músculos, atento a como corre
e chora o meu sangue,
a como se amontoam as minhas angústias
como mares amargos
ou como espessas pedras de desvelo,
ouço que se juntam todos os gritos
qual um bosque de estreitos corações apertados;
ouço o que dizemos ainda hoje,
tudo aquilo que ainda diremos,
na ponta dos pés, sobre os nossos graves latidos,
pela boca das árvores, pela boca da terra.

José Revueltas. Canto Irrevocable.

Don Pablo:
Todos e todas nós o saudamos. Não só por sua valente atitude em dias recentes, mas também por ela. A
firme distância que você manteve diante da atitude violenta e autoritária daqueles que estão à frente do governo e
da UNAM tem muito valor, sobretudo nestes tempos em que a coerência é um sarcasmo e a dignidade um mal-
entendido.
Saiba que nos enche de orgulho o ter ficado perto de você. O seu hoje nada mais é a não ser a
confirmação do que tem sido a sua vida. Mesmo antes do tempo em que você se desdobrou como membro da
Comissão Nacional de Intermediação, suas palavras nos ajudaram a entender esta dor que chamamos “México”.
Já na CONAI, ao lado destes grandes homens e mulheres que a integravam, seu compromisso na busca de uma
solução pacífica, justa e digna para a guerra era firme e por tempo integral. Li por aí que o secretário de governo
13
e hoje candidato oficial à presidência, Francisco Labastida Ochoa, se queixou dizendo que a CONAI estava
“pendendo” num dos lados. Se os “lados” eram a guerra e a paz, é óbvio que aqueles que integravam a CONAI
estavam “pendendo” para o lado da paz. Tanto o bispo Samuel Ruiz Garcia, como Dona Concepción Calvillo
Viuda de Nava, os poetas Oscar Oliva e Juan Bañuelos, e você, se desdobraram para alcançar a paz no sudeste
mexicano da única forma pela qual é possível alcançá-la: com o respeito, com a justiça, com a dignidade, com a
verdade. É claro que o senhor Labastida terá que enfrentar muitos mexicanos que, como você, estão “pendendo”
para o lado das soluções pacíficas e são contra o uso da violência.
Sua explícita e contundente violação do uso da violência para enfrentar as demandas do movimento
estudantil da UNAM, só é a conseqüência lógica de quem é o que é o tempo todo. Temos certeza de que seu
exemplo será seguido por outros e outras intelectuais que, a seu modo e com suas próprias formas, farão saber a
quem usa a violência como argumento de governo que não o fará impunemente; e aos estudantes que hoje estão na
prisão ou são perseguidos, que quem sofre uma injustiça já não está sozinho. Uns e outros terão de ouvir nossas
vozes e nossos passos que, “pela boca das árvores, pela boca da terra”, dizem e dirão: liberdade e diálogo.
Hoje em dia, apesar dos meios de comunicação eletrônica, se levanta uma onda de indignação popular
para exigir a liberdade dos estudantes universitários presos e a retomada do diálogo. Liderado pelos valentes pais
de família, este movimento incorpora o melhor das organizações sociais, dos partidos políticos de esquerda, dos
artistas e intelectuais, dos religiosos e religiosas, das pessoas, dos universitários. Seu objetivo comum, aquele que
os une, é a exigência de justiça. E esta, a justiça, não pode ser feita enquanto um único universitário permanecer
atrás das grades. O melhor da esquerda partidária não só entendeu isso perfeitamente, como é um dos principais
impulsionadores.
No sentido oposto deste sentimento que se traduz em mobilização, os meios de comunicação eletrônica se
lambuzam com os recursos a eles destinados pelos partidos políticos para a propaganda das campanhas eleitorais,
e acreditam ter a autoridade moral e a legitimidade para converter-se, simultaneamente, em fiscal, juiz, jurado e
carrasco de todo aquele que não tem um horário pago em sua programação. Don Pablo, você sofreu isso em sua
própria pele e milhões de mexicanos o sofrem em seus próprios olhos e ouvidos. No limiar do século XXI, a
televisão aplaude a dupla imagem do México “democrático” atual: uma universidade cheia de militares e um
presídio cheio de estudantes (a intensidade da vida democrática de um país se mede pela quantidade de spots
publicitários, não pelo número de presos políticos). No país da televisão, a Carta Magna não é a Constituição, e
sim a grade da programação (faturem a cacofonia no horário triplo A) e não há conselheiros do IFE mais efetivos
do que as direções dos noticiários.
Seja como for, fora do horário das telenovelas, o povo (esse que não conta se não tiver um assessor de
propaganda e outro de mercadotecnia) se mexeu para protestar contra a repressão, assim como você, Don Pablo.
De acordo com aquilo que pudemos ver na imprensa escrita, a marcha do dia 09 de fevereiro foi a maior dos
últimos tempos. O clamor era um só: liberdade para os presos políticos. Há 6 anos, em 1994 e num 12 de janeiro,
teve uma grande mobilização parecida com essa. 10 Assim como hoje ela acontece por causa do movimento
universitário e ontem pelo levante zapatista, o povo toma as ruas para fazer-se ouvir.
Então, naquele janeiro de sangue e pólvora, nós tivemos que decidir como devíamos “ler” esta grande
mobilização. Podíamos ter “lido” ela como uma manifestação de apoio à nossa guerra, como um aval ao caminho
da luta armada que havíamos escolhido; ou podíamos ter lido ela como uma mobilização que apoiava não o nosso
método (a guerra) e sim nossas reivindicações, e que se manifestava contra a repressão governamental.
Nós estávamos isolados, voltando para as montanhas, carregando nossos mortos e feridos, preparando o
próximo combate. Assim, longe, muito longe, e nessas condições, tivemos que escolher. E escolhemos “ler” que
esse povo que saiu às ruas estava contra a injustiça, contra o autoritarismo, contra o racismo, contra a guerra, e
estava a favor do diálogo, da paz, da justiça, da solução pacífica para as nossas demandas. Foi isso que lemos e
isso marcou os nossos próximos passos.
Hoje, o movimento estudantil universitário (e o CGH) enfrenta uma situação parecida. Aqueles que o
integram podem “ler” a mobilização do dia 09 de fevereiro como uma manifestação de apoio à greve, ou como
uma exigência de justiça (libertando os presos) e de diálogo. Não é a mesma coisa.
A depender da “leitura” que for escolher, o movimento estudantil universitário terá que decidir seus
próximos passos. Escolherão e o farão bem. Não estão isolados e têm a inteligência e os recursos para fazer uma
leitura correta.
Nós? Como sempre Don Pablo: a todos e todas os e as que integram o movimento estudantil universitário,
a seus pais e mães, a seus professores, àqueles que os apóiam e estão perto deles, os queremos, os admiramos, vão
ganhar.
10
No dia 12 de janeiro de 1994, respondendo aos apelos que chegavam do mundo inteiro e do interior do país, dezenas de milhares de
pessoas realizavam uma manifestação de protesto na Cidade do México para exigir que o governo suspendesse a ação militar contra o EZLN
e buscasse uma saída política para o conflito. Encurralado, o governo do ex-presidente Carlos Salinas de Gortari era obrigado a ordenar o
cessar-fogo aos destacamentos do exército que se encontravam em Chiapas e a enviar a San Cristobal de Las Casas a primeira comissão
negociadora.
14
É por tudo isso que hoje, Don Pablo, o cumprimentamos. A você e a todos e todas que, como você, têm
manifestado seu repúdio à entrada dos militares disfarçados de policiais (“paramilitares” em sentido estrito) no
campus universitário.
Sabemos que sua voz e seu passo se unirão também aos de todos nós que reivindicamos o que é urgente e
necessário: a libertação de todos os universitários presos.
Valeu. Saúde e que nunca renunciemos à esperança.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, fevereiro de 2000.

P.S. Li por aí que os estudantes presos estão pedindo que lhes mandem livros. Mandem a eles este cujo título é “A
Democracia no México”. Serve tanto hoje como ontem, e é desses livros que produzem dores férteis.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.


Carta 6.d

Fevereiro de 2000.

Para: René Villanueva


De: Subcomandante Insurgente Marcos.

Irmão René:

Por aqui ficamos sabendo que você está doente. Nestas terras, quando alguém tem um parente (porque
você é um parente de todos nós zapatistas) que está doente, temos o costume de fazer com que alguém lhe ministre
todos os remédios possíveis (e os impossíveis também) para que fique curado. Como estar doente é algo comum e
freqüente nestas montanhas, por todos os lados há um vaivém de receitas que abundam em xaropes, chás, poções,
comprimidos, vapores e, horror!, injeções (Lucha, irmã maior de todos nós, domina um variado e verdadeiro
repertório medicinal que faria tremer os monopólios farmacêuticos - de nada, - Lucha, não se esqueça de pagar
quando for patentear tudo isso).

Como você é nosso irmão, não podemos dar-lhe qualquer coisa. Muito menos se esta “coisa” é uma
injeção, este sofisticado instrumento de tortura que, apesar de estarmos prestes a entrar no terceiro milênio, não
tem sido proibido por nenhuma organização mundial de nenhum tipo. Por aqui, por exemplo, Olivio propôs que
uma palavra de ordem para a marcha das mulheres zapatistas do próximo dia 08 de março seja “Chocolates sim,
injeções não!”. Eu falei para ele que não rimava, e ele me respondeu que as injeções não rimam com nada mesmo
e, ao contrário, “chocolates” rima com “brinquedos” (e lá vai Olivio tentar convencer o Mar para que coloque
sua palavra de ordem na marcha das zapatistas).

Não senhor, não te podemos dar injeções. Claro que tampouco podemos te dar os chocolates. Não só
porque Olivio os devorou, mas também porque com certeza chegariam todos derretidos. Por isso, consultamos
nosso livro especial de medicina que se chama “Remedios y Recuartos” e encontramos algo que, ainda que não te
cure, com certeza não vai te deixar pior (o que nestes tempos de “medicina moderna” já é uma vantagem): um
abraço! Todos e todas nós te mandamos um abraço. Pode ser aplicado a seu critério, mas não abuse senão vai
acabar causando dependência e abraços como aquele que te mandamos têm muito poucos.

Valeu. Não seja bobo, tome o remédio sem fazer caretas e fique curado, porque sua ausência e a de
Beatriz no “Correo Ilustrado” têm feito despencar o “rating” dessa seção (é isso mesmo, já fiz uma pesquisa
muuuuuuuito científica).
Valeu. Saúde e não esqueça que os abraços devem ser como os olhares: amplos e limpos.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, fevereiro de 2000.

INSURGENTAS!
(La Mar em março)
15
Carta 6.e.

Às que caíram
Às que continuam
Às que virão

Aí vai minha cálida carta,


pomba forjada ao fogo
com as duas asas dobradas
e o rumo reto.
Ave que no seu ninho
pelo ar e o céu
busca só a sua carne,
suas mãos, seus olhos
e o espaço do seu alento.

Miguel Hernández.

“As cartas demoram


e são pouco para dizer o que se quer”.

Jaime Gil de Biedma.

Fazendo malabarismos com seu chapéu noturno, a lebre de março está indecisa. Ainda não sabe se vai
fazer chover ou se vai conformar-se em deixar o céu manchado de tinta negra. Fevereiro ficou pra trás e com ele
seus próprios desconcertos de ventos, sóis e chuvas. Agora é o março feminino, o dia 8 e o dia 21, o das mulheres
zapatistas, o das insurgentas.
Já havia falado antes das mulheres insurgentes, as insurgentas, da nossa convivência com elas, de seus
pequenos e grandes heroísmos. A cada 8 de março, nós insurgentes nos colocamos diante das insurgentas e lhes
fazemos a saudação militar. Em geral, isso costuma ser acompanhado por uma pequena festa com os magros
recursos de nossos acampamentos nas montanhas. Desde os primórdios do EZLN, as mulheres têm estado entre as
montanhas do sudeste mexicano. Conforme o tempo foi passando, mais e mais foram se incorporando a este
pequeno grupo delirante que, em seguida, o mundo conheceria como “Exército Zapatista de Libertação Nacional”.
Têm coisas pequenas, quotidianas, que fazem parte da vida guerrilheira e que são como pequenas quotas
que a montanha impõe àqueles que se atrevem a ser parte dela. Conheço todas e cada uma destas dificuldades, e sei
muito bem que para as mulheres elas vêm em dobro. Não porque nós as impomos a elas dessa forma, e sim em
função de coisas que vêm de outros lugares e de outros tempos. Se causa admiração a alguém o fato de que uma
pessoa abandone a sua história e, como nós dizemos, se “entranhe” nas montanhas escolhendo a profissão de
soldado insurgente, este deveria parar para ver aquelas que fazem esta escolha como mulheres. Sua admiração seria
em dobro. Além de enfrentar um ambiente físico que é particularmente agressivo, as insurgentas devem enfrentar
também um código cultural que, para além da divisão mestiço-indígena, determina “espaços” (ou seja, atitudes,
lugares, cargos, trabalhos, responsabilidades e os múltiplos etceteras acrescidos por uma sociedade construída na
exclusão) que não são para as mulheres. Se uma insurgenta pensa que já tem bastante trabalho ao carregar,
caminhar, treinar, combater, estudar e trabalhar ao lado dos homens, se engana. Pode sempre ser pior. E o “pior”,
no nosso caso, é estar no comando.
Majoritariamente indígena, o EZLN carrega não só a esperança de algo melhor para todos, mas também
arrasta coisas desagradáveis e cegueiras do mundo que queremos deixar de lado. Se nas comunidades indígenas e
nas cidades as mulheres devem enfrentar um mundo no qual ser homem é um privilégio que exclui os diferentes
(mulheres e homossexuais), na montanha e como comandantes das tropas, devem encarar a resistência da maioria
dos insurgentes a receber ordens de uma mulher. Se esta resistência foi fortemente reduzida nos combate de 1994,
não significa que tenha desaparecido por completo. Invariavelmente, o homem sentirá que pode fazer melhor do
que seu comandante se este é uma esta, uma mulher. Algo semelhante acontece nos povoados, mas agora vou me
limitar a falar das tropas regulares, dos insurgentes... e das insurgentas.
Dias atrás, por méritos próprios, teve uma única promoção no EZLN, ou seja, um ascenso no grau militar,
uma insurgenta, Maribel, foi promovida de primeira capitã a Major de Infantaria. A atual Major Maribel continua
sendo baixinha e morena, continua sendo mulher, a única coisa que mudou é que agora comanda um regimento
inteiro. Aos problemas que enfrenta em sua nova condição de comandante de uma zona, acrescenta os que dizem
respeito ao fato de ser mulher. Como ela, outras companheiras, que estão ou não no comando, em armas e nos
serviços, cumprem rigorosamente o pagamento de sua quota de entrega e sacrifício, do mesmo modo que todos os
16
combatentes. Mas se neste momento a tropa insurgente é a parte menos exposta às luzes dos holofotes externos,
as insurgentas acrescentam uma sombra a mais a dos passamontanhas que carregam: são mulheres. E, devo dizê-lo,
acrescentam também um grau superior de heroísmo ao de nós homens. Podemos não entendê-lo (apesar dos
regulamentos e estatutos, da lei revolucionária das mulheres, das conversas e das declarações), mas não deixaremos
de reconhecê-lo.
E como a Maribel temos outras oficiais. No que chamamos de “serviço de saúde” estão as Capitãs
Insurgentes Oli-Ale (a mulher com mais anos de atividade no EZLN), Mónica e a Tenente Insurgente Aurora. Têm
mais oficiais e membros da tropa, já mencionei algumas delas faz anos, numa ocasião como esta; não vou citar
outras porque logo terei ocasião de fazê-lo. Antes delas teve Alicia, do grupo inicial que em 1983 fundou o EZLN e
a primeira mulher no comando da tropa (por isso, na montanha, ela foi a primeira a enfrentar o problema de, sendo
mulher, mandar nos homens); pouco depois chegou Lucía, que é a insurgente autora da letra do Hino Zapatista (e
de muitas das músicas que hoje se ouvem nas noites das montanhas do sudeste mexicano). E ainda antes vieram
Murcia (a primeira mulher na guerrilha zapatista que caiu em combate em 1974), Dení-Prieto S. (caída em
combate em 1974), Soledad (caída em combate em 1974), Julieta Glockner (caída em combate em 1975) e Ruth
(caída em combate em 1983, foi quem me ensinou a atirar).

Através de todas elas e com elas, está Lucha, a quem chamamos de “a insurgente de aço inoxidável”. Os
mais de 30 anos de clandestinidade fazem com que o passamontanhas de Lucha brilhe de maneira especial entre
nós. Hoje, apesar do câncer que apenas a incomoda, Lucha continua sendo a primeira de nossas mulheres
guerreiras, a memória melhor.
Neste 8 de março, saudando nossas atuais
insurgentas, saudamos todas aquelas que as e
nos precederam e que, em mais de um
sentido, nos transcendem.
Vou contar alguma coisa sobre o
apelativo de “insurgentas”. A anedota pode
ser localizada em qualquer tempo e lugar
dessa ignorada quotidianidade da vida em
montanha. Estava dirigindo um treinamento
militar. Entre um exercício tático e outro, a
coluna guerrilheira marchava ao ritmo de
palavras de ordem mais ou menos evidentes:
por exemplo, eu gritava “Quem está aí?” e a
tropa respondia em uníssono “A Pátria!”.
Assim se fazia e se faz. Uma das palavras de
ordem da marcha de combate é quando o
comandante pergunta “O que somos?” e
todos respondem “Insurgentes!”. Nesse dia sobre o qual agora vou contar, metade da coluna era formada por
mulheres e quando gritei “O que somos?” a resposta foi um clamor desordenado. Achei que estavam cansados e
dei a ordem de parar. Enfileirada na que se chama de “linha de atiradores”, a tropa permanecia em posição de
firmeza e em silêncio. Coloquei-me diante deles e voltei a gritar “O que somos?” e então pude escutar nitidamente
que, enquanto os homens respondiam “Insurgentes!”, as mulheres se sobrepunham à voz dos homens e impunham
seu grito de “Insurgentas!”. Fiquei calado. Dei ordem aos homens de “romper filas”. Agora, só diante das
mulheres repeti “O que somos?”. Já sem interferências elas responderam um forte e firme “Insurgentas!”. Fiquei
olhando para elas desconcertado e notei um leve sorriso em seus rostos. Voltei ao “O que somos?” e repetiram
“Insurgentas!”. Acendi o cachimbo e fumei devagar, olhando para nenhum lugar. Chamei todos em formação e
disse a eles, palavras mais, palavras menos, “Hoje aprendemos que vamos ganhar”. “Alguma pergunta?”.
Silêncio. Com voz forte ordenei “Atenção!” “Insurgentes!” ... - voltei a olhar para as companheiras e acrescentei
“e Insurgentas! Romper filas! Já!”. O barulho das botas, esse sim, foi homogêneo. Menos mal, resmunguei comigo
mesmo. Foram todos... e todas à intendência. Eu fiquei fumando, vendo como a tarde, feminina como é, se vestia
de mar e lilás, de insurgenta.
As insurgentas zapatistas... Agora, desta vez, quero falar mais de uma delas. Sobre esta mulher posso
dizer-lhes que é mais uma de nós, mas para mim não é mais uma, é uma de única. LA MAR não é um personagem
literário, é uma mulher, é uma zapatista. Ela foi a arquiteta da consulta nacional e internacional do ano passado (e
parte importante de todas e cada uma das iniciativas de paz nestes 6 anos) e, como freqüentemente acontece com as
zapatistas, seu anonimato é duplo pelo fato de ser mulher. Agora, já que é o 8 de março, queria deixar claro que,
ainda que na maioria das vezes me caiba ser a figura pública, muitas iniciativas devem ser atribuídas, em seu
projeto e concretização, a outros companheiros e companheiras. No caso da consulta foi uma mulher zapatista: La
Mar. Somente depois de 21 de março, pegou sua mochila e se incorporou à sua unidade.
17
Devemos lembrar também que nessa consulta a mobilização das mulheres (no México e no mundo), foi
a coluna vertebral da secretaria de contato (nacional e internacional), das brigadas, das coordenações, das mesas de
votação, das delegações, dos atos, as mulheres (de todos os tamanhos, origens, condições, cores, idades) foram a
maioria. Assim que estas linhas são para saudar as mulheres que lutam e, sobretudo, as que lutam e não aparecem
em vários sentidos, as insurgentas. Para celebrá-las pedi a companhia de um antigo sábio indígena: o Velho
Antônio; e do mais corajoso e galante cavalheiro que estes mundos conheceram: Durito (vulgo Nabucodonosor,
Don Durito de la Lacandona, Black Shield, Cherloc Jolms, Durito Heavy Metal, vulgo seja lá o que for). Pois é,
feliz dia às mulheres rebeldes, às sem rosto, às insurgentas...
-*-
Lá embaixo é março reiterando outra vez suas três primeiras letras nos olhos que, trigo na luz, lêem. Fito
Paéz me acompanha para presentear um vestido e um amor, e no pequeno toca-fitas vai espalhando seu “tudo o que
eu diga está demais”. Eu aproveito uma rajada de vento e chego perto de Don Durito que, muito ocupado, vai
pregando e serrando sabe-se lá o que sobre sua lata de sardinhas. Já sei que antes eu disse que se trata de um navio
pirata. De fato, Durito me olhou com um olhar de punhal afiado quando escrevi “lata de sardinhas”, mas fiz isso só
para que o leitor possa lembrar que agora Durito é Black Shield (Escudo Negro), o famoso pirata que herdou do
defunto Barba-vermelha uma tarefa bastante difícil. A embarcação com a qual Durito, perdão, quis dizer Escudo
Negro chegou até aqui se chama “ponha suas barbas de molho” por razões que ainda ignoro. Durito me propôs
que o acompanhe na busca de um tesouro. Já contei tudo isso numa carta anterior, por isso não vou me delongar.
Acontece que neste março de La Mar, fui até onde Durito trabalha para ver o que está fazendo e para pedir
orientação e conselho.
Durito dá os últimos golpes ao que suponho deve ser um mastro com uma vela quando eu pigarreio para
sinalizar a minha presença. Durito diz:
- Feito. Agora, contigo na proa não terá adversário que se oponha a nós.
Eu sorrio melancólico e olho indiferente para o barco. Durito me repreende:
- Não é um “barco” qualquer. É uma galera, clássica embarcação destinada à guerra lá pelo século XVI.
A galera pode ser impulsionada pelos ventos ou graças aos remos manejados pelos chamados “condenados à
galera”.
Faz uma pausa e continua: - E, falando de velas, posso saber porque a tristeza vela o teu olhar?
Faço um gesto de “Não tem importância”.
Durito o interpreta e diz: - Ah! Mal de amores... Devagarzinho, deixa de lado o martelo e o serrote,
desembarca, e, tirando seu pequeno cachimbo, senta-se ao meu lado.
- Suponho, meu futuro esporão de proa, que o que te deixa triste e aflito não é outra coisa a não ser uma
donzela, uma fêmea, enfim, uma mulher.
Eu suspiro. Durito continua:
- Olhe meu querido marinheiro de banheira, se quem o desvela é uma mulher, mas uma de única, então a
doença é grave, mas tem remédio.
Eu confesso: - Acontece que sim, que é uma mulher, uma de única, ela que é mar por muitas coisas mais
que o “Mariana” que a nomeia. Num dia maldito me afastei dela e agora não acho a maneira e a forma para fazer
com que me acolha de novo em suas umidades, que esqueça as tempestades, enfim, que me perdoe.
Durito dá uma longa baforada e sentencia:
- Grandes e graves são tuas faltas e desvios, mas posso te dar um conselho se você me prometer que vai
seguir as indicações ao pé da letra.
Eu disse que “sim” com um entusiasmo que fez Durito pular de susto. Ele recoloca como pode a venda no
olho e diz:
- É preciso recorrer a um feitiço. No que diz respeito ao amor, o mundo é, como sempre, um quebra-
cabeça, mas acontece que se um de único se encontra com uma de única, as peças adquirem forma e sentido e o
quebra-cabeça se amplia e quebra caras, braços e pernas.
- E peitos; digo eu roçando a angústia que sinto em mim.
- Bom, acontece que o feitiço só terá efeito se ela, La Mar no seu caso, está disposta a submeter-se a ele
porque, do contrário, será inútil. Quero dizer que o feitiço não funciona se a pessoa enfeitiçada não estiver
consciente de que está sendo enfeitiçada.
- Feitiço estranho, este - digo eu.
Durito continua sem ligar pra mim: - Leve a ela uma boa lembrança, uma dessas que servem para olhar
adiante e ao longe, uma que a faça levantar o olhar e a faça caminhar muito e fundo. Diga-lhe que olhe para
diante, não para o dia seguinte, não para a próxima semana ou para o ano que virá. Mais adiante, mais pra lá.
Não lhe pergunte o que está vendo. Só olhe para ela olhar pra diante. Se perceber que seu olhar sorri com ternura,
então estará perdoado e terá trigo, praia, mar, vento, e então poderá navegar de novo, quer o amor é isso e não
outra coisa.
18
Durito voltou a pegar seus apetrechos e continua arrumando a galera. O destino da viagem me é ainda
desconhecido, mas Durito se mantém em silêncio, dando-me a entender que devo ir fazer o que me disse.
Eu vou perambulando mais um pouco pela madrugada. Procuro encontrar La Mar em seu leito. Eu sei que
vocês pensam que estou falando de cama, mas por aqui leito é qualquer leito ou mesa, solo, cadeira ou ar, sempre
que a nossa sombra se duplica no outro, nunca um, sempre dois, mas tão juntos. Se não for assim, então não se trata
de um leito, pois para falar em leito são necessários dois. Penso que se La Mar dorme, será um problema acordá-la
com esta história absurda do feitiço. Então, me ocorre que deveria abordar o assunto indiretamente, aproximando-
me assobiando alguma música, comentando o clima... ou começando a declamar um poema de amor.
Mas o problema está no fato de que, intuo, o poema de amor guarda um cadeado, um último segredo, que
só uns poucos, quase ninguém, consegue abrir, descobrir, libertar. Fica-se com a impressão de que o que se sente
por alguém, já encontrou em palavras alheias sua formulação perfeita, redonda, completa. Amassa-se o papel (ou,
em tempos cibernéticos, decreta-se o “delete” do arquivo em questão) com os lugares comuns nos quais o
sentimento se torna palavra. Não sei muitas coisas da poesia amorosa, mas conheço o suficiente para que, quando
algo assim chega aos meus dedos, sinta que se parece mais com uma geléia de morango do que com um soneto de
amor. Em suma, a poesia, e mais concretamente a poesia amorosa, é para qualquer um, mas não é qualquer um que
tem a chave que abre seu mais alto vôo. Por isso, quando posso, convoco os poetas amigos e inimigos e renovo aos
ouvidos de La Mar os plágios que, apenas balbuciados, parecem meus. Suspeito que ela sabe disso, todo caso ela
não me diz, fecha os olhos e deixa que meus dedos penteiem seus cabelos e seus sonhos.
Aproximo-me, penso, sinto e digo a mim mesmo: que vontade de voltar ao início, de recomeçar, de voltar
ao primeiro traço da primeira letra, à “A” do longo alfabeto da companhia, voltar ao primeiro desenho que retrata
nós dois juntos e começar a crescer de novo e, de novo, afiar a ponte da esperança. Aí está. Dorme. Aproximo-me
e...
(...)

E, entre contas e contos, tudo isso vem ao caso porque neste mar de março tudo parece cheirar a desolação,
a impasse, a queda irremediável, a frustração. Porque, tenho certeza, a todos vocês parecerá estranho que hoje me
atreva a profetizar a volta de bandeiras de todas as cores povoando, a partir debaixo, os campos, as ruas e as
janelas. E me atrevo a fazê-lo porque olho para esta mulher zapatista, seu tenro empenho, seu duro amor, seu
sonho. Olho para ela, por ela e, sobretudo, com ela, prometo e me prometo novos ares para essas bandeiras irmãs,
pendões voadores que inquietam e desvelam ricos e pobres, ainda que por razões diferentes para uns e outros.
Prometo e me prometo, justo na metade da noite mais tediosa, um outro amanhã, não o melhor e sim um pouco
melhor. Por esta mulher que, nas manhãs e diante de mim aguça o ouvido e ajeita o revolver enquanto me diz “aí
vem o helicóptero” como se dissesse “estão batendo na porta”. Por esta zapatista, por esta mulher, e por muitas
como ela que, mais e mais vezes, colocam o ombro como escora para que não caia o pouco de bom que ainda existe
e para, com este material, começar a construir desde já isso que hoje parece tão distante: o amanhã.
Valeu. Saúde a todas e para ela, além do mais, uma flor.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, Março de 2000.

P.S. QUE CUMPRE COM A DUPLICIDADE. Anexo aqui a lembrança que dei de presente a La Mar. É assim que
esta carta 6.e consegue sua dupla asa e empreende o vôo necessário para toda carta. Aí vai:

Conto para uma noite de angústia

Digo a La Mar que, por alguma razão que não consigo entender, o Velho Antônio pode ter lido em algum
lugar o filósofo alemão Imannuel Kant. No lugar de apaixonar-se pela xenofobia, o Velho Antônio pegava do
mundo inteiro tudo aquilo que considerava bom, sem que para isso fosse importante a terra que o tivesse parido. Ao
referir-se às pessoas boas das outras nações, o Velho Antônio usava o termo “internacionais”, e a palavra
“estrangeiros” a usava somente para os alheios ao coração, não importando que fossem de sua mesma cor, língua e
raça. “Às vezes têm estrangeiros até num mesmo sangue”, dizia o Velho Antônio para explicar-me a absurda
necessidade dos passaportes.
Mas, digo a La Mar que a história das nacionalidades é outra história. A que lembro agora se refere à noite
e aos seus caminhos.
Foi numa dessas madrugadas com as quais março afirma sua vocação delirante. A um dia com um sol que
ardia na pele feito um chicote de sete pontas, seguiu-se uma tarde de grandes nuvens cinzentas. Já de noite um
vento frio amontoava nuvens negras sobre uma lua desbotada e tímida.
19
O Velho Antônio havia deixado passar a manhã e a tarde com a mesma austeridade com a qual acendia
agora o seu cigarro. Um morcego deu voltas ao nosso redor por um instante, seguramente pela luz com a qual o
Velho Antônio deu vida ao seu cigarro. E, como o Tzotz, de repente apareceu no meio da noite...

A História do ar da noite

Quando os maiores deuses, os que deram origem ao mundo, os primeiros, pensaram no como e para que
iam fazer o que iam fazer, fizeram uma de suas assembléias onde cada um tirou a sua palavra para conhecê-la e
para que os outros a conhecessem. Assim, cada um dos primeiros deuses ia tirando uma palavra e a arremessava
para o centro da assembléia e aí ricocheteava e chegava a outro deus que a agarrava e a arremessava de novo e
assim a palavra ia como uma bola de um lado para outro até que todos a entendiam e então os maiores deuses que
foram os que deram origem a todas as coisas que chamamos mundos entravam em acordo. Um dos acordos a que
chegaram quando tiravam suas palavras foi que cada caminho tivesse seu caminhante e cada caminhante seu
caminho. E assim iam fazendo as coisas completas, ou seja, cada um com cada um.
Foi assim que deram origem ao ar e aos pássaros. Ou seja, não teve primeiro o ar e logo em seguida os
pássaros para que nele andassem, nem tampouco fizeram antes os pássaros e depois o ar para que nele voassem.
O mesmo aconteceu com a água e com os peixes que nela nadam, a terra e os animais que por ela andam, o
caminho e os pés que o caminham.
Porém, falando dos pássaros, teve um que protestava muito contra o ar. Este pássaro dizia que voaria
melhor e mais rápido se o ar não se opusesse a ele. Este pássaro resmungava muito porque, ainda que seu vôo
fosse ágil e veloz, o ar se convertia em obstáculo. Os deuses se aborreceram de tanto que este pássaro que voava
no ar falava mal e se queixava do ar.
Foi assim que, como castigo, os primeiros deuses lhe tiraram as plumas e a luz dos olhos. Despido, o
mandaram para o frio da noite e cego devia voar. Então seu vôo, antes gracioso e ligeiro, se tornou desordenado e
torpe.
Mas, depois de muitas trombadas e tropeços, este pássaro se deu a manha de ver com os ouvidos. Falando
às coisas, este pássaro, ou seja, o Tzotz, orienta seu caminho e conhece o mundo que lhe responde numa língua
que só ele sabe ouvir. Sem as plumas que o vestiam, cego e com o vôo nervoso e desordenado, o morcego reina na
noite da montanha e nenhum animal caminha melhor do que ele pelos ares escuros.
Deste pássaro, o Tzotz, o morcego, os homens e as mulheres verdadeiros aprenderam a dar um grande e
poderoso valor à palavra falada, ao som do pensamento. Aprenderam também que a noite encerra muitos mundos
e que se deve saber ouvi-los para ir descobrindo-os e fazendo-os florescer. Os mundos que a noite encerra nascem
atrás das palavras. Produzindo sons se tornam luzes e são tantos que não cabem na terra e muitos acabam por
alojar-se no céu. Por isso, dizem que as estrelas são feitas no chão.
Os maiores deuses deram origem também aos homens e as mulheres, não para que um fosse caminho do
outro e sim para que fossem ao mesmo tempo caminho e caminhante do outro. Os fizeram diferentes para que
estivessem juntos. Os maiores deuses fizeram os homens e as mulheres para que se amassem. Por isso o ar da
noite é o melhor para voar, para pensar, para falar e para amar.
O Velho Antônio termina a sua história no março daquele tempo. Neste março, La Mar navega um sonho
no qual a palavra e os corpos se despem, caminham pelo mundo sem chocar-se, e o amor pode voar sem angústias,
Lá em cima, uma estrela descobre um lugar vazio no chão e desce rapidamente, deixando um momentâneo
arranhão na janela desta madrugada. No pequeno toca-fitas Mario Benedetti, um uruguaio do mundo todo, diz
“Vocês podem ir, eu fico”.
-*-

OUTRO P. S. La Mar aceitou o feitiço? Como diria não sei quem, é uma incógnita.

Valeu de noz. Saúde e Março, como sempre, vem muito louco.


O Sup esperando como é de lei, ou seja, fumando.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.


21 de março de 2000.

Para: Germán Dehesa


México, D. F.

Don Germán:
20
Já faz tempo que tenho vontade de escrever-lhe. Leio você há muito tempo (sempre, claro, que o
“Reforma” chega à Selva Lacandona) com atenção e divertida seriedade (que tem, ou não?). Agora, lendo sua
coluna da quinta-feira 16 de março, vejo que, generoso, você tem um ouvido atento às nossas palavras. Procurarei
não me estender muito. Aí vai.
Primeiro você pergunta “O que tem feito o EZLN para preservar a Selva Lacandona?”. Respondo: ditar leis
e zelar por seu cumprimento. Como você não deve estar sabendo (porque o governo apresentou os municípios
autônomos indígenas como separatistas), as autoridades autônomas das comunidades indígenas zapatistas da Selva
Lacandona ditaram uma lei que proíbe “o roçar, a derrubada e as queimadas de monte alto” (os companheiros usam
o termo “monte alto” para referir-se às regiões dos bosques, diferenciando-as assim dos milharais - terrenos
semeados - e dos “acahuales” terrenos com vegetação rasteira, invariavelmente de espinhos, cardos, cipós e outras
plantas parasitas). As comunidades não têm se contentado em estabelecer e divulgar esta lei, além disso, têm se
encarregado de zelar por seu cumprimento e punir sua não observância. Trabalho comunitário extra e multas são as
penas por este delito. E, atenção, isso se cumpre. Assim, têm conseguido não só deter a destruição dos bosques da
Selva Lacandona, mas têm conseguido também alterar em parte os padrões de procedimento para a semeadura nas
comunidades. Para enfrentar os incêndios que proliferam nesta época do ano, os povos têm um sistema de
comunicação e sinais para socorrerem-se mutuamente caso o fogo se espalhe. Resultado? Nas regiões zapatistas
existem dezenas de milhares de “bombeiros” experientes. Senhor Dehesa, estes indígenas fazem isso e mais do que
isso para proteger a terra que, para eles, não é só um meio de sobrevivência, mas é também o lugar da memória, da
cultura, da história. É isso que fazem estes indígenas que se rebelam contra um governo que se nega a cumprir sua
palavra e que tem respondido às demandas de justiça enviando dezenas de milhares de soldados que, acredite
senhor Dehesa, não vêm pra Chiapas semear as mudas das árvores que você viu em San Miguel de los Jagüeyes, e
sim para semear o terror que você só verá nos rostos dos homens, mulheres, crianças e anciãos que têm a desgraça
de ter, sobre suas terras, um quartel do exército, vários botecos, pelo menos um bordel e nenhum respeito à
autoridade civil.
Estou lhe contando isso, senhor Dehesa, não porque quero “transformá-lo” em zapatista ou recrutá-lo. Faço
isso porque acredito que você é tão inteligente como seus escritos revelam (e até mais, pois têm brilhos que nem as
palavras revelam). É claro que não foi “inocentemente” que o convidaram para ir a San Miguel de los Jagüeyes (e
não a Acteal, a Amador Hernández, a Amparo Aguatinta, a Tani Perla, a Roberto Barrios ou a outros lugares de
“reflorestamento” castrense), e que você sabe disso.
Como, tenho certeza disso, você é um homem de visões amplas e desejoso de conhecer as diferentes
imagens de uma mesma realidade, eu o convido a vir pra Chiapas de incógnito; vá até Comitán e pegue aí um taxo
aéreo para a comunidade de Amador Hernández. Pelo ar, quase ao chegar, você poderá apreciar um corte brutal de
árvores feito pelos soldados aí posicionados para os seus helicópteros e a extensão da mata que foi derrubada para
limpar os “campos de fogo” para as suas metralhadoras. Desce-se e consegue penetrar na fortificação militar,
poderá ver os tambores com os desfolhantes que estão em seus depósitos e os lança-chamas que, com os morteiros
e as metralhadoras leves, integram parte do seu arsenal.
Vá a Amador Hernández, não será recebido por nenhum secretário de Estado ou algum “alto comandante”
da guerrilha zapatista, nem o esperará nenhum encarregado das relações públicas. Será recebido por homens e
mulheres indígenas tzeltales, lhe mostrarão seus campos cultiváveis destruídos, suas nascentes de água
contaminadas, o lixo inorgânico jogado pelos militares, as armadilhas caça-bobos com estacas afiadas no fundo, as
paredes de ramos e árvores cortados por trás das quais se escondem os militares para não verem os cartazes que os
homens e as mulheres indígenas mostram a eles todos os dias exigindo que se retirem. Venha, senhor Dehesa, não
tem nada a perder e sim muito a entender. Poderia (é uma sugestão) trazer consigo a Madame Loeza (que também
queria dar sua voltinha), tenho certeza que ela irá bolar um bom disfarce para que ambos passem desapercebidos e
possam constatar assim a “outra” realidade dos soldados federais na Selva Lacandona.
Porque estes soldados que o senhor Aguilar Zinser vê (e aplaude) “cuidando” dos bosques da Selva
Lacandona são cúmplices das madeireiras (os grandes caminhões com a madeira clandestina têm passagens livres
pelos bloqueios militares nos vales); são os mesmos que estupraram mulheres indígenas na comunidade de
Morelia; os mesmos que executaram sumariamente alguns indígenas em Ocosingo; os mesmos que treinam
paramilitares (cuja maior façanha “florestal” é o massacre de crianças, mulheres, homens e anciãos em Acteal); que
transformam escolas e igrejas em quartéis (visite o norte de Chiapas); que no hospital “novinho em folha” do velho
Guadalupe Tepeyac roubam recém-nascidos para vendê-los (inteiros ou em pedaços) no mercado negro dos
Estados Unidos; que semeiam, traficam e consomem drogas (que lhe mostrem os arredores dos quartéis de
Guadalupe Tepeyac, San Quintín, Tani Perla, Ibarra, La Soledad, só para mencionar alguns); que protegem os
narcotraficantes em suas rotas rumo à União Americana (desde 1995, ano da “recuperação da soberania nacional”,
os quartéis sul-americanos “recuperaram” o trampolim que haviam perdido com o levante do EZLN); que
introduziram o álcool nas comunidades (você pode apreciar os comboios militares escoltando caminhões com
bebidas alcoólicas!); os mesmos que perseguem, ameaçam, golpeiam, prendem, estupram e matam os indígenas
21
mexicanos (em qualquer comunidade que tenha a desgraça de ter um quartel por perto) que, até onde entendo,
têm o mesmo valor (pelo menos) de qualquer arbusto.
Venha, senhor Dehesa, venha, veja, fale e peça que o introduzam no quartel que o exército tem na
comunidade San Quintín (na porta da biosfera dos Montes Azules), aí você poderá ver os eficientes e modernos
calabouços destinados a torturar indígenas, os túneis para “fazer desaparecer” pessoas sem deixar rastros aos
observadores dos direitos humanos. Venha, veja e ouça.
Venha e verá que têm dois projetos para o amanhã: o do governo e o dos indígenas. O nosso procura “criar
as condições para que a nossa boa gente do campo recupere através do seu esforço: sua história, seu pensamento,
sua dignidade, sua respeitabilidade e sua iniciativa”. (Dehesa, G., Reforma, sexta-feira 17 de março de 2000), e isso
porque não estamos em campanha eleitoral.
Não acredite em mim, senhor Dehesa, acredite no que seus olhos vêem e seus ouvidos ouvem. Se sua
viagem não for possível, não leve em consideração isso que lhe escrevo. No lugar disso, veja as centenas de relatos
das Organizações Não Governamentais, de cientistas e pesquisadores, da Alta Delegada da ONU para os Direitos
Humanos - todos eles recomendam a saída do exército de Chiapas. E não é porque querem ver os bosques
destruídos. É porque não viram os soldados plantando mudas, e sim violando os direitos humanos.
Bom, senhor Dehesa, espero ter-me limitado às laudas que, imagino, ocupam sua coluna. De resto, não
acredite nesse negócio de correio eletrônico, o único meio efetivo de comunicação com o Comando Geral do EZLN
continua sendo o que é proporcionado por um par de botas, meio gastas, é verdade, mas que ainda servem. Ignoro
se publicará a presente ou o tom de sua resposta. Seja como for, saiba que você conta, pelo menos, com dois
leitores (incluindo La Mar) entre as montanhas do sudeste mexicano que, apesar de não compartilhar muitas das
minhas opiniões e considerações sorriem divertidos com seu talento, sua mordacidade e sua alegria.
Valeu. Saúde e a árvore que vale é a do amanhã.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, março de 2000.

P. S. RESPONDÃO. Estava me esquecendo que você ainda perguntava “Quantas árvores plantou Marcos?”. Lhe
respondo. Sem contar o pé de laranja que verdeja na entrada do Comando Geral do EZLN, pode-se dizer que
plantei só uma outra árvore. Esta árvore é muito peculiar. Não só porque para plantá-la tem sido necessária a
participação de milhares de homens e mulheres por várias gerações; não só porque seu adubo contém muitas dores
e, é justo dizê-lo, não poucos sorrisos. Não, senhor Dehesa, a árvore que plantamos aqui é peculiar porque é uma
árvore para todos, para aqueles que ainda não nasceram, para aqueles que não conhecemos, para aqueles que
estarão quando nós nos teremos perdido atrás da esquina de qualquer calendário. Quando a nossa árvore crescer,
sob a sua sombra se sentarão grandes e pequenos, brancos, morenos, vermelhos e azuis, indígenas e mestiços,
homens e mulheres, altos e baixos, sem que estas diferenças tenham alguma importância e, sobretudo, sem que
nenhum deles se sinta menor, ou pior, ou envergonhado por ser como é. Sob esta árvore terá respeito para o outro,
dignidade (que não significa soberba), justiça e liberdade. Se me apertar para que defina brevemente esta árvore,
lhe direi que é a árvore da esperança. Se numa manhã qualquer, no mapa de Chiapas, no lugar da imensa área verde
quebrada pelas linhas azuis dos rios e dos córregos se vêem sinais de poços de petróleo, minas de urânio, cassinos,
áreas residenciais exclusivas e bases militares, então quererá dizer que estes soldados, que você diz que cuidam da
Selva Lacandona, terão ganhado. Isso não significará que temos perdido, só que nós estamos nos demorando mais
do que pensávamos para ganhar.
O P. S. PROPÕE OUTRA JANELA.
(Off the record: a realidade)
(Pós-escrito à Carta 6.c)

Março de 2000.

Para: Don Pablo González Casanova


UNAM, México.
“As janelas são como as bolachas:
são gostosas e alimentam”.

Don Durito de la Lacandona.

Don Pablo:
22
Com certeza você vai estranhar a epígrafe que encabeça esta carta, e mais ainda o autor. Não é simples
de explicar, mas tratarei de fazê-lo. Tudo começou quando...
Lá em cima o céu se espreguiça de horizonte a horizonte. Estica-se tanto que a pele chega a rasgar e a luz
aparece por entre os farrapos. Venta muito pouco, ainda assim, uma brisa fugaz me traz os ecos de algumas vozes.
Desço da ceiba e caminho rumo a uma pequena luz coberta pelas árvores. Parece uma pequena reunião, ou algo
parecido. Aproximo-me e “paro para distinguir as vozes dos ecos e, entre as vozes, ouço somente uma”. O Chapéu
Louco e a Lebre de Março repartem o chá enquanto discutem com La Mar uma pesquisa que diz que 90% dos seres
humanos prefeririam celebrar seus não-aniversários e renunciar às festas de aniversário. Estas coisas acontecem só
entre as montanhas do sudeste mexicano. Eu estou com o 10% que prefere celebrar os aniversários, por isso fiquei
sem o chá e sem a discussão.
Seja como for, o 21 já ronda por todos os calendários e, na falta do chá, terá café e bolachas de bichinhos.
E, falando de bichinhos, o gabinete ampliado de Zedillo (ou seja, ele mesmo e a chamada - de forma presunçosa -
“equipe de campanha” de Labastida) aborrece com suas declarações o cada vez mais raquítico respeitável público.
E não é que o respeitável tenha perdido a respeitabilidade, o que acontece é que diminui aceleradamente o número
de mexicanos e mexicanas que atendem ao que o supremo lhes diz.
Durito, que quando o assunto é bolachas se joga como um político que procura seu nome nas listas dos
candidatos, aparece por uma das beiradas da mesa. Eu estava escrevendo uma resposta para Don Pablo González
Casanova (melhor um pós-escrito), quando Durito, jogando num canto a venda, a perna de pau e o gancho,
exclama-pergunta-exige-reivindica:
- Alguém falou em bolachas?
- Não falei, escrevi. E não fique emocionado porque são daquelas de bichinhos que, pelo que eu sei, não estão
entre as que você prefere.
- Por que você sempre mistura a política com coisas tão nobres como as bolachas? Além do mais eu sei onde estão
guardadas algumas “Pancrema”.
Parei logo de escrever.
- “Pancrema”? Aonde?
- Nada, nada. Se não tem chá, não tem bolachas.
- Mas Durito... bom, vamos negociar: eu te ajudo a arrumar a lata de sardi..., perdão, a galera e você me diz onde
estão as “Pancrema”.
Durito pensa nisso por um momento. Depois pergunta:
- Isso inclui que você lave a coberta e tire a água durante as tormentas?
- Inclui - digo eu vendo que agora no céu não tem lugar para as nuvens, por isso não tenho que me preocupar com
nenhuma tormenta.
- Siga-me - diz Durito que, descendo da mesa, começa a marchar montanha adentro.
Peguei a lâmpada, ainda que a lua a tornasse desnecessária. Não caminhamos muito. Durito parou diante de
um huapac e apontou para um dos ramos. Aí - disse. Olhei para onde apontava e vi uma pequena sacola pendurada.
Devia seu uma velha “caixa do correio” deixada há tempo por uma de nossas unidades. Durito sentou-se ao pé da
árvore, tirou o seu cachimbo e começou a fumar. Interpretei o seu silêncio e subi na árvore, soltei a sacola e desci
com ela. Ao abri-la, vi que, de fato, havia um velho pacote de bolachas “Pancrema”, um par de pilhas “AA”, uma
lâmpada já enferrujada, um livro velho e estragado de Lewis Carrol (“Do outro lado do espelho”), um cancioneiro
zapatista... e um livro de teoria política cujo autor é o Subcomandante Insurgente Marcos!
Não lembro de ter escrito nenhum livro de teoria política. E mais, não lembro de ter escrito nenhum livro
mesmo. Claro que a idéia de um longo escrito expondo o que nós zapatistas pensamos da política andou rondando
pela cabeça, mas nada disso foi concretizado. Pus-me a folhear o livro enquanto Durito dava conta das bolachas.
Quando me virei já não sobravam nem as migalhas das “Pancrema”.
- Acabou com todas? - digo-lhe em tom de reprovação.
- Devia me agradecer por isso. Estavam mais rançosas do que o “novo” PRI.
Durito me olha e acrescenta: - Vejo que algo te preocupa. Pode desabafar comigo, meu querido nariz
desconcertado.
- É que encontrei este livro na caixa do correio. Como é possível que encontre numa velha caixa do correio de
montanha um livro que ainda não foi escrito?
- O seu problema tem solução no outro livro.
- Qual? O de Lewis Carrol?
- Claro! Dá uma olhada no capítulo V.
Fiz isso. Não tenho certeza, mas acredito que a resposta devia estar neste diálogo entre Alice e a Rainha
Branca:
“- É este o resultado de viver para trás - disse a Rainha bondosamente. No começo, isso deixa sempre as pessoas
um pouco atordoadas.
- Viver para trás - repetiu Alice, muito surpresa. Nunca ouvi isso!
23
- Mas nisso tem uma grande vantagem: que nossa memória trabalha em ambos os sentidos.
- Tenho certeza de que a minha só trabalha num único sentido - observou Alice. Não posso lembrar das coisas
antes que elas aconteçam.
- É uma memória triste esta que só pode trabalhar para trás - respondeu a Rainha.
- Que tipo de coisas você lembra melhor? Alice se atreveu a perguntar.
- Oh! As coisas que aconteceram nas duas semanas - respondeu a Rainha negligentemente...”

Lewis Carrol. “Do outro lado do espelho”. Cap. V

- É por isso que tenho em mãos um livro que ainda não foi escrito? Disse.
- É isso. Estamos numa dessas zonas chamadas “janelas”. Eu olho para ele com estranheza. Sim, - diz Durito -
“Janelas”. Ou seja, nestes lugares você pode olhar para o outro lado, seja para o que passou, como pelo que vai
acontecer. Aqui, por exemplo, aqui você pode ver o que tem sido o mandato de seis anos de Zedillo, e ver também
o caos para o qual se dirige. Agora, a única coisa estável é a instabilidade. Terão todo tipo de problemas.
- Pois, parece que caminham por aí mesmo. Você já vê que a bolsa de valores está nas nuvens e, não entendo
muito disso, os índices econômicos garantem que não haverá o “erro de dezembro”.
- Deve ser porque acontecerá em outro mês. Durito parece prevenir minha perplexidade porque quase
imediatamente acrescenta: - Você tem que entender - Durito olha dubitativo e corrige - bom, você deve tratar de
entender que... Olha, é melhor ler isso aqui que estou escrevendo. Durito me passa umas folhas escritas onde se lê:

ANOTAÇÕES QUE TRATAM DE EXPLICAR AQUILO QUE VAI ACONTECER


QUANDO JÁ TIVER ACONTECIDO.

Os índices macroeconômicos: a macro maquiagem.

Em ano eleitoral, além dos candidatos abundam as mentiras. Uma das maiores é a que canta as maravilhas
de um auge econômico que não se vê em nenhum lugar. Cegos diante do que faz sofrer o povo simples, os
funcionários governamentais exibem números que dizem mais naquilo que calam. Os altos índices
macroeconômicos nada mais são a não ser uma macro maquiagem para ocultar a realidade: o crescimento da
pobreza e do número de pobres em nosso país. Enfrentando a evidência de que ninguém acredita neles, o governo
põe na boca dos grandes centros financeiros os ganhos e os aplausos na rápida e tumultuosa venda do México.
Enquanto nas reuniões empresariais e governamentais (o clube mais poderoso dos criminosos nacionais) se
felicitam mutuamente pelos aumentos dos lucros, nas ruas e nos campos do México a sobrevivência se transforma
em luta quotidiana e os aumentos dos preços dos produtos básicos e dos serviços se refletem nas mesas (menos
alimentos e em quantidade menor), nas ruas (aumentam os desempregados e os subempregados), nos pequenos
comércios (agonia e fechamento) e no campo (aumenta a migração para as cidades e para a União Americana).
Mesmo assim, a macro maquiagem apresenta sérias deficiências. No XIII Congresso da associação
Nacional dos Economistas, o secretário zedillista do Comércio (Herminio Blanco) enfrentou a crítica à sua
campanha publicitária. Enrique Dussel, pesquisador da UNAM, lhe disse “As 3 mil e 100 maquilladoras e as 300
grandes empresas nacionais e estrangeiras representam o 0,12% das empresas do país e criam somente 5,6% dos
empregos...” (“El Universal”, 09 de fevereiro de 2000, caderno de Finanças, reportagem de Lilia González e
Alberto Bello). Ao apontar que as grandes corporações não têm criado uma cadeia produtiva com as pequenas e
médias empresas (que, no México, são a principal fonte de emprego), o pesquisador teve o humor de apontar ao
senhor Blanco: “Estes são dados, não globalifobia” (Ibid.).
A grande fraude chamada “Tratado de Livre Comércio da América do Norte” (produto da grande mentira
salinista) se projeta agora para o futuro através da assinatura de um tratado de livre comércio com a União
Européia. Apreciadores das modernas maquiagens, os governos europeus apertam a mão de Zedillo sem importar-
se com o fato deste tê-la manchado com o sangue indígena, sem ligar para o fato de que o seu governo é o que tem
mais ligações com o narcotráfico, e fechando os olhos à falta de democracia em nosso país. Dá pra entender a
flexibilidade da União Européia; o que está em jogo é um pedaço do bolo chamado, ainda, “México”. Pelas
maravilhas da globalização, um país se mede pelos seus índices macroeconômicos. O povo? Não existe, só tem
compradores e vendedores. E, no meio destes, existem classificações: os pequenos, os grandes e os macros. Estes
últimos compram ou vendem países. Um tempo atrás foram os governos dos Estados Nacionais, hoje são só
mercadores em busca de bons preços e lucros suculentos.

A classe política e seus convocados: clero, exército, meios de comunicação, intelectuais, organismos
internacionais.
24
Se antes dissemos que a classe política é cada vez menos política e cada vez mais empresarial, em ano
eleitoral o cinismo assume tons de “boom” publicitário. Os que “são importantes” não são os governados, e sim
aqueles que contribuem ou dificultam o exercício do poder. Convocados pela classe política mexicana, o alto clero,
o exército, os meios de comunicação eletrônicos, os intelectuais e os organismos internacionais se transformam em
“grandes eleitores”. Suas respectivas parcelas recebem os benefícios do regime e, de forma acentuada, durante o
período eleitoral. Os cidadãos permanecem à margem e suas demandas são reduzidas às pesquisas de preferência
eleitoral. As declarações, os desmentidos e os comentários a umas e outras, dizem respeito aos chamados “líderes”
de uma opinião cada vez mais próxima a um acordo de camarilha e mais afastada do debate sério de idéias e
projetos.
O alto clero avança, com suposto aval divino, nas intrigas terrenas. Formando uma equipe com os
governantes e/ou candidatos-a-governantes, a hierarquia católica vê com satisfação que a sua palavra incide e
marca as políticas do governo. Enquanto o Estado leigo nada mais é a não ser uma data vergonhosa no calendário,
nas reuniões públicas e privadas os políticos e os clérigos partilham o pão, o sal, a cumplicidade e a falta de
vergonha. Não, não se trata de respeito mútuo entre âmbitos diferenciados, não. É uma simbiose que permite a
alguns bispos e cardeais estarem mais próximos do México do Poder do que dos católicos (a grande maioria dos
mexicanos) simples e comuns. As Leis da Reforma? Perdoe-me, meu querido, não é nome de rua?
Em outro espaço, outros “bispos” e “cardeais”, mas da intelectualidade da direita, lutam entre si para
ocupar o espaço deixado pelo sumo pontífice, Octavio Paz. Se tem uma maneira de medir a estatura de Paz como
intelectual eficaz com e para o poder, esta é medindo a dos anões que disputam o seu legado. Com Paz morre o
último grande intelectual da direita no México, os que o seguem podem ser de direita, mas estão muito longe de
serem intelectuais. Contudo, as hierarquias da intelectualidade de direita no México têm seus acólitos e, em caso de
necessidade, seus soldados. Nestes dias, a frente intelectual de direita contra o movimento universitário sofreu um
sério revés. O golpe veio de um universitário, intelectual e de esquerda, chamado Pablo González Casanova. O
pesquisador da UNAM colocou em evidência algo fundamental: a legalidade não pode suplantar a legitimidade, e,
no caso do conflito da UNAM, a “legalidade” (outros intelectuais de esquerda já têm demonstrado que a entrada da
Polícia Federal Preventiva na UNAM foi ilegal, como são ilegais os processos penais contra os estudantes presos)
se transformava num meio pelo qual a violência sem razão obtinha o doutorado Honoris Causa da maior
universidade da América Latina.
Se o ser de esquerda já era algo imperdoável em González Casanova, o fato de agir coerentemente com
suas idéias foi demais. Os “cardeais” da intelectualidade mandaram seus peões (parece que alguns têm até nomes e
sobrenomes) a jogar-se com fúria contra Don Pablo. Ainda que tenham perdido a batalha, a intelectualidade da
direita não passa a noite em claro por esta escaramuça derrotada. Seus combates decisivos não são no campo das
idéias (perderiam com certeza) nem diante dos intelectuais progressistas. Não, o terreno a ser conquistado, que
desejam, que alguns já desfrutam, está ao lado do “príncipe”, nas beiradas de sua mesa, sussurrando elogios ao
ouvido dos grandes senhores da política e do dinheiro. Sem dúvida, produzem suas revistas e seus programas de
televisão. As letras mortas que rabiscam, seus nexos intelectuais e suas zonas abertas não têm como destinatário
ninguém mais a não ser eles mesmos. Nestes lugares se comentam entre eles mesmos, se lêem entre eles mesmos,
se “criticam” entre eles mesmos, se saúdam entre eles mesmos e, ao fazê-lo, se dizem reciprocamente: “somos a
consciência do novo poder, somos necessários porque nós dizemos que somos necessários, o Poder precisa de
alguém que coloque em prosa e em versos seus indicadores econômicos e suas faturas, o que nos torna diferentes
dos bufos é que nós não contamos piadas, as explicamos”.
Neste mundo anão de anões, a superfície é um tabuleiro de xadrez no qual alferes, reis, rainhas, peões,
cavalos e torres conspiram cochichando. Todos sabem quem vai ganhar, não é isso que importa, e sim que casa do
tabuleiro ocupam e por quanto tempo. O barulho ensurdece uns e outros, mas a máquina funciona, aí estão 7
décadas de um sistema político que agora se chama “novo PRI”. O barulho da máquina não se parece com o girar
das engrenagens, se parece cada vez mais com um “spot” publicitário.
Os problemas começam quando entram peças que não são desse xadrez, quando algum objeto estranho
entope as engrenagens, ou quando uma interferência obstrui a todo-poderosa “compra-venda”...

A Agenda Nacional no caderno de “Espetáculos”?

A caixa de ressonância fundamental deste México dos poderosos está nos meios de comunicação
eletrônicos. Mas, longe de ser só um eco do que a classe política diz, a televisão e o rádio adquirem voz própria e,
sem que ninguém o questione, se transformam na voz principal. A agenda nacional não é marcada pelos grandes
problemas do país e nem sequer pelos líderes políticos. Não, as campanhas eleitorais e as agendas governamentais
andam de acordo com as programações do rádio e da televisão. A comunicação eletrônica não divulga notícias, as
cria, alimenta, as faz crescer e as aniquila. A diferença entre as opções partidárias em tempos de eleição não está
nos projetos de Nação que sustentam umas e outras, e sim no tempo que conseguem nos meios de comunicação.
25
O “rating” que importa não é o dos telespectadores e sim o que se alcança na classe política. A maior
parte das declarações e dos pronunciamentos dos principais atores políticos não é diante de situações reais, e sim
das manchetes. Dessa forma, os temas “do momento” cobertos pelos meios de comunicação são aqueles que eles
selecionaram para este fim. No grande teatro da política no México, os políticos são, ao mesmo tempo, atores e
espectadores; o rádio e a televisão cumprem as funções de diretor, roteirista, produtor, encarregado da iluminação,
da tramóia e da bilheteria.
Se a cada dia é mais difícil falar de um único México, em tempos eleitorais é impossível. É palpável a
existência de dois países: o que vive nas manchetes e o que passa “off the record”, fora dos noticiários e das
exclusivas.

Off the record: a realidade.

Enquanto o rádio e a televisão se esforçam, inutilmente, em apresentar uma imagem de “normalidade” na


Universidade Nacional Autônoma do México, os entusiastas do “Estado de Direito” exercido contra os lutadores
sociais, se surpreendem com o fato de que a entrada no C. U. dos paramilitares de Wilfredo Robledo e a detenção
de centenas de universitários não “solucionaram” o conflito na máxima casa de estudos. Nem o movimento
universitário está acabado, nem o farsante De La Fuente é o reitor. A libertação seletiva e a conta-gotas dos
estudantes presos (esforçando-se para deixarem uns tantos presos) não desanimou a luta pela reivindicação de
educação gratuita e por um congresso democrático que seja verdadeiramente democrático e resolutivo. Às vezes
desconcertado, o movimento universitário se mantém firme em reivindicar a liberdade dos presos políticos, a
educação gratuita e o congresso. Incomodados, o rádio e a televisão tratam de fazer com que as manchetes sejam
unicamente daqueles que têm horário pago na programação. O resto deve ficar como pé de página ou “para encher
lingüiça”. A quem interessam os pais de família que se esfolam para exigir a liberdade de seus filhos, quando na
equipe de Labastida estão lutando Esteban (Guajardo) Moctezuma e Emilio Gamboa? Os mesmos meios de
comunicação que se apavoravam com o léxico do CGH, hoje se entusiasmam com o “merda-peido-chis” das
campanhas eleitorais e com a exagerada troca de sinais digitais entre os candidatos.
Mas se a realidade passa boa parte do tempo fora da programação, de vez em quando dá uma mordida no
México de cima e estraga os índices macroeconômicos, os noticiários e as agendas dos candidatos. Num canto do
outro México, uma comunidade decide dispensar as telenovelas e os noticiários, enfrenta a polícia e defende uma
escola normal rural. Em El Mexe, Hidalgo, os protagonistas não são os estudantes normalistas e nem os policiais
que iam reprimi-los, é o povo. Gente que não tinha mais lugar a não ser nas notas de pé de página, um ponto nos
encontros do candidato, um número na quantidade de bolos e refrescos a serem repartidos na viagem de
proselitismo. Assim como aparece, desaparece. Uma avalanche de declarações enterra o fato fundamental (o
“Basta!”, praticado com contundência) e uma outra coisa.
Chiapas? Poderá estar na agenda da ONU ou das organizações não-governamentais nacionais e internacionais, mas
não na agenda nacional. Para evitar isso, o bolachas pra cachorro Albores não poupa recursos. Em um ano, o
bolachas pra cachorro gastou 28 milhões de Pesos para evitar que “Chiapas” fosse uma nota desafinada entre as
notícias (Proceso Sur, # 1, 04/março/00). O homem do dinheiro é o filho predileto da TV Azteca: Manuel de la
Torre que até ontem destruía escolas rurais com seu “bat helicóptero”, e hoje pretende estimular os jornalistas
como se fossem gado.
Enquanto o governo insiste em dizer que tem feito um grande investimento econômico em Chiapas,
“esquece” de dizer que o gasto maior é em propaganda, matérias pagas, mentiras para calar notícias
“desagradáveis” e para melhorar a maltratada imagem do exército federal.
Entre os latidos de Albores e os zurros de Rabasa, o exército toma
novas posições de ataque, fortalece ostensivamente suas guarnições, os aviões
e os helicópteros aumentam seus sobrevôos e a guerra continua, mantendo
agora uma prudente distância das manchetes da imprensa.
Os indígenas zapatistas insistem no valor da palavra: as mulheres no
dia 8 de março em San Cristóbal, as coordenações no dia 21 de março, os
habitantes de Amador Hernández, os de Amparo Agua Tinta, os tzotziles de
Los Altos, os tzeltales dos vales, os choles e zoques do norte, os mames da
serra, todos voltam a lembrar que tem uma palavra que o governo não cumpriu,
os Acordos de San Andrés, e que para os indígenas mexicanos não há paz, nem
justiça e nem dignidade.
Longe das oito colunas e dos noticiários eletrônicos, o México do povo
se mantém em resistência, numa espera paciente, na esperança...
O que é que estão esperando?
*-*
Devolvo as folhas para Durito, dizendo-lhe:
26
- Este o que é que estão esperando?, é uma pergunta, uma reivindicação ou uma profecia?
- Vem pra janela - me diz Durito. Faço isso, olho e não acredito.
- De maneira que...? Quem diria!
- É assim. As janelas são como as bolachas: são gostosas e alimentam - diz Durito enquanto empreende o caminho
de volta...
Don Pablo, com estas palavras Durito encerrou a sua fala nesta madrugada. Quando voltei à choça reli a
sua carta e comecei a escrever-lhe estas linhas. Eu devia tratar de explicar-lhe que nós zapatistas não nos vemos só
na janela da esquerda que você aponta no seu texto. Nós achamos que temos aberto uma outra janela, uma janela
dentro da janela da esquerda, que a nossa proposta política é mais radical das que se reúnem na sua janela e que é
diferente, muito “outra” (atenção: não escrevi “melhor”, só “diferente”). E se supõe que esta carta era para explicar
a você (e aos outros) em que consistia, para nós, esta outra janela que nós zapatistas havíamos aberto.
Mas acontece que está tudo neste livro que ainda não foi escrito, mas que pode ser lido numa das zonas
“Janelas” que estão entre as montanhas do sudeste mexicano. Por isso, terá que esperar que o mencionado livro seja
escrito (o que não deixa de ser otimista) e que seja publicado (o que beira a ingenuidade).
Por enquanto, Don Pablo, receba as saudações de todos nós e mande sua próxima carta acompanhada, de
preferência, de umas bolachas “Pancrema” (melhor se não estiverem rançosas). Talvez, assim, posso convencer
Durito a me levar novamente à dita “janela”. Porque do livro que não escrevi (ma que, se supõe, irei escrever)
consegui ler só a dedicatória e não fui mais adiante porque uma úmida ternura me impediu de fazê-lo.
Valeu, Don Pablo. Saúde e, olhando bem, uma janela nada mais é a não ser um espelho quebrado.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, março de 2000.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO


O CAVALO DE ZAPATA

10 de Abril de 2000.
Para Don Félix Serdán, Major Honorário.

"Foi então que a mensagem chegou a Zapata. Estava comendo na


casa de Santiago Posada quando chegou a informação de que o
governo o cercava. Montou no seu cavalo e sentado sobre ele ficou
parado com quinze homens armados que estavam ao seu redor. E o
governo já vinha vindo contra ele com quatrocentos homens armados.
Desceu do cavalo, pegou o fuzil e começou a atirar. Montou no
cavalo, deu meia volta e foi embora. Foi com mais dois, contando ele,
três. Foi pra montanha e aí começou a luta".

Próspero Garcia Aguirre.


General do Exército Libertador.

(Extraído de "A irrupção zapatista - 1911" Francisco Pineda Gómez.


Editorial ERA. Felicidades pelo 40° aniversário da tríade Espresate-
Rojo-Azorin e o grupo que a acompanha).

Esta é uma história para crianças e cavalos. Vem ao caso porque nestes dias o General Emiliano Zapata é
lembrado e porque abril, além do mais, é o mês das crianças. E também porque Zapata andou pelo Estado de
Morelos, e em Morelos moram uma menina, Ixchel, e um menino, Balam, que um ano atrás apoiaram a consulta.
Naquela época Ixchel devia ter uns 7 anos e Balam uns 3. Para ela e para ele, e, através deles, para todas as
crianças, vai esta história que fala de um cavalo, do cavalo de Emiliano Zapata.
Muito se escreveu e se disse sobre Emiliano Zapata, e não é pouco o que tem sido feito. Sem dúvida,
existem outros aspectos da luta zapatista que passam desapercebidos aos historiadores. Eu não sou um historiador
(sou um guerreiro, um pouco criança e bastante cavalo), mas tive a possibilidade de conhecer histórias grandes e
pequenas que se referem ao que estava próximo do meu General. A que vou narrar agora, foi-me contada, a seu
tempo, por um cavalo neozapatista: “Marinero”.
“Marinero” não é o único cavalo neozapatista, muitos outros integram as forças insurgentes e tem até um
que é Subcomandante (mas esta é outra história). Eu tive vários cavalos. Quase todos, invariavelmente, se
27
chamavam "Lucero". Às vezes, quando coincidiam no tempo e no espaço têm sido renomeados de uma maneira
óbvia: "Lucero", "Lucerito", "Lucerote", "Lucerón" e assim por diante. Agora o meu cavalo se faz chamar
"Lucerotote" ou "Grande" e, como seu nome indica, é um eqüino pequeno e atrapalhado que tropeça quase tanto
quanto eu quando, juntos, subimos e descemos as encostas, os pedregulhos e os lodaçais das montanhas do Sudeste
Mexicano.
O cavalo de Tacho se chama "Diamante" e o do major se chama "Cacarizo". O cavalo da célula
"Chómpiras" se chama "Marinero". Antes de "Marinero" veio "Príncipe", um cavalo branco e de boa elevação que
morreu de uma forte dor de barriga, não sabemos se foi por causa dos parasitas ou por ter ouvido no rádio algumas
das declarações de Zedillo (é que "Príncipe" nunca gostou das mulas).
Mas esta que vou contar não é a história de "Lucero", nem de "Diamante", de "Cacarizo" ou de "Príncipe".
E, além do mais, tampouco é a história de "Marinero" em sentido estrito (ainda que ele tenha um papel de
destaque), e sim a história do cavalo do General Emiliano Zapata.
Para entender o que vou contar tem que ser criança, cavalo ou criança e cavalo ao mesmo tempo. Dizem
que têm cavalos que falam. Eu não conheço nenhum, mas é isso que dizem e se o dizem é porque têm alguma
razão. O que eu sei é que têm cavalos que sabem ler e escrever. Eu sei que não vão faltar adultos que, ao lerem isto,
farão uma careta e passarão logo ao caderno de política nacional, porque no que diz respeito a contos incríveis nada
supera os que Labastida conta em sua campanha eleitoral. Mas as crianças sim irão compreender que estas coisas
acontecem, ou seja, que existem cavalos que sabem ler e escrever. Por isso, como aval do meu relato tenho só as
crianças e os cavalos que sabem que o mundo está cheio de maravilhas que, na maioria das vezes, passam
desapercebidas.
Enfim, o caso é que existem cavalos que sabem ler e escrever. Não são muitos, bom, eu não conheço
muitos. "Marinero" é um deles. Os cavalos que sabem fazer isso, escrevem assim, feito rabiscos de crianças
pequenas e parece que não dá pra entender nada. Ou seja, que os adultos não entendem, mas que as crianças, sim,
entendem. Para dar um exemplo, "Marinero" escreveu um poema que diz mais ou menos assim: "Gori, gori,
blfr/titi, titi, ta/gori, blfr, tita". É claro que a rima e a métrica são de uma qualidade admirável, mas duvido que haja
alguma academia ou círculo de poetas que não faça gestos diante destes sentidos versos. Só as crianças e os cavalos
podem desfrutar a magia que este reiterado "gori" encerra. Mas, enfim, este não é um tratado de poética eqüina e
sim um relato que tem a ver com o fato de que existem cavalos que sabem ler e escrever. Para fazê-lo, pegam o
lápis com a boca, agarrando-o com os dentes, e começam a escrever enchendo páginas e páginas, claro, desde que
tenham um caderno com folhas limpas. Não fazem isso diante de qualquer um. Só mostram que sabem fazer isso
quando têm certeza de que se trata de alguém como eles, ou seja, de uma criança ou de um cavalo. Talvez é por
isso que "Marinero" faz isso diante de mim, mas não diante dos outros. Eu me dei conta disso porque um dia reuni
a tropa e disse a ela: “este cavalo sabe ler e escrever”, e então coloquei um lápis na boca de “Marinero” e este
começou a mascá-lo e a querer engoli-lo, e como estava se afogando foi um corre-corre e, por fim, veio Tacho que
tirou os pedaços do lápis da garganta de “Marinero”. Todos me olharam parecendo querer dizer: “olha só o Sup, o
que foi que deu na cabeça dele que entregou um lápis a um cavalo”. Eu queria sumir, o que, sendo criança e cavalo,
não ia ser difícil.
Logo em seguida, repreendi “Marinero” e ele me respondeu que não era diante de qualquer um que ele
mostrava seu conhecimento. Por isso, se vocês, crianças que lêem esta história, encontrarem um cavalo que sabe ler
e escrever, não andem espalhando isso e nem se proponha a demonstrá-lo aos outros porque o cavalo pode engolir
o lápis e todos vão começar a dizer que vocês estão doentes e vão enchê-los de xaropes, comprimidos e, o que é
pior, até de injeções.
Bom, o caso é que este cavalo sabe ler e escrever. E não só isso, ele também envia e recebe cartas. Não é
por presunção, mas “Marinero” se corresponde com o cavalo do meu General Zapata. Sim, refiro-me a Emiliano
Zapata, comandante em chefe do Exército Libertador do Sul (e também do EZLN). Agora vou contar como fiquei
sabendo disso.
Às vezes encontro “Marinero” quando saio para caminhar durante a madrugada. Ele se ajeita e faz a
saudação; é que os cavalos que estão nos exércitos rebeldes têm um comportamento muito ao estilo militar. Pela
norma, respondo à saudação e sigo pelo meu caminho, depois de parar para perguntar a ele como está e se tem
alguma novidade. Numa dessas vezes, encontrei alguns papéis do lado da mão esquerda de “Marinero”. Perguntei
do que se tratava e “Marinero” pegou (ou seja, mordeu) o lápis e escreveu numa folha limpa: “Cartas”. É claro que
não escreveu só “cartas”, e sim seu equivalente na linguagem infantil. “Cartas?”, perguntei. “Marinero” voltou a
escrever: “Sim. De um amigo, de um cavalo que é meu amigo”. Não perguntei a “Marinero” como é que recebia
cartas de outro cavalo; é que entre estas montanhas acontecem muitas coisas peculiares para que eu me detenha
para saber o porquê de cada uma delas, e assim me limitei a perguntar de quem se tratava. “Marinero” respondeu,
sempre escrevendo: “Do cavalo de Zapata”. Fiz a mesma cara que vocês devem estar fazendo agora que lêem isso.
“Marinero” mexeu a cabeça para assentir e começou a escrever uma explicação que não entendi por
completo. Sem dúvida, pude apurar que o cavalo de Zapata mudou de nome, ou seja, que não se chama mais como
se chama, mas que assumiu um nome clandestino, pois se ficarem sabendo que ele é o cavalo de Zapata, ele não vai
28
conseguir escapar dessa. Não entendi de onde estava escrevendo o cavalo de Zapata, mas tampouco dei
importância à necessidade de averiguá-lo porque logo entendi que a discrição era importante. “Marinero”,
acredito, apreciou o meu gesto e, como recompensa, me mostrou algumas das cartas enviadas a ele pelo cavalo de
Zapata.
O que li foi muito e maravilhoso. Aqui, por falta de espaço e de tempo, só vou transcrever pra vocês
algumas coisas que o cavalo de Zapata conta. Aí vai.

“O meu General não era ainda o meu General quando eu andava pra cima e pra baixo com os cavalos. O
meu General gostava muito de cavalos mesmo quando não era ainda o meu General. Conhecia bem os cavalos,
sabia como lhes falar e sabia entendê-los. O meu general era bom de entendimento. Me conheceu quando
andávamos entre os touros. Porque o meu general gostava muito de lidar com os touros. E daquela vez aconteceu
que ao conduzir um touro de bom tamanho, este lhe machucou uma perna. Mas o meu General não se incomodou
nem um pouco e foi comer junto ao seu povo. Foi aí que vi que o meu General, além de ser bom de entendimento,
tinha dessa valentia que não é presunção e que, por isso mesmo, brilha mais.
Tinha passado pouco tempo desse feito com o touro que acabei de contar, quando insurgimos em armas
contra o mau governo... Insurgimos porque já eram muito grandes as injustiças que os nossos padeciam e grande
era a miséria dos indígenas. Não tínhamos nada quando nos levantamos contra os governos e o meu General dizia
que «(...) quando se dedicou à revolução deixou na sua casa, penduradas num prego, umas calças velhas nas quais
havia ficado o pouco medo que teve na vida» (Ibid.).
Lembro que uma vez passamos pelo Estado de Puebla e atacamos Atlixco e Metepec. A empresa têxtil
“Companhia Industrial de Atlixco, S. A.” tinha três plantas (uma de fios e tecidos, outra de branqueamento, e a
terceira era uma estamparia). Em Metepec, durante o combate, muitos operários se incorporaram às nossas
fileiras. Lembro claramente que um operário têxtil, Fortino Ayaquica, chegou ao grau de General no nosso
Exército Libertador do Sul. E soube que andava por aí um revolucionário espanhol que se chamava Sebastián San
Vicente que logo em seguida não soube mais onde estava, e só mais tarde o encontrei de novo, organizando os
operários no mesmo Estado de Puebla. Esse Sebastián era gente boa, vou te contar o que sei dele numa outra
carta. O caso é que, além de camponeses indígenas, conosco havia também operários. E tinha também um e outro
bacharel, desses que têm seus estudos e suas grandes palavras, mas que não andavam com frescuras na hora de
empunhar o fuzil ou as bombas de couro quando tinham que enfrentar os soldados do velho don Porfirio.
Nosso exército, o Libertador do Sul, era um exército muito grande. E não me refiro ao fato de termos sido
muitos, que o éramos, e sim que tinha gente de todo tipo e de pensamentos muitos diferentes. O que todos tínhamos
em comum, homens, mulheres e cavalos, era a coragem por ver tanta injustiça e tanta pobreza entre a gente do
povo, e tanta soberba e tanta riqueza nas casas de uns poucos.
Na presidência do México havia um tirano que se chamava Porfirio Diaz. Esse senhorzinho havia se
demorado muito fazendo leis e mandando tropas sempre para prejudicar o povo pobre e sempre para beneficiar os
ricaços. Assim como agora, ainda que no lugar de uma pessoa tenha um partido, o PRI.É ele que se encarrega
para que tudo corra bem para os poderosos, ainda que isso signifique que tudo fica pior para os humildes.
Diaz não pôde sustentar-se no poder e teve que ir embora. No seu lugar, entrou o senhor Madero, mas as
coisas não mudaram e o meu General Zapata disse que tínhamos de seguir até que se cumprisse o que queríamos:
terra e liberdade!
Lembro que quando sitiávamos Cuautla, Morelos, os combates foram muito duros, batemos e apanhamos.
Andava por lá um sujeito que se chamava Octavio Paz Solórzano, que estava recolhendo testemunhos destas lutas
e, em seguida, se incorporou às nossas fileiras.
O descumprimento do senhor Madero provocou muitas reações de desprezo entre nossas tropas. Lembro
que por volta de agosto de 1911, o senhor Madero veio ver-nos em Morelos. Queria acalmar-nos e que
deixássemos de lutar. Fomos recebê-lo na estação. «Então sim, ele (Madero) subiu num vagão do trem e começou
a arengar daí, começou a dizer: companheiros do Estado de Morelos, agradeço que tenham me ajudado a derrotar
o governo de don Porfirio Diaz, mas, ao mesmo tempo, devo dizer-lhes que as terras são dos fazendeiros e que
quem quer terra tem que trabalhar». Foi isso que disse Madero e então todos nós zapatistas, homens, mulheres e
cavalos, lhe gritamos: Que morra Madero! (Ibid. Félix Vazquez Giménez, Major de Cavalaria do Exército
Libertador do Sul). E o senhor Madero parecia irredutível, tentando convencer o meu General a render-se. E
como não o convencia, tratou de comprá-lo. O senhor Madero fez mal a fazer isso porque nós zapatistas não nos
rendemos e nem nos vendemos.
Por isso, ainda que já tivéssemos derrubado o senhorzinho Diaz da cadeira presidencial, voltamos a nos
adentrar nas montanhas e fomos indo rumo a serra. E assim chegamos em Ayoxuxtla. Lembro-me bem da data, era
o 25 de novembro e corria o ano de 1911. O meu General não estava mais dando voltas e mais voltas e dizia a
outro que escrevia: «Falta, compadre, falta». E logo em seguida parece que já não lhe faltava nada porque nos
chamou todos e nos disse: «Está pronto, aqui está o que somos e o que queremos, chama-se Plano de Ayala». E
então os 7 generais zapatistas o assinaram, e logo em seguida Zapata disse a todos nós: «Senhores, aquele que
29
não tem medo que passe a assinar, mas saibam que vão assinar o triunfo ou a morte». Eu, por mim, iria
assinar, mas não disse nada porque iriam logo pensar mal de mim, de um cavalo que sabe ler e escrever, por isso
parei de relinchar, para deixar claro que eu também estava pronto para a luta, e para que ninguém suspeitasse
que eu era um cavalo que sabia ler e escrever.
Pois, o meu General continuou a lutar. O senhor Madero acreditava ainda que iria deixá-lo satisfeito com
algumas palavrinhas, de que era pra parar, que já havíamos ganhado, que ficasse sossegado. Foi então que o meu
General ficou enojado e escreveu uma carta muito dura e bonita. Eu fiquei sabendo disso porque me coube levá-la
ao seu destino. Num tempinho que dei a mim mesmo, tive a manha de copiar algumas palavras. Diziam assim:
«Como não sou um político, eu não entendo desses meios triunfos; desses triunfos nos quais os derrotados são os
que ganham; desses triunfos nos quais, como no meu caso, me é exigido que, depois do triunfo da revolução, eu
saia não só do meu Estado, mas também da minha pátria... Estou decidido a lutar contra tudo e contra todos sem
outro baluarte a não ser a confiança, o carinho e o apoio do meu povo, e façam saber isso a todos; e digam a don
Gustavo (Madero) em resposta ao que ele falou de mim, que Emiliano Zapata não se compra com o ouro. E digam
aos companheiros que estão presos, vítimas da ingratidão de Madero, que não se preocupem, que por aqui há
ainda homens que têm vergonha na cara e que não perco a esperança de ir colocá-los em liberdade». (Emiliano
Zapata a Gildardo Magaña, 6 de dezembro de 1911, Ibid.).
Depois veio a traição de Victoriano Huerta e o senhor Madero foi assassinado. Os anos continuaram
passando. Em seguida, combatemos contra Huerta e logo foi derrotado. Mas foi então que o senhor Carranza se
deu ao trabalho de assumir o poder sem levar em consideração as demandas do povo, dos camponeses que haviam
assumido o Plano de Ayala.
Ao norte, o General Francisco Villa havia acabado de quebrar o exército de Huerta na batalha de
Zacatecas. Por outro lado, Carranza e seus generais já se viam no governo sem que ninguém os estorvasse. Mas
os revolucionários que estavam com o povo decidiram reunir-se para ver se havia entrado um bom governo que
colocaria a nossa pátria no bom caminho. Os principais chefes revolucionários se reuniram em Aguascalientes e
chamaram a sua reunião de «La Convención». Nós zapatistas não estávamos presentes no início da Convenção de
Aguascalientes, mas os que estavam aí reunidos decidiram logo mandar uma comissão para convidar-nos. Eu
estava presente quando o General Felipe Angeles, que liderava o grupo, chegou até o quartel zapatista para
convidar o meu General Zapata.
O meu General mandou Paulino Martinez, um homem direito, de boa palavra e de bom coração. Eu não
fui, mas outros me contaram que don Paulino falou bem a palavra zapatista e, logo, a Convenção assumiu o Plano
de Ayala. Os participantes da Convenção se dirigiram ao senhor Carranza, chefe das forças que se
autodenominavam «constitucionalistas», para que deixasse de lado as ambições e entregasse o poder que havia
agarrado bravamente. De acordo com o que dizia o nosso Plano de Ayala, o novo presidente tinha que ser eleito
de acordo com os chefes revolucionários e organizar uma eleição para que o povo escolhesse o seu governo.
Carranza agiu como quem concorda, mas sua artimanha era para que os Generais Francisco Villa e Emiliano
Zapata abandonassem a luta e o país. Carranza sabia que, sem eles, nada lhe impediria de apropriar-se do poder.
Devido à ambição de Carranza, não houve acordo, e então o tumulto continuou, só que, agora, entre os
participantes da Convenção e os constitucionalistas. Chamavam-se assim, mas, na verdade, a guerra era entre
aqueles que queriam que as coisas mudassem para o bem do povo, ou seja, Villa e Zapata, e os que queriam que as
coisas continuassem do mesmo jeito, ou seja, Carranza e Obregón.
Nossas tropas avançaram rumo à capital do país e,
depois que o meu General se encontrou com Villa em
Xochimilco, entramos na cidade do México no dia 6 de
dezembro de 1914. Ficamos aí, só dando voltas, porque nós
não estávamos lutando porque queríamos ser governo, para
ter dinheiro ou para ter coisas. Não, nós estávamos lutando
por terra e liberdade. Foi por isso que, logo em seguida,
saímos da Cidade do México para continuar a preparação
para a luta.
Os anos seguintes não foram fáceis. Carranza obteve
o apoio dos reacionários e pôde armar bem os seus exércitos.
Obregón derrotou Villa na batalha de Celaya e o exército constitucionalista se tornou o mais poderoso. Para
tentar ganhar mais gente para o seu lado, Carranza promulgou a lei de 6 de janeiro de 1915, que reconhecia
algumas das reivindicações agrárias do nosso povo, não porque pensava em cumpri-las, e sim porque queria
enganar os zapatistas. Carranza armou também grupos de operários para combater a revolução. O resultado foi
que as coisas foram ficando cada vez mais difíceis para nós e para a nossa luta. Em 1917, Carranza organiza uma
nova Constituição, ou seja, as maiores leis de um país. Devido à forte luta dos zapatistas, se reconhecem aí alguns
direitos dos camponeses.
30
Mas Carranza não podia esquecer que o meu General Zapata era um revolucionário que não ia deixar
de lutar até que se cumprisse o Plano de Ayala. É por isso que ele prepara o seu plano para assassinar o meu
General Emiliano. Como não puderam comprá-lo com o ouro, nem assustá-lo com a guerra, nem derrotá-lo com
tantos exércitos, então armou a sua traição. O general carranzista Pablo González ordena a um subordinado, o
coronel Jesús Maria Guajardo, que abandone as fileiras governamentais como desertor e passe do lado dos
zapatistas. O meu General não acredita muito nele e submete Guajardo à várias provas, até se convencer um
pouco. Foi então que se desenrolaram os acontecimentos de Chinameca quando corria o ano de 1919 e era o mês
de abril.
Na Fazenda Chinameca, Morelos, não aconteceu o que dizem que aconteceu; foi assim, mas não bem
assim. Ou seja, a verdade é que o tal de Guajardo mudou de lado e armou uma traição ao meu General, mas não é
verdade que ele morreu aí, naquele 10 de abril de 1919. Claro, o meu General ficou gravemente ferido, mas,
aproveitando da confusão e da poeira que se levantou com tantos tiros disparados pelos soldados, eu tive a manha
de tirá-lo daí para, logo em seguida irmos à luta.
As coisas se passaram assim. No dia 9 de abril, Zapata nomeia Guajardo General e este, como
agradecimento, lhe dá de presente um cavalo alazão e o convida a comer na fazenda Chinameca. Enquanto vai
para o local chegam rumores de que um carranzista chamado Rios Certuche, andava em volta da fazenda. O meu
General mandou fazer um reconhecimento, mas não se encontrou nada. Foi aí que eu suspeitei que tinha algo
errado e andei rondando em volta da fazenda. O meu general entra montado no alazão regalado por Guajardo. Eu
ouço claramente que dão três toques de corneta para saudá-lo militarmente. Foi ao encerrar o terceiro toque que
o tiroteio começou. Rápido, sem pensar muito, arranquei rumo à porteira e entrei a todo galope. O meu General
estava no Chão e ao seu lado havia caído Agustin Cortés, seu assistente. Eu catei o meu General e fui levando-o
embora. Os soldados achavam que Agustin Cortés era Zapata e continuaram atirando nele, e, na confusão, eu me
mandei segurando o meu General entre os dentes.
Não fui para o acampamento porque pensei que, com certeza, os carranzistas iriam pra lá. Então, o que fiz
foi levá-lo para a casa de alguns indígenas e aí o deixei para que cuidassem dele. Eu segui o meu caminho porque
se ficasse por aí, com certeza me reconheceriam e iriam encontrar o meu General. Soube logo que o meu General
Zapata havia-se recuperado e tinha se mandado para o sudeste, mas esta é outra história.
Foi assim que andei de um lado pra outro e agora estou aqui esperando que o meu general me mande
chamar e que voltemos a cavalgar juntos. Enquanto isso, tenho ficado sempre do lado dos mais fodidos, dos que
ninguém escuta, daqueles aos quais ninguém dá atenção. Por isso, sei que a nossa luta não acabou, que ainda
devemos lutar muito para conseguir aquilo que dissemos entre as montanhas de Morelos e que foi, e é, a nossa
bandeira: Terra e Liberdade!
Bom Marinero, já vou me despedindo. Valeu.
Atenciosamente.
O cavalo de Emiliano Zapata”.

Foi isso que eu li na carta do cavalo. Quando perguntei a “Marinero” se sabia algo mais, pegou um lápis e
escreveu:

“O cavalo de Zapata anda por aí. Diz ele que não anda procurando um cavaleiro, alguém que o monte,
pois. Não, ele diz que procura quem o entenda”.

Despedi-me de “Marinero” e voltei à praia do trigo onde La Mar descansa.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, 10 de abril de 2000, no aniversário do meu General Emiliano Zapata.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.


MÃE PEDRA.

Aos familiares dos desaparecidos políticos.


“Sonho com claustros de mármore
onde em divino silêncio
os heróis, de pé, repousam;
De noite, à luz da alma,
falo com eles: de noite!
Estão enfileirados: passeio
31
entre as filas; beijo-lhes as
mãos de pedra: abrem
os olhos de pedra: estremecem
as barbas de pedra: choram:
vibra a espada na bainha!
Mudo, beijo-lhes a mão”.

José Marti.

Com mão de pedra, abril cai sobre o México debaixo. Durante do dia, abundam o sol e as sombras e, de
noite, a lua dribla um caminho minado de estrelas. Por este país, agora caminha o desconcerto; este desfiladeiro que
de um lado tem como ameaça o barranco do esquecimento e da falta de memória. E no outro flanco, a memória se
torna montanha e pedra.
A madrugada desfolha luzes perdidas quando, numa cidade qualquer, numa casa qualquer, num canto
qualquer, diante de uma máquina de escrever qualquer, uma mãe (o coração da flor de pedra da esperança) escreve
uma carta. Curiosa, a madrugada se aproxima para olhar por cima do ombro e consegue roubar apenas algumas
linhas: “... e você já deve estar imaginando a dor que me oprime...”, “... para nós, as mães que temos vivido como
se tivéssemos um punhal cravado no meio do peito durante tanto tempo...” A lua apenas enche de ar as suas
bochechas, o vento dorme.
Longe, a madrugada voa, chega à montanha e, com a lânguida ajuda da luz de uma vela, deixa cair sobre a
mesinha o seu cálido alento e sua carga pesada. A lua é apenas um globo mais humilde e uma brisa do mar acaricia
os olhos que lêem: “É um problema que deveria comover todos, mas diante do qual, infelizmente, muitos tapam os
ouvidos”. A sombra aproxima a vela ao cachimbo e põe fogo no tabaco e nas palavras que já tomam conta das
mãos e rabiscam:
-*-
Não conheci Jesús Piedra Ibarra, nem César Germán Yañez Muñoz. Não pessoalmente. Através de outras
fotografias reconheço-os agora no cartaz, diante de mim, que destaca um “EUREKA!” em sua parte superior. No
centro, um grupo de homens e mulheres carrega uma grande faixa que diz “APRESENTAÇÃO DOS
DESAPARECIDOS POLÍTICOS” e se povoa de fotos de homens e mulheres, todos jovens, todos mexicanos. Entre
as imagens, aponto com um leve traço do lápis a de Jesús Piedra Ibarra e a de César Germán Yañez Muñoz.
Olho novamente para os rostos daqueles que sustentam a faixa: mulheres em sua maioria e dá pra
adivinhar em seu rosto que são sempre mães. São? Sempre? Sim, o são, e o são sempre, não há como duvidar
disso. O cartaz pode ser de 25, 15, 5 anos atrás, ou de hoje mesmo. Nada me diz isso, a não ser a firmeza desses
olhares, sua obstinação, sua esperança.
A “Brigada Blanca”, grupo paramilitar com o qual o governo travava a guerra suja contra a guerrilha
mexicana dos anos 70 e 80, seqüestrou Jesús Piedra Ibarra no dia 18 de abril de 1975, 25 anos atrás. Desde
então, não se soube mais nada dele. O Exército Federal Mexicano prendeu César Germán Yañez Muñoz em
fevereiro-março de 1974, 26 anos atrás. Desde então, não se soube mais nada dele. Já faz 30, 20, 10, 5 anos, e
agora mesmo, no México, se “fazem desaparecer” os opositores políticos.
Não conheci Jesús Piedra Ibarra, nem César Germán Yañez Muñoz, nem nenhum dos homens e mulheres
que são desaparecidos políticos. Ou sim, sim, os conheci. Andavam com outros rostos e vestiam corpos diferentes,
mas seu olhar era o mesmo. Conheci eles pelas ruas e entre as montanhas. Vi eles levantarem os punhos, as
bandeiras, as armas. Vi eles dizendo “NÃO!”, até ficar sem voz na garganta, mas não no peito. Vi eles. Conheci
eles. Então foram cúmplices, companheiros, irmãos, foram nossos. Conheci eles. Conheço eles. Seus pés e seus
braços são diferentes, mas seus passos são os mesmos, seus abraços são os mesmos. Conheço eles. Conheço nós.
São nossos estes rostos. É só pegar uma caneta preta e pintar um passamontanhas nesses rostos de homens e
mulheres.
Jesús Piedra Ibarra, César Germán Yañez Muñoz. Conheci suas mães. Conheci Rosa, mãe de César
Germán, e, um tempo depois, Rosario, mãe de Jesús. Conheci Rosa e Rosario, mães de lutadores as duas,
lutadoras as duas, as duas a procura de alguém. Anos atrás, Rosa fez como se tivesse morrido e foi procurar César
Germán debaixo da terra. Rosario continua procurando Jesús em cima. Mães de Pedra, Rosa e Rosario procuram
em cima e debaixo das pedras. Procuram um desaparecido, dois, três, dezenas, centenas...
Sim, são centenas os desaparecidos políticos no México. Que culpa carregaram estes e outros homens e
mulheres para não merecerem de seus inimigos, já não digamos a vida e a liberdade, sequer o cárcere ou o
túmulo? No lugar disso, tudo o que de material sobrou deles e delas é só uma fotografia. Mas nas mãos de pedra
das mães, esta foto se torna uma bandeira. E as bandeiras são feitas para flutuarem nos céus. E para os céus as
levantam os homens e as mulheres que sabem que a memória não é uma data que aponta o início de uma ausência,
e sim uma árvore que, plantada ontem, se levanta ao amanhã.
32
De que material pode-se fazer uma homenagem aos heróis anônimos que não têm mais lugar a não ser
na memória daqueles que partilham seu sangue e seus ideais? De pedra, mas não de uma pedra qualquer. Se for o
caso, da pedra da memória que foram e são suas mães. Porque têm mães que são pedra, pedra de trincheira, de
fortaleza, de casa, de parede que sustenta a palavra “JUSTIÇA” em seu peito.
As mães dos desaparecidos políticos são de pedra. O que podem temer estas senhoras que tanto têm
enfrentado, que tanto têm lutado? Não é a ausência, pois a carregam com elas já faz muitos anos. Não é a dor
porque convivem com ela todos e cada um dos seus dias. Não é o cansaço, porque têm percorrido mais e mais
vezes todos os caminhos. Não, a única coisa que estas senhoras temem é o silêncio do qual se veste o
esquecimento, a falta de memória, a amnésia que costuma manchar a história.
Contra este temor, estas senhoras não têm outra arma a não ser a memória. Mas, onde é que se guarda a
memória quando um cinismo frenético reina no mundo da política? Onde se refugiam os pedacinhos de história
que agora aparentam ser somente fotografias, e que foram homens e mulheres com rostos, nomes e ideais? Por
que a esquerda atual parece tão angustiada pelo presente e esquece dos seus ausentes? Quantos destes que caíram
na longa noite da guerra suja no México nada mais são a não ser os degraus do ascenso da esquerda como
alternativa política? Quantos entre nós que continuamos não devemos muito aos que não estão?
Acabou tudo? Já terminou o pesadelo que se chamou “Brigada Blanca”? Como se chama agora o órgão
governamental encarregado de fazer desaparecer aqueles que se opõem ao sistema? O México se tornou melhor
com os desaparecimentos políticos que o tornaram “moderno”? Pode-se falar de justiça enquanto existem
desaparecidos políticos?
Quem são os parentes (de sangue, de idéias, de ambas as coisas) dos desaparecidos políticos que hoje têm
companhia em sua angústia, em sua dor, em suas ausências? Onde estão as mãos e os ombros para eles? Onde
está o ouvido para a sua rebeldia? Que dicionário incorpora sua busca obstinada que bane para sempre as
palavras “irremediável”, “irrecuperável”, “impossível”, “esquecimento”, “resignação”, “conformismo”,
“rendição”? Onde estão os carrascos dos desaparecidos políticos?
Aqueles que os fizeram desaparecer se juntam à velha e arruinada casa da política atual no México, Vêem
que não têm ninguém que está atrás deles, que nenhum olho se achega sequer ao esquecido baú daqueles que têm
lutado para que não haja mais um debaixo sobre o qual deixar cair o olhar. Então os carrascos se felicitam,
tiveram êxito, Levantam suas taças e brindam com sangue à morte da memória.
Este país se chama México e corre o ano 2000. O século e o milênio vão acabando e continua a crença de
que o silêncio faz com que as coisas desapareçam: se não falamos dos presos e dos desaparecidos políticos, então
se mancharão do nosso presente e do nosso futuro.
Mas não é assim. Com o silêncio não só não se dissipa a nossa história como, com certeza, voltará a
repetir-se o pesadelo e outras mães se tornarão de pedra, percorrerão todos os cantos, pra cima e pra baixo,
dizendo, gritando, exigindo justiça.
Os carrascos celebram sua impunidade (e sua impunidade não é só porque não são castigados, mas
também porque os desaparecidos continuam desaparecidos), mas também o silêncio.
Sem dúvida, nem todos esquecem.
Porque mais embaixo, onde as raízes da Pátria se alimentam dos rios subterrâneos, se gesta a derrota dos
executores.
De pedra são as imagens que a memória levanta neste coração debaixo, e têm algo feito de pedra nestes
homens e nestas mulheres que, roçando apenas a dura pele da história, se levantam e falam. E algo de pedra tem
também nesta modesta escola que, no meio de La Realidad zapatista, faz brilhar seu nome como uma bandeira:
“Escola Jesús Piedra Ibarra”.
-*-
A sombra amassa as folhas escritas e põe fogo nelas com a mesma luz com a qual volta a acender o
cachimbo. Pega outra folha limpa e, com lacônica ternura, escreve:

“18 de abril de 2000.


Mãe Pedra:
não sei dos demais, mas nós não esquecemos,

Com carinho
Suas filhas e filhos zapatistas.

P. S. Saudações a todas as senhoras”.

Lá embaixo, a madrugada continua com seu caloroso abraço, enquanto La Mar ajeita os cachos dos
cabelos. Lá em cima, a lua, cortada, nos lembra que nada estará completo se faltar a memória. E “memória” é como
aqui chamamos a justiça.
33

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, abril de 2000.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.

OXIMORON!
(A DIREITA INTELECTUAL E O FASCISMO LIBERAL)

À figura chamada Oximoron, aplica-se uma palavra,


um epíteto que parece contradi-la;
do mesmo modo, os gnósticos falaram de uma luz escura;
os alquimistas de um sol negro.

Jorge Luis Borges.

Advertência, introdução e promessa.

Atenção: se você não leu a epígrafe, é melhor fazer isso agora, porque, do contrário, não vai entender
alguma coisa.
Um fato irrefutável: a globalização está aqui. Não a qualifico (ainda), aponto só uma realidade. Mas, como
Oximoron, deve-se assinalar que se trata de uma globalização fragmentada.
Entre outras coisas, a globalização tem sido possível graças a duas revoluções: a tecnológica e a
informática. Foi e é dirigida pelo poder financeiro. Com a tecnologia e a informática ao alcance da mão (e, com
elas, o capital financeiro) tem desaparecido as distâncias e as fronteiras têm sido quebradas. Hoje é possível ter
informação sobre qualquer lugar do mundo, a qualquer momento e de forma simultânea. Mas, agora, também o
dinheiro tem o dom da ubiqüidade, vai e vem de forma vertiginosa, como se, ao mesmo tempo, estivesse por toda
parte. E mais, o dinheiro dá uma nova forma ao mundo, a forma de um mercado, de um mega-mercado.
Sem dúvida, apesar da “mundialização” do planeta, ou, melhor, justamente por causa dela, a
homogeneidade está muito longe de ser a característica desta mudança de século e de milênio. O mundo é um
arquipélago, um quebra-cabeça cujas peças se transformam em outros quebra-cabeças, e o único aspecto realmente
globalizado é a heterogeneidade.
Se a tecnologia e a informática têm unido o mundo, o poder financeiro tem se utilizado delas, quebrou-o
usando-as como armas, como armas numa guerra. Temos dito antes (o texto se chama “7 peças soltas do quebra-
cabeça mundial”, EZLN, 1997), que com a globalização finaliza-se uma guerra mundial, a quarta, e que se
desenvolve um processo de destruição/despovoamento e reconstrução/reordenação (estou tentando fazer um
resumo rápido, sejam benévolos) em todo o planeta. Para a construção da “nova ordem mundial” (planetária,
permanente, imediata, imaterial, de acordo com Ignacio Ramonet), o poder financeiro conquista territórios e
derruba fronteiras, e consegue isso fazendo a guerra, uma nova guerra. Uma das baixas desta guerra é o mercado
nacional, base fundamental do Estado-Nação. Este último está em via de extinção ou, pelo menos, o está o Estado-
Nação ou clássico. Em seu lugar surgem mercados integrados ou, melhor ainda, lojas de departamentos da grande
“mall”(*) mundial, o mercado globalizado.
As conseqüências políticas e sociais desta globalização são uma reiterada e complexa figura de oximoron:
menos pessoas com mais riquezas, produzidas com a exploração de mais pessoas com menos riqueza, não dá pra
comparar a pobreza do nosso século com nenhuma outra. Não é, como já foi alguma vez, o resultado natural da
escassez e sim de um conjunto de prioridades impostas pelos ricos ao resto do mundo (John Berger, Cada vez que
decimos adiós. Edições de La Flor. Argentina, 1997, pg. 278-279); o planeta se abriu completamente para alguns
poderosos, mas o mundo não oferece lugar para milhões de pessoas que vagam errantes de um lado pra outro; o
crime organizado forma a coluna vertebral dos sistemas judiciais e dos governos (os ilegais fazem as leis e
“mantém a ordem pública”); e a “integração” mundial multiplica as fronteiras.
Por isso, se tivéssemos que ressaltar algumas das principais características da época atual, diríamos:
supremacia do poder financeiro, revolução tecnológica e informática, guerra, destruição/despovoamento e
reconstrução/reordenação, ataques aos Estados-Nação, a conseqüente redefinição do poder e da política, o mercado
como figura hegemônica que permeia todos os aspectos da vida humana em qualquer lugar, maior concentração da
riqueza em poucas mãos, maior distribuição da pobreza, aumento da exploração e do desemprego, milhões de
pessoas no desterro, delinqüentes que são governo, desintegração dos territórios. Em resumo: globalização
fragmentada.
34
Bom, de acordo com esta colocação, no caso dos intelectuais (já que têm a ver com a sociedade, o poder
e o Estado) caberia perguntar-se: sofreram o mesmo processo de destruição/despovoamento e
reconstrução/reordenação?; que papel lhes designa o poder financeiro?; como usam (ou são usados pelos) avanços
da tecnologia e da informática?; que posição ocupam nesta guerra?; como se relacionam com estes golpeados
Estados-Nação?; qual é o seu vínculo com esse poder e com esta política agora redefinidos?; que lugar têm no
mercado?; e que posição assumem diante das conseqüências políticas e sociais da globalização? Em suma: como é
que se inserem nesta globalização fragmentada?
O mundo teria mudado por e para esta guerra. Se assim fosse, os intelectuais “clássicos” não existiriam
mais e nem suas antigas funções. Em seu lugar, teria emergido (ou está por emergir) uma nova geração de “cabeças
pensantes” (para usar um termo cunhado pelo comandante zapatista Tacho) que teria novas funções em sua ação
intelectual.
Ainda que aqui vamos tratar de limitarmo-nos aos intelectuais de direita, ficarão evidentes alguns traços
sobre os intelectuais em geral e sobre sua relação com o poder. Como o propósito deste texto é participar e incitar a
polêmica entre os intelectuais de direita e de esquerda, uma reflexão mais profunda (sobre os intelectuais e o poder,
e sobre os intelectuais e a transformação) fica para futuros e improváveis escritos.
Valeu. Saúde e tenha sempre seu controle remoto ao alcance da mão. Começamos num instante...

I. A mundialização: pague pra ver.

Na dobra do calendário, o dois mil se balança ainda entre os séculos XX e XXI, e entre o segundo e o
terceiro milênio. Não sei o que tem de tão importante nesta contagem do tempo, mas me parece que é também o
momento adequado para que OXIMORON surja por toda parte. Para não ir muito longe, pode-se dizer que esta
época é o começo do fim ou o fim do começo de “algo”. “Algo”: forma irresponsável de eludir um problema. Mas
já é sabido que a nossa especialidade não é a solução dos problemas, mas sim a sua criação. “Sua criação”? Não, é
muita presunção, melhor sua proposição. Sim, nossa especialidade é propor problemas.
Lá em cima, tudo parece já ter acontecido antes, como se um velho filme se repetisse com outras imagens,
outros recursos cinematográficos, incluindo atores diferentes, mas o mesmo argumento. Como se a “modernidade”
(ou a “pós-modernidade”, deixo a precisão para quem ficar incomodado) da globalização se vestisse com seu
OXIMORON e se apresentasse a nós como uma modernidade arcaica, nauseabunda, antiga.
Se isso que estou dizendo parece-lhes uma mera consideração subjetiva, atribua-o ao nosso estar na
montanha, resistindo e em rebeldia, mas conceda-nos o privilégio da leitura e veja se, de fato, se trata de um
sintoma a mais do “mal da montanha” ou partilhe esta sensação e se entregue ao fluir do hipercinema que é o
mundo globalizado.
O mundo não é quadrado, pelo menos é isso que se ensina na escola. Mas no fio cortante da união de dois
milênios, o mundo tampouco é redondo. Ignoro qual seja a figura geométrica adequada para representar a forma
atual do mundo, mas, como estamos na época da comunicação audiovisual digital, poderíamos tentar defini-la
como um tela gigantesca. Você poderia acrescentar “uma tela de televisão”, mas eu optaria por “uma tela de
cinema”. Não só porque prefiro o cinema, mas também (e, sobretudo) porque me parece que diante de nós tem um
filme, um velho filme, modernamente velho (para continuar com oximoron).
Além do mais, é um desses filmes no qual pode-se programar a apresentação simultânea de várias imagens
(picture in picture a chamam). No caso do mundo globalizado, de imagens que se sucedem em qualquer canto do
planeta. Não são todas as imagens. E não se deve ao fato de que falta espaço na tela, e sim que alguém selecionou
estas imagens e não outras. Ou seja, estamos vendo um telão com diversos quadros que apresentam imagens
simultâneas de diferentes partes do mundo, é claro, mas não é o mundo todo que está aí.
Ao chegar a este ponto, alguém, inevitavelmente, se pergunta: quem tem o controle remoto deste telão
audiovisual?; e quem faz a programação? Boas perguntas, mas você não vai encontrar aqui as respostas. E não só
porque não as conhecemos com precisão matemática, e sim, também, porque não são o tema deste escrito.
Como não podemos mudar de canal ou de cinema, vamos ver alguns dos diferentes quadros que o mega
telão da globalização nos oferece.
Vamos ao continente americano. Você tem aí, naquele canto, a imagem da Universidade Nacional
Autônoma do México (UNAM) ocupada por um grupo paramilitar do governo: a chamada Polícia Federal
Preventiva. Não parece que estes homens uniformizados de cinza estejam estudando. Mais pra lá, emoldurada pelas
montanhas do sudeste mexicano, uma coluna de blindados cinzas cruza uma comunidade indígena chiapaneca. No
outro lado, a imagem cinza apresenta um policial norte-americano que, com requinte de violência, prende um
jovem num lugar que pode ser Seattle ou Washington.
Os cinzas também proliferam no panorama europeu. Na Áustria é Joer Heider e seu fervor pro-nazista. Na
Itália, Silvio Berlusconi arruma a gravata com a ajuda desinteressada de D’Alema. No Estado Espanhol, Felipe
González maquia a cara de José Maria Aznar. Na França é Le Pen quem nos sorri.
Ásia, África e Oceania apresentam a mesma cor que se repete em seus respectivos lugares.
35
Mmh... Tantos cinzas... Mmh ... Podemos protestar... Afinal de contas nos prometeram um programa
com todas as cores... Pelo menos vamos aumentar o volume e procurar entender assim do que se trata...

II. Um esquecimento memorável.

Do mesmo modo que a globalização fragmentada, os intelectuais estão aí, são uma realidade da sociedade
moderna. E seu “estar aí” não se limita à época atual, mas remonta aos primeiros passos da sociedade humana. Mas
a arqueologia dos intelectuais foge aos nossos conhecimentos e possibilidades, por isso, partimos do fato que
“estão aí”. Todo caso, o que tentamos de descobrir é a forma que adquire agora seu “estar aí”.
Já se sabe que os intelectuais, como categoria, são algo muito vago. No lugar disso, bem diferente é
definir a “função intelectual”. A função intelectual consiste em determinar criticamente o que se considera ser
uma aproximação satisfatória ao próprio conceito de verdade; e pode ser desenvolvida seja lá por quem for,
inclusive por um marginalizado que reflete sobre sua própria condição e a expressa de alguma maneira, ao mesmo
tempo em que pode ser traída por um escritor que reage com paixão diante dos acontecimentos, sem impor-se o
crivo da reflexão (Humberto Eco, Cinco escritos morales. Ed. Lumen. Tradução de Helena Lozano Miralles, pg.
14-15). Se é assim, então o agir do intelectual é, fundamentalmente, analítico e crítico. Diante de um acontecimento
social (para limitarmo-nos a um universo), o intelectual analisa as evidências, o que se afirma e o que é negado,
procurando o que é ambíguo, o que não é nem uma coisa e nem outra (ainda que se apresente assim), e exibe
(comunica, desvela, denuncia) o que não só não está evidente, como contradiz as evidências.
Deve-se supor que as sociedades humanas tenham pessoas que se dediquem profissionalmente a esta
análise crítica e a comunicar seu resultado (nas palavras de Norberto Bobbio: Os intelectuais são todos aqueles
para os quais transmitir mensagens é uma ocupação habitual e consciente (...) e, para dizê-lo numa forma que
pode parecer brutal, quase sempre representa a maneira de ganhar o pão). Vamos ficar com esta abordagem do
intelectual, do profissional da análise crítica e da comunicação.
Já temos sido advertidos de que nem sempre o intelectual exerce a função intelectual. A função intelectual
se exerce sempre em antecipação (sobre o que poderia acontecer) ou em atraso (sobre o que tem acontecido);
raramente sobre o que está acontecendo, por razões de ritmo, porque os acontecimentos são sempre mais rápidos
e estimulantes do que a reflexão sobre os acontecimentos (Umberto Eco, Op. Cit. pg. 29).
Por sua função intelectual, este profissional da análise crítica e da comunicação seria uma espécie de
consciência incômoda e impertinente da sociedade (nesta época, da sociedade globalizada) em seu conjunto e de
suas partes. Alguém que não se conforma com tudo, com as forças políticas e sociais, com o estado, com o
governo, com os meios de comunicação, com a cultura, com as artes, com a religião, com o etcetera que o leitor
acrescentar. Se o ator social diz “Feito!”, o intelectual murmura com cepticismo: “falta isso, sobra aquilo”.
Teríamos então que, em seu papel, o intelectual é um crítico da imobilidade, um promotor da mudança, um
progressista. Sem dúvida, este comunicador de idéias críticas está inserido numa sociedade polarizada, onde se
enfrentam muitas formas e com variados argumentos, mas que no fundamental está dividida entre aqueles que
usam o poder para que as coisas não mudem e aqueles que lutam pela mudança. Por uma percepção elementar do
ridículo, o intelectual deve compreender que não se outorga a ele um papel de bruxo do espírito em torno do qual
vai girar o ser ou o não ser do que é histórico, mas que, evidentemente, ele tem saberes que podem alinhá-lo num
sentido ou em outro diante do que é histórico. Podem alinhá-lo com a busca do esclarecimento das injustiças
presentes no mundo atual ou com a cumplicidade na paralisação e na instalação no Limbo. (Manuel Vázquez
Montalban Panfleto desde el planeta de los simios. Ed. Drakontos. Barcelona, 1995, pg. 48).
E é aqui onde o intelectual opta, elege, escolhe entre sua função intelectual e a função que lhe é proposta
pelos atores sociais. Aparece assim a divisão (e a luta) entre intelectuais progressistas e reacionários. Uns e outros
continuam trabalhando com a comunicação de análises críticas, mas, enquanto os progressistas continuam na
crítica à imobilidade, à permanência, à hegemonia e ao homogêneo, os reacionários sustentam a crítica à mudança,
ao movimento, à rebelião e à diversidade. O intelectual reacionário “esquece” sua função intelectual, renuncia à
reflexão crítica e sua memória fica de tal forma recortada que não tem passado e nem futuro, o presente e o
imediato são as únicas coisas que podem ser tocadas e, por isso, são inquestionáveis.
Ao dizer “intelectuais progressistas e reacionários”, nos referimos aos intelectuais “de esquerda e de
direita”. Convém acrescentar aqui que o intelectual de esquerda exerce sua função intelectual, ou seja, sua análise
crítica, também diante da esquerda (social, partidária, ideológica), mas na época atual a sua crítica é
fundamentalmente diante do poder hegemônico: o dos senhores do dinheiro e daqueles que os representam no
campo da política e das idéias.
Deixemos agora os intelectuais progressistas e de esquerda, e vamos aos intelectuais reacionários, à direita
intelectual.

III. O pragmatismo intelectual.


36
No início, os gigantes intelectuais da direita foram progressistas. E falo dos grandes intelectuais da
direita, os “Think Tanks”(**) da reação, não dos anões que foram entrando para seus clubes “pensantes”. Octávio
Paz, excelente poeta e ensaísta, o maior intelectual da direita dos últimos anos no México, declarou: venho do
pensamento dito de esquerda. Foi muito importante na minha formação. Não sei agora... a única coisa que eu sei é
que o meu diálogo - às vezes, minha discussão - é com eles (os intelectuais de esquerda). Não tenho muito que
falar com os outros. (Braulio Peralta. El poeta em su tierra. Diálogos com Octavio Paz. Ed. Grijalbo. México,
1996, pg. 45). E casos como o de Paz se repetem no mega telão global.
O intelectual progressista, enquanto comunicador de análises críticas, se transforma em objeto e objetivo
para o poder dominante. Objeto a ser comprado e objetivo a ser destruído. Um montão de recursos é colocado em
jogo para uma e para outra coisa. O intelectual progressista “nasce” no meio deste ambiente de sedução
persecutória. Alguns se ressentem e se defendem (quase sempre sem companhia, a solidariedade entre os membros
deste grupo não parece ser a característica do intelectual progressista), mas outros, talvez porque cansados,
procuram entre sua bagagem de idéias e tiram aquelas que, a depender do caso, são restrição e razão para legitimar
o poder. O novo exige muito, o velho está aí, basta levantar o argumento do “inevitável” para que o sistema lhes
ofereça um cômodo assento (às vezes na forma de bolsa de estudo, posto, prêmio, espaço) ao lado do Príncipe
ontem tão criticado.
O “inevitável” hoje tem nome: globalização fragmentada, pensamento único (ou seja, a tradução em
termos ideológicos, e com pretensão universal, dos interesses de um conjunto de forças econômicas, em particular
as do capital internacional. Ignacio Ramonet. Un mundo sin rumbo. Crisis de fin de siglo. Editorial Debate.
Madri), fim da história, onipresença e onipotência do dinheiro, substituição da política pela polícia, o presente
como único futuro possível, racionalização da desigualdade social, justificação da superexploração de seres
humanos e de recursos naturais, racismo, intolerância, guerra.
Numa época marcada por dois novos paradigmas, comunicação e mercado, o intelectual de direita (e o ex
de esquerda) entende que ser “moderno” significa cumprir a palavra de ordem: adaptem-se ou percam seus lugares
privilegiados!
Não tem que ser sequer original, o intelectual de direita já tem a pedreira da qual terá que tirar as pedras
que adornam a globalização fragmentada: o pensamento único. A assepsia não é muito importante, o pensamento
único tem suas principais “fontes” no Banco Mundial, no Fundo Monetário Internacional, na Organização para o
comércio e o Desenvolvimento Econômico, na Organização Mundial do Comércio, na Comissão Européia, no
Bundesbank, no Banco da França que, através de seu financiamento, recrutam a serviço de suas idéias, e em todo o
planeta, numerosos centros de pesquisa, universidades e fundações, que, por sua vez, aperfeiçoam e difundem a
boa nova (Ignacio Ramonet, Op. Cit. pg. 111).
Com tamanha abundância de recursos, é fácil que floresçam elites, isso já vem acontecendo há anos, que se
dediquem com afinco a tecer os elogios do “pensamento único”; que, em nome da “modernização”, do
“realismo”, da “responsabilidade” e da “razão”, exercem uma verdadeira chantagem contra toda reflexão
crítica; que afirmam o “caráter inelutável” da atual evolução das coisas; que pregam a capitulação intelectual, e
enxotam para as trevas do irracional todos aqueles que se negam a aceitar que “o mercado é o estado natural da
sociedade” (ibid. pg. 114).
Longe da reflexão, do pensamento crítico, os intelectuais de direita se transformam em pragmáticos por
excelência, exilam a função intelectual e se transformam em ecos, mais ou menos estilizados, dos anúncios
publicitários que inundam o mega mercado da globalização fragmentada.
Readaptados para uma nova função no interior da globalização fragmentada, os intelectuais de direita
mudam o seu ser e adquirem novas “virtudes” (entre elas reaparece oximoron): uma covardia audaz e uma
profunda banalidade. Ambas brilham em suas “análises” do presente globalizado e de suas contradições, de suas
novas visitas ao passado histórico, de suas clarividências. Podem se dar ao luxo da covardia audaz e da profunda
banalidade é porque a hegemonia universal quase absoluta do dinheiro os protege em torres de cristal a prova de
bala. Por isso, a direita atual é particularmente sectária e, além do mais, tem o respaldo de não poucos meios de
comunicação e governos. O acesso a estas altas torres individuais não é fácil; é necessário renunciar à imaginação
crítica e autocrítica, à inteligência, à argumentação, à reflexão, e optar por uma nova teologia, a teologia neoliberal.
Sendo que a globalização é vendida como o melhor dos mundos possíveis, mas carece de exemplos
concretos de suas vantagens para a humanidade, deve-se recorrer à teologia para suprir a falta de argumentos com
os dogmas e a fé neoliberais. O papel dos teólogos neoliberais inclui o apontar e o perseguir os “hereges”, os
“mensageiros do mal”, ou seja, os intelectuais de esquerda. E não há melhor forma de combater os críticos a não
ser a de acusá-los de “messianismo”.
Diante do intelectual de esquerda, o de direita impõe uma etiqueta lapidar de “messianismo tresnoitado”.
Quem pode questionar um presente cheio de liberdades, no qual qualquer um tem a possibilidade de decidir o que
comprar, sejam artigos de primeira necessidade, ideologias, propostas políticas e condutas para qualquer ocasião?
Mas o paradoxo não perdoa. Se tiver messianismo em algum lugar, é na direita intelectual. O Grão Circo
dos Intelectuais Neoliberais Quimicamente Puros ou dos Ex-Marxistas Arrependidos ou da Trilateral podem ser
37
messiânicos quando prefiguram a fatalidade de um universo baseado na verdade única, no mercado único e no
exército, único gendarme do fogo de flash que acompanha a foto final da história, pulsando diante das melhores
paisagens e das melhores sociedades abertas. (Manuel Vázquez Montalban, Op. Cit., pg. 47)
A foto final. Ou a cena culminante do filme da globalização fragmentada.

IV. Cegos clarividentes

Parafraseando Régis Debray (Croire, Voir, Faire. Ed. Ed. Odile Jacob. Paris, 1999), o problema aqui não é
o porquê ou o como a globalização é irremediável, e sim porque ou como todo mundo, ou quase, está de acordo
com o fato de que é irremediável. Uma resposta possível: A tecnologia do fazer-crer (...). O poder da informação...
In-formar: dar forma, moldar. Con-formar: dar conformidade. Trans-formar: modificar uma situação (ibid., pg.
193).
Com a globalização da economia, se globaliza também a cultura. E a informação. Daí que as grandes
empresas da comunicação “tendem” sua rede eletrônica sobre o mundo inteiro sem que nada ou ninguém as
impeça. Nem Ted Turner, da CNN; nem Rupert Murdoch, da News Corporation Limited; nem Bill Gates, da
Microsoft; nem Jeffrey Vinik, da Fidelity Investments; nem Larry Rong, da China Trust and Internacional
Investments; nem Robert Allen, da ATT assim como George Soros ou dezenas de outros novos donos do mundo,
jamais têm submetido seus projetos ao sufrágio universal (Ignacio Ramonet, Op. Cit., pg. 109).
Na globalização fragmentada, as sociedades são fundamentalmente sociedades mediáticas. A mídia é o
grande espelho, não do que é uma sociedade e sim do que deve aparentar ser. Cheia de tautologias e evidências, a
sociedade mediática é avara em razões e argumentos. Aqui, repetir é demonstrar.
E o que se repete são as imagens, cinzentas como estas que o telão globalizado nos apresenta. Debray nos
diz: a geração da era visual é algo assim como: visual = o real = o verdadeiro. Eis aqui a idolatria novamente
visitada (e, sem dúvida, redefinida). (Régis Debray, Op. It., pg. 200). Os intelectuais da direita têm aprendido bem
a lição. E mais, é um dos dogmas de sua teologia.
Onde se deu o salto que iguala o visível com o verdadeiro? Truques do telão globalizado.
O mundo inteiro, melhor ainda, todo o conhecimento está agora ao alcance da mão de qualquer um que
tenha uma televisão ou um computador portátil. Sim, mas não é qualquer mundo e não é qualquer conhecimento.
Debray explica que o centro de gravidade das informações deslocou-se do escrito para o visual, do deferido ao
direto, do símbolo à imagem. São óbvias as vantagens para os intelectuais da direita (a as desvantagens para os
progressistas).
Analisando o comportamento da informação na França durante a guerra do Golfo Pérsico, se revela o poder
da mídia: no início do conflito, 70% dos franceses se mostravam hostis à guerra, no final a mesma porcentagem a
apoiava. Sob os golpes da mídia, a opinião pública francesa “mudou” e o governo obteve a aprovação à sua
participação bélica.
Estamos na “era visual”. Deste modo, as informações se apresentam a nós na evidência de sua imediação,
portanto, aquilo que nos é mostrado é real, logo, o que vemos é verdadeiro. Não há lugar para a reflexão intelectual
crítica, no máximo há espaço para comentaristas que “completem” a leitura da imagem. Nesta era, o que é visível
não é feito para ser visto, e sim para dar “conhecimento”. O mundo se tornou uma mera representação multimídia,
que suprime o mundo externo, possível de ser conhecida na mesma medida em que é vista. Sim, estamos no limiar
do terceiro milênio, século XXI, e a filosofia que flutua no nosso mundo “moderno” é o idealismo absoluto.
Já podem ser tiradas algumas conclusões: na era visual o novo intelectual da direita tem que desempenhar a
sua função legitimadora; optar pelo direto e imediato; passar do símbolo à imagem e da reflexão ao comentário
televisivo. Não tem sequer que se esforçar para legitimar um sistema totalitário, brutal, genocida, racista,
intolerante e excludente. O mundo que é objeto de sua “função intelectual” é aquele que a mídia oferece: uma
representação virtual. Se no hipermercado globalizado o Estado-Nação se redefine como uma empresa a mais, os
governantes como gerentes de venda e os exércitos e policiais como corpos de vigilância, cabe à direita intelectual
a área de Relações Públicas.
Em outras palavras, no âmbito da globalização, os intelectuais de direita são “multiuso”: coveiros da
análise crítica e da reflexão, malabaristas com as rodas de moinho da teologia neoliberal, apontadores de governos
que esquecem o “script”, comentaristas do que é evidente, carregadores de cassetetes de soldados e policiais, juizes
gnoseológicos que distribuem etiquetas de “verdadeiro” ou “falso” de acordo com as conveniências, guarda-costas
teóricos do Príncipe e locutores da “nova história”.

V. O futuro passado.

Queimar livros e erguer fortificações são tarefas comuns entre os príncipes, diz Jorge Luis Borges. E
acrescenta que todo Príncipe quer que a história comece a partir dele. Na era da globalização fragmentada não se
queimam os livros (ainda que se ergam fortificações), e sim se substituem. Ainda assim, mais que substituir a
38
história anterior à globalização o Príncipe neoliberal instrui seus intelectuais para que a reescrevam de maneira
tal que o presente seja a culminação dos tempos.
“Os maquiadores da história”, assim Luis Hernández Navarro intitulou um artigo dedicado ao debate
com os intelectuais da direita no México (Ojarasca em La Jornada, 10 de abril de 2000). Além de provocar o
presente texto (escrito com o propósito de dar continuidade às suas colocações), Hernández Navarro adverte quanto
a uma nova ofensiva: a nova direita intelectual dirige suas baterias contra figuras representativas da intelectualidade
progressista mexicana. Rentista tardia da bonança planetária do “pensamento único”, renegada de sua
identidade, herdeira com escrituras da queda do muro de Berlim, sócia e êmula do circuito cultural conservador
norte-americano, esta direita está convencida de que a crítica cultural outorga credenciais suficientes para emitir,
sem argumentação, julgamentos sumários contra seus adversários no terreno político (Ibidem).
As razões não ideológicas deste ataque devem ser procuradas na disputa pelo espaço de credibilidade. No
México, os intelectuais de esquerda têm uma grande influência na cultura e na academia. Estorvam, este é o seu
delito.
Não, melhor, este é um dos seus delitos. Um outro é o apoio destes intelectuais progressistas à luta
zapatista por uma paz justa e digna, pelo reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e pelo fim da guerra
contra os indígenas do país. Este “pecado” não é menor. O levante zapatista inaugura uma nova etapa, a da
irrupção dos movimentos indígenas como atores da oposição à globalização neoliberal (Ivon Le Bot, “Los
indigenas contra el neoliberalismo”, em La Jornada, 6 de março de 2000). Não somos os melhores e nem os
únicos: aí estão os indígenas do Equador e do Chile, os protestos de Seattle e de Washington (e os que vierem
depois em termos de tempo, não de importância). Mas somos uma das imagens que distorcem o mega telão da
globalização fragmentada e, enquanto fenômeno social e histórico, demandamos uma reflexão e uma análise
crítica.
E a reflexão e a análise crítica não estão no “arsenal” da direita intelectual. Como cantar as glórias da nova
ordem mundial (e de sua imposição no México) se um grupo de indígenas “pré-modernos” não só desafiavam o
poder, como conseguiam a simpatia de um importante grupo de intelectuais? De conseqüência, o Príncipe ditou
suas ordens: atacai uns e outros; eu entro com o exército e os meios de comunicação, vocês colocam as idéias. É
assim que a nova direita intelectual dedicou gozações e calúnias à sua colega de esquerda. Aos indígenas rebeldes
zapatistas dedicou... uma nova história.
E, enquanto o zapatismo teve impacto internacional, a direita intelectual em várias partes do mundo (não só
no México) se dedicou a esta tarefa. Os intelectuais de direita não só maquiam a história, a refazem, a reescrevem
de acordo com as conveniências do Príncipe e de um jeito condizente com sua função intelectual.
Mas voltamos ao México. Ao longo deste século, no México, os intelectuais têm desempenhado funções
diferentes: cortesãos de luxo do poder de plantão, decoração estatal, vozes dissidentes (as que são chamadas para
serem institucionalizadas, “consciências críticas”), intérpretes privilegiados da história e da sociedade,
espetáculos em si mesmos. (Carlos Monsiváis. “Intelectuales mexicanos de fin de siglo”, Viento del Sur 8, 1996,
pg. 43).
No México, o último grande intelectual da direita, Octávio Paz, cumpriu plenamente com o trabalho
encomendado pelo Príncipe. Não poupou palavras para desqualificar os zapatistas e aqueles que mostravam
simpatia por sua causa (atenção: não por sua forma de luta). Uma das melhores amostras de Paz a serviço do
Príncipe está em seus escritos e declarações no início de 1994. Aí Octávio Paz define, não o EZLN, e sim os
argumentos sobre os quais deveriam se alicerçar seus “soldados” intelectuais: maoísmo, messianismo,
fundamentalismo e alguns outros “ismos” a mais que agora me fogem da memória. Diante dos intelectuais
progressistas, Paz não poupou acusações: eles eram responsáveis pelo “clima de violência” que marcou o ano de
1994 (e todos os anos do México moderno, mas a direita intelectual nunca brilhou por sua memória histórica),
concretamente, do assassinato do candidato oficial à presidência da República, Colosio. Anos depois, antes de
morrer, Paz iria corrigir isso e apontar que o sistema estava em crise e que, mesmo sem o levante zapatista, estes
acontecimentos iriam ocorrer de qualquer jeito (veja-se: Braulio Peralta, Op. Cit.).
Nenhum dos atuais herdeiros de Paz tem sua estatura, ainda que não lhes faltem ambições para ocupar o
seu lugar. Não como intelectual, pois lhes faltam inteligência e brilho, e sim pelo lugar privilegiado que ocupou ao
lado do Príncipe. Sem dúvida, fazem sua luta. E continuam no seu compromisso de confeccionar ao zapatismo uma
história que lhes seja cômoda, não só para atacá-lo, mas, sobretudo, para iludir a análise crítica e a reflexão sérias e
responsáveis.
Mas os intelectuais de direita não reescrevem só a história do zapatismo e dos povos indígenas. Toda a
história do México está sendo refeita para demonstrar que já estamos no melhor dos Méxicos possíveis. É assim
que os anões da direita intelectual revisitam o passado e nos vendem uma nova imagem de Porfirio Diaz, de Santa
Anna, de Calleja, de Cárdenas.
E este afã de remodelar a história não é exclusivo do México. No telão da globalização já estão nos
oferecendo uma nova versão na qual o Holocausto nazista contra os judeus foi uma espécie de Disneylândia
seletiva, Adolf Hitler é uma espécie de alegre Mickey Mouse ariano e, mais pra cá no tempo, as guerras no Golfo
39
Pérsico e Kosovo foram “humanitárias”. No futuro passado que a direita intelectual nos prepara, a globalização
é o “deus ex machina” que trabalha sobre o mundo para preparar seu próprio advento.
Mas que chegada anunciam estas imagens cinzentas que o mega telão nos apresenta agora?

VI. O liberal fascista.

Eu acho que este filme nós já vimos antes, e se não lembramos dele é porque a história não é uma
mercadoria atraente no mercado globalizado. Estes cinzas podem ter algum significado: o reaparecimento do
fascismo.
Paranóia? Num texto chamado “O fascismo eterno” (Op. Cit.) Umberto Eco dá algumas pistas para
entender que o fascismo continua latente na sociedade moderna, e que, ainda que pareça pouco provável que se
repitam os campos de extermínio nazistas, de um lado ao outro do planeta, está nos espiando o que ele chama de
“Ur Fascismo”. Logo após advertir-nos que o fascismo era um totalitarismo “fuzzy”, ou seja, disperso, difuso no
todo social, propõe algumas de suas características: recusa ao avanço do saber, irracionalismo, a cultura é suspeita
de fomentar atitudes críticas, a discordância com aquilo que é hegemônico é uma traição, medo em relação à
diferença e racismo, o social surge da frustração individual, xenofobia, os inimigos são, ao mesmo tempo,
excessivamente fortes e excessivamente fracos, a vida é uma guerra permanente, elitismo aristocrático, sacrifício
individual para o bem da causa, machismo, populismo qualitativo divulgado pela televisão, “neolinguagem” (de
léxico pobre e sintaxe elementar).
Todas estas características podem ser encontradas nos valores que a mídia e os intelectuais de direita
defendem e difundem na era visual, na era da globalização fragmentada. Por acaso, hoje quase como ontem, não
está se utilizando o cansaço democrático, a náusea perante o nada e o desconcerto perante a ordem como aval de
uma nova situação histórica de exceção que requer um novo autoritarismo persuasivo, unificador da cidadania em
clientes e consumidores de um sistema, um mercado, uma repressão centralizada? (M. Vázquez Montalban, Op.
Cit. pg. 76).
Olhe você mesmo para o mega telão, todos estes cinzas são a resposta à desordem, é o que se faz
necessário para enfrentar aqueles que se negam a desfrutar do mundo virtual da globalização e opõem resistência.
E, sem dúvida, parece que o número dos que não se conformam cresce. Um dos anões mexicanos que aspiram a
ocupar a cadeira vazia de Octavio Paz constatava, apavorado, que no México, de acordo com uma pesquisa do
Instituto de Pesquisas Sociais da UNAM, em 1994, o 29% dos entrevistados respondiam que as leis não devem ser
obedecidas quando são injustas. Em novembro de 1999, na revista Educación 2001, era o 49% a responder “sim” à
pergunta “O povo deve desobedecer às leis quando estas lhes parecem injustas?”. Depois de reconhecer que é
necessário resolver problemas de crescimento econômico, educação, emprego e saúde, assinalava: todas estas
coisas só podem ser alcançadas se a sociedade estiver parada num patamar mais básico que é o da segurança
pública e do cumprimento da lei. No México, este patamar está cheio de buracos e tende a piorar. (Héctor Aguilar
Camín. “Leyes y crimenes”, em “Esquina”, Proceso 1225, 23 de abril de 2000). O raciocínio é sintomático: na
falta de legitimidade e consenso, policiais.
O clamor da direita intelectual reivindicando “ordem e legalidade” não é exclusivo do México. Na França,
o fascista Le Pen está disposto a responder ao chamado. Na Áustria, o neonazista Heider já está pronto, do mesmo
modo que o franquista Aznar no Estado Espanhol. Na Itália, Berlusconi (aliás, o “Duce Multimídia”) e Gianfranco
Fini se preparam para o momento.
A Europa se aproxima de novo ao balcão do fascismo? Soa duro ... e distante. Mas aí estão as imagens do
mega telão. Estes “skin heads” que ajuntam seus pedaços de pau naquela esquina, estão na Alemanha, na
Inglaterra, na Holanda? “São grupos minoritários e sob controle”, nos tranqüiliza o audio do mega telão. Mas
parece que o fascismo renovado nem sempre tem a cabeça raspada e nem enfeita o corpo com suásticas tatuadas, e
ainda assim não deixa de ser uma direita sinistra.
Quando digo “direita sinistra” vai lhe parecer que brinco com as palavras, e que só estou recorrendo de
novo a oximoron, mas trato de chamar a sua atenção sobre alguma coisa. Depois da queda do muro de Berlim, o
panorama político europeu, em sua maioria, correu para o centro de forma atropelada. Isso é evidente na esquerda
européia tradicional, mas acontece também com os partidos de direita (veja-se: Emiliano Fruta “La nueva derecha
europea”, e Hernán R. Moheno “Más allá de la vieja izquierda y la nueva derecha”, em Urbi et Orbi, Itam, Abril
de 2000). Com uma cara moderna a direita fascista começa a conquistar espaços que já ultrapassam bastante os
(espaços) e as notas policiais na mídia. Isso tem sido possível porque tem se esforçado em construir para si uma
nova imagem, afastada do passado violento e autoritário.
Também porque tem se apropriado da teologia neoliberal com uma facilidade assustadora (deve ter alguma
razão), e porque em suas campanhas eleitorais tem insistido muito nos temas da segurança pública e do emprego
(alertando contra a “ameaça” dos imigrantes). Alguma diferença em relação às propostas da social democracia ou
da esquerda tradicional?
40
Por trás da “terceira via” européia, quem está na espreita é o fascismo, que está também por trás da
esquerda que não se define (na teoria e na prática) contra o neoliberalismo. Às vezes a direita se veste com
roupagens de esquerda. No México, no recente debate televisivo entre os 6 candidatos à presidência da República,
o candidato que obteve a aprovação da direita intelectual foi Gilberto Rincón Gallardo do Partido da Democracia
Social, aparentemente de esquerda. Por acaso a televisão não mostrou que alguns dos militantes e candidatos do
PDS em Chiapas lideram vários grupos paramilitares, responsáveis, entre outras coisas, do massacre de Acteal.
Não surpreende que a direita fascista e a nova direita intelectual estejam prontas para mostrar suas
“habilidades” aos senhores do dinheiro. O que desconcerta é que, algumas vezes, são a social-democracia ou a
esquerda institucional aquelas que lhes preparam o caminho.
Se no Estado Espanhol, Felipe González este político tão aplaudido pela direita intelectual) trabalhou pelo
triunfo do direitista Partido Popular de José Maria Aznar, na Itália, a rodovia pela qual a direita se dirige ao poder
se chama Maasimo D’Alema. Antes de renunciar, D’Alema fez tudo o que era necessário para fazer naufragar a
esquerda. D’Alema e os seus financiaram a educação religiosa com o dinheiro de todos e prepararam a
privatização da (educação) pública, participaram plenamente da aventura da OTAN contra a Iugoslávia e na
ocupação virtual da Albânia, privatizaram o que puderam, atentaram contra os aposentados, reprimiram os
imigrantes, se submeteram a Washington, “voltaram a fazer flutuar” os corruptos e o próprio Bettino Craxi, por
cuja residência no exílio, como fugitivo da justiça, desfilaram para pedir ajuda, fizeram uma lei sobre os
carabineiros ditada pelo comando golpista dos mesmos... (Guillermo Almeyra. “La izquierda de la derecha” em
La Jornada, 23 de abril de 2000). Resultado? Boa parte do eleitorado de esquerda se absteve de votar.
Na complexa geometria política européia, a chamada “terceira via” não só tem se revelado letal para a
esquerda, como também tem sido a rampa de lançamento do neofascismo.
Talvez esteja exagerando, mas a memória é uma faculdade estranha. Quanto mais agudo e isolado é o
estímulo que a memória recebe, mais se lembra; quanto mais abrangente, com menor intensidade ela lembra (John
Berger, Op. Cit., pg. 234). E suspeito que esta avalanche de imagens cinzentas no telão é para que lembremos com
menor intensidade, com preguiça, com vontade de esquecer.
E se os livros não mentem, foi o fascismo italiano que acabou atraindo muitos líderes liberais europeus
porque achavam que estavam concretizando interessantes reformas sociais, e poderia ser uma alternativa à “ameaça
comunista” Veja-se Umberto Eco, Op. Cit.).
Em agosto de 1997, Fausto Bertinotti (secretário geral do Partido da Refundação Comunista da Itália)
escrevia uma carta ao EZLN: Abriu-se na Europa uma verdadeira crise de civilização. Infelizmente, seria possível
narrar centenas e milhares de episódios de barbárie quotidiana, de violência gratuita, de agressão às pessoas, ao
corpo, de tráfico de pessoas, de corpos, de órgãos, sem nenhum sentido. E por cima de tudo isso uma espessa capa
de indiferença, como se a vida tivesse perdido o sentido. Poderia lhe contar coisas que acontecem na periferia
urbana, realidade e metáfora da tragédia humana na qual tem se convertido este novo ciclo de desenvolvimento
capitalista.
Diante desta vida sem sentido, o liberal fascista oferece o seu rosto amável e argumenta, baseando-se nas
suas bondades, o recurso à violência organizada, institucional.
O horizonte anuncia tormenta, e a direita intelectual trata de nos tranqüilizar apresentando-a como uma
chuvarada sem importância. Tudo para garantir o pão, o sal... e um lugar junto ao Príncipe. Protege-o! Não importa
que a sua camisa seja de cor cinza e que em seu seio quentinho seja chocado o ovo da serpente.
“O ovo da serpente”. Se eu não estiver errado, é o título é um título de um filme de Bergman que descrevia
o ambiente no qual se gestou o fascismo. O que fazemos? Ficamos sentados até que o filme termine? Sim? Não?
Um momento! Olhe para os outros espectadores! Muitos têm se levantado de seus assentos e cochicham! Os
murmúrios crescem! Alguns jogam objetos contra o telão e vaiam! E veja estes outros! No lugar de dirigir-se ao
telão vão pra cima! Como quem procura quem está projetando o filme! Parece que o encontraram porque apontam
insistentemente para um canto lá em cima! Quem são estas pessoas e com que direito interrompem a projeção? Um
deles levanta um cartaz que diz: Então, nós, cidadãos comuns, tomemos a palavra e a iniciativa. Com a mesma
veemência e a mesma força com a qual reivindicamos nossos direitos, reivindiquemos também o dever de nossos
deveres. (José Saramago, Discursos de Estocolmo, Ed. Alfaguara). O dever de nossos deveres? Que alguém
explique porque não entendemos nada! Silêncio! Alguém toma a palavra...

VII. A esperança incrédula.

Os intelectuais progressistas. Os da esquerda incrédula. O sociólogo francês Alain Touraine propõe uma
classificação deles (Comment sortir du libéralisme? Ed. Fayard. Paris, 1999): a mais clássica é a do intelectual
denunciador, no qual toda a atenção se concentra na crítica ao sistema dominante; o segundo tipo de intelectuais se
identificam com tal luta ou tal força de oposição e se convertem em seus intelectuais orgânicos; a terceira acredita
na existência, na consciência e na eficácia dos atores, ao mesmo tempo em que reconhece seus limites; a quarta é a
dos utópicos, que se identificam com as novas tendências culturais, da sociedade ou da existência pessoal.
41
Todos eles (e elas, porque ser intelectual não é um privilégio masculino) dedicam seus esforços em
entender criticamente a sociedade, sua história e seu presente, e tentam decifrar a incógnita do seu futuro.
Os pensadores progressistas não têm vida fácil. Em sua função intelectual têm se dado conta que tudo passa
e, nobreza obriga, devem revelá-lo, exibi-lo, denunciá-lo, comunicá-lo. Mas para fazer isso devem enfrentar a
teologia neoliberal da direita intelectual, e por trás desta estão a mídia, os bancos, as grandes corporações, os
Estados (ou o que sobrou deles), os governos, os exércitos, as polícias.
E, além do mais, devem fazê-lo na era visual. Aqui estão em franca desvantagem, pois têm que levar em
consideração as grandes dificuldades que implica o enfrentar o poder da imagem com o único recurso da palavra.
Mas seu ceticismo diante das aparências já tem permitido a eles descobrirem a fraude. E com o mesmo ceticismo
armam suas análises críticas para desmontar, conceitualmente, a máquina das belezas virtuais e das misérias reais.
Há esperança?
Transformar a palavra em bisturi e megafone já é um desafio fora do comum. E não só porque nestas
épocas quem reina é a imagem. Mas também porque o despotismo da era visual encurrala a palavra nos bordéis e
nas lojas de truques de mágica e brincadeiras. Ainda assim, só podemos confessar nossa confusão e nossa
impotência, nossa ira e nossas opiniões, com palavras. Com palavras nomeamos ainda nossas perdas e nossa
resistência porque não temos outro recurso, porque os homens estão indefectivelmente abertos à palavra e porque,
pouco a pouco, são elas que moldam o nosso juízo. O nosso juízo, temido amiúde por aqueles que detém o poder,
se molda lentamente, como o leito de um rio, por meio das correntezas da palavra. Mas as palavras só produzem
correntezas quando são profundamente confiáveis (John Berger, Op. Cit., pg. 255).
Credibilidade. Algo que está em falta na direita intelectual e que, felizmente, abunda entre os intelectuais
progressistas. Primeiro, suas palavras têm produzido, e produzem, em muitos a surpresa, e depois, a inquietação.
Para que esta inquietação não seja esmagada pelo conformismo receitado pela era visual, faltam mais coisas que
fogem ao âmbito da ação intelectual.
Mas, mesmo quando a palavra tem se transformado em correnteza, a função intelectual não acaba. Os
movimentos sociais de resistência ou de protesto diante do poder (neste caso, diante da globalização e do
neoliberalismo) ainda devem percorrer um longo caminho, já não digamos para conseguir seus fins, e sim para
consolidar-se como alternativa organizadora para outros. Finalmente, temos que reconhecer a responsabilidade
específica dos intelectuais. Depende deles, mais do que de qualquer outra categoria, que o protesto se desgaste em
denúncia sem perspectiva ou, ao contrário, que ele leve à formação de novos atores sociais e, indiretamente, a
novas políticas econômicas e sociais. (Alain Touraine, Op. Cit., pg. 15).
O intelectual progressista está se debatendo constantemente entre Narciso e Prometeo. Às vezes a imagem
no espelho o atrapalha e começa o seu inexorável caminho de transmutação em mais um empregado do mega
mercado neoliberal. Mas às vezes ele quebra o espelho e descobre não só a realidade que está por trás do reflexo,
mas também outros que não são como ele, mas que, como ele, quebraram seus respectivos espelhos.
A transformação da realidade não é tarefa para um único ator, por mais forte, inteligente, criativo e
sonhador que seja. Nem só os atores políticos e sociais, nem só os intelectuais podem levar a bom termo esta
transformação. É um trabalho coletivo. E não só no agir, mas também na análise dessa realidade e nas decisões
sobre os rumos e a ênfase do movimento de transformação.
Contam que Michelangelo Buonarroti realizou seu “Davi” com sérias limitações materiais. O pedaço de
mármore sobre o qual Michelangelo trabalhou era um que alguém havia começado a esculpir e já tinha furos, o
talento do escultor consistiu em fazer uma figura que se ajustasse a estes limites inquebrantáveis e tão apertados,
daí a postura e a inclinação da peça final (Pablo Fernández Christlieb, La afectividad coletiva. Ed. Taurus, 2000,
pg. 164-165).
Da mesma forma, o mundo que queremos transformar já foi trabalhado antes pela história e tem muitos
furos. Devemos encontrar o talento necessário para, diante destes limites, transformá-lo e criar uma figura simples
e sincera: um mundo novo.
Valeu de noz. Saúde e não esqueçam que a idéia é também um cinzel.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, abril de 2000.

P.S. Alguém tem um martelo ao alcance da mão?


_________________________________________
* “Mall”: termo que em inglês norte-americano define a rua destinada ao comércio.
** “Think Tanks”: expressão que em inglês significa “Reservatórios do Pensamento”, cabeças pensantes.
42
Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército
Zapatista de Libertação Nacional.
10 de Maio de 2000.

Ao povo do México
Aos povos e governos do mundo
À imprensa nacional e internacional

Irmãos e irmãs:

Primeiro. Nas últimas semanas, o governo federal mexicano insistiu nas ações violentas e nas ameaças que
procuram criar um clima favorável à sua intenção de desferrar um golpe definitivo contra as comunidades
indígenas e o EZLN.
Segundo. Com o pretexto dos incêndios na Selva Lacandona, dezenas de povoados indígenas têm sido
ameaçados de despejo através do uso das forças conjuntas do Exército e da Polícia Federal Preventiva. A verdade é
que os incêndios só têm acontecido nos lugares onde há forte presença militar (como San Quintín). O que deixa
claro que só é um pretexto para o ataque contra os zapatistas.
Terceiro. Enquanto isso, na região de Los Alto, Norte de Chiapas, o Governo Federal reativou seus grupos
paramilitares para que realizem ações criminosas dando-lhe assim o pretexto para atacar os zapatistas destas
regiões.
Quarto. Dias atrás, grupos paramilitares provocaram duas situações de violência e de crime nos
municípios de Chenalhó e Chalchihuitán. No dia 07 de maio, 2 pessoas perderam a vida numa emboscada e outros
ficaram feridos. Nos dias seguintes houve outro fato violento entre os priistas de Chenalhó e Chalchihuitán por
questões territoriais entre os 2 municípios que nunca foram resolvidas por nenhum governo.
Quinto. Num gesto irresponsável e criminoso, o governo de Chiapas culpa as nossas bases de apoio
zapatistas por estes fatos. Por isso, neste momento, nas proximidades do centro de Polhó, encontram-se
posicionados centenas de soldados do Exército Federal, policiais da Segurança Pública do Estado, a Polícia Federal
Preventiva, elementos da PGR, da policia judicial federal e estadual, e, com certeza, paramilitares com uniformes
militares, prontos para atacar a qualquer momento a população de Polhó, sede do Conselho Autônomo de Polhó e
onde moram milhares de crianças, mulheres, anciãos, doentes e desnutridos, todos refugiados de guerra. A estas
acusações respondemos: o EZLN não encobre e nem protege criminosos; o governo mexicano sim (alguns são
governadores e secretários de Estado). Polhó não é Los Pinos.
Sexto. Os verdadeiros responsáveis pela ilegalidade, pelo crime e a desestabilização em Chiapas devem ser
procurados no palácio do governo de Chiapas, em Los Pinos, na SEDENA e na Polícia Federal Preventiva que
procura desesperadamente a forma de retomar os combates em Chiapas para recompor assim a desastrosa
campanha eleitoral do candidato oficial à Presidência, Francisco Labastida Ochoa. (*)
Sétimo. Lançamos um apelo à comunidade nacional e internacional para que se mobilizem e detenham, de
uma vez por todas, as tentativas do governo de Ernesto Zedillo de usar a guerra para fins eleitorais.

DEMOCRACIA! LIBERDADE! JUSTIÇA!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Marcos
México, maio de 2000.

Assinam: Comandante Moisés, Comandante David, Javier, Jeronimo, Rafael, Daniel, Guillermo.

______________________________________
(*) Los Pinos: sede da Presidência da República na Cidade do México; SEDENA: Secretaria de Defesa Nacional;
PGR: Procuradoria Geral da República.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.


Junho de 2000.

Ao Encontro Nacional da Sociedade Civil pela Paz e contra a Militarização no México


43
Zócalo da Cidade do México.

Irmãs e irmãos,
Recebam todos e todas vocês a saudação respeitosa dos e das zapatistas. A nome de todo o EZLN
saudamos a próxima celebração do Encontro Nacional, nos dias 9 e 10 de junho de 2000, no Zócalo da Cidade do
México.
Com entusiasmo e esperança temos lido que aqueles que organizam este Encontro representam um arco-íris
do que o nosso país tem de melhor. A honestidade e a nobreza são o denominador comum daqueles que hoje, ainda
que em meio ao processo eleitoral, dirigem seu olhar para este território em guerra que é o sudeste mexicano. Não é
apesar das eleições, e sim justamente por causa delas, que vocês acham por bem lembrar à sociedade mexicana e à
classe política, que não é possível ter democracia enquanto houver guerra, e que a democracia só é possível quando
há paz com dignidade.
Em nossas terras, a guerra do governo contra os povos indígenas continua a sua marcha, ainda que seja
ocultada pelo processo eleitoral. Em Chiapas, a máquina do Estado mexicano se mobiliza num duplo sentido: de
um lado, para tratar de garantir a imposição do novo senhor da guerra Francisco Labastida Ochoa; de outro, para
deixar tudo pronto para uma ação policial-militar de grande envergadura contra o EZLN. Nas altas esferas
governamentais falam de um acordo entre os senhores Labastida e Zedillo. Caso o PRI alcance seu objetivo de
impor mais seis anos de pesadelos aos mexicanos, em troca de cobrir as costas de quem despacha em Los Pinos, o
candidato oficial recebeu garantias de que não “herdará” o conflito em Chiapas. Por isso, se fazem planos para que
a ofensiva governamental “definitiva” (palavra muito cara a Zedillo) seja colocada em andamento depois do
processo eleitoral do dia 02 de julho e antes da posse do novo “presidente”, caso o PRI consiga manter-se no poder.
Mas, diante da possibilidade da derrota, no interior do PRI se considera a possibilidade de que esta ofensiva seja
realizada antes das eleições, procurando fazer com que isso possa recompor a catastrófica campanha de Labastida.
Por isso, por estarmos à espera de um ataque governamental, será impossível que algum dirigente do EZLN
possa estar presente em Oventik no dia 11 de junho. De conseqüência, de acordo com o protocolo zapatista, não
poderá ser realizado o encerramento do Encontro nesse dia e nesse lugar (que, pelo que ficamos sabendo através da
imprensa, era a intenção dos organizadores). Sem dúvida, neste mesmo lugar e data, bases de apoio zapatistas
assistirão ao concerto que o cantor Oscar Chávez dará e ao qual convidamos todos vocês.
Apesar de não podermos estar presentes neste seu importante Encontro, queremos dizer-lhes que o seu
empenho e a sua preocupação são uma esperança para todos nós. Como já temos dito muitas vezes, nós queremos a
paz, mas com justiça e dignidade. O mau governo nos nega esta paz e, por isso, estamos em resistência. Assim
continuaremos.
Nós não acreditamos no governo. Dele só temos recebido mentiras, traição e morte. Por outro lado,
acreditamos em pessoas como vocês. Acreditamos em centenas de milhares de homens, mulheres, crianças e
anciãos (alguns dos quais participarão do seu Encontro) que têm nos ouvido com nobreza e têm nos falado com
honestidade. De vocês temos aprendido a importância e
a transcendência de uma paz digna e justa sem mais
destruição e ódio. Esta paz que exigimos, que
precisamos e que merecemos será possível pelo esforço
de vocês e de dezenas de milhares como vocês.
O seu esforço é tão importante para nós que
queremos que nos dêem um espaço para a nossa
palavra. Os povos zapatistas das diferentes regiões têm
preparado um informe-denúncia sobre a militarização e
suas conseqüências nas comunidades. Reunidos nos
diferentes “Aguascalientes”, os povos zapatistas farão
um breve
resumo do que vivem e sofrem todos os dias e a
todas as horas: a bota militar. Queremos pedir a vocês
que nos permitam fazer-lhes chegar estas palavras dos nossos povos. Se vocês nos disserem publicamente onde e
como, lhes faremos chegar oportunamente este nosso testemunho.
Restam ainda muitas coisas para dizer a vocês, esperamos que haja tempo e maneira de fazer isso. Seja
como for, queremos repetir a vocês que nossas comunidades estarão sempre abertas para recebê-los, para
acompanhá-los e que não esquecemos e nem esqueceremos jamais que vocês sempre tiveram para conosco um
ouvido atento e respeitoso e uma palavra de apoio e de esperança.
Saúde, pois, ao Encontro Nacional da Sociedade Civil pela Paz e contra a Militarização do México. Saúde
a nossos irmãos e irmãs.
44
Desejamos a vocês um grande sucesso para o Encontro e não esqueçam que no dia 11 de junho de 2000,
no “Aguascalientes” de Oventik, Oscar Chávez e os zapatistas irão cantar. Porque é também através da música que
se constrói o amanhã.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Comandante David, Subcomandante Insurgente Marcos.
México, junho de 2000.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.


Junho de 2000.

Para Oscar Chávez. México.

Don Oscar:
Escrevemos-lhe em nome de todos os homens, mulheres, crianças e anciãos de EZLN.
Sabemos que você gravou um disco com uma música dedicada a Chiapas e aos povos indígenas que
resistem com dignidade, e que também decidiu fazer uma apresentação desse disco no Aguascalientes de Oventik,
Chiapas, em território zapatista, no dia 11 de junho deste ano.
Nós ficamos sabendo de você há muito tempo. Sempre admiramos sua qualidade artística, sua pesquisa
histórica de nossas raízes musicais e, sobretudo, seu permanente compromisso com as causas mais justas. Nos
honra agora o fato de você ter escolhido o território zapatista para apresentar-se publicamente. Não é comum que
um artista, da estatura moral e do prestígio de Oscar Chávez, atue em território rebelde. Acredite, estamos sentindo
você mais próximo do que estas linhas podem refletir, e sentimos que o seu canto encontrará nestas terras o que a
esperança sempre merece e consegue.
Queremos que saiba que quando chegar em Oventik nós o receberemos como um grande irmão (que é isso
que você é para nós). As difíceis condições impostas pela militarização e pelo clima de perseguição que nós
zapatistas sofremos, tornam praticamente impossível que membros do CCRI-CG do EZLN possam assistir
pessoalmente ao seu concerto (e vontade é o que não nos falta, até o Comandante David já afinou o violão dele).
Mesmo assim, aqueles que são os verdadeiros comandantes da nossa luta, as bases de apoio zapatistas, estarão
presentes para ouvi-lo, para acompanhá-lo e, sobretudo, para fazer-lhe sentir nossa gratidão e admiração. Ainda que
não possamos estar presentes, saiba que estaremos aí, representados por estes homens, mulheres, crianças e anciãos
indígenas que o ouvirão e o aplaudirão. Não só por seu talento artístico, mas também e sobretudo por suas
qualidades humanas. Em nossas posições de montanha, a música de suas canções já é parte do nosso quotidiano, e
não são poucas as noites e as chuvas que nos surpreendem cantando-o (se desafinamos um pouco, atribua-o ao peso
da arma ou da memória). Seja bem-vindo às terras zapatistas, último lugar da dignidade rebelde.
Valeu. Saúde e que o concerto da paz seja entoado alguma vez da única forma em que é possível, ou seja,
com dignidade.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Comandante David, Subcomandante Insurgente Marcos.
México, junho de 2000.

COMUNICADO DO COMITÊ CLANDESTINO REVOLUCIONÁRIO INDÍGENA


COMANDO GERAL DO EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO
NACIONAL. MÉXICO.

13 de junho de 2000.

Ao povo do México:
Aos povos e governos do mundo:

Irmãos e irmãs:
No que diz respeito ao fato ocorrido no município de El Bosque, Chiapas, onde morreram 7 policiais da
segurança pública, o EZLN declara:
45
Primeiro. De acordo com os dados, o ataque foi realizado com as táticas típicas dos narcotraficantes,
paramilitares ou militares. O chamado “tiro de misericórdia” é corriqueiro entre estes grupos armados. O ataque foi
realizado numa área saturada por tropas governamentais (exército e polícia) e é muito difícil que um grupo armado
possa movimentar-se nela sem ser detectado e sem a cumplicidade das autoridades. O grupo agressor contava com
informações privilegiada sobre os movimentos e o número de pessoas que sofreram a emboscada. Estas
informações só poderiam ser obtidas por gente do governo ou próxima a ele.
Segundo. O EZLN está investigando para esclarecer a identidade e os motivos do grupo que realizou o
ataque. Tudo indica que as pessoas que realizaram a agressão são do governo (ou agem de acordo com o plano
governamental), já que, desta forma, teriam o pretexto para aumentar a militarização em Chiapas e para justificar o
ataque às comunidades zapatistas e ao EZLN. É importante reparar que este fato fortalece o clima de instabilidade
com o qual o candidato oficial vem ameaçando caso não ganhe.
Terceiro. Franca provocação ou não, o fato violento já é uma justificativa para aumentar a presença militar
em todo o Estado, inclusive nas áreas mais afastadas do lugar da agressão. Nas últimas horas, foram fortalecidos
ainda mais os quartéis federais de Guadalupe Tepeyac em Las Margaritas, Cuxuljá em Ocosingo, Caté em El
Bosque, as cabeceiras municipais de Simojovel e El Bosque. Do mesmo modo, foi aumentado o número de
aeronaves de combate e de seus sobrevôos nas zonas de Los Altos, Selva e Norte.
Quarto. O EZLN nega a autoria deste ato e convoca a opinião pública a não se deixar enganar. Na medida
em que obtenhamos mais dados em nossa investigação, os daremos a conhecer publicamente.

DEMOCRACIA! LIBERDADE! JUSTIÇA

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos.México, junho de 2000.
À IMPRENSA NACIONAL E INTERNACIONAL

19 de junho de 2000.

Damas e Cavalheiros:
A seguir vai o comunicado com a nossa posição diante das próximas eleições. O que diz é o bastante.
Pedimos clemência aos chefes de redação.
Enquanto isso, por aqui estamos tremendo. E não é porque o “bolachas pra cachorro” Albores contratou
Alasraki para “levantar” a sua imagem (provavelmente, Albores já está procurando trampo na promoção de
comida pra cachorro), e nem pelos seiscentos mil dólares que ele vai pagar (com o dinheiro inicialmente destinado
a “resolver as condições de pobreza e marginalização dos indígenas chiapanecos” - Zedillo dixit). Muito menos
pelos latidos do cachorro Montoya Liévano (que agora está ainda mais nervoso porque já estão descobrindo que
os responsáveis pelo ataque à Segurança Pública, no 12 de junho passado, foram seus “rapazes” - ou seja, seus
paramilitares). Não. Estamos tremendo porque estamos encharcados pela chuva. E acontece que entre
helicópteros e tormentas, não dá pra achar um abrigo. La Mar diz que, seja como for, saímos de uma tormenta pra
outra e que ainda tem chão para o 03 de julho. Eu suspiro e amaldiçoou a falta de guarda-chuva. Que mais
poderia fazer?
Valeu. Saúde e vejam se por aí tem umas pílulas anticoncepcionais. Tem mais de uma urna que precisa
delas urgente.

Do Comitê Promotor do Voto Inútil, desculpem, das Montanhas do Sudeste Mexicano


O SupMarcos
México, junho de 2000.

P.S. QUE CONTA UM CONTO QUE VEM AO CASO PARA OS DIAS ATUAIS. Era uma vez uma pesquisa que
andava sozinha e abandonada. Ia de um lado pra outro, mas ninguém reparava nela. Desesperada, a pesquisa
sozinha-e-abandonada resolveu passar num especialista em mercadotecnia e imagem. A consulta com o agente
publicitário saiu muito cara para a pesquisa sozinha-e-abandonada, não só pelo cheque que teve que pagar, mas
também pelo valor do taxi que ficou esperando por ela do lado de fora do escritório. É que o assessor de imagem
tinha uma grande demanda por parte dos candidatos de um certo partido oficial. A pesquisa sozinha-e-
abandonada seguiu ao pé da letra as dicas do assessor e mudou completamente seu “look” (vejam vocês mesmos
como o P.S. já adota a nova linguagem). Feito isso, voltou a percorrer os gabinetes partidários. Todos a
acolheram com entusiasmo e ela se tornou muito famosa e requisitada. Enquanto caminhava pelas ruas da cidade,
foi vista por uma criança que perguntou à sua mãe: por que aquele espelho anda? Tan, tan.
46

COMUNICADO DO COMITÊ CLANDESTINO REVOLUCIONÁRIO INDÍGENA


COMANDO GERAL DO EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO
NACIONAL. MÉXICO.
19 de junho de 2000.

Ao Povo do México:
Aos Povos e Governos do Mundo:

Irmãos e irmãs:
O CCRI-CG do EZLN diz a sua palavra diante do próximo processo eleitoral nacional.
Primeiro. No México, vivemos uma situação de guerra. Entre as montanhas do sudeste mexicano, nos
Estados de Chiapas, Guerrero, Oaxaca, Hidalgo, Puebla, Veracruz, San Luis Potosí e em outros lugares com
população indígena, dezenas de milhares de soldados do governo federal e de policiais de diferentes corporações
levam adiante uma guerra de extermínio contra os povos indígenas do México. Dia após dia, vai se acumulando
sangue indígena morto ou aprisionado. O destino dos primeiros moradores destas terras é decidido entre o cárcere e
o túmulo.
A pobreza extrema, a perseguição e o não reconhecimento dos direitos indígenas não só tem feito continuar
a resistência dos povos zapatistas na região sudeste do México, como tem mantido ativas as guerrilhas do ERPI e
do EPR. Agora, outros grupos armados vêm se somando a estes com demandas de justiça e democracia. São pouco
os países da América que têm tantos grupos armados de oposição como os que existem no México.
Ainda que ignorada pelos meios de comunicação, esta guerra continua o seu curso. Seu desfecho não está
relacionado ao poder de fogo e ao número de combatentes e sim ao atendimento de demandas justas e à abertura de
espaços de participação democrática.
No Estado de Chiapas, continuam os enfrentamentos armados iniciados no dia 1º de janeiro de 1994. Não
obstante o EZLN tenha dado provas de sua vontade de uma solução pacífica e negociada para o conflito, os
governos federal e estadual continuam levando adiante ações violentas contra as comunidades zapatistas e fugindo
do cumprimento dos acordos de San Andrés, aos quais se comprometeram já faz quase 5 anos.
Com esta guerra inominável como pano de fundo, o nosso país se aproxima do momento em que se
renovarão as autoridades federais através de um processo eleitoral: o poder executivo e o poder legislativo.
Segundo. Neste processo eleitoral, tem ficado evidente que o cidadão-eleitor não é respeitado. Em seu
lugar, têm sido os meios de comunicação, e, sobretudo, a mídia eletrônica, a transmitir a voz do cantor. O uso
indiscriminado das “pesquisas”, muitas delas realizadas sem o menor rigor científico, têm deslocado o voto do
cidadão-eleitor. Neste momento, o que importa não é disputar uma eleição nas urnas, e sim ganhá-la ou perdê-la
nas manchetes da imprensa escrita e dos noticiários do rádio e da televisão.
O cidadão não toma a sua decisão diante das diferentes opções políticas, e sim diante dos meios de
comunicação, ou seja, diante da imagem das propostas políticas que estes apresentam. Para o nosso país, a
modernidade não foi sinônimo de transição para a democracia, para o governo do povo, pelo povo e para o povo. O
exercício do poder político não passou da classe política para os cidadãos, e sim para todos os publicitários, os
chefes de redação, os locutores e comentaristas.
Se uma vez foi dito que se podia governar através dos meios de comunicação, hoje isso foi subvertido:
agora se governa (e se disputa o governo) nos e para os meios de comunicação. A substituição do cidadão pelo
rádio e a TV não é um sinal de democracia, e sim de um governo virtual e de uma mudança virtual de governo. Os
palácios do governo, os âmbitos do legislativo e os distritos eleitorais não estão em seus domicílios reais e sim na
programação dos noticiários.
É neste cenário (no verdadeiro sentido da palavra) no qual a nação é substituída pelo “rating”, que tem se
desenrolado fundamentalmente a disputa eleitoral. Salvo honrosas exceções, os candidatos à presidência têm
dirigido seus esforços (e recursos econômicos) quase exclusivamente no âmbito dos meios de comunicação. Além
dos lucros evidentes, a mídia tem conseguido um papel político que supera, e muito, suas prerrogativas e, sobretudo
suas capacidades.
Para os partidos políticos, é claro que a oportunidade de dar a conhecer suas posições através do rádio e da
televisão representa um avanço importante na democratização. E é de aplaudir que os partidos se aproveitem disso.
O problema está no fato de que, não poucas vezes, esta divulgação não é eqüitativa (o partido oficial arrasa
em termos de tempos e horários nobres) e não é uma posição política que está sendo divulgada, e sim se opta pelo
escândalo, pelo insulto, pela infâmia ou por uma fofoca qualquer. E, ainda, é muito freqüente que o comunicador se
transforme em juiz daquilo que está comunicando, e decida o que e como deve ser o que está sendo informado.
47
Como tem sido assinalado por vários trabalhadores da imprensa, o papel da mídia não é o de eleitor, e
sim o de comunicador. O fato de não ter este entendimento e de não agir coerentemente com ele, já provocou mais
de uma situação na qual alguém comete excessos lamentáveis.
Neste momento, no México, os meios de comunicação têm um papel mais determinante na vida nacional. É
justo reconhecer que diante do novo caráter de sua profissão, não têm crescido só a irresponsabilidade de alguns,
como, em não poucos, têm aumentado a independência, o espírito crítico e a honestidade. Sem dúvida, porém, a
postura responsável não tem sido majoritária no interior da imprensa eletrônica e escrita.
Não é deixando de lado os meios de comunicação ou calando-os que se evita esta substituição da decisão
do cidadão, e sim normatizando o direito dos cidadãos e das organizações políticas à luz da equidade, da verdade,
da honestidade e da responsabilidade dos comunicadores no âmbito político.
O cidadão tem direito à informação verídica, oportuna e completa. Não há nenhuma lei que lhe garanta
isso, nem instância que defenda isso ou zele para que seja cumprido.
Hoje, diante do atual processo eleitoral, nós zapatistas reafirmamos um dos pontos da nossa luta: o direito à
informação e à cultura.
Terceiro. Dirigidos os holofotes dos meios de comunicação exclusivamente para a disputa presidencial,
tem se deixado de lado um elemento fundamental na vida de uma república: o poder legislativo.
No iminente processo eleitoral decide-se não só quem será o titular do poder executivo como também são
eleitos os deputados federais e os senadores da república.
No México, o presidencialismo tem sido uma carga pesada e um obstáculo para a democracia. Mesmo que
nos últimos 70 anos não tenhamos tido um presidente que não seja do partido oficial, a possível chegada da
oposição à cadeira presidencial não significa a “transição à democracia” se nos próximos seis anos o poder
continua concentrado numa única pessoa e se os poderes encarregados de legislar e de fazer justiça são elementos
decorativos renovados a cada 3 e seis anos. A sobrevivência do sistema presidencialista no México é um fato. Que
democracia é essa que durante seis anos faz com que as decisões fundamentais de uma nação recaiam num único
indivíduo?
Numa democracia, é imprescindível um poder legislativo autônomo e independente do executivo. Sem
dúvida, as campanhas para deputado e senador têm passado desapercebidas. A paixão natural colocada na disputa
presidencial tem conseguido ocultar um avanço já percebido no mandato que termina: um poder legislativo que luta
por sua independência e autonomia.
Além de enfrentar o executivo, o poder legislativo deve ser independente das lideranças partidárias que,
não poucas vezes, suplantam os líderes das frações parlamentares nos acordos e nas disposições que dizem respeito
exclusivamente ao âmbito legislativo. Legislar não é prerrogativa dos partidos políticos e sim daqueles que são
democraticamente eleitos para esta tarefa.
Indo no encalço das campanhas presidenciais, as dos candidatos ao poder legislativo não ganham nada para
si e nem beneficiam os que almejam o poder executivo. São eleições diferentes porque sua função é diferente. As
legislativas merecem uma atenção que não tem tido.
Tomara que o próximo poder legislativo, que nestas eleições tem ficado tão apagado, não desempenhe seu
trabalho amarrado a compromissos com suas direções partidárias ou com o executivo eleito, e sim com os
mexicanos e mexicanas que, tendo votado ou não em suas candidaturas, formam a nação mexicana para e com a
qual terão que fazer as leis.
Hoje, diante do atual processo eleitoral, nós zapatistas nos pronunciamos por um autêntico equilíbrio entre
os poderes. Não só no exercício de suas funções, mas também na disputa pelas vagas. Conhecer as propostas e as
posições dos candidatos à presidência da república é tão importante quanto conhecer as daqueles que procuram se
eleger deputados e senadores. O fim do presidencialismo é condição para a democracia no México.
Quarto. O atual processo eleitoral não tem sido eqüitativo. Toda a máquina governamental tem se
mobilizado a favor do PRI e do seu candidato. A compra de votos, a coação, o transporte, a ameaça e o favoritismo
de alguns meios de comunicação, têm sido usados para apoiar a imposição do candidato do PRI, Francisco
Labastida Ochoa. Algumas destas iniqüidades têm sido oportunamente apontadas pelos observadores nacionais e
internacionais, por organizações não-governamentais e pela imprensa honesta.
Hoje, diante do atual processo eleitoral, nós zapatistas enunciamos que não se trata de uma eleição de
cidadãos que estão diante de propostas políticas e daqueles que as representam, e sim de uma eleição de Estado, na
qual a oposição enfrenta não só o partido oficial, como todo o aparato do Estado mexicano. Nestas condições,
nenhuma eleição pode ser qualificada de “democrática”.
Quinto. Apesar do apoio opressor e escandaloso do governo à campanha do PRI, o descontentamento
cidadão é cada vez mais eloqüente. Hoje, diz-se que é possível que o PRI não obtenha a votação necessária para
ocupar a cadeira presidencial, e que o próximo presidente do México venha da oposição.
Diante desta possibilidade, além dos recursos materiais das mais diferentes espécies, tem sido mobilizado
um argumento: a instabilidade. Como é de costume, no fim de cada mandato o governo e os círculos a ele próximos
fazem chover advertências quanto às catástrofes que se abaterão sobre os mexicanos, caso alguém que não é do PRI
48
chegue à presidência da república. Guerra, desvalorizações, fuga de capitais, descontentamento social, aumento
dos preços, falências, desemprego, caos.
Para não ir muito longe, tenho que lembrar do que nos advertia Zedillo (quando o assassinato de Colossio o
tornou candidato) caso fosse eleito um partido que não fosse o oficial. Foi com Zedillo que ocorreram a crise de
dezembro de 1994, a retomada da guerra no sudeste mexicano, o descumprimento dos acordos de San Andrés, os
massacres de Aguas Blancas e El Charco no Estado de Guerrero, o massacre de Acteal, a entrada da PFP na
UNAM, a morte dos sem documentos mexicanos nos EUA, o assassinato e a extorsão dos migrantes centro-
americanos, a fuga de capitais e a desvalorização do Peso.
Temos sofrido também pelo aumento do descontentamento social, pela proliferação de grupos armados
ativos, pelo aumento dos preços dos produtos básicos, pelo aumento do desemprego, pelo FOBOPROA-IPAB, pela
quebradeira de pequenas e médias empresas, pelos vínculos mais estreitos entre o crime organizado e o governo
federal, pela impunidade para os criminosos de colarinho branco, pelo aprisionamento de lutadores sociais, pela
militarização das áreas indígenas, pelo aumento do narcotráfico, pelas tentativas de privatização do setor elétrico e
do petróleo, bem como da educação superior, pelo aumento das relações de dependência com o exterior.
Resumindo: a destruição do México enquanto país livre e soberano. A única coisa boa do mandato do senhor
Zedillo é que está quase terminando.
Hoje, diante do atual processo eleitoral, nós zapatistas lembramos que durante e por meio do governo do
PRI tem caído sobre nós todo tipo de catástrofe e desgraça humana. Ao longo dos mais de 70 anos em que o PRI
governa o México, têm acontecido todos os desastres que se supunha aconteceriam somente com um outro partido
no poder e temos dificuldade em achar que possa ser pior com a oposição no governo.
Sexto. A simples possibilidade que o candidato de oposição chegue à presidência tem levantado disparates
e deturpações não só entre as fileiras governamentais. Diante do avanço das opções eleitorais da oposição, em
certos setores da intelectualidade e da política surgiu a idéia do “Voto Útil” (ou sua versão mais palatável: o “voto
condicionado”).
Concretamente, a possibilidade de o candidato da Aliança para a Mudança (PAN-PVEM), Vicente Fox,
conseguir um número significativo de votos, tem provocado uma verdadeira ofensiva contra o candidato da Aliança
para o México (PRD-PT-PAS-CD-PSN), Cuauhtémoc Cárdenas Solórzano, para que renuncie e apóie o senhor Fox
em sua corrida presidencial. Os argumentos para este malabarismo político variam em sua complexidade, mas
podem ser resumidos no que segue: o mais importante é tirar o PRI de Los Pinos, Fox tem boas chances, logo,
Cárdenas tem que transformar sua derrota em mais chances para Fox e garantir assim a vitória sobre o PRI (e sobre
a Aliança para o México, mas eles não dizem isso em sua argumentação).
Aqueles que propõem isso estão propondo que as opções eleitorais deixem de ser políticas (projetos de
nação e posições diante dos diferentes problemas do país) e que o eleitor não tenha a possibilidade de apoiar uma
ou outra força política com a qual se sinta ou não identificado.
A renúncia do Engenheiro Cárdenas à disputa eleitoral pela presidência, e seu apoio à campanha de
Vicente Fox, não significariam somente a renúncia de uma pessoa e a soma de seus votos aos do candidato da
Aliança para a Mudança. Significariam também o desaparecimento de uma opção eleitoral de esquerda na luta pela
presidência. Não ignoramos o debate sobre se Cárdenas e o PRD são de esquerda, com todas as nuanças e as
críticas que podem ser propostas, sublinhando - e insistindo - que a esquerda política é maior do cardenismo e, de
conseqüências, do perredismo.
Eliminada a esquerda do panorama eleitoral, ou seja, eliminada uma via pacífica de mudança política, que
opção sobra para milhões de mexicanos que apostam sua esperança e seu esforço numa profunda mudança social?
A abstenção? A guerrilha?
É evidente que os senhores Vicente Fox e Cuauhtémoc Cárdenas representam dois projetos diferentes de
país. As propostas de um e de outro tem o respaldo de milhões de cidadãos. O veredicto sobre qual delas é a melhor
não será dado pelo número de votos conseguidos, e sim pelos resultados alcançados quando chegarem a ser
governo.
A campanha do Engenheiro Cárdenas é mais do que uma campanha pela cadeira presidencial. Para milhões
de mexicanos e mexicanas é o argumento de que é possível ser de esquerda e lutar por mudanças sem ter que ir
para a clandestinidade, para a ilegalidade, para a luta armada.
A renúncia do engenheiro Cárdenas à disputa eleitoral significaria a renúncia (pelo menos de imediato) da
esquerda partidária e institucional à mudança pacífica e eleitoral.
Mais cedo ou mais tarde, a história vem cobrar as contas. Aqueles que antes se queixavam pelo fato dos
zapatistas não apoiarem o PRD, “Porque mesmo que isso não seja politicamente conveniente para eles, é melhor
que o PRI, e ao não votar no PRD propiciam o triunfo do PRI em Chiapas”, se defrontam agora com o mesmo
argumento pragmático. Agora que eles mesmos respondem que “os princípios vêm em primeiro lugar”, será que
têm resposta à pergunta sobre por que os zapatistas não votam no PRD em Chiapas?
Para os zapatistas a política é uma questão de princípios. Não só de princípios, mas também de princípios.
Aqueles que têm por princípios a mudança social e a luta civil e pacífica para alcançá-la, devem agir
49
coerentemente, sem se importar com as adversidades e os acontecimentos do presente se querem ter
legitimidade no México dos debaixo.
Hoje, diante do atual processo eleitoral, nós zapatistas nos pronunciamos pelo respeito à esta forma de luta
civil e pacífica na qual todas as ações políticas (de direita e de esquerda, para usar termos geográficos) estejam
representadas de modo que o cidadão possa realmente escolher entre elas. Rechaçamos o argumento do “voto útil”.
Sétimo. Além de organizar as eleições, o Instituto Eleitoral Federal, por lei, será quem vai dizer quem são
os ganhadores do próximo pleito.
Apesar da avalanche de denúncias da oposição e das organizações não-governamentais, o presidente do
IFE tem se adiantado em dizer que será uma eleição “limpa e transparente”. Este senhor não faz só profecias
temerárias, como, além do mais, exige dos candidatos de oposição e dos cidadãos que apóiem incondicionalmente
o seu veredicto e que desde agora aceitemos os resultados de uma eleição que ainda não se realizou. O presidente
do IFE nos pede para que demos nota “10” para uma tarefa que ainda não terminou.
Há uma grande quantidade de fraudes que já estão sendo levadas adiante mesmo antes das eleições
(compra de votos, vinculação de programas governamentais, falta de equidade na divulgação da mídia, ameaças,
chantagens, etc.) e não se vê como ele tenha a capacidade de vigiar e evitar que, além das urnas, sejam realizadas
ações fraudulentas.
Deve-se assinalar que, em algumas ocasiões, o IFE tem sido usado para tarefas que não tem nada a ver com
as suas funções. Um grande número de zapatistas não tem título de eleitor. Isso acontece porque o pessoal do IFE
que é encarregado de fazer o credenciamento em Chiapas, está em conluio com os serviços de inteligência militar.
O acesso aos dados e às fotografias para o título de eleitor é “facilitado” ao exército federal para que, com a ajuda
de “informantes”, identifiquem os zapatistas e seus povos. O IFE funciona como um braço da contra-insurreição.
É inegável que a cidadanização do IFE é um avanço, e que alguns de seus membros têm suportado fortes
pressões por parte do governo e do PRI. Mas não se pode pedir a alguém de aceitar os resultados de um processo
eleitoral antes que ele se realize, sobretudo num país como o México, onde as eleições são sinônimo de um mundo
paralelo de “ratazanas enlouquecidas”, “operações pamonha” e etceteras que superam qualquer ficção literária.
Hoje, diante do atual processo eleitoral, nós zapatistas declaramos que a fraude eleitoral já está em
andamento e que nada garante que o dia 2 de julho de 2000 não termine numa descarada imposição de graves
conseqüências.
Oitavo. Para nós zapatistas, a democracia é muito mais do que uma disputa eleitoral ou a alternância no
poder. Mas é também disputa eleitoral quando esta é limpa, eqüitativa, honesta e plural.
Por isso, dizemos que a democracia eleitoral não esgota a democracia, mas é parte importante dela. Por
isso, não somos contrários às eleições. Achamos que os partidos políticos têm um papel a cumprir (tampouco
somos contrários aos partidos, mas temos críticas à ação partidária).
Achamos que, para milhões de pessoas, as eleições representam um espaço de luta digno e que merece
respeito.
O tempo eleitoral não é o tempo dos zapatistas. E não é só pelo nosso ser sem rosto e pela nossa resistência
armada. Mas também, e, sobretudo, pelo nosso afã de encontrarmos uma nova forma de fazer política que tem
pouco ou nada a ver com a atual. Queremos encontrar uma forma de fazer política que vá de baixo para cima, na
qual o “mandar obedecendo” seja mais do que uma palavra de ordem; onde a meta não seja o poder, e o
“referendum” e o “plebiscito” sejam mais do que palavras de ortografia complexa; uma forma de fazer política na
qual um funcionário possa ser removido do seu cargo através de votação popular.
Quanto aos partidos políticos, dizemos que não nos sentimos representados por nenhum deles. Não somos
perredistas, nem panistas e muito menos priistas.
Criticamos aos partidos seu distanciamento da sociedade sua existência e atividade relacionadas somente
ao calendário eleitoral, o pragmatismo político que impera em suas direções, o malabarismo cínico de alguns de
seus membros, o desprezo para quem é diferente.
Independentemente de quem está no cargo, a democracia é quando a maioria do povo tem poder de decisão
sobre os assuntos que são de sua incumbência. É o poder das pessoas sancionarem quem está no governo
dependendo de sua capacidade, honestidade e eficácia.
No ideário zapatista, a democracia é algo que se constrói a partir debaixo e com todos. Inclusive com
aqueles que têm um pensamento diferente do nosso. A democracia é o exercício do poder por parte das pessoas o
tempo todo e em todos os lugares.
Hoje, diante do atual processo eleitoral, nós zapatistas reafirmamos nossa luta pela democracia. Não só
pela democracia eleitoral, mas também pela democracia eleitoral.
Nono. No que diz respeito à nossa posição na conjuntura nacional, dizemos que continuaremos esperando
o cumprimento dos acordos de San Andrés e sinais claros, deste ou do próximo governo, de que tem um sério
compromisso com a via política para a solução da guerra.
Enquanto não são cumpridas as devidas condições, não haverá diálogo e nem negociação (1).
50
Não queremos falsas promessas ou que nos digam do que é que precisamos ou aquilo que nos convêm.
Tampouco estamos procurando emprego de policiais ou guardas florestais.
Queremos um ouvido atento, uma palavra verdadeira e um compromisso sério com um diálogo que acabe
com a guerra.
Se, como é de se esperar, o governo do senhor Zedillo insistir na sua guerra, no descumprimento da sua
palavra e na irresponsabilidade como norma política, então o próximo governo herdará uma guerra, aquela que nós
zapatistas lhe declaramos no dia 1º de janeiro de 1994.
Diante desta guerra, o novo governo terá só duas opções:
Continuar com a política do senhor Zedillo que simula soluções enquanto continua militarizando,
perseguindo, matando e mentindo.
Ou cumprir com as condições para o diálogo, dar mostras de seriedade e responsabilidade no cumprimento
dos compromissos e resolver não só a guerra, mas também as demandas dos povos indígenas do México.
Não há outras opções: aqueles que estando no poder acariciam a possibilidade de uma solução militar
“definitiva” estão completamente equivocados.
O EZLN não pode ser aniquilado militarmente. Qualquer campanha militar de caráter ofensivo contra nós
não está destinada a durar horas ou dias (como se supõe nos altos círculos militares) e nem, tampouco, semanas,
meses ou anos. Poderão tentar isso por décadas inteiras, e o EZLN continuará ainda armado e mascarado, exigindo
democracia, liberdade e justiça.
Seja qual for a decisão do novo governo, sem que tenha importância sua filiação política, terá uma resposta
coerente por parte do EZLN.
Se for optar pela violência de baixa intensidade, a simulação e o engano, verá que o tempo vai passar sem
que o problema seja solucionado e terá o desprezo e a desconfiança dos zapatistas.
É necessário dizer que, caso o governo tente uma solução militar em qualquer de suas variantes (seja o
golpe cirúrgico, a invasão parcial ou total das comunidades, ou uma ação militar desse tipo) se defrontará com
milhões de indígenas armados, em guerra, dispostos a tudo, menos à rendição ou à derrota.
Não morreremos, o martírio individual ou coletivo não está na agenda zapatista.
O EZLN está pronto para a paz ou para a guerra. O novo governo terá a palavra e a oportunidade de
escolher.
Décimo. Pelo que dissemos antes, declaramos que:
- Não colocaremos obstáculos às eleições federais do dia 2 de julho do ano 2000.
- Será permitida a instalação de seções eleitorais nas zonas zapatistas.
- Não se realizarão atos de sabotagem ou ação alguma contra as instalações eleitorais, funcionários do IFE e
eleitores.
- Não se chamará a votar por nenhum candidato ou por seus partidos.
- As bases de apoio zapatistas votarão ou não de acordo com sua própria avaliação. As bases de apoio irão votar
sem que seja definida alguma orientação a respeito e sem sanções em função de sua opção partidária.
- Convocamos todos os mexicanos e as mexicanas que vêem nas eleições uma possibilidade de luta, a lutar neste
terreno e com estes meios, e a defender o voto.
Irmãos e irmãs:
Esta hora não é a nossa hora. O será algum dia, quando terá paz e respeito para os povos indígenas. Quando
a democracia irá além de um calendário eleitoral.
Nesse dia, o México não será democrático só pelos zapatistas, mas também por eles. Nesse dia não
estaremos disputando um cargo no governo, e sim caminhando ao lado de milhões de mulheres e homens que,
como nós, lutam por

DEMOCRACIA! LIBERDADE! JUSTIÇA!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos
México, junho de 2000.
____________________________________________________
(1) Condições para o EZLN regressar à mesa do diálogo:
1. Libertação de todos os supostos zapatistas que, atualmente, encontram-se presos e dos zapatistas das bases de
apoio detidos no norte de Chiapas.
2. Interlocutor governamental com poder de decisão, vontade política para negociar e respeito à delegação
zapatista.
3. Instalação da Comissão de Acompanhamento e Verificação e cumprimento dos Acordos da mesa 1 sobre
“Direitos e Cultura Indígenas”.
51
4. Propostas sérias e concretas para a mesa sobre “Democracia e Justiça” e compromisso de alcançar acordos
sobre este tema.
5. Fim do clima de perseguição e hostilização policial/militar contra os indígenas chiapanecos e desaparecimento
das guardias blancas (ou uma lei que as reconheça institucionalmente e as normatize para que não operem
impunemente).

(Obs: Após este comunicado, o EZLN se manteve em silêncio até o final de novembro. Neste período, foram
traduzidas algumas matérias divulgadas pela FZLN ou pela imprensa e uma pequena parte das denúncias de
agressão contra comunidades ou municípios autônomos. A idéia era a de possibilitar a compreensão da situação
política do México e do caminhar da luta em Chiapas antes da posse do novo presidente, Vicente Fox Quesada)

Sergio Rodríguez Lascano. 2000 (10 teses sobre a derrota do PRI)


México - DF, 06 de julho de 2000.

“Como alguém que viveu neste século, «nossa pátria ao longo do tempo», não consigo ver agora as verdadeiras
razões da tristeza, da desolação e da desorientação que se apoderam de tantos socialistas. Será que esqueceram
do que já ficou pra trás?” (Adolfo Gilly, 1989).

1. No dia 02 de julho de 2000, o regime político priista foi finalmente derrotado nas urnas. Não há nada do
que se possa ter saudades. A repressão dos mineiros de Nueva Rosita, dos ferroviários, dos professores, dos
médicos, o massacre de Tlatelolco, a repressão sangrenta de San Cosme, os mais de 500 detidos-desaparecidos, os
massacres de Acteal e Aguas Blancas, a submissão da sociedade através do corporativismo, do clientelismo e do
caciquismo, a existência de um partido único que, por décadas, impediu o “livre jogo dos partidos” e a existência
da democracia representativa e da corrupção que transformou o governo em fonte de acumulação de capital. A
impunidade no exercício do poder oligarquizou a justiça e permitiu o desprezo de todo tipo de manifestação cidadã
autônoma procurando sempre criminalizar as organizações sociais e seus representantes. A destruição de aspectos
centrais do tecido social e nacional, os 66 milhões de pobres. É este o saldo do priismo. A paisagem às 23.30 hs. do
dia 02 de julho na esplanada da sede principal do PRI era de desolação, e imagino que o sentimento que se fazia
presente nos escritórios deste prédio horrível não era muito diferente do que se vivia na STASI, na Alemanha
Oriental.

2. Já faz vários anos que o regime priista estava condenado à morte. A reestruturação produtiva pelo alto,
iniciada em 1982, não significou apenas uma quebra das relações trabalhistas, tanto na cidade como no campo, que
permitiu despedaçar todos os pactos sociais, e particularmente o grande pacto social fruto da Revolução Mexicana,
como foi o começo do fim dos quatro grandes pilares essenciais do regime político priista: a hegemonia ideológica
que permitia justificar que enquanto outros países precisavam de uma revolução, no México, esta já havia se
realizado e transformado numa instituição promotora do desenvolvimento social (a chamada “ideologia da
revolução mexicana”); a hegemonia política baseada na incorporação da sociedade ao Estado ou, para ser mais
preciso, a aniquilação da sociedade, de suas classes e setores enquanto sujeitos autônomos; o caráter regulador que
tinha em relação às classes sociais, especialmente no campo jurídico, no qual procurava aparecer como um juiz
independente entre os diferentes interesses sociais e econômicos; a existência de um partido político que era o
único mecanismo de homogeneização da sociedade, na medida em que impediu conscientemente a unidade entre
trabalhadores e camponeses e a própria unidade da classe operária mexicana.
Mais uma vez, as mudanças nas relações de produção (a forma de apropriação dos meios de produção) trouxeram
como conseqüência o arrasamento de tudo aquilo que se colocava diante delas, incluindo as relações políticas e
sociais que aos olhos de muitos especialistas pareciam ser totalmente sólidas. Na medida em que já passava da hora
de dar-lhe um bom enterro, o PRI tornou-se um cadáver que passeava diante dos olhos incrédulos dos mexicanos e
a crise do regime, que alguns iludidos confundiram como “transição para a democracia”, ia ganhando um caráter
doentio.

3. Sem dúvida seria totalmente mecânico pensar que foi só a reestruturação produtiva a provocar a crise
mortal do regime priista. A crise do regime político mexicano tem sido o resultado de um processo longo e
contraditório, cheio de luzes e sombras, marcado pela vontade da sociedade civil mexicana de construir um México
mais democrático, livre e justo. Sem dúvida, 1968 foi o ano que marcou a arrancada deste longo e tortuoso
caminho rumo ao fim do regime priista; um setor muito moderno, produto do desenvolvimento estabilizador, de
“privilegiados” da construção do México pós-revolucionário, se rebelou contra o sistema político mexicano, contra
toda ação antidemocrática realmente existente, enquanto parte de uma rebelião mundial contra um mundo fechado,
52
hierárquico e burocrático ao qual haviam chegado os diversos regimes políticos que atuavam sob diferentes
marcos ideológicos, chamados de “comunismo”, “Estado do bem-estar” ou “Estado Populista”.
Vinte anos depois, o engenheiro Cuauhtémoc Cárdenas, liderou uma luta pela democracia que rompeu o poder
ilimitado do PRI. Esta luta significou duas coisas fundamentais: o partido no poder entrou numa crise mortal,
produto da conscientização de uma parte de seus militantes quanto ao sentido profundo do abandono definitivo das
grandes tarefas nacionais por parte do “regime da revolução mexicana”: a defesa da soberania nacional, a defesa da
soberania do Estado diante dos grupos de poder econômico e o amparo à parte mais desprotegida da população. Ao
mesmo tempo, a esquerda mexicana, sempre secundária, passou a ser uma força significativa no terreno
institucional e eleitoral. Mas 1988 não culminou com a derrota do PRI - num desses fatos que ficarão registrados
como encruzilhadas históricas não resolvidas. Toda vez que ouço o pessoal de Nexos e Vuelta elogiar Cárdenas por
sua atuação em 1988, inevitavelmente, me surgem suspeitas sobre o acerto de sua decisão.
O governo de Salinas marcou uma aceleração do processo de desarticulação das relações comunitárias e da
economia moral (para retomar a categoria de Thompson) da população, ao mesmo tempo em que a inserção do
México no contexto da globalização econômica através do Tratado de Livre Comércio mudou definitivamente este
país. 1994, representou a rebelião que veio dos que foram colocados pra baixo dos debaixo, os que vivem nos
porões do país. A resposta da sociedade mudou de forma definitiva a sua relação com o poder, com os partidos e
com ela mesma (mais uma vez, entendo isso como um processo contraditório). Mesmo no terreno institucional, as
reformas do Código Eleitoral Federal e a cidadanização do Instituto Federal Eleitoral são filhas, quem diria, da
rebelião zapatista. Portanto, o início da crise do regime, seu desenvolvimento e amadurecimento, foram atos sociais
e cidadãos sempre vinculados a um pensamento e a uma prática de esquerda. E, sem dúvida, não foi esta a
capitalizar e a encontrar uma solução para a crise do regime político mexicano.

4. Na atual campanha eleitoral, vimos como o fenômeno Fox se desenvolveu como uma bola de neve. De
início a candidatura de Fox foi desenhada e lançada pelos meios de comunicação como um instrumento para frear o
crescimento obtido por Cuauhtémoc Cárdenas, logo após ter alcançado o triunfo arrasador de 1997. Por isso, o
governo Zedillo propagandeou a decisão do governador de Guanajuato (Fox) de lançar-se “em grande estilo”, um
dia depois de Cárdenas ter ganhado de forma esmagadora o governo do DF. De início, todos acharam uma boa
piada, mas logo apareceriam os equívocos do fato de ter menosprezado este acontecimento.
Há alguns meses, a revista Proceso publicou um documento interno da equipe mais fechada de Fox, “Projeto
Milenium”, de acordo com o qual a estratégia estaria baseada em: “continuar desafiando o sistema, apropriar-se das
bandeiras sociais da esquerda, esclarecer que nunca «se teria liberdade» se o PAN não colocasse a questão,
explorar a atração feminina que desperta nas mulheres e manter a discrição sobre a sua vida íntima”.
Independentemente de Fox ter desmentido a existência deste documento, ninguém pode negar que, de fato, foram
estes os pontos fortes de sua campanha. Sobretudo os dois primeiros tiveram sucesso. As idéias de mudança e de
oposição ao PRI se fincaram na candidatura de Fox, deixando de lado a terrível ineficácia dos perredistas para
bloquear estes fenômenos. No esforço de não aparecer como o partido da violência, da negação e da crítica, os
perredistas deixaram livre o espaço que haviam conquistado em 1988 e com o qual ganharam em 1997, o de ser o
elemento institucional capaz de acabar com o regime político mexicano.
Contra o PRI, a campanha de Fox foi a mais agressiva; as propagandas que apareceram na televisão estavam em
sintonia com aquilo que o povo pensava do PRI. As referências à Acteal, à corrupção, ao crime organizado, dia
após dia, apareciam na televisão junto à idéia de que tudo isso mudaria tirando o PRI de Los Pinos e conseguindo a
mudança. Fox encarnou a esperança de acabar com o regime do PRI, da mesma forma pela qual isso havia
acontecido com Cárdenas em 1988. Este tipo de campanha evidenciou que era falsa a idéia de que os cidadãos
queriam uma campanha propositiva e civilizada; o povo queria humilhar o PRI e Fox entendeu isso. Enquanto ele
fazia gozações e caracterizava os modelos priistas em seus comerciais, o PRD, ou não sei quem, levava Cárdenas
para manifestações que o tempo todo repetiam até a náusea: “Vamos pelo México”, que se prestava a mais de uma
interpretação. Sem dúvida, o outro elemento que permaneceu oculto, mas que também foi aplicado de forma clara,
foi de explorar o afastamento em relação ao “seu” partido.
Resumindo, poderíamos destacar que na campanha de Fox se expressaram três linhas de força: despojar Cárdenas
do monopólio da imagem da mudança, atacar com tudo o PRI e subordinar o PAN à sua lógica. À luz do que
aconteceu, é necessário registrar que atingiu abundantemente os seus objetivos. A campanha de Fox não foi
dirigida pela cúpula panista e sim por um grupo heterogêneo, uma espécie de “Estado Maior” que imaginou esta
campanha como uma guerra em três frentes: o enfraquecimento de Cárdenas, o ataque ao PRI e uma “saudável
distância” em relação ao PAN. Este “Estado Maior”, está prestes a dar um novo golpe: marginalizar o PAN na
formação do novo governo.
O projeto de Fox e do seu “Estado Maior” procura ser de amplo respiro e passa por cima dos partidos e dos velhos
grupos existentes. Não é, como dizem algumas análises superficiais dos que apóiam Cárdenas, um passo rumo ao
século XIX e tampouco se trata do renascimento de Hitler ou de Mussolini, ou da volta dos cristeros das regiões
altas de Jalisco. Trata-se de terminar a obra iniciada com Miguel de la Madrid e que, fundamentalmente, delineou
53
Carlos Salinas de Gortari: a integração subordinada do México no âmbito da globalização, o aniquilamento da
soberania estatal, sua transformação em instrumento de regulação entre os diversos grupos do capital financeiro,
tanto nacional como internacional, a continuidade da fragmentação dos laços comunitários. O PRI era um obstáculo
para terminar esta tarefa com maior êxito. Para isso, era indispensável criar a imagem de que a fase de “transição
para a democracia” havia terminado e que agora se entrava na “normalidade democrática”. Trata-se, nem mais
nem menos, de dar legitimidade democrática a este projeto de depredação levado adiante contra os pobres do
México. Que consigam fazer isso ou não, é outra história.

5. As campanhas do PRD e de Cárdenas foram marcadas por diversos fatores que as debilitaram. A visão
mais simples seria a de jogar a culpa nos meios de comunicação na medida em que levaram adiante uma ofensiva
generalizada contra Cárdenas a partir de dezembro de 1997. Sem dúvida, isso aconteceu, mas era impossível
esperar outra atitude, mesmo porque, no caso da Televisa, o tratamento não foi tão sujo como nos anos anteriores.
O problema fundamental é que o governo de Cárdenas na Cidade do México foi um fracasso. Não porque não teria
conseguido mudar a sofrida situação econômica na qual vive a maioria da população, pois não poderia fazer isso, e
sim porque não significou nenhuma mudança substancial no que diz respeito à relação entre governantes e
governados. A forma pela qual se governou não revelou nenhuma diferença substancial em relação às formas pelas
quais atuam os governos priistas ou panistas. As pessoas continuaram sentindo o governo como algo externo,
distante. O pior foi a Lei de Participação Cidadã que ficará como a prova mais evidente do desprezo que se tem em
relação à verdadeira participação social. Por isso, a eleição dos comitês vicinais (uma verdadeira festa para os
setores corporativos do PRD e do PRI) foi um rotundo fracasso (claro que neste tipo de eleições os cidadãos
ligados ao PAN tiveram uma votação ridícula, um ano depois arrasaram na maioria dos distritos).
Aos cidadãos foram oferecidos espetáculos gratuitos no Zócalo e nada mais. A “Cidade para Todos” se
transformou numa cidade em que todos não encontraram uma forma de participação. Perdeu-se a oportunidade de
demonstrar que se pode governar por outros meios e com outros mecanismos, não só abrindo a possibilidade das
pessoas opinarem (o que já seria muito importante) como de pegar em suas mãos o controle dos aspectos essenciais
do governo. Por isso, logo em seguida, foi impossível enfrentar as ofensivas dos meios de comunicação e os
constantes ataques de Zedillo. Assim, o povo era um simples espectador de como o governo federal regateava a
ajuda financeira ao governo da Cidade sem o menor envolvimento.
Por trás disso, estava a estratégia de “nadar como um morto” ou de que “Cárdenas é a República” e que a
República não fica falando o tempo todo. Qualquer uma das duas versões foi um veneno para a que seria a
candidatura à presidência do engenheiro. O queijo sobre a macarronada veio no momento em que Cárdenas deixou
de ser Chefe de governo para ser candidato à presidência e foi se despedir de Zedillo. A imagem foi terrível. Qual
era o sentido de ir a Los Pinos para despedir-se? O que esta imagem refletia era que se tinha governado sem
grandes problemas e que se chegava ao fim em paz e tranqüilidade. Fox também renunciou, mas não foi se despedir
de Zedillo. Insisto, tudo isso apesar de Fox ser uma das pessoas mais próximas a Zedillo do ponto de vista
ideológico.
Logo em seguida, foi a vez da posição equivocada sobre a aliança com o PAN. Não se pode terminar a campanha e
apontar que o projeto de Fox e do PAN representam um perigo para a Pátria e que com eles está em perigo a
própria existência da nação e esquecer que alguns meses antes se havia chegado a acordos com eles sobre o
programa, a declaração de princípios, os estatutos e sobre a metodologia para resolver os pontos de conflito. Se a
aliança não se concretizou foi porque não houve acordo sobre o mecanismo de seleção do candidato e nada mais. E,
finalmente, a candidatura de Cárdenas nunca chegou a representar uma alternativa a do PRI.

6. Se as coisas não acontecem porque têm que acontecer, então temos que procurar uma explicação. A mais
simples é aquela que sacrifica as vítimas. Agora se diz que é a sociedade que se direitizou e se tornou conservadora.
O problema desta visão é que ela enfrenta logo um problema de periodização. Quando começou este processo? Em
1991? 1994? 1997? 1999? Alguns dizem que ela é a herança do salinismo e a conseqüência das mudanças
estruturais do país. Mas, então, como explicar a insurreição zapatista e a resposta cidadã à mesma. Ou, como
explicar o triunfo avassalador de Cárdenas em 1997 e a derrota do PRI que perdeu a maioria parlamentar no mesmo
ano. Está parecendo que a sociedade se torna reacionária, de direita ou conservadora quando não vota em Cárdenas,
mas realiza uma “insurreição cidadã” quando vota nele. Acredito que esta questão é mais complexa.
Quando a sociedade se rebela contra o poder constituído, não o faz através de um plano pré-concebido. A parte da
sociedade que votou em Fox, pelo menos a maioria dela, não fez isso por concordar com o projeto foxista e sim por
entendê-lo como a melhor ferramenta para derrotar o PRI. Não é primeira vez que isso acontece. E tem mais. É isso
que dá sentido aos projetos partidários ou dos candidatos que, por definição, lutam pelo poder.
Na Rússia, Alemanha e Tchecoslováquia teríamos gostado que fossem outras forças políticas a servir de
instrumento para derrotar os mandarins “vermelhos” que usurparam o poder do povo trabalhador, mas não foi
assim. O fato de não ter sido assim, não deve nos levar a dizer que estes povos foram pra direita ou se tornaram
conservadores, em primeiro lugar porque eles não são culpados dos “bons” projetos não terem chances ou tendo-as,
54
como no caso do México, dilapidam-nas tão impunemente. A sociedade queria tirar o PRI, conseguiu isso e por
isso existe uma alegria generalizada. Entender este sentimento é a chave para poder estabelecer um diálogo com
estes cidadãos (pelo menos com a maioria deles) que não desejam ardentemente (e mais, sequer sabem quem
foram) Miguel Miramón, Tomás Mejia ou Juan Nepomuceno Almonte, mas tiraram o PRI para poder avançar no
terreno da democracia cidadã. Isso abre um novo campo que vai além do que os aparelhos partidários ou o próprio
Fox desejam, fechando um triste capítulo da história do país. Frustrar o projeto de Fox, que, como temos apontado,
procura garantir o que foi iniciado por de la Madrid e, sobretudo, por Salinas, depende de uma revisão dos projetos
e das práticas da esquerda mexicana (de imediato, do PRD, mas também além do PRD). A outra alternativa é a de
continuar agindo como os prejudicados do ano 2000.

7. As manifestações de massa com as quais se encerrou a campanha de Cárdenas voltaram a criar uma
auto-intoxicação. As centenas de milhares de participantes representam esta parte da sociedade mexicana que
manteve uma resistência heróica à ofensiva reestruturadora. O problema é que se trata de velhos setores da
sociedade: eletricitários, petroleiros, professores, moradores de ejidos de alguns Estados do país, etc. representam
setores onde a ideologia Cardenista tem um peso significativo. Sem dívida, a campanha não apresentava nenhuma
novidade diante do México que já mudou e que se desenvolve em importantes regiões do país. Não existe uma
ponte que una os que têm resistido às mudanças pelas quais passou o país e aqueles que vivem sob novas normas,
regras e cultura. Isso não significa que estes últimos estejam vivendo alegremente as mudanças que têm acontecido
e sim que não encontraram os caminhos da resistência. São contra o PRI, mas não se identificam com um discurso
velho e desgastado. Um dado interessante seria saber como votaram os trabalhadores das maquiladoras da fronteira
norte. Eu acredito que a maioria votou em Fox.
Um dos dados mais significativos da votação de Cárdenas é que a maioria dos eleitores é dada por cidadãos
maiores de 35 anos, dos quais a maioria é de homens. A ausência de pontes com a juventude se reflete nas
mobilizações, da mesma forma pela qual o cardenismo e o PRD são totalmente insignificantes nos novos enclaves
da exploração industrial. O problema é que se não se encontram estas pontes, os velhos setores da resistência serão
cada vez mais reduzidos, terão menor peso social e cultural, e os novos setores, vítimas do neoliberalismo, poderão
ser enganados por aventureiros tolos e demagógicos como Vicente Fox.
Desde já, alguns dos velhos militantes de esquerda chegarão à conclusão de que para renovar o discurso perredista
será necessário apegar-se à ideologia social-democrata. Infelizmente, para eles, não se encontram aí os sinais da
identidade que permite ganhar estes setores, ao mesmo tempo em que o único resultado disso seria o fato de criar as
condições para que aumente a resignação diante da inevitabilidade da fase atual do capitalismo.

8. E, sem dúvida, é impossível desenvolver um projeto de reorganização do pensamento, da prática e do


programa de resistência sem partir da existência desses velhos setores que têm se oposto à quebra dos laços de
identidade comunitária. Tratar-se-ia de iniciar um processo de realocação de todos estes elementos para poder
encontrar os novos caminhos da resistência. Isso tem a ver com o próprio Cárdenas. Estão equivocados aqueles que
já querem aposentá-lo. Nele se encarna uma parte significativa da resistência (para além de suas próprias
debilidades e das de seu partido). Sem ele e sem o que ele representa, será impossível reconstruir a resistência, pelo
menos em médio prazo.
A outra grande vertente deste processo é o zapatismo (o EZLN). Devido à sua situação concreta de estar sob o mais
impressionante cerco militar, o zapatismo não pôde desempenhar um papel mais ativo na atual conjuntura. Eles
explicaram isso com uma verdade (o tempo eleitoral não é o tempo deles), mas, sem dúvida, o quadro que se abriu
no país com o triunfo de Fox acelera os tempos.
O que está em jogo não é a sorte de um partido ou de um caudilho e sim a possibilidade de um projeto neoliberal
capitalista (esse que Salinas dizia que iria demorar 25 anos para a sua consolidação) entrar numa fase de
legitimidade (e o que a eleição de Fox significa para este modelo). Se isso não for combatido com criatividade,
acordaremos um dia diante do fato de que vivemos num país diferente e com focos de resistência ridículos. Isso
não significará que a sociedade se tornou conservadora e sim que a esquerda foi incapaz de levantar uma alternativa
de reconstrução dos laços comunitários e de identidade social.
O zapatismo soube criar estas pontes de identificação entre os velhos setores que resistem e os novos que apenas
sobrevivem à reestruturação produtiva. Mas não é um partido político que luta pelo poder, nem se dedicou à tarefa
de organizar politicamente a sociedade. Antes de qualquer coisa, o zapatismo tem sido uma força política que
procurou abrir espaços para que as pessoas se relacionem entre si e para que os movimentos não sejam isolados
pela política do poder.
Trata-se de abrir agora um novo espaço que permita aos velhos setores sociais que lutam e resistem não ficarem
cada vez mais isolados e aos que sobrevivem na reestruturação produtiva, à qual chegam porque não existe outra
possibilidade de vida, encontrarem os novos caminhos da resistência.
55
9. Até a posse de Fox, se aplicará a política de “controle dos prejuízos” para que não se caia na
instabilidade. Por isso, estes meses são necessários para dar os primeiros passos na reorganização da resistência. É
verdade que existem muitos elementos contrários, mas não é impossível. Em seguida, Fox irá se deparar com os
grandes desafios: a paz em Chiapas, a privatização do setor elétrico, a privatização da PEMEX, as listas do
FOBOPROA, os 66 milhões de pobres, o ensino gratuito, o poder do narcotráfico, os milhões de mexicanos que
sobrevivem na marginalização, o milhão e meio de trabalhadores das maquiladoras que dia após dia vêem
desrespeitados os seus direitos mais elementares e uma sociedade que votou na mudança e que não ficará
impassível vendo como lhe vem sendo receitado o velho regime.

10. O triunfo de Fox representa uma página aberta de um novo capítulo. Fico muito feliz em saber que os
mexicanos que nascerão de agora em diante e que as crianças que ainda não participam da política não vão viver
sob o domínio do PRI.
Esta página em branco pode ser escrita de diferentes maneiras, mas não é inevitável que seja escrita pelos de cima.
Estamos diante de um novo panorama. Diante desta situação, a tristeza e a saudade são profundamente
reacionárias. A pátria não está em perigo porque Fox ganhou, já estava em perigo quando o PRI governava.
A diferença é que o triunfo de Fox representa, pelo menos numa de suas partes, uma força social de mudança. Não
significa o fim da ilusória “transição para a democracia”, e muito menos é o início da “normalidade democrática”;
melhor, trata-se de um acirramento da crise do sistema político mexicano que entra numa fase de definição.
Mensagem do Município Autônomo em Rebeldia Ricardo Flores Magón

Chiapas, México, 14 de julho de 2000.

Ao povo do México
Aos povos do mundo
À imprensa nacional e internacional.

Irmãos e irmãs:
Temos novamente a necessidade de levantar nossas vozes porque a guerra continua existindo e invadindo
as comunidades indígenas em resistência deste território autônomo e rebelde. Hoje, lançamos um novo apelo para
que dirijam o olhar à Selva Lacandona, para que fiquem informados e lembrem que os poderosos, os governos
federal e estadual, continuam empenhados em acabar com nossos povos dignos e rebeldes porque não têm se
vendido e nem têm se deixado enganar e dobrar. Por isso, tentam destruir a nossa memória e a nossa herança,
porque nós não esquecemos, porque trabalhamos, nos unimos e lutamos. Lançamos um apelo a todos os que
dirigem seu olhar aos processos políticos que estão ocorrendo na nossa pátria e falamos a vocês para manter viva a
lembrança e para que vejam que, contrariando as declarações do governo, dos políticos e dos meios de
comunicação, a guerra continua e aumenta.
A militarização continua avançando tanto em Ricardo Flores Magón como em outros territórios da Selva
Lacandona. Ainda que o exército federal tenha respeitado a suspensão de suas atividades no dia 02 de julho, é
também verdade que aproveitou do momento e da propaganda do processo eleitoral para desviar as atenções e
aumentar seus efetivos, posições e quartéis militares nos dias que antecederam e que se seguiram ao processo
eleitoral; e, com isso, aumentam também a tensão, os patrulhamentos militares, as violações aos direitos humanos e
se fortalece a idéia de que os governos continuam apostando numa saída militar. Por isso, o mau governo utiliza
novamente a mentira, e, novamente, a voz dos poderosos do dinheiro e da política continua falando de diálogo e de
paz, ao mesmo tempo em que, na realidade, nossas comunidades encontram-se cada dia mais militarizadas,
assediadas, ameaçadas e paramilitarizadas; a cada dia aumentam os nossos mortos, a cada dia, como há 500 anos,
como há seis anos, pouco a pouco, constroem o reino do dinheiro com o sangue indígena, com o sangue rebelde.
Mas nós, como há 500 anos, e como há seis anos, continuaremos resistindo, continuaremos sendo indígenas,
continuaremos lutando e trabalhando para todas e todos, continuaremos semeando dignidade e esperança,
continuaremos fazendo viver os nossos mortos.
No dia 28 de junho, entraram no nosso território 66 veículos militares de diferentes características, que se
agruparam no acampamento militar de Ocotalito na área periférica localizada ao norte da reserva dos Montes
Azules (no vale de Tumbo). No dia 09 de julho, chegaram outros 40 carros na mesma localidade, todos eles
procedentes do infame quartel de Toniná nas proximidades de Ocosingo. Estes veículos e efetivos militares têm
sido espalhados por todo o território, novamente com o pretexto do reflorestamento; com certeza, estão realizando
patrulhamentos em todos os caminhos que se embrenham nas montanhas para a formação de comandos, mas não
carregam nem pás e nem árvores e sim armas e equipamentos de comunicação e identificação, e, além disso, têm a
missão de armar e treinar novos e velhos grupos paramilitares que atuam na região.
56
Hoje, 46 veículos militares e um número indeterminado de efetivos encontram-se posicionados na
comunidade de Lacandón, sobre a qual já havíamos informado quanto à possível presença de um grupo paramilitar
que ainda não realiza atividades abertas. A presença dos militares nesta comunidade confirma a sua existência e o
trabalho de contra-insurreição que o exército federal está desenvolvendo. Cerca de 2000 efetivos, dos que entraram
nestes dias, foram transferidos à comunidade Lacandona de Menzaboc. Nestes dias, temos confirmado que, de fato,
os paramilitares de Taniperla, Tulijá e Bulsijá contam com armas automáticas de alto calibre, M-16, equipamentos
de comunicação e uniformes de corte militar que foram transportados por veículos de ronda durante os dois últimos
meses; cada grupo conta com, aproximadamente, 40 destas armas.
No dia 29 de junho, um comando de cerca de 10 paramilitares da comunidade de Taniperla, que agem sob
a proteção da Segurança Pública e dos militares federais que têm invadido terras ejidais, preparou uma emboscada
no trecho de estrada de chão Taniperla-Monte Líbano, na altura do arroio Zaquiljá. Estes paramilitares usavam
uniformes pretos de corte militar e carregavam os citados fuzis de assalto M-16; a emboscada foi frustrada quando
foram surpresos por camponeses das bases de apoio enquanto montavam o seu plano. No lugar dos acontecimentos
foi encontrado um cartucho de bala calibre 223 ou 5.56 mm; os indivíduos não puderam ser identificados, pois era
noite funda e sem lua.
No dia 11 de julho, mais de mil efetivos do exército federal se posicionaram na comunidade Chamizal, no
interior da reserva dos Montes Azules. Além de ter aumentado de forma inesperada e discreta os efetivos militares
dos quartéis de Monte Líbano e Taniperla, no dia 06 de julho, chegaram ao acampamento de Chancalá 2000
efetivos da polícia judiciária e de segurança pública, que apesar de não pertencer ao nosso território, é a porta de
entrada deste rumo a Palenque, daí o exército federal controla os acessos e coordena os patrulhamentos rumo à
Tusiljá, Santo Domingo e Rio Usumacinta. Existem rumores, e nestas terras rumores de morte se tornam realidade,
de que: devem estar chegando mais de 5000 efetivos militares à comunidade de Palestina para instalar um quartel
militar de grandes dimensões, além de aumentar a força dos grupos paramilitares que já existem neste lugar.
Esta é a palavra verdadeira sobre o que acontece em nossas terras, é a condenação à morte que o mau
governo envia às nossas justas demandas. Vocês podem vir aqui para ver a situação real de nossos territórios,
podem vir de coração aberto para olhar e sentir a injustiça na qual nos fazem viver. Podem vir e comprovar que
hoje a selva está escura, não por suas árvores e noites tropicais, e sim porque hoje pintaram a selva com o verde-
oliva dos tanques, das tropas, dos quartéis militares que, com suas armas infames, com a prostituição, com o tráfico
de drogas, o alcoolismo e a perseguição transformam a selva em sombra de morte e destruição.
A guerra continua, assim como continuam a pobreza e o esquecimento que, silenciosamente, nos
assassinam dia após dia, enquanto vai sendo aprimorada a ameaça militar; mas, hoje, dizemos também que
o caminhar do nosso povo irá continuar, que seguirá
adiante.
Estas ações militares são amostras claras de
que o mau governo continua investindo recursos,
idéias e esforços na contra-insurreição e na guerra
de extermínio. Leva adiante a sua estratégia
paramilitar, continua estendendo o cerco às nossas
comunidades em rebeldia e em digna resistência;
não é por acaso que os lugares onde foram
destinadas estas novas tropas militares estão
relacionados à presença e à ação de grupos
paramilitares dotados de armas de alto calibre. As
posições de Chancalá, Chamizal e, provavelmente,
Palestina, fortalecem uma parte importante do cerco
militar que não puderam concluir devido às nossas
constantes denúncias e esforços, devido ao coração
verdadeiro de milhares e milhões de irmãos e irmãs da sociedade civil que apoiaram a nossa luta, que combatem a
injustiça a partir de posições diferentes e a exclusão e o extermínio em qualquer uma de suas formas.
Os efetivos da Polícia Judiciária, da Segurança Pública, da Policia Rodoviária Federal e da de Migração em
Chancalá, confirmam a presença da Polícia Federal Preventiva no Estado de Chiapas, pois o fato de não estarem
utilizando os uniformes deste agrupamento, não significa que não pertençam a esta força; como todos sabem, trata-
se de uma instituição e agrupamento para a violência e a repressão do povo, e sabem que a PFP incorpora os órgãos
que foram mencionados, como já foi publicado pela imprensa. Além disso, a presença e o fortalecimento de novas
e velhas posições militares ao redor da reserva dos Montes Azules e na zona Lacandona, em Chamizal, Lacandón,
Monte Líbano, Palestina e Ocotalito, confirmam a intenção de desalojar nossas comunidades que são bases de
apoio zapatistas desta zona, supostamente, para resguardar da depredação as riquezas naturais, quando, na
realidade, querem excluir-nos do seu uso em nosso benefício, querem cuidar delas para entregá-las a baixo preço
em mãos alheias, como pode ser o caso do petróleo, da madeira, dos animais, das plantas medicinais, das patentes
57
fitogenéticas que existem em nosso território, para entregá-las à Pemex e, em seguida, privatizá-la, para entregá-
las às madeireiras, aos grupos que palpitam por elas, às agências de turismo e sabe-se lá a quem mais; mas para as
nossas comunidades não sobra nada, só a expulsão de suas terras, a depredação das madeireiras, a contaminação da
indústria petrolífera e o servilismo turístico.
Irmãos e irmãs do México e do mundo, não podemos ver e sentir outra coisa em nossos corações a não ser
a condenação de um sistema neoliberal que continua, que se prepara para mudar de nomes e rostos; não podemos
sentir outra coisa porque nossos povos e comunidades indígenas, desde o seu nascimento, têm vivido resistindo à
morte por doença, pela fome, pela miséria e pela violência interna; desde o seu primeiro respiro, têm sentido a
agressão e o rechaço de seu pensamento, de sua cultura, de sua língua, de sua cor; não podemos sentir outra coisa a
não ser o rechaço do sistema que os poderosos e os grandes do poder político e econômico impõem, o rechaço dos
livres mercados financeiros e especulativos que depredam, destroem e homogeneízam o ser humano, que limitam a
liberdade, que reduzem a democracia a um processo eleitoral, que desprezam o diferente, que exploram quem tem
menos, que empobrecem a maioria da humanidade em benefício de alguns, destroem e contaminam de vez o nosso
planeta, a terra, a nossa mãe. Tampouco podemos cair na crença das mudanças, das mentiras dos poderosos, do
mau governo, porque continuamos vivendo esta miséria, este rechaço, esta guerra silenciosa. Não podemos ser
enganados pelos meios de comunicação e pela retórica política porque a cada dia vemos que em nossas terras, em
nossos territórios autônomos em rebeldia, só há mais e mais efetivos militares; sim, as mudanças chegam, mas são
de tropas federais; chegam apoios, mas são para os grupos paramilitares.
Não só vemos crescer a injustiça e a violência de um exército federal que protege os grandes interesses
econômicos e viola todos os direitos do povo; vemos que o dinheiro não é investido na educação, na saúde, na
moradia, na produção para uma vida digna, e sim em armas, em soldados, em propaganda inútil, em campanhas
políticas ou para salvar bancos. Vivemos isso com um número maior de nossos mortos; vivemos isso com mais
fome, vivemos isso com a falta de serviços básicos de saúde, educação, água potável, salário justo, oportunidade
para um verdadeiro desenvolvimento do povo e de sua cultura; vivemos isso com a falta de respeito e
oportunidades para a nossa diferença; sentimos isso porque a cada dia nos levam menos em consideração, porque
bloqueiam o nosso direito de caminharmos num desenvolvimento autônomo para tomar em nossas mãos o futuro
do nosso povo indígena.
Portanto, continuaremos resistindo, continuaremos em rebeldia, continuaremos na construção do nosso
Município, continuaremos nos livrando da morte, vencendo a pobreza, rompendo a dependência, denunciando a
guerra, preparando o caminho para alcançar o direito de todas e todos, dos nossos povos indígenas, continuaremos
buscando a autonomia, a soberania do país, o direito das mulheres, o respeito às diferenças. Continuaremos lutando
e defendendo-o diante de quem quer que seja e diante do que vier a acontecer.
Por isso, nós homens e mulheres verdadeiros, nós homens e mulheres de terra e de milho, continuaremos
caminhando nas sombras da noite para fazer nascer a rebeldia, para fazer nascer a vida digna. Todas e todos nós,
seguiremos caminhando com as luzes da lua, seguiremos caminhando em sua alegria para construir a esperança nas
sombras.
Dizemos claramente que neste Município Autônomo e rebelde continuamos comprometidos com o
caminho da paz justa e digna, com a vontade verdadeira de resolver o conflito de forma negociada atacando as
profundas e verdadeiras causas da pobreza, da exploração, da injustiça e da exclusão. Mas também estamos
dispostos a lutarmos com todos os meios e com força maior, se permanecerem a pobreza, a exploração e a
exclusão, se continuarem a mentira e a simulação, a violência, a militarização e a contra-insurgência, venham de
onde vier.
Por isso, irmãos e irmãs, mais uma vez, informamos vocês sobre esta guerra silenciosa levada adiante
contra nós, que continua e que vai crescendo. Mais uma vez, os convocamos a não esquecer a história, a não
esquecer que as causas e as razões de nossa luta não foram resolvidas e nem atendidas. Convocamos vocês a
defenderem seus direitos, os direitos de todas e todos, a exigir seu cumprimento, a exigir uma paz justa e digna para
os nossos povos indígenas, o cumprimento dos acordos de San Andrés, a exigir a desmilitarização do país.
Convocamos vocês a seguir o caminho de caminharmos juntos na construção de um mundo mais humano, no qual
caibam muitos mundos, todos os mundos, no qual todas e todos tenhamos um lugar, onde as culturas se
desenvolvam em liberdade.

Liberdade, Justiça e Democracia!


Conselho Autônomo.

Campo Minado
Luis Hernández Navarro. La Jornada, 23 de agosto de 2000.
58
Pablo Salazar Mendiguchía não terá vida fácil como governador de Chiapas. Ele se verá obrigado a
caminhar num campo minado. A maioria das prefeituras, dos membros da Assembléia Legislativa, 11 dos 12
deputados federais do Estado e os 2 senadores são do PRI. A quase totalidade dos meios de comunicação lhe é
adversa e faz tempo que a classe política local encontra-se num acelerado processo de degradação. Se isso não
bastasse, o problema central do seu Estado, o da paz, foge ao âmbito de suas competências.
A massiva presença do Exército na entidade alterou profundamente a vida das comunidades. As forças
armadas não recebem ordens de um governador. Têm seus próprios comandos, leis e disciplinas. São um poder que
responde ao Presidente da República e não aos funcionários locais. Ao contrário, em muitas localidades, a sua
presença faz com que as autoridades civis estejam subordinadas às militares.
O EZLN não retirou sua declaração de guerra ao governo federal, mantém funcionando várias dezenas de
municípios autônomos, nega-se a receber os programas governamentais e, ainda que não tenha feito uso das armas
desde janeiro de 1994, conserva-as. A sua capacidade de mobilização e a sua presença política são palpáveis em
várias regiões do Estado, e é evidente a sua influência na opinião pública nacional e internacional.
Sobre a mesa política de Pablo Salazar foi colocada uma maçã envenenada: apresentar seu triunfo como a
solução do conflito armado na entidade ignorando que as causas que levaram à rebelião ainda não foram superadas.
Apesar do senador ter-se negado a fazer de sua vitória um instrumento de propaganda para pressionar o zapatismo
a aceitar uma negociação sem que se criem as condições para isso, diversos atores políticos querem passar a ele a
conta de um conflito que não pode resolver.
O futuro governador já assimilou que o interlocutor com o EZLN é o governo federal e não o local, que
não quer ser mediador e nem moleque de recado, que não se prestará a “minimizar” a dimensão do conflito e que
pretende ser alguém que vai facilitar a paz, mas os diferentes meios de comunicação parecem não registrar suas
palavras.
O tecido social está esgarçado. Além dos conflitos de ordem religiosa, o próprio governo impulsionou a
divisão e o enfrentamento das comunidades para isolar o zapatismo. Muitas lideranças foram cooptadas e suas
organizações quebradas. Amplos setores da população estão armados. Os paramilitares desfrutam da impunidade e
os corpos policiais têm se especializado na repressão política e social.
Pablo Salazar não pertence a nenhum partido. A coalizão de oito partidos que deu cobertura legal à sua
campanha está longe de ser uma força homogênea. A maioria de seus integrantes tem sérias divergências e disputas
internas. O próximo governador não irá dispor de um instrumento político-organizativo para promover suas
iniciativas. Dependerá apenas do seu carisma, da sua capacidade de negociação e das ferramentas da administração
pública.
Mas acontece que o próximo responsável pelo Executivo estadual não deverá só governar a sua entidade e
criar as condições para resolver problemas ancestrais, como terá de reduzir a tensão do conflito, facilitar a paz,
buscar a concórdia e a conciliação, impulsionar uma transformação profunda da sociedade e da cultura
chiapanecas.
Nada disso poderá ser resolvido somente a partir do governo. Para quebrar as malhas dos interesses que
travam o desenvolvimento e a democratização em Chiapas faz-se necessária a mobilização social a partir de baixo;
é preciso isolar da administração pública os grupos de poder locais. Para negociar uma nova relação com a
Federação é indispensável fazer convergir a energia social dispersa nas mais variadas iniciativas. Se isso não
acontecer, mais cedo ou mais tarde, o futuro governador será refém deles.
Durante a sua campanha, Pablo Salazar organizou uma ampla coalizão cívico-eleitoral. Conseguiu
transformar a eleição de 20 de agosto num plebiscito para definir a permanência ou a saída do PRI do governo.
Estimulou a participação de milhares de cidadãos a favor da mudança. Mas uma parte muito pequena deste impulso
continuará existindo depois de sua posse no dia 8 de dezembro. Terá sim a força da legalidade, da credibilidade e
da legitimidade, mas não as ferramentas para dar continuidade à mobilização social.
Deverá trilhar um caminho minado. Nisso está a sua força e a sua fraqueza.

Campo S. A. de C. V.
Luis Hernández Navarro. La Jornada, 05 de setembro de 2000.

A batalha pela Presidência da República deixou no campo mexicano três ganhadores e uma multidão de
cadáveres ilustres espalhados por todos os cantos. Os grandes empresários agro-exportadores, as igrejas e a velha
nomenclatura agrária foram os grandes vencedores dos acontecimentos do dia 02 de julho. Agora, preparam-se para
consolidar a sua nova posição.
No futuro do campo mexicano não há lugar para uma mudança de fundo. A nova política para o setor
agrário será apenas um pouco mais do que já vinha acontecendo, mas, isso sim, com agressividade e eficiência. É a
hora das agroindústrias exportadoras. É o momento do assistencialismo. Dobra o número das campanhas pelo
desenvolvimento de base. O âmbito social será logo ocultado. O campo será um lugar para os empreendedores e
59
para aqueles que praticam uma agricultura viável. Haverá oportunidades para todos os que querem tornar-se
empresários. Os demais terão de conformar-se com a claridade.
As biografias dos responsáveis pela equipe de transição da sociedade rural falam por si mesmas. À frente
encontra-se Javier Usabiaga, antigo Secretário da Agricultura de Guanajauto. É o maior exportador mexicano de
alho, além de ser um bem sucedido produtor e empacotador de diferentes hortaliças. Recém-eleito deputado pelo
PAN, muito provavelmente, será o próximo Ministro da Agricultura do governo de Vicente Fox.
Logo em seguida vem Alberto Nuñez, importante empresário da agroindústria, aposentado e dedicado à
filantropia. Foi presidente da Fundação Mexicana para o Desenvolvimento Rural, a mais importante organização
privada de desenvolvimento rural do empresariado mexicano, inspirada na doutrina social do cristianismo e
patrocinada por personalidades como Lorenzo Servitje. Agora, dirige a Fundación Merced.
Francisco Mayorga, ex-Secretário da Agricultura de Jalisco, é o terceiro da lista. Dedica-se à produção de
alimentos balanceados e a engordar gado. Além do mais, é acionista minoritário da Minsa. Depois dele, vem Carlos
Cortés, de Puebla, grande empresário do café. Dono da Proagro, a maior seguradora privada da produção rural, foi
ele quem se beneficiou com a venda das garagens das empresas estatais.
Julio Scherer completa o time. Ele sobreviveu milagrosamente ao naufrágio da campanha de Labastida da
qual participou. Trabalhou no setor açucareiro como integrante do grupo Escorpión, foi o responsável pela
liquidação dos Almaceres Nacionales de Depositos e é apontado como um possível futuro responsável pelo setor
financeiro da área rural.
O projeto da futura administração não deixa dúvidas. Trata-se de concentrar os subsídios estatais naqueles
que têm mais recursos; pretende-se apoiar a camada da sociedade rural que pode ser promovida, ou seja os poucos
camponeses que têm condições de fazer a transição para uma agricultura de caráter empresarial. Enfim, não haverá
alternativas para os cerca de 4 milhões de camponeses pobres. Para eles teremos uma mescla de filantropia e de
banco do povo para a concessão de micro créditos, com o apoio e a transferência de recursos e de funções para as
Igrejas. É a hora da Opus Dei e dos legionários de Cristo. Os velhos clientes do Estado passarão a ser parte do
Estado.
Entre vaias e assobios a Ernesto Zedillo e a Romárico Arroyo, o 22º Congresso Extraordinário da
Confederação Nacional Camponesa (CNC) concordou com o renascimento da velha nomenclatura agrária. Heladio
Ramírez, o dirigente de plantão da central, e integrante do grupo Gómez Villanueva que controla a organização
desde 1967, traz em seus alforjes uma promissória de mais de 6 milhões de votos e, para cobrá-la, ameaça com a
criação de um partido político camponês.
Ele pretende permanecer à frente da Confederação “o tempo que for necessário” para concretizar a
formação de um novo organismo; com isso, afasta Beatriz Paredes da direção do movimento camponês. Exige
cargos no PRI e se oferece para frear Murat e Madrazo. Ele quer um tratamento privilegiado do próximo governo,
ao ponto da CNC não participar da reunião entre o CAP e a equipe de transição. Na medida em que há uma força
social própria no âmbito rural, Fox precisará de interlocutores reais.
Não terá vida fácil. A CNC não contará com o dinheiro e nem com as facilidades que teve durante a
administração priista. Irá pedir recursos aos governadores para recuperar a vitalidade regional que já teve um dia.
Inevitavelmente, se encolherá e radicalizará suas reivindicações. Continuará sendo parte do PRI; seu último reduto,
caso seja necessário. Mas, ironicamente, seus dirigentes são os sobreviventes do dilúvio tricolor. Os mais
preparados para sobreviver.
É o momento do campo mexicano transformar-se numa grande sociedade anônima e numa obra de
caridade. Esta é a hora na qual a nomenclatura agrária lutará com todas as forças para garantir sua sobrevivência. A
não ser, claro, que os camponeses, tão teimosos como são em continuar sendo camponeses, nos surpreendam. Mais
uma daquelas, como a de janeiro de 94, como já ocorreu em tantas outras ocasiões.

Denúncia vinda do povoado Naj-Chejeb.


San Cristobal de Las Casas
13 de setembro de 2000.

À Imprensa Nacional e Internacional


À Sociedade Civil Nacional e Internacional
Às Organizações de Direitos Humanos Nacionais e Internacionais.

Os representantes do povoado Naj-Chejeb, Município de Chilón, Chiapas, denunciaram junto à Rede de


Defensores Comunitários Pelos Direitos Humanos uma nova onda de agressões e intimidações por parte do prefeito
e do seu aliado, o Sr. Javier Gallegos Martínez. Nos últimos dias, eles têm ameaçado os moradores, bases de apoio
do EZLN, de expropriar suas terras e de mandar um grupo paramilitar para “matar todos eles”.
60
Diante destes fatos, os moradores de Naj-Chejeb pedem que o governo do Estado de Chiapas acabe com
os sobrevôos ameaçadores da Segurança Pública e com a presença desestabilizadora dos grupos paramilitares no
Município de Chilón.
Em 1992, com a permissão escrita do dono Javier Gallegos Martínez, os que trabalhavam no terreno El
Progreso tomaram posse das terras que hoje são conhecidas como o povoado Naj-Chejeb. O Sr. Gallegos Martínez
voltou atrás em relação ao acordo escrito que havia feito com seus trabalhadores e, desde então, fazendo uso da
violência, o Sr. Gallegos tem ameaçado constantemente os moradores para que eles abandonem as terras de Naj-
Chejeb.
No dia 1º de março deste ano, o Sr. Gallegos cumpriu suas ameaças ao invadir Naj-Chejeb com 20
paramilitares semi-uniformizados que carregavam AR-15, fuzis calibre 22 e revólveres. Estes 20 paramilitares
foram acompanhados por 12 membros da polícia judicial. Estes homens ameaçaram toda a população com suas
armas e detiveram dois moradores que foram espancados, interrogados, ameaçados de morte e avisados de que se
os moradores de Naj-Chejeb não deixassem imediatamente suas terras eles voltariam ao povoado para matar todos
eles.
Depois do povoado denunciar estes fatos, o Sr. Gallegos voltou a organizar uma série de ações e ameaças
contra eles. Como resultado dos esforços do Sr. Gallegos, o prefeito de Chilon, o Sr. Sebastián Encino Gutiérrez e
os moradores do povoado Tacuba, que através de um fideicomisso agora dizem ser eles os donos das terras de Naj-
Chejeb, intimaram os moradores de Naj-Chejeb a comparecerem em juízo nos dias 30 de agosto e 7 de setembro.
Conhecendo bem a posição do prefeito e desconfiando das intenções dos moradores de Tacuba, os moradores de
Naj-Chejeb não se apresentaram nas datas citadas achando que estas não passariam de mais uma oportunidade para
golpear e deter injustamente as bases de apoio de Naj-Chejeb.
No mesmo dia 7 de setembro, o Sr. Javier Gallegos Arévolo, filho do Sr. Javier Gallegos Martínez, chegou
no povoado de Naj-Chejeb dizendo que, dado que os moradores não quiseram sair das terras com as boas maneiras,
agora ia procurar expulsá-los com as más. O Sr. Gallegos Arévolo disse que ele mesmo havia investido muito
dinheiro na compra de armas e no treinamento de um grupo de homens do povoado Tacuba, e que estes mesmos
homens estariam em Naj-Chejeb nos próximos dias com o propósito de “matar”.
Os moradores de Naj-Chejeb levaram a sério as ameaças do Sr. Gallegos Arévolo, e denunciam também
que o Sr. Gallegos Martínez e seu filho têm começado a se organizar com os senhores Alfredo Vera Vera, Jorge
Vera Molina, Oscar Arévolo Gallegos e Rosemberg Arévolo Gallegos, que são donos das terras vizinhas e que em
Naj-Chejeb são tidos como os paramilitares responsáveis pelo assassinato dos companheiros Elías Gómez Sarago,
Antonio Gómez Cruz, Andrés Santiz Gómez e Adolfo Alvaro Estrada em 1997. Diante da violência e da atuação
deste grupo de paramilitares, teme-se que, para resolver o conflito agrário em Naj-Chejeb, o Sr. Gallegos Martínez
e seu filho optem por lançar mão das mesmas práticas violentas e ilegais.
Para encerrar, alguns dias depois do Sr. Gallegos Arévolo ter-se apresentado em Naj-Chejeb, em Chilón
começaram a se levantar rumores de que iria haver uma incursão da Segurança Pública. Como prova da
eventualidade desta incursão, desde a sexta-feira dia 9 deste mês, começaram a ocorrer uma série de sobrevôos
rasantes da Segurança Pública que se mantiveram constantes até a segunda-feira dia 11. A natureza destes
sobrevôos deixa claro o propósito de intimidar a população de Naj-Chejeb e de colher as informações necessárias
para uma eventual incursão.

Os moradores de Naj-Chejeb denunciam estes fatos e reivindicam:


1. Que o Governo do Estado de Chiapas acabe com os vôos rasantes da Segurança Pública.
2. Que o Ministério Público Federal investigue e desarme os grupos paramilitares acima mencionados.
3. Que as Organizações de Direitos Humanos venham para a região para serem testemunhas das quotidianas
hostilidades contra os moradores de Naj-Chejeb bem como para deter uma eventual incursão tanto dos
paramilitares como da Segurança Pública.

Atenciosamente,
A Rede de Defensores Comunitários pelos Direitos Humanos.

A saída do Exército de Chiapas é simplesmente impossível: Mota S.


Ethel Riquelme Fernandez. Excelsior, 25 de setembro de 2000.

O Exército respondeu ao presidente eleito, Vicente Fox, e à sua proposta de ordenar uma saída imediata
das tropas que se encontram em Chiapas logo que se alcance a paz, que não sairá da região independentemente dos
acordos políticos que seu governo venha concretizar.
61
“Primeiro que resolva os aspectos que provocaram o levante, as questões econômicas, religiosas,
políticas e, em seguida, pense na retirada das tropas; mas, ainda assim, não sairemos”, sentenciou o senador militar,
Ramón Mota Sánchez.
“A saída do Exército de Chiapas é simplesmente impossível. É nossa missão estar lá, como manda a
Constituição”, enfatizou.
“Manter a vigilância e zelar pela segurança interna em todo o território nacional, é isso que faremos
independentemente dos acordos”, explicou.
Coincidentemente, no interior do Ministério da Defesa Nacional, os oficiais entrevistados asseguraram que
“aparentemente, na equipe de transição existe um amplo desconhecimento quanto à verdadeira situação em
Chiapas, à importância da região no que diz respeito à segurança interna, às razões que deram origem ao levante
armado, à pobreza e, sobretudo, aos riscos em que se incorreria se o exército abandonasse a região”.
Mencionaram: “Fox disse que levará sempre em consideração a opinião do Exército antes de tomar uma
decisão que diz respeito à Chiapas; pois, nós achamos que não vamos sair da região independentemente dos
acordos políticos que seu governo venha a assinar”.
O senador Mota Sánchez, tido como um dos mais prováveis candidatos a ocupar a presidência da Comissão
de Defesa do Senado, expressou sua preocupação pelo fato de Vicente Fox ter mencionado com leviandade, em
outras ocasiões, de que resolveria a questão de Chiapas em 15 minutos e logo, ou seja, no dia 1º de dezembro, o
primeiro dia do seu mandato, ordenaria a retirada das tropas da região.
“Antes de fazer propostas ou de tomar decisões, deveria primeiro inteirar-se sobre quais são os elementos
que têm relação com o problema”.
Tanto os oficiais como o senador, asseguraram que em Chiapas existem problemas religiosos, de posse da
terra, econômicos, políticos, de comunicação, etc., que tornam impensável uma solução rápida, por decreto ou
memorando, das verdadeiras razões que em 1994 provocaram o levante do EZLN e que remontam a gerações
anteriores.
“Antes de pensar numa saída das tropas do Governo Federal, que resolva primeiro alguns destes fatores,
principalmente as questões religiosas, o aspecto econômico e a presença dos grupos paramilitares que agridem as
comunidades”.
Condenaram: “Em suas opiniões, Vicente Fox demonstra desconhecer a razão da presença militar, suas
contribuições sociais e econômicas para melhorar a região” (*); em seguida, o senador Mota Sánchez lembrou que
simplesmente uma das mais importantes estradas abertas na fronteira chiapaneca, necessária para a vigilância da
região e indispensável para a movimentação das pessoas e o desenvolvimento agropecuário da região, foi
construída pelas tropas.
O que poderia vir a ser possível é uma diminuição da presença militar, mas não em porcentagens
significativas, logo que se chegue a um acordo de paz e a políticas que resolvam os problemas que afligem a
região.
__________________________________________
(*) Nestas linhas fala-se de “contribuições sociais e econômicas” oriundas da presença do exército em Chiapas. Para que o leitor não tenha
dúvidas em relação ao tipo de contribuição que está sendo dada pelos militares, sugiro a leitura de um comunicado do EZLN de novembro de
1999: Carta 5.2: Chiapas: a guerra. A máquina do etnocídio. No que diz respeito à construção de estradas, as tropas assumiram esta
tarefa pelo fato dela ser indispensável para permitir o seu avanço selva adentro e para cortar os possíveis caminhos da guerrilha tanto no
interior da Selva como em direção à fronteira com a Guatemala.

Delineia-se como permanente o cerco às comunidades zapatistas


Hermann Bellinghausen. La Jornada, 27 de setembro de 2000.

À tarde, cerca de 20 veículos militares atravessam a comunidade em sua viagem de ida ou de volta. Para
estes tojolabales obstinados em sua resistência, esta é a dose mínima diária, de militarização. Pelo que dizem os
noticiários do rádio, por aqui só se sabe que o governo Zedillo perdeu as eleições, que tanto o país como o Estado
irão logo mudar de governantes e que estes, sim, cuidarão deles. A guerra é o único ato do governo que, dia após
dia, centenas de comunidades e municípios autônomos mais conhecem. Em La Realidad, não mudou nada.
Ao contrário. O cerco está se endurecendo e tem todas as condições para tornar-se permanente. Os quartéis
mais próximos do Exército federal, ambos a menos de 15 quilômetros desta emblemática comunidade zapatista,
têm sido completamente urbanizados. São pequenas cidades de concreto e aço no coração da Selva Lacandona, em
flagrante contraste com a paisagem natural e humana. Guadalupe Tepeyac e Rio Euseba, ainda em construção, já
têm grandes edificações de pedra e ruas asfaltadas: grandes arsenais, trincheiras, torres, dezenas de veículos de
combate, artilharia leve e pesada, heliportos, supermercados e estacionamentos.
E tem mais. Os trabalhos de construção foram amplamente acelerados depois das eleições do dia 2 de julho, como
se estivessem correndo contra o relógio. O mesmo acontece num lugar ainda mais remoto, no interior da reserva da
biosfera dos Montes Azules: Amador Hernández, a duas cidades militares daqui (Euseba e San Quintín) e a menos
62
de 50 quilômetros. Nas últimas semanas, tem sido registrado o aumento do transporte aéreo de materiais de
construção para este lugar.
Estes novos quartéis têm em comum o fato de estarem assentados ilegalmente em terras ejidais e contra a
vontade dos proprietários. O quartel que cerca a ponte sobre o rio Euseba, em ambas as margens, ocupa as terras
que La Realidad, San Cristóbal Buenos Aires e Guadalupe Los Altos tinham em comum. A comunidade de Miguel
Hidalgo, próxima ao quartel, tem visto sua vida quotidiana ser transtornada de forma irremediável. O Exército
federal deu algum dinheiro a um grupo de priistas de Guadalupe Los Altos, e isso, com certeza, não foi suficiente
para cobrir o trâmite legal (caso a intenção fosse essa). Terras agrícolas são hoje ocupadas e destruídas por milhares
de soldados que apontam suas armas contra as comunidades despojadas.
Mas a visão mais terrível continua sendo a do velho Guadalupe Tepeyac. No lugar onde os zapatistas
construíram seu primeiro Aguascalientes, hoje há muros de concreto, ruas, hangares, moradias de vários andares.
Por sua vez, o povoado originário desta terra não só continua abandonado como está destruído. Cobertas por um
matagal, em avançado estado de deterioração, as casas do povo que foi expulso já constituem a primeira zona
arqueológica maia do século XXI.
Enquanto os governos a serem empossados têm falado amplamente de uma eventual desmilitarização, as
forças armadas vão bem e não saem daqui.

Comunidade destruída em Montes Azules.

Debaixo do sobrevôo de um helicóptero branco, que parece ser o da Polícia Judicial, ao lado da casa ejidal
de La Realidad, Roberto conta as últimas novidades de Montes Azules e lembra da vez em que pousou no pátio da
escola um helicóptero “da TV Asteca e de Albores”, esclarece. “E veio só para estragar a escola”.
“Os companheiros de San Francisco (outro povoado no interior de Montes Azules) informaram que os
cafezais e as casas de San Lorenzo foram derrubadas por pessoas de Amatitlán e Rio Azul, a mando do governo”.
Esclarece que as três comunidades são priistas, e ficam “pra lá de Argentina e Pico de Oro”, ou seja, no extremo
sudeste da reserva. Teria que acrescentar que em Amatitlán encontra-se um acampamento militar com cerca de 2
mil soldados.
“Ninguém sabe quem mandou semear aí umas plantas desconhecidas e ajeitar tudo para que o povo não
volte. À beira de toda a estrada plantaram dessa planta que chamam «Nescafé», ninguém diz para que”.
“Na comunidade de Sabanilla, abaixo de Benito Juarez Miramar, chegou um engenheiro do governo
oferecendo 90 mil pesos para coletar uma planta da montanha e podê-la levar embora”, acrescenta Roberto. “São
priistas, mas não aceitaram”.
Ao falar do que acontece em La Realidad, diz que “quase todos os dias” os helicópteros “revezam” seus
sobrevôos com os aviões militares de reconhecimento.
Perguntado sobre como vê as mudanças nos governos federal e estadual, Roberto se recusa a responder. O
mesmo fazem tanto os representantes da comunidade como os do município autônomo de San Pedro Michoacán.
De resto, é isto que se obtém ao formular este tipo de perguntas em, praticamente, qualquer comunidade rebelde. É
esta a expressão em loco do “silêncio zapatista”. Assim como em Los Altos, na zona norte e em outras regiões da
Selva, diante dos questionamentos que alguém levanta, os indígenas se remetem ao assédio em que vivem, à
expropriação de suas terras, ao saque de seus recursos.

Aumenta a perseguição contra civis zapatistas.


Hermann Bellinghausen. La Jornada, 28 de setembro de 2000.

Nas últimas semanas, a perseguição da polícia e dos paramilitares (nem sempre é possível distinguir uma
da outra) contra civis zapatistas vem aumentando pelo menos nos municípios de Chenalhó, Yajalón e El Bosque,
cenários de algumas das mais graves ações paramilitares. Acusados e, freqüentemente, presos ilegalmente pelos
próprios paramilitares, nestas semanas vários tzotziles inocentes têm sido encarcerados no presídio de Cerro
Hueco. Com eles, o número de zapatistas detidos subiu a 107, 87 dos quais continuam presos, enquanto os demais
estão em liberdade condicional.
Numa confusão de termos, de até onde chega o que é legal e se os paramilitares são parte integrante das
forças da lei, durante o mês de setembro os corpos policiais e os grupos que as comunidades apontam como civis
armados têm hostilizado, perseguido e, inclusive, colocado na cadeia camponeses zapatistas.
63
No dia 19 de setembro, o conselho municipal autônomo de San Pedro Polhó denunciou que, nas
proximidades de um areal, um grupo
de refugiados (dos que vivem aos
milhares na comunidade de Polhó) que
tinha ido “buscar lenha”, foi
interceptado por cinco “cardenistas”
(prova de que ainda existe aquele
partido da ferrovia cujos militantes
participaram com os priistas do
massacre de Acteal) que “tiraram fotos
dos nossos companheiros para
entregá-las à PGR, e os ameaçaram de
morte com armas brancas”. Dois dos
agressores, identificados como Onorio
Pérez Pérez e Lorenzo Vázquez, são
acusados de ter participado da
matança de Acteal.
A ofensiva contra estes
moradores dos municípios autônomos começou no dia 2 de setembro com a prisão de Manuel Gutiérrez e Antonio
Arias, refugiados de Polhó, acusados, sem provas, da morte de dois priistas em 1997. Seus capturadores foram os
paramilitares responsáveis pelo massacre de Acteal, aqueles mesmos que não só estão em liberdade, como têm o
poder de mandar gente para Cerro Hueco. No dia seguinte, em Pantelhó, detiveram outro refugiado zapatista e o
entregaram às autoridades.
Nestes dias, a Procuradoria de Justiça do Estado anunciou que executaria todos os mandatos de prisão
existentes contra indígenas refugiados.
No dia 4 de setembro, Bartolo Gutiérrez Vázquez, presidente do conselho autônomo de Polhó, denunciou a
perseguição por parte da PGR de “companheiros bases de apoio do EZLN que realizavam o seu trabalho de repartir
os refrescos”. Procedentes de Yabteclum, onde carregaram a sua mercadoria para levá-la a Naranjatic Bajo,
passaram com o seu veículo diante do quartel militar de Mamojut (onde antes havia uma beneficiadora de café),
quando das instalações castrenses saiu a toda velocidade “um pequeno caminhão da PGR com pessoal federal que
os perseguiu por mais de um quilômetro”, sem conseguir interceptá-los.
O conselho de Polhó considerou o fato “como uma ação realizada pelo prefeito de Chenalhó, Antonio
Pérez Arias, e pelo seu grupo de paramilitares de diferentes comunidades, de comum acordo com o pessoal da
PGR”.
No dia 6, na comunidade Lázaro Cárdenas, faltou pouco para quatro simpatizantes do EZLN serem presos
e linchados. O conselho de Polhó responsabilizou os “caciques paramilitares” Adán Hernández Pérez e Manuel
Pérez Hernández, o agente municipal José Méndez Gutiérrez (identificados como participantes do massacre de
Acteal), bem como Agustín Guzmán Pérez, Fernando Ruiz Arias e Domingo Hernández Velasco.
Mais uma vez, os membros dos municípios autônomos responsabilizaram o prefeito de Chenalhó, e
declararam: “não há paz neste município. A perseguição da PGR, da Polícia Judicial do Estado, da Segurança
Pública, do Exército federal, junto a dos paramilitares, está aumentando cada vez mais”. Alguns dias depois,
proliferaram as agressões em Yabteclum, Poconichim, Takincum, Polhó e Acteal. As forças públicas federal e
estadual, “acompanhadas pelos paramilitares, continuam apontando as bases de apoio do EZLN como responsáveis
por atos em relação aos quais não têm nenhum envolvimento”.
No dia 10 de setembro, o conselho de Polhó garantiu que os responsáveis pelos crimes e pelos delitos eram
estes paramilitares que atuavam como braço da lei. “Não há tranqüilidade, paz, nem livre trânsito para realizar
nossos trabalhos nos cafezais”, e apontou que, contrariamente ao que foi anunciado pelo vereador priista Pérez
Arias, não existem condições para a volta dos refugiados. “São pretextos e mentiras para fazer-nos cair em suas
mãos”.

Acusações que desaparecem.

Enquanto se desenvolve este fenômeno de possíveis culpados protegidos pela lei, que além do mais acusam
quem é inocente, caem no vazio as primeiras hipóteses da PGR sobre o massacre de Acteal. A recente libertação de
Juan Luna Vázquez, zapatista acusado de assassinar Joaquín Vázquez Tzecum no dia 17 de dezembro de 1997, o
qual havia provocado o massacre ocorrido 5 dias depois, joga por terra a versão oficial daqueles acontecimentos.
De acordo com o advogado defensor indígena, Miguel Angel de Los Santos, com a absolvição de Juan
Luna Vázquez “a hipótese da PGR cai no vazio”. Vocês se lembram que a Procuradoria sustentou que o massacre
teve como causa um conflito intracomunitário, em torno de uma suposta disputa por um areal, que havia causado a
64
morte do priista Joaquín Vázquez e a imediata “vingança” do dia 22 de dezembro daquele ano, hoje conhecida
no mundo todo. De acordo com o advogado, “a PGR agora está sem hipóteses”. Apesar disso, continuam de pé, “já
sem fundamentos”, outras sete ordens de prisão relacionadas com o caso de Luna Vázquez. De uma maneira ou de
outra, esta circunstância deixa sem argumento legal a perseguição e a prisão de civis zapatistas.
No entanto, de acordo com a Rede de Defensores Comunitários pelos Direitos Humanos, no caso dos
refugiados de Tierra y Libertad, em Yajalón, “o governo demonstrou apoiar e proteger os paramilitares de Paz e
Justiça, sem nenhum tipo de dissimulação. Os refugiados têm tentado dialogar com o governo em três ocasiões,
sem nenhum tipo de resultado devido ao descumprimento das autoridades”. Sempre de acordo com a Rede, os
camponeses expulsos desta comunidade por civis armados de Paz e Justiça no último dia 3 de agosto, têm sido
abandonados pelas autoridades nos dias 5, 11 e 13 de setembro, e estas demonstram “seu desinteresse em resolver
o conflito enquanto crianças, anciãos e mulheres continuam sofrendo em lugares inadequados, são perseguidos e
não têm nenhuma proteção”.
Por sua vez, Paz e Justiça tem tido encontros com gente do governo. No dia 5, em Takinukum, povoado
que está na divisa com Tierra y Libertad, o grupo priista realizou uma assembléia durante a qual foram lançadas
ameaças contra os refugiados. A Rede de Defensores assinala que estas reuniões de Paz e Justiça são realizadas
contando com o apoio de pequenos caminhões da prefeitura de Yajalón, com a presença do deputado Raimundo
Ildefonso e do ex-deputado (e ativo aliado de Pablo Salazar Mendiguchía na região norte) Samuel Sánchez
Sánchez. “É improvável que a paz chegue à região enquanto estes grupos não sejam desarmados e o governo local
e estadual não se portem de acordo com o seu compromisso com todo o povo”, diz a Rede que, além do mais,
informa:
“Tem sido apresentada uma queixa contra os paramilitares perante o Ministério Público da justiça comum e
o Ministério Público da Justiça Federal que tampouco têm cumprido com seus deveres de executar a ação penal
necessária contra os grupos armados de Paz e Justiça, e isso apesar da Rede de Defensores Comunitários ter
apresentado provas gravadas em vídeo que comprovam as atividades dos paramilitares acompanhadas de
testemunhas que dizem conhecer a proveniência e o nome dos paramilitares que aparecem no vídeo”.
O padrão de impunidade dos paramilitares e de perseguição dos zapatistas se repete no caso da matança
dos policiais em Las Limas (entre El Bosque e Simojovel). Enquanto a PGR sustenta que priistas e zapatistas
planejaram e executaram o massacre (hipótese arriscada por demais), o único priista detido em função dos
acontecimentos já foi posto em liberdade, enquanto Salvador López González, zapatista de Unión Progreso,
continua preso por sua suposta (e improvável) participação no acerto de contas entre priistas ocorrido em Las
Limas, no dia 12 de junho.
Além disso, tanto os advogados como as testemunhas apresentadas pela defesa têm sido ameaçadas nos
tribunais de Tuxtla Gutiérrez pelo promotor Javier Vázquez Moctezuma de acordo também com a denúncia da
Rede de Defensores, para a qual trata-se de manobras “que garantem a impunidade dos verdadeiros responsáveis
pela emboscada”. As autoridades ameaçam prender mais civis zapatistas.

Denúncia da Voz de Cerro Hueco.

À Sociedade Civil Nacional e Internacional


Aos Governos do Mundo
Aos companheiros do FZLN e às Coordenações Zapatistas
Aos Municípios Autônomos.

Nós, integrantes da Voz de Cerro Hueco, dos presídios do Estado de Chiapas, lançamos este comunicado à
Sociedade para que conheça, mais uma vez, a nossa situação e condição de presos políticos que são esquecidos e
aprisionados na armadilha de um poder insaciável de injustiça e soberba. É o mesmo poder que impera neste
monstro chamado governo e que é implacável em manter-nos seqüestrados, fazendo-nos parecer como os mais
temíveis delinqüentes da sociedade a que pertencemos. E isso tudo graças à máquina que está a seu serviço para
fabricar e imputar-nos os mais graves delitos que constam dos nossos códigos penais, comum e federal, esquecendo
de vez da justiça social, do legado de nossa História e dos postulados da Revolução da qual participaram nossos
ancestrais.
Hoje, como todos os novos governos, prometem à nossa organização de presidiários a solução dos nossos
problemas e, com ela, a liberdade daqueles entre nós cujo delito têm sido o de ser a voz da sociedade que clama por
justiça e respeito à dignidade humana. O que temos recebido como denominador comum das promessas têm sido a
pobreza, as prisões, as torturas, os açoites e a exploração.
Estamos fartos de enganações, queremos fatos concretos. Já não se tem mais a intenção de reexaminar as
sentenças, pois este grande perito do delito não irá encontrar nenhuma arbitrariedade ou má aplicação da lei, já que
fomos detidos justamente com o objetivo de fazer com que não possamos sair da prisão. Isso significa que os
65
delitos foram bem armados e fabricados e não nos resta outra coisa a fazer a não ser suportar as grandes
injustiças dos expertos fabricantes de delitos (que são o Ministério Público da Justiça Comum, o Ministério Público
da Justiça Federal, os juizes das justiças comum e federal e, finalmente, o poder Executivo através do seu Órgão de
Justiça, o Supremo Tribunal de Justiça) com seus magistrados, no âmbito da justiça comum e federal, que não
enxergam para além dos livros a eles entregues para serem interpretados. Seria bom ver uma destas autoridades
trabalhando na roça sem receber salário algum, para que pudessem entender os males que eles fazem à classe
pobre, aos camponeses que produzem para que haja comida sobre suas mesas e para que eles possam comer com
suas famílias. Desse modo eles iriam ver a calamidade que são para esta gente cujo delito é o de ser pobre e cuja
única defesa é a força com a qual se levantam todos os dias para trabalhar num roçado que, dia após dia, produz
cada vez menos. Estamos a serviço deles, nos cobram impostos, nos põem pra trabalhar a terra e quando
protestamos contra algum prejuízo econômico sofrido pelas nossas famílias nos respondem com a prisão. De nada
serviram as lutas revolucionárias de nossos antepassados, pois continuamos sendo objeto de repressão.
Assistimos com grande alegria a uma mudança de governo, de esperança, de homogeneidade de idéias
políticas. Temos ouvido as intenções muito promissoras das várias personalidades que tocam novamente no tema
da libertação de todos nós, presos políticos, que estamos privados da nossa liberdade. Alguns destes que andam
fazendo promessas, nada fizeram quando estavam no governo. Entre eles, há ex-procuradores, ex-secretários e
grandes políticos que ao longo de toda a sua vida estiveram ligados a funções de governo e nunca falaram de nós e
a nosso favor. Hoje enchem a boca falando da nossa causa, acham que, talvez, irão conseguir assim um novo cargo
para continuar cobrando os salários aos quais estão acostumados. Mas queremos deixar bem claro a estes grandes
blasfemos que eles não têm nenhuma moral para interceder a nosso favor; os únicos que têm moral para falar de
nós e de nossa organização de presidiários, somos nós mesmos. Não queremos que alguns oportunistas pousem de
lutadores combativos; nenhum deles passará a integrar as nossas fileiras. Precisamos reconhecer que há pessoas
que merecem o nosso respeito, mas elas não falam porque não há ninguém que as escuta; são como a voz da razão
da justiça que nunca foi ouvida e cujo prêmio foi a reclusão num presídio. Por isso, nos dirigimos a este que é o
maior de todos os tribunais, para que ouça a nossa voz e sejamos definitivamente libertados deste grande seqüestro
legal do qual estamos sendo vítimas. Queremos que percebam como os presos políticos da Voz de Cerro Hueco
vivem sob seqüestro.

PRIMEIRO. A partir do momento em que se dá entrada no presídio, tudo vira negócio, pois nos cobram por
qualquer tipo de serviço. Não há comunicação direta do preso com o advogado de defesa designado pelo Estado.
Ele nunca desce para ajudar o preso a preparar o seu depoimento e nem prepara a apresentação das provas que o
beneficiam, o que faz com que o preso fique sem defesa.

SEGUNDO. Exigimos a imediata libertação de todos os nossos companheiros, presos políticos, e, ao mesmo
tempo, solicitamos que o advogado de defesa tenha autonomia real, ou seja, que ele não dependa mais do juiz que
preside o processo, pois, na realidade, ele está a serviço do juiz e não do preso.

TERCEIRO. Como muitos se mantém alheios aos problemas sociais, a sociedade acredita que os presos da célula
A Voz de Cerro Hueco são delinqüentes de alta periculosidade quando, na verdade, é isso que são os que fabricam
os delitos, como é o caso do Ministério Público, da Polícia Judicial, com a ajuda de juizes e magistrados da justiça
comum e federal, da PGJE e da PGR, com o apoio do Executivo, já que são eles a agir na impunidade fabricando
os supostos delitos pelos quais estamos sendo processados.

QUARTO. Exigimos o imediato cumprimento dos Acordos de San Andrés, reafirmando ao Executivo que os
advogados designados pelo Estado para defenderem os pobres e os indígenas não têm compromisso com eles pelo
fato de que não foram cumpridas as condições que estes acordos estabelecem, já que a legislação comum nada mais
é a não ser uma legislação antiindígena.

QUINTO. Foi-nos prometida uma revisão das sentenças mesmo sabendo que isso não representa a solução dos
nossos problemas. Toda vez que os crimes têm sido fabricados por esta grande máquina a serviço do governo, o
foram com tal perfeição que impediram que nós pudéssemos vir a ser libertados; a maior parte de nós tem claro que
está sendo culpada por delitos graves sem direito à fiança.

SEXTO. Por nossa grande decepção, não vale para nós a lei que estabelece a redução da pena como prêmio para
todo preso de boa conduta. Este direito nos tem sido negado já que, infelizmente, a muitos de nossos companheiros,
que já cumpriram mais da metade da pena e estão até além da parte estabelecida pela lei, não tem sido concedido
este benefício. Se o preso não a solicita, não lhe é concedida a redução da pena.
66
SÉTIMO. O preso vive em condições subumanas. Não temos assistência médica que nos trate como seres
humanos. Somos abandonados pelos próprios diretores, já que, pela imagem que eles têm de nós, não nos prestam
o menor cuidado médico e você pode até morrer na cela que as autoridades sequer vão te ver e nada fazem para
atender os doentes. Os médicos que nos trazem têm, praticamente, cara de bêbados. Se isso não bastasse, a
alimentação é controlada pelos diretores e só deixam passar as mercadorias que são vendidas no mercadinho do
governo que aumenta os preços destes produtos, alguns dos quais são vendidos apesar de estarem além do prazo do
prazo de validade. Queremos que, o mais rápido possível, um representante da Procuradoria Federal de Defesa do
Consumidor verifique os preços que estão sendo praticados.
Deste modo, nós, presos da célula A Voz de Cerro Hueco levamos tudo isso ao seu conhecimento e
esperamos que logo nos seja dada a tão desejada liberdade que publicamente exigimos.
Por uma liberdade com justiça e dignidade.
A Voz de Cerro Hueco.
Assinam: Amando Jiménez Pérez, Gustavo estrada Gómez, Fernando Alvarez Rodríguez. Ricardo Garcia
Hernández, Francisco Díaz Díaz.
______________________________
Esta denúncia foi divulgada pela Internet por Enlace Civil no dia 28 de setembro de 2000 e, no dia seguinte, através da Mailing List da
Frente Zapatista de Libertação Nacional.

Rollback ao estilo de Fox


Carlos Fazio. La Jornada, 2 de outubro de 2000.

Milan Kundera diz que “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”.
Vicente Fox fez dos “bons salários” uma de suas principais bandeiras de campanha. Cansados dos últimos três
mandatos ao longo dos quais apertaram os cintos, muitos mexicanos acreditaram e votaram nele. Mas o
coordenador de assuntos trabalhistas de sua equipe de transição, Carlos Abascal, que é apontado como futuro
ministro do trabalho, disse que não temos que nos enganar com expressões populistas: “O povo não pode esperar
que Vicente Fox aumente o seu salário. Ele não é um acionista das empresas e nem pode dispor da riqueza de
forma populista”.
Abascal tem razão, não devemos nos enganar. Como representante direto do grande capital, Fox
administrará o “governo dos empresários” em benefício dos donos do México. Por sua vez, ao confirmarem-se as
previsões, Abascal, ex-presidente de um sindicato patronal, a Coparmex, homem ligado à Opus Dei e ao arcebispo
primaz do México, o cardeal Norberto Rivera - de quem se diz que é assessor -, se encarregará de destruir o que
sobra das velhas conquistas dos trabalhadores. Como Fox, Abascal usa a propaganda para fazer crer ao povo que
ele, como “trabalhador e empresário”, “entende muito bem de ambas as partes”.
Fox é um populista? Um demagogo? Por que, agora, ele está convidando a população a não acreditar no
rádio, na imprensa e na televisão? Por que alimenta uma campanha histérica contra os meios de comunicação a
partir de seu gabinete de transição? Utilizou-se deles para chegar ao poder e agora quer amordaçá-los ou controlá-
los? Será que isso tem a ver com a dialética elite-massa? Alcançado o objetivo de chegar ao governo com o voto
das massas, ele quer devolvê-las ao seu estado de inércia e passividade?
Os empresários sabem muito bem que é necessário controlar a opinião pública. Têm consciência de que
uma opinião crítica representa o maior perigo para os empresários. É por isso que o ataque às liberdades individuais
é uma das determinações empresariais. Trata-se de conter e opor-se aos direitos humanos, à democracia, ao
contrato social. Contê-lo e limitá-lo. Por isso, Fox e seus rapazes, enquanto representantes do poder dos
empresários, irão aplicar o que Noam Chomsky define como a estratégia do rollback, do domínio e do voltar atrás.
Trata-se de conter toda ameaça à autoridade. Abaixo os direitos. Os únicos direitos devem ser aqueles que podem
ser conseguidos no mercado de trabalho. Os pobres e os trabalhadores devem ser submetidos à disciplina do
mercado. Para os rebeldes, a prisão. Mas não se costuma falar do outro lado da moeda: que os ricos continuarão
contando com um “Estado mínimo” muito poderoso, que irá protegê-los e financiá-los. Um Estado do bem-estar
para os ricos, que socializa os gastos e garante a privatização dos ganhos, como aconteceu com o FOBOPROA (*)
e o “resgate” das transportadoras.
Quanto maior é a liberdade presente numa sociedade, mais perigosa se torna a “besta fera” (o povo), e
maior é o cuidado que precisa ter para enjaulá-la. Na medida em que a liberdade aumenta, aumenta também a
necessidade de coagir e controlar a opinião pública para evitar que a “besta fera” faça uso desta liberdade. Desde
1982, os empresários vêm tentando minar e acabar com o contrato social no México. É isso que vai acontecer
agora. Mas com o aproximar-se das eleições Fox não podia dizer às pessoas: “Votem em mim, quero destruí-las.
Represento a tirania do capital”, porque isso não dá certo. Por isso, como fazem os demagogos, mobilizou a
população com o “mudança já”, “agora”. Temos que “tirar o PRI de Los Pinos” (**), elemento que impregnava o
sentimento popular. Fox percebeu isso e o usou como base da sua propaganda. O mesmo aconteceu com a sua
“ideologia do changarrismo”; transformar todo mexicano em empresário. Foi populista e demagogo. Mas, agora,
67
continuará fazendo as mesmas coisas dos governos priistas, apesar daquilo que o povo expressou nas urnas. É
por isso que é necessário controlar a imprensa que faz críticas. Ele não quer que o povo pense. O povo pode
apoderar-se do governo e utilizá-lo como instrumento de poder público. Por isso, Abascal continuará destruindo a
solidariedade, o apoio, a ajuda recíproca e a democratização defendida pelos sindicatos independentes. Porque tudo
isso representa um perigo para a tirania das empresas, para os interesses dos milionários da Forbes. Uma empresa
privada não se dedica aos negócios para fins humanitários. Ela realiza negócios para que aumentem seus lucros e o
valor de suas ações no mercado. O governo dos empresários tratará de potencializar esta situação. Por isso, diante
de um povo que tem arrancado do poder alguns espaços de liberdade, faz-se necessária uma nova dominação que
implique um voltar atrás.
__________________________________
(*) FOBOPROA: uma espécie de PROER organizado para salvar da falência os bancos mexicanos.
(**) Los Pinos: sede do governo federal.

“Marcos” ri da notícia de sua suposta detenção pelos zapatistas.


Diario de Yucatan, domingo dia 08 de outubro de 2000.

La Realidad, Chiapas, 7 de outubro (DPD). A notícia da suposta detenção do “Subcomandante Marcos”,


líder do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), soou como uma piada em La Realidad, bastião do
zapatismo.
As autoridades deste povoado encravado na Selva, próximo à fronteira com a Guatemala, negaram que o
guerrilheiro tenha sido “preso” por indígenas zapatistas, como havia assegurado um funcionário do Estado que, em
seguida, foi demitido do seu cargo.
“Diz o Subcomandante que ele ri diante do que saiu na imprensa”, revelou um indígena com o rosto
coberto por um passamontanhas.
A versão veiculada por Francisco Torres Vera, representante do governo na fronteira com a Guatemala,
assinalava que “Marcos” estava detido desde o dia 23 de setembro.
O zapatista que atendeu por um momento um grupo de jornalistas, comentou que no povoado não havia
ocorrido nenhuma discussão entre “Marcos” e o “comandante Tacho” de quem se dizia que o havia substituído no
comando do EZLN.
- “Não temos maiores informações e agora as autoridades não estão aqui para atendê-los” - acrescentou o
indígena.
Escondido na Selva desde 1995, quando o Exército mexicano se apossou da comunidade Guadalupe
Tepeyac, a uns 15 quilômetros de La Realidad, o “Subcomandante Marcos” fez sua última aparição neste povoado
em 1998. Naquele momento estava com “Tacho” e com o “major Moisés”.
Também um outro grupo de zapatistas que se mantém de prontidão na entrada principal da comunidade
disse que não é verdade que existem divergências na direção do EZLN.
Os jornalistas esperaram quase uma hora para conhecer a resposta dos zapatistas, mas os rebeldes não
permitiram o acesso à comunidade que, oficialmente, pertence ao município de Las Margaridas.
A vida na comunidade parece transcorrer normalmente e não foi observado “o protesto das bases
zapatistas” apontado pelo funcionário.
Como de costume, o acesso da imprensa foi limitado pelos zapatistas.
Enquanto isso, ao meio-dia, um comboio de militares atravessava a comunidade La Realidad, como faz
todos os dias.
Com o sol a pino, soprava um ventinho, e, ao longe, ouvia-se o barulho do rio.
Parece que neste povoado de camponeses, com casas de madeira e telhas de zinco, tudo continua do
mesmo jeito de sempre.
A uns quilômetros do local, o indígena Ramiro Gómez González, que disse ser um ex-integrante da milícia
do EZLN, disse que a prisão de Marcos “é muito difícil”, e ainda menos provável pelo próprio grupo rebelde,
porque “tem uma tropa muito bem armada” que “cuida muito bem dele” o dia todo.
Mesmo quando sublinhou que ele havia abandonado as fileiras da guerrilha zapatista por divergências com
o comando do EZLN, comentou que em La Realidad “tem gente que gosta muito de Marcos”.
A notícia da detenção saiu do município de Comitán e se espalhou pelo México em questão de segundos.
No posto militar de Guadalupe Tepeyac - que antes era quartel do EZLN - os militares se mostraram
surpresos e incrédulos diante desta notícia.
A afirmação do representante do governo sobre a suposta detenção de “Marcos”, que lhe custou o cargo,
também causou um alvoroço no governo do Estado.
O procurador de justiça do Estado, Eduardo Montoya Liévano, disse que só uma “cabeça doente” pode
dizer esse tipo de coisas.
68
A esquerda diante da revolução conservadora
Luis Hernández Navarro. La Jornada, 10 de outubro de 2000.

A vitória de Fox representa também o triunfo de uma revolução conservadora. O desejo de mudança e os
anseios de democracia de amplos setores da sociedade mexicana estão sendo conduzidos pela direita numa direção
bem precisa: a transformação do país numa imensa e desregulamentada sociedade anônima.
Uma após a outra, já foram anunciadas as ações do próximo governo: privatização do que ainda sobra do
setor público da economia mexicana, maior abertura ao capital externo, administração da máquina estatal por parte
dos empresários, maior ingerência da hierarquia da igreja católica nas definições da política nacional e um
retrocesso no campo da moral pública.
O futuro presidente soube fazer com que a disposição à mudança de amplos setores da sociedade mexicana
aderisse ao seu projeto. De acordo com os resultados obtidos pela pesquisa de boca de urna realizada pela empresa
Consulta-Mitofsky no dia das eleições, Fox atraiu os votos de 54% dos cidadãos que vêem a falta de democracia
como o principal problema do país e 52% daqueles que reprovam o governo de Ernesto Zedillo. Mas as mudanças
anunciadas em suas declarações e nas de muitos integrantes da equipe de transição, assim como a provável
composição do próximo gabinete, apontam para a consolidação de um novo ciclo de reformas neoliberais.
A grande promessa da campanha eleitoral, a de realizar uma transição para a democracia, não teve avanços.
A equipe de trabalho sobre a reforma do Estado foi praticamente vetada pelos partidos políticos. Os responsáveis
da área de governo do presidente eleito têm sustentado a idéia de realizar a reforma política pendente a partir do
Congresso, mas as frações parlamentares têm pouca coesão e disciplina interna, os partidos políticos são asfixiados
por suas crises e o presidente eleito, que está mais preocupado em viajar pelo mundo do que com o futuro da
democracia, tem se mantido em silêncio sobre essa questão.
Por incrível que pareça, a interlocução que a equipe de Fox procurou construir com algumas personagens
do mundo sindical priista, como Leonardo Rodríguez Alcaine e Elba Esther Gordillo, anuncia que, em curto prazo,
o próximo governo não tem muita vontade de desmantelar o corporativismo das organizações. Como tem sido feito
pelos governos panistas em vários Estados, prefere-se tratar com líderes que garantem o controle dos trabalhadores
do que apostar num sindicalismo livre e democrático.
Uma nova classe política está preste a assumir o governo; os generais e os economistas já são coisas do
passado (ainda que alguns, como Santiago Levy, tenham sido reciclados e gozem de ótima saúde nas fileiras
foxistas). É a vez dos homens de negócios: não querem mais intermediários no controle da coisa pública; eles
mesmos desejam assumir a responsabilidade de conduzir os destinos da nação. Carlos Abascal, no Ministério do
Trabalho, e Javier Usabiaga à frente da Agricultura, são só dois exemplos do que nos espera. Suas propostas já
dizem tudo: Abascal vincula a elevação dos salários ao aumento da produtividade e Usabiaga pretende dar um
sumiço na Reforma Agrária.
Nobreza obriga. Foram os grandes empresários, liderados por Alfonso Romo, que financiaram a campanha
do futuro presidente. Além do mais, Consulta-Mitofsky apontou que 58% da população que detém os maiores
níveis de renda votou em Fox, contra 26% desse setor que apoiou Francisco Labastida e 13,5% que optou por
Cuauhtémoc Cárdenas.
De acordo com El País, Fox “prometeu garantias jurídicas e privatizações bem-sucedidas”. Em poucos dias
veio à tona a verdadeira oferta do futuro governo: a privatização do setor elétrico (da qual, além do mais, se faz
depender o sucesso do crescimento econômico), permitir o investimento estrangeiro no setor petroquímico na
proporção de até 51% do capital, cobrar o IVA (*) sobre os preços dos remédios, corroer o sistema de saúde
pública, limitar a gratuidade do ensino público.
Fox ganhou as eleições do dia 2 de julho graças ao apoio de uma coalizão. São seus integrantes setores
muito influentes da hierarquia da igreja e grupos de ultradireita. Eles também triunfaram e se apressaram em fazer
sentir a sua presença em questões como a discriminalização do aborto, a tolerância religiosa, a educação leiga e a
moral pública. Para além das convicções do presidente eleito, estas forças são suas companheiras de viagem.
Surgiram das catacumbas e vieram para ficar. Amparadas pelo futuro governo, farão o possível para ampliar sua
influência na sociedade mexicana.
Aquele pessoal de esquerda que viu Fox como a luz no fim do túnel, irá descobrir que, na verdade, era o
farol do trem que vinha a toda velocidade, só que em sentido oposto. O futuro presidente lidera uma revolução
conservadora. É responsabilidade da esquerda evitar que ela se consolide.
_______________________________
(*) IVA: Imposto sobre Valor Agregado.

O Exército intensifica a criação de grupos de elite.


Jesus Aranda. La Jornada, 16 de outubro de 2000.
69
Diante da crescente participação de unidades de elite em tarefas que visam garantir a ordem interna,
defender a soberania, auxiliar a população atingida por catástrofes e combater o narcotráfico, o Exército Mexicano
intensificou a criação de grupos de oficiais, considerados como unidades de elite, “altamente especializados” e com
“total capacidade de cumprir qualquer tipo de missão”.
De acordo com as informações da Secretaria de Defesa Nacional, os oficiais das forças especiais “são
sinônimo” de elevada capacitação técnica e tática que atinge o máximo de eficiência.
Depois de passar por uma seleção rigorosa, os oficiais que integram os grupos de operações especiais e das
forças de elite do exército, devem apresentar exames médicos, psicológicos, de resistência física e de cultura
profissional. Em seguida, participam de um curso de seis meses ao longo do qual recebem vários treinamentos.
De início, participam de um curso de “reciclagem” de pára-quedismo monitorado durante quatro semanas
na Escola Militar de Pára-quedismo. Nela são capacitados a saltar de pára-quedas com cinta estática de aeronaves
em vôo.
Em seguida, os oficiais continuam o seu treinamento na Escola de Forças Especiais na qual “nivelam” seus
conhecimentos no que diz respeito à táticas e técnicas de sobrevivência, patrulhamento, navegação terrestre diurna
e noturna, conhecimento e utilização de vários armamentos, meios de comunicação, primeiros socorros e uso de
explosivos.
Ganha destaque o treinamento em operações aerotransportadas. Este curso é realizado no litoral e na região
serrana do Estado de Guerrero e visa fazer com que os oficiais conheçam a utilização dos helicópteros na realização
de operações nestas condições. Além disso, são capacitados para ações em ambiente marítimo.

Treinamento para operações de montanha, deserto, selva e anfíbias.

A capacitação para ações nas montanhas inclui a realização de saltos de pára-quedas carregando todo o
equipamento individual, “a prática das diferentes formas de chegar, atuar e sobreviver nas áreas destinadas ao
treinamento”.
Em ações no deserto, os candidatos a instrutor recebem treinamento para sobreviver e agir nas regiões
desérticas do país, sendo que o período de capacitação é realizado nas áreas mais características do nosso território.
Para o alto comando do Exército esta etapa do treinamento é “uma das mais exigentes” já que os participantes
devem demonstrar sua vontade, iniciativa, capacidade de decisão, resistência psicológica e excelente condição
física, “requisitos indispensáveis” para provar o valor do treinamento.
As operações na selva são levadas adiante no sudeste do país, no Centro de Treinamento para Operações na
Selva e Anfíbias. Aqui são desenvolvidas as capacidades individuais dos participantes, “proporcionando-lhes
experiências na direção de pequenas unidades neste tipo de terreno, assim como forjar uma moral a toda prova e
uma grande capacidade de trabalhar em equipe”.
Por sua vez, as operações anfíbias são realizadas no litoral de Quintana Roo e de Guerrero. O treinamento
inclui um curso de mergulho que complementa sua capacidade de atuar em ações na selva e anfíbias.

Aumenta a repressão em Chiapas


Hermann Bellinghausen. La Jornada, 20 de outubro de 2000.

Nestes dias, em Chiapas, a mão da repressão lança a sua perseguição em todas as direções, a ponto de fazer
coincidir no tempo uma série de acontecimentos que, apesar de não estarem relacionados entre si, participam da
criação de um clima inquietante. Diante da ineficácia dos rumores fantásticos sobre o EZLN e as comunidades em
resistência, o endurecimento dos controles militares que abundam na Selva Lacandona tem sido fortalecido com a
presença de policiais da PGR (nas imediações de Francisco Gómez) e da polícia encarregada do controle das
migrações (que, inclusive, pernoita nos quartéis) nas estradas por onde se teme que passem os estrangeiros, ainda
que munidos de vistos legais, potenciais testemunhas incômodas do que realmente ocorre na zona do conflito.
Domingo passado foi registrado um ataque de Paz e Justiça (1) em Cruz Verde, município de Tila, durante
o qual foi assassinado o camponês chol Juan López Gómez, dirigente do PRD que já havia recebido ameaças por
parte dos paramilitares. Dias depois, o INM (2) expulsou (através de decreto de saída) a italiana Alessandra
Tettamanti pelo delito de parecer “suspeita” à polícia de Ocosingo e à PGR. No entanto, o grupo de ultradireita Pro
Vida desencadeou uma operação contra três hospitais em Tuxtla Gutiérrez, Comitán e San Cristóbal de Las Casas,
tendo à sua frente a Procuradoria de Justiça do Estado e os entusiastas deputados panistas Enoch Araujo Sánchez e
Davíd Alfonzo Utrilla.
Num Estado onde o atendimento à saúde está suspenso há 15 dias devido a uma greve de seus
trabalhadores, que pedem remédios e a melhora de suas atormentadas condições de trabalho, setores importantes da
sociedade civil (acadêmicos mais ou menos progressistas, membros de diferentes ONGs que defendem os direitos
70
humanos e trabalham nas comunidades indígenas, militantes de movimentos cidadãos) estão prestes a participar
do governo de Pablo Salazar Mendiguchía, na esperança de que haja uma mudança para melhor.
De imediato, parecem levar a melhor seus companheiros de viagem (que também integram a aliança por
Chiapas, de Salazar Mendiguchía) do PAN, do Pro Vida, assim como de Paz e Justiça, cujo líder Samuel Sánchez e
vários dirigentes da SOCAMA estão mais que indicados, impunes, para ocupar o mesmo barco que está preste a
zarpar rumo à prometida “esperança” de mudança.

A invasão dos “body snatchers”

Enquanto do lado de fora do hospital de San Cristóbal os trabalhadores exibem suas faixas rubro negras
juntos aos cobertores (ou ao que sobrou deles, já que têm mais buracos do que tecido) com os quais são atendidos
os doentes, a clínica para mulheres Marie Stopes foi arrasada por 50 agentes da polícia judicial que procuravam
“corpos do delito”.
Numa saudosa operação dos “decentes” estilos do governador Ernesto P. Uruchurtu, a PGJE derrubou
paredes e cavou imensos buracos sem encontrar os fetos que Pro Vida Chiapas havia-lhe prometido. Apesar disso,
a doutora Georgina Rivas e a enfermeira Erika Arroyo foram levadas a Tuxtla Gutiérrez sob a ameaça de um
revolver e lá ficaram detidas (“na qualidade de apresentadas à justiça”) durante sete horas. Hoje, a clínica agredida
voltou a abrir as portas e anunciou que apresentará queixas contra Pro Vida.
O procurador Eduardo Montoya Liévano justificou a ação: “este é um assunto muito delicado que diz
respeito ao direito à vida, e isso, para nós, independentemente de quem tenha apresentado a denúncia, é um fato
relevante já que nos foram apresentadas evidências e testemunhas; por isso, não se trata de boatos, e, neste caso,
deixar passar muito tempo seria dar espaço para que fossem apagadas as evidências que poderiam existir”. Disse
isso sem mencionar Pro Vida e pedindo que o assunto não fosse “politizado”.
Quanto às evidências que disse ter para intervir na clínica do bairro coleto (3) de El Cerillo, o procurador
declarou: “quero ser honesto, não foi encontrada nenhuma evidência”.
Mas, como não gosta de dar o braço a torcer, ameaçou com a possibilidade de fechar o hospital Marie
Stopes, já que os sanitaristas perceberam “que a dinâmica de funcionamento do hospital não corresponde à sua
especificidade”. E como em Chiapas sobram hospitais dignos para os indígenas e os pobres, Montoya Liévano
declarou sem pestanejar: “A Secretaria de Saúde abrirá um processo administrativo, fechando (o hospital)
temporária ou definitivamente”.
Em contraste com a prontidão revelada pelas autoridades (frustradas em seu papel de espantalhos) no caso
do hospital, suas ações não têm sido contundentes no caso do assassinato do dirigente Juan López Gómez. A Rede
de Defensores Comunitários dos Direitos Humanos denunciou que, apesar do assassinato do perredista ter ocorrido
no domingo, os supostos autores materiais continuam em liberdade, mesmo após sua completa identificação.
Enquanto os grupos paramilitares e as práticas de contra-insurreição se mantêm atuantes, a ultradireita
fanática torna-se força beligerante nas cidades e ganha o respaldo das autoridades. (4) Em função disso, o PRI
local, que ainda é governo, através de uma manobra que procura uma base legal, ameaça, publicamente, sabotar a
posse de Salazar Mendiguchía no dia 8 de dezembro caso se “tire” do PRI o governo de Tabasco.
Assim caminha a transição, mas não está sozinha. Também passam por ela, a pé, os tzotziles, tzeltales e
choles (5) de Las Abejas e Las Hormigas em sua longa caminhada rumo à cidade do México. Hoje estão às portas
da capital chiapaneca, e nas próximas semanas percorrerão metade do sul do país reivindicando justiça para os
povos indígenas. Diante de todo o país, a transição chiapaneca caminha também através de seus pés e de suas vozes
que a submetem a prova.
___________________________________
(1) Paz e Justiça: grupo paramilitar que age na região norte do Estado de Chiapas.
(2) INM: Instituto Nacional de Migração.
(3) Coleto: termo usado para identificar os brancos e os mestiços de San Cristóbal de Las Casas.
(4) Na última semana de outubro, os jornais mexicanos noticiavam a prisão de 11 paramilitares em Chiapas. É bom, mas é realmente muito
pouco diante da situação de impunidade na qual agem estes grupos. O futuro dirá se isso é pra valer.
(5) Tzotziles, Tzeltales, choles: nomes de etnias indígenas presentes no Estado de Chiapas.

A resistência
Luis Javier Garrido. La jornada 27 de outubro de 2000.

O processo político vivenciado após o dia 2 de julho mostra que a mudança deve ser impulsionada pela
sociedade e que a tarefa de desmantelar as antigas estruturas da corrupção e do poder não será obra do novo
governo e nem dos partidos ou dos grupos de interesse que já estão procurando sua própria realocação.
1. Nas eleições presidenciais de 2000, os mexicanos conseguiram acabar com um sistema de Partido de
Estado que durava há 72 anos, mas as estruturas do poder autoritário, o narcosistema do poder e os interesses por
71
ele criados continuam presentes; hoje mais do que nunca, está claro que é responsabilidade de todos os
mexicanos impulsionar esta mudança à qual a sociedade política opõe resistência.
2. O elemento central para analisar a situação política atual é que não existe uma força política popular
capaz de enfrentar as possíveis políticas de direita do novo governo e que a configuração de uma aliança de fato,
PRI-PRD, que já se expressa em diferentes níveis, pode conseguir turvar ainda mais a vida política, e não constituir
uma alternativa, sobretudo em função da rápida involução pela qual passou o PRD. De partido que se propunha a
fazer “a revolução democrática”, acabou dando sustentação à tese panista da “transição pactuada” (e gradual) rumo
a outro regime político e, o que é mais grave, de partido com propostas populares acabou transformando-se numa
força que serve aos interesses do neoliberalismo.
3. Os perredistas não conseguiram disfarçar estas mancadas com seu discurso de aparência progressista,
porque os fatos acabaram evidenciando sua estratégia de não querer afetar o projeto neoliberal. Durante a
campanha de 2000, poucos analistas políticos se surpreenderam com a maneira vertiginosa com a qual culminava
este processo de direitização do partido, iniciado quase logo após sua fundação e à margem de suas bases,
relegadas, como no PRI, a referendarem tudo.
4. A contradição que já estava na origem do partido consistia nele ter pretendido fazer “uma revolução
democrática”, mas em não ter conseguido ser portador de uma verdadeira proposta democrática e sequer de poder
estabelecer mecanismos democráticos em seu interior, o que gerou vários escândalos. No que diz respeito à sua
constituição interna, a situação foi de extrema gravidade, pois procurou crescer de forma desmedida, mas sem
garantir os direitos dos mais de 2 milhões de filiados que afirmava ter e, de conseqüência, não pôde estabelecer
processos confiáveis de tomada de decisão e nem conseguiu preservar os direitos de suas correntes internas como
expressão de pluralidade, de tal forma que em pouco tempo a burocracia suplantou o partido.
5. A lógica política do perredismo foi marcada por um critério absolutista, inaceitável numa sociedade
democrática. O PRD assumiu a tarefa de controlar, subordinar e domesticar os movimentos sociais com a pretensão
de que era e é “a esquerda”, ainda que não tivesse propostas muito diferentes das do PRI ou do PAN, e quase
desqualificou toda expressão política situada à sua esquerda ao caracterizar os dirigentes destes movimentos como
ultras, “provocadores” e financiados pelo Bucareli.
6. A lógica dos perredistas foi a mesma dos panistas: toda vez que alcançavam uma vitória local, diziam
que a democracia havia chegado àquela entidade porque já não estaria sendo governada pelos priistas, e sim por
eles. Ninguém estranhou que, a partir de 1997, os funcionários perredistas da capital afirmassem que “a transição
democrática” já havia se realizado na capital, aonde, apesar de já ter passado quase três anos de maioria absoluta na
Assembléia Legislativa, não impulsionaram reformas políticas de caráter democrático. Diziam que “a democracia”
havia chegado ao Distrito federal mesmo que não existissem mecanismos de participação cidadã, não tivessem sido
restabelecidos os municípios e a entidade não fosse completamente autônoma como os demais Estados da
República.
7. O problema fundamental do PRD tem sido a ausência de uma ética partidária, pois no afã pragmático de
conquistar o poder local e nacional, os quadros dirigentes não só abandonaram os princípios, como, dentro e fora
do partido, reproduziram muitas práticas e vícios do priismo: da manipulação das bases até a compra de votos, e,
inclusive, não faltaram aqueles que se corromperam abertamente. O financiamento público dos partidos, adotado
pelas reformas eleitorais de 1996, não fez com que os partidos políticos desenvolvessem atividades de formação
política dos seus membros ou dos cidadãos, mas fez com que se degradasse sua dinâmica interna e se ampliasse
ainda mais a brecha entre as bases e o grupo dirigente, e o PRD não foi uma exceção a este processo.
8. O processo eleitoral de 2000 teve como saldo uma perda de credibilidade do PRD e de boa parte de seus
dirigentes intermediários e de cúpula, e o caso do incêndio na discoteca Lobohombo (no dia 20 de outubro)
confirma a percepção de amplos setores sociais. A casa noturna que ficou destruída, e cujos proprietários parecem
ter ligações com os interesses do narcotráfico, funcionava sem respeitar normas mínimas de segurança, em horário
irregular e sem proteção alguma, como se pretendeu fazer crer; e, sem dúvida, as autoridades do governo da capital
não tomaram medidas para fechá-la em função de um evidente tráfego de influências no melhor estilo priista:
oferecer proteção em troca de um respaldo político-eleitoral.
9. Os acordos de cúpula já não podem impedir que as mudanças venham de baixo, e que hoje a disputa pelo
país se dê também entre as comunidades; tomara que o mesmo aconteça tanto nas aldeias indígenas como nas
oficinas do Excélsior ou entre as bases da CTM, onde um setor já anunciou o fim de sua “aliança histórica” com o
PRI (26 de outubro).
10. Os acertos entre os grupos dominantes já não estão em sintonia com os interesses da sociedade e tanto o
novo governo como as forças políticas tradicionais devem entender isso.

Zedillo “legaliza” a ocupação militar


La Jornada 29 de outubro de 2000.
72
Zedillo insiste em promover a guerra em Chiapas até os últimos dias do seu mandato. Ele que ainda é o
presidente do México decidiu entregar ao Exército as terras do ejido Amador Hernández, município de Ocosingo,
para a construção de um quartel.
Esta decisão é uma autêntica declaração de guerra às comunidades zapatistas que há mais de um ano
mantém um plantão de protesto contra a ocupação militar deste lugar.
Sendo assim, o governo de Vicente Fox irá se deparar com fatos consumados que contradizem suas
declarações em apoio ao diálogo de paz em Chiapas, nas quais manifestou estar disposto a retirar o Exército das
comunidades indígenas. Isso acontece num momento em que se fala do general Mario Renán Castillo (responsável
pela estratégia de contra-insurreição neste Estado entre 1994 e 1997) como futuro ministro da Defesa Nacional.
Será que é mera coincidência?
Para Zedillo, a guerra contra os povos indígenas é “motivo de utilidade pública”; assim está ratificado no
seu decreto publicado no dia 18 de outubro passado no Diário Oficial da Federação, com o qual expropria três
hectares e meio das terras dos tzeltales de Amador Hernández para que a SEDENA leve adiante “a construção de
instalações militares para o treinamento dos destacamentos do Exército e da Força Aérea Mexicanos e a realização
de atividades castrenses”.
Esta decisão presidencial desmente as próprias declarações de Zedillo e do secretário de Governo que
rechaçaram o tempo todo as denúncias dos indígenas que mencionavam a construção de um quartel em parte de
suas terras destinadas ao cultivo.
Esta história começou no dia 8 de agosto de 1999 quando 500 soldados chegaram por ar e por terra ao ejido
Amador Hernández, localizado na entrada da reserva da biosfera dos Montes Azules, com o pretexto de “proteger”
as máquinas e os trabalhadores de uma empresa que estava construindo uma estrada de 19 quilômetros entre este
lugar e San Quintín (sede do maior quartel militar da selva chiapaneca).
Desde o dia 25 de agosto do ano passado, centenas de indígenas zapatistas mantêm um plantão para
protestar contra a invasão militar. A construção da estrada foi suspensa, mas os soldados permanecem em suas
terras.
As justificativas oficiais ficaram para trás e ficou evidente o verdadeiro propósito da ocupação militar de
Amador Hernández: não foi para construir uma estrada, não foi para combater o narcotráfico e nem para cuidar da
reserva da biosfera ou para evitar a violência. O Exército ocupou estas terras para realizar tarefas de contra-
insurreição como parte da guerra que o governo atual leva adiante contra os povos indígenas rebeldes.
O decreto de Zedillo “legaliza” a presença do Exército neste lugar (num momento em que estava em curso
um processo judicial contra a ocupação ilegal das terras indígenas por parte dos militares) e viola a Constituição
mexicana, a Lei Agrária, os direitos indígenas e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Zedillo não se importa com nada disso, pois está cego de raiva do EZLN, esta “pedra no sapato” do seu
governo.
O decreto de Zedillo é uma provocação premeditada. E Fox, o que vai dizer desta decisão? Qual será a
postura de don Luis H. Alvarez, encarregado por Fox de promover a paz no Estado? O que dirá a sociedade que no
dia 2 de julho votou esperando numa mudança que hoje enfrenta as decisões de um regime que apostou na guerra
em Chiapas?

Denúncia dos fatos ocorridos no povoado San Manuel


Município Autônomo de Francisco Gómez, Chiapas, México.
Território Rebelde Zapatista.

09 de novembro do ano 2000.

Aos irmãos da sociedade civil nacional e internacional


À imprensa local, nacional e internacional
À opinião pública.

Através desta, denunciamos os fatos ocorridos hoje, 9 de novembro do ano 2000, no povoado San Manuel
do Município Autônomo de Francisco Gómez, Chiapas.
Um grupo de paramilitares de San Manuel voltaram novamente a cortar os arames da cerca levantada ao
redor dos terrenos cultivados pelas bases de apoio zapatistas. As bases de apoio têm semeado suas roças com
milho, feijão, etc.
Os grupos paramilitares cortaram os arames, tiraram as madeiras e, em seguida, fizeram entrar seus bois e
seus cavalos no milharal acabando com tudo.
Este grupo de paramilitares é liderado pelas pessoas que seguem: Baltazar Méndez Lópes, Evaristo
Méndez Lópes, Moices Hernández Flores, Román Hernández Lópes. São eles que encabeçam este grupo
73
paramilitar (MIRA) apoiado pelo prefeito de Ocosingo, e no dia 18 de outubro, com o Ministério Público,
colocaram a polícia judicial para perseguir nossos companheiros das bases de apoio que foram perseguidos
enquanto trabalhavam, assim como aconteceu às 11.00 hs. da manhã.
Este grupo de paramilitares é integrado por pessoas que também são de um grupo paramilitar que vive no
ejido Suchila. As pessoas que lideram este grupo são: Mario Jiménez Flores, Porfídio Jiménez Flores, vulgo tenente
Adolfo, Rocenber Cruz Hernández. Estas são apenas as principais cabeças do grupo de Suchila e os que pertencem
ao seu grupo são: José Hernández Lópes, Francisco Mendes Lópes, Nicolas Mendes Hernandes, Marcelo Sanchez
López, Domingo Sánches Lópes, Manuel Mendes Sánchez, Ramiro Hernández López, Ernesto Mendes Lópes,
Ignacio Jimenes Hernandes, Mariano Lópes Gómes e Eliodoro Morales Gómes, Javier Morales Hernández. Estas
pessoas integram o grupo paramilitar MIRA. Elas estão armadas com revólveres, fuzis e escopetas.
Porfidio Jimenes Flores e Rocenber Cruz Hernández, são os que participaram da entrega das armas ao
governo no ano de 1999. Estas pessoas estão recebendo dinheiro do governo para matar os dirigentes zapatistas.
Rocenber está trabalhando na inteligência militar, e eles é que são os responsáveis por todos os problemas que
ocorrem neste lugar.
Esclarecemos o seguinte: nós, como organização zapatista, vamos continuar defendendo a nossa terra,
aconteça o que acontecer, porque estas terras foram recuperadas em 1994 e vamos mandar mais gente para
defendê-las. Queremos convidar as pessoas que trabalham nos meios de comunicação para que venham ver os
estragos.
Atenciosamente,

Autoridades Autônomas de Francisco Gómez, Chiapas, México.


Santiago López Cruz.
Fox e Chiapas
Luis Hernández Navarro. La Jornada, 7 de novembro de 2000.

Vicente Fox anunciou que, logo após assumir a Presidência da República, enviará ao Congresso da União a
proposta de reformas constitucionais sobre direitos e cultura indígena elaborada pela COCOPA. Dessa forma, irá
cumprir com um compromisso assumido durante a sua campanha eleitoral.
Será que esta medida vai ajudar a criar as condições favoráveis para restabelecer o diálogo com o EZLN?
Ela será parte de um plano mais amplo para reduzir a tensão no Estado ou um recurso publicitário da nova
administração?
O fato do presidente eleito apresentar o projeto de lei “a seco”, ou seja, sem uma negociação com os
partidos políticos fará com que seja mais difícil que a proposta da COCOPA venha a ser aprovada por esta
legislatura. Com certeza, já foi o tempo em que o Congresso acatava cegamente uma orientação do Executivo, mas
isso não vem ao caso.
Nas negociações de San Andrés, o governo federal assumiu a representação do Estado mexicano e não só
de um de seus poderes; as conclusões do documento comprometem todos eles. A proposta da COCOPA - além de
reunir o que foi acordado em San Andrés - foi elaborada pelos representantes dos partidos com representação
parlamentar. Seus integrantes agiram em nome do interesse geral da nação e não de posições particulares de suas
instâncias políticas. Fox irá respeitar estes princípios ou vai somente repassar “o pacote” ao Congresso?
O que o futuro chefe do executivo pensa sobre os Acordos de San Andrés continua sendo um mistério. Ele
vai apresentar a proposta da COCOPA para improvisar uma saída ou porque acha que é justa? Até o momento, ele
não solicitou ao seu partido - o PAN - e ao seu aliado - o PVEM - que retirem suas propostas de reforma
constitucional. Estas se opõem aos aspectos fundamentais do que foi acordado no dia 16 de fevereiro de 1996 entre
o governo federal e os zapatistas. Ele deveria fazer isso, se realmente quer que o documento da COCOPA seja
aprovado.
A mais de quatro meses do seu triunfo eleitoral, Fox não tem se pronunciado sobre o que pensa em relação
ao EZLN ou ao conflito em Chiapas. Tem dito que quer reunir-se com os rebeldes, mas não tem apontado para que.
Nomeou Luis H. Alvarez, ex-integrante da COCOPA, para cuidar do problema, mas não tem apresentado uma
proposta de solução.
Qualquer processo de paz começa pelo reconhecimento do outro. Tanto Manuel Camacho, o primeiro
enviado para negociar a paz, como o presidente Zedillo durante a cerimônia da sua posse, quase 6 anos atrás,
disseram como viam os zapatistas: “uma força política em construção” e “mexicanos inconformados” são alguns
dos termos que utilizaram quando do reconhecimento do EZLN na lei do dia 11 de março de 1995. O futuro
presidente ainda não deu um passo tão elementar como esse.
Além do mais, permanece a incógnita de quais serão as medidas que ele irá tomar para resolver o conflito.
O plano que ele anuncia hoje (7 de novembro) neste jornal está recheado de generalidades e de falta de definições
74
precisas nas questões fundamentais. O desarmamento dos jagunços é plausível, mas insuficientes; o problema
não são eles - que, evidentemente, existem - e sim os grupos paramilitares que ele sequer menciona.
Sua pretensão de desenvolver o Estado não se resolve com empresas maquiladoras e sim atingindo os
grupos de poder do Estado e alterando os termos da relação com a Federação. Ele está disposto a fazer isso?
Como pretende resolver as causas que deram origem ao conflito? O que acontecerá com o Exército em
Chiapas? O que será de todas as mesas de trabalho de San Andrés que ficaram pendentes?
Como irá encarar as reformas reivindicadas pelos zapatistas e os seus aliados e que vão além da questão
indígena?
Qual é o seu ponto de vista sobre a reinserção dos rebeldes? Qual a opinião de Fox em relação à declaração
de guerra do EZLN?
O que pretende fazer com as bases de apoio zapatistas que estão presas? Que tipo de mediação ele supõe
que se faz necessária? O futuro presidente não tem respondido a nenhuma destas questões.
Até agora, a equipe de transição tem abordado a insurreição chiapaneca com pouca prudência e falta de
profissionalismo. Seus integrantes vêm se contradizendo sobre coisas tão elementares como se existem ou não
contatos com os zapatistas e o que fazer quanto à possível retirada do Exército. Durante meses dedicaram seus
esforços a instaurar uma relação com os rebeldes, no lugar de criar as condições para fazê-lo. Construíram uma
interlocução própria no interior do movimento indígena e à margem dos setores que têm sido protagonistas das
lutas mais importantes que têm acontecido no país.
Se a apresentação do projeto da COCOPA permanecer como um fato isolado, desvinculado de uma política
de reconhecimento do zapatismo e da criação de condições reais para o restabelecimento do diálogo, passará à
história como uma medida de marketing do novo governo e não como um autêntico gesto de paz destinado a criar
condições de credibilidade e confiança. Terá sido desperdiçada assim uma oportunidade única.

As bases militares da CINE chegaram para ficar.


José Gil Olmos. La Jornada, 13 de novembro de 2000.

A nova base militar de Amador Hernández, comunidade que é um marco na história da guerrilha em
Chiapas, integra a estratégia de combate aos grupos armados que, há quatro anos, o Exército mexicano vem
desenvolvendo em todo o país. Está sendo construída aí a Sétima Companhia de Infantaria Não Enquadrada
(CINE) de Chiapas, cuja característica principal é a de se deslocar rapidamente em ações contra os guerrilheiros.
De acordo com uma fonte extra-oficial, a unidade militar se instalará de forma definitiva, apesar dos protestos dos
indígenas e das organizações de direitos humanos.
A CINE que está sendo construída no ejido tzeltal de Amador Hernández - que, paradoxalmente, é o nome
de um líder camponês do PRI ainda vivo e que mora no Estado de Morelos - é talvez uma das mais importantes
bases militares, porque está sendo levantada nas terras de uma das primeiras comunidades de base do EZLN e,
também, é aonde em 1977 começaram a trabalhar os primeiros guerrilheiros de União do Povo, antes das Forças de
Libertação Nacional, predecessoras dos zapatistas.
A CINE é uma unidade militar nos moldes de uma corporação, integrada por, aproximadamente, 300
elementos e comandada por um tenente-coronel; tem autonomia e pode deslocar-se rapidamente. De acordo com as
fontes castrenses consultadas, devido à sua especificidade de ação, o agrupamento conta com serviços próprios, ou
seja, com um pelotão de saúde e de administração, que, além dos veículos, garante a comida do pessoal.
Em Chiapas, estas unidades começaram a entrar em operação a partir de 1996 e 1997, como parte dos
requerimentos que a Secretaria de Defesa Nacional (SEDENA) teve que fazer diante da necessidade de espalhar
suas tropas em vários Estados do país - Guerrero, Oaxaca, Veracruz e na região da Huasteca - após o aparecimento
de outros grupos guerrilheiros. Extra-oficialmente, houve então um remanejamento, e, em Chiapas, foram deixados
somente 10 mil efetivos - de um total de mais de 50 mil - e para não deixar desprotegidas algumas áreas das zonas
de conflito foram criadas as CINE, implantadas também em vários outros Estados do país.
Atualmente, em território chiapaneco, têm sido levantadas seis CINE: a primeira no município de Salto de
Agua, na região norte; outra nos arredores da cabeceira municipal de Altamirano; a terceira em Maravilha
Tenejapa, município de Las Margaritas; outra no povoado de Chiapas Nuevo, município de Cintalapa, região
centro; outra ainda foi construída em Boca Lacantúm, região de Marquês de Comillas; a sexta foi instalada em
Nuevo Orizaba, município (de recente criação) de Montecristo de Guerrero. A sétima base militar CINE está sendo
construída nas terras da comunidade de Amador Hernández, município de Ocosingo, nos 8 hectares que foram
expropriados em prol da SEDENA através do decreto assinado pelo presidente Ernesto Zedillo em 18 de outubro
passado.
A presença militar na região vem aumentando desde que há um ano as bases de apoio zapatistas se
opuseram à construção da estrada San Quintín-Amador Hernández, de 32 quilômetros em linha reta. Desde então,
75
registram-se situações de tensão entre a população e os soldados do Exército mexicano que pertencem à 39ª
Zona Militar, com sede em Ocosingo, sob o comando do general de brigada Fermín Rivas García.
Em agosto do ano passado, os moradores da comunidade tzeltal e o Centro de Direitos Humanos Frei
Bartolomeu de Las Casas apresentaram uma queixa perante a Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH), e
entraram com uma liminar junto ao primeiro juiz distrital em Tuxtla Gutierrez. Mesmo assim, foi decretada a
expropriação do terreno e a SEDENA começou a construção.
Em recente comunicado, os moradores de Amador Hernández manifestaram que o objetivo da base militar
é de limitar a presença política e social do EZLN e de dar continuidade ao seu trabalho de contra-insurreição e de
intimidação psicológica contra aqueles que há mais de seis anos se rebelaram contra o governo.
Ao participar do Fórum sobre Desmilitarização, povos indígenas, desenvolvimento e biodiversidade,
reivindicaram ao próximo presidente, Vicente Fox, a anulação do decreto presidencial ao ponderar que, se for
construída a unidade, dificilmente os soldados sairão da região.

Paramilitares: braço direito do poder econômico.


Carlos Fazio. La Jornada, 13 de novembro de 2000.

O paramilitarismo atua em função da atual etapa de expansão do capital. Dito de outro modo: a guerra suja
do Exército mexicano no sudeste, através dos grupos paramilitares, tem relações com as reformas ao artigo 27 da
Constituição que estão dando origem a um acelerado processo de transformação violenta da estrutura agrária, com
feições muito parecidas ao que está acontecendo na Colômbia.
Neste sentido, a componente paramilitar se insere nas tendências estatais de privatização do uso da força
como um elemento chave na estruturação de uma nova ordem local e/ou regional centrada em grupos que, através
de exércitos privados de alta capacitação logística e militar, usam o seu poder econômico e o terror para manter e
reproduzir os seus interesses.
Desta forma, o paramilitarismo - numa vertente radicalmente oposta a que é reproduzida pelo discurso
oficial para fins de propaganda, e que “justifica” a irrupção de “grupos civis armados” como uma resposta à
guerrilha zapatista ou como a simples expressão de antigas ou novas disputas interétnicas e/ou religiosas -
representa um fator decisivo nos acordos locais que definem os novos equilíbrios, e cujo poder se expressa
politicamente através de propostas regionais ou através de um controle geopolítico que afeta a frágil
institucionalidade e a pobre legitimidade estatal presente no país.
É isso que, a seu momento (julho de 1997) deu sentido ao apoio oficial num montante de 4 milhões e 600
mil Pesos, concedido pela Secretaria de Desenvolvimento Social ao grupo paramilitar Paz e Justiça, acobertado
pelo disfarce de um projeto de “reativação agrícola e pecuária” nos municípios de Tumbalá, Tila, Sabanilla, Salto
de Agua e Yajalón; convênio que contou com a assinatura do general Mario Renán Castillo, como testemunha de
honra.
Nesta outra vertente, o paramilitarismo, como irrupção de grupos mercenários de justiça privada dirigidos
por oficiais do Exército, empresários e latifundiários, expressa o emergir de poderes regionais que impulsionam
uma contra-reforma agrária e é parte integrante de uma estratégia nacional de contra-insurreição que consiste em
tornar invisível o conflito social através da multiplicação dos atores armados, enfrentando de igual para igual a
guerrilha tradicional (que luta por um projeto alternativo de nação) com uma tropa de choque da oligarquia, cuja
arma fundamental é o uso do terror contra a população civil e que mata por terra, dinheiro e poder a nível regional.
Graças à sua eficácia, nos últimos anos, a estratégia da “desordem” - através da expansão do
paramilitarismo - se instalou no dia-a-dia dos chiapanecos e começou a ser considerada como algo normal. Por sua
vez, e em sintonia com os novos ares neoliberais, o normal foi socializado pelos meios de comunicação como
“natural”. Dessa forma, a política do terror, transformada em algo que faz parte do quotidiano, vai criando não só o
medo como meio de controle, mas também a indiferença, através da institucionalização e da permanência
quotidiana da barbárie e da naturalização do crime e da impunidade.
Cabe sublinhar que, por um caminho paralelo ao da militarização e paramilitarização da vida nacional, ao
aplicar uma política de ajuste estrutural monetarista, radical e de choque, o governo Zedillo deixou o campo abeto à
uma ingerência maior dos Estados Unidos (sobretudo nas áreas militar e econômica) e das companhias
transnacionais.
Neste sentido, existem indícios suficientes que permitem identificar a funcionalidade da estratégia
paramilitar no processo de inserção da economia chiapaneca na mundialização neoliberal.
Além da clara complementaridade em relação às políticas de ajuste estrutural - na transformação do velho
Estado assistencialista num novo Estado forte a serviço do capital financeiro local e transnacional -, o
paramilitarismo, com suas violentas técnicas de pacificação das zonas conquistadas e a reativação da produção
agrícola e industrial através do uso da tecnologia (através de programas como o que foi financiado pela SEDESO),
integra o novo projeto sócio-cultural de corte contra-insurrecional, centrado numa “nova ordem social” implantada
76
e controlada por grupos de justiça privada que garantam o desenvolvimento “normal” de uma forma de
produção capitalista sem a “intervenção” de nenhum agente regulador externo e nem sequer, obviamente, do
Estado.
Assim, e como ocorre de forma mais desenvolvida na Colômbia, nas áreas que estão sob total controle dos
paramilitares, existe um novo projeto embrionário de produção capitalista, baseado na fórmula pacificação-tratores-
reconstrução produtiva, nos moldes de uma organização social, de justiça e de entretenimento cultural apoiada
numa forte estrutura de terror organizado. Uma nova ordem de dissuasão, produzida pela barbárie e a ausência de
razão, construída sobre o terror coletivo como cultura do esquecimento e/ou do silêncio.
Mas, dizíamos mais acima que a biodiversidade tornou-se o recurso potencial estratégico mais importante
não só da Selva Lacandona e do país, e sim de toda a revolução técnica do século XXI. O novo padrão de
tecnologia de ponta está centrado na engenharia genética e a selva de Chiapas encerra um tesouro genético, além de
água e de minerais estratégicos.
Daí que o verdadeiro objetivo do capital transnacional (Savia, Monsanto, Diversa) é de privatizar a
totalidade da biosfera dos Montes Azules e de fazer com que seja possível, inclusive, assumir a propriedade
territorial de toda a Selva Lacandona (como também da Amazônia, através do Plan Colombia do Pentágono, na
América Latina).
Por isso, faz-se necessário tirar as população que moram aí; é este o sentido do êxodo forçado provocado
pelo Exército e pelos paramilitares em Chiapas. O que dá às Forças Armadas mexicanas as características de um
exército de ocupação do seu próprio país, cuja conquista mais recente é a expropriação das terras, por decreto
presidencial, do ejido Amador Hernández, uma espécie de “reforma agrária” militar.
Em fim, nos albores do século XXI estamos assistindo à estratégia do caos e da decomposição - imposta de
forma compulsiva a sangue e fogo - como instrumento da oligarquia e dos interesses transnacionais para levar
Chiapas e outras regiões do México ao melhor dos mundos possíveis de toda a história: o mundo regido pela nova
ordem do mercado total neoliberal.

Chiapas 2000: a estratégia nas sombras.


Gilberto López Y Rivas. La Jornada, 22 de novembro de 2000.

Sem dúvida, um dos conflitos mais candentes do próximo governo federal chefiado por Vicente Fox será o
que se vive em Chiapas. A maneira pela qual Fox e a sua equipe decidirão enfrentá-lo irá definir o marco social,
ideológico e político dessa nova administração.
Por isso, levo ao conhecimento da opinião pública um documento que recentemente chegou em minhas
mãos, sob o título Chiapas 2000, e no qual se estabelecem as estratégias político-militares e de comunicação social
com as quais se sugere a Fox uma maneira de enfrentar o conflito existente entre o EZLN e o governo federal.
As preocupações fundamentais do documento são: 1) Expor os antecedentes mais peculiares que explicam
a origem da luta armada no sudeste do país, bem como os diferentes atores envolvidos, utilizando as informações
do setor de inteligência da Secretaria de Governo de 1983; 2) Fazer uma proposta capaz de desativar a influência
política que tanto a diocese de San Cristóbal como o EZLN e o próximo governo estadual, chefiado por Pablo
Salazar, têm no Estado; 3) Negociar com a “família chiapaneca” dos caciques o “desaparecimento” dos grupos
paramilitares e sua transformação em polícias privadas de caráter legal; 4) Realizar o deslocamento tático do
Exército (deixando-o, porém, como apoio estratégico e mantendo seus trabalhos de inteligência militar) e sua
substituição por corpos policiais de elite; 5) Deslocar o EZLN do “seu papel de representante moral de todas as
etnias do Estado”. A solução do conflito - afirma-se - “vem do apropriar-se das bandeiras dos grupos de poder,
sobretudo do EZLN”.
Ao tratar da estratégia de comunicação social com a qual é preciso “dar a conhecer o que o povo quer e,
inclusive, deve saber”, traçam-se diversos exemplos do que é chamado de “discurso inverso”, a partir do qual deve-
se insistir no propósito social e filantrópico das escolhas que levam a “pôr de lado, de forma sutil, porém firme, o
EZLN” e “o protagonismo de Pablo Salazar, que pretende capitalizar a solução do conflito a seu favor”
recomendando que seja Fox quem assume esta responsabilidade. Deve-se frisar que os programas assistenciais são
realizados “por vontade do Presidente da República em resposta às justas reivindicações dos irmãos indígenas
chiapanecos, e não por pressão do EZLN.
“A inversão do discurso permitirá ao governo dar credibilidade à reforma do judiciário do país - não só em
Chiapas - (...) e ter a possibilidade de manusear as estatísticas num espaço confortável e reiterativo. Estes dois
elementos darão ao presidente eleito a possibilidade de viabilizar uma solução reconhecendo que Chiapas, como
outras regiões do país, vive numa economia colonial. Elas têm que ser levadas a uma economia sustentável (sic) e
também lhe será permitido manusear com folga a reforma do Estado na qual se permite procurar a maneira de unir
a relação funcional das formas políticas indígenas, de seus usos e costumes comunitários, com as formas nacionais
de governo”.
77
Coloca-se que a comunicação social deve repousar nos meios de comunicação de massa,
fundamentalmente nos audiovisuais, por serem formadores de opinião. Propõe-se a seguir a mesma estratégia de
comunicação do Subcomandante Marcos, com a finalidade de aproveitar de meios como a Internet para chegar à
opinião pública nacional e internacional. Também se convida a procurar entre os jornalistas, líderes de opinião, os
que sejam incondicionalmente fiéis às políticas governamentais.
Faz-se uma lista de 11 grupos paramilitares ou “guardias blancas” detectados na região do conflito, bem
como o nome de seus principais líderes, a maioria deles identificados como sendo do PRI ou funcionários públicos
estaduais e federais. (Aos quais os “homens do presidente” eleito estão procurando presentear com a promulgação
de uma lei de anistia pela qual ficariam impunes todos os crimes perpetrados pelos grupos paramilitares).
Ainda assim, o trecho mais importante desta parte do documento, pelos conflitos políticos que pode
desatar, refere-se aos passos a serem seguidos para aniquilar o EZLN. Propõe-se vincular o EZLN, e, sobretudo, o
Subcomandante Marcos, ao narcotráfico, de tal maneira que o façam parecer diante da opinião pública como um
delinqüente comum diante do qual será muito mais fácil expedir a ordem de prisão sem grandes pressões nacionais
e internacionais.
Sugere-se também que se viabilize uma política assistencial pela qual as comunidades zapatistas seriam
beneficiadas com atendimento médico, educação e projetos produtivos. O mecanismo pelo qual se propõe levar
adiante o desarmamento do grupo rebelde é através da troca de armas por gado e sementes.
Disso tudo, podemos concluir que entre as sombras existe uma trama que vem sendo seguida passo a passo
e que a detenção de uns poucos dirigentes dos grupos paramilitares, entre todos os que são mencionados neste
documento, é parte da mesma trama. O outro capítulo do plano é o decreto pelo qual se expropriam as terras ejidais
de Amador Hernández. As seguidas declarações de Fox quanto à sua “vontade política” de resolver pacificamente o
conflito poderiam ser parte das recomendações que seus assessores lhe prepararam. Se for assim, não existe a
menor condição de reconhecer a diferença que caracteriza a identidade própria e específica dos povos indígenas de
Chiapas e do México.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.

Novembro de 2000

À imprensa nacional e internacional.

Damas e cavalheiros:
Estamos aqui, de novo. Seguem uma carta para aquele que está indo embora (felizmente) e o convite para
vocês participarem de uma entrevista coletiva. Faremos até o impossível para que não seja suspensa em cima da
hora.
Valeu. Saúde e não há porque se preocupar, Martha Sahagún não estar por aqui.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos

México, Novembro de 2000. (Últimas horas de Zedillo!)


Yepa! Yepa! Ándale! Ándale! Ándale! Arriba! Arriba! Arriba!

P. S. DRAMATURGO (Já!) QUE DIZ O QUE DIZ.

Ato Primeiro. - Personagens: a classe política, o locutor, as oito colunas, o público.


Lugar: México. Data: antes da eleição do dia 02 de julho de 2000.

(Abrem-se as cortinas. No palco uma televisão e uma rádio ligadas no último volume. Como pano de fundo as oito
colunas de um jornal nacional. O áudio da Teve e do rádio é o mesmo: jingles comerciais. As oito colunas do
jornal vão mudando conforme será indicado)

A classe política: - Estamos nos meios de comunicação, logo, existimos. Agora temos que submeter a nossa
grandeza à prova mais difícil da suprema arte de governar: o rating. Que venham os assessores que cuidam da
imagem! (bate as palmas)
As oito colunas: “CRIADO O IFP: INSTITUTO FEDERAL DE PESQUISAS. Será eliminado o trabalho de ir às
urnas”, diz a manchete.
O assessor (entrando do lado direito): - Atchim! Acho que sou alérgico a estas poeiras. O que são?
78
O assessor (oferecendo um lenço): - Saúde! São a última onda da moda; são poeiras democratizantes.
A classe política (suspirando com resignação): - Bom, faz-se de tudo para sobreviver.
As oito colunas: - “BAIXARÃO OS PREÇOS DOS CANDIDATOS: SECOPI”.
O locutor (entra apressado do lado esquerdo): - Rápido! Depressa! Os patrocinadores estão inquietos! Temos que
gravar o programa.
O assessor: - Os patrocinadores? Achei que os inquietos fossem os espectadores...
O locutor: - Não, não, não. O ritmo da política não é marcado pelos relógios e nem pelos calendários, e sim pelos
horários da programação. Depressa! Falta pouco para os intervalos comerciais.
A classe política (se ajeita diante de um espelho que está nas mãos do assessor): - Bem, como estou?
O assessor (sorrindo satisfeito): - Magnífico! Você ficou irreconhecível...
A classe política (entre ela mesma): - Intervalos comerciais! Nos bons tempos não havia outros intervalos a não ser
os que eram produzidos pelo alegre ressoar das matracas e das palavras de ordem “Se vê, se sente, o PRI é
onipotente!”
(O assessor se põe de lado)
O locutor: - Luzes! Câmara! Ação!
O locutor (dirigindo-se ao público): - Bem-vindos ao nosso programa: “A Verdade Envergonhada!” Hoje temos
como convidada especial a... Classe política! (Ouvem-se fortes aplausos; o público permanece imóvel, mas uma
gravação evita às pessoas a penosa tarefa de bater palmas).
A classe política (dirigindo-se ao locutor): - A gravata está bem ajeitada?
O locutor: - Bom, diga-nos, o que pode esperar o respeitável público do próximo processo eleitoral?
(A classe política mexe os lábios, mas não emite nenhum som).
O locutor: - Muito interessante! Quase tão interessantes quanto estas mensagens comerciais dos nossos
patrocinadores!
A classe política (ao locutor): - Já acabou a gravação?
O locutor: - Sim. Saiu perfeita. Agora é só esperar que o assessor, depois de fazer suas pesquisas de mercado, nos
envie o áudio com as suas respostas.
A classe política: - Então já posso ir embora?
O locutor: - Sim.
(A classe política sai, alguém se aproxima e apaga o rádio e a televisão. As oito colunas desaparecem. As cortinas
se fecham. O respeitável público boceja. Irrompe a gravação de uma clamorosa aclamação).

Segundo Ato. Personagens: a classe política, a senhora X, o jovem Y, o senhor Z.


Lugar: México. Data: 02 de julho de 2000.

(As cortinas se abrem. No palco só uma rua solitária)


A classe política (para si mesma): - Vemos as caras, não sabemos dos votos.
O público (irrompendo no roteiro, para o escândalo de todos): - Não!

Esta obra teatral tem um problema. Quem a dirige se esforça em convencer o respeitável público de que já
terminou. O público não só não abandona o local, como faz de tudo para subir no palco. O diretor e os atores estão
de cabelo em pé. Já não é possível saber onde é o palco e onde ficam as platéias. De repente, sem que,
aparentemente, tenha combinado isso de antemão e com uma expressão ardente no rosto, todos os que são do
público gritam: Terceira chamada! Terceira chamada! Terceira! Começamos!

Fecham-se as cortinas?

O que? Você não gostou? Bom, La Mar s. Bueno, pelo menos, sorriu. O que? Vou ser reprovado por Dario
Fó, Carballido, Gurrola, Savariego e Leñero? Ahi deles se o fizerem. Até Einstein foi reprovado em asseio (ou era
em matemática?)

O Sup na bilheteria.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.


Novembro de 2000.

Ao senhor Ernesto Zedillo Ponce de León.


De passagem para lugar nenhum.
79
Planeta Terra.

Senhor Zedillo:
Seis anos atrás, lhe escrevi em nome de todos nós zapatistas dando-lhe as boas vindas ao pesadelo. Agora,
muitos acham que tínhamos razão. Ao longo destes seis anos, o seu mandato tem sido um longo pesadelo para
milhões de mexicanos e mexicanas: magnicídios, crise econômica, empobrecimento generalizado, enriquecimento
ilícito e brutal de alguns, venda da soberania nacional, insegurança pública, estreitamento dos laços entre o governo
e o crime organizado, corrupção, irresponsabilidade, guerra... e piadas ruins e mal contadas.
Ao longo do seu mandato, você se empenhou em destruir os indígenas que insurgiram desafiando tudo
aquilo que você representa. Você se empenhou em destruir-nos.
Quando você chegou ao poder, tinha a liberdade de escolher como enfrentar o levante zapatista. O que
escolheu e fez, já é história. Em seu papel de comandante supremo do exército federal e com todo o poder
conferido pelo fato de ser o chefe do executivo, você poderia ter escolhido o caminho do diálogo e da negociação.
Poderia ter dado sinais para reduzir a tensão. Poderia ter cumprido o que assinou em San Andrés. Poderia ter
chegado à paz.
Não o fez.
Optou pela dupla estratégia de fingir disposição ao diálogo e continuar no caminho de uma saída violenta.
Para isso, tentou repetir a história da traição de Chinameca (no dia 9 de fevereiro de 1995); desperdiçou bilhões de
Pesos tentando comprar a consciência dos rebeldes; militarizou as comunidades indígenas (e não só as de Chiapas);
expulsou observadores internacionais; treinou, equipou, armou e financiou os paramilitares; perseguiu, prendeu e
executou sumariamente zapatistas (“remember” Unión Progreso, 10 de junho de 1998) e não zapatistas; destruiu o
tecido social do campo chiapaneco; e seguindo a palavra de ordem do filho putativo, o grupo paramilitar “Máscara
Vermelha” (“mataremos a semente zapatista”), mandou massacrar crianças e mulheres grávidas em Acteal, no dia
22 de dezembro de 1997.
Poderíamos entender o porquê, podendo seguir o caminho do diálogo, você optou por fazer-nos a guerra.
Pode ter sido porque lhe venderam a idéia de que poderia prender-nos, de que poderia derrotar-nos militarmente, de
que poderia fazer com que nos rendêssemos, de que poderia comprar-nos, de que poderia enganar-nos, de que
conseguiria fazer com que os mexicanos esquecessem de nós e da nossa luta, de que poderia fazer com que as
pessoas de outros países renunciassem à solidariedade com a causa indígena. Em suma, que poderia ganhar a
guerra contra nós. Isso poderíamos entendê-lo. Mas, senhor Zedillo, por que Acteal? Por que você mandou
assassinar crianças? Por que mandou seus guardas acabarem a facadas com as mulheres grávidas que, feridas ou
aterrorizadas, não conseguiram escapar do massacre?
Enfim, o que você não fez para acabar com os zapatistas?
Mas, por acaso, eles acabaram? Escapuliram de sua emboscada no dia 9 de fevereiro de 1995; se rebelaram
de novo diante do descumprimento dos Acordos de San Andrés; escaparam do seu cerco militar quantas vezes
quiseram; resistiram à sua ofensiva feroz, levada diante pelo “bolacha pra cachorro” Albores, contra os municípios
autônomos; mais de uma vez demonstraram com mobilizações que suas reivindicações contam com o respaldo de
milhões de mexicanos. Não, os zapatistas não acabaram.
E não só não acabaram. Como, além do mais, proliferaram pelo mundo todo. Você lembra das vezes em
que teve que abandonar, pelas saídas de emergência e às escondidas, os eventos que se realizavam em outros
países, enquanto os comitês zapatistas de solidariedade protestavam contra a sua política em Chiapas? Tem algum
embaixador ou cônsul que não tenha lhe informado com desespero as ações que zapatistas internacionais
realizavam durante as reuniões oficiais e nos prédios do governo mexicano no exterior? Quantas manifestações de
repúdio de organismos internacionais o seu serviço de relações exteriores não recebeu pelo descumprimento dos
Acordos de San Andrés, pela militarização de Chiapas e pela falta de diálogo com os zapatistas? E quando você
ordenou a expulsão de centenas de observadores internacionais, por acaso diminuíram as ações de solidariedade no
mundo todo?
E o que me diz do México? No lugar de ficar “restrito a 4 municípios chiapanecos”, o pensamento zapatista
se estendeu aos 32 Estados da federação. E se tornou operário, camponês, indígena, professor, estudante,
empregado, motorista, pescador, roqueiro, pintor, ator, escritor, freira, padre, esportista, dona de casa, colono,
sindicalista independente, homossexual, lésbica, transexual, soldado, marinheiro, pequeno e médio proprietário,
vendedor ambulante, inválido, aposentado, pensionista, povo.
Estes 6 anos foram assim, senhor Zedillo. Podendo escolher entre a paz e a guerra, você optou pela guerra.
Os resultados desta escolha estão diante de todos: você perdeu a guerra.
Você fez tudo o que pôde para destruir-nos.
Nós só resistimos.
Você vai para o exílio.

Nós continuamos aqui.


80

Senhor Zedillo:
Você chegou ao poder pela via do crime que, até o momento, continua impune. E o seu mandato está cheio
de crimes impunes. Além de levar adiante as políticas de privatização do seu predecessor (e hoje inimigo
declarado), Salinas de Gortari, você disfarçou de legalidade este outro crime que se chama FOBOPROA-IPAB e
que, grosso modo, consiste em fazer com que os mexicanos pobres não só “resgatem” os ricos e os tornem mais
ricos, como também que uma carga pesada comprometa várias gerações futuras.
Para mais de 70 milhões de mexicanos, a suposta solidez econômica do país foi sinônimo de miséria e
desemprego. Enquanto você cuidou com carinho da invasão dos capitais estrangeiros, as pequenas e médias
empresas foram desaparecendo do mercado nacional. Durante o seu mandato foram apagadas as fronteiras que
separam o governo do crime organizado e os seguidos escândalos provocaram sérios problemas à imprensa: era
impossível esclarecer que notícias pertenciam à seção política e quais à de tarja vermelha: “suicidas”, ex-
governadores fugitivos, generais presos, empresários bem-sucedidos que foram “só” torturadores, polícia
“especializada” no combate ao crime organizado tomando as universidades.
Hoje, do mesmo modo que o seu predecessor, você está entre aqueles que lhe prestaram homenagem,
serviram a ele e se serviram, se converteram em seus piores inimigos, dispostos a persegui-lo. Assim, a partir de
amanhã, será você, senhor Zedillo, quem vai ser perseguido dia e noite. E não será só por seis anos. Porque a partir
de agora será muito cumprida a fila daqueles que vão querer lhe cobrar a conta e as ofensas.
É claro que tínhamos razão quando, seis anos atrás, nós zapatistas lhe demos as boas-vindas ao pesadelo.
Mas, agora que você vai embora, será que já terminou?

Sim e não.
Porque para nós o pesadelo com você termina hoje. Outro poderá vir depois ou poderá, finalmente,
amanhecer; não sabemos, mas faremos tudo o que é possível para que seja o amanhã a florescer. Mas para você,
senhor Zedillo, o pesadelo só irá continuar.
Valeu. Saúde e pouco importa onde for se esconder, lá também terá zapatistas.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, novembro de 2000.

P. S. Claro, antes que me esqueça: um ano atrás, em setembro de 1999, você nos mandou uma carta aberta através
do seu secretário de governo (e hoje pré-candidato à presidência do PRI). Acho que a carta se chamava “Mais um
Passo para o Abismo”, “Um Passo mais Sombrio”, “Um Passo mais Cínico”, ou algo parecido. Nela, só com 3 anos
de atraso, o seu governo, supostamente, respondia com mentiras às condições que, em setembro de 1996!,
havíamos colocado para retomar o diálogo. Mais do que nos enganar, a carta aberta pretendia enrolar a opinião
pública nacional e internacional. coisa que, com certeza, não conseguiu. Seja como for, a mencionada carta nos
dizia que nos déssemos por satisfeitos com aquilo que nela se dizia e nos convidava a voltar ao diálogo. Seria
deselegante, de nossa parte, deixá-la sem resposta, sobretudo agora que você vai embora (finalmente!). Perdoe pelo
atraso, mas permita-me aproveitar estas linhas para responder. Nossa resposta é: NÃO!
De nada.

COMUNICADO DO COMITÊ CLANDESTINO REVOLUCIONÁRIO INDÍGENA


COMANDO GERAL DO EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO
NACIONAL. MÉXICO.

Novembro de 2000.
À imprensa nacional e internacional:

PRIMEIRO: O Exército Zapatista de Libertação Nacional definirá publicamente a sua posição diante do novo
governo federal, encabeçado pelo senhor Vicente Fox, e da situação em que, atualmente, se encontra a guerra no
Sudeste Mexicano.

SEGUNDO: Com esta finalidade, o EZLN convoca uma entrevista coletiva para o dia 2 de dezembro de 2000, na
comunidade indígena de La Realidad, município de San Pedro Michoacán, Chiapas, às 16.00 horas.

TERCEIRO: Para ter acesso ao lugar da entrevista coletiva, os trabalhadores da comunicação não precisarão de
nenhuma credencial especial, será suficiente ter uma identificação do meio de comunicação no qual trabalham.
81

QUARTO: Não poderão entrar policiais disfarçados de jornalistas e nem, por decisão da comunidade, os da
emissora de televisão que destrói escolas indígenas com o seu helicóptero.

DEMOCRACIA! LIBERDADE! JUSTIÇA


Das montanhas do Sudeste Mexicano
Subcomandante Insurgente Marcos
Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
México, novembro de 2000.

México 2000: janelas abertas, portas a serem abertas.

À insurgente Lucha que ao morrer, no dia 9 de setembro,


nos deixou a única coisa que tinha: o seu exemplo.

Montanhas do sudeste mexicano. Como acontece a cada tanto tempo, a lua se deixou cair sobre a colina.
Um barulho de vidros quebrados é seguido por um murmúrio. Parece um arroio. Parece chuva. São passos.
Milhares deles. Um exército de sombras afana-se para recolher os pedaços do espelho quebrado. Com cuidado, vão
encaixando as peças do quebra-cabeça que procurará ser o reflexo desta fragmentada realidade que, quem duvida
disso?, não deixa de mover-se. Ainda que os pedaços recém-recolhidos tenham permitido montar um espelho
incompleto e desajeitado, consegue-se ver em seu reflexo, ainda que não estejam claras, as figuras que já não são
manchas informes. Depressa levantam o espelho emendado e o dirigem para o ocidente, justo no rumo deste outro
espelho que brilha lá em cima a cada manhã e empenha o seu passo dia após dia.
Sem deixar de ver-nos, mas olhando, sobretudo, para o outro e os outros, nós que somos guerreiros
escritores tomamos a palavra.

Lá em cima todos atiram nos relógios.

México, 2 de julho do ano 2000. Já é noite. Os meios de comunicação, o Instituto Federal Eleitoral (IFE),
Zedillo, os candidatos e os partidos políticos (nessa ordem) dizem o que não havia sido ouvido nos últimos 71
anos: o PRI perdeu a Presidência da República.
As campanhas eleitorais dos partidos políticos, as mais caras da história e as de nível político mais baixo,
ficaram para trás. O aspecto comum a estas campanhas foi um profundo desprezo para com o cidadão. Mais
parecidas com a propaganda comercial, as campanhas à presidência conceberam o cidadão como um comprador
sem memória que paga a conta, não faz muitas perguntas e não exige garantias. Em sua marcha obstinada numa
direção que diverge daquela da cidadania, a classe política mexicana sofreu pela distância entre o que tinha a
oferecer e as expectativas das pessoas. Após análises minuciosas (e um desperdício de milhões em salários de
assessores) os políticos descobriram algo incompreensível: o povo queria uma mudança. Foi assim que as ofertas se
concentraram na “mudança”. De “mudança” falaram os três principais candidatos à Presidência da República.
Mas isso ficou para trás, para esse dia. No dia 02 de julho esperam-se respostas daqueles que nunca tiveram
direito a escolher as perguntas. Muito se falou, se diz e se dirá sobre o que aconteceu nesse 2 de julho do ano 2000,
mas para nós que escrevemos está claro que, em sua maioria, a resposta foi um: “NÃO!”.
Com este “NÃO!” feito arma e bandeira, uma multidão anônima de mexicanos e mexicanas deu o tiro de
misericórdia num sistema político que, por mais de sete décadas, semeou catástrofes e cadáveres na história
nacional. Os mortos que ficaram pelo caminho não foram poucos: a justiça, a democracia, a liberdade, a soberania
nacional, a paz, a vida digna, a verdade, a legitimidade, a vergonha e, sobretudo, a esperança. Estes mortos voltam
a viver a cada tanto tempo: 1965, 1968, 1985, 1988, 1994, 1997.
E para falar de mortos vivos não há ninguém como nós que escrevemos, mortos e tão vivos. E dizem que
nesse 2 de julho morreram alguns mortos (entre eles, o sistema de partido de Estado) e outros mortos viveram
(entre eles, os cidadãos). O dia 2 de julho não fez outra coisa a não ser confirmar a vocês um segredo: a crise do
sistema de partido de Estado. O fato de que, do número total de votantes, o resultado a favor do candidato do PRI
não tenha sido suficiente para conquistar a Presidência da República, não é o que mais chama à atenção.
O que chama à atenção é que toda a máquina do Estado não tenha sido capaz de conseguir o que havia
alcançado (ainda que com crescente dificuldade nos últimos mandatos) nestes 71 anos: a fraude eleitoral em suas
diversas modalidades. Apesar das ameaças, chantagens, enganações mentiras e crimes, mais de 40 milhões de
mexicanos disseram “NÃO!” ao sistema político que, como um ventríloquo enganador, havia suplantado a voz da
maioria com um “SIM!” que foi perdendo o brilho com o passar dos anos.
82
Ainda assim, por sua natureza, pela diversidade das razões que o motivam, este “NÃO!” dificulta a sua
escuta e permite que outros ruídos o apaguem.
Os mortos que morreram no dia 2 de julho deixaram muitos vazios, e o anonimato dos mortos vivos
permite que o papel de protagonista que lhe pertence também pareça estar vazio. Começa assim a disputa para
encher este vazio e para atribuir-se o título de vencedor. E para isso se atropelam entre si o IFE, Zedillo, Fox, os
partidos políticos e alguns intelectuais de letras e vergonha mortas.
Se si entendesse o significado real do que aconteceu no dia 2 de julho, os meios de comunicação não teriam
como dar conta de entrevistar os protagonistas: milhões de homens e mulheres. Pelos campos e pelas ruas caminha
uma multidão de heróis anônimos, que deveriam ser parados, felicitados pelo ato de fecunda rebeldia, deveriam
pedir-lhes um autógrafo e uma foto e dizer-lhes com franqueza: não se renda! Como isso não foi possível, os meios
de comunicação ficaram em dúvida na hora de escolher quem foi o protagonista: o IFE? Apesar da pose do seu
presidente, deu apenas para algumas horas, ninguém levou isso adiante. Zedillo? Graças ao dinheiro que soltou à
direita e à esquerda, durou alguns dias, mas o problema é que não tinha mais nada a fazer a não ser aceitar os
resultados, ou a opção teria sido a de cometer um crime por desconhecer a derrota? Não se pode manter de pé a
popularidade de uma personalidade com base no fato de que poderia ter cometido um crime eleitoral e não o fez.
Fox? Ninguém, e nem ele, acreditou nisso. Então, quem foi o protagonista desse 2 de julho? O país? A Nação?
Erguer um monumento à Nação é algo muito problemático e não deixaria de ser estranho o fato de promover a
construção de uma estátua em honra do “cidadão desconhecido”.
2 de julho. Tem o nome do derrotado. Mas o nome do vencedor continua vacante. Como o tempo corre, lá
em cima uns e outros atiram nos relógios gritando: “Um momento! Eu sou a história!” Este grito esconde a
pergunta que se fazem entre si: “O que aconteceu?”
O Partido Revolucionário Institucional atira no relógio quando se descobre despojado de um reino no
qual, se supõe que os súditos agradeceriam para todo o sempre a benção de serem governados pelo PRI. No lugar
de agradecimentos e matracas, o dia 2 de julho deixou-lhe para sempre uma cabina apertada abaixo da linha de
flutuação. Como a inércia é também uma lei da política, o grupo dirigente do PRI abaixa a cabeça e as costas para
acatar... a decisão de Zedillo de render-se diante de uma evidência que, pela primeira vez, chegava às oito colunas:
a maioria dos mexicanos rechaça o PRI. A submissão durou minutos, horas talvez. Logo surgiram as lamentações
que depois se tornaram protestos e, mais tarde, acusações: “Zedillo é o responsável pela derrota do PRI”. À
pergunta “quem derrotou o PRI?”, os priistas respondem: “Zedillo”. E o homenzinho cinzento, que a partir de hoje
procurará inutilmente um guarda-chuva que o proteja do inevitável, não passa de um coveiro cinzento. Ao atirar no
relógio e gritar “Foi Zedillo!”, os priistas esquecem de algo fundamental: a sua história. Porque a derrota do PRI é
um produto da sua história. O que os priistas não têm entendido é que eles começaram a perder a Presidência da
República em... 1982!, quando Miguel de La Madrid Hurtado assumiu a titularidade do Poder Executivo federal.
Com a chegada de De La Madrid, uma nova classe política abre o seu caminho no interior do PRI: a dos
tecnocratas. Além de seus estudos superiores no exterior, os tecnocratas tinham em comum a falta de sensibilidade
diante dos problemas sociais, a falta de militância partidária e uma concepção do Estado diametralmente oposta à
dos “velhos” priistas. Os tecnocratas se apoderaram do poder e, de conseqüência, do PRI. Nos governos anteriores,
o PRI, esta vergonhosa secretaria de Estado, havia mantido uma relação mais ou menos estável com as
organizações e os grupos do partido graças aos programas sociais.
Mas, a chegada dos tecnocratas colocou de lado a política social e, com ela, a base de sustentação do PRI.
E não só isso, “O PRI, por outro lado, já não era o espaço onde se forjavam as carreiras políticas, e esta notícia,
que foi dada a conhecer pouco depois da chegada dos tecnocratas no poder, teve um forte impacto entre os
priistas. A maioria dos funcionários dos altos e médios escalões do governo de De La Madrid não só não tinham
feito carreira no partido, como sequer eram membros do PRI, e isso deu origem a um escândalo enorme”. (Luis
Javier Garrido, “La ruptura 91982-1988)”, em Proceso. Edição especial: “O inferno do PRI”. Agosto de 2000. Pg.
48).
Então, o PRI tornou-se uma agência de emprego de técnicos da administração pública.
Não só isso. A onipresença do PRI no poder fez com que a alternância (porque a chegada de Fox é isso, e
só isso) se apresentasse como uma transição. Os que podem ser culpados pelo fato de que, para a maioria dos
cidadãos, a democratização do país era vinculada à derrota do PRI são os últimos titulares do Poder Executivo e de
seus respectivos gabinetes, suas políticas econômicas e sociais, seu prudente manuseio do orçamento e suas
ligações com o narcotráfico. Podem ser culpados também os governadores e os prefeitos priistas que construíram
corjas de caciques regionais sobre os cadáveres de seus opositores e sobre a pobreza de seus governados; os
deputados e os senadores que assistiram impávidos ao desmantelamento do Estado Social e apoiaram as iniciativas
neoliberais em troca de um punhado de notas; os “alquimistas” eleitorais que, mais de uma vez, fraudaram milhões
de cidadãos; os juizes corruptos e venais; os policiais que roubam; o exército criminoso; os porta-vozes disfarçados
de jornalistas. Enfim, os que podem ser culpados pelo fato de milhões de mexicanos verem o PRI como um
obstáculo para o bem-estar e o bom governo foram... os priistas (Zedillo incluído).
83
O PRD e o neocardenismo atiraram no relógio logo que descobriram que a queda do PRI não
implicava na vitória do PRD. Acostumados a pensar-se como o monopólio da oposição ao PRI, os perredistas não
concebiam o fim do sistema de partido de Estado sem eles na cabeça. E eis que o PRI perdeu a Presidência e o PRD
não a ganhou. Então, pararam o relógio para tratar de entender o que aconteceu. Ou melhor, quem é o culpado pelo
fato da história não se submeter aos estatutos do partido? Nos primeiros dias, para alguns intelectuais
neocardenistas, os possíveis culpados eram os eleitores que não sufragaram Cárdenas Solórzano.
Sentindo-se “traídos” pelo povo, rogavam com rancor todo tipo de praga e de males para o país: “agora sim
verão o que é repressão, agora sim verão o que é neoliberalismo, agora sim verão o que é fascismo, agora sim...”.
Mas, na hora certa!, alguém convidou ao bom senso, aí sim começou-se a procurar a resposta à pergunta que todos
os perredistas se fazem: “por que perdemos da forma como perdemos?”
Durante a campanha eleitoral, a esquerda parlamentar mostrou que a posse do poder político implica
também na posse dos fantasmas que rondam ao redor dela. Para o PRD, toda mobilização social que não estivesse
sob o seu controle, toda inconformidade mais ou menos organizada que estivesse fora de sua influência e toda
crítica que fosse feita num tom que não fosse o silêncio, era parte de uma conspiração que pretendia arruinar as
aspirações do seu candidato à presidência, Cuauhtémoc Cárdenas Solórzano. Foi assim que encarou a greve
estudantil da UNAM (1999-2000), as denúncias de fraude no processo de eleição interna (1999), as queixas cidadãs
pelas deficiências nos trabalhos governamentais do Distrito Federal (1997-2000) e as críticas que a imprensa
honesta fez ao seu desempenho como governo (1997-2000) (ainda que deva ser lembrado aos meios de
comunicação que se auto-instituíram em “santa inquisição” obedecendo a interesses ilegítimos: a reverência diante
do príncipe exilado ou a defesa do locutor narco).
Preocupa o fato de que, para os dirigentes do PRD, a mudança democrática se daria somente quando seus
candidatos chegassem ao poder. Preocupa porque, ao chegar nele, um de seus primeiros decretos seria o de dar por
encerrada a luta pela democracia e todo aquele que ousasse levantar esta bandeira seria tachado (e perseguido,
porque é para isso que serve a máquina do Estado) de sabotador, agente da direita ou com o termo que, naquela
altura, estaria na moda.
A campanha presidencial do PRD começou com a obsessão pelo centro (em política, o centro nada mais é a
não ser a direita que está pra afirmar-se) e logo correu para a esquerda. Mas no trajeto desta corrida deixou vários
feridos: a credibilidade, a confiança, a coerência e a esperança.
As conversas com o PAN para apresentar um candidato único e o rompimento posterior, o afã de mostrar-
se “compatível” com o poder de Zedillo (essa incompreensível visita de despedida de Cárdenas a Zedillo depois de
deixar o governo do Distrito Federal), o, no mínimo, desajeitado processo eleitoral interno para eleger o presidente
do PRD, para mencionar algumas, foram amostras da perigosa proximidade do PRD às práticas políticas contra as
quais luta.
Sobre a sua chamada “crise interna”, quem tem a palavra é o PRD. Só nos cabe dizer que o fato de
Cuauhtémoc Cárdenas ter mantido a sua candidatura, sem ceder à pretensão de renunciar a ela a favor de Fox, é o
que agora permite falar de uma crise do partido. Se tivesse renunciado, já não teria sequer o partido.
Contudo, a sobrevivência de uma corrente de esquerda no interior do PRD alenta ainda as esperanças de
que a opção eleitoral de esquerda não naufrague na tempestade do mercado político. Há dirigentes, lideranças
intermediárias e, sobretudo, militantes de base que sabem que as fortalezas só podem ser construídas a partir de
baixo, e que os anseios que alentam com o seu batalhar superam, e muito, os limites de um partido político.
Por enquanto, o PRD pode aproveitar o tempo para reorganizar-se ou refundar-se. Não se vê nada no
horizonte político que possa disputar com ele o lugar da esquerda eleitoral. Oxalá que esta falta de contrapesos à
esquerda eleitoral do PRD não faça com que o imã da direita o tire do lugar que deve ocupar.
O Partido de Ação Nacional atira no relógio quando descobre que, finalmente, derrotou o PRI na eleição
presidencial, mas, ainda assim, não tem o poder. Depois de ter sido despojado de triunfos legítimos, durante
décadas, o PAN volta a enfrentar a mesma situação, só que agora não é o partido de Estado ou o governo que o
privam do triunfo. Em primeiro lugar, uma estrutura paralela (os “Amigos de Fox”) tirou-lhe a iniciativa de decidir
quem seria o candidato à Presidência.
Logo após ter se filiado ao PAN, 12 anos atrás, Vicente Fox armou ma equipe extrapartidária (que não
demorou em tornar-se suprapartidária) para impulsionar a sua pré-candidatura, e, logo em seguida, para promover a
sua candidatura à Presidência. Preso no ritmo marcado pelos “Amigos de Fox”, o grupo dirigente panista não
demorou em dar-se por vencido e, numa eleição interna semelhante à dos partidos republicano e democrata dos
Estados Unidos, limitou-se a ratificar o que os “Amigos de Fox” já haviam decidido.
Do mesmo modo que no PRI, os políticos tradicionais ou históricos do PAN (os “doutrinários”) são
suplantados por uma camada de novos políticos que não só passaram de empresários a políticos (os chamados
“bárbaros”), como também trouxeram seus métodos empresariais que aplicam à ação partidária. O PAN de hoje
tem pouco a ver com aquele de González Morfín e de Gómes Morín.
A assídua resistência do panismo de ontem, que resiste às imposições e aos arranjos palacianos, é
substituída pelo pragmatismo dos acordos secretos. A política como negócio entre dois indivíduos (eu te dou, você
84
me dá) e não como exercício cidadão e coletivo. Com este PAN, a mesa ficou pronta para que Fox usasse como
trampolim uma história e uma estrutura sólidas, com prestigio e eficiência. Poucas organizações políticas podem
vangloriar-se de ter a homogeneidade e o espírito de corpo do Partido de Ação Nacional de ontem e poucas têm se
deteriorado tanto nesses aspectos e em tão pouco tempo como o PAN de hoje.
Há tempo, a política conservadora de Ação Nacional foi tomada como abrigo da direita moderada. No
ascenso de Fox, antes no interior do PAN, em seguida durante a campanha, e agora com o triunfo, a ultradireita viu
o guarda-chuva, o refletor e a tribuna que procurava. Assim, em torno da Ação Nacional, se desenrola uma luta
surda entre ultras e moderados de direita. Ao longo da disputa o partido vai desaparecendo, vai perdendo o seu
perfil e, parece, só contribui com um Fox triunfante em duas coisas: a cor azul e o corpo que será responsabilizado
pelos erros do novo Executivo federal.
Ainda que alguns ingênuos digam que o PAN ganhou a Presidência da República, os militantes da Ação
Nacional sabem que não é assim e que, agora mais do que nos dias em que o PRI era onipotente, será mais difícil
conseguir isso.
Os partidos políticos atiram no relógio quando percebem que o dia 2 de julho demonstrou que não há
grandes diferenças entre eles e um clube social. Nas últimas eleições federais ratificaram aquilo que os anos
passados já insinuavam: já não são necessárias nem as propostas programáticas e nem a militância partidária. A
memória partidária é substituída agora pelos comerciais e o melhor político é o melhor trapezista.
Os três maiores partidos do México têm visto os princípios doutrinários serem tão duradouros quanto as
equipes de computação: duram apenas alguns dias. É assim que os melhores referenciais da geometria política
servem muito pouco na hora de explicar os seguidos saltos dos políticos de uma bandeira a outra.
Se até ontem os partidos políticos eram concebidos para formarem militantes através dos quais seriam
divulgadas as propostas políticas, se cresceria e se chegaria ao poder, hoje isso mudou substancialmente. Os
partidos continuam sendo instrumentos para chegar ao Poder, mas agora estão mais parecidos com um trampolim
do que com uma escola. As mais diversas personagens perambulam de um partido a outro sem que as mudanças
provoquem rupturas e sem se importar que os princípios, os programas e os estatutos das organizações pelas quais
passam não só são diferentes, como têm pontos contraditórios.
Quantos panistas de carreira estão no gabinete de Fox? Não é ele mesmo um “novato” com apenas 12 anos
de militância partidária? Por que partido já não passou Porfirio Muñoz Ledo? À exceção de López Obrador, que
outro governador perredista não era priista na véspera da escolha dos candidatos? Em Tabasco, o ataque mais
violento contra um candidato do PRI não veio de um priista (Arturo Núñez)? Há apenas seis anos atrás, os senhores
Jorge Castañeda e Adolfo Aguilar Zinzer não estavam assessorando um partido contrário ao do senhor Fox? Da
tripulação do navio afundado de Zedillo, quantos fizeram carreira política no PRI?
Não é pouco a pouco, e sim de forma acelerada, que os partidos vão se transformando em grandes cascas
vazias que servem só para dar uma identidade comum a um grupo de cidadãos, da mesma forma pela qual um
grupo de torcedores de um time qualquer tem uma identidade comum. Os grandes ideólogos e analistas políticos
não são formados no interior dos partidos políticos, e sim em suas periferias. PRI, PAN e PRD recorrem
invariavelmente a pessoas que não são do seu partido para pedir conselhos, assessoria, orientação ou para que lhe
digam tudo aquilo que devem fazer. Ao atirar no relógio, os partidos políticos esquecem que atiram no espelho: o
presente do PRI aponta-lhes o seu futuro.
O presidente do IFE atira no relógio quando reivindica para si e para o seu orçamento multimilionário o
mérito da derrota do sistema de partido de Estado. Ensurdecido pelos seus disparos, o IFE “esquece” várias coisas:
o grande desequilíbrio no acesso dos partidos políticos aos meios de comunicação, o uso de recursos públicos para
induzir o voto a favor do PRI, os crimes eleitorais que, mesmo liderando a lista sem nenhum competidor por perto,
não foram exclusividade do PRI, o papel dos observadores eleitorais nacionais e internacionais, o dique que alguns
meios de comunicação opuseram à provável resistência do PRI e do governo em reconhecer os resultados (atenção:
“alguns”, outros, como o Excelsior de Diaz Redondo, estavam dispostos a tudo por uma módica quantia) e,
sobretudo, esquece dos cidadãos.
A presunção do presidente do IFE pretende escamotear algo substancial no último processo eleitoral
federal: milhões de mexicanas e mexicanos resistiram à máquina eleitoral do Estado e marcaram as cédulas de
acordo com suas preferências. Sem menosprezar o avanço em matéria eleitoral (cidadanização do IFE, maior
abertura nos meios de comunicação, fiscalização eleitoral), o que é mais importante do dia 2 de julho é a rebelião
de milhões de pessoas.
A equipe de Fox atira no relógio quando se vê com o Poder e descobre esta lei da dialética que diz: “uma
coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”. Fazer uma campanha eleitoral, preparar uma equipe e um programa
de governo não são a mesma coisa. E os da equipe de Fox estão enojados. No lugar de agradecimentos e caravanas
de veneração, toparam com uma imprensa vigilante e crítica, com alguns cidadãos que se empenham em continuar
sendo cidadãos. Vêem com indignação e decepção que os grandes problemas nacionais não serão resolvidos com a
simples notícia de sua chegada ao governo.
85
Descobrem angustiados que já não é possível enfrentar as coisas com monossílabos (“já! Já! Já!”,
“Hoje! Hoje! Hoje!”), e que aquilo que funcionou como mote de campanha não funciona como plano de governo.
Vêem com impotência que a velha política mantém ainda estendida as suas malhas diante das quais a mentalidade
empresarial pode fazer pouco ou nada. Descobriram que o cenário no qual apresentavam a sua obra “Sou
Alternância, mas me chamam de Transição” está preso com alfinetes. Por quanto tempo poderá agüentar o esforço
de apresentar uma troca de governante como se fosse a transição para a democracia?
Ao atirar no relógio, a equipe de Fox grita: “Um momento! Agora que estou no poder quero que as coisas
continuem do mesmo jeito, que as pessoas voltem à passividade e ao conformismo, que os meios de comunicação
voltem às suas telenovelas, seus programas musicais e charges engraçadas, que os rebeldes por toda a vida se
tornem submissos e obedientes, que a Loba se torne cordeiro e que os paramilitares desprezem os generais seus
donos, que os indígenas renunciem às suas reivindicações e se conformem com “fusca, televisão e mercearia”, que
as mulheres deixem de lado estas coisas maléficas como essa de pretender decidir sobre seus corpos, que os jovens
esperem com paciência e resignação o seu lugar no pesadelo, que os homossexuais e as lésbicas se auto-exiliem
em closet coletivos (bem afastados, isso sim), que os operários descubram seus erros e se tornem prósperos
capitães da indústria, que os camponeses abandonem esse absurdo histórico pelo qual: “a terra é de quem nela
trabalha” e façam do trabalhar no rancho de San Cristóbal (ou seu equivalente) a sua maior aspiração, que
professores, estudantes, colonos, taxistas, empregados e os etceteras que povoam a realidade nacional façam só
aquelas manifestações que são para aclamar os novos salvadores da Pátria e pedir que fiquem, pelo menos, 71
anos”.
A equipe de Fox grita e atira, mas ninguém a escuta. Melhor, todos a ouvem muito bem e por isso repetem
o “NÃO!” que deu origem a toda esta bagunça.
Lá em cima, quase todos atiram no relógio para deter a hora. Lá em baixo alguns sorriem e mexem no
relógio. Não para atrasá-lo. Não para detê-lo. Não para que ande mais depressa. Só para dar-lhe corda e fazer com
que a hora chegue como deve chegar, ou seja, com todos e no tempo certo.

Contradizendo a física, em política o vazio é também um espaço de ação.

No dia 2 de julho, o PRI não perdeu só a presidência da República, como sofreu uma derrota histórica. Esta
derrota é o resultado de muitas lutas. È uma mesquinharia não reconhecer isso e não se comportar de forma
coerente.
A derrocada do sistema de partido de Estado deixou um vazio. Este vazio tem que ser preenchido. Ou seja,
não se trata só de exigir o título de vencedor histórico, como também (e, sobretudo) de ocupar o espaço que foi
deixado vazio pelo PRI. E ainda que este vazio signifique desgoverno, desconcerto e desorganização, significa
também que muitas forças se livraram das ataduras e das lógicas perversas. Cinco meses depois do dia 2 de julho o
espaço continua vazio. A substituição de uma classe política por outra não poderá acontecer de acordo com as
“velhas regras”. Neste meses, têm prevalecido a confusão, a desordem e o caos. A mal chamada “transição de
veludo” tem a lisura de uma lixa de ferro.
Não há uma transição democrática. Há uma alternância. E a prova de que o espaço deixado pelo sistema de
partido de Estado continua vazio, está no fato de que para a nova classe política (ou político-empresarial) o
programa do qual está incumbida a equipe de Fox não é o de realizar a alternância (Zedillo preparou-lhe a mesa -
mal, claro, como tudo aquilo que fez) e sim de convencer as pessoas de que devem voltar à sua passividade anterior
e “deixar que o governo governe”.
A dificuldade que a equipe de Fox tem para ocupar o espaço deixado pelo PRI se explica pelo fato de que,
ainda que não se possa falar de uma “transição democrática”, há, porém uma mudança radical na cultura política
dos cidadãos. E não só deles, também de alguns meios de comunicação. É isso que será a nova “pedra no sapato”
do executivo federal, que, segundo revelam os gestos de Martha Sahagún, deve ser enfrentada com métodos muito
“democráticos”: uma estrutura de comunicação presidencial que, mais do que informar, se encarregue de
“proteger” a informação; e uma legislação que “controle” (ou seja, “censure”, mas evita-se usar esta palavra) a
imprensa.
A ofensiva da direita (a criminalização do aborto das mulheres estupradas em Guanajauto, a beligerância
de Pro Vida), a resposta organizada de grupos feministas, a resistência cidadã em aceitar sem reclamar as tentativas
de fazer pesar o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) sobre os alimentos e os remédios, o escândalo do Registro
Nacional de Veículos (Renave), a ofensiva de Salinas e a contra-ofensiva de Zedillo, as mobilizações dos
trabalhadores a serviço do Estado e o papel ridículo da PGR em suas ações contra os paramilitares em Chiapas,
revelaram à equipe de Fox que no panorama nacional quase ninguém acreditou na história da transição
democrática.
Pelo que se consegue ver no gabinete de Fox, seus sinais e tendências apontam para o fato de que terá
pouca política e muita administração. De fato, são poucos os políticos-políticos que integram seu gabinete. No
lugar deles, abundam os gerentes. Se o novo Executivo federal renunciou a fazer política, então esta ação
86
(indispensável na arte de governar) deverá ser levada adiante pelos outros poderes da União, concretamente,
pelo Congresso da União (a Câmara dos Deputados e o Senado).
Para cumprir esta tarefa (que Fox pensa não fazer) deixada pelo vazio gerado pela derrota do PRI, o
Congresso da União tem vários caminhos:
A tarefa principal é a de não permitir que o presidencialismo se recomponha, ainda que seja com um
Executivo cujo titular é de outro partido político. A verdadeira vida republicana precisa, entre outras coisas, de um
verdadeiro equilíbrio entre os poderes. O lugar que o Poder Legislativo deve ocupar no interior da República não
lhe será outorgado por obra e graça do Executivo federal, mas é algo pelo qual os deputados e os senadores devem
lutar. Não devem ser desprezados os avanços que, nesse campo, tivemos nas duas últimas legislaturas.
O Congresso da União deverá reverter a inércia de ser caixa de ressonância do executivo. O equilíbrio na
composição das duas Câmaras obrigará os legisladores a dialogar entre si como representantes do povo e não como
representantes dos partidos. O Poder Legislativo não deve tornar-se um ringue de boxe político (às vezes não é só
político) entre os representantes. Não porque isso significa que eles renunciam às suas diferenças e antagonismos,
mas porque o espaço de confrontação dessas diferenças e antagonismos está no campo eleitoral, diante dos
cidadãos. Enquanto legisladores, o dever deles não é em relação ao partido que representam, e nem só para com os
eleitores que votaram neles, e sim em relação a um país que acaba de livrar-se de uma carga pesada e deve criar um
futuro.
Deverá superar o controle-suplantação dos dirigentes dos partidos políticos. Como parte do sistema político
que foi derrotado no dia 2 de julho, está a suplantação que não poucas vezes é realizada pelos dirigentes partidários.
No passado imediato, não foram poucas as leis que foram negociadas entre o Executivo e as direções dos partidos
políticos, deixando os legisladores no papel de receber a “linha”, alguns do Executivo e outros dos seus partidos
políticos. A lógica do dirigente partidário não é a mesma que a do legislador. Não estamos dizendo que uma é
“boa” e a outra é “má”, só que são diferentes. O dirigente partidário faz o que sua organização precisa, o legislador
deve fazer o que o país precisa. Não é a mesma coisa.
Deverá ter visão de Estado. Não só porque será inútil esperá-la do Executivo, mas também porque o
impacto da ação do legislativo ultrapassa o mandato. Enquanto as ações do Executivo dificilmente irão além do seu
período de governo, as dos legisladores (enquanto “fazedores das leis”) vão muito mais longe dos três ou seis anos
do seu mandato.
Deverá ser sensível aos grandes problemas nacionais. A maioria dos legisladores sabe que os principais
pontos da agenda nacional não podem ser enfrentados com critérios empresarias, e que são necessários o diálogo, a
construção de pontes e a busca de acordos. A produtividade, o barateamento dos custos e a abertura dos mercados
são parâmetros que dificilmente podem orientar a suprema tarefa de criar leis nacionais. Para resolver os grandes
problemas são necessárias a inteligência, a criatividade e a audácia. De outra forma, o trabalho do Legislativo se
torna uma instância de “consertos e remendos”. E para não cair nisso, deverá abandonar também a tentação (tão
cara aos regimes anteriores) de administrar conflitos e dosar soluções.
Deverá contralegislar e legislar de modo que a soberania nacional possa ser resgatada e tenha condições de
enfrentar o emergir de velhas-novas realidades (indígenas, mulheres, operários, camponeses, homossexuais e
lésbicas, jovens, crianças, donas de casa, colonos, pequenos e médios proprietários e comerciantes).
Sim, o Congresso Nacional tem um papel importante na tarefa de chegar, agora sim, à transição
democrática, a possibilidade de uma transição real está na mobilização da sociedade, em seu negar-se a ser cidadã
só na hora das eleições. Ser cidadão não é só pagar impostos e cumprir as leis. É também cobrar satisfação, exigir
resultados e vigiar desempenhos.
Com cidadãos de tempo integral, com uma democracia que não é só eleitoral, o México não será o melhor
dos Méxicos possíveis, mas poderá decidir coletivamente o seu destino, e esta será a transição democrática.
Se esta transição será pacífica, dependerá dos poderes da União abandonarem o espelho, tanto para
queixar-se como para admirar-se, e enfrentarem a realidade da única forma pela qual vale a pena: com a intenção
de transformá-la.
O triunfo de Fox abre espaços para a ultradireita. A beligerância desta não deve ser contemplada com a
tranqüilidade do “eu não disse?”, e sim enfrentada com a mobilização e a razão dos argumentos. Fatos
aparentemente isolados podem tornar-se “políticas de Estado” (investidas contra obras de arte, criminalização do
aborto das mulheres violentadas, a segregação de homossexuais e lésbicas, a perseguição do corpo, a satanização
do sexo, a beligerância das batinas, o protagonismo político da hierarquia eclesiástica e o auge dos grupos por ela
apadrinhados). A esquerda deve cuidar de não reproduzir estes métodos (com o alento do rating), como foi o caso
do governo do Distrito Federal, na questão dos chamados giros negros.
Já faz tempo que a política deixou de ser uma atividade honorável, criativa, audaz e imaginativa. Agora é
sinônimo de inércia, autocomplacência e autismo. A política já não é ditada (nem disputada) nas Câmaras e nos
gabinetes do governo, e sim nos grandes centros financeiros. Ao destruir as velhas classes políticas, a globalização
deixa vazios momentâneos. A derrota do PRI deixa um grande espaço para a ação política, partidária e cidadã. A
87
derrubada do sistema de partido de Estado deixará livres muitas forças que podem e devem ser orientadas à
transformação do país numa nação livre e soberana.
É assim que este momento deve ser entendido pelas organizações políticas e sociais. A crise terminal do
partido de Estado (e não o triunfo de Fox) representa uma oportunidade de fazer com que a moeda caia do lado da
transformação.
Se, como dá pra ver, o alento que a vida política nacional recebeu em torno do dia 2 de julho continuar,
aqueles que foram os protagonistas desta data (os cidadãos) voltarão, mais de uma vez, a ocupar o lugar que lhes
cabe. Neles está a esperança de que tudo não acabe numa lamentável comédia (ainda que com tons trágicos) dessas
com as quais a história costuma castigar as obras inacabadas.
“Transição democrática”. Agora. Lá em cima, entre a classe política, ouve-se muito este termo. Mas o fato
dele tornar-se realidade depende da mobilização da sociedade, não dos decretos ditados pelo Poder.

Dar corda ao relógio e apontar uma janela (mas pensando numa porta).

No relógio da história mexicana, a hora continua ainda sendo disputada: entre a classe política e o povo.
No calendário, a folha que marca o “2 de julho” acaba de cair.
Abriu-se uma janela, alguns se empenham em fechá-la outra vez, outros em convidar a contentar-se com a
contemplação.
Mas, outros, a maioria, já procuram uma maneira de abrir uma porta e sair.
Porque uma casa sem portas para entrar e sair, nada mais é a não ser uma caixa preta na qual a realidade se
reflete sempre invertida e convence aqueles que a habitam de que este mundo invertido e absurdo é o único
possível.
E não, já não.
NÃO!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, julho-dezembro de 2000.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.

02 de dezembro de 2000.

Ao senhor Vicente Fox


Los Pinos, México, D. F.

Senhor Fox:

Seis anos atrás escrevemos uma carta a Ernesto Zedillo Ponce de León, seu predecessor. Agora que você é
o novo titular do Executivo federal, é meu dever informá-lo que a partir de hoje você herdou uma guerra no sudeste
mexicano; a que o Exército Zapatista de Libertação Nacional declarou ao governo federal no dia 1º de janeiro de
1994 para reivindicar democracia, liberdade e justiça para todos os mexicanos.
Desde o início do nosso levante, enfrentamos as tropas federais conforme a honra militar e as leis da
guerra. Desde então, o Exército tem nos atacado sem nenhuma honra militar e violando os tratados internacionais.
Mais de 70 mil soldados federais (incluindo uns 20 mil das chamadas “tropas especiais de contra-insurreição”) têm
cercado e perseguido os zapatistas por 2 mil 525 dias (incluindo hoje). Durante dois mil desses dias têm feito isso
violando a Lei para o Diálogo, a Negociação e a Paz Digna em Chiapas, aprovada pelo Congresso da União no dia
10 de março de 1995.
Ao longo destes quase sete anos de guerra, nós zapatistas resistimos e enfrentamos dois Executivos
federais (autodenominados “presidentes”), dois Ministros da Defesa Nacional, seis Secretários de Governo, cinco
enviados de “paz”, cinco “governadores” de Chiapas e uma multidão de funcionários dos escalões intermediários.
Todos eles já se foram. Alguns estão sendo investigados por suas ligações com o crime organizado, outros estão no
exílio ou a caminho dele, outros ainda estão desempregados.
Mais de uma vez, durante estes quase sete anos, nós zapatistas temos insistido na via do diálogo. Fizemos
isso porque temos um compromisso com a sociedade civil que exigiu de nós que calássemos as armas e
tentássemos um acordo pacífico.
88
Agora que você assume a titularidade do Poder Executivo federal, deve saber que, além da guerra do
sudeste mexicano, herda a possibilidade de escolher como irá enfrentá-la.
Durante a sua campanha e a partir do dia 2 de julho, você, senhor Fox, tem dito mais de uma vez que vai
escolher o diálogo para enfrentar as nossas reivindicações. Zedillo disse a mesma coisa durante os meses que
antecederam a sua posse e, todavia, dois meses depois da mesma, ordenou uma grande ofensiva militar contra nós.
Você deve entender porque a desconfiança em relação a tudo o que é governo, independentemente do
partido político ao qual pertence, já tem marcado de
forma indelével o nosso pensamento e o nosso caminhar.
Se à nossa compreensível desconfiança diante da
palavra do poder acrescentamos o monte de contradições
e leviandades que você e aqueles que o acompanham têm
despejado sem visão alguma, é também meu dever
assinalar-lhe que com nós zapatistas (e acredito que não
só com os zapatistas) você parte do zero no que se refere
à credibilidade e confiança.
Não podemos confiar em quem demonstrou
superficialidade e ignorância ao apontar que as
reivindicações indígenas se resolvem com “fusca,
televisão e mercearia”.
Não podemos dar crédito a quem pretende
“esquecer” (isto é, “anistiar”) as centenas de crimes
cometidos pelos paramilitares e seus patrões outorgando-lhe a impunidade.
Não nos inspira confiança quem, com a visão curta da lógica gerencial, tem como plano de governo o de
transformar os indígenas em mini-micro-empresários ou em empregados do empresário dos seis anos deste
mandato. No fim das contas, este plano nada mais é a não ser a tentativa de continuar com o etnocídio que, sob
diferentes modalidades, o neoliberalismo leva adiante no México.
Por isso é bom que você saiba que nada disso irá prosperar em terras zapatistas. O seu programa
“desapareça um indígena e se crie um empresário” não será permitido em nossas terras. Aqui, e sob muitos outros
céus mexicanos, o ser indígena não tem a ver só com o sangue e a origem, mas também com uma visão da vida, da
morte, da cultura, da terra, da história, do amanhã.
Os que tentaram nos aniquilar com as armas têm fracassado. Fracassarão os que tentam eliminar-nos
transformando-nos em “empresários”.
Repare que já tenho sublinhado que, com nós zapatistas, você parte do zero em credibilidade e confiança.
Isso significa que, por enquanto, você não tem que recuperar nada de negativo (porque é justo assinalar que você
não nos atacou). Então, você pode dar razão àqueles que apostam que o seu governo irá repetir o pesadelo do PRI
para todos os mexicanos, especialmente para os zapatistas. Ou, partindo do zero, você pode começar a construir
com os fatos o que todo governo precisa para o seu trabalho: a credibilidade e a confiança. A desmilitarização que
você tem anunciado (ainda que com termos diferentes que variam entre “retirada total”, “realocação” ou
“rearranjo”, que não são iguais, coisa que você, seus soldados e nós todos sabemos) é um início, insuficiente, mas
necessário.
Não só em Chiapas, mas, sobretudo, em Chiapas, você pode dar razão àqueles que desejam o seu fracasso
ou àqueles que lhe concedem o benefício da dúvida ou depositam plenamente em você isso que chamam de
“esperança”.
Senhor Fox: à diferença do seu predecessor Zedillo (que chegou ao poder pela via do homicídio e com o
apoio desse monstro corrupto que é o sistema de partido de Estado), você chega ao executivo federal graças ao
repúdio que o PRI cultivou com esmero entre a população. Você sabe disso muito bem, senhor Fox: você ganhou a
eleição, mas não derrotou o PRI. Foram os cidadãos. E não só os que votaram contra o partido de Estado, como
também os das gerações anteriores e atuais que, de uma forma ou de outra, resistiram e combateram a cultura do
autoritarismo, da impunidade e do crime que construíram os governos priistas ao longo de 71 anos.
Ainda que tenha uma diferença radical quanto à forma pela qual você chega ao poder, o seu projeto
político, social e econômico é o mesmo que nos fez sofrer ao longo dos últimos mandatos. Um projeto de país que
significa a destruição do México enquanto nação e sua transformação numa loja de departamentos, algo assim
como um mega “camelódromo” que vende serem humanos e recursos naturais aos preços ditados pelo mercado
mundial. Os ocultos projetos de privatização do setor elétrico, do petróleo e da educação, e o IVA que você
pretende impor aos remédios e aos alimentos, são apenas uma pequena parte do grande projeto de “reestruturação”
que os neoliberais têm para os mexicanos.
Mas isso não é tudo. Com você contemplamos a volta de posições moralistas cujo marco são a intolerância
e o autoritarismo. Não é por acaso que com os resultados do dia 2 de julho a direita confessional desatou uma
ofensiva de perseguição e destruição. E isso tem atingido mulheres (violentadas ou não), jovens, artistas plásticos e
89
dramaturgos, homossexuais e lésbicas. Com os aposentados e pensionistas, os inválidos, os indígenas e uns 70
milhões de mexicanos pobres, estes grupos são chamados de “minorias”. Estas “minorias”, senhor Fox, não têm
possibilidade de entrar no seu México.
Nós nos opomos a esta México e o faremos de forma radical. Pode ou não lhe deixar preocupado o fato de
um grupo de mexicanos, indígenas em sua maioria, além do mais, não concorde com planos mercantis e com a
beligerância da direita. Mas você não deve esquecer que se o PRI perdeu o poder é porque a maioria dos mexicanos
se rebelou e conseguiu tirá-lo.
Esta rebelião não terminou.
Do dia 02 de julho até hoje, você e a sua equipe não têm feito outra coisa a não ser insistir no fato de que os
cidadãos devem voltar ao conformismo e a imobilismo. Mas não será assim, o seu projeto neoliberal enfrentará a
resistência de milhões.
Alguns membros do seu gabinete e próximos a ele dizem que o EZLN deve entender que o país mudou,
que (para os zapatistas) não há outra saída a não ser aceitar isso, render-se, tirar o passamontanhas e fazer sua
solicitação de crédito para abrir uma vendinha, comprar uma televisão e pagar as prestações de um carro popular.
Enganam-se. Nós lutamos pela mudança, mas para nós “mudança” significa “democracia liberdade e
justiça”. A derrota do PRI era a condição necessária para que o país mudasse, mas não suficiente. Faltam muitas
coisas, você e os poucos políticos que compõem o seu gabinete sabem disso. Faltam muitas coisas sim e, o que é
mais importante, milhões de mexicanos e mexicanas sabem disso.
Faltam, por exemplo, os indígenas. Falta reconhecer na constituição os seus direitos e a sua cultura que,
acredite, nada têm a ver com as ofertas de promoção empresarial. Falta desmilitarizar e desparamilitarizar as
comunidades indígenas. Falta libertar os presos de consciência. Falta apresentar os desaparecidos políticos. Falta
construir e defender a soberania nacional. Falta um programa econômico que satisfaça as necessidades dos mais
pobres. Falta que as pessoas sejam cidadãs o tempo todo. Falta que os governantes prestem contas. Mas também
falta a paz.
Senhor Fox: durante mais de seis anos, o seu predecessor, Zedillo, fingiu ter vontade de dialogar e nos fez a
guerra. Escolheu o enfrentamento e perdeu. Agora você tem a oportunidade de escolher.
Caso escolha a via do diálogo sincero, sério e respeitoso, apenas demonstre a sua disposição com os fatos.
Tenha certeza de que terá uma resposta positiva por parte dos zapatistas. Assim, o diálogo poderá ser retomado e,
logo, a paz verdadeira começará a ser construída.
No comunicado público que lhe anexamos, o EZLN dá a conhecer uma série de sinais mínimos por parte
do executivo federal. Se estes se realizarem estará tudo pronto para voltar ao diálogo.
O que estará em jogo não é se nós nos opomos ao que você representa e ao que você significa para o nosso
país. Quanto a isso não deve haver dúvida: nós somos seus contrários. O que estará em jogo é se esta oposição se
dá por canais civis e pacíficos, ou se devemos continuar insurretos, com as armas na mão e com o nosso rosto
coberto até conseguir o que buscamos e que não é outra coisa, senhor Fox, a não ser democracia, liberdade e justiça
para todos os mexicanos.
Valeu. Saúde e oxalá esteja certo isso de que no México e em Chiapas terá um novo amanhecer.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos.

COMUNICADO DO COMITÊ CLANDESTINO REVOLUCIONÁRIO INDÍGENA


COMANDO GERAL DO EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO
NACIONAL. MÉXICO

02 de dezembro de 2000.

Ao povo do México:
Aos povos e governos do mundo:

Diante do novo titular do Poder Executivo federal, o EZLN define a sua posição no que diz respeito às
possibilidades de uma solução pacífica para a guerra.

Primeiro. O EZLN reitera a sua disposição a buscar, encontrar e seguir os caminhos pacíficos do diálogo e da
negociação, para chegar ao fim da guerra e iniciar uma paz justa e digna com os povos indígenas do México.
90
Segundo. O objetivo do diálogo e da negociação é de chegar a acordos e de cumpri-los. Tanto o diálogo como a
realização de acordos são possíveis somente quando são construídos sobre uma base feita de confiança e de
credibilidade. As partes devem demonstrar que são dignas de confiança e que se pode acreditar em seus
compromissos.

Terceiro. Ao longo de seus sete anos de vida pública (e 17 anos de existência), o EZLN tem demonstrado que sua
palavra goza de credibilidade e nos orgulhamos de cumprir a nossa palavra. São prova disso não só a nossa história,
como também nossa atual disposição ao diálogo.

Quarto. O EZLN pede ao governo federal sinais concretos que comprovem sua disposição ao diálogo e à
negociação, seu compromisso de chegar a acordos e de cumpri-los, e sua firme decisão de construir a paz com os
povos indígenas do México.

Quinto. Os sinais que pedimos são:


A) Cumprimento dos Acordos de San Andrés. Concretamente, que o projeto elaborado pela Comissão de
Concórdia e Pacificação (COCOPA) seja transformado em lei.
B) A libertação de todos os zapatistas presos nos presídios de Chiapas e dos outros Estados.
C) Desmilitarização. O senhor Vicente Fox, durante a sua campanha e em todo o período posterior ao dia 2 de
julho de 2000, tem prometido a retirada das forças armadas federais do território zapatista e a volta do Exército às
posições que ocupava antes do início da guerra.

Ontem o Exército deu início a uma série de movimentações que reduzem os pontos de fiscalização e controle
(postos militares). Até onde chega a nossa informação, estas movimentações não alteraram o número e a densidade
das tropas federais no interior da chamada “zona de conflito”; estas movimentações poderiam ser interpretadas
como uma simples tática propagandista que procura apresentar como “retirada” o que é apenas uma redução dos
pontos de fiscalização e controle, mas também podem ser interpretadas como o início de uma desmilitarização
maior. Fazendo um esforço, o EZLN avalia isso como um sinal de disposição a compromissos maiores.

O EZLN sabe que a reivindicação da opinião pública nacional e internacional é a completa retirada do Exército,
mas considera que é também seu dever oferecer sinais de sua disposição ao diálogo e à solução pacífica do conflito.
Até o dia 1º de dezembro deste ano, as diversas forças policiais e militares do governo ocupavam 655 pontos
geográficos de Chiapas, sendo que desse total, 259 são do Exército federal.

Como condição para retomar o processo de pacificação, o EZLN reivindica a retirada e o fechamento de sete destas
259 posições.
1. Amador Hernández; neste caso, além do mais, deverá ser anulado o decreto de expropriação expedido por
Zedillo.
2. Guadalupe Tepeyac.
3. Rio Euseba (perto do Aguascalientes de La Realidad).
4. Jolnachoj (perto do Aguascalientes de Oventik).
5. Roberto Barrios (perto do Aguascalientes desse lugar).
6. La Garrucha (perto do Aguascalientes desse lugar).
1. Cuxuljá (perto da comunidade de Moisés Gandhi).

A retirada deve ser completa e não deve ser substituída por nenhum outro corpo militar ou policial (seja ele
estadual ou federal, não deve ser disfarçada com simples afastamentos geográficos dos pontos indicados, ou seja,
retirar não significa “afastar-se alguns metros”. Qualquer nova posição militar ou policial, estadual ou federal, será
tomada como uma trapaça e anulará todos os sinais.

No momento em que estes sinais tiverem sido cumpridos, o EZLN fará chegar ao enviado de paz do governo
federal e à opinião pública, uma carta na qual iremos propor lugar, data e pauta para um primeiro encontro direto
entre o enviado governamental e a direção zapatista.

Neste primeiro encontro direto, a direção zapatista irá propor o início formal do diálogo e da negociação para a paz
justa e digna em Chiapas entre o EZLN e o governo do senhor Vicente Fox.

Com a simplicidade e a exeqüibilidade destas reivindicações, o EZLN dá uma demonstração clara de sua
verdadeira disposição de seguir até às últimas conseqüências, ou seja, até o fim da guerra, o caminho do diálogo e
da negociação.
91

A retomada do diálogo entre o governo federal e o EZLN é possível. São necessários fatos claros por parte do
Executivo federal e disposição do EZLN ao diálogo, mas não são suficientes. Faz-se necessária também a
mobilização da sociedade civil nacional e internacional.

Por isso, lançamos um apelo especial a todos os homens e mulheres de boa vontade, no México e no mundo, para
que se mobilizem exigindo a concretização destes sinais e a retomada do diálogo.

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos
México, dezembro de 2000.

COMUNICADO DO COMITÊ CLANDESTINO REVOLUCIONÁRIO INDÍGENA


COMANDO GERAL DO EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO
NACIONAL. MÉXICO
02 de dezembro de 2000.

Ao povo do México:
Aos povos e governos do mundo:

Irmãos e irmãs.
Considerando:

1. Que não é possível conceber um México digno sem um lugar digno para os povos indígenas do país.

2. Que o reconhecimento constitucional dos direitos e da cultura dos povos indígenas é uma pendência cuja solução
não pode ser postergada por mais tempo.

3. Que o povo do México e os povos do mundo têm sido sensíveis às reivindicações indígenas e têm se
solidarizados com eles de acordo com suas possibilidades.

4. Que o EZLN deu sustentação à causa indígena por ser uma bandeira importante.

5. Que é conhecida por todos a decisão atual do Executivo federal de comprometer-se com o cumprimento dos
Acordos de San Andrés e enviar ao Congresso da União o projeto de lei indígena elaborado pela COCOPA em
dezembro de 1996.

O Exército Zapatista de Libertação Nacional declara:

Primeiro. Convocar o Congresso Nacional Indígena, a sociedade civil nacional e internacional, as organizações
políticas e sociais e todas as pessoas em geral a uma grande mobilização com o objetivo de fazer com que o
Congresso da União mexicano aprove o reconhecimento constitucional dos direitos e da cultura indígenas, de
acordo com a iniciativa da COCOPA.

Segundo. Que decidiu enviar uma delegação do CCRI-CG do EZLN à Cidade do México com o objetivo de liderar
esta mobilização e dirigir-se ao honorável Congresso da União para argumentar diante dos legisladores os pontos
positivos da chamada “proposta de projeto de lei indígena da COCOPA”.

Terceiro. Que esta delegação será integrada por 24 membros do CCRI-CG do EZLN, sendo que estes
companheiros e companheiras representam as etnia tzotzil, tzeltal, tojolabal, chol, zoque, mame e mestiço. Seus
nomes são:

Comandante David.
Comandante Eduardo.
92
Comandante Tacho.
Comandante Gustavo.
Comandante Zevedeu.
Comandante Sergio.
Comandanta Susana.
Comandante Omar.
Comandante Javier.
Comandante Filemón.
Comandanta Yolanda.
Comandante Abraham.
Comandante Isaías.
Comandante Daniel.
Comandante Bulmaro.
Comandante Mister.
Comandante Abel.
Comandanta Fidelia.
Comandante Moisés.
Comandante Alejandro.
Comandanta Esther.
Subcomandante Insurgente Marcos.
Comandante Maxo.
Comandante Ismael.

Quarto. Que a delegação zapatista irá à Cidade do México no mês de fevereiro do ano de 2001, em data a ser
marcada posteriormente.

Quinto. Que convocamos o Congresso Nacional Indígena e os povos indígenas de todo o México para que,
independentemente de sua filiação política, se organizem, se mobilizem e se unam à nossa delegação para
reivindicar do Congresso da União o reconhecimento dos direitos e da cultura indígenas.

Sexto. Que fazemos um apelo à sociedade civil mexicana para que se organize e se mobilize para apoiar esta
reivindicação.

Sétimo. Que fazemos um apelo aos comitês de solidariedade, grupos e indivíduos do mundo inteiro para que se
manifestem em torno desta reivindicação.

Oitavo. A delegação zapatista convoca e espera o acompanhamento da sociedade civil em seu conjunto, sem
distinções e sem preferências, para a qual dará a conhecer mais adiante o programa e os itinerários da viagem até à
Cidade do México, cuja organização estará única e exclusivamente nas mãos do EZLN.

Nono. A viagem de uma delegação zapatista ao D. F. será realizada independentemente do diálogo com o governo
federal ter sido retomado ou não. Vamos nos dirigir ao Poder Legislativo, com a certeza de que encontraremos
sensibilidade para sermos ouvidos.

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos

COMUNICADO DO COMITÊ CLANDESTINO REVOLUCIONÁRIO INDÍGENA


COMANDO GERAL DO EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO
NACIONAL. MÉXICO
Ao povo do México:
Aos povos e governos do mundo:

Irmãos e irmãs:
93

O Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação


Nacional declara que:

Primeiro: O EZLN saúda a nomeação do senhor Luis H. Alvarez como novo enviado para a Paz.
Segundo: O EZLN reconhece que, até o momento, o senhor Luis H. Alvarez tem se dirigido a nós com a seriedade,
o respeito e a responsabilidade necessárias para este cargo tão delicado.
Terceiro: O EZLN anuncia que, ao cumprir-se os sinais reivindicados para o início do diálogo, outorgará ao senhor
Luis H. Alvarez o caráter de “interlocutor válido”.

Democracia! Liberdade! Justiça!


Das montanhas do Sudeste Mexicano
Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos
EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.
8 de dezembro de 2000.

À imprensa nacional e internacional:

Damas e cavalheiros:

Segue uma carta para os caminhantes e um comunicado. Parece que isso vai se arrastar. E não digo isso
em função dos abundantes comerciais sobre uma inexistente paz em Chiapas, e sim pelo que dona Xóchitl
declarou: a reforma constitucional sobre direitos e cultura indígenas vai levar, pelo menos, uns dois anos (e
depois dizem que somos nós zapatistas que queremos atrasar a solução do conflito). Não vão ser menos de 2 anos
sem fusca, televisão e mercearia.

Valeu. Saúde e não vou mais começar pontualmente uma coletiva com a imprensa. Não achem que eu não
percebi o sarcasmo em suas matérias.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, dezembro de 2000.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.


Dezembro de 2000.

Aos integrantes da marcha de Xi’Nich e de Las Abejas


que chegaram à Cidade do México.

Irmãos e irmãs:

Foi com silenciosa esperança que vimos vocês partirem destas montanhas indígenas do sudeste mexicano.
Ainda em silêncio, ouvimos o seu passo alcançando as terras irmãs de Oaxaca e Veracruz.

Já longe, por aqui batemos palmas junto com aqueles que os recebiam. Também as nossas mãos estiveram
junto com aquelas daqueles que os alimentaram e agasalharam.

Uma vez aberta novamente a nossa palavra, o tambor do nosso coração bate com os seus passos e os
nossos olhos se entrelaçam com os seus diante da cidade dos prédios, morada de governos sim, mas também de
lutadores de muitas peles.

Durante séculos, tem sido esta a nossa história.Longas caminhadas até o palacete do senhor que governa
ouvindo pouco e falando muito. Muitos passos para que se ouça a nossa palavra antiga.
94
Muitos passos para darmo-nos conta de que, ainda que o poderoso não ouça, quem nos ouve é o outro
que, como nós, é diferente, o homem e a mulher que descobrimos nossos irmãos ainda que sejam diferentes o
sangue e a história que nos amamentaram.

Foram muitos passos. Muitos passos caminham com vocês. Muitos virão depois. Será assim até que o
poderoso entenda que não é só a história que anda pelo nosso caminho e em nosso passo, como por eles também
caminha o amanhã.

Saudamos vocês irmãos e irmãs de Xi’Nich e de Las Abejas! Saudamos o seu passo! Nele caminhamos
hoje nós que nele andamos ontem e caminharemos amanhã.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, dezembro de 2000.

COMUNICADO DO COMITÊ CLANDESTINO REVOLUCIONÁRIO INDÍGENA


COMANDO GERAL DO EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO
NACIONAL. MÉXICO
8 DE DEZEMBRO DE 2000.

AO POVO DO MÉXICO:
AOS POVOS E GOVERNOS DO MUNDO:

IRMÃOS E IRMÃS:

PRIMEIRO. HOJE, 8 DE DEZEMBRO DE 2000, O GOVERNADOR EM REBELDIA, DON AMADO


AVENDAÑO FIGUEROA, ENCERRA OS SEUS SEIS ANOS À FRENTE DO EXECUTIVO DO ESTADO DE
CHIAPAS. DURANTE O SEU MANDATO, O AGORA EX-GOVERNADOR AVENDAÑO SOFREU
PERSEGUIÇÕES, CALÚNIAS E, QUANDO CANDIDATO, UM ATENTADO CONTRA A SUA VIDA.
AINDA ASSIM, SE MANTEVE FIRME E, APESAR DAS AMEAÇAS E DAS CHANTAGENS, CONTINUOU
O SEU TRABALHO SEM ESTARDALHAÇOS.
ENTRE O QUE CONSEGUIU ESTÃO A DIVULGAÇÃO DAS REIVINDICAÇÕES INDÍGENAS NO MUNDO
TODO, A SUA POSIÇÃO DIANTE DA MILITARIZAÇÃO E PARAMILITARIZAÇÃO DAS
COMUNIDADES, O SEU REPÚDIO À ESTRATÉGIA DE ENGANAÇÃO DO GOVERNO DE ZEDILLO, O
SEU APEGO A UMA ÉTICA POLÍTICA DA QUAL MUITOS TERIAM BASTANTE A APRENDER. SEIS
ANOS DEPOIS DE SUA POSSE, DON AMADO AVENDAÑO ENTREGA BONS RESULTADOS ÀQUELES
QUE O ELEGERAM E O APOIARAM APESAR DA FRAUDE ELEITORAL DA QUAL FOI VÍTIMA.
ATRAVÉS DO EZLN, AS COMUNIDADES INDÍGENAS RECONHECEM PUBLICAMENTE O MÉRITO DO
HOJE EX-GOVERNADOR DE CHIAPAS. ELE PODE SE SENTIR SATISFEITO DE TER CUMPRIDO O SEU
DEVER. DESEJAMOS A ELE MUITO SUCESSO AGORA QUE VOLTA À PROFISSÃO QUE O TORNOU
CONHECIDO NO MUNDO COMO UM HOMEM HONESTO E ÍNTEGRO: O JORNALISMO.

SEGUNDO. HOJE, O SENHOR PABLO SALAZAR MENDIGUCHÍA TOMOU POSSE COMO NOVO
TITULAR DO EXECUTIVO ESTADUAL DE CHIAPAS. DO MESMO MODO QUE O EXECUTIVO
FEDERAL, O SENHOR SALAZAR MENDIGUCHÍA TEM AGORA A POSSIBILIDADE DE CONTRIBUIR,
ANTES, COM A RETOMADA DO DIÁLOGO E, EM SEGUIDA, PARA FAZER COM QUE ESTE AVANCE
COM SERIEDADE E RESPONSABILIDADE ATÉ CHEGAR AO FIM DA GUERRA E AO INÍCIO DA
CONSTRUÇÃO DA PAZ COM JUSTIÇA E DIGNIDADE.

TERCEIRO. DE ACORDO COM AS INFORMAÇÕES DE UMA TRANSMISSÃO DE RÁDIO,


DURANTE A SUA POSSE, O SENHOR SALAZAR DISSE TER A INTENÇÃO DE LEVAR ADIANTE
VÁRIAS AÇÕES COMO PARTE DO SEU PROGRAMA DE GOVERNO. AO TORNAREM-SE REALIDADE,
ESTAS MEDIDAS AJUDARÃO A REDUZIR A TENSÃO, O QUE É NECESSÁRIO PARA O DIÁLOGO,
AINDA QUE, NO QUE SE REFERE À LIBERTAÇÃO DOS ZAPATISTAS PRESOS, É PRECISO LEMBRAR
QUE, ALÉM DOS DE CHIAPAS, HÁ SIMPATIZANTES DO EZLN NAS PRISÕES DOS ESTADOS DE
TABASCO E QUERÉTARO.
95
QUARTO. O EZLN REITERA SEU CHAMADO À SOCIEDADE CIVIL NACIONAL E
INTERNACIONAL PARA QUE SE MOBILIZEM EXIGINDO DO GOVERNO FEDERAL O CUMPRIMENTO
DOS 3 SINAIS ESTABELECIDOS: RECONHECIMENTO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS E DA
CULTURA INDÍGENAS DE ACORDO COM A INICIATIVA DA COCOPA, A LIBERDADE PARA TODOS
OS ZAPATISTAS PRESOS EM TODA A REPÚBLICA, A RETIRADA TOTAL DAS 7 POSIÇÕES DO
EXÉRCITO FDERAL DA ZONA DE CONFLITO.

DEMOCRACIA! LIBERDADE! JUSTIÇA!

DAS MONTANHAS DO SUDESTE MEXICANO


PELO COMITÊ CLANDESTINO REVOLUCIONÁRIO INDÍGENA - COMANDO GERAL DO
EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL.
SUBCOMANDANTE INSURGENTE MARCOS
MÉXICO, DEZEMBRO DE 2000.
EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.

20 de dezembro de 2000.

À imprensa nacional e internacional:

Damas e cavalheiros:

Segue um comunicado sobre um aniversário lamentável e outro sobre os paramilitares que ameaçam repeti-
lo.
Como todos vocês, estamos preocupados com o Popocatépetl e com o céu de angústias que estende sobre
muitas pessoas que vivem nas proximidades. Desejamos de coração que não evolua para algo pior. Vai aqui a nossa
solidariedade para os nossos irmãos e irmãs.
Tomara que a presunçosa auto-suficiência com a qual o governo atual está enfrentando o problema não
acabe numa piada cruel. Não é a primeira vez que se pretende prevenir uma catástrofe com declarações oficiais.

Valeu. Saúde e se qualquer tragédia pode se repetir, então é porque não mudou nada.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, dezembro de 2000.

Comunicado do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do


Exército Zapatista de Libertação Nacional. México.

20 de dezembro de 2000.

Ao povo do México:
Aos povos e aos governos do mundo:

Irmãos e irmãs:

No próximo dia 22 de dezembro, se completam 3


anos da matança de Acteal. Nesse dia, 3 anos atrás, 45
crianças, mulheres, homens e anciãos, todos eles
indígenas, foram massacrados por um grupo
paramilitar do governo de Ernesto Zedillo.

Os mentores intelectuais deste crime contra a


humanidade continuam impunes. A guerra suja que o
tornou possível continua agindo. A doutrina de contra-
96
insurreição que o inspirou continua presente. As estruturas paramilitares que o realizaram permanecem
intocadas. A proteção militar aos assassinos continua.

Contrariando o que diz a ampla campanha publicitária do governo, nada mudou. Não há nada em Chiapas
que possa garantir que Acteal não irá se repetir.

Para que Acteal passe definitivamente ao passado do nosso país é necessário que sejam punidos os
verdadeiros culpados, é necessário que se abandone definitivamente a ótica da guerra e haja um compromisso sério
com a via política, é necessário que os grupos paramilitares sejam desmantelados, é necessário assentar as bases do
diálogo através dos sinais reivindicados.

O EZLN faz um apelo às organizações políticas, sociais e não governamentais, aos intelectuais e aos
artistas, aos religiosos e religiosas, a todas as pessoas honestas do mundo para que se mobilizem exigindo que se
acabe com a política que tornou possível Acteal e que se cumpram os três sinais exigidos para a retomada do
diálogo.

Democracia! Liberdade! Justiça!


Das montanhas do Sudeste Mexicano
Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos
México, dezembro de 2000.

Comunicado do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do


Exército Zapatista de Libertação Nacional. México.

20 de dezembro de 2000.

Ao povo do México:
Aos povos e aos governos do mundo:

Irmãos e irmãs:

Primeiro. Hoje, 20 de dezembro de 2000, na comunidade indígena Santa Fe El Duraznal, município de


Chilón, Chiapas, nove famílias bases de apoio zapatistas tiveram que se refugiar nas montanhas. Um número
indeterminado de militantes do PRI, entre os quais se encontram alguns paramilitares, chegaram a este povoado por
volta das 18.00 horas com a intenção de repetir a matança de Acteal, obrigando homens, mulheres, crianças e
anciãos zapatistas a fugirem para as montanhas abandonando seus poucos pertences. As nove famílias zapatistas
estão vivendo ao relento enquanto o povoado continua em poder dos paramilitares.
Segundo. Até agora, o governo não tem feito nada para controlar os paramilitares, que já passaram das
ameaças aos fatos. Através de atos como este, o PRI chiapaneco reafirma a sua decisão de continuar recorrendo à
violência para suprir sua falta de legitimidade.
Terceiro. Nem o diálogo e nem a paz serão uma realidade em Chiapas enquanto os grupos paramilitares
continuarem fora de controle. A atitude de espera paciente e de resistência pacífica mantida pelas bases de apoio
zapatistas deve ser respeitada.

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos
México, dezembro de 2000.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.


22 de dezembro de 2000.
97
À imprensa nacional e internacional:

Damas e cavalheiros:
Segue um comunicado sobre a recente retirada das tropas.
Quando chegaram, os soldados vieram furtivamente, mas agora que se retiram o fazem com um grande
estardalhaço publicitário. Para dizer a verdade, se a paz chegar, não nos importa que se apresentem como
zapatistas aqueles que não o são (os da ARIC) e como promotores da paz os que têm feito a guerra suja (os
militares). É a síndrome do camaleão que navega para onde os ventos o carregam.
Valeu. Saúde e que o fim do ano seja também o fim da desesperança.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos.
México, dezembro de 2000.

P. S. Durito diz que mudará de nome. Não será mais “Don Durito de la Lacandona” e sim “Durito ponto com”.
Diz que agora ele anda na onda da “excelência empresarial”.

P.S. DIALÉTICO (OU SEJA, QUE SE CONTRADIZ). Por fim Durito diz que não, nada de “ponto com”, nem
“excelência” e nem “empresarial”. Diz que em tempos de viagens é necessário um marinheiro. La Mar concorda.
Eu pego os comprimidos para o enjôo.

Comunicado do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do


Exército Zapatista de Libertação Nacional. México.
22 de dezembro de 2000.

Ao povo do México:
Aos povos e governos do mundo:

Irmãos e irmãs:
Durante a manhã de hoje, o Exército Federal se retirou da posição que mantinha na comunidade Amador
Hernández desde o mês de agosto de 1999. Neste mesmo dia, o senhor Vicente Fox anunciou a revogação do
decreto de expropriação, promulgado pelo governo Zedillo, que desapossava as terras dos indígenas de Amador
Hernández para que se construísse aí uma base militar.
Desde o primeiro dia em que os soldados federais ocuparam ilegal e ilegitimamente as terras indígenas de
Amador Hernández, as bases de apoio zapatistas desse lugar e dos povoados vizinhos mantiveram um plantão
diante do acampamento militar para exigir sua retirada.
Homens, mulheres, crianças e anciãos zapatistas estiveram protestando todos os dias, sem nunca abandonar
seus reclamos. Sem se importar com o frio, o calor, a fome, a doença e o cansaço, os zapatistas enfrentaram o
autoritarismo federal sem usar outras armas que não fossem sua dignidade, sua rebeldia, seu engenho e sua
criatividade. Achando que os zapatistas acabariam se cansando de protestar, se resignariam em ver suas terras
ocupadas e voltariam às suas casas, os militares usaram todos os seus recursos para desanimar o protesto. Foi inútil.
A cada manhã se deparavam com o fato de que os zapatistas continuavam aí.
Foi neste lugar, em Amador Hernández, que, pela primeira vez, entrou em ação a força aérea zapatista para
contra-arrestar o barulho ensurdecedor com o
qual os militares pretendiam calar seus
protestos. Os zapatistas “bombardearam” o
quartel federal com centenas e aviõezinhos
de papel.
Como esta, as bases zapatistas deram
outras amostras de engenho e criatividade na
resistência pacífica. Nela, não estiveram sós.
Durante temporadas, dezenas de homens e
mulheres do México e do mundo os
acompanharam em sua resistência.
Sem outro interesse a não ser o de
manifestar sua inconformidade diante de uma
injustiça, em diferentes lugares do México e
98
do mundo, as pessoas se mobilizaram em apoio à reivindicação que pedia a saída do Exército Federal das terras
invadidas. Com os indígenas zapatistas, estas pessoas partilharam a fome, o frio ou o calor, o desvelo e o cansaço,
mas também a crença numa causa justa.
Hoje que os soldados, finalmente, se retiraram desta posição, temos que reconhecer que estes homens e
mulheres indígenas zapatistas, e com eles também aqueles que os acompanharam pessoalmente ou através de
mobilizações, se mantiveram firmes e dignos nesta resistência pacífica que durou mais de um ano.
O triunfo representado pela retirada do Exército deste lugar pertence a esses indígenas zapatistas e à
sociedade civil nacional e internacional que nunca os deixou sozinhos.
Por outro lado, a retirada de uma das sete posições reivindicadas pelo EZLN é um bom sinal e representa
um primeiro e importante passo no caminho da retomada do diálogo. Faltam as seis posições restantes, a libertação
dos presos e o reconhecimento constitucional dos direitos e da cultura indígenas.
O governo de Vicente Fox não tem o que temer, como, seguramente, lhe dirão as pessoas que estão perto
dele e que nos conhecem; nós zapatistas, sim, mantemos a palavra.
Haverá diálogo se forem cumpridos os três sinais reivindicados. A uma vontade séria e verdadeira de
diálogo e de paz, o EZLN responderá com a mesma postura.
Finalmente: fazemos um apelo à sociedade civil Nacional e internacional para que se mobilize e, assim
como agora se conseguiu a retirada militar de Amador Hernández, se consiga a das outras seis posições, a
libertação dos zapatistas presos e o reconhecimento constitucional dos direitos e da cultura indígenas.

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos
México, dezembro de 2000.

Você também pode gostar