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CONSTRUIR,

HABITAR:
A CASA MEDIEVAL
MANUEL SÍLVIO ALVES CONDE
SUMÁRIO

Prefácio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

Capítulo I
A habitação e a arquitectura corrente do Norte Trasmontano, em finais da
Idade Média. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

Capítulo II
Construções rústicas e urbanas do Médio Tejo nos séculos XV e XVI . . . . . . . . . . . 69

Capítulo III
Tipologias, materiais e técnicas construtivas correntes nas cidades do
Vale do Tejo, em fins da Idade Média . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

Capítulo IV
A casa urbana comum, no Alentejo dos séculos XV-XVI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119

Capítulo V
As gentes da construção na sociedade medieval portuguesa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147

Capítulo VI
Materiais e técnicas de construção na arquitectura rural do Médio Tejo,
em finais da Idade Média . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165

Capítulo VII
Alterações estruturais e superficiais na construção corrente urbana do
Ocidente Peninsular em fins da Idade Média . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179

Capítulo VIII
A habitação corrente nos finais da Idade Média: morfologias, materialidades,
funcionalidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203

Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237
CAPÍTULO VII
A HABITAÇÃO CORRENTE NOS FINAIS DA IDADE
MÉDIA: MORFOLOGIAS, MATERIALIDADES,
FUNCIONALIDADES*

AO LUÍS KRUS. IN MEMORIAM

… há casas que são um rio, há casas


que são um barco;
outras têm pomares
onde os diospiros ardem: há casas com terras de vinha e trigo
e muros a toda a roda.
Há casas que são um poema
para dar a um amigo.
(Eugénio de Andrade, Homenagens e outros epitáfios)

Introdução
O quadro legal regulamentador das provas de agregação estipula que o tema
da lição síntese seja escolhido pelo candidato, sobre “um problema dentro da
disciplina ou grupo de disciplinas” a que as provas se referem1. Tendo a minha
escolha recaído no tema A habitação nos finais da Idade Média, impõem-se algumas
considerações preambulares2. No essencial, consistem estas, em: 1) alguns tópicos

* Texto da lição síntese apresentada a provas de Agregação em História, na especialidade de História


Medieval, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH) (Junho
de 2004). Inédito.
1
Decreto n.º 301/72, de 14 de Agosto.
2
A escolha do tema fundamentou-se em aspectos de ordem científica, que se explanam nesta
introdução. Não lhe foi alheia, porém, um crescente interesse pessoal por este tema, de algum modo des-
pertado pelos convites para participar, com comunicações sobre esta temática, no II Seminário aberto sobre
Cidades medievais (FCSH, 1991) e no colóquio Tipologias, funções e quotidianos da habitação medieval

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Construir, habitar: A casa medieval

de enquadramento teórico do tema, 2) um breve balanço historiográfico; 3) uma


nota sobre a inserção do tema e desta unidade lectiva no programa da disciplina
de História Medieval de Portugal.

1)
Os grupos humanos sempre procuraram encontrar espaços de abrigo, que
os protegessem das agressões da natureza e dos outros homens. Desde tempos
remotos, procuraram naquela os espaços que entenderam mais adequados a essa
protecção, ajustaram-se a eles e adaptaram-nos às suas necessidades vivenciais.
Depois, desenvolveram a capacidade de produzir as suas habitações, valendo-se
de materiais recolhidos no meio natural e de técnicas e meios por eles concebi-
dos. Criação humana, a casa constituiria um aspecto fundamental no domínio da
natureza pelos homens. Todavia, a habitação não constitui, por si mesma, critério
definidor de humanidade, visto tratar-se do “facto técnico mais comum ao homem
e aos animais”3.
A casa ocupa um lugar central entre as técnicas de consumo, na medida em que
permite satisfazer algumas das necessidades mais elementares do homem. A sua
produção implica a apropriação de espaço natural por um dado grupo humano, e
o desvio/modificação desse espaço para servir as necessidades e as possibilidades
do mesmo grupo. Tendo um lugar central entre as técnicas de consumo, na medida
em que permite satisfazer algumas das necessidades humanas mais elementares,
a casa é também instrumento produtivo, ao ser manipulada pelo homem no seu
esforço de domínio/transformação da natureza, inserindo-se no âmbito das téc-
nicas de aquisição de produtos que lhe garantem a alimentação e o conforto, no
das técnicas de fabrico e no das de acumulação4.
Espaço de abrigo e de conforto, cenário de invenção do quotidiano e de repro-
dução do próprio homem, tanto no plano biológico, como no da transmissão da
herança sociocultural, a casa foi-se transformando, tornou-se, tantas vezes, mais
complexa e assumiu novas dimensões materiais e imateriais. Garantiu segurança
e bem-estar, acomodou actividades produtivas, a guarda de alimentos e de bens

(FCSH, 1999) e reforçado pelo trabalho desenvolvido como bolseiro de Pós-Doutoramento da Fundação
para a Ciência e a Tecnologia (FCT) na Faculdade de Geografia e História da Universidade de Santiago
de Compostela, sobre a Casa comum do Ocidente Peninsular nos finais da Idade Média, em programa
realizado sob a responsabilidade do Professor Santiago Jiménez Gómez (2000-2002), e como membro do
projecto Paisagens rurais e urbanas entre a Idade Média e os Tempos Modernos, POCTI/HAR/350169/99,
financiado pela FCT e dirigido pela Professora Iria Gonçalves (1999-2004).
3
André LEROIGOURHAN, Evolução e técnicas, vol. II – O meio e as técnicas, Lisboa, 1984, p. 185.
4
Na enunciação das técnicas, consideramos os critérios tipológicos enunciados por André LEROI
GOURHAN, Evolução e técnicas, vol. II, cit., passim.

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Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades

acumulados, agregou grupos humanos e projectou-os no devir (a casa/família, a


casa/linhagem), serviu de elemento de distinção social e cultural.
As modalidades de apropriação do espaço, as possibilidades técnicas, os proces-
sos de produção e de reprodução de que vimos falando referem-se a grupos vivos,
reportados a um tempo e a um espaço determinados5. Por isso, a casa comum, com
os seus objectos, e os actos essenciais que lhe são inerentes – construir, habitar,
cozinhar – são profundamente reveladores da sociedade que os produziu e utilizou,
das estruturas sociais, mentalidades, recursos técnicos e organização económica
de um determinado espaço-tempo6.
Sem esquecer que cada um dos actos de consumo ou de produção a que
aludimos comporta uma dimensão social e simbólica, na perspectiva da história
da cultura material importa privilegiar a materialidade (materiais e técnicas de
construção, morfologia, dimensões, compartimentação) e a funcionalidade da casa
e do que nela se inscreve. Do mesmo modo, o colectivo e o facto repetitivo devem
ser valorizados, em desfavor das individualidades e singularidades. As dimensões
cronológica e espacial, justificativas de diferenças, terão de ser apreciadas, bem
como a dimensão social, que introduz distintos níveis de cultura material dentro
de um mesmo contexto técnico-económico.
Uma tal visão de conjunto permite que o estudo da moradia comum medieval,
rural e urbana, e dos objectos domésticos se torne fecundo, facultando um melhor
conhecimento da sociedade que os engendra e manipula. E de que os espaços
habitacionais são quadro vivencial.
Dentro desta perspectiva, a casa comum é objecto de estudo pluridisciplinar,
onde a visão do historiador deve ser valorizada pelos olhares do geógrafo e do
antropólogo, do arquitecto e do engenheiro, do arqueólogo, dos historiadores das
técnicas e da arte e do linguista.

2)
Não têm grande tradição, entre os medievistas portugueses, os estudos sobre a
casa. Um século atrás, o tema foi aflorado em estudos pioneiros de Alberto Sampaio
(1902) e de A. de Sousa e Silva Costa Lobo (1903), num contexto historiográfico
em que se privilegiava o facto político, ou o facto de ordem intelectual ou artística.
Seguir-se-ia um longo interregno até surgir, num quadro historiográfico já bene-

5
Henri LEFEBVRE, La production de l’espace, 4.ª ed., Paris, 1984, p. 193.
6
Entre outras obras de referência teórica, listadas na bibliografia final, refiram-se particularmente as de
André LEROIGOURHAN, Evolução e técnicas, vol. I – O homem e a matéria, vol. II – O meio e as técnicas,
Lisboa, 1984, Fernand BRAUDEL, Civilização material e capitalismo. Séculos XV-XVIII, t. I – Estruturas do
quotidiano, Lisboa/Rio de Janeiro, 1970 [pp. 215-252]; Amos RAPOPORT, Pour une anthropologie de la maison,
Paris, 1972; e Jean-Marie PESEZ, Archéologie du village et de la maison rurale au Moyen Âge, Lyon, 1999.

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Construir, habitar: A casa medieval

ficiário da lição dos Annales, o estimulante capítulo “A casa”, da obra de A. H. de


Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa. Aspectos de vida quotidiana,
que retomava o tema da habitação medieval, em bases teóricas e metodológicas
inovadoras. No ano em que se publicava aquela obra (1964), concluía Vítor Pavão
dos Santos a sua dissertação sobre A Casa no Sul de Portugal na transição do século
XV para o século XVI, trabalho de grande interesse, sobretudo no que se refere
aos interiores e aos objectos da casa, que, desgraçadamente, nunca veria os prelos.
Esses esforços não tiveram, porém, a desejável continuidade e o tema habitação
medieval, na falta de novos cultores, foi caindo no olvido. A edição luso-brasileira
da obra de Braudel, Civilização material e capitalismo. Séculos XV-XVIII, t. I – Estru-
turas do quotidiano (1970), não suscitaria uma maior atenção a estas temáticas, tal
como não tiveram eco, entre nós, os debates relativos às aldeias desertas, iniciados
na Europa além Pirenéus alguns anos atrás, que aí determinaram o arranque ou a
aceleração das investigações sobre a aldeia e a casa, terreno fértil de afirmação da
história da cultura material, que progressivamente se distinguia, quer da história
económica e social, quer da história da vida quotidiana7.
A renovação do nosso medievalismo decidir-se-ia, na década de 70, então ini-
ciada, e na seguinte, entre outros terrenos, nos da história rural e da história urbana.
Destes vieram, aliás, umas tantas contribuições parcelares da maior utilidade para
o estudo da casa. Mas, quatro décadas passadas da sua publicação inicial, o capítulo
de Oliveira Marques, com as correcções e aditamentos introduzidos pelo autor nas
sucessivas edições da obra em que se insere, continuou sendo o único trabalho
de conjunto sobre a habitação medieval portuguesa e referência indispensável a
quantos pretendam estudar esta temática8.
A década de 90 viu surgir um pequeno conjunto de estudos sobre esta temática,
e a construção foi considerada, lateralmente, em diversos trabalhos académicos,
relativos a temas de história rural e, sobretudo, de história urbana, produzidos nas
últimas décadas. A informação carreada e o tratamento da mesma nestas obras
permitem que hoje possuamos já um razoável conhecimento da casa urbana,
sobretudo no que respeita ao Entre Douro e Minho, a Coimbra, ao Vale do Tejo e ao

7
As obras a que aludimos, directa ou indirectamente, neste ponto e nos seguintes, estão registadas
na bibliografia final.
8
[As duas sínteses hoje existentes, da autoria de Mário Jorge BARROCA, “Arquitectura gótica civil”,
in: Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA e Mário Jorge BARROCA, História da arte em Portugal, O gótico,
Lisboa, 2002, pp. 86-128, e de Manuel Sílvio Alves CONDE, “A casa”, in História da vida privada, dir. por
José Mattoso, vol. I – A Idade Média, coord. por Bernardo Vasconcelos e Sousa, Lisboa, 2010, pp. 54-77,
não retiram actualidade à obra de Oliveira Marques.]

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Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades

Alentejo9. Pelo contrário, o Portugal Interior – sobretudo o trasmontano, o duriense


e o beirão10 – permanece envolto em densa escuridão, que tarda em iluminar-se.
Uma vez que, globalmente, o panorama da investigação sobre as estruturas
habitacionais urbanas é já bastante positivo, importa agora, sobretudo, preencher os
campos mais lacunares, estudar as pequenas cidades do interior, apreciar problemas
de escala e variações regionais e desenvolver estudos sectoriais, com especialistas
de outras áreas disciplinares.
Assinalável é, também, o conhecimento da habitação senhorial, fortificada e não-
-fortificada11. O mesmo não se pode dizer da casa rural. De facto, sobre a habitação
campesina, as construções adjectivas e os equipamentos rurais, “desconhecemos
quase tudo e para quase todo o País”12. Até certo ponto, a situação explica-se pela
extrema parcimónia informativa dos testemunhos alusivos à casa rural, que torna
imperativo o recurso à arqueologia rural. Porém, esta, que noutros horizontes tão
bem frutifica, tarda em firmar-se no nosso país13. Já a etnologia, a geografia e a
arquitectura têm dado sólidos contributos para o conhecimento da casa rural14,
cuja lição terá de ser considerada pelos investigadores. Não deverá, ainda, ser

9
Refiram-se, entre outros, os trabalhos de Maria da Conceição Falcão Ferreira, que constituem refe-
rência incontornável no estudo das estruturas habitacionais urbanas a Norte do Douro, a obra de Luísa
Trindade, sobre Coimbra, e os trabalhos de Maria Ângela Beirante, João José Alves Dias, Bernardo Sousa
e Manuel Sílvio Alves Conde, relativos à casa alentejana.
10
Sublinhem-se, relativamente à Beira Interior, os estudos de Iria Gonçalves, Rita Costa Gomes, Isabel
Castro Pina e Gilberto Moiteiro. Para Trás-os-Montes e o Alto Douro, refiram-se os trabalhos de Ana Maria
Afonso, Manuel Sílvio Alves Conde e Marina Afonso Vieira.
11
Graças ao imprescindível contributo da arqueologia e da história da arte e, em particular, aos
estudos de Mário Jorge Barroca e de José Custódio Vieira da Silva.
12
Iria GONÇALVES, “A construção corrente na Beira Interior nos finais da Idade Média”, in III Con-
gresso Histórico de Guimarães – D. Manuel I e a sua época. Actas, 3 – População, sociedade e economia,
Guimarães, 2004, pp. 103-123.
Sobre a casa rural, assinalem-se, além deste, os nossos artigos relativos ao Médio Tejo e a Trás-os-
-Montes, o último elaborado em conjunto com Marina Afonso Vieira. [De Iria GONÇALVES, refira-se ainda
“Retalhos de uma paisagem minhota de finais da Idade Média”, Media Ætas, II Série, vol. I, 2004-2005, pp.
9-46, trabalho inédito à data de elaboração deste texto].
13
Os elementos entre nós carreados pela arqueologia referem-se sobretudo ao horizonte islâmico e aos
espaços urbanos. Da arqueologia islâmica relativa ao mundo rural, consulte-se o útil elenco de Stéphane
BOISSELLIER, “Archéologie rurale islamique dans le sud du Portugal. Recension bibliographique”, Arché-
ologie islamique, 6 (1996), pp. 169-192. Do contributo da arqueologia do Portugal cristão, sublinhem-se
as páginas consagradas à casa rural por Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA, na sua dissertação de
doutoramento, Arquitectura românica de Entre-Douro-e-Minho, vol. I – Para uma perspectiva ecológica,
económica, social e mental do Entre-Douro-e-Minho nos séculos XI a XIII, Porto, 1978, pp. 51-78.
14
Sobretudo os estudos de José Leite de Vasconcelos, Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano
e Benjamim Pereira, Orlando Ribeiro e o levantamento do Sindicato dos Arquitectos sobre Arquitectura
popular em Portugal. Refira-se ainda o Inquérito à habitação rural, de Lima Basto e Henrique de Barros,
iniciado em 1943 e logo cortado cerce pela repressão governamental.

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Construir, habitar: A casa medieval

menosprezado o estudo das fontes figurativas, com a desejável colaboração dos


historiadores da arte.
A renovação do estudo da construção corrente no Portugal tardomedievo exige
o confronto da realidade percepcionada a partir das nossas fontes com aquilo que
se conhece relativamente a outras áreas geográficas. Os estudos da casa comum de
outros espaços europeus e mediterrânicos, para além de necessários à contextua-
lização do objecto de investigação, permitem ampliar a formulação das questões
de base e das hipóteses de trabalho, enriquecem a reflexão temática e dão mais
consistência às hipóteses explicativas, onde as lacunas das nossas fontes se reve-
larem intransponíveis15.

3)
A circunstância de – no quadro do programa lectivo – o tema desta lição ser
tratado após a abordagem dos grupos temáticos respeitantes aos espaços rural e
urbano, onde as referências à paisagem têm um peso apreciável, permite que o
tratamento dado ao subtema “Arquitectura e paisagem” seja menor16.
A unidade lectiva que precede esta aula consta tão-somente de dois tópicos.
Reporta-se o primeiro ao lugar da arquitectura civil, religiosa e militar na antropização
da paisagem.
Quanto ao segundo, procura referenciar os principais géneros de arquitectura civil presentes
nos espaços rurais e urbanos – construções domésticas, utilitárias e infra-estruturas – assinalando
de seguida as diferenças essenciais entre as edifícios de prestígio e a arquitectura corrente.

Esta aula – A habitação nos finais da Idade Média: tipologias e funcionalidades


– reparte-se por cinco tópicos, de diferente compleição. Refere-se o primeiro às
fontes disponíveis, aos cuidados metodológicos e aos problemas terminológicos.
O segundo tópico é o mais denso, reportando-se às tipologias arquitectónicas,
materiais e técnicas construtivos. Dissertamos, depois, sobre as funcionalidades
das casas rurais e urbanas, a sua organização espacial e o mobiliário. Na conclusão,

15
[Nesta perspectiva, apresentam o maior interesse alguns desenvolvimentos recentes, designada-
mente a participação portuguesa no seminário internacional sobre Histoire de la Construction, promovido
pelo LAMOP (Laboratoire de Médiévistique Occidentale de Paris I – Sorbonne) e realizado em Paris, no
primeiro semestre de 2010, e a realização de dois colóquios internacionais sobre História da Construção,
por iniciativa do CITCEM/Universidade do Minho, em Braga, em Outubro de 2010 e 2011].
16
A matéria desta lição corresponde, no programa da disciplina “História Medieval de Portugal”
apresentado nestas provas de agregação, à segunda parte da unidade lectiva “4.5. A paisagem construída
e a habitação”. Insere-se esta a meio do último bloco do programa, “4. Crise e recuperação nos finais da
Idade Média”, seguindo-se aos grupos temáticos relativos à evolução conjuntural, à ruralidade e ao mundo
urbano e precedendo os que abordam o tecido social e as instituições políticos.

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Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades

abordam-se sobretudo os principais aspectos da evolução da arquitectura doméstica,


em curso na Idade Média tardia.

1. Fontes, métodos, terminologia

1)
Para o estudo da arquitectura corrente tardomedievo, deveremos apoiar-nos
nos dados resultantes da conjugação de todo o tipo de fontes.
a) Em primeiro lugar, os textos: apesar do seu formalismo, as séries de contratos
de locação são do maior interesse e cobrem um largo espectro temporal;
por sua vez, os tombos de propriedades concentram-se e apresentam maior
riqueza descritiva na segunda metade de Quatrocentos e nas primeiras
décadas de Quinhentos; a testamentaria e os inventários orfanológicos são
também uma fonte preciosa para o conhecimento dos bens móveis; mas
outras espécies, aparentemente mais pobres, não deverão ser menosprezadas;
b) Depois, as fontes figurativas17: sobretudo as miniaturas, com realce para as
representações dos Livros de Horas – tão úteis para a percepção dos espa-
ços interiores —, e as panorâmicas do excepcional Livro das Fortalezas de
Duarte de Armas;
c) Imprescindível é, por último, a análise das estruturas e dos elementos arqui-
tectónicos remanescentes, dos dados arqueológicos – estruturas habitacionais,
objectos do quotidiano, sítios habitados – e da paisagem rural e urbana.

2)
Estas fontes têm, todas elas, limitações próprias, que são inerentes à sua natureza,
à intencionalidade que presidiu à sua elaboração, aos interesses dos encomendadores,
aos valores culturais e à capacidade técnica dos autores18. Algumas delas – como é
o caso das estruturas e elementos arquitectónicos remanescentes —, levantam-nos
sérias dificuldades, perante a conservação diferencial dos materiais19, a tendência

17
Cf. a abordagem destas por Vítor Pavão dos SANTOS, A casa no Sul de Portugal na transição do
século XV para o século XVI, Lisboa, 1964.
Para o aproveitamento histórico das fontes figurativas, veja-se Christiane RAYNAUD, Le commentaire
de document figuré en histoire médiévale, Paris, 1997.
18
Muito esquematicamente, não poderemos esperar que minuciosos elencos patrimoniais nos dêem
informes estranhos aos interesses do proprietário, que leis e regimentos não reflictam a óptica do poder,
que a documentação notarial se desprenda dos estereótipos, ou que a arqueologia nos esclareça sobre
pisos superiores construídos com materiais perecíveis…
19
“[…] quer pela maior resistência dos seus materiais, quer pelo prestígio inerente, as construções
pétreas foram as que maioritariamente chegaram aos nossos dias. Mas tal não significa que no panorama da

209
Construir, habitar: A casa medieval

para a conservação dos edifícios de prestígio e as reformas introduzidas pelos


sucessivos proprietários que nalguns casos transfiguraram quase completamente
construções de raiz medieva20.
Por isso, a busca do rigor exige-nos sérias precauções metodológicas na leitura
das fontes. A superação das lacunas reclama-nos estudos comparativos21, estudos
sectoriais, informações da etnologia, da toponímia, a aplicação do método regres-
sivo22. Impõe-se-nos uma consciência muito clara da nossa ignorância, dos limites
– e dos riscos – de um conhecimento construído sobre estas bases23. Mas, para
além do recurso a critérios e metodologias rigorosos e actualizados, o aprofunda-
mento do conhecimento científico exige, sobretudo, que o investigador se baseie na
pluralidade dos recursos documentais disponíveis e na abordagem pluridisciplinar.

3)
Numa nota, que se pretende muito breve, sobre os aspectos etimológicos e
semânticos respeitantes às estruturas habitacionais, assinale-se, em primeiro lugar,
que estas ocorrem nos textos altimedievos do Noroeste Peninsular sob várias deno-
minações, as mais frequentes das quais eram domus, edificium e casa (também
kasa e kassa)24.
A designação edificium (lat. cl. ædificium) ‘edifício’ tinha um sentido geral – ‘cons-
trução, em sentido amplo’ —, pelo que não se aplicava especificamente às construções
residenciais25. Eram os termos domus e casa que tinham esse sentido específico.

arquitectura civil da Baixa Idade Média elas fossem as mais numerosas ou sequer as mais representativas.
Nem no Norte de Portugal […] e seguramente muito menos no Sul, onde ainda hoje as “arquitecturas de
terra” têm alguma representatividade” – Mário Jorge Barroca, “Arquitectura gótica civil”, cit., pp. 86-87.
20
As sucessivas remodelações da casa comum eliminam, tantas vezes, caracteres arquitectónicos de
épocas mais recuadas, dificultando uma datação rigorosa. Nestes casos, a análise morfológica revela-se
insuficiente, impondo-se o estudo integral dos edifícios e das respectivas estruturas, visando a reconstrução
da história do edifício, da sua adequação funcional, das suas remodelações e dos reflexos das mesmas na
transformação do espaço interno.
21
Em especial com outros espaços europeus e mediterrânicos.
22
“C’est du moins mal connu qu’il faudra partir, recueillant un par un les divers indices qui peuvent
aider à comprendre un plus lointain et obscur passé” – Marc BLOCH, Les Caractères originaux de l’histoire
rurale française, t. II – Supplément établi par R. Dauvergne d’après les travaux de l’auteur (1931-1944),
Paris, 1968, p. XXVI.
23
“Qui voit le piège, risque moins d’y tomber” – Marc BLOCH, Les Caractères originaux de l’histoire
rurale française, Paris, 1999, p. 49.
24
Também tinham curso os termos superatus (ou supratus), curtis e palatium, e outros, como edi-
ficantia e domicilium.
25
“Concedimus uobis dominis nostris iam supranominato ipsius locis […] et adicimus […] casas
cubos cubas et omnia edificia cum intrinsecus suis que ibidem est – Portugaliæ monvmenta historica,
Diplomata et chartæ (DC), vol. I, Lisboa, 1867, n.º 5, p. 4, doc.º de 870 (itálico nosso).

210
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades

Domus e casa partiram de campos semânticos distintos, na latinidade clássica


e isidoriana; casa de morada, a primeira, cabana ou edifício precário e elementar,
a segunda26. Os dois termos acabariam por sobrepor-se e concorrer entre si27.
Domus viria a sucumbir – não subsistiu nas línguas romances peninsulares – e
casa dominaria todo o campo semântico de ‘espaço de habitação’, em processo que
atravessou toda a Idade Média e está bem patente na documentação arquivística
dos séculos X e XI. Invadiu também o campo semântico de edificium28; ganhou
terreno no sentido de ‘convento’, de ‘exploração familiar; gerou novos termos, da
maior relevância: casal (870, também kasal e casar) e casare (1192).
A entrada de casa na língua portuguesa, quase solitária, com o abandono de
domus e o uso restrito de edifício, acentuou a polissemia29 que já manifestava no
baixo latim. Justificando, à entrada de Quinhentos, uma curiosa transgressão sin-
táctica: “hũua casa [em Tomar] na rua da coredoira que forom de joham afonso
tourinho que som duas casas sobradadas30.
Cerca de 1500, o campo semântico de casa era muito amplo, incluindo-se, entre
as suas acepções comuns, as de ‘edifício (em geral)’, ‘edifício de habitação’ e/ou ‘de
produção’ e/ou ‘de comércio’ e/ou ‘de armazenamento de géneros’’ e/ou ‘guarda de
animais’, ‘cada uma das divisões de uma habitação’, ‘família, conjunto de pessoas
que moram numa casa’; ‘família soberana, ou nobre’, ‘património familiar; conjunto
dos negócios familiares’, ‘conjunto de pessoas adstritas ao serviço de rei, rainha,
príncipe, ou senhor’, ‘convento’, ‘repartição pública’. Um campo semântico riquíssimo
para vocábulo de etimologia tão humilde.

26
“A casa é um habitáculo construído com paus, canas e ramos, onde os homens podem resguardar-se
da inclemência do frio e da violência do calor” – Isidoro de SEVILHA, Etimologias, XV, 12, 1 (nossa tradução).
27
Em meados do século X, a distinção dos respectivos campos semânticos ainda era, algumas vezes,
respeitada: “Christus in dei nomine ego zamora cognomento zana una cum filiis meis […] uinderemus
uobis zaton muzaudiz et uxori tue cita ereditate nostra propria […] domos casas cubos cubas lectos
cadedras uel homnia introsiis domorum terras rubtas uel barbaras […]” – DC, n.º 175, p. 108, doc.º de
995 ( ?) (itálico nosso).
28
“Casas quos hedificaui cum fundamentibus suis, id est : apodeca, orreos II, superato […]” – Texto 2
do apêndice II de M. Rubén GARCÍA ÁLVAREZ, “Antecedentes altomedievales del casal galaico-português”,
Revista de Etnografia, vol. IX, t. 1 (1967), p. 126 (doc.º de 947) (itálico nosso).
29
Muitos autores se têm debruçado sobre este tema. Entre eles, refiram-se Maria Ângela V. da Rocha
BEIRANTE, Évora na Idade Média, Lisboa, 1995, p. 121; Ana Maria Seabra de Almeida RODRIGUES,
Torres Vedras. A vila e o termo nos finais da Idade Média, Lisboa, 1995, p. 155; Ana Maria AFONSO,
O mosteiro de S. Salvador de Castro de Avelãs. Um património monástico no dealbar da Idade Moderna
(1500-1538), Cascais, 2002, pp. 71-73.
30
Arquivo da Misericórdia de Tomar, L.º 74, fl. 131.

211
Construir, habitar: A casa medieval

2. Tipologias
O estudo das estruturas habitacionais presentes em meio urbano ou rural
permite-nos uma aproximação aos tipos arquitectónicos mais comuns.

1)
A maioria dos edifícios referenciados no meio rural, nas pequenas vi las,
aldeias e explorações agrícolas das diversas regiões do reino, correspondia ao tipo
elementar: a moradia unicelular, de piso e divisão únicos31. Era a casa, casa térrea,
casa terreira ou casa chã.
A casa elementar, que correspondia habitualmente a actividades agrícolas e
pastoris pouco exigentes, podia, quando estas o requeressem, vir acompanhada
de construções anexas.
A construção elementar duradoura (casa, casinha) distinguia-se, pela qualidade
e diversidade dos materiais e pela tecnologia, mais elaborada, da infraconstrução
(cabana), associada à miséria e a condição social inferior.
Resultando da duplicação horizontal do tipo elementar, a moradia térrea
bicelular, de piso único e duas divisões (casa dianteira/casa de dentro ou de trás,
casa dianteira/câmara, casa/cozinha, casa/celeiro, ou cozinha/celeiro), também era
presença constante nos casais, nas aldeias e nas vilas. Nalguns casos, as soluções
de ampliação horizontal apresentavam-se mais elaboradas, originando moradias
térreas pluricelulares.
Por vezes, nalgumas regiões nortenhas (Alto Minho, termo da Guarda), a casa
térrea alongava-se e comportava um ou vários “repartimentos”. Embora precárias, tais
delimitações do espaço eram imprescindíveis, pois a casa longa – associada a econo-
mias rurais pouco diversificadas – albergava pessoas e animais sob o mesmo tecto32.
Associados ao povoamento disperso e a economias rurais prósperas e diversifi-
cadas, os assentos de unidades produtivas erguiam-se junto às terras de cultivo, em
complexos térreos, onde se distinguiam os edifícios de habitação dos de exploração.
Este tipo, que implicava alguma abastança do chefe de exploração, ter-se-ia por-
ventura inspirado nos modelos de organização espacial das explorações senhoriais.
Abrange formas mais ou menos estruturadas, desde o complexo de edifícios contíguos,
mas dispersos, às casas com pátios, abertos ou fechados, com uma organização mais
elaborada. Casas e construções adjectivas – celeiros, currais, eiras, adegas, lagares,

31
O predomínio da moradia elementar era evidente em Trás-os-Montes, na Beira, no Vale do Tejo
ou no Alentejo. Cf. os trabalhos atrás referidos (na nota 12) de Iria Gonçalves, Manuel Sílvio Alves Conde
e Marina Afonso Vieira.
32
“Outro casal que se chama de couello de çima, na freeguesia de sampayo d azõoes, julgado de
penella, e tem hũua cozinha colmada e hũua corte, todo em hũua casa […].” – Arquivo Nacional da Torre
do Tombo (ANTT), Ordem de Cristo, Convento de Tomar (OC/CT), L.º 236, fl. 60 (itálico nosso).

212
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades

palheiros e cortes – organizavam-se em função da casa, ou cozinha, “aa redonda” (em


círculo)33, ou “em viella” (em linha)34. Se o pátio era murado, o acesso fazia-se, muitas
vezes, por uma porta de grandes dimensões: a porta fronha, ou carral.
Assemelhava-se a este tipo um modelo meridional, a casa com pátio dianteiro,
constituída por moradia térrea, aberta para um pátio dianteiro, murado, contactando
com o exterior por um portal.
O crescimento em altura manifestou-se sobretudo como fenómeno citadino,
que irradiou lenta e tardiamente para os campos. Solução mais exigente do que as
outras em materiais e tecnologia, implicando o recurso a mão-de-obra especializada,
a moradia de dois pisos, sobrado e loja, aparece, de algum modo, associada à acen-
tuação de clivagens sócio-económicas entre a população camponesa, como sinal da
abastança dos grupos emergentes. Não era comum em meio rural, manifestando-
-se nalgumas pequenas vilas35 e num ou noutro casal. Na Meda, uma casa de dois
sobrados destacava-se das demais, sendo por isso chamada “a” casa alta36.

2)
A casa térrea também tinha uma larguíssima expressão nos aglomerados
urbanos37. Sobretudo a moradia unicelular e a bicelular. Em menor escala, ocor-
riam ainda soluções de ampliação horizontal mais elaborada: as moradias térreas
pluricelulares.
Modelo peculiar é o da moradia térrea, aberta para um pátio dianteiro, murado, con-
tactando com o exterior por um portal e filiado, porventura, na casa rural muçulmana38.

33
“[…] quatro casas colmadas. duas som çeleiros e duas cortes todo aa redonda” – ANTT, OC/CT,
L.º 236, fl. 39.
34
“[…] hũua quintãa que se chama do rial […] e tem quatro casas leuantadas em viella .a saber. duas
no meyo e hũua casa telhada que serue de cozinha e junto della outra casa telhada que serue de çeleiro e
abaixo outra colmada” – ANTT, OC/CT, L.º 236, fl. 79.
Também se usava a expressão “em ordem”: “um casall encabeçado com três casas telhadas e duas
palhazas todas estas cinquo casas em huua hordem” – O tombo da igreja do Salvador de Santarém, ed.
por Manuela Mendonça, Lisboa, 1997, p. 87.
35
Como em Dornes, no curso inferior do Zêzere – Manuel Sílvio Alves CONDE, “Materialidade e funcio-
nalidade da casa comum medieval”, Construções rústicas e urbanas do Médio Tejo nos finais da Idade Média,
in Morar. Tipologia, funções e quotidianos da habitação medieval. Media Actas, n.º 3/4 (2000/2001), p. 56.
36
Como sublinhou Iria GONÇALVES, “A construção corrente na Beira Interior…”, cit.
37
Cf. Manuel Sílvio Alves CONDE,“Sobre a casa urbana do centro e sul de Portugal, nos fins da Idade Média”,
Horizontes do Portugal medieval. Estudos históricos, Cascais, 1999, pp. 262-263, 271-272. Em pleno século XX,
“Estas casas são extremamente numerosas e encontram-se por todo o País, vendo-se mesmo nas cidades” –
Ernesto Veiga de OLIVEIRA e Fernando GALHANO, Arquitectura tradicional portuguesa, Lisboa, 1992, p. 23.
38
Constituída por vários módulos, que tendiam a ordenar-se em volta de um pátio, que abre para o
exterior, distinguindo-se, portanto, da casa urbana de pátio central. Encontramo-lo em meios urbanos
meridionais, como Lisboa (Mouraria) e Setúbal, mas também na periferia “saloia” de Lisboa, em Arroios
e na Ameixoeira.

213
Construir, habitar: A casa medieval

Em cenários urbanos, a compacidade e o custo elevado dos solos – sobretudo


nas zonas centrais – sugeriam a ampliação da área útil das moradias através do
crescimento em altura. A casa sobradada apresentava ainda vantagens, relativamente
à térrea, em termos funcionais.
A modalidade básica era bicelular: a casa de dois pisos e duas divisões, supe-
ratus e subtanus, sobrado e sótão, ou loja. Mas também se experimentaram soluções
mais complexas, pluricelulares, incluindo as casas meio-sobradadas39, e ergueram-se
sucessivos sobrados.
As soluções verticalizantes eram mais exigentes em termos de materiais e de
técnicas construtivas. Daí que o alteamento fosse significativo, sobretudo, nas cidades
mais dinâmicas e nos espaços centrais das mesmas, onde o solo escasseava e os
recursos se concentravam, como, em Lisboa, a Rua Nova, Santa Justa, S, Cristóvão,
S. Mamede, S. Nicolau, Sé e S. Lourenço.
Distintas destas moradias pluricelulares de feição verticalizante, correspondendo
a funcionalidades típicas de grupos urbanos, eram as moradias pluricelulares de dois
pisos, largas e atarracadas, de feição horizontalizante, cuja construção foi impulsio-
nada pelo afluxo de nobres a algumas cidades, nos séculos finais da Idade Média40.
As casas com andares ressaltados e as casas armadas sobre arcos eram tipos
urbanos prestigiados, subordinados a lógicas distintas dos tipos básicos, inicialmente
referidos. Conheceram nos últimos séculos da Idade Média uma grande adesão,
respondendo a novos problemas, criados pelo surto urbano.

3. Materialidade da construção corrente


A nossa apreciação da materialidade das construção corrente incidirá, antes de
mais, sobre os materiais construtivos. Analisar-se-ão, depois, os aspectos estruturais
e as técnicas de construção. Por último, tentar-se-á uma aproximação às medidas
das casas.

39
Em Pinhel, na rua Direita, havia uma habitação constituída por casa dianteira meio sobradada e
casa de dentro sobradada – ANTT, OC/CT, L.º 307, fl. 57v.
40
“A casa de tipo ‘senhorial’ tinha […] uma organização interna ‘sobre o largo’, com compartimentação
disposta em paralelo com o arruamento fronteiro; a loja térrea incluía também uma escadaria de acesso
ao ‘piso nobre’ – José Manuel FERNANDES, Cidades e casas da Macaronésia. Evolução do território e da
arquitectura doméstica nas ilhas atlântidas sob influência portuguesa, quadro histórico do séc. XV ao séc.
XVIII, 2.ª ed., Porto, 1996, p. 223.
Estas residências alargavam-se, muitas vezes, através de novas construções laterais, ou mesmo por
locação de casas adjacentes. A essa solução recorreu, entre tantos outros, o conde de Tentúgal D. Álvaro, que,
em 1505, trazia emprazadas à comenda de Almourol quatro moradas vizinhas das suas casas em Lisboa,
garantindo, desse modo, um aumento de área útil superior a 500 m2 – ANTT, OC/CT, L.º 302, fls. 6v-7v.

214
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades

1)
Os materiais empregues na construção eram, aparentemente, os mesmos, por
toda a parte: a pedra, a terra crua e cozida, a areia, a cal, a madeira e outros mate-
riais vegetais e o metal. Na sua maior parte, provinham das proximidades do lugar
de construção. Mesmo nos meios urbanos. Impunham-no os meios de transporte
disponíveis, os condicionalismos – e sobretudo os custos – da circulação na época.
Algumas vezes, porém, o aprovisionamento local de materiais imprescindíveis não era
possível e a acessibilidade fluvial e marítima sugeria o recurso a soluções exteriores e até à
importação do estrangeiro. Era Lisboa que mais recorria a tais soluções. Dispunha de pedreiras
em zonas centrais, como o Santo Espírito da Pedreira (actual Chiado). Abastecia-se na perife-
ria imediata, em Alcântara e Paradela, de cantaria lioz e de pedra para a cal. Da outra banda
do Tejo, de Almada e Caparica, vinha pedra e cantaria. De áreas mais distantes, de Leiria e
Pederneira recebia o tavoado corrente e importava da Flandres “taboa, de marca grande”. Do
exterior vinha, ainda, alguma “pregadura”. Das ilhas atlânticas e, posteriormente do Brasil,
chegava, também, regularmente, a madeira.

O esquema antinómico, proposto por Orlando Ribeiro, de uma civilização do barro,


no Sul, por oposição a uma civilização do granito, no Norte, parece, à luz das fontes,
bastante redutor. Na verdade, a Idade Média conheceu arquitecturas de pedra, de terra
– e de madeira – e, sobretudo, arquitecturas integradoras destes materiais. A opção
por uma ou outra destas soluções dependia dos materiais que existissem localmente,
das possibilidades de trazê-los do exterior, a custo comportável, da cultura construtiva
local e das decisões dos proprietários sobre o custo e a durabilidade desejados.
O mosaico geológico do Reino condicionava o recurso a diversas pedras. Granitos,
xistos, calcários (incluindo a muito apreciada pedra lioz, ou o tufo) e outras pedras
(como o basalto) distribuíam-se desigualmente e ofereciam préstimos muito distintos.
A resistência e relevância simbólica dos materiais pétreos haviam imposto o
seu uso na construção de edifícios nobres, mas as moradias comuns também os
conheciam um pouco por toda a parte.
As pedras eram usadas isoladamente ou em associação com outros materiais
(tijolo, argamassas) sobretudo em elementos estruturantes – alicerces, paredes
mestras e cunhais – e em aplicações específicas (escadas, com seus peitoris e
mainéis, arcos, guarnições de portas e janelas e outras).
Abundante em grande parte do Reino, de extracção fácil, económica, de grande
plasticidade, pouco exigente em termos de competência técnica, a terra areno-
-argilosa tinha na construção comum um emprego generalizado e diversificado41.

41
Se o Centro e o Sul de Portugal tinham uma vetusta e sólida tradição de “arquitectura de terra”,
também o Norte recorria a ela com largueza.

215
Construir, habitar: A casa medieval

Eram habituais os pavimentos de terra batida. Nos alicerces, ou nas paredes


portantes, empregava-se a terra argilosa, combinada com a pedra. Erguiam-se
paredes, interiores e exteriores, conjugando habilmente a madeira, o barro e outros
materiais. Rebocavam-se muros pétreos com argila.
Através de diversas aplicações, em terra crua ou cozida, o barro surgia, ainda,
como elemento principal da construção, em solução alternativa à casa de “pedra
e cal”.
As técnicas de terra crua – a taipa (do árabe tâbiya) e o adobe (do árabe al-tûb)
– eram ancestrais na área mediterrânica.
O uso da terra comprimida, processo simples e muito económico, vulgarizou-se
sob o domínio muçulmano. Construídas em cofragem de madeira, as paredes de
taipa eram incombustíveis e excelentes como isolante térmico e fónico, posto que
sensíveis à acção da humidade e resistindo mal à pressão da cobertura.
Muito comum era também a terra moldada, o adobe. Fazia-se este de barro
cru, amassado com palha e areia, dava-se-lhe forma de paralelepípedo e secava ao
sol e ao ar; suscitava problemas idênticos aos da taipa. Costumeiro no Centro e no
Sul do País, até o Norte ergueu paredes neste material42.
O tijolo e a telha, modalidades de terra cozida, tinham também lugar de des-
taque entre os materiais construtivos.
O tijolo (maciço) era cozido ao ar livre, em camas, ou em fornos. Era empregue
em muros, na pavimentação de casas, e sobretudo nas guarnições de portas e janelas.
A produção da telha era de há muito actividade diferenciada, com fornos próprios
e pessoal especializado, embora fosse também cozida em vulgares fornos de louça.
A cal e, mais vulgarmente, a terra, unindo-se à água e à areia, serviam à elabo-
ração de argamassas, empregues no assentamento e revestimento das alvenarias43.
Obtida pela cozedura do calcário em fornos próprios, ou preparada em camas,
a cal era um elemento fundamental na consolidação das alvenarias (“casa de pedra
e cal”, “frontal de taipa caiada”), contrariando a acção da humidade.
Existem testemunhos do seu uso no reboco (“acafelar”, do ár. qafr ‘betão’) e
na caiação (“pincelar”) das paredes, mas não sabemos se o revestimento a cal era
generalizado.

42
Uma casa na vila da Reigada (1507), na Beira Trasmontana, constituía um belo exemplo de arqui-
tectura integradora: “outra casa que traz ora fernam rodriguez he sobradada […] as paredes tem de pedra
e barro e adobes./ estam igualmente madeiradas e cubertas de telha vãa” – ANTT, OC/CT, L.º 307, fl. 41.
43
Mais recente entre nós, o uso da cal nesta função seria inferior ao do barro e, porventura, mais ou
menos limitado à área do calcário.
Além do barro e da cal, recorria-se a outros materiais, como o gesso, ou o lodo (mistura de areia ou
terra com elementos orgânicos em decomposição, usada para argamassar paredes de tufo).

216
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades

Vários produtos vegetais tinham também um lugar destacado na construção


comum.
As madeiras duras, como o castanho, o carvalho, o sobro, ou resinosas, como
o pinho, eram omnipresentes.
Eram usadas singularmente em elementos estruturantes, como o travejamento
e a armação da cobertura, mas também em paredes e divisórias (“repartimentos
de taboado”), nos sobrados, nas escadas e respectivos peitoris, no revestimento
dos tectos, nas fenestrações, nas cantareiras das cozinhas, em dispositivos de
segurança (ambudes, ferrolhos, fechaduras e respectivas chaves, trancas, grades,
etc.). A madeira constituiu, até, alternativa à arquitectura pétrea44.
No final da Idade Média, empregava-se amiúde a madeira no levantamento de
paredes, conjugada com o barro, e em complemento dos muros pétreos.
Outros elementos vegetais, como a giesta, o colmo, a palha (casas “colmadas”,
“palhaças ou “palhiças”) o piorno e o bunho eram empregues na cobertura de casas.
Também o era, em algumas regiões, a cortiça, usada igualmente em paredes, à mistura
com o barro, aplicada ainda em pavimentos e, tal como a madeira e as canas, em forros.
Além dos materiais construtivos já referidos, outros se utilizavam, de exploração
bem mais exigente em termos de tecnologia. Falamos dos metais.
O ferro, sobretudo, era utilizado com várias aplicações. As que melhor se conhecem
são as ligadas à segurança das moradias: ambudes, ferrolhos, fechaduras e respectivas
chaves – alternativas às de madeira —, grades, aldravas e outras ferragens. Também
era imprescindível o seu uso na junção de elementos de madeira e na fixação de
ferragens, existindo uma vasta gama de pregos, ajustada às diferentes utilizações.
Mas, além dessas aplicações, o ferro era empregue como elemento decorativo, ou
simbólico – cataventos, cruzes, insígnias, etc. – escorante, ou de fixação de estruturas.
2)
De uma casa, dizia-se ser térrea ou sobradada, pétrea, lígnea ou de barro, telhada
ou colmaça. Porque os elementos construtivos essenciais eram os planos, as paredes
e as coberturas. Paredes e coberturas faziam da casa, material e simbolicamente,
um espaço fechado, delimitando-a horizontal e verticalmente, protegendo os
moradores dos perigos e ameaças externas45. Eram aqueles três elementos que

44
Como testemunha a documentação do século XI: “Uilla […] cum suo edificio quantum in se obti-
net et ad prestitum hominis est in casas mureas siue lineas, in sautos, in pumares, in uineas, in linares,
in montes, in fontes” – Liber Fidei Sanctæ Bracarensis Ecclesiæ, ed. crít. de Avelino de Jesus da Costa,
t. I, Braga, 1965, n.º 184, pp. 217-218, doc.º de 1052; “[…] in casas murias uel lineas […]” – DC, n.º 530,
p. 325, doc.º de 1075 (itálicos nossos).
45
Daí que estes elementos polarizassem boa parte dos ritos, de construção ou de posse, ancestralmente
consagrados à casa. Claude LECOUTEUX, La maison et ses génies. Croyances d’hier et d’aujourd’hui, Paris,
2000, passim.

217
Construir, habitar: A casa medieval

davam à mesma a sua fisiono-


mia, mediando a relação com
o espaço – geográfico e social
– envolvente. Eram também
eles que colocavam as questões
essenciais do ponto de vista da
tecnologia construtiva, em parti-
cular o aspecto nuclear da relação entre os elementos portadores verticais e os
dispositivos transversais de travejamento e suporte da cobertura.
As fontes iconográficas existentes, com relevo para as panorâmicas de 57 núcleos
populacionais compostas por Duarte de Armas sugerem-nos a escassa presença
das casas sobradadas, que apenas se tornava significativa em 10 dos núcleos repre-
sentados no Livro das Fortalezas46.
Os textos confirmam a tendência atrás expressa. No espaço rural, o piso único
era regra, que raro se transgredia. Nos meios urbanos, aquele predominava também,
mas as casas sobradadas apareciam regularmente. Quase sempre se ficavam pelos
dois pisos; moradias de dois ou três sobrados, além de Lisboa, onde eram comuns,
ocorriam muito pouco nas demais cidades.

Número de pisos das construções urbanas


Ponte de Lima 1e2 Santarém 1, 2 e 3
Barcelos 1e2 Sintra 1e2
Braga 1e2 Castanheira do Ribatejo 1
Guimarães 1, 2 e 3 Lisboa 1, 2, 3 e 4
Porto 1, 2 e 3 Almada 1
Guarda 1e2 Palmela 1
Coimbra 1, 2 e 3 Setúbal 1e2
Leiria 1e2 Alcácer do Sal 1e2
Tomar 1, 2 e 3 Montemor-o-Novo 1e2
Abrantes 1e2 Évora 1e2
Torres Novas 1 Castelo de Vide 1e2
Caldas da Raínha 1 Elvas 1e2
Óbidos 1e2 Silves 1e2
Torres Vedras 1e2 Castro Marim 1

46
No gráfico, distribuíram-se as ocorrências pelas categorias “nenhumas”, “poucas”, “algumas” e
“muitas”, não se registando representações de aglomerados populacionais em que “todas” ou “a maioria”
das casas fossem sobradadas.
A maior parte dos centros urbanos em que surgem “muitas” casas sobradadas situa-se a norte do rio
Tejo. Em três panorâmicas, as de Mogadouro, Freixo e Elvas, figuram casas com dois sobrados.

218
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades

Consoante a sua função construtiva, os muros de edifícios eram definidos como


paredes47 – as paredes portantes, ou mestras – e repartimentos – as divisórias.
Assentavam sobre alicerces, que se pretendiam sólidos, pois teriam de suportar
toda a construção. Por isso, a pedra neles empregue era bem seleccionada. Usava-se
o barro, para compactar os alicerces e aumentar, assim, a sua resistência.
Além da cantaria, da silharia e das alvenarias – ordinária, de pedra seca ou insossa,
ou de tijolo —, dos muros de taipa ou de adobe, usavam-se paredes mistas: de pedra e
taipa, pedra e adobe, pedra e tijolo, frontal ou tabique (taipa de rodízio, fachwerk), de
ripa e barro e de varas e barro. Em paredes pétreas, muitas vezes, recorria-se à alvenaria
ordinária, reservando-se a pedra lavrada aos cunhais e à guarnição dos vãos, que sempre
constituíram (com as coberturas) a principal fonte de problemas da arquitectura tradicional.
Quanto às divisórias, as técnicas e materiais empregues variavam bastante, e assim
encontramos repartimentos de tavoado, de tavoado de pinho, de cortiça, de esteira de
canas, de “palheiro”, de pedra, de pedra e barro, de sebe barrada, de parede francês,
de frontal, de tabique, de taipa, de tijolo, de parede ou meia parede, de grades de pau.
Variava a espessura dos muros, atendendo à função que desempenhavam, à estru-
tura dos edifícios, e aos materiais construtivos empregues. A análise arquitectural
de algumas construções sobreviventes permite apontar alguns valores: entre 0,50
e 0,70 metros as alvenarias ordinárias das paredes portantes, 0,15 a 0,22 o frontal,
0,10 a 0,15 as divisórias48.
A maior parte das vezes, a cobertura da casa constitui uma estrutura indepen-
dente dos muros portantes e, no limite, amovível.
As coberturas independentes eram construídas com recurso a diversos materiais.
De acordo com as escassas informações que os textos nos ministram, empregar-se-ia
sobretudo a telha vã, assente directamente no ripado, sem argamassa. Mas os materiais
vegetais – o colmo e a palha, a cortiça, a giesta, o piorno, o bunho e a tábua – eram muito
utilizados nas coberturas rústicas e emergiam, até, em espaços urbanos49. Já a cobertura
de lousa não tem encontrado, entre nós, comprovação documental para esta época50.

47
Diziam-se ainda: de fachada ou de frente, tardoz, ou “cueira” (ANTT, OC/CT, L.º 302, fls. 3, 3v) e
laterais, ou “das ilhargas” (as empenas).
48
Afonso Nunes Henrique MARTINS e Pedro Paulo S. Marques de ABREU, Casas de andar de ressalto
em Lisboa, trabalho realizado no âmbito da licenciatura em Arquitectura da Faculdade de Arquitectura
da Universidade Técnica de Lisboa, 1998, pp. 160, 163, 215.
49
A documentação atesta a relevância das coberturas vegetais, presentes nas construções rústicas em
todos os espaços regionais a norte do Tejo e nalgumas áreas a sul deste rio. Em muitos casos, as unidades
de exploração agrícola apresentavam simultaneamente os dois materiais. Cidades e vilas, como Guima-
rães, Lamego, Funchal ou Torres Novas, conheceram também as casas colmaças, levando as autoridades
municipais a promover a sua substituição, às vezes de forma coerciva, por receio de incêndios.
50
O xisto, empregue como material normal de cobertura na arquitectura tradicional “em todas as
áreas do País em que um xisto duro pode ser fendido em lâminas pouco espessas” (Ernesto Veiga de

219
Construir, habitar: A casa medieval

Podemos perceber uma diferenciação e uma hierarquia entre os diferentes


modos de cobertura. Mas, independentemente do material empregue, a cobertura
carecia de uma estrutura lígnea. A configuração do madeiramento variava consoante
a tipologia da cobertura. Simples ou complexo, era um elemento particularmente
sensível, já que através dele se distribuía o peso da cobertura pelas paredes portantes.
Nos casos mais simples, os das coberturas planas e de uma água, o madeira-
mento reduzia-se às vigas tirantes horizontais, ou a estas e aos caibros, sobre as
quais assentavam as ripas portantes do material de cobertura. Já as de duas águas e
as de três e quatro águas pressupunham madeiramentos complexos e mais sólidos.
Firmemente sustentados por vigas tirantes, eram executados em boas madeiras,
como o castanho ou o carvalho. Os caibros assentavam sobre aquelas, subindo até
à cumeeira, suportando as ripas, que firmavam a cobertura.
Dos tipos referidos, o mais comum era a cobertura de duas águas, maioritária
em todo o Reino. Sobretudo a sul, era significativa a presença dos telhados de uma
água. Eram raros, por último, os de três e quatro águas.
No sul de Portugal, encontravam-se também coberturas dependentes dos muros
portantes, típicas da arquitectura mediterrânica medieval: as abóbadas e, sobretudo,
os terraços.
As abóbadas prolongavam os muros, cujo material construtivo, a pedra ou o
tijolo com argamassa de cal, também partilhavam.
As coberturas em terraço, denominadas açoteias (“çoteias”) (< ár. as-sutâyyah,
dim. de sath ‘terraço’) e eirados, ocorriam no Vale do Tejo, Alentejo e Algarve. Por
vezes, eram usadas para a recolha das águas pluviais, depois conduzidas para
cisternas.
Rasgada na parede exterior, a porta de entrada, ou de acesso aos diversos com-
partimentos da moradia, era a principal abertura da casa. As demais fenestrações
– janelas, postigos, frestas e portas interiores – tinham um papel acessório. De resto,
as aberturas eram muito escassas: o mínimo indispensável ao acesso, arejamento e

OLIVEIRA, Fernando GALHANO e Benjamim PEREIRA, Construções primitivas em Portugal, p. 302)


não deixou rasto na documentação medieva até agora estudada.
Conhecemos o seu uso, na Galiza quatrocentista, como situação excepcional, em residências campo-
nesas e em paçeos senhoriais. Cf. Dolores MARIÑO VEIRAS, Señorío de Santa María de Meira (de 1150
a 1525). Espacio rural, régimen de propiedad y régimen de explotación en la Galicia medieval, Corunha,
1983, p. 359, notas 280, 283 e 284.
O facto de, na segunda metade do século XVIII, a lousa ser referida como material de construção
apenas enquanto “pavimento ou forro da parede tosca, de pedra, e outras materias terreas” (Rafael BLU
TEAU, Diccionario da lingua portugueza, t. II, Lisboa, 1789, p. 34) sugere-nos ser ulterior o seu emprego
como material de cobertura.

220
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades

iluminação diurna; mínimo que, com frequência, correspondia à porta única51. Uma
vez que não se recorria, ainda, ao uso de vidraças52, era assim mais fácil manter
condições térmicas benignas no interior da moradia, com o ónus, porém, de uma
reduzida ventilação e de uma iluminação deficiente.
Raras, por regra inexistentes no piso térreo, as janelas seriam mais comuns nos
sobrados. Nas suas guarnições, assim como nas das portas (a soleira, as ombreiras
e o lintel, ou verga) empregava-se usualmente a pedra ou o tijolo.
Ainda hoje, topam-se amiúde, quer em centros urbanos, quer em aglomerados menores,
janelas de arco quebrado ou geminadas, assim como portas de arco quebrado ou “manuelinas”,
com chanfro, denunciadoras da fábrica tardomedieval, ou dos primórdios de Quinhentos, de
tais estruturas habitacionais.
Tais vãos eram cerrados por portas de pau, a que, por razões de segurança (e também
decorativas) se ajustavam aplicações de madeira ou de ferro. Aqui e além, encontravam-se
janelas ferradas e frestas ferradas, pois a desejada segurança levava à inserção de grades
nas aberturas.
O conforto, por seu lado, justificava, por vezes, a implantação de janelas de assentos, com
conversadeiras.

A aposição de adjacências salientes na fachada dos edifícios era corrente. Algu-


mas vezes, os vãos eram envolvidos por uma balaustrada de madeira: a varanda,
ou o balcão. Outras, lançavam-se sobre a rua balcões de madeira em jeito de caixa:
a adufa53.
Os pavimentos comuns, no meio rural e até em ambientes urbanos, eram de
terra batida. Menos habituais, mas decerto mais aprazíveis, seriam os de ladrilho,

51
Algumas vezes, porém, encontravam-se várias portas, voltadas para a rua, permitindo separar
a serventia da loja do acesso ao sobrado. Em Évora, na rua da Selaria, havia em 1509 uma casa de dois
sobrados, “com dous portaaes juntos”, distinguindo-se assim o acesso à forja aí localizada e aos pisos
superiores – Tombos da Ordem de Cristo, vol. I – Comendas a Sul do Tejo, Lisboa, 2002, p. 65.
52
Não têm sido encontrados, até agora, textos alusivos ao uso de vidraças, no Portugal tardomedievo.
Os dados existentes apontam para a introdução daquelas, entre nós, no século XV, circunscrevendo-se a sua
utilização – dado o seu custo – a umas quantas construções de prestígio. Nas panorâmicas de Castelo Branco
e de Barcelos, desenhadas por Duarte de Armas, são visíveis as características janelas de cruzeta, ou pinázio,
que deviam o seu nome à cruzeta de pedra que cortava o vão e servia de apoio à aplicação das vidraças.
Conhecem-se as mesmas em Guimarães, nos paços ducal e dos alcaides, em Barcelos, no paço ducal e no
solar dos Pinheiros, em Viana do Castelo, na casa de João Velho, cf. Mário Jorge BARROCA, “Arquitectura
gótica civil”, cit., p. 90; Pedro DIAS et alii, Manuelino. À descoberta da arte do tempo de D. Manuel I, Lisboa,
2002, p. 166. Mas, de acordo com A. H. de Oliveira MARQUES, A sociedade medieval portuguesa, cit., p. 85,
“Só a partir do século XVI se começaram a usar vidraças nas janelas com relativa frequência”.
53
Menção de adufas em casas sitas em Lisboa, na rua Nova de El-Rei e na rua das Esteiras – Direitos,
bens e propriedades da Ordem e Mestrado de Avis nas suas três vilas de Avis, Benavila e Benavente e seus
termos, Lisboa, 1950-1953, pp. 370, 371.

221
Construir, habitar: A casa medieval

lajes, tavoado, ou cortiça. As construções sobradadas tinham, obviamente, os seus


pavimentos lígneos, feitos em madeira de solho sobre a respectiva armação (de
vigas assentes sobre as paredes mestras, nuns casos, noutros suportadas por arcos,
esteios pétreos ou sólidos pilares de madeira).
As paredes e os tectos forrados, onde existiam, aumentavam o conforto da
habitação. Mas não eram muito comuns e quase sempre empregavam materiais
do mundo vegetal54.
As moradias sobradadas requeriam soluções de acessibilidade que as constru-
ções chãs dispensavam: escadas exteriores ou interiores, fixas ou móveis, de caracol,
erguidas com recurso à madeira, à pedra ou ao tijolo55.
As habitações comuns raramente eram coroadas por chaminés56. O escoamento
do fumo fazia-se pelos escassos vãos existentes ou, eventualmente, por algum
buraco na cobertura; mas antes, errava pelo interior da casa, (mal) rebatido pelo
caniço, onde as castanhas pilavam e o porco defumava.
Duarte de Armas esquissou-as com alguma profusão, em edifícios de prestígio, representando-
-as pontualmente na casa urbana comum57. No plano morfológico, o debuxador revela-nos dois
tipos, as de secção quadrada e as cilíndricas (de tromba), ambos se projectando em altura a
partir dos telhados. Quanto aos materiais empregues, encontramo-las de pedraria, de madeira,

54
A expressão mais frequente, para mencioná-los, é o olivel, que se reportava a diversas madeiras –
castanho, pinho, bordo – e até à cortiça e às canas. Alguns distinguiam-se dos modestos forros de tavoado,
ou de ripa e canas, apostando na qualidade das soluções, recorrendo aos azulejos (“paredes forradas d
azullejos”, em Lisboa – ANTT, OC/CT, L.º 302, fl. 26v), ou pintando os olivéis (“he mujto bem forrada de
oliuel em quatro aguas. com hũu laço no meyo e linhas no meyo pintadas com cachorros arredor e alizeres
pintados”, em Lisboa – ANTT, OC/CT, L.º 302, fl. 26v).
55
De algumas, são referidos os seus mainéis, de outras, os textos destacam um ou outro pormenor
significativo: que estava associada a uma porta de alçapão (Tombos da Ordem de Cristo, vol. I, cit., p. 7),
que conduzia a “hũu tauoleiro argamassado com seu peitoril alto” (Tombos da Ordem de Cristo, vol. I, cit.,
p. 30), ou a um balcão; o número, ou o estado de conservação, dos seus degraus. As fontes omitem, porém,
um dado que bem gostaríamos de conhecer: a altura desses degraus.
56
Ao contrário da tendência geral, na cidade de Évora e no seu termo, as chaminés seriam, porven-
tura, relativamente comuns, a avaliar pelo número de menções que lhes são feitas. Mas encontramo-las
também referidas à cidade de Lisboa e a Arroios, na sua periferia, a Sintra, ao Vale do Tejo (Alenquer,
Santarém, Cardiga, Granja de Dornes), ao Alentejo (Nisa, Alpalhão, Portalegre, Avis, Benavila, Elvas, Mér-
tola e Castro Marim), à Beira (Soure, Pombal, Pinheiro de Ázere, Marmeleiro, Segura, Castelo Branco),
ao Alto Douro (Longroiva).
57
Duarte de Armas representou-as em Castro Marim, Mértola, Moura, Mourão, Monsaraz, Terena,
Alandroal, Juromenha, Olivença, Elvas, Campo Maior, Ouguela, Arronches, Monforte, Assumar, Alpa-
lhão, Castelo de Vide, Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Segura, Sabugal, Castelo Bom, Almeida, Freixo de
Espada-à-Cinta, Mogadouro, Miranda do Douro, Vimioso, Bragança, Chaves, Melgaço, Lapela, Caminha,
Barcelos e Sintra. Num total de 57 povoações representadas, as chaminés figuram apenas em 34 (o número
reduz-se para 30 se excluirmos aquelas onde elas surgem apenas em edifícios de excepção: um palácio e
3 residências nas alcáçovas, nos casos assinalados com itálico).

222
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades

de barro, de madeira “barrada”, de ripa e barro, de sebe e barro, ou de tijolo (estas, decerto,
muito comuns)58.

A presença da chaminé correspondia a um acréscimo de conforto, ao permitir


a existência de vários focos de aquecimento em casas de compartimentação mais
consistente. Ao mesmo tempo, o seu jeito altaneiro, sobrelevando-a em relação ao
vulgar casario, tornava-a um elemento prestigiante. Outras singularizavam-se pelo
tamanho (“chaminé grande”), ou pela sua feição produtiva59.
Com alguma frequência, as casas dispunham de uma área coberta, apensa à
casa propriamente dita, intermediadora dos espaços interno e externo: o alpen-
dre. Espaço de abrigo, permanente ou temporário, de produção, também o era de
negócio, de ócio, de sociabilidade. Plenamente adequado às condições climáticas de
áreas do centro do País, como a Estremadura, encontramo-lo no meio rural, mas
também em espaços urbanos. Sobretudo no centro e no sul do reino, mas também
o norte o conheceu largamente.
Como referimos, a expansão dos edifícios transvazava, por vezes, o âmbito estrito
do lote, ao nível dos sobrados. Os edifícios ressaltados respeitavam formalmente o
alinhamento da via pública, ao mesmo tempo que se serviam do “ar” da mesma,
para ampliar o espaço útil da casa.
A edificação de casas de andares ressaltados foi largamente ensaiada em muitas
das cidades do Ocidente peninsular, no final da Idade Média e primeira metade
de Quinhentos, perdurando, apesar das restrições legais, nos Tempos Modernos. O
seu conhecimento exige o estudo dos exemplares de casas com andares salientes
ainda subsistentes em centros urbanos nortenhos, em Coimbra e em Lisboa, já que
a menção documental deste género de construções é, contudo, pouco comum60.
Os ressaltos ora dispensavam apoios, ora se firmavam em escoras de madeira,
ou de ferro. Algumas vezes, ao aumentar de balanço, os ressaltos apelavam para

58
A chaminé cilíndrica era construída em tijolo. Cf. Mário Jorge BARROCA, “Arquitectura gótica
civil”, cit., pp. 90-91; Vítor Manuel Pavão dos SANTOS, A casa no Sul de Portugal na transição do século
XV para o século XVI, cit., p. 57.
59
Assim sucedia com “hũua chamjnee grande de tintoraria”, erigida em Lisboa, a S. Nicolau – ANTT,
OC/CT, L.º 302, fl. 25v.
60
Refira-se, entre outras, a casa com dois andares ressaltados que existia em Lisboa, junto à Fonte dos
Cavalos, em 1505: “açima desta sobrelogea vay hũu sobrado […] com hũua sacada de quatro palmos sobre
ha Rua […]. E açima deste sobrado vay outro com hũua sacada sobre ha Rua mais larga hũu palmo que ha
debaixo” – ANTT, OC/CT, L.º 302, fl. 6. Por sacada, derivado de sacar, “tirar para fora, extrair”, entende-se
“na Arquit. toda a obra que fica relevada, e resaltada do nivel; daquella onde está”, de acordo com Rafael
Bluteau, Diccionario da lingua portugueza, cit., t. II, p. 363.
Em iluminura do Livro de Horas de D. Manuel, ed. com estudo introdutório por Dagoberto Markl,
Lisboa, 1983, fl. 130, alusiva ao cerimonial que teve lugar nas ruas de Lisboa, por ocasião da morte do rei
venturoso, são visíveis andares ressaltados da rua Nova dos Mercadores.

223
Construir, habitar: A casa medieval

outras soluções de apoio, em pilares ou arcos. Assim surgiu a casa armada sobre
arcos. Solução muito prestigiada em Quatrocentos e Quinhentos, foi utilizada em
edifícios de prestígio e infra-estruturas urbanas, mas também em construções
comuns, sobretudo em casas de mercadores e de mesteirais. Conheceram-na as
praças ou ruas de cidades como Viana do Castelo, Guimarães, Barcelos, Torre de
Moncorvo, Torres Vedras, Tomar, Elvas e Évora, além do Porto e Lisboa, onde foi
adoptada no contexto de relevantes intervenções urbanísticas, respectivamente na
Praça da Ribeira e na Rua Nova.
Em termos de técnica construtiva, era habitual que a casa de andares ressaltados utilizasse
em simultâneo dois processos distintos: a) a alvenaria ordinária, aplicada nos muros do piso
térreo e das caves, quando existiam, e nas paredes portantes das empenas, para as quais se
requeriam soluções de manifesta densidade e largueza (como se disse, estas paredes tinham
entre 0,50 a 0,70 metros, em termos médios); b) o frontal, ou o tabique, empregues na fachada,
sobre o ressalto do sobrado, e nas divisões internas da casa, onde se pretendiam paredes mais
ligeiras e estreitas (encontram-se, em média, valores entre 0,15 a 0,22 metros para as primeiras
e 0,10 a 0,15 metros para as segundas).

3)
Algumas das fontes disponíveis (textos, quase sempre do final de Quatrocentos
ou dos primórdios de Quinhentos) permitem-nos uma aproximação às dimensões
das moradias, ao oferecerem-nos – com alguma generosidade em relação às casas
urbanas, sem paralelo no tratamento da vivenda rural – as suas medidas “de longo”
e “de largo” (expressas em varas, ou côvados, e palmos), embora omitam sistema-
ticamente a altura das mesmas.

Áreas de implantação das moradias urbanas


Cidades Valores médios Categoria prevalecente
Guimarães 40 m2
Lisboa 40 m2 11-30 m2: 46%
Alenquer 44 m2
Óbidos 44 m2
Coimbra 45 m2 31-50 m2: 33%
Porto 47 m2 31-50 m2: 64%
Almada 47 m 2
51-70 m2: 42%
Barcelos 49 m2 31-50 m2: 80%
Santarém 51 m2 11-30 m2: 39%
Torres Vedras 11-30 m2: 39%

224
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades

Alcácer do Sal 51 m2 31-50 m2: 27%


Torres Novas 52 m2 11-30 m2: 49%
Évora 55 m 2
31-50 m2: 39%
Tomar 60 m2 31-50 m2: 33%
Castro Marim 66 m2 51-70 m2: 35%
Portalegre 69 m2 51-70 m2: 39%
Elvas 96 m 2
91-110 m2: 25%

A área de implantação das casas urbanas apresentava-se, quase sempre, muito


exígua. Sobretudo nos espaços intramuros, e em especial nas cidades mais impor-
tantes, onde o custo dos terrenos mais se fazia sentir. Os seus valores médios varia-
vam entre os 40 m2 de Guimarães e os 96 m2 de Elvas, mas raramente as principais
urbes apresentavam valores médios acima de 60 m2.
No caso de Lisboa, a restrita dimensão dos lotes ia sendo compensada, ao
menos nas áreas mais prestigiadas da cidade, pelo incremento de soluções verti-
calizantes, que permitiam rentabilizar lotes de custo elevado, ampliando, por vezes
substancialmente, o espaço útil das moradias.
Posto que a esmagadora maioria das habitações se formasse sobre lotes do
escalão 31-50 m2, ou mesmo inferior (11-30 m2), as urbes portugueses apresenta-
vam uma vasta gama de soluções construtivas, a que correspondiam, nuns casos,
espaços de implantação muito amplos (resultantes da junção de vários lotes) e,
noutros, lotes extremamente diminutos.
Entre os espaços de implantação mais dilatados, figuravam os que serviam de suporte a
soluções complexas, incluindo aquilo que se designava por assento, ou assentamento de casas:
conjuntos de edifícios, adjacentes ou próximos, complementares, satisfazendo funcionalidades
habitacionais e outras (armazenamento de géneros e acomodação de animais, sobretudo),
implantados em superfícies amplas, acima – por vezes muito acima – dos 100 m2. Alguns
deles vizinhavam ou inseriam-se mesmo na esfera da habitação senhorial ou da construção
de prestígio.
Do outro lado, encontramos as construções mais diminutas, designadas “casinhas”, “casas
pequenas”, ou, ainda, “casinhas pequenas”. Uma “casinha pequena”, na vila de Montalvão, não
ia além dos 6 m2. Outras alargavam-se um pouco mais, para valores próximos dos 10 m2. Já
em Coimbra uma casinha térrea atingia os 25 m2, assim ultrapassando valores habituais em
pequenas moradias denominadas “casas”, simplesmente.

O espaço construído em meio rural é, ainda, muito pouco conhecido e os


informes escritos que se lhe reportam são, por via de regra, muito lacónicos.

225
Construir, habitar: A casa medieval

Áreas de implantação das casas em meios rurais


Regiões Valores médios Categoria prevalecente
Beira Interior 20-40 m2: 41%
Alentejo (Elvas) 41 m2 31-50 m2: 38%
Trás-os-Montes 59 m2 31-50 m2: 41%
Alentejo (Évora) 85 m2 91-110 m2: 42%
Médio Tejo 91 m2
31-50 m2: 22%

A categoria prevalecente, em termos de áreas de implantação das moradias


rurais é a de 31-50 m2, a mesma que encontrámos para os lotes urbanos. Rareiam,
todavia, as da categoria inferior e abundam as das categorias superiores (> 50 m2
e > 90 m2), oscilando os valores médios entre os 40 m2 do termo de Elvas e os 90
m2 do Médio Tejo. Assim, pode concluir-se por uma maior largueza das parcelas
em que assentava a moradia rural, comparativamente à urbana.
Se os lotes urbanos eram mais diminutos do que as parcelas construídas no
mundo rural, a cidade recorria muito mais a soluções verticalizantes, para melhor
aproveitar o espaço disponível. A presença de sobrados aumentava o espaço útil dos
edifícios, duplicando-o, ou triplicando-o. Nalguns casos, porém, apenas uma parte
da construção era objecto de alteamento, através do denominado meio-sobrado.

Medidas prevalecentes nas moradias urbanas (em varas=v, ou côvados=c)


Cidades Comprimento Largura Ratio C/L
Porto 11 e 12 v 3e4v > 3,1
Coimbra 8 e 10 v 4e3v > 3,1
Alcácer do Sal 11 e 5 v 4e3v 2,1-3
Lisboa 7e5v 4e3v 1,1-1,5
Évora 5e4v 3e4v 1,1-1,5
Elvas 12 e 8 c 6e8c 1,1-1,5
Castro Marim 12 e 11 c 6e8c 1,1-1,5
Tomar 4e5v 4e3v 1,1-1,5

A planta de quase todas estas construções era rectangular (mas subsiste uma
casa triangular em Coimbra, na rua do Sargento-Mor), tendencialmente estreita e
alongada. O alongamento acentuado (em que o comprimento chega a triplicar ou
quadruplicar a largura) tem mais visibilidade nas cidades nortenhas, enquanto a
forma próxima do quadrado, mais rara, ocorre sobretudo no Centro e Sul do país.

226
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades

Medidas prevalecentes nas casas rústicas (em varas=v, ou côvados=c)


Regiões Comprimento Largura Ratio C/L
Trás-os-Montes 5e8v 5e4v 1,6-2
Beira Interior 1,1-1,5
Alentejo (Elvas) 4e5c 3e4c 1,1-1,5
Alentejo (Évora) 5e4v 4e3v 1,1-1,5
Médio Tejo 5e4v 4e3v 1,1-1,5

No que respeita à casa rústica, a avaliar pelos escassos elementos disponíveis,


predomina também a planta rectangular. Mas o alongamento das casas – mais
evidente a Norte do que a Sul – não parece tão significativo como em meio urbano.
Como já se disse, os textos quatrocentistas e do início de Quinhentos omitem
sistematicamente uma dimensão: a altura. A análise arquitectural das construções
mais antigas existentes tem encontrado uma variação do pé-direito entre os 2 e os
3 metros, correspondendo porventura a um padrão de duas varas craveiras (2,20
metros)61.

4. Funcionalidades
As funcionalidades que a casa havia de preencher reflectiam-se na organização
do espaço doméstico, na compartimentação da casa e na utilização de anexos.
Implicavam também a existência de algum mobiliário.

1)
A organização do espaço interno da moradia comum dependia da configuração
material da casa, das necessidades do agregado familiar nela residente e da sua
inserção em aglomerado urbano ou rústico ou junto a terras de cultivo. Além das
funções habitacionais, a casa rural ou urbana era chamada a desempenhar funções
económicas, no âmbito da produção agrícola, pecuária ou artesanal, do comércio,
ou do aprovisionamento de géneros.
Todavia, o princípio da divisão funcional do espaço geralmente aparece apenas
esboçado. Não se aplicava de todo, obviamente, na casa unicelular, cujo espaço
único abrigava as pessoas e os bens que importava proteger, incluindo a guarda
dos apeiros, o armazenamento dos produtos da terra e, nalguns casos, a estabula-

61
Assim, o pé direito da casa quatrocentista do Beco da Achada, 2, é de 2,30 metros no piso térreo e
no primeiro andar, passando para 2,70 metros no segundo andar; o vizinho edifício da Rua da Achada, 9,
é ainda mais regular, oscilando o pé direito entre 2 e 2,20 metros – cf. Afonso Nuno Henriques MARTINS
e Pedro Paulo S. Marques de ABREU, Casas de andar de ressalto em Lisboa, cit.

227
Construir, habitar: A casa medieval

ção do gado. Espaço de sociabilidade, a casa era-o também de relação familiar, de


repouso nocturno e palco de relevantes actividades quotidianas, desde a confecção
de alimentos aos trabalhos do linho, da lã e outros. Não havia, nesse espaço, margem
para a privacidade, salvo a que resultava da obscuridão das áreas de repouso. A casa
unicelular, rural ou urbana, era espaço de todos e de tudo: familiar e multifuncional.
Ao meio da casa, ou junto a uma das paredes, o fogo era sempre o elemento
central da moradia. Fonte de calor e de luz, lugar de confecção e consumo dos
alimentos, de aconchego e de relação familiar, ele era, na residência unicelular, o
único pólo de organização espacial. A partir dele iam-se definindo – de forma difusa
e em linha com a porta de entrada, o principal, ou único, vão existente – secções
sucessivas, de distinta utilização espacial, baseada em homólogas oposições entre
claro e obscuro, quente e frio, seco e húmido, diurno e nocturno62. Constituíam-se,
pois, espaços informais, de organização semifixa ou mesmo fixa, de arrumação de
bens e de corpos, de laboração, de repouso ou de lazer, mas não existiam espaços
individualmente apropriados, nem funcionalmente especializados. A afectação de
cada uma destas zonas a uma dada funcionalidade variava, aliás, ao longo do dia,
consoante as necessidades de cada momento, e perante a quase ausência de barreiras
físicas, dada a escassez ou inexistência de divisórias e a míngua de mobiliário, ficava
excluída qualquer organização espacial que não a dos princípios infraculturais do
comportamento territorial, ou a dos modelos microculturais mais elementares63.
Não era muito diferente a organização espacial da moradia térrea bicelular, em
que uma casa, casa dianteira, ou cozinha, era acompanhada por uma outra divisão,
tantas vezes denominada celeiro, outras denominada câmara, ou casa de dentro. Esta
compartimentação correspondia, na verdade, a uma muito ténue divisão funcional,
uma vez que, neste tipo, tanto a cozinha como o celeiro eram locais de dormida,
independentemente da função primária que competisse a cada uma das divisões.
A casa era acompanhada, muitas vezes, por outras construções (ou infraconstru-
ções). Os espaços urbanos acolhiam algumas destas adjacências: adegas, estrebarias
e palheiros, sobretudo; mas até eiras e currais figuravam em cenários urbanos, como
Bragança. As construções adjectivas eram especialmente abundantes em meio rural,
em particular nos de povoamento disperso e em unidades de exploração agrícola.
No centro (“cabeça” ou “assento”) dos casais, a casa ou cozinha era o elemento
nuclear do sistema produtivo, quase sempre acompanhado por um certo número de
estruturas, sucessivamente adicionadas, que complementavam ou prolongavam as
funções económicas daquela: pátios, eiras, currais, cortes, adegas, lagares, celeiros,

62
Pierre BOURDIEU, “La maison ou le monde renversé”, Esquisse d’une théorie de la pratique, précédé
de trois études d’ethnologie kabyle, reed., Paris, 2000, pp. 61-82.
63
Eduard T. HALL, A dimensão oculta, Lisboa, 1988, pp. 119-121.

228
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades

palheiros e alpendres. Ainda que


o seu desígnio principal, denun-
ciado pela própria denominação,
as consagrasse a funcionalidades
no âmbito da cerealicultura, da
viticultura e da pecuária, não
estavam excluídas funcionali-
dades suplementares, como a
do recolhimento nocturno dos
rapazes em celeiros ou palheiros,
costume que, nalgumas regiões do País, chegou aos nossos dias.
Os dados constantes dos registos escritos que utilizamos não permitem conclusões
seguras sobre a organização espacial dos complexos construídos nestes assentos
de unidades de exploração. Mas apresentam indícios da presença de esquemas
morfológicos vários – longitudinais (“em viella”), em L ou em U, ou circulares (“aa
redonda”) , com a casa ou cozinha e a eira ou o pátio – também designado enxido,
eido, ressio, chão, terreiro, quintal, quinteiro ou quintã64 —, a afirmarem-se como
elementos estruturantes do espaço.
Só a arqueologia rural, que muito tarda entre nós, ou o recurso a registos
escritos mais completos poderão proporcionar um cabal esclarecimento destas
questões. Note-se, porém, que os esquemas morfológicos a que aludimos estão
presentes, nesta época, noutros âmbitos geográficos, e são conhecidos em Portugal,
em períodos mais recentes.
Sobretudo em meio urbano, onde o espaço escasseava, a construção de
dependências anexas era solução cada vez menos viável. A atrofia dos anexos foi
coetânea da tendência para a ampliação do espaço consagrado à função habita-
cional e ao trabalho. O morador citadino do final da Idade Média, que aspirava
a uma melhoria das condições de privacidade, caso pretendesse alguma largueza
ou uma organização espacial atenta à diversidade funcional, dispunha de algumas,
poucas, soluções: ou procurava aproveitar melhor o que tinha, erguendo para o
efeito divisórias que separassem o espaço de trabalho do espaço habitacional, ou

A acepção de quintã atrás presente – de terreno vedado, contíguo à casa rural – diverge da que é a
64

mais comum em estudos históricos, não está registada nos dicionários (o Dicionário da língua portuguesa
contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa, 2001, vol. II, p. 3047, entrada 1quintã 2 e 3,
considera apenas, como regionalismo, as de curral, ou de estrumeira em pátio), mas sobreviveu até aos
nossos dias e foi registada por Aquilino RIBEIRO, Aldeia. Terra, gente e bichos, cit., pp. 31, 328. Menção de
quintã, nesta acepção: “no termo de tarouca tem mais a hordem hũu casal que se chama do barroncal em
que ha hũua casa terrea que tem as paredes de pedra e barro cubertas de colmo … e tem ante a porta hũua
quintãa çerquada de parede. leua xiij varas de longo e viijº de largo” – A. N. T. T., O. C./C. T., L.º 307, fl. 141v.

229
Construir, habitar: A casa medieval

que isolassem alguma câmara de dentro; ou aforava um edifício contíguo, para nele
instalar certas funcionalidades. Mas a solução mais adequada a tais desideratos
era, sem dúvida, erguer um ou vários sobrados.
A organização da casa em vários planos permitia dissociar espacialmente as
esferas privada e laboral. O piso térreo era consignado à profissão, funcionando
como espaço aberto a um público, mais ou menos amplo, consumidor de bens e
serviços, enquanto o sobrado era o cenário da vida familiar que assim se resguar-
dava de indesejáveis intrusões do mundo exterior. A escada de acesso ao sobrado
podia dispor de um portal distinto do da loja, ou, ao menos, de um corredor que
a isolasse desta, sublinhando, deste modo, a diferenciação espacial dos espaços
doméstico, privado, e profissional, semipúblico, da casa sobradada.
A existência de um segundo sobrado, ou a compartimentação do sobrado único,
propiciava, algumas vezes, uma maior especialização do âmbito privado, dividido
entre uma sala e uma ou várias câmaras. Estas eram espaços reservados e obscu-
ros, sitos na parte interior do sobrado, ou no sobrado superior, quando existente.
A sala ficava na frente da casa e era um espaço iluminado e confortável. Abria-se
à luz do dia, já não por singelas frestas ou estreita janela, mas por um ou mais
vãos relativamente amplos, ora dotados de guarnições lavradas, ora acompanhados
de varandas ou gelosias. Estas permitiam uma discreta contemplação do espaço
público, algumas vezes favorecida pelo conforto das conversadeiras de uma janela
de assento. Espaço de relação familiar, a sala abria-se à convivialidade com os mais
chegados e à hospitalidade, podendo beneficiar, entre os de maiores posses, do
conforto que a instalação de uma chaminé proporcionava. Lugar de lazer, também
o era de trabalhos femininos, e por isso, no vicentino Auto da Lusitânia, a judia
Hecer deixava aí os instrumentos de fiação, que, a dado momento, pede à filha:
Lediça, vai à janela,
traze-me a roca e a banca,
e o fuso que está co’ ela.

Os textos raramente deixam perceber onde eram confeccionados os alimentos,


nas casas sobradadas. A solução mais adequada era a da localização da lareira no
piso térreo. Neste caso, os fumos escoavam-se pela porta e pelas frestas ou janelas,
quando estas existiam. Outras vezes, as cozinhas eram feitas apartadas, em constru-
ções contíguas. Também as encontramos em pisos superiores, habitualmente nas
traseiras do edifício. A cozinha, além do lar, exigia variada utensilagem: espetos,
grelhas, caldeiras, panelas, caçoulas, sertãs, alguidares, colheres, talhadores, etc.
Boa parte da população produzia o pão que consumia em fornos próprios, ou em
fornalhas. Mas, amiúde, a posse do forno era vedada por monopólio senhorial e,
nas cidades, era comum adquirir-se o pão confeccionado e vendido pelas padeiras.

230
Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades

2)
O mobiliário, nas habitações de finais da Idade Média, continuava a ser escasso.
A cama gótica era o elemento mais relevante. Sobre o estradão de madeira,
acompanhado, em muitos casos, de dossel e cortinados, acomodavam-se colchões
(“cócedras”) e a “cama de roupa”, onde os lençóis, de pano fino, já se perfilavam,
mas apenas entre os mais abastados. À cama, seguia-se a arca, de variados tipos
e multifuncional, onde tudo se podia guardar, usada, até, para dormir. A mesa era
móvel prescindível. Os seus tipos mais ligeiros, como o da simples tábua armada
sobre cavaletes, eram os preferidos, pois permitiam “pôr a mesa” onde se entendesse,
fosse na cozinha, na sala, numa câmara ou num terraço. Eram poucas as cadeiras,
mas comuns os bancos e os escanos. As pessoas sentavam-se também sobre as
arcas e as camas, ou no chão, sobre estrado com tapetes e almofadas, à maneira
islâmica. De forma variável, consoante as posses e os costumes locais, usavam-
-se couros, cortiça, tapeçarias e panos (“panos de armar”), esteiras e tapetes, no
revestimento das paredes e dos chãos. Nas habitações mais modestas, o solo de
terra batida podia ser revestido de palha ou de junco65.

Conclusão
Cenário de vida quotidiana de sucessivas gerações, a casa urbana e rural é teste-
munha maior das sociedades que a habitaram e utilizaram. Testemunha silenciosa,
que, ainda assim, permite que, do seu umbral, possamos apreender algo do que a
pedra, a cal, o barro e a madeira encerram. A casa do final da Idade Média exprime
algumas mudanças no viver quotidiano dos portugueses.
Para perceber quão significativas são estas mudanças, vale a pena recuarmos
um pouco no tempo, apreciando em traços breves o panorama habitacional do
período anterior, tão pouco conhecido66.
O que seria – da segunda metade do século XIII à actualidade – o território do
Portugal correspondia, no século XII, a duas unidades territoriais não só distintas,
como antagónicas: um “Portugal cristão”, que se ia desprendendo da obediência à
monarquia leonesa, ao mesmo tempo que procurava estender-se, a sul, pela “recon-
quista”, afrontando um Gharb-al-Andalus islâmico, ora fragmentado, ora unido na
submissão a impérios africanos. A diversidade de recursos geológicos e florísticos,

65
Vítor Manuel Pavão dos SANTOS, A casa no Sul de Portugal na transição do século XV para o
século XVI, cit., pp. 115-297; A. H. de Oliveira MARQUES, A sociedade medieval portuguesa, cit., p. 77-85.
66
[Sobre a casa no Portugal dos séculos XII e XIII, veja-se o nosso “Casas e espaços habitacionais
no tempo de D. Afonso Henriques: o que sabemos e o que gostaríamos de saber sobre a casa no período
da formação de Portugal”, comunicação apresentada ao Colóquio A vida material no tempo de D. Afonso
Henriques (Guimarães, 2010), Actas no prelo.]

231
Construir, habitar: A casa medieval

bem como as distintas tradições construtivas (a germânica e a mediterrânica) esta-


beleciam profundos contrastes entre os espaços habitacionais de uma e de outra
unidade territorial. A conquista dos territórios meridionais permitiu esbater tão
profundo contraste, uma vez que os colonizadores nortenhos rejeitaram o modelo
islâmico, forçando a conversão da moradia centrada num pátio interior em casa
voltada para a via pública, no quadro de transformações profundas do tecido urbano.
A consolidação do processo da “reconquista”, diminuindo a instabilidade, per-
mitiu que se acentuasse a sedentarização, reflectindo-se numa maior fixação do
habitat camponês junto às terras de cultivo e numa crescente utilização de materiais
construtivos mais duradouros. Tal como noutras áreas europeias, os séculos XII-XIII
assistiram, entre nós, ao início da transição da “maison pour rien”, característica
da Alta Idade Média, para uma moradia com algum valor, construída com recurso
a um ou outro especialista, carpinteiro ou alvanel, mais exigente em termos técni-
cos, e recorrendo a materiais mais variados67. Entre os aspectos menos conhecidos
desta transição situa-se o da irradiação da taipa e do adobe para o Norte, ou o
da progressiva adopção dos telhados em substituição das coberturas vegetais, na
mesma área geográfica. Adopção muito lenta, com pouca receptividade em meio
rural, onde predominavam as construções não-adossadas, e muitas resistências
também em meio urbano, onde os riscos de propagação de fogos eram muitos.
Relaciona-se com esta transição a progressiva petrificação das estruturas habita-
cionais, perceptível, noutras áreas do Ocidente cristão, desde o fim do século XII, ou
o início do XIII68. A cronologia deste processo entre nós é pouco conhecida, sendo
de admitir que o mesmo seja bastante tardio e de faseamento variável, tendo início
nas estruturas castelares e edifícios religiosos e alastrando depois à arquitectura
doméstica: primeiro entre os estratos privilegiados e nos meios urbanos; por último,
nas construções dos não-privilegiados e no âmbito rural. Note-se que quase todaos
os edifícios medievais pétreos que chegaram até nós são muito tardios e sobretudo
que são construções de excepção (templos e fortificações) e não moradias comuns.
O conhecido episódio da destruição dos bens de Lourenço Fernandes da Cunha,
ocorrido em 1210, implicando o incêndio da quintã e a demolição da torre pétrea,
é revelador do carácter excepcional do recurso à pedra na construção da época. Do
mesmo modo, uma deliberação de Afonso IV, tomada em 1339, sobre a jurisdição
eclesiástica na cidade do Porto, impondo que “todos aquelles que fezerem casas

67
Jean-Marie PESEZ, “La maison médiévale (XIe-XIIIe siècle)”, Archéologie du village et de la maison
rurale au Moyen âge, cit., p. 432.
Admitimos que, nas condições peninsulares, marcadas por profunda instabilidade, a mudança de
padrões arquitectónicos ocorra mais tardiamente que noutras zonas do Ocidente cristão.
68
Jean-Marie PESEZ, “La construction rustique en pierre au Moyen Âge”, Archéologie du village et de
la maison rurale au Moyen âge, cit., p. 94.

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Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades

na dita cidade, que sejam de pedra, nam porram em ellas ameas sem lecença do
senhorio da igreja”, parece demonstrar ser ainda pouco comum o uso da pedra
no construção de moradias urbanas em meados do século XIV69. Um e outro caso
fornecem ainda indicações preciosas relativamente à cronologia do processo de
petrificação.
A permeabilidade entre a construção rural e a casa urbana era bem evidente
nesse período (e perduraria, aliás). A curtis – moradia com pátio interior – migrou
para os espaços urbanos, merecendo a atenção de gente grada de Coimbra e San-
tarém, entre os séculos X e XII. Mas as restrições espaciais inerentes à urbanidade
torná-la-iam obsoleta. As tipologias elementares sofreram ajustamentos ao passarem
para o meio urbano. A principal mudança resultou da relação com a rua, que exigia
a adição linear de módulos paralelipédicos e a criação de um verso e um reverso,
privilegiando a parede de interface com a rua, a fachada. Cabia a esta uma função
cenográfica pública, ao passo que a parede tardoz articulava o espaço privado inte-
rior com o quintal, um espaço rural privado em cenário urbano. A construção das
casas em banda recomendava cuidados particulares com a propagação dos fogos,
recomendando o abandono das coberturas vegetais e a localização preferencial da
lareira nas traseiras da casa.
A partir de finais do século XI, envereda-se, nas cidades mais populosas, onde
o solo mais encarecia, pela verticalização da construção urbana. O subtanus e o
superatus (depois, a loja ou sótão e o sobrado), além de vantagens económicas,
mostravam-se mais adequados às funcionalidades urbanas e à preservação da
vida familiar.
No final da Idade Média, as mudanças continuaram e aprofundaram-se.
A proximidade entre pessoas e animais não deixou de existir. Porém, à excepção
do gato e do cão, estes tendem a ser apartados para construções adjacentes. Mesmo
em meio rural, a promiscuidade entre homens e animais regrediu significativamente,
escasseando nos textos desta época as referências à casa-estábulo.
As interferências entre habitação e trabalho cresceram, perante o dinamismo
e a diversificação da economia, sobretudo do artesanato e do comércio citadinos.
Mas também se desenvolveram novas tipologias e soluções técnicas inovadoras,
com diferentes padrões de custos, que permitiam separar satisfatoriamente aquelas
esferas, resguardando o espaço de relação familiar – privado e eminentemente
feminino – do espaço de trabalho, mais partilhado.

69
Corpus Codicum Latinorum et Portugalensium, Porto, 1899, vol. I, p. 40, ref. por Mário Jorge
BARROCA, “Em torno da residência senhorial fortificada. Quatro torres medievais na região de Amares”,
Revista de história, vol. IX, Porto, 1989, p. 23.

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Construir, habitar: A casa medieval

Há uma substancial melhoria dos padrões arquitectónicos. É certo que a casa


comum, sobretudo em meio rural, convive com a infraconstrução, mas progressi-
vamente vai relegando esta para as estruturas adjectivas das explorações agrícolas
e para espaços sociais periféricos (os “cabaneiros”). Por toda a parte, cresce a
intervenção do cinzel, do fio de prumo e do esquadro, alargando-se, maxime nas
cidades, o recurso a profissionais.
A evolução dos espaços habitacionais fez-se diferentemente, consoante o grupo
social a que pertenciam os seus utentes, o contexto rural ou urbano, a escala das
aglomerações ou a área regional em que as casas se inseriam.
Uma diferente acessibilidade aos materiais de construção e distintas tradições
construtivas justifica algumas diferenças de base regional. Assim, os lotes das
cidades setentrionais são habitualmente mais estreitos e compridos que os das
urbes meridionais. Por outro lado, apesar da irradiação no Norte das tradições
arquitecturais mediterrânicas da “pedra e cal”, da taipa e do adobe, é notória a
presença de materiais vegetais na construção corrente setentrional. Os edifícios
com “andares em ressalto”, de estrutura em madeira sobre base pétrea, embora
tenham expressão em Coimbra, Santarém e sobretudo em Lisboa, concentram-se
sobretudo nas cidades nortenhas. Pelo contrário, no Sul os telhados são dominantes,
mesmo em meio rural e ocorrem ainda outras soluções de cobertura de matriz
mediterrânica: a çoteia ou eirado, e as abóbadas.
A casa rural dos séculos XIV e XV tem sido apontada, para outras regiões
europeias, como prefiguração da “casa tradicional”, estudada pela etnografia dos
tempos sub-actuais70. Entre nós, porém, essa consideração só parece fazer sentido
em relação à casa térrea elementar e à casa com pátio do Sul do País.
Os padrões de conforto habitacional melhoraram, nos finais da Idade Média,
perante a instalação de chaminés, balcões e latrinas71, o ladrilhamento dos chãos,
o maior número de aberturas nos pisos superiores, ou as janelas de assento. Mas
nem todos, nem tampouco a maioria, participaram de tais melhorias e a casa
comum era quase sempre obscura, fumarenta e húmida. E, apesar dos esforços das
autoridades municipais, subsistiam problemas, ao nível da adução das águas, dos
despejos ou dos riscos de incêndio, problemas menores em meio rural e um tanto
minimizados, nas cidades, pela existência de quintais e pela instalação de poços.
As casas eram, em boa parte, espaços familiares e multifuncionais, onde a
intimidade era de todo ausente. Mas, sobretudo a nível urbano e entre a gente de
posses, aquela era favorecida pela verticalização e pela maior compartimentação,

Jean-Marie PESEZ, “La maison médiévale (XIe-XIIIe siècle)”, cit., p. 432.


70

As privadas ou “necesaryas” talvez só existissem nas casas nobres, cf. Mário Jorge BARROCA,
71

“Arquitectura gótica civil”, cit., p. 91.

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Capítulo VIII – A habitação corrente nos finais da Idade Média:
morfologias, materialidades, funcionalidades

que aumentavam o número de câmaras, embora, na ausência de corredores, a


circulação se fizesse passando de umas para outras.
Estavam mais disponíveis, sobretudo para os portugueses das cidades, soluções
para que cada um pudesse aproximar a casa habitada da casa desejada: das suas
necessidades, ou dos seus devaneios, e do seu gosto.
As melhorias experimentadas na casa gótica, em termos de conforto e de bem-
-estar, eram extraordinárias, se as cotejarmos com a modéstia das moradias da
época precedente. Mas luziam pouco no confronto com os padrões encontrados
noutros horizontes. Assim o entendeu Zurara, surpreendido com a qualidade e o
luxo das moradias muçulmanas de uma Ceuta conquistada:
Oh! como a ventura muda suas cousas como lhe praz e acrecenta e mingua segundo seu
querer. Ca tal havia antre aqueles que em este regno nom tinha huma choça, e ali acertava por
pousada grandes casas ladrilhadas com tigelos vidrados de desvairadas cores, e os teitos forrados
de olivel, com fremosas açoteas cercadas de marmores mui alvos e polidos; e as camas brandas e
moles e com roupas de desvairados lavores, como vedes que geralmente sam as obras dos mouros.
E […] nos outros, mesquinhos, que andamos no nosso Portugal polos campos colhendo nossas
messes, afadigados com a força do tempo, e aa derradeira [hora] nom temos outro repouso senam
proves casas que, em comparaçam destas, querem parecer choças de porcos.
(Gomes Eanes de Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, cap. LXXXVIII)

Fontes:
ARMAS, Duarte de, Livro das Fortalezas. Fac-símile do Ms. 159 da Casa Forte do Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, 2.ª ed., Lisboa, 1997.
Arquivo da Misericórdia de Tomar, Livro 74.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ordem de Cristo/Convento de Tomar, L.º 236; L.º 302; L.º 307.
Corpus Codicum Latinorum et Portugalensium, vol. I, Porto, 1899.
Direitos, bens e propriedades da Ordem e Mestrado de Avis nas suas três vilas de Avis, Benavila e Benavente
e seus termos, ed. por José Mendes da Cunha SARAIVA, Lisboa, 1950-1953.
ISIDORO (de Sevilha), Etimologías, ed. por José OROZ RETA e Manuel A. MARCOS CASQUEIRO, 2.ª
ed., vol. II, Madrid, 1994.
Liber Fidei Sanctæ Bracarensis Ecclesiæ, ed. crít. de Avelino de Jesus da COSTA, t. I, Braga, 1965.
Livro de Horas de D. Manuel, ed. com estudo introdutório por Dagoberto MARKL, Lisboa, 1983.
Portugliæ monvmenta historica, Diplomata et chartæ, vol. I, Lisboa, 1967.
(O) tombo da igreja do Salvador de Santarém, ed. por Manuela MENDONÇA, Lisboa, 1997.
Tombos da Ordem de Cristo, vol. I – Comendas a Sul do Tejo, ed. por Iria GONÇALVES, Lisboa, 2002.
VICENTE, Gil, Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, ed. por Maria Leonor Carvalhão BUESCU,
vol. II, Lisboa, 1984.
ZURARA, Gomes Eanes de, Crónica da tomada de Ceuta, ed. por Francisco Maria Esteves PEREIRA,
Lisboa, 1916.

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