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cRpítuLo rl
METAMoRFosF Do crNEMarócnero EM cTNEMA
verifi
m ar- I he-emo s m ai s ad i an te se, Ã4gr-rg+tlyem_-nl[ç"..99
c a- Mas, mal o cinema, até então ignorado, passa das mãos popu-
-
a-pglelho de filmlge-rnrgâs, como disse Arlaud, gl-a,livamglle lares de Méliès, dos fotógrafos de Brighton e dos directores
-à maneira 6[s 6 uliliz4rz. como Zecca para o recinto reservado aos artistas, é imediata-
mente anexado pelas vanguardas estéticas.
Retrospectivamente, tal como se procuram antepassados e
Ontogénese uma linhagem para aqueles a quem se dá um título de nobreza,
baptizam-se de arte as alquimias do estúdio de Montreuil. Ca-
Extraordinária metamorfose... Metamorfose que, contudo, nudo chamou-lhe <sétima arte>, e tanto bastou para que passas-
quase passa despercebida... Porque entre outras razões os sem ao esquecimento as suas primícias plebeiai, ou ieja; a ver-
-
que operaram a passagem do cinematógrafo ao cinema- não dadeira natureza do cinema.
eram profissionais, pensadores diplomados ou artistas eminen- Certamente que nasceu uma arte mas, ao mesmo tempo, nas-
tes, mas curiosos, autodidactas, uns falhados, uns trapaceiros, ceu mais do que isso. Para a reconheceç é preciso considerar o
uns farsantes... Durante quinze anos, fabricando filmes, fabrica- I
que precede, anuncia'e opera o seu nascimento: para cornpreen-
ram o cinema, não se preocupando com a arte, a não ser como
justificação pomposa para enganar os papalvos. A revolução I
fruto de um obscuro impulso, um impulso quase inconsciente e, Como se opera o nascimento do cinema? Há um nome que
por isso mesmo, profundo e necessário. permite cristalizar toda a mutação: o de Méliès, enorme e ingé-
Torna-se, de facto, impossível localizar a paternidade do ci- nuo Homero. Que mutação é esta? Será a passagem da fotogra-
nema num nome, num homem, num país: em Inglaterra; em fia animada, captada ao vivo, às cenas espectaculares? Crê-se
França, na ltália, na Rússia, em toda a parte onde se produzem resumir a contribuição de Méliès e o próprio Méliès o julgou
filmes, brotam idênticas descobertas. Méliès e os cineastas in- -
que este lançou o filme <(na sua via teatral especta-
-culan>.dizer
ao
gleses de Brighton são os inventores, antes de Griffith e mesmo Mas ggltgg1119.g1afo, nof .[alureza e,dçs$e o seu.apare-
de Poter, como demonstrou Sadoul, das primeiras técnicas, que cimento, era essencialmentè espectáculo: exibià, aos espectado-
voltam, depois, a ser múltiplas vezes reinventadas. A montagem iei õ parâ'óS espectadôres,"âS suas tornriáas de vista, implican-
foi o produto de vinte e cinco anos de invenções e reinvenções, do, com isso, uma teatralidade que, com a mise en scène, se vi-
de audácias, de acasos, até vir finalmente a encontrar o seu ria a desenvolver. Os primeiros filmes do quinetoscópio apre-
mestre: Eisenstein.. sentavamjá, de resto; desafios de boxe, atracções de music-hall,
A metamorfose, provocada, de início, por toda esta série de pequenos entremezes. O proprio cinematógrafo mostra, desde o
curiosos, vem a desenvolver-se, após a guerra de l4-18, com o prirneiro dia, l' ar rose ur arros é. A <<espectacularidade>>, cénica
expressionismo e o Kammerspiel alemãio e, em 1925, ano do
<Couraçado Potemkine>; com a expansão do filme soviético. Mé-
embrenhou
iès- embre o tilme mais prot-un-damente numa i<via teátral
2 <Há mais dit'erença entre a máquina dos Lumière e a maneira de se servir dela
do que entre todas as invenções precedentes e a caixa dos ilustres irmãos>. R. M.
[rqs*
èruqüIãb; f, * ã'ifrffi 5ã" "ffiË*üúaoa",-* *;ft
dela, que devemos procurar a fonte e a essência da grande mu- '
ARLAUD, C inéma Bouffe, pírg. 28. tação.
70 Edgar Morin I 0 Cinema ou o Homem Imaginário 7l
\, sem quaisquer equívocos, inscrever o cinematógrafo na mesma
i!ffi
- Lqçãs""qpff"+d,P..pqr.Méltès.,s"ã.e.gtruca-
linha dos espectáculos de sombras do padre Kircher e de Rober-
genì;ï ,"iô ão espectáculo, -ffi
fanti4stiçs, Rõüolüçao no
tson. Com efeito, a lanterna mágica ilumina a nossa lanterna
õiuçaoffiforma.dabem-no,derestõ,oshistoriadores,
que ficam maravilhados com o <<grande Méliès>, cujas <<formu- com a sua magia e ilumina a sua magia com a nossa lanterna.
lazinhas mágicas>>, como observa Sadoul, <<foram, na realidade,
No ano seguinte ao seu aparecimento, o cinematógrafo coloca-
-se no eixo dessa <<maquineta>> que se compraz com fantasmas e
os germes da sintaxe, da linguagem, dos meios de expressão do
esqueletos e <<permite ver, na obscuridade, sobre um muro bran-
cinemo>3. Mas, por mais maravilhados que fiquem, os historia-
co, vários espectros horríveis, de tal modo que, quem não saiba
dores não se espantam nunca que o cinematógrafo, etn vez de
do segredo, pense que tudo aquilo é obra de magiu4. E isso é
aumentar a fidelidade realista da sua imagem, alargando-a (ecrã
gigante ou circular), dotando-a de som e de cor, como já se tanto verdade quanto SSQmbra, q-ualqueq pm-b,.Iq,.,.ttr.+! iqrcdiq-
o fantástico e á surrealidade.
anunciava na exposição de 1900, tenha optado, desde 1896, pe- *tamenÍg
A #usca aparição dõ'fántáitico faz com que'se revele a ma-
lafantasrnagoria,Defacto,€_-1rguj_Ltg1[i:!Lç*Jroi$*;ime-
gia que se esconde por detrás do <<encanto da imagem>>
.- {at4mca.tp,__s_trlg_q. g-,{-a!'ç4!_ql_ço: a irreatldade 9g "\K-t$;"!9-I[+;9e
- - ) tãioflasrante como a realidade dos irmãos Lumière o foi. O fantasma não é uma mera eflorescência. Desempenha, sim,
um papel genético e estrutural. É sintomático que, em Brighton e
Ao ã'bsoluto tõïíirtnôiüudèië) réCfiõntiè o âb'sõiüïo'irreal is-
Paris, onde se processa a génese do cinema, o duplo tenha sido
mo (Méliès). Admirável síntese que teria agradado a Hegel, sín-
imediatamente utilizado e mobilizado, tenha servido de ponto de
tese donde iria nascer e desenvolver-se o cinema, fusão do cine-
partida a uma das técnicas-chave do filme: a sobreippre$sãos.
matógrafo Lumière e dt.féerie Méliès.
Colocámos em primeiro lugar a sobreimpiérral"iân-t^*ãììca e
o desdobramento, não só porque uma e outra se nos apresentam
A Metaworfose sob os traços familiares da <<magio> já evocada, mas também
porque elas concentram os caracteres próprios do novo mundo
Méliès com ltt caverne maudite, Rêve d'artiste, Les quatre do cinema: trata-se de truques que, de início, apresentam um as-
pecto fantóstico, tltús qírc, com a continuação, se tornatn técni-
têtes embarassantes e Dédoublement cabalistique, G. A. Smith
cas da'expressão realista. Integram-se num amálgama constituí-
com Corsican brothers e Photographying a ghost, introduzem,
do pelas originais receitas de Méliès juntamente com as do teatro
no mesmo ano de 1898, em Paris e em Brighton, o fantasma e o
de Robert Houdin e da lanterna mágica. Participam da inserção
duplo no filme, utilizando o método da sobreimpressão e das
sistemática da trucagem no seio do cinematógrafo. *ffi[Jg$
duplas ou múltiplas exposições.
que, após o refluxo do fantástico,--irá-cbns-
Este truque, que Méliès, no seu texto capital de 1907, As vï $$,*.p ["quç de.ilusõep
ti tú r a. p,tp" çica e lem en tar e npi q! dp. gy"qfquer f i t rn g.
sões Cinernatogróficas, considera tecnicamente em quarto lu-
i
"es"sq
gar, imediatamente induz à imitação; em todos os ecrãs multi- fodbs'os truques de prestidigitaÇão dè Méliès se enraízam,
plicam-se os duplos: tanto de mortos (fantasmas) como de vi- com efeito, em técnicas-chave da arte do filme, inclusive (e aí
sobretudo) no;foiumentãrì'ü e nas actual idadgq. A sobrei mpres-
vos, duplos elevados ao quadrado, como no fantasma gémeo de
Os lrmãos Corsos. Os espectros vão surgindo, com perturbante 4 Dicionário filosótìco de RICHELET, citado por SADOUL,I, 201.
espontaneidade, em sobreimpressão, como se se pretendesse, 5 Também as sombras, os halos e'as luzes, ou, digamos, a magia latente do duplo,
desempenharam mais tarde, nos anos 14-24, um papel genético e estrutural, ao
trâzerem para o cinema o conjunto de técnicas a que chamamos tbtogratìa.
3 SADOUL, II, pá9. 164.
(-
72 Edgar Morin
O Cinema ou o Homem Imaginário 73
são, o grande plano, a fusão e o encadeado* são, por assim di- Convém examinar, antes de mais, a natureza comum dos vá-
zer, produtos decantados das invenções da Star FiIm6. rios jgQuÇF de $élt_e;u que são os truques do teatro fantástico e
Os historiadores mesmo os anglo-saxões têm consciên-
- -
cia da importância genética de Méliès. E, no entanto, também
da liinteina mágica.'Se bem que enriquecidos com inovações,
visam todos, precisamente, oJH efeitos mfgi.co.s e faptágiç.gs,
eles se assemelham aos espectadores que, meio aturdidos, tives- para retomarmos os qualificfiiïbi' associaàói a esrer.eí$êõïâ-
sem ido bisbilhotar aos bastidores. <<Truques, são tudo truques, culos anteriores ao cinema, espectáculos de que ele veio a alie-
olhem para estes truques>>. E, dirigindo-se, por sua vez, ao pú- nar-se.
bl i co, os hi stori adores anu nci am, solenemente : <<Eç"ç.p!,formu I a- Mágicos e fantásticos, tanto esses truques como esses espec-
4i.nh_ag"mágic.,q.q,sãg, nq.Jea!i$qde, os-
gerÍÌrês {1 qintale Ca lin- táculos são da mesma família da feitiçaria ou do ocultismo.
$iüge* e-oos meios de expressao qú" permitiram ao cinema Prestidigitação e feitiçaria operam aparições, desaparições e
fraduzir a realidade da vidu. metamorfoses. No entanto, o feiticeiro é tido como feiticeiro, ao
Os historiadores sabem que e;.ses <<truque$>> modificaram a passo que o prestidigitador é tomado como embusteiro. Os es-
alma do cinema, mas ignoram qual é a sua alma. A frase de Sa- pectáculos de prestidigitação, tanto como o*s_ tquques de Méliès,
doul, que, atrás, vottámos a citar, ao mesmo tempo que põe a
lapp-p$Slgl-{ecadgntgs _e populares em que-o fantástico;á aei-
questão, escamoteia-a. Como é que meros truques, como é que *
eÈttiËàoõ àíieìra, 6"r"qu" continue a fornecer-lhes a
incríveis/eeries puderam desempenhar um papel motor, genéti- ^oo
sua seiva. Apesar de desvalorizada e esteticizada,
co e estrutural? lg"rguê e em quê revolucionaram eleq o cinema-
h"+.,ytq,.ig -lÌll
gica do mundo que, através deles, se perpetua.
tógrafo? Como é possível que o pai durna linguagem e duma ar- Não nos é possível apresentar ainda os caracteres essenciais
tè ïõï?rs não passasse dum farsante que trouxesse uma pomba desta visão mágica do mundo, pois só o cinema os irá revelar,
escondida na manga? Por que é que tão pequenas e faceciosas tal como serão eles que irão revelar o cinema. Precisemos, en-
maquinações teriam produzido tão grandes e patéticos efeitos? tretanto, que nos referimos à magia, não conlo a uma essência,
Por que é que o cinema se terá servido dessas <formulazinhas mas como a determinado estádio e a determinados estados do
mágicas> para vir a <<traduzir a realidade da vido>? espírito humano. Se, para descrevêJa, nos referimos à visão do
mundo arcaico, é porque, aí, a alienaçio é manifesta: é fetichi-
* A lbsão é o processo que consiste no escurecimento progressivo de uma ima-
gem, dando lugar à seguinte, que suÍge, inversamente, por uma progressiva passa-
zada. Se, além disso, damos proeminência à visão arcaica da
[em do negro à luz; no encadeado ou ú'usão-encadeado, o desaparecimento PÍo- morte, é porque nenhuma ganga empírica, nenhuma escória de
gressivo de um plaho e o aparecimento do outro thz-se por Sobreimpressão das' realidade nos impede de considerar a sua natureza fantástica.
duas imagens. (N. T.)
6 O papel do tantástico no desenvolvimento do tìlme não cessou com a ruína da
O estudo da imagem-reflexo, levado a efeito no precedente
Stnifihrde Méliès. Com'<O Gabinete do Dr. Caligari>, "A Carroça Fantasmo>, capítulo, conduziu-nos a um doS dqis- pólos da magia; agjHgl "
<O Braseiro Ardente>>, respectivamenre Das Kabinett des Drs. Caligari (1920)' Detivemo-nos no momento em que a imagem aparece como es-
de Robert Ìiliene, Kiirkarlen (1920), de Viktor Sjôstrtim e Le Brasier Artlent pelho fiel, sem se ter transformado ainda sob o fluxo do desejo,
(t923), de Ivan Moszhúkhin, assiste-se a um novo impulso_do cinema que se en-
riquece em substância, em técnicas (lbtografia) e em atmost'era. O-pç11;se.y,gg$- do temor ou do sonho. Ora, 4gm só"".Ç-g q--o,rybrag,e.fan{asrn.4g,,ó
..i*ont. dialéctica, que taz pa-ss3"çpJìlme do documentírio renlis'ta ao Í'antfrË[ilo*, p,,gvgado o universo d4 magi.p, que é, por essência, um universo
fA;;'r;gõ'í"iriãJHit-'mimrrõós õomo,iniéioi" à.ì*protão, que per-
abérto a todas as metamorfoses. Tudo q q"q-g é faqtáqtico tem, no
hltçtão cing-ma traduzir.a rçalidade d.q v!{g,. Esta djalé'Ótica não passa, com
úetler, dum primeiro estádio. Se, de tacto, depois de Méliès' se restringe o papel que ver com o duBlo e com a metamorfoseT.
{UlOo,
e a área do tantástico, este não deixa de se expandir, conduzindo a uma renovação
da arte realista das imagens. 7 <O Homem e a Morte>>, págs. 99- I 23.
74 lìdgal Morin O Cinema ou o Homem Imaginário 75
Na visão do mundo primitivo, todas as rììct"atÌìorlì)scs sã<r cara aos biógrafosg, Méliès explora esse processo. As primei-
possíveis e efectivas, no meio durn imenso e Íluido parcnlcsco ras transformações obtêm o maior êxito (Le manoír du Dinble,
que une tudo quanto é vivo e actuante, tudo quanto nixr cstii lc- Le Diable au conven; Cinderella, Faust et Mctrguerite, Le
chado nas prisões da objectividade e da identidadc. A rnctarnor- carrefour de l'opéra, Magie diabolique). Como um <<truque ar-
fose triunfa da morte e torna-se renascimento. A rnbrtc-rcnlsci- rasta outro>>, M-étiès procura e encontra novos processos, e só
mento é a segunda imortalidade, paralela e juntamctìtc c()tìì it então é que começa a servir-se dos maquinistas e da prestidigi-
.sobrevivência do duplo. Os duplos movem-se em libcrclirclo lro tação do teatro Robert Houdin e da lanterna mágica.,.p,ainda
universo das metamorfoses que: por sua vez, é animado polos pa.1a oblgr o fantástico que ele inventa a fusão-encadeado e o
espíritos, ou seja, pelos duplos. travelling.
As metamorfoses permaneceram vivas e activas nas histórias Não pode haver dúvidas: no génio de Méliès confundem-se,
de fadas para crianças, nos contos e narrativas fantásticas da in- em estado latente, o feérico e o fantástico, a visão mágica do
fância e, por outro lado, na prestidigitação que, se bem que re- universo e os processos técnicos do cinema. Com mais exacti-
duzida a uma exibição de feira, é, precisamente, a arte mágica dão, diremos que a mefamorfose foi o truque não só cronologi-
não apenas das transferências do visível para o invisível, e reci- c.4mente primeiro, mas o truque primordial.
procamente (aparições, desaparições), mas também, e sobretu- Dez anos mais tarde, e após tantos e tantos truques, Méliès
do, das transmutações e transformações. sublinhava ainda o papel fundamental da,petamorfose, ao dis-
l''"Ora, voltando a Méliès, ou seja, à passagem do cinematógra-
:,fo ao cinema, não só deparamos, na base dos seus.filmes, cotn linggir os filmes segundo duas categorias:Ì'a dos temas compos-
ios ou òenas de costumes e d,,üas tomadas de vistas, ditas de
.a.prestidigitação (trucagens) e, cotno resultado, com o feérico, transformações. Não foi, contudo, na primeira destas categorias
\,cotno
descobrimos que o primeiro truque, o acto operatório em que ele inovou e se tornou ilustre. Já Edison sonhara fazer do
lsi mesmo, de que resulta a transformação do cinematógrafo em filme uma espécie de espelho do music-hal/. Méliès, atraves-
" çinema, é uma,metamorfose. sando a pés juntos o espelho que lhe foi apresentado por Edison
''"'"''
Ém fins de 1896 (em Outubro, supõe Sadoul), isto é, um e pelos irmãos Lumière, foi cair no universo de Lewis Carroll.
ano apenas após a primeira representação do cinematógrafo, A grande revolução deu-se não só com a aparição do duplo no
Méliès, como o faria qualquer operador de Lumière, filma a espelho mágico do ecrã, mas também com a travessia do espe-
Praça da Ópera. A película empeìra, para, passado um minu- lho. Se, original e essencialmente, o.cinematógpfg.lqryièrq é
to, voltar a andar. A cena, entretanto, mudara: o ónibus Made-
$esdobç4mento,_-o_ cinema Mgl!ès, original e essencialmente, é
leine-Bastilha, puxado por cavalos, dera lugar a um carro fú- metamorfose. E possível, contudo, apercebermo-nos, ao mesmo
nebre. outros peões se atravessaram no campo de visão do Ëfiflò]ãüma continuidade profunda no seio dessa profunda di-
aparelho. Ao projectar o filme, Méliès depara, de repente, ferença. Assim como na visão mágica há uma continuidade e
com um ónibus transformado em féretro, e os homens eln uma unidade sincrética, do duplo à metamorfose, também já a
mulheres. <<Assim se conseguira o,truque das metamorfo- duplicidade da imagem cinematográfica apelava ou permitia an-
ses8.>'"i iJ i ir'., ,$ i I I tever o mundo fantístico da metamorfose. Daí a quase imediata
Em 1897, ano em que <<ganha consciência da sua missãor>, passagem de um estado ao outro. <<Em todo o aparelho de fil-
como é costume dizer-se na linguagern finalista e ingénua tão magem há uma varinha de condão, do mesmo modo que o olhar
8 MELIÈS: Lcs vttcs cüútnulogropltique:;. 9 SADOUL: Histoirc de I'art tlu cinému. pág. 31.
76 Iidgul Morirr O Cinema ou o Homem Imaginário 77
do feiticeiro Merlin se transformou enl ob.jectiva> (Abcl Can- de esclarecer reciprocamente o fenómeno evolutivo e o fenóme-
ce)10. ou antes: o olhar do feiticeiro Merlii só so to*olr olr.icc- no revolucionário.
tiva quando a objectiva do feiticeiro Méliès se tornou Mcrlii. Todas a:i técnicas do cinema diferenciação de planos se-
-
gundo a distância da câmara ao objecto, movimentos da câma-
ra, utilização dos cenários, efeitos especiais de iluminação, fu-
A Outra Metamorfose: o Tempo sões, encadeados, sobreimpressões, etc. se unem, ou me-
lhor, se conjugarn e adquirem um sentido, na
- SU
Truques, maravilhoso, fantástico, metamorlbse são as várias
faces duma mesma realidade, a realidade meliesiana, que trans-
$q ç.4 n.o+ t+eem. Não é no ss o propós i to rff,ínHiõü:ëÏarn jái-
íiaí aqui, à laia de catálogo, todas essas técnicas ou fórmulas,
lorma o cinematógrafo em cinema. Mas, deaois de Méliès, o algures perfeitamente descritasll. Teremos, de resto, ocasião
{rutástico e o ;naravilhoso restringemase: oi üruques perdem as de sucessivamente nos determos em cada uma delas. O que é
suas propriedades prestidigitadoras. se a metamorfose Íbi, so- importante é desvendar-lhes desde já os traços revolucionários
bretudo, o motor efectivo da passagem, não foi, no entanto, o e estruturais.
seu meio indispensável. Essa revolução, tão admiravelmente O filme deixa de ser uma fotografia animada para se dividir
simbolizada por Méliès, não se deveu apenas a este, nem sequer numa infinidade de fotografias animadas heterogéneas, ou pla-
terminou com ele. nos. Mas torna-se, ao mesmo tempo, um sistema de fotografias
À semelhança das respectivas histórias políticas, também o animadas, com novas características espaciais e temporais.
{enómeqo evolutivo (ing!ês) e o fenómeno revolucionário (fran- _Q tegp"g_{9 cinsmatógraf-B 9t4 ,qI*9tamp-qte o te..qllÌo* cr9"ll9l9-
gp;). pe gpõery. Há, no primeiro óaso, um continuum de peque_ gico qe-aJ..Q*c_in-qnq, por seu lado, expurgn e comg{ljmenta a
nas mutações qualitativas, e, no segundo, uma transfiguração
9
gü'
rs nol o gi a; çp.t4.b. e ! ece, u m a cgn gqr,${.ttS1o _ç_:. \*RS ç
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e n tre
radical. Mas ambos, como observou sadoul, originaram ioenti- os fragmentos temporais, segundo um ritmo pârtiôülai que vem
cas técnicas. a sgr, n . A montagem
verificamos, uma vez mais, que tais descobertas são simultâ- une eõideïia,'nüm coiitiiüruïïücessão descontínua e hetero-
neas, espontâneas ou, por assim dizer, necessárias. E também génea dos planos. Será esüe ritmo que, a partir de séries tempo-
podemos verificar que, se. a história do cinema talvez pudesse rais divididas em pequeníssimas parcelas, irtí reconstituir um
efectivamente passar sem Méliès, a magia das metamõrfor"r, tÍryPo noug, ggq g14o;@9.
conquanto não necessária, foi, de qualquer modo, suficiente pa_ Tempo fluido que'êstá submetido a estranhas compressões e
ra criar o cinema. Por um lado, Méliès, prestidigitador,.metã o alongamentos. Tempo dotado de várias velocidades e, eventual-
cinematógrafo dentro dum chapéu para de lá extrair o cinema; mente, de marcha atrás. Os filmes dilatam ou prolongam os mo-
e, por outro, em Brighton, uma série de achados ocasionais vêm mentos intensos que atravessam, como raios, a vida real. <O
enxertar-se, empiricamente, no'filme, metamorfoseando_o lenta que em dez segundos se passa pode ser mantido no ecrã durante
e insensivelmente. O cinema vai-se produzindo por si próprio, cento e vinte segundos>, dizia Epstein. Olhar de amantes, catás-
n"ão só sob a acção da magia das metamorfoses, como-atrãvés trofes, colisões, explosões e outros instantes supremos tendem a
duma íntima e profunda metamorfose. Trata-se, quanto a nós,
aï;,ruffiro
uuv vvslrrr Pv"rvr' vv
--
o
e retardador'
diante o que é costume designai por acelerado fose e a metamorfose fantástica de Méliès?
a tornar visível e. cien-
se destinam estes processosluniôamente' O tempo do cinema não é apenas um tempo comprimível ou
iin"ot"nr" analisãvel o que um excesso ou uma insuficiência dilatável: é também reversível. A circulação faz-se sem entraves
antes fazem parte'
de velocidade natural mantinham invisível; do presente para o passado, por intermédio, não raro, da fusão,
dos-yqq1çs'":rsq4o; ç9m
tal como a sobreimpr-g-sgãg e a fusão,
'ffi;;UA'um;féiiõ que nesse caso comprime, não o tempo que passa, mas o que pas-
fantástico ou cómico, ao mesmo
.tempo sou. Da mesma maneira que nos faz avançaç também a longa fu-
ü;i nicas'eiementares quË t"gem o universo do cinema' são em negro ou fusão-encadeado que precede, por exemplo, uma
úüÈ
grande metamorfo-
Reflectem, oo níu"ião registo ãa imãgem' a recordação nos faz circular pelo tempo em marcha atrás. Não há
e dilatação'
-- do tempo por compressão
se dúvida de que a fusão deva o estrryç1ador a crer que lhe mostram,
Èr,o mãtamorror"'do tempo imptica- uma metamorfose do não objectoì reais, rna*ffiqg=e-ïffiFç@, @ela Èdazs)la. euan-
próprio universo, metamorfose que geralmente
passa desperce- to maiõ longa, de facto,?ãffiffi mais ela confere oJp.o-
'biü, ;"t que o acelerado e o retardidor'.no seu exagero óptico' cesso de rememoração um carácter visionário, em tudo análogo
;;il;;eptível. Em 2'acelerado, a vida das flores é shakes- aos habituais meios simbólicos que introduzem a recordação:
peariana, diziã Cendrarsl fluidos, turbilhões, redemoinhos, etc. Mas, ao mesmo tempo que
'-ó" toó,o, como admiravelmente no-lo exprime uma.página de indica a natureza mental da visão, também a fusão a corporaliza
e espiritualiza ("') os
f,pstein, <a aceleração do tempo vivifica até ela atingir a objectividade e a actualidade da temporalidade
cristais começam, assim, a negãtat
("') as. plantas animalizam-se' presente. Flou e fusão são a charneira mental entre o presente e o
gestos' a sua
arrottt"t a súa luz e o seu suporte' exprimem' por e materializa passado: logo a seguir, o passado torna-se sóIido, actual. A sua
mortifica
vitalidade (...)-O retardamentõ do tempo função é, pois, nestes casos, olear a passagem para facilitar uma
fica' em grande parte'
i-.t. Ã ;drência humana, por ex-emplo'
o pensamento extingue-se no
marcha atrás do tempo, que os espíritos ocidentais só com certas
precauções aceitam. Pelo contrário, os filmes japoneses frequen-
;;ilJ"ã sua espiritualidìde' graça do instinto animal'
ãri-,o. (..) ., ouroruiàãs peta infalível
l3 Jean EPSTEIN: Intelligence d'une machine, pág. 56 e seguintes.
l4 Bela BALAZS: Tlrcory of filtn, pág. I 45.
I2 Blaise CENDRARS: I'ABC tlu Cinénra'
Edgar Morin O Cinema ou o Homem Imaginário 8t
80
sf"deggeilm. O. aparelho de filmagem sai da'sua imobilidade tgp{lf1gjgàp_s*sJry, emmetg;ryeúq.*ç dpl.gljçúp-r. O ecrã é li-
com a panorâmica e o travelling. O travelling, inventado, ao teralmente um lenço de prestidigitador, um cadinho onde tudo
mesmo tempo, por Promio em Veneza, por Méliès em L'homme se transforma, onde tudo surge para logo se desvaneeer. Com-
à la tête de caoutchouc e pelos cineastas de Brighton, é, em preende-se agora o estranho, mas não menos indubitável, paren-
1913, renovada por Pastrone em Cabirict A câmara desentorpe- tesco que se pode estabelecer entre estes efeitos elementares do
ce-se; torna-se, a pouco e pouco, flexível até à extrema agilida- cinema, desconhecidos do cinematógrafo Lumière, e as truca-
de acrobática de <<O Ultimo dos Homens>>, de Murnau (1925). gens, aparecimentos, desaparecimentos, substituições e amplia-
A par destes movimentos continuos; há os saltos desconúnuos ções de G. A. Smith e sobretudo de Méliès. O que distingue o
da câmara, ou mudanças de plano, quer sobre o mesmo objecto,
quer de objecto para objecto (plano geral, plano médio, plano 20 H. ACEL: Le cinéma a+-il une ôme?, pâ9.7.
* É surpreendente que Morin não retire deste lacto a conclusão que se impõe e
americano, grande plano, campo, contracampo, etc.). que retbrça as suas teses: a de que a imobilidade do espectador- é o mundo que
se move à sua volta, não ele t'avorece o estâdo de hipnose em que este é
I 9 J, EPSTEIN:' Intelligence d'une machine, pí9. 44. -
mergulhado na <<sala escura>. (N. T.)
84 Edgar Morin O Cinema ou o Homem Imaginário 85
Universo Fluido
2l MADDISON, <O cinema e a informação mental dos povos primitivos>, Revue 24 J. EPSTEIN , Cinénm bonjour,pág. 34,
Internationale de Filmologie, tomo I, n." 3-4, págs. 305-10. 25 PANOFSKY; citndo por BOUMAN , in PsS'cologie Sociale du Cinénn (inédito).
22 Bela BALAZS,Theory offtlm, pág, 148. 2ó Elie FAURE: De Ia Cinéplastique, pág. 41.
23 Bela BALAZS, Theory of film,pâ9. 147. 27 J. EPSTEIN: L'intelligence d'une machine, págs. 162-164.
86 Edgar Morin O Cinema ou o Homem lmaginário 87
Objectos inanimados, tendes afinal uma alma duma parede que é demolida). Talvez possamos filiar essa atrac-
ção nas crenças mágicas latentes, ligadas aos ventos e aos fumos,
...Oceano líquido, no seio do qual, como já dissemos, sur- em que, na medida da sua desincarnação, no limite visível da sua
gem, saltam, e se eclipsam, expandem, contraem e tornam mi- invisibilidade, os espíritos aéreos e os duplos fantasmáticos se in-
núsculos os objectos... Se bem que visíveis, todos estes fenóme- carnam. É certo que o cinematógrafo Lumière não ressuscitava a
nos passam despercebidos (no sentido exacto do termo), e, se antiga magia, mas, sem atrazeÍ ao nível da consciência, reanimn'
bem que despercebidos, fazem sentir os seus efeitos... ud uma sensibilidade animista ou vitalista em tudo o que se acha
Que efeitos? animado pelos <poderes dinamogéneos>> de que fala Bachelard,
Sabemos e sentimos que, no teatro, objectos e cenários, por ou seja, em tudo o que é, ao mesmo tempo, fluido e móvel.
vezes simbolicamente figurados, são acessórios, e acessórios O cinema estende, por seu lado, a todos os objectos essa flui-
que vão ao ponto de desaparecer. No gingmg. pelo contrário, o dez particular. De imóveis que são, põe-os em movimento. Di'
aparêncla dp qenétlo; mesmo (so- lata-os ou condensa-os. Insufla-lhes os tais poderes dinamogé-
Çeqi4rio dç,"rnpdo-rçnh$m,tem
bretudo) quando foi reconstituído num estúdio, é sempre coisa, neos que segregam uma impressão de vida. Se os não deforma,
objecto, natureza. fiìâscÍrfÍÌ-os de sombras e luzes, que despertam ou avivam a pre-
Essas coisas, esses objectos, essa natureza ganham não só um sença. Finalmente, o close up (grande plano), essa maneira de
corpo que, no estúdio, lhes falta, mas'uma <<alma>>, uma <<vido>, <<interrogar>> os objectos (Souriau), obtém, como resposta ao
ou seja, a presença subjectiva. É certo quejá na vida real as es- seu fascínio macroscópico, tódo um desabrochar de subjectivi-
tatuetas de vidro, os bibelots, os lenços, os móveis carregados dade: o naco de carne podre do Couraçado Potemkine e o copo
de recordações são pequenas presenças em estado latente, e as de leite de A Casa Encantada* lançam-nos de repente à cara um
paisagens que contemplamos estão, por assim dizer, polvilhadas grito.
rito. <Os srandes pJ-ano-,ç sãq líripos; é o
grandes dpng.ç-$plÍu.cpq;,.é c9-r4çflp*"q;113gg,,ylqg,
gçg-r4ç*9.."9-11gL_o-g.,y.$[1:
de alma. O cinema vai mais longe ainda: apodera-se das coisâs u"* qffiË"6ïnïlã Bat azsjzr.-'
quotidianamente desprezadas, manejadas como utensílios, gas- im as coisas, os objectos, a natureza, por influência conju-
tas pelo hábito, e desperta-as para uma nova vida: <<se as coisas gada do ritmo, do teihpo, da fluidez, do movimento da câmara,
eram reais, agora tornam-se presentes>, (Cohen-SéaQz8. dos grandes planos e dos jogos de sombra e lsz, ganham uma
Já o cinematógrafo Lumière impregnara duma certa alma tu- qualidade nova. A expressão <Rlg"sçnçA-fig.Fj*tiX*p é, neste caso,
do o que se encontrava no limite da materialidade, da visibilida- insuficiente. Poder-se-á empregar <<atmosfero>. E, sobretudo, <<al-
de e da palpabilidade, ou seja, na fronteira da natureza fluida, mu>. Diz também Balazs que g-çJg1g"E2-"dgygfu-dm* das
espumosa, nebulosa, gasosa ou aquosa. Observa Sadoul que os coisas>>. Epstein, Pudovkine, todos quantos falaram de filme, ex-
espectadores dos anos 1895-96 se deixavam infatigavelmente primiram o mesmo sentimento. Não se trata apenas do grande pla-
maravilhar por <<fumos, espumas de cervejas, folhas tremendo no: é o cinema, na sua totalidade, que, como diz René Clair, <dá
ao vento>>, bem como pelo <quebrar das vagas>. uma alma ao cabaré, ao quarto, a uma garrafa, a uma parede>r3o.
Lumière reconheceu e explorou essa misteriosa atracção pelas É claro que há que considerar esta alma em sentido metafóri-
substâncias fluidas, especialmente pelos fumos (L'Entrée du co, já que é à alma do espectador que ela se refere. Evidente-
train, Le Forgeron, L'Incendie, a baforada de charuto de In Par-
tie d'écarté, Les BrüIeurs d'herbes, até mesmo a nuvem de poeira + Spellbourul,de Alfred Hitchcock (1945). (N. T.)
29 B. B ALAZS, Thcory of film, Pâg. 56.
28 COHEN-SÉAT, obra citada, príg. 122. 30 René CLAIR, Réflections faites, pí9. 79.
88 Edgar Morin O Cinema ou o Homem Imaginário 89
mente que Ly.rg3,,1!.gp_",qrhj"g-ptp.q. ngq. é,pma vida real, rnas pim a gravata do assassino> (Bilinsky)33. De tal. modo a vanguarda
jgg}lga:g[lgStiva. Uma força alienante tende, contudo, a pro- dos anos 24-25 se apercebeu dessa vida das coisas (em parte
longar e a exteriorizar o fenómeno de alma como fenómeno devido à influência dos pintores), que se vêem nessa época Íil-
animista. Os objectos içam-se entre duas vidas, entre dois graus mes de objectos, autênticos baitadòs mecônicos*. Inúmeros fo-
da mesma vida, a vida exterior animista e a vida interior subjec- ram os objectos que vieram, mais tarde, a tornar-se vedetas; a
bola de cristal de <O Mundo a Seus Pés>>*'*, ou o próprio <Fal-
* * *.
cão de Mal ta>> Es ta
.âTjÃIeSão 9q;.g_bj9"çJg^__. con du z-nos, e m
templado, e o sentido subjectivo em que é captada como emo- certo sentido, ao univerbô dá visão primitiva, e, noutro sentido,
ção interior. O cinema é perito não só em embeber as coisas ao olhar da criança. Epstein, como de resto L. Landry, já pers-
num sentimento difuso, como em suscitar-lhes uma vida espe- picazmente notara que o espectáculo das coisas traz o especta-
cial. Assim, como observa Barsacq, os cenários misturam-se dor <à velha ordem animista e místico>34.
com a acção" Mallet-Stevens vai mais longe: <<a arquitectura de- A virtude que tem o grande plano de animar, pode exercer-se
sempenha um papel>>. A mesma ideia exprime L. Landry: <O tanto sobre o objecto total, como sobre um pormenor: uma gota
cinema marca a sua superioridade perante as demais artes em de leite (<A Linha Geral>>n***) pode ser dotada dum poder de
todos os casos em que 9.p1!p.rJg.e4gu-adramep-to_ deya pe.g.ç-q1si- recusa e de adesão, duma vida suprema.
derad^o.çomo ou_ até ntesmo. çoqÌo p.rolagonistg>. Bela Ba- Fenómeno curioso se verifica com certas partes do corpo hu-
lctor,
lazs fala de dramatização dos fenómenos natulaiCi novo mano: o close up revela várias pequenas almas locais, parentes
personagem vem juntar-se à, dramatis personae da peça "um
filma- dessas almas que se escondem na pupila e no polegar, que já E.
da: a própria natureza3l.>> Monseur estudara nas religiões e magias primitivas35. Epstein
Os objectos principiam a viver, a falar, a agir. Balazs cita a quase o adivinhou: <já não me parece fábula que o olho, a
seguinte cena dum filme mudo americano: uma noiva separa-se mão, a língua tenham uma alma especial, como o considera-
de repente do seu futuro marido, percorre uma extensa sala on- vam os vitalistas36.>> O nariz, o olho, a boca são dotados de au-
de se encontram expostos os presentes de casamento. Os objec. tonomia, ou melhor, de alma. <Sabíeis o que era um pé antes
tos sorriem-lhe, chamam-na, estendemlhe os braços. Ela abran- de o terdes visto viver dentro dum sapato, debaixo duma mesa,
da o passo, detém-se e volta finalmente para trás. no ecrã?>>37, observa Fernand Léger. Epstein foi mesmo ao
Objectos heróicos, objectos cúmplices, objectos cómicos, ponto de reconhecer o velho ghost funesto, emboscado atrás do
objectos patéticos: <<uma especial atenção deve ser dada ao pa-
pel especial que os objectos desempenham no filme>>, disse pu-
dovkine32. Desde o primeiro Otelo como filme de arte, que <<os 33 BILINSKY. <O guarda-roupa>, in Art Citúnatograplúrlue,tomo Vl.
{'Rel'erência ao lìlme realizado pelo pintor Fernand Léger, em 1924, Baltet
principais papéis parecem ser os do lenço e os dos punhais de Mécanique. (N.T.)
Iago e de Otelo> (Max Nordau). <<AcabQq;ge,a naturg{?gg#l ** Citizen Kane (1941), de Orson Welles. (N. T.)
1t4* TIrc Maltese Falcon (1942), de John
no ecrã: quem comete o crime é toníJ6Ï"votver como a mão e Huston. (N. T.)
r
ì"'È|Ì4Í@ 34 J. EPSTEIN: Cinéma du eliable, pág. 178.
**** Staroie I Novoie (1929), de Sergei M. Eisenstein. (N. T.)
3l Ct'. A. BARSACQ, in Le Cinénn par ceur. qui le font, pâç. 192; MALLET- 35 E. MONSEUR: <L'ânrc pupillilrc, l'ônrc pouceÍ> in Revue d'histoire des rclï
-STEVENS, <O Cinema e as artes, a arquitectura>>, in Cahiers du ntois, número grbns, 1905, n." Janeiro-Fevereiro, págs. l-23, e n." Maio-Junho, págs. 361-3Tó,
citado; L. LANDRY, <Formação da sensibilidade>, ibid., pág,49; B. BALAZS, 3ó EPSTEIN, Intelligcnce d'une machine, píg. 13.
Theory of fihtr, pirgs.24-25. 37 Fernand LECER, <A propósito do cinema>, Plans, l, Janeiro de 1931, prÍgs.
32 POUDOVKINE: Filn Technique antl Film Acting, pág. 30. 80-84.
90 Edgar Morin O Cinema ou o Homem Imaginário 9l
39 <Filmologia e Estética Comparadas>, in Revue de fihnolagie, Abril-Junho de ôËìecto e a pessoa é um dos processos mais correntes do cine-
1952, tomo lll, n." 10, pág. 120.
40 BILINSKY, <O guarda-roupa>, inÁrr Cinématographique,Yl, pág. 56.
4l COHEN-SEAT, obra citada. pág. 100. 43 BALAZS, obra citada, pág. 168.
42 BALAZS, Theory of Film, pâC.92. 44 H. AGEL: Lc cinéma a-t-il une âme?, páC. 6.
92 Edgar Morin O Cinema ou o Homem Imaginário 93
mo, em que o homem se sente simultaneamente análogo ao Eis uma evidência que necessita, contudo, de ser corrigida.
mundo e sente o mundo sob instâncias humanas, que deve ser Dissemos já que os primeiros filmes de Edison, anteriores mes-
concebido o universo mágico. mo aos de Lumière, representavam cenas de fantasia, entreme-
O totemismo nãô passa dum estádio de cristalização dirm zes, espectáculos de music-hall. E dissemos que, além disso, a
processo muito mais geral. Com efeito, as analogias microma- era do cinematógrafo tanto é a do music-hall ou do teatro filma-
crocósmicas derivam naturalmente do antropocosmomorfismo: dos como a dos documentos captados ao vivo. Não custa, en-
o homem cosmomorfizado ê um universo em miniatura, espe- fim, conceber que, se não se tivesse transformado em cinema, o
lho e resumo do mundo; o mundo antropomorfïzado fervilha de cinematógrafo poderia ter sido utilizado na difusão de outras
humanidade. No seio desse imenso e fluido parentesco vêm ba- obras de imaginação, como são as peças de teatro.
nhar-se todas as coisas, já vivas, coloidais. Todas as metamorfo- O <<cinema-olho> de Vertov e todas as grandes correntes do-
ses isto é, as mortes-renascimento sfl6, do microcosmo ao cumentais, de Flaherty a GrieÍrson e Joris lvens, mostram-nos,
-
macrocosmo, e no seio do próprio -macrocosmo, possíveis e reciprocamente, que as estruturas do cinema nem sempre se
reais... vêm ligar, necessariamente, à ficção. E mais: talvez seja mes-
Assim se nos apresenta a magia: visão da vida e visão da mor- mo nos documentários que o cinema se serve ao máximo dos
te, comuns com o lado infantil da visão do mundo dos primitivos, seus dons e manifesta as suas mais profundas virtudes <mági-
assim como com o lado infantil da visão do mundo dos moder- cas>.
nos, e com as nevroses, as regressões psicológicas e s sonho. Não Uma vez feitas estas reservas, çnpfigua,4,per a ficçãg.a c_o_r-
raro, depois de Freud, se tem confrontado a visão da criança, a vi- r9ffil*Wçdemj.mnÍç*dç"-çi.tlçn*: a ficção desenvol veu -se com o
são do <primitivo> e a do nevrótico. Sem querermos entrar na cinema e este com a ficção. Como se viu, as descobertas de Mé-
disputa levantada acerca do bem fundamentado dessa confronta- liès são inseparáveis do filme fantástico. As da escola de
ção, digamos que não é nosso propósito identificar o primitivo, o
Brighton fazem-se dentro dum quadro de cenas de fantasia, e
nevrótico e a criança, mas reconhecer, no que lhes é análogo, um igualmente fantásticas. Pode dizer-se que, dggdg,fun, um
i mp u I s o i ncoe rc íve I
sistema comum,:a que precisamente chamaremos mágico. Esre @ j"*:-":S"íp, p:fo g.ggjg-
sistema comurn é determinado pelo duplo, pelas'metamorfoses e g9-&"f,gg3g. No próprio ano do baptismo, 1896-7, dé todos os
a ubiquidade, pela tluidez universal, pela anhlogia recíproca do lâdos se vêm introduzir no filme o cómico, o amor, a agressão,
microcosmo e da macrocosmo, pelo antropocosmomorfismo. a história romanceada. A imagem do cinematógrafo, literalmen-
Ou sejam, precisamente, as características constitutivas do te submergida, é arrastada num fluxo de imaginário, que não fi-
universo do cinema. cará por aí. O cinema torna-se sinónimo de ficção. É esta a as-
Dzlga Vertov, ao definir o <<cinema-olho>>, reconheceu, à sua sombrosa evidência. De tal importância se revestem as corren-
maneira,'a dupla e irredutível polaridade do cinema: o encanto da tes e os conteúdos dessa ficção, que consagraremos um outro
imagem e'a metamorfose do universo; a fotogenia e a montagem. estudo aos grandes alísios do imaginário.
Uma vez mais, notamos aqui que e
qgg$tvgg;gtlgp-yeetk:rgtrJ1gg*. através da quãI se lirõõs -
Da Imagem ao Imagindrio sou a passagern do cinematógrafo a cinema (Méliès e G. A.
Smith). E certo que o fantástico refluirá e se reduzirá a um gé-
Correlativamte com a sua metamorfose espácio-temporal, o nero. Mas esse refluxo irá abandonar ao longo da costa todas as
cinematógrafo entra no universo da ficção. técnicas do cinema e o depósito imaginário: a ficção.
98 Edgar Morin O Cinema ou o Homem Imaginário 99
Entra-se no reino do imaginário no momento em que as aspi- é sonho (...) um sonho artifïcial (...). Não será também o cine-
rações, os desejos, e os seus negativos, os receios e os terrores, ma um sonho? (...) Vou ao cinema como quem se entrega ao so-
captam e modelam a imagem, com vista a ordenarem, segundo no>>. Repete-se, incessantemente, a fórmula empregada por Ilya
a sua lógica, os sonhos, os mitos, as religiões, as crenças, as li- Ehrenburg e Hortense Powdermaker: <Fábrica de sonhos>>.
terâturas, ou seja, precisamente, todas as ficções. Manwell fala de popular dream market. Rosten diz, e muito
Mitos e crenças, sonhos e ficções, são os embriões da visão bem, que <(os que fazem filmes são pagos para sonhar os seus
mágica do mundo. São eles que põem em acção o antropomor- sonhos e explorar os seus devaneios>>. E todos nós, frequentado-
fïsmo e o duplo. O imaginário é a prática mágica espontânea do re s d.o ci nem a, obsc urame n te i de nti fi c amo,1jglbgg,f,llng""
espírito que sonha. ,.É como uma representaçffise que
E assim vemos nós, uma vez mais, como o cinematógrafo ob- psicólogos e psicanalistas bem conhecem, ao serem-lhes relata-
jectivo e o cinema de ficção se opõem e se ligam. A imagem é o das visões de sonho ou de semi-sonolência. <<Era como certas
estrito reflexo da realidade, a sua objectividade está em contra- coisas que se vêem no cinema.>> <<Eu não fazia nada, apenas
dição com a extravagância imaginária. Porém, esse reflexo é, jí, via, como num filme.>> O doutor S. Lebovici nota <<esse lapso,
ao mesmo tempo, um <<duplo>>. A imagem já se encontra embe- frequente durante as sessões de análise, de muitos indivíduos
bida de poderes subjectivos que a vão deslocar, deformar e pro- que falam de filme referindo-se a um sonhorr4T. Estes mesmos
jectar para a fantasia e para o sonho. O imaginário enfeitiça a clínicos são levados também a estabelecer profundas analogias
imagem, porque esta é já uma feiticeira em potência. O imagi- entre o universo do filme e o universo onírico. O doutor Heuyer
nário prolifera sobre a imagem como seu cancro natural; vai declara que o delírio de devaneio se aparenta com a visão cine-
cristalizar e revelar as humanas necessidades, mas sempre em matográfica48. O doutor Desoille observa que, no sonhar acor-
imagens; é o lugar comum da imagem e da imaginação. dado, há argumentosa9. Logo desde os primeiros sonhos acor-
E, pois, segundo uma mesma continuidade que o mundo dos dados, dirigidos segundo um método seu, Desoille notou a apa-
duplos passa ao das metamorfoses, que a imagem se exalta no rição de metamorfoses, de espelhos, ou seja, dos mesmos ele-
imaginário, que o cinema desenvolve as suas próprias potencia- mentos mágicos que presidiram às origens do cinema. Coube a
lidades nas técnicas e na ficção do cinema. Lebovici clarificar e definir esse parentescojá detectado por to*
da a partesO, e que Jean Epstein resumia assim: <<Os processos
que o discurso do sonho utiliza, e que lhe permitem uma pro-
Sonho e Filme funda sinceridade, têm as suas analogias com o estilo cinemato-
A imagem objectiva passa, doravante, a aparentar-se com a 47 CÍ. LEROY; Les visions du clemi-sommeil, lll: MUSAl-tl, <0 Cinema e a
do sonho museu imaginário do nosso pensamento no estado psicanálise>, in Revue lntemationale cle Filmologie,II,6, pág. 190;S. LEBOVI-
infantil: a -magia. CI, <Psicanálise e cinema>>, ibitlem,II, 5, pág. 53.
48 Contèrência no Instituto de Filmologia, 1952.
Ao passo que as relações entre as estruturas da magia e as do 49 DESOILLE, <O sónho acordado e a tìlmologia>, in Rèvue de Filmologie, n." 2,
cinema só intuitiva, ou alusiva, ou estética, ou fragmentaria- págs. 197 e seguintes.
mente foram sentidas (à falta, de resto, duma concepção antro- 50 Certas investigações psicanalíticas contemporâneas sugeÍem ainda outra apro-
ximação interessante. Observaram alguns psicanalistas (especialmente B. D.
pológia da magia), o parentesco existente entre o universo do Lewin) que, para os seus pacientes, (todos os sonhos se assemelham a uma pro-
filme e o do sonho foi frequentemente apercebido e analisado. jecção sobre um ecrã>>. Descreveu-se esse fenómeno introduzindo o conceito no-
Lembremos as citações do nosso primeiro capítulo: <<O cinema vo de rlream screen (comunicação verbal de J.-P. Valabrega).
100 Edgar Morin
O Cinema ou o Homem Imaginário l0l
gráficosl.> O dinamismo do filme, tal como o do sonho, rompe
Ainda quando, de tão evidente, chega a ser esquecidas3, não
os quadros do tempo e do espaço. A ampliação ou a dilatação
hrí dúvida nenhuma de que a música de filme é o elemento mais
dos objectos sobre o ecrã correspondem aos efeitos macroscó-
inverosímil do cinema..
picos e microscópicos do sonho. Os objectos, tanto no sonho
Haverá algo de rnais irreal que esses ritmos e melodias, sem-
como no filme, aparecem e desaparecem, a parte representa o
pre presentes, no campo como na cidade, no mar como em ter
todo (sinédoque). Igualmente se dilata, se comprime, se inverte
ra, na intimidade como entre a multidão?
o tempo. O suspense, as desvairadas e intermináveis persegui-
E, no entanto, à medida que o cinema se vai libçrtando do ci-
ções, situações típicas do cinema, têm um carácter de pesadelo. nematógrafo, a música vai-se impondo ao filme: é, mesmo, uma
Muitas outras analogias oníricas se poderiam estabelecer; tanto
das etapas dessa transformação. Sob a pressão duma misteriosa
no sonho como no filme, as imagens exprimem uma mensagem
urgência, sem esperarem pela banda sonora, pianos e orquestras
latente: a dos desejos e temores.
foram acompanhando os filmes mudos. Terá sido, segundo pre-
Encontra-se, pois, no filme <<a imagem sonhada, enfraquecida,
tende uma lenda tenaz, com o fïm de dissimular os roncos do
diminuída, ampliada, próxima, deformada, obcecante, do mundo
aparelho? (Um incidente contingente acaba sempre por explicar
secreto onde, tanto na vigília como no sonho, nos refugiamos
aquilo que escapa à lógica.) E, aliás, por que não? O importante
dessa vida maior que a vida, onde dormem os crimes e os heroís-
é que a música tenha ultrapassado, e de longe, esse papel pro-
mos que nunca realizaremos, onde se afogam as decepções e ger-
tector. Muito cedo aparecern os <incidentais>>, trechos escritos
minam os mais loucos desejos> (Jacques Poisson)52.
para acompanhar o filme mudo, as partituras originais54 e os
leitmotiven que servem de tema aos heróis55. Em 1919, foi pos-
sível a Giuseppe Becce reunir, numa <<quinoteca>>, mil trechos
classificados segundo a atmosfera e as situações, matéria admi-
rável para uma sociologia das categorias da-afectividade musi-
do? E em que medida isso se verificará? Atermo-nos unicamen-
cal. $,.mÚ".çjç&Átr-tgg, pois,
te ao onirismo do cinema é ignorar este problema, cuja ulterior ,g1gs,po -4n-fçp,aipfla do fiJrn9-.q9g-o_{9-,
como um elemento-chave, ou seja, ç51grp- uma necg.s.pidadç,.
elucidação nos deverá, necessâriamente, tornar patente, caso ela {o _
exista, a <<especificidade> do cinema. 9*9."q1?-
Talvez se possa ter pensado que a música mais não era que ver numa cabeça e da tempestade em pleno mar, do furacão at-
um substituto das vozes e ruídos que faltavam ao cinema. Mas, mosférico e do furacão passional.
ainda que falado e com ruídos, o fìlme sonoro continua a neces- Há, pois, uma complementaridade antropocosmomórfïca en-
sitar de música. Não falemos sequer dos filmes-operetas, desde tre a música (pelo menos a música descritiva) e o cinema. Não
Drei von der Thnkstelle a <<O Vagabundo dos Sonhos>>", ou da- será também esta complementaridade um parentesco56?
quilo que Maurice Jaubert chama música <<real>> do filme (azz Élie Faure disse que Q^$-lgp-.ss-t;g1p--Ig4g,1-c_l_qg9._glt""e*gg..pJÉ
numa boite, órgão numa igreja). Se bem que a utilize abundan- ggS p.gt ilte"ryr_ré{iq Ou y5l*>>. Deve-se, com efeito, ao cinema o
temente, o cinema não se satisfaz com essa música exterior. Ne- ter introduzido, em lugar da simples fotografia animada, a flui-
cessita, acima de tudo, duma música integrada, <<misturada>> dez, a continuidade uma continuidade fluida que vai fundar-
com o filme, inerente a este, onde este se banha e se alimenta. -se na descontinuidade - dos planos, do mesmo modo que a con-
Ainda que o espectador nunca se aperceba disso, o cinema é tão tinuidade musical é fundada na descontinuidade das notas, flui-
musical como a ópera. dez concreta conseguida pelos meios mais abstractos uma
Raríssimos são os filmes privados de música, e se dela se pri- temporalidade que se acelera, que perde velocidade, que - volta
vam é para a substituírem por uma sinfonia de ruídos, como atrás, uma temática, uma série de leitmotiven (flash back), etc.
acontece em Jetons les jïIets. Não há filme sem música, e, em Uma espécie de analogia parece presidir à confraternização
90 minutos de projecção, a partitura dura, em média, de 2O a 45 do cinema com a música. Confraternizaçío que, muitas vezes,
minutos. leva à confusão e à reciprocidade. Cohen-Séat aponta certos ca-
Qual o papel da t"lgq"H*f,"lm? Ainda não estamos em al- sos de equivalência onde <a significação literal das imagens se
tura de responder a estq pergunta. Digamos apenas, por enquan- mostra extremamente ténue (...) a sensação se torna tão musical
to, o que ela é: uma /gpg"gf"-r"g!fÈ A partitura dos filmes que, se de facto a música acompanha a imagem, esta consegue
mudos (incidentais) são autênticos catálogos de estados de alma realmente tirar daquela o melhor da sua expressão, ou melhor,
cujas categorias principais são as cenas alegres, as cenas tristes da sua sugestão>>s7. Entre as mais dilacerantes visões (o termo
e as cenas sentimentais. E interessante notar que estes <inciden- ocorreu-me espontaneamente) de cinema que nos assediam, po-
tais>> têm um carácter antropocosmomórfico latente: ao mesmo dem-se contar aqueles momentos em que um refrão evoca uma
tempo que exprimem um sentimento íntimo, descrevem um es- imagem passada sem que esta seja reintroduzida por um flash
pectáculo natural, o que equivale a dizer que a cena está imbuí- back ou uma sobreimpressão. A ária de Nous irons à Suresnes
da de emoção, e que a emoção é projectada na cena: <<Persegui- ressuscita a imagem do crime outrora cometido pelo legionário
(<A Bandeiro>"). A <Violettera>> evoca a radiosa e dolorosa
ção dramática - Desespero - Amoroso cantabile - Visões de
lembrança do amor, quando Charlot, ao sair da prisão, vê nova-
horror
- Passeio campestre>>, são outros tantos títulos revela-
dores do complexo descritivo-afectivo (micromacrocósmico) mente a ceguinha (<As Luzes da Cidade>**). A visão tornou-se
que rege a música de filme. Um <<incidental>> dos mais usados, a música e a música, visão, fazendo as vezes da sobreimpressão
Tempestade, tanto pode acompanhar <<um incêndio de florestas, ou do .flash back, pois basta-nos o seu encantamento para res-
como os remoinhos dum coração macerado, ou uma catástrofe
ferroviáriu, evidenciando assim a equivalência antropocosmo- 56 CÍ'. a este propósito: L. LANDRY, <A tbrmação da sensibilidade. O papel do
sujeito>, in Cahiers tlu Mois, n.o citado, pág. 40 e seguintes.
mórfica do tormento e da tormenta, da tempestade que pode ha- 57 Obra citada, pá9. 130.
* kt Banclera (1935), de Julien Ouvivier. (N.T.)
* Les Belles ** City Lights ( 193 I ), de Charlie Chaplin. (N. T.)
cle Nuit (1952), de René Clair.
104 Edgar Morin O Cinerna ou o Homem hnaginiirio 105
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s u s c i tar a .. qu i n t a-e s sê n ci a da mú s i c a matógrafo ao cinema .se não se deu por acaso. Maquinalmen-
vem identificar-se, no decurso desta alquimia, com a quinta-es- te, é Certo, mas, iepetimo-to, segundo uma lógica. O <<encan-
sência da recordação seu carácter único e irremediável, sua tamento da matéria vulgan, de que Apollinaire falava, princi-
tímida promessa de eternidade, - sua magia. piou secretâmente no invisíve l, sob a imagem objectiva.
Ultrapassada a primeira fase desagradável de adaptação, Méliès libertou a crisálida. E o l'ilrne fbi subjugado, sugado,
quando vemos hoje filmes mudos privados de música, sempre digerido, transfigurado.
nos pareceu escutar, por cinestesia, uma espécie de música ínti- de referência ó a.magia, ou melhor: a magia
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ma, de orquestra interior. Como se o cinema exprimisse a músi- é o nosso modelo-pctdr[ío, o tlosso pultern. Porque, já várias ve-
ca implícita, a música subentendida nas coisas. Como se, no ci- zes o dissemos e de novo o repetirnos, de rnodo nenhum identi-
nema, tudo cantasse. Como se o papel da música fosse o de ficamos o cinema com a magia: apenils pomos em relevo as
sublinhar esse canto, de modo a fazê-lo aflorar aos ouvidos sen- analogias, as correspondônci as.
síveis... Erramos, de facto, do espectador paríÌ a imagem, da alma in-
Voltaremos, necessariamente, a referir-nos à música de filme, terior para o fantástico exterior. O universo do cinema deriva
música que diriamos ter o dom de iluminar o cinema do inte- genétiõa e estruturalmente da rnajia, sern que seja magia; deri-
rior... Notemos, por agora, que o cinema se destaca do cinema- va da afectividade, sem tambérn ser sub.jectividade... Música...
tógrafo e completa a sua primeira revolução para vir espraiar- Sonho... Ficção... Universo Í'luido... Reciprocidade microma-
-se, banhado pela música, em plena irrealidade. crocósmica... tudo isto são tennos que, ainda que lhe assentem
bem, nenhum deles verdadeiramente o define.
Foi um verdadeiro fluxo activo-mágico o que impulsionou e
Irrealidade, Magia, Subjectiviilaile animou a câmara em todos os sentidos, abrindo, de plano a pla-
no, uma série de brechas na imagem objectiva. Ei-lo que brota e
Para lá da música, que apenas é um dos seus aspectos, é de transborda, ei-lo que surge e irrompe, arrasta e mistura a carac-
facto esta irrealidadeo""gge_."e gJn-g1nl..ngl f-f?Í, assi m como é
. terística mágica do duplo, a duração bergsoniana e a metamor-
através oet d'[Ë-õo,iiiãïão ci nãm ptógrafo.' Éit", porém, como fose, o animismo e o estado de alma, a música e os objectos
vimos, traziajá consigo a génese dessa inealidade. O cinema reais. Que imperativo o arrasta?
vem impulsionar o que na imagem cinematográfica-mãe havia Para o encararmos em profundidade há que descermos, mais
em estado latente: o cinema é esse próprio impulso, mercê do profundamente, às estruturas subjectivas da magia.
qual o irreal se espalha imediatamente no real. Na verdade, porém, começamos já a reconhecer-nos: ainda
Irreal: eis a qualifïcação negativa, vazia. Há que descobrir as que lhe pareça oposta, a magia surge-nos sempre como o outro
estruturas dessa irrealidade, a sua lógica, o seu sistema. E então pólo do sentimento subjectivo, o pólo alienado, exteriorizado,
surge-nos, em filigrana, subjacente ao cinema como já no cine- solidificado, identificável... Sentimento, música, sonho, magia:
matógrafo o fora, mas desta vez total, em toda a sua amplidão, a há em tudo isto algo de único, se bem que em planos de dife-
visão do mundo mágico. renciação diversos. E não vimos já que e$1e-,og truques mais
Não... Não nos fizemos excursões alheias aos nossos propósi- fantásticos de Méliès e as mais elementares estruturas do cine-
tos. A determinação do sistema mágico permite-nos escapar à ma, as suas estruturas quase-subjectivas, e5^i,.s-1_1u- sempre uma re-
qualidade dormitiva duma palavra que se tornou uma espécie de
santo-e-senha; permite-nos verificar que a passagem do cine-