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REVISTA DE EDUCAÇÃO

BASIL BERNSTEIN E PAULO FREIRE


POSSIBILIDADES DE DIÁLOGOS PARA O ESTUDO ANATOMOFUNCIONAL DO CAMPO
PEDAGÓGICO

Mateus Casanova dos Santos – Universidade Federal de Pelotas - UFPel

RESUMO: O estudo de caso com caráter qualitativo, reflexivo e participante emergiu PALAVRAS-CHAVE:
das reflexões levantadas durante a execução do projeto de pesquisa intitulado “Estudo Educação, Ensino, Prática de
ensino, Professores, Psicologia
da avaliação do disparador de aprendizagem Simulação”. As reflexões elaboradas escolar
surgiram das observações participantes e do diário de campo da pesquisa. O objetivo
do estudo é compreender as possibilidades de interlocuções entre as teorizações de
Basil Bernstein e de Paulo Freire para as pesquisas no campo pedagógico. Os pontos KEYWORDS:
de encontro entre as teorizações ocorreram na interface do organismo pedagógico, Education, Teaching, Practice
sobremodo nas dinâmicas dos processos de contextualização do dispositivo pedagógico Teaching, Teachers, School
psychology
e do inacabamento. O estudo reflexivo apresentado é considerado inacabado e requer
mais aprofundamentos teórico-científicos em pesquisas vindouras.

ABSTRACT: The case study with qualitative and reflexive participant emerged from
the discussions raised during the execution of the research project entitled “Study on
evaluation of the trigger simulation learning.” The reflections developed emerged
from the participants and the daily observations of the field study. The objective is
to understand the possibilities of dialogues between the theories of Basil Bernstein
and Paulo Freire for research in the pedagogical field. The meeting point between the
theories occurred at the interface of the teaching body, greatly in the dynamics of the
processes of contextualization of pedagogic device and incompleteness. The reflective
study presented is considered incomplete and requires more theoretical and scientific
insights into future researches.

Artigo Original
Recebido em: 19/11/2011
Avaliado em: 25/11/2013
Publicado em: 30/05/2014

Publicação
Anhanguera Educacional Ltda.

Coordenação
Instituto de Pesquisas Aplicadas e
Desenvolvimento Educacional - IPADE

Correspondência
Sistema Anhanguera de
Revistas Eletrônicas - SARE
rc.ipade@anhanguera.com

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Basil Bbernstein e Paulo Freire: possibilidades de diálogos para o estudo anatomofuncional do campo pedagógico

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O estudo das práticas pedagógicas envolve diversos aspectos educacionais que perfazem
etapas de planejamento, ação e avaliação do processo ensino-aprendizagem. As repercussões
destas etapas são cíclicas nas relações dos dispositivos pedagógicos em sala de aula,
estabelecendo diálogos e interlocuções que perfazem as práticas pedagógicas. A sala de aula
como cenário de pesquisa constante e com infinita gama de possibilidades dialógicas é o
espaço que motiva a pesquisa em educação para compreender as relações pedagógicas com
a finalidade de territorializar o ensino no contexto em que está inserido. A identidade do
ato de ensinar em cada contexto é constantemente construída e envolvida por uma rede de
relações e disputas. Neste sentido, o diálogo entre autores como o sociólogo da educação
Basil Bernstein e o educador Paulo Freire são possibilidades que emergem para ajudar a
compreender o campo pedagógico.
Paulo Reglus Neves Freire, nascido em Recife, em 1921, tendo uma realidade infante em
meio à pobreza, foi e ainda é um educador comprometido com os mais pobres e consolidou
no Brasil os princípios norteadores da educação popular. Ele trilhou caminhos no Brasil, na
América Latina, na África e na Europa, concretizando um jeito de metodológico de ensinar
e aprender. Os trabalhos escritos e as ações de Paulo Freire foram dedicados a pensar o
ato pedagógico e contribuir para a formação docente. Nesta concepção, o educador como
um animador cultural, reconhecendo a realidade contextual dos alunos e da comunidade,
promove a ação cultural e a educação como um grande encontro de saberes (FREITAS;
GHIGGI; CAVALCANTE, 2011). Paulo Freire, na perspectiva do olhar e das aprendizagens,
demonstra o refinamento do ofício de mestre por meio da humanização, dos valores, dos
saberes e da cultura (ARROYO, 2000).
Basil Bernstein, nascido em 1924 e falecido em 2000, foi professor do Instituto de
Educação da Universidade de Londres, Inglaterra, e, na mesma instituição exerceu, ainda,
o cargo de diretor da Sociological Research Unit (SADOVNIK, 1991; MORAIS; NEVES, 2001).
Morais e Neves (2001), em uma antologia sobre Basil Bernstein, afirmam que ele é considerado
o mais interessante sociólogo britânico da última metade do século vinte. As autoras
argumentam que as idéias de Basil Bernstein oferecem a mais desenvolvida gramática para
compreender a morfologia e o caráter da atual política educacional. Bernstein começou a
publicar seus estudos em 1958 e manteve-os até o ano 2000. O conjunto de livros publicados,
divididos em cinco volumes, denominado Class, Codes and Control, teve a sua primeira edição
publicada em 1971. O último volume, em segunda edição revisada, publicado na Inglaterra
em 2000, é intitulado Pedagogia, controle simbólico e identidade (Pedagogy, symbolic control
and identity).
Conforme Santos (2003), Bernstein constrói a sua teoria sobre o processo de constituição
dos conhecimentos escolares a partir do conceito dos códigos lingüísticos e estabelecendo
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analogias entre estes e os processos educacionais. Para Bernstein, a escola reflete imagens
que são projeções da hierarquia de valores de classe, um espaço de vozes plurais que lida
com as hierarquias externas a ela e com as questões de ordem social, justiça e conflito.
O objetivo do estudo é compreender as possibilidades de interlocuções entre as
teorizações de Basil Bernstein e de Paulo Freire para as pesquisas no campo pedagógico.
O estudo de caso de caráter qualitativo, reflexivo e participante (BOGDAN; BIKLEN,
1994; MION, 2002; THIOLLENT, 2003; MONTEIRO et al, 2010) emergiu das reflexões
levantadas durante a execução do projeto de pesquisa intitulado “Estudo da avaliação
do disparador de aprendizagem Simulação”. As reflexões elaboradas surgiram das
observações participantes e do diário de campo da pesquisa. O estudo foi realizado com
o acompanhamento da sala de aula do disparador de aprendizagem Simulação Clínica da
Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas. A coleta dos dados aconteceu
nos meses março, abril e maio de 2010, assegurando os preceitos éticos e legais da pesquisa.
Neste estudo de caso reflexivo, os encontros entre as teorizações de Basil Bernstein
(BERNSTEIN, 1999; 2000; 2003) e de Paulo Freire (1992) tiveram a contribuição das leituras
de Bott (1980), Steiner (1995), Baldi (2003) e Santos e Leite (2010), remetendo o pesquisador à
alusão entre o sistema hepato-biliar humano e a imagem desta funcionalidade no organismo
educacional e pedagógico. O jogo de palavras e as interlocuções organizadas entre Bernstein
e Freire, como demonstra a figura 1, foram elaboradas durante as atividades da disciplina
Biobliografia de Paulo Freire, do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade
Federal de Pelotas, sob orientação do professor Gomercindo Ghiggi.

Figura 1 – Jogo de palavras entre Bernstein e Freire: movimentos, relacionamentos, intersecções e sobreposições para
a pesquisa das práticas pedagógicas (ilustração do diário de campo do autor).

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O gesto hepato-pedagógico constituiu-se no território imagético para o encontro das


teorizações de Basil Bernstein e de Paulo Freire, importantes autores que destacam o ato
pedagógico contextualizado dentro da complexidade das relações cognitivas, psíquicas,
afetivas e práticas. As indagações envolvendo os sentimentos que permeiam o educando,
do que fazem o educando e do que pensam o educando até as relações estabelecidas em sala
de aula e na psique docente são temas relevantes para compreender as práticas pedagógicas
por meio da pesquisa educacional de sala de aula.
Ao ver onde os pés pisam, a partir da pesquisa em Paulo Freire e em Basil Bernstein,
pretendeu-se correlacionar as observações das práticas pedagógicas nos ambientes das salas
de aulas junto ao fenômeno da dinâmica do organismo educacional. O sistema hepatobiliar
está centrado no órgão fígado. Os processos de saúde e doença hepatobiliares repercutem na
saúde global do indivíduo. Já o sistema hepatobiliar da sala de aula é uma víscera complexa
que metaboliza e recontextualiza diferentes interfaces na tentativa de formação de uma
estrutura de aprendizado. São as mudanças que fazem o que sou hoje. São as reações químicas
hepáticas que fazem eu novo a todo momento, isto é, recontextualizado. As mudanças, a
partir da leitura de Paulo Freire, fazem compreender as aglutinações do conhecimento.

2. CONSIDERAÇÕES ANATOMOFUNCIONAIS DO SISTEMA


HEPATOBILIAR NA PRÁTICA PEDAGÓGICA: OS CONTEXTOS COMO
ESPAÇOS DE RESSIGNIFICAÇÃO E RELEITURA, SENSIBILIZAÇÃO
E RESSONÂNCIA - A FUNCIONALIDADE HEPATO-PEDAGÓGICA
A intenção harmônica do fazer educação precisa ser reavaliada na constante
contemporaneidade. A desconstrução dos saberes com a ausência da força da formatação,
da força de estruturação é aqui trazida como uma realidade insalubre para o organismo
escolar e educacional como um todo. O metabolizador está adoecido pelo excesso de
metabolismo? O momento também é o de investigar o paciente chamado docente. A sala
de aula apresenta os enfrentamentos confusos e em choque que não são harmonizados pelo
excesso de sobreposição de conhecimentos e afetividades que se sobrepõem e obnubilam
a capacidade de digestão do apreender, afetando sobremaneira a prática pedagógica do
educar. A digestão aqui expressa como a assimilação dos conhecimentos. A reconstrução e
reestruturação são travessias constantes do processo do educar. As mudanças dos contextos
são imagens hepatobiliares da sala de aula quando diferentes fluídos se misturam para
participar do metabolismo do organismo hepatobiliar do ensino, quando circulação arterial,
venosa, biliar, linfática e portal se mesclam na atração tecidual hepática. As cinco circulações
hepáticas são na vida da sala de aula o sangue arterial da respiração do aprender, o sangue
venoso recontextualizado que sai do fígado em direção a todo o organismo, o sangue venoso
portal que chega no fígado com a mais variada gama de informações absorvidas do mundo,
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a linfa que particulariza conhecimentos sensíveis para todo o corpo e a secreção biliar salina
que separa conhecimentos hidrofílicos da digestão do mundo e aglutina conhecimentos
hidrofóbicos ou lipofílicos ingeridos do mundo. A metabolização lipídica depende da
capacidade hepática de secretar a bile e de transformar os conteúdos em realidades próprios
do organismo. As metabolizações das classificações e dos enquadramentos da sala de aula
dependem da capacidade docente de organizar o dispositivo pedagógico para fins de efetivar
a digestão, a assimilação. O processo de aprender remonta a digestão do conhecimento dentro
do próprio indivíduo. São as recontextualizações do aprender que, em Bernstein (1999,
2000, 2003) organizam as regras recontextualizadoras, as regras distributivas e as regras
avaliativas do dispositivo pedagógico, em que são assimiladas e organizam apreendizado
do adquirente.
O aprendizado do ensinante ao ensinar se verifica na medida em que o ensinante,
humilde, aberto, se ache permanentemente disponível a repensar o pensado, rever-
se em suas posições; em que procura envolver-se com a curiosidade dos alunos e os
diferentes caminhos e veredas, que ela os faz percorrer (FREIRE, 2009, p.27).

A individualização das características próprias do alimento da vida educacional são


elaboradas pelo sistema hepatobiliar educacional com regras próprias de classificação e
de enquadramento, articulando diferentes vozes na união dos saberes. O corpo docente é
indissociável do corpo discente e a geração do organismo educacional são marcas inerentes
da construção do conhecimento.
A intenção não é reduzir o organismo escolar da sala de aula apenas ao sistema
hepatobiliar, mas sim observar a importância da construção do organismo escolar a partir
da observação do metabolismo cotidiano da sala de aula. Assim, observa-se o docente como
o grande metabolizador que retroalimenta como um todo o organismo social educacional.
Os diferentes contextos têm diálogos e cruzamentos que interpelam as necessidades
e as realidades possíveis e impossíveis. A expressão dessa malha contextual pode ser
desenvolvida com a teorização freiriana e a leitura das relações contextuais e dos códigos
envolvidos podem ser elaboradas com as teorizações bernsteinianas. Basil Bernstein é um
autor que dialoga para nos apoiar nas teorizações freirianas enquanto forma metodológica
da pesquisa em educação. Com a contribuição da leitura de Bott (1980) e Baldi (2003),
observa-se que Freire faz a relação com o pólo metabólico-motor da pesquisa, isto é, onde
se age e/ou onde os pés pisam. Bernstein está envolvido em neurossensorializar o pólo
metabólico, procurando compreender os códigos pedagógicos e a gramática intrínseca
envolvida nas interfaces dos dispostivos pedagógicos. Dessa maneira, é uma possibilidade
de compreender os diálogos que, em Freire, são expostos. Os diálogos, no sentido freiriano,
envolvem trocas, compromissos e sobreposições do que é diferente e, inclusive, do que é
antagônico.

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As classificações e os enquadramentos dos discursos pedagógicos foram também


observados como atos políticos. Esta inseparabilidade é marca tocante das teorizações de
Paulo Freire e de Basil Bernstein. As leituras e as releituras dos contextos são constantemente
gesticuladas a partir das travessias do saber e da politização do conhecimento. Os caminhos
metodológicos aqui envolvidos foram capazes de estabelecerem diálogos entre as teorizações
de Paulo Freire e Basil Bernstein.
A ideia de recontextualização, a partir de Bernstein, se aproxima da proposta freiriana,
especialmente no campo da educação popular e da intervenção-ação (MION, 2002;
MONTEIRO et al, 2010) enquanto ferramenta para a pesquisa educacional.
O gesto de encontro entre Bernstein e Freire está na proporção em que o professor é
visto como o metabolizador do saber, isto é, o sistema hepato-biliar da sala de aula (Figura
2). E por que isto? Pois bem, enquanto a sala de aula é observada como um organismo, ela
apresentará estruturas funcionais com certa delimitação e que se interrelacionam. A malha
visceral que repercute no fazer educação é repleta de vida animada, espaços, similaridades,
diferenças e antagonismos. As circulações de fluídos em diferentes graus é uma marca
metabolizadora hepática. O mundo da sensibilidade química abdominal que se diferencia
em qualidades próprias do organismo em funcionamento são aspectos que individualizam
um corpo e o tornam único e com um contexto exclusivo. A capacidade de individuação
no contexto interligado com o ambiente é a química que metaboliza o todo e o diferencia
novamente, recontextualiza. A alquimia da classe se dá pelo processo hepato-biliar docente
e discente. É a mudança das interfaces nos contextos das práticas educacionais que fazem do
professor um assimilador, metabolizador e criador dos saberes e dos sabores.
O metabolismo protéico hepático produz uma proteína nobre, conhecida como
albumina, que ajudam a mantém a pressão coloidosmótico dos capilares sanguíneos. Assim,
o sangue fica retido dentro dos vasos sanguíneos. Nesta perspectiva, no organismo hepato-
pedagógico, o sangue do aprender fica retido na circulação nutrindo as diferentes realidades
teciduais da classe, dependendo da capacidade de troca osmótica do grupo. A capacidade
de permuta é o processo metabólico da sala de aula que envolve diferentes contextos,
permeabilidades e sensibilidades.
O sistema porta-hepático da sala de aula que traz nutrientes do tubo digestivo do
mundo (os saberes) é uma circulação especial que sensibiliza, mistura, altera e/ou estoca
diferentes interfaces e contextos dos alunos e do próprio docente. O sistema reticulo-
endotelial hepático (células de Kupfer) funciona com sensibilizador imunológico. O sistema
reticulo-endotelial docente funciona como um sensibilizador dos diferentes contextos. As
recontextualizações elaboradas são dispostas para a grande circulação a fim de integrar
e repercutir nos outros tecidos. Esta atitude sensível e transformadora do educar é outra
vertente freiriana que recontextualiza travessias do saber em diferentes refinamentos do

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conhecimento. Assim como existe o fenômeno de primeira passagem hepática dos nutrientes
e medicamentos, há o fenômeno de primeira passagem docente dos conhecimentos brutos e
elaborados do mundo, contextualizados à luz da metabolização hepática.

Figura 2 – O metabolismo do aprender: o docente e o sistema hepato-pedagógico


(ilustração do diário de campo do autor).

A percepção do inacabamento a partir de Freire desvela os constantes processos de


recontextualizações que as práticas pedagógicas atingem nas suas práxis.
[...] É a tensão de que não podem fugir por se acharem construindo, criando,
produzindo a cada passo a própria multiculturalidade que jamais está pronta e
acabada. A tensão, neste caso, portanto, é a do inacabamento que se assume como
razão de ser da própria procura e de conflitos não antagônicos e não a criada pelo
medo, pela prepotência, pelo “cansaço existencial”, pela “anestesia hitórica” ou pela
vingança que se explode, pela desesperação ante a justiça que parece perpetuar-se
(FREIRE, 1992, p.156).

Nas recontenxtualizações envolvidas nas diferenças, a partir da teorização de


Bernstein (BERNSTEIN, 1999; 2000; 2003) e de Freire (FREIRE, 1992; 1996; 2009), as regras
dos discursos instrucionais e reguladores dos dispositivos pedagógicos são revisitadas e re-
avaliadas nas interfaces do processo ensino-aprendizagem. As agudizações dos encontros
da metabolização da sala de aula são expressas no fenômeno orgânico hepático-pedagógico
e as considerações sintomatológicas atingem as regras, as relações, repercutem diálogos
e alteram a rede que permeia o dispositivo pedagógico. Assim, as vivências envolvidas
também passam a ser experienciadas e se tornam partes no organismo pedagógico.
No olhar freiriano, os processos atingem a linguagem e ela não pode ser dissociada
do seu contexto social e político ou do papel criador de estratégias de ação (FREIRE, 2001),
assim como em Bernstein (2000). Dessa forma, qualquer mudança na interação do diálogo
reverbera no comportamento lingüístico, nas regras contextualizadas e, sobremaneira, na

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realidade. A recontextualização dos saberes é assimilada no sistema hepato-pedagógico,


apertada (sistolizada), desprendida (diastolizada) e distribuída no coração da sala de aula
como mecanismo da amorosidade e da afetividade do aprender em Freire (Figura 2).
Das veias hepáticas que conduzem os elementos recontextualizados do saber até
a distribuição cardíaca dos saberes oprimidos e libertos no coração, as reconstruções do
aprender se envolvem com a amorosidade enquanto gesto que alimenta está relação visceral
do processo ensino-aprendizagem.
Os lobos hepáticos clássicos no formato de favo de mel (hexágonos), como demonstrado
na Figura 2, desvelam a microfuncionalidade do professor no processo hepato-pedagógico
como uma ferramenta melífera da vida educativa. Os princípios doces do mel preenchem
todos os favos, os princípios assimiladores dos hepatócitos metabolizam os nutrientes
absorvidos, os princípios organizativos da sala de aula preenchem as relações e os diálogos
da aprendizagem. O amargor é o adoecimento metabólico docente, condição polar dos
excessos e das sobrecargas do dispositivo pedagógico adoecido, ausência exclusiva dos
processos de avaliação e reflexão da prática pedagógica.
A partir das reflexões geradas pela leitura de Morais (2002), observa-se que a capacidade
clínica reflexiva dos enfrentamentos das práticas pedagógicas sob a luz das teorizações em
Paulo Freire e em Basil Bernstein são ferramentas propedêuticas importantes para analisar
e sentir o dispositivo pedagógico nas interfaces do processo ensino-aprendizagem e no
microssistema da sala de aula.

3. DA SEMIOLOGIA DA PRÁTICA PEDAGÓGICA EM BASIL BERNSTEIN


À CLÍNICA PEDAGÓGICA EM PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES E
ENSAIOS NOS CAMINHOS DAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
Ao recontextualizar a teorização de Bernstein como ferramenta semiológica para
compreender a avaliação junto às práticas pedagógicas (SANTOS; LEITE; HECK, 2010), a
teorização de Paulo Freire, ao permitir o diálogo para a reflexão e compreensão das práticas
pedagógicas, permite recontextualizar como uma potencial ferramenta para a compreensão
das práticas pedagógicas. O professor, nesta perspectiva, é sensível. Ele sente os espaços
e os momentos, observa a saúde da sala de aula e as insalubridades ou enfermidades dos
contextos. Os processos aqui envolvidos revelam a observação da salutogênese da sala de
aula como gesto da clínica pedagógica ampliada. Na medida em que as teorizações de Paulo
Freire e de Basil Bernstein convivem junto, o campo pedagógico se torna um cenário de
pesquisa clínica do dispositivo pedagógico e das interfaces dialógicas. Nestas interfaces de
contextos e recontextos, afirma Freire (1996 , p.45):
[...] Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço. Pormenores
assim da cotidianidade do professor, portanto igualmente do aluno, a que quase

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sempre pouca ou nenhuma atenção se dá, têm na verdade um peso significativo


na avaliação da experiência docente. O que importa na formação docente, não é
a repetição mecânica do gesto, este ou aquele, mas a compreensão do valor dos
sentimentos, das emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela segurança,
do medo que, ao ser educado, vai gerando a coragem.

“O diálogo pedagógico implica tanto o conteúdo ou objeto cognoscível em torno de


que gira quanto a exposição sobre ele feita pelo educador ou educadora para os educandos”
(FREIRE, 1992, p.118).
Nas possibilidades de diálogos aqui apresentadas entre as teorizações freirianas e
bernsteinianas, as regras instrucionais e reguladoras do dispositivo pedagógico podem ser
constantemente desconstruídas e revisitadas. As fusões das desconstruções sobrepostas em
contextos pedagógicos invisíveis, onde as regras não são explícitas para os adquirentes,
caracterizam-se como momentos libertadores do ponto de vista freiriano. Porém, ao
analisar o fenômeno (com)fuso, se caracteriza pedagogicamente insalubre para o processo
metabólico de sala de aula, especialmente para a funcionalidade hepato-pedagógica
quando não é dialogado com reflexões sobre a própria transformação, embora haja tantas
imprevisibilidades no fenômeno do ensinar. O sistema sensível hepato-pedagógico se
torna insensível. Talvez até amargure quando há muita permissividade e os diálogos não
apresentam classificações e enquadramentos fortes. E quando as vozes são mudas ou se
tornam mudas quando o contexto social globalizado é envolvido no mecanismo? O processo
hepático da prática pedagógica pode, neste sentido, tomar diferentes rumos fisiopatológicos,
como ilustra a Figura 2: fibrosar e enrijecer o mecanismo de articulação, permutação e troca
de saberes; esverdear ou ‘icterizar’ todo o contexto pelo excesso de desconstrução hemática
do aprendizado ou, ainda, estagnar toda a drenagem venosa portal da árvore digestiva que
absorve as informações dos sabores e saberes do mundo, freiando os fluxos anabolizantes
da vida escolar. Os caminhos enfermos aqui apresentados acabam por amargar todo o
dispositivo pedagógico quando não há refinamento pedagógico a partir dos diálogos
reflexivos estabelecidos a partir das práticas pedagógicas vivenciadas. Os sintomas hepato-
pedagógicos inicialmente são silenciosos quando não evoluem para quadros agudos ou
agudizações de quadros crônicos e precisam ser compreendidos na clínica pedagógica com
a finalidade de entender os processos salutogênicos do organismo educacional.

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Figura 3 – Fisiopatologia anatomofuncional das práticas pedagógicas do organismo educativo - a funcionalidade hepa-
to-pedagógica enferma (ilustração do diário de campo do autor)

A valorização das regras recontextualizadoras do dispositivo pedagógico em Bernstein


são condições imprescindíveis para refletir as ações realizadas nas práticas pedagógicas
(Figura 4). Neste sentido, o sistema hepato-pedagógico compreende os processo de
salinização dos saberes, de anabolização das vivências, de catabolização dos diálogos e dos
discursos reguladores e instrucionais e, em certa medida, engloba as recontextualizações
que transitam a cada movimento da circulação sanguínea do aprender.

Figura 4 – Desenho do movimento da assimilação hepato-pedagógica (Ilustração do diário de campo do autor).

O exercício da colaboração, união, organização e síntese cultural são caminhos freirianos


tecidos nas marchas metabólicas do organismo da sala de aula e na funcionalidade hepato-
pedagógica do professor quando analisa a própria práxis. O processo de transformar o que
se está comendo requer a reflexão alquímica do processo hepato-pedagógico experenciado.
Então, o convite está feito: vamos provar este alimento e descobrir como ele é metabolizado
em nós professores. As contribuições dos diálogos das práticas docentes são mecanismos
que permitem sentir os sabores e os saberes envolvidos nas práticas pedagógicas e, quando
articulados de forma organizada, podem trazer saúde(s) para a função hepato-pedagógica,
trilhando caminhos para qualificar o processo ensino-aprendizagem como um todo.

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Nesta dinâmica clínica pedagógica, baseados na educação em saúde e através do


desenho livre durante as observações de campo, explicitado na figura 5, alude-se uma
radiografia da prática pedagógica vivenciada no estudo de caso. A figura 5, além de outros
achados, ilustra as sobreposições das transparências pedagógicas e uma disposição circular
dirigida ao professor-facilitador, revelando, com base em Basil Bernstein (2000), forte
classificação interna do discurso regulador e instrucional e fraca classificação externa do
discurso regulador e instrucional.

Figura 5 – Radiografia pedagógica – a gramática intrínseca (diário de campo, 14/05/2010, 14:40:00).

A construção desta análise em Basil Bernstein, revelando a gramática intrínseca do


dispositivo pedagógico por meio da observação dos diálogos entre professor e adquirente
remete à teorização do inacabamento em Paulo Freire, revelando processo contínuo da
construção do conhecimento a partir do diálogo amoroso e colaborativo.
Santomé (1998) reforça que, para preparar as novas gerações para conviver, partilhar
e cooperar no seio das sociedades democráticas e solidárias, é necessário desenvolver
propostas curriculares que contribuam para reforçar esses modelos de sociedade e converter
as salas de aula em espaços nos quais os conteúdos culturais, habilidades, procedimentos e
valores imprescindíveis para construir e aperfeiçoar esses modelos sociais sejam submetidos
à análise e reflexão sistemática, e, também, praticados.
As vozes vindas de fora (classificação externa fraca) destacam a capacidade nutritiva e
assimiladora do mecanismo hepato-pedagógico do organismo educativo.
Enfim, as considerações, as interfaces e os diálogos apresentados neste estudo são
considerados ousados quando articulam teorizações de Paulo Freire e Basil Bernstein
na dinâmica do organismo educacional, especialmente ao tecer observações dialógicos
recontextualizando o arquétipo imagético do sistema hepato-pedagógico educacional.
Portanto, percebe-se que as análises do ensaio reflexivo aqui organizado requerem maiores
aprofundamentos em estudos vindouros.

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