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A Ética Samurai no Japão Meiji

Gabriel Pinto Nunes1

Resumo

Após a abertura dos portos japoneses na Era Meiji, sempre se menciona o acelerado processo de modernização
do país, mas pouca ênfase é dada às ciências humanas, especialmente ao desenvolvido no campo da ética.
Durante boa parte do século XX, intelectuais nipônicos criaram um sistema moral baseado no bushidô, o código
de preceitos morais dos samurais. Faremos aqui uma breve exposição sobre o tema e como se deu esse processo
de construção do sistema ético.

Palavras-chave: ética, Japão, bushidô.

Abstract

After the opening of Japanese ports in the Meiji’s Era, it's usually mentioned the accelerated process of
modernization of the country, but little attention is given to the humanities, especially what was developed in the
ethical field. For much of the twentieth century Japanese’s intellectuals created a moral system based on
Bushido, the code of moral precepts of the samurai. We will make here a brief statement on the issue and how
was this process of building an ethical system.

Keywords: ethic, Japan, bushido.

No final do século XIX, os movimentos conservadores que se proliferavam com o


intuito de manter o poder político exaltavam o tradicionalismo dos camponeses como um
comportamento necessário para barrar a modernização que destruía o velho sistema de
subordinação. Entretanto, o Japão foi um exemplo de país que sofreu um processo de
modernização econômico e político mantendo as relações sociais praticamente intocáveis. Foi
um exemplo de país que conseguiu abolir o sistema de produção feudal adotando o
capitalismo sem abandonar a estratificação social concebida durante os anos de domínio
político dos samurais, conhecido como Período Tokugawa ou Edo (1603-1868).

“Teoricamente, era possível conceber uma ‘modernização’ que mantivesse a


velha organização social (possivelmente com um pouco de invenção
ponderada de tradições), mas fora o Japão, é difícil encontrar outro exemplo
de sucesso na prática”. (Hobsbawm, 2008, p. 274)

1Mestrando em Língua, Literatura e Cultura Japonesa e bacharel em filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da USP. Bolsista CAPES. Orientador: Prof. Dr. Koichi Mori. Contato:
shimeman@gmail.com
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Até 1852, o Japão utilizou uma política isolacionista (Sakoku), fechando seus portos a
todos os povos, com exceção dos chineses e holandeses, com quem continuaram a manter
laços comerciais por mais de duzentos anos (JANSEN, 2000). Tal isolamento do mundo fez
com que o poder político do xogunato e a estrutura social se mantivessem por tanto tempo
sem que sofresse nenhum tipo de ataque de movimentos políticos interessados na
reestruturação social do país. No Japão, ao contrário da Europa, o comércio que originou o
capitalismo como o conhecemos não teve elementos suficientes para surgir, o que justifica o
fato de, às portas do século XX, este ser um dos poucos países do mundo no qual ainda
resistia um sistema de produção similar ao feudal.
Juntamente com a abertura dos portos e a entrada massiva de estrangeiros, chamados
de oyatoi gaikokujin, para ensinar aos japoneses as novas técnicas ocidentais a serem
utilizadas na nascente indústria, houve a propagação de missionários protestantes e ideias que
não tiveram um desenvolvimento natural dentro pensamento nipônico como ocorreu na
Europa. Podemos afirmar que a produção acadêmica japonesa no início do século XX foi uma
cópia daquilo que era feito na Europa, tanto que muito dos intelectuais que trocaram o
confucionismo em favor das filosofias ocidentais as usavam sem muita preocupação, como se
não houvesse problemas em utilizar argumentos de escolas antagônicas de pensamento. Isso
não ocorria por desleixo ou incompreensão por parte dos japoneses, mas por haver uma ânsia
em assimilar o máximo possível de informações e tentar aplicá-las ao mundo em que viviam.
Somente com Nishida e a Escola de Kyoto houve uma verdadeira estruturação da
pesquisa científica em filosofia no Japão, de maneira organizada baseada principalmente nos
estudos de Heidegger. Até então, tínhamos o desenvolvimento de diversas doutrinas de
pensamento sem que houvesse continuidade posteriormente. Neste período imediatamente
anterior ao de Nishida existiram diversos intelectuais que tentaram utilizar as filosofias
ocidentais como sustentação de pretensões governamentais, entre as quais podemos destacar a
preocupação de unificação nacional em torno de uma identidade japonesa autêntica.
Essa preocupação com a unificação se devia ao fato de o Japão sempre ter sido um
arquipélago composto de diversos povos com particularidades culturais que os diferenciavam.
A aparente unidade política era mantida por meio de tratados políticos e acordos firmados ao
final de guerras, ajudados pela política isolacionista. Rapidamente, os japoneses aprenderam
com os europeus a importância da unificação como instrumento de crescimento econômico e
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político, principalmente se existiam interesses na ampliação da influência política na região
ou na dominação militar de outros territórios. O nacionalismo que pairava sobre a Europa
também havia lançado suas garras sobre o Japão, havendo todo um esforço político para o seu
sucesso. Desta forma, o Período Meiji (1868-1912) ficou conhecido como a época histórica
na qual os japoneses preocuparam-se em reescrever a própria história e reestruturar-se de
forma a abarcar o novo nacionalismo baseado nos modelos europeus. Dos processos iniciados
no Período Meiji com esse propósito nacionalista, podemos destacar: a elevação do xintoísmo
ao patamar de religião oficial do Estado, a releitura do confucionismo para se readequar ao
aparato estatal e social divulgado através da educação universalizada, a aplicação das ciências
exatas ocidentais com o intuito de modernizar rapidamente o país e o sistema industrial e a
extinção da classe dos samurais com a criação de uma imagem heroicizada deles com o
intuito de desenvolver uma identidade nacional.
Em certa medida, tal pretensão governamental justificava a postura dos primeiros
intelectuais nipônicos em realizar uma cópia, mesmo que às vezes confusa, do que era
desenvolvido no campo da filosofia na Europa. A famigerada Restauração Meiji (1866-1869),
oficialmente, é entendida como a volta do poder político às mãos do Imperador após mais de
duzentos anos de domínio político por parte do Xogum, enquanto que na prática foi a
adaptação do Japão ao novo modelo econômico-político mundial que privilegiava a
continuidade da classe política que já possuía poder político durante os últimos anos do
Xogunato.

II

A filosofia no Japão antes do Período Meiji era em sua maioria decorrente diretamente
do confucionismo chinês. Diversos pensadores desenvolveram trabalhos intelectuais baseados
nas vertentes do confucionismo chinês, do qual hodiernamente ainda há resquícios. Confúcio
viveu entre 551 a 479 a.C., onde encontra-se a atual China, e dedicou parte de sua vida ao
estudo e ensinamentos dos chamados clássicos, livros que continham a base do conhecimento
intelectual da época. Aos olhos dos ocidentais, como Hegel, o confucionismo era uma
filosofia moral (HEGEL, 2001, p. 182) por não possuir uma parte especulativa. Não podemos
nos esquecer de que Hegel pertencia a uma tradição de pensamento focado no pensamento
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metódico e científico, sem grandes relações com o pensamento mitológico, enquanto que
Confúcio, e boa parte dos pensadores do extremo leste asiático, desenvolveram seus sistemas
de pensamento sem a necessidade dessa cisão.

It fell to the lot of Confucius (b.c.551 to B.C. 479), at the end of the Shu
dynasty, to elucidate and epitomize this great scheme of synthetic labour,
worthy of study by every modern sociologist. He devotes himself to the
realization of a religion of ethics, the consecration of Man to Man. To him,
Humanity is God, the harmony of life his ultimate. Leaving the Indian soul
to soar and mingle with its own infinitude of the sky; leaving empiric Europe
to investigate the secrets of Earth and matter, and Christians and Semites to
be wafted in mid-air through a Paradise of terrestrial dreams — leaving all
these, Confucianism must always continue to hold great minds by the spell
of its broad intellectual generalizations, and its infinite compassion for the
common people. (OKAKURA: 1905, p. 27)

Dentro do confucionismo surge uma concepção que será muito aproveitada durante o
Período Meiji, segundo a qual o homem atingiria a sua consagração como divindade se
seguisse uma vida harmoniosa baseada na ética. Nas mentes ocidentais essa ideia de homem
superior remete imediatamente à obra de Nietzsche, o qual tem em Zaratustra a figura daquele
que procura continuamente o homem superior. A presença da ética no pensamento
confucionista nos revela uma preocupação com a vida em sociedade, ou seja, parte do
princípio de que o homem é por excelência um homem social que se completa no convívio
com o outro. Não muito diferente do proposto pelos pensadores da Grécia antiga, como
Aristóteles, que entendia o homem como um animal político (zoon politikon). Contudo, a
diferença entre o pensamento confucionista e o aristotélico se dá com o uso do mito, enquanto
Confúcio enfatizava a conotação deífica que o homem poderia vir adquirir, mais sublime e
menos terrestre, Aristóteles preferia o entendimento do homem como animal político, mais
terrestre e menos sublime.2
No Japão, podemos destacar duas correntes do confucionismo que se sobrepuseram as
demais desde o Período Tokugawa e que influenciaram profundamente o pensamento ético no
Período Meiji: (a) Chu Hsi ou Zhu Xi (1130-1200) a qual ficou conhecida no Japão como
Sorai por ter sido difundida principalmente por Ogyû Sorai (1666-1728) e a (b) Wang Yang

2 Essa diferença também está presente entre o pensamento aristotélico e platônico, que similarmente ao
confucionista admite um plano mais elevado que o terrestre, porém sem adquirir roupagens religiosas. Isso pode
nos levar a interpretar a posição de Hegel ao confucionismo como um tanto preconceituosa, não diferente do
pensamento europeu que sempre tratou com soberbia as demais culturas do mundo.
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Ming (1472-1529) chamada de Ôyômei e difundida no arquipélago por Motoori Norinaga
(1730-1801).
It’s very attitude, that of inquiry, prevents it from crystallizing into any
single solution of Confucianism. Some of its adherents, like Sorai, go as far
as to maintain that Confucius was purely a political philosopher and not a
teacher of ethics. Some, on the other hand, like Yamaga-Soko, to whom we
owe the development of the Samurai Code on a Confucian basis, found in
Japanese institutions the expression of the moral law of the Chinese sage.
Yet however they differed individually in their conclusions, they united in
being heretical toward the orthodox Tokugawa notions, and all were objects
of disapprobation to the authorities,—Yamaga-Soko, who commanded a
considerable following, being banished from Yedo to the distant and
insignificant daimiate of Akho. Yet even during his confinement there his
personality inspired the well-known Forty-seven Ronins to attempt their
memorable feat of loyalty, remarkable not only as revealing a new ideal of
samurai-hood, but eloquent in its silent protest against the Tokugawa regime.
(OKAKURA: 1904, pp. 72-73)

A corrente confucionista Sorai defendia dois princípios básicos: o Qi como força vital
e o Li como princípio racional. O desenvolvimento delas se daria a partir da ação do homem
no mundo. Por exemplo, a bondade era entendida como inata aos homens e o culto à moral
trazia clareza ao Qi. Uma atitude humana somente pode ser entendida como boa ou má por
meio de um sistema ético. Como visto anteriormente, a ética no confucionismo era algo
necessário para a existência do homem que apenas vive e existe em comunidade ou
sociedade. Atitudes que resultassem em atos de bondade seriam benéficas ao homem, pois
limparia a força vital (Qi) de qualquer impureza, aproximando o homem de atingir o seu ideal
de homem superior. Nessa vertente era admitido que mesmo os que agissem imoralmente não
poderiam ter suas atitudes julgadas como más, pois o princípio supremo regulador é bom, ou
seja, por pior que fosse a atitude, o motivado de tudo residia no bem. Para que isso pudesse se
concretizar, assumiam que o conhecimento e a ação eram componentes indivisíveis da
atividade verdadeiramente inteligente do homem, sendo a ação mais importante. Porém, o
conhecimento deveria vir em primeiro lugar na ordem natural das coisas porque a moral aos
homens era inata.
Yamaga Soko (1622-1685) foi um filósofo e estrategista militar japonês que baseou
todo o seu pensamento na corrente Sorai. Com o objetivo de possibilitar aos samurais que
atingissem a condição de homem superior, acabou por ser o primeiro a ‘compilar’ o primeiro
código de normas, ou sistema ético, para a classe dos guerreiros japoneses, que conhecemos
hodierna como bushidô. Foi mestre de Daidoji Yuzan (1639-1730), autor de uma obra sobre o
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bushidô dos samurais na qual encontramos a busca do equilíbrio entre o militar3 e a cultura4.
Foi escrita em uma época na qual os guerreiros poderiam ter sumido por não serem mais
necessários, visto que os conflitos haviam quase cessado completamente. Mas Yuzan faz uma
abordagem na qual mostrava que a existência dos samurais não se resumia a fins bélicos.
Afirma que em tempos de paz o cavaleiro deveria se dedicar ao estudo da caligrafia,
aperfeiçoamento das artes bélicas entre outras atividades, abandonando a figura dos primeiros
guerreiros japoneses das guerras civis, analfabetos e rudes. Dentro da sua obra, cria duas
ordens com duas divisões cada: a primeira ordem se divide em oficiais e soldados e a
segunda, em exército e assuntos de batalhas. Notamos haver preocupações marciais,
ocupando-se da formação do corpo do exército para depois preocupar-se com a batalha. Yuzan
ressalta serem essenciais três qualidades ao guerreiro: a lealdade, a boa conduta e o valor
(YUZAN, 2004, p. 31). A obra se resume a um manual com regramento para a classe samurai,
não podendo ser chamado de uma compilação ética ou moral. Há grande preocupação com a
etiqueta seguida pelos samurais no cotidiano, ou seja, ênfase nas relações sociais e regras de
etiqueta, com ausência da exposição de qualquer rito cerimonial específico ou explicação
aprofundada dos conceitos usados. Essa característica estritamente prática de pensadores
como Yuzan com a postura dos samurais é decorrente da interpretação do confucionismo
Sorai no qual a ética seria o caminho para se atingir o homem superior. A ética assume um
caráter muito específico de regramento da vida sem a necessidade de dar sentido às coisas ou
de ser utilitarista.

The second school, which started at nearly the same time as the first, is
called the School of Oyomei, from the Japanese pronunciation of
Wangyangming, the name of its founder. This remarkable man was a great
general as well as scholar who lived in China at the beginning of the
sixteenth century, under the Ming dynasty. He never ceased to discourse
even during the brilliant campaigns in which he was victorious over the
rebels in Southern China. His philosophy was an advance on the Neo-
Confucianism of Shiuki, whose doctrines, however, he accepted in the main.
His principal contribution lay in his definition of knowledge. With him all
knowledge was useless unless expressed in action. To know was to be.
Virtue was real in so far only as it was manifested in deeds. The whole
universe was incessantly surging on to higher spheres of development,
calling upon all to join in its glorious advance. To realize their teachings it
was necessary to live the life of the sages themselves, to consecrate one's

3 (武) Bu
4 (文化) Bunka
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whole energy to the service of mankind. Thus he brought Confucianism
again into its true domain, that of practical ethics. (OKAKURA: 1904, pp.
74-75)

A vertente Ôyômei foi a que mais teve influência no Período Tokugawa tardio e no
Período Meiji. Tal corrente de pensamento afirmava que o conhecimento era intuitivo, não
racional e inato a todos os homens, ao contrário da corrente Sorai, que afirmava ser a bondade
inata ao homem. Isso gera diferenças de interpretação, visto que a Ôyômei admitia uma
leitura mais abrangente que a Sorai: o homem não tinha conhecimento apenas da bondade,
mas de tudo que fosse pertencente ao campo da moral. Há o reforço do caráter virtuoso dos
homens de que todos nasciam conhecendo a diferença entre o bem e o mal, afastando a ideia
de que o agir virtuoso fosse algo adquirido pelo hábito. Também afirmavam que o
conhecimento e a ação eram duas coisas distintas, mas que deveriam ser entendidas como
algo único devido à condição de dependência entre ambas para que pudessem existir, uma
consequência direta da condição humana de possuir conhecimento inato. Por tê-lo, o homem
sempre seria agente da ação, eliminando a possibilidade de passividade humana. Aquele que
não atua no meio social não teria conhecimento, mas como todos têm esse conhecimento
desde o nascimento, deveriam agir, sendo impossível encontrar alguém que não agisse e
detivesse conhecimento inato sobre o bem e o mal. Nesses termos, os samurais, tendo
conhecimento moral, eram obrigados a exercerem atitudes corretas na sociedade, daí o
argumento para criticar aqueles que agissem imoralmente ou que cometessem crimes. A moral
se baseava na garantia incondicional de que todos sempre procurariam agir corretamente.

III
Durante o Período Meiji, a criação e uso do sistema ético dos samurais no Japão
adotou uma finalidade que ia além da sistematização de valores morais como regramento da
vida cotidiana, foi também um meio de difusão da política nacionalista que ainda nessa época
não apresentava as características fascistas que viria a ter durante o Período Taisho e Período
Showa. O bushidô5 foi um termo cunhado para representar a ética dos samurais japoneses e
podemos assumi-la como releitura de termos como shidô e kakun com a finalidade de auxiliar
na criação de uma identidade nacional para a unificação de todos os povos do arquipélago

5 Em japonês, bushidô significa caminho do guerreiro.


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nipônico. O processo de unificação nacionalista do Japão partia de uma imagem idealizada de
herói, encontrada no samurai, a qual fornecia uma releitura confucionista dos códigos de
condutas desses guerreiros como base da ética seguida pelas pessoas.
Houve um processo pelo qual o bushidô deixou de ser apenas o conjunto de preceitos
morais seguidos pelos guerreiros, formado por normas e instruções desenvolvidas segundo os
interesses e valores dos clãs aos quais pertenciam, para tornar-se a ética do povo japonês
independente da classe social que ocupasse. Essa releitura do bushidô fazia parte de um
movimento conservador que não propunha mudanças sociais, visto que incentivava a
hierarquia social proveniente do sistema feudal, nem fazia referências a qualquer aspecto
político. A Restauração Meiji em si foi um movimento conservador tendo em vista que as
mudanças no campo político beneficiaram grande parte da classe política existente,
concentrando os esforços na substituição do sistema de produção econômico.
Por causa da pluralidade de clãs e famílias que tinham samurais prestando serviços,
fica difícil afirmarmos qual vertente do confucionismo predominava ao final do Período
Tokugawa. Autores como Inoue Tetsujirô (1855-1944) adotaram como fundamentação ética o
pensamento confucionista Ôyômei, baseado em Motoori Norinaga. Tetsuro Watsuji
(1889-1960), como Inoue, era defensor dessa vertente e se contrapunha à interpretação de
Inazo Nitobe (1862-1933) sobre o bushidô e o acusava de fazer uso da vertente Sorai, além de
inserir muito valores ocidentais e cristãos na sua versão da ética japonesa. A versão de Nitobe
foi a primeira a chegar ao ocidente após a abertura dos portos por meio da obra Bushido – The
Soul of Japan, publicada em 1899 nos Estados Unidos. As interpretações de Inoue e Watsuji
chegaram à Europa posteriormente por publicações traduzidas. Uma das últimas versões do
bushidô a ser difundida no mundo foi a tradução e comentários de Yukio Mishima
(1925-1970), a obra Hagakure de Yamamoto Tsunetomo, que podemos interpretar como uma
reinterpretação ultranacionalista do bushidô de Inoue. Contudo, todos compartilham da
mesma ideia de bushidô: como sendo um código de conduta seguido pelos samurais.

Bushido, then, is the code of moral principles which the knights were
required or instructed to observe. It is not a written code; at best it consists of
a few maxims handed down from mouth to mouth or coming from the pen of
some well-known warrior or savant. More frequently it is a code unuttered
and unwritten, possessing all the more the powerful sanction of veritable
deed, and of a law written on the fleshly tables of the heart. It was founded
not on the creation of one brain, however able, or on the life of a single
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personage, however renowned. It was an organic growth of decades and
centuries of military career. (NITOBE: 1972a, p. 25)

Devemos ter em mente que o termo como nos é apresentado, bushidô, é uma
construção do Período Meiji, sendo difícil encontrarmos na literatura anterior a essa época no
Japão referência explicitas ao termo. A forma mais conhecida era a de kakun6, entendida como
preceitos familiares que deveriam ser seguidos por todos os que fizessem parte de
determinado clã ou família. Podemos tomar como exemplo as artes marciais japonesas,
agregadas como budô no mesmo período, as quais um praticante, ao tomar aulas com um
instrutor, passava a fazer parte da família, ou seja, a organização por clã ainda era comum no
Japão e tal concepção perdurou após o Meiji.
A interpretação de Inoue sobre o termo bushidô com influência do confucionismo
Ôyômei foi utilizada para reforçar o nacionalismo até 1903. Dessa data em diante passou a ter
um tom mais agressivo e serviu de apoio ao movimento imperialista japonês. A ética dos
samurais foi utilizada por Inoue para pregar a unicidade da cultura japonesa e a superioridade
frente às demais, transformando-a em propaganda e incentivando a discussão sobre a ética
marcial (BENESCH, 2011, p. 173). Segundo Benesch, a leitura do bushidô de Inoue deve
seguir cinco pontos:

Inoue’s bushidō theories were marked by five primary elements: a close


relationship with the military as an educator and ideologist; ultranationalism
and the emphasis on a unique Japanese spirit; pronounced anti-foreignism
framed in the rhetoric of Japanese superiority; aggressive intolerance of
other views as a self-appointed defender of “orthodoxy”; and the exaltation
of Yamaga Sokō as one of the most important thinkers in Japanese history.
(BENESCH: 2011, 177)

A postura de Inoue estava mais próxima das pretensões políticas japonesas da época,
diferentemente da versão de Nitobe que propunha a cooperação internacional entre os países.

6 O uso do kakun é melhor expressa por Navarro: “El Bushidô al comienzo fue un código de transmisión oral y
más tarde sus valores e instituciones se recogieron por escrito. En un principio eran códigos secretos (kakun) de
los diferentes clanes o familias samuráis, y posteriormente – en la Época de Edo- se comenzaron a recopilar y
difundir en obras como Hagakure (titulado en español como “libro secreto del samurai”) de Yamamoto
Tsunemono (1659-1719) y Bushidô Shoshintsu (titulado en español como “código del samurái”) de Taira
Shigezuke (1639-1730), entre otras.” (NAVARRO, 2008, p. 243).
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O apoio ao militarismo no Japão era explícito nas obras mais tardias, pois entendia que esse
seria o melhor caminho para que o país pudesse buscar novas fontes de energia, tendo em
vista que o arquipélago não possui recursos naturais em abundância se comparado aos países
vizinhos e continentais. Ele também apoiou o surgimento do ultranacionalismo baseado em
uma concepção pura do ser japonês, excluindo qualquer interferência estrangeira,
principalmente o cristianismo, que julgava incompatível com a forma de pensar autêntica dos
japoneses. Tudo isso ajudava a alimentar um forte xenofobismo, fazendo com que sua
interpretação do bushidô se aproximasse do fascismo. Como apontado por Benesch (2011), a
postura política de Inoue sempre foi concordante com os objetivos governamentais,
exemplificado pela sua postura contrária ao suicídio em meados dos anos 1903, mas até o
final da década de 1920 mudou completamente, entendendo que o suicídio quando praticado
por militares ou civis seriam sinônimos de austeridade e amor quando praticados em benefício
da pátria.
Vemos o uso instrumental da concepção de ética para Inoue, cujo foco principal é a
propaganda nacionalista xenófoba. Nitobe, por sua vez, fez um discurso conciliador, com o
intuito de aproximar os países de cultura ocidental com o Japão. Em seus discursos,
privilegiava a cooperação internacional e não a imposição de vontade de uma ou outra nação.
Enquanto representante do Japão na Liga das Nações, de 1920 até 1926, defendeu seus
argumentos sem contar com total apoio do governo japonês, sendo esse um dos principais
motivos para o seu desligamento desse cargo. Em textos posteriores, afirmava que o Japão
deveria evitar o militarismo e o comunismo, pois tanto um como outro levariam à ruina do
país. Entendia que para o Japão se tornar uma potência econômica era necessário estabelecer
alianças políticas com as principais potências econômicas mundiais, além de incorporar
algumas pequenas mudanças sociais e políticas para facilitar a aceitação do Japão. Notamos
que Inoue e Nitobe defendiam posições inconciliáveis, porém, compartilhavam o bushidô
como sistema ético.

Similar to Nitobe Inazō, Inoue Tetsujirō’s role in the history of modern


bushidō was that of a facilitator and propagandist, rather than as a developer
of original ideas. While Nitobe was responsible for the dissemination of the
subject abroad, the rapid spread of bushidō within Japan in the first five
years of the twentieth century was in no small part due to Inoue’s efforts.
Unlike Nitobe, however, Inoue had another role in the development of
bushidō, namely as a self-appointed defender of the “orthodox”
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interpretation he espoused. Inoue was known for his polemical nationalistic
attacks ever since his denunciation of Uchimura Kanzō’s failure to bow
before the Rescript on Education, and many of his works on bushidō were
compiled in a similar vein. After 1905, Inoue’s writings on bushidō generally
rehashed things he had written before, merely updating them for current
issues, such as the promotion of kokumin dōtoku or Japan’s military
involvement on the Asian continent. The various facets of Inoue’s bushidō-
related activities can be seen in his work from the Meiji thirties, which
should be considered with the nature of his roles in mind. (BENESCH: 2011,
pp. 175-176)

A versão do bushidô de Nitobe se tornou mais difundida no ocidente, e um dos


principais pontos que chamam atenção na obra é a presença da imagem idealizada do samurai
como um herói nacional que deveria servir de modelo de identidade nacional a todos os
japoneses visando à unificação de todos os povos do arquipélago. Nesse aspecto, temos a
aproximação de sua obra com o idealismo romântico de Carlyle, tendo em vista que esse
processo de identificação do samurai como um ser iluminado, um homem superior que tem
como objetivo atingir a plenitude de caráter ao mesmo tempo em que ilumina todas as boas
almas7, é comum ao movimento romântico alemão.
Outro aspecto da obra de Nitobe são os flertes com a obra Reflexões sobre a
Revolução em França de Edmund Burke por haver a defesa do continuísmo da classe
aristocrática japonesa por meio da hereditariedade. Temos a defesa da propriedade privada e
que por meio da desigualdade entre os homens causada pela existência de uma estrutura social
hierarquizada seria o meio de garantir a continuidade da propriedade.

“O poder de perpetuar nossa propriedade em nossas famílias é um de seus


elementos mais valiosos e interessantes, que tende, sobretudo, à perpetuação
da própria sociedade.” (BURKE: 1982, 83)

Contudo, a ética dos samurais pela visão de Nitobe não seria apenas a defesa de um
historicismo conservador, sendo a sociedade algo imutável e cristalizado no tempo.
Diferentemente de Inoue, nessa abordagem do bushidô encontramos a influência do
evolucionismo social de Herbert Spencer, que atuará de duas maneiras dentro da obra:
primeira, as virtudes cultivadas pelos samurais deveriam ser entendidas como indício do

7 “Um homem superior é sempre fonte de viva luz, junto da qual é bom e aprazível estar. Luz que ainda nos
ilumina, depois de ter espancado as trevas do mundo; não é mera lâmpada em que arde o fogo de indústria, mas
luminária natural brilhando por graça do céu; fonte de luz, como disse, refulgente de original esclarecimento, de
humanidade e de nobreza heroica; - fonte de cuja radiação todas as almas se iluminam e aquecem pelo que junto
dela se sentem bem.” (CARLYLE: 2002, pp. 15-16).
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contínuo processo de evolução social inclusive dentro da sociedade industrializada e,
segunda, o caráter conservador era fruto direto desse processo de evolução, afastando
qualquer interpretação de que a ética como proposta pelo autor poderia assumir aspectos
negativos.
Assim, podemos resumir que o bushidô de Nitobe propôs uma ideologia construída
artificialmente com traços de historicismo conservador e nacionalismo romântico, utilizada
para fomentar a criação de uma identidade nacional em todo o arquipélago com o intuito de
unificá-lo, surgindo uma nação forte, sem se debruçar aos apelos do fascismo ou do
imperialismo. Tanto o bushidô de Nitobe quanto o de Inoue ou de seus contemporâneos nunca
tiveram um uso real, ou seja, nunca foram utilizados pelos samurais japoneses durante a era
feudal.

IV
Vemos que a “ética samurai” desenvolvida no Japão durante o Período Meiji foi uma
construção intelectual tendo como base o confucionismo. Dentro do contexto histórico em
que surgiu, teve dois papéis: dar regramento à vida dos cidadãos e ser um instrumento para a
criação da identidade nacional. Ambos os papéis contribuíram com a política nacionalista
desenvolvida pelo governo japonês.
A versão do bushidô de Nitobe foi voltada exclusivamente ao público ocidental. As
interpolações cristãs e referências ocidentais facilitaram o processo de divulgação dos valores
japoneses, favorecendo indiretamente o estabelecimento do contato entre Japão e os países
ocidentais, que culminaria com acordos econômicos e políticos. Também foi responsável pela
construção idealizada do samurai e do cidadão japonês e ainda tem influência na versão
hodierna do indivíduo japonês.
Inoue, ao contrário de Nitobe, estava mais preocupado com questões ligadas à política
japonesa. Por isso, podemos afirmar que a sua leitura da “ética samurai” expressada pelo
bushidô tinha como objetivo principal responder aos anseios da política militarista e
imperialista japonesa. No fim da vida, seu discurso ajudou a cunhar o pensamento
ultraconservador no Japão, algo que somente findou com a morte de Yukio Mishima.
Comparado com Nitobe, Inoue fez uma construção mais artificial e frágil, sendo possível
notarmos volatilidade dos conceitos usados ao longo de toda sua obra devido às drásticas
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mudanças de postura referente a assuntos complexos como o suicídio, defendido nos últimos
textos como expressão da grandiosidade de caráter e do espírito guerreiro japonês.

È qui evidente il tentativo di instaurare un dibattito interculturale fra Oriente


e Occidente sulla base dell’ammissione dell’inferiorità della cultura
giapponese nei confronti di quella europea, in pieno acordo con la volontà di
confronto che anima in parte ancora il tardo período Meiji. Il bushidô, le cui
virtù sono tutte di carattere “sociale” è destinato a scomparire in un’epoca in
cui si è spostato l’accento sul valore dell’individuo, e si sono introdotte le
filosofie che su di esso si basano (principalmente l’utilitarismo e il
materialismo empirista di stampo inglese) con le quali soltanto il
cristianesimo, con il suo codice morale “individualistico”, può convivere. La
convergenza fra gli ideali del bushidô e quelli del cristianesimo è possibile
perché esiste una sostanziale “identià moralle della specie umana, nonostante
i tentative costantemente fatti per rendere più grande possibile la distinzione
fra cristiani e pagani”. Il modo in cui Nitobe intende affrontare il problema
del dibattito interculturale può essere meglio chiarito tramite il ricorso a due
esempi di comparazione fra i costumi giapponesi e quelli occidentali.
(MONCERI: 2000, 51)

Nessas versões do confucionismo de um ponto de vista marcial japonês do século XX,


temos a construção de uma identidade nacional voltada à unificação dos povos que habitavam
o arquipélago nipônico. O samurai é reinterpretado como o herói nacional, aquele que servirá
de modelo às gerações futuras, guiando-os em um caminho de rigor moral rumo ao estado
mais elevado da condição humana e da vida em sociedade.

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