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HABITAR:
A CASA MEDIEVAL
MANUEL SÍLVIO ALVES CONDE
SUMÁRIO
Prefácio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Capítulo I
A habitação e a arquitectura corrente do Norte Trasmontano, em finais da
Idade Média. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
Capítulo II
Construções rústicas e urbanas do Médio Tejo nos séculos XV e XVI . . . . . . . . . . . 69
Capítulo III
Tipologias, materiais e técnicas construtivas correntes nas cidades do
Vale do Tejo, em fins da Idade Média . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
Capítulo IV
A casa urbana comum, no Alentejo dos séculos XV-XVI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119
Capítulo V
As gentes da construção na sociedade medieval portuguesa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
Capítulo VI
Materiais e técnicas de construção na arquitectura rural do Médio Tejo,
em finais da Idade Média . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
Capítulo VII
Alterações estruturais e superficiais na construção corrente urbana do
Ocidente Peninsular em fins da Idade Média . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179
Capítulo VIII
A habitação corrente nos finais da Idade Média: morfologias, materialidades,
funcionalidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203
Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237
CAPÍTULO VII
A HABITAÇÃO CORRENTE NOS FINAIS DA IDADE
MÉDIA: MORFOLOGIAS, MATERIALIDADES,
FUNCIONALIDADES*
Introdução
O quadro legal regulamentador das provas de agregação estipula que o tema
da lição síntese seja escolhido pelo candidato, sobre “um problema dentro da
disciplina ou grupo de disciplinas” a que as provas se referem1. Tendo a minha
escolha recaído no tema A habitação nos finais da Idade Média, impõem-se algumas
considerações preambulares2. No essencial, consistem estas, em: 1) alguns tópicos
203
Construir, habitar: A casa medieval
1)
Os grupos humanos sempre procuraram encontrar espaços de abrigo, que
os protegessem das agressões da natureza e dos outros homens. Desde tempos
remotos, procuraram naquela os espaços que entenderam mais adequados a essa
protecção, ajustaram-se a eles e adaptaram-nos às suas necessidades vivenciais.
Depois, desenvolveram a capacidade de produzir as suas habitações, valendo-se
de materiais recolhidos no meio natural e de técnicas e meios por eles concebi-
dos. Criação humana, a casa constituiria um aspecto fundamental no domínio da
natureza pelos homens. Todavia, a habitação não constitui, por si mesma, critério
definidor de humanidade, visto tratar-se do “facto técnico mais comum ao homem
e aos animais”3.
A casa ocupa um lugar central entre as técnicas de consumo, na medida em que
permite satisfazer algumas das necessidades mais elementares do homem. A sua
produção implica a apropriação de espaço natural por um dado grupo humano, e
o desvio/modificação desse espaço para servir as necessidades e as possibilidades
do mesmo grupo. Tendo um lugar central entre as técnicas de consumo, na medida
em que permite satisfazer algumas das necessidades humanas mais elementares,
a casa é também instrumento produtivo, ao ser manipulada pelo homem no seu
esforço de domínio/transformação da natureza, inserindo-se no âmbito das téc-
nicas de aquisição de produtos que lhe garantem a alimentação e o conforto, no
das técnicas de fabrico e no das de acumulação4.
Espaço de abrigo e de conforto, cenário de invenção do quotidiano e de repro-
dução do próprio homem, tanto no plano biológico, como no da transmissão da
herança sociocultural, a casa foi-se transformando, tornou-se, tantas vezes, mais
complexa e assumiu novas dimensões materiais e imateriais. Garantiu segurança
e bem-estar, acomodou actividades produtivas, a guarda de alimentos e de bens
(FCSH, 1999) e reforçado pelo trabalho desenvolvido como bolseiro de Pós-Doutoramento da Fundação
para a Ciência e a Tecnologia (FCT) na Faculdade de Geografia e História da Universidade de Santiago
de Compostela, sobre a Casa comum do Ocidente Peninsular nos finais da Idade Média, em programa
realizado sob a responsabilidade do Professor Santiago Jiménez Gómez (2000-2002), e como membro do
projecto Paisagens rurais e urbanas entre a Idade Média e os Tempos Modernos, POCTI/HAR/350169/99,
financiado pela FCT e dirigido pela Professora Iria Gonçalves (1999-2004).
3
André LEROIGOURHAN, Evolução e técnicas, vol. II – O meio e as técnicas, Lisboa, 1984, p. 185.
4
Na enunciação das técnicas, consideramos os critérios tipológicos enunciados por André LEROI
GOURHAN, Evolução e técnicas, vol. II, cit., passim.
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Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades
2)
Não têm grande tradição, entre os medievistas portugueses, os estudos sobre a
casa. Um século atrás, o tema foi aflorado em estudos pioneiros de Alberto Sampaio
(1902) e de A. de Sousa e Silva Costa Lobo (1903), num contexto historiográfico
em que se privilegiava o facto político, ou o facto de ordem intelectual ou artística.
Seguir-se-ia um longo interregno até surgir, num quadro historiográfico já bene-
5
Henri LEFEBVRE, La production de l’espace, 4.ª ed., Paris, 1984, p. 193.
6
Entre outras obras de referência teórica, listadas na bibliografia final, refiram-se particularmente as de
André LEROIGOURHAN, Evolução e técnicas, vol. I – O homem e a matéria, vol. II – O meio e as técnicas,
Lisboa, 1984, Fernand BRAUDEL, Civilização material e capitalismo. Séculos XV-XVIII, t. I – Estruturas do
quotidiano, Lisboa/Rio de Janeiro, 1970 [pp. 215-252]; Amos RAPOPORT, Pour une anthropologie de la maison,
Paris, 1972; e Jean-Marie PESEZ, Archéologie du village et de la maison rurale au Moyen Âge, Lyon, 1999.
205
Construir, habitar: A casa medieval
7
As obras a que aludimos, directa ou indirectamente, neste ponto e nos seguintes, estão registadas
na bibliografia final.
8
[As duas sínteses hoje existentes, da autoria de Mário Jorge BARROCA, “Arquitectura gótica civil”,
in: Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA e Mário Jorge BARROCA, História da arte em Portugal, O gótico,
Lisboa, 2002, pp. 86-128, e de Manuel Sílvio Alves CONDE, “A casa”, in História da vida privada, dir. por
José Mattoso, vol. I – A Idade Média, coord. por Bernardo Vasconcelos e Sousa, Lisboa, 2010, pp. 54-77,
não retiram actualidade à obra de Oliveira Marques.]
206
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades
9
Refiram-se, entre outros, os trabalhos de Maria da Conceição Falcão Ferreira, que constituem refe-
rência incontornável no estudo das estruturas habitacionais urbanas a Norte do Douro, a obra de Luísa
Trindade, sobre Coimbra, e os trabalhos de Maria Ângela Beirante, João José Alves Dias, Bernardo Sousa
e Manuel Sílvio Alves Conde, relativos à casa alentejana.
10
Sublinhem-se, relativamente à Beira Interior, os estudos de Iria Gonçalves, Rita Costa Gomes, Isabel
Castro Pina e Gilberto Moiteiro. Para Trás-os-Montes e o Alto Douro, refiram-se os trabalhos de Ana Maria
Afonso, Manuel Sílvio Alves Conde e Marina Afonso Vieira.
11
Graças ao imprescindível contributo da arqueologia e da história da arte e, em particular, aos
estudos de Mário Jorge Barroca e de José Custódio Vieira da Silva.
12
Iria GONÇALVES, “A construção corrente na Beira Interior nos finais da Idade Média”, in III Con-
gresso Histórico de Guimarães – D. Manuel I e a sua época. Actas, 3 – População, sociedade e economia,
Guimarães, 2004, pp. 103-123.
Sobre a casa rural, assinalem-se, além deste, os nossos artigos relativos ao Médio Tejo e a Trás-os-
-Montes, o último elaborado em conjunto com Marina Afonso Vieira. [De Iria GONÇALVES, refira-se ainda
“Retalhos de uma paisagem minhota de finais da Idade Média”, Media Ætas, II Série, vol. I, 2004-2005, pp.
9-46, trabalho inédito à data de elaboração deste texto].
13
Os elementos entre nós carreados pela arqueologia referem-se sobretudo ao horizonte islâmico e aos
espaços urbanos. Da arqueologia islâmica relativa ao mundo rural, consulte-se o útil elenco de Stéphane
BOISSELLIER, “Archéologie rurale islamique dans le sud du Portugal. Recension bibliographique”, Arché-
ologie islamique, 6 (1996), pp. 169-192. Do contributo da arqueologia do Portugal cristão, sublinhem-se
as páginas consagradas à casa rural por Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, na sua dissertação de
doutoramento, Arquitectura românica de Entre-Douro-e-Minho, vol. I – Para uma perspectiva ecológica,
económica, social e mental do Entre-Douro-e-Minho nos séculos XI a XIII, Porto, 1978, pp. 51-78.
14
Sobretudo os estudos de José Leite de Vasconcelos, Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano
e Benjamim Pereira, Orlando Ribeiro e o levantamento do Sindicato dos Arquitectos sobre Arquitectura
popular em Portugal. Refira-se ainda o Inquérito à habitação rural, de Lima Basto e Henrique de Barros,
iniciado em 1943 e logo cortado cerce pela repressão governamental.
207
Construir, habitar: A casa medieval
3)
A circunstância de – no quadro do programa lectivo – o tema desta lição ser
tratado após a abordagem dos grupos temáticos respeitantes aos espaços rural e
urbano, onde as referências à paisagem têm um peso apreciável, permite que o
tratamento dado ao subtema “Arquitectura e paisagem” seja menor16.
A unidade lectiva que precede esta aula consta tão-somente de dois tópicos.
Reporta-se o primeiro ao lugar da arquitectura civil, religiosa e militar na antropização
da paisagem.
Quanto ao segundo, procura referenciar os principais géneros de arquitectura civil presentes
nos espaços rurais e urbanos – construções domésticas, utilitárias e infra-estruturas – assinalando
de seguida as diferenças essenciais entre as edifícios de prestígio e a arquitectura corrente.
15
[Nesta perspectiva, apresentam o maior interesse alguns desenvolvimentos recentes, designada-
mente a participação portuguesa no seminário internacional sobre Histoire de la Construction, promovido
pelo LAMOP (Laboratoire de Médiévistique Occidentale de Paris I – Sorbonne) e realizado em Paris, no
primeiro semestre de 2010, e a realização de dois colóquios internacionais sobre História da Construção,
por iniciativa do CITCEM/Universidade do Minho, em Braga, em Outubro de 2010 e 2011].
16
A matéria desta lição corresponde, no programa da disciplina “História Medieval de Portugal”
apresentado nestas provas de agregação, à segunda parte da unidade lectiva “4.5. A paisagem construída
e a habitação”. Insere-se esta a meio do último bloco do programa, “4. Crise e recuperação nos finais da
Idade Média”, seguindo-se aos grupos temáticos relativos à evolução conjuntural, à ruralidade e ao mundo
urbano e precedendo os que abordam o tecido social e as instituições políticos.
208
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades
1)
Para o estudo da arquitectura corrente tardomedievo, deveremos apoiar-nos
nos dados resultantes da conjugação de todo o tipo de fontes.
a) Em primeiro lugar, os textos: apesar do seu formalismo, as séries de contratos
de locação são do maior interesse e cobrem um largo espectro temporal;
por sua vez, os tombos de propriedades concentram-se e apresentam maior
riqueza descritiva na segunda metade de Quatrocentos e nas primeiras
décadas de Quinhentos; a testamentaria e os inventários orfanológicos são
também uma fonte preciosa para o conhecimento dos bens móveis; mas
outras espécies, aparentemente mais pobres, não deverão ser menosprezadas;
b) Depois, as fontes figurativas17: sobretudo as miniaturas, com realce para as
representações dos Livros de Horas – tão úteis para a percepção dos espa-
ços interiores —, e as panorâmicas do excepcional Livro das Fortalezas de
Duarte de Armas;
c) Imprescindível é, por último, a análise das estruturas e dos elementos arqui-
tectónicos remanescentes, dos dados arqueológicos – estruturas habitacionais,
objectos do quotidiano, sítios habitados – e da paisagem rural e urbana.
2)
Estas fontes têm, todas elas, limitações próprias, que são inerentes à sua natureza,
à intencionalidade que presidiu à sua elaboração, aos interesses dos encomendadores,
aos valores culturais e à capacidade técnica dos autores18. Algumas delas – como é
o caso das estruturas e elementos arquitectónicos remanescentes —, levantam-nos
sérias dificuldades, perante a conservação diferencial dos materiais19, a tendência
17
Cf. a abordagem destas por Vítor Pavão dos SANTOS, A casa no Sul de Portugal na transição do
século XV para o século XVI, Lisboa, 1964.
Para o aproveitamento histórico das fontes figurativas, veja-se Christiane RAYNAUD, Le commentaire
de document figuré en histoire médiévale, Paris, 1997.
18
Muito esquematicamente, não poderemos esperar que minuciosos elencos patrimoniais nos dêem
informes estranhos aos interesses do proprietário, que leis e regimentos não reflictam a óptica do poder,
que a documentação notarial se desprenda dos estereótipos, ou que a arqueologia nos esclareça sobre
pisos superiores construídos com materiais perecíveis…
19
“[…] quer pela maior resistência dos seus materiais, quer pelo prestígio inerente, as construções
pétreas foram as que maioritariamente chegaram aos nossos dias. Mas tal não significa que no panorama da
209
Construir, habitar: A casa medieval
3)
Numa nota, que se pretende muito breve, sobre os aspectos etimológicos e
semânticos respeitantes às estruturas habitacionais, assinale-se, em primeiro lugar,
que estas ocorrem nos textos altimedievos do Noroeste Peninsular sob várias deno-
minações, as mais frequentes das quais eram domus, edificium e casa (também
kasa e kassa)24.
A designação edificium (lat. cl. ædificium) ‘edifício’ tinha um sentido geral – ‘cons-
trução, em sentido amplo’ —, pelo que não se aplicava especificamente às construções
residenciais25. Eram os termos domus e casa que tinham esse sentido específico.
arquitectura civil da Baixa Idade Média elas fossem as mais numerosas ou sequer as mais representativas.
Nem no Norte de Portugal […] e seguramente muito menos no Sul, onde ainda hoje as “arquitecturas de
terra” têm alguma representatividade” – Mário Jorge Barroca, “Arquitectura gótica civil”, cit., pp. 86-87.
20
As sucessivas remodelações da casa comum eliminam, tantas vezes, caracteres arquitectónicos de
épocas mais recuadas, dificultando uma datação rigorosa. Nestes casos, a análise morfológica revela-se
insuficiente, impondo-se o estudo integral dos edifícios e das respectivas estruturas, visando a reconstrução
da história do edifício, da sua adequação funcional, das suas remodelações e dos reflexos das mesmas na
transformação do espaço interno.
21
Em especial com outros espaços europeus e mediterrânicos.
22
“C’est du moins mal connu qu’il faudra partir, recueillant un par un les divers indices qui peuvent
aider à comprendre un plus lointain et obscur passé” – Marc BLOCH, Les Caractères originaux de l’histoire
rurale française, t. II – Supplément établi par R. Dauvergne d’après les travaux de l’auteur (1931-1944),
Paris, 1968, p. XXVI.
23
“Qui voit le piège, risque moins d’y tomber” – Marc BLOCH, Les Caractères originaux de l’histoire
rurale française, Paris, 1999, p. 49.
24
Também tinham curso os termos superatus (ou supratus), curtis e palatium, e outros, como edi-
ficantia e domicilium.
25
“Concedimus uobis dominis nostris iam supranominato ipsius locis […] et adicimus […] casas
cubos cubas et omnia edificia cum intrinsecus suis que ibidem est – Portugaliæ monvmenta historica,
Diplomata et chartæ (DC), vol. I, Lisboa, 1867, n.º 5, p. 4, doc.º de 870 (itálico nosso).
210
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades
26
“A casa é um habitáculo construído com paus, canas e ramos, onde os homens podem resguardar-se
da inclemência do frio e da violência do calor” – Isidoro de SEVILHA, Etimologias, XV, 12, 1 (nossa tradução).
27
Em meados do século X, a distinção dos respectivos campos semânticos ainda era, algumas vezes,
respeitada: “Christus in dei nomine ego zamora cognomento zana una cum filiis meis […] uinderemus
uobis zaton muzaudiz et uxori tue cita ereditate nostra propria […] domos casas cubos cubas lectos
cadedras uel homnia introsiis domorum terras rubtas uel barbaras […]” – DC, n.º 175, p. 108, doc.º de
995 ( ?) (itálico nosso).
28
“Casas quos hedificaui cum fundamentibus suis, id est : apodeca, orreos II, superato […]” – Texto 2
do apêndice II de M. Rubén GARCÍA ÁLVAREZ, “Antecedentes altomedievales del casal galaico-português”,
Revista de Etnografia, vol. IX, t. 1 (1967), p. 126 (doc.º de 947) (itálico nosso).
29
Muitos autores se têm debruçado sobre este tema. Entre eles, refiram-se Maria Ângela V. da Rocha
BEIRANTE, Évora na Idade Média, Lisboa, 1995, p. 121; Ana Maria Seabra de Almeida RODRIGUES,
Torres Vedras. A vila e o termo nos finais da Idade Média, Lisboa, 1995, p. 155; Ana Maria AFONSO,
O mosteiro de S. Salvador de Castro de Avelãs. Um património monástico no dealbar da Idade Moderna
(1500-1538), Cascais, 2002, pp. 71-73.
30
Arquivo da Misericórdia de Tomar, L.º 74, fl. 131.
211
Construir, habitar: A casa medieval
2. Tipologias
O estudo das estruturas habitacionais presentes em meio urbano ou rural
permite-nos uma aproximação aos tipos arquitectónicos mais comuns.
1)
A maioria dos edifícios referenciados no meio rural, nas pequenas vi las,
aldeias e explorações agrícolas das diversas regiões do reino, correspondia ao tipo
elementar: a moradia unicelular, de piso e divisão únicos31. Era a casa, casa térrea,
casa terreira ou casa chã.
A casa elementar, que correspondia habitualmente a actividades agrícolas e
pastoris pouco exigentes, podia, quando estas o requeressem, vir acompanhada
de construções anexas.
A construção elementar duradoura (casa, casinha) distinguia-se, pela qualidade
e diversidade dos materiais e pela tecnologia, mais elaborada, da infraconstrução
(cabana), associada à miséria e a condição social inferior.
Resultando da duplicação horizontal do tipo elementar, a moradia térrea
bicelular, de piso único e duas divisões (casa dianteira/casa de dentro ou de trás,
casa dianteira/câmara, casa/cozinha, casa/celeiro, ou cozinha/celeiro), também era
presença constante nos casais, nas aldeias e nas vilas. Nalguns casos, as soluções
de ampliação horizontal apresentavam-se mais elaboradas, originando moradias
térreas pluricelulares.
Por vezes, nalgumas regiões nortenhas (Alto Minho, termo da Guarda), a casa
térrea alongava-se e comportava um ou vários “repartimentos”. Embora precárias, tais
delimitações do espaço eram imprescindíveis, pois a casa longa – associada a econo-
mias rurais pouco diversificadas – albergava pessoas e animais sob o mesmo tecto32.
Associados ao povoamento disperso e a economias rurais prósperas e diversifi-
cadas, os assentos de unidades produtivas erguiam-se junto às terras de cultivo, em
complexos térreos, onde se distinguiam os edifícios de habitação dos de exploração.
Este tipo, que implicava alguma abastança do chefe de exploração, ter-se-ia por-
ventura inspirado nos modelos de organização espacial das explorações senhoriais.
Abrange formas mais ou menos estruturadas, desde o complexo de edifícios contíguos,
mas dispersos, às casas com pátios, abertos ou fechados, com uma organização mais
elaborada. Casas e construções adjectivas – celeiros, currais, eiras, adegas, lagares,
31
O predomínio da moradia elementar era evidente em Trás-os-Montes, na Beira, no Vale do Tejo
ou no Alentejo. Cf. os trabalhos atrás referidos (na nota 12) de Iria Gonçalves, Manuel Sílvio Alves Conde
e Marina Afonso Vieira.
32
“Outro casal que se chama de couello de çima, na freeguesia de sampayo d azõoes, julgado de
penella, e tem hũua cozinha colmada e hũua corte, todo em hũua casa […].” – Arquivo Nacional da Torre
do Tombo (ANTT), Ordem de Cristo, Convento de Tomar (OC/CT), L.º 236, fl. 60 (itálico nosso).
212
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades
2)
A casa térrea também tinha uma larguíssima expressão nos aglomerados
urbanos37. Sobretudo a moradia unicelular e a bicelular. Em menor escala, ocor-
riam ainda soluções de ampliação horizontal mais elaborada: as moradias térreas
pluricelulares.
Modelo peculiar é o da moradia térrea, aberta para um pátio dianteiro, murado, con-
tactando com o exterior por um portal e filiado, porventura, na casa rural muçulmana38.
33
“[…] quatro casas colmadas. duas som çeleiros e duas cortes todo aa redonda” – ANTT, OC/CT,
L.º 236, fl. 39.
34
“[…] hũua quintãa que se chama do rial […] e tem quatro casas leuantadas em viella .a saber. duas
no meyo e hũua casa telhada que serue de cozinha e junto della outra casa telhada que serue de çeleiro e
abaixo outra colmada” – ANTT, OC/CT, L.º 236, fl. 79.
Também se usava a expressão “em ordem”: “um casall encabeçado com três casas telhadas e duas
palhazas todas estas cinquo casas em huua hordem” – O tombo da igreja do Salvador de Santarém, ed.
por Manuela Mendonça, Lisboa, 1997, p. 87.
35
Como em Dornes, no curso inferior do Zêzere – Manuel Sílvio Alves CONDE, “Materialidade e funcio-
nalidade da casa comum medieval”, Construções rústicas e urbanas do Médio Tejo nos finais da Idade Média,
in Morar. Tipologia, funções e quotidianos da habitação medieval. Media Actas, n.º 3/4 (2000/2001), p. 56.
36
Como sublinhou Iria GONÇALVES, “A construção corrente na Beira Interior…”, cit.
37
Cf. Manuel Sílvio Alves CONDE,“Sobre a casa urbana do centro e sul de Portugal, nos fins da Idade Média”,
Horizontes do Portugal medieval. Estudos históricos, Cascais, 1999, pp. 262-263, 271-272. Em pleno século XX,
“Estas casas são extremamente numerosas e encontram-se por todo o País, vendo-se mesmo nas cidades” –
Ernesto Veiga de OLIVEIRA e Fernando GALHANO, Arquitectura tradicional portuguesa, Lisboa, 1992, p. 23.
38
Constituída por vários módulos, que tendiam a ordenar-se em volta de um pátio, que abre para o
exterior, distinguindo-se, portanto, da casa urbana de pátio central. Encontramo-lo em meios urbanos
meridionais, como Lisboa (Mouraria) e Setúbal, mas também na periferia “saloia” de Lisboa, em Arroios
e na Ameixoeira.
213
Construir, habitar: A casa medieval
39
Em Pinhel, na rua Direita, havia uma habitação constituída por casa dianteira meio sobradada e
casa de dentro sobradada – ANTT, OC/CT, L.º 307, fl. 57v.
40
“A casa de tipo ‘senhorial’ tinha […] uma organização interna ‘sobre o largo’, com compartimentação
disposta em paralelo com o arruamento fronteiro; a loja térrea incluía também uma escadaria de acesso
ao ‘piso nobre’ – José Manuel FERNANDES, Cidades e casas da Macaronésia. Evolução do território e da
arquitectura doméstica nas ilhas atlântidas sob influência portuguesa, quadro histórico do séc. XV ao séc.
XVIII, 2.ª ed., Porto, 1996, p. 223.
Estas residências alargavam-se, muitas vezes, através de novas construções laterais, ou mesmo por
locação de casas adjacentes. A essa solução recorreu, entre tantos outros, o conde de Tentúgal D. Álvaro, que,
em 1505, trazia emprazadas à comenda de Almourol quatro moradas vizinhas das suas casas em Lisboa,
garantindo, desse modo, um aumento de área útil superior a 500 m2 – ANTT, OC/CT, L.º 302, fls. 6v-7v.
214
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades
1)
Os materiais empregues na construção eram, aparentemente, os mesmos, por
toda a parte: a pedra, a terra crua e cozida, a areia, a cal, a madeira e outros mate-
riais vegetais e o metal. Na sua maior parte, provinham das proximidades do lugar
de construção. Mesmo nos meios urbanos. Impunham-no os meios de transporte
disponíveis, os condicionalismos – e sobretudo os custos – da circulação na época.
Algumas vezes, porém, o aprovisionamento local de materiais imprescindíveis não era
possível e a acessibilidade fluvial e marítima sugeria o recurso a soluções exteriores e até à
importação do estrangeiro. Era Lisboa que mais recorria a tais soluções. Dispunha de pedreiras
em zonas centrais, como o Santo Espírito da Pedreira (actual Chiado). Abastecia-se na perife-
ria imediata, em Alcântara e Paradela, de cantaria lioz e de pedra para a cal. Da outra banda
do Tejo, de Almada e Caparica, vinha pedra e cantaria. De áreas mais distantes, de Leiria e
Pederneira recebia o tavoado corrente e importava da Flandres “taboa, de marca grande”. Do
exterior vinha, ainda, alguma “pregadura”. Das ilhas atlânticas e, posteriormente do Brasil,
chegava, também, regularmente, a madeira.
41
Se o Centro e o Sul de Portugal tinham uma vetusta e sólida tradição de “arquitectura de terra”,
também o Norte recorria a ela com largueza.
215
Construir, habitar: A casa medieval
42
Uma casa na vila da Reigada (1507), na Beira Trasmontana, constituía um belo exemplo de arqui-
tectura integradora: “outra casa que traz ora fernam rodriguez he sobradada […] as paredes tem de pedra
e barro e adobes./ estam igualmente madeiradas e cubertas de telha vãa” – ANTT, OC/CT, L.º 307, fl. 41.
43
Mais recente entre nós, o uso da cal nesta função seria inferior ao do barro e, porventura, mais ou
menos limitado à área do calcário.
Além do barro e da cal, recorria-se a outros materiais, como o gesso, ou o lodo (mistura de areia ou
terra com elementos orgânicos em decomposição, usada para argamassar paredes de tufo).
216
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades
44
Como testemunha a documentação do século XI: “Uilla […] cum suo edificio quantum in se obti-
net et ad prestitum hominis est in casas mureas siue lineas, in sautos, in pumares, in uineas, in linares,
in montes, in fontes” – Liber Fidei Sanctæ Bracarensis Ecclesiæ, ed. crít. de Avelino de Jesus da Costa,
t. I, Braga, 1965, n.º 184, pp. 217-218, doc.º de 1052; “[…] in casas murias uel lineas […]” – DC, n.º 530,
p. 325, doc.º de 1075 (itálicos nossos).
45
Daí que estes elementos polarizassem boa parte dos ritos, de construção ou de posse, ancestralmente
consagrados à casa. Claude LECOUTEUX, La maison et ses génies. Croyances d’hier et d’aujourd’hui, Paris,
2000, passim.
217
Construir, habitar: A casa medieval
46
No gráfico, distribuíram-se as ocorrências pelas categorias “nenhumas”, “poucas”, “algumas” e
“muitas”, não se registando representações de aglomerados populacionais em que “todas” ou “a maioria”
das casas fossem sobradadas.
A maior parte dos centros urbanos em que surgem “muitas” casas sobradadas situa-se a norte do rio
Tejo. Em três panorâmicas, as de Mogadouro, Freixo e Elvas, figuram casas com dois sobrados.
218
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades
47
Diziam-se ainda: de fachada ou de frente, tardoz, ou “cueira” (ANTT, OC/CT, L.º 302, fls. 3, 3v) e
laterais, ou “das ilhargas” (as empenas).
48
Afonso Nunes Henrique MARTINS e Pedro Paulo S. Marques de ABREU, Casas de andar de ressalto
em Lisboa, trabalho realizado no âmbito da licenciatura em Arquitectura da Faculdade de Arquitectura
da Universidade Técnica de Lisboa, 1998, pp. 160, 163, 215.
49
A documentação atesta a relevância das coberturas vegetais, presentes nas construções rústicas em
todos os espaços regionais a norte do Tejo e nalgumas áreas a sul deste rio. Em muitos casos, as unidades
de exploração agrícola apresentavam simultaneamente os dois materiais. Cidades e vilas, como Guima-
rães, Lamego, Funchal ou Torres Novas, conheceram também as casas colmaças, levando as autoridades
municipais a promover a sua substituição, às vezes de forma coerciva, por receio de incêndios.
50
O xisto, empregue como material normal de cobertura na arquitectura tradicional “em todas as
áreas do País em que um xisto duro pode ser fendido em lâminas pouco espessas” (Ernesto Veiga de
219
Construir, habitar: A casa medieval
220
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades
iluminação diurna; mínimo que, com frequência, correspondia à porta única51. Uma
vez que não se recorria, ainda, ao uso de vidraças52, era assim mais fácil manter
condições térmicas benignas no interior da moradia, com o ónus, porém, de uma
reduzida ventilação e de uma iluminação deficiente.
Raras, por regra inexistentes no piso térreo, as janelas seriam mais comuns nos
sobrados. Nas suas guarnições, assim como nas das portas (a soleira, as ombreiras
e o lintel, ou verga) empregava-se usualmente a pedra ou o tijolo.
Ainda hoje, topam-se amiúde, quer em centros urbanos, quer em aglomerados menores,
janelas de arco quebrado ou geminadas, assim como portas de arco quebrado ou “manuelinas”,
com chanfro, denunciadoras da fábrica tardomedieval, ou dos primórdios de Quinhentos, de
tais estruturas habitacionais.
Tais vãos eram cerrados por portas de pau, a que, por razões de segurança (e também
decorativas) se ajustavam aplicações de madeira ou de ferro. Aqui e além, encontravam-se
janelas ferradas e frestas ferradas, pois a desejada segurança levava à inserção de grades
nas aberturas.
O conforto, por seu lado, justificava, por vezes, a implantação de janelas de assentos, com
conversadeiras.
51
Algumas vezes, porém, encontravam-se várias portas, voltadas para a rua, permitindo separar
a serventia da loja do acesso ao sobrado. Em Évora, na rua da Selaria, havia em 1509 uma casa de dois
sobrados, “com dous portaaes juntos”, distinguindo-se assim o acesso à forja aí localizada e aos pisos
superiores – Tombos da Ordem de Cristo, vol. I – Comendas a Sul do Tejo, Lisboa, 2002, p. 65.
52
Não têm sido encontrados, até agora, textos alusivos ao uso de vidraças, no Portugal tardomedievo.
Os dados existentes apontam para a introdução daquelas, entre nós, no século XV, circunscrevendo-se a sua
utilização – dado o seu custo – a umas quantas construções de prestígio. Nas panorâmicas de Castelo Branco
e de Barcelos, desenhadas por Duarte de Armas, são visíveis as características janelas de cruzeta, ou pinázio,
que deviam o seu nome à cruzeta de pedra que cortava o vão e servia de apoio à aplicação das vidraças.
Conhecem-se as mesmas em Guimarães, nos paços ducal e dos alcaides, em Barcelos, no paço ducal e no
solar dos Pinheiros, em Viana do Castelo, na casa de João Velho, cf. Mário Jorge BARROCA, “Arquitectura
gótica civil”, cit., p. 90; Pedro DIAS et alii, Manuelino. À descoberta da arte do tempo de D. Manuel I, Lisboa,
2002, p. 166. Mas, de acordo com A. H. de Oliveira MARQUES, A sociedade medieval portuguesa, cit., p. 85,
“Só a partir do século XVI se começaram a usar vidraças nas janelas com relativa frequência”.
53
Menção de adufas em casas sitas em Lisboa, na rua Nova de El-Rei e na rua das Esteiras – Direitos,
bens e propriedades da Ordem e Mestrado de Avis nas suas três vilas de Avis, Benavila e Benavente e seus
termos, Lisboa, 1950-1953, pp. 370, 371.
221
Construir, habitar: A casa medieval
54
A expressão mais frequente, para mencioná-los, é o olivel, que se reportava a diversas madeiras –
castanho, pinho, bordo – e até à cortiça e às canas. Alguns distinguiam-se dos modestos forros de tavoado,
ou de ripa e canas, apostando na qualidade das soluções, recorrendo aos azulejos (“paredes forradas d
azullejos”, em Lisboa – ANTT, OC/CT, L.º 302, fl. 26v), ou pintando os olivéis (“he mujto bem forrada de
oliuel em quatro aguas. com hũu laço no meyo e linhas no meyo pintadas com cachorros arredor e alizeres
pintados”, em Lisboa – ANTT, OC/CT, L.º 302, fl. 26v).
55
De algumas, são referidos os seus mainéis, de outras, os textos destacam um ou outro pormenor
significativo: que estava associada a uma porta de alçapão (Tombos da Ordem de Cristo, vol. I, cit., p. 7),
que conduzia a “hũu tauoleiro argamassado com seu peitoril alto” (Tombos da Ordem de Cristo, vol. I, cit.,
p. 30), ou a um balcão; o número, ou o estado de conservação, dos seus degraus. As fontes omitem, porém,
um dado que bem gostaríamos de conhecer: a altura desses degraus.
56
Ao contrário da tendência geral, na cidade de Évora e no seu termo, as chaminés seriam, porven-
tura, relativamente comuns, a avaliar pelo número de menções que lhes são feitas. Mas encontramo-las
também referidas à cidade de Lisboa e a Arroios, na sua periferia, a Sintra, ao Vale do Tejo (Alenquer,
Santarém, Cardiga, Granja de Dornes), ao Alentejo (Nisa, Alpalhão, Portalegre, Avis, Benavila, Elvas, Mér-
tola e Castro Marim), à Beira (Soure, Pombal, Pinheiro de Ázere, Marmeleiro, Segura, Castelo Branco),
ao Alto Douro (Longroiva).
57
Duarte de Armas representou-as em Castro Marim, Mértola, Moura, Mourão, Monsaraz, Terena,
Alandroal, Juromenha, Olivença, Elvas, Campo Maior, Ouguela, Arronches, Monforte, Assumar, Alpa-
lhão, Castelo de Vide, Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Segura, Sabugal, Castelo Bom, Almeida, Freixo de
Espada-à-Cinta, Mogadouro, Miranda do Douro, Vimioso, Bragança, Chaves, Melgaço, Lapela, Caminha,
Barcelos e Sintra. Num total de 57 povoações representadas, as chaminés figuram apenas em 34 (o número
reduz-se para 30 se excluirmos aquelas onde elas surgem apenas em edifícios de excepção: um palácio e
3 residências nas alcáçovas, nos casos assinalados com itálico).
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Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades
de barro, de madeira “barrada”, de ripa e barro, de sebe e barro, ou de tijolo (estas, decerto,
muito comuns)58.
58
A chaminé cilíndrica era construída em tijolo. Cf. Mário Jorge BARROCA, “Arquitectura gótica
civil”, cit., pp. 90-91; Vítor Manuel Pavão dos SANTOS, A casa no Sul de Portugal na transição do século
XV para o século XVI, cit., p. 57.
59
Assim sucedia com “hũua chamjnee grande de tintoraria”, erigida em Lisboa, a S. Nicolau – ANTT,
OC/CT, L.º 302, fl. 25v.
60
Refira-se, entre outras, a casa com dois andares ressaltados que existia em Lisboa, junto à Fonte dos
Cavalos, em 1505: “açima desta sobrelogea vay hũu sobrado […] com hũua sacada de quatro palmos sobre
ha Rua […]. E açima deste sobrado vay outro com hũua sacada sobre ha Rua mais larga hũu palmo que ha
debaixo” – ANTT, OC/CT, L.º 302, fl. 6. Por sacada, derivado de sacar, “tirar para fora, extrair”, entende-se
“na Arquit. toda a obra que fica relevada, e resaltada do nivel; daquella onde está”, de acordo com Rafael
Bluteau, Diccionario da lingua portugueza, cit., t. II, p. 363.
Em iluminura do Livro de Horas de D. Manuel, ed. com estudo introdutório por Dagoberto Markl,
Lisboa, 1983, fl. 130, alusiva ao cerimonial que teve lugar nas ruas de Lisboa, por ocasião da morte do rei
venturoso, são visíveis andares ressaltados da rua Nova dos Mercadores.
223
Construir, habitar: A casa medieval
outras soluções de apoio, em pilares ou arcos. Assim surgiu a casa armada sobre
arcos. Solução muito prestigiada em Quatrocentos e Quinhentos, foi utilizada em
edifícios de prestígio e infra-estruturas urbanas, mas também em construções
comuns, sobretudo em casas de mercadores e de mesteirais. Conheceram-na as
praças ou ruas de cidades como Viana do Castelo, Guimarães, Barcelos, Torre de
Moncorvo, Torres Vedras, Tomar, Elvas e Évora, além do Porto e Lisboa, onde foi
adoptada no contexto de relevantes intervenções urbanísticas, respectivamente na
Praça da Ribeira e na Rua Nova.
Em termos de técnica construtiva, era habitual que a casa de andares ressaltados utilizasse
em simultâneo dois processos distintos: a) a alvenaria ordinária, aplicada nos muros do piso
térreo e das caves, quando existiam, e nas paredes portantes das empenas, para as quais se
requeriam soluções de manifesta densidade e largueza (como se disse, estas paredes tinham
entre 0,50 a 0,70 metros, em termos médios); b) o frontal, ou o tabique, empregues na fachada,
sobre o ressalto do sobrado, e nas divisões internas da casa, onde se pretendiam paredes mais
ligeiras e estreitas (encontram-se, em média, valores entre 0,15 a 0,22 metros para as primeiras
e 0,10 a 0,15 metros para as segundas).
3)
Algumas das fontes disponíveis (textos, quase sempre do final de Quatrocentos
ou dos primórdios de Quinhentos) permitem-nos uma aproximação às dimensões
das moradias, ao oferecerem-nos – com alguma generosidade em relação às casas
urbanas, sem paralelo no tratamento da vivenda rural – as suas medidas “de longo”
e “de largo” (expressas em varas, ou côvados, e palmos), embora omitam sistema-
ticamente a altura das mesmas.
224
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades
225
Construir, habitar: A casa medieval
A planta de quase todas estas construções era rectangular (mas subsiste uma
casa triangular em Coimbra, na rua do Sargento-Mor), tendencialmente estreita e
alongada. O alongamento acentuado (em que o comprimento chega a triplicar ou
quadruplicar a largura) tem mais visibilidade nas cidades nortenhas, enquanto a
forma próxima do quadrado, mais rara, ocorre sobretudo no Centro e Sul do país.
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Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades
4. Funcionalidades
As funcionalidades que a casa havia de preencher reflectiam-se na organização
do espaço doméstico, na compartimentação da casa e na utilização de anexos.
Implicavam também a existência de algum mobiliário.
1)
A organização do espaço interno da moradia comum dependia da configuração
material da casa, das necessidades do agregado familiar nela residente e da sua
inserção em aglomerado urbano ou rústico ou junto a terras de cultivo. Além das
funções habitacionais, a casa rural ou urbana era chamada a desempenhar funções
económicas, no âmbito da produção agrícola, pecuária ou artesanal, do comércio,
ou do aprovisionamento de géneros.
Todavia, o princípio da divisão funcional do espaço geralmente aparece apenas
esboçado. Não se aplicava de todo, obviamente, na casa unicelular, cujo espaço
único abrigava as pessoas e os bens que importava proteger, incluindo a guarda
dos apeiros, o armazenamento dos produtos da terra e, nalguns casos, a estabula-
61
Assim, o pé direito da casa quatrocentista do Beco da Achada, 2, é de 2,30 metros no piso térreo e
no primeiro andar, passando para 2,70 metros no segundo andar; o vizinho edifício da Rua da Achada, 9,
é ainda mais regular, oscilando o pé direito entre 2 e 2,20 metros – cf. Afonso Nuno Henriques MARTINS
e Pedro Paulo S. Marques de ABREU, Casas de andar de ressalto em Lisboa, cit.
227
Construir, habitar: A casa medieval
62
Pierre BOURDIEU, “La maison ou le monde renversé”, Esquisse d’une théorie de la pratique, précédé
de trois études d’ethnologie kabyle, reed., Paris, 2000, pp. 61-82.
63
Eduard T. HALL, A dimensão oculta, Lisboa, 1988, pp. 119-121.
228
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades
A acepção de quintã atrás presente – de terreno vedado, contíguo à casa rural – diverge da que é a
64
mais comum em estudos históricos, não está registada nos dicionários (o Dicionário da língua portuguesa
contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa, 2001, vol. II, p. 3047, entrada 1quintã 2 e 3,
considera apenas, como regionalismo, as de curral, ou de estrumeira em pátio), mas sobreviveu até aos
nossos dias e foi registada por Aquilino RIBEIRO, Aldeia. Terra, gente e bichos, cit., pp. 31, 328. Menção de
quintã, nesta acepção: “no termo de tarouca tem mais a hordem hũu casal que se chama do barroncal em
que ha hũua casa terrea que tem as paredes de pedra e barro cubertas de colmo … e tem ante a porta hũua
quintãa çerquada de parede. leua xiij varas de longo e viijº de largo” – A. N. T. T., O. C./C. T., L.º 307, fl. 141v.
229
Construir, habitar: A casa medieval
que isolassem alguma câmara de dentro; ou aforava um edifício contíguo, para nele
instalar certas funcionalidades. Mas a solução mais adequada a tais desideratos
era, sem dúvida, erguer um ou vários sobrados.
A organização da casa em vários planos permitia dissociar espacialmente as
esferas privada e laboral. O piso térreo era consignado à profissão, funcionando
como espaço aberto a um público, mais ou menos amplo, consumidor de bens e
serviços, enquanto o sobrado era o cenário da vida familiar que assim se resguar-
dava de indesejáveis intrusões do mundo exterior. A escada de acesso ao sobrado
podia dispor de um portal distinto do da loja, ou, ao menos, de um corredor que
a isolasse desta, sublinhando, deste modo, a diferenciação espacial dos espaços
doméstico, privado, e profissional, semipúblico, da casa sobradada.
A existência de um segundo sobrado, ou a compartimentação do sobrado único,
propiciava, algumas vezes, uma maior especialização do âmbito privado, dividido
entre uma sala e uma ou várias câmaras. Estas eram espaços reservados e obscu-
ros, sitos na parte interior do sobrado, ou no sobrado superior, quando existente.
A sala ficava na frente da casa e era um espaço iluminado e confortável. Abria-se
à luz do dia, já não por singelas frestas ou estreita janela, mas por um ou mais
vãos relativamente amplos, ora dotados de guarnições lavradas, ora acompanhados
de varandas ou gelosias. Estas permitiam uma discreta contemplação do espaço
público, algumas vezes favorecida pelo conforto das conversadeiras de uma janela
de assento. Espaço de relação familiar, a sala abria-se à convivialidade com os mais
chegados e à hospitalidade, podendo beneficiar, entre os de maiores posses, do
conforto que a instalação de uma chaminé proporcionava. Lugar de lazer, também
o era de trabalhos femininos, e por isso, no vicentino Auto da Lusitânia, a judia
Hecer deixava aí os instrumentos de fiação, que, a dado momento, pede à filha:
Lediça, vai à janela,
traze-me a roca e a banca,
e o fuso que está co’ ela.
230
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades
2)
O mobiliário, nas habitações de finais da Idade Média, continuava a ser escasso.
A cama gótica era o elemento mais relevante. Sobre o estradão de madeira,
acompanhado, em muitos casos, de dossel e cortinados, acomodavam-se colchões
(“cócedras”) e a “cama de roupa”, onde os lençóis, de pano fino, já se perfilavam,
mas apenas entre os mais abastados. À cama, seguia-se a arca, de variados tipos
e multifuncional, onde tudo se podia guardar, usada, até, para dormir. A mesa era
móvel prescindível. Os seus tipos mais ligeiros, como o da simples tábua armada
sobre cavaletes, eram os preferidos, pois permitiam “pôr a mesa” onde se entendesse,
fosse na cozinha, na sala, numa câmara ou num terraço. Eram poucas as cadeiras,
mas comuns os bancos e os escanos. As pessoas sentavam-se também sobre as
arcas e as camas, ou no chão, sobre estrado com tapetes e almofadas, à maneira
islâmica. De forma variável, consoante as posses e os costumes locais, usavam-
-se couros, cortiça, tapeçarias e panos (“panos de armar”), esteiras e tapetes, no
revestimento das paredes e dos chãos. Nas habitações mais modestas, o solo de
terra batida podia ser revestido de palha ou de junco65.
Conclusão
Cenário de vida quotidiana de sucessivas gerações, a casa urbana e rural é teste-
munha maior das sociedades que a habitaram e utilizaram. Testemunha silenciosa,
que, ainda assim, permite que, do seu umbral, possamos apreender algo do que a
pedra, a cal, o barro e a madeira encerram. A casa do final da Idade Média exprime
algumas mudanças no viver quotidiano dos portugueses.
Para perceber quão significativas são estas mudanças, vale a pena recuarmos
um pouco no tempo, apreciando em traços breves o panorama habitacional do
período anterior, tão pouco conhecido66.
O que seria – da segunda metade do século XIII à actualidade – o território do
Portugal correspondia, no século XII, a duas unidades territoriais não só distintas,
como antagónicas: um “Portugal cristão”, que se ia desprendendo da obediência à
monarquia leonesa, ao mesmo tempo que procurava estender-se, a sul, pela “recon-
quista”, afrontando um Gharb-al-Andalus islâmico, ora fragmentado, ora unido na
submissão a impérios africanos. A diversidade de recursos geológicos e florísticos,
65
Vítor Manuel Pavão dos SANTOS, A casa no Sul de Portugal na transição do século XV para o
século XVI, cit., pp. 115-297; A. H. de Oliveira MARQUES, A sociedade medieval portuguesa, cit., p. 77-85.
66
[Sobre a casa no Portugal dos séculos XII e XIII, veja-se o nosso “Casas e espaços habitacionais
no tempo de D. Afonso Henriques: o que sabemos e o que gostaríamos de saber sobre a casa no período
da formação de Portugal”, comunicação apresentada ao Colóquio A vida material no tempo de D. Afonso
Henriques (Guimarães, 2010), Actas no prelo.]
231
Construir, habitar: A casa medieval
67
Jean-Marie PESEZ, “La maison médiévale (XIe-XIIIe siècle)”, Archéologie du village et de la maison
rurale au Moyen âge, cit., p. 432.
Admitimos que, nas condições peninsulares, marcadas por profunda instabilidade, a mudança de
padrões arquitectónicos ocorra mais tardiamente que noutras zonas do Ocidente cristão.
68
Jean-Marie PESEZ, “La construction rustique en pierre au Moyen Âge”, Archéologie du village et de
la maison rurale au Moyen âge, cit., p. 94.
232
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
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na dita cidade, que sejam de pedra, nam porram em ellas ameas sem lecença do
senhorio da igreja”, parece demonstrar ser ainda pouco comum o uso da pedra
no construção de moradias urbanas em meados do século XIV69. Um e outro caso
fornecem ainda indicações preciosas relativamente à cronologia do processo de
petrificação.
A permeabilidade entre a construção rural e a casa urbana era bem evidente
nesse período (e perduraria, aliás). A curtis – moradia com pátio interior – migrou
para os espaços urbanos, merecendo a atenção de gente grada de Coimbra e San-
tarém, entre os séculos X e XII. Mas as restrições espaciais inerentes à urbanidade
torná-la-iam obsoleta. As tipologias elementares sofreram ajustamentos ao passarem
para o meio urbano. A principal mudança resultou da relação com a rua, que exigia
a adição linear de módulos paralelipédicos e a criação de um verso e um reverso,
privilegiando a parede de interface com a rua, a fachada. Cabia a esta uma função
cenográfica pública, ao passo que a parede tardoz articulava o espaço privado inte-
rior com o quintal, um espaço rural privado em cenário urbano. A construção das
casas em banda recomendava cuidados particulares com a propagação dos fogos,
recomendando o abandono das coberturas vegetais e a localização preferencial da
lareira nas traseiras da casa.
A partir de finais do século XI, envereda-se, nas cidades mais populosas, onde
o solo mais encarecia, pela verticalização da construção urbana. O subtanus e o
superatus (depois, a loja ou sótão e o sobrado), além de vantagens económicas,
mostravam-se mais adequados às funcionalidades urbanas e à preservação da
vida familiar.
No final da Idade Média, as mudanças continuaram e aprofundaram-se.
A proximidade entre pessoas e animais não deixou de existir. Porém, à excepção
do gato e do cão, estes tendem a ser apartados para construções adjacentes. Mesmo
em meio rural, a promiscuidade entre homens e animais regrediu significativamente,
escasseando nos textos desta época as referências à casa-estábulo.
As interferências entre habitação e trabalho cresceram, perante o dinamismo
e a diversificação da economia, sobretudo do artesanato e do comércio citadinos.
Mas também se desenvolveram novas tipologias e soluções técnicas inovadoras,
com diferentes padrões de custos, que permitiam separar satisfatoriamente aquelas
esferas, resguardando o espaço de relação familiar – privado e eminentemente
feminino – do espaço de trabalho, mais partilhado.
69
Corpus Codicum Latinorum et Portugalensium, Porto, 1899, vol. I, p. 40, ref. por Mário Jorge
BARROCA, “Em torno da residência senhorial fortificada. Quatro torres medievais na região de Amares”,
Revista de história, vol. IX, Porto, 1989, p. 23.
233
Construir, habitar: A casa medieval
As privadas ou “necesaryas” talvez só existissem nas casas nobres, cf. Mário Jorge BARROCA,
71
234
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Fontes:
ARMAS, Duarte de, Livro das Fortalezas. Fac-símile do Ms. 159 da Casa Forte do Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, 2.ª ed., Lisboa, 1997.
Arquivo da Misericórdia de Tomar, Livro 74.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ordem de Cristo/Convento de Tomar, L.º 236; L.º 302; L.º 307.
Corpus Codicum Latinorum et Portugalensium, vol. I, Porto, 1899.
Direitos, bens e propriedades da Ordem e Mestrado de Avis nas suas três vilas de Avis, Benavila e Benavente
e seus termos, ed. por José Mendes da Cunha SARAIVA, Lisboa, 1950-1953.
ISIDORO (de Sevilha), Etimologías, ed. por José OROZ RETA e Manuel A. MARCOS CASQUEIRO, 2.ª
ed., vol. II, Madrid, 1994.
Liber Fidei Sanctæ Bracarensis Ecclesiæ, ed. crít. de Avelino de Jesus da COSTA, t. I, Braga, 1965.
Livro de Horas de D. Manuel, ed. com estudo introdutório por Dagoberto MARKL, Lisboa, 1983.
Portugliæ monvmenta historica, Diplomata et chartæ, vol. I, Lisboa, 1967.
(O) tombo da igreja do Salvador de Santarém, ed. por Manuela MENDONÇA, Lisboa, 1997.
Tombos da Ordem de Cristo, vol. I – Comendas a Sul do Tejo, ed. por Iria GONÇALVES, Lisboa, 2002.
VICENTE, Gil, Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, ed. por Maria Leonor Carvalhão BUESCU,
vol. II, Lisboa, 1984.
ZURARA, Gomes Eanes de, Crónica da tomada de Ceuta, ed. por Francisco Maria Esteves PEREIRA,
Lisboa, 1916.
235