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Emilio Gennari (Org.

Traduções dos comunicados do


Exército Zapatista de Libertação
Nacional. México, 1999.

Ao reproduzir... cite a fonte.

Quinto Aniversário do Levante Zapatista


2

1º de janeiro de 1999.

Ao povo do México.
Aos povos e governos do mundo.

Irmãos e irmãs:
No dia de hoje celebramos o quinto aniversário do levante das tropas zapatistas que pedem democracia,
liberdade e justiça para todos os mexicanos. Por esta razão o CCRI-CG do EZLN diz a sua palavra.

1. Acteal: o extermínio e a impunidade como políticas de Estado.

O ano de 1998 foi o ano da guerra do governo contra as comunidades indígenas do México. Este ano de
guerra inicia em 22 de dezembro de 1997 com o massacre de Acteal. Nesse dia, grupos paramilitares armados,
treinados e dirigidos pelos governos federal e estadual assassinaram 45 indígenas, entre crianças, mulheres e
homens. Este gesto de brutalidade marcou o início de uma ampla ofensiva militar e policial contra os povos
indígenas de Chiapas.
Acteal é o melhor exemplo da forma de fazer política do governo de Ernesto Zedillo. Os crimes cometidos
pelo poder têm garantia de impunidade e encobrimento por parte de todo o aparelho do Estado. O chamado “Livro
Branco” da Procuradoria Geral da República tem o único objetivo de garantir a impunidade dos cérebros doentes
que conceberam, planejaram e ordenaram a matança de Acteal. Será inútil.
Os mentores intelectuais do massacre de Acteal têm nome e apelido. A lista é encabeçada por Ernesto
Zedillo Ponce de León, seguido por Emilio Chuayffet, Francisco Labastida, pelo general Enrique Cervantes, Julio
César Ruiz Ferro e Adolfo Orive. Para o trabalho de encobrimento, uniram-se a estes Rosario Green, Emilio
Rabasa Gamboa, Roberto Albores Guillén e Jorge Madrazo Cuéllar. Estes criminosos ocupam, ou ocuparam,
diversos cargos governamentais nos âmbitos federal e estadual e, mais cedo ou mais tarde, terão que comparecer
perante a justiça para responder por seu grau de envolvimento neste acontecimento brutal e sangrento que marcou
definitivamente este final de século no México.
O estímulo dado à ação dos grupos paramilitares constitui a coluna vertebral da guerra suja do governo
Zedillo contra os indígenas mexicanos. Desde fevereiro de 1995, quando fracassou a ofensiva militar desencadeada
pela traição do governo, Ernesto Zedillo tomou conhecimento, aprovou e pôs em andamento a estratégia
paramilitar para acabar com a luta zapatista através do uso da força. Enquanto o Partido Revolucionário
Institucional (PRI) fornecia a mão de obra desta empreitada de morte e o Exército federal dava armas, munições,
equipamentos, assessoria e treinamento, o governo Zedillo iniciava a simulação de um diálogo e de uma
negociação que não buscavam, e continuam não buscando, uma solução pacífica para o conflito. Ao contrário, as
diferentes equipes “negociadoras” do governo tinham e tem uma única tarefa a cumprir: “Simular uma vontade de
diálogo, atrasar seguidamente o fechamento dos acordos e seu cumprimento, impedir a assinatura definitiva da
paz”. Esteban Moctezuma Barragán, Marco Antonio Bernal, Jorge Del Valle, Gustavo Iruegas e Emilio Rabasa
Gamboa são os diferentes nomes que assumiu a hipocrisia governamental. Sabendo que estavam sendo usados a
favor da guerra, nenhum deles teve a coragem de negar-se a ser cúmplice dos assassinatos que é tudo o que o
governo soube oferecer ao conflito no sudeste mexicano.
Um nome resume a posição governamental no que diz respeito à Chiapas: Acteal, o extermínio que quer
ser ocultado pela hipocrisia, a impunidade garantida pela legalidade institucional.

2. Os ataques contra a paz em Chiapas.

Ao crime de Acteal seguiu-se uma série de fatos violentos, todos eles protagonizados pelo governo, cujo
objetivo era bem claro: quebrar toda iniciativa de paz, destruir toda esperança de uma solução pacífica do conflito e
renovar, de tempos em tempos, o canto de guerra e de morte contra os primeiros habitantes destas terras.
a) Ataques aos municípios Autônomos. Reconhecidos pelos Acordos de San Andrés, assinados por
representantes de Zedillo na mesa do diálogo, os municípios autônomos tornaram-se alvos militares das forças
armadas federais e da matilha que finge governar o Estado de Chiapas. Tani Perla e Amparo Aguatinta,
comunidades que marcam, respectivamente, o início dos municípios de Ricardo Flores Magón e Tierra y Libertad,
foram tomadas a sangue e fogo pelas tropas conjuntas do Exército federal, da polícia judiciária federal e as polícias
do Estado de Chiapas. Mais de mil homens armados destruíram centros comunitários, farmácias e bibliotecas,
golpearam e torturaram crianças, mulheres homens e anciãos. Sozinhos, o governo e alguns meios de comunicação,
que o acompanham na perda de legitimidade, aplaudiram a si mesmos. Em nome de uma legalidade construída
sobre a farsa e a corrupção, se golpeava e se destruía a esperança de uma paz próxima e real para a guerra no
sudeste mexicano.
3
Toda nova ação repressiva levada adiante por esta mescla de cachorro de madame com cão de caça que se
chama Albores Guillén, foi acompanhada por um Zedillo disposto a dar seu aval pessoal à guerra contra os
indígenas.1
O município autônomo de San Juan de la Libertad recebeu o selo sangrento que Acteal prometia nos
choques armados de Chavejaval. Na ocasião foram assassinados três indígenas, e em Unión Progreso cinco
indígenas foram presos e sumariamente executados por tropas integradas pelo Exército federal e a polícia de
segurança do Estado de Chiapas. Assim, Ernesto Zedillo Ponce de León acrescentava mais mortes morenas à sua
lúgubre lista de assassinatos.
b) Ataques à CONAI e à COCOPA. As próprias instâncias de mediação e de cooperação foram escolhidas
como alvos a serem destruídos pela vergonhosa guerra do governo mexicano.
Os ataques à Comissão de Concórdia e Pacificação (COCOPA) seguiram a lógica dos “acertos de contas”
da classe política no poder. Seguindo o arriscado jogo do “agora sim, agora não”, de início, o governo aceitou o
projeto de lei elaborado pela comissão parlamentar e, em seguida, voltou atrás. Com a solução pacífica ao alcance
de suas mãos, Zedillo chutou a mesa do diálogo e apresentou unilateralmente ao Congresso da União uma
iniciativa de lei indígena, desconhecendo assim o que havia sido assinado pelos seus representantes na mesa de San
Andrés. Depois de tentar aniquilar politicamente a COCOPA, o governo federal a forçou a definir-se a seu favor
(ou seja, a favor da guerra). Os parlamentares se negaram a isso e agora o governo pretende livrar-se deles e
convertê-los num enfeite inútil e pomposo. O Executivo federal não concebe o Poder Legislativo de outra forma
que não seja essa: ou o segue incondicionalmente em suas aventuras bélicas ou é um estorvo.
Mas, desta vez, o Congresso da União fez valer a sua
independência como Poder da Federação, e vozes dignas e sensatas no
interior das diferentes facções parlamentares detiveram a iniciativa do
executivo federal e pararam aquilo que se ocultava atrás dele: a retomada
da guerra aberta contra os zapatistas. A derrota da iniciativa de Zedillo no
Congresso não preocupa o governo. O que o preocupou e preocupa é o
fato de não encontrar consenso e apoio para o seu projeto de guerra sequer
no interior do Partido de Estado.
Se Acteal e os ataques contra os municípios autônomos são uma
amostra de que o governo Zedillo não quer outra coisa a não ser a
aniquilação dos indígenas mexicanos, a apresentação do projeto de lei
Zedillo é um sintoma de sua decisão definitiva de não cumprir com a sua
palavra e do desespero de dar uma aparência de legitimidade à guerra
ilegítima que leva adiante.
Paralelamente à situação ridícula a que reduziu a COCOPA,
Zedillo desenvolveu uma verdadeira campanha de ataques (que incluiu
tentativas de assassinato) contra a Comissão Nacional de Intermediação
(CONAI) e, sobretudo, contra o seu presidente, o bispo Samuel Ruiz
Garcia. Às emboscadas realizadas sem êxito pelo braço militar da
Secretaria de Desenvolvimento Social (o bando autodenominado “Paz e
Justiça”), o governo acrescentou uma intensa campanha de
desqualificação na imprensa, no rádio e na televisão, uma perseguição
levada adiante pela Secretaria de Governo e o alto clero, e as ações policiais do Instituto Nacional de Migração.
A destruição da Comissão Nacional de Intermediação foi consumada algumas horas antes do covarde
assassinato de cinco indígenas em Unión Progreso e três no choque armado de Chavajeval. A morte da CONAI foi
imediatamente seguida por sua conseqüência lógica: a morte violenta de indígenas e a retomada dos combates. Se a
imobilização da COCOPA e o envio unilateral de seu projeto de lei foi o sinal que Zedillo mandou ao Congresso
para que ficasse claro que ele não aceitava que o Poder Legislativo impedisse a sua guerra, a destruição da CONAI
significou o desmantelamento da única ponte de diálogo e comunicação entre as partes. 2
Ao atacar o Congresso da União e a sociedade civil representada simbolicamente pela CONAI, o governo
federal repetiu a mensagem que escreveu com o sangue em Acteal.

1
Albores Guillén é o nome do marechal de campo do Exército federal que comandava as operações militares em Chiapas e que foi nomeado
governador interino do Estado de Chiapas.
2
Entre os sinais que evidenciam a imobilização da COCOPA, temos o conteúdo de uma carta que foi publicada no dia 13 de janeiro de 1999
no quotidiano La Jornada. Nela, a Comissão de Concórdia e Pacificação informa as lideranças do Exército Zapatista de Libertação Nacional
que a sua não participação da Consulta Nacional sobre o Reconhecimento dos Direitos dos Povos Indígenas (previsto na iniciativa de lei por
ela formulada após a assinatura dos Acordos de San Andrés), deve-se ao fato desta atividade não ter sido originada de um acordo entre o
EZLN e o governo federal. Além disso, ao entregar a Emilio Rabasa, Ministro do Interior, a tarefa de levar adiante as gestões para a
retomada do diálogo com os zapatistas , a COCOPA não só deixa de cumprir o papel para o qual foi criada, como aceita submeter-se ao
governo e passa a depender totalmente de sua iniciativa.
4
c) Ataques aos observadores internacionais. A decisão de Zedillo de levar adiante a guerra não foi
reprovada apenas pelo Poder Legislativo Federal e pela aberta oposição da sociedade civil nacional. A sociedade
civil internacional ficou horrorizada ao perceber o genocídio anunciado pelas medidas governamentais e logo se
mobilizou para tentar deter a morte que já vinha projetando seu semblante nas terras indígenas. Observadores da
América do Sul, Central e do Norte, assim como da Europa e da Ásia, percorreram milhares de quilômetros e
atravessaram oceanos para chegar até as montanhas do sudeste mexicano trazendo uma única mensagem: paz com
justiça e dignidade. Foi aí que o governo federal decretou que a guerra de extermínio contra os indígenas era uma
amostra de soberania nacional e exigiu que não houvesse testemunhas, mas apenas cúmplices. Assim, todos
aqueles que não se sujeitavam à farsa e não aplaudiam a guerra foram, e são, acusados de serem “turistas
revolucionários” e de “pretender interferir em assuntos internos”. Às acusações seguiram-se as expulsões e o
resultado hoje é claro: em Chiapas são bem-vindos os estrangeiros que aplaudem a guerra e a destruição, os que
procuram a paz e a construção são hostilizados e expulsos.
Bêbado de sangue, o governo não despreza apenas o Congresso da União e o povo do México, mas ignora
também o clamor internacional que se faz eco de uma mesma exigência a Zedillo: pare a sua guerra e se
comprometa com a paz.
Este foi o ano de 1998 para o governo federal em relação ao conflito no sudeste mexicano: o massacre dos
indígenas, o ataque aos municípios autônomos, a retomada dos enfrentamentos, a destruição da CONAI, a
imobilização da COCOPA, o descumprimento dos Acordos de San Andrés, o desprezo do congresso da União e a
expulsão dos observadores internacionais.
Este é o resumo do ano de 1998 para o governo federal: guerra de extermínio contra os indígenas
mexicanos, impunidade para os criminosos, descumprimento dos acordos pactuados, destruição das pontes de
diálogo e de negociação, e uma atitude de desafio à opinião pública nacional e internacional.
Em 1998, o governo mexicano não ofereceu aos indígenas outra coisa a não ser a guerra e a destruição.

3. A política econômica do governo: a outra guerra de destruição.

Ao mesmo tempo em que o governo levava adiante a sua guerra de extermínio contra os povos indígenas,
uma outra guerra estava continuando. A política econômica neoliberal que o senhor Zedillo impõe com o apoio de
um punhado de cúmplices e contra a vontade da imensa maioria dos mexicanos, continuou destruindo as bases
materiais do Estado nacional. Vítima de uma crise financeira internacional que está só se anunciando, a economia
mexicana promete apenas ser cada dia pior para os mexicanos mais pobres e garante um lugar entre os
despossuídos aos chamados “setores médios”. Nem a pequena e nem a média empresa tem a menor possibilidade
real de sobreviver no interior deste modelo econômico. As próprias grandes empresas nacionais enfrentaram e
enfrentam condições desfavoráveis de concorrência nos mercados.
A absurda elevação dos preços dos produtos básicos, os cortes no orçamento, as dívidas impagáveis devido
à aplicação de juros típicos da usura, a impunidade para banqueiros delinqüentes, o aumento dos impostos, a
insegurança pública como único patrimônio, tudo isso é parte de um modelo econômico importado de fora e que no
México age como um nivelador social extremamente cruel. A maioria dos mexicanos partilha condições de vida
igualitárias, mas não em termos de abundância ou de recursos mínimos para uma vida digna. Não, ao contrário, a
pobreza hoje iguala as classes médias de ontem aos pobres de sempre. Neste modelo econômico, os únicos
elementos que crescem de forma considerável são os índices de pobreza, o número de despossuídos e a quantidade
de empresas nacionais em bancarrota.
Em 1998, os sinais de que o modelo econômico neoliberal é criminoso e ineficaz não vieram apenas do
interior. Vez por outra, dos lugares mais longínquos da geografia mundial chegaram ondas de crises financeiras que
acabaram arruinando a empresa nacional, desvalorizando o Peso mexicano e reduzindo ainda mais as raquíticas
esperanças de recuperação. Mas, nem o protesto e o descontentamento dos mexicanos, nem as sérias advertências
das crises financeiras na Ásia, Europa e América do Sul, convencem o reduzido grupo de cegos iluminados que
dirige os destinos deste país. Contra todos os cidadãos, contra a história, contra a própria realidade, os partidários
de Zedillo decidiram não alterar a direção rumo ao naufrágio.
No deteriorado navio da economia nacional, o bêbado timoneiro já decidiu quem serão os primeiros a
serem sacrificados diante do iminente naufrágio. Dezenas de milhões de mexicanos verão suas condições de vida
serem reduzidas abaixo do mínimo necessário, os governantes privatizarão até a bandeira e o emblema nacional, os
ricos serão em número menor, porém mais ricos, e no rádio, na televisão e na imprensa nos será dito que isso é para
o nosso bem-estar... e o de nossas famílias.
Em 1998, a administração da impunidade no âmbito do crime econômico chamado neoliberalismo teve
uma oportunidade de fazer resplandecer toda a sua podridão. Através do FOBOPROA 3, não só se condenaram
gerações inteiras de mexicanos a pagar pelo enriquecimento ilícito de banqueiros e governantes, como também se

3
Trata-se de um plano para salvar os bancos que estão caminhando rumo à falência, algo parecido com o PROER brasileiro.
5
mostrou o verdadeiro objetivo da política econômica do governo: proteger o rico e o poderoso às custas de tudo e
de todos.
A troca de nome do FOBOPROA proposta pelo PRI e o PAN não consegue ocultar a natureza de sua ação:
apesar das evidentes violações à Constituição por parte do Executivo, apesar do fundo ter sido usado para fins
políticos e partidários, apesar do dinheiro ter sido empregado para financiar delinqüentes de colarinho branco, e
apesar do envolvimento do gabinete econômico neste assunto sujo, a traição do Legislativo foi consumada e acabou
demonstrando que o cidadão comum encontra-se indefeso perante as ações do mau governo.
Este obscuro túnel neoliberal não tem saída. A única saída real, possível e necessária é a mudança de
modelo econômico.

4. Uma clara demonstração da crise do sistema político mexicano.

Em 1998, a última instituição do estado mexicano que resistia ao desmoronamento, o Exército federal,
encontrou a confirmação de que a sua crise não é apenas de legitimidade. Graças às decisões e às ordens de seu
“chefe supremo” (Ernesto Zedillo), o Exército federal foi chamado a desempenhar o trabalho de “bombeiro” dos
políticos. Onde a política falha, se recorre ao Exército. E como a política está falhando em todos os cantos e em
todos os níveis, os militares se viram atuando em um terreno que não é de sua instituição. Os resultados não
demoraram a aparecer. Além das evidentes violações dos direitos humanos em Chiapas, Oaxaca, Guerrero, La
Huasteca e Jalisco, aumentou o contágio do narcotráfico e o descontentamento interno voltou a manifestar-se.
Após uma dispendiosa campanha publicitária que procurava recompor a sua imagem desgastada, o
Exército federal viu desmoronar em poucos minutos tudo aquilo que havia sido ganho. No dia 02 de outubro de
1998, 30 anos após um crime que acreditavam tivesse sido esquecido, a história veio entregar a conta e o Exército
pagou, e pagou caro.4 Passadas algumas semanas, na véspera do que seria o primeiro aniversário do massacre de
Acteal, o Exército voltou a ocupar o banco dos réus quando um grupo de militares dissidentes chamados de
“Comando Patriótico para a Conscientização do Povo” tomou a palavra e as ruas para denunciar uma série de
irregularidades nas fileiras do próprio Exército. 5
Em respostas às suas reivindicações, os militares do Comando Patriótico de Conscientização do Povo
receberam o mesmo que é oferecido a todos os mexicanos que, individualmente ou em grupo, exigem seus direitos:
condenações, campanhas publicitárias contrárias à sua manifestação, difamação, descrédito, acusações de traição,
perseguição, silêncio.
Com certeza, o Comando Patriótico levanta não poucas dúvidas, e o caminho que deverá percorrer para
ganhar legitimidade perante o povo é ainda muito longo. Resta esperar pra ver.

5. EZLN: contra a guerra de extermínio, a resistência.

Os zapatistas não compraram a oferta de morte do governo. À guerra de extermínio não opusemos a nossa
guerra. À destruição não respondemos com destruição. Não usamos a morte para contestar a morte. Uma palavra
sintetiza um ano de calado heroísmo que teve como protagonistas milhares de indígenas, homens, mulheres,
crianças e anciãos: resistência.
Todo o esforço de organização do Exército Zapatista de Libertação Nacional se voltou para dentro. Calados
em relação ao mundo externo, nós zapatistas nos voltamos para dentro e organizamos a resistência dos nossos
povos. Todos os nossos recursos humanos e materiais não foram empregados na guerra e sim na resistência contra
a guerra. Toda a nossa força não foi orientada para a destruição e sim para a construção. Nossa bandeira não foi a
morte e sim a vida.
Uma análise serena das ações governamentais nos fez entender que o seu objetivo era uma guerra aberta.
Foi aí que não só decidimos não seguir o seu convite ao horror, como nos esforçamos para torná-lo um completo
fracasso.
Não se derrota uma guerra com iniciativas de guerra e sim com iniciativas de paz. E para preparar estas
iniciativas de vida nos fechamos em nós mesmos e levantamos a arma do silêncio. Protegidos por ela, olhamos para
o passado imediato e vimos os nossos compromissos, olhamos para o passado distante e vimos nossas experiências
e conhecimentos, olhamos para o futuro coletivo e vimos o amanhã de todos. Foi assim que decidimos pela
resistência, a vivemos e a sustentamos.

4
Refere-se ao massacre de Tlatelolco ocorrido no dia 02 de outubro de 1968 quando a repressão a uma manifestação de protesto deixou um
saldo de 500 mortos na praça das Três Culturas. As comemorações e os protestos ocorridos no dia 02 de outubro de 1998 desmascararam o
caráter repressor do Exército federal e sua utilização ao lado das elites no poder.
5
Matéria publicada no jornal britânico The Guardian no dia 03 de janeiro de 1999, informava que 51 oficiais do Exército federal mexicano
haviam organizado uma marcha de protesto rumo ao Senado para pedir a libertação de 1500 soldados que se encontravam presos nos
quartéis, protestar contra os baixos salários e a péssima alimentação da tropa, e para recusar-se a cumprir o papel de repressores do povo.
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Para não cair no jogo da morte, nesta arapuca sangrenta da guerra entre os indígenas, milhares de
zapatistas deixaram tudo o que tinham e se converteram em refugiados de guerra. Homens, mulheres, crianças e
anciãos, tzotziles, tzeltales, tojolabales, choles e mames, abandonaram suas casas e suas terras porque queremos a
paz com justiça e dignidade. Não queremos a rendição, nem a paz simulada ou a guerra entre os pobres.
Por isso, os nossos não fazem a guerra aos indígenas e aos civis, e muito menos aceitam as esmolas do
governo. Não insurgimos para ter benefícios próprios. Nossa luta é: para todos tudo, nada para nós. Esta é a nossa
resistência. Uma aposta para que haja um amanhã melhor sim, só que para todos.
Passado este quinto ano da guerra contra o esquecimento, nós zapatistas podemos dizer que estamos em
número maior e mais fortes. Somos mais fortes porque os povos zapatistas, que são o nosso coração e a nossa força
principal, resistiram com paciência e sabedoria a uma das piores ofensivas entre as que foram lançadas contra eles.
Não é a primeira. Não será a última. Porém, mais cedo ou mais tarde, nossas reivindicações serão atendidas e
então, somente então, a paz será verdadeira.
O Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação
Nacional, aqui e agora, faz um reconhecimento público aos povos indígenas zapatistas. Eles são nossos verdadeiros
chefes, nosso sangue, nossa arma e bandeira.
Depois de ter demonstrado que também o silêncio é uma arma nas mãos dos despossuídos, fortalecidos e
esclarecidos, nos zapatistas lançamos a Quinta Declaração da Selva Lacandona em junho de 1998. Nela
convocamos o povo do México e os povos do mundo a uma mobilização pelo reconhecimento dos direitos dos
povos indígenas e pelo fim da guerra de extermínio.
Apesar do governo ter-nos convidado apenas a fazer a guerra, nós zapatistas respondemos com uma
iniciativa política que, em sua essência, é um novo esforço de diálogo e de paz.
Por entender que o governo não tem o ânimo, a intenção e nem o compromisso sincero de assumir a via do
diálogo com todas as suas conseqüências, o EZLN insiste em dirigir-se aos elementos da sociedade civil mexicana
que desejam e promovem a paz como caminho, rumo e meta.
A sociedade civil nacional, esta nova força política e social desprezada em todo tempo e lugar que não
sejam eleitorais, está sendo chamada a converter-se em principal arquiteto e protagonista, não só do processo de
paz, mas também das transformações fundamentais que farão deste país uma nação democrática, livre e justa. É
esta sociedade civil que o EZLN reconhece como interlocutor de um novo diálogo.
O Congresso da União é outra parte do Estado mexicano que tem a oportunidade de construir a paz. O
Poder Legislativo é isso: o poder de fazer leis que tragam benefícios, que reconheçam direitos, que façam justiça.
Virá a hora do Congresso, e nessa hora ele deverá responder a uma questão importante, mais importante de
qualquer lei orçamentária, e definir-se a favor da paz.
Como parte da mobilização a que chama a Quinta Declaração, foi lançada a iniciativa de uma consulta
dirigida a todos os mexicanos sobre o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e pelo fim da guerra de
extermínio. Esta consulta se realizará no dia 21 de março de 1999 em todo o país e em todos os lugares do mundo
aonde mexicanos e mexicanas venham a organizar-se para dar a conhecer a sua opinião.
Para promover e realizar a consulta, cinco mil delegados zapatistas (2500 homens e 2500 mulheres) se
mobilizarão para visitar todos os municípios do país. A consulta será feita com base em quatro perguntas: duas
sobre direitos indígenas, uma sobre a guerra e uma sobre a relação entre governantes e governados.
Composta por várias etapas, a consulta está agora na fase de divulgação e promoção. Hoje reiteramos o
nosso convite a todos os mexicanos e mexicanas para que formem brigadas que promovam e divulguem a
realização desta mobilização democrática que busca apenas duas coisas: o reconhecimento dos direitos indígenas e
a paz no México.

6. O reconhecimento dos direitos indígenas, principal demanda do EZLN.

Hoje, cinco anos após o início do nosso levante, o Exército Zapatista de Libertação Nacional repete: o
nosso objetivo não é a tomada do poder e nem queremos ter cargos governamentais ou converter-nos em um
partido político. Não insurgimos para obter esmolas ou créditos. Não queremos o controle de um território ou a
separação do México. Não apostamos na destruição ou em ganhar tempo.
Nossas principais demandas são o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e a democracia, a
liberdade e a justiça para todos os mexicanos e mexicanas.
Nestas reivindicações nos acompanham não só os dez milhões de indígenas mexicanos, mas também
caminham conosco milhões de homens e mulheres, operários, camponeses, desempregados, professores,
estudantes, artistas, intelectuais, colonos, donas de casa, homossexuais e lésbicas, inválidos, aidéticos, aposentados
e pensionistas, religiosos e religiosas, motoristas, camelôs, pequenos empresários, pilotos e carregadores de malas,
deputados, senadores, mexicanos que vivem no exterior, organizações não governamentais, meninos, meninas,
homens, mulheres anciãos... e militares.
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A paz será possível através do reconhecimento dos direitos dos povos indígenas. Sem este
reconhecimento, nenhum ponto da ampla agenda de pendências nacionais poderá ser definitivamente resolvido.
Com a democracia, a liberdade e a justiça para todos os mexicanos, será possível construir outro país, um país
melhor.

7. 1999: a velha e a nova política.

Irmãos e irmãs:
Este é o México que temos ao iniciar o ano de 1999. Neste ano, o sexto da guerra, se enfrentarão
novamente duas maneiras de fazer política.
Por um lado, os partidos políticos oficiais irão definir seus candidatos à Presidência da República e ao
Congresso da União. Com a seleção destes candidatos, se elegerão, explicita ou implicitamente, as diferentes
propostas de nação, os projetos econômicos e as posições políticas.
Para a classe política mexicana, 1999 é o ano dos partidos políticos, dos ajustes internos (que, no caso do
PRI, poderão desembocar novamente no assassinato), dos preparativos e das convenções internas. Esta é a velha
política, a que é decidida entre profissionais e vai voltar a ver o cidadão somente quando precisa dele como eleitor.
Depois deste momento, lhe seqüestram sua capacidade de decisão, o substituem em seus direitos de cidadão e
opõem a maquina do Estado às suas manifestações de inconformidade, rebeldia ou desaprovação. Esta maneira de
fazer política já demonstrou a sua ineficácia, seu caráter excludente e o seu autoritarismo.
Com certeza, os partidos políticos são necessários. O que não é necessária é esta maneira e fazer política,
0que não exige obediência e não tem mecanismos para mandar obedecendo.
Por outro lado, as forças sociais cidadãs e individuais deverão definir o espaço de sua participação política.
Não só para o ano 2000, mas também para o ano 2000. 6 Do 1º de janeiro ao 21 de março de 1999, foi aberto um
espaço para construir outra forma de fazer política, uma forma que seja tolerante e não excludente, que escute
permanentemente, que se construa em sentido horizontal e olhe para cima com dignidade e com as ferramentas
necessárias para obrigar os de cima a olhar continuamente para baixo.
Com um novo esforço de diálogo, como amostra da nossa disposição para uma solução pacífica, como
reafirmação do nosso compromisso com os povos indígenas, como reiteração do nosso anseio de vida, como
colaboração na luta para abrir espaços de participação cidadã, como mais uma luta para construir uma nova
maneira de fazer política com o povo, pelo povo e para o povo, este 1º de janeiro de 1999, ano sexto da guerra
contra o esquecimento, nós zapatistas convocamos todos e todas a participar da consulta para o reconhecimento
dos direitos dos povos indígenas e para o fim da guerra de extermínio no domingo dia 21 de março.
Neste ano de 1999 não convocamos o povo para a guerra, mas muito menos o convocamos ao
conformismo ou à imobilidade. O convocamos a uma mobilização pacífica, a uma luta pelos direitos de todos, a um
protesto contra a injustiça, a exigir espaços de participação democrática e a reivindicar a liberdade.
Convocamos a todos e a todas a não sonhar e sim a algo mais simples e definitivo, os convocamos a
despertar.
Democracia! Liberdade! Justiça!
Das montanhas do sudeste mexicano
Subcomandante Insurgente Marcos
Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.

Carta de Marcos à Guadalupe Loaeza, jornalista da Reforma.

Madame:
Li recentemente a sua carta publicada no dia 31 de dezembro de 1998 nas páginas do jornal Reforma.
Agradeço não só pelas suas linhas, mas também pela sinceridade nelas contida e pelo honesto interesse que, desde
o início do nosso movimento, a senhora teve em relação a Chiapas em particular e aos indígenas mexicanos em
geral.
Não conheço o livro de Jean Marie Le Clezio, e nem sei se o Federal Express está de plantão na Selva
Lacandona (se grudar feito chiclete, o endereço é: Subcomandante Insurgente Marcos, EZLN, Quartel Geral Playa
de Trigo, montanhas do sudeste mexicano, Chiapas, México). Seria bom que a senhora mandasse um exemplar
também ao senhor Zedillo. Além de não ser criticada por parcialidade, ajudará Zedillo a ler alguma coisa que abra
o estreito horizonte de sua visão política.
Bom, vamos à sua carta. A senhora pergunta se as comunidades indígenas zapatistas estão pior do que
estavam antes da insurreição. A resposta é não. Continuamos a não ter escolas, professores, hospitais, médicos,
bons preços para os nossos produtos, terra, tecnologia para trabalhá-la, salário justo, alimentação em qualidade e
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Ano em que ocorrerão as eleições para a Presidência da República e o Congresso Nacional.
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quantidade suficientes, moradias dignas, tudo exatamente igual ao que era antes de 1994. As comunidades que
não são zapatistas encontram-se nas mesmas condições. Nós não aceitamos esmolas (pois é isso que são) do
governo. Não as aceitamos e não as aceitaremos porque, como demonstram as condições de vida dos indígenas que
as aceitam, os problemas continuam não sendo resolvidos e o nível de vida não sofre a mínima melhora. Mas,
sobretudo, não as aceitamos porque não insurgimos para ter escolas, créditos e despachos da CONASUPO a nosso
favor. Nós insurgimos por um país melhor, um país onde, entre outras coisas, sejam reconhecidos os nossos direitos
de povos indígenas e sejamos respeitados e levados em consideração como cidadãos e não como mendigos.
Temos procurado melhorar as nossas condições de vida por todos os meios e em alguns lugares
construímos escolas com professores, ambulatórios e farmácias com agentes de saúde. O pouco que possuímos foi
construído e reconstruído (pois umas das heróicas tarefas do Exército federal em Chiapas é a destruição de escolas,
ambulatórios, farmácias e bibliotecas) com as nossas forças, e com a ajuda de pessoas boas, organizadas ou não,
que chegam até essas terras.
A madame deve saber que nos trouxeram muita ajuda (como nunca aconteceu na longa história dos povos
indígenas), mas nunca para fazer a guerra. Ninguém chegou oferecendo armas, munições ou treinamento militar.
Todos vieram oferecer ajuda financeira e conhecimentos para melhorar a educação, a moradia, a
alimentação, a saúde, o trabalho. Estas pessoas passam uma temporada conosco, nos vêem como somos, com
nossos defeitos (que não são nem poucos e nem pequenos) e com nossas virtudes (que também existem e que não
são maiores e nem menores daquelas das pessoas de outras latitudes, cores, culturas e raças). Um dia desse, talvez,
a senhora poderá falar com algumas destas pessoas; seja lá quem for, lhe dará um panorama mais real e mais
completo daquele que eu, sem sucesso, procuro transmitir-lhe nestas linhas.
Hoje temos coisas que antes não tínhamos e é pouco quando comparado com todas as necessidades. Mas a
diferença entre as nossas carências de antes e as de agora, é que antes ninguém se importava que nós não
tivéssemos o mínimo indispensável. O que tínhamos antes do 1º de janeiro de 1994, e que perdemos desde aquela
época, é a falta de esperança. É a amargura, é a resignação.
Sim, somos pobres. Mas observe que a nossa pobreza é mais rica do que a pobreza dos outros e, sobretudo,
mais rica daquela que tínhamos antes do nosso levante. É que agora a nossa pobreza tem um amanhã, Por que?
Bom, porque temos algo muito importante que não tínhamos antes do levante e que agora se converteu na nossa
arma mais poderosa e temida (pelos nossos inimigos): a palavra. Você precisa ver como esta arma é boa. É boa
para combater, para defender-se, para resistir. E tem uma vantagem sobre todas as armas que o governo possui,
estejam elas nas mãos dos militares ou paramilitares, esta arma não destrói, não mata.
Sei muito bem que o senhor Labastida nos acusa de sermos responsáveis pela deterioração do nível de vida
das comunidades zapatistas. Labastida representa um governo que mantém metade do seu exército nas
comunidades indígenas, que sustenta um governador substituto, interino, ilegítimo e ilegal apoiando-se na força das
baionetas, que gasta bilhões de Pesos não na melhoria das condições de vida das comunidades que não são
zapatistas, e sim no pagamento de dispendiosas campanha na imprensa e no financiamento de grupos para
militares, um governo que ordena aos próprios soldados de impedir o trabalho nas roças, de violentar mulheres, de
promover o cultivo e o tráfico de entorpecentes, de pregar a religião do alcoolismo e da prostituição. Diga-me, não
é cínico nos acusar daquilo que em seus manuais eles classificam como guerra de baixa intensidade? Não é querer
gozar de todos o fato do mesmo governo que promoveu a deterioração das condições de vida do povo mexicano
(cito a informação do jornal que tem a honra de tê-la entre os seus jornalistas: “Em 1999, 4 milhões de pobres
deixarão de receber ajuda alimentar ou para o seu desenvolvimento comunitário, 1 milhão e 116 mil crianças não
vão mais receber o leite que complementava a sua alimentação, o orçamento da Universidade Nacional Autônoma
do México, do Instituto Politécnico Nacional e da Universidade Autônoma Metropolitana foi reduzido em 50%, o
financiamento para a pesquisa científica perdeu 42% dos recursos, a construção de centros de saúde foi reduzida
em 20%, o orçamento da CONASUPO sofreu um corte de 75% e a instituição se encaminha para o seu
desaparecimento, os 34 milhões de mexicanos que mais compram nos postos da Diconsa terão que enfrentar uma
elevação dos preços da ordem de 100%”.Reforma, 02 de janeiro de 1999), nos acusar de sermos responsáveis pelo
baixo nível de vida das comunidades indígenas?
Agora madame, suponha que eu seja um comediante com uma capacidade de manipulação surpreendente.
Suponha que eu tenha conseguido enganar os mais importantes meios de comunicação dos cinco continentes, as
organizações não governamentais de vários países, milhões de mexicanos e vocês. Suponha que eu tenha enganado
vocês e que no México indígena e em Chiapas não esteja acontecendo nada: nem que os indígenas estejam vivendo
na miséria mais repugnante, nem que seja verdade que em Ocosingo a vida de um índio vale menos do que uma
galinha, nem que em 1993 os fazendeiros ainda exerciam o direito à primeira noite com as esposas recém casadas
de seus peões. Suponha que não passa de uma invenção o fato que a melhor aplicação do Estado de Direito em
Chiapas é a história (real, acredite) do indígena que foi preso alguns anos atrás e condenado a trinta anos de cadeia
por ter assassinado o próprio pai (“a traição, de forma premeditada e para extrair vantagens”, rezava a pasta do
processo orgulhosamente assinada pelo juiz que cuidava do caso) e que agora pagava a sua “dívida” com a
sociedade no presídio de Cerro Hueco onde, regularmente, recebia um pacote de tortilhas que, sem problema
9
algum, eram trazidas pessoalmente pelo pai dele! Suponha que seja uma mentira deslavada que o exército e a
polícia tenham participado e participem com entusiasmo singular dos ataques às comunidades indígenas; suponha
que seja falso e que não passe de uma calúnia que o grande passo do México rumo à modernidade pretendia ser
dado esquecendo dos mais de 10 milhões dos primeiros moradores destas terras. Força madame, suponha que seja
assim do jeito que eu escrevi. Feito? Agora, a imploro que responda às perguntas que seguem:
1. Se o EZLN não tivesse se levantado em armas no dia 1º de janeiro de 1994, o governo, o México, o mundo, a
senhora, estes jornalistas que coloca na sua lista, teriam dirigido seus olhares para ver os povos indígenas? Até
1999, não era um insulto chamar alguém de “índio”?
2. Se as causas fundamentais (e nacionais) que provocam a marginalização dos povos indígenas do México e que
estão na raiz do levante zapatista não foram resolvidas e nem foram lançadas as bases para a sua solução (ou
seja, podem provocar outros levante), não seria uma irresponsabilidade assinar a paz sabendo que a guerra viria
outra vez? Além de exigir que se acabe com o levante zapatista, não seria mais ajuizado exigir que se acabe
também com tudo aquilo que o provocou e o tornou possível e necessário?
3. Se Marcos é o culpado pelo fato das comunidades indígenas zapatistas não melhorarem o seu nível de vida, já
que ele as induz ou as obriga (depende do jornalista) a recusar a ajuda do governo, por que as comunidades
indígenas que não são zapatistas estão nas mesmas condições ou até pior do que aquelas que sofrem a “opressão
zapatista”? Por que, apesar dos bilhões que o governo diz ter investido em Chiapas “para resolver as causas do
conflito e do atraso social”, mais de um milhão de indígenas não melhoraram o seu nível de vida? São todos
zapatistas?
Bom, suponha agora que estes jornalistas que lhe tiram o sono estejam dizendo a verdade, que é Marcos
quem impede que o conflito seja resolvido e que ele só tenta ampliá-lo para poder continuar se correspondendo
com aqueles que escrevem os editoriais da Reforma (algo que seria inusitado, dizem, se a paz já tivesse sido
assinada), que os zapatistas dizem querer a paz, mas não voltam à mesa do diálogo com o governo porque, na
verdade, não estão interessados nos povos indígenas e sim nos seus cálculos políticos.
Suponha que Zedillo, Labastida, Rabasa, Albores, Green, e quem for se colocar nesta lista, tenham razão e
que as comunidades indígenas (claro, feita exceção daqueles teimosos povos zapatistas) agora estejam vivendo na
abundância que o governo lhes ofereceu. Suponha que é verdade que o governo tenha dado muitas demonstrações
de disposição ao diálogo, e que as tão decantadas visitas de Zedillo a Chiapas - em 1998 - tenham acontecido com
o propósito de demonstrar a sua vontade de paz e não para ameaçar ou apoiar as intervenções repressoras das quais
Albores foi o protagonista durante todo aquele ano. Suponha que é verdade que o governo não vê o EZLN como
um problema militar e sim como um problema político e que é verdade que querem resolvê-lo com a política.
Madame, suponha isso tudo e, em seguida, responda a estas outras perguntas:
4. Se os zapatistas não constituem um perigo militar e eles podem nos aniquilar em poucos minutos, por que o
governo mantém mais de 60 mil efetivos naquela que chamam de zona de conflito? Por que as comunidades
indígenas conhecem as vantagens da vida ocidental, ou seja, a prostituição, as drogas, o álcool que acompanham
os destacamentos do exército toda vez que eles se instalam NO INTERIOR das comunidades?
5. Se o governo tem 60 mil soldados “que aplicam a lei sobre as armas de fogo e os explosivos”, onde é que
conseguiram e conseguem suas armas, equipamentos e centros de treinamento os paramilitares de Paz e Justiça,
Máscara Roja, MIRA, Chinchulines, Los Puñales e Albores del Chiapas? Onde estão as armas de grosso calibre
que foram usadas no massacre de Acteal?
6. Se o objetivo do diálogo e da negociação é de chegar a alguns acordos (como aqueles de San Andrés, assinados
pelo governo e o EZLN no dia 16 de fevereiro de 1996), e os acordos não são respeitados, para que servem o
diálogo e a negociação?
7. Se o governo desrespeitou os primeiros acordos de paz que assinou, quem garante aos zapatistas que o governo
respeitará os acordos finais na hora em que será negociado o seu ingresso na vida civil?
Não madame, não se trata de uma tarefa ou de um castigo. É o velho método do Velho Antônio: perguntar
para caminhar. Se apesar disso tudo a confusão prevalece, vou-lhe sugerir algo.
Chame a sua amiga Sofia e a convide a visitar com a senhora as comunidades indígenas de Chiapas
(aquelas que são zapatistas e aquelas que não são zapatistas). Venham sem avisar, assim não poderemos preparar
uma cenografia para enganá-las. Se quiserem tocar com as mãos e diretamente o ambiente de xenofobia que o
governo conseguiu criar em Chiapas, lembrem de não falar espanhol em nenhum dos postos militares ou nos
serviços de migração (falem em inglês ou em francês, ainda que para a polícia do setor de emigração tudo aquilo
que não é espanhol é inglês). Peguem o avião até Tuxtla, e daí se dirijam até San Cristóbal de las Casas e, a partir
daí, podem percorrer as comunidades zapatistas e não zapatistas da região de Los Altos, Selva e do Norte de
Chiapas. Aparentando serem estrangeiras, vocês poderão gozar do tratamento humanitário que os militares e os
policiais da migração oferecem às pessoas de outros países que ousam sair dos roteiros turísticos. Venham.
Cheguem até às comunidades. Vejam e ouçam o povo. Pode ser que não encontrem a verdade absoluta, mas, com
certeza, descobrirão de que lado vem a mentira.
10
Quase no final de sua carta, a senhora diz, e com razão, que não queremos outro Acteal. Não, nem vocês
e nem nós o queremos. Mas eles, aqueles que dizem governar, estão dispostos a repeti-lo todas as vezes que for
necessário para destruir não só os zapatistas, mas todos os povos indígenas. Querem repetir o massacre até que os
indígenas deixem de sê-lo, desapareçam ou se “ocidentalizem”.
Nós não estamos pensando em deixar que isso aconteça, e também acreditamos que muitos, como a
senhora, não vão deixar que este horror se repita. Por isso estamos fazendo um novo esforço de paz e de diálogo
através da CONSULTA PARA O RESPEITO DOS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS E PARA O FIM DA
GUERRA DE EXTERMÍNIO. Sim, já sei que o nome é muito cumprido, mas suas aspirações são ainda maiores.
Por isso, lhe peço para falar com a sua amiga Sofia e para entrar em acordo com ela; formem a sua brigada de
promoção e divulgação da consulta (atenção: isso não significa que vocês se colocam ao nosso lado, que se tornem
zapatistas ou que tenham que subscrever total ou parcialmente as nossas posições), registrem-na no SETOR DE
CONTATOS PARA A CONSULTA (telefone e fax: (967) 8.10.13 e (967) 8.21.59, e-mail:
contacto@laneta.apc.org) e comecem a explicar a seus amigos e conhecidos (que nem sempre são os mesmos) que
a consulta acontecerá domingo dia 21 de março de 1999 em todo o país e nos países onde os mexicanos se
organizem para dar a sua opinião, que são apenas quatro perguntas e que da consulta podem participar todos os
mexicanos e mexicanas maiores de 12 anos.
Madame, não estou tentando recrutá-la (como, sem dúvida, lhe dirão alguns de seus amigos), a estou
convidando a trabalhar para a paz. Por isso, diga a eles algo muito simples e urgente: Acteal não deve repetir-se e
para que não se repita é necessário reconhecer os direitos dos povos indígenas e parar a guerra de extermínio.
Parece a frase de uma campanha publicitária? Acredite, madame, não é isso, é algo mais definitivo: é um dever.
Madame, se após tudo isso a senhora continua confusa, não se preocupe. Olhe para a ponte que une o
cérebro ao coração, o pensamento e o sentimento (alguns a chamam de alma). Olhe e escute, tenho certeza que
descobrirá que aquilo que é bom pode ser que nem sempre seja o melhor, mas nunca é desnecessário. Enfim, para
aumentar a sua confusão, lhe envio uma anedota zapatuda: por estas bandas tem uma cooperativa de moda que foi
chamada de A Zapatista Elegante e o seu lema é: contra o mau gosto revolucionário, a elegância revolucionária. O
que lhe parece? Eh? Não está clara a nossa perversidade?
Bom. Saúde, e verá que a única coisa da qual somos realmente culpados é de ter dançado o “dobladillo” à
esperança.

Das montanhas do sudeste mexicano.


Subcomandante Insurgente Marcos.
México, janeiro de 1999.

P.S. Enviamos muitas saudações e agradecimentos por aquele “passamontanhinhas”. Não temos nenhum...
ainda, mas a manteremos informada.

Carta de Marcos acompanhando dois comunicados


(Nós não esquecemos que o dia 12 foi o quinto aniversário de outro levante) 7

À imprensa nacional e internacional

Damas e cavalheiros:
Aqui vão dois comunicados. Ambos apontam as novas arbitrariedades do Estado de Direito. É claro que,
resumindo, podemos dizer que quando um Estado perde toda a sua legitimidade, só lhe resta o sustento de Pirro:
prisões e baionetas.8 E a justiça? “Isso é populismo irresponsável”, responde o responsável pela ruína econômica,
social e política do México.
Janeiro tem sido um mês de sofrimentos para o país; uma dor em dose dupla atingiu os de baixo. Primeiro
veio a morte de Bartolomé Carrasco, membro da Comissão de Acompanhamento e Verificação e religioso

7
No dia 12 de janeiro de 1994, respondendo aos apelos que chegavam do mundo inteiro e do interior do país, dezenas de milhares de pessoas
realizavam uma manifestação de protesto na Cidade do México para exigir que o governo suspendesse a ação militar contra o EZLN e
buscasse uma saída política para o conflito. Encurralado, o governo do ex-presidente Carlos Salinas de Gortari era obrigado a ordenar o
cessar fogo aos destacamentos do exército que se encontravam em Chiapas e a enviar a San Cristóbal de Las Casas a primeira comissão
negociadora.
8
Pirro foi rei do Epiro (região próxima à Albânia) e viveu entre 319 e 272 antes de Cristo. Pirro passou à história pela utilização de novos
recursos de combate que se, de um lado, possibilitavam a vitória, de outro, levavam o seu exército a amargar perdas tão graves que as
vitórias alcançadas pareciam ter sido inúteis. Sem a legitimidade dos povos conquistados, o reinado de Pirro foi caracterizado por uma
violenta repressão e por inúmeras batalhas que, apesar das vitórias alcançadas, não lhe proporcionaram a almejada incorporação ao reino dos
territórios que vinham sendo ocupados.
11
comprometido com a causa dos mexicanos pobres, especialmente dos indígenas Oaxaquenhos. Por ele, aqui
também estamos sentindo a mesma dor que aflige as comunidades indígenas do Estado de Oaxaca.
Em seguida, veio a morte de Rodolfo F. Peña, redator do La Jornada. Muitos lembram este grande homem
de ação e de pensamento como um jornalista honesto e defensor dos direitos dos trabalhadores do campo e da
cidade. Além disso, nós também o lembramos e o sentimos perto de nós por seu apoio à luta dos indígena do
México por isso, a dor de seus parentes e amigos é também a nossa dor. 9
Por estas bandas, Super Cão Albores continua seguindo os passos das ditaduras do Cone Sul e apresenta o
seu projeto de lei para anistiar militares e para militares criminosos a para ter na lei um argumento que justifique a
nova investida que leva adiante contra as comunidades zapatistas. O Exército federal oculta a sua brutalidade atrás
do frágil pretexto do combate ao narcotráfico (quando é ele mesmo quem mais fomenta o plantio das ervas e o
principal beneficiado do seu tráfico). É a mesma estratégia usada em 1998 para o Estado de Chiapas: ora se anuncia
a chegada de Zedillo a estas terras, ora atacam as comunidades com um ou outro pretexto. E o Congresso Nacional,
marchará atrás destes apelos à guerra?
Não importa, façam o que quiserem, 5 mil zapatistas sairão rumo a todos os municípios para a Consulta de
domingo dia 21 de março de 1999. Já registraram a sua brigada de promoção e divulgação? Contato para a
Consulta: telefone e fax (967) 8.10.13 e (967) 8.21.59. Correio eletrônico: contacto@laneta.apc.org. A página da
Internet (acredito que se chame “Web”) ainda está sendo montada, mas ficará um brinco.
Bom. Saúde e, se exigir os direitos do cidadão é considerado um motim, então terão milhões de amotinados.

Das montanhas do sudeste mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos.

P.S. que pergunta (favor mandar as respostas “A quem é responsável. Los Pinos. México D.F.”):
1. Quando Labastida declara sobre Chiapas as besteiras que declara, o faz porque já é o candidato do PRI para o
ano 2000 ou porque já deixou de sê-lo? O aviador Rabasa é pago para coordenar o diálogo ou para viajar ao
exterior na tentativa de fazer o impossível, ou seja, de limpar a barra do governo mexicano, ou para suplantar o
Congresso da União com a ameaça de suspender a lei para o diálogo? O fato da “estratégia governamental para
Chiapas” estar sendo divulgada no exterior e não no México, significa que o governo pretende internacionalizar
o conflito? O chamado Livro Branco sobre Acteal da Procuradoria Geral da República, fede pelo que diz ou
pelo que não diz? Supondo que Labastida saia, Liébano e Diódoro continuarão com a mesma estratégia? Ou eles
sim irão querer a solução pacífica do conflito?
2. Se os professores que obrigaram os senadores a ouvirem suas reivindicações, são acusados de seqüestro, qual
será a acusação para aqueles que vem seqüestrando a política e distribuem prisões e mortes como forma de
advertência? Quantos presídios são necessários para calar um povo?
3. Quando Zedillo diz a todos os mexicanos que as medidas econômicas que estão sendo implementadas irão
melhorar o nosso nível de vida, ele é louco, cínico, hipócrita, perverso, ou tudo isso ao mesmo tempo? E o preço
da tortilha? Melhora o nosso nível de vida?10 E o do leite? Do pão? Da carne? Dos ovos? Das verduras? Do
transporte? E as empresas quebradas? E os demitidos? E os baixos salários?

P.S. para as FARC, Colômbia, América Latina: que o caminho e o passo iniciados no diálogo de paz de
seus representantes com o governo da Colômbia levem a um bom êxito. Aqui vai nosso respeito, nossa saudação e
o nosso desejo de que o governo de Pastrana não imite o do senhor Zedillo no México, que, após três anos da
assinatura dos primeiros acordos de paz com o EZLN, continua se negando a cumpri-los.

P.S. militarista: Pedrito (tojolabal, dois anos e meio, nasceu no primeiro intergaláctico) brinca com um
carrinho que não tem rodas e nem carroceria. De fato, parece-me que aquilo com o qual Pedrito está brincando é
um pedaço desta madeira que por aqui é chamada de “curtiça”, mas ele me disse com convicção que aquilo é um
carrinho com o qual vai levar alguns passageiros a Las Margaritas. É uma manhã cinzenta e fria do mês de janeiro e
estamos de passagem neste povoado que hoje vai eleger os delegados (um homem e uma mulher) que serão
enviados à Consulta do dia 21 de março.
O pessoal está reunido em assembléia quando um avião Commander, azul e amarelo, da operação Arco-íris
do Exército, e um helicóptero com as cores da Força Aérea Mexicana, iniciam uma série de vôos rasantes sobre a
comunidade. A assembléia não é interrompida, só os que estão falando aumentam o volume da voz.

9
Vale a pena lembrar que o jornal diário La Jornada, até o momento, tem sido um dos poucos órgãos de imprensa a publicar todos os
comunicados do EZLN.
10
A tortilha, alimento básico do povo mexicano, teve seu preço aumentado graças à retirada dos subsídios governamentais que há anos
contribuíam para torna-la mais acessível à população carente.
12
Pedrito se aborrece de ver as duas aeronaves armadas passar por cima da sua cabeça e, bravo, vai buscar
um pedaço de pau na sua choça. Com a madeira nas mãos Pedrito sai da sua casa e declara enojado que “vai pegar
este avião que incomoda muito”. Eu começo a sorrir diante da ingenuidade do menino.
O avião passa sobre o telhado da choça de Pedrito e ele levanta o bastão e o agita furioso diante da
aeronave de guerra. O avião então desvia o seu curso e se afasta rumo à sua base.
Pedrito diz: “Feito”, E volta a brincar com o seu pedaço de curtiça, desculpem, com o seu carrinho.
La Mar e eu nos olhamos em silêncio. Devagarzinho nos aproximamos do pedaço de pau que Pedrito
deixou caído no chão e o levantamos com cuidado. O analiso minuciosamente.
“É só um pedaço de pau”, digo.
“É”, diz La Mar.
Sem falar mais nada o levamos conosco. Na saída encontramos Tacho. “O que é isso?”, pergunta
apontando para o bastão que era de Pedrito. “Tecnologia Maia”, responde La Mar.
Lá em cima, um céu que ficou sereno, de repente, se enche de nuvens que parecem maçapão.
Saúde de noz.

O Sup tentando lembrar como é que Pedrito fez o que fez.


(Lá em cima, o helicóptero é um inútil urubu de lata).

Luta ao narcotráfico, “pretexto” para atacar os zapatistas

Ao povo do México
Aos povos e aos governos do mundo.

Irmãos e irmãs:
O Exército Zapatista de Libertação Nacional diz a sua palavra sobre aquilo que aconteceu no município de
Chenalhó:

Primeiro. No dia 13 de janeiro de 1999, na comunidade indígena Aldema, município de Chenalhó, homens,
mulheres, criança e anciãos, bases de apoio do EZLN, foram atacadas por tropas do Exército mexicano. O ataque
militar aos zapatistas pretende esconder-se atrás do pretexto do combate ao narcotráfico.

Segundo. As comunidades zapatistas, por decisão própria, haviam proibido o plantio e a utilização de
entorpecentes. Os pés de maconha encontrados nas proximidades do vilarejo pertencem a indígenas não zapatistas
que, graças à colaboração e aos conselhos de militares e policiais, se dedicavam ao plantio das ervas para dar às
forças governamentais o pretexto legal de que precisavam para legitimar suas incursões militares.

Terceiro. Os zapatistas de Aldama, Chenalhó, não haviam destruído as plantas para evitar um confronto
com os paramilitares e se opuseram à passagem das forças federais por temerem, com toda razão, que eles
instalassem um novo acampamento militar nesta área que já se encontra militarizada.

Quarto. Desde o primeiro instante, o exército recusou-se a dialogar e optou pelo uso da força. Com
cassetetes, escudos eletrificados e gás lacrimogêneo, atacou os civis que se opunham à sua presença.

Quinto. Apesar do general Jorge Isaac Jiménez Garcia, comandante em chefe da operação militar, ter
negado que os campos de maconha pertencessem aos simpatizantes do EZLN, o governo federal articulou uma
campanha de calúnias nos meios de comunicação; pretendia mostrar o envolvimento dos zapatistas com o
narcotráfico. Mentem novamente.

Sexto. Com esta operação militar e com a propaganda governamental que a acompanha, o governo federal
pretende ocultar as recentes revelações que mostram o envolvimento de pessoas do Exército federal com as ações
dos grupos paramilitares que perpetraram o massacre de Acteal (como consta das declarações do ex-agente do
Ministério Público preso alguns dias atrás pela Procuradoria Geral da República).

Sétimo. O EZLN convoca a opinião pública nacional e internacional a não se deixar enganar. Nós
zapatistas não somos narcotraficantes e não mantemos com eles contato algum, o governo sim.
13
Lançamos um apelo ao povo do México e aos povos e governos do mundo para que se mobilizem para
frear esta nova ofensiva contra as comunidades indígenas zapatistas, para exigir o respeito aos acordos de San
Andrés e para pôr fim à guerra de extermínio.

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do sudeste mexicano


Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional
México, janeiro de 1999.

A luta dos professores no Distrito Federal

Ao povo do México
Aos professores e professoras mexicanos.

Irmãos:
Dias atrás, um grupo de professores da Seção 9 do Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Educação
(SINTE) foi preso injustamente e colocado na cadeia. Os professores estão sendo acusados de ter cometido
diversos crimes pelo fato de ter realizado uma manifestação no Senado exigindo o respeito dos seus direitos.
Há meses, os professores estão pleiteando o reconhecimento de seus dirigentes sindicais democraticamente
eleitos, e isso é recusado pela diretoria do SINTE. Entrando no Senado da República, os professores da Seção 9 não
violaram a lei e nem entraram em confronto com os parlamentares. A Câmara dos Senadores não é propriedade do
Legislativo ou do Executivo e sim da República, daqueles que a compõem e a fazem caminhar todos os dias.
Pedindo aos senadores que ouvissem suas reivindicações, os professores não estavam seqüestrando
ninguém, e sim estavam exigindo apenas que a prática mais elementar de um bom governo, ou seja, de ouvir os
governados, fosse colocada em prática por aqueles que se dizem representantes do povo.
Ao exigir a democratização do seu sindicato, os professores não estavam se amotinando com a pretensão
de desestabilizar as “instituições da República”, mas estavam apenas repetindo através da sua voz aquele que é o
sentimento de todo o magistério e do sindicalismo operário do México. Graças às alquimias do judiciário
(insufladas por parte de alguns senadores da República), simples professores que estavam reivindicando seus
direitos agora estão sendo colocados no mesmo nível daqueles que cortam orelhas ou dedos para extorquir dinheiro
dos familiares dos seqüestrados. Os senadores não foram tomados como reféns: a única coisa que foi tomada como
refém foi a justiça no México.
Não podemos permitir este crime da legalidade, não só em relação aos professores que foram detidos, mas
porque aquilo que foi condenado como revolta e seqüestro é o direito que o cidadão tem de ser ouvido e de exigir
que aqueles que mandam, mandem obedecendo.
Nós zapatistas apoiamos os professores que foram detidos e nos unimos ao repúdio popular contra esta
injustiça.
Convocamos o povo do México a mobilizar-se para evitar que seja criado um precedente que enquadre a
luta política e social no âmbito das ações criminosas. Aqueles que lutam pelos direitos dos cidadãos não podem ser
tratados como delinqüentes e nem continuar sem receber respostas e soluções às suas justas reivindicações.
Com os professores e as professoras, vamos todos pedir aquilo que é um desejo e um direito de todos os
mexicanos e mexicanas.

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do sudeste mexicano


Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
México, janeiro de 1999.
Carta de Marcos sobre a visita do Papa ao México
À imprensa nacional e internacional:

Senhoras e senhores:
A seguir, enviaremos um comunicado sobre a consulta dos mexicanos que moram em outros países e um
apelo para a realização de uma jornada internacional dos excluídos do mundo inteiro.
O Papa João Paulo II está pra chegar e no Ministério do Interior e em Los Pinos (residência presidencial)
estão selecionando os cosméticos e as maquiagens. O rosto que precisam ocultar é o da guerra em Chiapas, guerra
14
que faz suas vítimas também nas fileiras da igreja católica. Zedillo (presidente mexicano) e Labastida (ministro)
têm alguns problemas.
Como ocultar ao Papa que os 45 indígenas que mandaram assassinar em Acteal estavam rezando pela paz
na hora em que foram executados? Como esconder as igrejas que os paramilitares de “Paz e Justiça” mantém
fechadas? Como maquiar aquelas que foram transformadas em quartéis do Exército federal? Que cosmético pode
disfarçar a campanha de perseguição que foi desencadeada contra o bispo Samuel Ruiz Garcia para que renunciasse
à CONAI e a igreja católica fosse assim afastada do seu trabalho de mediação? Que máscara pode calar as
declarações do general do Exército federal que, com uma tradução em tzeltales do Evangelho segundo São Marcos
nas mãos, “demonstrava” as ligações entre a igreja católica e os “transgressores da lei” (ou seja, nós zapatistas)? 11
E o que dizer dos professores que foram presos porque exigiam seus direitos? E em relação à militarização
em Oaxaca, Guerrero, Chiapas, Veracruz, Jalisco e Huasteca? E quanto aos observadores internacionais expulsos
do país? E o descontentamento popular por causa da política econômica do governo? E as empresas que abriram
falência?
Torcem seus dedos, mas não encontram nada que possa ocultar estas verdades. Benzem-se e rezam: “por
favor, que ele não faça declarações políticas!”.
Há quem nos diz que não é pra gente se preocupar com as provocações do governo durante a visita do
Papa, e sim depois que ele for embora...
Bom. Saúde, e não é o próprio Evangelho que diz “A verdade vos libertará”?

Das montanhas do sudeste mexicano.


Subcomandante Insurgente Marcos.
México, janeiro de 1999.

P.S. Que tem dúvidas em relação ao cardápio. Entre o “chilonio sinaloense” e o “mole poblano”, qual dos
dois é o aperitivo e qual o prato principal?
P.S. A página da consulta está no seguinte endereço: http://www.laneta.apc.org/consultaEZLN.

Convocação para a Consulta Internacional


Aos mexicanos e mexicanas que vivem no exterior.
Aos comitês de solidariedade com a luta zapatista.
Aos homens e mulheres dos cinco continentes.

Irmãos e irmãs.
Para este ano de 1999. O Exército Zapatista de Libertação Nacional lançou uma nova iniciativa de diálogo
e de paz convocando, no México e no mundo, a uma mobilização pelo reconhecimento dos direitos dos povos
indígenas e pelo fim da guerra de extermínio. Um dos elementos mais importantes desta mobilização é a realização
de um consulta dirigida a todos os mexicanos e as mexicanas, onde quer que eles estejam, sobre o projeto de lei
indígena da Comissão de Concórdia e Pacificação. Esta consulta será realizada no domingo dia 21 de março de
1999.
O governo mexicano teima em não cumprir os acordos que assinou reconhecendo os direitos indígenas e
optou abertamente pela violência como caminho para resolver o conflito, como o demonstram as matanças de
Acteal e de El Bosque alguns meses atrás.
Na tentativa de maquiar a sua guerra de extermínio, Ernesto Zedillo montou uma campanha de propaganda
no exterior para melhorar a sua imagem internacional e enganar os povos, os governos e as organizações de defesa
dos direitos humanos para levá-los a crer que não há nenhuma guerra no sudeste mexicano, que o governo quer
dialogar e que é o EZLN que se nega a resolver pacificamente o conflito.
Nos últimos dias, o senhor Zedillo instruiu pessoalmente todo o corpo diplomático do governo mexicano
para que se encarregue de levar adiante esta campanha publicitária nos EUA, Canadá, Europa, Ásia, África e
Oceania.
Milhões de dólares e todo o Serviço Exterior Mexicano serão utilizados para este fim. Grandes recursos
materiais e humanos com um único objetivo: mentir.

11
De acordo com Dom Samuel Ruiz, bispo de San Cristóbal de Las Casas, as principais agressões contra a diocese podem ser assim
resumidas: a expulsão de sete sacerdotes e a prisão de outros quatro alegando falsas acusações, a recusa do visto de permanência no país a
agentes de pastoral estrangeiros, o fechamento de cerca de 40 igrejas (parte delas ocupadas pelo Exército), os mandatos de prisão contra
numerosos padres, religiosas e missionários, a intimidação de vários camponeses para levá-los a afirmar que a diocese entrega armas às
comunidades indígenas, as orientações aos meios de comunicação para que estes manipulem as notícias a serem divulgadas, a criação de um
clima de linchamento e a profanação dos altares de muitas igrejas pela polícia. Fonte: La Jornada 17/02/99.
15
O governo mexicano esquece que a sociedade civil internacional está bem informada sobre o que
realmente ocorre no sudeste mexicano.
Esquece que homens, mulheres, crianças e anciãos do mundo inteiro já conhecem a verdade sobre a guerra
em Chiapas e, por isso, se mobilizam e exigem o seu fim.
Esquece que nos cinco continentes todos sabem que o governo mexicano não quer cumprir os acordos de
San Andrés e, por isso, exigem o seu cumprimento.
Nós não temos dinheiro e nem diplomatas de carreira para contra-arrestar a campanha governamental. Não
precisamos disso. A verdade está aí e todos a vêem e escutam.
Por isso, porque sabemos que esta campanha para divulgar mentiras será um fracasso, hoje convocamos a

CONSULTA INTERNACIONAL PELO RECONHECIMENTO DOS DIREITOS DOS POVOS


INDÍGENAS E PELO FIM DA GUERRA DE EXTERMÍNIO.

Convocamos todos os mexicanos e mexicanas, maiores de 12 anos, que vivem no exterior a organizar-se e
a participar da Consulta pelo Reconhecimento dos Direitos dos Povos Indígenas e pelo Fim da Guerra de
Extermínio DO DIA 21 DE MARÇO DE 1999.
Convidamos as organizações políticas e sociais que lutam pelo direito ao voto dos mexicanos que se
encontram no exterior a apoiarem e a impulsionarem a Consulta em todos os países onde mantém um trabalho de
organização.
Convidamos os homens e as mulheres de todas as nacionalidades, os mexicanos e mexicanas que vivem
nos países da América Latina, da Europa, Ásia, África e Oceania, para que cheguem a um acordo quanto à
organização e realização da consulta. Para que juntos, em cada nação, organizem a divulgação, a instalação das
urnas e a contagem das opiniões.
Lançamos um convite especial à comunidade mexicana que vive nos Estados Unidos da América para que
participe da Consulta pelo reconhecimento dos Direitos dos Povos Indígenas e pelo Fim da Guerra de Extermínio,
promovendo e divulgando a consulta, instalando as urnas de votação e dando a sua opinião no dia 21 de março de
1999.
Os irmãos e irmãs mexicanos que vivem e trabalham na União Americana, dos quais muitos são indígenas
como nós, não abandonaram suas terras, sua história, suas famílias e seu país, por prazer. O fizeram por falta de
democracia, liberdade e justiça no México, porque se viram obrigados a procurar outras terras onde poder
conseguir o necessário para viver com dignidade.
Por isso convocamos toda a nação, os “chicanos”, os méxico-americanos, os “carnales”, os “batos”, os
“bandas” a organizar-se para a consulta e a registrar-se junto à COMISSÃO NACIONAL PARA A
DEMOCRACIA NO MÉXICO-EUA (que tem seus escritórios na União Americana) ou no CENTRO DE
CONTATO PARA A CONSULTA (Escritório no México. Fone e fax: (967) 8.10.13 e (967) 8.21.59. E-mail:
contacto@laneta.apc.org). Neste mesmo centro no México, poderão registrar-se todos os mexicanos e mexicanas
que querem participar da consulta em qualquer país do mundo.
Por isso, convidamos todos os homens, mulheres, crianças e anciãos do planeta a formarem suas brigadas
de promoção e divulgação da consulta e a registrá-las no Centro de Contato para a Consulta.

IRMÃOS E IRMÃS DOS CINCO CONTINENTES:

A comunidade internacional tem se mostrado sensível às justas reivindicações dos povos indígenas do
México, tem olhado com horror para a guerra que o governo mexicano leva adiante contra os primeiros moradores
destas terras, tem se mobilizado para mostrar seu repúdio pelos massacres, para reivindicar o respeito aos direitos
humanos e para exigir uma paz justa e digna para o México.
Em resposta a estas mobilizações, o EZLN mantém o seu compromisso de buscar uma solução pacífica
para o conflito armado que estamos vivendo no México e leva adiante as suas iniciativas de paz.
Mas não é só no México, e sim nos cinco continentes que os excluídos sofrem a perseguição, o cárcere e a
morte. O poder do dinheiro decretou que os abandonados de sempre atrapalham e, por isso, devem ser eliminados.
Milhões de seres humanos serão deixados de lado e excluídos de todo bem-estar, de um amanhã.
Por isso...
Para deter a guerra de extermínio.
Para conseguir o reconhecimento dos direitos indígenas no México.
Para deter a perseguição que se abate sobre os excluídos.
Para exigir o respeito às diferenças.
Para reivindicar um mundo onde caibam todos os mundos.
Convocamos a uma
16
JORNADA INTERNACIONAL PELOS EXCLUÍDOS DO MUNDO

Nas Américas, na Europa, na Ásia, na África e na Oceania, os excluídos têm seus próprios nomes e
histórias, suas lutas e seus anseios.
Nos cinco continentes, a resistência é a arma de defesa que os excluídos levantam para não desaparecer. A
sua luta, como a nossa, é para a humanidade.
Convidamos TODAS E TODOS A ORGANIZAR EM SEUS RESPECTIVOS PAÍSES, PROVÍNCIAS,
CIDADES E POVOADOS, MOBILIZAÇÕES A FAVOR DO RECONHECIMENTO DOS EXCLUÍDOS E A
CONCENTRAR A REALIZAÇÃO DE ATOS PÚBLICOS NO DIA 21 DE MARÇO DE 1999.

DEMOCRACIA! LIBERDADE! JUSTIÇA!

Das montanhas do sudeste mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional
México, janeiro de 1999.

Carta de Marcos sobre a Organização da Consulta


11 de Fevereiro de 1999

À Sociedade Civil Nacional e Internacional


De: SupMarcos

Senhora:
Já foram nomeados os 5.000 delegados zapatistas que irão a todos os municípios do país! (Bom, na verdade
foram nomeados 6.000 porque os companheiros dizem que devemos manter alguns na reserva caso alguém
adoeça). Enquanto preparamos nossa saída, aproveito para falar-lhe um pouco sobre como procede a organização
da Consulta Nacional pelo Reconhecimento dos Direitos dos Povos Indígenas e pelo Fim da Guerra de Extermínio.
Não sei se devo começar contando-lhe das mensagens que nos deixam na secretária eletrônica e que acho
importante que você saiba que, por exemplo, Chac nos ligou para deixar sugestões e saudações (nesta ordem); que
uma boa parte das ligações vem do Estado de Chihuahua; que uma professora de ensino secundário de nome Alma
nos diz que está farta das mentiras do governo, que apoia a consulta e que espera que tudo mude para melhor se nos
organizarmos (Saúde e saudações, dona Alma, nós também “queretaros un restorán”); que um programa de rádio
de Chihuahua (acredito que se chame “ao vivo e em direta”) falou para colocar-nos perguntas e para dizer que seus
ouvintes poderiam inteirar-se, “ao vivo e em direta”, sobre o objetivo da Consulta (infelizmente, não sei a que
endereço enviar a gravação com as nossas palavras); que o “Diário de Chihuahua” também pediu que mandássemos
uma mensagem aos seus leitores (esperamos que publiquem esta carta que também é para eles); que a família
Segura, da Cidade Juaréz, (“sim senhor!”), nos diz que lamenta a situação atual do país e pede a Deus que nos
ilumine; que outros também falam para lembrar-nos do dia das mães (eles não deixam de ser prevenidos, pois ainda
falta muito para o dia 10 de maio); que outros ligam apenas para ouvir a mensagem da secretária ou para deixar um
“Olá!”, ou um “Boa Sorte!”.
Mas é melhor que não me delongue sobre isso. São muitas as ligações telefônicas assim como muitos são
os desejos e os entusiasmos que expressam.

Será melhor que lhe fale das brigadas de promoção e divulgação da Consulta Nacional que têm se
credenciado. Aí está, por exemplo, a brigada “Moisés” que faz o seu trabalho em Poza Rica, Estado de Veracruz, e
promove a Consulta nas colônias Chapultepec, Obras Sociales, Fraccionamiento San Román e Tepeyac. A
responsável desta brigada é uma senhora que está fisicamente muito doente, mas cujo espírito é mais sadio do que
o de nós todos, e ela, sem esperar nenhum aplauso, está empenhada em lutar pela justiça, obviamente, junto aos
seis que integram a sua brigada. Não vou citar o seu nome, mas ela e nós sabemos
quem é. E temos também a brigada “Terra e Liberdade”, que trabalha em Tijuana,
B.C., e que nos solicita o vídeo do “Sup-Speedy e a Consulta”. Ou a brigada
“Irmãos”, de Enseada, B.C., que faz seu trabalho de promoção nas línguas triqui e
nahuatl.
Em Parral, Chihuahua, a brigada “Teporaka” divulga a Consulta em
raramuri e nos dizem KITA SHIWE (que em raramuri significa “NÃO FALTE À
PALAVRA”). Em Chiapas, a brigada “Chawok” (que quer dizer “trovão”) trabalha
17
nas línguas Mam, Chuj e Jaltieco. Outras brigadas o fazem em tzeltal, Tzotzil, tojolabal, chol, cakchiquel, zoque
e espanhol. Em Colima, tem uma brigada que se chama “A palavra carinhosa” e também promove a Consulta. No
D.F., temos muitas brigadas de jovens (uma se chama “Tlacuaches em Rebelião”, claro, né!). Também no D.F., o
Multiforo Alicia é brigada, fórum e múltiplo ao mesmo tempo. No Estado do México, a brigada “Tloque-
Nahuaque” promove a Consulta em otomí. Em Guanajuauto, ao grito de “Yepa-yepa!” a “Rubén
Jaramillo” divulga a Consulta em Salamanca. O mesmo grito é ouvido em Guadalajara, mas vem da
brigada “AOKMO”. Em Michoacán a “Utopia” faz o seu trabalho em purepécha. Em Puebla, as brigadas
“Chaneques” e “Adelita” pedem uns empurrões (aqui vai: força! Dá-lhe! Etc.). Em Quintana Roo, a brigada
“Saché” trabalha em maia. Em Sinaloa, a brigada “Os Indecisos” esperam decidir-se trabalhando na Consulta. Em
San Luis Potosí, mais precisamente em Tamazunchale, se joga basquete e se promove a Consulta em teke e
nahuatl. Em Tampico, Tamaulipas, a brigada não se chama “Sebastian Guillen”, e sim “Tamaulipas pela Paz”. Em
Veracruz, a brigada “Homens Nécios” faz honra ao seu nome quando se trata de lutar com dignidade. Em Jeréz de
Garcia, Zacatecas, tem uma brigada que, obviamente, se chama “López Velarde” ...
E tem mais: na Cidade do México, por exemplo, um grupo de ex-jogadores profissionais de futebol (que já
se retiraram do “jogo do homem”) programou uma partida de futebol entre eles e os delegados zapatistas que
integram as delegações do D.F. Eles perguntam se aceitamos e desafio e como deverá ser o nosso uniforme. É claro
que aceitamos e pedimos que o nosso uniforme seja: camiseta preta com uma estrela de cinco pontas e a sigla
EZLN (na frente), o número da mesma cor vermelha, calções (melhor se for no estilo “Chololo” Díaz) de cor
branca (é por causa dos contrastes) e meias pretas. Quanto aos calçados, não se preocupem: levaremos sandálias
marca “Yepa-Yepa, a única sandália globalizada” (nada feito, já temos contrato de exclusividade). Acho que eu
vou jogar na extrema esquerda (afinal, temos que ser coerentes, não é?) e na zaga instalaremos um destacamento
zapatista. Nossa estratégia será a resistência digna. Nos mandam dizer que o grupo de ex-jogadores entrará com o
estádio e a bola. Perfeito, nós vamos pôr o juiz (é claro que não dá para arriscar).
E assim poderia falar-lhe de muitos e muitas, homens, mulheres, crianças e anciãos que, neste momento,
estão trabalhando duro para que a Consulta saia bem no México e seu êxito seja um passo no caminho da paz que
todos merecemos e precisamos.
Mas, no lugar de continuar dando-lhe dados dispersos, quero fazer um resumo dos dados mais
significativos desta etapa de promoção e divulgação da Consulta no México. Até o dia 11 de fevereiro de 1999,
haviam sido registradas mais de 600 brigadas em 30 dos 32 Estados da Federação (faltam apenas brigadas em
Nayarit e Campeche, mas não vão demorar em aparecer). Os Estados cujas brigadas são integradas por um número
maior de pessoas são o Distrito Federal, Chiapas, Puebla, o Estado do México, San Luis Potosí, Veracruz, Oaxaca,
Sinaloa, Chiahuahua, Morelos, Nuevo León e Zacatecas.
Muitos dos e das que participam das brigadas em toda a República são pessoas que não integram nenhum
partido ou organização política. As organizações sociais e políticas, o que estão esperando para ir ao seu encontro?
Vamos nessa! Esta consulta é de todos.
Força, vamos. Muitos municípios já têm suas brigadas, mas faltam muitos outros. Força, anime-se! Forme
a sua brigada e a credencie! Certo?
Além disso, a etapa da organização Territorial da Consulta já está pra começar. Certo? Participe!
Sobre a Consulta Internacional, lhe digo rapidamente que já temos nossos brigadistas no Estado Espanhol,
Itália, País Basco, Argentina, Uruguai, Japão, Coréia do Sul, África do Sul, França, Noruega, Suíça, Nicarágua,
Israel, Grécia, Inglaterra, Austrália, Suécia, Canadá, Venezuela, Brasil, Porto Rico, Chile e Estado Unidos da
América.
Bom. Senhora, isto é mais ou menos aquilo que queria dizer-lhe. Não se esqueça que a Consulta é domingo
dia 21 de março de 1999 e que os delegados zapatistas irão ao seu município para falar e ouvir, que é para isso que
serve a Consulta. Saudações.

Saúde e KITA SHIWE!

Das montanhas do Sudeste Mexicano.


Subcomandante Insurgente Marcos.
México, Fevereiro de 1999.

Perguntas e Respostas sobre a Consulta

12 de Fevereiro de 1999.

Ao povo do México:
18
Irmãos e Irmãs:
Depois de fazer um balanço do estágio em que se encontra a etapa de Promoção e Divulgação da Consulta,
vemos que é um êxito completo e que já é hora de passar à etapa seguinte: a da Organização Territorial da
Consulta. Para que vocês fiquem um pouco menos confusos em relação ao que já estamos todos, trataremos de
explicar as coisas seguindo o método do Velho Antônio: perguntando. Então, vamos:

1. O que é a etapa da Organização Territorial da Consulta?

Bom, heim, pois não, sim, ou seja, quer dizer... A Organização Territorial da Consulta é quando já temos
que organizar-nos em nossos bairros, em nossas comunidades, em nossos municípios, em nossas regiões e em
nossos Estados para duas coisas muito importantes: para receber os delegados zapatistas, organizar os atos públicos
dos quais vão participar e para realizar a Consulta do dia 21 de março de 1999.
Isto é muito importante porque se trata de fazer com que a Consulta seja uma mobilização e um diálogo. E
uma mobilização e um diálogo são melhores quando incorporam mais gente e quando são organizados para que
todos tenham um lugar e todos possam ouvir e ser ouvidos. Por isso, neste momento temos que nos organizar para
estas duas coisas e para realizá-las da melhor maneira possível.

2. De que forma o EZLN organizou territorialmente os Estados do país?

Primeiro, vamos dizer que dividimos o país de uma forma especial para a viagem dos zapatistas e para a
realização da Consulta. Fizemos isso levando em consideração vários aspectos: o número de habitantes, a
organização alcançada na etapa de promoção e divulgação da Consulta, as forças políticas e sociais que aí agem, a
atenção aos municípios com pouca participação, etc. De acordo com esta divisão do país decidimos a forma pela
qual se organizará territorialmente a Consulta, o roteiro dos delegados zapatistas e o número de delegados que irão
em cada divisão territorial.
Para organizar a Consulta e a viagem dos zapatistas aos diversos territórios, serão formadas Coordenações
Estaduais da Consulta. Teremos uma Coordenação para cada Estado da Federação, feita exceção para determinados
municípios e delegacias do Distrito Federal que terão sua própria coordenação e, para fins organizacionais, serão
levadas em consideração como se fossem um Estado.

3. Quais são os municípios da República e as delegacias do Distrito Federal que terão sua própria
coordenação como se fossem um Estado da Federação?

Os seguintes municípios da República e delegacias do D. F. terão sua própria coordenação:

Iztapalapa (D.F.).
Ecatepec (Estado do México).
Gustavo A. Madero (D.F.).
Nezahualcoyotl (Estado do México).
Puebla (Puebla).
Monterrey (Nuevo León).
Juárez (Chihuahua).
Tijuana (Baixa Califórnia).
Naucalpan (Estado do México).
Tlanepantla (Estado do México).
Alvaro Obregón (D.F.).
Coyoacán (D.F.).
Tlalpan (D.F.).
Cuauhtémoc (D.F.).
Venustiano Carranza (D.F.).
Azcapotzalco (D.F.).
Iztacalco (D.F.).
Benito Juárez (D.F.).
Miguel Hidalgo (D.F.).
Xochimilco (D.F.).
Tláhuac (D.F.).
Contreras (D.F.).
Cuajimalpa (D.F.).
Milpa Alta (D.F.).
19

4. Que critério será adotado em relação ao número de delegados zapatistas que estará presente nos
municípios da República e nas delegacias do D. F. anteriores?

O critério a ser seguido nestes municípios especiais e nas delegacias do D. F. para decidir quantos
delegados os visitarão, será proporcional ao número de habitantes que os povoam, e ficará como segue:

MUNICIPIO. Número de Zapatistas.

Iztapalapa (D.F.). 34.


Ecatepec (Estado do México). 30.
Gustavo A. Madero (D.F.) 26.
Nezahualcóyotl (Estado do México). 24.
Puebla (Puebla). 24.
Monterrey (Nuevo León). 20.
Juárez (Chihuahua). 20.
Tijuana (Baixa Califórnia). 18.
Naucalpan (Estado do México). 16.
Tlanepantla (Estado do México). 14.
Alvaro Obregón (D.F.). 14.
Coyoacán (D.F.) 14.
Tlalpan (D.F.). 12.
Cuauhtémoc (D.F.). 10.
Venustiano Carranza (D.F.). 10.
Azcapotzalco (D.F.). 10.
Iztacalco (D.F.). 8.
Benito Juárez (D.F.). 8.
Miguel Hidalgo (D.F.). 8.
Xochimilco (D.F.). 6.
Tláhuac (D.F.). 4.
Contreras (D.F.). 4.
Cuajimalpa (D.F.). 2.
Milpa Alta (D.F.). 2.

OBSERVAÇÃO: COMO VOCÊS PODEM VER, OS LUGARES QUE RECEBERÃO TRATAMENTO


ORGANIZACIONAL DE ESTADO SÃO TODAS AS DELEGACIAS DO DISTRITO FEDERAL, 4
MUNICÍPIOS DO ESTADO DO MÉXICO, AS CAPITAIS DOS ESTADOS DE PUEBLA (PUEBLA), NUEVO
LEÓN (MONTERREY), E AS CIDADES DE TIJUANA E CIDADE JUARÉZ.

5. As Coordenações de Puebla, Monterrey, Nezahualcóyotl, Naucalpan, Ecatepec, Tlanepantla, Tijuana y


Cidade Juárez se encarregarão de coordenar o resto de Estado a que pertencem?

Não. Estas Coordenações se encarregarão apenas da organização das áreas a elas reservadas. Esperamos
que no resto dos Estado se formem outras coordenações. Desta forma, teremos duas coordenações nos Estados que
seguem:

Puebla (uma para a capital e outra para o resto do Estado). Nuevo León (uma para Monterrey e outra para o resto
do Estado). Baixa Califórnia (uma para Tijuana e outra para o resto do Estado) Chihuahua (uma para Cidade Juaréz
e outra para o resto do Estado).
No Estado do México teremos 5 Coordenações (uma para Tlanepantla, outra para Ecatepec, mais uma para
Nezahuacoyotl, e a quarta para Naucalpan. A quinta Coordenação organizará o trabalho no resto do Estado).

6. Quantos delegados zapatistas acompanharão os demais municípios da República?

A idéia é que 2 delegados (um homem e uma mulher) estejam presentes em cada um dos municípios não
contemplados no critério anterior. Desta forma, cada Coordenação Estadual deverá multiplicar por 2 o número de
municípios do seu Estado e estar preparada para receber esta quantidade de delegados zapatistas.
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7. Deixando de lado as Delegacias do D. F. e os municípios especiais, há outras exceções ao critério de
2 delegados zapatistas por município?

Sim. Os municípios de Guadalajara (Jalisco), Culiacán (Sinaloa) Chihuahua (Chihuahua), San Luis Potosí
(S. L. P.) e Morelia (Michoacán) receberão um número maior de delegados, mas deve ficar claro que estes
municípios não formam sozinhos sua própria Coordenação, e sim trabalham com a Coordenação Estadual que
cobre todo o seu Estado.

Município. Número de Zapatistas.

Guadalajara (Jalisco). 32.


Culiacán (Sinaloa). 14.
Chihuahua (Chihuahua). 12.
San Luis Potosí (S.L.P.). 12.
Morelia (Michoacán). 10.

Todos os demais municípios do país receberão 2 delegados zapatistas (um homem e uma mulher).

8. Como serão organizadas as Coordenações Estaduais?

Todas e todos que num Estado da Federação (ou num município ou delegacia do D. F. que receba
tratamento organizacional de Estado) estejam interessados em participar da organização da visita dos delegados
zapatistas a cada município e na organização da jornada de 21 de março de 1999, se reúnem, entram em acordo e
formam uma Coordenação. Brigadas, organizações sociais, políticas, não-governamentais e indivíduos podem
integrar uma Coordenação da Consulta num Estado, numa das 16 Delegacias do D. F., ou num dos municípios
especiais (Ecatepec, Nezahualcoyotl, Naucalpan, Tlanepantla, Puebla, Monterrey, Cidade Juaréz e Tijuana).

9. Quem pode integrar uma Coordenação Estadual da Consulta num Estado da Federação (ou numa
Delegacia do D. F. ou num município considerado como Estado?

a) Todas as brigadas de promoção e divulgação que estejam credenciadas junto à Secretaria de Contatos para a
Consulta do EZLN.
b) Todas as pessoas sem organização que estejam interessadas em participar da organização e da realização deste
trabalho.
c) Todas as organizações sociais, políticas e não-governamentais que estejam interessadas em participar deste
trabalho.

10. Concretamente, que trabalho realizam as Coordenações Estaduais da Consulta?

São sete trabalhos:

Primeiro. Organizar e realizar o translado dos delegados zapatistas dos Aguascalientes 12 em Chiapas até os
municípios de destino e, ao encerrar a consulta, o retorno às suas comunidades. Isto inclui conseguir o
financiamento e os meios de transporte necessários, que podem ser (de acordo com a localização de cada Estado,
delegacia ou município especial) avião, ônibus, carro, caminhão navio, barco canoa, bicicleta, cavalo, patinetes,
burro, patins, a pé, etc.
Segundo. Organizar e responsabilizar-se pela hospedagem e alimentação dos delegados zapatistas durante a
viagem e ao longo de sua permanência nos respectivos municípios.
Terceiro. Organizar e responsabilizar-se pela segurança dos delegados zapatistas durante o translado,
estadia e nas atividades públicas das quais venham participar.
Quarto. Organizar e responsabilizar-se pela agenda de atividades públicas dos delegados zapatistas durante
a permanência nos respectivos municípios.
Quinto. Promover e organizar a instalação das Mesas da Consulta e das Assembléias Comunitárias nos
municípios do seu Estado (ou em sua delegacia ou município especial) no dia 21 de março de 1999, de acordo com
as instruções que daremos a conhecer no tempo oportuno.

12
As bases de apoio e de diálogo entre o EZLN e a sociedade civil são chamadas de Aguascalientes em homenagem ao lugar onde se
reuniram Emiliano Zapata e Pancho Villa, líderes da histórica revolução mexicana do início do século.
21
Sexto. Organizar e realizar a contagem dos votos das mesas e assembléias no respectivo município de
acordo com as instruções que daremos a conhecer no tempo oportuno.
Sétimo. Comunicar os resultados da contagem de acordo com as instruções que daremos a conhecer no
tempo oportuno.

Cada Coordenação deve apresentar uma proposta sobre como pretende realizar estas 7 tarefas e enviá-la ao
EZLN através da Secretaria de Contatos para a Consulta para que seja aprovada ou modificada. O mais importante
no trabalho das Coordenações será levar em consideração a organização das visitas dos zapatistas a todos os
municípios do seu Estado.

NOTA IMPORTANTE: SE ALGUMA COORDENAÇÃO ESTADUAL (DE DELEGACIA DO D.F., OU DE UM


MUNICÍPIO ESPECIAL) NÃO TEM CONDIÇÕES DE RECEBER O NÚMERO DE DELEGADOS QUE LHE
FOI DESIGNADO DE ACORDO COM O NÚMERO DE MUNICÍPIOS DO SEU ESTADO, É FAVOR FALAR
DISSO À SECRETARIA DE CONTATOS ACOMPANHADA DE SUA CONTRAPROPOSTA. DO MESMO
MODO, SE TIVER ALGUM MUNICÍPIO OU COORDENAÇÃO ESTADUAL QUE ESTEJA DISPOSTO A
RECEBER UM MAIOR NÚMERO DE DELEGADOS ZAPATISTAS, TAMBÉM DEVERÁ INFORMAR COM
ANTECEDÊNCIA À SECRETARIA DE CONTATOS. ESPERAMOS RECEBER TODOS OS SEUS
INFORMES, NO MAIS TARDAR, ATÉ O PRIMEIRO DE MARÇO PRÓXIMO (DE PREFERÊNCIA, ANTES
DESTA DATA).

11. Existe algum tipo de organização territorial especial para as áreas indígenas?

Para as áreas indígenas pensamos em Coordenações Regionais. Aqui podemos juntar vários municípios
com população indígena e formar uma Coordenação Regional para dar conta das 7 tarefas que devem ser
cumpridas. Ou, se quiserem e for conveniente para eles, podem organizar-se no interior da Coordenação do seu
Estado.
Por exemplo, nas áreas indígenas de Chiapas com grande presença zapatista (ou seja, todas), os diversos
municípios podem organizar-se em Coordenações Regionais. Outro exemplo, nas áreas indígenas de Oaxaca já
estão organizados no interior da Coordenação do seu Estado.

12. Podemos dar um exemplo disto, das Coordenações e de suas tarefas?

Com muito prazer. Vamos pegar como exemplo o Estado de Jalisco. Neste Estado, e, sobretudo, em
Guadalajara, existem brigadas, organizações sociais, políticas, não governamentais e gente-gente interessadas na
Consulta. Bom, em Jalisco, as brigadas, as pessoas e as organizações que estejam interessadas se unem, entram em
acordo e formam a Coordenação para a Consulta em Jalisco. Traçam o plano de trabalho para as sete tarefas:

Um. Como lhes são designados um delegado e uma delegada zapatistas para cada município (feita exceção
por Guadalajara, à qual foram designados 32 delegados) e Jalisco tem 124 municípios, no total serão 278
delegados, e eles vão se organizar para conseguir o transporte que vai a Chiapas recolher os delegados e levá-los a
Jalisco. Entre os membros da Coordenação nomeiam um grupo que viaje com o transporte até Chiapas e venha
pegar os delegados zapatistas. Do mesmo modo, se organizam pela volta dos delegados zapatistas a Chiapas.
Dois. Organizam-se para garantir a hospedagem (em quartos separados, por razões óbvias) do zapatista e
da zapatista e também para que tenham a alimentação possível e necessária (cuidado com as indigestões!) durante
as viagens e durante a sua permanência em Jalisco na semana que vai de 14 a 21 de março de 1999.
Três. Organizam-se para cuidar da segurança dos delegados zapatistas durante a viagem de ida e volta e ao
longo de sua permanência em Jalisco. Tudo isso para fazer com que as forças governamentais não os molestem ou
agridam. Não é para isolá-los do povo e sim para protegê-los dos maus, ou seja, do governo.
Quatro. Entram em acordo e organizam as atividades públicas das quais querem que participem os
delegados zapatistas. Por exemplo: um encontro na praça principal do município, uma reunião com sindicalistas,
uma visita e um ato público numa colônia popular, uma reunião com estudantes e professores, um jogo de
basquete, um baile (de máscaras, obviamente), uma entrevista no rádio ou na televisão local, uma entrevista
coletiva com a imprensa, etc.
Cinco, seis e sete. Referem-se à instalação das mesas, à votação e à contagem dos votos. Tornaremos
públicas as instruções sobre isso no momento oportuno.
Bom, já que a Coordenação para a Consulta em Jalisco tem um plano para estas tarefas, ela o manda para o
EZLN através da Secretaria de Contatos para a Consulta. O EZLN faz a revisão, o aprova ou modifica e o manda
de volta para a coordenação de Jalisco para que veja como ficou, saiba quando e onde recolher os delegados
zapatistas que vão ao município do seu Estado.
22

13. Onde se cadastram as Coordenações Estaduais da Consulta?

Na Secretaria de Contatos para a Consulta. Avenida Ignacio Allende n.º 22-A Bairro San Antonio (entre
Av. Alvaro Obregon e Hermanos Domíngues). C. P. 29250. San Cristóbal de Las Casas, Chiapas, México. Fone e
fax: (967) 8-10-13 e (967) 8-21-59.

14. E se já estamos organizados em Coordenações Estaduais?

Não tem problema. Só tem que se credenciar na Secretaria de Contatos para a Consulta. Nós respeitaremos
a forma pela qual se organizaram e só tentaremos colocá-los em contato com brigadas ou pessoas que também
estão interessadas em participar para que sejam incorporadas nos trabalhos da Coordenação.

15. Quando podemos começar a formar as Coordenações da Consulta?

Agora mesmo, a partir do momento em que vocês acabarem de ler estas coisas chatas e pesadas.

16. Qual é a data limite para credenciar uma Coordenação Estadual da Consulta e enviar o seu plano para
cumprir as 7 tarefas?

A data limite é o 1º de março de 1999.

NÃO DEIXEM TUDO PARA A ÚLTIMA HORA! FORMEM JÁ A SUA COORDENAÇÃO


ESTADUAL E REUNAM-SE PARA ELABORAR O PLANO DAS 7 TAREFAS. CREDEMCIEM-SE O MAIS
RÁPIDO POSSÍVEL E ENVIEM LOGO O SEU PLANO. ASSIM RECEBERÃO COM MAIOR RAPIDEZ A
NOSSA RESPOSTA E TERÃO MAIS TEMPO PARA PREPARAR TUDO.

17. A etapa de promoção e divulgação da Consulta se encerra com o início da etapa de Organização
Territorial e da viagem dos zapatistas?

NÃO! Ao contrário, a etapa de promoção e divulgação se fortalece. Esperamos que se inscrevam mais
brigadas e que estas se incorporem às Coordenações da Consulta.

18. Quando os delegados zapatistas estarão no meu município? Quanto tempo permanecerão conosco?

Os cinco mil delegados zapatistas sairão dos Aguascalientes chiapanecos na sexta feira 12 de março de
1999. Por isso, estarão chegando no seu município no dia 13 ou 14 de março de 1999. Ficarão no seu município a
partir deste dia e até ao meio-dia do dia da Consulta, domingo 21 de março de 1999. Estarão de volta no dia 22 de
março.

Bom, por enquanto é tudo. Esperamos que as coisas tenham ficado um pouco mais claras e que todos e
todas se apressem a formar suas Coordenações da Consulta, as credenciem na Secretaria de Contatos para a
Consulta e, quanto antes, nos mandem o seu plano para dar conta dos 7 trabalhos. Saudações.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos.
México, fevereiro de 1999.

De polo a polo, as atividades a favor da Consulta.


14 de fevereiro de 1999.

À Sociedade Civil Internacional e Nacional.


De: SupMarcos

Senhora:
Aqui estamos nós, mais uma vez. Lembro que, na carta anterior, havia ficado pendente que eu falasse sobre
em que pé está a Consulta Internacional e Jornada Internacional pelos excluídos do Mundo. Vamos lá:
23

1. Bom, antes de mais nada, vou contar-lhe como estão as brigadas que, dos cinco continentes, tem se
credenciado e tem nos mandado suas idéias, informes e inquietações.
Já tem gente interessada e trabalhando na Ásia, sobretudo no Japão, Coréia do Sul (de lá nos dizem que não
acreditam nas mentiras do governo mexicano e deixam claro que as pessoas saem do México porque não há
justiça). Hong Kong e Israel. Da mesma forma, tem na África, sobretudo na África do Sul. Da Oceania também
estão se mobilizando a partir da Austrália.
Na Europa, há brigadas na Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Estado Espanhol, Euskadi, França, Holanda,
Itália, Inglaterra, Portugal, Suíça, Noruega e Irlanda. Por exemplo, de Hamburgo nos perguntam como participar;
no norte da Noruega não se sentem distantes do México (apesar de estarem muito perto do Polo Norte) e se
organizam para fazer-se ouvir; na Irlanda, o Irish México Group colocará uma mesa de votação em... Dublin! Que
maravilha!
Na América Latina, existem grupos e pessoas interessadas na Argentina (Além de Buenos Aires, Rosário,
Bahía Blanca, Rio Cuarto e Bariloche, tem gente se organizando na Patagônia, próximo ao Polo Sul. Quem diria, a
Consulta marca presença de Polo a Polo), Brasil (São Paulo, Rio e Rio Grande do Norte, por enquanto), Chile
(saudações a “Plomo” que também está perto do fim do mundo), Costa Rica, Paraná Porto Rico, Uruguai e
Venezuela.
No Canadá já estão trabalhando o “Grupo de Apoio Zapatista” em Victoria na Columbia Britânica. Existem
grupos também em Toronto (Peace Action for Chiapas), Montreal e Quebec.
A União Americana merece uma menção especial. Não só porque aí vivem milhões de mexicanos e
mexicanas, mas também porque são muitas as pessoas e os grupos que estão se mobilizando para organizar a
consulta e dar a sua opinião.
Eis alguns destes lugares onde isto está acontecendo: Alasca, San Diego, Nova Iorque, Washington, Los
Angeles, Santa Cruz (Califórnia), Philadelphia, Chicago, Michigan, Rochester (NY), Albuquerque (Novo México),
Columbia (Carolina do Sul), Seattle, Dallas, Oregon, Denver (Colorado), Mont Vernon (Washington), São
Francisco, Tarzana (Califórnia), El Paso, Madison (Wiscosin), Lancaster (Pennsylvania), Providence (Rhode
Island), Bakersfield (Califórnia), Maywood (Califórnia), Richmond (Califórnia) e Minnesota.
Mais detalhes? Veja você: a brigada “Dignidade e Liberdade México 99” está em São Diego; o Centro de
Informação Aztlán nos diz: “Como vai por aí, aqui estamos no meio da Consulta, já imprimimos a papelada que
está sendo distribuída por todos os cantos...”; também andam por lá o “Movimento Estudantil Chicano e Chicana
de Aztlán (MECHA)” e enviam saudações para os “primos” indígenas do México; em Nova Iorque, a cor azul se
torna brigada com o “Amanhecer Zapatista Unidos na Luta”; em Santa Cruz é a “Frente Indígena Oaxaqueña
Binacional”; em Michigan o “Grupo pela Paz e a Resistência”; em outros lugares temos a “Coalizão pelos Direitos
da Raça”, “Harmony Keepers of Aztlán Nation”, “Tonantzin Land Institute”, a “Coalizão pelos Direitos dos
Indígenas”, o “Comitê pela Solidariedade nas Américas”, “Vote On Line Polling”, a “Frente Nacional do México
no exterior”, o “Comitê da Minoria Chicana”, o “Centro Regeneração”, o “Bairro Warriors de Aztlán”, o “Comitê
Emiliano Zapata”, o “Dança México Cuauhtémoc”, “Chiapas Coalition”, “El Bracero”, o “Comitê de Apoio
Zapatista” e a Paróquia de São Pasqual Bailón.
È aqui na América Latina onde mais se percebe a efervescência e o ânimo que a Consulta provoca. Os
mexicanos e mexicanas que vivem e trabalham nos Estados Unidos estão se mobilizando em grande estilo. São
muitas as afrontas que recebem e as humilhações que padecem, mas também eles já tem o seu “Basta!” e vêem na
Consulta uma oportunidade para fazer-se ouvir e respeitar.
Todos eles e todas elas sabem que a luta que se trava aqui é também sua e é assim que nós entendemos. Por
isso, lhes damos as boas-vindas.
Wacha Bato! Órale ése! Dai-lhe com a Consulta!

2. Agora me deixe lhe dizer que nos cinco continentes estão sendo preparadas duas grandes atividades para
o próximo mês de março.
Uma é a Consulta Internacional. Como para nós (e para muitos como nós), os mexicanos e mexicanas que
vivem no exterior tem direitos que devem ser reconhecidos, nós pensamos que a Consulta pelo reconhecimento dos
Direitos dos povos Indígenas e pelo Fim da Guerra de Extermínio deve abrir-se à participação de todos os
mexicanos, sem que a gente se importe com o país onde eles se encontram. Então, o que fizemos foi convocar uma
Consulta Internacional para permitir que os mexicanos e mexicanas que vivem em outros países, e que sejam
maiores de 12 anos, também possam dar a sua opinião sobre as 4 perguntas que serão respondidas no dia 21 de
março de 1999.13
Mas isso não é tudo. Para a Consulta Internacional decidimos acrescentar uma pergunta que diz assim:
13
As 4 perguntas às quais deve-se responder com um Sim. Não, Não Sei, são:
1. Você concorda que os povos indígenas sejam incluídos com toda a sua força e riqueza no projeto nacional e tenham parte ativa na
construção de um novo México?
24
Você concorda que os mexicanos e mexicanas que residem no exterior devem ser parte ativa na
construção de um novo México e ter direito a votar nas eleições?
Respostas: Sim. Não. Não Sei.
Dessa forma, os mexicanos que vivem fora do país terão também a oportunidade de opinar sobre o
reconhecimento dos seus direitos (que lhes são negados pelo governo).

3. Nesta altura, é óbvio que alguém esteja perguntando o que podem fazer ou como podem participar os
que não são mexicanos, mas estão interessados e comprometidos com a paz e o reconhecimento dos direitos de
todos.
Bom, uma das formas é participar da JORNADA INTERNACIONAL PELOS EXCLUÍDOS DO MUNDO
(da qual lhe falarei mais adiante), a outra é promovendo e divulgando a Consulta em seus países, organizando a
instalação das mesas de votação nas diversas nações do mundo, organizando e realizando a contagem dos votos e a
comunicação com o México para dar a conhecer os resultados. Desta tarefa podem participar todos os homens,
mulheres, crianças e anciãos do mundo, com ou sem organização, não importando sua nacionalidade, raça, cor,
sabor, crença religiosa, tamanho, peso, preferência sexual ou qualquer outro tipo dessas classificações que os
poderosos usam para excluir os diferentes.
Como para isso não importa a nacionalidade, além de emitir um voto, a Consulta Internacional oferece
muitos espaços de participação.

4. Sim, entendo que você esteja se perguntando como farão os mexicanos no exterior a opinar sobre as
cinco perguntas e como nos farão saber suas respostas.

Bom, nós pensamos em oferecer as seguintes opções:

a) Para que os mexicanos no exterior possam dar a sua opinião, todos os que vivem no interior de uma nação e
estejam interessados nisso, podem entrar em contato entre eles e, de comum acordo, organizar a instalação de
Mesas da Consulta e de centros de contagem dos votos. Chamamos isso de “Coordenação Nacional” e pode ser
realizada nos países onde seja possível.
Por exemplo: todas as pessoas e organizações interessadas na consulta nos Estados Unidos entram em
contato entre si e chegam a um acordo para formar a “Coordenação Nacional dos Estados Unidos”. Com esta
Coordenação organizam a instalação das mesas da Consulta onde isso é possível e conveniente para que a
população mexicana residente nos EUA possa expressar a sua opinião sobre as 5 perguntas.
Suponhamos que possam ser instaladas mesas em Chicago, Los Angeles, Phoenix, São Diego, São
Francisco, Nova Iorque, El Paso, Albuquerque, São Antônio (para mencionar algumas das cidades onde existem
pessoas interessadas em participar da Consulta). Pois então, as pessoas e organizações dessas cidades entram em
contato entre si e, com os demais integrantes da União Americana, formam a sua “Coordenação Nacional” e
organizam a instalação das mesas e a contagem dos votos nesta e nas outras cidades. Além do mais, neste exemplo
tem a vantagem de que a Comissão Nacional para a Democracia México-EUA (NCDM, é a sua sigla em inglês)(e-
mail: moonligth@igp.apc.org) já está organizando a consulta por lá e é possível entrar em contato com ela ou
organizar-se fora dela. Nós propomos que a NCDM funcione como “Coordenação Nacional do EUA”. As pessoas
ou organizações que não têm contatos com a NCDM, podem ligar diretamente para a Secretaria e Contatos para a
Consulta do EZLN (cujo endereço e telefone colocaremos mais adiante).
Dessa forma, pode acontecer que num mesmo país existam várias Coordenações Nacionais”, porque o
termo “Nacional” aqui não significa que seja a única e sim que abrange todas ou várias partes da nação em que se
encontra.

b) Estas “Coordenações Nacionais” se credenciam junto à Secretaria de Contatos para a Consulta do EZLN para
que nós possamos saber em que países e como está sendo organizada a Consulta Internacional.

c) Para enviar o resultado da contagem dos votos realizada por uma Coordenação Nacional, esta terá que se dirigir
à Secretaria de Contatos para a Consulta do EZLN.

2. Você concorda que os direitos indígenas sejam reconhecidos na Constituição mexicana conforme estabelecido nos acordos de San
Andrés e na correspondente proposta da Comissão de Concórdia e Pacificação do Congresso da União?
3. Você concorda que deve ser alcançada a paz autêntica pelo caminho do diálogo, desmilitarizando o país com a volta dos militares aos
quartéis, conforme estabelecido pela Constituição e pela lei?
4. Você concorda que o povo deve organizar-se e exigir do governo que “mande obedecendo” em todos os aspectos da vida nacional?
25
d) Se algum grupo de pessoas, organização ou grupo de organizações de um determinado país querem
organizar-se numa forma diferente a da “Coordenação Nacional” para a Consulta, não tem problemas. Só lhe
pedimos que se credenciem na Secretaria de Contatos para a Consulta do EZLN.

e) Além de dirigir-se às mesas da Consulta, é possível expressar a própria opinião sobre as 5 perguntas da Consulta
enviando suas respostas por telefone, fax, Internet, e-mail, satélite, barquinho ou aviãozinho de papel, foguete
intercontinental, pombo correio, ou por correio terrestre, marítimo ou aéreo. Tudo isso deve ser enviado à
Secretaria de Contatos para a Consulta do EZLN.

ATENÇÃO: TODAS AS COORDENAÇÕES NACIONAIS, GRUPOS, ORGANIZAÇÕES E PESSOAS


INTERESSADAS EM ORGANIZAR A CONSULTA EM SEUS PAÍSES, DEVERÃO CREDENCIAR-SE NA:

SECRETARIA DE CONTATOS PARA A CONSULTA


Av. Ignacio Allende, 22-A, Bairro San Antonio (entre Av. Alvaro Obregón e Hermanos Domíngues). C. P. 29250.
San Cristobal de Las Casas, Chiapas, México.
Telefone e Fax: (967) 8-10-13 e (967) 8-21-59.

Bom agora vou lhe falar um pouco da JORNADA INTERNACIONAL PELOS EXCLUÍDOS DO
MUNDO.

Esta jornada de mobilização à qual convocamos não é só para o dia 21 de março de 1999, porém a estamos
convidando a concentrar as ações neste dia em que se realiza a Consulta pelo Reconhecimento dos Direitos dos
Povos Indígenas e pelo Fim da Guerra de Extermínio.
É óbvio que uma das formas de mobilização nesta jornada internacional pelos excluídos do mundo é
participando da divulgação e promoção da Consulta, da formação de Coordenações Nacionais, da instalação das
mesas, da contagem e comunicação dos resultados (que não são tarefas exclusivas dos mexicanos), mas não é a
única.
Para este dia, por exemplo, podem-se organizar cartazes, cartas públicas e privadas, panfletos,
mobilizações pacíficas, concertos musicais (seguindo, sem dúvida, o exemplo dos dignos roqueiros mexicanos que
acompanham de perto a Consulta - os grupos de rock do mundo inteiro fazem eco ao “Basta!” zapatista),
representações teatrais, assembléias, conferências, eventos multimídia e/ou cibernéticos, etc. Não excluímos nada
que seja civil e pacífico, e, com certeza, a imaginação e a criatividade ultrapassam qualquer coisa que podemos
propor-lhes. Trata-se, pois, de uma jornada para todos os excluídos, não pelos indígenas ou pelos zapatistas.
Por enquanto, está programado um ato em Estrasburgo para exigir mudanças na política dos países
europeus em relação aos imigrantes, e os organizadores decidiram incorporar as demandas pelo Reconhecimento
dos direitos dos Povos Indígenas e pelo Fim da Guerra de Extermínio no México. Na França tem o “Feu Faux
Lait”. Trata-se de uma companhia de teatro que prepara a sua participação na jornada pelos excluídos com uma
peça em Paris e arredores.

Como você pode ver, é possível participar de muitas maneiras. È só entrar em acordo, organizar-se e agir.

Bom, vou me despedindo. Logo que souber de mais coisas voltarei a escrever-lhe.
Saúde e não vamos deixar que o neoliberalismo consiga excluir a humanidade.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos.
México, fevereiro de 1999.

MEXA-SE! ORGANIZE E REGISTRE A SUA BRIGADA!!


SECRETARIA DE CONTATOS DA CONSULTA PARA O RECONHECIMENTO DOS DIREITOS
DOS POVOS INDÍGENAS E PELO FIM DA GUERRA DE EXTERMÍNIO.

Telefone e fax: (967) 5-21-59 e (967) 8- 10-13


Av. Ignacio Allende, 22 - A
29250 San Cristobal de Las Casas
Chiapas. México
E-mail: contacto@laneta.apc.org
Página eletrônica com informações sobre a Consulta:
http://www.laneta.apc.org/consultaEZLN
26

COMUNICADO DO COMITÊ CLANDESTINO REVOLUCIONÁRIO


INDÍGENA - COMANDO GERAL DO
EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. MÉXICO.

16 DE FEVEREIRO DE 1999.

AO POVO DO MÉXICO:
AOS POVOS E GOVERNOS DO MUNDO:

IRMÃOS E IRMÃS:
JUNTO AOS ELETRICITÁRIOS, AO MOVIMENTO OPERÁRIO INDEPENDENTE,
ÀS ORGANIZAÇÕES POLÍTICAS E SOCIAIS HONESTAS, AO POVO DO MÉXICO,
NÓS ZAPATISTAS DIZEMOS:

NÃO À PRIVATIZAÇÃO
DO
SETOR ELÉTRICO!

DEMOCRACIA!
LIBERDADE!
JUSTIÇA!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos.
Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do
Exército Zapatista de Libertação Nacional. México, fevereiro de 1999.

Aos músicos do mundo inteiro

20 e fevereiro de 1999.

Aos músicos do mundo inteiro


De: SupMarcos

Ladies and gentlemen!


Dizia o Velho Antônio (que se fosse um músico, tocaria blues,) que a música aponta caminhos pelos quais
somente os sábios sabem andar e que, com a dança, constrói pontes que te aproximam do mundo numa forma que
você nem podia imaginar.
Tudo isso vem ao caso porque nos chegaram notícias de concertos e apresentações de músicos no México e
em outras partes do mundo. A razão disso? A promoção da Consulta e a solidariedade com os indígenas mexicanos
e com sua luta digna.
Nós queríamos agradecer a todos e todas os e as que tiveram algo a ver com estes caminhos de paz que,
sobretudo a ritmo de rock, mas não só através dele, cruzam o planeta de cabo a rabo.
Não queremos agradecer apenas aqueles que compõem, cantam e tocam. Mas também os produtores, os
técnicos do som (é assim que se diz?), da iluminação, da montagem, os motoristas, os vendedores de ingressos, os
representantes artísticos, os donos e administradores de locais, e a todos e todas que tem a ver (ainda que não sejam
27
vistos) com um concerto ou apresentação musical (muitas vezes voluntários em dobro: não recebem nem
dinheiro e nem aplausos). Agradecemos a todos.
E já que estamos no “one, two, three, four”, queremos saudar todos os músicos que, nestes cinco anos,
tocaram, tocam e tocarão (Coragem! Não fique enrugado couro velho que ainda quero te usar no tambor!) pela paz
com justiça e dignidade.
Todos disseram “pare!” à guerra. Uns gravaram discos, outros participaram de concertos, ou visitaram as
comunidades indígenas, falaram a favor da paz justa e digna, protestaram contra o massacre de Acteal, nos deram
de presente seus instrumentos ou dedicaram uma ou mais músicas à luta dos indígenas mexicanos. Aqui vão alguns
nomes (sei que vou me esquecer de muitos, mas vocês já sabem que o espaço é um tirano em relação aos escritos).
Bom, aqui vai:
No México: La Bola, Santa Sabina, Panteón Rococó, Maldita Vencidad. Skta Core, Mákina, El Mastuerzo,
Tijuana No, Jambo, Los de Abajo, La Nao, Trolebús, La Dosis, Resorte, Guillotina, estrambóticos, Maná,
JulietaVenegas, Petróleo, Juguete Rabioso, Rotor, Funkswagen, Café Tacuba, Salario Minimo, EI TRI, Fratta,
Botellita de Jeréz, Serpiente sobre Ruedas, Los Hermanos Rincón, Los Nakos, Ana de Alba, Leones de la Sierra de
Xichú, José de Molina (QEPD), Lidia Tamayo, Arturo Marquez, Nina Galindo, Nayeli Nesme, Eugenia León,
Hebe Rossel, os e as da Escola e do Conservatório nacionais de Música, la raza del CLETA e não poucos cantores
que em cima de uma Kombi ou nos ônibus deleitam o respeitável público em troca somente de “o que o senhor
deseja, meu jovem, senhorzinho, cavalheiro”.
Na França, Alemanha, Estado Espanhol, Euskadi, Itália, Canadá, Estados Unidos, Brasil, Argentina,
Uruguai, Chile e em outras partes do mundo:
Negu Gorriak, Mano Negra, Hechos contra el Decoro, Color Humano, Sook and the Guay, Joaquín
Sabinas, Joan Manuel Serrat, Juan Perro, Ismael Serrano, Dut Manu Chao, Hubert Cesarion, Ruben and Babakar,
DKP, Ethnicians, Pushyl, La Huanda, Sree, Denise, P18, Ghetto 84, Radio Bemba, Banda Basotti, Arpioni, Gang,
Tupamaros, Klaxon, Radici nel Cemento, R. D. E. Swoons, Another Fine Mess, Maltschichs, Dady Longleg, Jelly
Gruel, mundmachine, Lunchbox, Caution Sreams,Kommerzinfarkt, KJB, Deh-Kadenz, Nervous, Ate Hands for
Brains, The Evil Bad, Provisorium,Novotny Tv, Down The Stairs, Rubabs, daisies, Plattrock, King Prawn, Steven
Brown (Nine Rain e Tuxedo Moon, Tuxedo Moon, Paralamas, Xenreira, Planet Hemp, Fito Páez, Charly Garcia,
Todos tus Muertos, Los Guarros, Divididos, Ilya Kuryaki anda The Valderramas, Andrés Calamaro, Lumumba,
Los Tres, Mercedes Sosa,León Gieco, Daniel Viglietti, Vicente Feliú, Rhytm Activism, Rage Against The
Machine, Aztlán Underground, Indigo Girls, Quetzal, Ozomatli, Jackson Browne, Los Skarnales, King Changó,
Sepultura.
Também temos notícias de grupos e intérpretes na Irlanda, Grécia, Nicarágua, Cuba, Canadá e muitos mais
na Itália, Estados Unidos, Estado Espanhol, França, Brasil, Alemanha e México, de quem tem chegado notícias,
mas não suas músicas, até às montanhas do Sudeste mexicano. São muitos mais os que tem falado de nós, tem
cantado por nós e tem-se feito ouvir por nós.
Agradecemos a todos estes músicos e cantores que no México e no mundo inteiro fizeram ecoar o “Basta!”
zapatista.
Quando chegaremos à vitória, vamos organizar um super-mega-maxi-hiper-concerto com todos e todas,
sem limite de tempo... e de graça! (Vai nessa! Que vai acabar tocando apenas a marimba de San José).

Muito bem. Saúde, e não se chega ao amanhã também com um tarararim, tarararam?

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, fevereiro de 1999.

Comunicado e conta bancária da Consulta


20 de fevereiro de 1999.

À Sociedade Civil Nacional e Internacional


De: SupMarcos

Senhora:
Ei-nos de novo. Sim, outra vez. Como? Era melhor quando permanecíamos em silêncio? Sério! É isso
mesmo? O que? Era apenas uma brincadeira? Ah, bom! Pois, foi de muito mau gosto. Agora, como castigo, não
vou contar-lhe nada sobre como estão as brigadas no México. Assim, você não saberá que lá pelo dia 16 de
fevereiro (dois dias depois de dizermos que eram 600) já haviam se credenciado mais de 800 brigadas nas quais
28
trabalham mais de 10.000 voluntários. E não ficará sabendo que já estão se credenciando as Coordenações de
vários Estados e que algumas delas já estão tão avançadas em seus trabalhos que já tem um plano e uma forma de
cobrir todos os seus municípios. Como? Isso doeu? Pois, é isso mesmo.
Olhe, escrevo para avisá-la que já temos o número da conta bancária através da qual a senhora pode dar
uma ajuda econômica para a Consulta. O número da conta é CUENTA MAESTRA BANCOMER N.º 5001060-5,
Plaza 437, San Cristóbal de Las Casas, Chiapas, México, e está no nome de Dona Rosario Ibarra de Piedra.
Queremos deixar claro que o número desta conta é independente das finanças de cada Estado. Por isso, pedimos a
todos e todas, do México e de todos os países que queiram ajudar, que depositem suas doações nesta conta. Os
gastos a serem feitos são muitos e, apesar de termos recorrido ao nosso fundo de guerra (que, na verdade, é de paz,
porque o usamos apenas para iniciativas pacíficas), não é possível sustentá-los. Solicitamos que confirme seus
depósitos na Secretaria de Contatos para a Consulta do EZLN (e-mail: contacto@laneta.apc.org. Fone/fax: (967) 8-
10-13 e 8-21-59).
Aproveito a ocasião para responder afirmativamente ao convite que recebemos da Universidade Autônoma
Metropolitana - Unidade Xochimilco - para que os delegados zapatistas visitem esta casa de estudos nos dias em
que estarão na Cidade do México (atenção: de 14 a 21 de março). É obvio que aceitamos e estaremos aí (claro,
desde que mudem o cardápio da cantina). Têm outros pedidos de Instituições de Educação Superior às quais iremos
responder.
A aviso também (veja como não guardo mágoas) de que já está à venda o vídeo zapatista sobre a consulta:
sua duração é de 20 minutos, e pode ser adquirido (acredito) na Secretaria de Contatos para a Consulta. Apresse-se
porque vai se esgotar! (Oxalá!).
Bom, saúde e falta pouco para terminarmos um “vídeo clip” (que é diferente do anterior) que está ficando
um brinco e, modestamente, almejamos a um Grammy por melhor “vídeo clip” ou a uma indicação para o Oscar de
micro-curta metragem (dura menos de 4 minutos). Não perca!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, fevereiro de 1999.

P. S.: QUE CONVOCA À UNIÃO. Numa destas madrugadas, o próprio Mar estava cansado. Então eu
acendi o cachimbo e recorri ao meu livro de contos do Hipocampo e li o conto de...

O ARBUSTO E OS OUTROS

Era uma vez um arbusto que estava muito sozinho, mas que estava disposta a enfeitar e a cantar na horta do
outro.
Aí estava a pequena árvore quando o outro chegou, olhou e quis levá-la. Mas acontece que o outro não era
um outro e sim outros. Os outros queriam levar o arbusto para a horta de cada um deles, mas a pequena árvore era
uma só, enquanto os outros eram muitos. E o arbusto estava até disposto a ser plantado em todas as hortas, mas ele
era um só e havia vários outros.
Então os outros começaram a discutir sobre quem ficaria com o arbusto e o levaria até a sua horta. Um dos
outros dizia que iria levá-lo porque ele era mais outro do que os outros dos outros. Um outro dos outros dizia que
não, que seria ele a levar a pequena árvore porque a sua horta era mais bonita etc., e outro dizia que ele era melhor
porque era um exímio jardineiro e ninguém melhor do que ele poderia cuidar do arbusto. E assim ficaram
discutindo por um tempo sem chegar a uma solução de consenso, porque ainda eram outros e não respeitavam o
outro que era deles, mas continuava sendo outro. Então acabaram brigando e concluíram que cada um iria levar um
pedaço da pequena árvore.
Então o arbusto falou e disse: Não concordo com isso porque, além do fato de não devermos andar
cortando árvores, já que isso ameaça o equilíbrio ecológico, ninguém sairá ganhando. Se um de vocês leva os meus
ramos, outro carrega o tronco, um outro a raiz e cada qual leva o seu pedaço para a horta, não irá se sair bem. Quem
levar os ramos para plantá-los não obterá nada, porque eles não têm o tronco para sustentar-se e nem a raiz para
alimentar-se. Aquele que for levar o tronco também não terá nada porque, sem os ramos e a raiz, o tronco não vai
poder respirar ou alimentar-se.
O mesmo vai acontecer com aquele que ficar com a raiz, porque sem os troncos e os ramos a raiz não
conseguirá crescer e nem respirar. Ao contrário, se fizerem um bom acordo entre todos, posso plantar-me um
tempo na horta de um e, em seguida, ficar uma temporada na horta de outro e assim por diante. Desta maneira
todos terão frutos e sementes em todas e cada uma das hortas. Os outros ficaram pensando. Tan-tan.

- É assim que termina? Pergunta La Mar.


- Sim, é assim mesmo. Digo fechando o livro. La Mar insiste:
29
- E depois o que acontece? Dividem a árvore, fazem rodízio com ela ou o que mais?
- Não sei, temos que esperar - respondo enquanto evito o lápis que La Mar jogou contra mim.

De novo, saudações.
O Sup cantarolando aquela música que diz “Meu pai e eu a plantamos, no fundo do quintal onde termina a
casa” etc.

A Fundação Rosenblueth participa da Consulta


México, 26 de fevereiro de 1999.

Ao Povo do México
A todas as brigadas de promoção da Consulta
A todas as Coordenações Estaduais da Consulta.

Irmãos e Irmãs:

O Exército Zapatista de Libertação Nacional lhes comunica que a Fundação Arturo Rosenblueth, dirigida
por Don Enrique Calderón A., aceitou participar da Consulta pelo Reconhecimento dos Direitos dos Povos
Indígenas e pelo Fim da Guerra de Extermínio, que se realizará no domingo 21 de março de 1999.
Como todos sabem, a Fundação Rosenblueth é uma organização respeitada por sua neutralidade, seriedade,
objetividade, profissionalismo e compromisso com os processos cidadãos de democratização.
Incumbida da missão de agilizar o processo de votação, a Fundação Rosenblueth se encarregará do projeto
e da organização do aspecto técnico da Consulta (da metodologia de credenciamento e instalação das mesas, das
cédulas de votação, da contagem dos votos, etc.).
No momento oportuno e de comum acordo com a Fundação Arturo Rosenblueth, o EZLN tornará públicas
as orientações para a organização de todo o aspecto metodológico e técnico da Consulta. As Coordenações dos
Estados e das Delegacias, credenciadas junto à Secretaria de Contatos para a Consulta, receberão estas orientações
no momento oportuno.
Convidamos todos os mexicanos e mexicanas a participarem desta outra tarefa da Consulta.
Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
México, fevereiro de 1999.

Carta a Don Enrique Calderón


26 de Fevereiro de 1999.

A: Enrique Calderón A.
Fundação Arturo Rosenblueth

De: Subcomandante Insurgente Marcos


CCRI-CG do EZLN

Don Enrique:
Queremos enviar nossa saudação a você e a todos e todas que trabalham na Fundação Arturo Rosenblueth.
Por este meio e publicamente, queremos agradecer a Fundação Arturo Rosenblueth por ter aceitado
participar da organização dos aspectos técnicos da Consulta pelo Reconhecimento dos Direitos dos Povos
Indígenas e pelo Fim da Guerra de Extermínio. São públicos e notórios o prestigio e a autoridade moral da
Fundação, bem como os seus conhecimentos técnicos em matéria de exercícios de democracia como aquele que
agora é representado pela Consulta do EZLN.
O esforço de agilização da Fundação será bem-vindo nos trabalhos da Consulta e, com certeza, os
mexicanos e mexicanas que participam e participarão desta mobilização democrática verão com bons olhos que
uma organização neutra, profissional, séria e respeitada se encarregou da parte técnica e de tudo aquilo que ela
envolve.
30
Breve, tornaremos públicos todos os aspectos metodológicos (credenciamento e instalação de mesas e
assembléias, contatos telefônicos, centros de contagem dos votos, cédulas de votação e os demais detalhes) da
Consulta, sempre de acordo com as indicações por vocês propostas e que serão acatadas com espírito de
responsabilidade pelas Coordenações dos Estados e das Delegacias da Consulta. Cresce a cada dia o número de
pessoas que somam seus esforços aos da paz e agora temos mais de 1200 brigadas credenciadas, sendo que este
número aumenta diariamente. Estas e as muitas mais que irão se agregando, nos apoiarão em tudo aquilo que diz
respeito ao aspecto técnico.
A Consulta é um esforço civil e pacífico que busca promover o reconhecimento dos direitos indígenas,
deter a guerra e abrir espaços de participação democrática dos cidadãos. Neste sentido, a Consulta é uma forma
diferente, mais ampla e abrangente, de buscar a paz e a transição para a democracia no México. É assim que nós a
entendemos. Que a Fundação Arturo Rosenblueth seja bem-vinda à Consulta.
Bom, saúde e tomara que ajudem a somar aqueles que até agora estão apenas sobrando.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, fevereiro de 1999.

MEXA-SE! ORGANIZE E REGISTRE A SUA BRIGADA!!


SECRETARIA DE CONTATOS DA CONSULTA PARA O RECONHECIMENTO DOS DIREITOS
DOS POVOS INDÍGENAS E PELO FIM DA GUERRA DE EXTERMÍNIO.
Telefone e fax: (967) 5-21-59 e (967) 8- 10-13
Av. Ignacio Allende, 22 - A
29250 San Cristobal de Las Casas, Chiapas. México
E-mail: contacto@laneta.apc.org
Página eletrônica com informações sobre a Consulta: http://www.laneta.apc.org/consultaEZLN

Carta de Marcos a Don Vázquez Montalban


Domingo, 28 de fevereiro de 1999.

De Marcos a Don Vázquez Montalban

Algumas semanas atrás, li a sua matéria para o jornal mexicano “La Jornada” e resolvi pegar a maquininha
para escrever algumas reflexões que suas palavras me suscitaram, mas, sobretudo, para cumprimentá-lo.
Ei-me aqui, portanto, entretido a escreve-lhe e a pedir-lhe algumas coisas.
Por exemplo, gostaria que levasse minhas saudações a Don Pepe Carvalho. 14 Diga-lhe que não guardo
mágoas pela tortura que representou para mim a leitura de suas aventuras gastronômicas, policiais e amorosas
durante os primeiros anos entre as montanhas (1984-1990).
Para dizer a verdade, estou preparando um longo texto que, sem dúvida, agradará aos adultos e às crianças
na hora em que eles verão como Pepe Carvalho e o Sup resolvem um crime complicado através do correio
globalizado.
Por outros caminhos (e sem sua eficácia) chegam em nossas mãos e acompanham nossos passos temas
parecidos àqueles que você está analisando em suas colaborações jornalísticas: a globalização, o agonizante Estado
Nacional, a Europa social e aquela do dinheiro, a esquerda do nosso tempo e assim por diante.
Este mesmo pesadelo (que nos é vendido como o melhor dos mundos possíveis), apresentado em formas
diferentes nas terras e nos céus europeus ou americanos, nos promete a mais terrível das destruições: a da memória
histórica. Talvez, é por esta razão que aqui o Poder procura destruir aqueles que fazem da memória histórica o seu
guia e a sua bandeira: os indígenas zapatistas.
No município chiapaneco de Chenalhó, grupos paramilitares (treinados, pagos e guiados pelo Governo
mexicano e por aquele cadáver putrefeito que é o PRI) dedicam-se a caçar os indígenas rebeldes como nos tempos
da conquista.
A vontade de paz e um obstinado sentimento de sobrevivência levaram nossos companheiros a fugir para
as montanhas. Neste preciso instante em que lê estas breves linhas, mais de 4.000 refugiados, com seu viver e
morrer expostos ao mau tempo e longe de suas casas, são o melhor exemplo de que os discursos de paz do Governo
não passam de um rude máscara para esconder a guerra contra a história.

14
Don Pepe carvalho é um dos protagonistas dos romances de Manuel Vázquez Montalban. Numa entrevista à televisão espanhola, o
Subcomandante disse, brincando, que havia deixado de ler os romances de Montalban porque as receitas que Don Pepe preparava em suas
aventuras aguçavam a sua fome.
31
Nós lutamos para encontrar outros caminhos e temos certeza de que é assim também para você.

Obs.: O texto da carta que chegou até nossas mãos pela rede de contatos zapatistas da Itália termina assim. Não
sabemos se ela se encerrava com as costumeiras saudações do Subcomandante Marcos ou se acrescentava outras
frases.

Carta e Comunicado sobre a Consulta


México. 1º de Março de 1999.

A quem interesse:
Eis aqui uma carta e um comunicado, ambos sobre a Consulta. Agora já não sei dizer quantas são as
brigadas que estão trabalhando, mas, isso sim, sei que abundam e já estão presentes nos 32 Estados.
Recebemos um convite para um ato público na UNAM. É claro que aceitamos, só pedimos que a sua
organização seja pluralista e não exclua ninguém. Não temos nenhum vinculo específico com nenhum grupo, mas
queremos caminhar com todos eles. Por isso pedimos que nos encaminhem o convite com o nome das
organizações, dos grupos e dos indivíduos que participam da organização deste ato público que deve ser pluralista e
não excludente. Não temos nenhum vínculo específico com nenhum grupo, mas queremos caminhar com todos.
Por isso, pedimos que nos mandem o convite com os nomes das organizações, dos grupos e dos indivíduos que
estão participando da organização deste ato. Ah! Uma outra coisa: precisamos que ele aconteça no dia 19 de março.
Tudo bem?
Aproveitamos para avisar que mandaremos um grupo especial de 12 delegados zapatistas que visitarão as
universidades, as escolas de primeiro grau e os outros centros de ensino médio e superior. Pedimos àqueles que já
nos convidaram (como a UAM-Xochimilco, a UAM-Iztapalapa, a UAM-Azcapotzalco, a UNAM, as ENEPs,
CCHs, ENAH e outras) e àqueles que nos enviarão outros convites, a organizar-se para este fim independentemente
das Coordenações das Delegacias, porque este tipo de convite terá que ser dirigido para os delegados
“universitários”. No fundo, nós zapatistas sempre quisemos estudar.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, março de 1999.

P.S. de autocrítica cantineira. Recebi uma avalanche de críticas e caretas pela brincadeira de mau gosto sobre a
cantina da UNAM-X. Obviamente, o seu cardápio é invejado pelos melhores mestres-cucas, é bonito, barato e
gostoso. Então? Estou perdoado? Claro, digamos que sim, que é o que nós dizemos a todos aqueles que nos
convidam.
P.S. idem, só que roqueira. Sim, é verdade, na carta em que reconhecíamos e saudávamos o esforço de paz dos
músicos do mundo inteiro, eu esqueci de muitos grupos. Um exemplo? Aqui vão outros grupos (com a nossa
saudação e o pedido de desculpas por não tê-los incluídos na outra carta). Do México: Los Vantrol, Revuelta,
Marcos Laneta, Restos Humanos, Antidoping, Atico, Tortura Social, Skaleros Inocentes, Tolos Famus, Cruel
Decepción, Estados de Control, Engrudo, Neoplasma, Cresta em Boga, Masacre 9, Rabia Proletaria, Skarbame,
Dolor e Odio, Sonora Skandalera, Rompiendo Cadenas. De outros cantos: Doctor Calypso e Los Discípulos de
Otilia (ambos da Catalunha), Brujería e A.N.I.M.A.L. (ambos chicanos), Dios Elefante (EU), Wemean (Suíça).
Logo que lembrar de outros eu aviso (Se quiserem podem nos mandar fitas cassetes, CDs, LPs, demos e até discos
de 45 e 78 rotações).

Os delegados zapatistas e os critérios para as mobilizações no âmbito da Consulta

México. 1º de Março de 1999.

Ao Povo do México;
Às Coordenações e às autoridades estaduais da Consulta;
Às organizações sociais, políticas, cidadãs e não-governamentais;
Aos mexicanos e às mexicanas:

Irmãos e irmãs:
Cumprimentamos a todos e a todas.
32
Como todos sabem, o EZLN lançou a iniciativa da Consulta como uma iniciativa de paz e uma
mobilização ampla, aberta e não excludente que contribua para o fim da guerra de extermínio e pelo
reconhecimento dos direitos dos povos indígenas. Neste momento, nos dirigimos novamente a vocês para
comunicar quanto segue.

Considerando que:

Os delegados zapatistas para a Consulta levam a voz e a vontade de ouvir do EZLN. Os delegados
zapatistas que irão visitar os municípios do país para promover a Consulta são bases de apoio do EZLN. Todos eles
são indígenas mexicanos. São dirigentes políticos de diferentes níveis do EZLN. Receberam de milhares de
comunidades zapatistas e do CCRI-CG do EZLN a missão de visitar todos os municípios do país para promover o
reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e o fim da guerra de extermínio.

O EZLN fala pela voz dos delegados e, através deles, o EZLN ouve.

Os delegados zapatistas para a Consulta tem um mandato de diálogo e de paz. Os delegados zapatistas
para a Consulta não ocupam cargo militar algum no interior do EZLN e não carregam outras armas a não ser
aquelas que lhes são proporcionadas pela razão, a palavra, a história e a dignidade. Vão para os municípios como
delegados de uma iniciativa de paz e de diálogo, não vão recrutar ninguém e nem vão promover rebeliões armadas.
Vão dialogar com a população dos municípios, fazer-se ouvir e, sobretudo, ouvir diretamente o que sentem e
pensam os mexicanos e as mexicanas.
E por termos como objetivo uma mobilização ampla, aberta e não excludente, tornamos públicos os
critérios que deverão ser seguidos tanto pelas coordenações estaduais como na elaboração da agenda de atividades
dos delegados zapatistas nos diferentes municípios do país:

1. Qualquer pessoa, brigada e organização social ou política pode integrar uma Coordenação
Estadual. Não são só as brigadas que podem fazer parte de uma coordenação. As organizações sociais e políticas e
todas as pessoas interessadas em participar dos trabalhos da Consulta em qualquer de suas etapas e em qualquer
uma das atividades que surjam desta iniciativa, podem fazê-lo livremente. Não há pré-requisito algum para integrar
uma Coordenação ou para trabalhar na Consulta. Se ainda não temos organizações sociais participando da
Coordenação, não só não devemos pôr limites à sua incorporação, como a Coordenação deve buscar e promover a
participação das mesmas.

2. A Coordenação Estadual deverá promover e facilitar o encontro dos delegados zapatistas com
aqueles que o solicitarem. Os delegados zapatistas irão se reunir com todas as pessoas, organizações sociais,
organizações cidadãs e políticas, incluindo os partidos políticos, que pedirem, independentemente da filiação ou da
ideologia política destas organizações.
Por parte dos nossos delegados, não haverá nenhum tipo de recusa a encontrar-se com qualquer pessoa sem
que para isso tenha alguma importância a sua grandeza, o seu peso, a cor, a raça, a cultura, a língua, o partido
político, o cargo, o seu nível de renda, a preferência sexual, a profissão, etc., com uma única exceção que daremos
a conhecer no momento oportuno.

3. As Coordenações Estaduais deverão levar em consideração a possibilidade de todos e todas


participarem dos atos públicos dos zapatistas. Todos os atos dos quais participarão os delegados zapatistas serão
abertos e públicos; a exceção fica por conta das reuniões privadas e das entrevistas específicas com organizações e
meios de comunicação das quais os delegados aceitarão participar.

4. As Coordenações Estaduais não poderão restringir o acesso de qualquer meio de comunicação aos
atos ou eventos dos quais participem os delegados zapatistas. Nenhum meio de comunicação será impedido de
realizar o seu trabalho nos atos públicos dos quais participam os delegados zapatistas.

5. Todos e todas, que integram ou não uma Coordenação, podem propor a realização de atos
públicos dos quais participem os zapatistas. A agenda proposta pela Coordenação deverá incluir eventos com os
diferentes atores sociais do Estado ou do município (os diferentes sindicatos, partidos, universidades, empresários,
escolas, igrejas, etc.), mesmo que estas não integrem a Coordenação.
As Coordenações terão que organizar atos e eventos na maior parte dos lugares e seu território, levando em
consideração que, apesar do critério predominante ser aquele de visitar as áreas mais povoadas, não deve ser
descartada a organização de atos em outros espaços. As Coordenações Estaduais terão que organizar uma agenda
que procure incluir a realização de atividades em todos os municípios do seu Estado (ou na maioria deles).
33
Os delegados zapatistas estarão presentes e participarão de igual maneira seja quando convidados a
manifestações de massa como a outros eventos que proporcionem encontros pessoais e diretos com as pessoas.

Irmãos e irmãs:
Como vocês podem ver, queremos encontrar-nos com todos e todas aqueles que querem fazê-lo e da forma
que for possível. Pedimos a vocês que nos ajudem a fazer desta Consulta uma mobilização ampla, aberta e não
excludente, uma mobilização que seja um passo na luta pelo reconhecimento e o respeito dos diferentes.
Bom. Saúde e que sejam muitas as portas e janelas que se abrem para todos.

Das montanhas do Sudeste Mexicano.


Subcomandante Insurgente Marcos.

Contatos e esclarecimentos sobre as Coordenações Estaduais

México. 1º de março de 1999.

Ao Povo do México;
Às Coordenações Estaduais da Consulta;
Às brigadas de promoção da Consulta;
À Fundação Arturo Rosenblueth:

Irmãos e irmãs:
No âmbito da organização da Consulta, o EZLN dá a conhecer quanto segue:

Primeiro. O trabalho de promoção e divulgação da Consulta já cobriu os 32 Estados da Federação.


Recebemos hoje a confirmação do credenciamento de brigadas em Nayarit e Campeche, que eram os dois Estados
nos quais, até agora, não havia nenhuma brigada.
Segundo. O EZLN já recebeu a solicitação de credenciamento das Coordenações Estaduais,
reconhecendo, a partir deste momento, as que seguem:
Guanajauto: Tel. (462) 42703. Fax: (462) 54785. Correio eletrônico: cores@geocities.com
Michoacán: Tel. (43) 17.52.33. Fax: (43) 17.52.33. Correio eletrônico: civil@michl.telmex.net.mx
Iztapalapa: correio eletrônico: ccdfrangomez@hotmail.com
Tlaxcala: Tel. (246) 12.79.76

Zacatecas: Tel. (492) 22585. Fax: (492) 22585. Correio eletrônico: menchaca@cantera.reduaz
Sinaloa: Correio eletrônico: coprocosin-@operamail.com
Oaxaca: (Nos referimos à Coordenação integrada por 56 organizações e 16 brigadas. Pedimos que dêem a conhecer
seus números de telefone).
Delegacia Coyoacán: Tel. 5138-6924, 5582-3869 e 5594-3329 das 14.00 às 18.00 horas e 5617-1877 depois das
19.00 Hs. Ponto de contato: Comitê Vamos Andar. Av. Universidad, 779 4º Piso. Tel. 5688-5700, ramal 308.
O credenciamento de uma Coordenação não significa que um número maior de brigadas, pessoas e organizações
não possam mais se incorporar à mesma. Os exortamos a promoverem a integração de um número maior de
companheiros e companheiras.
No momento oportuno, o EZLN continuará dando informações sobre as coordenações que obtiveram o seu
credenciamento.
Terceiro. Além disso, estas Coordenações Estaduais recebem a nomeação de autoridades estaduais da
Consulta. Com este cargo, deverão organizar o aspecto técnico da votação nos municípios correspondentes de
acordo com as indicações da Fundação Arturo Rosenblueth que, em breve, daremos a conhecer publicamente.
De acordo com aquilo que acabamos de dizer, estas Coordenações Estaduais se constituem em “Coordenações e
autoridades estaduais da Consulta” em seus respectivos territórios.
Quarto. Exortamos todas as Coordenações e autoridades estaduais da Consulta a se adequarem aos
critérios de abertura, amplitude, inclusão e tolerância propostos pelo EZLN.
Quinto. Convocamos as Coordenações e autoridades estaduais da Consulta a organizar e promover a
agenda pública dos delegados zapatistas que visitarão seus municípios, esforçando-se para cumprir os critérios
estabelecidos pelo EZLN.
Sexto. Convidamos todo o povo do México, suas organizações políticas e sociais, as organizações não
governamentais, as organizações cidadãs, os homens, as mulheres, crianças e anciãos, a apoiarem as Coordenações
e autoridades estaduais da Consulta em seus lugares, seja instalando as mesas da Consulta, seja participando das
34
atividades necessárias para o translado, a estadia e atividade dos delegados zapatistas que os visitarão, ou
assistindo aos atos públicos que realizaremos em seus municípios.
Sétimo. Pela paz e contra a guerra, pelo reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e contra o
racismo e a exclusão, pela democracia e contra o autoritarismo, convocamos todos a mobilizar-se para a Consulta
de domingo 21 de março de 1999.

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.

Novas Coordenações Estaduais da Consulta

México. 03 de março de 1999.

Ao Povo do México:
Às Coordenações Estaduais da Consulta:
Às Brigadas de Promoção da Consulta:
À Fundação Arturo Rosenblueth:

Irmãos e irmãs:
O EZLN informa quanto segue:
Primeiro. Até o dia de hoje, 03 de março de 1999, já foram credenciadas 1500 brigadas que reúnem mais
de 17.000 brigadistas em todo o território da República.
Segundo. O EZLN continua recebendo solicitações de registro das Coordenações Estaduais credenciando
até agora as que seguem:
Aguascalientes: Telefone (49) 18.18.59. Fax (49 70.17.48.
Norte da Baixa Califórnia e Tijuana. Telefone (61) 76.44.21 e 53.10.17. Fax: 77.23.78.Endereço: Calle Mármol,
352, Fracc. Costa Sur, Enseada, B.C.
Observação: por um acordo entre os próprios integrantes, se integraram numa mesma coordenação.
Colima: Telefone (331) 326.22 e 273.93. Endereço: José Santos Chocano, 480 C. P. 28010, Colima.

Cuajimalpa: Telefone (5) 812.79.83 e 811.00.25. Fax: (5) 12.85.21. Endereço: FRAAP, Av. México, 173, 5000
Cuajimalpa.
Alvaro Obregón: Telefone (5) 64.43.47.05. Fax: (5) 643.47.05.
Cidade Juárez: Telefone: (16) 13.35.58 Ramal 362. Fax: (16) 13.83.79. Endereço: UA Cd. Juárez, Centro de
Estudios Regionales.
Miguel Hidalgo: Telefone: (5) 260.01.62. Fax: (5) 260.38.27.
Sonora: Telefone (621) 16.89.77, 10.58.25.
Tabasco: Telefone: 14.07.80 (CODEHUTAB A.C.). Fax: 12.83.62. Endereço: Sánchez Magallanes, 844 altos, Col.
Centro. Villahermosa, Tabasco.
Tláuac: Telefone: (5) 841.86.05.
Tlalpan: Telefone (5) 606.27.73 e 606.26.96.
Xochimilco: Telefone (5) 641.31.25. Fax: (5) 641.31.25.
Cidade de Puebla: Telefone: (22) 44.30.39 e (22) 44.44.30.
Nuevo León e Monterrey: Telefone: 345.74.28 e 354. 01.91. Por um acordo entre os próprios integrantes, se
integram numa mesma Coordenação.
Guanajauto: Telefone: (462) 427.03. Fax (462) 547.85.
San Luis Potosí, Regional Altiplano: Telefone (48) 12.62.94.
San Luis Potosí, Regional Huasteca: Telefone: (136) 202.76 e 200.91. Endereço: Calle de Aguacate, 112,
Tamazunchale.
Veracruz: Telefone: (28) 14.24.01 e 15.09. 03. Endereço: Revolución 233, (Igreja Calvario-Xalapa).
Tlalnepantla: Telefones (5)391.00.74 e 397. 93.99. Fax: (5) 391.00.74. Endereço: Juan de la Barrera, 13, Col.
Ampliación Ixtacala.
Naucalpan: Telefone: (5) 373.29.49.
Nezahualcoyotl: Telefone: (5) 731.19.04. Fax: (5) 793.95.00. Endereço: Perjura, 52 esq. Cama de Piedra. Col. B.
Juárez.
35
Ecaepec: Telefone: 569.36.89.
Estado do México, Regional Coacalco-Cuautitlan: Telefones: (5) 875.17.80 e 870.07.74. Endereço: Calle 2 Col.
Del Partidor, Cuautitlán.
Estado do México, Regional Norte “Xinantecatl”: Telefones: (72) 11.64.71 e 13.09.77. Fax: (72) 11.52.48.
Queremos lembrar que as Coordenações já registradas podem continuar incorporando um maior número de
brigadas, pessoas e organizações políticas, cidadãs e não governamentais.
Terceiro. Estas Coordenações Estaduais recebem também a nomeação de autoridades estaduais da
Consulta constituindo-se em “Coordenações e autoridades estaduais da Consulta”. Com este cargo, deverão
organizar o aspecto técnico da votação em seus municípios de acordo com os critérios que daremos a conhecer
publicamente.
Quarto. A participação de um número cada vez maior de homens, mulheres, crianças e anciãos de todo o
país aumenta na medida em que se aproxima a Consulta de domingo 21 de março de 1999. Convocamos a todos e a
todas se unir a esta vontade de paz com justiça e dignidade.

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional
México, março de 1999.

Comunicado urgente e importante


04 de Março de 1999.

À Sociedade Civil Nacional e Internacional


Aos usuários da “Internet”:

Primeiro. Desde o dia 03 de março de 1999, está circulando na Internet um comunicado apócrifo que
convoca a sociedade civil a fazer depósitos bancários a favor da Consulta do EZLN, mas apresenta um número de
conta corrente que, na verdade, pertence à “Associação Amigos de Vicente Fox A.C./ Coalición”.
Segundo. Com o objetivo de simular a sua autenticidade, este apócrifo utiliza partes textuais de
comunicados do EZLN mescladas com chamados a participar de uma suposta Coalizão para o ano 2000, é assinado
por um falso “Comitê Organizador da Consulta Nacional”, e chega às pessoas como se viesse da Secretaria de
Contatos do EZLN.
Terceiro. O verdadeiro número da conta bancária para os depósitos em favor da Consulta é:
Bancomer. Cuenta Maestra Número 5001060-5, Plaza 437
San Cristobal de las Casas, Chiapas, México.
A nome de Rosário Ibarra de Piedra.
Quarto. Queremos alertar a opinião pública nacional e internacional e os internáutas do México e do
mundo, para que não se deixem enganar por este tipo de coisas que buscam apenas fazer fracassar a iniciativa de
paz do EZLN.

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional
Subcomandante Insurgente Marcos.

Secretaria de Contatos para a Consulta

Calle Ignacio Allende, 22 A


29200 San Cristobal de las Casas, Chiapas, México
Telefone e Fax: (967) 81.01.3 e (967) 82.15.9
E-mail: contacto@laneta.apc.org
http://www.laneta.apc.org/consultaEZLN
ATENÇÃO! Setor internacional da Consulta:
E-mail: intcontacto@laneta.apc.org
36
Apelo aos mexicanos e aos estrangeiros

05 de março de 1999.

À Sociedade Civil Nacional e Internacional:

Irmãos e irmãs:
Como sabem, o EZLN está levando adiante uma iniciativa de paz a nível nacional e internacional, cujo
objetivo é pedir o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e o fim da guerra de extermínio.
Como parte desta iniciativa, 5.000 delegados, bases de apoio do EZLN (2.500 homens e 2.500 mulheres),
sairão das montanhas do sudeste mexicano e visitarão os rincões mais remotos do território nacional. Em todos os
Estados da República mexicana, homens, mulheres, crianças e anciãos já estão organizados e aguardam a visita dos
zapatistas para unir-se à reivindicação de paz e justiça que trazem consigo.
Para alcançar estas pessoas e dialogar com elas, os delegados zapatistas terão que percorrer muitos
quilômetros, às vezes de carro, às vezes a pé, no lombo de um burro, de bicicleta, de avião ou de navio. Não é fácil
mobilizar 5.000 indígenas zapatistas e muito menos recuperar o dinheiro gasto para o seu transporte. Por isso,
pedimos uma ajuda econômica para nós e para todos aqueles que receberão os delegados, para que o maior número
possível de pessoas possa fazer ouvir a sua voz e a sua opinião no México.
Não duvidem, o dinheiro doado para esta mobilização será usado para obter uma paz com justiça e
dignidade. Não vale a pena fazer isso?
O número da conta corrente é: Bancomer, conta número 5001060-5, Plaza 437, San Cristóbal de las Casas,
Chiapas, México, a nome de Rosário Ibarra de Piedra.
Força! Não tenham medo!
Psst! Psst! Hei! Sim, você mesmo que está trabalhando numa brigada da Consulta Internacional! Não
importa se você vive aí, naquele país que não é o México, mas que, quando você olha para cá é como se você fosse
mexicano. Também não importa se você é ou não mexicano, se você é gordo, magro ou “esbelto”, se você é
heterossexual, homossexual ou bissexual, se você é alto, baixo ou “de estatura mediana”, se você é preto, branco,
amarelo, café, vermelho, azul ou cor de laranja. Bom, para encurtar a história, a única coisa que importa é se você
quer ajudar a paz ou não. Se a sua resposta for sim, então ajude-nos.
Bom, saúde e sim, imaginem se tivéssemos que ir a todos os lugares do mundo! Quanto custa ir para o Polo
Norte ou para a Patagônia? Muito? Bom, então nós precisamos de menos do que isso.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos.

Mais Coordenações Estaduais

México, 06 de março de 1999.

Ao Povo do México:
Às Coordenações Estaduais da Consulta:
Às Brigadas de Promoção da Consulta:
À Fundação Arturo Rosenblueth:

Irmãos e irmãs:
O EZLN informa quanto segue:

Primeiro. De acordo com os últimos dados, até agora foram cadastradas mais de 1.700 brigadas, com cerca
de 19.000 brigadistas que trabalham nos 32 Estados da República mexicana.
Segundo. O EZLN credenciou novas Coordenações Estaduais. São as seguintes:
Sul da Baixa Califórnia. Telefone: (2) 35.86 e 56.33.
Benito Juárez (DF). Telefone 794.96.74, Fax: 5.32.46.98.
Campeche. Telefones: (981) 310.24 e (987) 1.60.18.
Chihuahua. Telefones: (14) 18.31.34 e 36.15.83.
Coahuila. Telefone e fax: (17) 18.44.65. Endereço: Javier Mina 543 sur, Torreón, Coahuila.
Cuauhtémoc (DF). Telefone 583.90.96
Durango. Telefones (17) 14.38.09, (18) 11.44.61 e (18) 18.66.25.
37
Gustavo A. Madero (DF). Telefone: 757.24.16. Endereço: Bustamante 98, Col. Martin Carrera .
Iztacalco (DF). Telefone: 558.59.02. Endereço: Calle Sur 20, Número 221, Colonia Agrícola Oriental.
Jalisco. Telefones: 672.35.42 e 659.35.28.
Magdalena Contreras (DF). Telefone: 652.88.76.
Milpa Alta. Telefones: 8.44.06.00 e 8.44.08.02.
Nayarit. Telefone e fax (32) 11.01.22.
Quintana Roo. Telefone: (983) 2.94.97. Fax: (983) 2.99.38.
Tamaulipas. Telefone (12) 12.06.79. Fax: 28.82.63.
Venustiano Carranza (DF). Telefones: 571.67.83 e 701.61.46. Fax: 571.25.13.
Yucatán. Telefone: (99) 87.27.89 e 45.06.94.
Reiteramos a todos e todas, a estas novas Coordenações Estaduais e às que foram registradas antes desta data, que
podem continuar incorporando um número maior de brigadas, pessoas e organizações políticas, sociais, cidadãs e
não governamentais.
Terceiro. Estas novas Coordenações Estaduais recebem também a nomeação de autoridades estaduais da
Consulta, constituindo-se em “Coordenações e autoridades estaduais da Consulta”. Com este cargo, deverão
organizar o aspecto técnico da votação em seus municípios, de acordo com os critérios que daremos a conhecer.
Quarto. Em alguns dias, milhares de delegados zapatistas sairão de suas comunidades rumo aos diferentes
municípios de todo o país. Eles levam consigo a mesma reivindicação da maioria dos mexicanos e mexicanas: o
reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e o fim da guerra de extermínio.
Quinto. Aguarde os zapatistas em seu município e participe da Consulta de domingo 21 de março de 1999.

Democracia!
Liberdade!
Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional
México, março de 1999.

Atribuição dos delegados e delegadas zapatistas

México, 08 de março de 1999.

Ao Povo do México
Às Coordenações Estaduais da Consulta
Às Brigadas de promoção da Consulta.

Irmãos e irmãs:
O EZLN comunica quanto segue:
Primeiro. A partir de hoje, dia internacional da mulher, o EZLN inicia a concentração dos delegados que
irão promover a Consulta pelo Reconhecimento dos Direitos dos Povos Indígenas e pelo Fim da Guerra de
Extermínio.
Segundo. Nos “Aguascalientes” de Oventik, La Garrucha, Roberto Barrios, Morelia e La Realidad (todos
eles em Chiapas) estão se agrupando homens e mulheres indígenas tzotziles, tzeltales, choles, tojolabales, mames e
zoque, bases de apoio do EZLN. Elas e eles serão os delegados e as delegadas zapatistas que visitarão os
municípios de todos os Estados da República Mexicana.
Terceiro. De acordo com as determinações do CCRI-CG do EZLN, a atribuição de delegados e delegadas
a cada Estado da República será o seguinte:
Aguascalientes de Oventik: o Estado de Oaxaca.
Aguascalientes de Morelia: os Estados de Nayarit, Jalisco, Colima, Michoacán, Guerrero, Guanajuato, Querétaro e
Hidalgo.
Aguascalientes de Roberto Barrios: os Estados de Yucatán, Quintana Roo, Campeche, Tabasco, Veracruz e
Chiapas.
Aguascalientes de La Garrucha: os Estados da Baixa Califórnia (região norte e sul), Sonora, Sinaloa, Chihuahua,
Coahuila, Nuevo León, Tamaulipas, Durango, Zacatecas, Aguascalientes e San Luis Potosi.
Aguascalientes de La Realidad: os Estados de Puebla, Morelos, Tlaxcala, Estado do México e as Delegacias do
Distrito Federal.
38
Cada Coordenação Estadual poderá enviar uma representação ao respectivo Aguascalientes (de acordo com a
lista acima) para pegar os delegados e delegadas zapatistas a ela destinados.
A partir do dia 12 de março de 1999, nós zapatistas estaremos prontos para partir e os estaremos esperando para
viajar com vocês.
Quarto. A partir do dia 14 de março de 1999, e até o dia 21 de março, os delegados zapatistas realizarão o
seu trabalho de promoção da Consulta nos municípios de todos os Estados da República Mexicana.
Quinto. Convidamos o povo do México a participar do diálogo com os delegados zapatistas que visitarão
os seus municípios e da Consulta de domingo 21 de março de 1999.
Sexto. Conclamamos a todos, todas (e aos que não são nem todos e nem todas), a mobilizar-se pelo
reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e pelo fim da guerra de extermínio.
Sétimo. Está tudo pronto para a grande jornada de mobilização cidadã e popular de domingo 21 de março
de 1999. Participe!

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional
México, março de 1999.

A organização das mesas e a contagem dos votos

México, 10 de março de 1999.

A todas as Coordenações Estaduais, Regionais e Municipais da Consulta:

Irmãos e irmãs:
Cumprimentamos a todos, os felicitamos e nos felicitamos pelo grau de mobilização alcançado até agora na
preparação da Consulta de domingo 21 de março. Dentro de algumas horas, milhares de delegados zapatistas sairão
dos 5 “Aguascalientes” chiapanecos e iniciarão a viagem até seus Estados e municípios. Todos nós esperamos que
com eles corra tudo bem.
Agora queremos avisá-los que é urgente e importante organizar-se desde já para a etapa da realização da
Consulta. Como vocês sabem, a Fundação Arturo Rosenblueth dará o seu apoio em tudo aquilo que diz respeito ao
aspecto técnico e à contagem dos votos. Com base no que foi estabelecido pela Fundação lhes pedimos quanto
segue:
1. Cada Coordenação Estadual deve nomear uma equipe especial de coordenação e relação com a Fundação Arturo
Rosenblueth (Fax: (525) 669.03.93), e com o Centro Estadual de Contagem dos votos por ela designado.
2. As Coordenações Estaduais devem começar a cadastrar desde já as mesas de votação (e assembléias, quando se
trata de comunidades indígenas que se regem por sistemas baseados em usos e costumes próprios) e os contatos
telefônicos. Esta é uma tarefa URGENTE pois, por razões de agilidade e de organização, existe um prazo para este
registro. Esperamos que todos juntos possamos cadastrar milhares de mesas em todo o território nacional.
3. As Coordenações que foram credenciadas como Regionais ou Municipais para a viagem dos zapatistas, deverão
chegar a um acordo para que tudo aquilo que se refere ao cadastro das mesas, assembléias e contatos telefônicos
seja realizado por uma única instância estadual que faz a ponte com a Fundação Arturo Rosenblueth.
4. Ao entrar em contato com vocês, a Fundação Arturo Rosenblueth lhes dará a conhecer quem ficou responsável
pelo Centro Estadual de Contagem dos votos em seu respectivo Estado, lhes repassará o material de capacitação e
agilizará o acesso aos instrutores do mesmo.
5. Todos os detalhes técnicos e os que se referem à contagem serão resolvido de acordo com aquilo que for
estabelecido pela Fundação Arturo Rosenblueth e, por isso, pedimos que, desde já, entrem em contato com ela.
Encarreguem-se disso. Trata-se de uma urgência urgentíssima. Ou seja, já estamos com os aparelhos
soltando faíscas. Saúde.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, março de 1999.

P. S. Colocamos em anexo a lista das Coordenações elaborada pela Secretaria de Contatos para a Consulta, encham
os olhos e coloquem as pilhas.
39
LISTA DAS COORDENAÇÕES DA CONSULTA

AGUASCALIENTES Estadual. Telefone: (49) 18.18.59 e 70.17.48, Fax: (49) 18.18.59. Endereço: Allende, 342,
Zona Centro CP 20.000.
BAIXA CALIFÓRNIA NORTE Estadual e TIJUANA. Telefone: (66) 22.42.17, 53.10.17, 85.04.04 e 81.55.82.
Fax: (61) 77.23.78. Endereço: Calle Marmol, 352 Frac. Costa Sur, Enseada.
BAIXA CALIFÓRNIA SUL Estadual. Telefone: (112) 2.56.33 e 3.35.86. Fax: 5.64.30. Correio eletrônico:
ipineda@calafia.uabcs.mx Endereço: P. Kino Marquez de Leon e Normal.
CAMPECHE Estadual. Telefone e Fax: (981) 3.10.24.
CHIAPAS Estadual. Telefone e Fax: (967) 834.24 e Telefone e Fax: (961) 1.36.96.
CHIHUAHUA Especial CIDADE JUAREZ. Telefone: (16) 13.35.58 Ramal 362. Fax: (16) 13.83.79. Correio
Eletrônico: arascon@uacj.mx. Endereço: UA Cd. Juarez, centro de Estudios Regionales.
CHIHUAHUA Estadual. Telefone: (14) 17.47.56, 10.59.98, 14.57.78 e 15.66.74. Fax: (14) 15.66.74. Correio
Eletrônico: fdcchih@infosel.net.mx
Regional SIERRA TARAHUMARA. Telefone: (145) 6.01.18 (Recados).
COAHUILA Estadual. Telefone: (17) 16.87.63. Correio Eletrônico:victorcabrera@infosel.net.mx ou
mpicazo@campus.lag.itesm.mx Endereço: Javier Mina, 543 Sur, Torreon.
COLIMA Estadual. Telefone: (331) 4.17.99, 2.73.93 e 4.20.35. Fax: (331) 2.73.93. Correio Eletrônico:
roberto@cgic.ucol.mx
D.F. ALVARO OBREGON Especial. Telefone: (5) 643.47.05. Fax: (5) 643.47.05 e 578.97.76. Correio eletrônico:
xochitl@laneta.apc.org Endereço: Centro Cultural “La Piramide” Av. San Antonio esquina com el Periferico.
D.F. AZCAPOTZALCO Especial. Telefone e Fax: (5) 561.23.58
D.F. BENITO JUAREZ Especial. Telefone: (5) 523.63.97, 649.27.04 e 688.71.21. Fax: 523.63.97. Correio
Eletrõnico: tcoll@ifisiol.unam.mx Endereço: Heribert Frias 524-12, col. Narvarte.
D.F. COYOCAN Especial. Telefone e Fax: (5) 554.14.05. Correio Eletrônico: dans@correoweb.com Endereço:
Miguel Angel de Quevedo Num. 621-101.
D.F. CUAJIMALPA Especial. Telefone: (5) 812.79.83 e 811.00.25. Fax: (5) 531.05.18. Correio Eletrônico:
mxhn102@ibm.net, elena_gz@hotmail.com Endereço: Local FRAAP: Av. Mexico num. 173
D.F. CUAUHTEMOC Especial. Telefone e Fax: (5) 583.90.96 Endereço: Edif. M. Lerdo de Tejada Local 1 y 11 en
Tlatelolco.
D.F. GUSTAVO A. MADERO Especial. Telefone: (5) 757.24.16. Endereço: Bustamante 98, Col. Martin Carrera.
D.F. IZTACALCO Especial. Telefone: (5) 558.59.02. Fax: (5) 558.80.12. Correio Eletrônico:
clpsg@correoweb.com ou mgja1784@tochtli.uam.mx Endereço: Calle Sur 20 #221, Col. Agricola Oriental.
D.F. IZTAPALAPA Especial. Telefone: (5) 857.13.46 e (5) 733.31. Correio Eletrônico: cood_iztapalapa@hotmail.
com.
D.F. MAGDALENA CONTRERAS Especial. Telefone: (5) 595.72.50. Correio Eletrônico:
eguiarte@igiris.igeograf.unam.mx
D.F. MIGUEL HIDALGO Especial. Telefone: (5) 396.00.20 Fax: (5)
260.38.27. Correio Eletrônico: neithgamez@hotmail.com.mx
D.F. MILPA ALTA Especial. Telefone: (5) 844.21.54 Fax: (5) 844.18.90
Correio Eletrônico: mxhn@102ibm.net e elena_gz@hotmail.com
D.F. TLAHUAC Especial. Telefone: (5) 841.86.05 Fax: (5) 841.80.05
Correio Eletrônico: alebrije@starmedia.com
D.F. TLALPAN Especial. Telefone: (5) 606.27.73 e 606.26.96 Fax: (5)
665.13.20 Correio Eletrõnico: violeta@laneta.apc.org e
gravitania@latinmail.com
D.F. XOCHIMILCO Especial. Telefone e Fax: (5) 641.31.25 Correio
Eletrõnico: vasallo@laneta.apc.org
D.F. VENUSTIANO CARRANZA Especial. Telefone: (5) 701.32.14,
567.84.61 e 768. 09.87. Fax: 780.60.08.
DURANGO Estadual. Telefone: (17) 14.38.09, (18) 11.44.61 e (18)
18.66.25. Fax: (17) 18.82.67´.
Estado do México Especial ECATEPEC. Telefone: (5) 710.03.18 e
569.36.89. Fax: (5) 568.97.76 Correio Eletrônico:
imeza@ctrl.cinvestav.mx
Estado do México Especial NAUCALPAN. Telefone: (5) 373.29.49.
Correio Eletrônico: arturo@apolo. acatlan.unam.mx
Estado do México Especial NEZAHUACOALCOYOTL. Telefone: (%)
731.19.04. Fax: (5) 793.95.00 e 793.51.96.
40
Estado do México Especial TLANEPANTLA. Telefone: (5) 391.00.74, 397.93.99 e 388.06.41. Fax: 391.00.74
ESTADO DO MÉXICO:
Regional: VALLE DE TOLUCA XINANTECATL DEL NORTE, VALLE DE TOLUCA E SUL DO ESTADO
DO MÉXICO. Telefone e Fax: (72)13.09.77. 18.25.81 e 11.64.71. Fax: (72) 11.52.48 e 12.49.58 Regional
Sudoeste. Telefone: (726) 2.47.23 e 6.00.63. Regional VALLE TEOTIHUACAN. Telefone e Fax: (5) 956.02.76.
Regional NORTE ZUMPANGO. Telefone (5) 9.17.15.41. Fax: (5) 9.17.09.12. Endereço: Ejercito del trabajo s/n
Col. Maria Cuevas C.P. 55610 Municipal COYOTEPEC. Telefone: (72) 11.64.71, 13.09.77 e 18.25.81. Municipal
CHIMALHUACAN incluídos os de Neza. Regional IXTAPALUCA Telefone (5) 974.12.99 Regional
COACALCO. Telefone: (5) 870.07.74 e 872.43.49 e telefone e fax: 870.12.87. Endereço: Campillo Saenz N.º 10
Unidad Cocem, Tultitlan.
GUANAJUATO Estadual. Telefone: 9462) 427.03 Fax: (462) 547.85. Correio Eletrônico: corest@geocities.com
GUERRERO Estadual. Telefone e Fax: (747) 2.43.68, 2.04.64 e Telefone: (747) 1.34.56 Chilpancingo. Gro.
Municipal Acapulco. Telefone (74) 83.41.99 Municipal Pungarabato. Telefone: (767) 234.80 Regional Acatepec,
Tlacoapa. Telefone: (747) 134.56Municipal Tlalchapa. Telefone: (767)234.02 Municipal Ajuchitlan. (767) 234.02
Municipal Chilpancingo. Telefone:. (747) 134.56 Regional Montana de Guerrero. Municipal San Luis Acatlan.
Telefone: (741) 430.90 (recados) Fax: (741) 430.04 Regional Ayutla e Los Libres municipal Cutzamala. Telefone:
(767) 234.80, 234.02 e 237.15 Municipal Chilapa de Alvarez. Telefone (747) 503.78 regional Tlapa. Telefone e
Fax: (747) 6.07.98 Fax: (747) 607.98 Correio Eletrônico: tlachinollan@laneta.apc.org Endereço: Hidalgo 88-A
Col. Centro. Tlapa de Comonfort, Gro. Municipal Cutzamala de Pinzon. Telefone: (767) 234.80.
HIDALGO Estadual. Telefone: Pachuca (771) 132.88 Municipal Ixmiquilpan. Telefone: (772) 312.73 Municipal
Tulancingo. Telefone: (775) 380.99 Municipal Tula. Telefone: (773) 214.98 Ramal 117 Municipal Apan. Telefone:
(791) 203.05 Municipal Acaxochitlan. Regional Valle de Tulancingo. Telefone: (771) 339.38.
JALISCO Estadual. Telefone: (3) 825.59.20 Fax: (3) 826.72.20 Endereço: Jesus 707, Col. Sagrada Familia,
Guadalajara.
Municipal: San Cristobal de la Barrera
Municipal: Mujeres de Yahualica.
Municipal: Comunidades Indígenas Nahoas de Manantlan
Municipal: Ahululco de Mercado.
MOCHOACAN Estadual: Telefone e Fax: (43) 17.52.33 e 23.52.94 Correio Eletrônico: sntel8@mail.giga.com
Endereço:Agrarismo 50, Col. Centro. Morelia. C.P. 58.000.
Municipal Patzcuaro. Telefone e Fax: (434) 821.59. Telefone: 204.81.
MORELOS Estadual: Telefone e Fax: (73) 12.57.14 Correio Eletrônico: brigadaestatalmorelos@yahoo.com
Endereço: Las Casas 44 Centro. Cuernavaca
Municipal Yautepec: Telefone: (739) 40.069, 426.86 Fax: (739) 4.02.24
Municipal Cuautla: Telefone: (73) 1257.14 e 2440.80 Correio Eletrônico: Oche_cuerna@hotmail.com
Municipal Ayala: Telefone: (735) 415.09. Telefone e Fax: (735) 1.65.70
NAYARIT Estadual. Telefone e Fax: (32) 11.01.22
NUEVO LEON Estadual e MONTERREY. Telefone e Fax: (8) 345.74.28 Correio Eletrônico: marie@intermon.
net.mx
OAXACA Estadual. Telefone: (951) 552.89
PUEBLA Especial PUEBLA. Telefone e Fax: (22) 44.44.30 Correio Eletrônico: aviles@pue1.telmex.net.mx
Endereço: Universidad Chapingo, Col. Universidades, Puebla.
Regional Rural. Telefone e Fax: (22) 42.44.71 Correio Eletrônico: cemanhuatl@hotmail.com
Municipal Tlalancaleca. Telefone: (248) 448.31
Municipal Texmelucan. Telefone: (248) 401.83
Municipal Ixcaquixtla. Telefone: (243) 623.06
Municipal Izucar de Matamoros. Telefone: (243) 623.06
Regional Ahuacatecatl, Nahuatl, Totonaco Sierra Norte. Telefone: (22) 42.44.71
Regional Piaxtla Mixteca. Telefone: (243)201.22
Regional Zona Poniente: Ocoyucan, Coronango, San Andrés Cholula, Atlixco, San Pedro Cholula, Nextetelco e
Juan C. Bonilla, Regional Barzon, PRD e FZLN Telefone: (22) 35.09.94, (776) 4.12.63 e 5.50.95 Endereço:
Matamoros 116 Xicotepec de Juarez, Puebla.
Regional de Cuetzalan-Zautla. Telefone: (233) 104.78 e 102.73
Municipal Zihuateutla. Telefone: (776) 412.63
Regional Sul. Telefone: (22) 32.70.21 e 49.96.52
QUERETARO Estadual. Telefone e Fax: (42) 12.09.05 Correio Eletrônico: votan-zapata@hotmail.com Endereço:
Psicologos 109, Col. El Marques, Queretaro, Qro.
QUINTANA ROO Estadual. Telefone: (983) 294.97. Endereço: Corcega 383, Col. 20 de Noviembre. Chetumal
QR.
41
SAN LUIS POTOSI Estadual. Telefone: (48) 14.95.93 e 14.08.43
Municipal Rio Verde. Telefone: (481) 207.97
Regional Huasteca Norte. Regional Huastec Sur Frente Civico “Dr. Salvador Nava M.”. Telefone: (136) 2.02.76,
200.91. Correio Eletrônico: fcdsnmac@www.orb.org.mx Endereço: Calle Aguacate 112, Tamasunchale, SLP.
Regional del Altipiano. Telefone: (48) 15.70.46 Correio Eletrônico: adifurt@deimos.pc.uaslp.mx
SINALOA Estadual. Telefone e Fax: (67) 52.03.13 Correio Eletrônico: coprocosin@operamail.com
SONORA Estadual. Telefone: (62) 16.89.77 e 10.58.25 Correio Eletrônico: easpurol@hotmail.com
TABASCO Estadual. Telefone: (93) 14.07.80 e Telefone e Fax: (93) 12.83.62. Correio Eletrônico:
codehutab@laneta.apc.org Endereço: Sanchez Magallanes 844, altos, Col Centro Villahermosa.
TAMAULIPAS Estadual. Telefone: (12) 12.06.79 e Telefone e Fax: (12) 28.82.63 Correio Eletrônico:
cheredia@tamnet.com.mx
Regional Norte. Telefone: (89) 22.49.22 Reynosa.
Regional Centro. Telefone: (131) 526.72 Cd. Victoria.
Regional Sul. Telefone: (12) 12.06.79 e Telefone e Fax: (12) 28.82.63 Tampico.
TLAXCALA Estadual. Telefone e Fax: (246) 279.76
Municipal San Pablo del Monte.
VERACRUZ Estadual. Telefone e Fax: (28) 14.24.01 e 15.09.03 Correio Eletrônico: cddhac@edg.net.mx
Endereço: Revolucion 223, Xalapa, Ver.
Região Sudeste. Telefone: (926) 403.96
Municipal Chinameca
Municipal de San Andrés Tuxtla
Municipal de H. Veracruz
Regional Sul.
YUCATAN Estadual. Telefone e Fax: (99) 25.27.59. Correio Eletrônico: ipddh@sureste.com Endereço: Calle
31#200 A por 14 Col. Garcia Gineres, Merida.
Regional Indígena Zona Maya. Telefone e Fax: (99) 26.50.74.
Regional Peninsular. Telefone e Fax: (99) 45.06.94 e Telefone: 87.27.89
ZACATECAS Estadual. Telefone e Fax: (492) 225.85 e Telefone: 227.50 Fax: 241.56 Correio Eletrônico:
menchaca@cantera.reduaz.mx Endereço: Av. Hidalgo 119, int 5 Col. Centro, Zacatecas.
SECRETARIA DE CONTATOS PARA A CONSULTA INTERNACIONAL
Av. Ignacio Allende 22A
29200 San Cristobal de las Casas, Chiapas, México
Telefone e Fax: (967) 82159 e (967) 81013
E-mail: contacto@laneta.apc.org
E-mail CONSULTA INTERNACIONAL: intcontacto@laneta.apc.org
http://www.laneta.apc.org/consultaEZLN

Restrições à agenda dos delegados zapatistas


México, 10 de março de 1999.

Ao Povo do México:
A todas as Coordenações Estaduais, Regionais e Municipais da Consulta:
A todas as brigadas de promoção da Consulta:

Irmãos e irmãs:
Na carta aberta com a data de 1º de março de 1999, explicamos os critérios com os quais seriam elaboradas
as agendas dos atos públicos e privados dos delegados zapatistas nos diferentes municípios do país. Naquele texto
anunciamos que havia exceções à agenda de atividades públicas e privadas dos nossos delegados. São estas:
Primeira. De acordo com o mandato conferido aos nossos delegados, eles não irão se encontrar de maneira alguma
com representantes do Governo Federal e nem com membros dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário do
Estado de Chiapas.
Segunda. Os delegados zapatistas também não manterão encontro algum com a Comissão de Concórdia e
Pacificação (nem com qualquer um de seus membros, ainda que seja a título pessoal), pois esta Comissão
Legislativa se excluiu, por decisão própria, desta etapa da Consulta sobre o seu projeto de lei pelos Direitos dos
Povos Indígenas e pela paz.
Terceira. Os delegados não irão a nenhuma das sedes do Poder Legislativo Federal, do Judiciário Federal e nem do
Executivo Federal.
42
Quarta. Qualquer outro Poder Legislativo ou Executivo dos Estados da Federação (à exceção de Chiapas), dos
municípios e delegacias, assim como os deputados e senadores a título pessoal (à exceção dos que integram a
COCOPA), e os diretórios de qualquer partido político poderão, se assim o desejarem, encontrar-se em seus
Estados com as respectivas delegações zapatistas.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional
México, março de 1999.

Aos integrantes do ERPI, do EPR e demais organizações revolucionárias mexicanas


México, 10 de março de 1999.

Aos Comandantes, Unidades de Comando, oficiais e tropas


do Exército Revolucionário do Povo Insurgente (ERPI),
do Exército Popular Revolucionário (EPR)
e das diversas Organizações político militares revolucionárias do México.

De: Subcomandante Marcos


CCRI-CG do EZLN

Escrevo em nome dos homens, mulheres, crianças e anciãos do Exército Zapatistas de Libertação Nacional.
Como vocês sabem, no domingo 21 de março de 1999 se realizará a Consulta pelo reconhecimento dos
Direitos dos Povos Indígenas e pelo Fim da Guerra de Extermínio. Nela faremos 4 perguntas a todo o povo do
México para conhecer a sua opinião sobre 4 pontos essenciais da agenda nacional: o reconhecimento dos Direitos
Indígenas, o cumprimento dos Acordos de San Andrés, a desmilitarização e a transformação democrática do
México.

Para preparar e
acompanhar esta Consulta,
o EZLN escolheu 5000 de
seus integrantes (2500
homens e 2500 mulheres)
para que percorram os
municípios dos 32 Estados
da República Mexicana.
Estes 5000 delegados
zapatistas iniciarão a sua
viagem por todo o país no
dia 12 de março e estarão
fazendo o seu trabalho até o
dia 21 de março.
Como a viagem
dos delegados zapatistas e a
realização da jornada do dia
21 de março inclui
territórios que estão no
interior da área de controle,
influência e interesse das
tropas revolucionárias que
se encontram sob o seu
comando, dirijo-me a vocês
na minha condição de chefe
militar do EZLN para
solicitar respeitosamente
que, dada a importância
desta mobilização pacífica,
vocês tomem as medidas
que consideram pertinentes
43
e adequadas para que as visitas dos nossos delegados aos municípios que se encontram em seus territórios e a
Consulta do dia 21 de março de 1999 sejam levadas adiante nas melhores condições possíveis.
Sabemos que a causa que anima suas respectivas lutas é grande e que saberão ouvir este pedido que lhes
fazemos com seriedade e respeito.
Bom. Saúde e que o amanhã seja melhor para todos. 15

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos.
México, março de 1999.
Aos parlamentares do PRD e do PT

México, 10 de março de 1999.

Às Bancadas Parlamentares do PRD e do PT na


Assembléia Legislativa do Distrito Federal

De: Subcomandante Insurgente Marcos


CCRI-CG do EZLN

Senhores:

Deputado Marti Batres Guadarrama, Coordenador da Bancada do PRD.


Deputado José Narro Céspedes, Coordenador da Bancada do PT.
Deputados Ernesto Chávez, Javier Hidalgo, Rafael López de la Cerda e Alejandro Rojas Díaz Duran.

Senhoras deputadas:

Yolanda Tello e Ana Luisa Cárdenas:

Através da lutadora social Rosario Ibarra de Piedra, tem chegado até nós o seu convite para que um grupo
de delegados zapatistas participem de um ato de boas-vindas nas portas da Assembléia Legislativa do Distrito
Federal no dia 16 de março de 1999 com a participação do Dr. Pablo González Casanova, do Dr. Luis Javier
Garrido e de Dona Rosário Ibarra de Piedra, e, depois deste ato, a um jantar em Somborns de Los Azulejos.
Em nome do CCRI-CG do EZLN, lhes comunico que aceitamos com prazer o seu convite e que já
nomeamos uma delegação especial de 4 pares de zapatistas (4 mulheres e 4 homens) para que participem destes
atos como nossos representantes. Confiamos esta delegação especial de zapatistas a Dona Rosario Ibarra de Piedra
e, por isso, peço-lhes que entrem em contato com ela para acertar os detalhes do caso.
Bom. Saúde, e que o olhar para baixo seja algo permanente.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, março de 1999.

15
No dia 14 de março, o Comando Geral do Partido Democrático Popular Revolucionário e do Exército Popular Revolucionário enviavam
ao EZLN, aos delegados zapatistas, ao povo do México e à comunidade internacional o comunicado que segue: Todas as iniciativas como a
“Consulta para o Reconhecimento dos Direitos dos Povos Indígenas e para o Fim da Guerra de Extermínio” serão sempre bem-vindas. A
luta dos povos indígenas é também a nossa luta. Recebam uma saudação revolucionária por parte de nossos militantes e combatentes
indígenas, operários, camponeses e todos aqueles que integram o PDPR e o EPR. Acompanhamos a sua luta com seriedade e respeito desde
a sua primeira aparição pública. Nos mantivemos atentos ao seu desenvolvimento, aos seus avanços e às suas dificuldades. Aprendemos
com vocês e nos esforçamos para apoiá-los com nossa própria estratégia.
O governo federal não respeita os acordos e pretende nos cercar, imobilizar e aniquilar. Bem-vinda esta mobilização! Estes anos
de luta nos deram maior experiência, capacidade e força que reafirmam nossa vontade de lutar. Saudamos a luta dos povos indígenas pelo
reconhecimento dos seus direitos e por opor-se à guerra de extermínio que o Governo Zedillo impõe aos mais pobres. Chegaremos todos
juntos à transformação democrática que, atualmente, é imprescindível no nosso México.
Atenção: Aos Comandantes de Zona do Exército Popular Revolucionário, aos Oficiais e Combatentes do EPR e aos Militantes do
PDPR: 1. No âmbito de suas possibilidades e de suas forças, facilitem a mobilização dos nossos irmãos do EZLN em nossas zonas militares;
2. Mantenham-se de prontidão quanto aos acontecimentos político-militares que ocorrerão nos próximos dias (até o fim de março) nas
nossas zonas militares; 3.Vigiem e dêem conta das movimentações dos inimigos do povo nas nossas zonas militares.
Vamos conquistar nossos direitos com a mobilização política e a autodefesa!
Comando geral do Partido Democrático Popular Revolucionário e do Exército Popular Revolucionário.
44
Saímos!

México, 14 de março de 1999

Ao povo do México:
Aos povos do mundo:

Irmãos e irmãs:
Saímos!
Cadastrem
as mesas
da Consulta!
DEMOCRACIA! LIBERDADE! JUSTIÇA!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
México, março de 1999.

Aos delegados e delegadas zapatistas

México, 14 de março de 1999.

Aos delegados e delegadas que estão percorrendo os municípios de todos os Estados do país.
De: Subcomandante Insurgente Marcos.

Companheiras e companheiros:
Daqui, enviamos a nossa saudação a todas e a todos vocês.
Queremos que saibam que suas famílias e os vilarejos que aqui deixaram estão todos bem. Temos todos
muita confiança de que vocês saberão desempenhar bem o trabalho que lhes foi confiado e temos grandes
esperanças de que as suas palavras de paz com justiça e dignidade, que são também as nossas palavras, serão
ouvidas por homens, mulheres, crianças e anciãos honestos que, com certeza, irão encontrar no seu caminho.
Força! Continuem! É necessário convocar todo mundo e cadastrar as próprias mesas e assembléias da
Consulta para que tudo esteja pronto até domingo 21 de março. Digam aos irmãos e às irmãs das Coordenações
Estaduais de não esquecer de promover e cadastrar a instalação das mesas e das assembléias da Consulta.
Lembrem-lhes também que devem colocar-se em contato com o Centro de Contagem dos votos de cada Estado
para acertar os detalhes sobre isso tudo. Ou seja, lembrem-lhes de cuidar e de não esquecer de tudo isso.
Bom, companheiros e companheiras, aqui vão minhas saudações. Não se preocupem e não se atormentem
conosco que aqui os estamos esperando.
Saibam que nos sentimos orgulhosos de podê-los chamar de “companheiros” e da decisão e firmeza com a
qual estão desenvolvendo o seu trabalho.
A todas e a todos vocês enviamos um abraço e uma saudação especial do CCRI-CG do EZLN.
Tenham muito cuidado com vocês mesmos.
Bom. Saúde e que a palavra faça a diferença.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos.
México, março de 1999.

A Consulta Internacional e a Jornada pelos Excluídos


México, 17 de março de 1999.

À Sociedade Civil Nacional e Internacional:


45
Irmãos e irmãs:
Por andar na onda futebolística acabei me distraindo e esqueci de falar-lhes sobre como vai a Consulta
Internacional e a Jornada Internacional pelos
Excluídos do Mundo.
Percebemos que tem gente interessada em
participar e em fazer ouvir a sua voz dos lugares mais
impensados. Aí estão, por exemplo, a Jordânia,
Singapura, Hong Kong, Austrália, Ilhas Canárias,
Indonésia, Paquistão, Índia, Nepal, Zâmbia e as Ilhas
Fidji. Mas não é só destes lugares; tem brigadas
também na: Escócia, Argentina, Bolívia, Chile, Cuba,
Nicarágua, Panamá, Porto Rico, Uruguai, Paraguai,
Estados Unidos, Canadá, Japão, Alemanha, Bélgica,
Dinamarca, Estado Espanhol, França, Holanda,
Inglaterra, Irlanda, Itália, Noruega, Suécia e Suíça.
Em Jacarta, que é uma Ilha de Java, na Indonésia,
mais de 20 pessoas que incluem Munir, Tatma e Dwi,
assinaram um manifesto de apoio à Consulta. Na região de Sanim (que, me dizem, significa “à sombra das
montanhas”) no Japão, registraram a brigada “The Ninjas” e nos convidam a visitá-los porque as crianças de lá
querem nos conhecer (acham que somos Ninjas mexicanos!). No Chile, muito próximo do Polo Sul, a brigada
“Sherlock” honra o seu nome e resolve os mistérios para divulgar a Consulta. Na Bélgica, a brigada “Manuel
Álvarez Bravo” explica a importância dos Acordos de San Andrés. Na Nicarágua, erguendo-se dos escombros
deixados pelo furacão “Mitch”, preparam a Consulta e a Jornada pelos Excluídos.
Na Alemanha, nasceu a brigada “Zapata Lebt Noch”(que, dizem, significa “Zapata Vive”). Também na
Alemanha, a brigada “Las Dadaistas Incompletas” incorporam a força de uma pessoa experiente do Paraguai e
preparam uma vigília de 7 horas sobre a Consulta na noite do dia 20 de março. Na Catalunha, que poderia ser um
município autônomo de Chiapas (de tanto zapatista que tem por lá), mas que está no Estado Espanhol, e mais
precisamente em Vich, capital da Osona, preparam um livro gigantesco com informações sobre a Consulta. Em
Montreal, Canadá, a brigada Acteal esteve informando sobre a Consulta nos arredores de um espetáculo dos Tigres
do Norte. Em Toronto, também no Canadá, saúdam a saída dos delegados zapatistas.
Na Noruega, a brigada “La Cucaracha” avisa que pode coordenar-se com todos aqueles que estão ao norte
de Uruapan (sim, Michoacán). Em Estrasburgo, França, tem uma brigada que se chama “CIA” e que, obviamente,
não é a CIA dos gringos e sim a “Cercle de Idealistes Associes” (algo parecido com “Círculo dos Idealistas
Associados”). Em Barcelona, tem uma brigada que se chama “El Quijote Aguamielero”, e em Rio Cuarto,
Córdoba, Argentina, outra que se chama “La Mera Petetera”.
Em Albuquerque, Novo México, EUA, as nações indígenas Navajo/Dineh, Apache, Paiute, Lakota, Jemez,
Cherokee, Pawnee, Comanche, Tewa, Tiwa, Tyowa, Acoma, Zuni, Hopi, Sac e Fox, reivindicam seu direito de
participar da Consulta de acordo com a Constituição Mexicana de 1821 e integram a brigada “First Nations North
to South”.
Também nos Estados Unidos proliferam as brigadas promovidas pelo Movimento Estudantil Chicano de
Aztlán (MECHA), a Campanha Nacional pelo Voto Ausente 2000, a Frente Indígena Oaxaqueña Binacional, a
Plataforma Democrática, a Irmandade Mexicana, e muitos outros e outras. Por exemplo, a brigada ALAS, em
Glendale, Califórnia, montou uma exposição fotográfica; em Denver, Colorado, uma mulher manda dizer que
cadastrem o marido (feito, senhora); em Nova Iorque a brigada AZUL está cobrindo o Bronx, Harlem, Manhattan,
Queens, Staten Island e Nova Jersey.
Em Sacramento, Califórnia, tem um programa de rádio onde se explica o que se passa por aqui, assim que,
desde já, mandamos nossas saudações aos ouvintes de “Linha Direta” em Sacramento e os convidamos a participar
desta Consulta, que é pelo Reconhecimento dos Direitos dos Povos Indígenas, ou seja, dos povos que deram vida e
cultura a muitos e muitas dos que ouvem este programa. Em Storrs, Connecticut, a brigada “O Solitário” tem só um
elemento, mas é como se fossem 1.111. Em Nova Iorque, a brigada “La Realidad” demonstra que, seja lá onde for,
o mundo é do tamanho de um lenço. Em San Diego, tem a brigada “Villista Antimperialista Remember
Columbus?” que ... sem comentários.
Mas a notícia de maior destaque dos últimos dias é a formação da Brigada Pelos Direitos da Raça, San
Diego, que nos comunica que o Projeto dos Presos Chicanos Mexicanos realizará a Consulta em muitos presídios
dos EUA onde há milhões de mexicanos e mexicanas presos. A brigada não tem dinheiro e, por isso poderá enviar
só 500 cédulas de votação às principais prisões dos Estados Unidos. Daqui lhes dizemos: Coragem! Continuem!
Continuando com o relato, os informo que todas as Coordenações Nacionais que solicitaram seu cadastro
na Secretaria de Contatos foram credenciadas. Alguma idéia para a contagem dos votos e o envio dos resultados?
Aqui vai uma: que as brigadas e coordenações mandem por e-mail os resultados da Consulta e que, logo em
46
seguida, mandem as atas de votação pelo correio. Repito, é uma idéia, mas pode ter mais e, até mesmo,
melhores. Mutatis mutandi, seria algo assim como “uma Consulta na qual cabem muitas Consultas”, não é?
Mas, vocês sabem que nem tudo é Consulta e brigada. Também estão sendo preparados, e bem, vários atos
para a jornada internacional pelos Excluídos do Mundo. De acordo com aquilo que nos dizem, tem atividades
programadas em: França, Alemanha, Inglaterra, Porto Rico, Canadá, Nicarágua, Argentina, Dinamarca, Península
Ibérica e Ilhas Canárias. Na Nicarágua preparam um carnaval para a tarde do dia 21. Na Catalunha, Valência e
Zaragoza se preparam caminhos e festas da imaginação; nas Ilhas Canárias se realizará um encontro em
Guayadeque (Ilha da Grande Canária). Em Copenhague, na Dinamarca, o México Gruppen e Tinku já preparam
várias atividades.
Na Argentina, em Bariloche, Bahia Blanca, Arequito, Chabas, San José de la Esquina, Buenos Aires e
Rosario, vincularão o dia 21 ao 24 de março, dia da MEMÓRIA, no qual os lutadores argentinos se unem para
marchar e pedir que a memória sobreviva. Nos escrevem e nos advertem: “Já vão ouvir o estampido!” Como? Pois,
com cartazes, música, murais transmissões de rádio, vídeos, seminários, batucada (dizem que León Gieco estará
por lá), baile, enfim, dignidade sob muitas formas e cores.
Estas boas pessoas (porque são boas e são pessoas), se comprometeram tanto com a Consulta que se deram
ao trabalho de localizar mexicanos e mexicanas em toda a Argentina. E cada vez que encontram um ou uma, fazem
uma festa cujo barulho dá pra ouvir daqui. Hoje mesmo, a Internet foi sacudida por uma notícia que ia de um lado a
outro desta heróica rede de ciberexcluídos. A razão? A rede da Argentina havia localizado uma mexicana em um
pequeno povoado de menos de 5000 habitantes! Festa! E, além disso, a mexicana tem muito interesse em participar
da Consulta. Festa em dobro! São coisas como estas que os de cima nunca poderão entender: o por que de tanta
festa e alvoroço quando um encontra outro (outra, neste caso).
Há muito mais atos, e todos são muito bons. Nos felicitamos com todos e com todas e lhes desejamos o
melhor (que, apesar de tudo, será sempre pouco quando comparado ao que merecem). Na medida em que cheguem
maiores informações vamos comunicá-las.
Lá vamos nós. As iniciativas aumentam na medida em que a data vai se aproximando. E com elas, todos e
todas que abraçam o mundo de todos os cantos esquecidos do planeta, e que, abraçando, se encontram.
Bom. Saúde e que a festa de continuar encontrando o outro não tenha fim.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, março de 1999.

Secretaria de Contatos para a Consulta


Av. Ignacio Allende 22A,
29200 San Cristobal de las Casas, Chiapas, México
Telefone e Fax (967) 82159 e (967) 81013.
Http://www.laneta.apc.org/consultaEZLN

Observações rápidas sobre a Consulta

México, 17 de março de 1999.

À Sociedade Civil do México.


Às Coordenações Estaduais da Consulta.

Irmãos e irmãs:
Cumprimentamos a todos e esperamos que esteja indo tudo bem com as viagens dos delegados e delegadas
zapatistas. De acordo com as
informações que chegam até nós, nossos
companheiros e companheiras estão
satisfeitos e muito animados pelo
empenho, sacrifício e dedicação que
vêem nas pessoas que trabalham nas
coordenações e na organização dos atos
públicos. Obrigado por tudo isso. Agora,
vou colocar aqui algumas rápidas
observações sobre vários assuntos.
47
1. Queremos avisá-los que na Cidade do México tem um grupo de delegados do EZLN que está à
disposição para aceitar convites a atos que não haviam sido previstos pelas coordenações das delegacias e atender à
imprensa nacional e internacional. Para tanto, pedimos que entrem em contato com dona Rosario Ibarra de Piedra.
2. No dia 19 de março, haverá um ato com os delegados zapatistas na Cidade Universitária. Queremos
convidar todas as organizações estudantis, de professores e de trabalhadores da universidade a participarem desta
mobilização, e, sobretudo, as organizações de estudantes que na UNAM lutam contra o aumento das mensalidades.
Temos pensado este ato como algo do qual podem participar todos os universitários, ou seja, todos os que
trabalham ou estudam em instituições de ensino superior. Portanto, convidamos também os politécnicos, os
estudantes de magistério, os iberos, os da UNAM, os eneperos, os de pedagogia, e todos os estudantes das
universidades e institutos privados de ensino superior.
Neste 19 de março, todos à Explanada da Reitoria na Cidade Universitária!
3. Atenção: Muito importantíssimo! A Fundação Arturo Rosenblueth nos manda o seguinte aviso: a data
limite para que sejam cadastradas as mesas e os contatos telefônicos é sexta feira 19 de março até às 18.00 horas (6
p.m.). Apressem o cadastro das mesas junto às suas Coordenações Estaduais, Regionais e de Delegacia. Estas
deverão enviar os cadastros ao respectivo Centro Estadual de Contagem. Aqui estão os dados dos Centros
credenciados pela Fundação Arturo Rosenblueth:
Aguascalientes, Gabriela Serena (49) 14 52 52. Guanajauto, Servando Calderón (42) 23 13 79 o 13 67 94. Baixa
Califórnia, Raúl Ramírez (66) 34 18 91. Guerrero, Javier Mojica (74) 85 04 59 y 85 66 05. Baixa Califórnia Sul,
Fernando Gracia (112) 2 92 96. Hidalgo, Silvia Mendoza (771) 7 20 00 ramal 6612; no 21 de março ao (772) 3 22
44. Campeche. Jalisco, Sofía Palau Cardona (3) 817 03 68 y 825 59 20. Coahuila, Nelly Herrera (84) 14 03 45 y 14
17 30. Estado de México, Lic. Everardo Flores 5523-5200 y 5536-4782. Colima, Leticia de la Mora de Castañeda
(331) 3 11 08 y 4 61 64, fax 3 11 06. Michoacán, Víctor Vargas (43) 15 96 25. Chiapas, Antonio Ramírez (967) 8
17 38. Morelos, Arturo Meza (73) 14 07 78 y 18 07 20. Chihuahua, Juan Aquino Vélez (14) 17 47 56, fax 17 47 26.
Nayarit, Erandi Avalos Muñoz (32) 16 60 35 y 12 84 14. Distrito Federal, Luz Rosales 5211-3583 y 5211-6919,
fax 5286-6164. Nuevo León, Nelly Herrera (84) 14 03 45 y 14 17 30. Durango. Oaxaca, Dr. Mario Ortiz (951) 4 37
59 y 6 60 19. Tlaxcala, Ana Medina (246) 1 11 26 y 1 09 95. Puebla, Ana Medina (246) 1 11 26 y 1 09 95.
Veracruz, Manuel Martínez (28) 17 29 57, fax 17 28 55. Querétaro, Servando Calderón (42) 23 13 79 o 13 67 94.
Yucatan, Paty McCarthey (99) 44 99 80 y 81. Quintana Roo, Ricardo Lule (98) 84 40 14 y 84 99 11. Zacatecas,
Ernesto Menchaca Arredondo (492) 2 25 85. San Luis Potosí, Luis Nava (48) 12 46 84 y 12 93 52. Sinaloa,
professora Aída Osuna (67) 52 03 13. Sonora, Rafael Lucero (64) 14 63 92. Tabasco, Francisco Goitia (93) 14 07
80, fax 12 83 62. Tamaulipas, Claudia Luengas (12) 12 06 79.
É tudo, continuem com muita raça.
Bom. Saúde e que a única quota a aumentar seja a da dignidade.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos

P.S.: que arde pela derrota: A todos os que querem e amam o futebol! Quanto ao placar final, podemos
dizer que não reflete o que realmente aconteceu no campo, pois no gramado os zapatistas mostraram um jogo
animado e brincalhão que fez a alegria de crianças e adultos. Enfim, não perdemos, só nos faltou tempo para ganhar
(disse Napoleão). Além disso, é claro que os nossos rapazes sofreram por causa da altura, do clima, da poluição, do
terreno, da crise asiática, do Popocatépetl, do caso Clinton-Lewinski e daqueles uniformes nos quais cabiam duas
pessoas em cada um deles. Ah! E não esqueçam que os zapatistas chegaram um pouco cansados porque
desembarcaram no Distrito Federal depois de driblar 70.000 federais. 16

Aos trabalhadores do setor elétrico

México, 18 de março de 1999.

Ao povo do México:
Aos operários da República:

Irmãos e irmãs:
Trazemos a todos e a todas a saudação dos zapatistas.
Queremos agradecê-los por ternos dado um espaço para dizer a nossa palavra nesta importante mobilização
em defesa da soberania nacional.
16
O jogo, anunciado no comunicado de 11 de fevereiro, aconteceu na Cidade do México e terminou com o placar de 5 a 3 a favor da seleção
dos ex-jogadores profissionais. O jogo foi acompanhado e comentado também por alguns jornais esportivos.
48
Não somos só nós que estamos aqui que concordamos com esta mobilização que pede a defesa do setor
elétrico.
Em todas as regiões do México, tem muitas mexicanas e mexicanos que discordam da vontade de vender o
que é deste país e não é de ninguém em particular.
Porque o setor elétrico não é propriedade do governo.
É do povo.
É dos mexicanos de hoje.
É dos mexicanos de amanhã.
Todos sabemos que o governo Zedillo quer privatizar o setor elétrico.
Todos sabemos que privatizar quer dizer vender a uns poucos aquilo que é propriedade coletiva.
Todos sabemos que o que querem é vender aquilo que é propriedade de todos nós, do povo do México.
Nós zapatistas dizemos que não queremos que o setor elétrico seja privatizado.
Nós queremos que a riqueza seja para todos os mexicanos e não para alguns proprietários estrangeiros ou
nacionais.
Queremos que este solo, o solo mexicano, e o que ele produz sejam de todos os mexicanos.
Não estamos de acordo que se privatize parte do que nos faz ser uma nação soberana.
Privatizar os recursos naturais é como privatizar a pátria.
E a pátria não se vende.
A pátria se vive.
Da pátria se cuida.
A pátria se faz crescer.
A pátria é para ser mantida e não deixada morrer.
Por isso, devemos defender o setor elétrico para não permitir que estes mercadores que estão no governo o
tirem de nós para vendê-lo.
Por isso, defender o setor elétrico é defender a pátria.

Irmãos e irmãs:
Hoje Zedillo e seus amigos querem vender o setor elétrico.
Amanhã vão querer vender a indústria petrolífera.
Depois vão acabar vendendo tudo aquilo que nos faz mexicanos.
Sempre nos disseram que estas coisas do governo são para o nosso bem, mas é mentira.
São só para o bem deles, dos maus governantes, dos poderosos, dos que tem um mercado no coração, e não
a pátria.
Sempre nos disseram que aquilo que o governo faz é porque agora não tem outra saída, mas é mentira.
Sim, existem muitas saídas. O mais importante é que eles vão embora e deixem seu lugar a governantes
que querem servir o povo, que busquem caminhos que não destruam a nossa nação, que mandem obedecendo.

Irmãos e irmãs:
Nós somos mexicanos.
Nós somos indígenas.
Nós somos zapatistas.
E como zapatistas, como indígenas e como mexicanos acompanhamos sua luta que também é nossa e com
vocês dizemos:

Não à privatização do setor elétrico!


Não à venda da soberania nacional!
Não à destruição da pátria!

DEMOCRACIA! LIBERDADE! JUSTIÇA!

Das montanhas do Sudeste Mexicano.


Subcomandante Insurgente Marcos
Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
México, março de 1999.

Todos e todas à Consulta!

México, 20 de março de 1999.


49

Ao povo do México:
Às Coordenações da Consulta:
À imprensa Nacional e Internacional:

Irmãos e irmãs:
Na véspera da realização da Consulta pelo Reconhecimento dos Direitos dos Povos Indígenas e pelo Fim
da Guerra de Extermínio deste domingo 21 de março de 1999, o EZLN comunica quanto segue:
Primeiro. Comunicamos à Fundação Arturo Rosenblueth, que é responsável pelo cômputo dos resultados
desta jornada, o nosso desejo de que, na medida do possível, se dêem a conhecer publicamente os dados
preliminares da Consulta na mesma noite de domingo dia 21 de março de 1999.
Segundo. Pedimos à lutadora social dona Rosario Ibarra de Piedra que, com o apoio da Fundação Arturo
Rosenblueth e de personalidades da sociedade civil, seja ela a convocar uma coletiva com a imprensa e a divulgar
os resultados preliminares preparados pela Fundação durante a noite de domingo 21 de março.
Terceiro. Aproveitamos para divulgar os números das linhas telefônicas que a Fundação Arturo
Rosenblueth manterá abertas nos dias 22, 23 e 24 de março, das 9.00 da manhã às 9.00 da noite, para receber os
resultados das comunidades indígenas e das mesas que, por estarem em lugares isolados ou muito afastados não
tiverem a oportunidade de comunicar-se durante o domingo. Os telefones são: 55.36.82 e 55.23.52.00.
Quarto. Neste domingo 21 de março: todos e todas à Consulta!

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
México, março de 1999.

Nenhum Zapatista se rendeu!

México, 30 de março de 1999.

Ao povo do México:
Aos povos e aos governos do mundo:
À imprensa nacional e internacional:

Irmãos e irmãs:
Em alguns meios de comunicação eletrônica e em algum jornal nacional, apareceu uma informação sobre a
suposta deserção de 14 membros do EZLN. Apesar das evidências de que se trata de uma farsa, esta notícia fez
com que diversas personalidades da política nacional aproveitassem para colocar em primeiro plano a sua
ignorância e a sua falta de inteligência.
Com a finalidade de esclarecer a estas personalidades a trama em que caíram e que permitiu que exibissem
a sua inépcia, o EZLN informa o que realmente ocorreu:
1. - O senhor Alfredo Jiménez Cruz, que trabalha no gabinete do prefeito de Ocosingo e um dos
encarregados de providenciar armas e equipamentos para o grupo paramilitar “MIRA” 17 em Las Cañadas, recebeu
ordens vindas de Tuxtla Gutierrez, de preparar uma ação na qual se simulava a rendição de alguns zapatistas. Para a
ocasião, em Tuxtla Gutierrez diziam que já haviam preparado um grupo de jornalistas que dariam ao acontecimento
o destaque necessário para ofuscar o completo êxito alcançado pela Consulta zapatista do dia 21 de março de 1999.
2. - Em ação coordenada com as guarnições federais sediadas na zona de Las Cañadas, o senhor Alfredo
Jiménez Cruz entrou na selva durante a noite do dia 28 de março levando consigo uniformes semelhantes aos que
são usados pelos zapatistas e armas de diversos calibres. O senhor Jiménez Cruz não foi detido ou molestado em
nenhum dos postos que o Exército Federal supostamente mantém “para aplicar a lei sobre armas e explosivos”.
3. - Às 01.00 horas (uma da manhã) do dia 29 de março, o senhor Alfredo Jiménez Cruz chegou ao Ejido
La Trindad, situado no vale de “Las Tazas” próximo à comunidade de Avelanal, com um caminhão de 3 toneladas
(de propriedade da prefeitura municipal de Ocosingo).
4. - Neste lugar, o esperavam os 16 membros do “MIRA” que simulariam ser “zapatistas arrependidos”.
Todos eles são filiados ao PRI e, desde que os grupos paramilitares começaram a agir na Selva Lacandona, treinam

17
MIRA: Movimento Indígena Revolucionário Antizapatista.
50
sob a tutela dos comandantes do Exército Federal e recebem apoio econômico da Secretaria de
Desenvolvimento Social. Seus nomes são:
Domitilo Hernández Paniagua.
Héctor Hernández Paniagua.
Jesús Hernández Paniagua
José Hernández Paniagua.
José Álvarez López.
Jesús Álvarez López.
Francisco Álvarez López.
Alejandro Álvarez López.
Francisco Álvarez Méndez.
Vicente Pérez Castellanos.
José Pérez Castellanos.
Heriberto Constantino Pérez.
Florentino Hernández Méndez.
Miguel Mendoza Pérez.
Omar Pérez Mendoza.
Simón Lorenzo Hernández.
5. - No mesmo dia 29 de março, às 02.00 da manhã, os paramilitares disfarçados de zapatistas saíram de La
Trindad rumo à cabeceira municipal de Ocosingo. Armados e uniformizados, não foram detidos ou revistados em
nenhum posto da guarda federal.
6. - Durante a manhã chegaram ao lugar que as autoridades estaduais haviam preparado para a
representação da cena: um balneário nas margens do rio Jataté, na entrada da cidade de Ocosingo. O que se seguiu
já é conhecido: a farsa do atravessamento do rio, a leitura do texto (redigido pelo senhor Alfredo Jiménez Cruz), a
“entrega” das armas, as fotografias, as declarações.
7. - As armas “entregues” a Albores foram devolvidas ao grupo paramilitar “MIRA” através dos
comandantes do Exército Federal, e os “zapatistas arrependidos” receberam 20 cabeças de gado e um monte de
promessas como recompensa por sua atuação neste teatro.
Informamos sobre todas estas coisas para que a imprensa tenha a história completa e não só a “cena” do
balneário. Oxalá que dêem a esta informação o mesmo destaque que deram ao teatro da “deserção”. Os
paramilitares (hoje supostos “desertores zapatistas”) encontram-se agora em sua comunidade de origem. Vocês
mesmos podem ir a estes lugares e perguntar aos habitantes dessa e das comunidades vizinhas sobre a “militância”
dessas pessoas. A verdade está aí.
Sobre o que ocorreu queremos repetir o seguinte:
Primeiro. O dinheiro que é supostamente investido em Chiapas não é para melhorar o nível de vida dos indígenas,
e sim para sustentar a campanha de contra-insurgência. Os projetos econômicos não chegam sequer aos indígenas
filiados ao PRI, porque são destinados às tentativas de romper a unidade zapatista. Como os zapatistas não se
vendem e para os Priistas 18 não tem nada (porque isso não faz notícia) opta-se então por disfarçar de zapatistas
membros do PRI e fazê-los participar das ridículas operetas de Albores Guillén.
Segundo. Dado o desespero dos Priistas para obter só um pouco do muito dinheiro que o governo de Chiapas
recebe, é de se esperar que outros indígenas se prestem à simulação de converter-se ao zapatismo para, logo em
seguida, “render-se”. Com certeza teremos mais espetáculos “totalmente pagos” pela companhia teatral que mora
no palácio do governo de Tuxtla Gutierrez.
Terceiro. É lamentável que, no lugar de cumprir os Acordos de San Andrés e comprometer-se com a via do
diálogo, os governos Estadual e Federal optem por simulações deste tipo e se neguem a reconhecer que a sua
política de guerra e mentiras já foi derrotada na opinião pública, conforme foi demonstrado pela Consulta de 21 de
março.
Quarto. Os zapatistas não se rendem e nem entregam suas armas, muito menos ao “bolachas pra cachorro”
Albores.

DEMOCRACIA! LIBERDADE! JUSTIÇA!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
México, março de 1999.

A Consulta continua!
18
Priistas: filiados ao PRI (Partido Revolucionário Institucional).
51

México, 30 de março de 1999.

À Sociedade Civil Nacional e Internacional:


Às Coordenações Estaduais, Especiais, Regionais e Municipais da Consulta:
A todos e todas as e os brigadistas:

Irmãos e irmãs:
Recebam nossas múltiplas, multiplicadas e multifacetadas saudações. O mesmo para as caravanas.
Escrevo-lhes apenas para não perder o costume, desejar-lhes muitas felicidades para o período de férias da
semana santa e pedir-lhes que não se desesperem ao verem que a Consulta continua. Não, não teremos outra fase de
silêncio.19 Virão muitas palavras e muitos encontros. Diálogos, pois.
Acontece que agora estamos checando que todos os companheiros e companheiras cheguem bem a seus
respectivos povoados e, como são 5.000, isto está demorando. Logo que encerrarmos esta tarefa, o comunicaremos
a vocês com toda solenidade, pompa e circunstância. Agüentem-nos, pois.
Por enquanto, lhes informo que, até o dia 21 de março de 1999, haviam se registrado 2.635 brigadas que
agrupam mais de 28.000 brigadistas. O que? Ficou surpreso de que sejam tantos? Não? Como? O que significa esse
“haviam-se registrado”? Se isso significa que ainda podem ser registradas outras brigadas? Sim, claro. Ainda
faltam etapas da Consulta e há tarefas que temos que levar adiante, e para elas vamos precisar da ajuda de todas
essas pessoas que, como vocês, viraram este país de cabeça pra baixo, o sacudiram e lhe deram voz.
Breve, logo que tivermos os resultados finais da Consulta do dia 21, apresentaremos a vocês um informe
completo de tudo aquilo que significou, em termos de mobilização, esta festa do dia 21 de março que, obviamente,
ainda não terminou.
Por isso, descansem por estes dias, não dêem ouvidos ao “bolachas pra cachorro” Albores e nem prestem
atenção aos seus shows de fantoches. 20 Sem dúvida, ele vai colocar algo melhor em seus programas! Não tirem os
olhos de Kosovo. Já vi este filme e o seu final (se é que terá) não será nada agradável. A paz não se constrói com as
bombas (e nem com os teatrinhos).
Bom. Saúde, e como é que dá pra computar o entusiasmo desse 21 de março?

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos.
México, março de 1999.

Perguntas à imprensa

México, 31 de março de 1999.

À imprensa Nacional e Internacional:

Damas e Cavalheiros:
Ainda tem alguém por aí? Não? Ficaram só para registrar o número do Albores e saíram de férias? Bom,
vou-lhe mandar um comunicado para quando estiverem de volta (a sua procedência: em exclusiva e do coração da
Selva Lacandona!, a verdadeira e triste história dos 14 “desertores” zapatistas que na realidade são 16 - a depender
do meio de informação - e de como Moctezuma Barragán usa o dinheiro do SEDESOL 21 para apoiar a campanha de
Labastida!).
Bom, nos vemos por aí. Boas férias, mas, cuidado, evitem Kosovo e seus arredores. Dizem que o clima por
lá não está muito bom.
Valeu. Saúde e, se quiserem conhecer os verdadeiros zapatistas, os verdadeiros acampamentos
guerrilheiros e o verdadeiro “coração da Selva Lacandona” (e não um balneário), façam seu pedido e, na medida do
possível, procuraremos atendê-los.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos.
México, março de 1999.
19
Refere-se aos quase seis meses de 1998 durante os quais o EZLN optou por um prolongado período sem cartas ou comunicados, na espera
paciente do amadurecimento de acontecimentos capazes de desmascarar por si só o discurso e a estratégia do governo federal.
20
Refere-se ao governador de Chiapas e aos acontecimentos expostos no comunicado anterior.
21
SEDESOL: Secretaria de Desenvolvimento Social.
52

P.S. PARA AZCARRAGA JEAN. De jeito nenhum! No estilo da “wag the dog”? E o que virá depois? Vocês
também vão mandar helicópteros para destruir escolas e descobrir estrangeiros com passamontanhas? A nova
“Luisa Lane” é a alternativa da Televisa diante de Dolores de La Vega? Yaaaa! Entendo que vocês estejam dando
um empurrãozinho a Albores e Labastida, mas o bom não era Don Miguel? Ou ele fica de vez em Veracruz?
P.S. COM UM BOLO DE ANIVERSÁRIO. Felicidades, Luta! Que você tenha aniversários muito felizes.
Atenciosamente: Todos.
P.S. A QUEM POSSA INTERESSAR. Estão pegando no pé do PRD pelo seu processo de seleção interna: por tê-lo
realizado abertamente? Por manifestar publicamente seus erros e suas diferenças no lugar de optar pelo assassinato
e pela sua ocultação? Por instruções que vem de muuuuito acima? Porque Kosovo fica muito longe? Por que? Digo
isso só por curiosidade.
OUTROS P.S. Saúde Guerrerenses! Os apoiamos com o pouco que somos e que temos. A luta pela democracia
acontece lá, aqui e acolá. Nós zapatistas estamos com vocês.

Carta de Marcos sobre a volta dos delegados zapatistas

México, 05 de abril de 1999.

À imprensa nacional e internacional:

Damas e cavalheiros:
Como foram as férias? Aqui vão um comunicado e uma carta. Até que enfim todos e todas voltaram às suas
casas (agora o bolachas pra cachorro já tem outros 5.000 potenciais “desertores” 22).
Será que estou ficando doido e desesperado porque estou ficando sozinho? Ah, bom, eu achava que fosse
pelo calor.
E, como vão as contas? Assim, entre os 15.000 e 20.000 que teriam saído do EZLN de 10 municípios...
Mas, não é o próprio Labastida que diz que somos uns 300 ou 500? Não estávamos só em 4 municípios?
Valeu. Saúde, e uma súplica: será que podem me mandar uma cópia do comunicado que saiu de um tal
Sebastian Guillén? Bom, isso é para ver se a sua redação é tão ruim quanto a do governo.

Das “solitárias e desesperadas” montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, abril de 1999.

P.S. QUE TEIMA COM ESTA COISA DE QUE ZAPATA VIVE. Este 10 de abril! 23 Grande festa baile nas
“Aguascalientes” mais próximas do seu coração! Isso sim! Não haverá entrega de armas e nem serviço de
helicóptero. Sim teremos um comunicado para a imprensa, mas bem redigido.
P.S. QUE SE DISFARÇA DE COMUNICADO EZELENISTA.
“À etcetera:
Primeiro. O EZLN celebra, aplaude e manifesta o maior regozijo pelo fato do governo reconhecer que tem apenas
15.311 indígenas priistas e que se encontram limitados a 57 comunidades de 10 municípios do Estado de Chiapas.
Segundo. O EZLN também se mostra compreensivo quanto ao fato destes indígenas priistas não darem seus
nomes. Em Chiapas, é uma vergonha para qualquer um declarar-se publicamente priista.
Terceiro. O EZLN oferece ao governo os seus serviços de redação de comunicados para elaborar textos com
notícias tão gratificantes como as de 2 de abril. Digo isso porque, além dos números, a redação é uma lástima.
De etcetera.
Etcetera”.
P.S. QUE FAZ A TAREFA DOS COLUNISTAS POLÍTICOS, APLICA A LÓGICA E EXTRAI NOVAS
CONTAS. Os 15.311 (“quase 20.000”, diz o bolachas pra cachorro Albores que, como podem ver, é bom nas
contas e nos contos), ou são supostos ex-zapatistas ou são supostos priistas contados como ex-zapatistas.
Raciocínio 1. Se são supostos priistas contados como ex-zapatistas, então a conta reflete uma franca deterioração
do priismo indígena. Daqui a pouco não vai ter mais indígenas priistas? Por que não trazem alguns de outros
Estados?
Raciocínio 2. Se são supostos ex-zapatistas, então o governo conseguiu “convencer” 15.311 zapatistas em 5 anos.
Feitas as contas, isso dá 3.062 zapatistas “desertores” por ano e por muitos milhões de Pesos.
22
Refere-se aos acontecimentos citados no comunicado do dia 31 de março, no qual o EZLN desmascarava a farsa da rendição de 14
zapatistas montada pelo governador do Estado de Chiapas Roberto Albores Guillén num balneário junto ao rio Jataté.
23
Aniversário do assassinato de Emiliano Zapata.
53
Em Chiapas, mais de 460.000 homens, mulheres, crianças e anciãos apoiaram a Consulta do EZLN do dia 21 de
março. Estes 460.000 chiapanecos ou eram supostos zapatistas desde antes desta data ou o são a partir desta data.
Se a cada ano o governo consegue que 3.062 zapatistas sejam “desertores”, então vai demorar... mais de 150 anos
para conseguir transformar em desertores o “pequeno grupelho” dos zapatistas! E depois dizem que somos nós que
queremos ampliar o conflito (suspiro)...
P.S. QUE PEDE A REVANCHE DO FUTEBOL. Olívio e Marcelo vieram me dizer que se eles tivessem jogado na
partida contra os veteranos, nós não teríamos sido derrotados. Estou de acordo e, como Supdiretor técnico,
apresento a seguinte escalação: Chanoc e Tsekub Bayolan no meio de campo, Sup, Puk e Suk (ou seja, que a bola
será um coco) no ataque, Olívio e Marcelo também no ataque, Diego Armando Maradona (nacionalizado zapatista)
também no ataque, Memin, Pingüin, Carlangas e o bruxo Aniceto fortalecendo o ataque. O que? Sim, já sei que não
estou colocando nem zagueiros e nem goleiro, mas, por acaso estão pensando que vão nos fazer gol? Além do mais
vamos colocar no gol uma metralhadora de tripé Browning calibre 30, por isso, pra que se preocupar com a zaga?
Bom, veremos se antes do jogo não passa algum “desertor” para entregar a metralhadora ao bolachas pra cachorro.
Não faz mal, já estamos cavando as trincheiras. Que tal? Topam?
Valeu de novo. Saúde e um sorvete de idem (digo, para o calor)
O Sup do alto da Ceiba ignorando “coitado!”, que está só e desesperado.

Os 5.000 delegados zapatistas chegaram bem às suas casas


México, 05 de abril de 1999.

Ao povo do México:
Aos povos e governos do mundo:
À imprensa nacional e internacional:

Irmãos e irmãs:

O CCRI-CG do EZLN comunica quanto segue:


Primeiro. Já se encontram em suas respectivas comunidades todos os delegados e delegadas zapatistas que
trabalharam nos municípios dos 32 Estados da Federação para a jornada cidadã do dia 21 de março.
Todos e todas chegaram bem, contentes e emocionados pelas atenções que receberam nos lugares que
visitaram.
Segundo. O EZLN agradece a todos os homens, mulheres, crianças e anciãos que apoiaram a viagem de
retorno dos nossos companheiros e companheiras delegados. Agradecemos especialmente às Coordenações
Estaduais, Regionais, Especiais, Municipais da Consulta e aos homens e mulheres que trabalham na Secretaria de
Contatos para a Consulta.
Terceiro. O EZLN, com os 5.000 delegados e delegadas, iniciou hoje o trabalho de informação junto aos
povos zapatistas em resistência.
Quarto. O EZLN convoca todos e todas as e os brigadistas e as diversas Coordenações a manter-se em
contato. Logo lhes proporemos uma nova iniciativa.

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
México, abril de 1999.

A todos e a todas as e os brigadistas e Coordenações da Consulta

México, 05 de abril de 1999.

À Sociedade Civil Nacional e Internacional:


Às Coordenações Estaduais, Especiais, Regionais e Municipais da Consulta:
A todos e todas as brigadistas:

Irmãos e irmãs:
Chegaram todos e todas. Ao completo.
54
OBRIGADO!
Valeu. Saúde, e esperamos que logo nos retribuam a visita.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos. México, abril de 1999.
Carta de Marcos com um conto para as crianças de Guerrero e Morelos.

México, 09 de abril de 1999.

À imprensa nacional e internacional:

Damas e cavalheiros:
Aqui vão três comunicados. Um sobre a recuperação da sede do Diálogo de Paz, outro chamando a
defendê-la e o terceiro sobre o 80º aniversário da morte do meu general. Nem lhes conto, que estes zapatudos ainda
não perceberam que já estão fracos e desmoralizados. Por que não dizem ao bolachas pra cachorro Albores que vá
dar uma voltinha na cabeceira municipal de San Andrés? Talvez os mais de 3.000 indígenas tzotziles que aí estão
querem “ser desertores” e somar-se ao número dos que “voltam à vida institucional e ao Estado de direito”, não é?
Acho que sim, e é chiclete. As fotos sairão bem bonitas. Porém, se isso não acontece, talvez não lhe entreguem
armas e capuzes, mas, isso sim, garanto que lhe darão algum osso. Perfeito! Ainda que seja de helicóptero...
O que vamos fazer se nos desalojarem? Bom, “nos re-alojamos”. Valeu. Saúde e, se alguém duvidada
disso, Zapata vive!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, abril de 1999.

P.S. ZAPATISTA: “No yolo pahpaqui ihuan itech nin mahuiztica, intoca netehuiloanime tlatzintlanecaihuan nan
mech titlanilia zepalipaquiliztica-tlahpaloli ihuan ica nochi no yolo ni quin yolehua nonques altepeme, aquihque
cate qui chiihuazque netehuiiliztle ipampa melahqui tlanahuatli”.
(“O meu coração se alegra e por ele, com dignidade, em nome dos que combatem sob minhas ordens e com alegria,
envio a todos vocês uma saudação e com todo o meu coração convido aqueles povos, os que lutarão por um
comando honesto”). Emiliano Zapata, Manifesto em língua Nahuatl.

P.S. QUE NÃO SABE FAZER CONSIGNAÇÕES. “Não, não e não! Não à privatização do... que? Não rima? Mas
dá pra entender... do setor elétrico! Sim, sim e sim! Viva o SME! O que? Não rima? Mas dá pra entender, não é?

P.S. INCRÉDULO. Será que se deram conta de que Mario Villanueva era um delinqüente somente alguns minutos
depois que ele deixou de ser governador? Deve ser por isso que ninguém acredita neles a respeito de nada...

P.S. QUE REITERA A SUA FALTA DE COMPREENSÃO. Com esta coisa de horário de verão e os relógios
adiantados em uma hora, o dia agora tem 23 ou 25 horas?

P.S. QUE CONTA ÀS CRIANÇAS DOS ESTADOS DE GUERRERO E MORELOS UMA HISTÓRIA QUE AS
CRIANÇAS ZAPATISTAS ESCREVERAM PARA NÓS. Dizem que a história conta que havia uma vez um
general insurgente (na época da guerra de independência) e que um dia se apresenta a ele um homem que diz querer
lutar pela independência do México. O General disse-lhe que aceitava e lhe entregou um papel onde o nomeava
general, sozinho. O homem perguntou: “E as tropas?” O General lhe mostrou os povos que se viam do alto das
montanhas e lhe disse: “Aí estão, é só recrutá-las”. O homem voltou a perguntar: “E as armas? ” O General olhou e
lhe respondeu: “Estas quem tem é o inimigo”. O homem foi embora e recrutou um grupo de indígenas e, armados
de paus e pedras, perseguiram algumas tropas do rei ao anoitecer. Assim, esse homem conseguiu suas primeiras
armas. Dizem que o General atendia pelo nome de José Maria Morelos e Pavon e que o homem se chamava
Vicente Guerrero. Contam que foi esse tal de Guerrero que escreveu isso de “Viver pela Pátria ou Morrer pela
Liberdade” e que também escreveu: “Entenda você que nada para mim seria mais degradante que me confessar
delinqüente e aceitar o perdão oferecido pelo governo contra o qual haverei de me opor até o último suspiro da
minha vida” (Carta a Iturbide, 20 de janeiro de 1821), além do fato de que com ele se consumiu a independência do
México, a mesma que hoje querem entregar aqueles que pretendem privatizar o setor elétrico.
55
É pelo General Morelos que o estado de Morelos se chama Morelos, e é pelo General Vicente Guerrero que se
chama Guerrero o Estado de Guerrero. E por Morelos e Guerrero (e por muitos como eles) vocês e nós somos
crianças mexicanas.

Valeu outra vez. Saúde, e Terra e Liberdade!


O Sup cantarolando a música que diz “voa, voa, pombinha...”
Sobre a retomada da sede do município autônomo
de San Andrés Sacamch’en de los Pobres

México, 08 de abril de 1999.

Ao povo do México:
Aos povos e aos governos do mundo:

O EZLN diz a sua palavra sobre os últimos acontecimentos ocorridos no Estado de Chiapas, no Sudoeste
Mexicano:
Primeiro. Durante a manhã de quarta feira dia 07 de abril de 1999, as forças armadas da autodenominada
“polícia de segurança pública do Estado de Chiapas” tomaram de assalto a sede do município de São Andrés
Sacamch’en de los Pobres, lugar de onde despachava o Conselho Municipal Autônomo (democraticamente eleito
de acordo com os usos e costumes das comunidades indígenas) e sede dos Diálogos de San Andrés entre o Governo
Federal e o EZLN.
Segundo. Desta forma, os Governos Federal e Estadual impuseram uma autoridade municipal ilegítima e
ilegal com membros do agonizante Partido Revolucionário Institucional chiapaneco, montaram uma guarnição de
policiais armados e iniciaram sua campanha de propaganda vangloriando-se de ter “desmantelado” outro município
autônomo zapatista.
Terceiro. Hoje, antes que passassem 24 horas da covarde e premeditada expulsão do Conselho
democrático, bases de apoio do EZLN, todas elas de indígenas tzotziles e em número superior a 3.000, retomaram
pacificamente as instalações da sede de San Andrés Sacamch’en de los Pobres e se instalaram no local para cuidar
de seu governo democraticamente eleito. Vendo-se amplamente superada em número e devido à presença dos
meios de comunicação, a polícia deixou o lugar dos
acontecimentos.
Quarto. Após estes fatos, os Governos Federal e Estadual
iniciaram uma série de movimentações de tropas federais e de
policiais federais e estaduais com a finalidade de retomar a sangue
e fogo a cabeceira municipal de San Andrés.
Quinto. Paralelamente a isso, os Governos Federal e
Estadual iniciaram nos meios de comunicação uma campanha que
tende a culpar o Partido da Revolução Democrática (PRD) e a
Diocese de San Cristóbal como supostos responsáveis pela ação
dos indígenas.
Nem o PRD e nem a Diocese de San Cristóbal tem nada a ver com isso. Esta ação pacífica é das bases de
apoio do EZLN e representa mais um protesto contra os Governos Federal e Estadual pelo descumprimento dos
Acordos de San Andrés, assinados pelo Governo Federal e pelo EZLN há 3 anos.
Sexto. Com a ação violenta de quarta feira, quando a polícia tomou as instalações municipais de San
Andrés, o governo pretendia dar o tiro de misericórdia à possibilidade de diálogo como uma saída para o conflito
armado.
Com a ação de hoje, quinta feira, as bases zapatistas recuperaram a sede do diálogo de paz, defendem os
direitos e a cultura indígena e, dessa forma, honram a vontade expressa por milhões de cidadãos na Consulta do dia
21 de março de 1999 que assinalaram com toda clareza o sim ao reconhecimento dos direitos indígenas e o não à
guerra.
Sétimo. Lançamos um apelo à sociedade civil nacional e internacional para que se mobilize a fim de
impedir que o governo insista em suas ações violentas, renuncie definitivamente ao uso da força e cumpra os
acordos que assinou.
Oitavo. Convocamos todos e todas as pessoas honestas a apoiarem nossos irmãos e irmãs zapatistas na
defesa da sede do diálogo de paz.
Nono. Nós zapatistas queremos deixar bem claro que não abandonaremos o último símbolo de uma saída
pacífica ao conflito: San Andrés Sacamch’en de los Pobres. Ao atacar San Andrés, o Governo deixou claro que não
56
abandona a sua idéia de uma ação violenta como resposta às nossas justas demandas. A história se repete: o
Governo pela a guerra e o EZLN pela paz.

Democracia! Liberdade! Justiça!


Das montanhas do Sudeste Mexicano
Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Defender a possibilidade de diálogo defendendo San Andrés

México, 09 de abril de 1999,

Às Coordenações Estaduais, Especiais, Regionais e Municipais da Consulta:


A todas as brigadas de promoção da Consulta:
À Sociedade Civil Nacional e Internacional:

Irmãos e irmãs:

Contrariando a vontade de milhões de mexicanos, o Governo leva adiante a sua guerra contra os povos
indígenas do México.
Dias atrás, o Governo tomou pela força o município de San Andrés Sacamch’en de los Pobres, sede do
Diálogo e lugar onde foram assinados os primeiros Acordos de Paz descumpridos por Zedillo.
Através de uma mobilização pacífica, nós zapatistas conseguimos retomar a sede do Diálogo, mas o
Governo ameaça com uma violenta expulsão, razão pela qual está realizando concentrações de tropas em diversos
pontos de Chiapas.
Por esta razão, lhes lançamos este apelo para que, conosco, se mobilizem para deter a nova agressão que
está sendo preparada e obrigar o Governo a abandonar de uma vez por todas o perigoso jogo da guerra no qual está
empenhado.
A razão, a verdade, a história e a legitimidade estão do nosso lado.
Do lado do governo estão somente o dinheiro e a força bruta.
Defendamos juntos a possibilidade de diálogo defendendo San Andrés.

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação
Nacional.México, abril de 1999.

80º Aniversário da morte do General Emiliano Zapata

México, 10 de abril de 1999.

Ao povo do México:
Aos povos e governos do mundo:

“Os ricos ficam cada vez mais ricos e os pobres tornam-se cada vez mais pobres. Os ricos moram em
mansões, gastam em luxo e ostentação, vivem no esplendor, fortificam-se com manjares apetitosos, vivem sem
trabalhar, gozam de todas as atenções e de todos os privilégios.
Os pobres definham de fome, vivem ao relento e em choças dignas dos selvagens, falta-lhes abrigo contra
o frio, freqüentemente morrem de insolação, são utilizados como bestas de carga, nos campos e nas oficinas
recebem um tratamento que se choca com a dignidade humana. São párias em seu próprio país e escravos de seus
próprios cidadãos. São eles que produzem a riqueza e, sem dúvida, a riqueza lhes escapa para ir rechear os bolsos
dos bargantes, simples consumidores daquilo que não lhes custou esforço algum.
Por isso, a revolução o proclama com força: o país não conhecerá a paz enquanto não for destruído o
feudalismo que reina no campo, enquanto a terra não for distribuída entre aqueles que sabem e querem cultivá-la,
enquanto não tiver desaparecido o monopólio dos bargantes, não forem dadas garantias ao trabalhador e não for
melhorada a retribuição do trabalho”.
General Emiliano Zapata, 24 de junho de 1914.

Irmãos e irmãs:
57
Hoje se completam 80 anos da morte do General Emiliano Zapata. O General Emiliano Zapata foi e é o
símbolo dos que lutam até às últimas conseqüências por aquilo em que acreditam. O símbolo dos que não se
vendem. O símbolo dos que resistem. O símbolo dos que não se rendem e nem rebaixam suas bandeiras.
Como não puderam comprá-lo com dinheiro e adulações, nem amedrontá-lo com ameaças e perseguições,
os poderosos prepararam-lhe uma arapuca para matar o corpo e soltar a alma do General Zapata.
Mas o comandante em chefe do Exército Libertador do Sul, considerado no seu tempo como um
“transgressor da lei” e rebelde contra “o Estado de Direito”, nasceu novamente muitas vezes e em diferentes noites
do campo mexicano.
Por onde passava, ensinou a não se deixar enganar por quem diz que governa e só destrói, por quem, em
sua soberba, atropela e humilha, por quem não ouve, por quem só fala sozinho.
Nas montanhas do sudeste mexicano, o general Emiliano Zapata assumiu a voz, o passo e o rosto do Votán,
do guardião e coração do povo, e tornou-se Votán-Zapata, caminho e passo dos mais humildes.
Zapata caminhou por 80 anos quando parecia que já não caminhava. 80 anos nascendo quando parecia que
o haviam assassinado. 80 anos lutando e as mesmas contas continuam pendentes e se repetem as mesmas traições.
A história é esta, 80 anos depois do 10 de abril em Chinameca. 24
Aqueles que o mataram, hoje se embrutecem com as riquezas e o sangue nos grandes palácios do governo.
Aqueles que o fizeram nascer, hoje o vivenciam e caminham para que a terra volte a ser daqueles que a
trabalham e a liberdade seja, enfim, para todos.
Aqueles que o mataram. Hoje vendem nossas riquezas e nossas terras, e destroem a grande nação
mexicana.
Aqueles que o fizeram nascer, hoje se opõem ao mercado de histórias e dignidades e lutam para defender
os direitos indígenas, o setor elétrico, o ensino gratuito, o petróleo,
a terra para quem a trabalha, o amanhã para quem o constrói, a paz
justa e livre para aquele que a busca e a quer de verdade.
80 anos depois, estão no poder os mesmos que traíram e
mataram Zapata.
E 80 anos depois, os mesmos que lutaram ao lado de
Zapata voltam a lutar com ele.
80 anos depois, o grito “Terra e Liberdade!” continua sem
alívio.
80 anos depois, os zapatistas do EZLN voltam a convocar
os povos de todo o país para que não abandonem a luta pela terra,
por moradia digna, pelo trabalho bem pago, por uma boa
alimentação, pela educação, pela saúde.
E hoje, 80 anos depois, lutar por tudo isso é lutar pela
soberania nacional, ou seja, pela independência, pela democracia,
pela liberdade, pela justiça e pela paz no México.
Hoje, nós zapatistas do EZLN convocamos todo o povo do
México a mobilizar-se em defesa da nação e contra aqueles que
querem vender a soberania alegando contas mal feitas e falta de
dinheiro quando, na verdade, o que falta aos governantes é a
vergonha, e as contas mal feitas são aquelas que tem feito alguém
se enriquecer e enriquecer uma pequena quadrilha de ladrões,
alguns dos quais são ou foram governadores de Estado, e algum
outro fica na espreita da verde Dublin.
Hoje Zapata vive em nós e vive na luta de milhões de
mexicanos que sabem que a defesa da soberania nacional livra-se
no campo e na cidade, nos municípios e comunidades indígenas, nos sindicatos e nas organizações sociais, nas
organizações não governamentais e nas políticas, nas comunidades eclesiais de base e nos clérigos honestos, nos
estudantes e nos professores, nos colonos e nas donas de casa, nos homossexuais e lésbicas, nos meninos e nas
meninas, nas mulheres, nos jovens, nos anciãos.
Nunca mais enganações. Nunca mais traições. Nunca mais, maus governantes. Nunca mais humilhações
para o povo. Nunca mais destruição e venda de nossa soberania.
Cumprimento dos Acordos de San Andrés e fim da guerra de extermínio!
Não à privatização do setor elétrico.

Democracia! Liberdade! Justiça!

24
Lugar onde Zapata foi assassinado.
58

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
México, abril de 1999.

Encontro de avaliação da Consulta em La Realidad

México, 15 de abril de 1999.

Às Coordenações Estaduais, especiais, Regionais e Municipais da Consulta:


A todas as brigadas de promoção da Consulta:
À Sociedade Civil Nacional e Internacional:

Irmãos e irmãs:

O EZLN, levando adiante a mobilização pelo reconhecimento dos povos indígenas e pelo fim da guerra de
extermínio, convoca o 2º Encontro entre a Sociedade Civil e o EZLN na Aguascalientes de La Realidad, Chiapas,
México, nos dias 7, 8, 9 e 10 de maio de 1999.25
O objetivo deste 2º Encontro é elaborar de forma conjunta a maneira pela qual conseguimos realizar toda
esta mobilização, a análise e a avaliação da Consulta pelo reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e pelo
fim da guerra de extermínio.
Este 2º Encontro se realizará de acordo com as diretrizes que seguem:
Primeiro. Poderão assistir todas as pessoas que tenham participado ou participem de algumas das brigadas
de promoção e divulgação.
Ainda que com suas trapalhadas tenham contribuído para promover a Consulta nos meios de comunicação,
não poderão assistir ao encontro nenhum dos membros da brigada “os fantásticos quatro” (Zedillo, Labastida,
Albores e Rabasa).26 Nisso somos absolutamente sectários.
Segundo. Poderão participar todas as pessoas que integrem algumas das Coordenações Estaduais,
Especiais, das Delegacias, Regionais e Municipais credenciadas junto à Secretaria de Contatos para a Consulta.
Terceiro. Todos e todas as brigadistas poderão credenciar-se junto às Coordenações Estaduais, Especiais,
das Delegacias e Municipais de sua escolha. Ou, também, poderão credenciar-se diretamente na Secretaria de
Contatos para a Consulta.
Quarto. As Coordenações Estaduais, especiais, das Delegacias, regionais e Municipais, poderão credenciar
os seus membros que quiserem assistir ao Encontro.
Quinto. As Coordenações Estaduais, Especiais, das Delegacias, Regionais e Municipais deverão
comunicar à Secretaria de Contatos para a Consulta o número de pessoas credenciadas para o 2º Encontro, no mais
tardar até o dia 2 de maio de 1998. Isto porque precisamos ter uma idéia aproximada do número de participantes
para colocar nas melhores condições possíveis as instalações nas quais os atenderemos, além de ir resolvendo a
questão do transporte de San Cristóbal até La Realidad e da viagem de volta.
Sexto. O programa proposto para este 2º Encontro é o seguinte:
Sexta-feira, 07 de maio: Chegada à La Realidad e inauguração do Encontro.
Sábado, 08 de maio: Análise e avaliação das etapas da mobilização:
A) As etapas de promoção e divulgação da Consulta e de organização territorial.
B) A viagem dos 5.000 delegados zapatistas.
C) A jornada do dia 21 de março de 1999.
Domingo, 09 de maio: Análise e avaliação dos resultados da Consulta.
Domingo, 09 de maio: Discussão e acordos para a etapa seguinte da mobilização pelo reconhecimento dos
direitos dos povos indígenas e pelo fim da guerra de extermínio.
Domingo, 09 de maio: Encerramento.
Segunda-feira, 10 de maio: Saída de La Realidad.
Sétimo. No sábado, 08 de maio, as comunidades zapatistas e o CCRI-CG do EZLN oferecerão um jantar
em honra da Sociedade Civil. Como não é possível fazer com que toda a Sociedade Civil receba esta homenagem,
então os que sairão ganhando serão os que estarão presentes.

25
O 1º Encontro da Sociedade Civil com o EZLN ocorreu entre os dias 20 e 22 de novembro de 1998 em San Cristobal de las Casas onde os
representantes do EZLN deram sinal verde para a Consulta Nacional sobre o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e pelo fim da
guerra de extermínio.
26
Respectivamente: Presidente da República, Secretário de Governo, Governador do Estado de Chiapas e Coordenador Governamental para
o diálogo em Chiapas.
59
Durante este ato, e como número especial do mesmo, entre 15.000 e 20.000 “desertores” do EZLN se
suicidarão (ou se “auto-suicidarão”, como diz Rabasa). Logo após os devidos aplausos do respeitável público e as
fotos de ocasião, os ex-desertores e agora auto-suicidas irão ressuscitar e, para honrar o apelativo de “polpotianos”
serão sumariamente fuzilados.27 O respeitável público aplaudirá com moderado entusiasmo e, depois de bater mais
fotografias, os ex-desertores, ex-auto-suicidas e agora executados colocarão de novo seus passamontanhas e
continuarão sendo aquilo que são: zapatistas.
(Nota: Estamos fazendo o esforço extra de construir às pressas um trem. Isso com a esperança de que algum
bombardeiro da OTAN o confunda com o transporte de refugiados da ex-Iugoslávia e nos poupe a vergonha do
auto-suicídio, mas não garantimos nada. Seja como for, tragam suas máquinas fotográficas).
Em cerimônia especial daremos formalmente início à campanha nacional e internacional chamada “os
ossos de primeira para Albores e as mais baixas adulações para Marcos” que se explica por si mesma.
Do mesmo modo, será convocada a formação de uma instância de apoio para fazer com que as diferentes
facções do PRI possam se sentar para dialogar: a Comissão de Concórdia e Pacificação para que o Partido de
Estado não volte a assassinar o seu candidato à Presidência e coloque em seu lugar o coordenador da campanha
eleitoral (“COCOPAPQPDENACALPYPESLACDLCE” será a sua sigla).
Oitavo. Todos os participantes deverão trazer seus utensílios para comer (prato, colher, garfo, pá ou
picareta, furadeira ou quebra-nozes ou seja lá o que for que usem). As comidas, feita exceção da homenagem à
Sociedade Civil, ficarão por conta dos participantes, mas haverá um serviço de cozinha econômica a preços
“populistas”.
Será bom que os participantes tragam consigo algum osso ou uma bolacha pra cachorro e, ao passar por
Tuxtla, a entreguem solenemente ao marechal Albores ou a alguns de seus cachorrinhos na PGJE (não esqueçam de
trazer a vacina contra a raiva, para as moscas). 28 Podem deixar os ossos nas latas de lixo que é aonde procuram a
comida os seres que moram no palácio do governo.
Nono. Para dormir em La Realidad terá um telhado e, em alguns casos, até uma parede. Somente.
Décimo. Antes da celebração deste 2º Encontro, o EZLN tornará públicos diversos dados sobre a
mobilização da Consulta tanto a nível nacional como internacional.
Décimo Primeiro. Sobre a imprensa: poderão assistir ao Encontro todos os meios que se credenciarem
como tais na Secretaria de contatos para Consulta ou nas Coordenações Estaduais, desde que não sejam policiais ou
militares e que não tenham destruído nenhuma escola indígena com seus helicópteros.
Décimo Segundo. Tudo o que não estiver previsto na presente convocação (ou seja, quase tudo) será
resolvido (!?) pela Comissão Des-organizadora (ou seja: nós).
Décimo Terceiro. Não tem décimo terceiro. É só.

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos
México, abril de 1999.

Os desertores do EZLN e a Consulta Universitária

México, 16 de abril de 1999.

À imprensa Nacional e Internacional:

Damas e Cavalheiros:
Vai aqui uma carta-comunicado que se explica por si só.
Quer dizer que tem outro grupo de “desertores” zapatones? Yaaaaaa! Os milicianos não usam estes
chapeuzinhos; só o Major Moisés. Além do mais, neste lugar do qual eles falam não só não há nenhum zapatista,
como também não mora ninguém. Pelo menos que se esforcem para tornar o fato mais verídico, não é? Ou será que
ainda estão irritados pelo que aconteceu em San Andrés?
Valeu. Saúde e não viajem de trem (pois a OTAN irá contá-los entre os “danos colaterais”).

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
27
“Polpotianos”: Refere-se ao governo de Pol Pot que na segunda metade da década de setenta instaurou no Camboja um clima de terror.
28
PGJE: trata-se da polícia judiciária do Estado.
60
México, abril de 1999.

P.S. PARA O CNI. Serão bem-vindos. Apenas comuniquem as datas, como e em quantos virão. Será uma honra
que a Aguascalientes de Oventik seja a sede da próxima reunião do Congresso Nacional Indígena.
P.S. QUE RESPONDE AO QUESTIONÁRIO DA CONSULTA GERAL UNIVERSITÁRIA. Em nome da
Sociedade de EX-alunos Zapatudos da UNAM (SEXZU é a sua sigla) são estas as nossas respostas:
Pergunta 1. Sim, o Regulamento Geral dos Pagamentos é ilegítimo pela forma antidemocrática com a qual foi
aprovado. A UNAM não é o PRI.
Pergunta 2. Sim, o Estado deve aumentar o orçamento para a educação pública. Para cumprir isso, pode-se reduzir
o peso total do gabinete de Zedillo no orçamento geral.
Pergunta 3. Sim, deve-se democratizar o processo que leva a tomar decisões na UNAM.
Pergunta 4. Sim, o ensino de nível médio e superior deve ser gratuito.
Pergunta 5. Sim, a administração do orçamento da UNAM deve ser transparente e democrática.
Pergunta 6. Sim, deve haver um diálogo público e direto entre as autoridades da UNAM e o movimento estudantil
universitário.
De nada. Por favor, multiplicar isso por todos os zapateros (claro, menos por aqueles 15.000-20.000 que
“desertaram”). Anúncio: Filie-se à SEXZU!

Carta à Mumia Abu-Jamal

México, abril de 1999

Para: Mumia Abu-Jamal


União Americana
De: Subcomandante Insurgente Marcos
México.

Senhor Mumia:
Escrevo-lhe em nome dos homens, mulheres, crianças e anciãos do Exército Zapatista de Libertação
Nacional para parabenizá-lo por este 24 de abril, dia do seu aniversário.
Talvez você já tenha ouvido falar de nós. Somos mexicanos, a maior parte de nós é indígenas, e insurgimos
em armas no dia 1º de janeiro de 1994 reivindicando voz, rosto e nome para os esquecidos da terra.
Desde então, o governo mexicano nos faz guerra, nos persegue e atormenta buscando a nossa morte, o
nosso desaparecimento ou o nosso silêncio definitivo. O por que disso? Estes solos são ricos em petróleo, urânio e
madeiras nobres. O governo quer estas matérias primas para as empresas transnacionais. Nós as queremos para
todos os mexicanos. O governo vê as nossas terras como um negócio. Nós vemos a história que está escrita no
nosso solo. Para defender o nosso direito (e o de todos os mexicanos) a viver com liberdade, democracia, justiça e
dignidade, nos tornamos um exército e dessa forma assumimos nome, voz e rosto.
Talvez se pergunte como ficamos sabendo de você, do seu aniversário e porque tratamos de estender esta
longa ponte que vai das montanhas do Sudeste Mexicano até a prisão da Pennsylvania que o mantém injustamente
encarcerado. Pessoas boas de várias partes do mundo têm nos falado de você, por elas ficamos sabendo da
emboscada que lhe foi preparada pela polícia norte-americana em dezembro de 1981, das mentiras que foram
construídas no processo contra você e da sentença de morte de 1982.
Ficamos sabendo do seu aniversário através das mobilizações internacionais que se preparam para este 24
de abril sob o chamado de “Milhões a favor de Mumia”. Mais complicado mesmo é falar da ponte que agora
propõem estas linhas que lhe escrevo. Poderia dizer-lhe que, para o governo e os poderosos do México, o ser
indígena (ou se parecer com ele) é motivo de desprezo, de asco, de desconfiança e de ódio. O racismo que hoje
povoa os palácios do Poder no México chega ao extremo de levar adiante uma guerra de extermínio, um etnocídio
contra milhões de indígenas. Tenho certeza de que você encontrará semelhanças com aquilo que o Poder faz com a
chamada “gente de cor” nos Estados Unidos (afro-americanos, chicanos, porto-riquenhos, asiáticos, indígenas
norte-americanos e qualquer oura raça que não tenha a insípida cor do dinheiro).
Nós também somos “gente de cor” (da mesma forma que nossos irmãos de sangue mexicano que vivem e
lutam na União Americana). Somos de cor “café” porque é a cor da terra e dela tiramos história, força, sabedoria e
esperança. Mas, para lutar, acrescentamos outra cor à nossa cor café: a cor negra. Nós usamos passamontanhas
pretos para mostrar-nos e só assim somos vistos e ouvidos. A cor negra de nossas máscaras foi escolhida pelo
conselho de um ancião indígena maia que nos explicou o que a cor negra representava.
61
O nome deste sábio indígena é Velho Antônio. Morreu nas rebeldes terras zapatistas em março de 1994,
vítima de uma tuberculose que lhe consumiu os pulmões e o alento. Nos disse o Velho Antônio que a cor negra
torna-se luz e que dela nasceram as luzes que povoam os céus do mundo. Nos contou uma história de que, há muito
tempo atrás (nos tempos em que não se media o passar do tempo), os primeiros deuses se dedicaram à tarefa de dar
origem ao mundo. Numa de suas reuniões, viram que era necessário que o mundo tivesse vida e movimento e que
para isso se fazia necessária a luz. Então pensaram de fazer o sol para que dessa forma se movessem os dias, tivesse
dia e noite, tivesse um tempo para a luta e um tempo para o amor e, caminhando com os dias e as noites, o mundo
seguiria o seu curso. Os deuses realizaram sua reunião para chegar a um acordo em volta de uma fogueira muito
grande. Eles sabiam que era necessário que um deles se sacrificasse atirando-se ao fogo para transformar-se assim
no próprio fogo e voar até o céu. Os deuses consideravam o trabalho do sol como o mais importante e assim
escolheram o deus mais bonito para que se atirasse ao fogo e pudesse transformar-se no sol. Mas ele estava com
medo. Assim, o menor dos deuses, aquele que era de cor negra, disse que ele não tinha medo, se atirou ao fogo e se
transformou no sol. Foi então que o mundo teve luz e movimento, teve um tempo para a luta e um tempo para o
amor, que durante o dia os corpos trabalhavam para construir o mundo e durante a noite os corpos se amavam para
encher de resplendores a escuridão.
Foi isto que nos disse o Velho Antônio e esta é a razão pela qual usamos passamontanhas de cor negra. Por
isso, somos de cor café e de cor negra. Mas somos também de cor amarela, porque nos contam que os primeiros
homens que andaram por esta terra foram feitos de milho para que fossem verdadeiros. Somos também vermelhos
porque assim nos ordena o sangue digno; somos azuis por causa do céu em que voamos e verdes pela montanha
que é nossa casa e fortaleza. Somos também brancos, porque somos o papel no qual o amanhã vai escrever a sua
história.

É assim que somos de sete cores porque sete foram os primeiros deuses que deram origem ao mundo. Foi
isto que o Velho Antônio nos falou faz tempo e agora se eu estou contando é para que você possa entender esta
ponte de papel e tinta que chega até você das montanhas do Sudeste Mexicano. E também é para que você entenda
o por que por esta ponte vão pedacinhos de saudações e abraços para Leonard Peltier (que está no presídio de
Leavanworth, Kansas) e para os mais de 100 presos políticos que nos EUA são vítimas da injustiça, da estupidez e
do autoritarismo. Por esta carta-ponte vai caminhando também uma saudação
aos índios Diné (Navajo) que em Big Mountais, no Arizona, lutam contra as
violações sofridas pela religião tradicional Diné por parte daqueles que preferem
os grandes negócios ao respeito da liberdade religiosa dos povos indígenas e
querem destruir as terras sagradas e os lugares de culto (como é o caso da
Peabody Western Coal Company que quer apropriar-se das terras que por razão,
história e direito pertencem ao povo Diné e às suas futuras gerações).
Mas por esta carta-ponte não caminham só as histórias de resistência
contra a injustiça norte-americana. Caminham também os indígenas do extremo
sul do nosso continente. No Chile, as mulheres Mapuches do Centro Pewanche
do Alto Bio-Bio resistem contra a estupidez. Duas mulheres indígenas, Berta e
Nicolasa Quintreman estão sendo acusadas de “maltratar” as forças armadas
governamentais do Chile. E aí você tem que uma unidade militar armada de
rifles, cassetetes e bombas de gás lacrimogêneo, protegida por coletes a prova de
bala, capacetes e escudos, acusa duas mulheres indígenas de “maus tratos”. Mas,
repare que Berta tem 74 anos de idade e Nicolasa 60. Como é possível que duas
mulheres de idade enfrentem um “heróico” grupo de militares fortemente
armados? Porque elas são Mapuches. A história aqui é parecida com a dos irmãos Diné no Arizona e é a mesma
que se repete em toda a América: uma empresa (ENDESA) quer as terras dos Mapuches e, apesar da lei proteger os
indígenas, o governo está do lado dos empresários. Os estudantes Mapuches revelaram que o governo e a empresa
fizeram um estudo de “inteligência militar” sobre as comunidades indígenas Mapuches e chegaram à conclusão de
que eram incapazes de pensar, de defender-se, de resistir e de construir um futuro melhor. Parece que este estudo se
equivocou. O que me ocorre agora é que, talvez, os poderosos da América do Norte também mandaram fazer um
estudo de “inteligência militar” (o que é uma clara contradição, pois os militares não são inteligentes e se o fossem
não seriam militares) sobre o caso dos índios Diné do Arizona, sobre o de Leonard Peltier, sobre o de outros presos
políticos e sobre o seu caso, senhor Mumia. Talvez fizeram este estudo chegando à conclusão de que poderiam
violar a justiça e a razão, agredir a história e fazer perder a verdade. Achavam que poderiam fazer isso tudo sem
que ninguém dissesse nada. Os índios Dinés ficariam parados, olhando a destruição dos elementos mais sagrados
de sua história, Leonard Peltier ficaria sozinho e você, senhor Mumia, seria silenciado (agora lembro que você
disse “Não querem só a minha morte, querem o meu silêncio”).
62
Mas estes estudos estavam errados. Que erro mais feliz! Os índios Diné resistem contra aqueles que
querem matar-lhes a memória, Leonard Peltier é acompanhado por todos aqueles que reivindicam a sua liberdade e
você, senhor Mumia, agora fala e grita com todas as vozes que celebram o seu aniversário, ou seja, lutando.
Não conheço bem o sistema judiciário norte-americano, mas anexo à esta ponte uma carta dirigida à
Suprema Corte da Pennsylvania e ao governador Tom Ridge. Nela peço justiça, não perdão e nem compaixão,
porque os homens que vivem com dignidade não precisam nem do perdão e nem da compaixão de nenhuma
autoridade, precisam apenas de justiça e por ela lutam. Na verdade, espero que esta carta não complique a sua
situação judicial, assim deixo a você escolher se é oportuno ou não que se torne pública e que se faça ou não chegar
a seus destinatários. Inclusive estou enviando outra cópia desta carta-ponte sem este parágrafo para que você decida
o que lhe parece mais oportuno.
Senhor Mumia:
Não temos nada grandioso para dar-lhes de presente pelo seu aniversário, pois o que temos é pouco e
pobre, mas todos lhe mandamos um abraço. Esperamos que quando você saia em liberdade, você possa vir nos
visitar. Então lhe faremos uma festa de aniversário e se não for o 24 de abril, pois então será uma festa de “não
aniversário”.
Teremos música, baile e palavras que são os meios pelos quais os homens de todas as cores se entendem,
se conhecem e constroem pontes sobre as quais caminham juntas a história e o amanhã.
Feliz Aniversário!
Valeu. Saúde, e que a justiça e a verdade encontrem o seu lugar.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, abril de 1999.

P.S. Li em algum lugar que você é pai e avô. Por isso vou colocar aqui um presente para seus filhos e seus netos. É
um carrinho de madeira com alguns zapatistas que trazem seus passamontanhas de cor negra. Diga a seus filhos e a
seus netos que é um presente que lhe foi enviado por nós os zapatistas e, por favor, explique-lhes que têm gente de
todas as cores que, como você, querem a justiça, a liberdade e a democracia para todas as cores.

Carta à Suprema Corte da Pennsylvania

Exército Zapatista de Libertação Nacional

Para: Suprema Corte da Pennsylvania, EUA


Senhor Tom Ridge, Governador da Pennsylvania
Estados Unidos da América do Norte.
De: Subcomandante Insurgente Marcos
México.

Senhor Magistrado e Senhor Governador:


Escrevo-lhes a nome dos homens, mulheres, crianças e anciãos do EZLN. A maior parte de nós é indígena
e lutamos por liberdade, democracia e justiça.
O motivo desta carta é pedir justiça para o caso do Senhor Mumia Abu-Jamal, injustamente condenado à
pena de morte em 1982. Como vocês sabem, o processo judicial contra o Senhor Mumia Abu-Jamal foi infestado
por mentiras e irregularidades: o policial que o acusou mentiu quanto à suposta confissão dele, uma das
testemunhas se retratou e declarou que havia sido obrigada a mentir ou a encarar a prisão, o exame balístico provou
que era impossível que tivesse sido o Senhor Mumia Abu-Jamal a disparar o tiro que matou o policial. Estas seriam
evidências suficientes para a abertura de um novo processo, mas até mesmo este recurso foi negado ao Senhor
Mumia Abu-Jamal. Se o governador e o sistema judiciário da Pennsylvania tem certeza de que o Senhor Mumia
Abu-Jamal é culpado, não temeriam a abertura de um novo processo que se mantivesse fiel à verdade.
Não lhes peço clemência, perdão ou compaixão para o Senhor Mumia Abu-Jamal. Peço justiça, algo que
acredito está em seu poder. Nem a Suprema Corte da Pennsylvania, nem o Governador Tom Ridge tem algo a
perder. Um novo processo pode fazer aparecer a verdade e a justiça que, supõe-se, é tudo o que interessa.È só.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, abril de 1999.
Páginas soltas sobre o movimento universitário
63

Em memória e com gratidão


para Ramón Ramírez (1906 - 1972)
e para aqueles que herdaram dele o sangue e a grandeza.

A rebeldia é a vida,
a submissão é a morte.

Ricardo Flores Magón, 1910.

Já é madrugada nas montanhas do sudeste mexicano. Desta vez o calor desgasta a extremidade ocidental da
lua e as estrelas escondem seu ar sufocante na escuridão. No abril chiapaneco, o calendário mistura e complica suas
folhas às vezes para anunciar solenemente janeiro, mas logo em seguida é maio que se alegra ao sol que durante
fere o que está embaixo dele e depois é outra vez abril a ser marcado e assinalado.
Naquilo que você vê lá embaixo e que parece ser uma casinha ou uma gruta, uma pequena luz denuncia
não só a vela de quem passa a noite em claro, mas também, ainda que com dificuldades, os rabiscos que se
esboçam nas linhas de um velho caderno. Na folha de rosto amarelada pode-se ver a figura de uma águia com duas
cabeças carregando o mapa daquilo que alguma vez (antes que a globalização reagrupasse interesses, injustiças e
crimes) se chamou “América Latina”. Sobre a dupla cabeça, uma faixa exibe o lema: “Pela minha raça falará o
espírito”. Mais embaixo, à esquerda, uma mão ociosa anotou com uma letra grosseira: “SEXZU”. Deixando de
lado estas imagens (e o evidente desgaste que o tempo provocou nas páginas) este poderia ser um caderno
qualquer.
Um vento fraco e repentino cumpre o papel de mão e folheia o caderno com curiosidade. As primeiras
páginas estão em branco e não parece ser por uma maneira desordenada de escrever e sim porque foram deixadas
propositadamente vazias, como se fosse necessário completar as páginas seguintes para, aí sim, poder preencher as
primeiras. O vento continua folheando despreocupado e só pára numa página na qual se lê:

1 - A Universidade como mercado.

Os pobres saberão e se, além do mais, são jovens e estudantes, então saberão por três partes.
Se no passado universitário alguns grupos de esquerda propuseram o conceito de universidade-fábrica, no
presente globalizado são os funcionários da reitoria - com o apoio incondicional de um grupo de intelectuais órfãos
do salinismo e prontos para serem adotados para quem mantenha sempre à mão o cinismo e a carteira - os que não
só concebem a universidade como um mercado, mas também a reorganizam para que funcione como tal.
As intenções mercantis do ex-democrata e químico Francisco Barnés, hoje reitor da UNAM, não são novas.
Já faz anos quando o agora ex-reitor Guillermo Soberón Acevedo procurou acrescentar o critério de produtividade
empresarial à classificação dos estudantes universitários. Na época, a sua proposta foi chamada de Índice de
velocidade e escolaridade e, grosso modo, consistia em acrescentar ao histórico escolar de cada aluno um conceito
que estabelecia se ele havia sido um estudante “bom e veloz” (com boas notas e com os estudos terminados em
pouco tempo) ou um “mau e lento”. Desta forma, argumentava a reitoria, as empresas teriam mais elementos para
avaliar e contratar os que saíam da universidade.
A “carta de recomendação” da reitoria, na verdade, era uma carta de exclusão: Não eram poucos os
estudantes da UNAM que trabalhavam para bancar seus estudos e para sobreviver, não eram “estudantes a tempo
integral” e não poucas vezes a sua “velocidade” ficava abaixo do índice de produtividade que a reitoria desejava (e
deseja) na linha de montagem de profissionais que, de acordo com a sua estreita visão de chefe fabril, deveriam ser
as instituições de educação superior.
Para as empresas, o índice de velocidade e escolaridade cumpria também o papel de “lista negra”: os
estudantes que eram assinalados como “lentos” podiam muito bem ser agitadores que, no lugar de estudar, se
dedicavam a fazer brotar a mobilização. Mas a proposta de Soberón fracassou.
O movimento estudantil parecia ter caído em letargo depois da derrota imposta à greve do STUNAM em
1977, e da entrada triunfal no CU do reitor, flanqueado pelo então general policial e cocainômano Arturo Durazo
Moreno e por 18 mil entre policiais e granadeiros.
[Após uma intensa campanha de descrédito nos meios de comunicação, após o papel ridículo das chamadas
“aulas fora dos muros” (que eram realizadas em parques públicos para que a televisão não tivesse problemas de
iluminação em sua tarefa de demonstrar aos estudantes quanto estavam sofrendo os “autênticos” estudantes,
vítimas de “uma-minoria-que-pretende-transformar-a-universidade-em-um-butim-político-e-se-adverte-que-tem-a-
ingerên -cia-de-pessoas-alheias-à-nossa-máxima-casa-de-estudos-e-os-nossos-grupos-de-inteligência-trazem-
múltiplas-evidências-de-que-já-foi-detectado-se-tratar-de-muita-gente”) e quando o movimento parecia estender-se
64
a outros centros de educação superior, o supremo governo ordenou ao reitor que solicitasse o apoio da “força
pública”. Com a promessa de ser nomeado para uma Secretaria do Estado, o reitor consentiu e impulsionou a
violação da autonomia universitária. Na sétima madrugada do sétimo mês do septuagésimo sétimo ano, a polícia
entrou na Cidade Universitária e, com o argumento racional dos cassetetes e dos gases lacrimogêneos, desalojou,
trabalhadores, professores e estudantes e deteve um bom número deles.]
Mas a consigna de “pela minha raça falarão só os estudantes bons e velozes” levou os estudantes a
iniciarem um movimento de resultados fulgurantes. Soberón voltou atrás e o índice de velocidade e escolaridade
não foi mais colocado no histórico escolar dos que se formavam. O reitor esperou pacientemente para cobrar o
cheque que havia recebido por seus serviços de repressor de greves e o novo mandato de seis anos o acolheu como
Secretário de Estado na área da Saúde.
Naqueles dias, a reitoria se mostrou decepcionada ao ver que não poucos estudantes “bons e velozes”
participaram ativamente do movimento. Isso porque lhe tirava o argumento de que a ela se opunham somente os
frouxos, os grilos e os fósseis.29 E também porque não entendiam a razão pela qual alguém poderia lutar por coisas
das quais não se beneficiaria diretamente. Na concepção de universidade-mercado da reitoria, a moral, a ética e o
dever não só eram (e são) aberrações, como são improdutivas, não são bem cotadas, não vendem.
A proposta Zedillo-Barnés de privatizar a UNAM não tem a ver só com o aumento das mensalidades dos
estudantes, mas diz respeito também aos trabalhadores, aos professores e aos pesquisadores. O critério empresarial
já foi imposto nos institutos do magistério e nos centros de pesquisa. Os critérios científicos e humanistas já não
são usados para avaliar e reconhecer aqueles que trabalham na UNAM dando aula e pesquisando.
Agora é a “produtividade” a decidir as orientações e os resultados, os pesquisadores são obrigados a
competir entre si (assim como se faz nas empresas) para conseguir apoios financeiros e recursos humanos para seus
projetos. Não é mais a sabedoria a ganhar os méritos, e sim o cortejo político-administrativo a funcionários de
diferentes tonalidades de cinza e o provável aproveitamento político que, de acordo com as aspirações de poder do
reitor e/ou de seus incondicionais seguidores, pode ser extraído dos projetos de pesquisa.
(O resultado é previsível: proliferam as elites-máfias de pesquisadores e professores que gravitam em torno
dos funcionários da universidade. Estes grupos “recrutam” novos adeptos: “Quer uma bolsa de estudo? Um
prêmio? Um incentivo econômico? Uma vaga? Fama? Apoio para o seu projeto? Não tem problema, você só tem
que assinar esta moção de apoio ao reitor ou a fulano”. As humanidades e as ciências ficam cada vez mais
distantes. Mas isso não é tudo. O critério de produtividade empresarial e mercantil não só não eleva o nível
acadêmico da UNAM, mas agora o substitui pelo nível de influências e de “contatos” políticos. Pesquisadores e
professores universitários estão sendo substituídos, mas não por melhores cientistas e humanistas e sim por uma
corja de rufiões que são eficientes apenas para multiplicar as caravanas servis a cada passo ou desmando do reitor).
Sem nada que indique um término, a estas linhas seguem outros espaços em branco ou cheios de desenhos
mais ou menos incompreensíveis: um Speedy com passamontanhas preto, cachimbo e um sombreiro mexicano com
três estrelas vermelhas, uma caricatura do Sup com uma meia identificação pessoal (em baixo) coberta por um
letreiro que diz “censurado”, alguns rabiscos. O vento volta a agitar a sua mão e, algumas folhas mais adiante, se
detém em ...

2 - Vladimir Ilich Barnés?

A intenção do mercador Barnés de transformar a UNAM em uma empresa não atenta somente contra a
Constituição, mas quebra o próprio conceito de universidade e propõe “balcanizar” a suprema casa de estudos
mexicana. Um dos perigos do regulamento “opcional” de pagamentos da UNAM é que ele divide os estudantes em
dois tipos: os que pagam e os que não pagam.
Na proposta original de universidade pública existiam espaços de encontro para uma ampla variedade de
linhas de pensamento, origens sociais, cores, interesses e concepções. A UNAM era um deles. No interior do
recinto, você era um estudante universitário, e só. Agora não mais. A proposta é de dividir a UNAM em dois: a
universidade dos que podem pagar e a dos que não podem pagar; a UNAM para os que dispõem de recursos
econômicos e a UNAM para os que não tem recursos ou tem em pequena quantidade.
No que é que está se apostando com esta “balcanização” da UNAM? Que os estudantes que podem pagar
apóiem os critérios empresariais de Barnés? Que os que não podem pagar, pouco a pouco, abandonem a sua
UNAM (ou seja, sua concepção de universidade) para que possa finalmente triunfar o lema: “Pela minha raça falará
o talão de cheques?”
O chamado Regulamento Geral de Pagamentos da UNAM foi imposto da forma mais antiuniversitária:
Barnés convocou seus incondicionais apoiadores, excluiu os conselheiros críticos e se embrenhou num dos recintos
do CU para, protegido por sua equipe de segurança, aprovar o regulamento que detonaria o maior movimento
estudantil dos últimos dez anos.

29
Pelo contexto, provavelmente, as palavras grilos e fósseis são respectivamente, sinônimo de agitadores e comunistas.
65
O reitor Barnés procurou enfeitar, sem sucesso, a sua proposta de privatização. Sustentado pelos
intelectuais de Nexos e Letras Livres, o reitor trata de convencer com suas contradições. Algumas delas?
Diz-se que o Regulamento Geral de Pagamentos procura fortalecer a autonomia universitária. Contando
com recursos econômicos próprios, a UNAM terá uma maior independência do governo federal. Quase logo em
seguida, diz-se que os pagamentos são opcionais, de acordo com a situação econômica de cada estudante. Quem
quiser pode declarar com toda liberdade que é pobre e, neste caso, o regulamento não será aplicado. Assim, as
novas mensalidades serão pagas somente pelos estudantes que dispõem de recursos econômicos e manifestam
explicitamente que gozam de prosperidade econômica. Mas, se o objetivo é dotar a universidade de recursos
econômicos próprios, pra que serve um regulamento de pagamentos que não obterá recursos econômicos
suficientes? Será que Barnés planeja promover, sobretudo, a entrada de estudantes que pertencem às famílias ricas
ao mesmo tempo em que irá limitar ou desencorajar o acesso de estudantes que tem poucos recursos? Por onde for
que a gente olhe, a questão, o que está em jogo na proposta de Barnés é a privatização da UNAM, começando com
a separação dos estudantes em duas classes: os que podem e os que não podem pagar.
E tem mais. O ridículo não fica só por conta do reitor. É também dos intelectuais salinistas (entusiasmados
pelo reaparecimento de seu tutor) que saem argumentos que assustam por sua estupidez e falta de fundamento. É do
pensamento mais conservador do país que sai a acusação contra os estudantes que se opõem ao aumento das
mensalidades: de favorecer os burgueses e prejudicar o proletariado! Com a comicidade fornecida pelo servilismo,
estes intelectuais descobriram uma face do reitor Barnés da qual ninguém suspeitava: é um revolucionário radical
que se propôs a acabar uma vez por todas com os privilégios dos burgueses que mandam os seus filhos para a
UNAM (supõe-se que seja para evitar o pagamento das mensalidades em outras instituições). Assim, Barnés
poderia muito bem sem comparado a Vladimir Ilich Lenin. “O reitor é um revolucionário e os que se opõem ao
pagamento são reacionários”, dizem, sem sequer ficar vermelhos de vergonha, estes livres pensadores (que não são
nem livres e nem pensadores). É da direita mais estéril e sectária vêm estes argumentos, brandidos depois de tirar o
pó dos seus manuais de materialismo histórico e dialético em versão poliéster.
Mas isso não é tudo. Além de fazer-nos o grande favor de advertir-nos que, ao opor-se à proposta Zedillo-
Barnés os estudantes se opõem ao avanço da ampla luta do proletariado por sua emancipação, nos convidam a
perceber que os telefones celulares podem muito bem converter-se em bastões de Kendo, e que, a qualquer
momento, estes estudantes avançarão contra as boas consciências ao grito de “Vigaristas!”.
A madrugada continua caminhando solitária. O calor parece ter feito cochilar o vento que leva um tempo
sem mexer-se. Mas algum sonho o acorda e são de novo os seus dedos suaves os que viram a página para
encontrar-se com...

3 - Toda oposição ao poder é, por lei, minoritária, manipulada e perversa.

O locutor da televisão está inspirado. Volta e meia faz questão de frisar que o movimento estudantil é
minoritário e é culpado por tudo: que o cavalo com a perna fraturada seja “violentamente expulso pelos
veterinários”; que o motorista atropele alguns membros da marcha (“pois ficou nervoso perante a agressividade dos
manifestantes”); que em Kosovo a OTAN confunda trens de refugiados com transportes blindados; que Albores
tenha esgotado o orçamento na compra de bolachas pra cachorro e de “desertores” zapatistas com uniformes
novinhos em folha.
Para que ninguém duvide da legitimidade do seu trabalho “jornalístico”, já estão enviando câmaras e
microfones ao inquilino do Bucareli. A imagem fala por si só: um Labastida patético trata de nos convencer que
seus “serviços de inteligência” servem para alguma coisa e são inteligentes. “Já desmascararam muita gente”
garante o Secretário de Governo e maltrataram (nas pesquisas) o pré-candidato do PRI à Presidência da República.
A televisão, objetiva e imparcial como ela é, mostra imagens de uma minoria bastante numerosa e a câmara,
acusadora, procura todo aquele que não tem cara de estudante (como é que é mesmo a cara de um estudante?).
O ainda ministro do interior mexicano tem que fazer algo para recuperar o terreno perdido nas pesquisas
(que apontam que o governador de um Estado passou à sua frente enquanto ele fazia “manipulação de imagens” na
Espanha), e ao acusar o PRD de estar por trás do conflito da UNAM garante as oito colunas dos jornais do dia
seguinte.
Inutilmente, tanto ao nível do governo como dos partidos políticos, procuram-se lideranças já conhecidas
no atual movimento da UNAM. Mas, além de descobrir que alguns usam telefones celulares (quando, supomos,
que para comunicar-se deveriam usar sinais de fumaça ou tambores), tem mãe e avó (e também tem árvore
genealógica), não aparecem os que, se supõe, deveriam aparecer.
A classe política não só nega-se a reconhecer que está diante de algo novo, vigoroso e que se expande cada
vez mais. Mas também não percebe que as velhas gerações de líderes estudantis tiveram que ceder não só diante do
avanço de outros jovens estudantes como também de outra forma de fazer política e de outra forma de “ser
direção”.
66
As direções individuais ou de grupo cedem o lugar a direções diluídas em coletivos. A presença de um
determinado delegado que pertence a um determinado grupo político não significa que a posição deste grupo seja
homogênea. Com maior ou menor intensidade, é evidente que os diferentes coletivos “submetem” seus delegados e
os obrigam a ser isso mesmo, “delegados”, e não “dirigentes”.
Se a presença de antigas lideranças estudantis nas mobilizações de hoje é um sinal de nostalgia, é
compreensível. Caso signifique alardear aquilo que não se tem (ascendência moral ou política sobre o movimento
atual), é questionável. Caso represente uma tendência a tratar de entender algo novo e aprender com ele, deve ser
saudado. E já. Mas, seja como for, estes líderes e seus herdeiros são ultrapassados por todos os lados por uma
geração de jovens estudantes que, surpresa (!), são rebeldes, desafiadores, irreverentes, engenhosos, criativos,
desconfiados, críticos, questionadores, valentes, enfim, tudo aquilo que lhes prevê muitos problemas no mundo
neoliberal que lhes prometem e no cinza entediante da política mexicana.
De fato, atrás deles não há outras forças políticas. E é uma pena porque os partidos e as organizações
políticas aprenderiam muito destes e destas jovens. Não só o frescor, a imaginação e a criatividade. Mas também, e,
sobretudo, a honestidade de quem arrisca o pouco que tem para ser coerente com suas idéias.
O vento segue folheando e olhando o velho caderno. Uma rajada o leva onde se lê...

4 - A seção de ossos e bolachas pra cachorro: Labastida-Barnés e Labastida-Albores.

É por detrás da reitoria que encontramos outras forças políticas. As forças que disputam a candidatura
priista em grande estilo para o ano 2000 já estão aí. E acontece que um dos pré-candidatos já está montando a sua
equipe. De campanha? Não, de governo!
O senhor Francisco Labastida Ochoa, autodenominado pré-candidato do PRI à Presidência da República,
ofereceu a Secretaria do Bucareli a Albores Guillén, caso o atual secretário de governo chegue a Los Pinos. 30 Não
sabemos se Labastida quer Albores no governo para que cuide da porta de entrada com seus ferozes latidos ou para
perseguir os gatos, mas em Tuxtla já reina um grande entusiasmo por esta idéia e o feroz ativismo de Albores,
dizem os seus empregados da comunicação social, é porque ele quer demonstrar a Labastida que escolheu bem o
seu futuro ministro do interior.
[Em algum lugar, lê-se que o diretor da Faculdade de Veterinária tirou os animais muito tempo antes do
estouro da greve. Talvez algum cachorro escapou ao zelo do diretor. Isso explicaria o aparecimento de Albores em
Tuxtla. Atenção: checar as datas e ver se a da saída dos animais da Veterinária coincide com a da posse de
Albores].
O reitor Barnés também quer o seu osso. Dando os primeiros passos na privatização da UNAM, ele se
encaminha rumo à Secretaria de Minas, Energia e empresas Estatais com um legado igualmente “revolucionário”: a
privatização da Petróleos Mexicanos.
Talvez, tem razão os que garantem que por trás do conflito da UNAM existem outros conflitos que
esperam ser resolvidos. É isso que parece ser quando se considera que a disputa pela UNAM, a sua privatização
versus o seu caráter público, é outra forma de luta entre aqueles que querem destruir uma nação colocando-a à
venda e aqueles que resistem sabendo que todos os esforços inovadores passam hoje pela oposição à nova
campanha de privatizações do governo mexicano.
[É e será importante a luta do Sindicato Mexicano dos Eletricitários contra a privatização do setor elétrico e
os esforços da Coordenação Intersindical Primeiro de Maio para construir uma frente nacional de resistência não só
contra as privatizações, mas também contra todo o programa econômico do governo. Atenção: na marcha do
próximo 1º de Maio confluem e se encontram operários, estudantes e indígenas. Muito amanhã em muitos rostos,
em muitos passos].
Está quase amanhecendo quando o vento toma o último impulso noturno. A morna mão de ar chega assim
a...

5 - Não tem final... ainda.

Com certeza, o desfecho do atual movimento universitário permanece incerto. A caprichosa moeda da
história ainda dá voltas no ar, atrasa sua queda ao chão e, de conseqüência, a sua definição.
Mas, ainda que não se conheça o final, algo já está claro: estes e estas jovens estudantes demonstram com a
sua luta que o Poder fracassou. Que o triunfo daquele que se vangloriava ao apontar uma geração cujas bandeiras
eram apenas as do ceticismo e do conformismo não passava de uma ilusão. Estes e estas jovens estudantes
demonstram a derrota dos que apostaram no seu imobilismo e no seu egoísmo.
Eles e elas não enfrentam só a estupidez de um reitor, o servilismo da máfia que governa a UNAM, o
ataque sem piedade dos meios de comunicação eletrônica, as ameaças de um secretário de governo que,

30
Los Pinos: sede do governo federal.
67
desesperado, procura recompor a sua carreira presidencial demonstrando que é mais imbecil do que os outros. E
enfrentam também a incerteza do amanhã...
[Apresenta-se agora o fenômeno “esponja”: cada novo golpe desferido contra os estudantes não só não os
debilita, como faz com que mais gente se some à sua causa. Foi assim com a jogada de Barnés que “aprovou” o
regulamento às custas da razão e da comunidade universitária e se repetiu com as correrias e os gritinhos histéricos
dos diretores das faculdades de Medicina, Direito e Veterinária e com cada nova mentira que aplicam ao
movimento].
O inimigo que se opõe aos estudantes não é pequeno e nem está sozinho. Mas eles não estão sós. Ainda que
longe em termos de distância, nós zapatistas não escondemos a admiração que nos causam os estudantes, nos
empenhamos a aprender bem a lição extracurricular que nos dão, nos orgulhamos de saber que existem pessoas
como eles e como elas e saudamos o fato que seja o solo mexicano a surpreender-se em vê-los. Isto porque é
através de jovens estudantes como estes homens e mulheres que, hoje, dizer-se mexicano é um orgulho e não uma
vergonha.
Os sentimos perto, e não só pelas acusações que lhes fazem e as mentiras com as quais os atacam,
repetindo as que lançaram contra nós em outras ocasiões. Mas, também, e, sobretudo, porque neles e nelas intui-se
que é possível um outro México, uma outra política, um outro ser humano, não perfeito, mas, isso sim, melhor...
O vento fecha o caderno e pára de soprar, e não olha para a linha onde a outra mão rabiscou:
Valeu. Saúde, e a Universidade, como a nação, ou é para todos ou não é.
Do Comando Central da SEXZU (Sociedade de Ex-alunos Zapatistas da UNAM), sem nenhum celular, e
vendo com temor que se aproxima o dia 10 de maio e nós não temos árvore genealógica (ou seja, para deixar bem
claro, não temos mãe e nem avó).
Observação: como agora ficará evidente aos inúteis e estúpidos serviços de inteligência da Secretaria de
Governo, a sede da SEXZU estará localizada num canto do sex shop mais próximo do seu coração (?) e a entrada
secreta será ativada por um vídeo pornô que faz brilhar, ininterruptamente, o número “69” na fachada.
O Sup escrevendo para a Faculdade de Veterinária para pedir que mandem vacinas anti-rábicas a Tuxtla
Gutierrez, Chiapas. Urgente!
A manhã já vem chegando. O sol é outra vez pele e mel sobre a terra... Valeu. Saúde, e como é que fazia
aquela música de Violeta Parra? Gosto dos estudantes, jardim da nossa alegria, são aves que não se assustam com
Barnés e Labastida... ? Não é assim? Bom é como se fosse...

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, 27 de abril de 1999.

Os zapatistas e a maçã de Newton


México, maio de 1999.

“A cobra
quebrou o espelho
em mil pedaços
e a maçã
foi a pedra”

Federico Garcia Lorca

Agora a lua é uma maçã mordida. Entre as montanhas, a fornalha ardente de maio arrancou-lhe o vestido
de madrepérola, pintou-a de vermelho, e um vento negro, de ocidente, age sobre ela com mordidas sensuais.
Envergonhada, a lua segue o seu caminho, maçã vermelha de pudor, com a anágua arregaçada, um pouco
pelo desejo, um pouco pelo calor e outro tanto para que possa apressar melhor o seu passo.
Umas nuvens antes e uma chuva depois, vem ocultar sua envergonhada aflição.
Talvez não seja necessário dizê-lo, mas é madrugada entre as montanhas do sudeste mexicano. Lá
embaixo, uma figura obscura cuida da vela e, entre as nuvens que se formam, seus lábios murmuram:

“Há montanhas
que querem ser
de água.
E se inventam estrelas
68
sobre as costas.
E há montanhas
que querem ter
asas.
E se inventam as nuvens
brancas”.

Federico Garcia Lorca

Um pouco mais longe, a realidade se agita e se renova com um vento repentino de homens e mulheres de
tamanhos diferentes, de cores diversas, de todos os rostos, de muitos nomes. Dizem que vem para encontrar-se
ainda que nenhum deles pareça estar perdido.
Alguma coisa do ar que começa a viver na realidade chega até ao estranho aposento da obscura sombra e
inquieta a vela que estava sendo cuidada fazendo as sobras engrandecerem. A figura de sombras respira fundo ou
suspira, reinventa nuvens brancas e, com as estrelas nas costas, relembra, faz voltar à memória...

1. A aposta.

Estamos no México e o ano de 1999 corre frenético. No calendário, maio é o novo tirano, mas novembro,
clandestino e vestido de chuva e de negro, colou a ele para exigir somas e sobras na já complicada conta da
resistência e da esperança coletivas.
E para fazer as contas é necessário fazer encontros. E entre os dois, aquilo que inquietou novembro e que
agora não deixa maio dormir, tivemos muitos outros. Pequenos e grandes, públicos e discretos, breves e
prolongados encontros entre os que estão desencontrados pelos tempos políticos que de cima põem e impõem
prioridades, agendas, temas e situações ridículas.
Todos estes encontros, encontrinhos e encontrões tiveram e tem como razão e motor a Consulta pelo
Reconhecimento dos Direitos dos Povos Indígenas e pelo Fim da Guerra de Extermínio, inicialmente convocada
pelo EZLN e quase imediatamente apropriada por um movimento muito mais amplo e profundo.
Na chamada Quinta Declaração da Selva Lacandona, os zapatistas convocaram uma mobilização para
reivindicar o reconhecimento dos direitos dos primeiros habitantes destas terras e para exigir que se parasse
totalmente a guerra de extermínio dos indígenas levada adiante pelo governo (e cuja nova fase foi inaugurada, a
sangue e fogo, por Ernesto Zedillo na madrugada de 22 de dezembro de 1997 na comunidade Acteal 31).
Decidido a levar adiante a guerra e tendo abandonado todo compromisso real com o diálogo e a solução
pacífica do conflito, o governo Zedillo havia enterrado os Acordos de San Andrés com o descumprimento da sua
palavra. Os zapatistas se dirigiram então aos que estavam ao seu lado e propuseram outro diálogo, aquele que deve
e pode acontecer entre iguais, com respeito e dignidade.
Acostumados ao complicado jogo de lançar no ar a moedinha, com a convocação da Consulta os zapatistas
não estavam apostando pouco diante do Poder.
Os poderosos do México apostaram que o EZLN já havia perdido a sua capacidade de convocação, que
(como, para eles, é um mero elemento de mediação) os zapatistas haviam perdido presença nos meios de
comunicação e, finalmente, no pensamento e no coração das pessoas, que o esquecimento havia conseguido
recuperar novamente o seu reino de cômodo ceticismo e de cinismo cruel, e que a política, que lá no alto é feita
pelos políticos de cima, não teria rivais capazes de disputar com ela a atenção e a relevância.
Os zapatistas, estes perversos apostadores do impossível, jogaram todas as fichas nas pessoas que são como
eles e estas chamaram outras. Apostaram que ainda tinham um lugar no peito, nas entranhas e na cabeça de muitos,
que o esquecimento havia perdido a derradeira batalha contra a memória e que era possível e necessária outra
forma fazer política.
Todos os dias, de novembro a março, a aposta se renovava. O Poder colocou sobre a mesa policiais e
exércitos, partidos políticos, formadores de opinião, canais de televisão e estações de rádio, jornais e revistas,
funcionários de diferentes tons de cinza e dinheiro, muito dinheiro. Os zapatistas não tinham nada a colocar que já
não tivesse sido apostado naquela primeira madrugada do ano de 1994.
Mas isso foi antes, quando a morena mão dos zapatistas lançou ao ar a moeda da Consulta, apostando
(como sempre) tudo o que tinham.
Nesta madrugada de maio, novembro veio exigir resultados, respostas.
Águia ou sol? Cara ou coroa? Acima ou abaixo? Quem ganhou e quem perdeu na mesa de jogo que é o
México da primeira metade de 1999?

31
Refere-se ao massacre de Acteal no qual foram assassinados 45 indígenas pela mão de um grupo paramilitar conhecido como “Máscaras
Vermelhas”.
69
2. A mesa.

Depois de um início desastroso, os capitais estrangeiros conseguiram recompor momentaneamente a


macroeconomia nacional. A bolha econômica que tanto entusiasma as ratazanas financeiras mexicanas é inflada
pelo dinheiro que espera multiplicar-se, sem se importar com os escombros que os seus lucros vão nos deixar no
dia seguinte.
A elevação dos preços internacionais do petróleo (tão firme e duradoura como pode ser um acordo da
OPEP), para o governo mexicano, representa uma reserva monetária estratégica que não será usada, isso não!, para
resolver os problemas mais prementes da economia nacional. O destino deste dinheiro será outro: as eleições
presidenciais do ano 2000. Enquanto isso, se mantêm e se aprofundam os cortes no orçamento e, com eles, o
desemprego e a alta dos preços.
Se alguém se pergunta porque um orçamento federal, traçado num momento de baixa dos preços do
petróleo, não é reajustado “para cima” quando estes preços se elevam, não vai encontrar uma resposta. Agora, urge
fortalecer o “pequeno caixa” que será a principal “plataforma política” do futuro candidato do PRI à Presidência da
República.
Estas aves de rapina e migratórias, que são os capitais financeiros internacionais, vieram fazer seus ninhos
em terras mexicanas. Mas isso é só por um momento. A sobrevalorização do Peso mexicano e a queda nas taxas de
juros são bons alimentos para estes parasitas, mas só podem ser digeridos com proveito se a bolha estoura. O lucro
é obtido da quebra e não da estabilidade. Assim, a bolha, na qual se embebedam Zedillo e o seu gabinete, está
sendo inflada com o claro propósito de fazê-la estourar.
Na Bolsa de Valores Mexicana, as ratazanas festejam e, bêbadas da aparente bonança, esquecem do
principal: o lugar da festa é uma ratoeira, é claro que de fino cristal multicor, mas, no fim das contas, é uma
ratoeira.
Mas, se sobram recursos para a bolha econômica, para inflar a bolha política o sistema político mexicano
tem os pulmões esgotados. Empenhada em fazer de 1999 o seu ano, a classe política mexicana não conseguiu outra
coisa a não ser convertê-lo no ano do seu nu mais grotesco.
Mas, atenção!, a maçã podre do Poder está em disputa.
Encabeçando todos os ridículos, sem ninguém que tenha estatura suficiente para disputar com ele o centro
da estupidez, está Ernesto Zedillo Ponce de León. Durante mais de quatro anos tentou, inutilmente, enganar a todos
com o conto de que ele governa este país, e agora insiste com algo mais incrível: não designará o candidato do PRI
à Presidência para o ano 2000.
Muito abaixo do novo rei do humorismo cinza, os partidos políticos disputam entre si o segundo lugar.
O PRI reafirma a sua vocação de bando criminoso (sequer podemos dizer de “crime organizado”, porque
estão bastante desorganizados), no qual o novo chefe está cada vez mais convencido de que deverá repetir a dose de
sangue de 199432 para poder controlar as cada vez mais freqüentes rebeliões das facções.
O PAN, preso entre o pragmatismo que duplica poderes (o da direção do partido versus o dos congressistas
do partido), declara-se indignado porque não se cumpre o que foi combinado... enquanto pactua um novo acordo.
O PRD, com o jeito de quem se diz vítima de uma conspiração, esquece que os golpes mais doloridos e
definitivos vieram... do seu próprio meio.
Para este decadente strip-tease de intenções, a classe política conta com a valiosa colaboração de um bom
número de meios e comunicação. Uns e outros nos repetem: este é o ano da classe política, isto é o mais
importante, esta é a única coisa importante, a única coisa, isto é, isto.
Mas, enquanto os apostadores vão se desfazendo de suas jóias, a depender deles estarem ganhando ou
perdendo, esquecendo que já não está se discutindo o rumo de um país e sim a cor da bandeira que enfeitará a
catástrofe no minuto final, outros tem chegado a incomodar (com a sua presença e pelas propostas que fazem),
tirando do seu eixo o joguinho sossegado da velha política mexicana.
Alguns destes outros, usam capacetes de eletricitário, vestem uniformes de eletricitário, falam como
eletricitários e até tem uma pequena insígnia que diz “Sindicato Mexicano dos Eletricitários”, de tal forma que
temos que supor que estes outros são trabalhadores do setor elétrico. Mas estes outros, no lugar de revisar as luzes
multicores que enfeitam a passarela política, colocaram sobre a mesa de apostas um rotundo NÃO. “Não ao que?”,
se perguntam os que, diante da mesa, se despojam de suas últimas jóias. “NÃO à privatização do setor elétrico”
respondem estes outros que são trabalhadores eletricitários e, ao dizer isso, dizem também: “NÃO à venda da
soberania nacional”, “NÃO à mentira”. E não sei se eles sabem, mas acredito que saibam, que ao dizer este NÃO,
estes outros dizem SIM ao amanhã.
Na mesa ainda perdura o desconcerto provocado pelo NÃO dos eletricitários quando aparecem outros que,
sem mais nem menos, plantam outro NÃO. Estes outros se vestem como estudantes universitários, falam como
estudantes universitários e mais de um deles tem uma pequena insígnia com uma águia de duas cabeças e a legenda
32
Refere-se ao assassinato de Luis Donaldo Colossio, Candidato do PRI às eleições presidenciais de 1994, ocorrido a mando do ex-
presidente Carlos Salinas de Gortari, também do PRI.
70
“Por minha raça falará o espírito”, assim que é de supor que estes outros são estudantes universitários. Mas, no
lugar deste outros solicitarem a permissão para entrar aos partidos políticos que se encontram congregados ao redor
da mesa, adiantam o seu NÃO à instável torre de apostas. “Não ao que?”, perguntam-se os que estão à mesa com
suas carnes expostas. “NÃO ao Regulamento Geral de Pagamentos”, respondem estes outros que são estudantes
universitários, e, ao dizer isso, dizem também “NÃO à privatização da UNAM”. E não sei se eles sabem, mas
acredito que saibam, que ao dizer este NÃO, estes outros dizem SIM ao amanhã.
Os que chegam agora são uns teimosos, incômodos, transgressores da lei, e, além do mais, são baixinhos e
morenos. Vestem-se como indígenas, falam como indígenas e tudo leva a crer que são indígenas. Estes, no lugar de
oferecer seus artesanatos aos apostadores ou de perguntar-lhes se têm algo lhes oferecer, mostram em suas mãos
um NÃO rubro-negro. “Não ao que?”, perguntam os que estão à mesa já sem roupa nenhuma. “NÃO à guerra de
extermínio”, respondem estes outros que são indígenas e, ao dizer isso, dizem também “NÃO ao esquecimento da
história”, “NÃO à mentira”. E não sei se eles sabem, mas acredito que saibam, que ao dizer este NÃO, eles dizem
SIM ao amanhã.
Outros ainda vão se somando e sentam à mesa. Adiantam apostas e os NÃO se multiplicam de forma
alarmante (para os velhos políticos velhos) e, com um pouco de matemática elementar, pode-se adivinhar o
resultado e já é possível ver que os NÃO estão ganhando. Um frêmito percorre os velhos apostadores de flácidos
esqueletos que, então, recolhem suas roupas e vão embora gritando: “Conspiração!”, “Mãos estranhas!”,
“Politização!”, “Intolerância!”.
Lá em cima, longe de tudo e de todos, novamente escondidos, os cinzas da política mexicana retomam a
luta pela bichada maçã do poder.
Sem os velhos apostadores, os eletricitários, os universitários, os indígenas e os muitos outros que a eles
vão se somando, decidem que sua aposta já está de bom tamanho e que chegou a hora de falar e de falar-se, de
escutar e de escutar-se, e todos começam a falar-se e a escutar-se e não sei se eles se entendem sobre tudo, mas já
se aprecia uma gostosa bagunça e os inteligentes “serviços de inteligência” de Labastida estão atentos e correm a
informar o seu superior de que tem uma “força estranha” por trás destes movimentos e o secretário de Governo,
com o rosto rígido pela gravidade do momento (e pela plástica com a qual espera recuperar pontos nas pesquisas),
pergunta:
- Quem é?
Os inúteis e tolos “serviços de inteligência” respondem com satisfação:
- A história.

3. A Consulta: as contas possíveis.

A Consulta zapatista tinha como base quatro perguntas no âmbito nacional e cinco no internacional.
O questionário foi desqualificado por parte do governo e de não poucos confusos (entre os quais destacam-
se alguns membros da COCOPA33). Disseram que as perguntas eram “maquiadas e enganadoras” e que a resposta
afirmativa já estava implícita na forma de fazer o questionário.
Os resultados do dia 21 de março demonstraram que não era assim. Não foram poucas as pessoas que
responderam que NÃO se devem reconhecer os direitos dos povos indígenas do México, que NÃO se devem
cumprir os Acordos de San Andrés, que o exército NÃO deve ser recolhido de volta aos quartéis e que NÃO se
deve mandar obedecendo. As perguntas eram tão abertas que pessoas como Dolores de la Vega, Sérgio Sarmiento,
Hector Aguilar Camin e Henrique Krauze, para mencionar somente quatro escritores do mesmo coeficiente
intelectual, poderiam ter respondido NÃO ao questionário. O mesmo poderiam ter feito tantos outros como Ernesto
Zedillo, Carlos Salinas de Gortari, Francisco Labastida e Mario Villanueva, para citar somente quatro membros do
PRI com as mesmas qualidades morais.
Como foi demonstrado pela campanha do governo e dos meios de comunicação contra a Consulta zapatista
e pelos resultados do dia 21 de março, não só o racismo está presente no México, como também se tornou evidente
o fato de que não é algo que possa ser associado ao baixo nível de renda ou de cultura, e que, na verdade, ele é uma
doutrina para uma parte significativa das altas esferas políticas e culturais.
Com estas perguntas, os zapatistas não só se mostraram dispostos a ouvir aqueles que entendem e pensam
que este país tem um futuro diferente e melhor, como também os que sustentam que não há nada melhor do que o
presente e que nenhuma mudança a ser proposta deixará de ser “enganosa e maquiada”.
Parte da grande mobilização e do próprio movimento, do grande coletivo que realizou a Consulta nacional
e internacional tem aspectos que podem ser quantificados:

Brigadas no México: 2 mil 358.


Brigadistas no México: 27 mil 859

33
COCOPA: Comissão de Concórdia e Pacificação.
71
Outros países onde foi divulgada a Consulta: 29
Brigadas em outros países: 265
Delegados zapatistas no México: 4 mil 996
Total de municípios visitados no México: mil 299
População com a qual se entrou em contato no México: 64 milhões 598 mil 409
Número de organizações políticas e sociais contatadas no México: mil 141
Pessoas envolvidas, no México e sem contar Chiapas, na organização e realização da Consulta: 120 mil.
Mesas de votação e assembléias: 14 mil 893
Votos no México: 2 milhões 854 mil 737
Votos em outros países: 58 mil 378.

4. A Consulta: as contas impossíveis.

Mas as perguntas sobre as contas da parte mais importante da Consulta não terão respostas.
O que significa que uma organização cercada, perseguida, hostilizada e atacada por meios militares,
políticos, ideológicos, sociais e econômicos pode preparar 5 mil de seus membros para romper o cerco militar e
cobrir os 32 Estados da Federação Mexicana?
Que força política, social e cidadã é necessária para recolher estes 5 mil transgressores da lei entre as
montanhas do sudeste mexicano e
levá-los a todos os cantos do
México?
Como foi possível
celebrar o mais gigantesco
exercício de diálogo do qual se
tenha conhecimento na história
deste país?
O que tem no coração
destes homens, mulheres, crianças
e anciãos que desafiaram ameaças,
mentiras e riscos para encontrar-se
frente a frente com os zapatistas,
viajar com eles, comer com eles,
dormir com eles, falar com eles,
perguntar com eles, responder
com eles, caminhar com eles? 34
Onde ficou o medo de
comprometer-se, de participar, de
ser ator e não espectador?
O que moveu dezenas de milhares de mexicanos e mexicanas no território nacional e no exterior a levantar
a bandeira da Consulta não só sem receber pagamento algum, como, aliás, tendo que colocar dinheiro do seu
próprio bolso?
Como computar a dignidade, o dever, a memória e o empenho de todos e todas estes e estas operários,
operárias, camponeses, camponesas, indígenas, estudantes, punks, rapazes de bando, ativistas políticos e sociais,
membros de organizações não governamentais, artistas e intelectuais, homossexuais e lésbicas, comunidades
eclesiais de base, sacerdotes, monges, bispos, aposentados e pensionistas, endividados, homens, mulheres, crianças,
anciãos, jovens?

5. Pesos e balança.

Na balança de apostas do México de fim de século, o prato direito sustenta o peso do sistema político
mexicano. A maçã putrefeita do Poder, que verte sangue e lodo, inclina perigosamente a balança da história para
um lado.
Desesperada, a lua da realidade se deixa cair e coloca o seu peso no prato esquerdo da balança a ponto de
cair. Algo equilibra o seu gesto, mas não é suficiente para que a balança se incline rumo aonde deve, ao amanhã.
A noite mexicana transcorre num equilíbrio instável e ainda ameaça cair.
34
Durante o trabalho de divulgação da Consulta, não foram pouco os prefeitos e os representantes dos corpos de polícia e do judiciário que
procuraram criar um clima de medo afirmando que aqueles que participariam da Consulta seriam considerados zapatistas e, de conseqüência,
poderiam ser objeto das mesmas acusações e sanções legais. Além disso, várias delegações foram vítimas de ataques e ações repressivas ou
intimidatórias.
72
É claro que a história seria outra se outra maçã se somasse à lua...

6. Outra maçã, outra política.

Adão comeu a maçã


da virgem Eva.
Newton foi o segundo Adão
da Ciência.
O primeiro conheceu a beleza.
O segundo um Pegaso
carregado de correntes.

E não foram culpados.


As duas maçãs eram
rosadas.
E novas
mas de lenda amarga.
Os dois seios cortados
da menina inocência!

Federico Garcia Lorca

Cientistas, politólogos, formadores de opinião, chefes de seitas políticas grandes ou pequenas tem se
reunido em volta da queda da maçã de Newton. Todos eles analisam, discutem, comprovam. Levam horas, dias,
semanas, meses, anos inteiros. Finalmente chegam à conclusão irrefutável: a maçã caiu porque assim manda a lei
da gravidade. Não tem jeito, a maçã deveria cair e, ao fazê-lo, não faz outra coisa a não ser sujeitar-se ao realismo.
Os politólogos se alegram e já iniciam grandes ensaios para mostrar a maçã de Newton como exemplo da real-
politik. Os chefes de Estado discutem a possibilidade de erguer-lhe um monumento diferente em todos os palácios
do Poder.
Mas, entre a multidão reunida em torno do futuro monumento à política moderna, tem uma personagem
estranha. Parece uma sombra sem rosto e sem nome. Se lhe perguntassem quem é, a sombra responderia:
“zapatista”; mas ninguém lhe pergunta nada. Estão todos muito atarefados com contas, planos e pratos.
Mas, enquanto os cientistas fazem cálculos complexos sobre a velocidade, trajetória, massa, aceleração,
resistência eólica, impacto e coisas parecidas, e enquanto os politólogos reescrevem Maquiavel e discutem preços
com os modernos príncipes, o zapatista se aproxima da maçã, a olha, a cheira, a toca, a escuta ...
O zapatista entende o que a maçã lhe sussurra ao ouvido. Entende o desafio que o clamor reivindica. A
maçã diz que não é o destino que lhe ordena de cair por terra e, como quem a escuta é um transgressor da lei, que
se trata de transgredir a lei da gravidade.
A maçã é uma maçã, mas, antes de qualquer coisa, é uma dama. O zapatista é sem rosto e sem nome, mas,
antes de mais nada é um cavalheiro. Eis que aparecem papel e caneta, a maçã explica e o zapatista ouve e consente.
Outro é o destino desta maçã que Newton prendeu ao chão. A lua é uma maçã. É de duas maçãs que a
história precisa para mostrar-se bem ao amanhã.
Enquanto consegue decifrar o vôo inverso da maçã de Newton, o zapatista volta a olhar a maçã, a cheira, a
toca, e, sem nada mais, lhe dá uma tenra mordida.
Os politólogos continuam repetindo e repetindo-se a real-politik e os etceteras que já enchem as capas das
revistas, dos jornais e os tempos no rádio e na televisão.

O zapatista continua fazendo contas. Cair para cima, este é o mistério que se propôs a resolver...

7. O convite.

Irmãos e irmãs:

Em nome dos homens, mulheres, crianças e anciãos do Exército Zapatista de Libertação Nacional lhes
damos as boas-vindas à La Realidad e queremos dizer-lhes que este é o nosso convite para este encontro:
Os convidamos a juntos descobrirmos e aplicarmos a lei que devolve a maçã de Newton à sua vocação
original que, evidentemente, depois de ceder ao assédio de lábios, dentes e língua, não é outra a não ser a de cair
para cima e de chegar ao céu, que é aonde devem estar sóis, luas, estrelas e todas as maçãs mordidas pela história...
73
Valeu. Saúde e levamos ao conhecimento do supremo governo que um estrangeiro se enfiou neste
encontro e, transgredindo as leis, participou dele. O seu nome? Federico. Seus sobrenomes? Garcia Lorca. Tem se
disfarçado de morto e escondido nas páginas de um livro chega quando “... sobre as telhas de ardósia /o vento,
furioso, morde”.35

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos.
México, maio de 1999.

Encerramento do 2º Encontro entre o EZLN e a Sociedade Civil

México, 10 de maio de 1999.


Madrugada!

Irmãos e irmãs:
É maio e a madrugada anuncia calor e rubor. Mas não é deste maio e nem desta madrugada. É este maio e
esta madrugada, mas de 10 anos atrás. A luz do fogão pinta luzes e sombras nas paredes da choça do Velho
Antônio. Já faz um tempinho que o velho Antônio está em silêncio, olhando somente para dona Juanita que olha
suas próprias mãos.
Estou de lado, sentado diante de uma xícara de café. Cheguei faz tempo. Vim trazer ao Velho Antônio o
couro de um veado para ver se ele sabia e podia curti-lo. O Velho Antônio havia dado apenas uma olhada àquela
pele e continuava olhando dona Juanita que olhava suas próprias mãos. Estavam esperando algo. Quer dizer, o
Velho Antônio esperava algo de tanto olhar para dona Juanita e dona Juanita esperava algo de tanto olhar suas
próprias mãos. Eu mordiscava o cachimbo e também esperava, mas de todos os que aí estavam eu era o único que
não sabia o que esperava. De repente, dona Juanita suspirou fundo e levantou o rosto e o olhar para o Velho
Antônio dizendo: “Vem a época da água”. “Vem”, disse o Velho Antônio que tirou do bolso a maquininha de
enrolar e começou a fazer um cigarro. Eu já sabia o que isso significava, por isso abasteci rapidamente o cachimbo,
o acendi e me acomodei para ouvir e olhar assim como agora vou contar a vocês a...

A história do calendário.

Contam os mais velhos entre os velhos do nosso povo, que no começo dos tempos o tempo passava assim,
tudo desordenado e tropeçando como uma bola na festa de Santa Cruz. Homens e mulheres perdiam muito e se
perdiam porque o tempo não caminhava com eles e ora se apressava, ora caminhava vagarosamente arrastando-se
feito um velhinho artrítico, às vezes o sol era uma grande pele que tudo forrava, às vezes era só água, água em
cima, água embaixo e água no meio, porque antes não chovia só de cima para baixo, mas chovia também para os
lados e, às vezes, até debaixo para cima. Ou seja, tudo era um relaxo só e somente de vez em quando se podia
semear, caçar, consertar o telhado de folhas das choças ou as paredes de varetas e lama.
E os deuses ficavam olhando e olhando para tudo isso, porque estes deuses, que eram os primeiros, os que
deram origem ao mundo, não faziam outra coisa a não ser passear, agarrar peixes no rio, chupar cana e, às vezes,
ajudavam também a debulhar o milho para as tortilhas. É assim que estes deuses, os primeiros, os que deram
origem ao mundo, olhavam para tudo. E pensavam, mas não pensavam sobre isso rapidamente, aliás, levaram um

35
Este foi o discurso pronunciado na abertura do 2º Encontro entre o EZLN e a Sociedade Civil ocorrido em La Realidad entre os dias 7 e 10
de maio para avaliar os resultados da Consulta e discutir os encaminhamentos a serem dados. Apesar da intensificação das operações
militares na região por parte do exército federal, participaram deste encontro cerca de 1700 pessoas vindas dos 32 Estados da República
Mexicana.
Após ter analisado e discutido os resultados da Consulta, o EZLN e a Sociedade Civil acordaram impulsionar as tarefas que seguem:
1. Informar os demais companheiros e companheiras sobre o que ficou combinado neste encontro.
2. Divulgar os resultados nacionais, estaduais, regionais e municipais da Consulta do dia 21 de março.
3. Que os participantes sejam uma ponte entre os zapatistas e todas as organizações sociais, cidadãs, movimentos e indivíduos que
trabalharam na Consulta..
4. Ampliar a base social da Consulta apoiando as lutas e as mobilizações, de comum acordo com o EZLN. Lutas acontecem em todos os
lugares de trabalho e já não se trata de apoiar somente aquelas pelo reconhecimento dos direitos dos indígenas e pelo fim da guerra de
extermínio, e sim de apoiar outras lutas de operários, camponeses, indígenas, estudantes e colonos. Pede-se que com o EZLN apoiem o
movimento do Sindicato Mexicano dos Eletricitários contra a privatização do setor elétrico e dos estudantes da Universidade Nacional
Autônoma do México contra o Regulamento Geral de Pagamentos.
5. Construir uma rede de informação capaz de impedir que alguém dos presentes seja atingido sem que todos os demais o saibam e possam
protestar e responder com um apoio recíproco.
6. O convite a participar dos atos políticos, culturais, civis e pacíficos a serem convocados pelo EZLN.
7. Preparar o 3º Encontro entre o EZLN e a Sociedade Civil.
74
bocado porque estes deuses não eram muito ágeis, assim passou um bom tempo em que só olharam o tempo
passar aos trancos pela terra e só depois de ter demorado isso tudo é que pensaram.
Depois de ter pensado, porque levaram um bocado pensando, os deuses chamaram a Mãe cujo nome era
Ixmucane e sem mais delongas lhe disseram: “Ouça Mãe Ixmucane, este tempo que caminha pela terra não está
indo muito bem e ora passa brincando e correndo, ora arrastando-se, às vezes se adianta, às vezes se atrasa e, desse
jeito, não é possível semear, e já vês que também não se pode colher à vontade e isso está entristecendo os homens
e as mulheres; há muito tempo estamos batalhando para encontrar o peixe, a cana não está aonde a deixamos e por
isso te dizemos, não sabemos o que achas disso, Mãe Ixmucane, que não está certo que o tempo ande desse jeito,
sem que ninguém ou nada o oriente sobre quando e por onde tem que caminhar e com que passo. É assim que
pensamos, Mãe Ixmucane, não sabemos o que vai dizer quanto a este problema que te colocamos”.
Mãe Ixmucane suspirou durante um bom tempo e então disse: “Não está certo que o tempo ande assim
feito burro sem rédeas, trazendo prejuízos e muitos aborrecimentos a esta gente boa”.
- Pois é, não está certo. Disseram os deuses.
E esperaram um bocado porque sabiam muito bem que Mãe Ixmucane não havia terminado de falar e sim
estava apenas começando a fazê-lo. Por isso, desde aquele tempo, as mães apenas começam a falar-nos quando
parecem que já terminaram. Mãe Ixmucane ficou suspirando por um bom tempo e então continuou dizendo: “Lá
em cima, no céu, está a conta que o tempo deve seguir e o tempo a respeita se alguém a está lendo e dizendo-lhe
como, quando e aonde andar”.
- É isso mesmo, e o tempo a respeita. Disseram os deuses.
Mãe Ixmucane continua suspirando e, finalmente, diz:
“Estou disposta a ler a conta para o tempo para que aprenda a andar direito, mas meus olhos já não são tão bons e já
não posso olhar para o céu, não posso”.
- Não pode. Disseram os deuses.
- Farei o possível. Disse Mãe Ixmucane. Quero endireitar logo o tempo, mas eis que não posso olhar e ler o céu,
porque não tenho bons olhos.
- Mmmh. Disseram os deuses.
- Mmmh. Disse Mãe Ixmucane.
Assim demoraram dizendo apenas “mmmh” uns para a outra, até que finalmente os deuses pensaram outra
vez e disseram:
- Olha Mãe Ixmucane, não sabemos o que achas, mas nós pensamos que seria bom se trouxéssemos o céu para
baixo e assim, você poderia olhar bem de perto, ler e endireitar o passo do tempo.
Mãe Ixmucane deu um forte suspiro e disse:
“E, por acaso, eu tenho onde colocar o céu? Não, não, não. Não vêem como é pequena a minha choça? Não, não,
não.”
- Não, não, não. Disseram os deuses.
E ficaram mais um bom tempo com seus “mmmh”, “mmmh”. E logo que pensaram os deuses voltaram a
falar outra vez dizendo:
- Olha, Mãe Ixmucane, não sei o que acha disso, mas nós pensamos que seria bom se copiássemos o que está
escrito no céu, o trouxéssemos até você e, dessa forma, você o copia e como já pode lê-lo, também pode endireitar
o passo do tempo.
- Está bem. Disse Mãe Ixmucane.
Os deuses subiram e copiaram num caderno a conta que o céu contava, desceram outra vez e foram visitar
Mãe Ixmucane com o caderno e lhe disseram:
- Olha, Mãe Ixmucane, aqui está a conta que o céu conta, a anotamos aqui neste caderno, mas ele não vai durar, por
isso você tem que copiá-la em outro lugar no qual a conta que endireita o caminho do tempo possa durar para
sempre.
- Sim, sim, sim. Disse Mãe Ixmucane. Copiem a conta nas minhas mãos e eu vou endireitar o passo do tempo para
que caminhe certinho e não como um velhinho artrítico.
Os deuses escreveram nas palmas e nas costas das mãos de Mãe Ixmucane a conta que o céu conta para
endireitar o caminho do tempo, e é por isso que as mães sábias têm muitas linhas nas mãos e nelas lêem o
calendário e assim cuidam que o tempo caminhe direito e não se esqueça da colheita que a história semeia na
memória.
O Velho Antônio cala e dona Juanita, olhando as próprias mãos, repete: “Vem a época da água”.
Isto que lhes contei aconteceu 10 anos atrás numa madrugada de maio. Hoje, nesta madrugada do dia 10 de
maio, queremos saudar um grupo de pessoas que estiveram conosco neste encontro e que tem estado conosco
mesmo quando não estavam. Estou falando das mães dos presos e dos desaparecidos políticos que nós, seus novos
filhos, queremos festejar neste 10 de maio. Com elas, Mãe Ixmucane volta a dar-nos uma memória digna e a
lembrar-nos a conta para colher o amanhã que a história semeia.
75
Saúde a estas mães sábias, saúde a estas mulheres que nos asseguram que haverá sempre alguém que
não perde a memória.
Irmãos e irmãs:
Queremos agradecer a todos e a todas vocês por terem vindo até aqui para se encontrar conosco. Durante
estes dias podemos reconstruir o quebra-cabeça que é a Consulta pelo Reconhecimento dos Direitos dos Povos
Indígenas e pelo Fim da Guerra de Extermínio.
Com as peças que vocês nos trouxeram e com as que tínhamos, temos todos, vocês e nós, uma idéia
aproximada da figura que tem este movimento que, é necessário repeti-lo, não terminou.
Mas já podem ver que por trás do quebra-cabeça da Consulta, encontramos outras peças que nos ajudam a
imaginar outra figura, uma maior e poderosa, mesmo que ainda esteja escondida, mesmo que a solução do enigma
continue pendente.
Conta o livro sagrado do Popol Vuh que os deuses mais antigos tiveram que resistir aos ataques e aos
estratagemas dos grandes senhores que governavam os povos e os territórios. 36 Depois de uma tentativa de enganá-
los, os deuses enviaram três presentes aos grandes senhores para que estes conhecessem a força e o poder dos
deuses. Os três presentes eram três peles muito bonitas, pintadas com desenhos finos. Numa havia sido pintado um
tigre poderoso, na outra uma águia corajosa e na terceira haviam sido pintados muitos besouros e muitas vespas. Os
grandes senhores se alegraram com estes presentes e quiseram comprovar se era grande o poder dos deuses a quem
queriam subjugar e então, com temor, colocaram a pele com o desenho do tigre e viram que não acontecia nada e
que, a bem da verdade, a pele com a pintura do tigre era muito bonita. O coração dos senhores ficou muito alegre
quando viram que o tigre pintado não lhes fazia nada, e pensaram que o poder dos deuses que queriam subjugar não
era grande. Colocaram, então, sobre o seu corpo a segunda pele, a da águia pintada, e viram que a águia não lhes
trazia dano algum e se alegraram pelo fato de que logo poderiam subjugar estes deuses que não eram poderosos,
pois suas peles pintadas não traziam mal nenhum. Assim, sem medo, os senhores colocaram a terceira pele, a que
era enfeitada com milhares de vespas e besouros das mais diferentes cores. E aconteceu que neste momento os
besouros e as vespas ganharam vida, atacaram duramente os grandes senhores e como a dor causada pelas picadas
era muito forte, os grandes senhores se renderam à sabedoria e ao poderio dos deuses.
Com aquilo que ficou combinado neste segundo encontro poderemos, e é isso que todos esperamos,
terminar de pintar a grande pele de que este país precisa.
Valeu. Saúde e boa viagem.

Das montanhas do Sudeste Mexicano.


Subcomandante Insurgente Marcos.

Solidariedade com a luta dos estudantes universitários da Argentina


México, 22 de maio de 1999.

Ao Movimento Estudantil da Argentina


Às universitárias e universitários argentinos

Irmãos e irmãs:
O seu convite para enviar uma mensagem ao seu movimento chegou rapidamente até nós. Mandamos-lhes
aqui uma dissertação que, acredito, será lida hoje na re-inauguração do auditório “Che Guevara”, na Faculdade de
Filosofia e Letras da Universidade Nacional Autônoma do México que, como vocês sabem, está em greve. Assim,
como são os universitários os que agora estão lutando no México e na Argentina e como o Che nasceu na
Argentina, vale também para vocês a seguinte aula magistral:

9 TESES E UMA CONCLUSÃO SOBRE O POLIFANTE E A REBELDIA

1. O Polifante, como todos sabem por ser algo que se estuda em todas as escolas e universidades, é uma espécie de
elefante com uma tromba complexa e multiplicada exponencialmente em número e distância.
2. A maior distância entre dois pontos é dada pela linha reta que não os une, sobretudo quando entre os dois pontos
tem uma parede.
3. A parede, consta em todos os tratados científicos, é um curioso artefato que serve para evitar que esse travesso
irreverente, que é o vento, faça o que lhe dá vontade de fazer.

36
Popol Vuh, o livro da criação do mundo, reúne os textos da cosmogonia Maia e foi escrito em 1555 tendo como base as tradições culturais
anteriores à colonização espanhola.
76
4. O vento, de acordo com recentes estudos profundamente estudados, é um potro obsceno cuja montada é o
desejo.
5. O desejo é inútil quando não convoca umidades.
6. As umidades, como é sabido, nascem numa cabaça.
7. A cabaça é a forma que uma maçã assume para protestar contra a lei da gravidade.
8. Uma maçã nem sempre é uma maçã, sobretudo de madrugada.
9. A madrugada é o lugar onde o Polifante é consumido pelo desejo.

Conclusão: O Polifante, como a rebeldia, é algo contagioso.


Fim da aula magistral.
Valeu. Saúde e longa vida ao Che e àqueles que, hoje e na Argentina, o fazem nascer e manifestam seu
“não” com os rebeldes nos quais renasce.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, maio de 1999.

Sobre a guerra em Kosovo

México, junho de 1999.

Aos povos em luta contra a guerra:


À Europa Social:
Aos homens e mulheres que dizem “NÃO!”.

Irmãos e irmãs:
Recebam todas e todos a saudação dos zapatistas do México. Nestes dias, foram realizadas no mundo
inteiro diferentes mobilizações e atividades contra a guerra que o dinheiro semeou no coração da Europa: a guerra
em Kosovo.
Nesta guerra, o grande Poder se empenhou em obrigar a nós todos a tomar partido: ou apoiamos a guerra
de “limpeza étnica” de Milosevic, ou apoiamos a guerra “humanitária” da OTAN. É esta a grande mágica do
dinheiro, oferecer-nos a opção de escolher entre duas guerras e não entre a paz e a guerra.
Na armação do mercado globalizado, o Poder só oferece à humanidade as diferentes versões de uma
mesma guerra: tem pra todas as cores, sabores, tamanhos e formas. Tem pra todos os gostos e pra todos os bolsos.
Só tem uma coisa que as torna iguais: o resultado. Sempre a destruição, sempre a angústia, sempre a morte. E a
morte, a angústia e a destruição são sempre para o outro, para o diferente, para aquele que sobra, para aquele que
estorva, para aquele que é dos debaixo.
E ainda na lógica mercantil de vendedor da morte, o neoliberalismo nos quer oferecer uma fraude: a guerra
que se supunha fosse evitar mais mortes, não fez outra coisa a não ser multiplicá-las; a guerra que devia conter as
possibilidades do conflito se expandir para outras regiões se encarregou de garantir que o conflito ultrapassasse os
limites geográficos originais. A guerra “inteligente” não fez outra coisa a não ser demonstrar a grande capacidade
destruidora da estupidez, a guerra da “boa fé” volta a definir a vida humana: agora a sua perda é contabilizada
como “prejuízo colateral”.
É uma mentira.
Não é verdade que temos que consumir neste mercado mortal.
Não é verdade que se pode optar somente entre diferentes formas de guerra.
Não é verdade que temos que tomar partido a favor de uma ou de outra estupidez.
Não é verdade que temos que renunciar à inteligência e à humanidade.
Não há nada que legitime a guerra étnica de Milosevic. Não há nada que legitime a guerra “humanitária”
da OTAN.
A armadilha está aí, mas são cada vez mais os que, no mundo inteiro, se negam a cair nela e dizem
“NÃO!” à guerra nos Balcãs.
Em Kosovo, não está em jogo apenas a existência e a resistência da Europa Social diante da Europa do
Dinheiro, não está em jogo apenas o aceitar ou não o poder de fato da nova polícia global, o novo traje com o qual
o Pentágono veste suas tropas. Está em jogo também a possibilidade de reconhecer o outro, o diferente, de uma
forma que não seja com ele morto, preso, humilhado, subjugado, perseguido, esquecido.
Não vamos cair nesta armadilha, não vamos deixar que a perda da humanidade passe à história na rubra cor
dos “danos colaterais” e que o cinismo e o conformismo sejam os generais triunfantes da guerra européia.
77
Apesar de todo o poder do dinheiro, apesar de todas as armas, apesar de todas as arbitrariedades, apesar
de todas as tentativas de hegemonia e homogeneidade, apesar de todas as armadilhas, continuamos tendo o direito
de dizer “NÃO!”.
E é isso que nós levantamos hoje. Um “NÃO!” mundial à mentira que hoje simula verdades nos céus e nas
terras de Kosovo. NÃO à destruição do diferente. NÃO à morte da inteligência. NÃO ao cinismo. NÃO à
indiferença. NÃO ao ter que escolher entre criminosos mais ou menos sanguinários, mais ou menos perversos, mais
ou menos poderosos.
Se hoje não dissermos “NÃO!” ao Kosovo, amanhã diremos “SIM!” aos horrores que o dinheiro já está
cozinhando em todas as partes do mundo.
É possível outro mundo diferente deste violento supermercado que o Neoliberalismo nos vende. É possível
um outro mundo onde a opção seja entre a guerra e a paz, entre a memória e o esquecimento, entre a esperança e o
abandono, entre o cinza e o arco-íris. É possível um mundo onde caibam muitos mundos. É possível que de um
“NÃO!” nasça um “SIM!” imperfeito, inacabado e incompleto; um “SIM!” que devolva à humanidade a esperança
de reconstruir, todos os dias, a complexa ponte que une o pensamento ao sentimento.
É isto que nós zapatistas dizemos: NÃO!
Viva a vida! Morra a morte!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos.

A história não se vende 37

México, 7 de junho de 1999.

Ao: Conselho Geral dos Representantes da Escola Nacional de Antropologia e História.


De: Subcomandante Insurgente Marcos, CCRI-CG do EZLN.

Irmãos e irmãs:
Recebemos a sua carta (sem data) na qual vocês nos falam da luta que, estão levando adiante nos diferentes
setores da ENAH, em defesa do patrimônio cultural e histórico nacional.
Tomamos conhecimento dos materiais que nos enviaram a respeito da iniciativa de lei que pretende
privatizar a história do nosso país. A história não está à venda, e nós estamos com vocês na luta para defendê-la.
Através de um grupo de estudantes, estamos encaminhando a vocês a proposta de algumas atividades para
divulgar o problema que estamos enfrentando e para convocar a mobilização de um maior número de pessoas e
setores que, com certeza, estarão interessados em defender a história das tocaias daqueles que a querem privatizar.
Estamos pedindo, também, que façam chegar a nossa saudação, solidariedade e sentimento de irmandade aos
homens e mulheres que desempenham trabalhos manuais, aos técnicos e acadêmicos da ENAH, e aos sindicatos
dos trabalhadores da INAH. 38 Esperamos que um dia possamos todos nos encontrar (estudantes, trabalhadores
manuais, administrativos, técnicos, acadêmicos, pesquisadores, restauradores, zapatistas) para trocarmos
experiências e anseios. O convite a vir até aqui permanece aberto até quando vocês queiram realizá-lo, só nos
avisem antes para que possamos arrumar a bagunça.
Desde já, vocês podem ter certeza de contar conosco nesta luta. Não só porque a razão e a dignidade estão
do seu lado, mas, também, porque podemos dizer que a luta que vocês estão levando adiante é realmente uma luta
de todos.
Portanto, agora é oficial: o EZLN une-se ao CGR-ENAH para dizer a todos que não permitiremos a venda
do patrimônio histórico e cultural do nosso país.
Valeu. Saúde e que desta vez não triunfe o cinza do dinheiro.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos.
México, junho de 1999.

Mensagem ao movimento estudantil da UNAM 39


37
Esta carta, enviada ao Conselho Geral de Representantes da Escola Nacional de Antropologia e História do México (CGR-ENAH) foi lida
durante uma mesa redonda sobre o tema “A quem pertence o patrimônio cultural?”. A tradução foi feita a partir do texto em italiano
divulgado por “Consolato Ribelle Messico - BS” , pois não tivemos acesso ao original em espanhol.
38
INAH: Instituto Nacional de Antropologia e História.
39
UNAM: Universidade Nacional Autônoma do México.
78

México, 10 de junho de 1999.

Ao povo do México:
Ao Movimento Estudantil da UNAM:
Aos estudantes do México:

Irmãos e irmãs:
Das montanhas do sudeste mexicano, nós, homens, mulheres, crianças e anciãos do Exército Zapatista de
Libertação Nacional saudamos os estudantes que hoje se mobilizam em todo o país.
Hoje, 10 de junho, nos mobilizam a memória, a dor e a indignação. Hoje nos move a memória daquele 10
de junho dos Halcones 40, da resposta do governo às demandas dos estudantes. Naquela época, as respostas dadas
aos estudantes foram a repressão, a mentira e o esquecimento. E, hoje, querem repeti-las.
Hoje nos move a dor pelos mortos, pelos nossos mortos. Um ano atrás, o governo federal rompeu o cessar-
fogo e atacou com policiais, soldados, tanques, helicópteros, aviões e morteiros os zapatistas da comunidade
Chavajeval, no município de San Juan de la Libertad. Em El Bosque, Chiapas, as forças zapatistas repeliram o
ataque e o exército federal, mordido por ter fracassado em seu intento, dirigiu-se contra a comunidade de Unión
Progreso, no mesmo município, onde fez prisioneiros e executou vários companheiros zapatistas.
Os dois principais chefes da operação criminosa em Chavajeval e Unión Progreso foram Ernesto Zedillo
Ponce de León e Francisco Labastida Ochoa.
Hoje, Zedillo vive no Palácio Nacional e indicou Labastida como seu herdeiro. O que une os dois é o fato
de ter as mãos manchadas com o sangue indígena.
Hoje, nos move a indignação de ver que o governo repete as mesmas atitudes diante do movimento
estudantil e diante das demandas indígenas. Hoje, nos move a indignação de ver que as forças de cima mentem,
golpeiam, perseguem, prendem, torturam e assassinam indígenas e estudantes.
Para o governo federal mexicano, indígenas e estudantes não são objeto de atenção.
Estudantes e indígenas importunam.
Estudantes e indígenas incomodam.
Sim, somos importunos. Sim, somos incômodos.
Porque não desistimos.
Porque lutamos.
Porque resistimos.
Porque temos memória.
Porque não estamos dispostos a fazer com que nos deixem esquecidos num canto.
Porque não queremos ser excluídos.
Por isso, além da memória, da dor e da indignação, hoje nos move, também, a rebeldia. Nos move,
também, a alegria de saber-nos unidos e diferentes.
A alegria de saber que estamos lutando e resistindo.
A alegria de ambos saber-nos e falar-nos.
A alegria de saber que, apesar das mentiras, das provocações, da perseguição, do cárcere ou da morte, a
resistência digna continua procurando seus caminhos e seus amanhãs.

Irmãos e irmãs:
Hoje, nós zapatistas queremos enviar uma saudação especial aos jovens, homens e mulheres do movimento
estudantil da Universidade Nacional Autônoma do México.
Queremos enviar uma saudação especial às jovens e aos jovens que, no México, constituem a base do mais
importante movimento social da atualidade.
Às jovens e aos jovens dos serviços de segurança.
Às jovens e aos jovens que integram as brigadas.
Às jovens e aos jovens que preparam a comida e cuidam da limpeza das instalações da UNAM em greve.
Às jovens e aos jovens sem nome e sem rosto quando dos grandes eventos e mobilizações, mas que são os
que fazem estas mobilizações.
Às jovens e aos jovens que deram vida, dignidade, rumo e sabedoria ao movimento universitário.
Às jovens e aos jovens que são este movimento.
Queremos dizer a elas e a eles que os queremos e os admiramos. Que, para os zapatistas, é um orgulho ter
compartilhado esta pátria com pessoas tão dignas e grandes como são todos eles e todas elas.

40
Halcones: um dos grupos armados de caráter paramilitar que agiu no México durante a década de 70. É através de grupos como este que,
tanto ontem como hoje, o Estado mexicano podia exercer sua violência sem as limitações impostas pela lei.
79
Salve, jovens homens e mulheres, base do movimento da UNAM!
Aqui, queremos saudar também o Conselho Geral de Greve da UNAM, legítima representação do
movimento universitário.
Saudamos sua honestidade, seu saber olhar para baixo e para os lados, sua inteligência e coerência no
trabalho que lhe coube fazer.
Estamos honrados pelo diálogo que estabeleceram conosco e queremos que todos saibam que do Conselho
Geral de Greve da UNAM nós zapatistas temos recebido respeito e tratamento digno, que temos correspondido e
continuamos a fazê-lo. O movimento universitário é dos universitários.
Aproveitamos, também, para saudar a Coordenação Nacional dos Estudantes, organização que reúne
escolas, institutos e universidades de todo o país e que dentro de 2 dias, no dia 12 de junho, realizará sua primeira
assembléia em Morelia, Michoacán.
Saudamos os professores da Coordenação dos Trabalhadores em Educação, cuja resistência digna se
mantém apesar dos golpes e das mentiras, e que continuam sua luta por uma educação melhor e por melhores
condições de trabalho.
Saudamos os trabalhadores do sindicato mexicano dos eletricitários que mantém o seu movimento contra a
privatização do setor elétrico e que vão somando cada vez mais vontades contrárias à venda da pátria.

Irmãos e irmãs:
O dia 10 de junho é o dia da memória, da dor e da indignação. Mas é também o dia da luta pela dignidade,
o dia de gritar que, para todos os mexicanos, nós reivindicamos:

Democracia! Liberdade! Justiça!

Que os estudantes vivam para sempre!


Que morram a morte que os mata, a soberba que os despreza e o autoritarismo que os persegue!
Que viva a Pátria que hoje tem rosto de estudante!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
México, junho de 1999.

Mensagem à Coordenação Nacional dos Estudantes

México, 12 de junho de 1999.

À Coordenação Nacional dos Estudantes (CNE).


República Mexicana.

Irmãos e irmãs:
Recebam todos e todas vocês a saudação dos homens, mulheres, crianças e anciãos do Exército Zapatista
de Libertação Nacional, organização rebelde que luta por democracia, liberdade e justiça para todos os mexicanos e
mexicanas.
Queremos agradecer a todos e todas vocês por ter-nos convidado a esta reunião da Coordenação Nacional
dos Estudantes. Sabemos que os pontos a serem discutidos e acordados são muitos e muito importantes; esperamos
que nesta reunião tudo possa correr bem e que o movimento estudantil de todo o México saia dela mais forte e
decidido.
Para nós zapatistas, estão acontecendo muitas lutas no México; lutas diferentes umas das outras, mas todas
elas são parte da luta por uma pátria melhor e diferente daquela na qual os maus governantes estão nos fazendo
padecer.
O governo atual quer colocar à venda tudo aquilo que nos faz ser uma nação.
Quer privatizar o setor elétrico, o petróleo, o patrimônio cultural, a educação universitária, a história, a
dignidade. Por toda parte, começa a surgir um movimento de resistência contra estas tentativas de vender a pátria.
Hoje em dia, os estudantes mexicanos ocupam um lugar de destaque nesta luta de resistência contra a privatização.
O nosso país volta a ter esperança através das lutas que os estudantes de todo o México estão levando adiante
contra a privatização do ensino. Porque, para nós, vocês estudantes significam isso mesmo, uma esperança. A
esperança de que o esquecimento não ganhará, de que a resignação e o cansaço não vencerão, que não se repetirá a
80
mesma história de derrotas; a esperança que nasce de um “NÃO!” como aquele que agora é pronunciado pelos
estudantes mexicanos.
NÃO ao conformismo!
NÃO ao cinismo!
NÃO à rendição!
Para alguns parece difícil entender porque a esperança pode nascer de um “NÃO!”. Talvez, porque não
entendem que chega o momento em que não se pode tolerar a injustiça, em que não se pode calar, em que não se
pode esquecer, em que não se pode ignorar. Quando chega este momento, então se diz “NÃO!” E se começam a
trilhar os caminhos da resistência e da busca de outras realidades.
Nós zapatistas dissemos “BASTA!”, que é a nossa forma de dizer “NÃO!”. E dissemos “NÃO!” porque
não podíamos continuar calados. Não podíamos continuar sendo esquecidos. Não podíamos continuar sem
fazer nada diante de tanto silêncio e desprezo.
Hoje, são os estudantes de várias universidades,
escolas e institutos do país que dizem “NÃO!”.
NÃO à privatização do ensino!
NÃO ao autoritarismo!
NÃO à repressão!
E todos estes “NÃO!” são uma forma de dizer
“BASTA!”. Chega de ficarmos calados, de conformar-se, de
suportar humilhações e desprezo, de esquecer de nós mesmos,
de aturar.
Todos estes “NÃO!” são um “SIM!” à rebeldia. E a
rebeldia é algo particularmente nocivo para o poder. É por isso que o governo e os poderosos atacam tanto os
estudantes: porque são rebeldes. É por isso que o governo e os poderosos perseguem tanto os indígenas: porque são
rebeldes.
E vocês já podem ver que, para nós, estes “NÃO!” se transformam em pontes, porque estes “NÃO!” nos
uniram e uniram nossas rebeldias.
Saudamos o fato dos estudantes da Coordenação Nacional dos Estudantes terem voltado a olhar e ouvir
seus irmãos indígenas. Não somos nada mais e nada menos do que vocês são. Somos diferentes, mas, também,
somos rebeldes.
Saudamos o respeito sincero que temos recebido de vocês e lhes oferecemos todo o apoio com o qual
podemos brindar a vocês e que, mesmo que pouco, será sempre com toda força do nosso coração e do nosso
pensamento!

Salve ao nascimento da Coordenação Nacional dos Estudantes!


Salve às jovens e aos jovens estudantes que hoje levantam a bandeira da dignidade mexicana!

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
México, junho de 1999.

Sobre os últimos acontecimentos

México, 24 de junho de 1999.

À imprensa nacional e internacional

Damas e cavalheiros:
Segue um texto com a nossa posição sobre os últimos acontecimentos. Caso o lancem pela internet ou o
esqueçam em casa, pelo menos avisem que saiu algo. Obrigado.
Nós não temos carros, nem circulamos pelas perimetrais, mas por aqui acendemos velas para dizer que
apoiamos sim o movimento grevista da UNAM. Mesmo que continuem nos atacando com policiais e soldados, que
ocupem mais povoados, que continuem detendo arbitrariamente indígenas acusados de serem zapatistas, nós
continuaremos apoiando os estudantes universitários pura e simplesmente porque a razão está do lado deles.
Valeu. Saúde e, antes que joguem o comunicado num canto, feliz dois mil? O que?
81

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, junho de 1999.

P.S. Já não entendo mais nada...? Ou seja, para o governo, o “New York Times” é o jornal mais importante e
influente do mundo quando aplaude a política econômica de Zedillo, mas quando dá os nomes dos políticos
mexicanos vinculados ao narcotráfico (Lievano, Hank), então não passa de um panfleto a serviços de obscuros
interesses que buscam prejudicar o México? Seja como for, e como consolo, o Secretário de governo foi
fotografado na tribuna de um estádio de futebol com um dos “supostos” Hank Gonzales.
P.S. QUE INDAGA COM CURIOSIDADE. No fim das contas, a campanha “elimine um ultra” (ou um grevista
universitário), o terremoto, a execução de Paco Stanley, a visita do maior criminoso do país (Carlos Salinas de
Gortari - bom, quando o tema é a segurança pública, é preciso reconhecer quer tem criminosos e criminosos), a
corridinha que Zedillo deu para esconder-se em Guadalajara e a “blindagem” financeira serviram para enterrar o
caso do apoio econômico de Cabal Peniche à campanha de Zedillo com o dinheiro do narcotráfico.
P.S. QUE PROCURA UM SALVA-VIDAS. De acordo com aquilo que se sabe, os barcos que são “blindados” ...
afundam.
P.S. CURIOSO. Quem é o pré-candidato do PRI que acaba de declarar que não deve ser considerado um neoliberal
e que, entre 1982 e 1986, no Ministério da Energia, Minas e Empresas Estatais interveio no processo de venda de
mais de 300 órgãos estatais?

2.000
“Mas na luta tem um raio de sol
que deixa sempre a sombra derrotada”

Miguel Hernández

1999, 24 de junho. A noite de São João já reina entre as montanhas do Sudeste mexicano. E reina como
está escrito, ou seja, chovendo. Ventos provenientes do mar trouxeram uma caixinha de recordações até o alto desta
ceiba.41 De uma das aberturas da boca aberta do pequeno cofre sai uma serpentina de luz e, com ela, uma história.
Nela aparece logo, como chuva noturna, o Velho Antônio e, como se fosse algo comum, me pede fogo para
acender o cigarro e a memória. Por sobre o forte batuque da chuva no telhado de nylon, levantam-se as palavras do
Velho Antônio para, entre recordações e luminosas serpentinas, contar...

A HISTÓRIA DA VIA LACTEA

Antes que a chuva dispa a montanha, vê-se lá em cima um longo caminho de luz empoeirada. De lá vem e
para lá se vai, diz o Velho Antônio com um único gesto que aponta de um lado ao outro. Dizem que se chama “Via
Láctea”, mas também a conhecem por “Caminho de Santiago”. Dizem que são muitas estrelas pequenininhas que,
ninguém sabe porque, deram de ficar juntas transformando-se em uma fenda e numa estreita picada no já
esburacado céu. Assim dizem, mas dizem também que não é assim. Os mais velhos entre os nossos velhos contam
que isso que se vê lá em cima é um animal ferido.
O Velho Antônio faz uma pausa como quem espera a pergunta que eu não faço: um animal ferido?
Muito tempo atrás, quando os primeiros deuses já haviam criado o mundo e passavam o tempo zanzando,
os homens e as mulheres viviam da terra trabalhando-a e governando-a, e assim passavam o tempo. Mas contam
que, um dia, apareceu num povoado uma cobra grande que se alimentavam de homens. Ou seja, comia só os
homens e não as mulheres. E logo que acabava de comer todos os homens de um povoado, ia para outro e fazia o
mesmo.
Rapidamente, os povos se avisavam entre si quanto a esta cobra assustadora que estava para chegar e
muitos medos falavam desta grande serpente que, de tão gorda e cumprida, conseguia abraçar todo o povoado,
como uma parede que não deixava ninguém entrar e sair. A única coisa que dizia é que se não lhe dessem todos os
homens não deixaria sair mais ninguém. Assim, alguns se rendiam, enquanto outros lutavam, mas a força da cobra
era muito grande e ela sempre acabava ganhando. Os povos viviam amedrontados, esperando apenas o dia em que a
grande cobra chegaria para comer todos os homens que engolia inteiros.
Contam que houve um homem que conseguiu escapar da serpente e foi refugiar-se numa comunidade que
já havia sido atacada. Aí, diante de um povo de mulheres, o homem falou da cobra e que era necessário lutar para
41
Ceiba: árvore típica da floresta do Estado de Chiapas e que, na tradição religiosa indígena, é considerada sagrada.
82
derrotá-la porque o prejuízo que ela trazia a estas terras era muito grande. As mulheres se perguntaram: o que
podemos fazer, pois nós somos mulheres? Como vamos combater contra ela sem os homens? Como vamos atacá-la
se ela não vem pra cá, pois aqui não tem homens, pois ela já comeu todos eles?
As mulheres foram embora muito desanimadas e tristes. Mas teve uma que ficou, se aproximou ao homem
e lhe perguntou como pensava seria possível combater contra a cobra. O homem disse que não sabia, mas tinha que
pensar como e, juntos, o homem e a mulher se pensaram e pensaram, elaboraram um plano e foram chamar as
mulheres para comunicar-lhe o plano e todas concordaram.
Nesta altura, aconteceu que o homem começou a deixar-se ver, sem medo, no meio do vilarejo e a serpente
o viu de longe, pois esta cobra tinha uma vista muito boa, que enxergava de longe. Foi assim que ela chegou e
abraçou o povoado com seu corpo cumprido e disse as mulheres que era para elas entregarem este homem que
andava por aí, pois, do contrário, não deixaria ninguém entrar ou sair. As mulheres disseram que o entregariam,
mas que tinham que se reunir para entrar em acordo. Está bem, disse a cobra. Então, as mulheres se colocaram em
círculo ao redor do homem e, como eram muitas, o círculo ia ficando cada vez maior até que, por si só, topou com
o círculo que o corpo da serpente descrevia em torno do vilarejo. Nesta altura, o homem disse: está bem, me
entrego. Caminhou rumo à cabeça da cobra e enquanto ela se entretinha comendo o homem, todas as mulheres
puxaram paus pontiagudos e começaram a espetar a cobra em todo o seu corpo. Como eram muitas e estavam por
toda parte, e como tinha a boca cheia do homem que estava comendo, a serpente não podia defender-se. Nunca
pensou que os fracos a atacariam desta forma e por todos os lados, e logo se viu muito enfraquecida e derrotada.
Então disse: perdoem-me, não me matem. Não, disseram as mulheres, vamos te matar porque você nos
provoca muitos males e come todos os nossos homens. Vamos fazer um trato, disse a cobra. Se vocês não me
matarem eu vou devolver os seus homens, pois ainda estão na minha barriga. As mulheres concordaram. Não a
matariam, mas a grande serpente não iria mais viver naquelas terras e seria expulsa. Então a cobra disse: mas aonde
eu vou viver e o que é que vou comer, assim não tem acordo. Estavam neste impasse quando a primeira mulher diz
que teriam que perguntar por uma solução ao homem que tinha vindo até elas para ver o que achava disso e disse à
cobra: solta o homem que você acaba de comer e vamos ver se ele tem uma idéia do que podemos fazer. A serpente
soltou o homem que já estava meio morto e com muitas dificuldades o homem falou e disse que antes era
necessário perguntar aos deuses para ver o que se podia fazer e que ele poderia ir procurá-los, pois já estava meio
vivo e meio morto. O homem foi e encontrou os primeiros deuses dormindo sob uma grande ceiba, acordou-os,
expus a eles o problema e os deuses se reuniram para pensar e encontrar um bom acordo. Em seguida, foram ver a
cobra e as mulheres, vitoriosas, escutaram e disseram que a culpa era da serpente, que ela devia ser castigada, que
era para ela devolver os homens que havia engolido e que não iria morrer. E a cobra vomitou todos os homens de
todos os povoados. Então os deuses disseram que a serpente tinha que ir viver nas montanhas mais altas. Como não
cabia numa só, teria que usar duas montanhas, as mais altas do mundo. Numa colocaria a cauda e na outra a cabeça.
Alimentar-se-ia da luz do sol e as milhares de feridas que as mulheres guerreiras lhe haviam feito jamais se
fechariam.
Os deuses foram embora e triste se foi a cobra, a grande serpente, para as montanhas mais altas. Numa
colocou a cabeça na outra a cauda e estendeu seu corpo cumprido de um lado a outro do céu. Desde então, durante
o dia, ela come a luz do sol e, de noite, esta luz derrama por todos os buraquinhos de suas feridas. A serpente é
pálida, por isso não é possível vê-la durante o dia e, de noite, só se consegue ver a luz que verte dela deixando-a
vazia até que, no dia seguinte, o sol a alimenta outra vez. Por isso, dizem que esta longa linha que de noite brilha lá
em cima não passa de um animal ferido.
É isso que me conta o Velho Antônio, e então entendo que a Via Láctea é apenas uma longa serpente de luz
que se alimenta de dia e esvai-se em sangue durante a noite.
Parou de chover nesta noite de São João. O céu voltou logo a ter um tom moreno claro e se consegue ver
claramente que uma serpentina de luz desce da grossa figura das mil feridas, de lado a lado, de um a outro
horizonte. A franja prateada cai suave no alto desta ceiba que aí em baixo faz gotejar a chuva mais pra baixo. Do
espelho sem rosto que nela consome-se, ricocheteia o brilho que vai mais longe, até lá, até esse canto do mundo
onde, por trás de uma sombra, vê-se...

1. O ENSINO PÚBLICO NA MIRA DO FUZIL.

“Livrava-se a vida, com que gesto!


De morrer, com que arte!”

Miguel Hernández

Em outubro de 1998, na sede da UNESCO, realizou-se em Paris a Conferência Mundial sobre o Ensino
Superior. Nesta reunião, o Banco Mundial marcou a sua posição a respeito do que deveria ser a reorganização do
ensino superior no planeta. Resumidamente, é esta a proposta de globalização do ensino superior.
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Para o Banco Mundial faz-se necessária uma renovação “radical” do ensino superior, de modo a
transformar a universidade “clássica” ou “tradicional” (cujo fundamento é a docência e a pesquisa) para que
responda às demandas do mercado neoliberal, ou seja, define o ensino superior como um bem privado, como um
bem ou um serviço qualquer entre os que são oferecidos pelo mercado. De acordo com isso, é necessário redefinir
os atores do processo educativo superior.
As empresas são os “consumidores”, professores e administradores são os “fornecedores” e os estudantes
são os “clientes”. Neste caso, diz o Banco Mundial, os “fornecedores” não sabem o que é melhor para o mercado,
os “consumidores” conhecem melhor do que ninguém aquilo que “vende”, entre outras coisas porque eles são os
“compradores”.
Um primeiro passo é o de transformar a universidade numa empresa que seja auto-sustentável. Por isso, o
Banco Mundial recomenda o aumento das mensalidades, a eliminação das bolsas de estudo integrais ou parciais, a
cobrança total dos serviços e das estruturas de apoio universitárias, empréstimos e cobranças baseadas na taxa de
juros bancários vigente e realizadas através de companhias privadas, imposto progressivo, redefinir a formação dos
professores para convertê-los em empresários, a venda das pesquisas e dos cursos, o aumento e a promoção das
universidades privadas. De acordo com o Banco Mundial, o poder de decisão no ensino superior deve ser entregue
aos consumidores.
O Banco Mundial sabe que os governos e os estudantes universitários não são sensíveis às necessidades do
mercado global. Por isso, ele propõe mudar a dotação de verbas passando dos critérios clássicos (matrícula e
prestigio) para critérios de desempenho indicados pelos consumidores. Isso significa que as universidades deverão
redirecionar-se (ou seja, adequar a dotação de recursos) de acordo com as necessidades dos “consumidores” (as
empresas privadas). O Banco Mundial encara o corpo docente como um elemento a ser “ajustado” de acordo com
este critério mercantil. A liberdade acadêmica e suas determinações são um empecilho, do mesmo modo que os
sindicatos e as associações acadêmicas. Isso significa que se precisa de um número menor de acadêmicos e de
pesquisadores, e de acadêmicos, pesquisadores, trabalhadores manuais e administrativos que sejam “diferentes”.
Em suma: requalificação e reestruturação. (Tudo isso é exposto com detalhes no Boletim da Canadian Associacion
os University Teachers, traduzido por Luis Bueno Rodriguez, UAM-I).
É óbvia a coincidência deste plano com a ofensiva privatizadora e reclassificadora que o governo Zedillo
dirigiu contra as universidade públicas do país. A Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), a
Universidade Autônoma Metropolitana (UAM), a Escola Nacional de Antropologia e História (ENAH), a
Universidade Pedagógica Nacional (UPN) e o Instituto Politécnico Nacional (IPN) estão agora na mira do fuzil que
está as mãos do governo. Em diferentes graus e nuanças, estes institutos de ensino superior estão sofrendo os
golpes de uma “modernização” que visa liquidar o conceito de universidade pública.
O ataque privatizador que procura dar uma nova função ao ensino público superior encontrou firmes
resistências por parte dos estudantes ainda que, evidentemente, o seu objetivo principal é mexer com os setores
acadêmicos, de pesquisa e de administração.
Para o governo, o fato de ter escolhido a universidade pública como alvo de seus disparos não é algo
inocente. Abatendo este alvo, outros poderão ser derrubados com maior facilidade: a história, a eletricidade, o
petróleo.
Para privatizar o patrimônio cultural temos o Projeto da Lei Geral do Patrimônio Cultural, cujo objetivo é
redefinir a política cultural do governo e estender a onda de privatizações aos monumentos e zonas arqueológicas,
artísticas e históricas do México. O projeto de lei em questão é um autêntico ouriço: seus espinhos não ferem
apenas o patrimônio histórico-cultural mexicano, mas atentam também contra a pesquisa antropológica e histórica,
a docência e, naturalmente, contra um dos movimentos estudantis mais constantes e combativos do México, o da
Escola Nacional de Antropologia e História.
Por isso, o movimento estudantil, não só o da UNAM, como também o da Escola Nacional de
Antropologia e História, da UAM, da Pedagógica Nacional e da Poli enfrentam pressões vindas das mais diferentes
forças. O desconhecimento do que se esconde por trás das “reformas” que suas entidades impulsionam, é uma das
razões pelas quais não só tem conseguido um apoio reduzido, como também tem sido atacado por parte de setores
que serão os mais afetados caso estas “modernizações” tenham êxito.
Por isso, hoje estão...

2. OS ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS NA MIRA DO FUZIL

“Mas a cicatriz mais velha e áspera rejuvenesce em ferida ao menor golpe”

Miguel Hernández

Nos últimos dias, parte da imprensa de todo o quadro político uniu-se ao governo e a Barnés na afirmação
de que os “ultras” (assim os chamam) são os responsáveis pela manutenção da greve. Os chamados “moderados”,
84
nessa apressada repartição de etiquetas com a qual a “intelligentzia” oculta a sua ignorância e a sua falta de
análises sérias, clamam por justiça. Queixam-se das perseguições (pois, gritam contra elas) e das ameaças (os
apelidam de “vendedores de greves”) e convocam a todos para uma santa cruzada contra o principal inimigo do
movimento universitário. O Banco Mundial? A política de Barnés? Não, os “ultras”.
O clamor que pede justiça ecoou rapidamente através de pessoas que tem uma clara vocação democrática,
de justiça e de liberdade: Ernesto Zedillo Ponce de León, Francisco Barnés, Diodoro Carrasco, Francisco
Labastida, Guillermo Ortega, Abraham Zabludovski, Ricardo Salinas Pliego, Javier Alatorre, Sergio Sarmiento e
outros veneráveis e venerados “defensores” da universidade pública gratuita.
Incapazes de ganhar as bases estudantis para as suas posições (que são AS que deram origem e mantém a
greve), os neodeslocados das assembléias se refugiam em algum meio de comunicação para tentar conseguir aí o
que perderam no movimento estudantil, ou seja, a autoridade moral, a legitimidade, a credibilidade. Os meios de
comunicação, que com o caso Stanley redescobriram o aumento nas vendas produzido pelos escândalos, uniram-se
nesta absurda frente ampla contra os universitários em greve, apresentando o movimento em seu conjunto à
imagem e semelhança, especialmente manipulada por seu caráter ridículo, de alguns estudantes das correntes mais
radicais que se encontram, com muitas outras, no interior do movimento.
O clamor unânime contra os linchamentos na imprensa, que se elevou quando TV Asteca e Televisa
usaram a execução de Stanley para mobilizar a opinião pública contra Cuauhtémoc Cárdenas, foi substituído por
este novo linchamento, só que, agora, contra os estudantes universitários. Não só isso, mas aqueles que ontem se
queixavam amargamente com a forma pela qual a mídia eletrônica “linchou” Cárdenas, hoje se apressam a
encabeçar a campanha de difamação contra os estudantes.
De repente, os estudantes grevistas viram pobres ovelhas conduzidas por um pastor perverso (que, horror!,
põe a barriga pra fora) e só esperam serem resgatadas pela sublime inteligência que entende que “não-é-o-
momento-para-radicalizações”. Nas voltas que o mundo dá, os mesmos argumentos que, ontem, as autoridades
usavam contra eles (quando encabeçavam os movimentos), são usados agora como arma diante destes inimigos
“ultras” que, inegavelmente, passam muito bem e oferecem o álibi perfeito que justifica a falta de argumentos para
as próprias posições e a falta de ascendência moral sobre um movimento que, será que não percebem?, é novo em
sua base e em sua forma.
Um pouco de história? Quando o PRD ganha as eleições no DF, toda uma camada de líderes incrustados
nos movimentos sociais (e com inegável influência política sobre eles) assumiu funções de governo na Cidade do
México. Os “ultras já existiam na universidade (será que houve um tempo em que não existiram?) e suas posições e
argumentos não se diferenciavam substancialmente (nem os gritos e nem as acusações de “vendedores de greve”)
dos de agora. Sem dúvida, a ascendência moral dos líderes estudantis dava-lhes a maioria. Ao abandonar o
movimento universitário para assumir as tarefas da campanha eleitoral, antes, e as funções de governo, depois, os
líderes universitários ligados ao Partido da Revolução Democrática deixam um espaço vazio.
O tempo, será que é necessário lembrá-lo?, passa, e o espaço foi novamente preenchido. Porém, por que
enganar-se e enganar dizendo que este espaço foi ocupado pelos “ultras” se todos sabem muito bem que nenhum
grupo ou tendência entre os que atuam no interior da UNAM pode manter de pé uma iniciativa qualquer quando ela
não recebe o apoio dos estudantes? Neste caso, não são sequer os “ultras” os que dirigem (e eles sabem disso) e sim
uma nova geração que, no interior da universidade, vem delineando não só a renovação da liderança estudantil
como também da própria concepção desta liderança.
Os estudantes se enfrentam nas assembléias e se ameaçam? E no Congresso da União? Os Deputados e
senadores não constituem o poder máximo da federação? Por acaso já não chegaram até às vias de fato?
Os estudantes passam horas e horas em assembléias, discutindo sem chegar a nenhum acordo? Era
diferente quando os “moderados” lideravam o movimento?
Se os “ultras” são um grupelho sectário, intolerante e vanguardista, e se são os “ultras” que impedem que a
greve acabe, como pode um grupelho manter as instalações em greve, “brigadear” (é assim que se diz?), fechar as
ruas, ameaçar ou hostilizar os “moderados” e, além do mais, estar presente em assembléias que duram até 12 horas,
e fazer tudo isso ao mesmo tempo?
Alguns fatos reais e “esquecidos” pelos meios de comunicação: os “ultras” não violentaram, não bateram e
nem prenderam nenhum estudante, não trataram de impor um regulamento de mensalidades às custas da
comunidade universitária, não levantaram fichas policiais contra os universitários, não promoveram salas de aula
fora do recinto da universidade e (obviamente) não articularam uma campanha da mídia contra o movimento.
Os rumores sobre a presença de armas em seu meio são do tipo “dizem que fulano disse que alguém os
viu” e são mais graves do que os daqueles que apontaram funcionários do governo do DF, ex-líderes universitários,
como os que se escondiam na noite para levar laranjas aos grevistas nos primeiros dias do movimento. Seguindo as
pegadas das acusações de que os “ultras” estão armados, será que se poderia dizer que estes querem ganhar com
laranjas o que não pode ser ganho com os argumentos? Mas, claro, ninguém é perseguido e preso por carregar
laranjas e sim por levar uma arma...
85
Sobre alguns dos grupos de tendências mais radicais ou “ultras” que se movem no interior da UNAM e
seu feroz antizapatismo, não há muito a dizer, mas só lembrar alguns fatos. Alguém lembra que o senhor Alan
Arias era um dos chamados “ultras-ultras” em seus tempos de universidade, feroz opositor das posições
“claudicantes”, “abertas ao diálogo” e “entreguistas” da esquerda “reformista” (naquele tempo, o PCM e o PRT)?
Hoje, o senhor Alan Arias não é um empregado do terceiro ou quarto escalão da Secretaria de governo? E Adolfo
Orive? E Raul Salinas do Gortari? Não era “El Woma”, o nome de guerra que o general Chaparro Acosta usava no
meio universitário para assumir posturas ultra-radicais e detectar aqueles que, em seguida, torturaria nas prisões
clandestinas da “Brigada Blanca”?
É a prática, e não o discurso, a que, com o passar do tempo, define radicalizações e coerências. Então,
veremos onde estão os “claudicantes”, os “dialoguistas”, “entreguistas” e alguns outros “istas” que me escapam,
mas que não mudaram muito de ontem para hoje.
Voltando aos “perversos” grevistas que “mantém a UNAM sob seqüestro” (pois, agora sabemos que ela
pertence a Barnés e aos seus burocratas): esta greve já está ganha? Não foi ontem que disseram, antes que
estourasse, que era uma provocação e que seria um fracasso, que era minoritária, etc. (de fato, foram estes os
argumentos que encorajaram Barnés)? Agora, diz-se que a greve tinha razão de ser e, além do mais, que já ganhou
e que é hora se suspendê-la? Não é esse o argumento central do discurso de Zedillo desde 24 de junho? Por que
deveriam acreditar nele agora? Como podem pretender que se acabe com um movimento para o qual não fizeram
outra coisa a não ser alimentar a campanha de difamação contra ele?
Bom, suponhamos que tenha êxito, que os “ultras” recebam o repúdio unânime da população, e que o
governo, sensível como é às demandas populares, opte por reprimir amplamente o movimento e golpear os “ultras”
para “libertar” a UNAM. Como é mesmo a cara de um “ultra”? Existe alguma credencial ou identificação dos
“ultras” para que os golpes sejam só para eles? Finalmente, se negar-se a por fim à greve - porque, como diz o
CGH42, não foram atendidas as suas demandas - é sinônimo de ser “ultra”, não seria este um chamado a reprimir o
CGH em seu conjunto e as centenas de estudantes que mantém a greve, formam brigadas, entram em contato com
outras organizações, e contra as dezenas de milhares de universitários que participaram das mobilizações
convocadas pelo CGH e apóiam, sem ligar a luz do próprio carro, o movimento em defesa do ensino público e
gratuito?
Qual é a estatura de uma organização cujos militantes não conseguem levar adiante suas propostas políticas
porque os “outros” lhes gritam e lhes chamam de “vendedores de greves”?
A greve triunfou e agora já deve ser suspensa? Deve continuar? Isto é algo que cabe e caberá responder ao
movimento estudantil, aos que construíram a greve e a mantiveram apesar da maior campanha de perseguição por
parte dos meios de comunicação já realizada nos últimos anos.
São elas e eles, os jovens que fazem o movimento, os que irão decidir. Não os “ultras”, nem os
“moderados”, nem qualquer uma das etiquetas com as quais se pretende reduzir o que tem de novo neste
movimento ao cômodo e inútil esquema do velho.
Não são poucas as iniciativas que os chamados “ultras” ganharam no CGH e perderam nas assembléias das
escolas e faculdades e, de conseqüência, de novo no CGH. Dois exemplos? A ocupação das ruas e o Congresso
constituinte. A maioria das escolas não aprovou a ocupação das ruas e se pronunciou por um Congresso resolutivo.
De pronto, em seu manifesto do dia 22 de junho, o Conselho Geral de Greve é contundente. “Sustentamos
o tempo todo nossa disposição e interesse para que se abra o diálogo, reivindicando uma bandeira que o movimento
estudantil vem reivindicando há mais de 30 anos, que é o diálogo público e aberto. (...) Porque não temos nada a
esconder, porque queremos que todos nos vejam e nos escutem, porque queremos que todos saibam quais são
nossos argumentos e quais os das autoridades. De que se assustam? Do fato de sustentarmos com firmeza as
características deste diálogo? De que queremos prestar homenagem aos melhores ensinamentos do movimento
estudantil? Do que se surpreendem? Que se coloquem as condições elementares para o diálogo quando o que se
pede é que se deixe de reprimir, que parem as atas, que parem o trabalho que as corruptas aulas fora da
universidade fazem contra a greve?” É isto que foi colocado pelo CGH.
Parece que está claro.
Nós zapatistas apoiamos o CGH se decidir continuar com a greve e o apoiamos caso decida suspendê-la.
Os apoiamos porque elas e eles são a legítima representação do movimento universitário. Tem o respeito e a
legitimidade que foram ganhos junto ao seu pessoal. São, portanto, representativos.
Por outro lado, se aqueles que agora mantém a greve na UNAM são os “ultras”, que devem ser
exorcizados, onde estarão os “ultras” de amanhã? No movimento popular urbano? No magistério democrático? No
Sindicato Mexicano dos Eletricitários? Ou nas montanhas do Sudeste Mexicano? São estas as perguntas que devem
ser respondidas por aqueles que aspiram a ser governo.
No que diz respeito a visita que uma delegação do CGH fez a La Realidad e se o EZLN tem ingerência no
movimento, é necessário deixar claro que: a La Realidad não vieram os “ultras” porque para eles somos

42
CGH: Comando Geral de Huelga (Comando Geral da Greve).
86
“reformistas” e “dialoguistas”, também não vieram os “moderados” porque para eles somos “ultras” e
“radicais”. Chegaram até aqui estudantes universitários e universitárias e, numa longa seção que durou 5 horas nas
quais somente eles falaram, expuseram o que o CGH pensava sobre a greve. Atenção: o CGH e não eles em
particular (que tem seus pontos de vista pessoais sobre o movimento). A impressão que nos deixaram é que elas e
eles, e aqueles que representam, são pessoas honestas, que acreditam naquilo pelo qual lutam e que vivem como
pensam. Entendem seu movimento e sabem que os que dão rumo e direção ao movimento são aqueles que estão
nas barricadas e nas brigadas. Ninguém veio perguntar o que fazer (o que foi um alívio, pois nós não sabemos),
vieram dizer sua palavra para que conhecêssemos as razões de seu movimento. As conhecemos, as entendemos e as
apoiamos.
E mais, não podemos esconder a admiração e o respeito que elas e eles (e me refiro, sobretudo, àqueles
que, quotidianamente, estão fazendo o movimento, ainda que não estejam no CGH) nos causam. Por isso,
reafirmamos aqui que não temos nenhuma ingerência no movimento estudantil, mas cremos que o movimento
estudantil sim é que já tem ingerência no EZLN (Leu isto direito Rabasa? Isto não é suficiente para outra
declaração na imprensa? Digo, você tem que fazer algo para justificar o seu ordenado. Ou não?).
Talvez por isso, pela admiração que temos por eles e pelo orgulho que nos dá o conhecê-los e saber dos
universitários, as comunidades zapatistas sofrem uma nova investida policial-militar. Talvez é por isso que estamos
de novo ...

3. OS ZAPATISTAS NA MIRA DO FUZIL.

“Aqui a vida é um pormenor: formiga,


morte, carinho, sofrimento,
pedra, horizonte, rio, luz, espiga,
vidro, sulco e areia.
A imundice está aqui
nas ruas, não nos corações.
Aqui sabe-se de tudo e se murmura:
não pode ficar escondida a criatura perversa,
e muito menos as más intenções”.

Miguel Hernández

24 de junho de 1999, noite de São João.


Nas montanhas do Sudeste Mexicano completam-se 2000 dias de guerra. 2000 dias repetindo o “BASTA!”.
2000 dias desafiando a morte, o esquecimento, o silêncio; 2000 dias apostando a vida, a memória, a esperança.
Na madrugada 2000 da resistência, os tecelões e as tecelãs zapatistas, rastro de múltipla luz e de muitos
nomes, trabalham sem parar. Tecem e tecem. E tecendo, lutam. E tecendo, cantam.
Há quem diga que eles estão tecendo uma rede para que a memória não escape. Há quem diga que é um
tecido de diversas cores para vestir a esperança. Há quem diga que isso que se tece na madrugada de número 2000
é o amanhã...

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, 24 de junho de 1999. Na madrugada 2000 da guerra contra o esquecimento.

O EZLN saúda a lua pelo respeito à diversidade sexual


México, 28 de junho de 1999.

Ao Comitê da Diversidade Sexual


À comunidade lésbica, gay, transexual e bissexual.

Agradecemos por ter-nos dado a oportunidade de dizer a nossa palavra nesta 21ª Marcha do Orgulho
Lésbico, Gay, Transexual e Bissexual à qual é convocada parte do melhor da diversidade sexual no México.
Recebam todas, todos, e os que não são todas e nem todos, a saudação dos zapatistas, neste dia de luta pela
dignidade e o respeito à diferença.
87
Durante muito tempo, homossexuais, lésbicas, transexuais e bissexuais tiveram que viver e morrer
ocultando sua diferença, suportando em silêncio a perseguição, o desprezo, as humilhações, extorsões, chantagens,
insultos, pancadas e assassinatos.
Quem era diferente teve que suportar um rebaixamento em sua condição humana pelo simples fato de não
seguir uma normalidade sexual inexistente, porém fingida e transformada em bandeira de intolerância e segregação.
Vítimas em todos os níveis sociais, objetos de piadas, fofocas, insultos e mortes, os diversos em sua
preferência sexual calaram uma das injustiças mais antigas da história.
Nunca mais.
De todos os setores sociais, de todos os cantos do país, de todos os locais de trabalho, os centros de estudo,
de luta e de vida, levanta-se uma exigência humana: o respeito e o reconhecimento dos direitos da comunidade
lésbica, gay, transexual e bissexual. Hoje, em forma visível, participam desta jornada pelo reconhecimento da
diversidade sexual aqueles que, fartos de esconder o seu ser diferente, tem a coragem e a combatividade em seu
peito e em seu olhar.
Não há nada a esconder. Nem a preferência sexual, nem a raiva pela impotência diante da incompreensão
de um governo e de um setor da sociedade que pensam que tudo o que não é como eles é anormal e grotesco.
Do que devem ficar envergonhadas as lésbicas, os homossexuais, os transexuais e os bissexuais?
Que fiquem envergonhados aqueles que, como governo, roubam e matam impunemente! Que fiquem
envergonhados aqueles que perseguem o diferente!
Mas, deste dia de luta não participam somente aqueles que podem fazer-se ver o ouvir. Muitas e muitos
têm que ocultar-se - às vezes de si mesmos - mas não por renunciarem a um direito que é de todo ser humano: o do
respeito à sua dignidade, sem que para isso importe a cor de sua pele, sua língua, sua renda econômica, sua cultura,
sua crença religiosa, sua ideologia política, seu peso, sua altura ou sua preferência sexual.
Nossa admiração é para aqueles que estão presentes nesta mobilização, por sua coragem e audácia em
fazer-se ver e ouvir, por seu “Basta!”, orgulhoso, digno e legítimo.
Nossa saudação à sua existência organizada.
Nosso apoio às suas lutas e às suas demandas.
Para aqueles que não estão presentes, mas são, vai a nossa saudação e a esperança que algum dia seja
possível ser e estar presentes sem sofrimento, sem vergonha, sem medo.
Os e as zapatistas, e aqueles que não são nem os e nem as, mas são zapatistas, saúdam a dignidade lésbica,
gay, transexual e bissexual.
Longa vida à sua combatividade e um amanhã diferente, ou seja, mais justo e humano para todas e todos os
diferentes.
Valeu. Saúde e oxalá que algum dia o silêncio não encontre mais nenhum canto para se esconder.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos.
México, junho de 1999.
Convocação ao IIº Encontro latino-americano pela Humanidade e contra o
Neoliberalismo.

México, 30 de junho de 1999.

Aos povos da América:


Aos Comitês de Solidariedade com a luta zapatista na América Latina:
Aos Comitês de Solidariedade com a luta zapatista no mundo.

Irmãos e irmãs:
Chegou até nós uma mensagem do Amazonas brasileiro. A eco vem dos Andes e da Patagônia. Os ventos a
trazem das águas do Caribe. Os tambores da América do Norte a repetem e rápidos correios atravessam a
Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile. A voz que sobe das minas da Bolívia é a mesma que desce das alturas de
Machu Pichu. A cantam em Equador, Colômbia e Venezuela. Nicarágua a torna um poema e em El salvador,
Honduras, Guatemala e Panamá é um sério manifesto. As Antilhas a dançam.
A palavra sai do Amazonas e começa a andar por toda a América e em todos os povos preparam-se longas
viagens, como aquela que se empreende da dor à esperança. De todos os continentes, do continente americano, de
todos os mundos que o povoam, homens e mulheres começam a caminhar.
Qual é o motivo desta desordem continental? Uma nova medida do Fundo Monetário Internacional? Outro
encontro de chefes, que não são chefes, de Estados, que não são Estados? Um jogo de futebol? Não, a razão é um
convite. Do Brasil digno, Belém nos convida ao
88

IIº ENCONTRO AMERICANO PELA HUMANIDADE E CONTRA O NEOLIBERALISMO. Será em


Belém do Pará, entre os dias 6 e 11 de dezembro de 1999.

Assim, só estamos avisando vocês: a América da resistência digna, a da luta engajada, a da esperança
teimosa, a esquecida por todos, menos por ela mesma, dirige-se já para o Brasil. Nós também iremos aí. Se as
piranhas do imperialismo não nos atrasarem muito, desembarcaremos em Belém ao amanhecer de dezembro. Não
levaremos muita bagagem, somente a necessária para repetir no Amazonas brasileiro que, contra o neoliberalismo e
pela Humanidade, hoje lutamos para que em toda a América e para todos haja...

DEMOCRACIA! LIBERDADE! JUSTIÇA!

Valeu. Saúde. Todos os ventos e todos os barcos já têm um destino: Belém do Pará, Brasil.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos
México, junho de 1999.

Carta de Marcos para Asma Jahangir, relatora especial da ONU


para Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias.

Para Maurice Najiman, que continua fingindo-se morto.


México, 19 de julho de 1999.

Para: Asma Jahangir.


Relatora Especial da ONU para Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias.
De: Subcomandante Insurgente Marcos.
CCRI-CG do EZLN

Senhora Asma Jahangir:


Escrevo-lhe em nome das mulheres, homens, crianças e anciãos do Exército Zapatista de Libertação
Nacional.
Sabemos que não são poucas as críticas que receberemos pelo que vou dizer-lhe e por não ter aproveitado
de uma boa oportunidade de expor o governo mexicano em sua política genocida contra os povos indígenas. Mas,
acontece que, para nós, a “oportunidade política” tem pouco a ver com a ética política. E não seria ético que,
devido à nossa confrontação com o governo mexicano, nos dirigíssemos a um organismo internacional que perdeu
toda credibilidade e legitimidade e cujo atestado de óbito foi assinado pelos bombardeios da OTAN em Kosovo.
Com sua guerra nos Balcãs, o governo norte-americano, disfarçado de OTAN e com os regimes da
Inglaterra, Itália e França como peões grotescos, conseguiu destruir o seu principal objetivo: a organização das
Nações Unidas (ONU). A “inteligente” mega-ação policial do guarda global, os Estados Unidos, ridicularizou a
outrora máxima tribuna internacional. Violando os preceitos que deram origem à ONU, a OTAN desenvolveu uma
guerra de agressão cínica, atacou indiscriminadamente os civis e pretendeu delegar a autoria intelectual aos satélites
que, mais do que nunca, demonstraram que são inúteis para quem já tem visões e decisões tomadas. O cinismo
típico dos partidários da guerra demonstrado pela OTAN só foi superado pelas “brilhantes” declarações de seus
chefes e porta-vozes. A guerra “HUMANITÁRIA”, o “erro de boa fé” e os “danos colaterais”, não foram as únicas
pérolas da bijuteria bélica que vendeu (pois já estão se mexendo para repassar a conta) em terras kosovares.
“Terça-feira, em Bruxelas, um militar da OTAN com uma boa quantidade de estrelas no peito deu duas
declarações que provocaram calafrios. De um total de 35.000 operações aéreas, somente pouco mais de 10.000
foram dirigidas contra alvos concretos. E as outras 25 mil? Será que foram executadas por engano? Se existem
alvos concretos, será que existem os que não são concretos? Que tipo de alvo é uma pessoa? A segunda declaração
inspira tantas perguntas quanto a anterior. O objetivo da OTAN nunca foi o de destruir completamente o exército
iugoslavo e também não foi o de reduzir o país às cinzas. Menos mal, ainda que não se pode deixar de pensar que
antes das cinzas vem as brasas e antes destas temos os tições... e antes ainda os pedaços. A que dimensão da
matéria pensavam de reduzir o país e o seu exército? O banquete do pós-guerra já está servido, a informação que
sai do satélite de Roger Waters enche os meios de comunicação o dia inteiro: quanto mais se fala, melhor poder-se-
á ocultar aquilo que não pode ser dito” (Jordi Soler, em “La Jornada”, 13 de junho de 1999).
89
A cumplicidade da ONU na Europa foi evidente e, devido à nossa posição no que diz respeito à esta
guerra, um mínimo de coerência nos leva a distanciarmo-nos de um organismo que, claro, isso já faz anos, vinha
desempenhando um papel digno e independente no panorama internacional. Hoje, não é mais assim. De um lado ao
outro do planeta, a ONU converteu-se num imprescindível aval jurídico para as guerras de agressão que o grande
poder do dinheiro repete sem fartar-se de sangue e destruição.
Mas se o silêncio da ONU em Kosovo foi cúmplice do crime e da destruição, no México assumiu um papel
mais ativo na guerra que o governo mexicano leva adiante contra os indígenas: em maio de 1998, a pedido da
ACNUR (organismo da ONU) o governo atacou a comunidade de Amparo Aguatinta, bateu em crianças, prendeu
homens e mulheres e, então, ocupou militarmente a sede do município autônomo “Tierra y Libertad”. É no presídio
de Cerro Hueco, em Tuxtla Gutierrez, que se encontram os resultados do “trabalho humanitário” da ONU em
Chiapas. Mas, vamos chegar mais perto, no dia de hoje, 19 de julho de 1999. O senhor Kofi Annan, secretário geral
da ONU, está realizando a entrega do “Prêmio Nações Unidas Viena Sociedade Civil” à autodenominada
“Fundação Asteca” que, sob o auspício do Milosevich autóctone, o senhor Ricardo Salinas Pliego, dedica-se a fazer
campanha contra as drogas usando cocainômanes 43, a promover rebeliões e a destruir escolas indígenas com os
helicópteros. Por isso, por ser parte da guerra contra os indígenas mexicanos, por suas ligações com o narcotráfico
e por seus apelos golpistas, a “Fundação Asteca” receberá do senhor Annan uma medalha, um certificado e 25 mil
dólares.
Por isso, não temos nenhuma confiança na ONU. E não é por chauvinismo ou rejeição a tudo o que é
estrangeiro. Na qualidade de observadores internacionais (nós reservamos o apelido de “estrangeiros” aos que,
como Zedillo e os membros do seu gabinete, tem o dinheiro como única pátria), estiveram por aqui arriscando suas
vidas, liberdade, bens e prestígio, homens e mulheres dos cinco continentes. Para não ir muito longe, em fevereiro
de 1998, esteve aqui a Comissão Civil Internacional de Observação pelos Direitos Humanos (CCIODH). Não é só a
sua sigla que é maior do que a da ONU, como também a sua autoridade moral, a sua honestidade, o seu
compromisso com a verdade e sua luta autêntica por uma paz com justiça e dignidade. Homens e mulheres da
Alemanha, Argentina, Canadá, Dinamarca, França, Grécia, Itália, Nicarágua, Suíça, Andaluzia, Cantábria,
Catalunha, Euskadi, Galícia, Múrsia e Alicante, desafiaram a mais feroz campanha xenófoba do governo mexicano
deste século e documentaram tudo num informe (que dedicaram ao indígena José Lopez Garcia, assassinado depois
de apresentar as denúncias de sua comunidade perante a CCIODH). Consulte você mesma este informe, está
permeado não só pelo desejo de uma paz digna, como também pela veracidade e a honestidade.
Depois da CCIODH, sempre em 1998, veio um grupo de observadores italianos. Eles receberam um
tratamento pior do que aquele que foi reservado a CCIODH porque foram expulsos sem mais nem menos pelo pré-
candidato à presidência do México Francisco Labastida e pelo encarregado das relações públicas internacionais de
sua equipe de campanha, naquela época responsável direto de centenas de expulsões ilegais, Fernando Solís
Cámara.
Milhares de homens e mulheres do mundo inteiro, todos dignos e de boa vontade, a maioria deles e delas
jovens, desses que chamam de “os do brinquinho” e que tanto incomodam a esquerda institucionalizada do mundo
inteiro, vieram aqui e viram o que o governo nega: uma guerra genocida. Foram embora, muitos expulsos, e
contaram e contam o que viram: uma guerra desigual entre aqueles que detém o poder militar (o governo) e aqueles
que tem do seu lado somente a razão, a história, a verdade e o amanhã (nós). É óbvio quem será o ganhador: nós.
Mas isso não é tudo. Há também organizações internacionais como Anistia Internacional, America’s
Watch, Global Exchange, México Social Network, Nacional Comission for Democracy in México-USA, Pastores
pela Paz, Humanitary Law Project, Médicos do Mundo, Pão para o Mundo, Médicos Sem Fronteiras e muitas
outras cujos nomes agora me fogem, mas não sua história e seu compromisso com a paz.
Para nós, qualquer um deles e delas, indivíduos ou grupos, tem mais autoridade moral e mais legitimidade
internacional que a Organização das Nações Unidas, hoje transformada em festa-coquetel das guerras neoliberais
de fim de século.
Os emissários do governo estão certos (a patética senhora Green, o mesmo Rabasa, o bolacha pra cachorro
Albores, etc.) em dizer que não há nada a temer da sua visita. Não a temem porque sabem que a ONU tem sido
cúmplice e, como no caso do município autônomo “Tierra y Libertad, parte da guerra de extermínio contra os
povos indígenas do México.
Pelo que temos lido e ouvido, você é uma pessoa honesta. Provavelmente, você entrou para o trabalho da
ONU nos tempos em que este organismo evitava as guerras, apoiava os mais diferentes grupos que eram vítimas
das arbitrariedades governamentais e promovia o desenvolvimento dos mais necessitados. Mas, agora a ONU
promove e dá o seu aval às guerras, apóia e premia aqueles que matam e humilham os excluídos do mundo.
Não perdemos de vista o fato de que diversos poderes financeiros internacionais acariciam a idéia de
poder-se beneficiar das ricas jazidas de petróleo e urânio que existem sob as terras zapatistas. Lá em cima, eles

43
Cocainômanes: termo usado para indicar os grandes traficantes de cocaína.
90
fazem contas complicadas, cálculos, e alimentam a esperança de que os zapatistas façam planos separatistas.
Seria mais
fácil e barato negociar a compra do subsolo com uma república das bananas (a chamam de “Nação Maia”),
afinal todos sabem que os indígenas se contentam com espelhinhos e pérolas de vidro. Por isso, não abrem mão de
sua intenção de envolver-se no conflito e manuseá-lo de acordo com os seus interesses. Claro que não tem
conseguido e foi por nossa causa. Porque acontece que isso de
“Libertação Nacional”, apelidos do EZLN, nós zapatistas o
assumimos com o coração e a espada e, “anacrônicos” como
somos, acreditamos ainda em conceitos “caducos” como o de
“soberania nacional”. Não temos aceitado, e não aceitaremos,
nenhuma ingerência estrangeira em nosso movimento. Não
aceitamos e nem aceitaremos que nenhuma força internacional
seja parte do conflito, a combateremos com a mesma ou maior
decisão com a qual combatemos aqueles que decretaram a morte
por esquecimento de 10 milhões de indígenas mexicanos. Será
bem-vindo aquele que, com autoridade moral, legitimidade, e
sem ser apêndice de forças armadas (como a OTAN) ou ter
forças militares a seu serviço (como os tristemente famosos
“boinas azuis” da ONU), queira ser parte da solução PACÍFICA do conflito.
Não precisamos de nenhuma ajuda para fazer a guerra, bastamos nós mesmos. Para a paz sim, precisamos
de muitos, mas honestos e estes já não são muitos.
Não se aflija demais, a ONU não é o único organismo oficial internacional que colabora com a campanha
de contra-insurgência do governo mexicano. Você tem aí o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, cuja delegação
em San Cristóbal beira o sublime em matéria de servilismo e estupidez. Numa reunião com os refugiados de Polhó,
os delegados do CICV declararam, sem sequer ficarem vermelhos de vergonha, que os refugiados estão fora do seu
lugar de origem porque são frouxos e porque querem ser mantidos pela Cruz Vermelha. Para estes imbecis que
perambulam sob as supostas bandeiras da neutralidade e da ajuda humanitária da CICV, os paramilitares são uma
invenção, produtos da histeria coletiva de mais de 7.000 indígenas refugiados; os 45 que foram executados em
Acteal, na verdade, morreram devido às infecções, e nos Altos de Chiapas reinam a paz e a tranqüilidade. É óbvio
que Albores tenha-os parabenizado (e os tenha convidado a um pedacinho do seu osso, só um pouquinho porque,
digamos, não é muito generoso) e eles continuem passeando em seus modernos veículos e engordando o currículo
da “benemérita” instituição. O que acha? Com certeza, o CICV será o próximo a ser premiado pela ONU em seu
concurso de “sociedade civil”.
Nesta madrugada em que lhe escrevo estas linhas, a lua é uma foice de luz fria. É a hora dos mortos, dos
nossos mortos. E você deve saber que os mortos zapatistas são muito inquietos e falantes. Apesar de estarem
mortos, ainda falam e gritam a história. A gritam para que ninguém durma, para que a memória não morra, para
que viva, é por isso que os nossos mortos gritam.
Ocosingo, dias 3 e 4 de janeiro de 1994. Tropas do governo federal tomam de assalto a cabeceira municipal
de Ocosingo em poder dos zapatistas desde a madrugada do dia 1º de janeiro. Seguindo as ordens do então General
de Brigada Luis Humberto Portillo Leal, chefe que foi da 30ª zona militar, o Major de Infantaria Adalberto Pérez
Nava executa 5 membros do EZLN. O General Portillo Leal havia ordenado a execução dos zapatistas, estivessem
ou não armados; a ordem era de não fazer ninguém prisioneiro, mas que todos deviam ser mortos (só deviam evitar
fazê-lo caso a imprensa estivesse presente, porque isso prejudicaria a imagem do exército). O Segundo Capitão de
Infantaria, Lodegario Salvador Estrada, executou outros indígenas zapatistas. Dias depois, nos escritórios da
Secretaria de Defesa Nacional, o Subtenente de Infantaria, Jimenez Morales, era executado por militares para
responsabilizá-lo do assassinato de 8 indígenas no hospital do IMSS em Ocosingo. Não inventamos todas estas
informações, você pode verificá-las na ata do departamento de Justiça dos Estados Unidos, Secretaria Executiva
pelo Controle da Imigração de El Paso, Texas, assinada por Bertha A. Zuñiga, Juiz de Imigração dos Estados
Unidos, com data de 19 de março de 1999. Caso Jesus Valles Bahena A76-804-703. Nela, o Oficial Jesus Valles
Bahena contou porque teve que desertar do exército, após ter sido ameaçado de morte pelo Coronel Bocarando
Benevidez, por ter-se negado a cumprir as ordens de execuções sumárias. Com o Oficial Valles, outros oficiais
negaram-se a cumprir as indicações de assassinato. Ignora-se a sua sorte.
Senhora Jahangir, São estes os nomes de luta e civil dos executados em Ocosingo, Chiapas, nos dias 3 e 4
de janeiro de 1994:
Comandante Hugo ou Senhor Ik', Francisco Gómez Hernández; Subtenente Ins. de Materiais de Guerra Alvaro,
Silverio Gómez Alvarez; Insurgente de Materiais de Guerra Fredy, Bartolo Pérez Cortés; Insurgente de Infantaria
Calixto, (Não se pode revelar o seu nome civil); Insurgente de Infantaria Miguel, Arturo Aguilar Jiménez;
Miliciano Salvador, Eusebio Jiménez González, Miliciano Ernesto, Santiago Pérez Montes, Miliciano Venancio,
Marcos Pérez Córdoba; Miliciano Amador, Antonio Guzmán González; Miliciano Agenor, Fernando Ruiz
91
Guzmán; Miliciano Fidelino, Marcos Guzmán Pérez; Miliciano Adán, Doroteo Ruiz Hernández; Miliciano
Arnulfo, Diego Aguilar Hernández; Miliciano Samuel, Eliseo Hernández Cruz; Miliciano Horacio, Juan Mendoza
Lorenzo; Miliciano Jeremias, Eliseo Sánchez Hernández; Miliciano Linares, Leonardo Méndez Sánchez; Miliciano
Dionisio, Carmelo Méndez Méndez; Miliciano Bonifácio, Javier Hernández López; Miliciano Heriberto, Filiberto
López Pérez; Miliciano Jeremias, Pedro López García; Miliciano Germán, Alfredo Sánchez Pérez; Miliciano
Feliciano, Enrique González García; Miliciano Horacio, Manuel Sánchez González; Miliciano Cayetano, Marcelo
Pérez Jiménez; Miliciano Cristóbal, Nicolás Cortés Hernández; Miliciano Chuchín, Vicente López Hernández;
Miliciano Adán, Javier López Hernández; Miliciano Anastacio, Alejandro Santiz López.
Naqueles dias houveram mais mortos, mas foram em combate e não executados.
Foi em Morelia, então município de Altamirano, que, além da execução, houve flagrantes de tortura. No
dia 7 de janeiro de 1994, o exército entrou na comunidade e seqüestrou Severiano Santiz Gómez (60 anos),
Hermelindo Santiz Gómez (85 anos) e Sebastián López Santiz (45 anos). Pouco depois, seus restos mortais foram
encontrados com marcas de tortura e com sinais evidentes de que foram executados. A análise dos corpos foi
realizada por especialistas da ONG “Phiysicians for Human Rights”.
A tortura e a execução foram os métodos do “glorioso” exercito federal também na cabeceira do município
de Las Margaritas, Chiapas. Aí, nos primeiros dias de combate, o Major Terán (que desde antes parecia ter ligações
com o narcotráfico da região) seqüestrou, torturou e executou Eduardo Gómez Hernández e Jorge Mariano Solís
López na colônia Plan de Agua Prieta. Aos executados haviam sido cortadas a língua e as duas orelhas.
Estes mortos, nossos mortos, não encontram descanso. Os sanguinários de Ocosingo e os assassinos e
torturadores de Morelia e La Margaritas continuam livres e gozam de saúde e bem-estar. Milhares de sombras os
perseguem e disputam a honra de fazer justiça.
Estes são os mortos, nossos mortos, Não são os únicos.
No ano passado, contrariando o que é divulgado pela sua propaganda para consumo internacional, o
governo retomou os enfrentamentos armados com as forças zapatistas. No dia 10 de junho de 1998, uma coluna
militar com uma forte infantaria, blindados, aviões e helicópteros, atacou a comunidade Chavajeval, no município
de San Juan de la Libertad (para os zapatistas) ou El Bosque (para o governo). As forças zapatistas repeliram a
agressão e iniciou-se assim uma intensa troca de tiros que foi transmitida em rede nacional por uma emissora de
televisão. Nossas tropas derrubaram um helicóptero e os militares, frustrados e raivosos, se retiraram, mas foi para
atacar a comunidade Unión Progreso, neste mesmo dia 10 de junho de 1998. Na ocasião prenderam sete milicianos
zapatistas e os executaram sumariamente. São estes os seus nomes:
Miliciano Enrique, Adolfo Gómez Díaz; Miliciano Jeremias, Bartolo López Méndez; Miliciano Jorge, Lorenzo
López Méndez; Miliciano Marcelino, Andrés Gómez Gómez; Miliciano Gilberto, Antonio Gómez Gómez;
Miliciano Alfredo, Sebastián Gómez Gómez; Miliciano Pedro, Mario Sánchez Ruiz.
(O repórter de televisão que fez a cobertura do ataque a Chavajeval recebeu o prêmio nacional de jornalismo. Sobre
o sangue indígena e rebelde, seus patrões o premiaram mandando-o cobrir a campanha de um dos mentores
intelectuais do assassinato de Unión Progreso - o outro é Zedillo - o então secretário de governo, e agora pré-
candidato, Francisco Labastida Ochoa).
É este o exército federal mexicano, o mesmo que agora quer apresentar uma imagem inocente ao anunciar
o envio para a Selva Lacandona de quase 7.000 efetivos a mais com a conversa de que eles vêm plantar mudas de
árvores. Todos calam. Diz o chefe militar que os 7.000 vão desarmados, e os 7.000 chegam armados. Todos calam.
Esta é a “nova” estratégia governamental para Chiapas, cujo anúncio serviu aos senadores priistas (aqueles
que estão no poder graças ao narcotráfico e à prostituição de corpos e de idéias) para acalmar as inquietações dos
parlamentares irlandeses.
É a mesma “nova” estratégia que foi prometida a você por esta personagem patética chamada Rabasa
Gamboa (que cobra, e bem, para coordenar o vazio). E já que estamos falando disso, um novo zurro de Rabasa
esclarece que a de Acteal não foi ma execução.
Desta vez ele tem razão: Acteal, e toda a política seguida por seu patrão Ernesto Zedillo, é um
GENOCÍDIO.
A história é esta: com a chegada ao poder de Ernesto Zedillo, deixando de lado o assassinato, o exército
federal obteve cobertura e dinheiro para fazer resplandecer os seus anseios de sangue e morte.
Procurando melhorar a desgastada imagem pública do exército, foram ativados os esquadrões
paramilitares, organizados por militares da ativa, treinados por militares, equipados por militares, protegidos por
militares, dirigidos por militares e, não poucas vezes, integrados por militares, além de militantes do Partido
Revolucionário Institucional. O objetivo foi e é claro. Tratou-se e trata-se de dar uma guinada ao conflito e
apresentá-lo perante a opinião pública internacional (para a nacional não tem a menor importância) como uma
guerra entre etnias ou, como pretende a corrupta PGR, como um conflito interfamiliar. 44

44
PGR: Procuradoria Geral da República.
92
Os nomes escolhidos pelos soldados para batizar suas novas unidades paramilitares refletem a sua
grande imaginação: “Máscara Vermelha” (seu maior êxito “militar”: o massacre de Acteal), “Paz e Justiça”
(responsável pelo massacre de dezenas de indígenas na região norte do Estado), “Chinchulines” (age na zona norte
e selva), “Movimento Indígena Revolucionário Antizapatista” (conta com campos de treinamento nos quartéis
militares de Las Cañadas e é financiado pelos deputados priistas do Estado), “Os Punhais” (age em Comitán e Las
Margaritas). (“Árvores de Chiapas” depende diretamente do bolachas pra cachorro Albores Guillén, usam boinas
verdes e seu grito de guerra é “Albores cumpre!”).
A “nova” estratégia do governo para Chiapas está à vista de todos: no ejido El portal, em Frontera
Comalapa, um grupo de famílias zapatistas exige que seja restabelecido o serviço de água potável, o mesmo que
lhes foi retirado por militantes do PRI com a cumplicidade do prefeito desta localidade. Que indígenas zapatistas
exijam qualquer coisa, é algo que o governo não pode tolerar, pois, para ele, a única coisa que os zapatistas devem
receber são cacetadas e balas. Perante a mobilização civil zapatista, o governo mobiliza suas forças públicas. Os
priistas, valendo-se da presença da polícia, lançam-se contra os zapatistas com pancadas e balas, dois zapatistas são
feridos gravemente. A polícia age de imediato e prende os zapatistas! Acusa-os de formação de quadrilha por ter
encontrado com eles vários passamontanhas. Com a velocidade proporcionada pelo “Estado de Direito” em
Chiapas, um helicóptero do governo estadual transfere os prisioneiros para que sejam julgados “por atentar contra a
paz” (sim, porque em Chiapas exigir água potável é atentar contra a paz). Os dois feridos se debatem no hospital
entre a vida e a morte, os que atiraram estão livres e com saúde, e no palácio do governo celebram a nova “vitória”
obtida na guerra contra o EZLN. Você não verá nada disso na imprensa escrita ou eletrônica, por demais ocupada
em dar as oito colunas e as manchetes dos noticiários aos latidos de Albores ou à feira de hipocrisias e mentiras dos
pré-candidatos do PRI. Indígenas zapatistas presos, espancados, feridos e assassinados, já não são notícia no
México. São parte da vida quotidiana.
É esta a “nova” estratégia do governo federal, do governo Zedillo, para Chiapas. Não tem nada de novo e
nem de estratégia, trata-se do mesmo estúpido golpear que supõe que aqueles que souberam resistir por 500 anos,
não poderão fazê-lo por um ano e meio.
Sobre Ernesto Zedillo Ponce de León, temos a dizer agora aquilo que todos dirão amanhã: é um homem
sem palavra, mentiroso e assassino. Isto nós o dizemos hoje. Quando sairá de Los Pinos todos (até mesmo aqueles
que hoje o reverenciam) o repetirão e todas as suas corruptelas e os seus crimes virão à luz, publicamente. A
perseguição, o exílio e o cárcere são as prováveis estações do seu futuro. Isso não nos dá dó, nossos mortos não nos
dão dó.
Leio na imprensa que você se encontrou com algumas organizações não governamentais nacionais na
Cidade do México, e que fará o mesmo durante a sua visita a Chiapas nestes dias. Parabéns, você tem a sorte e a
honra de conhecer pessoalmente homens e mulheres que, sem a parafernália oficial e/ou institucional, enfrentaram
todo tipo de ameaças e perseguições devido ao seu trabalho na defesa dos direitos humanos no México.
Aqui, não vou colocar nenhum nome porque no México, e especialmente em Chiapas, as ONGs que lutam
pelos direitos humanos são alvos militares do exército federal, mas qualquer uma destas ONGs, mesmo que seja a
menor ou a de mais recente criação, tem mais autoridade moral do que a ONU no México dos debaixo. Todavia,
você, talvez, não tenha culpa e, talvez, somente os grandes dirigentes da ONU foram aqueles que aceitaram, sem
sequer protestar, o esporádico papel de porta-vozes da OTAN e de cúmplices da guerra de extermínio do governo
do México contra os povos indígenas.
Sem dúvida, não somos pessimistas diante do futuro da comunidade internacional. O fracasso da ONU não
é o fracasso da humanidade. Uma nova ordem internacional é possível, uma que seja melhor, mais justa, mais
humana. Nela terão um lugar preponderante todas estas ONGs internacionais e nacionais (que, a diferença da ONU,
não tem ao seu serviço e não estão a serviço de forças militares) e todos estes homens, mulheres, crianças e anciãos
que entendem que o futuro do mundo debate-se entre a diferença que exclui (a guerra em Kosovo) e o mundo no
qual cabem muitos mundos (do qual o zapatismo em Chiapas é, apenas, uma insinuação).
Com elas e eles, e, sobretudo, pela ação delas e deles, algum dia o mundo será um lugar no qual a guerra
será uma vergonha, a paz uma realidade e os relatores para as diferentes violações dos direitos humanos, uma
espécie cujo único campo de ação será a investigação da pré-história da humanidade.
Desculpe o tom, senhora Asma Jahangir, esta não é uma questão pessoal contra você, apenas acontece que
o organismo que você representa já não representa mais nada. Isso e, além do mais, o fato que nós não esquecemos
Kosovo, nem Amparo Aguatinta, nem Ocosingo, nem Morelia, nem Las Margaritas, nem Unión Progreso, nem
nada. Pois é, é isto que acontece, nós não esquecemos. Não esquecemos.
Valeu. Saúde e que a dignidade nunca perca a memória, pois quando a perde, morre.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, julho de 1999.
93
Discurso de abertura do encontro
“Os professores democráticos e o sonho zapatista”45

“Esta é a árvore dos livres.


A árvore pão, a árvore flecha,
a árvore punho, a árvore fogo.
Afoga-a o rio tormentoso
de nossa época noturna.
Mas seu mastro faz balançar
o limite do seu poderio”

Pablo Neruda - “Canto Geral”

Os mais antigos entre os antigos contam que o mundo se sustenta sobre o abismo do esquecimento graças a
alta copa da ceiba. Sobre a árvore mãe, os primeiros deuses, os maiores deuses, deixaram o mundo. Os primeiros
deuses fizeram o mundo com cores, palavras e cantos. Uma vez terminado, os deuses não sabiam onde deixar o
mundo para que eles pudessem ir cantar e dançar, pois estes deuses, os primeiros, os que deram origem ao mundo,
gostavam muito da música e da dança. A grande marimba de luz que atravessa a noite de um lado a outro já estava
pronta e nada dos deuses encontrarem um lugar onde colocar o mundo.
Então os deuses fizeram uma de suas assembléias para encontrar um acordo e, mesmo que demorassem,
ninguém perceberia porque o mundo tinha acabado de nascer e o tempo ainda não havia começado o seu tempo. Os
primeiros deuses chegaram a um acordo e chamaram a ceiba mãe para que mantivesse o mundo sobre a sua cabeça.
Ela o colocou sobre o ponto mais alto de sua copa e ficou parada para que o mundo não sofresse nenhum
sobressalto.
Isso que lhes conto aconteceu já faz muito tempo, tanto que os homens e as mulheres acabaram por
esquecê-lo e, temerosos de não poder explicar nas escolas o lugar do mundo, inventaram histórias de estrelas
negras, “bigs bangs”, sistemas solares, galáxias, universos e outros absurdos que enchem os livros de geografia que
nos atormentam em todas as escolas.
Todos esqueceram, mas não todos.
Os primeiros deuses eram sabidos e perceberam claramente que todos iriam esquecer como o mundo havia
nascido e onde estava. Por isso, escreveram a história de como o mundo foi feito e até fizeram um mapa para que
ficasse claro onde ele estava. Os maiores deuses, os primeiros, os que deram origem ao mundo, escreveram tudo
em seu caderno de anotações escolares. Em seguida, os deuses procuraram um lugar onde guardar o caderno de
anotações no qual estavam a história de como o mundo foi feito e o mapa indicando onde ele estava.
Os deuses lutaram muito porque o caderno de anotações não podia ser guardado num lugar qualquer e,
então, fizeram outra assembléia para chegar a um acordo.
Chamaram os homens e as mulheres de milho, os verdadeiros, e lhes contaram a história de como o mundo
nasceu, lhes explicaram o lugar onde estava e para que lembrassem disso em caso de esquecimento, colocaram
45
Entre os dias 31 de julho e 01 de agosto ocorreu em La Realidad o Primeiro Encontro “Magistério Democrático e Sonho Zapatista”. Os
temas que orientaram o encontro entre os professores e os zapatistas foram:
1. A EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA ZAPATISTA
 Realidade nacional e educação;
 Perfil histórico da educação no México;
 Paradigmas psicopedagógicos e prática docente quotidiana
 Diversidade cultural e educação
 Rumo a um projeto educativo do zapatismo.
2. MAGISTÉRIO E CORPORATIVISMO
 Quadro normativo e democracia;
 Lutas do magistério pela democracia sindical;
 Perspectivas de democracia no Sindicato Nacional dos Trabalhadores no Ensino;
 A Confederação Nacional dos Trabalhadores no Ensino como tendência histórica pela democracia sindical
3. O MAGISTÉRIO DIANTE DO SONHO ZAPATISTA
 A visão zapatista do mundo;
 Os princípios e programas do zapatismo: a) Horizontalidade; b) Inclusão; c) Tolerância; d) Diversidade; e) Democracia.
 Formas de fazer política do EZLN;
 Quotidianeidade do magistério e valores zapatistas;
 Organização escolar e democracia;
 A pedagogia como discurso do poder na sala de aula;
 A pedagogia como instrumento político na prática docente.
94
algumas anotações num papelzinho, o dobraram várias vezes, como uma sanfona, e o guardaram numa das
cicatrizes que povoam a pele da ceiba.
Os primeiros deuses foram embora para o baile e para a sua cantoria. Muito tempo depois que já havia se
apagado a eco das marimbas, dos violões e dos sapateados, a ceiba-mãe permanecia firme, sustentando o mundo
para que não caísse e para que ficasse no seu lugar.
Desde então, o mundo está onde está. A ceiba o mantém afastado da noite da pior das mortes, a mais
terrível, a do esquecimento.
O mundo está sobre a ceiba mãe. Volta e meia, ao longo da história, os ventos de cima tem-no empurrado
procurando fazê-lo cair na escuridão do desespero. Não poucas vezes o mundo ficou a ponto de perder-se. Por
todos os lados, os ventos do Poder lançam contra ele guerras, catástrofes, crises, ditadores, modas neoliberais,
líderes que são mestres da enganação, governos corruptos, assassinos que ocupam cargos de governo, criminosos
disfarçados de pré-candidatos a presidência, partidos revolucionários institucionais, OTANs e televisões privadas.
Milhares e milhares de pesadelos sopram seus terrores por todos os lados e procuram derrubar o mundo da copa da
ceiba mãe.
Mas o mundo tem resistido, não tem caído. Os homens e as mulheres verdadeiras de todos os mundos que
fazem o mundo, têm se tornado tronco, ramos, folhas e raiz junto à ceiba mãe para que o mundo não caia, para
resistir, para crescer de novo, para tornar-se novos.
Têm sido terríveis as lutas entre os de cima e os debaixo, entre os poderosos e os despossuídos. Muito tem
sido escrito sobre as razões e as causas destes enfrentamentos. A verdade é que todos têm o mesmo fundamento: os
poderosos querem derrubar o mundo que a ceiba sustenta, os debaixo querem preservar o mundo e a memória
porque é dela que se faz crescer o amanhã.
Os poderosos lutam contra a humanidade.
Pela humanidade, lutam e sonham os despossuídos.
Esta é a verdadeira história. E se ela não aparece nos livros de texto do primário é porque ela é escrita ainda
pelos de cima, mesmo que seja feita pelos debaixo.
Mas, ainda que não integre os planos oficiais de estudo, a história do nascimento do mundo e o mapa que
explica onde está, continuam guardados nas cicatrizes da ceiba-mãe.
Os mais velhos entre os velhos das comunidades, confiaram os segredos aos zapatistas. Falaram-lhes entre
as montanhas e contaram-lhes onde está a anotação que foi deixada pelos primeiros deuses, os que deram origem
ao mundo, para que a memória não andasse perdida.
De vez em quando, desde que nasceram os sem rosto, sem nome e sem um passado individual, os
zapatistas foram alunos da história que a terra ensina. No amanhecer do ano de 1994, os zapatistas tornaram-se
professores para, consultando a velha anotação da memória, ensinar como nasceu o mundo e mostrar onde se
encontra.
Por isso, os zapatistas são alunos e professores. Por isso os professores são zapatistas, ainda que isso se
esconda por trás das mil siglas nas quais vive a dignidade.
No Aguascalientes de La Realidad, numa de suas esquinas, a ceiba preside, vigia, encoraja e agasalha o
vertiginoso ir e vir de homens e mulheres.
Há dias em que ninguém caminha por estes solos, mas outras manhãs se povoam de homens e mulheres de
todas as cores, tamanhos e sabores que falam, riem, se preocupam, dançam, cantam e falam, sobretudo falam e,
mesmo que nem sempre, entram em acordo, mas, isso sim, estão sempre se encontrando.
Nas solitárias madrugadas em La Realidad, quando alguma nuvem começa a chorar com úmida ênfase,
quando em cima e em baixo a chuva se faz mais forte, será possível ver uma sombra entre as sombras, sempre sem
rosto, que se aproxima da ceiba mãe e procura um papelzinho entre as úmidas dobras da história. Tremendo, o
encontra; tremendo, o abre; tremendo, o lê; e, tremendo, o devolve a seu lugar.
Neste papelzinho tem escrito algo que é um peso enorme e que torna livre a quem o carrega, Um trabalho,
uma missão, uma tarefa, algo a ser feito, um caminho a ser percorrido, uma árvore a ser plantada e crescida, um
sonho pelo qual velar.
Talvez, o papelzinho fala de um mundo no qual cabem e se expandem todos os mundos, no qual a
diferença de cor, cultura, tamanho, língua, sexo e história não serve para excluir, perseguir ou enquadrar e sim para
que sua variedade rompa definitivamente o cinza que agora nos afoga.
Quem sabe?
Deve ter algo neste papelzinho porque, não sei se é uma ilusão de ótica ou alguma destas fantasias visuais
que abundam entre as montanhas do Sudeste Mexicano, mas todos jurariam que esta sombra agora sorri, sim, sorri
como se estivesse brilhando...
Irmãos e irmãs, professores e professoras democráticos:
Bem-vindos ao Primeiro Encontro do “Magistério Democrático e o Sonho zapatista”
95
Sejam bem-vindos a La Realidad, a que dói e a que se sonha, a que espera pacientemente por algo bom,
mais justo, mais livre, mais democrático.46
Bem-vindos a La Realidad mexicana, a que sonha não o melhor dos mundos possíveis, e sim a que sonha e
merece um amanhã.
Este é o nosso sonho, aquele que, é um paradoxo zapatista, nos tira o sono.
O único sonho que se sonha velando, insones, a história que debaixo nasce e cresce.
Professores e professoras democráticos:
Bem-vindos a La Realidad desvelada, porque é velando que nós zapatistas sonhamos.
Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, 31 de julho de 1999.

P.S.: QUE VAI DE REDUNDÂNCIA. Na realidade, e como aqui estamos em La Realidad, isso de
“Magistério Democrático” é uma reiteração desnecessária. Ser professor é ser democrático. Os que não são
democráticos, não são professores e sim alcançam apenas a categoria de condutores de charretes puxadas por
cachorros.

Encerramento do Encontro “O Magistério Democrático e o Sonho Zapatista”

México, 1º de Agosto de 1999.

Professoras e professores:
Durante estes dois dias foram expostas posições diferenciadas sobre os temas do encontro. Sem dúvida,
todas giram em torno do mesmo eixo: a necessidade da palavra que se encontra e, através dela e por ela, os
movimentos que se encontram e se descobrem indo rumo a um mesmo destino, enfrentando os mesmos obstáculos,
sofrendo as mesmas agressões dos mesmos inimigos de sempre.
Poder-se-ia dizer que a ponte que une um promotor de educação indígena, como os que ontem falaram aqui
diante de vocês, com uma professora ou um professor do ensino primário ou secundário da Baixa Califórnia, de
Jalisco, de Veracruz, de Guanajuato, do Estado do México, de Chiapas ou do Distrito Federal, é o mesmo pesadelo
imposto pelos poderosos: os baixos salários, a repressão como resposta às suas reivindicações, a falta de
democracia sindical, as más condições de trabalho, os planos de estudo absurdos e inúteis, os métodos pedagógicos
ineficientes e opressores os alunos que não tem as mínimas condições para dedicar-se à escola, como deveria ser e
como seria necessário. Foram muitas as coisas que vocês expuseram em suas intervenções e as que saíram nas
trocas formais e informais.
Sim, o mesmo pesadelo une o magistério do país inteiro. Mas não só. De acordo com aquilo que temos
descoberto neste encontro, a ponte que une o magistério democrático tem também muito de sonho.
E é este sonho que converte a ponte inicial do magistério democrático em algo que se multiplica e, sem
querer, já faz desembarcar sonhos que se dirigem aos operários, eletricitários, estudantes universitários, indígenas
rebeldes, camponeses sem terra, donas de casa que não se conformam, colonos inquietos, comunidades eclesiais de
base que lutam comprometidas com os pobres, religiosos e religiosas honestos, artistas e intelectuais fartos da jaula
de ouro na qual o Poder os mantém, homossexuais e lésbicas perseguidos, mexicanos e mexicanas que dizem e se
dizem, que murmuram e que às vezes gritam “Basta!”.
E se agora falo de pontes é porque quero lembrar-lhes que ninguém neste país tem as melhores
oportunidades e as melhores ferramentas para lançar pontes a não ser os professores e professoras. Além de suas
próprias reivindicações, o magistério é o espelho e a janela do que ocorre em todo o país através delas e deles
vêem-se as contradições e os contrastes de um país colocado à venda por uma quadrilha de ladrões, mas que resiste
a morrer como Nação.
Nós, os professores democráticos podemos construir estas pontes. Se até agora não as temos feito é porque
estamos ainda fechados em nossos próprios horizontes que, mesmo que amplos, não incluem todos, ou porque
temos esquecido que ser professora e professor é ser também construtores de pontes.
Eu disse “nós, os professores democráticos”?
Um momento, não somos nós os indígenas rebeldes, zapatistas, transgressores da lei da gravidade e das
outras, pedras no sapato do poderoso, testemunhas incômodas das deformações da classe política, desafiadores
críticos da velha política, soldados que combatem para que os soldados não existam, seres noturnos sem rosto e
46
Nesta frase e em algumas das que seguem, o Subcomandante Marcos brinca com as palavras “realidade” (realidad, em espanhol) e “La
Realidad” (nome do Aguascalientes). Infelizmente, não conseguimos reproduzir em português o efeito do texto espanhol.
96
sem nome, sombras das sombras, mortos ignorantes e falantes, sonhadores, utópicos incorrigíveis, irreverentes e
outros etceteras que agora me fogem, mas que podem ser encontrados em qualquer coluna de jornal, revista,
noticiário ou comentários como aqueles nos quais o governo repete mentiras nas quais nem ele acredita?
Sim, somos tudo isso e mais. Mas também somos professores democráticos, trabalhadores eletricitários,
estudantes universitários, trabalhadores do campo e da cidade, artistas e intelectuais, religiosos e religiosas,
colonos, homossexuais e lésbicas, mulheres, homens, crianças e anciãos comuns e corriqueiros, ou seja, rebeldes,
inconformes, incômodos, sonhadores.
Mas, a coisa mais importante que nós zapatistas queremos pedir-lhes é que nos vejam como a outra seção
sindical democrática. Que não nos vejam como alguém que tem que ser ajudado através da compaixão, da esmola,
da caridade porque é um coitadinho.
Queremos que nos vejam como seus companheiros e companheiras, dispostos como ninguém mais a apoiar
as lutas do magistério. Não só porque suas demandas são justas e porque vocês são pessoas boas e honestas, mas
também e sobretudo porque elas são as nossas mesmas demandas.
Porque nada estará completo e acabado se o magistério continua oprimido pelo peleguismo sindical, se
persistem as más condições de trabalho e os baixos salários, se a educação continua existindo para reproduzir
oprimidos e opressores, se para milhões de mexicanos a escola continua sendo tão distante quanto uma moradia
digna, um salário justo, um pedaço de terra, uma alimentação suficiente, uma saúde perfeita, a liberdade de
pensamento e de associação, a democracia popular, uma independência autêntica e uma paz verdadeira.
Agora, aproveitando que estão aqui, queremos pedir-lhes algo especial. Queremos pedir-lhes que apóiem o
movimento estudantil da UNAM e a luta do Sindicato Mexicano dos Eletricitários. A primeira é contra a
privatização do ensino e a outra é contra a privatização do setor elétrico.
Nestes dias, os estudantes estão sendo vítimas de uma ofensiva feroz levada adiante pelo governo e pelos
meios de comunicação eletrônica a serviço dos poderosos. A luta dos estudantes e de sua liderança coletiva, o
Conselho Geral de Greve, é também a luta de todos nós e não devemos recusar-lhes nenhum tipo de apoio. Não só
pedimos que os apóiem, como que lhes façam sentir este apoio, para que elas e eles saibam que as professoras e
professores democráticos apóiam sua luta e a assumem como sua.
Professoras e professores democráticos:
O EZLN é um exército e é zapatista. Mas é também de “Libertação Nacional”. E isso não só quer dizer que
a sua luta atinge todo o país, como também significa que a sua luta é por e para todos os mexicanos e mexicanas.
Quer dizer que a nossa luta é também pelos professores e professoras, mas, sobretudo, significa que as
lutas do magistério são também as nossas lutas.
Queremos que entendam que vocês têm lançado uma ponte até os zapatistas. E as pontes são para serem
cruzadas sim, mas devem ser cruzadas de ambos os lados.
E esta ponte que tem muito de sonho e de realidade desvelados, foi feita para que vocês venham até nós,
mas também para que nós possamos ir até vocês.
Agora lembro o que comentaram os companheiros e companheiras delegadas zapatistas quando voltaram
da Consulta do 21 de março passado. Elas e eles diziam: “as professoras e os professores nos receberam muito
bem, são companheiros e companheiras”. Para nós isso é mais que uma medalha, um diploma, uma saudação
solene ou uma homenagem. É um compromisso e, antes de qualquer coisa, um compromisso que nós temos com
vocês.
Por isso lhes pedimos que nos vejam como nós os vemos, como companheiros e companheiras. Que
continuemos a nos encontrar diretamente, sem intermediários. Sejam vocês a vir ou nós a irmos até vocês. Venham
como seções sindicais, como grupos escolares, como indivíduos, como tendências, como organizações do
magistério, como queiram. Mantenham-nos informados sobre suas lutas, suas reivindicações, seus problemas e seus
triunfos. Uns e outros são também nossos.
Venham até as comunidades, tragam os demais companheiros e companheiras, suas famílias, seus alunos.
Todos e todas serão bem recebidos. Se quiserem tragam também seus líderes pelegos, estes não serão bem
recebidos, mas não é uma má idéia para desfazer-se deles.
Unam suas escolas com as das comunidades com laços fraternais. Com os mesmos laços, unam suas seções
sindicais com as comunidades e os municípios autônomos. Não deixem que esta ponte se perca ou que ela seja só
um sonho (ou um pesadelo a depender do assento que foi ou será destinado a cada um de vocês na viagem de vinda
e na de volta).
Que também os poderosos lá em cima saibam que os professores e professoras democráticos do maior
sindicato da América e os zapatistas estão se encontrando, estão se descobrindo, estão entrando em acordo sobre
algo perigosamente subversivo, revolucionário e desestabilizador: lutar juntos pela democracia, a liberdade e a
justiça para todos os mexicanos e mexicanas.
Valeu. Saúde, boa viagem e, se for necessária uma referência mais clara, de agora em diante esta é a seção
1.111 da Coordenação Nacional dos Trabalhadores em Educação, que é maneira pela qual o magistério
democrático é conhecido no México.
97

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, agosto de 1999.

Aos professores da Universidade Nacional de Pedagogia

México, 11 de agosto de 1999.

Aos professores e aos estudantes da Universidade Nacional de Pedagogia:


Aos professores do ensino regular rural do México:

Bem-vindos à La Realidad. Queremos que todas e todos vocês, e aqueles que são como vocês mas hoje não
puderam estar conosco, saibam que estamos muito felizes em encontrarmo-nos com vocês para conhecer seus
pensamentos e palavras e poder-lhes comunicar diretamente o nosso pensamento, sem intermediários.
Alguns anos atrás, nestas montanhas vivia ainda um velho professor, o seu nome é Antônio, e, de tanto
estar com ele e aprender dele e com ele, acabei por chamá-lo “Velho Antônio”. Indígena entre os mais antigos que
habitam estas terras, o Velho Antônio se fez de morto nos primeiros meses de 1994. Com a desculpa de uma
tuberculose que lhe foi roubando os pulmões pedaço por pedaço, teve uma madrugada em que ficou quieto e
conseguiu enganar a muitos lhes fazendo crer que estava morto. Logo que o seu corpo foi enterrado ao pé de uma
das ceibas, a maior e a mais poderosa destas montanhas, o Velho Antônio teve a manha e a habilidade de dar uma
de suas escapadelas para vir encontrar-me. Veio pedir fogo para acender um de seus eternos cigarros feitos com a
maquininha de enrolar, ou seja, para iluminar uma das histórias que andam no coração e na pele deste homem que a
seu tempo foi aluno e professor.
O Velho Antônio não estudou pedagogia e sequer terminou o primário. Tem mais, suspeito que ele
aprendeu a ler e escrever com alguns desses primeiros deuses que povoam as histórias com as quais nos presenteia
mis como peso e responsabilidade do que como diversão e alívio. Ma acredito que vocês concordam comigo que o
Velho Antônio é e foi professor, e um professor dos bons. Todo caso, tenho certeza de que ele faria um papel
melhor do que aquele triste e patético que foi sucessivamente desempenhado pelas autoridades da Universidade
Nacional de Pedagogia.
Agora vou lhes contar do Velho Antônio porque foi justamente numa destas madrugadas que assombram e
desconcertam o mês de agosto toda vez que chove entre as montanhas do Sudeste Mexicano, que o Velho Antônio
foi chegando até onde eu estava sentado mordiscando o cachimbo pela enésima vez e tratando de conter a
indignação provocada em mim pela agressão dos granadeiros contra os estudantes universitários alguns dias antes.
Olhava para um lado qualquer, para nada em particular, tratando talvez de adivinhar alguma pergunta escondida em
um canto da complexa sombra que em La Realidad caminha e se desvela, quando o velho Antônio me pede fogo
para o seu cigarro que mal saiu da sua maquininha de enrolar. Por si só, o Velho Antônio se aproxima calado, parco
nos gestos e nas palavras. Mas quando o fumo do tabaco começa a sair dos seus lábios, com ele saem também
histórias grandes e pequenas, como esta que agora vou contar assim como me foi contada pelo Velho Antônio
enquanto me observava olhar e que, daquilo que lembro, chama-se...

A história do olhar

Uma lenta voluta de fumo sai da boca do Velho Antônio que a olha e, com seu olhar, começa a dar-lhe
forma de signo e de palavra. Ao fumo e ao olhar seguem as palavras do Velho Antônio.
“Olhe Capitão (pois, devo esclarecer que na época em que conheci o Velho Antônio eu tinha o grau de
Segundo Capitão de Infantaria Insurgente; o que não deixava de ser um típico sarcasmo zapatista, pois éramos só 4,
e desde então o Velho Antônio me chama “Capitão”), olhe Capitão, teve um tempo, já faz muito tempo, em que
ninguém olhava. E não era pelo fato dos homens e das mulheres que andavam por estas terras não terem olhos. Ter,
tinham, mas não olhavam. Os maiores deuses, os que fizeram nascer o mundo, os primeiros, já haviam dado origem
a muitas coisas mas sem deixar minimamente claro o para que e o porque, ou seja, o motivo ou o trabalho que cada
coisa deveria fazer ou tratar de fazer. Porque cada coisa tinha uma razão de ser, pois sim, porque os deuses que
deram origem ao mundo, os primeiros, eram os maiores e eles sim conheciam muito bem o para que e o porque de
cada coisa, no fim das contas eram deuses. Mas acontece que estes primeiros deuses não se preocupavam muito
com aquilo que faziam, faziam tudo como festa, brincadeira, baile. Os mais velhos entre os velhos contam que
quando os primeiros deuses se reuniam, com certeza, tinham que fazer uma de suas marimbas porque, na certa, ao
terminar suas assembléias, viriam a cantoria e o baile. E tem mais. Dizem que se a marimba não estivesse ao seu
alcance, pois então já não iria ter assembléia e, assim, os deuses ficariam coçando a barriga, contando piadas e
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fazendo travessuras entre eles. Bom, o caso é que os primeiros deuses, os maiores, deram origem ao mundo, mas
não deixaram claro o para que e o porque de cada coisa. E uma destas coisas eram os olhos. Por acaso, os deuses
haviam dito que os olhos eram pra olhar? Não, pois. Por isso, os primeiros homens e as primeiras mulheres que
estiveram caminhando por aqui andavam aos tombos, entre batidas e quedas, chocando-se entre eles, agarrando
coisas que não queriam e deixando de pegar aquelas que queriam. Assim como muitas pessoas fazem agora que, ao
deixar de agarrar o que precisam e as tornam melhores, pegam o que não querem e causam prejuízos, andam
tropeçando em si mesmas e chocando-se um contra o outro. Ou seja, os primeiros homens e as primeiras mulheres
tinham sim os seus olhos, mas não enxergavam. E eram muitos e muito diferentes os tipos de olhos destes
primeiros homens e destas primeiras mulheres. Havia olhos de todas as cores, tamanhos e das mais diferentes
formas. Havia olhos redondos, puxados, ovais, pequenos, grandes, médios, pretos, azuis, amarelos, verdes,
marrons, vermelhos e brancos. Sim, eram muitos olhos, dois em cada um dos primeiros homens e das primeiras
mulheres, mas que não enxergavam nada.
E teria sido assim até os nossos dias não fosse porque uma vez aconteceu algo. Acontece que os primeiros
deuses, os que deram origem ao mundo, os maiores, estavam fazendo um de seus bailes porque era agosto, pois,
mês da memória e do amanhã, quando alguns homens e mulheres, que nada enxergavam, foram parar onde os
deuses estavam realizando sua festança, e aí acabaram esbarrando nos deuses, batendo na marimba e derrubando-a.
A festa virou pura confusão. A música, a cantoria e o baile pararam e criou-se uma grande dispersão com os
primeiros deuses indo de um lado para outro tratando de ver o que havia parado a festa enquanto os homens e as
mulheres, que não enxergavam nada, continuavam tropeçando e chocando-se entre eles e contra os deuses. E assim
passaram um bom tempo entre trombadas, quedas, cabeçadas e imprecações.
Por fim, os deuses maiores se deram conta de que toda esta bagunça havia acontecido na hora que haviam
chegado estes homens e estas mulheres. Então se ajuntaram e falaram-lhes perguntando se, por acaso, eles não
viam por onde andavam. Então, os primeiros homens e as primeiras mulheres não se olhavam porque, por si só, não
enxergavam, mas perguntavam o que era “olhar”. E então os deuses que deram origem ao mundo se deram conta
que não havia deixado claro o para que serviam os olhos, ou seja, qual era a sua razão de ser, o porque e o para que
dos olhos. E, assim, os maiores deuses explicaram aos primeiros homens e as primeiras mulheres o que era olhar e
os ensinaram a olhar.
Assim, estes homens e estas mulheres aprenderam que é possível olhar o outro, saber o que é, onde está,
que é outro para não se chocar contra ele, nem pegá-lo, nem passar por cima dele ou nele tropeçar.
Souberam também que é possível olhar dentro do outro e ver o que o seu coração sente. Porque nem
sempre o coração fala com as palavras que nascem dos lábios. Muitas vezes, o coração fala com a pele, com o olhar
ou com os passos.
Também aprenderam a olhar para quem olha olhando-se, que são aqueles que buscam a si mesmos nos
olhares dos outros. E souberam olhar para os outros que os olham olhar.
E os primeiros homens e as primeiras mulheres aprenderam todos os olhares. E o aprendizado mais
importante é o olhar que olha a si mesmo, sabe-se, conhece-se, o olhar que olha a si mesmo olhando e olhando-se,
que enxerga caminhos e vê amanhãs que ainda não nasceram, caminhos a serem percorridos e madrugadas a serem
paridas.
E já que aprenderam isso, os deuses que deram origem ao mundo encarregaram estes homens e estas
mulheres, que haviam chegado tropeçando, esbarrando e fazendo cair tudo, a tarefa de ensinar aos demais homens e
mulheres como se olhava e para que serve o olhar. E assim, os diferentes aprenderam a olhar e a olhar-se.
Mas nem todos aprenderam porque o mundo já havia começado a andar, homens e mulheres já andavam
por todos os lados, tropeçando, caindo e esbarrando uns nos outros. Mas alguns e algumas aprenderam; e estas e
estes que aprenderam a olhar são os chamados homens e mulheres de milho, os verdadeiros”. O Velho Antônio
ficou em silêncio. O vi olhar-me enquanto o olhava e dirigi o olhar para um canto qualquer desta madrugada.
O Velho Antônio olhou para o que eu olhava e, sem dizer nenhuma palavra, sacudiu com a mão a bituca
acesa do seu cigarro. Logo, convocado pelo sinal de luz do Velho Antônio, um vaga-lume saiu do canto mais
obscuro da noite e traçando breves serpentinas luminosas, se aproximou até onde eu e o Velho Antônio estávamos
sentados. O Velho Antônio pegou o vaga-lume com os dedos e, com um sopro, o mandou embora. O vaga-lume foi
embora falando com sua luz tartamuda.
Por um bom tempo, a noite debaixo continuou obscura.
De repente, centenas de vaga-lumes começaram o seu baile cintilante e desordenado e, aí, a noite debaixo
tinha tantas estrelas quantas tem a noite de cima que agosto veste nas montanhas do sudeste Mexicano.
“Para olhar, e para lutar, não basta saber onde dirigir os olhares, a paciência e os esforços”- me diz o Velho
Antônio enquanto ia se levantando. É necessário também começar, chamar e encontrar outros olhares que, a seu
tempo, começarão, chamarão e encontrarão outros mais.
Assim, olhando o olhar do outro, nascem muitos olhares e o mundo percebe que pode ser melhor e que há
um lugar para todos os olhares e para quem, mesmo que seja outro e diferente, olha olhar e olha a si mesmo
caminhando a história que ainda falta.
99
O Velho Antônio foi embora. Permaneci sentado toda a madrugada e, quando acendi de novo o
cachimbo, mil luzes acenderam o olhar debaixo, e teve luz debaixo, que é onde deve ter luz e múltiplos olhares.

Irmãs e irmãos professores e estudantes:


Esperamos que o nosso encontro tenha êxito e permita-lhes conhecer e entender o nosso olhar. Queremos
repetir-lhes que são bem-vindas e bem-vindos a estas terras.
Sabemos que o seu olhar saberá olhar-nos olhando-os e que, logo, o seu olhar convocará outros mais,
muitos, haverá caminho e luz, e, um dia, ninguém mais tropeçará de madrugada...
Valeu. Saúde, e para olhar longe não são necessários os binóculos e sim uma visão ampla que a dignidade
presenteia a quem por ela luta e vive.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, agosto de 1999.

A noite... a noite é nossa. Discurso de Marcos na abertura do


Encontro Nacional em Defesa do Patrimônio Cultural.

Esta é a narração de como tudo estava em suspenso, tudo calmo, em silêncio, tudo imóvel, calado, e vazia
era a extensão do céu.
Esta é a primeira narração, o primeiro discurso. Ainda não existia um único homem, nem um animal,
pássaro, peixe, caranguejo, árvore, pedra, cova, barranco, erva e nem bosque: existia somente o céu. A face da
terra não aparecia. Existia somente o mar em bonança e o céu em toda a sua extensão. Junto a eles não havia
nada que fosse mundo, nem coisa que se movesse, se agitasse ou fizesse barulho no céu.
Não existia nada que ficasse de pé; só a água em repouso, o mar ameno, sozinho, tranqüilo. Não existia
nada que tivesse vida.
Havia somente imobilidade e silêncio na escuridão, na noite. Só o Criador, o Formador, Tepeu, Gucumatz,
os progenitores, estavam na água rodeados de luz. Estavam escondidos debaixo de plumas verdes e azuis, por isso
é chamado Gucumatz. Sua natureza é a dos grandes sábios, dos grandes pensadores. Desta forma, existia o céu e
também o coração do céu. Assim contavam.
Então a palavra chegou até aqui, Tepeu e Gucumatz vieram juntos, na escuridão, na noite, e Tepeu e
Gucumatz falaram entre si. Falaram, pois, consultando-se entre si e meditando; entraram em acordo, e uniram
suas palavras e seus pensamentos.
Enquanto meditavam, manifestou-se com clareza que quando amanheceria deveria aparecer o homem.
Então, determinaram a criação e o crescimento das árvores, das matas, o nascimento da vida e a criação do
homem. Assim foi ordenado nas trevas e na noite pelo Coração do Céu, que se chama Huracán.

Popol Vuh.

Hoje, agosto é uma longa noite sobre o mundo. Num outro agosto, entre as montanhas do Sudeste
mexicano, o Velho Antônio afia lentamente o seu facão de dois gumes. A luz do fogão arranca faíscas alaranjadas e
azuis do plúmbeo e alongado espelho que as mãos do Velho Antônio sustentam, enquanto Dona Juanita tira da
chapa algumas tortilhas. Eu espero sentado num canto, fumando. Esta noite, sairemos para caçar com o Velho
Antônio que, suponho, planeja estar nas montanhas antes que amanheça, pois ele pediu a Dona Juanita que nos
prepare algumas tortilhas e pozól. Entre um suspiro e outro, Dona Juanita moeu o milho, preparou a massa e já tem
um recipiente desse tamanho cheio de tortilhas recém preparadas. Sobre o fogão, envolvida pelo fogo voluptuoso,
uma panelinha requenta o café.
Eu vou adormecendo com o rítmico talhar da lima na dupla lâmina do facão e com o cheiro das tortilhas de
Dona Juanita. De repente o Velho Antônio se levanta e diz:
- Eu vou indo.
- Sim - diz Dona Juanita, enquanto termina de enrolar uma grande bola de pozól em folhas de plátano e, junto com
as tortilhas, a coloca na pequena mochila do Velho Antônio. Com cuidado coloca o café numa velha garrafa de
plástico e a põe junto ao pozól e as tortilhas.
Eu acordo e me levanto. Saímos e já estamos no umbral da porta quando percebo que o Velho Antônio não
está levando a sua velha espingarda.
- Você está esquecendo a sua arma - lhe digo.
- Não estou esquecendo dela; é que esta noite não precisamos de espingarda - responde o Velho Antônio sem
sequer deter-se.
100
Saímos para a noite. Sim eu sei que a expressão “saímos para a noite” se usa em sentido figurado, mas
neste caso era mais do que isso. Quando estávamos na choça do Velho Antônio parecia que a noite tivesse ficado
do lado de fora, como se não tivesse sido convidada para a cerimônia de afiação do facão, de aquecimento do café e
do cozimento das tortilhas. Mesmo que a desvencilhada porta do casebre estivesse aberta, a noite não entrava,
chegava até o batente e aí ficava, como se soubesse que aquele não era o seu lugar, e que o seu era outro, do lado de
fora. Por isso, quando saímos da choça do Velho Antônio saímos para a noite.
Caminhamos um bom pedaço pela estrada principal. Tinha acabado de chover forte, e os vaga-lumes
começavam de novo a brincar, estendendo rápidas serpentinas de luz entre os ramos e a mata. Mesmo assim, agosto
espalhava pântanos e lodo por toda parte e, volta e meia, era impossível encontrar uma passagem que não
significasse andar atolado até os joelhos. Pouco depois, pegamos o desvio de um velho atalho pelo qual se passava
só de vez em quando e que, portanto, não tinha muito barro. Por aí parecia ter uma grande barreira, pois as árvores
eram altas e frondosas, e era como se tivéssemos saído de uma noite para entrar em outra mais escura, uma noite
dentro da noite.
Ignorava o que estávamos procurando e o que íamos caçar já que o Velho Antônio havia deixado a sua
espingarda no povoado, mas como não era a primeira vez que sair com o Velho Antônio era, de início, um mistério
(que acabava esclarecido no final da jornada, assim como a madrugada vai clareando quando o sol começa a
arranhar as costas das nuvens) eu não disse nada e segui em silêncio os passos do Velho Antônio.
Já devia ter passado da meia-noite quando o atalho terminou ou se perdeu por entre o crescimento da mata
(que teima em fechar as feridas que o homem e as tormentas lhe provocam). Continuávamos a caminhar sem parar.
De vez em quando, o Velho Antônio usava o seu facão para abrir-nos uma passagem, sobretudo, quando a mata
tornava-se uma parede diante de nós.
Enquanto eu usava a minha lanterna o tempo todo, o Velho Antônio ligava a sua só de vez em quando e o
fazia dirigindo o feixe de luz de um lado para outro, só por um momento, como que procurando algo. De repente,
se deteve e a sua lâmpada persistiu um bom bocado apontando para o solo. Eu também iluminei aquele canto, mas
não vi nada especial: alguns ramos arrancados pelo vento, cipós, capim, pequenas plantas, alguma raiz fazendo
aparecer seus nós e suas corcundas por entre a terra.
- É aqui - murmurou o Velho Antônio e foi sentar debaixo de uma árvore logo em frente, a uns 10 metros do lugar
que havia iluminado alguns segundos antes.
Ficamos aí um bocado, sentados, esperando. Quando vi que o Velho Antônio começou a preparar o seu
cigarro soube de três coisas: uma era que não estávamos esperando nenhum animal (o cheiro do tabaco o afastaria),
a outra era que se podia fumar e a terceira era que o Velho Antônio começaria a falar a qualquer momento. Assim,
tirei o cachimbo e o tabaco, acendi o cigarro do Velho Antônio e o meu cachimbo, lançando grandes baforadas e
tratando de afugentar o cansaço e de ajudar o Velho Antônio a trazê-lo à memória. De mesmo jeito que alguma vez
andei narrando-a ao mar, agora a conto a vocês...

A história da noite

As pessoas que não são sábias, dizem que a noite esconde muitos e grandes perigos, que a noite é o
esconderijo dos ladrões, o lugar das sombras e dos temores. É isso que dizem as pessoas que não sabem. Mas você
deve saber que o mal e o mau já não andam escondidos por detrás das negras rugas da noite, nem se põem ao
seguro nos covis. Não, o mau e o mal andam sob o sol e caminham impunemente à luz do dia. O mal e o mau
moram nos grandes palacetes do Poder, possuem fábricas, bancos e grandes lojas, vestem roupas de senadores ou
deputados, são presidentes das diferentes repúblicas que sofrem nestas terras e falam como se não fosse o mal e o
mau aqueles que estão falando. O mal e o mau escondem sua cinzenta pestilência debaixo de mil cores e andam
nas modas que eles mesmos decretam.
Sim - diz o Velho Antônio soltando uma redonda voluta de fumo - o mal e o mau já não se escondem,
agora se mostram e até se tornam governo. Mas não foi sempre assim. Houve um tempo em que o mal e o mau não
andavam a luz do dia. E tem mais, ninguém andava durante o dia porque o dia ainda não existia. Foi o tempo em
que tudo era noite e água, tudo e todos estavam mergulhados na noite, nada e nem ninguém saia dela. Contam os
velhos mais velhos entre os velhos que todos os seres estavam mergulhados na noite e não faziam outra coisa a
não ser andar por ela de uma extremidade a outra, mas sem nunca chegar ao outro lado. Não porque não
quisessem, e sim porque não existia o outro lado, somente uma grande noite silenciosa. Contam, também, que foi
durante a noite que se reuniram, pela primeira vez, os maiores deuses, os que deram origem ao mundo, os
primeiros. Alguns dizem que seu primeiro acordo foi o de criar o dia, porque viram que era bom que existisse o dia
e que ele viesse depois da noite. Mas não foi assim, não. O primeiro acordo a que chegaram os primeiros deuses
foi o de expulsar o mal e o mau da noite. Contam os mais velhos que os primeiros deuses tinham muitas e grandes
razões para tomar a decisão de expulsar o mau e o mal da casa da noite. Dizem que Tepeu, o vencedor de todas as
batalhas, falou e deixou claro que nem a noite e nem o mundo que os deuses iriam parir eram o lugar para o mal e
o mau, e, mesmo que demorasse bastante, era necessário lutar para arrancar de vez o mal e o mau.
101
Gucumatz, de corpo longo e vestido de plumas de quetzal, a mais sábia, disse que a noite é para que
sejam feitas coisas boas e que o mal e o mau impediam isso. Muito falaram os primeiros sete deuses, os maiores,
que sete vezes eram dois em cada um. O acordo final a que chegaram foi o de que o mal e o mau deviam ser
expulsos da noite e jogados pra bem longe, onde nenhuma lembrança pudesse alcançá-los. Foi este o primeiro
acordo quando o mundo ainda não existia, quando não existia o dia e nenhuma das outras coisas, quando tudo era
somente noite e água negra que permanecia silenciosa. É isto que contam os mais velhos entre os velhos, que é
donde as comunidades vão escrevendo suas histórias passadas. Entre os povos mais antigos, como pequenos
cofres que logo irão falar, os homens e as mulheres de milho guardam a história de como e para que tudo foi feito.
E contam os mais velhos entre os velhos que ao primeiro acordo seguiu-se o primeiro problema: não havia
pra onde expulsar o mal e o mau porque, neste tempo sem tempo, tudo era noite e água, ainda não tinha sido feito
nada, tudo esperava a sua hora. Então os primeiros deuses voltaram a se reunir e viram que antes tinham que
criar as coisas e os lugares, e que somente então teriam um lugar para onde expulsar o mal e o mau. Assim foram
criadas todas as coisas; como o dia nasceu da noite, o mesmo aconteceu com as mulheres e os homens de milho,
foram criados pássaros, animais e peixes e teve movimento no céu, na terra, no mar, e o mundo começou a andar.
Apesar de recém-nascido, o mundo começou a andar depressa porque era muito grande o peso da tarefa com a
qual começava a sua longa jornada. E os primeiros deuses ficaram muito cansados porque havia sido muito o que
haviam feito nascer, pois era um mundo, e dentro desse mundo já existiam muitos mundos, todos diferentes uns dos
outros e, sem dúvida, mundos do mundo. Os maiores deuses ficaram tão esgotados que esqueceram que seu
primeiro acordo havia sido o de expulsar o mal e o mau da noite e de mandá-los pra bem longe, onde não fossem
alcançados por memória ou lembrança alguma. Os primeiros deuses perceberam do que havia esquecido e
procuraram o mal e o mau para expulsá-los com seu grande poder. Os procuraram por toda a noite e não os
encontraram, um por um foram vasculhados todos os esconderijos da noite e nada de ver aparecer o mal e o mau.
E eis que, contam os mais velhos entre os velhos, o mau e o mal haviam aproveitado da confusão de quando tudo
estava nascendo pela primeira vez e, para levar vantagem, haviam fugido na noite para chegar ao dia e nele
haviam-se escondido sob o disfarce de governantes. De vez em quando, ao longo do tempo no qual o tempo
caminha, o mal e o mau mudaram de roupagem para, sem deixar de ser Poder e governo, aparentar que outros
estão sendo como eles são, os mesmos.
A noite, pois, ficou agora com seus limites, suas portas e janelas, criou a sua própria vida e foi
construindo as luzes que sustenta na escura anágua. É verdade, a noite tem suas sombras. Mas, sombras da
sombra, os homens e as mulheres que moram nas montanhas e dela cuidam, tem suas próprias faíscas e, a seu
modo, também a iluminam. É isso que contam os velhos entre os mais velhos. E contam que os primeiros deuses
ainda estão à procura do mal e do mau durante toda noite, e que é comum encontrá-los levantando alguma pedra,
sacudindo alguma nuvem sonolenta, fazendo cócegas à lua ou arranhando as estrelas, tudo para ver se o mal e o
mau não estão escondidos por aí.
Contam também que quando se cansam de procurar, os primeiros deuses se reúnem, juntam um montão de
estrelas sobre o negro fogão da montanha e, com um fogo azul e cor-de-rosa, fazem seu baile, sua cantoria e a
marimba de osso, madeira e luz que enchem a noite que nasce entre as montanhas do Sudeste mexicano. Fazem
isso porque dizem que o mal e o mau não gostam da dança e do canto e fogem para longe quando se organizam
momentos de alegria nestas terras.
E contam os mais velhos entre os velhos que os primeiros deuses escolheram um grupo de homens e
mulheres para que fossem procurar o mal e o mau pelo mundo todo e para que, ao encontrá-los, os mandem para
longe. E contam que, para que ninguém o soubesse, esconderam a grandeza destes homens e mulheres em
pequenos corpos e os pintaram com a cor morena para que andassem durante a noite sem medo e para que
durante o dia fossem terra da terra. E para que não esquecessem que a noite foi a mãe, o início, a casa e o lugar
dos primeiros deuses, vestiram o seu rosto com a cor preta para que ficassem sem rosto e, mesmo durante o dia,
levassem um pedaço da noite na memória.
É isso que contam os mais velhos entre os velhos, diz o Velho Antônio, preparando um novo cigarro.
Depois de acendê-lo, sopra e reaviva a palavra: estes homens e mulheres de quem tanto se conta são os que
chamam de “verdadeiros” e que começaram a procurar o mal durante a noite, junto aos primeiros deuses. Mas
algumas vezes terão que sair durante o dia para aí também procurar e encontrar o mau e o mal. Sairão e entrarão
do dia para a noite pela porta melhor, pela madrugada.

O Velho Antônio fica em silêncio. Lá em cima, a madrugada começa a ceder ao implacável cortejo do sol.
Um último suspiro desfaz o último obscuro esconderijo e, depois de ter deixado as marcas de suas unhas nas costas
daquela nuvem, o sol se encaminha para o morro mais alto.
O Velho Antônio levanta, estica as pernas, revisa e fio do facão e diz:
- Pois, vamos embora.
- Vamos? - pergunto. Não estávamos esperando um bicho para caçá-lo ou algo parecido?
102
- Não - responde o Velho Antônio, sem deter-se - não estávamos caçando animal nenhum, ficamos vigiando
para ver se o mal e mau apareciam.
Percorremos rapidamente o caminho de volta. Quando entramos no potreiro, quase nas encostas, o dia já
envolvia todo o vale, as últimas gotas de chuvas eram derrotadas e um monte de galos, mais que cantar, alertavam.
O Velho Antônio parou um pouco e apontando para longe, a ocidente, disse:
- É esta a hora em que o mal e o mau reinam. Já não se escondem. Caminham durante o dia e de dia contaminam e
fazem apodrecer o que tocam. Durante a noite não. A noite... é nossa.
O Velho Antônio se cala e em silêncio percorremos a última légua que nos separava de sua choça. Quando
chegamos, Dona Juanita estava chegando também, com um feixe de lenha nas costas. Enquanto colocava-o no
chão, Dona Juanita perguntou:
- Não apareceram?
- Não - respondeu o Velho Antônio enquanto a ajudava a soltar a corda e a empilhar a lenha contra uma das paredes
da pequena choça.
- Teremos que continuar vigiando - diz Dona Juanita enquanto junta algumas brasas ainda alaranjadas e atiça o
fogo.
- Sim, teremos de continuar vigiando - diz o Velho Antônio, enquanto volta a afiar com a lima os dois gumes do
facão.
Do lado de fora, o dia continua agarrado, sem entrar na choça do Velho Antônio, como se soubesse que lá
dentro se vigiava na busca do mal e do mau, como se temesse que aí dentro, no fogo que Dona Juanita alimentava,
estavam se forjando um outro dia e um outro amanhã...

Irmãos e irmãs do Conselho Geral de Representantes da Escola Nacional de Antropologia e História;


irmãos e irmãs da Frente Interna da Comunidade do Instituto de Antropologia e História; Comunidade da ENAH;
Sindicato Independente dos Trabalhadores de Apoio e de Confiança do INAH; professores do INAH, Delegação D-
III-IA-I, seção 10 do SNTE; Administrativos, Técnicos e Manuais do INAH, Delegação D-III-24, seção11 do
SNTE; irmãos e irmãs da Frente Nacional de Defesa do Patrimônio Cultural, de todas as organizações políticas,
sociais, não governamentais, e indivíduos e indivíduas que a integram:
Bem-vindos a La Realidad e a este primeiro Encontro Nacional em Defesa do Patrimônio Cultural.
Queremos que saibam que para nós zapatistas é uma honra participar com vocês desta reunião e da nobre
inquietação que é seu motor e caminho.
O que hoje nos convoca é um alerta, um chamado de atenção, um documento. O mal e o mau, que já não se
escondem e atuam através de um foro legislativo e executivo, decidiram colocar à venda tudo aquilo que este país,
que apesar deles continua sendo nosso, tem.
Agora, aqueles que governam pretendem colocar na história do México uma etiqueta com o preço e
converter o patrimônio histórico nacional em peça privatizada de coleção, dar um banho asséptico na história para,
depois de enfeitá-la com foguinhos multicores e acrescentar-lhe alguns efeitos especiais, transformá-la num Disney
World do Ancestral já que esta é a única forma pela qual o neoliberalismo concebe o passado.
Para aqueles que hoje nos governam, a história não tem valor nenhum quando não é quotada na bolsa de
valores. E se o patrimônio cultural não pode ser vendido, é algo inútil, que estorva e que, além do mais, tem um
perigoso potencial subversivo.
Se achávamos que os criminosos se escondiam e aproveitavam da escuridão para seus feitos, a nova
geração que faz sofrer a classe política mexicana nos tirou do erro. Os criminosos andam à luz do dia, ostentam
cargos governamentais e partidários, desfrutam de foros constitucionais e são aqueles que tem em suas mãos a
administração da justiça e as forças militares e policiais.
Hoje, a emergência que nos convoca foi lançada há tempo por uma comunidade que volta a colocar em
destaque o valor dos jovens. Estudantes, acadêmicos, pesquisadores, administrativos e trabalhadores manuais da
Escola Nacional de Antropologia e História (ENAH) e do Instituto Nacional de Antropologia e História (INAH)
tem nos alertado quanto a um projeto de lei que verte podridão e baixaria. O projeto em questão propõe o leilão
público do patrimônio cultural do México e que seja o “livre” jogo da oferta e da procura a determinar o preço
desta moléstia histórica.
Graças a estes jovens estudantes do ENAH, descobrimos o que este projeto de lei anuncia: a privatização
de todos os aspectos da vida deste país.
Nós zapatistas agradecemos todos os membros da comunidade da ENAH e do INAH pelo chamado, pela
convocação, pelo sinal de alerta e lhes dizemos que são e sempre serão bem-vindos (claro, à exceção daqueles que
gora nos fazem padecer na qualidade de diretores).
Não fomos só nós zapatistas a ouvir o chamado daqueles que tem feito do estudo e da preservação do
patrimônio nacional a sua vida e o seu destino. Hoje, estão conosco também homens e mulheres que representam
parte do que o movimento social do México tem de melhor: professoras e professores democráticos, organizações
de colonos, não governamentais, culturais, sindicatos, frentes. Estão conosco alguns trabalhadores que lutam contra
103
a privatização do setor elétrico, refiro-me aos irmãos trabalhadores do Sindicato mexicano dos Eletricitários, a
quem enviamos nossa saudação e reiteramos o nosso compromisso de lutar com eles na defesa desse outro
patrimônio nacional que é o setor elétrico.
Menção especial merecem aqueles que agora nos acompanham representando o heróico movimento
estudantil da Universidade Nacional Autônoma do México. Maltratados como nunca, golpeados e caluniados,
perseguidos e desqualificados de mil e uma formas, os universitários resistem e sustentam, contra o vento e a maré,
um movimento que não é só para eles, mas que, como todas as lutas que nascem debaixo, é para todos.
Para eles e elas, para aqueles que hoje resistem nas brigadas, nos postos de vigilância, nas assembléias e no
Conselho Geral de Greve, hoje, peço a todos vocês uma saudação, ou seja, uma salva de palmas. Não só para que
saibam que não estão sós, não só porque os aplausos doem muito menos do que as cacetadas dos granadeiros, mas
também para marcar a distância diante daqueles que eram, mas já não são mais, a esperança dos debaixo e agora
governam em função das pesquisas de opinião, distribuindo cacetadas e prisões àqueles que lhes são assinalados
pelos meios de comunicação eletrônica.
Salve, pois, irmãos e irmãs estudantes da UNAM, sabemos que o aplauso que agora enviamos a vocês não
cura as feridas abertas por aqueles que se dizem “revolucionários e democráticos”, mas servem para aliviar um
pouco a dor.47 Porque os debaixo se aliviam saudando-se e fazem crescer a si mesmos irmanando suas lutas.
Não peço uma saudação para os e as que vou mencionar, mas só um ouvido atento. Refiro-me aos homens,
crianças, mulheres e anciãos indígenas das comunidades zapatistas que hoje sofrem uma verdadeira campanha de
terror liderada pelo exército mexicano e pela polícia de segurança pública do Estado de Chiapas. Hoje as
comunidades zapatistas pagam, rigorosamente e sem pechinchar nada, o preço do seu apoio ao movimento
estudantil da UNAM, à luta do SME e à defesa da memória liderada pelas comunidades da ENAH e do INAH.
Hoje, somos mais perseguidos do que nunca, mais hostilizados, mais golpeados e mais atacados. O Poder pretende
derrotar na nossa dignidade, a dignidade de universitários, eletricitários e defensores do patrimônio cultural.
Por ordem dos povos zapatistas, comunico a vocês, e através de vocês aos universitários e aos eletricitários,
que nada disso que nos fazem nos intimida e que não conseguirão reduzir nem a admiração e nem o apoio que
vocês merecem. Aconteça o que acontecer, escutem bem, aconteça o que acontecer, não mudará o nosso apoio ao
movimento da UNAM, aos trabalhadores do SME e à luta que hoje é liderada pelas comunidades da ENAH e do
INAH. Seja lá o que for, aumentará, mas de maneira nenhuma se reduzirá, o apoio que, mesmo que pequeno,
damos a vocês. Sabemos que vocês sabem disso, os povos me pedem para que o diga a vocês, não porque fiquem
sabendo, e sim porque não se esqueçam disso.
Irmãos e irmãs presentes ao Encontro Nacional em defesa do Patrimônio Cultural: talvez vocês lembrem
das palavras com as quais se encerra a convocação, que se tornou pública, para este encontro. Se não for assim, vou
repeti-las agora. Dizem “Em defesa da memória”. Por isso estamos aqui, para isso fomos convocados. Não
podemos permitir que a memória seja colocada à venda. Não só porque, ao perdê-la, todos nós começaríamos a
perder-nos irremediavelmente, mas porque a memória é a única esperança que nos resta para, com ela e por ela,
abrir o amanhã.
Se hoje estamos na defensiva é porque o mal e o mau ainda dominam o dia, porque a noite continua sendo
ainda o espaço predileto da memória, e porque é na noite da memória que um outro dia já vai se forjando... e se
anuncia.
Chegará um tempo em que, entre todos e todas, finalmente encontraremos o mal e o mau e os
expulsaremos. E para eles não haverá esconderijo tanto de dia como de noite, nem os alcançarão a memória e a
lembrança. E serão só o que agora são, ou seja, um pesadelo, mas que agora, finalmente, estará acabado.
Irmãos e irmãs: é outra vez o tempo da palavra. Vamos proporcionar-lhe o melhor espaço, que estará
sempre dentro de nós e deixamos que seja ela a buscar-nos e a encontrar-nos.
Que falem, pois, todos os que são diferentes. Que falem e encontrem a memória, que com ela conspirem e
com ela construam o futuro melhor: o amanhã. Esta é a palavra de nós zapatistas: em defesa do patrimônio cultural
e para todos...

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos
La Realidad zapatista, trincheira da memória. México, agosto de 1999.

47
Nesta, e na frase anterior, o Subcomandante Marcos refere-se ao apoio dado pelo governador do Distrito Federal e pré-candidato à eleição
presidencial do ano 2.000, Cuauhtémoc Cárdenas, do Partido da Revolução Democrática, à repressão policial levada adiante no dia 4 de
agosto passado na tentativa de pôr fim à greve dos estudantes universitários que, até aquela data, se mantinha há quase quatro meses.
104
Encerramento do Encontro Nacional em Defesa do Patrimônio Cultural

Espalho flores de Guerra, eu, o da face risonha


como quem vem se aproximando da guerra.
Sou um pássaro quetzal e venho voando,
entre passos difíceis chego próximo da guerra.
Sou um estorninho bonito, do pescoço vermelho,
venho voando: venho transformar-me em flor,
em Coelho ensangüentado.
Olhe para mim, eu já fico sério, aperte os flancos
eu aquele que pisca os olhos, o que anda sorrindo.
Venho de dentro do pátio florido. Olhe para mim, eu fico sério,
aperte os flancos. Vou me tornar uma flor,
eu, o Coelho ensangüentado.
Poesia Nahuatl.

Seja o que for, as vésperas e a farta memória são mais reais que o presente intangível.
As vésperas de uma viagem são uma parte preciosa da mesma viagem.
Jorge Luiz Borges.

Agosto de novo, e é novamente madrugada. O mar dorme e um rabicho de nuvem descansa o seu branco
cansaço sobre a montanha, volta a levantar vôo e o seu agitar-se, inquieta, mas não desvela, as estrelas. Lá em
cima, a grande serpente sangra em luzes azuis peroladas. A lua, uma senhora, acaba de lavar o seu rosto e
aproxima-se da sacada, duvidando se ainda voa voando ou ficando parada. La embaixo, perto de uma vela, uma
sombra vigia a noite e a memória. Outra sombra se aproxima dela e uma chama momentânea ilumina dois rostos
sem rosto; que são sombras da sombra.
A nuvem que levanta vôo se atrasa um pouco, o iluminado gotejar da serpente de luz pára, o sol da meia-
noite torna-se uma teia distante, a lua fica imóvel na sua janela e até uma estrela que estava preste a cair não cai e
nem se levanta. Tudo fica parado, imóvel.
Atenção! Escutem! Agora é que reina a palavra...
Ao aproximar-se, o Velho Antônio saudou apenas com o adeus que lhe anda pelos pulmões. Apesar da
tosse, à qual tive de fazer companhia (não só para ser solidário, eu também tinha tosse e, ainda que nem tão
carregada como a do Velho Antônio, a garganta e o pulmão doíam e procuravam alívio) ambos acendemos o tabaco
que carregávamos. Ele o cigarro e eu mordiscava o cachimbo. Foi então que começou a ponte, que é como, por
aqui, também chamam a palavra. E como nos iluminava a luz dançante de uma vela, a história só podia ser de luz,
de sol, de amanhã. Pois esta é...

A história da falsa luz, da pedra e do milho.

Sim, já faz muito tempo. O tempo ainda esperava que o tempo fosse feito de tempo. Os deuses maiores, os
que deram origem ao mundo, os primeiros, caminhavam como, por si só, sempre caminhavam: com passos rápidos
e em sua aflição. Porque acontece que estes primeiros deuses haviam-se demorado um bocado em seus bailes e
cantorias e estavam demorando para criar a Lua e o Sol, cujo trabalho era de dar luz e sombra ao mundo que
andava muito devagar. Então Vucub-Caquix, o sete vezes guardião das sete primeiras cores, deu de achar que ele
era o Sol e a Lua, pois, de fato, eram muitas e muito bonitas as luzes das cores que o vestiam e, como voava alto, a
sua vista chegava longe e por isso lhe parecia estar alcançando todas as coisas. Os homens e as mulheres já
caminhavam sobre a terra, mas não eram muitos. Ou seja, os primeiros deuses já haviam ficado várias vezes
moldando homens e mulheres, pois estes não ficavam bons. Como se estivessem aprendendo, os maiores deuses
manchavam o mundo fazendo e corrigindo os homens e as mulheres que eles criavam. Desse jeito, faltava tempo
para que fossem feitos os homens e as mulheres de milho, os verdadeiros. Ocupados como estavam, os primeiros
deuses não sabiam o que Vucub-Caquix andava dizendo e o fato dele estar querendo que todos o adorassem como
a luminosa luz. Quando ficaram sabendo, os maiores deuses tiveram uma grande idéia: chamaram dois deuses
jovens e dois deuses velhos para que colocassem Vucub-Caquix em seu devido lugar. Os dois deuses mais moços
se chamavam Hunabkú e Ixbalanqué, que são os nomes com os quais também caminha o caçador do amanhecer.
Os dois deuses mais velhos eram Zaqui-Nin-Ac e Zaqui-Nimá-Tziis, o casal criador. Hunabkú e Ixbalanqué
queimaram com o ferro ardente a boca do falso Sol-Lua que acreditava ter uma grande luz. Grande foi a dor de
Vucub-Caquix, mas ele não caiu. Então, os antigos criadores foram até ele, se ofereceram para ajeitar a sua boca,
arrancaram seus dentes perfeitos, os substituíram por dentes de milho. O rosto de Vucub-Caquix caiu, eles
105
cegaram os seus olhos e ele esqueceu suas manias de grandeza e ficou como é agora, voando por estas
montanhas, como uma arara de vôo desajeitado.
Assim foi, e também entre os povos já teve e tem quem acredita ser Sol e Lua e gaba-se de ter uma grande
e poderosa luz. Assim são o ouro, o dinheiro e o poder político que com eles se levantam como passo e destino.
Sua luz cega e transforma, dá como verdadeiro o que é falso e esconde a verdade por trás de falsos rostos. Quando
o dinheiro se tornou um deus mentiroso sobre a terra, seus falsos sacerdotes criaram governos e exércitos para
que a mentira pudesse durar. Assim aconteceu, e a história continua sofrendo e esperando que jovens e velhos
entrem em acordo para ferir a boca de mentiras do dinheiro e derrubem suas presas sangrentas. Com pedras e
milho como armas, jovens e velhos despirão o poder e este será pedra entre as pedras, o homem e a mulher ficarão
somente entre os homens e as mulheres que já povoam a terra. Chamarão esta luta de guerra, que está sendo e
será só uma denúncia, um desmascarar a mentira, um apagar a luz que lá em cima reina presunçosa.

O Velho Antônio se cala, segura a minha mão e dizendo “Já vem vindo” se despede e vá embora. Ao
apertar a mão, o Velho Antônio deixou na minha uma pequena pedra e um solitário grão de milho.
Na longa anágua da noite, milhares de luzes aguardam, esperam...

Golpes que procuram o silêncio

Irmãos e irmãs presentes ao Encontro Nacional em Defesa do Patrimônio Cultural:

Saudamos o encerramento deste primeiro encontro em defesa da memória. Sabemos que a eles seguirão
outros e que este tem sido somente o primeiro dos muitos encontros e acordos que terão de ser construídos entre
aqueles que, como nós, resistem à venda do Patrimônio Cultural do México.
Tem sido dias difíceis e bonitos. Talvez porque são assim por si só. Agora, vocês todos sabem que o
governo continua agredindo as comunidades indígenas zapatistas e levando adiante a sua guerra. Ao atacar-nos, o
governo sabe que ataca a memória. Por isso sua teimosia, por isso sua crueldade e prepotência. Não é pouco o que
está em jogo nestas terras que nestes dias e noites os viram falar, discutir, concordar, divergir, cantar e dançar, pois
é disso que se constroem os verdadeiros encontros.
Para nós tem sido muito bom tê-los encontrado, e mais ainda vê-los compartilhar a dor e a angústia, a
indignação e a raiva por esta nova agressão militar contra os povos zapatistas. O que o governo fez foi lembrar a
todos vocês que aqui tem uma guerra, que aqui tem um povo rebelde que continua resistindo e que tem um exército
de ocupação, o federal, procurando garantir a mercadoria que já foi vendida por aqueles que nele mandam e
ordenam. A mercadoria tem nome, chama-se soberania nacional.
Não é a primeira vez que os golpes procuram fazer-nos calar. Não é a primeira vez que fracassam. Agora,
além de calar-nos, os golpes procuram separar-nos dos principais movimentos de resistência que hoje existem no
país: o dos estudantes da UNAM, que defendem o direito ao ensino gratuito; o do Sindicato Mexicano dos
Eletricitários, que defendem o setor elétrico, e o de todos vocês, comunidades da Escola Nacional de Antropologia
e História, do Instituto Nacional de Antropologia e História e de todas as pessoas e organizações que integram a
Frente Nacional de Defesa do Patrimônio Cultural. Todos estes movimentos e o nosso tem algo em comum: a
defesa da história. Por isso, cada ataque a cada um destes movimentos é um ataque contra todos os demais.
Pelo menos, é assim que nós entendemos. Por isso, sentimos que a repressão contra os estudantes da
UNAM, no dia 5 de agosto passado, foi também contra nós. Por isso, temos apoiado as mobilizações e as
convocações do SME. Por isso, temos nos unido a vocês na defesa da memória e contra as tentativas de privatizar o
patrimônio cultural.
Nestes dias temos recebido algumas notas e cartas. Os companheiros foram guardando-as numa pequena
caixa de papelão. Lemos o conteúdo de todas. Por isso, dizem que por aqui tem caixinhas que falam, creio.
Encontramos solicitações de entrevistas, de encontros, dúvidas, pedidos de reuniões para trocar experiências,
perguntas. A intensidade e as dificuldades destes dias tem nos impedido de atendê-las e de dar a todas elas a
resposta que pediam. Esperamos que nos desculpem e que aceitem a nossa promessa de respondê-las quando for
possível.
Entre os papeis tem um que pergunta o que querem os zapatistas; argumenta que nos meios de
comunicação muitas informações têm sido manipuladas, que elas distorcem o que acontece por aqui e o caminho
que nos move e anima.
Este é o mês de agosto e, para nós, é também o mês da memória. Por isso, tratarei de responder um pouco à
pergunta: “O que querem os zapatistas?” Não vai ser fácil que nos entendam agora. Por uma estranha razão, nós
zapatistas falamos para quem virá depois. Quero dizer que as nossas palavras não acham um lugar no imediato, e
sim que são feitas para encontrar espaços no quebra-cabeça que ainda está por ser feito. Por isso, paciência, virtude
guerreira.
106
Já faz 15 anos quando cheguei pela primeira vez a estas montanhas. Num dos acampamentos
guerrilheiros me foi contada, como sempre, de madrugada, uma história de 15 anos antes; neste agosto que nos
molha, ela completa três décadas. Vou contá-la do jeito que vou lembrando, talvez não sejam as mesmas palavras,
mas tenho certeza de que é o mesmo sentimento do homem que a contou para mim quando, entre piadas pelo meu
aspecto patético e uma calça de palhaço que estava usando, deu-me as boas-vindas no Exército Zapatista de
Libertação Nacional.

Sim, nós que viemos depois, entendemos.

Conta a história que, num povoado, homens e mulheres cansavam-se muito em trabalhar para viver.
Todos os dias, os homens e as mulheres saíam para seus respectivos trabalhos: eles para a lavoura do milho e do
feijão; elas para recolher lenha e carregar água. Às vezes, havia trabalhos que os reuniam indistintamente. Por
exemplo, homens e mulheres se juntavam para a colheita do café, quando era chegado o seu tempo. E assim
acontecia. Mas tinha um homem que não fazia isso. Sim, claro, trabalhava, mas não era na lavoura de milho ou na
de feijão, e nem se aproximava dos cafezais quando os grãos avermelhavam nos ramos. Não, este homem
trabalhava plantando árvores na montanha.
As árvores que este homem plantava não era daquelas que crescem rapidamente, todas demorariam
décadas inteiras para crescer e para desenvolver todos seus ramos e folhas. Os outros homens riam muito dele e o
criticavam. “Por que você trabalha em coisas que nunca vai ver terminadas? Melhor seria se trabalhasse na
lavoura de milho que dá frutos em poucos meses e não em plantar árvores que ficarão grandes quando você já
estará morto”. “Você deve ser bobo ou louco porque trabalha inutilmente”.
O homem se defendia, e dizia: “Sim, é verdade, eu não vou ver estas árvores quando elas estiverem
grandes, cheias de ramos, folhas e pássaros, nem os meus olhos verão as crianças brincando debaixo de sua
sombra, mas se todos trabalharmos apenas para o presente e para o dia seguinte, quem plantará as árvores das
quais nossos descendentes vão precisar para ter abrigo, consolo e alegria?”
Ninguém o entendia. O homem louco ou bobo continuou plantando árvores que não veria; e os homens e
as mulheres sensatas continuaram semeando e trabalhando para o seu presente. O tempo foi passando e todos eles
morreram, seus filhos os substituíram no trabalho, e assim foi com os filhos dos filhos.
Uma manhã, um grupo de crianças saiu para passear e encontraram um lugar cheio de grandes árvores;
milhares de pássaros povoavam suas grandes copas que aliviavam o calor e protegiam da chuva. Sim, sim,
encontraram uma encosta inteira cheia de árvores. As crianças voltaram ao povoado e contaram desse lugar
maravilhoso.
Os homens e as mulheres se juntaram e, maravilhados, foram àquele lugar. “Quem plantou isso?”- se
perguntavam. Ninguém sabia. Foram falar com os mais velhos que também não sabiam. Só um velho, o mais velho
da comunidade, soube explicar e contou a eles a história do homem louco e bobo.
Os homens e as mulheres se reuniram em assembléia e discutiram. Viram e entenderam o homem que seus
antepassados trataram ma,l e muito admiraram e quiseram este homem. Sabedores de que a memória pode viajar
para bem longe e chegar onde ninguém pensa ou imagina, os homens e as mulheres desse tempo foram ao lugar
das grandes árvores.
Ficaram ao redor de uma que estava no meio e, com letras coloridas, pintaram um letreiro. Depois
festejaram, e a madrugada já estava adiantada quando os últimos dançarinos foram dormir. O grande bosque
ficou sozinho. Choveu e estiou. Apareceu a Lua e a Via Láctea acomodou outra vez o seu corpo retorcido. De
repente, um raio da lua acabou enfiando-se entre os maiores ramos e as folhas da árvore que estava no meio e,
com uma luz baixinha, pôde ler o letreiro colorido aí deixado. Dizia assim:

“Aos primeiros:
Sim, nós que viemos depois, entendemos.
Saúde”

Isso que acabei de contar, foi-me contado já faz 15 anos, e 15 anos já eram passados quando aconteceu o
que me contaram. Sim, talvez seja inútil dizê-lo com palavras, porque é com os fatos que o dizemos: sim, nós que
viemos depois, entendemos.
Quando conto isso a vocês não é só para saudar os primeiros, e também não é para oferecer-lhes um
pedacinho desta memória que parecia perdida e esquecida. Não só por isso, também para tratar de responder à
pergunta sobre o que nós zapatistas queremos.
Semear a árvore do amanhã, é isso que queremos. Sabemos que nestes tempos frenéticos da política
realista, de bandeiras caídas, de pesquisas de opinião que se substituem à democracia, de criminosos neoliberais
que conclamam cruzadas contra o que ocultam e os alimenta, de transformações camaleônicas; em nossos dias,
107
dizer que queremos semear a árvore do amanhã soa bobo e louco, ou, todo caso, não passa de uma
frase de efeito ou de uma utopia tresnoitada.
Sabemos disso e, sem dúvida, queremos isso. Não só isso, isso nós o fazemos. Quantas pessoas nos
mundos que povoam o mundo podem dizer a mesma coisa, ou
seja, que estão fazendo o que querem fazer? Nós achamos que
são muitas, que os mundos do mundo estão cheios de loucos e
bobos que semeiam suas respectivas árvores de seus
respectivos amanhãs, e que chegará o dia em que esta encosta
do universo que alguns chamam de “planeta terra” se encherá
de árvores de todas as cores e teremos tantos pássaros e alívio
que, sim, é provável, que ninguém se lembre dos primeiros
porque todo o passado que hoje nos angustia não passará de
uma velha página no velho livro da velha história.
Esta árvore do amanhã é um espaço onde cabem
todos, onde o outro conhece e respeita os outros, e onde a falsa
luz perde sua derradeira batalha. Se me obrigam a ser preciso,
direi que é um lugar com democracia, liberdade e justiça: essa é a árvore do amanhã.
É isto que nós zapatistas queremos. Pode parecer que eu tenha sido vago na resposta, mas não é assim.
Nunca falei com tanta clareza. Todavia, ainda virão tempos em que estas palavras encontrem um lugar e, juntas,
prolonguem o seu abraço, se escutem, se mantenham e cresçam, que é para isso que servem as palavras e também
aqueles que nelas andam.

“Moção do pozól!”

A vocês que estão presentes ao Encontro Nacional em Defesa do Patrimônio Cultural:


Antes de terminar, queremos ser e nos tornar ponte e saudação com aqueles que estão longe e são
perseguidos: os estudantes da Universidade Autônoma do México.
Entre as cartas das quais nos contou a caixinha falante de papelão, tem uma na qual nos informam que o
Sindicato Independente dos Trabalhadores da Universidade Autônoma Metropolitana (SITUAM) traz a quantia de
21 mil e 900 Pesos como ajuda humanitária para a compra de milho para as comunidades em resistência. Temos
consultado nossos chefes e chefas do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena e queremos pedir aos
companheiros e companheiras que ouçam o seguinte:
Em várias notas jornalísticas, lemos com preocupação que os estudantes da UNAM, que continuam em
greve, sofrem muito em suas cozinhas porque estão comendo somente batatas e enlatados. Isso deixou muito
preocupados os nossos companheiros e companheiras chefes porque lêem que os estudantes não estão comendo
tortilhas e nem tomando o seu pozól. “Pois, como vão conseguir resistir?”, me dizem/perguntam. Eu levanto os
ombros e nada mais, pois não sei o que daria por uma suculenta lata de sardinhas da marca La Migaja. Mas os e as
dos comitês não estavam pensando em sardinhas, e sim nas tortilhas e no pozól que estariam precisando para poder
resistir ao mau governo. Bom, depois de uma longa discussão e não poucas histórias quanto às vantagens do pozól
e das tortilhas, vem me dizer: “que o Comitê diz que é pra mandar pozól e tortilhas assadas aos estudantes em
greve, é isso”. Engoli a saliva, fui para o Comitê e pedi a palavra. Argumentei que a UNAM fica na Cidade do
México e que a Cidade do México fica muito longe daqui. “A quantos postos militares de distância?” me
perguntaram; porque, agora, os companheiros medem as distâncias pelo número de postos que existem entre um
lado e outro. Disse a verdade, que não sabia, que eram muitos, mas que o problema eram os quilômetros e o tempo,
e que o pozól iria chegar azedo. “Azedo!”, disseram e festejaram, pois, por estas bandas, o pozól é um manjar,
dizem (em mim ele provoca sempre dor de barriga). E dai-lhe que ao grito de “pozól azedo!” (“Moção do pozól!”,
diriam no CGH, acho) tiram a marimba, arrumam o fogo, requentam tortilhas, um já pegou a sua garrafa de pozól
azedo e lá se foi; a festa demorou. Eu fiquei fumando e recusei o pozól que me ofereciam, mas aceitei as tortilhas,
pois não havia comido. Por fim, tudo voltou à normalidade. Voltei a colocar o problema: o pozól iria chegar
embolorado na Cidade do México (sim, tive cuidado de não voltara dizer “azedo”), logo, não era bom mandar
pozól. “Bom - me disseram - vamos mandar as tortilhas”. Assim foi feito, mas aconteceu o que agora vou contar:

Tortilhas que produzem “más idéias”

Um grupo de companheiros saiu carregando cestos de tortilhas com a missão de entregá-las ao Conselho
Geral de Greve da UNAM e as assembléias das escolas, com um recado no qual nos desculpávamos por não
mandar pozól. Ao passar pelo posto militar de Guadalupe Tepeyac, um oficial de alta patente parou os
companheiros e revistou a carga. Perguntou-lhes para quem eram estas tortilhas e os companheiros disseram, que
eram para alguns parentes que estudam na cidade. “Não é verdade! - Respondeu o oficial - São para os
108
grevistas”. “Confisquem todas as tortilhas!” Os soldados do destacamento fizeram o que havia sido
ordenado. Um deles pegou um pedaço de tortilha e o levou até a boca. “Não faça isso, soldado! - Gritou o oficial -
Você não sabe que estas são tortilhas zapatistas e produzem más idéias naqueles que as comem? Enterrem-nas
longe daqui!” E assim, as tortilhas já estão proibidas pela Lei de Armas de Fogo e Explosivo e não podem
atravessar os postos militares para chegar até a UNAM e produzir más idéias em quem as come. Fiquei chateado
pelo fracasso e informei o comitê. O comitê disse que não ficasse lamentando que já iríamos ver a forma dos
estudantes em greve poderem comer tortilhas e tomar pozól para ter força pra resistir.

Essa é a história. Agora que tomamos conhecimento do apoio dado pelos irmãos e irmãs do SITUAM, os
comitês me pedem para que peça a vocês o seguinte:
Peguem este dinheiro, levem-no à Cidade do México e comprem milho para o CGH, para as assembléias,
para os que cuidam da segurança, para as brigadas de todos estes e estas jovens que estão lutando pelo ensino
gratuito. Digam a eles que são os zapatistas que o mandam para que possam comer tortilhas e pozól, se é que
querem, e não só batatas e enlatados. Digam a eles que os saudamos e que este milho que enviamos possa falar da
ponte que somos, e que não mandamos pedras porque estas já devem ter por lá mesmo. Que continuem
encontrando garra, que abram seu coração a todas as palavras e que não esqueçam que por aqui os queremos, os
admiramos e, apesar de distantes, também os abraçamos.
É isso que os comitês pedem que eu peça aos companheiros e companheiras do STIUAM; e como temos
certeza de que consentirão, então acontece que somos a ponte entre dois movimentos dignos: o dos trabalhadores
universitários e o dos estudantes universitários.
Agora, vai esta nota para o serviço especial de imprensa que aqui está: “O Sindicato Independente dos
Trabalhadores da Universidade Autônoma Metropolitana faz chegar a ajuda de X toneladas de milho aos grevistas
da UNAM pelo canal incomum do EZLN. Os zapatistas, na voz de seu líder mascarado, declaram que eles
continuam zapatistas, insólitas pontes que atravessam não só o México, dizem, e sim todos os diferentes mundos
que estão e estiveram no mundo. No final do ato, o Sup quis lançar uma pomba mas lhe saiu um galo e optou por
assassiná-lo”.
De nada, damas e cavalheiros da imprensa.

A memória tem sua própria realidade

Irmãos e irmãs:
Poderia parecer estranho o fato de eu ter trazido comigo poetas náhuas, o Popol Vuh e Jorge Luis Borges
para este encerramento. Sobretudo por Borges. Mesmo que eu diga que neste ano se completam 100 anos do seu
nascimento, não é esta a razão para ele partilhar o espaço com os nossos mais antigos sábios e cantadores. Não,
acontece que chegou um livro até a minha mesa desengonçada. O vento o trouxe com ele e o abriu na página cujo
título é “O 22 de agosto de 1983”. Ignoro se agosto persistia na memória desse jeito, mas o fato é que, a natureza
imita a arte, saltaram para esta página as palavras que, junto ao náhuatl, abrem este escrito. Talvez Borges vem pra
colação para lembrar que o patrimônio cultural não é um só e que todas as coisas tem algo de universal. Ou, talvez,
só vem dizer-nos, a seu modo, que a memória tem sua própria realidade, como memória tem La Realidad que hoje
nos congrega. Ou, talvez, veio só para dizer a todos que, de fato, esta é só a véspera de uma longa viagem e que,
portanto, a viagem já começou.
No fundo, sabemos disso e por isso estamos aqui; cairão os dentes da falsa luz, e com pedras e grãos de
milho crescerá uma árvore num lugar qualquer de um mundo qualquer. E ainda que tudo tenha perdido a memória,
a árvore saberá que os primeiros foram necessários... e cumpriram.
Enquanto isso, temos que continuar preparando o terreno. Teremos que saber dar tempo ao tempo e, apesar
dos estúpidos verde-oliva,48 continuar lutando para que a palavra seja ponte, pedra, milho, árvore e esperança do
amanhã, que seja tudo isso e mais, é isso que nós zapatistas somos e queremos.
Valeu. Saúde e, ainda que pareça que aquilo que hoje defendemos é o passado, na realidade, em La
Realidad temos concordado em defender o amanhã.

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos.
La Realidad de sentinela. México, agosto da memória, 1999.

48
Verde-oliva: refere-se aos militares.
109
A guerra continua

México, 22 de agosto de 1999.

AO POVO DO MÉXICO.
AOS POVOS E AOS GOVERNOS DO MUNDO.

Irmãos.

Durante a madrugada de hoje, 22 de agosto de 1999, tropas do exército federal, policiais da segurança
pública e paramilitares priistas, bloquearam a estrada de acesso à comunidade de La Realidad.

Os bloqueios da estrada encontram-se na altura dos povoados El Momón, San José, El Edén, Ojo de Agua,
Santa Ana, onde foram abertas valetas, foram tombadas árvores e foram colocadas grandes pedras.

Os paramilitares tomaram conta do bloqueio impedindo a passagem de qualquer pessoa.

Espera-se que, de uma hora pra outra, a comunidade de La Realidad venha a ser atacada; o último informe
que recebemos esta manhã do companheiro Subcomandante Insurgente Marcos, relatava uma intensa mobilização
militar, terrestre e aérea, nas proximidades do Aguascalientes de La Realidad.

A guerra continua.

É tudo.

DEMOCRACIA!

LIBERDADE!

JUSTIÇA!

Pelo Comitê Clandestino Revolucionário


Indígena - Comando Geral do Exército
Zapatista de Libertação Nacional.
Felipe, Comandante David, Comandante
Moisés, Daniel e Rafael.

Exército ataca a comunidade San José La Esperanza

México, 25 de agosto de 1999.

AO POVO DO MÉXICO
AOS POVOS E GOVERNOS DO MUNDO
À IMPRENSA NACIONAL E INTERNACIONAL.

Na madrugada de hoje, 25 de agosto de 1999, tropas do Exército Federal e policiais da segurança pública
do Estado de Chiapas atacaram a comunidade San José la Esperanza, localizada entre os povoados de Rizo de Oro
e o Aguascalientes de La Realidad. Durante o ataque militar foram arbitrariamente detidos, surrados e amarrados os
companheiros Enrique López Cruz, Estanislao Lópe Gómez e Carmelino Méndez López.
Além disso, foram feridos à bala os companheiros Hermelindo Vázquez López e Francisco Vásquez
Vásquez e as mulheres da comunidade foram golpeadas pelos militares.
A dupla Albores-Zedillo continua a sua guerra contra os indígenas. É tudo.
DEMOCRACIA! LIBERDADE! JUSTIÇA!

Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
110
Felipe, Comandante David, Comandante Moisés, Daniel e Rafael.

As mentiras da Secretaria de Governo

México, 27 de agosto de 1999.


Ao povo do México;
Aos povos e governos do mundo;
Á imprensa nacional e internacional.

Durante a noite de ontem, 26 de agosto de 1999, foi dada a notícia de que a Secretaria de Governo
anunciava a suspensão da construção da estrada San Quintin-Amador Hernández, graças a um acordo que teria sido
assinado entre a Secretaria de Governo e a COCOPA. 49
A este respeito, temos a dizer quanto segue:
1. O anúncio é ridículo porque a construção da estrada, por si só, encontra-se suspensa pela resistência à
militarização levada adiante pelos irmãos e irmãs indígenas da zona de Amador Hernández.
As tropas do Exército federal continuam em Amador Hernández e prosseguem em seus trabalhos de
fortificação, aprovisionamento e colocação de armas, anunciando que ficarão aí por tempo indeterminado.
2. No que diz respeito ao que foi declarado por alguns membros da COCOPA, que sobre o ataque
governamental à comunidade de San José La Esperanza acreditam mais na versão dada pelo Exército federal e não
no que diz o EZLN, só temos a dizer que tem gente que acredita naqueles que tem o dinheiro e a força e não
naqueles que tem a verdade e a razão.
O Exército Zapatista de Libertação Nacional lança um apelo à sociedade civil nacional e internacional para
que não se deixem enganar por estes hipotéticos abrandamentos do conflito.

Nas terras indígenas do México a guerra continua.


É tudo.

Democracia, Liberdade, Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
México, 27 de agosto de 1999.
Comandantes: Moisés, David, Felipe, Daniel e Rolando.

Aos zapatistas de Amador Hernández

México, agosto de 1999.

Às companheiras e companheiros zapatistas da comunidade de Amador:


Às companheiras e companheiros zapatistas das regiões que estão apoiando a digna resistência dos
zapatistas de Amador:
Às mulheres e aos homens da sociedade civil que, na qualidade de observadores de paz, estão ao lado dos
indígenas do Vale de Amador:

De: Subcomandante Insurgente Marcos. Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do
Exército Zapatista de Libertação Nacional.

Irmãs e irmãos:

Em nome de todas e todos os companheiros e companheiras do Comitê Clandestino Revolucionário


Indígena enviamos a vocês uma saudação e estas palavras:
O exemplo de dignidade e valentia que vocês estão dando neste momento chega não só até nós, aos seus
companheiros do EZLN, como também está chegando aos operários, camponeses, indígenas, colonos, donas de
49
COCOPA: Comissão de Concórdia e Pacificação que, no passado, era encarregada de levar adiante o diálogo entre o governo e o EZLN
encerrado com os Acordos de San Andrés e o Projeto de Reforma Constitucional sobre Direitos Indígenas apresentado pela COCOPA,
aprovado pelo EZLN e rejeitado pelo presidente Ernesto Zedillo. A construção da estrada a que se refere, mais que favorecer o
desenvolvimento da região, tem como objetivo fazer avançar a ocupação militar selva adentro fechando as comunidades zapatistas, bases de
apoio do EZLN, num cerco militar muito mais forte e desgastante daquele que foi até agora realizado.
111
casa, estudantes, professores, artistas e intelectuais, religiosos honestos, aposentados, homens, mulheres,
crianças e anciãos das outras regiões do México. E chega também para além do nosso país que é o México. A
notícia da digna resistência dos indígenas em Amador está chegando em outras partes do mundo.
Estes soldados que estão diante de vocês defendem uma causa injusta, arbitrária e criminosa. Estes
soldados sabem o que nós todos sabemos, que não estão aí para ajudar o povo ou para trazer um nível de vida
melhor. Estes soldados estão aí para que a guerra do mal governo tenha um caminho por onde atacar as
comunidades que não se rendem. No rádio, na televisão e na imprensa que estão a serviço da mentira e do dinheiro,
dizem que estes soldados estão aí para que se possa construir uma estrada que trará benefícios aos povos indígenas.
Eles, os soldados e o governo, e nós sabemos que não é assim.
Sabemos muito bem que as estradas construídas pelo governo não trouxeram um único benefício aos
indígenas. Por estas estradas não entraram médicos e nem foram construídos hospitais, não chegam professores e
nem se levantam escolas, não chegam materiais de construção para melhorar a moradia dos indígenas, não
melhoram os preços dos produtos que são vendidos pelos camponeses e nem são mais baratas as mercadorias que
os indígenas devem comprar. Com as estradas de Zedillo - porque temos que lembrar a todos que é Zedillo quem
nos faz a guerra, pois o Bolachas pra Cachorro Albores não passa de um cachorrinho obediente que late quando
lhes dizem de latir e se cala quando lhe ordenam que se cale - com as estradas vieram os tanques de guerra, os
canhões, os soldados, a prostituição, as doenças venéreas, o alcoolismo, o estupro das mulheres e das crianças
indígenas, a morte e a miséria. Qualquer uma das estradas feitas pelo governo revela que elas não trazem benefício
nenhum, a não ser para aqueles que enriquecem às nossas custas ou vem para matar-nos, prender-nos e humilhar-
nos.
Mas, se não quiserem ir muito longe, temos aqui os exemplos das estradas para San Quintín, lugar aonde os
priistas se arrependem de sê-lo, para Las Tasas ou Tani Perlas. Com elas chegaram os soldados e seus veículos de
guerra, chegaram materiais de construção, mas não para levantar escolas ou casas para os indígenas e sim para
construir quartéis, chegaram as prostitutas e o álcool, chegaram mercadorias maia
caras e atravessadores que pagam ainda menos pelos nossos produtos, além de
ladrões, criminosos e dos que vem para roubar madeiras preciosas e destruir os
nossos bosques.
Para os indígenas não teve um único benefício e sim muitas dores e
sofrimentos. As mulheres, as mães, as esposas e as filhas destes indígenas são
usadas pelos soldados como prostitutas, se paga por elas ou são tomadas à força, e
o indígena que protesta é ameaçado de morte, levado preso ou feito desaparecer.
Perguntem aos priistas de San Quintín para que eles contem como
venderam suas mulheres aos soldados. Perguntem às mulheres de San Quintín para
que elas contem como são usadas pelos soldados, como agora tem que enfrentar as
doenças venéreas que vieram com as prostitutas que prestam seus serviços aos
soldados, como o pouco que seus maridos ganham é gasto em álcool e prostitutas,
como tem aumentado os roubos e os assassinatos, como o medo e a angústia
chegaram pela mão do Exército e pela sua estrada.
Perguntem a eles se alguma vez tiveram problemas com os zapatistas, e
eles lhes dirão que sempre os respeitamos, que nunca os obrigamos a deixar de ser
priistas ou a entrar em guerra. Perguntem às mulheres e estas lhes dirão que
quando não havia outro exército a não ser o EZLN, não havia tanta bebedeira e nem prostituição, crimes, tristeza,
angústia e medo.
O mesmo podem lhes contar os priistas de todas as comunidades por onde passaram as estradas. Seu nível
de vida não melhorou em nada e suas crianças continuam morrendo como sempre e, mesmo com a estrada,
continuam desprezados por serem indígenas e de nada lhes adianta ser priistas porque o que o governo quer é
quebrar os zapatistas e, por isso, os priistas têm que se disfarçar de zapatistas para que assim possam dar um pouco
de apoio.50
Companheiros e companheiras, nós sabemos que esta é a verdade e que os indígenas priistas, amaldiçoados
por uma estrada do governo, a conhecem muito bem, assim como a conhecem o governo e seus soldados.
Agora, o governo está dizendo duas grandes mentiras.
A primeira é que o EZLN se opõe a fazer com que o progresso chegue às comunidades, que o EZLN se
opõe a que os indígenas vivam melhor e, por isso, o EZLN se opõe às estradas.

50
Muito provavelmente, o Subcomandante Marcos refere-se às encenações nas quais falsos zapatistas entregaram armas e passamontanhas a
membros do governo ou da polícia em troca de pequenas vantagens econômicas que nem sempre acabam se concretizando. Estas encenações
foram sistematicamente desmascaradas pelos comunicados do próprio CCRI - CG do EZLN e das comunidades zapatistas em resistência,
que chegaram a fornecer os nomes dos priistas disfarçados de zapatistas. Um exemplo de quanto acabamos de afirmar, encontra-se no
comunicado de 30 de março de 1999.
112
Companheiros e companheiras, vocês sabem muito bem que não é assim, que o EZLN quer estradas
que tragam a paz verdadeira e não a guerra.
O EZLN quer estradas que tragam hospitais, escolas, moradias dignas, boa alimentação, preços melhores
para os produtos da lavoura, melhorias para a terra, o reconhecimento da democracia que nós indígenas praticamos
e que é muito melhor daquela que faz os outros sofrerem.
Queremos que as estradas sirvam para que as riquezas que existem nas terras chiapanecas sejam para o
bem-estar de todos os mexicanos e não para que sejam vendidas ao capital estrangeiro, queremos que as estradas
sirvam para a independência e a soberania do México e não para que os grandes poderosos mandem em nós como
se fôssemos seus escravos e comprem este país como se fosse uma mercadoria barata.
Quando as estradas trouxerem paz e não soldados, tanques de guerra, alcoolismo, prostituição, miséria,
doenças e medo, então nós zapatistas seremos os primeiros a trabalhar para construí-las.
Mas, enquanto as estradas servirem apenas para aumentar a opressão, a miséria e a morte entre as
comunidades indígenas, nós zapatistas nos oporemos a elas, resistiremos.
Mesmo que tenhamos que sofrer na resistência, mesmo que nos ataquem, nos prendam, nos matem e
mintam contra nós, não permitiremos as ações do governo que só trazem a morte, a miséria, o abandono e o medo.
E se fazemos isso, não é para nós, e sim para milhões de mexicanos e mexicanas que são pobres como nós.
Eles e elas merecem que as riquezas nacionais sejam para o seu bem-estar e não para o bolso dos ladrões que estão
no governo.
Os soldados que estão aí, em Amador, sabem que estou dizendo a verdade, sabem que nós estamos lutando
pela liberdade, pela democracia, pela justiça para todos os mexicanos, incluindo eles, suas famílias, seus pais, suas
esposas e seus filhos. Sabem muito bem que chegará o dia em que a justiça viverá no México e que eles, os
soldados, serviram à injustiça, à mentira, ao crime, à morte; e que nós, os zapatistas, servimos à verdade, à justiça,
à vida.
Os soldados que aí estão sabem que não temos medo deles e nem das dezenas de milhares que estão por
todo o Chiapas. Sabem que não nos amedrontam suas armas, seus tanques, seus aviões, seus helicópteros e nem os
latidos de seu patrão Albores. Sabem que estamos dispostos a enfrentá-los e que não permitiremos que nestas terras
as coisas voltem a ser como antes, quando uma galinha valia mais do que a vida de um indígena e quando o
desprezo e o esquecimento eram a única retribuição que o indígena recebia em troca do seu trabalho.
Os soldados que aí estão sabem quem somos nós
zapatistas e o que queremos. Se eles pudessem falar livremente e
sem medo, diriam que dizemos a verdade, que nossa causa é justa
e que também suas famílias estão fodidas e precisam que alguém
lute por elas. Eles sabem que nós zapatistas somos necessários.
A outra mentira que o governo anda dizendo é que estas
mulheres e estes homens da sociedade civil que estão com vocês
como observadores de paz, são os agitadores que os estão
mobilizando para que se oponham à presença dos soldados. O
governo diz que estes professores, estudantes, pesquisadores e
trabalhadores vieram trazer-lhes maus conselhos para que vocês
se rebelem.
Eu sei que vocês já riram disso. Vocês e eu sabemos bem
que muitos de vocês já eram conscientes e estavam preparando a
rebelião quando estas pessoas eram ainda crianças. Vocês e eu
sabemos muito bem que a rebeldia e a dignidade não vieram da cidade, e sim elas vem da história de resistência e
heroísmo dos povos indígenas.
Vocês sabem muito bem que já haviam se rebelado contra a presença dos soldados quando ainda não havia
chegado ninguém da sociedade civil. Vocês sabem muito bem que nós zapatistas levantamos em armas e gritamos
“BASTA!” quando todos calavam e esqueciam. Nós conhecemos bem isso tudo.
Mas o governo e os meios de comunicação estão levando adiante uma forte campanha contra estas pessoas
que são boas, nobres e generosas. Elas e eles querem a paz digna e verdadeira, por isso vieram até vocês para estar
com vocês e opor-se à guerra. Elas e eles são grandes mexicanos e mexicanas, independentemente de sua idade, ou
do fato de serem muito jovens ou muito velhos.

Sabemos que vocês e nós temos muito orgulho de saber que existem mexicanos e mexicanas como eles e
elas que estão dispostos a enfrentar todos os perigos para defender a paz, a democracia, a liberdade e a justiça.

Por isso, peço-lhes, a nome de todos os povos zapatistas, de todas as tropas insurgentes e dos milicianos, de
todos os oficiais e comitês, que tratem bem destas pessoas, que as protejam e que procurem fazer com que estejam
113
sempre confortáveis, contentes, alegres e com saúde. Eles e elas representam milhares que não podem vir para
estar conosco, mas que gostariam de fazê-lo.

Esta foi a minha palavra, companheiros e companheiras. Digo-lhes que já estão se mobilizando
companheiros zapatistas das regiões tzotzil, chol, tojolabal, zoque, mame e das outras regiões tzeltales.
Continuaremos dependendo de como as coisas andam, mas está claro que não vamos nos render.

Obrigado por ouvir-me, companheiros e companheiras, isso é tudo o que, agora, o meu coração diz a vocês.

Envio uma saudação a todas e todos aqueles que conheci já faz 15 anos, quando cheguei pela primeira vez
a estas terras.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos.

Sobre a proposta de retomada imediata do diálogo 51

México, 16 de setembro de 1999.

Como é que vamos responder rapidamente se o supremo não solta


o microfone e todos os dias acrescenta esclarecimentos, correções e
Pós-escritos à sua “carta aberta”?

Saúde, e avisem quando tiverem terminado.

51
No início de setembro de 1999, o governo Zedillo lançou uma carta aberta na qual propunha ao EZLN a retomada dos diálogos de paz
suspensos desde 1996. Os seis pontos da proposta oficial, de acordo com o jornal La Jornada de 08/09/99, são:
“Primeiro. O governo da República esteve sempre convencido da necessidade de dar cumprimento aos Acordos de San Andrés, assinados
com o EZLN em fevereiro de 1996. Para honrar seu compromisso, enviou ao Congresso da União uma proposta de reforma constitucional
sobre direitos e cultura indígena. Por sua vez, o EZLN manifestou a sua aprovação à proposta da COCOPA. Com a finalidade de avançar
rumo à solução do conflito, o governo solicita ao Senado da República que determine o mecanismo pelo qual as comissões examinadoras
integrem em suas análises outras legislações e informações em matéria de direitos e cultura indígenas, à luz dos Acordos de San Andrés
Larraínzar. Estes documentos poderão ser enviados de forma conjunta pelo governo e o EZLN. Dessa forma, solicita-se que as comissões
legislativas estabeleçam a possibilidade de ouvir novos pontos de vista do EZLN e de outras organizações e pessoas interessadas.
Com estes novos elementos, poderemos solicitar ao Senado da República que examine a reforma constitucional sobre direitos e cultura
indígenas durante o atual período de seções ordinárias.
Segundo. Convoca-se o EZLN a combinar uma agenda para dar pleno cumprimento aos demais compromissos assinados em San Andrés,
especialmente aqueles que envolvem o desenvolvimento social das comunidades indígenas do Estado de Chiapas.
Terceiro. A Secretaria de Governo, atendo-se ao direito, solicita às instâncias competentes a libertação de membros e simpatizantes do
EZLN que não estejam envolvidos em fatos de sangue ou atentados.
Para culminar este processo, consideramos necessário examinar com o EZLN o caso de pessoas que venham a ser reconhecidas como suas
bases de apoio e que tenham sido acusadas de infringir a lei, com o propósito de reexaminar as denúncias contra elas.
Quarto. O governo analisará cuidadosamente as denúncias de hostilização e outros atos ilícitos colocadas por diversas organizações de
direitos humanos, pelas próprias comunidades ou por pessoas atingidas. A Procuradoria Geral da República estabelecerá um programa
especial para conhecer e analisar estes casos, oferecendo às testemunhas a proteção necessária através da secretaria que irá criar no
Estado de Chiapas.
Ao mesmo tempo, tomam-se medidas para garantir que em nenhum caso haja impunidade de grupos ou pessoas que tenham cometido
delitos. Nas atuais condições do Estado de Chiapas, esta ação exige levar ao extremo as medidas para evitar que a perseguição dos
infratores seja um pretexto para novas injustiças ou irregularidades. É pertinente examinar, em conjunto, as ações que devem ser tomadas
pelo governo federal, pelo governo do Estado de Chiapas, pelas comunidades indígenas e o EZLN, independente de filiações políticas e
simpatias sociais.
Quinto. O governo federal tem particular interesse em garantir a eficácia do diálogo e concorda com a criação de uma nova instância de
intermediação, civil e apartidária, integrada por mexicanos de reconhecida imparcialidade, dotada de suficiente capacidade de convocação,
interlocução e decisão para suscitar encontros construtivos entre e com as duas partes. Referenda também a importância do trabalho de
cooperação da COCOPA e a convida a intensificar a importante tarefa que a Lei para o Diálogo lhe confere.
Procederemos à reconstrução da delegação governamental na Comissão de Acompanhamento e Averiguação e a solicitar a retomada dos
seus trabalhos.
Sexto. A representação governamental que poderá encontrar-se com o EZLN contará com suficiente poder de decisão e abertura para a
negociação. Estará aberta para fixar com o EZLN um calendário de negociações que incorpore diversas medidas para dar uma atenção
imediata e urgente às comunidades que foram mais afetadas pelo conflito com a volta dos refugiados às suas comunidades de origem e um
mecanismo de comunicação permanente entre as partes.”
114

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos

P.S. QUE JÁ VIU ESTE FILME. O “suicidado” não é ele. Chama-se “Sistema de Proteção das Testemunhas”;
trata-se de uma prática freqüente no sistema judiciário norte-americano para casos de narcotráfico internacional, e
anuncia que virão surpresas para quem será o “ex ” depois de 1º de dezembro do ano 2000. 52

Agosto/Setembro de 1999: 7 vezes 2

Para Alberto Gironella


que pintava tão bem que parecia
estar escrevendo.

“O pombal das cartas


alça o seu vôo impossível
das mesas trêmulas
onde se apóia a lembrança,
a gravidade da ausência,
o coração, o silêncio”.

Miguel Hernández

A lua é o meu botão de prata dourada, amassado e mal pregado sobre a negra camisa de montanha. Na
grande casa do calendário, maio aparece como dobradiça da dupla e úmida folha de agosto e setembro. Talvez seja
por isso que agora o sol faz o dia caminhar repartindo suores e um calor sufocante, enquanto durante a noite a lua
incha suas bochechas com o vento que dorme.
Lá embaixo a vida é uma guerra, um combate quotidiano nas várias vielas obscuras que povoam a noite
mexicana. Combate-se ao nascer, se combate crescendo, se ama e se morre combatendo, e, sim, até o escrever é um
combate. Veja se não é: naquele canto do mundo que chamam de “montanhas do sudeste mexicano”, o último de
um século que pisca o olho às suas agonias, há palavras que nascem como facadas sobre a alta e fofa almofada da
Ceiba.
E esta Ceiba, se parece mais com uma central do correio do que com uma árvore: as cartas vão e vêm quase
tão freqüentes como as chuvas que produzem cortes profundos na pele do dia ou no coração da noite. Veja, aí está
saindo outra que é outras. Sim, esta carta é muitas cartas, é uma carta-ouriço. Sete espinhos duplos fazem na pele o
que dói no papel. São muitos que as escrevem através da mão de um e tem por destinatários outros muitos que são
outros, diferentes e diversos. Cartas afiadas que assinalam e advertem, não ameaçam, apenas avisam que a noite
continua sem abrir-se e que, sem dúvida, ainda tem que ser percorrida.
É assim que, enquanto escreve, a mão afia palavras que firam sem compadecer-se, que apontem, que
marquem, que sejam espinhos afiados, impressões que doam.
Se uma carta é muitas cartas não é por um capricho dos números, e sim porque o mundo é muitos mundos e
muitos são também os esquecimentos que os ocultam. A primeira é a armadilha da qual logo virá a fatura, que é
como também chamam a história.
Sshh! Atenção! Olhe! Abre-se aí a primeira ferida!

Primeira Carta

“O índio dono da terra é uma


utopia de estudantes
universitários”.

52
Refere-se ao suicídio de Mario Ruiz Massieu, ex-subprocurador geral da República, um dia antes de iniciar-se em Huston, Texas - EUA, o
julgamento no qual responderia pelas acusações de narcotráfico e lavagem de dinheiro. Mario Ruiz Massieu deixou uma carta na qual dizia-
se injustamente perseguido pelos governos do México e dos Estados Unidos e acusava o atual presidente Ernesto Zedillo de estar envolvido
na morte de seu irmão, Francisco Ruiz Massieu, então Secretário Geral do Partido Revolucionário Institucional, ocorrida em 1994.
O “ex ” ao qual o Subcomandante se refere, é o atual presidente Ernesto Zedillo que deixará o governo após a posse do novo presidente
marcada para 1º de dezembro de 2000.
115
Tirano
Banderas,
Ramón Del Valle-Inclán

Sobre a mesa desajeitada, nivelada com pedrinhas e papeis dobrados, repousam dois livros, suas páginas
estão fechadas, suas palavras mudas. A vela faz tremular como uma bandeira sua luz frágil e uma mão acende pela
enésima vez o cachimbo mordiscado.
Daqui, a figura dele é só uma sombra sentada e encurvada. Mas a vela roça as capas dos dois livros.
“Ramón Del Valle-Inclán. Tirano Banderas. Ilustrações de Alberto Gironella, Galaxia Gutemberg. Círculo dos
Leitores”- lê-se na capa de um. O outro mostra “Julio Scherer Garcia, Carlos Monsiváis. Parte de guerra. Nuevo
Siglo Aguilar”.
Logo, forçada pelo vento, a chama da vela se encosta e, mais que iluminar, arranha algumas folhas soltas
rabiscadas depressa e de forma desordenada. Devagar e pausadamente, a língua luminosa lambe as primeiras
palavras.

Agosto-Setembro de 1999.

Este livro de Ramón Del Valle-Inclán, “Tirano Banderas”, vem numa edição extraordinariamente bem
cuidada, com o desejado critério (cada vez mais distante entre os editores “pós-modernos”) de respeito ao autor, ao
ilustrador e ao leitor. Este livro chegou duas vezes para esta mesa como se tudo tivesse conspirado, como se este
agosto se definisse pela dualidade que o espelho propõe. Um dos exemplares vem com as palavras “Para um
escritor - MGG”; o outro tem uma dedicatória breve e de traço trêmulo. “Para Marcos, de Gironella”.
Dois exemplares sim, mas também dois livros num livro: o primeiro é o que pintam as letras de Ramón Del
Valle-Inclán, o outro é o que escrevem os desenhos (?) de Alberto Gironella.
Conheci Gironella naquele agosto de 1994, quando da Convenção Nacional Democrática no
Aguascalientes do agora velho povoado de Guadalupe Tepeyac. Só uma saudação e nos entregou uma magnífica
pintura de Emiliano Zapata, salpicado de balas e pedaços de cortiça. Tacho, ou algum outro, não lembro, pegou a
pintura e a colocou no pequeno pódio do Aguascalientes. O Zapata de Gironella presidia a seção quando veio a
tormenta do dia 8. A pintura desapareceu no naufrágio de homens e mulheres daquela noite.
Gironella foi embora. Nas vésperas de sua morte, uma mentira fez chegar a Don Alberto uma carta
apócrifa. Rebelde e verdadeiro, Gironella não merecia a esmola patética da mentira para o moribundo. Por isso, por
não ter merecido o insulto da lástima nem na vida e nem na morte, onde quer que ele esteja, escrevo a ele estas
linhas para dizer ...

Para Don Alberto Gironella


De: Sup. Marcos

Mestre:
Não fui eu a escrever aquela carta. Alguém pensou que estaria fazendo o bem ao fazer o mal e falsificou
texto e assinatura acreditando que isto podia trazer-lhe consolo e alívio. Os livros sim, fui eu a enviá-los, Don
Alberto, e eram dois porque foram dois os que você me mandou (o Tirano Banderas e Potlatch), e porque nos dois
que eu mandei, você ou a sua pintura (que agora dá na mesma) vem ao caso. Coloquei você nestes livros nos quais
a natureza imita a arte, e na capa de um deles, A revolta da memória (Editora CLACH) a imagem do guerrilheiro
zapatista comendo em Samborns de Los Azulejos repetia a que você trabalhou para Tirano Banderas. Numa das
lapelas da capa você explica: “Quis recuperar diversos elementos reais que Valle podia ter conhecido durante a sua
visita ao México. Se Valle usou Huerta como referencial de tirano, pois eu trabalhei a partir de uma sua imagem, a
que incorporou as características que lhe são atribuídas na narração, como a cor verde da sua saliva. Para
representar o Cruzado Zacarias utilizei a imagem de um guerrilheiro zapatista... Para o crioulo Roque Cepeda parti
de uma foto de Vasconcelos, com quem tem mais de um paralelismo... A moldura foi inspirada no cinto de um
operário assassinado que foi fotografado por Alvarez Bravo: um cinto feito com a fibra da agave...”
Sim, você disse “paralelismo” (as lentes que você desenha para Huerta se repetem agora nos óculos que
Zedillo usa só para tornar mais turvo o seu olhar). E o Vasconcelos do “Por minha raça falará o espírito”,
redesenhado para partilhar a luta com os indígenas que se levantam contra Tirano Banderas, traz consigo outros
paralelismos: a UNAM e Chiapas, o movimento universitário e o levante indígena zapatista.
No pesadelo que agosto e setembro delineiam hoje para o nosso país, os poderosos repetem religiosamente
os argumentos da camarilha de Tirano Banderas. Sim, para eles “o índio dono da terra é uma utopia típica de
estudantes universitários. Mas o ideal revolucionário é algo mais grave, porque altera os sagrados fundamentos da
propriedade. O índio, dono da terra, é uma aberração demagógica, que não pode prevalecer em cérebros bem
organizados” (Ramón Del Valle-Inclán. Op. Cit.).
116
E para curar os índios e os universitários dessa doença, o remédio “pós-moderno” de Tirano Banderas
é o de despachar dezenas de milhares de soldados do Palácio Nacional para as terras do sudeste mexicano. Em
fevereiro de 1995, Zedillo leu, em rede nacional e para mais de 90 milhões de mexicanos, a sua definição do
levante zapatista: “Não são indígenas e nem não são chiapanecos; os que manipulam os indígenas chiapanecos são
universitários brancos (ele disse isso mesmo) de idéias radicais”.
Desde então, esta é a definição que vem sustentando a estratégia governamental diante do conflito em
Chiapas. Para isso, conta com o consentimento de caciques que deixariam Tirano Banderas parecido com um
aprendiz de feiticeiro. Estes são os que mandam, destroem e matam em terras indígenas. Com a confraria de
Banderas, se queixam de que “O índio é ruim por natureza, jamais agradece os benefícios do patrão, aparenta
humildade, mas já está afiando a faca. Só anda direito na base do chicote. É mais frouxo, trabalha menos e se
embriaga mais que o negro das Antilhas” (Ibid.). Para implantar esta filosofia tão elevada, sabujos de diferentes
tamanhos desfilam pelo palácio do governo de Chiapas. O último deles, particularmente fissurado por sangue
indígena e bolachas pra cachorro, tem sido claro: nestas terras sobram indígenas e estudantes. E já se prepara a
matilha para a higiênica campanha do cachorro de Zedillo: “O índio bonzinho é o índio morto e o estudante
bonzinho é o estudante ausente”. Matar indígenas e perseguir estudantes, este é o esporte que está na moda em
Chiapas. No auge do seu delírio etílico e canino, Albores proclama que ele sim tem as calças bem amarradas (só
que confunde o cinto com aquilo que não passa de uma coleira contra as pulgas).
Sim, mestre, a natureza imita a arte e suas palavras desenhadas para ilustrar as imagens escritas de Valle-
Inclán irrompem neste tempo de Tiranos e soberbas, de universitários e guerrilheiros zapatistas.
E para me dar razão chegou até a minha mesa não um sorvete de nozes (que é o que eu queria e, todavia,
desse jeito a natureza superaria a arte) e sim um livro que também é dois livros Parte de guerra, de Julio Scherer
Garcia e Carlos Monsiváis.
Livro duplo pelo fato evidente de que são dois os seus autores, é duplo também naquilo que revela e contra
o qual se rebela, no que dizem do passado e no que ambos os autores colocam sobre o futuro. Ambos, Scherer e
Monsiváis, já são um referencial na história da cultura mexicana em geral e do jornalismo em particular. Afiados
na palavra e na caneta, às vezes despertam respeito e, não poucas vezes, temor.
No texto do Julio Scherer Garcia, os militares desfilam sua “dureza” e estreiteza de visão. Cada vez menos
freqüente entre os civis, a admiração pelo militar “esquece”, por trás de uma época em surdina, que os exércitos são
as estruturas mais absurdas que existem. Negação total do raciocínio, aniquilação do indivíduo e culto da
destruição são algumas de suas características (e portas para que o crime organizado tenda suas correntes).
Sei que isso soa mais paradoxal vindo de um comandante militar do EZLN que é, também, um exército.
Mas, justamente por isso, nós aspiramos a desaparecer. Isso eu já expliquei em outras ocasiões e não quero
aborrecê-lo. O tema central do livro é o exército federal como fonte de desestabilização.
Na minha passagem pelo Heróico Colégio Militar e pela Escola Superior de Guerra, pude constar que não é
o orgulho ou a honra a transformar o Exército federal numa entidade fechada, intocável e imprevisível. Não, trata-
se de um outro mundo, e sua lógica interna permite arbitrariedades que deixariam angustiado até o mais corrupto
dos juizes (que são muitos) do sistema judiciário mexicano: um artigo numa revista, que toca no tema dos direitos
humanos dos militares (algo impensável, pois trata-se de “frias máquinas de matar”), levou o general Gallardo para
a prisão, trazendo desprezo e ameaças quotidianas para a sua família; a morte e o exílio forçado foram o destino
daqueles que se negaram a cumprir as ordens de assassinato dadas pelos altos comandos militares em janeiro de
1994, diante do levante zapatista; aqueles que não aprovaram a criação dos grupos paramilitares em Chiapas,
argumentando que o fato de carregar uma arma implicava em disciplina e responsabilidade, foram feitos
desaparecer; e os que se alistaram sonhando em defender a Pátria “se os pés de um inimigo estrangeiro ousassem
profanar o seu solo” se viram logo em enfrentamentos com civis, crianças, anciãos, mulheres e homens, todos
mexicanos, todos pobres, e tiveram que fugir às escondidas, implorando a estes mesmos que estavam atacando para
que lhes emprestassem “roupa civil” e um guia para sair da “zona do conflito”.
Sim, 1968 teve que esperar 30 anos para que a ilógica lógica militar mostrasse sua arbitrariedade
desestabilizadora; em 1999, publicações honestas (que existem) relatam diariamente violações e crimes impunes,
perpetrados com os únicos argumentos de uma farda verde-oliva e de uma arma. Em poucas palavras, um estado de
sítio originariamente destinado ao sudeste mexicano, foi estendido, em seguida, aos povos indígenas de todo o país
e já está invadindo as ruas das cidades.
Diga-me se não é assim. Enquanto o governo argumenta que a maciça presença militar em Chiapas é para
evitar a desestabilização, uma rápida narração dos acontecimentos dos últimos dois anos mostra o Exército federal
como a principal causa de desestabilização e de deterioração no sudeste mexicano. Onde aparecem os federais,
sobem as tensões e explodem os conflitos.
Desde que o senhor Zedillo chegou a Los Pinos pela mão dos assassinos de Colossio, o Exército federal
quebrou o cessar-fogo pelo menos em três ocasiões: em fevereiro de 1995 (saldo: 5 mortos zapatistas um coronel e
10 soldados da tropa do Exército federal mortos em combate), em junho de 1998 em El Bosque (saldo: 8 zapatistas
executados depois de terem sido feitos prisioneiros por militares) e em agosto de 1999 em San José La Esperanza
117
(saldo: 2 zapatistas feridos à bala e 8 militares “atingidos por pedras e pedaços de pau”). Os secretários de
governo? Moctezuma Barragán (vulgo Guajardo) em 1995, Francisco Labastida (vulgo El Suavecito) em 1998, e
Diodoro Carrasco (ainda sem apelido) em 1999. Com Chuayffet o enfrentamento seguiu o caminho dos
paramilitares e “presenteou a história mexicana com uma de suas páginas mais vergonhosas e humilhantes: a
matança de Acteal em dezembro de 1997.
Além do ataque militar dos federais, todos estes atos desestabilizadores têm um denominador comum:
Ernesto Zedillo Ponce de León.
Sim, Don Alberto, longe de garantir a ordem interna, o Exército federal tem sido a principal causa de
desordem e desgoverno.
Mas, voltando ao Partes de guerra, é impossível ler este livro sem a sombra deste agosto-setembro de
1999. Impossível fazer isso “esquecendo” o Chiapas zapatista. Impossível lê-lo sem levar em consideração não só a
existência do atual movimento estudantil na Universidade Nacional Autônoma do México, como também as óbvias
e grandes diferenças e, sobretudo, as não tão claras semelhanças. Este é um daqueles livros, que são poucos, que
devem ser lidos muitas vezes para descobrir neles novas palavras e novos silêncios (coisa que não será fácil, pois a
encadernação é do tipo “use e jogue”) a depender dos agostos e setembros que vão gastando os calendários.
Mas, além do Movimento Universitário de hoje e do Chiapas rebelde, este livro se cruza com o Tirano
Banderas em muitas páginas. Veja, Don Alberto, o diálogo que segue entre os jornalistas a serviço de Tirano:

“Quem foi que ousou ter uma caneta independente! O patrão quer uma crítica impiedosa.
Frei Mocho tirou do peito uma garrafinha e se agachou beijando o seu gargalo:
- Muito eloqüente!
- É uma desgraça ter vendido a consciência.
- Que é isso! Você não vendeu a consciência. Vendeu a caneta, que não é a mesma coisa.
- Por uns trinta Pesos sujos!
- São os feijões. Não tem que ser poeta. (...)”

Agora, cruzem estas linhas com o texto de Monsiváis: “O governo desencadeia uma campanha de
imprensa, rádio e televisão contra os «subversivos» e sobram Explicações Patrióticas”. (Op. Cit. Pg. 148). “Em
1968, o jornalismo no México passa pela experiência mortífera de negar a modernidade a partir de um «respeito a
instituições» que já dizem pouco ou nada aos jovens e que, via de regra, é traduzido na linguagem do cinismo. (...)
O jornalista, em geral, está a serviço dos políticos, os únicos leitores que são levados em consideração, e quanto
mais se mostra declamatório, mais corrupto se torna”. (...) Isso explica o grito de «Imprensa vendida!» nas marchas
de protesto, e o grotesco da desinformação”. (Pg. 174) E mais adiante: “Em 1968, a televisão privada se nega a
divulgar as posições do Movimento. Abundam as calúnias e os apelos ao linchamento moral, os noticiários delatam
a insignificância numérica das marchas” (pg. 183).
O movimento universitário de 1999 sofreu, como poucos movimentos nos últimos anos, uma verdadeira
guerra de meios de comunicação. Sobretudo a televisão privada (na qual Televisa e Televisão Asteca disputam
entre si a “honra” de ser a coluna vertebral da ultradireita no México) e o rádio, se esforçam muito além da evidente
complacência do governo. Com entusiasmo singular, distribuem adjetivos como se fossem amostras gratuitas de
um novo produto: “Agitadores”, “subversivos”, “assaltantes”, “seqüestradores”, “delinqüentes”, “pseudo-
estudantes”, “grevistas” (para contrapô-los aos estudantes que querem estudar), e, como todos sabem, o que o ex-
priismo sugeriu a algum intelectual perredista: “ultras”.
No sudeste mexicano, os poderosos e os sabujos não querem ficar para trás. Grandes quantias de dinheiro,
inicialmente destinadas às comunidades indígenas, fluem para os meios de comunicação em Chiapas. Se o tom
enfático de alguns “jornalistas” fosse um indicativo da quantidade de dinheiro que receberam, então seria possível
entender porque, apesar de tudo aquilo que o governo investiu no Estado, pouco ou nada chega às comunidades.
Boa parte fica sobre as mesas da redação e nos bolsos dos “jornalistas” que têm particular fascinação por
locomover-se em helicópteros do Exército para cobrir os acontecimentos “com toda objetividade”.
Passada a moda dos “desertores” zapatistas, há um tema novo: os malvados estudantes grevistas da UNAM
chegaram para semear a discórdia entre as pacatas comunidades indígenas, tão tranqüilas que estavam, logo, não
devemos permitir que estes jovens “violem” a soberania de Chiapas (e o mais paradoxal é que nós zapatistas somos
acusados de separatismo). “Que sejam presos”, declara o Bolachas pra Cachorro, completamente bêbado, enquanto
os militares do quartel de San Quintín aplaudem para ele.
No Chiapas de Zedillo-Albores, os ecos de 68 se atualizam e gritam os latidos de seu dono contra os
estudantes que chegaram ao povoado de Amador Hernández. O “Fora os ajudantes estrangeiros!” (porque no
Chiapas de Albores todo aquele que não é priista é um “ajudante estrangeiro”) teve seu predecessor no “Queremos
os Ches mortos!, gritavam e, como uma eco enorme, a multidão respondia: Queremos os Ches mortos! Que
morram todos os guerrilheiros sem pátria!, voltavam a gritar e a multidão exaltada respondia: Morram!” (Em El
Heraldo de México, 9 de setembro de 1968 - Op. Cit. 178).
118
Se Scherer e Monsiváis redescobrem que foi um medo histérico o motor principal da resposta
governamental ao movimento de 68, Agosto e Setembro revelam algo igualmente terrível: Zedillo e Albores, e a
imprensa que os acompanha, se convencem de que um novo fantasma percorre as salas de aula da universidade e as
montanhas do sudeste mexicano: o anti-México. A histeria à frente do governo federal e estadual.
O livro diz mais coisas, e a realidade deste agosto de fim de século mais ainda. Este livro Parte de guerra é
quase tão bom quanto A noite de Tlatelolco, este espelho quebrado que a filha da princesa nos deu faz anos.
É isso, Don Alberto, agosto vai embora e setembro já está chegando; a UNAM e Chiapas provocam
angústias à flor da pele deste país chamado México. O movimento estudantil universitário e a rebelião zapatista
lutam contra estas dores. Talvez não consigam aliviá-las, e sirvam apenas para fazê-las perceber como aquilo que
realmente são: angústias de todos...
Li por aí que os livros sim chegaram a tempo e, talvez, você pode enfiá-los na sua maleta, pensando que
depois poderia pintar neles algumas letras e estas palavras desenhadas.
Valeu, Don Alberto. Saúde e, sabe de uma coisa, o que dói da morte é que, às vezes, ela abraça quem não
deve.

Sup.

P.S. Se precisar de algo, me avise para que eu possa levá-lo quando eu for. Sim, lhe levarei Parte de guerra.

O escrito pára por aqui. Pendurada, esperando o seu lugar, uma citação de Parte de guerra fica sozinha: “A
fúria coligada de políticos, empresários, bispos e meios de informação não consegue dissuadir os grevistas e nem o
medo dos pais de família impede o vigor do Movimento”. (Pg. 178).
Sobre a última frase, a vela joga sua derradeira centelha de luz e fecha o seu único olho. Só um instante.
Uma nova chama ilumina momentaneamente o cachimbo e o rosto da sombra sentada. É impossível ver o seu rosto
porque está de costas. E ainda que estivesse de frente, este homem é um sem rosto, mais um dos que abundam
nesta esquina da história.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, agosto-setembro de 1999.

Carta de Marcos para os 15 anos do La Jornada 53

Setembro de 1999.

Para Rodolfo Peña


Outro abraço errado da morte.
“Quando vou escrever pra você
os tinteiros se emocionam;
os tinteiros negros e frios
ficam vermelhos e trêmulos
e um calor humano penetrante
sobe do fundo do negro.

Quando vou escrever pra você


são meus ossos que vão te escrever;
escrevo-te com a tinta
indelével do meu sentimento.

Miguel Hernández

A lua é, agora, uma unha de madrepérola, e o seu tocar nas cordas da noite produz uma verdadeira
tempestade. Assustada, a lua se esconde, branca criança, luz morena que se veste com escuras e espessas nuvens.
Agora, é a tormenta a ser senhora da noite e os relâmpagos desenham árvores e sombras fátuas com seu traço breve
e apressado.

53
O La Jornada é um jornal diário que publica sistematicamente os comunicados do CCRI-CG do EZLN. Rodolfo Peña, ao qual é
endereçada a carta foi um de seus redatores.
119
Lá embaixo chove tantas vezes quantas são as dores da guerra. Sofre-se e lembra-se, porque é a
memória a tornar fértil a dor. Sem ela, a dor que dói faria só sofrer, não deixaria nascer nada e, de conseqüência,
cresceria acumulando calendários, cada um dos quais é uma vida.
A sombra escreve ou desenha. Há um duplo 15, segundo dois do sete, que é aniversário, festa, lembrança,
dor, alegria e memória.
Acabou de sair a primeira carta, pomba de morte, quando a sombra que nos ocupa já começa a afiar a ponta
da segunda. Se a primeira era para quem já foi embora, a segunda é para quem está seguindo o caminho do ausente.
O longo e úmido caminhar de agosto, chega até setembro e alcança datas de celebrações e lembranças.
Como memória insatisfeita, a chuva vai batucando sua impaciência sobre o telhadinho e, mais uma vez, o
vento zombador apaga as luzes e joga na lama os papéis e a tinta. A sombra labuta entre desfraldar as velas e
levantar papeis como se fosse vento favorável para quem navega.
Uma folha fica num canto da choça e, sob o cintilar dos raios, se consegue ler alguma coisa. Um momento,
tratarei de aproximar-me. Claro, a lama. E esta neblina que cai assim. É difícil. Bom, vamos lá. Isso é o que eu
consigo ver...

Segunda carta

Então quero propor-lhes, com a


gravidade das palavras finais de uma vida, que nos abracemos num compromisso:
vamos sair para espaços abertos,
arrisquemo-nos um pelo outro, vamos esperar, com quem estende seus
braços, que uma
nova onda da história nos levante. Talvez já esteja fazendo isso, de uma maneira silenciosa e
subterrânea, como os brotos que
se escondem debaixo das terras do inverno.

Ernesto Sábato, Antes del Fin

A todas e todos os que trabalham no La Jornada


De: SupMarcos.

Damas e Cavalheiros:
Queria colocar “irmãos e irmãs”, mas não se pode dar este trato aos jornalistas porque, logo, logo,
Rodríguez Alcaine pede o mesmo e também não dá pra criar laços de parentesco com criminosos. O que?
Onde é que eu estava? Ah, sim! No “Damas e Cavalheiros”, pois vamos adiante.
Escrevo-lhes a nome dos homens, mulheres, crianças e anciãos do Exército Zapatista de Libertação
Nacional para desejar a todas e a todos vocês um 15º aniversário muito feliz e que estas datas se completem sempre
com muita alegria.
Não acrescentarei nada mais ao que já devem ter dito a vocês sobre a importância do seu trabalho
jornalístico, mas só lembrar, e lembrar aos muitos de memória fraca e seletiva (como os que pulam sobre os tetos
dos carros; a propósito, não nos aborrece a idéia de que Monsiváis ocupe uma vaga no próximo gabinete, seria a
primeira vez que alguém com senso do humor ocupa um cargo assim, embora é de supor que o perderia - o senso
de humor ou o cargo - logo que o manifestasse), que o La Jornada tem sido sempre sensível aos movimentos
sociais e aquilo que ferve ou gagueja debaixo deles.
Quando “a notícia” é dada pelos debaixo não é só porque o seu movimento sacode o sistema mexicano,
mas também há quem se preocupa de narrar o acontecimento e contribuir assim para esta memória quotidiana que
hoje aparece como caótica, desordenada e angustiante, mas que logo terá que se ajeitar nisso que chamam história.
Claro, não é só o La Jornada, mas também o La Jornada tem se tornado uma página importante da minuta que leva
a história contemporânea do nosso país para a sua memória.
Imaginamos que não deve ter sido fácil chegar aos 15 anos sendo o que são, com tantos contra vocês, em
meio a tantas invejas, desconfianças, ambições... e ausências como a de Rodolfo F. Peña. Por isso, além de
felicitarmo-nos com aqueles que hoje fazem o La Jornada, queríamos cumprimentar aqueles que a fizeram e, de
onde eles se encontram, a seu modo e com o seu passo acompanham o orgulho dos “jornaleiros”.
Bom, não vamos dramatizar e vamos lembrar que se trata de uma celebração. Por isso, só desta vez (já que
o duplo 15 é o que veremos mais adiante), revelaremos alguns dos prêmios especiais que, ano após ano, são
concedidos pelos zapatones.
É necessário esclarecer que para decidir quem vai ser premiado somos muuuito científicos e “pós-
modernos”, e, assim, (vocês acertaram) realizamos uma pesquisa! Levada adiante pela séria empresa “Marco’s
Publishing Very Baratinho”, foram entrevistados os 298 zapatistas que sobram (bom, ficamos em 300, mas dois
120
estavam dormindo) e os 4 milhões 265 mil 312 ex-zapatistas que “desertaram” e-que-voltaram-à-legalidade-
porque-Albores-tem-as-calças-bem-costuradas-não-é-um-fanfarrão-nem-late-e-esta-é-mais-uma-amostra-de-que-o-
estado-de-direito-é-uma-realidade-em-Chiapas-e-pouco-importa-a-maneira-de-escrever-para-governar-Chiapas-
precisa-se-de-mão-de-ferro-e-não-de-bons-mo-dos.

Para este 1999, os prêmios ficaram como segue:

A melhor matéria de análise política em 1999: Trino, por Policías y Ladrones e por El Rey Chiquito.
A seção mais lida em 1999 (e, me ocorre, também nos 15 anos): Socorro Valadez por El Correo Ilustrado
A melhor caricatura de 1999: Héctor Aguilar Camín, por himself.
A seção mais odiada de 1999 (e, com certeza, dos 15 anos): a de anúncios e cartas.
A maior injustiça de 1999: mandar os suplementos só aos assinantes.
O melhor sindicato do La Jornada em 1999: Sitrajor
O melhor diretor do La Jornada em 1999; não é um “ele”, e sim uma “ela”, Carmen Lira.
O trabalho mais ingrato de 1999 (e dos últimos 5 anos): “capturar” os comunicados do Sup 15 minutos antes da
meia-noite (cá entre nós, nós os aplaudimos e não incorporamos a reivindicação de aumento salarial para que não
digam que estamos aumentando a nossa pauta a cada instante).
A melhor homenagem para o La Jornada em 1999: o confisco de jornais em Chiapas que o Bolachas pra Cachorro
Albores ordenou durante vários dias.
O fato mais lamentável de 1999: não ter-nos convidado para o reveillon dos 15 anos (já tinham um mestre de
cerimônia da nossa categoria?).
Os demais prêmios não podem ser revelados por óbvias razões (ou seja, não há espaço).

Bom, estimadas e estimados jornaleiros e jornaleiras, felicidades e não se empanturrem de sanduíches e


bebidas porque então irão precisar de um suplemento de “erratas” tão pesado quanto o “debate” dos quatro
fantoches.
Um abraço àqueles que, como vocês, se arriscam pelo outro.
Valeu. Saúde e que ao 15 possam seguir-se muitos calendários sempre melhores.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, setembro de 1999.

P.S. QUE, COMO SE VERÁ A SEGUIR, EXPLICA O PORQUE DO DUPLO 15 E COMO ESTE É O
SEGUNDO DOIS DO SETE.

Já faz 15 anos...

Em cada mês de agosto, ano após ano, as montanhas do sudeste mexicano se preparam para parir um
amanhecer particularmente luminoso. Desconheço as causas científicas, mas nesta madrugada, a única em todo o
desconcertante mês de agosto, a lua é um balanço com um vaivém perolado, as estrelas acomodam-se para servir de
contorno e alvo e a Via Láctea faz brilhar orgulhosa suas mil feridas de luz coagulada. Neste agosto de final de
milênio, o calendário anunciava o sexto dia quando esta madrugada apareceu. Assim, com o balanço da lua, voltou
a lembrança de outro agosto e de outro 6, quando há 15 anos começava o meu ingresso nestas montanhas que, sem
querer ou propor isso para mim mesmo, foram e são casa, escola, caminho e porto. Comecei a entrar em agosto e
não acabei de fazê-lo até setembro.
Devo confessar-lhes que enquanto subia com muito esforço a primeira das íngremes encostas que abundam
por estas terras, senti que seria a última. Não estava pensando na revolução, nos altos ideais do ser humano ou num
futuro luminoso para os despossuídos e os esquecidos de sempre.
Não, estava achando que havia tomado a pior decisão da minha vida, que a dor que apertava cada vez mais
o meu peito acabaria por fechar definitivamente a já raquítica entrada de ar, que o melhor seria voltar e deixar que a
revolução acontecesse sem mim, além de outros raciocínios parecidos. Se não voltei atrás, foi simplesmente porque
não conhecia o caminho de volta e só sabia que devia seguir o companheiro que me precedia e que, a julgar pelo
cigarro que fumava enquanto atravessava a lama sem nenhuma dificuldade, parecia estar passeando. Não pensei
que algum dia eu poderia estar subindo uma encosta fumando e sem sentir que estava morrendo a cada passo, e
muito menos que alguma vez eu poderia driblar a lama que aqui embaixo era tão abundante quanto as estrelas lá em
cima. Não, eu já não estava pensando, estava concentrado em cada rápida respiração que tratava de fazer.
Enfim, aconteceu que em algum momento alcançamos o topo mais alto da encosta e quem estava no
comando da raquítica coluna (éramos três) disse que descansaríamos aí. Deixei-me cair na lama que me pareceu
121
estar mais próxima e disse para mim mesmo que talvez não seria tão difícil encontrar o caminho de volta, que
bastava descer outra eternidade e que algum dia chegaria ao ponto no qual o caminhão havia nos deixado. Estava
fazendo minhas contas, incluindo as razões que alegaria e daria a mim mesmo por ter abandonado o início da
minha carreira de guerrilheiro, quando um companheiro se aproximou de mim e me ofereceu um cigarro. Recusei
com a cabeça não porque não quisesse falar, e sim porque tentei dizer “não, obrigado”, mas me saiu só um gemido.
Depois de um momento, aproveitando que a pessoa que estava no comando havia se afastado um pouco
para satisfazer suas necessidades biológicas que chamam de primárias, me encostei como pude sobre a velha
escopeta calibre 20 que estava carregando mais como um bastão do que como uma arma de combate e assim, do
alto dessa montanha, pude ver algo que me impressionou profundamente.
Não, não olhei pra baixo, rumo ao retorcido traçado do rio e nem para as fracas luzes dos fogões que mal
iluminavam os casebres distantes e muito menos para as montanhas vizinhas que desenhavam o vale salpicado de
pequenos povoados, milharais e pastos.
Olhei pra cima. Vi um céu que era presente e alívio, não, melhor, uma promessa. A lua estava no seu
balanço risonho e noturno, as estrelas salpicavam luzes azuis e a velha serpente de luminosas feridas que vocês
chamam de “Via Láctea”, parecia encostar sua cabeça pra lá, pra muito longe.
Fiquei olhando por um momento, sabendo que tinha que subir esta encosta endemoninhada para ver esta
madrugada, que a lama, os escorregões, as pedras que doíam do lado de dentro e de fora da pele, os pulmões
cansados e incapazes de inalar o ar necessário, as pernas cheias de cãibras, o angustiado agarrar-se na escopeta-
bastão para poder livrar as botas da prisão da lama, o sentimento de solidão e desolação, o peso que levava nas
costas (que, em seguida, soube que era só simbólico, pois, na realidade, se carregava sempre o triplo ou mais; mas,
enfim, o tal “símbolo” pra mim parecia pesar toneladas) eram necessários, e que tudo isso - e o muito mais que
viria depois - é o que havia tornado possível que esta lua, estas estrelas e esta Via Láctea estivessem aí e não em
outro canto. Quando ouvi atrás de mim a ordem de retomar a marcha, lá no céu uma estrela, seguramente cansada
de estar submetida ao negro telhado, conseguiu se soltar e, caindo, deixou um traço breve e fugaz no quadro-negro
da noite. “É isso que somos - disse a mim mesmo - estrelas caídas que apenas arranham o céu da história com um
rabisco”. Pra mim, eu só estava pensando isso, mas parece que pensei em voz alta porque o companheiro
perguntou: “O que foi que disse?”. “Não sei - respondeu quem estava no comando - talvez já começou a ter febre.
Temos que nos apressar”.
Isso que estou contando a vocês aconteceu já faz 15 anos. Há 30 anos atrás, alguns arranharam a história e,
sabendo disso, começaram a chamar muitos outros para que, à força de arranhões, arranhaduras e pequenas
escoriações acabassem por romper o véu da história e finalmente pudesse aparecer a luz, esta que não é outra coisa
a não ser a luta que nós levamos adiante. Por isso, quando nos perguntam o que queremos, respondemos sem
hesitações: “Abrir uma brecha na história”.
Talvez vocês se perguntem o que aconteceu com as minhas intenções de voltar e de abandonar a vida de
guerrilheiro e suponham que a visão desta primeira madrugada na montanha me fez abandonar a idéia de fugir,
levantou o meu moral e consolidou a minha consciência revolucionária. Enganam-se. Pus em ação o meu plano e
desci a montanha. O que aconteceu foi que errei de lado, no lugar de descer pela encosta que me levaria de volta à
estrada, e daí à “civilização”, desci pelo lado que me adentrava ainda mais na selva e que me levaria a outra
encosta, a outra e a outra ainda...
Isso aconteceu já faz 15 anos e desde então continuo subindo montanhas e continuo errando o lado pelo
qual desço; a cada dia 6, agosto continua parindo uma madrugada especial e todos nós continuamos sendo apenas
estrelas que caem arranhando a história.
Valeu, saúde e... Um momento!, esperem. O que é aquilo que reluz ao longe? Parece uma rachadura.

O Sup em cima da montanha lançando a moedinha para ver por qual das encostas vai descer.

Duas perseguições, duas rebeldias (e, claro, algumas perguntas)


Terceira Carta

Cartas, relações, cartas:


cartões postais, sonhos,
fragmentos de ternura,
projetados no céu,
lançados de sangue a sangue
e de desejo a desejo.

Miguel Hernández.
122
Desta vez, da lua há só um difuso resplendor. E isso, só por um instante, porque já chega a chuva que
faz todos se calarem. Esta chuva não fala, e sim grita das montanhas do Sudeste Mexicano. E, apesar dos gritos, são
pouco os que ouvem e entendem.
Quando chove, lá embaixo tudo parece tão quieto. Talvez não. Talvez é só porque a tormenta desta noite
apaga qualquer outro ruído que não seja o seu batuque sobre telhados, lamaçais, animais e sombras. Enfim, sendo
noite e com chuva, não deixa de ser estranho que aquela luz esteja ainda acesa. Sim, esta que vem daquele canto.
Esta choça parece uma tábua solitária no meio de uma tormenta em mar aberto. Mas não é. O capitão e a tripulação
estão dentro dela, descansando de barriga pra cima, os olhos bem abertos, a cabeça ninguém sabe aonde.
Sobre a mesinha tem algo ao lado da velada vela. Parece uma folha com algo escrito. Vamos ver. Sim.
Tome nota. Bom, parece uma carta. Mmmh. No meio, como cabeçalho da folha se lê: “Exército Zapatista de
Libertação Nacional, México”. Depois, mais embaixo e a esquerda, a palavra “agosto” riscada, logo em seguida
“setembro” igualmente riscada, e depois “agosto-setembro”. Você está anotando direitinho? Bem. Mmmh. Seguem
vários números sucessivamente riscados: “6”, “8”, “15”, “27”, em seguida o número 1999, ponto e parágrafo. “Aos
Estudantes da UNAM”. Dois pontos. Depois continua o que segue, ou seja...

Sim, esta carta que estou enviando, às vezes, se parece com uma “colagem” de cartões postais e cartas
porque é desse jeito que ela foi saindo. Comecei a escrever-lhes em agosto e já é setembro, dessa forma posso
atribuir ao calendário a culpa de uma provável incoerência.
Escrevo-lhes a nome de todos os homens, mulheres, crianças e anciãos do EZLN. Não é muito o que posso
acrescentar ao que já temos dito sobre o que a sua luta representa e significa para nós zapatistas. Continuam em
nós, e depois que assumiram o desafio de vir até as montanhas do sudeste mexicano para acompanhar os
indígenas que resistem à ocupação militar, cresceu mais ainda a admiração, o respeito e o carinho que temos com
todos vocês, estudantes e “estudantas” que sustentam e levam adiante o movimento contra a privatização da
UNAM.
Com certeza, vocês já devem estar sabendo que depois que um grupo de estudantes, professores,
trabalhadores e pesquisadores da Escola e do Instituto Nacional de Antropologia e História (ENAH e INAH), com
outras pessoas da sociedade civil, foram para Amador Hernández para serem testemunhas da militarização da
região, foi desencadeada nas terras chiapanecas uma campanha feroz de linchamento e perseguição contra tudo o
que poderia parecer “jovem estudante”. Para o Exército federal, a migração, a polícia de segurança pública,do
judiciário, paramilitares, priistas e funcionários de diferentes tamanhos, qualquer jovem e mestiço era “um
grevista do DF”.
Não importava que não fossem da UNAM, que não fossem estudantes, ou que não fossem do DF, para o
governo e seus anexos, eram todos culpados de serem jovens e de parecerem estudantes. Ao grito de “fora os
ultras de Chiapas”, dezenas de jovens foram e são hostilizados, perseguidos, maltratados, humilhados e
ameaçados de morte.

Moção. Se este clima de linchamento encontrou um de seus suportes ideológicos na argumentação de um


setor da esquerda, é algo que não deve surpreender-nos. A direita carece de pensamentos e argumentos, o uso da
força é o único aspecto “racional” que é capaz de conceber. Porém, quando precisa de um “pensamento”, aí está a
esquerda para fornecer-lhe razões e argumentos. O adjetivo de “ultras”, usado de forma tão leviana (e ocultando a
preguiça mental que não quer sequer tentar entender e explicar um movimento social), foi rapidamente apropriado
pelos meios de comunicação eletrônicos e impressos da direita, pela camarilha de Barnés e por este ilustre defensor
dos direitos animais que é o Bolachas pra Cachorro Albores.

Apesar de Chiapas não ser o lugar mais adequado para exibir a carteirinha de estudante da UNAM,
dezenas de homens e mulheres - jovens, estudantes e universitários - foram até o Sudeste Mexicano e uniram suas
vozes às dos indígenas rebeldes na comunidade de Amador Hernández.

Moção à Moção. Em seu caminho rumo a Amador Hernández, ao passar por La Realidad, pude ouvir
vários homens e mulheres representantes do CGH e da base estudantil da UNAM. Perguntei a eles como viam o
seu movimento, sua situação atual e suas perspectivas. Multiplicaram os discursos inflamados que convocam a
tomar-consciência-e-seguir-adiante-companheiros-pois-a-luta-é-pelo-México-e-não-devemos-recuar-um-único-
passo-sequer. Eu sei que provoca um pouco de riso o fato de não serem os zapatistas a dizerem isso, mas nós não
rimos, e sim ouvimos e esperamos. E logo se deram conta que não estavam no CGH e que se podia falar,
argumentar e, sobretudo, ouvir o outro.
Todos falaram e todos ouviram. Com exceção de um estudante de Letras, a característica comum era a falta
de senso de humor, aspecto lamentável em quem luta por uma mudança e algo terrível em quem é jovem. Mas
todos foram e são sinceros, acreditam naquilo que fazem (o que é cada vez mais raro de encontrar no mundo da
“política”).
123
Havia os que viam o movimento como desgastado e aqueles que o viam com boa aceitação e em
ascenso. Havia aqueles que defendiam a posição de manter-se firmes nas reivindicações do movimento e aqueles
que apoiavam uma flexibilização. Havia muitos argumentos, de um lado e de outro, todos bons, de peso, fruto de
uma reflexão e bem amarrados. Suas palavras, atitudes e convicções me pareceram muito distantes das que
pareciam predominar nas maratonas das seções do Conselho Geral de Greve. Mas isso não é tudo. Ambos os
grupos se queixaram de que no CGH não se podia argumentar ou discutir, que lá predominavam os gritos e os
insultos. E ambos defendiam o CGH como representativo e legítimo. “E sem dúvida se mexe” foi a frase que
sintetizou a avaliação agridoce que fizeram do CGH.
Eu também falei. Não, não disse palavras de ordem. Disse a verdade, que iam ganhar, que os
respeitávamos, que os queríamos, que os admirávamos, que seguíamos com atenção o que faziam e o que deixavam
de fazer. Que víamos neles muitas coisas novas e também muitas coisas velhas, muito fechados em si mesmos
(tudo gira em torno do movimento universitário, e se não gira, pois deve fazê-lo), falta de senso de humor, uma
seriedade encardida e, sobretudo, pouca disponibilidade para ouvir o outro.
Deve-se sublinhar o fato de que, no quadro do novo México que traçavam em seus relatos, a palavra
“indígena” não aparecia em canto nenhum. “Falta-nos ter um lugar junto a eles”, disse a Tacho. “Falta”, respondeu-
me enquanto selávamos os cavalos.
“E sem dúvida se mexe” disse e disse a mim mesmo quando o primeiro grupo voltou de Amador
Hernández, com um brilho diferente no olhar, e falando até pelos cotovelos das comunidades indígenas zapatistas.
“Têm universidades e Universidades”, digo a Tacho enquanto selamos os cavalos. “Têm”, responde ele sorrindo já
com o pé no estribo.

Mas não foi só com Albores e seus latidos que a UNAM e Chiapas mostraram seus pontos comuns. Estes
vêm de antes.
Enquanto em Chiapas os protagonistas são indígenas mexicanos desprezados e esquecidos, na UNAM o
movimento está sendo levado adiante por jovens mexicanos desprezados e esquecidos. No começo, sobraram
dúvidas quanto ao fato do levante zapatista ter sido realizado com a força dos indígenas, e que esta única força
havia sido capaz, como foi, de inquietar o sistema político mexicano exibindo-o em toda a sua mediocridade; na
UNAM de 1999 duvida-se do fato de que os jovens “da geração X”, os sem causa, organizem e levem adiante uma
greve que, em seus fundamentos, questiona a política de privatização do Estado Mexicano.
Desde o início do levante, as duas maiores emissoras privadas de televisão clamam pelo aniquilamento
dos indígenas e, em cumplicidade com o governo e com parte da imprensa escrita e radiofônica, organizam uma
campanha de difamação; na UNAM, e desde o início da greve, TV Asteca e Televisa dedicam-se com uma ênfase
especial a difamar os estudantes, boa parte da imprensa nacional e do rádio seguem o mesmo exemplo, o governo
e a Reitoria entram com a segunda voz. “São só alguns indígenas manipulados”, gritam na televisão, “são só
alguns jovens folgados e manipulados”, gritam sem parar TV Asteca e Televisa. O governo insiste que por trás do
levante indígena existem “interesses obscuros”, “universitários brancos”, a “igreja vermelha”, “o prd”; volta e
meia, Governo e Reitoria repetem que por trás do movimento grevista da UNAM existem “interesses extra-
universitários”, “zapatistas”, “o prd”.
A principal reivindicação dos indígenas zapatistas é “AQUI ESTAMOS”, “queremos um país que não nos
exclua, um país livre, democrático e justo, não lutamos por mantimentos e nem por moinhos de milho, e sim nos
levantamos em armas por um México melhor”; “AQUI ESTAMOS”, “queremos um país que não nos exclua,
educação pública gratuita, não lutamos para que não nos cobrem as taxas do semestre, e sim fizemos uma greve
pela educação gratuita para todos os mexicanos”, dizem os estudantes da UNAM. O governo oferece telhas para
os telhados e mantimentos para os insurgentes, “que mais querem?, deponham as armas e rendam-se” clamam
nos meios de comunicação; a Reitoria oferece disfarçar as taxas escolares, “que mais querem?, entreguem as
instalações e rendam-se”, gritam nos meios de comunicação.
O governo escala como negociadores figuras incapazes, inexperientes, fascistas e repressoras com
instruções para arrebentar o diálogo; a Reitoria escala uma “comissão de contato” autoritária, intolerante,
fascista, com instruções para arrebentar o diálogo. Os “advogados” da ultradireita, Carrancá y Rivas e Ignacio
Orihuela pedem que sejam desconsiderados os Acordos de San Andrés, exigem o uso da força pública e o
massacre dos indígenas rebeldes; Orihuela, Carrancá y Rivas exigem o uso da força pública contra os estudantes
em greve. Nos momentos mais difíceis e complexos do diálogo, Zedillo piora as coisas com suas declarações
ameaçadoras e seu reiterado ultimato ao EZLN; com suas declarações, Zedillo paralisa o diálogo entre
autoridades universitárias e grevistas e “bombardeia” a proposta dos “8 eméritos” com a ameaça de usar “a
força legítima do Estado” se esta proposta não for aceita.
Os intelectuais da direita não poupam tinta para pedir a intervenção do Exército federal e o
aniquilamento dos zapatistas; os intelectuais da direita exigem mão de fero contra os grevistas. A Coparmex exige
a repressão dos indígenas zapatistas; a Coparmex pede o fechamento da UNAM e a repressão contra os que
participam do movimento universitário. Uma vez aberto o diálogo, o EZLN faz o possível para mantê-lo e o
124
governo faz o que pode para rompê-lo; na UNAM, os estudantes flexibilizam as suas propostas e dão sinais
claros de querer dialogar, o governo e a Reitoria fazem até o impossível para que o diálogo fracasse. O governo
acusa o EZLN de ser intransigente e não querer o diálogo; Governo-Reitoria acusam os estudantes de serem
intransigentes e não querem o diálogo. O Governo e suas canetas divulgam a versão de que no interior do EZLN
tem uma linha “dura” que não quer o diálogo e está em conflito com uma linha “conciliadora”; o Governo e seus
anexos divulgam a versão de que o movimento universitário está dividido entre “ultras” e “moderados” e que a
“maioria dos grevistas está sendo manipulada pelos ultras” os “ultras”, por sua vez, estariam acusando os meios
de comunicação de aliar-se aos “moderados” para “vender” a greve.

Moção à moção da moção. São várias as perguntas que flutuam em volta do movimento:

1. Porque os professores eméritos que se apresentaram ao CGH para explicar e argumentar a proposta “dos 8”, não
disseram aos estudantes que a reitoria e o governo não irão cumprir um único compromisso? Não é verdade que
pelo menos dois dos oito eméritos da proposta anterior foram assessores do EZLN nos Diálogos de San Andrés e
um deles acompanhou quase todo o processo de diálogo e de negociação? Esqueceram de dizer-lhes o que
aconteceu depois que o governo assinou os primeiros acordos? Não é verdade que não cumpriu, não cumpre e nem
cumprirá? É ser “ultra” pensar que a reitoria e o governo não irão cumprir a sua palavra, independente do que
venham a assinar ou prometer? Os professores eméritos dizem que eles se comprometem a colocar em jogo a sua
autoridade moral para respaldar o compromisso dos acordos aos quais pode-se chegar, mas não estão esquecendo
de dizer-lhes que os Acordos de San Andrés mobilizaram pessoas e organizações no mundo inteiro, não só no
México, que colocaram em jogo sua autoridade moral (igual ou maior do que a dos eméritos) e o governo não
cumpriu os acordos? Não é verdade que intelectuais com todos os graus acadêmicos possíveis e imagináveis,
prêmios Nobel, cantores, pintores, escultores, dançarinos, atores, cientistas, pesquisadores, líderes políticos e
sociais, organizações não governamentais, gente da cidade e do campo, pessoas com nome e rosto conhecido e
pessoas sem nome e sem rosto têm se mobilizado no México e no mundo para exigir do governo que cumpra a sua
palavra? Alguma vez ele fez isso?

2. Pelo menos dois dos oito eméritos deram aulas de ética e escreveram livros sobre o tema. Dias antes que o CGH
discutisse a proposta dos 8 eméritos, o senhor Ernesto Zedillo Ponce de León ameaçou recorrer ao uso da força
pública “se a generosa e lúcida proposta de um grupo de professores” não fosse aceita; é ético sustentar uma
proposta que precisa do argumento da ameaça da repressão para mostrar sua “generosidade” e “lucidez”?

3. Dias atrás, o CGH “vetou” vários estudantes universitários entre os chamados “moderados” impedindo que
falassem em nome do CGH ou participassem de suas comissões. O argumento para isso foi o fato de darem
entrevistas, fazerem declarações ou publicarem suas posições nos meios de comunicação. Membros do “heróico”
(JÁ!) Comitê de Greve das Ciências Políticas e Sociais concederam entrevistas freqüentes aos jornais nacionais e
realizaram até visitas guiadas com os repórteres (com parada para descanso na sala de jogos), ocupando várias
páginas (com fotos coloridas) num semanário nacional; por que o CGH não fez o mesmo com eles? Se o critério
para o “veto” é o número de linhas nas colunas das matérias o CGH contou o espaço ocupado pelos assim
chamados “moderados” e o comparou com aquele reservado aos supostos “ultras”? O método para ganhar na
argumentação é impor o silêncio à parte contrária? O CGH torna-se mais forte “depurando-se” e convertendo-se
numa entidade homogênea? É esta a universidade que o CGH quer? O Regulamento Geral das Mensalidades, o
CENEVAL e tudo isso contra o qual se levanta a pauta dos 6 pontos, não são uma tentativa de “depurar” a
universidade e convertê-la numa entidade homogênea de estudantes puros “que podem pagar”?

4. No dia 4 de agosto de 1999, a polícia do governo do Distrito Federal reprimiu os estudantes grevistas da UNAM.
A foto dos jovens estudantes obrigados a ficarem de joelhos, com as mãos para cima e contra a parede, rodeados de
policiais, os relatos das jovens humilhadas pelos “representantes da lei”, além das declarações do senhor Cárdenas
depois da repressão (declarou que aquela era “uma advertência para que se tome consciência da necessidade de
retornar ao diálogo”, golpear para dialogar, lembrem de Chiapas), resolveram muitas dúvidas que existiam aqui
entre as montanhas do Sudeste Mexicano, mas, como explicar o silêncio dos intelectuais de esquerda? Tolerância e
não exclusão para todos, menos pelos “ultras” (além do mais, os que foram reprimidos não eram “ultras”, e sim
estudantes que não pertenciam a nenhuma “corrente”)? A esquerda, hoje, está no governo do DF, mas, até ontem,
não era “ultra”?

5. O que foi escrito por um intelectual do PRD na coluna de um jornal de que se deve acabar com a greve porque o
conflito em Chiapas requer todas as atenções, não é uma excelente amostra de que ser intelectual não significa ser
inteligente?
125
6. Contra o movimento grevista da UNAM, argumenta-se na esquerda perredista que já vem se prolongando há
muito tempo, que afeta a imagem de Cárdenas, que tira as atenções de Chiapas e que é fruto da ação de grupelhos
(não o dizem assim, mas colocam no lugar disso o apelido mais cômodo de “ultras”); não há nenhum argumento
coerente e razoável para pedir o fim da greve? (digo, além daquilo que já negociaram).

7. Além de ser o terreno da disputa entre “ultras” e “moderados” para ver quem expressa a proposta mais “criativa”
para ver quem manipula melhor, para ver como e aonde são cobradas as “derrotas” ou acertadas as “vitórias”, o
CGH continua sendo a cabeça visível, representativa e legítima do movimento universitário?

Como prova de que, pelo menos entre os zapatistas, temos consciência da importância do movimento
universitário, aproveito a viagem para fazer-lhes chegar algumas cartas enviadas por companheiros do EZLN e
que se explicam por si só. Vou enviá-las do jeito que estão, respeitando a redação e a ortografia originais. Aí
estão, sem anestesia prévia:

1. De Omar, indígena Tzeltal, base de apoio do EZLN:

“Companheiros (as) e amigos(as) estudantes. Saúdo vocês com o afeto especial de amigos que lutam por
uma vida mais justa. Peço ao Todo-Poderoso que estejam bem de saúde. Depois da minha humilde porém sincera
saudação passo ao que segue.
Uma saudação especial ao Conselho Geral de Greve e a toda a sua base de estudantes. Muita fé e muita
força e até a vitória.
Não tive a oportunidade de conhecê-los e apertarmo-nos nossas mãos de lutadores por uma vida mais útil
e justa.
Amigos, suas lutas é nossa luta e, além de estar com o senhor, não estão sós, estamos com vocês.
Convido-os a continuarem até a vitória e ser assim o que desejam.
Que bonito é morrer fazendo o bem, mas feio é morrer por fazer o mal. Ninguém nos atribuirá isso se o
nosso afã é bom, justo e valente.

Das montanhas do sudeste chiapaneco Aguascalientes IV. Omar”.

2. De umas bases de apoio do EZLN

“Data: julho
Assunto: apoiando

Nós, bases de apoio do EZLN, Exército Zapatista de Libertação Nacional, Internacional, estamos
apoiando os irmãos estudantes da UNAM, Universidade Autônoma do México, vocês não estão sós, estamos com
vocês. Não tenham medo. Irmãos estudantes, chega de injustiças do mal governo, no nosso país queremos a
democracia para todos, uma nação na qual haja liberdade e dignidade, a UNAM deveria ser gratuita para todos
os estudantes, é necessário lutar irmãos estudantes, lembrem que nós bases de apoio do EZLN o fazemos sem
medo porque queremos dignidade e igualdade na nossa nação e no internacional. Irmãos estudantes estaremos
com vocês a todo instante.
Uma saudação a todos, irmãos estudantes.
Nós bases de apoio do EZLN. Exército Zapatista de Libertação Nacional”

3. De Veto (não sei se é assim que o companheiro escreve o seu nome ou se está sendo irônico diante das
últimas decisões do CGH), base de apoio do EZLN. Esta carta veio com tudo e no envelope (sem selos) se lê:
“Pensar é difícil, agir é mais difícil ainda, mas agir como se pensa é a coisa mais difícil do mundo”. “Para a
UNAM e o Conselho Geral de Greve”.

“Prezados irmãos e irmãs.


Jovens estudantes todos.
Ao Conselho Geral de Greve.
PRESENTE

Recebam todos vocês estas cordiais e carinhosas saudações, esperando que como sempre suas vozes
ressoem num único ideal...
«A educação não é de quem a dá ou recebe, e sim de quem a defende».
126
Pois é, prezados irmãos; quero dizer em primeiro lugar que a sua luta é a nossa luta: NÃO À
PRIVATIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO! ... Não às p... de Barnés e de seus testa-de-ferro que o seguem.
Vamos assumir com valentia nossas justas reivindicações e unir nosso esforço num único coração, vamos
levantar a verdade: EDUCAÇÃO PÚBLICA E GRATUITA, esta verdade é a nossa bandeira.
Todo o nosso apoio está com as reivindicações que vocês exigem. Por esta e outras tantas razões, nos
pronunciamos a favor de uma educação melhor.
Sabemos que estão bem esclarecidos e conscientes na luta, nunca é demais dizer-lhes que ainda que as
coisas costumem ir mal, não se deve desistir. Nem um passo atrás, muitos passos para frente.
Com a consciência clara, honesta e clara, estão derrotando esta podridão de burocratas, porque a única
coisa que sabem fazer é dizer, é mentir, sim, transformar a verdade em mentira.
Que vergonha para aqueles que se consideram formadores políticos da UNAM, grandes eminências
segundo eles, homens educados, mas acontece que os homens verdadeiros e a pátria, os tem qualificado como os
mais corruptos, os mais opressores, homens políticos, ou seja como for que se chamem, são só vazios como os
astros no vazio e tem como seu único interesse o da besta do mal.
Entristece-me e é o que tem de mais vergonhoso para a humanidade, ver uma máquina desprezada (ou,
melhor, odiada) como são os meios de informação, claro! Alguns: TV Asteca, por exemplo.

IRMÃOS TODOS!
Nos enche de orgulho ver esta juventude cheia de vitória,
Ver um rapaz com o punho erguido!
Ver uma moça com a vitória no olhar...!
Sim meus irmãos: Até a vitória sempre!!

Das montanhas do sudeste chiapaneco Aguascalientes IV.


Seu amigo e irmão de luta, companheiro Veto. Base de apoio do EZLN.

Acho que estas cartas sintetizam muito bem o que vocês representam para nós, e são uma amostra de até a
que ponto a UNAM e Chiapas não são espelhos uma da outra e sim sintomas de algo que está emergindo.

“Estudantas” e estudantes da UNAM:


Sei que para vocês a vida agora não está fácil (mas, por outro lado, quando é que foi fácil?), e que os dias
que virão (como os que passaram) demandarão muita imaginação e ousadia. Sei que vocês sabem que a firmeza
não é inimiga da inteligência, e que a razão e o convencimento não tem a ver com o volume e a hora de expor os
argumentos.
Moção a quarta potência. Estávamos terminando esta carta quando tomamos conhecimento da do Comitê
de Greve da Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da UNAM (publicada no La Jornada de 19 de setembro de
1999 e dirigida “Ao povo do México”). Queremos esclarecer “Ao povo do México” que os zapatistas NÃO são
irmãos do “Heróico” (JÁ!) Comitê de Greve de Ciências Políticas e Sociais (nos falta muito para pôr “Heróico”
antes de “EZLN” sem sequer envergonharmo-nos um pouco). Sobre o fato de que o “La Jornada” está “a serviço do
PRD”, isso já é dito pelo governo e a sua imprensa. Uma dúvida: esse negócio de que “não nos sobra outra coisa a
não ser a imprensa underground”, quer dizer que na imprensa underground pode-se escrever com uma redação ruim
e erros de ortografia? Outra dúvida: como nos comunica amavelmente o “Heróico” (JÁ!) Comitê de Greve das
Políticas, La Jornada e Proceso são aliados da burguesia reformista, então Milenio que lhe deu ampla cobertura,
várias páginas e fotos coloridas é aliado do proletariado revolucionário? Que eu saiba, não tenho nada contra
Milenio (eles sim nos convidaram para o aniversário - e o La Jornada não - só que o convite chegou tarde), mas
ignorava seu caráter insurrecional (várias coisas Sancho).
Eu sei que já sabem disso, se o digo é só para que não o esqueçam; nós zapatistas entendemos sua luta, a
apoiamos, e ainda que os abandonem, nós estaremos ao seu lado. Não só porque é nosso dever, mas também
porque é isso.
Valeu. Saúde e não se esqueçam que alguns de seus companheiros e companheiras estão em Amador
Hernández e tem diante de si 500 soldados armados até os dentes (mas nós estamos ao lado deles, por isso levam
vantagem).

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, agosto-setembro de 1999.

P.S. QUE NÃO FAZ NADA PELA RIMA. Olivio e Marcelo (de, aproximadamente, 7 anos) chegaram perto de
mim e disseram: “Oi Sup, fizemos uma palavra de ordem para a luta, quer ouvir?” Não me deixaram responder, se
127
olharam e, sem sincronizar-se, começaram a dizer: “Uva, limão e pistache. Viva a UNAM e o EZLN!” Fiz a
cara que vocês devem estar fazendo agora. Marcelo se dirigiu ao Olivio e disse: “Você gosta de pistache? É de noz!
Valeu!” Diz Olivio e os dois agora retornam com: “Uva, limão e noz. Viva a UNAM e o EZLN!” Eu aplaudi, que
mais podia fazer?

A “H” tem a palavra (e como é muda, a cede à Greve)54

Para: Cosme Damián Sastre Sanchez,


Zapatista, 25 anos de idade,
assassinado pela polícia de Tijuana, B.C., no dia 2 de outubro de 1999.

Num canto emudecem


velhas cartas, velhos envelopes,
com a cor da idade
colocada sobre a escrita.
Aí perecem as cartas
cheias de estremecimentos.
Aí agoniza a tinta
e desfalecem as folhas,
o papel fica gasto
pelas paixões do passado
e pelos amores do presente.

Miguel Hernández

A madrugada avança com a mesma inquieta rapidez da chuva que cai sobre as montanhas do sudeste
mexicano. Sim, agora chove sobre o chover que, por si só, se derrete em chuva no outono indígena. É chuva sobre
chuva, até a vista se ofusca e já não tem nem a noite em cima e nem as nuvens, as árvores e as sombras. Tudo é
chuva. E a água caída procura uma maneira de fazer-se de lado e dar espaço àquela que continua caindo, e assim
são dezenas de pequenos arroios e riachos que cortam os terrenos e os caminhos. A chuva castiga a montanha,
provocando-lhe muitos e rápidos cortes e, semeando um cemitério de umidades, lhe costura feridas por toda a face.
Lá, embaixo, uma luz pestaneja num lado da encosta. Dá pra adivinhar que a sombra perseguida está em
maus lençóis porque ora a pequena choça se ilumina, ora se apaga. Deve ser a vela que titubeia. Se não estivesse
chovendo tanto, poderia competir muito bem com os vaga-lumes. Ssshh! Agora a tormenta se acalma. Vamos
tentar chegar perto arregaçando as calças e as anáguas. Apresse-se senão nos encharcamos. Aí está.
Segurando uma vela, a sombra tenta ler uma revista. O quartinho ostenta os estragos da chuva; um
verdadeiro riacho atravessa a choça de fora a fora e um velho nylon tenta proteger aquilo que ainda assim vai
umedecendo sobre a mesa. O vento, que não dorme molhado, sopra também aqui dentro e levanta o negro plástico
que cobre a mesa. Sobre ele foram colocadas 4 pastas e sobre elas se lê: “Carta 4”, “Carta 5”, “Carta 6”, “Carta 7”.
Tem um livro com uma capa azul celeste. Sobre a imagem da caveira com as tíbias cruzadas se lê: “História Geral
dos Roubos e dos assassinatos dos mais Famosos Piratas. Daniel Defoe”. Outro Livro, “História Militar do México,
1325-1810. Tenente Coronel Daniel Rodríguez Santos”.
Alguns lápis, uma bolsa para o fumo e uma pilha de jornais deste tamanho. Tudo está perolado com
pequenas gotas de chuva.
Cuidado!, que já, já, a sombra pára de ler. Advinha-se que está em dúvida. Um suspiro profundo.
Silenciosamente, acende o cachimbo desajeitado, coloca de lado as 4 úmidas pastas, aproxima uma folha de papel
e, à pobre luz da vela, reiterando o dois, escreve ...

Carta 3 bis

“(...) o homem sozinho cabe na utopia. Somente aqueles que foram capazes de encarnar a utopia estarão aptos
para o combate decisivo, o de recuperar o quanto de humanidade havíamos perdido”.
Ernesto Sábato.

Para: Carlos Monsiváis

54
A palavra “greve” traduz-se em espanhol por “huelga”, o que dá sentido ao subtítulo deste comunicado.
128
Continua pendente o dilema do “tu” ou do “você” (jogar a moedinha com esta lama significa não só
não resolver a questão, mas, além do mais, perder a moeda). Por isso vai continuar o ir e vir de um lado pra outro.
Quero aproveitar esta carta pra você, para responder também às cartas e aos artigos dos doutores Alfredo Lopez
Austin, Luis Villoro, Adolfo Sánchez Vásquez e Octávio Rodríguez Araujo. Só evito responder a Adolfo Güilly,
porque desde o 4 de agosto não falamos com funcionários da Cidade do México (o que é uma pena, porque os
artigos dele sobre a UNAM são realmente bons, ricos e pertinentes). Espero que você e os doutores me desculpem
pelo atraso em responder. Esperei para ver se alguém mais dizia alguma coisa (ou se “aderia” ao que era dito por
outros) e, além do mais, não são poucos os caminhos que estão cortados pelas chuvas que nos castigam por estas
bandas.
Bem. Escrevo-lhe não só porque, cronologicamente, você foi o primeiro a responder à “Carta 3”. Mas
também porque em teus textos colocas algumas coisas sobre as quais, acredito, vale a pena se aprofundar. Então,
tomara que nesta carta você me permita responder primeiro aos doutores em geral, para, em seguida, me deter
sobre alguns aspectos do seu escrito. Tudo bem? Bom, interpreto o teu silêncio como um consentimento, por isso
aqui vai:
Bom, primeiro é necessário reafirmar que a posição sobre o movimento estudantil na UNAM não é do
Subcomandante Marcos, e sim é do Exército Zapatista de Libertação Nacional. Se os textos aparecem com a minha
assinatura não é porque refletem um ponto de vista pessoal (que eu tenho), e sim para assegurar que é a posição dos
zapatistas a respeito de algo. No caso da UNAM poderia parecer que é só um ponto de vista meu, devido ao meu
cargo de presidente vitalício da SEXZU (Sociedade dos Ex-Alunos Zapatistas da UNAM; o “vitalício” é porque as
reeleições são sempre um aborrecimento, caso não acreditem perguntem a Hernández Juárez que já vai para a
sétima com os trabalhadores em telecomunicações), mas é a posição de todos nós, companheiros e companheiras
zapatistas. Para que não se duvidasse disso, a carta 3 incorpora 3 cartas de companheiros, bases de apoio, que se
explicam por si mesmas (o que, com certeza, nenhum de vocês menciona).
É esta, em resumo, a posição do EZLN diante do movimento dos estudantes da UNAM. Sua causa é justa,
têm razão, os apoiamos, os queremos, vão ganhar. Além disso, são o sintoma de “algo” do qual nós também somos
sintoma: a crise política ou da maneira de fazer política (mas vou falar disso mais adiante).
E tem mais. Até agora, o EZLN não fez nenhum comentário sobre a proposta dos eméritos, depois de já ter
sido rechaçada por quatro vezes pelas assembléias e pelo CGH. Mas já definimos nossa posição, o que era
necessário pelo que se verá mais adiante.
Depois do teu escrito de 28 de setembro de 1999 no La Jornada (sobre o qual voltarei mais adiante) vieram
as cartas dos doutores Villoro e López Austin (29 set.), a adesão de Güilly, e dois artigos dos doutores Rodríguez
Araujo (30 set.) e Sánchez Vásquez (01 de out.). Teve também uma coluna de Granados Chapa na revista
“Reforma” (30 set.) à qual, pelo que diz, respondo na carta 3 bis bis (anexa).
Eu perguntei porque, tendo em mãos a experiência de San Andrés, não haviam dito aos estudantes que o
governo e a reitoria não iriam cumprir nenhum acordo. Também perguntei se era ético sustentar a proposta “dos 8”
depois do discurso de Zedillo. Os quatro doutores respondem a estas duas perguntas (você também, mas eu já disse
que o deixo pra depois).
Bem, primeiro vamos precisar algumas coisas. Dizem Villoro e López Austin: “Em sua carta você faz
alusão a um emérito que deu aulas de ética e escreveu alguns livros sobre o tema. Vamos chamá-lo pelo seu
próprio nome e importância: Adolfo Sánchez Vázquez, insigne professor de filosofia, internacionalmente
reconhecido, e com um longo passado de absoluta retidão e inquebrantável espírito de luta pelas causas justas” .
Não é assim, eu coloquei “pelo menos 2” e não um. O outro que escreveu livros de ética é o doutor Luis Villoro -
de quem se pode dizer o mesmo que se diz sobre Sánchez Vázquez - tenho aqui ao alcance da mão o livro do
Fondo de Cultura Económica com o título “O Poder e o Valor - Fundamentos de uma Ética Política”, de Luis
Villoro. Logo, são pelo menos dois os eméritos que escreveram livros sobre o tema.
No mesmo dia em que Güilly concorda com a carta de Villoro e López Austin, aparece um texto do doutor
Octávio Rodríguez Araujo chamado: “A estranha lógica de Marcos sobre a UNAM”. O doutor Rodríguez se
pergunta: “Quando aceitou o diálogo com o governo, será que o EZLN não sabia que este freqüentemente não
cumpre com seus compromissos? Se alguém tivesse dito ao EZLN que o governo não iria cumprir seus
compromissos, este não teria aceitado o diálogo e a assinatura dos Acordos de San Andrés”.
A resposta é: Não, não só não sabíamos, como estávamos firmemente convencidos de que a sociedade civil
nacional e internacional iria desencadear uma pressão tal que obrigaria o governo a cumprir seus compromissos. E
vou insistir nisso porque continua latente o problema de uma ética política. Se nós não tivéssemos achado que o
caminho do diálogo era viável, além de desejável, não teríamos sentado para dialogar com o governo. Porque é isso
que está em questão num diálogo entre as partes em conflito: chegar a acordos, a compromissos, e cumpri-los.
Nós não podemos seguir o rumo que nos oferecem (nunca amavelmente, sempre na base das cacetadas,
mas, ainda que fossem amáveis não o faríamos) de dizer uma coisa e pensar ou fazer outra.
Se o governo sentou à mesa do diálogo sabendo que não iria cumprir, tratando de ganhar tempo para
colocar em operação o aniquilamento violento (ao mesmo tempo em que apresentava uma imagem maquiada para o
129
consumo internacional), nós não. Nós não sentamos a dialogar para ganhar tempo, sentamos para procurar e
encontrar uma saída política para a guerra. Fizemos isso porque “lemos” as mobilizações populares em 94 e
durante estes que já são 6 anos de guerra. Fizemos isso porque o povo nos pediu para insistir no caminho do
diálogo e nós nos comprometemos a segui-lo. Nós temos palavra (talvez é a única coisa que temos de realmente
nossa) e a cumprimos.
Por isso dialogamos, porque nos comprometemos com o diálogo junto a sociedade civil e a abrir novos
espaços para uma participação política. A guerra é o espaço mais excludente já criado pela humanidade, tão
excludente que te aniquila. Desde então, tendo armas e espaço suficientes, nos defendemos do exército com socos,
pedras e paus. Por que? Porque pessoas como os doutores Rodríguez, Villoro, López Austin, Sánchez Vázquez, e
muitos outros e outras que não são doutores, mas são povo, nos pediram que seguíssemos o caminho do diálogo, da
política. E nos disseram que se mobilizariam em seus meios e com suas forças para que esse caminho fosse
factível, além de desejável. Nós aceitamos e cumprimos isso. Pessoas como vocês e as que não são como vocês
também têm cumprido isso. Aqui o único que não cumpriu é o governo e isto, acredito, deve ser dito
freqüentemente, por toda parte e a toda hora. Não sei se vocês conhecem um senhor que se chama Javier Sicilia. Eu
não tenho este prazer, mas às vezes ele escreve em “Proceso” e numa revista que se chama “Ixtus”. Os seus textos,
ainda que não sejam sobre Chiapas, sobre os indígenas e sobre os zapatistas terminam sempre com: “E além do
mais digo que devem ser respeitados os Acordos de San Andrés”. Por que? Porque ele acha que suas palavras vão
comover o governo e obrigá-lo a cumpri-los? Não sei, mas eu acredito que ele o faz porque é a sua forma de
cumprir com a parte que lhe cabe. E assim como ele, existem muitos milhares no México e no mundo cumprindo a
sua parte. Porque nós não o faríamos, ainda que isto implique em acrescentar mortos e presos à longa lista que já
estamos carregando?
É isto que perguntamos na carta 3, por que não disseram aos estudantes que o governo não cumpre? E
continuam não respondendo. No lugar disso, vêm com longos parágrafos falando de quanto estão indignados e
magoados pela carta 3 (e pelo rechaço dos estudantes à sua proposta), de quanto estão mal os que não concordam
com vocês, de quanto seja desejável o diálogo, da necessidade de flexibilizar as posições na negociação.
Com certeza, agora estou informado de que o Comitê de Greve das Políticas está muuuiito aborrecido
comigo pela carta 3 e me acusam de favorecer os “moderados”. Que tal? Finalmente um ponto em comum entre os
eméritos e os “ultra”! E, como vem sendo de costume, mais uma obra dos zapatistas, que se especializam em unir
os diferentes (ainda que neste caso se unam contra o Sup, todo caso, assim é o cúmulo).
Mas, bom, sobretudo no que diz respeito às críticas, deve-se notar a classificação na qual vocês todos
coincidem: o que entre vocês é “uma crítica de nível”, no “outro” é “desqualificação”; o que entre vocês é
“maturidade”, no “outro” é “irresponsabilidade”; o que entre vocês é “notável racionalidade”, no “outro é “delírio”.
O doutor Sánchez Vázquez diz sobre a proposta “dos 8”: “Ninguém a rechaçou publicamente, a não ser
um ou outro acadêmico delirante, que desses também existem”.
Vêem? Para vocês o “outro” não existe ou “delira”. Apesar do CGH e da maioria das assembléias
estudantis terem rechaçado publicamente a proposta, o doutor diz “ninguém”, e as posições de muitos acadêmicos
que não estão de acordo com ela (mas que não contam com os recursos da reitoria para pagar dezenas de
manifestos apoiando “a proposta dos 8 eméritos”) são reduzidos a “um ou outro acadêmico delirante”. Mas, indo
além disso, o doutor Sánchez Vázquez escreve: “a proposta «dos oito» era pois a única viável caso se descartasse
o uso da força pública, presente em todos os anseios de restabelecer a legalidade”. É o velho argumento do “eu ou
o inferno, escolham”. Sem dúvida, mais adiante o doutor dirá que a proposta não deve ser considerada como a
única ou ser recebida como ultimato.
Concordamos que os doutores têm o legítimo direito de apresentar suas razões e argumentos quanto à sua
posição no conflito da UNAM, e inclusive têm o direito de autodenominar-se “a única saída viável”. Até poder-se-
ia dizer que têm o direito de condenar todo mortal que ouse criticar sua posição (por sua vez, o doutor Rodríguez
permite-se afirmar que sou um irresponsável - e o são todos os que não concordam com ele; claro, já me disseram
coisas piores, mas ele não poderá afirmar que sou um inconseqüente, espero que ele possa dizer o mesmo). Já dá
pra ver que são exatamente aquilo que dizem criticar (e tratam, inutilmente, de exorcizar, porque a realidade não
deixa de repassar regularmente a sua fatura - para usar um termo que está na moda graças a mercadotecnia
política). Com idéias e colocações como estas, têm sido desatadas muitas das campanhas “anti-sépticas” nas quais
“o bom, o racional e o normal” elimina tudo o que não entende (que, é necessário recordá-lo, costuma ser a maior
parte daquilo que acontece).
Bom, o caso é que sua proposta não passa, os estudantes a rechaçam, não poucos acadêmicos a vêem como
uma adaptação da proposta da reitoria, e nas esferas governamentais tem se registrado um enorme entusiasmo por
ela.
Os quatro doutores insistem que eles são pela via do diálogo e da negociação. E, como antes, dirigem suas
baterias em direção aos estudantes do movimento, do CGH, e dos “delirantes”, “irresponsáveis” e
“desqualificadores” encapuzados que ousam ter uma posição diferente da deles, mas, contudo, nós temos algo a
dizer a respeito do diálogo e da negociação. E o faremos.
130
Num diálogo, o fundamental não é a negociação, nem o ceder muito ou pouco. Vocês se desviam do
problema na hora em que assinalam que o CGH deve aceitar a negociação, flexibilizar, abandonar o “tudo ou nada”
(eu já ouvi isso antes em algum lugar) e os etceteras que abundam. O problema é que esse diálogo chegue a um ou
a vários acordos (senão, para que se dialoga?) que devem ser cumpridos.
Bitolados na frágil perspectiva de “procurar saídas” para o conflito, esquecem de que o que se faz
necessário são “soluções” e enfoca-se tudo na questão dos pontos a serem negociados (ceder, impor em política).
Diz o doutor Sánchez Vázquez: “De conseqüência, não se estava na posição irredutível de «tudo ou nada» na qual,
lamentavelmente, se situava o CGH ao considerar inegociável sua pauta”.
O “tudo ou nada...” As 6 reivindicações da pauta são perfeitamente atendíveis, razoáveis e coerentes. Não
pedem a renúncia do Executivo ou do reitor, não demandam a mudança da política econômica, não exigem o
cumprimento dos Acordos de San Andrés, nem a entrega incondicional do palácio nacional. Onde está o “tudo” do
CGH? Qualquer coisa que reivindiquem será seu “tudo”. Qualquer tentativa de manter-se firmes em suas demandas
será sinal de intolerância, intransigência, necessidade do “tudo ou nada”.
Por que? Porque são estudantes e seu papel deve ser só o de estudar, e não de andar fazendo greves,
mostrando a barriga, os seios e as nádegas pintadas com as cores vermelho e preto, realizando marchas, protestos, e
tudo isso que andam fazendo e tanto escandaliza as boas consciências. Seu presente deve ser unicamente de estudo,
ainda que o futuro prometa a eles desemprego, hipocrisia, cinismo e cepticismo, e não devem reivindicar a
educação gratuita e a democratização dos institutos de ensino superior ainda que seja justo e legítimo fazê-lo.
“Tudo ou nada”. Vejamos: se os estudantes reduzem de 6 para 4 pontos a sua pauta de reivindicações, não
vão solucionar-lhe nada. Tampouco se a reduzem de 4 para 2. Tampouco se deixam um único ponto de pauta.
Tampouco se simplesmente acabam com a greve. Tampouco se encerram a greve e, além do mais, pedem perdão
ao reitor. O poder não descansará até que estes estudantes que hoje o desafiam e o provocam, sejam parte dele. Não
vão deixá-los em paz até convertê-los em mais um deles. Naquele momento deixarão de persegui-los, de caluniá-
los e de hostilizá-los. É este o “tudo ou nada” que o Poder procura, seja com o nome de governo, seja com o de
reitoria.
Neste conflito da UNAM, os únicos que deixaram claro que estão dispostos a dialogar (“diálogo direto,
público e resolutivo” dizem a toda hora) são os estudantes através de sua liderança, o Conselho Geral de Greve.
Tanto o têm dito, tantos sinais têm dado de disposição, e tão claramente o têm expressado que, acredito, este já é o
sétimo e mais importante ponto da sua pauta: diálogo. E com “diálogo” estão dizendo “solução”.
Uns e outros doutores dizem que a proposta era independente de qualquer grupo interno ou externo da
UNAM, mas o doutor Villoro, em sua declaração à imprensa para “explicar” a proposta, disse que era necessário
esperar que os moderados tivessem o controle do CGH para que o projeto passasse. Assim, a iniciativa dos 8
eméritos deixou de ser “para os estudantes” e entrou no jogo das forças políticas presentes no interior do
movimento e, portanto, viu-se sujeito às regras deste jogo. E perdeu. E não porque nós zapatistas a tenhamos
“desqualificado” ou tenhamos sido “errôneos” e “injustos” com seus promotores. Perdeu porque é uma proposta
para sair do conflito, e os estudantes procuram uma solução para suas demandas. “Saída” e “solução” não são a
mesma coisa. Se, além disso, vocês levam em consideração o peso que a reitoria jogou para “somar-se” ao plano
dos oito (as dezenas de manifestos com o logotipo da UNAM, que a diretoria usa de cabeçário para seus
pronunciamentos, nem sequer tiveram o cuidado de mudar a redação de seu “vínculo”), a “jogada” das correntes
estudantis e acadêmicas afins ao PRD e a soberba com a qual vocês se portaram no debate, talvez cheguem a
entender porque a sua proposta foi rechaçada pelos estudantes.
Com certeza, a sua iniciativa não vem da reitoria (conheço a história das reuniões anteriores à sua redação,
no CUC, entre vocês e os representantes da coalizão, da coordenação e do CEM), mas esta sim se apropriou dela; e
o movimento estudantil não a aceitou. Isto significa que não estava tão “no meio” como se dizia ou esperava.
Resumindo: o EZLN tem o direito de opinar sobre um assunto de interesse nacional como é o atual conflito
da UNAM. O EZLN opina sobre a proposta dos 8 eméritos depois que ela foi rechaçada por uma das partes e
aponta suas críticas e discordâncias. Desde o início do conflito, o EZLN se posicionou ao lado do movimento
estudantil universitário. Temos feito isso pura e simplesmente porque a razão e a justiça estão ao seu lado.
Achamos que o movimento tem sido claro em suas demandas, nenhuma das quais nos parece despropositada,
delirante, irresponsável, desqualificadora ou algo parecido. Em nenhum momento, o movimento, através do CGH,
se pronunciou contra o diálogo (ao contrário do que fez a reitoria em reiteradas ocasiões) e já flexibilizou sua
posição. Não é o movimento estudantil que deve ser convencido a dialogar e negociar (muito menos com base
numa proposta que se quis impor a ele por todos os meios, que vão da ameaça de repressão, até o escárnio e a
gozação, passando pelo contínuo e brando brandir dos títulos acadêmicos), e sim a reitoria (com a qual não se têm
sido tão enérgicos quanto às exigências, como se têm sido nas pressões aos estudantes). (E já que estão na “onda”
de nomear as coisas e as pessoas pelo nome, ninguém fez referência à repressão que o governo de Cuauhtémoc
Cárdenas exerceu contra os estudantes no dia 4 de agosto de 1999. Ignoro se este silêncio significa que vocês
pensam que os grevistas mereciam um castigo, se não se dá importância ao fato, se é um sentimento de proteção ou
o que. Vocês devem saber...).
131
Pouco ou nada se disse ou se argumentou contra as reivindicações dos estudantes. Por que não debater
neste terreno? Os 6 pontos da pauta são justos ou não? Merecem ou não uma solução? Os estudantes em greve
merecem ser tratados com respeito ou para eles só há gozações, desprezo, humilhações, ameaças e autoritarismo? 55
Concordamos com o fato de que as razões e os argumentos devem ser colocados em jogo. Então, vou
propor-lhes que se debata sobre os 6 pontos do CGH. Ou devemos pensar que, quando se esgotam os argumentos,
os “ultras” armam os socos, o governo saca as armas e os intelectuais o currículo?
Don Monsi:
Perdoe-me o atrevimento de responder também a outros numa carta que é para você, mas, afinal de contas,
trata-se de um debate. Agora, permita-me tocar em alguns pontos do seu escrito.
Suponhamos (não há dúvidas de que sou o “Sup”56) que divida os seus textos em três partes. Numa você
expõe as razões e os argumentos para acabar com a greve, na outra critica a minha crítica à proposta dos eméritos e
na terceira abre a porta ou a janela pelas quais pode-se tentar entender o que acontece na UNAM.
No que se refere às razões e aos argumentos, pode-se dizer exatamente o contrário; a saber:
A greve prejudica o senhor Zedillo. À diferença do tema do FOBOPROA, o conflito na UNAM faz sair
para a rua os protagonistas (de ambos os lados), e o assunto mostrou o senhor Zedillo como algo muito longe de ser
um “chefe de Estado”.
A distância que aumenta não é entre o CGH e a opinião pública e sim entre o CGH e os líderes de opinião;
as limitações nos argumentos e a falta de urgência brilharam mais do lado da reitoria (sem dúvida, os líderes de
opinião não se mantiveram tão distantes e nem foram tão enérgicos com a reitoria como o foram com o CGH).
Como explicarei mais adiante, a distância que também está se acentuando é entre os líderes de opinião e a opinião
pública.
Sobre o desespero dos pais de família que têm os filhos na UNAM, pelo fato de que as empresas já não
querem contratar os que saem dessa casa de estudos, e que as universidades “patinho” têm bons lucros (este
argumento não é seu, mas coloco-o de uma vez), repete-se o que dizem os meios de comunicação e os “líderes” de
opinião, e se poderia demonstrar o contrário (os pais de família que cuidam da segurança na organização da greve;
as empresas não contratam os que saem da UNAM... e de nenhuma universidade porque o desemprego é uma
realidade independentemente da “alma mater” de origem, a imensa maioria dos estudantes da UNAM continuam
aí) sem que faltem razões para cada lado.
Uma menção especial merece o que você assinala, de que são muitas as coisas que já têm sido conseguidas
pelo movimento e você faz uma rápida descrição destes ganhos. Concordo contigo, só que o problema não é saber
se os ganhos são muitos ou poucos, e sim se são ou não suficientes. E isso terão de dizê-lo aos estudantes do
movimento.
Quanto à questão da minha crítica à proposta dos eméritos, você diverge e dá suas razões. Todavia, valeu.
Mas insiste que a UNAM não é Chiapas e, como, às vezes, diz, isto está e não está certo. É verdade que não há
(ainda) militarização na UNAM, nem um Acteal e nem os paramilitares. Mas não é verdade que o que acontece aí
seja algo tão diferente do que ocorre por aqui (Chiapas). E é aqui que estão os pontos que podemos aprofundar
mais. Antes escrevi que a UNAM e Chiapas eram o sintoma de “algo”, da crise política ou da crise da maneira de
fazer política no México (e no mundo, mas esta é outra questão).
Odeio dizer que eu já havia dito isso. Quando advertimos que a classe política estava se separando dos
cidadãos, dissemos que a sociedade não iria perdoá-la e que iriam surgir movimentos cada vez mais afastados da
política tradicional, e cada vez mais críticos diante dela. Para enfrentar a crise que sacode a coluna vertebral do
sistema político mexicano, o sistema de partido de Estado, e quem arrasta consigo, a classe política, optaram por
construir um mundo virtual próprio, elaborado na assepsia do laboratório da informática moderna, sobre o qual
poderiam “ensaiar” os possíveis cenários e suas ações diante deles. Mas aquilo que começou como exercício
teórico, converteu-se em prática freqüente e, logo, em costume. Daí a constituir-se numa forma de fazer política, o
55
As seis reivindicações do movimento estudantil da UNAM são:
1. A revogação do Regulamento Geral de Pagamentos, cujo objetivo é o fim da educação gratuita na UNAM. Estas taxas eqüivalem a 25
dias de salário mínimo e teriam o objetivo de restringir significativamente o acesso à educação aos setores menos favorecidos da
população.
2. A convocação de um Congresso Universitário resolutivo com o objetivo de realizar reformas profundas para uma maior democratização
da universidade.
3. A revogação das reformas impostas em 1997 e que causaram a redução das matrículas. Ao aumentar o número de horas de aula, estas
reformas têm também como conseqüência a restrição do acesso dos estudantes que trabalham para sobreviver.
4. A revogação dos vínculos entre a UNAM e o Centro Nacional de Avaliação, uma empresa privada que administra o acesso à educação
seguindo critérios mercantis e utilitaristas sem levar em consideração a idoneidade acadêmica de cada estudante.
5. O cumprimento das garantias para o fim da greve, ou seja, a extinção dos corpos repressivos da Universidade, a revogação das ordens de
apreensão emitidas contra os ativistas, assim como a garantia de integridade física para as pessoas que participaram do movimento.
6. A extensão do semestre para que as atividades acadêmicas que foram interrompidas pela greve possam ser retomadas sem prejuízos para
os estudantes.
56
O leitor nos desculpe, mas a tradução não consegue reproduzir o jogo de palavras do texto original: “Supongamos (soy el “sup” por
“supuesto”)...”.
132
processo foi rápido. Neste mundo virtual a classe política é a única variável e o resto, incluindo os cidadãos,
são índices percentuais perfeitamente previsíveis e, portanto, manipuláveis. Logo, a política moderna chega ao
maior dos seus sonhos: um mundo só de políticos puros, sem movimentos sociais e cidadãos, sem imprevistos, sem
sobressaltos. Um mundo perfeitamente sujeito às regras da classe política. Maravilhoso, a não ser por um pequeno
problema: a realidade.
Se Chiapas foi o sintoma de que a ação da classe política estava “esquecendo de algo”, o movimento
estudantil universitário vem dizer-nos que não se aprendeu nada com Chiapas. Claro, à diferença dos zapatistas
(que estão isolados nas montanhas do sudeste mexicano), os estudantes estão nas ruas da principal e maior cidade
do país, a Cidade do México (o que não sei é se isso é uma vantagem ou uma desvantagem). Que a crise da classe
política chegue a arrastar a esquerda “parlamentar” (como a chamam alguns) não é de estranhar. No mundo inteiro,
a esquerda institucional parece arrastada pela moda de se tornar agradável... à direita. Não, não são só os partidos
políticos tradicionais de esquerda que têm sido arrastados nesta crise, mas também a esquerda “extra-parlamentar”.
Continuando com o exemplo da UNAM, quero dizer que as organizações políticas “radicais” (para evitar
propositadamente o termo de “ultras”) também padecem desta mescla de cepticismo, desconfiança e rechaço da
maioria dos estudantes ativos do movimento. Não só isso, a este bando (e uso o termo no mais digno de seus
sentidos) pouco ou nada importam os títulos acadêmicos, os prêmios e os prestígios que se brandem no lugar dos
argumentos. E tem mais. Tampouco os impressionam os cargos militares, por muito revolucionários que sejam.
Assim que se os eméritos argumentam ser tais, os estudantes alegam que Burgoa e Carrancá também são eméritos.
Logo, o ser emérito não é uma vacina contra a desconfiança e o receio. E, acreditem, que não ligam para essa de
“Subcomandante”, usam o “sup” somo apelido ou deixam o “Marcos” sem nada mais e eu fico assim (bonito jogo
de palavras, né?).
Bom, moçada, não se preocupe, o problema não é que a classe política esteja em crise, quer dizer, não só
isso. Acontece também que a classe política tem arrastado os líderes de opinião na sua crise. Essa distância ou
afastamento da realidade da qual sofrem os políticos, também atormenta os intelectuais sociais ou os líderes de
opinião pública. Agora falam para si mesmos ou para seus iguais, se comentam entre si, se argumentam e contra-
argumentam, se convencem e se desiludem. Acabou-se o pesado fardo de ter que entender as coisas (algo cada vez
mais difícil) e, além do mais, explicá-las (já quase impossível). Não, agora se trata de decidir, melhor, de ditar
como devem ser as coisas. Se o editorial não corresponde à realidade, pior para a realidade (já sei que é uma frase
comum, mas serve para que me explique). Um editorialista (não, não vou dizer o nome dele porque não é um
emérito) comentou comigo que o número de leitores dos jornais diminuiu. Perguntei a ele se era o número de
leitores ou o número de pessoas que compram jornais e revistas, me respondeu que são os dois (também me disse
que jornais vendiam mais exemplares, e tampouco vou dizer os seus nomes porque senão vão cair em cima de mim
os diretores e as diretoras, e, por enquanto, tenho bastante que fazer com os doutores). A queda no “rating” (é assim
que se escreve?) dos meios eletrônicos também é significativa. Ou seja, há quem até ontem te lia, via ou ouvia e já
não te lê, não te vê e nem te escuta mais. Claro que fica o consolo de que isso seja devido à crise econômica, mas e
se não for? É uma dupla contrapartida o fato de que no início da greve da UNAM e das pré-campanhas e
campanhas presidenciais, diminui ainda mais o número de leitores, telespectadores e ouvintes. Jogamos a culpa
disso também nos estudantes e nos zapatistas? (bom, nos zapatistas não, mas em Marcos sim, porque esse tanto de
laudas tira a qualquer a vontade de ler). E, sem dúvida, o número de publicações, programas de “notícias”, de
“análise” e etc. aumenta. Por que? Bom, porque os líderes de opinião precisam de muitos meios para dirigir-se ... a
si mesmos.
O que quero dizer-te, ou dizer-lhe, é que, por trás do movimento estudantil universitário, não está a trama
perversa de um setor “ultra”, rápido nos socos e vagaroso nos argumentos. Não, o que está por trás é a crise que
não vê não pessoas outra coisa a não ser um número (para o voto) ou um ativista a ser recrutado. Há melhor
sintoma disto do que a explicação que um intelectual perredista dava sobre o avanço das posições “moderadas” nas
assembléias do CGH? Dizia ele (palavra mais, palavra menos): “os moderados se dedicaram a convencer os jovens
e imberbes adolescentes que haviam sido enganados pelos ultras”. Que tal? É óbvio que na assembléia seguinte o
suposto avanço foi revertido. O que podem esperar se desprezam assim as pessoas? Como podem pensar que vão
ouvir seus argumentos se desde o início só tiveram boca para lançar escárnio, gozação, desprezo e calúnia?
Não, mestre, eu acredito que o problema não é a falta de autoridade moral da esquerda na universidade. É
algo maior, acredito que está entre a juventude, ou em amplos setores dela. E, mais ainda, me atreveria a dizer que
é no grosso da sociedade. Este tédio e esta aversão à política não são gratuitos, e sim foram cultivados pelo
abandono e a indiferença de uma classe, a política, que acredita estar formada por uma geração de eleitos que
“sabem” das coisas.
Chiapas foi um sintoma, a UNAM é outro. Virão mais. E os movimentos e efervescências serão cada vez
maiores e mais radicais (ou “ultras”, para usar o termo da moda entre a classe política e os líderes de opinião), e,
atenção, será cada vez mais difícil lançar pontes para dialogar com eles. Nós zapatistas não somos culpados disso,
tampouco o são os estudantes do movimento universitário. Uns e outros estamos dizendo “estamos aqui, não se
esqueçam”. A uns e a outros se responde com o silêncio, com a gozação, com o desprezo, com o esquecimento.
133
Odeio dizer que eu já havia dito isso, mas vou dizê-lo. Enquanto a classe política e os líderes que a
acompanham seguem em seu mundo virtual, a realidade passará a cobrar regularmente a conta do esquecimento. Só
que será cada vez maior, mais brutal e mais catastrófica.
Valeu. A continuação desta “polêmica” será bem-vinda. Se me atraso em responder não é por menosprezá-
lo, e sim porque às vezes (não seguidamente, é claro) devemos atender a outros assuntos. Finalmente, se optarem
por isso, podem arquivar esta carta 3 bis na “H” de “falar”, de “ferida”, de “história”, de “homem”, de “greve”, e de
“herros” (já sei que erro se escreve sem “h”, mas é para sublinhar o erro e não deixar que o “h” fique só para o
“ferido” Comitê de Greve das Políticas).57
Valeu. Saúde e o que deve ser lamentado é que este movimento tenha tão poucas pessoas dispostas a tentar
entendê-lo e gente demais pronta a julgá-lo.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, 08 de outubro de 1999, dia do heróico guerrilheiro (esse, sim) Ernesto Che Guevara.

P.S. Para El Tonto. A la bio, a la bao, a la bim-bom.ba, os estudantes em resumo, os estudantes em resumo, ra, ra,
ra! Já entendi alguma coisa?
c.c.p. Doutores Alfredo López Austin, Octávio Rodríguez Araujo, Adolfo Sánchez Vázquez, Luis Villoro.

Carta 3 bis, bis

Para: Miguel Angel Granados Chapa. Jornal “Reforma. Coração do México”.

Mestre:
Escrevo para cumprimentá-lo e comentar sua coluna, “Praça Pública” do dia 30 de setembro de 1999, com
o título de “Zapatismo na UNAM”. Tentei calcular as laudas que são necessárias para preencher seu “Praça
Pública” e não vou delongar-me além daquilo que me permite suplicar-lhe que, como se trata de um debate,
coloque estas linhas em seu espaço. Não sei quantas laudas são (2? 3?), por isso tratarei de ser o mais breve
possível:
Como se aprecia na carta 3 bis, respondi aos doutores Villoro e López Austin (e não só a eles). O que não
aconteceu é que tenha surgido uma nova posição do EZLN no que diz respeito ao conflito da UNAM. Continuamos
sustentando o mesmo apoio ao movimento estudantil universitário e continuamos mantendo a mesma atitude crítica
diante dos “oito”. Mas quero estender-me mais sobre este ponto. Você escreve: “Se por sua vez é oportuno em suas
críticas aos procedimentos autoritários dos ultras, o Subcomandante Marcos pode controlar o prejuízo à sua
causa e, ainda que não lhe importe, prestar um serviço à Universidade propiciando a atenção desprendida do
CGH, onde a sua voz é ouvida, para a proposta dos eméritos, no lugar de desqualificá-la”, (o negrito é meu).
Se nós (porque quando escreve o SubMarcos é o EZLN a fazê-lo) tivéssemos feito o que você aponta,
então não seríamos mais o que somos. Não faz parte da nossa ética política o mudar os princípios por conveniência.
Se nossa posição de apoio aos estudantes em greve significa abrir uma brecha (para usar a imagem que você usa)
entre nós, os assessores e os ativistas do zapatismo, pois que seja.
Ao apoiar o movimento estudantil universitário, como assinalei na carta 3, estamos cumprindo com o nosso
dever. Se isto afasta uns ou outros, paciência. Estamos dispostos a morrer por aquilo no qual acreditamos, imagine
se não estamos dispostos a nos deixarmos abandonar por aqueles que antes ou agora estiveram e estão próximos.
Estamos preocupados com a universidade e, acredite, prestamos um serviço à UNAM apoiando aqueles que
querem e lutam para transformá-la e democratizá-la: os estudantes do movimento. Não vamos propiciar a atenção
desprendida para a proposta dos eméritos no interior do CGH. Nós respeitamos os estudantes e o CGH, eles já a
rechaçaram e deram suas razões e argumentos. Não só, parece-nos que dá para entender perfeitamente seus receios
e as distâncias que tomam diante dessa proposta.
Sim, o que temos feito, e continuaremos a fazê-lo, é dar-lhes a conhecer o nosso ponto de vista e nossa
posição que é, em resumo, que devem ouvir todas as propostas, porque a Universidade é isso, universal, e contém
um universo de pensamentos. As demandas dos 6 pontos do movimento estudantil universitário tendem a manter a
Universidade como este espaço para onde confluem muitos “outros”, e enquanto a posição da reitoria tende a
redefinir a Universidade como “Particularidade” que, acredito (não tenho muita certeza disso), seria a negação
lógica da universidade. Para manter o universal da Universidade, os estudantes tiveram que deflagrar e manter uma
greve. Para acabar com esta greve só é necessária uma coisa: resolver suas, agora, 4 reivindicações (duas vão para o
Congresso). Verá que não é complicado: pedem a revogação (não a suspensão, que significa deixar “para depois”),
do Regulamento Geral de Pagamentos, o que seria garantir o caráter gratuito da UNAM. O argumento econômico
57
Mais uma vez a tradução não consegue dar conta do jogo de palavras. As palavras do espanhol: hablar (falar), herida (ferida), huelga
(greve), herido (ferido) dão sentido à afirmação do Subcomandante.
134
esgrimido para justificar o aumento das taxas caiu diante da pressão de dois elementos: o palavrório
governamental sobre o crescimento econômico (se estamos tão bem, porque não aumentar o orçamento destinado
ao ensino superior?), e o gigantesco desperdício de recursos por parte da reitoria em sua campanha contra a greve
junto aos meios de comunicação. Pedem a adequação do calendário escolar para que não seja afetada a
continuidade de seus estudos (não deixa de surpreender que se ataquem os estudantes por não querer estudar e que
uma de suas reivindicações seja a de ter chance de continuar os estudos).
No mesmo tom, mas tocando o caráter policial com o qual a reitoria e o governo têm encarado o
movimento, pede-se que se retirem os processos judiciais impetrados contra vários estudantes, professores e
trabalhadores. E, como ponto 6, pede-se a realização de um Congresso Universitário (no qual toda a comunidade
discuta e resolva - daí seu caráter resolutivo - a pergunta “que universidade queremos?”).
Se pudéssemos resumir a pauta de reivindicações, poder-se-ia dizer que o que os estudantes estão dizendo
é: “A reitoria tomou uma série de decisões sem consultar a comunidade universitária. Nós recorremos à greve
para que estas decisões sejam tomadas pela comunidade universitária em seu conjunto. Por isso, é necessário
anular os torpes procedimentos de Barnés e fazer um Congresso RESOLUTIVO”.
Por que o senhor Barnés não quer ir a um Congresso? Porque suas propostas perderiam diante dos
argumentos dos estudantes. Este é o problema, senhor Granados Chapa, por parte das autoridades não há sequer
raciocínios economicistas ou empresariais (que existiam e eram bastante ridículos), mas só o princípio de
autoridade. O “não vou ceder diante destas criancinhas” suplantou a razão. E é este princípio de autoridade que, se
estou lembrado, desatou os pesadelos que têm data e nome no calendário mexicano: do dia 02 de outubro de 1968
ao 10 de junho de 1998, passando pelo Jueves de Corpus, o 06 e junho de 1988, o 09 de fevereiro de 1995 e Acteal
em 1997.
Não são os estudantes que devem ser pressionados para resolver a greve, eles já deram o que tinham que
dar. Aos que deve ser exigido que a resolvam JÁ são aqueles que têm o meio de fazê-lo: o governo e a reitoria.
Como? Satisfazendo de cabo a rabo os pontos da pauta do CGH.
Bom, acabaram saindo duas laudas bem apertadas. Tomara que o texto saia completo. Senão, pois eu
entenderei que cite somente alguns parágrafos. Valeu. Espero poder visitá-lo logo em seu programa de rádio (e
oxalá que, desta vez, ninguém me repreenda por telefone por fumar o cachimbo).
Valeu. Saúde e já dá pra ver que o que delineamos é “outra” ética política (e assim seja), (suspiro).

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos. México, Outubro de 1999.

A hora dos pequenos

Primeira parte: a volta de...

Para Don Emilio Krieger, que sempre esteve com os pequenos.


Para as crianças do “El Molino” (da Frente Popular Francisco Villa) que perderam suas casas num
incêndio.

“Na caixa de correio do tempo há alegrias


que ninguém vai exigir
que ninguém nunca irá reclamar
e acabarão murchas
com saudades do sabor da intempérie
e sem dúvida da caixa de correio do tempo
sairão logo cartas voadoras
dispostas a fincar-se em algum sonho
onde aguardam os sustos do azar.

Mario Benedetti

Cai apenas uma garoa úmida e fria. Sem dúvida, o batuque da chuva sobre a montanha tem sido tão intenso
e tão forte nos dias anteriores que deixou nela não poucas amassaduras e agora tem cicatrizes que lhe estragam toda
a falda. Mas, bom, depois de tanta tormenta, se agradece por esta chuvinha. É tempo de chuva. Tempo dos
pequenos.
135
Morreu um homem bom. O que se diz quando morre um homem bom? Algumas crianças, que ontem
abriram suas casas sem medo para receber mil cento e onze sem rosto, perderam as suas casas. 58 O que se diz
quando uma criança perde a sua casa? Não se diz nada, apenas se cala. Porque muitas vezes as dores são para que
fiquemos calados. Sem dúvida, tentando aliviar a dor, os pequenos deste lado do cerco tendem suas pontes como
mãos até onde falta o homem bom e até onde faltam portas e janelas que se abram ao outro esquecido e pequeno,
ou outro digno e rebelde. Tendem-se pontes para acompanhar, para estar perto, para não esquecer. Talvez por isso,
sem pressa, a sombra afia com ternura o primeiro dois da quarta carta, procurando arrancar um sorriso entre tanta
dor que lá causa sofrimento.
Lá em baixo a vela reitera a sua vocação de farol para este marinheiro que, perdido entre as montanhas,
navega as sombras da madrugada. Sim, vamos, mas tenha cuidado com a lama e com estas poças. Você vai
devagar? Bom, me adianto e de lá de dentro te aviso. Bem, aqui estou. Sim. A sombra está novamente sozinha.
Não... Um momento... Parece que tem mais alguém... Essa vela que não pára de mexer-se! Não, não consigo ver
quem, mas tem alguém, mas é claro que tem alguém porque a sombra fala com ele. Não, melhor, só está negando,
porque não faz outra coisa a não ser repetir “não, não e não”. Espere, vou pra aquele canto para ver melhor. Aí está.
Mmmhh. Acredito que a nossa sombra predileta enlouqueceu. Não se vê ninguém por perto! E ela com o seu “não,
não e não”. Enfim, era de se esperar, tanta chuva e tanta madrugada acabam por enlouquecer qualquer um. O que?
Mas sim, já te disse que não tem ninguém! Quer que me aproxime? E se ele me vê? Bom, sim, devagarzinho e com
discrição. Não, insisto, não tem ninguém. Um momento! Espere! Sim, já consigo distinguir algo... Aí num canto!
Sim! Que alívio! Não ficou louco não. Acontece que era tão pequeno que eu não reparava nele... O que? Com quem
está falando? Bom, pois, ... veja você mesmo ... quer mesmo saber? Sim? Pois, ... pois ... com um escaravelho!

Durito!

Quarta Carta.

- Não ,não e não! Digo a Durito pela enésima vez.


Sim, Durito voltou. Mas antes de explicar a vocês o meu reiterado “não” devo contar-lhes toda a história.
Quando na madrugada do outro dia a chuva formou um riacho que se colocou justo no meio da choça,
Durito chegou a bordo de uma lata de sardinhas que tinha um lápis fincado no meio dela e, nele, um pano ou algo
parecido que, em seguida, fiquei sabendo que era uma vela. Na parte mais alta do pau maior, perdão, do lápis,
tremulava uma bandeira preta com uma caveira feroz que repousava sobre um par de tíbias cruzadas. Não era bem
um navio pirata, e sim, pelo menos, uma lata de sardinhas pirata. Acontece que o barco, ou seja, a lata, foi bater
justo no pé da mesa, e o fez com um estrondo tão grande que Durito saiu voando e foi pousar justo na minha bota.
Durito se recompôs como pôde e exclamou:
- No dia de hoje... No dia de hoje... se virou para olhar para mim e disse: - Ehi, você, nariz de cenoura! Diga-me
logo a data!
Eu titubeei, um pouco pela vontade de dar um abraço a Durito que estava de volta, um pouco pela vontade de dar-
lhe um pontapé pelo “nariz de cenoura”, e outro ainda pela... Pela ... Data?
- Sim! A data. Ou seja, dia, mês e ano corrente. Acorda mentecapto, que parece que você está no debate dos
presidenciáveis! Diga-me a data!
Eu olho no relógio e digo: - 12 de outubro de 1999.
- 12 de outubro? Olha só como a natureza imita a arte! Bem. No dia de hoje, 12 de outubro de 1999, declaro
descoberta, conquistada e libertada esta formosa ilha caribenha que responde ao nome de... de ... Depressa, o
nome da ilha!
- Que ilha? Pergunto eu ainda desconcertado.
- Como que ilha seu mentecapto? Pois esta! E qual deveria ser? Não há pirata que se preze que não tenha uma
ilha para esconder o tesouro e as aflições...
- Ilha? Eu sempre pensei que fosse uma árvore, uma ceiba, para ser mais preciso. Digo enquanto me aproximo da
extremidade da espessa copa da árvore.
- Pois você se engana, é uma ilha. Onde já se viu que um pirata desembarca numa ceiba? Por isso, ou me diz o
nome desta ilha ou o seu destino será de servir de almoço aos tubarões. Diz Durito ameaçador.
- Tubarões? Digo eu engolindo a saliva. Tagarelando alego: Não tem nome...
- “Não tem nome”. Mmh. Tenho pra mim que você é um homem muito digno para uma ilha pirata. Bom, no dia de
hoje, 12 de outubro de 1999, declaro descoberta, conquistada e libertada a ilha de “Não tem nome” e nomeio este
indivíduo de nariz acentuado como meu contramestre, primeiro oficial, marinheiro e sentinela.
Eu procuro não reparar na ofensa e nem na multidão de cargos que me foram conferidos, e digo: De modo que...
agora, você é um pirata!
58
Refere-se à marcha dos “1.111” que chegara na Cidade do México no dia 12 de setembro de 1997 esperada por uma das maiores
manifestações populares da história do país.
136
- “Um pirata”, não! Sou O PIRATA!
Fiquei olhando até agora a cara de Durito. Uma venda preta enfeita o seu olho direito, um paninho
vermelho cobre-lhe a cabeça, num de seus muitos braços um pedacinho de arame retorcido lhe serve de gancho, e
no outro reluz a varinha que, um tempo atrás, era a Excalibur, agora não tenho certeza, mas deve ser uma espécie
de espada, de sabre, ou seja lá o que for que é usado pelos piratas. Além do mais, amarrado a uma de suas várias
pernas tem um graveto que se parece... que se parece ... mmh ... com uma perna de pau!
- Bem, o que acha? Diz Durito enquanto dá meia volta para que se aprecie todo o requinte com o qual confeccionou
o seu traje de pirata.
Com cuidado pergunto: É assim que agora você se chama...?
- Black Shield! Diz Durito enchendo o peito, e acrescenta: Mas pode colocar Escudo Preto para os que não são
globalizados.
- Escudo Preto?, mas ...
- Claro! Já não teve um Barba-Vermelha e um Barba-Negra?
- Bom, sim, mas...
Não tem pra ninguém! Eu sou Escudo Negro! Comparado comigo Barba-Negra chega só ao cinza, e o tal de
Barba-Vermelha fica mais desbotado que o seu velho paliacate. 59
Durito disse isso brandindo a espada e o gancho ao mesmo tempo. Agora, parado sobre a proa da sua lata
de sardi..., desculpem, de sua embarcação, começa a declamar a canção do pirata...
- “Com dez canhões de cada lado...”
- Durito... tento fazer-lhe recuperar o juízo.
- “Vento em popa enchendo a vela...”
- Durito...
- “Não cruza o mar e sim voa...”
- Durito!
- O que? Alguma galé do rei ao nosso alcance? A postos! Desfraldar as velas! Preparar a abordagem!
- Durito! Grito já desesperado.
- Calma, não grite assim que você parece um bucaneiro desempregado. O que é que você tem?
- Poderia dizer-me por onde andou, de onde vem e o que te traz para estas terras, desculpe, ilhas? Pergunto já
mais tranqüilo.
- Estive na Itália, na Inglaterra, na Dinamarca, na Alemanha, na França, em Genebra, na Holanda, na Bélgica, na
Suécia, na península Ibérica, nas Ilhas Canárias, em toda Europa. Durito disse tudo isso distribuindo golpes de
espada para direita e para esquerda.
- Em Veneza comi com Dário uma dessas macarronadas que tanto entusiasmam os italianos e que me deixam i-m-
o-b-i-l-i-z-a-d-o.
- Um momento! Que Dário? Você vai querer dizer que esteve comendo com Dário...?
- Sim, Dário Fó. Bom, comendo, comendo, não. Ele comia e eu o olhava comer. Porque olha, estes espaguetes me
dão dor de barriga, ainda mais quando lhe colocam “pasto”.
- Pesto - corrijo.60
- “Pasto” ou “pesto”, tem gosto de erva daninha. Como te dizia, cheguei em Veneza procedente de Roma, depois
de escapar de um dos “Centri di Detenzione Temporanea (per Immigrati)”, que são uma espécie de campo de
concentração, onde as autoridades italianas isolam, antes de expulsá-los do país, todos os que vêm de outros
países e, portanto, são “outros diferentes”. Não foi fácil sair, tive que liderar uma rebelião. Claro que foi
fundamental o apoio destes homens e mulheres que na Itália são contra este racismo institucionalizado. Bom, o
caso é que Dário queria que o ajudasse com algumas idéias para uma peça de teatro e não tive coragem de dizer
não.
- Durito...
- Depois fui à marcha contra a ONU para a guerra no Kosovo.
- Deve ser contra a OTAN...
- Dá na mesma. O fato é que depois de uma série de peripécias, embarquei rumo a Ilha de Lanzarote.
- Um momento! A Ilha de Lanzarote? Não é onde mora José Saramago?
- Sim, bom, eu o chamo de Pepe. O caso é que Pepe me convidou para um café para que eu lhe contasse das
minhas experiências na Europa do Euro. Foi maravilhoso...
- Sim, imagino que deve ter sido maravilhoso falar com Saramago...
- Não, me referia ao café que nos preparou a Pilarica. Faz um café realmente maravilhoso.
- Você está falando de Pilar del Rio?
- A própria.

59
Paliacate: é o lenço com o qual os zapatistas cobrem seus rostos para não serem reconhecidos.
60
Pesto: molho típico que tem o manjericão como ingrediente principal.
137
- Do modo que um dia você come com Dário Fo e no outro com José Saramago.
- Sim, nestes dias andava ombro a ombro só com prêmios Nobel. Mas estava te dizendo que com Pepe eu tive uma
discussão das feias.
- O motivo?
- Pelo prólogo que ele escreveu para o meu livro. Pareceu-me de muito mal gosto que eu, o grande e equânime
Don Durito de La Lacandona, fosse reduzido ao mundo dos coleópteros lamelicórneos. (Durito se refere ao
prólogo de José Saramago ao livro Don Durito de La Lacandona, Ed. CIACH A.C.).
- E a discussão deu no que?
- Bom, o desafiei a um duelo, assim como mandam as leis da cavalaria andante.
- E...?
- E nada, vi que a Pilarica teria ficado com o coração em pedaços, pois era óbvio que eu iria vencer, e o perdoei...
- Você perdoou José Saramago?
- Bom, não totalmente. Mas esqueci a afronta, ele terá que vir a estas terras e declamar em alto e bom som esta
fala: “Ouçam todos vocês. Tremei tiranos. Suspirem donzelas. Alegrem-vos crianças. Regozijai-vos vocês que
estão tristes e atarefados. Ouçam todos vocês. Que por estas terras voltou a andar o sempre grande, o portentoso,
o inigualável, o bem-amado, o esperado, o onomatopéico, o mais melhor dos cavaleiros andantes, Don Durito de
La Lacandona.
- Você obrigou José Saramago a vir para o México para dizer essas... essas... essas coisas?
- Sim, e também me parece um castigo dos leves. Mas, afinal de contas é um prêmio Nobel, e talvez eu precise de
alguém que faça o prólogo do meu próximo livro.
- Durito! Repreendo-o e acrescento: - Bom, mas como foi que você se transformou num pirata, desculpa em O
PIRATA?
- Foi por culpa de Sabina... Diz Durito como se estivesse falando de um companheiro de jogos.
- Quer dizer que você viu também Joaquim Sabina?
- Claro! Queria que o ajudasse com os arranjos musicais do seu próximo disco. Não me interrompa. Acontece que
eu e Sabina estávamos andando à toa pelos bares e atrás das mulheres de Madri quando chegamos a Las
Ramblas.
- Mas isso fica em Barcelona!
- Sim, este que é o mistério. Sim, porque um momento antes estávamos numa Taberna em Madri abobalhados com
uma fêmea pele de azeitona, andaluza de Joén para ser mais preciso, e então tive que satisfazer uma das
necessidades biológicas que chamam de “primárias”. Foi aí que errei de porta e no lugar da porta do banheiro,
abri a da rua. E aconteceu que estava em Las Ramblas. Sim, já não estava em Madri e nem estavam mais aí
Sabina, a taberna e a pele de azeitona, mas eu continuava precisando de um “banheiro” porque um cavalheiro
não pode andar fazendo estas coisas em qualquer canto. Logo, procurei um bar, tentando lembrar de quando
estive andando por aí com Manolo ...
- Imagino que você esteja se referindo a Manuel Vázquez Montalbán. Pergunto já disposto a não ficar assustado.
- Sim, mas é um nome muito cumprido; assim eu digo só Manolo. Então eu estava angustiado, inquieto e cansado
procurando um lugar com um banheiro, quando três sombras gigantescas apareceram diante de mim numa viela
escura...
- Bandidos! Interrompi assustado.
- Negativo. Eram três latões de lixo, em cuja sombra eu calculei que poderia fazer, com intimidade e discrição, o
que pensava fazer no banheiro. E assim fiz. Já com a satisfação do dever cumprido, acendi o cachimbo e ouvi
claramente as doze badaladas do Big Bem.
- Mas, Durito, isso fica em Londres, na Inglaterra...
- Sim, também me pareceu estranho, mas o que não o era nesta noite? Caminhei até chegar diante de um letreiro
que dizia: “Piratas. Precisam-se. Não se requer experiência prévia. Damos preferência a escaravelhos e a
cavaleiros andantes. Informações no bar “La Mota Negra”. Durito acende seu cachimbo e continua:
- Continuei caminhando, procurando o letreiro “La Mota Negra”. Caminhei com cuidado adivinhando apenas as
esquinas e os muros de tão espessa que era a neblina que caia nesta madrugada sobre as ruas de Copenhague...
- Copenhague? Mas você não estava em Londres?
- Olha, se você volta a me interromper com obviedades te mando para a prancha e daí para os tubarões. Já te
disse que era tudo muito estranho, e se eu li o letreiro procurando piratas em Londres, já estava procurando o Bar
“La Mota Negra” em Copenhague, Dinamarca. Me perdi por alguns momentos nos jardins de Tívoli, mas
continuei procurando. Logo em seguida, o encontrei numa esquina. Uma luz mortiça vinda de um farol solitário,
que mal arranhava a neblina, iluminava um letreiro que anunciava: “La Mota Negra. Bar & Table Dance.
Descontos Especiais para Escaravelhos e Cavaleiros Andantes”. Não sem antes apreciar a alta estima e simpatia
que na Europa eles têm para com os escaravelhos e os cavaleiros andantes...
- Deve ser porque eles não têm que agüentá-los... apenas murmurei.
138
- Não acredite que me escapa a ironia de suas murmurações - diz Durito. Mas para o bem de seus leitores
continuarei a minha narração. Vai chegara hora de acertar as contas com você.
Dizia que depois de apreciar a grande inteligência dos europeus por reconhecer e admirar a grandeza que alguns
seres possuem, entrei neste bar do bairro de Montmartre, perto do Sacré-Coeur ...
Durito se mantém em silêncio por um instante esperando que eu o interrompa dizendo que isso fica em
Paris, França, mas eu não digo nada. Durito aprova com satisfação e continua:
- Lá dentro uma névoa arroxeada invadia o ambiente; sentei a uma mesa no canto mais escuro. Não passou nem
um segundo para que um garçom me dissesse em perfeito alemão: “Bem-vindo a Berlim Oriental” e sem dizer
mais nada me deixou o que supunha ser o cardápio, o abri e nele estava escrita uma única frase: “Aprendizes de
pirata, segundo andar”. Subi por uma escada que estava logo às minhas costas. Cheguei a um longo corredor
flanqueado por algumas janelas. Através de uma delas podiam-se apreciar os canais e as 400 pontes que levantam
Amsterdã sobre as 90 ilhas. Ao longe, apreciava-se a Torre Branca, que lembra aos gregos de Salônica os
extremos da intolerância. Mais adiante, sempre pelo corredor, outra janela oferecia a vista do Matterhorn suíço.
Mais além, adivinhavam-se as pedras milagrosas do irlandês Castillo de Blarney que dão o dom da palavra a
quem as beija. À esquerda erguia-se a torre de sinos da Praça Maior de Bruges, na Bélgica. Seguindo pelo
corredor, antes de chegar a uma porta desajeitada, uma janela olhava para a Praça dos Milagres e, esticando um
pouco o braço, era possível tocar o desfalecido inclinar-se da Torre de Pisa.
- Sim, através desse corredor aparecia meia Europa e não teria me surpreendido se a porta trouxesse um letreiro
com escrito “Bem-vindos ao Tratado de Maastricht”. Mas não, não havia nenhum letreiro na porta. E mais, não
tinha sequer a maçaneta. Bati, e nada. Empurrei a pesada folha de madeira e esta cedeu sem problemas. Uma
lúgubre chiadeira acompanhou o abrir-se da porta.
Assim, entrei num quarto que se encontrava parcialmente às escuras. No fundo, sobre uma mesa cheia de papéis,
uma lâmpada mal iluminava o rosto de um homem de idade indefinida, uma venda cobria-lhe o olho direito e um
gancho que cumpria o papel de mão acariciava as longas barbas. O olhar do homem estava fixo sobre a mesa.
Não se ouvia nada e o silêncio era tão denso que grudava como o pó sobre a pele...Durito sacode o pó do seu traje
de pirata.
Eis aí um pirata, disse a mim mesmo, indo rumo à mesa. O homem não se mexeu. Eu tossi um pouco, que é o que
nós cavaleiros educados fazemos para chamar a atenção, O pirata não levantou o olhar. Em vez disso, um
papagaio (que até então eu não havia reparado sobre o seu ombro esquerdo) começou a declamar, com uma
entonação tão extraordinária que faria aplaudir até mesmo Don José de Espronceda, aquela música que diz:
“Com dez canhões de cada lado, vento em popa enchendo a vela, não cruza o mar e sim voa, um brigue à vela”.
- “Sente-se” disse, não sei se foi o homem ou o papagaio, mas o pirata ou o que eu achei que fosse pirata, me
entregou um papel sem dizer uma única palavra. Li. Não quero aborrecer os seus leitores e nem você, assim que,
resumindo, te digo que se tratava de uma solicitação de admissão à “Grande Confraria dos Piratas, Bucaneiros e
Terrores dos Mares, A.C. de C.V. de R..O”.A preenchi sem demora, não sem antes sublinhar a minha condição de
escaravelho e de cavaleiro andante. Entreguei o papel para o homem e este o leu em silêncio.
- Ao terminar, olhou-me calado com seu único olho e me disse: “Esperava por você, Don Durito. Saiba que sou o
último dos verdadeiros piratas ainda vivos. E digo dos «verdadeiros» porque agora tem uma infinidade de
«piratas» que roubam, matam, destroem e saqueiam a partir dos centros financeiros e dos grandes palácios
governamentais, sem tocar outra água que não seja a das vasilhas. Aqui está a sua missão (me entrega um pacote
de velhos pergaminhos). Encontre o tesouro e coloque-o em lugar seguro. Agora, desculpe-me, mas tenho que
morrer”. E ao dizer isso, deixou cair a cabeça sobre a mesa. Sim, estava morto. O papagaio levantou vôo e saiu
por uma janela dizendo: “Deixem passar o exilado de Mitiline, deixem passar o filho bastardo de Lesbos, deixem
passar o orgulho do mar Egeu. Abri vossas 9 portas o temido inferno, que lá vá descansar o grande Barba-
Vermelha. Encontrou quem siga os seus passos e agora dorme quem transformou o oceano numa única lágrima.
Como Escudo Negro navegará agora o orgulho dos Piratas verdadeiros”. Sob a janela estendia-se o porto sueco
de Göteborg e, ao longe, um nyckelharpa chorava...
- E você, o que fez? Perguntei já mergulhando em cheio na história (ainda que um pouco enjoado por tantos nomes
de lugares e localidades)
- retornei sobre os meus passos, sem sequer abrir o cordão que amarrava os pergaminhos. Percorri de volta o
corredor e desci até o bar-table dance, abri a porta e sai para a noite, justo no passeio de Pereda, em Santander,
no Mar Cantábrico. Encaminhei-me para Bilbao, entrando em Euskal Herria. Perto de Donostia-San Sebastián, vi
alguns jovens dançar Eurresku e Ezpatadantza no ritmo do txistu e do tambor. Subi os Pireneus e retomei o rio
Ebro entre Huesca e Zaragoza. Aí me virei para fazer uma embarcação e segui até o delta no qual o Mediterrâneo
recebe o Ebro em meio ao rugido do Vento de Dalt. Subi a pé até Tarragona e daí a Barcelona passando por onde
aconteceu a famosa batalha de Montjoïc.
Durito faz uma pausa como que para retomar o fôlego.
- Em Barcelona embarquei num cargueiro que me levou à Palma de Mallorca. Zarpamos rumo ao sudeste
costeando Valência e, mais ao sul, Alicante. Avistamos Almeria e, ao longe, Granada. Por toda a Andaluzia, um
139
canto flamingo pairava em volta das palmeiras, dos violões e dos saltos altos. Nos acompanhou uma
algazarra gigantesca Até que, depois de dobrar para Algeciras, cruzamos Cádiz e no desaguadouro do
Guadalquivir, “soaram vozes de morte” vindas de Córdoba e Sevilha. Um canto gitano convidava: “Adormeça,
Durito, filho predileto do mundo, deixa teu andar sem rumo e pára teu passo bonito”. Chegamos a avistar Huelva,
e, em seguida, as ilhas maiores das Canárias. Desembarcamos aí e recolhi um pouco de sabedoria da árvore que
chamam de Dragão que faz bem, dizem, para as doenças do corpo e da alma. Foi assim que cheguei à Ilha de
Lanzarote e tive com Pepe aquela discussão da qual já te falei.
- Uff! Você andou muito. Digo, cansado só pelo relato do périplo de Durito.
- E o que me falta ainda”. Diz ele vaidoso.
- Eu pergunto: Então você já não é um cavaleiro andante.
- Claro que sim! Isso de ser pirata é só passageiro. Só enquanto cumpro a missão que me foi encomendada pelo
finado Barba-Vermelha.
Durito fica me olhando.
- Penso comigo: “Sempre que Durito fica me olhando assim é porque ... porque ...”.
- Não. Digo-lhe.
- Não o que? Se eu não te disse nada. Diz Durito fingindo-se surpreso.
- Não, você não disse nada, mas esse olhar não significa nada de bom. Seja lá o que for que você vai me dizer, a
minha resposta é “não”. Já tenho bastantes problemas como guerrilheiro, para que agora me meta a bucaneiro. E
não estou tão louco a ponto de embarcar numa lata de sardinhas!
- “Pirata”, e não “bucaneiro”. Não é a mesma coisa, meu querido marinheiro narigudo. E esta não é uma lata se
sardinhas, e sim uma fragata que se chama “Ponha suas barbas de molho”.
Eu não ligo com a ofensa e retruco:
- Ponha suas barbas de molho? Mmmh, nome estranho. Enfim, “Bucaneiro” ou “Pirata”, seja o que for significa
problemas.
- Como quiser, mas antes de qualquer coisa, você deve cumprir com o seu dever. Diz Durito solenemente.
- O meu dever? Pergunto baixando a guarda.
- Sim, você deve transmitir a boa nova para o mundo todo.
- Que “boa nova”?
- Pois, que eu voltei. E não será com um desses longos, densos e chatos comunicados com os quais você tortura
seus leitores. E tem mais, para não correr riscos, trouxe aqui comigo o texto redigido. Diz Durito tirando um papel
de um dos seus bolsos.
Eu o leio e volto a relê-lo. Viro-me para Durito com aquele “não, não e não” com o qual inicia este relato.
Para não aborrecê-los demais, vou dizer-lhe que Durito pretendia que eu escrevesse uma carta ou um
comunicado, tendo como destinatários a sociedade civil nacional e internacional, anunciando-lhes que Durito já
estava de volta.
É claro que me neguei a fazer isso, pois já tinha que responder à carta que nos mandam aqueles que
participam da Comissão Civil Internacional de Observação pelos Direitos Humanos (CCIDOLDH), solicitando que
lhe outorgamos a mesma confiança que lhe demos em 1998, que os recebamos e que lhes demos nossa palavra,
pois daqui a pouco virão fazer uma nova visita. Aí vai:

Exército Zapatista de Libertação Nacional


México, outubro de 1999.

À Comunidade Civil de Observação pelos Direitos Humanos.

Irmãos e irmãs:
Em nome das crianças, mulheres, homens e anciãos do Exército Zapatista de Libertação Nacional e das
comunidades indígenas em resistência, comunico-lhes que para nós será uma honra que visitem estas terras. Têm a
nossa confiança, serão tratados com o respeito que merecem na qualidade de observadores internacionais e, de
nossa parte, não terão nenhum empecilho à realização de seu trabalho humanitário. Nós também teremos muito
prazer em falar com vocês. Os esperamos.
Valeu. Saúde e quero lembrar-lhes que por aqui, além da dignidade, abunda a lama.

Da ilha “Não tem nome”, perdão, das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, Fragata “Ponha suas barbas de molho”. Outubro de 1999.
140
Atenção: seguem pós-escritos.

P.S. Que dá o braço a torcer. Acontece que, depois da minha reiterada recusa, Durito me convenceu oferecendo-me
uma parte do tesouro. Sim, temos reexaminado os pergaminhos e consta um mapa do tesouro. Claro que ainda
temos que decifrá-lo, mas a perspectiva de uma aventura é irresistível.
E o texto de Durito? Depois de uma dura negociação, concordamos que fique como pós-escrito. Logo, aí
vai...

P.S. Para a sociedade civil nacional e internacional

“Senhora:
É uma honra para mim comunicar-lhe a super-duper (assim diz o texto de Durito) boa nova, o presente que
fará o regozijo de grandes e pequenos. Que tremam os grandes centros financeiros! Que o pânico chegue aos
palácios dos grandes e falsos senhores! Que os debaixo festejem! Que as mais belas donzelas preparem suas
melhores roupas e suspirem a primavera de seus ventres! Que os bons homens se descubram a cabeça! Que as
crianças dancem alegres! Voltou o maior e o melhor dos piratas (riscado no original), perdão, dos cavaleiros
andantes que já existiram! Don Durito de La Lacandona (copyrights reserved) (assim diz o texto de Durito). Boa
nova para a humanidade! Nosso mais sincero pesar para o neoliberalismo. Aqui está, voltou o grande, mas o que
digo “grande”, o gigante, o maravilhoso, o superlativo, o hiper-mega-plus, o supercalifragilisticoespiralidoso
(assim diz o texto de Durito), o único, o inigualável, o, O Don Durito de La Lacandona! Siiiim! (assim diz o texto
de Durito)”.

Bom, Durito voltou. (Suspiro). Não sei porque a minha cabeça começou a doer.
Valeu. Saúde, e alguém tem uma aspirina?

O Subpirata (elegantíssimo com sua venda no olho direito) (vocês que fazem jogos de palavras, abstenham-se).

Segunda Parte: Os outros debaixo.

Para todos os pequenos e diferentes

“logo virão os loucos do poder


requintados, desleais, um pouquinho canibais
donos das montanhas e dos vales
das inundações e dos terremotos
estes porta-bandeiras sem bandeira
caridosos e sarnentos
trazem cartas, favores, exigências
para serem enfiadas
na caixinha de correio do tempo.

Mario Benedetti

Agora a tormenta se acalma um pouco. Os grilos aproveitam a estiagem e voltam a serrar a madrugada. Um
grande capuz negro cobre o céu. Outra chuva se prepara, ainda que lá embaixo as poças se anunciam já cheias. A
noite faz caminhar agora suas próprias palavras e do seu flanco tira histórias aparentemente esquecidas. É esta a
hora da história dos debaixo, a hora dos pequenos.
Lá embaixo, o prolongado ulular de um caracol chama, sombras lhe respondem em silêncio, apertado o
ferro e apressado o negro que lhe cobre o rosto. As sentinelas trocam entre si gestos e senhas, e ao “Quem está aí?”,
a esperança invariavelmente responde: “A Pátria!”. A noite vela o mundo dos esquecidos. Por isso, transformou
suas lembranças em soldados e os armou de memória, para que seja aliviado o sofrimento dos mais pequenos.
Chova ou não, lá embaixo a vela da sombra sem rosto continua acesa. Com certeza está escrevendo ou
lendo, mas, seja o que for, está fumando este cachimbo de cabo cada vez mais curto. Bom, aqui em cima não temos
nada pra fazer, por isso, vamos visitar novamente a casinha. Assim, se voltar a chover, estaremos debaixo de um
telhado. Chegamos. Nossa! Agora a desordem está bem maior. Papéis, livros, lápis, velhos isqueiros. A sombra não
pára de escrever. Enche laudas e laudas. Volta a elas. Risca alguma coisa, acrescenta outras. No pequeno gravador
um som muito diferente, como a música de uma terra muito distante, numa língua igualmente distante.
141
“Muito diferente”, disse. Sim, na hora dos pequenos, o outro, o diferente tem também o seu lugar, e é
nisso que deve estar pensando a sombra que estamos visitando, porque consegui ler que “O Outro” encabeçava uma
das laudas.
Mas, vamos dar-lhe um tempo para que termine ou para que possa delinear mais a ponte entre o que pensa
e sente e esta namoradeira escorregadia que é a palavra. Bom, parece que acabou. Devagarzinho se levanta e vá até
o canto que lhe serve de cama. Temos sorte, deixou a vela acesa. Sim, sobre a mesa foram ajeitadas algumas folhas.
É na primeira delas que se lê...

Outra carta. Outro silêncio quebrado.


Carta 4b

Para as vítimas do terremoto e das inundações.

A carta que segue não fui eu a escrevê-la, a recebi. Dando tombos num barquinho de papel, um riacho
formado pela água da chuva trouxe até a minha choça as folhas molhadas e as úmidas letras.

“8 de outubro de 1999. 04.45 am.

Sup:
Aqui vai uma carta para que seja distribuída por suas redes. Para além da tragédia provocada pela
natureza, o que mais doe é a violência criminosa que, das alturas do Poder, chove sobre a população desesperada,
mutilada, ignorante, cansada e sofrida. Façamos algo pelos mais de 500 mil desabrigados. Estas chuvas
torrenciais deixaram SEM NADA crianças, anciãos, homens e mulheres, sobretudo indígenas e camponeses, os
condenados deste sistema impiedoso e genocida, sem misericórdia e demagógico. Partilho com você um escrito
que me foi enviado por uma jovem com a qual estive falando ontem pela manhã; nele toca-se com as mãos a
realidade cruel que nos golpeia:

Ou, como aconteceu no povoado chamado _________________ (ponha você mesmo um nome qualquer de
uma qualquer das comunidades atingidas, a história é a mesma), onde chegaram Zedillo e o Governador
____________ (ponha o nome de qualquer um dos governadores, são todos iguais), e todo o seu aparato de
informação com muitos caminhões de mantimentos e ajudas; enquanto os helicópteros que os transportavam iam
decolando, os caminhões também se arrancavam daí levando embora os mantimentos, deixando só alguma coisa, e
é isso que nos leva a algo mais do que a indignação. Em cada povoado nos dizem que não nos ajudam porque
estão ajudando e atendendo outros que estão mais necessitados, ignorando que há comunicação entre todos os
povoados (a comunicação que funciona eficientemente pelo menos para conhecer a situação na qual vivem as
comunidades é a Banda Civil), e é assim que nos inteiramos de que não há ajuda efetiva para nenhum povoado
(somente alguns registram uma ajuda mínima e escassa que é consumida logo que é recebida). No caso particular
de _____________ (nome da comunidade indígena) (e parece ser assim por toda parte), a única coisa que se faz
necessária é que seja recuperada a estrada, já que as organizações civis se encarregarão de fazer com que sejam
remediadas desde as necessidades de alimentação até as de moradia. A concentração do melhor e único meio de
comunicação (os helicópteros) faz com que o governo se torne soberbo e que pensem que eles são os únicos que
conhecem e manipulam a situação. Mas as máquinas do governo são insuficientes para liberar e recuperar os
caminhos; sem dúvida, os funcionários encarregados desta tarefa tampouco recorrem aos Povoados e às
Organizações que têm capacidade e disposição para ajudar.
_____________ (nome do Estado) precisa deixar de ser o último Estado na injusta e desigual distribuição
dos recursos federais.
No início de seu mandato de seis anos, Zedillo disse que colocaria à prova a sua política social nesta
entidade: foi reprovado; não só porque nunca conseguiu outorgar ao Estado os recursos necessários e suficientes
para que possamos sair da marginalização e do atraso milenar ao qual temos ficado submetidos (nunca é demais
mencionar que o problema principal de ______________ (nome do Estado) é o empobrecimento e que todos os
demais são seus efeitos) como também não se fez o suficiente para garantir que o pouco que chega seja bem
administrado e, finalmente, nos casos de calamidade tampouco se constatou uma resposta satisfatória (ainda que
nos meios de comunicação tudo aparece enfeitado e resplandecente).
A tragédia continua; ao terremoto se acrescentaram as chuvas torrenciais. Todavia, ontem à noite
nossos/as promotores/as registraram através do Rádio de Banda Civil uma situação gravíssima que vou descrever
aqui com algumas pinceladas: Em _______________ (comunidade indígena), 100 casas foram destruídas pelo
terremoto e outras 80 foram arrasadas pelo rio, um helicóptero levou a eles um carregamento mínimo de víveres e
há cerca de 250 crianças doentes; em ________________ (nome do município) foram excluídas as comunidades
142
de ____________ e de ________________ (nome de comunidades indígenas), às quais não foi levado nada;
só um helicóptero desceu para cumprimentá-las e foi embora; em _____________ (comunidade indígena) levaram
somente um apoio mínimo à comunidade de _______________ (comunidade indígena)(que foi sepultada em cerca
de um terço do seu território), enquanto que as outras nove comunidades continuam sem comunicação; em
_________________ (município) além de ter 70% das moradias destruídas, o rio arrasou milharais, cafezais e
cortou estradas; já foram visitadas e receberam víveres (25 pacotes de Meseca, 3 caixa de água e 12 caixas de
óleo)61. A situação é dramática; não só não foi superada a emergência como a situação está cada vez pior: faltam
remédios, roupas, cobertores, alimentos não perecíveis, telhas... Por isso reunimos 4 Organizações para recolher
recursos e juntar donativos. Não vamos nos deixar. Já não”.

A carta pára por aí. Quer dizer, o que se pode ler. O resto está manchado pela água lamacenta.
Durito, pendurado com o gancho a uma das minhas cartucheiras, acompanhou atentamente a leitura.
- O que acha disso? Pergunto.
- O que surpreende não é a criminosa responsabilidade do governo. Está certo que eles não são culpados pelos
terremotos e as chuvas, mas é asquerosa a maneira pela qual enfrentaram a situação. A desgraça dos debaixo só
lhe serve para aparecer nas primeiras páginas e nas manchetes dos noticiários eletrônicos. Mas não é isso que
chama a atenção, pois era de se esperar algo assim. O verdadeiramente forte e grandioso é esse “Não vamos nos
deixar. Já não”.
- Sim, digo a ele como se outro silêncio tivesse se quebrado.
- Haverá mais.... Diz Durito atirando-se até a minha bota.
Lá fora, a manhã finalmente rompe a madrugada.
Valeu. Saúde e estamos de acordo, “Já não”.

O Sup calando com respeito.

Terceira Parte: Os outros que não têm documentos

Para as e os de “cor-café” nos Estados Unidos.

“somos emigrantes nós pálidos anônimos


com a ímpia e carnal centúria nas costas
onde amontoaremos o legado
das perguntas e das perplexidades”.

Mario Benedetti.

Conta Durito que, cruzada a linha de fronteira, uma onda de terror te golpeia e te persegue. Não é só a
ameaça da migra e dos Kukuxklans.62 É também o racismo que enche cada um dos cantos da realidade do país das
barras e das turvas estrelas. Nas plantações, na rua, no comércio, nas escolas, nos centros culturais, na televisão e
nas publicações, até nos banheiros, tudo te persegue para que você renegue a sua cor, que é a melhor forma de
renegar a cultura, a terra, a história, ou seja, fazer com que se renda a dignidade de quem, sendo outros, andam na
cor café dos latinos da América do Norte.
“Estes brownies”, dizem os que, atrás desta classificação de seres humanos de acordo com a cor de sua
pele, escondem o crime de um sistema que classifica de acordo com o poder de compra, sempre diretamente
proporcional ao preço de venda (quanto mais você se vende, mais poderá comprar). Se os cafezinhos sobrevivem a
campanha de branqueadores e detergentes do Poder na União Americana, tem sido porque a comunidade latina
“cor café” (não só mexicana, mas também mexicana, porto-riquenha, salvadorenha, hondurenha, nicaragüense,
guatemalteca, cubana, dominicana para mencionar algumas das tonalidades nas quais a cor café latino-americana
pinta a América do Norte) soube construir uma rede de resistência sem nome e sem organização hegemônica ou
produto que a patrocine. Sem deixar de ser “os outros” numa nação branca, os latinos sustentam uma das histórias
mais heróicas e desconhecidas deste agonizante século XX: a de sua cor sofrida e trabalhada até torná-la esperança.
Esperança de que o café seja uma cor a mais no arco-íris das raças do mundo, e deixe de ser a cor da humilhação,
do desprezo e do esquecimento.
E não são só os de cor “café” a padecerem e serem perseguidos. Conta Durito que, à sua condição de
mexicano deve-se acrescentar a cor negra da sua couraça. Assim, este valente escaravelho “café e negro” foi

61
Meseca: é a marca mais famosa da farinha utilizada no preparo das tortilhas.
62
O Subcomandante Marcos refere-se à fronteira entre o México e os Estados Unidos. Migra é o apelido do corpo policial que nos EUA é
encarregado de lidar com os imigrantes. Ku Klux Klan é um grupo racista tristemente famoso por espalhar o terror entre as pessoas de cor.
143
duplamente perseguido. E duplamente ajudado e apoiado, pois o protegeu o melhor da comunidade latina e
negra dos Estados Unidos. Assim, ele pôde percorrer as principais cidades norte-americanas, que é como também
chamam estes pesadelos urbanos. Não trilhou a rota do turismo, do glamour e das marquises. Durito andou pelos
caminhos debaixo, onde os negros e os latinos constroem as resistências que lhes permitem viver sem deixar de ser
outros. Mas, diz Durito, esta é uma história para outras páginas.
Agora Durito Black Shield ou Durito Escudo Negro (se você não está globalizado) está convencido de que
é importante que eu anuncie, com o bumbo e os pratos, o novo livro que ele chamou Contos de vela em vela. Agora
me entregou um conto que, diz ele, escreveu lembrando desses dias nos quais andou wetback ou molhado nos
Estados Unidos.

“O Em Cima e o Debaixo é relativo...


é relativo à luta
que se faz para subvertê-lo”.

Carta 4 C (incluída no conto).

- É um título muito cumprido. Digo a Durito.


- Não se queixe pelo conto senão nada de tesouro - ameaça Durito com o seu gancho. E continua.
“Era uma vez um pedacinho de terra que estava muito triste porque todos passavam por cima dele. «Por
que você se queixa?», perguntavam-lhe os outros pedaços de terra. Que outra coisa poderia acontecer com o solo?
E o pedacinho de terra não dizia que o seu sonho era de voar ligeiro e de namorar aquela pequena nuvem que, de
vez em quando, aparecia no céu, mas que não dava bola pra ele. O pedacinho de terra ficou cada vez mais triste e
o seu sofrimento era tão grande que começou a chorar. E chorou, chorou, chorou e chorou ...”
- Quantas vezes vai por “chorou”? Bastam duas ou três - interrompeu Durito.
- Ninguém vai censurar o grande Durito Escudo Negro, muito menos um marinheiro narigudo e, ainda por cima,
gripado - me ameaça Durito ao mesmo tempo em que aponta para a terrível prancha sobre a qual os coitados
caminham rumo à barriga dos tubarões. Eu cedo calado. Não porque tenha medo dos tubarões, e sim porque um
mergulho seria letal para a minha gripe permanente. Continuo assim com o conto...
“E chorou, chorou e chorou. O pedacinho de terra chorou tanto que tudo e todos os que estavam ou
caminhavam em cima dele começaram a escorregar. Já não tinha mais nada e mais ninguém em cima dele. E o
pedacinho de terra chorou tanto que foi ficando fino e ligeiro. Como já não tinha mais nada e ninguém em cima, o
pedacinho e terra começou a flutuar e voou alto. Subiu tanto que agora o chamam de céu. Aquela nuvem virou
chuva e agora está no chão; e lhe escreve cartas inúteis chamando-o de «céuzinho lindo».
Moral da história: Não desprezes o que tem debaixo porque no dia em que você menos espera pode cair
sobre a tua cabeça. Tan-tan”.
- “Tan-tan?” O conto acabou? Pergunto inutilmente. Durito já não me ouve. Lembrando seus velhos tempos,
quando trabalhava de lavador de pratos no East End de Los Angeles, Califórnia, colocou um sombreiro e,
desafinado, entoou aquela música que diz “Ai, ai, ai, ai, canta e não chores, porque cantando se alegram, céuzinho
lindo, os corações”. E, em seguida, um grito enfurecido de “Ai Jalisco, não vá embora!”
Valeu. Saúde e acredito que ainda vamos demorar pra zarpar: Durito se meteu a fazer modificações à lata
de sardi... perdão, à fragata para que pareça um low-raider.

O Sup Vamos Nessa

P.S. de Wacha Bato63: Durito cismou que o cardápio de bordo deve incluir Chilli hot dog e burritos 64. Ai que carnal
é ele!
Quarta parte: o outro...

“So they loved as love in twaine,


Had the essence but in one,
Two distincts, Division none,
Number there in love was slaine”.

(“Assim se amaram, sendo dois no amor,


mas tinham a essência num só;
Dois diferentes, sem divisão alguma;
63
Expressão que significa algo como “Olha cara”.
64
Trata-se de cachorro quente temperado à moda mexicana e (burritos) pequenos pedaços de carne temperada e frita.
144
Número apaixonado que aí foi morto”)

Tórtolo e Fenix
William Shakespeare.

A verdadeira história de Mary Read e Anne Bonny

Para as lésbicas, homossexuais, transexuais e travestis, com admiração e respeito.

Reexaminando os pergaminhos, encontrei uma história que Durito me pede que inclua em seu novo livro
“Contos de vela em vela”. Trata-se de uma carta de remetente desconhecido (a assinatura é ilegível). O destinatário
também é um enigma ainda que seja chamado claramente pelo nome, não está claro se é ele ou ela. Melhor que a
vejam vocês mesmos. Para mim, a indefinição entre masculino e feminino explica-se, por si só, na carta. A data
está borrada e aqui não temos tecnologia para averiguar quando foi escrita. Mas, também, parece-me que tanto faz
que ela tenha sido escrita há séculos ou há semanas. Já, já, vão me entender. Aí vai.

“Você:

Contam as histórias de piratas que houve duas mulheres, Mary Read e Anne Bonny, que se passavam por
homens e, como tais, cruzaram os mares em companhia de outros bucaneiros, rendendo praças e embarcações,
hasteando a bandeira com a caveira e as tíbias cruzadas. Era o ano de 1720 e histórias diferentes levaram uma e
outra a viver e a lutar no acidentado navegar daqueles tempos. Se encontraram num navio pirata comandado pelo
capitão John Rackman. Contam que, como cada uma delas pensava que a outra fosse homem, floresceu o amor
entre as duas e, ao saber a verdade, tudo voltou à normalidade e cada uma ao seu lugar.
Não foi assim. Esta que te escrevo é a verdadeira história de Mary Read e Anne Bonny. Foi entregue à
outra história, a que não vai aparecer nos livros porque estes ainda se empenham em narrar a normalidade e a
sensatez de quem tudo tem, e a normalidade do “outro” não vai além do silêncio de reprovação, da condenação ou
do esquecimento. Esta é a parte da história que atravessa as pontes subterrâneas que os “outros” constroem para ser
e conhecer-se.
A de Mary Read e Anne Bonny é uma história de amor e, como tal, tem aspectos visíveis, mas a maior
parte está sempre oculta, no âmago. Na parte visível temos um navio, (uma nau para ser mais preciso) e um pirata,
o capitão John Rackam Ambos, o barco e o pirata, foram protetores e cúmplices deste amor tão “outro” e
“diferente”, que a história de cima teve que maquiar para que fosse ouvida pelas gerações futuras.
Mary Read e Anne Bonny se amaram sabendo que partilhavam também da mesma essência. Algumas
histórias contam que as duas eram mulheres, que se encontraram vestidas de homem sabendo que eram mulheres e,
como tais se amaram sob o carinhoso olhar de Lesbos. Outros dizem que as duas eram homens que, por trás das
roupas de pirata, escondiam a atração que tinham para o mesmo sexo, e que ocultaram seu amor homossexual e
seus encontros apaixonados por trás da complexa história de mulheres pirata disfarçadas de homens. Num ou
noutro caso, seus corpos se encontraram no espelho que descobre aquilo que, dado por óbvio, é esquecido, estes
cantos da pele que contêm nós que, ao desatar-se, alimentam suspiros e tormentas; cantos que, às vezes, só os
iguais conhecem. Com lábios, pele e mãos levantaram as pontes que uniram os iguais fazendo-os diferentes. Sim,
em ambos os casos, Mary Read e Anne Bonny eram travestis que, entre as máscaras, se descobriam e se
encontravam. Em ambos os casos, sendo iguais se revelavam diferentes e o dois perdia toda divisão e
transformava-se em um. À originalidade de seu ser piratas, Mary Read e Anne Bonny acrescentaram a de seu amor
“anormal” e maravilhoso.
Homossexuais ou lésbicas, sempre travestis, Mary e Anne superaram em valentia e ousadia aqueles a quem
a “normalidade” colocava correntes. Enquanto os homens se rendiam sem mostrar resistência, Mary e Anne
lutaram até o fim antes de caírem prisioneiras.
Assim, foram coerentes com aquilo que dizia Mary Read. Diante da pergunta se ela não tinha medo de
morrer: “Ela respondeu que não considerava ser excessivamente rude o morrer na forca, porque, se assim não fosse,
todos os covardes se tornariam piratas e infestariam os mares a tal ponto que os homens de valor iriam morrer de
fome; que se si deixasse aos piratas a escolha de um castigo, eles não teriam outro a não ser a morte, porque seu
medo diante dela manteria honrados alguns ladrões covardes; que muitos dos que agora roubam as viúvas e os
órfãos e oprimem seus vizinhos pobres que não têm dinheiro para obter justiça sairiam pro mar para roubar, e assim
o oceano estaria cheio de ladrões tanto quanto a terra (...)” (História Geral dos Roubos e Assassinatos dos mais
Famosos Piratas, Daniel Defoe, Editora Valdemar, Madri, 1999, tradução de Francisco Torres Oliver).
Homossexuais ou lésbicas? Não sei, John Rackam levou a verdade para o túmulo quando foi enforcado em
Port Royal (no dia 17 de novembro de 1720), e a nau que serviu de cama e cúmplice se partiu no naufrágio. Seja
145
como for, seu amor foi muito “outro” e grande por ser diferente. Porque acontece que o amor segue caminhos
próprios e é, sempre, um transgressor da lei...
Acabo de relatar-te a história.
Adeus”.

(segue uma assinatura ilegível).

A história termina assim... ou continua?


Diz Durito que os diferentes na preferência sexual são duplamente “outros”, pois são “outros” entre os que,
por si só, são outros.
Eu, um pouco enjoado de tanto “outro”, lhe pergunto:
- Você não pode explicar isso um pouco melhor?
- Sim - diz Durito. Quando lutamos para mudar as coisas, muitas vezes esquecemos que isso inclui mudar-nos a nós
mesmos.
Lá, em cima, a madrugada crescia para mudar-se e fazer-se “outra” e diferente. A chuva continuava, a luta
também..

Valeu de (sessenta e) nove. Saúde, e não digam nada pra ele, mas ainda não consegui entender como diabo
vou caber na lata de sardinhas (suspiro).
O Sup, tirando a água da fragata porque, como devem estar imaginando, começou a chover de novo e
Durito diz que tirar a água é um dos meus “privilégios”.

Parte X: os outros estudantes

Às jovens universitárias em greve

“A dor nos agarra, irmãos homens,


por trás, de perfil,
nos enlouquece nos cinemas,
nos crava nos gramofones,
nos desencrava das camas, cai perpendicularmente
às nossas entradas, às nossas cartas ...”

César Vallejo

Choveu a noite inteira. A madrugada chega e a chuva ainda está aí, lavando caminhos, encostas, milharais,
pastagens e choças. Há como que um palpitar de gotas apressado e sem ordem alguma, caindo nos telhados, nas
árvores, nas poças já cheias e, finalmente, no chão. Porque assim caminha a hora dos pequenos, desordenada,
ansiosa, multiplicada.
Lá embaixo... teremos que esperar para saber o que acontece lá embaixo, porque agora não se pode dar um
passo sem que a lama te seduza e você acabe por beijá-la com todo o corpo. Sim, é complicado definir assim uma
queda, mas chove tanto que acontecem coisas assim e muito mais. Uma queda... Há momentos em que alguém cai
e outros em que o fazem cair. Quero dizer que há quedas e quedas.
O que? Sim? A chuva já diminuiu? Sim, mas a lama não. Bom, vamos, mas devagar. Está escuro. Talvez
não tenha ninguém ou talvez já adormeceu a sombra que é objeto das nossas atenções. Vamos ver? Você tem uma
lanterna? Bem. Mmh. Não, não tem ninguém.
A desordem sobre a mesa é a de costume. Mas agora tem uma folha diferente sobre ela. De um lado, em
exemplar do jornal La Jornada, a data é de 15 de outubro de 1999. As oito colunas declaram “Granadeiros e
grevistas se enfrentam no Periférico”. Uma foto ocupa meia página. O que? Você quer que a descreva? Bom,
aproxima mais a luz... Assim... Bem. É em preto e branco. Em primeiro plano tem uma garota deitada na rua, com
o rosto ensangüentado. Perto dela, alguém recebe os pontapés de 3 granadeiros (2 em primeiro plano e um terceiro,
entre estes dois, semi-oculto pelo escudo e usando a mão direita para apoiar-se na perna que dá os pontapés).
Debaixo da fotografia constam mais dados: a foto é de Rosaura Pozos, a garota no chão se chama
Alejandra Pineda, e quem está ao seu lado sob as botas dos granadeiros é seu irmão, Argel Pineda, um dos
representantes do Conselho Geral de Greve; a cena é no Periférico Sul. Na foto, os demais granadeiros (pelo menos
6, se si observa com atenção o número de capacetes) olham para a direita da fotografia, só o último a ser
enquadrado dirige o olhar ao casal de estudantes, na indecisão entre seguir adiante ou somar-se aos que espancam a
jovem que está no chão.
146
Mais detalhes? Bom, no fundo da cena dos golpes contra Argel e Alejandra se distinguem
perfeitamente cinco homens. Três deles apontam suas lentes (dois trazem máquina fotográfica e um uma filmadora)
para a direita da foto. Outros dois olham para a cena dos pontapés, um deles de camisa quadriculada, coça o ouvido
ou leva algo atrás da orelha, o outro, simplesmente, olha.
Mais atrás, em terceiro plano, distinguem-se apenas dois veículos: um carro cujo motorista é coberto pelas
pernas do homem que só fica olhando, e a cabina do outro veículo (provavelmente uma camioneta) cujo chofer
olha pra frente, ou seja, para a esquerda da foto. Em quarto plano, à direita, três “out-door” cujos textos não se
consegue ler (o da extrema direita parece anunciar um programa de notícias). No mesmo plano, à esquerda, tem
algo parecido com uma torre, dessas que sustentam refletores ou as mensagens da propaganda.
Bom, acho que é só. Diga? A folha escrita? O que diz? Sim, vou lê-la pra você...

Carta a uma Foto


Carta 4 X

Dona Foto:

Você vai me desculpar, mas eu não pude vê-la até a madrugada do dia 17 de outubro. Não, não ache que a
estou recriminando. Entendo que, com tanta chuva, você tenha se atrasado. Além do mais, o peso que você carrega
não é nada leve. Sabe, quando a vi, senti uma dor aqui. Sim, eu já sabia que têm fotos que fazem doer, só queria
que soubesse que você é uma delas.
Sim, pelas mãos do repórter (Roberto Garduño) temos outros elementos para lê-la a você. A garota,
Alejandra Pineda, é estudante da Preparatória 5, e seu irmão, Argel, é da Faculdade de Ciências Políticas e Sociais,
ambas da UNAM. Depois da foto (é o que supomos pela narração), ou seja, depois dos golpes dos granadeiros,
Argel trata de ajudar e acalmar Alejandra, “que perguntava por
seus companheiros: Como estão? Não pegaram mais ninguém?
A minha cabeça doe muito, não queremos mais repressão,
queremos educação gratuita”. (La Jornada, 15 de outubro de
1999, pg. 66).
De acordo com este repórter, e alguns testemunhos
recolhidos pelo mesmo jornal, os estudantes já estavam se
retirando rumo à Cidade Universitária quando foram atacados
pelos granadeiros.
O que você fala através da sua imagem, e o que é
descrito pelas crônicas, reportagens e testemunhos, me dizem
alguma coisa. Mas, sabe, têm outros questionamentos que não
são respondidos nem pela sua imagem e nem pelas páginas do
jornal. Por isso, eu queria que você, senhora foto, me
permitisse de colocar-lhe algumas perguntas. Tudo bem?
1. Quantos anos tinha Alejandra antes de ser espancada? 17,
18? E Argel? Quantos anos têm agora?
2. Se a vista não me engana, os granadeiros estão batendo em Alejandra e Argel na lateral do Periférico e não nas
pistas centrais (que eram aquelas que iam “desocupar”)?
3. Os granadeiros que olham à direita da foto, estão olhando naquela direção para não ver o que fazem seus
companheiros? Ou estão protegendo os três que espancam Alejandra e Argel, para impedir que alguém venha
resgatá-los? Lá adiante (à direita da foto) está acontecendo outro espancamento? Os estudantes se retiram?
4. O governo do DF espanca Alejandra pelo delito de ser irmã de Argel? Espanca Argel pelo delito de ter vindo
socorrer Alejandra? Espanca ambos pelo delito de serem “ultras”? Espanca-os porque os carros pedem que seja
liberado o trânsito? Espanca-os pelo silêncio que proliferou lá em cima depois do 4 de agosto? Espanca-os
porque é assim que mandam as pesquisas? Espanca-os para provocar o aplauso de Televisa e TV Asteca?
Espanca-os por serem jovens? Espanca-os por serem estudantes? Espanca-os por serem universitários? Espanca-
os porque é assim que se pode demonstrar que se tem firmeza para governar? Você me perdoe, senhora foto,
mas não entendo por que espancaram Alejandra e Argel?
5. As mulheres que se felicitaram com Rosário Robles por ela ter chegado à chefia do governo do DF, também se
felicitaram com ela por mandar espancar Alejandra? Mandaram à Alejandra uma palavra de carinho? Calaram-
se? Ou disseram a si mesmas “essa revoltosa teve o que merecia”? O que? Sim, desculpe, você não tem porque
saber disso...
6. Você, senhora foto, apresenta pelo menos 3 granadeiros batendo no estudante. Por que são só dois os policiais
indiciados?
147
7. Esse cassetete que o granadeiro da extrema direita tem em mãos, é uma exortação ao diálogo? Uma amostra
de que o atual governo do DF é “diferente” dos anteriores? Ou é só a medida da distância que separa as palavras
dos fatos?
8. Com quem está falando o homem da camisa quadriculada, se é que é um telefone celular o que ele leva ao
ouvido esquerdo?
9. O motorista do carro que circula mais atrás, e que não é visível na foto, apoiaria a surra que os policiais dão à
Alejandra e Argel?
10.O que é que Alejandra tem debaixo do seu corpo? Uma blusa? Um pano? Uma jaqueta?
11.O motorista que está mais no fundo, e que trafega olhando pra frente, nos convida a fazer o mesmo? A passar
diante da foto de Alejandra ensangüentada e de Argel caído sem olhá-los, sem olhá-la?
12.Na página 69 do jornal no qual você está em primeiro plano, tem outra foto (também de Rosaura Pozos com os
dizeres: “Cena anterior à desocupação policial no Periférico Sul”). Nela, vê-se, em primeiro plano, uma jovem,
camisa quadriculada, de joelhos diante da linha de granadeiros. O jovem está com a mochila diante dos joelhos
e mostra um livro aos granadeiros. Nos escudos dos policiais pode-se ler claramente: “Segurança Pública -
Granadeiros - Distrito Federal”. Em segundo plano, uma mulher de chapéu. Mais atrás um cinegrafista. No
fundo, árvores e prédios. Aí vão as perguntas...
12a. Qual é o título do livro que a jovem mostra aos granadeiros?
12b. O jovem de joelhos diz alguma coisa aos granadeiros?
12c. Não era este o ponto 3 da pauta de reivindicações do Conselho Nacional de Greve do movimento de 68
(cito textualmente): “Extinção do Corpo de Granadeiros, instrumento direto de repressão, e não criação de
corpos semelhantes” (Parte de Guerra, Julio Scherer Garcia e Carlos Monsiváis, pg. 161)?
12d. A existência e a operação do Corpo de Granadeiros é constitucional?

O que diz? Que eu perguntei isso só à outra foto? Bom, você tem razão.

Permita-me algumas perguntas finais:

Você concorda que o motivo da marcha dos estudantes era protestar contra a manipulação da informação
sobre o conflito universitário feita pela TV ASTECA e TELEVISA?
Se você, senhora foto, não tivesse falado, nós teríamos ficado só com a versão que os meios de
comunicação eletrônicos e o governo do DF deram na noite de 14 de outubro de 1999, pela qual os estudantes eram
os agressores, a polícia que havia intervindo era só feminina e só uma estudante teria sido ferida (“nada grave”) por
“um veículo que a atropelou”?
Tínhamos o direito de esperar que um governo do PRD agiria de forma diferente?
Deveríamos ficar calados e não perguntar nada?
Sabe, senhora foto, você dá razão à “carta 3 bis”. Mas você não sabe o quanto eu desejei que você não desse razão
à esta carta, e sim aqueles que, diante deste espelho presunçoso, se vangloriam de ser “orgulhosos funcionários de
um governo democrático como o do DF”.
E, sabe de uma coisa? Toda vez que a vejo, senhora foto, não sei o porquê, mas me dá uma vontade
irresistível de pegar uma pedra e jogá-la longe para quebrar de uma vez por todas este silêncio que lá em cima,
cúmplice, se cala.
Como? Sim, pode ir, senhora foto, siga o seu caminho e continue perguntando. Senhora foto, você é tão
incômoda e tão questionadora.

Valeu. Saúde, e eu acredito que o que Alejandra tem debaixo do seu corpo é uma bandeira. Além do mais,
creio que se levantou com ela.

O Sup acumulando perguntas como se fosse chuva.

Palavras do Subcomandante Marcos para a Mesa Redonda do Multiforo Alicia:


“Da Cultura Subterrânea à Cultura de Resistência”. Em vídeo.

26 de outubro de 1999.

Queremos agradecer os organizadores do Multiforo Alicia pelo convite que nos fizeram para participar
desta Mesa Redonda. Não temos muita experiência em mesas redondas, melhor, a nossa especialidade são as mesas
quadradas, como, com certeza, deve ser a mesa a qual estão sentado aqueles que nos acompanham neste evento:
148
Zach de la Rocha, Yaotl, Hermann Bellinghausen, Nacho Pineda, um ou uma companheira do coletivo Anarko
Punk e Javier Elorriaga.
E tem mais. Com certeza, os participantes desta mesa redonda que não é redonda, devem estar sentados
numa pequena sala. Ou, ainda, talvez não tenha uma mesa sequer, mas tão somente algumas cadeiras. Talvez sou
eu o único a ter uma mesa, porque vocês têm que ter algum lugar para colocar a televisão para que ela projete a
vocês este vídeo.
Bom, o caso é que nesta mesa redonda, os participantes não se olham cara a cara, coisa que seguramente
iria acontecer se estivessem numa mesa redonda que fosse, de fato, redonda. Assim, estamos sentados aqui a uma
mesa redonda que não é redonda e diante de vocês; o que não deixa de ser a coisa melhor porque daqui consigo ver
uma garota que tem no olhar os melhores argumentos para deixar em paz o tema das mesas redondas e quadradas, e
é melhor eu nem lhe dizer o tema que o olhar dela propõe (suspiro).
Onde é que eu estava? Ah, sim! Que estamos diante de vocês nesta mesa redonda à qual não sei quem deu
o nome “Da Cultura Subterrânea à Cultura de Resistência”. Não, não tenho nada contra quem chamou assim esta
mesa redonda que não é redonda. O problema é esta palavra que se repete: “CULTURA”. Nela cabem tantas coisas
que, mesmo colocando os limites que as palavras “Subterrânea” e “Resistência” pretendem estabelecer, daria não
para uma mesa redonda, por mais quadrada que seja, e sim para um grande encontro continental que duraria anos
luz sem contar o tempo que alguém levaria para ajeitar o microfone, para cumprimentar a rapaziada ou para pegar
no sono porque alguém decidiu que a cultura também pode aborrecer e ele se empenhou em demonstrá-lo.
Dito isso, eu não vou falar-lhes nem da cultura subterrânea, nem da cultura de resistência nem da ponte que
seguramente une as duas. Além de deixar o tema para aqueles que nos acompanham nesta mesa que chamamos de
redonda mesmo sabendo que é quadrada, não quero fazer um papel ridículo e escondo minha ignorância
enciclopédica sobre o assunto. Como diria o maior e bem-amado Don Durito de La Lacandona, “não há problema
suficientemente grande, para que não possa ser contornado”. A estas sábias palavras que motivam à ação e ao
compromisso, eu acrescentaria que “não tem mesa redonda que não seja quadrada”.
Eu sei que agora vocês estão ansiosos de saber sobre que diabo eu vou falar. Inclusive, mais de um deve
estar se perguntando se o violão que tenho aqui do lado não significa que vou cantar uma dessas músicas muito
dignas que andam pelo México debaixo que somos todos nós.
Mas não, não vou cantar nenhuma música. O violão é para a “festança” que vamos fazer amanhã, 27 de
outubro de 1999, com o “Rage Against The Machine”, “Aztlán Underground” e “Tijuana No”, no Ginásio dos
Esportes. Bom, isso se não nos censuram antes ou se a justiça não vêm nos prender; neste caso, o concerto será no
presídio mais próximo do seu coração.
E, vou ser sincero com vocês, toda esta ensebação inicial é para ganhar tempo, porque os organizadores
deixaram bem claro que devo falar por uns vinte minutos e eu acho que 20 minutos é tempo demais para eu dizer
que não vou falar da cultura subterrânea, nem da cultura de resistência, nem daquilo que vá de uma para outra.
Sabem? Nós somos guerreiros. Guerreiros muito diferentes, mas, no fim das contas, guerreiros. E os
guerreiros conhecem poucas coisas. E entre as poucas coisas que conhecemos, conhecemos as armas.
Assim, é melhor que fale a vocês de uma arma. Concretamente, vou falar-lhes da arma da resistência.
Nós, além de guerreiros, somos indígenas mexicanos. Vivemos nas montanhas do Sudeste Mexicano, que
está se tornando uma espécie de último recanto deste país. Vivemos como vivem a maioria dos indígenas do
México, ou seja, muito mal.
Nossas casas têm piso de terra, suas paredes são de madeira ou de barro, e nossos telhados são de telhas de
zinco, de papelão ou de tábuas. Um mesmo cômodo serve de cozinha, sala de jantar, quarto, sala e galinheiro.
Nossos alimentos são, basicamente, milho, feijão, pimenta e as verduras que nascem nos milharais. No que
diz respeito à saúde, temos alguma farmácia popular mal abastecida. Remédios? Nem pensar. A escola, quando não
é ocupada pelos soldados do governo, é um galpão no qual convivem ao mesmo tempo alunos de até 4 grupos
diferentes, que não são muito numerosos porque nossas crianças começam a trabalhar desde muito pequenas, entre
os 4 e 5 anos, as meninas, carregando lenha, moendo milho, lavando roupa e cuidando de seus irmãos menores,
entre os 10 e os 12 anos os garotos cortando o mato na montanha, cuidando do gado, carregando lenha, trabalhando
no milharal, no cafezal ou no potreiro. Nossas terras são pobres nos dois sentidos: são pobres porque nós somos
pobres; e são pobres porque não dão uma boa colheita. O que temos é tudo morro e terreno pedregoso; as terras
boas são dos latifundiários. O gado e o café que vendemos para obter dinheiro, o vendemos aos coiotes, que são
uma espécie de intermediários, que nos pagam até 10 vezes menos o preço que o nosso produto tem no mercado. É
assim que o nosso trabalho, além de duro, é mal pago.
Sem dúvida, mesmo vivendo como a maioria da população indígena do país, ou seja, na pobreza, não
vivemos de forma igual à maioria da população indígena. Nossa pobreza é igual à pobreza dos demais, mas é
diferente, é “outra” pobreza. Nós somos pobres porque assim escolhemos. Desde o início do nosso levante nos têm
oferecido de tudo para conseguir fazer com que nos vendêssemos, com que nos rendêssemos.
Mas escolhemos não vendermo-nos, escolhemos não rendermo-nos. Porque acontece que nós somos
indígenas e somos também guerreiros. E os guerreiros são guerreiros porque lutam por algo. E nós zapatistas
149
lutamos por boas moradias, uma boa alimentação, uma boa saúde, um bom preço para o nosso trabalho, boas
terras, boa educação, respeito à cultura, direito à informação, liberdade, independência, justiça, democracia e paz.
Sim, lutamos por tudo isso, mas para todos, não só para nós. Por isso, nós zapatistas somos guerreiros, porque
queremos “tudo para todos, nada para nós”.
Se nos tivéssemos rendido, se nos tivéssemos vendido, teríamos deixado de ser pobres, mas outros
continuariam sendo-o. Bom, mas vocês devem estar se perguntando, onde está a arma da qual ia nos falar este
guerreiro bonito, atraente e simpático? Vou-lhes dizer.
Acontece que ao ver que não nos rendíamos, que não nos vendíamos, o governo começou a atacar-nos para
obrigar-nos a render-nos e a vender-nos. Nos ofereciam muitas coisas, dinheiro, projetos, ajudas, e quando nos
recusávamos ficavam enojados e nos ameaçavam. Foi assim que entendemos que negando-nos a receber a ajuda
governamental, ou seja, resistindo, deixávamos indignados os poderosos. E para um guerreiro zapatista não tem
nada de mais gostoso do que irritar o poderoso. Foi assim que, com uma alegria singular, nos dedicamos a resistir,
a dizer “não”, a transformar nossa pobreza numa arma. A arma da resistência.
Sobre o poder desta arma falam os quase seis anos de guerra, com ela temos resistido aos mais de 60 mil
soldados, aos tanques de guerra, a aviões bombardeiros, a helicópteros de combate, aos canhões, às metralhadoras,
às balas e às granadas. Com ela temos resistido à mentira.
Se quiserem que eu resuma isso ainda mais, vou dizer-lhes que assim como nós nos tornamos soldados
para que um dia os soldados não sejam mais necessários, também nos fizemos pobres para que um dia não haja
mais pobreza. É para isso que usamos a arma da resistência.
É óbvio que não é a única arma que temos, como é evidente pelo aço que nos cobre. Não, temos outras
armas. Por exemplo, temos a arma da palavra, temos também a arma da nossa cultura, do nosso ser o que somos.
Temos a arma da música, a arma do baile. Temos a arma da montanha, esta velha amiga e companheira que luta
conosco com seus caminhos, esconderijos e ladeiras, com suas árvores, com suas chuvas, com seus sóis, com suas
madrugadas, com suas luas...
Temos também as armas que carregamos, mas não é o momento de brincar, muito menos agora que todos
ficaram tão sérios. E para tirar de vocês esta seriedade, vou contar-lhes uma piada; não, não é verdade e nem se
espantem, não vou contar-lhes uma piada, é melhor deixar isso a Zedillo que, como presidente, não passa de uma
piada de mal gosto. Não, é melhor eu passar para o próximo tema sobre o qual vou falar a vocês.
A MÚSICA E A RESISTÊNCIA. Particularmente o Rock, mas não só o Rock. Particularmente os grupos
musicais, mas não só os grupos musicais. Ou seja, não só aquilo que vemos e ouvimos, mas também o que torna
possível o que vemos e ouvimos. Porque a galera se amarra quando escuta Rage Against The Machine, Aztlán
Underground, Tijuana No. Ou “Durito Against The Sup” (que é um grupo que irá se formar se Durito continuar
sendo a coqueluche do momento).
Onde é que eu estava? Ah, sim! Que a galera se amarra ao ouvir um bom grupo musical, e então cada um
começa a sentir que os ossos e os músculos já não têm outro comando a não ser o do coração e começam a mexer-
se, a mover-se, a brincar, um passinho pra cá, outro passinho pra lá, a formar uma dupla, a “prexta pa la orquesta”
(já sei, vocês todos estão pensando: minha nossa, o Sup fala como uma daquelas personagens melancólicas dos
filmes de Tin Tan ou Piporro, mas não lhe falta raça), enfim, a dançar, e não pensa nos e nas que tornam possível
que este grupo possa ser ouvido e que tenhamos aonde e porque dançar. Por exemplo, outro dia estava ouvindo
umas músicas de um grupo que toca bem pesado (porque acontece que estou “educando o ouvido”, porque antes da
guerra eu só curtia huapangos e polkas) e tudo composto por zapatistas e acontece que começo a olhar a capa da
fita ou do CD e vejo que há um punhado de gente envolvida, além dos que tocam, e eu acredito que os músicos sim
reconhecem o trabalho de toda esta gente, mas não os que ouvem ou dançam ao som de suas músicas. Por exemplo,
estamos aqui no autodenominado “Multiforo Alicia” e aqui está Zach, Yaotl, Pineda, o companheiro ou a
companheira do coletivo Anarko Punk, Elorriaga, e este vídeo que vocês estão vendo e ouvindo à força, porque o
que vocês queriam era ouvir Zach e Yaotl, e não precisamente falar, e sim soltar uma música. Bom, dizia que
estamos aqui neste lugar e quem organizou esta mesa redonda que é quadrada, quem ou o que é responsável pelo
fato do som ser bom ou ruim, mas que dá pra ouvir, quem cuida deste local, quem o mantêm vivo, quem abriu este
espaço para que vocês e nós nos encontrássemos, quem pois. Aí está. Não temos nem idéias. Todo caso, coube a
eles ficar atrás disso tudo. Pois então, eu proponho que a gente aplauda todo este pessoal que está por trás, um
aplauso que seja ouvido até lá no fundo e que eles e elas não fiquem lá atrás porque senão não vai ter mais mesa
redonda e nem quadrada, nem carne e nem peixe, nem milho, pombas, laranjas podres ou sei lá o que. Aplaudam
pois!.
(Continuam os aplausos).
(Se os aplausos se prolongarem, apertem o “stop” do vídeo, porque senão ao continuar ninguém vai prestar
atenção).
Já acabaram? Bom, então o tema era este da Música e da Resistência. Mas eu, como já disse antes, de
música só sei o do-re-mi-fa-sol-la-si e depois vou errando, mas quanto à resistência sim, somos bastante espertos.
Acontece que o zapatismo e o Rock têm algo em comum, porque se não tivessem então o que fazemos aqui Zach,
150
Yaotl e eu (porque eu também sou roqueiro, mas “old fashion”), sentados numa mesa redonda que, como todos
viram é quadrada.
Bem. Quando dizemos que o zapatismo “resvalou” nos grupos musicais de rock e produziu aí seu efeito
“outro” e “diferente” acredito que seríamos injustos. Trata-se de grupos com uma trajetória de compromisso social
e profissional independente. O que aconteceu? Não sabemos. Talvez sejam necessárias muitas mesas redondas,
ainda que sejam quadradas, para analisar o tema do Rock e do zapatismo.
Talvez o que aconteceu é que houve um encontro. Houve palavras que se encontraram, mas, sobretudo,
houve, e há, sentimentos que se encontram. Se há músicas destes grupos que podem parecer, sem nenhum
problema, com os comunicados, e há comunicados que podem ser letras de algumas canções, não é por virtude
daqueles que as escrevem, não, é porque estão falando a mesma coisa, refletindo sobre o mesmo aspecto, sobre este
“outro” subterrâneo que, por ser “diferente” se organiza para resistir, ou seja, para existir.
Porque não são só os zapatistas a serem guerreiros de resistência. Existem muitos grupos (e têm vários aqui
reunidos) que também têm feito da resistência uma arma, e a usam. E têm de tudo; têm indígenas, têm
trabalhadores, têm mulheres, têm homossexuais, têm lésbicas, têm estudantes, têm jovens. Sobretudo têm jovens,
homens e mulheres, jovens, que dão um nome à sua identidade: “punks”, “ska’s”, “góticos”, “metaleiros”,
“trashers”, rapeiros”, “hip hopeiros” e “etcetereiros”. Se observamos o que todos e todas têm em comum, veremos
que não têm nada em comum, que todos e todas são “diferentes”, são “outros”. E é justamente isso que temos em
comum, o fato de sermos “outros” e “diferentes”. Não só isso, temos em comum também o fato de lutarmos para
continuar sendo “outros” e “diferentes” e por isso resistimos. E somos “outros” e “diferentes” para os poderosos,
ou seja, não somos como eles querem que sejamos, e sim como nós mesmos somos.
E aquele que é como nós somos, longe de querer impor sua maneira de ser ao “outro” ou ao “diferente”,
procura um espaço próprio e, ao mesmo tempo, um lugar de encontro. Os “punks” não fazem campanha exigindo
que todos os jovens sejam “punks”, nem os “ska’s”, nem os “góticos”, nem os “metaleiros”, nem os “trashers”,
nem os “rapeiros, nem, muito menos os indígenas. Mas o Poder sim. Ele quer que sejamos como ele quer que
sejamos, que nos vestimos de acordo com a moda que ele dita, que falamos como ele diz, que comemos o que ele
vende, que consideramos bonito e formoso o que ele considera bonito e formoso, inclusive que amamos e odiamos
como ele estabelece que devem ser o amor e o ódio. E não só isso. Além do mais, o Poder quer que façamos tudo
isso calados e de joelhos, sem andar pulando por aí, sem gritos, sem levantes indígenas, enfim, bem educados. É
por isso que o Poder tem exércitos e policiais, para obrigar os que são “outros” e “diferentes” a serem iguais e
idênticos.
Mas os “outros e os “diferentes” não procuram fazer com que todos sejam como eles e elas são. Que cada
um siga a sua onda ou a sua turma (não sei como se diz agora) e, para que isso seja possível, não basta ser, tem que
ser respeitando também o outro. O “cada um com
a sua turma” tem dois sentidos: é a afirmação da
diferença e o respeito à outra diferença. Quando se
diz que se luta pelo respeito ao nosso ser
“diferentes” e “outros”, isso inclui a luta pelo
respeito em relação àqueles que também são
“outros” e “diferentes”, que não são como nós. E é
aqui onde todo este movimento de resistência,
chamado “underground” ou “subterrâneo” porque
se dá entre os debaixo e por baixo dos movimentos
institucionais, se encontra com o zapatismo.
E este encontro é um encontro entre
guerreiros e guerreiras, entre aqueles que fazem da
resistência uma arma e lutam com ela para ser o
que são, para existir. Ou seja, quando os zapatistas
dizem “queremos um mundo onde caibam muitos mundos” não estão descobrindo nada de novo simplesmente
estão dizendo o que já dizem os “outros” e “diferentes” que caminham pelos mundos debaixo.
Nós zapatistas dizemos “eu sou como sou e você é como é, vamos construir um mundo onde eu possa
existir sem deixar de ser eu, onde você possa existir sem deixar de ser você e onde nem eu e nem você vamos
obrigar o outro a ser como eu e como você. Ou seja, quando os zapatistas dizem “um mundo onde caibam muitos
mundos” estão dizendo, palavra mais, palavra menos, “cada um com a sua turma”.
E, pra não tornar as coisas muito pesadas, passo a outra parte do mesmo tema.

Porque acontece que somos nós mesmos porque somos diferentes. Somos os mesmos a serem perseguidos,
os mesmos a serem desprezados, os mesmos a serem golpeados, os mesmos a serem presos, os mesmos a serem
feitos desaparecer, os mesmos a serem assassinados. E não só os nossos os que nos perseguem, desprezam, batem,
prendem, fazem desaparecer, assassinam. Nem sequer são “os outros” debaixo. É o Poder e seus nomes. E nosso
151
delito não é roubar, bater, assassinar, insultar. Nem, tampouco, o nosso delito é sermos “outros” e “diferentes”.
Não, nosso delito é sermos isso e sermos orgulhosos de sê-lo. Nosso delito, que no código de justiça do poderoso
merece a pena de morte, é a luta que levamos adiante para continuar sendo “outros” e “diferentes”. Se fôssemos
“outros” e “diferentes” envergonhados, escondidos, arrependidos, traídos por nós mesmos, procurando ser ou
parecer o que o Poder quer que sejamos ou pareçamos, então nos daria um tapinha indulgente e compadecido e nos
diriam “são coisas da juventude, vão passar com a idade”. É assim que para o Poder, o tempo é o remédio contra a
rebeldia, “vai passar com a idade”.
Mentira, o que o Poder não está dizendo é o que está por trás “desta idade” que se supõe irá curar e fazer
passar a rebeldia juvenil. Horas, dias, meses, anos de cacetadas, de insultos, de prisões, de mortes, de violações, de
perseguições, de esquecimentos, uma máquina trabalhando para “curar-nos” se deixarmos de ser o que somos e nos
convertemos em seres servis, ou para eliminar-nos se nos empenhamos em ser o que somos, sem ligar para os
calendários, os aniversários, ou a data do registro de nascimento.
Por isso, nós todos somos transgressores da lei. Porque neste sistema tem uma lei que mata e cala quem é
“outro” e “diferente”. E ao viver, ao gritar, ao falar, ou seja, ao sermos rebeldes, transgredimos esta lei e,
automaticamente, viramos delinqüentes.
E nós, estes e estas delinqüentes que somos, habitamos uma realidade rebelde, onde a resistência é a ponte
para que possamos nos encontrar, nos reconheçamos em nossa diferença e em nossa igualdade. Da mesma forma,
também o Rock é como uma ponte pela qual estas realidades caminham com a finalidade de encontrar-se.
De que maneira o Rock serve de espelho e cristal para esta realidade tão “outra” e “diferente”? A verdade é
que não sei e não consigo entender isso. Vejo e ouço os grupos musicais como Rage Against The Machine,
Aztlán Underground e Tijuana No (para mencionar só os que vão participar do show de amanhã, mas sabendo
que têm muitos outros e que todos são bons - como músicos e como seres humanos) e me pergunto porque fazem o
que fazem, dizem o que dizem e tocam o que tocam.
Acho melhor que eles nos digam o que acontece com eles. Talvez, acontece que eles também se perguntam
porque nós zapatista fazemos o que fazemos, dizemos o que dizemos e tocamos o que tocamos (ainda que para o
Rock sejamos bem chafás. 65 “Chafás”, assim, sem “Os” ou “As” para que caibam homens, mulheres e aqueles que
não são nem homens e nem mulheres, mas são).
E para responder ao porquê nós zapatistas fazemos o que fazemos, dizemos o que dizemos e tocamos o que
tocamos é para isso que foi feito esse vídeo, mas como já passei dos 20 minutos que me cabiam, pois vai ficar
pendentes. Na melhor das hipóteses, o que disse antes ajuda a encontrar a resposta.
Valeu rapaziada, bando, companheiros, amigos, padrinhos, sujeitos, ou, como diz este filósofo
intercontinental que agora se veste de pirata, Durito, “cada um com a sua turma”.
Então, segue a turma do Elorriaga que, por sua vez, nos dirá qual é a turma que segue, a de Bellinghaussen,
a de Zach, a de Yaotl, a de Pineda, a do ou da companheira do Anarko Punk, ou já não sei que turma, porque,
porque na melhor das hipóteses me colocaram no meio (o que seria de muito mau gosto) ou me deixaram para o
final, para que a rapaziada já esteja dormindo e não ouça as barbaridades que digo aqui.
Valeu. Saúde e (como diz na capa do número especial deste fanzine que tem o bom gosto de chamar-se
“ZUPterrãneo”) e com tanta turma, “Something doesn’t smell good”, que quer dizer algo parecido com “têm
turmas e turmas”66. Saúde!

Das montanhas do Sudeste Mexicano


O Sup afinando o violão para a “festança”.
México “outro” e “diferente”, outubro de 1999.
Diálogo imaginário entre Monsi e Sup
O P.S. pega a Câmara... de vídeo

Outubro de 1999.

P.S. Bis à Carta 3 Bis. No pano de fundo a Cidade Universitária. As duas figuras caminham pelo estacionamento da
Biblioteca Central. Começa o diálogo. A cena muda para um Traveling Shot que vai desde o plantão indígena
diante do fortificado quartel militar em Amador Hernández, acompanha o vôo rasante de três helicópteros verde-
oliva sobre La Realidad e continua por toda a Estrada Panamericana. Seguem as imagens da catástrofe que as
inundações e o terremoto deixaram nas terras indígenas do país. As vozes passam em off, e, por isso, o espectador
terá que ser ajudado com legendas apropriadas para que possa saber quando está falando cada um dos acima
mencionados. No audio se ouve:
65
Chafás: escassos, que deixam a desejar.
66
No original espanhol o termo “pedo” é inicialmente usado no sentido de “turma”. Nesta frase, o Subcomandante Marcos brinca com a
palavra “pedo” que também significa “peido”.
152

- Entre todos aqueles que conheço, você é o mais estúpido. Diz Monsi.
- Você é o mais idiota. Diz Sup. Você me chama de estúpido, mas dá pra ver que você nunca olhou sua cara num
espelho.
- O que você quer é brigar comigo. Diz Monsi.
Os dois se encaram com um tremendo de um xingamento. Então o Sup pega um giz e rabisca um palavrão
no chão.
- Você é o mais estúpido, diz Monsi.
- Você é o mais idiota, diz o Sup.
Monsi apaga o palavrão com a sola do sapato. Parece que está a ponto de ficar furioso.
- Você é o mais estúpido, diz Monsi.
- Você é o mais idiota, diz o Sup
- O que você quer é brigar comigo. Diz Monsi.
- Você apagou o palavrão. Diz o Sup.
- Se eu o apaguei é porque você me chamou de idiota.
- E se for por causa disso, eu o chamo de novo.
- Porque você é um estúpido. Diz Monsi.
- Um estúpido é muito mais que um idiota. Diz o Sup.

(Variação sobre um texto de Julio Cartazán - 62 - Modelo para Armar)

- E agora?
- Parece que ficamos sozinhos neste debate. Se estivéssemos no CGH já poderíamos passar à votação das “ações
contundentes”.
- Monsi, não é o momento de vir com ironias.
- Não é uma ironia, é uma moção, já que estamos na onda da “assembléia popular prolongada”...
- Monsi ...
- Bom, seja o que for.
- A mesa propõe que se passe a discutir o ponto referente a...
- Um momento! Pode-se saber quem te nomeou “mesa”?
- Ninguém em particular, a tomei de assalto. Mesmo assim, claro, se você prefere, podemos abrir uma rodada de
intervenções sobre o tema.
- Não, me rendo, só te suplico para você não colocar arame farpado. Prometo solenemente não tomar a palavra
na base da porrada.
- Me regozijo pela sua atitude. Bom, estávamos prestes a votar se si discute ou não a votação para abrir a rodada
de intervenções para argumentar a votação sobre o tempo de intervenção dos oradores no que diz respeito à
ordem do dia...
- Uma questão!
- Pois não, companheiro, a sua é uma questão de ordem, de regimento, ou de que?
- É de esclarecimento.
- Prossiga.
- Pergunto, que diabo estou fazendo num diálogo imaginário com você?
- Questão negada. Não é um diálogo imaginário, e sim um realismo mágico.
- Rejeito a negação da minha questão. Tampouco é realismo mágico
- Bom, a mesa propõe que se abra o debate sobre o realismo mágico e o imaginário.
- Questão de regimento. Primeiro a resposta.
- Olha Monsi, te coloquei neste diálogo imaginário ou mágico-realista por várias razões. Uma é porque no seu
texto de 19 de outubro de 1999, publicado no La Jornada, o que você chamou de “A busca agressiva do Nada”
você não me deixou muito espaço por onde entrar e continuar o debate. Logo, estou me servindo de um subterfúgio
se não muito legítimo, digamos que é, pelo menos, simpático. Assim, poderei retomar o debate em outro terreno...
- Simpático?
- Sim, não vai negar que ao colocar nós dois nos papeis de Calac e de Polanco do Cortazán de 62 Modelo para
Armar, sublinho a simpatia natural que ambos possuímos.
- Duvido que muitos subscrevam isso.
- O subscrevemos eu e você, o que no caso desta “assembléia” pode-se chamar de uma “esmagadora
unanimidade”. Mas, voltando à sua pergunta, estou frisando o fato de que se pode discutir, debater, confrontar
idéias, sem que isso signifique abandonar o humor, a ironia, o “charming”, já que estamos em plena globalização,
e tudo aquilo que faz o regozijo de grandes e pequenos. Em segundo lugar, coloco você porque me parece que
você compreendeu que a finalidade de um debate de idéias não é ver quem ganha, e sim gerar mais idéias e mais
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argumentos para as diferentes posições, ou seja, para obrigar e obrigar-nos a pensar. Em terceiro lugar,
porque se você já apareceu nas tiras cômicas de Jis e Trino, não vejo porque você deveria se queixar de estar
saindo num dos meus diálogos imaginários.
- Suponhamos, sem fazer concessões, que o meu objetivo neste debate não é o de derrotar você, que garantias eu
tenho de que você não vai me fazer dizer coisas que eu não disse e ajeitará as falas de modo tal que você fique
como um brilhante expositor e eu como um bobão melancólico?
- Você me ofende. O que o faz pensar de que eu seria capaz de uma coisa semelhante?
- É que você é um estúpido.
- E você é um idiota.
- Vamos parar com isso.
- Porque? Supõe-se que um dos objetivos desta assembléia é bater o recorde do CGH e fazer uma que dure, pelo
menos 777 horas, excluindo os recessos para os xingamentos, as cacetadas e as idas ao banheiro.
- E quantos dias são 777 horas?
- Algo em torno de 32 dias e quebrados.
Impossível, tenho que fazer Por mi madre, bohemios, matérias para jornais e revistas, assistir ao lançamento de 17
livros diferentes, dar de comer ao gato...
- Mas, não dizia Gironella que você havia sido clonado?
- Bah! Pura propaganda. É melhor que negociemos.
- A palavra “transigir” não faz parte do vocabulário desta assembléia.
- Mal começou e já temos “ultras”?
- Era só uma piada, o que aconteceu com o seu senso de humor?
- Se esgotou no primeiro ponto da pauta do dia...
- Bom, que sejam 77 horas. São três dias e alguma coisa. Creio que com isso batemos o recorde do CGH, ainda
que duvide que a gente consiga mantê-lo por muito tempo.
- Questão de resignação.
- Aceita. Prossiga com o argumento obre os atingidos pela greve.
- “A greve não prejudica o neoliberalismo. Ao contrário, confirma a um amplo setor a idéia que tem da esquerda e
dos extremistas. Haja visto que a direita não se enfraquece com a greve; perdem, e de forma considerável, a
UNAM, a esquerda partidária e o governo de Ernesto Zedillo, mas para a direita isto é um presente que vem de
mão beijada; o elogio por contraposição às suas instituições de ensino superior que, diga-se de passagem, até o
momento ainda não apareceu muito”. (A busca agressiva do “Nada”. Carlos Monsiváis. La Jornada. 19 de
outubro de 99).
- Mas, Monsi, a maioria da população fica impassível diante do elogio das instituições de ensino superior da
direita. Pra que servem os elogios às universidades que já estão muito longe de qualquer orçamento de classe
média. É como elogiar as qualidades de uma Mercedes Benz ou de uma Ferrari. Claro, lembra que a masturbação
é como ter uma Ferrari e andar só em primeira? Quem diria que a hierarquia católica se permite um jogo de
palavras público!
- É que a campanha dos pré-candidatos contagiou tudo lá em cima. Voltando ao tema, não se faça de
desentendido. Você sabe que estou me referindo ao fato de que a greve questiona a excelência acadêmica da
UNAM e, por contraste, exalta a suposta superioridade das universidades privadas. A imagem de uma
universidade na qual seus membros recorrem aos socos, aos arames farpados e ao exorcismo sexista de “puto,
puto” como argumento de debate, não é real, e, sem dúvida, é esta a imagem que agora permeia a opinião pública.
O que me diz sobre isso?
- Quá-quá?
- Engraçadinho.
- Obrigado pelo favor que você me faz. Digo que esta é uma pérola: esta imagem da UNAM é a que está nos meios
de comunicação eletrônica. Daí a dizer que permeia a opinião pública tem um salto, pois supõe que estes meios de
comunicação Têm legitimidade e credibilidade. A não ser que “opinião pública” e “meios de comunicação” sejam
sinônimos, tese que não me parece descomunal. Mas, suponhamos, sem fazer concessões, que seja a mesma coisa.
Você deve reconhecer que tem um pouco de... de... Deixa-me achar uma palavra que não ofenda e nem cause
lástima no respeitável público.
- Um sinônimo de...?
- “Histeria”, mas não é um sinônimo que estou procurando, e sim algo que defina este clima que tem na imprensa
para detectar e ressaltar os absurdos de um movimento que, como todos os movimentos, não carece deles.
- Explique-se. Ou melhor, não tem que ser presunçoso: trate de explicar-se.
- As coisas já estão tão feias assim? Bom, vou deixar de lado a sua agressão. Vou te dar alguns exemplos. Quando
a marcha do dia 14 de outubro, na qual os estudantes protestavam contra a manipulação da informação da TV
Asteca e Televisa, na estação de rádio do DF se disse que uma criança havia morrido por falta de cuidados
médicos, pois a ocupação do Periférico havia-lhe impedido de chegar a tempo no hospital. Ficou provado que isso
154
era falso, mas, durante horas, o locutor se encarregou de inflamar os sentimentos humanitários dos ouvintes e
acrescentou, sem torná-lo explícito, o adjetivo de “assassinos” à longa lista que já pesa sobre os grevistas. Outro
exemplo? No La Jornada, nas crônicas sobre as seções do CGH, se relata que um estudante propôs vetar este
jornal e um de seus repórteres (Roberto Garduño). Por um complicado malabarismo, deu-se por líquido e certo o
fato que o CGH assumia este veto. Isso fez com que o sindicato do La Jornada (SITRAJOR) enviasse um
comunicado estranhando o veto e que, por sua vez, o CGH respondesse com outro estranhamento, pois não havia
tomado nenhuma decisão neste sentido. Um imbecil propôs que, quando ocupassem o DGSCA (ou algo parecido,
mas é onde está o grande computador) a primeira coisa a ser fechada fosse o servidor usado pelo La Jornada.
Então surgiram vozes que atribuíam ao CGH esta intenção, ainda que estivesse claro que não era intenção do
CGH, e sim de um que havia dito aquilo.
- E, sem dúvida, ninguém do CGH se deu o trabalho de refutar estas duas intervenções das quais você fala ou
interveio para delimitar o campo.
- Concordo. Mas estou falando do clima que têm nos meios de comunicação contra os movimentos. Porque há uma
série de saltos: uma atitude ou uma intervenção de um membro de uma das correntes radicais, é apresentada como
se fosse do CGH em seu conjunto, do movimento em seu conjunto, da UNAM em seu conjunto, da esquerda radical
em seu conjunto, da esquerda em geral. Na minha maneira de ver, alguém deve começar a impor a serenidade, a
reflexão e a análise, e, posso estar errado, mas, em parte, esta tarefa cabe aos líderes de opinião progressistas e
aos meios de comunicação.
- E aos estudantes...
- Concordo. Mas alguém têm que começar. É quem faz das idéias a sua profissão que deve começar a fazer isso.
- Você está pontificando, mas supondo que tenha razão, o que é que deve começar a fazer?
- Trata-se de entender o movimento como ele é, como um movimento social, ou seja, que tem correntes radicais ou
“ultras” e correntes “moderadas”, que respondem a orientações de organizações políticas e/ou sociais, sim, mas
que tem também estudantes que não integram estas correntes, mas integram o movimento e o sustentam. Alguns
estão no CGH, a maioria nas escolas e nas brigadas.
- “É óbvio que no CGH existem jovens generosos, convencidos da luta contra a privatização do ensino. Mas, até a
que ponto eles têm decidido o rumo do movimento? Qual é o seu papel no diálogo? Acredito que a voz com maior
poder de persuasão do movimento se dá por via indireta e é a teimosia em reprimir e a grande incoerência das
autoridades, que resistem em considerar o CGH como interlocutor e a entender suas razões”. (idem).
- Bingo!
- Em relação ao que é esse “bingo”?
- A isso que você diz, que no CGH têm jovens generosos, convencidos da luta contra a privatização. Permita-me
deixar pendentes as duas perguntas que você coloca e vamos a isto: este movimento estudantil tem como motor o
fim que persegue. A educação gratuita não é uma palavra de ordem, ou seja, não é só uma palavra de ordem, não
só uma bandeira. Não, a educação gratuita é uma causa para o movimento estudantil, e aqui entendo “causa” no
duplo sentido de “motivação” e “antecedentes”. Não estou tratando de dizer obviedades, e sim de entender um
movimento pelo qual sentimos uma simpatia irremediável.
- “Simpatia pelo capeta”, Rolling Stones dixit.
- Espera, já vou chegar nisso. A causa da educação gratuita pegou tanto nestes jovens estudantes (e aqui estou
deixando de lado aqueles que vêem nesta luta um estágio ou uma etapa da grande Revolução ou da sempre
postergada insurreição popular), exatamente por isso, porque é uma causa. Apesar da grande maioria dos
estudantes que hoje está em greve não ser diretamente afetada pelo aumento das taxas escolares, se jogou de
cabeça no movimento porque era, e é, uma causa justa, uma causa cujo objetivo é deixar “algo” aos que seguem,
aos que vêm depois, aos “outros”.
- Pois, se as coisas continuarem do jeito que estão agora, vão deixar a eles um monte de escombros...
- Ao entrar no movimento, os estudantes não estão ingressando num movimento estudantil, estão pensando naquele
que não é estudante, mas poderia vir a sê-lo. É, como é que poderia dizer?, sua herança, seu legado, seu “eu estive
aqui, fiz isto”. Quem abraça uma causa, abraça o “outro”. E é um abraço que cria compromissos. Estes jovens
estão dizendo “temos um compromisso e temos que cumpri-lo”. Sua luta abraça quem não conhecem, aquele ao
qual não vão poder “cobrar” o abraço, é admirável.
- Clap, clap, clap. Comovente. Mas você esquece de dizer que, no caso dos “ultras”, estão se abraçando entre eles
mesmos, o compromisso é consigo mesmos, sua herança é uma assembléia eterna, e o seu legado é o “aqui
estive”, aqui fico”.
- Você reduz tudo ao qualificar com o adjetivo de “ultras”, você renuncia aos matizes, a ver a essência do
movimento. Além do mais, este abraço ao espelho cabe, do mesmo modo, para a esquerda “não ultra”.
- “O de ultras não é bem um termo que qualifica, mas é que eles mesmos o têm utilizado”. (Idem).
- Bom, também usam o de “heróicos” ou “revolucionários” e você não os chama assim.
- E isso de que “renuncio às matizes”, olha só quem está dizendo isso. Se foi você mesmo que ao referir-se à
proposta dos 8 professores a desqualificou com uma única canetada.
155
- Concordo, mas eu sou um guerreiro e você é um pensador.
- No que se refere ao “guerreiro” não é uma desculpa, todo caso, é uma agravante.
- Bom, mas você me entende.
- Tento.
- E eu tento fazer com que entendamos o movimento estudantil. Não só porque sua causa é justa, você o
reconheceu, mas porque consigo ver que o sintoma de algo que está pra vir...
- Provavelmente deve ser outra moção, por isso não repare. O que tento fazer com que você entenda é que se o
movimento não encontra saídas que levem a soluções, então vamos tratar de entender os restos do naufrágio e não
um navegar admirável, ou, o que é mais desejável, uma chegada feliz a um bom porto. Acredito que o movimento
já conseguiu muitas coisas, além de exasperar meio mundo. “O CGH ganhou uma batalha fundamental e mostrou
quanto é falho o princípio de autoridade aplicado sem reflexão, reivindicou o caráter gratuito da educação
pública, provocou o mais intenso debate sobre as funções da UNAM, fez reviver, por diferentes razões, um
conglomerado que até pouco tempo atrás estava ausente de suas possibilidades comunitárias. Que mais poderia
conseguir? Muito se, a partir da posse das instalações, não propusesse a rendição dos adversários e o aplauso
incondicional da sociedade”. (Ibidem)
- Vou repetir que a questão não é se o movimento já ganhou muitas coisas e sim se estas são suficientes. O resto da
sua argumentação se escora no “tudo ou nada”. Permita-me insistir: a pauta dos 6 pontos (que agora são 4, já
que 2 vão para o congresso - e você esquece de mencioná-los), não pede a rendição dos adversários, e sim
educação gratuita, não às represálias, oportunidade de regularizar seus estudos e um espaço de discussão e
decisão (o Congresso) para todos, incluindo “os adversários”. E não acredito que busquem o aplauso
incondicional da sociedade, quando muito esperam a sua compreensão. O CGH flexibilizou o “tudo ou nada”,
deixando pendentes dois pontos da sua pauta. E isto, além de não ser reconhecido, recebeu da reitoria a
“inteligente” resposta judicial das atas de denúncias e a reativação do tribunal universitário, esta “santa
inquisição” que sempre cuida de selecionar como vítimas os lutadores sociais.
- “O tudo do CGH não está na irredutibilidade da pauta, e sim na vontade de um grupo de entrincheirar-se e
desqualificar o mundo. Os 6 pontos não são o «tudo»; o «tudo» é usar a pauta de reivindicações como espaço de
domínio, não de diálogo, a partir do qual se exige tudo”. (ibidem). Só você vê a parte boa do movimento, o
idealiza e solapa as atitudes de intolerância que, cada vez mais freqüentemente, chegam à violência física.
- Você se refere aos granadeiros?
- Não! Falo do seguido ajuste de contas interno que se chama “assembléia do CGH”. Dos granadeiros já disse
que sua selvajaria é totalmente censurável.
- Não tem comparação entre a ênfase que você dá às críticas do CGH e a que dedica ao governo do DF. Mas,
voltando à sua argumentação a respeito do movimento, temos a presença de uma greve de estudantes cujo
detonador é o Regulamento Geral de Pagamentos que foi imposto, com uma delicadeza de causar inveja a Albores,
pelo reitor Barnés. O movimento estudantil é contra o aumento das taxas, mas não só. Também é contra o
mecanismo pelo qual se tomam decisões, pois ele permite arbitrariedades como a de Barnés, que, por sua vez,
provocam conflitos, como a greve atual. Logo, o movimento pede duas coisas fundamentais: a revogação do
Regulamento Geral de Pagamentos e a realização de um congresso resolutivo; as outras duas demandas são
conseqüência lógica: não às represálias policiais, acadêmicas e administrativas contra aqueles que participam do
movimento; e mecanismos para “pôr em dia” os estudos dos estudantes grevistas. Parece-me lógico, racional,
coerente e lúcido. Parece-me uma causa contra a qual não dá pra levantar objeções...
- “O que deve ser contestado é a privatização da causa. Como se vê agora, os ultras, que tanto se opõem à
privatização, têm-se apropriado da greve, protegidos por arame farpado e cercos de suspeição que agridem
jornalistas e confiscam os filmes dos fotógrafos” (ibidem). Já te concedi que todos os estudantes do movimento
não são ultras, agora você me concede que os ultras são os que hegemonizam as assembléias do CGH e têm
conseguido impor esta delirante transgressão que chamam pomposamente de “ações contundentes”.
- Concedido. E vou mais longe. Estas “ações contundentes” têm demonstrado ser um fracasso. E isso não escapa a
estes outros estudantes cuja generosidade você reconhece. Os dias dos “ultras” como força hegemônica do CGH
já estão contados. A história já se aproxima para repassar a conta, como antes a passou aos estudantes filiados ao
PRD. Vou pegar o exemplo da ocupação e do fechamento dos institutos. Erro: dispersa suas forças e consegue
colocar contra o movimento um setor que até então se mantinha neutro ou no qual poderiam ter despertado
alguma simpatia. Outro exemplo. Apesar do CGH não concordar com o bloqueio do Periférico, um grupo das
Políticas e de Acatlán, mais alguns outros dispersos, tomam a decisão. Já conhecemos o desenrolar desta ação,
entre outras coisas por esta duplamente corajosa fotografia do La Jornada do dia 15 de outubro e a excelente
crônica do odiado-pelos-ultras Garduño (e digo duplamente corajosa porque, além da coragem de batê-la, teve a
coragem de publicá-la). Mas as coisas não param por aí, a inconformidade com a maneira de decidir a ação
começou a propagar-se pelas escolas. Ou seja, além das críticas ao governo do DF, choviam críticas contra
aqueles que haviam realizado a ação. O mal-estar se estendeu pela maneira com a qual se fecharam os institutos e
pela forma com a qual se puseram pra fora os pesquisadores e os trabalhadores.
156
- E porque você não diz isso pra eles?
- Eles já perceberam isso, não são bobos e, sobretudo, são honestos. E me refiro aos “outros” estudantes. E tanto
é verdade que as coisas estão assim que agora leio que a saturação em relação ao “jeitinho” dos radicais no CGH
está proliferando entre estes “outros” que são a maioria do movimento. Os assim chamados e autodenominados
“ultras” estão demonstrando que, na hora da política, são iguais aos que criticam (insultam e golpeiam). E
esquecem que os “outros” estudantes não estão buscando um “ismo” que os proteja, e sim cumprir seu dever, ou
seja, ganhar o que reivindicam.
- Escreva-lhes uma carta.
- Não respondem. Olha, sequer acusam o recebimento. Mas dá pra entender, pelo menos, nós os entendemos. O
que quero dizer é que, ao linchamento que é promovido nos meios de comunicação contra o movimento, o
movimento está respondendo com o linchamento dos rivais que tem ao alcance da mão: neste caso, os
“moderados”. Acho que o problema do movimento é que tem que se libertar da arapuca das etiquetas e dos
“bloqueios” para retomar o movimento em sua base, ou seja, em suas demandas. Neste momento, se você critica
os “ultras” então é um “moderado”, e se você critica os “moderados”, então é um “ultra”. Logo, já não importa
a argumentação, muito menos as reivindicações, e sim a posição que você ocupa num espaço cada vez mais
apertado.
- E então?
- Vão ganhar.
- “Nas questões fundamentais já ganharam, ainda que também se poderia dizer que «vão perder»”.
- Negativo, vão ganhar. E vou te dizer o porque. No início do movimento o CGH nomeou uma comissão (ou várias,
não sei) para que se explicassem as razões do movimento aos outros setores da sociedade. Esta comissão chegou à
La Realidad e falou com uma delegação do CCRI-CG do EZLN. Com isso quero dizer que eles e elas (uns 40)
tinham claro que estavam falando com o EZLN e não com alguns de seus membros. Bom, o caso é que falaram
conosco, nos expuseram as razões do seu movimento e nos disseram que iam ganhar. Nesta comissão não tinha
ninguém das chamadas “correntes” (como é de costume, os “ultras” nos acusavam de sermos “moderados”, e os
“moderados” nos acusavam de “ultras”). Tinha jovens, homens e mulheres, estudantes da UNAM que estão em
greve para reivindicar educação gratuita. Depois deles, chegou mais gente. Da Preparatória, da CCAC, das
Faculdades, das ENEP, das Escolas Nacionais, das FES. Alguns ficaram em La Realidad, outros seguiram rumo a
Amador Hernández. Todos nos disseram a mesma coisa; que lutavam pela educação pública e gratuita e que iam
ganhar. Nós acreditamos neles, porque nós somos incorrigíveis em acreditar nas pessoas. E é melhor que nos
equivoquemos por ter acreditado neles do que por não ter acreditado. Se não ganharem (coisa que eu duvido)
então teremos feito mal em acreditar neles, mas não seria esta a primeira vez que nos enganamos acreditando em
alguém a respeito de algo. Se ganharem (e é assim que vai ser) teremos feito bem em ter acreditado neles e o
cepticismo que começou a endurecer a nossa pele vai-se atenuar. Por isso, quando nós falamos, nos dirigimos a
estes “outros” estudantes, não só porque pensamos que eles e elas têm a inteligência e a habilidade de conduzir o
barco a um bom porto, mas também porque foi com estes “outros” que falamos, e é nestes “outros” que nós
acreditamos. Do lado deles, além de nós, estão a razão e a justiça...
- “Mas, onde estão a razão e a justiça no caso dos ultras? Eles não se preocupam com a UNAM. Tanto é verdade
que dividiram o movimento, recusam o diálogo com a opinião pública e a sociedade civil, e para isso basta olhar
como tratam a imprensa, suas exigências, arbitrariedades, e a desqualificação permanente de qualquer possível
interlocutor (sua atual especialidade: La Jornada e seus repórteres)”. (Ibidem).
- Acredito que, muito em breve, tudo isso vai mudar, Os “ultras” derrotaram rapidamente o capital político que
herdaram da falta de prestigio dos partidos políticos no interior da universidade (e de sua própria ação). É a hora
dos pequenos...
- O seu otimismo é exasperador, mas é mais tolerável do que uma assembléia do CGH. De minha parte reitero
que: “É justa a reivindicação de uma educação gratuita, a esperança de mobilidade social e das oportunidades de
preparação, mas, no meu sincero entendimento, não a prática da intolerância e do mero rancor social” (ibidem).
- Nisso concordamos com você. E, claro, os companheiros me pedem que te agradeça pela carta, pelo tom e a
proximidade. Ficam pendentes outros temas...
- Outros?
- Sim, o do diálogo-negociação (que tem a ver com o cumprimento ou não dos acordos a que se chega) e o da crise
política. Vai ser pra outra ocasião.
- Onde é que estávamos antes disso tudo?
- Dizíamos que você é um idiota.
- E você um estúpido.

No pano de fundo reaparece a Cidade Universitária. Das “ilhas” vêem-se as duas figuras que se afastam,
com a Torre de Humanidades, de um lado, e a Biblioteca Central, do outro. O diálogo continua e o áudio vai se
perdendo conforme se afastam.
157

- Não fique triste, Monsi. Tudo vai acabar bem.


- Sim, não estou triste pela greve, é pela minha coleção de caricaturas.
- O que aconteceu? Alguém roubou?
- Não, acontece que é impossível que elas possam competir com as que são quotidianamente oferecidas pela classe
política mexicana. E já não tenho espaço suficiente para o Por mi madre e boêmios, estou pra pedir que me dêem
mais espaço, pelo menos igual ao que reservam para teus comunicados.
- Não faça isso, Dona Carmen já não sabe se abre uma nova seção ou coloca os comunicados como suplemento. E
digamos que na mesa de redação não brilho pela minha popularidade.
- Claro você é um estúpido.
- E você é um idiota ao quadrado.
- E você é um estúpido fatorial.67
- Reparou que já estamos usando muito dos estudos superiores?
- Sim, faz bem vir pra a universidade.
- Você que o diga. Vai pagar os tacos? 68 Têm dos bens em División del Norte e no Circuito Interior. Bom, tinha...
já faz tempo.
- Não tenho dinheiro. Mas podemos fazer uma assembléia no local e, quando o respeitável público cair no sono,
democratizamos o consumo dos bens comestíveis.
- Não seria uma má idéia se não fosse que você é um idiota.
- E você é um estúpido.
- Se tivesse estudado já teria doutorado de idiota.
- E você é tão estúpido que seria reprovado no exame de admissão.
- É por isso que apoio o acesso automático.
- Claro! Você é mesmo um estúpido.
- E você é um idiota.
- Apresse-se ou vamos perder a perua.
- Então o perueiro é também um idiota.
- Ou um estúpido, só falta confirmar. Tem dinheiro?
- Eu? Como disse não sei quem, “não carrego cash”. Vamos fazer de conta que estamos mortos, pois nós dois
temos “look” de “ultras”.

As vozes se apagam até que fica só a música de fundo que, agora sabemos, é Violeta Parra cantando
“brincam os paralíticos, sobre um facão afiado, oito vezes três vinte e sete, divide um matemático. (Atenção: o
acento grave é porque é assim que se desenrola a música).

Valeu. Saúde e os tacos sem cebola e com muito abacaxi. Pra beber? Uma canequinha de vinho. O que! Já
não tem mais canequinhas? Noossa!
O Sup que continua gravando sem perceber que a filmadora já faz tempo que marcou “stop” porque acabou
a fita (o que pode ser interpretado como a existência de moção às moções) (além do mais, o professor Oscar
Menéndez já havia me dito que meus travelings arrebentam qualquer orçamento). É outubro, é 1999, e é, quem
diria!, México.
P.S. que contra-ataca. Chamei Olivio e Marcelo e disse a eles: “Já inventei uma palavra de ordem para a luta:
Noz, noz, noz! Viva eu!” Os dois ficam me olhando e Olivio me pergunta: “Sup, você está passando mal?”, e
Marcelo acrescenta: “Sim, injeção nele!” Não parei de correr até que vi um letreiro que dizia: “Bem-vindos à
Guatemala”. (Suspiro).
P.S. que no pecado traz a penitência. Estava comendo uns chocolates com as nozes (com a forma da tartaruga),
quando chegou o Sargento Capiricho e o Cabo Capirote, ou seja, Olivio e Marcelo. Nem pedem, sabem que se
tratando de noz, o Sup, não reconhece graus militares, muito menos quando se trata de sargentos e cabos. Diz
Olivio: “Sup, acabam de chegar os e as das coordenações da consulta”, e Marcelo: “Sim, e trouxeram uma caixa
enorme cheia de injeções”. Dei a eles as tartaruguinhas de chocolate com as nozes que sobravam. Tratando-se de
injeções, o Sup reconhece a importância dos amigos e dos cúmplices. Ou vocês acham que vão delatar que estou
escondido em cima da ceiba (gulp)?
P.S. para o doutor Rodríguez Araujo. Para ver se entendi direito: se você diz que sou um irresponsável, é uma
crítica; e se eu digo que espero que você possa dizer que ninguém pode acusá-lo de ser incoerente, é um ataque. Ou
é o contrário?

67
Fatorial: em matemática, é o produto dos número naturais desde 1 até o inteiro n, simbolizado por “n!”
68
Tacos: comida típica mexicana preparada com carne picada, cebola, coentro e pimenta.
158
P.S. Para a SEDENA . Se foi decretada a emergência em vários Estados por causa das chuvas e se eles
69

precisam de transporte aéreo para socorrer a população, porque por aqui vêm aumentando os vôos dos helicópteros
de combate e dos bombardeiros? É a sua “contribuição” ao debate?

Subcomandante Insurgente Marcos.

Sobre a necessidade do debate

P.S. BIS, BIS À CARTA 3 BIS. Numa folha lê-se: Exército Zapatista de Libertação Nacional. México. Outubro de
1999. E continua:

Aos doutores Alfredo López Austin, Adolfo Sánchez Vázquez e Luis Villoro.
De: Sup Marcos

Mestres: Li a sua carta no El Correo Ilustrado do La Jornada de domingo dia 24 de outubro.


Entendo perfeitamente que não achem conveniente instaurar uma polêmica formal. Respeito a sua decisão.
Mas não entendo porque dizem: “pois não favoreceria as causas justas que partilhamos”. Acredito que as causas
justas que partilhamos (entre outras a dos direitos dos povos indígenas e a democratização do país, mas não só
estas), seriam favorecidas pela polêmica e pelo debate das idéias (com a direita não se pode debater e nem
polemizar, pois ela carece de idéias).
Entendo que se preocupem com o clima que propiciou determinadas intervenções em alguns meios de
comunicação, no sentido de que o EZLN está lançando flechas contra seus aliados por causa do conflito da UNAM,
e que, para não servir de pretexto ou de aval a uma ação repressiva contra as comunidades indígenas, renunciam
(momentaneamente) ao seu legítimo direito de defender suas opiniões e seus pontos de vista. Nós não deixamos de
perceber a grandeza moral que vocês refletem com esta atitude.
A saudamos e nos felicitamos pela honra de tê-los tido como assessores na tentativa frustrada de conseguir
uma solução pacífica para a guerra no sudeste mexicano. Mas o governo já decidiu o que vai fazer por aqui. Não é
o resultado deste debate que ele está esperando para levar adiante seus planos.
Logo, temos que entrar na polêmica. A UNAM, a vida política do país e a esquerda precisam dela. A
possibilidade de continuar este diálogo mais tarde (como assinalam em seu escrito) depende, infelizmente, de nós
ainda estivermos existindo “mais tarde”.
Valeu. Saúde e que da confrontação das idéias não nasçam distâncias e sim amanhãs.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, outubro de 1999.

Às Coordenações de Contato

Irmãos e irmãs das Coordenações de Contato da Província Mexicana:


Bem-vindos e bem-vindas à La Realidad. Queremos agradecê-los por ter aceitado o nosso convite para esta
reunião de trabalho. Estamos honrados de termos aqui conosco companheiros e companheiras de muitas regiões do
nosso país. Queremos pedir a todos que saudemos o nosso estar aqui como nós zapatistas o saudamos, ou seja, com
um aplauso. Por isso, peço uma saudação para a Baixa Califórnia do Norte, Baixa Califórnia do Sul, Chihuahua
(especialmente para os nossos irmãos indígenas da Sierra Tarahumara, os companheiros rarámuris), Michoacán,
Estado do México, Puebla, Guerrero, Jalisco, Oaxaca, Querétaro, Guanajauto, Coahuila, Hidalgo, Quintana Roo,
Campeche, Colima, Morelos, Tlaxcala, Chiapas. Enviamos também uma saudação aos irmãos e às irmãs de
Veracruz e Tabasco, que não puderam participar porque estão ajudando as pessoas atingidas pelas enchentes. A
mesma saudação vai para Tlanepantla-Atizapán que não está presente devido a um ato público que não foi possível
cancelar. Os demais companheiros e companheiras não estão presentes por razões econômicas.

Queremos dar a todos um pequeno informe sobre como andam as coordenações a nível nacional.

A . Até hoje, temos 47 Coordenações de Contato credenciadas em todo o país.

69
SEDENA: Secretaria de Defesa Nacional.
159
B . 17 são Coordenações Estaduais. Aguascalientes (Aguascalientes), Sul da Baixa Califórnia (La Paz), Colima
(Colima), Guanajauto (Irapuato), Guerrero (Chilpancingo e Acapulco), Hidalgo com laços regionais em Sierra-
Centro, Sul, Vale de Mezquital, Altiplano e Huasteca (Pachuca, Tulancingo, Tula, Ixmiquilpan, Tizayuca, Huejutla,
Ajacuba, Zapotlán), Michoacán, Morelos, Nuevo León. Oaxaca. Querétaro, Quintana Roo, Tabasco, Tlaxcala,
Veracruz, Yucatán.

C. 5 são Coordenações Municipais. Chihuahua-Aladama-Chihuahua, Chihuahua-Justicia y Dignidad-Chihuahua,


Chihuahua-Chihuahua. Toluca-Estado do México e Puebla-Puebla.

D. 12 são Coordenações Regionais. Norte da Baixa Califórnia-Tijuana, Sul da Baixa Califòrnia-Marlin, Coahuila-
Torreón, Chiapas-Região Altos, Chiapas-Zona Norte, Chihuahua-Rarámuri, Região Norte-estado do México,
Izúcar de Matamoros-Puebla, Norte-Sul-Centro-Puebla, Região Rural de Puebla, Tamazunchale-SLP, Região de
Mérida-Yucatán.

E. 13 são Coordenações Especiais. Alvaro Obregón-DF, Azcapotzalco-DF, Coyoacán-DF, Cuauhtémoc-DF,


Iztapalapa-DF, Magdalena Contreras-DF, Venustiano Carranza-DF, Ecatyepec-Estado do México, Naucalpan-
Estado do México, Tlalnepantla-Estado do México, Nezahuacóyotl-Estado do México, Região Sudeste-Estado do
México.

Além disso, os companheiros e companheiras de Zacatecas, Nayarit, Sinaloa (região de Guamúcil), Coacalco-
Estado do México, Jalisco e Cidade Juárez-Chihuahua estão discutindo a possibilidade de se transformarem em
contatos.

Temos muito a informar e a conversar. A maior parte disso cabe a vocês e queremos ouvi-los com atenção.
Por isso, os convidamos para esta reunião, para que falem para todos nós e para que a palavra que cada um traz seja
também uma ponte com os outros que têm o mesmo compromisso e a mesma dor de cabeça por causa destas 7
tarefas.70
Sabemos muito bem que todas e todos tiveram que sacrificar algo para participar deste encontro nestes
dias. Muitos sacrificaram seus dias de descanso, outros sacrificaram o estar perto de seus mortos para falar com
eles e honrá-los assim como no México costumamos falar e honrar os nossos mortos. Sim, nestes dias, muitos e
muitas mexicanas e mexicanos dirigimos o olhar para os nossos mortos e enviamos à terra nossas lembranças, as
memórias que nos deixaram. Falamos com nossos mortos, cantamos e, às vezes, sorrimos, e talvez é por isso que os
nossos mortos parecem estar tão vivos.
Sabemos também que a viagem tem sido longa e pesada, e que os federais a tornaram ainda mais longa e
pesada. Mas é assim mesmo. Eles, os do governo, não nos querem ver juntos, nos querem ver sozinhos e afastados
de todos, sem que ninguém dê um lugar à nossa palavra, sem que haja voz alguma para o nosso ouvido. É isso que
querem, mas já dá pra ver que não conseguem porque vocês estão aqui e aqui estamos nós. Ou seja, existe um
coração para as nossas palavras e terra boa para as palavras que trazem os passos de todos vocês.
E abusando da sua paciência, mas aproveitando o vôo que ainda trazem, queria que me permitissem contar-
lhes uma história, uma história que tem a ver com o sete, com o sacrifício, com os antepassados, com a terra, com a
palavra.
A história que vou contar vem de muito longe. E não estou falando de distância e nem de tempo e sim de
profundidade. Porque as histórias que nos fizeram nascer não percorrem o tempo e o espaço, não, só ficam aí,
permanecem paradas e, estando aí paradas, a vida passa por cima delas e vai tornando mais dura a sua pele, porque
esta é a vida e este é o mundo, a pele com a qual a história vai se abrigando para ficar aí. É assim que as histórias
vão se juntando, uma sobre as outras, as primeiras estão muito embaixo, muito longe. Por isso, quando digo que a
história que vou contar vem de muito longe, não estou falando de muitos quilômetros, não de anos, não de séculos.
Quando os mais velhos entre os ais velhos de nossos povos falam de histórias que vêm de longe, apontam para a
terra para ensinar-nos que é dentro dela que estão as palavras que as verdades percorrem. A terra é morena e
morena é a morada na qual descansa a primeira palavra, a verdadeira. Por isso, nossos primeiros pais e mães
tinham a pele morena. Por isso, o rosto de quem traz a história nas costas caminha com a cor da noite.
A história dos mundos que fazem este mundo vem de muito longe. Não está só pendurada num livro ou
pintada numa árvore. Não caminha nem pelo passo do rio, nem pelo vôo da nuvem. A história dos mundos que
fazem passar os calendários não é algo que se possa ler. A história de como nós fomos nascendo e nos fazendo não
está escrita por trás das letras e do papel, não. Esta história está muito longe, está em grande profundidade, muito
pra dentro. Mas a que vou contar não é a história deste mundo no qual caminham tantos mundos. Ou talvez sim.
70
Refere-se as tarefas que foram tiradas durante o encontro de avaliação da Consulta pelo Reconhecimento dos Direitos dos Povos Indígenas
ocorrido em maio deste ano. O leitor pode encontrar a descrição das mesmas na nota que consta no final do comunicado Os zapatistas e a
maçã de Newton.
160
Talvez todas as histórias são filhas e mães da primeira história, da que está mais longe, da que está em
profundidade, da mais verdadeira.
Contam os mais velhos que vivem nestas montanhas, que, antes da criação do dia, já havia muitos homens
e muitas mulheres vivendo neste mundo. Era grande o número de pessoas enquanto tudo continuava sendo noite e
água. O céu estava como que adormecido. E isso era porque os maiores deuses, os que deram origem ao mundo, os
primeiros, estavam dormindo. Os primeiros deuses haviam trabalhado por longo tempo. Fazer nascer um mundo
novo é uma tarefa cansativa. Os maiores deuses estavam dormindo e o céu os acompanhava neste sono. Os
primeiros deuses sonhavam nesta cama de noite e água. Já haviam feito as montanhas, que foram as primeiras
terras que tiraram da água. Algumas foram aplanadas e outras feridas, e foi assim que se criaram as montanhas, os
vales e as passagens entre as montanhas. A montanha foi a primeira das terras. Por isso, dizem os nossos velhos
entre os mais velhos, que é na montanha que vive a primeira história, a que está mais longe.
Quando os homens e as mulheres cansaram de tanta água e noite, começaram a protestar e a reclamar
muito. Estes homens e mulheres que eram muitos e muitas faziam muito barulho sim, mas eram os primeiros que
andavam pelo mundo e também já eram muitas as cores que pintavam suas peles e palavras. Com tanto barulho,
acordaram os primeiros deuses, os maiores, e estes perguntaram porque os homens e as mulheres que viviam no
mundo faziam tanta gritaria. Todos e todas começaram a falar ao mesmo tempo, a gritar, a tomar a palavra, a lutar
para ver quem falava mais e mais alto, e demoraram fazendo isso.
Os primeiros deuses não entendiam muito, eles eram grandes e haviam feito nascer o mundo, mas não
podiam saber o que queriam os homens e as mulheres porque estes não falavam e sim se limitavam a brigar e a
aprontar uma grande gritaria. E, muito menos, os primeiros deuses podiam dormir, então chamaram os homens e as
mulheres, que haviam feito de milho, os verdadeiros, e perguntaram a eles o que estava acontecendo.
Os homens e as mulheres de milho tinham o coração da palavra, e sabiam muito bem que não é através dos
gritos e das brigas que a palavra caminha para abraçar os homens e as mulheres. Porque quando nasceu a flor da
palavra, os maiores deuses, os que deram origem ao mundo, os primeiros, a semearam no coração destes homens e
mulheres de milho, porque a verdade é a terra boa que faz a palavra nascer e crescer. Mas esta é outra história.
Acontece que foram estes homens e mulheres de milho a falar com os primeiros deuses. “ Pois, aqui
estamos”, disseram. E os deuses perguntaram: “Por que estes homens e estas mulheres gritam e brigam tanto
assim? Não sabem que com todo este barulho não nos deixam dormir? Afinal, o que querem?”
“Querem a luz”, disseram aos maiores deuses os homens e as mulheres verdadeiros.
“A luz”, disseram os primeiros deuses. “A luz”, repetiram os homens e mulheres verdadeiros. Os deuses se
olharam entre si e logo ficou claro que estavam ficando preocupados porque, com certeza, alguém tinha que criar a
luz, mas não disseram nada. “Esperem”, pediram os maiores deuses aos homens e às mulheres verdadeiros, foram
embora para fazer uma de suas assembléias e demoraram, talvez porque demora pra chegar a grandes acordos, já
que a luz não era pouca coisa, afinal tratava-se da luz.
Quando os deuses voltaram, disseram aos homens e às mulheres verdadeiros: “A luz existe, mas não está
aqui”.
“Onde está a luz”, perguntaram os homens e as mulheres de milho.
“Lá”, disseram os deuses e apontaram para um dos sete pontos que orientam o mundo. E os sete pontos
que delimitam o mundo são a frente, atrás, um e outro lado, em cima, em baixo e o centro é o sétimo e o primeiro
ponto.
Os deuses apontaram para um dos lados e continuaram com a sua palavra: “A luz pesa muito, por isso não
a trouxemos. Ficou lá, pesa muito. Nem nós que somos os primeiros deuses podemos carregá-la e trazê-la, por isso
ficou lá”. Os primeiros deuses ficaram calados e aflitos, porque apesar de serem os maiores, os que deram origem
ao mundo, não haviam conseguido trazer a luz da qual os homens e as mulheres precisavam para percorrer os
mundos que formam o mundo. E o mais aflito de todos era Hurakán, também chamado de Caculhá Hurakán, que
quer dizer “raio de uma perna” ou “relâmpago”, porque ainda que fosse muito grande e poderoso, não havia
conseguido carregar a luz porque tinha uma perna só.
Os homens e as mulheres de milho ficaram pensando, mas como era muita a gritaria que vinha dos demais
homens e mulheres, eles subiram uma montanha e ficaram aí, calados, para procurar a palavra, e calados a
encontraram. E a palavra falou-lhes dizendo que era necessário fazer algo que pudesse carregar a luz para que
apesar de seu grande peso, fosse possível trazê-la para este lado do mundo e não ficasse mais do outro lado. “Aí
está, achamos!”, se disseram os homens e as mulheres verdadeiros, “só precisa construir algo para carregar a luz
e trazê-la até aqui”. “Sim, claro”, voltaram a dizer os homens e as mulheres de milho.
Então se puseram a pensar como fazer essa coisa que pudesse carregar a luz e trazê-la de muito longe até
este lado. E pensaram de que material poderiam fazer esta coisa e viram que a terra era boa. Mas a terra
desmoronava logo que se juntava um tanto dela. Então, acrescentaram a água e ela durou um pouco mais, mas,
quando esta secava, ela voltava a desmoronar. Então, pegaram um tanto de terra, lhe acrescentaram um pouco de
água e a aproximaram ao fogo; por um momento ela ficou dura e resistente, mas, logo, o mesmo fogo a rompeu
com o seu calor. Então tiveram a idéia de soprar sobre ele enquanto estivesse sendo levada ao fogo. E viram que
161
assim a terra durava bastante, ajudada pela água, o fogo e o vento. Foi assim que, desde então, o barro serve
para carregar e guardar as coisas. Os homens e as mulheres verdadeiros ficaram muito contentes porque já tinham
com que fazer a coisa que carregaria a luz que estava muito longe.
E, então, pensaram e pensaram que forma daria à coisa que iria trazer a luz para este lado. E então
perceberam que, de todas as coisas que andavam e existiam no mundo, o ser humano é que tinha a melhor forma; e
pensaram de dar a forma de um ser humano à coisa que carregaria a luz para trazê-la ao mundo de todos. E assim
fizeram uma espécie de cabeça, dois braços e duas pernas. Nesta altura, os homens e as mulheres de milho ficaram
muito contentes porque o meio que carregaria a luz de tão longe já tinha forma e substância.
Mas esta coisa estava muito escura e, com certeza, se perderia pelo caminho porque tudo era noite e água, e
os homens e as mulheres verdadeiros ficaram muito tristes. Foi então que veio Hurakán, o coração do céu, que é
como também chamam o relâmpago, o trovão e a tormenta, que caminha com um único pé, mas é forte e brilha. E o
coração do céu, também chamado de Hurakán, cortou a pele da coisa escura para colocar nela o brilho do seu único
pé, e o coração do céu cortou e raspou tanto que por fim esta coisa brilhou, mas a sua forma já não era de uma
cabeça com dois braços e duas pernas, de tanto cortar ficou fina e agora tinha 5 pontas: uma onde estava a cabeça,
duas onde estavam os braços e mais duas no lugar das pernas. Mas esta coisa de cinco pontas estava sempre
brilhando um pouco e os homens e as mulheres de milho ficaram contentes porque com este brilho era certeza que
não iria se perder pelo caminho que levava até a luz, que estava longe e que era muito pesada.
Tudo parecia estar pronto, mas a coisa não se mexia. Sim, brilhava, era forte e ficava até bonita com suas
cinco pontas, mas não andava. Por muito que os homens e as mulheres verdadeiros a empurrassem, ela não saia do
lugar. “E agora?”, se perguntaram os homens e as mulheres de milho. “Vai saber”, se responderam enquanto
coçavam suas cabeças para ver se saia alguma idéia; e é por isso, que, desde então, os homens e as mulheres,
quando não sabem de alguma coisa, coçam a cabeça para ver se a idéia não ficou aí grudada ou adormecida. Mas,
por mais que coçassem, não encontravam nenhuma idéia.
E foram perguntar aos velhos mais velhos da comunidade. E foi isso que disseram os mais velhos entre os
velhos: “Esta coisa não anda porque não tem coração, só as coisas que têm coração podem caminhar”.
Então, os homens e as mulheres verdadeiros ficaram muito contentes porque já sabiam porque o que
haviam feito não se mexia. E disseram: “Vamos dar um coração a isso que fizemos para que possa caminhar e ir
buscar a luz que está longe e pesa muito”. Mas não sabiam como ou de que tinha que ser feito o coração desta
coisa, e então arrancaram o coração que cada um e cada uma tinha no peito, juntaram todos os corações, fizeram
um coração muito grande, e foram colocá-lo no centro das cinco pontas da coisa que haviam feito. Esta coisa
começou a andar e os homens e as mulheres de milho estavam muito felizes, porque ainda que tivessem tirado o
seu próprio coração, tinham feito com que esta coisa andasse.
Mas a coisa andava de um lado pra outro, ia e vinha, dava voltas, pulava, e, por mais que a empurrassem e
lhe apontassem o lado rumo ao qual devia andar para ir buscar a luz que pesava muito e ficava muito longe, ela não
pegava o rumo certo, ou seja, não enveredava de vez pelo caminho. E depois de muito coçar a cabeça, os homens e
as mulheres verdadeiros ficaram um pouco desanimados e foram outra vez perguntar aos mais velhos entre os
velhos do povo: “Já se mexe porque lhe demos o coração, mas anda de um lado pra outro, não pega o bom
caminho que queremos, o que devemos fazer?”, perguntaram.
E os mais velhos entre os velhos responderam-lhes: “As coisas que têm coração se mexem, mas só as que
têm pensamento podem dar rumo e destino ao seu passo”.
E os homens e as mulheres de milho ficaram novamente contentes e disseram entre si: “Já sabemos o que
fazer para que tenha rumo e destino o que fizemos”. ”Sim”, disseram entre eles, “Vamos dar-lhe pensamento de
onde lhe demos sentimento”; e tiraram do seu peito a palavra boa e verdadeira e com ela beijaram esta coisa que
muito se mexia, e eis que esta coisa ficou parada por um momento e, em seguida, falou e perguntou: “Para onde
devo ir e o que devo fazer?”
Os homens e as mulheres verdadeiros aplaudiram porque já haviam criado o meio com o qual carregar a
luz, que pesava muito e ficava longe, para ir buscá-la e fazer com que iluminasse todos os homens e as mulheres de
todos os mundos. E assim essa coisa ficou pronta, era muito grande e potente, e foram sete os elementos que a
formaram: a terra, a água, o fogo, o ar, o raio, o coração e a palavra. E desde então são sete os elementos que dão
origem e constituem os mundos novos e bons. Então, os homens e as mulheres de milho aplaudiram, e disseram à
coisa pra onde devia ir e o que devia fazer, e deram a ela um mecapal 71 para que se servisse dele porque sabiam
muito bem que a luz pesava muito e que nem os maiores deuses, os que deram origem ao mundo, os primeiros,
haviam conseguido carregá-la.
E a coisa foi embora e demorou bastante. Sentados na montanha, os homens e as mulheres verdadeiros
passaram um bom bocado olhando para lá, naquela direção. A noite permanecia e nada se mexia. E os homens e as
mulheres de milho não desanimaram, ficaram tranqüilos porque sabiam muito bem que a luz iria chegar, porque era

71
Mecapal: pedaço de couro que se apoia na testa e que serve para transportar a carga nas costas.
162
para isso que haviam dado o coração e a palavra a quem devia carregar a luz, por mais longe que estivesse e
por muito que pesasse.
E assim foi que algum tempo depois, viu-se ao longe que a coisa vinha devagarzinho. Passo a passo foi
chegando pra este lado, percorrendo o céu. E logo que chegou, passou outro bocado, e então, atrás dela, chegou a
luz, houve sol e houve dia; os homens e as mulheres do mundo se alegraram e continuaram assim a ser caminho,
procurando com a luz, procurando saber o que e porque cada um procura algo, mas todos procuram.
É esta a história que queria contar a vocês, a história de como a luz chegou a este mundo. Talvez vocês
pensem que é só um conto ou uma lenda dessas que povoam as montanhas do sudeste mexicano. Talvez. Mas se
vocês velarem durante a noite que abraça nossas terras, de madrugada, poderão ver, no oriente, uma estrela. Ela
anuncia o dia. Alguns a chamam “estrela da manhã” ou “luzeiro da manhã”. Os cientistas e os poetas a têm
chamado de “Vênus”. Mas nossos mais antigos a chamaram “Icoquih”, que quer dizer “a que carrega o sol sobre
os seus ombros” ou “a que leva o sol nas costas”. Nós a chamamos “a estrela da manhã”, porque ela anuncia que a
noite está pra terminar e que chega outra manhã. Esta estrela que foi feita pelos homens e as mulheres de milho, os
verdadeiros, caminha com sentimento e pensamento, e chega como é de lei, ou seja, de madrugada.
Quando conto a vocês esta história não é para entretê-los ou para tirar-lhes e tempo que precisam para ver
todas as coisas das quais têm que dar conta nesta reunião. Não. Se a conto a vocês é porque esta história que vem
de tão longe nos lembra que é pensando e sentindo que se traz a luz que ajuda a procurar. Com o coração e o
cérebro temos que ser a ponte pela qual os homens e as mulheres de todos os mundos caminham da noite para o
dia.

Irmãos e irmãs das Coordenações da Província Mexicana:


Bem-vindos às montanhas do Sudeste Mexicano. As montanhas de nossos antepassados, as montanhas de
todos vocês, nossas montanhas. Lugar onde vive o guardião da palavra, o Votán-Zapata, que é assim que chamam
também o guardião e o coração do povo, o barro moreno que brilha muito pouco, só o suficiente para não perder o
caminho pelo qual deve trazer, carregado no mecapal da história, a luz que todas as noites é expulsa pra baixo pelos
de cima, e que sempre volta, pela raiva dos poderosos e a alegria dos pequenos, pelo oriente e de madrugada.
Bem-vindos à La Realidad.
Bem-vindos à esta reunião que procura, com sentimento e pensamento, construir pontes para os mundos
que percorrem a noite deste mundo e que, como todos nós, procuram a forma de trazer o amanhã e de fazê-lo
nascer da única maneira possível, ou seja, coletivamente.
Bem-vindos à terra zapatista, que quer dizer “terra digna e rebelde”. Bem-vindos à esta terra onde a
pobreza é dor e esperança, e é arma de luta para que todos os mexicanos e mexicanas tenham

DEMOCRACIA! LIBERDADE! JUSTIÇA!


Das montanhas do Sudeste Mexicano
Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos. La Realidad do México, 31 de outubro de 1999.
Encerramento do Encontro com as Coordenações da Província Mexicana

México, 1º de novembro de 1999.

“Canek pensou nisso, mas não o comunicou. Os indígenas que estavam perto dele o adivinharam. No
momento do ataque, os indígenas que estavam na linha de frente tinham que esperar que o inimigo atirasse. Então,
os indígenas que vinham de trás avançavam caminhando sobre seus mortos”.

Canek. História e lenda de um herói Maia. Ermilo Abreu Gómez.

Companheiros e companheiras das Coordenações da Província:


Queremos agradecer a todos por estes dias em que ficaram conosco. Ao vê-los, ao sabê-los próximos, o
nosso coração cresceu e já somos melhores e mais fortes. Olhamos vocês e vemos homens e mulheres, pessoas que
estão comprometidas com a luta, com uma causa que é nossa, mas que é também de vocês. Ao virem, vocês têm
nos dado uma força muito grande que nos ajudará a resistir mais e melhor. Por isso, queremos agradecê-los. Eu sei
que talvez vocês não me entendam, mas seu estar aqui é muito, muito bonito.
Em todos os nossos povos, nossos companheiros e companheiras tojolabales, tzotziles, tzeltales, choles,
mames, zoques, mestiços, o seu caminhar entre nós é recebido como esperança; e esperam não só que tudo tenha
saído bem, que foi o que aconteceu, como também estão esperando que nós os informemos sobre o que aqui se
falou, se discutiu e se combinou.
163
Neste dia, em todos os nossos povos, em nossas montanhas, os mortos voltam até nós e voltam a nos
falar e ouvir. Em todas as choças, em todos os acampamentos, em um pequeno lugar qualquer uma oferenda saúda
os nossos mortos e os convida a comer, a rir, a fumar, a tomar café, a dançar. Sim, a dançar, porque os nossos
mortos são exímios dançarinos. Nossos mortos dançam muito e também falam muito. Eles nos contam histórias.
Porque era contando histórias que nossos primeiros antepassados ensinavam a aprendiam a caminhar. Daí que os
nossos mortos agem da mesma maneira e assim mesmo agimos nós, os mortos que somos.
Entre as nossas montanhas, os dias de flores são os dias dos mortos. E se a história que ontem lhes contei
era de luz, estrela e madrugada, a de hoje é de luz, flor e madrugada.
Contam os mais velhos entre os velhos de nossas comunidades, que nossos primeiros ancestrais já viviam
numa luta rebelde, porque já faz muito tempo que o poderoso subjuga e mata. Ele é poderoso porque bebe o sangue
do fraco. Assim, o fraco torna-se ainda mais fraco e o poderoso mais poderoso. Mas há fracos que dizem basta!, se
rebelam contra o poderoso e dão o seu sangue não para engordar o grande e sim para alimentar o pequeno. Já faz
muito tempo que isso acontece.
E se desde então há rebeldia, desde então há também o castigo com o qual o poderoso castiga o rebelde.
Hoje temos presídios e túmulos para castigar o rebelde, antes existiam Casas de castigo.
E eram 7 as Casas de castigo que antes existiam para castigar o rebelde e hoje também são 7 só que têm
outro nome.
As 7 dos nossos primeiros ancestrais eram:
A Casa Obscura que não tinha nenhuma luz em seu interior. Era pura escuridão e na Casa Obscura havia o
vazio. Quem aí chegava perdia o rumo e se extraviava, nunca mais poderia ir e vir; perdido, acabaria morrendo.
A Casa Fria tinha em seu interior um vento muito forte e gélido que congelava todo aquele que aí entrava,
esfriava o coração e os sentimentos. Matava, pois, o lado humano dos seres humanos.
A Casa dos Tigres tinha tigres de verdade, famintos e ferozes, que estavam presos dentro dela. Estes tigres
ocupavam a alma de quem morava na Casa e enchiam sua alma de ódio para tudo e para todos. Matava, pois, com o
ódio e no ódio.
A Casa dos Morcegos tinha só morcegos que chiavam, gritavam e mordiam, e, mordendo, chupavam a fé
de quem entrava nela ao ponto que já não acreditava mais em nada e, incrédulo, morria.
A Casa das Navalhas tinha em seu interior muitas navalhas cortantes e afiadas e quem entrava nela ficava
com a cabeça cortada, ou seja, sem o seu pensamento e morria assim, já sem pensar, morto em sua capacidade de
entender.
Na Casa Dolorosa morava somente a dor; e havia tanta que quem a habitava enlouquecia de dor e entre
tanto sofrimento fazia-o esquecer que existe um outro e diferente; esquecendo e esquecido, o morto morria sem
memória.
A Casa Sem Gana tinha dentro de si um vazio que comia todas as vontades de viver, de lutar, de amar, de
sentir, de caminhar que tinha aquele que nela entrava e, então o deixava vazio, um morto vivente, porque um vivo
sem vontade é um vivo morto.
E estas eram as sete Casas de castigo para o rebelde, para aquele que não aceitava, imóvel, que seu sangue
engordasse o poderoso e que sua morte desse vida ao mundo da morte.
E já faz muito tempo que viveram dois rebeldes. Chamavam-se Hunahpú e Ixbalanqué, conhecidos também
como caçadores da madrugada. O mal vivia numa cova profunda, chamada Xibalbá, da qual tinha que subir muito
para chegar até a terra boa.
Hunahpú e Ixbalanqué haviam-se rebelado contra os maus senhores que moravam na grande Casa do mal.
E então os maus senhores usaram de subterfúgios para mandar trazer Hunahpú e Ixbalanqué para que descessem
até a sua má morada.
Enganados, os caçadores da madrugada chegaram e os maus senhores os prenderam na Casa Obscura e
deram a eles um ocote e dois cigarros. 72 Disseram a eles que deveriam passar a noite no interior da Casa Obscura e
que no dia seguinte teriam que devolver o ocote completo e os dois cigarros inteiros. Um guardião ficaria vigiando
durante toda a noite para ver se havia luz vinda do ocote e dos cigarros acesos. Se, no dia seguinte, o ocote e os
cigarros não estivessem inteiros, então Hunahpú e Ixbalanqué iriam morrer.
Os dois caçadores da madrugada não ficaram com medo. Contentes, disseram que estava bom assim como
diziam os maus senhores e entraram na Casa Obscura. Então, usaram seu pensamento e chamaram a guacamaya,
que era a ave que guardava todas as cores, pediram-lhe emprestado o vermelho e com ele pintaram o ocote; de
longe se via como se tivesse sido aceso. Hunahpú e Ixbalanqué chamaram os vaga-lumes, pediram a dois deles que
lhes fizessem companhia e com eles adornaram as pontas dos dois cigarros; de longe, parecia mesmo que os dois
cigarros estavam acesos. Amanheceu, e o guardião informou aos maus senhores que o ocote havia ficado aceso a
noite toda e que os dois caçadores da madrugada fumaram muito do seu cigarro. Os maus senhores ficaram
contentes porque assim teriam um bom pretexto para matar Hunahpú e Ixbalanqué, porque não haviam cumprido

72
Ocote: é uma das espécies de pinheiro cuja madeira muito resinosa é usada para fazer tochas.
164
com a tarefa de entregar o ocote e os cigarros inteiros. Foi então que os dois caçadores da madrugada saíram
da Casa Obscura e entregaram o ocote e os dois cigarros inteiros. Os maus senhores ficaram muito enojados porque
não tinham um bom pretexto para matar Hunahpú e Ixbalanqué e disseram entre eles: “Estes rebeldes são muito,
mas muito inteligentes; vamos procurar uma forma de matá-los com um bom pretexto”. “Sim”, disseram entre eles,
“que durmam agora na Casa das Navalhas, assim morrerão sem remédio, tendo cortada a sua capacidade de
entender”. “Não é suficiente”, disse outro senhor do mal, “porque estes dois rebeldes têm muita capacidade de
entender, então temos que lhe dar um trabalho mais pesado para que ao não ser cumprido, e se não forem mortos
pelas navalhas, nós tenhamos um bom pretexto para acabar com eles”. “Está bem”, disseram entre si os maus
senhores; foram até Hunahpú e Ixbalanqué e disseram-lhes:
“Agora vão descansar e amanhã falamos, mas, claro, estamos dizendo que amanhã, ao amanhecer,
queremos que vocês nos presenteiem com flores”. E os maus senhores riam um pouco entre si porque já haviam
avisado os guardiões das flores para que, durante a noite, não deixassem ninguém se aproximar para cortar as
flores, e que se alguém se aproximasse, o atacassem até matá-lo.
“Está bem”, disseram os caçadores da madrugada, “e de que cor vocês querem que sejam as flores com as
quais temos de presenteá-los?”
“De cor branca e amarela”, responderam os maus senhores e acrescentaram “e, óbvio, estamos dizendo que
se amanhã você não nos presentearem com estas flores coloridas, brancas e amarelas, então será uma grande ofensa
para nós e os mataremos”.
“Não se preocupem”, disseram Hunahpú e Ixbalanqué, “amanhã terão suas flores coloridas, brancas e
amarelas”.
E os dois caçadores da madrugada entraram na Casa das Navalhas. E as navalhas já estavam prontas para
cortá-los em muitos pedaços quando Hunahpú e Ixbalanqué pararam-nas e disseram a elas: “vamos conversar”. As
navalhas se detiveram e ouviram. E assim falaram os dois caçadores da madrugada: “Se vocês nos cortarem terão
conseguido pouca coisa. Se não nos fizerem nada, lhes daremos em troca as carnes de todos os animais”. As facas
concordaram e nada fizeram a Hunahpú e Ixbalanqué. É por isso que, desde então, as facas são para cortar as
carnes dos animais, e se alguma faca corta a carne de um ser humano, então os caçadores da madrugada a
perseguem até fazer-lhe pagar por seu delito.
Hunahpú e Ixbalanqué estavam tranqüilos na Casa das Navalhas, inteiros, e vivo estava o seu pensamento.
Disseram entre si: “Como faremos agora para conseguir as flores que os maus senhores querem se já sabemos que
alertaram seus guardiões e eles nos matarão se nos aproximarmos para cortar as flores de seu jardim?”. Os dois
caçadores da madrugada ficaram pensando e então perceberam que precisavam do apoio de outros pequenos;
chamaram as formigas cortadoras e assim lhes falaram: “irmãzinhas formigas cortadoras, precisamos que nos
ajudem em nossa rebeldia porque os maus senhores querem matar a nossa luta”. “Sim, pois”, responderam-lhes as
formigas cortadoras, e perguntaram: “O que devemos fazer para apoiar sua luta contra os maus senhores?”
“Pedimos que, por favor, vocês vão até os jardins, cortem as flores coloridas brancas e amarelas e as
tragam aqui, porque nós não podemos ir, pois os guardiões têm a ordem de atacar-nos; mas como vocês são
pequenas, não serão vistas e eles nem se darão conta”. “Sim, pois”, disseram as formigas, “estamos bem dispostas a
fazer isso porque o pequeno tem sua maneira de combater os maus senhores, por grandes e poderosos que sejam”.
E as formigas cortadoras foram embora; eram muitas, mas, por serem pequenas, entraram nos jardins e os
guardiões não conseguiram vê-las porque as formigas eram muito pequenas. E as formigas começaram logo a
cortar e a carregar; umas cortavam e outras carregavam; umas cortavam e carregavam flores coloridas, outras
cortavam e carregavam flores brancas, outras ainda cortavam e carregavam flores amarelas. Em pouco tempo
terminaram e levaram as flores até onde estavam os dois caçadores da madrugada. Ao verem as flores, Hunahpú e
Ixbalanqué ficaram muito contentes e disseram às formigas cortadoras: “muito obrigado irmãzinhas, grande é o seu
poder ainda que pequeno, e como nós as agradecemos muito então serão sempre muitas e nada de grande poderá
acabar com vocês”. Dizem que é por isso que as formigas estão sempre resistindo, e ainda que aqueles que as
atacam sejam muito grandes, não podem derrotá-las.
No dia seguinte, vieram os maus senhores e os dois caçadores da madrugada entregaram a eles as flores
que queriam. E os maus senhores já estavam surpresos ao ver que não haviam sido cortados pelas navalhas, mas
ficaram ainda mais surpresos quando viram as flores coloridas, brancas e amarelas que Hunahpú e Ixbalanqué lhes
entregavam. Os maus senhores ficaram muito enojados e se dedicaram a procurar mais pretextos para acabar com
os rebeldes caçadores da madrugada.

Irmãos e irmãs:
Esta é a história que nossos mortos trazem até nós e é assim que nos falam. Eles nos trazem sua palavra
para que nós caminhemos por ela. Porque é só caminhando sobre nossos mortos que nós avançamos.
E acredito que por esta história que nos foi contada pelos nossos primeiros ancestrais, e que agora eu contei
a vocês nestes dias dos mortos, pode-se caminhar de muitas formas. Todos nós que somos pequenos nos
reconhecemos nesta história. Às vezes somos os caçadores da madrugada inventando formas para resistir às
165
mentiras dos poderosos e, para isso, trazemos as luzes de outros pequenos. Às vezes somos guacamaya e
emprestamos nossas cores para pintar a resistência. Às vezes somo vaga-lumes e enfeitamos de luz a solidão dos
pequenos irmãos. Às vezes somos bons entendedores para falar e corrigir aqueles que nos consideram rivais
quando outros é que são seus inimigos. Às vezes somos formigas que sabem fazer de seu ser pequenas, uma forte
luta e um apoio para aquele que espera a morte.
E acredito que, vocês e nós, somos todos cor, luz, palavra boa que convence e corrige, força pequena que,
somando-se, torna-se grande.
Nestas reuniões temos descoberto que podemos dar e receber apoio e ajuda, que o contato não é só entre o
EZLN e a sociedade civil, e também entre o EZLN e vocês como coordenações companheiras, e é também entre
vocês como coordenações irmãs. É nesta relação que estamos aprendendo a construir, às vezes daremos cor, às
vezes luz às vezes palavra que corrige, às vezes será força multiplicada, pequena rebeldia que se une e se converte
em grande desafio para quem oprime e engana.
E agora quero pedir a vocês que sejam força multiplicada e luz companheira para duas bondades que
resistem e, resistindo, ofendem o poderoso.
Uma é feita pelos estudantes da UNAM que sustentam uma greve reivindicando educação pública e
gratuita para todos nós. Perseguidos pelos maus senhores, estes jovens universitários saberão como encontrar o
entendimento que os torna fortes e poderosos. Nós iremos às nossas terras somar saudações e apoios que, como
flores, enviaremos a eles para fazer-lhes saber que como pequenos nos ajudamos e nos apoiamos.
Por isso, peço a todos vocês que, em seus respectivos Estados, regiões e municípios, expliquem a luta dos
estudantes da UNAM e enviem a estes homens e mulheres, estudantes em greve, todas as saudações que possamos
juntar. Cada um de nós conhece a sua terra e o seu céu e sabe quanto, quando e o que pode mandar. Peço que
acompanhem nós zapatistas nesta saudação coletiva que levantaremos para estes estudantes e “estudantas” que por
nós lutam por uma educação gratuita.
Por isso, pergunto a vocês, companheiros e companheiras das Coordenações da Província se estão de
acordo.
A outra bondade que é perseguida e maltratada é a que se chama Centro de Direitos Humanos “Miguel
Agustín Pro Juárez” (PRODH). As pessoas que aí trabalham têm sido perseguidas, ameaçadas e assaltadas pelo
governo. Uma delas, a doutora Digna Ochoa y Plácido, foi seqüestrada, perseguida e ameaçada, e esteve a ponto de
ser assassinada por sujeitos que lhe perguntavam pelos rebeldes do México. O lugar onde trabalha, o “Agustín
Pro”, foi assaltado no dia seguinte e no local foram deixadas ameaças de morte.
As pessoas que trabalham no centro “Agustín Pro” defendem os direitos humanos de todas e todos aqueles
que são perseguidos, assassinados, presos e desaparecidos pelo governo. Além de defender os pequenos, os irmãos
e irmãs do “Agustín Pro” denunciam o mau governo em sua política de violação dos direitos humanos. Por isso,
querem calá-los com ameaças, com assaltos e com a morte.
É isso que acontece no México. Aqueles que assassinam e roubam são governo, estão livres e impunes.
Aqueles que defendem a vida e os direitos são perseguidos e assassinados.
Não podemos ficar calados diante desta agressão. Não só porque estão agredindo pessoas que nunca
ficaram e nem ficarão caladas se qualquer um dos mexicanos e mexicanas vier a ser atacado em seus direitos
humanos. E também porque nunca devemos ficar calados diante de qualquer agressão aos pequenos que somos
todos nós.
Por isso, peço-lhes que juntos, vocês e nós, reivindiquemos:
1. O fim imediato da agressão física e psicológica contra os integrantes do Centro de Direitos Humanos “Agustin
Pro”.
2. Que o Estado mexicano cumpra com a sua obrigação de respeitar, proteger e defender o trabalho profissional
dos advogados, advogadas e dos que defendem os direitos humanos.
3. Que as autoridades competentes tomem medidas suficientes e eficazes para garantir a segurança pessoal e o
trabalho dos integrantes do Centro de Direitos Humanos “Agustín Pro”.
4. Que se garantam a segurança das instalações, a infra-estrutura e os documentos do Centro de Direitos Humanos
“Agustín Pro”.
5. Que as investigações iniciadas após estas agressões apresentem resultados convincentes e no menor tempo
possível.
Estas cinco reivindicações estão sendo levantadas em todo o país por organizações não governamentais,
sociais, e políticas honestas e por indivíduos. Por isso, peço-lhes que nos somemos a estas reivindicações e que se
acrescentem os nomes de cada uma das coordenações presentes neste encontro, do EZLN e das coordenações que
não estão presentes, mas que estejam de acordo, àqueles que as levarão aos governos.
Por isso, companheiras e companheiros das Coordenações da Província presentes a este encontro, pergunto
se estão de acordo.
Bom, companheiros e companheiras. Pois, já terminamos esta reunião de trabalho. Achamos que saiu um
pouco bem e que devemos repeti-la. Então, lhes dizemos que estaremos convidando vocês para que venham falar
166
conosco, ora em várias coordenações, ora uma só. E também lhes dizemos que seria bom que, quando for
possível em função do tempo e da distância, que se reúnam também entre vocês e falem de seus avanços, seus
problemas e suas dúvidas.
Se alguma vez vocês esquecerem qual é o trabalho, para onde têm que caminhar ou o que devem fazer, é só
esperarem a madrugada e atenderem a chegada do “Icoquih”, ou ver uma cor, uma pequena luz, uma boa palavra
ou uma formiga. Em cada uma dessas coisas e em todas elas, encontrarão respostas, razões, rumos e metas que são
as únicas coisas das quais as pontes precisam para serem construídas.
Companheiras e companheiros:
Falta muito, mas já é menos. Todo caso, em companhia dos nossos mortos, agora lembramos que não
estamos sós. Nem vocês, nem nós e nenhum pequeno já não estará mais só. Com todos, em La Realidad mexicana
e em todos os cantos do país continua hasteada a bandeira de, para todos e todas,

DEMOCRACIA! LIBERDADE! JUSTIÇA!

Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos
La Realidad dos Pequenos, México, novembro de 1999.

Carta 5.1 . Chiapas: a guerra. Entre o satélite e o microscópio, o olhar do outro.

20 de novembro de 1999.

Estas são algumas anotações para a conversa que a nossa delegação do CCRI-CG do EZLN terá com um
grupo de observadores internacionais da CCIODH (Comissão Civil Internacional de Observação pelos Direitos
Humanos). De início, esta conversa foi concebida como uma carta, prevendo que não seria possível um encontro
pessoal. Por isso, vai ficar como uma carta lida em voz alta e diante do destinatário porque ela é dirigida à
sociedade civil nacional e internacional.
Além de ser por travessura, escolhi a data do aniversário da Revolução Mexicana pelo fato dela trazer até
aqui duas imagens deste século: uma é a do rosto de Emiliano Zapata, a outra é a cara de uma menina indígena,
com o rosto parcialmente coberto pelo paliacate vermelho. Mais adiante voltarei a falar destas duas imagens.
A questão não é a de demonstrar que existe uma guerra nas terras indígenas do sudeste mexicano (o
governo mexicano faz até o impossível para negar algo tão evidente), e sim de entender o porquê da continuação
desta guerra.

Sim, esta guerra que iniciou no dia primeiro de janeiro de 1994, devia
ter terminado já faz quase quatro anos, quando foram assinados os primeiros
acordos de San Andrés e o processo de diálogo parecia já definitivamente
encaminhado rumo à obtenção da paz. Que a guerra continue, apesar de que se
podia ter acabado com ela de uma forma digna e exemplar, tem lá suas razões.
As que seguem são algumas tentativas de reflexão para tratar de responder à
pergunta: por que há guerra em Chiapas?
Peço-lhes paciência e compreensão. Como já não tenho limites no
número de laudas e nas considerações quanto aos gastos de papel e tinta, então posso demorar-me em assunto que
costumam ser áridos de tocar entre as falas de Don Durito de La Lacandona e do Velho Antônio.
Aí estão, pois, as teses gerais desenvolvidas na exposição oral:

1. As guerras mundiais

 Constantes: conquista e reorganização dos territórios, destruição do inimigo, administração da conquista.


 Variáveis: estratégia militar, atores envolvidos, armamentos, táticas.
 A III Guerra Mundial, o período da “guerra fria”. Duas grandes superpotências, duas periferias próximas
(Europa e parte da Ásia) e o resto como espectadores e vítimas (América Latina, Oceania, África e a outra parte
da Ásia). A corrida armamentista global e as guerras locais e regionais.
 A IV Guerra Mundial, do mundo unipolar à globalização. O Neoliberalismo. O duplo par
destruição/despovoamento e reconstrução/reordenamento, as bombas financeiras. A destruição dos estados
nacionais e do que é inerente a eles (língua, cultura, política, economia, tecido social). A homogeneização e a
hegemonia começam a produzir e a incitar o crescimento de seus contrários: a fragmentação e a multiplicação
das diferenças.
167
Do vasto mundo unificado ao arquipélago interligado pela informática e pelas bombas (as financeiras e
as outras). A guerra contra a humanidade, ou seja, contra o que é essencialmente humano: a dignidade, o respeito, a
diferença.

2. A guerra militar. Transição em termos de concepções e ações. Etapas:

a) III Guerra Mundial ou Fria. Guerra convencional em terreno europeu, guerra nuclear localizada (Europa, Cuba,
Oriente), guerra nuclear total. Estratégia de postos avançados, linhas permanentes de logística, retaguarda
estável. Os grandes pactos. OTAN, Varsóvia, Seato. As guerras locais: exércitos locais e apoios das metrópoles.
As ditaduras na América Latina, as guerras na África, o conflito no Oriente Médio. Se constrói o conceito de
guerra total, incorporando nele os âmbitos econômico, ideológico, social, político e diplomático. As guerras
locais na lógica da teoria do dominó. A justificativa: a defesa da democracia, a ajuda e a prevenção das ameaças
mundiais (segundo a lógica da II Guerra Mundial).
b) IV Guerra Mundial. Desenvolvimento e consolidação do conceito de guerra total. Guerra em qualquer parte, a
qualquer momento, em qualquer circunstância. Evolução da estratégia militar. Estratégia de desdobramento
rápido (a invasão do Panamá, a guerra do Golfo Pérsico). Depois, estratégia de projeção de força (descartada
quase imediatamente prevendo protestos pelas baixas, remember Vietnã). Novo ajuste: soldados
“internacionais” e “locais” para guerras mundiais e uso de instâncias supranacionais (caso Kosovo e a OTAN-
ONU). A justificativa: a defesa dos direitos humanos (guerra humanitária), na globalização o mundo inteiro é o
átrio do poder, logo, tudo o que acontece em qualquer parte do mundo pode ser considerado uma ameaça direta
à segurança interna.

3. A guerra militar mundial. Doutrinas e departamentos.

a) Teatros de operações. Da certeza à incerteza, da resposta sistemática à versatilidade.


b) Da estratégia de contenção à de ampliação. A guerra não se limita ao aspecto militar, mas se estende às ações de
“não guerra” (atenção: meios de comunicação e direitos humanos). Portanto, o “inimigo” a vencer não é só o
exército inimigo ou a força armada opositora, mas o todo social, político, econômico e ideológico no qual o
conflito se desenvolve. Não há mais “civis” e nem “neutros”, todos são “beligerantes”.
c) O ajuste dos exércitos nacionais na nova estratégia mundial. O superpolicial e seus ajudantes locais. À moda de
Hollywood, a estrela principal e os “extras”. A destruição dos Estados nacionais obriga os exércitos nacionais a
reestruturar-se e a redefinir suas funções.
d) O orçamento. A guerra como negócio. A reestruturação militar mundial será cara. A conta orçamental que
Clinton apresenta para o ano fiscal de 2000 e até 2005 poderá chegar a cerca de 1.9 trilhões de dólares,
repartidos em várias contas. O plano de defesa do “futuro” dos Estados Unidos vem considerando como inimigo
o... gênero humano. A conta inclui 12,6 bilhões para o Pentágono, 112 bilhões para os militares, 280,8 bilhões
do orçamento militar e 274,1 bilhões para outros assuntos ligados à defesa. O orçamento inclui 555 bilhões de
gasto discricionário (281 para os militares). Para o ano de 2005, os Estados Unidos estarão gastando mais do
que a média anual da época da Guerra Fria. (Os dados constam em “The defence Monitor”, Center for Defense
Information,Washington, DC #1, 1999; www.cdi.org). Cada um dos 6.900 soldados enviados à Bósnia custa aos
Estados Unidos 261 mil dólares, 1,8 bilhões ao ano.

4. A guerra no continente americano

a) A Doutrina Cheney. Na América, o narcotráfico como inimigo. Substituição da Doutrina de Segurança Nacional
pela de Estabilidade Nacional (soberania limitada). A polícia local e internacional.
b) No papel da OTAN ... a OEA!73 O sistema de defesa do hemisfério.
c) Os ensaios da “versatilidade”. Colômbia e Chiapas. Os objetivos: redefinir o arquipélago de acordo com a
lógica do mercado. Centros comerciais no mundo todo, mas disfarçados de países velhos ou “novos”.

5. A guerra em Chiapas.

Guerra total e inimigo total. Todos são inimigos. O objetivo a ser destruído: os povos indígenas. O estorvo:
o EZLN.

6. A Guerra em Chiapas. A conquista do território e o botim de guerra.

73
OEA: Organização dos Estados Americanos.
168
a) Exército de ocupação. Comportamento: controle do poder político local (extensão da guerra), fabricação de
meios de comunicação ad hoc, desconfiança em relação aos civis, botim de guerra (crianças, narcotráfico,
tráfico de madeiras preciosas, tráfico de mulheres, álcool, promoções negócios, soldos, contribuições e
deserções). A polícia Militar (insubordinação, deserção, contra os civis).
b) O golpe cirúrgico e o golpe total. Ambiente político pouco propício. Ter todas as possibilidades para o momento
oportuno.
c) Para o golpe cirúrgico: os GAFE (Grupos Aerotransportados das Forças Especiais) de 90 a 105 soldados em
cada unidade.
d) Para o golpe total. Forças empregadas para “tamponar” a área. Calabouços subterrâneos, túneis e criptas nos
grandes quartéis (San Quintín).

7. O Exército Mexicano.

É um exército em transição para a sua reestruturação. Sua essência atual é o peão a ser sacrificado na
jogada bélica chamada “Chiapas”. Sua prova no papel da polícia local: narcotráfico, delinqüência organizada,
subversão.
a) Reestruturação para um comando geral. Atinge os interesses das zonas e regiões militares (quota de poder dos
generais).
b) Transição em quantidade: de 170 mil em 1996. O orçamento cresceu 44% de 1995 a 1996.
c) Contendas entre armas e Exército, Força Aérea e Marinha.
d) Ingerência norte-americana. A USADO (Secretaria de Alistamento da Defesa dos Estados Unidos), em 1995,
tinha duas equipes especiais em Chiapas, com o beneplácito da SEDENA. 74

8. Os direitos humanos individuais e os direitos humanos dos povos: a vida, a cultura, a diferença, o
amanhã.

9. As imagens

Emiliano Zapata, o ontem, rosto comum e posição diferente diante do Poder. A menina indígena zapatista,
o amanhã, rosto comum e posição diferente diante dos poderes. Entre um e a outra, os indígenas rebeldes do EZLN,
sem rosto e questionando tudo, inclusive seu próprio passo.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos
La Realidad em Guerra, México, novembro de 1999.

P.S. Seqüência dos Mapas. Do satélite ao microscópio. Extraídos de Barrada Marin, Andrés. Atlas geoeconómico y
geopolítico del estado de Chiapas.

a) Os dois TLC: América do Norte e a União Européia. Inclui petróleo. 75


b) Gasto militar do México, 1987-1999.
c) O Mundo Maia. Localização.
d) Indígenas no Mundo Maia.
e) Petróleo no Mundo Maia.
f) Minérios em Chiapas.
g) Chiapas. Grupos indígenas. Línguas.
h) Chiapas. Marginalização e povos indígenas.
i) Chiapas. Paramilitares em 1997.
j) Chiapas. Ofensiva em junho de 1999.

Carta 5.2. Chiapas: a guerra. A máquina do etnocídio.

Já havia anoitecido quando Ramón Balam e Domingo Canché chegaram ao povoado por um atalho.
Escapavam da matança que os brancos faziam entre os indígenas. Balam havia recebido um golpe de facão no
74
SEDENA: Secretaria de Defesa Nacional.
75
TLC: Tratado de Livre Comércio. Refere-se ao NAFTA (que inclui México, Estados Unidos e Canadá) e ao acordo comercial entra a
União Européia e o México cujas negociações conclusivas se encerraram na segunda metade de novembro deste ano.
169
ombro e sangrava. Jacinto Canek lhe disse: já estão se cumprindo as profecias de Nahua Pech, um dos cinco
profetas do velho tempo. Os brancos não se contentarão com o que têm, nem com aquilo que ganharão na guerra.
Irão querer também a miséria da nossa comida e a miséria da nossa casa. Levantarão seu ódio contra nós e nos
obrigarão a refugiarmo-nos entre as montanhas e nos lugares afastados. Então iremos atrás dos bichos do mato,
como as formigas, e comeremos coisas ruins: raízes, gralhas, corvos, ratos, gafanhotos do vento. E a podridão
desta comida encherá de rancor nossos corações e virá a guerra.
Os brancos gritarão: Os indígenas se sublevaram!”

Canek. História e lenda de um herói maia. Ermilo Abreu Gómez.

Outubro-novembro de 1999, agências internacionais de notícias. O Ministério das Relações Exteriores


colocou em andamento uma campanha de informação pela Internet, para dar a conhecer o trabalho que o governo
mexicano realiza para acabar com a pobreza em Chiapas. O texto que é divulgado, escrito em espanhol, inglês
francês, italiano e alemão, diz que, em Chiapas, as autoridades conseguiram grandes avanços na educação, saúde,
no setor agrário e de desenvolvimento agrícola. Sem dúvida, o documento não menciona a situação de conflito
armado e nem a situação dos indígenas refugiados.

À Sociedade Civil Nacional e Internacional.


De: SupMarcos.

Senhora: nestes dias estará circulando um documento elaborado pelo Ministério das Relações Exteriores,
sobre o Estado mexicano de Chiapas, no qual se detalham as ações governamentais em matéria de educação, saúde,
setor agrário e desenvolvimento agrícola. Com a finalidade de completar o que o governo mexicano “informa”, o
EZLN lança o folheto que segue com o título CHIAPAS: A GUERRA, que pode ser reproduzido total ou
parcialmente, citando ou sem citar a fonte, e do qual pode-se fazer também um aviãozinho de papel para ser jogado
na cara do embaixador ou do cônsul mexicano de sua preferência, ou pode ser classificado no verbete de “horrores”
na letra “H” de “história”. Também pode ser entregue a alguma alta representante da ONU para os Direitos
Humanos da qual queiram ver que cara faz diante de Rabasa. Aí vai:
Você tem o folheto em suas mãos. Na capa se vê a imagem de um mapa-múndi que, curiosamente, tem o
mesmo contorno geográfico do Estado de Chiapas no sudeste mexicano. Acima, com letras “bold” ou “black” (ou
seja como for que se chame o “negrito”) e em maiúsculas, lê-se CHIAPAS: A GUERRA.
Embaixo do mapa-múndi “chiapanizado” em letras menores, diz-se: “As últimas guerras do século XX, são
assim? Ou serão assim as guerras do século XXI?
Na parte de trás, ou seja, na contracapa, tem a imagem de uma passamontanhas; no buraco onde deveriam
estar os olhos tem um espelho. Embaixo se lê: “Permite-se, mais do que isso, exige-se a reprodução total ou
parcial deste folheto e, sobretudo, do que ele cala”.

Nas páginas iniciais estão alguns dados:

País: México.
Superfície: 1.967.183 quilômetros quadrados.
População: 91.800.000 (1994).
População indígena: 10 milhões (os números oficiais falam de pouco mais de 5 milhões).
Estado: Chiapas.
Superfície: 74.211 quilômetros quadrados.
População: 3.607.128.
População indígena: mais de um milhão de pessoas (o governo fala em somente 706 mil).

A primeira página começa declarando, sem anestesia, que: Para encontrar o “México” num mapa
moderno você deve apressar-se porque os governantes atuais têm se empenhado em destruí-lo e, se conseguirem,
logo, logo, ele não aparecerá mais nos mapas. Localize primeiro o continente americano. Bom, identifique agora o
que se chama de “América do Norte”. Agora, isso que aparece ao sul dos Estados norte-americanos do Texas,
Arizona, Colorado e Califórnia, não é (ainda) mais uma das estrelas da bandeira dos Estados Unidos. Observe
com atenção este pedaço do continente cujo flanco ocidental é acariciado pelo Oceano Pacífico e cujo ventre
emagrece para dar um lugar privilegiado ao Oceano Atlântico (protegido pelo polegar da península do Yucatán).
O que lhe parece? Sim, você tem razão, a sua figura é a de uma mão que espera. Bem, este é o México. Uff!, é bom
saber que ainda está aí.
170
Agora, anote os dados que aparecem na capa. Conforme avança na leitura deste folheto, o número da
população indígena de Chiapas irá diminuindo. O governo mexicano leva adiante uma guerra cujo primeiro passo
inclui a eliminação de quase meio milhão de indígenas (exatamente “os que faltam” no seu censo, que são os
indígenas que moram na chamada “zona de conflito”).
Fontes governamentais estimam em, pelo menos, 450 mil o número de indígenas que são zapatistas ou
simpatizam com a causa do EZLN, logo, são “zapatistas em potência”, ou seja, “elimináveis”.
Com balas, bombas, granadas, paramilitares, esterilização forçada, seqüestro e tráfico de crianças,
deterioração do meio ambiente, asfixia cultural e, sobretudo, pelo esquecimento, os indígenas mexicanos são
aniquilados numa guerra cuja intensidade sobe ou desce nos meios de comunicação, mas é constante e inexorável
na quota de morte e destruição que cobra da realidade chiapaneca.
Bom, concentre-se agora na esquina que está a sudeste do mapa do México. Esta área morena e cheia de
montanhas é Chiapas. Sim “Chiapas” e não “Chapas”, como pronuncia Zedillo. Quem? Zedillo? Ah! É ele que está
à frente do grupo que governa o México. Bom, não à frente, mas bem atrás. Não, quero dizer, de um lado. Não, é
melhor dizer que está debaixo. Enfim, alguns o chamam de “o presidente do México”, mas neste país ninguém leva
a sério esta afirmação. Bom, não vamos nos distrair. Pegue um lápis de cor vermelha e pinte este cano, o último, do
México. Por que de vermelho? Bom, simboliza várias coisas: “luta”, “conflito”, “alerta”, “perigo”, “emergência”,
“sangue”, “luta”, “resistência”, “pare”, “guerra”. Chiapas quer dizer isso tudo, mas agora só levaremos em
consideração o vermelho como “guerra”.
Sim, aqui tem uma guerra. Sim, soldados, aviões, helicópteros, tanques, metralhadoras, bombas, feridos,
mortos, destruição. As partes em conflito? Bom, de um lado está o governo mexicano; de outro estão os indígenas.
Sim, o governo contra os povos indígenas. Como? Não, não estou lhe falando de algo que já passou, e sim do que
acontece atualmente. Sim, neste final do século XX e na hora em que o século XXI já desembrulha a sua bagagem
de incertezas, o governo mexicano trava uma guerra contra os primeiros habitantes deste país, os indígenas.
O que disse? Que o governo mexicano diz que não é uma guerra e sim um “conflito”? Bom, vejamos
alguns dados que podem ser comprovados “in loco”, pelo simples método da observação, vendo e ouvindo. O
problema é que, para o governo mexicano, as ações descritas pelos verbos “ver” e “ouvir” são caracterizadas como
delitos. Sob pena de prisão, expulsão, ameaça, desaparecimento ou morte, todo cidadão mexicano, ou de qualquer
um dos países dos 5 continente, deve ser mudo e cego.
Mas, suponhamos que você não quer correr o risco de ser preso, perseguido, ameaçado ou feito
desaparecer, se for mexicano, ou, se você for de outra nacionalidade, ameaçado, hostilizado e expulso do nosso país
por autoridades governamentais que odeiam os que vêm comprovar “in loco” as informações jornalísticas. O que
fazer? Bom, é para isso que foi feito este folheto; nele diremos só o que pode ser comprovado por um simples olhar
e não aquilo que requer uma investigação profunda e “contatos” nas altas esferas do governo... norte-americano.
Como aval moral desta informação, diremos que nós nunca mentimos pra você e não temos porque fazê-lo agora.
Mas, mesmo assim, você tem o pleno direito de duvidar, assim você pode recorrer à imprensa nacional e
internacional, ou arriscar-se a visitar as terras indígenas do sudeste mexicano. Você vai ver que não resta dúvida de
que, sob estes céus, trava-se uma guerra, e que esta guerra é contra os povos indígenas.

Bom. Primeiro dado da guerra: a presença de um número extraordinariamente elevado de forças armadas
governamentais.
De acordo com os números oficiais, são 30 mil os elementos do Exército Mexicano que se encontram
destacados para Chiapas. Cálculos não oficiais garantem que são cerca de 70 mil. Devido à irrupção do Exército
Zapatista de Libertação Nacional do dia 1º de janeiro de 1994, o governo federal, na primeira semana de janeiro,
enviou à região do conflito cerca de 10 mil soldados do Exército Mexicano, 200 veículos (jipes equipados com
artilharia e blindados, entre outros) e 40 helicópteros. Mas em dez dias de conflitos o número de efetivos se elevou
a 17 mil. Nesse mesmo ano, o governo federal restringiu o conflito armado a quatro municípios: San Cristóbal de
Las Casas. Las Margaritas, Ocosingo e Altamirano e logo se ampliou. Em 1999, o Exército Mexicano estendeu seu
raio de ação a 66 dos 111 municípios de Chiapas. Sim, mais da metade dos municípios chiapanecos vivem em
situação de guerra. Neles a autoridade máxima é castrense.

Para a guerra no sudeste mexicano, o Exército federal está organizado na Sétima Região Militar que conta
com 5 zonas militares: a 30ª com sede em Villahermosa, a 31ª em Rancho Nuevo, a 36ªem Tapachula, a 38ª em
Tenosique e a 39ª em Ocosingo. Além disso, conta com as seguintes bases aéreas militares: Tuxtla Gutierrez,
Ciudad Pemex, Copalar.
Oficialmente, a força principal do Exército federal, a chamada Força Tarefa Arco-íris, conta com 11
agrupamentos: San Quintín, Nuevo Momón, Altamirano, Las Tacitas, El Limar, Guadalupe Tepeyac, Monte
Libano, Ocosingo. Chanal. Bochil e Amatitlán.
Mas basta dar uma olhada superficial para perceber que isso é falso. Existem grandes guarnições militares
pelo menos nos seguintes lugares:
171

Zona Selva: San Caralampio, Calvario, Laguna Suspiro, Taniperla, Cintalapa, Monte Líbano, Laguna Ocotalito,
Santo Tomás, La Trinidad, Jordán, Península, Ibarra, Sultana, Patiwitz, Garrucha, Zaquilá, San Pedro Betania,
Yulomax, Florida, Ucuxil, Temó, Toniná, Chilón, Cuxuljá, Altamirano, Rancho Mosil, Rancho Nuevo, Chanal,
Oxchuc, Rancho el Banco, Teopisca, Comitán, Las Margaritas, Río Corozal, Santo Tomás, Guadalupe Tepeyac,
Vicente Guerrero, Francisco Villa, El Edén, Nuevo Momón, Maravilla Tenejapa, San Vicente, Rizo de Oro, La
Sanbra, Flor de Café, Amador Hernández, Soledad, San Quintín, Amatitlán, Río Euseba.

Zona Altos: Chenalhó, Las Limas, Yacteclum, La Libertad, Yaxmel, Puebla, Tanquinucum, Xoyeb, Majomut,
Majum, Pepentik, Los Chorros, Acteal, Pextil, Zacalucum, Xumich, Canonal, Tzanen Bolom, Chimix, Quextik,
Bajoventik, Pantelhó, Zitalá, Tenejapa, San Andrés, Santiago El Pinar, Jolnachoj, El Bosque, Bochil, San
Cayetano, Los Plátanos, Caté, Simojovel, Nicolás Ruiz, Amatengango del Valle, Venustiano Carranza.

Zona Norte: Huitiupán, Sabanilla, Paraíso, Los Moyos, Quintana Roo, Los Naranjos, Jesús Carranza, Tila, E.
Zapata, Limar, Tumbalá, Hidalgo Joexil, Yajalón, Salto de Agua, Palenque, Chancalá, Roberto Barrios, Playas de
Catazajá, Boca Lacantún.

Isso só na chamada “zona de conflito”. Para cumprir com o número oficial de 30 mil soldados em Chiapas,
estas guarnições deveriam ter uma média de 300 soldados, o que é, evidentemente, falso. As pequenas guarnições
têm, em média, este número. Mas os grandes quartéis superam em mais de 10 vezes esta quantidade. Os grandes
quartéis de Rancho Nuevo, Ocosingo, Guadalupe Tepeyac e San Quintín contam entre 3 mil e 5 mil efetivos cada
um.
De acordo com algumas organizações indígenas e sociais de Chiapas (diferentes e distantes do EZLN), o
Exército Mexicano, atualmente, mantém 266 posições militares em Chiapas, o que representa um aumento
considerável em relação aos 76 postos que tinha em 1995. Numa carta dirigida a Ernesto Zedillo e ao Ministro da
Defesa Nacional, Enrique Cervantes Aguirre, os agrupamentos com presença nos vales da selva de Chiapas,
revelaram que só nos municípios de Ocosingo, Altamirano, Las Margaritas, La Independencia e La Trinitaria
encontram-se destacamentos com um total de 37 mil soldados.
Nestes cinco municípios, acrescentam, a população não chega aos 300 mil, o que significa que tem um
soldado para cada 9 habitantes. Por isso, assinalam no documento, “a retirada do Exército Mexicano de nossas
comunidades constitui a principal reivindicação dos povos indígenas de Chiapas e não responde aos interesses de
alguns”.
Em Chiapas, além das forças “regulares” que pertencem às zonas militares do Exército e à força aérea, o
governo conta com 51 Grupos Aerotransportados de Forças Especiais (GAFE), dos quais pelo menos cinco estão
em Chiapas: um em El Sabino, outro em Copalar, os demais em Terán, Tapachula e Toniná. Para o treinamento
destes GAFE, os Estados Unidos destinaram 28 milhões de dólares em 1997 e 20 milhões em 1998. Em 97-98
foram treinados cerca de 2500 militares em Fort Bragg, Carolina do Norte, e Fort Benning, Geórgia, Estados
Unidos.
Em Chiapas, está presente também um corpo de Infantaria de Defesas Rurais, 6 batalhões de infantaria, 2
regimentos de cavalaria motorizada, 3 grupos de morteiros e 3 companhias ainda não destinadas. Além de 12
companhias de Infantaria sem destinação fixa em Salto de Agua, Altamirano, Tenejapa e Boca Lacantún.
A média de tropas por companhias é de 145 a 160 soldados, e a de um batalhão é de, aproximadamente,
500 a 600.

Paramilitares. Existem, pelo menos, 7 grupos paramilitares: Máscara Roja, Paz Y Justicia, MIRA,
Chinchulines, Degolladores, Puñales, Albores de Chiapas. Em 1995, o responsável por sua ativação foi o general
Mario Renán Castillo, Treinado em Fort Bragg, Carolina do Norte, EUA, e, nesta época, chefe da Sétima Região
Militar. O equipamento para esta guerra é surpreendente (usamos somente os números que são públicos).
Compras em 1994. Quatro helicópteros S70A Black Hawh da empresa Sikorsky. Outras empresas Bell,
MacDonell-Douglas; 7.573 rifles lança-granadas, 18 lança-granadas M203P1 de 40 milímetros, 500 rifles para
franco-atirador, 473 mil itens de campanha, 14 mil sacos de dormir, 660 mil rações, 120 mil cinturões com bolsa
para o revólver, 608 sistemas de pontaria a laser, 208 equipamentos de visão noturna, 500 armas antitanque belgas,
856 lança-granadas automáticos HK19, 192 metralhadoras M2HB. Usam também RPG-7 e armas similares ao B-
300.
Em 1996, o Congresso norte-americano autorizou que se vendesse para o México um total de 146.617.738
dólares. Dez milhões em peças de reposição para aeronaves, seis milhões de cartuchos, um milhão e meio de
dólares em herbicidas, 378 lança-granadas, 3 helicópteros MD-500, máscaras antigas, mas de 61 mil dólares em
produtos químicos antipessoa.
172
Em 1997, 10 mil revólveres, 1 mil e 80 fuzis AR-15, 3 mil 193 M-16, peças de reposição para tanques
e veículos de combate. Em 1999, estão previstas compras de, pelo menos, 62 milhões de dólares. (Os dados foram
extraídos de As forças armadas mexicanas no fim do milênio. Os militares na conjuntura atual. Lopez e Rivas,
Gilberto; Sierra Guzmán, Jorge Luis; Enrique del Valle, Alberto; Grupo Parlamentar do PRD, Câmara dos
Deputados 57ª Legislatura).
De acordo com um informe da Secretaria de Defesa Nacional, a Força Aérea Mexicana, durante 5 anos do mandato
de seis anos de Ernesto Zedillo, aumentou suas operações em 37% em comparação com o período do mandato
anterior. Agora se realizam até 110 operações diárias (contra 87 do período anterior). Desde 1995, a dotação de
aviões e helicópteros cresceu 62%. No início da administração de Zedillo, contava com 246 aeronaves, agora tem
398 (sem contar os 74 helicópteros Huey que voltaram para os Estados Unidos - dados do Boletim da Força Aérea
Mexicana e de El Universal).

Acontece um acidente a cada 29 dias, um acidente fatal a cada 105 dias e se perde uma aeronave militar a
cada 86 dias. A cada 26 dias ocorrem “incidentes” que podem ser caracterizados no que se chama de “pressão de
guerra” (war stress). Os “incidentes” terão um aumento superior a 43% frente aos que ocorreram no mandato
presidencial anterior.
Os que fornecem as máquinas aéreas da morte para o México são os Estados Unidos, Suíça e Rússia,(de
acordo com os dados da publicação Airpower Journal Internacional e do tenente-coronel Luis F. Fuentes, da
Força Aérea dos Estados Unidos). Com o seu apoio têm sido armados cinco esquadrões de contra-insurgência.
Um dos esquadrões de contra-insurgência (que conta com 5 helicópteros Belll 205A-1, cinco Bell 206 Jet Ranger e
15 Bell 212) está destinado a Chiapas e seus 25 helicópteros são de combate. No verbete de aviões de
reconhecimento, dos dois esquadrões de aerofotogrametria (para o levantamento de terrenos) com 10 Rockwell
500S Commander que existem, pelo menos quatro aviões operam sobre a “zona do conflito”; e da unidade de
busca e resgate, que conta com nove aeronaves IAI-201 Arava, pelo menos duas são destinadas à vigilância aérea
do território rebelde.

No que diz respeito aos helicópteros, são dignas de nota as novas aquisições de unidades de fabricação
russa, e o total de aparatos: 12 Mi-8, 4 Mi-17, quatro Bell 206, 15 Bell 212. Três Aerospatiale Sa-330 Puma e dois
Bell UH-60 Black Hawk.
A FAM (Força Aérea Mexicana) utiliza o Lockheed AT-33 como avião de combate, porque é equipado
com uma variedade de armamentos, como as metralhadoras Browning M-3 calibre 50 na parte dianteira e dois
pontos debaixo das asas que suportam cargas de bombas de 500 libras e lança-foguetes. De acordo com a versão
oficial, a FAM não se utilizou deles no conflito em Chiapas (La Jornada).

A realidade é outra. Existem vídeos filmados nos dias 5 e 6 de janeiro de 1994, nos quais aviões Lockheed
AT-33 bombardeavam os arredores de San Cristóbal de Las Casas, Chiapas. Estes vídeos foram filmados por
Anistia Internacional e incluem fotos de fragmentos e pedaços das bombas ou “rockets” (“Chiapas: 1994”, doutor
Steven Czitrom, México, 1999).

Se isso já não bastasse, um grupo de 17 observadores estrangeiros liderados pela organização norte-
americana Global Exchange, denunciam a existência de arapucas caça-bobos construídas pelos militares como
parte de uma guerra de baixa intensidade contra o EZLN. Explicou-se que estas arapucas são feitas de buracos
cavados no chão e tampados com folhas, tendo no fundo estacas de uns 40 centímetros de cumprimento.
Acrescentou-se que as arapucas foram descobertas nas proximidades da comunidade de Amador Hernández. Por
outro lado, os observadores disseram que o armamento que os Estados Unidos fornecem ao México, não é utilizado
para o combate ao narcotráfico e sim para a guerra contra os povos indígenas.
Depois de ler numa pequena moldura: Entre 1993 e 1995, o México recusou a ajuda dos EUA, mas em 96-
97 aceitou 7 milhões de dólares por parte do Pentágono para treinamento e equipamento (Nacla, Vol 32 #3, nov.-
dez. de 98), você vira a página e se encontra com o subtítulo que segue: O OUTRO NEGÓCIO DA GUERRA.

Todo este gigantesco aparato militar tem sua razão de ser. Ainda que o governo insista inutilmente de que
se trata de uma força de “contenção” diante dos rebeldes zapatistas, a verdade é que é um contingente de guerra.
Uma guerra que, em primeiro lugar, tem como objetivo a destruição dos povos indígenas rebeldes, e, depois, de
todos os demais indígenas. Não se trata só de uma eliminação física, e sim, mais propriamente, da eliminação de
uma cultura diferente. Procura-se destruir e aniquilar todo referencial indígena destes povos. Eles cometeram um
quádruplo delito: existem (e no neoliberalismo o simples existir da diferença já é um delito), não obedecem às leis
de mercado (não têm cartão de crédito e nem concebem a terra como mercadoria), moram sobre um território cheio
de riquezas naturais (leia-se a carta 5.1. Chiapas: a guerra. Entre o satélite e o microscópio o olhar do outro,
173
exposição do CCRI-CG do EZLN diante da CCIODH (Comissão Civil Internacional de Observação pelos
Direitos Humanos) no dia 22 de novembro de 1999. De próxima publicação internacional), e são rebeldes.
Não nos demoraremos mais sobre este aspecto, já que este folheto pretende mostrar apenas a evidência de
um aparato militar bélico e uma guerra em ato entre as montanhas indígenas do sudeste mexicano. Antes, temos
mencionado que em Chiapas existem, pelo menos, 266 posições militares. Agora faça as contas você mesmo,
sabendo que para cada quartel ou guarnição há um bordel ou, pelo menos, três pontos de venda de bebidas
alcoólicas: são 266 novos prostíbulos e, pelo menos, 798 botecos. Os administradores destes prostíbulos e botecos
são os generais. Estão em conluio com os polleros que garantem o tráfico das mulheres procedentes da América
Central, cuja ilegalidade impede que tenham a menor defesa perante seus patrões castrenses.
Além da proliferação das doenças venéreas, a chegada da prostituição importada faz florescer a local. É
comum que nas comunidades indígenas próximas ao PRI, as mulheres se tornem prostitutas que trabalham nos
quartéis que ocupam suas terras. A entrada do álcool aumentou a violência no interior da família, e aumenta o
número de mulheres e crianças que apanham de homens bêbados. Além disso, ao posicionar suas unidades, o
Exército invade as terras dos ejidos (e desrespeita a lei que diz defender), e o poder dos soldados pelas vias de fato
encontra cúmplices dóceis entre os prefeitos, no governo do Estado e na imprensa local; o tráfico de seres humanos
chega ao máximo de seus horrores: o tráfico de crianças.
No hospital do velho Guadalupe Tepeyac, a doutora Maria da Luz Cisneros, dedica-se a entregar os recém-
nascidos que rouba ao general que comanda a guarnição local. Juntos, colaboram com uma rede de traficantes de
crianças. O procedimento é muito simples: uma mulher indígena chega para parir neste hospital. Dá a luz, e a
referida doutora exige dela que apresente sua identidade porque sem ela não pode entregar-lhe a criança, amedronta
a mulher e consegue que ela vá embora sem a criança. Em outras ocasiões a doutora comunica à mulher que a
criança nasceu morta e que não lhe entregará o cadáver porque “não tem os papéis”. Com a colaboração do general
que está no comando do quartel do velho Guadalupe Tepeyac, as crianças roubadas são enviadas para um lugar
desconhecido. Quanto valem um menino ou uma menina indígena, provavelmente zapatista? Quanto valem seus
órgãos se eles forem vendidos “por pedaços”? Estas perguntas só podem ser respondidas pela doutora Cisneiros e
pelo cúmplice com o grau de general.
Ao tráfico de mulheres e de crianças (ou de órgãos de crianças), os altos comandos militares destacados
para conter os zapatistas, acrescentam o grande negócio do narcotráfico. Até fevereiro de 1995, quando os
zapatistas mantinham o controle total do território da “zona de conflito”, os narcotraficantes viam-se impedidos de
usar a Selva Lacandona como “trampolim” para os Estados Unidos e a semeadura, o tráfico e o consumo de
entorpecentes neste território se reduziu a zero. Mas, quando o Exército “recuperou a soberania nacional”, os
grandes chefes do México e da América do Sul encontraram a compreensão dos generais e, além do fato de que,
desde então, proliferam as plantações de maconha e papoula, sob controle militar, as pistas dos aviões operam com
sua capacidade máxima. O narcotráfico internacional conta assim com um território no qual só os seus sócios, os
militares, podem entrar. A porcentagem que os generais levam nesta operação não é pequena.
Mas não são só os militares a fazerem negócios graças a esta guerra vergonhosa. Os governos federal e
estadual também se enriquecem com a militarização. O grande investimento em quartéis e em casas para os
soldados tem como beneficiário oculto o irmão do senhor Ernesto Zedillo Ponce de León. Seu nome: Rodolfo
Zedillo Ponce de León (dados de Debate Sur-Sudeste número 2, março de 1999) que é o dono da construtora
que levanta conjuntos habitacionais, centros de tortura, depósitos e postos de comando do Exército Federal em
Chiapas. O pai do senhor Ernesto Zedillo se encarrega das instalações elétricas destes quartéis através de sua
empresa Sistemas Elétricos AS de CV.
Como deter a militarização se isso significaria que a família de Zedillo iria perder uma importante fonte de
renda? O “bem-estar da família” de Ernesto Zedillo Ponce de León se nutre de sangue indígena.
O bolachas pra cachorro Albores não fica para trás. De acordo com a denúncia do deputado local do PAN,
Cal y Mayor, o produto (chamado de “merendas escolares”) que o DIF-Chiapas reparte entre 675 mil crianças foi
preparado com “pasta de soja forrageira” e precisa de aditivos como o “metabisulfito de sódio e enxofre para poder
ganhar textura”. A empresa Abasto Global AS de CV que o distribui é de propriedade de Albores Guillén, por
intermédio de laranjas. Para cada merenda, o governo do Estado para 1,56 Pesos a esta empresa que foi criada no
dia 17 de fevereiro de 1998 para “a compra-venda e a representação comercial de produtos agrícolas, agropecuários
e industriais”.
Se você não ficou com nojo ao chegar a este ponto, então vire a página e fique sabendo do que segue.

OS PARAMILITARES

Na Câmara dos Deputados, o procurador Jorge Madrazo Cuéllar reconheceu que em Chiapas atuam 15
organizações civis “provavelmente armadas”: os Chinchulines, Paz y Justicia, Abu-Xú, Guardián de mi Hermano,
Tomás Múnzer, MIRA, TzaesGuaches, Pates, Botex, Xoxepes, Xiles e Los Mecos, todos elas do município de
Pantelhó, além das organizações Bartolomé de los Llanos, Furzas Armadas del Pueblo, Casa del Pueblo, OCEZ-
174
CNPA, Primera Fuerza e Máscara Roja. A não ser pelas citações da imprensa, não existe nenhum outro tipo
de provas ou evidências no que diz respeito aos grupos denominados MIRA, Tomás Múnzer, Primera Fuerza e
Máscara Roja.
A história dos paramilitares em Chiapas remonta a 1995. Quando fracassou a ofensiva do Exército federal
em fevereiro daquele ano, e diante da perda de prestígio que isso trouxe às forças governamentais, Zedillo optou
por ativar diversos grupos paramilitares. O encarregado foi o general Mario Remán Castillo, que já havia traduzido
do inglês o manual norte-americano que recomenda o uso de civis para combater as forças insurgentes. Aluno que
se sobressaiu na escola de contra-insurgência dos Estados Unidos, Renán Castillo dedicou-se a selecionar um grupo
de militares para o treinamento, o comando e o uso dos equipamentos. A Secretaria de Desenvolvimento Social
(SEDESO) entrou com o dinheiro, e o PRI chiapaneco com os “soldados”.
Paz y Justicia foi o nome idealizado por estes militares para o primeiro destes grupos. Sua área de atuação é
o norte do Estado de Chiapas e sua impunidade chega a tal ponto que controla o trânsito nesse território. Nada e
ninguém entra e sai dessa região sem a “autorização” de Paz y Justicia. Os “méritos obtidos em combate” por estes
paramilitares não são poucos. Pelo menos uma tentativa de assassinato contra os bispos Samuel Ruiz Garcia e Raúl
Vera López, dezenas de indígenas assassinados, dezenas de mulheres violentadas e milhares de refugiados. Mas os
“sucessos” de Paz y Justicia empalidecem diante de seu irmão menor: Máscara Roja. Preparado e treinado para
atuar em Los Altos de Chiapas, Máscara Roja tem a medalha da matança de Acteal, ocorrida no dia 22 de
dezembro de 1997. Nessa “ação” os paramilitares fizeram empalidecer os Kaibiles guatemaltecos. A atuação de
Máscara Roja provocou a existência de quase 8 mil refugiados de guerra somente em Chenalhó.
O êxito de Paz y Justicia e de Máscara Roja, animou o Exército a armar outro grupo, destinado agora à
Selva Lacandona: o Movimento Indígena Revolucionário Antizapatista (MIRA). O MIRA não teve maiores êxitos
militares a não ser o assassinato de alguns indígenas, e sua função principal é a de prestar-se ao teatro dos
“desertores zapatistas” que, volta e meia, o bolacha pra cachorro Albores resolve montar. O bolachas pra
cachorro não quis ficar para trás e fundou o grupo paramilitar Albores de Chiapas, que tem características muito
versáteis: os que carregam os indígenas para as mobilizações de “apoio ao governador Albores”, são os mesmos
que desalojam os camponeses ou executam sumariamente os que para isso são apontados pela unha que mora no
palácio do governo em Tuxtla Gutiérrez.
A ação dos militares e dos paramilitares precisa do “acompanhamento” de outras forças. Por isso, passe à
próxima seção e leia...

OS OUTROS PERSEGUIDOS

A ação dos militares e dos paramilitares é completada pelos caciques locais. Em Tuxtla Gutiérrez,
empresários priistas Chiapanecos, apresentaram perante o substituto Albores a chamada Fundação Social para
Chiapas, AC. O empresário do setor de combustíveis, Constantino Narváez Rincón, é o presidente da Fundação, e a
coordenadora da campanha de arrecadação é Maria Elena Noriega Malo. Esta fundação pretende arrecadar um
fundo de 200 milhões de Pesos junto ao governo do Estado de Chiapas, aos empresários do Estado e do país, para
dar um acompanhamento integral na área da nutrição, educação e saúde aos moradores de 134 comunidades de
elevada marginalização que pertencem aos sete municípios criados recentemente. Os empresários acrescentaram
que contam com experiências em campanhas parecidas de outros países. O projeto da suposta organização
independente dá o seu aval ao programa oficial de Remunicipalização e à Lei sobre Direitos e Cultura Indígena
proposta pelo substituto, o bolachas pra cachorro Albores Guillén.
Sem dúvida, no artigo de Lourdes Galaz, cuja manchete é Netwar contra o EZLN, Publicado no jornal La
Jornada do dia 29 de agosto, aponta-se que os objetivos da fundação não têm relação com o projeto The Advent of
Netwar (1996), criado por John Arquila e David Rondfeldt, especialistas do Instituto de Pesquisa para a Defesa
Nacional, de Santa Monica, Califórnia, nos Estados Unidos.
A matéria assinala que em alguns círculos políticos e acadêmicos, advertem que já teria uma definição do
governo Zedillo para enfrentar o problema da guerrilha zapatista em Chiapas. A estratégia da guerra de redes está
centrada em analisar e conter, isolar, desestruturar e imobilizar as redes sociais, tais como as do narcotráfico, dos
terroristas e dos grupos delinqüentes. Segundo ela, a estratégia deve centrar-se não só no EZLN, e sim agir sobre
todas as organizações, frentes e indivíduos que integram a ampla rede de apoio ao zapatismo.
Os especialistas recomendam que deve ser viabilizado todo tipo de ações e táticas que vão das clássicas de
corte contra-insurgente (hostilidades, ameaças, ações psicológicas, seqüestros, ataques e grupos paramilitares,
execuções individuais, etc.) até campanhas de desinformação, espionagem, criação de ONGs financiadas pelo
governo para contrapô-las às independentes (vinculadas com a rede), entre outras.
Como resultado, os que são mais vigiados nesta guerra que se nega a dizer o seu nome, não são os
delinqüentes que abundam, sobretudo, no palácio do governo. Os mais vigiados e observados são os defensores dos
direitos humanos. Pessoas que trabalham em ONGs chiapanecas, na Academia Mexicana de Direitos Humanos
175
Miguel Agustin Pro Juárez, e, em geral, aqueles que integram a rede Todos os Direitos para Todos, são alvo de
vigilância, hostilidade e ameaças de morte.
Não é por acaso que nesta guerra os defensores dos direitos humanos são considerados objetivo militar.
Para o governo mexicano, o risco desta guerra não é a morte e a destruição que provoca e sim que ela seja
conhecida. O problema em relação aos que defendem os direitos humanos é este: não ficam calados diante das
injustiças e das arbitrariedades. Mas se para os mexicanos que defendem os direitos humanos têm as ameaças, a
perseguição e a hostilidade, para os observadores internacionais têm as mentiras. O Exército Mexicano, cuja
maquinaria de guerra em Chiapas é evidente, se esforça, inutilmente, de mostrar-se perante a opinião pública como
um “trabalhador social”. As que seguem são “pérolas” capturadas pelo excelente serviço alternativo de notícias:
Nuevo Amanecer Press Europa, Darrin Wood, director.dwood@encomix.es.

Sétima região militar Tuxtla Gutiérrez, Chiapas, 11 de setembro de 1999.


“No âmbito da cooperação com o governo do Estado de Chiapas, as tropas que integram a sétima região
militar concluíram no dia de ontem as seguintes atividades: oito cortes de cabelo...” (Comunicado da SEDENA)

Sétima região militar Tuxtla Gutiérrez, Chiapas, 12 de setembro de 1999.


“Como parte das atividades desenvolvidas pelas tropas da sétima região militar para garantir o bem-estar e
a segurança nas diversas comunidades do Estado de Chiapas, no dia de ontem concluíram-se as seguintes
atividades: seis cortes de cabelo...” (Comunicado da SEDENA).

Sétima região militar Tuxtla Gutiérrez, Chiapas, 22 de setembro de 1999.


“Ao levar adiante o desenvolvimento das atividades para garantir a segurança e proporcionar o bem-estar
às comunidades do Estado de Chiapas, no dia de ontem foram realizadas as seguintes ações: seis cortes de
cabelo...” (Comunicado da SEDENA).

Sétima região militar Tuxtla Gutiérrez, Chiapas, 23 de setembro de 1999.


“As tropas que se encontram na sétima região militar continuam apoiando o governo do Estado de Chiapas
ao realizar atividades de trabalho social em auxílio à população civil em diversas regiões do Estado realizando as
seguintes atividades: cinco cortes de cabelo...” (Comunicado da SEDENA).

Sétima região militar Tuxtla Gutiérrez, Chiapas, 24 de setembro de 1999.


“No âmbito do auxílio à população civil e do apoio que se oferece ao Estado de Chiapas, as tropas da
sétima região militar realizaram, em diversas regiões do Estado, no dia de ontem, as seguintes atividades: sete
cortes de cabelo...” (Comunicado da SEDENA).

Sim, você leu direito!, em cinco dias, os mais de 60 mil soldados aquartelados em Chiapas fizeram o
trabalho social de 32 cortes de cabelo! Sim, você tem razão, são os cortes de cabelo mais caros e mais sangrentos
da história da humanidade.
Este folheto termina com esta imagem “humanitária” do Exército em Chiapas. Se você é um alto
representante da ONU e está em visita ao nosso país, não se surpreenda; nada disso coincide com os lamentáveis
artifícios montados pelo governo mexicano. Acontece que também a mentira é uma arma. Já, já, vamos ver se você
se rende ou, como ensinam os indígenas por aqui, se resiste à mentira.

Tudo aquilo que eu lhe referi está correto. Pode ser comprovado diretamente ou consultado em reportagens
jornalísticas. Ainda que não chegue a refletir a totalidade do horror que esta guerra significa. Mas o que surpreende
não é esta gigantesca máquina de guerra que está destruindo, assassinando e perseguindo mais de um milhão de
indígenas. Não, o que é realmente extraordinário e maravilhoso, é que tudo isso é e será inútil. Apesar dela, os
zapatistas não só não se rendem e nem são derrotados, mas, além disso, crescem e se tornam mais fortes. De acordo
com aquilo que contam por estas montanhas, os zapatistas têm uma arma secreta muito poderosa e indestrutível: a
palavra.
Bom, senhora, já vou me despedindo. Por estas bandas as coisas estão assim. Não importa o que lhe digam,
contem ou o que lhe mostrem estas sinistras personagens que abundam nas secretarias do Estado, nas embaixadas e
nos consulados, a verdade é esta. Mas se não acredita em mim, venha comprová-la pessoalmente. Saberá que
chegou quando ao olhar pelos de cima se der conta de que abundam os tanques, os postos militares, os
interrogatórios policiais dos agentes da migração, os quartéis, as vendas de bebidas alcoólicas, os bordéis, a
mentira.
Não esqueça de olhar também para os debaixo, aí você se dará conta de que a luz pode ser também morena
e baixinha, que há quem deve esconder o rosto para ser visto e deve esconder-se para mostrar-se.
176
Mas, se qualquer um destes dados não lhe confirmam que chegou, é porque, com certeza, são muitos
os cantos da história que se pintam assim em cima e embaixo. Pensamos em facilitar a sua visita. Na entrada você
verá um letreiro não muito grande, com letras coloridas e um traço grosseiro que diz: “Bem-vindos ao território
zapatista, último canto da dignidade rebelde”. Não ache que dizemos isso de “último canto” no sentido de
histórico ou de coerente, porque, certamente, são muitos os cantos que o mundo guarda para a sua dignidade
rebelde e todos eles são coerentes. Quando dizemos que somos o “último canto” queremos dizer apenas que somos
os menores...

Valeu. Saúde e, se vier, a esperamos, mesmo que já não estejamos. Ande com cuidado porque é muito fácil
chegar a estas terras, o difícil é ir embora.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.

Subcomandante Insurgente Marcos.


La Realidad em Guerra. México, novembro de 1999.

P.S. QUE AVISA: Ah! Já ia esquecendo. Tenha muito cuidado quando chegar a estas terras rebeldes. Acontece
que, desde o dia 1º de janeiro de 1994, por aqui foi decretada a abolição da lei da gravidade e é comum que, em
algumas madrugadas, a lua tire a roupa e se mostre por aquilo que realmente é, ou seja, uma das maçãs que
desafiou Newton...

Carta 5.3. CHIAPAS: A GUERRA. Amador Hernández, a luta pela terra.

“Então, nós, simples cidadãos, vamos tomar a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma
força com as quais reivindicamos nossos direitos, vamos reivindicar também o dever de nossos deveres”.

José Saramago - discurso de Estocolmo.

Para: José Saramago.


Planeta Terra
De: SupMarcos
Montanhas do Sudeste Mexicano

Don José:
Escrevo-lhe estas linhas na esperança de que o alcancem enquanto o seu passo ainda caminha por estas
terras indígenas. Claro, para cumprimentá-lo, mas não só para cumprimentá-lo. E não só para cumprimentar você,
mas também a Pilar. Sobretudo, para saudar a sua palavra, esta inquieta e irreverente palavra que você esgrime e
que, como quem não quer nada, vai deixando feridas e arranhões que nenhum ungüento é capaz de aliviar.
Mas, acho que eu já disse isso, escrevo não só para cumprimentá-lo. Também para contar-lhe algo e pedir-
lhe uma coisa. Saiba que o mar colocou nas minhas mãos um de seus livros que se chama Deste mundo e do outro.
Comecei a lê-lo de trás pra frente, que, por aqui, é a prova mais rigorosa que temos para ver se o livro deve ficar
perto de nós. Se for possível começar a sua leitura pelo final ou por qualquer uma de suas páginas, então é um livro
desses que alguém deve sempre ter por perto. Eu sei que como critério literário este é um dos mais excêntricos, mas
ele permite explicar porque, por estas bandas, alguns livros partilham a umidade, as insônias, o barulho das hélices
dos helicópteros de combate, o barulho dos bombardeiros, o ruído constante dos motores dos tanques de guerra, a
impertinência de não poucas baratas, o teimoso tecido de aranhas de todos os tamanhos e o inevitável vaivém das
formigas. Entre estes livros (que não vou listar porque para o governo mexicano podem ser suspeitos de subversão;
e acredito que a Cervantes, Shakespeare, Garcia Lorca, Neruda, Hernández, Cortázar, Sor Juana e outros e outras
não faltam títulos e honras para que lhes seja acrescentado o de “transgressores da lei”) está agora o seu livro Deste
mundo e do outro.
Mas não estou escrevendo para falar-lhe dos livros que sofrem por aqui. Acontece que eu estava folhando e
dando uma olhada ao seu livro quando os meus olhos se detiveram num texto cujo título é “Um azul para Marte”.
O argumento é simples: você passou dez anos em Marte e sabe que os marcianos não conhecem as guerras, que
para eles não há diferença entre as cidades e o campo e sabe de outras coisas muito marcianas. Mas o problema que
eles têm em Marte é que lá só têm duas cores, o branco e o preto, e as diferentes tonalidades que vão de uma a
outra. Os marcianos esperam encontrar as cores para serem completamente felizes. Você está em dúvida se deve
177
levar a eles o azul. E isto vem ao caso porque, por aqui, nós zapatistas estamos lutando por um mundo onde
caibam todas as cores sem deixar de ser o que são, ou seja, cores diferentes.
Uma nova folhada e chego ao “Sorriso”, que se rebela contra o fato de que “sorrir” seja definido como um
verbo intransitivo e uma careta à qual falta o som. E, então, eu vejo que sim, que o verbo “sorrir” não só não é
intransitivo como é demasiado transitivo, assim como o é o sorriso de Ezequiel (tojolabal, 3 anos), que mais que
um sorriso é uma porta (uma porta para seu ser criança, indígena e zapatista, e uma porta para os adultos, indígenas
e zapatistas, que lutam para que Ezequiel - e outras crianças como ele - tenha uma porta aberta, ou seja, uma porta
transitiva e não uma porta fechada, ou seja, uma porta intransitiva). Não sei, agora me veio uma dúvida: “porta” é
um verbo intransitivo? Enfim, assunto para os lingüistas.
Continuei folhando o livro e o meu olhar chegou à “Neve negra” e à sua reflexão sobre o que a morte pinta
no desenho de uma criança que decide que a natureza deve ser cúmplice e solidária da dor humana (e de sua
alegria, digo eu, mas isso não está no texto). E vejo que isso também vem ao caso porque, para não ir muito longe,
acaba de aproximar-se Yeniperr (tojolabal, 5 anos) para mostrar-me um desenho que ela fez e no qual o céu
continua sendo do azul que os marcianos desejam, mas que, no lugar dos pássaros, é povoado por helicópteros, e a
terra, ou seja, o solo que Yeniperr pinta, se enche de montanhas, e da terra, no lugar das flores, nascem
passamontanhas. Vou deixar de lado o esclarecimento de que a Yeniperr me traz o desenho porque quer que o
“troquemos” por um chocolate com as nozes que tinha sobre a mesinha. Eu defendi este chocolate com as nozes
como se fosse o último, não só porque é, de fato, o último, mas, sobretudo, por isso. Seja como for, Yeniperr vá
embora com o chocolate com as nozes e eu fico com o desenho no qual o céu é azul, tem helicópteros no lugar dos
pássaros, e na terra florescem passamontanhas e não flores. Fico pensando que, com certeza, aos marcianos não irá
interessar um azul assim, com tantos helicópteros e passamontanhas; deixo o desenho de lado e continuo folhando
o livro, e encontro o que estava procurando (claro, sem saber que o estava procurando). Aí está:
“O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a calada melodia debaixo da luz do sol. As palavras
caem sobre ela. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e a cizânia. Mas só o trigo dá o pão”.
“O silêncio é a terra negra e fértil”. Sim. E não só isso, por aqui a guerra que se libra entre o governo e os
povos indígenas é por este silêncio, por esta terra. Sim, nesta guerra caem sobre a terra palavras boas e más. Umas
e outras nomeiam a terra de forma diferente.
Porque quando o governo mexicano diz “terra”, diz isso antepondo “compra” ou “venda”, porque para os
poderosos a terra é só uma mercadoria.
E quando um indígena diz “terra”, diz isso sem antepor nada a ela, mas dizendo também “pátria”, “mãe”,
“casa”, “escola”, “história”, “sabedoria”.
Porque para os indígenas zapatistas a terra é azul, mas é também amarela, vermelha, negra, branca,
marrom, violeta, alaranjada e verde (que é a cor da qual ficam os marcianos pela inveja de saber que aqui a terra é
de todas as cores); e a terra é também uma porta transitiva, como o é o sorriso (ainda que os lingüistas fiquem
enojados), e se a terra agora tem helicópteros no lugar dos pássaros e passamontanhas no lugar das flores é
exatamente porque os indígenas zapatistas defendem a terra daqueles que a vêem como uma mercadoria e não por
aquilo que é: uma porta aberta e de todas as cores.
No caso de Chiapas, é claro que a terra não representa só uma mercadoria. Para os mercadores da
globalização, a terra desta região é uma “mina” que deve ser explorada até secá-la. No caso da terra indígena
chiapaneca, a “mina” tem petróleo. O governo se nega a reconhecer que, por trás da sua guerra, está a ânsia de
possuir esta mina. Não a quer para explorá-la e sim para vendê-la.
Na região de Marquês de Comillas, na selva Lacandona, encontra-se uma reserva potencial, estimada em 1
bilhão e 498 milhões de barris de petróleo, localizada numa extensão de 2 mil 250 quilômetros quadrados. Na
região de Ocosingo, espera-se incorporar uma reserva potencial, estimada em 2 bilhões e 178 milhões de barris,
que cobrirá uma extensão de 5 mil 550 quilômetros quadrados e já foi ponderada a perfuração de 21 poços
exploratórios. No início dos anos 90, a Petróleos Mexicanos (PEMEX) estava planejando um investimento para
toda a grande região petrolífera, naquele que foi chamado de Megaprojeto Exploratório Ocosingo-Lacantún, que
engloba Ocosingo e Marquês de Comillas, e que em 1991, era de 2,7 bilhões de Pesos, o que hoje equivale,
aproximadamente, a um bilhão de dólares (El Financiero).
Assim, esta “mina” teria, pelo menos, 3 bilhões e 500 milhões de barris de petróleo. A preços atuais, estes
barris representam cerca de 80 bilhões de dólares, ou seja, umas 80 vezes mais em relação ao valor “investido”.
Mas o projeto governamental não é o de explorar estas jazidas, e sim de vender a totalidade deste território a mãos
estrangeiras. As razões pelas quais as mega-empresas estão interessadas nestas terras superam em muitos zeros os
80 bilhões de dólares. E a razão disso é que são elas a terem os estudos reais das reservas potenciais que existem na
Selva Lacandona.
Biodiversidade, água e petróleo são riquezas da região de Montes Azules, reserva da biosfera localizada no
coração da Selva Lacandona. Sem dúvida, a deterioração continua nesta área de proteção ambiental e ela corre o
risco de ser quebrada pelos planos estaduais de construir a rodovia San Quintín-Amador Hernández-vale do rio
Perla.
178
Paralelamente a isso, a selva da alta bacia do rio Usumacinta e o vale do rio Tulujah haviam sido
demarcadas como áreas de proteção florestal. Apesar disso, ficaram sem proteção Marquês de Comillas e a região
norte da selva, áreas nas quais Petróleos Mexicanos (Pemex) colocou suas principais zonas de exploração. Para
isso, também têm contribuído empresas nacionais e transnacionais.
A Pemex reconhece que antes de 1995 foram exploradas na região umas dezenas de jazidas de petróleo, e
que antes, desde a década de 80, entrou em choque com a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e da Ecologia
devido à devastação ambiental ocasionada pela abertura de estradas, explosões e escavações na selva. O próprio
Instituto Nacional de Ecologia (INE) apresenta a colonização da selva e a conseqüente mudança na utilização do
solo, como as principais “ameaças” para a reserva dos Montes Azules, e reconhece também que a construção da
estrada que corre ao longo da fronteira sul, a extração e a exploração do petróleo têm sido os elementos que
acentuaram o desmatamento da selva. A esta situação devem ser acrescentadas as campanhas de reflorestamento
promovidas pela Semarnap a qual informa que a recente participação do Exército Mexicano no reflorestamento das
áreas comunais das aldeias da região dos Montes Azules estavam previstas desde 1995 e que a utilização daquelas
espécies (mogno, cedro e maculis) “são as que foram mais saqueadas na região e apresentam a maior dificuldade
para restabelecer-se”. Biólogos e outros especialistas asseguram que a melhor maneira de recuperar as áreas
devastadas da selva é deixando-as descansar e não reflorestando-as. Mas, além disso, questionam: “porque não se
levam em consideração as comunidades para realizar esse trabalho? Elas conhecem o seu meio ambiente mais do
que os soldados” (El Financiero).
Junto a toda a problemática da Selva Lacandona, a reserva da biosfera tem que enfrentar agora mais uma
agressão: a construção da estrada San Quintín-Amador Hernández-vale do rio Perla; este último desemboca em
Montes Azules e este percurso atravessa a reserva. Mas não é só o traçado da construção da estrada San Quintín-
Amador Hernández-vale do rio Perla a deteriorar o ecossistema da biosfera. Mas também a presença dos militares.
Soldados do Exército Federal Mexicano, que se encontram nas comunidades de El Guanal e Amador Hernández,
desmataram uma área considerável da selva para construir nada menos do que dois heliportos onde pousam os
helicópteros procedentes de San Quintín transportando tropas, provisões, arame farpado, além de metralhadoras de
tripé, lança-chamas, desfolhantes químicos, dezenas de bombas de gás lacrimogêneo e bebidas alcoólicas.
E assim, Don José, o seu texto e a disputa pela terra indígena chiapaneca, a guerra entre a mercadoria e a
porta das cores, me levam até a comunidade tzeltal de Amador Hernández. Aí, os indígenas zapatistas estão
plantados há mais de 4 meses diante de um batalhão de elite do Exército Federal. Todos os dias, os zapatistas se
colocam diante dos soldados, dizem palavras de ordem, dão a eles uma aula de política, cantam o Hino Nacional. O
general que está no comando da invasão castrense ordenou a instalação de oito alto-falantes de alta potência para
“proteger” seus soldados das más idéias dos zapatistas. A música preferida deste general é o piano de Richard
Clayderman, de tal forma que toda vez que os indígenas zapatistas entoam o Hino Nacional Mexicano, os soldados
põem Clayderman a todo volume para calar a parte que diz: “Mas se um inimigo estrangeiro ousar profanar teu
solo com o seu pé, pensa, ó pátria grande, que o céu te deu um soldado em cada filho”.
Amador Hernández, é assim que se chama a comunidade na qual hoje se sintetiza o paradoxo da guerra do
sudeste mexicano. Aí os indígenas cantam o Hino Nacional e defendem a terra como porta aberta para todas as
cores, como pátria. Aí os soldados do governo ensurdecem a si mesmos para não ouvir a palavra que os despe e
apresenta como posto avançado dos mercadores de terra
Sim, em Amador Hernández, a guerra se mostra por aquilo que é: de um lado estão os soldados, rodeados
por várias barreiras de arame farpado, trincheiras, metralhadoras, lança-chamas, escudos e lançadores de gases; do
outro lado temos um montão de indígenas, homens, mulheres, crianças e anciãos, baixinhos, morenos da cor da
terra, sem nenhuma outra arma a não ser as palavras ditas, cantadas ou escritas. Porque acontece que, para se
contrapor ao volume dos alto-falantes, os zapatistas ficaram em silêncio e usaram alguns cartazes com as mesmas
palavras que eram ditas, e que agora estão escritas em caracteres grandes e irregulares. Como os alto-falantes
tampam o ouvido, mas não o olhar, o general ordenou a seus soldados que pusessem uma venda nos olhos. Mais de
um deles baixou a venda com discrição e leu o que sentenciava um cartaz: “Esta terra é dos nossos mortos; como é
que vão matar os nossos mortos?”

Don José:
Você diz que na terra caem o trigo e a cizânia e que só o trigo dá o pão. Você tem razão. Por aqui dizemos
que na terra caem o cinismo e a rebeldia, e que só a rebeldia dá os amanhãs.
Acabo de ler no jornal que, em Guadalajara, você declarou que achava que a sua sina era de dizer ou fazer
coisas que incomodam os governos. Por isso, Don José, o que queria lhe pedir é que, sem que ninguém o veja, você
pegue um punhado da terra que agora pisa, que a coloque com muita discrição num saquinho de plástico e o enfie
em seu bolso esquerdo. Enquanto estiver caminhando pelo mundo com o seu longo passo, de vez em quando e sem
pensar nisso, coloque a mão no bolso, pegue um pouquinho desta terra e deixe-a cair onde você estiver. Não se
preocupe com a quantidade, você verá que terá sempre em seu bolso terra suficiente para ser presenteada em
qualquer parte do mundo.
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A ciência não conhece muito suas causas, mas a rebeldia é contagiosa. Não só isso, mas já faz mais de
500 anos que achamos que a rebeldia, além de contagiosa, vai parir amanhãs.
Valeu. Saúde e agora acho que também a rebeldia é transitiva.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, dezembro de 1999.

P.S. Durito diz que manda lembranças à Dona Pilar (“A Pilarica”, diz ele, mas eu não sou tão irreverente), para
que, em troca, ela mande desse café que ela prepara. Eu digo que é melhor que mande nozes. “E por acaso têm
nozes em Lanzarote?”, me diz Durito repreendendo-me. “Deve ter - respondo eu. As nozes são como as cores, têm
no mundo inteiro”.

Mensagem gravada do Subcomandante Marcos aos participantes


do 2º Encontro Americano pela Humanidade e contra o Neoliberalismo.

Mas os homens e as mulheres de milho não mudaram a si mesmos para se tornarem sem cor. “Somos todas
as cores” disseram entre si os homens e as mulheres de milho, e cometeram outro delito porque, logo em seguida,
perguntaram “Por que devíamos perder nossas cores se através delas o mundo e o homem podem continuar
girando, resta saber pra onde, mas têm que continuar girando?”.
“Que faremos?”, se perguntaram os homens e as mulheres de milho, “para nós só há a morte ou a prisão?”
De longe, os homens armados do Poder ouviram estas perguntas e começaram a perseguir os homens e as mulheres
de milho. Prepararam um grupo especial que se dedicava a rastrear as pegadas que as perguntas deixavam na terra e
no céu do mundo. Os homens e as mulheres de milho fugiram para não serem agarrados, mas, como sempre, iam
fazendo perguntas, e, obviamente, iam deixando pegadas em seu caminho; e os homens armados do Poder os
seguiam por toda parte.
Foi assim que os homens e as mulheres de milho chegaram a um grande rio. Esse rio era todos os rios do
mundo. Chegavam até ele todas as águas que caminham sobre a terra e dele partiam outra vez. Era um rio e era
também um oceano. Nele viviam todos os peixes do mundo e todos os animais da terra vinham até ele para beber
de suas águas. Em suas margens crescia todo tipo de árvore e planta e todos os céus lhe serviam de telhado.
Quando os homens e as mulheres de milho, com seus mil rostos, línguas, tamanhos e cores, chegaram a
este rio, despencou sobre a terra uma grande tormenta. Tamanha era a chuva que caía sobre o mundo, que se
apagaram todas as pegadas das perguntas que os homens e as mulheres de milho haviam deixado; e entre os
homens e as mulheres de milho e aqueles que os perseguiam se levantou uma espécie de parede. Os perseguidores,
os homens armados do Poder, se confundiram e começaram a lutar entre si; muitos deles foram mortos por suas
próprias armas. Mas ainda sobraram alguns. Pouco a pouco a tormenta parou e os homens armados do Poder que
haviam sobrado avançaram contra os homens e as mulheres de milho. Os homens e as mulheres de milho
procuraram entre as margens e encontraram uma balsa feita de troncos, que tinha um fardo coberto por uma pele
pintada com muitas vespas e abelhas. Subiram logo na balsa e remaram até a outra margem. Os homens armados
do Poder avisaram os grandes senhores sobre o que estava acontecendo e estes lhes mandaram um grande barco
para que pudessem atravessar o rio, atacar e acabar com os homens e as mulheres de milho.
Os homens armados do Poder subiram em seu grande barco e começaram a atravessar o grande rio.
Quando estavam na metade do caminho, uma luz de uma perna só, um relâmpago, saiu do leito do rio e quebrou o
barco. O rio tragou os homens armados do Poder. Nossos mais antigos antepassados chamavam “Huracán” esta luz
de uma perna só.
Do outro lado do rio, os homens e as mulheres de milho continuaram com suas perguntas.
“E agora?”; “Que faremos?”, se perguntavam. Uns diziam que era melhor ficar aí e construir um outro
mundo, outros diziam que não, que deviam voltar e se juntar aos demais para libertar as perguntas dos presídios e
dos cemitérios. Estes homens e estas mulheres de milho passaram um bom tempo discutindo e falando, porque
falar, ouvir e discutir até chegar a um bom acordo entre todos os pensamentos era da sua maneira de ser. Então, o
acordo a que chegaram era o de voltar ao mundo do qual vieram e lutar para torná-lo novamente um mundo com
muitas cores e perguntas.
Os homens e as mulheres de milho chegaram a este o acordo, ficaram contentes e organizaram uma de suas
alegrias, ou seja, um de seus bailes, porque, apesar da dor que sentiam, tinham também a esperança da luta que está
pra começar.
Quando o baile acabou, os homens e as mulheres de milho voltaram às perguntas, e agora com uma
vontade maior porque ninguém os perseguia e, então, perguntavam: “Como faremos para lutar? Com que meios
poderemos enfrentar os homens armados do Poder? Como faremos para derrotar os grandes senhores? Como
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faremos para libertar as perguntas dos presídios e dos cemitérios? Como defenderemos as cores diante dos que
não têm cor? Os homens e as mulheres de milho se faziam muitas perguntas como estas. Então, uma das anciãs
disse que, nos tempos antigos, os mais velhos entre os velhos contavam que, no tempo em que o tempo não era
tempo, o um que é dois, Tepeu, Gucumatz, havia dito que o mundo tem que ser feito girar até chegar sabe-se lá
aonde, e que teria quem não quer que o mundo gire, mas que fique parado, sem que as coisas mudem, porque
quando o mundo gira não há quem está em cima ou embaixo, mas se fica parado há sempre quem está em cima e
quem está embaixo; e se o mundo não gira, os de cima e os debaixo são sempre os mesmos”.
“Para que o mundo continue girando tem que lembrar do lugar do princípio” disse a anciã que assim havia
dito Gucumatz, a maior das sabedorias de corpo longo e de plumas coloridas por vestido. “Sim”, disse a anciã que
assim havia dito Tepeu, o guerreiro vencedor de todas as batalhas, “a resposta está neste ponto”. Foi isso que a
anciã disse que assim haviam dito os dois que são um, Tepeu, Gucumatz..
“Mas qual é o lugar do princípio? Que ponto é esse?”, se perguntavam os homens e as mulheres de milho.
E começaram as falações e as discussões. Um dos anciãos entre os homens de milho disse que o princípio havia
sido a água, porque, de início, havia só a água na qual vivia o dois que é um sete vezes, o que fez nascer o mundo.
“É o rio”, disse o ancião. E todos e todas foram ao rio e aí encontraram a balsa com a qual haviam feito a travessia
e tiraram a pele pintada de abelhas e vespas que cobria o fardo. Encontraram aí 7 espadas, 7 escudos, 7 lanças, 7
flechas, 7 punhos, 7 cascos e 7 botas.
Os homens e as mulheres de milho ficaram muito contentes. “Lutaremos com isso contra os homens
armados do Poder!”, disseram e, felizes que estavam, fizeram um baile sem ter o cuidado de amarrar a balsa; o rio a
levou embora, e quando se deram conta a balsa já não estava mais aí.
“E agora, como atravessaremos o rio para lutar contra os homens armados do Poder e para libertar as
perguntas dos presídios e dos cemitérios?”, se perguntavam angustiados os homens e as mulheres de milho.
“Vamos procurar algo que nos ajude a fazer a travessia”, disseram os mais velhos. Pegaram, então, uma grande
árvore que pudesse servir de ponte, mas o rio era muito largo e não havia árvore que fosse suficientemente grande
para poder atravessar de um lado ao outro. Estavam assim quando viram que algumas crianças estavam brincando
no rio com uma danta. Montados nela como se fosse um barco, as crianças navegavam pelo rio. Então os homens e
as mulheres de milho disseram: “Vamos falar com a danta e vamos ver se ela quer nos levar até o outro lado do
rio”.
Os homens e as mulheres de milho foram falar com a danta, contaram a ela o seu problema e a danta
concordou em levá-los para o outro lado. Então, a danta, que era muito grande e uma boa nadadora, começou a
levar os homens e as mulheres de milho para o outro lado do rio. Mas, como havia muitos homens e muitas
mulheres de milho, ela demorou muito para levar todos e todas para o outro lado.
E aconteceu que por ter ficado na água por tanto tempo, a danta se tornou meio cavalo e meio peixe, ficou
com esta forma e os homens e as mulheres de milho chamaram “manati” esta danta que serviu de ponte para voltar
ao mundo e lutar pela liberdade das perguntas.
Desde então, o manati anda pelos grandes rios para ver se alguém precisa de ajuda para passar ao outro
lado, e é por isso que uma danta e um manati são tão parecidos.
E então, já com suas armas, os homens e as mulheres de milho marcharam contra os homens armados do
Poder. Lutaram e venceram. Os homens e as mulheres de milho combateram em pé de igualdade. E os homens
armados do Poder não queriam acreditar que também as mulheres de milho combatiam. Ficaram muito confusos e
foram logo derrotados.
Os homens e as mulheres de milho foram embora e não atacaram os palácios dos grandes senhores; não, no
lugar de fazer isso foram aos presídios e aos cemitérios e libertaram todas as perguntas que aí estavam presas e
mortas. Livres e vivas, as perguntas destruíram o palácio dos grandes senhores.
Por isso, dizem que os homens e as mulheres de milho não lutam pelo Poder, e sim para que o mundo deixe
de ficar parado, com uns poucos em cima e muitos outros embaixo, lutam para que o mundo volte a girar e
continue girando até chegar sabe-se lá aonde. Os homens e as mulheres de milho lutam para continuar empurrando
o mundo e fazê-lo girar.
O Velho Antônio renova o seu cigarro e eu reabasteço o cachimbo. A mesma luz do fogo acende o
cachimbo e o cigarro. O Velho Antônio continua:
Desde então, a história se repete. De vez em quando há quem se opõe a que o mundo gire e há quem luta
para que entre os homens e as mulheres não exista o embaixo e o em cima.
Ninguém sabe onde está agora esse rio que é todos os rios, mas contam os velhos entre os mais velhos de
nossos antepassados que nele se encontram a rebeldia e a dignidade, e que a ele chegam os sedentos que se vão
igualmente sedentos, mas sabendo o porquê de sua sede e como saciá-la.
Contam que o dois que é um sete vezes, tem muitos nomes neste rio que é todos os rios. Seus nomes são
muitos e diferentes porque muitos e diferentes são os rios que a ele chegam e dele partem. Mas o um que é dois por
sete vezes é o mesmo. Contam os mais velhos que o um é o humano, e que o humano é digno e rebelde e por isso é
dois e um. Mas este um que é dois tem sete rostos por sete vezes sete.
181
O Velho Antônio se cala. A madrugada continua caminhando e uma nuvem desenha um ponto de
interrogação no céu que vai logo clareando.
Irmãos e irmãs:
Lembrei desta história que o Velho Antônio me contou justo agora que preparo estas palavras pra vocês,
para os homens e as mulheres da América e de outros continentes que estarão presentes neste 2º Encontro
Americano pela Humanidade e contra o neoliberalismo.
Volto a lembrá-la quando preparo estas palavras que serão ouvidas em Belém do Pará, no Amazonas, no
Brasil.
Lembrei dela agora, quando ao ler alguma coisa para tentar imaginar o lugar que agora é a sede de um
encontro de rebeldia e dignidade, encontrei que o nome de “Amazonas”, que se dá a este grande “rio-oceano” que
deságua em Belém, pode vir de duas fontes.
A primeira é a história contada por Francisco de Orellana, conquistador às ordens de Pizarro, que chegou a
este grande rio depois de atravessar os Andes e demorou 8 meses para chegar ao seu desaguadouro. Orellana
contou que durante a viagem pelo rio foi atacado por uma tribo na qual as mulheres, como as guerreiras amazonas
da mitologia grega, lutavam ao lado dos homens.
A outra é parte da mesma história que aconteceu com Francisco Orellana. Quando voltou à Espanha contou
sobre as mulheres guerreiras deste grande rio, e contou também que havia muito ouro. Obteve a autorização para
voltar e tentar conquistar este território. No grande rio, Orellana foi derrotado pelos indígenas e a sua embarcação
foi destruída perto do desaguadouro do “rio-oceano”. Por isso, se diz também que “Amazonas” vem da palavra
indígena “Amassona”, que significa “barco destruído”.
Leio também que no Brasil vivem Ogum, deus da guerra, e Xangô, deus da justiça. Que Ogum é sete:
Ogum Beira-mar, Ogum Rompe-mato, Ogum Megê, Ogum Naruê, Ogum Matinata, Ogum Yaea e Ogundelê. E que
tem um caboclo com 7 espadas, um com 7 lanças e outro com 7 escudos.
Não sei se o grande rio que era todos os rios é o rio “Sem Nome” ou é o “Amazonas”.
Tampouco sei se as mulheres de milho, as guerreiras, foram as que combateram com os homens que
derrotaram Orellana.
Não sei se Tepeu assume o nome de Ogum e Gucumatz o de Xangô.
Não sei se o manati amazônico é muito parecido com a danta chiapaneca.
Não sei se todas estas são pontes e passagens que unem os povos deste grande continente, que unem o
México ao Brasil, Chiapas a Belém do Pará, a Selva Lacandona com a selva Amazônica.
Sei o que me disse o Velho Antônio, que o rio que é todos os rios tem muitos nomes, e que são muitos e
diferentes os dois que são um por sete vezes.
Sei também que hoje, em Belém do Pará, Brasil, se fazem presentes alguns dos melhores homens e
algumas das melhores mulheres deste continente.
Sei que mesmo sendo todos e todas diferentes e distintos, são convocados pela mesma dignidade rebelde.
E sei que todos e todas têm o mesmo compromisso: empurrar o mundo para que continue girando e não
fique parado, para que não continue tendo uns poucos em cima e muitos embaixo.
Sei, e todos eles e todas elas também sabem, que a nossa luta é pela humanidade e contra o neoliberalismo.

Saúdo vocês irmãos e irmãs do continente americano!

Com vocês, nós zapatistas lutamos novamente para exigir que, em toda a América, para todos e todas
existam...

JUSTIÇA! LIBERDADE! DEMOCRACIA!


Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos
Chiapas, México; Belém do Pará, Brasil. Na América que pergunta, dezembro de 1999.

(Obs.: traduzimos aqui as palavras do Subcomandante Marcos aos participantes do 2º Encontro Americano pela
Humanidade e contra o Neoliberalismo tendo como base a transcrição que está sendo divulgada no primeiro
boletim da página eletrônica do Encontro).

Carta 5.4. Chiapas: a guerra. Chiapas-UNAM: o crime de ser “outro”

Para: os pais e as mães dos 98 estudantes da UNAM presos pela polícia do DF que, no sábado dia 11 de
dezembro de 1999, “defendeu com valentia” a embaixada dos Estados Unidos no México.
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Senhoras e senhores:
Escrevo em nome de todos os homens, mulheres, crianças e anciãos do EZLN agora que já sabemos que
todos os seus filhos e filhas foram postos em liberdade. Mesmo estando tão longe e não tendo nenhum grau de
parentesco com nenhum de seus filhos, também por aqui estivemos angustiados e preocupados e estávamos até
pensando em enviar-lhe uma pequena contribuição econômica para completar a fiança exigida pelas autoridades.
Além da angústia e da preocupação, partilhamos com vocês também a indignação pelo tratamento de
“criminosos” que seus filhos receberam nos meios de comunicação eletrônica.
Nos felicitamos com vocês pela libertação de seus filhos e filhas. Sabem, mais que conhecer seus filhos e
filhas, nós conhecemos a causa pela qual lutam: a educação gratuita. Nós entendemos que esta luta que é levada
adiante pelos estudantes, como os seus filhos e pelos outros que não são seus filhos, é por nós e por muitos
mexicanos que, com certeza, sequer conhecem seus filhos de vista e menos ainda por nome e sobrenome.
Estes 98 rapazes e moças, todos eles e todas elas estudantes, foram presos além de espancados, insultados e
humilhados por lutar por uma causa justa e, além disso, por saber ouvir. Sei que alguns foram soltos por serem
menores de 18 anos e outros foram declarados formalmente presos, tiveram que sair sob fiança, e que para as
autoridades são criminosos. E como tais foram tratados pela juíza que, num veredicto ridículo até em sua redação,
os coloca no mesmo nível daqueles que roubam, assaltam e estupram. Mas nós, assim como vocês e muitos
mexicanos e mexicanas, sabemos que seus filhos não são criminosos, e sim lutadores sociais.
Mas acontece que hoje, neste país, ser um lutador social é um crime que deve ser condenado e castigado.
Os narcotraficantes? Não, estes estão em conluio com as autoridades, de maneira tal que elas não podem punir seus
próprios sócios. Os banqueiros? Menos ainda; estes, além do mais, elegem as autoridades pagando-lhes suas
campanhas. Os seqüestradores? Tampouco; estes estão em conluio com a polícia.
Nós também, os zapatistas, somos criminosos. Eu sei que isso não é um consolo para vocês, mas deixem-
me explicar-lhes porque somos criminosos. Nós temos uma ficha tão longa que precisaria de uma sala inteira do
arquivo. Somos acusados de sermos transgressores da lei; nos acusam, inclusive, de transgredir a lei da gravidade.
É que nós dissemos “Basta!” e nos levantamos em armas para fazermo-nos ouvir, para que nos respeitassem e nos
levassem em consideração e, sobretudo, insurgimos para que todos nós, mexicanos e mexicanas, tenhamos
democracia, liberdade e justiça.
Os estudantes da UNAM também disseram “Basta!”, mas não se levantaram em armas, e sim mobilizaram-
se através de métodos civis, realizaram uma greve e reivindicaram educação gratuita para pessoas que não
conhecem. Porque o aumento das mensalidades da UNAM não ia afetar só eles em particular, e sim muitos outros.
Foi por isso que, pensando nos demais, os estudantes deram início a este movimento que, por aqui, nós
conhecemos como “movimento estudantil universitário”, mas resta saber como os próprios estudantes o chamam.
Claro que vocês pensarão: “Vocês (ou seja, nós zapatistas) se levantaram em armas, e, por si só, andar
armado já é um crime, mas estes rapazes não tinham armas”. E têm razão. Mas nós não fomos declarados
criminosos por levantarmo-nos em armas, não. Nos acusam de sermos criminosos porque somos indígenas, ou seja,
somos “outros”. Não há lugar para nós no projeto econômico que o grupo Salinas-Zedillo leva diante, nós somos
contra a globalização e o neoliberalismo. E hoje, neste país, isto é um crime. Também nos apontaram como
criminosos porque ouvimos. Sim, ouvimos a mentira em que este país estava se transformando e dissemos “Não!”,
dissemos “Não!” quando exigiam que nos rendêssemos, dissemos “Não!” quando quiseram nos enganar, dissemos
“Não!” quando quiseram nos deixar sozinhos. É assim, por sermos “outros”, por ouvir e dizer “Não!”, por isso nós
zapatistas somos criminosos.
Seus filhos e filhas não foram declarados criminosos pelos vidros quebrados da embaixada norte-
americana. Não só porque a embaixada não apresentou queixa contra eles, mesmo porque o embaixador, o senhor
Davison, ou algo parecido, terá que responder por malversação de fundos perante o congresso do seu país, porque é
ridículo que tenham lhe vendido vidros de 40 mil Pesos cada (ou seja, quase quatro mil dólares) que se quebram
com uma pedrada. Tampouco foram declarados criminosos pelos vidros quebrados das lojas e dos carros, porque
estes foram destruídos por agentes da própria polícia (que, conforme relata o jornal La Jornada em sua edição de
12 de dezembro, estavam cumprimentando os policiais e os granadeiros que, supõe-se, estavam colocando “ordem
na via pública”. Textualmente: “os que estavam quebrando os vidros dos carros e dos restaurantes, foram vistos
mais tarde na pracinha do Metrô Insurgentes falando amigavelmente com um amplo grupo de policiais e
granadeiros” (La Jornada, 12 dez. de 1999).
Então, por que os declararam criminosos? Por serem “outros”. Pois, de acordo com as reportagens desse
dia, foi quando a marcha já estava dispersando (ou seja, quando o vídeo do governo “é cortado”) que os
granadeiros “avançaram” contra tudo aquilo que parecia ser jovem ou estudante, ou seja, contra todos os “outros”.
Vamos ao jornal:
Além de espancar e prender um mulatinho, a polícia investiu contra pessoas que não tinham nada a ver
com o assunto: “Armando, menino de rua: os estudantes começaram a correr, eu parei para ver o quanto batiam
num desses estudantes, corri junto com eles, e ao tentar subir num caminhão, o policial me puxou pela camisa e o
cara me jogou no chão e me pegou por um braço. Depois que me pegou, me levantou e eu segurei no seu capacete,
183
mas já não podia fazer nada” (La jornada, 12 de outubro de 1999). E logo “patrulharam” à caça de estudantes.
Outro testemunho: “Luis ENEP Aragón: enquanto falávamos com a universidade num telefone público a caminho
do metrô, uma patrulha parou diante de nós e aos gritos utilizou seu rádio pelo qual avisava seus companheiros que
havia mais estudantes na área e que precisava de algumas patrulhas para levar-nos”. Como é que estes “brilhantes”
patrulheiros sabiam quais eram os estudantes da UNAM e quem não era? Será que os estudantes mantinham suas
credenciais, seus boletins ou a cópia de sua matrícula à vista de todos? Além do mais, como já se sabe, nenhum dos
98 detidos é responsável por ter jogado nada mais do que tomates e plásticos cheios de tinta (ou será que os vidros
de quebram com tomates? Só se for pelo fato deles serem muito caros).
Não conheço as pessoas que vou nomear agora, mas imagino que são ou parecem ser jovens: “Não tiveram
melhor sorte os fotógrafos Juan José Castillo, do Colectivo Perfil Urbano, e Rosaura Pozos, do La Jornada.
Tentaram arrancar a câmara dela e ele foi derrubado na beira da calçada por um policial de uniforme. Castillo
recebeu um golpe na cara, o que lhe provocou o desvio do septo nasal e um ferimento profundo no nariz,
provocado por um agente precavido cujo colete a prova de bala escondia a tarja com o seu nome” (Jorge Cisneros
Morales, em La Jornada, 12 de dezembro de 1999).
Além do mais, no escândalo pelos detidos, esquece-se que os granadeiros deram mostras de sua brutalidade
nas detenções. Na mesma reportagem do La Jornada diz-se: “Ao serem perseguidos, homens e mulheres tentaram
fugir para a Zona Rosa pela Rua de Amberes, mas os jovens que passavam perto dos granadeiros foram golpeados
com os escudos de acrílico, além de receberem pontapés e socos dos uniformizados”. Os golpes dados com os
escudos de acrílico, os pontapés e os socos estão incluído nas atribuições das autoridades do DF para, como foi
dito, “pôr ordem na via pública para evitar abusos”? (La Jornada, 14 de dezembro de 1999, página 44).
E já que estou fazendo perguntas: O que aconteceu com os granadeiros que espancaram Alejandra e Argel
Pineda no dia 14 de outubro deste ano? Não se disse que ia-se fazer justiça? Não ficaram em liberdade porque se
comprovou que estavam “cumprindo e seu dever”? Por que continua o silêncio cúmplice? E não creiam que faço
perguntas porque estou verde de raiva. É que, enquanto lia as notícias, encontrei uma foto na página 42 (La
Jornada, 12 de dezembro de 1999) - também como a do jornal do dia 15 de outubro, de Rosuara Pozos - e foi aí que
lembrei que a carta que mandei àquela foto com um montão de perguntas não teve resposta. Ou sim, a resposta é
esta foto na página 42, onde um granadeiro espanca uma estudante enquanto é coberto por três de seus
companheiros.
Mas, bom, este é um assunto entre nós e aquela senhora foto.
O caso é que a “autoridade” se colocou contra os jovens que encontrava no seu caminho e não contra os
que quebraram os seguros cristais da embaixada norte-americana. Por isso, digo que seus filhos e filhas, que
tiveram o azar de serem detidos pelos granadeiros (além de serem espancados e humilhados), foram declarados
criminosos por serem “outros”.
Mas, além do mais, são “outros” perigosos, porque são daqueles “outros” que ouvem e dizem “Não!”.
Porque esta manifestação se realizou em apoio às mobilizações que ocorreram em Seattle, estados Unidos, contra a
globalização econômica, e em apoio a um jornalista norte-americano de cor, condenado a morte, que se chama
Mumia Abu Jamal. E se os estudantes ouviram os gritos que, a partir de Seattle, deram a volta ao mundo, e ouviram
os clamores internacionais exigindo a liberdade pelo senhor Abu Jamal, pois é um crime. Só por isso os estudantes
já são criminosos porque disseram “Não!” à privatização da UNAM.
Assim, escrevo a vocês para cumprimentá-los pela liberdade de seus filhos e filhas, mas também para que
não se aflijam pelo que aconteceu. Elas e eles são considerados criminosos só porque lutam pelos outros. Na
história deste país, têm muitas e muitos que, quando lutam, são considerados criminosos. Mas, logo em seguida, se
reconhece a eles o mérito de sua luta e obtêm o reconhecimento dos debaixo. Claro, se é que não acabam como
chefes do governo.
Sabem, nós soubemos que vocês, os pais e as mães destes rapazes e moças, estiveram sempre perto deles
enquanto estavam presos. Além disso, sabemos que os apóiam em sua luta e que não são poucos os de vocês que
ajudam na segurança, nas brigadas e nas mobilizações. É por isso que escrevemos pra vocês. Aos estudantes e
estudantas que lutam neste movimento já havíamos dito antes que os admiramos, que os queremos e que vão
ganhar. Agora digo a vocês, pais e mães de família, que também admiramos vocês, que os queremos e que também
vão ganhar.
É tudo, senhoras e senhores. Por favor, digam a suas filhas e filhos que, algum dia, esperamos ter a honra
de podê-los chamar “irmãos e irmãs”. Não só porque seria muito grande para nós que homens e mulheres como
elas e eles nos considerem seus irmãos. Sobretudo porque dessa forma teríamos pais e mães como vocês. Eu sei
que não deve ser muito agradável ter filhos e filhas criminosos, mas o mundo é redondo, dá voltas e a história deste
país está cheia de criminosos que lutaram para torná-lo livre, justo e democrático.
Valeu. Saúde e, ainda que não nos aceitem como filhos adotivos, recebam nosso respeito e admiração.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
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México, dezembro de 1999.

P.S. Um favor: suplico-lhes que se alguma de suas filhas ou filhos chegar a chefe de governo, lembrem a eles o que
aconteceu. Digo isso para que não se esqueçam do passado...

Carta 5.5 Chiapas: a guerra. Guadalupe Tepeyac: a resistência invisível

“Os estampidos persistentes dos fuzis


ressoam a noite toda.
A virgem cura as crianças
com a saliva das estrelas”.

Federico Garcia Lorca

Dezembro de 1999.

Para: Javier Sicilia - México

Don Javier:
Vou usar um artifício. Quero dizer que ao escrever-lhe estou usando um artifício. Você vai me perdoar por
este artifício. Acontece que eu estava pensando num destinatário para esta carta que fala de um pedacinho da
história de uma comunidade indígena tojolabal, quando chegaram até mim os livros e a s linhas que você achou por
bem me enviar já faz tempo. Então pensei que era pra alguma coisa que seus livros haviam demorado tanto para
chegar, justo quando eu estava procurando um destinatário para esta história que por ser invisível não é menos
heróica. Por isso, vou usar um artifício, mas você, com certeza, vai me perdoar porque agora sabe que recebi seus
livros, suas palavras amáveis e, além do mais, lembrará (porque tenho certeza que a conhece) da história deste
povoado que se chama Guadalupe Tepeyac.
E é claro que isso vem ao caso, não só por este 12 de dezembro, mas também por esta estranha (para usar
um termo mais decente) polêmica entre o alto claro mexicano.
Não, não se preocupe, não daremos uma nova contribuição ao debate sobre o fato de Juan Diego ter
existido ou não e se a Virgem de Guadalupe apareceu ou não em Tepeyac. Quero falar-lhe somente da outra
Guadalupe Tepeyac, a que, invisível, resiste.
Você vai ver que, na realidade, existem dois povoados chamados Guadalupe Tepeyac: o morto ou “Velho”
(como o chamam aqueles que nele viveram), e o novo ou “no Exílio” (como o chamam os que nele vivem e lutam).
Ambos têm uma longa história de dor e de esperança, e é só de uma parte desta história que eu vou lhe falar agora.
Em agosto de 1994, no Velho Guadalupe Tepeyac se celebrou aquela grande Convenção Nacional
Democrática que reuniu mais de 6.000 mexicanos. Muitos caminhos e muitos refletores apontavam então para esta
comunidade, símbolo do desafio indígena zapatista diante de um regime empenhado em aniquilar os primeiros
moradores destas terras.

Naqueles meses, grandes políticos, artistas e intelectuais, pessoas com um nome e um rosto qualquer
vieram para a comunidade. Todas elas, grandes e pequenas, conhecidas e desconhecidas, foram recebidas com
atenção e respeito. Inclusive, em janeiro de 1995, o então secretário de Governo (e atual braço direito do candidato
oficial à presidência e secretário geral do PRI) Esteban Moctezuma Barragán esteve neste povoado. Pousou num
helicóptero dias antes da traição de 9 de fevereiro daquele ano. Os moradores de Guadalupe Tepeyac fizeram um
cinturão humano de paz em torno da
aeronave, para garantir que ele não seria
atacado pelos zapatistas. Esta amostra de
boa vontade foi retribuída com o assalto
realizado pelas tropas federais de elite e na
ponta do fuzil. Os moradores se
refugiaram, então, no hospital que, sob a
bandeira do Comitê Internacional da Cruz
Vermelha, havia sido declarado território
neutro e, de acordo com as leis
internacionais, nenhuma pessoa armada
poderia entrar nele. Os soldados não
185
ligaram para isso e, armados até os dentes, entraram no hospital ameaçando mulheres, homens, crianças e
anciãos que aí se encontravam. Os moradores decidiram então sair do povoado e foram caminhando morro acima
levando somente a roupa do corpo. Todos os seus pertencem ficaram no povoado, entre eles, duas imagens da
Virgem de Guadalupe (“bem alegres”, contam os guadalupanos). Às escondidas, colocando-o debaixo de sua
camisa, um homem conseguiu pegar um grande manto com a imagem da virgem que cobria o teto da igreja.
O caminho continuou. Algumas mulheres estavam avançadas em sua gravidez e uma delas pariu um
menino durante esta mesma noite, no meio das montanhas. Seu nome? Lino. Foi assim que Lino nasceu entre as
montanhas, em meio a uma perseguição militar, no exílio. Enquanto o perseguiam para matá-lo, Lino nasceu e
nasceu vivo, como para contradizer aqueles que haviam decretado a sua morte, ou, melhor, para dizer que a
resposta zapatista à traição era a vida, a resistência diante da morte, a resistência a ser vencido, a resistência a
render-se, a resistência.
Os guadalupanos passaram fevereiro, março, abril e parte de maio indo de um lado pra outro, comendo o
pouco que podiam dar a eles os povoados zapatistas pelos quais passavam, bebendo a água dos riachos que
encontravam em seu caminho, dormindo em dezenas debaixo de um mesmo telhado e perseguidos a cada passo por
helicópteros e aviões militares. Entre os homens, mulheres, crianças e anciãos caminhavam no êxodo também uma
menina chamada Eva (grande admiradora do cinema - ainda que seu repertório se limitasse a “Escola de
Vagabundos” com Pedro Infante e Miroslava e a “Bambi”) e um menino chamado Heriberto (adepto dos doces e
chocolates e alérgico às escolas e aos professores). Ia também Lino, ainda que tivesse apenas algumas horas.
Muitos meninos e meninas caminharam durante aqueles dias e aquelas noites, alguns deles lembram da entrada dos
soldados em seu povoado. Outros, que naquela época eram muito pequenos, lembram somente da angústia de suas
mães.
No meio do caminho, em seu acidentado andar entre as montanhas, o povo de Guadalupe Tepeyac recebeu
uma pequena imagem da Virgem de Guadalupe, mas eu já contei esta história e não vou repeti-la. O que vou lhe
contar é o que aconteceu depois.
Depois de meses de caminho, estes zapatistas se assentaram numa montanha e fundaram o que hoje se
chama Guadalupe Tepeyac no Exílio. Pouco a pouco, o povoado foi tomando forma como, por si só, os povoados
daqui tomam forma: ao redor da igreja. Aí, no meio de um desordenado número de telhados de nylon e papelão, um
longo corredor servia de templo e, numa de suas cabeceiras, as velas arrancavam brilhos da imagem da Virgem de
Guadalupe.
Desde então, o povo de Guadalupe Tepeyac resiste. Aqueles que o visitaram na época dos refletores já se
esqueceram dele e é do outro lado do mar, da Europa, de onde vem alguma ajuda humanitária para estes indígenas
zapatistas. Foi com o trabalho que os guadalupanos levantaram o seu novo povoado e é com o trabalho que o
mantêm. Seus habitantes foram delegados na marcha dos 1.111 e na Consulta do dia 21 de março deste ano. São
zapatistas, e tem mais, acredito que sempre o foram e que, mais que sermos nós a encontrá-los, foram eles que
vieram ao nosso encontro. Bom, mas esta é outra história.
O que vou contar-lhe agora, Don Javier, é que, para este 12 de dezembro de 1999, os guadalupanos
planejavam trazer as duas imagens que haviam ficado na igreja do agora Velho Guadalupe Tepeyac. Foram e
aconteceu isso:
Contam-me os habitantes do Guadalupe Tepeyac no Exílio que foram ao Velho Guadalupe Tepeyac para
tentar resgatar do velho templo as duas imagens da guadalupana para a celebração do dia 12 de dezembro. Não
conseguiram encontrá-las. Bom, sim, conseguiram encontrá-las, mas estavam destruídas.
Os guadalupanos me contam isso numa mistura de dor e de raiva. Investigando, souberam que foram os
militares a destruírem as duas imagens. Desde o mês de fevereiro de 1995, já faz quase 5 anos que o exército do
governo se encontra ocupando ilegalmente as terras destes mexicanos que cometeram três crimes: são indígenas,
são rebeldes e são zapatistas.
Os guadalupanos me contam muitos detalhes das duas imagens da Virgem, de como as deixaram, de como
as encontraram. Narram com indignação que os militares antes transformaram o templo num bordel e logo em
seguida num lixão, que foram roubados os badalos dos dois sinos de bronze que o templo tinha, que na destruição
das imagens dá pra ver que os que fizeram isso queriam machucar, machucar a imagem, machucar o que
representava e, sobretudo, machucar aqueles que dela haviam assumido o nome e a identidade.
Os guadalupanos estavam enojados, enojados e tristes. Mas, como havia acontecido antes, durante o seu
êxodo, a Virgem de Guadalupe chegou novamente até eles, e desta vez em duas figuras de gesso com muitas cores
(uma delas tem até pequenas chamas).
Os zapatistas de Guadalupe Tepeyac celebraram este 12 de dezembro com uma grande festa e um baile (e,
claro, com comidas). Uns dias antes, teve um batizado e aproveitaram para abençoar as duas imagens. Com elas
presidindo, comeram, cantaram e dançaram.
Aí estão os guadalupanos zapatistas, resistindo mesmo quando a sua resistência é invisível para aqueles que
ontem passeavam por suas vielas. Resistem como sempre resistimos nós zapatistas, ou seja, sem que ninguém nos
leve em consideração. Sem que ninguém, a não ser nós mesmos, vá acrescentando indignação e memória.
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Aí estão os habitantes de Guadalupe Tepeyac no Exílio, ninguém vê eles. Ninguém? Bom, don Javier,
lembra daquele manto com a imagem da guadalupana que eles conseguiram tirar da igreja do Velho Guadalupe
Tepeyac? Bom, pois, o colocaram no alto de uma encosta. Aquela imagem é muito grande e cheia de cores. Mas
ninguém a vê, quer dizer, ninguém à exceção dos guadalupanos e daqueles que às vezes passam por aí. É que o
nosso povoado está afastado da estrada e dela não se consegue ver nada. Além do mais, a imagem está olhando
para cima, para o céu. Ninguém a vê. Ninguém? Bom, sim, a vêem os helicópteros e os aviões do exército que
sobrevoam diariamente o povoado de Guadalupe Tepeyac no Exílio.
Sim, só os aviões e os helicópteros vêem a imagem gigantesca da Virgem de Guadalupe. Como se os
habitantes deste povoado tojolabal quisessem gritar contra o governo: “Aqui estamos! Não nos rendemos!
Resistimos!”.
Assim que esta é a história, a história de uma imagem que só é vista pelos helicópteros e os aviões do
governo.
Como? O que disse? Ah, sim!, você tem razão; a vêem os helicópteros e os aviões do governo ... e, claro,
quem está mais acima dela, lá bem no alto ...
Bom, don Javier, vou me despedindo. Agradeço pelos livros e, sobretudo, agradeço por suas palavras.
Valeu. Saúde e sim, de novo você tem razão, as coisas são vistas por quem tem que vê-las.

Das montanhas do Sudeste Mexicano


Subcomandante Insurgente Marcos
México, dezembro de 1999.

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